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Filosofia, psicanálise e sociedade

Cláudio Oliveira (org.)


Filosofia, psicanálise e sociedade

Cláudio Oliveira (org.)

azougue editorial
2010
Coordenação editorial
Sergio Cohn

Projeto gráfico e capa


Carolina Noury

Equipe Azougue
Carolina Noury, Elisa Ramone, Evelyn Rocha, Filipe Gonçalves,
Giselle de Andrade, Ismar Tirelli Neto, Larissa Ribeiro, Lilian Diehl, Marta Lozano

Revisão
Evelyn Rocha

CIP-BRASIL. CATALOGAÇÃO-NA-FONTE
SINDICATO NACIONAL DOS EDITORES DE LIVROS, RJ

F524

Filosofia, psicanálise e sociedade / Cláudio Oliveira (org.). - Rio de Janeiro : Beco do Azougue, 2010.

Conferências apresentadas no III Encontro Nacional de Pesquisadores em Filosofia e Psicanálise, realizado


na Universidade Federal do Rio de Janeiro e na Universidade Federal Fluminense em novembro de 2008
Inclui bibliografia
ISBN 978-85-7920-045-8

1. Filosofia - Congressos. 2. Psicanálise - Congressos. 3. Psicanálise e filosofia - Congressos. I. Oliveira,


Claudio.

10-5582. CDD: 150.195


CDU: 159.964.2

27.10.10 04.11.10 022358

[ 2011 ]
Beco do Azougue Editorial Ltda.
Rua Jardim Botânico, 674 sala 605
CEP 22461-000 - Rio de Janeiro - RJ
Tel/fax 55_21_2259-7712

www.azougue.com.br
azougue - mais que uma editora, um pacto com a cultura
9 Apresentação

parte 1: Tradição, Transmissão e Memória

15 Herdar é ultrapassar o pai: tradição e transmissão


Anna Carolina Lo Bianco (UFRJ)

21 Do Mal ao Pai: uma leitura do Protesto de Lutero


Ricardo de Sá (UFF)

37 Interpretação espinosiana da Escritura e interpretação


freudiana do sonho
Adrien Klajnman (ENS-LSH de Lyon/Paris I-Sorbonne)

51 Benjamin e Freud: A repetição do choque


Eran Dorfman, Universidade de Ben Gurion (Israel)

parte 2: Metapsicologia, Política, Cultura e Arte

67 O antinaturalismo da pulsão freudiana


Christian Hoffmann (Paris-Diderot)

83 Narcisismo e pulsão de morte ou o que resiste ao laço


com o Outro
Cláudio Oliveira (UFF)

93 Sozinho, mas não sem os outros


Paulo Vidal (UFF)

101 A transformação da crítica da razão em análise de patologias


do social: O caso Theodor Adorno
Vladimir Safatle (USP)

119 Psicanálise como saber sem álibi - uma leitura de Derrida


sobre a crueldade
Joel Birman (UFRJ)
145 Crítica do poder e violência da linguagem
Antônio Márcio Ribeiro Teixeira (UFMG)

157 Psicanálise e técnica: novo humanismo


ou novo ideal ascético?
Vincenzo Di Matteo (UFPE)

173 Um mal-estar na cultura para Freud e para Winnicott


Leopoldo Fulgencio (PUC-Campinas)

187 As relações entre Filosofia e Psicanálise na compreensão e


crítica da cultura de consumo: da ideologia à fantasia social
Isleide Arruda Fontenelle (FGV-SP)
215 O Lugar, o Sujeito e o Objeto.
Transmissões entre psicanálise e arte
Tania Rivera (UNB)

parte 3: Lógica e Epistemologia, Linguagem e Ciência

229 Quem sabia? O escrito como fundamento em ato do real


Francisco Leonel Fernandes (UFF)
Fernanda Costa-Moura (UFRJ)

237 Versagung e ato:


a dimensão ético-política da crítica à metalinguagem
Gilson Iannini (UFOP)
257 A psicanálise freudiana como um modelo para a superação
da dualidade entre ciências naturais e ciências humanas
Richard Theisen Simanke (UFSCAR)

277 Será possível dar ouvidos ao não verbal e ampliar o alcance


da psicanálise à escuta de ações coletivas e de acontecimen-
tos sociais?
José Francisco Miguel Henriques Bairrão (USP-RP)
parte 4: Afeto, Paixão, Prazer e Gozo

297 A dimensão afetiva da linguagem na experiência psicanalítica


Regina Herzog (UFRJ)

315 Paixão e Gozo


Claudia Murta (UFES)

331 Prazer à exaustão


Francisco Verardi Bocca (PUC-PR)

parte 5: Clínica e Política

357 Crítica da Razão Diagnóstica em Psicanálise


Christian Ingo Lenz Dunker (USP)

377 É a psicanálise um cuidado de si?


Mais uma vez... Foucault e a psicanálise
Ernani Chaves (UFPA)
Apresentação
Cláudio Oliveira

Este livro é o resultado das conferências apresentadas no III En-


contro Nacional de Pesquisadores em Filosofia e Psicanálise que teve
lugar na Universidade Federal do Rio de Janeiro e na Universidade Federal
Fluminense em novembro de 2008. Decorrência da ação conjunta do De-
partamento de Filosofia da UFF, do PPG em Teoria Psicanalítica da UFRJ,
do PPG em Filosofia da USP, do PPG em Filosofia da UFSCAR, do PPG em
Psicologia da PUC-Campinas, do Núcleo de Psicanálise, Discurso e Laço
Social da UFF, do Laboratório de Estudos em Teoria Social, Filosofia e Psi-
canálise da USP e do GT Filosofia e Psicanálise da ANPOF, o III Encontro
visou contribuir para a institucionalização do campo de pesquisa das várias
modalidades de recurso filosófico à psicanálise e vice-versa.
O III Encontro deu continuidade ao trabalho desenvolvido nos dois
primeiros Encontros, ocorridos em 2004 e 2006, na USP, fortalecendo uma
área de pesquisa e de interlocução filosófica e interdisciplinar que vem
ganhando importância e volume no cenário nacional e internacional. O
objetivo dos Encontros é demonstrar a importância e a possibilidade de
debate em torno da reflexão filosófica sobre a psicanálise, bem como o
recurso psicanalítico à filosofia, assim como o estado atual das pesquisas
desenvolvidas nacional e internacionalmente.
O III Encontro colaborou com a consolidação do campo de pes-
quisas que se organizou no Brasil em torno dos significantes “Filosofia”
e “Psicanálise” e que demarca o espaço da reflexão filosófica a respeito
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de conceitos fundamentais que estruturam a clínica psicanalítica assim


como a reflexão a respeito do impacto de tais conceitos no quadro de
debates suportados pela tradição filosófica. Demonstra-se assim a rele-
vância e amplitude do debate em torno da filosofia e da psicanálise no
Brasil, debate este que está presente em nosso cenário intelectual há
pelo menos vinte anos, em um processo de franco fortalecimento ins-
titucional. O programa do III Encontro organizou-se em torno do tema
“Psicanálise e Sociedade”. Na escolha do tema, levaram-se em conta as
linhas mais fortes que norteiam o estado atual da pesquisa na interface
filosofia/psicanálise, os interesses dos núcleos e laboratórios de pesquisa
envolvidos da organização do evento (o Núcleo de Psicanálise, Discurso
e Laço Social da UFF e o Laboratório de Estudos em Teoria Social, Filo-
sofia e Psicanálise da USP), bem como a atualidade e urgência do tema
em questão.
Vale a pena frisar que a iniciativa de organizar o III Encontro se deu
através de uma associação entre diversos Departamentos de Graduação
e Programas de Pós-Graduação, além do GT de Filosofia e Psicanálise da
ANPOF. O planejamento do Encontro levou em conta também o desejo
de maior integração entre os pesquisadores brasileiros deste campo de
pesquisa, assim como a integração entre nossos pesquisadores e aqueles
de outros centros relevantes no cenário mundial. Devido à sua natureza
transversal, os pesquisadores deste campo têm a dificuldade suplementar
em articular espaços comuns, já que alguns se encontram em departamen-
tos de filosofia e outros em departamentos de psicologia. Nesse sentido,
um Encontro como este contribui para o desenvolvimento de reflexões
capazes de confrontar filosofia e outros campos das ciências humanas,
como a psicanálise.
Com a publicação deste volume damos continuidade aos esforços
anteriores de publicação das conferências apresentadas durante os En-
contros. As conferências apresentadas no I Encontro foram publicadas
em número especial da Revista Discurso, do Departamento de Filosofia da
USP (Discurso, n. 36, 2006). O II Encontro gerou, além de um caderno de
resumos, um livro com as palestras dos conferencistas convidados (editado
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pela Editora Humanitas, sob o título A filosofia após Freud, que foi lançado
durante o III Encontro) e um CD-ROM com todas as apresentações de
comunicações de mestrandos e doutorandos. O resultado em termos de
publicação atesta a qualidade das exposições e debates realizados, cola-
borando para a solidificação deste campo de pesquisa entre nós.
Os trabalhos reunidos neste volume se detiveram no tema So-
ciedade sob as mais diversas perspectivas. O problema da tradição, da
transmissão e da memória e do seu sentido na psicanálise e na filosofia
foi objeto de artigos que transitaram desde as referências freudianas em
Moisés e o monoteísmo até o Protesto em Lutero, o judaísmo em Espinosa
e Freud e a repetição em Walter Benjamin. No bojo dessa discussão, todo
o problema que envolve a questão religiosa e a referência ao Pai em Freud
é articulada com o que se encontra no cerne do problema da tradição, de
sua transmissão e memória.
Um número extenso de artigos, por sua vez, transitou da metapsi-
cologia freudiana para uma série de consequências políticas de algumas
noções fundamentais que a constituem com as de pulsão e narcisismo, por
exemplo. Outros artigos articularam o pensamento de Freud ao de Benja-
min, de Derrida e outros autores contemporâneos na tentativa de pensar
temas como a violência e a crueldade. Há ainda discussões em torno da
noção de mal-estar que desembocam seja no problema da técnica, seja
no problema do marketing, seja em questões clínicas. Os conceitos de
sujeito e objeto são ainda alvo de uma especulação em torno do problema
da arte contemporânea.
Um número considerável de artigos deteve-se em questões lógicas
e epistemológicas e em suas consequências ético-políticas para o nosso
tempo, assim como no estatuto da psicanálise, entre as ciências exatas
e humanas, e na possibilidade de extensão do alcance da psicanálise na
análise de fenômenos sociais.
As questões em torno do afeto, da paixão e do prazer moveram au-
tores em investigações sobre Descartes, Sade ou Benjamin, situando fatos
da psicanálise contemporânea num debate com sistemas filosóficos que
surgiram na modernidade ou que se construíram na contemporaneidade.
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Por fim, uma intensa discussão se debruça sobre o estatuto clínico


da psicanálise hoje em meio a um cenário que vai de diagnósticos que
buscam um padrão científico à ideia de cuidado de si.
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parte 1
Tradição, Transmissão e Memória
Herdar é ultrapassar o pai: tradição e transmissão1
Anna Carolina Lo Bianco (UFRJ)

Para estudar as condições e as operações envolvidas na transmis-


são de uma tradição, tomo de início o trabalho de Freud. Nele se pode,
certamente, encontrar uma teoria da tradição que é nova e se afasta das
teorias da tradição que a tomam como contínua, quase sempre.
No entanto, eu estou menos interessada na teoria e mais voltada para
as consequências que, a partir de Lacan, se pode tirar do texto freudiano
para a questão do sujeito do desejo em sua relação com a palavra do pai
e o lugar que ela ocupa na transmissão.
Mas podemos nos perguntar: por que a referência ao pai?
De uma maneira geral, poderíamos entender que se trata, antes, de
reconhecer que o sujeito surge em cultura, advém numa linha de parentesco;
mas, justamente, e aqui o meu ponto, elas não lhe são transmitidas natural-
mente. Não se trata de herança racial, é claro, o natural está perdido... E, é aí
que para pensar o lugar do sujeito num cadeia de transmissão, essa mesma
que é da ordem da cultura, da linguagem, se faz recurso à relação com o pai.
Esse recurso é dado por Lacan para localizarmos com maior rigor o que se
passa com o sujeito na experiência em que se forma seu desejo.

1 O texto conserva a forma como foi apresentado em Mesa Redonda no III Encontro Na-
cional de Pesquisadores em Filosofia e Psicanálise – Psicanálise e Sociedade. UFRJ/UFF.
Novembro de 2008.
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E, mais uma vez, não se trata de considerar o pai na sua função


naturalizada, sequer em sua função social, mas no ponto em que ele é
operador da transmissão em relação à qual o sujeito virá a tomar lugar.
“Virá a tomar lugar”, é importante enfatizar, justamente porque não se
trata para o sujeito de ser colocado numa linha contínua de herança, nem
se trata de advir num lugar onde estará identificado a seu ideal.
Trata-se, então, de ver as condições dessa transmissão, para a psi-
canálise
De início podemos considerar que se a transmissão se dá por relação
à palavra do pai de um lado, de outro ela implica nela mesma a impossibi-
lidade de uma continuidade, de um exercício de imposição de conteúdos,
ou de ordens, ou de vontades que seguiriam a direção de um vetor pai-filho.
Se a transmissão implica o pai, então nem por isso a questão da
ética do sujeito, da ética do lado do sujeito, deixa de estar colocada – essa
então é a ideia que irei desenvolver.
E, para tentar desenvolvê-la, recorro de início a Moisés e o mono-
teísmo, de Freud.
Nesse texto, Freud está às voltas com a transmissão da tradição
judaica, cuja longa duração o intriga.
É por relação à religião judaica que introduzirá a questão que ca-
racteriza a transmissão da psicanálise. Se por um lado se apresenta um
pai ideal que promete e incita os filhos a alcançarem esse ideal, por outro
veremos que a força da transmissão não reside apenas na reivindicação
dos atributos do pai pelo filho e menos ainda na transmissibilidade desses
atributos aos filhos. Há um fator que Freud diz ser “muito mais substantivo”
para dar conta da complexidade envolvida em uma transmissão.
De acordo com a crença religiosa, a tradição que se estende pelos
séculos, ganha sua justificativa pela crença mesma nesse espírito divino. O
deus da religião é detentor de uma ética perfeita, que representa os valores
de nobreza, de altivez, cujo enorme poder é expresso nas próprias doutri-
nas que o sustentam. São doutrinas definitivas, abarcadoras e exaustivas,
que se encarregam de apontar o ideal a ser atingido e se colocam como
aquilo que vela para que os seres comuns inferiores e ordinários possam
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ter sua vida simples medida pela distância ao ideal e vivam na promessa
paradoxal de que quanto mais o ideal for mantido no lugar de ideal, mais
terá legitimidade para garantir que será alcançado sempre num tempo
por vir.
Especificamente no caso da religião de Moisés, Freud observa que
a força de sua tradição vem em grande parte da religião transmitida pelo
líder, que elevou o conceito que os judeus tinham de si a ponto desses se
acreditarem superiores a todos os outros povos, dos quais se mantiveram
afastados.
O que preservaria sua coesão era justamente esse fator ideal que se
relacionava à posse comum de bens intelectuais e emocionais, que por
sua vez lhes havia sido garantida por sua própria crença na grandiosidade
do Deus introduzido por Moisés.
Então, há um movimento que se pode surpreender por sua circu-
laridade, na medida em que a crença num deus fortalece aquele que crê.
Justamente porque ele busca na crença do ideal o seu fortalecimento. E
Freud observa que a religião de Moisés teve em grande parte seu efeito
duradouro, porque, em primeiro lugar, fez o povo participar da grandiosi-
dade de uma nova representação de Deus. Depois porque afirmou que esse
povo havia sido eleito por esse grande Deus e estava destinado a receber as
provas de que havia sido eleito. A religião de Moisés tira sua força também
de ter constrangido o povo a progredir na espiritualidade o que o levou ao
caminho de uma estima elevada de si e de outros trabalhos intelectuais e
de outras renúncias do pulsional.
Temos aí fortes razões para que a transmissão da religião ao longo
dos séculos se visse justificada.
No entanto, e é esse o ponto que nos interessa, Freud irá mostrar
que, ainda aqui, há algo de insatisfatório quando se trata de examinar a
força da transmissão de uma tradição.
Diz que há uma motivação mais profunda que pode ser inserida nas
afirmativas acerca da religião, mas que estão muito além delas: “a religião
de Moisés não exerceu seus efeitos de maneira imediata, mas de maneira
assombrosamente indireta”.
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Para falar dessa transmissão que se dá de forma indireta, Freud


vai fazer recurso a um procedimento que caracteriza a sua construção
histórica, que é o de tomar o acontecer histórico (Geschichte) e, como ele
próprio fala, “extrair” dele ou “introduzir” nele o que virá a constituir o
histórico a que visa.
O que afirmo é que, nesse ponto, para nos aproximarmos da ideia
de transmissão em Freud é importante que consideremos o histórico ou
o que ele considera como sendo a “verdade histórica”.
Brevemente, no texto freudiano encontramos três acepções de his-
tória: uma que diz respeito ao “acontecer histórico” (Geschichte), esse que
de certa forma está perdido e do qual temos apenas restos e fragmentos, a
historiografia (Historie), que é a ciência da história (na qual no momento
não precisamos nos deter) e o histórico (o adjetivo historish).
Para a construção do histórico é que, como vimos, Freud “extrai” do
acontecer histórico um dado e nesse mesmo acontecer histórico introduz
o histórico: o nome de Moisés em sua etimologia é um nome egípcio: isso
ele extrai do acontecer histórico (na verdade é um fragmento que ele extrai
desse acontecer), a partir daí ele afirma: “Moisés (se o nome era egípcio) era
egípcio”. Ou seja, está aí construído o histórico na afirmação “Moisés era
egípcio”. Ele, portanto, introduz essa constatação no acontecer histórico.
Eu não vou entrar em mais detalhes sobre o procedimento freudiano
nesse ponto, porque o que me interessa é vê-lo desenvolvido para o que
diz respeito à transmissão da religião judaica.
Então o que ele extraiu do acontecer histórico sobre Moisés é que
esse, em dado momento, por sua exigência em relação aos que o seguiram
na saída do Egito, foi assassinado e, depois disso, a religião que professava
foi deixada de lado. Ao mesmo tempo, Freud introduz no acontecer o que
veio a ser considerada a religião judaica: após o assassinato, a religião
não havia desaparecido sem deixar rastros; “havia se conservado como
que uma lembrança dela, obscurecida e desfigurada, apoiada talvez por
antigos escritos” dos sacerdotes. E essa tradição de um grande passado foi
o que continuou produzindo efeitos e pouco a pouco foi cobrando força
e por fim conseguiu trazer de novo à vida a religião de Moisés que havia
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sido instituída anteriormente; é precisamente nesse ponto que Freud


reconhece o poder da tradição.
Ora, o que chama atenção nesse ponto da cadeia de transmissão da
religião judaica é justamente a incidência de uma ruptura – de um corte
que se instala entre os primórdios da religião e a sua retomada posterior.
É essa ruptura que estou enfatizando e é ela que irei tomar agora,
porque é em relação a ela que podemos localizar o lugar que o sujeito do
desejo virá ocupar na cadeia da transmissão.
Esse ponto de ruptura, ponto de trauma e de enigma, podemos nos
aproximar dele pelo mito de Édipo, tão caro aos analistas. Mas é importante
que não nos aproximemos dele pela historinha que conta, mas pelo que
traz acerca do lugar do sujeito na cadeia de transmissão.
Édipo paga caro porque decifra o enigma proposto pela esfinge. Ele
não o toma com enigma, uma vez que o decifra. Ele sabe o que é o homem
(aquele que ao amanhecer anda em 4 patas, depois em duas, e por fim em
três). Ao responder ao enigma, suprimindo o suspense, elide a questão da
verdade. “Cai na armadilha da verdade”, como diz Lacan, ao acreditar que
pode escolher o lugar que vai tomar face ao enigma com que se defronta.
O mito de Édipo mostra como ele ao escolher esse lugar não entra
na cadeia pela via da sucessão, não se torna rei por estar numa cadeia de
sucessão. Em termos freudianos é como se a transmissão se desse de forma
direta. Ele se torna rei por uma escolha, ademais orientada pelo saber.
Então ele não ocupa o lugar do filho e por isso não conhece a função
do pai. E o pai é aquele que nada sabe da verdade. Esse não saber nada da
verdade é correlato da castração. O pai é agente da castração. Ou seja, ele,
na condição de pai perante o filho, transmite essa relação de não saber
com a verdade, transmite a castração. Édipo, ao não reconhecer que “é
indispensável para a vida que alguma coisa irredutível não saiba”, essas são
palavras de Lacan, se entrega à busca do saber (só mais tarde ele irá se con-
frontar com a castração que tentou evadir com a elucidação do enigma).
O que o mito do Édipo mostra aqui é o lugar que o filho toma na
cadeia. Ou seja, a transmissão não é sem a consideração pelo que o filho
faz em relação a ela.
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A transmissão (e esse é um tema caro aos filósofos e acho que é do


pensamento filosófico que Freud e Lacan partem para falar dela), a trans-
missão (essa que Freud chama da “transmissão direta”) é impossível, então
é só no confronto com a castração do pai que o sujeito irá tomar para ele,
irá inventar o que herdará do pai.
Irá inventar, repito, a cada vez e é essa invenção (que está do lado
do sujeito) que irá sustentar a tradição, que irá responder pela herança
que ele terá recebido. Terá recebido – eu coloco nesse tempo verbal da
nachträglichkeit – justamente porque ele dá conta da ruptura que irá
incidir sobre a cadeia de transmissão.
Herdar, então, é ir além do pai, herdar, então, passa a ser função do
ato frente à castração que o atinge e que o faz surgir como filho e aceder à
função do pai. É nesse sentido ao se confrontar com a castração transmitida
pelo pai, que ele advirá como sujeito para dar “continuidade” à linhagem,
e irá “herdar” e ocupar o seu lugar na linha de sucessão.
Não se pode prescindir da função do pai, desse operador que é a lei
do pai, como tampouco do lugar que o filho virá ocupar frente ao que lhe
é transmitido pelo pai. É na submissão à lei do pai, então, que o sujeito
se encontra com o filho que terá, nesse ponto contingente, se exercido
em seu ato que instaurará a cadeia de transmissão e fará durar a tradição.
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Do Mal ao Pai: uma leitura do Protesto de Lutero


Ricardo de Sá (UFF)

À luz da discussão que se produziu no século XVI em torno da crise


da autoridade eclesiástica faremos uma leitura de alguns elementos da
estrutura do sujeito que, ainda hoje, não nos são evidentes nem, tampouco,
apreensíveis intuitivamente. Entretanto, esses elementos iluminam pontos
fundamentais para a operação do sujeito. Ler nessa discussão o solo sobre
o qual irão se desenrolar os parâmetros e a trama que definiu o conceito
de sujeito e, por conseguinte, o próprio cenário do que entendemos por
modernidade, permite-nos isolar os elementos essenciais ao advento do
sujeito, difíceis por si só de se discernir.
Nessa leitura, poderemos identificar o declínio da ordem esta-
belecida justamente na medida em que se torna possível reconhecer a
necessidade de se retomar antigas questões para fundamentar novos
argumentos. Sabemos que a Reforma se constitui como um movimento
religioso que nasce como um protesto ao descompasso entre o discurso
que fundamentava a autoridade papal e a realidade como ela era exercida.
Lutero pôs em questão o poder que instituía a autoridade eclesiástica, uma
vez que a forma como ela se exercia estava em contradição direta com a
verdade coligida nas escrituras sagradas. Se a autoridade não tirava sua
efetividade dessa verdade revelada, em que ela se embasava? Assim, diante
da crise de autoridade que se impunha, a solução de Lutero passou por
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separar o poder terreno do religioso. Para tanto, ele buscou resgatar, num
mundo que se abria a uma circulação discursiva jamais antes imaginada,
o fundamento teológico para a autoridade religiosa, estabelecendo – por
contraste – o fundamento secular para a autoridade política. O movimento
efetuado por Lutero não visou preservar uma antiga forma de autoridade,
mas sim em instaurar um novo fundamento sobre o qual uma autoridade
poderia se exercer.
A interrogação teológica que assistimos em Lutero consistiu num la-
borioso esforço de buscar fundamentar e conceder à função da autoridade,
sob a qual uma verdade se exerce, um novo fundamento simbólico para
que, aqueles que viessem a ocupar esse lugar, pudessem legitimamente
exercer seu poder. Na realidade, ele trata de substituir uma função de
dominância por outra, mesmo que ainda mais degradada, para que esta
função continue a se exercer na nova estrutura discursiva que se anuncia-
va. Porém, através dessa interrogação moral sobre o fundamento do que
comanda o homem, Lutero acabou por agravar profundamente a fratura
que denunciava no fundamento da autoridade vigente.
A corrosão no fundamento da autoridade segue uma marcha irre-
versível e, a nosso ver, apresenta um roteiro das diferentes posições que
decorreram de uma interrogação do Pai. O primeiro momento, procedido
pelo pensamento luterano, se elabora no interior do terreno da teologia e
das práticas religiosas. Essa posição se radicaliza nas formulações desdo-
bradas pelos calvinistas e anabatistas para, por fim, causar, a seu despeito,
uma busca da reificação da autoridade contestada pelo movimento da Con-
trarreforma católica. Talvez em decorrência do efeito de universalização
promovido pelo espírito catequista, essa interrogação tenha se alastrado e
produzido consequências incomensuráveis; seja pelas radicais transforma-
ções que acarretou no âmbito econômico e social, quanto pela exigência
de se instituir uma forma completamente nova de se fazer política.
O encaminhamento dado por Lutero ao questionamento que se
introduziu nele interessa-nos, particularmente, porque apresenta os fun-
damentos essenciais para a introdução no social do discurso que coloca o
sujeito no trabalho, ou seja, o discurso psicanalítico. Ao recorrer a essa refe-
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rência histórica, Lacan nos mostra que desconhecer esse “ponto de fratura”
no pensamento ocidental é desconhecer a cadeia em que estão inseridos os
impasses e paradoxos que atravessam e dirigem a interrogação freudiana.
E ainda, aponta nisso uma continuidade da ordem da “filiação ou da pater-
nidade cultural” que orienta toda a investigação freudiana acerca do assas-
sinato do Pai e da instituição da Lei. (LACAN (1988) p.123) Autorizado por
essa leitura, ele entende que a Reforma constitui-se como um movimento
que faz uma inflexão “na consciência progressiva de si que sustentaria um
desenvolvimento natural” em direção ao Bem. (LACAN (2005) p.30) Essas
balizas nos possibilitam isolar o ponto de virada na relação com o Pai que
nos permite dizer por que é novo ver surgir, a cada vez, o sujeito da ética da
psicanálise nesse lugar que se abre com o projeto reformista.
Lacan situa o movimento iniciado por Lutero como o responsável
por “toda nossa instalação moderna no mundo” (LACAN (1988) p.118), e,
sobretudo, pela ética que o sustenta. Assim, dos argumentos que decidem
a posição reformista, ele retira algumas consequências que estão no cerne
do que se articula como a ética da psicanálise. Cabe mostrar, na esteira do
trabalho de Lacan, em que medida os argumentos de Lutero abriram as
portas para a instauração imperiosa da lógica da ciência, que, tal como ele
demonstra, consiste na introdução do sujeito como ponto central a partir
do qual virá a orbitar esse novo mundo, mesmo que ao preço de seu mais
radical desconhecimento.
Dentro desse programa, o primeiro ponto que se destaca ao analisar-
mos alguns traços mais fundamentais do discurso de Lutero e da formação
do movimento reformista é a mudança de posição do sujeito em relação
ao Outro. Lutero não mais endereça a esta instância uma questão sobre
o Bem, mas, ao contrário, esse Outro se apresenta como uma instância
em relação a qual ele se encontra com o Mal que o constrange para além
de toda sua intenção, de seu domínio e de seu controle. Dessa forma, o
Mal forja um lugar de exílio para o sujeito no qual ele se vê remetido ao
pecado. Pecado este que o constitui e pelo qual se relaciona com Deus,
autoridade inquestionável da qual pode somente esperar a graça de um
dia, quiçá, redimi-lo.
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Lutero se apresenta como um marco que rompe com esse sistema


causal e subverte o ponto de apoio que sustentava a estrutura de pensa-
mento medieval que se esteara na ideia de um Bem que é perfeitamente
bom. Ele nos mostra que não é possível o homem chegar a Deus sem passar
pela experiência do Mal, pois é só através dessa forma de encontrar Deus
que ele poderá se encontrar com a alteridade radical que Ele representa.
Porém, essa questão do Mal coloca uma dificuldade que toca na “pedra
filosofal de todos os moralistas” na medida em que esse encontro com o
Mal só se produz pelo próprio ato de negar o Bem (LACAN (1988) p.122).
A partir dessa subversão, Lutero entende que o apelo a Deus não
se faz em função de um merecimento do sujeito, mas, pelo contrário, em
função de sua origem faltosa. Para Lutero, nós somos marcados funda-
mentalmente pelo pecado, na medida em que somos o fruto dessa falha.
Esse é um encaminhamento que ele retoma do texto de São Paulo, do
qual retira a tese de que devemos nos sujeitar inteiramente a Deus, pois,
no chamado que o apóstolo faz, fica evidenciado que a única maneira
que temos de nos submetermos a Ele é por nossa posição de pecadores.
Quanto mais pecamos mais estaremos abertos para que uma graça possa
vir de Deus. Essa é uma ideia estranha que indiscutivelmente ofende o
bom senso. No entanto, esta posição está presente na cultura católica e é
bem representada por uma oração celebrada na Páscoa cristã que afirma a
feliz culpa do cristão, Felix Culpa que diz: “Feliz o pecado que fez com que
a graça superabundasse...”. Visto que o pecado é o único meio através do
qual uma graça pode se manifestar, entendemos que a graça não pode ser
trocada por meio da boa ação e nem adquirida de nenhum outro modo.
Ela não é mais que uma dádiva que marca e relembra a dívida do sujeito
para com Deus.
Por essa razão, Lutero defende que a Palavra de Deus alcança mais
aqueles que estão em falta do que aqueles que agem em conformidade
com as diretrizes a serem seguidas. Antes, Sua bondade – bem como a
Sua graça – recai sobre o pecador como um dom que nenhuma obra e
nenhum senso de adequação justificariam. A vida do cristão vale por sua
confiança e por sua observância na Palavra de Deus. Para ele, a Igreja a
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qual combate retirava da Palavra de Deus o caráter assertivo que a garante


e o comando que Ela implica, introduzindo uma espécie de negociação
com Esta instância, a despeito do fato de que estamos, por princípio, em
uma posição absolutamente dissimétrica em relação a Ela.
Não se trata de seguir os mandamentos, mas sim de se submeter à
Palavra de Deus. Lutero convida o fiel a agir não pelo que ele sabe, mas,
justamente, pelo que ele desconhece. Essa posição de submissão a alteri-
dade absoluta, se demarca de um ideal de autonomia que esmaece essa
heterogeneidade por uma pretensa possibilidade de dialogar com Deus.
Portanto, a partir de Lutero, encontramos através do submetimento à
asserção de Deus as bases pelas quais se exerce a autoridade divina que,
se opondo à autoridade terrena, afeta exclusivamente os cristãos. Mais
uma vez, deparamo-nos com a exterioridade da ação divina que toca o
cristão através da asserção que marcará obstinadamente toda a sua vida.
Na discussão com Erasmo, Lutero dedica uma boa parte à defesa da as-
serção como forma de “adesão, de afirmação, confissão, manutenção e
perseverança invencível” acerca das coisas que foram transmitidas pela
divindade nas sagradas escrituras. (RUPP, WATSON (1969) p.105)
Essa discordância que motiva a discussão entre Lutero e Erasmo
define, na verdade, posições absolutamente distintas em relação ao Pai.
Erasmo também interrogou a autoridade estabelecida, porém, a solução de
Erasmo para o desvio eclesiástico que ele denuncia, consiste em retomar
a tradição filosófica apelando para a noção de livre arbítrio. A tradição dos
filósofos, aquela do Bem Supremo, não deveria ser jogada fora. Todo o tra-
balho de Erasmo visava restituir algo que ele considerava estar corrompido,
a saber, a tradição fundada na questão do Bem que tinha o saber como a
via régia para atingi-lo. Pelo saber, chegaríamos ao Bem e, por conseguinte,
por nossas boas intenções, poderíamos ter acesso à perfeição. Trata-se de
um resgate da tradição pela via do saber para, dessa forma, restaurar o Pai
bom no lugar do qual ele fora corrompido.
Erasmo acredita que se o Cristão, por seu livre arbítrio seguir a Lei,
ele chegará a Deus. Ou seja, pelo exercício de sua liberdade o homem vai
necessariamente encontrar o Bem porque este é sua mais forte determina-
26

ção. Se pudermos nos libertar das questões que corromperam a natureza do


homem, tais como o dinheiro e a propriedade privada, resgataremos o Bem
original. Bem que, na realidade, se situa como suposto já em sua origem
perdida. Portanto, trata-se de exigir do homem o trabalho de reencontrar
a pureza original de que se alienara. Erasmo propõe um retorno a um
estado original, mas, a novidade que ele apresenta é que esse retorno, ele
mesmo, se constitui numa forma de transformar a sociedade, ou seja, de
fazer aportar uma novidade para uma estrutura desgastada e corrompida.
O retorno ao antigo teria o poder de transformar o presente, invertendo o
pólo da temporalidade estabelecida. Assim, segundo essa perspectiva, o
antigo tem o poder de trazer o novo, decretando o tempo presente como
antigo para que o futuro se enlace ao primordial e se inscreva num círculo
primoroso. Paradoxalmente, esse movimento de apelar para o mais antigo,
para aquilo que se apresenta como original, vem se apresentar como uma
via moderna de tratar o problema do Mal: entendendo-o como algo cor-
rompido. Ele vai introduzir uma solução que marca o ponto de alienação
do sujeito na modernidade e que constitui um retorno a uma suposta
natureza ou a um espírito primitivo. A modernidade de Erasmo advém da
promessa de uma positivação do Bem realizado na própria ideia de um
paraíso terrestre. A conclamação de Erasmo ao recurso do “livre arbítrio”,
ao ideal de autonomia, veiculou um apelo para que ele venha a buscar o
Bem a partir de sua razão e de acordo com sua boa vontade. Quanto mais
livre e no caminho do saber o homem estiver, mais ele poderá se aproximar
do Bem. Caberá ao esforço de sua razão, e a nenhuma outra capacidade,
o poder de se conduzir de acordo com o Bem.
Lutero, entretanto, se contrapõe radicalmente a essa ideia. Pois, ao
considerar que o homem aja voluntariamente, não sob coerção e nem
contra sua vontade, não equivale a afirmar que ele aja “livremente, isto é,
com a espontaneidade do amor genuíno; isso ele só atingirá quando for
liberado pela graça divina”. (LUTERO (1999b) p.76) Claro está que ele possui
uma espécie de liberdade para agir sobre coisas que estão sob seu domínio
– isto é, sobre coisas que lhe são inferiores. Certamente, isso lhe garantirá a
participação em “boas obras”, contudo, as boas obras não requerem todas
27

as forças do sujeito, apenas aquelas do espírito que se opõem às forças da


carne. Logo, a realização das obras não implica na liberação do pecado e
nem no reconhecimento de uma ação justa; o sujeito permanece pecador
e injusto mesmo as realizando. Como a obra não garante que seu autor se
torne justo e se encontre sem pecado, o que lhe resta é a crença, o pedido
e a esperança de que Deus o socorra com a plenitude de sua pureza e que
venha a agraciá-lo.
Portanto, não há verdadeiras obras fora daquelas que Deus ordena.
Há obras que são boas apenas na aparência ou na opinião dos homens
ou de acordo com os preceitos e os usos humanos e há aquelas que são
realizadas na fé, que são feitas pela submissão aos mandamentos de Deus.
(LUTERO (1999c) p.442) A partir dessa concepção, Lutero retira o homem
do centro de suas obras para que ele não tenha a chance de se erigir como
seu próprio ídolo, já que suas pequenas obras o fazem se perder em vai-
dades e vontades que não lhe trarão qualquer possibilidade de salvação.
A discussão que Lutero travou com Erasmo partiu do questionamen-
to da autoridade, mas, na realidade, se centra em torno do problema da
causalidade. O encaminhamento de Erasmo encontra no interior de seu
argumento um problema lógico: como o Bem poderia ser causa do Mal,
ou seja, como poderia existir algum Mal num mundo que se origina de um
puro Bem? Na realidade, essa dificuldade denuncia que – proposto como
um princípio primeiro – o Bem encobre a questão da causa, porque ele
coloca no lugar da causa um Deus-Pai todo protetor. Vemos, a partir das
indicações de Lacan, que interrogar o fundamento que legitima o lugar
do Pai não deixa intacta a função da causa de onde advém sua autoridade.
Lutero nos indica que há a apropriação de um poder indevido que não cabe
a autoridade eclesiástica desfrutar. Com seu ato, faz irromper a própria
função de causa obstruída pelo funcionamento vigente.
Podemos dizer, em vista dessa leitura, que Lutero só pôde colocar
essas questões porque não apela para um Pai apaziguador. O caminho que
ele propõe implica na ruptura com um Pai provedor e dado de antemão.
É verdade que Lutero se dirige a Deus, porém, não faz apelo a Ele no sen-
tido de ser desresponsabilizado de suas falhas, ao contrário, para ele é de
28

Deus que vem sua própria responsabilização. Lutero, portanto, situa o Mal
como uma causa que pode mover o sujeito. Esse é o argumento luterano
que Lacan mais valoriza porque é o Mal que leva o sujeito a trabalhar, é
o motor que promove o encontro com o novo, isto é, com aquilo que lhe
é mais estrangeiro. Desta forma, Lutero privilegia o encontro com o que
está para além de seu querer. A divisão que se lhe apresenta entre o Bem
que ele quer e não faz e o Mal que ele realiza a despeito de seu querer,
marca o encontro e a submissão do sujeito com a Lei de Deus e com a Lei
do pecado. Para ele, a Lei terá, sobretudo, a função de se constituir como
um texto onde este pecado pode se inscrever.
A questão que se introduz por esse encaminhamento nos faz repensar
o próprio estatuto da Lei. Se Lutero e São Paulo colocam em questão a Lei,
embora tratem de uma Lei decaída, que prescreve aquilo que o fiel precisa
fazer para se manter no bom caminho, eles a tomam como um instrumen-
to através da qual o homem pode conhecer o pecado. A Lei se apresenta,
sobretudo, como um texto que escreve uma falha em relação ao que ali está
prescrito e, desse modo, a letra da Lei se apresenta como um instrumento
que mortifica o homem. No entanto, São Paulo nos mostra que não basta
que a falha se escreva para o fiel, é preciso que ele faça algo com isso. Há,
portanto, uma torção nessa forma como se concebe a Lei a partir de Lutero e
São Paulo, posto que nesta articulação seja exigido um ato para se efetivar a
Lei, que não pode ser reduzida a uma regra pré-estabelecida. Vemos, assim,
que a Lei vem a se confundir com o ato que a ultrapassa. É pelo ato que o
homem pode encontrar a falha e, consequentemente, é só através de um ato
que ele vai poder se encontrar com aquilo que o move. Assim, se a Lei escreve
uma falha, ela também escreve aquilo que se apresenta como sua causa.
Nesse breve levantamento do caminho feito por Lutero, encontra-se
articulada uma forma de relação do fiel com o que o constitui e o constran-
ge em sua ação que não é sem consequências para o sujeito da psicanálise.
O intratável ou o incurável do Mal e da concupiscência que o acompanha
revelam o que se apresenta como o mais enigmático no campo do sujeito,
isto é, a repetição do que lhe é mais adverso e doloroso na medida em que
ele não consegue se afastar do gozo que encontra nisso.
29

Vemos, portanto, que a relação do sujeito com o gozo implica a ques-


tão da causa. O sujeito, em sua relação com o significante, está posto diante
da questão da causa e, necessariamente, diante do próprio lugar do Pai,
muito simplesmente, porque o Pai está identificado à função de causa. Uma
vez que o sujeito não pode ser causa de si mesmo, ele tem que ser gerado por
uma instância exterior a ele, desejado por Outro que se localiza, portanto,
como sua causa. Porém, quando o sujeito escolhe recorrer à figura de um Pai
provedor, ele escamoteia a noção de causa e enfraquece a própria potência
que a função do Pai como causa pode assumir para ele. O recurso que se
introduziu na modernidade para evitar o chamado que a causa excita sobre
o sujeito consiste no ideal do homem tornar-se causa de si mesmo, pois,
como Lacan nos mostra, pela ilusão da consciência de si, o sujeito supõe
escapar de sua condição mais fundamental: a de estar submetido à Lei do
significante que o aliena. Assim, sustentar que o sujeito pode ser causa de
si mesmo implica em abolir a dimensão do Outro – a qual ele precisa estar
referido para poder ganhar alguma existência, posto que, é somente a partir
de uma ilusão delirante que o sujeito pode se tomar como uma entidade
que existe por si mesma sem dependência à operação significante.
Esta questão decorre de um posicionamento diante da existência
que concerne a cada sujeito particularmente. Como as coisas não estão
dadas de antemão, não se trata para o sujeito de obedecer às regras para
que algo lhe suceda. Logo, quando o sujeito age como se ele não fosse
comandado por uma Lei e como se não houvesse consequências para o
que faz, ele se aliena ainda mais na repetição e se aprisiona em um ideal
próprio a respeito de sua natureza e da natureza do mundo. Um ideal que
se fecha nessa noção de autonomia. Em outras palavras, se o sujeito não
puder se encontrar com aquilo que o causa, não haverá para ele nenhu-
ma exterioridade que possa constrangê-lo a sair da imobilidade que essa
ideia de que as coisas estão dadas o condena. Lacan recorreu justamente
ao encaminhamento de Lutero para destacar que a existência é um efeito
de um ato e não algo dado que independe do sujeito.
A novidade no texto de Lacan advém da forma como ele articula a
fratura na ordem do mundo provocada por Lutero com a forma como ele
30

relê a noção de Das Ding em Freud. Ao ler no encaminhamento de Lutero


a questão que ele propõe quanto ao fundamento da Lei, Lacan nos apre-
senta o que está em jogo na função da causa e retoma o que parecia ser
uma nebulosa formulação de Freud sobre o ser das coisas. Por estrutura,
o sujeito é aquilo que emerge no lugar da fenda que se abre na ordem
do mundo. Mas, só a partir de Freud esse chamado cumpre seu destino,
quando é possível dar lugar ao encontro do sujeito com sua causa, com
a qual, aliás, ele mantém as mais difíceis “relações”. O que se liberta de
uma realidade domesticada pela ordenação das leis, faz presente uma
existência desestabilizada que tem o poder de produzir o novo onde o
velho desconhecia sua razão de existir. Por essa via Lacan nos mostra que
é Das Ding que emerge com a queda do mestre.
Quando Lacan fala de uma fratura que se produziu no século XVI
e XVII, ele nos mostra que esse corte coloca em questão o sentimento de
que as coisas estão dadas e estabelecidas. Essa questão que poderia ser
reduzida a uma reflexão epistêmica se pôs para Lutero como uma questão
ética sobre a natureza das coisas. Por um lado, sobre o que é dado para o
sujeito e, por outro, sobre o que o sujeito pode fazer com isso que se lhe
apresenta.
Das Ding exige outra posição do sujeito em relação ao campo das
coisas e à sua própria existência também. Esse fato é algo que ofende a
nossa razão, porque intuitivamente consideramos que as coisas estariam
dadas no mundo. Assim, para recolocar a dimensão própria contida nes-
sa operação, Lacan resgata inicialmente de Das Ding, tal como Freud o
articula, a ideia de que a linguagem produz em seu funcionamento a pre-
sença de algo Real. Em razão da própria operação significante, Das Ding
é um efeito extraído do que nela se articula como perda. Nesse processo
de predicação, a linguagem isola algo de não predicável cuja existência,
paradoxalmente, se faz apenas por que há a predicação. Devido a essa
condição, isso se presentifica como uma perda em qualquer predicação.
A partir desse fato de linguagem, Freud vai mostrar que no movi-
mento da predicação que visa dizer alguma coisa, algo se conserva fora
dela como uma identidade. Isso é propriamente o que dá lugar ao sujeito
31

desde sua primeira afirmação. Portanto, considerando o que há de mais


simples na linguagem – o fato de qualquer afirmação estar comprometida
com a predicação, ou seja, o fato de que o sujeito gramatical só pode ser
qualificado por um predicado que se acopla a ele –, vemos que Das Ding
se produz como o que resta de não capturado pela própria afirmação.
Para chegar a esse oco do significante – presença Real, inapreensível,
experimentada, no entanto, apenas como uma incidência contingente e
instável – Freud propôs formalizar Das Ding como a interseção que per-
manece não representável em toda representação. Esse trabalho formal
de Freud tem o mérito de demonstrar como a linguagem isola em seu
funcionamento uma identidade por interseção de um ponto de opacidade
no campo da significação que causa a própria necessidade de predicação.
Logo, o que dá existência às coisas não é algo dado, mas o que se
produz em função da própria operação. Articulado dessa forma, Das
Ding se apresenta como um limite a toda predicação, já que não pode ser
designado por nenhum termo do universo semântico. Em razão desse
argumento, decorre um segundo passo do primeiro: Das Ding constitui-
se como um limite interno a própria predicação. Ele se apresenta como
algo de exterior que é excluído do interior da representação. Lacan articula
Das Ding como algo que está fora do significado e que se constitui como
um afeto primário justamente porque mantém uma relação patética com
ele. É a partir disso que se produz o recalque e, portanto, é a partir disso
que se constitui qualquer frase e toda e qualquer significação. Das Ding
fica instalado a partir desse efeito de significação como um centro não
predicável em torno do qual o significante vai poder operar.
É fundamental termos em mente o a posteriori freudiano nesta arti-
culação. Pois é quando o sujeito articula sua primeira frase que se produz
sua própria causa como Das Ding, nesse mesmo momento ele se constitui
como sujeito e, portanto, como pecador. Podemos dizer que qualquer frase
inicial constitui um pecado porque sua afirmação já implica em um sujeito
que para advir precisa fazer uma intrusão na lei estabelecida.
Foi preciso Lacan fazer essa declinação do conceito Das Ding para
mostrar que é o vazio e a perda inscritos na operação discursiva que in-
32

troduzem alguma realidade ao mundo. Fora do discurso essa dimensão de


realidade se perde, pois, por si mesma ela não pode ser predicada porque
se realiza em sua evanescência. Porém, esse limite que Das Ding consti-
tui, introduz também a dimensão do Mal no que ele se apresenta como
uma impossibilidade e uma falha que dilaceram a existência. Falha esta
que está articulada à dimensão de causa, mas que se apresenta como um
problema moral que de certa forma a escamoteia. Portanto, com essa linha
argumentativa que Lacan estabelece, vemos que algo que se articula como
um pecado atinge diretamente o que é da ordem da causa para o sujeito.
Entretanto, o Mal como o que concerne à causa, coloca em questão, na
verdade, a própria função do Pai. Porque quando Lacan retoma Lutero
e diz “dai ao pecador o que é da ordem de sua falha e vire-se com isso”,
(LACAN (1988) p.122) ele responsabiliza o sujeito pelo que é da ordem de
seu fracasso e faz com que toda a interrogação advinda de seu trabalho
se produza a partir desse fato.
Portanto, trezentos anos depois do corte que se abre na moderni-
dade, Lacan pôde nos mostrar que essa construção é o efeito da posição
específica do sujeito em relação ao Pai. Logo, ao entender que a questão
de Lutero passa por um redimensionamento da função do Pai, Lacan pôde
reconhecer neste encaminhamento a questão introduzida por Freud no
texto “Totem e Tabu” quanto ao assassinato do Pai e a origem da Lei. Ele
afirma:

Mas, Lutero, em minha opinião, representa muito mais. Esse


ódio que existia antes mesmo que o mundo fosse criado, que
é correlativo da relação que há entre a incidência da lei como
tal e certa concepção de Das Ding como o problema radical
e, em suma, do mal – penso que a vocês não escapa que é
exatamente aquilo com que Freud lida quando a questão que
ele coloca sobre o Pai o conduz a mostrar nele o tirano da
horda, aquele contra o qual o crime primitivo foi destinado,
e introduziu, por isso mesmo, a ordem, a essência, o funda-
mento do âmbito da lei. (LACAN (1988) p.123)
33

A função do pai implica o Mal, o ódio, a culpa e o assassinato, pois


é isso que importa para entendermos a estrutura a partir da qual o sujeito
pode operar. Vemos que essa estrutura se reatualiza com o movimento
reformista no protesto dirigido à autoridade eclesiástica. Ali se denuncia
o abuso de uma prerrogativa e se propõe como solução a dispersão da
autoridade por aqueles que estavam submetidos a ela. Entretanto, a saída
de Lutero não é a mesma de Erasmo. Erasmo busca distribuir esse poder
que para ele estava indevidamente concentrado e Lutero propõe que o
sujeito possa, por seu ato, encontrar o efeito de seu submetimento a Deus
sem a intermediação de uma instância que para ele só impedia esse efeito.
Cabe isolarmos o que deve retornar do corte perpetrado por Lutero
dessa discussão em torno do pai para o que concerne propriamente a
prática analítica. Com Lutero torna-se mais evidente o quanto o modo
como o sujeito se dirige ao pai implica em um posicionamento ético. Por
exemplo, quando dizemos nesse trabalho que na origem o pai introduz a
questão do Mal, isso quer dizer que ele de saída interroga o sujeito a res-
peito do que ele vai fazer com o pecado que o constitui, ou seja, o que ele
pode fazer com essa marca da qual se originou. É desse lugar que um Pai
chama um sujeito para que ele venha a tomar uma posição ética.
Em suma, essa tese sobre o Mal introduz o que é propriamente a
questão do sujeito tal como ela interessa à psicanálise. Isso porque ela
demonstra que um sujeito que parte do princípio que tem acesso ao Bem
e que acredita que por sua ação pode aceder a ele diretamente, dotado do
poder de ser bom e com o discernimento para seguir retamente a via da lei,
ao invés de ter acesso ao reino dos céus, se encontra, para seu desespero, no
âmago do Mal. Logo, se o sujeito respeitar os limites da Lei, resguardando-se
do encontro com qualquer fracasso em sua vigência, ele se abolirá como tal,
sacrificando sua “ex-sistência” a uma existência de obediência à lei e ten-
tando, assim, garantir uma autoridade que possa fazê-la vigorar. Podemos
concluir, então, que há um hiato entre fazer o Bem e submeter-se à Lei, pois
toda a vez que o sujeito se arroga a uma posição de se situar como alguém
que é responsável pela vigência do Bem, ele se torna a própria lei que visa
obedecer e vê sua existência ameaçada com o fim do regime da Lei.
34

Se pelo argumento de Lutero percebemos que fazer o Bem não é a


mesma coisa que submeter-se à Lei, daí decorre que estar submetido à Lei
implica em que o sujeito deva preocupar-se apenas com o que ele tem a
fazer, pois só tendo pecado, ele poderá endereçar-se a Deus e se encontrar
no Real com uma resposta provinda Dele. A Lei vem justamente garantir
que o sujeito ao fazer o que ele tem a fazer, venha a se encontrar com as
consequências de seu ato. Essa é propriamente uma dimensão de Deus
que o sujeito só pode ver depois, no momento mesmo em que ele vai ter
que arcar com as consequências do que ele fez. Nesse sentido, fazer o
Bem é algo que está em contradição com esse chamado que é feito pelo
encontro com a Lei.
Vale dizer, que só a partir do momento em que o sujeito pode se
haver com o Mal que se inscreve por meio da Lei e ver o que disso resulta
essa condição, é possível se falar da existência efetiva de um sujeito. Aque-
le que toma a Lei como uma regra, que prescreve o certo e, por essa via,
acredita que pode apreender o Bem, não pode se encontrar com uma Lei
estabelecida pelo Pai, porque, nesse caso, ele se identifica com a própria
lei e não se submete a ela.
O sujeito nasce, portanto, desse conflito que se estabelece entre algo
que se apresenta com um Bem que ele quer, mas que não o move e um
Mal que ele não quer, mas o comanda. Essa estrutura conflitiva, por si só,
exige que algo de novo seja articulado em relação à Lei. Fora desse tempo,
só resta ao sujeito apagar-se numa prática burocrata e obsessiva ou através
de uma rebeldia histérica que, em ambos os casos, nada mais fazem do
que preservar uma lei ideal, mesmo que ao custo de sua efetiva derrisão.
Lutero interessa a Lacan porque, ao interrogar a autoridade, ele
confere ao regime da Lei uma nova dimensão, que convoca um sujeito que
é novo a vir aí surgir, pois, como vimos, ele retira da Lei a função prescriti-
va onde ela fica rebaixada a uma regra que tem como finalidade atingir o
Bem, para conduzi-la à sua função operante. Não há outra possibilidade,
segundo o encaminhamento luterano, do sujeito poder verdadeiramente
endereçar-se a Deus que não seja de sua posição falha, de alguém produ-
zido pela maldade de Deus. Isso quer dizer que não adianta o sujeito saber
35

o que é o Mal para não pecar. O sujeito se constitui pelo reconhecimento


de que ele é esse pecado.
Logo, quando o sujeito enuncia alguma coisa, ele se encontra com
as leis da linguagem e com essa dimensão a mais que ele é. Nesse mesmo
instante, ele se constitui como um pecador em relação a qualquer campo
que lhe fora antecipadamente dado. Em relação ao Pai, o sujeito se expe-
rimenta como intruso e, deste modo, sua articulação implica logicamente
no assassinato do Pai. Com Freud, aprendemos que o assassinato do Pai
deixa como legado um nome que se articula como uma Lei pela qual o
sujeito vai se constituir. Segundo a lógica que se tece nessa argumentação,
o sujeito advém no lugar de uma falha na Lei do pai, que se apresenta
como um Mal para ele. Temos visto que esse Mal o atinge no Real e que o
constrange a ter que tomar lugar onde um buraco se abriu para ele. Porém,
ele já vai se apresentar como um a mais em relação a esse campo no qual
vai se posicionar, pois ele só pode vir a operar em sua função a partir do
momento em que esteja dada em seu horizonte a queda de uma vigência
plena do Pai. Esse destino que obriga o sujeito a carregar a falha a partir da
qual sua própria existência se constitui é o tributo que ele tem que pagar
pelo fato de ter sido constituído a partir do pecado originário. Assim, se
em razão de qualquer hesitação em relação à função paterna ele buscar
remediar essa falha, ele será constrangido a recusar a própria operação
que o causa e se ver condenado a viver a culpa por uma existência que
não tem como se realizar.
36

Referências bibliográficas

LACAN, J. O Seminário. Livro 7. A ética da psicanálise. Rio de Janeiro: JZE,


1988.
LACAN, J. Le triomphe de la religion. Paris: Seuil, 2005.
LUTERO, M. (1999a). Œuvres. Paris: Gallimard.
LUTERO, M. (1999b). Cours sur l’êpitre aux romans. Em Œuvres, Paris:
Gallimard.
LUTERO, M. (1999c). Des bonnes œuvres. Em Œuvres, (pp.435-533)
Paris:Gallimard.
RUPP, E.G. & WATSON, P.S). Luther and Erasmus: Free will and salvation (M.
Lutero, De servo arbitrio e Erasmo, De Libero arbitrio). Philadelphia:
The Westminster Press, 1969.
37

Interpretação espinosiana da Escritura1


e interpretação freudiana do sonho
Adrien Klajnman (ENS-LSH de Lyon/Paris I-Sorbonne)
Tradução: Cláudio Oliveira

A linhagem cultural Espinosa/Freud


Aquele que se interessa por Espinosa, por Freud e, em particular,
pela recepção do espinosismo na cultura freudiana, não pode deixar de ob-
servar uma forma de ruptura com a tradição judaica. Esta ruptura merece
ser interrogada, notadamente através da problemática da interpretação:
ela constitui o primeiro objeto desta exposição, antes de ser abordado
mais em profundidade o que está em jogo na interpretação que ela põe
em perspectiva.
Um dos pontos chave no que concerne às modalidades da ruptura
com a tradição judaica, tanto em Espinosa quanto em Freud, é a existência
de um discurso sobre a “judeidade”2 no freudismo. A psicanálise não é
esse discurso e não se reduz a ele. Freud nos incita em muitas ocasiões a
concluir que ela não deve ser esse discurso, no sentido de que ela apenas
tem relações com esse discurso, que constitui um aspecto dela, ao mesmo

1 Nota do tradutor: Escritura (com maiúscula) no texto significa o conjunto dos livros da
Bíblia, a Sagrada Escritura ; em português, mais usado no plural, as Sagradas Escrituras.
2 Cf. Geneviève Brykman, La judéité de Spinoza, Paris, Vrin, 1972 ; J. Derrida, Mal d’Archive,
Paris, Galilée, 1995, p. 115-116.
38

tempo externo e interno.3 Situado em seu justo lugar, o discurso sobre a


judeidade nos textos de Freud forma um dos elementos culturais e sociais
que atravessam a autoanálise freudiana implicada na constituição da
teoria analítica.
Freud coloca explicitamente, em 1926, em uma de suas numerosas
alocuções públicas na sociedade judaica B’nai B’rith de Viena, de vocação
caridosa e cultural,4 a questão de sua identidade judaica como pertenci-
mento subjetivo ou “sentimento”, em sentido diametralmente oposto a
todo nacionalismo:

Eu mesmo era judeu e sempre me tinha parecido não ape-


nas indigno, mas francamente insensato denegá-lo. O que
me ligava ao judaísmo não eram – e eu devo confessá-lo – a
crença nem mesmo o orgulho nacional, pois eu nunca fui um
crente, eu fui educado sem religião, embora não sem respeito
pelas exigências ditas “éticas” da cultura humana. A exaltação
nacional é um sentimento que eu me esforcei, quando eu me
inclinava a isso, em reprimir como funesto e injusto (...). Mas
restavam outras coisas que tornavam irresistível a atração
do judaísmo e dos judeus, muitas obscuras potências de
sentimento, tanto mais violentas quanto menos se deixavam
apreender em palavras (...). É enquanto judeu que eu me vi
preparado para passar para a oposição e para renunciar a um
entendimento com a maioria compacta.5

Freud resolve parcialmente, em Moisés e o monoteísmo, o enigma das


“obscuras potências do sentimento” introduzindo a ideia de um registro

3 Cf. S. Freud, L’Homme Moïse et la religion monothéiste, Paris, Gallimard, 1986. Cf. Monique
Schneider, « De L’interprétation des rêves au Moïse : le débat avec le statut du féminin », in
Sigmund Freud, de l’Interprétation des rêves à L’Homme Moïse, Revue Germanique Interna-
tionale, 14 / 2000, p. 60-80.
4 Cf. S. Freud, Allocution aux membres de la société B’nai B’rith, 1928, in Œuvres Complètes
XVIII, Paris, PUF, 2002, p. 115-117.
5 Cf. S. Freud, Allocution aux membres de la société B’nai B’rith, op. cit., p. 115-116.
39

inconsciente da transmissão cultural.6 Ele introduz a ideia pseudolamar-


ckiana de uma transmissão filogenética ou coletiva de uma tradição por
via inconsciente, isto é, de uma transmissão de caracteres adquiridos,
não biológicos, pela via de traços mnésicos inconscientes. Portanto, não
haveria apenas uma hereditariedade ou uma transmissão transparente do
judaísmo, com práticas religiosas conscientes: Freud concebe, a partir de
sua própria experiência, uma herança coletiva e inconsciente da judeidade.
Em O Moisés de Michelangelo como sobre Moisés e o monoteísmo, o registro
vivido da judeidade se exprime como interpretação mais geral ou teórica
sobre o judaísmo. Ora, esta expressão se situa sobre um terreno estranho
ao espinosismo – já que Espinosa é mudo quanto a seu vivido – e simul-
taneamente atinge o leitor de Espinosa com um sentimento freudiano de
inquietante estranheza.
Como Espinosa, Freud não se apresenta como um heterodoxo em
controvérsia com uma religião:7 ele sai do espaço da tensão religiosa para
chegar a achados teóricos fora do campo religioso. Ele fala de e vive não
religiosamente seu pertencimento ao judaísmo, sem jamais destruir esse
pertencimento. Ele diz uma relação com o judaísmo que o distingue deste
sem romper com ele. Dito de outro modo, ele vive e pensa uma separação,
não uma ruptura. Espinosa e Freud, portanto, todos dois, nasceram judeus
e, contrariamente aos contestadores ou convertidos marranos8 carregados
do peso da clandestinidade ou da nostalgia, eles têm a mesma possibilidade
de abertura fora do judaísmo.9 Donde uma forma de divisão no trabalho de
abertura: Espinosa é aquele que provoca violentamente a exclusão e sofre
certamente a variedade de efeitos disso; Freud aquele que faz o duro e pa-
ciente trabalho de separação, mas conservando ao mesmo tempo a ligação.
A complexidade da ruptura espinosiana vem, por consequência, do fato de

6 Cf. S. Freud, L’Homme Moïse et la religion monothéiste, op. cit.


7 Cf. S. Freud, Allocution aux membres de la société B’nai B’rith, op. cit.
8 Nota do Tradutor : na Espanha e em Portugal, marrano é uma designação injuriosa que se
dava outrora aos mouros e especialmente aos judeus batizados, suspeitos de se conservarem
leais ao judaísmo.
9 Cf. P.-F. Moreau, Spinoza. Etat et religion, « De la rupture religieuse à la philosophie », Lyon,
ENS Editions, 2005, p. 107-113.
40

que Espinosa está tanto excluído quanto em posição de ruptura. E o herem10


parece representativo de uma dupla ruptura: com o judaísmo e com as reli-
giões alternativas. A judeidade silenciosa de Espinosa não pode, portanto,
se exprimir, segundo G. Brykman, senão nos limites da filosofia, através da
narrativa do sonho da Carta XVII de Espinosa a P. Balling:11 Espinosa aparece
nele, numa manhã de inverno, ocupado pelas imagens de sonho de um
Brasileiro-Etíope, imagens que ele consegue fazer desaparecer fixando seu
olhar sobre um livro, isto é, segundo a interpretação brykmaniana, sobre a
filosofia.12 O sentido esboçado aqui, a partir da narrativa do sonho, é aquele
do ultrapassamento e da ocultação do judaísmo pela filosofia.
Em Mal de Arquivo, publicado em 1995,13 Derrida conceitualiza a
judeidade freudiana: é essencial interrogar o fato de sofrer a influência do
que não foi transmitido. É verdade que, de uma certa maneira, Freud reuniu
a tradição judaica e o devir do marranismo, já que a influência do que não
é transmitido torna-se o modelo comum da tradição judaica, que esconde
uma história através da ficção de uma narrativa, e do pós-marranismo,
que não se transmite mais senão por influência psíquica inconsciente.
Nesta lógica, Derrida é o pós-marrano, a quem resta o sentido do simbó-
lico sem o hebreu ou a língua de origem,14 Freud é o guardião do sentido
da transmissão, despossuído também ele da língua de origem, e Espinosa
é o excluído, em condições de compreender a língua de origem na qual
este sentido se dissimulou em uma primeira narrativa. Freud ocupa de
fato uma posição chave através da descoberta da ligação psíquica que
reúne as três gerações: aquela da elucidação progressiva da significação
escondida da narrativa religiosa, das modalidades de sua transmissão e
de sua universalidade.

10 Nota do Tradutor: Cherem (or Herem) é a mais alta censura eclesiástica na comunidade
judaica. É a exclusão total de uma pessoa da comunidade judaica, similar à excomunhão na
Igreja Católica. O mais famoso caso de herem é o de Espinosa.
11 Cf. B. Spinoza, Ep. XVII, à P. Balling, Œuvres IV, Appuhn, Paris, GF, p. 176 ; Spinoza Opera
IV, p. 77.
12 Cf. G. Brykman, La judéité de Spinoza, op. cit., p. 39-43.
13 Cf. J. Derrida, Mal d’Archive, op. cit.
14 Cf. Régine Robin, « Freud en héritage : une identité postjudaïque ou marrane ? », in Sigmund
Freud, de l’Interprétation des rêves à L’Homme Moïse, Revue Germanique Internationale, op.
cit., p. 173-183.
41

É preciso, portanto, concluir aqui quanto ao registro identitário


e, digamo-lo desde já, quanto à sua insuficiência. A comparação entre a
identidade cultural espinosiana e a identidade cultural freudiana é tão
reveladora das projeções culturais dos comentadores quanto das ligações
profundas entre Espinosa e Freud. Ela parece fecunda na medida em que
ela permite retrabalhar a distinção teórica entre filosofia e psicanálise.
Filosofia espinosiana e psicanálise freudiana se distinguem, é claro, pela
narrativa do vivido na teorização analítica, mas se encontram e se com-
pletam através de seus textos respectivos sobre a interpretação: o que
distingue Freud de Espinosa é precisamente o estatuto da psicanálise, na
medida em que a impressão é levada em conta e tematizada na busca do
sentido, portanto, a descoberta da contratransferência na interpretação,15
e o que os reúne é, como veremos, a demanda de uma limitação da con-
tratransferência, das iniciativas, da selvageria na interpretação.

A interpretação como ponto de passagem de Espinosa a Freud


O que conduz Freud a interpretar a Escritura16 como ele a interpreta
não é um traço cultural, mas um ponto teórico crucial da interpretação
do sonho em A interpretação dos sonhos (Traumdeutung).17 Tratando-se
da passagem da Traumdeutung a Moisés e o monoteísmo, Annie Tardits18
e Ilse Grubrich-Simitis19 coincidem com a leitura de J. Lacan. Segundo I.
Grubrich-Simitis, o texto funciona como um sonho: há uma causalidade
psíquica na Escritura enquanto ficção que deforma um acontecimento.
Freud buscaria assim extrair o nó de verdade histórica e as significações
da Escritura sob esta deformação. Em O avesso da psicanálise, Lacan

15 Cf. R. Asseo, M. Czermak, et Th. Neyraut-Sutterman, « Chroniques d’un détail secondaire


chez Freud. A propos du Moïse de Michel Ange », Topique, 9-10, Paris, PUF, 1972, p. 177-204.
16 Cf. Nota 1 (nota do tradutor).
17 Cf. S. Freud, L’interprétation du rêve <Traumdeutung>, Œuvres Complètes IV, Paris, PUF,
2004.
18 Cf. A. Tardits, « Le devenir freudien du souvenir d’enfance », in Sigmund Freud, de
l’Interprétation des rêves à L’Homme Moïse, Revue Germanique Internationale, op. cit., p.
99-109.
19 Cf. I. Grubrich-Simitis, « Métamorphoses de L’interprétation des rêves », in Sigmund
Freud, de l’Interprétation des rêves à L’Homme Moïse, Revue Germanique Internationale,
op. cit., p. 9-47.
42

sublinhou igualmente a “estranheza” de Moisés e o monoteísmo e a sua


afinidade com um sonho desperto: sua maneira de proceder comporta,
segundo Lacan, uma latência que deveria ser interrogada em função de
uma recordação do próprio Freud.20
Ora, nós gostaríamos de acentuar dois pontos:
1) primeiramente, a diferença entre Espinosa e Freud no que con-
cerne à problemática da invenção tratando-se da Escritura;
2) em seguida, o fato de que a interpretação freudiana da Escritura
não funciona apenas como um sonho, eventualmente representado por
um sonho ou uma recordação de Freud: a Traumdeutung concebe muito
explicitamente a passagem da interpretação do sonho à interpretação da
Escritura. Freud tem disso uma percepção extremamente clara. Ora, nós
iremos ver uma convergência entre os efeitos da interpretação espinosiana
da Escritura e os efeitos da passagem freudiana do objeto sonho ao objeto
Escritura.
1) Tratando-se do registro da invenção, Freud afirma que o texto
bíblico é uma ficção e que lhe é preciso encontrar seu sentido verdadeiro,
aceitando o risco de recorrer a uma série de invenções explicativas. Ora,
Espinosa se propõe, no Tratado teológico-político, recolher os dados do
texto visando concluir seu sentido, mostrar o que é inventado no texto e
afastar todas as invenções da interpretação. Se hoje se segue Espinosa,
pode-se muito bem falar de um excesso freudiano de invenção na in-
terpretação da Escritura. Ora, todo mundo segue Espinosa. Ninguém ou
quase ninguém, aí compreendida a época de Freud, defende a tese sobre
Moisés o Egípcio, desenvolvida pelo biblista alemão, professor do Antigo
Testamento na Universidade de Berlin, Ernst Sellin. Publicada em 1922,
sua tese é retomada com conhecimento de causa por Freud.21 Todavia,
Freud é conduzido, a partir desta tese duvidosa, a sublinhar a essência
moral dos textos sagrados e o judaísmo político de Moisés, ao mesmo
tempo em que defende suas próprias teses sobre a tradição escondida de

20 Cf. J. Lacan, Le Séminaire, Livre XVII, L’envers de la psychanalyse, Paris, Seuil, 1991, p.
133-135.
21 Cf. E. Sellin, Moïse et sa signification pour l’histoire israélite et juive, <Mose und seine
Bedeutung für die israelitisch-jüdische Geschichte>.
43

um culto reprimido, já que Moisés o Egípcio teria escolhido os hebreus


para fundar uma religião nova e interdita. Ora, o essencial não é que Freud
coincide involuntariamente, a partir de teses duvidosas sobre a identidade
de Moisés, com teses próximas daquelas de Espinosa ou comparáveis às
de Espinosa.22 O essencial é que Freud entra na categoria das invenções
de interpretação denunciadas por Espinosa, sem que o método analítico
perca seu valor na operação de invenção. Há aqui um ponto de divergência:
uma história inventada e não apenas tirada da Escritura está a serviço de
um método analítico que traz um certo número de frutos. Ora, a despeito
dessa divergência, Espinosa e Freud se completam no plano dos efeitos,
independentemente de tal ou tal ponto de interpretação.
Devemos reter, assim, que, no primeiro plano do Capítulo VII do Tra-
tado teológico-político, aparece o verdadeiro Método de interpretação dos
ensinamentos (documenta) da Escritura e, simultaneamente, a retomada
do argumento central do Prefácio, ou seja, a distinção com as invenções ou
ficções (figmenta) dos teólogos. Esse sistema binário, centrado em torno da
distinção entre os documenta e os figmenta,23 explica a aspiração de Espinosa
pela ciência e pela prudência, até mesmo pelo ceticismo, frente a frente à
interpretação. É preciso ser prudente para não cair na invenção e acrescentar
a interpretação ao texto ou sobreinterpretar. Os efeitos do verdadeiro Método
são claramente esperados: limitar as discórdias teológicas e suas sequências
políticas, limitar as paixões, isto é, a desmedida da interpretação. Se ficarmos
nos seus efeitos esperados, o espinosismo é uma crítica da interpretação,
uma tentativa de superar sua subjetividade ou intemperança.
Ora, Espinosa propõe “um verdadeiro Método de interpretação”
(vera Methodus interpretandi)24 e a origem desta introdução do Método
na interpretação é um fato, ligado à natureza do objeto da interpretação:
o texto interpretado, o objeto, nós somos privados de uma conhecimento
de sua causa. Restam a história das narrativas e os ensinamentos do texto,

22 Cf. J. Lacan, Le Séminaire, Livre XVII, L’envers de la psychanalyse, op. cit.


23 Cf. B. Spinoza, Œuvres III, Traité théologico-politique, Préface <9> et Chapitre VII. De
l’interprétation de l’Ecriture, Paris, PUF, 1999, p. 65 et p. 277.
24 Cf. B. Spinoza, Traité théologico-politique, VII, <2>, op. cit., p. 279.
44

em conformidade com a interpretação da Natureza e com o Método de


experimentação do Tratado da reforma do Entendimento.25 O problema
maior é, portanto, aquele das condições da interpretação: elas devem ser
seguras. E elas explicam, tematizadas no Capítulo VII do TTP, a escolha do
sentido e não da verdade na interpretação das frases, a escolha da interpre-
tação literal e da limitação da interpretação metafórica. Através do duplo
movimento da história e da interpretação capaz de remontar ao ensino
mais universal, tudo é feito para que o sentido não seja construído pela
interpretação, mas tirado do texto mesmo submetido ao trabalho seletivo
de autentificação. Um pouco como a razão baconiana é ao mesmo tempo
tirada na Natureza e aplicada a ela.26 N. Israël o exprimiu claramente nas
Leituras de Espinosa: a interpretação não utiliza a razão como o melhor
princípio ou como princípio melhor que um outro, ela simplesmente a
utiliza.27 Dito de outro modo, ela põe em obra o método de experimen-
tação que provém da razão ou do terceiro modo de percepção segundo o
Tratado da reforma do entendimento.28
Ora, um dos efeitos deste uso da razão alcança Freud, independente-
mente do conteúdo da interpretação espinosiana, e independentemente do
fato de que Espinosa funda uma crítica racional das teses essenciais do juda-
ísmo. Um dos efeitos do verdadeiro Método de interpretação é que Espinosa
isola a Escritura ao querer tratá-la por ela mesma e para poder tratá-la assim.
Fazendo isso, ele não reintroduz o fechamento do texto em uma ortodoxia,
nem joga uma ortodoxia contra a outra: ele isola o texto precisamente para
arrancá-lo das tradições. Assim, ele prepara o que Freud vai operar muito
mais tarde: situar a Escritura, a partir de um ponto preciso da interpretação
do sonho, no campo de uma multiplicidade de outros textos. A Escritura é

25 Cf. B. Spinoza, Tractatus de intellectus emendatione, Traité de l’amendement de l’intellect,


B. Pautrat, Paris, Allia, 1999, § 103, p. 155 ; Spinoza Opera, Gebhardt, II, p. 37. Cf. A. Klajnman,
Méthode et art de penser chez Spinoza, « Chapitre II. De la méthode à l’Ars », Paris, Editions
Kimé, 2006, p. 104-108.
26 Cf. Bacon, Novum Organum, Livre I, Aphorisme 26, Paris, PUF, 1986, p. 107.
27 Cf. N. Israël, « Chapitre V. Le Traité théologico-politique : de la libre interprétation », in
Lectures de Spinoza, dir. P.-F. Moreau et Ch. Ramond, Paris, ellipses, 2006, p. 51-67.
28 Cf. A. Klajnman, « Raison et art de raisonner dans la réforme spinozienne de
l’entendement », in Les facultés de l’âme à l’âge classique, sous la direction de Chantal Jaquet
et Tamàs Pavlovits, Paris, Publications de la Sorbonne, 2006, p. 197.
45

isolada por Espinosa, mas ela poderá doravante ser considerada como os
outros textos. É este “como os outros” que designa, por diferentes razões,
um dos pontos de interseção profanos entre o espinosismo e o freudismo.
É este ponto que nós gostaríamos precisamente de evocar para terminar.
2) Para demonstrar a fonte e a natureza psíquica do sonho, Freud
demonstra, na primeira metade da Traumdeutung, que o sonho realiza
um desejo, um pensamento de sonho, ao mesmo tempo que o mascara.
Esta demonstração ocasiona uma primeira aproximação entre o apare-
lho psíquico e a interpretação. Ora, segundo os Capítulos V,C e V,D da
Traumdeutung,29 uma vez que o desejo se torna preciso sob a forma sim-
bólica do Édipo através de um sonho típico, Freud evoca uma lenda, um
material literário e novidades no método de interpretação para o mesmo
objeto psíquico que é o sonho. Freud prossegue a recusa do falso simbo-
lismo, ao qual ele opõe o verdadeiro simbolismo, que é o complemento
da interpretação clássica, fundada no acesso às associações psíquicas do
sonhador. Fazendo isso, em acordo com a tese principal segundo a qual
a natureza psíquica do sonho é uma abertura para a autonomia da vida
psíquica em geral, aparece que a doutrina da interpretação do sonho
também é uma abertura para uma doutrina da interpretação dos textos,
ao mesmo tempo lendários, literários e bíblicos.
Freud, portanto, não escolheu, por diversas razões apenas conjetu-
rais ou históricas, aplicar um Método a um novo objeto, passar do sonho
à Escritura, analisar sonhos, e então analisar a Escritura. A passagem do
sonho ao texto é teorizada na Traumdeutung, em torno de um duplo argu-
mento: primo, o sonho é a autonomia do psiquismo, portanto, o sonho é
uma janela aberta para a vida anímica, para outros sonhos e mesmo para a
interpretação analítica; secundo, face a certos materiais de sonho, o sonho
torna-se uma janela aberta para outros textos, portanto, para uma trans-
missão muito diferente daquela da narrativa analítica ao analista. Duas
narrativas existem, com um conteúdo comum: o mesmo analista recebe
esse conteúdo, mas dois métodos são requeridos, com coisas novas que
estão em jogo para a psicanálise.

29 Cf. S. Freud, L’interprétation du rêve, op. cit., p. 258-317.


46

Duas notas da nova edição francesa das Obras completas30 revelam


que Freud sempre foi sensível à diferença e à coerência entre esses dois
métodos. O segundo substitui o primeiro uma vez que elementos lhe fal-
tam, ao mesmo tempo em que o prossegue: ele é testemunha disso que
a psicanálise faz com narrativas, imagens, produtos da fantasia que não
são as narrativas dos analisados, uma vez que falta a narrativa viva do
sonhador. Não há aí nenhuma confusão em Freud, mas a consideração
cruzada do sonho e das narrativas com instrumentos novos. O Capítulo
V,D lembra assim as condições habituais da interpretação do sonho: é
requerido o acesso aos pensamentos inconscientes e associados que se
encontram atrás do conteúdo do sonho. Sem essa condição está compro-
metido o método fundado sobre a natureza psíquica do sonho, que afastou
a hipótese sobre as fontes somáticas ou corporais do sonho. Mas há um
caso preciso em que a interpretação não requer as associações: uma vez
que o sonhador utilizou, no conteúdo do sonho, elementos simbólicos.
O segundo método da interpretação freudiana do sonho está, portanto,
fundado na coincidência do conteúdo pensado do sonho e do simbolismo,
expresso nos grandes textos da humanidade pelo psiquismo. Os sonhos
típicos conduzem às narrativas lendárias porque eles têm as mesmas fon-
tes em todos os homens, em todos os criadores e em todas as narrativas.
Ficamos tentados a dizer que a psicanálise atinge aí um limite. Ora,
se coloca aqui, na realidade, um segundo método simbólico: o primeiro
método simbólico, ou método dito “da cifra” na literatura sobre o sonho,
acredita nas fontes somáticas do sonho ou na representação cifrada do
corpo e de suas partes no sonho: ela é longamente recusada por Freud no
Capítulo I, e de novo no Capítulo V, que nos interessa aqui; o verdadeiro
método simbólico está de acordo com a natureza psíquica do sonho e se
ajusta às diferentes narrativas. Assim, após ter formulado as premissas
da teoria do complexo de Édipo sob a forma de dois sonhos típicos com-
plementares implicando assassinato e incesto,31 Freud sublinha que este
complexo adquiriu “uma significância de uma amplitude insuspeitada

30 Cf. S. Freud, L’interprétation du rêve, op. cit., note 1, p. 280 et note 1, p. 303.
31 Cf. S. Freud, L’interprétation du rêve, op. cit., p. 301.
47

para a compreensão da história da humanidade, do desenvolvimento da


religião e da moralidade”.32 As tragédias antigas transmitem alguma coisa
universal, em relação com a universalidade disso que se aborda a partir
da psicologia infantil.33
A produção poética está, portanto, enraizada em uma produção
psíquica, na origem dos sonhos típicos que concernem à mãe e ao pai. A
antiguidade transmite um material lendário e só se compreende a impres-
são de radicalidade experimentada diante de uma lenda antiga por “uma
semelhante universalidade do que foi pressuposto a partir da psicologia
infantil”.34 Convém assim explicar a impressão produzida não por uma
estátua recente de Michelangelo, estranhamente inquietante, mas por
um texto notável e impressionante da antiguidade. E Freud aborda ao
mesmo tempo a fonte do texto e sua natureza: a fábula de Édipo é a reação
da fantasia a dois sonhos típicos. Nesta lógica, as narrativas lendárias são
sequências de sonhos típicos, reações escapatórias a um material de so-
nho imemorial. O sonho torna-se um estrato de fábula literária e pode-se
considerar que sonhar provém da criação poética.
Fazendo isso, Freud acrescenta à interpretação uma teoria da histó-
ria e da pré-história dos homens e do psiquismo. Primeiramente, a reação
da fantasia, isto é, a formação da lenda, é uma elaboração secundária que
se inscreve na teoria geral do sonho. O trabalho psíquico da fantasia poé-
tica é o mesmo que aquele da deformação do sonho manifesto. A história
apresenta assim o tratamento modificado de um só e mesmo material da
vida anímica. Édipo Rei e Hamlet se enraízam no mesmo solo, e exprimem
a progressão, no curso dos séculos e “na vida d’alma”, do recalque da vida
afetiva da humanidade, de “dois períodos culturais muitos afastados”.35
O antigo (Édipo Rei) é mais claro, o mais recente (Hamlet ou o Moisés
de Michelangelo) implica mais subjugação, já que o material anímico de
origem está recoberto pelo tempo.

32 Cf. S. Freud, L’interprétation du rêve, op. cit., note 1, p. 304.


33 Cf. ibid.
34 Cf. S. Freud, L’interprétation du rêve, op. cit., p. 301.
35 Cf. S. Freud, L’interprétation du rêve, op. cit., p. 305.
48

Compreende-se assim, só depois, a insistência de uma nota no


fim do Capítulo V,B sobre o caráter fundamental da teoria dos diferentes
estratos do sonho.36 Com efeito, o sonho é correlato de toda a espessura
psíquica da história e da pré-história do indivíduo, mas o sonho típico
revela um estrato coletivo que se exprime na narrativa bíblica em parti-
cular: a humanidade tem uma pré-história que concerne ao assassinato
original do pai da horda e uma história que vai da Bíblia, que mascara o
assassinato de Moisés, passando pelo Édipo Rei, Hamlet e o Moisés de
Michelangelo. A unidade dos diversos estratos do sonho é, portanto, a
unidade do psiquismo, que é a unidade dos planos individual e coletivo: o
sonho exprime o indivíduo; a fantasia poética exprime o indivíduo criador
(Sófocles, Shakespeare ou Michelangelo), mas também a humanidade e
suas épocas. E a diferença que se introduz nos diferentes planos psíquicos
não é aquela das faculdades, cujas operações se completam, mas aquela de
sua manifestação, isto é, aquela do escrito: a fantasia é a operação psíquica
do sonho, mas ela deixa traços escritos do psiquismo na história humana.
A interpretação do sonho permite assim uma percepção histórica
das operações psíquicas na escala da humanidade e não apenas na escala
do criador ou do indivíduo. Nessa lógica, pode-se dizer que os escritos
constituem os traços mnésicos da humanidade e esta tese é o resultado,
em um momento preciso da Traumdeutung, da percepção do simbolismo
no sonho. O sonho é, portanto, uma abertura para o aparelho psíquico (tal
é a tese explícita, construída e repetida por Freud nas múltiplas edições
sucessivas da Traumdeutung), mas o sonho é igualmente uma abertura
para a história, enquanto são lidas nele, via os traços escritos da fantasia,
as operações do aparelho psíquico. Em uma palavra, a psicanálise aplicada
não existe: a aplicação ao mundo da cultura é a psicanálise fazendo-se e
retomando-se em seu primeiro texto sistêmico maior.
A interpretação de Moisés e o monoteísmo aparece assim como a
sequência lógica da Traumdeutung, e não é apenas aquela de uma circuns-
tância individual e histórica. Por outro lado, ela traz o traço da fantasia,
da teoria fantasista sobre Moisés o Egípcio. Esse é o interesse da leitura

36 Cf. S. Freud, L’interprétation du rêve, op. cit., note 1, p. 257.


49

lacaniana que articula um sonho de Freud com o texto freudiano. Mas


o essencial é que, com Moisés e o monoteísmo, a história das narrativas
aparece como a história dos povos ligados não a narrativas, mas a uma
pré-história mnésica – pré-história mnésica precisamente mascarada pelas
narrativas e que justifica a necessidade destas narrativas. A “judeidade”
freudiana evocada no início não é, portanto, apenas a expressão de uma
teoria obscura e pseudolamarckiana sobre a transmissão de caracteres
adquiridos: ela é o resultado histórico da pré-história da humanidade, da
formação da narrativa bíblica e da história da humanidade. Essa teoria
só tem sentido porque se trata daquela que mais se aproxima, no plano
do povo e da humanidade, da pré-história individual. Ela tem o mérito de
revelar o sentido psíquico da pré-história: a pré-história não é apenas um
período – a horda primitiva –, mas um símbolo – Édipo – e um trabalho
psíquico – aquele da formação de sonhos edípicos típicos. A psicanálise
freudiana desenvolve, portanto, três planos a partir do sonho: o indiví-
duo, os povos, a humanidade. E dois métodos, que variam em função do
acesso às fontes vivas das narrativas ou da impossibilidade de acesso a
essas fontes.
Os efeitos do espinosismo e do freudismo parecem assim comple-
mentares: a interpretação espinosiana da Escritura, simplesmente por sua
autoridade, como a interpretação freudiana do sonho, simplesmente pela
potência psíquica que o forma, conduzem a uma ciência e a uma história
dos textos. Elas conduzem a um universo comum, a uma “sociedade” tex-
tual, na qual a comparação de diferentes escrituras da fantasia individual e
da humanidade é, seja possível, com Espinosa, seja requerida, com Freud,
uma vez que a análise encontra materiais psíquicos típicos ou simbólicos.
Esse ponto parece pôr em questão um novo ponto de comparação entre
Espinosa e Freud: o da autonomia do pensamento e do psiquismo, que
merece um estudo inteiramente à parte.
Benjamin e Freud: a repetição do choque
Eran Dorfman (Universidade de Ben Gurion - Israel)
Tradução: Cláudio Oliveira

Introdução
“Nem a matéria, nem o espaço, nem o tempo são, desde há vinte
anos, o que eles eram desde sempre”. É esta frase de Valéry, redigida em
1934, que Walter Benjamin escolhe como epígrafe para seu famoso texto
A obra de arte na época de sua reprodutibilidade técnica. Todos os escritos
tardios de Benjamin são consagrados à descrição dessas mudanças no
espaço e no tempo, cuja raiz deve ser situada já no Segundo Império e
em particular em Charles Baudelaire como precursor da modernidade.
No tempo que me é dado aqui, eu gostaria de seguir Benjamin des-
crevendo as mudanças da modernidade como reação a um choque. Nós
veremos primeiramente de que choque se trata para examinar em seguida
a maneira como Freud explica seus mecanismos, assim como a maneira
como a teoria de Benjamin poderia prolongar o pensamento freudiano
para chegar a uma teoria psicanalítica da modernidade.

Memória voluntária e memória involuntária


Em Paris, capital do século XIX (1935), Benjamin descreve o choque
como o efeito, por um lado, da passagem do campo à cidade e, por outro
lado, da transformação rápida do espaço urbano. Ele evoca “o caráter inu-
52

mano da cidade grande”, ligado ao novo fenômeno da multidão, que suscita


um medo, um horror e até mesmo um desgosto nos recém-chegados à
cidade. A cidade não serve mais, desde então, como uma casa e torna-se
um espaço hostil, anônimo, alienante.
Estas descrições, mais impressionistas, recebem em Benjamin um
desenvolvimento mais teórico em seu importante texto Sobre alguns temas
baudelairianos (1939). Mas parece que aqui Benjamin começa já pelo efeito
do choque, descrevendo a crise da experiência moderna. Esse sentimento
de crise foi conhecido, afirma Benjamin, por numerosos filósofos a partir
do fim do século XIX, que tentaram superá-lo reapreendendo a “verda-
deira experiência”, “por oposição àquela que se manifesta na existência
normatizada e desnaturada das massas submetidas à civilização” (Benja-
min, Œuvres III, p. 331). Benjamin critica implicitamente esses “filósofos
da vida”, como Dilthey, Jung e, sobretudo, Bergson. Este último, apesar da
importância maior do seu trabalho, desconhece a historicidade da expe-
riência e da memória. Bergson busca a duração, a experiência espontânea
e viva, mas, exatamente por isso, segundo Benjamin, ele negligencia a
razão de ser de sua própria filosofia, a saber, a crise (ancorada na história)
da experiência moderna, experiência “não hospitaleira e enceguecedora
que é própria da época da grande indústria” (332). Bergson fecha seus
olhos face a esta experiência e desde então ele não faz senão prolongá-la,
tornando-a ainda mais em crise.
Que outra atitude nos propõe Benjamin diante da crise da experiên-
cia? E qual é a natureza dessa crise? Benjamin não vai explicar diretamente
a crise da experiência pelo choque da modernidade, mas faz, antes, um
desvio, apoiando-se em Proust. Este distingue dois tipos de memória: o
primeiro é a memória voluntária, a saber, a memória totalmente cons-
ciente, como aquela do narrador de Em busca do tempo perdido diante de
sua infância em Combray, antes de provar a madeleine. O segundo tipo de
memória é a memória ressuscitada pela madeleine mergulhada no chá,
que Proust chama de memória involuntária. Esta memória corresponde
mais ou menos ao inconsciente em Freud, mas o que a caracteriza, se-
gundo Benjamin, é, antes de mais nada, seu caráter histórico, enquanto a
53

memória voluntária é a memória do momento isolado. Assim, Benjamin


compara a memória voluntária às informações do jornal, que permane-
cem destacadas daquele que as lê, enquanto a memória involuntária é o
equivalente da narrativa, da história contada que “incorpora o aconte-
cimento à vida mesma daquele que conta, para transmiti-lo, como sua
própria experiência, àqueles que escutam” (335). Nós podemos também
pensar no que diz Roland Barthes, segundo o qual a cidade moderna nos
propõe informação, mas não significação. A informação seria esse afluxo
de memória voluntária, enquanto a significação seria mais uma memória
involuntária, uma memória que se liga à vida das pessoas que a trazem.
Como a crise da experiência moderna se religa ao lugar da memória
na sociedade? Benjamin afirma que, enquanto os antigos cultos religiosos
sabiam ainda balançar entre as duas memórias, a vida moderna, por sua
vez, dá pouco lugar à memória involuntária. Antes de ver como este lugar
reduzido da memória involuntária na sociedade moderna está ligada à
crise da experiência e ao choque, nós devemos já colocar uma questão.
Pois se nossa época, por um lado, é aquela da memória voluntária e se,
por outro lado, uma das grandes descobertas da modernidade é o incons-
ciente, não chegamos a uma contradição? É possível que a descoberta do
inconsciente tenha reduzido seu lugar ou, ao menos, o lugar da memória
involuntária na sociedade?
Para responder a isso, nós devemos seguir a maneira como Benjamin
interpreta Freud. Com efeito, Benjamin não é um especialista em Freud e
seu interesse pela psicanálise vem, sobretudo, da influência que Adorno
exerceu sobre ele. Mas não olhemos sua visão de amador em Freud como
inconveniente, mas, antes, como vantagem, pois ela nos mostra uma
pertinência importante que a psicanálise poderia ter para a sociedade, o
tema próprio deste Encontro. Assim, como nós vamos ver, Benjamin não
invoca Freud apenas por sua descoberta do inconsciente, mas sobretudo
por sua descrição da consciência como proteção contra o choque. Como o
choque está ligado à dificuldade moderna em encontrar o equilíbrio entre
memória voluntária e memória involuntária? E quais são as relações que
existem entre o inconsciente e o choque?
54

Vivido e experiência
Passemos, portanto, ao texto freudiano que Benjamin escolhe para
analisar: Além do princípio do prazer, um dos textos mais ambíguos e
difíceis de Freud.
Freud afirma nesse texto que “a consciência nasceria no lugar do
traço de memória” (p. 337), o que quer dizer que “ tornar-se consciente e
deixar um traço de memória são processos incompatíveis em um único
sistema”.1 Isso não significa, segundo Benjamin, que não se tem nenhu-
ma memória do que se viveu conscientemente, mas, antes, que não se
tem disso uma memória involuntária: “Só pode tornar-se elemento da
memória involuntária o que não foi expressamente e conscientemente
‘vivido’ pelo sujeito” (339).
Antes de tentar a explicação do que poderia ser uma tal memória
involuntária, é importante ver que, para Freud, assim como para Benja-
min, que o segue, a consciência tem uma função totalmente diferente da
memória: ela deve se proteger contra os estímulos exteriores. Essa tarefa
de proteção é “quase mais importante que a recepção dos estímulos”, pois
se trata de energias penetrando o sistema psíquico de fora e ameaçando
destruí-lo. Mas o que acontece uma vez que uma quantidade inesperada
de energia consegue penetrar no sistema? O choque, é claro. Ora, o choque,
parece, é inevitável; ele faz parte integrante da vida e, portanto, o impor-
tante não é tanto evitá-lo, mas sim, bem registrá-lo na consciência e desta
maneira atenuar o traumatismo. A grande questão é saber como dominar
o choque, uma questão chave para compreender o projeto psicanalítico
segundo Benjamin, mas também para compreender o que está em jogo
na experiência moderna.
Assim, Benjamin afirma:

O choque é atenuado por um envolvimento do sujeito no


domínio das excitações... O choque assim amortecido, assim
preparado pela consciência, daria ao acontecimento que o
provocou o caráter de uma experiência vivida (Erlebnis) no

1 Freud, Oeuvres completes, XV, p. 296.


55

sentido preciso do termo. O incidente (diretamente incor-


porado ao registro da lembrança consciente) seria assim
esterilizado para a experiência (Erfahrung) (339-340).

Para melhor compreender a intenção de Benjamin, nós devemos


retornar à questão da experiência, introduzindo agora uma segunda opo-
sição, paralela àquela entre memória voluntária e memória involuntária.
Assim, da mesma maneira que a memória voluntária é uma memória
a-histórica, memória do presente, memória isolada que não chega a se
incorporar no que quer que seja, o vivido (Erlebnis) é o que advém no
próprio momento, sem deixar um traço, não podendo se sedimentar,
tornar-se algo maior que ele mesmo. Em contrapartida, da mesma maneira
que a memória involuntária é uma memória histórica e larga, a experiência
(Erfahrung) é o que advém ao sujeito, incorpora-se a ele e permanece. É,
portanto, a experiência, e apenas ela, que é ao mesmo tempo pessoal e
pública, dentro e fora, estendendo-se no tempo e no espaço.
Nós já começamos a ver que a experiência moderna está, segundo
Benjamin, em crise, e nós descobrimos agora a fonte dessa crise, pois
para a modernidade “o vivido do choque (Chockerlebnis) se tornou uma
norma” (340). Seria, portanto, errôneo chamar a experiência moderna de
“experiência”, pois se trata apenas do vivido, de fragmentos da experiên-
cia que não se integram nem entre si, nem com a vida do sujeito. O que
nos reenvia ao lugar maior da memória voluntária em nossa sociedade:
queremos compreender tudo, imediatamente e, em consequência, temos
consciência demais e memória (involuntária) de menos. Mas nós desco-
brimos agora que essa memória consciente demais influencia a estrutura
mesma da experiência, que se torna um simples vivido.
Como ressuscitar a memória involuntária e, com ela, a experiência?
O que exatamente nos propõe Benjamin? A citação acima implica que uma
atenuação do choque só faz tornar o acontecimento que o provocou um
simples vivido, sem história nem pertinência para o sujeito que a sofreu.2

2 Benjamin se refere aqui, certamente, à experiência poética, mas em outras partes do seu
texto, ele fala da experiência tout court.
56

Benjamin explica, aliás, que o empobrecimento da experiência moderna,


sua crise, decorre da abundância sempre crescente dos choques, isto é, dos
estímulos, das solicitações e das excitações que nossa cultura ocidental
moderna nos faz encontrar todos os dias e todo o tempo. Para se proteger
disso, nós adaptamos mecanismos de registro, de atenuação, de domínio e
de controle. Mas o preço a pagar é pesado: nós vivemos, certamente, mas
nós não temos a experiência disso. O que fazer? Devemos aceitar os estí-
mulos, integrar os choques em nós mesmos ao invés de rejeitá-los? E como?

Choque, traumatismo, repetição


Para responder a isso, é preciso retornar ao texto freudiano Além do
princípio do prazer aprofundando o que Benjamin não deixa claro, a saber,
as relações entre o choque, o traumatismo e a repetição.
Freud desenvolve nesse texto a hipótese da “vesícula viva”. Esta teria
uma fronteira bem distinta com o exterior, de onde ela recebe excitações.
Estas, antes de entrar na vesícula, devem passar por várias camadas de
proteção, que Freud não cessou de descrever e de explicar desde o Projeto
(Entwurf) de 1895. Mas o que acontece uma vez que uma excitação con-
segue penetrar em todas as camadas de proteção e entrar na vesícula, a
saber, o aparelho psíquico? Nesse caso, o aparelho deve investir energias
em torno da ferida, e nós sabemos que, em grego, ferida significa trauma.
É preciso então criar em torno do lugar que sofreu o choque um tipo de
tecido ligando a energia que penetrou de modo selvagem no aparelho:
“a tarefa do aparelho é então mobilizar todas as forças disponíveis a fim
de estabelecer contrainvestimentos, fixar no local as quantidades de ex-
citação afluentes e permitir assim o restabelecimento das condições de
funcionamento do princípio do prazer”.3
Para que o princípio do prazer possa ser retomado, é preciso, pri-
meiramente, ligar a energia selvagem que invadiu o sistema, e isso pelo
viés da repetição. A repetição suspende o princípio do prazer até que o
trauma seja reparado e curado, reproduzindo o acontecimento que causou
o choque, mas, desta vez, com a preparação suficiente. Pois quanto mais o

3 J. Laplanche et J.-B. Pontalis, Vocabulaire de la psychanalyse, Paris: PUF, 1967, p. 500.


57

sistema é preparado antes do choque, menos o trauma é forte e extenso. A


repetição da situação não preparada – repetição que pode ter todo tipo de
forma, do pesadelo a uma obsessão compulsiva – visa, portanto, dominar
e finalmente ab-reagir à tensão excessiva do trauma.
Ora, é importante notar que o trauma não vem apenas do exterior,
mas também do interior. Pois, enquanto em relação ao exterior o aparelho
psíquico tem uma camada protetora, contra o que vem de dentro ele não
tem nenhuma proteção. Em consequência, todo tipo de impulsos e de
correntes de energia investem e transbordam o aparelho sem cessar, e é
preciso do mesmo modo aqui ligar essa energia livre, excessivamente livre.
Esse trabalho de ligação (Bindung) se faz, segundo Freud, passando dos
processos primários (inconscientes) aos processos secundários (conscien-
tes ou pré-conscientes). Se essa passagem fracassa, se não conseguimos
ligar a energia livre, então um tipo de trauma tem lugar (Freud, p. 300).
Por esta razão, é apenas após a ligação que o princípio do prazer pode ter
lugar, o que é muito espantoso, pois normalmente, em Freud, o princípio
do prazer é associado aos processos primários, enquanto o princípio de
realidade é que é associado aos processos secundários. De onde vem essa
inversão? Trata-se de uma contradição? Ou, antes, há um certo limiar além
do qual o princípio do prazer é suspenso pela tensão excessivamente alta
do aparelho?
Nós sabemos bem que Freud desenvolve neste texto o que está além
do princípio do prazer, descobrindo a compulsão de repetição como pulsão
de morte, isto é, tendência a retornar ao mais primitivo estado da coisa:
o estado inerte. Mas nós vemos que este além ou aquém do princípio do
prazer é já aqui descoberto, sem fazer recurso à pulsão de morte: é a ligação
da energia que é a condição do princípio do prazer. Como então explicar
o fato, mencionado pelo próprio Freud, de que as crianças acolhem com
prazer e alegria a repetição? Isso é válido não apenas no caso do famoso
Fort-da, mas também uma vez que nós lhes repetimos uma história, ou
ainda nos jogos baseados na repetição. Em contrapartida, os adultos se
entediam rápido com a repetição e fazem tudo para fugir dela. Os adultos,
afirma Freud, temem não apenas a repetição em si, mas também o que
58

ela revela e esconde ao mesmo tempo: o primitivo, o demoníaco, que ela


evoca ao mesmo tempo em que se esforça em torná-lo menos assustador,
em ligá-lo, em integrá-lo no ego.
Se a repetição sugere que um traumatismo teve lugar, como as
crianças podem se divertir com ela? Isso poderia ser explicado, parece-me,
por um certo efeito cultural. No adulto que sofreu um trauma, a ordem
normal dos processos primários e dos processos secundários, do princípio
do prazer e do princípio de realidade, mudou. A consciência, a reflexão e o
pensamento tomam então o lugar da imaginação, da fantasia e do sonho.
O temor da repetição nos adultos poderia, portanto, significar uma recusa
em admitir o recalcado, o traumatismo que se encontra além ou aquém
dos processos secundários conscientes.
Mas eu gostaria de historicizar essa afirmação, propondo que nossa
época de choque e de traumatismo é o que tornou a repetição não desejável.
Mais exatamente, nossa época encontra para a repetição um lugar domina-
do, controlado, consciente, que se manifesta na vida cotidiana normalizada,
repetitiva, reproduzida. Para melhor compreender o uso moderno da repeti-
ção, é tempo de introduzir uma última noção benjaminiana, a saber, a aura.

O declínio da aura
O que é a aura? E que relação tem ela com a experiência moderna
ou o vivido moderno do choque? Em A obra de arte na época de sua repro-
dutibilidade técnica, Benjamin dá uma definição inicial da aura:

Poderíamos defini-la como a aparição única de um distante,


por mais próximo que ele seja. Seguir com o olhar, em uma
tarde de verão, a linha de uma cadeia de montanhas no ho-
rizonte ou um galho que lança sua sombra sobre ele é, para
o homem que repousa, respirar a aura destas montanhas ou
desse galho (278).

Deve-se notar que a experiência descrita aqui por Benjamin não


é uma experiência urbana e se desenvolve, aliás, em solidão. Pois esse
59

equilíbrio delicado entre proximidade e distância não é mais possível na


cidade, onde quase cada experiência envolve a multidão. E, com efeito, a
multidão tem outra coisa na cabeça:

Pois tornar as coisas espacialmente e humanamente “mais


perto” de si é, nas massas de hoje, um desejo tão apaixonado
quanto sua tendência a despossuir todo fenômeno de sua
unicidade por meio de uma recepção de sua reprodução
(278).

Benjamin descreve o declínio da aura como ligada às condições


sociais das massas e aos fenômenos históricos e culturais diversos. Um
deles, como nós já vimos, é o declínio da importância dos cultos religiosos
que souberam não apenas guardar o equilíbrio entre memória voluntária
e involuntária, mas também a boa distância frente à imagem que serve ao
culto. Esta imagem de culto “permanece, por sua natureza, um ‘distante,
por mais próximo que ele seja’” (280n). Em oposição a essa manutenção
da boa distância, temos a invenção da fotografia. A imagem fotográfica
permite responder ao desejo da multidão de uma proximidade constante
no espaço e no tempo. Essa imagem fixa para sempre um ponto espacial e
o torna acessível a cada momento e a cada lugar pelo viés da reprodução
mecânica. Nós constatamos hoje, de uma maneira ainda mais flagrante,
com a invenção do aparelho digital e, sobretudo, com o telefone celular,
que a distância, a unicidade, a inacessibilidade se tornaram fenômenos
insuportáveis. Por um lado, nós devemos ser sempre acessíveis e, por
outro lado, ter tudo ao alcance da mão, mas, por isso mesmo, afirma Ben-
jamin, nós perdemos a aura da coisa fotografada, de sua imagem, da voz
da pessoa com quem se fala ao telefone. A distância destas desapareceu,
e com ela sua aura.
Enquanto em A obra de arte na época de sua reprodutibilidade téc-
nica Benjamin considera o declínio da aura como liberador, permitindo
uma democratização da arte graças à sua reprodução técnica, sua atitude
frente a este declínio torna-se muito mais ambígua no texto sobre Baude-
60

laire, redigido alguns anos mais tarde sob a influência de Adorno. Nesse
texto, a perda da aura é explicitamente ligada à perda da experiência e da
memória involuntária:

Se entendermos por aura de um objeto oferecido à intuição


o conjunto de imagens que, surgidas da memória involuntá-
ria, tendem a se agrupar em torno dele, a aura corresponde,
nesse tipo de objeto, à experiência mesma que o exercício
sedimenta em torno de um objeto de uso (378).

O aparelho fotográfico e as invenções ulteriores tornam o exercício


em nossa sociedade cada vez mais reduzido. Não exercemos mais as coisas
e, em consequência, não temos delas nem aura nem experiência. O que
poderia ser esse exercício das coisas? Há algum meio de reencontrá-lo,
e com ele também a aura? E como fazê-lo sem cair na armadilha de um
romantismo ultrapassado?

Retorno da aura moderna


Um índice nos é dado pela relação diferente que adultos e crianças
têm frente à repetição. O jogo do Fort-da, por exemplo, se faz com prazer,
mesmo se ele se dá em torno de uma ausência traumatizante. Como isso é
possível? Parece que é graças a um certo caráter que esse jogo partilha com
a experiência da aura, pois ele guarda, também ele, a boa distância para
com a coisa, distanciando-a e aproximando-a simultaneamente. O jogo
da criança pode, portanto, servir de exemplo de um tipo de aura, mas não
mais em sua forma antiga. A velha aura, nós a vimos, estava sempre ligada
à inacessibilidade da coisa, à sua aparição única no tempo e no espaço.
Ela integrou a repetição apenas no sentido de que os cultos tinham datas
precisas que se repetiam segundo o ano e a estação. A forma do culto era
repetitiva, mas não seu conteúdo. Em contrapartida, a experiência do que
eu chamo a aura moderna envolve a repetição ao mesmo tempo em sua
forma e em seu conteúdo, pois é uma aura que se produz face ao choque,
na ocasião, a partida da mãe e sua ausência.
61

Mas por que é tão difícil ter acesso a uma tal aura? Nós vimos que
no caso de choque há uma reversão dos papéis entre processo primário e
processo secundário. A aura moderna deve, portanto, reverter de novo os
papéis, não para retornar simplesmente à primazia do inconsciente, mas
para mostrar ao mesmo tempo essa primazia e sua impossibilidade hoje
em dia, na época do choque que necessita de um domínio permanente,
aí incluído o do inconsciente. A aura moderna deve, portanto, jogar entre
distância e proximidade, entre ausência e presença, repetindo ao mesmo
tempo esse jogo. Essa repetição é justamente o exercício do qual Benjamin
falou: é uma manipulação da coisa que reconhece seus dois pólos: o pólo
ausente e o pólo presente, enquanto a repetição cotidiana, sob o modelo
da fotografia ou do telefone celular, não reconhece nem a ausência nem
a estrutura mesma da repetição. Nós falamos ao telefone, e nós não nos
damos conta de que se trata de uma voz reproduzida, de uma voz que re-
pete uma outra voz, um original do qual nós não sabemos jamais o lugar.
Pois a primeira questão que nós colocamos ao celular, sem pensar nela, é
quase sempre: onde você está? O outro está sempre ausente.
O reconhecimento da repetição, de um lado, e a ausência, por outro
lado, é um reconhecimento do choque. É apenas esse reconhecimento que
pode desde então ajudar a superá-lo. Não registrando-o rapidamente na
consciência, mas, ao contrário, deixando o processo primário funcionar
– e com ele a memória involuntária. O exercício da coisa, por exemplo,
a manipulação da bobina no jogo do Fort-da, liga-a à vida pessoal da
criança, de modo que uma memória involuntária se cria em torno dela.
Alguns anos mais tarde, quem sabe, a criança poderia reencontrar a bobi-
na e, com ela, a si mesma, da mesma forma que o herói de Cidadão Kane
reencontra, antes de morrer, seu brinquedo de infância preferido, o trenó
que se chama Rosebud.
É esta repetição áurica da coisa que pode, portanto, criar uma me-
mória involuntária e uma verdadeira experiência. Mas se a modernidade
se caracteriza, com efeito, por choques constantes e, desde então, por uma
reversão dos processos primários e secundários, como nós poderíamos re-
encontrar a experiência? Como nós poderíamos ter acesso à aura moderna?
62

Benjamin diz que na reprodução técnica estão em jogo duas coisas:


ela pode nos liberar da velha tradição, mas ela pode também nos tornar
prisioneiros dela ou, antes, deixar em nós um vazio que nós tentaremos
preencher pela tentação fascista. Ele dá o exemplo do cinema como
lugar de treino, de exercício do choque. Mas será que é no cinema que a
repetição liberadora tem lugar verdadeiramente? Não vemos que, hoje,
com os filmes de ação e de horror, o filme não faz senão acentuar ainda
mais o choque? Benjamin dá dois outros exemplos de transformação do
vivido em uma experiência: não à maneira de Bergson, que aspira a uma
experiência pura e espontânea, mas integrando o choque na própria vida
ao invés de evitá-la. Esses dois exemplos são Proust e Baudelaire, em quem
nós encontramos a arte como trabalho de transformação contínua ou,
antes, como luta cruel contra o choque. Olhemos o caso de Baudelaire,
como o descreve Benjamin, bem no final de seu texto:

Traído por seus últimos aliados, Baudelaire se vira contra a


multidão; ele o faz com o furor impotente daquele que se
bate contra a chuva ou o vento. Tal é o vivido que Baudelaire
elevou à condição de uma sabedoria. Ele indicou o preço que
é preciso pagar para ter acesso à sensação da modernidade:
a destruição da aura no vivido do choque. A conivência de
Baudelaire com essa destruição lhe custou caro. Mas é a lei
de sua poesia. Ela brilha no céu do Segundo Império como
“um astro privado de atmosfera”.

Baudelaire teve acesso à sensação da modernidade lutando contra


o choque, na ocasião, a multidão. Dessa maneira, ele destruiu a aura: ele
descobriu que nós não podemos mais guardar a boa distância frente às
coisas, a exemplo de uma tradição religiosa rígida; ele revelou que por toda
parte nós nos encontramos em torno de nossos olhares vazios, pessoas
muito apressadas, reproduzidas, todas semelhantes. Mas essa descoberta
se faz pela poesia. Essa poesia, essa criação, é uma expressão do que eu
chamei a aura moderna: ela toca o choque, ela o integra, mas parece que
63

por isso mesmo ela privou Baudelaire, ele mesmo, de sua própria vida,
tendo-se aproximado excessivamente do choque. É talvez também o caso
de Freud: tendo-se aproximado excessivamente do inconsciente, ele ter-
minou por destruir sua aura. Mas ele não nos capturou com ele a todos
nós? Não somos nós excessivamente conscientes do inconsciente? Não
tentamos nós atenuar o choque da modernidade permanecendo cons-
cientes dele, ao invés de integrá-lo, de repeti-lo da boa maneira? Como ter
acesso, portanto, à aura moderna na vida de todos os dias?
Para responder a isso nos é necessário compreender nosso cotidiano
mesmo como trabalho de repetição mecânica que não se deixa ver como
tal. Talvez nós pudéssemos ver nosso próprio cotidiano e transformá-lo,
tendo acesso à aura moderna, repetindo as coisas pelo exercício, reco-
nhecendo sua ausência, seu aspecto repetitivo, o choque do qual a vida
cotidiana tenta se proteger. Mas isso transcende o lugar e o tempo que me
são dados, no quadro deste Encontro, e é melhor que eu me detenha aqui.
parte 2
Metapsicologia, Política, Cultura e Arte
O antinaturalismo da pulsão freudiana
Christian Hoffmann (Paris-Diderot)
Tradução: Pedro Henrique Bernardes Rondon

Apresentação da questão epistemológica


Ian Hacking, em seu livro Entre science e réalité (HACKING, 2008),
apresenta o problema epistemológico atual num capítulo intitulado “La
folie, biologique ou construite?” [“A loucura, biológica ou construída?”].
Deixando de lado a corrente “pós-humanista”, aquela da biologia da cons-
ciência das ciências cognitivas e das neurociências, ele propõe a questão
do efeito espírito/corpo em termos de “gancho biológico”. Isso nos tira de
um dualismo a propósito da doença mental como construção social ou
real. Cabe a nós interrogar o estatuto desse real que Hacking não contesta.
A aula inaugural de Stanislas Dehaene no Collège de France “Vers
une science de la vie mentale” [“Em busca de uma ciência da vida mental”]
dá, logo de saída, a medida da importância que o naturalismo tem hoje em
dia no campo científico. “A nova psicologia do desenvolvimento inspirou-
se na etologia a fim de avaliar as competências de bebês de apenas alguns
meses, sem ter que recorrer à linguagem” (DEHAENE, 2006, p. 33). E o
autor conclui sem rodeios: “Existiria, portanto, estreita homologia entre
os primatas humanos e os não humanos” (Id., ibid., p. 44).
Certamente existem naturalismos. Jean Petitot propõe uma naturali-
zação do mental por uma naturalização de Husserl. Ele adianta o paradig-
68

ma de um “monismo ontológico naturalista”: para ele é a naturalização do


sentido que vai ser “um dos grandes assuntos deste fim de século”. Trata-se
de estender as ciências da natureza às ciências humanas. A significação
seria substituída pelo cálculo, o que permitirá a síntese computacional.
Para isso vai ser preciso transformar os fenômenos em algoritmos, com o
auxílio da matemática; vai-se observar que ele substitui o estudo do com-
portamento pelo do fenômeno, sendo o comportamento o responsável
pelo fracasso do cognitivismo, uma vez que é redutor da subjetividade.
A esse propósito, poderemos ler Dennett (2008) que propõe uma curiosa
“heterofenomenologia” da consciência. Essa evolução da ciência (cogni-
tiva), para Petitot, faria rebaixar o humano (o cognitivo e o social) de sua
posição de exceção ontológica.
Em suma, ele propõe “desencantar o real” para “reencantá-lo” pela
explicação, e esta vem substituir a antiga busca de sentido. Não é possível
ser mais positivista, apesar de uma pitada suplementar de subjetividade
pelo recurso a Husserl.
Para nós, é interessante observar que as teorias biológicas da consci-
ência, como as de G. M. Edelman (2004) e J. R. Searle, procuram igualmente
evitar o reducionismo do fato mental a um correlato neuronal, supondo
que a consciência tem um sujeito que não pode prescindir dos recursos
da linguagem. Em suma, para determinados autores de concepções bio-
lógicas ou cognitivas da consciência, tratar-se-ia de abrir um espaço para
a subjetividade humana.
O que não é o caso de versões mais fortes da naturalização do espírito,
que propõem francamente naturalizar a epistemologia (o conhecimento).
A epistemologia naturalizada ou eliminada: eis a verdadeira jogada
do novo cientismo. Este título provém diretamente da obra de Pascal Engel,
Philosophie et psychologie, que passo a citar:

O naturalista sustenta que não há senão descrições psicoló-


gicas, neurofisiológicas ou biológicas de processos causais,
implicando uma relação entre estímulos sensoriais, reações
69

a esses estímulos e um ambiente exterior. Neste caso, não


se corre o risco de separar o conhecedor, do conhecido; o
espírito, das coisas (ENGEL, p. 344-345).

Em suma, não há mais sujeito do conhecimento. Quine substitui,


aliás, o sujeito do conhecimento pelo estudo científico da relação do ho-
mem com seu ambiente. Caímos assim de volta em Daniel Lagache que,
em seu ensaio sobre L’unité de la psychologie, em 1949, já expunha a opção
“entre naturalismo e humanismo” (LAGACHE, 1949, p. 25).
Pascal Engel reconhece que há realmente uma negação da teoria
do conhecimento em proveito daquilo que vamos chamar novamente,
fazendo uma tentativa diferente da anterior, de uma visão cientista do
mundo. Dessa maneira ele cita o caso de Patrícia Churchland que acredita
que a epistemologia foi “refutada” pelas neurociências, as quais permitem
identificar nossas crenças a estados neuronais. A constatação não admite
apelação: há um retorno do naturalismo em posição de autoridade. A apo-
logia do reducionismo de Patrícia Churchland acaba chegando à conclusão
de “(…) que o cérebro estuda o cérebro, fazendo teorias acerca daquilo que
os cérebros fazem quando teorizam, encontrando aquilo que os cérebros
fazem quando encontram, e modificando-se sem cessar sob o efeito do
conhecimento” (SMITH-CHURCHLAND,1999, p. 609).
Observemos que a ciência é tão dividida quanto a cidade, o que é
demonstrado por Catherine Vidal (VIDAL & BENOIT-BROWAEYS, 2005),
neurobióloga do Instituto Pasteur que nos indica que numerosos estudos
de ressonância magnética revelaram as extraordinárias capacidades de
“plasticidade” do cérebro, que se configura em função da história vivida
por cada qual. E isso nos deixa uma esperança!
Ante essa subida potencial do naturalismo, devemos desenvolver um
questionamento acerca das consequências que uma ciência sem sujeito
do conhecimento pode ter sobre a construção das subjetividades huma-
nas e sobre o sujeito da psicanálise. É preciso também que distingamos
a subjetividade da questão do sujeito – o sujeito, a cujo propósito Michel
Foucault declarava: “O sujeito, uma coisa complexa, frágil, da qual é tão
70

difícil falar, e sem a qual não podemos falar” (FOUCAULT, 1994, p. 205).
A teoria lacaniana do sujeito tem grande utilidade para nós aqui.
Como é sabido, Lacan fez do sujeito cartesiano o pressuposto do incons-
ciente (LACAN, 1966, p. 839). Ele encontrou seu principal ponto de apoio no
cogito cartesiano. Isso lhe permitiu propor a noção de “sujeito da ciência”
(MILNER, 2002), a saber, esse “eu” [“je”] que diz “penso, logo existo”. Seria
preciso que interrogássemos a ruptura de Lacan quanto a essa concepção
do sujeito, a partir do momento em que ele iniciou sua problematização
da identidade sexuada (LACAN, 1972-73/1975). E não demorou que esse
sujeito, que não pode ser reduzido ao “eu” [“je”] do enunciado, se ma-
nifestasse como dividido entre o enunciado e a enunciação, o saber e a
verdade, o corpo e o gozo, a gramática e a lógica.
Em todo caso, torna-se urgente, especialmente nas nossas univer-
sidades, repensar a articulação da psicanálise com a ciência, tomando em
consideração essa evolução de uma parte importante da ciência em direção
à naturalização do espírito. É esse trabalho de pesquisa que nos propomos
a conduzir ao interrogar os modos de produção de subjetividade a partir da
filosofia, da ciência e da psicanálise, e em relação a uma concepção psicana-
lítica do sujeito como efeito de seu relacionamento ao logos. Estou pensando,
por exemplo, no trabalho de J. Butler sobre o performático (BUTLER, 2008).
Esse sujeito está estreitamente ligado ao corpo. Para Freud – e este
é um ponto que nos parece crucial aqui – cabe a cada sujeito fazer um
verdadeiro trabalho de desnaturalização, para evitar tornar-se o “joguete
das forças naturais” (FREUD, 1927/1995, p. 19). Esse trabalho depende
da responsabilidade do sujeito, em que se põe em jogo sua sexuação pelo
desejo e pelo gozo. A psicanálise deve levar por adiante seu esforço de
pensar a desnaturalização do sujeito num ambiente científico em larga
medida conquistado pelo naturalismo – contra isso Emmanuel Levinas
(1934/1977)1 já nos alertava desde 1934, e em seguida os trabalhos de
Georges Canguilhem sobre Le cerveau et la pensée (1980/1993).2

1 Cito-o aqui: “Se os materialistas confundiam o eu [moi] com o corpo, faziam-no à custa de
uma negação pura e simples do espírito” (LEVINAS, 1934/1977, p. 16).
2 Cito-o aqui: “Ao longo do século XIX o Eu [Je] penso foi diversas vezes recusado ou refutado,
em favor de um pensar sem sujeito pessoal responsável” (CANGUILHEM, 1980/1993, p. 17).
71

A frenologia pôde afirmar que “Descartes é seu cérebro”, o que que-


reria dizer que Descartes é o envoltório de um cérebro que pensa em seu
nome – resta-nos propor a questão de quem é, ou o que é, que diz “Eu”
[“Je”]. É essa questão de Georges Canguilhem que, mais do que nunca,
é atual num avanço da ciência que dá destaque a Lichtenberg com seu
aforismo “isso pensa como isso brilha”.
É preciso assim que tratemos a pergunta de Canguilhem: será que
a máxima de Freud “Wo Es war soll Ich Werden” pode ser desviada para
uso das neurociências? Será que um “penso” pode advir a um “isso”,
isto é, o cérebro? (Id., ibid., p. 18). As teorias eletrônicas e químicas da
consciência vêm arrebentar como as ondas, e é frequente que fiquem
encalhadas, nessa questão do “Eu” [“Je”]. A psicanálise tem uma teoria
do sujeito. Lembremos que Lacan teve a habilidade de instaurar o ser
do “eu” [“je”] no cerne da experiência psicanalítica, e que deduziu as
consequências da recusa do pensamento do ser quanto à relação do
saber com a verdade.3
Em sua obra Idéologie et rationalité dans l’histoire des science de la
vie, Georges Canguilhem determina que a ideologia designa “todo sistema
de ideias produzido como resultado de uma situação condenada inicial-
mente a desconhecer sua relação real com o real. A ideologia consiste no
deslocamento do ponto de aplicação de um estudo” (CANGUILHEM, 1993).
Esta definição nos leva a interrogar-nos a propósito do que é um “fato” para
a ciência. Dito de outra maneira, será que uma imagem médica do córtex
é um “fato”? A. Koyré é categórico quanto a este ponto. “Os ‘fatos’ devem
ser ordenados, interpretados, explicados. Em outras palavras, só quando
é submetido a um tratamento teórico é que um conhecimento dos fatos
se torna uma ciência” (KOYRÉ, 1973, p. 290). Essa relação entre o “fato” e
sua interpretação pode ser conduzida até o reconhecimento da estrutura
da linguagem no “fato” científico (HOFFMANN, ??). Lacan mostrou isso a
propósito da experimentação de Pavlov (LACAN, 1967). Podemos então
constatar que não há relação “real com o real” sem a intermediação da

3 “O sujeito articula a questão ‘o que sou eu ali?’ a propósito de seu sexo e de sua contingência
no ser” (LACAN, 1966, p. 549).
72

linguagem, e que o cientismo se assenta totalmente nesse desconheci-


mento (LECOURT, 2001).
As coisas se passam de outra maneira quanto ao real da psicanálise,
que é constituído pela descoberta freudiana de um inconsciente que é o
lugar do recalcamento do desejo, e cujo objeto é essencialmente perdido
Esse desejo que não pode ser articulado, a menos que seja para depreciá-
lo como se requer, nem por isso fica menos articulado pela linguagem em
que está significado na relação com o Outro. Assim, um sujeito que nunca
alcançou o objeto de um processo, um presente, por exemplo, vai passar
sua vida correndo atrás desse objeto que nunca possuiu, e esse objeto só
existirá a título de uma falta em seu envoltório simbólico. Consequente-
mente, podemos reconhecer que o objeto do desejo não é senão a falta
que o causa e que lhe confere sua verdade. Em Cap au pire (BECKETT,
1991), Beckett se perguntava o que ainda poderia ser esperado no final de
uma vida quando já se desperdiçou tudo. Sua resposta, fustigante de tão
verdadeira, é que é possível ainda esperar desperdiçar melhor.
Essa articulação do desejo à perda não faz senão confirmar o real
do inconsciente que “se manifesta por um furo cavado pelo simbólico no
imaginário” (SAFOUAN, 2001, p. 26). Não há senão o simbólico que per-
mite referenciar uma falta como, por exemplo, um volume de Em busca do
tempo perdido, de Proust, numa biblioteca. Dessa maneira, a linguagem
é a condição do inconsciente. O sujeito da psicanálise, ou o sujeito do
inconsciente, é um sujeito que só pode encontrar sua verdade num lugar
Outro (o “tesouro depositado” de Ferdinand de Saussure).
Uma concepção estrutural da linguagem como sistema que significa
o desejo inconsciente pressupõe um sujeito – um sujeito que não é senão
o efeito dessa relação com o Outro. Longe da ideologia da autonomia de
um sujeito eletrônico ou biológico, o sujeito da psicanálise é forjado numa
“linguagem humana que é fundamentalmente uma função semântica da
qual as explicações de tipo fisicalista nunca conseguiram dar conta. Falar é
significar, dar a entender, porque pensar é viver dentro do sentido” (CAN-
GUILHEM, 1980/1993, op. cit., p. 27). Não poderia haver melhor maneira
de resumir a nossa proposição do que com essa tomada de posição tão
73

clara de Canguilhem. A Autobiografia de um computador seria o nec plus


ultra disso que se poderia esperar de um sujeito eletrônico e biológico,
um sujeito autônomo, que seria “fora da transferência”.
Podemos então tranquilamente avaliá-lo como um computador. Eis
aí o ideal científico contemporâneo, a quem se pede que organize sua ação
debaixo da autoridade de um novo imperativo kantiano: “Age de tal maneira
que a máxima de tua ação possa servir de programa para o computador”.
Assim, podemos seguir e descobrir, graças a Canguilhem, que a avaliação
que invade a comunidade científica e social é apenas consequência de uma
forclusão do sujeito humano. É preciso igualmente que observemos que uma
ciência que perdeu sua relação “real com seu real” investe intensamente a
luta contra o sujeito que retorna no real. Encontraremos ilustração disso
no instrumental atual de reeducação dos comportamentos, conforme é
proposto pelas Terapias Comportamentais e Cognitivas.4

O antinaturalismo da pulsão freudiana


Observemos imediatamente que, ao longo de seu ensino, a partir da
ideia freudiana da descoberta do objeto como redescoberta, Lacan vai in-
sistir sobre aquilo que essa redescoberta introduz como desarmonia entre
o objeto encontrado e o objeto buscado. A noção lacaniana de falta pode
parecer-nos, dessa maneira, mais familiar, ainda mais que, para Lacan, o
objeto já está aprisionado num “material significante” que estrutura o pré-
genital e que vai organizá-lo no Édipo. Efetivamente, como compreender
de outra maneira a noção de incorporação sem essa “transmissão signifi-
cante” do objeto? Em suma, “a sexualidade fala”, diz Lacan em “A instância
da letra”, em 1957, e basta acrescentar, como ele o faz em 1975 em Yale a
propósito dos “Três ensaios: “... nossa língua materna” (LACAN, p. 14).

4 Cf. o relatório do INSERM (2004) sobre a avaliação das psicoterapias: “As terapias comporta-
mentais e cognitivas representam a aplicação, à prática clínica, de princípios que provêm da
psicologia experimental. Inicialmente essas terapias se fundavam nas teorias da aprendiza-
gem: condicionamento clássico, condicionamento operativo e teoria da aprendizagem social.
Depois tomaram como referência as teorias cognitivas do funcionamento psicológico, em
especial o modelo do tratamento da informação. Os princípios do condicionamento clássico
(correspondente ou pavloviano) se baseiam na noção de que um determinado número de
comportamentos resultam de um condicionamento por associação de estímulos (...)”. Cf.
Thiebierge & Hoffmann, a propósito do relatório sobre psicoterapias.
74

No quarto prefácio aos seus “Três ensaios”, Freud, em 1920, insiste na


oposição crescente que “o papel do fator sexual na vida psíquica normal e
patológica” (FREUD, p.30) encontra, mesmo entre os analistas. Observemos
que no nosso mundo contemporâneo, um filósofo como Lyotard (LYOTARD,
1954/2004, p. 69) se insurgia contra a ideia de uma causalidade sexual. Sa-
bemos o quanto Foucault usou sua autoridade para denunciar o discurso
sobre o sexo que estabeleceu historicamente a ligação entre a sexualidade,
a subjetividade e a obrigação de verdade (BIRMAN, 2007). Uma tríade que
ele lança na conta da psicanálise como herdeira dessa scientia sexualis
que busca a verdade no fundo do sexo; e que seria suposto querer dizer o
verdadeiro sexo e a identidade pelo emprego da norma, acompanhado de
uma prática da confissão (DAVIDSON & GROS, 2004).
Eu gostaria de enfatizar um segundo ponto desse prefácio, o de seu
final, em que Freud aproxima sua concepção alargada da sexualidade ao
Eros (em itálico no texto) do divino Platão. Freud utiliza essa referência
ao Banquete logo de saída a propósito da pulsão sexual, para ilustrar o
movimento de separação do ser em relação a si mesmo e de sua união
no amor. Ele vai se ocupar novamente disso no capítulo VI de “Além do
princípio do prazer”, a propósito da “necessidade de restabelecer um es-
tado anterior” (FREUD, 1920/1982, p. 106). Safouan fez a crítica do mito
de Platão em sua obra sobre a sexualidade feminina. Ele fala do tropeço
dessa teoria que consiste em introduzir uma divisão real com o objeto na
causa do reencontro do objeto, uma vez que “a divisão primordial é a do
sujeito em busca de sua identidade perdida” (SAFOUAN, 1976, p. 142-143).
Quanto ao real, este deve ser apreendido no caráter essencialmente perdido
do objeto do desejo (Id., 2001).
Freud fornece uma excelente recapitulação de sua evolução no final
da obra. Partimos, diz ele, das aberrações da pulsão sexual em relação ao
objeto e ao seu alvo; por objeto sexual, é preciso entender a pessoa da
qual emana a atração sexual; e por alvo, o ato ao qual a pulsão impele. Os
desvios – o que pressupõe a ideia de uma norma – são estudados a partir
dos trabalhos de Krafft-Ebing e Ellis. Freud leva a questão acerca do caráter
inato ou adquirido desses desvios. Foi o estudo dos neuróticos, próximos
75

dos saudáveis, que permitiu a Freud, como ele próprio o diz, descobrir uma
inclinação para todas as perversões no ser humano; donde, sua famosa
conclusão: “A neurose é o negativo da perversão”. Falar de predisposição
às perversões torna a evocar essa predisposição como original e universal
a toda a sexualidade humana. A pulsão sexual é agora ligada à descoberta
da sexualidade infantil perversa. Vai se desenvolver sob o efeito de mo-
dificações orgânicas e de inibições psíquicas como o pudor, a repulsa, a
compaixão e as construções sociais da moral e da autoridade. Reconhece-
se o efeito do recalcamento nesse desenvolvimento sexual qualificado por
Freud como normal.
Dessa maneira, não é de surpreender que se encontre um laço entre
as inclinações perversas em negativo no neurótico, e as perversões ditas
positivas. Não há senão a diferença da fixação e da regressão ao infantil,
o que, como Freud acrescenta em 1915, torna as perversões acessíveis à
terapia psicanalítica (FREUD,1905, op. cit., p. 181). Esse resultado está
bastante distante da invenção, no século XIX, do “perverso como um gênero
de homem, do qual essas perversões específicas são as espécies”. Caberá
a Foucault denunciar a redução do homossexual a uma espécie seguindo
a equação: o homossexual é um perverso, e um perverso é um doente. A
esse propósito pode-se ler o excelente trabalho de Hacking, no Collège de
France, sobre as classificações. Em suma, o estudo da homossexualidade
permitiu à psicanálise desnaturalizar o sexo.
Freud conclui seu primeiro capítulo sobre a inversão pela ruptura
de um vínculo supostamente natural entre a pulsão e o objeto. Ademais,
não é o objeto que determina a excitação pulsional. A pulsão é indepen-
dente de seu objeto; a “soldagem” entre eles é que é anormal. A psicanálise
pode, assim, manter seu lugar no debate entre as teses essencialistas, que
procuram o gene gay, e as teses dos construcionistas. Ainda mais que Freud
acrescenta em 1915 que:

A pesquisa psicanalítica se opõe com a máxima determinação


à tentativa de discriminar os homossexuais dos outros seres
humanos como um grupo particularizado... Todos os homens
76

são capazes de fazer uma escolha homossexual e [...] efetiva-


mente fizeram essa escolha no inconsciente (Id., ibid., p. 51).

E o que será feito da pulsão sexual nos neuróticos? A etiologia das


neuroses se assenta sobre forças pulsionais sexuais. Eis o que Freud afir-
ma ao sustentar sua hipótese por seus vinte e cinco anos de experiência.
Os sintomas são substitutos de desejos recalcados. Observemos que, a
propósito do sintoma, Freud fala de transcrição de processos psíquicos
investidos de afeto. Observemos que o sintoma é, de saída, uma mensagem
inconsciente a ser decifrada e um substituto do gozo, à medida que esses
desejos recalcados aspiram a uma “descarga”. O sintoma extrai sua força da
fonte da pulsão sexual. O desencadeamento da doença sobrevém quando
o conflito psíquico pulsional, aprisionado entre a recusa e a exigência de
satisfação, se vê confrontado às exigências reais da sexualidade a partir da
puberdade. A solução neurótica é então a fuga para a doença; o pudor, a
repulsa e a moral sempre representam aí seu papel. Qual é o sentido dessa
fonte sexual das neuroses? Encontraremos a resposta na ideia freudiana
de desenvolvimento da sexualidade, e especialmente do desenvolvimento
da sexualidade infantil, o que é uma tese antinaturalista.
Essa questão da etiologia sexual das neuroses valerá para Freud o
esforço de um novo texto em 1905: “Meus pontos de vista sobre o papel
desempenhado pela sexualidade na etiologia das neuroses” (FREUD,
1905/1984), que se intercala, nas Obras completas, entre os “Três ensaios” e
o caso “Dora”. Nesse texto Freud traz uma “correção” (o termo é dele) à sua
teoria sexual das neuroses, pela descoberta da fantasia. Daqui por diante
“o infantilismo da sexualidade” vai substituir os “traumatismos sexuais
infantis”. Com facilidade compreende-se que a fantasia se edifica na puber-
dade a partir das recordações da infância, e se converte sem mediação em
sintoma – temos aí não apenas a causalidade mas igualmente a “textura” da
neurose. A novidade está nesse progresso que vai da causação à natureza
(Wesen) das neuroses (Id., ibid., p. 121). Poderíamos traduzir esse desloca-
mento freudiano pela distinção feita por Leibniz entre a definição real, isto
é, causal, e a definição nominal. O recuo da causalidade traumática sexual
77

infantil e acidental dá lugar àquilo que Freud chama de “constituição sexual”,


isto é, à pulsão sexual, como ele já tinha definido nos seus “Três ensaios”.
O efeito patogênico provém daquilo que essa pulsão pode representar de
insuportável para um sujeito. O recalcamento encontra assim seu lugar na
etiologia neurótica como reação singular à atividade sexual infantil. O caráter
necessariamente insuportável da sexualidade infantil aproxima o neuróti-
co do normal, e a história sexual da infância se torna a história do sujeito
neurótico. O necessário deve ser compreendido na oposição a acidental.
Como acabamos de constatar, Freud concede grande importância
à puberdade em sua teoria das neuroses. É na puberdade, ocasião em que
se exterioriza o recalcamento sexual infantil ante as exigências do real da
adolescência, que se produz a entrada na neurose. Freud se baseia em suas
análises de pacientes histéricos para indicar que essa entrada na neuro-
se é resultado de um conflito entre a libido e o recalcamento sexual, e o
sintoma é a formação de compromisso desse conflito. Descobrimos em
Freud, dessa maneira, uma abordagem psicanalítica da adolescência, uma
adolescência que permanece articulada ao infantil por meio da fantasia
(cf. HOFFMANN, 2006). Isso não escapou a Lacan que, em seu “prefácio”
ao L’éveil du printemps de Wedekind (LACAN, 2001, p. 562) nos põe na
pista de um encontro do real, que se opõe à etiologia sexual a ideia do
todo. Cito-o: “... disso que é para os rapazes o fazer amor com as moças”.
Mais do que nunca volta a caber à psicanálise continuar a interessar-
se pela sexualidade da criança e do adolescente num período em que ela
é deixada de lado pela ciência, e muito especialmente pela psicologia do
desenvolvimento. Desta que vem em seguida a Piaget, e que é dominante
hoje em dia. A sexualidade da criança não é mais objeto de pesquisa para a
psicologia do desenvolvimento cognitivo da criança (HOUDÉ, 2004). Freud
não podia deixar de se interessar pela questão da norma depois de sua
descoberta de uma sexualidade infantil “perversa polimorfa” que derruba
as fronteiras entre a perversão, a neurose e a normalidade. Ele estabelece
uma nova relação entre saúde, perversão e neurose, na qual a norma apare-
ce como a resultante (a consequência) “do recalcamento de determinadas
pulsões parciais e componentes da disposição infantil de cada um, e da
78

subordinação de todas as outras ao primado das zonas genitais” (FREUD,


op. cit., p. 119-120). Agora temos a ideia de uma norma que é consequ-
ência do recalcamento, isto é, de uma perda de gozo que é constitutiva
do inconsciente. Uma norma da qual o desejo será o efeito, como Safouan
desenvolve em seu livro La parole ou la mort (SAFOUAN, 1993).
Desde então as perversões, para Freud, correspondem a uma per-
turbação dessa amarração pelo caráter excessivo de uma ou outra dessas
pulsões parciais, e as neuroses sofrem de um recalcamento extensivo
demais da libido. Assim, a neurose pode ser considerada como o “negati-
vo” da perversão. Um “negativo” que é produzido pelo recalcamento das
pulsões perversas que sempre produzem sintomas.
Freud pôde encerrar sua apresentação etiológica pondo em itálico
sua conclusão: os sintomas representam a atividade sexual (fantasística) dos
doentes. Naquilo que nos diz respeito, resta a enfatizar no texto de Freud
que, dentre os danos ocasionados à função sexual, é preciso contar em pri-
meiro lugar a cultura e a educação. Esse mal-estar se exprime, para Lacan,
no grito de um não é isso, sempre sentido na experiência libidinal marcada
pela discordância entre o objeto encontrado e o objeto procurado, lá onde
o gozo obtido se distancia daquele que é esperado (LACAN, 1975, p. 101).
Numa derradeira evocação dos “Três ensaios”, em seu seminário Encore (Id.,
ibid.), Lacan atribui a Freud um dizer que articula a lei à repetição, o que
podemos compreender sem o desenvolver mais, a partir dessa discordância
dos gozos que introduz o sujeito à experiência do desperdício, de onde se
produz o objeto que causa seu desejo e que sustenta o Outro gozo; é isso que
fará Helène dizer, no Fausto de Goethe: “Quem quer comigo gozar?” Lacan
acrescenta, muito justamente, que essa repetição é a prova da existência de
Freud e que, dentro de um certo número de anos, vai ser preciso haver uma
(Id., ibid., p. 101). Cabe aqui lembrar Beckett mais uma vez.

Conclusão
Podemos concluir nosso assunto acerca da etiologia sexual das neu-
roses lembrando que a sexualidade é humana por seu aprisionamento no
discurso. O que lhe tira toda a co-naturalidade a um objeto natural, e isso
79

até mesmo no coito. Só na psicose o sujeito encontra um tal objeto real,


porquanto lhe é impossível reconhecer um objeto de desejo na represen-
tação (SAFOUAN, 2001, op. cit.).
Resta, para nós, levar a sério a advertência de Canguilhem acerca
da utilização desta equação “pensamento = cérebro” para fins normativos
numa sociedade conservadora ou repressiva. Temos também que propor
a nós mesmos a questão do que seria o pensamento de Canguilhem hoje
em dia, ante esse desenvolvimento das neurociências. Tudo leva a pensar
que a resposta tem que se orientar a partir de sua afirmação de que não
existe “patologia objetiva” (CANGUILHEM, 1972, p. 153).
Em suma, temos a opção entre uma concepção da medicina de
um Leriche, para quem ela é antes de tudo um caso de conhecimento em
que a prática se reduz à aplicação do universal da norma ao particular
do sintoma. Mas é a norma que triunfa. Podemos inscrever aqui nossa
concordância com a crítica atual da totalidade, e consequentemente do
universal da razão e consequentemente do poder. Crítica introduzida
por Rosenzweig (MOSÈS, 2008) na esteira do hegelianismo de Verdun. A
questão de Foucault sobre o lugar da loucura nas meditações de Descartes
tem a mesma inspiração.
Por outro lado, temos um Canguilhem que resolutamente nos
conduz em direção a uma prática da experiência, que se distingue da ex-
perimentação por uma ética da responsabilidade, ele apela a Freud sobre
esse ponto (CANGUILHEM, 1959/2002).
Resumindo, basta que retenhamos essa linda metáfora da “atitude”
com a qual Canguilhem designa a doença como “atitude de vida”, man-
tendo juntos o defeito e a maneira como o sujeito reage a este. Passamos
assim da aplicação da norma para a normatividade, a maneira pela qual
o sujeito se apropria da norma. Essa filosofia do equívoco que permite
repensar o sujeito, conforme Foucault indica, não deixa de nos lembrar
a noção lacaniana do sinthome (LACAN, 2005), na qual Lacan antecipa a
possibilidade, para o ser humano, de encontrar sua “atitude” através de
uma ficção, não obrigatoriamente edipiana, que lhe permita sustentar sua
subjetividade qualquer que seja a estrutura desta.
80

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Narcisismo e pulsão de morte
ou o que resiste ao laço com o Outro
Cláudio Oliveira (UFF)

Introdução
A tese que Freud defende em Psicologia das massas e análise do eu
(1921) é a de que “os laços libidinais são o que caracteriza um grupo”. Freud
acredita que o laço libidinal com outras pessoas introduziria um limite
ao narcisismo. Essa referência ao narcisismo, em Psicologia das massas,
parece indicar que o texto metapsicológico que Freud tem como base na
constituição desta sua teoria do laço social seja Introdução ao Narcisismo
(1914), mesmo que Psicologia das massas tenha sido escrito logo depois de
Além do princípio do prazer (1920). A oposição fundamental, em Psicologia
das massas, é entre libido e narcisismo, enquanto a oposição fundamental,
por exemplo, em outro texto que escreverá mais tarde sobre o laço social,
O mal-estar na civilização (1930[1929]), é entre libido e pulsão de morte,
levando já em consideração a novidade metapsicológica introduzida em
Além do princípio do prazer (1920). Essa constatação poderia nos fazer crer
que Freud escreve, a partir de duas teorias metapsicológicas distintas, duas
teorias distintas do laço social. Se adotarmos a nomenclatura lacaniana,
poderíamos afirmar, por exemplo, que, em Psicologia das massas, Freud
pensa um fenômeno imaginário, a formação de grupo e o narcisismo a ela
inerente, como aquilo que faz objeção ao laço social. É nesse sentido que
84

o narcisismo se oporia à libido. Tratar-se-ia, nos termos de Lacan, de uma


oposição do imaginário ao simbólico. Já em O mal-estar na civilização,
Freud pensaria, a partir da noção de pulsão de morte, em uma objeção real
ao laço social. Tratar-se-ia, de novo nos termos de Lacan, de uma oposição
do real ao simbólico. Esta é uma hipótese para a solução do problema
aqui colocado. Sem negá-la totalmente, gostaria, no entanto, de apontar
para outra direção: em que medida o narcisismo a que Freud se refere em
Psicologia das massas como objeção ao laço social reduz-se ao campo
do imaginário? Em que medida não há nessa objeção ao laço social algo
de real? Em que medida Freud, nesta obra, não explora um sentido mais
primitivo de narcisismo que o aproxima da noção de pulsão de morte?
A dificuldade para a qual devemos atentar se deve ao fato de Psicolo-
gia das massas ter sido escrito entre as chamadas duas tópicas freudianas.
Nesse sentido, Psicologia das massas oscila entre duas metapsicologias,
sobretudo entre duas teorias da pulsão, aquela descrita em Introdução ao
narcisismo e aquela descrita em Além do princípio do prazer. Freud tentou
em diversas ocasiões unificá-las. Mas aqui, em Psicologia das massas, ele
se vê ainda dividido entre manter-se fiel ao conceito de narcisismo e ado-
tar o recém-criado conceito de pulsão de morte. Na verdade, Psicologia
das massas é uma obra que se realiza num encontro de águas que não
se misturam muito bem e não formam ainda um único curso. Por isso, é
preciso ler Psicologia das massas à luz tanto da metapsicologia de Intro-
dução ao narcisismo quanto da metapsicologia de Além do princípio do
prazer. Teremos que avaliar em que medida os conceitos de narcisismo e
o de pulsão de morte se confundem em Psicologia das massas. Sendo esse
o escopo deste trabalho, passemos à leitura da obra.
Logo na abertura de Psicologia das massas e análise do eu, Freud
questiona qualquer possibilidade de estabelecer entre a psicologia in-
dividual e a psicologia social uma fronteira nítida. Ele fala de uma perda
de nitidez no contraste entre elas, quando examinadas mais de perto. Na
medida em que a psicologia individual trata, segundo ele, dos “caminhos
pelos quais ele [o homem] busca alcançar satisfação para suas moções
pulsionais”, ela não pode desprezar as relações do indivíduo singular com
85

os outros indivíduos, pois, como ele lembra, “na vida psíquica do indivíduo
o Outro é regularmente levado em consideração”.1
Cabe aqui acentuar dois aspectos dessas afirmações. Em primeiro
lugar, Freud pensa o laço social a partir do problema econômico: o da sa-
tisfação da pulsão. A teoria freudiana do laço social é, portanto, uma “teoria
econômica do laço social”, o que significa dizer que ela é uma “economia
política”, na medida em que se tome a expressão “teoria econômica do
laço social” como equivalente à expressão “economia política”. A segunda
coisa para a qual devemos chamar a atenção nessas afirmações iniciais
de Psicologia das massas é para o fato de que Freud entende que o Outro
tem necessariamente um lugar na resolução do problema econômico do
indivíduo. E é precisamente por isso que esse problema econômico é um
problema político. Se o problema fundamental do indivíduo é o da satis-
fação das suas moções pulsionais, o que Freud lembra é que, no caminho
que leva a essa satisfação, o indivíduo sempre passa pelo Outro. Um Outro,
no entanto, que não lhe é externo, mas interno; um Outro que ele encontra
no interior de sua própria vida psíquica. Um Outro psíquico, portanto.
É preciso atentar, portanto, para o fato de que, nesta introdução a
Psicologia das massas, o que Freud quer marcar é que o Outro pertence à
vida psíquica ou, dito em outros termos, que o social constitui o indivi-
dual e, nesse sentido, o problema da satisfação pulsional é um problema
político. Como nos lembra Freud, é desde o início [daher Von Anfang], e
não apenas depois, num momento posterior, que a psicologia individu-
al, “nesse sentido ampliado, mas inteiramente justificado, é também, ao
mesmo tempo, psicologia social”.2 Freud reivindica, em função disso, para
todas aquelas relações que costumamos pensar como da ordem do privado
(“as relações de um indivíduo com os pais, com os irmãos e irmãs, com

1 “Im Seelenleben des Einzelnen kommt ganz regelmässig der Andere (…) in Betracht”,
Freud, S. « Massenpsychologie und Ich-analyse ». In: Gesammelte Werke. Band XIII. Frankfurt
am Main: Fischer Taschenbuch Verlag, 1999, p. 73. [Ed. Bras.: Freud, “Psicologia de Grupo e
Análise do Ego”. In: Edição Standard Brasileira das Obras Psicológicas Completas de Sigmund
Freud. Volume XVIII. Rio de Janeiro: Imago, 1996, p. 81]. A Ed. Bras. traduz esta passagem
por “Algo mais está invariavelmente envolvido na vida mental do indivíduo”, reduzindo “o
Outro” [der Andere] do texto original a “algo mais”.
2 Freud, “Massen Psychologie und Ich-Analyse”. In : op. Cit., Band XIII, p. 73 [Ed. Bras.: “Psi-
cologia de Grupo e análise do ego”. In: op. Cit., Volume XVIII, p. 81].
86

o objeto de seu amor, com o professor e com seu médico”)3 o estatuto de


fenômenos sociais. Em outras palavras, não cabe mais a distinção entre
individual e social ou entre privado e público. Toda relação com o Outro
é uma relação social e, portanto, da ordem do Público. Freud propõe, em
lugar da distinção entre individual e social, privado e público, a distin-
ção entre atos psíquicos narcisistas e atos psíquicos sociais, mas ambos
incidindo dentro do domínio da psicologia, isto é, dentro do campo do
psíquico, isto é, dentro do campo do social. O campo social, nesse sentido,
pertence ao campo psíquico, não coincidindo com o mundo externo, pois
o mundo externo seria externo tanto ao psíquico quanto ao social. Não
existe, portanto, o indivíduo, de um lado, e a sociedade, de outro, mas o
narcisismo, de um lado, e a libido, de outro. Se há algo de verdadeiramen-
te externo, esse algo é a pulsão, na verdade, uma exterioridade interior:
isso que Lacan grafou com o termo extimidade. Há algo no indivíduo que
escapa a esse Outro que o habita e constitui.
Se há, portanto, algo que se opõe ao social, não é o individual ou o
privado, mas os processos que Freud propõe que sejam descritos como
“narcisistas” ou “autistas”, se quisermos tomar a nomenclatura de Bleuler,
à qual Freud se refere na passagem, e que nos parece, aqui, ainda mais
exata. Em que consistem esses processos? No fato, diz-nos Freud, de que
“a satisfação das pulsões se subtrai, se esquiva [sich entzieht] da influência
de outras pessoas ou renuncia, prescinde [verzichtet auf] dela”.4 Em outras
palavras, há uma satisfação da pulsão que não passa pelo Outro. É nesse
sentido que talvez a denominação de Bleuler, de “autismo”, para caracte-
rizar esses processos seja ainda mais adequada do que a de Freud, a de
“narcisismo” (na medida em que o “narcisismo” remete sempre a certo
fascínio pela imagem do eu como nos é descrito na lenda de Narciso).
Trata-se propriamente de um “autismo”, não no sentido clínico do termo
(embora ele não seja sem relações com o que aqui se chama de autismo),
mas no sentido de uma “mesmismo”, de uma mesmidade (do grego au-
tós, “mesmo”) que não conhece a alteridade do Outro. Essa mesmidade

3 Id. Ibid. [Id. Ibid.].


4 Id. Ibid., p. 73 [Id. Ibid., p. 81].
87

representaria a pulsão em estado “puro”, a mesmidade do real, no sentido


do que retorna sempre no mesmo lugar. É óbvio que tal mesmidade só
miticamente pode ser entendida como estando na origem, antes do Outro
(um modo de caracterizá-la ao qual Freud cede em alguns momentos). Ela
deve ser entendida, antes, como um resto não capturado pelo Outro. Algo
que resiste ao laço social e, como tal, pressupõe esse laço. Essa mesmidade
é, nesse sentido, um produto da alteridade, um produto do laço social, na
medida em que a alteridade produz o que não pode ser alterado, o que
resiste a qualquer alteração. Nós, como Bleuler, preferíamos chamar isso
de autismo: para marcar essa mesmidade que não conhece alteridade, para
marcar esse mesmo que não conhece o outro. Freud, no entanto, preferiu
falar de narcisismo. E é exatamente por isso que, em Freud, narcisismo é
um termo equívoco, pois se refere tanto a esse autismo, a essa mesmidade
não alterável, quanto à fascinação da imagem do eu, àquilo que estamos
mais acostumados a chamar de narcisismo. Teríamos então um narcisis-
mo mais do lado do real, o “autismo”, e um narcisismo mais do lado do
imaginário, aquele que mais habitualmente chamamos de “narcisismo”.
Podemos pensar que esse segundo narcisismo é uma versão imaginária
do narcisismo real, o primeiro, que é, na verdade, um autismo.
É importante notar que, embora fale em narcisismo, Freud, em
nenhum momento, nessa introdução de Psicologia das massas, fala de
Eu. Não se trata de um narcisismo do Eu, a não ser que pensemos o Eu tal
como ele é descrito no primeiro capítulo de O mal-estar na civilização:
um puro eu de gozo (assim traduzo a expressão alemã, que encontramos
nesse texto, ein reines Lust-Ich),5 que, como tal, não conhece nenhuma
alteridade, nada que se lhe oponha. Esse “sentimento primário do eu”
[dieses primäre Ichgefühl] que se caracterizaria pela ausência de limites
[Unbegrenztheit] seria exatamente o que retornaria no que Romain Rolland,
o teólogo amigo de Freud, chamou de “sentimento oceânico” e que seria,
ainda segundo Romain Rolland, a verdadeira fonte das necessidades reli-
giosas. Freud não concorda com seu amigo. Ele acha que a verdadeira fonte

5 Freud, “Das Unbehagen in der Kultur”. In: op. cit., Band XIV, p. 424 [“O mal-estar na civili-
zação”. In op. Cit., Volume XIX, p. 76].
88

das necessidades religiosas é o sentimento de desamparo que faz apelo ao


Pai. Freud desconhece, ao não concordar com seu amigo, ao não aceitar
que tal sentimento possa estar na base de uma prática religiosa, que, para
além das religiões do Pai e da Lei (fundadas pelo judaísmo), para além das
práticas mágicas que ele vê como antecedentes da religião do Pai (e que
se fundam numa identificação imaginária entre homens e deuses), Freud
desconhece, ao não aceitar os argumentos de seu amigo teólogo, que há
religiões do gozo ou, dito de outro modo, religiões para as quais o Pai não
é nada e que, por isso mesmo, bem poderiam ser chamadas de religiões
da Mãe ou da deusa Mãe. Mas propriamente, no entanto, essas religiões
seriam, se partimos da ideia do sentimento oceânico, religiões de retorno
àquele puro eu de gozo, de retorno a esse autismo primário. Como teólogo
das religiões indianas, Romain Rolland sabe muito bem disso. Podemos
dizer que, se as práticas mágicas visam a uma união imaginária com o outro
divino, num jogo de identificações puramente mimético, numa busca de
superação imaginária da divisão constitutiva do sujeito que a religião do
Pai vem fundar, as religiões orientais visam um retorno para aquém dessa
divisão por um viés, ao menos pretensamente, não imaginário, mas real.
A mística, mesmo a ocidental, seria uma prática religiosa desse tipo. A
mística é sempre uma experiência do divino como gozo.
Não cabe, portanto, falar de narcisismo, nas páginas iniciais de
Psicologia das massas, nos termos em que nos acostumamos a falar de
narcisismo, sobretudo depois da tópica do imaginário de Lacan: narcisismo
como investimento de uma imagem, a do eu, ou de uma imagem que a
substitui, o ideal do eu, substituição de um narcisismo primário por um
narcisismo secundário. Todos esses aspectos, obviamente, não são criados
por Lacan em sua leitura, mas já se encontram em Freud, em Introdução
ao narcisismo, e Lacan, como ninguém, apenas nos ensinou a lê-lo de
modo ainda mais preciso. Mas, mesmo em Introdução ao narcisismo, a
questão do narcisismo é desenvolvida, num primeiro momento, de modo
que a questão do investimento em um eu-ideal e, posteriormente, em um
ideal do eu, ainda não se coloca. Mesmo em Introdução ao narcisismo há
um primeiro narcisismo descrito antes deste segundo. O narcisismo é, de
89

início, em Introdução ao narcisismo, apenas um “egoísmo”, o egoísmo da


pulsão, o que é algo bem diferente do “egoísmo do ego”. É desse “egoísmo
da pulsão”, que estamos pensando aqui como “autismo”, que Freud nos
fala no início de Introdução ao narcisismo: “o narcisismo”, diz ele, “não
seria uma perversão, mas o complemento libidinal do egoísmo próprio da
pulsão de autoconservação, egoísmo que, em certa medida, corretamente
pressupomos estar presente em todos os seres vivos”.6 É certo que Freud fala
aqui em pulsão de autoconservação, do mesmo modo que falará também,
depois, de autoerotismo. Mas o mais importante a ser destacado é que
esse narcisismo primário não pode ainda ser caracterizado como libido, a
rigor, nem como libido do eu, mas apenas como pulsão do eu.7 Como ele
mesmo afirma, há uma “energia não sexual pertencente às pulsões do Eu”.8
Mas esse Eu ainda não é uma unidade chamada Eu e Freud insiste, aqui,
como em toda a sua obra, em afirmar que “é uma suposição necessária a
de que uma unidade comparável ao Eu não esteja presente no indivíduo
desde o início”;9 ou seja, as pulsões do Eu não são do “Eu”. Pois o Eu não
está desde o início. Ao mesmo tempo Freud afirma que, “todavia, as pulsões
autoeróticas estão presentes desde o início”.10 Chamá-las de autoeróticas,
é verdade, leva a contrassensos na medida em que, como o próprio Freud
afirma, esse narcisismo primário não é constituído de energia sexual. O
narcisismo primário é assexuado. O que nos torna claro, mais uma vez,
que o termo narcisismo em Freud é equívoco.
Ora designa esse narcisismo primário cuja versão secundária é o
retorno como libido do Eu que Freud reconhece na psicose e, em certa
medida, também na neurose, enquanto desinvestimento pulsional dos
objetos. Libido do Eu já pressupõe a divisão entre o Eu e os objetos. Li-

6 Freud, “À guisa de introdução ao narcisismo”. In: Escritos sobre a psicologia do inconsciente.


Volume I. Rio de Janeiro: Imago, 2004. p. 97.
7 Id. Ibid., p. 99: “Assim, a respeito da distinção das diferentes energias psíquicas, podemos
dizer que, no princípio, as energias coexistem no estado do narcisismo e que são indiscer-
níveis para uma análise mais superficial. Somente quando passa a ocorrer um investimento
nos objetos é que se torna possível distinguir uma energia sexual, a libido, de uma energia
das pulsões do Eu”.
8 Id. Ibid.
9 Id. Ibid.
10 Id. Ibid.
90

bido do Eu não é, portanto, pulsão do Eu. Por outro lado, há um outro


narcisismo primário que designa o amor a si mesmo que se dirige agora
a um “eu-ideal” [Idealich] que é “o eu que é ideal” [das ideale Ich].11 É
esse narcisismo que dará origem ao narcisismo secundário na nova
forma de um ideal do eu [Ichideal]. Aqui, vale ressaltar dois elementos
fundamentais que distinguem esse segundo narcisismo do primeiro: o
fato de que esse segundo se constitui como um amor e como um amor
a um ideal ou, para dizê-lo nos termos de Lacan, como um amor a uma
imagem: o amor e o ideal são duas marcas de que estamos no plano do
imaginário. Só aqui podemos falar do eu como imagem, como objeto
imaginário, dotado de perfeição e completude, enquanto o primeiro eu,
o primário, é caracterizado como ilimitado e ao qual falta qualquer ideia
de perfeição ou completude.
De qualquer modo, e esse é o ponto para o qual queremos apontar,
são ambos os narcisismos que se apresentam como objeção ao laço social.
Digamos que, em Psicologia das massas, é o narcisismo do imaginário que
é privilegiado como objeção ao laço social nas análises que Freud faz sobre
o fenômeno de formação de grupo; e, em O mal-estar na civilização, um
narcisismo mais radical, que se mostra como pulsão de morte. Em outras
palavras, essas duas obras de Freud poderiam ser pensadas, em termos
lacanianos, como as objeções que o imaginário e o real fazem ao simbólico,
na medida em que o simbólico é a dimensão que propriamente constitui
o laço social, isso que Freud chama de “laço grupal” em Psicologia das
massas e de “civilização” em O mal-estar da civilização. Mas, em ambas
as obras, é possível mostrar como essas duas objeções acabam se con-
fundindo, apontando para uma estranha relação de proximidade entre o
imaginário e o real no confronto com o simbólico. Como se o imaginário
visasse reproduzir, via imagem, o que se produz como perda do real por
efeito do simbólico. No primeiro caso, uma superação, via imagem, da
divisão do sujeito imposta pelo simbólico; no segundo caso, uma supe-
ração no sentido de um retorno para aquém dessa divisão. Imaginário e
real desconhecem a divisão.

11 Id. Ibid. p. 112.


91

Eu poderia citar aqui duas passagens, uma do capítulo VI de Psico-


logia das massas e outra do capítulo VI de O mal-estar na civilização em
que, respectivamente, ao falar do narcisismo, Freud aponta para a pulsão
de morte e, ao falar da pulsão de morte, ele a relaciona ao narcisismo,12
mas isso me levaria a uma análise extensa dessas passagens para a qual
necessitaria de um tempo do qual não disponho aqui e, portanto, remeto-a
a outra ocasião.

12 Psicologia das massas, p. 113.


Sozinho, mas não sem os outros
Paulo Vidal (UFF)

Cheio de esperanças quanto à Revolução russa de 1917, um interlocu-


tor de Freud certa vez tentou convencê-lo do futuro radiante que aguardava
a experiência soviética com o argumento de que, aos anos iniciais de sacri-
fício e labuta ímpares, logo se sucederia uma nova era de paz e harmonia.
Freud retrucou que acabara de ser convertido pela metade ao comunismo,
pois “acreditava na primeira metade do programa” (Stavrakakis, 1999, p. 11).
Boutade cuja fundamentação conceitual se acha no trecho de O Mal-estar
na civilização (Freud, 1929) que considera ilusórios os pressupostos do co-
munismo: o homem nasce bom e é benévolo por relação ao próximo, mas
a propriedade privada corrompe a sua natureza, de tal forma que, com a
abolição da propriedade privada, o homem deixaria de ser o lobo do homem.
Já Psicologia das massas e análise do Eu (Freud, 1921) foi considerado
por muitos uma antevisão crítica dos mecanismos libidinais e identifi-
catórios que o movimento de massas fascista logo colocaria em jogo na
Europa do entreguerras. De fato, é legível na manifestação de massa nazista
filmada em O Triunfo da vontade (Riefensthal,1934), como o bigodinho
do Füher, do líder, ocupa o lugar do ideal do eu dos indivíduos, regendo
as identificações que se realizam verticalmente, de tal modo que impera
a submissão hierárquica e são abolidas as diferenças subjetivas entre os
membros da massa.
94

Uma vez que o laço horizontal entre os membros da massa decorre


da ligação vertical de cada um deles com o líder, por mais que se converse
na multidão, ninguém fala com alguém, um não fala com o outro. Todos
ecoam no fundo a mesma alienação: cada um sabe quem é, é aquele que
fala como o outro. Pois se acha fora da massa o verdadeiro interlocutor, o
líder, portador de um traço de exceção que o põe à parte. Ponto de agre-
gação da massa, o olhar do chefe, reencarnação superegoica do olhar do
pai da horda primeva reduz, portanto, o laço social a uma modalidade de
apego recíproco especular e hipnótica.
O amor ao chefe seria, portanto duplamente necessário para a
formação da massa segundo Freud (1921): primeiramente, ligando o nar-
cisismo, encadeando os indivíduos uns aos outros; e, em segundo lugar,
ligando a agressividade de uns e outros, a qual canalizaria para fora, para
o inimigo externo por exemplo. Verdade que a experiência do pânico
demonstraria: no exército, soldados que enfrentaram corajosamente o
inimigo, debandam em pânico quando tomba a cabeça do cabeça, do
general, cada um passando a se preocupar “apenas consigo próprio, sem
qualquer consideração pelos outros” (Freud, 1921, p. 123), os laços mútuos
cedendo lugar a um pavor insensato e incontrolável.
Paradoxalmente, é no pânico, portanto, momento em que o laço
amoroso com o chefe é cortado, que se revela, para Freud, a essência da
socialidade como ligação libidinal de elementos em si mesmos não sociais:
os narcisos individuais. Ao se desagregar panicamente, a massa se decom-
põe em narcisos estranhos e hostis uns aos outros, pois a apresentação
do mesmo frente ao mesmo, o surgimento do semelhante no lugar do
outro transmuta os resultados do laço comum de idolatria – somos iguais
e pacíficos porque nos reconhecemos fascinados pelo mesmo ídolo – em
relação de animosidade. Como nota Freud, os fãs se identificam entre si
graças ao amor que compartilham por um líder inatingível e que assim deve
permanecer: caso um dos inúmeros fãs de Elvis Presley repentinamente
proclamasse que ele deve ser o objeto de culto, pois na verdade é uma
reencarnação até então oculta do ídolo, provavelmente desencadearia uma
guerra entre pretendentes ao cargo de Elvis. A história contemporânea
95

está repleta de acontecimentos ou desastres semelhantes, vide o esface-


lamento da Iugoslávia pós-Tito.
Para formar uma massa basta, portanto, que dois se identifiquem
com um terceiro, de quebra um quarto será excluído. Sem nos parecer
que exagere, Freud (1929) repete que o homem é o lobo do homem, que a
comunidade tem como fundo sem fundo esse mal que nunca deixará de
ser mal-dito: o segredo do narcisismo é o gozo, o qual não leva em conta
necessariamente o outro. Seria possível, entretanto, uma política que ex-
cedesse o político no sentido freudiano, o qual procede por identificação
dos sujeitos, por definição carentes de identidade, à propriedade que os
insere num conjunto? Uma política que se diferencie tanto do coletivismo
– que cada um se dissolva no todo, se sacrificando pelas gerações futuras;
quanto do individualismo – cada um por si e que Deus se encarregue do
conjunto? Questão incontornável numa época em que a política se reduz
à administração sem expectativas dos horrores causados pela segregação
social: de um lado, o shopping; do outro, a favela.
Dito de maneira positiva, seria possível uma singularidade cole-
tiva, na qual cada um em seu nome próprio e responsabilidade chegue
a uma conclusão em comum com os outros, mas sem se dissolver nos
outros, sem se refugiar na impessoalidade do “a gente” ou no nome do
líder? Em outras palavras, um vínculo centrado naquilo que escapa a
toda identificação?
Diversamente de Freud, que construiu uma organização psicana-
lítica, a Associação Psicanalítica Internacional, cujo modelo segue ainda
a psicologia de massas artificiais como o exército ou a igreja, nos parece
que Lacan desde cedo se colocou a questão que enunciamos – de uma
singularidade coletiva –, até porque reconheceu no modo burocrático
e piramidal de funcionamento das sociedades analíticas uma causa do
estiolamento da invenção prática e conceitual entre os analistas. Afinal,
ao denominar “excomunhão” sua exclusão da Associação Psicanalítica
Internacional, não denunciou Lacan (1979, p.9) o que esta tinha de igreja?
De fato, finda a Segunda Guerra Mundial, derrotados os inimigos
do gênero humano, na falência de qualquer explicação sociológica,
96

econômica da barbárie nazista e particularmente do extermínio de seis


milhões de judeus nos campos da morte, numa Europa devastada, a ser
reconstruída e novamente pensada sob todos os aspectos, neste preciso
contexto Lacan redigiu dois artigos sobre pequenos grupos nos quais, ao
contrário das formações de massa, as relações horizontais entre os mem-
bros predominam sobre as relações verticais. Intitulados “O tempo Lógico
e A Asserção de Certeza Antecipada” (Lacan, 1998) e “A Psiquiatria Inglesa
e A Guerra” (Lacan, 2003) esboçam os rudimentos de uma lógica coletiva,
a qual explora o laço horizontal entre os membros, deixado de lado pelo
Freud de Psicologia das Massas e Análise do Eu (1921).
Em “O Tempo Lógico”, Lacan escreve que “O coletivo não é senão o
sujeito do individual” (1998, p. 213). Afastando a oposição binária entre
social e individual pela introdução de um terceiro termo – o sujeito, sujeito
do inconsciente, distinto do eu – esse enunciado “O coletivo não é senão o
sujeito do individual” de forma alguma preconiza que o coletivo deva ser
tomado como um todo unitário, caso no qual apenas se transfere para uma
hipóstase mítica (a nação, o partido, a raça) propriedades “naturais”que
os liberais advogam ser o apanágio do indivíduo. A proposição avança
antes que, numa dinâmica coletiva de indivíduos, o sujeito advém como
resultado pontual e fugaz dessa dinâmica, ou seja, é uma lógica que, di-
versamente da lógica clássica, inclui a temporalidade na constituição do
sujeito. Aqui, o paradigma não é a formação de massa, mas a surpresa do
Witz, do chiste freudiano, que implica três pessoas.
Quanto ao artigo “A Psiquiatria Inglesa e A Guerra”, o qual marcou pro-
fundamente, entre outros, Psicanálise e Transversalidade, de Guattari (1974),
termina da seguinte forma: “esta guerra... demonstrou suficientemente que
não é de uma grande indocilidade dos indivíduos que virão os perigos quanto
ao futuro humano. É claro doravante que as potências sombrias do supereu
entram em coalizão com os abandonos mais covardes da consciência para
conduzir os homens a uma morte aceita pelas causas menos humanas e que
tudo que aparece como sacrifício nem por isso é heroico” (Lacan, 2003, p. 120).
Fruto de uma viagem de Lacan à Inglaterra ainda em 1945, na qual
pesquisou o papel desempenhado por psiquiatrias ingleses de orientação
97

psicanalítica, particularmente Bion e Rickman, na montagem de uma


máquina de guerra que foi capaz de derrotar um exército de tradição
prussiana, “A Psiquiatria Inglesa e A Guerra” tem como pano de fundo uma
interrogação quanto à efetividade social da psicanálise, quanto à sua ação
por referência às potências da pulsão de morte que opera na civilização.
Quanto à experiência desses dois psiquiatras e psicanalistas ingle-
ses, ocorre numa unidade hospitalar de reabilitação de soldados julgados
inadaptados à disciplina militar, à qual não conseguiam se submeter: são
restos, portanto, dos ideais do exército. Em vez de tentar reinscrever tais
pacientes na formação de massa militar batendo na tecla do dever a ser
cumprido, acentuando a culpa e a punição, Bion e Rickman distribuíram
os pacientes da enfermaria em pequenos grupos centrados numa tarefa,
num objetivo simbólico. Objetivo comum, a tarefa identifica os membros
do grupo entre si horizontalmente, ao mesmo tempo em que os divide,
pois cada um a executa à sua maneira, lutando contra as próprias dificul-
dades. Ou seja, no pequeno grupo, o inimigo comum é antes de tudo um
inimigo interno, que divide cada sujeito, que o leva a se perguntar quanto
ao desejo que o habita.
À pressão do grupo para que confirmasse a suposição de que poderia
magicamente resolver os impasses que surgiam, Bion respondia pondo
em jogo o que denominou “suspensão da liderança”. Nas palavras do au-
tor, “o grupo sempre torna claro que espera que eu atue com autoridade
enquanto líder do grupo e eu aceito essa responsabilidade, mas não da
maneira que o gripo espera (Bion, 1975, p. 73). A sua atividade consistia
em interpretar esse fenômeno à medida que emergia no grupo, retornando
a cada um de seus membros a responsabilidade de lidar com o problema
de estar em grupo.
A função de liderança no grupo não deve, portanto, ser deixada
vazia, deve ser preenchida por alguém, só que justamente para impedir
a identificação da pessoa com a função. Verdadeira desconcretização da
chefia tradicional, essa “suspensão da liderança” será retomada por Lacan
como função do mais um no cartel, pequeno grupo de trabalho capaz de
funcionar como órgão de base de uma escola de psicanálise que não se
98

confunda com uma formação de massa. Pois a função do mais um não


é atuar como professor, dar respostas, mas responsabilizar cada um pela
produção do cartel e provocar a elaboração dos temas trabalhados.
Tal como exemplificado por Lacan com o sofisma dos três prisionei-
ros em “O Tempo Lógico”, a dinâmica desses pequenos grupos é marcada
por uma dinâmica temporal, pelo valor significante do tempo, o qual toma
a forma no sofisma lacaniano de duas escansões suspensivas do ato du-
rante as quais o tempo se decompõe em três instâncias não homogêneas:
o instante de ver, o tempo para compreender e o momento de concluir.
Pautada por tempos de qualidades diversas, a comunidade desenhada
por essa lógica coletiva não possui medida comum, não devorou ou tem
a devorar uma substância comum.
Evidentemente, uma singularidade coletiva brota como um acon-
tecimento no campo das formações de massa, aparecendo para logo de-
saparecer. Como Bion e Lacan notaram, a existência de um grupo oscila
continuamente entre a homogeneidade imaginária da formação de massa e
o funcionamento simbólico do grupo de trabalho. Sublinhamos isto porque
não se trata de forjar uma nova utopia, projetar uma sociedade ideal, mas
de animar com um desejo, desejo de analista, os momentos de virada de um
discurso para outro, momentos propícios à emergência do discurso analítico.
Por último, em “O Tempo Lógico” Lacan faz alusão à peça de Sartre A
portas Fechadas, na qual os três personagens, condenados a compartilhar
o inferno por toda a eternidade, incapazes de perceber as próprias falhas,
se esmeram em apontar as falhas uns dos outros, acabando por concluir
que “o inferno são os outros”. Para Sartre, o insuportável são os outros,
ao que Lévi-Strauss retrucou: “o inferno é cada um”. À concepção exis-
tencialista do sujeito, o apólogo lógico dos três prisioneiros responde por
sua vez que o sujeito pode concluir quanto ao que é. Ele atinge sozinho o
verdadeiro, mas não o faz sem os outros, numa operação que deixa resto.
É o esboço de uma lógica coletiva que não desconheça o insuportável:
se apressadamente “Eu afirmo ser homem, por medo de ser convencido
pelos homens de não ser homem”, nem por isso deixo de ser responsável
pelo insuportável, pela Coisa que me habita.
99

Referências bibliográficas

BION, W. Experiências com grupos. Rio de Janeiro: Imago Editora e EDUSP,


SP, 1975.
FREUD, S. (1921) Psicologia de Grupo e Análise do Ego. Volume XVIII das
Obras Completas, ESB. Rio de Janeiro: Imago Editora, 1977.
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Completas, ESB. Rio de Janeiro: Imago Editora, 1977.
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LACAN, J. (1945) O Tempo Lógico e A Asserção de Certeza Antecipada. In
Escritos. Rio de Janeiro: Jorge Zahar Editor, 1998.
___________. (1947) A psiquiatria inglesa e a guerra. In Outros escritos. Rio
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___________. (1964) Os Quatro conceitos fundamentais da psicanálise, Livro
XI do seminário. , 1994.
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em psicoanalisis aplicado. Buenos Aires: Ed. Grama, 2005.
STAVRAKAKIS, Y. Lacan and the Political. Londres: Ed. Routledge, 1999.
A transformação da crítica da razão em análise
de patologias do social: O caso Theodor Adorno
Vladimir Safatle (USP)

- É desnecessário anunciar para ele sua sentença.


Ele já a experimenta em sua carne.
Kafka, Na colônia penal

Déficit sociológico, superávit psicanalítico


Algumas das correntes mais relevantes da filosofia do século XX as-
sumiram para si a tarefa de fornecer quadros de reflexão sobre os impasses
das sociedades capitalistas. Partindo da certeza de que as expectativas
abertas pela modernidade filosófica só poderiam ser realizadas através de
uma compreensão clara dos desafios próprios a contextos sócio-políticos
de ação, tais correntes não temeram em dar, a problemas ligados a modos
de racionalização de vínculos sociais, o estatuto de objetos de indiscutí-
vel dignidade filosófica. Pois estava claro que a razão demonstra sua real
configuração sobretudo através das estratégias de justificação e crítica
de práticas sociais em operação nas relações de sujeitos às instituições,
à família ou à si mesmo em um determinado tempo histórico. Fazer uma
autocrítica da razão e de suas aspirações era, pois, um movimento indis-
sociável de uma certa recuperação filosófica do campo da teoria social, já
que se tratava de mostrar como os conceitos da modernidade filosófica
ganhavam sua significação apenas lá onde instituições e práticas partilha-
das que aspiravam racionalidade afirmavam sua hegemonia.
No entanto, tal recuperação filosófica do campo da teoria social foi,
muitas vezes, realizada graças a um movimento que consistia em operar
102

recursos sistemáticos à psicanálise. Esta articulação cerrada entre filoso-


fia, teoria social e psicanálise perpassa a filosofia do século XX desde a
enunciação do programa interdisciplinar da primeira geração da Escola
de Frankfurt. Ela já pode ser identificada nas entrelinhas de em um texto
programático de Max Horkheimer, A presente situação da filosofia social e
as tarefas de um Instituto de Pesquisas Sociais, de 1931. Ela será novamente
encontrada em filósofos fundamentais do pensamento francês contemporâ-
neo, como Michel Foucault, Gilles Deleuze e Jean-François Lyotard, mesmo
que, nestes casos, o recurso à psicanálise seja, muitas vezes, marcado pela
ambivalência de quem reconhece que uma clínica inovadora e prenhe de
novas problematizações pode ser solidária de práticas disciplinares que
bloqueiam a reconstituição de vínculos sociais a partir de novas bases.
De fato, a natureza de tal recurso à psicanálise no interior da re-
cuperação filosófica do campo da teoria social pode ser compreendida
se lembrarmos uma intuição maior presente em momentos centrais dos
ditos “textos sociológicos” de Freud. Trata-se da compreensão de que a
análise dos processos de racionalização social deve, necessariamente,
submeter-se a considerações mais amplas sobre a ontogênese das ca-
pacidades prático-cognitivas dos sujeitos. Ontogênese esta que é, para
Freud, indissociável da reflexão sobre a dinâmica conflitual dos processos
de socialização das pulsões e do desejo no interior de esferas de interação
como a família, as instituições sociais, os aparatos midiáticos de massa e o
Estado. Ou seja, em última instância, trata-se de propor a compreensão do
fundamento dos processos de racionalização social e de desenvolvimento
de critérios de racionalidade operativos em nossas formas de vida a partir
de problemas ligados à socialização das pulsões e do desejo, colocando-
se assim no ponto indissociável de interface entre individualidade e vida
social. É tendo tal submissão em vista que Freud pode fazer afirmações
arriscadas como: “Mesmo a sociologia, que trata do comportamento dos
homens em sociedade, não pode ser nada mais que psicologia aplicada.
Em última instância, só há duas ciências, a psicologia, pura e aplicada, e
a ciência da natureza”1.

1 FREUD, Sigmund ; Gesammelte Werke vol XV, Frankfurt: Fischer, 1999 p. 194
103

Uma afirmação desta natureza é temerária por parecer tributária


de alguma forma de psicologismo selvagem que nos levaria a um certo
imperialismo psicanalítico que sempre interpreta a multiplicidade dos
fatos culturais à luz da repetição modular dos complexos de Édipo e das
teorias sobre a sexualidade infantil. Psicologismo ainda mais temerário por
parecer nos induzir a tratar o campo social de maneira atomizada através
da hipóstase de funções intencionais particularistas (as pulsões, o desejo)
como chave compreensiva de processos sociais complexos.
No entanto, devemos procurar melhor o que está em jogo nesta
tendência psicanalítica, presente desde Freud, de operar no ponto exato
de contato entre estruturas da subjetividade e modos de interação social.
Pois, a seu modo, a psicanálise acaba por realizar a intuição weberiana a
respeito da necessidade de explicar como a racionalidade dos vínculos
sociais em geral depende fundamentalmente da disposição dos sujeitos
em adotar certos tipos de conduta, admitindo-as assim como racionais.
Não se trata de incorrer em alguma espécie daquilo que autores como
Axel Honneth chamaram um dia de “déficit sociológico”2, ou seja, inca-
pacidade de dar conta de análises estruturais dos sistemas que compõe a
vida social, isto em prol de explicações genéricas que partem de sistemas
individuais de crenças e interesses. Trata-se, na verdade, de insistir que
nenhuma perspectiva de compreensão dos processos sociais pode abrir
mão de uma análise das disposições subjetivas, o que significa compreender
a maneira com que os sujeitos investem libidinalmente os vínculos sociais
e as exigências de racionalidade mobilizando, com isto, representações
imaginárias e expectativas de satisfação que muitas vezes acabam por
inverter o sentido de determinações normativas partilhadas. Por outro
lado, trata-se de lembrar que no interior das “disposições subjetivas” há
sempre mais do que meros sistemas particularistas de crenças e desejos.
Esta perspectiva de análise alimentada pela psicanálise permitirá, a
autores maiores tanto da primeira geração da Escola de Frankfurt quanto

2 Ver HONNETH, Axel ; The critique of power: reflective stages in a Critical Social Theory,
Cambridge, MIT Press, 1991
104

do pensamento francês contemporâneo, operar uma mutação no padrão


da crítica. Tal mutação é o objeto do que gostaria de discutir aqui. Ela
pode ser descrita como transformação da crítica da razão em análises de
patologias do social.

Da necessidade de críticas totalizantes


Antes de expor claramente o que devemos compreender por tal
transformação e qual sua importância para a interpretação de alguns mo-
mentos maiores da filosofia contemporânea, gostaria de definir em que
sentido devemos tratar aqui termos como “razão” e “racional”, já que estamos
diante de conceitos portadores de uma polissemia extremamente conflitual.
Coloquemos, pois, em circulação, um encaminhamento interpretativo que
compreende a razão não apenas como modo de se orientar no julgamento,
a partir de critérios capazes de instaurar um modo de exigência de validade
que se fundamenta no interior de procedimentos comunicacionais não
coercitivos. Não tenhamos em vista apenas uma racionalidade procedurial.
Pensemos a razão moderna como movimento instaurador de formas de
vida. Diremos, então, que uma forma racional de vida seria aquela organi-
zada a partir de processos potencialmente institucionalizáveis, capazes de
permitir aos sujeitos a apreensão autorreflexiva do fundamento de práticas
sociais que aspiram universalidade. Se quisermos fornecer um exemplo,
podemos encontrar tal ideia de razão como forma de vida já em Hegel,
com sua noção de Geist3. Diremos ainda que tais processos potencialmente
institucionalizáveis são próprios às dimensões do desejo, do trabalho e de
linguagem: três elementos que compõem necessariamente uma forma de
vida enquanto complexo de interação social.
Levando tal perspectiva em conta, podemos dizer que o recurso a
Freud nos permite compreender que uma crítica da razão é indissociável
da análise dos procedimentos de socialização que visam conformar sujei-
tos a formas de vida que aspiram uma validade que não se reduz apenas

3 Ver, por exemplo, PINKARD, Terry ; Hegel´s phenomenology : the sociality of reason, Cam-
bridge University Press, 1994 ; PIPPIN, Robert, Hegel´s pratical philosophy : pratical agency
as a ethical life, Cambridge University Press, 2008 e BRANDOM, Robert, Tales of the mighty
death, MIT Press, 2002.
105

aos domínios da tradição e do hábito. Por um lado, sabemos como, para


Freud e para grande parte da posteridade psicanalítica, os dispositivos de
formação e de individuação presentes nas dinâmicas de socialização são
legíveis a partir daquilo que compreendemos como sendo processos de
identificação mimética e de investimento libidinal. Até porque, socializar é,
fundamentalmente, “fazer como”, atuar a partir de tipos ideais que servem
de modelos de identificação e de polo de orientação para os modos de dese-
jar, julgar, falar e agir. Mas sabemos também, que esta identificação a tipos
ideais não pode ser descrita simplesmente a partir de considerações sobre
as pressões de conformação presente em núcleos elementares de interação
social (família, instituições sociais, medias). Freud compreendeu que as
estruturas elementares que orientam o que está em jogo nestes núcleos de
interação são figuras privilegiadas da razão. As exigências de racionalidade
presentes nestes núcleos são, necessariamente, manifestações privile-
giadas do que estamos dispostos a contar como racional. No entanto,
Freud nunca deixará de colocar a questão: “o que é necessário perder
para se conformar a exigências de racionalidade presentes em processos
hegemônicos de socialização e de individuação?”, ou ainda, “qual o preço a
pagar, que tipo de sofrimento devemos suportar, qual o cálculo econômico
necessário para viabilizar tais exigências?”4. Pois devemos nos perguntar o
que deve acontecer ao sujeito para que ele possa se pautar por um regime
de racionalidade que impõe padrões de ordenamento, modos de organiza-
ção e estruturas institucionais de legitimidade. Como deve se organizar sua
economia libidinal para que ele possa ser reconhecido, como sujeito agente,
por estruturas institucionais que aspiram garantir a racionalidade de nossas
dinâmicas sociais? Toda discussão freudiana clássica da imbricação entre
socialização e repressão, que encontramos em textos como O mal estar na
civilização, é apenas o ponto mais visível deste problema.

4 Esta questão está claramente enunciada em trechos como, por exemplo : “Grande parte das
lutas da humanidade centralizam-se em torno da tarefa única de encontrar uma acomodação
conveniente, ou seja, um compromisso (Ausgleich) que traga felicidade entre reivindicações
individuais e culturais; e um problema que incide sobre o destino da humanidade é o de
saber se tal compromisso pode ser alcançado através de uma formação determinada da
civilização ou se o conflito é irreconciliável.” (FREUD, Das Ubehagen in der Kultur, In: Ge-
sammelte Werke, vol. XIV, p. 455).
106

Estas perguntas são fundamentais por nos levarem a uma visão


renovada do que pode ser a crítica social filosoficamente orientada. Sendo
os núcleos de interação social modos de realização de formas de ordena-
mento, de determinação de validade do que estamos dispostos a contar
como racional, então a verdadeira crítica da razão deverá ser uma análise
das formas de vida que se perpetuam através dos modos institucionais
de reprodução social.
No entanto, como bem nos lembra Axel Honneth em seu texto
Pathologien des Sozialen. Tradition und Aktualität der Sozialphilosophie,
sabemos desde ao menos Rousseau, que tal análise pode nos levar à de-
núncia ampla do caráter distorcido das formas de vida na modernidade
ocidental. Neste caso, ela se transforma em crítica da natureza patoló-
gica de tais formas de vida com suas exigências de autoconservação e
reprodução social. Notemos que, aqui, uma forma de vida poderia ser
chamada de “patológica” por produzir um sofrimento social advindo
da impossibilidade em dar conta de exigências de reconhecimento dos
sujeitos em suas expectativas de autorrealização. Ou seja, neste caso, a
estrutura conceitual e valorativa cuja internalização constitui sujeitos
agentes, produtores de deliberações racionais, já seria “patológica” pois
indissociável da perpetuação de uma situação de sofrimento advinda, ao
menos no caso de Rousseau, da perda de um horizonte originário que se
confunde com a natureza enquanto plano positivo de doação de sentido5.
Como se houvesse algo de profundamente esvaziado na própria figura do
vernünftig Mensch.
Se deixarmos de lado a temática rousseauista do retorno à origem,
é bem possível que este esquema esteja animando a natureza “totalizan-
te” de críticas da razão como as que encontramos em vários programas
filosóficos que, de uma forma ou de outra, se deixaram marcar pela re-
flexão psicanalítica. O termo “totalizante” tem aqui função importante e
foi, muitas vezes, utilizado de maneira pejorativa. Pois ele indicaria uma
espécie de contradição performativa advinda da extensão indevida de

5 Uma descrição exaustiva do problema da origem no interior da crítica rousseauista da socie-


dade pode ser encontrada em DERRIDA, Jacques ; De la grammatologie, Paris : Minuit, 1966
107

discursos filosóficos que procuravam identificar a interversão completa


da razão moderna em prática de dominação.
Pensemos, por exemplo, no que dirá Jürgen Habermas a respeito
do projeto que animaria um livro como a Dialética do Esclarecimento.
Para Habermas, Adorno e Horkheimer querem, com este livro, dizer que:

Na modernidade cultural, a razão é despojada de sua pre-


tensão de validade e assimilada a mero poder. A capacidade
crítica de tomar posição ante algo com um “sim” ou um “não”,
de distinguir entre enunciados válidos e inválidos é iludida,
na medida em que poder e pretensões de validade entram
em uma turva fusão6.

Neste sentido, voltando-se contra a razão enquanto fundamento


de sua própria validade, a crítica se tornaria total. Pois os autores não
podem fazer apelo, por exemplo, a alguma dimensão do originário esque-
cido ou a uma filosofia da história de cunho teleológico como horizonte
regulador substancial. Eles são cientes do caráter frágil desta aposta em
um momento histórico no qual o originário é visto, principalmente,
como discurso reificado e onde o desenvolvimento histórico não pode
mais apelar ao destino libertador da consciência de classe proletária. Por
outro lado, eles não têm à mão o conceito de uma intersubjetividade não
comprometida a fundamentar expectativas racionais de validade a partir
da generalização de procedimentos presentes em núcleos bem sucedidos
de interação social. Assim, o caráter totalizante da crítica só poderia nos
levar a um impasse por dissolver o próprio fundamento no qual ela deveria
se assentar. Impasse de quem: “denuncia o esclarecimento que se tornou
totalitário com os meios do próprio esclarecimento”7.
Sabemos como o esquema habermasiano foi extensivamente utiliza-
do nas últimas décadas. No entanto, é bem provável que ele limite radical-

6 HABERMAS, Jürgen ; O discurso filosófico da modernidade, São Paulo, Martins Fontes,


2000, p. 161
7 Idem, p. 170
108

mente a compreensão do que estava em jogo em certas tradições filosóficas


no século XX associadas, muito rapidamente, a figuras de pensamentos que
flertariam, de maneira perigosa, com um “antimodernismo”. Gostaria de
tomar aqui, como exemplo, o caso de Theodor Adorno. O mesmo Adorno
que, segundo Habermas, teria se deixado encantar por um: “desenfreado
ceticismo perante a razão, em vez de ponderar os motivos que permitem
duvidar do próprio ceticismo”8. Trata-se de insistir que uma perspectiva
de leitura, como a colocada em circulação por Habermas, só pode ser
defendida à condição de ignorar a especificidade da tentativa adorniana
de transformar a crítica da razão em análise de patologias sociais.
Já deve estar claro aqui que, por esta transformação, devemos en-
tender, principalmente, o deslocamento através do qual uma perspectiva
crítica, que visa esclarecer as condições de possibilidade para a funda-
mentação da normatividade racional, dá lugar à análise da natureza do
sofrimento produzido por formas de racionalidade que visam, em última
instância, orientar ações sociais que aspiram validade e universalização.
Isto nos permitiria não partir mais da determinação prévia da normativida-
de, mas da identificação inicial de uma situação patológica de sofrimento
e limitação das exigências de autorrealização resultante de nossos ideais
de racionalidade.
A princípio, esta transformação parece pouco clara, pois aceitamos
normalmente que o sofrimento social vem exatamente da impossibilida-
de em reconhecer sujeitos e grupos como portadores de direitos assen-
tados na tradição do racionalismo ocidental, como sujeitos que podem
se autorrealizar a partir de valores de autonomia, autodeterminação e
singularidade. Eles sofrem porque se veem excluídos de uma forma de
vida racional cujo sentido seria largamente partilhado de maneira não
problemática.
Ne entanto, este sofrimento pode não estar ligado à impossibilidade
de realização de valores e critérios normativos partilhados e já presentes
na vida social. Antes, a verdade crítica tem a força de se voltar contra
nossos próprios ideais normativos, já que ela se pergunta se nossa forma

8 Idem, p. 185
109

de vida não seria mutilada a ponto de se orientar por valores resultantes


de distorções patológicas, ou seja, se nossa forma de vida, com sua es-
trutura de valores, não seria uma patologia (ou, como dizia Adorno, de
uma « beschädigten Leben »). Assim, ao assumir uma perspectiva desta
natureza, o regime de crítica não pode mais se contentar em ser guiado,
por exemplo, por exigência de realização de ideais normativos de justiça
e consenso que já estariam presentes em alguma dimensão atual da vida
social. Isto nos impediria de desenvolver uma crítica mais profunda que
nos permitiria questionar a gênese de nossos próprios ideais de justiça e
consenso, o próprio processo genealógico de imbricação entre validade
e gênese. Ou seja, a crítica não pode ser apenas a comparação entre situ-
ações concretas determinadas e normas socialmente partilhadas. Esta é,
no fundo, uma crítica de juizado de pequenas causas que se contenta em
comparar normas e caso.
Embora não queira ir tão longe, Axel Honneth, quem desenvolveu de
maneira mais bem acabada a natureza desta crítica como sintomatologia
que visa identificar patologias sociais, tem uma descrição clara a respeito
deste problema:

O disfuncionamento social aqui não diz respeito apenas


a um prejuízo contra os princípios de justiça. Trata-se, na
verdade, de criticar as perturbações que partilha com as
doenças psíquicas a característica de restringir ou alterar
as possibilidades de vidas supostamente ‘normais’ ou ‘sãs’.9

Se adotarmos o quadro psicanalítico de determinação de doenças


psíquicas, podemos realizar sem maiores saltos esta colocação de Honneth,
já que as categorias nosográficas psicanalíticas (como neurose, histeria,
perversão, psicose) não são descrições de disfuncionamentos quantitativos
em órgãos e funções psíquicas isoladas. Elas são, na verdade, modifica-
ções globais de conduta advinda de posições subjetivas possíveis frente
ao desejo e às pulsões.

9 HONNETH, Axel ; La société du mépris, Paris : La Découverte, 2006, p. 89


110

Mas pode parecer que esta estratégia de constituir a crítica da razão


através da crítica de patologias sociais traga, no fundo, mais problemas
do que soluções, pois, se ela é útil para retirar o estigma de críticas tota-
lizantes que não se contentam em ser a mera indicação de insuficiências
na aplicação de critérios normativos intersubjetivamente partilhados,
ela parece, por outro lado, nos colocar à cata de um ideal de normalidade
que serviria de fundamento para a crítica social da razão mutilada. Mas
de onde virá este critério?
Se nos restringirmos ao caso de Adorno, veremos como é a Freud que
ele recorre. Pois devemos aceitar o caráter regulador do recurso adorniano
àquilo que poderíamos chamar de antropologia psicanalítica, ou seja, à
maneira com que as reflexões freudianas, em particular, e psicanalíticas,
em geral, servem para fundamentar a reconstrução do que normalmente
entendemos por “natureza interna”. Tal reconstrução, por sua vez, permite
à crítica apoiar-se em uma antropologia não normativa na sua avaliação
global de valores, critérios e normas que tem realidade atual e expectativas
universalizantes de validade. Neste sentido, não estaremos incorrendo
em erro se dissermos que a estratégia de Adorno parece, em vários mo-
mentos, consistir em fundar a crítica da sociedade em uma antropologia
psicanalítica que, permite, inclusive o redimensionamento profundo da
filosofia da história de cunho marxista que serve de referência à Escola de
Frankfurt. Os dois primeiros capítulos de Dialética do Esclarecimento, com
sua guinada da crítica da economia política à crítica da razão instrumental,
parecem-me bastante evidentes neste sentido.

Partir do sofrimento social


Aceitemos, pois, a afirmação de Honneth, para quem: “Adorno
apoia-se na psicanálise freudiana para mostrar que, no sofrimento psí-
quico e na reação dos impulsos, escondeu-se também o interesse em
uma atividade racional ilimitada, cuja realização em uma forma de vida
humana foi relegada”10. Possivelmente, tal fato nos explica, por exemplo,
a maneira peculiar de Adorno utilizar categorias clínicas que aparecem,

10 Idem, Pathologie der Vernunft, Frankfurt: Suhrkamp, 2007, p. 72


111

insistentemente, tanto em seus escritos de teoria social quanto naqueles


dedicados à filosofia da música, à política e à filosofia moral; categorias
como “narcisismo”, “paranoia” e “fetichismo”. Pois, no caso de Adorno, não
se trata de, com tais categorias, descrever desvios patológicos de conduta
em relação a padrões normativos de comportamento intersubjetivamente
partilhado. Na verdade, elas serão utilizadas para indicar o saldo necessário
da ontogênese das capacidades prático-cognitivas de sujeitos socializados
e, com isto, permitir o desenvolvimento de problematizações na estrutura
normativa de julgamentos morais, estéticos e cognitivos11. Maneira de
vincular as patologias derivadas do processo de socialização e formação
subjetiva a um projeto mais amplo de crítica da razão. O sofrimento psí-
quico que tais categorias psicanalíticas descrevem são indicações de que
esta atividade racional ilimitada está, de uma certa forma, bloqueada por
aquilo mesmo que permite nossa socialização, pois aquilo que normatiza
o pensar e o agir pareceria mutilar as possibilidades da vida.
Há várias maneiras de discutir esta questão, mas eu gostaria de
insistir apenas em um aspecto. Ele se refere à importância da experiência
corporal ou, antes, daquilo que Adorno chama de “momento somático”
na constituição de um conceito renovado de razão. Lembremos desta
afirmação central de Adorno: “Todo espiritual é impulso corporal modi-
ficado e esta modificação é a inversão (Umschlag) qualitativa naquilo que
não simplesmente é. Pulsão (Drang) é, de acordo como a compreensão de
Schelling, a forma preliminar do espírito”12. Para Adorno, há um sofrimento
vindo da impossibilidade de recuperar o que é da ordem do impulso e da
pulsão, há um fracasso no processo de formação subjetiva devido à im-

11 Isto pode nos explicar porque Adorno mobiliza tais categorias no interior de sua crítica
ao sujeito moral kantiano. Por exemplo: “A liberdade, como conceito universal abstrato
de um para-além da natureza, é espiritualizada como liberdade em relação ao reino da
causalidade. Mas assim ela leva à autodesilusão. Psicologicamente falando, o interesse do
sujeito pela tese de sua liberdade seria narcísico, tão desprovido de medida quanto tudo o
que é narcísico. Mesmo na argumentação kantiana, que situa categoricamente a esfera da
liberdade acima da psicologia, ressoa o narcisismo” (ADORNO, Theodor; Negative Dialektik,
Frankfurt : Suhrkamp, 1973, p. 219). Ou ainda, quando ele afirma ser a filosofia moral kan-
tiana: “um caso modelo de fetichismo” (idem, Probleme der Moralphilosophie, Frankfurt:
Suhrkamp, 1996, p. 207)
12 ADORNO, Theodor ; Negative Dialektik, op. cit., p. 202
112

possibilidade de aproximação mimética com isto que representaria uma


alteridade profunda no interior do Si.
Voltemo-nos à teoria freudiana do desenvolvimento e da maturação
para tentar entender melhor o que Adorno teria em vista. Sabemos como
Freud insiste que há algo – no sujeito – anterior ao advento do Eu como
saldo dos processos de socialização e de individuação; Eu entendido aqui
como unidade sintética de representações que permite o desenvolvimento
de uma personalidade coerente, o estabelecimento de uma hierarquização
das vontades capaz de abrir espaço para o advento de uma vontade autô-
noma. Há um corpo libidinal polimórfico que orienta sua conduta a partir
da procura de satisfação de pulsões parciais (ou ainda pré-egoicas), ou seja,
impulsos que não respondem à hierarquia funcional de uma unidade. Esta
estrutura polimórfica e fragmentada das pulsões viria da ausência de um
princípio unificador como o Eu, princípio que não estaria presente antes
de um certo processo de maturação individual através do qual o sujeito
internaliza a representação social de um princípio de conduta e coerên-
cia, princípio que permite a unificação das pulsões e a organização das
condutas a partir da identificação a um Outro na posição de tipo ideal.
Se voltarmos à primeira tópica freudiana, com sua distinção en-
tre pulsões sexuais e pulsões de autoconservação, podemos encontrar
elementos que serão importantes para a discussão. Sabemos como as
pulsões sexuais não descrevem as atividades submetidas aos imperativos
de reprodução, mas são tendencialmente polimórficas, sempre prontas a
desviarem, inverterem, transporem, de maneira aparentemente inesgotá-
vel, os alvos e objetos sexuais. O primado da sexualidade genital a serviço
da reprodução é a última fase que a organização sexual atravessa e só se
impõe através de processos profundos de repressão e recalcamento. É isto
que Freud tem em vista ao afirmar: “A vida sexual compreende a função de
obtenção do prazer através de zonas corporais; ela é posta apenas poste-
riormente (nachträglich) a serviço da reprodução”13. Daí porque haveria
“algo de inato na base das perversões, mas algo que é inato a todos os

13 FREUD, Sigmund; Gesammelte Werke, vol XVII, op. cit., p. 75


113

homens”14. Algo que diz respeito à polimorfia perversa que encontraríamos


em toda sexualidade infantil.
Polimorfia deve ser compreendida aqui como reconhecimento desta
posição na qual a multiplicidade dos prazeres corporais não se submete
à hierarquia teleológica dos imperativos de reprodução com seu primado
do prazer genital. Ela implica que, em Freud, a sexualidade nos fornece
o modelo de experiências corporais sem telos finalista, indeterminadas,
como se através delas, os sujeitos se deparassem como um estranho pro-
cesso desprovido de princípio unificador que nos coloca diante de uma
dinâmica constante de indeterminação.
Assim, pelos prazeres corporais não se submeterem imediatamen-
te a uma hierarquia funcional, cada zona erógena (boca, ânus, ouvidos,
órgãos genitais etc.) parece seguir sua própria economia de gozo e cada
objeto a elas associados (seio, fezes, voz, urina) satisfaz uma pulsão es-
pecífica, produzindo um “prazer específico de órgão”15. Freud chamará
de “pulsões parciais” tais pulsões que não se submetem à satisfação com
representações globais de pessoas produzidas graças à uma imagem unifi-
cada do corpo. Ele chamará também de “autoerótica” tal satisfação por ela
procurar e encontrar seus objetos no corpo próprio do sujeito desejante,
já que mesmo o seio e a voz do Outro materno são compreendidos pelo
bebê como sendo objetos internos à sua própria esfera de existência.
Sabemos, por outro lado, como as pulsões de autoconservação, ou
pulsões do Eu, permitem elevar as exigências de conservação do indiví-
duo e do principium individuationis, que determina a imagem unificada
de si, à condição de princípio de orientação da conduta. Em um tom que
não deixa de nos remeter a Nietzsche, Freud vincula o desenvolvimento
da consciência, da linguagem, da memória e do julgamento às exigências

14 Idem, Gesammelte Werke vol. V, op. cit., p. 71


15 O melhor comentário do sentido deste prazer de órgão, vem de Alenka Zupancic : “Em
relação à necessidade de alimentar-se, com a qual ela inicialmente se vincula, a pulsão oral
persegue um objeto distinto do alimento: ela persegue (e procura repetir) a pura satisfação
produzida na região da boca durante o ato de nutrição (...) nos seres humanos, toda satis-
fação de uma necessidade permite, a princípio, a ocorrência de outra satisfação, que tende
a advir independente e a se autoperpetuar na procura e na reprodução de si” (ZUPANCIC,
Alenka; Sexuality and ontology, In; Why psychoanalysis?, Uppsala, NSU Press, 2008, p. 16)
114

de autoconservação agenciadas pelo princípio de realidade. Tratam-se,


em todos os casos, de como construir o melhor caminho para alcançar
um objeto capaz de satisfazer as pulsões do Eu. Neste sentido, ele chega
mesmo a dizer que: “o Eu-realidade (Real-Ich) não tem outra coisa a fa-
zer que tender em direção ao benefício (Nutzen) e afastar-se do prejuízo
(Schaden)”16.
Adorno e Horkheimer são sensíveis a este ponto. Eles querem mos-
trar como este modo de organização da experiência a partir das exigências
de autoconservação só pode nascer através do advento de um Eu que não
se reconhece mais em “nenhuma exteriorização humana que não se situe
no quadro teleológico da autoconservação da individualidade”. Daí porque:

O Eu que, após o extermínio (Ausmerzung) metódico de


todos os vestígios naturais como algo de mitológico, não
queria mais ser nem corpo, nem sangue, nem alma e nem
mesmo um Eu natural, constituiu, sublimado num sujeito
transcendental ou lógico, o ponto de referência da razão, a
instância legisladora da ação17.

Estas afirmações são de extrema importância. Os autores estão afir-


mando que o preço a pagar para a constituição do sujeito transcendental
como fundamento das operações da razão moderna está no extermínio
metódico, na repressão reiterada do que, no interior do sujeito, não se
submete à forma lógica geral do Eu. Não querer mais ser nem corpo, nem
sangue, nem alma significa, ao menos neste contexto, impôr-se através
da vontade de se afastar de tudo o que ameaça a imposição do Eu como
forma geral da experiência. É pensando neste processo que Adorno poderá
afirmar: “A consciência nascente da liberdade alimenta-se da memória
(Erinnerung) do impulso (Impuls) arcaico, não ainda guiado por um Eu
sólido. Quanto mais o eu restringe (zügeln) tal impulso, mais a liberdade

16 FREUD, Sigmund; Gesammelte Werke vol. VIII, op. cit., p. 135


17 ADORNO, Theodor e HORKHEIMER, Max, Dialética do Esclarecimento, Rio de Janeiro :
Jorge Zahar, 1986, p. 41
115

primitiva (vorzeitlich) lhe parece suspeita pois caótica”18. Vemos claramen-


te aqui, como Adorno tem em vista o processo de unificação de moções
pulsionais pré-egoicas. Ele insiste que tal processo deve ser lido como
o correlato de uma dinâmica que compreende a autonomia a partir do
esquema de dominação repressiva da natureza interna.
Neste sentido, por exemplo, a desativação da dicotomia natureza/
liberdade que Adorno insiste em realizar desde a conferência “A ideia de
história natural”, do início dos anos de 1930, e a consequente crítica da
metafísica da identidade na determinação da dimensão prática da razão
passa pela exposição da maneira com que a ação que aspira uma “racio-
nalidade ilimitada”, para falar como Honneth, se deixaria marcar por estes
impulsos arcaicos que aparecem não totalmente subsumidos a processos
de socialização. Mas isto implica acolher o que não é totalmente idêntico
a si, reconhecer a racionalidade daquilo que Adorno chama de “momento
somático” e que indica a capacidade de reconhecer, no interior do campo
da subjetividade, um domínio de experiências que não se submetem in-
tegralmente à forma unitária da identidade. Foi pensando em algo desta
natureza que Adorno podia afirmar:

Os homens só são humanos quando eles não agem e não se


colocam mais como pessoas; esta parte difusa da natureza
na qual os homens não são pessoas assemelha-se ao deline-
amento de um ser inteligível, a um Si que seria desprovido
de Eu (jenes Selbst, das vom Ich erlöst wäre). A arte contem-
porânea fornece algo disto19.

Notemos que, desta forma, Adorno fornece uma forma precisa de


compreender a natureza do sofrimento social na contemporaneidade.
Ele não está exatamente vinculado, por exemplo, a alguma forma de
sentimento de indeterminação resultante da perda de relações sociais
substancialmente enraizadas, estáveis, motivo sociológico clássico ao

18 ADORNO,Theodor,
ADORNO Negative Dialektik, , p. 221.
19 ADORNO, Theodor, Negative Dialektik, op. cit., p. 267
116

menos depois de Durkheim (a este respeito, ver o clássico O suicídio) e


que não deixa de ecoar a perda da Sittlichkeit hegeliana. Nem se trata de
um esvaziamento da capacidade de normatização, pois Adorno age como
se nosso sofrimento mais aterrador fosse resultante do caráter repressivo
da identidade. Esta é a temática maior de um certo pensamento francês
contemporâneo (Lacan, Deleuze, Derrida) que encontra um eco profundo
no interior da experiência intelectual adorniana. Podemos mesmo dizer
que, para todos eles, a modernidade não é apenas momento histórico
onde: “não somente está perdida para ele [o espírito] sua vida essencial;
está também consciente dessa perda e da finitude que é seu conteúdo”20.
Perda que implicaria a pretensa angústia crescente do sentimento de inde-
terminação. A modernidade seria também a era histórica de elevação do
Eu a condição de figura do fundamento de tudo o que procura ter validade
objetiva. O que neste caso significa: era do recurso compulsivo e rígido
à autoidentidade subjetiva enquanto princípio de fundamentação das
condutas e de orientação para o pensar. Ela seria era de um sofrimento
de determinação.
Por fim, Adorno quer insistir que os modos de organização da reali-
dade no capitalismo avançado, assim como os regimes de funcionamento
de suas dinâmicas de interação social, de seus núcleos de socialização,
eram dependentes da implementação de uma metafísica da identidade
cuja gênese estaria ligada ao que podemos chamar de “redução egológi-
ca do sujeito”. Daí uma afirmação chave como: “A identidade é a forma
originária da ideologia”. Desta forma, a transformação da crítica da razão
em análise de patologias do social, longe de aparecer como um impasse
devido à sua natureza totalizante, apenas aponta para a necessidade de
constituição de formas de síntese da experiência a partir de uma reflexão
renovada sobre a categoria de sujeito. Por outro lado, o recurso à Freud
no interior desta transformação funciona principalmente na constituição
de novas articulações para recuperar categorias como normalidade e
patologia no interior da crítica da razão, retirando o peso essencialista e
normativo de tais categorias.

20 HEGEL, G.W.F., Fenomenologia do Espírito I, Petrópolis : Vozes, 1992, p. 24


117

Desta forma, encontramos uma via para responder a críticas que


visariam desqualificar a estratégia adorniana afirmando que a análise de
patologias sociais depende ela própria de uma avaliação normativa, que
não pode deixar de aspirar validade e universalidade, sob risco de simples-
mente não reconhecer as aspirações de autorrealização de todos os sujeitos
a quem um sofrimento injusto é imposto. No entanto, tudo se passa como
se Adorno insistisse que a noção de “injustiça”, neste contexto, não pode-
ria ser compreendida simplesmente como a não realização de princípios
e valores fundamentados na enunciação categórica de imperativos que
determinam as condições de possibilidade para o advento de um sujeito
moral. Há uma “injustiça” que não está ligada diretamente a princípios e
valores, mas a certas experiências corporais e afetivas. Tudo indica que,
para compreender melhor a natureza destas experiências, Adorno recorra
sistematicamente a Freud e sua descrição sobre aquilo que Adorno ainda
chama de “natureza interna”.
118

Referências bibliográficas

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119

Psicanálise como saber sem álibi


Uma leitura de Derrida sobre a crueldade
Joel Birman (UFRJ)

Preâmbulo
A intenção desse ensaio é a de realizar uma leitura do texto de Der-
rida intitulado Estados da alma da psicanálise (Derrida, 2000). O título do
texto reenvia ao evento que está na sua origem, já que os “Estados da alma
da psicanálise” remetem diretamente aos “Estados Gerais da Psicanálise”.
Com efeito, o texto em questão foi a resultante da conferência empreendida
por aquele nesse evento, que ocorreu em Paris, em 2000.
O nosso propósito é o de continuar a realizar o comentário dos en-
saios de Derrida nos quais a psicanálise se inscreve como o seu tema fun-
damental. Assim, trabalhei inicialmente sobre o ensaio inaugural daquele
sobre a psicanálise, intitulado “Freud e a cena da escrita”, que foi publicado
no livro “A escrita e a diferença” (Derrida, 1967) e editado em 1967 (Birman,
2007). Em seguida, realizei a leitura de “Mal de arquivo” (Derrida, 1995),
que foi publicado em 1995 (Birman, 2008). Porém, se evoco isso aqui e
agora, nesse preâmbulo, é para destacar que esse texto se inscreve num
conjunto maior de referência e num percurso teórico mais abrangente, no
qual procuro delinear as diversas incursões de Derrida sobre a psicanálise.
Essa nova incursão se justifica não apenas porque o texto sobre os
Estados da alma da psicanálse é outro ensaio desses sobre a psicanálise
120

e que foi escrito num outro tempo do seu pensamento, mas também
porque as questões aqui colocadas são de ordem diferente das que foram
recenseadas por Derrida nas suas incursões anteriores. Isso implica em
dizer que Derrida ampliou o seu âmbito de leitura sobre a psicanálise.
Portanto, o que foi destacado nesse momento de seu percurso é diferente
do que foi enunciado anteriormente, evidenciando a presença de algumas
descontinuidades.
Contudo, não se pode perder de vista a evidência de certas linhas
de continuidade entre esses diferentes ensaios sobre a psicanálise, não
obstante as evidentes descontinuidades. É justamente a presença dessa
tensão, entre as linhas de continuidade e as de descontinuidade, o que
revela a construção efetiva de uma obra em Derrida, no que concerne
especificamente a sua leitura da psicanálise, e que se inscreve no campo
de seu discurso filosófico.

Escrita e arquivo
Assim, no tempo inaugural do seu discurso teórico o que estava em
pauta para Derrida era a inscrição da psicanálise na crítica do filosofema da
presença, pela sustentação do enunciado de que o inconsciente se inscre-
veria no registro da escrita e não no da voz (Derrida, 1967) . Neste contexto,
o aparelho psíquico concebido pelo discurso freudiano foi delineado, no
final de seu percurso, como uma máquina de escrever (Derrida, 1967).
Com efeito, na tensão permanente existente entre os registros
da máquina e da escrita, que teria atravessado de fio a pavio o discurso
freudiano – desde o “Projeto de uma psicologia científica” (Freud, (1895),
1973) até as “Notas sobre o bloco mágico” (Freud, (1925), 1985) –, Freud
teria finalmente encontrado a metáfora maquínica adequada para o
inconsciente escriturário, com a concepção do aparelho psíquico como
máquina de escrever, em “Notas sobre o bloco mágico”.
Derrida percorreu nesse ensaio os textos mais densos e rigorosos
de Freud, isto é, os ensaios metapsicológicos. Porém, a sua proposta teó-
rica não foi a de realizar uma leitura metapsicológica da psicanálise. Pelo
contrário, a sua intenção seria a de empreender a crítica do filosofema
121

da presença, pelo enunciado dos conceitos de ausência, do diferir e da


diferença, com o propósito de delinear o que denominou do registro da
arquiescrita como fundante do inconsciente.
Contudo, em “Mal de arquivo”, Derrida retomou o filosofema da
escrita para trabalhá-lo agora sob a forma da concepção de arquivo. Existe
assim uma reversibilidade teórica entre as concepções de escrita e de ar-
quivo, para destacar devidamente a linha de continuidade existente entre
esses ensaios. Porém, para a elaboração do conceito de arquivo (Derrida,
1995), Derrida retomou fundamentalmente o ensaio de Freud sobre “O
homem Moisés e a religião monoteísta” (Freud, 1986). Debruçou-se, assim,
no exame de um outro registro textual do discurso freudiano, analisando
agora um dos textos freudianos sobre a cultura.
O que lhe interessava aqui era pensar efetivamente na oposição
estabelecida por Freud entre verdade histórica e verdade material, que
exigiria outra concepção de arquivo. Por conta disso, estabeleceu uma
polêmica com o historiador israelense Yerushalmi, para criticar a concep-
ção clássica de arquivo nesse presente. Para esse, com efeito, como para o
campo do discurso da história, o arquivo se reduziria à dimensão patente
do documento, referida exclusivamente ao tempo do passado, enquanto
que para Derrida o arquivo se articularia primordialmente com os tempos
do presente e do futuro, estando a dimensão do tempo passado a essas
referidas necessariamente (Derrida, 1995).
Nesta perspectiva, os registros da repetição e do trauma foram tra-
balhados por Derrida de maneira frontal, como conceitos fundamentais
que seriam para a constituição da escrita do inconsciente. Além disso, a
escrita e o arquivo foram concebidos como fundantes das ideias de gene-
alogia e de tradição.
O que existe de original nessa leitura de Derrida foi a sua interpre-
tação do conceito freudiano de pulsão de morte, no qual esse se formulou
como mal de arquivo. Vale dizer, deveria existir no campo do arquivo um
operador para o apagamento desse, como condição efetiva de possibi-
lidade para que o arquivo pudesse se renovar e constituir assim novas
inscrições. Seria por esse viés, enfim, que centrado sempre no presente o
122

arquivo poderia se abrir para as outras temporalidades, seja essa voltada


para o futuro seja para o passado (Derrida, 1995).

Arquivos sobre o mal


Porém, diferentemente da incursão inicial de Derrida na leitura de
Freud, o ensaio sobre o “Mal de arquivo” é atravessado por preocupações
de ordem ética e política. Assim, para a constituição do conceito de mal
de arquivo necessário foi a construção histórica, pelo Ocidente, de um
conjunto de signos que forjaram os diversos arquivos sobre o mal. Seriam
esses a condição concreta de possibilidade para o enunciado do conceito
de mal de arquivo (Birman, 2008).
Na segunda metade do século XX, mais precisamente desde o final
da Segunda Grande Guerra, tais arquivos sobre o mal foram escritos pela
nossa tradição. Seria esse o real forjado pelo campo histórico que possibi-
litou a reflexão sobre o mal de arquivo. De fato, dos efeitos do holocausto
judaico e da constituição da literatura do testemunho, passando pela
organização do Tribunal Penal Internacional e do enunciado dos crimes
contra a humanidade, passando pela proposição de Estados fora da lei
(Birman, 2008), os arquivos sobre o mal encontraram a sua matéria-prima
para serem escritos.
Foi pela referência a esses arquivos que Derrida empreendeu uma
série de reflexões e constituiu novos conceitos no final do seu percurso
teórico. Com efeito, a constituição das problemáticas da hospitalidade
(Derrida, 1997), da promessa (Derrida, 1997), da amizade (Derrida, 1994)
e do cosmopolitismo (Derrida, 1997), assim, como as suas preocupações
com a pena de morte e os Estados fora da lei (Derrida, 2003), remetem
efetivamente a esses arquivos sobre o mal. Enfim, seria nesse conjunto
que se inscreve o conceito de mal de arquivo, de fato e de direito.
Foi no campo delineado por essa preocupação maior, ao mesmo
tempo teórica, ética e política, que o ensaio sobre os “Estados da alma da
psicanálise”, foi concebido. Estaria aqui a linha de continuidade existente
entre os dois últimos ensaios de Derrida sobre a psicanálise.
123

Crueldade e soberania
Seria justamente pela pregnância assumida pela problemática
dos arquivos sobre o mal no percurso final de Derrida, que a questão da
crueldade assumiu uma posição crucial no ensaio sobre os “Estados da
alma da psicanálise”. Com efeito, da primeira à última linha desse texto
é a questão da crueldade que está sempre em pauta. Além disso, foi por
essa trilha discursiva que a psicanálise foi novamente interpelada por
Derrida, na medida que não existiria qualquer possibilidade de se fazer
uma meditação efetiva sobre essa questão sem a participação do discurso
psicanalítico (Derrida, 2000, p. 11-12).
Antes de tudo, isso implica em dizer, que, na estratégia discursiva
de Derrida, os arquivos sobre o mal revelariam os signos insofismáveis da
crueldade na tradição ocidental. Vale dizer, a crueldade seria o operador
por excelência para a produção do mal. Retomando, assim, a referência
filosófica de Kant, Derrida pôde então afirmar que a crueldade seria o mal
radical (Derrida, 2000, p. 13).
Em seguida, isso evidenciaria ainda que o processo atual de mundia-
lização estaria lançando os dados do destino no que concerne à crueldade
(Derrida, 2000, p. 17-19). Vale dizer, se a crueldade seria uma das marcas
decisivas que permeou a história do Ocidente, as modalidades de sua
existência e as suas formas de apresentação se transformaram ao longo da
história (Derrida, 2000, p. 17-18). Portanto, seria necessário considerar a
crueldade não de maneira trans-histórica, mas sublinhar as suas diversas
transformações e modulações. Enfim, da mesma forma que a psicanálise
seria uma construção histórica e finita (Derrida, 2000, p. 17-19), a crueldade
seria também marcada pela historicidade.
No que concerne a isso, duas dimensões cruciais foram enfatizadas
ao longo do ensaio de Derrida. Se a primeira se refere ao conceito moderno
e contemporâneo da crueldade, a segunda procura enunciar as relações
dessa com a problemática do poder. Vejamos, assim, como Derrida delineia
essa dupla dimensão da questão da crueldade.
Assim, no registro do conceito a crueldade não se reduz, como na
tradição romana, ao crime de sangue, seja esse a criminalidade, seja esse
124

a ação política e militar (Derrida, 2000, p. 10-11). Ultrapassando bastante


os limites estritos da crueldade sangrenta (cruor, crudus, crudelitas), a
crueldade implicaria também os crimes sem sangue. Com efeito, sob as
formas de o sujeito fazer mal ao outro, do sujeito se deixar fazer mal e
até mesmo do sujeito se fazer mal, o campo da crueldade assume uma
extensão bem mais ampla, no qual o registro psíquico estaria também em
causa (Derrida, 2000, p. 9-12). Seria pelo viés dessa marca não sangrenta
da questão que a psicanálise seria um discurso incontornável em qualquer
reflexão sobre a crueldade (Derrida, 2000, p. 12-13). Portanto, entre o su-
jeito se deixar sofrer e o fazer sofrer a crueldade assume uma outra escala
de existência, podendo englobar a quase totalidade das ações humanas e
dos laços sociais (Derrida, 2000, p. 9-12).
Contudo, entre os polos do se deixar sofrer e o do fazer sofrer a
crueldade, seja sob as formas sangrenta e não sangrenta, implicaria
necessariamente a problemática do poder político, sob a forma da so-
berania (Derrida, 2000, p. 16-18). Vale dizer, não seria possível pensar
na questão da crueldade como uma invariante histórica, sem que se
enfatize, em contrapartida, a sua articulação orgânica com o poder so-
berano. Como detentor legítimo que é do uso da força, o Estado seria
aquele que empreenderia, de maneira direta e indireta, o exercício da
crueldade (Derrida, 2000, p. 16-18).
Seria em decorrência disso que a mundialização nos colocaria diante
de um cenário novo e que poderia nos entreabrir outras possibilidades
éticas e políticas, historicamente falando. Isso porque a mundialização
poderia colocar em questão a soberania do Estado-nação, rompendo assim
com a legitimidade do uso da força e do seu poder (Derrida, 2000, p. 19-
20). Seria por esse viés que um cosmopolitismo efetivo, portanto, poderia
se constituir na tradição do Ocidente (Derrida, p. 18-22).
Derrida pensa aqui nos avanços efetivos e substanciais que ocor-
reram para a construção política da União Europeia, que transcendem
bastante os limites da Comunidade Econômica Europeia, pela qual os
diversos Estados membros cederam uma parcela de suas soberanias po-
líticas a instâncias transnacionais. Com isso, um deslocamento do registro
125

estritamente econômico para o político se realizou efetivamente e estaria


ainda se processando historicamente.
Contudo, se isso estaria já ocorrendo na Europa o mesmo não seria
o caso nas demais comunidades regionais, sejam essas na América do Nor-
te, na América do Sul e na Ásia, nas quais a associação entre as nações se
fundaria apenas no registro estritamente econômico e a soberania política
não estaria sendo colocada efetivamente em questão.
Existiria, portanto, a possibilidade real de questionamento da cruel-
dade pelas novas condições histórica e política de superação da soberania.
Esta modalidade de reflexão evidencia, no entanto, que a desconstrução
não seria um voluntarismo filosófico, mas um método inscrito no discurso
filosófico que seria marcado pelas possibilidades reais entreabertas pela
história. Daí, aliás, as diferentes problemáticas que foram trabalhadas no
período final do pensamento de Derrida, a que já nos referimos acima, que
seriam decorrentes da desconstrução dos arquivos sobre o mal.
Pode-se depreender disso que Derrida procurou estabelecer a
diferença teórica existente entre a mundialização e o internacionalismo,
no que concerne o critério distintivo da soberania. Com efeito, enquanto
essa seria marcada pelo imperativo da soberania, que regularia as relações
entre os diversos Estados, aquela não mais seria regulada pela soberania,
indicando assim a possibilidade de ultrapassamento efetivo da soberania.
Enfim, se a mundialização implicaria no cosmopolitismo, a internaciona-
lização não construiria jamais um mundo cosmopolita.
Por essa trilha a psicanálise poderia ser efetivamente interpelada. A
indagação que se colocaria aqui enfaticamente é se a psicanálise pretende
se manter como uma organização internacional ou, ao contrário, almejaria
se transformar num movimento cosmopolita.
Seria justamente esse o desafio maior colocado para os Estados
Gerais da Psicanálise, no cenário do qual Derrida proferia a sua conferência
sobre os “Estados da alma da psicanálise”.
126

Saber sem álibi


Seria em decorrência disso, antes de qualquer coisa, que a psica-
nálise estaria implicada na desconstrução da crueldade, seja para o bem
seja para o mal. Pode-se sustentar essa proposição não apenas porque o
discurso freudiano trabalhou efetivamente essa problemática, nos registros
teóricos e clínicos, como ainda veremos adiante, mas também porque a
psicanálise constituiu as suas instâncias de soberania e colaborou então
com o exercício efetivo da crueldade (Derrida, 2000, p. 20-30). Com efeito,
as diferentes organizações internacionais de psicanálise – seja a Associação
Internacional de Psicanálise, sejam as diversas associações lacanianas e
as das demais escolas de psicanálise –, constituíram campos diferentes de
soberania, nas quais a crueldade encontrou o seu canteiro de obra para
se exercer e se disseminar.
No que concerne a isso, não se pode confundir a internaciona-
lização do movimento psicanalítico com a sua possível mundialização
cosmopolita, na medida em que naquela o exercício do poder soberano e
da crueldade estariam presentes, enquanto que nessa poderia se delinear
efetivamente um outro horizonte de futuro, sem evidenciar a presença de
tais marcas características. Seria essa perspectiva para um outro vir a ser
para o movimento psicanalítico, enfim, o que estaria efetivamente em
foco na leitura proposta por Derrida.
Assim, Freud constituiu a internacionalização da psicanálise, na
primeira década do século passado, com a organização da Associação
Internacional de Psicanálise. Congregou desde então diversas associações
em diferentes países, disseminando a psicanálise no campo internacional.
Porém, a estrutura soberana do poder foi instituída, tanto no nível geral
quanto no nível local. A criação de um Comitê Secreto, marcado pela es-
trita fidelidade à Freud, selou a ordem soberana em questão, num pacto
eloquente (Derrida, 2000, p. 27-28). As demais internacionais psicanalíticas
reproduziram no fundamental a mesma estrutura de poder, não obstante
as suas diferenças, aparentes e superficiais.
Por isso mesmo, a constituição dos Estados Gerais da Psicanálise,
em 2000, interessou vivamente à Derrida e delineou o cenário para a
127

sua conferência sobre os Estados da alma da psicanálise. Com efeito, os


Estados Gerais da Psicanálise seriam uma oportunidade crucial para se
colocar em questão a ordem soberana instituída na comunidade psica-
nalítica e o seu correlato, qual seja o exercício da crueldade (Derrida,
2000, p. 20-30). Para isso, no entanto, o movimento psicanalítico deveria
se deslocar decisivamente do registro da internacionalização para o do
cosmopolitismo.
Nesta perspectiva, os Estados Gerais da Psicanálise não poderiam
pretender a salvação da psicanálise (Derrida, 2000, p. 18-19). Numa com-
paração com a Revolução francesa, que foi precedida pela constituição
dos Estados Gerais, convocados pelo rei, não se poderia constituir um
Comitê de Salvação Pública, que seria o cenário instituinte de uma nova
soberania no campo psicanalítico (Derrida, 2000).
É preciso destacar aqui, com toda a ênfase necessária, o que sig-
nifica o enunciado de “salvação” da psicanálise, formulado que esse foi
por Derrida de maneira contundente. Algumas indagações se impõem
aqui, de maneira prévia, para que se possa responder devidamente a essa
questão. Antes de tudo, quem convocou os Estados Gerais da Psicanáli-
se? Em seguida, o que pretende o dito Estados Gerais nos seus debates e
desdobramentos, isto é, quais seriam as suas estratégias e as suas táticas?
(Derrida, 2000, p. 20-30).
Os Estados Gerais da Psicanálise foram convocados para um amplo
Comitê Internacional, que não foi regulado na escolha de seus nomes e
nas suas temáticas por nenhuma das diversas organizações psicanalíticas
internacionais. Portanto, ocorreu na sua convocação uma ruptura efetiva
com as soberanias constituintes e instituintes do movimento psicanalítico
internacional. Ao lado disso, os diversos participantes dos Estados Gerais
aderiram a esse em nome próprio e não por fazerem parte de alguma ins-
tituição psicanalítica existente. Portanto, a adesão e a participação foram
marcadas pela singularização de seus participantes. Enfim, as diversas
temáticas do debate procuraram colocar em pauta os impasses presentes
nos diversos discursos teóricos e nas modalidades de organização social
da psicanálise.
128

Além disso, Derrida evocou a presença de um mal-estar na psica-


nálise, em decorrência da perda de seu prestígio simbólico e social. Com
efeito, a disseminação do discurso teórico das neurociências na contempo-
raneidade acossaria efetivamente a psicanálise e colocaria em cena a sua
possibilidade efetiva de sobrevivência no futuro (Derrida, 2000, p. 19-20).
O que se impõe, portanto, é a interrogação crucial de como é que a psica-
nálise iria se defrontar efetivamente com os novos discursos científico e
técnico que lhe interpelam hoje. Se Freud nunca evitou tal debate, segundo
Derrida, é preciso saber como a psicanálise na contemporaneidade vai se
posicionar face aos novos discursos científico e técnico.
Assim, promover efetivamente uma outra modalidade de Estados
Gerais da Psicanálise, implicaria que essa, de fato e de direito, pudesse
romper efetivamente com os seus compromissos com as instâncias da
soberania e do exercício da crueldade. Portanto, não transformar os
ditos Estados Gerais numa “salvação” da psicanálise seria romper com
tais modalidades de organização soberana, que assumem hoje feições
marcadamente fundamentalistas. Isso porque os supostos discursos
teóricos de tais organizações soberanas indicam as suas relações com
o registro teológico-político, que se materializam nas suas formas de
soberania institucional. Enfim, o risco presente nos Estados Gerais, em
querer salvar a psicanálise, seria o de constituir uma nova internacional
psicanalítica e um outro campo político de soberania, tendo como seu
correlato a experiência do terror, tal como ocorreu num segundo tempo
da Revolução francesa.
Para isso, no entanto, a ruptura com a soberania e com a crueldade
implicaria no deslocamento decisivo da internacionalização da psicanálise
para a sua efetiva mundialização. Se essa pressupõe o cosmopolitismo
concretamente (Derrida, 1994), isso implicaria na constituição de laços
sociais fundados na amizade, que relançaria o movimento psicanalítico
numa outra perspectiva ética e política, como Derrida delineou na sua
obra “Políticas da amizade” (Derrida, 1994). Enfim, o cultivo dos laços
de amizade, na comunidade psicanalítica, iria em direção oposta à da
soberania e da crueldade.
129

Porém, para que isso possa acontecer efetivamente seria necessário


que a psicanálise possa se deslocar de sua posição de pretensa neutralidade
em relação ao registro político, que teria marcado a sua história desde os
seus primórdios (Derrida, 2000, p. 27-30 e p.60-70). Com efeito, seria pre-
ciso que a psicanálise possa assumir os seus compromissos com a política,
sem o qual continuará a manter inequivocamente os seus álibis com os
registros da teologia, da moral, do poder e da soberania (Derrida, 2000, p.
18-19). Isso porque, com tais álibis, a psicanálise estaria perpetrando um
crime contra os seus próprios pressupostos, produzindo em relação ao
seu discurso efeitos autoimunitários, que lhe conduzirão infalivelmente
à sua efetiva dissolução histórica (Derrida, p. 23-25). Enfim, não se pode
esquecer, em relação a isso, que a psicanálise é um discurso teórico finito
porque histórico, conforme Derrida sublinhou desde o início do seu ensaio
(Derrida, 2000, p. 17-19).
Foi neste contexto, aliás, que Derrida formulou uma das melhores
definições, ao mesmo tempo ética e política, da psicanálise, qual seja,
de que essa seria e deveria ser um saber sem álibi (Derrida, 2000, p. 88).
Formular que a psicanálise seria um saber sem álibi, implica em enunciar
que essa não poderia estabelecer qualquer relação de compromisso com a
crueldade e com a soberania, sob o risco de promover efeitos autoimunes
que lhe conduziriam à sua própria dissolução. Derrida enuncia, portanto,
que no registro psíquico do inconsciente não poderia existir álibis, mas
se a comunidade psicanalítica procura tecer laços com a crueldade e a
soberania, a psicanálise caminharia inevitavelmente em direção à sua
dissolução autoimunitária. Estaria aqui, nesse paradoxo, o impasse maior
da psicanálise na atualidade.
No entanto, para se manter a altura de ser discurso e ter a envergadu-
ra ética de ser um saber sem álibi, a psicanálise teria que se defrontar ainda
com a problemática da crueldade em outros registros, sejam esses teóricos,
clínicos e éticos. Estaria aqui a outra dimensão da questão colocada por
Derrida. Isso porque é preciso evocar que a crueldade sempre esteve no
horizonte do discurso psicanalítico desde os primórdios da sua história
e, por isso mesmo, qualquer confrontação efetiva na atualidade com a
130

problemática da crueldade, passaria necessariamente pela psicanálise.


Se outros saberes estariam também aqui envolvidos, enfim, a psicanálise
ocuparia uma posição crucial nessa interpelação (Derrida, 2000, p. 12-13).
Porém, é preciso sublinhar devidamente que se a soberania e a
crueldade resistem à psicanálise, por um lado, a psicanálise sempre resistiu
também à soberania e à crueldade (Derrida, 2000, p. 20-22 e p. 40-60). O
que está em pauta aqui para Derrida é o próprio conceito psicanalítico de
resistência (Derrida, 2000, p. 20). O qual implica em dizer que a psicanálise
enquanto tal resiste também à psicanálise, produzindo efeitos autoimunes
em relação a si própria. Ou, dito de outra maneira, o movimento psicanalí-
tico resiste igualmente à psicanálise e ao inconsciente, caracterizados que
esses seriam pela dimensão ética do imperativo do sem álibi.
Estaria aqui o paradoxo crucial enunciado por Derrida no que
concerne a relação da comunidade psicanalítica com a psicanálise e com
o registro psíquico do inconsciente. As sombras da psicologização, da
psiquiatrização e da medicalização do discurso psicanalítico se enunciam
aqui com toda a eloquência possível.
Portanto, para que se possa caminhar devidamente pelo fio da
navalha desse paradoxo, mantendo o imperativo ético da psicanálise de
pretender ser um saber sem álibi, o que se coloca para nós agora é o de in-
terpelar como o discurso freudiano trabalhou a problemática da crueldade.

Signos da crueldade
De que maneira se enunciou a problemática da crueldade no discur-
so freudiano? Quais signos evidenciam nesse um trabalho teórico efetivo
sobre a dita problemática?
Certamente, foi pela formulação do conceito de pulsão de morte,
enunciado no ensaio “Além do princípio do prazer” e publicado em 1920
(Freud, 1981), que o discurso freudiano colocou em destaque o registro
do aparelho psíquico onde se enraizaria a crueldade. Com efeito, foi pela
mediação do conceito de pulsão de morte que Freud formulou a existência
da pulsão de destruição como sendo um de seus desdobramentos cruciais,
ao lado da compulsão à repetição. Portanto, foi pelo viés de sua “mitologia”
131

das pulsões, como Derrida se referiu repetidamente a isso no seu texto,


desde o seu início (Derrida, 2000, p. 14), que o discurso freudiano colocou
em evidência a problemática da crueldade.
No entanto, a inscrição dessa problemática na psicanálise se reali-
zou no discurso freudiano desde os seus primórdios, mas sob a forma de
outros enunciados. Com efeito, desde os “Três ensaios sobre a teoria da
sexualidade”, publicado em 1905, Freud já destacara a existência de uma
pulsão de domínio no aparelho psíquico, na qual a dita pulsão se articula-
ria com os imperativos do poder e da soberania (Freud, 1962). A pulsão de
domínio teria como alvo o controle e a captura do objeto, como condição
fundamental para a produção do prazer. Portanto, pela mediação da pulsão
de domínio seria já pela dita “mitologia” da pulsão que a crueldade estaria
em causa para Freud.
Ao lado disso, o sadismo e o masoquismo como pulsões primordiais
do psiquismo se inscreveram também no discurso freudiano desde os
“Três ensaios sobre a teoria da sexualidade” (Freud, 1962), compondo o
campo da crueldade. Assim, desde os seus primórdios essa problemática se
inscreveu no discurso freudiano pela polaridade estabelecida entre o fazer
sofrer e o se deixar sofrer, modalidades essas que seriam da produção do
prazer. Enfim, seria ainda por esse viés que a dita “mitologia” das pulsões
estaria em pauta na elucidação da economia da crueldade.
Assim, pelo enunciado de diferentes conceitos Freud inscreveu a
problemática da crueldade no campo da psicanálise, de fato e de direito.
Além disso, todos esses conceitos se articulariam sempre no registro da
pulsão, de diferentes maneiras. Por isso mesmo, a psicanálise seria um
saber crucial, ao lado de outros, em qualquer reflexão rigorosa sobre a
crueldade. Para Derrida, a legitimidade do discurso freudiano, no que
concerne a isso, seria indiscutível.
É preciso se indagar agora, contudo, como Freud trabalhou essa
problemática ao enunciar os diferentes conceitos acima destacados. Para
responder devidamente a isso é preciso indicar alguns campos teóricos,
no discurso freudiano, pelos quais a dita problemática foi se impondo para
Freud de maneira irrefutável, na sua leitura do psiquismo.
132

Vamos colocar em evidência a descontinuidade presente no dis-


curso freudiano no que concerne a isso, indicando ao mesmo tempo as
articulações presentes nesse discurso entre as problemáticas da crueldade
e da soberania.

Soberania e injustiça, entre destruição e domínio


Assim, apesar de ter enunciado o conceito de pulsão de domínio
desde os primórdios da psicanálise, o discurso freudiano não conferiu a
essa o atributo de ser uma pulsão de destruição. Somente posteriormente
essa inflexão decisiva foi realizada no dito discurso, em decorrência da
transformação da teoria das pulsões ocorrida com o enunciado do con-
ceito de pulsão de morte.
Nos primórdios do discurso freudiano, a pulsão de domínio esta-
ria imediatamente ligada ao sadismo primário, pelo qual, no campo da
sexualidade perverso-polimorfa, o infante procuraria dominar o objeto
com a finalidade da obtenção do prazer, mas sem ter, em contrapartida,
o propósito de provocar dor (Freud, 1962). Seria a constatação efetiva do
dano produzido no objeto, por outro lado, o que conduziria o infante à
reversão da direção da pulsão, infletindo-a então do registro do sadismo
para o do masoquismo, isto é, reconfigurando-a do pólo do fazer mal para o
do se deixar fazer mal (Freud, 1962). Seria a culpa, enfim, o que produziria
a reversão da direção da pulsão no aparelho psíquico, conduzindo-a para
um outro destino (Freud, 1962).
Nesse contexto teórico, portanto, a constituição do psiquismo se-
ria fundamentalmente marcada pelo masoquismo, na medida em que o
movimento do fazer mal (sadismo) se transformaria no movimento do se
fazer mal (masoquismo), na inflexão daquele produzido pela culpa.
Na sua primeira genealogia do mal-estar na modernidade, publicado
em 1908, sob o título de “A moral sexual ‘civilizada’ e a doença nervosa dos
tempos modernos”, com efeito, Freud indicou o conjunto de operações de
interdição e de práticas institucionais (ordem familiar e casamento mono-
gâmico) que seriam as condições social e histórica de possibilidade para
a dita reversão masoquista. A resultante maior disso seria o masoquismo,
133

como matéria-prima primordial das “doenças nervosas dos tempos mo-


dernos” (Freud, (1908) 1973), isto é, das diversas perturbações psíquicas
recenseadas pelo discurso psiquiátrico.
Nessa perspectiva, a pretensão da experiência psicanalítica seria
a de promover a cura do dito mal-estar, pela suspensão do movimento
masoquista do sujeito. Para isso, contudo, esse teria que compreender
que pretender dominar o objeto para a obtenção do prazer não implicaria
necessariamente em produzir qualquer dano nesse. Vale dizer, o sujeito
seria concebido aqui como naturalmente bom, mas as formas pelas quais
as práticas institucionais de socialização teriam promovido as suas inter-
dições lhe teriam conduzido infalivelmente à certeza de que seria mal,
advindo daí as ditas perturbações psíquicas disso decorrentes. Enfim, a
transformação da pulsão de domínio em masoquismo, pela mediação da
culpa, seria a fonte inesgotável do mal-estar na modernidade.
É preciso evocar, no que tange a isso, que o discurso freudiano se
inscrevia aqui na matriz teórica da filosofia política de Rousseau que, no
“Discurso sobre a desigualdade entre os homens” (Rousseau, 1973), for-
mulara que seria pela operação da piedade que o indivíduo abriria a mão
do exercício da violência sobre o outro e da rivalidade mortífera, consti-
tuindo assim as condições de possibilidade para a harmonia e o contrato
social, numa efetiva comunhão coletiva. Seria por esse viés, enfim, que o
mundo se deslocaria do registro pré-político para o político, instaurando
assim a soberania do Estado.
A descrição freudiana foi moldada nas mesmas linhas de força da
interpretação de Rousseau, na qual a violência primordial enunciada por
esse seria similar à pulsão de domínio daquele. Além disso, a operação
da piedade seria similar à interdição produzida pela culpa. O que estaria
teoricamente em pauta para ambos, em campos discursivos bastante
diferentes, seria a passagem decisiva do registro da natureza para os da
ordem social, política e civilizatória, que implicariam a constituição do
sujeito no registro ético.
Porém, em “Totem e Tabu” a descrição freudiana das relações de
força e de poder entre os indivíduos já evidenciava novas questões, na
134

medida que o domínio do soberano sobre o outro revelava já a sua dimen-


são destrutiva e sangrenta. Assim, na leitura do mito da horda primitiva
de Darwin, o discurso freudiano colocou em destaque a dominação feroz
e a destruição realizadas pela figura do pai originário sobre os filhos, caso
esses colocassem em questão o monopólio do gozo pretendido por aque-
le (Freud, 1975). Além disso, quando os filhos se rebelaram contra o pai
posteriormente, associando as suas frágeis forças para se contraporem à
onipotência daquele, a resultante disso foi o parricídio (Freud, 1975). A
crueldade sangrenta, em toda a sua eloquência, enfim, se inscreveu agora
no discurso freudiano nos seus menores detalhes.
Contudo, se a figura do pai morto se forjou assim como o mito fun-
dante das ordens social e política, pela associação tecida pelos irmãos,
a culpa se delineou aqui, em contrapartida, como um imperativo para
impedir que os filhos pudessem exercer no futuro a força sangrenta e o
exercício onipotente do poder. Ao lado disso, a ameaça da repetição da
morte violenta se colocou também em cena, como um espectro. Com
efeito, a figura do pai onipotente, representado que foi pelo totem, seria
a evocação permanente para que ninguém ousasse exercer o poder oni-
potente daquele, sob o risco de ter o mesmo destino, qual seja, a morte
pelo assassinato (Freud, 1975).
Pode-se depreender disso que Freud não esboça aqui, na sua leitura
do mito da horda primitiva, a constituição das ordens social e política
em geral, mas a emergência da modernidade, pela qual os filhos/cida-
dãos forjaram uma sociedade igualitária e fraternal com a realização da
Revolução francesa. A liberdade daquelas resultantes seria a decorrência
da interdição e da ameaça pela morte de qualquer um que pretendesse
realizar o exercício onipotente do poder.
No entanto, a piedade estaria ainda aqui presente nessa descrição,
mas de maneira agora oblíqua, não obstante o exercício da crueldade san-
grenta e a afirmação eloquente de que no fundamento da ordem política
estaria o crime. Porém, se esse provoca culpa nos seus realizadores, isso
evidencia de forma patente a compaixão dos vivos para com os mortos e
a sombra da piedade como virtude moral. Seria a presença da piedade e
135

da culpa, na regulação possível das relações e dos laços sociais, enfim, o


que faria o discurso freudiano apostar na ordem republicana e na demo-
cracia modernas.
Contudo, logo em seguida, em 1915, Freud se confrontou direta-
mente com a impossibilidade da existência de qualquer soberania sem
violência. Em “Considerações atuais sobre a guerra e a morte”, o discurso
freudiano expressou a sua surpresa pela violência sangrenta e a crueldade
que se faziam presentes nos campos de batalha da Primeira Grande Guerra,
no confronto bestial entre as diferentes tradições iluministas europeias,
isto é, a Alemanha, a França e a Inglaterra (Freud, 1981).
O que Freud colocou aqui em questão foi o paradigma dominante da
filosofia política de então, qual seja o Estado como representante legítimo
do uso da força e da violência. Isso porque esse paradigma, que condensava
a concepção de soberania, indicava agora as suas consequências cruéis,
sem qualquer disfarce, de maneira eloquente (Freud, 1981).
Com efeito, numa inflexão decisiva de seu pensamento, Freud pôde
assim formular que a soberania do Estado seria a condensação efetiva da
injustiça (Freud, 1981). Assim, o Estado e o direito evidenciariam a cruel-
dade presente na regulação dos laços sociais e seria essa crueldade o que
fundaria a soberania. Vale dizer, o Estado, o direito e a soberania seriam
os representantes da injustiça e não da justiça propriamente dita.
É preciso evocar aqui que Benjamin, logo após a Primeira Grande
Guerra, formulou uma tese bastante próxima daquela enunciada por
Freud. Com efeito, no seu ensaio “Crítica da violência”, publicado em 1921,
Benjamin sublinhou a diferença existente entre os registros do direito e da
justiça, indicando que a ordem do direito não se pautava pelo imperativo
da justiça, mas, ao contrário, pela exigência do poder (Benjamin, 2000).
Foi pela mediação da crítica da soberania, na articulação dessa
com a injustiça e a crueldade, que o discurso freudiano se desdobrou
numa outra teoria das pulsões, em 1920. Nesse contexto, o conceito
de pulsão de morte, sob as formas da pulsão de destruição e da pulsão
de dominação, foi enunciado em “Além do princípio do prazer” (Freud,
1981). Além disso, foi apenas nesse contexto que a pulsão de dominação
136

passou a assumir efetivamente a marca da crueldade, pela qual o sujeito


pretenderia efetivamente gozar pelo exercício do mal e do fazer o outro
sofrer.
Em seguida, no ensaio “Psicologia das massas e análise do eu”, pu-
blicado em 1921, Freud retomou a metáfora do porco-espinho enunciada
por Schopenhauer, pela qual, como esse, a figura do homem não poderia
se aproximar demais dos outros, sob o risco de se eriçar e de se conflitar
inevitavelmente com esses (Freud, 1981). Assim, certa distância teria que
ser mantida entre os indivíduos, caso contrário a violência se imporia
inevitavelmente entre esses. O que implicaria em enunciar que o homem
seria efetivamente um animal de horda e não um animal de massa, pelo
qual aquele seria marcado pela heterogeneidade, sendo daí decorrente
a pretensão do sujeito para a violência e para o fazer mal (Freud, 1981).
Vale dizer, não obstante a morte do pai onipotente da horda pri-
mitiva e da culpa totêmica dos filhos/cidadãos, o sujeito continuaria a se
fundar na animalidade da horda, exercendo assim a crueldade e a violência
sangrentas, em qualquer eventualidade perigosa que se colocasse para si.
Seria a singularidade do sujeito, correlato que seria da sua heterogeneida-
de, o que lhe conduziria inapelavelmente em direção ao mal.
Assim, o discurso freudiano passou a se inscrever decididamente
numa outra tradição da filosofia política clássica, afastando-se da concep-
ção teórica de Rousseau e se aproximando do modelo teórico de Hobbes,
formulado de maneira sistemática no “Leviatan” (Hobbes, 1972). Com
efeito, no “Mal-estar na civilização”, publicado em 1930, Freud enunciou
repetidamente que “o homem é o lobo do homem” (Freud, 1971), uma das
formulações fundamentais de Hobbes na sua filosofia política.
Porém, se no discurso teórico de Hobbes a violência e a crueldade
humanas justificariam a constituição legítima da soberania do Estado,
como a única instância efetiva para o uso legítimo da força, representado
no seu paradoxo pelo monstro bíblico Leviatan, no discurso tardio de
Freud isso não se justificaria mais. Isso porque, como no discurso teórico
de Benjamin, o Estado seria o representante da injustiça e da força, fonte
da dominação e do mal.
137

Assim, no final do discurso freudiano o Estado e a soberania política


não seriam mais as instâncias políticas que garantiriam a concórdia e a
harmonia sociais, isto é, a fraternidade , a igualdade e a liberdade, entre
os cidadãos, mas revelaria no seu interior as divisões e as fragmentações
presentes no espaço social. Portanto, seria a guerra de todos contra todos
o que atravessaria o espaço social de maneira contínua, insistente e per-
manente. Com efeito, o homem seria indubitavelmente o lobo do homem,
como formulara corretamente Hobbes, mas com a diferença agora de que
não existiria mais qualquer instância transcendente que pudesse proteger
os homens da guerra permanente que esses estabeleceriam no espaço
social. Enquanto representação da injustiça, enfim, o Estado não poderia
mais transcender as relações de força, de enfrentamento e de guerra que
estariam sempre presentes nas relações entre os indivíduos.
Em “O problema econômico de masoquismo”, publicado em 1924,
Freud destacou como o sujeito seria conduzido inevitavelmente para a
violência na tentativa de domínio de pulsão de morte pela pulsão de vida.
Com efeito, se na expulsão originária da pulsão de morte pela mediação
da pulsão de vida, o psiquismo pretendia assim se proteger da destruição
produzida pela pulsão de morte em estado livre, acabaria por promover
assim pela violência a constituição da pulsão de destruição (Freud, 1973).
Se pulsão de destruição indicaria o exercício da crueldade face ao outro,
sob a forma eloquente do fazer sofrer, por um lado, a pulsão de morte não
eliminada pela expulsão permaneceria como resto e como fonte inesgotá-
vel do se fazer sofrer, pelo outro. Enfim, os pólos do fazer sofrer e o do se
fazer sofrer se ordenariam ao mesmo tempo e num mesmo movimento
psíquico, regulados pelo confronto sempre recomeçado entre a pulsão de
morte e a pulsão de vida.

Freud, Einstein e a guerra.


Pode-se depreender desse percurso como a tese de Derrida, que pro-
curara articular as problemáticas da crueldade e da soberania, se sustenta
efetivamente no corpo teórico do discurso freudiano. No que concerne a
isso não existe qualquer dissonância entre as leituras de Derrida e de Freud.
138

Ao longo do seu ensaio, sobre os “Estados da alma da psicanálise”,


Derrida procurou fundamentar ainda a sua leitura nos comentários que
realizou dos textos de Freud e de Einstein intitulados “Por que a guerra?”,
publicados em 1932, sob os auspícios da Sociedades das Nações (Derrida,
2000, p. 31-36 e p. 65-82; Einstein, Freud, 1979, p. 195-215).
A problemática da soberania está amplamente presente nesse
debate, desde o início do texto de Einstein que iniciou essa conversação,
como condição de possibilidade que seria da guerra entre as nações e fonte
matricial da crueldade sangrenta (Einstein, Freud, 1979, p. 199-202). Isso
porque não existiria qualquer instância que transcendesse as nações nos
seus embates e que pudesse regular as suas relações de maneira pacífica.
A Sociedade das Nações, forjada que foi após o fim da Primeira Grande
Guerra, não pôde realizar essa função efetivamente e soçobrou com o
início da Segunda Grande Guerra, em 1939.
Porém, a indagação fundamental de Einstein à Freud, após a constata-
ção do estado de guerra presente entre as nações no plano internacional, é se
não existiria na condição humana esse movimento em direção ao confronto,
à violência e à guerra, que estaria no fundamento da impossibilidade de regu-
lação pacífica das relações entre as nações (Einstein, Freud, 1979, p. 199-202).
Foi nesse contexto que Freud respondeu precisamente com a sua
segunda teoria das pulsões, enfatizando o conflito permanente e insistente
existente entre as pulsões de vida e as pulsões de morte que marcariam
os sujeitos, com todas as consequências éticas que procuramos esboçar
acima de maneira sistemática (Einstein, Freud, 1979, p. 203-215). Vale dizer,
na sua resposta à Einstein, Freud condensou no fundamental a inflexão
decisiva realizada no seu discurso teórico depois do ensaio “Considerações
atuais sobre a guerra e a morte” e que lhe conduziu inapelavelmente para
a formulação da sua teoria da pulsão de morte.
Foi nesse contexto que Derrida procurou comentar o discurso te-
órico de Freud, considerando a sua similaridade e suas diferenças face à
outros discursos teóricos inscritos na tradição filosófica, no que concerne
a problemática da crueldade, dando especial destaque ao pensamento de
Nietzsche. É o que veremos no que se segue.
139

Guerra, política e crueldade


Assim, para Nietzsche a crueldade seria constitutiva do vivente, sen-
do pois ineliminável do seu ser. Isso porque aquela se insere no registro da
luta pela vida, sendo uma das dimensões pelas quais a vida seria afirmada
(Nietzsche, 1971; Derrida, 2000, p. 10-11 e p. 72). Essa concepção teórica e
ética de Nietzsche remete à Schopenhauer, que no seu discurso filosófico
enunciou a relação entre o vivente, a luta pela vida e a afirmação vital do
ser (Schopenhauer, 1966).
Pode-se afirmar, no que concerne a isso, que essa concepção é es-
tritamente moderna, não estando presente nem na filosofia antiga nem
tampouco na filosofia medieval. Com efeito, para Aristóteles (Aristote,
1965) e Sêneca (Sénèque, 1980) a crueldade evidenciaria uma animalização
do homem, que perderia assim a sua especificidade.
Nos séculos XVI e XVIII, com Maquiavel (Machiavel, 1952) e Hob-
bes (1972), a violência e a crueldade foram reconhecidas como dimensão
aceitável da condição humana, no que tange especificamente o campo da
política e das relações de poder. Vale dizer, com a constituição do discurso
da soberania a crueldade foi reconhecida como legítima, mas se restrin-
gindo ao registro estritamente político. O que confirma, aliás, a leitura
de Derrida sobre as relações entre crueldade e soberania, enunciada ao
longo do ensaio sobre os “Estados da alma da psicanálise”, assim como a
leitura de Freud.
Foi apenas com Sade que a crueldade se deslocou no registro
estritamente político e passou a se inscrever como marca constitutiva
do ser (Sade, 1972). Desde então se produziu uma descontinuidade no
pensamento ocidental, pela qual a crueldade foi trabalhada como traço
inconfundível do ser, com Schopenhauer e Nietzsche. Por conta disso,
Freud se inscreveu nessa nova tradição teórica, com as características que
foram acima destacadas. Da mesma forma, Artaud incorporou essa marca
da crueldade no seu discurso, na sua concepção do teatro da crueldade
(Artaud, 1978).
No entanto, se a modernidade da concepção da crueldade fica
assim teoricamente sustentada, as teorizações sobre essa problemática
140

não foram as mesmas em Nietzsche e Freud. Com efeito, se para aquele


a crueldade não teria um oposto, que pudesse se contrapor ao mal, em
Freud esse oposto existiria, sob a forma da pulsão de vida (Derrida, 2000,
p. 73-80). De fato, ao se opor à pulsão de morte, a pulsão de vida poderia
regular os efeitos da pulsão de destruição e da pulsão de domínio. Seria
pela produção do diferir e pelo engendramento insistente da diferença,
que a pulsão de vida poderia regular os efeitos da destruição e da crueldade
promovida pela pulsão de morte (Derrida, 2000, p. 73-80).
O que não implica em dizer, bem entendido, que a pulsão de vida
vencerá efetivamente os seus embates com a pulsão de morte. Porém,
trata-se de uma aposta levantada concretamente pelo discurso freudiano
no final do seu percurso, com toda a dimensão de indecidibilidade que
isso comportaria como possibilidade. Enfim, o diferir, como operação
engendrada pela ligação da pulsão de vida com a pulsão de morte, abriria
uma possibilidade na regulação da crueldade e da pulsão de destruição.
Em decorrência disso, Freud enfatizou, em “Análise com fim e aná-
lise sem fim” (Freud, 1988), os impasses dessa questão no registro estrito
da experiência analítica, concebida que foi essa agora como um campo
delineado pela metáfora da guerra. Com efeito, no confronto entre a pul-
são de vida e a pulsão de morte, vencerá a guerra quem contar com os
“batalhões mais fortes”. Vale dizer, a soberania, como figura da governa-
bilidade e da política, se apaga agora face ao imperativo da guerra, num
resultado agora indecidível no embate estabelecido entre a pulsão de vida
e a pulsão de morte.
Por isso mesmo, continuando com a mesma metáfora da guerra,
em oposição à da política, o discurso freudiano pôde enunciar ainda no
mesmo ensaio que existiriam três práticas sociais impossíveis, quais sejam,
ensinar, governar e psicanalisar (Freud, 1988). Com isso, a psicanálise se
aproximaria da política como prática situada no limite do impossível, em
decorrência dos impasses no domínio da pulsão de vida sobre a pulsão
de morte, tanto no espaço psicanalítico quanto no espaço social. Enfim,
no confronto insistente e permanente entre essas forças, a guerra estaria
permanentemente presente nas relações entre os sujeitos.
141

Incondicional impossível
Contudo, o ensaio de Derrida termina com uma outra aposta e com
um outro lance de dados, lançados que foram esses na roleta do destino,
afirmando a sua diferença fundamental para com Freud. Essa aposta é
definida como um incondicional impossível, pelo qual a crueldade poderia
ser dominada e superada. Para que a psicanálise pudesse participar desse
projeto, no entanto, teria que ser concebida num além do princípio do
prazer e do princípio da realidade, isto é, num além do além, parodiando
Derrida criticamente agora o título do texto célebre de Freud sobre a pul-
são de morte. Vale dizer, a psicanálise teria que ser concebida num outro
registro, sem se fundar nestes “principados”, isto é, nessas “soberanias”
delineadas pelos tais princípios do prazer e da realidade (Derrida, 2000,
p. 84-90). Enfim, seria preciso caminhar decididamente em direção ao
além do além, residindo aqui a rota para o imperativo do incondicional
impossível.
Derrida retoma aqui a crítica à psicanálise, já enunciada anterior-
mente em A carta postal, obra publicada em 1980, pela qual tais princípios
e soberanias seriam obstáculos fundamentais para o discurso psicanalítico
(Derrida, 1980). Por isso mesmo, seria preciso ultrapassá-los e superá-los,
para que a psicanálise pudesse se defrontar efetivamente com a problemá-
tica da crueldade, de maneira decisiva. Para Derrida, enfim, tais princípios
provocariam efeitos autoimunes no discurso psicanalítico, conduzindo
esse para a sua dissolução efetiva.
Seria pela superação dessas soberanias, ainda presente no seu
discurso, que a psicanálise poderia se confrontar com esse incondicional
impossível, de forma a poder ultrapassar assim as relações da problemática
da crueldade com a da soberania.
A questão que isso coloca para a psicanálise, no entanto, é se na
sua leitura do aparelho psíquico, tal como foi concebida desde o discurso
freudiano, a psicanálise poderia abrir mão da dimensão econômica da me-
tapsicologia. Isso porque os princípios destacados por Derrida, o do prazer
e o da realidade, estariam no fundamento da dita dimensão econômica do
psiquismo. Seria possível conceber o aparelho psíquico sem a dimensão da
142

economia pulsional? Seria esse o preço que o discurso psicanalítico teria


que pagar para superar os seus impasses face à crueldade?
Além disso, se os registros da força e do sentido estariam neces-
sariamente articulados, tanto para Freud quanto para Derrida (1967), o
que se impôs para o primeiro, diferentemente do segundo, foi a crescente
autonomia do registro da força (pulsão) face à do sentido. A divergência
de Derrida para com o discurso freudiano convergiria para esse ponto
específico.
Foram essas as questões finais que Derrida lançou aos psicanalis-
tas, nos ditos Estados Gerais, na sua última e decisiva intervenção sobre
a psicanálise na sua obra. Colocou assim uma interpelação crucial para
o discurso psicanalítico, que continua ainda em aberto na atualidade e
sem qualquer horizonte visível para a sua possível realização, num futuro
próximo..
143

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145

Crítica do poder e violência da linguagem


Antônio Márcio Ribeiro Teixeira (UFMG)

“Proa da palavra, duro silêncio: nosso pai”


(C. Veloso: A terceira margem do rio)

Não é sem uma certa temeridade que eu me proponho a tratar do


tema da violência e do poder a partir de um autor como W. Benjamin, cuja
obra é mais conhecida pela dimensão, que a mim muito escapa, da crítica
literária e da reflexão estética. Pouco conhecendo sobre seus estudos acerca
do romance de Goethe e da poesia de Hölderlin, e havendo feito incursões
apenas diletantes em seus estudos sobre a lírica de Baudelaire e sobre o
surrealismo, eu escrevo como um leitor que tenta pensar a articulação, em
Walter Benjamin, entre a violência, o poder e a linguagem por razões que
dizem respeito, como se verá adiante, à associação problemática dessas
três dimensões. Minha referência se restringe, em princípio, a uma cole-
tânea de textos reunidos na primeira divisão do volume 2 dos Ausgewählte
Schrifte (Frankfurt, Surkamp Taschenbuch, 1966), parcialmente editada sob
o título “Mythe et violence”, na tradução francesa de M. de Gandillac, com
enfoque maior ao ensaio “Por uma crítica da violência”, escrito em 1921,
época em que seu autor mal contava com 29 anos de idade, cuja estrutura
está, portanto, longe de apresentar o equilíbrio de um texto de maturidade,
tal como “A obra de arte na era de sua reprodutibilidade técnica”, de 1936.
O leitor constatará, ademais, que longe de realizar uma apropriação
que se poderia dizer livre, desse ensaio, eu antes me proponho a lê-lo com
as lentes de Jacques Derrida, por motivos que dizem respeito ao aspecto
146

propriamente aporético do texto benjaminiano que esse autor enfatiza.


Interessa-me, acima de tudo, a observação de Derrida segundo a qual Zur
Kritik der Gewalt deve ser lido como um texto sem saída, um texto, eu
diria, autofágico, cujo suicídio só deixa como herança a violência de sua
assinatura. Eu me sirvo, com esse fim, de uma conferencia intitulada “pré-
nome Benjamin”, apresentada num colóquio ocorrido na Universidade
da Califórnia, em Los Angeles, intitulado O Nazismo e a solução final: os
limites da representação, cuja transcrição está disponível em português,
em livro traduzido por Leyla Perrone Moisés (DERRIDA, 2007, p.61-134).
Se me sirvo, portanto, não apenas de Benjamin, mas da leitura de Benja-
min por J. Derrida, para tratar do trinômio violência-poder-linguagem, é
porque interessa-me particularmente localizar o impasse em que a própria
linguagem se coloca ao pensar a articulação da violência com o poder.
Vale lembrar que ao se interrogar, em estilo proléptico, por aquilo
que W. Benjamin teria podido pensar a respeito do nazismo e da solução
final, caso a evolução desse mesmo acontecimento não o tivesse tirado tão
precocemente de cena, Derrida constata, num post scriptum publicado
após essa conferencia, que, ao menos em tese, Benjamin já antecipara
o que estava por vir. Ao afirmar que o horror da solução final desafia a
própria representabilidade, Derrida verifica que sua ocorrência procede
justamente daquilo que constitui, para W. Benjamin, o pecado original do
espírito linguístico, com a queda (Sündenfall) da linguagem na função de
representação (BENJAMIN, 1916/1988, p. 23 e passim). Se é, pois, verdade,
para Benjamin, que o mal advém à linguagem pela via da dimensão repre-
sentativa, pela via, portanto, técnica e utilitária que arrasta a linguagem
para fora de sua destinação originária de expressão e nomeação, a radi-
calização do mal, ligada à queda na linguagem da representação, teria en-
contrado no nazismo seu maior alcance, no sentido em que seu programa
foi a figura mais marcante da violência midiática e da exploração política
das técnicas de representação. Mas o que me interessa especialmente re-
ter, nesse comentário suplementar de Derrida, é a suposição de que seria
vão e sem pertinência, aos olhos de Benjamin, todo processo jurídico do
nazismo e de suas responsabilidades, do momento em que o aparelho de
147

julgamento ainda se desenvolve sob a ótica do representável em sua obje-


tivação histórica. Há, portanto, nessa reflexão, alguma coisa que desafia a
nossa própria capacidade de julgamento, na medida em que ela se move
num campo de linguagem ligado à representação. É como se o exercício da
força já estivesse presente na possibilidade mesma do uso ordenado que
fazemos da linguagem, em sua tentativa de denunciá-la. Para entender,
portanto, o que significa se servir da linguagem para se posicionar diante
da violência de uma ordem hegemônica, é preciso antes elucidar de que
maneira o próprio recurso da linguagem já se encontra comprometido
com algum tipo de restrição normativa imposta violentamente, que em
Benjamin se identifica a seu uso representativo e instrumental.
Pois é um fato que grande parte do esforço de Benjamin, nesse pe-
ríodo, deriva de seu desejo de pensar uma concepção não instrumental
da linguagem, na qual os conteúdos mentais, em vez de serem algo que
através dela se comunicam, seriam eles mesmos a própria linguagem. Ali
encontramos a ideia de linguagem expressiva, por oposição à linguagem
comunicativa, que a concebe como expressão de uma essência espiritual.
Nesse sentido, se para Benjamin toda realidade é linguagem, a linguagem
propriamente humana dessa geral se distingue, em função de sua capaci-
dade de nomear. Seu recurso ao mito bíblico do Gênesis, para explicitar
essa natureza nominativa da linguagem humana, o conduz a uma orien-
tação contrária às concepções cientificas que, no seu entender, reduzem
a linguagem a seu sentido instrumental. Segundo Benjamin, haveria no
ato de nomear um acesso imediato à realidade que, para ele, é a própria
linguagem, ao passo que a queda na representação teria se dado quando
se introduziu a necessidade de uma mediação representativa entre as
palavras e as coisas. É nesse sentido que toda tentativa de representar a
realidade da violência estaria fadada ao fracasso, do momento em que a
própria relação com a linguagem pela via da representação, já se encontra
comprometida com a violência de sua submissão ao uso instrumental.
Nosso interesse pelos primeiros textos de W. Benjamin então se
justifica, na medida em que ali se concentra um esforço de delimitação
do problema relativo à violência inerente ao sentido instrumental ou re-
148

presentativo da linguagem de que acima falamos, no estatuto do direito,


assim como uma tentativa de produzir, pela via não representativa de sua
expressão, a violência que poria fim a esse uso. Importa-nos salientar, antes
de tudo, que o problema da violência ali se coloca de imediato como um
problema de linguagem, conforme se constata desde a primeira página de
Zur Kritik der Gewalt: uma causa somente pode ser considerada violenta
num domínio de linguagem, ou seja, num campo semanticamente habi-
tado pelas noções de direito e de justiça (BENJAMIN, 1921/1988, p. 42).
O que está em questão, nesse escrito, diz respeito ao fato de que a
ordem jurídica, que se supõe conter a violência individual pela instituição
das regras do direito positivo, responde antes ao interesse do próprio direito
em monopolizar a violência subtraída ao indivíduo que a ele se submete.
Suas regras visam menos defender as finalidades legais do que proteger o
próprio direito (das Recht selbst zu wahren) (IDEM, p. 46). É nesse sentido
que sua estrutura formal se revela tautológica: o direito decreta como fora
da lei o que não reconhece como do seu interesse (DERRIDA, Idem, p. 78).
Mas o que nos autoriza a interrogar, a partir de W. Benjamin, a questão
do poder e da violência numa referência específica ao problema da lin-
guagem, que acima levantamos, explicita-se, como dissemos no início,
na própria articulação de um questionamento teórico da linguagem, por
ele formulado ao longo do período em que dirigiu sua crítica ao sistema
político de sua época. Tanto em “Sobre a linguagem em geral e a linguagem
humana”, que data de 1916, cinco anos, portanto, antes de “Por uma crítica
da violência”, quanto em sua “Tarefa do tradutor” (1923), escrita dois anos
depois, W. Benjamin questionava a concepção corrente de uma essência
comunicativa da linguagem como meio de representação. Resulta, no seu
entender, de uma ênfase tipicamente burguesa, a percepção utilitária da
linguagem, para qual a palavra se reduz a um meio de comunicação de
algo dela distinto, como se ela não mais fosse do que um signo meramente
convencional (BENJAMIN, 1916/1971, p. 83 e 90).
Ocorre, pois que se, por um lado, o texto de W. Benjamin visa clara-
mente expor o engodo da democracia parlamentar, por nela ver um sistema
político que pretende desconhecer a violência instituinte do direito, como
149

se as relações de força pudessem se resolver mediante práticas de con-


versação, por outro lado, está em questão uma crítica da própria função
de representação, enquanto degeneração instrumental engendrada pela
concepção burguesa da linguagem, que ali se estende ao próprio fato da
democracia representativa. O declínio que advém à linguagem, pela via da
representação, é o mesmo que se manifesta, na democracia parlamentar,
sob a forma do sistema político representativo. Mas muito embora esse
ensaio pareça derivar, no que tange a seu contexto histórico, da grande
onda antiparlamentar que varreu a Alemanha do início do século – onda
sobre a qual, segundo J. Derrida, o próprio nazismo surfou (DERRIDA,
IDEM, p. 63) –, interessa-nos enfatizar em que sentido o fator de violência,
que a crítica benjaminiana procura trazer à luz, identifica-se à violência
inerente ao próprio acionamento discursivo da linguagem, recalcada pelo
sistema representativo parlamentar que dela pretende prescindir.
Diríamos então, para irmos direto ao ponto, que coerente ao fato de
que toda referência à realidade depende de um forçamento da linguagem
por um modo de acionamento discurso que a ela se impõe, a tese de W.
Benjamin se vale, paralelamente, do axioma de que todo direito se funda
na violência, por mais que se alegue, em seu favor, que ele existe como um
sistema de regras destinado a impedir sua manifestação. Não lhe interessa
ingressar na polêmica entre o jusnaturalismo e o direito positivo, no sentido
de perguntar se a violência pode ou não ser um meio com vistas a fins justos
ou injustos, seja do ponto de vista do devir histórico de uma determinada
sociedade ou da constituição natural do sujeito. Para Benjamin, se o jus-
naturalismo se equivoca, ao reduzir a justiça ao ajustado, sob a suposição
da violência natural, o direito positivo não menos se engana ao reduzir o
justo à observância das regras normativas. Mas o foco de sua crítica se en-
contra alhures: é a violência como puro meio, seja qual for ou seu fim. Seu
corolário, não menos paradoxal, é que o direito depende dessa violência,
em sua fundação, na medida em que se origina da infração do sistema de
regras sobre as quais ele mesmo se apoia e ao qual deve dar permanência
para se manter. Donde se explica que o poder, legitimado pelo direito,
confunda-se com aquilo que o funda, com a violência que deveria conter.
150

Há, nesse sentido, uma zona de indistinção irredutível entre a


violência e o poder que o direito legitima, a qual se verifica, entre vários
outros exemplos, na dupla conotação do termo alemão Gewalt. Derrida
por mais de uma vez enfatiza, ao comentar a versão francesa de “Zur Kritik
der Gewalt”, a questão desse ponto de indeterminação entre violência e
direito que se perde quando se o traduz como “Por uma crítica da violên-
cia”. Pois Gewalt não significa apenas violência; Gewalt também significa
poder legítimo, autoridade, segundo se verifica nos sintagmas gesetzge-
bend Gewalt (poder legislativo) ou geistlich Gewalt (poder espiritual – em
referência à Igreja). O mesmo se pode acrescentar com relação ao termo
cratos, no grego antigo, o qual designa, como se lê em As suplicantes de
Ésquilo, tanto a autoridade legítima do homem de estado (ou seja: sua
peithô, ou capacidade de persuasão) quanto o comando pela violência
(bia)1. Se não há, segundo Derrida, critério seguro para distinguir inequi-
vocamente direito e justiça, é porque a imposição mesma que se busca
julgar se encontra na própria condição do ato que autoriza o julgamento.
Existe uma violência implicada no conceito de justiça, do momento em
que o próprio direito, sobre o qual se delibera, implica nele mesmo a
possibilidade de ser forçado2.
A força é, de fato, um predicado essencial da justiça, que somente é
justa se puder ser enforced (DERRIDA, IDEM, p. 19). Não existe legalidade
das leis sem esse suplemento essencial de violência que a torna aplicável.
Mas trata-se de um suplemento essencial que, no entanto, o costume
dissimula, dando à lei a aparência de equidade, ao substituir-lhe por um
fator que Pascal nomeia, servindo-se de uma expressão Montaigne, como
fundamento místico da autoridade (PASCAL, 1976, p. 136). Pascal quer

1 Não nos cabe expor exaustivamente todos os exemplos possíveis desses sentidos anti-
nômicos, tarefa que reservamos antes ao filólogo ou ao helenista. Ler-se-á com proveito o
capítulo IV do livro de M. DETIENNE (Maîtres de la vérité dans la Grèce archaïque, Paris, F.
Maspero, 1981), intitulado “L’ambiguïté de la parole”, inteiramente consagrado a este tema,
assim como o primeiro capítulo do livro de J.-P. VERNANT & P. VIDAL-NAQUET: “Tensions
et ambiguïtés dans la tragédie” (Mythe et tragédie en Grèce ancienne, Paris, La découverte,
1989).
2 Eis porque, segundo Derrida, quando se traduz a expressão inglesa “to enforce the law”
por aplicar a lei, perde-se aquela alusão direta, literal, à força dessa imposição J. DERRIDA,
Força de lei, S.P., Martins Fontes, 2007, pp. 5-6.
151

com isso dizer que a autoridade das leis se funda no elemento místico, na
medida em que depende necessariamente da crença que lhe concedemos.
O princípio dessa autoridade é, pois, um ato de fé, e não um fundamento
racional ou ontológico. A violência, que tal princípio recalca, consiste no
fato de que o golpe de força, sobre o qual a lei se funda, situa-se para além
de toda legalidade possível. O discurso encontra ali seu limite, como se
houvesse “um silêncio murado na estrutura violenta do seu ato fundador”
(DERRIDA, IDEM, p. 25). Por onde se deduz, na desoladora tagarelice do
sistema democrático parlamentar, que W. Benjamin deplora o sintoma do
desconhecimento desse limite.
Daí se explica que à violência que funda o direito, em sua origem,
pela ruptura da organização anterior, deva agregar-se, por sua vez, a vio-
lência que conserva o direito por ela instaurado, conforme se exemplifica
no caso da manutenção da ordem mediante a constituição de uma força
militar. Uma crítica, portanto, consequente da violência, que não se reduza
à banalidade das declamações pacifistas, deve ir além de toda justificação
legal do direito e reconhecer na possibilidade da violência, que ameaça
a ordem instituinte da lei, um fator pertencente à própria ordem que ela
critica (BENJAMIN, p. 50). É esse fator que os juristas da democracia par-
lamentar perdem de vista, ao desconhecer como pertencente ao sistema
representativo as forças revolucionárias que o engendraram:

Desaparecendo a consciência dessa presença latente da vio-


lência numa instituição, ela então perece. Os parlamentos de
hoje figuram um exemplo disso. Eles oferecem o deplorável
espetáculo de hoje porque perderam consciência das forças
revolucionárias às quais devem sua existência. [...] Falta-
lhes o sentido da violência fundadora do direito, que nele
se representam (die Sinn für die rechtsetzende Gewalt, die in
ihnen repräsentiert ist) (IDEM, p. 54).

Mas o grave problema, com o qual se choca W. Benjamin, é que a


distinção entre violência fundadora e violência conservadora do direito,
152

essencial à formulação de sua crítica, dissipa-se na própria forma de orga-


nização institucional da violência que o sistema parlamentar democrático
legitima, representada pela polícia (IDEM, p. 133). A ignomínia da polícia,
cuja organização desconhece toda forma de separação entre a violência
que funda e a violência que conserva o direito, é o que permite a coerção
brutal do cidadão nos inumeráveis casos em que a situação jurídica não
pode ser definida com suficiente clareza. Isso significa que a violência,
que o sistema democrático parlamentar recalca, por supor que todas as
questões devam ser reguladas mediante a aplicação não violenta das regras
jurídicas, retorna no espaço necessariamente equívoco da interpretação
de suas regras, assim como em resposta aos fatores contingentes, mas nem
por isso menos determinantes, que impedem a sua aplicação. Tal seria o
caso, por exemplo, do fenômeno de corrupção generalizada da polícia
carioca como fator que justificaria a violência abominável do BOPE no
combate ao narcotráfico do Rio de Janeiro.
Carente de delimitação, a manifestação da polícia testemunha, de
modo espectral, o sistemático retorno da violência que o Estado moderno
acredita poder recalcar. Espectral (gespenstich), traduz Derrida (e não alu-
cinante, como foi proposto na tradução de Maurice Gandillac), no sentido
em que se trata de um corpo que nunca está presente para aquilo que ele
é. Se é na ausência de distinção entre as duas violências que se manifesta
sua ignomínia, é porque a polícia se vale da suspensão dessa distinção para
tornar-se legislativa, para produzir as leis que ela deveria somente aplicar,
e isso sempre que o direito se mostra suficientemente indeterminado para
lhe dar tal possibilidade. Ela é tanto fundadora do direito, no sentido em
que sua prescrição tem pretensão jurídica, quanto conservadora do direito,
na medida em que se vale da função que lhe prescreve o direito instituído
de assegurar a manutenção da ordem.
Mas ao passo que toda forma de constituição do direito bem ou
mal se baseia no reconhecimento de algum tipo de categoria metafísica
referida ao que seria a essência do que é justo ou correto, a polícia, cons-
tata W. Benjamin, desconsidera qualquer tipo de relação com a essência.
Ela é a violência nua, que não se justifica perante nenhum tribunal, na
153

medida em que não dispõe, quanto ao campo de sua competência, de


nenhuma delimitação precisa. Ela não se justifica, sob a alegação de que
de sua função injustificável paradoxalmente depende tanto a instauração
quanto a manutenção do lugar da justificativa.
Resta-nos então entender por que essa aparição espectral da polícia
revela-se mais devastadora nas democracias modernas do que nos siste-
mas monárquicos. Pois a contiguidade perturbadora entre a soberania e
a função policial não é um fato propriamente moderno; ela já se exprimia
numa espécie de laço sagrado que associava, nos sistemas políticos das
sociedades antigas, a figura do soberano àquela do carrasco. G. Agamben
menciona, a esse propósito, o fato narrado, em 1418, do encontro do duque
de Borgogne, que acaba de entrar na vila como conquistador na frente das
suas tropas, e o carrasco Coqueluche, que nesses dias trabalhou incansa-
velmente para ele: o carrasco coberto de sangue se aproxima do soberano,
toma-lhe a mão e grita “meu cunhado” (AGAMBEN, 1991/2002, p. 117).
É, aliás, possível identificar, nesse limite de indistinção entre a
violência e a lei em que habita a polícia, uma afinidade, por assim dizer,
antitética, entre o carrasco e o poder soberano, em função do lugar de exílio
que ambos habitam. É bastante instrutiva, a esse propósito, a leitura do
ensaio de Roger Callois “A sociologia do carrasco”, em que se percebe uma
espécie de proximidade estrutural entre o personagem mais venerado – o
rei – e o personagem mais execrado da sociedade – o carrasco –, no sentido
em que os dois preencheriam funções cardinais e simétricas nesse local
de exclusão (CALLOIS, 1979, p. 395-420). Tanto um como o outro seriam
intocáveis: o carrasco porque se macularia a si mesmo quem o tocasse,
o soberano porque seria maculado por quem o tocasse. Por isso eles são
submetidos a numerosas interdições que os excluem da existência comum.
Ambos transmitem seu ofício por descendência, e se é difícil se casar com o
rei, não é menos difícil ao carrasco se casar. O primeiro não se une a qual-
quer um, ao passo que ninguém quer se unir ao segundo. O nascimento
os isola a cada um na grandeza ou na ignomínia (IDEM, p. 408-409).
Mas na monarquia, ao passo que em que os poderes legislativo e
executivo são unidos, ela representa a violência que se pode esperar do
154

poder soberano, nas democracias a violência policial degenera, uma vez


que ela ali não mais responde a nenhum modo de localização desse poder.
Diversamente do sistema monárquico em que o soberano, ao suspender
a validade da lei, demarcava essa zona de indistinção entre o direito e
a violência na qual a polícia evolui em sua instituição moderna, afirma
Benjamin, o direito da polícia indica o ponto em que o Estado carece de
soberania, no sentido em que já não consegue garantir, em razão de sua
lógica interna, os objetivos empíricos que visa obter.
A entrada da soberania na figura disseminada da polícia não, tem por
conseguinte, como nos lembra Agamben, nada de tranquilizador (IDEM,
p. 117). O fato que não deixa de surpreender os historiadores do III° Rei-
ch, de que a exterminação dos judeus foi concebida exclusivamente, do
início ao fim, como uma operação de polícia, é disso a prova mais cabal.
É sabido “que não existe nenhum documento a atestar que o genocídio
tivesse sido decidido por um organismo soberano: o único documento do
qual nós dispomos, com relação a isso, é o processo verbal da conferência
de 20 de janeiro de 1942, reunido sobre o Grosser Wannsee, composto por
um grupo de funcionários da polícia do qual se destaca o nome de Adolf
Eichmann, chefe da divisão B-4 da quarta seção da Gestapo”. É somente
porque foi concebida policialmente que a exterminação dos judeus pode
ser tão metódica e assassina e que hoje aparece como sendo a mais bárbara
e infame ação (IDEM, p. 118).
155

Referências bibliográficas

AGAMBEN, G. Moyens sans fin : notes sur la politique. Paris: Rivages, 2002.
BENJAMIN, W. Walter Benjamin Ângelus Novus. Frankfurt: Surkamp, 1988
CALLOIS, R. “Sociologie du Bourreau”. In: D. HOLLIER (org.), Le collège de
sociologie. Paris: Gallimard, 1979.
DERRIDA, J. Força de lei. São Paulo: Martins Fontes, 2007.
PASCAL, B. Pensées. Paris: Flammarion, 1976.
Psicanálise e técnica: novo humanismo
ou novo ideal ascético?
Vincenzo Di Matteo (UFPE)

Introdução
Parto da rememoração de dois centenários: o do nascimento de
Merleau-Ponty e as primeiras aproximações entre a filosofia nietzscheana
e a jovem ciência psicanalítica. Em 1908, de fato, nascia Merleau-Ponty,
um pensador cuja influência no cenário cultural francês na metade do
século passado foi mais considerável do que se possa acreditar. (HYPPO-
LITE, 1961, p. 228). Nesse mesmo ano, “a comunidade psicanalítica das
quartas feiras” se confrontou por duas vezes com a obra de Nietzsche.
Respectivamente, com A genealogia da moral em 01.04.1908 e Ecce Homo
em 28.10.1908. (ASSOUN, 1991, p. 16-24).
Cem anos depois, pretendo retomar especialmente o espírito do
primeiro confronto, deixando de lado o segundo quando aqueles psica-
nalistas pareciam mais interessados em discutir o “caso Nietzsche” do que
analisar as surpreendentes semelhanças entre algumas obras de Nietzsche
e a psicanálise.
O objetivo visado é aproximar a noção de arqueologia presente na
Fenomenologia e na Psicanálise, explicitar algumas implicações desse
conceito especialmente na clínica psicanalítica, confrontar a arqueologia
freudiana com a genealogia nietzscheana e, dessa maneira, tentar com-
158

preender a necessidade e os limites de um engajamento ético quando


filósofos e psicanalistas se defrontam com o social e o político.

Merleau-Ponty e a psicanálise
Não é nossa intenção registrar o diálogo mantido com a psicanálise
e assinalar as mudanças ocorridas ao longo de duas décadas de produção
filosófica. Limito-me ao último texto escrito e publicado antes de sua morte
prematura, o único texto dedicado em sua totalidade à psicanálise onde
parece fazer um balanço das relações entre filosofia (fenomenológica)
e psicanálise (MERLEAU-PONTY, 1960, p. 5-10). Teria havido um ‘mal-
entendido inicial’ entre a obra de Freud e o leitor apressado, até se chegar
a uma convivência pacífica com essa ‘hermenêutica implacável’ que é
a psicanálise. São as resistências do leitor que cederam com o decorrer
dos anos – pergunta-se Merleau-Ponty – ou este caiu nas armadilhas da
psicanálise? Nem uma coisa nem outra, responde. Havia de fato um mal-
entendido que desapareceu e a psicanálise que se ama não é a mesma
que se recusava e que ainda continua a se recusar, aquela que precisa
reformular certos conceitos psicanalíticos na medida em que o gênio do
Freud terapeuta não se manifestou da mesma forma na elaboração de uma
teoria, constituída – segundo ele – de ‘magros conceitos’, e que necessitam
ser expressos numa ‘melhor filosofia’ para que o tesouro escondido e re-
calcado na comunicação psicanalítica possa ser resgatado.
Isso, porém, não implica afirmar que a fenomenologia tenha os
meios de exprimir melhor o ‘intemporal’, o ‘indestrutível’ que é o nosso
inconsciente ou dizer ‘claramente o que a psicanálise dissera confusa-
mente’. Ao contrário, a psicanálise com suas metáforas energéticas ou
mecanicistas conserva “o limiar de uma intuição que é uma das mais
preciosas do freudismo: aquela de nossa arqueologia.” (MERLEAU-
PONTY, 1960, p. 9).
Esse conceito-metáfora de arqueologia não é só da psicanálise. Se-
gundo Fink, a filosofia do último Husserl é uma arqueologia da experiência
humana (Apud PINTOR RAMOS, 1977, p. 253). A expressão foi recolhida
pela fenomenologia e filosofia em geral de língua francesa a ponto do hege-
159

liano J. Hyppolite (1989, p. 88) considerar a psicanálise como “arqueologia


ou exegese do espírito”.1
É compreensível, portanto, essa valorização por parte de Merleau-
Ponty da metáfora da arqueologia que lhe permite mostrar tanto a necessi-
dade da psicanálise precaver-se do risco idealista quanto da Fenomenologia
em permanecer fiel a si mesma, não podendo considerar-se uma ‘filosofia
da consciência’, ao ‘descer no seu próprio subsolo’. A consonância entre as
duas disciplinas não se daria no conteúdo e sim na direção na medida em
que deixam de serem paralelas, para apontarem ambas na mesma direção de
uma ‘latência’, entendida heideggerianamente como uma relação de simul-
taneidade entre o visível e o invisível (PONTALIS, 1961, p. 301). Dito de outra
maneira, “caminhariam juntas rumo a uma filosofia liberada da interação
entre substâncias e que, portanto, não poderia ser que ‘um humanismo de
verdade’ sem metafísica” (MERLEAU-PONTY, 1960, p. 9).
O filósofo francês percebeu que a arqueologia freudiana era conso-
ante com seu projeto filosófico de uma crítica radical tanto do humanismo
(subjetivismo filosófico) quanto da ciência (objetivismo científico), na
tentativa de superar o dualismo sujeito-objeto e as demais dicotomias
correlatas: idealismo – empirismo; metafísica – positivismo; fato – essên-
cia; real – aparência; corpo – mundo; mundo sensível – mundo cultural;
humanismo – naturalismo; natureza – história.
Já alguns anos antes, em O homem e a adversidade, numa conferên-
cia pronunciada em 10.09.1951, por ocasião dos Encontros internacionais
de Genebra (MERLEAU-PONTY, 1951/1991, p. 253-275), ao fazer um ba-
lanço dos progressos da investigação filosófica concernente ao homem
nos últimos cinquenta anos, Merleau-Ponty destacara as contribuições da
psicanálise para superação do dualismo corpo-mente. Com ela – escreve
– “o espírito introduz-se no corpo, assim como, inversamente, o corpo
introduz-se no espírito” (MERLEAU-PONTY, 1991, p. 259).
Essa tese que para nós, hoje, é pacífica e consensual não o foi no
contexto da fenomenologia francesa entre as duas guerras e não somen-

1 Trata-se de uma Conferência proferida no King’s College, em 04.03.1959, praticamente na


mesma época do Prefácio de Merleau-Pony.
160

te francesa. A psicanálise freudiana ao reconhecer que o homem não é


senhor em sua própria casa, ao descentrar a subjetividade do mundo da
consciência para o do inconsciente, ao radicalizar o descentramento para
o mundo das pulsões, parecia a muitos intérpretes reduzir o homem ao
demasiado humano.
Reações a essa concepção naturalizante do ser humano não tarda-
ram a aparecer, já na época de Freud. Foi em plena Viena e por ocasião
das comemorações dos 80 anos dele que Binswanger (1936/1970, p. 201-
237) pronunciou uma conferência que se tornou um texto clássico sobre
o assunto: a concepção freudiana do homem à luz da antropologia.
Qual é a crítica básica que é dirigida a Freud? Faltaria na concepção
freudiana do homem o que o conferencista chamou de homo caelestis,
aeternus, universalis, historicus – um suplemento de alma nós diríamos
– porque o que emerge é apenas o homo natura, o homem-natureza (ibi-
dem, p.201-202).
Freud, por motivos de doença, não assistiu à palestra, mas chegaram
a seus ouvidos os ecos dela e em suas mãos o texto do psiquiatra-psicana-
lista. Numa cartinha que lhes dirigiu no dia 8.10.1936, depois de declarar
que a conferência foi para ele uma ‘agradável surpresa’ e que apreciou o
belo estilo, a erudição, a amplidão de visão, o tato do autor em colocar as
objeções, assim continuava, com certa ironia e rispidez:

Claro que não creio no senhor. Sempre morei no térreo e


no porão da casa: o senhor sustenta que, mudando o ponto
de vista pode-se também ver um andar superior onde estão
hóspedes ilustres como a religião, a arte e outros. O senhor
não é o único: a maioria dos espécimes da civilização do
homo natura pensa da mesma maneira. Sob este aspecto o
senhor é o conservador e eu o revolucionário. Se eu tivesse
outra vida de trabalho pela frente ousaria oferecer até àquelas
pessoas de alta estirpe um lar na minha humilde choupana. Já
encontrei um para a religião quando tropecei com a categoria
da ‘neurose da humanidade’. Mas provavelmente estamos
161

ambos falando para o vento e vão se passar séculos antes que


cheguemos a um acordo. (FREUD, 1936/1982, p. 497-498).

Naturalmente nem todos concordam com Binswanger, nem com


Freud, que mordeu a isca e acabou se identificando com uma crítica que,
no mínimo, é questionável, se não improcedente. Segundo outros intérpre-
tes, a psicanálise não naturaliza o homem, mas humaniza a natureza pelo
conceito de pulsão, horizonte conceitual onde o somático e o psíquico se
tocam e na medida em que o conflito entre as pulsões seria “como a força
motriz para a emergência de um sentido, de uma história significativa”
(VERGOTE, 1958, p. 54).
Seria, então, a psicanálise – como já afirmara Merleau-Ponty – por-
tadora de um humanismo de verdade sem metafísica? Evidentemente uma
resposta a essa pergunta somente pode ser dada se encontrarmos um míni-
mo de consenso sobre o sentido do termo “humanismo” e se articularmos
as implicações teóricas da arqueologia psicanalítica com a prática clínica
e as implicações ético-políticas. Quem nos pode auxiliar nesse empreen-
dimento é Paul Ricoeur, que retoma, tematiza e destaca esse conceito de
arqueologia primeiramente na Comunicação de Bonneval (1960) e depois
em seu Ensaio sobre Freud onde afirma: “o lugar filosófico do discurso
analítico é definido pelo conceito de arqueologia do sujeito” (RICOEUR,
1965/1977, p. 353), ressaltando, porém, que esse conceito não é de Freud,
ao mesmo tempo em que – numa outra passagem reconhece que “toda
a interpretação [freudiana] da cultura é uma arqueologia” (Idem, p. 362).

Arqueologia e técnica psicanalítica


Antes mesmo da publicação do livro Da interpretação, um ano antes,
em janeiro de 1964, Ricoeur (1964a/1978, p. 151-165) teve a oportunida-
de de defender sua concepção de epistemologia psicanalítica freudiana
perante um grupo seleto de filósofos, teólogos e psicanalistas. Foi por
ocasião de um dos Encontros Internacionais de Filosofia organizados
por Enrico Castelli, catedrático da Filosofia da Religião na Universidade
de Roma La Sapienza. O tema específico daquele ano, dos famosos Coló-
162

quios internacionais sobre o tema da demitização, foi Tecnica e casistica:


Tecnica, escatologia e casistica.2 Entre os convidados, o próprio Lacan, A.
Vergote, A. De Waelhens.
As ideias de Ricoeur, apresentadas naquela ocasião, podem ser
resumidas em duas teses básicas: “a psicanálise é uma técnica” (ibidem,
p. 151), mas “não uma técnica da dominação” e sim “uma técnica da ve-
racidade” (ibidem, p. 157).
As justificações da primeira afirmação as articulam em torno do
conceito intermediário de “trabalho”: trabalho do analista que maneja as
resistências e interpreta; trabalho do analisando para tornar-se conscien-
te; trabalho do psiquismo (condensação e deslocamento) na medida em
que o homem comporta-se como mecanismo, adota uma técnica sobre si
mesmo, uma técnica de despistamento e de desconhecimento do próprio
desejo, em busca “do objeto arcaico perdido, incessantemente deslocado
e substituído por objetos alternativos, fantasmáticos, ilusórios, delirantes
ou idealizados” (p. 157). Esse discurso energético de Freud pode, deve e,
habitualmente, é entendido como metafórico, mas – segundo as palavras
de Ricoeur (1964, p. 156) “é a metáfora que protege a especificidade da
metapsicologia relativamente a toda fenomenologia da intencionalidade,
do sentido e da motivação” (ibidem, p. 156).
As justificativas da segunda afirmação – a psicanálise como técnica
da veracidade, se articulam em torno da concepção da psicanálise enten-
dida como algo que “se desdobra inteiramente no domínio da palavra”
(ibidem, p. 157). A psicanálise está mais próxima das ciências históricas
do que das ciências da natureza. É no campo da palavra que a experiência
analítica se desenrola, diz Ricoeur (p. 159), citando Lacan. Seu projeto
terapêutico vai mais em direção a uma liberação da consciência (ibidem,
p. 162) para poder falar e amar (ibidem, p. 163), do que para uma adap-
tação social.
Na discussão que se seguiu, A. Vergote questiona a visão ricoeuriana
do tratamento psicanalítico entendido como uma ‘luta contra a resistência’

2 As Comunicações e as Discussões que as acompanharam foram publicadas na Revista


Archivio di Filosofia, 34, n.1-2, 1964).
163

do sujeito. Esse ‘manejo’ não é um tipo de técnica de dominação? Saberia


o psicanalista aonde conduzir a análise? Afinal não é a verdade que deve
falar no sujeito?
Esses questionamentos permitem a Ricoeur precisar sua posição.
Não nega que o desejo do psicanalista possa tornar a prática clínica indi-
retamente uma técnica de dominação, mas, em si, a psicanálise não é uma
técnica de adaptação (RICOEUR, 1964b, p. 40-41), nem de libertação. O
‘manejo’ visa mais um projeto spinozista do que cartesiano de liberdade,
isso é, se ordena para um tipo de liberdade que é “essencialmente de ne-
cessidade compreendida e apropriada”, não uma liberdade de iniciativa e
alternativa (ibidem, p. 45). Ao mesmo tempo, reafirma sua interpretação
de articular indissociavelmente a energética e a hermenêutica em Freud
e a contrapõe, pelo menos indiretamente, à de Lacan: “Todas as tentativas
que se fizeram para eliminar a energética numa transcrição inteiramente
linguística, carecem, no meu entendimento, de fundamento e não é cer-
tamente o que quis fazer Freud” (ibidem, p. 39-40).
Provavelmente essa interpretação da psicanálise freudiana na
perspectiva de uma arqueologia venha justificar o golpe desferido a um
humanismo narcísico centrado na superioridade da consciência, da razão,
da liberdade, enfim do espírito. Todavia esse humanismo ferido poderia
ser retomado numa outra perspectiva, na medida em que a consciência
não é entendida como algo já dado de antemão e sim como tarefa histó-
rica de tornar-se consciente. Afinal, a análise não visaria isso conforme a
celebérrima afirmação com a qual se encerra uma das Novas Conferências
Introdutórias sobre Psicanálise (FREUD, 1933/76, p. 102), “onde havia Id
deve advir o ego”? Ao mesmo tempo, a técnica psicanalítica não visaria
reduzir o poder tirânico do superego individual e cultural para que a vida
pessoal e comunitária se torne menos dolorida? Nesse caso, porém, não
assistiríamos a um recentramento ptolomaico ao restituir ao ego a tarefa
de certo controle sobre o Id e o Superego? Teria Freud com sua fé no Deus
Logos, em seu ideal iluminista de ciência – problematizado, mas nunca
abandonado – sucumbido ao ideal ascético denunciado por Nietzsche na
terceira Dissertação da Genealogia da Moral?
164

Para responder a essas questões, tento aproximar, a seguir, genea-


logia nietzscheana e arqueologia freudiana, dois rótulos de conveniência
para designar os respectivos projetos teórico-práticos do último Nietzsche
e do primeiro Freud ou da jovem ciência psicanalítica.
O rótulo de arqueologia com o qual se quer caracterizar a psicanálise
se justifica seja porque o próprio Freud (1930/1974, p. 87) recorre com fre-
quência a essa metáfora ou analogia seja porque, em sua produção, o tema
do anterior, do arcaico é sua própria obsessão. Uma arqueologia restrita,
antes de tudo, como aparece claramente na explicação metapsicológica do
sonho, da neurose em geral e da estrutura e funcionamento do aparelho
psíquico descrito segundo o modelo tópico, dinâmico e econômico. Uma
arqueologia generalizada quando esse modelo explicativo é estendido
analogicamente á cultura pelo método filogenético.

Nietzsche no divã
Pode-se questionar – e com razão – essa problemática conjunção
de Freud e Nietzsche ou Nietzsche e Freud. Afinal, o pensador alemão
(1888/2006, p. 72) desconfia de certas “famigeradas” conjunções (como,
por exemplo, Goethe e Schiller; Schopenhauer e von Hartmann) e o
psicanalista vienense insiste na originalidade de sua descoberta, não
reconhecendo nenhuma dívida simbólica com os assim considerados
“precursores”, inclusive com o próprio Nietzsche e Schopenhauer, dois
pensadores com fortes “afinidades eletivas”.
Além disso, tanto Freud (1933b, p. 220) quanto Nietzsche (2006, &26;
2000b & 318) são dois críticos ferrenhos do sistema e não se deixam enqua-
drar com facilidade num sistema sincrônico de análise, tanto mais que,
em ambos, é possível identificar algumas descontinuidades em sua obra.
A despeito dessas dificuldades, não faltam razões para continuar
esse exercício de aproximação e confronto. Elas se legitimam a partir do
lugar privilegiado que a filosofia de Nietzsche ocupa nas relações ambi-
valentes de Freud com a filosofia em geral. Aquela de Nietzsche, de fato,
parece escapar à crítica impiedosa e não desempenha apenas a função de
referência legitimadora das descobertas psicanalíticas. Cioso, porém, de
165

sua independência intelectual parecia tratar “os escritos de Nietzsche como


textos muito mais a se combater do que a estudar” (GAY, 1989, p. 58). Essa
afirmação pode parecer gratuita ou contraditória com outras afirmações do
próprio Freud nos revelando seu fascínio pelo pensador alemão (1914/1974,
p. 25; 1925/1976, p. 76). No entanto, esses primeiros encontros dos psica-
nalistas vienenses com os textos de Nietzsche revelam precisamente certa
postura de superioridade, compreensível se tivermos presente o contexto
da psicanálise na final da primeira década do século XX.
É verdade que vários psicanalistas não deixaram de apontar as
surpreendentes semelhanças das ideias de Nietzsche com a psicanálise.
No entanto, outros tentaram compreender a obra a partir do “caso” Niet-
zsche, um homem de vida ascética e que, no entanto, critica duramente o
ideal ascético. Um pensador que, em Ecce homo, já revelava os primeiros
sinais da doença que se abateria sobre ele a partir de janeiro de 1890. Em
suma, realizaram uma interpretação psicologista e moralizante do homem
Nietzsche considerado menos como filósofo e mais como um psicólogo,
mesmo que como “primeiro psicólogo” que atingiu níveis inigualáveis de
introspecção.3
As intervenções específicas de Freud, tanto do dia 1o de abril quanto
do dia 28 de outubro de 1908, refletem a posição que se tornará canônica
quando confrontada com eventuais precursores de suas teorias e mais
matizada quanto à redução da obra de Nietzsche a uma explicação pura
e simples de um diagnóstico psiquiátrico (paralisia sifilítica) e/ou psi-
canalítico (neurose e/ou paranoia). Freud reconhece no filósofo alemão
uma “personalidade enigmática”, a “maestria da forma” e, especialmente,
uma introspecção endopsíquica excepcional. Faz questão, porém, de se
diferenciar dele porque a psicanálise quer se manter no terreno firme da
ciência e não da moral. Haveria, no pensamento nietzscheano, uma ten-
tativa injustificada de transformar o ‘ser’ (ist) em ‘dever’ (soll), um projeto
alheio à ciência e, portanto, apenas moralista.

3 Sobre o registro das palestras, respectivamente de Histschimann e de Häutler, e das inter-


venções da vários de seus integrantes (Freud, Sadger, Adler, Graf, Federn Friedmann, Frey)
redigidos por Otto Rank, veja a publicação em francês com o título Les Premiers Psychanaystes,
Minutes de la Societé Psychanalytique de Vienne, 19061918. Paris: Gallimard 1976-1983. 4 vols.
166

Talvez essa recusa de se deixar questionar e enriquecer pelo pensa-


mento de Nietzsche deva ser compreendida a partir do momento mágico
pelo qual está passando a psicanálise. Freud (1908/1976) acabara de
publicar no mês de março de 1908 sua própria crítica ao ideal ascético,
à moral sexual ‘civilizada’ em linguagem freudiana. Um ano antes tinha
colocado no divã psicanalítico as práticas religiosas (FREUD, 1907/1976)
ao descrever “a neurose como uma religiosidade individual e a religião
como uma neurose obsessiva universal” (ibidem, p. 130). Não somente
ele, mas vários psicanalistas tinham se lançado no que foi chamada de
“psicanálise aplicada”, culminando, em 1911-1912, com a criação da Re-
vista Imago para nela publicar artigos não clínicos referentes à aplicação
da psicanálise às ciências da cultura. Em 1908, A sociedade psicológica das
quartas feiras tinha se tornado a Sociedade Psicanalítica de Viena (GAY,
1989, p.170-175; ROUDINESCO; PLON, 1998, p. 719-720). Em final de abril
desse mesmo ano, em Salzburg, se realizou o I Congresso Internacional
de Psicanálise, uma “ocasião histórica, o primeiro reconhecimento pú-
blico da obra de Freud”. (JONES, 1979, p.394). Em suma, a psicanálise se
apresentava com uma rede conceitual coerente (primeira tópica) para dar
conta do normal, do patológico e do cultural, com um método terapêutico
considerado sem muita modéstia como “o mais interessante”, superior aos
demais (1905/1972, p. 270) e um movimento em franca expansão. Talvez
esse contexto político-teórico possa explicar porque em geral a psicanálise
aplicada invadiu outras áreas do conhecimento mais para dar do que para
receber. É o que pode se depreender da correspondência de Freud com
Jung (1976, p. 535) “A y A farà da se” [A Psicanálise irá por si, vai se virar
sozinha], da autocompreensão de Freud de ser por temperamento “nada
além de um conquistador” (MASSON, 1986, p. 399) e do depoimento de
seu biógrafo Peter Gay (1989, p. 291): “Freud entrou em terras alheias mais
como um conquistador do que como um suplicante”.
Essa atitude talvez explique porque os primeiros psicanalistas não
chegaram nem a suspeitar que a crítica ao ideal ascético também pudes-
se se aplicar à própria psicanálise, pelo menos na medida em que fazia
questão de se alinhar sem reserva com o ideal positivista da ciência e por
167

acreditar em verdades universais, pelo menos em algumas, tais como:


complexo de Édipo, recalque, sexualidade infantil, transferência.
Nessa Terceira Dissertação da Genealogia da Moral, de fato, Niet-
zsche retoma a crítica da moral e da cultura moderna segundo o método
genealógico que ultrapassa a simples abordagem genético-histórica.
Interroga-se pelo valor dos valores ou com suas próprias palavras “[...]
necessitamos de uma crítica dos valores morais, o próprio valor desses
valores deverá ser colocado em questão [...]” (NIETZSCHE, 1887/1998, p.
12. Grifo do autor). Projeto que estende à própria verdade porque segundo
Nietzsche, “a partir do momento em que a fé no Deus do ideal ascético é
negada, passa a existir um novo problema: o problema do valor da verdade”
(ibidem, p. 140. Grifo do autor).
Por várias vezes se coloca uma pergunta básica: o que é ideal ascéti-
co? De onde provém seu tremendo poder sobre o homem? Responde que
o ideal ascético encontra sua expressão mais visível na figura do sacer-
dote ascético que desvaloriza esta vida e este mundo em função de outra
vida e outro mundo. Sua “tremenda missão histórica” (ibidem, p. 115) é
a dominação sobre os que sofrem, é mudar de direção o ressentimento,
é transformar o animal doente, que é o homem, em pecador. Num sen-
tido mais amplo é procurar dar um sentido ao sofrimento porque o que
o homem não suporta não é a dor e, sim, sua falta de sentido: “o homem
preferirá ainda querer o nada a nada querer...” (NIETZSCHE, 1887/1998,
p. 149. Grifo do autor).
Tendo presente apenas essa última concepção de ideal ascético,
dificilmente a psicanálise poderia ser considerada uma defensora dele
ou ser responsabilizada pela terra ter se tornado uma “estrela ascética por
excelência” (NIETZSCHE, 1887/1998, p. 107. Grifo do autor) a não ser que
se considere seu inicial e modesto programa terapêutico de “transformar
[...] sofrimento histérico em infelicidade comum” (FREUD, 1895/1974,
p. 363) uma espécie de ideal ascético secularizado, nem metafísico nem
religioso, ao dar conta do sentido do sofrimento neurótico. No entanto,
se Nietzsche tiver razão ao denunciar esse ideal não apenas na figura do
sacerdote, mas também do artista, do filósofo e do cientista é provável
168

que também sobre a psicanálise recaia a crítica nietzscheana, visto que


a ciência moderna com seu ateísmo embutido não é o contrário do ideal
ascético, é antes a sua forma mais recente e mais nobre (NIETZSCHE,
1887/1998, p. 136. Grifo do autor). Isso porque a vontade de verdade
que anima os cientistas não os tornou espíritos livres: “eles crêem ainda
na verdade” (ibidem, p. 138. Grifo do autor). Ciência e ideal ascético são
aliados na supervalorização da verdade na medida em que verdade (ci-
ência) e bem (moral) são considerados como valores superiores à vida.
Em suma, nessa perspectiva, seria possível enquadrar a psicanálise nessa
crítica de “vontade de verdade” que anima a ciência: “É ainda uma fé
metafísica, aquela sobre a qual repousa a nossa fé na ciência” (ibidem,
p. 139-140. Grifo do autor).
Com relação à verdade, apesar do último Freud se afastar do
paradigma verificacionista da ciência para se aproximar de outro mais
sintonizado com a provisoriedade e a função heurística das teorias cien-
tíficas, não pensa que as explicações científicas, religiosas e filosóficas
“têm iguais pretensões de serem verdadeiras e que toda pessoa tem a
liberdade de escolher de qual delas irá derivar suas convicções e em qual
delas depositará sua crença” e segue afirmando com todas as letras que
“a verdade simplesmente não pode ser tolerante, não admite conciliações
ou limitações” (1933/1976, p. 195).
Pelos aspectos acima apresentados, Nietzsche não passaria de um
filósofo moralista por transpor indevidamente o mundo do ser pelo “de-
ver ser” e Freud por acreditar ingenuamente que sua fé na ciência estava
livre da metafísica. Afinal, seriam Nietzsche e Freud dois “moralistas”,
dois “imoralistas” ou um imoralista (Nietsche) e um a-moralista (Freud)?
No momento, mais do que responder a essas questões, gostaríamos
de concluir ratificando a conveniência de continuar essas aproximações.
Elas nos podem ajudar a descobrir os vários, talvez inúmeros, ‘Freuds’ e
“Nietzsches” que encontraremos a cada releitura e privilegiar aquele Freud
e aquele Nietzsche mais criativos, mais heurísticos, que nos ajudam a en-
xergar mais longe. Afinal, se for procedente a leitura que Foucault (1967)
faz de Nietzsche, Marx e Freud, os três pensadores modificaram a forma
169

geralmente usada na interpretação do símbolo a ponto de a interpretação


converter-se numa tarefa infinita.
Uma dessas infinitas interpretações é suspeitar que, a despeito
da procedência das críticas de moralistas que podem ser feitas aos dois
pensadores, a crítica de Nietzsche poderia ter alertado os psicanalistas
do perigo dogmático que pairava sobre eles e dentro deles com a criação
alguns anos mais tarde, em 1912, do “comitê secreto” responsável pela
ortodoxia psicanalítica. Com Nietzsche, de fato, pode-se problematizar se
e até que ponto a psicanálise é portadora de “verdades universais” e, por
certos aspectos, não seria uma forma sofisticada de ideal ascético que é
preciso ultrapassar. Com Freud, por outro lado, podemos testar se e até
que ponto, em Nietzsche, o valor da verdade é posto em questão apenas
“experimentalmente” (ibidem, p. 140) ou se seu Zaratustra é o novo e
quinto Evangelho.
Os dois pensadores, porém, vieram relembrar ao homem a difícil,
mas inalienável tarefa ética, e não mais moral – de assumir a vida pessoal
e comunitária sem as próteses da consolação e da ilusão e, se possível, a
fazer da própria vida uma obra de arte. Um projeto que acena na direção
de um “além do homem” em Nietzsche e de um programa mais modesto
em Freud, o qual desde o começo alertava os psicanalistas da inutilidade
da “ambição educativa e terapêutica” (FREUD 1912/ sd), p. 158) em suas
práticas e que até o fim da vida se recusou a “erguer-se como um profeta
diante de seus semelhantes” (1930/1974, p. 170). A psicanálise não possui
uma proposta prescritiva ou normativa explícita nem para os indivíduos
singulares, nem para a sociedade. Acena, porém, com a possibilidade de
poder alterar um discurso distorcido sobre si mesmo para outros mais
verdadeiros e criativos. Nesse sentido, se pergunta Ricoeur (1964a/1978,
p. 159): “Quem sabe aonde um único discurso verdadeiro pode conduzir,
em relação à ordem estabelecida, quer dizer, ao discurso idealizado da
desordem estabelecida?”
Pode ser que se trate apenas de um humanismo humano, demasiado
humano, mas ainda assim um humanismo.
170

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173

Um mal-estar na cultura para Freud e para Winnicott1


Leopoldo Fulgencio (PUC-Campinas)

Cioran escreveu no seu primeiro livro, De l´inconvénient d´être né:


“Depuis que je suis au monde” – ce depuis me paraît charge d´une signi-
fication si effrayante qu´elle me devient insoutenable” (Cioran, 1973, p.
1271). Creio que a leitura que Freud e que Winnicott fariam deste mal-estar
constitucional, expresso com a radicalidade deste poeta-filósofo, divergem
completamente uma da outra. É, pois, tendo em visa uma interpretação
destes versos, que desenvolverei minha exposição sobre as diferentes
concepções sobre uma teoria psicanalítica sobre a cultura em Freud e
em Winnicott.

A teoria da cultura e o mal-estar na civilização para Freud


Para ir direto ao assunto e, mais à frente, retomar o texto de Freud
reiterando esta posição, podemos afirmar que, para o fundador da psica-
nálise, o Complexo de Édipo e a sexualidade estão na base da constituição
do indivíduo e da ordem humana, como já comentaram outros autores:

[o Complexo de Édipo] é o fenômeno principal da vida sexual,


por isso elemento essencial da explicação da vida sexual.

1 Este artigo corresponde a um dos resultados da pesquisa de Jovem Pesquisador, apoiada


pela FAPESP (processo número: 2006/51082-3)
174

Toda a teoria da função sexual é concebida como preparação


ou como decorrência da situação edípica. Segundo lugar, a
estrutura do sujeito é concebida em termos de antecedentes
ou de derivações do complexo. Em terceiro lugar, o Complexo
de Édipo é o complexo nuclear das neuroses e, de modo ge-
ral, das doenças psíquicas. Em quarto lugar, o Complexo de
Édipo está na origem da ordem cultural, isto é, da religião, da
moral, da sociabilidade, da historicidade, da ordem humana
em geral. (Loparic, 1997, p. 377)

Sem me preocupar com uma análise genética das posições de


Freud, pode-se simplesmente retomar algumas de suas posições, tendo
em vista mostrar que seu texto reitera estas afirmações acima apresen-
tadas. Em primeiro lugar a concepção de base, na qual ele afirma que o
indivíduo como ser de cultura é fruto da repressão da sua sexualidade ou
da instintualidade. Diz Freud em 1908, no seu artigo “Moral sexual ‘civili-
zada’ e doença nervosa moderna”:

De uma maneira geral, nossa civilização é construída sobre a


repressão das pulsões. Cada indivíduo renuncia a uma parte
das suas propriedades, de seu poder soberano, das tendências
agressivas e vingativas de sua personalidade; é deste aporte
que provém a propriedade cultural comum de bens mate-
riais e dos bens ideais. Além das exigências da vida, são os
sentimentos familiares, derivados do erotismo, que levaram
os indivíduos isoladamente a esta renúncia. Esta renúncia se
fez progressivamente no curso do desenvolvimento da civili-
zação; a religião sancionou os progressos separados; a parte
de satisfação da pulsão à qual se tinha renunciado foi sacri-
ficada à divindade; o bem comum adquirido desta maneira
foi declarado “sagrado”. Aquele que, por sua constituição
inflexível, não pode tomar parte nesta repressão da pulsão
se opõe à sociedade como “delinquente”, como outlaw, na
175

medida em que ele não pode impor-se a ela [à sociedade]


como um grande homem, como um “herói”, por sua posição
social e suas capacidades excepcionias. (Freud, 1908d, p. 203)

Cabe notar que o mal-estar na civilização não é decorrente dos


tempos modernos, do modo de produção capitalista, seja na sua fase
inicial seja neste momento avançado de nossa era em que a técnica e o
mundo virtual e globalizado tem levado a extremos jamais imaginados.
Para Freud, o homem dos tempos modernos – ironizado por Charles Cha-
plin em seu filme Tempos modernos –, não se sente mal neste mundo por
causa da “linha de montagem” em que está colocado; não é o excesso de
trabalho – tão bem caracterizado por Jack Nickolson no filme O ilumina-
do, quando seu personagem, celerado, escreve mais de mil páginas com
um único verso: Só trabalho sem diversão fazem de Jack um bobão! – que
produz o mal-estar ou a patologia psíquica, mas algo muito mais profun-
do, algo que constitui o homem já como habitado por um mal-estar. Diz
Freud, já em 1898, referindo-se ao neurastênico (que nada mais é do que
o estressado de hoje):

Os médicos terão que se acostumar a explicar aos empregados


de escritório que se “esgotaram” em suas escrivaninhas, ou
às donas de casa para quem se tornaram pesadas demais as
tarefas domésticas, que eles adoeceram, não por terem ten-
tado executar tarefas facilmente realizáveis por um cérebro
civilizado, mas porque, durante todo o tempo, negligencia-
ram e prejudicaram flagrantemente sua vida sexual. (Freud,
1898a, p. 227)

No decorrer das descobertas de Freud ocorrerá uma paulatina


expansão do alcance de suas descobertas. Da compreensão das psico-
patologias neuróticas ele retira o entendimento da psicologia da pessoa
normal, como já havia acontecido com os fenômenos do sonho e dos
atos falhos, mas da compreensão do indivíduo ele também se vê levado a
176

compreender a vida em grupo, a lei moral e a própria cultura. Freud chega


mesmo a dizer que não é sem surpresa que ele encontrou na sexualidade
e no Complexo de Édipo a explicação de um número assim tão grande de
questões que estão na base das instituições culturais. Diz ele, em 1913:

Gostaria de, ao fim desta investigação, condensada ao extremo,


enunciar este resultado: no Complexo de Édipo convergem os
começos da religião, da moralidade, da sociedade e da arte,
em perfeita concordância com o que constata a psicanálise, a
saber, que o complexo forma o núcleo de todas as neuroses,
tanto quanto elas se deixaram compreender, por nós, até aqui.
Aos meus olhos, é uma grande surpresa que os problemas da
vida da alma dos povos sejam suscetíveis de serem resolvidos,
eles também, a partir de um único ponto concreto, como o da
relação com o pai. (Freud, 1912-13, p. 377)

Como dizia Pierre Fédida, colocando numa frase sintética a pers-


pectiva que resume o ponto de vista freudiano: “O sujeito é o sintoma”.
Parece clara a influência de Lacan no seu enunciado, dado que o termo
“sujeito” não está presente no texto de Freud. Neste sentido, podemos
dizer, sem medo de erro, que, para Freud, a cultura é uma perversão da
sexualidade reprimida.
Mas como Freud pode afirmar que a repressão da sexualidade é o
fundamento da cultura? Em que dados antropológicos e arqueológicos ele
está se apoiando? Certamente seu amor pela arqueologia, sua coleção de
estatuetas antigas, sua formação clássica em literatura, seu conhecimen-
to dos gregos e da filosofia, além de sua própria formação como judeu,
contribuíam na direção de sua hipótese. Mas ele precisava de algo mais
palpável. Apoiando-se numa tese, então em voga, de um eminente biólogo,
Hartman, Freud considerou a possibilidade de aplicar o que ele descobrira
em termos da gênese de cada indivíduo à gênese da humanidade.2 Diz

2 Certamente não sem exagero e, às vezes, de maneira forçada, Freud procurou em seus
pacientes um material empírico que pudesse ser localizado na origem do indivíduo, por
177

Freud: “Nos últimos anos, escritores psicanalíticos deram-se conta de que


o princípio ‘a ontogenia é uma repetição da filogenia’ deve ser aplicado à
vida mental e isso resultou numa nova ampliação do interesse da psica-
nálise” (Freud, 1913j, p. 119).
Dando-se o direito de especular3 sobre a origem da humanidade,
Freud escreveu seu romance científico Totem e tabu, criando um mito que
ele sabe ser uma especulação enquanto tal, mas que talvez reúna em si
processos que ocorreram ao longo de muitos anos de desenvolvimento
do homem como um animal para o homem cultural. Tal como ocorre
com todo mito, ele não tem o objetivo de relatar o que aconteceu, mas
tão somente fornecer uma maneira de entender a dinâmica psico-afetiva
que, esta sim, talvez seja universal no indivíduo e na espécie.
Na origem do homem como ser de cultura temos a repressão da se-
xualidade, para sempre então reprimida, o desejo insatisfeito, a conjugação
do amor e do ódio aos seres de que mais se depende, o casal parental, e o
brutal desejo e mesmo assassinato do pai amado, o inferno da repressão
e do sentimento de culpa.
Não é lá uma visão otimista nem agradável de ser revelada. Mas
Freud se considera, sem falsa modéstia, ao lado de Copérnico e Darwin,
desvelando a terceira ferida narcísica da humanidade, mostrando não só
que o homem não é dono de sua morada, mas também a sua vil origem. No
entanto, é justamente este o preço pago para que as grandes instituições
culturais pudessem ser soerguidas: a ternura, a amizade, o amor fraternal, o
direito, a lei, as artes, a filosofia, o próprio pensamento etc. Entre o animal
livre e o homem reprimido, Freud prefere, não ingenuamente, a misera-
bilidade humana que encontrou compensações de alto valor existencial.

A teoria da cultura e o mal-estar na civilização em Winnicott


Winnicott reconhece a importância de Freud para a construção
de uma ciência, a psicologia psicanalítica, que pode fazer um estudo

exemplo, quando a sua insistência em fazer com que o Homem dos Lobos “lembrasse” da cena
primária, ocorrida quando este era ainda um bebê, um bebê que, para Freud, saberia reco-
nhecer o que é uma relação sexual, a tergo e, mais, ainda, saberia contar pelo menos até três.
3 Sobre o método especulativo em Freud, veja Fulgencio (2008).
178

objetivo da natureza humana. Ele o valoriza e respeita como o cientista


que foi, o que não significa lealdade religiosa, mas o reconhecimento e a
ultrapassagem de Freud naquilo que ele errou, como faz todo cientista
(Winnicott, 1965t, p. 29).
Uma das proposições de Freud que Winnicott considera inadequa-
da é justamente a sua teoria da cultura, como advindo da sublimação da
sexualidade reprimida. É surpreendente que Winnicott tenha falado desta
falha freudiana justamente no evento em comemoração por ocasião da
finalização da tradução da obra de Freud para o inglês, talvez, creio, em
respeito ao Freud cientista que certamente ansiava ser ultrapassado pelos
que pretendiam desenvolver a psicanálise. Nesta ocasião, então ocupando
o posto de presidente da Sociedade Britânica de Psicanálise, Winnicott diz:

Freud, em sua topografia da mente, não encontrou lugar


para a experiência das coisas culturais. Deu um novo valor
à realidade psíquica interna e disso proveio um novo valor
para as coisas que são reais e verdadeiramente externas.
Freud utilizou a palavra “sublimação” para apontar o cami-
nho a um lugar em que a experiência cultural é significativa,
mas talvez não tenha chegado ao ponto de nos dizer em que
lugar, na mente, se acha a experiência cultural. (Winnicott,
1967b, p. 133)

Winnicott proporá outra teoria da cultura, não mais concebida como


um processo de sublimação de uma sexualidade reprimida,4 a saber, para
ele “o brincar conduz naturalmente à experiência cultural e, na verdade,
constitui o seu fundamento” (Winnicott, 1971g, p. 147).
Para Winnicott, aceder ao mundo cultural corresponde a uma ex-
pansão de um primeiro tipo de relacionamento que conjuga aquilo que diz
respeito apenas ao indivíduo (bebê ou criança) e aquilo que é fornecido
pela realidade externa. É tal como o ursinho que a criança leva para dormir:

4 O que também implica uma outra teoria para caracterizar ou descrever a origem do in-
divíduo.
179

ao mesmo tempo uma criação sua e algo que tem existência material para
além do mundo subjetivo.
Winnicott caracteriza estes objetos e fenômenos deste tipo como
transicionais, e o espaço no qual eles podem existir como potencial, ou seja,
um espaço que tem potencialmente a possibilidade de receber estes objetos
ao mesmo tempo criados e encontrados pelo indivíduo. Para caracterizar
este espaço e estes fenômenos Winnicott pergunta onde estamos quando

ouvimos uma sinfonia de Beethoven, ao visitar uma galeria de


pintura, lendo Troilo e Cressida, na cama, ou jogando tênis?
Que está fazendo uma criança quando fica sentada no chão e
brinca sob a guarda de sua mãe? Que está fazendo um grupo
de adolescentes, quando participa de uma reunião de música
popular? (Winnicott, 1971q, p. 147)

Winnicott responderá que não estamos nem no mundo interno


nem no externo, mas numa terceira área da experiência. Uma área que
corresponde à mesma área na qual a criança brinca e cria o mundo no
qual brincar, ao mesmo tempo em que conta com o mundo externo para
materializar suas criações.
Esta área do brincar torna possível o encontro consigo mesmo,
sendo um dos aspectos fundamentais da constituição do indivíduo. Diz
Winnicott: “É no brincar, e somente no brincar, que o indivíduo, criança
ou adulto, pode ser criativo e utilizar sua personalidade integral: e é so-
mente sendo criativo que o indivíduo descobre o eu (self)” (Winnicott,
1971r, p. 80). Winnicott reconhece aí, algo que ele considera universal,
seja na constituição do indivíduo seja no fundamento da cultura: “Em
outros termos, é a brincadeira que é universal e que é própria da saúde; o
brincar facilita o crescimento e, portanto, a saúde; o brincar conduz aos
relacionamentos grupais; o brincar pode ser uma forma de comunicação
na psicoterapia; finalmente, a psicanálise foi desenvolvida como forma
altamente especializada do brincar, a serviço da comunicação consigo
mesmo e com os outros” (Winnicott, 1968i, p. 63).
180

Mas isto não significa que para Winnicott, a vida seja fácil e a cultura
um quarto de crianças, como já comentara Freud. Ao referir-se à sua noção
de saúde, ele dirá que o importante é que cada indivíduo tenha a sua vida,
que ele reconhece como sendo dele, real, e, por isso, valendo a pena de ser
vivida (Winnicott, 1971f, p. 30). Mais ainda, o indivíduo nunca é pensado
de uma forma solipsista, enclausurado no seu interior, mas sempre na
sua relação inter-humana, sempre em contato com o ambiente e sua vida
social e é outro sinal da saúde. Ao falar sobre o que é que ele considera ser
uma pessoa madura, diz:

A maturidade do ser humano é uma palavra que implica não


somente crescimento pessoal, mas também socialização.
Digamos que na saúde, que é quase sinônimo de maturida-
de, o adulto é capaz de se identificar com a sociedade sem
sacrifício demasiado da espontaneidade pessoal; ou, dito de
outro modo, o adulto é capaz de satisfazer suas necessidades
pessoais sem ser antissocial, e, na verdade, sem falhar em
assumir alguma responsabilidade pela manutenção ou pela
modificação da sociedade em que se encontra. Encontramos
certas condições sociais, e isso é um legado que temos que
aceitar, e, se necessário, alterar; e é isso que eventualmente
passaremos adiante àqueles que se seguirem a nós. (Winni-
cott, 1965r [1963], pp. 82-83)

Mas, para que isso ocorra o indivíduo precisa encontrar a si mesmo


e a vida cultural como uma expressão ou ampliação da área do brincar, e
neste sentido deve ser algo que advém da pessoa como um movimento
que afirma sua própria espontaneidade e não como uma reação, aceitação
de uma lei, resposta a uma repressão etc.
Substituindo as pulsões e os instintos como fundamento da exis-
tência, Winnicott não mais colocará o princípio do prazer e o princípio
da realidade como diretores da vida psíquica. Muito mais fundamental
do que a busca de descarga das excitações, o homem teria uma outra
181

característica fundamental, que é a sua necessidade de ser e continuar


sendo, não em termos vegetativos, mas em termos da existência de um
si mesmo que só pode, na verdade, ser, se puder fazê-lo sem ser cons-
trangido de fora. Winnicott diz, associando a necessidade de ser à noção
de saúde:

A continuidade do ser significa saúde. Se tomarmos como


analogia uma bolha, podemos dizer que quando a pressão
externa está adaptada à pressão interna, a bolha pode seguir
existindo. Se estivéssemos falando de um bebê humano,
diríamos “sendo”. Se por outro lado, a pressão no exterior da
bolha for maior ou menor do que aquela em seu interior, a
bolha passará a reagir à intrusão. Ela se modifica como reação
a uma mudança no ambiente, e não a partir de um impulso
próprio. Em termos do animal humano, isto significa uma
interrupção no ser, e o lugar do ser é substituído pela reação
à intrusão. (Winnicott, 1988, p. 148)

Convém chamar a atenção para o fato de que é o ambiente que


sustenta a possibilidade e a necessidade de ser a partir de si mesmo, mas
não é o ambiente que gera o si mesmo como uma reação a ele. Toda a
teoria do amadurecimento formulada por D. W. Winnicott recolocará a
importância e a maneira como a pessoa se relaciona e depende do am-
biente, seja no início seja na sua relação, na maturidade ou no caminho
da maturidade, com o lugar no qual é possível viver (uma vida real e que
vale a pena ser vivida, porque própria, não reativa).
Certamente, na saúde, a participação no mundo da cultura, da
relação com os outros, corresponde a um adaptar-se sem perda signifi-
cativa da espontaneidade, o que nem sempre ocorre ou é facilitado pela
realidade externa. No entanto, o mal-estar que pode ser gerado não é fruto
propriamente de um desejo insatisfeito, mas sim de uma necessidade de
ser que pode não encontrar as vias de sua realização no ambiente, nas
relações inter-humanas.
182

Ser, por um lado, pode-se reconhecer um mal-estar na existência


derivado daquilo que oblitera ou dificulta esta expressão de si mesmo no
mundo compartilhado, por outro há, ainda, uma dimensão ou caracterís-
tica do si mesmo verdadeiro que jamais deveria ser comunicado, jamais
violado: “No centro de cada pessoa há um elemento não comunicável e
isto é sagrado e muito merece ser preservado” (Winnicott, 1965j, p. 170).
Quando este núcleo é ameaçado – mesmo nos casos em que o am-
biente não é propriamente patológico, caótico e/ou invasivo – ocorre uma
reação que visa proteger este núcleo. A defesa contra este tipo de ameaça
de violação é o ocultamento deste si mesmo verdadeiro, por vezes com a
produção de um falso si mesmo para lidar com o mundo e proteger o si
mesmo verdadeiro:

Ignorando por um momento as experiências ainda precoces


e perturbadoras da falha da mãe-ambiente, eu diria que as
experiências traumáticas que levam à organização das de-
fesas primitivas fazem parte da ameaça ao núcleo isolado,
da ameaça de ser encontrado, alterado, e de se comunicar
com ele. A defesa consiste no ocultamento ulterior do self,
mesmo no extremo de suas projeções e de sua disseminação
infindável. (Winnicott, 1965j, p. 170)

O problema, nestes casos, é que este tipo de vida construída reati-


vamente, guiada pelo falso si mesmo, gera um sentimento de futilidade
ou de irrealidade. Nos casos mais graves, diz Winnicott:

O “indivíduo” desenvolve-se então mais como uma extensão


da casca que como uma extensão do núcleo, ou seja, como
uma extensão do ambiente invasor. O que resta do núcleo
permanece oculto, por vezes a ponto de não ser encontrado
nem mesmo através da mais profunda análise. O indivíduo,
assim, existe por não ser encontrado. O verdadeiro eu está
oculto, e aquilo com que temos de lidar clinicamente é um
183

complexo falso seu cuja função é manter o verdadeiro eu es-


condido. O falso eu pode estar convenientemente em sintonia
com a sociedade, mas falta de um eu verdadeiro acarreta uma
instabilidade que se torna mais evidente quanto maior for o
engano da sociedade em pensar que o falso eu é verdadeiro.
A queixa do paciente é um sentimento de inutilidade. (Win-
nicott, 1958b, p. 297)

Não haveria nada mais destrutivo, nada mais pavoroso, do que a


violação deste núcleo do si mesmo verdadeiro: “Estupro, ser devorado
por canibais, isso são bagatelas comparadas com a violação do núcleo do
self, alteração dos elementos centrais do self pela comunicação varando
as defesas. Para mim tudo isso seria um pecado contra o self” (Winnicott,
1965j, p. 170).
É forçoso reconhecer, então, que a ameaça de invasão, de desvela-
mento desta parte de si mesmo a ser preservada é também uma ameaça
constante na vida em grupo; por outro lado, paradoxo que deve ser admi-
tido e não solucionado, é também na vida cultural que a pessoa encontra a
si mesma. A cultura é, pois, um lugar de encontro e de mal-estar: encontro
e perda de si mesmo.
Para terminar esta apresentação inicial, comparativa, das diferenças
entre Freud e Winnicott, no que se refere à teoria da cultura, opondo suas
concepções sobre o mal-estar na cultura, creio que posso retomar um
comentário de Adam Phillips:

Enquanto Freud se preocupava com as enredadas possibili-


dades de satisfação pessoal de cada indivíduo, para Winnicott
essa satisfação seria apenas parte do panorama mais amplo
das possibilidades para autenticidade pessoal do indivíduo,
o que ele chamará de “sentir-se real”. Na escrita de Winnicott,
a cultura pode facilitar o crescimento, assim como o pode
a mãe; para Freud, o homem é dividido e compelido, pelas
contradições de seu desejo, na direção de um envolvimento
184

frustrante com os outros. Em Winncott, o homem só pode


encontrar a si mesmo em sua relação com os outros, e na
independência conseguida através do reconhecimento da
dependência. Para Freud, em resumo, o homem era o animal
ambivalente; para Winnicott, ele seria o animal dependente,
para quem o desenvolvimento – a única “certeza” de sua
existência – era a tentativa de se tornar “separado sem estar
isolado”. Anterior à sexualidade como o inaceitável, havia o
desamparo. A dependência era a primeira coisa, antes do
bem e do mal. (Phillips, 2007, p. 29)
185

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187

As relações entre Filosofia e Psicanálise


na compreensão e crítica da cultura de consumo:
da ideologia à fantasia social
Isleide Arruda Fontenelle (FGV-SP)

Introdução
A cultura de consumo apresenta-se como um campo fértil para a
articulação entre filosofia e psicanálise, em especial no que diz respeito às
relações entre psicanálise e sociedade. Na cultura de consumo moderna,
cuja formatação se deu a partir do surgimento do marketing como prática
e disciplina acadêmica, foram os filósofos sociais oriundos da Escola de
Frankfurt os que primeiro estabeleceram esse diálogo na compreensão e
crítica de uma nova realidade social marcada, dentre outros, pela ascensão
da publicidade comercial.
Nos dias atuais, filósofos como o esloveno Slavoj Zizek assumem
esse papel, lançando mão de fenômenos da cultura de consumo para, a
partir de uma interpretação baseada em conceitos centrais do idealismo
alemão e da psicanálise, fazer a crítica da subjetividade, da ideologia, do
fetichismo, enfim, do que lhe permite confrontar a lógica perversa do
capitalismo contemporâneo e, por essa via, estabelecer um compromisso
ético-político que ainda tenha a emancipação como horizonte final.
Este trabalho se propõe resgatar esse diálogo entre filosofia e
psicanálise a partir da formação e desdobramentos atuais da cultura de
188

consumo, tomando dois movimentos opostos, mas complementares: de


um lado, vendo como o marketing, como prática e disciplina acadêmica,
lançou mão da teoria psicanalítica na busca da compreensão e da “produ-
ção” do consumidor, levando Theodor Adorno a concluir que as práticas
do marketing seriam uma espécie de “psicanálise às avessas” (ADORNO
& HORKHEIMER, 1973). De outro, compreendendo como a psicanálise
pôde ser tomada como instrumento teórico no entendimento da cultura
de consumo enquanto uma nova organização social da ilusão.
De Adorno a Zizek, é sobre essa nova organização social da ilusão
que se pretende discorrer tomando-se como fio condutor o conceito de
ideologia. Das elaborações frankfurtianas sobre ideologia, às inflexões
elaboradas por Zizek, em sua aproximação entre ideologia e fantasia,
buscar-se-á, a partir de certas manifestações da cultura de consumo
contemporânea, refletir como se organiza a ilusão a partir do instante em
que a própria ilusão se torna manifesta, ou seja, quando a fantasia parece
apresentar-se em estado puro.

A psicanálise no marketing: a construção da cultura de consumo e a


invenção do consumidor
São várias as possibilidades de se ver a relação entre marketing e
psicanálise, melhor dizendo, de se compreender como o marketing lan-
çou mão dos conhecimentos psicanalíticos na produção da cultura de
consumo. Para isso é preciso, antes de tudo, mergulhar na literatura do
marketing, entender suas práticas e, mais ainda, entender sua história.
A história do pensamento em marketing é oriunda e por vezes se
confunde com a própria história do pensamento econômico, que começou
a ganhar forma no século XVIII. Segundo o economista Carlos de Brito
Pereira (PEREIRA, 2000, p.11), a história do pensamento em marketing tem
suas raízes em uma divisão entre os pressupostos da Escola Histórica Alemã
– tradicionalmente historicista, e que “concebia a ciência econômica como
uma historiografia e como uma sociologia” – e a Escola Neoclássica, que
era basicamente teórica e conceitual, da qual Alfred Marshall se destaca
como principal autor ao final do século XIX. Segundo Pereira, o marke-
189

ting surge como disciplina acadêmica por influência da Escola Histórica


Alemã, cujo principal expoente foi Gustav Schmoller, que era professor
na Universidade de Berlim, para onde foram estudar vários economistas
norte-americanos, no período 1870-1880. Os economistas formados na
tradição da Escola Histórica Alemã acabaram influenciando um pensa-
mento próprio ao marketing, que se contrapunha aos pressupostos epis-
temológicos da Teoria Neoclássica. Convém lembrar que tais pressupostos
estavam baseados em uma visão de homem – o homo economicus – que
buscava “satisfazer o interesse individual racionalmente...” (SLATER, 2002,
p.49). Foi contra esse pensamento baseado em uma “racionalidade formal”
que o marketing postulou sua separação da ciência econômica, lançando
mão de um outro corpo de pensamento presente nas Ciências Humanas,
dentre as quais, a Psicanálise.
Para os propósitos deste artigo, discutiremos mais o campo do ma-
rketing já como disciplina própria e consolidada e, mais ainda, as práticas
de marketing, em especial as técnicas de pesquisa em marketing que,
desde o seu surgimento estiveram voltadas para entender o consumidor,
oferecendo às empresas uma visão clara deste consumidor e de como as
empresas poderiam chegar a ele. Tratava-se, nas primeiras décadas do
século XX, de insistir em “um novo tipo de consumidor” do qual as teorias
econômicas não conseguiam mais explicar, porque era preciso pensá-lo
para além do seu aspecto racional no ato de consumo. Ou seja: o consu-
midor “ideal” da teoria econômica não correspondia ao “consumidor real”
que as empresas precisavam entender e atender. Veremos, adiante, que
esse “consumidor real” não existia de fato, pelo contrário, ele foi produzido,
em grande parte, graças ao auxílio do marketing.
Para isso, o marketing lançou mão de duas grandes teorias psico-
lógicas à época que subsidiaram os estudos sobre o comportamento do
consumidor: a teoria comportamental e a psicanalítica. A primeira, cujos
principais expoentes foram Ivan Pavlov e B. F. Skinner, com suas teorias do
condicionamento, teve seus conceitos amplamente utilizados no campo
das vendas e do advertising, cujo foco é o anúncio do produto. Já a teoria
psicanalítica teve uma profunda influência na formatação da pesquisa
190

motivacional voltada, em seus primórdios, a entender as necessidades e


desejos mais profundos dos consumidores.
Pode-se afirmar que, tanto quanto os experimentos comportamen-
tais, a pesquisa motivacional de base psicanalítica também se voltou para
um conhecimento instrumental dos desejos humanos. As relações entre o
marketing e os seus alvos (targets) sempre foram profundamente interven-
cionistas. Embora no caso da pesquisa de base psicanalítica, a forma de se
relacionar com o consumidor seja outra, ele é complementar à aplicação
da teoria comportamental ao ato de compra, resultando no que Kotler e
Armstrong chamaram de “estímulo de marketing”, para quem o estímulo
de marketing está constituído de quatro P’s: produto, preço, promoção
e praça. Mas outros estímulos entrariam na “caixa preta” do comprador,
como as forças sociais, desafiando o profissional de marketing a entender
como os estímulos são transformados em respostas dentro da “caixa preta”
do consumidor (KOTLER & ARMSTRONG, 1993).
Foi nesse ponto que a teoria psicanalítica foi chamada a ajudar nas
relações entre psicologia e consumo, especialmente no que diz respeito à
maneira como aplicar os conhecimentos do “inconsciente freudiano” ao
ato de compra. Nas palavras de um especialista em “psicanálise aplicada ao
marketing” – Tom Snyder, chefe de uma empresa de pesquisa motivacional
especializada em “explorar as emoções” –, citado por Dawson –, o sucesso
do marketing requer um cuidadoso controle na exploração da profundidade
do estímulo de marketing na mente do consumidor (DAWSON, 2005, p.59).
A importância da teoria freudiana para a compreensão do compor-
tamento do consumidor já havia sido anunciada pelo economista Wroe
Alderson que, em 1957, já afirmava que Sigmund Freud, juntamente com
Charles Darwin e Thorstein Veblen, seriam fundamentais para a formu-
lação de uma adequada teoria do marketing (ALDERSON, 1957). De fato,
deve-se lembrar que Alderson escreve no segundo pós-guerra, momen-
to em que o foco do marketing passa a ser no consumidor, tornando o
crescimento da pesquisa motivacional parte inseparável das pesquisas
de mercado, que foram valorizadas no sentido de permitirem um maior
conhecimento do consumidor.
191

A fundamental importância do conhecimento da “motivação


inconsciente” para o consumo marcou uma predominância da psicaná-
lise, no que foi considerada a primeira onda da pesquisa motivacional
(1945-1960), conforme as palavras de Dawson: “Até os anos 1960, de uma
maneira geral a pesquisa motivacional parecia estar sob a influência de
uma abordagem exclusivamente psicanalítica no estudo das necessidades
e desejos dos consumidores” (DAWSON, 2005, p.67).
Um dos seus principais representantes – considerado “o pai da pesqui-
sa motivacional” –, foi Ernest Dichter, um psicólogo austríaco que se exilou
nos EUA no final da década de 1930. Autor do livro The strategy of desire,
(DICHTER, 1960), foi pioneiro na aplicação dos conceitos psicanalíticos no
estudo do comportamento do consumidor que, através da análise de como
os indivíduos tendem a projetar valores e crenças em objetos, forneceu
alguns fundamentos da psicologia aplicada aos problemas de marketing.
As pesquisas motivacionais de base psicanalítica assentam-se em
técnicas não verbais (projetivas) ou em entrevistas em profundidade,
objetivando abordar fatores que estariam relacionados a aspectos psíqui-
cos inconscientes, exigindo um estudo indireto do mercado, conforme
observado por Packard:

Quando, em meados dos anos 1950, as empresas alimentícias


tiveram dificuldades com o mercado de café instantâneo - o
qual foi inventado para a conveniência dos soldados comba-
tentes durante a II Guerra -, porque as pessoas viam o produto
como significando ociosidade na parte da preparação, as em-
presas acharam que fracassaram porque foram incapazes de
usar corretamente o advertising para impulsionar as vendas,
dada a conveniência aparentemente óbvia do café instantâneo.
A Nestlé Corporation, produtora do café instantâneo com a
marca Nescafé, contratou uma pesquisa motivacional, base-
ada na teoria psicanalítica. As entrevistas em profundidade
mostraram que, se as pessoas eram expostas a imagens reais
dos grãos de café não processados, elas poderiam ser mais
192

receptivas a igualar café instantâneo com café ‘normal’. A


Nestlé, visando a aceitabilidade social do Nescafé, substituiu
sua estratégia de marketing e passou a veicular a ideia de que o
café instantâneo foi produzido pelos mais ricos e reais grãos de
café. Enquanto isso, Ernest Dichter aconselhava a agência de
café pan americana (Pan American Cofee Bureau) a substituir
os tediosos cafés comuns, por imagens que retratassem o café
instantâneo como uma sofisticada bebida, degustada em lu-
gares românticos como Viena. Como resultado desses projetos
de pesquisas motivacionais, o café instantâneo tornou-se um
sucesso de mercado e a imagem do café ‘comum’ foi decidida-
mente transformada (PACKARD, 1957, p.142-143).

O caso demonstra o uso da psicologia com base psicanalítica e sua


contribuição para a expansão do campo de pesquisa sobre o comporta-
mento do consumidor, via pesquisa motivacional; e o quanto o marketing
orientado para o consumo voltou sua atenção para a compreensão da psique
de seus potenciais alvos, focando nos processos mentais que governam o
ato de olhar vitrines, comprar e usar um determinado produto. Daí porque
um contemporâneo estudioso do marketing – Ries (RIES, 2006) – afirma
que “praticamente todo princípio de psicologia tem uma aplicação em
marketing... O estudo do marketing começa com o estudo da psicologia”.
Mas o que a história do marketing revela com relação aos seus
vínculos com a psicologia é que a pesquisa com base nos conhecimentos
psicológicos já tinha como alvo um consumidor. Algumas perguntas re-
ferentes às relações de compra citadas por Dawson –, tais como: “Como
nossos alvos percebem e reagem a todos os fatores ambientais que afetam
suas decisões de compra e uso de nossos produtos?”; “Como as pessoas
decidem que condimento usar no preparo e no ato das refeições?”; “Uma
mudança na embalagem dos nossos produtos poderia fazê-los captar um
pouco mais a atenção do olhar dos compradores nos supermercados?”;
ou, “Quais sentimentos as pessoas têm com relação à sopa?” (DAWSON,
2005, p.53) – indicam uma sociedade de consumo constituída. A pergunta
193

anterior que deve ser feita é como essa sociedade de consumo foi formada.
Para isso, certamente, a psicanálise e o marketing também foram atores
fundamentais. Mas isso requer outra perspectiva de leitura.
É o que é possível depreender do livro The consumer trap, no qual o
sociólogo Michael Dawson utiliza-se de uma analogia – do efeito piranha –
para enfocar a importância do marketing na formatação de uma sociedade
e de uma mentalidade de consumo. Referindo-se aos estudos de zoólogos,
sobre o comportamento das piranhas na América do Sul, Dawson (2005)
revela como, embora uma piranha tenha dentes muito afiados e cortantes,
individualmente elas não apresentam muita ameaça, enquanto podem ser
devoradoras quando atacam como grupo.
Esse efeito piranha forneceria uma explicação para a influência
do marketing dos grandes negócios nas vidas dos americanos que, para
Dawson, é consequência de um forte investimento das grandes corpora-
ções em estarem constantemente apoiando a invenção e o refinamento
de poderosas técnicas de pesquisa voltadas a captarem o comportamento
que leva ao ato de compra. Isso gerou um crescimento exponencial de
investimentos corporativos que levassem o “estímulo de marketing” a
todas as esferas da vida, cercando as pessoas de uma grande quantidade
de mercadorias e reforços efetivos de formas de viver prescritos pelas cor-
porações. E como esse padrão de exposição ao estímulo de marketing é
renovado todo o tempo, isso exerceria sobre o comportamento um efeito
bola de neve, com as vidas tornando-se crescentemente inscritas sob os
efeitos da exposição presente e passada às campanhas de marketing.
Referindo-se a algumas marcas típicas e suas estratégias de marke-
ting, Dawson reforça sua ideia ao mostrar como as marcas Alka-Seltzer e
Cover Girl alteraram a rotina de cuidados pessoais; Sopas Campbell e Kraft
alteraram a rotina de preparar refeições e de comer; a Nike alterou o ves-
tuário e o calçado; e as marcas Pepsi-Cola e Coca-Cola alteraram a rotina
de comer e de beber. Tais exemplos poderiam se multiplicar ad infinitum,
demonstrando como as campanhas de marketing, em conjunto, reforçam
o nível e a intensidade dos ambientes e do comportamento individual de
consumo, em qualquer tempo e o tempo todo.
194

A analogia remete à história da formação da sociedade e da cul-


tura de consumo, tomando o marketing e a psicanálise como produtos
e protagonistas dessa empreitada. Afinal, o que Dawson deixa entrever
é a história de como o marketing dos grandes negócios foi se tornando o
ator principal de uma nova configuração cultural que foi transformando
a paisagem americana – com centros de compras e rodovias progressiva-
mente suplantando os espaços públicos como parques, livrarias, trilhos
de trem e desertos –, bem como foi moldando a experiência individual
para que cada um tomasse os objetos de consumo como referência de
vida. Constatação também feita por Jeremy Rifkin que, em uma recons-
tituição histórica sobre a formação da cultura de consumo americana,
afirma que, na década de 1920, a “comunidade empresarial americana
decidiu modificar radicalmente a psicologia que havia construído uma
nação” e, com isso, “o marketing, que até então havia desempenhado um
papel secundário nos negócios, assumiu nova importância. Da noite para
o dia, a cultura do produtor transformava-se na cultura do consumidor”
(RIFKIN, 1995, p.20).
Dessa perspectiva, o marketing e a psicanálise também surgem
juntos e foram partes de um projeto maior, de formação de uma nova
mentalidade. Afinal, para que o “efeito piranha” pudesse surgir, foi pre-
ciso que certos fatores políticos, sociais e culturais concorressem para a
formação de um “espírito de época” que legitimasse uma nova forma de
vida, pautada pela lógica do consumo.
É o que mostram os historiadores da sociedade de consumo ame-
ricana, revelando como foi possível que uma sociedade que vivia sob a
lógica da parcimônia e da poupança se voltasse para a gratificação imediata
fornecida pelos produtos. Nesse caso, contribuiu enormemente a invenção
do “crédito ao consumidor” como demonstrado pelo historiador Calder
(CALDER, 1999), sustentando o quanto essa invenção social foi determi-
nante para minar as resistências ideológicas de uma cultura assentada na
ética do trabalho e do viver a partir dos seus próprios meios.
Mas no início do século XX, a maioria dos americanos ainda consumia
produtos fabricados em casa. Como torná-los consumidores de produtos
195

fabricados industrialmente? Ou seja, mesmo que o crédito ao consumo esti-


vesse disponível, como convencer a esse potencial consumidor que comprar
produtos industriais era mais conveniente? Para isso, os anúncios comerciais
tiveram um papel central, ao denegrirem os produtos caseiros e exaltarem
os produtos feitos à máquina. Havia, também, um trabalho corpo a corpo
junto aos pontos de venda dos produtos fabricados em massa, com profis-
sionais de marketing ensinando aos seus alvos como era melhor consumir
caixas de aveia com marcas próprias, à aveia a granel (STRASSER, 1989).
Portanto, foram vários eventos que, em seu conjunto, formaram a
sociedade de consumo e “produziram o consumidor”: enquanto o macro-
marketing1 atuava em questões de âmbito público que pudessem fornecer
a infraestrutura para que essa sociedade efetivamente existisse – como
com o crédito ao consumidor –, o micromarketing atuava no nível da
psicologia do consumo, através de anúncios que enfocavam um estilo de
vida urbano, moderno, que demandava a comodidade que os produtos
industriais poderiam fornecer.
Mas como e por que essa psicologia do consumo funcionou tão
bem? Afinal, como Rifkin afirma com muita categoria, “o fenômeno do
consumo de massa não ocorreu espontaneamente, tampouco foi o sub-
produto inevitável de uma natureza humana insaciável. Ao contrário”
(RIFKIN, 1995, p.19). Nesse sentido, por que a teoria da insatisfação, da
falta permanente, tão em voga nessa época através da disseminação da
psicanálise freudiana, foi tão bem utilizada pelo marketing?
Para isso, contaram duas outras grandes ferramentas do marketing
que, junto com o advertising, também ajudaram a produzir a cultura de
consumo: a propaganda e a publicidade. O termo publicidade está sendo
utilizado da maneira como foi descrito no dicionário dos termos de ma-
rketing, onde publicity é definida como uma forma de comunicação da
companhia ou do produto, não paga, geralmente veiculada por alguma

1 Termo em marketing para gerenciamento das políticas do macroambiente. Segundo Da-


wson (2005, p.117), a reorganização do ambiente do potencial consumidor não é suficiente
para uma atuação eficiente do marketing. Tendo em vista que as pessoas são constantemente
influenciadas e conectadas a infraestruturas públicas a manipulação das políticas públicas
também se torna uma questão central para o marketing.
196

mídia. Tal conceito tem uma profunda interface com o de “relações pú-
blicas” (public relations), também definida, no referido dicionário, como:

Aquela forma de gestão da comunicação que procura fazer


uso da publicidade e outras formas não pagas de promoção
e informação para influenciar os sentimentos, opiniões e
crenças acerca de uma empresa, seus produtos ou serviços,
ou acerca do valor do produto, serviço ou das atividades des-
sa organização para seus compradores, futuros clientes ou
outras partes interessadas tais como: clientes, empregados,
comunidade, acionista etc. (AMA – dictionary)

Tal aproximação, conceitual e prática, entre publicity e public rela-


tions deve-se, também, à maneira como Edward Bernays – um sobrinho
do psicanalista Sigmund Freud, e fundador da disciplina de Relações Pú-
blicas – estabeleceu uma estreita relação entre mercado e espaço público
visando à criação de uma cultura capaz de “produzir consumidores”. Tal
cultura, segundo Gorz (2005), deveria “produzir desejos e vontades de
imagens de si e dos estilos de vida que, adotados e interiorizados pelos
indivíduos, transformam-nos nessa nova espécie de consumidores que
não necessitam daquilo que desejam, e não desejam aquilo de que ne-
cessitam” (GORZ, 2005, p. 48).
Bernays chegou aos Estados Unidos na década de 1920, exatamente
a que vê despontar o marketing como um ator central, em uma economia
às voltas com o desafio de encontrar saídas para o escoamento da produ-
ção industrial. Bernays acreditava no poder ilimitado do desejo humano
e propunha que no ato da compra se devia apelar não às necessidades
racionais das pessoas, mas aos seus fantasmas e desejos inconfessáveis.
Tendo em vista que uma consideração central em psicanálise é que o de-
sejo é produzido pela cultura, a ideia básica era a de dar forma ao desejo
humano mediante sua associação a objetos de consumo.
O desafio desse autor e prático das relações públicas era exercer um
poderoso papel junto aos grandes setores da economia – por exemplo, a
197

indústria de cigarros – a fim de que com o seu engenhoso conhecimento


das “motivações irracionais” de uma sociedade, pudesse produzir desejos
antes inimagináveis, como o de fumar, especialmente no caso das mu-
lheres, ao produzir imagens que ligavam o fumo à liberdade feminina. É
o que destaca Gorz:
Quando a indústria de tabaco abordou Bernays, perguntando-lhe se
ele via um meio de fazer as mulheres fumarem, Bernays assumiu o desafio
sem hesitar. O cigarro, explicou ele, era um símbolo fálico, e as mulheres
se disporiam a fumar se vissem no cigarro um meio de se emanciparem
simbolicamente da dominação masculina. Por ocasião do grande desfile
da festa nacional em Nova York, informou-se à imprensa que um grande
acontecimento iria se produzir... Vinte moças elegantes tiraram cigarros
e isqueiros de suas bolsas e acenderam suas simbólicas freedom torches.
O cigarro havia-se tornado então o símbolo da emancipação feminina
(GORZ, 2005, p.49).
Nesse exemplo pode-se, também, ver a imbricação entre publicida-
de e propaganda: uma indústria de cigarros promovendo uma mudança
de mentalidade e um estilo de vida, ao mesmo tempo em que tinha
por objetivo comercializar um produto específico não por meio de um
anúncio comercial de uma dada marca, mas por um trabalho de relações
públicas.2 Autor de um livro chamado Propaganda, Bernays demons-

2 Segundo Ries & Ries (2000), publicidade se faz ao se conseguir gerar notícias favoráveis
de um produto ou de uma marca na mídia, ou seja, quando a mídia fala bem de algo ou
alguém, o que gera muito mais credibilidade junto ao público do que a veiculação de um
anúncio comercial (advertising). Trata-se de se criar acontecimentos que façam com que um
determinado produto ou marca apareçam em meios aos dados de “realidade”. Daí Bernays
ser considerado o pai do spin, fenômeno que consiste em produzir um evento ou uma ideia,
apresentando-o como sendo melhor do que na realidade. Entretanto, a dificuldade de se
pensar as interfaces do trabalho de relações públicas com a publicidade ou propaganda
advém do fato de que a propaganda é tida como instrumento de um dado sistema político –
daí o termo usual “propaganda de estado” –, enquanto a publicidade seria mais comercial. É
exatamente esta confusão de termos que clarifica o ponto em questão aqui: o que se pretende
mostrar é que a propaganda de estado (ou política) pode ser – e foi – feita com a chancela
do mercado e que isso teria começado a partir da formação da cultura de consumo, quando
houve um esforço conjunto (governo e empresas) em implantarem um novo modo de vida
e de mentalidade, baseados no consumismo. Essa perspectiva ficou mais clara depois da
publicação, póstuma, do curso de Foucault (2007) – Nacimiento de la biopolítica –, na qual
o autor discorre sobre o nascimento do neoliberalismo como um tipo novo de capitalismo,
demonstrando claramente como, além de uma formação econômica, o capitalismo também
é uma forma de governo. E cada vez mais se governa fora do Estado.
198

tra, com o próprio título, essa profunda imbricação entre publicidade


e propaganda, tomando esta última como um “esforço organizado de
disseminar uma crença ou doutrina particular” (p.20). E a “propaganda
moderna” – continua o autor, em um livro escrito em 1928 – é “um esforço
consistente e permanente de criar ou moldar eventos para influenciar
as relações entre o público e uma empresa, uma ideia ou um grupo”
(BERNAYS, 1928, p.25).
E por que isso funcionaria tão bem? Bernays diz que embora nós
desejássemos acreditar que cada cidadão cria suas próprias ideias sobre
questões públicas e matérias de condutas privadas, na prática isso não
ocorre já que, se todos os homens tivessem que analisar os difíceis dados
de compreensão do mundo econômico, político e até mesmo de uma atu-
ação ética, seria impossível se chegar a uma conclusão. Portanto, o campo
das escolhas não está livre de uma certa manipulação. Por isso em tese,
mas não na prática, todos compram o melhor e o mais barato produto
oferecido no mercado. Daí o vasto e contínuo esforço de capturar nossas
mentes no interesse de alguma mercadoria ou ideia.
Ao analisar a “psicologia das relações públicas” Bernays centra o foco
no estudo da “psicologia das massas”. Referindo-se a autores clássicos no
estudo da mente grupal, como Gustave Le Bon e, posteriormente, Walter
Lippman, Bernays toma a prática recente e bem sucedida (em 1928) da
propaganda – que incorporou em seus estudos a psicologia das massas
– para demonstrar como o grupo tem características distintas, sendo mo-
tivado por impulsos e emoções que não podem ser explicadas tomando-se
por base a psicologia individual. Nesse sentido, um ponto importante é
que, conforme os estudos demonstraram, o grupo não “pensa”, no sentido
estrito dessa palavra. No lugar de pensamentos, a mente grupal funciona
por impulsos, hábitos e emoções. Daí porque a crença de um grupo em
um líder já se mostrava um dos princípios mais firmemente estabelecidos
no estudo da psicologia das massas.
Bernays ressalta que ao falar da influência do grupo, não está assu-
mindo que todos devam estar juntos em um encontro público para serem
influenciados pela psicologia das massas. Ao contrário, sendo um ser gre-
199

gário, o homem se sente membro de um grupo mesmo estando sozinho


em seus aposentos. E quando planeja realizar algum ato de compra, o faz
não baseado em seu único e próprio julgamento, mas a partir de uma mis-
celânea de impressões estampadas em sua mente por influências externas
que, inconscientemente, controlam seus pensamentos. E por isso o autor
deixa entrever, no que diz respeito à propaganda, o papel do “formador
de opinião” como uma autoridade, ou líder.
Bernays dá o seguinte exemplo: suponha que um determinado
produtor deseje vender mais bacon. Ao invés de usar a velha técnica psi-
cológica de repetição de um estímulo para criar um hábito – do tipo “coma
bacon porque é barato, é bom, dá energia” – o “novo” vendedor, apoiado
no entendimento da estrutura grupal da sociedade, e nos princípios da
psicologia de massas, se perguntaria: “Quem é que influencia os hábitos do
público?” Para o autor, a resposta seria “o fisiologista”.3 Logo, o novo ven-
dedor deveria influenciar os fisiologistas a dizerem que é saudável comer
bacon. Nesse caso seria preciso levar em conta a relação de dependência
dos homens com alguma autoridade.
Em um estudo contemporâneo que analisa a questão da “liberdade
de escolha”, a filósofa eslovena Renata Salecl afirma que Bernays acreditava
que “as pessoas compram algo porque uma autoridade com a qual se iden-
tificam possui tal objeto” (SALECL, 2005b, p.38). O marketing das grandes
corporações nunca pretendeu – e nem pode – assumir esse lugar de autori-
dade, na medida em que trabalha com o discurso da “liberdade de escolha”.
Mas com os instrumentais com os quais passou a lançar mão – propaganda,
advertising e publicidade –, todos já dispondo de amplos estudos sobre a
psicologia do consumo, o marketing assumiu o lugar de canalizador e mo-
delador dos desejos de uma época, vinculando-se a figuras de autoridade.
Desse ponto de vista pode-se concluir que a história do marketing
pode ser compreendida a partir do momento em que as grandes corpora-
ções capitalistas somaram forças com o governo americano a fim de inau-

3 Outro aspecto da época na qual Bernays escreve era a profunda preocupação com o hi-
gienismo – daí a referência ao fisiologista como uma autoridade central da época – como
produto de uma era progressista em busca de segurança e pureza dos alimentos.
200

gurarem uma era de fusão entre propaganda, publicidade e advertising,


no sentido de aderência a um sistema ideológico que propunha um estilo
de vida americano fundamentalmente moldado pelo consumo. E que esse
projeto entre os negócios e a política contou com o apoio imprescindível
da psicologia existente à época.4 Quando destaca a influência política que
Bernays exerceu nos EUA, Gorz faz referência ao documentário do diretor
Adam Curtis,5 no qual o presidente americano – Herbert Hoover – elogiava
o trabalho de Bernays, por transformar as pessoas em “incansáveis má-
quinas de felicidade” (GORZ, 2005, p.49).
Se for seguida a datação proposta pela história do marketing – a que
sustenta que o marketing efetivamente surgiu na década de 1950, quando
se deu a virada discursiva para o foco no consumidor –, fica ainda mais
clara a relação entre política e mercado, através da celebração da cultura
de consumo. Afinal, nessa década, a propaganda de estado foi marcada
pela Guerra Fria como sinônimo de uma histórica disputa entre dois
sistemas de governo: socialismo e capitalismo. Basta uma breve leitura
na história das grandes marcas da época para se constatar como se dava
essa imbricação entre o plano político e o mercadológico. Para mencionar
apenas um exemplo do “símbolo do capitalismo americano” – a marca
McDonald´s – segue uma parte de sua história, retirada de Boas & Chain
(1976, apud Fontenelle, 2002):

Com o início da Guerra Fria, as cidadezinhas americanas


começaram a atribuir, às franquias com nomes de marca,
uma expressão altamente patriótica. Na luta do comunismo
contra o capitalismo, os jornais dessas pequenas cidades
apresentavam o McDonald’s como exemplo da superioridade
do sistema de livre-empresa, como a resposta para o sonho

4 Cabe menção à Pendergrast (1993), quando o autor nos diz que “de muitas maneiras, a
Coca-Cola representava as grandes empresas da década de 1920 – a era dos primeiros ad-
ministradores profissionais, que confiavam cada vez mais em advogados, especialistas em
relações públicas, pesquisadores de mercado, psicólogos e publicitários” (p.152).
5 The century of the self – documentário produzido pela BBC, em 2002 –, que explora a his-
tória da formação da cultura de consumo americana e demonstra a relação entre mercado
e política, através dos usos da psicologia.
201

americano. As convicções pessoais de Ray Kroc, no que


tange ao seu anticomunismo, ajudaram, também, a tornar o
McDonald’s o “símbolo do sucesso e durabilidade do capita-
lismo”, ao ponto dele ser convidado pela Secretaria de Defesa
em Washignton, em 1958, para dar uma conferência de orien-
tação civil no Pentágono. A atração que Kroc conseguiu obter
do governo foi resultado de todo um investimento na imagem
do McDonald’s como símbolo do american way, quando Kroc
instituiu o uso obrigatório da bandeira americana em cada
restaurante McDonald’s (FONTENELLE, 2002, p.107).

Enfim, quando o Presidente Eisenhower – conhecido pelas famosas


rodovias que foram determinantes para a instauração de um modo de vida
baseado no automóvel e no subúrbio – é clicado tomando Coca-Cola, como
mencionado em Pendergrast (PENDERGRAST, 1993), estaríamos diante
de propaganda ou de publicidade?
Assim o funcionamento da psicanálise voltada para a produção do
consumidor merece ser analisada do ponto de vista da construção políti-
ca de uma mentalidade de consumo, mais do que no nível das atuações
individuais e corporativas do marketing. Daí Kurz (1999, apud GORZ,
2005), afirmar que a função direta do marketing não é tanto “incitar à
compra de mercadorias determinadas, mas engendrar uma consciência
que interiorizou a forma, o sentido, a estética específica da ‘publicidade
em geral’, e que vê o mundo com seus olhos...[através da] formação, não
apenas dos desejos e das cobiças, mas igualmente dos sentimentos [e da]
a tomada do inconsciente...” (p.51).
Assim, embora o termo propaganda tenha sido deixado como re-
ferência para o uso político de governos buscou-se demonstrar como ela
foi atuante a partir de uma parceria entre mercado e governo, na defesa
dos princípios democráticos e com uma base de sustentação ideológica da
“livre escolha”. Não por acaso, ao discorrer sobre o padrão da propaganda
fascista, Adorno comparou a sua efetividade à “psicologia dos consumi-
dores” (ADORNO, 2006, p.184). Tal paradoxo só pode ser completamente
202

compreendido quando se visualiza o marketing e a psicanálise como


fenômenos de um projeto político que envolveu uma ampla conversão
ideológica em todos os âmbitos sócio-culturais de uma nação e forneceu
o ambiente propício para que o marketing e a psicologia se tornassem
atores principais na constituição da cultura de consumo.
Ao final desta incursão é possível afirmar que há outra relação entre
psicologia e marketing, além da que consta na história do pensamento em
marketing. A força e eficiência dessa psicologia contaram com o apoio de
psicólogos renomados, notadamente conhecedores da teoria freudiana
do desejo, tão em voga à época. Entretanto, não teria sido possível sem a
co-participação decisiva da política – da relação entre governo e empresa
na construção da cultura de consumo e consequente produção do consu-
midor, fazendo ver que a psicologia se estendeu para além do seu foco no
indivíduo, abrangendo o ambiente social em que se realiza a transformação
de um sujeito em consumidor (BAUMAN, 2007, p.151).

A psicanálise do marketing: a interpretação filosófica


de uma “psicanálise às avessas”
Assim como o marketing lançou mão das teorias psicanalíticas para
produzir a cultura de consumo, a filosofia também se apoiou na psicanálise
para fazer a crítica ao marketing e, nesse sentido, fazer a crítica à socieda-
de da época. Assim, convém demonstrar que a história do surgimento do
marketing e de sua parceria com uma forma específica de psicologia, a ins-
trumental – afinal, como bem dito por Kotler (KOTLER, 1994), ao marketing
contemporâneo não interessa entender qualquer desejo ou necessidade,
mas o desejo que dá lucro –, também legou o seu avesso: uma psicologia
negativa, que tomou as técnicas mercadológicas como instrumento de aná-
lise para, a partir delas, iluminar a época que gerou a cultura de consumo e
a sua indissociável relação entre cultura, mercado e política.
Essa psicologia radicalmente crítica contou com as reflexões teóricas
de autores europeus – como Theodor Adorno e Max Horkheimer, dentre
outros –, a partir de suas vivências em solo norte-americano e da releitura
da obra freudiana na maneira como esta foi assimilada para o consumo.
203

Tais autores ainda são ponto de partida para os que procuram fazer
uma teoria crítica da cultura de consumo, seja pelo seu pioneirismo no de-
bate sobre o lugar do consumo e do marketing na sociedade novecentista,
seja por terem feito uma abordagem do sujeito e da cultura que punham
em xeque o ideal iluminista do sujeito racional, autônomo e soberano –
base ideológica a partir da qual se constituiu o consumidor.
São muitas as passagens na obra frankfurtiana nas quais é possível se
verificar uma análise substantiva das técnicas de marketing, notadamente
em Adorno e Horkheimer, que foram pioneiros em uma abordagem crítica
das abordagens mercadológicas na constituição da cultura de consumo.
Nesse campo específico, os autores iniciaram tal crítica com a “indústria
cultural”, um dos textos que compõem a Dialética do Esclarecimento
(ADORNO & HORKHEIMER, 1985), originalmente publicado em 1947. En-
quanto nesse texto os autores focaram-se na estrutura de funcionamento
da publicidade que, segundo eles, se confundiria técnica e economicamen-
te com a própria industria cultural, em dois artigos posteriores – “A teoria
freudiana e o padrão da propaganda fascista” (ADORNO, 2006), publicado
em 1951; e “Temas Básicos da Sociologia” (ADORNO & HORKHEIMER,
1973), lançado em 1956 –, os autores analisaram as “configurações psico-
lógicas” que pudessem explicitar “por que e como a sociedade moderna
produz homens capazes de reagir a esses estímulos, dos quais, inclusive,
sentem necessidade...” (ADORNO & HORKHEIMER, 1973, p.192). Os es-
tímulos a que os autores se referem seriam produzidos por:

Instrumentos próprios da chamada communication research


(pesquisa de comunicação), o estudo dos meios de comuni-
cação de massa [que dedicam] especial atenção às reações
dos consumidores, assim como à estrutura das interações
entre produtores e consumidores. Essas investigações, que
não escondem a sua origem nas pesquisas de mercado, dão
alguns frutos, sem dúvida. (p.201 – grifos dos autores)
204

Isso significava, segundo os autores, uma “psicologia social perversa”;


ou uma “psicanálise às avessas” (ADORNO & HORKHEIMER, 1973, p.201).
Mas o problema filosófico central contido nesse artigo, cujas raízes
também já se deixavam entrever no artigo de Adorno “A teoria freudiana e
o padrão de propaganda fascista” (Adorno, 2006), bem como em Minima
Moralia (ADORNO, 1992), ambos publicados originalmente em 1951, era
o da constituição subjetiva na transformação do conceito de ideologia.
Seu principal objetivo era demonstrar como o conceito de ideologia como
“falsa consciência” já não se aplicava mais ao novo contexto histórico do
segundo pós-guerra. Para os autores, esse conceito burguês indicava que
ainda havia, pelo menos no nível idealizado, mas contendo um elemento
de racionalidade, a crença na liberdade com a realização da igualdade
formal dos cidadãos. O que havia de “falso” nessa ideologia, era que ela
já se apresentava como realizada, quando a exploração da força de tra-
balho, por exemplo, negava-a. Mas havia a possibilidade de uma crítica
ideológica que apontasse para a não realização desse ideal burguês, daí a
emancipação ser possível.
Assim, para os frankfurtianos em questão, a ideologia só seria pos-
sível em um espaço social no qual ocorressem relações de poder que não
fossem totalmente transparentes, mediatas, pois, aí, haveria um elemento
de falsidade a negar o ideal universal de liberdade, igualdade, justiça etc.,
que, por sua vez, permite a crítica. Não é o que ocorre no que os autores
chamam de “patrimônio intelectual” do nazismo,

dado que foi constituído em resultado de manipulações e


como instrumento de poder, do qual ninguém, nem mesmo os
seus porta-vozes, pensavam seriamente que merecesse crédito
ou fosse levado a sério. Havia aí sempre uma insinuação de re-
curso à força bruta: tenta fazer uso da tua razão e não tardarás a
ver o que te acontece (ADORNO & HORKHEIMER, 1973, p.192)

Nesse caso tratar-se-ia, segundo os autores, da realidade como


ideologia de si mesma, no sentido de que “a ideologia já não garante coisa
205

alguma, salvo que as coisas são o que são” (ADORNO & HORKHEIMER,
1973, p.203) e que, portanto, não poderiam ser diferentes do que são.
Mas o que inculcou esses autores foi a adesão subjetiva a tal trans-
formação ideológica já que os homens enxergariam a sua lógica, embora
se adaptassem à sua mentira. Era preciso, segundo eles, entender como a
sociedade “produz homens capazes de reagir a esses estímulos, dos quais,
inclusive, sentem necessidade...” (ADORNO & HORKHEIMER, 1973, p.192).
Daí a recorrência a Freud para poder entender aquilo que os autores cha-
maram de uma “psicologia social pervertida” (ADORNO & HORKHEIMER,
1973, p.201), conceito que foi desenvolvido com mais profundidade no
artigo sobre “A teoria freudiana e o padrão de propaganda fascista”, quando
Adorno admite que o segredo da propaganda fascista é tomar os homens
pelo que eles haviam se tornado: despojados de autonomia e espontanei-
dade, dado que já eram produtos de uma cultura totalmente pervertida.
Assim, a reformulação do conceito de ideologia feita por Adorno e
Horkheimer partiu de um entendimento de que “a ideologia já não garante
coisa alguma, salvo que as coisas são o que são...”. O fato da realidade se
tornar ideologia de si mesma levou os autores a concluírem que os homens
passaram a enxergar através do seu véu bastando, portanto, “um pequeno
esforço para se livrar do manto dessa aparência onipotente...”. Mas esse es-
forço se mostrou o mais custoso, tendo em vista que os homens, apesar de se
sentirem “peças de um jogo”, preferiam se adaptar a essa mentira (ADORNO
& HORKHEIMER, 1973, p.202-203). Essa constatação gerou uma espécie de
paralisação da teoria crítica, tendo em vista que a assunção de um sujeito
totalmente capturado nas malhas de um discurso não deixava espaço para
a emancipação que estava na base do projeto crítico desses autores.
Sobre essa nova organização social da ilusão possibilitada pelo ma-
rketing, Adorno proporá a ideia de “ilusões necessárias” enquanto o status
eterno da ideologia em torno da qual uma sociedade se organiza. Nos nossos
dias, sabemos que outro filósofo, Slavoj Zizek, retomou as construções frank-
furtianas no sentido de buscar uma saída para esse impasse emancipatório
a partir da ideia da liberdade negativa do sujeito. Voltaremos a ele, mas antes
eu gostaria de enfocar que os últimos textos frankfurtianos, em especial
206

de Adorno, são da década de 1960, exatamente o período que a cultura de


consumo está vivendo o seu segundo grande momento após o nascimento
do marketing, quando o excesso do capitalismo chega ao seu auge e quando
é preciso apelar às imagens dos produtos para criar uma diferença.
Há, assim, um momento de ruptura, embora com elementos de
continuidade com o momento de formação da cultura de consumo no
início do século XX. Naquele primeiro momento da cultura de consumo,
atrelado ao nascimento do marketing, o que estava em jogo era uma
organização social da ilusão a partir do horizonte do desejo: da busca da
completude, da realização, mediante “tipos ideais” (e numa linguagem
psicanalítica poderia se dizer que o objeto morava dentro dos limites
da fantasia). A ideologia corrente era a da sociedade da abundância, do
progresso, da busca da felicidade atrelada ao consumo. Tratava-se, assim,
de uma cultura de consumo em formação, que ainda operava e concorria
com outras identificações em jogo.
Mas na segunda metade do século XX, em especial após a década
de 1960, já estávamos diante de uma forma cultural em sua totalidade, em
seu apogeu. Trata-se do momento no qual o marketing começa a operar
com o discurso do “não há limites”, das possibilidades infinitas, do jogo
aleatório das imagens. Nesse momento há um descolamento da imagem
do seu produto. Já não era mais preciso apelar às características intrínsecas
das mercadorias (como se seu valor de uso ainda tivesse algum sentido).
Percebe-se uma inflexão nas técnicas do marketing que começam a jogar
com o que eu chamo de “vazio identificatório do sujeito”.
Assim, as críticas adornianas anteciparam esse momento de ra-
dicalização da cultura de consumo que presenciamos agora. Trata-se,
portanto, de uma mudança de foco que provoca uma grande diferença em
praticamente todos os aspectos da sociedade, da cultura e da vida indi-
vidual. Um processo que coincide com o que uma certa literatura crítica
sobre a sociedade contemporânea do consumo chama de “sociedade do
Goza!” (GOLDEMBERG, 1997), levando cada um a buscar a sua forma de
gozo através do consumo sem limites e fazendo uma reviravolta naquele
modo de socialização indicado por Freud em uma sociedade repressiva.
207

A fantasia como objeto de consumo e,


mais uma vez, os impasses da crítica...
Passados cerca de trinta anos após as formulações adornianas, cou-
be a outro filósofo, o esloveno Slavoj Zizek, a tarefa de repensar as relações
entre Filosofia e Psicanálise, tomando, em grande parte, o marketing e suas
ferramentas como instrumental de análise. Zizek também resgata a estra-
tégia frankfurtiana de repensar o conceito de ideologia a partir de bases
dialéticas e em articulação com a psicanálise, no caso, agora, da psicaná-
lise lacaniana que, em sua melhor versão, nos remete sempre a um Freud
revisto a partir dos impasses com os quais a sociedade contemporânea se
depara. O autor tem uma produção extensa, mas é possível se afirmar que
a tarefa a que se propôs, de pensar a operação ideológica, deu-se início
com a sua tese de doutoramento, defendida em 1986, no Departamento
de Psicanálise da Universidade Paris VIII, cujo título foi “A Filosofia entre
o Sintoma e a Fantasia” e que foi publicada originalmente em 1988, com
o título “Les plus sublime des hysteriques – Hegel passe”, cuja versão em
português se deu em 1991 (ZIZEK, 1991). Dois anos depois, Zizek volta
ao tema, dessa vez dialogando diretamente com a Escola de Frankfurt,
em seu livro “Eles não sabem o que fazem: o sublime objeto da ideolo-
gia” (ZIZEK, 1992), que em francês foi publicado em 1990. A partir daí, o
filósofo não parou mais de voltar ao tema em seus inúmeros escritos, até
que, em “Bem-vindo ao deserto do real” (2003) e “Arriscar o Impossível”
(2006), esse último resultante de uma longa entrevista que deu ao cientista
político Glyn Daly, retoma o conceito para, mais uma vez, propor uma
inflexão, dessa vez, na própria teoria da ideologia que vinha formatando.
Não é possível nos determos, aqui, em toda a digressão teórica do
autor sobre as inflexões no conceito de ideologia. O ponto central ao qual
eu gostaria de remeter, tendo em vista os objetivos deste artigo, é para a
confluência entre o que Zizek propõe como possibilidades emancipató-
rias e as novas técnicas de marketing que, nos leva, mais uma vez, a nos
depararmos com a ideia de uma “psicanálise às avessas”.
Iniciando pela proposição zizekiana: recorrendo à noção lacaniana
de “sujeito”, Zizek propôs que há algo de irredutível à instrumentalização
208

social – a “liberdade negativa dos sujeitos” – para mostrar que é aí onde se


encontra a possibilidade de uma ruptura com a ordem vigente e, portanto,
insistir na emancipação possível. Em outras palavras, Zizek, remetendo-se
ao sujeito lacaniano, insistiu em algo no sujeito que resiste à simbolização,
que é pura negatividade, que não se deixa enredar pelo puro social e que,
portanto, é impulsionador de crítica e criação.
Note-se que Zizek se remete a uma teoria do sujeito para que, já
como ponto de partida, possa apresentar a possibilidade de uma crítica
emancipatória, que estaria assentada na experiência da negatividade do
sujeito. Até aqui, o autor leva a se pensar em uma universalização desse
sujeito lacaniano, no nível da estrutura. Entretanto, tal universalização es-
trutural se articula a algo que é histórico e concreto, qual seja, a ideologia.
E é possível se ver como essa teoria do sujeito se articula à teoria da ideo-
logia zizekiana a partir do conceito psicanalítico de fantasia. Para isso, será
feita uma longa citação do filósofo Vladimir Safatle que resume de forma
muito clara o que é fantasia e como ela se articula à ideologia em Zizek:

A psicanálise compreende a fantasia como uma cena imagi-


nária na qual o sujeito representa a realização de seu desejo
e determina um caminho em direção ao gozo. Sem a ação
estruturadora da fantasia, o sujeito não saberia como desejar
e estabelecer uma relação de objeto. Ele seria assim jogado
na angústia produzida pela inadequação radical do desejo
aos objetos empíricos. Ao definir a fantasia como modo de
defesa contra a angústia, Lacan vê nela o dispositivo capaz
de permitir que o sujeito invista libidinalmente o mundo dos
objetos e que os objetos possam adquirir valor e significação.
Nota-se que tudo o que Zizek precisou fazer foi insistir na
existência de uma fantasia social que estrutura a determi-
nação do valor e da significação da realidade socialmente
compartilhada. Fantasia social capaz de produzir uma ‘obje-
tividade fantasmática’ que tem um nome próprio: ideologia.
(SAFATLE, 2003, p.188 – grifos do autor)
209

Igualar ideologia a fantasia social é uma forma de mostrar como


em toda realidade social o sujeito procura se integrar em uma rede de
determinações positivas a fim de que se sinta incluído no mundo sim-
bólico, daí porque as técnicas de marketing funcionariam tão bem. Seria
preciso buscar, portanto, onde está o Real da ilusão nessa nova forma de
organização social da ilusão. Ou seja: o lugar onde o sujeito busca “dar
consistência à sua identidade fora dos ‘títulos’, dos referenciais que o
situam na rede simbólica universal, uma maneira de presentificar... sua
fantasia”. (ZIZEK, 1991, p.149-150)
Estaríamos, portanto, diante da proposição de uma “destituição
subjetiva”, vinculada à ideia de uma “travessia da fantasia” – se pensarmos
na experiência individual, como um fim de análise, por exemplo –; ou da
experiência radical do ato revolucionário, do ponto de vista coletivo e
político. Assim é que, em seus últimos escritos, Zizek propõe uma inflexão
na sua concepção original de ideologia: de algo que era uma ilusão que
preenche um vazio, uma impossibilidade; a ideologia passou a ser com-
preendida como “a elevação de algo à condição de impossibilidade, como
meio de adiar ou evitar o encontro com isso” (ZIZEK & GLYN, 2006, p.89). O
autor não quer invalidar o fato de que a ideologia ainda procure traduzir “a
impossibilidade num bloqueio histórico particular, com isso sustentando o
sonho da realização suprema”, mas, mais que isso, quer mostrar que “a ide-
ologia também funciona como uma forma de regular uma certa distância
com esse encontro. Ela sustentaria, no nível da fantasia, exatamente aquilo
que procura evitar no nível da realidade: esforça-se por nos convencer de
que a Coisa nunca pode ser encontrada” (idem, p.90). Isso porque se, de
um lado a fantasia é pacificadora, já que oferece um cenário imaginário a
partir do qual os sujeitos representam o seu desejo, por outro ela tem algo
de perturbador, na medida em que não pode ser assimilada à realidade.
Daí porque, segundo Zizek, a dimensão política deve ser a de se insistir no
atravessamento da fantasia, a de se confrontar com as impossibilidades
perturbadoras da assimilação da fantasia à realidade.
Entretanto, se tal proposição se apresenta como algo libertário,
também traz problemas, mesmo se visto a partir do próprio campo psi-
210

canalítico. É sobre isso que vem tratando o trabalho da filósofa e também


psicanalista Renata Salecl (SALECL, 2005a; 2005b). A autora discorre como
passamos a viver em um contexto no qual o sujeito vivencia um mundo
onde há uma perda dos limites e, portanto, isso é provocador de angústia.
Baseando-se em relatos clínicos, demonstra como tal processo tem gerado
uma paradoxal ansiedade, levando a uma forte identificação com figuras
de autoridade, dentre as quais, a identificação com as marcas publicitárias,
através das quais você pode criar seu próprio estilo, desde que opte por
uma filiação a uma marca no supermercado das identidades. Salecl nos
ajuda a demonstrar como a sociedade contemporânea vem produzindo
uma angústia do vazio que tem sido preenchida em grande parte pelo
mercado. Ao fazer uma recapitulação histórica sobre os momentos de an-
gústia da sociedade no século XX, a autora aponta o quanto os momentos
de angústia levou, por exemplo, ao seguimento de ideologias econômicas
e sociais rígidas e conservadoras no período que precedeu as duas grandes
guerras. Falando particularmente sobre o 11 de setembro, a autora nos diz
que esse acontecimento fez “brotar um irrefreável sentimento de angústia
[provocado] pelo colapso das estruturas de fantasia que pareciam orga-
nizar a percepção individual acerca do mundo...” (SALECL, 2005ª, p.14).
Focando nas técnicas de marketing, Salecl aponta o quanto o capitalismo se
beneficia das angústias produzidas pela mídia e, por sua vez, produz novos
tipos de angústia pela exposição do segredo, da inconstância, do vazio.
Na própria obra de Zizek também temos muitos exemplos de como,
cada vez mais, a publicidade trabalha com a exposição dos fantasmas.
Remetendo-se, em especial, a um anúncio comercial de cerveja, no qual
aparece uma moça beijando um sapo, que por sua vez, vira príncipe e que,
após uma piscadela transforma a moça em uma cerveja, Zizek nos diz o
quanto as técnicas publicitárias se sofisticaram a ponto de realizarem, em
parte, aquilo que o movimento surrealista propunha como a vanguarda
da arte, já que “os surrealistas também praticavam uma certa forma de
‘travessia do fantasma’” (ZIZEK, 2006, p. 44).
Assim, as técnicas de marketing contemporâneo acabam por tam-
bém proporem um novo momento da relação do sujeito com a sua fantasia
211

através da sua exposição. Mas isso, ao invés de ser libertário, tem sido apri-
sionador. Tal perspectiva parece fazer sentido se lida à luz das tendências
de consumo apontadas pela pesquisadora de mercado Melinda Davis, para
quem estaríamos vivendo um tempo no qual “ansiamos por um poder sobre-
humano para nos mostrar o caminho, explicar tudo a nós, contar-nos o que
devemos fazer e o que desejamos realmente” (DAVIS, 2003, p. 240-241). A
autora reconhece que isso induz à submissão e que pode indicar um terri-
tório perturbadoramente totalitário. Mas vaticina: “Já estamos vendo uma
nova disposição extraordinária – e amplamente inconsciente – da parte dos
consumidores para se tornarem discípulos de poderes superiores. (Incons-
ciente é a palavra-chave aqui: não espere, nos grupos focais, que alguém
dedique apologias sobre a rendição à autoridade)”. O argumento lógico da
autora ao descrever esse “novo desejo fundamental”, baseia-se no que ela
chama de uma “exaustão psíquica do consumidor”, que o levará a abrir mão
do excesso de escolhas em nome de um alívio do estresse mental em um
mundo no qual o que está em jogo é a busca da sobrevivência psíquica. A
perspectiva de mercado, indicada por Davis, ecoa as palavras de Salecl, já
enunciadas acima, e também é reforçada pela máxima de Melman:

E se pode temer, como uma evolução natural, a emergência


do que eu chamaria um fascismo voluntário, não um fascismo
imposto por um líder e uma doutrina, mas uma aspiração
coletiva ao estabelecimento de uma autoridade que aliviaria
da angústia, que viria enfim dizer novamente o que se deve e
o que não se deve fazer, o que é bom e o que não é, enquanto
que hoje estamos na confusão (MELMAN, 2003, p.38).

Daí porque eu concluo com uma hipótese a ser melhor desenvolvida:


de esse sentimento de angústia é o fermento para o novo grande produto
do capitalismo contemporâneo: a segurança, em suas mais diferentes
roupagens.
212

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215

O Lugar, o Sujeito e o Objeto.


Transmissões entre psicanálise e arte
Tania Rivera1 (UFF)

A obra de Cildo Meireles, Cruzeiro do Sul, de 1969/1970, é um cubo


de 9 mm de lado, composto de uma seção de pinho e outra de carvalho.
Ela alude à mitologia indígena, que teria no atrito entre os dois tipos de
madeira para produzir fogo, uma espécie de poético ritual de invocação da
divindade do fogo. Os jesuítas reduziram tal divindade ao deus do trovão,
e Cildo busca ressaltar a poética delicadeza da cosmogonia indígena. Mas
o fundamental deste trabalho não está propriamente nele como objeto,
mas em sua relação com o espaço: ele deve ser colocado em uma sala de
pelo menos 200m quadrados, vazia.
Este cubo é um objeto mínimo que rompe o espaço circundante
e o transforma. A sala torna-se enorme, e nossa própria estatura e lugar
oscilam. O cubo, tão pequeno, reveste-se de uma dignidade monumental e
parece, em um primeiro momento, excluir-nos. Nele não temos a possibili-
dade de nos reconhecer, ele não nos estende um espelho – não apenas por
não ser figurativo, mas, mais fundamentalmente, porque põe em questão

1 Psicanalista e professora da Universidade Federal Fluminense. Pesquisadora bolsista do


CNPq. Doutora em Psicologia pela Université Catholique de Louvain, Bélgica. Pós-Doutorado
na Escola de Belas Artes da UFRJ. Autora de Cinema, Imagem e Psicanálise (2008), Guimarães
Rosa e a Psicanálise. Ensaios entre Imagem e Escrita (2005) e Arte e Psicanálise (2002), todos
por Jorge Zahar Editor. E-mail: taniarivera@uol.com.br
216

a homogeneidade ilusória do espaço onde nos encontramos. A despeito de


seu tamanho, Cruzeiro do Sul carrega mesmo uma poderosa centelha: ele
tem a potência de romper a organização imaginária do espaço, sua lógica
especular, ameaçando revirar essa malha imagética para nos fazer entrever
um espaço real. O espectador oscila, perdendo sua ilusória posição central,
sua pretensão de ser senhor do espaço e da imagem. Retirado do espelho,
ele não tem mais lugar. Torna-se literal, aqui, a famosa frase de Freud: o
eu não é mais “senhor em sua própria casa” (FREUD, 1917/1944, p. 295).2
Com a linha tênue pela qual se unem os dois retângulos de madeira
de cores diferentes, Cruzeiro do Sul mostra que o objeto pode se apresen-
tar de modo a realizar a sentença de Lacan segundo a qual “nada é mais
compacto que uma falha” (LACAN, 1975, p. 14). Chamado objeto a, ele nos
obriga, para concebê-lo, a “um outro modo de imaginarização” (LACAN,
2004, p. 51). Habitualmente nos encontramos em uma construção espacial
imaginária, graças ao enodamento fornecido por nossa imagem especular.
Rompendo a ilusória complementaridade sujeito-objeto e fazendo oscilar
tal montagem imaginária, o objeto engata aí uma espécie de reviramento
deste campo, por assim dizer. O eu não tem mais lugar. O pequeno bloco
mostra-se capaz de sugar as coordenadas do espaço ilusório e homogêneo,
e, tornando-se uma espécie de sumidouro, convida o sujeito a atravessá-lo.
Cruzeiro do Sul, com suas ressonâncias celestes, astronômicas e mi-
tológicas, bem como suas alusões históricas ao massacre e à catequização
dos índios, nos recoloca a questão de qual seria a “casa” do homem. “O
homem encontra sua casa”, diz Lacan, “num ponto situado no Outro para
além da imagem de que somos feitos. Esse lugar representa a ausência
em que estamos” (LACAN, 2004, p. 60). Lugar de ausência no Outro, lugar
entre significantes: localizações sem consistência imaginária. É impossível
fazer deste lugar uma casa para o sujeito.
Para Cildo Meireles, a palavra mais bonita “é lejos porque pressupõe
que seu ser está aqui e lá ao mesmo tempo. O lá é uma constatação do ser”
(MEIRELES, 2001, p. 20). Menos uma constatação do que uma condição do
sujeito, lejos: a de nunca estar aqui, em sua casa, mas sempre deslocado, lá.

2 Nós traduzimos esta e as demais citações.


217

Onde nem se sabe bem, nesta terra sem lugar que é o inconsciente. Estar
lá – Wo Es war, soll Ich werden (FREUD, 1933/1944p. 86), na proposta de
Freud costumeiramente traduzida por “ali onde isso estava, eu devo advir”.
Nesta espécie de programa de uma análise, ao mesmo tempo caracteri-
zada por Freud como um “trabalho de cultura” (Kulturarbeit, ibidem), é
curioso que se trate de uma preposição de lugar, wo: onde isso estava, eu
devo advir. Indicação de um lugar do qual é impossível determinar a estrita
localização, mas onde vem ocorrer uma passagem ou uma substituição
de peso: do Es, d’isso, ao Eu, Ich. Lá onde isso estava, eu devo tornar-me.
Lá deve tornar-se eu – temos aí, numa consideração do espaço, uma radi-
calização necessária às noções de descentramento do eu e subversão do
sujeito. Em vez de tomá-la como afirmação de um lugar enfim encontrado
para o sujeito do inconsciente, devemos ver na frase de Freud a indicação
de uma operação que concerne ao espaço tanto quanto ao sujeito, num
complexo imbricamento.
Ou talvez, pensando em Mallarmé, possamos radicalizá-la para
afirmar, sobre o que se passa em uma análise, em última instância, que
“nada terá tido lugar senão o lugar” (MALLARMÉ, 2006).

***

Se o lugar, ou melhor, o espaço que configura lugares possíveis,


toma aqui o primeiro plano em nossa reflexão, isso não deve surpreender
ou ser visto como o empréstimo de uma categoria oriunda do campo da
arte. Em sua reflexão sobre o sujeito, Freud é sempre levado a conceber
lugares, em suas tópicas do aparelho psíquico, ressaltando sempre que
se tratam de lugares “virtuais” – e muitas vezes fazendo apelo a modelos
óticos para caracterizá-los: microscópios, câmeras fotográficas. Freud
não chega, porém, a tomar o próprio espaço como objeto de reflexão. Ele
prefere falar de superfície, base de inscrição psíquica. Já em 1901, carac-
terizando o trabalho do sonho como aquele que fragmenta, desloca, con-
densa, selecionando o material adequado para se construírem “situações”,
Freud acrescentava, enigmaticamente, que este trabalho seria capaz de
218

criar “novas superfícies” (neue Oberflächen, FREUD, 1901/1942, p. 673).


A superfície chega a se desdobrar em diversas camadas, especialmente
quando Freud toma como modelo o bloco mágico. As superfícies, no
plural, implicam na lógica do palimpsesto onde as inscrições dos traços
mnêmicos são múltiplas, estabelecendo entre si uma certa dinâmica de
reinscrição ou retomada. Isso pressupõe um jogo entre planos, por entre as
sucessivas camadas, no espaço entre elas. Podemos dizer que a dinâmica
entre camadas leva aí, portanto, ainda que de forma rudimentar, a uma
certa tridimensionalidade (Cf. FREUD, 1925/1976).
Com Lacan, devemos conceber que, no que diz respeito ao sujeito
do inconsciente, se trata sobretudo de torção da superfície, como na fita de
Moebius. Trata-se, portanto, de topologia, do estudo da subversão de nosso
espaço comum de representação. Na fita de Moebius, não há dentro e fora,
não há direito e avesso, não haveria Es e Ich a se substituirem na ocupação
de um mesmo lugar. Haveria, entre eles, uma certa travessia, uma torção,
uma subversão. Onde estava isso, vem o eu. Onde estava eu, pode vir isso.
Heidegger, em conferência sobre a escultura proferida em 1964, nota
que o espaço define-se, desde o pensamento grego, por uma remissão ao
corpo. O espaco é a extensio, a dimensão tridimensional onde se movem os
corpos. O filósofo busca, porém, caracterizá-lo pelo que lhe seria próprio,
desembaraçado da perspectiva corporal. Ele concebe então o espaço como
o que “espaça” (Heidegger, 2008, p. 19). Trata-se, então,

de ver como o homem é no espaço. O homem não é no espaço


como um corpo (Körper). O homem é no espaço, de modo
que ele instala (einräumen) o espaço, sempre já instalou es-
paço. Não por acaso nossa língua fala em ceder espaço (von
einem Einräumen) quando alguém admite algo, permite um
argumento. (Ibidem, grifos do autor)

Em um anexo ao texto da conferência, Heidegger chega a grafar:


“O homem – espaço” (Ibid., p. 21). Tal concepção do espaço como indis-
cernível da concepção do homem conjuga-se à noção de corpo-próprio
219

(Leib) em oposição a Körper. Para nossos objetivos, nos deteremos porém


na ideia de homem-espaço como espaçamento, abertura no espaço, capaz
de forçar uma brecha e ir além do visível, rompendo com a concepção
mimética da arte:

Quando o artista modela uma cabeça, parece que ele copia


apenas a superfície visível; na verdade ele plasma o que é pro-
priamente invisível, a saber, o modo como essa cabeça olha
no mundo, como ela detém-se no aberto do espaço no qual
ela é solicitada e pelos homens e pelas coisas. (Ibid., p. 20)

Como traçar as linhas de força deste “aberto do espaço”, ou do que


preferimos chamar de “avesso do imaginário”? Como caracterizar o “outro
modo de imaginarização” de que fala Lacan a respeito do objeto a? Diante
dessa questão, podemos renunciar a ir além, reconhecendo no vislumbre
do real que aí se dá uma intransponível impossibilidade de simbolização.
Ou podemos buscar na topologia as linhas de força disso que Lacan chama
“trans-espaço” (LACAN, 2004, p. 51), sublinhando o quanto ele é feito da pura
articulação significante, à qual teríamos porém algum acesso graças aos
“elementos intuitivos” (ibidem) que esta deixa ao nosso alcance. Podemos,
ainda, ao lado de trabalhos de arte, tentar ir além desses elementos intuitivos,
explorando o modo como articulações significantes podem gerar a abertura
de um trans-espaço. Nesta tentativa, não se trataria de definir ou descobrir de
vez esse avesso do imaginário, o que equivaleria simplesmente a encobri-lo
por mais uma construção imaginária, mas de acompanhar algumas de suas
desnorteadoras travessias, algumas de suas possíveis travessuras.

***

O cubo de seis pés (aproximadamente 1,82m) de lado que o artista


americano Tony Smith realizou em 1958 tem como título Die (“Morra”).
“Seis pés”, afirma o artista, “sugere que se está morto. Uma caixa de seis
pés. Seis pés sob a terra” (apud Didi-Huberman, 1998, p. 91). Este que
220

é considerado um marco do surgimento da chamada arte minimalista


mostra de forma eloquente o quanto o objeto, por mais que se subtraia da
lógica figurativa – ou melhor, quanto mais se subtrai dela, retirando-se da
posição de espelho do eu – pode ser um apelo ao sujeito. Especialmente
na medida em que o objeto agencia uma tal configuração espacial que
implique e inclua o sujeito, impossibilitando-lhe a apaziguadora posição
de espectador. Desapossado de sua ilusória posição central e excluído
do visível, o sujeito tropeça na rasteira que lhe oferece o espaço tornado
moebiano. Duas posições lhe restam, caso esta operação, nunca certeira e
completamente previsível, tenha sucesso. A primeira correspode a aceitar,
ao menos por um átimo, perder sua condição de olhador ilusoriamente
central – o eu chegando quase a aceitar o convite: Die! – e ver-se como
ponto entre outros no campo do olhar. Temos aí, nesta reviravolta moebia-
na, nesse trans-espaço, um surgimento efêmero do sujeito como efeito. A
segunda, sempre possível, recusa tal possibilidade e contrapõe à brecha aí
aberta no espaço o campo imaginário de representação ilusória – no qual,
a maior parte das vezes, objetos como esse ficam sem lugar, o que pode
até gerar uma peremptória negativa de seu caráter artístico.
É fundamental para esta obra de Smith sua escala humana: cerca
de 1,80m. Impõe-se o objeto em igual medida ao homem, sem porém
estender-lhe um espelho, mas afrontando-o no limite de sua condição.
Die: morra. Já o pequeníssimo cubo de Meireles (isso é que é arte mínima
– nos permitiríamos brincar) poderia parecer confirmar a ilusória estatura
do eu. Mas Cruzeiro do Sul escancara e leva às últimas consequências o
que está implícito no cubo de Smith: sua transformação do espaço visan-
do o sujeito. O pequeno objeto de Cildo espaça, como diria Heidegger. E
diante dele devemos ceder espaço à cosmogonia indígena, à história dos
vencidos. Entre o pinho e o carvalho, um gesto simples, um atrito repetido
deve vir reacender a civilização, a cultura – e com ela o sujeito. Poderosa e
delicada centelha. Fulgurante, ela comemora nosso surgimento ardente,
também filhos do fogo.
Estudo para espaço é um trabalho de Meireles também de 1969, como
o Cruzeiro do Sul. Consiste no seguinte texto datilografado sobre papel:
221

Estudo para área: por meios acústicos (sons). Escolha um local


(cidade ou campo), pare e concentre-se atentamente nos sons
que você percebe, desde os próximos até os longínquos.

O sujeito espançando, abrindo mão da visão em prol dos sons que


lhe dão notícias do próximo e do distante, sem que possam, contudo, lhe
fornecer uma clara localização de si (como seria o caso para alguns animais,
os morcegos, por exemplo). O espaço, liberado da visão, torna-se aí dinâ-
mico, vivo, transformando-se a cada instante de acordo com a distância
precariamente estimada entre o objeto que dá notícias de si pelo som, e o
sujeito-espaço que tenta liberar-se da janela pela qual ele habitualmente
confina o espaço com a moldura do visível.
Apesar de não sermos instados a fechar os olhos, em uma análise,
Freud nota que para descobrir o segredo dos sonhos teria sido necessário
ao menos fechar um olho. É o que um sonho, justamente, lhe ensina, jus-
to na noite que precede o funeral de seu pai. Num grande cartaz estaria
impresso “Pede-se que você feche os olhos”, ou, diz o sonhador, “Pede-se
que você feche um olho” (FREUD, 1900, p. 304). Também na estruturação
de uma situação analítica há, como bem se sabe, uma certa operação que
concerne à visão, no dispositivo do divã. Analista e analisando não se vêem
– talvez para que possa então se abrir o campo do olhar, este espaçamento.
Nesta montagem que não deixa de ser um setting, mas que visa romper
com o que há nele de cênico, para que se entreabra a Outra Cena do in-
consciente, é necessário, portanto, que o analista seja o suporte do objeto a.

***

Em Las Meninas, de Velázquez, obra frente a qual seríamos “tomados


em seu espaço”, Lacan afirma que estaria claro o quanto uma obra de arte
é uma carta roubada, uma carta de baralho virada, que se apresenta a nós
como questão. O essencial ao efeito deste quadro seria a maneira como cada
um responderá a tal questão, ou seja, baixará suas cartas, subjugando-se a
ele. Tal sujeição tem uma estreita relação com a subversão do sujeito, pois,
222

de fato, a relação com a obra de arte está sempre marcada


por esta subversão. Parecemos ter admitido, com o termo de
sublimação, algo que, em suma, não é outra coisa, porque se
aprofundamos suficientemente o mecanismo da pulsão para
ver o que acontece aí, é uma ida e volta do sujeito ao sujeito,
sob a condição de se captar que esta volta não é idêntica à
ida e que, precisamente, o sujeito, conforme a estrutura da
fita de Moebius, enrola-se a si mesmo depois de ter logrado
esta meia-volta que faz que, partindo de seu anverso, volte
a se costurar em seu reverso. Em outras palavras, há que se
fazer duas voltas pulsionais para que se logre algo que nos
permita captar o que concerne autenticamente à divisão do
sujeito. (LACAN, 1966, sessão de 11/05/66)

A sublimação concerne ao campo da arte na medida em que anun-


cia a subversão a que convida o quadro, este objeto que estabelece com
o sujeito uma relação “fundamentalmente diferente daquela do espelho”
(ibid., sessão de 25/05/66). O quadro constitui uma tela, mas mostra que “a
tela não é apenas o que oculta o real”, pois ela “ao mesmo tempo o indica”
(ibid., sessão de 18/05/66). O quadro convida o sujeito a descentrar-se no
espaço, para reencontrar sua moebiana subversão. Daí vem a necessidade
de se considerar, para a própria experiência analítica, a topologia, o rom-
pimento com a geometria tradicional em prol da subversão do espaço, nos
limites do imaginarizável. Para um psicanalista, dirá Lacan, a topologia não
é um conhecimento suplementar, mas “é o próprio tecido que ele corta,
quer o saiba ou não” (ibid., sessão de 08/06/66).
Lidando com Las Meninas, Lacan pode formular então a questão
fundamental, que vínhamos aqui tentando explorar: “que estrutura su-
porta este bastidor da tela de uma maneira que a integra estritamente à
existência do sujeito?” (ibidem).
Em primeiro lugar, parece fundamental ao psicanalista indicar que o
quadro se constitui como um Vorstellungsrepräsentanz, um representante
da representação. Las Meninas não apenas representa uma cena da corte
223

do rei Felipe IV, mas representa a representação desta cena. Com isso,
sua dimensão mimética fica em segundo plano em relação à tentativa de
apreensão estrutural de seu modo de organização significante. Isso ecoa
a então recém-publicada leitura deste quadro por Foucault, que o leva a
afirmar que talvez haja nele “como que a representação da representação
clássica e a definição de espaço que ela abre” (FOUCAULT, 1985, p. 31). É
marcante, nesse sentido, a presença do quadro dentro do quadro, a tela
revirada que o próprio Velázquez está pintando. Las Meninas constitui
uma reflexão, em pintura, sobre o que é a pintura, o que é pintar, e como
se organiza o próprio domínio da representação no momento histórico
que é o seu. A análise foucaultiana retraça cuidadosamente as linhas
organizadoras da composição, para acentuar aí, fundamentalmente, a
existência de dois pontos. No centro de um X que organiza a posição das
demais personagens, encontra-se a Infanta Marguerita. Próximo a ela,
um outro centro possível é ocupado por um espelho, em segundo plano.
Nele refletem-se, debilmente, as personagens do rei e da rainha. As linhas
que partem destes dois pontos convergem para um ponto situado fora do
quadro: o ponto em que nós, espectadores, nos encontramos – tornados
portanto, à nossa revelia, rei e rainha, e capazes de aparentemente ocu-
par este “centro simbolicamente soberano” (Ibid., p. 30). O princípio de
ordenação da representação encontra-se, portanto, fora da representação
propriamente dita, fora de cena. O quadro constitui um jogo de olhares
onde, finalmente, podemos dizer que nós somos olhados, fora do quadro.
O que Foucault aí acentua, porém, é o fato de que o sujeito que funda tal
representação estaria aí elidido, vendo nisso a abertura da possibilidade
de uma representação se dar como “pura representação”. (Ibidem)
Lacan insiste que sua leitura confirma aquela de Foucault, trazendo
no entanto a particularidade do campo da psicanálise. É interessante notar
que o próprio filósofo, presente em uma das sessões deste seminário e
instado pelo próprio Lacan a responder se ele o havia lido bem, replica que
Lacan teria “reformado” um tanto suas elaborações (LACAN, 1966, sessão
de 18/05). De fato, a proposta de Lacan, muito complexa e não isenta de
obscuridades, se distingue de Foucault de forma sutil e no entanto cheia
224

de consequências. Em primeiro lugar, devemos notar que Lacan insiste na


ideia de que “a perspectiva organizada é a entrada do campo do escópico
do próprio sujeito” (LACAN, 1966, sessão de 25/05). Não mergulharemos
aqui nas imbricadas considerações sobre a perspectiva que perpassam
este seminário, mas devemos nos deter nessa ideia fundamental de que
ali onde o dispositivo da perspectiva é empregado, já existe um lugar de-
finido para o sujeito, graças à configuração de um campo escópico – ou
seja, onde está em jogo o olhar, e não a mera visão.
Estruturalmente, o sujeito está presente, e está presente fora do
quadro, como já havia notado o filósofo. Mas para Lacan, o essencial é a
relação que o quadro agencia entre o sujeito e o objeto a, ocupado aí pela
infanta Marguerita, no centro do quadro, brilhante e no entanto fenda,
rasgo na tela, a uma só vez. É a presença deste objeto que constituirá um
apelo ao sujeito, na medida em que ele engancha a divisão do sujeito.
Esta é a resposta de Lacan à pergunta, citada acima, sobre o que
integra a tela à “existência do sujeito”. Um complexo agenciamento sig-
nificante, na própria composição do quadro e especialmente no que se
refere à sua construção perspectiva, traça nele um lugar que é de crítica
da própria representação. Em jogo com a figura da princesa, temos ainda
no quadro, como aponta Lacan, uma janela que representa a janela de
nosso próprio olhar, emoldurado pela fantasia. Trata-se de uma porta
semiaberta na qual um homem, um outro Velázquez, está em movimento,
saindo da representação. Ao apresentar criticamente esta janela, condição
da representação, o quadro permite que se abra um espaço que não se
delimita mais pelas coordenadas imaginárias da geometria, mas constitui
um trans-espaço difícil de fixar, feito para se transitar, um tanto precaria-
mente como a formiga sobre a banda de Moebius.
Tal janela rasgada talvez anuncie algo que só se concretizará pos-
teriormente, especialmente ao longo do século XX: a vigorosa quebra do
espelho testemunhada pelo abandono da mímesis, o esgarçamento da tela,
a quebra da moldura, o franqueamento do espaço do mundo, a busca de
uma apresentação capaz de colocar por terra a lógica da representação.
Estas não constituem, propriamente falando, questões e estratégias do
225

tempo de Velázquez, mas configuram o campo que se abre em fins do


século XIX e a partir daí toma direções diversas. Talvez a promoção do
objeto a ao primeiro plano por Lacan aplique sobre Las Meninas, esta
obra-prima de 1656, uma leitura contemporânea, uma análise informada
pelas questões que guiaram a arte (e também, em certa medida, a psica-
nálise) no século XX. O quadro a acolhe, no entanto, mostrando que estas
questões não deixam, provavelmente, de se colocarem já nele, em germe.
O objeto a vem espaçar, cortando a tela e impedindo que o sujeito
ocupe a posição de olho central, medida e senhor da representação. Um
certo arranjo significante é capaz de (re)apresentar o objeto a como causa
da divisão e engatar no sujeito sua subversão, que vai de par com uma ex-
periência singular do espaço. Tal estrutura e tal acontecimento não deixam
de ter uma estranha familiaridade com o processo analítico:

Isso não está feito para que nós, analistas, que sabemos que
aí está o ponto de encontro do fim de uma análise, nos per-
guntemos como, para nós, se transfere esta dialética do objeto
a, se é neste objeto a que está dado o término e o encontro
onde o sujeito deve se reconhecer?

É curioso que Lacan fale de uma “transferência” da dialética do


objeto a, entre psicanálise e arte. Talvez a psicanálise tenha que aceitar se
submeter um tanto à alteridade de um campo outro, o campo da arte, para
refletir sobre tal encontro com o objeto a no próprio seio da experiência
analítica. Esta relação deve assumir seu caráter histórico, no sentido em
que a psicanálise nasce num determinado momento e um trabalho artísti-
co se constrói numa complexa relação com sua época. Fundamentalmente,
talvez ambos os campos se rocem, por lidarem, por meios próprios a cada
um deles, com o trabalho de cultura de que fala Freud, convocando aquele
lugar indeterminado, aquela Outra Cena onde d’isso, desta carta escondida,
deste objeto qualquer, pode (re)fazer-se o sujeito.
226

Referências bibliográficas

DIDI-HUBERMAN, G. (1998) O que Vemos, o que nos Olha, São Paulo: Ed.
34.
FOUCAULT, M. (1985) As Palavras e as Coisas. Uma arqueologia das Ciências
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FREUD, S. (1901/1942) “Über den Traum”. In Gesammelte Werke, Londres:
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se” (Conferências Introdutórias sobre Psicanálise). In Gesammelte
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FREUD, S. (1925/1976) “Nota sobre o Bloco Mágico”. In ESB, vol. XIX.
FREUD, S. (1933/1944) “Neue Folge der Vorlesungen zur Einführung in die
Psychoanalyse” (Novas Conferências Introdutórias sobre Psicanáli-
se). In Gesammelte Werke. Londres: Imago, vol. XV.
HEIDEGGER, M. (2008) “Observações sobre Arte – Escultura – Espaço”.
Artefilosofia, n. 5, julho de 2008. Ouro Preto: IFAC-UFOP, p. 15-22.
LACAN, J. (1975) ) Le Séminaire Livre XX. Encore. Paris: Seuil.
LACAN, J. (1966) O Seminário XIII. O Objeto da Psicanálise, transcrição
inédita.
LACAN, J. (1986) Le Séminaire Livre VII. L’Éthique de la Psychanalyse. Paris:
Seuil.
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MALLARMÉ, S. (2006) “Um Lance de Dados Jamais Abolirá o Acaso”
(tradução de Haroldo de Campos). Em Campos, A.; Pignatari, D. &
Campos, H. Mallarmé. São Paulo: Perspectiva.
MEIRELES, C. (2001) Catálogo da Exposição Cildo Meireles. Geografia do
Brasil. Rio de Janeiro: Artviva.
227

parte 3
Lógica e Epistemologia, Linguagem e Ciência
Quem sabia? O escrito como fundamento em ato do real
Francisco Leonel Fernandes1 (UFF)
Fernanda Costa-Moura2 (UFRJ)

Ao longo de seu seminário de 1959-1960, A Ética da Psicanálise, La-


can mobilizara a noção de das Ding – extraída de uma “neuro-psicologia”
rascunhada por Freud em 1895, no Projeto para uma Psicologia Científica
– para situar o núcleo do que poderia ser considerado o ser para o sujeito.
Num giro surpreendente, que desloca o significante tanto da re-
miniscência platônica quanto da representação pós-cartesiana, Lacan
apontara como a operação do significante cria, ao se efetivar, o falante
– aquele referido não a objetos dados, mas a um vazio, como sua Coisa,
das Ding, para retomar o termo de Freud, que o situa como desejo. Algo
que dá sinais por sua ausência, vazio fundamental em torno do qual gira o
campo das representações, numa operação cujo desdobramento, por ser
ético, convoca um sujeito como respondente e situa a identidade deste
não como a autorreflexão da consciência, mas como um objeto perdido,
que, justamente, faz objeção a este caráter autorreflexivo, identitário, da
consciência.

1 Psicanalista, Membro (AMT) do Tempo Freudiano Associação Psicanalítica; Professor do


Departamento de Psicologia da UFF.
2 Psicanalista, Membro (AMT) do Tempo Freudiano Associação Psicanalítica; Professora do
Programa de Pós-Graduação em Teoria Psicanalítica – IP/UFRJ.
230

Partindo, pois, do estabelecimento de das Ding, como “extimidade”


constitutiva do campo do sujeito e da operação significante, Lacan opera
uma subversão na ordem esperada das coisas. No coração do ser, situa
o vazio a partir do qual se coloca a ordem propriamente humana. Vazio
que indica, antes de tudo, o que excede o campo do que pode ser dito ou
representado, e que abre, portanto, para aquilo que não pode ser anteci-
pado. É este vazio que inaugura o estatuto do que é propriamente ético,
na medida em que coloca como essencial na relação do homem com o
mundo e com a espécie, a discordância e a exigência em torno de um ato.
Trata-se, diz Lacan, da “criação do vazio”. Não um vazio dado, como ente
ou como determinação, desde sempre aí... Não se trata do nada que tudo
contém, ou pode conter, mas do vazio ele mesmo criado, como efeito da
operação significante articulado em ato – e mais precisamente, no ato
designado como criação para acentuar a dimensão ex-nihilo implicada aí.
Para cernir a “criação do vazio” – não é fácil cernir o vazio, é todo o
trajeto de uma análise que o seminário da Ética nos apresenta – Lacan nos
conduz por uma miríade de referências. Faz incursões pelo amor cortês
para nos apresentar o que ele designa como a “função ética do erotismo”
(capaz de “organizar a inacessibilidade do objeto” que dá corpo ao desejo
sexual) e aborda a sublimação da pulsão como ato criativo que recoloca a
dignidade da Coisa na dimensão do objeto ou obra que deriva daí como
efeito (Cézanne pintando maçãs que deixam aparecer Outra coisa). Evoca
também a “construção do vazio real” na arquitetura medieval das enormes
e altíssimas catedrais (vazio que se opõe ao nosso apego moderno, cientí-
fico, pela perspectiva; a qual nos defende do vazio substituído pela “ilusão
do espaço”). Lacan trata ainda do vazio que é produzido no assassinato
do Pai, tematizado por Freud e revivido como Morte de Deus na moder-
nidade; ou no simples fazer do oleiro – que cria o vazio no que e porque
cria o vaso; no gesto do habitante da caverna – que executa sua pintura
no fundo, no limite, na borda, fazendo aparecer a própria cavidade como
“habitante invisível da caverna”.
Em todas estas indicações de Lacan, o que se evidencia é este va-
zio que é operante, mas que não está simplesmente lá; que é operado ele
231

mesmo nas diversas ordens da experiência humana. Mas o essencial para


Lacan é remeter esta perda que comparece aqui e ali, articulada no plano
do sentido por alguns dos filósofos mais fundamentais da modernidade,
à função do significante, sua lógica e sua combinatória – com seus des-
dobramentos de sujeito.
Kant, por exemplo, já lograra isolar a incidência do negativo no
período pré-crítico a propósito das grandezas negativas (1763), as quais
se demarcam da neutralidade de um vazio “inócuo” e chega, no âmbito
da Crítica, notadamente na Crítica da Razão Prática (1788), a divisar a cir-
cunscrição de um vazio, que se efetua pela via da interdição na esfera da
lei moral. A Lei moral, como dispositivo, demarca um objeto em negativo,
puramente formal, um objeto que paradoxalmente organiza o essencial
da experiência humana, embora desde um campo Outro, “fora” de todo
pathos. E Lacan chega a dizer que reside nisto a “fecundidade da Lei moral”.
Porém isso não basta, pois para a psicanálise, esse vazio – estabele-
cido por um ato a partir da operação do significante – constitui o campo
do desejo; operando como causa do desejo. Vale dizer, para a psicanálise,
a determinação, eventual, é efeito do significante. Mas, mais do que isso,
a determinação é criada a partir deste negativo absoluto, que em seu pri-
meiro tempo é o vazio; justamente a Coisa, cuja única determinação é a de
ser o lugar da causa do sujeito como desejo, e cujo estatuto de existência
é ético. Nesse sentido, a determinação é efeito de uma perda inaugural,
real, posta em ato.
Contudo, esta formulação, nos termos do seminário da ética, situa-
se no limite do discursivo, se suporta na palavra e no limite do sentido. A
partir do Seminário A Identificação, (1961-1962) Lacan vai buscar, não só
dizer, mas fundar esta negatividade própria à psicanálise em um rebati-
mento contínuo da clínica psicanalítica com o “sem sentido” da escritura
matemática, isto é: nem reminiscência nem representação.
Na 1ª lição do seminário O Ato Psicanalítico (1967-1968), Lacan
toma em consideração a demonstração de Cantor da existência do nú-
mero real. E diz:
232

.... [Observe-se] como procede Cantor para demonstrar a


vocês que a dimensão do transfinito nos números não é
absolutamente redutível àquela da infinidade dos números
inteiros, à saber, que se pode sempre fabricar um novo nú-
mero que não terá sido incluído de princípio nesta série de
números inteiros, tão espantoso quanto isto possa parecer
a vocês, isto, nada senão uma certa maneira de operar com
a série dos números segundo um método que se chama
diagonal. Em resumo, a abertura desta ordem seguramente
controlável e que tem o direito, simplesmente ao mesmo
título que qualquer outro termo, à qualificação de verídico,
é o caso que esta ordem estivesse lá, esperando a operação
de Cantor desde sempre? (LACAN 15/11/67).

Antevê-se aí uma tematização mais estreita em torno da ciência e


seus conceitos operatórios, notadamente a matemática com sua funda-
mentação na letra. É o caso de cotejar o que emerge em uma psicanálise
a partir da associação livre, da lógica e do laço que nela se institui, com a
“coisa” fundamental em torno da qual a ciência gira e se produz: a letra
e a escritura. Não é tanto para insistir na cientificidade da psicanálise,
mas determinar de que modo ela é um efeito da ciência e quais são suas
responsabilidades neste mundo marcado pela presença desta. Sobretudo,
trata-se de localizar no significante, agora reduzido ao mínimo de uma
combinatória, o que antes estava espalhado na filosofia, ainda como
sentido, no discurso de alguns filósofos fundamentais da modernidade.
Freud faz entrar, no campo das cogitações, o desejo enquanto sexual
e o inconsciente intrínseco à máquina que produz sentido e significação
– a qual produzirá este sexual ele próprio. No reducionismo biofisicalista
que hoje retorna e busca se impor, o que temos é uma regressão a um es-
tado anterior a Freud, limpo do sexual. Não, é claro, por razões religiosas,
já que todos, homens de ciência, somos materialistas, mas de qualquer
modo busca-se ancorar a questão do sujeito num retorno a concepções
filosóficas anteriores ao advento da ciência, disfarçando de “objetividade” e
233

modernizando os velhos preceitos morais de sempre; fazendo-se economia


da questão ética, renovada pela inflexão de sua retomada pela psicanálise
enquanto interna ao movimento da ciência.
Como ilustração disto observemos a seguinte colocação do psicólo-
go cognitivo norte-americano Steven Pinker – ele é “atualíssimo”. Discor-
rendo sobre a linguagem, ele aborda o uso de palavrões observando que
“essa peculiaridade em nossa psicologia está na capacidade das palavras
tabus de ativar circuitos emocionais primitivos no cérebro” (Folha de S.
Paulo, caderno Mais, 10/2008).
Ressalta ele se valer de explicações que apelam para o funcionamen-
to do cérebro. Por que falar em cérebro em um contexto no qual os falantes
se valem de palavrões? O que esta invocação da natureza físico/biológica
do “órgão da mente” acrescenta ao entendimento de “nossa psicologia”
e de nossas possibilidades de atuar? Antes tínhamos um sujeito que fa-
lava, agora, “circuitos emocionais primitivos do cérebro”, mas o que isto
muda? Quem deve ser responsabilizado no caso de uma ação com uma
inflexão moral, por exemplo, um homicídio? Um alguém ou os circuitos
neuronais que determinam tal conduta “primitiva”? Eis uma formulação
cuja principal novidade é reencontrarmos nossos preconceitos religiosos
numa formulação naturalista – e isso, é claro, não é inocente. Mas quais
são as consequências de tal manobra?
É certo que o cérebro é algo “fora da linguagem” que se chama para
explicá-la como se ela fosse função desse exterior que, como um órgão,
a reduz a uma entidade extensa e aos eventos especificáveis que se dão
no âmbito desta. O autor mencionado chega a falar em “instinto de lin-
guagem”. Mas é obscura a evidência que este tipo de invocação aciona
a respeito das funções da linguagem – por que se necessita situar um
“circuito neuronal...”, por que simplesmente a linguagem não basta? Por
que o enigma do que se diz com um palavrão deve ser preenchido com
“neurônios”? Nosso propósito não é meramente denunciar uma manobra
na qual a velha ideologia ganha ares de evidência e, desse modo, renova e
expande sua eficácia, mas atentarmos para o fato de que, uma vez que o
cérebro é indicado como esse lugar a partir do qual a linguagem se articula,
234

um conjunto de operações no laço social passam a ser autorizadas. Todas


buscando incidir diretamente no organismo, isto é, no cérebro. Vale dizer,
oblitera-se a questão do vazio como produção da e na linguagem que, na
temporalidade própria do significante, o cria, dando lugar ao sujeito e ao
laço social ao qual este último se reporta.
Na citação que fizemos de Lacan, o vemos às voltas com esta pro-
blemática do vazio e da perda enquanto afeitas ao registro do real, em
termos daquilo que estaria lá antes do saber, ou o que é de algum modo
equivalente, de um sujeito suposto saber. O real é condição de possibilida-
de, é o que está lá desde sempre? É neste contexto que ele situa a escritura.
Ele não requisita como fora da linguagem uma entidade heterogênea à
linguagem para dar conta do real que a suporta. O vazio e a perda são
cavados no jogo da escrita (aliás, se as neurociências têm algum mérito,
é o de, justamente, indicarem que, o cérebro, um conjunto articulado de
redes, é uma máquina na qual o que opera é da ordem do escrito).
O que está em questão é como pode se erguer uma instância que fala,
que assume posições, sem que seja necessário supor, ao nível das trocas
físico-químicas, um substrato complexo que lhe dê lastro. E sem tampou-
co, se recair no transcendentalismo, a esta altura, arcaico. Pois, afinal, a
ciência, mais do que qualquer outra formação de linguagem, assinala o
declínio do pai que suportaria o transcendental. Por que não ficamos com
a linguagem, limitados ao que ela opera? Por que permanecemos nessa
alternativa de uma referência a um aquém, a função biológica, e ao além
de um apelo a ideais cujo estatuto é, no fundo, religioso?
A letra, a combinatória é suficiente para marcar este aspecto do real
que não é nem aquém, nem além; que é presença da estrutura. Sendo a
partir dela que estas distinções de planos podem, justamente, se colocarem
como atualidade efetiva. É sob este aspecto que a ciência nos interessa,
não a ontologia que se arma em torno dela para nos prender novamente
em um laço unívoco com o cosmos no qual a velha moral faz seu retorno
retumbante, agora justificada, não por Deus, mas ci-en-ti-fi-ca-men-te.
A propósito disto, Lacan chama Cantor e, a partir dele, toda a
discussão que se encaminhou na matemática, sob o título de “crise dos
235

fundamentos” – na verdade, a evidenciação da escrita como “atividade” a


partir da qual o real pode se pôr, prescrevendo as possibilidades do que se
pode saber, de como agir etc. Como as “leis de composição” não vêem sem
trazerem consigo o sujeito, e o que ek-xiste a ele e ao próprio significante.
Enfim, para situar o real, basta a letra.
Sabe-se que o esquema demonstrativo de Cantor é o cerne, o miolo
do teorema de Gödel, e o que está em jogo nele é justamente o fato da
enumeração exaustiva, unívoca, não só não saturar seu campo extensivo,
como produzir aquilo que o excederá – desde sempre. Retoma-se, de
outra maneira, o tema do vazio e de das Ding articulado no seminário da
ética: o que a demonstração de Cantor realiza é a evidenciação, ao nível
da letra, de que algo vaza, escapa, fura a possibilidade de sutura que ela,
letra e escrita, operam.
É esta fundamentação na escrita que libera a psicanálise da onto-
logia e situa a realização da subjetividade no campo da linguagem. E é
em razão desta dependência do real face ao jogo da escritura e do efeito
sujeito que aparece nesta conjuntura (entre real e escrito) que a questão
da psicanálise permanece referida à ética. Pois, a rigor, o sujeito nada mais
é do que a assunção de sua determinação como efeito de escrita: não lhe
restando senão a chance do ato; acatar com a lei de composição que o
institui como real, na medida mesmo em que sua substância “não cessa
de não se escrever”.
236

Referências bibliográficas

FREUD, S. (1895) “Projeto para uma psicologia científica” em Edição Stan-


dard Brasileira das Obras Psicológicas Completas de S. Freud. Vol. I.
Rio de Janeiro: Imago; 1976.
KANT, I. (1763) Essai pour introduire en philosophie le concept de grandeur
négative. Paris; Vrin;1972.
_________. (1788) Critique de la raison pratique. Paris: PUF/ Quadrige; 2000.
LACAN,J. (1959-60) Le séminaire livre VII: l´éthique de La psychanalyse.
Paris: Séuil; 1986.
_________. (1961-2) L’Identification. Seminário inédito.
_________. (1967-8). L’Acte psychanalytique. Seminário inédito.
237

Versagung e ato: a dimensão ético-política


da crítica à metalinguagem
Gilson Iannini1 (UFOP)

A crítica lacaniana da metalinguagem não é apenas um capítulo aces-


sório de sua reflexão sobre os modos de ação da linguagem na subjetividade.
Ela incide também na concepção lacaniana do laço social e na teoria do ato.
É por isto que Lacan nomeia de canalhice a paixão de não querer saber do
desejo, a paixão de criar (e de se apoiar em) metalinguagens para representar
a verdade na estabilidade do enunciado. Como veremos, o resultado social
da crença numa metalinguagem, i.e., da crença na existência do Outro do
Outro, é a criação de representações sociais virtualmente capazes de es-
tabilizar a ligação entre um sujeito e uma identidade, elidindo a diferença
real entre enunciação e enunciado, entre desejo e sua representação. Nesta
perspectiva, a garantia moral do ato dependeria da consistência do Outro.
A maquinaria do laço social apoia-se numa forma de saber que consiste em
propor significantes inequívocos que pretendem funcionar como nomes de
objetos absolutos. Mas como orientar nosso pensamento e nossa ação moral
se não dispusermos mais da consistência do Outro? Como orientar nossa
ação se a figura do Outro de que dispomos não mais for capaz de fornecer
garantias sólidas de adequação entre intencionalidade e ato?

1 Professor do Departamento de filosofia da UFOP. Doutor em filosofia (USP); DEA du Champ


Freudien (Université Paris 8); mestre em filosofia (UFMG).
238

“Toda linguagem implica uma metalinguagem”


O ano em que eram comemorados os cem anos do nascimento
de Freud foi decisivo no ensino de Lacan. Alguns de seus escritos mais
célebres, como Instância da Letra, De uma questão preliminar, A coisa
freudiana, assim como seu famoso seminário sobre As estruturas freudia-
nas das psicoses, foram gestados àquela época. Não por acaso, é exata-
mente naquele momento em que se manifesta o interesse de Lacan pela
questão da metalinguagem. Mais do que isso, as primeiras ocorrências da
noção de metalinguagem já lançam, embora ainda com alguma timidez,
os principais vetores do modo como será tratado o problema nos próxi-
mos anos. Ao reconstruirmos o conjunto destas primeiras referências,
colocando lado a lado todas e cada uma destas ocorrências, obtemos o
essencial de sua crítica à metalinguagem.2 Bastante sumariamente, trata-
se do seguinte: Lacan, evidentemente, nunca negou a possibilidade de
que a linguagem pudesse falar de si mesma. O que está em questão não
é a existência de signos autônimos, autorreferentes, em que o objeto da
comunicação é o próprio signo e não o que ele significa. A experiência
cotidiana é recheada de casos que pareceriam “engrossar o dossiê da
metalinguagem”. Este primeiro momento prepara o terreno para que, já
na próxima ocorrência do termo, seja sublinhada “a impropriedade” da
noção de metalinguagem. O que está em questão é a impossibilidade de
falar da linguagem a partir de um ponto que pudesse ser capaz de neu-
tralizar os efeitos desta mesma linguagem nesta dobradura do discurso
sobre si mesmo.
A primeira ocorrência de uma reflexão sobre a metalinguagem na
obra de Lacan data de 9 de maio de 1956, no contexto do seminário sobre
as psicoses. Lacan declara o seguinte: “Toda linguagem implica uma me-
talinguagem, ela já é uma metalinguagem de seu registro próprio” (S.III,
258).3 Esta declaração é sumariamente desprezada pelos comentadores,

2 Para uma análise exaustiva destas ocorrências, ver nossa tese de doutoramento em filosofia:
Estilo e verdade na perspectiva da crítica lacaniana à metalinguagem (USP, 2009).
3 Para as obras de Jacques Lacan, utilizarei as seguintes convenções: E, para Escritos; OE,
para Outros Escritos; S, para O Seminário [para indicar o livro correspondente, emprego nu-
meração romana após a sigla. Exemplo: S. III indica O Seminário, Livro III]. Para referências
239

talvez porque ela pareça afirmar a necessidade da metalinguagem. Minha


sugestão é que nesta aparente afirmação da inevitabilidade da metalin-
guagem, Lacan já esboça as coordenadas do ethos que informa sua crítica,
a saber, por um lado, de que pendores metalinguísticos respondem ao
mal-estar inerente à experiência da equivocidade da linguagem, i.e., a
um impulso de lançar-se para fora do campo em que estamos sujeitos aos
efeitos da linguagem; por outro lado, a crítica à metalinguagem funciona
como um capítulo propedêutico em relação aos efeitos de substantificação
da linguagem ou entificação de sua estrutura gramatical.
Evidentemente, ninguém está negando que a linguagem possa falar
de si mesma. Isso seria uma tolice. Nem tampouco que ao falar de si mes-
ma a linguagem esteja fatalmente fadada ao contrassenso. Isto seria outra
tolice. Posso dizer “esta frase é composta de sete palavras”.4 A frase é, ao
mesmo tempo, autorreferencial e não implica nenhum contrassenso. O que
está em questão na crítica lacaniana da noção de metalinguagem é que ao
falar da linguagem não saímos da linguagem, não nos desembaraçamos
de suas armadilhas. Michel Arrivé (1994, p. 96) vê nesta declaração de que
‘toda linguagem implica uma metalinguagem’ uma denegação. Waldir
Beividas (2000, p.3) vê um elogio à eficácia da metalinguagem, que ates-
taria um momento inaugural do ensino de Lacan de maior complacência
em relação à ela. A perspectiva aqui adotada não endossa nem uma coisa
nem outra. Sumariamente falando, a ideia de que toda linguagem é desde
o início metalinguagem “de seu próprio registro” pode ser vista como o
fundamento de toda crítica possível à metalinguagem, na medida em que
interdita o gesto fundador da metalinguagem, qual seja, a possibilidade
de separá-la de uma linguagem-objeto.
Atenção ao quantificador universal da frase: se “toda” linguagem é
metalinguagem, então não há linguagem-objeto, ou não há possibilidade
de cindi-las, o que resulta no mesmo. Crítica à metalinguagem é, neste

completas, ver item referências bibliográficas, ao final do trabalho.


4 Devo este exemplo à leitura de: MARQUES, Edgar. Consequências ontológicas do argumento
tractariano contra a possibilidade de um discurso categorial”. Analytica, v.2, n.1,1997b, p.
205-241.
240

sentido, crítica da linguagem-objeto, como aliás notou Arrivé, na esteira


de Jacques-Alain Miller (1994, p.75).

Só se pode formular uma hipótese, já vislumbrada acima a


respeito de Miller: é que considerar a linguagem, de imediato,
como metalinguagem, é recusar ipso facto considerá-la como
língua-objeto. É dizer de algum modo que ‘não há linguagem-
objeto’. E como linguagem-objeto e metalinguagem se defi-
nem por suas relações recíprocas, negar a existência de uma
é, necessariamente, no mesmo movimento, negar a existência
da outra (Arrivé, 1994, p. 126).

O ponto que deve ser ressaltado é que, ao falar de si mesma, uma


linguagem nunca encontra nela mesma um limite à remissão incessante
do sentido, nunca neutraliza seus efeitos. É exatamente isso que motiva
o sonho de criação de metalinguagens artificiais. Mas o ponto é que uma
metalinguagem não consegue neutralizar os efeitos de equivocidade pró-
prios a ela. Mais do que isso: as condições de verdade de um enunciado
não são essencialmente diferentes quando adotamos a tipificação de
linguagens. Como esclarece Sylvain Auroux:

O que é visado não é essencialmente a existência da gramática


e de sua metalinguagem, mas antes a ideia de que recorren-
do (como em Carnap ou em Tarski) a um empilhamento de
metalinguagens se pudesse atingir por aí o funcionamento
último da linguagem cotidiana: esta não poderia ser objeto
sem resto daquelas (Auroux, 1998, p. 279).

O comentário é pertinente, embora seja possível corrigir algumas


imprecisões parafraseando-o bem de perto. Assim obteríamos algo como:
‘o que é visado não é essencialmente a existência de disciplinas “metalin-
guísticas” como a gramática, mas antes a ideia de que recorrendo (como
em Carnap ou em Tarski) a uma hierarquização de metalinguagens se
241

pudesse atingir por aí uma linguagem depurada da equivocidade das


línguas naturais: necessariamente, algo da impureza da linguagem objeto
projeta-se como resto na pureza pretendida daquelas’.
Evidentemente, o que está em questão é a natureza da própria
linguagem. Embora esteja equivocado em ver na crítica lacaniana à meta-
linguagem uma forma de Verneinung, Arrivé não está errado em apontar
a solidariedade entre lógica do significante e crítica à metalinguagem,
porque “do mesmo modo como a teoria saussuriana do signo implica uma
teoria da metalinguagem”, a lógica do significante implica simetricamente
a crítica à metalinguagem (cf. Arrivé, 1994, p. 96). A ambiguidade é inerente
ao funcionamento da linguagem.

A linguagem joga inteiramente na ambiguidade, e na maior


parte do tempo, vocês não sabem absolutamente nada do
que dizem. (…) Nove décimos dos discursos efetivamente
ocorridos são completamente fictícios (S.III, p. 131).

Mais do que isso. Não apenas a ambiguidade é inerente à lin-


guagem, mas ela é inerente também à própria matéria da psicanálise:
“O dizer ambíguo por ser apenas material do dizer, fornece o que há
de supremo no inconsciente, em sua essência mais pura” (OE: 355). “O
que há de supremo no inconsciente” já seria suficiente para justificar a
crítica à metalinguagem. Quais os desdobramentos desta perspectiva
no que tange ao tema deste ciclo de debates, isto é, as relações entre
psicanálise e sociedade?

Metalinguagem como alienação:


o desejo imunizado e o recalcamento originário
Depois de algum silêncio acerca do tema da metalinguagem, a pró-
xima ocorrência importante data de 31/05/1961, no contexto do seminário
sobre A transferência (S. VIII, p. 326). Ela vai nos conduzir diretamente à
discussão acerca das motivações teóricas da crítica à metalinguagem: a
ideia de que o recalcamento originário está no fundamento da impossibi-
242

lidade de dizer a verdade da verdade. Isto é, que a principal razão da crítica


lacaniana à metalinguagem advém da clínica freudiana. Não se trata, pois,
de um problema linguístico tout-court: não por acaso as diversas formas
aforismáticas de que ela se reveste, Outro do Outro, verdade da verdade,
sentido do sentido. É por esta razão que a crítica à metalinguagem rami-
fica-se tão profundamente no pensamento de Lacan, deitando raízes em
problemas de diversa natureza, como a ética e a política.
Além disso, começamos a vislumbrar a pertinência clínica da dis-
cussão, na medida em que refere-se à posição do analista na transferên-
cia, isto é, numa relação que ocorre segundo uma dialética do saber e da
verdade. Eis o parágrafo:

A noção de Urverdrangt, que está em Freud, pode aparecer


aqui como opaca, e é por isso que tento dar a vocês um senti-
do para ela. Trata-se da mesma coisa que tentei da última vez
articular para vocês, dizendo-lhes que nada mais podemos
fazer senão engajar a nós mesmo na Versagung mais original.
E é a mesma coisa que se exprime no plano teórico na fórmula
de que, apesar de todas as aparências, não há metalinguagem
(S.VIII, p. 326).

Prosseguindo sua análise da transferência e de sua articulação ao de-


sejo do analista, Lacan se pergunta: “O analista pode ser indiferente àquilo
que é a sua posição verdadeira?” (S.VIII, p.320). Não por acaso, a lição de
31 de maio de 1961 é um dos raros momentos no ensino de Lacan em que
ele elabora um caso clínico seu. Sob o termo freudiano de mecanismos do
inconsciente, é necessário aprender a “reconhecer e soletrar” os “efeitos
do discurso” (S.VIII, p.323). “Aconteça o que acontecer, esses efeitos fazem
recuar o sujeito, imunizam-no, mitridatizam-no com relação a um certo
discurso. Impedem de levar o sujeito aonde queremos levá-lo, a saber,
ao seu desejo” (S. VIII, p.324). Porque é através dos efeitos do discurso,
incluindo aí as ambiguidades e equivocidades próprias à linguagem que
propiciam o surgimento de atos falhos e de outras figuras da irrupção de
243

um dizer que escapa ao saber, é através destes efeitos que alguma coisa
do desejo pode aparecer. O analista deve evitar proferir sua interpretação
em posição de metalinguagem, colocando-se a si próprio como Outro do
Outro, como garantia da verdade, para que seu próprio discurso não incida
sobre o sujeito silenciando-o

é realmente isso – o efeito de um discurso que incide sobre


o efeito de um discurso, que não sabe disso, e que resulta
necessariamente numa cristalização nova desse efeito de
inconsciente que opacifica esse discurso (S. VIII, 324).

É precisamente este o resultado da assunção de uma posição de me-


talinguagem: a cristalização de um efeito de discurso que imuniza o sujeito
em relação a seu desejo.5 Essa cristalização do efeito de discurso ocorre
devido à entrada em cena gradativa desses “registros da alienação” que são
o eu, o supereu e o ideal do eu. São estas instâncias que funcionam como
obstáculos ao desejo (S. VIII, p.324). Neste sentido o impulso em direção
à criação de línguas isentas de equívocos é, no limite, um impulso egoico:
a fim de dirimir efeitos dispersivos e ambíguos do discurso, o eu promove
esta instauração de um nível superior de linguagem que fixa o sentido na
estabilidade do enunciado, buscando elidir a dimensão da verdade do
desejo, que poderia manifestar-se na contingência de uma enunciação.
Em outro trabalho,6 mostramos que o próprio Carnap sublinhava a fonte
psicológica comum do impulso de construção de linguagens internacio-
nais e metalinguagens lógicas, e sublinhava o prazer de se expressar em
linguagens regulares e planificadas deste tipo. Como veremos no próximo
parágrafo, o impulso de construir remendos para a inconsistência da lin-
guagem deriva, segundo Lacan, de uma resposta neurótica à Versagung.
No limite, por volta de 1960, metalinguagem é alienação, e o resulta-
do da adoção de uma posição metalinguística é a imunização do discurso

5 E é aqui que podemos entrever o avesso desta situação: o estilo, definido a partir da queda
do objeto, visto como índice de uma certa relação com o desejo.
6 IANNINI, G. Index expurgatorius : o sentido do sentido é o gozo. Estudos lacanianos, v. 1,
p. 85-94, 2008.
244

em relação ao desejo, estrutura algo similar àquela que encontramos


na formação sintomática. As metáforas empregadas por Lacan em sua
crítica à psicologia do eu e à metalinguagem são inteiramente conver-
gentes: “tampão”, “barragem”, “inércia”, “imunização”, “mitridatização”
etc. A estas figuras do bloqueio, o autor opõe a própria ideia do ato. Por
paradoxal que possa parecer, o tema é abordado exatamente a partir da
posição do analista, posição da qual habitualmente espera-se o máximo
de abstenção de agir.

Se existe alguma coisa que o analista pode se levantar para


dizer, é que a ação como tal, a ação humana, se quiserem, está
sempre implicada na tentação de responder ao inconsciente
(S.VIII, p. 325).

Estamos, note-se, na contramão do movimento acima descrito como


bloqueio egoico ou superegoico. Se a ação é tentativa ou mesmo tentação
de responder ao inconsciente é porque “toda ação, acting out ou não, ana-
lítica ou não, tem relação com a opacidade do recalcado” (S. VIII, p. 326). A
ação mais original releva do recalcado mais original (S.VIII, p.326). É neste
momento que Lacan articula a crítica à metalinguagem com a temática
freudiana do recalcamento original. Reconhecendo a aparência opaca da
noção freudiana de Urverdrängt, Lacan entende fornecer um sentido a ela.
Diante dos impasses da ação, da impossibilidade de justificação última da
ação, resta apenas, a fim de fornecer um sentido ao recalcamento originário,
“engajar a nós mesmos na Versagung mais original” (S.VIII, p.326). O termo
engajamento aqui indica que não se trata de um entendimento teórico do
que vem a ser o conceito de Versagung, mas de uma experiência subjetiva.
Este engajamento na Versagung mais original consiste em aceitar a aposta
de que a relação do desejo ao objeto é entremeada por uma trama de lingua-
gem que afasta toda possibilidade de satisfação pura e simples. E isso numa
dupla perspectiva, empírica e lógica: porque a satisfação aqui é tomada não
apenas no sentido de gratificação, mas também no sentido lógico do termo,
em que um argumento satisfaz uma função. Não há objeto que satisfaça
245

positiva e completamente um desejo. É desta “indisponibilidade do objeto”


que se trata na Versagung (Dunker, 2002, p.123).
Evidentemente, isso não quer dizer que um desejo não se vincule
a determinados objetos. Ao contrário. Temos aqui toda a temática da Fi-
xierung, esboçada por Freud já na famosa carta 52 a Fliess, com a ideia de
“fueros” que fundam o anacronismo do inconsciente: a co-existência de
diferentes regimes psíquicos conflitantes, devido à ausência de transcri-
ção de uma determinada corrente psíquica em uma instância superior. E
é justamente a fixação que está na base do que Freud chamou de recal-
camento originário. É porque o representante psíquico de determinada
pulsão ficou retido numa instância psíquica anterior que ocorre a fixação
“inalterável” da pulsão.

Estamos pois fundamentados para admitir um recalcamento


originário, uma primeira fase do recalcamento, que consiste
nisso: que a prise en charge no consciente é recusado à repre-
sentação psíquica (Vorstellungreprasentanz) da pulsão. Este
se acompanha de uma fixação; a representância concernida
subsiste, a partir daí, sem modificação possível, e a pulsão
continua ligada a ela (Freud, 1998 [1915], p. 191).

Mas o que conduz um desejo a um objeto não pode ser fruto de uma
dedução: o salto entre uma ponta e outra só pode ser dado no escuro, por
um ato subjetivo que não pode se firmar em nenhuma garantia de adequa-
ção. Toda relação do desejo a um objeto supõe uma relação fantasmática.
Esta relação só pode ser transposta pelo salto no escuro que o engajamento
subjetivo permite. É isso que dá à ética do desejo uma tonalidade de risco
e de constante precariedade. Esta experiência subjetiva da Versagung “é a
mesma coisa que se exprime no plano teórico na fórmula de que, apesar
de todas as aparências, não há metalinguagem” (S. VIII, p. 326).7

7 Interessante notar que a temática do recalcamento originário surgiu para Freud durante a
análise do caso Schreber e que, a crítica à metalinguagem surgiu para Lacan também diante
do mesmo caso.
246

Metalinguagem como resposta neurótica à Versagung


É aqui que o comentário feito um ano antes acerca de nosso enga-
jamento “na Versagung mais original” ganha maior inteligibilidade. Tratar-
se-ia de uma velada ética da resignação? A correta elucidação da função
da Versagung nos mostra que não. Afinal em que consiste a Versagung?
Primeiramente, ela não é a falha em gratificar uma necessidade: não se
trata de opor o par gratificação-fustração. Na maior parte das vezes, como
assinalam Laplanche e Pontalis, “não designa apenas um dado de fato,
mas uma relação que implica uma recusa (...) por parte do agente e uma
exigência mais ou menos formulada em demanda por parte do sujeito”
(Laplanche & Pontalis, 1992, p. 203). O que predomina é o “sentido reflexo
de recusar-se” (idem, p. 204).8
Conforme lembra ainda Dunker (2002, p. 124), “a expressão alemã
indica privilegiadamente uma relação e não um submetimento passivo”,
e, portanto, escapa “à conotação de ‘amargura existencial’ contida em
frustração”, o que afasta a perspectiva de uma ética da resignação à falta.
Mas o que é sublinhado é que a Versagung consiste na frustração inerente
ao uso da palavra, sempre inadequada para expressar um desejo. A Versa-
gung original é, pois, a de que as palavras não correspondam às coisas em
relações biunívocas, e que uma parcela do desejo permaneça, para o pró-
prio sujeito que deseja, opaca, inominável. Esta parcela é o propriamente
o que se chama de gozo, definido aqui como “quantidade fora do lugar,
quantidade indecifrável” (Dunker, 2002, p. 128). Situada entre simbólico
e real, a Versagung, vista como recusa ou renúncia, “faz parte portanto
de uma báscula, de uma operação de conversão, troca ou substituição
realizada entre gozo e desejo” (Dunker, 2002, p. 126).
O que caracteriza a Versagung é o modo pelo qual a pulsão não se
satisfaz: incidência imaginária da falta de um objeto real. A Versagung é,
pois, uma espécie de antecâmara da castração: é o fato da suspensão do
desejo à palavra, a impossibilidade de satisfação a partir da simples e direta

8 Hanns (1996, p.260), propõe o campo semântico de impedimento, bloqueio, fracasso;


Dunker (2002, p. 124), menos preocupado com a semântica do que com a clínica, acrescenta
termos como renúncia ou sacrifício.
247

relação a um objeto positivamente dado na experiência, que condiciona


a operação em jogo na castração: unir um desejo a uma Lei. O sujeito
precisa consentir com esta perda de gozo inerente à castração simbólica,
para que possa resgatar pelo menos uma parte dela, “na escala invertida
da Lei e do desejo” (E: 841).9
É a esta espécie de frustração intrínseca que o impulso à posição
metalinguística tentaria suprir, como uma patologia da satisfação, quase
uma formação sintomática. Neste gênero de patologia, o paradoxo da
Versagung é que o tipo de demanda que ela implica é insaciável. Pergunta
Dunker: “Quanto dinheiro será suficiente ao capitalista? Qual o limite para
a coleção de signos do apelo amoroso?” (2002, p. 131). Quanto precisamos
saber acerca de um significante, quanta indeterminação é possível tolerar
para usarmos uma palavra, um conceito, uma teoria? Quanto sentido é
preciso acrescentar para satisfazer a voracidade do entendimento?
É a posição do sujeito diante da inconsistência do Outro que exclui
de antemão, para a psicanálise, todo recurso à metalinguagem. Para dizer
com todas as letras: uma vez reconhecida a estrutura inconsciente do de-
sejo do sujeito, a metalinguagem só pode ser vista como uma operação de
sutura. A razão principal é relativa ao estatuto do Outro barrado, onde se
funda o desejo do sujeito. Tudo decorre do fato de que a relação ao Outro
estrutura-se num engodo fundamental, na medida em que a natureza não
é capaz de fornecer objetos que satisfaçam o desejo, devido à “duplicidade
radical da posição do sujeito” (S. IX, 197).
No limite, o Outro “só pode ser formalizado, significantizado como
marcado ele próprio pelo significante, em outras palavras, porquanto
ele nos impõe a renúncia a toda metalinguagem” (S. IX, p. 198). Até aí,
pode-se dizer que Lacan concordaria que a linguagem é “semanticamente
fechada”. Mas essa constatação “nos impõe a renúncia à metalinguagem”
(S. IX, 198). Mais uma vez, não se trata de dizer que não é possível forjar

9 Um parágrafo de Freud do artigo de 1927, O fetichismo, é aqui elucidativo. Cito na tradução


proposta por Dunker (2002, p. 124): “Para unificar nosso vocabulário, designaremos o fato de
uma pulsão (Trieb) não ser satisfeita (befriedigt) pelo termo frustração (Versagung), o meio
pelo qual esta frustração é imposta pelo termo interdição (Verbot) e o estado produzido pela
interdição pelo termo privação (Entbehrung)”.
248

uma metalinguagem, o que, afinal, constituiria mera denegação. Trata-


se de (1) denunciar a dimensão ética envolvida neste recurso à posição
metalinguística e (2) assentir ao fato de que uma metalinguagem será
sempre, no limite, como uma linguagem, i.e, marcada pelo equívoco,
ambiguidade, pela contingência, etc. Em outras palavras, na relação do
sujeito com o saber e a verdade, o recurso à metalinguagem quer obliterar
os efeitos discursivos do inconsciente. O saber também é, pois, limitado
internamente. Isso quer dizer que é a impossibilidade da metalinguagem
que constitui a limitação interna ao saber? É o que Lacan afirma quando
diz que “a impotência do Outro em responder tem a ver com um impasse,
e este impasse, nós o conhecemos, chama-se limitação de seu saber” (S.
IX, p. 200, grifo meu). Isso porque “o desejo constitui-se inicialmente, por
sua natureza, como aquilo que está escondido do Outro por estrutura” (S.
IX, p. 200).Se o desejo se constitui a partir deste ponto de não-saber do
Outro, disso que permanece opaco, velado, há pelo menos dois modos de
lidar com esta ausência de garantia, com essa inconsistência do Outro.
Uma delas consiste em agir a despeito da ausência de garantia no saber
do Outro. É a saída que, a esta altura, Lacan remete à ética trágica do
desejo. E é ela que vai fundamentar uma ética do ato.10 Mas há também
a maneira neurótica de lidar com a inconsistência do Outro. A dimensão
clínica do problema não demora a surgir. O neurótico obsessivo lida com
isso tentando estar, ao mesmo tempo, em toda parte e em lugar nenhum:
daí “o gosto de ubiquidade do obsessivo” (S. IX, 201). Se ele está em diver-
sos lugares ao mesmo tempo, é porque não quer ser apanhado em parte
alguma, tenta o tempo todo evitar qualquer engajamento, qualquer risco.
Nada melhor para tanto que forjar uma posição metalinguística que o
isente de lidar com o fato de que a palavra não expresse seu desejo, de
que seu gozo seja, finalmente, sem sentido.

10 Não cabe detalhar aqui em que consiste a ética lacaniana do ato. Para tanto, remeto o
leitor a dois trabalhos definitivos: Guimarães (2006) e Safatle (2003).
249

A natureza ética da renúncia à metalinguagem


Toda esta reflexão conduz a esta “dialética fundamental que repousa
inteiramente na falha última do Outro como garantia do certo (sûr)” (S.
IX, p.202).

A realidade do desejo se institui aí e aí se aloja por intermédio


de algo do qual nós nunca assinalaremos suficientemente, o
paradoxo, a dimensão do escondido, quer dizer a dimensão
que é a mais contraditória que o espírito pode construir desde
que se trate da verdade. O que seria mais natural do que a
introdução deste campo da verdade senão a posição de um
Outro onisciente? (S. IX, p. 202)

Esta passagem prepara dois comentários centrais para demonstrar


a relevância filosófica do tema. Porque é justamente no contexto da crítica
à metalinguagem pela vertente de uma resposta neurótica à Versagung
original que são evocados os exemplos do deus veraz cartesiano (S. IX,
p. 202) e da moral kantiana (S. IX, p. 203). No limite, uma como a outra
poderiam ser vistas como respostas neuróticas à esta falha do Outro em
garantir índices de verdade, tanto no domínio do conhecimento quanto
no domínio da ação. A suposição de um Outro onisciente quando se trata
de pensar a verdade conduz à seguinte afirmação:

A tal ponto que o filósofo mais agudo, o mais afiado, não


pode sustentar a dimensão da verdade senão ao supor
que é essa ciência daquele que tudo sabe que lhe permite
sustentá-lo. E todavia nada da realidade do homem, nada
disso que ele busca, nem disso que ele segue sustenta-se
senão nesta dimensão do escondido, na medida em que
é ela que infere a garantia de que há um objeto que existe
realmente e que fornece por reflexão esta dimensão do
escondido (S. IX, p.202)
250

Como sabemos, a hipótese do deus veraz é necessária à econo-


mia da ordem cartesiana de razões a fim de possibilitar a passagem da
certeza subjetiva à verdade objetiva. Sem o deus veraz, o abismo entre
representações subjetivas (afecções ou ideias) e o mundo material seria
intransponível. É porque a hipótese do deus veraz diz respeito apenas ao
conhecimento teórico, deixando a filosofia prática de fora, que, a fim de
prosseguir seu comentário, a lição se refere à moral kantiana. Para Lacan,
o exemplo kantiano do falso testemunho é derrisório. Toda a estratégia
lacaniana será o de deslocar a questão moral do lugar em que a Crítica da
razão prática a havia instalado, o da convergência da vontade livre com a
lei moral universal, em direção à problemática do desejo e da alteridade.
Mais precisamente, trata-se de rejeitar o formalismo moral kantiano que
consistia em afirmar que princípios práticos fundamentados na matéria,
isto é, na eleição efetiva de um objeto pela faculdade de desejar, não podem
fornecer nenhuma lei prática universal. O corolário que Kant extraía então
era que a admissão de uma faculdade de apetição superior (ou faculdade
de desejar superior) dependia da possibilidade da “lei meramente formal
da vontade” (Kant, 2002, p.38). A crítica de Lacan ao formalismo moral
kantiano é bastante conhecida e já exaustivamente trabalhada por diversos
autores. Não seria difícil mostrar que ela se prolonga na esteira que liga a
oposição iniciada por Hegel e que culmina no famoso Excurso que Adorno
e Horkheimer escreveram em sua Dialética do Esclarecimento.
Mas a estratégia de Lacan, embora em tudo convirja com a de seus
ilustres predecessores, acentua um aspecto diferente, na medida em que
considera também a perspectiva freudiana do desejo inconsciente. Lacan
forja um contraexemplo no qual dizer a verdade coincide com a satisfação
do desejo do tirano. Adivinha-se facilmente o que poderíamos chamar de
paradoxo do testemunho verdadeiro: denunciar ao tirano que alguém é
verdadeiramente judeu satisfaz não apenas à universalidade da regra moral
universal de dizer a verdade incondicionalmente, mas satisfaz igualmente
ao desejo inequivocamente imoral do tirano. Vale a pena retornar rapida-
mente ao apólogo kantiano a fim de melhor situar a discussão. Situado no
âmbito da Analítica da razão prática pura, o apólogo concerne ao contexto
251

em que é aferida a possibilidade que o ente racional tem de representar


suas máximas (seus princípios práticos subjetivos), ao mesmo tempo
como leis universais práticas. Mas a possibilidade de representar máximas
universais corresponde, até certo ponto, à possibilidade de se fixar em uma
posição análoga à posição metalinguística. Isto porque, para Lacan, uma
metalinguagem é o exemplo maior de uma instância formal, separada de
toda concreção, divorciada de toda experiência. Mais uma vez é preciso
lembrar que o que Lacan entende por “metalinguagem” não corresponde
ao conceito técnico construído por lógicos e linguistas, mas aponta muito
mais para uma posição discursiva que busca forjar a máxima neutralização
dos efeitos de indeterminação próprios ao discurso.
Ninguém está dizendo que Kant pressupôs ou criou uma instância
metalinguística qualquer para representar máximas morais, o que seria,
para dizer o mínimo, um anacronismo grosseiro. Não obstante, se admi-
tirmos a impossibilidade da metalinguagem, i.e., se admitirmos a impos-
sibilidade de que o Outro forneça garantias sólidas para a representação
dos móbeis da ação, representação esta que deveria estar totalmente puri-
ficada da contaminação por elementos condicionados ou materiais, então
a imediaticidade da consciência moral fica gravemente danificada. Pois a
transparência da representação de máximas como leis universais formais
passa a ser uma quimera se não dispusermos mais do sentido do sentido,
da verdade da verdade, ou ainda mais, do Outro do Outro. O que equivale
a dizer que a materialidade do significante, e a necessária e relativa inde-
terminação de sentido que ele implica, sugere uma dificuldade adicional
para que possamos representar, na linguagem, máximas morais. Não há
como postular que julgamentos morais possam prescindir do significante,
e de seus efeitos. Vejamos tudo isso mais de perto.
A pergunta kantiana em jogo na passagem aludida refere-se a sa-
ber “onde começa nosso conhecimento do incondicionalmente prático,
se pela liberdade ou pela lei prática” (Kant, 2002, p.49). A resposta de
Kant é conhecida de todos: porquanto o primeiro conceito da liberdade
é apenas negativo, o que se oferece a nós como fundamento da ação
moralmente boa é “a lei moral, da qual nos tornamos imediatamente
252

conscientes” (Kant, 2002, p.49). Os dois exemplos forjados por Kant da


imediaticidade da consciência moral são, justamente, o da forca e o do
falso testemunho. O primeiro exemplo consiste em questionar aquele
que justifica a motivação patológica da máxima de sua ação afirmando
o caráter irresistível de uma inclinação por um objeto particular, consi-
derados a disponibilidade efetiva do objeto e a ocasião correspondente.
Se se perguntar a este sujeito patológico o que faria na mesma situação
caso uma forca para pendurá-lo imediatamente após a realização de sua
vontade fosse erguida em frente à sua casa, ele certamente saberia que
sua inclinação pelo objeto não era assim tão irresistível e que poderia
ser refreada.11
O exemplo do falso testemunho ocorre justamente neste momento.
Instado pelo tirano a prestar falso testemunho contra um homem honrado,
o mesmo sujeito saberia imediatamente determinar qual a ação moral-
mente correta, embora, por amor a si, pudesse agir ou não corretamente.
O ponto, para Kant, não é “se ele faria ou não, talvez ele não se atreva a
assegurá-lo; mas que isso lhe seja possível, tem que admiti-lo sem hesita-
ção” (Kant, 2002, p. 51). É por esta razão que é a consciência do dever, a lei
prática, que nos conduz ao reconhecimento da possibilidade da escolha
e, portanto, da liberdade. Escreve Safatle (2006, p.163) : “Mesmo que não
exista transparência entre a intencionalidade moral e o conteúdo do ato,
resta um princípio de transparência entre a intencionalidade moral e a
forma do ato. Eu sempre saberei como devo agir”. Ou seja, como também
notaram Adorno e Horkheimer, há uma imanência absoluta entre a Lei
moral e a consciência (cf. Safatle, 2006, p. 164). Conclui Kant: “Ele julga
que pode algo pelo fato de ter a consciência de que o deve, e reconhece em

11 Dois anos antes, no seminário sobre a ética, Lacan problematiza o exemplo da forca apon-
tando como ele se sustenta numa subjetividade comandada exclusivamente pelo princípio
do prazer. Considerando a dimensão do gozo além do princípio do prazer, nada impede de
imaginar um caso em que justamente a máxima da ação subjetiva ou aceita como inevitável
a punição ou até mesmo inclui a punição final como elemento inerente à própria satisfação.
No primeiro caso, em que a consciência da imediata condenação à morte após a realização
do ato não impede a realização deste, temos a situação, por exemplo, de Antígona ou a menos
distante situação de uma vingança. O sujeito sabe que será morto se realizar tal ato, mas
prefere a consequência funesta. No segundo caso, a clínica fornece uma miríade de exemplos
nos quais a satisfação só é obtida a partir de um longo circuito que passa exatamente pela
punição, sem passar antes pela consciência.
253

si a liberdade, que do contrário, sem a lei moral, ter-lhe-ia permanecido


desconhecida” (Kant, 2002, p.51).
Estes dois exemplos são tão mais eloquentes porquanto eles pre-
param a entrada em cena da mais célebre formulação do imperativo
categórico, ali enunciado como lei fundamental da razão prática pura.
Conforme a tradução de Valério Rohden: “Age de tal modo que a máxima
de tua vontade possa sempre ao mesmo tempo valer como princípio de
uma legislação universal” (Kant, 2002, p.51). Antes de abordar o comen-
tário feito no seminário de 1961-1962, vale a pena reconstruir, em linhas
bastante gerais, o sentido geral de sua crítica à moral kantiana. Esta crítica
está expressa mais detalhadamente no artigo Kant com Sade, publicado na
revista Critique, em 1963. Grosso modo, trata-se de afirmar que o ponto de
vista puramente formal torna equivalentes imperativos tão distantes um
ao outro quanto o de Kant e o de Sade. Em que pese a distância que separa
o puritano Kant e o libertino Sade, tanto o imperativo categórico quanto o
imperativo sadiano operam uma espécie de recusa da dimensão patoló-
gica como fundamento da determinação da ação. A lei moral puramente
formal não consegue, aos olhos do psicanalista, responder ao desafio da
moral perversa. A moral sadiana também rejeita o prazer como norma da
ação ao postular a mais perfeita indiferença em relação ao objeto. Se Sade
é a verdade de Kant, conforme a fórmula de Lacan, é porque ele “não se
limita a afirmar que tanto Sade como Kant são filhos do esclarecimento em
matéria de moral. Para a psicanálise, Sade revela o que estaria recalcado
na experiência moral kantiana” (Safatle, 2006, p. 161).
Em outros termos, a exclusão da dimensão do objeto na determi-
nação dos móveis da ação coincide com uma neutralização da potência
do significante, i.e., coincide com a fixação de um sentido capaz de repre-
sentar universalmente a máxima de minha ação. Coincide pois, do ponto
de vista que interessa a esta pesquisa, com a postulação de uma posição
metalinguística, em que a relação significante/significado é estabilizada,
em que consigo saber com precisão que minha ação corresponde à inten-
cionalidade adequada à universalidade da lei moral. Posso determinar a
partir do saber advindo do Outro a verdade que orienta a minha ação. O
254

problema começa quando, depois de Freud, embora não se cale, a voz da


razão é suave. Ela é suave porque é refratada pelo significante. Neste caso,
o que está em jogo é que o Outro, inconsistente, não empresta garantias
suficientes para adequação entre intencionalidade e ato. Tudo se passa,
escreve Safatle (2006, p.169), “como se só houvesse ato moral lá onde o
sujeito é chamado a agir sem garantias”.
Antes de concluir, gostaria de observar o seguinte. A tese lógico-
linguística da impossibilidade de dizer a verdade da verdade tem como
contrapartida no plano ético a ideia de que “somos responsáveis por nossa
posição de sujeito”. Toda uma ética do ato desdobra-se a partir destas
condições. Se um ato, na esteira do que ocorria com a enunciação, pode
colocar-se como verdade é apenas porque a perspectiva da metalinguagem
foi afastada. Pois o ato não pode colocar-se como fiador da verdade,12 o
que seria recair na impostura: “Meu discurso em nada aplaca o horror do
ato analítico” (OE: 286). Pois o ato “nunca tem tanto sucesso como ao fa-
lhar [rater], o que não implica que o erro [ratage] seja seu equivalente, ou,
dito de outra maneira, possa ter tido como sucesso” (OE: 270). Se o deus
veraz não pode homologar a verdade, tampouco pode seu negativo, o deus
embusteiro:13 “O momento de falhar só tem sucesso no ato se o instante
de passar a ele não for uma passagem ao ato, por parecer seguir o tempo
para compreendê-lo” (OE: 270). O discurso de Lacan “se homologa por
não haver Outro do Outro (de fato), nem verdade da verdade (de direito):
também não existe ato do ato, na verdade impensável” (OE: 270). Por outro
lado, eliminar a enunciação em proveito da estabilidade do enunciado, a
fim de lançar a atribuição de verdade a um procedimento metalinguístico,
coincide com o afastamento do sujeito em relação aos efeitos de seu dizer.
No limite, confiar a verdade à metalinguagem, nos exime de responder
por nossa posição de sujeito. Chamemos a coisa pelo nome: canalhice.

12 Impossível não notar que a “precariedade” é o que sustenta o ato analítico enquanto tal
(OE: 276).
13 Agradeço esta observação à leitura cuidadosa que o professor Franklin Leopoldo e Silva
fez de meu trabalho.
255

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A psicanálise freudiana como um modelo
para a superação da dualidade entre
ciências naturais e ciências humanas
Richard Theisen Simanke1 (UFSCAR)

Introdução
O dualismo metodológico – e, em última instância, ontológico – que
opõe as ciências naturais e as ciências humanas (ou sociais) originou-se
nos meios neokantianos alemães do final do século XIX e organizou, desde
então, uma grande parte da reflexão epistemológica ao longo do século
XX. Enquanto prevaleceu a filosofia da ciência trazida pelo positivismo
lógico, esse dualismo frequentemente assumiu a forma de uma repartição
entre as ciências que possuíam e as que não possuíam uma possibilidade
concreta de se encaixarem no modelo epistêmico da “concepção recebida”
da ciência. A crítica filosófica desse modelo, no entanto, não foi imediata-
mente seguida por um questionamento sistemático da divisão do campo
do conhecimento científico entre as ciências naturais e as humanidades.
A psicanálise freudiana, porém, que surgiu mais ou menos na mesma
época em que essa dualidade foi estabelecida, permaneceu-lhe quase que
completamente indiferente. Embora explicitamente alinhado com a pers-

1 Professor Associado da Universidade Federal de São Carlos (UFSCar). Professor e orientador


de mestrado e doutorado do PPG em Filosofia e do PPG em Psicologia da UFSCar. Autor, entre
outros trabalhos, de A formação da teoria freudiana das psicoses (Ed. 34, 1994; 2.ed, Edições
Loyola, 2009) e Metapsicologia lacaniana: os anos de formação (Discurso Editorial, 2002).
258

pectiva naturalista, as investigações psicanalíticas freudianas prontamente


adentraram o campo das humanidades e se propuseram a elaborar uma
teoria social que englobava a arte, a religião, o laço social e a cultura como
um todo. Este artigo propõe-se a introduzir a discussão dos compromissos
epistêmicos pressupostos por essa abordagem, especialmente aqueles que
lhe permitiram ignorar aquela categorização longamente estabelecida. As
pesquisas de Freud poderiam, assim, funcionar como um modelo – ou,
pelo menos, como um caso exemplar – para a discussão dessas questões
na epistemologia contemporânea.
Trata-se, pois, de discutir o posicionamento freudiano não bus-
cando apenas uma compreensão de sua lógica interna e uma melhor
compreensão de suas articulações teóricas, mas também explorando a
possibilidade de obterem-se aí certos insights utilizáveis numa reflexão
epistemológica mais abrangente. A exposição que se segue apresenta, pois,
sinteticamente: 1) algumas das questões históricas e filosóficas envolvidas
na distinção entre ciências humanas e naturais; 2) a discussão da posição
da epistemologia freudiana nesse contexto, ilustrada por um desenvolvi-
mento conceitual bastante exemplar de como Freud parece ignorar essa
dicotomia; 3) a apresentação bastante sumária de algumas diretrizes para
um programa de reflexão epistemológica capaz de levar à formulação
sistemática de um naturalismo qualificado e integral, tal como este pode
ser intuído a partir do exemplo da psicanálise freudiana. Um naturalismo
como esse poderia, então, fornecer a base para o questionamento e a
superação da dualidade “ciências naturais X humanidades” e permitir a
formulação de um programa de unidade da ciência diferente daquele que
foi tradicionalmente sustentado pelo positivismo.

O dualismo epistemológico
A oposição entre as ciências humanas e naturais nasceu como uma
estratégia defensiva contra a extrapolação progressiva do modelo da física
galilaico-newtoniana para outros campos do conhecimento. Como se sabe,
essa extrapolação foi, sob diversos aspectos, uma bandeira do iluminis-
mo do século XVIII e de seu projeto de uma reforma da sociedade pela
259

Razão e culminou no programa naturalista para as ciências sociais, cujo


principal expoente, no século XIX, foi o positivismo comteano. A reação
antinaturalista deflagrada nas últimas décadas do século XIX, sobretudo
pelos filósofos neokantianos alemães (Rickert, Windelband, Dilthey, entre
outros), caracterizava-se, em princípio, pela afirmação da especificidade
metodológica das Geisteswissenschaften, condensada na célebre oposi-
ção entre explicação e compreensão, tanto que esse debate passou para
a história das ideias como a “disputa dos métodos” (Methodenstreit). Ele
recuperava assim, ao seu modo, a antinomia kantiana entre natureza e
liberdade e construía sobre ela um programa de investigação para toda a
esfera do conhecimento que se ocupa da ação humana e de seus produtos,
assim como da compreensão que os agentes possuam sobre essa ação e
sobre si mesmos, abrangendo disciplinas tão distintas quanto o direito, a
história, a gramática, a crítica literária, entre outras. A argumentação, no
entanto, rapidamente derivou do plano metodológico para a ontologia,
e a irredutibilidade das ciências humanas passou a ser justificada em
termos de especificidade ontológica de seus objetos – o ser humano e os
produtos da sua ação – que, de uma forma ou de outra, constituir-se-iam
em exceções à ordem da natureza.
Apesar de sua origem num momento histórico e num contexto
filosófico bastante precisos, a distinção entre as ciências humanas e as
ciências naturais tornou-se um modo de pensar tão arraigado que essas
categorias raramente deixaram de se fazerem presentes na discussão
epistemológica posterior, ao longo de praticamente todo o século XX – e,
pode-se dizer, ainda hoje. Em particular, a ontologia nela pressuposta pas-
sou a ser, na maior parte das vezes, assumida de maneira tão espontânea
que as tentativas de superar essa dicotomia endereçaram-se, sobretudo,
aos seus aspectos metodológicos, deixando intacta a diferença ontológi-
ca entre o humano e o não humano, desde então considerada idêntica
à distinção entre o não natural e o natural, respectivamente. Assim, por
exemplo, o estruturalismo linguístico e antropológico francês dos anos
1940-1950 propunha-se, de modo geral, a ultrapassar a alternativa entre
explicação e compreensão, dotando as ciências sociais de estratégias de
260

análise, teorização e formalização comparáveis em rigor às das ciências da


natureza, mas assumindo plenamente a fratura ontológica entre os dois
domínios e, praticamente, erigindo-a em dogma. Tudo se passava como
se a distinção entre o natural e o artificial – entre o que depende e o que
não depende da ação humana para existir – continuasse a ser pensada
segundo alguma versão (bastante simplificada, em geral) da clássica dis-
tinção aristotélica (Física, II, 192b) e pudesse ignorar o desenvolvimento
explosivo das ciências naturais na Idade Moderna e, mais especificamente,
das ciências da vida, após a revolução darwinista no século XIX, com todos
os desafios que estas colocavam ao antropomorfismo e ao “isencionalismo”
(“exemptionalism”) (CATTON & DUNLAP, 1978) mais ou menos evidentes
implicados naquela distinção.
A retórica defensiva que a afirmação da especificidade das huma-
nidades herdou de suas origens permaneceu, ao longo de seu desen-
volvimento histórico, como uma de suas características distintivas. Ela
encontrou seu antagonista – e, ao mesmo tempo, sua justificativa – na
versão específica do naturalismo científico proposta pelo positivismo
lógico (ou neopositivismo), cuja filosofia da ciência desfrutou de certa
hegemonia entre as décadas de 1930 e 1960 do século XX. Essa filosofia
resgatava o programa positivista original de purificação das ciências dos
resquícios de metafísica que estas ainda pudessem trazer embutidos em
suas teorias, fazendo da demarcação entre ciência e não ciência (ou entre
ciência e pseudociência) e do estabelecimento dos critérios para essa de-
marcação seus objetivos principais. Ela resgatava, ainda, uma concepção
humana da causalidade como regularidade natural contingente, excluía
como resíduo metafísico toda proposição a respeito de entidades ou
processos não passíveis de observação e propunha, como consequência,
uma concepção lógico-sintática das teorias científicas, como sistemas de
enunciados dedutivamente articulados, no qual as relações funcionais
entre variáveis (referentes a particulares observáveis) pudessem ser sub-
sumidas a leis gerais progressivamente mais abrangentes, até o limite ideal
da universalidade. Essa visão da ciência era modelada sobre as ciências
maduras – a física, basicamente – e utilizada, então, como parâmetro
261

para a avaliação das pretensões de cientificidade das demais disciplinas.


Como resultado, apresentava-se como um programa epistemologicamente
reducionista (todas as ciências deveriam ser reduzidas à física) ou, nas
suas versões mais extremas, eliminativo (todas as ciências deveriam ser
substituídas pela física).
As pretensões desse programa tornam compreensíveis, até certo
ponto, a atitude defensiva mencionada acima. Na distinção entre as dis-
ciplinas capazes ou incapazes de se encaixarem no modelo fornecido pela
“concepção recebida” da ciência, as ciências humanas sempre ficaram em
desvantagem, restando-lhes a estratégia de reivindicar o pertencimento
a outra ordem de cientificidade, avaliável por outros critérios. Contudo, o
questionamento e, por fim, a virtual dissolução do programa neopositi-
vista, a partir do final década de 1960, não conduziram, como talvez fosse
de se esperar, a uma análise crítica e a um questionamento equiparável
da dualidade epistêmica que se opunha ao seu projeto específico de
unidade da ciência. Muito frequentemente, o debate entre naturalismo
e antinaturalismo – nas suas variedades metodológicas, epistemológicas
e ontológicas – transcorreu, da parte das ciências humanas, como se a
versão positivista do naturalismo científico fosse a única concebível, de
tal modo que a “resistência” ao positivismo implicasse, por si só, a recusa
do naturalismo. Não obstante, os desenvolvimentos recentes dentro das
ciências naturais parecem ter tornado mais urgente a atualização dessa
discussão, na medida em que estas avançam sobre áreas de conhecimento
tradicionalmente reservados às humanidades – podem-se citar, como
exemplos, o surgimento da sociobiologia, na sua relação com as ciências
sociais, e a expansão das neurociências, com relação às ciências da mente.
Quando se discutem as implicações do surgimento de novas subdiscipli-
nas (ou especialidades), tais como a neuro-ética ou a ecologia humana,
é possível começar-se a duvidar de que o pertencimento das mesmas ao
campo das ciências humanas ou das ciências naturais seja ainda uma
questão produtiva ou epistemologicamente fecunda.
Com relação à psicologia, em particular, essa dicotomia apresentou-
se historicamente contraproducente. Desde suas origens, o status científico
da psicologia – o pertencimento desta a um ou outro dos campos opostos
– permaneceu indefinido, como no debate que opôs Dilthey (que susten-
tava a psicologia como uma “ciência do espírito”) aos filósofos da escola
de Baden (que lhe recusavam essa condição). Ao longo de seu desenvolvi-
mento histórico, essa oscilação não foi um fator menor na fragmentação
que afetou o campo da psicologia, no decorrer da qual esta se distribuiu
por uma pluralidade de programas de investigação concorrentes, dos quais
alguns se inclinavam mais pelo naturalismo (o funcionalismo, os diversos
behaviorismos; mais recentemente, a psicologia cognitiva e a psicologia
evolucionária), enquanto que outros se alinhavam de boa vontade com
as humanidades (todo o elenco de psicologias humanistas e “fenomeno-
lógicas”, a psicologia cultural etc.).
Nesse contexto, a psicanálise freudiana apresenta-se como uma
notável exceção, muito embora o desenvolvimento das correntes teóricas
pós-freudianas tenha sido inevitavelmente afetado pelos mesmos dilemas
da psicologia em geral, podendo encontrar-se aí tanto psicanálises anti-
naturalistas (o culturalismo norte-americano, a psicanálise existencial,
a psicanálise lacaniana) quanto naturalistas (a psicologia do ego e, mais
recentemente, a neuropsicanálise). Para Freud, ao contrário, a afinidade
entre a psicanálise e as ciências da natureza sempre pareceu evidente e
acima de qualquer dúvida. No entanto, certas consequências usualmente
associadas a essa posição não pareceram ter sido igualmente assumidas
por Freud, e seus esforços de teorização enveredaram muito cedo por áreas
tradicionalmente reservadas à história, à estética, à política e às ciências
da cultura em geral (o contrato e o laço social, a arte e a religião e, em
menor escala, a educação e o trabalho). É essa singularidade que a torna
epistemologicamente interessante. Na sequência, essa atitude freudiana
é apresentada e ilustrada por um exemplo bastante representativo da
mesma, discutindo-se ainda alguns de seus pressupostos e implicações.

Freud e a unidade da ciência


Uma coisa chama a atenção no naturalismo de Freud: essa nunca
parece ter sido, para ele, uma tomada de posição dentro de uma alter-
nativa considerada como válida. Ou seja, tudo se passa como se Freud
jamais tivesse considerado a possibilidade de outro modelo de ciência
que não fosse o das ciências da natureza (ASSOUN, 1983). Assim, num
de seus últimos trabalhos, deixado incompleto e publicado apenas pos-
tumamente, podemos ler: “A psicologia também é uma ciência natural.
O que mais ela poderia ser?” (FREUD, 1940, p. 282). Essa não é somente
uma tomada de posição tardia, mas a reiteração de uma atitude episte-
mológica que remonta à sua formação como pesquisador, nas áreas da
neuro-anatomia e da neuropatologia clínica e que, ao contrário do que
quis fazer crer uma boa parte da historiografia oficial da psicanálise, não
foi abandonada nem significativamente alterada quando Freud imprimiu
uma orientação mais psicológica às suas pesquisas. Podemos encontrar
dispersas ao longo de todo o percurso de sua obra, afirmações bastante
taxativas e inequívocas de que a psicologia e, dentro desta, a psicanálise
deveriam, em última instância, encontrar seu fundamento na neurologia
e na biologia. Os modelos exclusivamente psicológicos para a explicação
do mental – a cujo conjunto Freud denominou metapsicologia – deveriam
ser, assim, considerados como construções provisórias, à espera que o
avanço do conhecimento sobre o cérebro e o sistema nervoso tornasse
possível sua substituição por uma teoria mais definitiva e mais próxima
da realidade que se trata de conhecer (FREUD, 1913, p. 179; 1914, p. 78;
1915, p. 175; 1920, p. 60, entre muitos outros).
No entanto, essa orientação epistemológica geral não impediu Freud
de estender a aplicação dos conceitos psicanalíticos às questões culturais, e
sua gama de interesses nesse campo foi sempre bastante abrangente. Isso,
no entanto, jamais representou ou pareceu exigir um afastamento de suas
posições naturalistas. Freud entendeu a arte como sublimação, um dos des-
tinos possíveis dos impulsos ou instintos (Triebe); abordou o surgimento da
cultura mediante uma elaboração especulativa construída a partir de uma
hipótese darwinista sobre a organização social primitiva dos hominídeos;
aproximou religião e neurose obsessiva, estendendo à primeira o modelo
explicativo da segunda, igualmente enraizado em sua teoria dos impulsos
sexuais e agressivos; desenvolveu uma abordagem original da sociabili-
dade, explicando o laço social como resultado de uma transformação das
escolhas libidinais num sistema complexo de identificações cruzadas dos
membros do grupo entre si e com seus líderes; formulou uma teoria social
essencialmente antiutópica, justificando o mal-estar irremediável do ser
humano na cultura por um ciclo vicioso, no qual a repressão dos instintos
sexuais e agressivos produz frustração, que gera mais agressividade e exige
mais repressão, e assim por diante. Apesar de certo risco reducionista, mais
ou menos inevitável, que resulta dessa aproximação entre temas biológicos
e culturais, as produções de Freud nesse campo sempre foram, em geral, va-
lorizadas, consideradas como originais e próximas dos estilos de teorização
encontráveis no campo das humanidades. Contudo, essa mesma avaliação
positiva pareceu frequentemente exigir uma desconsideração do contexto
naturalista em que elas foram originalmente elaboradas, rebaixado a uma
idiossincrasia ou excentricidade pessoal de Freud, um apego sentimental ao
ideal epistêmico adquirido na juventude, tornado anacrônico pelo próprio
caráter revolucionário e “subversivo” da teoria. Desse modo, Freud pôde
ser apresentado como um teórico da ruptura entre natureza e cultura – por
exemplo, na sua reconstrução lacaniana, inspirada na antropologia estrutu-
ralista de Lévi-Strauss – apesar de suas explícitas manifestações em contrário.
Apenas para dar um exemplo, num texto tardio, dedicado a uma especulação
histórica sobre as origens do judaísmo – e, portanto, supostamente distante
das construções mais biologizantes da metapsicologia – podemos ler:

Estamos diminuindo o abismo excessivamente largo que


períodos anteriores da arrogância humana cavaram entre a
humanidade e os animais. Se devermos encontrar alguma
explicação para os assim chamados instintos dos animais
(...), esta só pode ser que eles trazem as experiências de sua
espécie com eles para dentro de sua nova existência (...). A
posição do animal humano não seria, no fundo, diferente.
Sua própria herança arcaica corresponde aos instintos dos
animais, embora seja diferente em seu alcance e em seus
conteúdos. (FREUD, 1939, p. 100, grifos nossos)
No entanto, sempre se pode argumentar que essa discrepância é
apenas aparente, ou então que ela resulta, como pretendeu Habermas
(1972), de um autoengano cientificista de Freud. O argumento padrão aqui
é que Freud teria feito uma descoberta original – a imanência do sentido
à vida mental, o papel transformador e emancipatório da linguagem e da
interpretação – que pertenceria, por inteiro e por direito, à esfera das huma-
nidades; contudo, seu apego a um modelo de cientificidade ultrapassado
e com todos os defeitos de praxe (naturalista, fisicalista, positivista etc.) o
teria constrangido a diversas tentativas infrutíferas e desencaminhadoras
de traduzir sua descoberta nos termos aceitos pelas ciências da natureza.
Disso teriam resultado as inconsistências internas e as aproximações
supostamente bizarras que se mencionaram acima (entre arte e instinto,
religião e neurose, laço social e libido, cultura e darwinismo).
Portanto, para contestar essa leitura, seria preciso argumentar que
essas formulações aparentemente discrepantes podem ser compatíveis e
se integrar numa totalidade teórica coerente, cujos princípios, no entanto,
seria ainda necessário especificar. É impossível fazer isso sistematicamen-
te no espaço disponível aqui. Por isso, para introduzir a discussão dessa
possibilidade, examinemos apenas um exemplo ilustrativo, referente a
duas formulações supostamente distintas, pertencentes a dois períodos
da teorização freudiana bastante distanciados no tempo e a textos volta-
dos para problemáticas, em princípio, divergentes – metapsicologia (ou
neuropsicologia), num caso, e teoria social, no outro. Caso seja possível
mostrar que, para além de suas diferenças de superfície, essas formula-
ções são compatíveis – ou, melhor ainda, exigem-se e complementam-se
mutuamente –, haveria aí um ponto de partida para sugerir-se a unidade
do pensamento freudiano e a solidariedade deste último com a sua con-
cepção de ciência.
É conhecida e muito comentada a passagem com a qual Freud abre
seu trabalho Psicologia das massas e análise do eu (1921), em que investiga
as bases psicológicas do laço social a partir de um aprofundamento da re-
flexão sobre a gênese do eu e de seus correlatos ideais (Ich-Ideal, Idealich)
pelas vicissitudes da relação de objeto e da identificação. Ele ali enuncia a
266

impossibilidade de separar completamente a psicologia do indivíduo e a


psicologia social, devido ao fato de que o “Outro” esteja sempre, de alguma
forma, implicado na constituição do eu:

O contraste entre psicologia individual e psicologia social


ou de grupo – que, à primeira vista, parece ser pleno de sig-
nificação – perde uma grande parte de sua precisão quando
é examinado mais de perto. (...) [A]penas raramente e sob
certas condições, a psicologia individual está em posição de
desconsiderar as relações desse indivíduo com os outros. Na
vida mental do indivíduo, alguém mais [der andere, “o outro”]
está invariavelmente envolvido, seja como modelo, como
objeto, como assistente ou como oponente; e assim, desde
o princípio, a psicologia individual (...) é também, ao mesmo
tempo, psicologia social. (FREUD, 1921, p. 69)

É fácil compreender que afirmações como esta tenham sido am-


plamente exploradas, por exemplo, pela psicanálise francesa (Lacan,
Laplanche, entre outros), de inclinações radicalmente antinaturalistas. De
fato, a psicanálise, a filosofia e as ciências humanas francesas do período
estão como que saturadas desse discurso sobre a alteridade, oriundo do
neo-hegelianismo propagado, desde as primeiras décadas do século, por
pensadores como Koyré, Wahl, Hyppolite e Kojève. Este último, sobretudo,
ao reinterpretar a fenomenologia do espírito de Hegel como uma teoria
concreta e histórica da antropogênese, é levado a recusar um caráter dia-
lético à natureza enquanto tal e a reservar a negatividade exclusivamente
à história. A natureza converte-se, assim, no domínio da identidade e da
passividade, razão pela qual o sujeito propriamente humano só adviria ao
mundo por sua ação desejante e negadora do dado natural, fornecendo
assim o aval filosófico para a tese da ruptura entre natureza e cultura que
a antropologia posterior exploraria largamente. A relação com o Outro
passa, com isso, para o primeiro plano: uma vez que o desejo pela “coisa”
natural não é humanizante – não ultrapassa o registro da necessidade
267

biológica –, só resta ao animal pré-humano, imerso num mundo que é


todo ainda natureza, desejar outro desejo, isto é, o desejo do Outro, no
duplo sentido de desejar o que o Outro deseja e de desejar ser desejado
pelo Outro. A subjetividade humana só se tomaria forma no âmbito desta
“pluralidade de desejos desejados” (para usar as palavras de Kojève) e, por-
tanto, somente num meio social, onde a referência à alteridade cumpriria
um papel efetivamente constitutivo. A fórmula freudiana pareceria, numa
primeira aproximação, estar em perfeita continuidade com essa forma
de reflexão. Contudo, se nos remetermos a um dos primeiros trabalhos
teóricos de maior fôlego produzidos por Freud – o manuscrito neuropsi-
cológico conhecido como Projeto de uma psicologia (FREUD, 1895/1950)
–, podemos encontrar ali como que o fundamento metapsicológico dessa
participação incontornável do outro na constituição do eu, mas num
contexto impregnado de um naturalismo psicológico totalmente alheio
aos teóricos da alteridade mencionados acima.
Esse naturalismo psicológico é afirmado na abertura do trabalho,
como constituindo o seu programa. Na visão de Freud, uma psicologia
apresentada como uma ciência natural implicava uma atitude claramente
materialista e reducionista: “A intenção é fornecer uma psicologia que seja
uma ciência natural: isto é, representar os processos psíquicos como estados
quantitativamente determinados de partículas materiais especificáveis (...)”
(FREUD, 1895/1950, p. 295). Esse reducionismo, no entanto, não significava,
para Freud, eliminar de seu projeto a referência à dimensão fenomenológica
e qualitativa do mental – numa palavra, à consciência e à experiência de um
sujeito. Muito antes, pelo contrário, a necessidade de abordar essa dimensão
apresentava-se como uma exigência muito claramente formulada:

Até aqui, nada foi dito a respeito do fato de que toda teoria
psicológica, além de suas realizações do ponto de vista de uma
ciência natural, deve satisfazer ainda outra exigência princi-
pal: ela deve nos explicar aquilo que chegamos a conhecer,
da maneira mais enigmática, por meio de nossa ‘consciência’
(...). (FREUD, 1895/1950, p. 307)
268

Freud é bem explícito ao distinguir entre a consciência, caracterizada


com um conjunto de estados qualitativamente distintos, e os processos
inconscientes, que seriam definidos de modo exclusivamente quantitati-
vo: “A consciência nos fornece o que chamamos de qualidades” (FREUD,
1895/1950, p. 308, grifos do autor). Numa mesma passagem posterior, em
que recusa uma visão exclusivamente mecanicista da mente, que exclui-
ria a consciência, ele também explicita que, com esta última, surgem na
vida mental a subjetividade e a experiência: “Aqui, a consciência é o lado
subjetivo de uma parte dos processos físicos do sistema nervoso” (ibid.,
p. 311, grifos nossos). Diante dessas afirmações, não seria talvez exagero
considerar Freud como um precursor dos programas contemporâneos de
naturalização da consciência e da fenomenologia (PETITOT et al., 1999).
Essa atenção à dimensão fenomenológica da mente reaparece no pa-
pel central desempenhado pelas duas vivências (Erlebnisse) fundamentais
descritas no Projeto – as vivências de satisfação e de dor – na estruturação
do psiquismo. Na descrição das consequências dessas vivências, o papel
constitutivo da relação com o outro – o semelhante, o próximo (Nebens-
mench) – na gênese do eu e na formação da identidade é detalhadamente
discutido. Temas familiares à antropologia filosófica, como o desamparo
(Hilflösigkeit) originário e sua significação existencial, reaparecem nesse
contexto. Assim, na análise da vivência de satisfação, ao longo da qual é
formulada a primeira definição do conceito psicanalítico de desejo, Freud
considera como o surgimento de uma necessidade orgânica – a fome, por
exemplo – e do desprazer que a acompanha, encontra inicialmente um
organismo despreparado para proporcionar-lhe satisfação, o qual tenta,
inutilmente, descarregar o excesso de excitação pela via reflexa – agitação
psicomotora, choros e gritos. No entanto, a remoção do estímulo endóge-
no perturbador causado pela necessidade exige outra forma de ação, que
Freud denomina “ação específica”: uma série de operações coordenadas
e adequadas a fins sobre o mundo externo, capaz de encontrar o alimento
e colocá-lo ao alcance do organismo, pressupondo, assim, uma série de
capacidades ainda não adquiridas, como motricidade voluntária, reme-
moração e reconhecimento de objetos, julgamento, exame da realidade
269

etc. Mas, embora ineficientes, as ações reflexas de que o recém-nascido é


capaz cumprem uma “função secundária”: elas servem de chamado para
que outra pessoa preste ao infante desamparado a assistência de que este
necessita para sobreviver.

De início, o organismo humano é incapaz de realizar por si só


a ação específica. Esta tem lugar, mediante uma ajuda exter-
na, quando a atenção de uma pessoa experiente é atraída para
o estado da criança pela descarga ao longo do caminho da
alteração interna [p. ex., pelo choro da criança]. Desse modo,
esse caminho de descarga adquire uma função secundária da
mais alta importância – a da comunicação – e o desamparo
inicial dos seres humanos torna-se a fonte primária de todos
os motivos morais. (FREUD, 1895/1950, p. 318, grifos do autor)

Uma série de importantes concepções freudianas condensa-se nessa


passagem, tal como a origem da linguagem na experiência prototípica do
choro reflexo, que adquire a função secundária de um chamado. Mas a
afirmação de que o desamparo originário torna-se a fonte de todos os mo-
tivos morais é que fornece a chave para se compreender aquela presença
incontornável do Outro na vida mental do indivíduo, a qual será afirmada
vinte e seis anos depois, em Psicologia das massas. O naturalismo moral
que se depreende dessas afirmações é mais do que evidente. Porque a
própria sobrevivência do indivíduo depende absolutamente da existência
de outro ser humano que se interesse o suficiente por ele para lhe prestar
assistência, o bem supremo – consciente ou inconsciente – de todo o sis-
tema de valores pelo qual se pautará sua conduta e seu funcionamento
mental no futuro será o de ser amado ou o de fazer-se amar pelo outro.
Não é à toa que, em Psicologia das massas, Freud discorrerá longamente
sobre o amor e a paixão nas suas tentativas de estabelecer o fundamento
psicológico do vínculo social.
Mais adiante, ainda no texto do Projeto, Freud introduz uma série de
noções para descrever como, a partir da experiência primordial de satisfa-
270

ção, um funcionamento psíquico primário, voltado para a descarga imedia-


ta das excitações, é substituído, por razões adaptativas, por um processo
secundário, em que a descarga é adiada, de modo que se torne possível
a inspeção e a exploração da realidade, o reconhecimento e o julgamento
dos objetos percebidos e rememorados, que, em conjunto, constituem os
processos do pensar. A formação do eu como estrutura intrapsíquica é apre-
sentada como resultado das etapas iniciais desse processo – condicionadas
por tendências inatas, evolutivamente fixadas, às quais Freud se refere
como “leis biológicas” – e, a seguir, como condição para seu desenvolvi-
mento posterior. O próprio pensamento vai ser definido como um rodeio
que se intercala entre a percepção da necessidade e o desencadeamento
da ação: embora Freud procure mostrar como ele vai pouco a pouco se
distanciando de sua finalidade prática inicial (com o surgimento do “inte-
resse teórico” no reconhecimento dos objetos), ele conservará sempre uma
relação genética com a mesma. Aí, a construção progressiva e concomitante
do Outro, como objeto externo, e do eu como instância psíquica, mediada
pelas representações sensoriais do corpo próprio e do corpo alheio, ilustra
bem como o papel constitutivo da alteridade é pensado por Freud, nesse
contexto teórico em que dinâmica neuronal e intersubjetividade parecem
compor-se sem conflitos numa concepção sobre a gênese da estrutura da
mente e do sujeito psíquico. Citemos mais longamente esse último trecho,
a fim de deixar bem documentada essa atitude:

Suponhamos que o objeto que fornece a percepção se pareça


com o sujeito – um outro ser humano, um próximo. Sendo
assim, o interesse teórico (...) é também explicado pelo fato de
que um objeto como esse foi simultaneamente (...) o primeiro
objeto de satisfação e, além disso, o primeiro objeto hostil,
assim como seu único poder auxiliar. Por essa razão, é em
relação ao próximo que um ser humano aprende a conhecer.
Então, os complexos perceptivos que provêm desse próximo
serão, em parte, novos e não comparáveis – suas feições, por
exemplo, na esfera visual. Mas outras percepções visuais – por
271

exemplo, aquelas dos movimentos das mãos – coincidirão, no


sujeito com memórias de impressões visuais muito similares
dele mesmo, de seu próprio corpo, (...) que estão associadas com
memórias de movimentos experienciados por ele próprio. (...)
Assim, o complexo do próximo divide-se em dois componen-
tes, dos quais um impressiona por sua estrutura constante
e permanece unido como uma coisa, enquanto que o outro
pode ser compreendido pela atividade da memória – isto é,
pode ser remontado à informação proveniente do próprio
corpo [do sujeito]. (FREUD, 1895/1950, p. 331, grifos nossos)

É claro que passagens como essa teriam que ser detalhadamente


explicadas, para mostrar como Freud descreve aí a constituição do eu como
um complexo associativo que reúne a informação sensorial proveniente
do próprio corpo e aquela proveniente do mundo externo, onde ganha
destaque a interação com o outro auxiliar do qual depende a própria
sobrevivência do recém-nascido. O objetivo aqui, no entanto, era tão so-
mente ilustrar como um tema típico das interpretações mais humanistas
da psicanálise – o papel da alteridade e da intersubjetividade na constitui-
ção da identidade do sujeito – é abordado por Freud no contexto de seus
trabalhos mais inequivocamente naturalistas, como a neuropsicologia
especulativa apresentada no Projeto. Ao mesmo tempo, essas concepções
parecem constituir o fundamento metapsicológico de desenvolvimentos
posteriores no campo da teoria social e da explicação da cultura – como
a afirmação na abertura de Psicologia das massas mencionada acima –,
justamente as que são mais valorizadas pelos comentadores que procuram
aproximar Freud das ciências humanas.
Cabe perguntar, assim, que tipo de naturalismo é este que permite
esses desenvolvimentos. Essa pergunta só pode ser respondida de modo
muito preliminar aqui. Qualquer resposta mais conclusiva exigiria explo-
rar mais exaustivamente o corpus freudiano, além de discutir de forma
sistemática as questões epistemológicas mais gerais formuladas no início.
Mesmo assim, talvez valha a pena avançar algumas considerações de cará-
272

ter mais sugestivo a título de conclusão, como uma espécie de esboço de


um programa de investigação com o qual se possa prosseguir futuramente.

Diretrizes preliminares para um naturalismo integral


A unidade do projeto freudiano, que se procurou evidenciar acima,
permite que este seja caracterizado como um naturalismo integral, no
sentido de que pretende abarcar tanto o psiquismo individual quanto o
social, tanto os aspectos psicodinâmicos e impulsivos da mente, quanto
sua dimensão qualitativa, experiencial e subjetiva, tanto o emocional
quanto o cognitivo. Mas é um projeto que se distancia do naturalismo
positivista, com o qual foi frequentemente identificado, para o bem ou
para o mal. É outra concepção de unidade da ciência que se deixa aí per-
ceber: embora fique claro que, para Freud, ciência natural seja sinônima
de ciência tout court, não é o mesmo modelo importado das chamadas
ciências da matéria que ele procura assim generalizar. Ao contrário, seria
preciso perguntar-se sob que condições Freud promove essa naturalização
do sentido que caracteriza sua obra, de modo que interpretar não mais
se distinga de explicar e que a significação de uma ato mental possa ser
plenamente assumida na sua função de causa. Se Freud é intransigente-
mente naturalista, caberia ainda perguntar-se: qual é o conceito de natureza
pressuposto por esse naturalismo, que lhe confere sua especificidade e
que torna possíveis suas realizações? Note-se que Freud atribui à natu-
reza características usualmente atribuídas à história: conflito, finalidade,
significação. Embora ele tenha sido inevitavelmente herdeiro da filosofia
da natureza pressuposta pela ciência do seu tempo, com o fisicalismo e
o mecanicismo que despontam de quando em quando em seus textos, é
possível duvidar-se de que ele a tenha apenas assumido passivamente. A
virtude epistemológica de Freud, ao contrário, parece ter sido sua dispo-
sição de permitir que a sua concepção de ciência se fosse modificando à
medida que sua investigação avançava, sem prejuízo para sua convicção
de que permanecia dentro das fronteiras das ciências da natureza. Numa
palavra, talvez seja possível sustentar a necessidade de um naturalismo
qualificado – e de um conceito qualificado de natureza – para fazer justiça à
273

atitude epistemológica freudiana e para captar plenamente a sua originali-


dade e explorar mais eficientemente os insights que ela tem a oferecer. De
qualquer maneira, isso parece mais produtivo do que forçar a psicanálise
no leito de Procusto, quer de um antinaturalismo humanista (com poucas
esperanças de satisfazer critérios mínimos de cientificidade), quer de um
naturalismo positivista (cuja visão demasiado estreita da ciência já foi
fartamente criticada). Proceder assim seria insistir numa categorização do
campo da atividade científica que apresenta fortes sinais de esgotamento e
cuja utilidade talvez se tenha tornado duvidosa, já que não mais representa
aquilo que efetivamente se pratica nesse campo.
Essa reflexão sobre a natureza e sobre o sentido de uma concepção
renovada do naturalismo científico já teve seus ensaios, embora estes não
tenham sido ainda sistematicamente desenvolvidos – ou, pelo menos, não
sistematicamente integrados na epistemologia e na filosofia das ciências.
Apenas para dar alguns exemplos, Merleau-Ponty (1995) foi um filósofo
que reencontrou a reflexão sobre a natureza, enquanto andava em busca
de uma filosofia da história, movimento no qual se deparou, entre outras
coisas, com a cosmologia de Whitehead e sua proposta de uma concepção
da natureza como processo, e não mais como entidade ou mecanismo.
Collingwood (1960) também tomou Whitehead um dos representantes
das cosmologias evolucionárias que, a seu ver, a partir do final do século
XVIII e ao longo do século XIX, substituíram a metáfora da máquina, or-
ganizadora da cosmologia da ciência moderna, pela metáfora da história.
É evidente o papel que a teoria darwinista da evolução desempenhou na
consolidação de uma visão da natureza como história. Freud, por sua
vez, talvez tenha sido influenciado por Darwin num grau muito maior
do que aquele que é, em geral, reconhecido, de modo que haveria por aí
um caminho para se começar a pensar as peculiaridades do naturalismo
psicológico que ele advogou e praticou. Talvez no contexto de uma con-
cepção da natureza como história, o problema de como um ser natural
pode vir a ser um sujeito sem deixar de ser parte da natureza – crucial para
a superação da dualidade entre ciências humanas e naturais – possa ser
mais bem equacionado. Mais recentemente, uma filosofia das ciências
274

sociais fundamentada numa visão realista das ciências (BHASKAR, 1989;


KEAT, 1981, entre outros) procurou resgatar um naturalismo qualificado
capaz de promover a integração metodológica das ciências humanas e
naturais e ultrapassar, eventualmente, a fratura ontológica que serve de
base a essa dualidade. A ideia que se procurou sugerir aqui é que a con-
sideração conjunta desses desenvolvimentos possa ser capaz de fornecer
uma visão mais precisa e uma melhor compreensão da epistemologia
freudiana. Esta, por sua vez, assim compreendida, poderia, então, fornecer
um modelo ou, pelo menos, um caso exemplar concreto a partir do qual
certas questões da filosofia das ciências contemporâneas pudessem ser
consideradas com maior clareza.
275

Referências bibliográficas

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critique of positivism. Chicago, University of Chicago Press.
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Paris: Seuil.
PETITOT, J et al. (eds.) (1999). Naturalizing Phenomenology: Issues in
Contemporary Phenomenology and Cognitive Science. Stanford:
Stanford University Press.
Será possível dar ouvidos ao não verbal
e ampliar o alcance da psicanálise à escuta
de ações coletivas e de acontecimentos sociais?1
José Francisco Miguel Henriques Bairrão (USP-RP)

Qu’il pense – ‘avec ses pieds’, c’est ce qui est à la portée


de l’être parlant dès qu’il vagit
(LACAN, 1973/2001, p.307)

Introdução
O interesse no alcance social da psicanálise, não obstante preo-
cupação legítima e frequentemente recoberta de matizes e intenções
progressistas, arrisca-se a certos tipos de encaminhamento de alcance
eminentemente conservador, não do ponto de vista do conteúdo das
análises, mas pela forma da sua concepção.
Ora a psicanálise se transforma em nota de rodapé de uma filosofia
importante, no que se reduz a pretexto e atriz coadjuvante; ora se presta a
arsenal de conceitos municiadores de análises de sobrevoo, sem eficácia
social, pelo menos de um modo propriamente analítico, posto que no
máximo podem ter um alcance educativo e de admoestação.
Embora não haja nenhum demérito intrínseco nessas estratégias
de abordagem da problemática em causa, é possível explorá-la por outra
vertente, qual seja tentar responder à pergunta do título de uma maneira
não estritamente especulativa, com a preocupação de passar da esfera da
crítica epistemológica à constituição de um modo de exercer uma prática

1 Auxílio FAPESP 2007/04368-1.


278

analítica nas circunstâncias de dar ouvidos ao não verbal e de ampliar o


alcance da escuta a ações coletivas e acontecimentos sociais. Mas como?
Pois é pouco argumentar a favor da resposta positiva à questão, sem
justificar como e em que medida e subordinado a que injunções episte-
mológicas e metodológicas isso pode ser feito. É necessário apontar como
na prática isso poderia se concretizar e dissolver limitações e imprevistos,
dando a volta a dificuldades empíricas não antecipáveis e inimagináveis
de um ponto de vista puramente especulativo.
Portanto, responder afirmativamente à pergunta, para valer, requer
que se o comprove por meio de um exercício de aplicação a um campo
social que satisfaça os atributos requeridos, já que na prática a factibilidade
do que se propõe depende sempre de ajustes e requer reavaliações, para
poder se aferir a medida exata em que o objetivo possa ser alcançado e
disponibilizar à crítica alheia e própria elementos um pouco mais sólidos
do que os metacomentários mais ou menos ‘morais’ e comumente ‘pes-
simistas’ que habitualmente se tecem na forma de análises de sobrevoo
sobre o social, tecidos com base em conceitos e modelos psicanalíticos.
Em vez de uma resposta rápida, precisa-se de uma aposta perseveran-
te e de um esforço continuado, cujo sucesso em larga medida dependerá de
desafios epistêmico-metodológicos mais ou menos em aberto, desencade-
ados pelo empenho em dar conta, no nível do ‘fazer’, ao desafio do ‘como?’.
Em função disso, não há como deixar de situar, ainda que breve-
mente, pontos fundamentais da teoria psicanalítica, pelo menos de certa
forma de a compreender, necessários para balizar a tentativa de resposta
positiva à pergunta do título, os quais, independentemente da anuência
e simpatia que despertem, presumem-se suficientemente familiares para
não haver necessidade de alongar a sua explanação.

Que psicanálise?
A psicanálise à altura do problema proposto é a que se compreen-
de como uma teoria do sujeito entendido como ser temporal, tecido de
memória, não necessariamente circunscrito a qualquer aparato anátomo-
fisiológico ou psicofísico.
279

Radicalmente, Lacan vai dizer que analisar é mudar o destino e


esta tese interessa pela clareza quanto à ideia de intervenção na trama
do tempo a fim de alcançar alterações na estrutura, se não do ser, do
seu devir.
Já em Freud, e tão ou mais ainda nos chamados casos clínicos e para
pensá-los, surgira uma tópica do sujeito irredutível a substância simples
(alma) e mesmo irredutível a um sistema de representações associado a
um ‘mundo interior’. O eu constitui-se em função da incidência de uma
realidade ‘exterior’, interpretada por Lacan como fundamentalmente al-
teridade constituinte, dependente de outrem, da história e do tempo (de
outras gerações, da história e da cultura).
Sintomas clínicos dependem em larga medida tanto de fatores cor-
porais que também ‘são’ o sujeito e lhe chegam de um ‘fora’ interior, como
da circulação de mensagens o mais das vezes inconscientes, irrefletidas
entre agentes atuais e gerações antigas (não apenas na forma ‘psicológica’
do superego, como também pela cultura, a parte viva dos mortos que os
humanos carregam e legam aos descendentes). Portanto, à partida, mes-
mo a clínica psicanalítica mais tradicional, lato senso já é uma psicologia
histórica e social.
É mérito de Lacan ter ressaltado claramente a necessidade de
distinguir entre sujeito e ego-personalidade, imposta pelo inconsciente
mas menos nítida no momento freudiano de constituição da disciplina,
distinção que se por um lado evita os problemas do psicologismo, por
outro coloca de maneira incontornável a questão da agência e sujeito
como enigma a ser pensado.
Dada a irredutibilidade do inconsciente ao horizonte de uma psi-
cologia fenomenológica (a de sua eleição), Lacan se afasta da disciplina
e reencontra, na linguagem, um modo de equacionar um sujeito não
mais psíquico (BAIRRÃO, 2003) que no limite tem um alcance ontológico,
talvez não ao modo da filosofia, mas de uma maneira que, ainda que apa-
rentemente com ela se confunda, prima pela democratização: o ser que
lhe interessa é uma garantia (perdida) de si mesmo e das suas certezas,
que apenas poderia encontrar, paradoxalmente, ao se extinguir, sendo
280

(gozando!), uma vez que é da sua natureza ‘ser faltante’, isto é, desejante
(BAIRRÃO, 2005).
Estrutura temporal, o sujeito é intrinsecamente inobjetivável e, para
subsistir, escapa a si mesmo, em parte ora oculto como coisa existente (não
sujeito, gozo), ora como sentido perdido (faltante, desejo).
Isto é, entretecido em significantes, logicamente anterior a qual-
quer significado ‘objetivo’, o sujeito não é coisa, nem mesmo psíquica, e
se por um lado se testemunha em sentidos, fica em falta, e onde estes lhe
escapam, reifica-se em gozo.
Pensado deste modo, o sujeito se recebe sempre do Outro, de fora, e
portanto a condição mínima de uma escuta analítica já é, numa acepção
larga, eminentemente social.
Não há a mínima razão para proceder a qualquer recuperação do
sujeito como entidade psíquica, nem sequer como objeto suscetível de
análise científica, com base por exemplo num apoio na ideia de ‘compor-
tamento’; e uma vez que se trata de ‘alguém’, sem que em caso algum se
diga objetivamente a natureza desse alguém, estão removidos os principais
obstáculos que nos coagiriam a cogitá-lo singular ou plural (coletivo),
pessoal ou transcendente etc.
Só com esta liberdade se pode demarcar claramente que no âmbito
do analítico se lida com uma função suposta agente, mesmo que ela se
constitua como efeito de uma ação, e desprender-se de quaisquer peias
realistas na abordagem do mundo construído pelo Outro e de preconceitos
quanto aos tipos de interlocutores que se constituem em personagens
emissoras das suas mensagens.
Outro fator da teoria psicanalítica, para a presente finalidade rele-
vante, que aflora com maior nitidez na obra lacaniana, é a superação da
dicotomia entre soma e psique, imprevidentemente abandonada pela
frequente redução do psicanalítico a psicologia, operada por leituras
aquém do alcance da sua obra.
Já em Freud isso se anuncia na forma da ideia de um conceito-limite,
o de pulsão, mas com Lacan consuma-se a superação da necessidade de
abordar a psicanálise como algum ou vários capítulos da história da neu-
281

rofisiologia e disciplinas afins, a ponto de o autor não hesitar em referir


que se pensa com os pés (andando) ou com as rugas da testa e de afiançar
que os traços do mundo são ‘substância pensante’.
Deste modo, invalidam-se as simplificações, bastante banais, di-
cotomizantes entre simbólico e desejo de um lado, e real e gozo do outro,
assaz incompatíveis com a psicanálise lacaniana, mas frequentemente
postas em curso sob a sua bandeira.
Sujeito não é entidade nem interioridade psíquica. Exterior a qual-
quer ente, ‘é’ insubstantivo e inobjetivo. Desconhecido em si mesmo, é
inconsciente. Paradoxalmente é (gozo) sem ser (desejo), corpo e Outro.
Ser em falta, tropeça, precipita-se em atos no vão intuito de preencher de
sentido a falha que lhe é consubstancial (BAIRRÃO, 2005).
É ninguém agente, mas o ponto fulcral em psicanálise. Tamanha
precariedade, rarefeita evanescência, o ‘defeito’ de não ser de algum modo
se transmuta em alguma ‘liberdade’. Incoincidente com qualquer sentido,
escorrega de permeio à significância. Está no oco do Outro: nem o ar nem
o som, é o acontecimento do sopro (ato) na flauta.
É tendo em mente estes parâmetros que o tema ‘Psicanálise e So-
ciedade’ vai ser abordado, numa perspectiva que pretende transpor para
a escuta efetiva de eventos coletivos e de acontecimentos sociais o rigor
da clínica exercida no conforto da profissão liberal.

Passos de um programa de pesquisa


Fiel ao desafio de não divorciar reflexão epistemológica de pesquisa
empírica, está em curso um programa de pesquisa trabalhoso e em aberto,
alguns resultados e desafios atuais do qual vão ser agora apresentados.
A não ser pelo apego de muitos analistas aos escombros do psicolo-
gismo (indutor de mal-entendidos quanto à natureza da psicanálise junto
a cientistas sociais e especialmente antropólogos), nada permite manter a
concepção de pessoa psicológica ocidental, ainda que cheia de buracos e
de conflitos internos, mas contida nas fronteiras corporais e de prestígio
do indivíduo burguês.
282

Porém, não é satisfatório admitir o sismo na noção de pessoa con-


fundida com entidade psíquica (individual) desencadeado pelo advento do
inconsciente e pela decorrente crítica da noção de sujeito, se não se extraírem
as devidas consequências deste estado de coisas, uma vez que não há ne-
nhuma necessidade nem sentido em manter um modo de fazer psicanálise
em que sujeito se confunda com psíquico e se atenha ao indivíduo.
E para isso será relevante procurar um campo, social, que possa
permitir a condução de um programa de pesquisa no qual a psicanálise
saia da sua condição quase literária de inspirar comentários críticos sobre a
gestão do social e sobre acontecimentos históricos, para proceder à escuta
e intervenção na matéria da memória de agentes coletivos, transformando
os seus destinos e atingindo os seus corpos.
Para tanto, encontrou-se num clássico da crítica ao elementarismo
do sujeito humano, a questão da possessão, tão frequente e habitual na
sociedade brasileira, o campo para dar vazão a este tipo de estudo.
O primeiro passo foi estabelecer se o fenômeno da possessão na
umbanda (vertente religiosa brasileira que comemorou no ano de 2008 o
seu primeiro centenário, segundo o seu mito de fundação mais divulgado
tendo surgido na mesma cidade de Niterói em que se realizou o Encontro),
não como uma coleção de símbolos dramatizados, mas além disso como
um dizer; dizer de um agente não necessariamente reduzido a uma catego-
ria conceitual como ‘gênero’, ‘classe social’, ‘etnia’ ou algo que o valha, sob
pena de a possessão se reduzir a ventríloqua de uma teoria social prévia.
Este empreendimento tem se beneficiado, além da psicanálise, do
respaldo da antropologia e especialmente daquela que, em parte inspirada
na primeira, havia compreendido a possessão como um tipo de idioma
cultural, lato senso (Crapanzano, 1977; Lambek, 1981; Obeyesekere, 1981).
A antropologia contribui igualmente com uma discussão avançada
sobre as melhores maneiras de abordar esse tipo de idioma, não necessa-
riamente excludentes, ao apresentar argumentos para debater a sua natu-
reza e discutir meios para compreender a possessão, tais como a hipótese
de estarem em jogo processos miméticos (Kramer, 1993; Stoller, 1995),
vantagens da sua eventual entextualização (Lambek, 1981) ou parâmetros
283

para a sua abordagem como performance (Turner, 1988), para mencionar


apenas algumas das principais estratégias que têm sido ensaiadas.
Sopesados os argumentos e avaliados os estudos preliminarmente
desenvolvidos no âmbito antropológico, é defensável a tese de que a pos-
sessão, embora presumivelmente a isso não se reduza, se apresenta como
um tipo de linguagem que se amplia além do verbal e se enraíza no corpo
e no pulsional, além de se ampliar a memórias coletivas, acontecimentos
e aspectos do cenário natural. Uma espécie de idioma em que qualquer
significante (não entendido o significante apenas como uma categoria
linguística, mas exclusivamente como qualquer evento indutor de senti-
do) além de componente idiomático também se pode apresentar como
personagem agente do dizer.2
Uma característica fundamental do idioma de possessão, além da
propriedade significante deste referir um sujeito para outro significante,
é que pode incorporar-se dramaticamente como personagem ‘sede’ da
enunciação.3 Na umbanda e similares, um nome próprio funciona, de certo
modo, como uma função que se aplica não apenas a relações lógicas, mas
se encarna em atos corporalmente exequíveis. Desta forma, o significante
opera concomitantemente como significante de um tipo de ações depreen-
sível de possibilidades inerentes ao sistema e como nomeação de um tipo
de interlocutor social (imaginário) que se apresenta como representante
e mestre de cerimônias da totalidade do sistema.

2 O significante em psicanálise não é objeto ou componente do objeto de uma ciência em-


pírica (como a linguística, por exemplo). Mal pode ser definido, posto que definições e con-
ceitos lhe são logicamente posteriores e este tipo de retorno, objetivante, apenas produziria
um significado de significante, uma representação. O significante, independentemente da
materialidade que o consubstancie, não se confunde com a sua substância. Pressupõe uma
articulação estrutural, mas nem pode ser isolado ou identificado ao substrato sensível que
o consubstancie, nem dele destacar-se sob pena de ser cogitado metalinguisticamente ou
pensado como instância transcendental. É um acontecimento que se interpreta como um
ato a que se supõe um agente, errante, vazio (alguém sujeito). O evento significante institui,
evanescente, esse sujeito.
3 É importante não confundir sujeito com personagem. Trata-se de uma distinção analítica
básica. Um personagem, na vida, na ficção ou nos games não é o sujeito assim como o ego,
em psicanálise, é um objeto e não o sujeito, embora em ambos os casos a seu propósito
possa ser dito ‘eu’, ‘tu’ e referir ações. Personagens, inclusive o ego, podem ser sujeitos de
enunciados, mas não são o sujeito propriamente dito, sujeito da enunciação, impossível de
objetivar, ser inconsciente.
284

A um só tempo, trata-se de alguém com quem se fala e que nos fala, e


de significante dramaticamente presentificador de personagem, uma ‘más-
cara’ do Outro (sendo mais preciso, uma metonímica faceta do Outro, que
esteticamente se propõe como alguém agente), cuja ação e constituição,
independentemente do enunciado particular dependente da sequência
de eventos e atos rituais em que circunstancialmente esteja envolvido,
por si mesmo, já modula metaforicamente o sentido do que se enuncie.
A sobredeterminação significante especificadora do personagem
a quem se atribui o enunciado, nuança, reformula ou mesmo inverte o
sentido do dito e vários pontos de vista podem ser ensaiados. Ou seja,
aparentemente os ‘espíritos’ podem contradizer-se e polemizar. Há uma
realização do fato de que o lugar simbólico que o agente ocupa afeta o
significado de qualquer significado e de certo modo na umbanda a pos-
sessão é uma dialética (na acepção grega do termo).

O sujeito da possessão
A ideia lacaniana de um sujeito que pensa com os pés, é a ideia de
um sujeito que se desloca corporalmente. De um sujeito corporal.
Na mesma linha, no âmbito da possessão, os movimentos do transe
são compreensíveis como uma metáfora e a própria realidade da agência.
São sujeito em ato.
O espaço não é um lugar em que o sujeito anda. O movimento, o
olhar, o ouvir ‘são’ ou ‘criam’ os seus espaços. São cooriginários do sujeito.
Na realidade, o espaço do movimento é o trajeto do que se movimenta.
A forma é inferível, só existe porque algo ‘anda’, o espaço faz-se ao andar.
Um movimento da mão é a mão que se movimenta e a movimen-
tação da mão pelo Outro. Sujeito inscrito no Outro e inscrição do Outro
no corpo. Ato.
Poderá ser o caso de uma imagem vista aproximar-se e transformar-
se numa sensação e esta evoluir para uma dança incontrolável. Mas isso
poderá acontecer, talvez, por, na estrutura/história dessa imagem, ela se
ter ‘codificado’, por exemplo, a partir de um tipo de sensação corporal e/
ou agitação motora... É como se as visões comportassem uma intrínseca
285

articulação temporal. A sua revisualização, na realidade, induziria a re-


produção temporal de processos similares aos que estariam guardados
numa espécie de memória intrínseca e cifrada em cada figura/imagem
visualizada, mesmo que em ordem inversa.
É isso que se tenta dizer quando se refere um suporte transversal do
significante umbandista. Em vez de um traço simples, talvez ele seja uma
composição ‘lógica’ de um momento cinésico, com um momento escópico,
um cinestésico... E esta articulação intrínseca levar a confusões quando
se confunde o seu tempo lógico com o tempo atual dos acontecimentos
num episódio específico de possessão.
Até ao momento tem-se como seguro que pelo dispositivo analíti-
co todas as pulsões em psicanálise se subsumem à forma da escuta (ou
seja, todos os ‘sentidos’ assumem o estatuto de um ‘dito’ por um suposto
alguém), na medida em que todo ato significante é uma forma de dizer.
Compreendida de maneira análoga, como idioma, é possível supor
que a possessão aconteça num espaço estruturalmente homólogo do da
escuta analítica, cujas propriedades topológicas seriam aquelas atinentes
à estrutura formada (representada) pela Garrafa de Klein, descritoras da
espacialidade da chamada função invocante.
Ou seja, trabalha-se com a hipótese de que, ao apresentar a forma
espacial por meio do qual a implicação do sujeito com o Outro se encarna
em voz, esteticamente apreendida como presença do Outro que dá corpo
ao significante, a Garrafa de Klein seja a estrutura topológica atinente ao
espaço da possessão.

O real da possessão
Indubitavelmente o encadeamento dos fenômenos extáticos quer
dizer alguma coisa. Frequentemente, mais do que o que imediatamente é
acessível à consciência e representação dos informantes. Eles descobrem
coisas lá já ditas com admiração. Neste sentido, tem a natureza de uma
linguagem.
Uma linguagem que, embora animada pelos corpos e pulsiona-
lidade do sujeito, para todos os efeitos se apresenta e propõe como um
286

horizonte no qual personalidades espirituais, previstas no sistema ou dele


dedutíveis, não revelam a si mesmas ‘objetivamente’ (metafisicamente).
Comunicam-se e se revelam como significantemente pertinentes aos seus
interlocutores e ao sistema.
Alguma coisa dos ‘espíritos’ escapa a qualquer apreensão objetiva.
A natureza última da realidade também.4
Apesar disso, esse resíduo irredutível à significação, ainda assim
efetivo, deixa traços e pode, de certa forma, ser mapeado.
Nas entrelinhas do relato etnográfico, nos seus impasses, na modula-
ção de angústias pessoais e impasses da pesquisa, surge, silenciosamente,
sobrescrito, o silêncio de um real que hiperbolicamente tenta adquirir voz
pela possessão.
O pesquisador, não apenas os colaboradores, inevitavelmente, na
forma de denegações, de formações reativas, também é porta-voz desse
silêncio enunciante, inadvertidamente.
É claro que isto exige um diálogo e participação em maior profundi-
dade do que habitualmente um psicólogo poderia estar disposto a admitir.
É importante dar-se conta de que o real da coisa é algo vivo, enunciante,
perscrutante e muitas vezes até ‘invasivo’, por assim dizer.
Através das palavras, dos relatos dos seus interlocutores humanos,
revela-se a sutileza e precisão de um discurso Outro. Por isso, é preciso es-
crever muito e ouvir o que se diz, pois o real surge de entremeio à narrativa
etnográfica, não em primeira pessoa, mas nas entrelinhas, sussurrantemente
(além do que se repete, repete-se na forma do que se ausenta da repetição).
Não me refiro aqui a nada da ordem do dito impensado ou do ato
falho. Trata-se de outra coisa, da evocação do avesso ou da lacuna do já dito.
A forma da sua comunicação, quando ocorre, difunde-se praticamente à
revelia do simbólico, como decalque de uma reiteração em muitas repe-
tições, como experiência inefável, sensação ou sentimentos inexplicáveis,
ou mesmo na forma de traços alucinatórios e de intuições fulminantes e

4 Neste sentido, operadores lacanianos como “real” e objeto a podem ser úteis para evitar
a tendência de, ao interpretar os fenômenos extáticos, passar a falsa ideia de que tudo é
significável ou capturável.
287

até mesmo na forma de intromissão na realidade cotidiana de metoní-


mias do estranho (unheimlich) ou pela implacável perseguição de algum
destino (tenta-se passar uma ideia de algo praticamente indescritível, sem
pretender justificar nem explicar nada).
Se não for claramente identificado esse discurso silencioso, que
escorrega nas entrelinhas das narrativas, pode-se desperdiçar o foco do
trabalho analítico a ser feito.
É muito importante sublinhar que dar-lhe ouvidos não significa
compreendê-lo, porque efetivamente o que desse modo se enuncia mostra-
o em ação, revelando mais propriamente os circunstantes humanos, a sua
história e cultura e frequentemente desígnios inconscientes da sua vida
comunitária; nada permitindo descortinar a respeito dele em si mesmo,
mas apenas na medida relacional em que a sua ação doa sentido e inter-
preta a coletividade sua interpelante.
Este é o resultado que vale a pena e justifica, a pretexto do estudo
da possessão, a ampliação do dispositivo analítico a uma escala social.

A psicanálise além do etnogràfico


O problema de aplicações de teorias psicanalíticas a outras teorias
é a imposição de um imaginário a outro imaginário.
A abordagem lacaniana permite um discurso sem palavras, um
manejo do significante do outro nos seus próprios termos.
A psicanálise é útil para orientar a escuta para a percepção das mi-
núcias e articulações significantes por meio das quais a umbanda produz
sentidos, mas não serve para atribuir um significado aos acontecimentos do
transe, que se sobreponha e silencie o modo como eles próprios se enunciam.
Não se alcança o significado total do fenômeno umbandista, apenas se
pode circunscrever configurações significantes do mesmo, que o contornam
e produzem sentidos, mas não o reduzem nunca a significados completos.
‘Letra’, ‘significante’, ‘corpo’, não são significados rivais e antagô-
nicos a ‘espírito’, ‘entidade’, ‘orixá’ etc. São operadores de escuta que não
precisam ser entendidos como coisas, imaginário concorrente de outro
imaginário, no estilo de dizer que os médiuns se identificam ou incorporam
288

significantes ou letras (como há quem já tenha feito). Eles incorporam


espíritos. O que se atinge concretamente desses espíritos são significantes,
que não são coisas nem artefatos culturais previstos no sistema religioso.
Não substituem a fala do outro, pois em si mesmos, a rigor, não querem
dizer nada, nem têm significado (mesmo que se abordem como símbolos
ou se explore o seu potencial metafórico, sob pena de ‘surdez’ para com
o sentido imanente ao evento, isso não deverá ser feito mediante a tutela
de um catálogo ou dicionário de significados prontos).
Quem decide o significado dos significantes é a umbanda e cada
umbandista. O analista apenas desvenda implícitos do modo como os
significados são gerados, os processos (o simbólico) de montagem das
significações. Mas não oferece um significado rival (tal como o seriam uma
lesão cerebral, falta ou excesso de oxigênio, alucinação etc.).
Pois não se trata de aplicar outro modelo explicativo, mas de entender
os processos simbólicos da possessão, sem deslizar concurrencialmente para
outro imaginário, o do analista ou da psicologia que se faz com a psicanálise.
Não se usa a psicanálise para traduzir o idioma umbandista em lacanês.
Não se trata de reduzir uma taça, por exemplo, a uma metonímia
ou metáfora, embora inquestionavelmente ela também o possa ser (mas
se isso for dito será pelo outro e dependente de uma ratificação do Ou-
tro), nem de traduzir e dizer que a noção de letra, por exemplo, esgota as
possibilidades de dar sentido ao ato de beber água de coco numa cuia.
Exatamente porque se sabe que uma taça não é apenas uma meto-
nímia de pomba-gira no sentido substantivo é que se pode ter a liberdade
de usar esse operador analítico, porque não se pretende que ele anule ou
esgote a significância do objeto, ou sequer tenha mais verdade ou seja
mais explicativo.
Em suma, os operadores lacanianos não consubstanciam um ima-
ginário sobreponível a outros, deles rival. Em si, não têm nenhuma força
ontológica, não pretendem esgotar o significado ou dizer o que a coisa é.
Isto porque com a psicanálise não há mais conhecimento, no sentido
forte do termo. A psicanálise serve apenas para ouvir sentidos depreensí-
veis do que se articula no Outro.
289

Quem diz e interpreta o inconsciente não é o analista. A interpreta-


ção terá valor se o sujeito umbandista perceber que ditos seus, implícitos,
mas dele, vierem à tona. O que importa não é o significante ou a meto-
nímia, mas atingir o alcance de um dito do Outro sem se sobrepor ao que
de lá se enuncia; ou seja, dar ouvidos ao dito inconsciente.
No caso, não faria o mínimo sentido tomar a palavra à umbanda e
dizer o que a umbanda é, mas apenas ampliar possibilidades de escuta
do transe de possessão.
Quando se toma um vocabulário de viés psicológico como o da psi-
canálise como ponto de partida é muito importante esclarecer os limites
do seu uso e não endossar pura e simplesmente a concepção de realidade
implícita à história desse vocabulário, a qual ele silenciosamente tende a
contrabandear do seu ‘mundo’ para o do outro, promovendo uma compa-
ração e estabelecendo uma hierarquia entre ‘símbolos’ e ignorando tudo
o mais, talvez o mais importante.
O simbólico na possessão não é apenas um símbolo, mas se apresen-
ta como alteridade, outra pessoa, por espiritual que seja, que aliás come,
brinca, tem vontade própria e, em última instância, em vez de surgir como
um pensamento ou complexo de pensamentos no âmago do psiquismo,
pensa e vê os pensamentos do lado de fora, se mostrando como gente e
interlocutores.
Não reduzida a psicologia, a psicanálise tem pulso para dar conta
disso, mas isso vai depender muito do modo de colocação do pesquisador
em campo, da sua capacidade de não impor o seu mundo ao do outro.
Aqui há um ponto de divergência ou uma contribuição metodoló-
gica ao método etnográfico, que também permite pensar a fronteira entre
um tipo de procedimento descritivo e o próprio de uma escuta em que se
compreendem fatos observáveis como essencialmente atos enunciativos.
Com a psicanálise acrescenta-se a ideia de que é preciso dar ouvidos
às próprias narrativas, não apenas do pesquisado, como também do pes-
quisador, sabendo que há filigranas, do quem diz e a quem, que precisam
ser esclarecidas para se pegar o fio, quase silencioso, do que realmente se
diz, além do que é dito do sujeito.
290

Em relatos sobre as incorporações aparecem dúvidas e racionali-


zações pessoais dos médiuns. Para se pegar em ato o processo que nos
interessa, outros dados são mais relevantes, as conversas com os espíritos
ou médiuns em que há uma pura descrição de eventos acontecidos ou de
fatos atuais. Portanto, para efeito de análise, presta-se muita atenção ao
modo diferente como os colaboradores se colocam.
Há acima de tudo dois riscos que se devem evitar:
1) Confundir as falas e representações dos umbandistas com o tecido
literal do fenômeno espiritual. Aparece muita metafísica do senso comum,
que a estrutura do fenômeno desmente.
2) Cair na tentação de interpretar os participantes com preciosidades
sobre atos falhos ou sonhos deles, pois aí se incorreria numa perspectiva
psicológica, que agregaria significado extrínseco a fatos que, por uma
perspectiva analítica, são atos.
O ponto é ler os acontecimentos. Ao falar de um ser espiritual apare-
cem traços seus, mas também o que os informantes pensam a seu respeito.
Para efeito de escuta, fica-se com a primeira parte. O resto é descrição da
vivência da mediunidade por parte dos colaboradores humanos, suas
opiniões, algumas hipóteses... Tudo muito interessante para conhecer os
médiuns, mas não para alcançar os processos literais do idioma umban-
dista de possessão.
Há recursos analíticos e especificamente lacanianos para evitar as
armadilhas da observação participante e especialmente as da técnica de
entrevista. É imprescindível uma atenção à problemática transferencial
em contexto etnográfico (que lugar o pesquisador ocupa no espaço de
pesquisa, como é ‘visto’ e ‘percebido’, pois será a esse lugar que as respostas
às suas perguntas serão dirigidas).
Além disso, é preciso que o pesquisador conviva muito informal-
mente, esclareça todas as perguntas e curiosidades e evite entrevistas
muito formais. Estas são feitas para ‘sair na foto’. Muitas vezes os entre-
vistados reproduzem o que leram, falam mais do que acham que ‘deveria
ser’ ou atenderia as expectativas do interlocutor e do seu ideal de prática
religiosa, do que são fiéis às práticas efetivas a que aderem. Portanto,
291

formulado em termos lacanianos, é necessário afastar-se de uma análise


atida ao imaginário, presa ao conteúdo, e ficar mais atento às práticas, às
ações efetivas e aos seus sentidos, muitas vezes implícitos, que não vão
aparecer transparentemente nas falas das entrevistas, ou pelo menos não
aparecem tal como são.
Como eixo geral, pode-se supor que os verbos e as ações corporais
se recubram mais ou menos metaforicamente. É claro que sempre algo
escapa. O substantivo da experiência é literalmente uma questão de gosto
ou mais genericamente de impacto estético.
Insiste-se ser fundamental ter em mente que os espíritos são parte do
sistema simbólico e concomitantemente interlocutores sociais e que não se
lida com entidades psicológicas empíricas e sim com alguém sujeito, sendo
que muitas vezes este atravessa apenas tangencialmente a personagem ani-
mada pela enunciação do Outro (na acepção do que do Outro se enuncia),
não devendo se postular como um suposto ‘ego’ de um outro metafísico.
Músicas rituais são um ponto de partida mais acessível para começar
a decifrar esse idioma. Por exemplo, merece atenção o uso do verbo ser
(identificação) e o uso de indicadores espaciais para situar o sujeito (ins-
crição no Outro), bem como o emprego do imperativo (determinação do
Outro) e o apelo ao Outro (desejo) na forma de ‘descrição’ dos seus dons
ou ‘relato dos seus atos (quem vem ou vai, como vem ou vai, o que traz ou
leva, o que venceu, onde está etc.).
A este respeito é importante salientar que na dança e na música, tal
como na performance e na possessão, sujeito e objeto tendem a se fundir
(KAPFERER, 1991), o que não será estranho ao destaque e importância
que lhes é conferido no contexto ritual.
Frequentemente o repertório musical ritual ressoa processos sub-
jetivos e dá-lhes destino, às vezes simbolizando vínculos entre a posição
de sujeito dos participantes e operações simbólicas vinculadas a agentes
espirituais. Muitas vezes estas posições são comutativas.5
Por isso, em vez de se lidar diretamente com interpretações de sig-
nificados implícitos que já estariam nos dados, é importante ter em mente

5 Por exemplo: “Quem vem lá sou eu, quem vem lá sou eu”.
292

que está em jogo algo anterior, atos, que muitas vezes comportam sentidos
apenas a posteriori (ou melhor, ‘produzem’ os seus sentidos).
A este respeito, o que grosso modo se poderia denominar modelagem
lacaniana afina-se harmoniosamente com o fenômeno da possessão, na
medida em que é congruente e permite tomar como assentes dois pontos:
1) A significância logicamente antecedente do sujeito não pode
especificar-se como nada de objetivamente já dado: a natureza ‘última’
do agente é totalmente irrelevante e estruturalmente inacessível.
2) A significância que está em pauta demarca-se do universo es-
trito das entidades linguísticas. É intrinsecamente performática, ação
significante, suscetível de remissão ao sensorial e de alastrar-se a níveis
de linguagem não verbais. O idioma de possessão é um dispositivo meto-
nímico-metafórico poderoso no qual há sempre, redundante ou polisse-
micamente, níveis de significação que muitas vezes atingem diretamente
a sensibilidade e o corpo dos interlocutores.
O ‘modelo’ analítico é útil na medida em que a natureza ambígua
do inconsciente, como sentido sem sentido, abre muitas possibilidades de
articulação de mensagens inadvertidas (inconscientes) e de diálogo com o
incógnito agente, relativamente à interpelação do qual a noção de pulsão,
como instanciadora de um sujeito eminentemente corpóreo instanciado
por significantes esteticamente apensos à sensorialidade e à diversidade
dos sentidos, mostra em plenitude a sua utilidade heurística.

Conclusão
Não há ainda como asseverar ser possível responder positivamente
em todos os casos ao desafio formulado no título. O que se pode oferecer
é a exposição de condicionantes da tentativa de fazê-lo num contexto
cultural cuja especificidade favorece tal exercício.
Pelo menos neste caso, para evitar descaminhos, resumidamente,
a experiência tem mostrado que é importante:
1) Assegurar-se de que os operadores psicanalíticos sejam apenas
isso, e não significados como conteúdos psíquicos aplicáveis, sobre-
poníveis, a fenômenos extáticos. Ou seja, é fundamental garantir que a
293

psicanálise não se degrade numa psicologia (ou pior, numa psicopatolo-


gia). Infelizmente é isso que muitas vezes acontece. Não se dá ouvidos ao
enunciado do Outro e o suposto analista gratifica-se por encontrar, lá, a
miragem narcísica das suas projeções imaginárias.
2) O segundo cuidado é perceber que os operadores lacanianos,
mesmo com o cuidado de não quererem dizer nada, deixando o campo
se mostrar e dizer, ainda assim, para serem úteis, não se apresentam usu-
almente com os mesmos limites e contornos que neles se precisa supor.
Metáforas e metonímias sempre são representações do todo pela parte
ou substituições, mas não há fronteiras nítidas entre o real e o simbólico.
Alucinoses, por exemplo, nesse mundo encantado, ‘visões’, têm um esta-
tuto muito mais simbólico e os processos admitidos pela psicanálise no
simbólico uma entrada muito mais profunda no real do que a psicanálise
estaria habitualmente disposta a admitir.
3) Apesar da manifesta tendência, mesmo da psicanálise contem-
porânea, em comportar-se, ainda que envolta em verborragia filosofante,
como uma espécie de arrabalde subalterno das ciências da saúde, catego-
rias diagnósticas, mesmo as cautelosas lacanianas, não se aplicam, pois
distorceriam muito o significado interno proporcionado pelo contexto e
operações do idioma de possessão.
4) Não se pode ignorar, o que aliás é compatível mas geralmente igno-
rado ou desconsiderado, se não pela psicanálise lacaniana, pela generalidade
dos psicanalistas, o papel do corpo. Não apenas como superfície de inscrição
significante, mas também como agente cognoscente e enunciante. O corpo
tanto é abertura para o Outro, como agente ativo de cognição do inefável.
5) Com estes cuidados, não apenas a psicanálise pode ser útil para
dar ouvidos ao Outro do transe, como ao dar-lhe ouvidos pode aprender
a alargar possibilidades de reconhecimento de mensagens provenientes
do Outro e sutilezas do sujeito da enunciação que ampliam o alcance
habitual da clínica psicanalítica.
6) Esta renovação, quiçá, poderá cumprir as expectativas de fazer
do ofício analítico um procedimento de escuta do coletivo e de efetivo
alcance social.
294

Referências bibliográficas

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TURNER, V. (1988) The Anthropology of Performance. New York: PAJ Pu-
blications.
295

parte 4
Afeto, Paixão, Prazer e Gozo
A dimensão afetiva da linguagem
na experiência psicanalítica
Regina Herzog (UFRJ)

A relação entre corpo e linguagem foi, inegavelmente, a questão que


inaugurou a psicanálise, tendo subvertido o pensamento moderno com
uma concepção inédita acerca do processo de subjetivação. De acordo
com esta dinâmica, o corpo presentificava um trauma psíquico na ideia
de um braço paralisado; em decorrência, a narrativa de si se produzia a
partir de um corpo libidinizado, em última instância, de um corpo atra-
vessado pela linguagem.
Tratava-se de uma compreensão singular acerca do processo de
subjetivação referida, em linhas gerais, a uma economia psíquica ancorada
na ideia de soberania da ordem fálica e sustentada na ideia de um conflito
permanente entre proibição e desejo. Assim se estabelece um percurso que
vai da submissão à autoridade simbólica a uma invenção de si. Ou seja,
de acordo com a disposição dos termos desta dinâmica, inventa-se um
sujeito do conflito que se produz na ilusão imaginária de uma totalidade
narcísica. Eis a concepção que Freud nos apresenta, em fins do século XIX.
Tomando o percurso que vai da submissão à invenção (uma ficção
de si) como paradigmático, diremos que nos tempos atuais uma outra
dinâmica se delineia: em lugar da submissão à autoridade simbólica con-
siderada, hoje, em franco declínio, nos defrontamos com a submissão a
298

uma situação traumática ou, nos termos lacanianos, com a submissão ao


real. Em Freud encontramos, a partir de 1920, uma trama conceitual que
dá sustentação a tal configuração, quando traz para o campo a questão
de um mais além do princípio de prazer. Em Lacan, também, quando
remete à ideia de submissão ao real. Neste viés, conforme explicita Zizek,
“para simbolizar a natureza, produz-se, nessa própria simbolização, um
excesso ou uma falta, assimetricamente: e isso é o Real” (ZIZEK e DALY,
2006: 99); permitindo-lhe dizer que “o Real é, de certo modo, uma ficção.”
(2006:99). O que importa é que nesta disposição encontra-se implicada a
impossibilidade de representação do trauma; como efeito desta impossi-
bilidade, coloca-se em xeque a própria concepção de sujeito e, concomi-
tantemente, a ideia de sociedade, na medida em que é inserido em uma
narrativa que tem lugar o sujeito e o social. A título de ilustração remetemos
à situação do Holocausto, um evento-limite, singular, que obstaculiza a
possibilidade de universalização, pré-condição para se pensar em termos
de uma organização representacional. Diante dessa impossibilidade, nos
indagamos que espécie de narrativa se produz, visando conferir aos mo-
dos contemporâneos de subjetivação uma positividade em lugar de lhes
imprimir um caráter negativo; negatividade que aparece ao se conceber
as modalidades de padecimento psíquico a partir da ideia de um déficit
do sujeito ou de sua incapacidade de simbolização, enfim, de não poder
produzir uma narrativa de si nos moldes tradicionais.
Em outro campo do saber vamos encontrar ressonâncias desta
problematização: Benjamin, filósofo contemporâneo de Freud, considera
que a transformação que caracterizou a modernidade remete a um tipo
de experiência, a vivência (Erlebnis) que não se inscreve em uma tem-
poralidade, mas se encontra remetida ao agora, gerando uma forma de
narrativa que prescinde da transmissão pela palavra. Assim, nas situações
catastróficas, por exemplo, coloca-se a questão de “como dar testemunho
do irrepresentável” (SELIGMANN-SILVA, 2000: 83). Corroborando esta
visada, Tavares d’Amaral (2003) entre outros, indica que a narrativa se dá
de uma forma peculiar e isto porque o tempo contemporâneo é o tempo
“da eclosão das novas tecnologias que mudam os corpos, que aceleram
299

os ritmos, que criam mundos na ordem do virtual, que embaralham o real


e virtual, que desrealizam o real, tiram-lhe a consistência que antes era
o tapete sob os nossos pés...” (p.16) Ora, ainda que em Freud e em Lacan
tenhamos as ferramentas necessárias para abordar a questão, são justa-
mente estas transformações que trazem para a psicanálise um impasse
sobre sua concepção de sujeito e, mais explicitamente, acerca do modo
como pensa o corpo atravessado pela linguagem. Qual estatuto conferir
a essas formas de expressão que se apresentam nos tempos atuais posto
que, por um lado, o espaço para a representação de projetos e ideais se
mostra inconsistente e, por outro, o sujeito é instado a fruir sem limites,
pressionado na direção de uma satisfação a qualquer preço? Que narrativa
vai dar conta, do ponto de vista psicanalítico, desta ‘nova’ disposição? Que
invenção pode ter lugar diante de uma submissão ao que é da ordem do
trauma?
Para tentar responder a estas interrogações, propomos começar
por abordar o estatuto da linguagem na experiência psicanalítica. Nesta
perspectiva, cabe salientar que tanto a indagação sobre qual ‘o senti-
do’ implicado em um discurso ou em um modo de expressão quanto a
constatação ‘do não sentido’ (seja concebido como inominável ou como
ressentido), nos dá a dimensão do grau de complexidade que o tema
comporta. Simultaneamente se coloca a questão do lugar que o corpo –
universo das sensações –passa a ocupar nesta dinâmica. Tomemos como
ponto de partida os primórdios da psicanálise em sua problematização
acerca de uma representação intensiva: a ‘ideia de braço paralisado’ na
histérica. Trata-se de uma passagem bastante conhecida e, como tal, é uma
referência preciosa por indicar que “é preciso que o corpo seja, de alguma
maneira, da ordem da linguagem” (DAVID-MÉNARD, 2000:8), mas também
por considerar a ideia de que o afeto, “sendo de início, psíquico, passaria
em seguida para a inervação somática.” (DAVID-MÉNARD, 2000: 9)
Esta dupla consideração mostra que o lugar dado tanto à linguagem
quanto ao corpo, no cerne da elaboração freudiana, não é nada simples.
Freud é um adepto inconteste das ciências da natureza e várias de suas
postulações parecem impregnadas desta posição. Haja visto, por exemplo,
300

o conceito de pulsão que, para alguns comentadores (Laplanche, 1987) se


encontra claramente apoiado no biológico. A partir desta posição seria
lícito dizer que Freud rompe ou supera a dicotomia corpo/psiquismo,
dicotomia tributária do pensamento cartesiano e que ainda vigora no
discurso científico de fins do século XIX? Pergunta difícil de ser respondida.
De fato, o texto freudiano comporta várias leituras quanto à compreensão
da oposição corpo/psiquismo e de outras que lhe são correlatas, a saber:
quantidade/qualidade, força/sentido. Para ilustrar vamos citar algumas
dessas leituras com o objetivo de fornecer subsídios para se falar, nos tem-
pos atuais, de um tipo peculiar de narrativa na qual um sujeito se inventa.
Souza (2001) traça um panorama bastante elucidativo, apresentan-
do duas alternativas na abordagem da problemática corpo/psiquismo.
Servindo-se do conceito de pulsão para articular afeto, corpo e linguagem,
o autor defende a ideia de que as divergências sobre o lugar do afeto e da
linguagem decorrem de um privilégio dado à determinada circunscrição
deste conceito na obra freudiana. Assim, para aqueles que privilegiam a
definição de pulsão como ‘limite do psíquico’, a pulsão é entendida como
‘um polo de intensidade’ contraposto “ao aparelho psíquico, concebido
fundamentalmente como organização representacional” (2001: 285). Já
os que concebem a pulsão como ‘representante psíquico’, dão relevo à
“incidência da linguagem1 (ou da representação, se for buscada uma
equivalência no vocabulário freudiano) sobre o corpo, sobre ‘o corpo
vivo’, como preferem dizer” (p. 286), posição que o autor identifica como
eminentemente lacaniana. Mesmo concordando que Lacan tenha, na
evolução de seu pensamento, problematizado tal concepção, Souza insiste
em dizer que para Lacan, em última instância “...a pulsão não se opõe ao
simbólico por estar ‘antes’ da linguagem e do simbólico, como parecem
crer os psicanalistas que concebem a pulsão como limite do psíquico, mas
sim por estar ‘depois’” (2001: 286). Trocando em miúdos: o que se coloca,
com esta discussão, é o privilégio ou não do aspecto intensivo: em uma

1 Sem pretender abrir uma polêmica acerca da pertinência desta leitura, cabe deixar indicado
que a teoria lacaniana de alíngua (Lacan: 1972-3) se propõe apresentar uma concepção de
linguagem que fugiria a esta compreensão indicada por Souza.
301

vertente o corpo é concebido como corpo pulsional e, em outra, “o corpo


é resto da operação da linguagem” (2001: 287).¹
Acompanhemos algumas outras alternativas acerca da questão
corpo/psiquismo. Considerando que a psicanálise teve início ligando a des-
coberta do inconsciente à do corpo erógeno, David-Ménard (2000) propõe
que, por um lado, a referência à linguagem na questão do corpo da histérica
teria como objetivo “mostrar que não se trata do corpo da fisiologia, se
bem que não se cogita identificar completamente estes sintomas com o
discurso” (2000: 9). Em contrapartida, esta ligação remetida ao aparelho,
comporta um aspecto importante: para Freud, este aparelho é, antes de
tudo, “um dispositivo material, capaz de experimentar prazer, desprazer e
angústia.” Ou seja, o aparelho é, prioritariamente, da esfera da sensibilida-
de. Privilegiando essa leitura do energetismo freudiano, a autora se serve
da afirmação de Lacan de que “julgamento, pensamento etc. são descargas
energéticas inibidas” (apud David-Ménard, 2000: 11) para dizer que não
caberia falar de corporal ou do psíquico. Assim, para ela, de fato, Freud
se afasta da distinção psicológica psique/soma, ou mesmo da dicotomia
cartesiana corpo/espírito, concebendo “a diferença entre gozar e pensar
como uma diferença de nível de energia e de distribuição de energia no
aparelho, ou como uma relação entre a estrutura e a função do aparelho
em questão” (David-Ménard; 2000: 10). Esta leitura de David-Ménard nos
parece de grande valia para pensar a relação corpo e linguagem.
Kristeva (2000), por sua vez, vai indicar pelo menos três modelos de
linguagem em Freud; o primeiro aparece nos textos pré-psicanalíticos (1891;
1895) nos quais a autora dá relevo à heterogeneidade na medida em que vê
Freud acentuar dois registros de representação: um referido às palavras, o
outro aos objetos. O segundo modelo concebido como ‘mais psicanalítico’ se
baseia na regra da associação livre (1900). Quanto ao terceiro está remetido
ao pacto simbólico, com ênfase na questão da dinâmica psíquica, “na qual
é a dicotomia entre ato e representação e entre irrepresentável e contrato
simbólico em torno da autoridade que lhe interessa.” (Kristeva, 2000:82)
Já Monique Schneider (1993) propõe empreender uma crítica ao
significante de Lacan, trazendo para a discussão o papel da linguagem
302

e do afeto nos primeiros escritos de Freud, se servindo para isso, como


veremos mais adiante, do pensamento de Rousseau acerca da origem da
linguagem nas paixões.
Feito este breve levantamento podemos agora retomar a questão da
linguagem no bojo da experiência analítica estabelecendo como priori-
dade pensar que formas de expressão têm lugar na contemporaneidade.
Buscando nos distanciar de uma visada que reproduza a dicotomia entre
corpo e psiquismo, consideramos necessário privilegiar uma dimensão
afetiva da linguagem. Do que foi tratado até aqui, podemos depreender
duas perspectivas possíveis: uma que dá relevo à dimensão sensível e a
segunda que se caracteriza por uma abordagem eminentemente forma-
lista da linguagem. Optamos pela primeira que remete ao incomensurável
ou, no dizer de Benjamin (1994), parafraseando Freud (1920), à ordem do
trauma. Cabe, todavia, indicar que não se trata de postular a ideia de um
extralinguístico ou um não linguístico, ideia devidamente desconstruída
pelo próprio Walter Benjamin, por Derrida (1967) e por vários outros au-
tores tais como, Barthes (1978) e Lyotard (1979).
A propósito desta perspectiva cabe trazer a observação de Lyo-
tard (1985) acerca da arbitrariedade do signo linguístico em Saussure
(1916/1982), linguista que será tomado por Lacan para trabalhar a questão
do significante e que, conforme indicado, dá respaldo a uma abordagem
formalista da linguagem. Lyotard considera que apesar de Saussure dizer
que “é impossível derivar o signo da coisa que ele designa” (1985: 76), ele
não se encontra tão distante de uma referência ao sensível ao nomear a
relação do significante ao significado como simbólica.
Ainda a este respeito Lyotard aponta, no pensamento de Benveniste
(1939), outro linguista de renome, uma prévia desta discussão, na distinção
que efetua “entre duas relações que intervêm igualmente na constituição
da linguagem: a de significante ao significado e a do signo com seu objeto,
a primeira imanente, a segunda, transcendente ao signo” (Lyotard, 1985:
76). Isto implica que a relação que “une significante e significado não é ar-
bitrária” (p. 77); há, de acordo com Benveniste, uma “consubstancialidade
do significante e do significado.” (p.77); o que permite a Lyotard conceber o
303

significante como um significante sensível, ideia que se encontra presente


tanto em Benveniste quanto em Saussure, conforme ressaltado pelo autor.
Esta visada nos parece ir na contramão de uma perspectiva formalista da
linguagem. A título de ilustração, podemos distinguir as duas abordagens
a partir da questão da dor. Para uma perspectiva formalista, a dor é uma
construção da linguagem (Coutinho, 1985); já no âmbito de uma dimen-
são sensível da linguagem, podemos dizer o oposto: é a linguagem que
provém do sensível. Conforme veremos, a ideia de sensível está referida
ao caráter expressivo da linguagem que funda uma experiência mais rica,
diversa da concepção de experiência da época do iluminismo que tem
como paradigma a experiência científica. (Castro, 1993)
Cabe agora retomar a questão, circunscrevendo a base epistemo-
lógica sobre a qual nos apoiamos para fazer frente a uma abordagem
formalista. Para nos guiar nesta empreitada, propomos abordar a teoria
da mimesis de Walter Benjamin que se configura como “uma teoria da
origem da linguagem” (Gagnebin, 2005: 95). Conferindo à semelhança, já
no próprio âmbito da natureza, uma importância fundamental, Benjamin
vai mais longe ao dizer que “é o homem que tem a capacidade suprema de
produzir semelhanças” (1933/1994: 108), capacidade ‘estimulada e desper-
tada’ pelas correspondências que se encontram na natureza. No entanto,
Benjamin mostra que, ao longo dos tempos, as forças miméticas foram se
modificando e, aparentemente, perdendo vigor, sendo que o último reduto
da capacidade mimética humana se encontraria na linguagem e na escrita.
Com este posicionamento, Benjamin se opõe a uma concepção for-
malista da linguagem e se aproxima das hipóteses onomatopeicas, ainda
que a elas não adira, por considerar que se sustentam em uma ideia muito
rudimentar da figura da semelhança. Não se trata, para ele, de definir a
semelhança em termos de identidade, nem de assimilar à ideia de repro-
dução: a imagem de uma coisa não é a sua cópia. A relação da língua com
as coisas nunca é arbitrária, mas tem um significado quase que enigmático,
que não é visto, mas será demonstrado. Palavras e coisas estão relacionadas,
mas não obviamente; elas precisam ser interpretadas. Nesta dimensão,
interpretação e o estado original têm o mesmo grau de importância.
304

Para conferir um estatuto às hipóteses onomatopeicas, Benjamin


vai propor o conceito de semelhança extrassensível, semelhança que
liga ‘o falado e o intencionado’, ‘o escrito e o intencionado’ e ‘o falado e
o escrito’, sendo que este último par é o que remete ao menos sensível
(Benjamin, 1933/1994). O aspecto de maior relevo nesta exposição é sua
recusa em pensar a similitude baseada na ideia de imitação entendida
como cópia ao conceber a atividade mimética como ‘uma mediação
simbólica’ (Gagnebin, 2005). O símbolo, para o filósofo, se transforma
em alegoria como um sinal da queda das unidades originais de signifi-
cante e significado, ou seja, da queda das coisas, tratando-se de trans-
formar uma alegoria em símbolo. Assim, para Benjamin, o simbólico é
presentificação, é presença de centelha do divino. Já a alegoria se refere
à presença de ausência.
Além da dimensão mimética cuja relevância maior, para nós, é
colocar em xeque a tese de arbitrariedade do signo, posto que para ele
“a linguagem [...] não é um sistema convencional de signos” (Benjamin,
1933/1994: 110), outra dimensão é considerada em seu pensamento: a
dimensão semiótica que comporta, como aponta Gagnebin “[...] esse
aspecto de transmissão dos significados, aquilo que geralmente é consi-
derado como constitutivo do sentido” (Gagnebin, 2005: 99). Defendendo
uma lógica da semelhança e não da identidade, Benjamin, ao se referir a
Proust em sua busca das semelhanças, ressalta que o modelo para esta
busca é “...o mundo dos sonhos em que os acontecimentos não são nunca
idênticos, mas semelhantes, impenetravelmente semelhantes entre si”
(Benjamin, 1929/1994:39). Gagnebin vai nos mostrar como estas duas
lógicas se distinguem. Na lógica da identidade e da não identidade, “o
movimento do processo decorre da contradição e das suas sucessivas
figuras de resolução e de recomposição: um pensamento cuja dimensão
temporal remete a uma linearidade essencial, pois a contradição só pode
se desenvolver numa sucessão precisa de momentos” (Gagnebin, 2005:
100). O que não ocorre no caso de uma lógica da semelhança, na qual a
história é pensada a partir da ideia de origem (Ursprung) “como salto para
fora da sucessão cronológica niveladora...” (Gagnebin, 2004: 10).
305

Este breve levantamento das ideias de Benjamin sobre o tema nos


permite depreender o quanto o conceito de mimesis é importante para
o seu pensamento, principalmente no âmbito de sua reflexão estética,
tendo surgido primeiramente em sua filosofia da linguagem e se estendi-
do à sua teoria da história (Gagnebin, 2005). Para o nosso propósito cabe
marcar, acompanhando Gagnebin, que o impulso mimético, neste autor
“repousa, sobre a faculdade de reconhecer semelhanças e de produzi-las
na linguagem. A teoria da mimesis induz, portanto, a uma teoria da me-
táfora” (2005: 85).
Tomando a criança como ilustração, ele vai dizer que as palavras
são, antes de tudo, sons a serem explorados; e no âmbito do aprendizado
da escrita não considera que haja uma relação de imitação (Benjamin,
2000). Para ele, ressalta Gagnebin (2005), “ao escrever a palavra, ela [a
criança] desenha uma imagem (não uma cópia) da coisa, ela estabelece
uma relação figurativa com o objeto” (p. 98).
Com isso, a própria definição de sentido vem a ser repensada, valen-
do ainda salientar que “o composto de sentido que se encontra nos sons
da frase é, portanto o fundo do qual o semelhante pode subitamente vir
à luz, como um relâmpago, a partir de um tom” (Benjamin apud Gagne-
bin, 2005: 99). Esta mesma imagem, que reforça a ideia de relevância da
capacidade mimética vai ser usada pelo filósofo em sua teoria da história.
Propondo que “a história é objeto de uma construção cujo lugar não é o
tempo homogêneo e vazio, mas um tempo saturado de ‘agoras’” (Benja-
min, 1940/1994: 229), caberá ao historiador “constituir uma “experiência”
(Erfahrung) com o passado (tese 16)” (Gagnebin, 1994: 8), ou seja, narrar
uma história.
Estas considerações ganham um lugar de destaque quando referidas,
na psicanálise, ao processo de subjetivação, pensado como um percurso
que vai da submissão à invenção de si. Concebendo a questão da constru-
ção de um registro ficcional quando nos defrontamos com a submissão ao
trauma, podemos nos aproximar do modo como Benjamin trabalha a nar-
rativa na modernidade. Para o filósofo, a situação traumática “concentra
em si, de maneira exemplar, os paradoxos da nossa modernidade e, mais
306

especificamente, de todo seu pensamento” (Gagnebin, 2004: 56). Parado-


xo que remete à “nossa crescente incapacidade de contar” (p.56), pois a
própria “arte de narrar está em vias de extinção” (Benjamin, 1936/1994:
195). E um dos motivos disto ocorrer é que “as ações da experiência estão
em baixa” (Benjamin, 1936/1994: 196). Concebendo que a fonte da arte
de narrar reside na ‘experiência coletiva’ e ‘comunicável’ (Erfahung), o
autor inscreve esta experiência em uma temporalidade: “a experiência que
passa de pessoa a pessoa é a fonte a que recorreram todos os narradores”
(p.198). Esta arte estaria se extinguindo porque “a sabedoria – o lado épi-
co da verdade – está em extinção” (p.199). Em contrapartida, hoje, outro
modo de comunicação tem lugar: a informação, que em muito difere da
narração tradicional.
Neste sentido, Benjamin vai propor que um novo conceito teria
passado a operar na modernidade, o de Erlebnis (vivência). Trata-se de
um tipo de experiência “que reenvia à vida do indivíduo particular, na sua
inefável preciosidade, mas também na sua solidão” (Gagnebin, 2004: 59).
O romance moderno, para Benjamin, seria a expressão maior deste tipo de
experiência, indicando o esfacelamento da narrativa tradicional, e isto tem
lugar em função do desenvolvimento da técnica (Benjamin, 1933a/1994).
Esta ‘constatação’, no entanto, não implica uma nostalgia com respeito ao
fim da narração tradicional, ou mesmo, uma ‘comprovação’ da ‘morte da
narração’. Trata-se de pensar, a partir desta ‘constatação’ outras formas de
narrativa, outro modo de escrever a história. Gagnebin vai nos mostrar
como, no ensaio ‘O Narrador’, Benjamin chega a lançar, mas não aprofunda
alguns elementos que permitem “definir uma atividade narrativa que sa-
beria rememorar e recolher o passado esparso sem, no entanto, assumir a
forma obsoleta da narração mítica universal, aquilo que Lyotard chamará
de as grandes narrativas legitimantes.” (Gagnebin, 2004: 62). Ela se refere
a duas vias a serem exploradas: a “definição de Benjamin do conselho ver-
dadeiro (Rat)” e “sua insistência na ligação entre morte e narração.” (p.63)
O fim de uma narrativa tradicional e de uma experiência coletiva,
que possibilitavam preservar os feitos dos homens, tarefa maior da história,
abre outro campo: o da necessidade de ‘construir um conceito de história’
307

que contemple o tipo de experiência que estamos vivendo. O ‘estado de


exceção’ em que vivemos (Benjamin se refere aos episódios do início de
século XX) aponta para a realidade de um sofrimento da ordem do trauma,
da catástrofe, que não pode ser contado. Mas que, ainda assim, precisa ser
transmitido. Evidencia-se, aí, o que Seligmann-Silva (2000) designa como
‘a impossibilidade de representação da catástrofe’; com isso, “o elemento
universal da linguagem é posto em questão tanto quanto a possibilidade
de uma intuição imediata da ‘realidade’” (p.73). Nem realismo ingênuo,
nem formalismo. É nesse sentido que a experiência do Holocausto é vista
como da ordem de uma vivência e não de uma experiência comunicável. E
a pergunta que se coloca é de “como dar forma ao que transborda a nossa
capacidade de pensar?” (Seligmann-Silva, 2000: 83).
Esta breve exposição da concepção de linguagem e da problemática
da narrativa em Walter Benjamin pode contribuir para sustentar, no campo
psicanalítico, a ideia de linguagem segundo uma dimensão afetiva em lugar
de uma abordagem estritamente formalista da mesma. Assim propomos
aproximar a singularidade de um evento que se configura como da ordem
do vivido/do ressentido, como um evento que comporta uma dimensão
sensível. Ousar dizer que a ordem do vivido não é um fato linguístico,
é tão somente na acepção de que o vivido não se encontra articulado a
uma dimensão da linguagem que remete à arbitrariedade linguística. E é
a partir desta configuração que se pretende tornar este vivido (da ordem
do literal) em experenciado, da ordem do figurativo. Conforme assinalado
previamente queremos indicar, com isso, que está em cena uma forma de
linguagem diversa daquela que privilegia a relação entre significantes, e
isto justamente por ela comportar uma dimensão sensível implicada na
violência de um evento. O que se designa como ‘a literalidade da experi-
ência traumática’ remete para um ‘excesso’ de realidade. (Seligmann-Silva,
2000), o que na perspectiva psicanalítica poderia ser pensado em termos
de intensidade afetiva. Nesta medida, cabe reforçar que para Benjamin
“não se pode separar a linguagem e o mundo objetivo. A linguagem é pura
ação criativa, energeia nos termos de Humboldt, unidade da expressão e
do pensamento” (Benjamin, apud Seligmann-Silva, 1999: 24).
308

No campo da psicanálise, vamos encontrar ressonância destas ideias


em Sandor Ferenczi, autor que confere um grande peso à relação do sujeito
com o mundo em sua concepção de linguagem, apesar de não ter chegado
a sistematizar um pensamento sobre a questão. Preocupado com a cons-
tituição da subjetividade, encontramos em suas observações uma efetiva
contribuição quanto a uma perspectiva não formalista da linguagem. E
podemos dizer que isto ocorre justamente por priorizar a ordem da experi-
ência, a dimensão do vivido (Erlebnis) no processo de subjetivação. A título
de ilustração, remetemos à questão da relação do sujeito com o mundo,
primeiro aspecto importante para a nossa argumentação: aí vemos como
Ferenczi, em seu Diário Clínico (2003), concebe o Ego “como modelado
pela excitação exterior. Em lugar de me afirmar, é o mundo exterior (uma
vontade estranha) que se afirma às minhas custas, que se impõe a mim e
recalca o Ego” (Ferenczi, 29/05/1932[2003]: 150). Ainda neste registro, em
outro fragmento (01/06/1932), o autor discorre sobre a fala, colocando em
cena a dimensão imitativa, que nos parece bastante próxima das ideias
defendidas por Benjamin. Segundo suas palavras: “Falar é imitar. O gesto
e a fala (voz) imitam objetos do mundo circundante. ‘Ma-ma’, é magia de
imitação.” (p.151)
Estas duas passagens remetem, no pensamento ferencziano, ao
mecanismo da introjeção, mecanismo que tem um lugar de destaque
na constituição da subjetividade. Neste mecanismo, sob a influência do
trauma “a autoafirmação é em parte abandonada e o mundo exterior pode
modelar o Ego” (p.151). Mas a outra parte pode ser poupada e nela “as
impressões de mimetismo traumático são utilizadas como traços mnési-
cos úteis ao Ego: “cão”, quer dizer uau! uau! Quando tenho medo do cão,
torno-me cão. Após uma tal experiência o Ego é constituído pelo sujeito
(não perturbado) e pela parte convertida em objeto sob a influência do
trauma = traços mnésicos = imitação permanente (a fala é um relato da
história do trauma).” (p. 151)
A propósito destas considerações, cabe indicar que, tal como em
Benjamin, em suas reflexões sobre a semelhança extrassensível (ou não
sensível), a imitação, para Ferenczi, não remete a uma cópia. Na imitação,
309

o que está em jogo é a ideia de uma propagação e de uma invenção. Ora,


uma linguagem que leva em conta a imitação comporta, necessariamen-
te, uma dimensão sensória, não podendo ser concebida a partir de uma
perspectiva formalista. Neste âmbito, a linguagem, para Ferenczi, é uma
entre outras possibilidades de relação simbólica. E podemos dizer que
o símbolo não decorre da linguagem ou do significante, mas do campo
sensível e afetivo que se estabelece entre o eu e o mundo.
Ainda na esteira deste pensamento, vale trazer outro filósofo que
também apresenta uma preocupação com a dimensão sensória da lin-
guagem. Trata-se de Rousseau. Para apontar esta preocupação, vamos nos
apoiar na leitura de Monique Schneider (1993) a este respeito. De acordo
com a autora, Rousseau vai situar a origem da linguagem nas paixões,
que se caracterizam por satisfazer as necessidades morais e não as ne-
cessidades naturais para as quais a fala é dispensável. Schneider mostra
que a originalidade de Rousseau com relação à origem da linguagem está
“na solidariedade que ele instaura, de início, entre esta troca passional e
o instrumento verbal.” (Schneider, 1993: 40)
O objetivo maior de Rousseau residiria em se afastar tanto de uma
gênese intelectualista quando empirista da linguagem, o que implica em
recusar uma função de representação, de designação ou de pura simboli-
zação. Visando trabalhar a questão da linguagem e do afeto, Schneider vai
mostrar que para o filósofo “a linguagem tem seu nascimento na vontade
do ser afetado em afetar o outro” (1993: 41). As ‘entonações’ vão conferir
ao discurso as mais diversas emoções. Neste sentido teria lugar “o equiva-
lente a uma ‘reflexão sensível’, pela qual a sensibilidade reaparece sobre
o experimentado para conseguir as ‘entonações’, em uma contradança
constante entre a emoção que assalta o sujeito do discurso e a emoção
que assalta a testemunha ...” (Schneider, 1993: 42)
Privilegiando o que Schneider chama de ‘bipolaridade impressão-
expressão’ como característica da linguagem originária, Rousseau não co-
loca as expressões afetivas fora da linguagem. Neste sentido, “as primeiras
palavras não designariam então objetos do mundo, mas fantasmas e os
afetos correlativos” (p. 43). Trata-se de uma linguagem, antes de tudo, ‘fi-
310

gurada e metafórica’ e que, só depois, vai se desenvolver o sentido próprio.


Para este filósofo a palavra figurada nasce “a partir do momento em que a
paixão fascina nossos olhos.” (Rousseau, 1781/1968: 43)
Esta apresentação visa primordialmente mostrar que recusar uma
leitura formalista não significa cair na armadilha de um empirismo pueril.
Em Rousseau, a recusa de uma perspectiva empirista teria como finalidade
destacar “este movimento de expressão que é indissoluvelmente desig-
nação e ‘entonação’ devidos à afetividade; é esta última que articularia
primitivamente o mundo e a experiência” (Schneider, 1993: 45), e não
designação ou representação da coisa em si.
Para finalizar, é preciso marcar que o mais importante na abordagem
deste problema se refere à função conferida à linguagem, nos vários mo-
delos, e não à discussão sobre a existência ou inexistência de um referente.
Nesta perspectiva, ao acompanharmos a evolução da elaboração freudiana
acerca tanto dos fatores desencadeadores da neurose quanto dos fatores
terapêuticos, nos deparamos com uma variedade de leituras que vão desde
considerar a linguagem como ab-reativa – ou seja, através dela é possível
eliminar o sintoma quase em sua totalidade, como num passe de mágica
–, à linguagem que só tem eficácia terapêutica se comportar uma carga
afetiva. Observa-se, com isso, que a dificuldade para Freud parece residir
na necessidade em distinguir afeto de linguagem. Segundo Schneider,
a hipótese inicial freudiana privilegia uma dupla dimensão polarizada
entre uma passividade afetiva e uma atividade representativa (1993: 28) e
este impasse, colocado nos primeiros escritos só será suplantado quando
Freud considerar que ambos, afeto e linguagem, comportam tanto um
movimento passivo quanto ativo. E neste registro, o corpo não se contrapõe
ao psiquismo, mas se constitui como suporte material.
A necessidade de nuançar a distinção entre afeto e linguagem se
encontra na base de nossa argumentação, daí falarmos de uma dimen-
são afetiva da linguagem. Em Freud, ainda que seja possível encontrar
esta dicotomia operando, um olhar mais cuidadoso permite proceder a
uma relativização do modo de dispor a questão. O cerne do problema se
refere à própria compreensão de termos tais como força e representação,
311

ou sentido, ou significação ou, ainda, significante, o que para nós não


interessa discriminar. A propósito do termo representação, Benjamin,
num pequeno texto de 1928, intitulado ‘Brinquedo e brincadeira’, alude ao
duplo sentido da palavra Spielen (brincar e representar), afirmando que “a
essência da representação, como da brincadeira, não é ‘fazer como se’, mas
‘fazer sempre de novo’, é a transformação em hábito de uma experiência
devastadora” (Benjamin, 1928/1994:253). Esta observação, na verdade, se
refere à questão da repetição, mas ainda assim, é bastante apropriada na
medida em que nos é facultado conceber que ‘fazer sempre de novo’ é ser
diferente na semelhança.
Para finalizar, podemos encontrar em Merleau-Ponty uma confirma-
ção deste ponto de vista quando ele diz: “é preciso que, de uma maneira
ou de outra, a palavra e a fala cessem de ser uma forma de designar o
objeto ou o pensamento, para se tornar a presença deste pensamento no
mundo sensível e não sua vestimenta, mas seu símbolo ou seu corpo...”
(apud Schneider, 2003: 89).
312

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315

Paixão e Gozo
Claudia Murta (UFES)

No início, a Percepção
O texto de Descartes sobre “As paixões da Alma” deixa claro que a
“paixão”, no sentido estrito, é apresentada como um sentimento que surge
de uma reação corporal causada pela percepção de algo. Desse modo, a
percepção é o elemento instaurador de uma paixão.
Do artigo 17 ao artigo 26 de seu texto, antes de apresentar a definição
de “As Paixões da Alma”, Descartes estabelece “as espécies de percepções
que se encontram em nós” (DESCARTES, (2005[1649]), p. 41), percepções
estas que são as paixões. Seguindo a concepção cartesiana, não existe
possibilidade de haver uma paixão sem percepção. Paixões, nesse sentido,
são percepções. Para Descartes, as Paixões, além de percepções, são pen-
samentos: “É fácil compreender que nada resta em nós que devêssemos
atribuir à nossa alma a não ser nossos pensamentos, os quais são prin-
cipalmente de dois gêneros, a saber: uns são as ações da alma, os outros
são suas paixões” (DESCARTES, p. 40). Que as paixões são, para Descartes,
pensamentos, não há dúvida, pois elas são da alma. Contudo, as paixões
são pensamentos que testemunham a união íntima entre corpo e alma
pelo fato de serem percepções.
O pensamento, quando não é uma paixão é, uma vontade ou ação
da alma. Uma vontade pode ser uma ação que começa na alma e termi-
316

na na alma, como pode ser, também, uma ação que começa na alma e
termina no corpo. Uma ação do primeiro tipo é um pensamento puro, já
uma ação do segundo tipo é, por exemplo, uma vontade de caminhar e a
sua ação efetiva.
No sentido geral, uma paixão é uma percepção que, por sua vez, pode
ser causada pela alma, tal como na percepção dos objetos inteligíveis, como
também, nesse sentido geral, a paixão pode ser uma percepção causada pelo
corpo. Quando essa percepção causada pelo corpo tem sua origem no curso
habitual e fortuito dos “espíritos animais” que, na linguagem cartesiana,
seriam equivalentes aos nossos atuais neurotransmissores, essa percepção,
seja relacionada com os objetos externos, seja relacionada com o corpo é,
segundo Descartes, sempre sonho ou devaneio. De outro modo, quando
essa percepção causada pelo corpo tem sua origem na ação dos nervos, seja
relacionada com objetos externos, tais como a luz de uma tocha, ou com o
corpo, tal como a dor, é uma sensação.
Para Descartes, uma paixão no sentido estrito é uma percepção
causada pelo corpo por meio de uma agitação particular dos “espíritos
animais”, mas que se relaciona apenas com a alma, manifestando-se como
sentimentos de medo, cólera entre outros, que são as paixões abordadas
no tratado. Tendo explicitado as diferenças entre paixões em geral e no
sentido estrito, Descartes pode oferecer a definição geral das paixões da
alma como: “percepções, ou sentimentos, ou emoções da alma, que rela-
cionamos especificamente com ela e que são causadas, alimentadas e for-
talecidas por algum movimento dos espíritos” (DESCARTES, (2005[1649]),
p. 47). A verdadeira união de corpo e alma se manifesta nas paixões que
dependem de algum movimento particular dos espíritos.
A paixão é tudo o que, na alma, tem a própria alma como causa e o
corpo como referência; segundo Descartes, “o principal efeito de todas as
paixões nos homens é que elas incitam e dispõem sua alma para querer as
coisas para as quais elas lhes preparam o corpo” (p. 56). Nessa definição a
paixão aparece como testemunho da união íntima entre a alma e o corpo,
na medida em que a alma pode vir a querer o que cada corpo foi preparado
pelas próprias paixões para oferecer. Descartes descreve como exemplo, a
317

percepção da imagem de um animal que, por meio dos olhos, atinge, no


cérebro, a glândula pineal que age na alma para formar a imagem. Se essa
figura tem relação com alguma coisa que tenha atingido o corpo, excita
na alma um tipo de paixão, tal como o medo, ou a ousadia, ou o temor,
ou o terror; estas, todavia, excitam os corpos a reagirem com a fuga ou o
enfrentamento, dependendo da excitação oferecida. O movimento da fuga
pode ser causado pela paixão do medo. Os movimentos pertencem ao que
Descartes denomina como a máquina do nosso corpo. Se os movimentos
pertencem ao corpo, no caso do medo, eles foram excitados pela própria
paixão do medo que permite a união entre o corpo e alma permitindo
que essa função da alma, a paixão, consiga excitar o corpo ao qual ela
está unida. A descrição dos movimentos corporais envolvidos na paixão
do medo é elaborada por Descartes da seguinte maneira:

...Isso dispõe o cérebro de tal modo, em certos homens, que


os espíritos refletidos da imagem assim formada na glândula
seguem daí, parte para os nervos que servem para voltar as
costas e mexer as pernas para a fuga, e parte para os que
alargam ou encolhem de tal modo os orifícios do coração, ou
então que agitam de tal maneira as outras partes de onde o
sangue lhe é enviado, que este sangue, rarefazendo-se aí de
forma diferente da comum, envia espíritos ao cérebro que são
próprios para manter e fortificar a paixão do medo, isto é, que
são próprios para manter abertos ou então abrir de novo os
poros do cérebro que os conduzem aos mesmos nervos; pois,
pelo simples fato de esses espíritos entrarem nesses poros,
excitam um movimento particular nessa glândula, o qual é
instituído pela natureza para fazer sentir à alma essa paixão
(DESCARTES, (2005[1649]), p. 54).

Essa descrição dos movimentos corporais que sustentam a paixão


da alma demonstra o percurso dos espíritos animais em seu autorrefor-
çamento circular. Tal descrição justifica, para Descartes, a definição das
318

paixões como “causadas por algum movimento particular dos espíritos”


(p. 55). Não se trata de um movimento fortuito qualquer dos espíritos,
mas sim do movimento dos espíritos incluídos em um percurso neuro-
nal específico, pois as paixões são condicionadas a partir do movimento
circular de autorreforçamento desse percurso.
Assim, por mais que as paixões sejam da alma, elas estão intima-
mente ligadas ao corpo e, por esse mesmo motivo, o controle das paixões
não é da ordem da vontade. A alma não tem acesso direto ao corpo, nem
pode excitar diretamente as paixões. Tendo em vista a aliança de corpo e
alma presente nas paixões e, uma vez que a alma é de natureza distinta
do corpo, o objetivo de tentar atingir diretamente a paixão pela vontade
não é viável. A vontade pode até atingir o corpo, no caso, por exemplo, da
cólera, pela vontade de controlar a mão para que essa não responda ao
estímulo de bater, contudo a vontade nada pode contra a paixão que é
acompanhada pela emoção que a fortalece. De acordo com Descartes, “de
todas as espécies de pensamentos que ela [a alma] pode ter, não há outros
que a agitem e a abalem tão fortemente como essas paixões” (DESCARTES,
(2005[1649]), p. 48).
As paixões abalam tanto a alma que um pensamento livre como a
vontade tem muito menos condição de se manifestar diante da presença
imperiosa de uma paixão tendo em vista que esta se trata de um pensa-
mento ligado a uma manifestação corporal. Essa forma de pensamento
que é a paixão testemunha a união íntima entre corpo e alma. Sendo
assim, um pensamento livre como a vontade não excita diretamente uma
paixão, pois um pensamento livre não afeta um corpo. Segundo Descartes,
“há uma razão particular que impede a alma de poder alterar ou estancar
rapidamente suas paixões, a qual me deu motivo de por mais acima, em
sua definição, que elas não são apenas causadas, mas também mantidas
e fortalecidas por algum movimento particular dos espíritos. Esta razão
é que elas são quase todas acompanhadas de alguma emoção” (p. 60).
Dessa passagem pode-se extrair uma diferenciação entre as emo-
ções e as paixões. São as emoções que sustentam e fortalecem as paixões
inscritas no movimento particular do automatismo circular dos espíritos.
319

Depois da percepção, a repetição


A paixão é causada por um caminho específico de um circuito neu-
ronal. Ela se instala desde que esse circuito foi percorrido uma primeira
vez e se mantém e se fortalece a partir da repetição desse circuito que tem
como consequência manifestações corporais, tais como o enrubecimento,
a taquicardia, o empalidecimento, entre outras. As emoções podem ser
percebidas por meio dessas e de muitas outras manifestações corporais.
O medo, por exemplo, pode gerar taquicardia e enrubecimento ou mes-
mo empalidecimento. O fortalecimento da paixão do medo implica em
que cada repetição da percepção que o ocasionou seja acompanhada por
movimentos corporais. Em certas situações, o corpo se manifesta antes
mesmo que a consciência se perceba com medo. Essa é a razão pela qual
uma paixão pode ser muito mais impositiva que a vontade, pois o corpo
já foi preparado pela própria paixão para reagir de tal modo que, outra
reação, à mesma situação, pode se apresentar de modo secundário. No
artigo 107, Descartes enuncia que: “entre nossa alma e nosso corpo há tal
ligação que, depois de termos unido uma vez alguma ação corporal com
algum pensamento, posteriormente um dos dois não se apresenta a nós
sem que o outro também se apresente” (DESCARTES, (2005[1649]), p. 100).
Essa afirmação esclarece a união entre o corpo e a alma, da qual
a paixão é o testemunho, a partir da união inextrincável entre uma ação
corporal e um pensamento. Assim, uma ação corporal, tal como o tremor,
pode indicar a presença de uma paixão. Contudo essas ações corporais
podem dar a conhecer as paixões, como também podem servir para
dissimulá-las. No entanto, elas ainda permanecem como sinais.

As paixões envolvidas no parto


A questão central de nosso trabalho visa ao diagnóstico da maneira
pela qual as paixões podem convulsionar o corpo grávido, em parturição
e no puerpério. Nosso estudo visa ao acompanhamento da manifestação
das paixões que afetam as mulheres no período perinatal. Desse período
vivido pela mulher, o instante que vamos considerar nesse desenvolvi-
mento se apresenta no parto. Abordamos as paixões experimentadas
320

pelas mulheres no momento do parto vivido de maneira natural. Nossa


tese é a de que o parto natural pode oferecer um espaço de condições
possíveis para a manifestação de paixões nomeadas por Descartes como
admiração e regozijo e, se comparadas com a psicanálise lacaniana pode
ser qualificada como gozo feminino.
Para Descartes, seis são as paixões primitivas, entre elas, amor,
ódio, alegria, tristeza, desejo e admiração. A admiração é, para Descartes,
a primeira de todas as paixões, ela possui um automatismo fisiológico que
denota a surpresa como uma ruptura entre a reação da alma e os valores
do corpo. Pascale D’Arcy apresenta o texto de Descartes e comenta que “a
admiração expressa algo como uma indiferença adquirida da alma pelo
que inicialmente podia apresentar-se como vital. O corpo esboça ainda
uma reação; mas a alma não se associa a ela e o que poderia vir a ser um
movimento se interrompe, perde seu sentido e não tem mais que a reali-
dade mecânica de um reflexo prematuro” (D’ARCY, 2005, LXXV). Além da
admiração, paixão primeira para Descartes, uma outra paixão secundária
se apresenta no momento do parto – o regozijo. De acordo com o artigo
210 do tratado: “o que denomino regozijo é uma espécie de alegria na qual
há isto de particular: sua doçura é aumentada pela lembrança dos males
que sofremos e dos quais nos sentimos aliviados, da mesma forma com se
nos sentíssemos desembaraçados de algum fardo pesado que por muito
tempo tivéssemos carregado nos ombros” (DESCARTES, (2005[1649]), p.
171). Essa paixão mistura a sensação de alívio com a paixão da alegria.
Aponta que o que passou e do qual agora se regozija foi difícil de ser vivi-
do. As paixões da admiração e do regozijo se apresentam nos relatos das
puérperas que experimentaram o parto natural. Essas paixões ressoam
com as considerações elaboradas na psicanálise de orientação lacaniana
sobre o gozo.
O modo pelo qual as paixões afetam o corpo apresenta alguns
efeitos. Para que se possa perceber a partir da psicanálise, de que forma
uma paixão afeta o corpo, uma citação do texto de Jacques-Alain Miller,
“A biologia lacaniana”, torna-se apropriada: “[...] afetar um corpo. [...] O
efeito de “afetar” inclui, também, o efeito do sintoma, o efeito do gozo,
321

e mesmo o efeito do sujeito, mas efeito do sujeito situado num corpo e


não efeito de pura lógica” (MILLER, 2004, p. 52). Um sujeito situado em
um corpo aponta para a humanização do pensamento. A referência à
humanização do pensamento indica uma possível abordagem do pen-
samento que não vaga pelo universo, mas que se situa em um corpo de
alguém que pensa, age, respira e, portanto, vive situado em um mundo.
A partir dos esclarecimentos de Miller, podemos perceber que, ao afe-
tar o corpo, a paixão pode produzir alguns efeitos de sintoma, gozo ou
mesmo sujeito. Cabe ao campo que é próprio da psicanálise abordar o
campo do sintoma, do gozo e mesmo do sujeito como manifestações da
paixão, pois tais manifestações permitem a percepção da inscrição da
paixão no corpo.
Para Miller, “o prazer se torna gozo no momento em que ele transbor-
da o saber do corpo e deixa de obedecer-lhe. Esse prazer transformado em
gozo é o que Freud chama de prazer sexual” (MILLER, 1999. 67). O conceito
de gozo é esclarecedor por trazer a em si mesmo a ideia de transbordamen-
to do saber do corpo. A satisfação vista como esse transbordamento detém
o domínio da alma sobre o corpo ao transbordar o saber que organiza as
funções vitais do corpo. Um exemplo de Freud, comentado por Miller, é o
caso de uma cegueira histérica que não tem fundamento orgânico. O gozo
do olhar, nesse caso, suprime e tampona a função natural do olho que é
de ver. O gozo introduz uma perturbação na função vital e, assim, o órgão
deixa de funcionar e trabalhar para a finalidade vital. Desse modo, o gozo
interrompe e atrapalha o domínio da alma sobre o corpo.
Lacan afirma que, do gozo feminino, as mulheres não dizem nada.
Que denota a manifestação de indiferença na alma. Apenas aquelas que
experimentam sabem que experimentaram e, quanto ao resto, não têm
mais nada a dizer. Já que esse gozo não se transmite pelo dizer, pode ser
mostrado. Lacan comenta sobre a visualização do gozo feminino na está-
tua de Santa Tereza D’Ávila feita por Bernini. Com base nesse comentário
lacaniano, iniciamos uma pesquisa a partir de registros iconográficos da
manifestação do gozo feminino presentificado no momento do parto
natural.
322

A Dor e o Gozo
Durante o trabalho de parto as mulheres experimentam dor, fre-
quentemente uma dor muito intensa, causadora de um grande descon-
forto. Segundo Lacan, em “Psicanálise e Medicina”,

“(...) o que eu chamo de gozo, no sentido em que o corpo se


experimenta, é sempre da ordem da tensão, do forçamento,
da defesa e até mesmo da façanha. Incontestavelmente, há
gozo no nível em que começa a aparecer a dor, e sabemos que
é somente nesse nível da dor que se pode experimentar toda
uma dimensão do organismo que, de outra forma, permanece
velada” (LACAN, 1966).

Com a evolução do trabalho de parto,1 várias substâncias protetoras


contra a dor, como neuromoduladores, neurotransmissores e hormônios
produzidos pelo próprio corpo feminino, tais como endorfinas, ocitoci-
na, noradrenalina, adrenalina, prolactina, dentre outras, vão se tornando
mais frequentes, em maior concentração e num tal equilíbrio entre si que
permite às parturientes suportarem as dores das contrações uterinas.
Assim, a dor cria uma condição para que ela própria seja suportada pela
mulher sem traumatizá-la. A dor cria um estado de anestesia de si própria.
Uma condição para que estas substâncias atuem aliviando o desprazer
das dores é que as mulheres se entreguem ao comando de seu cérebro
primitivo, abdicando dos controles e estímulos típicos da vida de relações
cotidianas, controladas pelo neocórtex (ODENT, 2002, p. 13-16) Desta
forma, respeitada a privacidade feminina, estas substâncias remetem a
parturiente a um estado anômalo de consciência, ou seja, a um transe,
que pode facilmente ser percebido por várias fotografias deste trabalho.
Como um desdobramento possível deste transe pode ocorrer o êxtase. Para
que atinja o êxtase é necessário que continuem os estímulos fisiológicos
da parturição, como a compressão do reto materno pela cabeça do feto,
a presença das dores das contrações, a dor da distensão perineal sentida

1 O tema da evolução do trabalho de parto foi escrito pelo médico obstetra Paulo Batistuta.
323

desde o coroamento até o desprendimento da cabeça. Quando chega o


período expulsivo do parto, ou seja, quando a dilatação do colo uterino
está completa e o bebê inicia sua descida pelo canal de parto, então o
estado de transe já se está bastante aprofundado, o que pode ser notado
pelas expressões de embriaguez evidenciada nas mulheres fotografadas.
Algumas mulheres, contudo, não suportam esta dor, ou as emoções a
elas relacionadas, e pedem uma anestesia como o alívio possível para
si; outras entram num estado de desespero. Paradoxalmente, no estado
fisiológico, nesta hora, é comum sobrevir uma tranquilidade súbita, um
estado contemplativo, um abandono de sua dimensão corporal. Algumas
parturientes conseguem evoluir rapidamente neste transe e ter um des-
prendimento fetal fácil, sem lacerações de seus tecidos genitais. E, ao que
parece, também gozam mais facilmente. O desprazer, o transe e o êxtase
caracterizam, todos eles, momentos do gozo. Ao saírem deste estado de
êxtase retornam possuidoras de um poder que até então não haviam ex-
perimentado, oportunizando-lhes sentirem este gozo único de ser mulher.

Dor Transe Êxtase

As fotografias desta pesquisa mostram mulheres em trabalho de


parto adiantado, na fase de transição e em período expulsivo. Elas bus-
caram captar os instantes de gozo vividos nesses momentos por essas
mulheres. O princípio é o de seguir a movimentação do gozo entre tensão,
324

desprazer e alívio da tensão. Como desse gozo nada se pode dizer, podemos
percebê-lo por sua manifestação corporal. Algumas das expressões nessas
fotos lembram a expressão de Santa Tereza na estátua de Bernini. Já que
o gozo feminino não entra no campo da linguagem e, dessa forma, não
tem representação possível. Todavia, é no desvelamento do gozo feminino,
como no trabalho de parto, que essa constituição enigmática se evidencia.
Em nosso trabalho, além do registro iconográfico, fazemos entrevistas com
as mulheres que se dispuzeram a falar sobre esse momento vivido por
elas. As entrevistas seguiram o modelo da técnica psicanalítica que é o de
pedir que se fale qualquer coisa que vier à mente. Durante as entrevistas,
em muitos momentos faltaram palavras e, nesse instante, insistimos para
que as entrevistadas falassem o que pudessem transformar em palavras,
sem se preocupar com a forma. É oportuno ressaltar como as mulheres
recém-paridas se admiram ao ver fotografias de seus partos, declarando
não se recordar de terem vivido determinadas cenas retratadas na icono-
grafia que se lhes apresenta.
Dar lugar à palavra no momento em que ela falta, e o sujeito se depara
com a emergência do que faz furo como traumatismo é motivo suficiente
para a abordagem desse grupo específico de sujeitos para os quais o encon-
tro como o real do traumatismo tem passagem obrigatória – mulheres em
período perinatal. Miller aponta que “sem dúvida, no afeto trata-se do corpo,
mais exatamente dos efeitos de linguagem sobre o corpo. (...) A orientação
lacaniana implica, portanto, distinguir as emoções, de registro animal,
vital, em seu aspecto de reação ao que ocorre no mundo, dos afetos como
pertencentes ao sujeito” (MILLER, 1999, p. 47). Para Lacan os afetos são
signos translinguísticos que, indicam, via a manifestação corporal, um
sentimento que se fortalece pelo fato de se inscrever no corpo. Alguns dos
trechos relatados nas entrevistas das puérperas sobre seus partos mostram
a importância de oferecer lugar de palavra a esse instante de silêncio. 2

2 Desde o ano de 2006, o grupo de pesquisa “Parthos” coordenado pela professora Claudia
Murta tem entrevistado gestantes e puérperas a fim de coletar dados sobre os sentimentos
vividos pelas mulheres em período perinatal. Algumas das análises apresentadas nesse texto
fazem parte dos resultados da pesquisa.
325

A.D., tinha 24 anos e era seu primeiro filho. Sua gestação se pro-
longou até a 41ª semana gerando-lhe grande ansiedade. Além disto, seu
trabalho de parto durou 20 horas e superou sua expectativa de dificuldades,
ocasionando-lhe grande cansaço e desgaste. Sua bebê nasceu com 3.120
gramas e Apgar 10/10.
“O parto para mim foi uma coisa esperada. Eu queria um parto hu-
manizado. Eu lembro da dor. Eu não acreditava que ia nascer, mas a dor
indicava que não era um delírio. A dor acordava meu corpo para o nasci-
mento. No parto eu me deparei comigo e me assumi. Agora eu conheço meu
corpo muito mais, eu vi meu corpo trabalhando. Meu corpo gritando, meu
corpo mostrando que eu tenho que trabalhar. Mente e corpo ligados em um
só – vida. Todos os sinais são gritos do corpo. Quando a mulher se entrega,
ouve o corpo, quer aquilo, quer tirar a criança de dentro para tê-la nos
braços, amamentá-la. No momento do nascimento, eu estava anestesiada.
Foi como se eu estivesse no escuro e as pessoas fossem me conduzindo para
eu chegar ao lugar no qual eu queria chegar. A sensação naquela hora foi
de uma realização; foi como se eu não tivesse passado por nada daquilo
ali; um alívio – um contentamento. É um momento forte. Difícil de falar.
Passa-se por tudo aquilo e logo em seguida se chega ao nirvana. O nirvana
é como se tivesse tomado outra anestesia – anestesia geral. O mundo parou
naquele instante. Veio tudo na cabeça àquela hora – tomar posse daquilo
que é meu. Eu chorei tanto naquele momento”.

C.M.R estava na sua segunda experiência de parto normal, muito


calma, muito senhora de si. Desta vez, a duração de todo o processo de
parto foi de 5 horas, bem menor que o anterior. Experimentou leve lesão
perineal pelo parto e recuperou-se muito rapidamente. Seu bebê nasceu
com 3.660 g, com Apgar 9 e 10.
Eu tive medo, eu pensava que não ia sair, não sei falar muito bem.
Aquele terror durou 15 minutos – muita dor. O médico falou para sentar.
Depois eu sentei e ninguém conseguia mexer comigo. Eu via uma paisagem
linda e eu pedia a Deus que viesse uma nova contração para ele nascer logo.
Quando sentei comecei a rezar – olhava para a janela, via a paisagem, fazia
326

um Pai Nosso e pedia pelo amor de Deus. Isso para mim demorou uma eter-
nidade, mas segundo o médico durou 15 minutos. Muito sofrimento, mas
muito prazer. Se eu tivesse outro filho, faria tudo da mesma forma. Difícil
falar desse prazer: o sofrimento faz parte. Até a cabeça sair é uma sensação
de muita dor, depois vem a sensação de prazer.

Para L.B.C. esta foi a primeira experiência de parto, contudo sua


evolução foi bastante rápida: poucas horas após o início, seu bebê nas-
ceu com 2.975 g, com excelente vitalidade. Ela teve a companhia de seu
esposo e se manteve bastante tranquila durante todo o trabalho de parto,
demonstrando grande introspecção; ela também não apresentou lesão
genital pelo parto.
Você se desliga do mundo nessa hora. Tem uma dor que faz a gente se
desligar do mundo. Poucas coisas me chamavam para a realidade. Meu olho
estava sempre fechado – alguém vindo dar água. A coisa estava acontecendo
ali, mas eu não sabia. Eu estava entregue para viver aquilo. Sentia segurança
no médico. Quando eu dizia que alguma coisa estava doendo demais, aí eu
buscava o médico pelo saber e entrava de novo naquele estado. Estava em outro
lugar; estava meio anestesiada. É uma anestesia que você se desliga do olhar
do outro, do pudor. Queria ficar em pé abraçada ao meu marido. Tinha umas
horas que eu ia tentando me organizar, me concentrar para fazer alguma
coisa. Tentar dar uma consciência, tipo colocar o pé no chão. Eu sabia que o
médico ia organizar e não abri mais os olhos. Eu estava desligada, entregue à
situação. Quando a cabeça foi saindo, foi ardendo, isso me fez cair na real. O
mundo não estava completamente na minha vida. Quando o bebê nasceu
fiquei só eu e o bebê, ninguém mais importava. Era só o bebê.

L.V.F 1,53 cm de altura, 23 anos, estava em sua primeira gestação,


que se prolongou até a 42ª semana e teve de ser interrompida pela indução
do parto por razões médicas estritas. A despeito de seu bebê ter adotado
uma posição desfavorável para um parto vaginal fácil, conforme ensinado
a cartilha obstétrica tradicional, toda sua parturição durou apenas 6 horas.
Ela não apresentou laceração genital. Seu bebê não chorou ao nascer e ti-
327

nha um semblante encantadoramente sereno; pesava 4.195 gramas e tinha


boa vitalidade Ela considerava o parto uma oportunidade para vivenciar
uma experiência mística. Ela não acolheu a ideia de ser fotografada em
parto. Seu parto foi espetacular!
Eu me lembro do momento no qual que a cabeça saiu, eu senti von-
tade que saísse logo – senti um alívio parcial e fui ficando aliviada. É um
entendimento visceral. Eu sei o que é, mas é difícil colocar em palavras.
Essa é a experiência mais intensa que existe. Eu senti muita dor. Eu localizo
a dor durante as contrações que procederam à passagem do bebê. A pas-
sagem mesmo foi uma coisa gostosa. Durante a dilatação fiquei debaixo
do chuveiro a dor parecia que ia me rasgar toda. Me agarrei na fé desde
o dia anterior, antes de fazer a indução – continuei ligada com a minha
fé. Eu lidava com a dor meio respirando, meio orando. Chamava muito
a Virgem Maria, pensei em São José. Quando cheguei ao hospital estava
aterrorizada com a dor. Eu sentia tanta dor e por mais que eu rezasse a dor
só aumentava. Eu gritei muito de dor. Teve uma hora que eu fiquei exausta.
Quando ele nasceu foi um alívio, um prazer mesmo depois de tanta dor –
um momento de graça. Eu já estava explodindo nesse momento. Foi uma
hora de muita intensidade sem sofrimento. Vem a palavra silêncio. Eu senti
descarga muscular – vibração. Eu não sabia se a coisa estava saindo de mim
ou se ela estava voltando para mim. A cabeça estava para fora – eu tinha
medo da minha vagina estrangular o bebê. A única referência que eu tinha
do bebê era a fala dos médicos dizendo que ele estava corado – nessa hora
eu soltava a voz do jeito que ela saísse – um lamento. Essa experiência não
tem só o lado de pegar o bebê, tem também o vazio que ele deixa dentro de
mim – quando ele estava deixando meu corpo. Ele estava saindo de dentro
de mim, mas não ia embora. Ele vinha para os meus braços. O meu parto
foi perfeito – com toda a dificuldade, com todas as entranhas, com todas
as vísceras. Foi muito bom e eu não imagino outro parto.

P.M.A.B.V., estudante universitária, teve esta sua primeira filha aos


21 anos. Devido ao seu desejo decidido de ter um parto natural, mudou de
obstetra já em idade gestacional adiantada. Após 12 horas de trabalho de
328

parto ela estava exausta e então recebeu analgesia que lhe permitiu dormir
um pouco e recuperar-se. Depois de cessado o feito analgésico ela estava
com dilatação total do colo uterino e pouco tempo depois sua filha nasceu
naturalmente, com todas as dores de contração, com 3.260 g, Apgar 7/10.
É difícil falar disso. As pessoas podem ficar horrorizadas achando que
é dor – mas não é dor; é uma explosão de sentimentos; é um calor enorme.
Depois que acabou eu me senti vitoriosa, pois achava que nunca ia acabar. Eu
viajei, a gente se apoia em quem tiver do lado não sabendo quem é – eu não
fiquei com vergonha de nada. Eu fazia o que meu corpo estava mandando.
Quando estava em trabalho de parto eu ainda me preocupava com alguma
coisa, mas depois eu não pensava em mais nada. Quando estava no período
expulsivo eu me entreguei para o parto e depois ela nasceu. Nesse momento
eu falei com Deus e pedi ajuda. Senti meu corpo se abrindo e a senti (minha
filha) descendo. Na hora que eu senti que ela estava descendo, eu senti uma
sensação gostosa e um alívio que não foi só físico, foi um alívio de alma. Senti
muita alegria – eu tentava falar e não conseguia, a voz sumiu. Eu chorei de
alegria. Foi o melhor momento da minha vida – em toda a minha vida eu
nunca havia sentido uma sensação igual – uma sensação única. Eu só senti
isso porque eu me entreguei. Isso tudo acontece em um momento só.

Alguns elementos foram comuns nestes partos: 3 i) todos foram


hospitalares e ocorreram num ambiente privativo e de acordo
com o desejo de cada mulher; ii) elas foram consideradas
protagonistas de seus partos; iii) como tal, elas escolheram
seus acompanhantes e tiveram liberdade de se expressar li-
vremente, quer verbalmente através de gemidos, lamentos e
até gritos, quer pela escolha das atitudes corporais e posições
as mais diversas. iv) Por isto mesmo, seus cuidadores trataram
de minimizar as intervenções no processo natural da parturi-
ção, restringindo-as às indicações estritas e fazendo-se notar
apenas o mínimo necessário. v) Além do mais, o parto ocorreu
numa suíte de partos, evitando-se o deslocamento até o Centro

3 Observações anotadas pelo médico obstetra Paulo Batistuta.


329

Obstétrico e mudança na equipe prestadora da assistência de


maneira que o estado de transe não fosse interrompido. vi)
Estes partos foram respeitados como um evento sexual da vida
de cada uma destas mulheres. vii) Observou-se ainda em todos
os partos que o pudor e a vergonha não se fizeram presentes,
mas sim uma dimensão sagrada se fez notar nas parturientes.

Tal como abordamos inicialmente na parte inicial teórica do traba-


lho, os relatos das puérperas denotam a presença do silêncio apontado por
Lacan quanto à manifestação do gozo feminino; como também a dificul-
dade de apresentar essa experimentação em forma de palavras (Lacan já
tinha enfatizado esse ponto no que diz respeito às jaculações místicas); da
surpresa diante da vivência corporal de algo novo que traz a admiração;
além de demonstrar a sensação de alívio e de regozijo com um prazer
obtido que não é vivido sem desprazer; uma alegria; um encantamento
diante da finalização de um processo criativo que convulsiona o próprio
corpo e a própria alma; da transformação que se processa ao constatarem
sua qualidade, seu poder, através de um contato profundo com sua femi-
nilidade. As paixões vividas nesse momento surgem das ações do próprio
corpo, mas são sentidas na alma.
330

Referências bibliográficas

DESCARTES, R. [1649]. As Paixões da Alma: introdução, notas, bibliografia e


cronologia por Pascale D’Arcy. 2ª ed. São Paulo: Martins Fontes. 2005.
LACAN, J. Le Séminaire: Encore - Livre 20. Paris: Seuil, 1975.
___________. [1966] O lugar da psicanálise na medicina. Opção lacaniana.
São Paulo, Eólia, n. 32, dez.2001.
MILLER, J. A. Biologia Lacaniana. Opção lacaniana. São Paulo, Eólia, n.
41, dez.2004.
___________. Elementos para uma biologia lacaniana. Belo Horizonte:
Autêntica, 1997.
ODENT, M. A cientificação do amor. Florianópolis: Saint Germain, 2002.
331

Prazer à exaustão
Francisco Verardi Bocca (PUC-PR)

A volúpia sempre foi o mais caro de meus bens;


eu a incensei durante toda a vida.
(Sade)

Nessa oportunidade o leitor encontrará um esboço preliminar


de nosso propósito maior que é o de refletir o pensamento e a obra de
Marquês de Sade (1740 – 1814) a partir da corrente filosófica intitulada
materialismo francês do século XVIII. A finalidade desse empreendimento
é a de que possamos apontar as influências recebidas bem como sua ori-
ginalidade. Para tanto, propomos como ponto de partida ocuparmo-nos
de uma noção fundamental que é a de natureza humana, antecipando
uma estrita identificação entre natureza e matéria. Entendemos que
essa implicação é justificável porque o homem, nessa corrente de pen-
samento, foi concebido em largo aspecto como homogêneo aos demais
produtos da natureza, posto que feito da mesma substância. Apoiamos
essa equivalência na admissão de uma continuidade entre os diferentes
seres da natureza, inclusive porque, como veremos adiante, todos seriam
por princípio igualmente dotados de uma sensibilidade que é postulada
como universal, pois própria e comum à matéria em geral.
Em reforço a esse ponto de vista citemos J. O. de La Mettrie (1709
– 1751), quando, na obra O homem-máquina, declara que “é tão grande
a uniformidade da natureza que já se começa a sentir quer a analogia do
reino animal e vegetal, quer do homem e da planta” (1982, p. 98). Com isso
ele projeta a extensão ao ponto de considerar que “dos animais ao homem
332

a transição não é violenta” (1982, p. 63). A analogia foi assim remetida a


uma homogeneidade de base entre todos os seres corporais. Para dar conta
disso ilustrou, alegoricamente, sua tese postulando uma substância ma-
terial idêntica presente em todos os reinos da natureza, diz ele, “o homem
não é constituído por um barro mais precioso; a natureza empregou uma
massa idêntica e única, da qual variou apenas a levedura” (1982, p. 75).
Justamente por conta desse ponto de vista postulamos que noções
como natureza humana, matéria e sensibilidade se intersecionam e se
articulam num plano de equivalência. Isso ainda mais porque, desde os
atomistas antigos, a sensibilidade é, relativamente à matéria e às suas
diferentes organizações, pensada como sua propriedade comum e, por-
tanto subsistente em todas as formas e etapas da sua complexificação.
Isso admite a consideração de que a sensação possa ser considerada o
primeiro móvel da matéria, vale dizer, da natureza, que dá ensejo e cons-
tituição a toda organização material fazendo-a funcionar. Por conta disso
nos sentimos justificados em reduzir a compreensão do humano a uma
questão material e, por conseguinte, de sensibilidade. Antecipamos que
adiante apontaremos a originalidade de Sade justamente reconhecendo
a influência e a estrita observância desse eixo conceitual que herdou da
filosofia materialista francesa do século XVIII.
Para melhor compreender essa influência, atentemos para algumas
de suas teses. Passemos a elas. Como nos mostrou E. Condillac (1715 –
1780), particularmente na obra Tratado das sensações, o que chamamos
razão ou conjunto de faculdades intelectuais, nada mais é do que um pro-
duto da sensibilidade que tem como dado operacional de base a sensação.
Dessa forma, e por conta dessa ordem, a razão enquanto produto esmerado
da sensibilidade, no exercício de sua própria função e em decorrência da
sua própria experiência, se destaca e passa a atuar autonomamente em
relação à sensibilidade, inclusive opondo-lhe resistência, educando-a, vale
dizer, enlevando-a. Promove assim uma forma de superação da imersão
inicial na existência sensível.
Com isso provoca ainda uma superação de uma existência imersa no
incessante fluxo mecânico das sensações. Em uma palavra, pelo exercício
333

da razão o homem se distancia e supera a si próprio na medida em que


compreende sua condição sensível. Ainda, atuando como agente regulador
da sensibilidade, a razão passa a administrar e a regular os desejos, que
são elementos da própria vida passional do homem, a partir do que estes
deixam de ser considerados em si mesmo, como finalidade. Assim, é a
partir dessa autocompreensão e autogestão que o homem passa a viver o
presente em vista do futuro, passa a viver sua própria vida em vista daquele
que é reconhecido como seu semelhante. Por fim, comunizando-se, ul-
trapassando seu isolamento e autorreferência, prospeccionando o futuro,
superando os conflitos de interesse, o homem provê-se de segurança e
liberdade em relação à ordem determinista da natureza.
Influenciado por ele até certo ponto, mas divergindo desse panora-
ma Sade sustenta que toda faculdade racional entendida como derivada
da sensibilidade deveria antes permanecer, além de a ela associada, a seu
serviço, atuando segundo a finalidade de atender a seus interesses parti-
culares. Apoiado nesse princípio Sade não admitiu o funcionamento de
uma faculdade, seja em seu aspecto cognitiva, moral ou estético, que não
tenha por finalidade reconhecer e atender às exigências da sensibilidade.
Pois, como consequente materialista, e antecipamos aqui sua originali-
dade, diferentemente de seus antecessores e também de seus sucessores,
Sade empenhou-se em dar à sensibilidade, à sensação e especialmente ao
prazer dela decorrente a oportunidade de apenas ser o que é, uma tensão
efêmera que traz consigo a meta da fruição que tem em si o cumprimento
de uma função, a de permitir e oportunizar o escoamento total de toda
excitação que trafega na sensibilidade.
Dessa forma, fica evidente que em seu pensamento não se justifica
a hipótese de uma orientação racional, como dito acima, enquanto cons-
trangimento interno, sob forma de Lei, atribuível a uma faculdade (moral)
qualquer. Tampouco o reconhecimento de um Direito como constran-
gimento externo sustentado por instituições sociais moralizadoras. Isso
porque, para ele qualquer orientação virtuosa da sensibilidade, atuando
do interior ou do exterior, só pode ser reconhecida como um ordena-
mento de ação em restrição a ela. Por conta disso, se há para ele uma lei
334

que fundamente a ação da razão, esta deve ser a que ordena o pronto e
irrestrito atendimento de toda inclinação sensível, para a qual devem estar
dispostas em colaboração todas as faculdades intelectuais. Pois entende
que para isso teriam sido engendradas e só segundo esta atuação tem sua
existência justificada.
Aqui reside uma desconcertante contribuição de Sade para a com-
preensão da natureza humana, a de que a sensibilidade indica por sua in-
clinação sua própria máxima. Acrescido a isso, à razão, como produto dessa
mesma sensibilidade, cabe executar sua máxima, orientando e promovendo
a satisfação de toda inclinação em toda sua intensidade, praticando inclusive
o mal quando lhe representar o bem. Por conta disso, sensação, prazer e
mal ficam doravante relacionados. A introdução dessa última noção suscita
esclarecimentos. O mal, em sua perspectiva, não pode ser assimilado, por
exemplo, à possibilidade de qualificar uma ação quando esta é entendida,
do ponto de vista da moralidade, como um ato criminoso. Isso porque, na
perspectiva da vida sensível, nenhuma ação é má ou criminosa, uma vez
que estão sempre sob a égide do exercício espontâneo e irrestrito dos apelos
e das inclinações da sensibilidade. São, portanto inqualificáveis.
Dessa forma, a noção de razão (e de imaginação como uma de suas
faculdades) como promotora de uma existência humanizada (entenda-se
espiritualizada, moralizada) em detrimento a uma animalizada (entenda-
se sensível, bruta), segundo sustentaram Condillac e La Mettrie, é para Sade
estranha e deve ser combatida. Isso porque para ele todo percurso ascético
ocorre quando a razão atua como agente de orientação, ou mesmo de ele-
vação da sensibilidade, à maneira do que foi recomendado, para ficarmos
em alguns exemplos que nos convém, por Sêneca (04 – 65), Epicuro (341
– 270), T. Hobbes (1588 – 1679), além de Condillac e La Mettrie já citados.
Respeitando os pontos de vista desses autores, diria Sade, a razão só pode,
restringindo os apelos da sensibilidade, instaurar um prazer de segunda
ordem, destacado do orgânico, inclusive conferindo-lhe uma perspecti-
va de fruição compartilhada. O prazer ganha estatuto de uma satisfação
espiritualizada, intelectualizada, por conta do que a própria vida passa a
ser fruída plenamente apenas em comunhão, em sociedade.
335

Ora, provocados por Sade, sentimo-nos estimulados à interrogação


sobre o que teria ocorrido com a razão e suas faculdades para, depois de
terem da sensibilidade derivado, contra seus interesses se dirigirem dessa
maneira. Perguntamos, de onde teria provindo a orientação racional que,
por abstrata e geral que é, a todos os homens enlaça e conserva, desviando
para o coletivo todo interesse particular inicial? Em nosso entendimento,
para que isso tenha ocorrido foi necessária a concepção de uma maneira
alternativa de identificar a função dos sentimentos de prazer e de des-
prazer: de matéria-prima de todo representar e agir humano, que lhes
confere condição de promotores do egoísmo, para a função (por exemplo,
à maneira kantiana) de articuladores das faculdades de representação e de
ação, que lhes confere a condição de promotores da vida segura e solidária.
Queremos dizer que, segundo entendemos, para ele a condição primária
e fundante do par prazer/desprazer (que foi em definitivo sustentada por
Condillac na obra acima citada) deve ser respeitada sem concessões. Pois,
quando levada às últimas consequências o par só pode atuar como reitor
de uma vida passional que só se exerce irrestritamente. Por conta disso
devemos desde já deixar claro que qualquer outra forma de entender a
atuação bem como a função do par é para ele estranha ao interesse do
homem enquanto máquina sensível que traz em sua mecânica o impera-
tivo do gozo e nada mais que lhe seja alheio.
Para aprofundar as questões levantadas, recorreremos aos dois pa-
rágrafos de abertura do estatuto que Sade intitulou A sociedade dos amigos
do crime, publicado na coletânea Diálogo entre um padre e um moribundo.
No primeiro esclarece que o sentido convencionalmente atribuído à pa-
lavra crime, como qualificação negativa de ações humanas, está longe de
corresponder ao que pretende para sua sociedade. Em seguida declara que
os homens (substantivando o termo) não podem ser considerados seres
dotados de liberdade em função de estarem, diz ele, “acorrentados às leis
da natureza” (2004a, p. 109), leis que são primeiras e, por isso, irresistíveis.
Relacionando os dois parágrafos, entendemos que a natureza sensível do
homem recomenda, impõe na verdade, que cada homem, sem tentar se
esquivar, se entregue ou se dedique a toda prática criminosa, isto é, que se
336

submeta a toda determinação mecânica do movimento natural que, em


sua condição animal, está inserido. Dessa forma, adverte que o verdadeiro
crime (esse sim no sentido pejorativo) “seria a resistência em se entregar
a todas as inspirações da natureza, de qualquer espécie que possam ser”
(2004a, p. 109). A liberdade é a quimera do moralista.
Dessa forma, não sentimos nenhuma dificuldade em relacionar
ou identificar a submissão à natureza e o cumprimento de seus ditames
com o próprio reconhecimento dos apelos da sensibilidade, vale dizer,
das inclinações, bem como reconhecer as implicações morais que daí
decorrem. Isso fica para nós ainda mais evidente quando Sade aponta, em
primeiro lugar, que se deve evitar a resistência em se entregar ou atender a
elas. A própria recomendação já aponta para o reconhecimento de fontes
que alimentam essa mesma resistência e que devem ser combatidas, a
saber, a lei dos homens, as instituições sociais, o remorso e a culpa, enfim
constrangimentos externos e internos que operam inclusive por meio do
recurso a faculdades, como a imaginação, que pode ao incensar os pre-
conceitos morais obstaculizar o pronto atendimento da inclinação, ou
seja, o funcionamento espontâneo e fluente de nossa máquina sensível.
Em prevenção a tais fontes de resistência, Sade propõe alternati-
vamente o abrigo da sua sociedade. Em seu interior e sob sua proteção, o
libertino terá a oportunidade de atender às suas inclinações tanto com o
auxílio de um novo estatuto legal que disciplina a prática da orgia, como
pela ocupação de um espaço adequado ao exercício de práticas orientadas
por uma razão expurgada de preconceitos e por isso recuperada para o
exercício pleno de suas funções originais. Sobre esse conjunto de provi-
dências, Sade declara na obra Filosofia na alcova, que sua intenção não é
outra do que oferecer ao público, além de oportunidades, grandes ideias
ou, como diz, contribuir “para o progresso das luzes” (2004b, p. 65). Depois
disso reconhece que essa tem sido para os franceses uma meta de difícil
alcance e que estariam, inclusive na época, “à véspera de fracassar(em) no-
vamente” (2004b, p. 65). Entendemos que a justificativa para sua descrença
no futuro, apesar de estarem às voltas com um movimento libertário, fica
evidente justamente quando questiona o alcance das conquistas revolu-
337

cionárias. Diz ele, na mesma obra, “pensa-se que este fim será atingido
quando nos tiverem dado as leis? Não acreditamos nisso” (2004b, p. 65).
Identificamos aqui duas questões importantes. A primeira quando
se dispõe a contribuir para o progresso da razão. Ao propô-lo, certamente
não está se referindo ao seu avanço no exercício do controle das paixões
desregradas, das desordens e injustiças sociais, da promoção da igualda-
de, liberdade e fraternidade. Antes, refere-se à promoção de uma razão
esclarecida na medida em é reorientada para o exercício de suas legítimas
funções e finalidades, o atendimento irrestrito das inclinações privadas.
Em seguida, sua descrença no progresso esperado pela oferta de novas leis
(aqui certamente se refere a uma constituição republicana), sem dúvida
se justifica pela convicção de que elas apenas cristalizariam e estabiliza-
riam as ações humanas moralizadas, dando-lhes continuidade e assim
perpetuando os preconceitos morais. Uma ocorrência desse tipo estaria
em contraposição às leis da natureza, em relação às quais todo homem
esclarecido deve finalmente se submeter. Por conta disso, na figura do
republicano reconhece (e repudia) a expectativa da segurança, da soli-
dariedade, da sobrevivência e da estabilidade sustentada por uma razão
pacificadora, enquanto na figura do libertino reconhece (e prestigia) a
expectativa do movimento, do excesso, da convulsão e do perpétuo abalo.
Nessa ordem, Sade construiu um curioso raciocínio para explicar
sua insatisfação e descrença em relação à sociedade francesa. Na mesma
obra, ao elaborar uma espécie de genética do pudor (que atribui às mulhe-
res) denuncia que esse sentimento só está em acordo com as leis de uma
república moralista. Em outra circunstância, diz ele “do impudor nascem
inclinações luxuriantes; o que resulta dessas inclinações compõe os pre-
tensos crimes...” (2004b, p. 85). A partir disso fica esclarecida a inversão
conceitual que operou em relação ao conceito de crime. Submetido à sua
natureza, entende que o homem esclarecido e lúcido, curado dos erros
teóricos que o cativaram, dispondo de uma razão finalmente recuperada
para suas funções naturais, está apto para escutar a voz de sua própria
natureza, e se deixar por ela conduzir e praticar toda ação criminosa que
demanda. Está pronto para atender ao seu imperativo: “A natureza o quer:
338

não tenhais outros freios senão os de vossas inclinações, outras leis senão
os vossos desejos, outra moral que não seja a da natureza” (2004b, p. 91).
Cada homem assim instruído estaria apto para reconhecer que,
como diz ainda na mesma obra, “se houvesse crime em alguma coisa,
seria antes por resistir às inclinações que a natureza nos inspira do que
em combatê-los, pois, persuadidos de que a luxúria é uma consequência
dessas inclinações, trata-se muito menos de extinguir em nós essa pai-
xão do que regrar os meios para satisfazê-la em paz” (2004b, p. 85). Com
isso, mais uma vez apresenta a mesma sequência argumentativa. Recusa
primeiro a possibilidade de resistência, controle ou supressão de toda in-
clinação, pelos procedimentos já expostos, e complementarmente propõe
a ação emancipadora por meio do esclarecimento, do conhecimento e da
obediência ao estatuto da sociedade libertina, bem como da construção e
do provimento material de um local adequado para a adesão e exercício
desimpedido das paixões, o que implica, diz ele em síntese, “em entregar-
se a tudo o que seu temperamento lhe ditar nas casas estabelecidas para
esses fins” (2004b, p. 91).
Para dar maior gravidade às características que estamos imputando
ao seu pensamento, sugerimos ainda discuti-lo na perspectiva da tradição
filosófica. Por exemplo, em contraste com Epicuro, para quem a fruição
do prazer deveria ser moderada pela razão de modo a evitar seu aspecto
pernicioso. Para ele, o prazer estaria na articulação entre ausência de
perturbação, de estímulos, e a estabilidade dela decorrente. A felicidade
estaria assim no controle da excitação, portanto segundo seu máximo
abrandamento. Também de Sêneca, Sade se distanciou, pois como enten-
demos, em seu pensamento a condição para que o homem seja livre e feliz,
do ponto de vista de uma vontade justificada na razão, está na recusa de
toda determinação sensível proveniente do mundo exterior que se efetiva
segundo uma mecânica de estímulos frenética, sorrateira, evasiva e mu-
tante que deve ter na virtude uma força de oposição. Por conta disso cabe
à razão criar resistência ao que Sêneca identificou como uma inclinação
natural da alma para o movimento e para a insaciabilidade. Sua justificativa
repousa justamente na concepção de prazer como sendo o sentimento que,
339

à maneira de um relâmpago, aparece e desaparece, que finda no instante


que surge. Desse ponto de vista, quando guia da vontade, fará da vida algo
como ele, exaurível e que deve, portanto, ser evitado.
Lembremos que Sêneca remete o prazer, enquanto derivado de uma
estimulação mecânica, à condição de uma irritação, de uma enfermidade,
de uma úlcera maligna localizada nas terminações nervosas do corpo
humano. Divergindo das consequências, Sade admite que o prazer deve,
justamente enquanto excitação nervosa, derramar-se por toda superfí-
cie sensível do corpo, deixando como rastro sua desestabilização pelas
convulsões que provoca em seu percurso. Dessa forma, Sade prestigia e
reconhece o movimento como reitor da natureza e o prazer como reitor
da vontade. Segundo essa indicação o prazer não terá outra oportunidade
senão a de pura ocorrência restrita ao presente.
Essa ilustração ou identificação do prazer com irritação ganhou
grande destaque na modernidade a partir de La Mettrie, que sabemos a
absorveu1 de Haller, conferindo-lhe conotações científicas. Trata-se da
concepção de que há em cada corpo fibras que dão constituição aos órgãos
por onde trafegam, por meio de vibrações, as sensações. A partir daqui a
noção de irritação fica completamente, e positivamente, identificada à de
movimento e este ao prazer. Pensamos que esse foi o passo fundamental,
a própria condição de possibilidade, para que Sade pudesse conceber o
prazer como explosivo, convulsivo, efêmero e singular, o que deu susten-
tação para sua concepção totalmente particular de felicidade. Por conta
disso, pretendemos apontar que na base de sua divergência com La Mettrie
estaria a recusa do que este identificou como uma lei natural (presente
nos homens) responsável pela orientação de uso adequado e seguro dos
órgãos dos sentidos.

1 Como médico, La Mettrie manifestou uma adesão importante no campo da fisiologia que
foi o compartilhamento com a teoria de Albrecht von Haller (1708 – 1777) relativa à irritação
das fibras, para ele as unidades de base do corpo humano. Segundo Haller os órgãos são
constituídos por articulações de fibras de acordo com o princípio de gravidade, da estática
e da hidráulica. Esta concepção ficou conhecida como iatromecanicismo, desenvolvida pri-
meiramente pelo médico holandês Herman Boerhaave (1668 – 1738), em 1701. Segundo ele
é justamente por uma rede composta de fibras como essas que trafega a sensação, por meio
de vibrações, de agitações. Assim, a sensação irrita a fibra, isto é, a põe em movimento. Dessa
forma, o prazer fica articulado às noções de irritabilidade muscular e de sensibilidade nervosa.
340

No entanto, a despeito das diferenças com La Mettrie, Sade com-


partilha, especialmente da obra O anti-Sêneca, a concepção hedonista
cujas bases estão assentadas numa teoria das sensações entendidas
como excitações e modificações orgânicas agradáveis dos sentidos2 e
que, quando continuada proporciona o estado de felicidade. Poderíamos
dizer assim que o primeiro patamar de sua noção de prazer tem seu foco
em uma fruição diretamente obtida da excitação dos órgãos. Nesse nível,
a experiência do prazer se concentra especialmente na intensificação
da excitação mais do que em sua educação, a menos que ela sirva ao
propósito anterior.
Nessa ordem, reconheçamos que para ambos, particularmente
nessa primeira etapa, o prazer não é concebido como um sentimento
necessariamente articulado a uma verdade exterior ao corpo sensível,
de fato esta lhe é indiferente, uma vez que a sensação de prazer pode se
justificar em si mesma. Para antecipar algo sobre essa questão, lembremos
que o próprio Sade vem em seu socorro ao afirmar em uma carta ao car-
deal de Bernis, que seus “desejos são sempre vivos, variados, incansáveis,
continuamente renovados pela imaginação. O pensamento que eu tenho
disso é o próprio pensamento. Não o sacrifico no altar do último fantoche”
(Soller, 2001, p.72). A autorreferência fica aqui indicada.
Fica assim esboçada uma perspectiva pela qual o pensamento de
La Mettrie, nesse aspecto, teria servido de suporte para Sade e exercido
grande auxílio, conferindo-lhe a possibilidade de não precisar justificar
os desejos e suas realizações e nem mesmo acolher formas específicas de
satisfazê-los, de obter prazer. Isso porque até esse nível, toda sensação
agradável já se encontra justificada independentemente de sua causa ou
fonte, o que torna implícito um tipo de descompromisso em relação não
só às fontes de prazer, mas especialmente em relação a seus efeitos ou
consequências.

2 Sobre isso, no terceiro diálogo de Filosofia na alcova, Sade refletindo sobre as implicações
éticas de nossas experiências, declara que toda excitação (particularmente as que incluem os
corpos alheios) opera na medida em que “faz vibrar a massa de nossos nervos pelo choque
mais violento possível” (2004b, p. 79). É assim por conta desse argumento que retoma a tese
dos “espíritos animais” apontando a circunstância em que abrasam os órgãos da volúpia e
nos dispõem ao prazer.
341

Essa consideração permitiu a La Mettrie sustentar a tese de que


até mesmo a crença religiosa pode motivar sensações prazerosas e assim
constituir fonte de prazer e felicidade para o crente. No entanto, a questão
que não poderia deixar de apontar é sobre a necessidade (ou não) de negá-
la, pois do ponto de vista de sua verdade objetiva, mesmo tratando-se de
uma crença falsa, na prática é útil para proporcionar prazer, segurança e
felicidade. No entanto, o primeiro argumento em favor de sua negação
reside no fato de que toda religião dispõe e aplica o dispositivo do remorso
para demover o homem do campo de suas inclinações naturais e ajustá-lo
ao de uma moral convencional. É verdade que La Mettrie admitiu, além
desse que deve ser combatido, outro tipo de remorso, que postulou como
natural e que teria uma atuação positiva na educação dos homens.
Por sua vez, Sade, ao recusar ambas formas do remorso, opta por
não correr esse risco, pois ainda que ofereça a experiência da felicidade,
a crença religiosa não a produz com a intenção de atender às inclinações
naturais, pois sua orientação é a moral civilizada, que a identifica como
divina, cujo escopo é justamente a instituição de ações que refreiam a
experiência descompromissada do prazer orgânico; em seu lugar educa-
o, bloqueia-o, enfim, proporciona prazeres secundários e artificiais. Para
Sade, acolher a contribuição da religião na obtenção da felicidade, ser
leniente com ela, corresponde, em linguagem corriqueira, a dormir com
o inimigo. Ele se notabilizou, como veremos, no combate ao remorso e
na defesa incondicional da possibilidade de atendimento das inclinações
naturais. Foi em defesa de seu ponto de vista que recusou os valores da
moral civilizada, da política e da religião, já que apresentam estratégias
pedagógicas, seja pela ação do Estado, seja pela das igrejas, que visam o
atendimento de seus próprios interesses, em geral alheios e contrários aos
da solitária máquina sensível; nesse sentido é que devem ser combatidos.
A pedagogia da libertinagem visa assim recuperar as condições
próprias e adequadas para o exercício das inclinações particulares de cada
corpo e, para isso, deve combater toda e qualquer ação que vise bloqueá-las
ou ultrapassá-las. Cabe aqui o recurso à passagem em que, na Filosofia na
alcova, o personagem Dolmancé quando questionado sobre a necessidade
342

da blasfêmia contra Deus, considerando a consciência de sua inexistência,


responde com o argumento de que ela não invalida a iniciativa nem a
necessidade de combater sua ideia, isto é, aponta para a importância que
tem na desmontagem das forças bloqueadoras da imaginação libertina.
Dessa forma, quando Sade proclama e enaltece a função da ima-
ginação, visa, diferentemente de La Mettrie, não a voluptuosidade como
consequência de um refino ou polimento do prazer, à sua elevação pela
imaginação, mas a promoção da felicidade libertina, isto é, a multiplica-
ção e o acúmulo de sensações orgânicas prazerosas; quando aconselha
a blasfêmia, entre outros procedimentos irreverentes, visa desbloquear a
capacidade imaginativa proporcionadora dessa irrestrição. Há aqui uma
articulação entre imaginação e transgressão, que tem como resultado a
possibilidade de colocar a imaginação a serviço da obtenção do prazer
libertino enquanto retira-a da segunda possibilidade moralista que é de
bloqueá-lo. Para isso foi preciso levar em conta que a imaginação não é em
si mesma causa de sensações prazerosas, mas dependendo do uso, pode
atuar em favor ou em oposição a elas. Assim, foi contra a possibilidade
da imaginação de promover virtudes que Sade se empenhou, e por conta
disso se distanciou teoricamente de La Mettrie.
Até aqui, esperamos estar claro que não há divergência importante
entre La Mettrie e Sade relativamente ao primeiro patamar do prazer, o
orgânico, uma vez que para ambos a organização sensível do homem é
composta de um tipo de mecanismo sensorial que provoca e proporciona
o prazer. Mas foi a partir da noção de voluptuosidade, entendida como
prazer sofisticado pela imaginação, que La Mettrie introduziu a noção de
elevação do espírito, um tipo de refinamento das sensações que distingue
o homem no reino animal e que o faz transitar deste ao espiritual.
Outra implicação reconhecida como derivada dessa elevação foi
o que chamou de compaixão, concebida como consequência de uma
operação do espírito, vale dizer do exercício da imaginação. Isso porque,
considerando a singularidade da sensação, em si mesma não poderia ser
compartilhada ou oferecer um sentido comunicável, a menos que sofra ou
receba de outra faculdade uma abstração que, a partir daí, permita iden-
343

tificação e comunicação. Dessa forma, a impossibilidade, por definição,


de sentir em comunhão, é substituída pela de pensar em comunhão, de
pensar conceitualmente. Essa operação serviu assim para em sua esteira
introduzir a noção de interesses sociais e com eles secundarizar ou até
mesmo recusar seus inimigos, os prazeres libertinos. Com isso La Mettrie
elevou o prazer à voluptuosidade, a felicidade à virtude. Para isso se fez
necessário o recurso a um guia, a Razão, dessa vez emancipada dos inte-
resses particulares da sensibilidade. Nessa perspectiva, para cada homem
todo próximo passou a ser, pelo deslocamento de foco operado, o balizador
do desejo e da obtenção do prazer criando a figura do semelhante. A este
Sade resistiu reconhecendo-o sempre sob o estatuto de objeto.
Dessa forma, podemos dizer que também em La Mettrie (assim
como nos demais filósofos aqui referidos) encontramos o prestígio da
espiritualidade, da segurança, da consideração do outro, da sobrevivência
e da conservação de si e do semelhante, o que permitiu que a felicidade
ganhasse sustentação no plano social. Dessa forma, prazer, sobrevivência,
felicidade e vida social passaram a compor um todo. Entendemos que essa
tradição filosófica acabou por produzir um tipo de sutura mínima para
uma condição sensível, vale dizer, autorreferente, egoísta, identificado por
ela como pertinente à natureza humana. Nesse sentido é que apontamos
para a (inconveniente) descoberta ou reconhecimento do fundamento
passional do homem e para o projeto de sua educação que ele demandou,
como fatos característicos da filosofia moderna.
Por conta disso, se reconhecemos Sade como consequente mate-
rialista, foi porque diferentemente e em oposição a seus antecessores, e
também a seus sucessores, sustentou e levou às últimas consequências
o que estamos aqui chamando de descoberta da modernidade e deu ao
prazer a oportunidade de apenas ser o que é, uma contínua ativação da
tensão (erótica), que nesse sentido, repitamos, só pode trazer consigo a
meta de seu escoamento total. Ainda no interior da comparação, dis-
tinguimos também seu projeto que, em oposição ao da modernidade,
fundamentou uma racionalidade muito particular que, por coerência à
sua matriz sensível, outra missão não deve ter senão a de atender suas
344

demandas, acolher suas inclinações, satisfazer seus desejos, em uma pa-


lavra, dar à sensação a possibilidade de se manifestar com a efemeridade
e a intensidade de um relâmpago.

***

Na continuidade, refletiremos sobre a articulação do prazer e da


felicidade dele derivada. Aprofundando-a, Sade avançou proclamando a
insustentabilidade da vida humana bem como, muitas vezes, postulando
sua extinção deliberada. Ele próprio declara, na mesma carta, que “se a
intenção fosse pôr a nu o nó das paixões humanas, que encerram a ani-
quilação de todos por todos (...). [concluiríamos que] Sim, todos querem
a morte de todos, isso é verdade. Mas que se coloque aí um pouco de in-
venção, de pimenta, o infinito manancial das formas (...) a morte deveria
sempre estar ligada ao prazer” (Soller, 2001, p. 73).
O destaque dado por ele à extinção e à consumação requintada da
vida como finalidade e consequência da natureza passional do homem
sugere alguns esclarecimentos. Diremos desde já que Sade foi um pensa-
dor que, em relação a Hobbes, Condillac e La Mettrie, deles se distanciou
na medida em que não recuou diante da incômoda revelação de que o
homem é uma máquina sensível singular, convulsiva e finita, levando-a
às últimas consequências, isto é, assumindo os desdobramentos mais
nefastos do pensamento materialista-mecanicista-sensualista, em relação
aos quais seus antecessores encontraram caminhos alternativos, como
já apontamos.
Com essa perspectiva em mente, seu projeto pedagógico, expresso
especialmente na organização que chamou de Orgia, apresenta em seu
conjunto de atividades o propósito de promover a eliminação do remorso
e a recuperação ou valorização das inclinações naturais humanas. Em
complemento a essa tendência, Sade manifesta um explícito repúdio ao
sexo feminino, em especial à vagina, reiteradamente fazendo apologias
do aborto, e proclamando a indiferença em relação à sobrevivência que
atinge o grau máximo, como dissemos, ao admitir e mesmo incentivar a
345

extinção da raça humana. Por conta disso, pode-se reconhecer nele uma
consideração a respeito da natureza humana que não prevê sua conser-
vação e sustentação enquanto tal, que não a postula como subsistente,
antes admite seu termo. Como diz seu biógrafo Donald Thomas, “O poder
autodestrutivo da raça humana é o poder supremo, na opinião de Sade, e
a extinção da espécie é inevitável e não deve ser lamentada” (1992, p. 273).
Nesse ponto, mais uma vez ele se apresenta de maneira oposta em
relação aos pensadores de sua época como, para ampliarmos os exemplos,
D. Diderot (1713 – 1784). Para este, o mundo, do ponto de vista material, é
também pensado como presidido por uma relação contínua entre elemen-
tos que ensejam e constituem sempre novas substâncias, que por sua vez
assumem novas composições ou combinações sempre que se decompõem.
Por conta disso, em Carta aos cegos, declara que a gênese de cada coisa
deve-se a esse movimento a que está submetida. Detalhando sua lógica,3
esclarece que em seu movimento interior, cada formulação da matéria
pode apresentar um grau maior ou menor do que chamou de contradição,
responsável por seu aniquilamento. A ausência dessa contradição, que
Diderot reconhece no ser humano, seria o fator responsável por sua con-
servação, que justificaria sua permanência em meio à depuração geral e
constante do mundo material. Longe de pactuar com esse ponto de vista,
Sade, em Dissertação do Papa sobre o crime, afirma que a conservação e
subsistência do homem, ao contrário, só ocorrem em função de “ligações”
que são obra da fraqueza, da educação e dos preconceitos humanos.
Não reconhece alguma forma privilegiada, isto é, que não esteja su-
jeita a algum tipo corrosivo de contradição. Sobre isso, diz Sade, imitando
a voz da natureza: “Lancei-te como lancei o boi, o burro, a couve, a pulga e

3 Diderot, em Carta aos cegos, admite um tipo de conciliação entre necessidade e acaso.
Sobre isso, diz Maria das Graças de Souza, que “o oceano de matéria não é submetido a
nenhum projeto; é o acaso que regula a formação dos seres na origem do mundo. Todavia,
as estruturas, uma vez formadas, tendem a buscar sua estabilidade, é na medida em que
essa estabilidade se institui, as regras que a sustentam se tornam necessárias” (2002, p. 43).
É dessa forma que Diderot concilia ordem com desordem, a destruição com a sobrevivência,
um jogo de oposições onde tudo muda e passa enquanto o todo sobrevive. O que fica evi-
dente é que por essa via, um tipo de finalismo é inserido na natureza, uma vez que, pode-se
admitir, qualquer organização material, desde que não apresente contradições, se capacita
na perspectiva de sua sobrevivência.
346

a alcachofra; a todos dei faculdades mais ou menos vastas, usá-las” (1984,


p. 81). E continua:

Farás bem se te conservares e multiplicares, relativamente


a ti; se te destróis ou destróis os outros, se puderes mesmo
aniquilar usando faculdades inerentes à tua espécie (...) se
puderes absorver o império absoluto dos três reinos, farás
uma coisa que me há de agradar infinitamente; porque usa-
rei, por minha vez, o mais suave efeito do meu poder, que
é criar, renovar os seres. Para de engendrar, destrói quanto
existe, pois não incomodarás o que quer que seja à minha
marcha. (1984, p. 81)

Nessas palavras sustenta a tese de que o crime e a destruição


orientam a lógica que indistintamente governa todo o mundo material,
incluindo o humano. Sade vê assim o homem, entendido como mais uma
forma lançada pela natureza, como um projeto finito, extinguível pela sua
própria constituição, uma vez que entregue à sua sensibilidade estaria
disposto a uma existência imersa em conflitos de interesses, e sem dispor
de dispositivos de mediação. Assim está pronto para assimilar as noções de
contradição e de crime à de excitação mecânica dos órgãos dos sentidos.
Como apontado, pode-se por extensão admitir que nenhuma excitação
orgânica enquanto causa de sensação se sustenta ou se perpetua como
movimento, antes se esgota e se aniquila. Dessa forma, o exercício celerado
da vida seria uma maneira de exauri-la mais rapidamente. Nessa linha
de raciocínio entendemos que a organização expressa na Orgia tem por
objetivo dar oportunidade de consecução a todo interesse privado, onde
cada participante é sempre visto como útil para seu atendimento. O que
nunca é atingido pela via do amor, por exemplo, uma paixão veemente-
mente execrada por Sade.
Pensamos que nesse caso a consideração e o interesse pelo outro
não visa evitar a ameaça à vida, antes a provoca, pois este nunca aparece
como finalidade, mas sempre como meio ou objeto de satisfação, sobre
347

quem é projetada ou extraída toda forma de excitação imaginável. Nesse


exercício da vida, promove a instabilidade da organização na medida
em que proporciona uma ampliação e intensificação de um comércio
que proporciona maiores e crescentes possibilidades de excitação. Cada
participante da Orgia proporciona reciprocamente ao outro doses sempre
maiores de combustível para seu prazer, na forma de um aumento cres-
cente da excitação e da agitação dos órgãos e tecidos do corpo. Na Orgia, a
busca de atendimento de cada desejo efetiva-se à maneira de uma manada
percorrendo um desfiladeiro, por debandada e atropelamento.
Lembremos que a imaginação exerce aqui um importante papel
para a ampliação desmedida e caótica da tensão resultante. Dessa forma,
enquanto o Estado, em Hobbes, e a imaginação, em Condillac e La Mettrie,
têm por finalidade educar o prazer visando sua manutenção e desfrute
elevado e duradouro, na Orgia ele é conduzido para sua realização segun-
do a natureza da máquina sensível e do sentimento de prazer que nela é
produzido. Em síntese, a felicidade libertina está na morte, vale dizer, na
sua coerência filosófica.
Por conta disso, a Orgia tem por finalidade uma pedagogia4 a um só
tempo teórica e prática, posto que enquanto aniquila os valores virtuosos
instaura os libertinos aplicando-os imediatamente no próprio corpo do
participante, proporcionando, nessa ótica, um aprendizado e uma pre-
paração para a morte. Sobre isso diz Monzani que “Há, em Sade, desde o
início até o fim de sua obra, uma tese reguladora: a de que o prazer não
tem outra orientação teleológica que a consumação de si mesmo” (2006, p.

4 O aspecto pedagógico que estamos atribuindo à Orgia deve, sem dúvida, ser abordado
em diferentes aspectos. Um deles, ainda não referido, contempla o fato de o século XVIII ter
passado por uma reestruturação arquitetônica de seus ambientes domésticos. Até então, de
um modo geral, os cômodos das habitações europeias não possuíam nenhuma função fixa,
os espaços não eram reservados ou especializados, o que implica que os membros de uma
família não dispunham de algum tipo de privacidade como dispomos hoje. Dessa forma, é
justamente pela introdução da função que o ambiente adquire sua característica pedagó-
gica, como por exemplo, a alcova, cuja finalidade é, para Sade, a de servir como ambiente
de exposições teóricas e práticas, e para isso foi mobiliado com uma otomana, um móvel
igualmente adequado para a administração dos ensinamentos. Ela é assim um ambiente
apropriado para produzir e acionar a máquina libertina, pois como lembra Monzani, entre
Justine (a máquina virtuosa) e Juliette, há uma Eugénie sendo produzida. Assim, por advento
de uma organização espacial arquitetônica e de um discurso organizado que esse tipo de
formação foi possível.
348

81). Um pensamento viabilizado certamente no interior de uma perspec-


tiva histórica sem finalidade, pois para Sade, diz Thomas, “a história não
é progresso, mas uma acumulação inútil” (1992, p. 273). Uma tal filosofia
é por assim dizer promotora de uma indiferenciação absoluta, a ponto de
Sade afirmar, pela voz de Urbano VI, em Dissertação do Papa sobre o crime,
que “o verme que nasce da podridão não tem menor preço nem é mais
precioso, a meus olhos, do que um poderoso monarca da terra. Forma e
destrói, portanto à tua vontade” (1984, p. 81).
Isso porque considera que para a natureza, lançar é criar ou renovar
os seres destruindo-os, o que torna tanto o ato de criar como o de destruir
equivalentes e até mesmo interdependentes. Para entender o estatuto des-
sa equivalência é preciso dirigir nossa atenção para a seguinte declaração
da natureza, ainda em Dissertação: “Quer destruas ou cries, a meus olhos
tanto faz; sirvo-me de um e de outro dos teus processos, nada se perde no
meu seio” (1984, p. 81). Por essa afirmação, entendemos que a natureza ela
mesma em sua totalidade, não a humanidade ou qualquer outra de suas
formas, pode ser pensada sob a perspectiva da conservação e infinitude,
o que estaria, do ponto de vista da ciência moderna, em perfeito acordo
com o postulado da primeira lei da termodinâmica.
A despeito disso, há algo curioso, pelo contraditório que traz con-
sigo, no pensamento de Sade que deve ser destacado, pois a despeito da
conservação da energia/matéria que sugere quando trata da natureza
como um todo, outros fatores indicam outra direção. Por exemplo, além da
extrema indiferença em relação à conservação da vida, da peculiar noção
de prazer como sensação provocada por excitação progressiva e desme-
dida dos sentidos pensada no interior de um movimento progressivo que
tende à sua extinção, ele também descreve em sua obra uma disposição
geográfica do castelo e das dependências que servem de cenário para a
Orgia que nos sugere outra direção de compreensão de seu pensamento.
Queremos dizer que, segundo nossas intuições, tais teses tomadas
em seu conjunto, com destaque para a última, nos induzem à identifi-
cação da Orgia como precocemente ou embrionariamente inserida em
uma outra concepção de natureza, desta vez em acordo com a segunda
349

lei da termodinâmica, que só viria ser formalmente elaborada ao longo


da primeira metade do século XIX, anos imediatamente posteriores à
morte de Sade, ocorrida em 1814. Esta trouxe efetivamente em seu bojo
uma compreensão de natureza autodestrutiva, vale dizer exaurível, por
meio do conceito de entropia. Por sua importância dediquemos breves
considerações a ele de maneira a podermos extrair novas consequências
para a compreensão acerca do pensamento de Sade.

***

Este conceito, cunhado em 1850 por R. J. E. Clausius (1822 - 1888),


recebeu contribuições, entre outros, de Maxwell e Boltzmann que, desde
o início do século XIX conceberam a noção de que todo sistema físico
evolui sempre e espontaneamente para situações de máxima entropia, ou
seja, de máxima desordem. Ela reconhece a tendência universal de todos
os sistemas a passar de uma situação de ordem para a de uma crescente
desordem, o que remete secundariamente à própria impossibilidade de
conservação de alguma forma de vida. Trata-se de uma, à época, nascente
visão de mundo que contraria o materialismo mecanicista quando este dá
ênfase à ordenação e sustentação da natureza. Contraria, evidentemente,
a acima referida primeira lei da termodinâmica que sustenta o princípio
de conservação da energia. Lembremos que esse último esteve na base
de toda a concepção moderna de progresso, pois prevê a possibilidade
de troca ilimitada entre sistemas, uma vez que sua noção de energia que
comporta prevê que não tenha sido criada e nem possa ser aniquilada,
mas continuamente reformulada.
No entanto, a primeira lei da termodinâmica, que anuncia o uni-
verso como um sistema fechado e subsistente, acabou sendo finalmente
contrariada pela segunda lei que concebe todo processo como irrever-
sível. Ela tem a pretensão de limitar e corrigir o primeiro enunciado ao
considerar que a energia total do universo está sujeita a uma degradação
em função de um contínuo aumento de desordem, que cresce enquanto
decresce a ordem. Esta, nessa ótica, é a responsável pela passagem do
350

tempo, pelo envelhecimento e desgaste, num sentido irreversível, da


energia.
Considerando que o valor da entropia é tanto maior quanto maior
a agitação, quanto mais excitação atingir. Assim, temos que admitir por
analogia, que a Orgia pode igualmente ser pensada como um sistema
dessa ordem. Isso, especialmente se considerarmos adicionalmente seu
isolamento geográfico. Sobre isso diz Prigogine, “para todo o sistema
isolado, o futuro é a direção na qual a entropia aumenta” (1984, p. 96). Se
reduzir a entropia, por exemplo pela via da troca energética com outros
sistemas, equivale a dar sustentação à vida, a Orgia visa exatamente o
contrário, o isolamento e a ampliação da excitação e portanto do esgo-
tamento da vida. Ela promove o aumento de entropia, numa tendência
ao esgotamento, adicionalmente por ser alimentada de seu interior, sem
vínculos, canais ou fluxos com o exterior. Sobre isso vale lembrar que ela é
alimentada por meio de uma cozinha que atua como centro de reposição
de energia.5 Podemos pensar igualmente que, inclusive por sua contri-
buição, a desordem crescente das excitações atinge um progressivo caos
que provoca implosão (é importante notar que a Orgia nunca explode,
isto é, não excede seus limites geográficos), pois já não estabelece fluxo
ou circulação com outros sistemas.
Nesse sentido, o corpo libertino é algo que tem como meta findar-se.
O custo da Orgia é assim a exaustão, o esgotamento, a degradação dos seus
recursos energéticos que são, nela, rapidamente consumidos, pois queima
como uma fornalha. Nesse sentido, em nosso entendimento, revoluciona e
antecipa a concepção entrópica da natureza, oferecendo uma nova chave
de leitura inclusive sobre a natureza humana e seu destino na terra, o que
faz de Sade um pensador apoiado tanto no século XVIII como no XIX.
No entanto, há ainda outras teses materialistas que precisam ser
consideradas para avaliarmos com precisão o posicionamento de Sade no
interior dessa corrente de pensamento para que possamos sustentar nossa

5 Sobre isso, atentemos às teses de Cabanis (p. 424) sobre a influência do físico na morali-
dade, de onde Sade se inspira para sustentar a nutrição como forma de potencialização de
experiências celeradas.
351

interpretação sobre ele. Por ora, esperamos que demonstradas nossas


intuições, estaremos aptos para atribuir-lhe, certamente não contando
com sua consciência acerca disso, a tese da finitude da matéria/energia,6
sujeita a uma existência entrópica, isto é, arranjada por um movimento
que produz a fornalha que queima e apaga.

6 No futuro teremos que mostrar que há uma contradição (ou seria um avanço?) entre o
discurso materialista que Sade apresenta em sua obra e a organização da Orgia que concebe.
Isso se conseguirmos sucesso em demonstrar ainda que a cena sadeana foi organizada como
sistema físico irreversível, ao modelo entrópico.
352

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___________. Da tranquilidade da alma. S. P.: Abril Cultural, 1980.
354

SOLLERS, F. Sade contra o ser supremo. S. P.: Ed. E. Liberdade, 2001.


SOUZA, M. G. Natureza e Ilustração, sobre o materialismo de Diderot. S.P. :
Ed. Unesp, 2002.
THOMAS, D. Marquês de Sade, o filósofo libertino. R. J. : Ed. Civilização
Brasileira, 1992.
VOLTAIRE. Cartas filosóficas: ou, cartas de Londres sobre os ingleses. Lisboa:
Fragmentos, 1992.
355

parte 5
Clínica e Política
Crítica da Razão Diagnóstica em Psicanálise
Christian Ingo Lenz Dunker (USP)

Introdução
Em 1952 é publicada a primeira versão do Manual Diagnóstico e
Estatístico de Transtornos Mentais (DSM), organizada pela Associação
Psiquiátrica Americana. Ele amplia a classificação utilizada pelo exército,
desde 1918, de modo a uniformizar os critérios semiológicos da prática
diagnóstica em torno de 182 distúrbios (disorders).1 Suas categorias são,
sobretudo, de extração psicodinâmica ressaltando-se a oposição entre
neurose e psicose. O primeiro grupo é referido principalmente em torno
do espectro que vai da ansiedade à depressão, com relativa preservação
da ligação com a realidade. O segundo grupo caracteriza-se pela presença
de alucinações e delírios, com perda substantiva da realidade.2 Quadros de
etiologia biológica e condições responsivas a contextos sociais específicos
encontravam-se representados. O conjunto não refletia uma clara separa-
ção entre o normal e o patológico e a intenção da obra era principalmente
estabelecer um consenso terminológico entre os clínicos.
Em 1974, sob a liderança do psiquiatra Robert Spitzer, forma-se uma
força tarefa com o fim de estabelecer uma nova versão deste Manual. Apa-

1 Grob, GN. (1991). Origins of DSM-I: a study in appearance and reality. Am J Psychiatry.
Apr;148(4):421–31.
2 Wilson, M. (1993). DSM-III and the transformation of American psychiatry: a history. Am
J Psychiatry. 1993 Mar;150(3):399–410.
358

rece o DSM-II com características inteiramente diferentes do anterior: há


uma clara intenção em ajustar a classificação americana ao instrumento
correlato proposto pela Organização Mundial de Saúde (CID), o critério
etiológico é explicitamente abandonado bem como a referência à teoria
psicodinâmica, além disso, o instrumento pretende uniformizar também
a pesquisa em psicopatologia, com base biomédica. Em 1980, uma nova
versão (DSM-III) admite pela última vez o emprego da neurose como
categoria clínica. Os contextos e variantes sociais são reduzidos à “síndro-
mes culturais específicas” ou distribuídos por um entendimento bastante
limitado do campo social na determinação, expressão e caracterização
dos transtornos mentais. O Manual torna-se uma referência internacional
aceita na maior parte dos países do ocidente, utilizado massivamente pelos
sistemas de saúde pública, pelos convênios médicos e pelos centros de
pesquisa psiquiátrica e farmacêutica.3 Os critérios diagnósticos são orga-
nizados segundo cinco eixos: (1) transtornos clínicos (2) transtornos de
personalidade (3) condições médicas gerais (4) problemas psicossociais e
ambientais (5) avaliação global do funcionamento. Esta organização geral
preserva-se nas edições seguintes, até a atualmente utilizada (DSM-R) e
deve manter-se na revisão prevista para 2011.4
Portanto, no espaço de 50 anos rompeu-se a longa tradição, em vigor
desde Pinel, na qual a caracterização das formas de sofrimento, alienação
ou patologia mental, fazia-se acompanhar da fundamentação ou da crítica
filosófica. Isso se mostra na influência que Pinel sofrera do pensamento
hegeliano, na importância de Kant para a formação da psiquiatria clássica
alemã (Kraeplin), do associacionismo inglês na psiquiatria de Griesinger,
ou do positivismo comteano para a psiquiatria clássica francesa (Esquirol,
Morel) ou ainda presença de Husserl na psiquiatria de Karl Jaspers5. A partir
de meados do século XX este sistema de correspondências psiquiátrico-
filosófico se deslocou de tal maneira a incluir a psicanálise, isso se mostra

3 Mayes, R. & Horwitz, AV. (2005). DSM-III and the revolution in the classification of mental
illness. J Hist Behav Sci 41(3):249–67
4 First, M. (2002). A Research Agenda for DSM-V: Summary of the DSM-V Preplanning White
Papers Published in May 2002.
5 Berrios, G.E. – The History of Mental Symptims, Cambridge, UK, 1996.
359

inicialmente no modelo proposto por Eugen Bleuler e depois na figura de


compromisso, um tanto ambígua quanto a sua definição exata, conhecida
como psiquiatria psicodinâmica.
Não que o programa contido no Manual Diagnóstico e Estatístico de
Transtornos Mentais (DSM) esteja isento de implicações filosóficas, éticas e
epistemológicas, mas estas jamais são assumidas explicitamente e o centro
desta problemática é deslocado para o campo genérico da fundamenta-
ção das ciências biológicas. O fato que nos interessa é este rompimento
do nexo com os discursos psicanalítico e social que faziam a patologia
mental depender dos modos de subjetivação e socialização em curso em
um dado regime de racionalidade. Desta maneira é bastante plausível que
tais modos de subjetivação e socialização encontrem-se ainda presentes
nas categorias psiquiátricas, posto que sua formação histórica acusa este
regime de dependência. Ocorre que tal fato tornou-se invisível e apagado
da prática diagnóstica corrente ou das razões que a justificam.

A Psicanálise na Filosofia após Auschwitz


É importante notar que a partir deste mesmo período, do pós-
guerra, verificou-se no cenário das ciências humanas um movimento
significativo de autores que, apropriando-se de categorias psicanalíticas
e filosóficas, empreenderam tentativas em outra forma de diagnóstico.
A este respeito, lembremos como algumas das correntes mais relevantes
da filosofia do século XX assumiram para si a tarefa de fornecer quadros
de reflexão sobre os impasses das sociedades capitalistas. Partindo da
certeza de que as expectativas abertas pela modernidade filosófica só
poderiam ser realizadas através de uma compreensão clara dos desafios
próprios a contextos sócio-políticos de ação, tais correntes não temeram
em dar, a problemas ligados a modos de racionalização de vínculos so-
ciais, o estatuto de objetos de indiscutível dignidade filosófica. Pois estava
claro que a razão demonstra sua real configuração sobretudo através das
estratégias de justificação de práticas sociais em operação nas relações
de sujeitos às instituições, à família ou à si mesmo em um determinado
tempo histórico. Fazer uma autocrítica da razão e de suas aspirações era
360

pois um movimento indissociável de uma certa recuperação filosófica


do campo da teoria social, já que se tratava questão de mostrar como os
conceitos da modernidade filosófica ganhavam sua significação apenas
lá onde instituições e práticas partilhadas que aspiravam racionalidade
afirmavam sua hegemonia.
No entanto, tal recuperação filosófica do campo da teoria social
foi, muitas vezes, realizado graças a um movimento que consistia em
operar recursos sistemáticos à psicanálise. Esta articulação cerrada entre
filosofia, teoria social e psicanálise perpassa a filosofia do século XX desde
a enunciação do programa interdisciplinar da primeira geração da Escola
de Frankfurt. Ela será novamente encontrada em filósofos fundamentais
do pensamento francês contemporâneo, como Michel Foucault, Gilles
Deleuze e Jean-François Lyotard, mesmo que, nestes casos, o recurso à
psicanálise seja, muitas vezes, marcado pela ambivalência de quem re-
conhece que uma clínica inovadora e prenhe de novas problematizações
pode ser solidária de práticas disciplinares que bloqueiam a reconstituição
de vínculos sociais a partir de novas bases.
Ainda no período em questão assistiu-se uma renovação na forma
como a psicanálise configurou o campo clínico do patológico. Destaca-
mos aqui o trabalho de Lacan e seus continuadores que assinala uma
nova ruptura com relação aos fundamentos da diagnóstica psiquiátrica.
Tanto em sua teoria das estruturas clínicas,6 quanto em sua concepção
sobre a constituição do sujeito7 e ainda em sua concepção dos discursos
como formas de laço social8 ou nas teses sobre a sexuação,9 Lacan afasta
os fundamentos biológicos do campo da psicopatologia. Este movimento
recoloca o problema do diagnóstico em termos da relação intersubjetiva
(transferência), da relação com a linguagem (estrutura da fala e do dis-
curso) e da relação com as estruturas antropológicas (função paterna).

6 Lacan, J. – (1955) O Seminário, Livro III – As Psicoses. Jorge Zahar. Rio de Janeiro, 1988.
7 Lacan, J. – (1957) O Seminário, Livro V – As Formações do Inconsciente. Rio de Janeiro, 1999.
8 Lacan, J. – (1992) O Seminário, Livro XVII – O Avesso da Psicanálise. Rio de Janeiro, 1992.
9 Lacan, J.– (1972) O Seminário, Livro XX - ... Mais Ainda. Jorge Zahar, Rio de Janeiro, 1982.
361

Diante deste quadro propomos a realização de um balanço crítico


da razão diagnóstica de forma a compilar e analisar as compatibilidades
e divergências entre as diferentes maneiras de pensar as patologias do
social. Não é certo que os desenvolvimentos verificados nas ciências hu-
manas, que se serviram de categorias diagnósticas psicanalíticas, tenham
retornado à psicanálise de modo a que esta incorporasse suas críticas
e consequências. Também não é certo que as objeções levantadas por
psicanalistas ao modelo psiquiátrico hegemônico estejam advertidas de
seus próprios fundamentos e implicações quanto ao modo de pensar
as patologias sociais. A presente pesquisa caracteriza-se, nesta medida,
como um experimento teórico que pretende compilar estas diferentes
estratégias diagnósticas, formuladas nos últimos 50 anos, discutir suas
paridades epistemológicas e propor um teste clínico destas hipóteses.
Nosso intuito é organizar o intenso esforço teórico realizado desde o pós-
guerra, no interior das ciências humanas e da psicanálise de tal forma a
situar certos consensos diagnósticos alternativos.

Diagnóstica Social e Racionalidade Clínica


Seria possível reconverter a diagnóstica social para o interior da
racionalidade clínica? Neste caso seria preciso acolher e tomar em con-
sideração, clinicamente, as críticas que se dirigem à própria psicanálise.
Nosso intuito não é promover um novo modelo, baseado afinal em uma
estratégia antiga de mutualismo clínico-filosófico, mas, por meio deste
experimento, tornar legível os impasses de racionalização que esta primeira
estratégia esconde, contribuindo assim tanto para o campo da diagnóstica
social como da diagnóstica psicanalítica. Sobretudo, trata-se também de
mostrar como articulam-se de maneira orgânica, na experiência intelectual
do século XX, crítica da razão, crítica das formas de vida e reflexão sobre
o caráter social do sofrimento psíquico.
A este respeito, lembremos como, sendo os núcleos de interação
social modos de realização de formas de ordenamento, de determinação
de validade e comportamento do que estamos dispostos a contar como
racional, então a verdadeira crítica da razão deverá ser uma crítica das
362

formas de vida que se perpetuam através dos modos institucionais de re-


produção social. Crítica, no caso, do caráter distorcido das formas de vida
na modernidade ocidental. Crítica da natureza patológica de tais formas
de vida com suas exigências de autoconservação.
Tomemos como exemplo o caso de Adorno. O filósofo alemão quer
insistir que os modos de organização da realidade no capitalismo avan-
çado, assim como os regimes de funcionamento de suas dinâmicas de
interação social, de seus núcleos de socialização, eram dependentes da
implementação de uma metafísica da identidade. Daí uma afirmação chave
como: “A identidade é a forma originária da ideologia”. Esta metafísica da
identidade guiaria a ontogênese das capacidades prático-cognitivas dos
sujeitos através da internalização de exigências de unidade que orientam
a formação do Eu e reprimem o que é da ordem do corpo, das pulsões e da
sexualidade. Assim, se Adorno pode dizer que: “identidade de si e alienação
de si estão juntas desde o início” (Adorno, 1975, p. 216) é principalmente
porque a socialização que visa constituir individualidades segue a lógica da
internalização de uma Lei repressiva da identidade. Daí afirmações como:

“A consciência nascente da liberdade alimenta-se da me-


mória (Erinnerung) do impulso (Impuls) arcaico, não ainda
guiado por um eu sólido. Quanto mais o eu restringe (zügeln)
tal impulso, mais a liberdade primitiva (vorzeitlich) lhe parece
suspeita pois caótica” (Adorno, 1975, p. 221).

Afirmações que demonstram como análise da realidade social, crí-


tica da metafísica da identidade e crítica da ontogênese das capacidades
prático-cognitivas estariam absolutamente vinculadas.
É tendo este problema em vista que podemos compreender o tipo de
leitura que Adorno faz da razão prática kantiana em textos como Dialética
do Esclarecimento e Dialética negativa. Ele quer mostrar como esta me-
tafísica da identidade está na base da formação de conceitos reguladores
para a dimensão prática como: vontade livre, autonomia, ação por amor à
lei moral, liberdade como causalidade. Ele quer ainda seguir esta intuição
363

nietzscheana fundamental que submete problemas epistêmicos (no caso,


a estrutura do sujeito do conhecimento) a julgamentos morais, intuição
que se pergunta pela moral pressuposta por perspectivas epistêmicas
determinadas. Talvez não seja por outra razão que, ao falar da verdadeira
função da subjetividade constitutiva ligada a um conceito transcendental
de sujeito, Adorno utilize categorias psicológicas de forte ressonância moral
como medo do caos (um motivo central para a fundamentação da filosofia
moral kantiana, segundo Adorno), impulso de dominação da natureza,
necessidade de autopreservação etc.
Mas notemos um dado maior. Temos aqui um regime de crítica
que não se contenta em ser guiado por exigência de realização de ideais
normativos de justiça e consenso que já estariam presentes em alguma
dimensão da vida social. Pois isto nos impede de desenvolver uma crítica
mais profunda que nos permita questionar a gênese de nossos próprios
ideais de justiça e consenso, já que eles dependem de valores de autono-
mia, liberdade e reconhecimento que têm uma gênese empírica clara. Ou
seja, a crítica não pode ser apenas a comparação entre situações concretas
determinadas e normas socialmente partilhadas. Esta é, no fundo, uma
crítica de juizado de pequenas causas que se contenta em comparar nor-
mas e caso. Antes, a verdade crítica tem a força de se voltar contra nossos
próprios ideais normativos, já que ela se pergunta se nossa forma de vida
não é mutilada a ponto de se orientar por valores resultantes de distorções
patológicas, ou seja, se nossa forma de vida não é uma patologia. Axel
Honneth, quem desenvolveu de maneira mais bem acabada a natureza
desta crítica como sintomatologia que visa identificar patologias sociais,
tem uma descrição clara a respeito deste problema:

“O disfuncionamento social aqui não diz respeito apenas


a um prejuízo contra os princípios de justiça. Trata-se, na
verdade, de criticar as perturbações que partilha com as
doenças psíquicas a característica de restringir ou alterar a
as possibilidades de vidas supostamente ‘normais’ ou ‘sãs’”
(Honneth, 2006, p. 89).
364

O que não significa nenhum grande salto, já que as categorias no-


sográficas psicanalíticas (como neurose, histeria, perversão, psicose) não
são descrições de disfuncionamentos quantitativos em órgãos e funções
psíquicas isoladas, mas modificações globais de conduta advinda de po-
sições subjetivas possíveis frente ao desejo.
Uma vez estabelecido o caráter parcial e redutivo desta acepção de
diagnóstico, nosso segundo passo será propor um quadro teórico das formas
de articulação entre crítica da razão, como crítica das formas de vida, no
pensamento do século XX. Nossa hipótese é de que uma parte substancial
da crítica filosófica, sociológica e literária da segunda metade do século XIX,
entendeu a própria atividade crítica como identificação e comparação de
patologias sociais. Para esta tarefa escolhemos trabalhar apenas com autores
representativos deste movimento e que incluam uma referência categorial
ou crítica à psicanálise, a saber: (a) Deleuze, (b) Adorno, (c) Foucault, (d)
Lyotard, (e) Honneth. Todos eles desenvolvem suas obras na segunda meta-
de do século XX, representando correntes de pensamento definitivamente
distintas, porém sensíveis à reflexão clínica psicanalítica. Em todos os casos
encontramos críticas sistemáticas à própria prática da psicanálise, seja de
forma direta,10 na forma contextual,11 seja na figura de seus continuadores,12
ou ainda nas suas limitações pragmáticas.13 Finalmente, todos os autores
em questão utilizam-se de conceitos psicanalíticos, ou de derivações destes,
para praticar a crítica e a diagnóstica de nossa época.
Nossa hipótese, neste ponto, é de que a psicanálise informou este
movimento crítico de forma heterogênea e capilar. Pretendemos mostrar
como isso se deu de forma circunstanciada com o objetivo de reverter a
crítica sociológica e filosófica para os próprios desenvolvimentos ulteriores
da psicanálise no século XX. Escolhemos a obra de Lacan, particularmente,
em seu entendimento do tratamento psicanalítico e em sua razão diag-
nóstica, como ponto de convergência para esta confrontação.

10 Deleuze G. & Guattari, F. – O Anti-Édipo, Imago, Rio de Janeiro, 1976.


11 Foucault, M. – História da Sexualidade VI – A Vontade de Saber. Graal, Rio de Janeiro, 1985.
12 Jacoby, R. – Amnésia Social, Zahar, Rio de Janeiro, 1977.
13 Lyotard, J. -F., “Le Non et la Position d’Objet”, in Discours, Figure. Paris, Klincksiek, 1971.
365

Uma objeção que se pode levantar à pesquisa de Adorno,14 que ser-


ve de modelo para nossa própria investigação, reside no fato de que este
concentra-se nos modos de descrição da patologia social evitando, cuida-
dosamente, a dimensão dos modos de intervenção e transformação social
possíveis. Entendemos, ao contrário, que uma diagnóstica contemporânea
deve levar em contra também as práticas ou estratégias de cura, tratamento
e intervenção. Nosso objetivo não é verificar a validade ou eficácia desta
dimensão, mas mostrar como as práticas de intenção transformativa pos-
suem, em si, valor diagnóstico a cerca dos modos de subjetivação sob os
quais se detém. Ao assumirem categorias e juízos tácitos sobre sua própria
ação revelam o exercício de uma diagnóstica presumida e implícita.
Nosso último objetivo é mostrar como o conjunto de estratégias
diagnósticas extraído das reflexões de nossos autores de referências pode
ser localizado em narrativas particulares e estratégias intersubjetivas pre-
sentes em pacientes tratados pelo método psicanalítico nos dias de hoje.
Ao contrário da pesquisa conduzida por Adorno, que procurou verificar
a validade de suas intuições a partir de escalas não paramétricas e ques-
tionários, a presente pesquisa adota uma metodologia baseada na cons-
trução de casos clínicos, de modo a justificar tanto o valor paradigmático
de certas narrativas sobre o sofrimento psíquico em nossa época, quanto
incorporar a premissa metodológica contida no conceito de transferência.

Foucault e Lacan: um estudo piloto


Para mostrar como a temática clínica do diagnóstico apresenta-se
simultaneamente como uma temática política relativa às formas do poder
em uma dada concepção de cura, tratamento ou psicoterapia examinemos
brevemente as relações entre Foucault e Lacan, como exemplo de nosso
programa de leitura. Notemos como primeira forma de aproximação entre
estes dois autores a afinidade metodológica extraída das categorias ligadas
ao espaço e ao território. A topologia em Lacan e as superfícies discursivas
em Foucault nos remetem à uma forma comum de aproximação à temática
da linguagem e das formas de subjetivação.

14 Adorno, T. W. - The Authoritarian Personality. New York:Harper & Brothers , 1950.


366

Há duas maneiras tradicionais de analisar as relações de poder: o


modelo baseado no direito, no qual se privilegia as leis, as proibições e as
instituições, e o modelo baseado na guerra, no qual se privilegia os temas
da força, da estratégia e da segurança15. Se o nascimento da clínica está
intimamente ligado à primeira forma, a invenção da psicoterapia partilha
da segunda.
Seria tentador situar a psicanálise como uma espécie de combina-
ção entre ambas. Surgiria, assim, uma geografia espontânea, dentro da
psicanálise, entre as práticas de fraternidade, as estratégias de liberdade e
as políticas de igualdade. Os diferentes tipos de individualismo que a psi-
canálise carrega em seu interior encontrariam, assim, uma redistribuição.
Não estamos falando de categorias que delimitam o discurso terapêutico
do ponto de vista da própria psicanálise, mas da inscrição da psicanálise
nas práticas de subjetivação da modernidade. Ou seja, ela participa como
dispositivo de saber e tratamento, mas também na forma como pensamos
sobre nós mesmos, nos instrumentos discursivos de uma tecnologia de si
e em suas formas coextensivas de poder.
Vemos que a noção de cura, desde os helênicos até Montaigne e
Liébeault, tem em comum uma política da transferência. Esta política
resume-se a manter aberto o espaço que constitui O político, o que só pode
ser feito pela renúncia da confiança irrestrita em as políticas e da segu-
rança fornecida por uma atitude militante. Lembremos que, na tradição
do cuidado de si, trata-se justamente de abrir ao sujeito a dimensão do
poder (A política) e separá-lo do engajamento instrumental numa política
específica (as políticas). A retórica, as terapias narrativas por conversão,
compromisso ou submissão situam-se como um conjunto de táticas em
torno do traumático. Procuram refazer a cesura, a divisão e a fragmentação
que, por vezes, elas mesmas acabam induzido por meio da recomposição
de posições. Ou seja, elas re-situam o sujeito no mundo, fixam-lhe uma
posição ou transformam hermeneuticamente a realidade para que sua
posição se mantenha ou se modifique. As estratégias baseadas na inte-
lectualização, como as que encontramos no polo de ocupação positiva

15 Foucault, M. – Microfísica do Poder. Graal, São Paulo: 1986:241.


367

do espaço antropológico delimitado por Kant, ou no polo de ocupação


negativa desse espaço, representado por Hegel, estão interessadas na
transformação de lugares.
Apresentemos, então, nosso argumento. Toda forma de poder exer-
cido na cura deriva da injunção entre a posição do sujeito, o lugar que este
ocupa num discurso e o espaço que o condiciona e limita. O poder funcio-
na pela unificação e pela homogeneização entre espaço, lugar e posição.

(...) uma ordem particular se unifica num conhecimento mais


universal, em que a ética desemboca numa política e, mais
além, numa imitação da ordem cósmica16.

Pelo fato de que esta montagem é heterogênea, pode-se pensar que


em qualquer forma de poder há uma zona de resistência que lhe é coex-
tensiva. É a tentativa de incorporar a exceção ao universal. Há resistências
que se realizam como uma espécie de efeito estrutural da heterogeneida-
de entre o espaço que é pressuposto em cada forma-poder e os lugares
e, subsidiariamente, entre os lugares e as posições. Penso que são esses
efeitos de resistência e incorporação que Foucault estudou ao analisar as
práticas de individualização nas formas disciplinares da modernidade.
Esta heterogeneidade aparece em categorias como enunciado, dispositivo
e discurso17. Ela admite desdobramentos em sua chave linguística (fala,
discurso e língua) e em chave política (tática, estratégia e política).
Lembremos que a referência ao espaço acompanhou toda nossa
trajetória sobre a constituição da clínica psicanalítica. Desde o seu início
nas práticas narrativas, xamânicas e trágicas, a ideia de um restabele-
cimento em lugares e posições é marcante. Também na retórica e nas
técnicas médicas da antiguidade, verificamos esta preocupação em
sincronizar espaço e posição, ou posição e lugar, através de uma reflexão
sobre o tempo e o ser. Contudo, é em torno das práticas concernentes ao
cuidado de si que vimos, pela primeira vez, aparecer uma reflexão siste-

16 Lacan, J. – A Ética da Psicanálise (1959). SVII:33.


17 Foucault, M. – A Arqueologia do Saber. Forense, Rio de Janeiro, 1987.
368

mática sobre o descompasso e a separação entre o espaço político e os


lugares éticos da enunciação da verdade de uma experiência. Montaigne
recuperou essa disjunção e a distendeu numa prática singular de cura.
Vimos em Descartes a profunda afinidade entre sua teoria da constitui-
ção do sujeito e uma nova concepção de espaço trazida por Galileu e
Copérnico. Sabemos tratar-se de noções distintas de espaço; contudo, a
persistência dessa alegoria é sugestiva. São essas estratégias de migração,
de redução e de assujeitamento lógico-político que definem o movimento
que queremos descrever. Ainda na modernidade, nos empenhamos em
mostrar como é na habitação de um espaço antropológico, fixado por
Kant, numa relação de inversão negativa das categorias da Razão Pura e
da Razão Prática, que se pode compreender tanto a formação da clínica
médica quanto psiquiátrica e ainda psicanalítica. Não seria, assim, Hegel
o melhor exemplo de como essa totalidade pode conter dentro de si uma
contradição imanente?
O real, cuja referência política é o território, se tenciona com o real
cuja referência ética é a morada. O espaço permanece, todavia, contínuo.
Esta é uma das premissas mais constantes da onto-teologia e da metafísica
ocidental.

A questão fundamental que envolve esse tipo de liberdade


política é ser um constructo espacial. Aquele que deixa a sua
pólis, ou dela é banido, perde não apenas sua terra natal ou
pátria: perde também o único espaço onde pode ser livre – e
a companhia dos seus iguais18.

Nessa replicação do espaço político ao lugar se expressa simetrica-


mente uma tendência a considerar que o lugar inclui e contém, necessa-
riamente, o conjunto exaustivo das posições, assim como o gênero contém
a totalidade das espécies. Por intermédio de uma gramática da inclusão e
da exclusão, fomos levados a supor que toda posição se inclui num lugar,
ambos reunidos num espaço assim tornado invisível e homogêneo.

18 Arendt, H. – A Promessa da Política. Difel, São Paulo, 2008:173.


369

Pretendi contribuir para a desconstrução desta ideia a partir da


premissa de que nem sempre o espaço considerado para pensar o lugar
precisa ser contínuo ao espaço considerado para pensar a posição.19 Esta
determinação é política e lógica, sem que ambas se confundam no mesmo
movimento.
Napoleão afirmou, primeiro, que a geografia é o destino, e depois,
que a forma moderna do destino é a política. A felicidade tornou-se um
fator político por meio dessa operação. Um efeito dessa espécie de fecha-
mento do espaço político propriamente dito é sua inteira distribuição
pela ética, pela economia (esta ciência da infelicidade), pelas formas
jurídicas e pelas tecnologias de si. Foucault percebeu esse movimento, e
suas tematizações críticas em relação à psicanálise têm regularmente esse
endereço. Resumidamente:
(1) A psicanálise participa do dispositivo de sexualidade ao fixar a
verdade do sujeito na enunciação contínua e repressiva de seu próprio
desejo sexual20. A teoria da perversão e da sexualidade são os índices
conceituais desse movimento de posicionamento do sujeito.
(2) A psicanálise participa de um discurso que fixa o dispositivo de
sexualidade ao dispositivo de aliança, permitindo uma sólida combinação
entre o poder público representado pelas disciplinas sociais e a forma-
poder verificada no interior da família21. A teoria do Complexo de Édipo
é o melhor exemplo conceitual desta operação de ligação entre lugar e
posição. A incitação do desejo pelos pais é correlativa ao dispositivo de
medicalização da família – logo, longe de ser intolerável, a ideia do incesto
está na origem mesma da pastoral da carne22.
(3) A psicanálise faz parte de uma estratégia repressiva que se verifi-
ca, em sua prática, na forma de uma variante do dispositivo jurídico-moral

19 Dunker, C.I.L. - Espaço, Lugar e Posição: Operadores Éticos da Clínica Psicanalítica. Ide,
São Paulo, v. 37, n. 1, p. 2-11, 2003.
20 Foucault, M. – História da Sexualidade. Vol 1. Graal, Rio de Janeiro, 1985:73-109.
21 Foucault, M. – Não ao sexo Rei. In: Microfísica do Poder, Graal, Rio de Janeiro, 1986:229-242.
22 Foucault, M. – Os Anormais, Martins Fontes, São Paulo, 2002:341.
370

de confissão23. A transferência e a rememoração são os rastros nocionais


dessa tática de articulação entre posição e lugar.
(4) A psicanálise faz parte de um longo processo de silenciamento
da loucura e expropriação de sua verdade, contribuindo e inovando no
processo de patologização e individualização de sua experiência24. Aqui
é a psicopatologia psicanalítica e a estrutura mesma do tratamento que
marcariam a integração positiva dos lugares que compõem o patológico
ao espaço genérico de uma política discursiva.
As objeções de Foucault são todas pertinentes. Em que pese o fato
de que nenhum psicanalista reconheceria em sua prática tais traços e das
objeções à generalização que esse autor faz da psicanálise, é irrefutável
que a implantação social da psicanálise deve muito à sua composição com
estas operações de unificação entre espaço, lugar e posição. Recusar isso
é recusar que a psicanálise tem uma história e que sua constituição não
é hagiográfica nem orientada pela divina providência do corte. Ocorre
que nenhuma forma de discurso constituído pode garantir um lugar de
resistência desconstrutiva ou crítica, pois sua constituição já é, em si, uma
articulação ideológica, uma captura num espaço que o antecede. A crítica
depende da experiência, e é nela que se pode tencionar as relações entre
espaço, lugar e posição. A narrativa não é o discurso, o discurso não é a
língua, a linguagem não é o espaço.
Em termos lacanianos, podemos dizer que a política do tratamen-
to decorre basicamente de como se concebe o lugar do Outro e como se
entende a posição do sujeito na fantasia. Lugar do Outro e posição do
sujeito são duas noções que remetem ao espaço ético-discursivo no qual
se desenrola uma análise que, no melhor dos casos, produz a experiência
de um objeto irredutível ao espaço que o tornou possível. Supõe-se, assim,
que uma análise tem uma tripla tarefa do ponto de vista de sua política: (1)
permitir ao sujeito verificar a contingência de sua posição fantasmática,
(2) realizar a experiência de tornar o lugar do Outro um lugar não inteira-
mente consistente e (3) introduzir um objeto resistente à sua integração

23 Foucault, M. – Vigiar e Punir. Vozes, Petrópolis, 1977.


24 Foucault, M. – História da Loucura, Perspectiva, São Paulo, 1978.
371

no espaço uniforme entre o sujeito e o Outro. Daí a importância de uma


disjunção entre os saberes que compõem a referência de sua clínica.
Uma pequena observação sobre estas categorias na obra de Lacan.
O seminário sobre a Ética da Psicanálise25 costuma despertar a atenção
dos comentaristas como um seminário anômalo. Como vimos, ele repre-
senta uma espécie de parêntese e inversão no programa de investigação
lacaniano. Nos seis primeiros seminários, bem como nos textos posterio-
res ao estádio do espelho, verificamos um aprofundamento contínuo do
projeto de Lacan em propor uma teoria da constituição do sujeito, apoiada
na reflexão freudiana sobre o narcisismo e na dialética de Hegel lida na
chave de Kojève.
Isso se combina com uma espécie de programa paralelo, baseado no
refinamento progressivo de uma investigação sobre as formas de mediação
simbólicas que permitem pensar o inconsciente de modo estrutural. O
resultado é um pensamento que identifica o desejo como efeito de uma
rede de lugares que sobredeterminam a posição do sujeito. A tarefa da
análise seria a de desfazer a alienação que impede o reconhecimento do
valor constitutivo desta rede de lugares denominada de Outro. O Outro é
definido como lugar da linguagem. Mas, então, qual seria a natureza des-
ses lugares? Em que domínio se poderia encontrar sua referência? Diante
de uma pergunta direta acerca da ontologia do inconsciente, a resposta
de Lacan é assertiva: “O estatuto do inconsciente não é ontológico, mas
ético”26. Logo, é também a lugares éticos que se refere quando se fala de
lugar em psicanálise. Ao contrário dos lugares lógicos, o lugar ético tem
uma história e implica uma política.
Do ponto de vista metodológico, a investigação sobre os mediadores
simbólicos do desejo apoia-se fortemente no estruturalismo linguístico, mas
também em aproximações com a matemática, particularmente com alguns
aspectos introdutórios da topologia: a teoria das séries, os grafos e o grupo
de Klein. O resultado disso se encontra formalizado no esquema da estrutura

25 Lacan, J. – O Seminário – livro VII – A Ética da Psicanálise, Jorge Zahar, Rio de Janeiro, 1988.
26 Lacan, J. – O Seminário – livro XI Os Quatro Conceitos Fundamentais da Psicanálise, Jorge
Zahar, Rio de Janeiro, 1998.
372

da fala27, no grafo do desejo28, na teoria do sujeito desenvolvida a partir da


leitura de A Carta Roubada29 ou na tentativa de apreensão topológica dos
desenvolvimentos clínicos da fobia do Pequeno Hans30. O uso da topologia
marca e caracteriza fortemente o período anterior ao Seminário da Ética.
Igualmente, se examinamos o período posterior ao Seminário da
Ética e aos dois artigos que lhe são correspondentes, “Direção da Cura” e
os “Princípios de seu Poder” (1958) e “Kant com Sade” (1963), vemos que
o uso da topologia é constante. Nesta medida, as noções de espaço, lugar
e posição vão perdendo seu valor metafórico e adquirindo um emprego
progressivamente formal. Considerando a sequência de seminários ime-
diatamente posteriores ao da ética, observamos que mesmo o giro temático
da análise do desejo para a análise da pulsão preserva a forte presença
metodológica de categorias topológicas.
Se há, então, esta constância metodológica da topologia antes e
depois do seminário da ética, por que nele não encontramos nenhuma
menção sequer às relações entre a ética e o espaço, ou à relação entre ética
e matemática? O problema torna-se ainda mais intrigante se lembramos
que tal aproximação é patente em autores admirados e conhecidos por
Lacan, tais como Espinoza e Nicolau de Cusa.
Segundo nossa hipótese, essa ausência das referências topológicas
na temática ética marca uma posição política em Lacan. Isso pode aju-
dar a justificar a ideia de que uma lógica completa, que unifique lugar,
espaço e posição, é justamente o que se deve evitar em psicanálise. Isso
corresponderia a uma espécie de patologia política da clínica e da cura.31
Em outras palavras, a estrutura lógica do tratamento não se reúne nem se
dissolve na totalidade formada pelo espaço da clínica — inclusive a noção
fundamental, e não sintética, de cura.

27 Lacan, J. – O Seminário – Livro III – As Psicoses, Jorge Zahar, Rio de Janeiro, 1984.
28 Lacan, J. – O Seminário – Livro V – As Formações do Inconsciente, Rio de Janeiro, 1998.
29 Lacan, J. – O Seminário – Livro II – O Eu na Teoria de Freud e na Técnica da Psicanálise,
Jorge Zahar, Rio de Janeiro, 1985.
30 Lacan, J. – O Seminário – Livro IV – A Relação de Objeto, Jorge Zahar, Rio de Janeiro, 1999.
31 Dunker, C.I.L.- Pathologya da Clínica. Latin American Journal of Fundamental Psychopa-
thology online, http://www.fundamentalpsychopa, v. 4, n. 1, p. 1-1, 2003.
373

Autores de extração lacaniana, interessados no tema da política,


têm insistido em aspectos diferentes de nosso argumento. Os teóricos
da democracia radical32 têm insistido na ideia de que é preciso separar O
Político de as políticas para pensar o antagonismo social que constitui o
primeiro caso sem reduzi-lo às práticas de articulação de demandas em
torno de significantes flutuantes (floating signifiers), que especificam a se-
gunda situação. Sua crítica da democracia baseada na confiança excessiva
da noção de representação se ampara na ideia de que o lugar do poder
se tornou um lugar vazio, que não deve ser ocupado hegemonicamente
por nenhuma posição33. Deslocando a noção lacaniana de que o Outro
não existe, eles afirmam que A Sociedade não existe. Ou seja, a unificação
do espaço político é decorrente da contingência, não da exclusão ou da
eliminação das posições que indicam a sua falha. Esta interpretação de
Lacan explora, principalmente, a ideia de um universal fraturado como
definidora do espaço político.
Os autores ligados à escola eslovena de psicanálise34 têm insisti-
do em outro aspecto do problema. Para eles, é na ideia de ato e em sua
correlação ao ato político que se mostraria não apenas a negatividade
que funda o universal da política, mas a queda de um objeto que não
lhe é incorporável. Ou seja, a totalidade imaginária formada pelo espaço
político pode ser decomposta por uma subversão específica da relação
entre o lugar e a posição, que corresponde a uma leitura possível leitura
da noção de ato em Lacan.
Finalmente, a perspectiva assumida por Badiou35 investe na recu-
peração da noção de verdade para estabelecer uma nova teoria do sujeito.
Examinando rigorosamente as relações entre lógica e ontologia, ele parece
buscar uma espécie de rede de paradoxos entre a dimensão do lugar, do
espaço e da posição. Encontramos aqui a noção de evento como aparição
de uma anomalia contingente no espaço político, coextensivo, para este

32 Identity and hegemony: the role of universality in the constituttion of political logics. In But-
ler, J.;Laclau,E.; & Zizek, S. – Contingency, Hegemony, Universality. Verso, Londres, 2000:44-89.
33 Stravrakakis, Y. – Lacan & the Political. Routledge, Londres, 1999:123.
34 Zizek, S. – For they know not what they do – enjoyment as a political factor.Verso, Londres, 2002.
35 Badiou, A. – O Ser e o Evento, Jorge Zahar, Rio de Janeiro, 1996.
374

autor, ao lugar do amor e da estética em nossa época. Badiou detalha o


tipo de relação problemática entre os diferentes modos do sujeito em seu
percurso de verdade: o indiscernível, o indecidível, a nomeação, o força-
mento e a fidelidade. Seu trabalho dá preciosas indicações sobre a relação
não totalizável entre lógica e política.
Tais empreendimentos críticos situam-se fora do escopo específico
deste trabalho. Se os menciono, é para sugerir uma homologia possível
com a noção de política em teoria social. No entanto, o impacto deste tipo
de investigação sobre os modos de inscrição social e cultural da psicaná-
lise ainda está longe de ser sentido. A tentativa de enfrentar problemas
institucionais e associativos, bem como corporativos e propriamente
políticos, usando diretamente a teoria clínica psicanalítica sem mediação
– ou, inversamente, separando completamente a psicanálise como mé-
todo e a ação pública das pessoas que exercem a psicanálise – são efeitos
de invisibilização do espaço político e consequente ocupação positiva de
lugares em formas discursivas pré-definidas.
De maneira inversa, é preciso mencionar outro entendimento
possível de política que se encontra, por exemplo, na ideia de política do
sintoma. Esta acepção remete tanto ao tema da escolha da neurose, das
estruturas e tipos clínicos, quanto à habilitação que a experiência psica-
nalítica poderia favorecer no analisante a invenção de outra política como
espaço de escolha e responsabilidade diante de seus destinos de gozo36.
Este encaminhamento enfatiza a política do lado do analisante, mas deixa
em branco seu correlato do lado do analista. É exatamente esta a posição
que encontramos nas práticas do cuidado de si. O problema é que essa
posição em branco, coerente com os princípios genéricos da abstinência,
da liberdade associativa e do desejo de analista como desejo de obter a
pura diferença, é ainda uma posição. Uma posição política baseada numa
ontologia negativa do espaço político. O argumento de que ela seria uma
posição e um lugar restritamente ético corta qualquer possibilidade de
tematizar objeções importantes, por exemplo, como as de Foucault. O se-
gundo problema desta posição é que ela tende a restringir a conotação de

36 Goldenber, R. – Ensaio sobre a Moral de Freud, Ágalma, Salvador, 1994:94.


375

ética ao âmbito da particularidade. Novamente, não é falso, mas também


não inteiramente verdadeiro. O interessante na maneira como Lacan pensa
a ética não está em sua decorrência possível para justificar os costumes de
uma comunidade de analistas ou uma deontologia formal da situação de
tratamento. Não é a mesma acepção particular pela qual se poderia falar,
por exemplo, numa ética dos Ostrogodos ou numa ética do século XVI. Sua
radicalidade reside no fato de que ela não renuncia à universalidade. Ela se
constitui na fratura mesma desta universalidade e na demonstração prática
de sua impossibilidade e existência. Portanto, não deveria ser usada como
argumento para legitimar toda e qualquer ação terapêutica.
A noção de política em psicanálise poderia encontrar ainda uma ter-
ceira conotação. É aquela na qual ela se inscreve no âmbito das políticas da
felicidade, na mesma direção em que Freud37 fala nas técnicas de felicidade:
fugir do desprazer, procurar o prazer, adormecer ou excitar os prazeres do
corpo (erótica), diminuir o peso da natureza sobre o homem ou reduzir as
exigências que civilização lhe impõe. As indicações psicanalíticas sobre
esse ponto são, de fato, escassas, mas existem: amar e trabalhar, cada um
deve encontrar a solução que lhe for possível, transformar o sofrimento
neurótico em miséria banal. Lacan não hesitou em dizer que os pacientes
nos pedem a felicidade, e que alguma resposta a psicanálise lhes dá, mes-
mo que subverta os parâmetros do pedido. Tais parâmetros são históricos:
os ideais do amor concluído, da autenticidade e da não dependência38.
Portanto, há políticas da felicidade às quais os psicanalistas se dedicam
em face da singularidade de seus pacientes. A preocupação e o tom que
rondam esse aspecto do problema enfatizam a dimensão negativa: não
prometer a cura, não procurá-la com excessiva ganância, não fixar-se num
ideal de felicidade. É uma política menor, prudente, mas que não descarta
uma forma específica de liberdade que não seja a realização delirante, mas
compatível com uma experiência da verdade.
Observe-se ainda como as principais imagens usadas para designar
a posição e o lugar do analista na cura são imagens que apontam para

37 Freud, S. – Mal estar na civilização (1930). SFOC-VXXI:69.


38 Lacan, J. – A Ética da Psicanálise (1959). SVII:17-19.
376

uma espécie de deslocamento ou descentramento em relação ao próprio


lugar em que se está. É o caso do estrangeiro39, do imigrante, do viajante40,
do poeta41, do passador42, do santo errante (saint homme)43 e do bobo da
corte. Isso para não mencionar as situações intervalares, tais como entre
duas mortes, entre a implicação e a reserva44, ou as condições ilocalizáveis
entre as quais a utopia45, a atopia (como no desejo de Sócrates) e a distopia.
Se o analista deve estar à altura de seu tempo, ele parece estar sempre um
pouco fora de lugar. Ao contrário dessas imagens, nossos pacientes são
usualmente apresentados como pessoas que estão fixadas a modos de
gozo, presas em seus circuitos imaginários, identificadas a posições ou
alienadas a lugares.
Estou sugerindo que é exatamente a ambiguidade discursiva da no-
ção de cura, que não encontramos na ideia de tratamento e muito menos
na de restabelecimento, que se verifica na raiz histórica desta transitividade
entre espaço, lugar e posição.

39 Koltai, K. – Política e Psicanálise. Escuta, São Paulo, 2000.


40 Calligaris, C. – O psicanálise e o sujeito colonial. In Psicanálise e Colonização, Artes e
Ofícios, Porto Alegre, 1999:11-23.
41 Kehl, M.R. – Sobre Ética e Psicanálise, Companhia das Letras, Rio de Janeiro, 2002:183-187.
42 Fingerman, D. & Dias, M. – Por Causa do Pior, Iluminuras, São Paulo, 2005.
43 Teixeira, A. – O Topos Ético da Psicanálise, Edipucrs, Porto Alegre, 1999.
44 Figueiredo, L.C. & Coelho, N. – Ética e Técnica da Psicanálise, Escuta, São Paulo, 2000.
45 Souza, E.L.A. – Monocromos psíquicos: alguns teoremas, in Sobre Arte e Psicanálise,
Escuta, São Paulo, 2006.
377

É a psicanálise um cuidado de si? Mais uma vez...


Foucault e a psicanálise.
Ernani Chaves (UFPA)

Poder-se-ia dizer que as grandes linhas de direcionamento da pes-


quisa acerca das relações entre Filosofia e Psicanálise no Brasil no último
decênio resumem-se no seguinte: uma recepção intensa, mas, com muita
frequência, bastante acrítica do pensamento de Lacan; segundo, a “desco-
berta” de um novo paradigma na psicanálise, baseado em Winnicot (com
direta participação de Heidegger) e, finalmente, uma recepção igualmente
intensa do pensamento de Foucault, jamais vista antes. Interessa-me,
neste momento, tecer algumas considerações acerca deste último ponto,
aquele relativo a Foucault.
Há algo bastante concreto neste interesse por Foucault. Ele está
intrinsecamente ligado à edição, nos últimos anos, de quase todos os seus
cursos proferidos no Collège de France e que são publicados no Brasil
quase que, simultaneamente, com a França. Dentre estes cursos, aquele
intitulado “A Hermenêutica do Sujeito”, um dos últimos, de 1981/1982,
tornou-se uma espécie de referência-fetiche, quando se trata da questão
da Psicanálise. Não sem razão, evidentemente, como espero poder precisar
melhor mais adiante. A publicação dos cursos fora antecedida pela dos
quatro volumes que compõem os Dits et Écrits, que apareceram em 1994.
Juntando esses dois pontos, o leitor interessado em Foucault passou a ter,
378

nos últimos 15 anos, um material de trabalho muitíssimo maior do que


dispunha seus leitores brasileiros, a partir do final dos anos 1970. Naquela
época, o impacto fora a publicação, em 1979, da primeira edição da co-
letânea de textos intitulada Microfísica do Poder, impacto equivalente ao
provocado em 1966, pela publicação na França de As Palavras e as Coisas
e que chegou rapidamente ao Brasil, por meio de uma famosa edição
portuguesa. A primeira edição brasileira deste livro aparece apenas em
1981. Grosso modo, poder-se-ia dizer que Foucault, o “filósofo do poder”,
substituía o Foucault “estruturalista”. Ora, mas chegaram os anos 1980 e
com ele não apenas a consolidação do interesse por Foucault, mas tam-
bém um número muito grande de ferrenhas críticas, capitaneadas pelo
Discurso filosófico da modernidade, de Habermas, às quais se juntaram
as dos chamados franceses não nietzschianos. Assim, pós-modernismo,
irracionalismo e pensamento de 1968 vinham juntos, para desqualificar o
pós-estruturalismo francês, no qual se incluía, evidentemente, Foucault.
Deve-se, em grande parte, à interpretação do conceito de biopolítica,
enunciado nas últimas páginas do volume 1 da História da Sexualidade,
feita por Giorgio Agamben, uma espécie de renovação e de revalorização
do pensamento de Foucault. Assim, hoje Foucault é prioritariamente
concebido como o filósofo da “biopolítica”. Mais ainda: em geral, seu pen-
samento, sua obra, são amputados de tal maneira, que para compreendê-
los, parece que basta apenas ler os cursos do Collège de France ou ainda
seus últimos livros e escritos, importando pouco o conhecimento de sua
obra anterior. No que diz respeito às suas relações com a Psicanálise, a
publicação, no ano de 2000, do livro de Joel Birman, Entre o cuidado e o
saber de si: sobre Foucault e a Psicanálise, renova e revigora a questão entre
nós1. Embora tenha feito tábula rasa do que já havia sido publicado antes
dele por intérpretes e comentadores brasileiros acerca do mesmo tema,
Birman é o primeiro que se utiliza largamente dos textos publicados nos
Dits et Écrits. Além disso, ele retoma, passo a passo, o caminho da relação

1 O livro de Rajchman (1993), acerca de Foucault e Lacan e a questão da ética, passou em


brancas nuvens, como se costuma dizer e parece não ter tido grande repercussão. Sobre o
livro de Birman, cf. TESHAINER, 2008.
379

de Foucault com a psicanálise, desde História da Loucura. É bom observar


também que Birman ocupa um lugar singular nessa brevíssima e muito
geral história da recepção de Foucault no Brasil que tenho a ousadia de
fazer neste momento: ele pertence à geração de psiquiatras e psicanalistas
que “vivenciaram” diretamente o impacto do pensamento de Foucault
no Brasil, nas passagens de Foucault pelo Instituto de Medicina Social
da UERJ. Birman é, sem dúvida, o psicanalista que mais cita e se refere a
Foucault nos diversos livros de sua já bastante volumosa obra. Por outro
lado, Birman pertence à geração daqueles para quem a psicanálise, como o
próprio Foucault afirmou em relação ao Brasil, denunciava a cumplicidade
entre os psiquiatras e o poder (FOUCAULT, 1975/1979, p.150)2.
No outro extremo desta perspectiva, navega-se com outros textos.
Alimentados agora não apenas pelos Dits et Écrits, mas principalmente
pelos cursos proferidos no Collège de France. Em especial o já referido A
Hermenêutica do Sujeito. Aqui se alinham dissertações, teses, pesquisas
em andamento, artigos, onde a palavra-chave é, incontestavelmente, bio-
política. Mais ainda: enquanto nos primeiros trabalhos sobre a questão
Foucault e a psicanálise, a presença de Lacan era quase invisível, desde o
livro de Birman só têm feito aumentar as articulações entre Foucault e La-
can. Em geral, sempre vistas e lidas com muitos bons olhos ou ainda, para
mostrar que muitas críticas de Foucault servem até para outras vertentes
da psicanálise, mas não, de modo algum, em hipótese nenhuma, para
Lacan. Um exemplo desse procedimento está no artigo de Christian Ingo
Lenz Dunker intitulado “Revolução na Clínica” (2008). Dunker caracteriza
o terceiro aspecto da revolução instaurada pela clínica lacaniana pelo fato,
diz ele, de Lacan insistir de que seu projeto clínico “seja uma espécie de
aventura da verdade”. Ao final de sua argumentação, referente a este ter-
ceiro aspecto, Dunker afirma então que “a psicanálise tem mais a ver com
cuidar de si do que com conhecer a si”. O autor nem precisa citar Foucault,
pois esta distinção entre “cuidar de si” e “conhecer a si”, organizadora de

2 Aqui, talvez, Foucault esteja fazendo uma reavaliação de sua discussão com Hélio Pele-
grino, ao final das conferências sobre “A verdade e as formas jurídicas”, onde ele colocava
em suspeição a possibilidade da psicanálise questionar radicalmente as relações de poder
(FOUCAULT, 1973/2005, p. 151-152).
380

toda a argumentação de Foucault no curso acima referido, já faz parte do


vocabulário acadêmico brasileiro ou, pelo menos, do leitor mais vivamente
interessado no assunto.
A pergunta que faço então é se, de fato, a publicação do curso A
Hermenêutica do Sujeito, mudou radicalmente a apreciação crítica que
Foucault fez da psicanálise desde Doença mental e psicologia, cuja 1ª edi-
ção é de 1954. Em caso afirmativo, qual é então o alcance desta mudança?
Absolver a psicanálise, essa ré injustamente acusada de uma cumplicidade
com práticas tais como a confissão sacramental ou ainda com um deter-
minado modo de exercício do poder, que transfere para o psicanalista o
sacrossanto poder do pai, das injunções familiares e de uma autoridade
que lhe é conferida em nome da ciência? Mas, se a resposta for negativa,
ou seja, se Foucault continua colocando a psicanálise numa espécie de
limiar, num “entre”, como diz Birman no título de seu livro, a questão é a
mesma, ou seja, qual a dimensão deste impasse? Não serão os impasses
muito mais interessantes para continuarmos pensando ao lado da psica-
nálise, junto com a psicanálise, do que tentar tornar Foucault um aliado
da psicanálise, redimindo-o, assim, de seus julgamentos equivocados em
relação a ela? Ou então será preferível continuar com Derrida, por exemplo,
e... “fazer justiça a Freud”?
Vamos então ao encontro de algumas peças deste processo.
Foucault define logo no começo do curso A hermenêutica do Sujeito,
de que naquele ano, 1982, ele deve retomar a questão deixada em suspenso
no ano anterior, qual seja, “uma reflexão histórica sobre o tema das rela-
ções entre subjetividade e verdade” (FOUCAULT, 1981-1982/2006, p. 4).
Naquela ocasião, diz Foucault, seu objeto privilegiado de análise tinha sido
o “regime de comportamentos e prazeres sexuais na Antiguidade, o regime
dos aphrodísia”. Agora, seu interesse era o de “extrair os termos mais gerais
do problema ‘sujeito e verdade’”. Passagem, portanto, de um problema
específico para um problema mais geral. Mas, adverte Foucault, que tal
passagem não sacrifica, ao contrário, intensifica a dimensão histórica, com
a qual pretende abordar esse novo problema. Desse modo, o problema
mais geral – de que modo, no Ocidente, esses dois elementos, “sujeito” e
381

“verdade”, se conectam – implica em considerá-los historicamente, mas


não, enfatiza Foucault, “pela prática ou pela análise histórica habitual”.
Esta primeira declaração de intenções, que poderíamos chamar de
teórico-metodológicas, implica, portanto, em entender o que Foucault
chama de “prática ou análise histórica não habitual”. Não residiria jus-
tamente aí o primeiro núcleo de problemas a ser elucidado, ou seja, que
outra prática ou análise histórica Foucault nos propõe, que nos afastam
do habitual? Não é justamente aqui que incide a observação de Jacques
Alain-Miller, irônica, mas certeira do ponto de vista do questionamento,
na célebre discussão entre Foucault e o círculo da Ornicar? (ou seja, à
época, o lacanismo em pessoa!), logo após a publicação de A vontade de
saber, de que “não há uma história da sexualidade como há uma história
do pão”? (FOUCAULT, 1977/1979, p. 262). Observação irônica sem dúvi-
da. Mas certeira, embora de maneira enviesada. Ou seja: Miller acerta no
problema – o do modelo historiográfico de Foucault – mas imediatamente
o desqualifica por meio da analogia irônica com “a história do pão”. Nessa
perspectiva, a de Miller, o equívoco de Foucault consiste, justamente, no
modelo historiográfico por ele utilizado. Como então, perguntam os as-
sombrados psicanalistas de ontem e de hoje, é possível colocar a clínica
psicanalítica numa certa continuidade com a confissão sacramental? Isso
sempre pareceu absurdo e despropositado. Renato Mezan, num texto que
parece inaugurar a discussão brasileira sobre o tema, já fazia esta mesma
ressalva (MEZAN, 1985, p. 106)3.
Mas aqui acontece algo muito interessante: despreza-se e desquali-
fica-se uma continuidade que se julga equivocada – aquela entre o que se
diz ao padre na confissão e aquilo que se diz ao analista –, mas, em troca,
valoriza-se e destaca-se a continuidade que se julga acertada, quando, por
exemplo, se inscreve a clínica psicanalítica como “cuidado de si”. Dois pesos
e duas medidas que passam ao largo, até onde sei, de uma análise mais
acurada do modelo historiográfico de Foucault4. Minha resposta provisória
a esta questão é a seguinte: o modelo historiográfico de Foucault tem como

3 Para uma discussão das teses de Mezan, cf. CHAVES, 1988, “Anexo”.
4 Há exceções a essa regra. Ver por exemplo SUGISAZY (2006).
382

referência principal aquele esboçado por Nietzsche. Lembremos, é claro,


do texto “Nietzsche, a genealogia, a história” FOUCAULT, (1971/1979),
publicado em homenagem a Jean Hypolitte, professor de Foucault, “o”
especialista em Hegel de sua época. Estranha e significativa homenagem:
ao especialista em Hegel, um texto sobre Nietzsche e a questão da história!
Ou seja, poderíamos pensar, grosso modo, o modelo de Nietzsche contra
o modelo hegeliano e desse modo, Foucault acaba dando continuidade,
de certa maneira, à forte oposição entre Hegel e Nietzsche já enunciada
no livro de Deleuze sobre Nietzsche (DELEUZE, 1962/s/d).
Essas duas referências, a Nietzsche e a Deleuze, se encontram juntas
em uma das últimas entrevistas de Foucault. A ruptura proporcionada
por Nietzsche em seu pensamento, diz Foucault, está em relação direta
com a insuficiência da concepção fenomenológica de sujeito: “Será que
o sujeito do tipo fenomenológico, trans-histórico, é capaz de dar conta da
historicidade da razão? É aí que a leitura de Nietzsche foi para mim uma
fratura: há uma história do sujeito assim como há uma história da razão e
desta, da história da razão, não se deve solicitar o desdobramento de um
ato fundador e primeiro do sujeito racionalista” (FOUCAULT, 1983/1994c,
p. 436); no mesmo diapasão, Foucault afirma que não pode falar apenas
dele mesmo, que é preciso também falar de Deleuze, que procurou esca-
par da teoria fenomenológica do sujeito, não só por meio de um interes-
se pelo empirismo de Hume, mas também voltando-se para Nietzsche
(FOUCAULT, p. 436-437). Foucault termina suas observações acerca das
críticas à fenomenologia no âmbito da filosofia francesa dos anos 1950 e
1960, elencando as três possibilidades mais importantes para se escapar
dos impasses provocados pela fenomenologia: a direção da linguística, a
de Nietzsche e a da psicanálise. Obviamente que se trata aqui da psica-
nálise lacaniana. Vemos aqui o quanto a Psicanálise é uma companheira
de rota. Isso quer dizer que a estratégia de leitura que Foucault faz da
psicanálise não mudou: sempre que necessário, ele reconhece e assinala
explicitamente sua importância.
Entretanto, Foucault não repete Nietzsche simplesmente, mas deve
a ele toda uma metafórica que está implicada neste novo modelo histo-
383

riográfico, decididamente anti-historicista e em grande medida (e nisso


Deleuze tem razão), anti-hegeliano: jogo, posições, funções, estratégias,
rupturas e principalmente, relações de força. Pensemos por exemplo, na
análise sobre as diversas concepções de punição, gênese dos elevados
valores morais como os de dever e responsabilidade, na 2ª dissertação da
Genealogia da Moral (NIETZSCHE, 1887/1998). Mas, há entre Foucault
e Nietzsche diversas diferenças. Ressalto, em relação ao tema deste ar-
tigo, a que considero a mais importante: onde Nietzsche ainda via uma
questão psicológica importante a desvendar, que o levou, no Anticristo,
na impossibilidade de se obter dados históricos efetivos e confiáveis a
respeito da vida de Jesus, a reescrever a história do Cristianismo a partir
de uma investigação do “tipo psicológico do redentor”, Foucault não vê
mais nenhuma possibilidade de qualquer referência aos vários tipos de
conhecimento “psi” para a elucidação das tramas históricas. O que era uma
conquista na perspectiva de Nietzsche, ou seja, a relação entre psicologia
e história, já não é mais para Foucault. Ao contrário, o domínio “psi” é que
precisa ser desvendado a partir das tramas históricas. O que eu queria,
entretanto, destacar aqui é a continuidade que existe entre a discussão de
Foucault com os lacanianos em 1977 e sua advertência inicial no curso de
1981-1982: trata-se de continuar, de insistir, numa perspectiva histórica
diferente da habitual. É claro que isso não escapou aos participantes da
entrevista de 1977, que procuram colocar Foucault a todo instante, contra
a parede. Entretanto, a crítica a ele gira em torno do argumento de que
não é possível estabelecer as continuidades que Foucault estabelecia,
para inscrever a psicanálise na trama histórica que remontaria (naquela
ocasião, em 1977 e tendo em vista apenas A vontade de saber) a Tertuliano
e aos Concílios de Trento e Latrão. Nas palavras de Miller, as análises de
Foucault procuram sempre apagar o caráter de ruptura da obra de Freud.
Por outro lado, Miller também tentava, sempre que possível, inscrever a
fala de Foucault no campo lacaniano. É muito engraçado, por exemplo,
quando ele aproxima a distinção feita por Foucault entre sexualidade
e inconsciente, do pensamento de Lacan, acrescentando que um dos
axiomas da lógica do inconsciente em Lacan é a de que “não há relação
384

sexual”. Resposta de Foucault: “eu não sabia da existência desse axioma”


(FOUCAULT, 1977/1979, p. 261).
Este é, portanto, o primeiro ponto que eu gostaria de destacar: é
apenas investigando em que consiste o modelo historiográfico de Fou-
cault, que poderemos ter uma compreensão mais rigorosa do modo como
ele articula proposições gerais e trajetórias específicas num determinado
campo do saber. A essa articulação, onde se acoplam práticas discursivas
e extradiscursivas, Foucault denominou de “dispositivo”. Não por acaso,
em A vontade de saber, Foucault mostrará as relações, de oposição e de
justaposição ou complementaridade, entre dois grandes tipos de “disposi-
tivos”: o de “aliança”, isto é, aquele baseado no casamento e na instituição
familiar, e o de “sexualidade”, que diz respeito ao corpo e aos seus prazeres,
assim como à manutenção da vida.
O segundo ponto, entretanto, nos faz retornar ao texto do curso A
hermenêutica do sujeito e à correlação existente entre, de um lado, “cuidado
de si” e “conhecimento de si” – epimeleia heautoû e gnôthi seautôn – e,
de outro lado, “filosofia” e “espiritualidade”. Se, no momento socrático-
platônico, cuidado de si e conhecimento de si ainda se integravam sob a
égide do primeiro, é o pensamento de Aristóteles que vai, pela primeira
vez, estabelecer uma clara dissociação entre esses termos. Foucault dirá
algumas vezes que Aristóteles não é o ponto culminante do pensamento
grego, mas, ao contrário, o seu ponto de declínio. A segunda ruptura será
o que Foucault chamou de “momento cartesiano”, onde encontramos a
requalificação filosófica do conhecimento de si, mesmo que entre a fórmu-
la socrática do “conhece-te a ti mesmo” e as Meditações, haja uma grande
distância. É neste diapasão que Foucault irá distinguir entre filosofia e
espiritualidade. A filosofia “é a forma de pensamento que se interroga sobre
o que permite ao sujeito ter acesso à verdade, forma de pensamento que
tenta determinar as condições e os limites do acesso do sujeito à verda-
de” (FOUCAULT, 1981-1982/2006, p. 19), enquanto a espiritualidade “é o
conjunto de buscas, práticas e experiências [...] que constituem, não para
o conhecimento, mas para o sujeito, para o ser mesmo do sujeito, o preço
a pagar para ter acesso à verdade”. Assim sendo, o que Foucault chama de
385

“espiritualidade”, em oposição relativa à “filosofia”, se caracterizaria por


três traços principais: 1) o sujeito enquanto tal não tem por direito o acesso
à verdade, o que implica em dizer que é necessária uma transformação
nesse sujeito para que ele possa obter esse acesso; 2) que uma tal trans-
formação só é possível pela ação conjunto entre Eros e Askesis, isto é, pelo
despertar do anelo em relação à verdade (papel de Eros) e por um trabalho
de si para consigo, que arranca o sujeito de seu “status” e posição atual,
para que a verdade venha até ele e o ilumine (Askesis) e 3) uma vez aberto
esse caminho em direção à verdade, esta produz efeitos sobre o sujeito,
como consequência desta longa preparação de acesso à verdade; há, diz
Foucault uma espécie de “retorno” da verdade sobre o sujeito.
É nesta complexa trama, que reúne verdade, sujeito, o preço do aces-
so à verdade e os efeitos da verdade sobre o próprio sujeito, que Foucault
vai, mais uma vez, se referir à psicanálise e, mais especialmente, como ele
mesmo diz, a Freud e a Lacan. Isso acontece na segunda hora desta mes-
ma aula de 06 de janeiro de 1982, quando Foucault vai tentar esclarecer
os passos percorridos na história da filosofia, que acabam por tornar os
propósitos da própria filosofia mais importantes e necessários do que os
da espiritualidade. Em outras palavras, num procedimento muito próximo
ainda em suas linhas mais gerais, do procedimento nietzschiano, Foucault
vai interpretar a história da filosofia como a vitória progressiva desta, sobre
as exigências da espiritualidade. Mas, uma vitória que não significa uma
ruína completa dos elementos da espiritualidade, que entretanto perma-
necem vivos e deixando, aqui e ali, rastros indeléveis de sua presença. Ao
contrário, diz Foucault, entre filosofia e espiritualidade “houve múltiplas
superfícies de contato, múltiplos pontos de fricção, múltiplas formas de in-
terrogação” (FOUCAULT, 1981-1982/2006, p. 37). De Espinosa a Nietzsche,
passando por Hegel, Schelling, Schopenhauer, o Husserl da Krisis, e até o
próprio Heidegger, a questão das relações entre filosofia e espiritualidade
estaria em pauta. Ou seja, toda questão acerca do “ato de conhecer”, traz
consigo, nestes pensadores em especial, “uma certa estrutura de espiritu-
alidade”, que visa vincular o conhecimento, suas condições e seus efeitos,
a um processo de transformação do sujeito. Talvez a fórmula nietzschiana,
386

“tornar-te o que tu és”, resuma bem as intenções de Foucault, ao dizer que


toda essa época, cujo marco para ele seria Espinosa, se caracterizaria pelo
“cuidado com o cuidado de si” (FOUCAULT, Idem, p.39).
É neste diapasão e nesta ilustre filiação, que Foucault situa a psica-
nálise e o marxismo. Não por acaso evidentemente, pois Foucault continua
desconfiando da junção histórica entre essas duas posições, seja na sua
versão reichiana, seja na sua versão marcuseana. Foucault também critica
a própria história da psicanálise e do marxismo, por terem desqualificado,
mascarado, a presença de formas de espritualidade no interior desses
saberes. Parafraseando Heidegger, Foucault dirá que se há um “esqueci-
mento” fundante em nosso modo de ser, este é o “esquecimento da questão
das relações entre verdade e sujeito” (FOUCAULT, Idem, p. 40). No caso
da psicanálise, Foucault acrescenta em nota ao seu manuscrito, que isso
resultou em um positivismo e em um psicologismo. Sempre prudente e
precavido, dirá, enfim Foucault: “E parece-me que todo o interesse e a
força das análises de Lacan estão precisamente nisto: creio que Lacan foi
o único depois de Freud a querer recentralizar a questão da psicanálise
precisamente nesta questão das relações entre sujeito e verdade”. Em ou-
tras palavras, poderíamos dizer que exatamente aí, neste fato, consiste o
essencial para Foucault, do “retorno a Freud”, empreendido por Lacan5. A
mesma ideia poderíamos encontrar também em inúmeros outros textos,
como por exemplo, na pequena entrevista dada imediatamente após a
morte de Lacan. Poderíamos então dizer que é exatamente esta questão,
a das relações entre sujeito e verdade, que acaba fazendo com que Lacan
faça ressurgir “no interior mesmo da psicanálise, a mais velha tradição, a
mais velha interrogação, a mais velha inquietude dessa epimeleia heautou,
que constituiu a forma mais geral da espiritualidade”.
Ora, é exatamente isso que me interessa ver mais de perto. Por um
lado, é absolutamente inegável a importância do esforço em vincular essa
proposição geral – “Lacan faz ressurgir os vínculos entre conhecimento

5 Sobre a questão do “retorno”, ver os parágrafos finais da célebre conferência “O que é um


autor?”, com a respectiva intervenção de Lacan, ao final do debate (FOUCAULT, 1962/1994a),
pp. 789-820).
387

e espiritualidade no interior da psicanálise” – com as próprias exigências


da clínica lacaniana, que conferiria ao sujeito e seu acesso à verdade e ao
analista e seu “suposto saber”, um lugar outro, para além do discurso médi-
co-psiquiátrico, tal como Foucault enfatiza na sua entrevista-necrológio a
Lacan. Mérito de Lacan, portanto, o de ter procurado afastar a psicanálise
do positivismo e do psicologismo.
Entretanto, na aula de 03 de fevereiro de 1982, quase um mês depois,
portanto, por ocasião das perguntas dirigidas pelo auditório, um “anônimo”
vai insistir diversas vezes com Foucault para que ele explicite as suas vincu-
lações teóricas com Lacan. Para espanto e uma certa irritação de Foucault.
De todo modo, em dois aspectos em especial, as respostas de Foucault
são importantes: 1) para responder se ele se exprime com “conceitos au-
tenticamente lacanianos” seria necessário entender se aquilo que Lacan
diz a propósito das relações entre o sujeito e a verdade, o preço a pagar
pelo acesso a verdade e os efeitos dessa verdade sobre o sujeito, podem
ser inscritos, diz Foucault, nesta “longa genealogia que tento recompor
desde o ‘Alcebíades’ até Santo Agostinho” (FOUCAULT, 1981-1982/2006,
p. 232) e 2) ao tentar responder a respeito da relação entre linguagem e
verdade, a partir da fórmula “isto é e não é verdadeiro ao mesmo tempo”,
que aquele que pergunta, o “anônimo”, vincula a Lacan, à distancia entre
“o que é dito e o que não é ainda, ou talvez, é jamais dito”, Foucault res-
ponde à questão em três momentos: a) isto também é nietzschiano; b) só
duas pessoas no século XX interrogaram esta questão com tanta ênfase:
Lacan e Heidegger e c) é por isso que ao tratar dessa questão cruzamos
necessariamente com Lacan.
Destas respostas, retiro duas ou três consequências importantes:
A primeira: não são, em princípio, apenas os pressupostos da clínica
lacaniana que respondem à questão da filiação da psicanálise às práticas
da espiritualidade e portanto ao “cuidado de si”, mas sua inserção na longa
genealogia que Foucault está traçando; com isso, de um ponto de vista
rigorosamente foucaultiano, a pergunta se a psicanálise é um “cuidado
de si”, continua em aberto. Há ainda sobre esta questão inúmeros obs-
táculos e escolhos no caminho daquele que pretende enveredar por ela.
388

Para isso, basta ler com atenção a “Introdução” ao volume II da História


da sexualidade, “O Uso dos prazeres”, onde Foucault, fiel ao seu modelo
historiográfico, não apenas busca separar-se de noções como as de “desejo”
e “sujeito do desejo”, que estão “fora do campo histórico”, na medida em
que a análise baseada nestas noções acaba concedendo um privilégio aos
mecanismos repressivos (FOUCAULT, 1984, p. 10), mas também cunha o
conceito de “experiência” para diferenciar-se do “esquema de pensamen-
to que era então corrente”, quando se tratava da questão da sexualidade
(Idem). Enquanto “experiência”, uma “história da sexualidade” deveria
mover-se em torno da correlação, numa dada cultura, “entre campos de
saber, tipos de normatividade e formas de subjetividade”. Foucault propõe
então, a necessidade de se realizar, acerca das noções de desejo e sujeito
do desejo, um “trabalho histórico e crítico”, ou seja, continua ele, uma
“genealogia” (FOUCAULT, 1984, p. 11). Daí a necessidade das mudanças
imprimidas no projeto inicial da História da sexualidade, que o fizeram
retornar à Antiguidade greco-romana, mesmo não sendo nem helenista,
nem latinista (FOUCAULT, 1984, p. 12, nota 1). Uma genealogia, portanto,
que estabelece filiações, embora recuse uma temporalidade linear, con-
tinuista e sucessiva e, principalmente, onde as rupturas não são “episte-
mológicas” no sentido de Bachelard (MACHADO, 1982). Assim, podemos
entender também as críticas de Foucault à psicanálise como uma crítica
a uma historiografia hagiográfica da psicanálise, que imputa a Freud uma
ruptura absolutamente radical, de tal modo que a psicanálise (caracte-
rizada como anticartesiana, como antifilosofias da consciência) acaba
por ser concebida de maneira ahistórica. A mesma crítica (e neste caso a
hagiografia atinge limites assustadores!) pode ser endereçada às rupturas
provocadas por Lacan no interior da própria psicanálise. Daí, em grande
parte, a estranheza e as resistências provocadas pela biografia de Lacan,
escrita por Roudinesco (1994), que se recusa à hagiografia.
A segunda: Nietzsche e Heidegger são mais importantes para Fou-
cault, nesta questão, a das relações entre sujeito e verdade, do que Lacan. Eu
diria que talvez Foucault se refira a Lacan, reconhecendo sua importância,
muito mais devido a Heidegger que, como sabemos, foi bastante lido e
389

incorporado por Lacan. O próprio Foucault diz, na sua resposta, que ele
está ao lado de Heidegger e não do de Lacan: “é antes ao lado de Heidegger
e a partir de Heidegger que tentei refletir a respeito [das relações entre su-
jeito e verdade]” (FOUCAULT, 1981-1982/2006, p. 233)6. Lembremos a este
respeito, que Foucault diz que se, por um lado, seus estudos são estudos
de “história”, tendo em vista os “campos que tratam e as referências que
assumem”, por outro lado, não são trabalhos de “historiador” (FOUCAULT,
1984, p.13), isto é, continuam sendo trabalhos de um filósofo, mas que são
trabalhos de um filósofo a quem não falta “sentido histórico”, para lembra-
mos a afirmação de Nietzsche, para quem “a falta de sentido histórico é o
defeito hereditário de todos os filósofos” (1878/2000, p. 16). Assim sendo,
o objetivo de Foucault não é, como ele afirma peremptoriamente, nem
fazer uma história dos comportamentos, nem uma história das repre-
sentações, mas sim, uma “história do pensamento”, ou seja, uma história
que visa “definir as condições nas quais o ser humano ‘problematiza’ o
que ele é, e o mundo no qual ele vive” (FOUCAULT, 1984, p. 14). É apenas
em atenção a este modelo historiográfico, concebido como formulação
de problemas, que podemos compreender, em toda a sua extensão e em
toda a sua radicalidade, a confrontação de Foucault com a psicanálise.
Um trabalho desta envergadura ainda está por ser feito.

6 Entretanto, na entrevista-necrológio sobre Lacan, Foucault afirma que suas leituras de


Lacan, no começo dos anos 1950, estavam acopladas a de Lévi-Strauss (1981/1994b, p. 205).
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