Você está na página 1de 372

Spinoza.

Novas perspectivas históricas


CADERNOS DO DEPARTAMENTO DE FILOSOFIA DA PUC-RIO, JUL.-DEZ. 2017
41
Organização:
Maxime Rovere
CADERNOS DO DEPARTAMENTO DE FILOSOFIA DA PUC-RIO, JUL.-DEZ. 2017
O que nos faz pensar
Cadernos do Departamento de Filosofia da PUC-Rio

Pontifícia Universidade Católica do Rio de Janeiro


Centro de Teologia e Ciências Humanas (CTCH) – Departamento de Filosofia

Editor
Pedro Duarte (PUC-Rio)

Comissão Editorial
Irley Franco (PUC-Rio); Danilo Marcondes de Souza Filho (PUC-Rio); Déborah Danowski (PUC-
Rio); Luiz Carlos Pereira (PUC-Rio)

Conselho Editorial
Abel Lassalle Casanave (UFSM); André Duarte (UFPR); André Lepecki (Tisch School of the Arts,
NY/EUA); Edgard José Jorge Filho (PUC-Rio); Elsa Helena Buadas Wibmer (PUC-Rio); José
Alexandre Durry Guerzoni (UFRGS); Françoise Dastur (Université de Nice Sophia-Antipolis,
França); Gregory Chaitin (UFRJ); Howard Caygill (Kingston Univerisity, Inglaterra); Markus
Gabriel (Universität Bonn, Alemanha); Marcelo Perine (PUC-SP); Marcia Cavalcante (Södertörn
University, Suécia); Matthias Schirn (Ludwig-Maximillians Universität Munich, Alemanha); Maura
Iglesias (PUC-Rio); Mercedes Torrevejano (Universidade de Valência, Espanha); Newton Carneiro
Affonso da Costa (USP); Oswaldo Chateaubriand Filho (PUC-Rio); Oswaldo Giacoia (UNICAMP);
Oswaldo Porchat Pereira (UNICAMP); Paulo Cesar Duque Estrada (PUC-Rio); Renato Janine
Ribeiro (USP); Ricardo Ribeiro Terra (USP); Roberto Markenson (UFPE); Vladimir Vieira (UFF);
Virginia Figueiredo (UFMG); Wilson John Pessoa Mendonça (UFRJ).

Equipe Técnica
Elir Ferrari - assessor editorial
Gabriel Costa - formatação

Revisão e normalização
Angela Dias

Projeto Gráfico
Marcos Martins Design

Capa e Editoração Eletrônica


estudio \o/ malabares - Ana Dias e Julieta Sobral

Imagem da capa
Jan de Bray, The Haarlem Painters' Guild /1675

Catalogação na fonte: PUC-Rio / Biblioteca / DBD

O que nos faz pensar [recurso eletrônico] : cadernos do Departamento de


Filosofia da PUC-Rio. Vol. 1, n. 1, (1989)- . – Rio de Janeiro : Pontifícia
Universidade Católica do Rio de Janeiro, Departamento de Filosofia, 1989-
v.

Semestral
Descrição baseada em: Vol. 1, n. 1 (1989) ; título da tela de informação
geral (em 11 de dez. 2017)
Exigências do sistema: conexão com a Internet, World Wide Web browser
e Adobe Acrobat Reader
Disponível em: http://oquenosfazpensar.fil.puc-rio.br/
ISSN: 0104-6675

1. Filosofia - Periódicos. I. Pontifícia Universidade Católica do Rio de


Janeiro. Departamento de Filosofia.

CDD: 100
5

5 Apresentação
Maxime Rovere

9 Galileo Galilei, Holland and the Pendulum Clock


Filip Buyse

45 Leggere Spinoza alla luce della tradizione averroista ebraica.


Un resoconto delle recenti acquisizioni storiografiche
sumário

Giovanni Licata

57 Controvérsia religiosa: os livros de Gabriel-Uriel da Costa


Adma Fadul Muhana

75 Aproximações para uma história do conceito de Esperança nas


expectativas milenaristas do século XVII: Esperança de Israel,
Esperanças de Portugal e Door of Hope
Luis Filipe Silverio Lima

107 O que pode o corpo? Spinoza, na cabeceira dos esfolados


Raphaële Andrault

141 Cartesianismos e spinozismos: rumo a uma teoria das histórias


possíveis em filosofia
Delphine Antoine-Mahut
163 Spinoza collectif: la double écriture de la Préface aux
Opera Posthuma
Maxime Rovere
191 O Spinozismo de Tschirnhaus: da teoria das noções comuns
à verdadeira física
Mogens Lærke
211 Los amigos prusianos. Episodios de la recepción de Spinoza
en el siglo XVIII
María Jimena Solé
235 O silêncio de Marx: sobre a recepção de Espinosa em 1841-1845
Rodrigo Nunes e José Francisco Andrade Alvarenga
255 Spinoza: uma teoria do homem. Uma antropologia materialista
Pierre-François Moreau

entrevista
267 Spinozismo, or how to raise higher political consciousness
Com Jonathan Israel
Por Maxime Rovere

tradução
275 Karl Heinrich Marx, Spinoza, Tratado Teológico-Político
Por Rodrigo Nunes e José Francisco Andrade Alvarenga

resenha
305 Tradição e Iluminismo em Uriel da Costa
Felipe Jardim Lucas

varia
311 As conversões de Friedrich Schlegel: filosofia política como
mística do tempo
Fabiano Lemos
339 Sobre máquinas e organismos. Canguilhem e os aspectos
dissimulados do animal-máquina cartesiano
Rafael Henrique Teixeira
APRESENTAÇÃO

Spinoza. Novas perspectivas históricas

Mais que os outros filósofos, a obra de Bento de Spinoza (1632 – 1677) apa-
rece aos leitores do século XXI, como situada fora da História. O hábito de
ler em particular a Ética fora de contexto está relacionado, especialmente, a
um método que os universitários franceses dos anos 1960 (Martial Gueroult,
Alexandre Matheron, Gilles Deleuze), que desempenharam um papel maior
na entrada recente de Spinoza no panteão dos grandes filósofos, apreciavam
acima de tudo: a análise estrutural. Tratava-se, então, de compreender o pen-
samento de Spinoza a partir duma articulação de conceitos internos naquilo
que seus comentadores chamaram de seu “sistema”.
No Brasil, esse método conheceu e desfrutou ainda de uma fortuna par-
ticular. Com efeito, até recentemente, essa abordagem correspondia a duas
especificidades brasileiras: de um lado, as fontes (tal como Regius, Da Costa,
Jellesz, Meyer, Van den Enden, etc.) eram até os anos 2010 dificilmente aces-
síveis ao Brasil, de sorte que propondo suas leituras internistas, comentadores
puderam prolongar a abordagem estrutural muito oportunamente (Marilena
Chauí, nesse sentido, aparece como uma exceção, equilibrando o texto e o
contexto); de outro lado, a leitura de Spinoza no Brasil e na América Latina
de modo geral respondia a uma forte urgência política, que era de fornecer
elementos filosóficos destinados a ajudar no desenvolvimento de um pen-
samento tanto laico como social; nesse sentido, o vínculo entre o estudo da
filosofia de Spinoza e a história do século XVII não era uma prioridade.
Hoje, a situação mudou. Ao longo dos últimos dez anos em particular, a
internet disponibilizou em alguns clicks fontes até então raríssimas. Novos
nichos de estudos sobre Spinoza desenvolveram-se nos Países Baixos, na Itá-
lia e nos países anglófonos. Os novos pesquisadores neerlandeses valorizaram
um milieu intelectual onde Spinoza figura como um pensador entre outros
(primum inter pares), e onde uma grande parte das ideias que se atribuem a
ele aparecem como elaboradas por outros. Os italianos, grandes filólogos, re-
alçaram a importância de tradições subterrâneas e a participação de todo um
coletivo na obra de Spinoza. Quanto aos anglófonos, eles souberam integrá-
-lo num quadro histórico mais vasto, onde a metafísica não figura mais como

O que nos faz pensar, Rio de Janeiro, v.26, n.41, p.5-7, jul.-dez. 2017
6 Maxime Rovere

isolada de outras ciências, e onde seu pensamento político inscreve-se por


si mesmo nos movimentos das ideias que ultrapassam amplamente a indi-
vidualidade de um autor. No próprio Brasil, os historiadores (em particular
os historiadores do judaísmo) desenvolveram importantes trabalhos sobre as
relações entre os Países Baixos e o Novo Mundo.
São essas, portanto, as novas perspectivas que este número da OQNFP
deseja apresentar. Dessa maneira, a interpretação do pensamento de Spino-
za no Brasil vai poder, segundo a livre escolha dos comentadores e alunos,
integrar metodologias comparatistas, de tal forma que essa comparação não
seja conduzida de maneira abstrata entre os grandes pensadores a partir de
afinidades exclusivamente conceituais (Lucrécio, Maquiavel, Spinoza, Marx,
etc.), mas que elas levem em conta as determinações históricas concretas que
deram sentido às propostas filosóficas que aparecem na obra de Spinoza. Es-
tudando os autores menos célebres com os quais Spinoza trabalhou conjun-
tamente, se poderá compreender a filosofia de outra maneira que não seja a
criação genial de uma elite intelectual reduzida a alguns nomes. Assim, a his-
tória da filosofia poderá assumir um aspecto diferente: no lugar de apresentar
uma litania dos grandes autores, ela seguirá o devir dos conceitos através das
fronteiras das disciplinas (metafísica, medicina, teologia, matemática, etc); no
lugar de deixar-se fascinar pelas teses e doutrinas, ela saberá ressaltar tanto
as práticas como os problemas; no lugar de ser prisioneira das lutas entre
adversários, ela repensará profundamente os laços de retroação que definem
as controvérsias e contribuem para a geração de ideias novas.
Os estudos reunidos aqui, escolhidos de maneira a refletir pesquisas in-
ternacionais, lançam esclarecimentos importantes sobre muitos aspectos da
ebulição intelectual que revela o pensamento de Spinoza. Filip Buyse mostra,
assim, como a “nova física” que se define entre Galileu, Descartes e Huygens
cruza as mutações às quais a filosofia de Spinoza pertence de pleno direito.
Na tradição hebraica, Giovanni Licata identifica uma tormenta que faz de Spi-
noza não uma anomalia, mas o representante moderno do averroísmo antigo.
O estudo de Adma Muhana sobre Uriel da Costa, autor lido amiúde como
um “precursor” de Spinoza, ajuda a perceber a existência de uma multidão
judaica mais diversa do que se parece. Da mesma forma, Luís Filipe Silvério
Lima mostra que a fronteira entre judeus e cristãos é mais porosa do que se
imagina. Enfim, Raphaële Andrault esclarece tudo o que a frase mais célebre
de Spinoza, “ninguém sabe o que pode o corpo” (Ética, III, 2, escol.), deve
aos trabalhos de Niels Stensen, chamado de Steno ou Sténon, um dos gran-
des anatomistas de seu tempo.

O que nos faz pensar, Rio de Janeiro, v.26, n.41, p.5-7, jul.-dez. 2017
Apresentação 7

A pertinência dessa abordagem, que consiste em tratar os conceitos de


Spinoza como partes de uma filosofia que não se pode compreender senão
como relação entre vários pensadores, é tão mais forte quando é dos seus
companheiros de estrada mais próximos. Com Delphine Antoine-Mahut, a
questão de saber se Spinoza é cartesiano ou não muda até desaparecer, tão
logo aparecem as divisões do cartesianismo. Os artigos sobre Jellesz, Meyer
e Tschirnhaus por Maxime Rovere e Mogens Laerke ilustram a que ponto
o círculo imediato de Spinoza é constituído de pensadores que contribuí-
ram ativamente para definir o spinozismo, e estão longe da imagem corrente
de discípulos que recebem de maneira passiva o ensinamento de seu amigo.
Enfim, os artigos de Jimena Solé, de Nunes e Alvarenga e de P.-F. Moreau
concernem às recepções alemã e francesa, mostrando a que ponto as leituras
sucessivas do spinozismo participam de sua definição.
Enfim, é com uma alegria particular que este número apresenta uma con-
versa com Jonathan Israel, cujo livro Radical Enlightenment (Oxford Univer-
sity Press, 2002) modificou de maneira definitiva a imagem de Spinoza. Este
número apresenta também a primeira tradução em português do Caderno
Spinoza de Karl Marx, excepcional exemplo de um trabalho de montagem
(em sentido cinematográfico) no qual o autor d’O Capital recorta o Tratado
teológico-político de maneira a isolar o que o interessa, deixando de lado ou-
tras partes do spinozismo: obra-prima para estudar os vieses de leitura e as
novas possibilidades do pensamento marxista.
Dessa maneira, este número gostaria de encorajar os jovens pesquisadores
do Brasil a estudar um Spinoza menos ideólogo que historiador, e a não temer
compreendê-lo como um homem de seu tempo para refinar nossa compreensão
da relação entre a conceituação filosófica e a atualidade política. Não é achatan-
do os conceitos abstratos sobre as situações locais que a filosofia demonstra sua
força. Ignorar os problemas específicos aos quais Spinoza e os seus respondiam
seria perder toda a pertinência desse pensamento: a aptidão da filosofia de se
emancipar de suas condições iniciais é inconcebível sem um trabalho de aná-
lise, que não pode ser unicamente conceitual, mas deve se pensar como uma
permanente extensão e complexidade de seu sistema de referência. É estenden-
do nossa abordagem da filosofia aos elementos que lhe parecem mais estranhos
que o gesto filosófico tornar-se-á por si mesmo o mais claro aos nossos olhos, e
que ele nos será mais fácil de prolongá-lo no mundo contemporâneo.

Maxime Rovere
ORGANIZADOR

O que nos faz pensar, Rio de Janeiro, v.26, n.41, p.5-7, jul.-dez. 2017
Galileo Galilei, Holland and the Pendulum Clock
Filip Buyse*

Galileo Galilei, Holanda e o relógio de pêndulo

Abstract
The pendulum clock was one of the most important metaphors for early modern
philosophers. Christiaan Huygens (1629-1695) discovered his pendulum clock
in 1656 based on the principle of isochronism discovered by Galileo (1564-1642).
This paper aims at exploring the broad historical context of this invention, showing
the role of some key figures such as Andreas Colvius (1594-1671), Elia Diodati
(1576-1661), Hugo Grotius (1583-1645) and Constantijn Huygens, the father of
Christiaan Huygens. Secondly, it suggests - based on this context - that it is hard
to believe that Huygens did not know about Galileo’s idea to construct a pendulum
regulated clock. Finally, this article illustrates how the Dutch philosopher Spinoza
(1632-1677) might have been inspired by Huygens’ discovery of the synchronization
of the pendulum clocks in his views on the agreement between bodies in the universe.

Keywords: Galileo; Pendulum Clock; Huygens; Dutch Republic; Spinoza.

Resumo
O relógio de pêndulo foi uma das metáforas mais importantes para os filósofos
modernos. Christiaan Huygens (1629-1695) inventou o relógio de pêndulo em 1656
baseado no princípio do isocronismo descoberto por Galileo (1564-1642). Este
artigo busca explorar o amplo contexto histórico dessa invenção, demonstrando o
papel de algumas figuras-chave como Andreas Colvius (1594-1671), Elia Diodati
(1576-1661), Hugo Grotius (1583-1645) e Constantijn Huygens, o pai de Christiaan
Huygens. Em segundo lugar, sugere-se - baseado nesse contexto - que é difícil acreditar
que Huygens não sabia da ideia de Galileo de construir um relógio regulado por um
pêndulo. Por fim, este artigo ilustra como o filósofo holandês Espinosa (1632-1677)
pode ter se inspirado nessa invenção de Huygens da sincronização do relógio de
pêndulo em suas visões sobre o acordo entre os corpos no universo.

Palavras-chave: Galileo; Relógio de pêndulo; Huygens; República holandesa;


Espinosa.

* Visiting HAPP fellow at the University of Oxford. E-mail: f.a.a.buyse@gmail.com.

O que nos faz pensar, Rio de Janeiro, v.26, n.41, p.9-43, jul.-dez. 2017
10 Filip Buyse

1. Introduction1

In Holland and abroad, philosophers such as Comenius, Arnold Geulincx,


Leibniz, Spinoza, … applied the analogy of the pendulum clock in their
philosophies. The Dutch astronomer and physicist, Christiaan Huygens, de-
signed in 1656 his pendulum clock which inspired numerous early philoso-
phers. Moreover, the pendulum clock became one of the leading metaphors
of the 17th century. Consequently, it is relevant for the study of early modern
philosophy to have a more in depth understanding of the pendulum clock,
its history and its context.
After an introductory paragraph (Section 2) wherein the difference be-
tween a mechanical clock and a pendulum is explained, this essay focusses
in the second part (Section 3) on the relation between Holland and Italy, in
the period between 1623 and 1638. In this section, there is particular atten-
tion paid to a few people who played a key role in this relation. Furthermore,
this essay argues - in a narrative style - that the invention of the pendulum
clock by Huygens should be understood in the context of Galileo’s proposal
for a method for the determination of the longitude at sea (Section 4). Hence,
Galileo’s correspondence with the representatives of the States General of the
Netherlands will be examined more in depth than in the existing historical
literature. Furthermore, the paper shows that it is likely that Christiaan Huy-
gens knew about Galileo’s design of a pendulum regulated clock which the
author of Dialogo (1623) describes in his first letter to States General.
In the last section (Section 5), this essay gives an example of an appli-
cation of the pendulum clock by the Dutch philosopher Spinoza. Martial
Gueroult, argued already in his well-known volume entitled Spinoza – L’âme
(1974) that Spinoza applied the physics of pendulum clock in his conception
of a complex and a simple body. However, this section argues that Spinoza
applied the phenomenon of synchronization (that Huygens had just discov-
ered) to explain his views on the agreement between bodies in the universe
in his Letter 32 to Henry Oldenburg.

1 In this paper, I use the following abbreviations: GG = Galilei Galileo (Ėd. par Favaro, A. et Del
Lungo, I.), Le Opere di Galileo Galilei (Edizione Nazionale). 20 vols, Florence, Barbera, 1890-1909,
OCH = Christiaan Huygens. Œuvres Complètes de Christiaan Huygens (Publ. par la Société hol-
landaise des sciences). La Haye: M. Nijhoff, 1888-1950 and G = C.I. Gerhardt, Die Philosophischen
Schriften von G.W. Leibniz. 7 vol., Berlin: Weidmann, 1875-90.

O que nos faz pensar, Rio de Janeiro, v.26, n.41, p.9-43, jul.-dez. 2017
Galileo Galilei, Holland and the Pendulum Clock 11

2. The mechanical clock and the pendulum clock: Huygens’ invention and
Galileo’s teaching

The pendulum clock is an example of a mechanical clock but what is a me-


chanical clock, how does it work and what is the difference between a pen-
dulum-regulated clock and other mechanical clocks?
The essence of a mechanical clock is not to find in the material of which
it is composed. The same type of clock can be composed of several materials.
The essence of the clock, by contrast, is rather to find in the characteristic
relation between its composing parts.
A typical mechanical clock is basically composed of five different elements
and each has its own specific function: the energy source that every clock
needs to make it work (e.g. the potential energy of a mass hanging at a certain
height or the elastic energy of a spring), wheels for the transfer of the energy
through the clock, an escapement to stop the potential energy from escaping
all at once, the controller which controls the speed of the escapement and
the time indicator which is the part of the clock that indicates the time to
the viewer.

Left: a traditional mechanical clock; Right: Huygens’s pendulum clock2

2 Drawing from Christiaan Huygens’s treatise Horologium Oscillatorium, published in 1673 in Paris. It
records improvements to the mechanism that Huygens had illustrated in the 1658 publication of his
invention, titled Horologium.

O que nos faz pensar, Rio de Janeiro, v.26, n.41, p.9-43, jul.-dez. 2017
12 Filip Buyse

However, the difference between the pendulum clock and other mechan-
ical clocks is that a pendulum clock has a pendulum as a regulator. There is
no doubt that the Dutch physicist Christiaan Huygens of Zulichem designed
his pendulum clock, which he patented in 1657, based on the principle of
isochronism invented by Galileo. However, nowhere does the Dutch physi-
cist explicitly reveals how he actually came to the idea to design a mechani-
cal clock based on Galileo’s principle, although he wrote two books on his
invention: Horologium3 (1658) and Horologium oscillatorium sive de motu pen-
dularium4 (1673). In the first work, written directly after his invention, Huy-
gens obviously does not hide the link between his new design and Galileo’s
work. On the contrary, in his introduction he writes:

Anyone might easily conjecture that the pendulums of astronomers had


provided the opportunity to him to him who had known that these were
used for some years previously by them. Without doubt, accustomed to the
faults in water-clocks and automata of various kinds used for observations,
at last, from the original teaching of that most wise man, Galileo Galilei
[docente primum Viro sagacissimo Galileo Galilei], the astronomers initi-
ated this method: that they should impel manually a weight suspended by
a light chain, by counting the individual vibrations of which just as many
should be included as would correspond to an equal number of time-units.
By this method they effected observations of the eclipses more accurately
than before; in like manner they measured – not unsuccessfully – the sun’s
diameter and the distances of the stars. But besides the necessary motion of
the pendulum [pendulorum motus] failing unless repeatedly assisted by the
attendant, a further tedious task was the counting of every oscillation; to
this end, indeed, some kept vigil for whole nights with the most wonderful
patience, as they themselves testify in their publications5.

3 There is an English translation with the original Latin Text in facsimile of this work by Huygens
included in Edwardes, Ernest, L., The Story of the Pendulum Clock. Altrincham: John Sherratt and
son LTD, 1977, 60-95.

4 For an English translation of this work (originally published in Latin) by H.J.M. Bos, see:
Blackwell, Richard, J., Christiaan Huygens’ The Pendulum Clock or Geometrical Demonstrations Con-
cerning the Motion of Pendula as Applied to Clocks. Ames: The Iowa State University Press, 1986.

5 Edwardess, E., op. cit., p.75.

O que nos faz pensar, Rio de Janeiro, v.26, n.41, p.9-43, jul.-dez. 2017
Galileo Galilei, Holland and the Pendulum Clock 13

As this passage makes clear, Huygens had been challenged to design a


new type of clock by the fact that existing mechanical clocks did not work
accurately. Obviously, as he indicates, his source of inspiration was “the
original teaching” of Galileo Galilei, “that most wise man” as he calls him.
Amazingly, Huygens does not initially refer to Galileo’s physics of the pen-
dulum as such but rather to its astronomical applications. In this passage
from his Horologium (1658), Huygens argues that astronomers had already
initiated Galileo’s “teaching” successfully so that they affected observations
of eclipses much more successfully than before by means of a time-measurer
based on counting the vibrations of a pendulum. Interestingly, Huygens here
makes a link between Galileo’s teachings, the application of the pendulum
and astronomical observations; an important relation that will be discussed
further in this text. Furthermore, the Dutch astronomer explains that the
vibration-counting was done manually which was an immense work that
had to be done much more automatically and in a less time-consuming way.
This was, according to Huygens, the big challenge that had been at the origin
of his design of his new pendulum clock.
Galileo had discovered that the time of one oscillation of a pendulum
(T) is not dependent on the mass but only on the length (l) of the pendu-
lum. There is historical evidence6 that the author of the Dialogo (1632)
had been examining this property since around 1602 and that it would
be part of his research activities for the rest of his life. According to this
idea of isochronism7, the oscillation time of a pendulum is constant in
time, even when there is friction. Moreover, the oscillating time could be
determined by choosing the adequate, corresponding length of the pen-
dulum. For example, a pendulum of ¼ meter in length has an oscillating
time of 1 second.
Huygens knew Galileo’s works very well and much of his physical as well
as his astronomical work can be conceived as a prolongation of that of his
Italian master8. For instance, he completed Galileo’s ideas on isochronism

6 Cf. Letter of Galileo to Guido Ubaldo dal Monte, from Padua, dated 29 November 1602, in GG
X 97-100. For an English translation of the letter see: P. Palmieri, Reenacting Galileo’s Experiments:
Rediscovering the Techniques of Seventeenth-Century Science. Lewiston, NY, 2008, 257–60

7 The term “Isochronism” is derived from the Greek roots “iso” and “chronos” and means, literally,
“in the same time.” As Palmieri has remarked, this term is not a Galilean word. The author of the
Dialogo uses other terms to refer what is known today as the property “isochronism”. Palmieri, P.,
A phenomenology of Galileo’s experiments with pendulums, BJHS, 2009, 1.

8 Cf. Chareix, F., Le mythe Galilée. Paris: puf, 2002.

O que nos faz pensar, Rio de Janeiro, v.26, n.41, p.9-43, jul.-dez. 2017
14 Filip Buyse

and expressed them in the form of a physical law in the form of a modern
mathematical formula. Currently, we know the pendulum law written as
(with g = gravitational acceleration):

1 l
T=
2p g

3. The historical context before 1635: the relation between Galileo and Holland

Huygens designed his clock based on Galileo’s physics of the motion of a


pendulum. However, there are many other links between Huygens and Gali-
leo which might be relevant and important for a better understanding of the
context of the invention of the pendulum clock. Interestingly, these links are
situated on different levels: on the level of the broad political context level of
Holland and Northern Italy; on the level of the circle around Huygens and
the one around Galileo, and on the more personal level between Christiaan
Huygens (and his family) and Galileo Galilei’s work.
Galileo had at the end of life - for several reasons - a very particular rela-
tion with several leading people of Holland which unfortunately had – as I
will show - a very tragic end. However, his successes also had obvious link
with the Dutch Republic and its citizens. Moreover, Galileo only became very
successful and well-known in large parts of Europe after he had improved
in 1609 the Dutch telescope [Hollandsche Kijker] which had been invented
in Middelburg (Holland) one year earlier9. With his new telescope, he made
the astronomical observations of the craters of the moon and the satellites
of Jupiter - that he commented in his bestseller the Sidereus nuncius (1610) -
which made him not only directly famous in Western Europe, but also led to
his appointment as the ‘Chief Academician and Mathematician to the Most
Serene Grand Duke of Tuscany’. This changed his professional and personal
life completely. Interestingly, the works of Galileo which documented his tele-
scopic observations returned as a boomerang back to Holland long before

9 The discussion who the inventor of the telescope was, is an ongoing debate. Traditionally,
Lipperhey and Zacharias (or Sacharias) Jansen (or Janssen) are presented as the most probable
candidates. However, both candidates are problematic. For a recent discussion of this question,
see: Zuidervaart, Huib, J., The ‘true inventor’ of the telescope. A survey of 400 years of debate.
In: van Helden, Albert, et. al., The origins of the telescope. Amsterdam: KNAW Press, 2010, 9-44.

O que nos faz pensar, Rio de Janeiro, v.26, n.41, p.9-43, jul.-dez. 2017
Galileo Galilei, Holland and the Pendulum Clock 15

his last important work, the Discorsi (1638) would be published in Leyden.
The earliest mention of Galileo’s ideas is already in the works of Gorlaeus10
(1591-1612) written around 1610, just after the publication of his bestseller,
the Sidereal Messenger [Sidereus nuncius].
Amazingly, Galileo did not become not well-known in Holland because
of the rise of copernicanism. On the contrary, several Dutch historians such
as Reyer Hooykaas11 and more recentely Rienk Vermij12 , Eric Jorink13 and
Djoeke van Netten14 argue that copernicanism only became more influential
because of the works of Galileo and his condemnation by the Roman Church,
after the publication of the Dialogo in 1632. Indeed, Copernicius was not
popular in Holland before 1630 although the heliocentric/geocentric debate
was in other European countries already held in the first decades of the 17th
century. Even the Dutch editor15 of a new edition of Copernicus’s main work,
Nicolaus Mulerius (1564-1630), was not a real Copernican but rather an Ar-
istotelian16. Moreover, around 1625 there were only a handful Copernicans17
in the Dutch Republic, who were all Galileo sympathizers.
A few people played a major role in making Galileo well-known in the
Republic. Indeed, in the period before Christiaan Huygens, there were four
people who played a key role in the relation and communication between the

10 Cf. Lüthy Christoph: David Gorlaeus (1591-1612). An enigmatic figure in the history of philosophy
and science. Amsterdam, Amsterdam University Press, 2012, 27.

11 Cf. Hooykaas, R., The reception of copernicanism in England and the Netherlands. In: Wilson,
C., e.a. ed., The Anglo-Dutch contribution to the civilization od early modern society. Oxford: OUP,
1976, 33-44.

12 Cf. Vermij, Rienk, The Calvinistic Copernicans. The Reception of the New Astronomy in the Dutch
Republic, 1575-1750. Amsterdam: Koninklijke Nederlandse Akademie van Wetenschappen, 2002,
106-107 and Vermij, R., Het copernicanisme in de republiek, Tijdschrift voor geschiedenis, 16,
1993, 349-367.

13 Cf. Jorink, Erik, Tussen Aristoteles en Copernicus. De Natuurfilosofische opvattingen van


Nicolaus Mulerius (1564-1630). In: H. Krop, J. van Ruler en A. Vanderjagt eds, Zeer geleerde pro-
fessoren. De beoefening van de filosofie in Groningen, 1614-1996 (Hilversum 1997), 79. .

14 Cf. van Netten Djoeke, Van Netten, Djoeke, Koopman in kennis – De uitgever Willem Jansz
Blaeu (1571-1638) in de geleerde wereld van zijn tijd. Proefschrift, Rijkuniversiteit Groningen,
Maart 2012,106.

15 Mulerus’s edition of Copernicus’s De revolutionibus was published in 1617, the original work
in 1543.

16 Cf. Jorink, E., op. cit., 83.

17 Cf. van Netten, D., op. cit., p. 106.

O que nos faz pensar, Rio de Janeiro, v.26, n.41, p.9-43, jul.-dez. 2017
16 Filip Buyse

Dutch Republic and Galileo’s Italy: Andreas Colvius, Elia Diodati, Hugo Gro-
tius and Elsevier. As Klaas van Berkel18 puts it: Isaac Beeckman was most con-
genial to Galileo in Holland in the period before Huygens. However, it was
the Dutch protestant minister and former diplomat Andreas Colvius (1594-
1671)19, who introduced the mechanical philosopher to the works of Galileo
and to members of circle around Galileo. From 1620 until 1627, Colvius
accompanied the diplomat Johannes Berck as a pastor to the Dutch Embassy
to Venice20. Interestingly, around 1620, towards the end of the Twelve Years’
Truce, Constantijn Huygens (the father of the Christiaan Huygens) also trav-
elled as a secretary of ambassador François van Aerssen to Venice, to gain
support against the threat of renewed war.
Colvius was an important intellectual who was interested in natural sci-
ence. During his lifetime, he was in contact with numerous important natu-
ral scientists such as René Descartes, Jacob Golius, Alexander de Bie, Mican-
zio and many other. In his correspondence with them, he discussed mainly
scientific topics. Importantly, while in Italy, he made others copies of Galileo’s
work which he brought to Holland when he returned. Importantly, he even
brought a copy of the unpublished Discorso sopra Del flusso e reflusso del mare.
Back in Breda, he lent books from his library to natural philosophers such
as Christiaan Huygens and Isaac Beeckman (1588-1637). Interestingly, in
March 1655 (only one year before he designed his pendulum clock), Chris-
tiaan Huygens sent a letter to Colvius, asking him to send him Galileo’s man-
uscripts. Importantly, this source makes clear that the Dutch physicist was at
that time especially interested in Galileo’s writings concerning the problem of
the determination of the longitude: “Expectabo invicem quae ad longitudinum
scientiam pertinent manuscripta, et si quae alia Galilaei posthuma possides; resti-
tuturus cum tibi visum fuerit.” Moreover, he was so eager to have these copies
of Galileo’s work that he tried very tactfully to give Colvius a new microscope
that he had just designed as a present in the hope of receiving Galileo’s works

18 Cf. Van Berkel, Galileo in Holland before the Discorsi: Isaac Beeckman’s reaction to Galileo’s
work. In: Maffioli, C.S. and L.C. Palm (Editors), Italian Scientists in the Low Countries in the
XVIIth and XVIIIth Centuries. Atlanta / Amsterdam: Rodopi, 1989, 101.

19 For more information about Colvius, see: Molhuysen, P.C. and Blok, P.J. (Editors), Nieuw
Nederlandsch Biografisch Woordenboek (NNBW). Leiden: A.W. Sijthoff’s Uitgevers-maatschappij,
Deel 1, 1911, 627-629 and Nauta, D. et al (Editors), Biografisch lexicon voor de geschiedenis van
het Nederlands protestantisme. Kampen: Uitgeversmaatschappij J.H. Kok, Deel 2, 1978, 134-135.

20 Thijssen-Schoutte, C.L., Andreas Colvius, een Correspondent van Descartes. In: Thijssen-
-Schoutte, C.L., Uit de Republiek der Letteren. ’s Gravenhage: Martinus Nijhoff, 1967, 67- 89.

O que nos faz pensar, Rio de Janeiro, v.26, n.41, p.9-43, jul.-dez. 2017
Galileo Galilei, Holland and the Pendulum Clock 17

from him in return. During the same month, Colvius had already sent his
“Galilaei tractatus” and his “aliud manuscriptum ejusdem Galilaei” to Huygens.
The former treats the ‘longitudinum scientiam’, the latter was a copy of Galileo’s
“del flusso e riflusso del mare”.
Another person who played a major role in the process that made Galileo
more well-known and even popular in Holland was Elia Diodati (1576-1661).
He was a French jurist and lawyer of Swiss/Italian origin, working as an ap-
pointed ‘avocat du Parlement’ in Paris where he resided until his death in
1661. Importantly, he was a correspondent and good friend of Galileo. He
met him for the first time around 1620 during a visit in Italy. Diodati was a
member of the noble Diodati/Calandrini/ Burlamacchi family. This influential
family had branches in several countries of western Europe: not only in Italy
(Lucca), France (Paris, Lyon, Genève), and Germany (Nuremberg) but also
in Holland (Amsterdam) where the family was close to the Huygens family21.
Constantijn Huygens had a correspondence with several members of the Ca-
landrini/Diodati family and - as I will show in the next section - he mediated
in the negotiations between Galileo and the States General of Holland. It is
important to notice that Elia Diodati met Christiaan Huygens I (1551-1624) -
the father of Constantijn Huygens I and the grandfather of the Mathematician
(Christiaan Huygens II) - in Paris which was the start of a long-life friend-
ship. This friendship was the reason why Diodati would later contact his son,
the Diplomat and poet, Constantijn Huygens I – who had a correspondence
with several members of the Diodati/Calandrini Family - in order to ask for
mediation in the tough negations between Galileo and the States General; a
mediation which might be very important as background information for our
discussion of the question who the inventor was of the first pendulum clock.
Elia Diodati was extremely skillful in creating relations with other people.
Furthermore, he had a very particular relation with most of this other fam-
ily members. However, there is no doubt that he was in contact with other
family members in Europe, e.g. in Holland. For instance, during his entire
life, he was in close relation with his nephew, the leading Calvinist theologian
and bible translator Giovanni (Jean) Diodati (1576-1649) who attended the

21 For a detailed analyzes of Elia Diodati’s life, his activities and the relation between Elia Dio-
dati and the other members of his noble family, see: Garcia’s doctoral thesis entitled Elie Diodati
(1576-1661): un homme de réseau au service de la cause galiléenne. Meanwhile this thesis has been
published in the form of a book. The references of this work are : Garcia, S., Elie Diodati et Galilée
: Naissance d’un réseau scientifique dans l’Europe du XVIIe siècle. Bibliothèque d’Histoire des Sciences,
Leo Olschki Editions (1 janvier 2004).

O que nos faz pensar, Rio de Janeiro, v.26, n.41, p.9-43, jul.-dez. 2017
18 Filip Buyse

synod of Dort (Holland) for reformed churches in 1618-1619 and played


a prominent role in it. On this occasion, the theologian did a trip through
Holland, met several leading people and was invited by Mauritius to become
professor at the University of Leiden; an invitation he declined, although later
three of his sons (Philippe, Samuel and Marc) settled in Holland.
Hugo de Groot - who is better known under his Latinized name Hugo
Grotius (1583-1645) - was in close contact with Elia Diodati when he lived
in exile in Paris. Understandably, the law scholar had a lot of sympathy for
Galileo (who had been condemned by the Roman Church in 1633) because
he had also been condemned to a life sentence. However, on 22 March 1621,
the author of Mare Liberum (1604) could - with the help of his wife Maria
van Reigersberch - escape in a spetacular way, in a chest of books, from Lo-
evestein. While living in exile in Paris, Grotius organized the plan to smuggle
Galileo outside Italy and bring him to Amsterdam where he would be able
to live peacefully and focus on his promising work. On 17th of May 1635
these plans were made concrete. Grotius wrote a letter to his friend Gerar-
dus Vossius (1577-1649) asking him if he could find a residence for Galileo
in Amsterdam22. Grotius suggested that he could become professor at the
Athenaeum illustre in Amsterdam. Vossius - the first professor of the newly
founded school - admired Galileo and was moved about what happened with
the Florentine who was convinced that the earth was rotating around the sun.
Also, the Amsterdam regents rather welcomed Grotius’ proposal.
Already, on May 28 1634, Vossius had expressed his opinion on Galileo’s
condemnation to Hugo Grotius “… imo Galileus Galilaei Florentinus, quia
hanc sententiam et viva voce et scribendo defenderet, in carcerem sit conjec-
tus nec inde emittendus, priusquam poenitentiae satis egerit”. However not
all people in power were interested and Vossius complained in his letter to
Grotius of the 1st of July that: “it would be easier if not so many of these who
are in charge were more concerned with money than with the truth and the
glory of the city.” Unfortunately, within a month already Galileo informed
Grotius that he was too old, and his health was too poor to move to Holland.
It is not a coincidence that the few Dutch heliocentrists all had something
to do with the Athenaeum illustre that had been founded in the year that Gali-
leo had been condemned. This newly founded school situated in Amsterdam
had to prepare students for their education at the universities. The pre-
university academic school became a real center for Copernicans and Galileo

22 Van Miert, 2009, 56.

O que nos faz pensar, Rio de Janeiro, v.26, n.41, p.9-43, jul.-dez. 2017
Galileo Galilei, Holland and the Pendulum Clock 19

sympathizers. Practically, all the few Dutch Copernicans of that time were
linked in one or another way to this school. The first professor who taught
publicly heliocentristic ideas in Holland, Martinus Hortensius, was appoint-
ed in 1634 as mathematics professor at the Athenaeum. According to a let-
ter23 he wrote on the second July 634 to Grotius, his lectures on the elements
of astronomy which included a discussion of Galileo’s views were initially
very successful. According to this source, they attracted a wide audience, not
solely intellectuals and clergyman but also seafarers and trade people. Hor-
tensius had been introduced to heliocentristic astronomy by his teacher Isaac
Beeckman (1588-1637) who introduced him to the radical Copernican Philip
Lansbergen (1561-1632). Interestingly, Galileo had books of Lansbergen in
his personal library24 and Hortensius would later have a correspondence with
Galileo. Another Copernican, the cartographer and instrument maker, Wil-
lem Jansz Blaeu (1571-1638), was the publisher of the Athenaeum Illustre25.
Hugo Grotius would, after his second condemnation in 1632 (after his return
to Holland in 1631), never return to Holland. However, he stayed in close
contact with his Dutch publishers, his friends from the Athenaeum illustre
(such as Vossius), his and his son and several other family members who were
students at the newly founded school.
It is well-known that the Elseviers published Galileo’s Discorsi (1638) but
Elsevier (or rather the Elsevier family) did not play only a role in the printing
and publication; they were also important for the diffusion of Galileo’s ideas
in both protestant but also in Catholic countries. Needless to say, these pub-
lications and their selling in Elsevier’s bookshop in Amsterdam contributed
to discussions of Galileo’s works among intellectuals in Amsterdam and other
Dutch places.
In May 1636, Louis Elsevier visited Galileo in his house in Arcetri and
agreed to publish the Discorsi in Leyden. The Elseviers did not only play an
important role in the publication of Galileo’s last important dialogue but also
in the publication and diffusion of other works, such as the Latin translation

23 Cf. Letter of Hortensius to Grotius, 02/06/1634, Gassendi, Epistolae, 422.

24 Cf. A. Favaro, La libreria di Galileo Galilei, in « Bullettino di bibliografia e di storia delle scien-
ze matematiche e fisiche», XIX, 1886, p. 219-293 and subsequent appendices of 1887 and 1896;
Michele Camerota, La biblioteca di Galileo: alcune integrazioni e aggiunte desunte dal carteggio.
In: Biblioteche filosofiche private in età moderna e contemporanea. Firenze: Le Lettere, 2010, p. 81-95
and Crystal Hall, Galileo’s library reconsidered. Galilaeana, a. 12 (2015), p. 29-82).

25 Cf. Van Netten, Djoeke, op. cit., p.159.

O que nos faz pensar, Rio de Janeiro, v.26, n.41, p.9-43, jul.-dez. 2017
20 Filip Buyse

of the Dialogo which appeared in 1635 under the title Systema cosmicum.
Moreover, Galileo was at the end of his life negotiating with the Dutch Pub-
lishing house concerning the publication of his complete works in one vol-
ume in Latin26. It is not so well known that Galileo really insisted on this
Latin publication. Rather, several scholars - such as Mark Davie27 - argue that
Galileo, in contrast to many of his contemporarie, abandoned Latin in favor
of the Italian vernacular.
In sum, different elements resulted in Galileo becoming well-known in
Holland in General and to the astronomer Christiaan Huygens in particular.
Besides the contacts on the political level between Venice and Holland, the
relation between Galileo’s circle and the people of Holland via several figures,
there was also Huygens’s personal affinity with Galileo’s work. Indeed, much
of Huygens’s work can been regarded as a prolongation of that Galileo’s. For
instance: his discovery of rings of Saturn which he documented in De Saturni
Luna observatio nova (1656).
The Dutch physicist and astronomer had almost all of Galileo’s works in
his personal library: the Opere di Galileo Galilei (Bologna, 1656), The Discorsi
e demonstrazioni Mathematiche e I movimenti locali (Leyda, 1639), Les Nouvelles
pensées de Galilée (translated by Mersenne, 1639), the Dialogo di Galil. Galilei
sopra i sistemi del Mondo (1632), the Trattato della Sfera di Gal. Galilei (1656), the
Discorso intorno alle cose che stanno in su l’acqua, the Historia e Demostrationi intor-
no alle macchie Solari in 3. Lettere al Sign. Mr. Velseri, (Firenze 1612) and L’usage
du quadrant ou de l’horologe [Galilei, 1639]. Furthermore, there were not only
books of Galileo in his personal library but also books about Galileo’s work such
as: Jo. Kepleri Dissertatio a Galilaeo (Pragae 1610) and Galilei scienza universale
delle Proportioni, & alia posthuma, Fiorenza, 1674. en veau [Viviani; BZ: 670], il-
lustrating his enormous interest in Galileo’s work and their interpretations.
However, besides his publications and his condemnation there was an-
other main reason why Galileo became well-known to intellectuals as well
as to ordinary people in Holland. This brings us to the next section on his
proposal to States General of the Netherlands for the determination of the
longitude at sea.

26 Cf. OG XVI 510-511, OG XVII 94-96, OG XVII 173, OG XVII 247-248, OG XVII 281, OG
XVII 308, OG XVII 347, OG XVII 369-372, OG XVIII 203-204 and OG II 398-399 and Favaro,
A., Adversaria galileiana: serie I-VII, Trieste, Lint, 1992, 177.

27 Prof. em Mark Davie is the co-editor and co-translator of Galileo, Selected Writings, Oxford:
OUP, 2012.

O que nos faz pensar, Rio de Janeiro, v.26, n.41, p.9-43, jul.-dez. 2017
Galileo Galilei, Holland and the Pendulum Clock 21

4. Galileo’s proposal to the States General

4.1 The Dutch States General offers a prize of 30 000 scudi

Obviously, as Christiaan Huygens indicates in his The Timepiece [Horologium]


(1658) the invention of the pendulum clock is inevitably closely linked to the
problem of the determination of the longitude at sea, although at this stage of
his publications he omits its discussion from his explanation. The perfection
of the clock is the only way to get a really useful tool for navigation, he argues:

I omit to speak of the so-called science of longitude, which, if ever it existed,


and so had provided the greatly desired help to navigation, could have been
obtained in no other way, as many agree with me, than by taking to sea the
most exquisitely constructed timepieces free from all error. But this matter
will occupy me or others later; now I will submit the diagram of my inven-
tion for inspection, and explain the figure as clearly as possible28.

The problem of the determination of the longitude at sea was for a very
long time a real problem for countries of seafarers such as Spain, Portugal,
England, not to mention Holland, which by the 17th century had developed
trade with different parts of the world. Hence, the Dutch States General de-
cided to offer a prize to anyone who could invent a method for the determi-
nation of the longitude at sea. The prize was 30 000 scudi. This was a very
important sum given the fact that Galileo, for instance, earned a salary of only
60 scudi per year when he was a professor in Pisa.
On 25 October 162729, Galileo received a letter from Alfonso Antonini
(1584-1657) in The Hague informing him about the prize:

.... Qui io sperava di trovar ocasione di scriverle nella curiosita delle os-
servationi che costoro fanno nelle loro nuove et ardite navigationi, e l’ho
trovata, ma in soggetto molto diverso da quelle che io cercava.
Trovo che le Compagnie de’ Mercanti 6) e gli Stati hanno messo insieme
una grossa somma di oro e depositata (dicono che sia intorno a m/30 scudi

28 English translation by Ernest L. Edwardes in Antiquarian Horology Volume 7, No. 1, Decem-


ber 1970.

29 S.A. Bedini mentions incorrectly that the letter was dated October 22 which should be Octo-
ber 25. Cf. Bedini, Silvio A., The Pulse of Time. Florence: Leo S. Olschki, 1991, 1991, 18.

O que nos faz pensar, Rio de Janeiro, v.26, n.41, p.9-43, jul.-dez. 2017
22 Filip Buyse

7)), per darli a chi potra insegnare il modo di trovare la longitudine per
uso della navigatione ....Ramentandomi questi particolari, ho risoluto di
scrivergliene et avisarla. Ella potra prender sopra l’afare quella resolutione
che le parera: se vora abbracciar la ocasione, che a me pare bella e grande,
io godero non solo di haverle fatto la propositione, ma d’impiegarmi per
far riuscire il negotio con tutta la prontezza maggiore. Et se desiderara per
aventura ch’esso negotio passi con secretezza, si asicuri della mia fede, che
non ha mai mancato a persona del mondo e non mancara mai ....30

Only eight years later, Galileo let the States General know that he had
found a method which he wanted to present for examination. More pre-
cisely, on 15 August 1636, Galileo sent his letter (written in Italian) with
his proposal to the States General together with three letters: one addressed
to Grotius, one addressed to Hortensius and one addressed to Laurens Re-
ael (1583-1637). Reael, who could read Italian, copied and translated the
letter into Dutch and presented it to the Dutch States General (hereunder
you can see the first page of that letter) on 11 November 1636.

In their report of 5 December 1635 the States General announced that:


“through his zealous research Galileo believes to have found a certain method
to determine at every moment and in every place of the world, at sea as on
land, the true longitude of the location, and how much more to the east or to
the west this location is situated from the Meridian of any city or port, that
may be chosen freely; presenting this invention with regard to the laudable
reputation [to be gained for himself] and the government in this country, and
also [with regard to] the premium offered to the first author who would show
and dedicate [his invention] to Her Great Power.”31
Why did Galileo reply only after 8 years to Antonini’s invitation? There
were at least two main reasons. First, because Galileo was still busy negotiat-
ing with Spain concerning the introduction of his method for the determina-
tion of the longitude at sea based on the satellites of Jupiter. In 1610, he had
discovered the “Medicean planets”. Subsequently, shortly after his appoint-
ment by the Grand Duke Cosimo II de Medici, he sent his proposal for the
determination to the king of Spain as part of trade negotiation between Spain

30 C. de Waard, Journal tenu par Isaac Beeckman de 1604 à 1634, IV (Supplément).

31 For the integral, original text of this report with an English translation see Vanpaemel, G.,
1989. In: Maffioli, C.S. and L.C. Palm (Editors), op. cit., p.129.

O que nos faz pensar, Rio de Janeiro, v.26, n.41, p.9-43, jul.-dez. 2017
Galileo Galilei, Holland and the Pendulum Clock 23

Fig. 1: This is the first page of Galileo’s first letter to the States General of the Netherlands with
his proposal for the determination of the longitude at sea. This document is currently stored in the
Dutch National Archives in The Hague (Holland). As you can see the document is in a terrible state.

O que nos faz pensar, Rio de Janeiro, v.26, n.41, p.9-43, jul.-dez. 2017
24 Filip Buyse

and the Grand Duke. However, his method was not accepted officially be-
cause a similar method by a Spanish mathematician was being investigated.
After his first condemnation by the Roman Chrurch in 1616, however, he
did in June put a second proposal to the king of Spain, this time on his own
behalf with the support of the Tuscan ambassador in Spain. Galileo even pro-
posed to come to Spain to demonstrate his method. Despite Galileo efforts
further negotiations did not lead to a successful decision by the Spanish State
Council. Around 1618, it became obvious that Galileo’s method was not ac-
cepted. The application of a high-performance telescope at sea in moving wa-
ter was regarded as far too problematic despite Galileo’s efforts to overcome
these problems by means of a special device, a headgear fitted with one or
two telescopes, which he named the celatone. Galileo’s proposal was renewed
in 1620, 1629 and 1631 but each time with a negative result32. A second
reason why Galileo do not answer more directly to Antonini’s invitation was
that he was very busy finishing his last chapters of his last big publication, the
Discorsi, during that period.
Diodati hat sent on 20 September 163633 Galileo’s letters to Laurent Reael
and Martin Hortensius and informed Reael that Grotius and himself would
mediate the negotiations between Holland and Galileo. Three days later,
more precisely on 23 September 163634, Diodati informed Galileo that he
had delivered the letter to Grotius and the people in Holland and that Grotius
and himself would do everything within their possibilities to promote his
method in Holland.
Reael submitted Galileo’s first letter with the proposal to the States Gen-
eral which on 11 November 1636 composed directly a committee that had
to evaluate Galileo’s proposal. The members of that committee were initially
Laurens Reael, Martinus Hortensius, the carthographer Blaeu and Jacobus
Golius. Initially, as mentioned in the report of 5 December 163535, it was
decided by the States General that not Golius but Isaac Beeckman would

32 Cf. Van Berkel, K., 1989. In: Maffioli, C.S. and L.C. Palm (Editors), op. cit., 113-17.

33 Cf. OG XVI 491-492.

34 Cf. OG XVI 489-491.

35 Obviously, in this report, it is mentioned that: “ … it was deliberated: agreed and accepted that
would be invited and authorized doctor Hortensius as president, mathematician of Amsterdam,
Willem Jansz Blaeu, also [living] in Amsterdam, Willem Jansz Blaeu, also [living] in Amsterdam,
Isaac Beeckman rector at Dordrecht to open [the negotiations on ] the Suppliant’s invention by
letter and to examine it, and to report to Her Great Power.”

O que nos faz pensar, Rio de Janeiro, v.26, n.41, p.9-43, jul.-dez. 2017
Galileo Galilei, Holland and the Pendulum Clock 25

Fig. 2: This is the first page of a copy of Galileo’s letter with his proposal. This document is also
stored in the Dutch National Archives in The Hague (Holland).

O que nos faz pensar, Rio de Janeiro, v.26, n.41, p.9-43, jul.-dez. 2017
26 Filip Buyse

examine Galileo’s proposal. Beeckman was not a later member, as mentioned


by Van Berkel, on the contrary, he was one of the first members of the com-
mittee. However, Beeckman died on 19 May 1637.
On 7 april 1637, the report of the committee was presented to the States
General which decided that a second committee composed of Rantwijck,
Weede and Schoneburch had to decide subsequently (in collaboration with
Reael) what steps had to be taken. Two weeks later, it was decided that Gali-
leo would get a golden chain, worth 500 florins36 and that Reael would get
1 000 florins for the funding of instruments that he needed for further re-
search of Galileo’s method. However, Galileo did not receive the 30 000 scudi
that had been promised by the States General. And, as we will see in the next
section, this gift was certainly not the end of the communication concerning
the proposal between Galileo and the States General. On the contrary!
How did Galileo’s method work? His method was based on the position
of the four37 satellites of Jupiter, that he had discovered with his improved
Dutch telescope. Tactfully, he had called these satellites - which he had dis-
covered in January 1610 - the “Medicean Stars” referring to the Medici family.
His method38 was as fellows. At each moment of the day, the four moving
planets had a characteristic position and were eclipsed in a specific way. This
time-dependent picture of the satellites Jupiter, however, was place-indepen-
dent. So, if the picture was known at a certain position A, you could know
also the time at this place. And if you know, additionally, at the same moment
the arrangement of the satellites at another position B on earth you could in
principle calculate the difference in longitude. Based on the difference in time,
it was possible to calculate the difference in place or more precisely the lon-
gitude between A and B given the fact that the earth makes one turn (360°)
around its axe in 24 hours. Therefore, a difference in 4 hours for instance
corresponds with a difference in longitude of 60° (= 4/24 multiplied by 36 °).
However, Galileo’s method could only work if two conditions were re-
alized. First of all, there was a need for a very good telescope in order to
observe the satellites of Jupiter at a given moment in time. Secondly, the

36 500 florins were approximately equivalent with 1000 scudi.

37 Today, we know that there are not less than 69 objects turning around Jupiter and 18 of them
are considered to be moons.

38 Cf. Matthews, Michael R., Time for Science Education. How Teaching the History and Philosophy
of Pendulum Motion Can contribute to Science Literacy. NY: Kluwer Academics/Plenum Publishers,
2000, 90-91.

O que nos faz pensar, Rio de Janeiro, v.26, n.41, p.9-43, jul.-dez. 2017
Galileo Galilei, Holland and the Pendulum Clock 27

observer needed a time measurement in order to know the time at place A


after some days of travel. Besides these two elements, there was another ma-
jor problem to overcome: the telescope and the time measurer had to work
perfectly well at sea in moving water. That this was a big challenge.

4.2 The idea of the pendulum clock

Already, in Galileo’s first letter (1635) of the correspondence between Galileo


and the Dutch States General concerning the method for the determination
of the longitude at sea, the idea of timekeeper based on a pendulum seems
to occur:

I have such a time -measurer that if 4 or 6 examples of this instrument


were constructed, and if they were allowed to operate at the same time,
we would find that in confirmation of their accuracy, the times measured
and indicated by these time-measurers would show differences of only one
second, not only from hour to hour, but from day to day and from month
to month, so uniform would be their operation; these clocks are really
admirable for the observers of motion and celestial phenomenon, and in
addition, their construction is very simple and far less subject to outside
influences than are other instruments which have been invented for a simi-
lar purpose39.

Obviously, the time-measurer [numeratore del tempo] that Galileo describes


in the passage above is not a traditional mechanical clock. Galileo describes
his “orologii veramente pur troppo ammirabili” as something revolutionary and
new, very different and much more accurate than the clocks which had been
used up until then. Several interpreters argue that Galileo must have a form
of vibration counters ( or forerunners of the pendulum-regulated clock) here

39 From Galileo’s letter (dated August 15, 1636) to the States General of the Netherlands. Opere,
XVI, 463-469. The English translation is by Silvio A. Bedini. In the original text, Galileo writes: “
[…] Finalemente, circa il 4° requisito, io ho tal misurator del tempo, che se si fabbricassero 4 o
6 di tali strumenti et si lasciassero scorrere, troveremmo (in confermazione della lor giustezza)
che i tempi da quelli misurati et mostrati, non solamente d’hora in hora, ma di giorno in giorno
et di mese in mese non differirebbero tra di loro nè anco d’un minuto secondo d’hora, tanto
uniformemente caminano : orologii veramente pur troppo ammirabili per gl’osservatori de i moti
e fenomeni celesti ; et è di più la fabrica di tali strumenti schiettissima e semplicissima, et assai
meno sottoposta all’alterazioni esterne di qual si voglia altro strumento per simile uso ritrovato.”

O que nos faz pensar, Rio de Janeiro, v.26, n.41, p.9-43, jul.-dez. 2017
28 Filip Buyse

in mind. As Silvio A. Bedini puts it: “More likely they were a form of vibra-
tions counter, consisting of a pendulum bob suspended on a string which
was given impulse manually or by clockwork.”40 This seems to be confirmed
by the fact that around the same period Galileo wrote his “L’usage du cadran
ou de l’horloge physique universel” which was published in 1639 in Paris41. In
this work, the Tuscan physicist explained his views on the the motion of the
pendulum and its application for the determination of the longitude and ob-
serving eclipses. Galileo argued that for this application it is necessary to have
a pendulum that is “used for regulating the movement of the clock”42. Hence,
the clock in Galileo’s letter to the States General of the Netherlands must be
a kind of first version of a pendulum regulated clock.
According to a letter of Galileo’s last student and first biographer, Galileo
conceived of his pendulum regulated clock a few years later, more precise-
ly in 1641. This is 25 years before Christiaan Huygens would conceive of
his pendulum clock. However, it is important to notice that Viviani (1622-
1703) wrote this letter to Prince Leopold in 1659, after having heard about
Huygens’ invention:

One day in the year 1641, whilst I was living with him in his country house
in Arcetri, I recollect that it came into his mind that the pendulum could be
adapted to clocks driven by weight or spring, in the hope that the perfect
natural equality of its motion would correct the imperfections of mechani-
cal construction. But, being deprived of sight and unable himself to execute
the plans and models which would be required to ascertain which would be
best adapted for carrying out this project, he communicated his idea to his
son Vicenzio, who had come out one day from Florence to Arcetri. They had
several discussions on the subject, with the result that they fixed upon the
method, of which the accompanying drawing is a copy; and they decided
to proceed at once with its execution, in order to determine what were the
difficulties, which, as a rule, in the construction of machines, a theoretical
design does not reveal. But Vicenzio, being desirous to construct the instru-
ment with his own hands, for fear the artificers who might be employed

40 Cf. Bedini, S., op.cit., 20.

41 Galileo, Galilei, L’usage du quadran ou De l’horloge physique universel sans l’ayde du soleil ny
d’autre lumière. Paris : Hachette Livre BNF, 2016.

42 Cf. Robertson, J. Drummond, The Evolution of Clockwork. Wakefield: S.R. Publishers Ltd.,
1931, 93.

O que nos faz pensar, Rio de Janeiro, v.26, n.41, p.9-43, jul.-dez. 2017
Galileo Galilei, Holland and the Pendulum Clock 29

should divulge it before it had been presented to the Grand Duke and to the
States-General of Holland for the measurement of longitudes, kept putting
off its execution, and a few months later Galileo, the author of this admi-
rable invention, fell ill, and died on January 8, 1642. As a consequence,
Vicenzio’s enthusiasm cooled, so that it was not until the month of April
1649, that he took in hand the manufacture of the present clock made in
accordance with the conception which his father had already imparted to
him in my presence.

Vicenzio Galilei engaged a young locksmith, who had some experience in


construction of large wall clocks. He caused him to make the iron frame-
work, the wheels, and their arbors and pinions, but without cutting them,
and the executed the rest of the work with his own hands. (Letter of Vivi-
ani of August 20, 1659 to Prince Leopold)

In the passage above, the author of ‘Racconto istorico della vita del Sig.r Gali-
leo Galilei’ (1654), writes that Galileo even wanted to construct his pendulum
regulated clock that he had in mind. However, at this moment he was already
blind so he asked his son to construct his clock. Vincenzio started with this
work. However, his father died on January 8, 1642. Subsequently, his son
finished – according to Viviani – the construction with the help of a young
locksmith. It is important to notice that Viviani mentions that Galileo wanted
to present his clock not only to the Grand Duke but also to the States-General
of Holland. This confirms once again how the design of the pendulum clock
was linked to Galileo’s method for the measurement of longitudes and should
be understood in this context.

4.3 The role of Christiaan Huygens’s father in Galileo’s correspondence

Christiaan Huygens explains in two books his design of his new pendulum
clock, its physics and its functioning. However, nowhere does he clarify how
he came to the idea of conceiving a clock based on a pendulum as a regulator.
Moreover, he seems to exclude quite explicitly this question from his writings.
In his Horologium (1658) he writes about this question: “But this matter will
occupy me or others later”. Did he want to hide something? Did he really
design his pendulum regulated clock completely independently as he always
argued?

O que nos faz pensar, Rio de Janeiro, v.26, n.41, p.9-43, jul.-dez. 2017
30 Filip Buyse

Fig. 3 (Right): Drawing made in 1659 by Vincenzo Viviani of the Galilean clockmodel in its unfinished
state of 1649.

Fig. 4 (Left): reconstruction of this clock by Eustachio Porcellotti (1879) based on Vincenzo’s
Galilei’s model.

Is there somebody who knew the content of Galileo’s secret correspon-


dence with the States General who might have given the Dutch physicist
and astronomer this idea? Theoretically there is always the possibility that
one of the members of the committee that examined Galileo’s proposal could
have informed somebody else so that Christiaan Huygens got informed about
Galileo’s “orologii veramente pur troppo ammirabili”. And there is evidence that
there were leaks so that this possibility cannot be excluded. For instance, in
his letter of 16 Mars 1637 to Hortensius, Diodati accuses the Dutch professor
of mathematics of violating the secrecy of the correspondence concerning
Galileo’s method. However, Hortesensius had already explained in his former
letter to Galileo’s correspondent that he thought he was allowed to do this
because another committee member, Isaac Beeckman, had already informed
Mersenne. Moreover, Hortensius replied that Galileo nor Diodati had never
asked for secerecy of the correspondence.
However, it is much more likeley that Christiaan Huygens’ father – Con-
stantijn Huygens – has informed his “petit Archimède” about Galileo’s idea.
The role of Constantijn Huygens might have been very important here and

O que nos faz pensar, Rio de Janeiro, v.26, n.41, p.9-43, jul.-dez. 2017
Galileo Galilei, Holland and the Pendulum Clock 31

might explain how his son came to the idea of designing a clock based on
isochronism. Initially, it took some time until Galileo had received an official
answer from the States General, although Hortensius had sent Diodati on 24
November 1636 a personal letter confirming that Galileo’s proposal had been
very well accepted by the States General and that a commission had been in-
stalled which would examine his proposal. However, after a year, he lost his
patience and Diodati started to take steps.
But, let’s give an overview of the history of the correspondence in order
to have a more detailed and better picture of Constantijn’s role. In his let-
ter43 of 16 mars 1637 to Hortensius, Diodati complains that Galileo had still
not received any official word nor sign of gratitude from the States General.
Four days later, he writes very tactfully a letter to the diplomat Constantijn
Huygens explaining the promising future of Galileo’s method for Holland and
asking him to intervene in this question. The father of Christiaan Huygens
replies in his letter44 of 13/23 Avril written in French.
Cristiaan Huygens’s father accepts Diodati’s invitation, but he underlines
very clearly that there are two major problems which are essential for the
success of Galileo’s method. First of all, Huygens asks for a performant tele-
scope so that he can test Galileo’s method and actually see the satellites of
Jupiter which was impossible to see with the telescopes that were at that mo-
ment available in Holland. Secondly, Huygens stresses that Galileo’s method
should work on boats at sea. It is important to notice that Huygens shows
here that he was very well informed of Galileo’s method and that he knew
extremely well the problems of Galileo’s method.
In his letter45 of 8 May 1637 to Constantijn Huygens, Galileo’s correspondence
thanks the diplomat for his mediation but repeats that he expects soon an official
answer from the States General of the Netherlands. Only after a word of gratitude,
he clarifies, Galileo will reveal some unknown, promising aspects of his method.
A week later, more precisely on 15 Mai 1637, Galileo’s correspondent writes once
more a letter46 to the States General (and another letter to Constantijn Huygens),
repeating that Galileo expects an official letter from the States General and that
Galileo will only reveal other aspects of his method after having received that letter.

43 Cf. OG XVII 43.

44 Cf. OG XVII 59-60.

45 Cf. OG XVII, 73-74.

46 Cf. OG XVII 79.

O que nos faz pensar, Rio de Janeiro, v.26, n.41, p.9-43, jul.-dez. 2017
32 Filip Buyse

Interestingly, during the period of his correspondence with the States Gen-
eral, Galileo had a personal correspondence with the president of the commit-
tee that had to examine Galileo’s proposal. As I have mentioned already, Hor-
tensius, had written47 him already on the 24th November 1636 congratulating
him with his proposal and telling him that he would soon receive an official
letter from the States General. In his letter of 1 February 1637, Hortensius
explains that the evaluation by the committee took more time because the
Reael could not work permanently on it. In the same letter, he also reveals that
he had informed Jean-Baptist Morin about the importance of Galileo’s new
method. In his letter of 16 Mars to Hortensius, Diodati accuses the Duch pro-
fessor of mathematics of violating the secrecy of the correspondence concern-
ing Galileo’s methods and he repeats once more that is scandalous that Galileo
has still not received any official reply from the States General. However, Hor-
tesensius had already explained in his former letter that he thought he was
allowed to do this because another committee member, Isaac Beeckman, had
already informed Mersenne. And in his letter of 27 Avril, Hortensius defends
himself against Diodati’s allegations and argues that Diodati nor Galileo had
never asked for secrecy. Moreover, he could not have revealed all the secrets
of the method yet because Galileo had not yet delivered a solid proof of the
usefulness of the method at sea and not yet given all the details.
In the same letter, Hortensius assures Galileo’s correspondent that he is con-
vinced that Galileo’s method is applicable. He informs Diadati also that Galileo
will soon receive his award. A month later, more precisely, in his letter48 of 22
Mai 1637, Diodati accepts Hortensius’s explanation but complains once again
about the fact that Galileo has still not received any official reply from the States
General. Subsequently, he invites Hortensius to meet Galileo in the Embassy of
Venice where Galileo would reveal all the details of the method.

4.4 The tragic end

What had announced itself for Galileo as something really promising: the
proposal of his method for the determination of the longitude to the States
General and the publication of his complete works in Latin in one volume
by Elsevier, finished as a tragedy.

47 Cf. OG XVII 521.

48 Cf. OG XVII 84-85.

O que nos faz pensar, Rio de Janeiro, v.26, n.41, p.9-43, jul.-dez. 2017
Galileo Galilei, Holland and the Pendulum Clock 33

Galileo never received the 30 000 scudi which would have awarded to
somebody who solved the problem of the determination of the longitude at
sea. He only received a collar worth 500 florins which he refused to accept49.
Unfortunately, he could never deliver the instruments that the committee had
asked for to test his method, because meanwhile, he was becoming blind. Fur-
thermore, there was no meeting between Galileo and Hortensius or any other
member of the committee because they all died in a short period of time: the
president of the committee that had to examine his proposal died on the 17th
of August 1639 and before, other members had died: Beeckman on the 19th
May 1637 and Reael on the 10th October 1637. Blaeu would die a year later, on
the 26th of October 1638. Meanwhile, Galileo had become completely blind
and he died a few years later, on January 8 in 1642 in Artcetri.
During the last years before his death, Galileo still did try to restore the ne-
gotiations between him and the States General. In his letter50 of the 30th Decem-
ber 1639 to Diodati, he proposes that if necessary one of his disciples, Vincenzo
Renieri, would go to Holland in order to explain his method. On the 28 of Feb-
ruary 1640, Diodati again asks Constantijn Huygens for assistance51. The father
of Constantijn Huygens answers two months later that he wants to help but that
given the new circumstances it will be necessary to start from the beginning,
and suggests contacting some influential Dutch people such as A. Boreel.
After Galileo’s death, more precisely on the 21th February 1657, Louis
Elsevier wrote a letter52 to Diodati saying that he had never had the plan to
publish Galileo’s complete works in one volume and that - after having heard
about the publication of Viviani edition of Galileo’s works in Italy - no Dutch
publisher would ever publish such a volume.
The end of Galileo’s life and that of the committee members, however, was
not the end of the relation between Galileo’s circle around Viviani and the
Dutch Republic. On the contrary, the publication of Horologium in 1658 by
Christiaan Huygens lead to an enormous dispute about who was the first to
have designed and constructed a pendulum clock. A dispute which had an
international dimension.

49 Cf. OG XVII 369-372.

50 Cf. OG XVIII 132-133.

51 Cf. OG XVIII 151-152.

52 Cf. Favaro, A., Documenti inediti per la storia dei manoscritti galileiani nella Bibliotheca Nazionale
di Firenze. In: Bollettino di Bibliografia e di Storia delle Scienze matematiche e fisiche, 18 (1885), 113.

O que nos faz pensar, Rio de Janeiro, v.26, n.41, p.9-43, jul.-dez. 2017
34 Filip Buyse

5. Was Spinoza inspired by Huygens’s invention of the synchronization of


pendulum clocks53

In Holland, after Huygens’s design of the pendulum clock, several early


modern philosophers applied this sophisticated device as an analogy in
their philosophy. Not only Dutch philosophers but also foreign philoso-
phers who moved to Holland applied the clock analogy. Good examples are
the Flemish philosopher Arnold Geulincx (1624-1669) and Comenius [Jan
Amos Komenský (1592-1670)]54. They both used the clock to clarify the
harmony between things. Another obvious example is Leibniz who applied
in 1696 the clock analogy in his explanation of the relation between the
mind and the body in his letter to Basagne55, referring to Christiaan Huy-
gens: “This is the way with which Mr. Huygens experimented, with results
that greatly surprised him.”
The French Spinoza scholar, Martial Gueroult56 has already argued that
Spinoza applied the pendulum analogy in his conception of the complex
bodies as well as in his conception of the simplest bodies in the Ethics (1677).
However, the French structuralist did not say a word of Spinoza’s possible
application of the synchronization which Huygens discovered in his Letter 32.
Hence, this section will focus on this subject.
Spinoza writes in his Letter 32 (1665), the following sentences as an an-
swer to a question of Robert Boyle, transmitted by his Boyle’s friend Henry
Oldenburg:

53 The abbreviations applied for Spinoza’s works: E – Ethics (Ethica). Passages in Spinoza’s Ethics
will be referred to by means of the following abbreviations: a (axiom), ap (appendix), c (corollary),
d (demonstration), def (definition), p (proposition), le (lemma) and s (scholium). For instance:
E2p16c2 = Part 2 of the Ethics, proposition 16, corollary 2.
All citations in English from Spinoza’s work are translations by Edwin Curley unless otherwise
mentioned. All translations from Christiaan Huygens’ correspondence are from Alex Boxel. These
translations can be found on the following site: http://idolsofthecave.com

54 See Comenius, Opera didactica omnia (Oeuvres didactiques complètes) (1657) D 42; Comenius,
J.A., The Great Dictatic (Translated from the Latin, and edited by, M.W. Keatinge), London: Adam
and Charles Black, 1657/1910, 47-48; Comenius, The Great Didactic, 47-48; McReynolds, The
Clock Metaphor, 99 and Matthews, op. cit., p. 217 and Annotata ad Ethicam, Sämtlichen Schriften
[10.24], 3:211-12; cf. Annotata ad Metaphysicam, Sältkichen Schriften [10.24], 2: 307.

55 G IV, Leibniz to Basagne (1696) 498-500,

56 Gueroult, M, Spinoza II: L’âme. Paris: Aubier, 1974, 159-165.

O que nos faz pensar, Rio de Janeiro, v.26, n.41, p.9-43, jul.-dez. 2017
Galileo Galilei, Holland and the Pendulum Clock 35

“By coherence of parts I mean simply this, that the laws or nature of one
part adapts itself to the laws or nature of another part in such wise that
there is the least possible opposition between them. On the question of
whole and parts, I consider things as parts of a whole to the extent that
their natures adapt themselves to one another so that they are in the clos-
est possible agreement. Insofar as they are different from one another, to
that extent each one forms in our mind a separate idea and is therefore
considered as a whole, not a part.”57

This is for several reasons a very remarkable text. First of all, because Spi-
noza gives on other occasions very different explanations of similar questions.
Secondly, because the Dutch philosopher writes here “odd sentences” which
seem to be in clear contradiction with typical elements of his metaphysics.
Indeed, what Spinoza writes in the passage above seems to be in contradic-
tion with his radical, metaphysical determinism which is an essential and
characteristic part of his philosophy.
According to E1p28, a body which is determinate or finite (according to
the first definition58 of E2) is necessarily determined by another finite thing.
Moreover, according to E1p10 and E2p6 this finite59 thing should be of the
same attribution of the unique and eternal substance. Consequently, a body
(a mode of the attribute Extension) is always determined by another body
to act in a determinate way. Spinoza expressed this idea in Lemma 3 of the
Physical Interlude and he referred to it several times in the course of his Eth-
ics, highlighting the importance of this principle. In his Letter 58 (1674) to

57 Spinoza, B. Complete Works, Ed. M. L. Morgan and tran. S. Shirley, Indianapolis: Hackett, 2002, 848.
In the original version, we read : “Per partium igitur cohaerentiam nihil aliud intelligo, quàm
quòd leges, sive natura unius partis ità sese accommodat legibus, sive naturae alterius, ut quàm
minimè sibi contrarientur. Circa totum, et partes considero res eatenus, ut partes alicujus totius,
quatenus earum natura invicem se accommodat, ut, quoad fieri potest, inter se consentiant, qua-
tenus verò inter se discrepant, eatenus unaquaeque ideam ab aliis distinctam in nostrâ Mente
format, ac proinde, ut totum, non ut pars, consideratur. Ex. gr. cum motûs particularum lymphae,
chyli, etc. invicem pro ratione magnitudinis, et figurae ità se accommodant, ut planè inter se
consentiant, unumque fluidum simul omnes constituant, eatenus tantùm chylus, lympha, etc. ut
partes sanguinis considerantur : quatenus verò concipimus particulas lymphaticas ratione figurae,
et motûs, à particulis chyli discrepare, eatenus eas, ut totum, non ut partem, consideramus.”

58 In the Latin text, the definition of the body is: “Per corpus intelligo modum, qui Dei essentiam,
quatenus, ut re extensa, consideratur, certo, et determinatio modo exprimit; vid. Coroll. Prop. 25.p.1.”

59 Spinoza defines “a finite thing” in E1d2 as: “That thing is said to be finite in its own kind that
can be limited by another of the same nature. For example, a body is called finite because we
always conceive another that is greater. Thus a thought is limited by another thought. But a body
is not limited by a thought nor a thought by a body.”

O que nos faz pensar, Rio de Janeiro, v.26, n.41, p.9-43, jul.-dez. 2017
36 Filip Buyse

G.H. Schüller, Spinoza explains his metaphysical determinism also, this time
through the example of a moving stone, emphasizing that what is true for a
stone is true for each individual thing.60
By contrast, in the passage quoted above from Letter 32, Spinoza does
not write that the parts (or natures) of a body are externally caused by other
bodies. On the contrary, he writes that they “adapt” themselves: “the laws or
nature of one part adapts itself to the laws or nature of another part.” More-
over, he does not write this once, as though it were a mere exception, but it
appears several times: “their natures adapt themselves to one another,” sug-
gesting here a spontaneous, internal cause.
Secondly, as Albert Rivaud61 already remarked, Spinoza explains in Letter
32 the coherence between the parts of a body in a very different way than
in the Physical Interlude and in a letter written in 1661/62. In letters known
as the Boyle/Spinoza correspondence,62 transacted after Oldenburg’s visit to
Spinoza during the summer of 1661, Spinoza writes in Letter 6 (December
1661) the following explanation:

To understand the first, it must be noted that bodies in motion never meet
other bodies with their largest surfaces, whereas bodies at rest lie on others
on their largest surfaces.

And, in Axiom 3 of the Physical Interlude of the second part of the Ethics,
just after his definition of the body, the Dutch philosopher writes:

As the parts of an Individual, or composite body, lie upon one another


over a larger or smaller surface, so they can be forced to change their
position with more or less difficulty; and consequently the more or less
will be the difficulty of bringing it about that the Individual changes its
shape. And therefore the bodies whose parts lie upon one another over a

60 What Spinoza writes here in this letter on freedom and necessity might be inspired by chap-
ter 21 of Hobbes’ Leviathan, a book translated in 1667 into Dutch by Spinoza’s friend Abraham
Van Berkel.

61 Cf. Albert Rivaud, La physique de Spinoza. Chronicon Spinozanum 4 (1924-1926): 24-57.

62 The correspondence between Baruch Spinoza and Henry Oldenburg is composed of 17 letters
from Oldenburg to Spinoza and 10 from Spinoza to Oldenburg. This correspondence was betwe-
en 1661 and 1676 with hiatuses between 1663 and 1665 and between 1665 and 1675. What is
known as the ‘Spinoza-Boyle’ correspondence forms a part of this larger whole and consists of the
letters 6, 11, 13 and 16 written between 1661 and 1663.

O que nos faz pensar, Rio de Janeiro, v.26, n.41, p.9-43, jul.-dez. 2017
Galileo Galilei, Holland and the Pendulum Clock 37

large surface, I shall call hard; those whose parts lie upon one another
over a small surface, I shall call soft; and finally those whose parts are in
motion, I shall call fluid.

Thus, in both the Physical Interlude (1677) and Letter 6 to Boyle (1661),
Spinoza conceives of the agreement of coherence between the constituent
parts of bodies in a purely mechanistic way, in contrast to the explanation of
Letter 32 to Boyle (1665). In other words: coherence is conceived of in terms
of relative position, contact, motion and the rest of the parts that constitute
the whole.63 Nowhere in this context does Spinoza write that the natures of
bodies adapt themselves spontaneously to other bodies in order to form a
single unity. On the contrary, in the definition of a body that he gives in the
Physical Interlude, Spinoza states clearly that a new physical individuality is a
whole of bodies “constrained by other bodies” [a reliquis ita coërcentur]
How can this apparent paradox be resolved? This paper argues that Spi-
noza applied here a principle that Christiaan Huygens’s had just discovered.
This hypothesis would explain why the Dutch philosopher could write the
odd sentences in his Letter 32 without violating his mechanistic ideas.
Around the 22 February 1665, while Christiaan Huygens was sick and ly-
ing in his bed, he observed that two pendulum clocks, which were hanging in
front of him, started to beat in synchronicity. He couldn’t believe his eyes. Ini-
tially, he was unable to explain this phenomenon and referred to it as “some
sort of sympathy” [une espèce de sympathie]. He struggled to find a causal
explanation for this effect. Why did the clocks mysteriously synchronize with
each other? How could mechanical objects transmit an influence when they
were not touching? What is the cause of this “odd kind of sympathy?”
Initially, Huygens was convinced that there could not be any other cause
of the agreement of the clocks “than an imperceptible agitation of the air which
is produced by the movement of the pendulums.” However, a few days later he
wrote with a pencil in the margin of his notes: “causam hujus rei postea in-
veni ex communi fulcro.” More precisely, on the first of March, he conducted
some additional experiments and determined that not the air, but rather
the mechanical connection between the two clocks was essential for their
synchronization.

63 Cf. Rivaud, A., op. cit., 24-57.

O que nos faz pensar, Rio de Janeiro, v.26, n.41, p.9-43, jul.-dez. 2017
38 Filip Buyse

Synchronization is not a state. On the contrary, it is a dynamic, equilibrium


process.64 Today we can demonstrate this phenomenon perfectly well by plac-
ing metronomes65 upon a thin board that is isolated from a table using, for
example, empty soda cans. The synchronization takes place with two or more
metronomes which were initially in motion but which need not be in phase.
Additional metronomes can be added which, after a brief time, will also start
to synchronize. Even if the synchronized system is disturbed (for example,
by touching one of the metronomes to block its motion), the synchronization
will spontaneously restore itself after a suitable interval. In sum, the pendu-
lums have the capacity to adapt themselves so that they form a unity. As Kurt
Wiesenfeld puts it: “The phenomenon of spontaneous mutual synchronization
offers perhaps the most primitive example of emergent behavior.”66 Needless
to say, this behavior perfectly suits Spinoza’s description of the behavior of
parts that adapt themselves in his definition of coherence in Letter 32.67
For several reasons the hypothesis that Spinoza applied the principle of
synchronization seems to be plausible. First of all, there is historical evidence
that Spinoza visited Huygens in that period when they both lived in Voorburg.
Hence, it is not incorrect to assume that the Dutch philosophers was informed
about Huygens’ discovery. Of course, there is also the date. Spinoza wrote his
Letter 32 in November 1665, just a few months after his neighbor, Christiaan
Huygens, had discovered “the sympathy of the clocks.” Moreover, according to
his diary,68 Huygens was still busy doing research on this subject when Spinoza
visited him in May of 1665 and wrote his Letter 32 in November of the same year.
Secondly, there is the fact that “clocks” became a paradigmatic example for
understanding the supposed agreement or harmony between bodies in the uni-
verse, at least for philosophers in the region where Spinoza lived around 1665.

64 Bennett, M., M. F. Schatz, H. Rockwood & K. Wiesenfeld. “Huygens’s clocks”, Proceedings of


the Royal Society A458 (2002): 563-579.

65 Pantaleone, J., “Synchronization of Metronomes,” American Journal of Physics 10 (2002):


992-1000.
For a simulation of this experiment, please visit the site of the Harvard Natural Sciences Lecture
Demonstrations at: https://www.youtube.com/watch?v=Aaxw4zbULMs (accessed on 12/12/0217).

66 Wiesenfeld, K. and D. Borrero-Echeverry, “Huygens (and others) revisited,” 047515.1 and


Bennett, M., op. cit., 563-579.

67 Cf.: https://www.youtube.com/watch?v=nkXl8JJBH7E or https://www.youtube.com/watch?


v=3mclp9QmCGs (Accessed on 12/12/2017).

68 See OCH XVII, 187, note 3.

O que nos faz pensar, Rio de Janeiro, v.26, n.41, p.9-43, jul.-dez. 2017
Galileo Galilei, Holland and the Pendulum Clock 39

There was already a longstanding tradition69 among natural philosophers going


back to innovators such as Leonardo da Vinci, Giovanni de’ Dondi (c.1330-
1388), Richard of Wallingford (1292–1336),70 and Oresme (c.1323-1382), of
using the mechanical clock as a metaphor for understanding the universe and
natural phenomena. And, it is well documented that later also Kepler, Des-
cartes, Malebranche and other early modern philosophers applied this meta-
phor. However, this tradition was completely renewed after 1658 when Chris-
tiaan Huygens, with the help of his technician, invented and constructed his
pendulum clocks, which were of a much better quality than former versions of
the mechanical clock. The clock was in the air so to speak! People were enthu-
siastic about this discovery and they hoped that this sophisticated thing would
solve the long existing problem of determining longitude at sea.
Third, there is the argument that in his definition of Letter 32 Spinoza
refers to laws which he identifies with the nature of parts: “the laws or nature
of one part adapts itself to the laws or nature of another part.” Why does Spi-
noza mention “law” in this context? And, what is the link with “the nature of a
part”? The reason might be that he is referring here to an early version of the
pendulum law. This law expresses the relation between the natural frequency
of a pendulum and the elements that determine this frequency: the length of
the pendulum and the acceleration of gravity. Galileo had formulated in his
Dialogo (1632)71 the concept of isochronism, arguing that it is not the mass
of the pendulum but the length that is decisive. But, it was Christiaan Huy-
gens who discovered the pendulum law in 1673. This law was - according
to Vincent Icke72 - the first modern physical law expressed in the form of a
mathematical formula. It is therefore possible that Spinoza had an anticipa-
tion of this physical law in mind when he discussed the agreement between
the parts of a whole in his Letter 32.
Of course, our hypothesis could be challenged by the fact that Spinoza
never mentions the pendulum clock in his Ethics (1677). In contrast to several
contemporaries whose work he knew such as Robert Boyle he never applied

69 See Wootton, D., The invention of Science. Milton Keynes: Penguin [2015] 2016),437-441,
484-486.

70 See North, J., God’s Clockmaker: Richard of Wallingford and the Invention of Time. Oxford: Oxbow
Books, 2004.

71 Galileo G, The Dialogue, New York: The Modern Library, 2001, 267.

72 Cf. Vincent Icke, Christiaan Huygens in de onvoltooid verleden toekomende tijd. Groningen :
Historische Uitgeverij, 2005.

O que nos faz pensar, Rio de Janeiro, v.26, n.41, p.9-43, jul.-dez. 2017
40 Filip Buyse

the analogy of the clock in a very explicit way. What is this so? Probably, the
reason is that he avoided using artefacts as models for natural things because
this might suggest that things are created by a creator distinct from his creation.
In the appendix of De Deo in the Ethics for instance, Spinoza radically refutes
this kind of “divine finalism” and instead argues that the human body should
not be conceived as mechanical artefact and is not created but generated.

6. Conclusion

This paper shows that the design of Huygens’s pendulum clock must be un-
derstood in the context of Galileo’s search for a method to determine the
longitude at sea, based on the satellites of Jupiter. The big historical question
- whether Galileo or Huygens was the first to have invented the pendulum
regulated clock - does not have an easy answer. Huygens always maintained
that he did not know about Galileo’s design of a pendulum regulated clock,
but Viviani argued that his master had invented the first pendulum clock a
long time before Huygens.
However, this paper shows that it is hard to believe that Christiaan Huy-
gens found his clock completely independently from Galileo given the fact
that: he knew Galilean physics extremely well, that he had almost all works
of Galileo in his personal library (also: L’usage du quadran ou De l’horloge phy-
sique universel sans l’ayde du soleil ny d’autre lumière) and that he had asked
Colvius for copies of Galileo’s writing on the longitude only one year before
his invention. Moreover, his father who knew the content of the correspon-
dence - that included Galileo’s idea of a pendulum regulated clock - very well
so that he could have informed his “Little Archimedes”. In sum, it is probably
more correct to state that the design of pendulum regulated clock is the result
of the work of Galileo and Huygens.
Pendulum clocks were much more accurate than traditional mechanical
clocks. Consequently, their application as timekeepers had an enormous
impact on the social and professional life of people. However, after Huygens’s
design in 1656, this device was also applied by philosophers as a mechanical
analogy. Moreover, it became a leading metaphor for early modern philoso-
phers in the 17th century.
Around 1665, Spinoza was in contact with Christiaan Huygens. As this this
paper argues the Dutch philosopher might have been inspired by Huygens’s dis-
covery of the synchronization of pendulum clocks in his views on the agreement

O que nos faz pensar, Rio de Janeiro, v.26, n.41, p.9-43, jul.-dez. 2017
Galileo Galilei, Holland and the Pendulum Clock 41

between bodies in the universe. This hypothesis resolves the otherwise para-
doxical phrases in his Letter 32 (1665) to the secretary of the Royal Society.

Bibliography

BEDINI, S. A. The Pulse of Time. Florence: Leo S. Olschki, 1991.


BENNETT, M.; SCHATZ, M. F.; ROCKWOOD, H.; WIESENFELD, K. Huygens’s
clocks. Proceedings of the Royal Society A, vol. 458, issue 2019, 8 March 2002.
BLACKWELL, R. J. Christiaan Huygens’ The Pendulum Clock or Geometrical
Demonstrations Concerning the Motion of Pendula as Applied to Clocks. Ames: The Iowa
State University Press, 1986.
CAMEROTA, M. La biblioteca di Galileo: alcune integrazioni e aggiunte desunte
dal carteggio. In: CRASTA, F. M. (ed.). Biblioteche filosofiche private in età moderna e
contemporanea. Firenze: Le Lettere, 2010, p. 81-95.
CHAREIX, F. Le mythe Galilée. Paris: PUF, 2002.
DAVIE, M.; SHEA, W. (eds.). Galileo, Selected Writings. Oxford: OUP, 2012.
EDWARDES, E. L. The Story of the Pendulum Clock. Altrincham: John Sherratt and son
LTD, 1977.
EDWARDES, E. L., HOWSE, D.; AKED, Ch. Antiquarian Horology. Volume 7, No. 1,
December 1970.
FAVARO, A. La libreria di Galileo Galilei, in « Bullettino di bibliografia e di storia
delle scienze matematiche e fisiche», XIX, 1886.
FAVARO, A. Documenti inediti per la storia dei manoscritti galileiani nella Bibliotheca
Nazionale di Firenze. Bollettino di Bibliografia e di Storia delle Scienze matematiche e
fisiche, 18, 1885.
FAVARO, A.; DEL LUNGO, I. (eds.). Le Opere di Galileo Galilei (Edizione Nazionale).
20 vols, Florence : Barbèra, 1890-1909.
GALILEO, G. L’usage du quadran ou De l’horloge physique universel sans l’ayde du
soleil ny d’autre lumière. Paris : Hachette Livre BNF, 2016.
GALILEO, G. The Dialogue. New York: The Modern Library, 2001.
GARCIA, S. Elie Diodati et Galilée: Naissance d’un réseau scientifique dans l’Europe
du XVIIe siècle. Florence, Italy: Leo Olschki Editions, 1 janvier 2004 (Bibliothèque
d’Histoire des Sciences, 6).
GERHARDT, C. I. Die Philosophischen Schriften von G.W. Leibniz. 7 vol., Berlin:
Weidmann, 1875-90.
GUEROULT, M. Spinoza II: L’âme. Paris: Aubier, 1974, 159-165.
HALL, C. Galileo’s library reconsidered, Galilaeana, v.12, n. 12 p. 29-82, 2015.
HOOYKAAS, R. The reception of Copernicanism in England and the Netherlands. In:

O que nos faz pensar, Rio de Janeiro, v.26, n.41, p.9-43, jul.-dez. 2017
42 Filip Buyse

WILSON, C. et al. (eds.). The Anglo-Dutch contribution to the civilization of early modern
society. Oxford: OUP, 1976, p. 33-44.
HUYGENS, Ch. Œuvres Complètes de Christiaan Huygens publiées par la Société
hollandaise des sciences). La Haye: M. Nijhoff, 1888-1950.
ICKE, V. Christiaan Huygens in de onvoltooid verleden toekomende tijd. Groningen :
Historische Uitgeverij, 2005.
JORINK, E. Tussen Aristoteles en Copernicus. De Natuur filosofische opvattingen van
Nicolaus Mulerius (1564-1630). In: KROP, H. A.; VAN RULER, J. A. ; VANDERJAGT,
A. J. (eds.) Zeer geleerde professoren. De beoefening van de filosofie in Groningen, 1614-
1996. Hilversum: Verloren, 1997.
LÜTHY, Ch. David Gorlaeus (1591-1612): An enigmatic figure in the history of
philosophy and science. Amsterdam: Amsterdam University Press, 2012.
MATTHEWS, M. R., Time for Science Education. How Teaching the History and
Philosophy of Pendulum Motion Can contribute to Science Literacy. NY: Kluwer
Academics/Plenum Publishers, 2000.
MOLHUYSEN, P. C.; BLOK, P. J. (eds.). Nieuw Nederlandsch Biografisch Woordenboek
(NNBW). Deel 1. Leiden: A.W. Sijthoff’s Uitgevers-maatschappij, 1911.
NAUTA, D. et al (eds.). Biografisch lexicon voor de geschiedenis van het Nederlands
protestantisme. Deel 2. Kampen: Uitgeversmaatschappij J. H. Kok, 1978.
NORTH, J. God’s Clockmaker: Richard of Wallingford and the Invention of Time. Oxford:
Oxbow Books, 2004.
PALMIERI, P. A phenomenology of Galileo’s experiments with pendulums, BJHS, v.
42(4), Dec. 2009.
PALMIERI, P. Reenacting Galileo’s Experiments: Rediscovering the Techniques of
Seventeenth-Century Science. Lewiston, NY: Edwin Mellen Press, 2008.
PANTALEONE, J. Synchronization of Metronomes. American Journal of Physics, p.
992-1000, vol. 70, No. 10, October 2002.
RIVAUD, A. La physique de Spinoza. Chronicon Spinozanum, p. 24-57, No. 4, 1924-
1926.
ROBERTSON, J. D. The Evolution of Clockwork. Wakefield: S.R. Publishers Ltd., 1931.
SPINOZA, B. Complete Works. Ed. M. L. Morgan and tran. S. Shirley. Indianapolis:
Hackett, 2002.
THIJSSEN-SCHOUTTE, C. L. Andreas Colvius, een Correspondent van Descartes. In:
______. Uit de Republiek der Letteren. Gravenhage: Martinus Nijhoff, 1967, p. 67- 89.
VAN BERKEL, K. Galileo in Holland before the Discorsi: Isaac Beeckman’s reaction to
Galileo’s work. In: MAFFIOLI, C. S.; PALM, L. C. Palm (eds.). Italian Scientists in the
Low Countries in the XVIIth and XVIIIth Centuries. Atlanta / Amsterdam: Rodopi, 1989.
VAN NETTEN, D. Koopman in kennis – De uitgever Willem Jansz Blaeu (1571-1638)
in de geleerde wereld van zijn tijd. Proefschrift, Rijkuniversiteit Groningen, Maart
2012.

O que nos faz pensar, Rio de Janeiro, v.26, n.41, p.9-43, jul.-dez. 2017
Galileo Galilei, Holland and the Pendulum Clock 43

VERMIJ, R. The Calvinist Copernicans. The Reception of the New Astronomy in the
Dutch Republic, 1575-1750. Amsterdam: Koninklijke Nederlandse Akademie van
Wetenschappen, 2002.
VERMIJ, R. Het copernicanisme in de republiek, Tijdschrift voor geschiedenis, p. 349-
367, No. 16, 1993.
WAARD, C. de (ed.). Journal tenu par Isaac Beeckman de 1604 à 1634. Tome 4:
Supplément. Martinus Nijhoff: Den Haag, 1953.
WOOTTON, D. The invention of Science. Milton Keynes: Penguin [2015] 2016.
ZUIDERVAART, H. J., The ‘true inventor’ of the telescope. A survey of 400 years
of debate. In: VAN HELDEN, A. et. al. The origins of the telescope. Amsterdam:
Koninklijke Nederlandse Akademie van Wetenschappen (KNAW) Press, 2010, p.
9-44.

O que nos faz pensar, Rio de Janeiro, v.26, n.41, p.9-43, jul.-dez. 2017
Leggere Spinoza alla luce della tradizione
Giovanni Licata*

averroista ebraica. Un resoconto delle recenti


acquisizioni storiografiche

Leitura de Spinoza à luz do Averroísmo judeu:


um resumo dos estudos recentes

Reading Spinoza in the light of Jewish Averroism:


a survey of recent scholarship

Riassunto
Questo articolo fornisce un resoconto della letteratura recente sul rapporto tra
Spinoza e l’averroismo di matrice ebraica. Secondo questo nuovo sviluppo della
ricerca storiografica, riconoscere in Spinoza l’influenza di alcune dottrine averroiste
può essere d’aiuto ad una migliore comprensione della genesi e dell’evoluzione del
suo pensiero.

Parole chiave: Averroismo ebraico; Gersonide; Elia del Medigo; Uriel da Costa.

Resumo
O artigo fornece uma pesquisa da literatura recente sobre a relação entre Spinoza
e o averroísmo judaico. De acordo com essa nova tendência de erudição, a leitura
de Spinoza à luz de algumas doutrinas averroístas ajuda a compreender melhor a
gênese e a evolução de seu pensamento.

Palavras-chave: Averroísmo judeu; Gersonides; Elijah Delmedigo; Uriel da Costa.

Abstract
The article provides a survey of recent literature on the relationship between Spinoza
and Jewish Averroism. According to this new trend of scholarship, reading Spinoza
in the light of some Averroistic doctrines helps to better understand the genesis and
evolution of his thought.

Keywords: Jewish Averroism; Gersonides; Elijah Delmedigo; Uriel da Costa.

* Pesquisador do Istituto Nazionale di Studi sul Rinascimento, Florença. E-mail: licatagio@hotmail.it

O que nos faz pensar, Rio de Janeiro, v.26, n.41, p.45-55, jul.-dez. 2017
46 Giovanni Licata

Nella vasta mole di studi sul pensiero di Spinoza non è recente – seppur sia
stato fatto sporadicamente e senza alcuna sistematicità – il tentativo di ricon-
durre alcune tesi filosoficamente radicali ed eterodosse all’influenza della tra-
dizione averroista; quella multiforme corrente che, rifacendosi in modi diversi
all’eredità del grande filosofo andaluso Ibn Rushd (1126-1198), ha contribu-
ito, dal Medioevo alla prima età moderna, alla formazione dell’Illuminismo
europeo. E per Illuminismo – più o meno radical secondo l’etichetta tornata
in auge grazie agli studi di Jonathan Israel – si intenda qui, con una formula
riduttiva ma essenziale, quel processo di autonomizzazione della ragione dai
lacci, dagli interdetti e dai dogmi traenti la loro origine dalla rivelazione bibli-
ca1. Vorrei porre l’attenzione, in particolare, su cinque tesi appartenenti alla
tradizione averroista che si possono ritrovare nel sistema di Spinoza:

1. la separazione tra filosofia e religione e la distinzione della loro fun-


zione epistemica: la prima concepita come luogo della verità e della
dimostrazione scientifica; la seconda come insegnamento di natura
retorica nei confronti delle masse incolte;
2. l’eternità dell’intelletto, stante la mortalità dell’anima individuale;
3. la vita intellettuale e la conoscenza di Dio come sommo bene;
4. l’eternità dell’universo e la negazione della creatio ex nihilo;
5. la negazione dei miracoli e della provvidenza individuale, giustifi-
cate a partire dalla legalità immutabile della Natura2.

Negli ultimi anni si è assistito alla pubblicazione di diversi studi che


hanno fondato su basi rigorosamente storico-critiche, e non puramente spe-
culative come in passato, l’indagine sulla presenza di queste tesi averroiste in
Spinoza, a partire da autori e testi che il filosofo olandese ha potuto effettiva-
mente conoscere nel corso della sua formazione. Un’attenzione particolare si
è rivolta alle fonti filosofiche ebraiche, e nella fattispecie a quei filosofi ebrei
che hanno abbracciato l’interpretazione averroista della filosofia aristotelica,

1 Cfr. Akasoy A. e Giglioni, G. (eds.). Renaissance Averroism and its Aftermath: Arabic Philosophy
in Early Modern Europe. Dordrecht: Springer Academic Publishers, 2013; Licata, G. (a cura di)
L’averroismo in età moderna (1400-1700). Macerata: Quodlibet, 2013.

2 Queste tesi erano già state enucleate, assieme ad altre, nell’importante studio di Filippo Mignini,
Spinoza e Bruno. Per la storia di una questione storiografica. In: Bostrenghi, D. e Santinelli, C.
Spinoza. Ricerche e prospettive. Napoli: Bibliopolis, 2007, p. 267-268.

O que nos faz pensar, Rio de Janeiro, v.26, n.41, p.45-55, jul.-dez. 2017
Leggere Spinoza alla luce della tradizione averroista ebraica 47

o perlomeno ne sono stati fortemente influenzati. La tradizione latina, essa


sola, non può infatti spiegare compiutamente la presenza di motivi averroisti
in Spinoza, per due ragioni: la prima di ordine storico, dato che al tempo di
Spinoza i cosiddetti averroisti latini – Sigieri di Brabante e Boezio di Dacia,
ad esempio – avevano circolazione soltanto manoscritta (ciò non vale tutta-
via per altri autori, altrettanto importanti, come Jean de Jandun e, soprattut-
to, per Pietro Pomponazzi); la seconda ragione è di ordine biografico, dato
che Spinoza ha appreso tardivamente il latino, alla scuola di Franciscus van
den Enden, e si è formato sui testi filosofici della propria tradizione: Maimo-
nide, Gersonide e Crescas, solo per menzionare i più noti. E ancora: a partire
dal XIII secolo, grazie al grande numero di traduzioni dall’arabo all’ebraico
di Averroè, effettuate da circoli illuminati di ebrei provenzali provenienti
dalla penisola iberica, il mondo ebraico ha avuto, rispetto a quello latino,
una conoscenza quantitativamente superiore e qualitativamente più fedele
del pensiero del filosofo andaluso. Alcuni pensatori ebrei si sono ispirati
strettamente alle idee di Ibn Rushd – dal rapporto tra filosofia e religione
all’eternità del mondo –, e tra questi possiamo annoverare Isaac Albalag, Mo-
shè Narboni, Isaac Pulgar, Joseph ibn Kaspi ed Elia del Medigo; altri, hanno
sviluppato il loro sistema in maniera critica, ma in costante riferimento all’a-
ristotelismo averroista, come Gersonide e Crescas; altri ancora, in particolare
tra il XIII e il XV secolo, pur non essendo suoi seguaci, hanno utilizzato e
citato Averroè in quanto autorevole interprete del pensiero aristotelico3. E
ancora più concretamente, se si volge l’attenzione al milieu spinoziano di
Amsterdam, come già emergeva dalle ricerche di Israel Samuel Révah, tesi di
ascendenza averroista circolavano ampiamente tra gli ex-marrani portoghesi
che erano emigrati ad Amburgo e ad Amsterdam all’inizio del XVII secolo.
Due personaggi, in particolare, sono stati decisivi per l’allontanamento di
Spinoza dall’ebraismo e dalla religione, il medico Juan de Prado e il giurista
Uriel da Costa (Porto, 1583?-Amsterdam, 1640?). E, in effetti, come risul-
terebbe dalla denuncia al tribunale dell’Inquisizione di Madrid dell’8 agosto
1659 da parte di Fray Tomás Solano y Robles nei confronti di Spinoza e Juan
de Prado, la rottura con la Sinagoga da parte di Spinoza fu dovuta all’adesio-
ne a dottrine di critica radicale della religione, riconducibili alla tradizione
averroista, ossia che [1] la religione ebraica e, a fortiori, le altre religioni del

3 Per una prima introduzione ai filosofi ebrei citati nel corso di questo articolo si veda Colette
Sirat, La filosofia ebraica medievale secondo i testi editi e inediti. Brescia: Paideia, 1990 (anche in
versione inglese e francese).

O que nos faz pensar, Rio de Janeiro, v.26, n.41, p.45-55, jul.-dez. 2017
48 Giovanni Licata

Libro sono false – il che implica che solo la ragione, e non la rivelazione, è
la fonte del vero; [2] l’anima individuale è mortale; [3] il concetto di Dio ha
senso solo se inteso in senso filosofico, ovvero come causa prima e ragione
dell’esistente, e pertanto il Dio della rivelazione e ciò che ne consegue – cre-
atio ex nihilo, assoluta libertà del volere, miracoli, provvidenza – non hanno
nulla a che fare con il Dio della ragione:

Y tambien conocio al Dr. Prado, médico, que se llamaba Juan y no sabe


que nombre tenia de Judio, que havia estudiado en Alcala, y a un fulano de
Espinosa [i.e., un tale de Espinosa], que entiende hera natural de una de
las ciudades de Olanda porque havia estudiado en Leidem y hera buen filo-
sofo; los quales profesaban la ley de Moyses y la Sinagoga los havia expelido
y apartado de ella por aber dado en ateistas; y ellos mismos le dijeron a
este que estaban circuncidados y guardaban la ley de los Judios, y que ellos
mismos havian mudado de opinion por parecerles que [1] no hera verda-
dera la dicha Ley y que [2] las almas morian con los cuerpos; [3] ni havia
Dios sino filosofalmente, y que por eso los havian hechado de la Sinagoga; y,
aunque sentian las faltas de las limosnas que les daban en la Sinagoga y la
comunicacion con los demas Judios, estaban contentos con tener el herror de
el ateismo, porque sentian que no havia Dios sino es filosofalmente (como ha
declarado) y que las almas morian con los cuerpos y asi no havian menester
fee [i.e., non avevano bisogno della fede]4.

Non si stenterà a riconoscere nella tesi della mortalità dell’anima indivi-


duale il leitmotiv dell’Exame das tradiçoẽs phariseas (1624), quel pamphlet
sulfureo di Uriel da Costa che destò un enorme scandalo nella comunità
ebraica di Amsterdam, e che venne immediatamente requisito dalle auto-
rità e dato alle fiamme. Riscoperta da Herman P. Salomon l’ultima copia
sopravvissuta, dopo più di tre secoli, nel 19905, dobbiamo però agli studi

4 Documento del fondo dell’Inquisizione (Madrid), riportato in Révah, I.S. Spinoza et le Dr. Juan
de Prado. Paris-La Haye: Mouton, 1959, p. 64.

5 Cfr. Uriel da Costa. Examination of Pharisaic Traditions / Exame das tradiçoẽs phariseas, Facsimi-
le of the Unique Copy in the Royal Library of Copenhagen, Supplemented by Semuel da Silva’s
Treatise of the Immortality of the Soul. Translation, Notes and Introduction by H. P. Salomon and
I. S. D. Sassoon. Leiden: E. J. Brill, 1993. Si avverte il lettore che l’editio princeps del 1624, ri-
prodotta qui anastaticamente, è costellata da innumerevoli errori dovuti al tipografo ignorante
del portoghese, e che la traduzione di Sassoon è una parafrasi che spesso deforma e travisa il
pensiero dacostiano (per un giudizio critico sulla traduzione inglese si era già espressa Miriam
Bodian in The Jewish Quartely Review, v. 87, 1996, p. 167-169). Per un testo criticamente affi-

O que nos faz pensar, Rio de Janeiro, v.26, n.41, p.45-55, jul.-dez. 2017
Leggere Spinoza alla luce della tradizione averroista ebraica 49

di Omero Proietti la consapevolezza che grazie a quest’opera dacostiana


«una precisa corrente di averroismo sefardita si trasmette e si consegna al
“sistema” di Spinoza»:

Tesi dell’averroismo ebraico medievale, da Isaac Albalag a Joseph ibn Ca-


spi, non sono infrequenti nell’Exame [das tradiçoẽs phariseas] dacostiano.
Vedere ad esempio la «creazione eterna» nel Salmo 148, o spiegare «natu-
ralmente» il «miracolo» in 2 Re 4, 34-35 (Exame, 79, 208-213), significa
conoscere, direttamente o indirettamente, l’opera di Isaac Albalag e di Jo-
seph ibn Caspi6.

Dopo anni di preziosi studi sulla reale figura di Uriel da Costa – che
hanno comportato la dimostrazione di inautenticità della presunta auto-
biografia dacostiana, l’Exemplar humanae vitae7; e l’attribuzione a Da Co-
sta di una violenta opera antitalmudica, anch’essa non priva di venature
averroiste, pervenutaci in traduzione ebraica col titolo Qol sakhal8 –, Ome-
ro Proietti ha pubblicato nel 2014 il testo critico e la traduzione italiana,
entrambe corredate da un corposissimo apparato di note, dell’Exame das
tradiçoẽs phariseas9. Nel saggio che introduce l’opera, inoltre, Proietti ha
dato ampio spazio a tesi filosoficamente cruciali dell’opera: l’ordine della
natura, la negazione dei miracoli e l’eternità del mondo, che trovano una
chiara formulazione nella questão che chiude l’Exame: “Perguntase se os

dabile e una traduzione fedele si faccia riferimento all’edizione curata da Proietti, citata sotto, a
cui si aggiungano le ulteriori emendazioni al testo portoghese proposte nell’ultimo volume di
Proietti, Variazioni dacostiane (vedi sotto).

6 Proietti, O. «La voce di De Acosta [= 431]». Sul vero autore del Qol Sakhal. La Rassegna mensile
di Israel, v. 70, 2004, p. 40 n. 18.

7 Proietti, O. Uriel da Costa e l’«Exemplar humanae vitae». Macerata: Quodlibet, 2005.

8 La paternità dell’opera è stata assegnata nel XIX secolo al rabbino veneziano Leone Modena.
Nell’articolo citato sopra («La voce di De Acosta [= 431]». Sul vero autore del «Qol Sakhal») Proietti
ha tuttavia dimostrato che Uriel da Costa, tra il 1618 e il 1622, in risposta al Magen we-tzinnah
(«Scudo e corazza») di Modena, ha scritto Tres Tratados contra a Tradição. È questa l’opera, perduta
nell’originale portoghese, che ci rimane soltanto nella traduzione ebraica di Modena, intitolata in
modo dispregiativo Qol sakhal (“La voce dello stolto”) come lavoro preparatorio alla confutazione,
che però si interruppe dopo poche pagine. Per l’attribuzione dell’opera a Uriel di Costa si vedano
inoltre i molteplici loci paralleli tra Qol sakhal ed Exame in nota al testo dell’edizione dell’Exame
das tradiçoẽs phariseas curata da Omero Proietti.

9 Uriel da Costa. Exame das tradiçoẽs phariseas / Esame delle tradizioni farisee (1624). Saggio intro-
duttivo, testo critico, traduzione e commento di Omero Proietti. Macerata: eum, 2014, p. 1-723.

O que nos faz pensar, Rio de Janeiro, v.26, n.41, p.45-55, jul.-dez. 2017
50 Giovanni Licata

çeos, e a terra acabaráõ, e fará Deos consumaçaõ com as creaturas, ou pello


contrario tudo estará sem fim. Respondemos que tudo estará sem fim, e
naõ fará Deos com as creaturas consumaçaõ”.
A questo testo fanno da pendant altri due volumi recentemente editi,
che costituiscono una trilogia fondamentale per chiunque volesse studiare
– spazzando via quelle incrostazioni ormai secolari di “falsificazioni e false
attribuzioni”10 – la reale figura di Uriel da Costa e la sua influenza decisiva
per la formazione del pensiero spinoziano. Nel volume Tradizione e illumini-
smo in Uriel da Costa. Fonti, temi, questioni dell’«Exame das tradiçoẽs phariseas»
(Macerata: eum, 2016, 435 pp.), curato da Omero Proietti e da Giovanni
Licata, si sono sviluppati i contributi presentati in occasione del Convegno
internazionale (29-30 settembre 2015) che il Dipartimento di Studi Umani-
stici dell’Università di Macerata ha dedicato alla figura di Da Costa, cercando
di situare il suo capolavoro nella tradizione culturale e filosofica antecedente
e coeva – l’averroismo ebraico e latino (Gersonide, Isaac Albalag, Moshè
Narboni, Jean de Jandun ed Elia del Medigo); il pensiero rinascimentale
(Pomponazzi); la letteratura ispano-portoghese (la Bibbia dei sefarditi, nota
come Biblia de Ferrara, e Luís Vaz de Camões); la letteratura eterodossa del
Cinque-Seicento (Michele Serveto, Martin Seidel, Ernst Soner, Fausto Sozzi-
ni, Adam Boreel) –, nonché di rintracciare la sua influenza in Spinoza e nella
produzione teologico-filosofica di alcuni grandi autori dell’Illuminismo te-
desco, quali Reimarus e Lessing11.
L’ultimo lavoro di Proietti, il terzo dopo l’edizione dell’Exame e gli atti di
convegno appena menzionati, è stato appena pubblicato dalle eum-Edizio-
ni Università di Macerata con il titolo Variazioni dacostiane. Studi sulle fonti
dell’«Exame das tradiçoẽs phariseas» (2017, 566 pp.). L’esplicitazione delle
molteplici fonti dacostiane – classiche, giuridiche, mediche, religiose – rende

10 Cfr. Proietti, O. «Nas letras nasçi eu». Uriel da Costa tra falsificazioni e false attribuzioni. In:
Hermanin, C. e Simonutti, L. La centralità del dubbio. Un progetto di Antonio Rotondò. Firenze: L.
Olschki, 2011, vol. I, p. 417-456.

11 In relazione all’averroismo dacostiano e spinoziano si vedano, in questo volume, i seguenti


contributi: Omero Proietti, «Introduzione» (in part. p. 14 n. 5); Roberto Gatti, «L’interpretazione
dei miracoli in un rappresentante dell’averroismo ebraico medievale del XIV sec. (Lewi ben Ger-
shom o Gersonide); Andrea Vella, «Il problema della mortalità dell’anima in Giovanni di Jandun»;
Giovanni Licata, «Il De substantia orbis nell’averroismo ebraico (Isaac Albalag, Moshè Narboni,
Elia del Medigo)»; Michael Engel, «The Relation between Philosophy and Religion in the Works of
Elijah Del Medigo: A Study of Three Models»; Guido Giglioni, «Accidental Intellects. Pomponazzi
on Human Imagination, Body and Mortality»; Omero Proietti, «Dal Somnium Scipionis alla Biblia
de Ferrara, da Abner de Burgos a Camões. Fonti e intrecci di fonti dell’Exame dacostiano»; Filippo
Mignini, «Mortalità, immortalità ed eternità dell’anima/mente in Spinoza».

O que nos faz pensar, Rio de Janeiro, v.26, n.41, p.45-55, jul.-dez. 2017
Leggere Spinoza alla luce della tradizione averroista ebraica 51

giustizia alla grandezza di un pensatore, che nell’Exame ha rivendicato (“nas


letras nasçi eu”), difendendosi dalle calunnie, la sua profonda cultura. È sol-
tanto a causa delle contingenze che hanno dato vita all’Exame – che si con-
figura come un pamphlet indirizzato contro il suo nemico Semuel da Silva e
al suo Tratado da immortalidade da alma – che Da Costa ha dovuto rinunciare
all’esposizione sistematica e ordinata del suo pensiero, fornita nel suo scritto
precedente, purtroppo perduto, Tratado sobre a alma do homem. Non ancora
“viziato” dalla svolta cartesiana, il pensiero dacostiano è certamente un frutto
maturo del Rinascimento portoghese: in Da Costa, infatti, vi è un ritorno con-
sapevole ai classici (Flavio Giuseppe, Pomponio Mela, Virgilio, Galeno), una
prosa che risente della grande letteratura portoghese del XVI secolo (Camões,
Jorge Ferreira de Vasconcelos), e vi è un dialogo serrato con i protagonisti del-
la Riforma (Calvino, Lutero, i sociniani). Ma il pensiero di Da Costa è anche,
come si è detto, il portavoce di alcune tendenze averroiste di cui era intrisa la
cultura razionalista ebraica del Medioevo iberico.

***

Un’altra linea di ricerca sull’averroismo di Spinoza è stata tracciata grazie alla


valorizzazione del catalogo della sua biblioteca, che certamente, com’è noto,
non si deve far coincidere con i libri che Spinoza ha effettivamente possedu-
to e letto. All’interno di questo catalogo, stilato alla sua morte, è presente un
libro trascurato, la cui importanza per la formazione di Spinoza era già stata
rilevata nel 1922 da Leon Roth. Nel suo breve saggio12, Roth mostrava che
Spinoza era in possesso di una vasta antologia di scritti razionalistici e cabba-
listici, pubblicata nel 1629 da Joseph Shlomo del Medigo (1591-1655) con
il titolo Abscondita sapientiae (Ta‘alumot hokhmah in ebraico); e che la Behinat
ha-dat (“Esame della religione”) dell’averroista cretese Elia del Medigo (c.
1455-1492/3), lontano parente di Joseph, era presente in questa antologia e
aveva probabilmente influenzato il Trattato teologico-politico. Recentemente,
a partire dalla ricerca pionieristica di Roth, la questione dell’averroismo di
Spinoza è stata ripresa e sviluppata da Carlos Fraenkel, il quale ha analizza-
to più a fondo il rapporto tra la Behinat ha-dat e il Trattato teologico-politico,

12 Roth, L. The Abscondita sapientiae of Joseph del Medigo. Chronicon Spinozanum, v. 2, 1922,
p. 54-66.

O que nos faz pensar, Rio de Janeiro, v.26, n.41, p.45-55, jul.-dez. 2017
52 Giovanni Licata

concentrandosi sul tema della separazione della filosofia dalla religione13.


Eppure, un’analisi più attenta ha permesso a chi scrive di riscontrare che
la Behinat condivide con il Trattato altri temi cari all’averroismo ebraico: la
natura retorica, non scientifica del discorso religioso; la critica a Maimonide
e all’interpretazione filosofica della Bibbia; la legittimazione della filosofia a
partire dalla Scrittura; la mente umana, o la ragione, come vero luogo della
rivelazione; la critica dei miracoli; la religione fondata su pochi e semplici
dogmata, esposti retoricamente, secondo la (limitata) capacità di compren-
sione del volgo. Questi temi sono stati analizzati ne La via della ragione. Elia
del Medigo e l’averroismo di Spinoza (Macerata: eum, 2013, 422 pp.), volume
che contiene anche una dettagliata biografia intellettuale di Elia del Medigo;
una dimostrazione, dopo gli studi pionieristici di Adolph Huebsch e Julius
Guttmann, della fattura averroista della Behinat ha-dat (che si può considera-
re un riadattamento ebraico del celebre Trattato decisivo di Averroè); nonché
la traduzione italiana dell’opera, accompagnata dal testo ebraico dell’editio
princeps del 1629, presente nella biblioteca spinoziana all’interno degli Ab-
scondita sapientiae.
E tuttavia vi sono altri filosofi ebrei che hanno permesso al giovane Spi-
noza di entrare in contatto con le principali dottrine averroiste: si pensi
all’Or Adonai (“La luce del Signore”) di Hasdai Crescas, pubblicato a Ferrara
nel 1555 e che Spinoza cita in una lettera14; oppure il Kevod Elohim (“La glo-
ria di Dio”) di Joseph ibn Shem Tob (1400-1460), profondo conoscitore e
commentatore di Averroè, con cui Spinoza polemizza nel cap. V del Trattato
teologico-politico; è ancora da indagare la reale influenza del Kevod Elohim,
ma quel ch’è certo è che tramite quest’opera Spinoza poteva ricavare una
conoscenza dettagliata della teoria dell’intelletto di Averroè15.
Un’ulteriore traccia da seguire, sicuramente fruttuosa, ma finora del tut-
to inesplorata, sarebbe quella di scrutare quella vasta e complessa opera di
Joseph Shlomo del Medigo, intitolata Novelot orah (“Gemme di luce”),

13 Fraenkel, C. Spinoza on Philosophy and Religion: The Averroistic Sources. In: Fraenkel, C.,
Perinetti, D. e Smith, J. The Rationalists: Between Tradition and Innovation. Dordrecht: Springer
Academic Publishers, 2010, p. 27-43; Id. Reconsidering the Case of Elijah Delmedigo’s Averroism
and its Impact on Spinoza. In: Akasoy A. e Giglioni, G. op. cit., p. 213-236.

14 Cfr. Harvey, W.Z. Physics and Metaphysics in Hasdai Crescas. Leiden: Brill, 1998. È apparsa da
non molto la prima traduzione integrale dell’opera di Crescas. Lumière de l’Éternel. Traduction,
préface et notes par É. Smilévitch. Paris: Hermann, 2010.

15 Cfr. Birnbaum, R. An Exposition of Joseph Ibn Shem Tov’s Kevod Elohim (The Glory of God). Lewi-
ston: The Edwin Mellen Press, 2001.

O que nos faz pensar, Rio de Janeiro, v.26, n.41, p.45-55, jul.-dez. 2017
Leggere Spinoza alla luce della tradizione averroista ebraica 53

compresa nel secondo tomo dei già citati Abscondita sapientiae. Grazie all’ac-
curata e brillante monografia di Isaac Barzilay16, sappiamo infatti che quest’o-
pera affronta temi centrali della filosofia medievale ebraica: creazione versus
eternità del mondo; natura e immortalità dell’anima secondo i commentatori
di Aristotele; teoria della conoscenza e provvidenza. Essa è soprattutto una
miniera di citazioni da testi inediti o rari, tra cui quelli di averroisti come
Joseph ibn Kaspi e Moshè Narboni.
Maggiori studi invece si sono prodotti sul rapporto tra Spinoza e Gerso-
nide, la cui importanza, in relazione alla mediazione di dottrine averroiste,
era già stata sottolineata da Manuel Joël nel XIX secolo, i cui lavori costitui-
scono ancora oggi un punto di partenza imprescindibile per chi volesse stu-
diare il rapporto di Spinoza con la filosofia ebraica. Ebbene, Joël sosteneva
giustamente che erano innumerevoli i luoghi del capolavoro gersonideo, le
Milhamot ha-Shem (“Le guerre del Signore”), da cui Spinoza avrebbe potuto
attingere dottrine averroiste:

Bei der Gelegenheit muss ich meine Verwunderung ausdrücken, dass man
in Verlegenheit ist, die Quelle zu finden, aus der Spinoza Averroistische
Vorstellungen geschöpft habe. Aus Maimonides freilich nicht, denn der ken-
nt bei Abfassung seines Buches17 den Averroes noch nicht. […] Dagegen
ist Gersonides einer der grössten Kenner des Averroes […]. Von Gersoni-
des spricht Spinoza mit höchster Achtung, nennt ihn Rabbinum eruditissi-
mum18 und kennt ihn bis zur wünschenswerthesten Genauigkeit. […] Die
Beispiele, wo Gersonides Averroistische Lehren vorträgt, sind ausserdem zu
zahlreich, um sie einzeln anzuführen19.

16 Barzilay, I. Yoseph Shlomo Delmedigo (Yashar of Candia). Leiden: Brill, 1974.

17 Ossia la Guida dei Perplessi.

18 Riferimento all’Adnotatio XVI del Trattato teologico-politico.

19 Joël, M. Spinoza’s Theologisch-Politischer Traktat auf seine Quellen geprüft. Breslau: Schletter’sche
Buchhandlung, 1870, p. VI-VII. Si vedano anche i saggi Zur Genesis der Lehre Spinoza’s; Don
Chasdai Creskas’ religionsphilosophische Lehren in ihrem geschichtlichen Einflusse dargestellt; Lewi Ben
Gerson (Gersonides) als Religionsphilosoph, ripubblicati in Beiträge zur Geschichte der Philosophie.
Breslau: Skutsch, 1876, 2 voll. (rist. anast. Hildesheim: Gerstenberg, 1978). Per una traduzione
moderna delle Guerre del Signore si veda, oltre a quella inglese di Seymour Feldman, l’ottima tra-
duzione italiana di Roberto Gatti (Bari: Edizioni di Pagina, 2011).

O que nos faz pensar, Rio de Janeiro, v.26, n.41, p.45-55, jul.-dez. 2017
54 Giovanni Licata

Più recentemente sono da segnalare i contributi di Julie R. Klein e Roberto


Gatti, che hanno indagato l’influenza di Gersonide in relazione ai temi della
teoria dell’intelletto, dell’eternità della mente20 e della critica dei miracoli,
sottolineando, sulla scia di Joël, quanto – per dirla con le parole della Klein
– “Spinoza’s affinities with, and debts to, Gersonides, and, more broadly, to
the Averroian tradition, emerge clearly with regard to both the relationship
between God and the world and the relationship between thought and ex-
tension”21. E credo che Gatti abbia visto correttamente, sostenendo che anche
l’opera di Gersonide possa inserirsi nella tradizione di pensiero averroista,
nell’affermare che “l’averroismo presenterebbe lungo i secoli quelle stesse ca-
ratteristiche di elasticità e versatilità che alcuni studiosi moderni hanno rico-
nosciuto all’aristotelismo, finendo con il costituirsi, al pari di quest’ultimo,
come un vero e proprio «paradigma» di pensiero”22.

Riferimenti bibliografici

AKASOY A. e GIGLIONI, G. (eds.). Renaissance Averroism and its Aftermath: Arabic


Philosophy in Early Modern Europe. Dordrecht: Springer Academic Publishers, 2013.
FRAENKEL, C. Spinoza on Philosophy and Religion: The Averroistic Sources. In:
Fraenkel, C., Perinetti, D. e Smith, J. The Rationalists: Between Tradition and Innovation.
Dordrecht: Springer Academic Publishers, 2010, p. 27-43.

20 Sulla problematica questione dell’eternità della mente, sviluppata da Spinoza nella V parte
dell’Ethica, si è vista da più parti la necessità di comprenderla alla luce della noetica averroista.
Per una esauriente chiarificazione del problema, analizzato secondo l’evoluzione del pensiero
spinoziano, rinvio al già citato articolo di Filippo Mignini, «Mortalità, immortalità ed eternità
dell’anima/mente in Spinoza». Si veda anche Sergio Landucci, L’intelletto infinito nell’Ethica di
Spinoza. Rivista di storia della filosofia, n. 3, 2013, p. 459-468.

21 Klein, J. Spinoza’s Debt to Gersonides. Graduate Faculty Philosophy Journal, v. 24, 2003, p. 38.
Si veda anche, più recentemente, Ead. “Something of it Remains”: Spinoza and Gersonides on
Intellectual Eternity. In: Nadler, S. Spinoza and Medieval Jewish Philosophy. Cambridge: Cambridge
University Press, 2014, p. 177-203. Pur avendo il merito di riconoscere l’importanza della filo-
sofia medievale ebraica per la comprensione della filosofia di Spinoza, nel suo Spinoza’s Heresy:
Immortality and the Jewish Mind (New York: Oxford University Press, 2001), così come nella più
recente curatela Spinoza and Medieval Jewish Philosophy, Steven Nadler ha il torto di sottovalutare
l’enorme impatto che i commenti e le opere di Averroè hanno avuto sui filosofi razionalisti poste-
riori a Maimonide.

22 Cfr. Gatti, R. L’interpretazione dei miracoli in un rappresentante dell’averroismo ebraico me-


dievale del XIV sec. (Lewi ben Gershom o Gersonide). In: Proietti, O. e Licata, G. Tradizione e
illuminismo in Uriel da Costa. Fonti, temi, questioni dell’«Exame das tradiçoẽs phariseas». Macerata:
eum, 2016, p. 24.

O que nos faz pensar, Rio de Janeiro, v.26, n.41, p.45-55, jul.-dez. 2017
Leggere Spinoza alla luce della tradizione averroista ebraica 55

FRAENKEL, C. Reconsidering the Case of Elijah Delmedigo’s Averroism and its


Impact on Spinoza. In: Akasoy A. e Giglioni, G. op. cit., p. 213-236.
GATTI, R. L’interpretazione dei miracoli in un rappresentante dell’averroismo ebraico
medievale del XIV sec. (Lewi ben Gershom o Gersonide). In: Proietti, O. e Licata, G.
op. cit., p. 23-50.
KLEIN, J. Spinoza’s Debt to Gersonides, Graduate Faculty Philosophy Journal, v. 24,
2003, p. 19-43.
KLEIN, J. “Something of it Remains”: Spinoza and Gersonides on Intellectual
Eternity. In: Nadler, S. Spinoza and Medieval Jewish Philosophy. Cambridge: Cambridge
University Press, 2014, p. 177-203.
LANDUCCI, S. L’intelletto infinito nell’Ethica di Spinoza. Rivista di storia della filosofia,
n. 3, 2013, p. 459-468.
LICATA, G. La via della ragione. Elia del Medigo e l’averroismo di Spinoza. Macerata:
eum, 2013.
LICATA, G. (a cura di) L’averroismo in età moderna (1400-1700). Macerata: Quodlibet,
2013.
MIGNINI, F. Spinoza e Bruno. Per la storia di una questione storiografica. In:
Bostrenghi, D. e Santinelli, C. Spinoza. Ricerche e prospettive. Napoli: Bibliopolis, 2007,
p. 211-271.
MIGNINI, F. «Mortalità, immortalità ed eternità dell’anima/mente in Spinoza». In:
Proietti, O. e Licata, G. op. cit., p. 297-324.
PROIETTI, O. «La voce di De Acosta [= 431]». Sul vero autore del Qol Sakhal. La
Rassegna mensile di Israel, v. 70, 2004, p. 33-54.
PROIETTI, O. Uriel da Costa e l’«Exemplar humanae vitae». Macerata: Quodlibet, 2005.
PROIETTI, O. e LICATA, G. Tradizione e illuminismo in Uriel da Costa. Fonti, temi,
questioni dell’«Exame das tradiçoẽs phariseas». Macerata: eum, 2016.
PROIETTI, O. Variazioni dacostiane. Studi sulle fonti dell’«Exame das tradiçoẽs phariseas».
Macerata: eum, 2017.
REVAH, I.S. Spinoza et le Dr. Juan de Prado. Paris-La Haye: Mouton, 1959.
URIEL DA COSTA. Exame das tradiçoẽs phariseas / Esame delle tradizioni farisee
(1624). Saggio introduttivo, testo critico, traduzione e commento di Omero Proietti.
Macerata: eum, 2014.

O que nos faz pensar, Rio de Janeiro, v.26, n.41, p.45-55, jul.-dez. 2017
Adma Fadul Muhana*

Controvérsia religiosa:
os livros de Gabriel-Uriel da Costa

Religious controversy:
the books of Gabriel-Uriel da Costa

Resumo
Trata-se de avaliar o Exame das tradições fariseias como um livro resultante das
sucessivas recusas que as propostas do judeu-novo Uriel da Costa receberam
na nação portuguesa, depois de se desterrar de Portugal, por volta de 1615. A
uma pretensa unidade de pensamento, procura-se aqui evidenciar a unidade de
destinação das formulações do jurista hebreu Costa, a delimitar suas controvérsias
e a constituí-lo como desautorizado autor português.

Palavras-chave: Uriel da Costa; nação portuguesa; autoria; controvérsia


religiosa; livros impressos.

Abstract
It is a question of evaluating the Examination of the Pharisaic traditions as a book
resulting from the successive refusals that the proposals of the new-Jew Uriel da
Costa received by the authorities of the Portuguese nation, after exiling of Portugal,
around 1615. Instead of one a pretended unit of thought, the purpose of this
paper is to demonstrate the unit of destination of the formulations of the Hebrew
jurist da Costa, to delimit his controversies and to compose him as an Portuguese
unauthorized author.

Keywords: Uriel da Costa; Portuguese nation; authorship; religious controversy;


17th century; printed books.

* Professora livre-docente de Literatura Portuguesa da Universidade de São Paulo (USP).


E-mail: adma@usp.br.

O que nos faz pensar, Rio de Janeiro, v.26, n.41, p.57-73, jul.-dez. 2017
58 Adma Fadul Muhana

Este estudo se iniciou como uma pesquisa em torno do livro Exame das tra-
dições fariseias (1624) e logo se revelou um assunto de maiores dimensões, a
envolver não só o escrito de Uriel da Costa (ca.1585-1640), mas a nação por-
tuguesa de Amsterdã.1 Envolve também questões relativas a conceitos-chave
das letras no século xvii, dada a própria ausência de concepção do seu manus-
crito como “livro”, entre os leitores pretendidos; a inserção dos seus escritos
em gêneros de disputa religiosa, e a instabilidade do seu escritor como indivi-
dualidade autoral. Apresenta-se aqui um extrato dessa mais ampla discussão,
desenvolvida em Uriel da Costa e a nação portuguesa: edição diplomática e
estudo do “Exame das tradições fariseias”, publicado no ano de 2017 pela
editora Humanitas, de São Paulo.
Junto com Bento de Espinosa (1632-1677), Uriel da Costa é um dos
mais notáveis membros da nação portuguesa de Amsterdã. Viveram ambos no
mesmo século de Ouro de uma Espanha que alcançava Portugal e os Países-
-Baixos, contestaram um e outro as instituições e as práticas das autoridades
judaico-portuguesas e, como consequência, receberam ambos o herem que os
expulsou da comunidade. Tem sido assunto debatido se formulações simila-
res que apresentaram frente à religião judaica resultaram de fontes comuns,
ou se Espinosa teria desenvolvido temas que primeiramente surgiram na pena
de Uriel da Costa. J.-P.Osier mostrou que argumentos presentes em escritos
de ambos – acerca da inautenticidade do certos livros bíblicos, como o de Da-
niel; o desprezo ao culto que os chamados fariseus faziam aos mártires do ju-
daísmo; a razão natural como princípio de legibilidade da Escritura; a exten-
são do domínio das autoridades religiosas sobre os membros da comunidade
–, todavia, inscrevem-se em questões de diversa ordem, filosófica no caso de

1 Como tal, é em grande medida devedor de estudos incontornáveis relativos aos descendentes
dos cristãos-novos portugueses, como os de J. M. dos Remédios, Os Judeus Portugueses em Ams-
terdam (1911), J. L. de Azevedo, História dos cristãos-novos portugueses (1921), I. Révah, Spinoza
et le Dr Juan de Prado (1959), A. J. Saraiva, Inquisição e cristãos-novos (1969), a introdução de H.
P. Salomon ao Tratado da Verdade da Lei de Moisés de Saul Levi Morteira (1988), Y. Kaplan, From
Christianity to Judaism. The Story of Isaac Orobio de Castro (1989), J. Faur, In the Shadow of History:
Jews and Conversos at the Dawn of Modernity (1992), B. Blumenkranz, Juifs en France au XVIIIe siècle
(1994), H. Méchoulan, Être Juif à Amsterdam au temps de Spinoza (1995), Y.H. Yerushalmi, Sefar-
dica. Essais sur l’histoire des Juifs, des marranes & des nouveaux-chrétiens d’origine hispano-portugaise
(1998), além de outros mais recentes, como os de G. Nahon, Juifs et Judaïsme à Bordeaux (2003), D.
Graizbord, Souls in Dispute, Converso Identities in Iberia and the Jewish Diaspora, 1580-1700 (2004),
N. Muchnik, Une vie marrane. Les pérégrinations de Juan de Prado dans l’Europe du XVIIeme siècle
(2005), C. Wilke, Histoire des Juifs Portugais (2007) e S. Sand, Comment le peuple juif fut inventé
(2008), entre os mais destacados. Nosso estudo se realizou no âmbito de um pós-doutorado na
EHESS, no ano de 2012, financiado com uma bolsa de estágio pós-doutoral da Capes.

O que nos faz pensar, Rio de Janeiro, v.26, n.41, p.57-73, jul.-dez. 2017
Controvérsia religiosa: os livros de Gabriel-Uriel da Costa 59

Espinosa, jurídica, no caso de Costa.2 O. Proietti, por sua vez – que escreve
quando já se conhecia o Exame das tradições fariseias –, supõe uma “cone-
xão inegável” entre os dois pensadores.3 Sem dúvida, a peculiar configuração
da nação de Amsterdã, composta quase que integralmente de judeus-novos,4
propiciou mais de uma vez questionamentos análogos e uma oposição aberta
às concepções político-teológicas das suas autoridades, não obstante a dife-
rença de enquadramento e de soluções que os autores apresentem.

As personagens

O livro escrito por “Uriel da Costa, jurista hebreu” e impresso sob o título
Exame das tradições fariseias, em Amsterdã, foi encontrado por Herman Salo-
mon em 1990, depois de 370 anos desaparecido.5
Até então não havia sequer certeza de sua existência, uma vez que não se
conhecia qualquer exemplar, desde que fora mandado queimar pelas autori-
dades holandesas a pedido do conselho diretivo da comunidade portuguesa-
-judaica de Amsterdã. O fato de ter sido atual por mais de cinquenta anos na
nação de Amsterdã, dando ensejo a diversas respostas, demonstra que ali teve
uma importância incomum. Os questionamentos, censuras e refutações ao
Exame das tradições fariseias evidenciam também o embate entre setores judai-
cos e cristãos no século xvii, na Holanda, no fito de arrebatar os descendentes
de cristãos-novos portugueses e espanhóis para suas respectivas fileiras.
A existência de um proselitismo judaico nas nações portuguesas europeias
do século xvii surpreende e parte deste trabalho foi dedicada a confirmá-lo.
Parto do pressuposto de que as nações portuguesas da Europa se formaram
paulatinamente e não de modo espontâneo, porém em resultado de um es-
forço, tanto de líderes religiosos como de autoridades civis, sobretudo as de

2 Jean-Pierre Osier, D’Uriel da Costa à Spinoza. Paris: Berg International, 1983.

3 Omero Proietti, Uriel da Costa e L’«Exemplar Humanae Vitae». Macerata: Quodlibet, 2005.

4 Na feliz designação de Y. Kaplan, in Judíos nuevos en Amsterdam: Estudio sobre la historia social e
intelectual del judaísmo sefardí en el siglo XVII. Barcelona: Gedisa, 1996.

5 U. da Costa, Examination of Pharicaic Traditions. Supplemented by Semuel da Silva’s Treatise


on the Immortality of the soul. Translation, notes and introduction by H.P. Salomon and I.S.D.
Sassoon, Leiden, New York, Köln: Brill, 1993. Edição portuguesa: U. da Costa, Exame das tradi-
ções farisaicas. Acrescentado com Semuel da Silva, Tratado da Imortalidade da Alma. Introdução,
leitura, notas e cartas genealógicas por H.P. Salomon e I.S.D. Sassoon. Braga: APPACDM Distrital
de Braga, 1995.

O que nos faz pensar, Rio de Janeiro, v.26, n.41, p.57-73, jul.-dez. 2017
60 Adma Fadul Muhana

estados protestantes como a Holanda, Inglaterra e cidades germânicas. Esses


acolheram portugueses e espanhóis descendentes de cristãos-novos católicos
perseguidos pela Inquisição, objetivando incorporá-los a comunidades, que,
por fim, se definiram umas como judaicas, outras não. Com isso, casos de
heterodoxia como o de Uriel da Costa são melhor compreendidos se tomados
como conservação de um ethos ibérico, mal adaptado ao judaísmo rabínico.
Esta a razão porque procuramos manter essas comunidades e seus escritores
na história da Península Ibérica, católica durante o Antigo Regime, em vez de
transferi-las em bloco para uma história judaica.
O caso de Uriel da Costa não foi incomum. Natural do Porto, batiza-
do Gabriel, estudante de Direito canônico em Coimbra, a morte do pai
desviou-o de uma carreira de funcionário eclesiástico para a de arrimo da
sua família, composta de mãe, irmãos e cunhado. Com a expansão da Inqui-
sição, porém, em tempos de monarquia dual – quando a coroa portuguesa
estava nas mãos dos espanhóis – e com processos inquisitoriais recaindo
sobre parentes e vizinhos seus, em 1615 Uriel da Costa se desfez de seus
bens e se encaminhou para Amsterdã. Aí, embora o judaísmo não fosse
permitido,6 havia estabelecida desde alguns anos uma comunidade de des-
cendentes de cristãos-novos de origem ibérica, a chamada nação portuguesa.
Ao chegar ao Norte, Gabriel da Costa se circuncidou e mudou seu nome
para Uriel, mantendo parte de sua família em Amsterdã, enquanto, sediado
em Hamburgo, reorganizava a rede comercial iniciada pelo pai e ligada ao
comércio de açúcar do Brasil, com ramificações na cidade do Porto. Em fa-
zer isso, Uriel da Costa não se distinguia de outros mercadores portugueses,
homens de negócio portugueses, gente da nação portuguesa, que assim se
nomeavam e como tal eram conhecidos.
É nessa condição de mercadores e homens de negócio que grande parte
dos portugueses da nação insistiam em conservar seus nomes de batismo
cristãos, o alias, mesmo depois de convertidos ao judaísmo. Esses nomes
cristãos lhes permitiam retornar e negociar na Península ou nas conquistas
do Novo Mundo e da Ásia; e, a fim de escapar de um reconhecimento por
parte do Santo Ofício, também forjavam para si pseudônimos, cristãos ou
judaicos. O próprio Uriel da Costa, em Hamburgo, além do deplorado nome

6 A permissão para o culto público só foi dada aos judeus pelo Conselho de Amsterdã em 1616,
após o parecer de Hugo Grotius, intitulado Remonstrantie, no qual inseria tal permissão no direito
das gentes em viver livremente na República, mesmo que divergindo em termos religiosos e desde
que em quietação.

O que nos faz pensar, Rio de Janeiro, v.26, n.41, p.57-73, jul.-dez. 2017
Controvérsia religiosa: os livros de Gabriel-Uriel da Costa 61

de batismo Gabriel da Costa (que talvez tenha tornado a usar depois de sua
excomunhão), adota ainda o de Adão Romez7 e o de Uriel Abadot, nome pelo
qual é designado no papel de sua excomunhão em Amsterdã:

Os snñores Deputados da nação fazem saber a Vsms. como tendo noticia


que hera vindo a esta Cidade hũ homẽ que se pôs por nome Uriel Abadot
e que trazia m.tas opinioẽs erradas, falsas e heréticas cõtra nossa santís-
sima lei pelas quais já em Amburgo e Veneza foi declarado por herege e
excomungado. E desejando reduzilo á verdade fizeram todas as dilig.as ne-
cessárias por vezes cõ toda a suavidade e brandura por meo de Hahamim
e Velhos de nossa nação, a que ditos snnrs. Deputados se acharão presentes.
E vendo q. por pura pertinácia e arrogância persiste em sua maldade e fal-
sas opiniões ordenão [...] apartalo como homẽ já enhermado, e maldito da
L. del Dio, e que lhe não fale pessoa algũa de nenhũa qualidade, nẽ homẽ
nẽ molher, nẽ parente nẽ estranho, nẽ entre na casa onde estiver, nẽ lhe
dem fauor algũ, nẽ o comuniquem cõ pena de ser compreendido no mesmo
herem e de ser apartado de nossa comunicação. E a seus Irmãos por bons
resp.tos se concedeu termo de outo dias p.a se apartarem dele. Amsterdam
30 del homer 5383 [“Livro dos Termos da Imposta da nação principiado
em 24 de Sebat 5382”, 1623].8

O alias, então, sendo mercantil, não deixa de mesclar a identidade judaica


à condição portuguesa, constituindo sempre um signo motivado, que agrega à
significação bíblica do nome uma significação alegórica paralela, que a desvia,
amplifica ou ultrapassa. (Algo análogo ocorre nos livros de pastores e nas nar-
rativas épicas coetâneas, em que os nomes dos protagonistas carregam sempre
uma dupla significação, de cunho alegórico.) Com isso, o alias dispõe o indi-
víduo a mais de um pertencimento identitário, isto é, permite-lhe alternar de
persona e resistir a ser fincado em uma só identidade, unívoca e totalizadora.
Resumindo, ao sair de Portugal, Gabriel-Uriel da Costa se fixa entre Ham-
burgo e Amsterdã, os dois maiores portos comerciais a que acorrem os por-
tugueses, já centros judaizantes, mas onde e quando ainda não era permitido

7 Este último aparece em diversos documentos notariais referentes a transferências de valores e


propriedade de caixas de açúcar, “para evitar a confiscação da sua mercadoria”. Ver H. Salomon,
“Introdução”, in U. da Costa, Exame..., p. 44.

8 C. M. de Vasconcelos, “Uriel da Costa: notas relativas à sua vida e às suas obras”, Revista da Uni-
versidade de Coimbra (1922), p.295; e H. Salomon, “Introdução”, in U. da Costa, Exame..., p. 52.

O que nos faz pensar, Rio de Janeiro, v.26, n.41, p.57-73, jul.-dez. 2017
62 Adma Fadul Muhana

professar publicamente o judaísmo. Surpreendente é que, logo após sua che-


gada e conversão ao judaísmo, tenha se posto a combater por escrito suas
instituições, ritos e concepções teológicas.

Os escritos

Primeiro, Uriel da Costa escreve, em Hamburgo, um folheto em língua portu-


guesa com onze perguntas acerca do modo como a Tradição era praticada na
nação portuguesa, o qual envia às autoridades judaicas em 1616, ano seguinte
ao da sua chegada. Manuscrito, do modo como o conhecemos não passa de
anotações pontuais, em três ou quatro fólios, acerca de práticas e ritos ju-
daicos, e é conhecido pelo título de “Propostas contra a tradição”.9 Dele não
conhecemos o original, mas tão-somente a contestação que lhe fez o rabino
veneziano Leão de Módena, em seu Magen-ve-sina.
Tendo sido essas propostas rejeitadas e, mais, recebido o herem pelas autori-
dades de Veneza e de Hamburgo devido a elas, Uriel da Costa enceta a escritura
de um arrazoado maior, o “Exame das tradições fariseias”, que incorpora pro-
posições de Módena (aquelas relativas aos saduceus e epicuristas, entre outras),
tanto assimilando-as, como rejeitando-as. Não conhecemos tampouco a estru-
tura desse primeiro manuscrito do “Exame”, uma vez que foi furtado, em parte
ou por inteiro, por um certo Samuel da Silva. Este, também natural da cidade
do Porto, havia sido próximo de Uriel da Costa em Hamburgo, mas se distan-
ciaram por divergirem quanto à religião, tornando-se por fim seu mais ferrenho
contestador. De posse dos papéis que compunham o “Exame das tradições fari-
seias”, Samuel da Silva escreve um Tratado da Imortalidade da Alma, no qual re-
futa violentamente três capítulos do manuscrito de Uriel da Costa, em que este
combate a noção da imortalidade da alma, comum ao cristianismo e ao judaís-
mo. Samuel da Silva justifica seu furto alegando ter conhecimento de que Uriel
da Costa intentava imprimir suas reprovadas opiniões,10 o que poderia levar
outros, por ignorância ou soberba, aos mesmos erros.11 Contendo excertos do
“Exame”, os quais faz acompanhar de suas próprias refutações, Silva publica seu
livro em 1623, na tipografia do cristão Paulus van Ravensteyn, em Amsterdã.

9 Uma abreviada versão em português feita por Moses Raphael de Aguilar, em 1639, foi publicada
por Carl Gebhardt, em Die Schriften des Uriel da Costa, pp. 22-26.

10 Tratado da Imortalidade da Alma, op.cit., cap. 8 incipit.

11 Idem, “Ao benigno leitor”.

O que nos faz pensar, Rio de Janeiro, v.26, n.41, p.57-73, jul.-dez. 2017
Controvérsia religiosa: os livros de Gabriel-Uriel da Costa 63

Em consequência do furto e da espúria publicação de trechos destacados


do seu “Exame”, Uriel o reescreve, afirmando ainda que, tendo anteriormente
tomado trabalho em escrever sobre a Lei, reconhecera não haver quem o qui-
sesse ouvir, razão pela qual recolhera seus escritos e não os quisera publicar.12
Com essa protestação, claro, Uriel da Costa recusa o argumento de Silva se-
gundo o qual o roubo dos manuscritos visava a atalhar a impressão do “Exa-
me”, que desencaminharia não só outros membros da nação, como também
cristãos. Por isso, embora traga o mesmo título, o livro que temos impresso
em 1624 é um outro Exame das tradições fariseias, voltado sobre si mesmo e
ampliado, que responde, numa primeira parte, às censuras sobre as “Propos-
tas” e, numa segunda parte, àquelas sobre o próprio “Exame”, a qual intitulou:
Reposta a hum Semuel da Silva que faz offiçio de medico, seu falso calumniador.
Agora em forma de livro, faz imprimir esse segundo Exame das tradições fari-
seias na mesma tipografia que o Tratado de Silva, a atingir o mesmo público
que ele. Além de responder a umas e outras censuras, nesse Exame Uriel da
Costa efetua uma defesa de seus escritos, a qual é proferida como um vitupério,
contra os seus, agora, adversários. A indignação e a virulência que perpassam
o livro devem assim ser equacionadas com as injúrias, o grau de ofensa sendo
homólogo à ira do ofendido e visando a ser ouvido pelos leitores da nação
portuguesa – censura ao vicioso, exibição do virtuoso. O insulto, portanto, é
regrado e proporcional à ofensa recebida. A outros, outras coisas seriam ditas,
doutros modos, detentores de outras finalidades. Tudo isso é o que dá uma
aparência tão “viva” e pouco “literária” ou filosófica ao seu livro, um livro vio-
lento, pouco educado e desarrumado. Devemos afirmar isso tanto em termos
de sua inventio, com ideias às vezes híbridas, tateantes, como em termos de sua
dispositio, com partes ajuntadas, sem conexão unificadora, e como em termos
de elocutio, com palavras de baixo calão, ironias, ofensas e maldições.
Mas os exemplares do livro são logo queimados e, seu autor, enhermado,
como vimos. Uriel da Costa se desterra em Utrecht, porém depois de alguns
anos aceita uma humilhante cerimônia de reconciliação com a nação, a que
se segue seu suicídio, em 1640. Pouco antes, no entanto, ainda escreve um
texto latino, à guisa de testamento, publicado postumamente por Philippe
van Limborch, em 1687, sob o título Exemplar humanae vitae.13

12 U. da Costa, Exame das tradições fariseias, “Ao leitor”.

13 Uma segunda cópia do Exemplar esteve na posse do luterano ortodoxo Johann Müller. Foi
ele quem primeiro noticiou o suicídio de Uriel da Costa, em seu livro de polêmica antijudaica
Judaismus oder Judenthum (1644), editado em Hamburgo.

O que nos faz pensar, Rio de Janeiro, v.26, n.41, p.57-73, jul.-dez. 2017
64 Adma Fadul Muhana

Pelos três primeiros escritos, em língua portuguesa, temos que os preten-


didos interlocutores de Uriel da Costa são as autoridades e os membros das
nações portuguesas da Europa. Nenhum deles se apresenta como um tratado
teológico ou mesmo doutrinário, mas apenas como “perguntas”, “propostas”,
“exame”, “resposta”, “questão” de um jurista hebreu; quer dizer, como discus-
sões acerca de assuntos polêmicos, passíveis de uma determinação legal, e
encaminhadas a leitores definidos. Leitores esses que ocupam um lugar dire-
tivo e de poder na nação judaico-portuguesa, não extravazando seus limites.
O princípio retórico fundamental de ordenação das partes consoante um fim
– o decorum ou prépon – há de ser levado em conta, sempre, ainda mais quan-
do se trata de textos que apresentam uma destinação precisa, que os unifica.
Daí que, faltando essa unidade, não constituam de antemão “livros”, isto é,
impressos unitários, que a princípio se destinam a uma recepção coletiva e
anônima, universal. Em vez disso, os escritos de Uriel da Costa apresentam
finalidades específicas, com precisas circunstâncias de tempo e lugar, e é em
relação a estas que as coisas ditas e o como são ditas devem ser interpretados.
A alteração das circunstâncias e destinatários de cada um deles implica novas
rerum, decorrentes das próprias contraditas que cada um dos textos sofre su-
cessivamente, a começar com a esquemática escritura das “Propostas”.
Não assim o Exemplar humanae vitae, que revela maior amplitude, para além
do entorno português e judaico. Escrito em latim, irrompe para fora da nação,
em invectiva e acusações, destinando-se aos pósteros e aos cristãos holandeses,
que, protestantes, gozam de sua simpatia. Re-significado ao se inscrever na obra
de Limborch (cujo manuscrito provavelmente foi manipulado por ele neste sen-
tido), não obstante isso exibe, potencializada, a cada vez mais agra censura que
Uriel foi tecendo ao longo da sua vida contra a nação portuguesa, uma vez tendo
a publicação do seu Exame surtido um efeito contrário ao desejado. No Exem-
plar, antevisto o rompimento final para com a nação, desiste da interlocução
com suas autoridades e dos benefícios de um acolhimento identitário. Como
resposta eficaz contra todas as tradições com que se debatera, adota finalmente
a razão e a lei natural, já salientes no malfadado Exame das tradições fariseias.

A mortalidade da alma no Exame das Tradições Fariseias

O problema da mortalidade da alma exibe o contencioso teológico em que


Uriel da Costa se insere, juntamente com muitos da nação, e que atinge sua
maior expressão na segunda parte do Exame das Tradições Fariseias, a mencio-
nada Reposta a Samuel da Silva.

O que nos faz pensar, Rio de Janeiro, v.26, n.41, p.57-73, jul.-dez. 2017
Controvérsia religiosa: os livros de Gabriel-Uriel da Costa 65

Não obstante suas conformações de gênero, o Exame gravita sempre em


torno daqueles três capítulos sobre a mortalidade da alma que Silva expusera
como ofensivos às religiões judaica e cristã – o que por si justificava que o
“empestado” fosse expulso da nação. Mas, para Uriel da Costa, a doutrina da
imortalidade da alma, assim posta como núcleo gerador de ambas as religiões,
evidenciava apenas que tanto o cristianismo como o judaísmo rabínico assen-
tavam em erros; e explicar as razões de sua proposição passa a ser, assim, a
justificação da sua escolha ética. Contra a doutrina da alma imortal defendida
por ambas as religiões, Costa antepõe portanto uma ética particular, em que
cada um é autônomo para escolher o bem ou o mal segundo sua compreen-
são da vontade divina, desdenhando conveniências e firmando-se apenas na
experiência e na razão relativamente à Lei:

Algum tempo morei eu na escuridade em que veio a muitos estar, embara-


çado, e duvidoso com os enleos de falsas escrituras, e doutrina de fabulosos
homens, nam podendo tomar firmeza, e acabar de atinar com esta vida
eterna tam apregoada de tantos, e lugar onde se avia de possuir; [...] vivo
pois contente de conhecer o meu fim, e saber as condicoẽs da lei que Deos
me deu para guardar: nam fabrico torres no vento, alegrandome, ou enga-
nandome vammente com esperanças falsas de sonhados bens: tambem me
nam entristeço nem perturbo com receo, ou pavor de majores males. pello
ser de homem que Deos me deu, e vida que me emprestou lhe dou muitas
graças, por que sendo que antes de eu ser me nam devia nada, me quiz
antes fazer homem que nam bicho.14

Nesse excerto, Costa subverte o sentido da expressão “bicho da terra”,


utilizada por Samuel da Silva como sinônimo da condição ínfima do homem
diante da divindade, para se afirmar homem, criatura racional de Deus. Ao
mesmo tempo, remete o termo “bicho” ao universo das doutrinas de transmi-
gração da alma, por ele desprezadas.15 Num livro que cita Virgílio, o Romance-
ro e Camões, não é possível deixar de notar que a expressão “torres ao vento”
inverte um tópico da poesia ibérica do século xvi, qual seja, a fugacidade das
esperanças que se fundam em bens passageiros, ao contrário daquelas que se
depositam em bens firmes, eternos e imortais, não batidos pelos ventos.

14 U. da Costa, Exame..., p. 96-7.

15 Lembre-se a novela picaresca de António Enrique Gómez El siglo pitagórico y la Vida de Don
Gregorio Guadaña (Ruão, 1644), em que se satiriza igualmente a transmigração das almas.

O que nos faz pensar, Rio de Janeiro, v.26, n.41, p.57-73, jul.-dez. 2017
66 Adma Fadul Muhana

As altas torres que fundei no vento,


O vento as levou logo, que as sustinha,
Do mal que me ficou a culpa é minha,
Pois sobre coisas vãs fiz fundamento.16

Para Uriel, as altas torres fundadas no vento são a própria transcendência:


assentar esperanças e temores em coisas vãs, como falsos bens e males no
além, é o que conduz a dúvidas e aflições; ater-se à letra da Escritura e viver
com justiça, pelo contrário, é bastante para afastar os males e trazer a tran-
quilidade. Assim também, considerar alguém que está vivo e que é racional,
simplesmente, constitui motivo suficiente para se dar graças a Deus e querer
guardar a sua lei, sem mais.
A partir do capítulo 4 da Reposta até o fim, Costa discorre sobre a inexistên-
cia da alma imortal. Não são, como na primeira parte do Exame e nas manus-
critas “Propostas”, divergências acerca de práticas rituais (modo da circuncisão,
uso do tefilim, determinação dos dias da páscoa) ou do entendimento jurídico
da lei (acerca da morte por chumbo, pena pecuniária, posse de animais, ali-
mentação etc.); consistem em discordâncias acerca de conceitos nucleares à
doutrina judaica, que Uriel da Costa contesta por contrários à Lei ou à razão
natural. Sua mais importante discordância é a de que a noção da imortalidade
da alma esteja presente no ditado bíblico – enfatizando, a contrario, a presença
de afirmações textuais acerca da mortalidade –, e concluindo com uma defini-
ção da alma consoante a razão natural: “Alma do homem, pois, dizemos que
he e se chama o espirito de vida com que vive, o qual está no sangue, e com
este espirito vive o homem, faz suas obras, e se move”.17 Tal definição é prove-
niente da Lei, entendida literalmente, em consonância com filósofos antigos, e
não contraria a razão natural, isto é, não faz apelo a milagres e alegorias – “coi-
sas dignas de riso”, lança ele com desdém.18 Isso é importante porque, se na
Lei não está dito que a alma é imortal, e se a ausência de imortalidade da alma
é conforme à razão, não se pode supor a alma imortal. E, portanto, não se se-
guem nem o paraíso, nem o purgatório, nem o inferno como moradas da alma
depois da morte, nem também a ressurreição dos mortos, nem ainda o juízo
final que premiará com bens eternos as almas dos virtuosos e males eternos a

16 Segundo quarteto de sonetos cujo incipit é Horas breves de meu contentamento, emulados por
diversos poetas quinhentistas portugueses.

17 U. da Costa, Exame..., p.56.

18 U. da Costa, Exame..., p.79.

O que nos faz pensar, Rio de Janeiro, v.26, n.41, p.57-73, jul.-dez. 2017
Controvérsia religiosa: os livros de Gabriel-Uriel da Costa 67

dos pecadores – nem, muito menos, noções a elas anexas como transmigração
de almas, rogativas pelos mortos, excelência moral dos martírios e tantas ou-
tras – que fundam o poder religioso sobre os membros da nação.
Como dissemos, trata-se na Reposta e nos mais escritos de Uriel da Costa
de uma discussão menos filosófica ou teológica do que uma que visa a uma
ação ética e do Direito. A ausência dos prêmios e castigos depois da morte,
anexos à imortalidade da alma, implica uma ética terrena, que desconsidera as
ilusões religiosas e as satiriza. É uma ética que se resume a alguns princípios
de ação, e independe de cerimônias e de ritos, a Tradição constituindo uma
excrescência à Lei divina, à qual necessariamente se conjuga a moral e a razão.
Desde as “Propostas”, esboça-se uma rejeição às autoridades, bem como
à razão entendida apenas como lógica aristotélica. A lógica, abstração “sem
fruto”, não corresponde ao pensamento divino expresso na Escritura, que é
regra de vida. Assim, o jurista hebreu dissocia-se das autoridades, quaisquer
que sejam, não as reconhecendo como adequados comentadores dos livros
sagrados e instituidores das práticas rituais. Não deixa de se valer, porém,
dos argumentos da razão natural e do texto da Lei, entendido literalmente.
Desse modo, e com sarcasmo, pode confutar as interpretações bíblicas que
repousam em metáforas, imagens supersticiosas e alegações do sobrenatural:

Os Phariseus que somente a çertas almas deraõ immortalidade, bema-


venturança eterna, e tambem males eternos: para nam condenarem essas
almas façilmente aos tormentos, diseram, e dizem que quando aconteça
fazer huã alma em hum corpo obras por onde mereça ser condenada: ou
faltandolhe por cumprir algum mandamento, a torna Deos a mandar vir
em segundo, e terçeiro corpo até que ganhe, como elles dizem o paõ que no
çeo ha de comer. Introduziraõ tambem hum lugar de purgatorio no qual
podessem purgar seus defeitos as almas dos que foraõ medianamente bons,
em tanto que para este fim as degrada Deos muitas vezes, e mete dentro
nos animais (animais bachareis devem fiquar) para que alli se purgem. E
assi por que pode aconteçer andar a alma de hum homem dentro de huã
vaca, quando se degolar aquella vaca, seia de maneira que sinta pouca
pena. (que os animais se degolem com piedade bom, e direito he, mas nam
por esta causa.) e quando nenhum destes remedios basta, e a alma foi tam
má que mereçe ser condenada, a manda Deos ao lugar dos tormentos eter-
nos, onde para sempre viva penando.19

19 U. da Costa, Exame..., p. 92-93b.

O que nos faz pensar, Rio de Janeiro, v.26, n.41, p.57-73, jul.-dez. 2017
68 Adma Fadul Muhana

Essas afirmativas ganham dimensão quando temos presente que, para mui-
tos da nação portuguesa, a punição eterna dos pecados era tida por um dos
grandes erros das crenças cristãs recém-abandonadas e contrárias à prometida
salvação no “mundo por vir” a todos os que se tornavam parte do povo de
Israel. Os novos-judeus não aceitavam ser subjugados por essa ameaça, como
exclamava o também português rabino Isaac Aboab da Fonseca.20 Além disso –
argumenta com Agostinho o ex-estudante de Direito que leu as lições de Fran-
cisco Suárez, em Coimbra –, considerando ser o homem uma criatura limitada
e finita, não haveria justiça em Deus lhe dar prêmios ou castigos eternos.
Como término do seu replicado escrito, o Exame das tradições fariseias traz
um intitulado “capítulo extravagante”, formulado como Questão: “Pergunta-
-se se os céus, e a terra acabarão, e fará Deos consumação com as criaturas,
ou pelo contrário tudo estará sem fim”; ao que responde que “tudo estará sem
fim, e não fará Deus com as criaturas consumação”. Essa questão intercepta a
do juízo final, tido para judeus e cristãos como promessa de justiça divina e
profecia do fim do mundo e dos tempos. É justamente em relação ao fim dos
tempos que, entre cristãos como o padre Antônio Vieira, se especula acerca
do Quinto Império, ou, entre os judeus, acerca do Reino do Messias.
Ciente de que também a Escritura é um escrito que, assim, obedece a
preceitos retóricos, Uriel da Costa tão-somente destaca as passagens bíblicas
sobre as quais os autores se apoiavam para declarar a finitude do mundo,
interpretando-as retoricamente segundo as circunstâncias da persona que fala
e para quem. A principal autoridade para a opinião da finitude do mundo
era o salmo 102:

Nam obstam as authoridades com que alguns pretendem mostrar que o mun-
do terá fim, se forem entendidas com entendimento de homens, e nam com
entendimento de mininos, que realmente mininiçe he abraçar aquillo que
appareçe a façe sem juizo, nem respeito ao sentido de quem fala. Allegam os
versos do psalmo 102. que dizem que os çeos pereçeraõ, envelheçeraõ, e Deos
os mudará como se muda hum vestido, e nam atentam a que proposito alli se
trazem estas cousas, e a que fim atira aquelle que as diz, para assi formarem
conçeito, e entenderem o que quer dizer, mas indiscretamente se arrojam, e
arremessam as palavras nuas, e espidas. Hase, pois, de saber que aquelle

20 Cf. A. Altmann, “Eternality of Punishment: A Theological Controversy within the Amsterdam


Rabbinate in the Thirties of the Seventeenth Century”. Proceedings of the American Academy for
Jewish Research, Vol. 40 (1972), pp. 1-88.

O que nos faz pensar, Rio de Janeiro, v.26, n.41, p.57-73, jul.-dez. 2017
Controvérsia religiosa: os livros de Gabriel-Uriel da Costa 69

psalmo se intitula, oraçam do affligido, e despois de nelle se debuxar, e retra-


tar a angustia, e miseravel estado de hum afrito, para obrigar a Deos a que
se compadeça delle, argumenta da vaidade da vida humana, e eternidade da
essençia divina, e para mais mostrar, e confirmar esta eternidade, diz por
impossivel, que os çeos teram fim, e se faram velhos, mas a Divindade eterna
sempre sera a mesma, e seus annos nam teram remate, nem fim.21

Nesse salmo 102, analisa Uriel, a pessoa que fala é um aflito que, para
comover Deus e fazê-lo agir em seu favor, compara hiperbolicamente a veloci-
dade com que as coisas mais firmes do mundo se modificam na temporalidade
humana, em relação à impassível eternidade divina. Saber quem fala, com
que afetos, dotado de que ethos e a que fim, portanto, é necessário – mesmo
quando se fala com Deus, no Livro de Deus. O que se fala, como vimos, isso
está enovelado em meio às demais falas, mormente aquelas que se lhe opõem.
Tendo visto então a quem falam os escritos de Uriel da Costa, como e o
que falam, resta-nos a nós também dizer quem é este que os fala.

A condição desautorizada de judeu-novo

A levar em conta o que ficou escrito no Exame das tradições fariseias, até aquele
ano de 1624, Uriel da Costa considera-se um membro da nação portuguesa,
judeu, não obstante já ter recebido o herem de Hamburgo e o de Veneza, que
o punham à margem da coletividade. Diz ele, ridicularizando Samuel da Silva:

Agora se tu falas ja como Christaõ Romano, e naõ achando fundamẽto em


teu erro, tu passas a dizer que cria Deos novas criaçoens, e tambem cria
alminhas negras que infunde no alarve, papagente, torpe, e fero desagra-
çiadas almas que, de taõ alto estado desçeraõ a tãta miseria) [...] eu naõ
sou Christam, e assi he neçessario que fales comigo, como com filho de
Abraham, Isahac, e Jahacob, nam bastardo, mas legitimo.22

Dissociando-se do “papismo”, permanece incerto por qual motivo Uriel


da Costa se considera plenamente judeu, condição que até a escritura do
Exame não põe em dúvida: se porque passou a fazer parte do povo da Aliança

21 U. da Costa, Exame..., p. 210-11.

22 U. da Costa, Exame..., p.139-40.

O que nos faz pensar, Rio de Janeiro, v.26, n.41, p.57-73, jul.-dez. 2017
70 Adma Fadul Muhana

pela circuncisão; se porque está convicto de professar o judaísmo, embora


sob um viés tido por heterodoxo; ou, ainda, se porque uma ascendência que
remontaria aos hebreus o habilitava a ser parte legítima do judesmo. O certo
é que nesses anos Uriel da Costa ainda se tem por parte do povo de Israel,
o que não ocorre em 1640 quando, ao concluir o Exemplar humanae vitae,
ostenta seu nome e sobrenome cristãos, vinculados à pátria portuguesa e
à ascendência patrilinear, ao tempo em que desgarra de qualquer origem e
linhagem o prenome hebraico:

E para que isso não falte, o meu nome, o que tive, como cristão, em Portu-
gal, Gabriel da Costa, entre os judeus, no meio dos quais oxalá eu nunca
tivesse chegado, com pouca alteração, fui chamado Uriel.23

Afinal, em Portugal, fora tido por judeu em razão de possuir ascendentes


cristãos-novos, ainda que parcos conhecimentos possuísse do judaísmo, e, na
Europa setentrional, pela mesma razão, fora aceito como um deles. É a práti-
ca das doutrinas que o torna judeu, como queriam os inquisidores, ou basta-
-lhe para isso a ascendência – como também querem os inquisidores, embora
contra os preceitos da religião católica que professam? Se basta a ascendência,
nada lhe pode tirar a pertença – já que sua mãe era descendente de cristãos-
-novos. Porém, se a ascendência não é suficiente e se são necessários também
os atos e ritos da religião para um homem ser tido por judeu, como é possível
excluir um que não se furtava a praticar devotadamente os ritos judaicos,
e, de seu próprio alvitre, se encaminhara para ser integrado à nação? E, se,
apesar da ascendência, a ausência da prática judaica é suficiente para retirar
da coletividade o homem, o que fazer com um como Costa que insistia em
praticar os ritos, mas segundo uma prática desviante e que, com contumácia,
defendia seu erro? Samuel da Silva interroga-o neste sentido, explicitando-lhe
a ausência de alternativas: “já que diz professar ser judeu” e “quer ser judeu”,
deve sê-lo plenamente, ou ser entregue a excomungadores. Isso não é força
de expressão: documentos mostram que após conseguir que os magistrados
holandeses o expulsassem de Amsterdã, e queimassem os exemplares de seu
livro, as autoridades rabínicas ainda se lamentam de não ter sido possível
condená-lo à morte:

23 U. da Costa, Exemplar humanae vitae, p. 247, in S. da Silva, Tratado da imortalidade da alma.


Trad. Epifânio da Silva Dias. Lisboa: IN-CM, 1982, p. 204-47.

O que nos faz pensar, Rio de Janeiro, v.26, n.41, p.57-73, jul.-dez. 2017
Controvérsia religiosa: os livros de Gabriel-Uriel da Costa 71

Encontrou-se entre nós um homem mau e perverso [...] nega os principais


fundamentos da fé, tais como a imortalidade da alma e a ressurreição, e
desdenhosamente publica e afirma que não há diferença alguma entre o
homem e o animal. Desmente muitos dos milagres mencionados na Torah
[...]. Em vista disso, os chefes da comunidade – depois de diligências cerca
das autoridades do Reino – embargaram-lhes os livros e queimaram-lhos
publicamente, encerrando-o a ele numa prisão, e conseguindo finalmente
expulsá-lo da cidade; porque, como a liberdade religiosa reina naquele país
e não existe inquisição em matéria de fé, não foi possível alcançar contra
ele a pena de morte, mas tão somente a de expulsão.24

Enfim, era necessário integrar corretamente ao judesmo aqueles portugue-


ses expatriados que, não tendo nascido judeus, passaram a sê-lo, qualquer
que houvesse sido sua motivação: convicção, interesse, sobrevivência, medo.
Mas, sobretudo, e independentemente da motivação, tornaram-se judeus por
poderem exibir, como um “atestado de nobreza” às avessas, uma ascendência
judaica, quando não uma ameaça de perseguição inquisitorial por esse mo-
tivo. No caso de Costa, a declaração de honra – que perpassa o Exame e o
Exemplar – está vinculada tanto a sua progênie como a sua educação fidalga:

Os meus progenitores, pessoas bem-nascidas, descendiam de judeus que


em tempo haviam sido forçados neste reino a abraçar a religião cristã.
Meu pai era verdadeiro cristão, observantíssimo dos preceitos da honra
e grande prezador da honestidade de costumes. Em sua casa fui criado
fidalgamente.25

No Exame, o labor de escritura acerca da mortalidade da alma justifica-se


desde o prefácio como um dever de honra, após o furto e a deturpação dos
seus escritos: “Já nos é necessário acudir a defender a própria honra, e tirá-la
a salvo dos dentes daquela má besta [...] que de honra sabe pouco”.26 Ou, no
Exemplar, em que o próprio escrito se destina a “quantos sois honrados, corda-
tos e humanos”,27 a fim de que possam julgar sua vida. A escrita que se defende

24 In C. M. de Vasconcelos, “Uriel da Costa...”, p.326.

25 U. da Costa, Exemplar humanae vitae, p. 205.

26 U. da Costa, Exame..., p. 49-50.

27 U. da Costa, Exemplar humanae vitae, p. 223.

O que nos faz pensar, Rio de Janeiro, v.26, n.41, p.57-73, jul.-dez. 2017
72 Adma Fadul Muhana

e acusa os contraditores, mesmo que desautorizada por provir de um neófito


na religião, para Uriel da Costa é ação honrosa e demonstrativa da sua valida-
de. É por evitar extravazamentos de honradez individual, tão senequistas e tão
ibéricos, que se fez mister para os líderes da nação estabelecer os critérios que
permitiam a alguém se tornar parte do povo de Israel, excluindo os indecisos,
os equivocados e os independentes. Zelavam assim pelo cumprimento dos de-
veres e pelos decorrentes benefícios que isso acarretava aos que se faziam no-
vos judeus, adentrando na nação – para além de um diluído sangue hebreu.28
A distinção entre o povo dos judeus e a religião judaica é cabível a partir
do conhecimento que hoje temos, e tinha Uriel da Costa, das equívocas ex-
pressões religiosas dos descendentes de cristãos-novos oriundos da Península
Ibérica. A ausência de perseguição inquisitorial, a possibilidade de um acolhi-
mento comunitário, a de poder realizar desassombradamente atividades mer-
cantis e governativas, usufruir de uma rede de solidariedade e se apropriar de
uma crença mais favorável a expectativas de salvação eram razões suficientes
para que muitos desejassem se integrar à condição judaica e obedecer aos seus
ritos. Para uma parte grande das gentes, as discórdias religiosas eram de so-
menos importância; para outros tantos, porém, a integração ao judaísmo não
pôde ser pacífica nem duradoura, como não o foi para Uriel da Costa. Houve
ainda um número expressivo desses descendentes que retornou ao catolicis-
mo, ou se transferiu ao protestantismo, ou aderiu ao deísmo, ou ao ateísmo.
Esses descendentes de cristãos-novos – poetas uns, doutrinadores outros,
teólogos, polemistas, escritores – carregaram sempre seus duplos nomes, que
os evidenciavam, não como identidades individuais, mas, justamente, como
dividui, divididos. E lembro de Antonio Enríquez Gómez, Manuel de Pina,
Daniel Levi de Barrios, Juan de Prado, Oróbio de Castro, Menassés ben-Israel.
O fim – de tudo o que mais importa – determinando-lhes não só o que diziam
e como, mas ainda o próprio quem o dizia e quando, enquanto persona que
detinha nome, pátria, família, ofício, condição, hábitos, afetos, estudos. Neste
caso, é enquanto Gabriel e Uriel – português e hebreu, jurista de Coimbra,
comerciante de Amsterdã, homem de bons costumes, honrados afetos e legíti-
mo saber, estudioso das leis e pour cause obrigado a disputar com falsários da
Lei – que o escritor do Exame das tradições fariseias se figura, nas páginas que
hoje podemos ler. Sem essa dimensão, seus escritos se tomariam por expressão
de uma subjetividade, irrisória aqui. Pelo contrário, o instável livro de Uriel

28 Lembre-se que a Inquisição portuguesa designava como cristão-novo os descendentes de


judeus convertidos até a quinta geração, isto é, que tinham até 1/17 de “sangue” judeu...

O que nos faz pensar, Rio de Janeiro, v.26, n.41, p.57-73, jul.-dez. 2017
Controvérsia religiosa: os livros de Gabriel-Uriel da Costa 73

da Costa, esse duplo e judicioso Exame das tradições fariseias, prova que uma
controvérsia jurídico-religiosa foi se avolumando no centro de seus escritos
como delimitação de voz, até conduzi-lo à exclusão de suas duas nações. De
modo tal que lhe retirou qualquer possibilidade de proferição nelas, lançando-
-o numa morte que, com o Exemplar humanae vitae, gritava honra e soberania.

Referências

ALTMANN, A. Eternality of Punishment: A Theological Controversy within the


Amsterdam Rabbinate in the Thirties of the Seventeenth Century. Proceedings of the
American Academy for Jewish Research, vol. 40, p.1-88, 1972.
COSTA, U. da. Exame das tradições farisaicas. Acrescentado com Semuel da Silva,
Tratado da Imortalidade da Alma. Introdução, leitura, notas e cartas genealógicas por
H.P. Salomon e I.S.D. Sassoon. Braga: APPACDM Distrital de Braga, 1995.
COSTA, U. da. Exemplar humanae vitae. In: SILVA, S. da. Tratado da imortalidade da
alma. Trad. Epifânio da Silva Dias. Lisboa: Imprensa Nacional-Casa da Moeda, 1982,
p. 204-247.
GEBHARDT, C. Die Schriften des Uriel da Costa. Curis Societatis Spinozanae:
Amsterdam, Heidelberg, Londres, 1922.
SALOMON, H. Introdução. In: COSTA, U. da. Exame das tradições farisaicas.
Acrescentado com Semuel da Silva, Tratado da Imortalidade da Alma. Introdução,
leitura, notas e cartas genealógicas por H.P. Salomon e I.S.D. Sassoon. Braga:
APPACDM Distrital de Braga, 1995.
VASCONCELOS, C. M. de. Uriel da Costa: notas relativas à sua vida e às suas obras.
Separata da Revista da Universidade de Coimbra, vol. 8, p. 236-395, 1922.

O que nos faz pensar, Rio de Janeiro, v.26, n.41, p.57-73, jul.-dez. 2017
Luis Filipe Silverio Lima*

Aproximações para uma história


do conceito de Esperança nas expectativas
milenaristas do século XVII: Esperança de Israel,
Esperanças de Portugal e Door of Hope

Contributions to a history of the


concept of Hope in seventeenth-century
millenarianist expectations: Esperança de Israel,
Esperanças de Portugal, and Door of Hope

Resumo
Este artigo pretende discutir o conceito de Esperança e seus câmbios semânticos no
século XVII, focando nas expectativas milenaristas construídas em torno de três
textos de intervenção: Esperança de Israel, Esperanças de Portugal e Door of Hope.
Escritos entre os anos 1640 e 1660 na Holanda, América Portuguesa e Inglaterra,
apresentavam como possível eixo articulador a atuação de Menasseh Ben Israel,
rabino da comunidade portuguesa de Amsterdã e com ligações com os Espinosa.
Para pensar as mudanças do conceito e sua importância nas disputas político-
religiosas, buscaremos primeiro traçar o campo semântico do conceito para depois
olhar para as ligações entre as três fontes e seus produtores.

Palavras-chave: Esperança; Milenarismo; História dos Conceitos; Menasseh


Ben Israel; Antônio Vieira.

Abstract
This article seeks to discuss the concept of Hope and its semantic shifts in the
Seventeenth Century, looking into the millenarianist expectations build upon three
intervention texts, Esperança de Israel, Esperanças de Portugal e Door of Hope.
Written in 1640s-1660s in the Netherlands, Portuguese America, and England, they
have as a possible common axis the agency of Menasseh Ben Israel, an Amsterdan

* Professor da Universidade Federal de São Paulo (UNIFESP). E-mail: lfslima@gmail.com.

O que nos faz pensar, Rio de Janeiro, v.26, n.41, p.75-106, jul.-dez. 2017
76 Luis Filipe Silverio Lima

Portuguese-Jewish rabbi with links to Spinoza’s family. In order to reflect upon


Hope’s conceptual changes and its centrality in the political-religious struggles, it
will: 1) trace the semantic field of the concept, and 2) focus on the connections
among the three sources and their producers.

Keywords: Hope; Millenarianism; Conceptual History; Menasseh Ben Israel;


Antônio Vieira.

Num dossiê dedicado a Spinoza, o tema da Esperança (bem como o do Medo)


teria a sua presença justificada. Entretanto, nossa proposta é menos abordar
a Esperança e a centralidade desta em sua obra, e mais localizar o concei-
to em alguns debates e conexões que permeavam a “República das Letras”
seiscentista. Interessam em particular tanto aqueles realizados partindo da
comunidade judaico-portuguesa de Amsterdã, na qual Spinoza fora criado,
quanto aqueles que lidavam com o problema de projetar as expectativas so-
bre o futuro. A Esperança aqui será entendida, por um lado, num cenário
mais amplo do séc. XVII, por outro, nas disputas mais restritas sobre uma
forma potente e ativa de lidar com o futuro: as expectativas milenaristas e os
projetos que delas derivavam e que agiam nas lutas políticas seiscentistas. As
esperanças (agora no plural) geravam campos diversos (em termos da disputa
religiosa e política) no seio da Cristandade, mas que, em alguma medida e
para os casos adiante abordados, tinham como porto comum a comunidade
de Amsterdã e, em particular, um de seus rabinos mais conhecidos entre os
cristãos, Menasseh Ben Israel.
Menasseh Ben Israel (ou Manuel Dias Soeiro) escreveu e imprimiu, em
1650, um panfleto intitulado Esperança de Israel, que circulou entre os ju-
deus da “Nação portuguesa” – isto é, os judeus vindos da Península Ibérica
estabelecidos em cidades europeias como Amsterdã, espalhados pela Amé-
rica, Ásia e África1 – mas também, e talvez sobretudo, entre os protestantes,

1 Para uma descrição do que seriam os “Homens de Nação”, a “Gente de Nação” e a “Nação Por-
tuguesa”, ver o trabalho de Miriam Bodian, Hebrews of Portuguese Nation. Bloomington: Indiana
University Press, 1999. Seguindo a posição de Adma Fadul Muhana, evitaremos usar os termos
“marrano”, “sefaradi”, “sefardita” e congêneres, pela forte conotação essencialista e tautológica que
contém, supondo uma identidade cultural dos judeus de origem ibérica como parte do povo
hebraico, e menos tensionando as identidades múltiplas e sobrepostas que se evidenciavam, por
exemplo, no uso do nome cristão(-novo) português e no nome hebraico (ou judeu-novo, para
retomar a expressão de Kaplan). Adma Fadul Muhana, Uriel da Costa e a nação portuguesa. São
Paulo: Humanitas, 2016, p. 20, 28-32, 37-9, pass.. Cf. Yosef Kaplan, “Wayward New Christians
and Stubborn New Jews: The Shaping of a Jewish Identity”, Jewish History, Vol. 8, No. 1-2 (1994);

O que nos faz pensar, Rio de Janeiro, v.26, n.41, p.75-106, jul.-dez. 2017
Aproximações para uma história do conceito de Esperança nas expectativas milenaristas do século XVII 77

particularmente os ingleses, para quem fora feita uma versão em latim, Spes
Israelis, prontamente traduzida para o inglês, como Hope of Israel.2 O im-
presso tratava da notícia dada por um outro judeu “da Nação”, Antonio
de Montesinos (ou Aarão Levi), de que teria descoberto uma das Tribos
Perdidas de Israel na Amazônia (1644). O fato tinha implicações apocalíp-
ticas, pois apontaria a iminência da vinda do Messias (ou da segunda vinda
de Cristo) e o início da Quinta Monarquia, algo que despertara a atenção
de milenaristas do outro lado do canal da Mancha. O texto, em sua versão
em espanhol, fora dedicado aos parnassim, os líderes administrativos da
comunidade judaica de Amsterdã, entre os quais figurava “El Señor Michael
Espinosa”, o pai de Baruch Spinoza.3 Um exemplar do livro provavelmente
estivera na biblioteca dos Spinoza oferecido por Menasseh a Miguel de Spi-
noza, enquanto Baruch talvez fosse pupilo do mesmo Menasseh.4 É possível
que esse exemplar seja o mesmo que estava no inventário reconstituído da

Yosef Kaplan, Judios Nuevos en Amsterdam. Estudios sobre la historia social e intelectual del
judaísmo sefardí en el siglo XVII, Barcelona: Gedisa, 1996.

2 Menasseh Ben Israel, Miqveh Israel Hoc est, Spes Israelis, Amstelodami: 1650; Menasseh ben
Israel, The hope of Israel: written by Menasseh ben Israel, a Hebrew divine, and philosopher.
Newly extant, and printed in Amsterdam, and dedicated by the author to the High Court, the
Parliament of England, and to the Councell of State. Translated into English, and published by
authority. In this treatise is shewed the place wherein the ten tribes at this present are, proved
partly by the strange relation of one Anthony Montezinus, a Jew, of what befell him as he travelled
over the Mountaines Cordillære, with divers other particulars about the restoration of the Jewes,
and the time when, Printed at London: by R.I. for Hannah Allen, at the Crown in Popes-head
Alley, 1650; Menasseh Ben Israel, The hope of Israel: written by Menasseh Ben Israel, an Hebrew
divine, and philosopher. Newly extant, and printed at Amsterdam, and dedicated by the author,
to the High Court the Parliament of England, and to the councell of state. Whereunto are added
some discourses upon the point of the conversion of the Jewes: by Moses Wall, Londres: Printed
by R.I. for Livewell Chapman, 1651. Cf. Menasseh Ben Israel, The hope of Israel. Editado por
Henry Méchoulan e Gérard Nahon. Oxford/Nova York: Published for the Littman Library by
Oxford University Press, 1987.

3 Menasseh Ben Israel, Miqveh Israel, esto es, Esperança de Israel. Amsterdã: Semvel Ben Israel
Soeiro, 5410 [1650], “Dedicatória”.

4 É recorrente na literatura sobre Menasseh a afirmação de que Spinoza fora, de fato, seu aluno
e discípulo. Entretanto, como apontou Steven Nadler, não há indícios concretos de que Spinoza
tenha estudado sob Menasseh na Talmud Torah, havendo pelo contrário indicações que quando
Spinoza estava frequentando a escola o rabino não era o responsável pelas turmas da sua idade.
Entretanto, como o próprio Nadler pondera, além da convivência dentro da comunidade, o fato
de Menasseh ter muitos contatos com pensadores cristãos fora da kehilá, de que certos temas
que interessaram Spinoza terem sido veiculados por Menasseh e de Spinoza ter contato com a
obra de Menasseh (além do Esperança, leu certamente o Conciliador), dá margem a hipóteses
de um contato mais direto entre eles e mesmo de alguma importância de Menasseh na formação
de Spinoza. Steven Nadler, Spinoza: a life. Cambridge; Cambridge University Press, 1999, p.
78, 93-4, 99-100.

O que nos faz pensar, Rio de Janeiro, v.26, n.41, p.75-106, jul.-dez. 2017
78 Luis Filipe Silverio Lima

biblioteca de Spinoza de cerca de 160 livros – um dos poucos escritos e pro-


duzidos por “Homens da Nação” e redigido em espanhol, a língua letrada
da “Nação portuguesa”.5
O opúsculo Esperança de Israel interessa aqui não só por suas relações
com a família de Spinoza e com o próprio. Em alguma medida, Esperança de
Israel e seu autor estavam no meio de uma produção mais ampla de fontes
gestadas no contexto milenarista das décadas de 1650 e 60, cujos títulos de
algumas obras marcantes continham o termo “esperança”. Em 1659, o jesuíta
Antônio Vieira escrevia do Estado do Maranhão a carta nomeada “Esperanças
de Portugal”, cuja semelhança com o título de Menasseh não passou des-
percebida pela historiografia.6 Endereçada ao Bispo do Japão, confessor da
rainha de Portugal, fora redigida supostamente para consolar a rainha por
conta da morte de João IV (1656) ao prever a ressurreição do rei mas também
anunciava o início do reino de Cristo na Terra com o Quinto Império por-
tuguês. Durante a Restauração inglesa, o panfleto anônimo Door of Hope foi
impresso em 1661 em Londres para circular entre os radicais como anúncio
do reino dos Santos e para derrubar o rei Carlos II, conclamando um levante
dos Homens da Quinta Monarquia.7 Tinha como fundamento o Esperança
de Israel e estava embebido no ambiente milenarista agitado pela Revolução
de 1649 e pela experiência republicana, mas também pelas notícias e previ-
sões da conversão universal com a suposta descoberta das Tribos Perdidas.
Produzidos em locais distantes entre si, por autores de fé divergentes e em
posições sociais diferentes, para situações e públicos muito diversos, as três
fontes contêm ligações que vão além da temática providencialista comum.
São essas ligações e a sua articulação possível pelo conceito de Esperança que
interessam aqui discutir.

5 Adri K. Offenberg, “Spinoza’s library. The story of a reconstruction”. Quaerendo, Volume 3,


Issue 4 (1973), p. 320 (item 116). Sobre a presença de autores ibéricos ou de língua espanhola
na biblioteca de Spinoza, e a decorrente importância desse fato, ver: Yosef Kaplan, “Political con-
cepts in the word of the Portuguese Jews of Amsterdam during Seventeenth Century”, In: Yosef
Kaplan, Henry Mechóulan, Richard H. Popkin, Menasseh Ben Israel and his World. Leiden: Brill,
1989, 45-8.

6 Antônio Vieira, Esperança de Portugal, In: José van den Besselaar, Antônio Vieira. Profecia e
Polêmica. Rio de Janeiro: EdUerj, 2002, pp. 49-108, cf. Adma Fadul Muhana (org.), Os Autos do
processo de Vieira na Inquisição: 1660-1668 (São Paulo: Edusp, 2008), pp.39-70. Para uma das
versões apógrafas do manuscrito, ver: ANTT, Fundo da Inquisição, Conselho Geral da Inquisição,
Livro 206.

7 A door of hope: or, A call and declaration for the gathering together of the first ripe fruits unto
the standard of our Lord, King Jesus. [London: s.n., 1660].

O que nos faz pensar, Rio de Janeiro, v.26, n.41, p.75-106, jul.-dez. 2017
Aproximações para uma história do conceito de Esperança nas expectativas milenaristas do século XVII 79

Empregamos a categoria de conceito a partir das proposições de Kosel-


leck para uma História dos Conceitos. Segundo Koselleck, conceitos são
termos de disputa, plurissêmicos em meio a seus empregos particulares e
assim historicizáveis. Ao mesmo tempo, articulam um campo semântico na
sincronicidade do seu uso e remetem diacronicamente a estratos temporais
que sedimentam a historicidade dos significados evocados em sua utilização.
Nesse sentido, estudar Esperança como conceito no século XVII ocidental
e atlântico parece ser eficaz na medida em que permite uma via possível de
acesso aos diferentes projetos políticos (e religiosos) de futuro que estavam
disputando os “horizontes de expectativa” por conta das tensões criadas pelos
“espaços de experiência” em conflito e crise.8
De outra parte, a Esperança é central para o estudo do milenarismo e do
messianismo9 no duplo movimento tensionado entre conceito e categoria
pelo qual Koselleck descreveu a tarefa historiográfica, mas que precisa, na
perspectiva da História dos Conceitos, ser diferenciado. Como conceito, isto
é, como vestígios e usos da “linguagem das fontes” que nos “servem (…)
de acesso heurístico para compreender a realidade passada”, apareceu nas
fontes, em documentos centrais seja no título, seja como elemento articu-
lador das expectativas do futuro. Nesse sentido, a Esperança se tornou um
“conceito básico” para as religiões do Livro (judaísmo, cristianismo e mesmo
no islamismo), e não só nas suas formulações messiânicas e milenaristas.
Ao mesmo tempo, como “categorias científicas”, formuladas posteriormen-
te e empregadas “pelo historiador”10, são termos operacionais da literatura
que estuda esses fenômenos. Desroche chegou a propor uma “Sociologia da

8 Reinhart Koselleck, “ ‘Espaço de Experiência’ e ‘Horizonte de Expectativa’: duas categorias


históricas” In Futuro Passado. Contribuição à semântica dos tempos históricos, Rio de Janeiro:
Contraponto/Puc-Rio, 2006.

9 Não caberia aqui distinguir e definir com rigor milenarismo e messianismo. Por razões de
ordem prática, optamos por usá-los de maneira intercambiável, mas dando preferência ao termo
aparentemente mais abrangente de milenarismo, por não remeter imediatamente à vinda de um
messias. A isso se acrescenta que os termos, apesar de vários esforços, não foram ainda delimita-
dos pela literatura a ponto de se chegar a um consenso, por vezes se tornando categorias fluídas
e homólogas, às quais ainda se adicionam a de apocalipticismo e outros termos derivados de
apocalipse. Ver: Adeline Rucquoi, “Medida y žŸn de los tiempos. Mesianismo y milenarismo en la
Edad Media” In: Angel Vaca Lorenzo (org.), En pos del tercer milenio. Apocalíptica, mesianismo,
milenarismo e historia, Salamanca: Universidad de Salamanca, 2000, p. 14–15; Luís Filipe Sil-
vério Lima, Ana Paula Torres Megiani, “An Introduction to the Messianisms and Millenarianisms
of Early Modern Iberian America, Spain, and Portugal” In: Luis Filipe Silverio Lima, Ana Paula
Torres Megiani (org.). Visions, prophecies, and divinations : early modern Messianism and Mille-
narianism in Iberian America, Spain and Portugal. Leiden, Boston: Brill, 2016, p. 8-10.

10 Koselleck, “Espaço de Experiência” e “Horizonte de Expectativa”, p. 305.

O que nos faz pensar, Rio de Janeiro, v.26, n.41, p.75-106, jul.-dez. 2017
80 Luis Filipe Silverio Lima

Esperança” para entender os messianismos e, ao fim e ao cabo, o próprio


fato social religioso.11 No sentido que são fenômenos sócio-religiosos que se
caracterizam pela espera, pelo estar à espera de algo ou alguém, a própria
historiografia sobre os movimentos proféticos, a sociologia das religiões e
mesmo, mais recentemente, as chamadas ciências da religião definem que
“Milenarismo e messianismo remetem, ambos, a uma espera”12. Entretanto,
interessa aqui discutir mais a Esperança como conceito a partir das fontes
elencadas, e não tanto empregá-la como categoria analítica para se pensar os
fenômenos abordados, ainda que muitas vezes a sobreposição dos diferentes
usos de uma mesma palavra no espaço de um mesmo texto possa criar um
ruído de continuidade. Nesse sentido, pretendo, mais restritamente, apontar
algumas primeiras reflexões em torno do uso da Esperança no séc. XVII,
tendo como objetivo final pensar os projetos messiânico-milenaristas e suas
implicações para a cultura política da época. Ficará para outro momento
uma reflexão mais detida sobre as implicações da categoria esperança para
a compreensão dos fenômenos proféticos da Época Moderna – e mesmo
seus desdobramentos na compreensão da “semântica dos tempos históricos”
buscada por Koselleck.
Para essa aproximação inicial do conceito, primeiro buscaremos traçar
o campo semântico da Esperança13 nos debates cristãos e da República das
Letras. Esse traçado, que por vezes lançará mão de recuos temporais e entre-
cruzamento espaciais, buscará, nessa movimentação sincrônica e diacrônica,
localizar, por um lado, os espaços de disputa operados no uso do conceito,
e identificar, por outro, um possível câmbio semântico produzido nos usos
em relação às experiências e às expectativas empenhadas nas disputas. A
nosso ver, esse câmbio tensionou, no vocabulário apocalíptico, a acepção
passiva da espera para uma concepção ativa da esperança, ao mesmo tempo

11 Desroche, Sociologia da Esperança.

12 Delumeau, Mil anos de felicidade, p. 20.

13 Como apontou Peter Burke há poucos anos, ainda está-se por escrever uma história da Espe-
rança (Peter Burke, “A esperança tem história?”, Estudos Avançados 26 (75), 2012, p. 207-208),
o que dificultou nossa tarefa de localizar o tema para além da história do milenarismo (e das
religiões) ou de estudos monográficos sobre fontes e autores que se valeram ou discutiram do
conceito. No campo da Filosofia, houve esforços de dar conta do problema, como na magistral
obra de Ernst Bloch (Princípio Esperança, Rio de Janeiro: Contraponto, 2005, 3v.), ainda que
como tenha apontado Nicholas H. Smith o conceito tenha sido por vezes negligenciado ou tenha
havido dúvidas quanto à eficácia de seu uso e rigor, particularmente pela Teoria Crítica, Smith,
Nicholas. “Hope and Critical Theory” Critical Horizons, (2005), pp. 45-61.

O que nos faz pensar, Rio de Janeiro, v.26, n.41, p.75-106, jul.-dez. 2017
Aproximações para uma história do conceito de Esperança nas expectativas milenaristas do século XVII 81

que, em outras linguagens,14 passou a figurar como paixão importante para


as dinâmicas de constituição – e conservação – das repúblicas, como no caso
do entendimento de Spinoza. Ambas dimensões, cada um a seu modo, mas
não de maneira completamente apartada, tiveram implicações na cultura e
ação políticas do seiscentos.
Num segundo momento, nos debruçaremos nos títulos indicados nesta
introdução, nos quais o termo esperança aparece. Buscaremos, sobretudo,
destacar suas ligações e preocupações comuns, apesar dos seus contextos de
produção diversos, particularmente lembrando as apostas políticas dos quais
faziam parte e as expectativas postas nos desenlaces em suas repúblicas e nas
notícias que vinham do além-mar, mais particularmente do Novo Mundo.
Aqui a figura de Menasseh Ben Israel como articulador tanto de uma rede
milenarista como de uma República das Letras, que transborda os desenhos
inicialmente supostos, assume relevância. Por meio de sua figura, podería-
mos até supor um papel importante de personagens advindos da “Gente de
Nação” (tal qual o próprio Spinoza) como articuladores, por seu constante
estar entre-lugares, de diferentes culturas, circuitos, repertórios, vocabulários,
linguagens. Não haverá, entretanto, espaço para desenvolver estas hipóte-
ses por completo. Mais sucintamente, pretendemos, com esses movimentos,
contribuir num nível introdutório para se localizarem a paixão e a virtude
da Esperança como conceito operativo dos discursos políticos, filosóficos,
teológicos seiscentistas ao olhar os debates e conexões entre textos e autores
milenaristas de meados do século XVII, em particular, os articulados em tor-
no da figura de Menasseh Ben Israel.

I.
Para o Cristianismo, Esperança, Fé e Caridade eram as virtudes teologais,
frutos da infusão da Graça divina nos humanos, enunciadas por Paulo na
epístola aos Coríntios. A partir da referência bíblica, complementariam as

14 Usamos, de maneira larga, a categoria linguagem tomando emprestada a sua acepção de


Pocock. Pocock objetava, com alguma razão, certa incompatibilidade entre a sua abordagem e
a de Koselleck. Entretanto, autores, como Melvin Richter entre outros, têm buscado mostrar a
adequação de se pensar as propostas “contextualistas” de Pocock e Skinner com a “História dos
Conceitos” de Koselleck. J.G.A. Pocock, “Conceitos e discursos: uma diferença cultural?” e R. Ko-
selleck, “Uma resposta aos comentários sobre o Geschichtliche Grundbegriffe”, In: Jasmim e Feres
Jr. (org.) História dos Conceitos: Debates e perspectivas 83-109; Melvin Richter. “Reconstructing
the History of Political Languages: Pocock, Skinner, and the Geschichtliche Grundbegriffe”, His-
tory and Theory, Vol. 29, No. 1 (Feb., 1990), pp. 38-70.

O que nos faz pensar, Rio de Janeiro, v.26, n.41, p.75-106, jul.-dez. 2017
82 Luis Filipe Silverio Lima

virtudes cardinais e cívicas (Justiça, Temperança, Fortitude, Prudência, às


vezes, adicionada a Magnanimidade), retiradas e adaptadas dos autores clás-
sicos e consideradas elementos constitutivos de qualquer república e praticá-
veis por qualquer um. Num governo cristão, o soberano deveria ser virtuoso
tanto cívica quanto teologicamente, como também o deveriam seus súditos.
Assim nos afrescos sobre o Bom e o Mal Governo pintados por Ambrosio
Lorenzetti no palácio de Siena na primeira metade do século XIV, as virtudes
teologais aparecem acima da figura do poder supremo, enquanto ao seu lado
estão as virtudes cívicas indicando tanto uma proeminência quanto o que
seria necessário para que a cidade se mantivesse em paz e alcançasse o bem
comum.15 Já em inícios do século XVI, numa chave menos alegórica e mais
emblemática do que seria o papel da Esperança, o navio da república cristã,
no emblema “Spes proxima” de Alciato, precisaria ter sempre esperança, ser-
vindo de bússola nos mares tempestuosos, marcados aqui pela situação de
crise vivida no seio da Cristandade com as guerras religiosas.16 Essa relação
harmoniosa entre virtudes cívicas e teologais, porém, no caso da Esperança,
pressupunha certas tensões entre a sua compreensão como virtude e como
afeto (ou paixão) da alma, o que indicava posturas diversas sobre a sua fun-
ção tanto na república quanto na ação em relação ao futuro.
A Esperança era virtude que implicava a espera de algo, olhar para o fu-
turo, para o céu. Enquanto a Fé pressupunha uma crença pressuposta e es-
sencial (em Deus), a Esperança significava a expectativa de algo a acontecer
(a vinda do Salvador)17. Nessa dimensão, seu campo de ação era o tempo fu-
turo. No limite, era um princípio teológico de ordenação do tempo humano
diante da Eternidade divina. A Esperança, nesta chave teológica, propõe uma
concepção de tempo na qual a ação (ou inação) humana está voltada para o
futuro, para a espera de algo. Concepção esta que é central nas religiões do
Livro e gestou no campo das representações uma noção de tempo linear e
progressiva (mas não necessariamente progressista) em direção a um télos,
um desidério. A noção de esperança e a sua ligação com o tempo, entretanto,

15 Para uma análise desses afrescos, ainda que centrada na questão das virtudes cívicas, ver:
Quentin Skinner, “Ambrogio Lorenzetti and the portrayal of virtuous government” e “Ambrogio
Lorenzetti on the power and glory of republics”, In: Vision of Politics - Volume 2: Renaissance
Virtues, Cambridge: Cambridge University Press, 2004, esp. p. 80-82.

16 Andrea Alciato, Emblematum liber, Augsburgo: Heinrich Steyner, 1531; Andrea Alciato, Los
Emblemas, Lião: Macé Bonhomme for Guillaume Rouille, 1549, p. 56. Para as edições, consulta-
mos o site Alciato at Glasgow, http://www.emblems.arts.gla.ac.uk/alciato/index.php.

17 John Bunyan, Israel’s HOPE encouraged, exortação.

O que nos faz pensar, Rio de Janeiro, v.26, n.41, p.75-106, jul.-dez. 2017
Aproximações para uma história do conceito de Esperança nas expectativas milenaristas do século XVII 83

foram percebidas de maneiras diversas ao longo da história do cristianismo


e de suas diferentes correntes, particularmente na hierarquia das virtudes. Se
estava definido já em Paulo que a Caridade era a maior entre as três (1 Cor
13:13), havia a discussão sobre qual a segunda mais proeminente.
Como um primeiro atalho a ser considerado na definição da Esperança
como virtude em sua relação com o tempo e seu local na hierarquia das vir-
tudes, havia a autoridade dos “Antigos”, que não a tinham, por certo, entre
as virtudes cívicas nem lhe dedicavam muita veneração. Aparecia no mundo
grego e latino somente como uma divindade menor ligada à abundância e ao
ciclo agrário e para quem se pedia intervenção para uma boa colheita futura,
e nesse sentido expressava o desejo futuro de um bom ano no campo, versus
o desespero de aguardar uma safra ruim. Era representada com uma guirlan-
da ou uma cornucópia, mas, no mundo romano, sobretudo segurando uma
flor a brotar, como recorrente no verso de moedas romanas18 - algo que Cesa-
re Ripa não deixou de observar nas suas descrições sobre a representação da
Esperança.19 Mesmo no mito de Pandora, não estava claro se a Esperança era

18 Exemplos disso são as moedas romanas com a figura da “Spes” no verso, andando e segurando
uma flor: Sestércio, Moeda em liga de cobre, 41 E.C. - 54 E.C, Roma, Itália, Museu de Évora, ME
4.702; Sestércio, Moeda em bronze, 117 E.C. - 138 E.C. (Alto Império), s.l., Museu de Évora, ME
14.537; Sestércio, Moeda em liga de cobre, 41 d.C. - 54 d.C, Roma, Itália, Museu de Évora, ME
4.685; Sestércio, Moeda em bronze, 137 E.C., Lácio, Itália, Museu de Belas Artes de Boston, aces-
sado em 9/4/1076, <http://www.perseus.tufts.edu/hopper/artifact?name=Boston+67.630&object
=coin>; Sestércio, Moeda em bronze, 119-138 E.C., Lácio, Itália, Museu de Belas Artes de Boston,
acessado em 9/4/1076, http://www.perseus.tufts.edu/hopper/artifact?name=Boston+00.294&obj
ect=coin; Sestércio, Moeda em bronze, 80-81 E.C., Lácio, Itália, Museu de Belas Artes de Boston,
acessado em 9/4/1076, <http://www.perseus.tufts.edu/hopper/artifact?name=Boston+34.1416&o
bject=coin>; Sestércio, Moeda em bronze, 232 E.C., Lácio, Itália, Museu de Belas Artes de Boston,
acessado em 9/4/1076, <http://www.perseus.tufts.edu/hopper/artifact?name=Boston+68.476&ob
ject=coin>; Sestércio, Moeda em prata, 256 E.C., Síria, Museu de Belas Artes de Boston, acessado
em 9/4/1076, http://www.perseus.tufts.edu/hopper/artifact?name=Boston+32.1405&object=co
in; Sestércio, Moeda em ouro, 196-197 E.C., Lácio, Itália, Museu de Belas Artes de Boston, aces-
sado em 9/4/1076, http://www.perseus.tufts.edu/hopper/artifact?name=Boston+67.1013&object
=coin; Sestércio, Moeda em ouro, 74 E.C., Lácio, Itália, Museu de Belas Artes de Boston, acessado
em 9/4/1076, http://www.perseus.tufts.edu/hopper/artifact?name=Boston+59.652&object=coin.

19 Ao dar os vários modos de representar a Esperança, Ripa remeteu diretamente a moedas


romanas e à iconografia latina da Spes. “SPERANZA (…) Nella Medaglia di Claudio, è dipinta.
DONNA, vestita di verde, con un Giglio in mano, perché il Fiore ci dimostra la Speranza, la
qual è una aspettatione del bene, sì come all’incontro il Timore è un commovimento dell’animo
nell’aspettatione del male, onde noi, vedendo i Fiori, sogliamo sperarne i frutti, li quali poi, co’l
corso di qualche giorno, ci dà la Natura, per non ingannar le nostre speranze, e se bene i Fiori
tutti destano in noi la speranza, il Giglio nondimeno, come fiore molto più soave de gli altri, la
porge maggiore (…) DONNA, vestita di verde, con la sinistra mano alzi un Lembo della veste, e
nella destra una Tazza, dentro alla quale sia un Giglio. Così si vede scolpita in una Medaglia d’oro
d’Adriano Imperatore con queste lettere: Spes P. R. (…) SPERANZA DELLE FATICHE. DONNA,
vestita di verde, che nel grembo tiene del Grano, e con l’altra mano lo semina. Questa figura

O que nos faz pensar, Rio de Janeiro, v.26, n.41, p.75-106, jul.-dez. 2017
84 Luis Filipe Silverio Lima

uma das qualidades boas ou más que restaram no vaso (ou caixa, como ficou
estabelecido a partir de uma leitura erasmista) que, a variar da versão, conte-
ria todos os infortúnios ou todas as bondades então espalhados pelo mundo.20
Essa acepção mais negativa entre os “Antigos” poderia ser corroborada pela
resposta, atribuída a Aristóteles por Diógenes Laércio, à pergunta o que seria
esperança: sonho acordado.21 Entretanto, o entendimento mais constante da
Esperança era ser uma paixão ou afeto da alma ligada às expectativas e dese-
jos futuros, mas que como tal deveria ser controlada para chegar ao equilíbrio
da justa medida.
Apesar da máxima em Diógenes Laércio, o julgamento de Aristóteles na
sua Arte retórica parece considerar a Esperança menos como devaneio a priori,
e sobretudo como uma paixão que variava conforme os caracteres (do jovem,
velho, adulto, etc). Como tal, deveria ser usada pelo orador conforme o gêne-
ro empregado, a audiência prevista e a matéria do discurso. A esperança, ao
contrário da memória, tratava sobretudo do futuro, e, junto à confiança, era a
contraparte do medo e temor.22 Assim, o velho, desprovido de energia, tinha
mais desconfiança do que esperança pois, como lhe restava pouco tempo,
ficava preso à memória das coisas experienciadas, criando uma prevenção
prévia a qualquer matéria; enquanto ao jovem, cheio de paixão, sobrava es-
perança, pois era destemido por conta da falta de experiência vivida.23 Tanto

mostra, che la Speranza è un desiderio di cosa buona con la cognizione dell’attitudine a potersi
conseguire, e aquistare, perché,seminando il Grano con debito modo, si sà per l’esperienze passa-
te, che moltiplica, e volentieri si gitta via il poco presente con la speranza del molto da venire. Il,
che può ancora essere impedito da molti accidenti.” Cesare Ripa. Iconologia del Cavaliere Cesare
Ripa Perugino Notabilmente Accresciuta d’Immagini, di Annotazioni, e di Fatti dall’Abate Cesare
Orlandi… 5 vols. Perugia: Stamperia di Piergiovanni Costantini, 1764-67, Versão On-Line, con-
sultada em http://www.asim.it/iconologia/ICONOLOGIAview.asp?Id=316.

20 Dora Panofsky e Erwin Panofsky, A caixa de Pandora. São Paulo: Companhia das Letras, 2009,
esp. pp. 20-22, 133-134, 162-165.

21 Diogenes Laertius, Vitae philosophorum. Lives of Eminent Philosophers, Londres, N. York: W.


Heinemann/G.P. Putnam’s sons, 1972 (Loeb Classical Library), Liv. V, cap. 1 “Aristotle”, §8, versão
on-line em “Perseus Project”, acessado em <http://data.perseus.org/texts/urn:cts:greekLit:tlg0004.
tlg001.perseus-eng1> (“He was asked to define hope, and he replied, ‘It is a waking dream’.”).

22 Aristóteles, The Art of Rhetoric, Londres: W. Heinemann, 1926 (Loeb Classical Library), Liv.
II, cap. V, 14-17, 1383a-b; cap. XIII, 11-12, 1390a. Agradecemos a João Adolfo Hansen por ter
chamado atenção para este aspecto da Retórica.

23 Ibidem, Liv. II, cap. XII-XIII, 1389a-1390a. Talvez essa definição da Esperança como afeto
dos jovens apaixonados esteja por trás de uma composição particular de um tema recorrente na
pintura europeia, a disputa entre Cupido/Eros, Vênus/Afrodite e Saturno/Cronos, muitas vezes
simbolizando a luta do amor (Cupido) e da beleza (Vênus) contra o tempo (Saturno). Em quadros

O que nos faz pensar, Rio de Janeiro, v.26, n.41, p.75-106, jul.-dez. 2017
Aproximações para uma história do conceito de Esperança nas expectativas milenaristas do século XVII 85

medo quanto à esperança das coisas vindouras deviam ser movidas, particu-
larmente, quando o assunto implicasse decidir sobre coisas futuras, matéria
do gênero deliberativo.
De certa maneira, foi essa percepção de Esperança como paixão ou afe-
to humano que organizou textos marcados por um novo entendimento do
direito natural no século XVII – ainda que rompendo com certa tradição
escolástica e mesmo humanista da autoridade dos “Antigos”. Buscando evi-
tar qualquer explicação metafísica dos fundamentos da lei e da República/
Cidade e baseá-los na razão natural e na civilidade e sociabilidade, inerentes
ao homem social e civil, o jurista alemão Samuel von Pufendorf, nos anos
1670, considerava a Esperança como um afeto da alma, tal qual o desejo e o
apetite, que foram dados por Deus e assim seriam parte do nosso estado de
natureza. Por ser uma paixão, contudo, se não fosse temperada, poderia fazer
perder o discernimento, seguindo a máxima aristotélica da esperança como
“sonho acordado”. Ao mesmo tempo, considerando haver uma Religião Natu-
ral, supunha ser dever dos “homens” amar e obedecer a Deus bem como ter
esperança nele, pois único do qual a felicidade humana dependia, e temê-lo,
visto ser o ente mais poderoso que, se ofendido, deixava os seres humanos
imputáveis do grande Mal. Menos do que virtudes, amor e esperança, mesmo
em Deus, eram frutos da natureza humana.24 Leitura mais radical do papel da
esperança se apresentava no Leviatã. Supondo todos os afetos semelhantes
entre os homens só variando nos objetos das paixões, Hobbes, ao pensar o
medo versus a esperança, remetia a escolha necessária de se fugir do estado
natural de guerra e na esperança de conseguir, pela indústria, a paz no corpo
artificial do Estado com poder soberano e absoluto. Para Hobbes, seria a
esperança, como afeto sobre o futuro, que permitiria a deliberação pela cons-
tituição, por meio de um contrato, de um novo modo de vida além daquele
do constante medo do estado natural.25

e gravuras do séc. XVII e XVIII, localizamos o tema com a adição da Esperança, nas quais a Espe-
rança (ladeada pela âncora), o Amor (na forma do Cupido), e a Beleza (personificada em Vênus)
atacavam o Tempo (como Saturno, um velho com asas e com uma foice).

24 Samuel von Pufendorf, The Whole Duty of Man According to the Law of Nature, Indianapolis:
Liberty Fund, 2003 [1673], consultado em 4/9/2017. <http://oll.libertyfund.org/titles/888>, cap.
IV, “Of the Duty of Man towards God, or, concerning Natural Religion”, p. 64-65; Pufendorf, Of
the law of nature and nations: eight books, Londres : Printed for J. Walthoe, R. Wilkin, J. and J.
Bonwicke, S. Birt, T. Ward, and T. Osborne, 1729 [1672], liv. II, cap. IV “The duties of Man with
regard to himself”, p. 171, consultado em 4/9/2017 <https://archive.org/details/oflawofnaturena-
t00pufe>.

25 Renato Janine Ribeiro, Ao leitor sem medo. Belo Horizonte: Ed. UFMG, 2004, cap. 1.

O que nos faz pensar, Rio de Janeiro, v.26, n.41, p.75-106, jul.-dez. 2017
86 Luis Filipe Silverio Lima

Também em torno do par complementar medo e esperança, Spinoza con-


siderou que as escolhas humanas sobre o futuro eram regidas pelos dois afe-
tos. Entretanto, ao contrário da necessidade da submissão absoluta ao poder
soberano, o predomínio do medo gera uma república ou cidade que busca
somente escapar da morte e destruição, transformando a multidão que ali
vive em escrava; enquanto aquela fundada na esperança é livre, pois busca a
vida. A esperança perde, entretanto, seu possível caráter libertador se manti-
da pelas superstições de uma “falsa religião”, quando está destemperada sem
partilhar da razão. Sendo assim, a esperança (assim como o medo), como
afirmou Spinoza, não seria nem boa nem má em si mesma.26
A leitura da esperança como afeto, derivada dos “Antigos”, colocava-se
como problema ao pensá-la como virtude teologal, especialmente na doutri-
na cristã do medievo que a considerava a segunda virtude após a Caridade.
No século XIII, Tomás de Aquino já defendera que havia uma distinção entre
esperança como paixão e como virtude ao responder a questão “se a esperan-
ça é uma virtude”. Sabendo que nenhuma paixão poderia ser virtude, separou
a esperança como “movimento do apetite sensitivo”, uma das quatro paixões
de Aristóteles, daquela que tem como objeto da espera o Bem perfeito, con-
sumado na vida eterna. Alcançar o Bem e a vida eterna não poderiam ocorrer
somente por meio da natureza humana, pois fora das capacidades humanas;
sendo assim, Aquino concluiu que necessariamente a expectativa da vida
eterna dependeria de ter confiança na intercessão e auxílio divino, e mais do
que isso da própria infusão no “homem do poder divino para obtenção da
vida eterna”. Sendo o “objeto formal da esperança” o auxílio divino, ficaria
provado não só a diferença da espera sensitiva, mas também a dependência
de um influxo sobrenatural que a diferenciaria das virtudes civis ou intelecti-
vas. Se os apetites são movidos pelo bem proporcionado, quem proporciona
o Bem último da felicidade eterna não seria a natureza ou os homens, mas
a “graça de Deus”. Assim, a esperança que almeja este Bem é um “dom di-
vino infuso.”27 A Esperança, quando por e para Deus, era definitivamente
uma virtude, podendo entretanto conviver com a esperança humana. Have-
ria na perspectiva cristã, assim, duas esperanças. Uma humana, descrita nos

26 Marilena Chaui. “Espinosa: poder e liberdade”. In: Filosofia política moderna. De Hobbes a
Marx. ed. Atilio Boron. São Paulo: CLACSO / FFLCH, USP, 2006, p. 113-143; Gábor Boros “A se-
cularização dos afetos religiosos nos escritos de Spinoza: esperança e medo, amor e generosidade”,
Cadernos Espinosanos, 21 (2009), p. 11-40.

27 Tomás de Aquino, A Caridade, a Correção Fraterna e a Esperança. Campinas: Ecclesiae, 2013,


p. 199, 203.

O que nos faz pensar, Rio de Janeiro, v.26, n.41, p.75-106, jul.-dez. 2017
Aproximações para uma história do conceito de Esperança nas expectativas milenaristas do século XVII 87

“Antigos”; outra teologal, explícita nos Evangelhos. Uma, necessitada do tem-


peramento e controle das paixões; outra, do incentivo doutrinal para a vida
virtuosa. Uma, tendo como pares o temor e o desejo; outra, a Fé e a Caridade.
Entretanto, a questão de como a Esperança relacionava-se com as outras
virtudes e mesmo como essa era entendida como virtude ganhava contornos
diversos nos embates propostos pelas Reformas do séc. XVI. Na espirituali-
dade tardo-medieval, Esperança era mais importante que a Fé na economia
da salvação e na prática cotidiana do fiel. Enquanto a Fé era uma virtude que
se fundava numa posição receptiva não reclamando bons atos para além da
crença em si (até Judas tinha fé), a Esperança, mais próxima da virtude maior,
a Caridade, supunha atos de volição e de afeto na vida do bom cristão.28
Nessa distribuição, a Esperança tinha como atributo a confiança, a confiança
no Bem, na Vida Eterna ainda não possuída – o que a localizava no Futuro
e ordenava os atos do esperançoso nessa direção. A Fé, por sua vez, tinha
como atributo a credulidade, uma crença na Verdade presente ainda que não
visível – o que a restringia ao momento atual e não impelia à boa ação neces-
sariamente. Entretanto, em termos escatológicos (e mesmo salvíficos), esse
futuro da esperança seria, sobretudo, uma espera pela ação da Providência,
uma espera passiva. Embora a doutrina do livre-arbítrio fosse ainda central
na espiritualidade tardo-medieval, ela não se traduzia necessariamente numa
exortação à ação, como, por exemplo, farão os jesuítas desde o seu início e
muito fortemente após Trento.
A questão da ação (e do livre-arbítrio) começou a se tornar um problema
cada vez maior, quando, no meio da busca dos movimentos de renovação da
Igreja e da religiosidade, Martinho Lutero mudou a relação entre Esperança e
Fé ao pensar a questão da Justificação. Lutero propôs um deslocamento nos
atributos das duas virtudes teologais: A confiança (fiducia) era uma caracte-
rística da Fé e não mais da Esperança. Pela fé o fiel confiaria em sua salvação.
Inclusive porque a sua espera, em certa medida, independia de suas ações
– ele precisava acreditar e confiar no presente que estava salvo. A Fé seria
originária da compreensão (presente) da salvação e da Verdade da bondade
de Deus, enquanto a Esperança seria o desejo, a vontade (futuro) da salvação
que exorta o (já sabido) eleito a fazer boas obras. As obras seriam, assim, de-
corrência de um estado presente, não uma ação que busca um futuro desenla-
ce. A fé era o início de tudo, a esperança era por onde o fiel continuava – daí
porque a confiança na salvação futura deveria estar depositada na Fé presente,

28 Hamm_TheReformationOfFaith, p. 156-8, Cf

O que nos faz pensar, Rio de Janeiro, v.26, n.41, p.75-106, jul.-dez. 2017
88 Luis Filipe Silverio Lima

e não numa espera por ela pavimentada e confirmada nas boas ações.29 A
doutrina calvinista da predestinação forte veio ainda mais acentuar a impor-
tância da fé, à medida que indicava que já seriam evidentes os que estariam
salvos, e não haveria obras que poderiam remir ou pelas quais os condenados
poderiam se salvar. O fiel se sabia salvo, e por isso agia bem. Há, por assim
dizer, uma certa presentificação do destino salvífico. Não haveria espaço para
mudar algo expresso na confiança (presente) do fiel da sua salvação.
Esse deslocamento temporal das virtudes assumia um alvo adicional ao
combater qualquer possibilidade de expectativa ou esperança milenarista.
Fundada na iminência do Juízo Final, a perspectiva de futuro para o reino
mundano, em Lutero assim como em Calvino, era apocalíptica, pessimista,
final, cabendo menos do que esperar, saber da (e confiar na) sua salvação
nos céus – ou temer, se desconfiado em sua Fé, pelo derradeiro e definitivo
julgamento.30 No Calvinismo e no Luteranismo de meados do séc. XVI, fazia-
-se uma condenação forte ao milenarismo.31 Era uma questão teológica sobre
o fim dos tempos e a relação entre a Cidades de Deus e dos Homens, que
remetida à autoridade de Agostinho, mas também possuía desdobramentos
no âmbito dos modelos de governo e poder desenhados pelos Protestantes,
visto que essa condenação ao milenarismo – ou a sua violência ao menos – se
devia em parte aos levantes proféticos que tomaram Münster, em 1535, ou
mesmo às doutrinas anabatistas e radicais com suas esperanças comunitárias
que levaram às guerras camponesas nos reinos alemães.32
Diante da presentificação do solofideísmo, a Reforma Católica, da qual o
Concílio de Trento pode ser lido em certa medida como um sumário propo-
sitivo, reafirmou a necessidade da Fé mais as obras para a expectativa futura

29 Lowell C. Green, “Faith, Righteousness and Justification: New Light on Their Development
Under Luther and Melanchthon”, The Sixteenth Century Journal, 4:1 (April 1973). Cf. Lutero,
Commentary on the Epistle to the Galatians, Grand Rapids, Michigan: Zondervan Publishing
House, 1949 [1535], cap. 5, pp. 194-216

30 Jean Delumeau, História do medo no Ocidente, São Paulo: Companhia das Letras, p. 225-8

31 Posição que mudará, entretanto na virada do XVI para o XVII, particularmente entre os Puri-
tanos, como mostra Jeffrey Jue: Jeffrey K. Jue, “Puritan millenarianism in Old and New England”,
In: John Coffey e Paul C.H. Lim (org.), The Cambridge Companion to Puritanism. Cambridg:
Cambridge University Press, 2008, p. 259-63.

32 Sobre Münster e suas implicações político-milenaristas (e talvez utópicas) para a ideia de


Cidade/República, ver: RODRIGUES, Rui Luis. “Cidade Sitiada: o Cerco Militar no Século XVII
como Espaço de Utopia e de Contra-Utopia - Os Exemplos de Münster (1534-1535) e de San-
cerre (1573)”. Revista de História, n. 176, a04416, 2017. Accessado 30 Nov. 2017: http://dx.doi.
org/10.11606/issn.2316-9141.rh.2017.116661.

O que nos faz pensar, Rio de Janeiro, v.26, n.41, p.75-106, jul.-dez. 2017
Aproximações para uma história do conceito de Esperança nas expectativas milenaristas do século XVII 89

da justificação. No seio reformado católico, ressaltava-se a importância do


livre-arbítrio (versus o servo-arbítrio luterano, já combatido por Erasmo), in-
clusive frisando a ideia aristotélica (e tomista) das causas segundas na conse-
cução da eleição e dos planos divinos – e mesmo na administração das ações
humanas na esfera da política e dos reinos.33 As três virtudes eram necessárias
(e complementares) e estavam ligadas à busca pela vida eterna por meio das
boas ações. Na 6a sessão do Concílio de Trento, dedicada à Justificação, diz-
-se explicitamente: “Porque a Fé não se lhe juntando a Esperança, e Caridade,
nem une perfeitamente com Christo, nem faz o Fiel membro vivo seu; por
cuja causa com toda a verdade se diz: que a Fé sem obra he morta, e ociosa
(…) Esta Fé, por tradição Apostolica, buscão da Igreja os Cathecumenos, an-
tes do Baptismo, quando procurão a Fé, que dá a vida eterna, a qual não póde
dar a Fé sem a Esperança, e Caridade”.34 Decretava o Concílio que a “vã fidu-
cia dos Hereges” luteranos e calvinistas no solo-fideísmo deveria ser combati-
da, pois não bastava mostrar confiança para estar salvo, pois “ninguém póde
saber com certeza da fé (a qual não póde estar com falsidade) que conseguio
a amizade de Deos”. A esperança e expectativa da recompensa eterna estavam
atreladas às boas ações e não à falsa confiança da Fé, como teria proposto
Lutero.35 Reforçava-se que a esperança da salvação continua no campo do
futuro, e ao mesmo tempo, ligava-se essa confiança (fiducia), de modo mais
decisivo, à ação – às obras.
Para além do combate doutrinário às proposições dos “Hereges e Scis-
máticos” luteranos e calvinistas, um dado que talvez tenha fortalecido essa
percepção foi a necessidade de enfrentar o desafio de converter milhares de
“novos rebanhos” que se apresentavam no Novo Mundo. É interessante notar,
que, ainda que as ideias milenaristas carecessem de um estatuto plenamente
“ortodoxo” no catolicismo tridentino, o esforço missionário na América, em
alguma medida, se inspirou em ideias milenaristas e numa expectativa pro-
fética – não de ordem apocalíptica, negativa, mas de construção de um novo
reino na terra. Lembramos em particular as experiências dos franciscanos
na Nova Espanha, que buscaram, até arquitetonicamente, projetar “utopias”

33 Jean-François Courtine, “L’Héritage scolastique dans la problématique théologico-politique de


l’âge classique”, In: Henry Méchoulan (org.), L’Etat Baroque 1610-1652, Paris: Vrin, 1985, pp.
91-118.

34 O sacrosanto, e ecumenico Concilio de Trento em latim, e portuguez. Lisboa: Na Officina


Patriarc. De Francisco Luiz Maneo, 1783, t. I, pp. 109, 111 (6a sessão, cap. 7).

35 Idem, p. 113, 115 (6a sessão, cap. 8).

O que nos faz pensar, Rio de Janeiro, v.26, n.41, p.75-106, jul.-dez. 2017
90 Luis Filipe Silverio Lima

milenaristas e, acreditando estarem ao mesmo tempo diante do Éden e da úl-


tima idade da Terra, serviam-se do fervor místico para converter em massa os
índios.36 Essa posição, devemos frisar, convive ao lado de uma visão do Novo
Mundo completamente ao contrário, como a América sendo não o Paraíso
Terreal e, por consequência, o centro da conversão da terra ao Reino de Cristo,
mas sim o lugar onde o demônio, muitas vezes literalmente, vive e reina. A
visão mais negativa sobre a América implicava, entretanto, não o abandono,
mas a reafirmação do trabalho missionário e uma maior exaltação da ação
e das obras como meios eficazes de combate militante pela Cristandade (e
por seu Império a ser consumado) contra a presença demoníaca. O palco da
luta contra Gog e Magog seria a América, e a ação era necessária para que se
consumasse a esperança na conversão universal do orbe. Entre essas duas po-
sições, os jesuítas, desde José de Acosta, reforçaram a centralidade da missão
e da redução dos índios, abandonando o tom triunfalista da experiência utó-
pica e milenarista do fervor místico.37 Posição esta que, como veremos, será
articulada num projeto milenarista das esperanças de um Quinto Império.
Em alguma medida, perspectiva similar em termos das esperanças profé-
ticas ganhou força também no seio do mundo protestante, a partir da virada
do XVI e ao longo do XVII. Se antes houvera uma condenação ao milenaris-
mo, a experiência das Guerras de Religião articularam projetos messiânicos e
milenaristas aos potenciais líderes e repúblicas protestantes bem como refor-
çaram o discurso apocalíptico do Papa (e dos “papistas”) como Anti-Cristo,
com implicações profético-políticas que conclamavam à ação contra os he-
reges católicos.38 Ao mesmo tempo, as primeiras incursões de protestantes
nas Américas (franceses huguenotes, holandeses reformados e ingleses puri-
tanos) foram acompanhadas de reflexões – que reverberavam e adaptavam as

36 John Leddy Phelan, The millennial kingdom of the Franciscans in the New World, 2a ed.,
Los Angeles: University of California Press, 1970; Jaime Lara, City, Temple, Stage: Eschatological
Architecture and Liturgical Theatrics in New Spain, Notre Dame, Indiana: University of Notre
Dame Press, 2004.

37 Adriano Prosperi, “America e apocalisse” in America e apocalisse e altri saggi, Pisa: 1999, pp.
16-18; Stefania Pastore, “Mozas Criollas and New Government: Francis Borgia, Prophetism, and
the Spiritual Exercises in Spain and Peru”, In: Luís Filipe Silvério Lima, Ana Paula Torres Megia-
ni (org.) Visions, Prophecies and Divinations: early modern Messianism and Millenarianism in
Iberian America, Spain and Portugal. Leiden/Boston: Brill, 2016, pp. 59-73, Luís Filipe Silvério
Lima, “Between the New and the Old World: Iberian Prophecies and Imperial Projects in the
Colonisation of the Early Modern Spanish and Portuguese Americas”. In: Andrew Crome. (Org.).
Prophecy and Eschatology in the Transatlantic World, 1550−1800. Londres: Palgrave Macmillan
UK, 2016, p. 33-64.

38 Jue, op. cit.

O que nos faz pensar, Rio de Janeiro, v.26, n.41, p.75-106, jul.-dez. 2017
Aproximações para uma história do conceito de Esperança nas expectativas milenaristas do século XVII 91

impressões ibéricas e católicas39 – sobre o papel que o Novo Mundo desem-


penhava no concerto das disputas europeias e cristãs. No seio protestante, o
problema da origem dos povos americanos - e a sua possível descendência
judaica – impactou de modo indelével as esperanças milenaristas, ao mesmo
tempo em que informou as tentativas de missionação, em particular na Amé-
rica do Norte.
Nesse sentido, as disputas em torno das expectativas milenaristas, reli-
giosas e/ou políticas mobilizaram o próprio conceito de Esperança, que ao
mesmo tempo permite traçar as proximidades desses projetos e os conflitos
entre eles. Vale a pena nesse sentido voltar aos títulos que mobilizaram esta
reflexão (Miqveh Israel ou Esperança de Israel, “Esperanças de Portugal”, Door
of Hope), para, por fim, retomar o termo “esperança” e as ligações entre essas
fontes para além de uma perspectiva meramente sincrônica ou de paralelis-
mos. Em outras palavras, a ocorrência do termo não é só fruto de visões de
mundo compartilhadas ou em disputa. Para além dessa sincronicidade, há
conexões e circulações que podem ajudar a pensar esse conceito.40

II.
O pequeno tratado Esperança de Israel foi escrito entre 1649 e 50 (ano de
sua publicação), pelo “famoso rabino” de Amsterdã, Menasseh Ben Israel, de
origem cristã-nova, portuguesa e membro da “Gente de Nação”. Ben Israel,
até onde se saiba, respondia aos apelos dos milenaristas ingleses, como John
Dury, Henry Jessey e Nathanael Homes, que ficaram extremamente excitados
com a notícia da suposta descoberta de uma das “Tribos Perdidas de Israel”
na América Espanhola, mais especificamente na Amazônia. Tinham ouvido
que um judeu, também de origem cristã-nova portuguesa, Antônio de Mon-
tesinos, havia relatado perante a sinagoga de Amsterdã (e de Menasseh) a tal
descoberta. A notícia se somava a outras duas, a da descoberta de outros des-
cendentes das Tribos na América (mas agora na Nova Inglaterra) bem como a
conversão de centenas de índios por meio da pregação puritana ao norte de

39 Jorge Cañizares-Esguerra, Puritan Conquistadors. Iberianizing the Atlantic, 1550-1700, Stan-


ford, California: Stanford University Press, 2006, esp. cap. 2, 4. Ver também: John Elliott, Empi-
res of the Atlantic World. Britain and Spain in America. 1492-1830, New Haven, London: Yale
University Press, 2007, cap. 7

40 Para uma perspectiva mais detalhada dessas conexões, ver, entre outros: Luís Filipe Silvério
Lima, “Prophetical Hopes, New World Experiences and Imperial Expectations: Menasseh Ben
Israel, Antônio Vieira, Fifth-Monarchy Men, and the millenarian connections in the seventeenth-
-century Atlantic”, AHAM, 17 (2016).

O que nos faz pensar, Rio de Janeiro, v.26, n.41, p.75-106, jul.-dez. 2017
92 Luis Filipe Silverio Lima

Salem. Se confirmadas, indicariam de modo evidente que o fim do mundo se


anunciava (pois estava escrito que as tribos perdidas voltariam), e mais que
as gentes do Novo Mundo seriam convertidas, de fato reduzindo o globo à
verdadeira fé. Pediam assim que Menasseh confirmasse a veracidade (ou não)
da notícia. Impelido por tantas demandas e interessado em tudo que ocor-
resse nas Américas (tinha parentes e negócios no Pernambuco holandês) bem
como sobre assuntos messiânicos (redigiu, cinco anos depois, um volumoso
tratado interpretando a Pedra de Nabuconosor, metáfora onírica da Quinta
Monarquia e da vinda do messias), escreveu o tratado em espanhol. Lançou,
entretanto, também uma versão em latim (ambas impressas pela sua própria
casa editorial, a primeira prensa judaica de Amsterdã).41
Na epístola dedicatória aos parnassin da sinagoga de Amsterdã (entre
os quais o pai de Spinoza), Menasseh explica a escolha do título com tons
messiânicos:

Hele intitulado MIQVEH ISRAEL Esperança de Israel deduziendo el nom-


bre del c. 14. ver 8. de Jeremias, Esperança de Israel su salvador: por que

41 Para Menasseh, Montesinos, os milenaristas ingleses, ver, entre outros: Crome, Andrew. “Po-
litics and Eschatology: Reassessing the Appeal of the ‘Jewish Indian’ Theory in England and
NewEngland in the 1650s”, Journal of Religious History, 2015 (on-line preview only), doi:
10.1111/1467-9809.12301; Falbel, Nachman Falbel, “Menasseh Ben Israel e o Brasil” in Judeus
no Brasil (São Paulo: Humanitas, 2008), 121-133; Hessayon, Ariel, ‘Gold Tried in the Fire’: The
prophet TheaurauJohn Tany and the English Revolution. Aldershot: Ashgate, 2007.Hessayon,
Ariel, “Jews and crypto-Jews in sixteenth and seventeenth century England”, Cromohs, 16 (2011),
URL: http://www.cromohs.unifi.it/16_2011/hessayon_jews.html; Lévy, Florence, “La prophétie et
le pouvoir politico-religieux au XVIIe. siècle au Portugal et en Hollande: Vieira et Menasseh Ben
Israel” in La prophétie comme arme de guerre et des pouvoirs, Augustin Redondo, ed. (Paris: Presses
de La Sorbonne Nouvelle, 2000), Perelis, Ronnie, “ ‘These Indians Are Jews!’ Lost Tribes, Crypto-
-Jews, and Jewish Self-Fashioning in Antonio de Montezino’s Relation of 1644” In: Richard L
Kagan; Philip D Morgan (ed.), Atlantic diasporas : Jews, conversos, and crypto-Jews in the age of mer-
cantilism, 1500-1800, Baltimore: Johns Hopkins University Press, 2009, 195-211; Perelis, Ronnie,
“Dialectics of Travel: Reading the Journey in Antonio de Montezinos’s Relación (1644)”, Studies
in American Jewish Literature, 33:1 (2014): 13-34; Popkin, Richard, “Hartlib, Dury and the Jews”
in Samuel Hartlib and universal reformation, M. Greengrass et al., ed. (Cambridge: CUP, 1994);
Schmidt, Benjamin, “The Hope of the Netherlands: Menasseh ben Israel and the Dutch Idea of
America,” in The Jews and the Expansion of Europe to the West, 1450 to 1800, ed. Paolo Bernardini
and Norman Fiering, (Oxford and New York, 2001), 86-107; Schorsch, Ismar. “From Messianism
to Realpolitik: Menasseh Ben Israel and the Readmission of the Jews to England”. Proceedings of
the American Academy for Jewish Research, 45 (1978):187-208; Schorsch, Jonathan, Atlantic World
(Boston: Brill, 2009); Braude, Benjamin, “Les contes persans de Menasseh Ben Israël”. Annales.
49.5 (1994):1107-1138; Richard Popkin, “The rise and fall of the Jewish Indian Theory” in Me-
nasseh Ben Israel and his world, 62ss.; Benjamin Schmidt, “The Hope of the Netherlands: Menasseh
ben Israel and the Dutch Idea of America,” in The Jews and the Expansion of Europe to the West, 1450
to 1800, ed. Paolo Bernardini and Norman Fiering, European Expansion And Global Interaction,
vol. 2 (Oxford and New York, 2001), 86-107.

O que nos faz pensar, Rio de Janeiro, v.26, n.41, p.75-106, jul.-dez. 2017
Aproximações para uma história do conceito de Esperança nas expectativas milenaristas do século XVII 93

el fin a que solamente se dirige, es mostrar que esta esperança em que vi-
vimos, de lavenida del Messiah, es de un bien, futuro, arduo, mas infalible,
por fundarse em la promessa absoluta del Señor bendido.42

O título havia sido retirado de Jeremias, livro profético de caráter escato-


lógico, o que evidenciava aos leitores, imersos numa cultura de referências bí-
blicas, o significado messiânico do tratado. O versículo (Jr 17:13) dizia: “Es-
perança de Israel, Iahweh, todos os que te abandonam serão envergonhados,
os que se afastam de ti serão escritos na terra, porque eles abandonaram a
fonte de água viva, Iahweh.” Nas duas versões (em espanhol e latim), o título
trazia antes o original hebraico, Miqveh Israel, e depois, conectado por “Esto
es” e “Hoc est”, Esperança de Israel e Spes Israelis. Ainda que não tenha reali-
zado uma exegese do versículo, a matéria do texto de Menasseh casava com o
trecho, pois apontava (com certa ambiguidade) que o verdadeiro povo de Is-
rael mantinha a sua esperança ou confiança (outro significado de “Miqveh”43)
e os que não esperaram ou confiaram em Deus seriam abandonados. Aqui
Esperança, a partir da dupla acepção do termo hebraico44, parecia reafirmar
a confiança (fiducia) na salvação (“em la promessa absoluta del Señor”) para
o sentido da espera escatológica, nesse caso, na vinda do Messias (“esperança
em que vivimos, de lavenida del Messiah”).
Num texto de duas versões dirigidas a leitores judeus (“Homens de Na-
ção” que liam espanhol) e para cristãos (protestantes que liam latim) sobre
as consequências do suposto achamento das tribos perdidas e a sua inclusão
(ou não) no “povo de Israel”, a leitura exegética decorrente podia ser múltipla,
para não dizer dúbia. Em especial, numa altura que os judeus de Amsterdã,
de origem portuguesa, tentavam se estabelecer e se viam num mundo em
tribulações, desde seu exílio da Península Ibérica, mas agravado pelo recru-
descimento das perseguições inquisitoriais e pelas guerras no ultramar, onde

42 Menasseh Ben Israel, Esperança de Israel, op. cit., .s.p. Este trecho na versão em latim e na sua
tradução para o inglês aparece no prefácio ao leitor.

43 Miqveh também pode se referir a coletar algo, esperar tempo para coletar, daí em decorrência
a banheira ritual na qual se coleta água da chuva. Menos do que curiosidade, isso explica tam-
bém o sentido da última parte do versículo (“a fonte de água viva, Iahweh.”) pelo qual Deus é
comparado a uma fonte de água viva, impoluta (pela qual se toma o banho ritual de purificação).
Agradecemos a Francisco Moreno por apontar algumas correlações com a referência à água, como
uma possível remissão ao rio Sabation.

44 Vale notar que o sentido de esperança e espera pode assumir muitas formas em hebraico,
como Tikvah, cuja raiz (qwh), ligada à corda, é a mesma de Mikveh/ah.

O que nos faz pensar, Rio de Janeiro, v.26, n.41, p.75-106, jul.-dez. 2017
94 Luis Filipe Silverio Lima

tinham investimentos.45 Nesse sentido, buscar interlocuções com os protes-


tantes ingleses poderia ser uma alternativa às tratativas com os holandeses
e mesmo as buscas de reverter o quadro no mundo ibérico (ou português,
ao menos, com as possibilidades abertas com Restauração de 1640 com a
dinastia brigantina). Mais do que isso, algumas pistas podem ser aventadas
se pensarmos na opção de traduzir por “Esperança de Israel”, mas sobretudo
“Spes Israelis”. A versão da Vulgata (utilizada pela Igreja Romana) traduzia a
expressão por “expectatio Israhel Domine”46, enquanto as bíblias de Genebra
e do Rei James (usadas na Inglaterra) traziam “O Lord, the hoope of Israel”.
“Expectatio” seria vertido para o inglês como “expectation”47, com sentido
mais de espera, aguardo ansioso, e menos como “Hope”, o que pode mos-
trar também uma intencionalidade de audiências na escolha das traduções
bem como uma mensagem em direção à ação. Se por um lado, a Esperança/
Miqveh parecia reclamar a confiança como seu atributo (algo não tão distante
das expectativas protestantes do séc. XVII), a remissão à Spes lembrava o seu
destinatário preferencial.48 Nessa direção, assumindo a hipótese de Benjamin
Braude,49 podemos entender este panfleto como uma tentativa de influir na

45 Ver, entre outros: Jonathan I. Israel, European Jewry in the Age of Mercantilism, 1550-1750,
3a. ed., Oxford: The Littman Libray of Jewish Civilization, 1998; Jonathan I. Israel (org.), Dias-
poras Within a Diaspora: Jews, Crypto-Jews and the World Maritime Empires (1540–1740),
Leiden: Brill, 2002; Jonathan I. Israel, “Dutch Sephardi Jewry, Millenarian Politics and the
Struggle for Brazil, 1650-54” in Conflicts of Empire: Spain, the Low Countries and The Struggle
For World Supremacy. 1585-1713, Londres: Hambledon, 1997; Jessica Roitman, The Same
but Different? Inter-cultural Trade and the Sephardim, 1595–1640, Leiden/Boston: Brill, 2011;
Ronaldo Vainfas, Jerusalém colonial, Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, 2010; Natalia Much-
nik, “Antonio Vieira y la diáspora sefardí en el siglo XVII” In: Pedro Cardim e Gaetano Sabatini
(org.), António Vieira, Roma e o universalismo das monarquias portuguesa e espanhola. Lisboa:
CHAM, 2011, p. 97-120

46 Ou “Salvatorius”, a depender da edição.

47 Por exemplo, no Dictionarium Linguae Latinae et Anglicanae, de 1587, consta “hope” como um
dos últimos significados, mas também “fear”, supostamente o antônimo de “hope”: “Expectatio,
Expectātĭo, ōnis, f.g. verb.Expectation, desire of things looked for, longirg, hope, feare of things
to come”. Para, além desta, ver outras acepções, consultar o LEME (Lexicons of Early Modern
English) http://leme.library.utoronto.ca

48 Não sabemos aqui se seria supor demasiado que essa aproximação da Esperança à confiança
não seria fruto da perspectiva católica portuguesa que, malgrado os esforços da conversão ao
judaísmo e de um atento policiamento (ou mesmo criação) de uma ortodoxia “hebraica” da co-
munidade judaico-portuguesa, ainda perpassava as expectativas messiânicas e, quem sabe, parte
da religiosidade da “Gente de Nação”. Sobre isso, ver: Bodian, op. cit., Kaplan, op. cit., Muhana,
op. cit., Vainfas, op. cit..

49 Braude, op. cit.

O que nos faz pensar, Rio de Janeiro, v.26, n.41, p.75-106, jul.-dez. 2017
Aproximações para uma história do conceito de Esperança nas expectativas milenaristas do século XVII 95

discussão sobre a readmissão dos judeus na Inglaterra, que Menasseh levaria


à frente alguns anos depois, bem como um chamamento à ação para que a
Esperança prometida por Deus se realizasse.
Por conta da repercussão imensa da versão latina e de seu papel no de-
bate em torno da origem judaica dos povos americanos, foi prontamente tra-
duzida para o inglês (1650), com o título de Hope of Israel (mas omitindo
a expressão em hebraico) tendo seguidas edições (1651, 52, 53), pela casa
editorial de milenaristas, Hannah Allen e Livewell Chapman, depois identifi-
cado como o editor dos “Homens da Quinta Monarquia”.50 Devido, em parte,
a esse sucesso, e também apoiado pelos seus correspondentes próximos a
Cromwell, Menasseh conseguiu ir a Londres (1655-7) e ter avaliada em Whi-
tehall a sua petição com outros judeus portugueses para reverter a expulsão
dos judeus da Inglaterra definida no séc. XIV, e permitir o estabelecimento
oficial e público de comunidades judaicas em território britânico, inclusive
podendo a autorização ser estendida para as possessões inglesas na América.
Menasseh tentava garantir espaço para si e para os seus, visto que os judeus
vinham sendo expulsos do Nordeste brasileiro, com a retomada progressiva
das possessões holandesas pelos portugueses. A resposta de Whitehall não foi
positiva nem negativa, mas gerou imenso debate e transformou Menasseh em
figura conhecida nos círculos ingleses do Protetorado.
A sua fama era tanta e seus textos tão polêmicos que continuaram a ser
lidos, gerando impacto, mesmo após a sua volta a Amsterdã, seguida de sua
morte, em 1657. Tanto assim que o panfleto Door of hope, or, A call and decla-
ration for the gathering together of the first ripe fruits unto the standard of our Lord,
King Jesus (1661) se encerra citando, com o estatuto de autoridade, Menasseh
e seu Hope of Israel. Door of Hope foi redigido como manifesto para o levante
liderado pelo tanoeiro Thomas Venner contra a restauração dos Stuart que
ocorrera aquele ano. Venner, que já se rebelara antes contra o Protetorado, era
um líder pentamonarquista dos mais radicais em busca da aceleração da vin-
da do reino dos Justos e de Cristo na terra, a Quinta Monarquia. Como alguns

50 Leona Rostenberg, Literary, political, scientific, religious and legal publishing, printing and
bookselling in England, 1551–1700 (New York: Burt Franklin, 1965), v. 1, 203-236; Bernard
Capp, The Fifth-monarchy Men (London: Faber and Faber, 2008[1972]), 106-7, 129, 245, pas-
sim; Bernard Capp, “A door of hope Re-opened: The Fifth Monarchy, King Charles and King Jesus”
Journal of Religious History, Vol.32, Issue 1 (2008), 16-30; Mauren Bell, “Hannah Allen and the
Development of a Puritan Publishing Business, 1646-51”. Publishing History, 26 (1989):5-66;
Verônica Calsoni Lima, “Impresso para ser vendido na Crown em Pope’s Head Alley: Hannah
Allen, Livewell Chapman e a disseminação de panfletos radicais durante a Revolução Inglesa
(1646-1665)”, Dissertação de Mestrado, Unifesp, 2016.

O que nos faz pensar, Rio de Janeiro, v.26, n.41, p.75-106, jul.-dez. 2017
96 Luis Filipe Silverio Lima

outros deles (p. exemplo, William Aspinwall, de cariz mais moderado)51, ti-
nha estado na Nova Inglaterra, e lá se envolveram nas experiências de cons-
tituição de comunidades regradas pela Lei mosaica bem como nas disputas
antinomianistas.52 Não sabemos o autor do Door of Hope, mas Bernard Capp
sugere que o texto tenha sido baseado nos sermões de Venner para seu grupo
pentamonarquista53. Não deixa de ser instigante pensar essa referência a um
tratado que discorre sobre as expectativas vindas de novas da América num
manifesto de movimento liderado por um milenarista que experienciara o
espaço americano.
Do mesmo modo que o título do texto de Ben Israel, Door of hope vem
de um livro profético, agora de Oséias (2:15). As “portas da esperança”54 se-
riam abertas após a travessia difícil como quando da saída do Egito do povo
eleito por Deus, metaforizado na relação entre uma mulher e seu amante, e
a sua chegada à terra prometida. As portas da esperança indicavam que o
povo de Deus era o povo da Esperança, e, no texto, se transferia aos Santos e
bem-aventurados ingleses a eleição da espera, antes atribuída aos hebreus na
Bíblia. Entretanto, apesar da ideia da espera e mesmo da colheita, esse cha-
mamento pregado no Door of hope pressupunha a ação para, de certa maneira,
fazer abrir aquelas portas. Ser o título do panfleto de chamamento (calling,
beruf, vocação) para a luta contra os Infiéis (no caso inglês, também no poder)
ressaltava o caráter ativo que o conceito de Esperança (aqui misturado com a
ideia de uma eleição protestante dada na fiducia) ganhava cada vez mais em
meados do século XVII.

51 J. F. Maclear, ‘New England and the Fifth Monarchy’, William and Mary Quarterly, 32 (1975),
223–60; Stephen Lee Robbins. Manifold Afflictions: the life and writings of William Aspinwall,
1605-1662. Tese de Doutorado, Oklahoma State University, 1988; Verônica Calsoni Lima. “A
cronologia das bestas e o cumprimento das profecias: o conhecimento histórico nas obras penta-
monarquistas de William Aspinwall (1653-1657)”. Vozes, Pretérito & Devir, v. 3 (2014), p. 75-93.

52 Greaves, R.. “Venner, Thomas (1608/9–1661), Fifth Monarchist”. Oxford Dictionary of Natio-
nal Biography. Acessado em 30 Nov. 2017, https://doi.org/10.1093/ref:odnb/28191.

53 Capp, Bernard, “A door of hope Re-opened”, op. cit.

54 Aqui a Vulgata traz “ad aperiandam spem” (acusativo de Spes – trad. literal “para uma abertura
da/para a esperança”). Uma possível explicação para essa variação seria que em hebraico há duas
formas para esperança, ambas derivadas do verbo Qwah (esperar, confiar): Miqveh e Tikvah. Na
passagem de Oseias, está Tikvah. Não sabemos até que ponto isso era uma questão no século XVII,
mesmo com o interesse ressurgido desde o séc. XVI entre os letrados cristãos pelo hebraico; e
como também não dominamos hebraico para perseguir aqui algum sentido nessa variação, resta-
-nos somente apontar isto em nota.

O que nos faz pensar, Rio de Janeiro, v.26, n.41, p.75-106, jul.-dez. 2017
Aproximações para uma história do conceito de Esperança nas expectativas milenaristas do século XVII 97

A expressão adquire certo relevo ao pensarmos que foi utilizada duas


vezes no discurso de abertura do Parlamento proferido por Cromwell no
início do Protetorado (4/9/1654), após a dissolução do “Parlamento dos San-
tos” (composto por muitos pentamonarquistas), explicitamente tratando das
expectativas da Quinta Monarquia e de um reino espiritual. Do mesmo modo
que os luteranos e calvinistas do século XVI, Cromwell, apesar de esperar
pelo reino espiritual de Cristo, dizia que a noção de Quinta Monarquia na
terra era errônea e que, nesse novo momento então inaugurado, o Protetora-
do sob seu mando, deveria se afastar das falsas esperanças divulgadas pelos
pentamonarquistas. A referência à “Door of hope” fora usada para marcar que
o período de tribulações havia passado e que “After so many changes and
turnings which this nation hath labored under, to have such a day of hope as
this is, and such a door of hope opened by God to us, truly I believe, some
months since, would have been beyond all our thoughts!”.55 O discurso ge-
rou respostas na época, por parte de pentamonarquistas e seus aliados. Tho-
mas Goodwin pregou e depois teve impresso A sermon of the fifth monarchy,
e John Spittlehouse redigiu um An answer to one part of the Lord Protector’s
Speech, no qual abundavam referências à esperança. Ambos foram editados
por Livewell Chapman, o livreiro de Hope of Israel de Menasseh 56 Por sua vez,
o manifesto do grupo de Venner gerou àquela altura uma série de respostas
contrárias, inclusive uma com o subtítulo A door of safety, que lembraria uma
outra acepção de esperança, de segurança e quietude.57 Junto à profusão de
textos antipentamonarquistas, a rebelião foi debelada e Venner condenado
exemplarmente. Podemos nos perguntar ainda se o uso de “Door of Hope”
no manifesto do levante pentamonarquista em 1661 fora uma resposta tardia
ao traidor e tirano da causa de uma “República dos Santos”, o Lorde Protetor
Cromwell, e, desta maneira, uma analogia e aviso ao novo déspota, Carlos
II, recordando o que acontecia aos que se contrapunham aos Santos e Justos.
Talvez, mas o que vale destacar é que essas referências apontam para um

55 Oliver Cromwell, His Highness the Lord Proctetor Speeches to the Parliament in the Painted
Chamber. Londres: G.Sawbridge, 1654.

56 Thomas Goodwin, A sermon of the fifth monarchy, Londres: Livewell Chapman, 1654; John
Spittlehouse, An answer to one part of the Lord Protector’s Speech, Londres: Livewell Chapman,
1654.

57 The phanatiques creed, or A door of safety;: in answer to a bloody pamphlet intituled A door
of hope: or, A call and declaration for the gathering together of the first ripe fruits unto the stan-
dard of our Lord, King Jesus. Wherein the principles, danger, malice, and designe of the sectaries,
are impartially laid open. Londres: printed for Henry Brome at the Gun in Ivy-lane, 1661.

O que nos faz pensar, Rio de Janeiro, v.26, n.41, p.75-106, jul.-dez. 2017
98 Luis Filipe Silverio Lima

campo semântico comum (ainda que em disputa) em torno do conceito de


Esperança – um campo que operava um mesmo vocabulário bíblico, religio-
so, social e político.
Este vocabulário era usado também por católicos portugueses, e também
indicava disputas nos seus usos. Ao contrário do que se poderia pensar ini-
cialmente, a ideia de um Povo da Esperança nem sempre era positiva no lado
lusitano. Em sermões de Auto-de-fé de meados do XVII, a “nação judaica”
era caracterizada como o povo da Esperança, por que eles ainda esperavam
de modo errôneo o Messias, que já teria vindo em Cristo. Mais precisamente,
eram descritos num sermão do auto-de-fé de 1644, como “Gentem Expec-
tantem”, “gente que espera”, e que, nessa espera, desespera (“gente deses-
perada”) citando aqui Isaias (18:2).58 Mas quando Vieira interpreta a mesma
passagem na História do Futuro, afirma que a “Gentem Expectantem” refere-
-se aos índios americanos que esperavam para ser cristianizados. Essa “gente
esperançosa” eram os “antípodas” que seriam convertidos nos Últimos Dias.
Alguns anos antes da redação da Esperança de Israel (entre 1645 e 1648),
Menasseh tivera em Amsterdã contato com o jesuíta Antônio Vieira. O autor
da carta “Esperanças de Portugal” estava em missões diplomáticas a fim de
angariar capital e navios (especialmente por meio das redes cristãs-novas e
judaicas) para apoiar as guerras de Restauração portuguesa, por conta do
novo rei, João IV. A confiar em seus escritos do fim da vida, o padre e o rabino
(ambos grandes pregadores) discutiram na sinagoga exatamente as expectati-
vas do fim do mundo e mais, a conversão (ou não) do orbe ao cristianismo e a
vinda do Messias. Àquele momento, Vieira defendia um maior afrouxamento
da Inquisição em relação aos cristãos-novos, mesmo que se considerasse a
readmissão de judeus nos domínios da coroa lusa, como forma de atrair o
capital mercantil, bem como ampliar a esfera de ação do Império Português.
Ainda que não haja evidências, muitos autores têm defendido uma correlação
(senão uma influência) entre o título da carta de Vieira e o tratado de Ben
Israel.59 Antônio José Saraiva aventa inclusive que o plural “Esperanças” em

58 AREDA, Diogo de, Sermaõ que o Padre Diogo de Areda... prégou no acto da fé, que se cele-
brou na cidade de Goa, domingo 4. dias do mez de Settembro do anno de 1644. [Isa. 18; 1-2]
Impresso [em Goa?]: no Collegio de S. Paulo Novo da Companhia de Jesus, 1644. Agradeço meu
aluno Ricardo Egame, que está estudando esta questão nos sermões de Auto-de-Fé, por ter me
chamado a atenção para isto e me mostrado este e outros sermões.

59 António José Saraiva, “António Vieira, Menasseh ben Israel e o Quinto Império” in História e
utopia, Lisboa: ICALP, 1992, pp. 75-107.; Anita Novinsky, “Sebastianismo, Vieira e o messianis-
mo judaico” In: C.A.Iannone et.al. (org.), Sobre as naus da iniciação, São Paulo: EdUnesp, 1998;
Florence Lévy, “La prophétie et le pouvoir politico-religieux au XVIIe. siècle au Portugal et en

O que nos faz pensar, Rio de Janeiro, v.26, n.41, p.75-106, jul.-dez. 2017
Aproximações para uma história do conceito de Esperança nas expectativas milenaristas do século XVII 99

Vieira seria para indicar a dupla espera do povo português, cristão e judeu
(ou cristão-novo), e que, ao prever um futuro cheio de “esperanças de felici-
dades a Portugal”, supunha a inclusão (e conversão) do povo judeu no seio
do Quinto Império.60
A carta de Vieira fora escrita uma década após o encontro com Menasseh
(e da impressão do tratado do rabino), na mesma floresta que teria Montesino
encontrado as tribos perdidas, só que na parte portuguesa. Redigira a missiva,
afirmava (evocando um lugar retórico da captação da benevolência), de uma
canoa nas águas caudalosas do rio Amazonas a caminho do Maranhão, o
que nos faz lembrar os barcos em meio a tempestade em busca de um porto
evocados no emblema de Alciato. Vieira estava no Estado do Maranhão, di-
rigindo a missão jesuítica no norte da América Portuguesa, em contato com
as reduções e o trabalho de conversão, e em disputa com os colonos, ao
mesmo tempo em que buscava acompanhar os desenlaces da crise sucessória
no Reino, desde a morte de João IV em 1656. Na carta, endereçada ao bispo
do Japão, mas dirigida à rainha viúva, de quem o bispo era confessor, tra-
tava da ressurreição do rei recém-falecido, mas sobretudo do papel central
que Portugal desempenharia na conversão universal do globo – consolação
dupla para as tribulações de uma rainha enviuvada e regente de um Império
(talvez aí outra possibilidade do plural “esperanças”...). A carta foi a prova
central para que os inquisidores anos mais tarde (1663) chamassem Vieira à
frente do tribunal do Santo Ofício (algo que há muito queriam fazer), e numa
das sessões o interrogaram sobre a sua ligação com os judeus de Amsterdã.61
Vieira, obviamente, contou-a como circunstancial e buscando, em verdade,
mostrar-lhes seus erros para convertê-los, citando explicitamente seu contato
com Menasseh Ben Israel – mas não como momento de discussão sobre as
esperanças da vinda do Último e Final Reino na Terra e a conversão universal
de todo o orbe.
A carta “Esperanças de Portugal” é o primeiro texto conhecido no qual
Vieira esboça o seu projeto do Quinto Império, que viria a ganhar forma
(ainda que nunca de modo acabado) na História do Futuro e depois na Clavis
prophetarum, redigidos, segundo Adma Muhana, inicialmente como resposta

Hollande: Vieira et Menasseh Ben Israel” In: Augustin Redondo (org.), La prophétie comme arme de
guerre et des pouvoirs, Paris: Presses de La Sorbonne Nouvelle, 2000; Valmir Muraro, Padre Antônio
Vieira. Retórica e Utopia, Florianópolis: Insular, 2003, cap. 4.

60 Saraiva, António José, “António Vieira, Menasseh ben Israel e o Quinto Império”

61 Ver: Os autos do processo de Vieira na Inquisição. 2a. ed, São Paulo: Edusp, 2008.

O que nos faz pensar, Rio de Janeiro, v.26, n.41, p.75-106, jul.-dez. 2017
100 Luis Filipe Silverio Lima

aos inquisidores.62 A esperança implicava, naquela missiva, segundo declarou


Vieira aos inquisidores na sua estratégia de defesa, uma tentativa de consola-
ção, de aquietar a alma da rainha em momentos turbulentos (e nesse sentido
dar-lhe esperança, como virtude cristã da confiança na Providência), mas
podemos lê-la como início de uma proposta político-profética de construção
de um Império cristão terreno. Proposta que, por meio da ação missionária e
das articulações políticas, o jesuíta tentava não só deixar no papel (ou restrito
aos conselhos confessionais).

III.
Rápida e superficialmente, tentamos mostrar que essas três Esperanças tinham
conexões para além daquelas que poderíamos atribui-las por proximidade
(temporal, temática...). Isto faz serem mais espantosos os pontos de toque
entre autores e espaços diversos e de religiões (e repúblicas) antagônicas, que
produziram textos de variado gênero e para audiências conflitantes. Carta,
tratado, panfleto; Padre, rabino, tanoeiro/pregador?; catolicismo, judaísmo,
protestantismo; Portugal, República dos Países Baixos, Inglaterra (todos em
guerra...). Além de provavelmente um ódio comum pela Espanha habsburga
(mas por diferentes razões), o que aproximava essas esperanças era a Améri-
ca e em algum grau, a “questão judaica”. Aproximações dadas também, em
parte, pelas articulações possíveis por meio de um porto, Amsterdã, no qual
uma comunidade judaica, mas de passado português-ibérico e cristão-novo
possibilitava uma mediação entre as diversas confissões em disputa. Podemos
supor, à guisa de conclusão provisória, que a questão americana e judaica
serviram, usando as categorias de Koselleck, como “espaço de experiência” e
“horizonte de expectativa” para os projetos milenaristas. No lado cristão (pro-
testante ou católico), experiências vividas na América e no contato com os
judeus de Amsterdã; expectativas apontadas para a expansão do orbe e con-
versão das novas gentes, e na volta das tribos perdidas e também de sua con-
versão ao cristianismo. No lado judaico (ou até cristão-novo), a vivência no
espaço americano (seja no Nordeste holandês ou português) e, reversamente,
a convivência com vários cristãos nos debates sobre o papel dos judeus e a
sua importância na orquestra dos reinos europeus; o horizonte da descoberta
das tribos, sinal da vinda do Messias, mas talvez mais importante, os horizon-
tes possíveis de negociação para a aceitação dos judeus nos reinos cristãos e

62 Adma Muhana, “Introdução”, In Os autos do processo, op. cit.

O que nos faz pensar, Rio de Janeiro, v.26, n.41, p.75-106, jul.-dez. 2017
Aproximações para uma história do conceito de Esperança nas expectativas milenaristas do século XVII 101

o fim da perseguição, também sinal inequívoco da chegada do Salvador e de


um reino judaico. Novos espaços, novas (e velhas) gentes, num mundo em
crise, que recolocavam (modificando) velhas esperanças de origem bíblica.
Nesse sentido, é importante investigar a circulação das ideias proféticas e
as variações do conceito de Esperança na sua relação tanto com os embates
e debates sobre formas de monarquia e soberania nas repúblicas europeias e
nos impérios ultramarinos quanto sobre as reformulações e choques das dou-
trinas e práticas religiosas na Época Moderna. Mapear essa circulação e traçar,
ainda que inicialmente, a história do conceito de Esperança podem ajudar a
pensar as dinâmicas político-religiosas no século XVII ocidental e a entender
os sentimentos ligados às “esperanças” e “expectativas” como móveis da ação
humana. Sentimentos em momento de mudança e turbulência, marcado po-
rém pela expectativa de futuro, que estavam de alguma maneira traduzidos
no emblema de Alciato, desejando que a Esperança estivesse próxima.

Referências
ALCIATO, Andrea. Emblematum liber. Augsburgo: Heinrich Steyner, 1531. Disponível
em: < http://www.emblems.arts.gla.ac.uk/alciato/index.php >. Acessado em: 09 mar.
2018.
______. Los Emblemas. Lião: Macé Bonhomme for Guillaume Rouille, 1549.
Disponível em: < http://www.emblems.arts.gla.ac.uk/alciato/index.php >. Acessado
em: 09 mar. 2018.
ANTT. Fundo da Inquisição. Conselho Geral da Inquisição, Livro 206.
AQUINO, Tomás de. A Caridade, a Correção Fraterna e a Esperança. Campinas:
Ecclesiae, 2013.
AREDA, Diogo de. Sermaõ que o Padre Diogo de Areda... prégou no acto da fé, que se
celebrou na cidade de Goa, domingo 4. dias do mez de Settembro do anno de 1644. [Isa.
18; 1-2] Impresso [em Goa?]: no Collegio de S. Paulo Novo da Companhia de Jesus,
1644.
ARISTÓTELES. The Art of Rhetoric, Londres: W. Heinemann, 1926 (Loeb Classical
Library), Liv. II, cap. V, 14-17, 1383a-b; cap. XIII, 11-12, 1390a.
BELL, Mauren. Hannah Allen and the Development of a Puritan Publishing Business,
1646-51. Publishing History, v. 26, p. 5-66, 1989.
BEN ISRAEL, Menasseh. Miqveh Israel Hoc est, Spes Israelis, Amstelodami: [s./ed.],
1650.
_______. Dedicatória. In.: ______. Miqveh Israel, esto es, Esperança de Israel. Amsterdã:
Semvel Ben Israel Soeiro, 5410 [1650].
______. The hope of Israel. Editado por Henry Méchoulan e Gérard Nahon. Oxford/
Nova York: Littman Library ; Oxford University Press, 1987.

O que nos faz pensar, Rio de Janeiro, v.26, n.41, p.75-106, jul.-dez. 2017
102 Luis Filipe Silverio Lima

BLOCH, Ernst. Princípio Esperança. Rio de Janeiro: Contraponto, 2005, 3v.


BODIAN, Miriam. Hebrews of Portuguese Nation. Bloomington: Indiana University Press,
1999.
BOROS, Gábor. A secularização dos afetos religiosos nos escritos de Spinoza:
esperança e medo, amor e generosidade. Cadernos Espinosanos, n. 21, p. 11-40, 2009.
BRAUDE, Benjamin. Les contes persans de Menasseh Ben Israël. Annales HSS, v. 49, n.
5, p. 1107-1138, 1994.
BURKE, Peter. A esperança tem história? Estudos Avançados, v. 26, n. 75, p. 207-
208, 2012.
CALSONI LIMA, Verônica. ‘Impresso para ser vendido na Crown em Pope’s Head
Alley’: Hannah Allen, Livewell Chapman e a disseminação de panfletos radicais
durante a Revolução Inglesa (1646-1665). Guarulhos, 2016. 378f. Dissertação de
Mestrado em História – Universidade Federal de São Paulo, Escola de Filosofia, Letras
e Ciências Humanas, 2016.
______. A cronologia das bestas e o cumprimento das profecias: o conhecimento
histórico nas obras pentamonarquistas de William Aspinwall (1653-1657). Vozes,
Pretérito & Devir, v. 3, p. 75-93, 2014.
CAÑIZARES-ESGUERRA, Jorge. Puritan Conquistadors. Iberianizing the Atlantic, 1550-
1700. Stanford, California: Stanford University Press, 2006.
CAPP, Bernard. The Fifth-monarchy Men. London: Faber and Faber, 2008 [1972].
CAPP, Bernard. A door of hope Re-opened: The Fifth Monarchy, King Charles and
King Jesus. Journal of Religious History, Vol. 32, Issue 1, p. 16-30, 2008.
CHAUI, Marilena. Espinosa: poder e liberdade. In: BORON, Atilio (org.). Filosofia
política moderna. De Hobbes a Marx. São Paulo: CLACSO / FFLCH, USP, 2006, p.
113-143.
COURTINE, Jean-François. L’Héritage scolastique dans la problématique théologico-
politique de l’âge classique. In: Méchoulan, Henry (org.). L’Etat Baroque 1610-1652.
Paris: Vrin, 1985, p. 91-118.
CROME, Andrew. Politics and Eschatology: Reassessing the Appeal of the ‘Jewish
Indian’ Theory in England and New England in the 1650s. Journal of Religious History,
2015 (on-line preview only), DOI: http://dx.doi.org/10.1111/1467-9809.12301.
CROMWELL, Oliver. His Highness the Lord Proctetor Speeches to the Parliament in the
Painted Chamber. Londres: G. Sawbridge, 1654.
DELUMEAU, Jean. História do medo no Ocidente. São Paulo: Companhia das Letras,
2009.
ELLIOTT, John. Empires of the Atlantic World. Britain and Spain in America. 1492-1830.
New Haven, London: Yale University Press, 2007.
FALBEL, Nachman. Menasseh Ben Israel e o Brasil. In: ______. Judeus no Brasil. São
Paulo: Humanitas, 2008, p. 121-133.
GOODWIN, Thomas. A sermon of the fifth monarchy. Londres: Livewell Chapman,
1654.

O que nos faz pensar, Rio de Janeiro, v.26, n.41, p.75-106, jul.-dez. 2017
Aproximações para uma história do conceito de Esperança nas expectativas milenaristas do século XVII 103

GREAVES, R. Venner, Thomas (1608/9–1661), Fifth Monarchist. Oxford Dictionary of


National Biography. DOI: https://doi.org/10.1093/ref:odnb/28191.
GREEN, Lowell C. Faith, Righteousness and Justification: New Light on Their
Development Under Luther and Melanchthon. The Sixteenth Century Journal, v. 4, n. 1,
Apr. 1973.
HESSAYON, Ariel. ‘Gold Tried in the Fire’: The prophet TheaurauJohn Tany and the
English Revolution. Aldershot: Ashgate, 2007.
______. Jews and crypto-Jews in sixteenth and seventeenth century England. Cromohs,
v. 16, p. 1-26, 2011. DOI: http://dx.doi.org/10.13128/Cromohs-13673.
ISRAEL, Jonathan I. European Jewry in the Age of Mercantilism, 1550-1750. 3a. ed.
Oxford: The Littman Libray of Jewish Civilization, 1998.
______. Dutch Sephardi Jewry, Millenarian Politics and the Struggle for Brazil, 1650-
54. In: ______. Conflicts of Empire: Spain, the Low Countries and The Struggle For
World Supremacy. 1585-1713. Londres: Hambledon, 1997.
______. (org.). Diasporas Within a Diaspora: Jews, Crypto-Jews and the World
Maritime Empires (1540–1740). Leiden: Brill, 2002.
JASMIN, M. G.; FERES Jr., j. (Org.). História dos Conceitos: debates e perspectivas. Rio
de Janeiro: Editora PUC-Rio; Loyola; IUPERJ, 2006. 174p.
JUE, Jeffrey K. Puritan millenarianism in Old and New England. In: COFFEY, John;
Lim, Paul C.H. (org.). The Cambridge Companion to Puritanism. Cambridg: Cambridge
University Press, 2008, p. 259-63.
KAPLAN, Yosef. Wayward New Christians and Stubborn New Jews: The Shaping of a
Jewish Identity, Jewish History, Vol. 8, No. 1-2, 1994.
______. Judios Nuevos en Amsterdam. Estudios sobre la historia social e intelectual del
judaísmo sefardí en el siglo XVII. Barcelona: Gedisa, 1996.
______. Political concepts in the word of the Portuguese Jews of Amsterdam during
Seventeenth Century. In: KAPLAN, Yosef; MECHÓULAN, Henry; Popkin, Richard H.
Menasseh Ben Israel and his World. Leiden: Brill, 1989, p. 45-8.

KOSELLECK, Reinhart. ‘Espaço de Experiência’ e ‘Horizonte de Expectativa’: duas


categorias históricas. In: ______. Futuro Passado. Contribuição à semântica dos
tempos históricos. Rio de Janeiro: Contraponto ; Puc-Rio, 2006.
LAERTIUS, Diogenes. Vitae philosophorum. Lives of Eminent Philosophers. Londres, N.
York: W. Heinemann/G.P. Putnam’s sons, 1972 (Loeb Classical Library), Liv. V, cap.
1 “Aristotle”, §8. Versão on-line em “Perseus Project”. Disponível em: < http://data.
perseus.org/texts/urn:cts:greekLit:tlg0004.tlg001.perseus-eng1 >. Acessado em: 09
mar. 2018.
LARA, Jaime. City, Temple, Stage: Eschatological Architecture and Liturgical Theatrics
in New Spain. Notre Dame, Indiana: University of Notre Dame Press, 2004.
LEME - Lexicons of Early Modern English. Disponível em: < http://leme.library.
utoronto.ca >. Acessado em: 09 mar. 2018.

O que nos faz pensar, Rio de Janeiro, v.26, n.41, p.75-106, jul.-dez. 2017
104 Luis Filipe Silverio Lima

LÉVY, Florence. La prophétie et le pouvoir politico-religieux au XVIIe. siècle au Por-


tugal et en Hollande: Vieira et Menasseh Ben Israel. In: REDONDO, Augustin (ed.).
La prophétie comme arme de guerre et des pouvoirs. Paris: Presses de La Sorbonne
Nouvelle, 2000.
LIMA, Luís Filipe Silvério; Megiani, Ana Paula Torres. An Introduction to the
Messianisms and Millenarianisms of Early Modern Iberian America, Spain, and
Portugal. In: ______ (org.). Visions, prophecies, and divinations: early modern
Messianism and Millenarianism in Iberian America, Spain and Portugal. Leiden,
Boston: Brill, 2016a, p. 8-10.
______. Between the New and the Old World: Iberian Prophecies and Imperial
Projects in the Colonisation of the Early Modern Spanish and Portuguese Americas.
In: CROME, Andrew (Org.). Prophecy and Eschatology in the Transatlantic World,
1550−1800. Londres: Palgrave Macmillan UK, 2016b, p. 33-64.
______. Prophetical Hopes, New World Experiences and Imperial Expectations:
Menasseh Ben Israel, Antônio Vieira, Fifth-Monarchy Men, and the millenarian
connections in the seventeenth-century Atlantic. AHAM, n. 17, 2016c.
LUTERO. Commentary on the Epistle to the Galatians, Grand Rapids, Michigan:
Zondervan Publishing House, 1949 [1535], cap. 5, p. 194-216.
MACLEAR, J. F. New England and the Fifth Monarchy. William and Mary Quarterly, v.
32, p. 223–60, 1975.
MUCHNIK, Natalia. Antonio Vieira y la diáspora sefardí en el siglo XVII. In:
CARDIM, Pedro; SABATINI, Gaetano (org.). António Vieira, Roma e o universalismo das
monarquias portuguesa e espanhola. Lisboa: CHAM, 2011, p. 97-120.
MUHANA, Adma Fadul. Uriel da Costa e a nação portuguesa. São Paulo: Humanitas,
2016.
______ (org.). Os Autos do processo de Vieira na Inquisição: 1660-1668. São Paulo:
Edusp, 2008.
MURARO, Valmir. Padre Antônio Vieira. Retórica e Utopia. Florianópolis: Insular, 2003,
cap. 4.
NADLER, Steven. Spinoza: a life. Cambridge: Cambridge University Press, 1999.
NOVINSKY, Anita. Sebastianismo, Vieira e o messianismo judaico. In: IANNONE,
C.A. et.al. (org.). Sobre as NAUS da iniciação. São Paulo: EdUnesp, 1998.
OFFENBERG, Adri K. Spinoza’s library. The story of a reconstruction. Quaerendo,
Volume 3, Issue 4, 1973, p. 320 (item 116).
PANOFSKY, Dora; PANOFSKY, Erwin. A caixa de Pandora. São Paulo: Companhia
das Letras, 2009.
PASTORE, Stefania. Mozas Criollas and New Government: Francis Borgia,
Prophetism, and the Spiritual Exercises in Spain and Peru. In: LIMA, Luís Filipe
Silvério; MEGIANI, Ana Paula Torres (org.). Visions, Prophecies and Divinations: early
modern Messianism and Millenarianism in Iberian America, Spain and Portugal.
Leiden/Boston: Brill, 2016, p. 59-73.

O que nos faz pensar, Rio de Janeiro, v.26, n.41, p.75-106, jul.-dez. 2017
Aproximações para uma história do conceito de Esperança nas expectativas milenaristas do século XVII 105

PERELIS, Ronnie. ‘These Indians Are Jews!’ Lost Tribes, Crypto-Jews, and Jewish
Self-Fashioning in Antonio de Montezino’s Relation of 1644. In: KAGAN, Richard L.;
MORGAN, Philip D. (ed.). Atlantic diasporas: Jews, conversos, and crypto-Jews in the
age of mercantilism, 1500-1800. Baltimore: Johns Hopkins University Press, 2009, p.
195-211
______. Dialectics of Travel: Reading the Journey in Antonio de Montezinos’s Relación
(1644). Studies in American Jewish Literature, v. 33, n. 1, p.13-34, 2014.
PHELAN, John Leddy. The millennial kingdom of the Franciscans in the New World, 2a ed.
Los Angeles: University of California Press, 1970.
POPKIN, Richard. Hartlib, Dury and the Jews. In: GREENGRASS, M. et al. (ed.).
Samuel Hartlib and universal reformation. Cambridge: CUP, 1994.
______. The rise and fall of the Jewish Indian Theory. In: KAPLAN, Yosef;
MECHÓULAN, Henry; Popkin, Richard H. Menasseh Ben Israel and his World. Leiden:
Brill, 1989, p. 62ss.
PROSPERI, Adriano. America e apocalisse. In: ______. America e apocalisse e altri
saggi, Pisa: Ist. Editoriali e Poligrafici, 1999, p. 16-18.
PUFENDORF, Samuel von. Cap. IV, Of the Duty of Man towards God, or, concerning
Natural Religion. In.: ______. The Whole Duty of Man According to the Law of Nature.
Indianapolis: Liberty Fund, 2003 [1673], p. 64-65. Disponível em: < http://oll.
libertyfund.org/titles/888 >. Acessado em: 4 set. 2017.
______. Of the law of nature and nations: eight books. Londres : Printed for J. Walthoe,
R. Wilkin, J. and J. Bonwicke, S. Birt, T. Ward, and T. Osborne, 1729 [1672], liv. II,
cap. IV “The duties of Man with regard to himself”, p. 171. Disponível em: < https://
archive.org/details/oflawofnaturenat00pufe >. Acessado em: 4 set 2017.
RIBEIRO, Renato Janine. Ao leitor sem medo. Belo Horizonte: Ed. UFMG, 2004, cap. 1.
RICHTER, Melvin. Reconstructing the History of Political Languages: Pocock,
Skinner, and the Geschichtliche Grundbegriffe. History and Theory, v. 29, n. 1, p. 38-70,
Feb. 1990.
SKINNER, Quentin. Vision of Politics - Volume 2: Renaissance Virtues. Cambridge:
Cambridge University Press, 2004.
RIPA, Cesare. Iconologia del Cavaliere Cesare Ripa Perugino Notabilmente Accresciuta
d’Immagini, di Annotazioni, e di Fatti dall’Abate Cesare Orlandi… 5 vols. Perugia:
Stamperia di Piergiovanni Costantini, 1764-67. Versão On-Line. Disponível em: <
http://www.asim.it/iconologia/ICONOLOGIAview.asp?Id=316 >. Acessado em: 09
mar. 2018.
ROBBINS, Stephen Lee. Manifold Afflictions: the life and the writings of William
Aspinwall, 1605-1662. Oklahoma, 1988. Tese (Doutorado em Filosofia) – Faculty of
the Graduate College of the Oklahoma State University, 1988.
RODRIGUES, Rui Luis. Cidade Sitiada: o Cerco Militar no Século XVII como Espaço
de Utopia e de Contra-Utopia - Os Exemplos de Münster (1534-1535) e de Sancerre
(1573). Revista de História, n. 176, a04416, 2017. DOI: http://dx.doi.org/10.11606/
issn.2316-9141.rh.2017.116661.

O que nos faz pensar, Rio de Janeiro, v.26, n.41, p.75-106, jul.-dez. 2017
106 Luis Filipe Silverio Lima

ROITMAN, Jessica. The Same but Different? Inter-cultural Trade and the Sephardim,
1595–1640. Leiden/Boston: Brill, 2011.
ROSTENBERG, Leona. Literary, political, scientific, religious and legal publishing, printing
and bookselling in England, 1551–1700. New York: Burt Franklin, 1965, v. 1.
RUCQUOI, Adeline. Medida y žŸn de los tiempos. Mesianismo y milenarismo en la
Edad Media. In: LORENZO, Angel Vaca (org.). En pos del tercer milenio. Apocalíptica,
mesianismo, milenarismo e historia. Salamanca: Universidad de Salamanca, 2000.
SARAIVA, António José. António Vieira, Menasseh ben Israel e o Quinto Império. In:
______. História e utopia, Lisboa: ICALP, 1992, p. 75-107.
SCHMIDT, Benjamin. The Hope of the Netherlands: Menasseh ben Israel and the
Dutch Idea of America. In: BERNARDINI, Paolo; FIERING, Norman (ed.). The Jews
and the Expansion of Europe to the West, 1450 to 1800. European Expansion And Global
Interaction, vol. 2. Oxford; New York: Berghahn, 2001, p. 86-107.
SCHORSCH, Ismar. From Messianism to Realpolitik: Menasseh Ben Israel and the
Readmission of the Jews to England. Proceedings of the American Academy for Jewish
Research, v. 45, p. 187-208, 1978.
SCHORSCH, Jonathan. Atlantic World. Boston: Brill, 2009.
SMITH, Nicholas. Hope and Critical Theory. Critical Horizons, v.6, n. 1, p. 45-61,
2005.
SPITTLEHOUSE, John. An answer to one part of the Lord Protector’s Speech. Londres:
Livewell Chapman, 1654.
VAINFAS, Ronaldo. Jerusalém colonial, Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, 2010.
VIEIRA, Antônio. Esperança de Portugal. In: BESSELAAR, José van den. Antônio
Vieira. Profecia e Polêmica. Rio de Janeiro: EdUerj, 2002, pp. 49-108.

O que nos faz pensar, Rio de Janeiro, v.26, n.41, p.75-106, jul.-dez. 2017
tradução de Pedro H. G. Muniz

O que pode o corpo?


Raphaële Andrault*

Spinoza, na cabeceira dos esfolados1

What can a body do?


Spinoza and the dissected bodies

Resumo
“Ninguém ainda determinou o que pode o corpo”. Alguns leitores da Ética
entenderam esta sentença enigmática como a expressão da desconfiança de Spinoza
em relação ao conhecimento médico. Segundo esta leitura, Spinoza consideraria o
corpo humano como dotado de habilidades plásticas ou habilidades de inovação
para as quais o quadro cartesiano estreito das ciências médicas de seu tempo não
seria capaz de contabilizar. Neste artigo, argumento contra essa leitura levando
em consideração as dissecções anatômicas que Spinoza atendeu e os livros médicos
que ele leu. O objetivo deste artigo então é duplo: 1 / dar uma leitura histórica da
representação analítica de corpos complexos que Spinoza endossou; 2 / contribuir
para a discussão sobre as possíveis relações entre a interpretação semântica dos
textos filosóficos e o estudo histórico do seu meio cultural.

Palavras-chave: Spinoza; anatomia; aptidões corporais; mecanismo.

Abstract
No one has yet determined what the body can do. Some readers of the Ethics have
understood this enigmatic sentence as the expression of Spinoza’s mistrust
concerning medical knowledge. According to this reading, Spinoza would regard
the human body as being endowed with plastic abilities or innovation skills for
which the narrow Cartesian framework of the medical sciences of his time would
be unable to account. In this article, I argue against such a reading by taking into
consideration the anatomical dissections that Spinoza attended and the medical

1 Tradução do artigo Que peut le corps ? Spinoza, au chevet des écorchés.

* Raphaële Andrault é pesquisadora CNRS (IHRIM, UMR5317 / ENS de Lyon).


E-mail: raphaele.andrault@ens-lyon.fr.
Pedro Muniz é doutor em filosofia pela Pontifícia Universidade Católica do Rio de Janeiro (PUC-Rio).
E-mail: phgmuniz@gmail.com.

O que nos faz pensar, Rio de Janeiro, v.26, n.41, p.107-139, jul.-dez. 2017
108 Raphaële Andrault . tradução de Pedro H. G. Muniz

books that he read. The purpose of this article is twofold: 1/ to give a historicized
reading of the analytic representation of complex bodies that Spinoza endorsed;
2/ to contribute to the discussion about the possible relationships between the semantic
interpretation of philosophical texts and the historical study of their cultural milieu.

Keywords: Spinoza; anatomy; bodily aptitudes; mechanism.

“Até agora ninguém determinou o que pode o corpo”.2 Esta declaração de Spinoza
tornou-se uma verdadeira divisa, consensual o suficiente para conquistar o ou-
vinte no início do discurso, e ao mesmo tempo suficientemente subversiva, por
parecer portar combates e esperanças. Combates especialmente contra a doutrina
da qual a modernidade ocidental e cristã teria culpa (com Descartes na liderança)
ao dar toda a atenção, o poder e o valor para a mente, o pensamento ou a alma às
custas do corpo, de suas faculdades e de seu poder. Combate também contra o
desejo de conhecimento e domínio completo desse corpo humano que é menos
transparente do que pensamos, menos estupidamente mecânico. É por isso que
tal declaração é igualmente portadora de esperança. Esperança de que o corpo
seja muito mais capaz do que pensamos a priori: mais capaz de se orientar e de
agir em situações complexas nas quais o pensamento é cego, ou ainda de superar
situações patológicas aparentemente inexoráveis. Por uma ironia do destino, a
divisa que tomamos emprestada de Spinoza é um instrumento de luta contra a
ideia de um determinismo do qual Spinoza foi acusado durante séculos, já que,
a partir de agora, o determinismo que queremos eliminar é biológico. Tais inter-
pretações, hoje muito comuns, e frequentemente baseadas em uma compreensão
caricatural da história das representações do corpo humano, são, no entanto, ra-
dicalmente estranhas ao que diz Spinoza nesse escólio. Mas para compreendê-lo,
faz-se necessário um desvio pelo seu contexto científico imediato.3

2 Nota do tradutor: Citação traduzida do francês. No original: “Personne n’a jusqu’à présent
déterminé ce que peut le corps”. Forneço em nota o original em francês de todas as citações que
aparecem no corpo do texto. Nota da autora: Para todas as citações da Ética, refiro-me à tradução
de Ch. Appuhn (Paris, Garnier Frères, 1965). Agradeço ao organizador e ao auditório da jornada
“Spinoza autrement” por suas questões úteis, assim como a Jacques-Louis Lantoine, por sua leitura
e seus comentários.

3 Nem sempre é esclarecedor propor definições prévias. Digamos, rapidamente, que o que chamo
de “contexto” aqui corresponde ao conjunto de todas as obras das quais Spinoza dispunha, assim
como as correspondências e textos não publicados de seus amigos próximos: todo esse material
inclui descrições, discussões, mas frequentemente também imagens que ajudam a reconstruir as
técnicas e práticas que os fundamentam.

O que nos faz pensar, Rio de Janeiro, v.26, n.41, p.107-139, jul.-dez. 2017
O que pode o corpo? Spinoza, na cabeceira dos esfolados 109

Partirei de um exemplo contemporâneo para explicar o que quero dizer.


A neurociência não nos ensinou sobre a plasticidade neuronal, isto é, a capa-
cidade dos neurônios de modificar conexões existentes e de criar novas? Hoje
nós nos apoiamos na ideia dessa plasticidade – talvez até mesmo nas promes-
sas dessa palavra, por si só – para promover a tese segundo a qual o inato ou
o que foi vivido primeiro não são nada em relação ao que podemos apren-
der e mudar. No entanto, alguns pesquisadores mostraram que essa ideia de
plasticidade foi frequentemente mal compreendida: as conexões neuronais
só podem se desdobrar dentro de certos limites.4 Mas, no fim das contas, o
que importa esse dado científico? Não é legítimo extrapolar e construir teses
mais simples, otimistas e socialmente úteis a partir do que a neurociência
ensina de forma muito exata? Não é legítimo tirar daí ferramentas concei-
tuais para promover o empowerment, ou melhor, mostrar nossas capacida-
des de resiliência? Há, dessa forma, situações nas quais os dados científicos
disponíveis em determinado momento mantêm apenas uma ligação muito
distendida com uma tese filosófica, principalmente se esta, em seu caráter
simples e sem enfeites, puder acompanhar, em seus detalhes e pressupostos,
ideologias e palavras de ordem extremamente variadas. O que conta para tal
filósofo hoje não é necessariamente o que realmente mostram as ciências que
são contemporâneas a ele, ainda mais se esse conhecimento é técnico, tatean-
do em suas provas experimentais e parcialmente cético em seus enunciados
conclusivos. O que conta é poder encontrar um suporte para doutrinas que
esses conhecimentos não fundaram de jeito nenhum, e que eles também não
mais suscitaram.
Talvez seja o mesmo para Spinoza? Sua declaração sobre o que pode o cor-
po seria então dissociável do estado do conhecimento médico no momento
em que ele escreve. De fato, se nos atemos ao próprio texto, quando Spinoza
fala sobre o que pode o corpo, nada nos diz que ele fala de maneira informada
e técnica – uma maneira de falar que refletiria a evolução do conhecimento
médico que era contemporâneo a ele e que ajudaria a questionar o sentido de
tal conhecimento. Isso é verdade. Mas é igualmente verdade que tal conheci-
mento nos permite fixar, até certo ponto, os possíveis significados de termos
ou exemplos dos quais Spinoza se utiliza e as lacunas semânticas que Spinoza
se permite criar a partir da série de definições aceitas ou aceitáveis por seus

4 Ver Denis Forest, Neuroscepticisme, Editions d’Ithaque, 2014, p. 107 em diante, especialmente
p. 112: “Réfuter une relation exclusive entre région corticale et fonction de celle-ci ne doit donc
pas conduire à postuler que la plasticité est source permanente d’innovation”.

O que nos faz pensar, Rio de Janeiro, v.26, n.41, p.107-139, jul.-dez. 2017
110 Raphaële Andrault . tradução de Pedro H. G. Muniz

contemporâneos.5 Retomemos o exemplo contemporâneo: ainda que hoje


digamos à neurociência o que ela não afirma de maneira precisa, concorda-
mos com certa ilustração dessa plasticidade neuronal pela imagem cerebral.
Concordamos também com o papel genérico desempenhado pelo cérebro, e
no cérebro, concordamos com o papel desempenhado pelos neurônios. Estes
são consensos que esquecemos porque eles nos parecem óbvios ou básicos,
mas que o historiador da ciência tenta restituir. Uma tese filosófica nos parece
compreensível independentemente do seu contexto porque esquecemos as
representações científicas mais ou menos informadas que fazem com que seja
possível medir o que está em jogo e os campos de aplicação. Com base nessa
convicção, gostaria de mostrar aqui como o contexto científico da redação da
Ética esclarece tanto o significado desse escólio quanto a concepção mecani-
cista dos corpos que o fundamenta.

I. Spinoza e a anatomia

Para Spinoza e alguns de seus contemporâneos bem versados em publica-


ções recentes, havia certo número de eventos científicos notáveis então
já bem estabelecidos e consolidados desde cerca de trinta anos. Era o caso,
por exemplo, da circulação sanguínea.6 Mencionemos também as inova-
ções tecnológicas, como o microscópio, que oferecia novas representações
do corpo, de seu ambiente, de sua escala e de alguns de seus constituintes.7
Finalmente, havia um conjunto de termos consagrados, então utilizados

5 Sobre a ligação entre a biografia de Spinoza, sua cultura e seu próprio sistema filosófico, P.-F.
Moreau nota que: “il ne suffit pas de repérer ce qui était à la disposition de Spinoza, ni même
d’énumérer ce qu’il en a retenu. Pour s’approcher de la ligne où une culture s’incorpore à une
philosophie, il faut mesurer, d’un terme emprunté à Spitzer, l’écart significatif par lequel il modifie
cela même qu’il reçoit” (Problèmes du spinozisme, Paris, Vrin, 2006, p. 10).

6 Ver R. French, William’s Harvey Natural Philosophy, Cambridge, Cambridge University Press,
1994, particularmente o capítulo “Back to Cambridge”, p. 296 em diante. Para ter uma ideia desse
consenso na época de Spinoza, ver o acréscimo sobre a circulação sanguínea na Anatomia refor-
mata de Bartholin, obra da qual Spinoza dispunha em sua biblioteca (terceira edição reformulada
de 1651): Epistola prima de motu chyli et sanguinis ad Thomam Bartholinum, Casp. Filium & Altera
Epistola de motu sanguinis ad eundem, de Johannes Waleus in Anatomia ex Caspari Bartholini paren-
tis Institutionibus, omniumque recentiorum propriis observationibus, tertium ad sanguinis circulationem
reformata, Leyde, F. Hackium, 1651, p. 531-576.

7 Ver Ph. Hamou, La mutation du visible 2. Microscopes et télescopes en Angleterre de Bacon à Hooke,
Villeneuve d’Ascq, Presses Universitaires du Septentrion, 2001, p. 100 em diante.

O que nos faz pensar, Rio de Janeiro, v.26, n.41, p.107-139, jul.-dez. 2017
O que pode o corpo? Spinoza, na cabeceira dos esfolados 111

até mesmo por aqueles que ressaltavam sua natureza enganosa, ou que se
dispuseram a redefinir seu significado – assim era a noção de “sede da alma”
(siège de l’âme)8.
Hoje é possível consultar livros didáticos para reconstruir esse conjunto
de conhecimentos consensuais ou compartilhados. Porém, por um lado, eles
estão sempre em processo de desuso no exato momento em que mais são
difundidos e, por outro, são mais ou menos disseminados na sociedade de
acordo com o que chamamos de meios e redes. No que diz respeito ao século
XVII, algumas fontes também estão disponíveis, mesmo que sejam menos
diretas. Por exemplo, os temas das dissertações escritas para os cursos de
doutorado em medicina, que muitas vezes são bons indícios da evolução do
conhecimento, mesmo que às vezes com alguns anos de atraso. A isso deve-se
acrescentar um trabalho de leitura da correspondência de Spinoza, das obras
de seus correspondentes e das obras dos autores que povoavam a biblioteca
pessoal do filósofo. Pois a princípio parece que a relação com esse conheci-
mento consensual e compartilhado é diferenciada: as cartas da marquesa de
Sévigné e as obras de Spinoza foram em parte escritas na mesma época e, no
entanto, elas só refletem parcialmente o mesmo conhecimento e as mesmas
terapias. Spinoza está relativamente bem informado, visivelmente interessado
(ele dispõe de um grande número de obras de medicina – que hoje chama-
ríamos de fisiologia),9 e tem muitos especialistas ao seu redor. Em primeiro
lugar, Spinoza contava com certo número de médicos próximos a ele – tendo
em mente que na época esse tipo de formação dava acesso a muitas carreiras
diferentes.10 Podemos ser um pouco mais específicos ao dizer que ele estava

cercado por eruditos naturalistas e anatomistas que se dispuseram a melhorar

8 Ver J.-G. Duverney, que apresenta a “sede da alma” como “a armadilha da filosofia e da anatomia
modernas” (Œuvres anatomiques, Paris,C.-A. Jombert, 1761, vol. 1, p. 55). De forma mais geral,
sobre este ponto, ver R. Andrault, La vie selon la raison. Physiologie et métaphysique chez Spinoza et
Leibniz, Paris, Honoré Champion, 2014 (a partir de agora citado como: La vie selon la raison), cap.
8, p. 304 em diante.

9 Ver o Catalogus van de Bibliotheek der Vereniging het Spinozahuis te Rijnsburg, Leiden, E. J. Brill,
1965: a biblioteca de Spinoza contém ao mesmo tempo obras médicas de referência (os Apho-
rismes de Hipócrates, a Anthropographia de Riolan, o Jovem, ed. 1626, o Syntagma anatomicum
de Veslingius, a Anatomia reformata de Bartholin, ed. 1651, as Observationes Medicae de Tulp, ed.
Nova 1672), mas também os trabalhos de médicos holandeses próximos a ele (em especial, Ker-
ckring, Velthuysen e Stenon). Para os detalhes e a análise da cultura médica de Spinoza tal como
podemos reconstitui-la a partir de sua biblioteca, ver R. Andrault, La vie selon la raison, p. 59.

10 E. Andretta, R. Mandressi, “Médecine et médecins dans l’économie des savoirs de l’Europe mo-
derne (1500-1650)”, Histoire, médecine et santé, Éditions Méridiennes, 2017, p. 9-18, aqui p. 11.

O que nos faz pensar, Rio de Janeiro, v.26, n.41, p.107-139, jul.-dez. 2017
112 Raphaële Andrault . tradução de Pedro H. G. Muniz

o conhecimento da estrutura dos corpos animados, seja lá quais forem estes.11


Em segundo lugar, ele era um dos correspondentes de Henry Oldenburg,
secretário da Royal Society, que o mantinha informado dos últimos trabalhos
importantes do momento, como as pesquisas microscópicas de Hooke, uma
obra que foi um evento importante na Inglaterra e em outros lugares.12 Esta
obra contém uma imagem magnífica, retomada então pelo Journal des sçavans,
e que visivelmente representava um pequeno bosque de botões de flores – na
verdade trata-se da imagem microscópica dos bolores do couro que cobria
um livro.13 Podemos imaginar o impacto de tal representação, que revela em
uma escala microscópica componentes e formas radicalmente diferentes do
que oferece a visão humana não instrumentalizada.
Além das pessoas próximas a Spinoza, devemos enfatizar uma especifici-
dade histórica mais geral. Por um lado, o segundo século XVII ainda não é
exatamente uma época de especialização do conhecimento: frequentemente
os filósofos se identificam como físicos, isto é, de maneira muito geral, como
aqueles que se dispõem a conhecer a natureza.14 De qualquer forma, a filoso-
fia ainda não é um meta-saber que permaneceria exterior ao desenvolvimento
da mecânica (exterior, por exemplo, ao enunciado das leis dos choques dos
corpos), à matemática ou à explicação da sensação e das habilidades moto-
ras. Além disso, frequentemente o conhecimento em questão ainda não é
de uma tecnicidade que impede sua recepção. Em suma, os filósofos como
Spinoza também são, em geral, eruditos interessados no desenvolvimento das
ciências, inclusive da medicina. Por outro lado, há um assunto sobre o qual
discursavam tanto filósofos quanto anatomistas ou médicos, ainda que com
ambições diversas: a questão sede da alma, mais precisamente, e também a

11 Especialmente no campo da anatomia comparada. Não se trata de uma novidade per se, mas
era na época algo em plena ascensão. Sobre o sentido que tinha então a anatomia (próxima, na
verdade, do que chamaríamos de fisiologia experimental), ver Andrew Cunningham, “The pen
and the sword: recovering the disciplinary identity of physiology and anatomy before 1800. I:
Old Physiology – the Pen”, Studies in History and Philosophy of Biological and Biomedical Sciences, 33
(2002), p. 631-665, e também “– II : Old Anatomy – the Sword”, Studies in History and Philosophy
of Biological and Biomedical Sciences, 34 (2003), p. 51-76.

12 Ver, por exemplo, a carta XXVI a Oldenburg que menciona o livro de Hooke (Micrographia,
1665), o qual Huygens possuía. Sobre o uso que fez o médico Kerckring de um microscópio
fabricado por Spinoza, cf. abaixo.

13 Hooke, R., Micrographia, London, Martyn and Allestry, 1665, e Journal du lundi 20 décembre
1666, Journal des sçavans, Amsterdam, Pierre le Grand, 1685, I (1665-6), p. 499.

14 Sobre este assunto, pode-se fazer referência, dentre outros textos, à introdução ao Dictionnaire
des philosophes français du xviie siècle escrita por L. Foisneau, Paris, Classiques Garnier, 2015.

O que nos faz pensar, Rio de Janeiro, v.26, n.41, p.107-139, jul.-dez. 2017
O que pode o corpo? Spinoza, na cabeceira dos esfolados 113

do senso comum. A noção de sede da alma pressupõe duas operações soli-


dárias. Por um lado, dividir diversas faculdades ou poderes intelectuais que
correspondem a vários tipos de relação com o corpo mais ou menos passivas
ou mediadas.15 Assim, a sensação pressupõe certa passividade, ou pelo menos
uma receptividade com relação a modificações iniciadas no exterior do cor-
po, enquanto a vontade de agir, de estar atento ou de imaginar um triângulo
pressupõe o exercício de uma atividade no corpo, a partir do interior deste.
O senso comum, de acordo com uma teoria neoaristotélica, é o sentido que
faz uma síntese das diversas sensações oriundas do tato, da visão, etc.; mas
também é o lugar no cérebro no qual ocorre essa síntese.16 Famosa entre
todas as outras, a tese de Descartes permaneceu no panteão a-histórico das
ideias filosóficas como uma tese absurda: a alma e o corpo, duas substâncias
distintas, interagiriam através de uma pequena glândula cerebral, chamada
de glândula pineal, sede do senso comum, um tipo de correia de transmissão
sensório-motora na qual a alma exerceria suas ações de forma mais particular.
Recolocada em seu contexto, inscrita em seu projeto, na verdade a tese em
questão estava longe de ser absurda.17 Tanto não era que, por muito tempo,
ela prendeu a atenção dos anatomistas e filósofos pós-cartesianos que se es-
forçaram com tenacidade para avaliar sua pertinência, e que a levavam muito
a sério, independentemente de suas opções filosóficas ou mesmo religiosas,
ou de suas concepções sobre a natureza dos corpos.18
Talvez seja tal questionamento sobre a sede cerebral da alma, verdadei-
ramente inevitável para os filósofos e médicos desse território temporal e
geográfico no qual vivia Spinoza, que o levou a assistir as sessões de dissecção
que o anatomista Nicolau Steno praticava cotidianamente, de acordo com o
que o próprio Steno nos diz. De fato, em 1677, na carta em que ele denun-
cia Spinoza à Inquisição, anexando a ela um manuscrito da Ética (que será
imediatamente colocada no Index), Steno especifica o seguinte: no início dos

15 Sobre este ponto, ver R. Andrault, “Human Brain and Human Mind. The Discourse on the Ana-
tomy of the Brain and Its Philosophical Reception”, in Steno and the Philosophers, ed. R. Andrault &
M. Lærke, Leiden, Brill, 2018, p. 87-112, aqui p. 104-105.

16 Ver, por exemplo, A. de Libera, “Le sens commun au XIIIe siècle. De Jean de La Rochelle à
Albert le Grand”, Revue de métaphysique et de morale, 1991, n° 4, p. 475-496.

17 Ver D. Antoine, L’homme cartésien, Rennes, Presses Universitaires de Rennes, 2009, p. 31-37.

18 Ver R. Andrault, “Anatomy, Mechanism and Anthropology: Nicolas Steno’s Reading of


L’Homme”, in Descartes’ Treatise on Man and its Reception, ed. D. Antoine-Mahut & S. Gaukroger,
Cham (Switzerland), Springer, 2016, p. 175.

O que nos faz pensar, Rio de Janeiro, v.26, n.41, p.107-139, jul.-dez. 2017
114 Raphaële Andrault . tradução de Pedro H. G. Muniz

anos 1660, em Leiden, ele praticava cotidianamente dissecções do cérebro


de diferentes animais, a fim de encontrar a sede do princípio do movimento
e do termo da sensação.19 Poderíamos desconfiar desse testemunho, e com
razão. Uma confissão como essa visava denunciar uma espécie de materialis-
mo de Spinoza e, no que concerne Steno, inocentar-se da própria acusação
de materialismo ao provar sua boa-fé às autoridades católicas. Originalmente
protestante, Steno havia se convertido ao catolicismo, aderido ao sacerdócio,
e se tornaria bispo in partibus.
Mesmo assim, seu testemunho nos fornece uma informação que é con-
sistente com o que a pesquisa histórica nos diz em outros lugares. Naquela
época, tanto em Leiden quanto em Londres ou Paris, era comum a prática de
dissecções e até mesmo de vivissecções públicas nas casas dos habitantes des-
sas cidades. Essa era uma prática generalizada, descrita na época por muitos
intelectuais. Não se tratava apenas de dissecções como as que eram praticadas
nos teatros de anatomia, mas de verdadeiras pesquisas experimentais com o
objetivo, por exemplo, de descobrir uma nova parte anatômica, ou de refutar
uma descrição consensual de outra parte. Em Leiden, o Collegium Medico
Practicum é um lugar importante para a pesquisa sobre o corpo humano, no
qual o famoso anatomista Franciscus Sylvius (professor de Steno) treina seus
alunos. Estes últimos autopsiam corpos que, no dia anterior mesmo, ainda
estavam entre seus pacientes no Hospital St. Caecilia Gasthuis.20 Além dis-
so, Steno não é qualquer um: na época vários eruditos franceses falam dele
como tendo uma habilidade fora do comum – dizem que ele pode mostrar
como ninguém a anatomia de partes complexas, como o olho, por exemplo,
usando apenas um bisturi. O Journal des sçavans proclama o seguinte: “ele
torna a maioria dessas coisas tão sensíveis que somos obrigados a permane-
cer convencidos delas, e a admirar que elas possam ter escapado de todos os
Anatomistas que o precederam”.21 Outro erudito se entusiasma ao dizer que
Steno “ainda exerce suas funções. Ele tem uma paciência inconcebível, e pela

19 Pina Totaro, “Ho certi amici in Ollandia: Stensen and Spinoza”, in Hans Kermit & Gunver
Skytte (ed.), Niccolo Stenone (1638-1686): anatomista, geologo, vescovo, Rome, 2002, p. 27-38, p.
32, e S. Spinoza, The Vatican Manuscript of Spinoza’s Ethica, ed. L. Spruit & P. Totaro, Leiden, Brill,
2011, p. 10 e p. 68.

20 Ver T. Huisman, The finger of God. Anatomical Pratice in 17th-Century Leiden, 2008-05-08, Doc-
toral Thesis, Leiden University, p. 137.

21 Journal des sçavans, I (1665-1666), ed. De Houdeville, Amsterdam, Pierre Le Grand, 1685, p.
155-6. No original: “il rend la plupart de ces choses si sensibles qu’on est obligé d’en demeurer
convaincu, & d’admirer qu’elles aient pu échapper à tous les Anatomistes qui l’ont précédé”.

O que nos faz pensar, Rio de Janeiro, v.26, n.41, p.107-139, jul.-dez. 2017
O que pode o corpo? Spinoza, na cabeceira dos esfolados 115

rotina adquiriu uma forma de se portar superior ao comum”.22 Portanto, as-


sistir às dissecções praticadas por Steno, como certamente fez Spinoza, é ser
testemunha dos últimos e melhores desenvolvimentos na pesquisa anatômica.
Nós temos outra indicação do interesse de Spinoza nas pesquisas cerebrais
no prefácio da Ética V, no qual Spinoza se dá ao trabalho de descrever a ana-
tomia cerebral cartesiana. Ora, pode parecer estranho fazer esse tipo de pre-
cisão no desvio de um texto cujo foco principal são argumentos metafísicos:

O que quer dizer [Descartes], pergunto eu, com união da alma e do corpo?
Que concepção clara e distinta tem ele de um pensamento ligado de uma
maneira tão próxima a uma pequena porção do extenso? [...] Adicione aí
que procuramos em vão uma glândula localizada no meio do cérebro, de tal
forma que ela pode ser movida para cá e para lá com muita facilidade e de
muitas maneiras, e que todos os nervos não se estendem até as cavidades
do cérebro.23

Spinoza também considera pertinente convocar certas descrições anatô-


micas contra a hipótese cartesiana, mesmo que os argumentos metafísicos
invocados por ele em outros lugares possam tornar essas considerações em-
píricas supérfluas. De fato, como ele lembra nesse mesmo prefácio da Ética
V, é metafisicamente impossível que a alma (a coisa pensante, de acordo com
Descartes) transmita o que quer que seja ao corpo (a coisa extensa). No en-
tanto, Spinoza se dá ao trabalho de apontar que também seria anatomicamen-
te impossível que a alma e o corpo interagissem um com o outro da forma
que Descartes concebe. Contudo, duas das precisões anatômicos que Spinoza
invoca contra Descartes não têm nada de triviais. De minha parte, eu só as
encontrei em Steno. De acordo com a primeira, a glândula pineal não está
no meio das cavidades do cérebro, ao contrário do que declara Descartes.
De acordo com a segunda, a glândula não pode se inclinar para um lado e
para o outro sem se romper. Essas duas características anatômicas, que hoje

22 Carta de Graindorge a Huet, in L. Tolmer, Pierre-Daniel Huet, humaniste-physicien, Bayeux, Co-


las, 1949, p. 330. “[Sténon] est toujours en exercice. Il a une patience inconcevable, et par routine
il a acquis une adresse au-dessus du commun”.

23 “Qu’entend [Descartes], je le demande, par l’union de l’âme et du corps ? Quelle conception


claire et distincte a-t-il d’une pensée très étroitement liée à une certaine petite portion de l’éten-
due ? [...] Ajoutez qu’on cherche en vain une glande située au milieu du cerveau de telle façon
qu’elle puisse être mue de-ci de-là avec tant d’aisance et de tant de manières, et que tous les nerfs
ne se prolongent pas jusqu’aux cavités du cerveau”.

O que nos faz pensar, Rio de Janeiro, v.26, n.41, p.107-139, jul.-dez. 2017
116 Raphaële Andrault . tradução de Pedro H. G. Muniz

podem parecer apenas produtos da curiosidade e da erudição, são na verdade


cruciais para a explicação cartesiana da sensação, da memória, da vontade e
de outras faculdades que aparentemente pressupõem uma interação entre o
pensamento e as modificações do corpo. Em especial, é da inclinação variável
da pequena glândula que depende a possibilidade de se ter diferentes percep-
ções sensoriais ou de causar no corpo diferentes movimentos voluntários.24
Esses argumentos – a não inclinação da glândula e sua posição não mediana
– não são mencionados, por exemplo, pela Anatomia reformata de Thomas
Bartholin (1651), que está presente na biblioteca de Spinoza, e na qual ainda
assim encontramos uma crítica virulenta da concepção cartesiana da sede da
alma e da glândula pineal. Como eu disse, os anatomistas profissionais leva-
vam muito a sério as teses cartesianas, que por certo tempo alimentaram os
trabalhos sobre o cérebro, seja de forma negativa ou positiva.25
Voltemos à famosa citação de Spinoza no escólio da proposição II da Ética III:

É verdade que até agora ninguém determinou o que pode o corpo. Isto é,
até agora a experiência não revelou a ninguém, através apenas das leis da
natureza, e considerando esta apenas como corporal, o que o corpo pode
e não pode fazer, a menos que ele seja determinado pela alma. De fato,
ninguém conhece a estrutura do corpo de forma tão exata a ponto de ter
conseguido explicar todas as suas funções [...].26

A partir de agora o contexto nos revela que através dessas constatações


Spinoza não mostra nem sua ignorância, nem sua indiferença, nem, enfim,
seu desprezo no que se refere ao conhecimento experimental do corpo. Antes
disso, esse trecho reflete seu conhecimento da (ou pelo menos seu interesse
na) anatomia. Não apenas Spinoza possuía as obras anatômicas mais reco-
nhecidas, seja as de Bartholin (1651), Vesling ou Tulp, como é atestado por
sua biblioteca; não apenas ele era um conhecedor e ator das controvérsias
filosófico-anatômicas sobre a sede da alma, mas ele também era testemunha

24 Ver “Human Brain and Human Mind”, art. citado, p. 90.

25 Uma versão mais detalhada deste argumento se encontra em La vie selon la raison, p. 307-316.

26 “Personne, il est vrai, n’a jusqu’à présent déterminé ce que peut le corps, c’est-à-dire l’expé-
rience n’a enseigné à personne jusqu’à présent ce que, par les seules lois de la nature considérée
en tant seulement que corporelle, le corps peut faire et ce qu’il ne peut pas faire à moins d’être
déterminé par l’âme. Personne en effet ne connaît si exactement la structure du corps qu’il ait pu
en expliquer toutes les fonctions [...]”.

O que nos faz pensar, Rio de Janeiro, v.26, n.41, p.107-139, jul.-dez. 2017
O que pode o corpo? Spinoza, na cabeceira dos esfolados 117

das experiências praticadas por um dos melhores anatomistas de seu tempo. É


assim que devemos representar Spinoza: debatendo com seus amigos médicos,
ansioso para saber o que a pesquisa anatômica in situ pode nos ensinar sobre
o corpo animal e suas funções sensório-motoras; uma das primeiras testemu-
nhas de vivissecções e dissecações diversas. Em suma, devemos imaginar Spi-
noza ao lado de seus corpos esfolados: estes esfolados em duas dimensões, os
que vemos nos livros que ele possuía,27 mas também esses esfolados de carne,
de sangue, de cheiro e, em se tratando das vivissecções, como Steno lhe confia
com preocupação, de gritos. Somos hoje atravessados por imagens – pensa-
mos, por exemplo, na circulação sanguínea e visualizamos um circuito único
no qual se distinguem um líquido vermelho (o sangue arterial) e um líquido
azul (o sangue venoso). Precisamos levar em conta as imagens que circulavam
na época em que Spinoza vivia e escrevia, e ainda mais precisamente, no cír-
culo no qual ele progredia, entre os amigos com os quais ele discutia, em meio
aos livros que ele possuía. Essas imagens devem ser levadas em conta para não
popular uma hagiografia de Spinoza, mas para dar aos termos que ele emprega
conotações que não se reduzem às definições que podemos encontrar seja em
seus próprios textos, seja nos dicionários da época.

II. Desenvoltura e consenso: a física mecanicista

Como pode uma declaração negativa como “ninguém sabe o que pode o cor-
po” refletir um saber positivo? No escólio citado, Spinoza afirma literalmente
que a partilha recíproca entre o que está no controle da mente e o que está
no controle do corpo, entre o que pode ser causado por um e o que só pode
ser explicado pelo outro, nunca é percebida a partir do que conhecemos do
corpo. Ela é sempre percebida a partir do que ignoramos dele, isto é, de seus
supostos limites. Portanto, diremos que a mente é a causa dessa ou daquela
ação sempre que considerarmos que tal ação excede os limites do que os
corpos podem produzir. Contudo, de acordo com Spinoza, por lei deve ser
possível explicar todas as ações dos corpos considerando unicamente as leis
naturais reagindo nos corpos. Por exemplo, a ação de bater, “contanto que a
consideremos fisicamente, apenas com relação ao fato de um homem levantar
o braço, fechar o punho e mover com força o braço todo de cima para baixo,

27 Ver Bartholin, Anatomia reformata, 1651, op. cit., frontispicio: http://www.biusante.parisdescartes.


fr/histoire/medica/resultats/index.php?p=4&cote=69893&do=page e, p. 541: http://www.biusante.
parisdescartes.fr/histoire/medica/resultats/index.php?cote=69893&p=566&do=page.

O que nos faz pensar, Rio de Janeiro, v.26, n.41, p.107-139, jul.-dez. 2017
118 Raphaële Andrault . tradução de Pedro H. G. Muniz

é uma virtude [ou poder] que se concebe pela estrutura do Corpo humano”.28
A alma, ou a mente, ou o pensamento – pouco importa o termo aqui – não
deve ser concebida como uma espécie de caixa preta, ou Deus ex machina, que
é invocado sempre que a anatomia ou a física não seriam capazes de explicar
uma ação do corpo humano.
Alguns viram por trás dessa afirmação de Spinoza sobre o que pode o
corpo uma crítica virulenta do mecanicismo cartesiano, o qual reduziria de
forma abusiva os animais a relógios totalmente inteligíveis para o homem e,
assim, totalmente controláveis por ele. Isso é muito parcialmente verdadeiro,
se pelo mecanicismo cartesiano entendemos “a doutrina dos animais-máqui-
na”, isto é, o fato de considerar que os animais não têm alma; ou melhor,
como coloca Descartes, que só os homens são dotados de uma mente e da
capacidade de realmente pensar. Para Spinoza, conferir aos homens essa es-
pecificidade exclusiva seria considerá-los como um “império em um império”.
E, como vimos, ele rejeita uma das consequências dessa tese: a ideia de que
o homem, e somente o homem, pelo poder de sua vontade e pela indetermi-
nação de seu livre-arbítrio, poderia provocar um movimento do corpo. Mas
essa divergência com Descartes é também o corolário de uma sistematização
da física cartesiana: Spinoza defende sem reservas a explicação mecânica dos
corpos dos animais. De fato, em sua base, a concepção spinozista do corpo
humano se opõe primeiramente aos teóricos que Descartes denuncia com
veemência – os que inventam pequenas “almas” para explicar a reprodução, a
digestão, as lágrimas e outras funções estritamente dependentes da estrutura
do corpo e das leis do movimento. Na verdade, a física spinozista dos cor-
pos complexos compartilha, de maneira geral, alguns pressupostos da física
cartesiana, combinada com a recusa de endossar certas hipóteses fisiológicas
particulares defendidas por Descartes (às vezes mais erroneamente do que
com razão). Tomemos um exemplo: quando Spinoza deve mencionar, a título
de explicações possíveis, alguns mecanismos corporais em segundo plano na
explicação da memória, ele invoca o movimento repetido de um fluido sobre
uma superfície macia que a modifica e se reflete de forma diferente29. Con-
trariamente à afirmação do comentador Martial Gueroult, que vê aí uma tese
contra Descartes, tal ideia está potencialmente de acordo com a explicação

28 Ethique, IV, prop. LIX, escólio : “[l’action de frapper] en tant qu’on la considère physiquement,
ayant égard seulement à ce qu’un homme lève le bras, serre le poing et meut avec force le bras en-
tier de haut en bas, est une vertu [ou puissance] qui se conçoit par la structure du Corps humain”.

29 Ethique, II, prop. 17, cor., dem.

O que nos faz pensar, Rio de Janeiro, v.26, n.41, p.107-139, jul.-dez. 2017
O que pode o corpo? Spinoza, na cabeceira dos esfolados 119

cartesiana da imaginação espontânea nas Paixões da Alma (art. 26), isto é, a


possibilidade de o corpo despertar, apenas através do movimento fortuito do
líquido nervoso (os espíritos dos animais) certas imagens, às vezes são senti-
das de maneira tão forte que acreditamos que o próprio objeto está diante de
nós. Há um acordo pelo menos de uma forma aproximada, porque conside-
rando os detalhes da teoria de Spinoza, este se abstém de falar sobre espíritos
animais e sobre o cérebro, como faz Descartes, e acrescenta:

Vemos assim como pode ser que consideremos como se estivesse presente
o que não está – algo que acontece com frequência. E é possível que isso
provenha de outras causas, mas basta que eu tenha mostrado apenas uma,
através da qual eu possa explicar a coisa como se a tivesse demonstrado
através de sua verdadeira causa. No entanto, não creio ter me afastado
muito da verdadeira causa, já que todos os postulados que admiti aqui não
contêm quase nada que não seja estabelecido pela experiência [...].30

Para entender os motivos de tal desenvoltura por meio da qual Spinoza


se recusa a entrar em detalhes fisiológicos que ele não considera pertinentes,
é preciso delinear de forma aproximada a física consensual na qual ele se
baseou. Farei mais uma vez um desvio por Steno. Mas primeiro eu gostaria
de me livrar de um mal-entendido: eu não acho que Spinoza deve sua tese
dos corpos vivos a Steno. Porém, por um lado, Steno é para mim o sintoma
perfeito de uma epistemologia cujas marcas eu encontrei em outros lugares,
nas obras de outros de seus contemporâneos, em uma linguagem sóbria e
bem controlada que o distingue. Por outro lado, as conexões de biografia,
de amizade e de temas entre os dois homens nos incitam a explorar mais do
que já o fizemos as obras do anatomista como um dos recursos possíveis para
acessar o universo intelectual de Spinoza – neste caso, um contexto médico
em rápida mudança desde a morte de Descartes.31 Em especial, devemos ter

30 Ethique, II, prop. 17, escólio. “Nous voyons ainsi comment il se peut faire que nous considé-
rions ce qui n’est pas comme s’il était présent, ce qui arrive souvent. Et il est possible que cela
provienne d’autres causes, mais il me suffit d’en avoir montré une seule par laquelle je puisse
expliquer la chose comme si je l’eusse démontrée par sa vraie cause ; je ne crois cependant pas
m’être beaucoup écarté de la vraie, puisque tous les postulats que j’ai admis ici ne contiennent à
peu près rien qui ne soit établi par l’expérience [...]”.

31 Porque os escritos médicos de Steno tratam de problemas anatômicos ou geológicos restritos


e aparentemente técnicos, nunca se procurou neles o fundo epistemológico e metafísico que teria
permitido aproximações fecundas com Spinoza. De fato, frequentemente preferimos comparar os
filósofos como Spinoza, Malebranche ou Leibniz com autores e médicos que hoje nos parecem ter

O que nos faz pensar, Rio de Janeiro, v.26, n.41, p.107-139, jul.-dez. 2017
120 Raphaële Andrault . tradução de Pedro H. G. Muniz

cuidado para não apreender o que Spinoza quis dizer sobre o corpo humano
como um diálogo exclusivo com Descartes ou os cartesianos. Certos
elementos que hoje consideramos característicos da física cartesiana estão na
verdade integrados ao pensamento de Steno ou de Spinoza como opiniões
comuns que não possuem assinatura filosófica particular, isto é, que não são
marcas da influência particular dessa ou daquela doutrina. Outros aspectos,
então percebidos como típicos do cartesianismo, como o fato dos animais
serem desprovidos de alma e de uma capacidade interior de se emocionarem
e de sentir, são, pelo contrário, em sua maioria rejeitados, ou pelo menos
apresentados como teses problemáticas.
Steno era em sua juventude um leitor e admirador de Descartes, vendo
em sua filosofia um modelo de rigor e a promessa da edificação de uma
ciência natural sólida e compartilhada. Não há dúvidas de que era o mesmo
para Spinoza. E como Spinoza, muito rapidamente Steno se tornou um
crítico esclarecido de Descartes: depois de ter tentado verificar através de
experimentos certas teses defendidas em L’homme, ele afirmou que sua
fisiologia era apenas uma ficção útil, sem semelhança com a configuração
real do corpo humano. Rapidamente seus contemporâneos utilizaram sua
anatomia para melhor destituir a filosofia cartesiana. Finalmente, depois de
sua conversão ao catolicismo e sem dúvida no contexto dessa conversão,32
Steno tentou demonstrar aos seus velhos amigos (incluindo Spinoza) os
impasses metafísicos e os erros morais do cartesianismo. Por vezes com um
zelo prosélito que não é benéfico para a sua honra.33 Ele acusa Spinoza, por
exemplo, apresentado como um diligente “reformador” da filosofia cartesiana,
de ter sido incapaz de realmente explicar esses fenômenos tão centrais: a
percepção sensorial, a volição e a dor sentidas pela alma ou pela mente,
mas que deveriam ser causadas pelas modificações do corpo ou pelo menos

desenvolvido modelos específicos e bem definidos dos seres vivos (como Willis). Ao fazê-lo, foi
principalmente projetada de maneira desmesurada nesses livros a leitura que a história da medi-
cina do século XIX e a história da filosofia do século XX nos deixaram como legado, esquecendo
o que nos parece “filosófico” (ou até mesmo digno de interesse) na medicina do século XVII, não
sendo necessariamente os elementos mais salientes ou reveladores da cultura científica dos filó-
sofos que nós estudamos.

32 Sebastian Olden-Jørgensen, “Jesuits, Women, Money or Natural Theology? Nicolas Steno’s


Conversion to Catholicism in 1667”, in Steno and the Philosophers, op. cit., p. 45-62.

33 Ver o tom de sua carta aberta a Spinoza, entitulada “Au réformateur de la nouvelle philosophie
à propos de la vraie philosophie”, in Spinoza. Correspondance, ed. e trad. M. Rovere, GF Flamma-
rion, 2010, carta 43a, p. 263.

O que nos faz pensar, Rio de Janeiro, v.26, n.41, p.107-139, jul.-dez. 2017
O que pode o corpo? Spinoza, na cabeceira dos esfolados 121

serem realizadas por ocasião destas últimas.34 Podemos notar as marcas de


uma decepção progressiva com relação à filosofia cartesiana na crescente
preocupação de Steno no que diz respeito às almas dos animais e ao seu
potencial sofrimento. Isso começa muito cedo na carreira de Steno. Tendo
precisado repetir várias vezes uma vivissecção, já em 1661 ele confessava a
Bartholin seus escrúpulos, talvez até mesmo tormentos:

Reproduzi o experimento de Bils sobre o movimento do quilo quando eu


estava em Amsterdã; mas não encontrei no sangue a mesma diversidade,
embora até as três horas eu tenha mantido vivo um cachorro que sobrevi-
veu tais tormentos o dia inteiro; mas como ter tentado uma única vez não
é o suficiente para concluir o que quer que seja com certeza, na primeira
oportunidade empurrarei a mesma pedra, embora eu admita que não é
sem horror que torturo esses animais com tais crueldades. Os cartesianos
se glorificam tanto da certeza de sua filosofia. Queria que eles me conven-
cessem da mesma forma em que eles próprios estão convencidos de que os
animais não têm alma, e de que tocar, dissecar e queimar os nervos de um
animal vivo ou as cordas de um autômato que é movido por impulsão é a
mesma coisa. De fato, eu exploraria por várias horas, com mais frequên-
cia e mais vontade, as vísceras e os vasos de animais vivos, pois vejo que
ainda há muitos a serem descobertos que não podemos esperar encontrar
de outra maneira.35

Esta citação permite compreender em que condições a ciência do corpo


podia se desenvolver. Ela também indica como era formulado o problema
das possíveis interações ou acordos entre a mente que em nós percebe, sofre

34 Idem, p. 270-1.

35 Epistolae et epistolae ad eum datae, quas cum proemio ac notis Germanice scriptis, ed. G. Scherz e
J. Raeder, Copenhague, Nyt Nordisk Forlag A. Busck, 1952, vol. 1, p. 142. A tradução do latim
para o francês é da autora. Em sua tradução: “j’ai reproduit l’expérience de Bils sur le mouvement
du chyle lorsque j’étais à Amsterdam ; mais je n’ai pas trouvé dans le sang la même diversité, bien
que jusqu’à trois heures j’ai maintenu en vie un chien qui avait survécu le jour entier dans de tels
tourments ; mais comme avoir essayé une seule fois ne suffit pas à conclure quoi que ce soit avec
certitude, à la première occasion je roulerai le même rocher, bien que j’avoue que je ne torture pas
sans horreur ces animaux par de telles cruautés. Les cartésiens se glorifient tant de la certitude de
leur philosophie ; je voudrais qu’ils me convainquent comme eux-mêmes sont convaincus que
les bêtes n’ont pas d’âme, et qu’il revient au même de toucher, disséquer et brûler les nerfs d’un
animal vivant ou les cordes d’un automate qui est mu par impulsion ; en effet, j’explorerais alors
pendant plusieurs heures, plus fréquemment et plus volontiers les viscères et vaisseaux d’animaux
vivants, puisque je vois bien que beaucoup restent à découvrir que l’on ne peut pas espérer trou-
ver d’une autre manière”.

O que nos faz pensar, Rio de Janeiro, v.26, n.41, p.107-139, jul.-dez. 2017
122 Raphaële Andrault . tradução de Pedro H. G. Muniz

ou ama, e o corpo animal, objeto privilegiado de uma ciência anatômica que


também é, por analogia, fonte de conhecimento antropológico.36 Se Steno
não questiona de maneira fundamental o fato de que os animais não tenham
uma alma semelhante a mente do homem, ele parece em vez disso considerar
que eles são dotados de percepção, assim como nós. De fato, em 1671 Steno
confidencia o seguinte: “Minha dificuldade reside inteiramente na questão de
saber como a alma, tão espiritual, pode sentir a alteração que o movimento
provoca em uma coisa corporal, no caso do homem, e como no caso dos
animais, considerados como desprovidos de alma, pode ser produzida uma
percepção dessa alteração do movimento que se faz nos nervos”.37
A despeito desses questionamentos preocupados sobre a alma dos animais
e apesar de sua crescente decepção em relação à filosofia de Descartes, mes-
mo assim Steno nunca deixou de praticar anatomia em um contexto concei-
tual em conformidade parcial com a física cartesiana: o contexto de uma física
corpuscular, ou mecanicista, que é amplamente compartilhada, e isso bem
além do círculo de filósofos ou médicos que se consideravam fiéis ao cartesia-
nismo.38 Steno, Huygens ou Spinoza, para citar apenas eles, têm em comum
tal física mecanicista, apesar de profundas divergências nas formas que eles a
utilizam e na compreensão que eles têm dela.39 Por exemplo, Steno considera
que os corpos concebidos de maneira geral são apenas “agregados de cor-
púsculos insensíveis” (isto é, abaixo do limite de nossa percepção). Depen-
dendo do fato de esses corpúsculos insensíveis que compõem os agregados

36 Para confirmar ou invalidar uma opinião sobre a circulação sanguínea, o médico Johannes
Waleus afirma assim ter praticado mais de cem vivissecções de cachorros, in Bartholin, Anatomia
reformata, op. cit., p. 533.

37 Epistola, op. cit., I, 279, carta a M. Malpighi. A tradução do italiano para o francês é da au-
tora. Em sua tradução: “Ma difficulté tient toute entière à la question de savoir comment l’âme,
si spirituelle, peut sentir l’altération que le mouvement provoque en une chose corporelle, chez
l’homme, et comment chez les bêtes considérées comme dépourvues d’âme, il se peut produire
une perception de cette altération du mouvement qui se fait dans les nerfs”.

38 Para os rótulos “mecanicistas” e “corpuscular”, ver, por exemplo, Sophie Roux, “La philoso-
phie mécanique de Boyle”, L’atomisme aux xviie et xviiie siècles, textos reunidos por J. Salem, Paris,
Publications de la Sorbonne, 1999, p. 119-133. Entretanto, é preciso reconhecer que frequente-
mente “mecanicista” é uma categoria retrospectiva que reagrupa métodos e concepções do corpo
que não têm nada em comum (cf. R. Andrault, C. Crignon, “Les modèles du corps: mécanisme,
chimisme, humorisme”, in Andrault, Buchenau, Crignon & Rey (ed.), Médecine et philosophie de
la nature humaine de l’âge classique aux Lumières, Paris, Classiques Garnier, 2014, p. 137-143).

39 Sobre Spinoza e Huygens, ver a exposição de F. Chareix, em “Le bal des pendules: Spinoza et
Leibniz face à la mécanique théorique de Huygens”, in R. Andrault, M. Lærke, P.-F. Moreau (ed.),
Spinoza/Leibniz: rencontres, controverses, réception, Paris, PUPS, 2014, p. 245-267.

O que nos faz pensar, Rio de Janeiro, v.26, n.41, p.107-139, jul.-dez. 2017
O que pode o corpo? Spinoza, na cabeceira dos esfolados 123

(ou corpos compostos) serem agitados por movimentos divergentes ou não,


os agregados em questão serão corpos fluidos ou corpos sólidos. Esses cor-
púsculos são constituídos de uma matéria que é extensa e dura. No que diz
respeito a saber se matéria tem outras propriedades além da extensão e da
dureza, nada tinha sido provado até então. Por isso Steno, que pretende ado-
tar apenas postulados aprovados por todos (os “preceitos comuns”), opta por
suspender seu juízo sobre esse ponto.40 Fundamentada por esses postulados
consensuais e de alguns outros citados em uma obra publicada em 1669, a
ciência anatômica ou geológica de Steno se reduz à estrita observação da es-
trutura dos corpos, à descrição de suas partes e a inferências que pressupõem
que todos os corpos, dos homens aos fósseis, do cérebro às fibras musculares,
estão sujeitos às mesmas leis gerais da natureza e do movimento – e ainda
mais às leis do choque: sendo todas as modificações corporais suscitadas por
impulsos locais através de outro corpo em movimento. O que é fascinante
na ciência experimental de Steno é que ela se baseia em um número muito
pequeno de postulados e ainda assim permite provar teses muito importantes
para a fisiologia daquela época. Para citar apenas alguns exemplos, podemos
falar da forma como as fibras musculares se contraem para produzir movi-
mentos, das vias da secreção salivar e lacrimal, ou ainda do papel da medula
espinhal em determinados animais. Também é possível comparar essa es-
tratégia com a que Spinoza adota na Ética, quando ele fundamenta em uma
física extremamente minimalista, mas “em conformidade com a experiência”,
toda a sua descrição das aptidões do corpo humano, da mente e de suas
afecções. Assim como fez Steno em certas obras, Spinoza também apresenta
sua física de forma sintética, à maneira dos geômetras, na forma de axiomas,
lemas e postulados que só pressupõem as noções mais comuns: as de exten-
são, de movimento e de repouso, assim como as leis do choque que regem
suas relações.41
No que diz respeito ao cérebro, Steno acredita que, assim como o corpo
do homem, ele é como uma máquina. Isso não significa nada mais do que
isso: não podemos esperar explicar suas funções caso não conheçamos a es-
trutura de suas partes. Não devemos ver por trás de tal afirmação nenhum

40 Ver Steno, De solido intra solidum naturaliter contento dissertationis prodromus, Florentiae, ex
Typographia sub signo Stellae, 1669, p. 10-11.

41 Para o interesse da ordem geométrica e do modelo euclidiano nessa obra, ver R. Andrault,
“Mathématiser l’anatomie: la myologie de Stensen”, Early Science and Medicine, vol. 15, n° 4-5,
2010, p. 505-536. Para o interesse de Spinoza no que diz respeito às regras do choque, ver a carta
32, in Spinoza. Correspondance, op. cit., p. 210.

O que nos faz pensar, Rio de Janeiro, v.26, n.41, p.107-139, jul.-dez. 2017
124 Raphaële Andrault . tradução de Pedro H. G. Muniz

maquinismo (machinisme), tampouco um tecnologismo antropomórfico que


reduziria os corpos de animais a relógios ou a autômatos reais, uma ideia da
qual Descartes foi acusado com frequência, mas erroneamente.42 Devemos
enxergar aí apenas a afirmação de um princípio metodológico: o comporta-
mento de um componente corporal só pode ser explicado se conhecermos a
conformidade e a interação de suas partes. Contudo, a estrutura do cérebro
em especial está longe de ser conhecida, uma vez que sua composição e sua
situação fazem com que seja difícil observá-lo, a dividi-lo sem criar artefatos e
a reproduzir com fidelidade.43 Também é perfeitamente fútil fingir realmente
explicar as assim chamadas ações “animais”, a saber, a sensação e o movimen-
to, uma vez que estamos longe de esclarecer a cartografia das diferentes partes
do cérebro, que na maioria das vezes são mal descritas e mal circunscritas.
Como resultado, as primeiras frases do Discours sur l’anatomie du cerveau pa-
recem especialmente céticas: “Aqueles que procuram uma ciência sólida não
encontrarão nada que possa satisfazê-los em tudo o que foi escrito sobre o
cérebro. Temos muita certeza de que ele seja o principal órgão da nossa alma
[...] [No entanto,] basta dissecar a grande massa de matéria que compõe o
cérebro para ter motivos para se queixar dessa ignorância”.44 Por exemplo,
tendo Descartes em mente, todos mencionam os “espíritos animais”, que são
uma espécie de fluido nervoso muito sutil extraído do sangue, a fim de expli-
car a produção do movimento e a possibilidade da sensação. Mas ninguém,
afirma Steno, sabe do que realmente se trata esse fluido. Para sabê-lo, seria
preciso entender de maneira geral a interação dos fluidos, a forma como eles
afetam nossos sentidos, etc.45 Steno é, portanto, um dos únicos que proíbe
a si mesmo o uso do termo “espíritos animais”. E me pareceu revelador que
depois do Breve Tratado e de uma carta de 1664, Spinoza também se abdica
de mencioná-lo, favorecendo apenas menções gerais ao “cérebro”, ao “fluido”

42 Ver F. Chareix, “La maîtrise et la conservation du corps vivant chez Descartes”, Methodos, 3
(janeiro de 2003), p. 161-194.

43 Esses diferentes obstáculos são repertoriados e analisados por Steno no Discours sur l’anatomie
du cerveau (1665, publicado em 1669), citado a partir da edição a partir de agora citada como
Discours: ed. e anotações de R. Andrault, Paris, Classiques Garnier, 2009.

44 Discours, 2009, p. 79-80. “Ceux qui cherchent une science solide ne trouveront rien qui les
puisse satisfaire dans tout ce que l’on a écrit du cerveau. Il est très certain que c’est le principal
organe de notre âme [...] [Cependant] il ne faut que voir disséquer la grande masse de matière qui
compose le cerveau pour avoir sujet de se plaindre de cette ignorance”.

45 Ver Steno, Elementorum Myologiae Specimen seu Musculi descriptio geometrica, Florentiae, ex typ.
sub signo Stellae, 1667, p. 64.

O que nos faz pensar, Rio de Janeiro, v.26, n.41, p.107-139, jul.-dez. 2017
O que pode o corpo? Spinoza, na cabeceira dos esfolados 125

e à “parte mole”.46 Em oposição a essas hipóteses não verificáveis sobre flui-


dos nervosos, cuja natureza ninguém conhece, Steno julga ser mais promissor
explicar as funções sensório-motoras através da disposição dos filamentos
nervosos que atravessam a matéria branca do cérebro:

Se a substância [branca do cérebro] é inteiramente fibrosa, como de fato


parece ser em muitos lugares, você deve admitir que a disposição dessas
fibras deve ser organizada com uma excelente técnica, já que toda a di-
versidade de nossos sentimentos e de nossos movimentos dependem delas.
Admiramos o artifício das fibras em cada músculo; quanto mais devemos
admirá-lo no cérebro, no qual essas fibras contidas em um espaço tão pe-
queno fazem cada uma sua operação, sem confusão e sem desordem.47

Aqui novamente, o arranjo das partes e sua estrutura fina é, segundo a


hipótese, um elemento explicativo-chave da ação produzida pelo composto
(isto é, neste caso, o corpo humano como um todo). Por conveniência, cha-
maremos essa estratégia explicativa de concepção analítica dos corpos comple-
xos. De maneira concreta, ela se baseia em uma prática intensiva da anatomia
comparada, isto é, de uma confrontação entre a anatomia animal e a anatomia
humana, e isso com uma dupla intenção: por um lado, encontrar através das
diferenças o que no cérebro humano é específico dele, e por outro, revelar
os elementos estruturais genéricos que são essenciais para que uma ação seja
exercida (contração muscular, secreção, etc.):

O cérebro é diferente nas diferentes espécies de animais, o que é uma nova


razão para examinar todas elas. O cérebro dos pássaros e dos peixes é mui-
to diferente do cérebro do homem, e dentre os animais que têm um cérebro
que mais se aproxima do nosso, não vi nenhum no qual eu não tenha en-
contrado nenhuma diferença bastante manifesta. Contudo, essa diferença,
seja o que for, sempre ilumina um pouco as pesquisas, e pode nos ensinar o
que é absolutamente necessário. [...] Não me estenderei mais aqui, porque

46 Ver La vie selon la raison, p. 60.

47 Discours, p. 81-82. “Si la substance [blanche du cerveau] est partout fibreuse, comme en effet
elle le paraît en plusieurs endroits, il faut que vous m’avouiez que la disposition de ces fibres doit
être rangée avec un grand art, puisque toute la diversité de nos sentiments et de nos mouvements
en dépend. Nous admirons l’artifice des fibres dans chaque muscle ; combien les devons-nous
admirer davantage dans le cerveau où ces fibres renfermées dans un si petit espace font chacune
leur opération, sans confusion et sans désordre”.

O que nos faz pensar, Rio de Janeiro, v.26, n.41, p.107-139, jul.-dez. 2017
126 Raphaële Andrault . tradução de Pedro H. G. Muniz

estou convencido de que todos admitirão sem dificuldade que devemos à


dissecção de animais quase todas as novas descobertas deste século; e que
existem partes que nunca teríamos reconhecido no cérebro do homem se
não as tivéssemos notado no cérebro dos animais.48

A heurística mecanicista de Steno postula ao mesmo tempo certa conti-
nuidade estrutural e funcional dos animais aos homens e sua especificação
anatômica gradual.

III. A estrutura do corpo humano: as palavras e os silêncios

A anatomia de Steno e sua relação complexa com a física de Descartes nos


permite retornar à interpretação da famosa frase segundo a qual “até agora
ninguém determinou o que pode o corpo”. Para dizê-lo de antemão, esses ele-
mentos do contexto revelam a concepção analítica (ou mecanicista) dos cor-
pos humanos endossada por Spinoza contra as leituras indeterministas que
pudemos ver. Assim, espero mostrar que conhecimentos científicos concretos
estão na verdade por trás da tese spinozista ou, para dizer de outra forma, que
não podemos dispensar as leituras dos livros que Spinoza possuía – livros que
ele leu ou cujos autores ele conhecia intimamente para interpretá-los.
Se juntarmos as passagens da Ética e da correspondência de Spinoza que
evocam o corpo animal ou humano, encontramos certo número de caracte-
rísticas em comum com a ciência stenoniana, as quais reformularei aqui na
forma de um apanhado, porque meu propósito não é detalhar a física de Spi-
noza, nem dar a ela uma leitura original. Quero simplesmente indicar como
o conhecimento do contexto científico da redação da Ética nos autoriza a
apresentar os traços mais manifestos de tal física:

48 Discours, p. 125-126. “Le cerveau est différent dans les différentes espèces d’animaux, ce qui
est une nouvelle raison de les examiner toutes ; le cerveau des oiseaux et des poissons est fort
différent de celui de l’homme, et dans les animaux qui l’ont le plus approchant du nôtre, je n’en
ai pas vu un seul où je n’ai trouvé quelque différence fort manifeste. Or cette différence, quelle
qu’elle puisse être, donne toujours quelque lumière aux recherches, elle nous peut apprendre ce
qui est absolument nécessaire. [...] Je ne m’étendrai ici davantage, parce que je suis persuadé que
tout le monde avouera sans difficulté que nous devons à la dissection des animaux presque toutes
les nouvelles découvertes de ce siècle ; et qu’il y a des parties qu’on n’aurait jamais reconnues dans
le cerveau de l’homme si l’on ne les avait remarquées dans celui des animaux”.

O que nos faz pensar, Rio de Janeiro, v.26, n.41, p.107-139, jul.-dez. 2017
O que pode o corpo? Spinoza, na cabeceira dos esfolados 127

1) A uniformidade da natureza – cujas leis são comuns a todos os corpos – é


sempre enfatizada por Spinoza, e às vezes ilustrada de forma aparentemente
surpreendente. Assim, as noções que Spinoza emprega para descrever a di-
ferença entre o leitelho e a manteiga no processo de batimento da nata são
as mesmas que ele emprega para apreender a composição do corpo humano,
que é constituído simplesmente partes moles, duras e fluidas, ligadas entre si
por certa comunicação de movimento e, em virtude dessa composição, sus-
cetíveis de executar ações diversas, sofrer modificações tão diversas quanto
tais ações e reter alguns traços dessas modificações.49 Spinoza não atribui a
esse corpo humano um privilégio de animação, vitalidade ou individualidade,
dos quais seriam privados os componentes desse corpo, ou outros corpos
menos complexos e aparentemente inertes. Portanto, devemos notar que a
afirmação (aparentemente trivial no século XVII) de que há uniformidade na
natureza é defendida por Spinoza até mesmo em suas consequências mais
contra intuitivas: se todos os indivíduos são animados, ainda que em graus
variados,50 se for possível fazer do sangue (ou seja, apenas uma parte do
animal) um modelo de compreensão do indivíduo corporal,51 então o corpo
vertebrado, seja ele animal ou humano, não tem nenhum privilégio genérico
em relação aos outros corpos compostos que podemos observar na natureza.
Apenas uma diferença de grau na composição do corpo e a variedade de suas
partes dão conta das diferentes capacidades, por exemplo, do corpo humano
e do corpo do polvo. Apenas uma diferença de grau explica a especificidade
de nossa percepção dos corpos tal como a experimentamos em nós mesmos.
Tudo isso é bem conhecido. Mas é com menos frequência que tiramos daí
uma consequência que está longe de ser trivial entre os filósofos do segundo
século XVII:52 Spinoza não pode a partir daí reduzir a percepção como tal a
uma antropologia, isto é, a uma ciência do homem, ela mesmo então dividida

49 Para a manteiga, ver a carta 6, in Spinoza. Correspondance, op. cit., p. 71: “les particules de
beurre, lorsqu’elles nagent dans le lait, constituent une partie du liquide. Mais une fois que le
lait a acquis, du fait qu’on l’agite, un nouveau mouvement auquel toutes les parties composant
le lait ne peuvent s’accommoder uniformément, cela seul fait que certaines parties deviennent
plus lourdes, […] elles se couchent les unes sur les autres et adhèrent entre elles”. A composição
do corpo humano é descrita na série de postulados que se seguem da Ética II, prop. 13, escólio.

50 Ethique II, prop. 13.

51 Carta 32, in Spinoza. Correspondance, op. cit., p. 207-212.

52 É essa especificidade, que encontramos também em Leibniz, que forma o fio condutor dos
capítulos VII e VIII de La vie selon la raison: cela os distingue de autores como Malebranche, mas
também como Locke, que defende a hipótese tácita de uma sede cerebral da sensação.

O que nos faz pensar, Rio de Janeiro, v.26, n.41, p.107-139, jul.-dez. 2017
128 Raphaële Andrault . tradução de Pedro H. G. Muniz

em anatomia (ciência do corpo do homem) e psicologia (ciência da alma)53.


De maneira muito concreta, para descrever o que é “comum ao homem e aos
outros indivíduos”, Spinoza não pode usar os dados de uma fisiologia centra-
da no cerebral que postula que um cérebro e nervos são necessários para que
um indivíduo possa perceber. É também isso que ocasiona a naturalização da
percepção segundo Spinoza.

2) A concepção analítica do corpo é claramente defendida nas diferentes


obras de Spinoza: a verdadeira explicação das funções deve se basear no co-
nhecimento exato das estruturas – não nas antecipações funcionais ou no
postulado de que algo a mais do que montagens mecânicas é necessário para
dar conta das aptidões (ou poderes) de um corpo. Já era assim em Pensées
métaphysiques, onde vemos que a concepção mecanicista do corpo é, para
Spinoza e sem dúvida também para os seus interlocutores, de uma evidência
tal que Spinoza não se dá sequer ao trabalho de demonstrar sua pertinência:

Não nos cansaremos de refutar essas opiniões, pois, no que concerne as três
almas atribuídas às plantas, aos animais e aos homens, já demonstramos
suficientemente que elas são apenas ficções, já que mostramos que não há
nada na matéria além de montagens e operações mecânicas.54

Mas também é assim na Ética, na qual a negação da formação mecânica


do corpo é imputada às estratégias dos teólogos e metafísicos para cultivar
ignorância e através disso seu próprio poder:

[Quando os teólogos e os metafísicos] veem a estrutura [fabrica] do corpo


humano, eles são acometidos por um deslumbramento imbecil e, por ignora-
rem as causas de um arranjo tão belo, concluem que não ele não é formado
mecanicamente, mas por uma arte divina ou sobrenatural, e de tal forma
que nenhuma parte prejudica as outras. E assim acontece que quem quer
que procure as verdadeiras causas dos prodígios e se esforce a conhecer as

53 Para essa compreensão da antropologia, ver especialmente Bartholin, Anatomia reformata, op.
cit., prooemium, p. 1.

54 Pensées métaphysiques, trad. Appuhn, Paris, Garnier Frères, 1964, p. 368. “Nous ne nous
fatiguerons guère à réfuter ces opinions ; car, pour ce qui concerne les trois âmes attribuées aux
plantes, aux animaux et aux hommes, nous avons assez démontré qu’elles ne sont que des fic-
tions, puisque nous avons fait voir qu’il n’y a rien dans la matière sinon des assemblages et des
opérations mécaniques”.

O que nos faz pensar, Rio de Janeiro, v.26, n.41, p.107-139, jul.-dez. 2017
O que pode o corpo? Spinoza, na cabeceira dos esfolados 129

coisas da natureza ao invés de se maravilhar com elas como um tolo, muitas


vezes é considerado herético e ímpio, e é proclamado como tal por aqueles
que os leigos adoram como intérpretes da Natureza e dos Deuses. Eles bem
sabem que destruir a ignorância é destruir o deslumbramento imbecil, ou
seja, o único meio que eles têm de raciocinar e de preservar sua autoridade.55

Acima de tudo, a concepção analítica dos corpos fundamenta tudo o que
Spinoza quis dizer nos axiomas, lemas e postulados que seguem a proposição
13 da segunda parte da Ética – a proposição na qual Spinoza mostra como as
mentes diferem entre si de acordo com seus objetos, isto é, como as diferentes
constituições físicas dos indivíduos permitem dar conta das aptidões mentais
que nos caracterizam – “nós”, homens.56 De fato, nesse momento da Ética as
precisões físicas de Spinoza só se justificam se supusermos que a configu-
ração variável das partes do corpo humano e a interação específica de suas
partes é o que dá conta das ações globais desse corpo. Nenhum hiato (pelo
menos nenhum hiato essencial), portanto, entre a composição descritível da
estrutura interna de um corpo e a ação produzida por este corpo.57
Eliminemos novamente aqui dois mal-entendidos. Primeiro, no uso de Spi-
noza do termo fabrica (fábrica) não há nenhuma audácia terminológica e con-
ceitual notável em relação ao uso consagrado por seus contemporâneos. Nos
lugares onde Steno utiliza a noção de estrutura, ele a utiliza em latim, como
Spinoza faz com a palavra fabrica. Para além de Steno, trata-se de uma palavra
comum no vocabulário da época, cujas origens metafóricas (a comparação ar-
quitetônica entre a anatomia do corpo e a construção de edifícios pelo homem)
foram esquecidas e então lexicalizadas. Em segundo lugar, o fato de relacionar

55 “[Quand théologiens et métaphysiciens] voient la structure [fabrica] du corps humain, ils sont
frappés d’un étonnement imbécile et, de ce qu’ils ignorent les causes d’un si bel arrangement,
concluent qu’il n’est point formé mécaniquement, mais par un art divin ou surnaturel, et en telle
façon qu’aucune partie ne nuise à l’autre. Et ainsi arrive-t-il que quiconque cherche les vraies
causes des prodiges et s’applique à connaître en savant les choses de la nature, au lieu de s’en
émerveiller comme un sot, est souvent tenu pour hérétique et impie et proclamé tel par ceux que
le vulgaire adore comme des interprètes de la Nature et des Dieux. Ils savent bien que détruire
l’ignorance, c’est détruire l’étonnement imbécile, c’est-à-dire leur unique moyen de raisonner et
de sauvegarder leur autorité”.

56 O que não necessariamente nos permite traçar uma linha de compartilhamento muito clara
com os animais que seriam próximos a nós. Sobre o problema da espécie humana em Spinoza, ver
J. Busse, Le problème de l’essence de l’homme chez Spinoza, Paris, Publications de la Sorbonne, 2009.

57 Sobre esse ponto, ver R. Andrault, “L’individuation des corps animés: le ‘rapport aux choses
extérieures’ dans les annotations leibniziennes à l’Éthique”, dans Spinoza/Leibniz: rencontres,
controverses, réception, op. cit., chap. X, p. 194-217, aqui, p. 212-3.

O que nos faz pensar, Rio de Janeiro, v.26, n.41, p.107-139, jul.-dez. 2017
130 Raphaële Andrault . tradução de Pedro H. G. Muniz

aptidões individuais à composição física do corpo do indivíduo não induz de


forma alguma, naquela época, a ver o corpo humano como uma espécie de
esqueleto ou monte de órgãos inertes. Ou, em outras palavras, isso não implica
de jeito nenhum privar o corpo humano de seu aspecto dinâmico: o corpo
humano não é um monte de órgãos ou um cadáver; antes, ele é um conjunto
complexo de estruturas finas, sólidas, mas também moles (as fibras musculares,
por exemplo, ou mesmo as glândulas conglobadas) e fluidos (o sangue, o quilo,
a linfa), unidos entre si por movimentos e uma comunicação de movimento
cujo efeito é um conjunto de aptidões (ou de ações) determinadas. Em Spino-
za essas habilidades são individuais, próprias desse e não daquele homem, e
são modificadas de acordo com as experiências desse corpo. Em todo caso, é
preciso evitar projetar nessa concepção analítica do corpo que estou esboçando
aqui em termos gerais uma espécie de dupla oposição tácita – entre o cadáver e
os vivos, entre o mecanismo e o dinamismo – que frequentemente provem de
problemas e de avanços tecnológicos que são posteriores ao século XVII.

3) Finalmente, a penúria de palavras que Spinoza confessou a Oldenburg


em 166258 também é verificada pela elisão de termos anatômicos técnicos nas
proposições e demonstrações da Ética (isto é, nas partes téticas, excluindo os
desenvolvimentos polêmicos dos apêndices e prefácios). Vários fatores se com-
binam para explicar esta elisão. Em primeiro lugar, o fato de não relacionar per-
cepções e paixões com uma receptividade da mente no que se refere ao corpo.
Em segundo lugar, a validade geral da física que Spinoza considera necessário
apresentar. Mas, mais uma vez, convém não interpretar rápido demais essa ca-
racterística como a marca de um desinteresse de Spinoza pelo conhecimento dos
corpos vivos, ou como o sinal de um ceticismo com relação a ciência anatômica
de seu tempo. É verdade que certo ceticismo se impunha: como enfatiza Steno,
a quantidade de conhecimento sobre o cérebro que possuem os anatomistas eu-
ropeus nessa década de 1660 é infinitamente menor do que a maioria deles rei-
vindica. Spinoza sabe bem disso. Mas, por um lado, esse ceticismo permanece
muito parcial. É o corolário de um projeto de refundação de um conhecimento
anatômico que está em plena expansão. Por exemplo, o Discours sur l’anatomie
du cerveau, no qual Steno faz essa admissão de ignorância, contém um grande
número de proposições que contribuem para desenhar os contornos de uma só-
lida anatomia cerebral. Por outro lado, a reforma da taxonomia anatômica deixa

58 Ver Fokke Akkerman, “La pénurie de mots de Spinoza”, Lire et traduire Spinoza. Travaux et
documents du Groupe de Recherches Spinozistes n°1, Paris, Presses Universitaires de Paris Sorbonne,
p. 9-37.

O que nos faz pensar, Rio de Janeiro, v.26, n.41, p.107-139, jul.-dez. 2017
O que pode o corpo? Spinoza, na cabeceira dos esfolados 131

de certa forma sem nome alguns elementos que, no entanto, são perfeitamente
conhecidos. Steno ressalta o que a terminologia anatômica da época tem de
metafórico, de desvalorizador e de impreciso – por exemplo, chama-se de “nates
[nádegas]” e “testes [testículos]” as partes do cérebro que Steno propõe chamar
de tubérculos do terceiro e segundo pares (os colliculi da área tectal). Cientifica-
mente, o que está em jogo aí é importante, pois esse tipo de denominação induz
erros morfológicos (erros na forma precisa dessas partes), cartográficos (erros na
articulação dessas partes entre si e com o resto do cérebro) e funcionais (neste
caso, acreditar que a função dessas partes é a secreção dos “excrementos” do cé-
rebro). Contudo, tal reforma taxonômica, caso defendida, pode contribuir para
tornar difícil, por um tempo, fazer alusões aos detalhes da anatomia humana ou
animal, mesmo quando essas alusões são, em seu conteúdo, consideradas como
consensuais e em conformidade com a experiência.
De qualquer forma, essa especificidade tem efeitos históricos bastante es-
petaculares na medida em que ela não está associada a um estado de conheci-
mento anatômico que, por definição, em breve será obsoleto (ou pelo menos,
que pode parecer sê-lo). A teoria spinozista das paixões pode para ser recu-
sada, reutilizada e citada a nosso bel prazer durante os três séculos e alguns
anos que nos separam dela. O fisiologista Johannes Müller, por exemplo, cita
na íntegra a terceira parte da Ética em seu Manual de fisiologia (1833-1840)59,
e observa: “No que concerne às relações estáticas [paixões], não creio que
eu possa fazer melhor do que citar textualmente a excelente exposição que
Spinoza fez sobre elas. Observarei apenas que essa estática só expressa uma
lei necessária na medida em que supomos que o homem esteja inteiramente
sujeito ao império das paixões, e que a razão venha trazer modificações”.60

IV. Expectativa heurística e impasses científicos: caminhos divergentes

Para Spinoza, o corpo humano aparentemente dispõe de aptidões diversas ou


variadas, tributárias de uma organização que suscita a admiração beata dos ig-
norantes. Assim que essa organização, ou estrutura, se tornar mais conhecida,

59 Título original: Handbuch der Physiologie (1833-1840).

60 Manuel de physiologie, Paris, Baillière, 1851; traduzido por A.-J. -L. Jourdan, p. 526 (citado em
La vie selon la raison, p. 365). “Pour ce qui concerne les rapports statiques [des passions], je ne crois
pas pouvoir mieux faire que de citer textuellement l’excellente exposition qu’en a faite Spinoza. Je
ferai seulement remarquer que cette statique n’exprime une loi nécessaire qu’en tant qu’on suppose
l’homme soumis en entier à l’empire des passions, et que la raison y apporte des modifications”.

O que nos faz pensar, Rio de Janeiro, v.26, n.41, p.107-139, jul.-dez. 2017
132 Raphaële Andrault . tradução de Pedro H. G. Muniz

compreenderemos como ela produz estas aptidões de maneira perfeitamente


determinada. Como podemos ver, a expectativa heurística de Steno e de Spi-
noza é muito elevada: ambos consideram que a ciência do corpo é capaz de
explicar muitas coisas ainda não compreendidas no momento em que eles
escrevem – em especial a articulação entre movimentos e sensações que eu
mencionei. Apesar de sua crítica à anatomia cerebral de seu tempo, Steno
nunca deixou de investigar o cérebro e a medula espinhal. Suas pesquisas
sobre as glândulas salivares e lacrimais podem parecer um pouco periféricas,
mas no início da década de 1660 elas implicam questionar-se sobre fenôme-
nos psicossomáticos como as lágrimas, cuja produção está ligada ao sistema
nervoso. Além disso, Steno questiona as respectivas responsabilidades da
medula espinhal e do cérebro na produção de sensações e de movimentos.61
Todavia, há um elemento que esta esperança de explicar as ações corpo-
rais através da estrutura dos corpos e suas leis não modifica: ao que parece,
em nenhum momento Steno e Spinoza imaginaram que a própria percepção
– aquela pela qual experimentamos intimamente as modificações do nosso
corpo, mas também pela qual o anatomista observa e mede o corpo – seja
uma atividade do próprio corpo, explicável um dia apenas pelas leis da na-
tureza corporal ou, para dizer isso de outra forma (de uma forma mais spi-
nozista), a percepção não é considerada como um efeito de coisas singulares,
ou modos, entendidos sob o atributo do corpo.
Apesar disso, depois desse compartilhamento (que permanece muito
geral) entre o que é uma modificação do corpo e o que é um pensamento
no sentido amplo (incluindo as sensações), os caminhos de Spinoza e Steno
divergem. Por um lado, como ele aponta no escólio sobre o que pode o
corpo, Spinoza acredita que qualquer ação pode ser explicada ou pelas leis
da natureza considerada como corpórea, ou por efeitos de estrutura. Para
Spinoza, trata-se aqui de não tirar conclusões dogmáticas de uma ignorância
ou de um conhecimento relativo – ao supor, por exemplo, que algo não-
corpóreo seja necessário para explicar uma ação corpórea. Do lado de Steno,
é possível que suas pesquisas tardias sobre a questão das conexões sensório-
motoras no cérebro sejam precisamente dirigidas contra a posição de Spinoza.
Tratar-se-ia para Steno de mostrar que mesmo quando consideramos apenas
o que há de corporal e de observável nas ações do corpo animal ou humano,

61 Anatome ex omnium veterum Recentiorumque Observationibus Imprimis Institutionibus b.m. paren-


tis Caspari Bartholini ad Circulationem harvejenam et vasa lymphatica quartum renovata, Leyde, ex
Officina Hackiana, 1673, lib. III, p. 477.

O que nos faz pensar, Rio de Janeiro, v.26, n.41, p.107-139, jul.-dez. 2017
O que pode o corpo? Spinoza, na cabeceira dos esfolados 133

somos obrigados a invocar a existência de algo não extenso e imaterial para


explicar sua produção. De fato, dispomos de um manuscrito incompleto,
um rascunho, provavelmente escrito por Steno em 1684, muito tempo
depois de sua carta aberta a Spinoza. Não sabemos quase nada sobre as
circunstâncias desse texto, de sua escrita, seus destinatários ou intenção,
ou de seu objetivo final. Mas encontramos bem no meio dele a frase (de
caráter crítico) de que Spinoza só se interessa pelas verdades, não pelas
virtudes.62 Tratei mais detalhadamente em outro lugar desse manuscrito63,
então recordarei aqui apenas que nele Steno questiona a conexão entre os
filamentos nervosos sensoriais (que transmitem as sensações) e os filamentos
do nervo motor (que transmitem o movimento). Ele parte de constatações
simples e muito gerais. Segundo ele, é “certo” que os mesmos impulsos
transmitidos do exterior por objetos sensíveis – as mesmas sensações –
nem sempre conduzem às mesmas respostas motoras. E reciprocamente,
diferentes impulsos sensíveis podem levar aos mesmos tipos de respostas
motoras. Steno toma como exemplo a leitura de uma única nota musical em
uma partitura, que é susceptível de desencadear respostas motoras diversas:
a das mãos, dos pés ou dos músculos da fonação64. Ele se pergunta como
podemos conceber a conexão entre os dois tipos de filamentos: na forma
de um intermediário sólido? De que forma, então? Um fluido? Nenhuma
conexão deste tipo poderia explicar a diversidade e a variabilidade das
conexões sensório-motoras. Ele conclui que “este intermediário que é o meu
entre os sentidos e os nervos do movimento, percebendo e determinando
o movimento, não pode ser extenso”.65 Não extenso e incorpóreo, se nos
lembramos que para Steno os corpos são sempre extensos.
Em suma, tudo acontece como se Steno tivesse tomado Spinoza ao pé da
letra (“até agora ninguém determinou o que pode o corpo”) e como se ele se
tivesse se comprometido a dar uma resposta oposta. É precisamente quando o
anatomista se compromete a explicar de maneira corporal as ações corporais,
ele é levado a concluir que o corpo, “através apenas das leis da natureza, e

62 Epistolae, op. cit., II, p. 950.

63 “Humain Brain and Humain Mind”, art. cit., p. 106-109.

64 Ele não o diz precisamente, mas podemos imaginar um pianista, um organista e um cantor
reagir de forma diferente à leitura de uma mesma nota de música.

65 Ibid. “Cet intermédiaire qui est le mien entre les sens et les nerfs du mouvement, percevant et
déterminant le mouvement, ne peut pas être étendu”.

O que nos faz pensar, Rio de Janeiro, v.26, n.41, p.107-139, jul.-dez. 2017
134 Raphaële Andrault . tradução de Pedro H. G. Muniz

considerando esta apenas como corporal”, não pode fazer tudo; que certas
sequências de ações corporais permanecem inexplicáveis se os termos da ex-
plicação forem exclusivamente corporais. Claro, podemos responder a Steno
que sua conclusão é válida apenas porque ele concebe corpos como fluidos
ou sólidos extensos que transmitem suas modificações através de choques
visualizáveis, isto é, impulsos mecânicos simples – ou seja, porque Steno tem
uma ideia redutora do corpo, ou porque sua imaginação é limitada demais.
Ainda assim, ele tem uma ideia mecânica e analítica do composto do corpo
que responde, pelo menos parcialmente, à ideia que tem Spinoza. Pode-se
sempre dizer que Spinoza deixou aberta a possibilidade de um novo desen-
volvimento, não apenas na anatomia, mas também na física. Talvez esse seja o
caso, mas então devemos entender em termos de uma expectativa heurística
mais ou menos ampla os caminhos divergentes de Steno e Spinoza sobre o
que pode ou não pode o corpo, sobre a distância entre o que podemos, o que
poderemos e o que nunca poderemos explicar levando em conta apenas as leis
da natureza corporal.
Se Spinoza enfatiza tudo o que a ciência do corpo ainda não explica, é para
melhor mostrar que idealmente ela deveria ser capaz de explicar tudo, que
nada corpóreo escapa, por definição, ao seu campo de explicação. Da mesma
forma, nada corpóreo é subtraído das leis que enquadram as modificações
do corpo: um corpo não pode fazer qualquer coisa; suas modificações são
regidas por leis; ele não é uma fonte constante de inovações que escapariam
de qualquer abordagem científica e, ainda mais, a qualquer concepção ana-
lítica do corpo. Steno também enfatiza o que escapa ao nosso conhecimento
anatômico ao se esforçar de minimizar essa ignorância: também ele acha que
essa ignorância não tem nada de fatalidade e que podemos e devemos reduzi-
-la. No entanto, ao contrário de Spinoza, ele duvida que um dia a ciência dos
corpos fosse capaz de explicar todas as ações corporais.

V. O compartilhamento dos conhecimentos

Por que procurar determinar o significado dos textos Spinozistas em seu con-
texto imediato? Várias respostas podem ser propostas, mas talvez elas não
satisfaçam aqueles que, desde o início, estão convencidos de que o interesse
de uma leitura contextual e historicizada de Spinoza permanece marginal.
A minima, o contexto permite que apreendamos concretamente os signi-
ficados que a terminologia latina de Spinoza divide em um campo de repre-
sentações, experiências e doutrinas historicamente determinadas e plurais. O

O que nos faz pensar, Rio de Janeiro, v.26, n.41, p.107-139, jul.-dez. 2017
O que pode o corpo? Spinoza, na cabeceira dos esfolados 135

primeiro efeito da leitura contextual é, portanto, a exclusão de interpretações


improváveis,66 talvez até mesmo impossíveis. O segundo é a circunscrição
dos significados possíveis (ou até mesmo prováveis) da posição própria de
Spinoza na história acadêmica. Isso foi o que eu propus sobre o adágio “até
agora ninguém determinou o que pode o corpo”. Mas acima de tudo, parece-me
que existe um mal-entendido fundamental. Quando apreendemos em Spi-
noza em contexto, somos acusados de dissolver sua singularidade, de pensar
que ele deve suas ideias aos outros, ou mesmo que ele não inventou nada.
Como se ao popular o contexto, esvaziássemos a autoria. É verdade que um
dos efeitos colaterais do estudo em contexto é, se não o de suprimir, pelo me-
nos o de mudar de lugar os efeitos da originalidade. Por exemplo, quando le-
mos os autores naturalistas e filosóficos daquela época, vemos que, para certo
número deles, o corpo humano não é uma pequena totalidade fechada, mas
um agregado de partes sujeitas a distúrbios infinitos e incessantes dos corpos
circundantes. Reconhecer a intensidade das trocas entre o corpo humano e
o exterior não é, portanto, um privilégio spinozista67. Da mesma forma, em
uma carta na qual Spinoza insiste na nossa ignorância parcial sobre a cone-
xão entre as várias partes da natureza, ele toma o exemplo do ponto de vista
de um verme que se movia no sangue.68 Esta história fictícia é sem dúvidas
menos original do que pensamos. O ponto de vista dos vermes ou dos ácaros,
presentes sob a pele e nas vísceras, e constituindo talvez a tecedura de nos-
so próprio corpo, era na verdade uma imagem clássica para os romancistas,
como em Pascal ou em Malebranche, e um motivo de questionamento para
os anatomistas, que encontravam nos cadáveres uma infinidade de pequenos
vermes que eles ignoravam se eram simplesmente parasitas ou constituintes
reais do corpo69. Para dar uma ideia dessas observações, citemos Kerckring,

66 Por exemplo, a que vê no uso da palavra fabrica por Spinoza uma originalidade reveladora de
sua compreensão própria da relação entre arte e natureza.

67 Por exemplo, Bayle, Dictionnaire historique et critique, 1740 (17021), “Rorarius”, remarque L, §
3, ed. A. McKenna & Gianluca Mori, Paris, Classiques Garnier Numérique, 2015, p. 1996.

68 Carta 32, in Spinoza. Correspondance, op. cit., p. 208: “Figurons-nous à présent, si vous voulez
bien, un ver vivant dans le sang. Il pourrait discerner par la vue les particules du sang, de la
lymphe […] Ce ver vivrait assurément dans le sang comme nous dans cette partie de l’Univers, et
c’est comme un tout, non comme une partie, qu’il considérerait chaque particule du sang”. Ver
também nosso comentário em La vie selon la raison, p. 65.

69 Para dar uma ideia do impacto do microscópio, ver especialmente a Pierre Borel, Henry Power
e Cyrano de Bergerac (por exemplo, em “Leibniz et la connaissance du vivant”, in Leibniz. Lectures
et commentaires, ed. C. Leduc, M. Lærke, D. Rabouin, Paris, Vrin, 2017, p. 173-175).

O que nos faz pensar, Rio de Janeiro, v.26, n.41, p.107-139, jul.-dez. 2017
136 Raphaële Andrault . tradução de Pedro H. G. Muniz

O que descobri claramente graças ao meu instrumento admirável apareceu


ainda mais admirável: a saber, que os intestinos, o fígado e outras vísce-
ras parênquimas fervilham com uma infinidade de minúsculos animais.
Quanto a saber se esses animais corrompem ou preservam os parênquimas
através de seu movimento permanente, isso permanece incerto para aquele
que considera uma habitação enquanto ela está habitada: o cuidado contí-
nuo e pródigo de seus habitantes certamente a torna limpo e brilhante, mas
igualmente o uso.70

Quando Spinoza adota o ponto de vista de um verme se movendo no san-


gue, de certa forma ele não faz nada de muito original. No entanto, é ao enten-
der isso que entendemos de maneira concreta o deslocamento que ele opera
em comparação aos seus contemporâneos. Spinoza dá a essas representações
comuns uma interpretação que lhe é própria. Assim, restitui-las nos permite
ver por onde realmente passa o seu gesto interpretativo, que nunca é inteira-
mente redutível aos dos autores que acabei de citar. Este gesto é instruído, mas
ele não se identifica com a recepção de ideias mais ou menos compartilhadas
pelos livros ou pessoas que estão próximas a ele. Dessa forma, eu não vejo
como se reconectar com a história fosse romper com a filosofia.

Referências bibliográficas

AKKERMAN, F. La pénurie de mots de Spinoza. In: GROUPE DE RECHERCHES


SPINOZISTE - Travaux et documents n°1: Lire et traduire Spinoza. Paris: Presses
Universitaires de Paris Sorbonne, p. 9-37.
ANDRAULT, R.; CRIGNON, C. Les modèles du corps: mécanisme, chimisme,
humorisme. In: ANDRAULT, R.; BUCHENAU, S.; CRIGNON, C.; REY, A-L. (eds.).
Médecine et philosophie de la nature humaine de l’âge classique aux Lumières. Paris:
Classiques Garnier, 2014, p. 137-143.

70 Esse “instrument admirable” é precisamente “um microscópio muito impressionante fabricado


por [ele], por esse famoso Spinoza, matemático e filósofo” (“un microscope très remarquable
fabriqué pour [lui] par ce fameux Spinoza mathématicien et philosophe ”): Theodor Kerckring,
Spicilegium anatomicum, Amstelodami, sumptibus Andreae Frisii, 1670, Observatio XCIII, p. 178.
“Ce que j’ai découvert clairement grâce à mon instrument admirable est apparu plus admirable
encore : à savoir que les intestins, le foie et d’autres parenchymes de viscères fourmillent d’une
infinité d’animalcules minuscules ; quant à savoir si ces animalcules corrompent ou conservent les
parenchymes par leur mouvement permanent, cela reste incertain pour celui qui considère une
demeure pendant qu’elle est habitée : le soin continuel prodigué par ses habitants la rend certes
propre et étincelante, mais l’use également”.

O que nos faz pensar, Rio de Janeiro, v.26, n.41, p.107-139, jul.-dez. 2017
O que pode o corpo? Spinoza, na cabeceira dos esfolados 137

ANDRAULT, R. Human Brain and Human Mind. The Discourse on the Anatomy of the
Brain and Its Philosophical Reception. In: ANDRAULT, R.; LÆRKE, M. (eds). Steno
and the Philosophers. Leiden: Brill, 2018, p. 87-112.
______. Leibniz et la connaissance du vivant. In: LEDUC, C.; LÆRKE, M.; RABOUIN,
D. (eds.), Leibniz. Lectures et commentaires. Paris: Vrin, 2017, p. 171-190.
______. Anatomy, Mechanism and Anthropology: Nicolas Steno’s Reading of L’Homme.
In: ANTOINE-MAHUT, D.; GAUKROGER, S. (eds.). Descartes’ Treatise on Man and its
Reception. Cham, Switzerland: Springer, 2016, p. 175-192.
______. L’individuation des corps animés: le ‘rapport aux choses extérieures’ dans les
annotations leibniziennes à l’Éthique. In: ANDRAULT, R.; LÆRKE, M.; MOREAU, P.-F.
(dir.). Spinoza/Leibniz: rencontres, controverses, réception. Paris: PUPS, 2014, chap. X, p.
194-217.
______. La vie selon la raison. Physiologie et métaphysique chez Spinoza et Leibniz.
Paris: Honoré Champion, 2014.
______. Mathématiser l’anatomie: la myologie de Stensen, Early Science and Medicine,
vol. 15, n° 4-5, 2010, p. 505-536.
ANDRETTA, E.; MANDRESSI, R. “Médecine et médecins dans l’économie des savoirs
de l’Europe moderne (1500-1650)”, Histoire, médecine et santé. Revue d’histoire sociale
et culturelle de la médecine, de la santé et du corps. Toulouse: Éditions Méridiennes,
n° 11 (été 2017), p. 9-18.
ANTOINE, D. L’homme cartésien. Rennes: Presses Universitaires de Rennes, 2009.
BARTHOLIN, T. Anatome ex omnium Veterum Recentiorumque Observationibus imprimis
Institutionibus b.m. parentis Caspari Bartholini, ad Circulationem Harvejenam et Vasa
Lymphatica, Quartum Renovata. Cum Iconibus novis & Indicibus. Leyde: ex Officina
Hackiana, 1673.
______. Anatomia, ex Caspari Bartholini parentis Institutionibus, omniumque recentiorum
propriis observationibus, tertium ad sanguinis circulationem reformata. Cum iconibus
novis accuratissimi. Leyde: F. Hackium, 1651.
BAYLE, P. Dictionnaire historique et critique, 1740 (1721), ed. A. McKenna & Gianluca
Mori. Paris: Classiques Garnier Numérique, 2015.
BUSSE, J. Le problème de l’essence de l’homme chez Spinoza. Paris: Publications de la
Sorbonne, 2009.
CATALOGUS van de Bibliotheek der Vereniging het Spinozahuis te Rijnsburg. Leiden:
E. J. Brill, 1965.
CHAREIX, F. La maîtrise et la conservation du corps vivant chez Descartes, Methodos,
3 | 2003, p. 161-194. DOI : http://dx.doi.org/10.4000/methodos.112.
______. Le bal des pendules: Spinoza et Leibniz face à la mécanique théorique de
Huygens. In: ANDRAULT, R.; LÆRKE, M.; MOREAU, P.-F. (eds.). Spinoza/Leibniz:
rencontres, controverses, réception. Paris: PUPS, 2014, p. 245-267.
CUNNINGHAM, A. The pen and the sword: recovering the disciplinary identity
of physiology and anatomy before 1800. II : Old Anatomy – the Sword, Studies in
History and Philosophy of Biological and Biomedical Sciences, 34 (Mar. 2003), p. 51-76.

O que nos faz pensar, Rio de Janeiro, v.26, n.41, p.107-139, jul.-dez. 2017
138 Raphaële Andrault . tradução de Pedro H. G. Muniz

______. The pen and the sword: recovering the disciplinary identity of physiology and
anatomy before 1800. I: Old Physiology – the Pen, Studies in History and Philosophy of
Biological and Biomedical Sciences, 33 (Dec. 2002), p. 631-665.
DUVERNEY, J.-G. Œuvres anatomiques. Paris: C.-A. Jombert, 1761.
FOISNEAU, L. (ed.). Dictionnaire des philosophes français du XVIIe siècle. Paris:
Classiques Garnier, 2015.
FOREST, D. Neuroscepticisme. Paris, France: Editions d’Ithaque, 2014.
FRENCH, R. William’s Harvey Natural Philosophy. Cambridge: Cambridge University
Press, 1994.
HAMOU, Ph. La mutation du visible 2. Microscopes et télescopes en Angleterre de
Bacon à Hooke. Villeneuve d’Ascq: Presses Universitaires du Septentrion, 2001.
HOOKE, R. Micrographia. London: Martyn and Allestry, 1665.
HUISMAN, T. The finger of God. Anatomical Pratice in 17th-Century Leiden, Doctoral
Thesis, Leiden University, 2008-05-08.
Journal des sçavans, Amsterdam, Pierre le Grand, 1685.
LIBERA, A. de. Le sens commun au XIIIe siècle. De Jean de La Rochelle à Albert le
Grand, Revue de métaphysique et de morale, 1991, n° 4, p. 475-496.
MOREAU, P.-F. Problèmes du spinozisme. Paris: Vrin, 2006.
MÜLLER, P. J. Manuel de physiologie. Paris: Baillière, 1851.
OLDEN-JØRGENSEN, S. Jesuits, Women, Money or Natural Theology? Nicolas
Steno’s Conversion to Catholicism in 1667. In: ANDRAULT, R.; LÆRKE, M. (eds.).
Steno and the Philosophers. Leiden: Brill, 2018.
ROUX, S. La philosophie mécanique de Boyle. In SALEM, J. (ed.), L’atomisme aux
XVIIe et XVIIIe siècles. Paris: Publications de la Sorbonne, 1999, p. 119-133.
SPINOZA, B. Spinoza. Correspondance. Ed. e trad. M. Rovere. Paris: Flammarion,
2010.
______. Œuvres. Trad. Ch. Appuhn [Paris, 1906], Paris, Garnier Frères, 1964-1966.
______.
______. Spinoza Opera. Ed. C. Gebhardt. Heidelberg: Carl Winter, 1925.
SPRUIT, L.; TOTARO, P. (ed.). The Vatican Manuscript of Spinoza’s Ethica. Leiden: Brill
2011.
STENO, N. [STÉNON, N. / STEENSEN, N.], Discours sur l’anatomie du cerveau, ed. R.
Andrault. Paris: Classiques Garnier, 2009.
______.Epistolae. Et epistolae ad eum datae, quas cum proemio ac notis Germanice
scriptis. Ed. G. Scherz. Copenhague: Nyt Nordisk Forlag A. Busck, 1952, vol. 1.
______. De solido intra solidum naturaliter contento dissertationis prodromus. Florentiae:
ex Typographia sub signo Stellae, 1669.
______.Elementorum Myologiae Specimen seu Musculi descriptio geometrica, Florentiae:
ex typ. sub signo Stellae, 1667.
TOLMER, L. Pierre-Daniel Huet, humaniste-physicien. Bayeux: Colas, 1949

O que nos faz pensar, Rio de Janeiro, v.26, n.41, p.107-139, jul.-dez. 2017
O que pode o corpo? Spinoza, na cabeceira dos esfolados 139

TOTARO, P. Ho certi amici in Ollandia: Stensen and Spinoza. In: KERMIT, H.;
SKYTTE, G. (eds.). Niccolo Stenone (1638-1686): anatomista, geologo, vescovo, Roma,
2002, p. 27-38.
WALEUS, J. Epistola prima de motu chyli et sanguinis ad Thomam Bartholinum,
Casp. Filium & Altera Epistola de motu sanguinis ad eundem. In: BARTHOLIN, T.
Anatomia ex Caspari Bartholini parentis Institutionibus, omniumque recentiorum propriis
observationibus, tertium ad sanguinis circulationem reformata. Leyde: ex Officina
Hackiana, 1651.

O que nos faz pensar, Rio de Janeiro, v.26, n.41, p.107-139, jul.-dez. 2017
tradução de Pedro H. G. Muniz
Delphine Antoine-Mahut*

Cartesianismos e spinozismos: rumo a uma


teoria das histórias possíveis em filosofia

Cartesianisms and spinozisms : towards a


theory of possible histories in philosophy

Resumo
A história da filosofia é geralmente identificada com um estudo internalista e
contextualista dos textos. Às vezes, incluímos também a historiografia; isso é então
um primeiro passo para entender que vários cenários do mesmo texto são possíveis
e por que eles são. O objetivo desta contribuição é abrir as perspectivas ainda mais
amplamente. Propõe incluir na história da filosofia as histórias de suas recepções e
atualizações, a fim de lançar as bases de uma teoria das possíveis histórias. A figura
de Descartes é um caso paradigmático para testar essa teoria. Ao explorar os avanços
metodológicos das ciências sociais, da história intelectual ou até mesmo da filosofia
analítica, essa história da filosofia revivida revela todo o seu potencial filosófico.

Palavras-chave: Descartes; história da filosofia; historiografia; história


intelectual; formação de cânones.

Abstract
The history of philosophy is generally identified with an internalist and contextualist
study of philosophical texts. Sometimes historiography is included; in that case, a first
step is made to understand that several scenarios of the same text are possible, and
why. The aim of this contribution is to open windows even more widely. It suggests
including in the history of philosophy the history of its receptions and actualizations,
in order to lay the foundations of a theory of possible histories. The figure of Descartes
is a paradigmatic case to test this theory. By taking advantage of the methodological
advances of the social sciences, intellectual history or even analytic philosophy, this
history of revived philosophy thus reveals all its philosophical potential.

Keywords: Descartes; history of philosophy; historiography; intellectual


history; formation of canons.

* Delphine Antoine-Mahut é professora da École Normale Supérieure (ENS) de Lyon. E-mail: dam8@gmx.fr.
Pedro Muniz é doutor em filosofia pela Pontifícia Universidade Católica do Rio de Janeiro (PUC-Rio).
E-mail: phgmuniz@gmail.com.

O que nos faz pensar, Rio de Janeiro, v.26, n.41, p.141-162, jul.-dez. 2017
142 Delphine Antoine-Mahut . tradução de Pedro H. G. Muniz

Minha pesquisa mobiliza o corpus cartesiano em um sentido amplo. “Em um


sentido amplo” significa que nesse conjunto também estão incluídos, por
um lado, autores que, ao se oporem a Descartes, tomam como pontos de
demarcação de suas próprias teses aquelas que eles identificam como sendo
cartesianas1 e, por outro lado, os que recebem tais teses e as atualizam, às
vezes vários séculos depois2.
Dando continuidade a dois livros que serão publicados em 2018 (o pri-
meiro pela editora Classiques Garnier, intitulado Descartes radical; o segundo,
pela Vrin, com o título L’esprit du spiritualisme français), proponho explicar a
forma em que progressivamente especifiquei minha metodologia como um
estudo das histórias possíveis de uma filosofia e, a partir daí, esboçar algumas
extensões para o estudo do ou dos spinozismos.
Para isso, podemos partir da famosa citação de Willard Van Orman Quine:
“There are two sorts of people interested in philosophy, those interested in
philosophy, and those interested in the history of philosophy”3. Pois o objeti-
vo de uma teoria das histórias possíveis é trazer à luz o potencial plenamente
filosófico da história da filosofia e, portanto, responder a Quine integrando
a carga crítica de seu raciocínio. Assim, a citação inicial poderia ser reformu-
lada da seguinte forma: “há dois tipos de pessoas interessadas na história da
filosofia. Aquelas que estão interessadas na história da filosofia e aquelas que
estão interessadas na história das formas em que os textos filosóficos foram
recebidos e atualizados”. Dito ainda de outra forma: para construir uma teo-
ria das histórias possíveis é preciso aceitar a integração da história das formas
de recepção e atualização no conjunto da “história da filosofia” e, portanto,
ampliar o que tradicionalmente designamos assim e que, por esta razão, dé-
cadas de debate opuseram à filosofia4.

1 Encontraremos uma amostra significativa em http://ens-lyon.academia.edu/DelphineAntoineMahut

2 As contribuições mais recentes sobre este ponto podem ser encontradas no volume coletivo
que eu codirigi com Samuel Lézé, Les Classiques à l’épreuve. Actualité de l’histoire de la philosophie,
Paris, Editions des Archives Contemporaines, 2017. Esse volume reúne apenas os capítulos dos
alunos do seminário que co-dirigimos na ENS de Lyon sobre “A atualidade dos Clássicos”. Trata-se
de um testemunho muito rico de seu compromisso e, às vezes, de sua iniciativa, no trabalho de
reflexividade coletiva que tentamos realizar em nossas práticas e nossos objetos.

3 Quine, citado em Alasdait MacIntyre, “The Relashionship of Philosophy to its Past”, in Philosophy
in History, ed. Richard Rorty, J-B. Schneewind & Quentin Skinner, Cambridge: CUP, 1984, p. 39-40.

4 Para dar apenas dois exemplos: 1 / a oposição, no século XIX, entre, por um lado, uma forma
de eclecticismo que se resolvia em um sincretismo impessoal, na época identificado com a história
da filosofia e por outro, o que poderia ou deveria ser uma verdadeira filosofia pessoal e engajada;
2 / o debate que caracterizou os anos oitenta do século XX na América do Norte e que depois se

O que nos faz pensar, Rio de Janeiro, v.26, n.41, p.141-162, jul.-dez. 2017
Cartesianismos e spinozismos: rumo a uma teoria das histórias possíveis em filosofia 143

Vou reconstruir as etapas dessa ampliação progressiva e, em seguida, pro-


por casos paradigmáticos, os quais tomo emprestados do cartesianismo e do
spinozismo.

1. A história da filosofia como prática internalista e análise estrutural de


textos filosóficos

(i) Quando os textos de um filósofo são pensados como uma “obra”, o(a)
historiador(a) da filosofia analisa relações entre as diferentes partes dessa
obra dentro de um “sistema” cuja coerência precisa ser trazida à luz, sendo
isso feito ao serviço do pensamento do autor em questão. Procuramos então
o significado que o autor desejava conferir ao seu próprio raciocínio (e o qual
o comentador se encarrega de identificar ou mesmo de reconstruir), ou o
sentido que ele lhe atribuiu de maneira explícita (às vezes em uma explicação
posterior, depois de uma polêmica, por exemplo). Um dos resultados mais
magistrais da implementação de tal método poderia ser a “ordem das razões”
cartesiana de Martial Gueroult5.
(ii) Às vezes um raciocínio genético é enxertado nessa perspectiva inter-
nalista. A atenção é então focada nos diferentes estratos de escrita e na inter-
pretação das eventuais evoluções conceituais, que nem sempre são fáceis de
distinguir de modificações que tratam unicamente de estratégias retóricas
diferentes. Tal método foi, por exemplo, implementado por André Robinet
para Malebranche ou por Michel Fichant no que diz respeito a Leibniz.
(iii) As palavras-chave aqui são: “rigor”, “coerência”, “objetividade” e
“cientificidade” (através do recurso à filologia, por exemplo), “autonomia” ou
“autos-suficiência” do texto, respeito das “intenções” ou dos “motivos” do au-
tor (podendo a esse respeito promover valores éticos da pesquisa, como a
“fidelidade” ao texto), etc.

perpetuou, através de diferentes mutações, como a filosofia analítica e a história da filosofia (“ana-
cronismo” e “antiquarianismo”, para retomar as duas principais etiquetas forjadas pelo adversário).
Hoje esses debates se renovam e, na minha opinião, são enriquecidos com o desenvolvimento das
histórias intelectuais e culturais. Sobre Descartes, darei como exemplos as duas obras de François
Azouvi, Descartes et la France. Histoire d’une passion nationale, Paris, Arthème-Fayard, 2002 e de
Stéphane Vandamme, Descartes, Paris, Presses de Sciences Po, 2002. E sobre Spinoza, o trabalho
de Jonathan Israël, Les Lumières radicales. La philosophie, Spinoza et la naissance de la modernité
(1650-1750). Traduzido do inglês para o francês (2001) por Pauline Hugues, Charlotte Nordmann
e Jérôme Rosanvallon. Editions d’Amsterdam, 2005.

5 Martial Gueroult, Descartes selon l’ordre des raisons. Paris, Aubier, 1953, 2 vol.

O que nos faz pensar, Rio de Janeiro, v.26, n.41, p.141-162, jul.-dez. 2017
144 Delphine Antoine-Mahut . tradução de Pedro H. G. Muniz

(iv) A contrapartida é a exclusão, de toda a “história da filosofia”, dos


“abusos” e “mal usos”, das “más leituras”, dos “contrasensos”, da “instrumen-
talização” dos textos, da construção de figuras filosóficas “ad hoc”, de um
recurso aos textos como a uma simples “store house”6, de um cartesianismo
sem Descartes ou de um spinozismo sem Spinoza7, etc.
(v) Desse ponto de vista, e para quem concorda em ouvi-las, as críticas
dirigidas à história da filosofia pelos teóricos da dissimulação8 e pelos(as)
historiadores(as) intelectuais se mostraram salutares, pois elas permitiram que
o preconceito ontologista ou essencialista que sempre ameaça o internalista
fosse problematizado. Segundo esse preconceito, existiria “um” sentido “no”
texto e “este” sentido seria em seguida constitutivo de um ou de diversos “is-
mos” (o plural pode parecer mais consciente de si mesmo, mas não responde
completamente à objeção) que estruturam uma série de “recepções”, então
avaliadas na medida de sua maior ou menor “fidelidade” àquele sentido inicial.
Uma das formas de renovar e reforçar a prática internalista é, então, o
contextualismo.

2. A história da filosofia como prática contextualista

(i) De acordo com o contextualismo9, o acesso ao “meaning” de um autor do


passado se baseia na restituição tanto das circunstâncias (em um sentido am-
plo) quanto das redes nas quais ele estava inserido. Essas redes integram não

6 Esta é a expressão utilizada por Dan Garber em sua discussão dos trabalhos de Jonathan Ben-
nett sobre Spinoza. Cf. especialmente “Au-delà des arguments des philosophes”, in Y-C. Zarka,
Comment écrire l’histoire de la philosophie?, Paris, PUF Quadrige, 2001, p. 231-245; D. Garber,
“Does History Have a Future? Some Reflections on Bennett and Doing Philosophy Historically”,
Jonathan Rée, “History, Philosophy and Interpretation. Some Reactions to J. Bennett’s Study of
Spinoza’s Ethics”, e J. Bennett, “Response to Garber and Rée”, in Doing Philosophy Historically, ed.
Peter H. Hare, Buffalo, Pergamon Press, Prometheus Books, 1988, p. 27-69.

7 Segundo a expressão de P.-F. Moreau em “Spinoza est-il spinoziste?”, in Qu’est-ce que les lumières
radicales? Libertinage, athéisme et spinozisme dans le tournant de l’âge classique, ed.: Catherine Secré-
tan, Tristan Dagron e Laurent Bove, Paris, Editions Amsterdam, 2007, p. 289-298. Esta contribui-
ção é uma discussão da categoria de “spinozismo” empregada por Jonathan Israël.

8 Penso especialmente no trabalho de Jean-Pierre Cavaillé, em “L’art d’écrire des philosophes.” Critique
631, dezembro de 1999, p. 959-980. Repr. em Les Déniaisés – Irréligion et libertinage au début de l’époque
moderne. Paris, Garnier, 2014 e em “Libertinage et dissimulation, quelques éléments de réflexion.” Liberti-
nage et Philosophie au XVIIe siècle 5, 2001, p. 57-82. No que concerne Descartes, cf. também Fermand Hal-
lyn, Descartes. Dissimulation et ironie. Genève, Droz, 2006. Estes trabalhos apresentam, entre outras coisas,
o interesse de se posicionar em relação à obra fundadora de Leo Strauss, La persécution et l’art d’écrire, trad.
francesa, Paris, Press Pocket, 1989 (primeira publicação em inglês em 1949).

9 Em geral esse contextualismo é citado nos trabalhos de Skinner. No entanto, o contexto deste
último é o do discurso, e não dos fatos e das circunstâncias.

O que nos faz pensar, Rio de Janeiro, v.26, n.41, p.141-162, jul.-dez. 2017
Cartesianismos e spinozismos: rumo a uma teoria das histórias possíveis em filosofia 145

só figuras que a história consagrou em seguida como sendo “grandes” figuras


filosóficas, mas também as minores e as que, à luz da separação comtem-
porânea das disciplinas, não são consideradas como “filosóficas”, mas como
pertencendo, por exemplo, à ciência (como Isaac Beeckmann) ou à teologia
(como Gisbert Voetius)10.
(ii) Tal procedimento foi, por exemplo, teorizado contra a filosofia analí-
tica pela Cambridge History of Philosophy, na articulação das décadas de 1980
e 199011. Hoje ele é renovado por estudos controversos, às vezes por hi-
bridações bem-sucedidas com as obras dos historiadores, dos historiadores
das ciências e dos sociólogos12. O texto é então concebido como um ato de
interlocução tomado em uma rede polêmica sem a qual a restituição de seu
eventual “sentido” escapa ao seu leitor 13.
(iii) Podemos adicionar aí os trabalhos que refletem sobre o que é uma tra-
dição. De fato, a tradição nos permite discernir a noção imprecisa de contexto
em um período de tempo mais longo e, portanto, dinamizá-la no tempo, e

10 Isso implica outra ampliação decisiva: o do significado do que chamamos de “texto”. Cf. es-
pecialmente Quentin Skinner, La vérité et l’historien, Paris, Editions de l’EHESS, p. 41: “Il existe
toutes sortes d’historiens, qui étudient des choses diverses et variées. Je souhaite toutefois limi-
ter ici mon propos aux historiens qui, comme moi, font de l’histoire des idées et de la culture.
Il me semble juste de dire que ce que nous étudions principalement, ce sont des textes. Je n’en-
tends pas par là simplement des textes au sens évident où des romans – ou des journaux, des
comptes-rendus d’audience, des dicours au Parlement ou des traités philosophiques – sont des
textes. Je m’intéresse aussi à l’acception plus large selon laquelle des tableaux, des édifices et des
actions sociales peuvent également être interprétés comme des textes” (estas são as primeiras
palavras de sua conferência inaugural enquanto Barber Beaumont Professor of the Humanities,
em Queen Mary, universidade de Londres, no dia 2 de junho de 2010).

11 Organizado por Michael Ayers e Daniel Garber. A obra foi publicada em 1998. Tratava-se, se-
gundo os termos da introdução, de “turn upside down the history of philosophy”, para propor
“a new paradigm”, incluindo um novo paradigma para o ensino. A Cambridge University Press
também acolheu duas coleções prestigiosas co-organizadas por Quentin Skinner: “Ideas in Con-
text” e “Cambridge Texts in the History of Political Thought”. Esta última também reúne tanto
os grandes textos históricos da tradição (como o Léviathan de Hobbes, com uma introdução de
Richard Tuck) quanto escritos ocasionais de autores menos conhecidos (como os panfletos da
revolta holandesa do fim do século XVI, com uma introdução de Martin Van Gelderen).

12 Por exemplo, Jean-Louis Fabiani, “Controverses scientifiques, controversies philoso-


phiques. Figures, positions, trajets”, in Enquête 5, 1997, p.11-34, e Lilti, Antoine, “Querelles
et controverses. Les formes du désaccord intellectuel à l’époque moderne”, in Mil neuf cent 25
(2007), p. 13-28, além de Raynaud, Dominique, Sociologie des controverses scientifiques. Paris:
PUF, 2003.

13 O perspectivismo histórico de Mogens Laerke particulariza de forma original uma práti-


ca que há pouco tempo passou a ser compartilhada pelos(as) historiadores(as) da filosofia. Cf.
Les lumières de Leibniz. Controverses avec Huet, Bayle, Regis et More. Paris, Classiques Garnier,
2015.

O que nos faz pensar, Rio de Janeiro, v.26, n.41, p.141-162, jul.-dez. 2017
146 Delphine Antoine-Mahut . tradução de Pedro H. G. Muniz

não apenas no espaço social. Obras como as de Roger Ariew sobre as relações
entre o cartesianismo e a escolástica ou as de Bohatec sobre Spinoza e a esco-
lástica14 constituem ilustrações férteis desse tipo de trabalho.
(iv) As palavras-chave aqui são as de “contexto” (muitas vezes sócio-po-
lítico, mas não unicamente: interessa-nos também suas dimensões estética,
científica...), de “redes de sociabilidade erudita”, de “agôn” (designamos com
isso a estrutura eminentemente polêmica e interlocutória de todos os textos
filosóficos, a qual, por sua vez, torna-se um suporte para a discussão em um
sentido agonístico), etc.
(v) Mas existe aí também uma contrapartida: assim como podemos proble-
matizar o ontologismo espontâneo do(a) historiador(a) da filosofia, podemos
questionar a possibilidade de se descontextualizar de seu próprio presente e
de suas próprias crenças para (re)contextualizar os textos do passado. Essa
objeção é apenas uma reformulação invertida da objeção de anacronismo fei-
ta pelos(as) historiadores(as) da filosofia àqueles(as) que “instrumentalizam”
“seus” autores e os consideram como caixas de argumento. Nos dois casos, o
problema seria o choque de dois momentos históricos distintos. E esse seria
um problema na exata medida em que não veríamos, ou pior, negaríamos
essa diferença entre as situações históricas ou as épocas.
(vi) Outra forma de criticar o contextualismo consiste a conduzi-lo até
suas últimas consequências, a fim de mostrar que é precisamente aí que se
esgota a dimensão filosófica da história da filosofia. Assim, na lógica de deter-
minada história cultural15, o texto pode ser totalmente dissolvido no contexto.
E então não resta nada mais do que interações, sem o suporte, as relações, o
ser, a história, a verdade ou a eventual perenidade dos argumentos.
Um caminho complementar aos dois anteriores, e uma forma de inte-
grar as críticas das teorias da dissimulação e da história intelectual, consiste
em propor que a vitalidade ou o poder de uma filosofia seja medida pela
variedade das explorações efetivas de suas potencialidades16.

14 Roger Ariew, Descartes and the Last Scolastics, Ithaca-London, 1999 e Descartes and the First Car-
tesians, Oxford, Oxford University Press, 2014. Para discussões dos resultados da obra (já antiga) de
Bohatec, cf. Spinoza en de skolastiek, Gunther Coppens (red)., Acco Leuven/Leusden, 2003.

15 Sobre Spinoza, poderíamos dar como exemplo os trabalhos de Stanislaus von Dunin
Borkowski. Para uma avaliação global, cf. Joseph Dropp, “Stanislaus Von Dunin Borkowski, Spi-
noza. Bd. II. Aus den Tagen Spinozas. Geschehnisse, Gestalten, Gedankenwelt. Erster Teil. Das
Entscheidungsjahr 1657”. Revue néo-scolastique de philosophie, 1934 Vol. 37, N. 44, p. 409-412.

16 Até onde sei, um dos primeiros historiadores da filosofia a tematizar essa ideia é Paul Ver-
nière, em Spinoza et la pensée française avant la Révolution. Le dix-septimère siècle (1663-1735). Le

O que nos faz pensar, Rio de Janeiro, v.26, n.41, p.141-162, jul.-dez. 2017
Cartesianismos e spinozismos: rumo a uma teoria das histórias possíveis em filosofia 147

O problema, então, é mostrar como o autor original não é nem totalmente


responsável, nem totalmente inocente17 das diferentes maneiras em que o
recebemos e o atualizamos. Por que nem totalmente responsável, nem total-
mente inocente? Porque devemos reconhecer o autor em questão à sombra
da estátua de Glauco, devastada pelas enxentes de suas recepções: deve haver
um pouco de Descartes no cartesianismo e um pouco de Spinoza no spino-
zismo, e esta é a dimensão filosófica das histórias possíveis. Mas, ao mesmo
tempo, devemos tomar nota dessas deformações – talvez até das devastações
e, portanto, dos efeitos da historicidade. Caso, por ventura, ela nos permita
evitar a armadilha do ontologismo, a aplicação de tal fórmula também deve,
assim, permitir-nos escapar do relativismo.

3. A história da filosofia como estudo de recepções18

(i) Começarei a partir desta simples observação: receber um texto é selecionar e


hierarquizar – em suma, eventualmente amputar ou subverter o “sistema” inicial.
Chamo de “sistema” um conjunto ordenado de teses, o qual podemos desorga-
nizar com ainda mais facilidade justamente por causa dessa ordem inicial19. Daí
resulta que quanto mais uma filosofia se diz sistemática ou é identificada como
tal (ou seja, quanto mais ela se atém à ordem das verdades ao invés de a cada
uma delas isoladamente), mais ela pode ser deformada, ou até mesmo revertida.
Um exemplo bastante eloquente dessa potencialidade do sistema é a prá-
tica de copiar e colar nos manuscritos clandestinos. É assim que o autor de

dix-huitième siècle (primeira publicação em 1954), Genève, Slatkine Reprints, 2012, 2 vol. Para
um esclarecimento metodológico integrando os resultados de Vernière, cf. Pierre-François Mo-
reau, Problèmes du spinozisme, Paris, Vrin, 2006, Introdução.

17 De acordo com a bela formulação da introdução de Descartes et la France (op.cit) de François


Azouvi. Este último propõe uma “história filosófica das ideias” que realiza de forma singular e
especialmente convincente a hibridação que eu sugiro. Mas ele não lida com a expressão “nem to-
talmente responsável nem totalmente inocente” por ela mesma. De minha parte, é este o caminho
que eu tento seguir em Descartes radical (op.cit).

18 Deixo de lado a eventual especificidade da atualização para me ater a essa declaração simples
segundo a qual toda recepção, toda leitura é uma atualização, para então me concentrar aqui no
que os dois raciocínios têm em comum.

19 Para um estudo historiográfico esclarecedor dos usos do termo “sistema de filosofia”, cf. Leo
Catana, The historiographical concept of “system of philosophy”. Its origin, nature, influence and legiti-
macy. Brill’s Studies in Intellectual History, vol. 165, Leiden-Boston, 2008.

O que nos faz pensar, Rio de Janeiro, v.26, n.41, p.141-162, jul.-dez. 2017
148 Delphine Antoine-Mahut . tradução de Pedro H. G. Muniz

L’Âme matérielle20 isola e reinveste passagens inteiras (e literais) de A Busca da


Verdade de Malebranche, a serviço da demonstração da materialidade da alma.
Portanto, o objetivo que ele tinha era completamente diferente da perspectiva
teocêntrica que comandava a interpretação do texto inicial.
(ii) Além disso, receber um texto é identificar as principais mediações (edi-
ções, biografias, honrarias, panfletos, cursos, manuais, historiografia ...) atra-
vés das quais esse texto foi transmitido até nós. Além dos efeitos possivelmente
instigados por essas mediações em nossas práticas de leitura e de interpretação.
Dou aqui outro exemplo: a edição do Discurso do Método de Victor Cousin,
em ocasião de sua edição das Oeuvres complètes de Descartes (1824-1828). O
texto é fornecido em suas seis partes, mas teve seus três ensaios científicos
amputados: a Dioptrique, a Géométrie e os Météores – textos que, no entanto,
constituíam para Descartes aplicações indissociáveis do Discurso. É essa a
edição que os estudantes do último ano do ensino médio na França têm
hoje em mãos. Contudo, vemos claramente que essa escolha material tem
fortes consequências interpretativas: o Descartes “oficial”, que durante muito
tempo foi o único Descartes ensinado no ensino médio e na universidade, o
Descartes das Meditações e da quarta parte do Discurso, ao invés do Descartes
erudito, ou mesmo do Descartes que articula a metafísica com a física nos
Princípios de filosofia21.
(iii) Receber um texto pode ser dar continuidade ao autor, reivindicá-lo,
para eventualmente corrigi-lo, aplicá-lo a outra área a partir de seus próprios
princípios. É geralmente a partir da explicação ou da identificação, feita pelo
autor que recebe, das “intenções” do autor original no assunto, que reconsti-
tuímos a linhagem dos “ismos”.
No que concerne Descartes, podemos tomar como exemplo o trabalho de
Louis de La Forge. Ele se apresenta não apenas como comentador, explicitan-
do o texto de Descartes (L’Homme, para a edição póstuma de 1664) a partir
de todas as indicações teóricas dadas pelo próprio Descartes em seus outros
textos, mas também como alguém que dá continuidade ao trabalho sobre a
questão da união da alma e do corpo que, segundo ele, Descartes não teve

20 17 Sobre esse ponto, cf. Delphine Antoine-Mahut, “Le paradoxe des conséquences. Malebran-
che radicalisé”, La Lettre Clandestine, n° 25, julho de 2017, p. 181-200.

21 O primeiro trabalho coletivo de envergadura sobre os Princípios de filosofia data de 1994. Ele
foi publicado em 1996 por Jean-Robert Armogathe e Giulia Belgioioso em Descartes: Principia phi-
losophiae (1644-1994) Vivarium, Napoli. Quando o texto dos Princípios foi proposto no programa
da prova oral da agrégation em 1995, ele o foi apenas pelas partes I e II. E até hoje não possuímos
nenhuma edição completa de bolso em francês dos Princípios.

O que nos faz pensar, Rio de Janeiro, v.26, n.41, p.141-162, jul.-dez. 2017
Cartesianismos e spinozismos: rumo a uma teoria das histórias possíveis em filosofia 149

tempo livre o suficiente para terminar. Assim, o Traité de l’esprit de l’homme, de


ses facultés et de ses fonctions (1666) é, em certo sentido, a continuação e a ex-
plicitação, a partir do que foi conseguido nas obras publicadas (especialmente
em As Paixões da Alma), das questões relativas ao “verdadeiro homem”22.
(iv) Mas receber os textos de um autor também pode ser romper com ele,
ao pensar a partir dele, mas desta vez contra ele.
Mais uma vez, podemos nos voltar à Malebranche e às categorias que
Ferdinand Alquié forjou sobre ele: “cartesianismo aceito”, “cartesianismo mo-
dificado” e “cartesianismo arruinado”23. Pois neste caso, vemos que as duas
dimensões – de aceitação e de rejeição – podem ser combinadas em uma
única recepção. Assim, um “ismo” pode ser, ao mesmo tempo, constituído
por empréstimos e deslocamentos, talvez até mesmo de reviravoltas.
(v) Um problema surge quando as “intenções” do autor original entram
em conflito com as do autor que recebe.
Um dos exemplos patentes desse conflito é a relação entre Descartes e Re-
gius24. Pois, por um lado, vemos Descartes passar de um combate comum co-
mandado ao lado de Regius contra os teólogos aristotélicos de Utrecht a uma
negação pública de qualquer forma de filiação entre ele e Regius (na carta que
foi o prefácio dos Princípios de Filosofia e nas Notae in programma quoddam).
E por outro lado25, constatamos que Regius reivindica, por sua própria conta
e até o fim de sua vida (através das três edições e transformações sucessivas
dos Fundamenta Physices na Philosophia naturalis, de 1646 a 1661), a explo-
ração plenamente coerente do que, segundo ele, constitui o núcleo duro do
cartesianismo a partir de 1638 (após a publicação do Discurso do Método e
dos Ensaios). Tal núcleo seria uma filosofia natural, isto é, proporcional aos
limites do entendimento humano, e expurgada de suas escórias e pretensões
ontológico-metafísicas.

22 Sobre as diferentes estratégias de Clerselier, La Forge e Schuyl e, de forma mais geral, sobre
as histórias possíveis de L’Homme, cf. Delphine Antoine-Mahut, “The Story of Man”, in Descartes’s
Treatise on Man and its Reception, ed. Delphine Antoine-Mahut & Stephen Gaukroger, Springer,
2017, p. 1-30.

23 Le cartésianisme de Malebranche, Paris, Vrin, 1976.

24 É essa relação que serve como fio condutor em Descartes radical (op.cit.).

25 Não se trata aqui de retomar o princípio de simetria teorizado por David Bloor para propor
o que seria uma “contra-história” do cartesianismo. Meu objetivo é, antes, problematizar a rela-
tividade de uma forma de pensar, fazendo isso através de um retorno à história e se remetendo
unicamente ao que o autor em questão poderia ele próprio ter dito, a fim de apreciar os períme-
tros de um “ismo”.

O que nos faz pensar, Rio de Janeiro, v.26, n.41, p.141-162, jul.-dez. 2017
150 Delphine Antoine-Mahut . tradução de Pedro H. G. Muniz

Além da grandíssima fragilidade da categoria da “intenção” (inclusive quan-


do ela é explícita) para servir como critério para um estudo de recepções, vemos
que colocá-las em conflito produz um efeito epistemológico imediato. Assim, o
desvio por Regius nos permite ver e tornar claro, nos próprios textos metafísicos
de Descartes, o que não vimos, ou não vimos tão bem, com lentes que eram por
demais cousinianas ou cartesianas (faço referência aqui, por exemplo, ao Des-
cartes das Notae in programma, que estende o inatismo a todas as nossas ideias).
É uma das conquistas dos trabalhos de Desmond Clarke26 ter demonstrado
que, nos próprios textos metafísicos, Descartes teorizava mais um dualismo de
propriedades do que um dualismo de substâncias. Desmond Clarke chega aos
textos metafísicos através da filosofia natural e defende a tese da coerência da
evolução de Regius no que concerne ao núcleo cartesiano comum dos primeiros
tempos da relação entre os dois homens. Ele mostra assim o que a reviravolta
dualita das Meditações apresenta de irreconciliável ​​com essas potencialidades
primeiras e, portanto, em que ele as enfraquece ou até mesmo as desnatura.
(vi) Compreendemos de uma vez só em que um rigoroso estudo das recep-
ções implica a combinação de todos os níveis de análise que distinguimos an-
teriormente. Tomemos novamente o exemplo de La Forge e seu trabalho sobre
a ideia material no Traité de l’esprit de l’homme, de ses facultés et de ses fonctions.
O autor das longas observações sobre o tratado de L’Homme de Descartes
está ciente, antes de tudo, da definição que Descartes propõe sobre essa ideia
material no tratado. Neste último, em vários momentos o conceito de ideia
é mobilizado para designar a impressão deixada pelos espíritos animais na
glândula pineal. Este texto é certamente póstumo. Mas enquanto Descartes
ainda estava vivo, ele circulou na forma de cópias (nível 1 do trabalho do(a)
historiador(a) da filosofia). Além disso, Descartes confrontou graves polêmicas
em relação a essa questão da ideia material. Assim, em suas respostas às ter-
ceiras Objeções de Hobbes, ele apresenta essa concepção da ideia como abso-
lutamente estranha ao raciocínio das Meditaões e aos sentidos psicológicos da
ideia que são definidos na obra: ideia falsa, ideia adventícia e ideia inata (nível
2: aqui integramos a dimensão agonística do contexto)27. A controvérsia com
Regius leva Descartes, nas Notae in programma, a ampliar o qualitativo “inato”

26 Cf . em especial Desmond Clarke, Descartes’s Theory of Mind. Oxford: Oxford University Press,
1992 e “The Physics and Metaphysics of the Mind: Descartes and Regiu”, in Mind, Method, and
Morality: Essays in Honour of Anthony Kenny, ed. John Cottingham & Peter Hacker, Oxford: Oxford
University Press, 2010, p. 187-207.

27 Sobre este ponto, cf. D. Antoine-Mahut, “Reintroducing Descartes in the History of Mate-
rialism. The Effects of the Descartes/Hobbes debate on the First Reception of Cartesianism”, in

O que nos faz pensar, Rio de Janeiro, v.26, n.41, p.141-162, jul.-dez. 2017
Cartesianismos e spinozismos: rumo a uma teoria das histórias possíveis em filosofia 151

para todas as nossas ideias. La Forge recebe esses diferentes textos e seus dife-
rentes estratos no momento em que Clerselier tenta dar ao público a “obra” de
Descartes, e no momento em que ela é colocada no index, donec corrigantur28,
especialmente devido à identificação da matéria com a extensão e, portanto,
devido ao seu potencial materialista (combinação dos níveis 2 e 3).
Tendo sido posto tal cenário, é preciso retornar à primeira observação
de La Forge em sua introdução. Um cartesiano “escrupuloso”, enfatiza ele,
poderia se surpreender ao não encontrar nessa obra a definição material da
ideia que ele espera29. Esta é a primeira correção decisiva de nossas lentes
contemporâneas. Descartes não é mais primeiramente, ou pior, não é mais
somente o promotor de uma filosofia do sujeito espiritualista. Ele é o teó-
rico (e o receptor) de determinada concepção material da ideia através da
qual ele é, por sua vez, identificado por outros receptores (essencialmente
médicos, segundo o que escreveu La Forge). O segundo procedimento de
La Forge consiste em distinguir entre o sentido material e o sentido psicoló-
gico da ideia, a fim de se livrar do que ele identifica como sendo equívocos,
explicando que a partir de então o termo “ideia” será reservado ao segundo
sentido (o sentido psicológico).
Mas ao fazer isso, La Forge reabre todas as possibilidades que o texto pú-
blico de Descartes havia fechado. Ele reinsere L’Homme em uma posição espe-
cífica dentro de um conjunto de textos no qual as Meditações só podem fazer
sentido se articuladas com os outros, e o qual Descartes não havia considerado
oportuno divulgar. Assim, La Forge legitima as explorações posteriores dessas

Cartesian Mind and Nature. Essays on honor of Desmond Clarke. Stephen Gaukroger & Catherine
Wilson eds, New-York, OUP, 2017.

28 Sobre este ponto, e para um retorno aos termos precisos da inclusão no index, cf. R. Ariew.
Descartes’ Meditations. Background Sources and Materials.

29 “Encore que dans les écrits de M. Descartes le nom d’Idée soit aussi bien donné aux espèces
corporelles, c’est-à-dire aux impressions des objets sur les sens, auxquelles les pensées de l’esprit
sont attachées, comme aux idées qui appartiennent particulièrement à l’esprit, et qui sont les
formes de ses pensées, néanmoins (…) dans tout ce Traité, pour éviter la confusion et l’équivoque,
je ne prends jamais le nom d’idée que dans ce dernier sens, et j’appelle les autres idées du nom
d’espèces corporelles. Cela étant supposé, nous définissons avec M. Descartes les idées ou notions
spirituelles, cette forme de chacune de nos pensées par la perception immédiate de laquelle nous
avons connaissance de ces mêmes pensées, en telle sorte que nous ne pouvons rien exprimer par
paroles, lorsque nous entendons ce que nous disons, que de cela même il ne soit évident que nous
avons en nous l’idée de la chose signifiée par nos paroles, et nous appelons espèces corporelles,
l’impression que fait l’objet intérieur ou extérieur sur nos sens intérieurs ou extérieurs (à laquelle
la pensée ou le sentiment que nous avons à son occasion est attachée)” (La Forge, Oeuvres philo-
sophiques. Avec une étudi bio-bibliographique. Edição anotada e apresentada por Pierre Clair, Paris,
PUF, 1974, Cap. X, p. 15).

O que nos faz pensar, Rio de Janeiro, v.26, n.41, p.141-162, jul.-dez. 2017
152 Delphine Antoine-Mahut . tradução de Pedro H. G. Muniz

tendências, tanto de uma quanto da outra, mesmo que eles sejam contrárias
ou contraditórias entre si, porque elas coabitam ou são compossíveis na obra
que Descartes concebe como um todo. Além disso, estrategicamente, La For-
ge cria para si um meio de responder, em um contexto que não é mais o de
Descartes, às objeções de materialismo ou dos materialistas que são feitas
contra este último. Assim, poderemos defender o equilíbrio e hierarquização
propriamente cartesiana entre a ideia no sentido psicológico e a ideia material,
contra os materialistas ou contra as acusações de materialismo formuladas
contra Descartes. E poderemos igualmente discutir passo a passo a concep-
ção material da ideia de seus próprios adversários, o que Descartes havia se
recusado a fazer com Hobbes. Os dois procedimentos são complementares
para La Forge. Além disso, esta recepção indica implicitamente que é porque
Descartes não reservou um tempo para (ou não se preocupou com) realmente
dar uma resposta a Hobbes, que em outro contexto outra pessoa deve fazer
isso por ele, e se possível em seu nome.
Podemos agora voltar à questão de François Azouvi: como determinar o
conjunto das recepções/atualizações pelas quais Descartes não é nem total-
mente responsável nem totalmente inocente?

4. Rumo a uma teoria das histórias possíveis

As análises precedentes nos levam às cinco conclusões seguintes, a partir das


quais podemos estabelecer os fundamentos de uma teoria das histórias pos-
síveis em filosofia.
(i) Antes de tudo, as histórias que poderíamos designar como impossíveis, no
sentido de que elas seriam excluídas do perímetro do “ismo” ou dos “ismos” con-
cebidos (os cartesianismos sem Descartes ou os spinozismos sem Spinoza), não po-
dem ser identificadas de forma absoluta com aquelas que o próprio autor designou
como impossíveis, na maioria das vezes a posteriori e no calor de uma polêmica.
Assim, ao assimilar essa primeira precaução metodológica, podemos rein-
tegrar Regius em uma história do cartesianismo aberta aos saberes positivos
e às mutações decisivas que acompanharam o nascimento da antropologia
moderna. Com isso estaremos seguindo Theo Verbeek, Erik-Jan Bos, Des-
mond Clarke ou, mais recentemente, Tad Schmaltz30. Mas também, antes

30 Para Desmond Clarke, ver a nota 26. Para Theo Verbeek, cf. principalmente Descartes and the
Dutch. Early Reactions to Cartesian Philosophy. 1637-1650. Carbondale, Southern Illinois University

O que nos faz pensar, Rio de Janeiro, v.26, n.41, p.141-162, jul.-dez. 2017
Cartesianismos e spinozismos: rumo a uma teoria das histórias possíveis em filosofia 153

deles, Destutt de Tracy, em seu artigo “Sur les lettres de Descartes”, Renouvier,
em seu Manuel de philosophie moderne, ou Marx, em A Sagrada Família31. Além
disso, podemos interrogar novamente as relações familiares entre os filósofos,
aproximando, por exemplo, Locke e Malebranche32, portanto energizando e
complexificando uma concepção da história da filosofia compreendida como
um simples cara a cara entre Deuses e Gigantes33.
(ii) Uma teoria das histórias possíveis implica que renovemos a questão
das “intenções” através dos efeitos produzidos pelas potencialidades do(s)
texto(s). Trata-se, portanto, de des-psicologizar ou até mesmo desmoralizar
a história da filosofia, liberando-se em especial da exigência de “fidelidade
a qualquer preço” e da consequente propensão a denunciar como “falsa” ou
“ruim” qualquer leitura que derrogue o que é identificado como sendo a “in-
tenção” do autor. Assim, o ganho teórico imediato deste método é a revelação
de novos objetos para o(a) historiador(a) da filosofia: um conjunto variado de
recepções efetivas e eventualmente “contrárias” a essas “intenções”. Mas, en-
tão, como explicar que o autor não é inteiramente inocente disso? Em outras
palavras, como conservar a relação com o texto original?

Press, 1992, p. 13-32 (“The Utrecht Crisis”); (ed.) Descartes and Regius. Autour de l’explication de
l’esprit humain. Amsterdam, Rodolpi, 1993 e “Regius’s Fundamenta physices”, Journal of the History
of Ideas 55, 533-551. Para Erik-Jan Bos, ver The Correspondence between Descartes and Henricus
Regius. Utrecht, the Leiden-Utrecht Institute of Philosophy, 2002 e “Henricus Regius et les limites
de la philosophie cartésienne », in D. Kolesnik-Antoine (Antoine-Mahut), Qu’est-ce qu’être carté-
sien ? Lyon, ENS Editions, p. 53-68. Para Tad Schmaltz, cf. Early Modern Cartesianism. Dutch and
French Constructions. Oxford, Oxford University Press, 2016, especialmente as páginas 239 a 259.

31 Para Destutt de Tracy, ver “Sur les lettres de Descartes”, 1º de junho de 1806, in Josiane Bou-
lad-Ayoub, ed., La Décade comme système, vol. I, L’Encyclopédie vivante, Rennes, PUR, 2003, p. 411-
417. Destutt apresenta Regius como tendo trazido o verdadeiro núcleo da nova metafísica, reins-
creve-o assim em uma linhagem que vai até Locke e os Ideólogos. Em seu Manuel de philosophie
moderne (Paris, Paulin, 1842), Renouvier exibe, para fins críticos, a filiação médico-materialista
que une Regius, La Mettrie e Cabanis. É essa passagem que é retomada por Marx e Engels em A
Sagrada Família (1844), com um juízo apreciativo bem diferente. A ligação entre os dois textos foi
evidenciada e estudada por Olivier. R. Bloch em “Marx, Renouvier et l’histoire du matérialisme”,
in Matière à histoire, Paris, Vrin, 1997, p. 384-441. Volto a questão de outro modo, isto é, para
pensar um cartesianismo empírico por si mesmo, em Descartes radical, op.cit.

32 Cf. a minha contribuição “Is the History of Philosophy a Family Affair? The examples of Locke
and Malebranche in the Cousinian School”, in Philosophy and its History. New Essays on the Methods
and Aims of Research in the History of Philosophy. Dir. Eric Schliesser, Justin Smith et Mogens Laerke,
New-York, Oxford University Press, 2013, p. 159-177.

33 Cf. a minha contribuição “L’historien des idées au travail: un corps à corps avec des Dieux et
des Géants?”, in Liberté de conscience et arts de penser (XVIe-XVIIIe siècles). Mélanges en l’honneur
d’Antony Mc Kenna. Dir. Christelle Bahier-Porte, Pierre-François Moreau et Delphine Reguig. Pa-
ris, Champion, 2017.

O que nos faz pensar, Rio de Janeiro, v.26, n.41, p.141-162, jul.-dez. 2017
154 Delphine Antoine-Mahut . tradução de Pedro H. G. Muniz

Mais uma vez, um exemplo pertinente é o da recepção da filosofia de Ma-


lebranche por uma grande parcela do Iluminismo radical, pois ela pode ser
descrita nos termos weberianos do “paradoxo das consequências”, isto é, pela
atualização de efeitos contrários às “intenções” do autor. Ao mesmo tempo,
podemos descrevê-la como reinvestindo materiais literalmente malebranchis-
tas para a edificação desses materialismos do Iluminismo (a extensão da con-
cepção mecanicista do corpo à ação remota que os corpos têm no espaço e no
tempo, além da teoria sobre a opacidade que a alma tem a si mesma durante
sua vida terrestre)34. Essa história, por muito tempo considerada como im-
possível para um(a) historiador(a) da filosofia malebranchista, incita este(a)
último(a) a reconsiderar a importância dos desenvolvimentos fisiológicos na
economia argumentativa de A Busca da Verdade, a distinguir diferentes trata-
mentos de causalidade ocasional em Malebranche, e a compreender de que
maneira aquilo que na obra de Malebranche serve à tese da impotência da
alma humana nesta vida também pode ser reinvestido por um projeto de
fisiologização do cristianismo.
(iii) Nossa terceira conclusão é que existem, na história da filosofia, his-
tórias que são ao mesmo tempo compossíveis e contraditórias. Podemos
compreender isso facilmente se retornarmos à nossa concepção inicial de
sistema. Nesse lugar onde prevalece a noção de ordem (a metafísica como
raíz da física, por exemplo, ou a causalidade ocasional como princípio de
particularização de uma causalidade divina única e eficiente), na verdade se
desenham teses ou argumentos recebidos ou integralmente repensados por
seus autores (o cogito em Descartes, ou seu declínio em Malebranche, a física
mecanicista, etc.) e posteriormente identificados por outros como marcado-
res da filosofia desses autores. Independentemente do lugar que ocupavam
na ordem inicial, eles podem em seguida ser reinvestidos e explorados em
nome desse autor e, portanto, manter alguns traços identitários do rosto
deste último na estátua de Glauco.
Assim, ao lado do(s) Malebranche(s) dos materialistas do Iluminismo,
coabita(m) o(s) dos “antifilósofos” ou dos “inimigos dos filósofos” que, por
sua vez, são muito mais atentos à epistemologia da visão em Deus que à fisio-
logia do Oratoriano35. “Repovoar a história da filosofia”, para usar a fórmula
do lema da jornada de estudos organizada por Maxime Rovere, significa dar

34 Este é o assunto do meu artigo “Le paradoxe des conséquences. Malebranche radicalisé”, op. cit.

35 Cf. meu verbete “Malebranche” no Dictionnaire des anti-Lumières et des anti-philosophes. France,
1715-1815, dir. Didier Masseau, Paris, Champion, 2017, vol. 2, p. 1013-1018.

O que nos faz pensar, Rio de Janeiro, v.26, n.41, p.141-162, jul.-dez. 2017
Cartesianismos e spinozismos: rumo a uma teoria das histórias possíveis em filosofia 155

lugar aqui a essas explorações divergentes ou até mesmo contraditórias de


uma mesma filosofia. Significa, portanto, abrir-se à alteridade, contanto que
cada uma dessas manifestações não se pretenda passar como a única possível.
(iv) Dessa forma, devemos estabelecer uma distinção complemen-
tar e decisiva para uma teoria das histórias possíveis. Se nem toda história
é possível, no sentido de não ser aceitável a título de recepção particular
dessa filosofia no conjunto ampliado da “história da filosofia” que estamos
procuramos circunscrever, isso significa que deve haver histórias ao mesmo
tempo impossíveis36 e reais. São essas histórias que poderemos, por exemplo,
designar como ficções.
A título dessas ficções, poderemos distinguir projetos tão diferentes
quanto os do romance37 ou da interpretação unívoca – que exclui como sem
cabimento a exploração de qualquer outra potencialidade do texto de origem
além da que ela escolheu (o que, por exemplo, faria de Descartes ou um
libertino38, ou um onto-teólogo). Vemos aqui que o procedimento é neces-
sário, pois se toda história for possível, perdemos a dimensão filosófica; e é
também delicado, já que risca de reintroduzir o normativo onde havíamos
precisamente tentado identificá-lo para melhor eliminá-lo. A delineação da
fronteira entre a história possível real e a história fictícia ou imaginária real
é, assim, uma das questões mais essenciais e complexas para uma teoria das
histórias possíveis39.

36 Esta é uma grande diferença entre uma teoria como a dos textos possíveis, forjada por Michel
Charles em Literatura (Introduction à l’étude des textes, Paris, Seuil, 1995) e uma teoria das histó-
rias possíveis. Uma questão a aprofundar seria a de saber se essa distinção permite também de
distinguir uma abordagem literária de uma abordagem filosófica, por exemplo a partir de uma
diferenciação entre a variedade infinita das interpretações possíveis e o caráter indefinido, ou seja, ao
mesmo tempo plural e limitado, das histórias possíveis.

37 Por exemplo, o de Vincent Jullien sobre Descartes (Les ombres de la place royale. Paris, Stock,
2006). A diferença entre a abordagem de Vincent Jullien e a de Maxime Rovere em Le clan Spinoza.
Amsterdam 1677. L’invention de la liberté. Paris, Flammarion, 2017, estaria, portanto, na função que
é destinada aos documentos históricos na reconstituição final da intriga.

38 A sistematização das regras de leitura dos teóricos da dissimulação leva, assim, a resultados
filosoficamente tão possíveis quanto os que desenvolve Anne Staquet em Descartes et le libertinage.
Paris, Hermann, 2009.

39 Encontramos uma formulação muito clara dessa diferença entre “história imaginária” e
“história real demais” no trabalho de um dos críticos mais sutis do ecletismo de Victor Cousin:
Jean Saphary, em L’école éclectique et la philosophie française, Paris, Joubert, Libraire-Editeur, 1844,
Prefácio, p. XXXII, nota 1: “La date de nos troubles à l’université coïncide avec la date de cette phi-
losophie qui, brisant les limites anciennes d’un enseignement circonscrit par des mains prudentes,
nous a jetés sans boussole sur une mer sans rive, nous voulons dire cette histoire imaginaire de
la philosophie qui n’a été que l’histoire trop réelle des cerveaux les plus désordonnés”. Com isso,

O que nos faz pensar, Rio de Janeiro, v.26, n.41, p.141-162, jul.-dez. 2017
156 Delphine Antoine-Mahut . tradução de Pedro H. G. Muniz

Um dos pontos essenciais do que foi dito, no entanto, continua sendo que
uma história impossível, porém real, pode incluir a história que é contada
pelo próprio autor sobre seus próprios textos. Essa ficção torna-se, em segui-
da, a história oficial ou dominante, repetida ou contada pelos outros leitores.
Tomemos novamente o exemplo de La Forge. Em 1666, ele se encontra
frente a outras histórias reais do cartesianismo, diferentes da que foi contada
por Descartes. Em especial a Philosophia naturalis de Regius, que é uma das
(ou até mesmo a única) referências cartesianas em fisiologia para seus con-
temporâneos. O conteúdo dessa obra foi banido publicamente por Descartes
como sendo impossível, com base em seus próprios princípios. Enquanto
Clerselier opta por uma estratégia de condenação de Regius (por uma promo-
ção da história dominante, portanto), La Forge, de sua parte, leva em conta
esse modelo concorrente. Assim, a abertura à alteridade da teoria das histó-
rias possíveis tem uma ampla dimensão política.
(v) O que há então de simultaneamente histórico e filosófico em uma te-
oria de histórias possíveis? Eu diria que ela desloca a oposição clássica entre
história e verdade por um estudo da historicidade dos argumentos filosóficos.
Insistir na noção de argumentos é uma maneira de responder a Quine.
O que faz com que o autor original nunca seja totalmente inocente do que
fazemos dele é um conteúdo filosófico, ou um conjunto de teses ou filosofe-
mas, que reorganizamos e reinvestimos em contextos e estratégias argumen-
tativas diferentes, mas que permanecem identificáveis ​​como provenientes
desse autor.
Além disso, insistir na historicidade é uma maneira de responder a uma
objeção do tipo da que fez Quentin Skinner e, através de Skinner, teóricos
da história intelectual: “Until I was thirty years old and upwards I rarely
looked at a history – except histories of philosophy, which don’t count”40. Se
a história da filosofia entendida como um estudo das histórias possíveis de
uma filosofia não é precisamente a-histórica, isso é porque, de fato, ela se
preocupa em estar aberta a todas as transformações e deformações que pode
sofrer essa filosofia em uma história na qual, mesmo assim, continuamos a
identificá-la como essa filosofia.

o Descartes dualista e metafiísico de Cousin permite muito bem reconhecer este outro, sob as
deformações da estátua de Glauco. A pressão de circunstâncias políticas singulares pode assim
servir como critério para discriminar o possível real do possível imaginário. Mas não é certo que
o critério permaneça então plenamente filosófico.

40 F.W. Maitland para Lord Acton, 1896. Citado na epígrafe de Quentin Skinner, Liberty before
Liberalism. Cambridge, Cambridge University Press, 1998.

O que nos faz pensar, Rio de Janeiro, v.26, n.41, p.141-162, jul.-dez. 2017
Cartesianismos e spinozismos: rumo a uma teoria das histórias possíveis em filosofia 157

Para concluir, esboçarei três direções de pesquisa para repensar, a partir


dessa teoria das histórias possíveis, as relações entre Descartes e Spinoza e,
de maneira mais ampla, nossas práticas como historiadores(as) da filosofia
da era clássica.
(i) Ao mobilizar as ferramentas dos níveis 1 e 2 descritos acima, podemos,
por exemplo, dando continuidade ao trabalho de Theo Verbeek41, tentar tecer
novamente uma continuidade teórica entre Descartes e Spinoza através de
Regius. Ao insistir na diferença entre os dois “mundos”, Theo Verbeek mostra
que Pieter Van Wassenaer e Pieter de La Court exibem uma nova potenciali-
dade política do cartesianismo que poderia muito bem ser compossível com
os argumentos centrais do spinozismo. Eles retomam a exposição de Regius
em De affectibus animi disertatio do que identificam como sendo a teoria car-
tesiana das paixões. Assim, um novo objeto teórico entraria na história da
filosofia, o qual poderíamos situar na continuidade do vínculo metafísico es-
tabelecido por Destutt de Tracy entre Descartes e Locke ou Condillac, através
de Regius e sua crítica das abstrações. Como a nova metafísica empirista e
preocupada com os limites do conhecimento humano se tornaria, através de
Destutt, um objeto “cartesiano”, uma política cartesiana das paixões expur-
gada de sua ontologia dualista se tornaria, através de Wassenaer e La Court,
um objeto “spinozista”.
(ii) De maneira mais ampla, o que a historiografia dominante (especial-
mente a de Victor Cousin) tem tematizado como o “risco” spinozista do car-
tesianismo42, reencontraria sua função em uma teoria das histórias possíveis
deste último. Assim, a acusação central de “panteísmo” seria estudada como

41 “Regius on the passions (1650)”, in Cartesian Mind and Nature. Essays on honor of Desmond
Clarke. Stephen Gaukroger and Catherine Wilson eds, New-York, OUP, 2017.

42 Sobre esse ponto, cf. as contribuições de Pierre-François Moreau, “Spinoza et Vic-


tor Cousin”, Archivio di filosofia, 1978, I, p. 327-331; “Spinozisme et matérialisme
au xixe siècle”, Raison présente, 1979, n° 52, p. 85-94; “Saisset, lecteur de Spinoza”, Recherches
sur le xviie  siècle,  1980, IV, p. 85-97; “Trois polémiques contre Victor Cousin”, Revue de mé-
taphysique et demorale, 1983, 4, p. 542-548; “Spinozisme et panthéisme”, in: Spinoza entre
Lumières et Romantisme, Cahiers de Fontenay, 1985, p. 207-213; “Les enjeux de la publication
en France des papiers de Leibniz sur Spinoza”, Revue de métaphysique et de morale, 1988, 2,
p. 215-222; “La reception de Spinoza au XIX° et XX° siècles”, in Pierre-François Moreau &
Charles Ramond. Lectures de Spinoza, Ellipses, 2006; “Traduire Spinoza: l’exemple d’Émile
Saisset”, in André Tosel, Pierre-François Moreau et Jean Salem (dir.) : Spinoza en France au
XIXe siècle, Publications de la Sorbonne, 2008, p. 221-230; “Ajourner l’ontologie”, in Del-
phine Kolesnik-Antoine (Antoine-Mahut), Qu’est-ce qu’être cartésien?, ENS Editions, 2013 e
“In naturalismo. Leibniz, Spinoza et les spiritualistes français”, inRaphaële Andrault, Mogens
Laerke, P.-F. Moreau: Leibniz et Spinoza, PUPS, 2014.

O que nos faz pensar, Rio de Janeiro, v.26, n.41, p.141-162, jul.-dez. 2017
158 Delphine Antoine-Mahut . tradução de Pedro H. G. Muniz

um reinvestimento de filosofemas potencialmente comuns a ambas as filoso-


fias, e declinados, por exemplo, como deformações cartesiano-spinozistas da
tese malebranchista da extensão inteligível43.
(iii) Por fim, essa teoria das histórias possíveis abre um caminho para
novas pesquisas sobre as atualizações possíveis das filosofias da era clássi-
ca. Ela nos liberta do escrúpulo do anacronismo, uma vez que assumimos a
heterogeneidade irredutivível dos contextos. Mas ainda assim, elas mantêm
o vínculo histórico, já que se trata precisamente de testar a capacidade que
os argumentos ou os filosofemas identificáveis como próprios do autor do
passado têm de esclarecer, mover, resolver... questões contemporâneas. Se a
força de uma filosofia se mede pela variedade indefinida de suas recepções,
então testar essa plasticidade em nossa atualidade também é por direito o
trabalho do(a) historiador(a) da filosofia44.

Referências

ALQUIE, Ferdinand. Le cartésianisme de Malebranche. Paris: Vrin, 1976.


ANTOINE-MAHUT, Delphine; LÉZÉ, Samuel. Les Classiques à l’épreuve. Actualité de
l’histoire de la philosophie. Paris : Editions des Archives Contemporaines, 2017.
______. Le paradoxe des conséquences. Malebranche radicalisé. La Lettre Clandestine,
n° 25, p. 181-200, jul. 2017.
______. The Story of Man. In: ANTOINE-MAHUT, Delphine; GAUKROGER, Stephen
(ed.). Descartes’s Treatise on Man and its Reception. Springer, 2017, p. 1-30. DOI:
http://dx.doi.org/ doi: 10.1007/978-3-319-46989-8_1.
______. Reintroducing Descartes in the History of Materialism. The Effects of the
Descartes/Hobbes debate on the First Reception of Cartesianism. In: GAUKROGER,
Stephen; WILSON, Catherine (ed.). Cartesian Mind and Nature. Essays on honor of
Desmond Clarke. New York: OUP, 2017.

43 Cf. Pierre-François Moreau, “Le Bord du précipice. Dortous de Mairan entre Malebranche
et Spinoza”, in: Raffaele Carbone, Chantal Jaquet, Pierre-François Moreau: Spinoza et Male-
branche. À la croisée des interprétations,  ENS-Éditions, 2017.

44 Se substituirmos o léxico dos efeitos pelo da influência, podemos reencontrar as grandes


linhas dessa análise de Victor Delbos em Le Problème moral dans la philosophie de Spinoza, Paris,
1893, Prefácio, p. VI: “Si la force interne d’une doctrine se mesure au degré d’organisation qu’elle
implique, on dirait au contraire que son influence historique se mesure au degré de désorganisa-
tion qu’elle est capable de subir sans être dénaturée en son fond”.

O que nos faz pensar, Rio de Janeiro, v.26, n.41, p.141-162, jul.-dez. 2017
Cartesianismos e spinozismos: rumo a uma teoria das histórias possíveis em filosofia 159

_____. L’historien des idées au travail: un corps à corps avec des Dieux et des Géants?
In: BAHIER-PORTE, Christelle; MOREAU, Pierre-François; REGUIG, Delphine (dir.).
Liberté de conscience et arts de penser (XVIe-XVIIIe siècles). Mélanges en l’honneur
d’Antony Mc Kenna. Paris: Champion, 2017.
_____. Malebranche (verbete). In: MASSEAU, Didier. Dictionnaire des anti-Lumières et
des anti-philosophes. France, 1715-1815. Paris : Champion, 2017, vol. 2, p. 1013-1018.
ARIEW, Roger. Descartes and the First Cartesians. Oxford: Oxford University Press,
2014.
______. Descartes and the Last Scolastics. Ithaca/NY;London, Cornell University Press,
1999.
ARMOGATHE, Jean-Robert; BELGIOIOSO, Giulia (org.). Descartes: Principia
philosophiae (1644-1994). Atti del Convegno per il 350. anniversario della
pubblicazione dell’opera: Parigi, 5-6 maggio 1994, Lecce, 10-12 novembre
1994. Napoli: Vivarium, 1996.
AZOUVI, François, Descartes et la France. Histoire d’une passion nationale. Paris :
Arthème-Fayard, 2002.
BENNETT, J. Response to Garber and Rée. In: HARE, Peter H. (ed.). Doing Philosophy
Historically. Buffalo: Pergamon Press ; Prometheus Books, 1988, p. 27-69.
BLOCH, Olivier R. Marx, Renouvier et l’histoire du matérialisme. In: ______. Matière
à histoire. Paris: Vrin, 1997, p. 384-441.
BOS, Erik-Jan. The Correspondence between Descartes and Henricus Regius. Utrecht: the
Leiden-Utrecht Institute of Philosophy, 2002.
______. Henricus Regius et les limites de la philosophie cartésienne. In D. Kolesnik-
Antoine (Antoine-Mahut), D. (ed.). Qu’est-ce qu’être cartésien ? Lyon: ENS Editions, p.
53-68.
CATANA, Leo. The historiographical concept ‘system of philosophy’: Its origin, nature,
influence and legitimacy. Leiden ; Boston: Brill, 2008. 384 p. (Brill’s studies in
intellectual history; No. 165).
CAVAILLE, Jean-Pierre. L’art d’écrire des philosophes. Critique, n. 631, p. 959-980,
dez. 1999.
______. Les Déniaisés - Irréligion et libertinage au début de l’époque moderne. Paris:
Garnier, 2014.
______. Libertinage et dissimulation, quelques éléments de réflexion. Libertinage et
Philosophie au XVIIe siècle, n. 5, p. 57-82, 2001.
CLARKE, Desmond. The Physics and Metaphysics of the Mind: Descartes and Regiu.
In: COTTINGHAM, John; HACKER, Peter (ed.). Mind, Method, and Morality: Essays in
Honour of Anthony Kenny. Oxford: Oxford University Press, 2010, p. 187-207.
______. Descartes’s Theory of Mind. Oxford: Oxford University Press, 1992.
CHARLES, Michel. Introduction à l’étude des textes. Paris : Seuil, 1995.
COPPENS, Gunther (red). Spinoza en de skolastiek. Leuven/Leusden: Acco, 2003.
DESTUTT DE TRACY, Antoine. Sur les lettres de Descartes. 1º de junho de 1806.

O que nos faz pensar, Rio de Janeiro, v.26, n.41, p.141-162, jul.-dez. 2017
160 Delphine Antoine-Mahut . tradução de Pedro H. G. Muniz

In: BOULAD-AYOUB, Josiane (ed.). La Décade comme système, vol. I, L’Encyclopédie


vivante. Rennes: PUR, 2003, p. 411-417.
DROPP Joseph. Stanislaus Von Dunin Borkowski, Spinoza. Bd. II. Aus den Tagen
Spinozas. Geschehnisse, Gestalten, Gedankenwelt. Erster Teil. Das Entscheidungsjahr
1657. Revue néo-scolastique de philosophie, Vol. 37, N. 44, p. 409-412, 1934.
FABIANI, Jean-Louis. Controverses scientifiques, controversies philosophiques.
Figures, positions, trajets. Enquête, n. 5, p.11-34, 1997.
GARBER, Dan. Au-delà des arguments des philosophes. In : ZARKA, Y.-C. Comment
écrire l’histoire de la philosophie? Paris : PUF Quadrige, 2001, p. 231-245.
______. Does History Have a Future? Some Reflections on Bennett and Doing
Philosophy Historically. In: HARE, Peter H. (ed.). Doing Philosophy Historically.
Buffalo: Pergamon Press ; Prometheus Books, 1988, p. 27-69.
GUEROULT, Martial. Descartes selon l’ordre des raisons. Paris, Aubier, 1953, 2 vols.
HALLYN, Fermand. Descartes. Dissimulation et ironie. Genève : Droz, 2006.
ISRAËL, Jonathan. Les Lumières radicales. La philosophie, Spinoza et la naissance de
la modernité (1650-1750). Traduzido do inglês para o francês (2001) por Pauline
Hugues, Charlotte Nordmann e Jérôme Rosanvallon. Paris: Editions d’Amsterdam,
2005.
JULLIEN, Vincent. Les ombres de la place royale. Paris : Stock, 2006.
KOLESNIK-ANTOINE, Delphine. Is the History of Philosophy a Family Affair? The
examples of Locke and Malebranche in the Cousinian School. In: SCHLIESSER, Eric;
SMITH, Justin; LAERKE, Mogens (dir.). Philosophy and its History. New Essays on
the Methods and Aims of Research in the History of Philosophy. New York: Oxford
University Press, 2013, p. 159-177.
LA FORGE, Louis de. Oeuvres philosophiques. Avec une étudi bio-bibliographique.
Edição anotada e apresentada por Pierre Clair. Paris, PUF, 1974.
LAERKE, Mogens. Les lumières de Leibniz. Controverses avec Huet, Bayle, Regis et
More. Paris : Classiques Garnier, 2015.
LILTI, Antoine. Querelles et controverses. Les formes du désaccord intellectuel à
l’époque moderne. Mil neuf cent, n. 25, p. 13-28, 2007.
MACINTYRE, Alasdait. The Relashionship of Philosophy to its Past. In: RORTY,
Richard; SCHNEEWIND, J.-B.; Skinner, Quentin (ed.). Philosophy in History.
Cambridge: CUP, 1984, p. 39-40.
MOREAU, Pierre-François. Spinoza est-il spinoziste?. In: SECRETAN, Catherine;
DAGRON, Tristan; BOVE, Laurent. Qu’est-ce que les lumières radicales? Libertinage,
athéisme et spinozisme dans le tournant de l’âge classique. Paris: Editions Amsterdam,
2007, p. 289-298.
______. Problèmes du spinozisme. Paris: Vrin, 2006.
______. Spinoza et Victor Cousin. Archivio di filosofia, n.  I, p. 327-331, 1978.
______. Spinozisme et matérialisme au xixe siècle. Raison présente, n. 52, p. 85-94,
1979.

O que nos faz pensar, Rio de Janeiro, v.26, n.41, p.141-162, jul.-dez. 2017
Cartesianismos e spinozismos: rumo a uma teoria das histórias possíveis em filosofia 161

______. Saisset, lecteur de Spinoza. Recherches sur le xviie siècle, n. IV, p. 85-97, 1980.


______. Trois polémiques contre Victor Cousin. Revue de métaphysique et demorale, n.
4, p. 542-548, 1983.
______. Spinozisme et panthéisme. In: Actes du Colloque Spinoza entre Lumières et
Romantisme, Cahiers de Fontenay, 1985, p. 207-213.
______. Les enjeux de la publication en France des papiers de Leibniz sur
Spinoza. Revue de métaphysique et de morale, n. 2, p. 215-222, 1988.
______. La reception de Spinoza au XIX° et XX° siècles. In: MOREAU, Pierre-
François; RAMOND, Charles (dir.). Lectures de Spinoza. Paris : Ellipses, 2006.
______. Traduire Spinoza: l’exemple d’Émile Saisset. In: TOSEL, André; MOREAU,
Pierre-François; SALEM, Jean (dir.): Spinoza en France au XIXe siècle. Paris:
Publications de la Sorbonne, 2008, p. 221-230.
______. Ajourner l’ontologie. In: KOLESNIK-ANTOINE, Delphine (Antoine-
Mahut). Qu’est-ce qu’être cartésien? Lyon: ENS Editions, 2013.
______. ‘In naturalismo’. Leibniz, Spinoza et les spiritualistes français. In :
ANDRAULT, Raphaële ; LAERKE, Mogens, MOREAU, P.-F. Leibniz et Spinoza. Paris:
PUPS, 2014.
RAYNAUD, Dominique. Sociologie des controverses scientifiques. Paris: PUF, 2003.
RÉE, Jonathan. History, Philosophy and Interpretation. Some Reactions to J. Bennett’s
Study of Spinoza’s Ethics. In: HARE, Peter H. (ed.). Doing Philosophy Historically.
Buffalo: Pergamon Press ; Prometheus Books, 1988, 27-69.
RENOUVIER, Ch. Manuel de philosophie moderne. Paris: Paulin, 1842.
ROVERE, Maxime. Le clan Spinoza. Amsterdam 1677. L’invention de la liberté. Paris:
Flammarion, 2017.
SAPHARY, Jean. L’école éclectique et la philosophie française. Paris : Joubert Libraire-
Editeur, 1844.
SCHMALTZ, Tad. Early Modern Cartesianism. Dutch and French Constructions.
Oxford: Oxford University Press, 2016.
SKINNER, Quentin. Liberty before Liberalism. Cambridge: Cambridge University Press,
1998.
STAQUET, Anne. Descartes et le libertinage. Paris : Hermann, 2009.
STRAUSS, Leo. La persécution et l’art d’écrire. Paris : Press Pocket, 1989.
VANDAMME, Stéphane. Descartes. Paris : Presses de Sciences Po, 2002.
VERBEEK, Theo. Regius on the passions (1650). In: GAUKROGER, Stephen;
WILSON, Catherine (ed.). Cartesian Mind and Nature. Essays on honor of Desmond
Clarke. New York: OUP, 2017.
______. Regius’s Fundamenta physics. Journal of the History of Ideas Vol. 55, No. 4, p.
533-551, Oct. 1994. DOI: http://dx.doi.org/10.2307/2709921.
______ (ed.) Descartes and Regius. Autour de l’explication de l’esprit humain. Amsterdam:
Rodolpi, 1993.

O que nos faz pensar, Rio de Janeiro, v.26, n.41, p.141-162, jul.-dez. 2017
162 Delphine Antoine-Mahut . tradução de Pedro H. G. Muniz

______. Descartes and the Dutch. Early Reactions to Cartesian Philosophy. 1637-1650.
Carbondale: Southern Illinois University Press, 1992, p. 13-32.
VERNIERE, Paul. Spinoza et la pensée française avant la Révolution. Le dix-septimère
siècle (1663-1735). Le dix-huitième siècle. Genève: Slatkine Reprints, 2012 [1954], 2
vols.

O que nos faz pensar, Rio de Janeiro, v.26, n.41, p.141-162, jul.-dez. 2017
Spinoza collectif: la double écriture
Maxime Rovere*

de la Préface aux Opera Posthuma

Spinoza coletivo: a dupla escrita


do Prefácio à Opera Posthuma

Collective Spinoza: The Double Writing


of the Preface to Opera Posthuma

Résumé
Cet article étudie le spinozisme comme une philosophie collective, à partir d’une
comparaison entre les deux versions de la préface aux œuvres posthumes – Opera
Posthuma – de Spinoza (1677). Après une discussion sur l’attribution de la
version néerlandaise à Jarig Jellesz (1619 ou 1620 - 1683) et de la version latine
à Lodewijk Meyer (1629 - 1681), il montre que les menues différences entre les
deux textes témoignent des tensions problématiques, notamment concernant le
statut ontologique de la connaissance et le rapport entre philosophie et religion,
contribuant à penser le spinozisme comme la philosophie d’un groupe - dans ce cas,
Jellesz, Spinoza, Meyer - et à comprendre les relations interpersonnelles comme les
sujets de la production d’idées.

Mots-clés: collectif; Spinozisme; Jellesz; Meyer; ontologie; œcuménisme;


christianisme.

Resumo
Este artigo estuda o spinozismo como uma filosofia coletiva, a partir de uma
comparação entre as duas versões do prefácio para a edição das obras postúmas
– Opera Posthuma – de Spinoza (1677). Após uma discussão sobre a atribuição
da versão holandesa a Jarig Jellesz (1619 ou 1620 - 1683) e da versão latina a
Lodewijk Meyer (1629-1681), ele mostra que as pequenas diferenças entre os dois
textos testemunham as tensões problemáticas nas áreas da ontologia e da relação

*Professor do Departamento de Filosofia da Pontifícia Universidade Católica do Rio de Janeiro


(PUC-Rio). E-mail: maxime.rovere@gmail.com.

O que nos faz pensar, Rio de Janeiro, v.26, n.41, p.163-189, jul.-dez. 2017
164 Maxime Rovere

com o campo religoso, e permitem pensar a filosofia de Spinoza como a de um


grupo - neste caso, Jellesz, Spinoza, Meyer - e entender a relação interpessoal como
o sujeito da produção das ideias.

Palavras-chave: coletivo; spinozismo; Jellesz; Meyer; ontologia; ecumenismo;


cristianismo.

Abstract
This article studies Spinozism as a collective philosophy, based on a comparison
between the two versions of the preface to Spinoza’s Opera Posthuma (1677). After
a discussion on the attribution of the Dutch version to Jarig Jellesz (1619 or 1620
- 1683) and of the Latin version to Lodewijk Meyer (1629 - 1681), it shows that
the small differences between the two texts testify to the problematic tensions in the
field of ontology and the relationship to religion, and help thinking Spinozism as the
philosophy of a group - in this case, Jellesz, Spinoza, Meyer - and to understand the
interpersonal relationship as the subject of the production of ideas.

Keywords: collective; Spinozism; Jellesz; Meyer; ontology; ecumenism;


Christianity.

Peu après la mort de Spinoza, le 21 février 1677, ses amis se réunissent pour
s’occuper des documents qu’il leur a confiés. Il laisse derrière lui trois traités
inachevés (le Traité de l’Amendement de l’Intellect, le Traité Politique et l’Abré-
gé de Grammaire Hébraïque), quelques lettres (assez peu comparativement à
d’autres philosophes de son temps) et un livre déjà préparé en 1675 pour
une publication finalement annulée (Ethique). Sous l’égide de l’éditeur Jan
Rieuwertsz, plusieurs générations de ses proches décident de se lancer dans
une double édition de ces textes, en latin et en néerlandais, sous le double
titre Opera Posthuma et Nagelate Schriften1.
Ce travail d’édition a été jusqu’à présent considéré par la majorité des
chercheurs comme un travail périphérique, qui intervient de manière secon-
daire par rapport à l’élaboration de la-philosophie-de-Spinoza. Comme chacun
croit savoir, la philosophie consiste à inventer des concepts et pas seulement

1 Voir PROIETTI, Omero et LICATA, Giovanni (eds.), 2013. Il carteggio Van Gent-Tschirnhaus
(1679 – 1690). Storia, cronistoria, contesto dell’‘editio posthuma’ spinoziana, Macerata, eum-Edizioni
Università di Macerata.

O que nos faz pensar, Rio de Janeiro, v.26, n.41, p.163-189, jul.-dez. 2017
Spinoza collectif: la double écriture de la Préface aux Opera Posthuma 165

à faire des livres. Cette distinction, qui demeure souvent à l’état de non-dit
chez les universitaires et les étudiants, exprime un présupposé plus difficile à
déraciner qu’il n’y paraît : il consiste à distinguer le monde des idées philoso-
phiques et leur merveilleuse articulation conceptuelle, d’avec la manière dont
les livres se fabriquent, dont les feuillets se couvrent de mots et se mettent à
circuler, transformant les textes en œuvre. Avant d’entrer dans l’étude de la
préface aux Opera Posthuma, qui aide à revoir cette question, il convient donc
de faire deux remarques préliminaires.
D’abord, il n’est pas difficile de montrer en quoi les choix d’édition
brassent de grands enjeux philosophiques. Par exemple, les amis de Spinoza
ne publient ni le Court Traité, ni le Traité de l’arc-en-ciel dans l’édition que
nous appellerons « OP/NS ». Du premier, ils estiment qu’il ne contient rien
que Spinoza ne dise mieux dans l’Ethique2. Quant au second, ils déclarent
qu’il est introuvable probablement parce que Spinoza l’a jeté au feu3. Ces
observations doivent attirer notre attention, parce qu’elles mettent en ques-
tion l’unité du parcours philosophique de Spinoza. Ce qui est dit du Court
Traité suggère une grande continuité dans sa pensée, mais la désinvolture
des amis quant au Traité de l’Arc-en-ciel laisse à penser qu’une rupture sépare
ce texte des œuvres ultérieures4. Par là, les amis éclairent la question diffi-
cile de savoir si la philosophie de Spinoza constitue à proprement parler un
« système » philosophique : ils semblent répondre « oui, mais pas toujours ».
L’Index des OP permet de développer cette réponse plus amplement, mais
comme je l’ai fait ailleurs, je n’y reviens pas ici5.

2 « Et bien que l’on puisse croire que quelque chose de notre philosophe se cache encore chez tel
ou tel que l’on ne trouvera pas ici, on peut néanmoins estimer qu’on n’y rencontrera rien qui ne
soit souvent formulé dans ses écrits » (Préface aux Opera Posthuma, § 9, in JELLESZ, J. et MEYER,
L., Spinoza par ses amis, ROVERE, M. (ed.), Paris, Payot & Rivages, 2017, p. 32), également cité
par MIGNINI, Filippo, 2009. « Introduction au Court Traité », dans SPINOZA, B. de, Œuvres I.
Premiers écrits, Paris, Presses Universitaires de France.

3 JELLESZ, J. et MEYER, L., op. cit., p. 33.

4 Il n’est pas impossible que le Traité de l’Arc-en-ciel ait suivi les principes mécaniques des Mé-
téores de Descartes, où l’arc-en-ciel fait l’objet d’une analyse poussée. Dans le Court Traité, Spinoza
s’appuie encore sur des principes utilisés par la médecine cartésienne, notamment le concept
d’« esprits animaux », dont il n’aura aucun usage dans l’Ethique. Ces deux exemples montrent
que le Spinoza de la maturité rejette des éléments qui jouent un rôle important dans ses œuvres
de jeunesse.

5 Voir ROVERE, M., « Présentation de l’index rerum », dans JELLESZ, J. et MEYER, L., Spinoza
par ses amis, op. cit., p. 81 et suiv.

O que nos faz pensar, Rio de Janeiro, v.26, n.41, p.163-189, jul.-dez. 2017
166 Maxime Rovere

Ensuite, l’histoire de la philosophie telle que nous la pratiquons au-


jourd’hui a évolué de telle manière, dans le dernier quart du XXe siècle,
qu’elle doit affronter des questions nouvelles. En effet, si l’on compare les
travaux de Giuseppe Renzi à ceux de Filippo Mignini, ceux de Victor Delbos
à ceux de Pierre-François Moreau, ceux de K. O. Meinsma avec ceux de Piet
Steenbakkers, on est frappé d’une chose : quelle que soit leur tradition na-
tionale, les commentateurs d’aujourd’hui scrutent le texte de beaucoup plus
près qu’avant. Ils ne s’appuient plus sur une lecture globale de l’œuvre et
sur la manière dont ils conçoivent l’importance historique ou la signification
conceptuelle de « Spinoza ». Ils s’interrogent sur le choix des mots, com-
mentent la rareté ou la fréquence de leur usage, réfèrent tel terme à telle tra-
dition de pensée, etc. Cette manière de prendre les textes à la lettre témoigne
d’une évolution largement partagée parmi les historiens. Seulement, lorsque
d’excellents philologues – Akkerman, Hubbeling, Proietti et aujourd’hui le
jeune Licata6 – démontrent à partir d’études lexicographiques comparées,
souvent assistées d’outils numériques, que tel ou tel mot des œuvres-de-
Spinoza ne provient probablement pas de la plume de Spinoza, mais de celle
par exemple de Lodewijk Meyer, ou de Pieter Van Gent, ils mettent au jour
un nouveau problème : est-ce que la pertinence que l’on accorde à chaque
détail, la valeur de signification que l’on accorde au texte, la cohérence phi-
losophique qu’on lui suppose, dépendent du fait que l’œuvre ait été écrite
par une seule personne ? Ou non ? Par exemple, on trouve dans l’appendice
de l’Ethique le mot « preordinata » ; on le trouve aussi dans la préface des
OP/NS (« preordinata » en latin, « gevoorschikt » en néerlandais) mais nulle
part ailleurs dans les textes directement jaillis de la plume de Spinoza. Alors,
comment commenter le texte ? Faut-il exclure les modifications introduites
par les amis de Spinoza ? Faire le tri parmi elles ? Mais selon quel critère ? Et
au nom de quelle primauté de l’individu ? Au prix de quels sacrifices ?
La réponse la plus simple consiste à admettre sans résistance que les textes
sont le fruit d’un collectif ; mais c’est bien plus facile à dire qu’à faire, car cela
implique que l’on ne peut plus continuer à les commenter comme avant, en
attribuant les idées que nous étudions dans le texte à une matrice générative
qui serait un philosophe, globalement rapporté au cerveau génial de Bento de
Spinoza, produisant à titre personnel des idées singulières. Alors, qu’est-ce qu’un
philosophe collectif ? Et comment une chose pareille produit-elle des idées ?

6 AKKERMAN, Fokke et STEENBAKKERS, Piet (eds.), 2005. Spinoza to the Letter. Studies in Words,
Texts and Books, Leyde/Boston, Brill, et PROIETTI, Omero et LICATA, Giovanni (eds.), 2013, op. cit.

O que nos faz pensar, Rio de Janeiro, v.26, n.41, p.163-189, jul.-dez. 2017
Spinoza collectif: la double écriture de la Préface aux Opera Posthuma 167

Pour avancer sur ces questions, je souhaiterais étudier simultanément


les deux versions de la préface des OP/NS dont j’ai proposé la première
traduction en français. En effet, ce texte offre un cas d’étude particulière-
ment intéressant parce qu’il fait intervenir au moins trois personnes : Jarig
Jellesz, son supposé auteur en néerlandais, Lodewijk Meyer, son supposé
traducteur en latin, et Bento de Spinoza, que les deux premiers sont sup-
posés présenter. Je répète supposé parce que les récents travaux de Proietti
et Licata ont ébranlé ces évidences en montrant – je vais y revenir – que
Jellesz n’a probablement pas écrit ce texte sans Meyer, et que Meyer ne l’a
pas traduit sans Van Gent ; j’ajoute que Jellesz et Meyer avaient pleinement
conscience que leur présentation défendait Spinoza avec des thèses légère-
ment différentes des siennes.
En comparant la version néerlandaise et la version latine du texte, il s’agit
donc ici de mettre en valeur des tensions conceptuelles laissant percevoir
plusieurs carrefours dans lesquels les sensibilités de Jellesz, de Meyer et de
Spinoza s’éloignent les unes des autres pour laisser entrevoir les variantes
d’une seule et même philosophie. Tout s’articule autour d’un problème
auquel ces trois hommes ont tâché de répondre : il concerne la relation
entre le rationalisme et le fait religieux. En particulier, dans le cadre de
cette préface, Jellesz et Meyer tâchent d’éclairer le rapport entre le spino-
zisme (c’est-à-dire la manière dont les concepts forgés par Spinoza consti-
tuent une certaine pratique de la raison) et la vraie religion (à laquelle Meyer
et Jellesz s’accordent plus ou moins à donner le nom de « christianisme » et
le Nouveau Testament pour référence). La différence entre les deux versions
permet de retrouver les carrefours où les pensées bifurquent, afin de suivre
le jeu subtil de leurs équilibrages.

I. Question préliminaire : quelle est la version originale ?

Commençons par de rapides rappels biographiques7. Jarig Jellesz (1619


ou 1620 – 1683) a grandi parmi la communauté mennonite d’Amsterdam.
Ce riche marchand a probablement rencontré Spinoza à la Bourse d’Ams-
terdam dans les années 1650 alors que Jellesz était à la tête d’un gros
magasin et que le jeune Bento, de dix ans son cadet, s’occupait de la petite

7 L’essentiel de ces informations est présenté dans ROVERE, M., 2017. Le Clan Spinoza, Paris,
Flammarion. On trouvera des bibliographies dédiées à Jellesz et à Meyer à l’adresse http://www.
leclanspinoza.com/clan/.

O que nos faz pensar, Rio de Janeiro, v.26, n.41, p.163-189, jul.-dez. 2017
168 Maxime Rovere

entreprise de son père. Quelques années plus tard, ils avaient tous les
deux renoncé aux affaires pour se consacrer à la « recherche de la vérité8 ».
Il a activement participé à un mouvement, celui des collégiants, qui ne
sont rien d’autre que des groupes de travail où l’on pratiquait une lecture
du Nouveau Testament autorisant une prise de parole extrêmement libre9.
Lorsque ce mouvement est entré en crise (la guerre des Agneaux, en 1664),
Jellesz s’est probablement rangé aux avis de Galenus Abrahamsz et de Pie-
ter Balling – le dernier étant connu comme l’un de ses proches amis10. Peu
après l’invasion des Pays-Bas, il dut faire face à des accusations d’athéisme,
et il rédigea pour se défendre une Profession de Foi que Spinoza a relue et
corrigée avec attention11.
En d’autres termes, Jellesz n’est pas un philosophe conceptuel, mais un
homme qui incarne la montée en puissance d’une population aisée et lettrée,
qui s’exprime en néerlandais et pas en latin, dont la spiritualité anticléricale
est globalement tournée vers la lecture et le commentaire du Nouveau Tes-
tament, ainsi que vers l’étude de la philosophie naturelle.
Quant à Lodewijk Meyer (1629 - 1681), docteur de l’Université de Leyde
en philosophie et en médecine, il est principalement un homme de théâtre :
il a écrit et traduit de nombreuses pièces, il a été régent à deux reprises
du Schouwburg, le plus grand théâtre d’Amsterdam, et il figure parmi les
membres fondateurs d’une intéressante académie littéraire (Nil volentibus ar-
duum) très active dans les années 167012. Sa conception du langage l’a conduit
à publier (probablement avec l’aide de son ami Johannes Bouwmeester) un
ouvrage nommé La Philosophie Interprète de l’Ecriture Sainte. Traité Paradoxal
d’un disciple de René Descartes (en latin, 1666), véritable manifeste pour une
exégèse biblique rationnelle. Ce livre a eu une si grande importance en son

8 Selon l’expression employée par Jan Rieuwertsz dans son « Epilogue » à la Profession de foi uni-
verselle et chrétienne de Jarig Jellesz, citée dans SPINOZA, B. DE, Correspondance, ROVERE (ed.),
Paris, GF, 2010, p. 288.

9 Voir FIX, Andrew Cooper, 1991. Prophecy and Reason. The Dutch Collegiants in the Early En-
lightenment , New Jersey, Princeton University Press.

10 Voir ROVERE, M., 2017, p. 106 et suiv.

11 JELLESZ, J., Profession de foi chrétienne et universelle, in SPINOZA, B. DE, Correspondance, op.
cit., p. 415 - 416..

12 Voir BORDOLI, Roberto, 2001. Etica Arte Scienza tra Descartes e Spinoza. Lodewijk Meyer (1629 –
1681) e l’associazione Nil Volentibus Arduum, Milan, Franco Angeli. VAN SUCHTELEN, Guido, 1987.
« Nil volentibus arduum. Les amis de Spinoza au travail », Studia Spinozana, vol. III, p. 391 – 404.

O que nos faz pensar, Rio de Janeiro, v.26, n.41, p.163-189, jul.-dez. 2017
Spinoza collectif: la double écriture de la Préface aux Opera Posthuma 169

siècle que Leibniz considèrera sa publication comme un moment de rupture


historique : « Depuis, écrit Leibniz dans les Essais de Théodicée, on parle en
Hollande de théologiens rationaux et non rationaux […]13. »
En général, on considère Jellesz comme l’auteur et Meyer comme le
traducteur de la préface aux OP/NS. Pourtant, Proietti et Licata observent
que « pour identifier l’auteur de la Préface aux OP, on a toujours considéré
comme suffisant le recours à une affirmation tardive et non vérifiée de Jo-
hann Deckherr, reprise par Pierre Bayle et d’ailleurs infirmée par d’autres
assertions (…) : un exemple typique de fides ex auditu spinoziste, autrement
dit d’un degré minimal et dérisoire de connaissance humaine14. » Avant d’at-
tribuer à Jellesz les idées présentées dans la préface, il faut donc nous assurer
qu’il en est bien l’auteur ; et du simple point de vue textuel, il faut déter-
miner laquelle des deux versions, néerlandaise ou latine, est l’originale. Les
deux érudits italiens avancent cinq arguments contre « l’attribution au seul
Jellesz de la préface ».
1. Un argument conceptuel, selon lequel cette préface reprend une thèse
défendue par Meyer dès 1666, qui veut que la philosophie et les lettres sa-
crées, la Révélation et la Nature, expriment une Vérité Unique.
2. Un argument intertextuel : le texte contient une référence à Erasme que
Meyer aime citer, alors que cette référence n’apparaît pas dans la Profession de
Jellesz15. De plus, Jellesz cite systématiquement la traduction en néerlandais
établie comme version officielle qu’on appelle la Statenvertaling. C’est une
version que Meyer, Spinoza, Van den Enden et Koerbagh dénoncent unani-
ment comme instrument de propagande.
3. Un argument linguistique : la préface se réfère à des versions syriaques
des textes bibliques, alors que Jan Rieuwertsz nous signale que Jarig Jellesz
ne connaissait pas les langues anciennes.
4. Un argument lexical : la version latine emploie des expressions ty-
piques de Meyer, notamment le concept de « l’homme animal », alors que
Jellesz a tendance à utiliser la traduction de la Statenvertaling qui parle de
« l’homme naturel ».

13 LEIBNIZ, Gottfried Wilhelm, 1999a [1710]. Essais de Théodicée, Paris, GF/Flammarion, § 14.

14 Omero Proietti et Giovanni Licata, Il Carteggio Van Gent-Tschirnhaus (1679-1690). Storia,


cronistoria, contesto dell’ ‘editio posthuma’ spinoziana, Macerata, eum-Edizioni Università di Ma-
cerata, 2013, p. 71.

15 J’ajoute que l’œuvre d’Erasme en question a été publiée par Jan Rieuwertsz, celui-ci pourrait
aussi être un bon candidat à l’écriture collective de la préface.

O que nos faz pensar, Rio de Janeiro, v.26, n.41, p.163-189, jul.-dez. 2017
170 Maxime Rovere

5. Enfin, un argument d’influence : Proietti et Licata estiment que la Pro-


fession de Jellesz puise « à pleines mains » dans le traité de Meyer, si bien que
l’autorité intellectuelle de Meyer sur Jellesz ne fait, à leurs yeux, aucun doute.
Lors d’un échange de mails, Giovanni Licata a encore ajouté, à titre pri-
vé, un dernier argument – de continuité – consistant à souligner que « Meyer
a rédigé la préface aux Principes de la philosophie de Descartes », si bien qu’il ne
serait pas étonnant qu’il ait aussi rédigé celle des OP.
Que conclure de tout cela ? On peut se fier à Proietti et à Licata pour
admettre que le latin de la préface est celui de Meyer, avec quelques inter-
ventions ponctuelles de Pieter Van Gent16 ; mais cela ne fait pas pour autant
de la version latine le texte original. En particulier, on décèle dans leurs
arguments une grande valorisation de la compétence philosophique et de
la puissance conceptuelle. Les chercheurs italiens supposent une préséance
de celui qui en sait plus (Meyer) sur celui qui en sait moins (Jellesz). Mais
y avait-il réellement, dans ce groupe d’écrivains et de philosophes, un
privilège accordé à l’érudition ? En général, contrairement aux universitaires
contemporains, les collégiants (Jellesz et Rieuwertsz sont des collégiants)
n’étaient pas de grands érudits, et ils avaient tendance à apprécier une parole
librement prise et donnée. On peut donc accorder à Proietti et à Licata que
l’équipe qui travaillait sur l’édition n’était pas homogène et que les hommes
de la génération de Spinoza, qui avaient traversé la vie avec lui, jouissaient
d’un certain privilège. Mais on doit souligner que leur ascendant ne pouvait
pas se fonder exclusivement sur l’érudition. Jarig Jellesz et Jan Rieuwertsz
étaient les plus anciens amis, et même les aînés de Spinoza. Il semble difficile
de contester leur légitimité au sein du groupe. De ce point de vue, Jellesz ne
mérite pas le dédain que les chercheurs italiens affichent à son égard.
De la même manière, l’argument de continuité suppose de privilégier ce
qui est régulier contre ce qui est irrégulier, mais cette préférence – qui semble
plutôt d’ordre esthétique – ne peut servir à invalider l’option contraire, celle
de la discontinuité. Meyer pouvait ne pas souhaiter monopoliser l’espace de
la préface, et le groupe d’amis aurait pu estimer qu’il était plus juste de laisser
les proches de Spinoza s’exprimer les uns après les autres. A nouveau, cette
répartition égale de la parole semble mieux convenir à l’esprit des collégiants
que la méritocratie imaginée par les érudits italiens.
En complément de ces remarques, il semble possible d’avancer plusieurs
arguments textuels en faveur de la primauté de la version néerlandaise :

16 PROIETTI et LICATA, op. cit., p. 71.

O que nos faz pensar, Rio de Janeiro, v.26, n.41, p.163-189, jul.-dez. 2017
Spinoza collectif: la double écriture de la Préface aux Opera Posthuma 171

1. On trouve systématiquement un contenu plus précis dans le latin que


dans le néerlandais. Or, seul un mauvais traducteur laisserait délibérément
se perdre de l’information. Par exemple, pourquoi le néerlandais dirait-il que
Spinoza a publié Les Principes de la philosophie de Descartes « il y a quelques
années », alors que le latin donne la date de 1664 (§ 8) ? Pourquoi ne
pas mentionner l'ancienneté du Traité de l’arc-en-ciel (§ 35) ? Il semble plus
logique d’admettre que l’information s’améliore de l’original vers la version,
du néerlandais vers le latin.
2. Le même mouvement d’amélioration se retrouve dans le style. Il y a
beaucoup de membres de phrase inutiles dans le néerlandais ; ces redon-
dances disparaissent en latin. A nouveau, une traduction qui rajouterait
des mots voire des membres de phrase inutiles serait exécrable. A l’inverse,
comme l’ont remarqué Akkerman et Hubbeling, le latin rejette les répéti-
tions et multiplie les variations, traduisant kennis par cognitio, notitia, scientia,
agnitio… De la même manière, le latin rend woord par verbum, vocabulum,
vocula, ou encore bevattingen par ideae, perceptiones, conceptus17.
Ces remarques incitent donc à admettre que la version néerlandaise est
bel et bien la version originale, mais cette conclusion ne signifie pas néces-
sairement que Jellesz soit l’unique auteur de l’une, ni Meyer l’unique plume
de l’autre. Au fond, si ce débat avait pour but d’aboutir à une attribution uni-
latérale à un auteur ou à un autre, nous n’aurions avancé que d’un tout petit
pas, dans un cadre de lecture prédéfini. Mais identifier les plumes d’une
manière fine et différenciée, cela ne signifie pas nécessairement attribuer à
chacun ce qui est le sien. Au contraire, les écarts entre le latin et le néerlan-
dais incitent plutôt à réfléchir au moyen de mettre en rapport les conceptions
entre les auteurs, plutôt que de chercher seulement à les séparer. Concluons
donc avec les chercheurs italiens que cette préface est de part en part un
« travail commun Meyer-Jellesz18 » (sans exclure d’autres participants), et
que là où les textes diffèrent, cette différence révèle précisément des options
irréconciliées. Cette approche devrait nous permettre d’étudier comment ces
hommes pensent ensemble, sans présumer des intentions de quiconque.

17 Voir Akkermann & Hubbeling, art. cit., p. 108

18 Proietti et Licata, op. cit., p. 113.

O que nos faz pensar, Rio de Janeiro, v.26, n.41, p.163-189, jul.-dez. 2017
172 Maxime Rovere

II. Deux nuances du rationalisme

La préface des OP/NS se présente comme un grand texte d’introduction aux


œuvres d’un philosophe nommé seulement par ses initiales, B.d.S. Dans cette
défense et illustration de la philosophie de Spinoza, on peut y distinguer
grossièrement sept parties :
§ 1 : une présentation générale, selon laquelle les textes de Spinoza
répondent à la soif de choses indubitables.
§ 2 – 10 : une présentation biographique, destinée à établir Spinoza dans
une vie de philosophe.
§ 11 – 18 : une présentation de l’Ethique et de trois premières difficultés
auxquelles Spinoza a répondu lui-même (la différence entre Dieu et la Nature,
le destin, le mal).
§ 19 – 51 : une démonstration selon laquelle la philosophie de Spinoza
s’accorde à la fois avec l’Ecriture et avec les fondements de la religion chré-
tienne. Le paragraphe 50 en fournit le résumé.
§ 52 – 59 : une démonstration selon laquelle Spinoza confère à ces
fondements la plus grande certitude possible, parce qu’il fournit la norme du
vrai et du faux.
§ 59 – 67 : un plaidoyer pour la tolérance envers ceux qui se trompent
sur les fondamentaux (59 – 62), ce qui prépare une justification du Traité
Théologico-Politique.
§ 69 – 77 : une présentation des autres ouvrages des Opera posthuma.
On décèle dans ce plan une alternance entre des thèses fortes (celle selon
laquelle Spinoza est en réalité le plus chrétien des chrétiens) et des thèses de
compromis (un bon chrétien accepte que ses semblables se trompent, même
sur des points fondamentaux). On peut lire là des stratégies différenciées,
destinées à inciter les lecteurs à adhérer au spinozisme, ou bien, à défaut, à
le tolérer. Mais il semble également possible de repérer chez les auteurs eux-
mêmes des postures différenciées à l’égard de Spinoza, et parfois entre eux.
En effet, l’un des grands axes de la préface consiste à affirmer que les
principes moraux démontrés dans l’Ethique s’accordent avec les fondements
de la religion chrétienne. Ce qui permet cette jonction est une identification
entre deux concepts : « l’esprit » et « l’intellect », c’est-à-dire entre l’esprit des
Ecritures et l’intellect tel que l’Ethique le présente. (Ici comme dans l’édition
Payot & Rivages, j’indique entre double crochets [[…]] les passages présents
uniquement dans le néerlandais, et entre crochets simples […] ceux qui n’ap-
paraissent que dans la version latine.)

O que nos faz pensar, Rio de Janeiro, v.26, n.41, p.163-189, jul.-dez. 2017
Spinoza collectif: la double écriture de la Préface aux Opera Posthuma 173

« (…) comment [[notre effort pour]] avoir des idées adéquates et pu-
rement intellectuelles des articles nécessaires au Salut, comment le
fait de vivre et d’agir en fonction d’elles sous la dictée de la raison
pourraient-ils ne pas être conformes aux fondements de la religion
chrétienne ? D’une part, les Lettres saintes, qui – comme tous les
Chrétiens l’admettront – ne peuvent pas renfermer d’éléments contra-
dictoires entre eux, l’enseignent en bien des passages, comme on vient
de le montrer. Ensuite, la Nouvelle Alliance, que Dieu a instituée par
le Christ et dont le Christ est le médiateur, consiste en ceci que les
Lois que Dieu avait fait connaître aux Hébreux par des tables sculp-
tées19, il les a gravées dans l’esprit des humains20, c’est-à-dire qu’il a
fait en sorte qu’ils comprennent le sens de ces mêmes Lois. Enfin, les
ministres de cette alliance ne s’orientent pas en fonction de la lettre,
autrement dit de l’Ecriture – cela est seulement le cas de ceux qui
officient selon l’Ancienne Alliance21 – mais selon l’esprit22, c’est-à-dire
(…) par l’intellect. [Il est donc évident que tout cela concorde avec les
fondements de la religion chrétienne.] »

Pour appuyer la thèse qui s’énonce dans la première phrase, et que la


version latine répète en conclusion de paragraphe, ce passage avance trois
arguments successifs : le premier est textuel et concerne les Lettres sacrées
elles-mêmes. Il est construit comme un syllogisme en partie implicite. Les
Lettres sacrées respectent le principe de non-contradiction ; or, elles com-
portent des passages qui incitent à la connaissance ; donc (sous-entendu)
elles ne peuvent en aucune manière récuser l’usage de la raison. Le second ar-
gument fait valoir un déplacement de la Loi liée à la Nouvelle Alliance établie
par le Christ : car, selon une conviction largement répandue parmi les men-
nonites, le Christ annonce principalement que les Lois ne se trouvent plus
dans les tables mais dans l’esprit des humains. Le troisième enfin, en traçant
une frontière claire entre l’Ancienne et la Nouvelle Alliance, prend à partie

19 Epître aux Hébreux, chap. 8, vers. 6 ; chap. 9, vers. 15 ; chap. 12, vers. 24.

20 Livre de Jérémie, chap. 31, vers. 33-34 ; Deuxième Epître aux Corinthiens, chap. 3, vers. 3 ;
Epître aux Hébreux, chap. 8, vers. 8-10 ; chap. 10, vers. 16.

21 Epître aux Romains, chap. 2, vers. 27-29 ; chap. 7 vers. 6 ; Deuxième Epître aux Corinthiens,
chap. 3, vers. 6, 7, 9 ; Epître aux Hébreux, chap. 7, vers. 16.

22 Mêmes passages ; voir aussi Epître aux Romains chap. 8, vers. 1-17 ; Epître aux Galates, chap.
2, vers. 18-25.

O que nos faz pensar, Rio de Janeiro, v.26, n.41, p.163-189, jul.-dez. 2017
174 Maxime Rovere

les ministres des Eglises chrétiennes pour les inciter à s’éloigner de l’idolâtrie
de la lettre. Et c’est dans ce travail d’éloignement que prend sens une sorte
d’émancipation de l’esprit, puisque à mesure que l’on s’oriente par l’esprit, il
devient plus clair qu’il s’agit ni plus ni moins de… l’intellect.
Il semble que cette jonction entre l’esprit et l’intellect fasse consensus
parmi le groupe d’amis – on peut en trouver des indices textuels un peu par-
tout, chez Meyer, chez Jellesz et même chez d’autres auteurs dont Spinoza est
proche. De ce point de vue, il est clair qu’en ce qui les concerne, le spinozisme
n’est pas seulement un rationalisme au sens large (le rationalisme se fonde
sur l’adage « rien ne naît de rien », autrement dit, tout a une raison23) ; il s’agit
plus précisément d’un « intellectualisme » : il consiste à privilégier un certain
type d’idées, celles qui relèvent de l’intellect, qui apparaissent ici dans la
dénomination technique que leur a donnée Spinoza : les « idées adéquates ».
Or, dans cette préface, cet intellectualisme est également un purisme, car
les idées adéquates sont considérées comme « purement intellectuelles ». On
trouve cette identité affirmée ailleurs, § 43 : « la connaissance spirituelle,
autrement dit purement intellectuelle ». Un passage du § 30, légèrement an-
térieur à celui qu’on vient d’étudier, explicite un peu ce purisme.

« S’efforcer à la mesure de ses forces de comprendre la vérité des choses


dont la connaissance [[et le savoir]] sont nécessaires au salut, découvrir
[[(ce qui revient au même)]] de pures perceptions intellectuelles et se
comporter conformément à elles, c’est-à-dire vivre selon la dictée de la
raison, cela ne s’oppose ni à la sainte Ecriture, ni aux fondements de
la religion chrétienne (quoi qu’en pensent de nombreuses personnes
qui s’orientent seulement en fonction de la lettre, et non de l’esprit ni
de la raison). Au contraire, cela s’accorde [en grande partie] avec l’une
et les autres. »

Le texte affirme une proportion très forte entre connaissance et comporte-


ment. Pour le comprendre, il convient de distinguer plusieurs moments. Une
première articulation fait le lien entre salut et vérité. Il y a des choses qu’il faut
savoir pour être sauvé. Au passage, le néerlandais utilise deux termes redon-
dants (connaissance et savoir) ; le latin n’en retient qu’un. L’important est de

23 Peu après la publication des OP, ce principe fera l’objet d’un débat intense entre Sténon et
Leibniz, noté par ce dernier. Voir LEIBNIZ, Gottfried Wilhelm, 2001. « Conversation avec Sténon
sur la liberté », Discours de métaphysique et autres textes. 1663 – 1689, C. Frémont (ed.), Paris,
Flammarion, p. 117 – 134.

O que nos faz pensar, Rio de Janeiro, v.26, n.41, p.163-189, jul.-dez. 2017
Spinoza collectif: la double écriture de la Préface aux Opera Posthuma 175

comprendre que ces termes définissent, par contraste, une position anti-fidé-
iste qui interprète la relation entre salut et vérité en termes de connaissance,
et non pas de foi.
Le second moment articule l’intellect et le comportement, ce qui permet
de préciser deux points. D’une part, le rapport à la vérité se trouve décrit
d’une manière plus explicite : il s’agit de « pures perceptions intellectuelles ».
D’autre part, l’articulation entre ces idées pures et le concret de la vie est
exprimée selon la métaphore cicéronienne du dictamen rationis. Laissons le
second point, peu développé ici, et étudions la connaissance que le texte
identifie comme indispensable au salut. Que signifie la « pureté » de ces
perceptions ? Elle exclue tout ce qui relève de l’imagination. L’intellect seul
est le dépositaire de la vérité religieuse, et celle-ci se compose exclusivement
d’idées qui interdisent le doute mais qui rejettent aussi l’imprécision des
images. Le texte s’inscrit ainsi dans le courant du spinozisme qui interprète le
rapport à Dieu sous la forme la plus abstraite possible.
Qu’est-ce que les idées peuvent bien contenir pour être à la fois au fonde-
ment d’un comportement moral et rester absolument pures ? En employant
le terme de « perception », le texte oriente sa réponse vers un rationalisme
ontologique, qui renvoie aux écrits de jeunesse de Spinoza – Traité de l’Amen-
dement de l’Intellect ou Court Traité – beaucoup plus qu’à l’Ethique. En effet,
dans ces ouvrages, Spinoza considère que l’intellect reçoit les idées vraies,
autrement dit que son accès à la vérité la plus pure est passif24. En choisissant
de parler de « perceptions » intellectuelles, la préface reste fidèle à cette pre-
mière version de la philosophie de Spinoza.
Ce détail est très important, parce qu’il nous permet de tracer un premier dé-
crochement des éditeurs avec leur ami défunt. En effet, dans l’Ethique, Spinoza a
explicitement écrit qu’il préférait parler de conception, « qui indique une action
de l’esprit25 ». Selon la précision apportée par l’Ethique, la pureté de l’intellect
semble moins se référer à une vérité divine que l’intellect reçoit, qu’à un travail
de l’esprit par lequel celui-ci purifie ses idées par un effort d’abstraction. L’insis-
tance de Jellesz sur la perception constitue donc est une variante interprétative
au sein de la philosophie commune au groupe de Rijnsburg, comme il l’indique
lui-même explicitement dans sa Profession de foi chrétienne et universelle :

24 Spinoza écrit notamment : « comprendre est une pure et simple passion » (SPINOZA, B. DE,
Court Traité, II, chap. 15, § 5, in Œuvres I. Premiers Ecrits, p. 329).

25 Spinoza, Ethique, II, définition 3, « explication » : « Je dis concept plutôt que perception, parce que
le nom de perception semble indiquer que l’Esprit pâtit d’un objet. Alors que concept semble exprimer
une action de l’Esprit. » (SPINOZA, B. DE, Ethique, trad. B. Pautrat, Paris, Seuil, 1988, p. 98-99)

O que nos faz pensar, Rio de Janeiro, v.26, n.41, p.163-189, jul.-dez. 2017
176 Maxime Rovere

« Je crois et je professe qu’il y a un Dieu, ou que Dieu existe réellement (...)
Qu’il est Un ; (...) Eternel, (...) Immuable, (...) Tout-puissant, (...) D’une
omniscience et d’une sagesse suprêmes ; (...) Qu’il est la source de tout
Bien, (...) Qu’il a créé le Ciel, la Terre, la Mer et tout ce qui s’y trouve, (...)
Que toute chose vient de lui, est à travers lui et va vers lui, (...) Que nous
aussi nous sommes en lui, que nous vivons en lui et nous mouvons en lui,
(...) Qu’il maintient en vie toutes ses créatures et chacune d’entre elles
en particulier, qu’il les gouverne et qu’il agit à travers elles. (...) Et en-
fin, qu’il a bien (autrement dit parfaitement) fait ses œuvres, et qu’il agit
toujours de la manière la plus parfaite. (...) Il existe une autre façon de
comprendre la vérité de ce que je professe ici – et dont les Ecritures Saintes
témoignent – au sujet de Dieu : l’intelligence naturelle nous permet d’être
complètement assurés de cette vérité, et de voir de manière infaillible qu’il
s’agit de la vérité. »

Il y a chez Jellesz un réalisme qui considère Dieu non seulement comme


une vérité rationnelle, mais aussi comme l’objet d’une expérience capable
d’établir, de manière extérieure à la raison, la réalité. En d’autres termes, Dieu
est une réalité, ce qui signifie que percevoir la vérité c’est effectivement accé-
der à un état de chose, autrement dit à une vérité d’ordre ontologique.
A l’inverse, la notion d’une conception active des idées, celle que Spinoza
développe dans l’Ethique, suggère que la pureté de l’intellect devrait moins
être comprise dans le cadre d’une ontologie jelleszienne du pur et de l’impur,
que dans celui d’une épistémologie qui privilégie délibérément l’abstraction.
Il est peut-être utile, ici, de rappeler que l’Ethique se présente comme un
système hypothético-déductif, ce qui précisément libère le raisonnement des
problèmes liés à une ontologie, puisque selon cette méthode, on a le droit de
définir les concepts comme on veut26. A bien y penser, le Spinoza de l’Ethique
semble donc proposer une modélisation qui n’accède à une forme de vérité ni
par une réception passive, ni par une conformité externe avec la réalité, mais
par une adéquation des idées à leurs causes (sans rapport à ce dont elles sont
les idées, autrement dit, encore une fois, libérées de l’ontologie).

26 « Soit une définition explique une chose comme elle est hors de l’intellect, et alors elle doit
être vraie, et elle ne diffère pas d’une proposition ou d’un axiome (…), soit elle explique une chose
en tant que celle-ci est conçue ou peut être conçue par nous, et alors elle (…) n’exige rien, sinon
d’être conçue absolument, et non, comme un axiome, sous le rapport du vrai. » SPINOZA, B. DE,
2010. Correspondance, Lettre 9 de B. de Spinoza à Simon De Vries, § 3, p. 85.

O que nos faz pensar, Rio de Janeiro, v.26, n.41, p.163-189, jul.-dez. 2017
Spinoza collectif: la double écriture de la Préface aux Opera Posthuma 177

Le brassage de ces différents textes nous permet donc de penser deux


formes d’intellectualisme qui coexistent à la fois chez Spinoza et parmi ses
amis : l’un est un purisme ontologique, fondé sur des perceptions exclusive-
ment intellectuelles ; l’autre est un purisme épistémologique, fondé sur des
conceptions exclusivement intellectuelles. Dans le premier cas, la vérité des
idées pures s’enracine dans l’être, si bien que l’on rejoint la pensée de Dieu.
Comme l’écrit Jarig Jellesz dans sa Profession : « l’éternelle et infinie sagesse
divine réside entièrement dans la connaissance que Dieu a de lui-même27 ».
En ce sens, ce premier pôle de l’intellectualisme spinoziste s’oriente vers un ra-
tionalisme unioniste, d’inspiration averroïste, qui considère qu’en accédant aux
idées pures, nous rejoignons l’intellect de Dieu. Dans ce contexte, l’écriture
géométrique de l’Ethique n’est qu’un moyen de mettre à jour une vérité qui
n’est pas directement dépendante de cette méthode. Cela explique que la pré-
face en néerlandais présente l’Ethique comme écrite « avec art » (« meetkuns-
tiglijk ») alors que dans le même passage, en latin, on précise que « presque
tout est démontré mathématiquement » (« cuncta fere Mathematicè demonstran-
tur », § 2). Les traducteurs du XXe siècle – Atilano Dominguez et Machado
de Abreu – ont été si troublés par cette désinvolture à l’égard de la méthode
géométrique qu’ils ont décidé de ne traduire ni l’une ni l’autre imprécisions.
Ils ont corrigé les deux textes pour préférer « géométriquement démontrée » !
Dans le second cas, la pureté intellectuelle apparaît plutôt comme le fruit
d’un travail inséparable de sa propre méthode. L’intellectualisme s’oriente
alors vers un rationalisme constructiviste, d’inspiration cartésienne. Mon pro-
pos, dans cette présentation, n’est pas d’indiquer ma préférence, mais plutôt
de montrer que ces deux options non seulement coexistent mais qu’elles sont
en tension, et que cette tension travaille aussi bien Spinoza que ses amis. Il
s’agit, je le souligne, d’une tension, non pas de dissensions. Autrement dit, je
n’affirme pas que les amis ne sont pas d’accord, je dis plutôt qu’il y a du jeu
dans leurs idées, qu’il y a des incertitudes sensibles. Et que c’est justement
pour cette raison qu’ils pensent – parce que c’est très exactement cela, penser
étendre le dicible à des zones jusqu'alors informes.
Le paragraphe 30 de la préface comporte encore une autre indication
précieuse sur ces problématiques irrésolues. Quelle que soit la manière dont
on conçoit l’intellect, le texte indique que c’est en lui que se situe la vérité
à laquelle le comportement doit se conformer, selon un accord qui réunit

27 JELLESZ, J., Profession de foi chrétienne et universelle, in SPINOZA, B. DE, Correspondance, op.
cit., p. 415 - 416.

O que nos faz pensar, Rio de Janeiro, v.26, n.41, p.163-189, jul.-dez. 2017
178 Maxime Rovere

donc la lettre, l’esprit et la raison. Cependant, la version latine n’accepte


pas complètement cette réconciliation générale. Il suffit en latin d’un seul
petit modérateur – « magnam partem » – pour briser l’équilibre qu’affirme la
version néerlandaise. Dans le latin, on lit que le rationalisme « s’accorde »
seulement «  [en grande partie] » avec l’Ecriture et avec les fondements du
christianisme. Ainsi, la version latine rejette une partie de la démonstration
originale : Meyer (si c’est lui qui est à l’origine de cette réserve) accepte bien
entendu le principe de l’Unique Vérité de la Raison et de la Révélation ; mais
il résiste explicitement d’y intégrer la lettre, car selon lui, l’enseignement
de l’Ecriture est en partie douteux. En somme, rajouter « magnam partem »
dans cette phrase, c’est dire que la lettre, l’esprit et la raison ne sont pas des
ensembles entièrement superposables l’un à l’autre. Le modérateur enraye le
cercle vertueux dans lequel Jellesz espère embrasser toute l’humanité.
Or, ce qui se joue ici est une bataille de livres. Tout le propos de Meyer
dans la Philosophie interprète de l’Ecriture sainte consiste à savoir si l’on doit
faire sortir certains livres du Canon biblique, ou si certains passages inter-
polés ne devraient pas être supprimés, bref s’il faut faire convenir la Bible à
ce qui relève de la Raison. Mais c’est aussi l’extensibilité de ce rationalisme
philosophique hors de lui-même, auprès de textes hétérogènes et de com-
munautés diverses qui est en jeu. Est-ce que l’unité de principe de la vraie
religion, autrement dit du spinozisme, peut réconcilier tous les textes et tous
les lecteurs ?

III. Le cadastre du domaine de la lutte

Pour Jellesz, il n’y a aucune opposition entre l’enseignement de l’Ecriture


(dès lors que l’on sait l’étudier), la Raison intérieure (qui est la même chez
tous), la Raison philosophique (celle que pratiques les philosophes natu-
rels) et même le Christ en tant que fils de Dieu. Ces équivalences succes-
sives laissent apercevoir une grande confiance, plutôt un grand espoir dans
la possibilité d’accomplir la paix universelle. Il faut le rappeler, la Profes-
sion de foi chrétienne et universelle exprime, comme son titre l’indique, une
certaine fascination pour le mot καθολικός (« catholique »), qui signifie
universel : il y a dans l’idée d’une foi universelle la promesse d’une récon-
ciliation qui mettrait un terme aux dissensions qui divisent ses contempo-
rains en une myriade de sectes religieuses. Selon Jellesz, les trois groupes
qui se distinguent entre eux – de bons théologiens qui étudient la Révélation
à partir de la lettre sans s’en tenir à la lettre, des spiritualistes qui se fient à

O que nos faz pensar, Rio de Janeiro, v.26, n.41, p.163-189, jul.-dez. 2017
Spinoza collectif: la double écriture de la Préface aux Opera Posthuma 179

leur lumière intérieure pour s’orienter dans la vie pratique, des rationalistes
qui étudient les causes et les effets – devraient finalement s’entendre, car
ils parlent de choses qui ne peuvent pas être contradictoires entre elles. On
retrouve là un mode de pensée qui prolonge une tradition averroïste très
présente au XVIIe siècle28.
Lodewijk Meyer semble, lui, avoir beaucoup moins confiance dans un
accord possible entre les hommes. D’une manière tout à fait symptomatique,
à un moment où le texte néerlandais affirme que le Christ n’avait besoin
d’aucun signe extérieur pour connaître la loi divine, le latin ne traduit pas
les mots « gelijk yder zal toestaan » (§ 42) : « [[tout le monde l’accordera,]]
la science qui s’adosse à des témoignages extérieurs n’avait pas lieu d’être29 »
pour le Christ. Tandis que le néerlandais veut faire fond sur une sorte de
sens commun, le latin semble avoir une conscience plus aiguë des débats
théologiques et des divisions sectaires. A un autre moment (§ 52), tandis
que le néerlandais affirme à la première personne « wy Christenen », « nous,
les Chrétiens », le latin traduit à la troisième personne : « Ici, les Chrétiens
pourront relever une chose tout à fait notable (…)30 ».
Est-ce à dire que Jellesz se considérait comme chrétien, et Meyer, pas ?
A bien y regarder, il ne semble pas raisonnable de surinvestir la différence
dans les tournures des phrases pour en déduire que le traducteur latin
ne se considérait pas lui-même comme chrétien, car la tournure latine n’a
rien d’explicitement exclusif – seule la comparaison avec le néerlandais,
en biaisant le regard, produit cette impression. Néanmoins, la dissonance
entre les deux versions laisse bel et bien entendre un rapport différencié
à la communauté que confirme une lecture moins pointilliste. En effet,
l’un des principaux angles de cette préface est d’assurer la conciliation du
spinozisme et du christianisme en partant des principes fondamentaux de
la philosophie (rationalisme) et de la religion (réduite aux enseignements
du Christ) ; pour ce faire, elle s’appuie sur la conception « purement intel-
lectuelle » de l’esprit. C’est un projet qui, avec quelques réserves, reste assez
fidèle à l’Ethique. Pourtant, en s’appuyant sur la spiritualité rationnelle de
l’Ethique, les auteurs de la préface se trouvent en porte-à-faux par rapport
au Traité Théologico-Politique. Ainsi est mise à jour une nouvelle tension

28 Voir LICATA, G. (ed.), L’averroismo in età moderna (1400-1700), Macerata, Quodlibet Studio,
2014.

29 JELLESZ, J. et MEYER, L., op. cit., p. 52.

30 JELLESZ, J. et MEYER, L., op. cit., p. 58.

O que nos faz pensar, Rio de Janeiro, v.26, n.41, p.163-189, jul.-dez. 2017
180 Maxime Rovere

quant à l’extension de la philosophie – c’est-à-dire quant à savoir qui exac-


tement est concerné par cette réconciliation œcuménique. Voici comment
le texte l’exprime (§ 63) :

« On ne saurait nier que ce qu’on vient de montrer à propos de la Religion


Chrétienne d’après l’Ecriture a l’air contradictoire avec ce que le Philosophe
s’est proposé de démontrer dans le Traité Théologico-Politique, à savoir
que la Religion consiste seulement dans l’Obéissance, et que la Mé-
ditation et la Recherche de la vérité, destinées à obtenir des idées pu-
rement intellectuelles et adéquates des choses qu’enseigne l’Ecriture,
n’y ont pas leur place31. »

Selon le Théologico-Politique tel qu’il est résumé ici, la religion vise à enca-
drer des pratiques, de sorte que son critère fondamental est « l’obéissance » ;
en revanche, une recherche proprement philosophique ne vise que des
« idées », dont la préface souligne une fois encore la pureté avec une lourde
insistance (des idées « intellectuelles », la redondance fait sourire). Pourtant,
ce n’est pas sans finesse que le texte réaffirme que cette différence pivote
autour d’objets communs : la recherche de la vérité et les enseignements de
l’Ecriture, autrement dit la raison et la lettre, visent les mêmes « choses », en
d’autres termes, ont le même esprit. Donc, soutient la préface, même chez
Spinoza, la différence entre théologie et philosophie ne doit pas être comprise
de manière unilatérale. C’est ce que suggère la suite de la préface (§ 63) :

« Pourtant, n’importe qui étudiera bien ce traité ne pourra manquer d’y


apprendre les raisons qui ont poussé un écrivain [si subtil] à prendre ces
positions, et il y trouvera en même temps que notre auteur reconnaît
la religion comme rationnelle32. »

Il y a dans cette phrase un effort qui dépasse largement la simple rhéto-


rique de la captatio benevolentiae. Certes, la préface est une apologie de Spino-
za qui cherche à gagner le lecteur à la défense ou à la tolérance du spino-
zisme ; mais comme les auteurs viennent de signaler qu’ils s’éloignent de la
lettre – cette fois-ci, philosophique ! – ils doivent s’efforcer de réduire l’écart
en le justifiant. Deux concepts émergent : d’abord, on ne doit pas lire un

31 JELLESZ, J. et MEYER, L., op. cit., p. 66.

32 Idem, op. cit., p. 66 – 67.

O que nos faz pensar, Rio de Janeiro, v.26, n.41, p.163-189, jul.-dez. 2017
Spinoza collectif: la double écriture de la Préface aux Opera Posthuma 181

auteur « si subtil » (rajoute le latin non seulement comme éloge, mais comme
avertissement) sans tenir compte de raisons au pluriel. De quelle nature sont
ces raisons ? Le terme latin (« propugnare », « beweren » en néerlandais ; je
traduis par prendre position) montre qu’il s’agit de postures de combat, qui
se comprennent en fonction d’un conflit. Or, comme chacun sait, le traité de
Spinoza n’est pas seulement théologique, il est aussi politique. Cela ne signifie
pas que la distinction entre la recherche de la vérité et l’impératif d’obéissance
soit seulement le fruit d’une stratégie circonstancielle, mais qu’elle exprime
une position militante destinée à articuler des pouvoirs, certainement pas à
théoriser et aggraver les divisions de la société. Au contraire, les auteurs le
soulignent une nouvelle fois : il n’y a pas chez Spinoza d’opposition entre
« religion » et « raison », mais une différence entre deux types d’études (celle
des dogmes qui poussent à l’obéissance, celle des idées qui démontrent la
vérité). On peut se demander si, par son effort de réconciliation, la préface ne
force pas un peu Spinoza à rejoindre une cause œcuménique qui n’était pas
la sienne. Mais on doit accorder à Jellesz et à Meyer que Spinoza lui-même
mobilise, à l’occasion, la notion de « religion universelle » pour appuyer son
plaidoyer en faveur de la liberté :

« J’ai montré que la liberté qu’accorde la religion universelle à la fois selon


la lumière naturelle et selon celle révélée aux Prophètes, doit être accordée
intégralement33. »

L’ouverture œcuménique de la philosophie constitue donc, dans le


groupe d’amis, une nouvelle problématique irréconciliée. Pour en rendre
compte, on peut en distinguer deux formes alternatives. La première
consiste à affirmer une grande confiance dans l’unité et la compatibilité des
trois aspects de la spiritualité rationaliste-chrétienne (lettre, esprit, raison).
C’est ce qu’on peut appeler un œcuménisme extensif et compatibiliste. En
effet, Jellesz considère que l’étude de la nature et celle de l’Ecriture sont
compatibles par principe. Cela signifie donc qu’il prend très au sérieux le
fait que la pensée de Spinoza ne soit pas propre à son ami (une chose que
Spinoza lui-même a défendue, en refusant qu’une philosophie comme la
sienne soit associée à son individu). Voilà pourquoi, au paragraphe 17, la
version néerlandaise cite avec admiration un poète néerlandais, P. C. Hooft,
en extrayant d’un recueil publié en 1636 – bien avant que Spinoza ait écrit

33 SPIINOZA, B. DE, Correspondance, lettre 43 de B. de Spinoza à Jacob Ostens, § 9, op. cit., p. 262.

O que nos faz pensar, Rio de Janeiro, v.26, n.41, p.163-189, jul.-dez. 2017
182 Maxime Rovere

quoi que ce soit – un poème censé résumer la pensée de Spinoza34. Cet


anachronisme volontaire est très révélateur. Tout à fait comme Bayle le fera
peu après, la préface en néerlandais présente le spinozisme comme un ra-
tionalisme qui ne se limite aucunement à la personne de Spinoza (voir à
ce sujet le § 235) et donc peut légitimement être illustré par des auteurs
antérieurs à lui. Voilà aussi pourquoi, prolongeant l’esprit des collèges, la
préface néerlandaise s’adresse au public le plus large possible, c’est-à-dire à
tous les « curieux » (« weetgierig », § 136).
A aucun moment, la version latine ne témoigne de la même ouverture.
Là où le néerlandais invite les curieux, le latin ne s’adresse qu’au lecteur
« philosophe » (§ 1). Naturellement, selon qu’on emploie une langue sa-
vante ou vulgaire, on s’adressera presque automatiquement aux savants ou
aux curieux. Mais on décèle dans le latin une forme d’œcuménisme intensif
et critique, qui fait la part belle aux études dans la manière dont on peut
progresser vers la vérité. A bien y regarder, le texte latin ne prévoit pas de
s’étendre vers le plus grand nombre, mais il invite ses lecteurs à progresser
vers une meilleure connaissance de la vérité. A ce titre, le paragraphe 75, qui
présente l’Abrégé de Grammaire Hébraïque, est très intéressant. Cette présen-
tation est absente de l’édition néerlandaise parce que, disent les auteurs, on
apprend généralement le latin avant l’hébreu. Mais surtout, la version latine
invite ses lecteurs à terminer le travail commencé par Spinoza :

« Si à l’avenir quelqu’un élabore une syntaxe hébraïque sur les bases
qu’il a jetées, eh bien, il trouvera chez les amateurs d’hébreu plus qu’une
légère reconnaissance pour avoir fait mieux connaître le génie de la langue
hébraïque, jusqu’ici fort peu connu37. »

Cette fois-ci, l’avenir du spinozisme est moins pensé en termes de diffu-


sion que d’approfondissement de la vérité. Il ne s’agit plus de réconcilier tout
le monde de manière pour ainsi dire horizontale, mais de se passer le relais
de savant en savant, de manière en quelque sorte verticale. Et cette vérité

34 JELLESZ, J. et MEYER, L., op. cit., p. 37.

35 « Et certes, s’agissant d’un livre où [presque] tout est démontré mathématiquement, cela n’a
guère d’importance de savoir de quelle famille son auteur est issu, ni quelles règles de vie il a
adoptées. » JELLESZ, J. et MEYER, L., op. cit., p. 29.

36 Idem, op. cit., p. 29.

37 Idem, op. cit., p. 75.

O que nos faz pensar, Rio de Janeiro, v.26, n.41, p.163-189, jul.-dez. 2017
Spinoza collectif: la double écriture de la Préface aux Opera Posthuma 183

n’est pas présentée comme utile au monde entier, mais elle se définit par un
groupe de référence – le cercle (assez large, cependant, au XVIIe siècle) des
amateurs d’hébreu.
Cette différence entre deux sortes d’œcuménismes, l’un extensif et l’autre
intensif, l’un compatibiliste et l’autre critique, permet d’éclairer les traitements
différenciés que Jellesz et Meyer accordent à la Bible des Etats (Statenvertaling).
Il semble en effet naturel que Jellesz cite, sans autre forme de procès, la version
la plus largement répandue, afin de donner à sa base de lecteurs la plus grande
extension possible. En revanche, il est évident que Meyer, qui exige une com-
préhension intensive et un partage cumulatif des connaissance, n’avait aucune
raison de vouloir se contenter d’une version aussi fautive.
Cependant, il faut encore y insister : identifier deux formes d’œcumé-
nisme parmi les amis de Spinoza, cela ne signifie pas marquer des fractures
nettes au sein du spinozisme, mais plutôt repérer une tension heuristique
dont l’étude nous éclaire sur le sens profond de cette philosophie.

IV. Spinoza chrétien, Jesus Christ Philosophe

En somme, malgré l’homogénéité d’ensemble des conceptions philoso-


phiques et spirituelles du groupe d’amis, leurs manières de penser leur propre
position face aux questions théologiques ou philosophiques de leur temps
laissent voir tout un jeu de distanciation et de rapprochement, qui semble
en partie incontrôlé par ses acteurs eux-mêmes. En un sens, on pourrait dire
de Jellesz, de Spinoza, de Meyer, de Rieuwertsz, qu’ils appartiennent tous au
même « camp » (celui d’une spiritualité rationaliste), mais qu’aucun d’entre
eux ne conçoit cette affaire tout à fait comme les autres. Dans ces conditions,
le spinozisme appartient-il, oui ou non, au champ religieux ? Avant de ré-
pondre sur ce point, il est utile de rappeler la plaisanterie faite par Spinoza au
comte de Magalotti, ancien secrétaire de l’Accademia del Cimento en visite chez
lui en 1674, qui lui demandait à quelle religion il devait le rattacher pour le
présenter à son Prince :

« Vous lui répondrez : il se dit chrétien. Notez que vous ne lui répon-
drez pas : il est, mais il se dit chrétien38. »

38 GIANCOTTI-BOSCHERINI, Emiliana, « Nota Sulla diffusione della filosofia di Spinoza in


Italia » Giornale critico della filosofia italiana , Florence, Sansoni, 1963, p. 343.

O que nos faz pensar, Rio de Janeiro, v.26, n.41, p.163-189, jul.-dez. 2017
184 Maxime Rovere

Le dilemme shakespearien concernant les apparences – être ou ne pas


être… en l’occurrence, chrétien – devient pour Spinoza une simple affaire de
mots. Le plus amusant de cette plaisanterie, qui devait choquer assez vive-
ment Magalotti pour qu’il la note dans son journal, est qu’elle témoigne d’une
possibilité qui contrarie encore ceux qui, inversement, veulent faire de Spino-
za l’ennemi acharné de la religion. Car cette saillie témoigne à la fois d’une
non-appartenance profonde (au fond, Spinoza n’est pas chrétien) et d’une
certaine désinvolture, voire d’une forme d’ironie à l’égard de cette appellation
(car il peut aussi bien « se dire » chrétien). La préface des OP/NS n’est certes
pas le lieu de plaisanteries, mais il est perceptible que Jellesz, Meyer et les
autres s’efforcent eux aussi tâcher de préciser en quel sens le spinozisme peut
être dit un christianisme.
Or, d’une manière tout à fait symétrique aux ambiguïtés de l’intellectua-
lisme étudié plus haut, la notion même de « christianisme » fait l’objet, de la
part des préfaciers, d’un travail de définition particulièrement élaboré. Pour
le concilier avec le spinozisme, la préface fait subir à la religion du Christ une
réduction drastique. Qu’est-ce qu’être chrétien ? A en croire Jellesz, ce n’est
rien d’autre que suivre le Christ. Et qu’est-ce que le Christ ? Dans sa Profession
de foi chrétienne et universelle, il écrit :

« Tout ce que le Saint Esprit enseigne au sujet de la nécessité de connaître


Jésus, il faut uniquement le comprendre comme une injonction concernant
la connaissance de son Esprit et de sa force sanctifiante et vivifiante39. »

En d’autres termes, le christianisme n’a rien à voir avec une vérité histo-
rique, elle ne concerne même pas un certain prophète originaire de Galilée,
le déroulement de sa vie ou la lettre de ses sermons. Le christianisme, tel que
Jellesz l’entend, est une « connaissance » (ce qui ne nous surprend guère, et
doit s’entendre en un sens rationnel) « de son Esprit », autrement dit (Jellesz
ayant tendance à utiliser la conjonction de coordination « et » comme un
marqueur de synonymie) « de sa force ». On ne saurait indiquer plus nette-
ment que le Christ ne s’identifie pas à Jésus de Nazareth en tant qu’il aurait
réalisé une prophétie juive annonçant le Messie, mais une chose agissante qui
se trouve chez tous, et dont Jésus de Nazareth a donné un exemple éclatant
et constitue le parangon. Cette définition du christianisme, par l’éloignement

39 JELLESZ, J., Profession de foi chrétienne et universelle, in SPINOZA, B. DE, Correspondance, op.
cit., p. 415 - 416.

O que nos faz pensar, Rio de Janeiro, v.26, n.41, p.163-189, jul.-dez. 2017
Spinoza collectif: la double écriture de la Préface aux Opera Posthuma 185

qu’elle prend avec le personnage historique, penche du côté des thèses les
plus radicales, violemment anti-cléricales, de rationalistes néerlandais tels
que les frères Koerbagh. Pourtant, les deux épithètes qui chez Jellesz quali-
fient cette force jouent en ceci le rôle de modérateurs : si cette force est chré-
tienne, c’est d’abord qu’elle est « sanctifiante », autrement dit qu’elle instaure
bel et bien un rapport spécifique à Dieu (ce qu’on appelle la sainteté), et ne
se réduit pas à un simple comportement moral. Il y a de l’infini, de l’absolu
à l’œuvre dans cette force. Voilà pourquoi Jellesz la définit encore comme
« vivifiante » : il reprend là un terme courant chez les mennonites, pour qui le
baptême, réalisé à l’âge adulte, est l’occasion d’une seconde naissance.
Cela étant acquis, de quoi Jésus Christ est-il exactement le modèle ?

« Ce témoignage consiste en ceci : la vérité est la Raison ou l’Intellect de


Dieu, et elle rend Saint ; (…) elle rend libre (…) et elle mène à Dieu40. »

En peu de mots, la phrase concentre et emboîte les positions rationaliste,


intellectualiste, unioniste de Jellesz par un jeu d’équivalences : vérité = raison
= intellect = sainteté = être en Dieu, et articule cette conception avec un enjeu
moral (devenir libre) et une ambition eschatologique (aller vers Dieu, c’est-
à-dire retrouver un lien que l’on a cru perdu). Ainsi, on pourrait dire que le
terme de chrétien que Jellesz veut appliquer à Spinoza dans la préface aux
OP/NS, il l’a préalablement vidé de tout ce qu’il pouvait contenir de limitatif.
Sous sa plume, le christianisme se détache entièrement du rapport à l’Eglise,
et l’appellation « chrétien » devient synonyme de « doté de raison ». Est chré-
tien celui que sa lumière ou raison intérieure permet de comprendre l’Esprit
dont le Christ a donné le parfait exemple. Voilà pourquoi, avec la même
patience qui caractérise sa Profession de foi, Jellesz injecte le rationalisme dans
les trois concepts – Père, Fils, Saint-Esprit – censés définir Dieu comme trois
« personnes ». Sous sa plume, ces personnes deviennent les facettes d’un
seul et même élan, celui dont Spinoza démontre les moyens en détail dans
sa philosophie.
La version latine ne semble pas tant préoccupée de couler le rationalisme
philosophique dans le moule des terminologies chrétiennes. En particulier,
au moment du résumé biographique, on peut y repérer des variations qui
contribuent à esquisser une figure du philosophe plus proche de l’huma-
nisme (la figure d’Erasme a une grande valeur pour Meyer) que de la sainteté.

40 JELLESZ, J., Profession de foi…, in SPINOZA, B. DE, Correspondance, op. cit., p. 415.

O que nos faz pensar, Rio de Janeiro, v.26, n.41, p.163-189, jul.-dez. 2017
186 Maxime Rovere

Le latin ajoute par exemple un modérateur pour préciser que Spinoza était
un être « tout entier » consacré à ses études philosophiques (§ 341). D’ail-
leurs, Meyer préfère dire que Spinoza, en s’éloignant vers Voorburg, se libérait
« d’occupations en tous genres42 » (« omnigenis occupationibus ») plutôt que de
traduire toute l’expression néerlandaise, qui parle de « toutes les occupations
mondaines » (« alle werremtsche beslommeringen »). Ici, il est très clair que
la version néerlandaise applique à la vie de Spinoza un modèle religieux
d’ermitage spirituel ; de fait, cette terminologie est très présente dans le Court
Traité, où Spinoza admet notamment que l’on peut être convaincu de « ne
faire aucun cas de ce corps43 ». La version latine, en revanche, n’emploie pas
ce vocabulaire – Meyer préfère, semble-t-il, jouer de la proximité du titre de
Lucrèce lorsqu’il montre Spinoza s’intéresser à la « nature des choses » (§
344). Plus loin, il s’attache encore à souligner que les interlocuteurs et cor-
respondants du philosophe sont des « hommes de haut rang et d’une so-
lide érudition45 » (§ 6), insistant sur l’inscription de Spinoza dans une élite
intellectuelle et politique. Ce faisant, il le situe aux antipodes de l’ermitage
ascétique où le décrit Jellesz…
On voit ainsi, pour ainsi dire en temps réel, la figure ou « persona46 » du
philosophe traversée par deux modèles alternatifs, dont on pourrait dire que
l’un rappelle les grands ordres monastiques, tandis que l’autre annonce déjà
les philosophes des Salons ; mais cette alternance entre méditation solitaire et
collaboration entre amis est sans aucun doute constitutive de la philosophie
en général, et du parcours de Spinoza en particulier47.

41 JELLESZ, J. et MEYER, L., op. cit., p. 30.

42 Idem, op. cit., p. 30.

43 SPINOZA, B. DE, Court Traité, II, 20, § 2, op. cit., p. 369.

44 JELLESZ, J. et MEYER, L., op. cit., p. 30.

45 JELLESZ, J. et MEYER, L., op. cit., p. 31.

46 GAUKROGER, Stephen, Chap. 1 : « The persona of the natural philosopher », in CONDREN


Conal, GAUKROGER Stephen et HUNTER Ian (eds.), The Philosopher in Early Modern Europe: The
Nature of a Contested Identity, Cambridge, Cambridge University Press, Ideas in Context 77, 2006,
p. 24.

47 Sur l’alternance chez Spinoza entre travail solitaire et réflexion en groupe, voir ROVERE, M.,
Le Clan Spinoza.

O que nos faz pensar, Rio de Janeiro, v.26, n.41, p.163-189, jul.-dez. 2017
Spinoza collectif: la double écriture de la Préface aux Opera Posthuma 187

Pour conclure, il convient de souligner plusieurs points. D’abord, j’ai tenté de


présenter une étude comparée des deux versions des OP/NS d’une manière qui
ne soit pas un relevé comptable des différences. Grâce au travail déjà affectué
par Akkerman et Hubbeling puis par Atilano Dominguez dans leurs éditions
successives, il m’a semblé possible d’organiser ces écarts textuels de manière
à mettre en valeur des tensions problématiques et à montrer que le texte peut
être abordé par les problèmes qu’il ne résout pas, mais qui le travaillent d’une
manière philosophiquement pertinente. Loin d’être de simples erreurs de tra-
duction, ces petites différences donnent à lire des options philosophiques dont
la diversité est l’un des aspects les plus importants du spinozisme.
En particulier, il m’a semblé possible de mettre en valeur deux versions
du rationalisme : un rationalisme unioniste, dont plusieurs passages des
œuvres de Spinoza pourraient témoigner qu’il y adhérait ; et un rationalisme
constructiviste, dont plusieurs passages des œuvres de Spinoza pourraient té-
moigner qu’il y adhérait aussi. Voilà pourquoi ces deux pôles, dont on pour-
rait donner une présentation antagoniste qui donnerait à choisir ou l’un, ou
l’autre, selon la logique du tiers-exclu, appartiennent tous les deux de plein
droit au spinozisme. Comme je l’ai dit, ils aident justement à définir le spino-
zisme par une tension et non par une thèse.
De la même manière, il a été possible d’isoler un œcuménisme extensif et un
œcuménisme intensif, pour distinguer deux attitudes possibles face au devenir
de l’œuvre, dans ou hors du cercle philosophique. Or, cette tension ne déter-
mine pas seulement une question éditoriale – celle de savoir à qui exactement
la publication des OP/NS s’adresse. Elle engage aussi la définition des rapports
entre spiritualité rationaliste (celle que pratique les philosophes) et les pratiques
religieuses proprement dites (celles dont n’importe qui peut faire l’épreuve). Là
encore, cette tension demeure irrésolue, et je dirais que c’est tant mieux.
Enfin, j’ai voulu montrer que la définition même du christianisme et de
la philosophie, l’usage d’un vocabulaire renvoyant à des points de dogme et
à des modes de vie témoignaient, là encore, d’une image pas tout à fait ho-
mogène du philosophe. Et à nouveau, il me semble que l’on doit reconnaître
ici plutôt une dynamique de la vie philosophique (en particulier à l’époque
moderne) qu’une divergence de vues entre les amis.
A chaque fois, sans être incompatibles, les pôles constitués ont permis de
mettre en valeur une tension, où il me semble trouver une nouvelle manière
de comprendre la relation interpersonnelle comme le lieu de production

O que nos faz pensar, Rio de Janeiro, v.26, n.41, p.163-189, jul.-dez. 2017
188 Maxime Rovere

d’idées. Car en définitive, ce qui prévaut au terme de cette analyse n’est pas
la rigide certitude d’un système philosophique, mais les fragiles incertitudes
de pensées in statu nascendi, qui trouvent leur chemin dans les petits écarts
que l’on décèle en comparant deux versions d’un même texte. D’ailleurs, il
est curieux de relever que dans l’index rerum des Opera Posthuma, l’entrée
« Spiritualia » – les choses spirituelles –est occupée par une seule ligne, qui
renvoie à une phrase écrite par Spinoza à Oldenburg :

« Les choses spirituelles sont communes entre amis48 »

On ne saurait mieux suggérer que ce qui fait de la philosophie une chose


spirituelle tient précisément à ceci qu’elle se range, comme d’autres pratiques,
parmi celles que l’on fait ensemble, entre amis.

Referências

AKKERMAN, Fokke; STEENBAKKERS, Piet (eds.). Spinoza to the Letter. Studies in


Words, Texts and Books. Leyde/Boston: Brill, 2005.
BORDOLI, Roberto. Etica Arte Scienza tra Descartes e Spinoza. Lodewijk Meyer (1629 –
1681) e l’associazione Nil Volentibus Arduum. Milan: Franco Angeli. 2001.
FIX, Andrew Cooper. Prophecy and Reason. The Dutch Collegiants in the Early
Enlightenment. New Jersey: Princeton University Press, 1991.
GIANCOTTI-BOSCHERINI, Emiliana. Nota Sulla diffusione della filosofia di Spinoza in
Italia. In: GENTILE, G. Giornale critico della filosofia italiana. Florence: Sansoni, 1963.
GAUKROGER, Stephen. Chap. 1: The persona of the natural philosopher. In :
CONDREN, Conal; GAUKROGER Stephen; HUNTER, Ian (eds.). The Philosopher
in Early Modern Europe: The Nature of a Contested Identity. Cambridge: Cambridge
University Press, 2006 (Ideas in Context, 77).
JELLESZ, J. Profession de foi chrétienne et universelle. In: SPINOZA, B. de,
Correspondance. Présentation et traduction par Maxime Rovere. Paris: GF Flammarion,
2010, p. 415 - 416.
JELLESZ, J.; MEYER, L. (ed.). Spinoza par ses amis. Traduction par Maxime Rovere.
Paris: Payot & Rivages, 2017.

48 JELLESZ, J., et MEYER, L., op. cit., p. 195.

O que nos faz pensar, Rio de Janeiro, v.26, n.41, p.163-189, jul.-dez. 2017
Spinoza collectif: la double écriture de la Préface aux Opera Posthuma 189

LEIBNIZ, Gottfried Wilhelm. Conversation avec Sténon sur la liberté. In : FREMONT,
C. (ed.). Discours de métaphysique et autres textes. 1663 – 1689. Paris: Flammarion,
2001, p. 117-134.
______. Essais de Théodicée. Paris: GF / Flammarion, 1999a [1710].
LICATA, G. (ed.), L’averroismo in età moderna (1400-1700). Macerata: Quodlibet
Studio, 2014.
MIGNINI, Filippo. Introduction au Court Traité. In: SPINOZA, B. de. Œuvres I.
Premiers écrits. Paris: Presses Universitaires de France, 2009.
PROIETTI, Omero; LICATA, Giovanni (eds.). Il carteggio Van Gent-Tschirnhaus (1679
– 1690). Storia, cronistoria, contesto dell’‘editio posthuma’ spinoziana. Macerata: eum-
Edizioni Università di Macerata 2013.
ROVERE, M. Présentationn de l’index rerum. JELLESZ, J.; MEYER, L. (ed.). Spinoza
par ses amis. Traduction par Maxime Rovere. Paris: Payot & Rivages, 2017, p. 81 et
suiv.
______. Le Clan Spinoza. Paris: Flammarion. 2017.
SPINOZA, B. de, Correspondance. Présentation et traduction par Maxime Rovere.
Paris: GF / Flammarion, 2010. 464 p.
______. Court Traité. In: Œuvres I. Premiers écrits. Paris: Presses Universitaires de
France, 2009.
______. Ethique, trad. B. Pautrat. Paris : Seuil, 1988.
VAN SUCHTELEN, Guido. Nil volentibus arduum. Les amis de Spinoza au travail.
Studia Spinozana, vol. III, p. 391-404, 1987.

O que nos faz pensar, Rio de Janeiro, v.26, n.41, p.163-189, jul.-dez. 2017
tradução de Pedro H. G. Muniz

O Spinozismo de Tschirnhaus: da teoria


Mogens Lærke*

das noções comuns à verdadeira física

Tschirnhaus’ Spinozism: from the theory


of common notions to the true physics

Resumo
Neste artigo, estuda-se o livro Medicina mentis, publicado em 1689 (2º ed. 1695)
pelo ex-discípulo de Spinoza, Ehrenfried Walther von Tschirnhaus. Eu mostro como,
sem nunca mencionar Spinoza pelo nome, Tschirnhaus empresta muito da teoria
de Spinoza das noções comuns ao elaborar o que ele chama de ars inveniendi.
Com base na correspondência de Tschirnhaus com Spinoza e com Leibniz sobre
Spinoza, mostro também como Tschirnhaus provavelmente se beneficiou das
conversas pessoais que ele teve com Spinoza sobre um tratado planejado, mas
nunca completado - um “outro tratado” - que iria ser dedicado, exatamente, para
a teoria das noções comuns, tanto no contexto metodológico quanto epistemológico.

Palavras-chave: Tschirnhaus; Spinoza, Leibniz; medecina da mente; noção


comum.

Abstract
In this paper, I am interested in the Medicina mentis, a book published in 1689 (2nd
ed. 1695) by the former disciple of Spinoza, Ehrenfried Walther von Tschirnhaus. I
show how, without ever mentioning Spinoza by name, Tschirnhaus borrows greatly
from Spinoza’s theory of common notions when elaborating what he calls his ars
inveniendi. Based on Tschirnhaus’ correspondence with Spinoza, and with Leibniz
about Spinoza, I also show how Tschirnhaus very likely profited from personal
conversations he had with Spinoza about a treatise planned but never completed
by the latter—“another treatise” which was dedicated, exactly, to the theory of
common notions, in both a methodological and an epistemological context.

Keywords: Tschirnhaus; Spinoza; Leibniz; medecin of the mind; common


notion.

* Morgens Lærke é diretor de pesquisa no CNRS, associado ao laboratório IHRIM (UMR 5317),
em ENS de Lyon. E-mail: mogenslaerke@hotmail.com.
Pedro Muniz é doutor em filosofia pela Pontifícia Universidade Católica do Rio de Janeiro
(PUC-Rio). E-mail: phgmuniz@gmail.com.

O que nos faz pensar, Rio de Janeiro, v.26, n.41, p.191-210, jul.-dez. 2017
192 Mogens Lærke . tradução de Pedro H. G. Muniz

Ao percorrer o volume de Paul Vernière sobre a recepção de Spinoza antes da


Revolução Francesa,1 é difícil não se impressionar com a riqueza das críticas
contemporâneas de Spinoza. Antes de tudo, esse grande trabalho é testemu-
nha da produtividade própria da recepção do filósofo. Mas ele é testemunha
também da flexibilidade das estruturas do spinozismo, como podemos ler no
trecho que Vernière retoma de Victor Delbos, segundo o qual “a força interna
de uma doutrina se mede pelo grau de desorganização que ela é capaz de
suportar sem ser deformada em seu cerne”.2 No entanto, observamos aqui
um exemplo que, em certo sentido, representa o caso contrário em relação
às formquoi das de modificação máxima que Delbos e Vernière tinham em
mente no trecho citado. Não se trata de um exemplo que atesta a flexibilida-
de do spinozismo ou a inventividade de sua recepção. Muito pelo contrário,
ele atesta uma recepção muito fiel (quanto ao texto) ou, de outro ponto de
vista, muito infiel (quanto ao autor), pois podemos pensar que se trata em
parte de repetir uma teoria no detalhe sem nunca indicar de onde veio, ou o
que hoje seria chamado de forma de praça. É certo que, na era moderna, os
critérios de integridade intelectual eram significativamente diferentes dos de
hoje: esconder a origem de uma tese não era necessariamente uma expressão
de má intenção, a citação implícita era bastante uma arte herdados dos escri-
tores do Renascimento, a quem até mesmo os autores, com uma reputação
fundamentalmente moderna, se entregaram incessantemente (incluindo, ali-
ás, Spinoza). Não obstante, Tschirnhaus empurrou sua licença para o limite
(e isso, veremos, não somente em relação a Spinoza). Contudo, também se
trata de um plágio que não devemos nos contentar em denunciar, mas que
devemos entender, pois ele nos reconduz às próprias fontes do spinozismo.
Historicamente, trata-se de um dos primeiros leitores contemporâneos da
Ética e de um comentário que, em parte, data de antes da publicação do
próprio livro. Em alguns aspectos, trata-se de uma leitura de Spinoza que nos

1 Utilizamos as seguintes abreviações: SPINOZA: E = Ethique, ed. bilíngue latim/francês B. Pautrat,


2ª ed., Paris: Seuil, 1999 (acompanhado da seguinte nomenclatura: I-V = parte; D = definição; A
= Axioma; P = proposição; C = corolário; S = escólio; L = lema; DP = digressão física depois da
EIIP13). TSCHIRNHAUS: MM = E. W. von Tschirnhaus, Medicina Mentis, sive Artis Inveniendi
Praecepta Generalia, Editio nova, Lipsiae: J. Thomam Fritsch, 1695 / Médecine de l’esprit ou precepts
généraux de l’art de découvrir, trad.: J.-P. Wurtz, Paris: Ophrys, 1980.

2 Nota do tradutor: fizemos a tradução de todos os trechos citados no artigo, e sempre fornece-
mos em nota as passagens originais, em francês, como a seguir: “La force interne d’une doctrine
se mesure au degré de désorganisation qu’elle est capable de subir sans être dénaturée en son
fond”. Nota do autor: V. Delbos, Le Problème moral dans la philosophie de Spinoza dans l’histoire du
spinozisme. Paris: Ancienne Librairie Gemer Baillière, 1893, p. 3; P. Vernière, Spinoza et la pensée
française avant la Révolution. Paris: Presses Universitaires de France, 1954, p. 3.

O que nos faz pensar, Rio de Janeiro, v.26, n.41, p.191-210, jul.-dez. 2017
O Spinozismo de Tschirnhaus: da teoria das noções comuns à verdadeira física 193

aproxima de seu pensamento ainda mais do que os textos do próprio filósofo.


Essa voz muito peculiar sobre o spinozismo à qual damos espaço aqui é a de
Ehrenfried Walther von Tschirnhaus (1651-1708). E o que nos interessa não
é exatamente um livro de Tschirnhaus sobre Spinoza, pois ele não escreveu
nada do tipo. Interessa-nos um livro que retoma elementos essenciais da filo-
sofia de Spinoza, ao mesmo tempo em que se apresenta como uma filosofia
própria: a Medicina mentis de 1686 (2ª edição, 1695).

***

Comecemos marcando alguns pontos importantes da vida de Tschirnhaus, em


especial suas viagens entre 1674 e 1678, cerca de uma década antes da publi-
cação da Medicina mentis. Esse é o período-chave para entender a relação que
ele nutre com Spinoza. Tschirnhaus, jovem oriundo da nobreza alemã, entra
em contato com os círculos spinozistas durante seus estudos em Leiden entre
1668 e 1674, especialmente através de Hermann Schuller e Pieter van Gent.
Ele se corresponde com Spinoza a partir de outubro de 1674 e o encontra
pessoalmente por volta do final de 1674. Entretanto, Tschirnhaus deixa a
Holanda no início de 1675 e volta para sua casa na Alemanha. Ele não en-
contrará Spinoza novamente. Assim, uma primeira coisa a notar é que, tendo
tido um encontro muito breve e tardio, Tschirnhaus não pertence ao círculo
dos antigos fiéis de Spinoza, como Lodewijk Meyer ou Jarig Jelles. Mesmo
assim ele deve ter causado uma boa impressão, pois ao deixar a Holanda leva
consigo uma cópia manuscrita completa da Ética preparada por van Gent.
Spinoza está ciente disso, pois se refere ao manuscrito em suas cartas – em
certa ocasião, frente a um interrogatório bastante estranho e contraditório por
parte de Tschirnhaus, Spinoza chega a questionar a fidelidade da cópia.3 Ts-
chirnhaus leva essa cópia consigo quando, por volta do final da primavera de
1675, ele embarca em uma viagem europeia que o levará primeiro a Londres,
em seguida a Paris, e finalmente a Roma. Em Londres, ele conversa com Hen-
ry Oldenburg, secretário da Royal Society, que lhe fornece cartas de apresen-
tação para Leibniz e para Christiaan Huygens em Paris. Pouco depois de sua

3 Ver a carta escrita por Schuller a Spinoza no dia 14 de novembro de 1675, Carta nº 70 (que
relata algumas questões feitas por Tschirnhaus), e a que Spinoza escreveu a Schuller no dia 18 de
novembro de 1675, Carta 72, em Correspondance, p. 355 e p. 359. Elas dizem respeito à inter-
pretação de EIIP5. A cópia de Tschirnhaus não contém erros no local indicado. Ver L. Spruit & P.
Totaro (eds.), The Vatican Manuscript of Spinoza’s Ethica. Leiden/Boston: Brill, 2011.

O que nos faz pensar, Rio de Janeiro, v.26, n.41, p.191-210, jul.-dez. 2017
194 Mogens Lærke . tradução de Pedro H. G. Muniz

chegada na França, no outono de 1675, nós o reencontramos já muito amigo


de Leibniz, o qual não perde a chance de agradecer a Oldenburg: “Ao nos
enviar Tschirnhaus, você me fez um favor de amigo, pois tenho muito prazer
em encontrá-lo, e detecto neste jovem uma inteligência notável, na qual po-
demos depositar grandes esperanças”.4 As últimas cartas de Tschirnhaus para
Spinoza datam desse período parisiense, no momento em que ele discute a
filosofia spinozista com Leibniz, e não excluímos a possibilidade de que este
último tenha feito contribuições a essas trocas entre Tschirnhaus e Spinoza.
Através de Schuller, Tschirnhaus também pediu a Spinoza permissão para
mostrar seu manuscrito a Leibniz. Spinoza nega – uma recomendação que
sem dúvida Tschirnhaus respeita exatamente como ela aparece na carta, sem
com isso respeitar a carta em que Spinoza faz tal recomendação, pois ele fala
muito com Leibniz sobre o manuscrito. “Sr. Tschirnhaus me contou muito
sobre o livro manuscrito de Spinoza”, escreve o próprio Leibniz em algumas
anotações feitas por ele após suas conversas sobre Spinoza.5 Finalmente, de-
pois da partida de Leibniz no outono de 1676, Tschirnhaus também deixou
Paris rumo à Itália, primeiro para Florença e depois a Roma. Em Roma, du-
rante o verão de 1677, ele conheceu Nicolaus Steno, um grande anatomista
e antigo amigo de Spinoza que se converteu ao catolicismo (em 1666) e em
seguida foi ordenado padre (em 1675). Steno tenta converter Tschirnhaus
em várias ocasiões, mas sem sucesso. Saindo da Itália, por razões que não
sabemos, Tschirnhaus deixa seu manuscrito da Ética nas mãos de Steno, que
o usa para escrever a acusação que ele prepara para o Santo Ofício e que terá
como consequência a inclusão da Ética no Index, em 1679.6

4 “En nous envoyant Tschirnhaus, vous m’avez rendu un service d’ami; car j’ai beaucoup de
plaisir à le fréquenter, et je décèle en ce jeune homme une intelligence remarquable, sur laquelle
on peut fonder des grands espoirs”. Ver carta de Leibniz a Oldenburg do dia 28 de dezembro de
1676, em G. W. Lebniz, Der Briefwechsel von G. W. Leibniz mit Mathematikern, ed.: C. I. Gerhardt,
Berlin: Mayer & Müller, 1899, p. 143.

5 “Mons. Tschirnhaus m’a conté beaucoup de choses du livre ms. de Spinoza”. Leibniz, Über
Spinoza’s Ethik, Final de 1675-início de 1676, Sämtliche Schriften und Briefe, vol. VI, iii, p. 384-85.

6 Sobre Steno, Spinoza e Tschirnhaus, ver os diversos trabalhos de P. Totaro: “Documenti su


Spinoza nell’Archivio del Sant’Uffizio dell’Inquisizione”, in Nouvelles de la République des Lettres
1 (2000): 95-128; “Ho certi amici in Ollandia’: Stensen and Spinoza – science verso faith”, in K.
Ascani, H. Kermit & G. Skytte (dir.), Niccolo Stenone. Anatomista, geólogo, vescovo, Roma: L’Erma,
2002, p. 27-38; “Introduction”, in B. Spinoza, The Vatican Manuscript of Spinoza’s ‘Ethics, ed.: L.
Spruit & P. Totaro, Leiden: Brill, 2011, p. 1-62; “On the Recently Discovered Vatican Manuscript
of Spinoza’s Ethics”, in Journal of the History of Philosophy 51: 3 (2013): p. 465-76. Sobre o papel de
Steno nas redes dos filósofos no século XVII de maneira geral, ver R. Andrault & M. Lærke (dir.),
Steno and the Philosophers, Leiden: Brill, 2018.

O que nos faz pensar, Rio de Janeiro, v.26, n.41, p.191-210, jul.-dez. 2017
O Spinozismo de Tschirnhaus: da teoria das noções comuns à verdadeira física 195

Aí está, portanto, um homem que passeia por toda a Europa com um


manuscrito da Ética, que discute a filosofia de Spinoza com todos e que, ao
mesmo tempo, corresponde-se com o próprio Spinoza. Na cena europeia,
além do contexto holandês restrito do “círculo de Spinoza” descrito por K. O.
Meinsma,7 Tschirnhaus é quem de fato dá início à recepção internacional da
Ética. Ademais, ele o faz em um momento muito especial, entre 1675 e 1677,
ou seja, no momento em que Spinoza havia realmente terminado seu tratado,
ainda sem o ter publicado. Naquele momento, ele funciona como um tipo de
retransmissor europeu na difusão de uma doutrina que ainda não havia se tor-
nado pública. Portanto, a fim de que tenhamos uma ideia do que o spinozismo
significava na Europa no momento de sua primeira recepção, é absolutamente
essencial saber primeiro o que o spinozismo significava para Tschirnhaus. Pois
o spinozismo ao qual Oldenburg reage em suas últimas cartas, inspira Leibniz
em certos fragmentos do De summa rerum,8 é denunciado por Steno ao Santo
Ofício, tal spinozismo é em boa parte mediado por Tschirnhaus.
Dispomos de diversos recursos para conhecer esse spinozismo tschir-
nhausiano. Primeiro, temos sua correspondência com Spinoza, incluindo a
parte que passa por intermédio de Hermann Schuller. Em seguida, temos a
breve nota que Leibniz escreve em Paris depois de suas conversas com Ts-
chirnhaus sobre Spinoza – trata-se de uma única página, aproximadamente.
E então, por fim, uma fonte à primeira vista um pouco distante dos fatos
em um nível cronológico, mas, ainda assim, de grande importância por ra-
zões que vamos explicar – temos a Medicina Mentis. Como Jean-Paul Wurtz
já mostrou em muitas obras, podemos estabelecer vínculos estreitos entre o
spinozismo e a ars inveniendi que Tschirnhaus elabora na Medicina mentis.9

7 Ver K. O. Meinsma, Spinoza et son cercle. Étude critique historique sur les hétérodoxes hollandais,
trad.: S. Roosenburg, Paris: Vrin, 2002.

8 Sobre Leibniz, Tschirnhaus e Spinoza, ver M. Kulstad, “Leibniz, Spinoza and Tschirnhaus: Me-
taphysics à Trois, 1675-76”, em O. Koistinen e J. Biro (dir.), Spinoza. Metaphysical Themes, Oxford:
Oxford University Press, 2002, p. 221-40. Para meus próprios trabalhos sobre a questão, ver es-
pecialmente Leibniz lecteur de Spinoza. La genèse d’une opposition complexe, Paris: Champion 2008,
p. 359-556; “A Conjecture about a Textual Mystery. Leibniz, Tschirnhaus and Spinoza’s Korte
Verhandeling”, in The Leibniz Review 20 (2011), p. 33-68; Leibniz and Spinoza, Medelingen vanwe-
ge het Spinozahuis 111, Voorschoten: Uitgeverij Spinozahuis 2016; « Leibniz’s Encounter with
Spinoza’s Monism, October 1675 to February 1678”, in M. Della Rocca (dir.), Oxford Handbook
to Spinoza, Oxford: Oxford University Press, 2018, p. 434-63 ; « De Summa Rerum: Metaphysical
Fragments, 1675-1676”, in P. Lodge & L. Strickland (dir.), Leibniz: Key Philosophical Texts, Oxford:
Oxford University Press [no prelo].

9 Ver, além de sua bela edição da Medicina mentis (ver nota 1): J.-P. Wurtz, “Tschirnhaus und
die Spinozismus-beschuldigung”, in Studia Leibnitiana 13 (1981): p. 61-75; “Die Tschirn-

O que nos faz pensar, Rio de Janeiro, v.26, n.41, p.191-210, jul.-dez. 2017
196 Mogens Lærke . tradução de Pedro H. G. Muniz

Contudo, as análises propostas por Wurtz giram essencialmente em torno


do título do livro de Tschirnhaus, a saber, “a medicina da mente”. Esta ex-
pressão, é claro, não se encontra em lugar nenhum em Spinoza, mas Wurtz
faz uma aproximação com a passagem do Tractatus de intellectus emendatione
segundo a qual “antes de tudo, devemos refletir e encontrar uma maneira de
curar o entendimento, e purificá-lo tanto quanto pudermos”.10 Parece-nos
que a análise se confunde em sua forma de se dirigir, pelo menos em parte.
Voltemos às notas de Leibniz, que descrevem a Ética da seguinte forma: “O
livro de Spinoza será de Deo, mente, beatitudine seu perfecti hominis idea, de me-
dicina mentis, de medicina corporis” (A VI, iii, 384). Esta é uma descrição que
esconde muitos mistérios. Propusemos em outros textos algumas conjecturas
sobre como Leibniz descreve o conteúdo do livro de Spinoza – que ele será
sobre Deus, sobre a alma, sobre a beatitude – descrição que, curiosamente,
assemelha-se ao título do Korte Verhandeling!11 Mas o que realmente nos inte-
ressa aqui é a caracterização do livro como sendo “remédio da alma, remédio
do corpo”. Esta caracterização demonstra que Tschirnhaus associava Spinoza
com essas expressões e, ao mesmo tempo, que ele o fizera no final de 1675,
no momento em que “começou a escrever [seu tratado] no meio do tumulto
de Paris”, como ele próprio se recorda em uma carta a Huygens de 1683.12
Contudo, esta data torna problemático fazer-se uma associação muito estreita
entre a expressão “medicina da mente” e a “cura do intelecto” defendida no
Tractatus de intellectus emendatione, porque há boas razões para se pensar que
Tschirnhaus ainda não conhecia esse texto em 1675. Isso porque, dois anos
e meio depois, em abril de 1678 (portanto vários meses após a publicação
da Opera posthuma), Tschirnhaus envia de Roma uma carta para Leibniz na
qual, estranhamente, ele se vangloria de ter em mãos uma cópia manuscrita

haus-Handschrift ‘Anhang an mein sogenanntes Eilfertiges Bedencken’”, in Studia Leibnitiana 15


(1983): p. 149-204; “L’Ethique et le concept de Dieu chez Tschirnhaus: l’influence de Spinoza”, in
C. de Deugd (ed.), Spinoza’s Political and Theological Thought, Amsterdam: North Holland Publi-
shing, 1984, p. 230-42 ; “Ueber einige offene oder strittige, die Medicina Mentis von Tschirnhaus
betreffende Fragen”, in Studia Leibnitiana 20 (1988): p. 190-211.

10 “Avant tout, il faut réfléchir et trouver le moyen de guérir l’entendement et, autant qu’on le
peut, de le purifier”. Spinoza, Tractatus de intellectus emendatione, sect. 15, in Œuvres, vol. ed.: I, F.
Mignini, trad.: M. Beyssade & J. Ganault, Paris: Presses Universitaires de France, 2009, p. 72-73.
Para Wurtz, ver por exemplo sua “Introdução”, em Tschirnahaus, Médicine de l’esprit, p. 19-20

11 Ver Lærke, “A Conjecture about a Textual Mystery”, p. 33-68.

12 “Commencé à rédiger [son traité] au milieu du tumulte de Paris”. Correspondência de Ts-


chirnhaus a Huygens do 30 de agosto de 1683, em Chr. Huygens, Œuvres complètes, La Haye,
Martinus Nijhoff, 1888-1950, vol. VIII, p. 472.

O que nos faz pensar, Rio de Janeiro, v.26, n.41, p.191-210, jul.-dez. 2017
O Spinozismo de Tschirnhaus: da teoria das noções comuns à verdadeira física 197

do texto de intellectus emendatione que Schuller havia lhe enviado (A II, i, 613).
Surpreso, Leibniz responde informando-o de que o texto já está disponível
em sua versão impressa há vários meses: “Você está ciente, sem dúvida, de
que as obras póstumas de Spinoza acabaram de ser publicadas. Nelas há um
fragmento sobre A Reforma do Entendimento” (A II, i, 623).13 Além disso,
podemos tirar a mesma conclusão de uma observação sobre o Tractatus de
intellectus emendatione encontrada em Eilfertiges Bedencken, que Tschirnhaus
publica em 1688, segundo a qual “foi somente após a morte do autor que ele
teve este tratado em mãos”14. Em resumo, se Tschirnhaus realmente associa
seu projeto de medicina mentis à filosofia de Spinoza desde 1675, inicialmente
ele não o associa ao Tractatus de intellectus emendatione, mas sim ao texto de
cujo manuscrito ele dispõe no momento, a saber, a Ética.

***

De fato, como demonstrou Detlef Pätzold, na Medicina mentis, Tschirnhaus


utiliza não só uma metodologia decididamente spinozista, mas também de-
senvolve uma epistemologia científica que reflete muito bem sua leitura da
Ética.15 Mais precisamente, parece-nos que ele propõe uma epistemologia in-
teiramente baseada na teoria spinozista das noções comuns, na forma em que
esta é desenvolvida na Ética (ela não está presente no Tractatus de intellectus
emendatione). Mas também devemos reconstruir tal epistemologia em corre-
lação com a correspondência que Tschirnhaus troca com Spinoza entre 1674
e 1676, e levando em conta o pouco que sabemos de suas conversas pessoais
na Holanda no final de 1674.
Notemos primeiro que sua filosofia modal, como a de Spinoza, é deci-
didamente necessitarista. Ela não admite categorias modais além das do ser
e do impossível, ou categorias epistemológicas além das do concebível e do

13 “Tu es au courant, sans doute, que les œuvres posthumes de Spinoza viennent d’être publiés.
Il s’y trouve un fragment sur La Réforme de l’Entendement”.

14 E. W. von Tschirnhaus, Eilfertiges Bedencken wieder di Objectiones, soi m Mense Martio Schertz-
und Ernsthafter Gedancken üder den Tractat Medicinae Mentis enthalten, em Chr. Thomasius, Freimü-
tige, lustige und ernsthafter, je deoch vernunftmässige Gedanken oder Monatsgespräche über allerhand,
fürnehmlich aber neue Bücher 1 (Janeiro-Junho, 1688), p. 775: “Hernach habe lange Zeit erst hie-
rauff diesen Tractat nach dem Tode des Autoris in die Hände bekommen”.

15 D. Pätzold, “Ist Tschirnhaus’ Medicina mentis ein Ableger von Spinozas Methodologie?”, in
L. Nauta & A. Vanderjagt (eds.), Between Demonstration and Imagination. Essays in the History of
Science and Philosophy Presented to John D. North, Leiden: Brill, 1999, p. 339-64.

O que nos faz pensar, Rio de Janeiro, v.26, n.41, p.191-210, jul.-dez. 2017
198 Mogens Lærke . tradução de Pedro H. G. Muniz

inconcebível. Assim, “a falsidade consiste naquilo que não pode ser concebido,
e a verdade no que pode” (MM II 35/69). Ademais, continua ele: “entre ser e
não-ser também não há nenhuma outra diferença além da que há entre o pos-
sível e o impossível, ou entre o concebível e o inconcebível” (MM II 36-37/70).
Em conformidade com essa visão do ser e da verdade, Tschirnhaus propõe
uma física que reivindica ser a física da certeza absoluta, fundada a priori em
deduções necessárias, como as que são encontradas na matemática: “[...] por
física, não entendo nada mais do que a ciência do universo demonstrada a
priori pelo método rigoroso dos matemáticos [...]” (MM II 280/243). Esse mé-
todo fornece o modelo para uma nova ars inveniendi, uma “filosofia do real”,
em oposição à “filosofia do verbo” das escolas de filosofia anteriores (MM, Pre-
fácio, XIII / 39, ver também II 25/62 e II 29/65). Quando Tschirnhaus declara
em seguida que a álgebra é “a verdadeira filosofia da matemática”, o progra-
ma soa distintamente cartesiano (MM, Prefácio, XIII / 39). Entretanto, na real
elaboração dessa epistemologia “matemática” das ciências, não é o modelo
algébrico que domina, mas sim o geométrico e euclidiano, também adotado
por Spinoza. Assim, na base da ars inveniendi tschirnhausiana, encontramos
definições e axiomas comparáveis ​​aos que formam o ponto de partida para a
construção sintética das proposições de acordo com o mos geometricus:

[…] em primeiro lugar, ordenarei todos os primeiros conceitos possíveis


dos quais os outros são formados e, em seguida, nomea-los-ei definições.
Em segundo lugar, considerarei separadamente essas mesmas definições
e chamarei de axiomas as propriedades que derivam delas. Em terceiro
lugar, colocarei as definições em relação umas com as outras de todas as
maneiras possíveis, e designarei pelo nome de teoremas as verdades assim
obtidas. (MM II 67/92)

Os “primeiros conceitos possíveis” são concebidos, como na obra de Spi-


noza, em termos de definições reais, isto é, genéticas: “É claro que qualquer
definição de uma coisa particular deve sempre incluir o primeiro modo de
formação dessa coisa, a qual chamarei de geração de uma coisa. Pois conceber
verdadeiramente uma coisa não é nada mais que uma atividade mental, a da
formação da coisa na mente” (MM II 67/92). Portanto, nas ciências da natureza,
a dedução dos princípios e das leis parte da construção mental dos elementos
elementares da natureza, a saber, os “primeiros conceitos possíveis”, passando
pela concepção dos axiomas que se baseiam neles para então, por fim, chegar a
teoremas particulares que são obtidos pela conjunção das definições genéticas
iniciais de acordo com as regras gerais de construção que são os axiomas.

O que nos faz pensar, Rio de Janeiro, v.26, n.41, p.191-210, jul.-dez. 2017
O Spinozismo de Tschirnhaus: da teoria das noções comuns à verdadeira física 199

Assim, Tschirnhaus adota o método geométrico, certamente inspirado em


Spinoza. Além disso, é justamente no contexto de uma discussão sobre o
método geométrico que encontramos a única referência da Medicina mentis
a Spinoza, sem que, contudo, seu nome seja mencionado ou que se fale da
Ética. A referência ocorre em uma frase segundo a qual “certo autor tratou
segundo tal método a primeira e segunda partes dos Princípios da Filosofia
de [Descartes]” (MM II 184/176). No entanto, é óbvio que a Medicina mentis
deve muito mais a Spinoza do que sugere esse trecho, algo que Tschirnhaus
não hesitou em admitir uma década antes, escrevendo para o próprio filósofo
em julho de 1675:

Quando poderemos ter o seu método para conduzir corretamente a razão,


a fim de adquirir o conhecimento de verdades desconhecidas? E quando
teremos o seu Tratado sobre Física Geral? Soube que recentemente você fez
grandes avanços nessas questões. Já fiquei sabendo do primeiro, e conheço a
sua física pelos lemas adicionados à segunda parte da Ética [...]. Quando eu
estava com você, você me indicou o método que utiliza na busca das verda-
des desconhecidas. Eu o experimentei: ele é realmente excelente, ainda que
seja muito fácil de usar, contanto que eu o conceba bem. Posso até mesmo
afirmar que observá-lo me fez fazer grandes progressos em matemática.16

Uma pequena observação sobre esta passagem que concerne um detalhe


de forma alguma inócuo. Tschirnhaus faz alusão a dois trabalhos de Spinoza
em andamento, um sobre o método, outro sobre a física. No que concerne ao
último, sobre a física, sabemos que, mais tarde, em meados de julho de 1676,
Spinoza admite a Tschirnhaus que ele não “pôde colocar nada em ordem sobre
essa questão”.17 Mas do que fala Tschirnhaus quando demanda a Spinoza “seu
método para conduzir corretamente a razão”? Tudo indica que não pode ser
da Ética, pois ele já a possui. Também não pode ser o Tratado sobre a Reforma
do Entendimento também, porque ele ainda não sabe da existência desse texto.
Do que se trata, então? É claramente um texto que Spinoza não escreveu, mas
que abordaria um tema no qual ele “fizera grandes avanços” recentemente. A
Ética contém, creio eu, uma indicação importante para saber que tema é esse.

16 Correspondência de Tschirnhaus a Spinoza do 5 de janeiro de 1675, Carta 59, em Correspon-


dance, ed.: M. Rovere, Paris: GF Flammarion, 2010, p. 322.

17 Correspondência de Spinoza a Tschirnhaus do 15 de julho de 1676, Carta 83, em Correspon-


dance, p. 388.

O que nos faz pensar, Rio de Janeiro, v.26, n.41, p.191-210, jul.-dez. 2017
200 Mogens Lærke . tradução de Pedro H. G. Muniz

Assim, no EIIP40S1, depois de ter desenvolvido as proposições centrais sobre


as noções comuns nas proposições 38 a 40, Spinoza explica que há muitos
outros tipos de questões que poderíamos levantar sobre essas noções (sobre as
que são mais ou menos úteis, as que são comuns a todos e as que pertencem
apenas àqueles que não têm preconceitos nem a respeito as noções infundadas,
nem a respeito das noções segundas). No entanto, ele não se aprofunda mais
porque, como explica, “já que eu as consagrei a outro tratado, e também para
não causar tédio sendo prolixo demais ao tratar dessa questão, decidi dis-
pensá-la aqui”. Nós não nos aprofundaremos mais na questão de saber como
seria esse “outro tratado”, mas sugerimos apenas que o “método para conduzir
corretamente a razão” do qual fala Tschirnhaus e o “outro tratado” do qual fala
Spinoza (devotado a noções comuns, isto é, à forma de conhecimento que ele
designa justamente como “razão”) é um único projeto de livro em progresso
que nunca será completado.18 E então, lembramos, Tschirnhaus diz ter “ficado
sabendo”, pois, escreve ele, “quando eu estava com você, você me indicou o
método que você utiliza na busca das verdades desconhecidas”.
Deste modo, isso significa que Tschirnhaus não só conhece a teoria da
razão e as noções comuns como ela é apresentada de forma rudimentar na
Ética, mas que ele também sabe o que Spinoza tinha em mente para um
tratado mais amplo sobre o assunto. E, por fim, Tschirnhaus também indica
que ele próprio tirou proveito dessa teoria para suas próprias demonstrações,
algumas das quais sem dúvida entraram de uma forma ou outra no argu-
mento da Medicina mentis, publicada doze anos mais tarde. É uma situação
historiográfica extraordinária, uma figura de recepção inédita.

18 De acordo com Edwin Curley, que sobre este ponto retoma uma tese proposta por Martial
Gueroult, o outro tratado em questão seria o Tractatus de intellectus emendatione (ver Spinoza,
Collected Works, ed. e transl. E. Curley, vol. I, Princeton : Princeton University Press, 1985, 426 n.
64 ; M. Gueroult, Spinoza II : L’âme, Paris, Aubier, 1974, 364 – no entanto, se nota que a formu-
lação de Gueroult é mais cautelosa do que a de Curley). Agora, este trabalho do jovem Spinoza,
abandonado, acredito, por causa de problemas doutrinários intratáveis, não menciona noções
comuns em nenhum lugar. Além disso, o Tractatus não é principalmente um tratado metodológico
ou epistemológico, mas sim um tratado sobre a natureza do intelecto, como indicado tanto pelo
título como pelo desenvolvimento, portanto, um trabalho em filosofia do mente, como diria hoje.
Não vemos como este texto corresponde à descrição do «outro tratado» de Spinoza. Sobre os
problemas no Tractatus, veja M. Lærke, “Leibniz on Spinoza’s Tractatus de intellectus emenda-
tione,” in Y. Melamed (ed.), The Young Spinoza. A Metaphysician in the Making, New York: Oxford
University Press, 2015, 106-120.

O que nos faz pensar, Rio de Janeiro, v.26, n.41, p.191-210, jul.-dez. 2017
O Spinozismo de Tschirnhaus: da teoria das noções comuns à verdadeira física 201

***

Tentemos especificar em que sentido Tschirnhaus “observa” o método de


Spinoza. Quando olhamos atentamente para como ele procede na Medicina
mentis, rapidamente nos damos conta de que sua dívida com Spinoza não
se limita à repetição de alguns trechos impressionantes (embora ele também
faça isso!19), ou ao uso genético do método geométrico, mas que ele deve boa
parte de sua epistemologia científica à teoria spinozista das noções comuns.
De acordo com as EIIP38-40, as noções comuns são conceitos gerais que
expressam propriedade no objetivamente comuns entre várias coisas. Quan-
do as noções são adequadas ou bem fundamentadas, essas propriedades são
de ordem causal ou afetiva. As que são mais comuns expressam proprieda-
des comuns a todas as coisas, por exemplo, a extensão ou o movimento e o
repouso, que são propriedades comuns a todos os corpos. Outras, menos
comuns, expressam propriedades comuns somente a certas coisas, como, por
exemplo, as propriedades comuns a todos os homens, algo a que Spinoza
faz somente alusão na EIIP39. Entretanto, as noções comuns também o são
em um sentido subjetivo, na medida em que elas são concebidas de maneira
idêntica por todos os que as concebem, ou na medida em que são comumen-
te concebidas por todos os homens, desde que o juízo destes não seja cegado
pelo preconceito (EIIP38C e EIVP40S1, para os preconceitos).
Essa teoria tem ecos importantes na epistemologia científica da Medicina
mentis, até mesmo nos detalhes de sua elaboração. De acordo com Spinoza,
as noções comuns são formadas quando nossa mente “contempla várias coi-
sas ao mesmo tempo, para entender como essas coisas se adequam, diferem
ou se opõem” (EIIP29S, veja também EIIP38C). O conhecimento adequado
por noções comuns, também chamado de “razão”, distingue-se desse outro
conhecimento adequado superior que ele designa como “intuitivo” e que é
um “conhecimento adequado da essência das coisas” (EIIP40S2). Quanto a Ts-
chirnhaus, este fala do “conhecimento geral, através do qual tiramos a mesma
verdade da natureza comum a várias coisas”, e que se opõe ao conhecimento
superior, “chamado intuitivo”, no qual “inferimos a verdade da natureza ade-
quada de cada coisa” (MM II 205-6/192). Spinoza insiste no fato de que as

19 Ver MM II 36/70 : « Il est manifeste […] qu’un concept, ou comme disent d’autres, une idée,
n’est rien de muet, telle une peinture sur un panneau, mais renferme nécessairement soit une
affirmation, soit une négation » ; MM II 25/62 : « Tout ce qui a une valeur supérieure est égale-
ment rare »; M II 24/61-62 : « L’esprit du sage s’unit toujours plus à DIEU et aux choses divines et
immuables, et pareillement il accède par là à une tranquillité d’esprit toujours plus inaltérable ».

O que nos faz pensar, Rio de Janeiro, v.26, n.41, p.191-210, jul.-dez. 2017
202 Mogens Lærke . tradução de Pedro H. G. Muniz

propriedades cuja concepção serve para a formação de noções comuns estão


“tanto na parte quanto no todo” (EIIPII37-38). Tschirnhaus, por sua vez, de-
fende que “compreendemos o que é comum a todas as coisas tão claramente
em um indivíduo quanto em todos”, e que “a verdade a qual chegamos a partir
da natureza de uma parte também decorre da totalidade da natureza infinita
(de fato, supomos que elas têm a mesma natureza)” (MM II 203/190). Spino-
za dá como exemplo-chave o de uma “conveniência” entre todos os corpos,
permitindo dela formar uma noção comum, o fato de que eles são estendidos,
ou que todos participam de um atributo infinito e concebido por si mesmo, a
saber, a extensão (EIIP38C). Como exemplo de uma “natureza que é comum
a indivíduos infinitos em número”, Tschirnhaus propõe “a extensão indefinida
de todas as coisas, considerada em si mesma” (MM II 203/190). Para Spinoza,
há noções comuns mais ou menos comuns, mesmo que na Ética ele esteja
especialmente interessado nas que são muito gerais e expressam propriedades
comuns a todas as coisas (EIIP39). Tschirnhaus, no que lhe diz respeito, ob-
serva que “verdades comuns” são “inferidas de algo que é comum, seja para a
totalidade dos objetos particulares, seja para o maior número possível deles, e
que, dessa forma, é observado mais facilmente do que o que é comum apenas
a uma coisa determinada” (MM II 203/190). Ainda há algumas semelhanças,
mas podemos parar por aqui. Isso é apenas para ilustrar até que ponto elas
são numerosas, e para insistir no fato de que não podem ser produto do acaso.
No entanto, mencionemos uma última semelhança que concerne à relação
entre o que chamamos, respectivamente, de comunidade objetiva e subjetiva:
a saber, por um lado, as noções comuns enquanto se referem às propriedades
semelhantes e, por outro, as noções comuns enquanto se referem a concepções
compartilhadas. No EIIP38C, que trata das noções objetivamente comuns a
todos os corpos, Spinoza explica como essas noções também são subjetiva-
mente comuns a todos os homens: elas “devem ser percebidas por todos de
forma adequada”. Contudo, isso só é verdade na condição de que os homens
em questão não sejam “cegados por preconceitos”, como Spinoza acrescenta
no EIIP40S1 (uma reflexão com um fundo cartesiano sobre as noções comuns
e o preconceito que, além do mais, Spinoza também desenvolve muito de-
talhadamente no Tractatus theologico-politicus). Em outras palavras, no fundo,
o compartilhamento subjetivo das noções não é, por si só, um critério de
verdade. Ainda assim, ele é o indício de uma verdade objetivamente fundada
na consideração das propriedades das coisas – mas somente na condição de
que o preconceito não crie obstáculos para ele. Tschirnhaus também defende
que as “verdades comuns” em questão são compartilhadas por todos, apesar

O que nos faz pensar, Rio de Janeiro, v.26, n.41, p.191-210, jul.-dez. 2017
O Spinozismo de Tschirnhaus: da teoria das noções comuns à verdadeira física 203

de insistir mais no fato de ser fácil de comunicá-las, pois “se [...] for verdade
que eu concebo alguma coisa, não há dúvida de que poderei fazer com que
esse mesmo conceito que possuo seja conhecido por outros que compartilham
comigo o mesmo poder de conceber” (MM II 45/76). Também ele crê que
o caráter amplamente compartilhado dessas noções não é um critério, mas
somente o indício das verdades que são demonstráveis pela consideração das
próprias coisas e de suas propriedades comuns. As “verdades comuns” ainda
são, portanto, baseadas na concepção das propriedades objetivas das coisas.

***

Uma vez tendo combinado essa concepção de noções comuns com o progra-
ma de demonstração geométrica dos “primeiros conceitos possíveis”, Tschir-
nhaus chega à conclusão extrema de que as noções comuns são sempre de-
monstráveis a priori, a partir dos conceitos das coisas apenas, e sem recorrer
à experiência, a qual ele só concede um papel auxiliar. De fato, a experiência
serve apenas para direcionar a atenção do cientista na direção certa, e então,
no fim, corroborar com os resultados obtidos dedutivamente, mas sem nunca
fazer parte da demonstração propriamente dita. “Na minha opinião, certa-
mente é necessário, em primeiro lugar, começar a posteriori, pela experiência.
Mas em seguida, para continuar, tudo deve ser deduzido unicamente a priori,
e em todos os lugares, cada verdade em particular deve ser confirmada por
experiências evidentes” (MM III 290/249). É claro, ao seguir este método,
Tschirnhaus nos assegura que ele “fez um caminho de certa maneira interme-
diário entre os de todos os filósofos anteriores, alguns dos quais estimaram
que todo conhecimento deve ser deduzido a priori, com o raciocínio apenas,
e outros que acharam que ele deve ser a posteriori, pela experiência” (MM III
290/249). Ele insiste até mesmo que “assim, compreenderemos o quanto eu
gostaria que começássemos a posteriori na fase inicial da filosofia” (MM III
294/251). Essas declarações foram usadas para fazer de Tschirnhaus uma es-
pécie de filósofo experimental, lendo-as no contexto da admiração que ele ex-
pressa em outro texto pelo boyliano Johann Christian Sturm e seu Collegium
Experimentale sive Curiosum.20 E é verdade que, na tentativa de responder a

20 Ver C. A. Van Peursen, “E. W. von Tschirnhaus and the Ars Inveniendi”, in Journal of the History
of Ideas 54: 3 (1993), p. 399-400.

O que nos faz pensar, Rio de Janeiro, v.26, n.41, p.191-210, jul.-dez. 2017
204 Mogens Lærke . tradução de Pedro H. G. Muniz

uma acusação de spinozismo dissimulado feita por Christian Thomasius em


1690,21 ele nega que nossas ideias verdadeiras sejam conhecidas a priori.22
Mas devemos ler as afirmações na Medicina mentis sobre o conhecimento a
priori e a posteriori em seu próprio contexto. A ambição de uma “física real”,
deduzida a priori, de acordo com o método dos geômetras, que está na base
do ars inveniendi de Tschirnhaus, coloca-o imediatamente em um campo
completamente diferente do que estão os filósofos experimentais. É claro,
Tschirnhaus declara que “as experiências primeiras” são “as únicas que ele
utiliza” e que “assim, compreenderemos o quanto [ele gostaria] que começás-
semos a posteriori na fase inicial da filosofia [...]” (MM III 293/251). Mas estas
não são afirmações que devem ser entendidas no sentido de uma forma de
empirismo.23 Antes de tudo, elas se inscrevem no horizonte de uma reflexão
sobre nossa experiência interior que integra, ao mesmo tempo, elementos
cartesianos, spinozistas e leibnizianos: “Tenho consciência de diversas coisas.
Eis aí o princípio geral e primeiro de todo o nosso conhecimento” (MM Prefá-
cio, XXI/42). No fundo, Tschirnhaus defende uma epistemologia racionalista
que não confere nenhuma função verdadeiramente demonstrativa à observa-
ção e experimentação.
Entretanto, Tschirnhaus lhes concede uma posição que, é claro, não é
demonstrativa, mas é essencial, a saber, uma função enquanto ferramentas
de educação da imaginação e de comunicação das noções científicas – uma
concepção que faz dele um spinozista tanto mais sutil quanto mais inven-
tivo. Pois observações e experiências fornecem à imaginação motivos sensí-
veis para aceitar os resultados anteriormente deduzidos pelo entendimento:
“Meu avanço nas operações do entendimento sempre foi a priori, e sempre
confirmei tudo, o máximo que pude, através de experiências das mais evi-
dentes, a fim de por toda parte purificar a imaginação de todas as impressões
errôneas” (MM III 294/254). Assim, se devemos de fato “nos libertar gradu-
almente das percepções obscuras da imaginação” (MM III 278/241), também
é necessário que “o entendimento, na busca da verdade, seja auxiliado pela

21 Ver Chr. Thomasius, Freymüthige Lustige und Ernsthaffte iedoch Vernunfft- und Gesetz -Massige
Gedancken Oder Monats-Gespräche, über allerhand, fürnehmlich aber Neue Bücher Durch alle zwölff
Monate des 1688. und 1689. Jahrs, Halle, 1690.

22 Ver E. W. von Tschirnhaus, “Eilfertiges Bedencken”, in Chr. Thomasius, Monats-gesprache I


(Halle, 1600), p. 746-92.

23 Cf. G. Mühlpfordt, Ehrenfried Walhter von Tschirnhaus (1651-1708), Leipzig: Leipzier Univer-
sitäts verlag, p. 48, que apresenta a filosofia natural de Tschirnhaus como um Rationalempirismus.

O que nos faz pensar, Rio de Janeiro, v.26, n.41, p.191-210, jul.-dez. 2017
O Spinozismo de Tschirnhaus: da teoria das noções comuns à verdadeira física 205

imaginação” (MM II 182/175). Entretanto, para fornecer tal auxílio ao enten-


dimento, a imaginação deve primeiro estar sujeita ao controle do intelecto:
“A imaginação será estendida o máximo possível por meio das coisas exterio-
res, em conformidade com as operações do entendimento, se toda a nossa
educação for feita à luz deste último” (MM II 237-38/214). Contudo, como
parece, neste ponto Tschirnhaus segue Spinoza mais uma vez ao explicar, em
uma carta a Pierre Balling, que não se trata de se livrar da imaginação em
favor de o intelecto, mas de garantir que a mente “encadeie suas imagens e
suas palavras e os una uns aos outros seguindo uma ordem, como faz o in-
telecto em suas demonstrações”.24 Da mesma forma, Tschirnhaus preconiza
“submeter [...] a própria imaginação às leis do entendimento” (MM II 56/85).
Entretanto, Tschirnhaus tira daí uma consequência de que Spinoza não o
faz. Para ele, na prática das ciências da natureza, submeter a imaginação ao
intelecto significava promover uma prática experimental fortemente guiada
pela razão, ou favorecer o recurso à observação apenas em um ambiente
científico controlado. A experimentação é inútil, se não manifestadamente
nociva ao conhecimento, caso seja feita seguindo os caprichos de uma ima-
ginação não guiada, como nos trabalhos daqueles que Tschirnhaus chama de
“empíricos”. Assim, é preciso evitar “perder tempo com detalhes desprovidos
de interesse, como os empiristas vulgares têm o costume de fazer” (MM II
87/107). Pelo contrário:

[…] em conformidade com essas regras gerais, estabelecidas com a aju-


da da verdadeira física, e de acordo com as quais todas as coisas neste
universo, independentemente do lugar e do momento de sua formação,
sempre ocorrem de acordo com uma lei imutável e idêntica a si mesmo,
será necessário empreender novamente experiências que, dessa forma, não
deixariam de dar frutos notáveis. Assim, seremos capazes de determinar
fatos que são absolutamente impossíveis de evidenciar para qualquer empi-
rista, já que o raciocínio não intervém na organização de suas experiências.
(MM II 88/108)

As regras gerais em questão aqui são, é claro, os “teoremas” construídos


a priori pela conjunção dos axiomas e das definições genéticas, a partir dos
primeiros conceitos possíveis. Com base na dedução a priori dos teoremas,

24 Correspondência de Spinoza a Balling do dia 20 de julho de 1664, Carta 17, em Correspon-


dance, p. 125.

O que nos faz pensar, Rio de Janeiro, v.26, n.41, p.191-210, jul.-dez. 2017
206 Mogens Lærke . tradução de Pedro H. G. Muniz

e organizando suas experiências para corroborar com aqueles, o cientista


avança de forma ordenada. E, neste caso, com a ajuda do entendimento, “a
imaginação será retificada pela experiência” e acabaremos constatando “que
ajuda notável e incrivelmente útil uma imaginação bem governada traz ao en-
tendimento na busca da verdade” (MM II 188/179 e MM II 185/177). Tschir-
nhaus estabelece assim um tipo de ciclo metodológico, no qual a imaginação
é governada pela razão e a razão auxiliada pela imaginação.

***

Concluamos. A forma de Tschirnhaus de utilizar a filosofia de Spinoza às vezes


parece plágio ou, no mínimo, um empréstimo não reconhecido. De fato, em
sua construção, a ars inveniendi da Medicina mentis não apenas segue o método
geométrico de Spinoza, mas também segue, e muito de perto, sua teoria das
noções comuns, uma teoria que só conhecemos na forma rudimentar em que
Spinoza a apresenta na Ética. Tschirnhaus possui o manuscrito desse livro
desde 1675, exatamente no momento em que ele começa a estabelecer as
bases para sua própria “medicina da mente”. Parece que Tschirnhaus dispõe
também, da boca do próprio Spinoza, de elementos de “outro tratado” sobre
noções comuns – um trabalho planejado, mas nunca concluído. E ele afirma
ter ele mesmo tirado proveito desses elementos para os seus próprios traba-
lhos. Portanto, desde 1675 Tschirnhaus tira inspiração de um livro inédito,
cujo manuscrito ele teve o privilégio de possuir, bem como do conteúdo de
um livro planejado, mas nunca escrito, do qual ele ouvira falar. E ele se utiliza
amplamente disso para propor seu próprio projeto, e finalmente produzir um
livro no qual ele não reconhece em lugar nenhum a contribuição de Spinoza.
Jean-Paul Wurtz, que tem dificuldades de aceitar que o filósofo de sua esco-
lha pôde a tal ponto esquecer sua dívida com Spinoza, procura exonerá-lo
com um argumento talvez um pouco sutil demais: Tschirnhaus dissimulou
seu próprio spinozismo para divulgar melhor a filosofia de Spinoza, para im-
pedir antecipadamente uma possível censura. Talvez seja o caso, quem sabe?
Dito isso, o plágio puro e simples é a opção que se impõe em primeiro lugar.
E, além disso, não seria a única vez que Tschirnhaus teria sido inculpado por
isso: em 1683, em uma comunicação publicada nos Acta Eruditorum, Tschir-
nhaus retomou, por conta própria e sem mencionar sua fonte, um método
de quadratura das curvas projetado por Leibniz, gerando uma acusação de
plágio por parte deste último. O caso lançou uma sombra sobre uma amizade

O que nos faz pensar, Rio de Janeiro, v.26, n.41, p.191-210, jul.-dez. 2017
O Spinozismo de Tschirnhaus: da teoria das noções comuns à verdadeira física 207

que, de outra forma, era bastante próxima.25 Mas pouco importa, isso não é
motivo para descartar o livro de Tschirnhaus alegando que ele não nos ensina
nada de novo sobre Spinoza, assim como não devemos rejeitar aqueles que
se provam mais criativos sob o pretexto de que eles tenham entendido mal a
doutrina spinozista original. Plagiar bem não é fácil. O plágio bem-sucedido
é uma forma de apropriação que requer um conhecimento particularmente
preciso de uma doutrina, a tal ponto que podemos nos perguntar se ele vale a
pena. Pois quem compreendeu uma doutrina o suficiente para plagiá-la com
sucesso a conhece bem o suficiente para saber também como se apropriar
dela de maneira legítima para seus próprios fins. E quem precisa plagiar para
se apropriar de uma doutrina não a entendeu bem o suficiente para realmente
conseguir ser bem-sucedido no plágio. Não há dúvidas de que Tschirnhaus,
por razões psicológicas que nos escapam (Tschirnhaus é uma figura cujas
ações atestam uma mente complicada), situa-se no primeiro grupo de plagia-
dores. Foi alguém que entendeu extremamente bem a teoria spinozista das
noções comuns – em alguns aspectos melhor do que os spinozistas de hoje. E,
finalmente, para que justiça seja feita, seria mentira dizer que Tschirnhaus é
apenas um plagiador, pois ele também se utiliza da doutrina de Spinoza para
elaborar pontos que não se encontram na obra do próprio Spinoza. Ele o
faz especialmente ao aplicar de maneira específica princípios metodológicos
e epistemológicos no campo da física, algo que Spinoza não fez por não ter
vivido tempo suficiente. E ele também utiliza tal doutrina para elaborar uma
reflexão original sobre a experimentação em ambiente controlado, a partir de
uma teoria de inspiração spinozista do entendimento, da imaginação e das
relações que existem entre ambos.

25 Ver E. W. von Tschirnhaus, “Methodus Datae figurae, rectis lineis & Curva Geometrica termi-
natae, aut Quadraturam aut impossibilitatem ejusdem Quadraturae determinandi”, in Acta Erudi-
torum, Octobre 1683, p. 433-37. Para a acusação de plágio, ver a carta de Leibniz a Huygens do
dia 13 de outubro de 1690, em Leibniz, Briefwechsel, p. 602-603, e a carta de Leibniz a Huygens
do dia 21 de junho de 1695, em Briefwechsel, p. 758. Ver também o apêndice III, p. 305, na edição
da Médecine de l’esprit de Wurtz. De maneira geral, Tschirnhaus não gozava de uma boa reputação
na república das letras, na qual por vezes ele era considerado um charlatão. Para um comentário
especialmente severo, ver J. Peiffer, “Communicating mathematics in the late seventeenth century:
The Florentine cupola”, in History of Universities, vol. XXIII/2, Oxford: Oxford University Press,
2008, p. 105.

O que nos faz pensar, Rio de Janeiro, v.26, n.41, p.191-210, jul.-dez. 2017
208 Mogens Lærke . tradução de Pedro H. G. Muniz

Referências

ANDRAULT, R.; LÆRKE, M. (dir.). Steno and the Philosophers. Leiden: Brill, 2018.
DELBOS, V. Le Problème moral dans la philosophie de Spinoza dans l’histoire du
spinozisme. Paris: Ancienne Librairie Gemer Baillière, 1893.
GUEROULT, M. Spinoza II: L’âme. Paris: Aubier, 1974.
HUYGENS, Chr. Œuvres complètes, vol. VIII. La Haye: Martinus Nijhoff, 1888-1950.
KULSTAD, M. Leibniz, Spinoza and Tschirnhaus: ‘Metaphysics à Trois’, 1675-76.
In: KOISTINEN, O.; BIRO, J. (dir.). Spinoza. Metaphysical Themes. Oxford: Oxford
University Press, 2002, p. 221-40.
LÆRKE, Mogens. Leibniz lecteur de Spinoza. La genèse d’une opposition complexe.
Paris: Champion 2008.
______. A Conjecture about a Textual Mystery. Leibniz, Tschirnhaus and Spinoza’s
‘Korte Verhandeling’. The Leibniz Review, n. 20, p. 33-68, 2011.
______. Leibniz on Spinoza’s Tractatus de intellectus emendation. In: MELAMED,
Y. (ed.). The Young Spinoza. A Metaphysician in the Making. New York: Oxford
University Press, 2015.
______. Leibniz and Spinoza. Medelingen vanwege het Spinozahuis 111. Voorschoten:
Uitgeverij Spinozahuis 2016.
______. Leibniz’s Encounter with Spinoza’s Monism, October 1675 to February 1678.
In : DELLA ROCCA, M. (dir.). Oxford Handbook to Spinoza. Oxford: Oxford University
Press, 2018, p. 434-63.
______. ‘De Summa Rerum’: Metaphysical Fragments, 1675-1676. In: LODGE, P.;
STRICKLAND, L. (dir.). Leibniz: Key Philosophical Texts. Oxford: Oxford University
Press [no prelo].
MÜHLPFORDT, G. Ehrenfried Walhter von Tschirnhaus (1651-1708). Leipzig: Leipzier
Universitäts verlag, 2008.
LEIBNIZ, G. W. Der Briefwechsel von G. W. Leibniz mit Mathematikern. ed.: C. I.
Gerhardt. Berlin: Mayer & Müller, 1899.
______. Über Spinoza’s Ethik. Final de 1675-início de 1676. In : ______. Sämtliche
Schriften und Briefe, vol. VI, iii, p. 384-85.
MEINSMA, K. O. Spinoza et son cercle. Étude critique historique sur les hétérodoxes
hollandais. Trad. S. Roosenburg. Paris: Vrin, 2002.
PÄTZOLD, D. Ist Tschirnhaus’ Medicina mentis ein Ableger von Spinozas
Methodologie? In: NAUTA, L.; VANDERJAGT, A. (eds.). Between Demonstration and
Imagination. Essays in the History of Science and Philosophy Presented to John D.
North. Leiden: Brill, 1999, p. 339-64.
PEIFFER, J. Communicating mathematics in the late seventeenth century: The
Florentine cupola. In: History of Universities, vol. XXIII/2. Oxford: Oxford University
Press, 2008.

O que nos faz pensar, Rio de Janeiro, v.26, n.41, p.191-210, jul.-dez. 2017
O Spinozismo de Tschirnhaus: da teoria das noções comuns à verdadeira física 209

SPINOZA, B. Collected Works, vol. I. Ed. e transl. E. Curley. Princeton: Princeton


University Press, 1985.
______. Ethique. ed. bilíngue latim/francês por B. Pautrat. 2ª ed. Paris: Seuil, 1999.
______. Tractatus de intellectus emendatione, sect. 15. In : ______. Œuvres, vol. I ed. F.
Mignini, trad. M. Beyssade & J. Ganault, Paris: Presses Universitaires de France, 2009,
p. 72-73.
______. de, Correspondance. Présentation et traduction par Maxime Rovere. Paris: GF /
Flammarion, 2010. 464 p.
SPRUIT, L.; TOTARO, P. (eds.). The Vatican Manuscript of Spinoza’s Ethica. Leiden;
Boston: Brill, 2011.
THOMASIUS, Chr. Freymüthige Lustige und Ernsthaffte iedoch Vernunfft- und Gesetz
-Massige Gedancken Oder Monats-Gespräche, über allerhand, fürnehmlich aber Neue
Bücher Durch alle zwölff Monate des 1688. und 1689. Halle: Jahrs 1690.
TOTARO, P. Documenti su Spinoza nell’Archivio del Sant’Uffizio dell’Inquisizione.
Nouvelles de la République des Lettres, n. 1, p. 95-128, 2000.
______. Ho certi amici in Ollandia’: Stensen and Spinoza – science verso faith. In :
ASCANI, K.; KERMIT, H.; SKYTTE, G. (dir.). Niccolo Stenone. Anatomista, geólogo,
vescovo. Roma: L’Erma, 2002, p. 27-38.
______. Introduction. In: SPINOZA, B. The Vatican Manuscript of Spinoza’s ‘Ethics. ed.
L. Spruit & P. Totaro, Leiden: Brill, 2011, p. 1-62.
______. On the Recently Discovered Vatican Manuscript of Spinoza’s ‘Ethics’. Journal
of the History of Philosophy, vol. 51, n. 3, p. 465-76, 2013.
TSCHIRNHAUS, E. W. von. Eilfertiges Bedencken. In: THOMASIUS, Chr. Monats-
gesprache I. Halle, 1600, p. 746-92.
______. Methodus Datae figurae, rectis lineis & Curva Geometrica terminatae,
aut Quadraturam aut impossibilitatem ejusdem Quadraturae determinandi. Acta
Eruditorum, p. 433-37, Oct. 1683.
______. Eilfertiges Bedencken wieder di Objectiones, soi m Mense Martio Schertz-
und Ernsthafter Gedancken üder den Tractat Medicinae Mentis enthalten. In:
THOMASIUS, Chr. Freimütige, lustige und ernsthafter, je deoch vernunftmässige Gedanken
oder Monatsgespräche über allerhand, fürnehmlich aber neue Bücher, v. 1, jan.-jun., 1688.
______. Medicina Mentis, sive Artis Inveniendi Praecepta Generalia. Editio nova. Lipsiae:
J. Thomam Fritsch, 1695.
______. Médecine de l’esprit ou precepts généraux de l’art de découvrir, trad. J.-P. Wurtz.
Paris: Ophrys, 1980.
VAN PEURSEN, C. A. E. W. von Tschirnhaus and the ‘Ars Inveniendi’. Journal of the
History of Ideas, v. 54, n. 3, p. 399-400,1993.
VERNIERE, P. Spinoza et la pensée française avant la Révolution. Paris: Presses
Universitaires de France, 1954.

O que nos faz pensar, Rio de Janeiro, v.26, n.41, p.191-210, jul.-dez. 2017
210 Mogens Lærke . tradução de Pedro H. G. Muniz

WURTZ, J.-P. Tschirnhaus und die Spinozismus-beschuldigung. Studia Leibnitiana, n.


13, p. 61-75, 1981.
______. Die Tschirnhaus-Handschrift ‘Anhang an mein sogenanntes Eilfertiges
Bedencken’. Studia Leibnitiana, n. 15, p. 149-204, 1983.
______. L’Ethique et le concept de Dieu chez Tschirnhaus: l’influence de Spinoza. In:
DEUGD, C. de (ed.). Spinoza’s Political and Theological Thought. Amsterdam: North
Holland Publishing, 1984, p. 230-42.
______. Ueber einige offene oder strittige, die Medicina Mentis von Tschirnhaus
betreffende Fragen. Studia Leibnitiana, n. 20, p. 190-211, 1988.

O que nos faz pensar, Rio de Janeiro, v.26, n.41, p.191-210, jul.-dez. 2017
Los amigos prusianos. Episodios de la
María Jimena Solé*

recepción de Spinoza en el siglo XVIII

Amigos prussianos. Episódios da


recepção de Spinoza no século XVIII

The Prussian Friends. Episodes in


Spinoza’s Reception during the 18th Century

Resumen
El objetivo de de este artículo es presentar algunos episodios de la historia de la
recepción del spinozismo en el territorio alemán durante la segunda mitad del siglo
XVIII, tomando como hilo narrativo el vínculos de amistad profunda y duradera
que unió a muchos de los protagonistas de esta historia. Esa amistad se fundó, en
cierta medida, en la admiración compartida por Spinoza; pero además, fue el suelo
fértil que dio nacimiento a nuevas interpretaciones y nuevas lecturas del spinozismo.
Así, adoptar esta perspectiva para abordar la recepción alemana del spinozismo
permite reflexionar acerca de la conexión entre la filosofía y el amor.

Palabras clave: Amistad; Amor; Interpretación; Recepción; Spinozismo; Filosofía.

Resumo
O objetivo deste artigo é apresentar alguns episódios da história da recepção
do espinosismo no território alemão durante a segunda metade do século XVIII,
tomando como fio narrativo os laços de profunda e duradoura amizade que uniram
muitos dos protagonistas desta historia. Essa amizade foi fundada, em certa medida,
na admiração compartilhada por Spinoza; mas, além disso, foi o solo fértil que deu
origem a novas interpretações e novas leituras do espinosismo. Assim, a adoção
dessa perspectiva para abordar a recepção alemã do espinosismo nos permite
refletir sobre a conexão entre filosofia e amor.

Palavras-chave: Amizade; Amor; Interpretação; Recepção; Spinozismo; Filosofia.

* Professora de Universidad de Buenos Aires (UBA), Argentina. Investigadora del CONICET.


E-mail: jimenasole@yahoo.com

O que nos faz pensar, Rio de Janeiro, v.26, n.41, p.211-234, jul.-dez. 2017
212 María Jimena Solé

Abstract
This article presents some episodes in the history of the reception of Spinoza’s
philosophy in Germany during the second half of the 18th century, through the ties
of deep and lasting friendship between many of the main characters of this story.
That friendship was founded, to some extent, in the shared admiration towards
Spinoza; but it was also fertile soil for new interpretations and new readings of
his doctrine. Thus, adopting this perspective to address the German reception of
Spinozism allows to reflect on the connection between philosophy and love.

Keywords: Friendship; Love; Interpretations; Reception; Philosophy.

(…) de todas aquellas cosas que están fuera de mi poder, nada


estimo más que poder tener el honor de trabar lazos de amistad con
gentes que aman sinceramente la verdad; porque creo que nada
de cuanto hay en el mundo y cae fuera de nuestro poder podemos
amarlo con más tranquilidad que a tales hombres.

Spinoza, Carta 19, a Blyenbergh del 5 de enero de 1665

La historia de la recepción de Spinoza en el territorio alemán durante el siglo


XVIII puede narrarse de diversas maneras. Podría ser presentada como el
lento proceso que condujo desde la identificación del spinozismo como una
doctrina monstruosa a su reivindicación como el exponente más acabado del
racionalismo moderno. Podría, también, ser contada como la historia subte-
rránea de un spinozismo clandestino, que fue adoptando diferentes figuras y
combinándose con otras doctrinas, para irrumpir una y otra vez en las bata-
llas contra la ortodoxia religiosa y filosófica. Podría incluso ser reconstruida
como una sucesión de polémicas desencadenadas por algún aspecto especí-
fico del pensamiento de Spinoza, que hicieron que los pensadores alemanes
se enfrentaran unos a otros al plantarse cuestiones filosóficas fundamentales,
como los límites de la razón, la existencia del libre arbitrio, la relación entre
la finitud y la infinitud, el carácter de lo Absoluto. Ciertamente, la función
teórica del spinozismo en el periodo de la consolidación de la Ilustración ale-
mana, en el proceso que condujo a su crisis y en el surgimiento de la corriente

O que nos faz pensar, Rio de Janeiro, v.26, n.41, p.211-234, jul.-dez. 2017
Los amigos prusianos. Episodios de la recepción de Spinoza en el siglo XVIII 213

idealista, presenta aspectos problemáticos tan numerosos y diversos, como


fundamentales para comprender las profundas transformaciones que atravie-
sa la filosofía de esa época.1
Existe, no obstante, la posibilidad de adoptar una perspectiva diferente.
Es posible narrar la recepción de Spinoza en tiempos prusianos siguiendo la
huella de un elemento peculiar, que atraviesa todo el proceso y que también
lo condiciona: el elemento de la amistad. En efecto, muchos de los protago-
nistas de esta historia estuvieron íntimamente vinculados unos con otros. Se
declararon amigos. Ese vínculo de amistad se fundó, en gran medida, en la
admiración compartida por Spinoza. Pero además, esa amistad se transfor-
mó en el suelo fértil que dio nacimiento a nuevas interpretaciones y nuevas
lecturas del spinozismo. El objetivo de las próximas páginas es explorar esta
perspectiva, narrar la recepción del spinozismo reflexionando acerca del vín-
culo de la amistad que se entrelaza con el ejercicio del pensamiento filosófico
y que sin duda potencia la trama de esta compleja historia.

Amigos ilustrados

Fue a comienzos de 1754 en Berlín, que Moses Mendelssohn y Gotthold


Ephraim Lessing se encontraron por primera vez.2 Un judío y un cristiano.
Ambos tenían 24 años. Lessing había interrumpido sus estudios de medicina
en la Universidad de Leipzig y había llegado a esa ciudad con la intención de
dedicarse a las letras. Mendelssohn había dejado hacía años su Dessau natal
para continuar con su instrucción bajo la tutela del rabino principal de la Sina-
goga de Berlín. Allí, su curiosidad intelectual lo había sumergido en la filosofía

1 Acerca de la recepción de Spinoza en Alemania, pueden verse las siguientes obras: Walther,
M., “Histoire des problèmes de la recherche”. Les Cahiers de Fontenay, Nº 36-38, Spinoza entre
lumière et romantisme, París, 1985; Timm, H., Gott und die Freiheit. Studien zur Religionsphilosophie
der Goethezeit. I. Die Spinozarenaissance. Frankfurt del Meno: Vittorio Klostermann, 1974; Otto,
R., Studien zur Spinozarezeption in Deutschland im 18. Jahrhundert. Frankfurt del Meno: Peter Lang,
1994; Schröder, W., Spinoza in der deutschen Frühaufklärung. Würzburg: Königshausen & Neu-
mann, 1987; Walther, M., “Machina civilis oder Von deutscher Freiheit”. En Cristofolini, P. (edi-
tor), L’Hérésie Spinoziste. La discussion sur le Tractatus Theologico-Politicus 1670-1677, et la Réception
immédiate du spinozisme. Ámsterdam y Maarssen: Apa-Holland University Press, 1995; Winkle,
S., Die heimlichen Spinozisten in Altona und der Spinozastreit. Hamburgo: Verein für Hamburgische
Geschichte, 1988. En español: Solé, María Jimena, Spinoza en Alemania (1670-1789). Historia de la
santificación de un filósofo maldito, Editorial Brujas, Córdoba, 2011.

2 Véase la Introducción de F. Nicolai en Moses Mendelssohn’s gesammelte Schriften, Leipzig, 1843-


1845. Véase también Alexander Altmann, Moses Mendelssohn. A Biographical Study, University of
Alabama Press, Alabama, 1973, p. 36.

O que nos faz pensar, Rio de Janeiro, v.26, n.41, p.211-234, jul.-dez. 2017
214 María Jimena Solé

secular. La amistad que forjaron duró hasta el final de sus vidas y fue el símbolo
de la nueva era de mayor tolerancia religiosa y libertad de expresión, que Fede-
rico II impulsaba en Prusia desde que había subido al trono hacía algunos años.
Probablemente sobre un tablero de ajedrez, la conversación entre ellos
debe haber revelado rápidamente profundas afinidades y un interés comparti-
do: la filosofía de Spinoza.3 Atreviéndose a desafiar el anatema que desde hacía
más de un siglo prohibía a los judíos leer sus escritos, Mendelssohn ya lo había
estudiado.4 Lessing probablemente se sentía atraído por la extravagante ima-
gen del Filósofo maldito, del Príncipe de los ateos, que sus biógrafos y refutadores
habían instalado en el imaginario de la ortodoxia intelectual alemana.5 Inme-
diatamente emprendieron un proyecto en conjunto: la escritura de un ensayo.
La excusa era participar del concurso de la Academia Real de Ciencias y Letras
que Federico II había transformado en una de las principales instituciones
para el fomento de la cultura y difusión de las ideas de la Ilustración. La con-
signa de ese año proponía investigar el significado de la frase “todo está bien”
del poema An Essay on Man de Alexander Pope6 y su relación con la doctrina
leibniziana del optimismo metafísico, según la cual Dios ha creado el mejor
de los mundos posibles. En un contexto en que la filosofía leibniz-wolffiana
comenzaba a perder apoyo entre los filósofos alemanes, Mendelssohn y Les-
sing decidieron satirizar la consigna y denunciarla como un intento por elevar
al poeta Pope al rango de filósofo. Spinoza se coló en el escrito, que titularon
¡Pope un metafísico!,7 y que finalmente no ingresaron al certamen pero publi-
caron anónimo antes de que se conocieran los resultados.

3 Cf. Goldenbaum, U. “Mendelssohns schwierige Beziehung zu Spinoza” en Schürmann, E., Waszek,


N., Weinreich, F. (comps.), Spinoza im Deutschland des achtzehnten Jahrhunderts. Stuttgart-Bad
Cannstatt: Forman-Holzboog, 2002, p. 275.

4 Cf. Levy, Z., Baruch Spinoza –Seine Aufnahme durch die jüdischen Denker in Deutschland, Kohlham-
mer, Stuttgart, 2001, p. 24. El anatema contra Spinoza se encuentra reproducido en J. Freudent-
hal / M. Walther, Die Lebensgeschichte Spinozas. Lebensbeschreibungen und Dokumente. Stark erweiter-
te und neu kommentierte Neuausgabe der Lebensgeschichte Freudenthal 1899, Frommann-Holzboog,
Stuttgart-Bad Cannstatt, 2006, t. I, p. 262. Véase la versión castellana en Domínguez A., (comp.),
Biografías de Spinoza, Alianza, Madrid, 1995, pp. 186-187.

5 Véase, entre otros, el artículo “Spinoza” en el Dictionnaire Historique et Critique de Pierre Bayle
(Idem, Diccionario histórico y crítico (antología), estudio, trad. y notas de F. Bahr. Buenos Aires:
FFyL-UBA, 2003).

6 Pope, A., An Essay on Man; In Epistles to a Friend. London: Wilford, 1733 y 1734.

7 Mendelssohn, M. y Lessing, G. E., Pope, ein Metaphysiker!, Berlín, 1755.

O que nos faz pensar, Rio de Janeiro, v.26, n.41, p.211-234, jul.-dez. 2017
Los amigos prusianos. Episodios de la recepción de Spinoza en el siglo XVIII 215

Las referencias a Spinoza son pocas, pero elocuentes. Había algo de rebel-
día en el gesto de citarlo. Los jóvenes amigos mostraban públicamente que lo
conocían, que lo habían leído y que, a pesar de conceder que había sido un
“renombrado hereje”8 por afirmar que la extensión era un atributo de Dios,
no estaban dispuestos a deshacerse de él por completo ni a aceptar cualquier
calumnia en su contra. Al analizar el poema de Pope, Lessing y Mendelssohn
rechazan una supuesta influencia spinoziana que estaría expresada en los
versos “Whose body Nature is, and God the soul” [Cuyo cuerpo es la Naturaleza,
y cuya alma es Dios]. “¡Cuán distinta era la opinión de Spinoza!”, se lamentan;
y advierten que ha habido “otros filósofos equivocados” que han considerado
a Dios como el alma de la naturaleza “y que se encuentran tan alejados del
spinozismo como de la verdad.”9
Es posible adivinar tras esta afirmación una voluntad de hacer una lectura
novedosa del spinozismo, que probablemente surgió en el franco intercambio
de ideas al que dio lugar, seguramente, el vínculo amistoso –vínculo que, a
la vez, debe haberse visto fortalecido gracias al poderoso ingrediente de la
complicidad. A diferencia de lo que la mayoría de los profesores de filosofía
y teología alemanes habían hecho hasta el momento, los amigos intentaban
comprender a Spinoza sin condenarlo pero, además, parecían querer encon-
trar la vía para rescatarlo de una larga historia de ataques injustos.10 Esta acti-
tud vuelve a aparecer en una carta que Lessing envió a Michaelis pocos meses
después de conocer a Mendelssohn, en la que lo elogia por sus habilidades en
matemáticas, lenguas, filosofía y poesía y, para resumir su descripción, elige

8 Lessing, G. E., Werke, 8 tomos, editado por H. G. Göpfert. München: Carl Hanser, 1970-1979,
t. III, p. 662. Esta crítica puede rastrearse tanto en el artículo de Bayle ya mencionado como en la
refutación que Christian Wolff hace del spinozismo incluida en su obra Teología natural. Cf. Wolff,
Ch., Theologia naturalis, Methodo scientifica pertractata. Pars 1. Editio nova. Frankfurt am Main/
Leipzig: Renger, 1739.

9 Lessing, Werke, op.cit., t. III, p. 662.

10 Existen ciertos antecedentes que pueden entenderse como condiciones que habilitaban una
nueva actitud hacia el Filósofo maldito. En primer lugar, la refutación que Wolff había publica-
do en 1739 (cf. Wolff, op. cit.) era una primera refutación filosófica que apuntaba a mostrar la
inexactitud de algunos de sus conceptos sin recurrir a las estrategias usuales de tergiversación y
ataques personales. Poco después, había aparecido la traducción alemana de la Ética que incluía
también la refutación wolffiana, hecha por Johann Lorenz Schmidt (cf. B.v.S. Sittenlehre widerleget
von dem berühmten Weltweisen unserer Zeit Herrn Christian Wolff, trad. y ed. de Johann Lorenz
Schmidt. Leipzig/Frankfurt am Main, 1744). También se había publicado un ensayo contra la
interpretación de Bayle del spinozismo con la protección de la Academia Real. (cf. Goldenbaum,
op.cit., p. 279 y Altmann, op.cit., p. 35).

O que nos faz pensar, Rio de Janeiro, v.26, n.41, p.211-234, jul.-dez. 2017
216 María Jimena Solé

una comparación sorprendente. “Su honradez y su espíritu filosófico me per-


miten considerarlo de antemano un segundo Spinoza, con quien se igualará
en todo salvo en sus errores”,11 escribe.
Puede ser que Mendelssohn haya fantaseado con ser un segundo Spinoza.
Compartían un mismo origen y habían recibido la misma educación tradicio-
nal judía.12 Ambos habían querido ir más allá de los límites del gueto y dejar
su impronta en la filosofía racionalista secular. Probablemente, además, se
sintió conmovido por su defensa de la libertad de pensamiento e indignado
por su expulsión de la comunidad judía.13 Era necesario reivindicar la figura
de Spinoza –era un modo de legitimarse a sí mismo– y a eso dedicó Mendel-
ssohn su primera obra, en cuya génesis estuvo íntimamente involucrado su
nuevo amigo Lessing.
En efecto, fue luego de que Lessing le prestara un tratado de Shaftesbury,
probablemente El moralista, o una rapsodia filosófica, que Mendelssohn llegó
a la conclusión de que él mismo podía escribir algo semejante. “Entonces,
hazlo”, habría respondido Lessing. Poco después Mendelssohn le entregó un
manuscrito que contenía cuatro diálogos perfectamente compuestos, que to-
caban temas profundos con gran claridad y proponían hipótesis novedosas.
Impresionado, Lessing decidió darlo a la imprenta. Unas semanas más tarde,
a comienzos de 1755, cuando Mendelssohn quiso saber qué le había pareci-
do el texto, su amigo lo sorprendió con un ejemplar impreso, anónimo, bajo
el título de Diálogos filosóficos.14
Spinoza aparece allí reivindicado como una figura central de la historia
de la filosofía porque su sistema cumple la función de advertir a Leibniz
acerca de los peligros de llevar ciertos principios cartesianos demasiado lejos.

11 Carta a Michaelis del 16 de octubre de 1754 en Lessings Briefe, Berlin y Weimar: Aufbau-Ver-
lag,1983, p. 28.

12 Cf. Altmann, A., op.cit., p. 33.

13 Según Mendelssohn, la Sinagoga no tenía derecho a aplicar esa clase de castigo –propio del
Estado que ejerce el poder temporal– sino que, en tanto que iglesia que ejerce un poder espiritual,
únicamente puede recurrir a la persuasión. Al respecto, véase Zac, S., op.cit., pp. 11 y ss.

14 [Mendelssohn, M.], Philosophische Gespräche. Berlín: Voss, 1755. Traducción al español en


Mendelssohn, M. y Lessing, G. E., Debate sobre Spinoza. Trad. M. J. Solé. Córdoba: Encuentro
Grupo Editor/Brujas, 2010. Acerca del mítico surgimiento de la obra, véase Altmann, A., op. cit.,
pp. 36 y ss. Además, Lessing colaboró con una reseña en la Berlinische privilegirte Zeitung, donde
sostiene que la obra contiene muchas cosas “nuevas y fundamentales” y presenta al autor como
un hombre “que posee más meditación que ganas de escribir”. La reseña apareció el 1 de marzo
de 1755, en el número 26 de la Berlinishce privilegirte Zeitung.

O que nos faz pensar, Rio de Janeiro, v.26, n.41, p.211-234, jul.-dez. 2017
Los amigos prusianos. Episodios de la recepción de Spinoza en el siglo XVIII 217

Pero además, Mendelssohn defiende dos tesis interpretativas que apuntan a


recuperar aspectos positivos de la doctrina spinoziana. Argumenta, en primer
lugar, que Spinoza es el verdadero inventor de la doctrina de la armonía
preestablecida, que Leibniz la habría tomado de él. En segundo lugar, sostie-
ne que el universo metafísico spinoziano puede ser entendido como uno de
los infinitos mundos posibles que existen en la mente del Dios leibniziano
antes de la creación. De este modo, la doctrina de Spinoza se revela como
compatible con la de Leibniz –que era el fundamento metafísico de la ten-
dencia dominante en la Ilustración alemana– y, por lo tanto, también con los
fundamentos de una religión y una moral basada en la idea de una divinidad
personal, libre y buena. Así, quizás irónicamente si se piensa en el rol que le
tocaría jugar al final de su vida en el contexto de la polémica con Jacobi, don-
de se vio obligado a defender a Lessing de la acusación de spinozismo, puede
afirmarse que los Diálogos filosóficos de Mendelssohn inauguraron una nueva
era en la recepción de Spinoza en Alemania.
Algunos años más tarde, instalado en Breslau y con un empleo que le
dejaba tiempo libre para dedicarse al estudio, Lessing se abocó a la lectura
de Spinoza. El resultado fue la redacción de dos breves fragmentos que hizo
llegar a su amigo por correo, en los que discutía las dos tesis que había de-
fendido en los Diálogos filosóficos.15 Lessing sostiene, en un primer fragmento,
que según Spinoza cuerpo y alma son la misma cosa considerada bajo el atri-
buto extensión o bajo el atributo pensamiento, por lo que la única clase de
armonía posible entre ellos es la de aquella que tiene una cosa consigo misma.
Reprocha entonces a su amigo el haber jugado con las palabras al atribuir a
Spinoza una doctrina de la armonía preestablecida. Contra la segunda tesis
de Mendelssohn, Lessing investiga la distinción entre lo existente en la mente
divina y fuera de ella. Examina la noción de realidad [Wirklichkeit], definida
por Wolff como el complemento de la posibilidad y se pregunta si existe en
la mente de Dios una idea de ese complemento. Responde que sí, pues Dios
posee una idea completa y perfecta de todo lo que existe realmente. Por lo
tanto, no puede haber nada en la cosa real que no esté incluido en la idea que

15 Los dos fragmentos son: “Durch Spinoza ist Leibniz nur auf die Spur der vorherbestimmten Harmo-
nie gekommen” [“A través de Spinoza, Leibniz dio sólo con la pista de la armonía preestablecida”]
y “Über die Wirklichkeit der Dinge außer Gott” [“Sobre la realidad de las cosas fuera de Dios”].
Lessing los envía a Mendelssohn en una carta del 17 de abril de 1763. Ambos fueron publicados
póstumos bajo el título Spinozisterey. Véase Lessing, G. E., Sämtliche Werke, ed. K. Lachmann y F.
Muncker. Berlín, 1886-1924, t. XVII, pp. 196 y ss.. Traducción al español en Mendelssohn, M. y
Lessing, G. E., Debate sobre Spinoza, op. cit.

O que nos faz pensar, Rio de Janeiro, v.26, n.41, p.211-234, jul.-dez. 2017
218 María Jimena Solé

Dios tiene de esa cosa. La idea de la cosa que existe en la mente divina y la
cosa realmente existente deben ser idénticas. Trazar allí una distinción sería
duplicar innecesariamente los entes y, por lo tanto, conviene sostener que
todas las cosas son reales en Dios.
Claramente, la lectura de Lessing tomaba un camino diferente a la de su
más querido amigo. La reivindicación de Spinoza no podía hacerse a cosa de
una interpretación que lo aproximaba al respetado Leibniz, al punto de tergi-
versar su doctrina por completo. El Filósofo maldito debía ser redimido por
sus propios méritos. No sólo había honradez y espíritu filosófico en Spinoza.
Había también verdad en su filosofía. ¿Era quizás la única filosofía? ¿Se había
hecho Lessing amigo de Spinoza?
Es probable que Lessing haya comenzado a pensar de esta manera. La
influencia de ciertas ideas spinozianas en algunas de sus obras, especialmente
en La educación del género humano, no pasó inadvertida a sus contemporá-
neos.16 Además, algunos de sus allegados habían visto escritas de su puño y
letra en sus cuadernos y hasta en una madera en el jardín de la casa del poeta
Gleim, en Habertstadt, las palabras en griego “εν και παν” –“uno y todo”–
lema asociado desde hacía tiempo al panteísmo y, por lo tanto, a Spinoza.17
Es, por lo tanto, dudoso que Friedrich Heinrich Jacobi se haya sorpren-
dido cuando, en julio de 1780 visitó a Lessing en Wolfenbüttel y, después de
darle a leer la oda Prometeo –escrita por Goethe por todavía inédita–, éste le
confesó su disgusto frente a las ideas ortodoxas de la divinidad, su rechazo
del libre arbitrio y su adopción del punto de vista del hen kai pan. “Entonces
usted estaría bastante de acuerdo con Spinoza”, replicó Jacobi. Lessing asintió
y su respuesta desencadenó una polémica que cambió el rumbo de la historia
de la filosofía: “Mejor conviértase en su amigo. No hay otra filosofía que la
filosofía de Spinoza”.18

16 Lessing, G. E., Die Erziehung des Menschengeschlechts. Berlín, 1780.

17 Los testimonios son de Johann Albert Reimarus (carta a Mendelssohn en Mendelssohn, M.,
Gesammelte Schriften. Jubiläumsausgabe, op. cit., tomo 13.3, p. 155) y de Herder (carta a Jacobi
del 6 de febrero de 1784 en Jacobi, F. H., Briefwechsel. Gesamtausgabe der Bayerischen Akademie
der Wissenschaften. Stuttgart-Bad Cannstatt: Frommann-Holzboog, 1987 y ss., tomo I.3, p. 279).

18 Jacobi, F. H., Über die Lehre des Spinoza in Briefen an den Herrn Moses Mendelssohn [Car-
tas sobre la doctrina de Spinoza al señor Moses Mendelssohn]. Breslau: Gottlieb Löwe, 1785, p. 13.
Traducción al español en AAVV, El ocaso de la Ilustración. La polémica del spinozismo. Trad., notas
y estudio preliminar de M. J. Solé. Bernal: Editorial de la Universidad Nacional de Quilmes/
Prometeo, 2013.

O que nos faz pensar, Rio de Janeiro, v.26, n.41, p.211-234, jul.-dez. 2017
Los amigos prusianos. Episodios de la recepción de Spinoza en el siglo XVIII 219

Jacobi estaba de acuerdo. El spinozismo era la única filosofía, el sistema


más perfecto de la razón humana, insuperable e irrefutable. Lo sabía porque
también él, desde hacía años, conocía bien a Spinoza. Pero además, Spinoza
había sido, también para él, el suelo fecundo en el que echó raíces una amis-
tad que fue determinante en su vida y en su pensamiento.

Amigos sentimentales

Jacobi y Goethe se conocieron en el verano de 1774. Goethe tenía 25 años.


Acababa de publicar su exitosísima novela Las desventuras del joven Werther y,
con ello, se había puesto al frente de un nuevo movimiento artístico y litera-
rio, el Sturm und Drang, crítico de las ideas de la Ilustración y de la Empfind-
samkeit.19 Junto con Lavater y Basedown, había emprendido un viaje por el
valle del Rin que lo condujo a Düsseldorf, donde quiso visitar a los hermanos
Jacobi. Friedrich Heinrich tenía 31 años y su inclinación por las letras se había
visto obstruida por éxito precoz de su hermano mayor, Johann Georg –que
había adquirido muy pronto su fama como poeta– y por el mandato paterno
que lo destinaba a hacerse cargo del negocio familiar. Los dos tenían mucho en
común. Ambos veían con disgusto el avance de la Ilustración fundada en una
racionalidad que conducía a una visión mecánica y desencantada del mundo,
que abrazaba el determinismo y hacía de la divinidad un arquitecto racional
del universo. Para escapar de la prisión del intelecto y el cálculo, ambos ha-
bían tomado el camino del sentimiento, la intuición, el corazón y el instinto.
Pero además, el curso de sus conversaciones los condujo al descubrimien-
to de una coincidencia de otro orden, no respecto de aquello contra lo cual
ambos reaccionaban, sino a un auténtico encuentro positivo: su admiración
compartida por el autor de la Ética.20 Años más tarde, rememorando los días
que pasaron juntos, Jacobi escribiría a Goethe: “Espero que en esta época no
te olvides de la casa de Jabach, del castillo de Bensberg y de la glorieta, en la
que me hablaste de un modo tan inolvidable sobre Spinoza. (…) ¡Qué horas!

19 Goethe, J. W., Die Leiden des jungen Werther. Leipzig: in der Weygandschen Buchhandlung,
1774.

20 Véase H. Nicolai, Goethe und Jacobi. Studien zur Geschichte ihrer Freundschaft, Metzlersche und
Poeschel, Stuttgart, 1965, pp. 37 y ss.

O que nos faz pensar, Rio de Janeiro, v.26, n.41, p.211-234, jul.-dez. 2017
220 María Jimena Solé

¡Qué días!”.21 Spinoza tuvo una importancia fundamental en las biografías in-
telectuales de ambos. Fue también el nudo que los mantendría atados en una
sinuosa amistad hasta el final de sus vidas.
Goethe había descubierto a Spinoza poco tiempo antes. En una carta del 7
de mayo de 1773, solicitaba a Höpfner conservar el ejemplar de la Ética que
le había prestado, pues deseaba ver cuán lejos podía seguirlo “en sus fosas
y túneles subterráneos”.22 Su interés se concentró en el aspecto práctico del
sistema. Años más tarde, en un conocido pasaje de su autobiografía Poesía y
verdad, Goethe relata que la lectura del artículo de Pierre Bayle, que presenta
a Spinoza como un ateo virtuoso, lo había hecho desconfiar. Una vida a acor-
de a los seres humanos y a Dios no podía basarse en principios perniciosos.23
Según una entrada del diario personal de Lavater, del 28 de junio de 1774,
Goethe consideraba que “Spinoza fue un hombre extraordinariamente justo,
sincero y humilde” y que “nadie se ha expresado tan adecuadamente sobre la
divinidad y el Salvador”.24
Goethe consideró a Spinoza, desde el comienzo, un ejemplo de vida.
Consideró, además, que a una vida virtuosa debía corresponder una filosofía
verdadera. Ya en sus primeras obras literarias es posible encontrar ciertas
ideas de inspiración spinozista, como la presencia del sentimiento panteísta
de la unidad con la totalidad, la concepción de la libertad como autodeter-
minación, la afirmación de una necesidad universal y la identificación de los
conceptos de realidad y perfección.25 Lejos del ateísmo y el fatalismo que le

21 Jacobi a Goehte, 28 de diciembre de 1812. Carta citada en Bach, A., Goethes Rheinreise, mit
Lavater und Basedow, im Sommer 1774. Zürich: Seldwyla, 1923, p. 169, documento 93.

22 Goethes Werke. Weimarer Ausgabe, Weimar, 1887-1912, t. IV. 2 p. 85.

23 “Primero, el hombre es denunciado como ateo y sus opiniones como sumamente reprobables;
pero luego se admite que fue un hombre tranquilo, reflexivo y dedicado a sus estudios, un buen
ciudadano, un ser humano confiado, una persona comunicativa, un individuo callado. De este
modo, parece que se han olvidado totalmente las palabras del Evangelio: «¡Por sus frutos los
conoceréis!» Pues, ¿cómo puede ser que una vida acorde a los seres humanos y a Dios se base
en principios perniciosos?” (Goethes Werke. Hamburger Ausgabe in 14 Bänden, ed. por Erich Trunz,
Christian Wegener. Hamburgo, 1948 y ss., t. 10, p. 76).

24 Goethe, J. W., Goethe und Lavater. Briefe und Tagebücher, Schriften der Goethe-Gesellschaft,
tomo 16. Hermann Böhlaus Nachfolger, 1901, pp. 287, 291-2.

25 Cf. Bolacher, M., Der junge Goethe und Spinoza. Studien zur Geschichte des Spinozismus in der
Epoche des Sturms und Drang. Tübingen: Max Niemeyer Verlag, 1969, pp. 175-191. También Car-
los Astrada indica la tendencia panteísta de Goethe en Werther y Fausto, y afirma que ésta remite
a la influencia spinozista (cf. Astrada, C., Goethe y el panteísmo spinociano. Santa Fe: Universidad
del Litoral, 1933).

O que nos faz pensar, Rio de Janeiro, v.26, n.41, p.211-234, jul.-dez. 2017
Los amigos prusianos. Episodios de la recepción de Spinoza en el siglo XVIII 221

había adjudicado la tradicional lectura hecha por detractores, el joven Goethe


vio en el sistema spinoziano una vía para que el ser humano se liberase de
una noción falsa de Dios hecha a su imagen, y para que asumiese su lugar
protagónico en el universo. Así, aunque Goethe reconoce que en esa época
todavía no lo había estudiado en profundidad y que había adoptado de modo
incompleto algunas de sus ideas, no duda en señalar a Spinoza como una de
las influencias decisivas en su vida.26
La relación de Jacobi con Spinoza era completamente distinta. Hacía más
de diez años que lo había estudiado sistemáticamente, motivado por la lectu-
ra del Tratado sobre la evidencia en las ciencias metafísicas de Mendelssohn, pre-
miado por la Academia Real de Ciencias y Letras.27 El ensayo de Mendelssohn
defendía la prueba ontológica de la existencia de Dios, de la que Jacobi siem-
pre había sospechado. Según él mismo lo relata en un pasaje autobiográfico,
se decidió entonces a estudiar el argumento en profundidad, comenzando
por Descartes. Pero se volcó al estudio de Spinoza, porque recordó haber
leído en Leibniz que el spinozismo es el cartesianismo exagerado. Consiguió
la traducción al alemán de la Ética que Schmidt había publicado junto con
la refutación de Wolff en 1744. “Allí me enfrenté con la prueba cartesiana en
toda su claridad y comprendí para qué Dios valía y para qué Dios no valía en
absoluto”,28 admite Jacobi. Ciertamente, la prueba racional probaba existen-
cia de una deidad concebida como la causa primera, como el arquitecto del
universo, que no era el Dios trascendente, personal y creador, el Dios de la fe.
El encuentro con Goethe fue decisivo para su vida. El entusiasmo que le
infundió esta nueva amistad, lo decidió a abrazar su vocación literaria seria-
mente. Un año más tarde, en 1775, apareció su primera novela, Extractos de
los papeles de Eduard Allwill y luego, en 1777, una segunda, titulada Woldermar.
Principalmente dedicadas a la construcción de la psicología de los personajes,

26 “Felizmente, en aquel tiempo yo ya me había familiarizado, aunque no lo había estudiado


en profundidad, con la vida y la doctrina de un hombre extraordinario, las cuales había adop-
tado, ciertamente de un modo incompleto y como de prestado, pero que sin embargo ya tenían
importantes efectos en mí. Este espíritu, que causó en mí una impresión tan decisiva y que tuvo
una influencia tan grande en toda mi manera de pensar, fue Spinoza.” (Goethe, Goethes Werke.
Hamburger Ausgabe in 14 Bänden, op.cit., t.10 p. 35).

27 Jacobi mismo relata todo esto en un pasaje autobiográfico de su David Hume. Über den Glauben
oder Idealismus und Realismus [David Hume. Sobre la creencia o idealismo y realismo]. Breslau: Löwe,
1786. Existe una traducción al español de esta obra, de J. L. Villacañas (en Jacobi, F. H., Cartas a
Mendelssohn. David Hume. Carta a Fichte, trad., intr. y notas de J.L.Villacañas, Madrid: Biblioteca
Universal, 1995).

28 Idem., p. 188.

O que nos faz pensar, Rio de Janeiro, v.26, n.41, p.211-234, jul.-dez. 2017
222 María Jimena Solé

estas novelas capturan el ideario del nuevo movimiento literario del Sturm
und Drang –la figura del genio, la concepción panteísta de la naturaleza y la
exaltación de las emociones individuales– pero desde una perspectiva crítica,
intentando poner en evidencia ciertas contradicciones que veía en ambos. Si
bien no existen fuentes textuales que permitan reconstruir la discusión entre
ellos acerca del spinozismo, es factible suponer que Jacobi descubrió que Goe-
the y los Stürmer creían ver en aquel sistema, específicamente en el concepto
spinoziano de una divinidad inmanente, el fundamento para la construcción
de una nueva posición estética, ética y religiosa fundada en una visión divini-
zada de la naturaleza, que conducía al rechazo del Dios creador y a la reivin-
dicación de una nueva imagen del ser humano que exaltaba su autonomía. A
partir de ese momento, Goethe y Spinoza conformaron, en la mente de Jacobi,
una unidad indisociable.29 Es por ello que años más tarde utilizaría su oda Pro-
meteo como una manera de escudriñar las convicciones teológicas de Lessing
y confirmar la sospecha de su secreto spinozismo.
Goethe reaccionó con crueldad a las críticas al ideario del Sturm und Drang
contenidas en la novela de Jacobi. Clavó un ejemplar de Woldemar en un ár-
bol del parque Ettersburger, en las afueras de Weimar y se burló de él frente
a un grupo de personas.30 La recientemente iniciada amistad en seguida se
mostró conflictiva. Las convicciones fundamentales de los nuevos amigos
parecían imposibles de armonizar y los años posteriores pondrían en eviden-
cia en qué medida el terreno fértil del spinozismo en el que su vínculo había
echado raíces, tenía para cada uno un sentido contrapuesto e irreconciliable.
Se trataba, en realidad, de terrenos diferentes.
Spinoza era para Jacobi, al mismo tiempo, un héroe y un monstruo. En el
curso de su famosa conversación con Lessing en Wolfenbüttel, luego de que
éste le confesara que conocía a Spinoza y que si debía “invocar un nombre”,
no conocía “ningún otro”,31 Jacobi afirma que, por fundarse en el principio “a
nihilo, nihil fit” –nada proviene de la nada–, Spinoza rechaza la posibilidad de
una creación absoluta y postula una causa inmanente del universo, que con-
duce tanto al ateísmo como al fatalismo y, por lo tanto, destruye los fundamen-
tos de la moral, la religión y el orden político. Jacobi no quiere ser amigo de
Spinoza, como le recomienda Lessing. Sin embargo, acepta que el spinozismo

29 Cf. Villacañas, J. L., “Una entrevista que transformó la cultura alemana”. En Jacobi, F. J., Cartas
a Mendelssohn. David Hume. Carta a Fichte, op. cit., pp. 5 y ss.

30 Cf. Nicolai, op.cit., pp. 140 y ss.

31 Jacobi, F. H., Cartas sobre la doctrina de Spinoza…, op. cit., p. 12.

O que nos faz pensar, Rio de Janeiro, v.26, n.41, p.211-234, jul.-dez. 2017
Los amigos prusianos. Episodios de la recepción de Spinoza en el siglo XVIII 223

es la única filosofía, porque efectivamente, según su lectura, nadie ha llevado


tan lejos la pretensión demostrativa de la razón humana, como Spinoza. Su
sistema, fundado rigurosamente en demostraciones y silogismos, es perfecto
e irrefutable. Es por eso que declara que ama a Spinoza, porque él, más que
ningún otro, lo ha conducido “al total convencimiento de que ciertas cosas no
se pueden explicar”.32 La razón que pretende demostrarlo todo tiene un límite.
Hay ciertas cosas que hay que aceptar sin demostración, como la existencia de
un Dios personal, libre, bueno y providente, que se revela en la intimidad del
corazón y que sólo puede ser objeto de la fe. Spinoza, el máximo representante
de la filosofía, pone en evidencia la necesidad de abandonar la pretensión de
fundamental de la filosofía, de realizar el salto mortale al ámbito de la fe y de
abrazar lo que Jacobi llama la Un-Philosophie.
Pocos meses después de la visita de Jacobi y su exhortación a hacerse ami-
go de Spinoza, Lessing murió. Jacobi mantuvo el secreto de su confesión de
spinozismo hasta que, en 1783, recibió la noticia de que Mendelssohn estaba
decidido a escribir una biografía intelectual de su más querido amigo, a modo
de homenaje. Redactó entonces una larga carta, en la que incluía todos los
detalles del dialogo que habían mantenido dos años antes. Según Jacobi, ha-
cia el final de su vida, Lessing había abrazado el spinozismo. Hizo dos copias
del manuscrito. Envió una a Mendelssohn, en Berlín. La otra, viajó a Weimar,
dirigida a Goethe.
La noticia conmovió a Mendelssohn. En primer lugar, Jacobi estaba ata-
cando a toda la Ilustración. Su principal argumento era muy claro: los racio-
nalistas ilustrados, al igual que Spinoza, pretenden demostrar todo mediante
argumentos, el sistema spinoziano es la cima más alta de la filosofía raciona-
lista y por lo tanto, los ilustrados deben aceptar las consecuencias a las que
conduce, esto es, el fatalismo, el ateísmo y el nihilismo. Pero además, Jacobi
ponía en juego la reputación de su difunto amigo y dudaba de la sinceridad
de su vínculo amistoso con Lessing, del cual él se enorgullecía. Mendelssohn
reaccionó, entonces, como quien defiende a su mejor amigo de un ataque
malicioso. Primero, negó la veracidad del relato. Luego, atribuyó las afirma-
ciones de Lessing a su conocido gusto por las paradojas. Finalmente, aceptó
todo y decidió dedicar un capítulo de sus última obra, las Horas matinales,33

32 Ibidem, p. 29.

33 Mendelssohn, M., Morgenstunden oder Vorlesungen über das Daseyn Gottes. Berlin: Voss, 1785.
Mi traducción al español de una selección de esta obra se encuentra publicada en AAVV, El ocaso
de la Ilustración…, op. cit.

O que nos faz pensar, Rio de Janeiro, v.26, n.41, p.211-234, jul.-dez. 2017
224 María Jimena Solé

a explicar que el spinozismo al que había adherido su amigo era un “pan-


teísmo purificado” que –repitiendo sus tesis de los Diálogos filosóficos– era
perfectamente compatible con la visión leibniziana del universo y, por lo
tanto, inofensivo para el orden moral y religioso. Además, acusó a Jacobi de
haber traicionado a su amigo, por hacer pública una conversación privada
de un modo tan irresponsable. Lamentablemente, la amargura ocasionada
por el asunto y el esfuerzo que le significó su participación en la polémica,
hicieron ceder su debilitada salud. Mendelssohn murió los primeros días
de 1786, como un mártir de la causa de la Ilustración y, fundamentalmente,
como un mártir de la causa de la amistad.
En Weimar, la reacción fue muy distinta. Luego de leer el relato de la
conversación con Lessing, Goethe vio renovado su interés y su admiración
por Spinoza. Junto con Herder –quien también se había sentido siempre
inclinado a la lectura de Spinoza– celebraron las afirmaciones de Lessing.
Tampoco ellos se sentían satisfechos con los conceptos ortodoxos de la di-
vinidad y vieron en la sustancia absolutamente infinita una nueva noción
de Dios.34
Herder respondió a Jacobi con una extensa epístola, que pone en eviden-
cia el inmenso impacto que tuvo en él la noticia del spinozismo de Lessing.35
Ha encontrado a un compañero en su credo filosófico. “Sinceramente, que-
ridísimo Jacobi,”, escribe, “desde que he ingresado al ámbito de la filoso-
fía, cada vez estoy más y más convencido de la verdad de la afirmación de
Lessing, que realmente sólo la filosofía spinoziana posee una absoluta unidad
consigo misma.”36 Además, Herder sostiene que el problema de la interpre-
tación de Jacobi, al igual que el de todos los anti-spinozistas, reside en que,
al reducir el espíritu del spinozismo a un principio negativo –a nihilo nihil
fit– transforma a Dios en un cero, en un concepto abstracto. Sin embargo, el
Dios de Spinoza es “el Uno sumamente real y máximamente activo, que se
dice a sí mismo: soy el que soy y seré (en todas las transformaciones de mis
expresiones, las cuales no se refieren a Él sino a sus expresiones entre sí) lo

34 Herder le escribe a Jacobi: “Sinceramente, queridísimo Jacobi, desde que he ingresado al


ámbito de la filosofía, cada vez estoy más y más convencido de la verdad de la afirmación de Les-
sing, que realmente sólo la filosofía spinoziana posee una absoluta unidad consigo misma.” (Jacobi,
Briefwechsel, op.cit. I.3, p. 279.)

35 Cf. Timm, op.cit., p. 299.

36 Jacobi, Briefwechsel, op.cit. I.3, p. 279.

O que nos faz pensar, Rio de Janeiro, v.26, n.41, p.211-234, jul.-dez. 2017
Los amigos prusianos. Episodios de la recepción de Spinoza en el siglo XVIII 225

que seré.”37 Aun cuando recurre a un lenguaje propio de la teología cristina,


es claro que Herder ha abandonado la ortodoxia y que se une a Spinoza –y a
Lessing– contra la posición personalista de Jacobi, que él considera inacep-
table y absurda.
Jacobi fue invitado a Weimar y las conversaciones mantenidas por los ad-
miradores de Spinoza generaron en Goethe y Herder, tal como se desprende
de sus cartas, aún más deseo por leer y comprender su doctrina. Había que
refutar la lectura que hacía del spinozismo un ateísmo y un fatalismo. Es claro
que Herder ya se encontraba en posesión de las ideas centrales de su interpre-
tación del spinozismo. Goethe, en cambio, se abocó seriamente a la lectura
de la Ética junto a Charlotte von Stein luego de que el invitado abandonara
Weimar. “Estoy leyendo con la Sra. v. Stein la Ética de Spinoza”, escribe en
una carta a Ludwig von Knebel, y le confiesa que se siente “muy cerca de él,
a pesar de que su espíritu es mucho más profundo y puro”.38 Poco después,
le escribe a Jacobi: “Parece que nos has devuelto el ansia y el amor por la
metafísica”.39 El resultado de este estudio en conjunto que un breve texto que
Goethe dictó a Charlotte von Stein, titulado Studie nach Spinoza, publicado
póstumo, en el que explora las consecuencias éticas y estéticas del monismo
metafísico.40 El 9 junio de 1785 Goethe escribe nuevamente a Jacobi, dicien-
do que “si otros están dispuestos a llamar a Spinoza ateo, yo preferiría llamar-
lo y alabarlo como theissimum y christianissimum.”41
Herder, por su parte, volcó su lectura en un libro que redactó y publicó
en 1787 un libro titulado Dios. Algunas conversaciones. Su objetivo no consiste
meramente en una rehabilitación de Spinoza, pues “para los hombres sensa-
tos, Spinoza no requiere ser rehabilitado.”42 Sin embargo, la reivindicación
de la figura del Filósofo maldito constituye la primera tarea emprendida por

37 Idem.

38 Goethes Werke. Weimarer Ausgabe, op.cit., t. IV.6 p. 387.

39 Jacobi, Briefwechsel, op.cit. I.3, p. 400.

40 Goethe, J. W., Studie nach Spinoza en IDEM, Werke. Berliner Ausgabe, ed. por Siegfried Seidel.
Berlin: Aufbau, 1960 y ss., t. 18, p. 140. Mi traducción al español de una esta obra se encuentra
publicada en AAVV, El ocaso de la Ilustración…, op. cit..

41 Jacobi, Briefwechsel, op.cit. I.4, p. 118.

42 Herder, J. G., Gott. Einige Gespräche, Gotha: Karl Wilhelm Ettinger, 1787. Mi traducción al
español de una selección de esta obra se encuentra publicada en en AAVV, El ocaso de la Ilustra-
ción…, op. cit..

O que nos faz pensar, Rio de Janeiro, v.26, n.41, p.211-234, jul.-dez. 2017
226 María Jimena Solé

Herder en este texto. Para ello, expone una novedosa interpretación del spi-
nozismo, que identifica la sustancia con la fuerza originaria de la naturaleza y,
de esta manera, enfatiza su carácter vital, dinámico y productivo.
Spinoza había encontrado, en los lectores de Weimar, nuevos amigos.
La Ética, con su divinidad inmanente y su amor Dei intellectualis como fin
práctico al que tiende el proyecto de perfeccionar el conocimiento humano,
se transformó para ellos en un nuevo Evangelio y Spinoza en un cristiano
ejemplar.43

Amigos idealistas

Poco tiempo después, a finales de 1790, en la ciudad de Tubinga, entre las


paredes del conocido Seminario Evangélico, otros tres amigos – Hegel, Höl-
derlin y Schelling– se sumergirían en las páginas de la Ética y en las Cartas
sobre la doctrina de Spinoza al señor Moses Mendelssohn de Jacobi. En febrero
1791, Hölderlin envía una carta a su madre, en la que le informa que había es-
tado leyendo “libros de y sobre Spinoza”, a quien presenta como “un hombre
grande y noble del siglo pasado y, con todo, ateo si nos atenemos a conceptos
estrictos.”44 La Polémica del spinozismo no había perdido su fuerza. Las afir-
maciones de Lessing continuaban interpelando a los jóvenes lectores. “Amor
y deseo son las alas hacia los grandes hechos. Tubinga 12-II-1791”, escribió
Hölderlin en una página del álbum de Hegel, en la que él había introducido
el símbolo “εν και παν”.45 Ambos tenían 21 años. Schelling, apenas 16. Fasci-
nados por la potencia filosófica, ética y estética de su edificio geométrico, los
jóvenes se apropiaron de la profesión de fe lessinguiana y, al igual que Herder y

43 “Que Spinoza sea para vosotros siempre el santo cristiano”, escribe Herder en la dedicatoria
del ejemplar de la Ética que obsequia a Charlotte von Stein en 1784 (Herder, Sämtliche Werke.
Berlin: Suphan, 1877 y ss., t. XXIX, p. 697).

44 Hölderlin, F. Sämtliche Werke, Briefe und Dokumente. Ed. por D. E. Sattler. München: Luchter-
hand, 2004, tomo 3, p. 60. Traducción al español: Hölderlin, F., Correspondencia completa, intro y
trad. de H. Cortés y A. Leyte. Madrid: Hiperión, 1990, p. 115. La referencia a libros sobre Spinoza
remite a las Cartas sobre la doctrina de Spinoza de Jacobi, que había tenido una segunda edición
en 1789 y al que Hölderlin le dedica un breve fragmento de noviembre de 1790. Cf. “Zu Jakobis
Breifen über die Lehre des Spinoza” en Hölderlin, F. Sämtliche Werke, Briefe und Dokumente, op. cit.,
pp. 40 y ss. Traducción al español: “Acerca de las cartas de Jacobi sobre la doctrina de Spinoza” en
Hölderlin, F., Ensayos, trad. F. Martínez Marzoa. Madrid, Hiperión, 1976.

45 Citado en Rosenkranz, K., Georg Wilhelm Friedrich Hegel’s Leben. Berlin, Duncker und Hum-
blot: 1844, p. 40. También en Hölderlin, F. Sämtliche Werke, Briefe und Dokumente, op. cit., 58.

O que nos faz pensar, Rio de Janeiro, v.26, n.41, p.211-234, jul.-dez. 2017
Los amigos prusianos. Episodios de la recepción de Spinoza en el siglo XVIII 227

Goethe, descubrieron un spinozismo que no negaba la existencia de Dios sino


que lo identificaba con una fuerza infinita, inmanente que recorre la naturale-
za, y que les permitía alejarse de una ortodoxia inconsistente.
El lema Uno y Todo se transformó en la divisa de una visión panteísta y
vitalista de la naturaleza que se combinó con la adopción del idealismo tras-
cendental de Kant y, más tarde, con el impacto de la Doctrina de la ciencia de
Fichte. Luego de que los jóvenes abandonaran el Seminario para seguir, cada
uno, su propio camino, Spinoza continuó siendo un lugar de encuentro para
los tres amigos, la referencia a una experiencia compartida y determinante
en sus vidas.
“Hace tiempo que habría querido reanudar en cierto modo el vínculo de
amistad que nos unió antaño”46, le escribe Hegel a Schelling en la Nochebue-
na de 1794 desde Berna y le solicita noticias. “¿O sea que es verdad que te
acuerdas de los viejos amigos?”,47 responde Schelling pocos días más tarde
desde Tubinga, donde todavía cursaba su último año en el Seminario. Acerca
de Hölderlin, dice, tampoco sabe nada y atribuye su silencio a su inconstan-
cia. “¡Aquí está mi mano, viejo amigo! ¡Nunca vamos a alejarnos. Hasta creo
que entre tanto nos hemos convertido en otros. ¡Tanto mejor para empezar
de nuevo!”48, escribe Schelling. Luego de una breve referencia a la situación
de la enseñanza en el Seminario, le cuenta que en ese momento su vida es la
filosofía, le asegura que Fichte es el nuevo héroe del kantismo y le informa
que trabaja “en una Ética a lo Spinoza”49.
Hegel se alegra al recibir su carta. “Como amigos nunca nos hemos conver-
tido en extraños”, responde, “y todavía menos lo somos en lo que constituye
el primordial interés de todo hombre racional y a cuyo impulso y difusión
tratará de ayudar con todas sus fuerzas”.50 Hegel no parece sorprendido por
los planes de Schelling de escribir una Ética a lo Spinoza. Le informa acerca de
sus propios proyectos, le cuenta que Hölderlin le escribe a veces desde Jena,
donde va a las clases de Fichte, y le pregunta, antes de despedirse, si cree que
el argumento moral no llega a probar la existencia del Dios personal.

46 Hegel, G. W. F., Escritos de juventud, trad. de J. M. Ripalda. México: FCE, 1978, p. 51.

47 Ibidem, p. 52.

48 Idem.

49 Idem.

50 Ibidem, p. 54.

O que nos faz pensar, Rio de Janeiro, v.26, n.41, p.211-234, jul.-dez. 2017
228 María Jimena Solé

“No, amigo, no nos hemos convertido en extraños; nos encontramos


juntos por viejos caminos”51, responde Schelling y le confiesa que se ha
sorprendido con su pregunta. “No me la habría esperado de un gran co-
nocedor de Lessing como tú”.52 Se trataba de algo que ya habían discutido,
algo acerca de lo cual, en opinión de Schelling, Hegel ya había tomado
posición. La pregunta era, entonces, para indagar si también él estaba deci-
dido. “Tampoco para nosotros valen ya los conceptos ortodoxos de Dios”53,
escribe Schelling, repitiendo las palabras que Lessing había pronunciado
frente a Jacobi y que éste inmortalizó en el relato de su conversación. El
Dios personal de la ortodoxia religiosa no los satisfacía. La filosofía quería
ir más allá: un absoluto que sea el principio fundamental de lo real. “¡Entre
tanto, me he hecho spinozista!”54, confiesa Schelling en esa misma carta.
Poco después publica una obra titulada Del Yo como principio de la filosofía,
en donde el Yo absoluto de Fichte, que se pone a sí mismo como actividad
infinita, es expuesto con las características de la divinidad spinoziana: cau-
salidad inmanente absoluta, absoluta potencia, ser eterno.55
En ese mismo momento, a comienzos de 1795, Hegel recibe una ex-
tensa carta de Hölderlin desde Jena, en la que relata sus intensas expe-
riencias en esa nueva ciudad, donde colabora con la revista de Schiller,
se entrevista con Goethe y Herder, y aprende la filosofía fichteana. “Su
absoluto Yo (= la sustancia de Spinoza) contiene toda la realidad, es todo y
fuera de ella no hay nada”56, le explica Hölderlin, con la seguridad de que
el paréntesis permitirá a su amigo ingresar fácilmente, desde un terreno
ya transitado, ya conocido y compartido, en la novedosa Doctrina de la
ciencia. En esa misma carta, le comenta que continúa trabajando en su
novela Hiperión, donde el ideal de conquistar la unidad con la totalidad,

51 Ibidem, p. 58.

52 Ibidem, p. 59.

53 Idem.

54 Idem.

55 Schelling, Vom Ich als Princip der Philosophie oder über das Unbedingt im menschlichen Wissen,
1795. En Schelling, Sämtliche Werke, editada por K. F. A. Schelling. Stuttgart: Cotta, 1856-1861,
tomo I.1, pp. 73-168. Traducción al español: Del Yo como principio de la filosofía, trad. Giner
Comín y F. Pérez-Borbujo. Madrid: Trotta, 2004.

56 Hegel, Escritos de juventud, op. cit., p. 57.

O que nos faz pensar, Rio de Janeiro, v.26, n.41, p.211-234, jul.-dez. 2017
Los amigos prusianos. Episodios de la recepción de Spinoza en el siglo XVIII 229

“ser uno con todo lo viviente”, se transforma en “el cielo del hombre”57 y
anima el viaje de retorno al origen, de retorno a la naturaleza que empren-
de el atormentado protagonista.
Algunos años más tarde, cuando Hegel se trasladó a Jena para ocupar
un puesto de Docente privado gracias a las gestiones de su amigo Schelling,
publicó dos obras en las que se pone en evidencia que también él había
adoptado el hen kai pan como el símbolo de una nueva visión de la totalidad.
En Fe y saber dedica largas páginas a responder a las críticas de Jacobi al spi-
nozismo, mostrando no sólo su familiaridad con la polémica, sino también
la madurez de su lectura.58 En el Proemio al escrito sobre la Diferencia entre
los sistemas de Fichte y Schelling, Spinoza parece perfilarse como el auténtico
filósofo frente a Kant y frente a Fichte, ambos atrapados en la escisión pro-
pia del punto de vista de la reflexión.59 Spinoza es, para el joven Hegel, el
único que había logrado elevarse al pensamiento de la totalidad en el que el
momento de la negatividad, de la determinación, es fundamental.
Spinoza fue, para Schelling, Hölderlin y Hegel, un lugar de encuentro.
La lectura que hicieron en conjunto de sus obras, signada por la juvenil
irreverencia de estudiantes brillantes y críticos, tejió entre ellos un lazo
invisible que los mantuvo unidos todavía después de separarse. Spinoza
fue, además, una de las principales fuentes de inspiración para ellos. Las
referencias constantes a su doctrina en las primeras obras de los jóvenes
idealistas lo confirman. Así, junto con el idealismo trascendental de Kant
y la Doctrina de la ciencia de Fichte, el sistema de Spinoza es usualmente
señalado como el otro pilar sobre el cual se apoyan los primeros desarro-
llos filosóficos y poéticos de estos tres amigos, y sin el cual la génesis del
Idealismo alemán sería inexplicable.

57 Hölderlin, F., Hyperion oder der Eremit in Griechenland, Tübingen: Cotta, 1797. Traducción al
español: Hölderlin, F. Hiperión o el eremita en Grecia, trad. J. Munárriz. Madrid: Hiperión, 1998,
p. 25.

58 Hegel, G. W. F., Glauben und Wissen. En Kritisches Journal der Philosophie. N° II.2. Tübingen:
Cotta, 1802. Traducción al español: Hegel, G.F.W., Fe y saber: o la filosofía de la reflexión de la
subjetividad en la totalidad de sus formas como filosofía de Kant, Jacobi y Fichte, trad. de V. Serrano.
Madrid: Biblioteca Nueva, 2006.

59 Hegel, G. W. F., Die Differenz des Fichteschen und Schellingschen Systems der Philosophie. Jena:
Seidler, 1801. Traducción al español: Idem, Diferencia entre los sistemas de Fichte y Schelling, trad.
M. del Carmen Paredes Martín. Madrid: Tecnos, 1990.

O que nos faz pensar, Rio de Janeiro, v.26, n.41, p.211-234, jul.-dez. 2017
230 María Jimena Solé

Amor, amistad, filosofía (a modo de conclusión)

La amistad, según Spinoza, es el lazo que une a los hombres que viven según
la guía de la razón y concuerdan plenamente unos con otros, pues hacen
necesariamente lo que es bueno para sí mismos y para el resto de los seres
humanos60. Se trata de hombres libres, cuyas acciones se siguen de su sola
naturaleza y, por lo tanto, promueven la concordia y la unión. El bien que
desean para sí, lo desean también para los demás hombres61. La generosidad,
que caracteriza a los seres humanos en la medida en que conocen adecuada-
mente, es “el deseo por el que cada uno se esfuerza, en virtud del solo dicta-
men de la razón, en ayudar a los demás hombres y unirse a ellos mediante la
amistad”62. Ahora bien, Spinoza reconoce que raramente el ser humano es
plenamente racional, plenamente libre. Somos modos finitos y no podemos
dejar de serlo63. Estamos siempre sujetos a las pasiones y nos acomodamos
al orden común de la naturaleza en la medida en que las circunstancias nos
lo imponen. Nos esforzamos por conocer, por actuar. Pero jamás somos ple-
namente racionales ni plenamente activos. ¿Es entonces la amistad también
un ideal inalcanzable, un objetivo hacia el cual avanzamos, pero en definitiva
imposible? La experiencia –a la que el propio Spinoza recurre tan frecuente-
mente como fuente de enseñanzas– parece indicar lo contrario.
Si imaginamos que alguien ama lo que nosotros amamos, explica Spinoza
en una proposición de la cuarta parte de la Ética, su amor “resulta alentado”64
y si bien la concordancia en las pasiones suele ser frágil, es innegable que
amamos con más ardor y más constancia aquello que los otros seres huma-
nos también aman65. De hecho, constantemente nos esforzamos por que los
otros amen lo que nosotros amamos. El amor por Spinoza se alimenta y da

60 Spinoza, B., Ethica ordine geometrico demostrata (1677) en Spinoza, B., Opera, 4 tomos, ed.
C. Gebhardt. Heidelberg: Winter, 1925, tomo I. Cito esta obra como es habitual, indicando la
sigla E, la parte en números romanos y la proposición en números arábigos. Si me refiero a otra
sección, lo indico con la abreviatura. Cito siempre según la siguiente traducción al español: Ética
demostrada según el orden geométrico, introd., trad, y notas de Vidal Peña. Barcelona: Orbis, 1980.
E IV, 35 y E IV, 71, esc.

61 E IV, 37

62 E III, 59, escolio.

63 E IV, 4.

64 E IV, 34, esc.

65 Cf. E III, 31.

O que nos faz pensar, Rio de Janeiro, v.26, n.41, p.211-234, jul.-dez. 2017
Los amigos prusianos. Episodios de la recepción de Spinoza en el siglo XVIII 231

origen a un vínculo afectivo poderoso y duradero. ¿No lo llamaremos amis-


tad? Además, el amor por Spinoza, potenciado por el amor a Spinoza de los
otros, consiste en un aumento del deseo –deseo que se comparte con quienes
comparten ese amor y que se expresa como el aumento del esfuerzo por leer,
por pensar, por comprender sus ideas–. Un deseo de conocer, que surge de
un amor atravesado por los otros. Un deseo colectivo por pensar, en conjunto
con los otros seres humanos. Un esfuerzo por que los demás comprendan lo
que uno comprende. ¿No es eso la generosidad?
Amor, amistad y filosofía son, según Spinoza, inescindibles. Sus concep-
tos se entrelazan y la experiencia lo confirma. La historia de la recepción del
spinozismo en Alemania es también la historia de los amantes de Spinoza, de
los lazos de amistad que se construyeron sobre ese amor compartido y del
deseo que conduce a nuevas lecturas e interpretaciones, a la práctica de la
filosofía como una tarea colectiva.

Referencias

AAVV. El ocaso de la Ilustración. La polémica del spinozismo, selección, traducción y


estudio preliminar de M. J. Solé. Bernal: Editorial de la Universidad Nacional de
Quilmes/Prometeo, 2013.
ALTMANN, A. Moses Mendelssohn. A Biographical Study. Alabama: University of
Alabama Press, 1973.
ASTRADA, C. Goethe y el panteísmo spinociano. Santa Fe: Universidad del Litoral, 1933
BACH, A. Goethes Rheinreise, mit Lavater und Basedow, im Sommer 1774. Zürich:
Seldwyla, 1923.
BAYLE, P. Oeuvres diverses. Volumes supplementaraires I,2 Choix d’articles tires du
Dictionnaire Historique et Critique. Hildesheim/New York: Georg Olms, 1982.
______. Diccionario histórico y crítico (antología), estudio, trad. y notas de F. Bahr.
Buenos Aires: FFyL-UBA, 2003.
BOLLACHER, M. Der junge Goethe und Spinoza. Studien zur Geschichte des Spinozismus
in der Epoche des Sturms und Drang. Tübingen: Max Niemeyer Verlag, 1969.
DOMÍNGUEZ, A. Biografías de Spinoza. Madrid: Alianza, 1995.
FREUDENTHAL, J.; WALTHER, M. Die Lebensgeschichte Spinozas. Lebensbeschreibungen
und Dokumente. Stark erweiterte und neu kommentierte Neuausgabe der Lebensgeschichte
Freudenthal 1899. Stuttgart-Bad Cannstatt: Frommann-Holzboog, 2006.
GOETHE, J. W. Die Leiden des jungen Werther. Leipzig: in der Weygandschen
Buchhandlung, 1774.

O que nos faz pensar, Rio de Janeiro, v.26, n.41, p.211-234, jul.-dez. 2017
232 María Jimena Solé

______. Studie nach Spinoza en IDEM, Werke. Berliner Ausgabe, ed. por Siegfried Seidel.
Berlin: Aufbau, 1960 y ss.
______. Goethes Werke. Weimarer Ausgabe, Weimar, 1887-1912.
______. Goethes Werke. Hamburger Ausgabe in 14 Bänden, ed. por Erich Trunz,
Christian Wegener. Hamburgo, 1948 y ss.
______. Goethe und Lavater. Briefe und Tagebücher, Schriften der Goethe-Gesellschaft,
tomo 16. Hermann Böhlaus Nachfolger, 1901.
______. Estudio sobre Spinoza. En AAVV, El ocaso de la Ilustración. La polémica del
spinozismo, selección, traducción y estudio preliminar de M. J. Solé. Bernal: Editorial
de la Universidad Nacional de Quilmes/Prometeo, 2013.
GOLDENBAUM, U. “Mendelssohns schwierige Beziehung zu Spinoza”. En Schürmann,
E., Waszek, N., y Weinreich, F. (comps.), Spinoza im Deutschland des achtzehnten
Jahrhunderts. Stuttgart-Bad Cannstatt: Forman-Holzboog, 2002.
HEGEL, G. W. F. Gesammelte Werke, Rheinisch-Westfälischen Akademie der
Wissenschaften, Felix Meiner Verlag, Hamburg, 1968.
______. Die Differenz des Fichteschen und Schellingschen Systems der Philosophie. Jena:
Seidler, 1801.
______. Glauben und Wissen. En Kritisches Journal der Philosophie. N° II.2. Tübingen:
Cotta, 1802.
______. Diferencia entre los sistemas de Fichte y Schelling, trad. M. del Carmen Paredes
Martín. Madrid: Tecnos, 1990.
______. Fe y saber: o la filosofía de la reflexión de la subjetividad en la totalidad de sus
formas como filosofía de Kant, Jacobi y Fichte, trad. de V. Serrano. Madrid: Biblioteca
Nueva, 2006.
HERDER, J. G. Gott. Einige Gespräche. Gotha: Karl Wilhelm Ettinger, 1787.
______. Sämtliche Werke, editado por B. Suphan, Berlin, 1877 y ss.
______. Dios. Algunas conversaciones. En AAVV, El ocaso de la Ilustración. La polémica del
spinozismo, selección, traducción y estudio preliminar de M. J. Solé. Bernal: Editorial
de la Universidad Nacional de Quilmes/Prometeo, 2013.
HÖLDERLIN, F. Sämtliche Werke, Briefe und Dokumente. Ed. por D. E. Sattler.
München: Luchterhand, 2004.
______. Hyperion oder der Eremit in Griechenland, Tübingen: Cotta, 1797.
______. Correspondencia completa, intro y trad. de H. Cortés y A. Leyte. Madrid:
Hiperión, 1990.
______. Ensayos, trad. F. Martínez Marzoa. Madrid, Hiperión, 1976.
______. Hiperión o el eremita en Grecia, trad. J. Munárriz. Madrid: Hiperión, 1998.
JACOBI, F. H. Über die Lehre des Spinoza in Briefen an den Herrn Moses
Mendelssohn. Breslau: Gottlieb Löwe, 1785.
______. Briefwechsel. Gesamtausgabe der Bayerischen Akademie der Wissenschaften.
Stuttgart-Bad Cannstatt: Frommann-Holzboog, 1987 y ss.

O que nos faz pensar, Rio de Janeiro, v.26, n.41, p.211-234, jul.-dez. 2017
Los amigos prusianos. Episodios de la recepción de Spinoza en el siglo XVIII 233

______. Cartas a Mendelssohn. David Hume. Carta a Fichte, trad., intr. y notas de
J.L.Villacañas, Madrid: Biblioteca Universal, 1995.
______. Cartas sobre la doctrina de Spinoza al señor Moses Mendelssohn. En AAVV, El
ocaso de la Ilustración. La polémica del spinozismo, selección, traducción y estudio
preliminar de M. J. Solé. Bernal: Editorial de la Universidad Nacional de Quilmes/
Prometeo, 2013.
LESSING, G. E. Sämtliche Werke, ed. K. Lachmann y F. Muncker. Berlín, 1886-1924.
______. Lessings Briefe, Berlin y Weimar: Aufbau-Verlag, 1983.
LEVY, Z. Baruch Spinoza –Seine Aufnahme durch die jüdischen Denker in Deutschland.
Stuttgart: Kohlhammer, 2001.
MENDELSSOHN, M. Moses Mendelssohn’s gesammelte Schriften. Leipzig, 1843-1845.
______. Philosophische Gespräche. Berlin: Voss, 1755.
______. Morgenstunden oder Vorlesungen über das Daseyn Gottes. Berlin: Voss, 1785.
______. Gesammelte Schriften. Jubiläumsausgabe, editado por A. Altmann. Berlin:
Akademie-Verlag, 1929 y ss. Reedición: Stuttgart-Bad Cannstatt: Friedrich Frommann
Verlag (Günther Holzboog), 1974 y ss.
______. Horas matinales o lecciones acerca de la existenncia de Dios. En AAVV, El ocaso de
la Ilustración. La polémica del spinozismo, selección, traducción y estudio preliminar de
M. J. Solé. Bernal: Editorial de la Universidad Nacional de Quilmes/Prometeo, 2013.
MENDELSSOHN, M.; LESSING, G. E. Debate sobre Spinoza, estudio preliminar,
selección de textos, traducción y notas M. J. Solé. Córdoba: Encuentro Grupo Editor/
Brujas, 2010.
MORFINO, V. Genealogia di un pregiudizio, in La Spinoza-renaissance nella Germania di
fi ne Settecento. Milano: Unicopli, 2017.
NICOLAI, F. Introducción. En Moses Mendelssohn’s gesammelte Schriften. Leipzig,
1843-1845.
OTTO, R. Studien zur Spinozarezeption in Deutschland im 18. Jahrhundert. Frankfurt del
Meno: Peter Lang, 1994.
POPE, A. An Essay on Man; In Epistles to a Friend. London: Wilford, 1733 y 1734.
ROSENKRANZ, K. Georg Wilhelm Friedrich Hegel‘s Leben. Berlin, Duncker und
Humblot: 1844.
SCHELLING, F. Sämtliche Werke, editada por K. F. A. Schelling. Stuttgart: Cotta, 1856-
1861.
______. Del Yo como principio de la filosofía, trad. Giner Comín y F. Pérez-Borbujo.
Madrid: Trotta, 2004.
SCHÜRMANN, E.; WASZEK, N.; WEINREICH, F. (comps.), Spinoza im Deutschland
des achtzehnten Jahrhunderts. Stuttgart-Bad Cannstatt: Forman-Holzboog, 2002.
SOLÉ, M. J. Spinoza en Alemania (1670-1789). Historia de la santificación de un filósofo
maldito. Córdoba: Brujas, 2011.
SPINOZA, B. Opera, 4 tomos, ed. C. Gebhardt. Heidelberg: Winter, 1925.

O que nos faz pensar, Rio de Janeiro, v.26, n.41, p.211-234, jul.-dez. 2017
234 María Jimena Solé

______. B.v.S. Sittenlehre widerleget von dem berühmten Weltweisen unserer Zeit Herrn
Christian Wolff, trad. y ed. de Johann Lorenz Schmidt. Leipzig / Frankfurt a. Main,
1744.
______. Ética demostrada según el orden geométrico, introd., trad, y notas de Vidal
Peña. Barcelona: Orbis, 1980.
TIMM, H. Gott und die Freiheit. Studien zur Religionsphilosophie der Goethezeit. I. Die
Spinozarenaissance. Frankfurt del Meno: Vittorio Klostermann, 1974.
SCHRÖDER, W. Spinoza in der deutschen Frühaufklärung. Würzburg: Königshausen &
Neumann, 1987.
VILLACAÑAS, J. L. “Una entrevista que transformó la cultura alemana”. En Jacobi, F.
J., Cartas a Mendelssohn. David Hume. Carta a Fichte, op. cit.
WALTHER, M. “Histoire des problèmes de la recherche”. Les Cahiers de Fontenay, Nº
36-38, Spinoza entre lumière et romantisme, París, 1985.
WINKLE, S. Die heimlichen Spinozisten in Altona und der Spinozastreit. Hamburgo:
Verein für Hamburgische Geschichte, 1988.
WOLFF, Ch. Theologia naturalis, Methodo scientifica pertractata. Pars 1. Editio nova.
Frankfurt am Main/Leipzig: Renger, 1739.
ZAC, S. Spinoza en Allemagne. Mendelssohn, Lessing et Jacobi. París: Meridien
Klincksieck, 1989.

O que nos faz pensar, Rio de Janeiro, v.26, n.41, p.211-234, jul.-dez. 2017
Rodrigo Nunes e José Francisco Andrade Alvarenga*

O silêncio de Marx:
sobre a recepção de Espinosa em 1841-1845

Marx’s silence:
on the reception of Spinoza, 1841-1845

Resumo
Esse artigo tem como objetivo não só analisar a recepção da filosofia de Espinosa
por Marx, mas também estabelecer um diálogo entre ambas as filosofias. A partir
da análise de obras dos dois autores, conclui-se que, embora se possa estabelecer
uma relação de influência na formulação do conceito de “verdadeira democracia”
por Marx, o resultado interpretativo mais produtivo ocorre quando um diálogo
filosófico é estabelecido entre ambos os autores. Aí se pode ver o que constitui a
originalidade de cada um.

Palavras-chave: Democracia; História da recepção; Marx; Espinosa

Abstract
This paper aims not only to analyse the reception of Spinoza’s philosophy by Marx,
but also to establish a dialogue between both philosophies. From the analyses
of works by Spinoza and Marx, it can be concluded that, although it is possible
to establish a relation of influence in Marx’s formulation of the concept of “true
democracy”, the most productive interpretative result occurs when a philosophical
dialogue is established between the two authors, as it is only then that one can see
what constitutes the originality of each of these thinkers.

Keywords: Democracy; History of reception; Marx; Spinoza

* Rodrigo Nunes é professor do Departamento de Filosofia da Pontifícia Universidade Católica do


Rio de Janeiro (PUC-Rio): E-mail: rgnunes@yahoo.com.
José Francisco Alvarenga é doutorando no Departamento de Filosofia da PUC-Rio. E-mail:
jfaa.87@gmail.com

O que nos faz pensar, Rio de Janeiro, v.26, n.41, p.235-253, jul.-dez. 2017
236 Rodrigo Nunes e José Francisco Andrade Alvarenga

1. Marxismo e Espinosismo

A presença de Espinosa ao longo da tradição do marxismo produz um es-


tatuto curioso: podemos encontrar maior número de citações e discussões
a respeito de Espinosa ao longo da história do marxismo, de Plekhanov a
Althusser, do que na própria obra de Marx.1
O marco inicial do uso de Espinosa pelos diversos marxismos pode ser
situado na Segunda Internacional, com a figura de Plekhanov. Para o autor
russo, “foi precisamente este espinosismo, desembaraçado de seu apêndice
teológico, que Marx e Engels adotaram quando romperam com o idealismo.”2
Tal conclusão advém do argumento de que a filosofia de Marx e Engels são,
na verdade, um desenvolvimento da filosofia de Feuerbach.

Atualmente se conhece muito mal não só a filosofia hegeliana, sem a


qual é difícil assimilar o método de Marx, mas também a história do
materialismo, sem a qual não é possível ter uma ideia clara da doutrina
de Feuerbach, que foi, em filosofia, o predecessor imediato de Marx, e que
forneceu, em considerável medida, a base filosófica da concepção de mun-
do de Marx e Engels.3

Uma vez que para Plekhanov o humanismo de Feuerbach é, na verdade,


o “espinosismo desembaraçado de seu apêndice teológico”, a filosofia de
Marx e Engels são o coroamento da filosofia espinosana, livre de sua base
metafísica. Por isso, “desembaraçar o espinosismo de seu apêndice teológico

1 Nesse sentido, Tosel afirma que “é mais fácil fazer a história das interpretações de Espinosa
no seio dos diversos marxismos do que determinar a função precisa da referência a Espinosa
na obra de Marx e de definir o uso feito por Marx da problemática espinosana na elaboração de
seu pensamento” (1997. Tradução minha). No entanto, como aponta Fischbach, apesar de Marx
nunca ter se declarado explicitamente um discípulo de Espinosa, não se deve concluir que há um
papel menos importante da filosofia de Espinosa para a constituição da própria obra de Marx, pois
“Marx teve necessidade de Espinosa para poder escapar de Hegel, no sentido de que Marx jogou
Espinosa contra Hegel , no sentido de que Espinosa apareceu a Marx como aquele que permitiria
criticar de modo radical, no próprio interior de sua realização hegeliana, a filosofia moderna com-
preendida como uma metafísica idealista e teológica da subjetividade” (FISCHBACH, 2014, p.35.
Tradução nossa). Embora afirme que haja um papel preponderante de Espinosa na constituição
do pensamento de Marx, Fischbach não realiza um estudo conceitual consistente de forma que
demonstrasse tal relação de influência.

2 Plekhanov, G. Os princípios fundamentais do marxismo. São Paulo: Hucitec, 1978, p.14.

3 Idem, p.10. Grifos do autor.

O que nos faz pensar, Rio de Janeiro, v.26, n.41, p.235-253, jul.-dez. 2017
O silêncio de Marx: sobre a recepção de Espinosa em 1841-1845 237

significava”, segundo Plekhanov, “desvendar seu verdadeiro conteúdo mate-


rialista. Logo, o espinosismo de Marx e Engels era precisamente o materialismo
mais moderno”.4
No entanto, somente na década de 1960, com Althusser, é que Espinosa
será visto não como um momento de uma teleologia cujo fim está no mar-
xismo-leninismo, mas como um meio “para reformular a revolução teórica e
científica de Marx sem recorrer somente à dialética hegeliana”.5 Em Althusser,
a presença de Espinosa ocorre com um duplo objetivo: em primeiro lugar, Es-
pinosa é considerado, por Althusser, como aquele que primeiro elaborou um
modelo de causalidade imanente. Em segundo lugar, o filósofo holandês foi o
primeiro a elaborar uma teoria da ideologia na introdução do Tratado Teológico
Político (TTP). Tudo se passa como se a presença de Espinosa pudesse mostrar
os limites internos da própria teoria e prática do marxismo. Mas quais são esses
limites? 1. A ideia de que o conhecimento não é uma forma de saber absoluto,
embora seja capaz de romper com a ideologia.6 2. A ideia de que não é possível
que alguém deixe de ser uma parte da natureza, e, portanto, possa ser causa
adequada de todas as suas afecções. O que Espinosa permite mostrar nesse
ponto é que a ideologia é algo irredutível e que, mesmo em uma sociedade
comunista, a ideologia estará sempre presente. Como diz Tosel, o autor da Ética
“obriga a renunciar a uma ideia de comunismo compreendido como estado de
reconciliação final no seio de relações sociais desprovidas de contradições”.
Nesse sentido, Althusser afirma que o desvio por Espinosa foi realizado
“para ver um pouco mais claro na Filosofia de Marx. Precisemos: o materialis-
mo de Marx nos obrigando a pensar seu desvio necessário por Hegel: fizemos
o desvio por Spinoza para ver um pouco mais claro no desvio de Marx por Hegel”.7
Esse desvio foi necessário, segundo Althusser, para poder se compreender
em que e sob quais condições pode ser materialista uma dialética que tem
como arcabouço teórico a lógica de Hegel. Tal desvio por Espinosa, portanto,
“deixava entrever então pela diferença uma radicalidade que falta a Hegel. Na

4 Ibidem, p.15

5 Tosel, A. Pour une étude systématique du rapport de Marx à Spinoza: remarques et hypothèses.
In: Tosel, A.; Moreau, P-F; Salem, J. Spinoza au XIXe siècle. Paris: Publications de la Sorbonne,
2007. Tradução nossa.

6 Ibid.

7 Althusser, L. Elementos de autocrítica. In: Posições 1. Rio de Janeiro: Edições Graal, 1978a.
P.104.

O que nos faz pensar, Rio de Janeiro, v.26, n.41, p.235-253, jul.-dez. 2017
238 Rodrigo Nunes e José Francisco Andrade Alvarenga

negação da negação, no Aufhebung (= excesso que conserva aquilo que ultra-


passa), nos permita conhecer o Fim: forma e local privilegiado da ‘mistifica-
ção’ da dialética hegeliana.”8 A partir de Espinosa foi possível ver, segundo
Althusser, que o binômio Sujeito/fim constitui a “‘mistificação’ da dialética
hegeliana”.9 Desta forma, Althusser considera que Marx possui somente um
antecessor filosófico: “a filosofia de Spinoza introduz uma revolução teórica
sem precedente na história da filosofia, e sem dúvida a maior revolução fi-
losófica de todos os tempos, a ponto de podermos considerar Spinoza, do
ponto de vista filosófico, como o único antepassado direto de Marx.”10
Segundo Tosel, os estudos historiográficos sobre a relação de Marx com
Espinosa iniciam-se na França e na Itália a partir de 1960. Nesses estudos,
encontramos

a mesma oscilação entre uma tendência a ler Spinoza segundo uma pers-
pectiva pré-marxista, no sentido de uma dialética da emancipação, da
liberação do complexo teológico-político e da desalienação, ou do poder
constituinte, e uma outra tendência insistente sobre a infinidade da luta
contra todas as ilusões [...] afirmando a incapacidade de se ultrapassar a
dimensão imaginária na constituição do conatus e na produção da potên-
cia da multidão.11

Entre tais estudos podemos destacar os textos de Maximilien Rubel12 e de


Yirmiyahu Yovel,13 dedicados ao assunto. Para o primeiro, Marx encontra em
Espinosa a possibilidade de reconciliação entre a existência social e o direito
natural, ou ainda, “Marx encontrou e se inspirou em Espinosa para criticar
a filosofia política de Hegel ao rejeitar a concepção de burocracia, de poder
dos príncipes e da monarquia constitucional”14. Yovel, por sua vez, considera

8 Ibid., p.105.

9 Ibid., p.107.

10 Althusser, L. O objeto de O Capital. In: ALTHUSSER, L. et al. Ler o capital. 2 vol. Tradução
Nathanael C. Caixeiro. Rio de Janeiro: Zahar, 1979-1980. P.42.

11 Tosel, A. op. cit. Tradução nossa.

12 Rubel, M. Marx Critique du Marxisme. Paris : Payot, 2000.

13 Yovel, Y. Espinosa e outros hereges. Tradução de Maria Ramos e Maria Elisabete. Lisboa: Impren-
sa Nacional – Casa da Moeda, 1999.

14 Rubel, M. op. cit., p.181. Tradução nossa.

O que nos faz pensar, Rio de Janeiro, v.26, n.41, p.235-253, jul.-dez. 2017
O silêncio de Marx: sobre a recepção de Espinosa em 1841-1845 239

que, embora tenha feito juízos distintos ao longo de sua obra a respeito de
Espinosa, “Marx utilizou o pensamento de Espinosa para muito além do que
admitiu”, e que sua filosofia da imanência em muitos aspectos “parece-se
com a de Espinosa”.15 Para Yovel, “Espinosa está quase sempre presente no
pensamento de Marx”.16 Um ponto comum entre tais autores encontra-se na
análise da relação de Marx com Espinosa sob a perspectiva da influência. Tal
caminho também será seguido por Diogo Aurélio.17 Para esse autor, Marx
depara-se na obra de Espinosa com a defesa mais contundente da democracia
no pensamento moderno. Para Aurélio, tal defesa, realizada por Espinosa,
não se dá apenas em termos retóricos, mas consiste numa conclusão neces-
sária decorrente duma ontologia que rejeita toda e qualquer transcendência
e finalismo, e “não pode, em coerência, identificar a política senão com a
realização coletiva dos indivíduos, preservando a liberdade de cada um deles
e aumentando a sua potência de agir”.18 Embora Marx jamais tenha com-
partilhado do entusiasmo por Espinosa que podemos encontrar em Heine e
Hess, o seu conceito “de democracia [...] apresenta marcas evidentes do autor,
cuja obra, redescoberta no último quartel do século XVIII, tinha inflamado
a cultura alemã, suscitando a célebre ‘querela do panteísmo’”.19 Seguindo a
mesma linha, Pascucci20 considera que não só há uma influência de Espinosa
na obra da juventude de Marx, mas também que parte do sistema da maturi-
dade de Marx, principalmente O Capital, deriva da leitura que Marx efetuou
da obra espinosana nos Cadernos Espinosa: “O aparato conceitual espinosano,
da Ética, do TTP e das Cartas, é o fundamento de uma teoria da práxis que
encontramos em O Capital e no Grundrisse e, sobretudo, no conceito de va-
lor”.21 Bensussan, por outro lado, considera que não é possível falar de qual-
quer influência de Espinosa sobre Marx, pois o autor da Crítica da Filosofia

15 Yovel, Y. op. cit., p.296.

16 Ibid., p.296.

17 Aurélio, D. O mais natural dos regimes: Espinosa e a democracia. Lisboa: Círculo de Leitores, 2014.

18 Ibid., p. 38.

19 Ibid., p.37. Ainda que Aurélio afirme que possamos encontrar “marcas evidentes” de Espinosa
na elaboração do conceito de “verdadeira democracia” de Marx, o seu texto carece de um trabalho
conceitual mais forte.

20 Pascucci, M. La potenza della povertà: Marx legge Spinoza. Verona: Ombre corte, 2006.

21 Ibid., p.11. Tradução nossa. Caso admitamos que a tese de Pascucci esteja correta, qual seria,
de fato, o elemento que constitui a originalidade de Marx? Se grande parte do aparato conceitual

O que nos faz pensar, Rio de Janeiro, v.26, n.41, p.235-253, jul.-dez. 2017
240 Rodrigo Nunes e José Francisco Andrade Alvarenga

do Direito de Hegel (CFDH) e Engels, ao contrário de Hegel, não efetuaram


nenhum “esforço teórico para pensar a relação com o espinosismo”.22 Além
disso, embora possamos encontrar referências a Espinosa ao longo da obra de
Marx e Engels, Bensussan considera que “o Espinosa invocado aqui ou ali por
Marx e Engels é um Espinosa de ocasião, de segunda mão, mal interpretado
no ato mesmo de sua citação.”23

1.2 O problema da Influência

Como nos diz Solè, o estudo da recepção de um filósofo envolve superar dois
pressupostos: 1. O pressuposto objetivo, que é localizar as menções explíci-
tas que um autor faz de outro autor ao longo de sua obra. 2. O pressuposto
subjetivo, que é tentar medir o impacto inconsciente que a leitura do autor
influenciador provoca no autor influenciado. A respeito da impossibilidade
de se atender a esse segundo pressuposto, Solè escreve:

Em primeiro lugar, é evidentemente problemático tentar medir a influência


de um autor sobre outro baseando-se unicamente no indício de saber se um
autor posterior leu o autor anterior. [...] [A] redução da recepção do espi-
nosismo a sua estrutura superficial faz perder de vista que uma filosofia
pode modificar sensivelmente as constelações de dificuldades e o espectro
de soluções possíveis, sem que isto se realize sempre de um modo consciente
nem explicitamente. Desse modo, há que aceitar que o âmbito do incons-
ciente e do implícito permanecerá sempre incerto e fechado ao investigador
que unicamente pode fundamentar seu estudo na evidência escrita a que
teve acesso [...].24

de Marx deriva de Espinosa, o que Marx apresentou de novo em relação a Espinosa? Pascucci não
se preocupou em responder a essas questões.

22 BENSUSSAN, G. “Spinozisme”. In: LABICA, G., BENSUSSAN, G. Dictionnaire critique du


marxisme. Paris: PUF, 1999, p. 1082. Tradução nossa.

23 Ibid., p.1082. Tradução nossa A afirmação de Bensussan de que o Espinosa utilizado por Marx
é de “segunda mão” é incorreta, ou pelo menos não pode ser tomada ao pé da letra, se conside-
ramos que em 1842 Marx transcreveu 171 fragmentos do TTP, apresentados nesta edição pela
primeira vez em português, além de trechos de cartas de Espinosa.

24 Solè, M. Spinoza em Alemania 1670-1789: historia de la santificación de um filósofo maldito. –


1ª Ed. – Córdoba: Brujas, 2011. P. 22-23. Tradução nossa.

O que nos faz pensar, Rio de Janeiro, v.26, n.41, p.235-253, jul.-dez. 2017
O silêncio de Marx: sobre a recepção de Espinosa em 1841-1845 241

Elaborar um estudo sobre a presença de Espinosa no pensamento de Marx


numa perspectiva de influência é algo cujo primeiro pressuposto, os das cita-
ções e referências diretas que um autor faz de outro, apresenta, ao ser cumprido,
resultados decepcionantes: Marx quase nunca se referiu ou citou Espinosa ao
longo de sua obra – e isto não diz respeito apenas ao período de sua juventude,
mas também ao período que compreende a sua maturidade. Para se ter uma
ideia, não encontramos uma menção sequer ao filósofo holandês na CFDH, e
encontramos apenas duas menções a Espinosa na Gazeta Renana; os Cadernos
Espinosa são uma rara exceção nessa trajetória.25 Mas estes cadernos apresentam
alguns problemas para aquele que pretende elaborar uma pesquisa sobre uma
suposta influência de Espinosa em Marx: neles o filósofo alemão não elabo-
ra comentário algum em relação ao pensamento espinosano. Quando Marx
redige a Sagrada Família, o cenário torna-se ainda pior: se até aqui Espinosa
era um aliado contra o imaginário teológico-político e um defensor radical da
democracia, a partir da Sagrada Família, Espinosa é colocado na categoria dos
filósofos metafísicos do século XVII, juntamente com Descartes, Malebranche e
Leibniz, ao qual o materialismo francês se opôs a partir do século XVIII.26

[O] Iluminismo Francês do século XVIII e, concretamente, o materialismo


francês, não foram apenas uma luta contra as instituições políticas exis-
tentes e contra a religião e a teologia imperantes, mas também e na mesma
medida uma luta aberta e marcada contra a metafísica do século XVIII e
contra toda a metafísica, especialmente contra a de Descartes, Malebran-
che, Espinosa e Leibniz.27.

Com efeito, Marx refuta Espinosa com três argumentos que poderiam ser
admitidos como espinosistas.28 Em primeiro lugar, a matéria é causa de si ou,
como afirma Marx se referindo a Hobbes, “ela [a matéria] é a causa de todas

25 Os Cadernos Espinosa consistem-se em trechos do TTP e das Cartas copiados por Marx duran-
te o período em que cursava o doutorado em 1841.

26 Nesse sentido, Tosel afirma que “o Espinosa aqui criticado é aquele da Ética compreendida
como um tratado dogmático de metafísica que possui um ‘conteúdo profano’, mas que perdeu
a sua razão histórica de existir. Não é mais o Espinosa antiteológico-político, mas o filósofo que
especula.” Tosel, A., op.cit. Tradução nossa.

27 Marx, K.; Engels, F. A sagrada família, ou A crítica da Crítica crítica contra Bruno Bauer e
consortes. Tradução, organização e notas de Marcelo Backes. – 1. Ed. revista. São Paulo, Boitempo,
2011. P. 143-144. Grifos dos autores.

28 Tosel, A. op. cit.

O que nos faz pensar, Rio de Janeiro, v.26, n.41, p.235-253, jul.-dez. 2017
242 Rodrigo Nunes e José Francisco Andrade Alvarenga

as mudanças”.29 Em segundo lugar, Marx atribui a Hobbes a tese de que o ho-


mem é uma parte da natureza e, portanto, está submetido às leis naturais. Em
terceiro lugar, a liberdade não consiste no livre-arbítrio, mas na identificação
entre poder e liberdade.

[S]e o homem não goza de liberdade em sentido materialista, quer dizer,


se é livre não pela força negativa de poder evitar isso e aquilo, mas pelo
poder positivo de fazer valer sua verdadeira individualidade, os crimes
não deverão ser castigados nos indivíduos, mas [devem-se] sim destruir as
raízes antissociais do crime e dar a todos a margem social necessária para
exteriorizar de um modo essencial sua vida. Se o homem é formado pelas
circunstâncias, será necessário formar as circunstâncias humanamente.30

A partir desse momento Marx não colocará mais Espinosa no rol dos pen-
sadores que ele considerava como detentores de uma reflexão que tivesse
como objeto privilegiado o questionamento do imaginário teológico-político.
Diante disso, a relação aqui estudada entre Espinosa e Marx não tratará de
uma pesquisa de influência, em que menções explícitas ao filósofo holandês
e relações de continuidades constituiriam o objeto privilegiado de investiga-
ção. Seguimos aqui Yves Citton31, que, referindo-se ao problema do estudo
da presença do espinosismo nos pensadores do Iluminismo Radical francês,
observa que

as categorias tradicionais da história das ideias me parecem largamente


incapazes de responder a essa questão. O modelo que está subjacente é o da
influência: um autor do século XVIII leria os textos de Espinosa, aderiria
ao sistema [...], e poderíamos hoje ‘reconhecer’ em uma tal citação um tra-
ço dessa aderência, sob a forma de ecos repetidos algumas décadas depois
a ideia ‘originalmente’ formulada pelo filósofo holandês.32.

29 Marx, K.; Engels, F. op. cit., p.147.

30 Ibidem, p.150.

31 Citton, Y. L’invention du spinozisme dans la France du XVIIIe siècle. In: Bove, L., Citton, Y.,
Lordon, F. Qu’est-ce que les Lumières « Radicales ». Paris : Éditions Amsterdam, 2007, p. 299-324.

32 Idem, p.299. Tradução nossa.

O que nos faz pensar, Rio de Janeiro, v.26, n.41, p.235-253, jul.-dez. 2017
O silêncio de Marx: sobre a recepção de Espinosa em 1841-1845 243

Portanto, buscar-se-á neste artigo estabelecer um diálogo entre Espinosa


e Marx, com o objetivo não de privilegiar as relações de continuidade, mas
os elementos de descontinuidade, nos quais podemos identificar aquilo que
constitui a singularidade de cada um desses filósofos e dos diferentes mo-
mentos de seu pensamento.

2. Marx leitor de Espinosa

2.1. Cadernos Espinosa

Em 1841, Marx extrai 171 trechos do Tratado Teológico-Político e alguns tre-


chos das Cartas.33 No entanto, não efetua comentário aos trechos selecio-
nados e atribui a si a autoria desse texto. Além disso, não é somente a
ausência de comentários que nos chama a atenção, mas também a alteração
da ordem original dos capítulos do TTP; embora Marx copie trechos de todos
os capítulos, o prefácio do TTP não aparece entre os extratos. Nestes trechos
encontramos a crítica da superstição e dos milagres, a defesa da separação
de filosofia e teologia, a tese de que a liberdade de pensamento não constitui
um empecilho para a manutenção de um Estado e que, caso se tente supri-
mi-la, colocar-se-á em risco a segurança daquele; também encontram-se aí os
argumentos principais de Espinosa a respeito dos fundamentos da república,
da profecia e dos profetas. A ordem original é radicalmente alterada: come-
ça-se pelos capítulos VI, XIV e XV; em seguida, passa-se aos capítulos que
abarcam o pensamento político espinosano, mas em uma ordem inversa: XX,
XIX, XVIII, XVII e XVI; por fim, estão presentes os capítulos que tratam da
interpretação da Escritura: VII, VIII, IX, X, XI, XII, XIII, I, II, III, IV, V.34
O que se pode ver ao longo destes trechos é que Marx constrói, de fato,
um novo texto. Tudo se passa como se ele pretendesse excluir tudo aquilo
presente no texto de Espinosa que não servisse ao seu possível projeto filo-
sófico e tentasse a partir dos trechos copiados fazer sobressair aquilo do qual

33 A edição utilizada foi a de H.E.G. Paulus, publicada em 1802 em Iena.

34 Do capítulo VI Marx transcreve 16 trechos, do XIV 9 trechos, do XV 9 trechos, do XX 11


trechos, do XIX 4 trechos, do XVIII 2 trechos, do XVII 16 trechos, do XVI 11 trechos, do VII 2
trechos, do VIII 6 trechos, do XI 8 trechos, do X 8 trechos, do XI 4 trechos, do XII 3 trechos, do
XIII 2 trechos, do I 18 trechos, do II 9 trechos, do III 13 trechos, do IV 17 trechos e do V 3 trechos.

O que nos faz pensar, Rio de Janeiro, v.26, n.41, p.235-253, jul.-dez. 2017
244 Rodrigo Nunes e José Francisco Andrade Alvarenga

pretendia apoderar-se. O que encontramos, sobretudo, é a crítica da contami-


nação da esfera política pelo pensamento teológico; com efeito, poderíamos
dizer que os trechos copiados oferecem uma simplificação do pensamento
de Espinosa, na medida em que reforçam uma oposição entre o governo
monárquico, assentado na religião, que não passaria de uma ilusão ou erro,
e o governo democrático. Ainda assim, embora não estejam presentes nesta
seleção todos os passos argumentativos de Espinosa, tampouco poder-se-ia
afirmar que ela falsifica o pensamento espinosista.
Como um dos nossos objetivos neste artigo é demonstrar como uma ideia
desenvolvida em um momento anterior por um autor pode ser utilizada e
reconfigurada em um novo arcabouço teórico, não efetuaremos uma análise
da totalidade dos extratos do TTP transcritos por Marx, mas apenas daqueles
onde estão expostos os elementos principiais da teoria política espinosana.
Interessa, portanto, examinar os extratos de Marx do capítulo XVI do TTP,
núcleo teórico desta obra. Marx inicia copiando a definição de direito natural:

[68] Por direito e instituição da natureza não entendo outra coisa que
as regras da natureza de cada indivíduo, segundo as quais concebemos
cada um como naturalmente determinado para existir e agir de certo modo.
Assim, por exemplo, os peixes são determinados por natureza para nadar,
os maiores para comerem os menores, por isso que os peixes, por supremo
direito natural, são os senhores da água e os maiores comem os menores.35

[69] E como a lei suprema da natureza é que cada coisa se esforce, tan-
to que esteja em si, por perseverar em seu estado, não tendo nenhuma
outra razão, mas apenas esta, segue-se que cada indivíduo tem supremo
direito a isto, ou seja, para existir e para agir conforme é determinado
naturalmente.36

[70] Desta maneira, o direito natural de cada homem não é determinado


pela reta razão, mas pelo desejo e pela potência.37

35 Marx, K. Exzerpte und Notizen bis 1842. MEGA Marx/Engels Gesamtausgabe, IV, Abteilung,
Band I, Dietz Verlag, Berlim, 1976. Tradução nossa.

36 Ibidem. Tradução nossa.

37 Ibidem. Tradução nossa.

O que nos faz pensar, Rio de Janeiro, v.26, n.41, p.235-253, jul.-dez. 2017
O silêncio de Marx: sobre a recepção de Espinosa em 1841-1845 245

Nesses trechos encontramos o essencial da teoria espinosana do direito


natural: ao contrário do jusnaturalismo, Espinosa compreende o direto na-
tural como uma necessidade de natureza pela qual cada indivíduo é determi-
nado a existir e agir de maneira determinada. Cada indivíduo tem, portanto,
direito a tudo a que está em seu poder, isto é, o direito natural de cada um
se estende até onde vai a sua potência; a lei suprema da natureza consiste em
que cada um persevere em seu ser. Desta forma, cada indivíduo tem direito a
existir e agir “conforme está naturalmente determinado”. Não há diferença, a
respeito do direito de natureza, entre o homem e os outros seres da natureza
ou, até mesmo, entre os homens que seguem os preceitos da razão e aqueles
que vivem somente com base nos caprichos da paixão.
No trecho seguinte, a respeito do surgimento da sociedade, Marx omite o
argumento anterior de Espinosa, afirmando que quando não há cooperação
entre os homens e estes também não agem segundo a razão todos vivem mi-
seravelmente e são escravos da necessidade.

[71] veremos claramente que os homens para viver em segurança e muito


bem deveriam unir-se necessariamente em um só, e, por conseguinte, ter
feito que o direito que cada um por natureza possuía de todas as coisas
fosse mantido coletivamente, e não fossem mais determinados pela for-
ça e pelo apetite de cada um, mas pelo poder e pela vontade de todos
simultaneamente.38

No entanto, o estabelecimento de um pacto não implica que esse valerá


eternamente, pois um pacto é válido em virtude de sua utilidade: “[72] pelos
quais concluímos que um pacto não pode ter nenhuma força a não ser pela
razão de sua utilidade, abolido esta o pacto é, ao mesmo tempo, suprimido
e fica sem valor”.39
Para Espinosa, a condição pela qual é possível estabelecer uma sociedade
em que o direito civil não esteja em contradição com o direito natural é a
seguinte:

[73] Se [...] cada um transfere todo o poder que possui para a socieda-
de, que, deste modo, reteria sozinha o sumo direito natural sobre todas as
coisas, isto é, o poder supremo, ao qual cada um, ou por ânimo livre ou

38 Ibidem. Tradução nossa.

39 Ibidem. Tradução nossa.

O que nos faz pensar, Rio de Janeiro, v.26, n.41, p.235-253, jul.-dez. 2017
246 Rodrigo Nunes e José Francisco Andrade Alvarenga

por temor do sumo suplício, será obrigado obedecer. De fato, tal direito da
sociedade é chamado democracia, que, por conseguinte, é definido como a
união de todos os homens, que coletivamente tem o direito soberano sobre
todas as coisas que estão sem seu poder. 40

O direito do soberano instituído pelo pacto é válido enquanto durar a sua


potência:

[74] este direito de ordenar seja o que for que queiram apenas compete
às autoridades supremas enquanto possuam realmente o sumo poder: se
o perderem, perdem também ao mesmo tempo o direito de ordenar todas
as coisas e (este direito) recai naquele ou naqueles que o conquistaram e o
podem conservar.41

Nos cadernos de extratos, Marx não copia o trecho no qual Espinosa ex-
põe as garantias do Estado democrático contra os absurdos dos governantes.
Por ser uma forma de governo na qual o poder é exercido por um colegiado, é
pouco provável que a maioria de seus membros concordem com um absurdo.
Além disso, o próprio “fundamento e finalidade” da democracia “não é senão
o de evitar os absurdos do instinto e conter os homens, tanto quanto possível
dentro dos limites da razão, para que vivam em concórdia e paz”.42
A possibilidade de um governante deter um poder absoluto não só em re-
lação às leis e às regras práticas, mas também em relação aos corpos e a subje-
tividade dos súditos, é recusada por Espinosa. Ora, se um ocupante do poder
soberano fosse capaz de controlar totalmente os ânimos dos súditos nenhum
governo necessitaria recorrer à violência ou estaria em risco de dissolver-se.
“A vontade”, por conseguinte, “de um homem não pode estar completamente
sujeita à jurisdição alheia, porquanto ninguém pode transferir para outrem,
nem ser coagido a tanto, o seu direito natural ou a sua faculdade de raciocinar
livremente e ajuizar sobre qualquer coisa.”43

40 Ibidem. Tradução nossa.

41 Ibidem. Tradução nossa.

42 Espinosa, B. Tratado teológico-político. Tradução, introdução e notas de Diogo Pires Aurélio. –


2. ed. – São Paulo: Martins Fontes, 2008. P.241.

43 Idem, p.300.

O que nos faz pensar, Rio de Janeiro, v.26, n.41, p.235-253, jul.-dez. 2017
O silêncio de Marx: sobre a recepção de Espinosa em 1841-1845 247

Na sequência, Marx transcreve os trechos nos quais Espinosa demonstra


que o regime político democrático não torna os súditos escravos. Ao contrá-
rio do que pensa o senso comum, não é escravo aquele que segue ordens de
outrem, mas sim aquele que não se conduz com base na razão:

[75] Mas talvez alguém pensará que tornamos por este motivo os súditos es-
cravos, porque julgam ser escravos quem age por mandato e livre quem gere
a sua natureza de acordo com a sua vontade [...] na realidade, é escravo no
mais alto grau quem é, deste modo, arrastado por sua paixão e não pode
ver nem fazer nada que não lhe seja útil; somente (é) livre aquele que vive
com a alma inteiramente conduzida pela razão. [...] se o fim da ação não é
a utilidade do próprio que age, mas (daquele) que ordena, então o que age é
escravo e inútil para si: mas na república e no Estado onde a lei suprema é a
salvação de todo o povo e não daquele que manda, quem em todos as coisas
obedece à autoridade suprema não deve se considerar a si mesmo um escra-
vo inútil, mas um súdito; por este motivo, a república absolutamente livre é
aquela cujas leis são fundadas na reta razão, aí, nesse lugar cada um pode
ser livre onde queira, isto é, viver inteiramente pela condução da razão.44

Por fim, encontramos um dos fundamentos do Estado democrático para


Espinosa: [...] [o Estado democrático]45 parece ser o que mais se aproxima da
liberdade que a natureza concede a cada um.”46

2.2 Espinosa na Crítica à Filosofia do Direito de Hegel

Se na Gazeta Renana encontramos menções explícitas a Espinosa, a partir de


1843, na CFDH, as menções ao filósofo desaparecem. No entanto, certas teses
espinosanas intervêm no interior da problemática feuerbachiana da alienação
do homem.47 Conforme observa André Tosel,

44 Ibidem. Tradução nossa.

45 Inserção de Marx.

46 Ibidem. Tradução nossa.

47 Por problemática, Althusser compreende a unidade profunda de um pensamento. Aplicando


esta noção à análise das escritos da juventude de Marx, o filósofo francês conclui que as obras
do pensador alemão entre 1843-1845 são marcadas pela problemática feuerbachiana, isto é, que
a questão fundamental encontrada nestes textos é o problema da alienação humana e de como
resolvê-la.

O que nos faz pensar, Rio de Janeiro, v.26, n.41, p.235-253, jul.-dez. 2017
248 Rodrigo Nunes e José Francisco Andrade Alvarenga

Espinosa não é mencionado, mas nota-se a proximidade de certas passa-


gens do TTP; Espinosa figura de fato como um index de uma tarefa nova,
aquela de repensar sobretudo o dualismo da articulação entre a sociedade
civil e o Estado que Hegel deixou de ver.48

A maneira segundo a qual Espinosa surge na CFDH toma a forma de um


conceito central na argumentação desenvolvida por Marx contra a contradição
entre a sociedade civil e o Estado: a “verdadeira democracia”, através da qual
Marx retrabalha a tese espinosana de que a democracia é o regime mais natural.
A democracia é constituída, ao contrário das outras formas de regimes políti-
cos, pela potência da multidão. Em contraposição à tese hegeliana na qual a
família e a sociedade civil têm como fim imanente o Estado como realização
da Eticidade, para Marx o Estado é um produto das relações sociais pelas quais
família e sociedade civil interagem. A presença de Espinosa nessa ideia radical
de democracia em Marx possui um sentido preciso: não se trata de um “ato
místico ou um êxtase utópico”49, mas sim de uma forma pela qual o povo ou
a multidão se dá por meio da democracia, uma forma política decorrente da
causalidade eficiente, imanente da própria potência da multidão. Não se trata
mais de um regime político, como no caso da monarquia, no qual haveria uma
dicotomia entre a sociedade civil e o Estado como entidade separada e distinta
das demais, separação que é superada no espinosismo e no marxismo, na me-
dida em que se supera a concepção teológica-política do Estado. 
Tudo se passa como se o efeito da intervenção de Espinosa no interior
da Filosofia do Direito de Hegel fosse a radicalização e o rompimento com a
concepção que Marx carregava no período da Gazeta Renana: a ideia de que
o problema do “atraso” político da Alemanha seria resolvido com a impor-
tação do modelo de Estado inaugurado com a Revolução Francesa. Este era
concebido como unidade orgânica e racional no interior da qual quaisquer
separações entre os interesses individuais do cidadão e a universalidade do
Estado “é recusada em proveito de uma integração da singularidade à uni-
dade orgânica, ou mais exatamente, do reconhecimento de uma adequação
perfeita entre a razão individual e a razão da instituição estatal”.50 A denomi-

48 Tosel, A. op. cit. Tradução nossa.

49 Idem. Tradução nossa.

50 Abensour, M. A democracia contra o Estado: Marx e o momento maquiaveliano. Tradução de


Cleonice P. B. Mourão, Eunice D. Galery. – Belo Horizonte: Ed. UFMG, 1998. P.42-43.

O que nos faz pensar, Rio de Janeiro, v.26, n.41, p.235-253, jul.-dez. 2017
O silêncio de Marx: sobre a recepção de Espinosa em 1841-1845 249

nada “crise de 43” no pensamento marxiano consiste justamente na recusa da


tese do Estado como sujeito infinito, autodeterminado, em cuja esfera toda
exterioridade seria integrada. Espinosa permite a Marx

[realizar uma crítica da filosofia política de Hegel, o povo sendo a


única instância ontológico-política, permitindo a constituição política,
isto é, democrática, da sociedade civil. A partir de Espinosa é possível
introduzir uma dialética incompleta na Filosofia do Direito. Esta
dialética é simultaneamente uma crítica. O objeto desta dialética-crítica
é a autoconstituição da atividade política na sua luta para ultrapassar os
limites da dominação – das entidades abstratas erigidas em abstrações
especulativas, definindo os últimos avatares do complexo teológico-político.51

Se até aqui encontramos ressonâncias de Espinosa em certas teses formu-


ladas por Marx, vejamos agora os elementos discrepantes.
Ao tratar no capítulo XVII do TTP o papel da imaginação e da supersti-
ção para a conservação de uma sociedade particular, Espinosa formulou os
lineamentos de uma teoria da ideologia.52 O que chama a atenção nessa teoria
é seu caráter não exclusivamente negativo, o que equivaleria a considerar a
ideologia como simples erro ou ilusão, mas por outro lado um verdadeiro
sistema positivo de representações, uma forma de expressão da relação dos
seres humanos com o mundo. É justamente essa ideia do papel fundamental
da imaginação ou da ideologia que está ausente no pensamento de Marx em
1843; a problemática feuerbachiana impede-o de reconhecer o papel funda-
mental da ideologia para a conservação de uma sociedade e leva-o a defender
que a “verdadeira democracia” é capaz de realizar totalmente o ser genéri-
co da humanidade (Gattungswesen), implicando que as relações sociais entre
os indivíduos que compõem essa sociedade seriam plenamente racionais e

51 Tosel, A, op. cit. Tradução nossa.

52 “No apêndice do Livro I da Ética e do Tratado Teológico-Político, encontrávamos com efeito


o que é sem dúvida a primeira teoria da ideologia, que nunca havia sido pensada em suas três
características: 1) sua ‘realidade’ imaginária; 2) sua inversão interna; 3) seu ‘centro’: a ilusão do
sujeito. [...] A ‘teoria’ de Espinosa recusava toda ilusão sobre a ideologia, e sobre a primeira ideo-
logia desse tempo, a religião, identificando-a como imaginária. Mas ao mesmo tempo ele recu-
sou tomar a ideologia por simples erro, ou ignorância nua, pois fundamentava o sistema desse
imaginário sobre a relação dos homens no mundo ‘expressa’ pelo estado de seus corpos. Esse
materialismo do imaginário abria o caminho de uma surpreendente concepção do primeiro gênero
de conhecimento: qualquer outra coisa diferente de um “conhecimento”, mas o mundo material
dos homens tal como eles vivem, aquele de sua existência concreta e histórica” (Althusser, 1978,
p.105. Tradução modificada).

O que nos faz pensar, Rio de Janeiro, v.26, n.41, p.235-253, jul.-dez. 2017
250 Rodrigo Nunes e José Francisco Andrade Alvarenga

transparentes. Incapaz de absorver todo o impacto daquela teoria da ideolo-


gia, a problemática em que o pensamento de Marx ainda se inscreve à época
da redação da CFDH faz com que se perca a potência teórica “daquilo que Al-
thusser justamente denominou de materialismo do imaginário espinosano”.53
Portanto, a presença de Feuerbach conduz Marx à conclusão de que a
verdadeira essência do homem reside no Estado “que exprime a sua universa-
lidade de forma alienada; basta tomar consciência disso e realizar consequen-
temente uma boa “universalidade”, não alienada”.54 A “verdadeira democracia”
constituiria, então, a libertação plena da multidão de toda e qualquer forma
de servidão. Como afirma Althusser em relação ao comunismo:

Não é por acaso que o comunismo aparece como o contrário do fetichismo,


o contrário de todas as formas reais nas quais aparece o fetichismo: na
figura do comunismo como o inverso do fetichismo, o que aparece é a livre
atividade do indivíduo, o fim da sua “alienação”, de todas as formas da sua
alienação: o fim do Estado, o fim da ideologia, o fim da própria política. No
limite, uma sociedade de indivíduos sem relações sociais.55

É possível, evidentemente, defender o jovem Marx da acusação de supor,


na figura da “verdadeira democracia”, a possibilidade de uma presença
completa da sociedade a si mesma, uma reconciliação ou transparência
completas. O preço desta operação é abrir o “eterno presente” da verdadeira
democracia à temporalidade, transformando aquilo que poderia ser pensado
como um estado realizado e definitivamente reconciliado num processo
contínuo, conflitivo, de permanente auto-instituição. É o que faz Isabelle
Garo quando afirma que “a democracia não é a resolução dos antagonis-
mos sociais, mas sua expressão fiel, o anúncio de um problema, e não o
seu desaparecimento.”56 Na mesma chave, Miguel Abensour, argumenta que

53 Morfino, V. Marx lettore di Spinoza. Democrazia, immaginazione, rivoluzione. In: Consecutio


Temporum, Roma, n. 5, 2013. P.159. Tradução nossa. O materialismo do imaginário consiste, para
Althusser, na ideia de que Espinosa construiu o conceito de imaginação não como uma forma na
qual se oporia ao entendimento, mas como algo que expressa a relação dos homens e das mulhe-
res com o mundo material de suas existências.

54 Althusser, L. O marxismo como teoria “finita”. Revista Outubro, v.2, n.5, 1998. P.66.

55 Idem, p.71.

56 Garo, I. Marx, une critique de la philosophie, Seuil (Points Essais), Paris, 2000, p.38. Tradução
nossa.

O que nos faz pensar, Rio de Janeiro, v.26, n.41, p.235-253, jul.-dez. 2017
O silêncio de Marx: sobre a recepção de Espinosa em 1841-1845 251

“o advento da verdadeira democracia não deve ser confundido nem com a


famosa noite em que todos os gatos são pardos, nem com um nascer de sol
ofuscante a ponto de apagar todos os contornos”:57

se, por um lado, dependente de uma ideia do sujeito como causa de si, esse
pensamento oblitera, incontestavelmente, a finitude, por outro lado, na
medida em que ele não para de insistir nessa vontade de autoinstituição
continuada, ele declara volens nolens que essa identidade de si a si só
pode existir reconquistada, permanentemente, ao desprendimento e à des-
possessão que, por sua vez, não cessa de introduzir o tempo. Assim a verda-
deira democracia, regida pelo princípio de autofundação continuada, não é
pensada como realização definitiva, mas como uma unidade, fazendo-se e
refazendo-se permanentemente, contra o surgimento sempre ameaçador da
heteronomia; em resumo, levada pelo movimento da infinitude do querer.58

Se estamos de acordo com Garo e Abensour quando estes propõem que a


democracia deve (e só pode) ser pensada como processo instituinte contínuo
ao invés de um estado final realizado (ou mesmo realizável), nem por isto
deixamos de observar que sua defesa de Marx depende de subdimensionar
a presença, na CFDH, da ideia de que seria possível dar às relações sociais
uma forma transparente e harmoniosa, e da “verdadeira democracia” como
única forma capaz de superar a alienação do povo presente nas outras formas
de governo.59 Estas marcam a dívida do Marx deste período para com a filo-
sofia feuerbachiana, em companhia da qual a ideia – mais condizente com o
espinosismo – de uma verdadeira democracia como processo constante de
autofundação encontra-se num equilíbrio um tanto tenso ou instável.

3. Conclusão

Um estudo da recepção de Espinosa na filosofia de Marx por meio de uma


ideia de “influência” (tão presente na história da recepção em geral) deve
necessariamente confrontar-se não apenas com a parca presença de menções

57 Abensour, M. op. cit., p.93.

58 Idem, p.88-89. Tradução modificada.

59 Conferir, sobre este tema, Kouvelakis, S. Philosophy and Revolution: from Kant to Marx. Lon-
don: Verso, 2003. P.313.

O que nos faz pensar, Rio de Janeiro, v.26, n.41, p.235-253, jul.-dez. 2017
252 Rodrigo Nunes e José Francisco Andrade Alvarenga

explícitas ao pensamento espinosano na obra do pensador alemão, quanto


com os limites da própria ideia de influência. Preferimos, aqui, estabelecer
um diálogo entre ambos autores, o que permitiu lançar uma nova luz sobre
a gênese do conceito de “verdadeira democracia” em suas continuidades e
descontinuidades com Espinosa, bem como em seus impasses internos. Por
um lado, podemos encontrar nesse conceito diversas convergências com o
pensamento político de Espinosa; por outro lado, a ausência da potência do
imaginário, enquanto ao mesmo tempo forma de dominação e construção
de costumes comuns, parece ser um efeito da problemática feuerbachiana
no pensamento de Marx na CFDH que o impede de receber por completo
o “materialismo do imaginário” do autor do TTP. Essa problemática, ao ser
transplantada do domínio ao qual foi originalmente aplicada por Feuerbach,
a gênese da religião, faz com que apareça na CFDH um pressuposto total-
mente ausente nas reflexões de Espinosa: uma ideia de sociedade na qual a
transparência nas relações sociais e na constituição da esfera política seria
realizável por meio de uma eliminação definitiva da alienação, seja política,
econômica ou do próprio imaginário.

Referências

ABENSOUR, M. A democracia contra o Estado: Marx e o momento maquiaveliano.


Tradução de Cleonice P. B. Mourão, Eunice D. Galery. – Belo Horizonte: Ed. UFMG,
1998.
ALTHUSSER, L. Elementos de autocrítica. In: Posições 1. Rio de Janeiro: Edições Graal,
1978.
____________. Éléments d’autocritique. In: Solitude de Machiavel. Paris: Presses
Universitaires de France, 1998.
_____________. O objeto de O Capital. In: ALTHUSSER, L. et al. Ler o capital. 2 vol.
Tradução Nathanael C. Caixeiro. Rio de Janeiro: Zahar, 1979-1980.
______________. O marxismo como teoria “finita”. Revista Outubro, v.2, n.5, 1998.
Disponível em: http://outubrorevista.com.br/wp-content/uploads/2015/02/Revista-
Outubro-Edic%CC%A7a%CC%83o-2-05.pdf. Acessado: 01 jan. 2015.
AURÉLIO, D. O mais natural dos regimes: Espinosa e a democracia. Lisboa: Círculo de
Leitores, 2014.
BENSUSSAN, G. “Spinozisme”. In: LABICA, G., BENSUSSAN, G. Dictionnaire critique
du marxisme. Paris: PUF, 1999, p. 1081-1085.
CITTON, Y. L’invention du spinozisme dans la France du XVIIIe siècle. In: BOVE,
L., CITTON, Y., LORDON, F. Qu’est-ce que les Lumières « Radicales ». Paris: Éditions
Amsterdam, 2007, p. 299-324.

O que nos faz pensar, Rio de Janeiro, v.26, n.41, p.235-253, jul.-dez. 2017
O silêncio de Marx: sobre a recepção de Espinosa em 1841-1845 253

ESPINOSA, B. Tratado teológico-político. Tradução, introdução e notas de Diogo Pires


Aurélio. – 2. ed. – São Paulo: Martins Fontes, 2008.
FISCHBACH, F. La production des hommes – Marx avec Spinoza. Paris: PUF, 2014.
GARO, I. Marx, une critique de la philosophie, Seuil (Points Essais), Paris, 2000.
HEGEL, Georg. Linhas fundamentais da filosofia do direito, ou Direito natural e ciência do
estado em compêndio. São Leopoldo, RS : Ed. Unisinos, 2010.
KOUVELAKIS, S. Philosophy and Revolution: from Kant to Marx. London: Verso, 2003.
MARX, K. Crítica da filosofia do direito de Hegel. São Paulo: Boitempo, 2010.
________. Cuaderno Spinoza. Traducción, estudio preliminar y notas de Nicolás
Gonzáles Varela. Barcelona: Montesinos, 2012.
_________.Le Traité Théologico-Politique et la correspondance de Spinoza : trois
cahiers d’etude de l’année 1841. In: Cahiers Spinoza 1. Paris: Ed. Réplique, 1977.
MARX, K. Exzerpte und Notizen bis 1842. MEGA Marx/Engels Gesammtausgabe, IV,
Abteilung, Band I, Dietz Verlag, Berlim, 1976.
MARX, K.; ENGELS, F. A sagrada família, ou A crítica da Crítica crítica contra Bruno
Bauer e consortes. Tradução, organização e notas de Marcelo Backes. – 1. Ed. revista.
São Paulo, Boitempo, 2011.
MATHERON. A. Le Traité Théologico-Politique vu par le jeune Marx. In : Cahiers
Spinoza 1. Paris : Ed. Réplique, 1977.
MORFINO, V. Marx lettore di Spinoza. Democrazia, immaginazione, rivoluzione. In:
Consecutio Temporum, Roma, n. 5, 2013. Disponível em: http://www.consecutio.org/
wp-content/uploads/2014/03/N.-5-rivista-integrale.pdf. Acessado: 26 mai. 2016.
PASCUCCI, M. La potenza della povertà: Marx legge Spinoza. Verona: Ombre corte,
2006.
PLEKHANOV, G. Os princípios fundamentais do marxismo. São Paulo: Hucitec,
1978.
RUBEL, M. Marx Critique du Marxisme. Paris, Payot, 2000.
______. Marx à la rencontre de Spinoza. In: RUBEL, M. et al. Cahiers Spinoza 1. Paris :
Ed. Réplique, 1977.
SOLÈ, M. Spinoza en Alemania 1670-1789: historia de la santificación de um filósofo
maldito. 1ª ed. Córdoba: Brujas, 2011.
TOSEL, A. Pour une étude systématique du rapport de Marx à Spinoza: remarques
et hypothèses. In: TOSEL, A.; MOREAU, P-F; SALEM, J. Spinoza au XIXe siècle. Paris:
Publications de la Sorbonne, 2007. Disponível em: http://books.openedition.org/
psorbonne/187. Acessado: 01 jun. 2016.
YOVEL, Y. Espinosa e outros hereges. Tradução de Maria Ramos e Maria Elisabete.
Lisboa: Imprensa nacional – Casa da moeda, 1999.

O que nos faz pensar, Rio de Janeiro, v.26, n.41, p.235-253, jul.-dez. 2017
tradução de Pedro H. G. Muniz
Pierre-François Moreau*

Spinoza: uma teoria do homem.


Uma antropologia materialista1

Spinoza: a theory of man.


A materialist anthropology

Resumo
Spinoza baseia suas teorias éticas e políticas num estudo geométrico dos afetos
humanos. A raiz destes afetos é o esforço de cada um para perseverar em seu ser,
racional ou não. Os efeitos desta produção passional são complicados pela imitação
espontânea dos afetos dos outros e pela opacidade de cada indivíduo para si mesmo.
O poder desses indivíduos é traduzido, em nível pessoal, por um devir singular;
no plano político, por um direito natural permanente que permanece, de fato, um
direito apaixonado e às vezes torna cada um inimigo potencial do Estado.

Palavras-chave: Spinoza; afeto; imitação; direito.

Abstract
Spinoza bases his ethical and political theories on a geometric study of human
affects. The root of these affects is the effort of each one to persevere in its being,
rationally or not. The effects of this passional production are complicated by the
spontaneous imitation of the affects of others and by the opacity of each individual
to himself. The power of these individuals is translated, on a personal level, by
a singular becoming; on the political level, by a permanent natural right which
remains in fact a passionate right and makes sometimes each one a potential enemy
of the State.

Keywords: Spinoza; affect; imitation; right.

1 Tradução do artigo Spinoza : une théorie de l’homme. Une anthropologie matérialiste

* Pierre-François Moreau é professor da École Normale Supérieure (ENS) de Lyon (IHRIM, ENS
de Lyon). E-mail: moreau.pf@free.fr.
Pedro Muniz é doutor em filosofia pela Pontifícia Universidade Católica do Rio de Janeiro (PUC-
-Rio). E-mail: phgmuniz@gmail.com.

O que nos faz pensar, Rio de Janeiro, v.26, n.41, p.255-263, jul.-dez. 2017
256 Pierre-François Moreau . tradução de Pedro H. G. Muniz

“Ser radical, dizia o jovem Marx, é levar as coisas às suas raízes; e para o
homem a raiz é o próprio homem”. Spinoza (quase) poderia ter dito o mes-
mo. Sua filosofia não se reduz a uma antropologia, mas esta última constitui
grande parte dela, e determina o essencial do resto. Uma antropologia que se
baseia em três pilares: uma doutrina dos afetos; uma teoria das aptidões e das
disposições e uma reorganização do direito natural.

A geometria dos afetos

Para os filósofos do século XVII, falar do homem é antes de tudo falar de suas
paixões: elaborar uma lista delas e deduzir as paixões derivadas das paixões
primárias, buscar suas causas (nas relações entre a alma e o corpo) e aprender
a superá-las ou a governá-las. Spinoza não deixa de fazer o mesmo: de fato,
ele constrói toda uma geometria dos afetos a partir de três raízes, que são o
desejo, a alegria e a tristeza. Ele analisa a impotência e o dilaceramento do
homem apaixonado. Ele insiste constantemente no fato de que, diante da
vida afetiva que descreve, mesmo que com frequência ela nos torne infeli-
zes e impotentes, ainda assim não devemos condená-la como os teólogos e
os moralistas; nem zombarmos dela, com os autores satíricos; nem reclamar
dela e fugir, como os homens melancólicos. É preciso estudar os afetos como
os geômetras estudam linhas, superfícies e volumes.2 Esta vida afetiva é o
conteúdo e o próprio produto do nosso esforço para perseverar na existência,
ou seja, ela é a consequência das leis da nossa natureza assim como a chuva
ou a tempestade são as consequências das leis da natureza externa. É melhor
conhecer essas leis para usá-las e governá-las do que reprová-las em nome de
uma essência ideal do homem que não existe em lugar nenhum. Mas ao invés
de opor diretamente a razão e as paixões, Spinoza distingue entre os afetos ati-
vos e os afetos passivos. A alegria ou o desejo ativos não contrariam a conduta
racional, pelo contrário: eles a reforçam. O universo afetivo não é, portanto,
o mundo do mal absoluto: ele é o lugar de um conflito no qual a potência de
agir traça o seu caminho partindo da servidão e em direção à liberdade.
Spinoza não é o primeiro a dizer isso: antes dele veio Descartes, e para
este, uma parte essencial de nossas vidas se baseia nas paixões. As paixões são,
portanto, fundamentalmente boas – todo o problema vem do mau uso que

2 Sobre o modelo geométrico, ver Fabrice Audié, Spinoza et les mathématiques, Presses de l’Uni-
versité Paris-Sorbonne, 2005.

O que nos faz pensar, Rio de Janeiro, v.26, n.41, p.255-263, jul.-dez. 2017
Spinoza: uma teoria do homem. Uma antropologia materialista 257

fazemos delas. Descartes havia assim rompido tanto com a tradição antiga e
medieval de condenação das paixões como vícios (nas obras dos estoicos ou
dos cristãos), quanto com o seu uso puramente pragmático (em Aristóteles,
que se pergunta como o falante pode usá-las para convencer seu público, ou
o poeta trágico para emocionar sua audiência). Ele afirmou ter construído
uma ciência das paixões e, de fato, em seu tratado As Paixões da Alma, ele
edificou uma análise delas a partir de seis paixões primitivas (a admiração,
o desejo, o amor, o ódio, a alegria e a tristeza), às quais todas as outras, da
inveja à cólera, do medo à esperança, eram interligadas como sendo ou deri-
vadas, ou composições. Todavia, essa construção é baseada em uma doutrina
das relações da alma e do corpo que, por um lado, coloca-os em oposição (o
que é ação no corpo é paixão na alma e vice-versa) e, por outro, tem como
base uma fisiologia altamente questionável – fundamentada na hipótese de
que uma pequena glândula localizada no meio do cérebro pode, através de
seus movimentos, transmitir ao corpo os impulsos da alma e a esta última as
percepções do corpo. O erudito dinamarquês Steno havia mostrado que isso
era impossível. Antes de se converter ao catolicismo e de se tornar um propa-
gandista militante da religião, Steno foi amigo íntimo de Spinoza, e este citou
seus argumentos, sem citar o nome de Steno, no prefácio da quinta parte da
Ética.3 Para além dessa recusa empírica fundamentada na estrutura concreta
do cérebro, as metafísicas spinozista e cartesiana se contradizem precisamen-
te no que diz respeito à questão do próprio status da alma e do corpo: onde
Descartes vê uma oposição, Spinoza identifica uma unidade de potência. Des-
sa forma, ele rejeita o núcleo da explicação cartesiana, mas guarda a ideia de
um tratamento científico dos afetos, o qual escapa à retórica ou à moralidade.
A raiz dos afetos é fornecida pelo esforço de cada ser, incluindo os huma-
nos, para perseverar em seu ser, isto é, para desenvolver sua potência de agir.
Assim, há apenas três afetos fundamentais: o desejo, que é esse esforço e a
consciência que o indivíduo possui dele; e a alegria ou a tristeza, que deno-
tam o aumento e a diminuição da potência de agir. Eles são, portanto, defi-
nidos por uma mecânica interna do indivíduo, e não por seus objetos – estes
últimos são secundários em relação aos movimentos afetivos que os visam.
Todo o repertório passional é então produzido a partir desses movimentos
fundamentais: representar (de maneira correta ou incorreta) uma causa ex-
terna à própria alegria ou tristeza é colocar em movimento o amor e o ódio;

3 Cf. Steno: Discours sur l’anatomie du cerveau, apresentado e anotado por Raphaële Andrault,
Paris, Classiques Garnier, 2009.

O que nos faz pensar, Rio de Janeiro, v.26, n.41, p.255-263, jul.-dez. 2017
258 Pierre-François Moreau . tradução de Pedro H. G. Muniz

associar a estes uma representação do futuro é gerar o medo ou a esperança;


e associá-los a uma representação do passado é criar o alívio ou o arrependi-
mento. Caso alguma vez eu tenha experimentado alegria ou tristeza frente a
este ou aquele objeto, cada vez que eu encontrar tal objeto ou outro que se
assemelhe a ele, a mesma alegria ou tristeza surgirá. Temporalização, transfe-
rência, associação – diversos dispositivos que multiplicam os encadeamentos
passionais aos quais somos induzidos.
O que torna essa visão das paixões ainda mais singular é o seu reflexo sobre
a imitação e opacidade da vida humana. De fato, o verdadeiro ardil da teoria de
Spinoza está em sua defesa do papel desempenhado pela imitação espontânea
dos afetos: o indivíduo que vê algo semelhante a ele experimentando alegria
ou tristeza, dor ou amor, também experimenta tais afetos, antes mesmo de
qualquer reflexão.4 O correspondente é o esforço de cada um ao fazer com que
os outros vivam de acordo com sua própria compleição – ou seja, no fundo,
fazer com que imitem seus afetos. Esses fenômenos de imitação são essenciais:
eles mostram que, no fundo de si mesmo, o ser humano é estruturado por
movimentos que não estão sob seu controle – que não se explicam através de
seus próprios desejos, mas que manifestam nele, antes mesmo de qualquer in-
dividuação, a presença de seu pertencimento a uma rede comum. O indivíduo
é, portanto, atravessado por forças interindividuais, sem sequer ter consciência
disso e, antes de tudo, sem que haja escolha de sua parte. Além disso, enfatiza
Spinoza, somos mais propensos a perceber os efeitos passionais em outros do
que estar conscientes deles em nós mesmos. É claro que esses afetos resultan-
tes da imitação podem contradizer os que nascem do movimento próprio do
indivíduo e, assim, podem multiplicar sua impotência e o seu dilaceramento. A
irresolução, para retomar um termo cartesiano (embora em outra perspectiva),
aparece como uma característica fundamental da condição humana.
Quanto aos conselhos para agir bem e dominar as paixões, por séculos os
moralistas e os pregadores distribuíram excelentes exemplares – nunca houve
falta de professores de virtude. Mas desde sempre esses conselhos foram inefi-
cazes, ao mesmo tempo em que todos são capazes de identificar as fraquezas e
as ilusões dos outros. Spinoza observa que “isso ninguém ignora, mas cada um
se ignora a si mesmo”.5 Portanto, o conhecimento mais geral não garante uma

4 Ver Philippe Drieux: Perception et sociabilité. La communication des affects chez Descartes et Spino-
za, Classiques Garnier, 2015

5 No original: “Atque haec neminem ignorare existimo, quamvis plerosque se ipsos ignorare
credam”. Nota do tradutor.

O que nos faz pensar, Rio de Janeiro, v.26, n.41, p.255-263, jul.-dez. 2017
Spinoza: uma teoria do homem. Uma antropologia materialista 259

conduta razoável, por causa da falta de transparência dos indivíduos em rela-


ção a si mesmos. E é por isso que, ao ler certos escólios da Ética, às vezes nos
sentimos muito próximos da psicanálise.6 A antropologia aqui não traz um
humanismo do indivíduo livre, ela revela os mecanismos necessários e ocultos
das leis da natureza que atravessam os indivíduos sem que eles se deem conta.
Isso não significa que não possamos de forma alguma pensar a indivi-
dualidade, mas o que a caracteriza é a “compleição”, o ingenium, que marca
a maneira singular pela qual as leis da natureza vêm serem implementadas
nesse profeta, naquele camponês, naquele outro conquistador. Um nó com-
plexo de afetos que é produto da história (um romano não tem as mesmas
paixões dominantes que um grego ou um hebreu), da ancoragem social (um
camponês não reage como um soldado, e frente aos mesmos sinais, eles terão
duas leituras diferentes) e da biografia (desde a infância, nossas interações
com o mundo exterior, começando com nossos pais e nossos educadores,
imprimem em nós certos efeitos das leis da natureza, e não outros). Mas essa
individualização não é a de um personagem, como na obra de La Bruyère ou
nas comédias clássicas: o personagem (o avarento, o lúbrico, o ambicioso) é,
antes, a situação limite na qual o ingenium se desdobra em um efeito único – o
que aos olhos de Spinoza é sempre uma forma de delírio. A regra mais geral é,
pelo contrário, a circulação das paixões em um mesmo indivíduo, em função
dos encontros presentes e passados.

A transformação do indivíduo

A possibilidade de se libertar, assim como a de mergulhar no delírio, refe-


re-se na verdade às transformações do indivíduo. No entanto, o problema
de uma doutrina das paixões é que muitas vezes ela enxerga os indivíduos
como estáticos. Contudo, Spinoza, pelo contrário, criou uma antropologia
da transformação. Em sua obra, as noções que constroem tal antropologia
são as de constituição, de aptidões e de disposições. Eles permitem pensar
como o mesmo indivíduo pode passar por vários estados, desenvolver-se,
talvez até deixar de ser ele mesmo. Essa dimensão do spinozismo é objeto de
pesquisas recentes muito promissoras.7 A leitura da Ética e dos Tratados dá

6 Ver Isabelle Sgambato-Ledoux: Oreste et Néron. Spinoza, Freud et le mal. Classiques Garnier, 2017.

7 Julie Henry: Spinoza, une anthropologie éthique – Variations affectives et historicité de l’existence. Clas-
siques Garnier, 2015 ; Jacques-Louis Lantoine: Politique des dispositions. Sur l’Etat spinoziste, no prelo.

O que nos faz pensar, Rio de Janeiro, v.26, n.41, p.255-263, jul.-dez. 2017
260 Pierre-François Moreau . tradução de Pedro H. G. Muniz

luz, diante dos nossos olhos, a personagens que evoluem, buscam o poder
ou a sabedoria, resistem ou não aos golpes do destino. Por que Alexandre o
Grande, depois de uma inversão da sorte, repentinamente se torna vítima da
superstição? O que acontece com esse poeta espanhol que, depois de uma
doença, perde sua memória e não reconhece suas próprias obras? Por que um
filho foge da autoridade paterna se alistando no exército, onde sofrerá com
uma disciplina ainda mais forte? Como os pais usam o estímulo da honra e
da inveja para incitar seus filhos a determinados comportamentos e não a
outros? Ao lado da história dos historiadores, outra história é invocada por
Spinoza: a dos indivíduos de todos os dias, tal como nos fornecem os nossos
próprios olhos e nossa memória, mas também os poetas e os dramaturgos,
que de alguma forma condensaram tal história em suas obras, e os quais
Spinoza cita com frequência, integrando-as em sua prosa. Sempre que ele
menciona a impotência primordial da Razão diante dos afetos, a frase que
Ovídio coloca na boca de Medéia retorna regularmente: “enxergo o que é
melhor, mas sigo o que é pior”. Estaríamos errados em ver nessas citações
uma beleza retórica, um ornamento como os que são apreciados pelos auto-
res humanistas desde o Renascimento. Se a escrita seca e sóbria de Spinoza se
preocupa em incluir esses fragmentos vivos da existência humana, é porque
eles trazem um material insubstituível para o questionamento aguçado que
anima sua obra sobre essa questão: o que, no fundo, é o indivíduo?
 A invocação de exemplos (históricos ou emprestados da vida cotidiana)
e o raciocínio sobre a dinâmica das interações humanas se juntam hoje em
dia, de uma forma diferente, aos questionamentos que fazem a sociologia ou
a psicologia a respeito da formação das individualidades ou da inculcação dos
habitus. E aí também a sorte e o livre-arbítrio dão lugar à descoberta das leis
que regulam o feixe de possibilidades através das quais nossa personalidade,
nossas ideias e nossas ações são construídas e modificadas. Essas teses sobre o
indivíduo são, portanto, exatamente o oposto de um individualismo: trata-se
de saber o que atrai esse indivíduo de um lado ou de outro, o que lhe dá a
possibilidade de evoluir na direção de um melhor conhecimento de si mesmo
e da Natureza e na direção de um controle de seus afetos – ou, pelo contrário,
o que o leva à escravidão e à infelicidade, pessoal ou coletiva. A doutrina
spinozista do indivíduo deve, portanto, conduzir de uma forma muito lógica
a uma teoria da educação (que é apenas esboçada, mas que podemos recons-
tituir com a ajuda das poucas indicações dispersas na Ética, nos Tratados e
em suas correspondências) e a uma política – a qual é longa e amplamente
exposta nos dois Tratados que lhe são consagrados.

O que nos faz pensar, Rio de Janeiro, v.26, n.41, p.255-263, jul.-dez. 2017
Spinoza: uma teoria do homem. Uma antropologia materialista 261

O direito natural

Essas leis da natureza que compõem o indivíduo também governam seu re-
lacionamento com os outros – e, portanto, também com o Estado e com a
sociedade. Aqui, Spinoza parece retomar sabiamente os instrumentos desen-
volvidos por seus predecessores, e que por muito tempo permanecerão em
uso: os direitos naturais. Mas ao olhar de perto, não é o caso.
Teorias do contrato social, antes de Spinoza (Grotius, Hobbes) e depois
dele (Locke, Pufendorf, Rousseau), seguem todas um raciocínio com uma
série de conceitos organizados entre si: estado de natureza, direito natural,
lei natural, pacto, sociedade civil, etc. Cada um desses teóricos modifica essa
organização, e a concepção que cada um deles desenvolve do estado de na-
tureza tem um efeito sobre sua concepção da sociedade civil. Por exemplo,
se imaginamos que é absolutamente impossível viver no estado de natureza
(como na obra de Hobbes), o indivíduo não tem nada a perder ao abandoná-
-lo e é absolutamente necessário que ele o faça. Dessa forma, ele não tem nada
para negociar no momento do pacto, e entrega praticamente todos os seus
direitos ao Estado – exceto, às vezes, o de fugir caso o Soberano queira matá-
-lo ou mandar matá-lo. Se, pelo contrário, imaginamos o estado de natureza
como já permitindo um início de vida humana, e até mesmo social (com tra-
balho e propriedade, como em Locke), é certamente necessário passar para o
estado de sociedade para melhorar essa vida (por exemplo, ao tornar a justiça
mais eficaz do que no estado de natureza, no qual cada indivíduo só pode
contar consigo mesmo para fazer justiça), mas não a qualquer preço. Temos
então algo a negociar no momento do pacto e, por exemplo, também certo
direito de controle sobre o governo. Em ambos os casos, a oposição entre os
indivíduos, que os colocam uns contra os outros no estado de natureza (e
que de alguma forma é legítima nesse estado, já que ainda não existe uma lei
do que é “proibido”) torna-se ilegítima no estado de sociedade civil, uma vez
que este é criado. Assim, a sociedade deriva sua legitimidade do fato de que
supostamente os indivíduos entraram nesse estado voluntariamente, saindo
de um estado de natureza no qual eles estavam isolados. É, portanto, a sua
vontade, ou algo equivalente, que originalmente os tornou membros do Esta-
do e sujeitos ao soberano. As condições desse pacto fornecem as razões pelas
quais eles devem, a partir desse momento, obedecer ao Soberano e às leis. É
possível que tais condições forneçam ainda as razões pelas quais eles podem
desobedecer ou até derrubar o Soberano (caso este não tenha cumprido as
promessas do pacto – contanto que ele as tenha feito).

O que nos faz pensar, Rio de Janeiro, v.26, n.41, p.255-263, jul.-dez. 2017
262 Pierre-François Moreau . tradução de Pedro H. G. Muniz

Spinoza retoma esses instrumentos de pensamento, mas ele os torce de


tal forma que os torna irreconhecíveis. No capítulo XVI do Tratado teológico-
-político, quando ele deve explicar a constituição do Estado, parece realmente
se expressar em termos de pacto social. Mas ele relaciona o direito natural
do indivíduo às leis da natureza que animam seu corpo e seu imaginário – e
de forma alguma à sua vontade livre. É por isso que ele não hesita em falar
também de um direito natural dos animais que é equivalente à potência que
eles têm, enquanto para a maioria dos teóricos contratualistas, o direito é
uma especificidade humana, fundamentada em uma faculdade que apenas
os homens possuem: a vontade, que lhes permite engajar-se e assim instituir
uma esfera jurídica. (E dentre esses teóricos, aqueles que negam a liberdade
da vontade, fazem com que seu papel seja desempenhado em uma instância
equivalente: em Hobbes, por exemplo, no poder das marcas que estão na
origem da linguagem.) Quanto ao conteúdo dessas leis naturais-humanas,
Spinoza o descreve em outros capítulos do mesmo Tratado, bem como na
quarta parte da Ética – são as necessidades da vida, a divisão do trabalho e as
necessidades da civilização que levam as pessoas a se juntar e a unir forças.
O contrato é, portanto, apenas uma representação legal abstrata. E mais uma
vez o indivíduo é definido por sua potência, ou seja, pelo que as leis da na-
tureza conferiram a ele como capacidade de interação com o mundo exterior.
Tanto para a descrição das paixões quanto para a análise da transformação, a
doutrina do Estado supõe o enraizamento do indivíduo humano em um uni-
verso que está pra além dele e lhe fornece o contexto de seu desenvolvimento.
Ainda precisaríamos nos perguntar se a potência do indivíduo e a sua
composição com os seus semelhantes são suficientes para explicar a origem
ou, antes disso, o funcionamento da sociedade, sem recorrer ao contrato, por
que justamente Spinoza se dá o trabalho de construir um nesse capítulo XVI.
Seria apenas uma facilidade de escrita, porque o conceito está disponível no
repertório de argumentos político-jurídicos do século XVII? Ou para estabe-
lecer um lugar comum com seus leitores, que estão acostumados a pensar
nesses termos? Se assim for, então o contrato desempenharia nos últimos
capítulos do TTP um papel equivalente ao da Bíblia nos primeiros: um tipo
de linguagem recebida de todos, da qual podemos partir para construir um
pensamento original, minando-a a partir de seu interior? Ambas as respostas
podem conter alguma verdade, mas reduzir somente a elas o uso do contra-
to em seu trabalho seria subestimar seriamente o rigor do pensamento de
Spinoza. Poderíamos apresentar uma razão melhor: a dinâmica natural dos
afetos e dos interesses é suficiente para explicar a existência da sociedade e do

O que nos faz pensar, Rio de Janeiro, v.26, n.41, p.255-263, jul.-dez. 2017
Spinoza: uma teoria do homem. Uma antropologia materialista 263

poder – isso é certo. Mas tal dinâmica não basta para esclarecer o que é uma
sociedade bem construída, isto é, um poder que não abuse dos direitos que
lhe são conferidos pelos cidadãos, e que pode se permitir respeitá-los preci-
samente porque o equilíbrio das estruturas sociais faz com que a liberdade
dos cidadãos não represente um perigo para ele. Melhor ainda, a liberdade
dos cidadãos é a condição mesmo da duração de um poder que não é abusivo.
Contudo, a mera constatação das dinâmicas de forças e dos equilíbrios na
verdade não é suficiente para representar essa ligação de segundo nível entre
o poder e os cidadãos. É preciso recorrer a outro sistema de visualização, um
que apresente a potência dos indivíduos de uma forma legível. A temática
da lei natural e do contrato fornece tal representação. Dessa forma, ela não
é uma ilusão em relação à verdade naturalista da espontaneidade social: ela
é ao mesmo tempo o produto e a condição de seleção dessa espontaneidade,
que permite passar da vida humana simples à verdadeira vida, no sentido
histórico-social desse termo. E a verdadeira vida nesse sentido é também a
que faz com que o máximo de indivíduos possa se encaminhar para o conhe-
cimento e a bem-aventurança.
Voltemos ao jovem Marx: o homem em Spinoza é, de fato, o objeto central
do olhar, mas ele não está na raiz – a verdadeira raiz são as leis da natureza.
Trata-se, portanto, de uma antropologia materialista, e não humanista.

Referências

AUDIE, Fabrice. Spinoza et les mathématiques. Paris: Presses de l’Université Paris-


Sorbonne, 2005.
DRIEUX, Philippe. Perception et sociabilité. La communication des affects chez
Descartes et Spinoza. Paris: Classiques Garnier, 2015.
HENRY, Julie. Spinoza, une anthropologie éthique – Variations affectives et historicité de
l’existence. Paris: Classiques Garnier, 2015.
LANTOINE, Jacques-Louis. Politique des dispositions. Sur l’Etat spinoziste, no prelo.
SGAMBATO-LEDOUX, Isabelle. Oreste et Néron. Spinoza, Freud et le mal. Paris:
Classiques Garnier, 2017.
STENO, N. Discours sur l’anatomie du cerveau. Apresentado e anotado por Raphaële
Andrault. Paris : Classiques Garnier, 2009.

O que nos faz pensar, Rio de Janeiro, v.26, n.41, p.255-263, jul.-dez. 2017
entrevista
Por Maxime Rovere*

Spinozismo, or how to raise


higher political consciousness

Entrevista com Jonathan Israel

Desde a publicação do seu livro Radical Enlightenment: Philosophy and the


Making of Modernity, 1650–1750 (Oxford University Press, 2001), Jonathan
Israel está contribuindo a uma nova escrita da época moderna, colocando o
“spinozismo” no centro do jugo. Senior researcher no Institute of Advanced
Studies (Princeton, USA), ele viaja o mundo defendendo a relevância da filo-
sofia de Spinoza para pensar o conceito de democrácia. Seu novo livro, The
Expanding Blaze: How the American Revolution Ignited the World, 1775-1848
(2017), marca uma nova etapa no trabalho dele.

How did Spinoza change in the last fifteen years ? In what sense is this author
not any more the one the commentators used to read ?

Spinoza has recently become an object not only of philosophical studies, but
also of intellectual history. To understand this, one must acknowledge the pe-
culiar gap, in some academic cultures, existing between « philosophy » and
« history of philosophy » on the one hand, and « historical studies » and « in-
tellectual history » on the other. In these countries (France and Brazil seem
to be some of them), the organisation of academic life didn’t allow to “intel-
lectual history” the place it had in Germany, where it appeared in the XIXth
century, or later in Italy, Great Britain or in the United States. Now, what is
the difference? Whereas history of philosophy looks at philosophical ideas,
philosophers and others things that might have influenced them, focusing on
the philosophical debate itself, intellectual history is about how philosophers
and economists, legal reformers, scientists, etc., influence the intelligentsia
as a group in order to reform and refine institutions. It is about society, but

* Professor do Departamento de Filosofia da Pontifícia Universidade Católica do Rio de Janeiro


(PUC-Rio). E-mail: maxime.rovere@gmail.com.

O que nos faz pensar, Rio de Janeiro, v.26, n.40, p.267-273, jan.-jun. 2017
268 Entrevista com Jonathan Israel . Por Maxime Rovere

specifically about how intellectual influence impacts politics. It means that


what matters is not necessarily what society thinks as a whole; there can be
small groups leading the political debate. It aims at describing a political
and legal process. As I understand it, this is not part of history of philosophy,
which has a different focus. This is why intellectual history discusses Spi-
noza’s philosophy on very different terms.

In this approach, Spinoza appears as one actor among the Spinozist movement.
And this is not only helpful to explains how Spinoza’s philosophy emerged,
but also how it contributed to political changes.

This is the reason why I find the book by Jean-Baptiste Stouppe, La Religion
des Hollandais (1673), but also Cornelis Bontekoe’s notebook and later Pierre
Bayle’s Dictionnaire historique et critique (1697) extremely important, because
they all describe how Spinoza established a movement. This has never been
totally accepted by intellectual historians. Antoine Lilti, for example, main-
tains that Spinoza’s circle was isolated, that their publications in Dutch had
little influence in Europe, and that the reference to Spinoza in the XVIIIth
century is “déracinée”, far from its original Dutch context. But Stouppe sug-
gests that Spinozism is not just a philosophical movement; it has some fea-
tures of an almost religious sect. Others documents from the period of Bayle
say that. I want to show that in the wider European scene, early texts of Eng-
lish deism for example – think of John Toland (1670 – 1722) – are in direct
connection with Spinozism. A less known example is Matthew Tindal’s book,
The Rights of the Church Demonstrated (1706). It gave birth to one of the main
controversies of the XVIIIth century; thirty books were published in reply.
Why was it seen as so highly offensive ? Because it claimed that the Christian
church had no political rights regarding society. This certainly doesn’t sound
like Hobbes, but it recalls an anonymous book, De jure ecclesiasticorum, pub-
lished in Holland in 1665 and certainly written by someone close to Spinoza.
Tindal took his argument from this text, written in Latin. This shows that a
huge controversy on the rights of the church came out of a specifically Dutch
context. But the problem is, European intellectual historians have made a
gentlemen’s agreement that each of them would claim its own country to have
played the most important role. This is why the Cambridge school – J. G. A.
Pocock and Quentin Skinner – didn’t pay enough attention to the Dutch
Republic.

O que nos faz pensar, Rio de Janeiro, v.26, n.40, p.267-273, jan.-jun. 2017
Spinozismo, or how to raise higher political consciousness 269

But then, it sounds as if everything came from a single origin. Isn’t it strange
to drawn back this movement to the very person or figure of Spinoza ?
Shouldn’t we avoid diffusionnism?

I never made Spinoza the cause of everything! The spinozistic diffusionnism


is a misinterpretation of my argument. I agree very much with you. In many
cases, Spinoza doesn’t even stand up for radical ideas as clearly as Adriaan
Koerbagh (1633 – 1669) and Franciscus Van den Enden (1602 – 1674) do.
Democratic republicanism starts with Pieter De La Court (1618 – 1685) and
his brother Johan De La Court (1622 – 1660), then Koerbagh and Van den
Enden. Spinoza was only able to sum up and express with greater philosophi-
cal depth something that was urgently in the forefront of the intelligentsia of
the society in which he lived; he also had a great ability to widen the scope,
extend this spirit to additional areas. One reason of his achievement is that…
he comes slightly after the other figures. So again, I agree very much with you:
it’s not Spinoza’s genious as a philosopher (which is beyond question) that
explains his influence, but a routine inside the particular Dutch context. Spi-
nozism should be seen as coming out from a group, and the Dutch scholars
have been working on these authors since twenty years. But apart from your
“Clan Spinoza”, international spinozism still doesn’t pay enough attention to
these people. It’s not possible to understand the crucial step in the history of
modernity that lays in a clash between aristocratic and democratic republi-
canism, unless you look at the peculiarities of the Dutch Republic. The oli-
garchs of the Republic we coming from families who, two generations before,
were nobodies. The brothers De La Court were exiled from Flanders, they
were new comers to the Dutch Republic and had no access to political life.
No doubt that is why they adopted their radical political attitude. More gene-
rally, money is the only way to define the Dutch oligarchs – but that is a very
instable feature. In fact, the Republic itself is very instable. The question then
is: how to broaden its support? In this context, democratic republicanism is a
very good option, especially if you value religious toleration and other forms
of freedom. And toleration itself had been imposed by the fight against Philip
the Second and the Duke of Alba: during the revolt, people from Nederlands
had to put aside their religious differences. If they had let the divisions split
them, they would have had no way to win the struggle. All these conditions
created a debate where aristocratic and democratic republicanism were in
collision, and that was on different grounds from any other country.

O que nos faz pensar, Rio de Janeiro, v.26, n.40, p.267-273, jan.-jun. 2017
270 Entrevista com Jonathan Israel . Por Maxime Rovere

The specificities you are pointing seem to cause a spectacular break. How
does this match with long scale evolutions ? Are there no continuities with
previous movements ?

Long term perspective is something I will be trying to address in the fourth


volume of my research1, where I want to distinguish the Radical Enlight-
enment clearly from an underground Radical Renaissance based on Averro-
ism and Epicureanism. I’ll consider what was the significance of clandestine
movements in the Middle Ages, and the Renaissance, and the Reformation.
And you could say that before the Radical Enlightenment, there is an under-
ground intellectual movement, a form of new Epicureanism, that stands as
a precursor. But I’ll show that, like Averroism, once these thinkers created
an intellectual counter-culture that rejected all the premises of the political
power, they didn’t actually try to reject the regime; they concealed themselves
like Epicure did in the Garden, far from the prejudices of the clergy, the anger
of the common people, etc. They had everything of a clandestine movement,
they were forbidden, they wanted to propagate certain ways of thinking,
based on rational philosophy, against religious authority. But they accepted
the political status quo. Whereas Spinoza and the Radical Enlightenment were
trying to undermine the structures of oppression. They tried to replace them
not with a revolutionary new program, but with the original principles of the
political constitutions.

How do you conceive of these historical categories – Moderate and Radical


Enlightenment, for instance – you contributed to refine?

Well, the difference between Moderate and Radical Enlightenment, for exam-
ple, was meant to particularize our understanding of political ideas. Or cour-
se, there are other categories that could be dropped: liberalism for instance
is so vague (especially in the XIXth century) that it is misleading; there are
too many different directions. When a term generates more misuse than help,
then it should be abandoned. On the contrary, there is a general agreement

1 J.I. has published so far : Radical Enlightenment: Philosophy and the Making of Modernity, 1650
– 1750 (2001) ; Revolutionary Ideas: An Intellectual History of the French Revolution from The Rights
of Man to Robespierre (2014) ; The Expanding Blaze: How the American Revolution Ignited the World,
1775-1848 (2017).

O que nos faz pensar, Rio de Janeiro, v.26, n.40, p.267-273, jan.-jun. 2017
Spinozismo, or how to raise higher political consciousness 271

on certain points about Enlightenment: the ideas that many institutions and
laws are obsolete, that they should be changed or improved, and that philoso-
phy and science will give us the bases and guidelines for these improvements.
One who would not subscribe to these points, even if he goes frequently to
coffee-houses in Paris, would not be part of the Enlightenment. And one who
would, would then find himself in opposition to the spirit of the time, becau-
se Enlightenment is not a “mentalité”. Now, the difference between Moderate
and Radical Enlightenment actually comes from Leo Strauss. In Leo Strauss’
views, the main feature of the Radical Enlightenment is that it is persecuted,
its partisans must hide, and therefore they should be read between the li-
nes. This category is useful for very complicated cases. Moses Mendelssohn
(1729 – 1786), for instance, is one of them. He is moderate and radical at
the same time, because he is not so much concerned with intellectual consis-
tency as achieving certain goals. Nonetheless, we can’t just point out all the
nuances, contradictions and different strategies. If you just say that there is
a vast range of possibilities and leave it there, it won’t be very helpful to the
general reader or even to the scholars. We need broad categories to have a
discussion, to compare the XVIIth with the XIXth century, to describe general
phenomenon. After all, why do we think that our institutions are archaic and
need to be changed, some say intensively, some say only on many aspects ?
Nor the Chinese thinkers, nor the authors before the XVIIth century, looked
at society that way. We wouldn’t see this without the Radical Enlightenment.
We wouldn’t see the novelty of Spinozism without it.

You describe Spinozism as a long term current that seems to run throughout
history. How do you conceive of the continuity of an intellectual movement?
What conception of time is conveyed by this type of storytelling?

The continuity lies in the fact that the spinozist concepts have been con-
stantly reintroduced in intellectual history. Think of G. E. Lessing (1729 –
1781) and Heinrich Heine (1797 – 1856). They are obsessed with Spinoza.
Why ? Because Heine basically thinks : “we have a revolutionary conscious-
ness and eventually this conscience might achieve real things”. Of course, the
revolutionary consciousness doesn’t need Spinoza, but with Spinoza, you can
elevate it to a higher level. Spinoza’s readers can draw from him an ethical
inspiration which will help underpin the better society they long for. And
there are so many of these people who keep on reintroducing Spinoza – even

O que nos faz pensar, Rio de Janeiro, v.26, n.40, p.267-273, jan.-jun. 2017
272 Entrevista com Jonathan Israel . Por Maxime Rovere

today, there is a whole lot of rhetoric about “conatus” and these words… –,
that I would argue there is a continuous process in a sense. It is not always
refined, not always rigorous, many writers do strange things with Spinoza
(see for example Moses Mendelssohn), but his philosophy is still playing an
inspirational role. It is a powerful force. Another eloquent example: a fellow
named Ignác Einhorn (1825 – 1875), son of a rabbi, joined the revolutionary
movement in Budapest and became a proeminent journalist and activist in
1847-1849; during these years, he became very disillusioned when he discov-
ered that the Magyars leaders were not so keen on securing ethnic minorities’
rights in any sense. When the Hungarian revolution became defeated in 1849,
Einhorn fled to Leipzig and wrote a book called Spinozas Staatslehre, were his
argument reads as follows. Hegel, Fichte, Schelling all say Spinoza is impor-
tant for philosophy, but they ignore his political thought. This, according to
Einhorn, is absurd because Spinoza’s political thought is just as important as
his metaphysics, and is going to change Europe and the world through revo-
lutionary action. This is a good illustration of the significant role Spinozism
did play. Einhorn is not a great thinker, but his book was very influential.

You seems to be very confident in the force of ideas.

In the discussion about what democracy is, universal and equal rights again
have become central for Europeans and Americans since 1848, and the place
of the individual in society, and how to stabilize and guarantee all the free-
doms of expression, individual liberty of conviction, etc., are today vital in
our societies. What can we do to understand and promote that ? The Marxists
historians who studied XVIIth century were often looking at mass movement
and great shifts, and were not really looking at the position of the individu-
als within the society. Although it has appeared here and there, one of the
most important things about Spinoza is the articulation between individual
and society. Anarchist traditions preserved this aspect better than Marxist
traditions. On a small scale, anarchists are good at promoting the individual
freedoms, but they are not interested in their constitutional forms, nor how
to build a democratic state. Spinoza was very interested by both aspects. So
the way Radical Enlightenment conceived of oppression and human misery
in the world differs from the way socialists did. That seems to me very impor-
tant. Both movement agree that we could live much better, because we are
under an oppression that makes the majority of humans live an unnecessary

O que nos faz pensar, Rio de Janeiro, v.26, n.40, p.267-273, jan.-jun. 2017
Spinozismo, or how to raise higher political consciousness 273

miserable life. And fairly, that could be changed. But these movements disa-
gree on the causes of oppression. Radical Enlightenment considers it happens
because our ideas are all wrong. And if we could change the way people think,
then we would have a better society. Now, according to socialism, ideas are
not the issue; the problem is that the economic system is all wrong, and if
you could take hold of the economic system and change it, then we would
have a happier life. As you see, both the perspective and the emphasis is very
different about how to remedy to a problem they basically agree on. That
is why spinozism today would need to be more comprehensively a « post-
-marxist spinozism ». There are changes and transformations in society that
can be explained in terms of philosophical ideas, changes of understanding,
new writings, science, etc. That is the function of Enlightenment. Nicolas de
Condorcet (1743 – 1794), just before he died, maintained that the demo-
cratic republic is the best form of government, provided you can enlighten
the society sufficiently and raise the educational level to the point where it
works. If you can’t do that, it’s better not to try, because if you try to build a
democratic republic with a ignorant and superstitious society, you will end
up with more turmoil than before. Again, the educational issue might be why
the Radical Enlightenment is regaining force today. Doesn’t the “spinozismo”
play a role in Brasil and latin America in general since the 1970s ? This would
illustrate how, in a post-marxist context, Spinozism might be a way to help
the intelligentsias see how to stabilize democratic forms and systems. In any
case, they are enthusiasts who think politics in these terms, and that, in itself,
is interesting.

O que nos faz pensar, Rio de Janeiro, v.26, n.40, p.267-273, jan.-jun. 2017
tradução
José Francisco Andrade Alvarenga
tradução de Rodrigo Nunes e

Karl Heinrich Marx, Spinoza,


Tratado Teológico-Político1, 2, 3,
dito “Caderno Spinoza”, Berlim,1841

Cap. VI. De miraculis…………………………………........................……..1


Cap. XIV. Quid sit fides................................................................................3
Cap. XV. De ratione et theologia………………………........................…….4
Cap. XX. De libertate docendi……………….......................……………….5
Cap. XIX. Jus circa sacra………………........................…………………….7
Cap. XVIII. Dogm. Politica ex republ. Hebr. ................................................7
Cap. XVII. De republica hebraeorum...........................................................8
Cap. XVI. Fundamenta reipublicae .............................................................9
Cap. VII. De interpretatione scripturae........................................................11
Cap. VIII. De origine Pentateuchi etc……………......................………….11
Cap. IX. De Esra bibl. coli, et notis marg. ……………….....................…..12
Cap. X. De reliquis libris ………………………………...................……12
Cap. XI. De apostolor, auctoritate in epist. ……………….....................…13
Cap. XII. De scriptura sacra et vero verbo dei ………….....................…...13
Cap. XIII. Simplicitas script, sacr. ad prax ................................................13
Cap. I. De prophetia……………………………………….....................…13
Cap. II. De prophetis…………………………………….....................…...15
Cap. III. De dono prophetico Hebraeorum.................................................16
Cap. IV. De lege divina...............................................................................16
Cap.V. De ceremoniis et fide historiarum...................................................164

1 Esta tradução, por Rodrigo Nunes e José Francisco Andrade Alvarenga, foi realizada com base
na MEGA Marx/Engels Gesammtausgabe, IV, Abteilung, Band I, Exzerpte und Notizen bis 1842.
Dietz Verlag, Berlim, 1976.

2 Marx utilizou a edição de Heinrich Eduard Gottlieb Paulus da Opera Quae Supersunt Omnia de
Spinoza publicada em 1802-1803.

3 Marx atribui a si mesmo a autoria do Tratado Teológico-Político ao invés de atribuí-la à Spinoza.

4 A numeração presente neste índice refere-se à numeração presente nos manuscritos.

O que nos faz pensar, Rio de Janeiro, v.26, n.41, p.277-302, jul.-dez. 2017
278 tradução de Rodrigo Nunes e José Francisco Andrade Alvarenga

Capítulo VI. Dos Milagres

[1] Julgam por isso que nada possa com mais clareza provar a existência
de Deus, que quando a natureza, segundo supõem, deixa de seguir sua ordem.
[2] Julgam naturalmente que Deus de modo algum age quando a natureza
pela ordem habitual segue a sua lei, e, ao contrário, que Deus age quando a
potência da natureza e as causas naturais estão ociosas.
[3] O vulgo chama, desta forma, os milagres de a obra insólita da natureza.
[4] É evidente que o vulgo é incapaz de adorar a Deus e só pode referir
todas as coisas a seu domínio e a sua vontade a não ser suprimindo as causas
naturais e imaginando façanhas fora da ordem da natureza, e não adora mais
a potência de Deus a não ser enquanto a imagina como que a subjugar a po-
tência da natureza.
[5] De quanta estultícia não se arroga para si o vulgo, que não tem de
Deus nem da natureza algum conceito sóbrio, que confunde as volições de
Deus com as volições dos homens e que por fim imagina a tal ponto a natu-
reza limitada que crê ser o homem a sua parte principal.
[6] Se acontecesse, por conseguinte, na natureza alguma coisa que re-
pugnasse às suas leis universais, repugnaria necessariamente também aos de-
cretos, ao intelecto e à natureza divina; ou então, se por ventura estatuísse
que Deus faz alguma coisa contrária as leis da natureza, seria, além disso,
obrigado a estatuir ao mesmo tempo que Deus age contra a sua natureza, o
que é um absurdo.
[7] Desta maneira, em virtude de que na natureza nada acontece que não
se siga pelas suas leis, que as suas leis se estendem a tudo o que é concebido
pelo próprio intelecto divino, e, finalmente, que a natureza segue uma ordem
fixa e imutável; conclui-se muito claramente que a palavra milagre não pode
ser compreendida a não ser que relativamente às opiniões dos homens, e não
significa outra coisa que não um fato cuja causa natural não podemos explicar
pelo exemplo de outra coisa costumeira, ou pelo menos não pode explicar
aquele que escreve ou narra o milagre.
[8] Embora a existência de Deus não seja evidente por si mesma, ela deve
ser deduzida por meio de noções cuja verdade seja de tal forma firme e inaba-
lável que nenhuma potência possa ser apresentada nem ser concebida capaz
de modificá-las.
[9] mas de um fato que supera de modo absoluto o nosso poder de com-
preensão, nada podemos conhecer. Com efeito, tudo o que conhecemos clara
e distintamente [isso para si ou para outro, pelo fato de ser conhecida clara e

O que nos faz pensar, Rio de Janeiro, v.26, n.41, p.277-302, jul.-dez. 2017
Karl Heinrinch Marx, Spinoza, Tratado Teológico-Político 279

distintamente]5 deve se tornar conhecido. Por isso, por milagre, ou seja, um


fato que supera o nosso poder de compreensão, não podemos conhecer nem
a essência, nem a existência de Deus, nem podemos conhecer alguma coisa
de Deus e da natureza de modo absoluto, mas ao contrário, como sabemos
que todas as coisas são determinadas e ordenadas por Deus, e que as obras
da natureza seguem da essência divina, e que as leis são verdadeiramente
eternos decretos e volições de Deus, será concluído de modo absoluto [etc]6.
[10] Dizem puros e simples disparates aqueles que, ignorando alguma coisa,
apelam à vontade de Deus; é uma maneira perfeitamente ridícula de confessar a
própria ignorância7.
[11] Ora, ainda que pudéssemos concluir alguma coisa por meio dos mila-
gres, de nenhum modo se poderia concluir a existência de Deus. Com efeito, uma
vez que o milagre é apenas uma coisa limitada e nunca exprime a não ser uma
potência determinada e limitada, é evidente que não podemos concluir por
meio de um tal efeito a existência de uma coisa cuja potência seja infinita;
mas quando muito de uma coisa cuja potência seja maior. Digo quando muito
porque do concurso de muitas causas pode se seguir também um efeito cuja
força e potência sejam, certamente, menores do que a potência de todas as
causas juntas, mas com uma potência longamente maior do que cada uma
delas.
[12] Não reconheço aqui alguma diferença entre um fato antinatural e um
fato sobrenatural [...]. Com efeito, como um milagre não acontece fora da na-
tureza, mas na própria natureza, ainda que seja estabelecido o sobrenatural, é
necessário, contudo, que ele interrompa a ordem da natureza.
[13] que não procuram que a natureza os obedeça, mas, ao contrário, que
eles obedeçam à própria natureza; visto que sabem que Deus dirige a nature-
za conforme as leis universais, não conforme o que exigem as leis particulares
da natureza humana, que, por isso mesmo, Deus não tem consideração só
pelo gênero humano, mas por toda a natureza.
[14] Segue claramente que os milagres também podem ser feitos por fal-
sos profetas, e que se os homens não são bem munidos do verdadeiro conhe-
cimento e amor de Deus, podem louvar facilmente do mesmo modo Este e
os falsos profetas.

5 Inserção de Marx.

6 Marx interrompe o raciocínio de Spinoza.

7 Todos os itálicos presentes neste texto são de Marx.

O que nos faz pensar, Rio de Janeiro, v.26, n.41, p.277-302, jul.-dez. 2017
280 tradução de Rodrigo Nunes e José Francisco Andrade Alvarenga

[15] Por isso os judeus e todos os que conheceram a providência de Deus


a partir do diferente estado das coisas humanas e pela desigual fortuna dos
homens persuadiram-se de que eles foram mais amados por Deus do que os
restantes, ainda que não tivessem superado os outros na verdadeira perfeição
humana.
[16] Mas, embora eu diga que a Escritura ensina, não entendo, contudo,
que esta seja ensinada como um modelo necessário para a salvação. Quanto
a isto, os profetas compreenderam do mesmo modo que nós empregamos:
cada um é livre para pensar o que será melhor para si para suster o culto de
Deus e a religião.

Primeira página
do caderno de
extratos do Tratado
Teológico-Político

O que nos faz pensar, Rio de Janeiro, v.26, n.41, p.277-302, jul.-dez. 2017
Karl Heinrinch Marx, Spinoza, Tratado Teológico-Político 281

Capítulo XIV. O que é a Fé etc.

[17] que separar a fé da filosofia foi o objetivo precípuo de toda essa obra,
[18] Dissemos [no capítulo anterior]8 que o intento da Escritura é sim-
plesmente ensinar a obediência.
[19] Em seguida, o que cada um deve buscar para que obedeça a Deus.
[20] Em suma, é reconhecido por todos que a Escritura não foi escrita e
divulgada para os peritos, mas para todos os homens de qualquer gênero e
raça.
[21] [a fé]9 não é nenhuma outra coisa que atribuir a Deus características
tais que, se ignoradas, é suprimida a obediência no tocante a Deus, e que, se
posta esta obediência, são necessariamente atribuídas.
[22] Segue, enfim, que a fé não requer tanto dogmas de verdade, quanto
dogmas de piedade, isto é, dogmas que levem o ânimo para a obediência.
Ainda que entre estes existam numerosíssimos que não possuam nem sombra
de verdade, contanto que aquele que os abraça ignore que são falsas.
[23] Com efeito, como também já advertimos, do mesmo modo que ou-
trora a fé foi revelada e escrita conforme a compreensão e as opiniões dos
profetas e do vulgo daquele tempo, assim também agora cada um teve que
adaptá-la às suas opiniões, para que deste modo a fé seja abraçada sem algu-
ma oposição da mente e sem alguma hesitação.
[24] Quanto ao que é Deus, ou aquele exemplo da verdadeira virtude:
seja Ele, de fato, fogo, espírito, luz, pensamento, etc. isto não é nada para a fé.
[25] Resta agora, como demonstrarei finalmente, que entre a fé, ou a te-
ologia, e a filosofia não existe nenhuma relação nem afinidade, quanto a isto
quem conheceu o fundamento e escopo destas duas disciplinas não pode
ignorar que divergem completamente. O escopo da filosofia não é nada mais
que a verdade. Por outro lado, o objetivo da fé é apenas a obediência e a pie-
dade. Em seguida, o fundamento da filosofia são as noções comuns, e devem
ser procuradas unicamente por meio da natureza. Os fundamentos da fé, por
outro lado, são a história e a língua; e devem ser procuradas só por meio da
Escritura e da revelação.

8 Inserção de Marx.

9 Inserção de Marx.

O que nos faz pensar, Rio de Janeiro, v.26, n.41, p.277-302, jul.-dez. 2017
282 tradução de Rodrigo Nunes e José Francisco Andrade Alvarenga

Capítulo XV. Da Razão e da Teologia

[26] Não importa qual das duas opiniões sigamos, ou a razão ou a Escri-
tura serão corrompidas.
[27] que um dos dois, este naturalmente sem razão, aquele de fato com
razão, enlouquecerá.
[28] É que se a razão, embora proteste contra a Escritura, deve ser, todavia,
submetida completamente, eu pergunto se devemos fazer isso com a razão ou
sem a razão, como os cegos? Se sem a razão, agimos sem dúvida estupidamente
e sem discernimento; se com aquela, só por meio do domínio da razão acolhemos
a Escritura que, por conseguinte, se esta repugnasse a razão, não a acolhería-
mos. E quem, eu pergunto, pode admitir alguma coisa mentalmente com a razão
protestando? O que significa, com efeito, negar alguma coisa com a mente senão
que a razão protesta?
[29] Julgam ser piedoso não se fiar na razão e no próprio juízo, mas, ao
contrário, julgam ímpio duvidar da fé deles, que nos transmitiram por meio
dos livros sagrados; o certo é que isso é uma mera estultícia, não piedade.
[30] Reconheço, evidentemente, que os que julgam que a filosofia e a
teologia se contradizem mutuamente [...] devem renunciar a esta ou àquela,
não estão sem razão ao tentar estudar a teologia, estabelecer os seus funda-
mentos sólidos e demonstrá-la matematicamente. Quem, com efeito, senão um
desesperado e insano desejaria sem piedade renunciar à razão, ou desprezar as
artes e as ciências e negar a certeza da razão? Mas não podemos desculpá-los ab-
solutamente, visto que desejam chamar a razão em seu auxílio e ao mesmo tempo
repeli-la; tentam também tornar incerto o que há de certo na razão.
[31] Enquanto eles desejam expor a autoridade e a verdade da teologia
por meio de demonstrações matemáticas e suprimir a autoridade à razão
e à luz natural, não fazem nada mais que atrair a própria teologia para o
domínio da razão, parecem supor que a autoridade da teologia não tem
nenhum esplendor a não ser que seja iluminada pela luz natural da razão. E
se, ao contrário, se vangloriam de repousarem inteiramente no testemunho
interno do Espírito Santo e só convocar em auxílio a razão para convencer
os infiéis.
[32] Sobre a natureza e a certeza das coisas que são de pura especula-
ção, nenhum espírito dá testemunho a não ser a razão, que somente [como já
apresentamos]10 reivindicou para si o reino da verdade.

10 Omitido por Marx.

O que nos faz pensar, Rio de Janeiro, v.26, n.41, p.277-302, jul.-dez. 2017
Karl Heinrinch Marx, Spinoza, Tratado Teológico-Político 283

[33] para que eles não falem a não ser por causa do preconceito das paixões,
ou diante de grande temor não sejam vencidos pelos filósofos e sejam expostos
ao escárnio público, eles se refugiam nas coisas sagradas, mas inutilmente, pois
em qual altar pode encontrar refúgio quem ultraja a autoridade da razão?
[34] Todos podem obedecer absolutamente e são pouquíssimos [...] que adqui-
rem o hábito da virtude conduzidos só pela razão.

Capítulo XX. Da Liberdade de Pensar

[35] se fosse fácil mandar nos ânimos da mesma maneira como nas línguas,
cada um reinaria em segurança e nenhum governo seria violento. Pois cada
um viveria segundo a índole dos soberanos e só por meio dos seus decretos
julgaria o que seria verdadeiro ou falso, bom ou mal, justo ou injusto. Mas isto,
[como já escrevíamos no início do capítulo XVII]11, não é possível, que a von-
tade de um homem esteja absolutamente sob a jurisdição de outro; pois nin-
guém pode transferir o seu direito natural a outro, ou seja, a sua faculdade de
raciocinar livremente e de julgar sobre as coisas, e ele não pode ser coagido a isto.
[36] Se ninguém pode, desta maneira, renunciar à sua liberdade de julgar
e de opinar o que quiser, mas se cada um por magníssimo direito de natureza é
senhor de seus pensamentos, segue que jamais poderá ser tentado na república,
a não ser com bastante infelicidade, que os homens, ainda que tenham opi-
niões diversas e contrárias, nada falem senão aquilo que estiver de acordo com a
prescrição do poder supremo.
[37] O fim do Estado é portanto a liberdade.
[38] Quem quer determinar todas as coisas por meio de leis antes incitará os
vícios que os corrigirá. O que não pode ser proibido deve ser permitido neces-
sariamente, ainda que muitas vezes sigam daí danos. Quantos males originam-
-se, seguramente, a partir da luxúria, da inveja, da avareza, da embriaguez e
outros similares? No entanto, estas coisas são toleradas, porque o domínio
das leis não pode afastá-las, por mais que sejam realmente vícios; por isso a
liberdade de julgar, que é sem dúvida uma virtude, deve ser concedida muito mais e
nem pode ser oprimida. [Acrescente que a partir desta não se origina nenhum
incômodo que não possa (como mostrarei logo) ser evitado pela autorida-
de do magistrado]12, para que já não se diga que esta liberdade é necessária

11 Omitido por Marx.

12 Omitido por Marx.

O que nos faz pensar, Rio de Janeiro, v.26, n.41, p.277-302, jul.-dez. 2017
284 tradução de Rodrigo Nunes e José Francisco Andrade Alvarenga

principalmente para o desenvolvimento das ciências e das artes, pois estas só


são cultivadas, com sucesso e fecundidade, por aqueles que tenham o juízo o mais
livre e desimpedido.
[39] Mas se admitirmos que esta liberdade possa ser aniquilada e os homens,
deste modo, ser reprimidos ao ponto que nada se atrevam murmurar senão
aquilo segundo a prescrição das autoridades supremas; isto seguramente jamais
acontecerá, que não pensem nada a não ser aquilo que as autoridades que-
rem; ter-se-ia seguido necessariamente, entretanto, que os homens cotidianamen-
te pensassem uma coisa e dissessem outra, que a boa-fé, necessária sobretudo
no Estado, por consequência, seria corrompida, a abominável adulação e a
perfídia seriam favorecidas, daí os ardis e a corrupção de todas as artes.
[40] Mas, na verdade, se está distante de que isso possa acontecer, que se
determine previamente o que todos naturalmente dizem: mas, ao contrário,
quanto mais é tentado suprimir aos homens a liberdade de falar, com mais obsti-
nação eles resistem. Não, certamente, os avaros, os bajuladores e os restantes de
ânimos impotentes, cuja suprema saúde é contemplar as moedas no cofre e ter os
ventres cheios, mas aqueles a quem uma boa educação, a integridade dos costu-
mes e a virtude produziram mais liberdade.
[41] segue que as leis a respeito das opiniões são redigidas, não aos crimi-
nosos, mas dizem respeito aos homens livres, nem foram redigidas para reprimir
os de índole má, mas antes para irritar os honrados, e nem podem ser sustenta-
das sem grande perigo para o Estado.
[42] Por outro lado, não apenas a razão, mas também a experiência ensi-
na pelos exemplos cotidianos; com efeito, semelhantes leis, as quais ordenam
aquilo que cada um deve crer, e contra esta ou aquela opinião é proibido dizer ou
escrever qualquer coisa, foram frequentemente estabelecidas para conceder, ou
antes, para ceder à ira dos que não são capazes de suportar as naturezas livres,
e, em certa medida, por causa de uma autoridade torpe, facilmente transformam
em raiva a devoção da plebe sediciosa, que podem instigar da forma que quiserem.
Mas quanto seria preferível conter a ira e a fúria do vulgo do que estatuir leis
inúteis, que não podem ser violadas a não ser por aqueles que estimam as virtudes
e as artes, e também reduzem o Estado a tal estreiteza que não se possa proteger
os homens livres! Que coisa pior pode ser imaginada para o Estado que sejam
mandados ao exílio homens honestos como ímprobos porque pensam de for-
ma diversa e não sabem dissimular? Que coisa mais perniciosa, digo, do que
considerar como inimigos homens que não cometeram nenhum crime nem
ação má fora o de possuir um espírito livre?

O que nos faz pensar, Rio de Janeiro, v.26, n.41, p.277-302, jul.-dez. 2017
Karl Heinrinch Marx, Spinoza, Tratado Teológico-Político 285

[43] para que a fidelidade seja, assim, avaliada, não a bajulação, que as
autoridades supremas conservem muito bem o Estado, nem sejam coagidas
a ceder aos sediciosos, deve ser concedida necessariamente a liberdade de pensar.
[44] consta mais claro que a luz meridiana ser antes os cismáticos que con-
denam os escritos dos outros, e instigam sediciosamente o vulgo petulante contra os
escritores, que esses próprios escritores, que, a maior parte do tempo, escrevem
tão somente aos doutos e só convocam em auxílio a razão, donde ser realmente
os perturbadores quem quer num Estado livre abolir a liberdade de pensar, que,
no entanto, não pode ser destruída.
[45] as boas artes e a fidelidade são corrompidas, os aduladores e os pér-
fidos são favorecidos, triunfam os adversários, porque cedem à ira deles, su-
jeitando o Estado à sua doutrina, tornando-se discípulos da doutrina em que
eles se consideravam intérpretes. A que ponto eles são levados? Que tenham
a audácia de tentar lhes usurpar a autoridade e o direito, nem enrubeçam ao
proferir serem eleitos diretamente por Deus e os seus decretos serem divinos, ao
contrário das autoridades supremas que são humanas, e por esta razão deve-
riam ceder aos decretos divinos, que são os seus próprios.

Capítulo XIX. O Direito a Respeito das Coisas Sagradas

[46] Deus não possui nenhum domínio singular sobre os homens a não
ser através dos que possuem a soberania.
[47] Com efeito, não importa como aquele culto tenha sido revelado [...]
que ele seja para os homens uma lei soberana.
[48] Segue que a saúde do povo é a lei suprema, à qual todas (as leis) tanto
humanas quanto divinas devem ser adaptadas.
[49] De fato, o que estes [os poderes soberanos]13 podem decidir, se para
eles mesmos o direito [sobre as coisas sagradas]14 é denegado? Certamente
nada, nem sobre as guerras, nem sobre a paz, nem sobre assunto algum; se
são subjugados a esperar a opinião de outrem lhes diga se aquilo que porventu-
ra julgam é piedoso ou impiedoso. Mas antes todas as coisas, contrariamente,
serão executadas pelo decreto daquele que tem o poder de julgar e decretar o que
é piedoso ou impiedoso, legítimo ou ilegítimo.

13 Inserção de Marx.

14 Inserção de Marx.

O que nos faz pensar, Rio de Janeiro, v.26, n.41, p.277-302, jul.-dez. 2017
286 tradução de Rodrigo Nunes e José Francisco Andrade Alvarenga

Capítulo XVIII. Onde se Deduz alguns Princípios Políticos a partir da República


Hebraica

[50] Onde as opiniões, que cada um possa ter, são tidas [...] por crime, aí se-
guramente será governado violentissimamente; onde isto acontece, a ira enorme
da plebe costuma reinar.
[51] De fato, se quisessem transferir o seu direito para Deus, eles deve-
riam, do mesmo como fizeram os hebreus, fazer um pacto explícito com Ele,
seria exigido não só a vontade de quem transfere o direito, mas também [a
vontade]15 de Deus, para quem (esse direito) seria transferido. Por outro lado,
Ele revelou por meio dos apóstolos que o pacto divino não seria mais escrito
com tinta ou em pedra, mas no coração e no espírito de Deus.

Capítulo XVII. Da República dos Hebreus

[52] Com efeito, não é a razão de obedecer, mas a obediência que faz o súdito.
[53] Ainda que o homem faça alguma coisa de acordo com a sua própria delibe-
ração, não se deve concluir imediatamente que ele age segundo o seu direito próprio
e não por direito do império.
[54] Se quem fosse muito temido tivesse grandíssimamente o poder, então
teriam mais poder os súditos dos tiranos, que os temem muito.
[55] Instituir, deste modo, o Estado [...] para que todos, seja qual for a sua ín-
dole, prefiram o direito público aos interesses privados, aí é que está a dificuldade.
A urgência desta questão forçou, certamente, a imaginar muitas coisas, mas
no entanto nunca foi possível alcançar a ideia de que o Estado não estivesse
mais em perigo por causa dos cidadãos do que pelos inimigos, e que (os so-
beranos) não tivessem mais medo destes do que daqueles.
[56] Pois os reis, que outrora tinham usurpado o Estado, tentaram, para
se sustentar em segurança, persuadir que as suas origens remontavam aos
deuses imortais, porque, certamente, estimavam que se os súditos e todos os
outros os considerassem não como iguais a eles, mas acreditassem ser deuses,
assentiriam aos reis de bom grado e entregar-se-iam facilmente a eles.
[57] Não há homens, a não ser que sejam inteiramente bárbaros, que permi-
tam ser manifestamente enganados de tal forma que, de súditos, tornam-se escravos
mutilados. Ora, outros puderam mais facilmente persuadir que a majestade
é sagrada e administra a terra no lugar de Deus, que a sua autoridade não é

15 Omitido por Marx.

O que nos faz pensar, Rio de Janeiro, v.26, n.41, p.277-302, jul.-dez. 2017
Karl Heinrinch Marx, Spinoza, Tratado Teológico-Político 287

constituída pelo sufrágio e consenso dos homens, que ela é conservada e de-
fendida pela providência singular e pelo auxílio divino.
[58] Por isso, neste Estado o direito civil e o religioso, que, como demons-
tramos, consiste somente na obediência a Deus, eram uma única e mesma
coisa. É evidente que os dogmas de religião não eram ensinamentos, mas
leis e mandamentos; a piedade era considerada justiça, a impiedade, crime e
injustiça. [...]. Todas estas coisas consistiam mais em opinião do que em fato.
[59] Com efeito, o que prometeram não seria, como antes, obedecer a
todas as coisas ditas por Deus, mas o que Deus disse a Moisés.
[60] Pelo fato de que o povo crê que o monarca não comanda nada a não
ser pelo próprio decreto revelado por Deus, (o povo) não está menos subme-
tido, mas, ao contrário, está mais submetido a ele.
[61] Os que administram o Estado, ou os que o possuem, seja qual for a
ação que cometam, esforçam-se para sempre imitar a aparência do direito e
persuadir o povo de que agiram honestamente, o que conseguem facilmente
quando toda interpretação do direito depende somente deles.
[62] Isto [ou seja, que o exército era formado por todos os cidadãos]16 foi
um momento de grande importância. Pois é evidente que os príncipes só com
um exército a soldo podem oprimir o povo.
[63] Desta exprobração cotidiana teve origem um ódio constante tal que
nada mais firme poderia enraizar-se nos espíritos, dado ser um ódio que, nas-
cido da máxima devoção ou piedade, era tido ele mesmo como pio, no que
nada pode haver de maior ou mais tenaz.
[64] Sua vida [dos Hebreus]17 era um culto contínuo à obediência.
[65] Esta [a natureza]18 não cria nações, mas indivíduos, que na verdade
não se distinguem em nações a não ser pela diversidade da língua, das leis e
dos costumes herdados.
[66] De modo que as leis foram vistas não como leis, isto é, instrumentos
da salvação do povo, mas como penas e súplicas.
[67] O direito divino ou da religião nasce de um pacto, sem o qual não
existe nenhum (direito) a não ser o (direito) natural, por esta razão os hebreus
não possuíam nenhuma piedade ordenada pela religião para com os povos
que não estivessem presentes no pacto, mas apenas aos (seus) concidadãos.

16 Inserção de Marx.

17 Inserção de Marx.

18 Inserção de Marx.

O que nos faz pensar, Rio de Janeiro, v.26, n.41, p.277-302, jul.-dez. 2017
288 tradução de Rodrigo Nunes e José Francisco Andrade Alvarenga

Capítulo XVI. Dos Fundamentos da República

[68] Por direito e instituição da natureza não entendo outra coisa que as
regras da natureza de cada indivíduo, segundo as quais concebemos cada um
como naturalmente determinado para existir e agir de certo modo. Assim,
por exemplo, os peixes são determinados por natureza a nadar, os maiores
a comerem os menores, por isso que os peixes, por supremo direito natural,
são os senhores da água e os maiores comem os menores.
[69] E como a lei suprema da natureza é que cada coisa se esforce, tanto
quanto esteja em si, por perseverar em seu estado, não tendo nenhuma outra
razão, mas apenas esta, segue-se que cada indivíduo tem supremo direito a isto,
ou seja, a existir e agir conforme é determinado naturalmente.
[70] Desta maneira, o direito natural de cada homem não é determinado
pela reta razão, mas pelo desejo e pela potência.
[71] veremos claramente que os homens para viver em segurança e muito
bem deveriam unir-se necessariamente em um só, e, por conseguinte, ter
feito com que o direito que cada um por natureza possuía de todas as coisas fosse
mantido coletivamente, e não fossem mais determinados pela força e pelo apetite
de cada um, mas pelo poder e pela vontade de todos simultaneamente.
[72] Disto concluímos que um pacto não pode ter nenhuma força a não
ser pela razão de sua utilidade e que, esta abolida, também o pacto é supri-
mido e tornado sem valor.
[73] cada um transfere todo o poder que possui para a sociedade, que,
deste modo, retém sozinha o sumo direito natural sobre todas as coisas, isto
é, o poder supremo, ao qual cada um, ou por ânimo livre ou por temor do
sumo suplício, será obrigado a obedecer. De fato, tal direito da sociedade
é chamado democracia, que, por conseguinte, é definido como a união de
todos os homens, que coletivamente têm o direito soberano sobre todas as
coisas que estão em seu poder.
[74] este direito de ordenar seja o que for que queiram apenas compete
às autoridades supremas enquanto possuam realmente o sumo poder: se o
perderem, perdem também ao mesmo tempo o direito de ordenar todas as
coisas e (este direito) recai sobre aquele ou aqueles que o conquistaram e o
podem conservar.
[75] Mas talvez alguém pensará que tornamos por este motivo os sujeitos
escravos, porque julgam ser escravos quem age por mandato e livre quem
gere a sua natureza de acordo com a sua vontade [...] na realidade, é escravo
no mais alto grau quem é, deste modo, arrastado por sua paixão e não pode
ver nem fazer nada que não lhe seja útil; somente (é) livre aquele que vive

O que nos faz pensar, Rio de Janeiro, v.26, n.41, p.277-302, jul.-dez. 2017
Karl Heinrinch Marx, Spinoza, Tratado Teológico-Político 289

com a alma inteiramente conduzida pela razão. [...] Se o fim da ação não é a
utilidade do próprio que age, mas (daquele) que ordena, então o que age é
escravo e inútil para si: mas na república e no Estado onde a lei suprema é a
salvação de todo o povo e não daquele que manda, quem em todos as coisas
obedece à autoridade suprema não deve se considerar a si mesmo um escra-
vo inútil, mas um súdito; por este motivo, a república absolutamente livre é
aquela cujas leis são fundadas na reta razão, pois nela cada um pode ser livre
quando queira, isto é, viver inteiramente segundo os ditames da razão. [...]
[o Estado democrático]19 parece ser o que mais se aproxima da liberdade que
a natureza concede a cada um.
[76] este contrato [entre duas cidades]20 será válido enquanto subsistir
seu fundamento, isto é, o motivo do perigo ou da utilidade [...] ainda que
os diferentes Estados celebrem entre si acordos de mútua não-agressão, eles
também buscam, tanto quanto possível, impedir-se uns ao outros de tornar-
-se excessivamente poderosos, e não tem fé na palavra empenhada pelo outro
a não ser que percebam claramente o interesse e a vantagem para ambos os
lados; e, aliás, eles temem a trapaça com razão; quem, com efeito, a não ser
um estulto que ignora o direito das autoridades supremas, aquiescerá nos
ditos e nas promessas de quem detém o poder supremo e o direito para fazer
o que quiser, e para o qual a suprema lei deve ser a salvação e o interesse de
seu Estado? E, se, por outro lado, estivermos atentos para a piedade e para a
religião, melhor veremos que ninguém que detenha o poder pode sem crime
cumprir as (suas) promessas quando (isto implica) a ruína do Estado; seja o
que for que tenha prometido que se perceba em dano de seu Estado isto ele
não pode cumprir, a não ser rompendo com os súditos o compromisso assu-
mido, ao qual estão obrigados no mais alto grau, pelo qual costumam fazer
neste sentido os mais sagrados juramentos.
[77] O estado natural não deve ser confundido de modo nenhum com o
estado religioso, mas deve ser concebido sem religião e sem lei, por conse-
guinte, sem pecado e sem injúria.
[78] Ninguém seria obrigado [pela justiça da cidade]21 àquilo que julgasse
decretado contrário a sua fé e sua superstição, e, por outro lado, cada um com
este pretexto se arrogaria a licença para tudo que se permitir.

19 Inserção de Marx.

20 Inserção de Marx.

21 Inserção de Marx.

O que nos faz pensar, Rio de Janeiro, v.26, n.41, p.277-302, jul.-dez. 2017
290 tradução de Rodrigo Nunes e José Francisco Andrade Alvarenga

Capítulo VII. Da interpretação da Escritura

[79] Deste modo, a regra universal para interpretar a Escritura é nada


atribuir a esta como doutrina que não tenhamos, pelo exame mais exigente,
extraído de sua própria história.
[80] Quando se busca o sentido da Escritura, deve-se ter o cuidado es-
pecial de não se deixar levar por nosso raciocínio, na medida em que este se
assenta nos princípios do conhecimento natural (para não falar de nossos
preconceitos), evitando assim que se confunda a verdade das coisas com o
sentido verdadeiro de uma passagem, que deve ser investigado unicamente
pelo modo como emprega a linguagem ou por um raciocínio que não aceita
outro fundamento que não a Escritura.

Capítulo VIII. Da Origem do Pentateuco

[81] No capítulo precedente tratamos dos fundamentos e dos princípios


do conhecimento da Escritura, demonstramos que ela não é nenhuma outra
coisa do que esta história pura.
[82] Abem Esdra [...] foi o primeiro de todos, dos que eu li, que notou
este preconceito [de Moisés ser o autor do Pentateuco]22.
[83] Se prestarmos atenção agora para a conexão e ligação entre todos
estes livros, facilmente deduziremos que foram escritos por um só e mesmo
historiador, que quis escrever os costumes antigos dos judeus desde a origem
de sua raça até a primeira devastação da urbe. Estes livros, de fato, estão na-
turalmente unidos de modo que possamos a partir disto discernir que contêm
apenas uma narração de um só historiador.
[84] Quem foi esse historiador, não posso, deste modo, demonstrar evi-
dentemente, entretanto, suspeito que foi o próprio Esdra.
[85] [Se, digo,]23 tivéssemos o próprio livro escrito por Moisés, não duvi-
do que encontraríamos, tanto nas palavras como na ordem e na argumenta-
ção dos preceitos, uma grande discrepância.
[86] Por acaso [...] nomeou [os seus]24 cinco primeiros livros com o nome
de Moisés, porque neles precipuamente está contida a sua vida e tomou o

22 Inserção de Marx.

23 Omitido por Marx.

24 Omitido por Marx.

O que nos faz pensar, Rio de Janeiro, v.26, n.41, p.277-302, jul.-dez. 2017
Karl Heinrinch Marx, Spinoza, Tratado Teológico-Político 291

nome de seu tema principal. Por este mesmo motivo, chamou o sexto pelo
nome de Josué, o sétimo dos Juízes, o oitavo de Rute, o nono e por ventura
também o décimo de Samuel e, finalmente, o décimo primeiro e o décimo
segundo dos Reis.

Capítulo XI. De Esdra e Notas Marginais

[87] [A principal é que] Esdra não impôs uma redação final às narrativas
contidas nestes livros, nem fez outra coisa do que coligir as histórias de
diversos escritores e às vezes simplesmente as transcreveu, deixando-as para
a posteridade sem examiná-las ou ordená-las.
[88] De tudo isso conclui-se claramente que nem estas narrativas contêm
uma cronologia correta, nem estão de acordo sobre uma cronologia só, mas
antes supõem cálculos bastante distintos.
[89] Desta maneira, inventam muitas outras coisas, que se fossem verda-
deiras, dir-se-ia que os antigos hebreus ignoravam absolutamente não só a
própria língua, mas também a arte de compor uma narrativa ordenada, e não
haveria nenhuma regra ou método de interpretação da Escritura, mas cada
um poderia inventar o que quisesse.
[90] Mas muito não admitem que o texto possua algum defeito sequer
na marginália, ao contrário, julgam que Deus, por uma Providência singular,
preservou intacta toda a Bíblia, dizem, por outro lado, que as diversas leitu-
ras são sinais de profundíssimos mistérios [...] […] [e] nos próprios acentos
das palavras [sustentam]25 estarem contidos grandes arcanos. Dizem isto de
modo são ou por estultícia e devoção senil ou por arrogância e malícia, por-
que creem que só eles têm acesso aos arcanos de Deus, não sei responder; eu
sei ao menos isto: que jamais li (em seus escritos) algo que tenha a aparência
de misterioso, mas tão somente imaginações pueris.
[91] Quanto às notas marginais que se encontram em desordem nos có-
dices hebreus, ninguém certamente pode duvidar que foram textos dúbios, se
se pensa que a maior parte deles tenham sido originados por causa da grande
similitude entre as letras hebraicas.
[92] Qual motivo impeliu os escribas a anotar na margem certas coisas
que deveriam ser lidas de um modo expressivo? Isto irei expor imediatamen-
te. Na verdade, nem todas as notas marginais são leituras duvidosas, estas

25 Omitido por Marx.

O que nos faz pensar, Rio de Janeiro, v.26, n.41, p.277-302, jul.-dez. 2017
292 tradução de Rodrigo Nunes e José Francisco Andrade Alvarenga

anotação também foram feitas para substituir as que eram de uso remoto,
certamente as palavras obsoletas e as que os costumes estimados daquele tem-
po não permitiam que fossem lidas em público.
[93] Por que razão jamais foram encontradas em número maior que as
duas versões para a mesma passagem? Por que não algumas vezes três ou
mais? [...] Eu respondo que já existiram mais versões que as que encontramos
anotadas em nossos códices.
[94] No que se refere [à segunda objeção]26 sobre certas passagens serem
encontradas tão mal escritas, que de nenhum modo se possa duvidar que elas
fossem incompatíveis com as regras linguísticas de todos os tempos, de tal
forma que deveriam ter sido corrigidas em definitivo em vez de serem feitas
anotações às margens, este argumento não me convence, nem creio ser preciso
discernir qual escrúpulo religioso impeliu (os copistas) a assim procederem.

Capítulo X. Dos outros Livros do Antigo Testamento

[95] Sobre os dois livros de Paralipôneos não tenho nada a dizer [...] a
não ser que foram escritos muito tempo depois de Esdra e talvez depois da
reconstrução do templo por Judas Macabeu.
[96] Os Salmos foram recolhidos e também reunidos em cinco livros no
segundo templo.
[97] Creio que os provérbios de Salomão foram recolhidos também na
mesma época ou no mínimo no tempo do rei Josias.
[98] Por isso estes livros [dos Profetas]27 não são senão fragmentos dos
Profetas.
[99] Mas Aben Esdra [...], em seus comentários sobre este livro [de Jó]28,
afirma que este foi traduzido para o hebraico de outra língua; quanto a isso eu
desejaria certamente que ele nos demonstrasse de modo mais claro, porque
de fato poderíamos concluir que os gentios também tiveram livros sagrados.
[100] Conjecturo [no entanto]29 que Jó foi um homem gentio com espírito
perseverante.

26 Omitido por Marx.

27 Inserção de Marx.

28 Inserção de Marx.

29 Omitido por Marx.

O que nos faz pensar, Rio de Janeiro, v.26, n.41, p.277-302, jul.-dez. 2017
Karl Heinrinch Marx, Spinoza, Tratado Teológico-Político 293

[101] Passo ao livro de Daniel; este sem dúvida contém no capítulo 8


escritos do próprio Daniel. Ignoro, no entanto, de onde terão sido copiados
os sete primeiros capítulos.
[102] Afirmamos, por conseguinte, que estes quatro livros, Daniel, Esdra,
Ester e Neemias, são escritos certamente pelo mesmo historiador, mas quem
terá sido esse autor, eu não saberia sequer de suspeitar. Entretanto, para que
saibamos onde (esse autor), fosse quem quer que seja, tomou conhecimento
destas histórias e de onde transcreveu a maior parte destas, deve ser notado
que os prefeitos ou os príncipes dos judeus no segundo templo, como os seus
reis no primeiro (templo), tiveram escribas ou historiadores que escreviam os
anais e a cronologia dos acontecimentos.

Capítulo XI. Da Autoridade dos Apóstolos nas Epístolas

[103] Com efeito, quem quer que seja que queira confirmar os seus dog-
mas pela razão submete-os ao julgamento de cada um.
[104] Assim, tanto do seu modo de falar, quanto das discordâncias entre
os apóstolos, quanto do fato de que, ao irem a outras partes pregar, a Es-
critura não diz, como dizia dos antigos profetas, que o faziam por mandato
divino, deve-se concluir que eles pregavam não como profetas, mas como
doutores.
[105] Em seguida, se percorrermos as próprias Epístolas com alguma
atenção, veremos que os Apóstolos estão de acordo em relação à própria
religião, no entanto, discrepavam grandemente sobre os seus fundamentos.
[106] Ensinaram a religião despojada das especulações filosóficas. Ora,
certamente seria mais feliz a nossa época se a víssemos também livre de toda
superstição.

Capítulo XII. Da Sagrada Escritura e da Palavra Divina

[107] É chamado de sagrado e divino aquilo que foi destinado ao exer-


cício da piedade e da religião, e tanto mais será sagrada, quanto mais os
homens a utilizarem religiosamente. Se eles deixarem de ser piedosos, a es-
critura também deixará, no mesmo momento, de ser sagrada.
[108] Por isso segue que nada fora da mente é absolutamente sagrado,
profano ou impuro, mas o é apenas em relação à própria mente.

O que nos faz pensar, Rio de Janeiro, v.26, n.41, p.277-302, jul.-dez. 2017
294 tradução de Rodrigo Nunes e José Francisco Andrade Alvarenga

[109] A Escritura, por conseguinte, é chamada palavra de Deus por estes


três motivos: primeiro, porque ensina a verdadeira religião, cujo autor é o
Deus eterno; em seguida, porque expõe as predições das coisas futuras como
decretos de Deus; e, finalmente, porque aqueles que foram seus autores reais
ensinaram, na maioria das vezes, não por meio da luz natural comum, mas
por uma certa luz que lhes era peculiar e representaram a Deus como aquele
que falava por eles.

Capítulo XIII. A Escritura só Ensina Coisas muito simples

[110] Ninguém pode ser sábio por decreto, do mesmo modo como não se
pode viver e existir por obediência a uma ordem.
[111] Sabemos que o objetivo da Escritura não foi ensinar as ciências: daí
podemos concluir facilmente que Ela não exige nada dos homens exceto a
obediência e só condena a insubmissão, não a ignorância.

Capítulo I. Da Profecia

[112] Profecia ou revelação é o conhecimento certo de alguma coisa reve-


lada por Deus aos homens. O profeta é aquele que interpreta as revelações de
Deus para aqueles que não são capazes de ter um conhecimento certo das
coisas por Ele reveladas, e só pela simples fé podem acolhê-las.
[113] Mas a respeito da certeza que o conhecimento natural envolve
e da fonte que ele deriva (Deus, evidentemente), de nenhum modo ele
é inferior ao conhecimento profético. A não ser que alguém queira por
acaso pensar, ou melhor, sonhar que os profetas tinham, certamente, um
corpo humano, mas não tinham, com toda certeza, uma mente humana,
a tal ponto que as suas sensações e a sua consciência fossem inteiramente
diferentes das nossas.
[114] Como nossa mente, pelo fato apenas de conter em si a natureza
objetiva de Deus e dela participar, tem a potência de formar algumas noções
que explicam a natureza e nos ensinam a viver, podemos dizer que a causa
primeira da revelação divina é a natureza da mente, concebida deste modo:
tudo que conhecemos de maneira clara e distinta nos é ditado pela ideia de
Deus e por nossa natureza [...] não por palavras, mas de um modo ainda
mais excelente e que convém muito bem com a natureza da mente, como
certamente sabe todo aquele que já experimentou em si a certeza intelectual.

O que nos faz pensar, Rio de Janeiro, v.26, n.41, p.277-302, jul.-dez. 2017
Karl Heinrinch Marx, Spinoza, Tratado Teológico-Político 295

[115] Os judeus nunca fazem menção nem tratam das causas intermédias
ou das particulares, [...] recorrem sempre a Deus [...]. Por conseguinte, não
deve ser visto como profecia e conhecimento natural tudo o que a Escri-
tura afirma que Deus disse para alguém, mas apenas onde o escrito afirma
claramente, ou onde pela circunstância da narração conclui-se que foi uma
revelação ou profecia.
[116] Tudo o que Deus revelou para os profetas foi revelado ou por pala-
vras ou por figuras, ou de ambas as maneiras. Ou as palavras e também as fi-
guras foram, com toda certeza, verdadeiras fora da imaginação do profeta que
as ouve ou que as vê; ou foram imaginárias, porque certamente a imaginação
dos profetas, mesmo em estado de vigília, é disposta que para si pareceria
claramente que ouviu as palavras ou que viu alguma coisa.
[117] Só esta, por meio da qual foi proferida a lei [de Moisés]30, foi a voz
verdadeira [de Deus]31, como demonstraremos em seguida.
[118] Não parece muito racional estatuir que uma coisa criada, que de-
pende de Deus do mesmo modo que as outras restantes, pudesse explicar por
si mesmo a essência ou existência de Deus ou exprimir as suas palavras [...],
mas eles não conheceram de Deus nada antes a não ser o nome e desejavam
lhe falar para ter certeza de sua existência; não vejo de que maneira a preten-
são deles fosse satisfeita por uma criatura [...] que dissesse, eu sou Deus. Se
Deus forçasse os lábios de Moisés, até de um animal qualquer, para pronun-
ciar as mesmas palavras e para dizer eu sou Deus, será possível compreender
a existência de Deus a partir daí?
[119] Por isso não deve haver dúvida que os outros profetas não ouviram
uma voz verdadeira, conforme é mostrado por Deuteronômio, 34:10, onde
é dito: não houve alguma vez [...] em Israel nenhum profeta como Moisés,
que conheceu Deus face a face; mas conheceu só pela voz, pois nem mesmo
Moisés vira alguma vez a face de Deus (Êxodo, 33).
[120] Ainda que compreendamos claramente que Deus possa se comu-
nicar imediatamente com os homens, pois comunica a sua essência à nossa
mente sem recorrer a nenhum meio corporal, para que um homem perce-
ba só pela mente algumas coisas que não estão contidas nos fundamentos
de nosso conhecimento, e nem por meio deles podem ser deduzidas, a sua
mente deveria ser necessariamente mais superior e de longe mais excelente
que a humana. Não creio, por isso, que alguém chegou a atingir tão grande

30 Inserção de Marx.

31 Inserção de Marx.

O que nos faz pensar, Rio de Janeiro, v.26, n.41, p.277-302, jul.-dez. 2017
296 tradução de Rodrigo Nunes e José Francisco Andrade Alvarenga

perfeição sobre os outros a não ser Cristo, para o qual os preceitos de Deus,
que conduzem os homens para a salvação, foram revelados imediatamente
sem palavras ou visões. Deus manifestou-se, então, aos apóstolos pela mente
de Cristo, como outrora a Moisés por meio de uma voz no ar. Por esta razão,
a voz de Cristo, do mesmo modo que aquela que Moisés ouvia, pode ser
chamada a voz de Deus. Neste sentido, podemos afirmar também que a Sa-
bedoria de Deus, isto é, a sabedoria que excede a sabedoria humana, assumiu
em Cristo a natureza humana, e Cristo foi o caminho da salvação.
[121] De modo que se Moisés falava com Deus face a face, como um ho-
mem está acostumado a falar com seu colega, Cristo comunicou-se de mente
para mente com Deus.
[122] Para profetizar não é necessário ter uma mente mais viva, mas uma
imaginação mais viva.
[123] Visto que a obra insólita da natureza é chamada obra de Deus e as
árvores de grandeza excepcional são chamadas de árvores de Deus, devemos
nos admirar muito pouco que no Gênesis sejam chamados filhos de Deus os
homens muito fortes e de grande estatura, ainda que ímpios e ladrões.
[124] Que [os hebreus]32 se gabavam de ser superiores a todos, ou melhor,
costumavam desprezar a todos, e, consequentemente, desprezavam a ciência
comum aos homens.
[125] No entanto, segundo quais leis da natureza estas (revelações) foram
causadas, confesso que eu as ignoro.
[126] É certo que não compreendemos a potência de Deus enquanto ig-
noramos as causas naturais, é, portanto, uma tolice recorrer à potência de
Deus quando ignoramos a causa natural de alguma coisa, isto é, a própria
potência de Deus. Realmente, não é preciso saber a causa do conhecimento
profético, pois, como já adverti, tentamos analisar apenas os ensinamentos
da Escritura, para deles extrair, como dados naturais, nossas conclusões. No
entanto, não tratamos das causas destes ensinamentos.
[127] Uma vez que os profetas perceberam pela imaginação as revelações
de Deus, não há dúvida que eles poderiam ter percebido muitas coisas que
excedem os limites do entendimento; pois com palavras e imagens podem
ser compostas, de longe, mais ideias do que só com os princípios e as noções
pelas quais é edificado todo o nosso conhecimento natural.

32 Inserção de Marx.

O que nos faz pensar, Rio de Janeiro, v.26, n.41, p.277-302, jul.-dez. 2017
Karl Heinrinch Marx, Spinoza, Tratado Teológico-Político 297

[128] É evidente porque os profetas perceberam e ensinaram quase tudo


com parábolas e enigmas e exprimiam corporalmente todas as coisas espiritu-
ais: todas estas coisas convinham melhor com a natureza da imaginação.
[129] Enfim, porque a imaginação é vaga e inconstante, a profecia, por
esta razão, não permanece por muito tempo fixa no profeta, além disso, não
era frequente, mas bastante rara, concedida a muito poucos homens, e mes-
mo a estes, muito raramente. Visto que isto é assim, devemos investigar agora
de que lugar pôde originar-se a certeza dos profetas (a respeito das coisas) que
apenas percebiam pela imaginação e não pelos princípios certos da mente.

Capítulo II. Dos Profetas

[130] os que têm a imaginação muito poderosa são os menos aptos a


compreender as coisas de modo puro, e contrariamente, os que têm o inte-
lecto mais poderoso e o cultivam absolutamente, possuem uma potência para
imaginar mais moderada e a dominam melhor, como se a refreassem para que
não se misture com o intelecto.
[131] E que tormento! A tal ponto chegaram as coisas que aqueles que
confessam abertamente não possuir a ideia de Deus e conhecê-lo unicamente
através das coisas criadas (de que ignoram as causas) não se envergonham de
acusar os filósofos de ateísmo.
[132] Dado que a simples imaginação não envolve por sua própria natu-
reza, como em toda ideia clara e distinta, uma certeza, para que possamos
estar certos das coisas que imaginamos deve-se necessariamente acrescentar
alguma coisa, naturalmente, o raciocínio: disto se segue que a profecia por
si mesma não pode envolver uma certeza porque [...] depende unicamente
da imaginação; por este motivo, os profetas não tinham certeza da revelação
divina pela revelação em si, mas por meio de algum sinal, como é evidente no
caso de Abraão (Gênese, 20: 8), que, tendo ouvido a promessa divina, rogou
por um sinal; mas ele acreditava em Deus, e pediu o sinal não para ter fé em
Deus, mas para certificar-se que a promessa viera Dele.
[133] Isto demonstra que os profetas sempre tinham algum sinal pelo
qual se tornavam certos das coisas que imaginavam profeticamente. Moisés,
por esta razão, adverte-os (Deuteronômio, 18, último versículo) que exijam
do profeta um sinal, ou seja, (a predição) de algum acontecimento futuro.
Portanto, a profecia é inferior ao conhecimento natural, que não necessita de ne-
nhum sinal, mas por sua própria natureza envolve uma certeza. Com efeito, essa

O que nos faz pensar, Rio de Janeiro, v.26, n.41, p.277-302, jul.-dez. 2017
298 tradução de Rodrigo Nunes e José Francisco Andrade Alvarenga

certeza profética não era, certamente, matemática, mas apenas moral, como
consta também da própria escritura; assim, Moisés, no capítulo XIV33 de
Deuteronômio, chama a atenção para algum profeta que queira ensinar no-
vos deuses, devendo este ser condenado à morte, ainda que confirme a sua
doutrina com sinais e milagres pois, como escreve Moisés, Deus também faz
sinais e milagres para tentar o povo, como consta em Mateus, 24:24.
[134] Deus nunca engana os piedosos e os eleitos, mas [...] se serve dos
piedosos como instrumento de sua piedade.
[135] Ninguém pode justificar-se perante Deus nem vangloriar-se de ser o
instrumento da piedade divina, como ensina a própria Escritura.
[136] sinais [...] eram produzidos para persuadir os profetas, de onde
conclui-se que os sinais eram adaptados às opiniões e às capacidades dos
profetas; de tal modo que o sinal que oferecia a um profeta a certeza de sua
profecia podia convencer muito pouco a um outro que estivesse imbuído de
opiniões distintas; por esta razão, os sinais variavam em cada profeta. A pró-
pria revelação, desta maneira, variava em cada profeta segundo a disposição
de seu temperamento, de sua imaginação e segundo as opiniões que foram
anteriormente acolhidas.
[137] se tudo fosse avaliado bem, facilmente demonstrar-se-ia que Deus
não tem estilo peculiar algum ao falar.
[138] Disto resulta, mais do que evidente, aquilo que propúnhamos de-
monstrar; Deus, naturalmente, adaptou as revelações à inteligência e às opi-
niões dos profetas, que estes podiam ignorar e ignoravam realmente coisas
puramente especulativas, as quais não tinham relação com a claridade e com
a vida prática, além de terem opiniões contrárias.

Capítulo III. Do Dom Profético dos Hebreus

[139] Por governo de Deus compreendo a ordem fixa e imutável da natu-


reza, ou seja, o encadeamento das coisas naturais.
[140] Como a potência de todas as coisas da natureza não é outra coisa
a não ser a própria potência de Deus, pela qual tudo é produzido e deter-
minado; conclui-se que tudo aquilo que o homem, que é também parte da
natureza, obtém em seu auxílio para a conservação de seu ser e tudo o que a
natureza lhe oferece sem que ele realize um trabalho, tudo isto lhe é oferecido

33 Marx escreve capítulo XIV quando deveria ter escrito capítulo XIII.

O que nos faz pensar, Rio de Janeiro, v.26, n.41, p.277-302, jul.-dez. 2017
Karl Heinrinch Marx, Spinoza, Tratado Teológico-Político 299

unicamente pela potência divina, enquanto ela atue ou pela natureza humana
ou por coisas fora desta. Desta maneira, podemos chamar, com razão, tudo o
que a natureza humana pode fazer por meio de sua potência para conservar
o seu ser de auxílio interno de Deus; e tudo aquilo que acontece de útil para
o homem, produzido pela potência de causas externas, denomino de auxílio
externo de Deus.
[141] Como ninguém faz nada a não ser que esteja predeterminado pela
ordem da natureza, isto é, pelo decreto e governo eterno de Deus, segue-se
que ninguém escolhe para si alguma maneira de viver, nem faz algo a não ser
por uma vocação singular de Deus, que escolhe tal pessoa em detrimento de
outra para tal obra ou para viver de alguma forma. Finalmente, por fortuna
entendo o governo de Deus enquanto dirige as coisas humanas por causas
externas e inesperadas.
[142] as nações se distinguem uma das outras pelo tipo de sociedade e
leis sob as quais vivem e são governadas; desta forma, a nação hebraica foi
escolhida por Deus entre as outras não por sua inteligência ou por serenidade
de alma, mas pela forma de sociedade e pela fortuna que lhe permitiu con-
quistar um Estado e lhe conservou por muitos anos.
[143] não vemos que Deus tenha prometido outra coisa aos patriarcas e
aos seus sucessores; longe disso, na lei nada é prometido (em troca de) obe-
diência a não ser a prosperidade contínua do Estado e os outros bens desta
vida e, contra a desobediência e a quebra do pacto, ameaça-se com a ruína do
Estado e com as maiores desgraças.
[144] Uma vez que Deus os escolheu para construir apenas um Estado e
uma sociedade particular, eles também deviam ter leis particulares.
[145] É indubitável que todas as nações tiveram profetas, e que o dom da
profecia não foi peculiar aos judeus.
[146] [Enfim]34 Jeremias não é chamado de profeta apenas pelo povo he-
breu, mas por todas as nações.
[147] que ele [Balaão]35 recebia dinheiro para profetizar, o mesmo que
fazia Samuel. (Samuel, 9, 2-8)36.
[148] Todos foram, judeus e gentios, igualmente pecadores, mas não ha-
via pecado sem mandamento e lei.

34 Omitido por Marx.

35 Inserção de Marx.

36 Marx escreve ver. 2-8, na edição de Gebhardt consta ver. 7-8.

O que nos faz pensar, Rio de Janeiro, v.26, n.41, p.277-302, jul.-dez. 2017
300 tradução de Rodrigo Nunes e José Francisco Andrade Alvarenga

[149] Ora, que o ódio das outras nações conservou-os [os judeus]37 imen-
samente, isso a experiência ensinou.
[150] O sinal da circuncisão me parece ser tão importante que eu estou
convencido que só este é suficiente para conservar a nação judaica.
[151] É apenas assim [pelo Estado e pela forma de cada sociedade]38 que é
possível distinguir uma nação da outra; mas nenhuma distinção entre nações exis-
te quanto ao intelecto e a verdadeira virtude, e Deus favorece a todas igualmente.

Capítulo IV. Da Lei Divina

[152] A palavra lei tomada em sentido absoluto significa aquilo que faz um
indivíduo, ou todos, ou alguns da mesma espécie, agir de uma certa e determina-
da maneira. Esta lei depende ou da necessidade natural ou da decisão do homem.
[153] Porque o homem, enquanto é parte da natureza, constitui uma par-
te da potência desta: tudo o que segue pela necessidade da natureza humana,
isto é, da própria natureza, na medida em que a concebemos determinada
pela natureza humana, resulta, ainda que necessariamente, da potência hu-
mana; por isso se pode dizer muito bem que o estabelecimento dessas leis
depende da decisão dos homens, porque ela depende da potência da mente
humana, visto que esta, enquanto percebe as coisas como verdadeiras ou
falsas, pode ser concebida muito claramente sem estas leis, mas não sem uma
lei necessária, como ainda há pouco a definimos.
[154] para a prática da vida é melhor considerar as coisas como possíveis.
[155] A lei [...] uma regra de viver que o homem prescreve para si ou para
os outros em vista de algum fim.
[156] Aquele que [...] age por [sua vontade]39 própria e não por decisão
de outro; [...] é com razão chamado justo.
[157] Parece que a lei deve ser distinguida em humana e divina [...]; por
divina [eu compreendo]40 aquela que diz respeito somente ao sumo bem, isto
é, ao verdadeiro conhecimento e amor de Deus.

37 Inserção de Marx.

38 Inserção de Marx.

39 Omitido por Marx.

40 Inserção de Marx.

O que nos faz pensar, Rio de Janeiro, v.26, n.41, p.277-302, jul.-dez. 2017
Karl Heinrinch Marx, Spinoza, Tratado Teológico-Político 301

[158] Na sua perfeição [do intelecto]41 deve consistir o nosso sumo bem.
[159] Segue que o nosso sumo bem e perfeição dependem [do
conhecimento]42 de Deus.
[160] [O nosso sumo bem]43 não depende apenas do conhecimento de
Deus, mas consiste inteiramente nele.
[161] Quanto a isso se pode concluir também que o homem é mais per-
feito conforme a perfeição e a natureza da coisa que ele ama e vice-versa;
assim, o mais perfeito e o que mais participa completamente da suma be-
atitude é necessariamente aquele que ama acima de tudo o conhecimento
intelectual de Deus, isto é, do ser perfeitíssimo, que o atrai mais do que
todas as outras coisas.
[162] Portanto, a lei suprema de Deus está neste preceito supremo: amar
a Deus como o sumo bem.
[163] A vontade e o entendimento de Deus são em si uma única e mesma
coisa; não se distinguem a não ser pelas ideias que formamos a respeito do
entendimento de Deus.
[164] Donde se segue que a afirmação e negação de Deus sempre envolve
uma necessidade, ou seja, uma verdade eterna.
[165] Foi por falta de conhecimento que, para os hebreus, o Decálogo foi
tomado apenas como lei.
[166] Daí que imaginassem Deus como um chefe, um legislador, um rei,
misericordioso, justo, etc. quando, todavia, tudo isto são atributos da natu-
reza humana.
[167] A respeito de Cristo [...] deve ser pensado [...] que ele percebeu
verdadeiramente e adequadamente as coisas. Cristo, de fato, não foi tanto um
profeta, quanto a própria boca de Deus.
[168] Uma coisa é, de fato, entendida quando é percebida puramente pela
própria mente sem palavras e imagens. Nestas circunstâncias, Cristo perce-
beu verdadeiramente e de modo adequado as coisas reveladas.

41 Inserção de Marx.

42 Omitido por Marx.

43 Omitido por Marx.

O que nos faz pensar, Rio de Janeiro, v.26, n.41, p.277-302, jul.-dez. 2017
302 tradução de Rodrigo Nunes e José Francisco Andrade Alvarenga

Capítulo V. Das Cerimônias e da Fé nas Narrativas Históricas

[169] O objetivo, portanto, das cerimônias foi que os homens não fizes-
sem nada de acordo com a sua própria deliberação, mas segundo a ordem
dos outros e que reconhecessem, em todas as ações e reflexões, que não eram
donos de si mesmos, mas estavam completamente sob o domínio de outrem.
De tudo isto resulta com claridade que as cerimônias não são úteis para a
beatitude e que aquelas do Antigo Testamento, como toda a lei de Moisés,
visavam ao Estado dos hebreus e por consequência aos interesses materiais.
[170] A fé nas narrativas históricas [...] não tem relação com a lei divina.
[171] Não estou disposto a refutar aqui a opinião daqueles que estabelecem
que a luz natural não pode ensinar nada de bom para a verdadeira salvação.
Quem a si mesmo não concede nenhuma razão sólida não pode provar tam-
bém com a razão alguma questão; se eles se gabam de possuir algo superior à
razão, isso é mera ficção e de longe inferior à razão, como mostra muito bem
o seu modo habitual de viver.

O que nos faz pensar, Rio de Janeiro, v.26, n.41, p.277-302, jul.-dez. 2017
resenha
Felipe Jardim Lucas*

Tradição e Iluminismo em Uriel da Costa

Resenha do livro:
PROIETTI, Omero; LICATA, Giovanni (a cura di). Tradizione e illuminismo
in Uriel da Costa: Fonti, temi, questioni dell’Exame das tradições phariseas.
Macerata, eum edizioni università di Macerata, 2016.

É sabido que desde a infância Baruch de Espinosa já presenciara a turbulenta


situação da comunidade hebraica portuguesa de Amsterdã que, para além das
perseguições por parte dos cristãos, encontrava-se convulsionada por uma sé-
rie de cismas e disputas internas: da recepção dos judeus, que fugiam da per-
seguição na península ibérica, até as disputas contra vertentes mais radicais
do pensamento, as quais questionavam posições tidas por dogma dentro do
judaísmo. É neste contexto, da comunidade hebraica de Amsterdã figurando
enquanto microcosmo que reproduz uma Europa fraturada, que surgirá a fi-
gura de Uriel da Costa. A respeito, importa dizer que Espinosa não tinha mais
do que oito anos quando da Costa sofreu o notório processo de exclusão pe-
las autoridades judaicas da cidade de Amsterdã. Ao processo seguiu-se uma
breve e humilhante readmissão à comunidade, mas que terminará no suicídio
do filósofo, tido por herege e perseguido devido a suas perspectivas acerca
das Escrituras e da fé judaica. Esta era a paradoxal realidade da chamada to-
lerante Amsterdã da era de ouro, situação que ainda assim diferenciava-se em
larga medida daquela vivida no restante da Europa ocidental e Grã-Bretanha.
É importante ressaltar, por outro lado, que Uriel da Costa e outros tantos, ao
chegarem às Sete Províncias, trarão consigo uma longa e remota linhagem de
pensamento, passando por Epicuro e Lucrécio, por medievais, judeus e ára-
bes: de Averróis a Maimônides; enfim, uma linhagem de pensamento radical
que animará a escandalosa obra do autor e que apontará intensamente para
os processos de formação do pensamento moderno que se encontrarão na
Amsterdã do século XVII.

* Doutorando em Direito pela Pontifícia Universidade Católica do Rio de Janeiro (PUC-Rio). E-


-mail: felipejardimlucas@gmail.com.

O que nos faz pensar, Rio de Janeiro, v.26, n.40, p.305-308, jan.-jun. 2017
306 Felipe Jardim Lucas

Para além da influência que o texto dacostiano exerceu no pensamento


radical do mencionado período, vale dizer que sua técnica e interpretação
das Escrituras bem como seu modo de escrita (com o humor e o uso da sátira,
por exemplo) condensaram uma série de diversas matrizes anteriores que o
influenciaram e que operam no interior de seus escritos, tais como a men-
cionada raiz portuguesa e as não menos evidentes referências latina e clássica
do texto de da Costa (como a citação do Somnium Scipionis1, o general que
se converte em “filósofo post mortem”2 inventado por Cícero e que inaugura
uma imagem muito específica em sua interpretação: a daquele herói que não
deseja sequer deixar seus ossos para a “ingrata pátria”).
Pelo que se nota da obra então, o pensamento do autor é forjado conjun-
tamente às contradições do capitalismo e do pensamento moderno, recolhen-
do elementos desde o passado do Levante, Egito e mundo helênico – da Ásia
Menor e das Ilhas do Mediterrâneo – até seu encontro com a península ibérica,
das lutas de expulsão dos povos mouros, e de seu contato com a latinidade
clássica. Assim como quando da formação dos primeiros Estados modernos, e
em especial da organização política e religiosa portuguesas, será pelo intermédio
desta intrincada rede de fluxos que primeiro toma o Mediterrâneo como palco
(e depois o Mar do Norte) que irá se situar o pensamento migrante de Uriel da
Costa. Portanto, é quase desnecessário explicar exaustivamente a relevância de
sua obra para países que dividem estas heranças e matrizes históricas, ora con-
correntes, ora em comum. Conforme ressalta Omero Proietti, “La cultura dacos-
tiana implica sempre, in realtà, un complesso intreccio di fonti, una zona di frontiera
tra la ‘cultura ebraico ladina’ e la ‘cultura ispanico-portoghese’”3. Será este o local e o
momento no qual novas e antigas formulações se encontraram, e através de tais
redes puderam se expandir e atingir não apenas as grandes cidades mercantes
– cujos fluxos comerciais já alargavam as fronteiras da antiga Europa medieval –
mas chegaram também ao novo mundo com o elemento colonizador, definindo
em graus variados a formação dos povos que disputaram a criação e desenvol-
vimento do sistema econômico capitalista bem como a constituição política da
forma Estado contemporânea.

1 PROIETTI, Omero, Dal Somnium Scipionis alla Biblia de Ferrara, da Abner de Burgos a Camões:
fonti e intrecci di fonti dell’Exam dacostiano. in Tradizione e illuminismo in Uriel da Costa: Fonti,
temi, questioni dell’Exame das tradições phariseas. Macerata, eum edizioni università di Macerata,
2016, p. 203.

2 Idem, p. 207

3 Ibid, p. 202.

O que nos faz pensar, Rio de Janeiro, v.26, n.40, p.305-308, jan.-jun. 2017
Tradição e Iluminismo em Uriel da Costa 307

O livro “Tradizione e iluminismo in Uriel da Costa” trata precisamente deste


período, ou melhor, destas séries de períodos, nos quais a história dobra so-
bre si mesma e, pela arte política, os seres humanos desafiam e desmentem
qualquer noção de desenvolvimento linear da história. O livro é uma coletâ-
nea não apenas de intervenções apresentadas em colóquio acerca do “Exame
das tradições phariseas”, de Uriel da Costa, mas é o fruto de um trabalho
contínuo a fim de reexaminar a obra do autor e, a partir de pensadores como
Gersonides, Del Medigo, Avicena, Averróis e tantos outros, compreender os
meios (hebraico, latino, árabe) que constituem a radical transição no pensa-
mento da qual estes foram precursores.
Deste modo, a organização do livro se propõe a primeiramente analisar
a constituição do pensamento e a crítica teológico-política e dos dogmas es-
tabelecidos no seio das religiões de matriz abraâmica. O conceito de milagre
na leitura e interpretação das Escrituras bem como a discussão de sua vera-
cidade e precisão históricas serão ponto de partida em autores de inspiração
averroista como em Gersonides, por exemplo, para a possibilidade da con-
sideração das categorias bíblicas do ponto de vista de uma análise filosófica.
Tal debate já traz o tom que virá animar o pensamento que se sucede nesta
linhagem, como o de Uriel da Costa, ou de Espinosa, por exemplo: tanto
tempo posterior aos “malditos” precursores da antiguidade e do medievo. A
análise do estatuto da imortalidade da alma, a negação de uma angeologia de
tipo farisaico, ou da figura de Satã, o anjo do mal, e de sua presença na história
humana serão, já no século XVII, elementos importantes nos questionamen-
tos dos autores colegiantes e dos chamados cristãos sem Igreja. Por isso o
debate sobre a relação entre filosofia e religião possuirá importância capital,
seja pelo poder teológico-político das forças de conservação europeias, seja
pelos seekers ingleses ou pelos colegiantes das Sete Províncias; enfim, por
todos os lados vê-se que na raiz deste debate a disputa filosófica e filológica
presente nas origens da obra de da Costa continua ocupando posição central.
Para além de seu próprio tempo, nota-se em debates posteriores que a obra
de da Costa continuará possuindo relevância capital mesmo após sua morte,
vide os debates acerca da eternidade da justiça divina, envolvendo-a sobre um
discurso jurídico-filosófico no contexto alemão do século XVIII4.

4 TRAVANTI, Eleonora. Finiti ad infinitum nulla est proportio. Eternità delle pene e giustizia di
Dio nella controversia tedesca da Soner a Lessing. in Tradizione e illuminismo in Uriel da Costa:
Fonti, temi, questioni dell’Exame das tradições phariseas. Macerata, eum edizioni università di
Macerata, 2016, p. 363.

O que nos faz pensar, Rio de Janeiro, v.26, n.40, p.305-308, jan.-jun. 2017
308 Felipe Jardim Lucas

É de se notar, portanto, que Tradizione e Illuinismo in Uriel da Costa traduz


em diversas perspectivas a relevância do autor nas diferentes fases da moder-
nidade e de seu processo de formação. Da descoberta do trânsito pulmonar
do sangue feita por Ibn al-Nafis5 às interpretações proto-iluministas das fon-
tes do hebraismo6, as expressões múltiplas do pensamento nos campos cien-
tífico, filosófico e teológico parecem marcadamente apontar para influências
em nossa ideia de iluminismo e modernidade. Seu caráter fundamental não
reside na novidade que tais autores apresentam, mas no fato destes identifi-
carem questões cuja importância permaneceu enorme dentro do pensamento
moderno, sendo trazida à contemporaneidade pelos constituintes desta
linhagem, conforme podemos constatar, por exemplo, a partir de obras como
“De Motu Cordis”, de William Harvey (1628), ou, em nosso caso, pelo próprio
“Exame das tradições phariseas”, de Uriel da Costa (1624) e nos autores aos
quais seu pensamento remete e é remetido.

Referências

BARCHESI, Sara. La scoperta dalle fonti del transito polmonare del sangue di Ibn al-
Nafis e la sua influenza in età moderna. In: PROIETTI, Omero; LICATA, Giovanni (a
cura di). Tradizione e illuminismo in Uriel da Costa: Fonti, temi, questioni dell’Exame
das tradições phariseas. Macerata: Università di Macerata, 2016.
PROIETTI, Omero. Dal ‘Somnium Scipionis’ alla Biblia de Ferrara, da Abner de Burgos
a Camões: fonti e intrecci di fonti dell’Exam dacostiano. In: PROIETTI, Omero; LICATA,
Giovanni (a cura di). Tradizione e illuminismo in Uriel da Costa: Fonti, temi, questioni
dell’Exame das tradições phariseas. Macerata: Università di Macerata, 2016.
SCHRÖDER, Winfried. Proto-iluminismo dalle fonti dell’ebraismo: l’Origo et
fundamenta religionis Christianae di Martin Seidel e i “Semijudaizantes” del tardo
Cinquecento. In: PROIETTI, Omero; LICATA, Giovanni (a cura di). Tradizione e
illuminismo in Uriel da Costa: Fonti, temi, questioni dell’Exame das tradições phariseas.
Macerata: Università di Macerata, 2016.
TRAVANTI, Eleonora. Finiti ad infinitum nulla est proportio. Eternità delle pene e
giustizia di Dio nella controversia tedesca da Soner a Lessing. In: PROIETTI, Omero;
LICATA, Giovanni (a cura di). Tradizione e illuminismo in Uriel da Costa: Fonti, temi,
questioni dell’Exame das tradições phariseas. Macerata: Università di Macerata, 2016.

5 BARCHESI, Sara. La scoperta dalle fonti del transito polmonare del sangue di Ibn al-Nafis e la
sua influenza in età moderna. in Tradizione e illuminismo in Uriel da Costa: Fonti, temi, questioni
dell’Exame das tradições phariseas. Macerata, eum edizioni università di Macerata, 2016, p. 151.

6 SCHRÖDER, Winfried. Proto-iluminismo dalle fonti dell’ebraismo: l’Origo et fundamenta reli-


gionis Christianae di Martin Seidel e i “Semijudaizantes” del tardo Cinquecento. . in Tradizione e
illuminismo in Uriel da Costa: Fonti, temi, questioni dell’Exame das tradições phariseas. Macerata,
eum edizioni università di Macerata, 2016, p. 181.

O que nos faz pensar, Rio de Janeiro, v.26, n.40, p.305-308, jan.-jun. 2017
varia
As conversões de Friedrich Schlegel:
Fabiano Lemos*

filosofia política como mística do tempo

Friedrich Schlegel’s conversions:


political philosophy as the mystique of time

Resumo
Ao se converter ao catolicismo, em 1808, Friedrich Schlegel, figura central do
Romantismo de Jena, assumiu posições políticas e filosóficas muito diferentes
daquelas desenvolvidas em seus textos anteriores. Este artigo investiga se e sob que
condições podemos ainda supor certas continuidades epistemológicas e ideológicas
entre os dois períodos. Para tanto, é abordada a complexidade da filosofia da
história veiculada através da própria ideia de conversão e se tenta mostrar que,
a partir dela, o esforço de leitura retrospectiva da história empreendido pelo
próprio Schlegel em muitos de seus textos tardios ilustra a questão do destino do
Romantismo alemão.

Palavras-chave: Friedrich Schlegel; Romantismo Alemão; Filosofia Política;


Mística.

Abstract
By converting to Catholicism in 1808, Friedrich Schlegel, a central figure within
Jena Romanticism, assumed very different political and philosophical positions from
those developed in his previous texts. This paper investigates if and under which
conditions we could still suppose some epistemological and ideological continuities
between the two phases. In order to do so, it approaches the complexity of the
philosophy of history introduced through the very idea of conversion, and intends
to demonstrate that, from its emergence on, the efforts that Schlegel himself had
undertaken towards a retrospective reading of history illustrates the issues on the
fate of German Romanticism.

Keywords: Friedrich Schlegel; German Romanticism; Political Philosophy;


Mystics.

* Professor de Filosofia na Universidade do Estado do Rio de Janeiro (UERJ). E-mail:


fabianolemos@gmail.com.

O que nos faz pensar, Rio de Janeiro, v.26, n.40, p.311-338, jan.-jun. 2017
312 Fabiano Lemos

Dem ächt Religiösen ist nichts Sünde.


Novalis

Ein Traum, was sonst?


Heinrich von Kleist

A deriva romântica

A famosa distinção empreendida por Goethe entre o clássico e o romântico,


que designava, para ele, a diferença, respectivamente, entre o saudável e o do-
entio1, parece ter orientado, também, suas reticências quanto a uma tendência
que observava, um tanto decepcionado, entre alguns de seus contemporâneos:
o desejo de reencontrar a origem metafísica do cristianismo medieval. Tal dis-
posição resultou em uma inesperada onda de conversões ao catolicismo entre
os que integraram, mais ou menos consistentemente, o movimento romântico
na Alemanha entre os últimos anos do século XVIII e as três primeiras décadas
do século seguinte, e pode ser, provavelmente, remetida em parte ao crescen-
te sentimento de insatisfação da elite intelectual com o atraso social do país
diante de seus vizinhos católicos. Essa explicação, no entanto, além de histo-
ricamente reducionista, tende, mais especificamente, a dissociar os aspectos
institucionais dessa mudança de seus pressupostos conceituais e simbólicos
– ou, ao menos, a submeter esses últimos aos primeiros. Ora, o que inquietava
Goethe, como alguém que havia acompanhado de perto as transformações da
vida espiritual germânica, da emergência do kantismo ao nascimento do teatro
de vanguarda de Tieck, da estética de Schiller ao apelo da filosofia de Hegel,
era justamente a instauração de um novo horizonte cultural através dos recém-
-convertidos – um horizonte politica, cientifica e esteticamente reacionário.
A nostalgia de um cristianismo primitivo, não intelectualizado, que havia
sido uma das pedras de toque do ethos luterano durante a Reforma, acabou
por guiar uma parcela considerável dos herdeiros insatisfeitos do idealismo
transcendental na direção de volta (ao menos hipoteticamente) a um modelo
de comunidade fundado em uma identidade absoluta, mas, ao mesmo tempo,
tangível de cada um com o Todo. Tal como havia se desenvolvido no interior

1 Cf. AYRAULT, 1961-1976, vol. I, p. 16. A afirmação de Goethe é narrada por Eckermann na
entrada do dia 2 de abril de 1829 de seu Gespräche mit Goethe in den letzten Jahren seines Lebens

O que nos faz pensar, Rio de Janeiro, v.26, n.40, p.311-338, jan.-jun. 2017
As conversões de Friedrich Schlegel: filosofia política como mística do tempo 313

da Aufklärung do século XVIII, a teologia protestante alemã se deixou traduzir


– e, para muitos, se capturar – em uma série de reflexões abstratas que não
apenas ameaçavam transformá-la em uma mera discussão conceitual da letra
do cristianismo, mas, com isso, também a afastavam da experiência viva da fé
em Cristo.2 Paradoxalmente, contra esse diagnóstico, foi uma certa radicaliza-
ção da exigência luterana de uma reunião vivencial com a religião cristã que
levou muitos ao encontro do catolicismo e à denúncia do esgotamento do
protestantismo. Alinhada a isso, a cisão incontornável afirmada por Kant entre
a finitude dos indivíduos e a eternidade da espécie – lamentada por Schiller
exemplarmente em todo o começo de suas cartas Sobre a educação estética do
homem (cf. SCHILLER, 1962, pp. 576-579) – encontra nos jovens românticos
uma solução com a qual nenhum clássico poderia concordar: a submersão
voluntária em uma imagem da natureza que associava o progresso civiliza-
tório a uma maldição nefasta da secularização, insistindo, por conseguinte,
na lógica da obediência ao poder central da fé, representado pela autoridade
da Igreja e a recusa de todo resíduo greco-romano. O desdobramento do
anti-intelectualismo como reinstitucionalização religiosa se mostrava, assim,
como o principal aspecto que Goethe pressentia como pernicioso em sua
época e que o levava a desconfiar dos convertidos.
Aparecendo como uma espécie de mito fundador dessa tendência reacio-
nária católica, a figura do conde Friedrich Leopold zu Stolberg é a primeira de
uma longa série. Antigo amigo de Goethe, Stolberg se converte em 1800, mas
suas atitudes religiosas já eram acompanhadas pelo círculo dos intelectuais
há algum tempo, desde seu combate ao filohelenismo de Schiller, passando
pelo seu casamento contextualmente surpreendente com uma mulher católica,
para, enfim, desembocar em sua rejeição do protestantismo e do paganismo.3
Em certa medida, seu desenvolvimento místico representa o primeiro passo de
uma nova “ética da conversão”4, que levava o problema da liberdade de fazer
uso do próprio entendimento, sobre o qual o protestantismo havia, direta
ou indiretamente, insistido, a uma nova e inesperada conclusão. Disponível
como exemplo, Stolberg exerceu um papel importante nas conversões católi-
cas – para citar apenas os nomes mais reconhecidamente conservadores – de

2 Sobre esse ponto, cf. LEMOS, 2015a.

3 Sobre o que se segue a respeito das conversões românticas, cf. BESSLEY, 2013, passim; JOSHUA,
2005, p. 152; HEUVEL, 2001, p. 272; e também a breve, mas significativa menção em SCHMITT,
1925, p. 32.

4 A expressão é utilizada por BESSLEY, 2013, p. 14.

O que nos faz pensar, Rio de Janeiro, v.26, n.40, p.311-338, jan.-jun. 2017
314 Fabiano Lemos

Adam Müller, em 1805, Zacharias Werner, em 1811, Clemens Brentano, em


1817 e Karl Ludwig Halle, em 1821. Essa tendência se perpetuaria por muito
tempo ao longo do século XIX, e, embora tenha perdido força a uma certa
altura, só foi interrompida após a unificação promovida pelo general Bismarck,
em 1870, e sua política de Kulturkampf, que havia interpretado a promulgação
do dogma da infalibilidade papal, em 1869, como sinal de uma necessária
ruptura definitiva do Estado com a Igreja (cf. BÜHLER, 1960, pp. 22-34).
Aqui, entretanto, se manifesta, também, uma grande dificuldade na circuns-
crição do movimento romântico alemão como um todo, dessa vez relacionada
à questão da confissão religiosa. Isso porque, apesar de uma dinastia de con-
vertidos consistir em uma parcela significativa de seu conjunto, não se pode
dizer que seus integrantes representaram uma unidade doutrinário-política tão
evidente. Ao contrário: para além do catolicismo de Stolberg e seus seguidores,
também o judaísmo irônico de Heine e o protestantismo desesperado de Kleist
fazem parte do movimento, que, portanto, não se define por uma ou outra con-
fissão, e nem pelo caráter político revolucionário ou conservador (cf. FRANK,
1997). E mais do que isso – é preciso complexificar a afirmação segundo a qual
o conservadorismo católico denotaria, nesse contexto, incontornavelmente,
uma recusa pura e simples das premissas românticas mais subversivas. E é exa-
tamente nesse ponto que encontramos a figura enigmática de Friedrich Schlegel.
A princípio, Schlegel poderia se apresentar como o exemplo mais luminoso
da hipótese reacionária das conversões católicas do Romantismo alemão. Em
sua juventude, havia figurado, junto com Fichte, na lista que o Ministério do
Interior prussiano elaborou com os nomes dos intelectuais revolucionários que
deveriam ser vigiados de perto (cf. FRANK, 1997, p. 158). Seu ensaio Sobre o
conceito de republicanismo [Versuch über den Bergriff des Republikanismus] (1792)
tomava nitidamente partido a favor de uma revisão jacobinista do cosmopo-
litismo kantiano5. O cenário apresentado em seu pensamento após sua con-
versão, em 1808, é completamente diferente, e muitos comentadores parecem
ter razões sólidas para afirmar que, após essa data, o pensamento de Schlegel
sofre uma ruptura irreversível, se afastando, consideravelmente, das atitudes
republicanas, da ironia e da epistemologia vertiginosa de seus primeiros tex-
tos, especialmente daqueles publicados em sua revista Athenäum (cf, MILLÁN-
-ZAIBERT, 2007, p. 18).6 Comparando, por exemplo, o projeto dessa efêmera

5 Sobre a recepção do jacobinismo em Schlegel, cf. SCHNYDER, 1999.

6 O que não significa que a tentativa de descrever os elementos de continuidade da perspectiva


schlegeliana não tenha sido empreendida por seus leitores há muito tempo. Já em um artigo de

O que nos faz pensar, Rio de Janeiro, v.26, n.40, p.311-338, jan.-jun. 2017
As conversões de Friedrich Schlegel: filosofia política como mística do tempo 315

revista, que funcionou como o principal órgão de divulgação das ideias do


Frühromantik até 1800, com o do jornal nacionalista Österreichische Zeitung,
fundado por Schlegel em 1809, quando já fazia parte da cúpula de funcionários
do governo austríaco anti-liberal de Metternich, ou mesmo com sua revista
católica Concordia, é evidente a mudança de rumo. Seria, assim, pouco razoável
não admitir que o catolicismo do último Schlegel se distingue, enfaticamente,
do jacobinismo de seus anos de juventude. Mas essa passagem da subversão
ao conservadorismo, intermediada pela reconfiguração da mística cristã em seu
pensamento – e, é claro, em sua vida – talvez não precise ser lida sob a ótica
exclusiva da ruptura, que parece ser ainda o simples avesso da linearidade
contínua, duplicando, em negativo, seus pressupostos reducionistas. Gostaria
de propor que a relação de referencialidade entre o jovem Schlegel e o Schlegel
católico não é tão simples assim. Um índice importante dessa disposição, como
lembra Manfred Frank, é o fato de que seu conservadorismo nunca foi muito
bem assimilável pelos movimentos filosóficos e políticos de direita que lhe se-
guiram. Ele nunca pôde, de fato, por exemplo, servir como modelo aos olhos
dos nazistas, e foi mesmo um personagem maldito para aqueles que queriam se
apropriar do Romantismo como profetas do antissemitismo e do totalitarismo
(cf. FRANK, 1997, p. 159), o que é atestado pela maneira como um de seus
maiores ideólogos, Carl Schmitt, só pôde se referir a ele como um teórico polí-
tico fracassado (cf. SCHMITT, 1925, pp. 54-57).
Não pretendo afirmar que Schlegel tenha continuado a ser, subrepticia-
mente, um revolucionário, nem que sua adesão ao catolicismo não tenha sido
tão sincera ou firme. Ao contrário do que previam, talvez mais esperançosos
que convencidos, alguns de seus antigos amigos, como Tieck7 e Schleier-
macher, que supunham que Schlegel teria se distanciado do catolicismo em

1936, J. Weltman havia se dedicado a apontar o modo como a promessa do catolicismo estava
alinhada ao resgate da mitologia como modelo histórico desde seus escritos de juventude (Cf.
WELTMAN, 1936, passim). Mais recentemente, Ethel De Mazza pretendeu mostrar que a con-
versão de 1808 repercute as premissas hermenêuticas da filologia do começo do século XIX (DE
MAZZA, 2008, pp. 102-103).

7 Tieck, ao contrário de sua esposa e filha, nunca se converteu totalmente ao catolicismo, embora
tenha pensado seriamente nessa hipótese nos primeiros anos do século XIX. No geral, sua posição
resulta em uma interpretação estetizante do catolicismo, frequentemente crítica. É o que acontece
em sua peça satírica Der Autor (1800), onde a figura farsesca do fanático católico – que todos
sabiam ser inspirada em Clemens Brentano –a uma certa altura da peça, é levada a admitir, em
seu delírio, que o esforço na direção da religião deveria levar o homem a rir de todas as coisas, in-
clusive, da própria religião (cf. FRANK, 1997, p. 150). Por fim, nos últimos anos de sua vida, sua
posição se consolida como exemplarmente anticatólica, chegando a responsabilizar a tendência
conservadora da época pela ruína das ciências e das artes (Idem, pp. 156-157).

O que nos faz pensar, Rio de Janeiro, v.26, n.40, p.311-338, jan.-jun. 2017
316 Fabiano Lemos

pouco tempo, caso houvesse vivido mais um pouco (cf. BEHLER, 1988, p.
177), é inegável que sua postura em seu período maduro é não só antagônica,
em muitos pontos, quando observada diante de seus escritos juvenis, mas
também incisiva. Ainda assim, ao confrontarmos os textos da Athenäum com
os cursos e as anotações privadas das décadas de 1810 e 1820, minha hipóte-
se é a de que podemos recuperar uma certa lógica do desenvolvimento intelectu-
al que reúne os dois períodos, sem que um possa ser reduzido ao outro. Em
outras palavras, gostaria de analisar como a conversão católica de Schlegel,
em última análise, se desdobra desde certos elementos presentes já em sua
juventude, ou ainda, como o conservadorismo é a deriva da subversão – uma
hipótese que tem sua reverberação mais plena na compreensão do destino do
Romantismo nas mãos dos nazistas, mesmos com todas as manipulações e
recortes que eles promoveram em seu interior.
Friedrich Schlegel não é, certamente, o único romântico alemão que mi-
grou de um polo ao outro da ideologia política na mesma direção. Joseph
Görres, por exemplo, passou “de um adepto da Revolução Francesa a um
ardente advogado do nacionalismo” (cf. SEGEBERG, 1988, p. 153). O pro-
blema reside, entretanto, na definição desse diagrama que circunscreve e ten-
siona os dois limites políticos, e, nesse sentido, é plausível supor que Schlegel
tenha aprendido muito com seu amigo íntimo, Novalis. Se a transformação
político-teológica do primeiro se dispõe ao longo do tempo, nesse último, o
elogio ao catolicismo e a defesa da monarquia ocorrem simultaneamente ao
entusiasmo ético, o antifundacionismo gnosiológico e a performatividade da
política. A peça de acusação de Novalis contra Lutero, que constitui seu Cris-
tandade ou Europa [Cristlichkeit oder Europa] (1799) e a de defesa do rei, cen-
tral em seu Fé e amor [Glaube und Liebe] (1798), são atravessadas pela ironia
revolucionária, tão pontualmente manifesta em seu Monolog, escrito no mes-
mo período. Com isso, não se pode sobrepor, inconsequentemente, as figuras
de Novalis e Schlegel – a tendência catolicizante do primeiro, funciona, antes,
como um limite móvel que nunca se realiza, e, portanto, não exclui as outras
confissões religiosas. Mas sob a perspectiva de uma dinâmica intrínseca, o
paradoxo de Novalis representa a própria destinação do Romantismo alemão
(e, segundo minha hipótese, de Friedrich Schlegel), não apenas entre seus
autores – muitos deles se mantiveram revolucionários, liberais ou indiferen-
tes até o fim de suas vidas – mas, especialmente, entre seus leitores.8 O fato

8 Sobre o destino político da filosofia de Novalis, especialmente de sua estética, cf. HOWE, 2010,
pp. 102 e ss. Howe explora também em seu artigo a ligação entre hermenêutica, visualidade e

O que nos faz pensar, Rio de Janeiro, v.26, n.40, p.311-338, jan.-jun. 2017
As conversões de Friedrich Schlegel: filosofia política como mística do tempo 317

é que sua morte prematura, em 1801, acompanhada de perto por Schlegel,


que esteve presente todo o tempo no leito de morte do amigo, deixou em
suspenso o desdobramento total desse paradoxo. A subsequente dispersão
do grupo dos primeiros românticos de Jena, a interrupção da publicação da
Athenäum, as brigas com seu irmão mais velho August não constituem aqui
os motivos ocasionais da conversão católica de Schlegel – são vetores nesse
diagrama da deriva romântica9, que, até onde posso ver, é a maneira mais con-
sistente de abordar um movimento tão irregular e autocontraditório, mas, ao
mesmo tempo, tão fundamental para a história dos processos de identificação
da filosofia e, talvez, da cultura europeia em geral.

As histórias da salvação

A conversão do casal Friedrich e Dorothea Schlegel ocorreu no dia 16 de abril


de 1808, na catedral de Nossa Senhora, em Colônia, mas vinha sendo plane-
jada há, pelo menos, cinco anos.10 Na verdade, em um certo sentido, ela se
desenrolava na esteira da operística busca de identidade religiosa da esposa.
Nascida como Brendel Mendelssohn – filha do filósofo Moses Mendelssohn
–, ela havia se tornado Brendel Veit ao se casar com um banqueiro berlinense
em 1783. Dez anos depois, ela conhecia Friedrich Schlegel e se divorciava
de seu primeiro marido para viver uma relação que só se oficializaria com

política em Novalis, um tema que é, como procurarei mostrar mais adiante, central na mística
convertida de Schlegel.

9 Utilizo os termos diagrama e deriva a partir da perspectiva de Gilles Deleuze. Sobre o diagrama,
conceito que desenvolve, inicialmente, através de sua colaboração com Félix Guatarri, e estendi-
do, sobretudo, às suas análises de Foucault e Francis Bacon, podemos dizer que se trata de um
modelo de confrontamento de forças, que opera, sempre, no limite de uma desestabilização total
e de uma nova reconfiguração: “O diagrama é, certamente, um caos, uma catástrofe, mas também
um germe de ordem ou de ritmo” (DELEUZE, 1981, p. 67). Complementar a esse conceito, a
deriva pode ser entendida como o movimento produzido por uma lógica interna dos conjuntos
de signos, que não é formulada desde o ponto de vista da identificação e da estabilização, mas da
dispersão que lhes é própria. Seria uma lógica da diáspora, ou, como aponta David Lapoujade,
uma lógica que incorpora os ”movimentos aberrantes” (LAPOUJADE, 2014, p. 13). O termo
deriva [derive] também pode ser encontrado, em um sentido próximo, na obra de Jacques Der-
rida, notoriamente nas passagens de De la grammatologie dedicadas a explorar a tensão entre a
perpetuação e a dissolução do signo em relação ao fundamento do significado: “Pelo movimento
de sua deriva, a emancipação do signo constitui, ao retornar, o desejo da presença. Esse devir –
ou essa deriva – não sobrevém ao sujeito que a escolhe ou que se deixaria aí levar passivamente”
(DERRIDA, 1967, p. 100).

10 Para as informações biográficas a seguir, cf. BEHLER, 1988, pp. 153-178.

O que nos faz pensar, Rio de Janeiro, v.26, n.40, p.311-338, jan.-jun. 2017
318 Fabiano Lemos

a entrada definitiva no catolicismo – o que poderia levar alguns a especu-


lar sobre a intenção realmente teológica da conversão do casal nesse gesto.
Antes disso, no entanto, Brendel havia abandonado, para desgosto do pai,
o judaísmo e se convertido uma primeira vez, em 1804, ao protestantismo,
adotando o nome Dorothea. De Brendel Mendelssohn a Dorothea Schlegel,
seu percurso – talvez mais exemplarmente que o de seu marido – pode ser
lido como uma síntese das conflituosas disposições de sua geração, no limite
entre política, religião e ideologia.11 O casal, aliás, tinha completa consciência
do difícil caminho que havia escolhido. Sua conversão em Colônia foi man-
tida em segredo por eles durante algum tempo, até que, por fim, uma vez
revelada, passou a circular como uma importante notícia do mundo literário
nos jornais da época (cf. BEHLER, 1988, p. 171; DE MAZZA, 2008, p.101).
Tornada pública, as reações em relação a ela são, em sua maioria, de surpresa
e rejeição; toda a família do esposo fica em choque e decepcionada. Muitos
expressaram a opinião segundo a qual a conversão era uma tentativa opor-
tunista de Schlegel de se integrar à paisagem católica do governo austríaco
de Metternich em Viena, onde o casal teria ido buscar a solução para suas
dificuldades financeiras (cf. FRANK, 1997, p. 150 e BEHLER, 1988, p. 170)
– desconfiança, aliás, possivelmente confirmada no fato de que ele se tor-
nou, efetivamente, um funcionário importante dessa administração. Outros,
como Goethe, se limitaram a lamentar que um talento tão promissor tivesse
sido seduzido ao obscurantismo (cf. FRANK, 1997, p. 151).12 E mesmo mui-
tos anos depois, um autor como Heinrich Heine se lembraria desse episódio
como o de uma fuga mental, tendo Schlegel, para ele, por medo patológico
do progresso civilizatório, se refugiado “nas ruínas da Igreja católica” (HEINE,
citado em FRANK, 1997, p. 144).
Mas para Schlegel, como para sua esposa, essa não era a primeira expe-
riência de conversão – e a correta apreciação dessa trajetória elíptica é um
passo importante na compreensão da lógica de seu destino conservador. Em
um sentido amplo, mas não menos determinante, é nesses termos que, como
lembra Frederick Beiser (2003, p. 107), sua entrada fundadora no Roman-
tismo pode ser descrita. Em alguma altura (e o ponto exato desse evento
constitui uma das mais encarniçadas disputas entre os especialistas), logo
depois de redigir seus estudos sobre a poesia grega, por volta de 1795, sua

11 Sobre as transformações da vida de Dorothea Schlegel, cf. READE, 2007, pp. 97-120.

12 Posteriormente, por ocasião de uma visita de Friedrich Schlegel a Weimar, Goethe voltou atrás
em sua opinião (cf. BEHLER, 1988, p. 171).

O que nos faz pensar, Rio de Janeiro, v.26, n.40, p.311-338, jan.-jun. 2017
As conversões de Friedrich Schlegel: filosofia política como mística do tempo 319

postura quanto aos modernos se transforma radicalmente, de tal modo que


a ênfase classicista dos primeiros tempos é completamente modificada – em-
bora certamente não abandonada – através da consolidação de um projeto de
definição da literatura propriamente moderna: aquilo a que Lacoue-Labarthe
e Jean-Luc Nancy se referem ao tratarem, no contexto romântico, da “literatu-
ra enquanto absoluto” (LACOUE-LABARTHE & NANCY, 1978, p. 11).13 Os
textos posteriores, até 1804, são notavelmente marcados por essa primeira
conversão romântica.
A sucessão de conversões, portanto, não precisa ser compreendida como
uma simples questão biográfica: ela indicaria, antes, os passos de uma filo-
sofia, e, mais precisamente, de uma filosofia da história que não cessa de se
reconfigurar. O paralelo entre rupturas filosóficas e confessionais é melhor
compreendido no âmbito de suas consequências para a maneira com que
Schlegel procurou produzir, ao longo de sua vida, diferentes versões de uma
narrativa da totalidade e do infinito como lugar (ou não-lugar) – topos (e ato-
pia) – da verdade. A valorização da mística em sua juventude, com ênfase no
ecumenismo teológico, explícito em Ideias [Ideen] (1800), lhe permitia uma
construção do tempo descrita em termos de imprevisibilidade e não-lineari-
dade. É assim que, no fim da década de 1790, Schlegel fazia toda a filosofia
moderna, tanto quanto a própria Reforma Protestante, derivar do misticismo
e dos místicos (SCHLEGEL, 1988 – edição doravante citada como KSF, segui-
da do número do volume e da página – Bd. 5, p. 39), na medida em que isso
lhe garantia um critério unificador que nunca se oferecia totalmente a uma
síntese ideológica ou institucional. O próprio da experiência mística – como
também o haviam intuído Tieck e Novalis àquela altura – era justamente a
singularização da unidade transcendente, ou seja, em alguma medida, sua ir-
regularidade, contraposta à versão clássica e homogênea do universal. Com o
catolicismo, será preciso reconfigurar esse critério, de tal modo que ele possa
ser conduzido à sua dimensão de ordem, ainda que mais como promessa que
como dado. Em outras palavras, na relação singular-universal, será preciso
reencontrar a mediação – institucional – da Igreja.
A maior dificuldade na apreensão dessa reestruturação, que é, de uma
só vez, confessional e epistemológica, é que ela precisou, a cada passo na
nova direção, reinventar a narrativa da história da verdade. Tomada como
revelação imediata do sentido, a mística demanda a elaboração de uma

13 Sobre a transformação dos interesses de Schlegel posteriores aos escritos sobre a poesia grega
de 1794-1796, cf. SZONDI, 1974b, pp. 96 e ss.

O que nos faz pensar, Rio de Janeiro, v.26, n.40, p.311-338, jan.-jun. 2017
320 Fabiano Lemos

historiografia que justifique, sem lacunas, a emergência da totalidade no


tempo. A existência de diferentes modelos histórico-narrativos ao longo do
desenvolvimento intelectual de Schlegel nos leva, evidentemente, à questão
sobre a possibilidade ou necessidade de compatibilizá-los ou não. Mas, se
adotarmos a perspectiva construída em obras como o artigo Sobre a incompre-
ensibilidade [Über die Unverständlichkeit] (1800), segundo a qual a narração
constitui, imanentemente, a própria lógica, o fundamento e as premissas do
texto – ou seja, se pensarmos a filosofia como um trabalho performático ab-
solutamente autoconstituído no seu esforço de expressão – então, não seria
em razões extrínsecas à narração de uma obra que deveríamos buscar sua jus-
tificativa da continuidade ou de descontinuidade. Nesse sentido muito geral,
limítrofe em relação a uma teoria da performatividade hermenêutica, seria
preciso percorrer cada texto como um discurso total da verdade, como um
gesto ao mesmo tempo singular (pois está inteiro dado como acontecimento
textual) e universal (pois inventa, em seu tecido imanente, seus fundamentos
e seu destino, seu passado e seu futuro, sua promessa e sua glória). Se esse
discurso, como parece ser o caso em Schlegel, está intimamente vinculado ao
problema da mística, é não apenas porque seu modo de manifestação recusa
a categorização intelectual kantiana, mas porque o êxtase místico (ou, ao
menos, uma posição mística) pode ser pensado como o trabalho incessante
de suspensão dos paradigmas narrativos externos habituais, e como criação
de um novo tempo eterno – a cada instante. O homem convertido, segundo
esse paradigma, está sempre em conversão, mas não meramente inacabado: sua
plenitude é ser inteiro como fragmento, seu tempo é o momento infinito e,
simultaneamente, ínfimo da criação de Deus, tangível e intangível. O projeto
de conversão, assim, não simplesmente negaria ou afirmaria a historiografia
do absoluto empreendida até então; ele, antes, radicalizaria a possibilidade
de seu infinito recomeçar. Seria preciso questionar se essa caracterização do
sentido performático do texto seria definitivamente excluída na narratologia
dos escritos posteriores à conversão católica de Schlegel.
Consequentemente, se Peter Szondi está correto ao especificar as três
raízes da filosofia da história schlegeliana como sendo o classicismo ou a
experiência dos antigos, a crítica da época ou os problemas dos modernos
e a escatologia ou a esperança no advento do reino de Deus (cf. SZONDI,
1978, p. 11), no período conservador de Schlegel, essa conjunção se refle-
te, mais uma vez, como uma renovada historiografia. Tal acerto de contas
com a história, sobretudo nos cursos de Colônia e Viena da década de 1810
(mas também em suas repetições e aprofundamentos nos cursos da década

O que nos faz pensar, Rio de Janeiro, v.26, n.40, p.311-338, jan.-jun. 2017
As conversões de Friedrich Schlegel: filosofia política como mística do tempo 321

seguinte), articulará uma crítica da contemporaneidade anticristã – identi-


ficada frequentemente com o idealismo, em sentido amplo – a uma revisão
do equilíbrio axiomático entre passado, presente e futuro. De certo modo,
uma primeira observação mais superficial pode ser feita: esse período inverte
a lógica que a primeira conversão, romântica, havia operado nessa relação,
quando, em Sobre o estudo da poesia grega [Über das Studium der griechischen
Poesie} (1797), os gregos informavam aos modernos a tarefa de seu futuro.
Agora, é o tempo por vir que se apresenta como dialética católica da salvação.
As lições denominadas, candidamente, História da antiga e da nova literatura
[Geschichte der alten und neuen Literatur], de 1812-1814, apresentadas por
Schlegel em Viena no auge de seu comprometimento com a restauração con-
servadora de Metternich na Áustria, são notáveis quanto a isso. Nelas, toda
a história da literatura alemã é vista sob a perspectiva de um eixo teológi-
co, mais especificamente, do mal [Übel], que avança como ameaça invisível
mesmo entre os que se acreditam imunes ao Idealismo (cf., por exemplo,
KSF 4, p. 199).
Além disso, a filosofia católica da história de Schlegel se traduz, ela mesma,
como um épico da conversão. O modo como ele retratou sua geração – e a si
mesmo contido nela – não deixa nenhuma dúvida quanto à importância da
metanoia imposta por sua nova confissão: a indiscernibilidade de um futuro
poeticamente indefinido se deixa substituir pela esperança (às vezes reticen-
te, alguns poderiam dizer) e por uma sucessão de épocas cristológicas – ou
mesmo eclesiásticas – numa espécie de versão romantizada do joaquinismo.14
Assim, depois de se incluir nominalmente na terceira geração da moderna
literatura alemã, junto com Novalis, seu irmão August, Fichte, Schleierma-
cher, Schiller, Jean Paul, Schelling e Tieck (KSF 6, p. 58), Friedrich Schlegel
a define, em uma anotação de 1823, da seguinte maneira:

“Os espíritos da terceira geração podem, no máximo, ser concebidos e apre-


sentados ou caracterizados como pensadores e poetas dinâmicos. Grandes
forças intelectuais [intelektuelle Gewalten] tiveram lugar naquela época;
e, nessa época, a literatura alemã teve propriamente sua crise [Krisis];

14 Joachim de Fiore, monge italiano do século XII, formulou uma teologia que dividia a história
da salvação em três tempos, a Idade do Pai, a do Filho e a do Espírito Santo, e teve profunda
influência na historiografia dos místicos posteriores. Apesar da ideia geral de sucessão das eras,
suas teses não são totalmente compatíveis com as de Schlegel, já que os joaquinistas acreditam na
supressão da autoridade institucional com o advento da Idade do Espírito Santo. Contudo, uma
certa retórica e uma vaga concepção de tempo messiânico formuladas nesse contexto foram, algu-
mas vezes, aproximadas do Romantismo alemão – cf. SVENUGSSON, 2016, pp. 80-82.

O que nos faz pensar, Rio de Janeiro, v.26, n.40, p.311-338, jan.-jun. 2017
322 Fabiano Lemos

apenas ela não foi, então, levada até o fim, e nem solucionada muito satis-
fatoriamente – <porque faltou-lhe a base [Basis] correta – que não deve ser
o idealismo, mas o cristianismo católico, portanto, como filosofia – os prin-
cípios do espiritualismo e uma filosofia da natureza cristã>” (KSF 6, p. 61).

Levar a crise até o fim constitui aqui o ato místico por excelência. Um frag-
mento privado do mesmo período acrescenta, ainda, que essa crise de 1800
constitui um “caótico inferno de ideias [chaotische Ideenhölle]” (Idem, p. 62).
Sua visão de mundo catolicizante opera, inclusive, a introdução de uma cro-
nologia em Schlegel, que, no final da década de 1820, ao se perguntar sobre
o futuro da poesia e da prosa alemãs, arrisca projetar, para a década seguinte,
a emergência de uma disposição católica – que, no entanto, seria sobrepujada,
por volta de 1850, por uma oposição não protestante, mas, mais enfatica-
mente, anticristã (KSF Bd. 6, p. 64). O que se seguiria a ela permanece um
mistério, já que nada é dito nesse sentido. De certo modo, o suspense que
ronda o fim dos tempos, especificamente nessas passagens mais joaquinistas,
nos permite especular até que ponto Schlegel confiava no advento efetivo do
Reino de Deus e em que medida algo de sua perspectiva de juventude acerca
do inacabamento da verdade ainda se insinuava pelos avessos.
Seja como for, parece haver indícios suficientes de que a passagem para o
catolicismo, considerada desde a perspectiva da filosofia da história, não se
reduzia a uma mera mudança de trajeto ou de campo ideológico-dogmático.
Bem além disso, ela devia se inscrever, para Schlegel, em um movimento
circular de reintegração do Cristianismo como um todo, apontando para
a síntese triunfante da verdadeira fé. Na medida em que certos aspectos
litúrgicos, assim como todo paganismo, são deixados de fora, poderíamos
ser tentados a reconhecer aí uma espécie de versão sectária da dialética he-
geliana em ação. Em alguns fragmentos sobre história e política escritos em
1816, isso é exemplarmente nítido. Neles, ao associar a história dos Estados
europeus desde o século XVIII ao papel que a religião reformada exerceu
em suas transformações, Schlegel é levado a admitir que o protestantismo
foi o passo necessário na destruição dos falsos reinados – o de Luís XIV é
dado como exemplo – e na dissolução do ateísmo francês (KSF 6, p. 104).
Descrito como momento negativo, de recusa sistemática da imposição do
poder externo, sua formulação filosófica mais acabada é o sistema da Wis-
senschaftslehre fichtiana, lida como “o mais alto cume do espírito protestante”
(Idem). Mas a virada para o século XIX se confrontaria com uma dificuldade
que, na verdade, já havia sido repisada de diferentes maneiras pela geração

O que nos faz pensar, Rio de Janeiro, v.26, n.40, p.311-338, jan.-jun. 2017
As conversões de Friedrich Schlegel: filosofia política como mística do tempo 323

romântica (e por Hegel) desde muito cedo: o fato de que o pensamento de


Fichte não conseguia dar um passo além da luta no interior do Eu, ou seja,
da luta em nome do Eu.
Com a Wissenschaftslehre acontece o mesmo que com o desenvolvimento
dos Estados na direção de um funcionamento orgânico, e isso porque “o protes-
tantismo não consegue ir além e subir mais alto” (KSF 6, p. 105). A mudança de
perspectiva dos fragmentos de 1816 reside na leitura político-teológica desse
impasse, e na proposição de uma saída católica reconhecida nos eventos polí-
ticos relativamente recentes. Contra o esgotamento histórico da Reforma, um
sinal de mudança é dado com a derrota da campanha de Napoleão no Egito
e com a subsequente Concordata napoleônica, celebrada definitivamente em
setembro do mesmo ano, através da qual a Igreja católica passaria a receber
certos benefícios financeiros, mas, sobretudo, passava a ser reconhecida como a
religião da maioria dos franceses. Em termos simbólicos, a derrota napoleônica
e o reconhecimento da Igreja se conjugam como uma vitória tanto em relação
ao iluminismo, representado pela equipe de cientistas que acompanhou o exér-
cito francês no Egito, quanto em relação ao romantismo juvenil, identificado
com o ímpeto expansionista do Império (cf. KAHN, 2005, pp. 103-104).15 O
exemplo dado por Schlegel é, assim, duplamente significativo: “com o retorno
[Rückkehr] de Napoleão fora do Egito e, então, com a Concordata, começa a
reviravolta [Umschwung]” (KSF 6, p. 104). De um lado, ele reproduz o pro-
fundo imbricamento entre política, religião e ciência; de outro, ao designar tal
acontecimento precisamente como uma Umschwung, termo que caracteriza o
movimento de retorno mais amplo ou de uma volta sobre si de uma perspecti-
va mais geral – se identifica algo que é, concomitantemente, revolução e retor-
no. Mas, assim como há o retorno negativo – a Rückkehr de Napoleão para fora
do Egito – , há o retorno positivo, que dá sentido ao primeiro, e que só pode
ser pensado pela reunificação da Igreja ao Estado. A Umschwung, além disso,
sustenta um campo semântico que se bifurca entre uma filosofia da história
parcialmente hegeliana e a ética dos convertidos católicos.

15 A figura de Napoleão parece ter exercido uma influência, mesmo que indireta, na conversão
de Schlegel. Ao menos essa é uma das hipóteses erguidas também por Ethel De Mazza, que pro-
curou mostrar como as descrições das obras de arte do Louvre, apresentadas por Schlegel em sua
memória da viagem à França, publicada em 1803 em sua revista Europa, é atravessada pela crítica
à pilhagem das pinturas e esculturas que tornaram o lugar possível. As descrições dessas obras na
narrativa schlegeliana parecem ter, assim, por função reconduzi-las a uma unidade espiritual que
o saque francês na Itália e na África, sobretudo, destruiu. De Mazza deixa em aberto, com isso,
a hipótese de que a visão da destruição da Europa através da imposição da política napoleônica
sobre a arte teria exigido de Schlegel uma nova solução narrativa, que ele encontraria na religião
(cf. DE MAZZA, 2008, p. 121).

O que nos faz pensar, Rio de Janeiro, v.26, n.40, p.311-338, jan.-jun. 2017
324 Fabiano Lemos

Evidentemente, o desenvolvimento de uma tal posição tem de deixar de


fora da dialética da salvação todo acontecimento que se manifeste como sepa-
ração da Igreja e do Estado – o que a afasta, evidentemente, do hegelianismo
puro e simples. Os cultos pagãos, as seitas e sociedades secretas modernas
formam, com isso, um tipo de comunidade falsificada, pois não se remetem à
totalidade dos homens, a uma síntese final e omniabrangente. Sua lógica, do
ponto de vista da historiografia católica do século XIX, só pode ser a da ilusão
e do erro, mas seu flerte com o hegelianismo ainda permite uma esperança
na passagem interna para um outro tempo. Desde as vésperas de sua conver-
são, ainda em 1806, Schlegel havia passado a interpretar toda intermediação
pessoal e particularista como falsa. Assim, o fetichismo dos primitivos remete
unicamente à ”doutrina dos pregadores inconsequentes” (KSF 5, 118); afir-
mação que repercutirá, anos mais tarde, naquela que apresenta a franco-ma-
çonaria como uma “planta parasita [Schmarzortzerpflanze]” do Estado e da
Igreja (KSF 6, p. 103), retomando, surpreendentemente, a metáfora vegetal
que constitui um dos maiores lugares-comuns da retórica do Romantismo de
Jena (cf. HOLLAND, 2009, pp. 23-39). Em seus cursos de 1812-1814 sobre
a história da literatura antiga e moderna, Schlegel faz da luta do Cristianis-
mo primitivo contra as diversas doutrinas filosóficas, platônicas, neoplatôni-
cas, estóicas e epicuristas, não apenas uma cisão [Scheidewande] na história
mundial, mas, sobretudo, um ponto de inflexão [Wendepunkt] na “história
da cultura e no desenvolvimento da formação do espírito [Geistesbildung]”
(KSF 4, p. 52). É certo que a nova função da crítica é a de reencontrar uma
escatologia que os textos do período da Athenäum jamais poderiam admitir. A
possibilidade de pensar um mediador como figura indeterminada, tal como
Novalis sugere no fragmento 74 do conjunto de fragmentos intitulado Pólen
(NOVALIS, 2005, Bd. 2, pp. 257-258), é aqui recusada veementemente: a
expectativa novalisiana de uma compatibilização entre panteísmo e monote-
ísmo é sistematicamente frustrada, pois o único mediador possível é o Cristo
da Igreja Católica.16 Vê-se, com isso, como a Concordata napoleônica resolve
a questão da multiplicidade das determinações históricas apresentada no
famoso fragmento 216 dos fragmentos da Athenäum. Se o Meister de Goethe,

16 Para Novalis, “Nada é mais indispensável para a verdadeira religiosidade que um termo médio
[Mittelglied], que nos une com a divindade” (NOVALIS, 2005, Bd, 2, p. 257). Mas não devemos
esquecer que esse mediador não é, para este, representado exclusivamente por nenhuma figura
mediadora [Mittler] definitiva, de tal modo que seria possível pensar que qualquer um poderia se
tornar mediador da verdadeira religião, numa síntese entre panteísmo e monoteísmo – o que seria,
evidentemente, impensável para o Schlegel católico.

O que nos faz pensar, Rio de Janeiro, v.26, n.40, p.311-338, jan.-jun. 2017
As conversões de Friedrich Schlegel: filosofia política como mística do tempo 325

a Revolução Francesa e a filosofia de Fichte se definiam neste como as três


“maiores tendências da época” (KSF 2, p. 124), o único elemento capaz de
sintetizá-las e, portanto, dar-lhes um sentido, após a conversão, é a escatologia
institucionalizada da Igreja Católica. O fracasso da ciência e da política jaco-
binas, bem como o fracasso da ciência e da política imperialistas, se resolve
na liturgia e no direito canônico. Não é nada surpreendente, nesse sentido,
que Schlegel possa dizer a respeito da relação entre obediência e liberdade:

“Os lugares na escritura em que deve estar a autoridade de Deus, e con-


tra a qual não se deve contrapor, concluem-se explicitamente da força [ou
violência, Gewalt] jurídica, que é o elemento divino no Estado; nada como
uma assim denominada obediência passiva, que, fundamentalmente, é
completamente não-cristã [unchristlich]. O caso em que também a pressão
de um senhor é contemplada como punição de Deus, e em que se a sofre
pacientemente, não é universalmente aplicável” (KSF 6, p. 84).

Se é nítido o modo como esse novo ethos se afasta do diletantismo epis-


temológico e moral da época de Lucinde (1800), por exemplo, é claro, por
outro lado, que um insistente esforço de unificação se desdobra através das
leituras retrospectivas que Schlegel faz de sua geração e seu passado. Mesmo
o “caótico inferno” de Jena pode ser alinhado, através de sua filosofia católica
da história, ao projeto de estabilização do pensamento na forma institucional
da Igreja. O problema aqui, ao menos formalmente próximo do de Hegel, é
o da síntese das sínteses. Mas o que me parece mais interessante é o modo
como esse alinhamento é produzido por Schlegel, especialmente em seus es-
critos preparatórios para os cursos de Viena. Pois não se trata de mostrar que
o Frühromantik carecia de um modelo ideológico – embora isso seja apontado
muitas vezes –, mas, mais significativamente, de ampliar conceitualmente a
ética que lhe era própria para que pudesse ser estendida à nova escatologia
católica, levando, ao mesmo tempo, a uma reconfiguração da relação dessa
escatologia com o passado em uma via de mão dupla.
Muito sintomática, sob esse aspecto, é a passagem em que se redefine, alar-
gando-se, o sentido da posição jacobina de sua juventude. Ao estabelecer mais
uma de suas inúmeras listas cronológicas, Schlegel apresenta, em 1811, como
parte da “época revolucionária moderna”, tanto os escritores da Athenäum
quanto Schiller, Fichte, Fouqué e Adam Müller (KSF 6, p. 33). Assim, o que
se transforma em sua nova filosofia da história não é apenas o critério estável
do movimento da vida e do destino da cultura, capaz de explicar, de uma vez

O que nos faz pensar, Rio de Janeiro, v.26, n.40, p.311-338, jan.-jun. 2017
326 Fabiano Lemos

por todas, as diferentes figuras dispostas no tempo, reunindo-as numa lógica


totalizante. A salvação da e na Igreja, ao se instalar como paradigma, modifica,
também, e incessantemente, o próprio conceito da instituição. Pois os român-
ticos só se dirigem ao catolicismo na medida em que esse se dirige àqueles.
Um jacobino se prepara para o conservadorismo somente na medida em que o
conceito de conservadorismo se amplia o suficiente para incorporar os revolu-
cionários. De que outra maneira poderíamos compreender a inscrição, em um
mesmo conjunto, de Schleiermacher e Adam Müller? É essa a lição sutil que as
tentativas schlegelianas de abordar retrospectivamente sua própria história e a
história da cultura como um todo nos dão: o futuro não é apenas a negação do
passado, nem meramente seu juiz – ele se realiza no passado, se torna o que
é na diferenciação dessa origem. Poderíamos formular essa disposição instau-
rada pela ética da conversão, enfim, como uma anamorfose histórico-filosófica:
nela, o futuro só se justifica enquanto projeto sob a condição de o presente se
realizar como mirada construtiva do passado.
Szondi parece ter razão ao assinalar as incoerências das inúmeras classi-
ficações históricas estabelecidas por Schlegel, desde muito cedo (SZONDI,
1978, p. 45). Alguém poderia enxergar nisso apenas os traços circunstanciais
de uma série de esboços de uma única história, diluindo a importância do
próprio gesto de retomada das classificações. Essa leitura teria de se compro-
meter com a ideia de que o exercício da descrição histórica é neutro e distinto
de seu objeto, de tal modo que as constantes reconfigurações narrativas não
afetariam o estatuto epistemológico da evidência do Real apresentado. Ora,
exatamente esse ponto não parece ter se alterado com a conversão ao catoli-
cismo: o ofício filosófico da historiografia – o que caracteriza, para Schlegel, a
Universalgeschichte por oposição a uma Spezialgeschichte meramente descritiva
– ergue os fatos à sua legitimidade. A descrição, a Beschreibung, não se limita
a ser um relatório monótono do que já está dado; ela transforma seu objeto
naquilo que ele deve ser (cf. DE MAZZA, 2008, passim; JAEGER, 2011, pp.
327-331). Tal descrição, portanto, não pretende eliminar as tensões do real
em nome de um Reino de Deus cujo advento já estaria tranquilamente garan-
tido. Ao contrário: o catolicismo permitiu a Schlegel compreender a história
como uma disputa entre o Cristo e o Mal, em que nada estaria garantido. A
historiografia é, ao mesmo tempo, uma tomada de posição nessa luta e um
trabalho incessante de excomunhão dos erros da irreligiosidade.
Isso explica por que as lições de 1805-1806 sobre a história universal
[Universalgeschichte] introduzem uma cronologia da humanidade dividida
em sete períodos, ordenados pelo conflito entre o Bem e o Mal – e que, de

O que nos faz pensar, Rio de Janeiro, v.26, n.40, p.311-338, jan.-jun. 2017
As conversões de Friedrich Schlegel: filosofia política como mística do tempo 327

todo modo, apontam para a “irregularidade da história real [Unregelmässi-


gkeit der reellen Geschichte]” (citado em JAEGER, 2011, p. 331). O historia-
dor universal é chamado, assim, a, intermitentemente, agir sobre a dispersão
do real para resgatar nele uma regularidade que se mostra como tarefa. O que
escapa aos que interpretam as hesitações historiográficas de Schlegel como
acidentais – e é importante, nesse sentido, que elas já estejam presentes em
1799, por exemplo – é o fato de que essa instabilidade é parte positiva do
projeto de construção da história que atravessa todo seu pensamento. Mesmo
que conceitual e ideologicamente os textos católicos tenham de abandonar o
tema da incompletude incontornável, substituindo-o pela revelação de Cristo
na Igreja, o constante recomeço classificatório continua a performatizar o
inacabamento. E aqui reside uma passagem que é, a um só tempo, mudança
e perpetuação de um problema filosófico extremamente difícil.
Sem pretendermos acusar nesse ponto uma simples contradição perfor-
mativa, não é inexato dizer que a ininteligibilidade das relações categoriais
no mundo real ainda era um ponto de ancoragem para todo o conjunto de
preocupações de Schlegel na época da Athenäum. Não chegar a nenhum lugar
ainda era o lugar seguro em que se enraizavam textos como Sobre a incom-
preensibilidade. A questão é explicitamente levantada pelo próprio Schlegel,
já que, nesse texto, por exemplo, o grande problema hermenêutico explora-
do é justamente o de como a instabilidade da incompreensão pode ser, ela
mesma, fundadora e estabilizadora: “Mas é a incompreensibilidade algo tão
completamente repreensível e mau? – Parece-me que a salvação das famílias
e das nações depende dela (...)” (KSF, 2, p. 240). Em um certo sentido, a
filosofia da história posterior à conversão funciona como o espelho inverti-
do do problema de 1800, ou seja, ela pode ser lida como a questão sobre o
modo como a admissão de um telos final e total ainda deixa lugar para uma
série aparentemente inesgotável de recomeços narrativos. O que se recusa
nos escritos das décadas de 1810 e 1820 é a própria instanciação do inaca-
bamento como premissa geral do pensamento, pois, para cada visada do pre-
sente para o passado, o futuro se abre como certeza. Mas, da mesma forma,
esse olhar como que hesita, e, entre o abrir e o fechar dos olhos, é preciso
começar tudo de novo – uma piscadela que deve refundar a eternidade, a
salvação e tudo o que passou. A não-verdade da incompreensibilidade era
universal e garantidora; a verdade convertida, eterna, do Cristo enquanto
Igreja é perene, mas imanente – e, portanto, não está apoiada em nada fora
de sua enunciação, que a investe de regularidade no instante mesmo de sua
efetivação. É assim que, nesse triângulo temporal, todos os seus vértices

O que nos faz pensar, Rio de Janeiro, v.26, n.40, p.311-338, jan.-jun. 2017
328 Fabiano Lemos

– passado, presente, futuro – se encontram mutuamente determinados, ou


antes, colapsados sob a forma de uma eternidade descontínua. Olhando com
atenção, essa configuração da relação tempo-hermenêutica não é tão diferen-
te daquela que o texto sobre a incompreensibilidade visava. Basta lermos o
que esse último afirma a respeito dela: “Todas as maiores verdades, de todo
tipo, são completamente triviais e, exatamente por isso, nada é mais neces-
sário do que exprimi-las sempre de novo, e, onde possível, de forma mais
paradoxal (...)” (KSF 2, p. 237). Mesmo que esse problema não possa mais
ser objeto da nova ética convertida, já que ela impõe os valores da certeza,
é extremamente significativo – senão central – que o período tardio retome
essa premissa como seu próprio modo de operar.
O que podemos, enfim, afirmar, é que a incontornabilidade da negação
– do inacabamento, da incompreensibilidade – no período jacobino de Schle-
gel funcionava como uma espécie de barreira contra a possibilidade de que o
atual do texto se dissolvesse no eterno fora dele. Dissolvido esse obstáculo, o
infinito positivo pode vir reconfigurar, a seu bel prazer e a qualquer momen-
to, a história total dos sujeitos e da cultura – e, com isso, o próprio tempo.
Em termos políticos, o conservadorismo consiste justamente nisso: não a
recusa da revolução, mas a capacidade de integrá-la em um processo onde
ela ganha sentido ao ser resgatada de um passado por um presente que é, ele
mesmo, narrativo: projeção e mobilidade. Assim, se um fragmento de 1816
pôde insistir que o mal não é nem a revolução, nem o despotismo – é, antes
de tudo, o Estado mesmo – é porque somente ao serem substituídos pela
Igreja é que todos os tempos se conjugam, “os Estados espirituais em Roma
e o antigo Império alemão devem ser considerados, dessa forma, como indi-
cações incompletas, esquecidas da futura dominação, na triunfante Igreja. – ”
(KSF 6, p. 105). O político pode, enfim, livre do negativo, vir a colonizar o
hiato entre a tarefa hermenêutica atual, o esquecimento da origem e a crença
no triunfo por vir. Sabemos o quanto o nazismo explorou essa lógica sal-
vífica da historiografia conservadora, permitindo-se sempre reescrever não
só seu passado, mas seu futuro e seu presente. Ao contrário do que muitos
pretenderam, não reside aí algo como sua contradição fundamental, mas,
antes – e é nesse caminho que uma crítica ao nazismo precisa se desvincular
da lógica da contradição se quiser ser eficiente – é aí mesmo que se manifesta
seu destino e seu perigo: ele também é determinado pela revolução.

O que nos faz pensar, Rio de Janeiro, v.26, n.40, p.311-338, jan.-jun. 2017
As conversões de Friedrich Schlegel: filosofia política como mística do tempo 329

O tempo do reconhecimento

O que resiste, portanto, à entrada dessa escatologia? Se o termo Umschwung


guarda o sentido que mencionamos anteriormente, é preciso que alguma so-
brevivência semântica, em algum nível, seja garantida. Minha hipótese, que
se sustenta nas inúmeras ambiguidades do tempo apresentadas em suas li-
ções sobre a história, tanto a história da literatura quanto a da política – e no
exato corpo comum que as unifica –, é a de que ao tempo crônico do Espírito
– que se desdobra em séculos e se distribui irregularmente pelas cronologias
mais diversas, que ergue e desfaz as Revoluções e os déspotas – se sobrepõe
um outro, que não bastaria chamar de místico, embora uma certa suspensão
da duração opere através dele. Mais precisamente, o tempo da conversão é
um tempo crítico, e talvez seja preciso refletir sobre esse dupla determinação
temporal se quisermos pensar a lógica intrínseca, ou antes, a deriva do jaco-
binismo em direção ao catolicismo em Schlegel. Pois, se o que caracteriza um
dos mais importantes elementos do conservadorismo é a necessidade de um
contínuo recomeço do tempo crônico, isso se deve ao fato de que o elemento
decisório ou narrativo que lhe dá lugar precisa, ele mesmo, estar, de modo
muito específico, não fora do tempo, mas, para retomar uma linguagem blan-
chotiana-deleuziana, no fora do tempo.
De fato, foi primeiro Benno von Wiese quem insistiu na cronicidade do
tempo assinalando-a como ciclicidade no pensamento historiográfico de Sch-
legel (WIESE, 1927, pp. 119-120), mas apenas mais recentemente a questão
foi explorada de modo mais amplo (cf. SZONDI, 1974a, pp. 105 e ss.; KANS-
TENBAUER, 1998, pp. 135-136). Essa hipótese se justifica nos muitos textos
schlegelianos que pensam o ciclo como modelo geral da reconstrução históri-
ca. Em um período mais tardio, isso acontece, por exemplo, quando, ao olhar
retrospectivamente para o grupo de Jena, Schlegel o distingue do de Goethe,
Schiller, Werner e (surpreendentemente) Tieck, denominando aquele como
“um ciclo e uma série de coisas completamente diferentes” (KSF 6, p. 51). É
muito importante notar que esse modo de descrever a história já era anun-
ciado em um fragmento de 1797 como característica de um procedimento de
leitura que se voltava para suas preocupações filológicas, ou seja, no ponto de
cruzamento entre hermenêutica e história: “A ciclização [Ciklisation] é como
uma totalização de baixo para cima <em Fichte, algo como uma escalada des-
cendente>” (KSF 5, p. 180). Mas esse tempo complicado, que se revolve sobre
si, subindo ao mesmo tempo em que desce – por uma Herabsteigen fichtiana
– não pode ser um movimento contínuo, e é aí que o tempo crítico, que é o
tempo da crise e o do critério, se instaura como sua condição mesma.

O que nos faz pensar, Rio de Janeiro, v.26, n.40, p.311-338, jan.-jun. 2017
330 Fabiano Lemos

Philippe Lacoue-Labrathe e Jean-Luc Nancy identificaram esse instante de


suspensão da continuidade como a base do pensamento filosófico-histórico
de Schlegel:

“A história que serve de fonte para Schlegel não é feita, em suma, senão de
tais suspensões: duas épocas de poesia, tão fulgurantes quanto rapidamen-
te interrompidas (a grega e a romântica) e dois longos períodos de crítica,
durantes os quais é suspenso (até certo ponto) o ‘sentido da poesia’ ou a
capacidade poética” (LACOUE-LABARTHE & NANCY, 1978, p. 381).

O que Lacoue-Labarthe e Nancy afirmam a partir dos textos de juventude


pode ser estendido à própria dinâmica da conversão e à narratividade a que
ela dá lugar. A cronologia infinitamente retomada e reelaborada dos cursos de
Viena apresenta a interrupção do tempo como a própria forma do movimento
em direção ao passado e ao futuro. Peter Szondi enxergou aí algo como um
complemento à ciclização em Schlegel, mas o caracterizou como a expressão
de uma certa disposição geral da filosofia da história moderna, aquela que
distende a duração entre um “não mais” e um “ainda não” (SZONDI, 1974b,
p. 12). O problema dessa leitura, a meu ver, é que ela acaba por esvaziar
completamente toda determinação do instante fundador, o que o tornaria
indiscernível em relação ao caráter abstrato do absoluto idealista – e não
permitiria a diferenciação entre o projeto filosófico da época da Athenäum e
aquele posterior à sua conversão, ou pior, manteria a religião da revelação
como concretamente indeterminada.17 Ao contrário disso, a atopia do instan-
te de suspensão do tempo é paradoxal porque ela se inscreve precisamente
em uma existência concreta – aliás, é esse exatamente o mistério da figura do
Cristo: o Pai feito filho, o Uno se particularizando. Como lembra Schlegel,
não se trata simplesmente de afirmar que Deus é infinito – pois isso também
o panteísmo afirma – ou que é incomensurável, “pois isso o espaço vazio
[leere Raum, numa referência enviesada à estética transcendental de Kant]”
também é (cf. KSF 5, pp. 129-130). Nesse sentido, a própria manifestação

17 Contra os riscos do idealismo, é importante lembrar um fragmento escrito às vésperas da


conversão, em 1806: “O último e mais ilusório motivo contra a religião católica é que tudo isso
pode ser totalmente correto e definitivamente belo em Ideia, mas que, na prática, deveríamos nos
manter distantes de tudo que não existe. Pode-se dizer contra isso 1) esse é o erro fundamental
de nossa época – a vida literal, quando palavras são simplesmente impotentes; cerimônias e ações
[são] uma língua muito mais bela; 2) Nisso reside uma segregação aristocrática do povo – e uma
disposição a se envergonhar dos evangelhos 3) através disso, a própria Ideia se torna pálida, su-
perficial e ineficaz, como comprova o caráter de nossa época” (KSF 5, p. 120).

O que nos faz pensar, Rio de Janeiro, v.26, n.40, p.311-338, jan.-jun. 2017
As conversões de Friedrich Schlegel: filosofia política como mística do tempo 331

viva do Cristo exige uma presença determinada que, embora resulte na inter-
rupção da narrativa teológica para reposicioná-la, não pode ser considerada
como um mero instante entre duas negações: “O critério entre a nobre e
ignóbil revelação é o próprio Cristo” (KSF 5, p. 129).
A interpretação de Szondi poderia ser corrigida caso colocássemos em
termos mais precisos o significado do colapso do tempo no instante místico
da conversão. Ao invés de uma distensão vazia, abstrata, o que encontramos,
por exemplo, no êxtase de uma mística como Santa Catarina de Sena, no
século XIV, é a presentificação da promessa e a transubstanciação do próprio
corpo perceptivo. Em uma de suas muitas cartas sobre o tema, Santa Catarina
insiste nisso: se há um momento de contração máxima da duração, de modo
que, no amor de Deus, a lembrança do passado, os sentimentos do presente
e as expectativas de não ser afetado pelas provações cotidianas e demoníacas
se unificam na Glória de Cristo, isso não significa que o corpo é abandonado.
O amor cristão vivifica e transforma a realidade:

“Sua intenção fundamental não é eliminar o corpo, mas eliminar a vontade


pessoal, pois viu na luz (divina) que a perfeição da alma não está em ma-
tar o corpo, mas sim a própria vontade no plano espiritual e material. Por
isso, a pessoa atira a própria vontade na fornalha da caridade divina (...)”
(CATARINA DE SENA, 2005, p. 861).

O corpo supliciado não funciona, portanto, como a recusa do corpo, mas


como o signo de sua transformação paradoxal – algo que mesmo Santo Inácio,
no século XVI, já havia elaborado em termos mais conceituais, uma vez que a
penitência física, constante em seus Exercícios Espirituais, inaugura toda uma
tecnologia de investigação que toma a carne como dado positivo (cf. INÁCIO,
2015, pp. 46-47).
Quando, em 1806, Schlegel se opõe exemplarmente à teologia crítico-
-filológica – tendo em vista a herança liberal de Schleiermacher – é porque
sua compreensão da revelação é animada pela demanda de uma efetividade
da fé, algo que somente a mística pode oferecer.18 É curioso notar que essa
exigência se formula, ela mesma, como uma filosofia da história, por exem-
plo, no fragmento que afirma:

18 Cf. KSF 5, p. 120: “Os escritos religiosos devem também ser lidos religiosamente. O entendi-
mento íntimo, iluminado, místico da Bíblia está necessariamente vinculado à fé católica – há de se
rejeitar completamente a exegese crítico-filológica”.

O que nos faz pensar, Rio de Janeiro, v.26, n.40, p.311-338, jan.-jun. 2017
332 Fabiano Lemos

“Pode-se quase dizer que não existe mais nenhuma religião disponível – e
somente um Deus pode voltar a produzi-las (para o homem, não é pos-
sível), com isso parece que nenhum católico compreende os mistérios da
cristandade. – Deveria haver ainda no catolicismo uma Cristandade mais
altamente mística; isso já quase desapareceu agora – mas o catolicismo é
o melhor, de fato o único abrigo para o que ainda resta inteiro” (KSF 5, p.
121).

O tempo do corpo em suplício – ou o tempo místico – corresponde, as-


sim, àquele em que a obediência não é uma imposição, fundado pelo próprio
Deus. Ele é certamente uma promessa, mas não uma negação ou uma domi-
nação vertical. Ele retira de si, ao mesmo tempo em que se altera, sua própria
condição de existência concreta. Para retificarmos a fórmula de Szondi, terí-
amos de dizer que a narrativa que ele inaugura não se encontra entre o “não
mais” e o “ainda não”, mas entre o “já” e o “ainda não”.
Esse segundo tempo, que recobre as cronologias e lhes põe em perpétuo
movimento, assinala sua operação de suspensão através de inúmeras fórmu-
las de urgência. Isso porque as distribuições temporais não são simplesmente
analíticas, elas são um chamado e um testemunho do instante. São frequentes
nos escritos preparatórios dos cursos de 1810 e 1820 esses momentos de
conclamação, que se apresentam também como proclamação dos direitos do
presente: “É chegado o tempo de retomar o que foi omitido através da Refor-
ma. Os alemães precisam agora alcançar uma arte, e os italianos, uma filosofia”
(KSF 6, p. 96). De certa maneira, esse sentido da iminência aparecia já em
1800, logo no primeiro fragmento das Ideias: “É chegado o tempo de rasgar o
véu de Isis (...)” (KSF 2, p. 223). Seria, no entanto, fundamental notar que o
que se revela por trás desse véu é ainda um Deus sem rosto, pagão, indetermi-
nado.19 Anos depois, o instante que se abre conjuga a eternidade e o instante,
não como duas formas, mas como uma única realidade plenamente visível.
Essa é a diferença entre o começo e o recomeço em Schlegel – o tipo de visão a
que o tempo dá lugar.
Esse apelo, sabemos, assumiu um destino político extremamente persis-
tente na consolidação do conservadorismo germânico, atingindo um ponto
paroxístico, por exemplo, no messianismo do jovem Nietzsche (e do velho

19 O fragmento 40 do Ideias assinala nitidamente a distância entre o misticismo de juventude,


antideterminista, e o misticismo de Viena: “Uma relação determinada com a divindade deve ser,
para o místico, tão insuportável quanto uma visão [Ansicht], um conceito determinado dela” (KSF
2, p. 225).

O que nos faz pensar, Rio de Janeiro, v.26, n.40, p.311-338, jan.-jun. 2017
As conversões de Friedrich Schlegel: filosofia política como mística do tempo 333

Wagner).20 Explicá-lo pelo crescimento do nacionalismo ou pela ascensão do


militarismo como modelo político, especialmente após as guerras napoleôni-
cas do começo do século XIX, seria dar conta apenas de uma direção do pro-
blema. É preciso considerá-lo, também, se pretendemos articular o projeto
político ao projeto hermenêutico de Schlegel, do ponto de vista filosófico-teo-
lógico. Sob esse aspecto, há uma transformação central: o tempo histórico da
época de Jena se manifestava, sobretudo, como dissolução no invisível – “O
homem espiritual é aquele que vive somente no invisível”, lembra um outro
fragmento do Ideias (KSF 2, p. 223) –; o tempo convertido, por sua vez, dá a
ver positivamente. Seu signo é o do reconhecimento, já que o infinito positivado
em Cristo deflagra o regime de uma luz total. Em 1818, ao se perguntar, mais
uma vez, sobre a época de Jena, Schlegel não deixa nenhuma margem para
dúvidas:

“A única coisa que lhe faltou é o meio-termo [Mittelpunkt] espiritual entre a


iluminação e a fé [der geistige Mittelpunkt der Erleuchtung und des Glau-
bens], que eu, contudo, comecei a procurar há pouco tempo. Afinal, essa
crítica é, sobretudo, ‘uma luz que se ilumina a si mesma’ e que alcança
imediatamente a persuasão, sem demonstração; é assim que esse meio é
encontrado e dado” (KSF 6, p. 161).

Não é surpreendente, desse modo, que tal posição já estivesse sintetiza-


da em 1806 na afirmação “Tornar-se católico não é mudar de religião, mas
apenas reconhecê-la  “ (KFS 5, p. 119). Isso porque é próprio do gesto da
conversão instaurar entre o olho e a visão uma reconciliação dialética, uma
Versöhnung verdadeiramente cristã, mas, ao mesmo tempo, uma distância
através da qual a imagem do real pode se dar a ver, sob o preço de sempre ter
de construir para si, de novo, e de novo, uma outra história, uma outra figura.

O começo interminável

Distensão e contração, diástole e sístole do Espírito: vemos, assim, como os


dois movimentos do tempo se combinam em uma leitura vitalista que não
pode se confundir com o resultado homogêneo do lugar de chegada do hege-
lianismo. A articulação entre o crônico e o crítico está mais próxima daquilo

20 Sobre esse ponto, cf. LEMOS, 2015b, pp. 83-95.

O que nos faz pensar, Rio de Janeiro, v.26, n.40, p.311-338, jan.-jun. 2017
334 Fabiano Lemos

que Jean-Luc Nancy, propondo uma leitura da arte, chama de transimanência,


ou seja, aquilo que é a “transcendência da imanência como tal, a transcen-
dência de uma imanência que não sai dela mesma ao transcender, que não é
ex-tática, mas ek-sistente” (NANCY, 1994, pp. 62-63). A ideia de força vivifi-
cante, que retorna a todo momento nos fragmentos de juventude, ganha aqui
uma ancoragem muito particular, que, certamente, diferencia esta daqueles,
mas por uma via tal que a determinação resultante da figura do Cristo e da
Igreja guarda consigo uma certa desestabilização (mais contida, é verdade)
que permite ler o Ser como Acontecimento e não como Representação.
A própria definição de crítica em Schlegel depende, do começo ao fim, do
retorno incessante ao seu elemento não-representacional. Nos termos dos
problemas colocados aqui, podemos dizer que o tempo das cronologias, das
diástoles, é um tempo analítico, na medida em que propõe esquemas herme-
nêuticos e, olhadas isoladamente, narrativas razoavelmente homogêneas da
duração. No tempo da crítica, da sístole, as coisas como que aceleram e se
acumulam no instante: seu instrumento é a apresentação (uma Dar-stellung,
que solapa o projeto oposicinal e antecipatório da Vor-stellung). É fundamen-
tal para as recensões de obras literárias e filosóficas escritas na juventude, por
exemplo, considerar esse instrumento singular que faz da leitura um ato de
criação e não um exercício de decifração21 Em 1804, ao tratar do conceito de
crítica em Lessing, Schlegel parece ter exatamente isso em mente, embora se
esforce, ainda, por compatibilizar apresentação e indeterminação:

“O indeterminado é apresentado, e por isso, também, toda apresentação


[Darstellung] é um infinito; mas somente o determinado se deixa comuni-
car. E não o indeterminado, mas, antes, o determinado é aquilo que todas
as ciências procuram. É por isso mesmo que, na mais elevada de todas as
ciências, que não deve ensinar algo como o individualmente determinado,
mas, que o determinado tem de determinar a si mesmo em geral, não é
suficiente dar o pensado como já acabado” (KSF 3, p. 41).22

21 É esse exatamente o ponto que torna toda conciliação com Schleiermacher, do começo ao fim,
impossível para Schlegel. Cf. MAAS, 2010.

22 Também sob esse aspecto, a leitura crítica que Schlegel promove em torno do próprio Lessing
só pode ser feita como um comentário ativo à diversidade de sua obra – o texto de 1804 se apre-
senta como introdução a uma miscelânea bastante variada de seus textos (poesias, fragmentos de
dramas, textos políticos etc.). Como mostrou Ethel De Mazza, o comentário de Schlegel se ins-
taura como o sentido de unidade dessa obra, renovando-a em ato – e, assim, seu projeto antecipa
algo da ideia de restauração e restituição que a conversão católica radicaliza (cf. DE MAZZA, 2008,
pp. 116-118).

O que nos faz pensar, Rio de Janeiro, v.26, n.40, p.311-338, jan.-jun. 2017
As conversões de Friedrich Schlegel: filosofia política como mística do tempo 335

Elaborada criticamente, a Darstellung schlegeliana se desvincula da ideia


de representatio e amplifica o poder constitutivo da exhibitio (cf. GRIMM,
1854-1860, Bd. 2, p. 793), a tal ponto que o que ela exibe é sua força de exi-
bição. Também sobre esse projeto vertiginoso, Jean-Luc Nancy nos permite
algum esclarecimento:

“A apresentação da apresentação não é uma representação: ela não reme-


te a um sujeito para o qual e no qual ela teria lugar. A apresentação da
apresentação a remete a ela mesma, como se se enunciasse simplesmente
patet, ‘é manifesto’, ‘é evidente’, não para carregar a reflexividade infinita,
‘é evidente que é evidente’ [‘il est evidente qu’il est évident’], mas, antes,
para fazer aparecer, entender, distinguir, sentir e tocar o é [il], ‘sujeito’ da
evidência” (NANCY, 1994, p. 62).

A interpretação de Nancy tem a vantagem de construir, a partir do funcio-


namento crítico da Darstellung, uma ligação entre as duas fases de Schlegel.
Algo da vertigem do deslocamento dos primeiros anos é preservado, já que
podemos dizer que a descoberta mais importante de seu catolicismo foi a de
que a apresentação também podia assumir a forma do positivo. A presença do
Cristo não se deixa ler, sob nenhuma condição, como um signo ou uma alego-
ria homogêneos. Tudo o que lhe pertence é do regime do visível, mas, ainda
assim, fundador da própria visualidade. A crítica e a mística tardia de Schlegel
têm exatamente isso em comum: sua univocidade é, fundamentalmente, a
recusa de um sistema semiótico que lhe anteceda. Como a revelação, o dar a
ver da crítica é autossuficiente, autogerado e imediato.
É claro que não se pode dizer que a exhibitio católica seja exatamente a
mesma coisa que a romântica, ou que a conversão não teria mudado subs-
tancialmente muitas coisas. Trata-se de mostrar, antes, que a dinâmica do
conservadorismo, como repetição narrativa de começos totalizantes, exige a
inscrição de toda determinação na lógica da manifestação. O começo revolu-
cionário e o recomeço reacionário partilham esse ponto: eles se dão inteiros
como acontecimento hermenêutico. Uma leitura muito comum – e, a meu
ver, totalmente justificada – busca mostrar como o acontecimento católico,
por sua vez, estabiliza definitivamente a filosofia da história em Schlegel,
afastando-o de suas posições mais juvenis. Mas gostaria, enfim, de propor
que a diferença incontornável viabilizada pela conversão não consistiria em
uma mera recusa, mas, de certo modo, em uma realização. Se atentarmos
para os problemas quanto ao tempo que discuti aqui, poderíamos pensar

O que nos faz pensar, Rio de Janeiro, v.26, n.40, p.311-338, jan.-jun. 2017
336 Fabiano Lemos

que, se a história dos indivíduos e da cultura estivesse condenada a apenas


começar, sem nunca concluir, ela acabaria por se render a uma espécie de
absoluto epistemológico. Comentando a passagem em que Schlegel afirma
que “o verdadeiro protestante deve também protestar contra o próprio pro-
testantismo”, Ethel De Mazza conclui precisamente isso: “exatamente porque
a crítica partilha com o Protestantismo o espírito do protesto, ela aparece
para ele, também, como a mais efetiva arma contra o Protestantismo – ou,
pelo menos, a mais consequente” (DE MAZZA, 2008, p. 120). A conclusão
dos começos, desse modo, é a interrupção de um ciclo homogêneo que o
negativo – a incompreensibilidade, a indeterminação etc. – poderia instaurar,
caindo numa espécie de armadilha. Que essa conclusão coincida com o ins-
tante, que sua escatologia não traga o Apocalipse, mas o Evangelho, eis o que
garante que ela carregue consigo a estrutura da diferenciação. Tal leitura de
Schlegel poderia colaborar para os esforços de Slavoj Žižek de identificar no
monoteísmo o caráter subversivo da irrupção do tempo da eternidade, por
oposição aos mecanismos de dominação impostos pela admissão, reptícia ou
sub-reptícia, de um tempo secular contínuo ao qual se dirigiriam as espiri-
tualidades não-sintéticas (cf. ŽIŽEK, 2013, pp. 13-33). É sempre um risco
político procurar o ponto de inflexão entre a revolução e o império, já que
a disputa pela enunciação da história não pode ser neutra. Até onde posso
ver, a exegese schlegeliana, ao menos quanto aos pontos abordados aqui, nos
coloca a difícil e, ao mesmo tempo, urgente questão sobre as premissas não
apenas da neutralidade, mas também as da recusa da neutralidade política.
A visão que temos hoje do Romantismo alemão e de seus infortúnios nas
trilhas do conservadorismo certamente nos deixou cegos para a poderosa
crítica aos sistemas de estabilização que encontramos não apenas no grupo de
Jena, mas também em Hoffmann, em Kleist, em Grabbe. No entanto, a pró-
pria tentativa de reabilitar essa crítica acabou, muitas vezes, simplificando-a
demasiadamente. O caso mais notório é o de Maurice Blanchot. Sua interpre-
tação dos românticos é, sem dúvidas, o ponto de partida de grande parte do
interesse renovado que Lacoue-Labarthe e Roger Ayrault desenvolveram nes-
se contexto, mas ela fecha os olhos para o problema de seu destino. Ao afirmar
que “o romantismo termina mal (...) porque ele é, essencialmente, começo,
aquilo que não pode senão terminar mal” (BLANCHOT, 1969, p. 517), Blan-
chot parece incapaz de considerar o fim como algo fora dos sistemas estáveis
de significação. E, com isso, a eternidade, a deriva própria do Romantismo, é
reduzida a um Vazio que a leitura dos textos tardios de Schlegel, insistente-
mente, se dedicou a excomungar.

O que nos faz pensar, Rio de Janeiro, v.26, n.40, p.311-338, jan.-jun. 2017
As conversões de Friedrich Schlegel: filosofia política como mística do tempo 337

Referências

AYRAULT, R. La Genèse du Romantisme Allemand, 4 vol. Paris: Aubier, 1961-1976.


BEHLER, E. Chronik zu Friedrich Schlegels Leben vom 10. März 1772 bis
zum 12. Januar 1829. In: SCHLEGEL, F. Kritische Schriften und Fragmente, Bd. 6,
herausgegeben von Ernst Behler und Hans Eichner, Paderborn/ München/ Wien/
Zürich: Ferdinand Schöningh, 1988.
BEISER, F. The romantic imperative: the concept of early German romanticism.
Cambridge, Massachusetts, and London, England: Harvard University Press, 2003.
BESSLEY, L. Catholic Conversion and the End of Enlightenment in Religious and
Literary Discourses. In: KRIMME, E.; SIMPSON, P. A. Religion, Reason, and Culture in
the Age of Goethe. Rochester: Camden House, 2013.
BÜHLER, J. Von Bismarck-Reich zum geteilten Deustchland. Berlin: de Gruyter, 1960.
CATARINA DE SENA. Cartas completas, São Paulo: Paulus, 2005.
DE MAZZA, E. M. “Alle Protestanten sind zu betrachten als zukünftige Katholiken”
Schlegels Konversionen. In.: Athenäum. .Jahrbuch der Friedrich Schlegel-Gesellschaft, Bd.
18, 2008.
DELEUZE, G. Francis Bacon. Logique de la sensation. Paris: La Différence, 1981.
DERRIDA, J. De la grammatologie. Paris: Minuit, 1967.
FRANK, M. Wie reaktionär war eigentlich die Frühromatik? In.: Athenäum. Jahrbuch
der Friedrich Schlegel-Gesellschaft, Bd. 7, 1997.
GRIMM, J. & W. Deutsches Wörterbuch, Leipzig: Hirzel 1854-1960.
HEUVEL, J. V. A German Life in the Age of Revolution: Joseph Görres, 1776-1848.
Washington: The Catholich University of America Press, 2001.
HOLLAND, J. German Romanticism and Science The Procreative Poetics of Goethe,
Novalis, and Ritter. New York/ London : Rotledge, 2009.
HOWE, J. N. Der arabeske Staat. Politik und Ornament bei Novalis. In.: Athenäum.
Jahrbuch der Friedrich Schlegel-Gesellschaft, Bd. 20, 2010.
INÁCIO. Exercícios espirituais. São Paulo: Loyola, 2015.
JAEGER, S. Performative Geschichtsschreibung: Forster, Herder, Schiller, Archenholz
und die Brüder Schlegel. Berlin: de Gruyter, 2011.
JOSHUA, E. Friedrich Leopold Graf Zu Stolberg and the German Romantics. Oxford:
Peter Lang, 2005.
KAHN, P. La laïcité. Paris: Le Cavalier Bleu, 2005.
KOSTENBAUER, G. Anwenden und Deuten. Kripkes Wittgensteininterpretation und
die Goethezeit. München: Herbert Utz, 1998.
LACOUE-LABARTHE, Ph.; NANCY, J.-L. L’absolu littéraire. Paris: Seuil, 1978.
LAPOUJADE, D. Deleuze. Les mouvements aberrants. Paris: Minuit, 2014.

O que nos faz pensar, Rio de Janeiro, v.26, n.40, p.311-338, jan.-jun. 2017
338 Fabiano Lemos

LEMOS, F. O ethos luterano e a filosofia do romantismo alemão. Numen, vol. 17, n.2,
2015a.
________. Soldados e centauros. Educação, filosofia e messianismo no jovem Nietzsche,
1858-1869. Rio de Janeiro: Mauad, 2015b.
MAAS, W. P. Hermenêutica e anti-hermenêutica. Friedrich Schlegel e Schleiermacher,
Pandaemonium germanicum, n. 15, 2010.
MILLÁN-ZAIBERT, E. Friedrich Schlegel and the Emergence of Romantic Philosophy. New
York: State University of New York Press, 2007.
NANCY, J.-L. Les Muses. Paris: Galilée, 1994.
NOVALIS. Werke, Tagebücher und Briefe. 3 Bände, 2. Aufl. München/Wien: Carl
Hanser, 2005.
READE, C. Mendelssohn to Mendelssohn. Visual Case Studies of Jewish Life in Berlin.
Bern: Peter Lang, 2007.
SCHILLER, F.. Über die ästhetische Erziehung des Menschen in einer Reihe von
Briefen In: Sämmtliche Werke, Bd. 5, München: Hanser, 1962.
SCHLEGEL, F. Kritische Schriften und Fragmente, 6 Bde. herausgegeben von Ernst
Behler und Hans Eichner. Paderborn/München/Wien/Zürich: Ferdinand Schöningh,
1988.
SCHMITT, C. Politische Romantik. München und Leipzid: Duncker und Humblot,
1925.
SCHNYDER, P. Politik und Sprache in der Frühromantik Zu Friedrich Schlegels
Rezeption der Französischen Revolution. In: Athenäum. Jahrbuch der Friedrich
Schlegel-Gesellschaft, Bd. 9, 1999.
SEGEBERG, H. Germany. In: DANN, O.; DINWIDDY, J. (ed.). Nationalism in the Age
of the French Revolution. London: Hambledon Press, 1988.
SVENUGSSON, J., Divining History: Prophetism, Messianism and the Development of
the Spirit. New York/Oxford: Berghahn, 2016.
SZONDI, P., Schriften II. Frankfurt am Main: Suhrkamp, 1978.
________. Poetik und Geschichtsphilosophie I. Frankfurt am Main: Suhrkamp, 1974a
________. Poetik und Geschichtsphilosophie II. Frankfurt am Main: Suhrkamp, 1974b.
WELTMAN, J., The religion of Friedrich Schlegel. In: The Modern Language Review,
Vol. 31, No. 4, 1936.
WIESE, B. von. Friedrich Schlegel: Ein Beitrag ƶur Geschichte der Romantischen
Konversionen. Berlin: Julius Springer, 1927.
ŽIŽEK, S. The puppet and the dwarf : the perverse core of Christianity. Cambridge: MIT
Press, 2013.

O que nos faz pensar, Rio de Janeiro, v.26, n.40, p.311-338, jan.-jun. 2017
Rafael Henrique Teixeira*

Sobre máquinas e organismos.


Canguilhem e os aspectos dissimulados
do animal-máquina cartesiano

On machines and organisms.


Canguilhem and the disguised aspects
of Cartesian animal-machine

Resumo
O objetivo deste artigo é abordar a leitura que Canguilhem oferece da biologia
cartesiana. Mais que simples comentário de intérprete, Canguilhem pretende
demonstrar como, por meio da representação mecânica do organismo, máquina cujo
funcionamento depende exclusivamente da disposição de seus órgãos, Descartes foi
obrigado a integrar à elucidação mecânica do corpo vivo elementos refratários a um
mecanicismo integral. Esses elementos Canguilhem encontra no antropomorfismo
tecnológico observável na metafísica que subentende a tese do animal-máquina. De
um lado, essa maneira de encarar a filosofia cartesiana se apresenta como corolário
da filosofia biológica da técnica de Canguilhem; de outro, ela se enquadra em um
aspecto não menos fundante de sua filosofia: a busca, na história dos saberes sobre a
vida, de elementos que permitem concluir acerca da irredutível originalidade do vital
às tentativas teóricas de sua anexação a modelos não-vivos. Tomando por objeto a
filosofia cartesiana, essa tentativa ganha em notoriedade. Ela se dá precisamente lá
onde o mecanicismo parecia fornecer a última palavra acerca dos contornos da vida.

Palavras-chave: técnica; máquina; organismo; vida; mecanicismo; metafísica.

Abstract
The purpose of this article is to discuss Canguilhem’s approach of Cartesian biology.
More than a simple textual criticism, Canguilhem aims to demonstrate how, through
the mechanical representation of the organism, a machine whose performance
depends exclusively on the arrangement of its organs, Descartes was forced to
incorporate refractory elements to a comprehensive mechanism to the mechanical
elucidation of the living body, elements that Canguilhem observes in the technological

* Pós-Doutorando no Departamento de Filosofia, IFCH/UNICAMP, com pesquisa financiada pela


FAPESP. E-mail: rafael.discord@gmail.com.

O que nos faz pensar, Rio de Janeiro, v.26, n.40, p.339-371, jan.-jun. 2017
340 Rafael Henrique Teixeira

anthropomorphism found in metaphysics that underlies the animal-machine theory.


On the one hand, this point of view about Cartesian philosophy is a corollary of the
Canguilhem’s biological philosophy of technique. On the other hand, it is related to
an important topic of Canguilhem’s philosophy: the quest, in the history of knowledge
about life, for elements that reveal the irreducible originality of life up against the
theoretical attempts of its annexation to non-living models. Considering Cartesian
philosophy, this effort is even more expressive, because it happens exactly where the
mechanism seemed to provide the ultimate word about the aspects of life.

Keywords: technique; machine; organism; life; mechanism; metaphysics.

Introdução

Canguilhem assim anuncia a problemática a ser abordada em Machine et or-


ganisme: “O problema das relações da máquina e do organismo apenas foi
geralmente estudado em um sentido único. Quase sempre se buscou, a partir
da estrutura e do funcionamento da máquina já construída, explicar a es-
trutura e o funcionamento do organismo”. Em contrapartida, “raramente se
buscou compreender a própria construção da máquina a partir da estrutura
e do funcionamento do organismo”1. Descartes é, em se tratando da assimi-
lação do organismo por uma máquina, figura das mais sintomáticas. Cangui-
lhem observa, porém, que elementos estranhos a um mecanicismo integral
são obrigatoriamente integrados por Descartes à sua tentativa de reduzir o
orgânico ao mecânico. Esses elementos permitem, justamente, observar entre
máquina e organismo uma relação distinta da usual. Segundo Dagognet, essa
“justa interpretação” operada por Canguilhem poupa ao animal-máquina os
“riscos de pobreza e simplificação”2. Esse risco não se liga apenas a intérpretes
desavisados, mas aos próprios desdobramentos imediatos da tese cartesiana.
A segunda metade do século XVII assiste a uma reificação e absolutização
do animal-máquina, liberto, por exemplo, da relação que o enquadrava ao
infinito da transcendência divina3. Uma “ultramecanização” absorve o vital.
Essa assimilação, que Descartes sustentava, mas que reservava a Deus sua
realização (e esse ponto será capital para Canguilhem), decorre da “evolução

1 Canguilhem, G. “Machine et organisme” in La connaissance de la vie, 2009, p. 130.

2 Dagognet, F. L’animal selon Condillac, 1987, p. 19.

3 Guichet, J-C. Rousseau, l’animal et l’homme, 2006, p. 39.

O que nos faz pensar, Rio de Janeiro, v.26, n.40, p.339-371, jan.-jun. 2017
Sobre máquinas e organismos. Canguilhem e os aspectos dissimulados do animal-máquina cartesiano 341

e dos sucessos da construção mecanológica”4. No mais, segundo reconhece


o próprio Canguilhem, a postura cartesiana traz consequências que podem
ser sentidas, na filosofia francesa ao menos, até o século XX. Como no siste-
ma cartesiano a vida não possui “nenhuma originalidade ontológica”, pois é
compreendida “pela” razão e “na” matéria; “Devido a Descartes (...) a filosofia
biológica é entre nós um gênero de especulação muito suspeito”5.
Diante disso, pode parecer paradoxal uma análise que se propõe a de-
monstrar como uma vitalidade rebelde ao puro mecanismo foi integrada pelo
edifício teórico cartesiano. Mas é essa justamente a proposição de Canguilhem.
De um lado, ela dá conta de mostrar que, entre Descartes e nós, se interpõe
“uma espécie de espectro, aquele de um Descartes mal compreendido”6. De ou-
tro, ela permite observar que a máquina, vista geralmente como “a inimiga, a
rival, ou mesmo o simulacro do vivo”, encontra nele sua inspiração, “máquina
animalizada”, pois ligada à “potência instauradora da organicidade primeira”7.
Para o milagre da miragem técnica que tanto atraiu filósofos e biólogos, é pre-
ciso que a máquina preexista à confecção do modelo. Mas, para que ela exista,
é preciso que algo entre em cena que não uma máquina. Nada é mais humano,
reconhece Canguilhem, do que uma máquina, “se é verdade que é pela constru-
ção das ferramentas e das máquinas que o homem se distingue dos animais”8.
Porém, enquanto fato humano, a “construção da máquina não é uma função
da máquina”. Se o “mecanicismo pode tudo explicar se nos brindamos com
máquinas”, ele não pode “explicar a construção das máquinas”: “Não há má-
quina de construir máquinas”. É em posse dessa incontornável anterioridade
que Canguilhem apresentará a biologia cartesiana. E então observaremos que
com Descartes, “malgrado as aparências, pode parecer que não tenhamos dado
um passo fora da finalidade”9. Seu mecanicismo biológico, “se ele é o esqueci-
mento da finalidade, não é, no entanto, sua eliminação radical”10.

4 Dagognet, F. L’animal selon Condillac, p. 29.

5 Canguilhem, G. “Note sur la situation faite en France à la philosophie biologique” in Œuvres


complètes t. IV, 2015, p. 311.

6 Dagognet, F. Georges Canguilhem. Philosophe de la vie, 1997, p. 61.

7 Ibidem, p. 69.

8 Canguilhem, G. “L’expérimentation en biologie animale” in La connaissance de la vie, 2009, p. 26.

9 Idem, “Machine et organisme” in La connaissance de la vie, 2009, p. 147.

10 Idem, “L’expérimentation en biologie animale” in La connaissance de la vie, 2009, p. 26.

O que nos faz pensar, Rio de Janeiro, v.26, n.40, p.339-371, jan.-jun. 2017
342 Rafael Henrique Teixeira

Modelos tecnológicos em biologia e a tese do animal-máquina

A tese cartesiana do animal-máquina não é a primeira tentativa de elucidação


do funcionamento do organismo por meio de objetos oriundos da arte hu-
mana. Aristóteles bem pôde afirmar que “A alma é para o corpo vivo causa e
princípio”, enteléquia “de um corpo natural que possui a vida em potência”11.
Isso não o impediu, visando demonstrar, na composição do organismo, “que
a natureza faz tudo em vista de um fim”12, de se ocupar da imagem de uma
ferramenta como a serra. A ação de serrar não é feita em vista da serra, mas
sim a serra em vista do serrar. Cada instrumento é destinado a um fim, por-
tanto, tal qual cada órgão do corpo, cujo fim é a ação. “Consequentemente”,
afirma Aristóteles, “o corpo existe de certo modo em vista da alma, e as par-
tes do corpo em vista das funções que a natureza designou a cada uma”13. A
biologia aristotélica se apresenta como uma “tecnologia geral”: ela concebe o
organismo como uma convergência de “órgãos-ferramentas” rigorosamente
especializados, diferenciados em virtude do princípio segundo o qual “não
importa qual matéria não pode ser informada por não importar qual forma”14.
Isso não faz de Aristóteles o prenúncio da fisiologia cartesiana. Se pode-
mos falar, em ambos os casos, de um modelo tecnológico de inteligibilida-
de do organismo, Canguilhem precisa que “tecnológico é o gênero lógico do
qual mecanicista é uma espécie, a outra sendo o organológico”15. Mas a pre-
sença da miragem técnica na explicação do vital já em Aristóteles não é sem
importância. A utilização do termo organon para designar a parte funcional
do corpo vivo, “termo que Aristóteles emprestou do vocabulário dos artesãos
e músicos, e cujo uso supõe a adesão, implícita ou explícita, a alguma ideia de
analogia, em qualquer sentido que a tomemos, entre a natureza e a arte, entre
a vida e a técnica”16, ganhou posteridade. Ela fornece um “princípio diretor
para a compreensão da permanência de um método”, aquele da dedução
anatômica, que aguardará o século XIX e a fisiologia de Claude Bernard para

11 Aristóteles, De l’âme, 1989, II, 1, 412b e II, 4, 415b.

12 Idem, Les parties des animaux, 1957, I, 641b.

13 Ibidem, I, 645b.

14 Canguilhem, G. “Le tout et la partie dans la pensée biologique” in Études d’histoire et de


philosophie des sciences concernant les vivants et la vie, 2002, p. 322.

15 Ibidem, p. 323.

16 Idem, “Machine et organisme” in La connaissance de la vie, 2009, p. 157.

O que nos faz pensar, Rio de Janeiro, v.26, n.40, p.339-371, jan.-jun. 2017
Sobre máquinas e organismos. Canguilhem e os aspectos dissimulados do animal-máquina cartesiano 343

ser objeto de uma crítica contundente. A fisiologia permaneceu por muito


tempo uma anatomia animata, discurso fundado sobre a dedução anatômica
das funções de um órgão, que retira, mais ou menos explicitamente, “o co-
nhecimento das funções de sua assimilação aos usos de ferramentas ou meca-
nismos evocados pela forma ou pela estrutura dos órgãos correspondentes”17.

(...) toda fisiologia assim entendida remetia mais ou menos a um De usu


partium na tradição de Galeno, a um discurso sobre a utilidade e o uso
das partes do organismo. O que implicava, mesmo no pensamento daqueles
que não assimilavam metaforicamente o organismo animal a uma máquina,
uma dupla convicção: primeiramente, que os órgãos têm uma finalidade da
mesma ordem que aquela das ferramentas, construções artificiais preme-
ditadas; e, em seguida, que suas funções podem ser deduzidas do simples
exame de sua estrutura18.

Essa tendência generalizada é sintoma, para Canguilhem, de uma ligação


profunda entre o homem artífice e os modelos tecnológicos em biologia: “os
conceitos utilizados primitivamente para a análise das funções dos tecidos,
órgãos ou aparelhos eram inconscientemente carregados de uma importação
pragmática e técnica propriamente humana”. Ao reconhecer uma função a
determinado órgão, a experiência “do papel e do uso das ferramentas coloca-
das em obra pela prática humana”19 comunica “suas normas operatórias à per-
cepção das formas orgânicas”20. Nada mais natural, reconhece Canguilhem:
“determinada estrutura tecnológica e pragmática da percepção humana em
matéria de objetos orgânicos exprimia a condição do homem, organismo fa-
bricador de máquinas”21. Logo, a percepção humana é, “desde a origem, antes
de toda ciência, antes de toda reflexão, estruturada segundo as exigências de

17 Idem, “Modèles et analogies dans la découverte en biologie” in Études d’histoire et de


philosophie des sciences concernant les vivants et la vie, 2002, p. 306.

18 Idem, “La constitution de la physiologie comme science” in Études d’histoire et de philosophie


des sciences concernant les vivants et la vie, 2002, p. 227.

19 Idem, “L’expérimentation en biologie animale” in La connaissance de la vie, 2009, p. 24 e 26.

20 Idem, “Le tout et la partie dans la pensée biologique” in Études d’histoire et de philosophie des
sciences concernant les vivants et la vie, 2002, p. 323.

21 Idem, “Modèles et analogies dans la découverte en biologie” in Études d’histoire et de


philosophie des sciences concernant les vivants et la vie, 2002, p. 318.

O que nos faz pensar, Rio de Janeiro, v.26, n.40, p.339-371, jan.-jun. 2017
344 Rafael Henrique Teixeira

procedimentos técnicos”22. Trata-se de um a priori que, constitutivo da inteli-


gibilidade das funções e dos órgãos na fisiologia de tradição aristotélico-galê-
nica, ganha na fisiologia cartesiana23 uma espécie de autorização empírica. E
podemos supor que nela a dissimulação do sentido humano da atividade que
alimenta a representação do organismo seja facilitada. Com Descartes, não
lidamos mais com ferramentas e máquinas que prolongam de modo direto os
órgãos naturais, mas com autômatos. “O aspecto o mais célebre” da fisiologia
cartesiana “é o lugar que ela concede à noção, meio-racional e meio-mágica,
de automatismo. Um autômato é uma máquina na qual são unidos o meca-
nismo e o motor, as peças e a mola”24. Uma máquina composta de disposi-
tivos cinemáticos é uma configuração de sólidos em movimento na qual o
movimento de suas partes não abole sua configuração25. “Os movimentos
produzidos, mas não criados pelas máquinas, são deslocamentos geométri-
cos e mensuráveis. O mecanismo regula e transforma um movimento cuja

22 Sebestik, J. “Le rôle de la technique dans l’œuvre de Georges Canguilhem” in Georges Can-
guilhem, philosophe, historien des sciences (Actes du colloque, 6-8 décembre 1990), 1998, p. 245.

23 Se esta conserva de Aristóteles o conceito anatomo-fisiológico de órgão, é inegável que as teses


aristotélicas foram objeto de uma negativa por parte de Descartes (Canguilhem, G. “La question
de la normalité dans l’histoire de la pensée biologique” in Idéologie et rationalité dans l’histoire des
sciences de la vie, 2009). A aparente simplicidade dos modelos mecânicos não é signo de ante-
rioridade histórica. O que se assiste, da Antiguidade às Luzes, é uma “simplificação progressiva
das doutrinas biológicas, simplicidade que atinge seu paroxismo com a crença em uma completa
redução do organismo animal e mesmo humano a dispositivos mecânicos grosseiros” (Grmek, M.
La première révolution biologique, 1990, p. 123). Em Aristóteles, teórico da alma dos animais, não
encontramos a alternativa que se desenha na biologia cartesiana e, sobretudo, na biomecânica dos
séculos XVII e XVIII: ou admite-se que os corpos orgânicos “são da alçada de uma aproximação
estritamente mecanicista, de uma explicação por tubos e molas; ou então toda explicação se torna
impossível” (Fontenay, E. Le silence des bêtes. La philosophie à l’épreuve de l’animalité, 1998, p. 278).
Aristóteles (De l’âme, 1989, II, 3, 415a) reconhece a necessidade de observar, “para cada tipo de
ser vivo (...), que tipo de alma lhe pertence propriamente”, qual é a alma própria “à planta, ao
homem e ao animal”, responsável pelas faculdades distintamente distribuídas ou combinadas na
cadeia dos seres (nutritiva, desejante, sensitiva, locomotora, pensante). Descartes veda qualquer
princípio de animação na descrição do organismo. Todas as funções dessa “máquina” se devem
apenas à “disposição dos seus órgãos”, do mesmo modo que os movimentos de um relógio depen-
dem de seus “contrapesos e de suas rodas”. Não é preciso conceber nenhum “princípio de movi-
mento e de vida que não seu sangue e seus espíritos, agitados pelo calor do fogo que queima con-
tinuamente em seu coração” (Descartes, R. “Traité de l’homme” in Œuvres et lettres 1953, p. 873).

24 Canguilhem, G. “L’homme du Traité de l’homme” in Œuvres complètes t. IV, 2015, p. 687.

25 “Um mecanismo cinemático entra em movimento quando um de seus membros móveis


vem a ser solicitado por uma força mecânica susceptível de fazê-lo mudar de posição. A força
realiza, nesse caso, um trabalho mecânico que se produz com movimentos determinados; o
conjunto constitui então uma máquina” (Ruleaux, F. Cinématique. Principes fondamentaux d’une
théorie générale des machines, 1877, citado por Kapp, E. Principes d’une philosophie de la technique,
2007, p. 179).

O que nos faz pensar, Rio de Janeiro, v.26, n.40, p.339-371, jan.-jun. 2017
Sobre máquinas e organismos. Canguilhem e os aspectos dissimulados do animal-máquina cartesiano 345

impulsão lhe é comunicada”. Uma máquina, tal qual definida, “deve receber
de algures um movimento que ela transforma. Apenas representamo-la em
movimento, consequentemente, em sua associação com uma fonte de ener-
gia”. Mas “Mecanismo não é motor”, precisa Canguilhem, e essa diferença é
fundamental, pois “a representação de um modelo mecânico do ser vivo não
faz intervir unicamente mecanismos de tipo cinemático”26.
A fonte de energia de dispositivos de tipo cinemático foi, por muito tempo,
o esforço muscular animal ou humano, o que tornava necessário que houves-
se, colado à máquina, um vivo que lhe comunicasse movimento. Para que, no
entanto, uma explicação como a cartesiana nascesse, foi preciso que, “ao lado
das máquinas no sentido de dispositivos cinemáticos”, existissem “máquinas
no sentido de motores”. Enquanto “o vivo humano ou animal “cola” à máqui-
na, a explicação do organismo pela máquina não pode nascer”. Ela é tributária
da construção de “aparelhos que imitam movimentos orgânicos (...), cuja ação,
colocada à parte a construção e o desencadeamento, prescindi do homem”27,
máquinas nas quais “a parte que comanda seu movimento é dissociada daquela
que fornece a força, o que dá a ilusão de uma espécie de vida autônoma”28. A ex-
plicação mecânica das funções da vida supõe então, “historicamente”, a constru-
ção de autômatos, cujo nome significa, ao mesmo tempo, o “caráter milagroso”
e a aparência de “suficiência de um mecanismo que transforma uma energia que
não é, ao menos imediatamente, o efeito de um esforço muscular e animal”29.

(...) a assimilação do organismo a uma máquina pressupõe a construção pelo ho-


mem de dispositivos onde o mecanismo automático é ligado a uma fonte de energia
cujos efeitos motores se desenrolam no tempo, muito tempo após a cessação do
esforço humano ou animal que eles restituem. É esse descompasso entre o momento
da restituição e aquele do armazenamento da energia restituída pelo mecanismo
que permite o esquecimento da relação de dependência entre os efeitos do mecanis-
mo e a ação de um vivo. Quando Descartes busca as analogias para a explicação do
organismo nas máquinas, ele invoca autômatos a mola, autômatos hidráulicos. Ele
se torna tributário, intelectualmente falando, das formas da técnica de sua época30.

26 Canguilhem, G. “Machine et organisme” in La connaissance de la vie, 2009, p. 131 e 132.

27 Ibidem, p. 134 e 136.

28 Grmek, M. La première révolution biologique, 1990, p. 123.

29 Canguilhem, G. “Machine et organisme” in La connaissance de la vie, 2009, p. 133.

30 Ibidem, p. 136.

O que nos faz pensar, Rio de Janeiro, v.26, n.40, p.339-371, jan.-jun. 2017
346 Rafael Henrique Teixeira

A humanidade anterior ao século XVII conheceu seus autômatos, o que


insere Descartes em “uma longa tradição onde se alimenta tanto o gosto pela
engenhosidade esotérica quanto aquele da produção de ilusões”31. Mas, de um
lado, multiplicam-se, no século XVII, os animais artificiais e as engrenagens
maravilhosas32. De outro, Descartes converte uma curiosidade para com moi-
nhos, fontes artificiais, relógios e órgãos em “método científico audacioso”, em
“testemunhos impressionantes de uma atividade de indústria capaz de susten-
tar o projeto de uma mimética mecânica geral”33. Entre Descartes e as inten-
sificações da indústria dos autômatos uma relação se estabelece. Dispositivos
encontrados “nas grutas e nas fontes que estão nos jardins de nossos Reis”34 se
tornam modelo de inteligibilidade de um organismo apresentado como “asso-
ciação de engenhos mecânicos, pneumáticos e hidráulicos, cuja força motora

31 Idem, “L’homme du Traité de l’homme” in Œuvres complètes t. IV, 2015, p. 688. Canguilhem
remete na ocasião à Vênus de Dédalo mobilizada por Aristóteles. Há, dentre aqueles que preten-
dem que “a alma move o corpo onde ela se encontra do mesmo modo que ela é movida”, afirma
Aristóteles (De l’âme, 1989, I, 3, 406b), quem diga que “Dédalo deu o movimento à sua Afrodite
de madeira nela vertendo mercúrio”.

32 Dagognet, F. Georges Canguilhem. Philosophe de la vie, 1997. Ao ponto de, no fim do século, o
animal-máquina não ser “mais simples visão filosófica”, pois ele se aperfeiçoa e toma forma (Idem,
L’animal selon Condillac, 1987, p. 25). Essa materialização não é obra, a bem dizer, de Descartes.
Pela redução das funções animais aos efeitos das leis mecânicas encontradas nas máquinas, Des-
cartes deveria se tornar espécie de patrono do que se configurará como uma tradição (Cangui-
lhem, G. “Du singulier et de la singularité en épistémologie biologique” in Études d’histoire et de
philosophie des sciences concernant les vivants et la vie, 2002). Mas patronato é coisa distinta
de antecipação dos efeitos dessa influência. “O animal-máquina cartesiano permanecia da ordem
do manifesto, da máquina de guerra filosófica”, mas ele não constituía “o programa, o projeto ou
o plano de construção de nenhum equivalente de função ou de estrutura (...). Ao contrário, a
atenção dada por Vaucanson e Le Cat à elaboração de planos detalhados em vista da construção
de simuladores, e o sucesso notório do primeiro desses biomecânicos, devem nos autorizar a
remontar, ao século XVIII, ao menos, a consciência explícita de um método heurístico que utiliza,
sob o nome de imitação, o recurso a modelos analógicos funcionais” (Idem, “Modèles et analogies
dans la découverte en biologie” in Études d’histoire et de philosophie des sciences concernant
les vivants et la vie, p. 309). É o que observamos na descrição que Vaucanson oferece dos meca-
nismos de seu Flautista. Após descrever os mecanismos que compõem seu autômato e os efeitos
sonoros que com eles se trata de obter, Vaucanson (Le mécanisme du fluteur automate, présenté à
Messieurs de l’Académie Royale des Sciences, 1738, p. 15), comparando-os com aqueles obtidos por
uma “uma pessoa viva”, demonstra cuidadosamente as ações do homem que se tratou de imitar na
composição de sua réplica. O que em Descartes é apenas anedótico adquire a consistência de um
método. Trata-se de comparar o vivo a “máquinas efetivamente construídas” e de imiscuir, assim,
através da unidade do cientista-construtor, no procedimento analógico, uma espécie de método
que preconiza “a construção efetiva dos modelos construídos pelo espírito” (Doyon A. e Liaigre
L., “Méthodologie comparée du biomécanisme et de la mécanique comparée”, Dialectica, v. 10, n.
4, p. 292-323, 1956).

33 Canguilhem, G. “L’homme du Traité de l’homme” in Œuvres complètes t. IV, 2015, p. 688.

34 Descartes, R. “Traité de l’homme” in Œuvres et lettres, 1953, p. 814.

O que nos faz pensar, Rio de Janeiro, v.26, n.40, p.339-371, jan.-jun. 2017
Sobre máquinas e organismos. Canguilhem e os aspectos dissimulados do animal-máquina cartesiano 347

é o calor situado na cavidade cardíaca”35. Observando uma fonte construída


por Th. Francini a pedido de Henrique IV, onde os ladrilhos presentes nas
grutas da fonte são dispostos de modo que, se os visitantes “se aproximam de
uma Diana que se banha, eles a farão esconder-se nos caniços, e se eles passam
mais adiante para persegui-la, eles farão vir contra si um Netuno que os ame-
açará com seu tridente, ou se eles vão para o outro lado farão sair um monstro
marinho”, conforme “o capricho dos engenheiros que a construíram”36, eis o
valor epistemológico que Descartes reconhece a um engenho dessa natureza.

Verdadeiramente, pode-se muito bem comparar os nervos da máquina que


vos descrevo aos tubos das máquinas dessas fontes; seus músculos e seus
tendões aos outros diversos mecanismos e molas que servem para movê-las;
seus espíritos animais à água que as move, cujo coração é a nascente, e as
concavidades do cérebro são as aberturas37.

As funções do corpo humano, assimiladas a ações que, em um engenho


como o acima descrito, dependem de um fluxo de matéria em seu interior
e da disposição das partes que o compõem, se caracterizam primeiramente
por uma negativa: “todo calor e todos os movimentos que existem em nós,
na medida em que eles não dependem do pensamento, apenas pertencem ao
corpo”. Todas aquelas de nossas ações “que nos são comuns com os animais”,
que se realizam sem a intervenção de nossa vontade, “apenas dependem da
conformação de nossos membros”, do mesmo modo que “o movimento de um
relógio é produzido somente pela força de sua mola e a figura de suas rodas”38.
Considerando essa “parte bestial do homem”39, Descartes admite que, relativa-
mente à “máquina de nosso corpo”, assim como não temos a ocasião de julgar
que há uma “alma em um relógio que faz com que ele mostre as horas”, não
devemos ter dificuldade em acreditar que não é nossa alma que excita nela “os
movimentos que não experimentamos ser conduzidos por nossa vontade”40.

35 Grmek, La première révolution biologique, 1990, p. 125.

36 Descartes, R. “Traité de l’homme” in Œuvres et lettres, 1953, p. 815.

37 Ibidem, p. 814.

38 Idem, “Les passions de l’âme” in Œuvres et lettres, 1953, p. 696 e 704.

39 Aucante, V. La philosophie médicale de Descartes, 2006, p. 38.

40 Descartes, R. “La description du corps humain” in Œuvres t. XI, 1986, p. 226.

O que nos faz pensar, Rio de Janeiro, v.26, n.40, p.339-371, jan.-jun. 2017
348 Rafael Henrique Teixeira

(...) é certo que, no corpo dos animais, como nos nossos, há ossos, nervos,
músculos, sangue, espíritos e outros órgãos dispostos de tal modo que por
eles próprios, sem nenhum pensamento, eles podem produzir todos os mo-
vimentos que observamos nos animais. O que é evidente nas convulsões,
quando, malgrado o espírito, a maquinaria do corpo se move frequentemen-
te por si mesma e de modos mais diversos do que ela tem o costume de fazer
sob a ação da vontade41.

Não trataremos de todas as funções do corpo de que se ocupa Descartes:


digestão, batimento do coração, movimento do sangue, crescimento dos mem-
bros, formação do feto, respiração, recepção das distintas qualidades nos ór-
gãos dos sentidos, relação, na máquina antropoide, que essa recepção guarda
com a imaginação, a memória e a alma alojada no cérebro, apetites e paixões
que guardam relação com a disposição dos órgãos e o movimento dos espíritos
animais, etc. Ocupando-nos da “fábrica dos nervos e dos músculos do corpo
humano”42, do movimento dos espíritos animais43 em seu interior, bem como
da relação que esses espíritos guardam com o calor do coração, veremos que
“a assimilação das funções fisiológicas a puros e simples fenômenos mecânicos
leva Descartes a reduzir ao contato, ao choque, ao impulso e à tração todas as
relações que as partes do organismo mantêm entre si”44. A carne do coração é
dotada de um fogo sem luz, “princípio corporal de todos os movimentos de
nossos membros”45. Ele dilata e torna rarefeito o sangue que continuamente
cai em sua concavidade direita. Essa “dilatação é a primeira e principal mola
de toda nossa máquina”. O calor do coração não é distinto daquele “que é
causado pela mistura de algum licor, ou de algum fermento, que faz com que
o corpo onde ele se encontra se dilate”46. O sangue, dotado de um movimento

41 Idem, “Lettre à Morus, 5 février 1649” in Œuvres et lettres, 1953, p. 1319.

42 Idem, “Discours de la méthode” in Œuvres et lettres,1953, p. 163.

43 Não nos enganemos com essa denominação: “o que nomeio aqui espíritos são apenas corpos,
e eles não têm outra propriedade senão que são corpos muito pequenos e que se movem muito
rápido, assim como as partes da chama que saem de uma tocha” (Idem, “Les passions de l’âme”
in Œuvres et lettres,1953, p. 700). Suas propriedades são aquelas dos corpos em geral, “proprie-
dades mecânicas da inércia, do movimento e do choque” (Canguilhem, G. “L’homme du Traité de
l’homme” in Œuvres complètes t. IV, 2015, p. 686).

44 Idem, La formation du concept de réflexe aux XVIIe et XVIIIe siècles, 2015, p. 30.

45 Descartes, R. “Les passions de l’âme” in Œuvres et lettres, 1953, p. 699.

46 Idem, “La description du corps humain” in Œuvres t. XI, 1986, p. 228.

O que nos faz pensar, Rio de Janeiro, v.26, n.40, p.339-371, jan.-jun. 2017
Sobre máquinas e organismos. Canguilhem e os aspectos dissimulados do animal-máquina cartesiano 349

circular no organismo, não sai do coração com as mesmas qualidades que ele
tinha ao entrar, sai mais quente, rarefeito e agitado. A dilatação do sangue,
tributária do calor presente no coração, não é responsável somente pelo movi-
mento do coração47, mas também pela mudança de sua natureza.
As partes desse sangue que se tornam mais vivas e mais sutis, que o calor
tornou rarefeitas no coração, vão dar nas concavidades do cérebro, “visto que
as artérias que as conduzem são aquelas que vêm do coração mais em linha
reta do que todas e que, como sabeis, todos os corpos que se movem tendem,
cada um, tanto quanto possível, a continuar seu movimento em linha reta”.
Chegadas ao cérebro, elas não servem apenas para nutrir e conservar sua
substância, mas, principalmente, “para produzir um certo vento muito sutil,
ou, antes, uma chama muito viva e muito pura, que nomeamos os Espíritos
animais”. As artérias que trazem as partes agitadas do sangue até o cérebro
se juntam ao redor de uma pequena glândula, onde há “um grande núme-
ro de pequenos buracos por onde as partes mais sutis do sangue contidas
nessas artérias podem escoar para essa glândula”, buracos tão estreitos que
não permitem a passagem das partes maiores48. Essas partes do sangue não
têm necessidade “de receber nenhuma outra modificação no cérebro”, elas
apenas são nele “separadas das outras partes menos sutis do sangue”49. Assim,
conclui Descartes, “sem outra preparação, nem mudança, senão que elas são

47 Para Descartes (Ibidem, p. 244), a “causa do movimento do coração” é a “rarefação do sangue”.


Tomando o coração por uma “víscera cujos movimentos manifestam passivamente os efeitos que
seu calor próprio determina no sangue que cai em suas cavidades, cujas paredes possuem uma
elasticidade determinada”, Descartes se opõe à Harvey, para quem “o coração é um músculo cujas
contrações lançam o sangue para a periferia por meio dos vasos” (Canguilhem, G. La formation du
concept de réflexe aux XVIIe et XVIIIe siècles, 2015, p. 33-34). Segundo Harvey (Estudo anatômico do
movimento do coração e do sangue nos animais, 2009, p. 220), o movimento do coração “consiste em
uma espécie de tensão de todas as suas fibras, uma contração generalizada”, tal como ocorre no
movimento de um músculo “cuja contração obedece à direção de suas fibras e de seus tendões”.
Canguilhem (La formation du concept de réflexe aux XVIIe et XVIIIe siècles, 2015, p. 34) postula que,
mesmo que Descartes não tenha o sentimento de ter rompido com a explicação mecanicista das
funções do ser vivo pela explicação da circulação do sangue e do movimento do coração pela ação
de “um calor iminente”, há diferença entre “uma fermentação e um movimento de relojoaria” –
Descartes “teria sido mais cartesiano” caso associasse, como fez Harvey, o coração a uma bomba. O
calor do coração colocaria ainda outros limites à fisiologia de tipo mecânica de Descartes. Quando
Descartes (“Lettre à Morus, 5 février 1649” in Œuvres et lettres,1953, p. 1320) afirma que a vida
“consiste “somente no calor do coração”, essa identificação guardaria semelhanças com a teoria do
calor inato proposta por Aristóteles, tal como demonstra detidamente Mendelsohn (Heat and life.
The development of the theory of animal heat, 1964).

48 Descartes, R. “Traité de l’homme” in Œuvres et lettres, 1953, p. 812 e 813.

49 Idem, “Les passions de l’âme” in Œuvres et lettres, 1953, p. 700.

O que nos faz pensar, Rio de Janeiro, v.26, n.40, p.339-371, jan.-jun. 2017
350 Rafael Henrique Teixeira

separadas das mais grosseiras, e que elas retêm ainda a extrema velocidade
que o calor do corpo lhes conferiu, elas deixam de ter a forma do sangue e se
nomeiam os Espíritos animais”50.
A geração dos espíritos animais se liga aos movimentos das partículas de
matéria agitadas e rarefeitas pelo calor do coração. Uma análise mais detalha-
da poderia mostrar que, em suas agitações, nos choques entre as suas partes
mais sutis e suas partes de maior densidade ao redor da substância cerebral,
na triagem que aí se opera em virtude da dimensão e figura dos poros pelos
quais elas passam, não há nada que faça exceção às “leis da natureza”51 des-
critas no Traité de la lumière, leis relativas à jurisdição divino-metafísica do
mundo, mundo no qual o homem seria “máquina em uma máquina”52. Pois,
“segundo as regras da mecânica, que são as mesmas que aquelas da natureza”,
quando muitas coisas se movem conjuntamente para um mesmo lugar, “tal
como as partes do sangue que saem da concavidade esquerda do coração” e
que “tendem para o cérebro, as mais fracas e menos agitadas devem ser dele
afastadas pelas mais fortes que, desse modo, para lá se dirigirão sozinhas”53.
O mesmo pode ser dito da ação dos espíritos animais no movimento da má-
quina corporal por meio da ligação entre órgãos dos sentidos, cérebro, ner-
vos e músculos: “ela pode ser movida (...) somente pela força dos espíritos
animais que escoam do cérebro para os nervos”. Inflando e enrijecendo os
músculos, os espíritos animais não são levados por nenhuma potência, ape-
nas pela “inclinação que eles têm de continuar seu movimento seguindo as
leis da natureza”54. Vejamos de que modo a máquina corporal é colocada em
movimento:

(...) os filetes (...) provenientes da parte mais interna de seu cérebro e que
compõem a medula de seus nervos, estão dispostos de tal forma em todas
aquelas suas partes que servem de órgão a alguns sentidos, que eles podem
ser facilmente movidos pelos objetos desses sentidos. Quando eles aí são
movidos com um pouco de força, puxam no mesmo instante as partes do
cérebro de onde vêm e abrem, pelo mesmo meio, as entradas de certos

50 Idem, “Traité de l’homme” in Œuvres et lettres, 1953, p. 814.

51 Idem, “O mundo ou Tratado da luz” in O mundo – O homem, 2009, p. 83.

52 Alquié, F. La découverte métaphysique de l’homme chez Descartes, 2011, p. 71.

53 Descartes, R. “Discours de la méthode” in Œuvres et lettres, 1953, p. 163.

54 Idem, “Traité de l’homme” in Œuvres et lettres, 1953, p. 820 e 821.

O que nos faz pensar, Rio de Janeiro, v.26, n.40, p.339-371, jan.-jun. 2017
Sobre máquinas e organismos. Canguilhem e os aspectos dissimulados do animal-máquina cartesiano 351

poros que estão na superfície interna desse cérebro, por onde os espíritos
animais, que estão nas concavidades, começam imediatamente a tomar o
seu curso e vão dar, através deles, nos nervos e nos músculos que servem
para provocar, nessa máquina, os movimentos55.

Dado que os espíritos animais, que se encontram no cérebro, “se apresen-


tam para entrar em alguns nervos, eles têm a força de mover no mesmo ins-
tante algum membro”56. Não conhecendo outra coisa senão o coração como
motor, Descartes liga um segundo sistema hidráulico, aquele dos espíritos
animais que assegura a vida sensório-motora, ao primeiro, ao sistema circu-
latório sanguíneo, que assegura a vida vegetativa57. O corpo é colocado em
movimento, portanto, a partir de dois centros, um centro motor cardíaco e
um centro regulador cerebral, reservatório de fluidos turbulentos58. Subindo
abundantemente do coração para o cérebro, os espíritos animais daí se diri-
girão, por intermédio dos nervos, até os músculos, provocando o movimento
em todos os membros da máquina59. Da concavidade do cérebro os espíritos
animais passam para os poros de sua substância, e desses para os nervos,
onde “eles têm a força de mudar a figura dos músculos nos quais os nervos
estão inseridos, e desse modo de fazer mover todos os membros”60. Pois “a
única causa de todos os movimentos dos membros é que alguns músculos
se encolhem e seus opostos se alongam” (Descartes, 1953b, p. 700) 61. Um

55 Ibidem, p. 823.

56 Ibidem, p. 814.

57 Pichot, A. Histoire de la notion de vie, 1993.

58 Canguilhem, G. “L’homme du Traité de l’homme” in Œuvres complètes t. IV, 2015.

59 Descartes, R. “Discours de la méthode” in Œuvres et lettres, 1953.

60 Ibidem, “Traité de l’homme” in Œuvres et lettres, 1953, p. 814.

61 Canguilhem (La formation du concept de réflexe aux XVIIe et XVIIIe siècles, 2015) observa que
a fisiologia cartesiana do movimento não se estende muito acerca do músculo, contrariamente
à descrição do nervo. É o que observamos na Dioptrique, que distingue nele três elementos: (1)
as peles que os envolvem e que se originam naquelas que envolvem o cérebro, pequenos tubos
divididos em ramos que se espalham pelos membros, (2) sua substância interior, que se estende
em forma de pequenos filetes ao longo dos tubos, desde o cérebro onde ela se origina até as extre-
midades dos membros aos quais ela se liga, de modo a existir, no interior de cada pequeno tubo,
muitos filetes independentes um dos outros, (3) os espíritos animais que, vindo das concavidades
do cérebro e passando por pequenos poros que funcionam como válvulas, escoam pelos tubos
até os músculos (Descartes, R. “La dioptrique (six premiers discours)” in Œuvres et lettres, 1953).
Esse terceiro elemento é elucidativo da mecânica de tração subentendida na motricidade animal.

O que nos faz pensar, Rio de Janeiro, v.26, n.40, p.339-371, jan.-jun. 2017
352 Rafael Henrique Teixeira

sistema hidráulico ligado a dois centros, cardíaco e cerebral, operando na


intersecção dos órgãos-peças do organismo-máquina: é dessa maneira que
Descartes explica os movimentos corporais quando seus órgãos dos sentidos
são afetados por objetos externos.
Eis o essencial para a compreensão do funcionamento do animal-máquina.
Constituída de modos da extensão e do movimento, fenômeno inteiramente
físico e conforme às leis gerais do mundo material, tais quais instituídas pela
vontade de Deus62, seus movimentos são partidários da disposição de seus ór-
gãos, da unidade compósita de seus dispositivos que, por meio de um sistema
hidráulico de causalidade, comunica movimento entre suas partes a partir de
um motor central, o calor do coração. Mas, se seu funcionamento é tornado in-
teligível pela comparação com uma máquina, a criação disso que podemos cha-
mar de artefatos naturais não pode ser reduzido à mecânica. Se o mecanicismo
pode tudo explicar em se tratando do funcionamento da máquina, vimo-lo, ele
não pode explicar sua construção. Canguilhem afirma que se esquece o mais
das vezes, “para julgar esse fragmento da filosofia cartesiana”, que ele apenas
é legitimado “pela crença na existência de um Engenheiro Divino Onipotente,
apto a superar infinitamente a arte do mais hábil dos engenheiros humanos.
Separada da metafísica cartesiana, o mecanicismo cartesiano em biologia é des-
provido de sentido”63. Vejamos como essa exigência figura em Descartes.
Descartes admite que não há “diferença alguma entre as máquinas que fa-
zem os artesãos e os diversos corpos que somente a natureza compõe”64. Não
obstante, nas máquinas fisiológicas fabricadas por Deus, animais e humanas65,

Os espíritos animais, conduzidos através dos condutos estendidos desde o cérebro até os múscu-
los, são a causa de os filetes permanecerem, em seu interior, livres e estendidos, e “de tal modo que
a menor coisa que move a parte do corpo onde a extremidade de algum deles se encontra ligado
faz mover, pelo mesmo meio, a parte do cérebro de onde ele vem, do mesmo modo que quando
puxamos uma das pontas de uma corta fazemos mover outra” (Descartes, 1953b, p. 701). Não
menos mecânico é o gênero da ação por sobre os órgãos dos sentidos, que faz acionar a tração
da fibra nervosa e desencadear o movimento dos espíritos animais. “(...) não poderemos sentir
nenhum corpo a menos que ele seja a causa de alguma alteração dos órgãos dos sentidos (...), a
menos que ele mova de alguma maneira as pequenas partes da matéria de que tais órgãos são
compostos” (Idem, “O mundo ou Tratado da luz” in O mundo – O homem, 2009, p. 53).

62 Gueroult, M. Descartes selon l’ordre des raisons t. II, 1968.

63 Canguilhem, G. “L’homme du Traité de l’homme” in Œuvres complètes t. IV, 2015, p. 688-689.

64 Descartes, R. “Les principes de la philosophie” in Œuvres et lettres, 1953, p. 666.

65 Se nestas uma alma se unirá ao corpo, não é menos verdade que ela apenas poderá excitar
nele movimento se todos os “órgãos corporais (...) requeridos para esse movimento” estiverem
“bem-dispostos” (Idem, “La description du corps humain” in Œuvres t. XI, 1986, p. 225).

O que nos faz pensar, Rio de Janeiro, v.26, n.40, p.339-371, jan.-jun. 2017
Sobre máquinas e organismos. Canguilhem e os aspectos dissimulados do animal-máquina cartesiano 353

ao mesmo tempo em que apenas a disposição de seus órgãos é a razão de seus


movimentos, há uma disposição que, pela complexidade da conveniência
de suas partes, ultrapassa as obras do artesão. Aquele que conhece os diver-
sos autômatos da indústria humana, admite Descartes, comparando-os com
a grande diversidade de partes que se encontram no corpo animal, “ossos,
músculos, nervos, artérias, veias”, e considerando-o como uma máquina, ad-
mitirá que, “tendo sido feita pelas mãos de Deus”, ela é “incomparavelmente
melhor ordenada e tem em si movimentos mais admiráveis que qualquer
uma daquelas que pode ser inventada pelos homens”66. Descartes se per-
gunta que julgamento realizaria um homem que tivesse passado toda sua
vida sem nunca ter visto outros animais senão homens, e que, “dedicando-se
ao estudo da mecânica, (...), tivesse fabricado ou ajudado a fabricar muitos
autômatos”, com a figura de homens, cavalos, cães, pássaros. Se esse homem
hipotético visse os animais que existem entre nós, e se ele fosse imbuído do
conhecimento de Deus ou tivesse observado o quão “a indústria humana de
que se utilizam os homens em suas obras é inferior àquela que a natureza faz
aparecer”, ele acreditaria firmemente que “se Deus ou a natureza tivesse for-
mado alguns autômatos que imitassem nossas ações, eles as imitariam mais
perfeitamente, e seriam mais industriosamente feitos do que qualquer um
daqueles que podem ser inventados pelos homens”67.
Os animais-máquinas, distintos do homem, máquina corporal pensante,
testemunham dessa superioridade da natureza sobre o artifício humano. Se
a arte é a imitação da natureza e se os homens podem fabricar autômatos
variados nos quais, “sem pensamento algum, se encontra o movimento, pa-
rece conforme à razão que a natureza produza também seus autômatos”, mas
que excedem em muito “os produtos da arte, a saber, todos os animais”68.
Excedem-nos, decerto, mas não nos meios mobilizados pela natureza para
o exercício de um maquinismo mais complexo e virtuoso em sua execução
que aquele produto da arte humana. Tudo o que nos animais há de apetites e
inclinações naturais é explicado pelas “regras da mecânica”69. A chegada das
andorinhas durante a primavera, a atividade das abelhas, a ordenação dos

66 Idem, “Discours de la méthode” in Œuvres et lettres, 1953, p. 164.

67 Idem, “Lettre à Reneri pour Pollot, avril ou mai 1638” in Correspondance t. II, 1970, p. 240 e 241.

68 Idem, “Lettre à Morus, 5 février 1649” in Œuvres et lettres, 1953, p. 1319.

69 Idem, “Lettre à Mersenne, 28 octobre 1640” in Œuvres et lettres, 1953, p. 1088.

O que nos faz pensar, Rio de Janeiro, v.26, n.40, p.339-371, jan.-jun. 2017
354 Rafael Henrique Teixeira

grous durante o voo, apenas se dão “por instinto”, sem pensamento, “natu-
ralmente e por molas, assim como um relógio, que mostra muito melhor as
horas do que nosso julgamento nos ensina”70.
Contra esse gênero de regulação dos movimentos animais se voltará Con-
dillac, por exemplo, neles observando “um movimento incerto, uma espécie
de convulsão”71, incapaz de dar conta dos movimentos determinados dos
animais, aqueles que lhes fazem fugir do que é nocivo e buscar o que convém.
De outro lado, podemos observar em La Mettrie não uma reação contra o
determinismo mecanicista na ação dos animais, mas uma suspeita para com
o abismo que Descartes estabelecera entre esse determinismo e os procedi-
mentos do Cogito, que faz figura de exceção no campo da natureza. Nós nos
encontraríamos, segundo La Mettrie, na situação de um relógio orgulhoso
que diria: “O quê! Foi esse operário que me fez, eu, que divido o tempo! Eu,
que observo tão exatamente o curso do Sol; eu, que repito em alta voz as
horas que indico! Não, isso não é possível”72. Não é descabido afirmar que
Canguilhem, igualmente, buscará séculos mais tarde verificar os limites dos
desenvolvimentos cartesianos acerca do corpo vivo. Porém, de seu ponto de
vista, não é preciso observar o que negligenciara ou extrapolara Descartes,
como fazem Condillac e La Mettrie, mas o que ele, ao contrário, admitiu;
ainda que essa admissão adquira contornos particulares e dissimulados, de
expressão observável em suas teses metafísicas.

Canguilhem e os elementos não-mecânicos da máquina-animal

A exposição acima não deixa dúvidas quanto à intenção cartesiana: apresen-


tar o organismo funcionando como uma máquina. Porém, segundo Kapp,
“O uso das leis mecânicas com fins explicativos transforma seguramente tão
pouco o organismo em máquinas quanto a transferência de movimentos e
processos orgânicos transforma as máquinas em organismos”73. Se há uma li-
gação entre esses elementos, trata-se de, na ordem da produção, os segundos
fabricarem as primeiras e, na ordem do conhecimento, as primeiras servirem

70 Idem, “Lettre au Marquis de Newcastle, 23 novembre 1646” in Œuvres et lettres, 1953, p. 1256.

71 Condillac. Traité des animaux, 2004, p. 122.

72 La Mettrie. “L’homme-machine” in Œuvres philosophiques v. I, 1987, p. 115.

73 Kapp, E. Principes d’une philosophie de la technique, 2007, p. 97.

O que nos faz pensar, Rio de Janeiro, v.26, n.40, p.339-371, jan.-jun. 2017
Sobre máquinas e organismos. Canguilhem e os aspectos dissimulados do animal-máquina cartesiano 355

de modelo de inteligibilidade aos segundos74. Esses laços, contudo, não per-


mitiriam concluir que organismos são máquinas. Canguilhem acredita en-
contrar indícios dessa irredutibilidade em elementos presentes no próprio
intento cartesiano relativo ao corpo vivo. De seu ponto de vista, “o conceito
metafórico de “máquina animal” não chega a dissimular totalmente a pro-
priedade característica do vivo”. Canguilhem visa, com seu recurso a Descar-
tes, não propriamente inverter a relação habitual entre máquina e organismo,
aquela que presa por sua inteligibilidade mecânica às custas da anterioridade
orgânica da produção, mas demonstrar que, de certo modo, essa segunda re-
lação se faz sentir nos próprios procedimentos cartesianos. O mais das vezes,
a biologia cartesiana é apresentada como um mecanicismo estrito. Do ponto
de vista de Canguilhem, semelhante atribuição é falaciosa. Ela “faz figurar na
história de uma ciência”, a biologia, “uma atividade reducionista que tem por
efeito a anulação do objeto específico da ciência em questão”75.

Que nos permitam contestar a simplicidade tradicional de um esquema es-


colar, cuja responsabilidade diz respeito a uma leitura incompleta dos textos
ou a uma insuficiência de atenção concedida a certos conceitos. Pretende-
mos que Descartes não chegou a autorizar seu projeto e seu programa, pois
ele próprio foi obrigado a integrar na definição do vivo que ele reivindicava
como objeto da mecânica atributos positivos rebeldes a essa jurisdição76.

Supondo, pois, que o procedimento que assimila o organismo a uma má-


quina não tem por corolário a negação de seu objeto, vejamos como Can-
guilhem identifica o que há de positivo, em termos do reconhecimento de
uma irredutibilidade da vida ao puro mecanicismo, no sistema cartesiano.
Apoiando-se na análise da medicina cartesiana e, sobretudo, nas observações
de Gueroult acerca da Méditation sixième77, Canguilhem afirma que é “somen-

74 Simondon (L’individuation à la lumière des notions de forme et d’information, 2013, p. 50) se


ocupou dessa relação ao fundamentar o poder paradigmático do esquema hilemórfico: vindo da
vida, ele a ela retorna e por sobre ela se aplica. “Se o vital experimentado é a condição do técnico
representado, a técnica representada se torna, por sua vez, condição do conhecimento do vital”.

75 Canguilhem, G. “La question de la normalité dans l’histoire de la pensée biologique” in Idéo-


logie et rationalité dans l’histoire des sciences de la vie, 2009, p. 159 e 160.

76 Ibidem, p. 159.

77 Nela Descartes (“Méditations, objections et réponses” in Œuvres et lettres, 1953, p. 332)


admite que, na medida em que “todos os movimentos que se fazem na parte do cérebro dos quais
o espírito recebe imediatamente a impressão, cada um causa apenas um certo sentimento”, é pos-

O que nos faz pensar, Rio de Janeiro, v.26, n.40, p.339-371, jan.-jun. 2017
356 Rafael Henrique Teixeira

te do Homem da VIe Méditation que é possível dizer que ele é um indivíduo


autêntico, cuja conservação é regulada pelas inclinações e pelos sentimentos
que traduzem, na linguagem do prazer e da dor, a qualidade vital de suas
relações com as coisas exteriores”78. Nesse sentido, “A autoconservação per-
manece, mesmo em Descartes, a característica distintiva primeira do corpo
vivo”79. Mas esse aspecto do vivo apenas é reconhecido por Descartes no
caso do homem, de modo que, paradoxalmente, “o homem apenas é um ani-
mal plenamente indivíduo porque ele é um mecanismo corporal unido (...)
a uma alma pensante”, ou seja, “apenas é totalmente animal porque é mais
que animal”. Distinto seria o “Homem do Traité de l’homme”80, máquina saída
das mãos de seu construtor. Pois, se a manutenção da integridade do vivo é
função da união substancial, se essa união é preterida, no Traité de l’homme,
à descrição das funções do organismo independentes da alma, lidamos ali
apenas com uma máquina que, enquanto tal, seria indiferente à sua própria
integridade. O mesmo poderíamos dizer dos animais.
Vimos que os artefatos naturais, produzidos por Deus, excedem os pro-
dutos da arte humana, sem que nada os anime senão a disposição de suas
peças-órgãos. E Descartes não hesita: “Sei realmente que os animais”, aos
quais a alma é recusada, “fazem muitas coisas melhor do que nós”81. No que
as máquinas naturais excederiam os artifícios humanos? O que elas fariam
melhor que os homens, senão viver, manter a integridade de suas funções?
Toda máquina saída da indústria humana é “um agenciamento de partes que

sível acreditar que esse movimento faça sentir no espírito, “entre todos os sentimentos que ele é
capaz de causar, aquele que é o mais próprio e (...) útil à conservação do corpo humano quando
ele se encontra em plena saúde”. Quanto às análises de Gueroult, em se tratando de reservas
relativas à opinião segundo a qual a biologia cartesiana seria um mecanicismo integral e coerente,
que exclui toda finalidade, suas visões constituem para Canguilhem (La formation du concept de
réflexe aux XVIIe et XVIIIe siècles, 2015, p. 53) um “encorajamento”. Em Descartes selon l’ordre des
raisons (1968) Gueroult traça uma análise em filigrana da união psicofísica da alma com o corpo,
visando demonstrar, de um lado, de que maneira ela impõe o reconhecimento de um valor real à
finalidade interior ao todo substancial e, de outro, as dificuldades por ela levantadas ao abrir uma
fenda no mundo orgânico (pois apenas a união substancial, vedada aos animais e à causalidade
eficiente dos dispositivos de seu corpo, transformaria a relação puramente mecânica de seus ele-
mentos em nexus teleológico).

78 Canguilhem, G. “L’homme du Traité de l’homme” in Œuvres complètes t. IV, 2015, p. 690.

79 Idem, “La question de la normalité dans l’histoire de la pensée biologique” in Idéologie et


rationalité dans l’histoire des sciences de la vie, 2009, p. 160.

80 Idem, “L’homme du Traité de l’homme” in Œuvres complètes t. IV, 2015, p. 690.

81 Descartes, R. “Lettre au Marquis de Newcastle, 23 novembre 1646” in Œuvres et lettres, 1953,


p. 1256.

O que nos faz pensar, Rio de Janeiro, v.26, n.40, p.339-371, jan.-jun. 2017
Sobre máquinas e organismos. Canguilhem e os aspectos dissimulados do animal-máquina cartesiano 357

realizam um fim que a habita sem encontrar seu princípio nas leis segundo
as quais ela se realiza”. Logo, se um animal que vive “é uma máquina, ele
deve também ser habitado por algum fim”. Deus fabrica seus animais-má-
quinas, seus autômatos naturais. Sabemos, desde as Méditations, que seus
fins são impenetráveis. Haveria então contradição, pergunta-se Canguilhem,
se Deus “montou esses autômatos que são os animais-máquinas”, em dizer
que ele assegura pelas vias mecânicas sua conservação por meio de “fins ina-
cessíveis ao nosso entendimento (...) que, consequentemente, a ciência dos
seres vivos pode e deve negligenciar?”. Brindando-se com um “equivalente
mecânico do vivo, Descartes apenas teria conseguido eliminar a finalidade
do plano do conhecimento humano para reportá-la, esquecendo-a rapida-
mente, sobre o plano da ação divina”82. Ruyer dirige suas conclusões na
mesma direção.

Não é, decerto, pela assimilação do organismo e de um conjunto de má-


quinas que poderemos escapar à teleologia. Toda explicação da teleologia
orgânica, por analogia com máquinas, significa simplesmente explicar a
teleologia interna por meio de uma teleologia externa, mas trata-se ainda
de teleologia. Quanto mais o mecanismo é grosseiro, como era aquele de
Descartes, mais grosseira é a teleologia correspondente. Quanto mais o
corpo humano se assemelha a um autômato dos jardins reais, mais Deus se
assemelha a um engenheiro italiano83.

Descartes teria então integrado ao seu mecanicismo uma finalidade que


habita a máquina animal, que ela realiza mecanicamente, mas que não tem
seu princípio identificado às leis de sua realização, ou seja, uma finalidade
que encontra sua razão de ser nos desígnios do Artífice, da ordem da cons-
trução. Se a finalidade foi remetida às razões desconhecidas do Criador dos
autômatos naturais, admitida, no plano do exercício da máquina orgânica,
para ser rapidamente esquecida, como precisou Canguilhem, ela não foi,
contudo, subtraída do sistema. Ela permite como que atenuar, pelo recurso
a um modelo tecnológico de produção, a partir da verificação de que in-
dústria humana e indústria divina operam pelo mesmo meio, ainda que a
segunda exceda a primeira em seus efeitos, o abismo instituído entre homem

82 Canguilhem, G. La formation du concept de réflexe aux XVIIe et XVIIIe siècles, 2015, p. 55.

83 Ruyer, R. Néo-finalisme, 2012, p. 26.

O que nos faz pensar, Rio de Janeiro, v.26, n.40, p.339-371, jan.-jun. 2017
358 Rafael Henrique Teixeira

e animal pela união substancial da alma com o corpo. Pois, com efeito, é a
partir das operações da indústria humana, sem a qual Descartes não teria
elaborado seu modelo do orgânico, que Canguilhem julga poder identificar
uma finalidade de aspecto antropomórfico no mecanicismo cartesiano, um
“antropomorfismo tecnológico”84.

Podemos então dizer que, substituindo o mecanismo ao organismo, Des-


cartes faz desaparecer a teleologia da vida; mas ele apenas a faz desapa-
recer aparentemente, pois ele a localiza inteiramente no ponto de partida.
Há substituição de uma forma anatômica a uma formação dinâmica, mas
como essa forma é um produto técnico, toda teleologia possível é encer-
rada na técnica da produção. Na verdade, não podemos (...) opor me-
canismo e finalidade, não podemos opor mecanismo e antropomorfismo,
pois se o funcionamento de uma máquina se explica por relações de pura
causalidade, a construção de uma máquina não se compreende nem sem
finalidade, nem sem o homem. Uma máquina é feita para e pelo homem,
em vista de alguns fins a obter, sob a forma de efeitos a produzir85.

Artificial ou natural, antropológica ou demiúrgica, produzida pelo enge-


nheiro humano ou pelo Engenheiro divino, a construção de um dispositivo
cujo funcionamento depende da disposição de suas peças não pode ser com-
preendida sem o recurso a uma produção da ordem da finalidade. “Ninguém
duvida que seja preciso um mecanismo para assegurar o sucesso de uma
finalidade; (...) inversamente, todo mecanismo deve ter um sentido, pois um
mecanismo não é uma dependência de um movimento fortuito e qualquer”86.
Atribuir um sentido a um mecanismo, no caso da máquina-animal, o exercí-
cio de suas funções e a manutenção de sua integridade, implica observar que
a mecânica do funcionamento não erradica do sistema a anterioridade neces-
sária da produção, do ato que institui uma conveniência entre as partes. É
nesse sentido que Canguilhem afirma que Descartes integra em sua biologia
um antropomorfismo tecnológico, ainda que o tenha feito por meio de um
salto na metafísica do Artífice divino. “(...) somente um metafísico pode
formular, sem risco de absurdidade inicial, ainda que finalmente revelada,

84 Canguilhem, G. “Machine et organisme” in La connaissance de la vie, 2009, p. 146.

85 Ibidem, p. 145-146.

86 Ibidem, p. 148.

O que nos faz pensar, Rio de Janeiro, v.26, n.40, p.339-371, jan.-jun. 2017
Sobre máquinas e organismos. Canguilhem e os aspectos dissimulados do animal-máquina cartesiano 359

os princípios de uma biologia mecanicista. Os historiadores da biologia ra-


ramente se deram conta disso. Quando esses são biólogos, é compreensível.
Quando são filósofos, é mais lamentável”87.
Se há, com efeito, em Descartes, um modelo mecânico do organismo,
fato que, diga-se, Canguilhem não pretende negar, a máquina apenas pode
servir de modelo ao orgânico porque ele integra o sentido de sua produção.
Em outros termos, o organismo vivo não é apenas assimilável ao mecânico
(ordem do funcionamento), ele seria admitido (por meio de uma ativida-
de humana) como condição prévia em um modelo tecnológico (ordem da
produção), onde causas finais e causas eficientes entram em comunicação
sem com isso nada retirar das primeiras seu poder explicativo. No limite,
poderíamos dizer que essa apoteose, que faz com que Deus seja assimilado
ao Artifex Maximus, é o corolário de um duplo proceder: a negação da alma
aos animais e a admissão de um exercício mecânico de suas funções que não
pode dispensar a manutenção de sua integridade.
Canguilhem afirmou que Descartes integra em sua biologia uma finalida-
de que é logo esquecida, pois retirada do plano da inteligibilidade do funcio-
namento do organismo e remetida ao plano da fábrica de nervos e músculos
da indústria divina. O que foi assim integrado, vimo-lo, é uma finalidade
que remete a um antropomorfismo tecnológico. Mas a filosofia canguilhenia-
na coloca em outros termos – ou, simplesmente, enraizado algures que não
em uma suposta anthropos fabricadora irredutível à natureza – o elemento
que foi esquecido nessa integração dissimulada. O que nos levaria a concluir
que a biologia mecanicista apenas pode se apresentar como antifinalista não
apenas “porque o teórico esquece que a máquina é feita pelo homem”, mas
também que esse homem “é um organismo”88. Com efeito, afirma Cangui-
lhem, “Descartes integrou à sua filosofia um fenômeno humano, a cons-
trução de máquinas”89. A questão é saber se, ao fazê-lo, Descartes integrou
igualmente – e se o fez, como – a razão de ser biológica dessa atividade. An-
tes de observar como Canguilhem responde a essa questão, faz-se necessário
apontar alguns princípios gerais de sua filosofia biológica da técnica.

87 Idem, La formation du concept de réflexe aux XVIIe et XVIIIe siècles, 2015, p. 56.

88 Ruyer, R. op. cit., p. 25.

89 Canguilhem, G. “Machine et organisme” in La connaissance de la vie, 2009, p. 141.

O que nos faz pensar, Rio de Janeiro, v.26, n.40, p.339-371, jan.-jun. 2017
360 Rafael Henrique Teixeira

Canguilhem não chega à problemática da técnica humana a partir de sua


leitura da biologia cartesiana. Trata-se de reflexão precoce, que figura já em
seus escritos da década de 1930. “As primeiras técnicas foram o prolonga-
mento (...) de atos naturais instintivos”, de modo que um “estudo das origens
da técnica deve necessariamente remontar ao instinto e à vida”90. A atividade
técnica coloca em relação “os objetos da percepção com as impulsões psico-
fisiológicas de um organismo estritamente obrigado por sua estrutura here-
ditária a um ritmo coercitivo de necessidade”. Se uma máquina apenas é, no
fundo, “o produto de um esforço universal de organização que a consciência
humana alimenta em um momento dado dos resultados de seu esforço de
conhecimento”, a “demarcação entre as máquinas primitivas naturais e os órgãos
montados pela natureza é impossível”91. O solo biológico do artifício ganhará
contornos precisos com a tese de medicina de 1943. Ocupando-se das rela-
ções entre a medicina, técnica biológica de “instauração ou de restauração do
normal”, e a fisiologia, Canguilhem não apenas ilustra, a partir de uma técni-
ca particular, a terapêutica, o enraizamento orgânico da técnica, como define
o orgânico em termos de uma potência de instituição de normas de vida. “No
sentido pleno da palavra”, admite Canguilhem, “normativo é o que institui
normas. E é nesse sentido que propomos falar de uma normatividade bioló-
gica”. A vida não é, para um vivo, “uma dedução monótona, um movimento
retilíneo, ela ignora a rigidez geométrica, ela é debate ou explicação (...) com
um meio onde há fugas, buracos, escapatórias e resistências”92. Nos termos
de Goldstein, “A Biologia lida com indivíduos que existem e tendem a existir, ou
seja, a realizar suas capacidades o melhor possível em um ambiente dado. As
performances do organismo em vida apenas são compreensíveis segundo sua
relação com essa tendência fundamental (...), como expressões dos processos
de autorrealização do organismo”93.
É nesse gênero de vitalidade que a técnica humana se inscreve: seja ela
terapêutica, verificada na clínica, ou mecânica, observável na indústria hu-
mana. Se o vivo humano se brindou com “uma técnica de tipo mecânica,

90 Canguilhem, G. e Planet, C. “Traité de logique et de morale” in Canguilhem, G. Œuvres


complètes t. I, 2011, p. 685.

91 Canguilhem, G. “Activité technique et création”, in Œuvres complètes t. I, 2011, p. 503 e 506.

92 Idem, Le normal et le pathologique, 2013, p. 102-103, 105 e 172.

93 Goldstein, K. “Remarques sur le problème épistémologique de la biologie” in Canguilhem, G.


Œuvres complètes t. IV, 2015, p. 1162.

O que nos faz pensar, Rio de Janeiro, v.26, n.40, p.339-371, jan.-jun. 2017
Sobre máquinas e organismos. Canguilhem e os aspectos dissimulados do animal-máquina cartesiano 361

esse fenômeno massivo tem um sentido não gratuito”94. Toda técnica humana
“se encontra inscrita na vida, ou seja, em uma atividade de informação e de
assimilação da matéria. Não é porque a técnica humana é normativa que a
técnica vital é julgada tal por compaixão. É porque a vida é atividade de in-
formação e de assimilação que ela é a raiz de toda atividade técnica”95. A esse
enraizamento, Canguilhem acrescenta a verificação da relação entre técnica e
ciência: uma ciência “não seria nada sem uma técnica preexistente”96. O elã
que conduz à fabricação de instrumentos artificiais, por exemplo, não pode
advir do puro mecanicismo, “do qual não saberíamos retirar diretamente a
menor possibilidade de fabricação. De modo algum o conhecimento integral
das leis do atrito teria podido conduzir à fabricação da ferradura”97.

É comum apresentar a construção da locomotiva como uma “maravilha


da ciência”. E, no entanto, a construção da máquina a vapor é ininteligível
caso não saibamos que ela não é a aplicação de conhecimentos teóricos
prévios, mas sim a solução de um problema milenar, propriamente técnico,
que é o problema da secagem das minas98.

A ciência bem pode aplicar-se na orientação do trabalho de um vivo hu-


mano que fabrica seus artefatos. Não obstante, “A anterioridade lógica do co-
nhecimento da física por sobre a construção de máquinas, em um momento
dado, não pode e não deve fazer esquecer a anterioridade cronológica e bioló-
gica absoluta da construção de máquinas sobre o conhecimento da física”. O
que coloca essa anterioridade é um obstáculo ou problema que se apresenta
no horizonte de um vivo humano no exercício de sua normatividade biológi-
ca, de modo que “toda técnica comporta essencialmente e positivamente uma
originalidade vital irredutível à racionalização”. Se a origem irracional das má-
quinas é esquecida pela racionalização de suas técnicas, Canguilhem sustenta
que, “nesse domínio, como em qualquer outro, é preciso saber dar lugar ao

94 Canguilhem, G. “Machine et organisme” in La connaissance de la vie, 2009, p. 164.

95 Canguilhem, G. Le normal et le pathologique, 2013, p. 106.

96 Canguilhem, G. e Planet, C. op. cit., p. 686.

97 Canguilhem, G. “Activité technique et création”, in Œuvres complètes t. I, 2011, p. 506.

98 Idem, “Machine et organisme” in La connaissance de la vie, p. 160.

O que nos faz pensar, Rio de Janeiro, v.26, n.40, p.339-371, jan.-jun. 2017
362 Rafael Henrique Teixeira

irracional, mesmo e, sobretudo, quando se quer defender o racionalismo”99.


A despeito do possível esclarecimento que a ciência pode oferecer à técnica,
da possível codificação de um procedimento normativo originariamente irre-
dutível ao intelecto, “A relação da ciência com a técnica não é uma relação de
descendência hereditária, é uma relação de liberação por ruptura: o impulso
da ciência tem por condição o malogro da técnica”100. Como se, uma vez colocado
o problema, o obstáculo a ser integrado à solução técnica, as dificuldades de
sua resolução conclamassem a uma reflexão acerca desse obstáculo. A ciência
procede da técnica não no sentido que ela é uma “decodificação do útil, um
registro do sucesso”, mas na medida em que o embaraço técnico convida “o
espírito a se interrogar sobre a natureza das resistências encontradas pela arte
humana”101. Reflexão sobre seus malogros e obstáculos, a ciência traz “uma
prudência ou uma facilidade a um elã cuja raiz não se encontra nela. O ho-
mem faz doravante melhor – porque ele sabe – o que ele fazia sem saber e que
ele apenas tentou fazer porque ele não sabia”102. Há um poder que se exerce
independentemente de direito, de um saber que pode a ele se anexar103.

(...) considerando a técnica como um fenômeno biológico universal e não


mais somente como uma operação intelectual do homem, somos conduzi-
dos, de um lado, a afirmar a autonomia criadora das artes e dos métiers
com relação a todo conhecimento capaz de anexá-los para se aplicar sobre
eles ou de informá-los para multiplicar seus efeitos e, consequentemente,
de outro lado, a inscrever o mecânico no orgânico104.

99 Ibidem, p. 155, 157 e 161.

100 Canguilhem G. e Planet C. op, cit, p. 687.

101 Canguilhem, G. “Descartes et la technique”, in Œuvres complètes t. I, 2011, p. 496-497.

102 Idem, “Activité technique et création”, in Œuvres complètes t. I, 2011, p. 504.

103 Reconhecer que o conhecimento se inscreve na vida por intermédio da técnica não implica
usurpar-lhe o sentido de seu enraizamento. O racionalismo, “se ele quer ser fecundo, não pode
permanecer puro”. A razão é “menos um poder de percepção de relações essenciais incluídas na
realidade das coisas ou do espírito” do que “um poder de instituição de relações normativas na
experiência da vida” (Idem, “Note sur la situation faite en France à la philosophie biologique”
in Œuvres complètes t. IV, 2015, p. 313 e 320). Remetido à normatividade biológica do vivo
humano, o conhecimento se define como um “método geral para a resolução direta ou indireta
das tensões entre o homem e o meio”, visando “permitir ao homem um novo equilíbrio com o
mundo, uma nova forma e uma nova organização de sua vida” (Idem, “La pensée et le vivant” in
La connaissance de la vie, 2009, p. 12).

104 Idem, “Machine et organisme” in La connaissance de la vie, 2009, p. 163.

O que nos faz pensar, Rio de Janeiro, v.26, n.40, p.339-371, jan.-jun. 2017
Sobre máquinas e organismos. Canguilhem e os aspectos dissimulados do animal-máquina cartesiano 363

Admitamos que o que Canguilhem observa na clínica possa ser estendi-


do a toda técnica. Na terapêutica médica, o homem reencontra “uma tática
muito primitiva do vivo (...), aquela das tentativas e dos erros”, prolongando,
“de modo mais ou menos lúcido, um esforço espontâneo, próprio à vida,
para lutar contra o que faz obstáculo à sua manutenção e ao seu desenvolvi-
mento tomado por normas”105. Não seria a técnica, antes de ser construção
de objetos artificiais, no vivo humano, em sua acepção biológica universal,
reação e esforço espontâneo do vivo em face dos problemas colocados pela
vida, ou seja, mobilização da vida contra o que lhe resiste? Digamos que o
aspecto formal da solução técnico-normativa esboçada elo homem, terapêu-
tica ou mecânica, não dissimula a intenção normativa que a torna neces-
sária e que, no limite, é mais definidora do fenômeno que seus contornos
idiossincráticos. Não seria então descabido dizer que, porque as ferramen-
tas e máquinas prolongam a atividade orgânica, “elas não têm persistência
própria”106. Como apontado, resta-nos saber se Descartes, ao integrar o fato
antropológico da construção de máquinas em sua representação do orgânico,
foi capaz de assumir, na raiz desse fato, seu enraizamento vital, ou então se
seu antropomorfismo tecnológico é incapaz de dar vazão a um biologismo
como o canguilheniano. Canguilhem, pouco afeito aos lugares comuns em
se tratando de Descartes, não falará em termos de uma negação do vital107

105 Idem, Le normal et le pathologique, 2013, p. 102 e 383.

106 Ruyer, R. op. cit., p. 25.

107 Tese que ganha força se observarmos um texto capital, Descartes et la technique. Sem deixar
de reconhecer que “A consciência do possível técnico” pode ser dada “pelo conhecimento do
necessário teórico” – o que não apresenta nenhuma novidade, dada a “longa familiaridade do
pensamento moderno com um tema de reflexão que, de da Vinci à Marx, passando pelos En-
ciclopedistas e Comte, foi a ocasião de um desenvolvimento tornado clássico” –, Canguilhem
(“Descartes et la technique”, in Œuvres complètes t. I, 2011, p. 494) afirma que a “tese do co-
nhecimento convertível em ação técnica não se dá, no pensamento cartesiano, sem importantes
restrições”. Tratando da invenção das lunetas na Dioptrique, Descartes (“La dioptrique (six pre-
miers discours)” in Œuvres et lettres, 1953, p. 180) lamenta que, “para a vergonha de nossas
ciências, essa invenção, tão útil e admirável, apenas foi primeiramente alcançável pela experiência
e ao acaso”. Eis o suficiente para Canguilhem (“Descartes et la technique”, in Œuvres complètes
t. I, 2011, p. 496) postular que Descartes integrou à sua reflexão “uma forma de relação entre o
conhecimento e a construção outra que aquela que faz depender (...) a segunda da primeira”. Mais
importante é a consequência que Canguilhem retira desse fato aliado ao reconhecimento de Des-
cartes (“La dioptrique (six premiers discours)” in Œuvres et lettres, 1953 p. 180) que, toda nossa
vida dependendo de nossos sentidos, dentre os quais o mais nobre é a visão, “não há dúvida de
que as invenções que servem para aumentar sua potência sejam as mais úteis que possam existir”.
Segundo Canguilhem (“Descartes et la technique”, in Œuvres complètes t. I, 2011, p. 497) essa
postura cartesiana não deixa dúvidas: a iniciativa de uma técnica como essa, da qual se alimentará
a ótica, mas cujo elã não aguardou a permissão do teórico, se encontra “nas exigências do vivo”.

O que nos faz pensar, Rio de Janeiro, v.26, n.40, p.339-371, jan.-jun. 2017
364 Rafael Henrique Teixeira

por parte de Descartes, mas de um ardil que o ignora para fins de sua legi-
timação racional. Citemos a passagem do Traité de l’homme a partir da qual
Canguilhem justifica esse ponto de vista.

Suponho que o corpo não seja outra coisa senão uma estátua ou máquina
de terra, que Deus forma intencionalmente para torná-lo o mais possível
semelhante a nós. De modo que ele não apenas lhe dá externamente a cor
e a figura de todos os nossos membros, como também coloca dentro dela
todas as peças que são necessárias para fazer que ela ande, coma, respire
e, enfim, imite todas as nossas funções que possam ser imaginadas como
procedentes da matéria e que só dependem da disposição dos órgãos108.

“Ao ler esse texto em um espírito tão inocente quanto possível”, afirma
Canguilhem, a teoria do animal-máquina parece ganhar sentido graças a dois
postulados: a existência de um Deus fabricador e que o vivo é dado enquan-
to tal, previamente, à construção da máquina. Seria preciso, para compre-
ender a máquina-animal, “percebê-la como precedida, no sentido lógico e
cronológico, ao mesmo tempo por Deus como causa eficiente e por um vivo
preexistente a imitar, como causa formal e final”, como se, longe de romper
com a “concepção aristotélica da causalidade”, todas as causalidades mobili-
zadas por Aristóteles se fizessem presentes, ainda que “não no mesmo lugar
e não simultaneamente”. Desse Deus que assume os ares de um Engenheiro,
reserva de finalidade antropo-tecnológica no corpus cartesiano, já nos ocupa-
mos. Detenhamo-nos no segundo aspecto mobilizado por Canguilhem. “O
modelo do vivo-máquina é o próprio vivo”, a construção da máquina viva
implica (...) uma obrigação de imitar um dado orgânico prévio”109. Segundo
Hacking, “A fascinação de Canguilhem pelo vital, pela vida como condição
prévia, é aqui evidente”110. Canguilhem encontra assim uma rara licença con-
cedida por Descartes a uma vida apresentada como condição, e não como
condicionada, seja pelas razões tecnológicas do Artifex Maximus, seja pela
explicação mecânica do exercício de suas funções. Se essa licença é, enquanto
tal, rara, ela possui grande valor para seus propósitos. “A teoria do animal-
-máquina seria então para a vida o que uma axiomática é para a geometria

108 Descartes, R. “Traité de l’homme” in Œuvres et lettres, 1953, p. 807.

109 Canguilhem, G. “Machine et organisme” in La connaissance de la vie, 2009, p. 144 e 145.

110 Hacking, I. “Canguilhem parmi les cyborgs” in Braunstein, J-F. Canguilhem, histoire des scien-
ces et politique du vivant, 2007, p. 116.

O que nos faz pensar, Rio de Janeiro, v.26, n.40, p.339-371, jan.-jun. 2017
Sobre máquinas e organismos. Canguilhem e os aspectos dissimulados do animal-máquina cartesiano 365

(...), apenas uma reconstrução racional, mas que apenas ignora por um ardil
a existência daquilo que deve representar e a anterioridade da produção so-
bre a legitimação racional”111. Ignorar por um ardil não seria o mesmo que
reconhecer uma exigência sem, contudo, levá-la adiante na representação do
fato ao qual ela se liga, o que é coisa distinta de negá-lo pura e simplesmente,
como pretendem aqueles que se limitam a observar, no Traité de l’homme, um
mecanicismo estrito? Integrando um fato humano à sua biologia, Descartes
teria assimilado Deus a um Engenheiro, a indústria divina à indústria huma-
na. Poderíamos conjecturar que, tivesse Descartes levado às últimas consequ-
ências algo que ele parece ter pressentido – ao menos do ponto de vista de
Canguilhem –, tivesse ele integrado ao seu edifício teórico o enraizamento
orgânico do fato humano que ele, com efeito, integrara, reportando-o à me-
tafísica, esse Engenheiro metafísico seria apresentado, talvez, como um Vivo
Artífice demiúrgico.

Considerações finais

Por detrás das operações pelas quais Canguilhem apresenta a integração car-
tesiana, no trato do fenômeno orgânico, de elementos rebeldes à jurisdição
de um mecanicismo estrito, é possível observar o seguinte fato. A vida, na
filosofia cartesiana, não é objeto de uma negação categórica, mas um objeto
necessariamente problemático, marcado por tensões decorrentes de um fato
incontornável: máquinas bem podem servir de modelo à representação dos
organismos, mas sua simples presença no mundo é testemunho de que um
organismo vivo a construiu por meio de uma potência não mecânica. Má-
quinas não produzem, no sentido de uma invenção espontânea, máquinas.
Talvez uma convicção do próprio Descartes servisse para ilustrar essa asser-
tiva canguilheniana. O mais perfeito não pode depender do menos perfeito,
“deve haver ao menos tanta realidade na causa eficiente e total que em seu
efeito: pois de onde o efeito pode retirar sua realidade senão de sua causa? E

111 Canguilhem, G. “Machine et organisme” in La connaissance de la vie, 2009, p. 145. A opera-


ção que Canguilhem apresenta aqui como uma ignorância simulada é apresentada, algures, como
verdadeiro equívoco: “Entre o corpo vivo e o autômato, simulador do corpo vivo, a relação do
modelo é reversível, mas ao preço de um equívoco. A construção do autômato”, natural (por
Deus) ou artificial (pelo homem), “procede de uma intenção de cópia, mas sua utilização pela
teoria cartesiana do vivo é aquela de um equivalente inteligível (Idem, La question de la normalité
dans l’histoire de la pensée biologique” in Idéologie et rationalité dans l’histoire des sciences de la vie,
2009, p. 158).

O que nos faz pensar, Rio de Janeiro, v.26, n.40, p.339-371, jan.-jun. 2017
366 Rafael Henrique Teixeira

como essa causa poderia lhe comunicar sua realidade se ela não a possuísse
em si mesma?”112. Nos termos de nosso problema: como uma máquina pro-
duziria uma máquina se da disposição de suas partes não podemos retirar
nada de novo, se essa própria disposição depende de uma intenção da ordem
do vital? Diante disso, Descartes teria adotado duas resoluções, segundo a
leitura canguilheniana. De um lado, a necessária anterioridade da produção
por sobre sua legitimação racional no corpo da teoria é como que garantida
ao ser reportada a um Deus fabricador. De outro, por um ardil epistemológi-
co, Descartes simplesmente ignoraria a existência que se trata de representar,
organismos que, por produzirem máquinas, são mais que máquinas, e justa-
mente para poder assimilá-los a esse gênero de fatos, visando à elucidação de
seu funcionamento pelos produtos de sua atividade.
A maneira pela qual Canguilhem apresenta Descartes é, decerto, pouco
canônica. Mas ela ganha legitimidade quando remetida ao pano de fundo
representado pela intenção da filosofia de Canguilhem: uma “compreensão
sistemática das invenções técnicas como comportamentos do vivo”113. Diante
disso, o partido de Canguilhem ao tomar por objeto a face dissimulada pela
qual a vida se apresenta no sistema cartesiano, essa vida que é solo originário
da máquina que lhe servirá de modelo, não é descrever as teses cartesianas
por seus aspectos negativos (negação da irredutibilidade da vida, redução do
orgânico ao mecânico), mas a maneira pela qual, no próprio sistema cartesia-
no, os fenômenos vitais “resistem (...) à sua integral expressão por seus equi-
valentes mecânicos”114. Os indícios dessa resistência encontrados por Can-
guilhem se apresentam a partir de feições fugidias, vimo-lo. Essa expressão,
por assim dizer, dissimulada, de atributos que são refratários à mecanização,
pode ser tomada como o corolário “de uma esperança paradoxal, aquela de
explicar um poder por meio de conceitos e de leis inicialmente formadas a
partir de hipóteses que o negam”115. Podemos nos perguntar, não sem ressal-
vas, se o que Canguilhem define como vitalismo, “uma exigência mais que
um método (...), uma moral mais que uma teoria”, exigência que se faz sentir
no vivo humano “separado da vida pela ciência e que tenta alcançar a vida
através da ciência”, não nos ajudaria a melhor circunscrever as conclusões

112 Descartes, R. “Méditations, objections et réponses” in Œuvres et lettres, 1953, p. 289.

113 Canguilhem, G. “Machine et organisme” in La connaissance de la vie, 2009, p. 162.

114 Idem, La formation du concept de réflexe aux XVIIe et XVIIIe siècles, 2015, p. 54.

115 Idem, “Vie (Article)” in Encyclopaedia universalis v. XVI, 1996, p. 766.

O que nos faz pensar, Rio de Janeiro, v.26, n.40, p.339-371, jan.-jun. 2017
Sobre máquinas e organismos. Canguilhem e os aspectos dissimulados do animal-máquina cartesiano 367

que ele retira de sua leitura de Descartes. A teoria biológica se revela para
Canguilhem, através de sua história, “como um pensamento dividido e os-
cilante” no qual “Mecanicismo e Vitalismo se afrontam”, como um “retorno
pendular a posições das quais o pensamento parecia estar definitivamente
afastado”. Dessa persistência de teses vitalistas, Canguilhem conclui que o
vitalismo traduz uma “exigência permanente da vida no vivo, a identidade
consigo mesma da vida” imanente ao vivo humano “consciente de viver”116.

Talvez no que concerne à vida as questões seriam sempre mal colocadas,


mesmo quando elas parecem receber soluções mecanicistas satisfatórias,
pois elas são enunciadas em termos cujo sentido é excedido no próprio
momento em que são utilizados. Queremos dizer que cada tentativa de
redução das funções orgânicas a um sistema mecânico se esquece simples-
mente que ela não é a forma definitiva do saber nessa matéria. O vitalismo
apenas seria, talvez, o sentimento de uma antecipação ontológica, logo,
cronologicamente irrecuperável, da vida sobre a teoria e a técnica mecâni-
cas, sobre a inteligência e a simulação da vida117.

Fazer de Descartes um vitalista seria forçoso, senão absurdo. Mas enquan-


to exigência que ganha expressão na teorização acerca do vital não poderí-
amos supor que ela se faz sentir no próprio teórico do animal-máquina, ao
menos nos aspectos de sua biologia enfatizados por Canguilhem, aspectos
que, Canguilhem afirmou, Descartes foi obrigado a nela introduzir? Não seria
o caso de tomar o sentido do vitalismo enquanto exigência, que Canguilhem
identifica no devir das ciências da vida em sua oposição às teorias que assi-
milam o vivo ao não-vivo, e introduzi-lo na consciência de Descartes, sujeito
do conhecimento que toma como objeto a vida e que se choca com questões
de difícil resolução por meio de um estrito mecanicismo? Essa exigência, em
Descartes, não se desdobra em uma teoria vitalista, no sentido de uma “bio-
logia cuidadosa de sua independência para com as ambições anexionistas
das ciências da matéria”118. Se ela de fato se faz presente, é incapaz de deter a
representação mecânica do funcionamento do organismo. Mas, afirma Can-
guilhem, “um modelo não é nada além de sua função” e essa função “consiste

116 Idem, “Aspects du vitalisme” in La connaissance de la vie, 2009, p. 108-111

117 Idem, La formation du concept de réflexe aux XVIIe et XVIIIe siècles, 2015, p. 123.

118 Idem, “Aspects du vitalisme” in La connaissance de la vie, 2009, p. 106.

O que nos faz pensar, Rio de Janeiro, v.26, n.40, p.339-371, jan.-jun. 2017
368 Rafael Henrique Teixeira

em emprestar seu tipo de mecanismo a um objeto diferente, sem, no entanto,


impor-se como cânon”119. É pegar ou largar. Pois a vida bem pode descon-
certar a lógica – e ela bem pode ter desconcertado o teórico das ideias claras
e distintas –, isso não quer dizer que lidaremos melhor com ela “renuncian-
do a formar conceitos”120. Talvez entre esse desconcerto e a solução racional
que lhe é proposta devamos localizar os traços paradoxais que Canguilhem
identificou na tentativa de edificação de um mecanicismo biológico integral
por parte de Descartes. Na verdade, essa própria tentativa é indicativa de
seus limites: “Se o animal não é nada além de uma máquina, e igualmente a
natureza inteira, por que tantos esforços humanos para reduzi-los a ela?”121.
A bem dizer, esse esforço não começou com Descartes. Tampouco se de-
teve nele. Basta pensar nas máquinas mobilizadas pela biologia molecular
para a compreensão dos mecanismos da hereditariedade, ou pela neurologia
para a elucidação do funcionamento do sistema nervoso, não mais aquelas
“que encontramos no parque de Versalhes”, mas “computadores” e “redes de
comunicação”122. Diante dessa persistência, Canguilhem não se exime, uma
vez mais, de poupar a Descartes simplificações apressadas. Relativamente aos
“mecanicistas e cibernéticos” atuais, a superioridade de Descartes reside pre-
cisamente naquilo que, aos seus olhos, é uma incoerência, “na apresentação
de sua biologia como uma “forma” de mecanicismo sobre um “fundo” de
metafísica”123. Fundo que, para Canguilhem, é índice de uma vida nem sem-
pre tornada visível na filosofia cartesiana.

Referências

ALQUIÉ, F. La découverte métaphysique de l’homme chez Descartes. Paris: PUF, 2011.


ARISTÓTELES. Les parties des animaux. Trad. de Pierre Louis. Paris: Les Belles Lettres,
1957.
______. De l’âme. Trad. de E. Barbotin. Paris: Gallimard, 1989.

119 Idem, “Modèles et analogies dans la découverte en biologie” in Études d’histoire et de


philosophie des sciences concernant les vivants et la vie, 2002, p. 13.

120 Idem, La formation du concept de réflexe aux XVIIe et XVIIIe siècles, 2015, p. 01.

121 Idem, “Aspects du vitalisme” in La connaissance de la vie, 2009, p. 111.

122 Morange, M. Une histoire de la biologie, 2016, p. 87.

123 Canguilhem, G. La formation du concept de réflexe aux XVIIe et XVIIIe siècles, 2015, p. 124.

O que nos faz pensar, Rio de Janeiro, v.26, n.40, p.339-371, jan.-jun. 2017
Sobre máquinas e organismos. Canguilhem e os aspectos dissimulados do animal-máquina cartesiano 369

AUCANTE, V. La philosophie médicale de Descartes. Paris: PUF, 2006.


CANGUILHEM, G. Vie (Article). In: Encyclopaedia universalis v. XVI, Paris: 1996, p. 764-
769.
______. Le tout et la partie dans la pensée biologique. In: ______. Études d’histoire et
de philosophie des sciences concernant les vivants et la vie. Paris: Vrin, 2002, p. 319-333.
______. Modèles et analogies dans la découverte en biologie. In: ______. Études
d’histoire et de philosophie des sciences concernant les vivants et la vie. Paris: Vrin, 2002,
p. 305-318.
______. La constitution de la physiologie comme science. In: ______. Études
d’histoire et de philosophie des sciences concernant les vivants et la vie. Paris: Vrin, 2002,
p. 226-273.
______. Du singulier et de la singularité en épistémologie biologique. In: ______.
Études d’histoire et de philosophie des sciences concernant les vivants et la vie. Paris: Vrin,
2002, p. 211-225.
______. Machine et organisme. In: ______. La connaissance de la vie. Paris: Vrin, 2009,
p. 129-164.
______. L’expérimentation en biologie animale. In: ______. La connaissance de la vie.
Paris: Vrin, 2009, p. 19-49.
______. La question de la normalité dans l’histoire de la pensée biologique. In:
______. Idéologie et rationalité dans l’histoire des sciences de la vie. Paris: Vrin, 2009, p.
153-176.
______. La pensée et le vivant. In: ______. La connaissance de la vie. Paris: Vrin, 2009,
p. 11-16.
______. Aspects du vitalisme. In: ______. La connaissance de la vie. Paris: Vrin, 2009,
p. 105-127.
______. Activité technique et création. In: ______. Œuvres complètes t. I. Paris: Vrin,
2011, p. 499-509.
______. Descartes et la technique. In: ______. Œuvres complètes t. I. Paris: Vrin,
2011, p. 490-499.
______. Le normal et le pathologique. Paris: PUF, 2013.
______. Note sur la situation faite en France à la philosophie biologique. In: ______.
Œuvres complètes t. IV. Paris: Vrin, 2015, p. 307-320.
______. Descartes. L’homme du Traité de l’homme. In: ______. Œuvres complètes t. IV.
Paris: Vrin, 2015, p. 683-692.
______. La formation du concept de réflexe aux XVIIe et XVIIIe siècles. Paris: Vrin, 2015.
CANGUILHEM, G. e PLANET, C. Traité de logique et de morale. In: CANGUILHEM,
G. Œuvres complètes t. I. Paris: Vrin, 2011, p. 632-924.
CONDILLAC. Traité des animaux. Paris: Vrin, 2004.
DAGOGNET, F. L’animal selon Condillac. Paris: Vrin, 1987.
______. Georges Canguilhem. Philosophe de la vie. Le Plessis-Robinson: Institut
Synthélabo, 1997.

O que nos faz pensar, Rio de Janeiro, v.26, n.40, p.339-371, jan.-jun. 2017
370 Rafael Henrique Teixeira

DESCARTES, R. Traité de l’homme. In: ______. Œuvres et lettres. Paris: Gallimard,


1953, p. 803-873.
______. Les passions de l’âme. In: ______. Œuvres et lettres. Paris: Gallimard, 1953,
p. 691-802.
______. Lettre à Morus, 5 février 1649. In: ______. Œuvres et lettres. Paris: Gallimard,
1953, p. 1312-1320.
______. Discours de la méthode. In: ______. Œuvres et lettres. Paris: Gallimard,
1953, p. 126-179.
______. Les principes de la philosophie. In: ______. Œuvres et lettres. Paris:
Gallimard, 1953, p. 553-690.
______. La dioptrique (six premiers discours). In: ______. Œuvres et lettres. Paris:
Gallimard, 1953, p. 180-229.
______. Lettre à Mersenne, 28 octobre 1640. In: ______. Œuvres et lettres. Paris:
Gallimard, 1953, p. 1083-1090.
______. Lettre au Marquis de Newcastle, 23 novembre 1646. In: ______. Œuvres et
lettres. Paris: Gallimard, 1953, p. 1252-1257.
______. Méditations, objections et réponses. In: ______. Œuvres et lettres. Paris:
Gallimard, 1953, p. 257-547.
______. Lettre à Reneri pour Pollot, avril ou mai 1638. In: ______. Correspondance t.
II. Paris: Félix Alcan, 1970, p. 236-245.
______. La description du corps humain. In: ______. Œuvres t. XI. Paris: Vrin, 1986,
p. 219-290.
______. O mundo ou Tratado da luz. In: ______. O mundo – O homem (Trad. C.
Battisti e M. Donatelli). Campinas: Editora da Unicamp, 2009, p. 14-245.
DOYON, A e LIAIGRE, L. Méthodologie comparée du biomécanisme et de la
mécanique comparée, Dialectica, v. 10, n. 4, p. 292-323, 1956.
FONTENAY, E. Le silence des bêtes. La philosophie à l’épreuve de l’animalité. Paris:
Fayard, 1998.
GOLDSTEIN, K. Remarques sur le problème épistémologique de la biologie. In:
CANGUILHEM, G. Œuvres complètes t. IV. Paris: Vrin, 2015, p. 1161-1164.
GUEROULT, M. Descartes selon l’ordre des raisons t. II. Paris: Aubier, 1968.
GUICHET, J-C. Rousseau, l’animal et l’homme. Paris: Les Éditions du Cerf, 2006.
GRMEK, M. La première révolution biologique. Paris: Éditions Payot, 1990.
HACKING, I. Canguilhem parmi les cyborgs. In: BRAUNSTEIN, J-F. Canguilhem,
histoire des sciences et politique du vivant. Paris: PUF, 2007, p. 113-141.
HARVEY, W. Estudo anatômico do movimento do coração e do sangue nos animais. Trad.
De Pedro Carlos Piantino Lemos. São Paulo: Editora Unifesp, 2009.
KAPP, E. Principes d’une philosophie de la technique (Trad. de G. Chamayou). Paris: Vrin,
2007.

O que nos faz pensar, Rio de Janeiro, v.26, n.40, p.339-371, jan.-jun. 2017
Sobre máquinas e organismos. Canguilhem e os aspectos dissimulados do animal-máquina cartesiano 371

LA METTRIE. L’homme-machine. In: ______. Œuvres philosophiques v. I. Paris:


Fayard, 1987, p. 63-118.
MORANGE, M. Une histoire de la biologie. Paris: Éditions du Seuil, 2016.
MENDELSOHN, E. Heat and life. The development of the theory of animal heat.
Cambridge, Massachusetts : Harvard University Press, 1964.
PICHOT, A. Histoire de la notion de vie. Paris: Gallimard, 1993.
RUYER, R. Néo-finalisme. Paris: PUF, 2012.
SEBESTIK, J. Le rôle de la technique dans l’œuvre de Georges Canguilhem. In:
Georges Canguilhem, philosophe, historien des sciences (Actes du colloque, 6-8 décembre
1990). Paris: Albin Michel, 1998, p. 243-250.
SIMONDON, G. L’individuation à la lumière des notions de forme et d’information.
Grenoble: Million, 2013.
VAUCANSON. Le mécanisme du fluteur automate, présenté à Messieurs de l’Académie
Royale des Sciences. Paris, 1738.

O que nos faz pensar, Rio de Janeiro, v.26, n.40, p.339-371, jan.-jun. 2017

Você também pode gostar