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azougue editorial
2010
Coordenação editorial
Sergio Cohn
Equipe Azougue
Carolina Noury, Elisa Ramone, Evelyn Rocha, Filipe Gonçalves,
Giselle de Andrade, Ismar Tirelli Neto, Larissa Ribeiro, Lilian Diehl, Marta Lozano
Revisão
Evelyn Rocha
CIP-BRASIL. CATALOGAÇÃO-NA-FONTE
SINDICATO NACIONAL DOS EDITORES DE LIVROS, RJ
F524
Filosofia, psicanálise e sociedade / Cláudio Oliveira (org.). - Rio de Janeiro : Beco do Azougue, 2010.
[ 2011 ]
Beco do Azougue Editorial Ltda.
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azougue - mais que uma editora, um pacto com a cultura
9 Apresentação
pela Editora Humanitas, sob o título A filosofia após Freud, que foi lançado
durante o III Encontro) e um CD-ROM com todas as apresentações de
comunicações de mestrandos e doutorandos. O resultado em termos de
publicação atesta a qualidade das exposições e debates realizados, cola-
borando para a solidificação deste campo de pesquisa entre nós.
Os trabalhos reunidos neste volume se detiveram no tema So-
ciedade sob as mais diversas perspectivas. O problema da tradição, da
transmissão e da memória e do seu sentido na psicanálise e na filosofia
foi objeto de artigos que transitaram desde as referências freudianas em
Moisés e o monoteísmo até o Protesto em Lutero, o judaísmo em Espinosa
e Freud e a repetição em Walter Benjamin. No bojo dessa discussão, todo
o problema que envolve a questão religiosa e a referência ao Pai em Freud
é articulada com o que se encontra no cerne do problema da tradição, de
sua transmissão e memória.
Um número extenso de artigos, por sua vez, transitou da metapsi-
cologia freudiana para uma série de consequências políticas de algumas
noções fundamentais que a constituem com as de pulsão e narcisismo, por
exemplo. Outros artigos articularam o pensamento de Freud ao de Benja-
min, de Derrida e outros autores contemporâneos na tentativa de pensar
temas como a violência e a crueldade. Há ainda discussões em torno da
noção de mal-estar que desembocam seja no problema da técnica, seja
no problema do marketing, seja em questões clínicas. Os conceitos de
sujeito e objeto são ainda alvo de uma especulação em torno do problema
da arte contemporânea.
Um número considerável de artigos deteve-se em questões lógicas
e epistemológicas e em suas consequências ético-políticas para o nosso
tempo, assim como no estatuto da psicanálise, entre as ciências exatas
e humanas, e na possibilidade de extensão do alcance da psicanálise na
análise de fenômenos sociais.
As questões em torno do afeto, da paixão e do prazer moveram au-
tores em investigações sobre Descartes, Sade ou Benjamin, situando fatos
da psicanálise contemporânea num debate com sistemas filosóficos que
surgiram na modernidade ou que se construíram na contemporaneidade.
12
parte 1
Tradição, Transmissão e Memória
Herdar é ultrapassar o pai: tradição e transmissão1
Anna Carolina Lo Bianco (UFRJ)
1 O texto conserva a forma como foi apresentado em Mesa Redonda no III Encontro Na-
cional de Pesquisadores em Filosofia e Psicanálise – Psicanálise e Sociedade. UFRJ/UFF.
Novembro de 2008.
16
ter sua vida simples medida pela distância ao ideal e vivam na promessa
paradoxal de que quanto mais o ideal for mantido no lugar de ideal, mais
terá legitimidade para garantir que será alcançado sempre num tempo
por vir.
Especificamente no caso da religião de Moisés, Freud observa que
a força de sua tradição vem em grande parte da religião transmitida pelo
líder, que elevou o conceito que os judeus tinham de si a ponto desses se
acreditarem superiores a todos os outros povos, dos quais se mantiveram
afastados.
O que preservaria sua coesão era justamente esse fator ideal que se
relacionava à posse comum de bens intelectuais e emocionais, que por
sua vez lhes havia sido garantida por sua própria crença na grandiosidade
do Deus introduzido por Moisés.
Então, há um movimento que se pode surpreender por sua circu-
laridade, na medida em que a crença num deus fortalece aquele que crê.
Justamente porque ele busca na crença do ideal o seu fortalecimento. E
Freud observa que a religião de Moisés teve em grande parte seu efeito
duradouro, porque, em primeiro lugar, fez o povo participar da grandiosi-
dade de uma nova representação de Deus. Depois porque afirmou que esse
povo havia sido eleito por esse grande Deus e estava destinado a receber as
provas de que havia sido eleito. A religião de Moisés tira sua força também
de ter constrangido o povo a progredir na espiritualidade o que o levou ao
caminho de uma estima elevada de si e de outros trabalhos intelectuais e
de outras renúncias do pulsional.
Temos aí fortes razões para que a transmissão da religião ao longo
dos séculos se visse justificada.
No entanto, e é esse o ponto que nos interessa, Freud irá mostrar
que, ainda aqui, há algo de insatisfatório quando se trata de examinar a
força da transmissão de uma tradição.
Diz que há uma motivação mais profunda que pode ser inserida nas
afirmativas acerca da religião, mas que estão muito além delas: “a religião
de Moisés não exerceu seus efeitos de maneira imediata, mas de maneira
assombrosamente indireta”.
18
separar o poder terreno do religioso. Para tanto, ele buscou resgatar, num
mundo que se abria a uma circulação discursiva jamais antes imaginada,
o fundamento teológico para a autoridade religiosa, estabelecendo – por
contraste – o fundamento secular para a autoridade política. O movimento
efetuado por Lutero não visou preservar uma antiga forma de autoridade,
mas sim em instaurar um novo fundamento sobre o qual uma autoridade
poderia se exercer.
A interrogação teológica que assistimos em Lutero consistiu num la-
borioso esforço de buscar fundamentar e conceder à função da autoridade,
sob a qual uma verdade se exerce, um novo fundamento simbólico para
que, aqueles que viessem a ocupar esse lugar, pudessem legitimamente
exercer seu poder. Na realidade, ele trata de substituir uma função de
dominância por outra, mesmo que ainda mais degradada, para que esta
função continue a se exercer na nova estrutura discursiva que se anuncia-
va. Porém, através dessa interrogação moral sobre o fundamento do que
comanda o homem, Lutero acabou por agravar profundamente a fratura
que denunciava no fundamento da autoridade vigente.
A corrosão no fundamento da autoridade segue uma marcha irre-
versível e, a nosso ver, apresenta um roteiro das diferentes posições que
decorreram de uma interrogação do Pai. O primeiro momento, procedido
pelo pensamento luterano, se elabora no interior do terreno da teologia e
das práticas religiosas. Essa posição se radicaliza nas formulações desdo-
bradas pelos calvinistas e anabatistas para, por fim, causar, a seu despeito,
uma busca da reificação da autoridade contestada pelo movimento da Con-
trarreforma católica. Talvez em decorrência do efeito de universalização
promovido pelo espírito catequista, essa interrogação tenha se alastrado e
produzido consequências incomensuráveis; seja pelas radicais transforma-
ções que acarretou no âmbito econômico e social, quanto pela exigência
de se instituir uma forma completamente nova de se fazer política.
O encaminhamento dado por Lutero ao questionamento que se
introduziu nele interessa-nos, particularmente, porque apresenta os fun-
damentos essenciais para a introdução no social do discurso que coloca o
sujeito no trabalho, ou seja, o discurso psicanalítico. Ao recorrer a essa refe-
23
rência histórica, Lacan nos mostra que desconhecer esse “ponto de fratura”
no pensamento ocidental é desconhecer a cadeia em que estão inseridos os
impasses e paradoxos que atravessam e dirigem a interrogação freudiana.
E ainda, aponta nisso uma continuidade da ordem da “filiação ou da pater-
nidade cultural” que orienta toda a investigação freudiana acerca do assas-
sinato do Pai e da instituição da Lei. (LACAN (1988) p.123) Autorizado por
essa leitura, ele entende que a Reforma constitui-se como um movimento
que faz uma inflexão “na consciência progressiva de si que sustentaria um
desenvolvimento natural” em direção ao Bem. (LACAN (2005) p.30) Essas
balizas nos possibilitam isolar o ponto de virada na relação com o Pai que
nos permite dizer por que é novo ver surgir, a cada vez, o sujeito da ética da
psicanálise nesse lugar que se abre com o projeto reformista.
Lacan situa o movimento iniciado por Lutero como o responsável
por “toda nossa instalação moderna no mundo” (LACAN (1988) p.118), e,
sobretudo, pela ética que o sustenta. Assim, dos argumentos que decidem
a posição reformista, ele retira algumas consequências que estão no cerne
do que se articula como a ética da psicanálise. Cabe mostrar, na esteira do
trabalho de Lacan, em que medida os argumentos de Lutero abriram as
portas para a instauração imperiosa da lógica da ciência, que, tal como ele
demonstra, consiste na introdução do sujeito como ponto central a partir
do qual virá a orbitar esse novo mundo, mesmo que ao preço de seu mais
radical desconhecimento.
Dentro desse programa, o primeiro ponto que se destaca ao analisar-
mos alguns traços mais fundamentais do discurso de Lutero e da formação
do movimento reformista é a mudança de posição do sujeito em relação
ao Outro. Lutero não mais endereça a esta instância uma questão sobre
o Bem, mas, ao contrário, esse Outro se apresenta como uma instância
em relação a qual ele se encontra com o Mal que o constrange para além
de toda sua intenção, de seu domínio e de seu controle. Dessa forma, o
Mal forja um lugar de exílio para o sujeito no qual ele se vê remetido ao
pecado. Pecado este que o constitui e pelo qual se relaciona com Deus,
autoridade inquestionável da qual pode somente esperar a graça de um
dia, quiçá, redimi-lo.
24
Deus que vem sua própria responsabilização. Lutero, portanto, situa o Mal
como uma causa que pode mover o sujeito. Esse é o argumento luterano
que Lacan mais valoriza porque é o Mal que leva o sujeito a trabalhar, é
o motor que promove o encontro com o novo, isto é, com aquilo que lhe
é mais estrangeiro. Desta forma, Lutero privilegia o encontro com o que
está para além de seu querer. A divisão que se lhe apresenta entre o Bem
que ele quer e não faz e o Mal que ele realiza a despeito de seu querer,
marca o encontro e a submissão do sujeito com a Lei de Deus e com a Lei
do pecado. Para ele, a Lei terá, sobretudo, a função de se constituir como
um texto onde este pecado pode se inscrever.
A questão que se introduz por esse encaminhamento nos faz repensar
o próprio estatuto da Lei. Se Lutero e São Paulo colocam em questão a Lei,
embora tratem de uma Lei decaída, que prescreve aquilo que o fiel precisa
fazer para se manter no bom caminho, eles a tomam como um instrumen-
to através da qual o homem pode conhecer o pecado. A Lei se apresenta,
sobretudo, como um texto que escreve uma falha em relação ao que ali está
prescrito e, desse modo, a letra da Lei se apresenta como um instrumento
que mortifica o homem. No entanto, São Paulo nos mostra que não basta
que a falha se escreva para o fiel, é preciso que ele faça algo com isso. Há,
portanto, uma torção nessa forma como se concebe a Lei a partir de Lutero e
São Paulo, posto que nesta articulação seja exigido um ato para se efetivar a
Lei, que não pode ser reduzida a uma regra pré-estabelecida. Vemos, assim,
que a Lei vem a se confundir com o ato que a ultrapassa. É pelo ato que o
homem pode encontrar a falha e, consequentemente, é só através de um ato
que ele vai poder se encontrar com aquilo que o move. Assim, se a Lei escreve
uma falha, ela também escreve aquilo que se apresenta como sua causa.
Nesse breve levantamento do caminho feito por Lutero, encontra-se
articulada uma forma de relação do fiel com o que o constitui e o constran-
ge em sua ação que não é sem consequências para o sujeito da psicanálise.
O intratável ou o incurável do Mal e da concupiscência que o acompanha
revelam o que se apresenta como o mais enigmático no campo do sujeito,
isto é, a repetição do que lhe é mais adverso e doloroso na medida em que
ele não consegue se afastar do gozo que encontra nisso.
29
Referências bibliográficas
1 Nota do tradutor: Escritura (com maiúscula) no texto significa o conjunto dos livros da
Bíblia, a Sagrada Escritura ; em português, mais usado no plural, as Sagradas Escrituras.
2 Cf. Geneviève Brykman, La judéité de Spinoza, Paris, Vrin, 1972 ; J. Derrida, Mal d’Archive,
Paris, Galilée, 1995, p. 115-116.
38
3 Cf. S. Freud, L’Homme Moïse et la religion monothéiste, Paris, Gallimard, 1986. Cf. Monique
Schneider, « De L’interprétation des rêves au Moïse : le débat avec le statut du féminin », in
Sigmund Freud, de l’Interprétation des rêves à L’Homme Moïse, Revue Germanique Interna-
tionale, 14 / 2000, p. 60-80.
4 Cf. S. Freud, Allocution aux membres de la société B’nai B’rith, 1928, in Œuvres Complètes
XVIII, Paris, PUF, 2002, p. 115-117.
5 Cf. S. Freud, Allocution aux membres de la société B’nai B’rith, op. cit., p. 115-116.
39
10 Nota do Tradutor: Cherem (or Herem) é a mais alta censura eclesiástica na comunidade
judaica. É a exclusão total de uma pessoa da comunidade judaica, similar à excomunhão na
Igreja Católica. O mais famoso caso de herem é o de Espinosa.
11 Cf. B. Spinoza, Ep. XVII, à P. Balling, Œuvres IV, Appuhn, Paris, GF, p. 176 ; Spinoza Opera
IV, p. 77.
12 Cf. G. Brykman, La judéité de Spinoza, op. cit., p. 39-43.
13 Cf. J. Derrida, Mal d’Archive, op. cit.
14 Cf. Régine Robin, « Freud en héritage : une identité postjudaïque ou marrane ? », in Sigmund
Freud, de l’Interprétation des rêves à L’Homme Moïse, Revue Germanique Internationale, op.
cit., p. 173-183.
41
20 Cf. J. Lacan, Le Séminaire, Livre XVII, L’envers de la psychanalyse, Paris, Seuil, 1991, p.
133-135.
21 Cf. E. Sellin, Moïse et sa signification pour l’histoire israélite et juive, <Mose und seine
Bedeutung für die israelitisch-jüdische Geschichte>.
43
isolada por Espinosa, mas ela poderá doravante ser considerada como os
outros textos. É este “como os outros” que designa, por diferentes razões,
um dos pontos de interseção profanos entre o espinosismo e o freudismo.
É este ponto que nós gostaríamos precisamente de evocar para terminar.
2) Para demonstrar a fonte e a natureza psíquica do sonho, Freud
demonstra, na primeira metade da Traumdeutung, que o sonho realiza
um desejo, um pensamento de sonho, ao mesmo tempo que o mascara.
Esta demonstração ocasiona uma primeira aproximação entre o apare-
lho psíquico e a interpretação. Ora, segundo os Capítulos V,C e V,D da
Traumdeutung,29 uma vez que o desejo se torna preciso sob a forma sim-
bólica do Édipo através de um sonho típico, Freud evoca uma lenda, um
material literário e novidades no método de interpretação para o mesmo
objeto psíquico que é o sonho. Freud prossegue a recusa do falso simbo-
lismo, ao qual ele opõe o verdadeiro simbolismo, que é o complemento
da interpretação clássica, fundada no acesso às associações psíquicas do
sonhador. Fazendo isso, em acordo com a tese principal segundo a qual
a natureza psíquica do sonho é uma abertura para a autonomia da vida
psíquica em geral, aparece que a doutrina da interpretação do sonho
também é uma abertura para uma doutrina da interpretação dos textos,
ao mesmo tempo lendários, literários e bíblicos.
Freud, portanto, não escolheu, por diversas razões apenas conjetu-
rais ou históricas, aplicar um Método a um novo objeto, passar do sonho
à Escritura, analisar sonhos, e então analisar a Escritura. A passagem do
sonho ao texto é teorizada na Traumdeutung, em torno de um duplo argu-
mento: primo, o sonho é a autonomia do psiquismo, portanto, o sonho é
uma janela aberta para a vida anímica, para outros sonhos e mesmo para a
interpretação analítica; secundo, face a certos materiais de sonho, o sonho
torna-se uma janela aberta para outros textos, portanto, para uma trans-
missão muito diferente daquela da narrativa analítica ao analista. Duas
narrativas existem, com um conteúdo comum: o mesmo analista recebe
esse conteúdo, mas dois métodos são requeridos, com coisas novas que
estão em jogo para a psicanálise.
30 Cf. S. Freud, L’interprétation du rêve, op. cit., note 1, p. 280 et note 1, p. 303.
31 Cf. S. Freud, L’interprétation du rêve, op. cit., p. 301.
47
Introdução
“Nem a matéria, nem o espaço, nem o tempo são, desde há vinte
anos, o que eles eram desde sempre”. É esta frase de Valéry, redigida em
1934, que Walter Benjamin escolhe como epígrafe para seu famoso texto
A obra de arte na época de sua reprodutibilidade técnica. Todos os escritos
tardios de Benjamin são consagrados à descrição dessas mudanças no
espaço e no tempo, cuja raiz deve ser situada já no Segundo Império e
em particular em Charles Baudelaire como precursor da modernidade.
No tempo que me é dado aqui, eu gostaria de seguir Benjamin des-
crevendo as mudanças da modernidade como reação a um choque. Nós
veremos primeiramente de que choque se trata para examinar em seguida
a maneira como Freud explica seus mecanismos, assim como a maneira
como a teoria de Benjamin poderia prolongar o pensamento freudiano
para chegar a uma teoria psicanalítica da modernidade.
Vivido e experiência
Passemos, portanto, ao texto freudiano que Benjamin escolhe para
analisar: Além do princípio do prazer, um dos textos mais ambíguos e
difíceis de Freud.
Freud afirma nesse texto que “a consciência nasceria no lugar do
traço de memória” (p. 337), o que quer dizer que “ tornar-se consciente e
deixar um traço de memória são processos incompatíveis em um único
sistema”.1 Isso não significa, segundo Benjamin, que não se tem nenhu-
ma memória do que se viveu conscientemente, mas, antes, que não se
tem disso uma memória involuntária: “Só pode tornar-se elemento da
memória involuntária o que não foi expressamente e conscientemente
‘vivido’ pelo sujeito” (339).
Antes de tentar a explicação do que poderia ser uma tal memória
involuntária, é importante ver que, para Freud, assim como para Benja-
min, que o segue, a consciência tem uma função totalmente diferente da
memória: ela deve se proteger contra os estímulos exteriores. Essa tarefa
de proteção é “quase mais importante que a recepção dos estímulos”, pois
se trata de energias penetrando o sistema psíquico de fora e ameaçando
destruí-lo. Mas o que acontece uma vez que uma quantidade inesperada
de energia consegue penetrar no sistema? O choque, é claro. Ora, o choque,
parece, é inevitável; ele faz parte integrante da vida e, portanto, o impor-
tante não é tanto evitá-lo, mas sim, bem registrá-lo na consciência e desta
maneira atenuar o traumatismo. A grande questão é saber como dominar
o choque, uma questão chave para compreender o projeto psicanalítico
segundo Benjamin, mas também para compreender o que está em jogo
na experiência moderna.
Assim, Benjamin afirma:
2 Benjamin se refere aqui, certamente, à experiência poética, mas em outras partes do seu
texto, ele fala da experiência tout court.
56
O declínio da aura
O que é a aura? E que relação tem ela com a experiência moderna
ou o vivido moderno do choque? Em A obra de arte na época de sua repro-
dutibilidade técnica, Benjamin dá uma definição inicial da aura:
laire, redigido alguns anos mais tarde sob a influência de Adorno. Nesse
texto, a perda da aura é explicitamente ligada à perda da experiência e da
memória involuntária:
Mas por que é tão difícil ter acesso a uma tal aura? Nós vimos que
no caso de choque há uma reversão dos papéis entre processo primário e
processo secundário. A aura moderna deve, portanto, reverter de novo os
papéis, não para retornar simplesmente à primazia do inconsciente, mas
para mostrar ao mesmo tempo essa primazia e sua impossibilidade hoje
em dia, na época do choque que necessita de um domínio permanente,
aí incluído o do inconsciente. A aura moderna deve, portanto, jogar entre
distância e proximidade, entre ausência e presença, repetindo ao mesmo
tempo esse jogo. Essa repetição é justamente o exercício do qual Benjamin
falou: é uma manipulação da coisa que reconhece seus dois pólos: o pólo
ausente e o pólo presente, enquanto a repetição cotidiana, sob o modelo
da fotografia ou do telefone celular, não reconhece nem a ausência nem
a estrutura mesma da repetição. Nós falamos ao telefone, e nós não nos
damos conta de que se trata de uma voz reproduzida, de uma voz que re-
pete uma outra voz, um original do qual nós não sabemos jamais o lugar.
Pois a primeira questão que nós colocamos ao celular, sem pensar nela, é
quase sempre: onde você está? O outro está sempre ausente.
O reconhecimento da repetição, de um lado, e a ausência, por outro
lado, é um reconhecimento do choque. É apenas esse reconhecimento que
pode desde então ajudar a superá-lo. Não registrando-o rapidamente na
consciência, mas, ao contrário, deixando o processo primário funcionar
– e com ele a memória involuntária. O exercício da coisa, por exemplo,
a manipulação da bobina no jogo do Fort-da, liga-a à vida pessoal da
criança, de modo que uma memória involuntária se cria em torno dela.
Alguns anos mais tarde, quem sabe, a criança poderia reencontrar a bobi-
na e, com ela, a si mesma, da mesma forma que o herói de Cidadão Kane
reencontra, antes de morrer, seu brinquedo de infância preferido, o trenó
que se chama Rosebud.
É esta repetição áurica da coisa que pode, portanto, criar uma me-
mória involuntária e uma verdadeira experiência. Mas se a modernidade
se caracteriza, com efeito, por choques constantes e, desde então, por uma
reversão dos processos primários e secundários, como nós poderíamos re-
encontrar a experiência? Como nós poderíamos ter acesso à aura moderna?
62
por isso mesmo ela privou Baudelaire, ele mesmo, de sua própria vida,
tendo-se aproximado excessivamente do choque. É talvez também o caso
de Freud: tendo-se aproximado excessivamente do inconsciente, ele ter-
minou por destruir sua aura. Mas ele não nos capturou com ele a todos
nós? Não somos nós excessivamente conscientes do inconsciente? Não
tentamos nós atenuar o choque da modernidade permanecendo cons-
cientes dele, ao invés de integrá-lo, de repeti-lo da boa maneira? Como ter
acesso, portanto, à aura moderna na vida de todos os dias?
Para responder a isso nos é necessário compreender nosso cotidiano
mesmo como trabalho de repetição mecânica que não se deixa ver como
tal. Talvez nós pudéssemos ver nosso próprio cotidiano e transformá-lo,
tendo acesso à aura moderna, repetindo as coisas pelo exercício, reco-
nhecendo sua ausência, seu aspecto repetitivo, o choque do qual a vida
cotidiana tenta se proteger. Mas isso transcende o lugar e o tempo que me
são dados, no quadro deste Encontro, e é melhor que eu me detenha aqui.
parte 2
Metapsicologia, Política, Cultura e Arte
O antinaturalismo da pulsão freudiana
Christian Hoffmann (Paris-Diderot)
Tradução: Pedro Henrique Bernardes Rondon
difícil falar, e sem a qual não podemos falar” (FOUCAULT, 1994, p. 205).
A teoria lacaniana do sujeito tem grande utilidade para nós aqui.
Como é sabido, Lacan fez do sujeito cartesiano o pressuposto do incons-
ciente (LACAN, 1966, p. 839). Ele encontrou seu principal ponto de apoio no
cogito cartesiano. Isso lhe permitiu propor a noção de “sujeito da ciência”
(MILNER, 2002), a saber, esse “eu” [“je”] que diz “penso, logo existo”. Seria
preciso que interrogássemos a ruptura de Lacan quanto a essa concepção
do sujeito, a partir do momento em que ele iniciou sua problematização
da identidade sexuada (LACAN, 1972-73/1975). E não demorou que esse
sujeito, que não pode ser reduzido ao “eu” [“je”] do enunciado, se ma-
nifestasse como dividido entre o enunciado e a enunciação, o saber e a
verdade, o corpo e o gozo, a gramática e a lógica.
Em todo caso, torna-se urgente, especialmente nas nossas univer-
sidades, repensar a articulação da psicanálise com a ciência, tomando em
consideração essa evolução de uma parte importante da ciência em direção
à naturalização do espírito. É esse trabalho de pesquisa que nos propomos
a conduzir ao interrogar os modos de produção de subjetividade a partir da
filosofia, da ciência e da psicanálise, e em relação a uma concepção psicana-
lítica do sujeito como efeito de seu relacionamento ao logos. Estou pensando,
por exemplo, no trabalho de J. Butler sobre o performático (BUTLER, 2008).
Esse sujeito está estreitamente ligado ao corpo. Para Freud – e este
é um ponto que nos parece crucial aqui – cabe a cada sujeito fazer um
verdadeiro trabalho de desnaturalização, para evitar tornar-se o “joguete
das forças naturais” (FREUD, 1927/1995, p. 19). Esse trabalho depende
da responsabilidade do sujeito, em que se põe em jogo sua sexuação pelo
desejo e pelo gozo. A psicanálise deve levar por adiante seu esforço de
pensar a desnaturalização do sujeito num ambiente científico em larga
medida conquistado pelo naturalismo – contra isso Emmanuel Levinas
(1934/1977)1 já nos alertava desde 1934, e em seguida os trabalhos de
Georges Canguilhem sobre Le cerveau et la pensée (1980/1993).2
1 Cito-o aqui: “Se os materialistas confundiam o eu [moi] com o corpo, faziam-no à custa de
uma negação pura e simples do espírito” (LEVINAS, 1934/1977, p. 16).
2 Cito-o aqui: “Ao longo do século XIX o Eu [Je] penso foi diversas vezes recusado ou refutado,
em favor de um pensar sem sujeito pessoal responsável” (CANGUILHEM, 1980/1993, p. 17).
71
3 “O sujeito articula a questão ‘o que sou eu ali?’ a propósito de seu sexo e de sua contingência
no ser” (LACAN, 1966, p. 549).
72
4 Cf. o relatório do INSERM (2004) sobre a avaliação das psicoterapias: “As terapias comporta-
mentais e cognitivas representam a aplicação, à prática clínica, de princípios que provêm da
psicologia experimental. Inicialmente essas terapias se fundavam nas teorias da aprendiza-
gem: condicionamento clássico, condicionamento operativo e teoria da aprendizagem social.
Depois tomaram como referência as teorias cognitivas do funcionamento psicológico, em
especial o modelo do tratamento da informação. Os princípios do condicionamento clássico
(correspondente ou pavloviano) se baseiam na noção de que um determinado número de
comportamentos resultam de um condicionamento por associação de estímulos (...)”. Cf.
Thiebierge & Hoffmann, a propósito do relatório sobre psicoterapias.
74
dos saudáveis, que permitiu a Freud, como ele próprio o diz, descobrir uma
inclinação para todas as perversões no ser humano; donde, sua famosa
conclusão: “A neurose é o negativo da perversão”. Falar de predisposição
às perversões torna a evocar essa predisposição como original e universal
a toda a sexualidade humana. A pulsão sexual é agora ligada à descoberta
da sexualidade infantil perversa. Vai se desenvolver sob o efeito de mo-
dificações orgânicas e de inibições psíquicas como o pudor, a repulsa, a
compaixão e as construções sociais da moral e da autoridade. Reconhece-
se o efeito do recalcamento nesse desenvolvimento sexual qualificado por
Freud como normal.
Dessa maneira, não é de surpreender que se encontre um laço entre
as inclinações perversas em negativo no neurótico, e as perversões ditas
positivas. Não há senão a diferença da fixação e da regressão ao infantil,
o que, como Freud acrescenta em 1915, torna as perversões acessíveis à
terapia psicanalítica (FREUD,1905, op. cit., p. 181). Esse resultado está
bastante distante da invenção, no século XIX, do “perverso como um gênero
de homem, do qual essas perversões específicas são as espécies”. Caberá
a Foucault denunciar a redução do homossexual a uma espécie seguindo
a equação: o homossexual é um perverso, e um perverso é um doente. A
esse propósito pode-se ler o excelente trabalho de Hacking, no Collège de
France, sobre as classificações. Em suma, o estudo da homossexualidade
permitiu à psicanálise desnaturalizar o sexo.
Freud conclui seu primeiro capítulo sobre a inversão pela ruptura
de um vínculo supostamente natural entre a pulsão e o objeto. Ademais,
não é o objeto que determina a excitação pulsional. A pulsão é indepen-
dente de seu objeto; a “soldagem” entre eles é que é anormal. A psicanálise
pode, assim, manter seu lugar no debate entre as teses essencialistas, que
procuram o gene gay, e as teses dos construcionistas. Ainda mais que Freud
acrescenta em 1915 que:
Conclusão
Podemos concluir nosso assunto acerca da etiologia sexual das neu-
roses lembrando que a sexualidade é humana por seu aprisionamento no
discurso. O que lhe tira toda a co-naturalidade a um objeto natural, e isso
79
Referências bibliográficas
Introdução
A tese que Freud defende em Psicologia das massas e análise do eu
(1921) é a de que “os laços libidinais são o que caracteriza um grupo”. Freud
acredita que o laço libidinal com outras pessoas introduziria um limite
ao narcisismo. Essa referência ao narcisismo, em Psicologia das massas,
parece indicar que o texto metapsicológico que Freud tem como base na
constituição desta sua teoria do laço social seja Introdução ao Narcisismo
(1914), mesmo que Psicologia das massas tenha sido escrito logo depois de
Além do princípio do prazer (1920). A oposição fundamental, em Psicologia
das massas, é entre libido e narcisismo, enquanto a oposição fundamental,
por exemplo, em outro texto que escreverá mais tarde sobre o laço social,
O mal-estar na civilização (1930[1929]), é entre libido e pulsão de morte,
levando já em consideração a novidade metapsicológica introduzida em
Além do princípio do prazer (1920). Essa constatação poderia nos fazer crer
que Freud escreve, a partir de duas teorias metapsicológicas distintas, duas
teorias distintas do laço social. Se adotarmos a nomenclatura lacaniana,
poderíamos afirmar, por exemplo, que, em Psicologia das massas, Freud
pensa um fenômeno imaginário, a formação de grupo e o narcisismo a ela
inerente, como aquilo que faz objeção ao laço social. É nesse sentido que
84
os outros indivíduos, pois, como ele lembra, “na vida psíquica do indivíduo
o Outro é regularmente levado em consideração”.1
Cabe aqui acentuar dois aspectos dessas afirmações. Em primeiro
lugar, Freud pensa o laço social a partir do problema econômico: o da sa-
tisfação da pulsão. A teoria freudiana do laço social é, portanto, uma “teoria
econômica do laço social”, o que significa dizer que ela é uma “economia
política”, na medida em que se tome a expressão “teoria econômica do
laço social” como equivalente à expressão “economia política”. A segunda
coisa para a qual devemos chamar a atenção nessas afirmações iniciais
de Psicologia das massas é para o fato de que Freud entende que o Outro
tem necessariamente um lugar na resolução do problema econômico do
indivíduo. E é precisamente por isso que esse problema econômico é um
problema político. Se o problema fundamental do indivíduo é o da satis-
fação das suas moções pulsionais, o que Freud lembra é que, no caminho
que leva a essa satisfação, o indivíduo sempre passa pelo Outro. Um Outro,
no entanto, que não lhe é externo, mas interno; um Outro que ele encontra
no interior de sua própria vida psíquica. Um Outro psíquico, portanto.
É preciso atentar, portanto, para o fato de que, nesta introdução a
Psicologia das massas, o que Freud quer marcar é que o Outro pertence à
vida psíquica ou, dito em outros termos, que o social constitui o indivi-
dual e, nesse sentido, o problema da satisfação pulsional é um problema
político. Como nos lembra Freud, é desde o início [daher Von Anfang], e
não apenas depois, num momento posterior, que a psicologia individu-
al, “nesse sentido ampliado, mas inteiramente justificado, é também, ao
mesmo tempo, psicologia social”.2 Freud reivindica, em função disso, para
todas aquelas relações que costumamos pensar como da ordem do privado
(“as relações de um indivíduo com os pais, com os irmãos e irmãs, com
1 “Im Seelenleben des Einzelnen kommt ganz regelmässig der Andere (…) in Betracht”,
Freud, S. « Massenpsychologie und Ich-analyse ». In: Gesammelte Werke. Band XIII. Frankfurt
am Main: Fischer Taschenbuch Verlag, 1999, p. 73. [Ed. Bras.: Freud, “Psicologia de Grupo e
Análise do Ego”. In: Edição Standard Brasileira das Obras Psicológicas Completas de Sigmund
Freud. Volume XVIII. Rio de Janeiro: Imago, 1996, p. 81]. A Ed. Bras. traduz esta passagem
por “Algo mais está invariavelmente envolvido na vida mental do indivíduo”, reduzindo “o
Outro” [der Andere] do texto original a “algo mais”.
2 Freud, “Massen Psychologie und Ich-Analyse”. In : op. Cit., Band XIII, p. 73 [Ed. Bras.: “Psi-
cologia de Grupo e análise do ego”. In: op. Cit., Volume XVIII, p. 81].
86
5 Freud, “Das Unbehagen in der Kultur”. In: op. cit., Band XIV, p. 424 [“O mal-estar na civili-
zação”. In op. Cit., Volume XIX, p. 76].
88
Referências bibliográficas
1 FREUD, Sigmund ; Gesammelte Werke vol XV, Frankfurt: Fischer, 1999 p. 194
103
2 Ver HONNETH, Axel ; The critique of power: reflective stages in a Critical Social Theory,
Cambridge, MIT Press, 1991
104
3 Ver, por exemplo, PINKARD, Terry ; Hegel´s phenomenology : the sociality of reason, Cam-
bridge University Press, 1994 ; PIPPIN, Robert, Hegel´s pratical philosophy : pratical agency
as a ethical life, Cambridge University Press, 2008 e BRANDOM, Robert, Tales of the mighty
death, MIT Press, 2002.
105
4 Esta questão está claramente enunciada em trechos como, por exemplo : “Grande parte das
lutas da humanidade centralizam-se em torno da tarefa única de encontrar uma acomodação
conveniente, ou seja, um compromisso (Ausgleich) que traga felicidade entre reivindicações
individuais e culturais; e um problema que incide sobre o destino da humanidade é o de
saber se tal compromisso pode ser alcançado através de uma formação determinada da
civilização ou se o conflito é irreconciliável.” (FREUD, Das Ubehagen in der Kultur, In: Ge-
sammelte Werke, vol. XIV, p. 455).
106
8 Idem, p. 185
109
11 Isto pode nos explicar porque Adorno mobiliza tais categorias no interior de sua crítica
ao sujeito moral kantiano. Por exemplo: “A liberdade, como conceito universal abstrato
de um para-além da natureza, é espiritualizada como liberdade em relação ao reino da
causalidade. Mas assim ela leva à autodesilusão. Psicologicamente falando, o interesse do
sujeito pela tese de sua liberdade seria narcísico, tão desprovido de medida quanto tudo o
que é narcísico. Mesmo na argumentação kantiana, que situa categoricamente a esfera da
liberdade acima da psicologia, ressoa o narcisismo” (ADORNO, Theodor; Negative Dialektik,
Frankfurt : Suhrkamp, 1973, p. 219). Ou ainda, quando ele afirma ser a filosofia moral kan-
tiana: “um caso modelo de fetichismo” (idem, Probleme der Moralphilosophie, Frankfurt:
Suhrkamp, 1996, p. 207)
12 ADORNO, Theodor ; Negative Dialektik, op. cit., p. 202
112
18 ADORNO,Theodor,
ADORNO Negative Dialektik, , p. 221.
19 ADORNO, Theodor, Negative Dialektik, op. cit., p. 267
116
Referências bibliográficas
Preâmbulo
A intenção desse ensaio é a de realizar uma leitura do texto de Der-
rida intitulado Estados da alma da psicanálise (Derrida, 2000). O título do
texto reenvia ao evento que está na sua origem, já que os “Estados da alma
da psicanálise” remetem diretamente aos “Estados Gerais da Psicanálise”.
Com efeito, o texto em questão foi a resultante da conferência empreendida
por aquele nesse evento, que ocorreu em Paris, em 2000.
O nosso propósito é o de continuar a realizar o comentário dos en-
saios de Derrida nos quais a psicanálise se inscreve como o seu tema fun-
damental. Assim, trabalhei inicialmente sobre o ensaio inaugural daquele
sobre a psicanálise, intitulado “Freud e a cena da escrita”, que foi publicado
no livro “A escrita e a diferença” (Derrida, 1967) e editado em 1967 (Birman,
2007). Em seguida, realizei a leitura de “Mal de arquivo” (Derrida, 1995),
que foi publicado em 1995 (Birman, 2008). Porém, se evoco isso aqui e
agora, nesse preâmbulo, é para destacar que esse texto se inscreve num
conjunto maior de referência e num percurso teórico mais abrangente, no
qual procuro delinear as diversas incursões de Derrida sobre a psicanálise.
Essa nova incursão se justifica não apenas porque o texto sobre os
Estados da alma da psicanálse é outro ensaio desses sobre a psicanálise
120
e que foi escrito num outro tempo do seu pensamento, mas também
porque as questões aqui colocadas são de ordem diferente das que foram
recenseadas por Derrida nas suas incursões anteriores. Isso implica em
dizer que Derrida ampliou o seu âmbito de leitura sobre a psicanálise.
Portanto, o que foi destacado nesse momento de seu percurso é diferente
do que foi enunciado anteriormente, evidenciando a presença de algumas
descontinuidades.
Contudo, não se pode perder de vista a evidência de certas linhas
de continuidade entre esses diferentes ensaios sobre a psicanálise, não
obstante as evidentes descontinuidades. É justamente a presença dessa
tensão, entre as linhas de continuidade e as de descontinuidade, o que
revela a construção efetiva de uma obra em Derrida, no que concerne
especificamente a sua leitura da psicanálise, e que se inscreve no campo
de seu discurso filosófico.
Escrita e arquivo
Assim, no tempo inaugural do seu discurso teórico o que estava em
pauta para Derrida era a inscrição da psicanálise na crítica do filosofema da
presença, pela sustentação do enunciado de que o inconsciente se inscre-
veria no registro da escrita e não no da voz (Derrida, 1967) . Neste contexto,
o aparelho psíquico concebido pelo discurso freudiano foi delineado, no
final de seu percurso, como uma máquina de escrever (Derrida, 1967).
Com efeito, na tensão permanente existente entre os registros
da máquina e da escrita, que teria atravessado de fio a pavio o discurso
freudiano – desde o “Projeto de uma psicologia científica” (Freud, (1895),
1973) até as “Notas sobre o bloco mágico” (Freud, (1925), 1985) –, Freud
teria finalmente encontrado a metáfora maquínica adequada para o
inconsciente escriturário, com a concepção do aparelho psíquico como
máquina de escrever, em “Notas sobre o bloco mágico”.
Derrida percorreu nesse ensaio os textos mais densos e rigorosos
de Freud, isto é, os ensaios metapsicológicos. Porém, a sua proposta teó-
rica não foi a de realizar uma leitura metapsicológica da psicanálise. Pelo
contrário, a sua intenção seria a de empreender a crítica do filosofema
121
Crueldade e soberania
Seria justamente pela pregnância assumida pela problemática
dos arquivos sobre o mal no percurso final de Derrida, que a questão da
crueldade assumiu uma posição crucial no ensaio sobre os “Estados da
alma da psicanálise”. Com efeito, da primeira à última linha desse texto
é a questão da crueldade que está sempre em pauta. Além disso, foi por
essa trilha discursiva que a psicanálise foi novamente interpelada por
Derrida, na medida que não existiria qualquer possibilidade de se fazer
uma meditação efetiva sobre essa questão sem a participação do discurso
psicanalítico (Derrida, 2000, p. 11-12).
Antes de tudo, isso implica em dizer, que, na estratégia discursiva
de Derrida, os arquivos sobre o mal revelariam os signos insofismáveis da
crueldade na tradição ocidental. Vale dizer, a crueldade seria o operador
por excelência para a produção do mal. Retomando, assim, a referência
filosófica de Kant, Derrida pôde então afirmar que a crueldade seria o mal
radical (Derrida, 2000, p. 13).
Em seguida, isso evidenciaria ainda que o processo atual de mundia-
lização estaria lançando os dados do destino no que concerne à crueldade
(Derrida, 2000, p. 17-19). Vale dizer, se a crueldade seria uma das marcas
decisivas que permeou a história do Ocidente, as modalidades de sua
existência e as suas formas de apresentação se transformaram ao longo da
história (Derrida, 2000, p. 17-18). Portanto, seria necessário considerar a
crueldade não de maneira trans-histórica, mas sublinhar as suas diversas
transformações e modulações. Enfim, da mesma forma que a psicanálise
seria uma construção histórica e finita (Derrida, 2000, p. 17-19), a crueldade
seria também marcada pela historicidade.
No que concerne a isso, duas dimensões cruciais foram enfatizadas
ao longo do ensaio de Derrida. Se a primeira se refere ao conceito moderno
e contemporâneo da crueldade, a segunda procura enunciar as relações
dessa com a problemática do poder. Vejamos, assim, como Derrida delineia
essa dupla dimensão da questão da crueldade.
Assim, no registro do conceito a crueldade não se reduz, como na
tradição romana, ao crime de sangue, seja esse a criminalidade, seja esse
124
Signos da crueldade
De que maneira se enunciou a problemática da crueldade no discur-
so freudiano? Quais signos evidenciam nesse um trabalho teórico efetivo
sobre a dita problemática?
Certamente, foi pela formulação do conceito de pulsão de morte,
enunciado no ensaio “Além do princípio do prazer” e publicado em 1920
(Freud, 1981), que o discurso freudiano colocou em destaque o registro
do aparelho psíquico onde se enraizaria a crueldade. Com efeito, foi pela
mediação do conceito de pulsão de morte que Freud formulou a existência
da pulsão de destruição como sendo um de seus desdobramentos cruciais,
ao lado da compulsão à repetição. Portanto, foi pelo viés de sua “mitologia”
131
Incondicional impossível
Contudo, o ensaio de Derrida termina com uma outra aposta e com
um outro lance de dados, lançados que foram esses na roleta do destino,
afirmando a sua diferença fundamental para com Freud. Essa aposta é
definida como um incondicional impossível, pelo qual a crueldade poderia
ser dominada e superada. Para que a psicanálise pudesse participar desse
projeto, no entanto, teria que ser concebida num além do princípio do
prazer e do princípio da realidade, isto é, num além do além, parodiando
Derrida criticamente agora o título do texto célebre de Freud sobre a pul-
são de morte. Vale dizer, a psicanálise teria que ser concebida num outro
registro, sem se fundar nestes “principados”, isto é, nessas “soberanias”
delineadas pelos tais princípios do prazer e da realidade (Derrida, 2000,
p. 84-90). Enfim, seria preciso caminhar decididamente em direção ao
além do além, residindo aqui a rota para o imperativo do incondicional
impossível.
Derrida retoma aqui a crítica à psicanálise, já enunciada anterior-
mente em A carta postal, obra publicada em 1980, pela qual tais princípios
e soberanias seriam obstáculos fundamentais para o discurso psicanalítico
(Derrida, 1980). Por isso mesmo, seria preciso ultrapassá-los e superá-los,
para que a psicanálise pudesse se defrontar efetivamente com a problemá-
tica da crueldade, de maneira decisiva. Para Derrida, enfim, tais princípios
provocariam efeitos autoimunes no discurso psicanalítico, conduzindo
esse para a sua dissolução efetiva.
Seria pela superação dessas soberanias, ainda presente no seu
discurso, que a psicanálise poderia se confrontar com esse incondicional
impossível, de forma a poder ultrapassar assim as relações da problemática
da crueldade com a da soberania.
A questão que isso coloca para a psicanálise, no entanto, é se na
sua leitura do aparelho psíquico, tal como foi concebida desde o discurso
freudiano, a psicanálise poderia abrir mão da dimensão econômica da me-
tapsicologia. Isso porque os princípios destacados por Derrida, o do prazer
e o da realidade, estariam no fundamento da dita dimensão econômica do
psiquismo. Seria possível conceber o aparelho psíquico sem a dimensão da
142
Referências Bibliográficas
1 Não nos cabe expor exaustivamente todos os exemplos possíveis desses sentidos anti-
nômicos, tarefa que reservamos antes ao filólogo ou ao helenista. Ler-se-á com proveito o
capítulo IV do livro de M. DETIENNE (Maîtres de la vérité dans la Grèce archaïque, Paris, F.
Maspero, 1981), intitulado “L’ambiguïté de la parole”, inteiramente consagrado a este tema,
assim como o primeiro capítulo do livro de J.-P. VERNANT & P. VIDAL-NAQUET: “Tensions
et ambiguïtés dans la tragédie” (Mythe et tragédie en Grèce ancienne, Paris, La découverte,
1989).
2 Eis porque, segundo Derrida, quando se traduz a expressão inglesa “to enforce the law”
por aplicar a lei, perde-se aquela alusão direta, literal, à força dessa imposição J. DERRIDA,
Força de lei, S.P., Martins Fontes, 2007, pp. 5-6.
151
com isso dizer que a autoridade das leis se funda no elemento místico, na
medida em que depende necessariamente da crença que lhe concedemos.
O princípio dessa autoridade é, pois, um ato de fé, e não um fundamento
racional ou ontológico. A violência, que tal princípio recalca, consiste no
fato de que o golpe de força, sobre o qual a lei se funda, situa-se para além
de toda legalidade possível. O discurso encontra ali seu limite, como se
houvesse “um silêncio murado na estrutura violenta do seu ato fundador”
(DERRIDA, IDEM, p. 25). Por onde se deduz, na desoladora tagarelice do
sistema democrático parlamentar, que W. Benjamin deplora o sintoma do
desconhecimento desse limite.
Daí se explica que à violência que funda o direito, em sua origem,
pela ruptura da organização anterior, deva agregar-se, por sua vez, a vio-
lência que conserva o direito por ela instaurado, conforme se exemplifica
no caso da manutenção da ordem mediante a constituição de uma força
militar. Uma crítica, portanto, consequente da violência, que não se reduza
à banalidade das declamações pacifistas, deve ir além de toda justificação
legal do direito e reconhecer na possibilidade da violência, que ameaça
a ordem instituinte da lei, um fator pertencente à própria ordem que ela
critica (BENJAMIN, p. 50). É esse fator que os juristas da democracia par-
lamentar perdem de vista, ao desconhecer como pertencente ao sistema
representativo as forças revolucionárias que o engendraram:
Referências bibliográficas
AGAMBEN, G. Moyens sans fin : notes sur la politique. Paris: Rivages, 2002.
BENJAMIN, W. Walter Benjamin Ângelus Novus. Frankfurt: Surkamp, 1988
CALLOIS, R. “Sociologie du Bourreau”. In: D. HOLLIER (org.), Le collège de
sociologie. Paris: Gallimard, 1979.
DERRIDA, J. Força de lei. São Paulo: Martins Fontes, 2007.
PASCAL, B. Pensées. Paris: Flammarion, 1976.
Psicanálise e técnica: novo humanismo
ou novo ideal ascético?
Vincenzo Di Matteo (UFPE)
Introdução
Parto da rememoração de dois centenários: o do nascimento de
Merleau-Ponty e as primeiras aproximações entre a filosofia nietzscheana
e a jovem ciência psicanalítica. Em 1908, de fato, nascia Merleau-Ponty,
um pensador cuja influência no cenário cultural francês na metade do
século passado foi mais considerável do que se possa acreditar. (HYPPO-
LITE, 1961, p. 228). Nesse mesmo ano, “a comunidade psicanalítica das
quartas feiras” se confrontou por duas vezes com a obra de Nietzsche.
Respectivamente, com A genealogia da moral em 01.04.1908 e Ecce Homo
em 28.10.1908. (ASSOUN, 1991, p. 16-24).
Cem anos depois, pretendo retomar especialmente o espírito do
primeiro confronto, deixando de lado o segundo quando aqueles psica-
nalistas pareciam mais interessados em discutir o “caso Nietzsche” do que
analisar as surpreendentes semelhanças entre algumas obras de Nietzsche
e a psicanálise.
O objetivo visado é aproximar a noção de arqueologia presente na
Fenomenologia e na Psicanálise, explicitar algumas implicações desse
conceito especialmente na clínica psicanalítica, confrontar a arqueologia
freudiana com a genealogia nietzscheana e, dessa maneira, tentar com-
158
Merleau-Ponty e a psicanálise
Não é nossa intenção registrar o diálogo mantido com a psicanálise
e assinalar as mudanças ocorridas ao longo de duas décadas de produção
filosófica. Limito-me ao último texto escrito e publicado antes de sua morte
prematura, o único texto dedicado em sua totalidade à psicanálise onde
parece fazer um balanço das relações entre filosofia (fenomenológica)
e psicanálise (MERLEAU-PONTY, 1960, p. 5-10). Teria havido um ‘mal-
entendido inicial’ entre a obra de Freud e o leitor apressado, até se chegar
a uma convivência pacífica com essa ‘hermenêutica implacável’ que é
a psicanálise. São as resistências do leitor que cederam com o decorrer
dos anos – pergunta-se Merleau-Ponty – ou este caiu nas armadilhas da
psicanálise? Nem uma coisa nem outra, responde. Havia de fato um mal-
entendido que desapareceu e a psicanálise que se ama não é a mesma
que se recusava e que ainda continua a se recusar, aquela que precisa
reformular certos conceitos psicanalíticos na medida em que o gênio do
Freud terapeuta não se manifestou da mesma forma na elaboração de uma
teoria, constituída – segundo ele – de ‘magros conceitos’, e que necessitam
ser expressos numa ‘melhor filosofia’ para que o tesouro escondido e re-
calcado na comunicação psicanalítica possa ser resgatado.
Isso, porém, não implica afirmar que a fenomenologia tenha os
meios de exprimir melhor o ‘intemporal’, o ‘indestrutível’ que é o nosso
inconsciente ou dizer ‘claramente o que a psicanálise dissera confusa-
mente’. Ao contrário, a psicanálise com suas metáforas energéticas ou
mecanicistas conserva “o limiar de uma intuição que é uma das mais
preciosas do freudismo: aquela de nossa arqueologia.” (MERLEAU-
PONTY, 1960, p. 9).
Esse conceito-metáfora de arqueologia não é só da psicanálise. Se-
gundo Fink, a filosofia do último Husserl é uma arqueologia da experiência
humana (Apud PINTOR RAMOS, 1977, p. 253). A expressão foi recolhida
pela fenomenologia e filosofia em geral de língua francesa a ponto do hege-
159
Nietzsche no divã
Pode-se questionar – e com razão – essa problemática conjunção
de Freud e Nietzsche ou Nietzsche e Freud. Afinal, o pensador alemão
(1888/2006, p. 72) desconfia de certas “famigeradas” conjunções (como,
por exemplo, Goethe e Schiller; Schopenhauer e von Hartmann) e o
psicanalista vienense insiste na originalidade de sua descoberta, não
reconhecendo nenhuma dívida simbólica com os assim considerados
“precursores”, inclusive com o próprio Nietzsche e Schopenhauer, dois
pensadores com fortes “afinidades eletivas”.
Além disso, tanto Freud (1933b, p. 220) quanto Nietzsche (2006, &26;
2000b & 318) são dois críticos ferrenhos do sistema e não se deixam enqua-
drar com facilidade num sistema sincrônico de análise, tanto mais que,
em ambos, é possível identificar algumas descontinuidades em sua obra.
A despeito dessas dificuldades, não faltam razões para continuar
esse exercício de aproximação e confronto. Elas se legitimam a partir do
lugar privilegiado que a filosofia de Nietzsche ocupa nas relações ambi-
valentes de Freud com a filosofia em geral. Aquela de Nietzsche, de fato,
parece escapar à crítica impiedosa e não desempenha apenas a função de
referência legitimadora das descobertas psicanalíticas. Cioso, porém, de
165
Referências bibliográficas
2 Certamente não sem exagero e, às vezes, de maneira forçada, Freud procurou em seus
pacientes um material empírico que pudesse ser localizado na origem do indivíduo, por
177
exemplo, quando a sua insistência em fazer com que o Homem dos Lobos “lembrasse” da cena
primária, ocorrida quando este era ainda um bebê, um bebê que, para Freud, saberia reco-
nhecer o que é uma relação sexual, a tergo e, mais, ainda, saberia contar pelo menos até três.
3 Sobre o método especulativo em Freud, veja Fulgencio (2008).
178
4 O que também implica uma outra teoria para caracterizar ou descrever a origem do in-
divíduo.
179
ao mesmo tempo uma criação sua e algo que tem existência material para
além do mundo subjetivo.
Winnicott caracteriza estes objetos e fenômenos deste tipo como
transicionais, e o espaço no qual eles podem existir como potencial, ou seja,
um espaço que tem potencialmente a possibilidade de receber estes objetos
ao mesmo tempo criados e encontrados pelo indivíduo. Para caracterizar
este espaço e estes fenômenos Winnicott pergunta onde estamos quando
Mas isto não significa que para Winnicott, a vida seja fácil e a cultura
um quarto de crianças, como já comentara Freud. Ao referir-se à sua noção
de saúde, ele dirá que o importante é que cada indivíduo tenha a sua vida,
que ele reconhece como sendo dele, real, e, por isso, valendo a pena de ser
vivida (Winnicott, 1971f, p. 30). Mais ainda, o indivíduo nunca é pensado
de uma forma solipsista, enclausurado no seu interior, mas sempre na
sua relação inter-humana, sempre em contato com o ambiente e sua vida
social e é outro sinal da saúde. Ao falar sobre o que é que ele considera ser
uma pessoa madura, diz:
Referências bibliográficas
Introdução
A cultura de consumo apresenta-se como um campo fértil para a
articulação entre filosofia e psicanálise, em especial no que diz respeito às
relações entre psicanálise e sociedade. Na cultura de consumo moderna,
cuja formatação se deu a partir do surgimento do marketing como prática
e disciplina acadêmica, foram os filósofos sociais oriundos da Escola de
Frankfurt os que primeiro estabeleceram esse diálogo na compreensão e
crítica de uma nova realidade social marcada, dentre outros, pela ascensão
da publicidade comercial.
Nos dias atuais, filósofos como o esloveno Slavoj Zizek assumem
esse papel, lançando mão de fenômenos da cultura de consumo para, a
partir de uma interpretação baseada em conceitos centrais do idealismo
alemão e da psicanálise, fazer a crítica da subjetividade, da ideologia, do
fetichismo, enfim, do que lhe permite confrontar a lógica perversa do
capitalismo contemporâneo e, por essa via, estabelecer um compromisso
ético-político que ainda tenha a emancipação como horizonte final.
Este trabalho se propõe resgatar esse diálogo entre filosofia e
psicanálise a partir da formação e desdobramentos atuais da cultura de
188
anterior que deve ser feita é como essa sociedade de consumo foi formada.
Para isso, certamente, a psicanálise e o marketing também foram atores
fundamentais. Mas isso requer outra perspectiva de leitura.
É o que é possível depreender do livro The consumer trap, no qual o
sociólogo Michael Dawson utiliza-se de uma analogia – do efeito piranha –
para enfocar a importância do marketing na formatação de uma sociedade
e de uma mentalidade de consumo. Referindo-se aos estudos de zoólogos,
sobre o comportamento das piranhas na América do Sul, Dawson (2005)
revela como, embora uma piranha tenha dentes muito afiados e cortantes,
individualmente elas não apresentam muita ameaça, enquanto podem ser
devoradoras quando atacam como grupo.
Esse efeito piranha forneceria uma explicação para a influência
do marketing dos grandes negócios nas vidas dos americanos que, para
Dawson, é consequência de um forte investimento das grandes corpora-
ções em estarem constantemente apoiando a invenção e o refinamento
de poderosas técnicas de pesquisa voltadas a captarem o comportamento
que leva ao ato de compra. Isso gerou um crescimento exponencial de
investimentos corporativos que levassem o “estímulo de marketing” a
todas as esferas da vida, cercando as pessoas de uma grande quantidade
de mercadorias e reforços efetivos de formas de viver prescritos pelas cor-
porações. E como esse padrão de exposição ao estímulo de marketing é
renovado todo o tempo, isso exerceria sobre o comportamento um efeito
bola de neve, com as vidas tornando-se crescentemente inscritas sob os
efeitos da exposição presente e passada às campanhas de marketing.
Referindo-se a algumas marcas típicas e suas estratégias de marke-
ting, Dawson reforça sua ideia ao mostrar como as marcas Alka-Seltzer e
Cover Girl alteraram a rotina de cuidados pessoais; Sopas Campbell e Kraft
alteraram a rotina de preparar refeições e de comer; a Nike alterou o ves-
tuário e o calçado; e as marcas Pepsi-Cola e Coca-Cola alteraram a rotina
de comer e de beber. Tais exemplos poderiam se multiplicar ad infinitum,
demonstrando como as campanhas de marketing, em conjunto, reforçam
o nível e a intensidade dos ambientes e do comportamento individual de
consumo, em qualquer tempo e o tempo todo.
194
mídia. Tal conceito tem uma profunda interface com o de “relações pú-
blicas” (public relations), também definida, no referido dicionário, como:
2 Segundo Ries & Ries (2000), publicidade se faz ao se conseguir gerar notícias favoráveis
de um produto ou de uma marca na mídia, ou seja, quando a mídia fala bem de algo ou
alguém, o que gera muito mais credibilidade junto ao público do que a veiculação de um
anúncio comercial (advertising). Trata-se de se criar acontecimentos que façam com que um
determinado produto ou marca apareçam em meios aos dados de “realidade”. Daí Bernays
ser considerado o pai do spin, fenômeno que consiste em produzir um evento ou uma ideia,
apresentando-o como sendo melhor do que na realidade. Entretanto, a dificuldade de se
pensar as interfaces do trabalho de relações públicas com a publicidade ou propaganda
advém do fato de que a propaganda é tida como instrumento de um dado sistema político –
daí o termo usual “propaganda de estado” –, enquanto a publicidade seria mais comercial. É
exatamente esta confusão de termos que clarifica o ponto em questão aqui: o que se pretende
mostrar é que a propaganda de estado (ou política) pode ser – e foi – feita com a chancela
do mercado e que isso teria começado a partir da formação da cultura de consumo, quando
houve um esforço conjunto (governo e empresas) em implantarem um novo modo de vida
e de mentalidade, baseados no consumismo. Essa perspectiva ficou mais clara depois da
publicação, póstuma, do curso de Foucault (2007) – Nacimiento de la biopolítica –, na qual
o autor discorre sobre o nascimento do neoliberalismo como um tipo novo de capitalismo,
demonstrando claramente como, além de uma formação econômica, o capitalismo também
é uma forma de governo. E cada vez mais se governa fora do Estado.
198
3 Outro aspecto da época na qual Bernays escreve era a profunda preocupação com o hi-
gienismo – daí a referência ao fisiologista como uma autoridade central da época – como
produto de uma era progressista em busca de segurança e pureza dos alimentos.
200
4 Cabe menção à Pendergrast (1993), quando o autor nos diz que “de muitas maneiras, a
Coca-Cola representava as grandes empresas da década de 1920 – a era dos primeiros ad-
ministradores profissionais, que confiavam cada vez mais em advogados, especialistas em
relações públicas, pesquisadores de mercado, psicólogos e publicitários” (p.152).
5 The century of the self – documentário produzido pela BBC, em 2002 –, que explora a his-
tória da formação da cultura de consumo americana e demonstra a relação entre mercado
e política, através dos usos da psicologia.
201
Tais autores ainda são ponto de partida para os que procuram fazer
uma teoria crítica da cultura de consumo, seja pelo seu pioneirismo no de-
bate sobre o lugar do consumo e do marketing na sociedade novecentista,
seja por terem feito uma abordagem do sujeito e da cultura que punham
em xeque o ideal iluminista do sujeito racional, autônomo e soberano –
base ideológica a partir da qual se constituiu o consumidor.
São muitas as passagens na obra frankfurtiana nas quais é possível se
verificar uma análise substantiva das técnicas de marketing, notadamente
em Adorno e Horkheimer, que foram pioneiros em uma abordagem crítica
das abordagens mercadológicas na constituição da cultura de consumo.
Nesse campo específico, os autores iniciaram tal crítica com a “indústria
cultural”, um dos textos que compõem a Dialética do Esclarecimento
(ADORNO & HORKHEIMER, 1985), originalmente publicado em 1947. En-
quanto nesse texto os autores focaram-se na estrutura de funcionamento
da publicidade que, segundo eles, se confundiria técnica e economicamen-
te com a própria industria cultural, em dois artigos posteriores – “A teoria
freudiana e o padrão da propaganda fascista” (ADORNO, 2006), publicado
em 1951; e “Temas Básicos da Sociologia” (ADORNO & HORKHEIMER,
1973), lançado em 1956 –, os autores analisaram as “configurações psico-
lógicas” que pudessem explicitar “por que e como a sociedade moderna
produz homens capazes de reagir a esses estímulos, dos quais, inclusive,
sentem necessidade...” (ADORNO & HORKHEIMER, 1973, p.192). Os es-
tímulos a que os autores se referem seriam produzidos por:
alguma, salvo que as coisas são o que são” (ADORNO & HORKHEIMER,
1973, p.203) e que, portanto, não poderiam ser diferentes do que são.
Mas o que inculcou esses autores foi a adesão subjetiva a tal trans-
formação ideológica já que os homens enxergariam a sua lógica, embora
se adaptassem à sua mentira. Era preciso, segundo eles, entender como a
sociedade “produz homens capazes de reagir a esses estímulos, dos quais,
inclusive, sentem necessidade...” (ADORNO & HORKHEIMER, 1973, p.192).
Daí a recorrência a Freud para poder entender aquilo que os autores cha-
maram de uma “psicologia social pervertida” (ADORNO & HORKHEIMER,
1973, p.201), conceito que foi desenvolvido com mais profundidade no
artigo sobre “A teoria freudiana e o padrão de propaganda fascista”, quando
Adorno admite que o segredo da propaganda fascista é tomar os homens
pelo que eles haviam se tornado: despojados de autonomia e espontanei-
dade, dado que já eram produtos de uma cultura totalmente pervertida.
Assim, a reformulação do conceito de ideologia feita por Adorno e
Horkheimer partiu de um entendimento de que “a ideologia já não garante
coisa alguma, salvo que as coisas são o que são...”. O fato da realidade se
tornar ideologia de si mesma levou os autores a concluírem que os homens
passaram a enxergar através do seu véu bastando, portanto, “um pequeno
esforço para se livrar do manto dessa aparência onipotente...”. Mas esse es-
forço se mostrou o mais custoso, tendo em vista que os homens, apesar de se
sentirem “peças de um jogo”, preferiam se adaptar a essa mentira (ADORNO
& HORKHEIMER, 1973, p.202-203). Essa constatação gerou uma espécie de
paralisação da teoria crítica, tendo em vista que a assunção de um sujeito
totalmente capturado nas malhas de um discurso não deixava espaço para
a emancipação que estava na base do projeto crítico desses autores.
Sobre essa nova organização social da ilusão possibilitada pelo ma-
rketing, Adorno proporá a ideia de “ilusões necessárias” enquanto o status
eterno da ideologia em torno da qual uma sociedade se organiza. Nos nossos
dias, sabemos que outro filósofo, Slavoj Zizek, retomou as construções frank-
furtianas no sentido de buscar uma saída para esse impasse emancipatório
a partir da ideia da liberdade negativa do sujeito. Voltaremos a ele, mas antes
eu gostaria de enfocar que os últimos textos frankfurtianos, em especial
206
através da sua exposição. Mas isso, ao invés de ser libertário, tem sido apri-
sionador. Tal perspectiva parece fazer sentido se lida à luz das tendências
de consumo apontadas pela pesquisadora de mercado Melinda Davis, para
quem estaríamos vivendo um tempo no qual “ansiamos por um poder sobre-
humano para nos mostrar o caminho, explicar tudo a nós, contar-nos o que
devemos fazer e o que desejamos realmente” (DAVIS, 2003, p. 240-241). A
autora reconhece que isso induz à submissão e que pode indicar um terri-
tório perturbadoramente totalitário. Mas vaticina: “Já estamos vendo uma
nova disposição extraordinária – e amplamente inconsciente – da parte dos
consumidores para se tornarem discípulos de poderes superiores. (Incons-
ciente é a palavra-chave aqui: não espere, nos grupos focais, que alguém
dedique apologias sobre a rendição à autoridade)”. O argumento lógico da
autora ao descrever esse “novo desejo fundamental”, baseia-se no que ela
chama de uma “exaustão psíquica do consumidor”, que o levará a abrir mão
do excesso de escolhas em nome de um alívio do estresse mental em um
mundo no qual o que está em jogo é a busca da sobrevivência psíquica. A
perspectiva de mercado, indicada por Davis, ecoa as palavras de Salecl, já
enunciadas acima, e também é reforçada pela máxima de Melman:
Referências bibliográficas
ZIZEK, S.; DALY, G. Arriscar o impossível: conversas com Zizek. São Paulo:
Martins Fontes, 2006.
215
Onde nem se sabe bem, nesta terra sem lugar que é o inconsciente. Estar
lá – Wo Es war, soll Ich werden (FREUD, 1933/1944p. 86), na proposta de
Freud costumeiramente traduzida por “ali onde isso estava, eu devo advir”.
Nesta espécie de programa de uma análise, ao mesmo tempo caracteri-
zada por Freud como um “trabalho de cultura” (Kulturarbeit, ibidem), é
curioso que se trate de uma preposição de lugar, wo: onde isso estava, eu
devo advir. Indicação de um lugar do qual é impossível determinar a estrita
localização, mas onde vem ocorrer uma passagem ou uma substituição
de peso: do Es, d’isso, ao Eu, Ich. Lá onde isso estava, eu devo tornar-me.
Lá deve tornar-se eu – temos aí, numa consideração do espaço, uma radi-
calização necessária às noções de descentramento do eu e subversão do
sujeito. Em vez de tomá-la como afirmação de um lugar enfim encontrado
para o sujeito do inconsciente, devemos ver na frase de Freud a indicação
de uma operação que concerne ao espaço tanto quanto ao sujeito, num
complexo imbricamento.
Ou talvez, pensando em Mallarmé, possamos radicalizá-la para
afirmar, sobre o que se passa em uma análise, em última instância, que
“nada terá tido lugar senão o lugar” (MALLARMÉ, 2006).
***
***
***
do rei Felipe IV, mas representa a representação desta cena. Com isso,
sua dimensão mimética fica em segundo plano em relação à tentativa de
apreensão estrutural de seu modo de organização significante. Isso ecoa
a então recém-publicada leitura deste quadro por Foucault, que o leva a
afirmar que talvez haja nele “como que a representação da representação
clássica e a definição de espaço que ela abre” (FOUCAULT, 1985, p. 31). É
marcante, nesse sentido, a presença do quadro dentro do quadro, a tela
revirada que o próprio Velázquez está pintando. Las Meninas constitui
uma reflexão, em pintura, sobre o que é a pintura, o que é pintar, e como
se organiza o próprio domínio da representação no momento histórico
que é o seu. A análise foucaultiana retraça cuidadosamente as linhas
organizadoras da composição, para acentuar aí, fundamentalmente, a
existência de dois pontos. No centro de um X que organiza a posição das
demais personagens, encontra-se a Infanta Marguerita. Próximo a ela,
um outro centro possível é ocupado por um espelho, em segundo plano.
Nele refletem-se, debilmente, as personagens do rei e da rainha. As linhas
que partem destes dois pontos convergem para um ponto situado fora do
quadro: o ponto em que nós, espectadores, nos encontramos – tornados
portanto, à nossa revelia, rei e rainha, e capazes de aparentemente ocu-
par este “centro simbolicamente soberano” (Ibid., p. 30). O princípio de
ordenação da representação encontra-se, portanto, fora da representação
propriamente dita, fora de cena. O quadro constitui um jogo de olhares
onde, finalmente, podemos dizer que nós somos olhados, fora do quadro.
O que Foucault aí acentua, porém, é o fato de que o sujeito que funda tal
representação estaria aí elidido, vendo nisso a abertura da possibilidade
de uma representação se dar como “pura representação”. (Ibidem)
Lacan insiste que sua leitura confirma aquela de Foucault, trazendo
no entanto a particularidade do campo da psicanálise. É interessante notar
que o próprio filósofo, presente em uma das sessões deste seminário e
instado pelo próprio Lacan a responder se ele o havia lido bem, replica que
Lacan teria “reformado” um tanto suas elaborações (LACAN, 1966, sessão
de 18/05). De fato, a proposta de Lacan, muito complexa e não isenta de
obscuridades, se distingue de Foucault de forma sutil e no entanto cheia
224
Isso não está feito para que nós, analistas, que sabemos que
aí está o ponto de encontro do fim de uma análise, nos per-
guntemos como, para nós, se transfere esta dialética do objeto
a, se é neste objeto a que está dado o término e o encontro
onde o sujeito deve se reconhecer?
Referências bibliográficas
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34.
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Campos, H. Mallarmé. São Paulo: Perspectiva.
MEIRELES, C. (2001) Catálogo da Exposição Cildo Meireles. Geografia do
Brasil. Rio de Janeiro: Artviva.
227
parte 3
Lógica e Epistemologia, Linguagem e Ciência
Quem sabia? O escrito como fundamento em ato do real
Francisco Leonel Fernandes1 (UFF)
Fernanda Costa-Moura2 (UFRJ)
Referências bibliográficas
2 Para uma análise exaustiva destas ocorrências, ver nossa tese de doutoramento em filosofia:
Estilo e verdade na perspectiva da crítica lacaniana à metalinguagem (USP, 2009).
3 Para as obras de Jacques Lacan, utilizarei as seguintes convenções: E, para Escritos; OE,
para Outros Escritos; S, para O Seminário [para indicar o livro correspondente, emprego nu-
meração romana após a sigla. Exemplo: S. III indica O Seminário, Livro III]. Para referências
239
um dizer que escapa ao saber, é através destes efeitos que alguma coisa
do desejo pode aparecer. O analista deve evitar proferir sua interpretação
em posição de metalinguagem, colocando-se a si próprio como Outro do
Outro, como garantia da verdade, para que seu próprio discurso não incida
sobre o sujeito silenciando-o
5 E é aqui que podemos entrever o avesso desta situação: o estilo, definido a partir da queda
do objeto, visto como índice de uma certa relação com o desejo.
6 IANNINI, G. Index expurgatorius : o sentido do sentido é o gozo. Estudos lacanianos, v. 1,
p. 85-94, 2008.
244
Mas o que conduz um desejo a um objeto não pode ser fruto de uma
dedução: o salto entre uma ponta e outra só pode ser dado no escuro, por
um ato subjetivo que não pode se firmar em nenhuma garantia de adequa-
ção. Toda relação do desejo a um objeto supõe uma relação fantasmática.
Esta relação só pode ser transposta pelo salto no escuro que o engajamento
subjetivo permite. É isso que dá à ética do desejo uma tonalidade de risco
e de constante precariedade. Esta experiência subjetiva da Versagung “é a
mesma coisa que se exprime no plano teórico na fórmula de que, apesar
de todas as aparências, não há metalinguagem” (S. VIII, p. 326).7
7 Interessante notar que a temática do recalcamento originário surgiu para Freud durante a
análise do caso Schreber e que, a crítica à metalinguagem surgiu para Lacan também diante
do mesmo caso.
246
10 Não cabe detalhar aqui em que consiste a ética lacaniana do ato. Para tanto, remeto o
leitor a dois trabalhos definitivos: Guimarães (2006) e Safatle (2003).
249
11 Dois anos antes, no seminário sobre a ética, Lacan problematiza o exemplo da forca apon-
tando como ele se sustenta numa subjetividade comandada exclusivamente pelo princípio
do prazer. Considerando a dimensão do gozo além do princípio do prazer, nada impede de
imaginar um caso em que justamente a máxima da ação subjetiva ou aceita como inevitável
a punição ou até mesmo inclui a punição final como elemento inerente à própria satisfação.
No primeiro caso, em que a consciência da imediata condenação à morte após a realização
do ato não impede a realização deste, temos a situação, por exemplo, de Antígona ou a menos
distante situação de uma vingança. O sujeito sabe que será morto se realizar tal ato, mas
prefere a consequência funesta. No segundo caso, a clínica fornece uma miríade de exemplos
nos quais a satisfação só é obtida a partir de um longo circuito que passa exatamente pela
punição, sem passar antes pela consciência.
253
12 Impossível não notar que a “precariedade” é o que sustenta o ato analítico enquanto tal
(OE: 276).
13 Agradeço esta observação à leitura cuidadosa que o professor Franklin Leopoldo e Silva
fez de meu trabalho.
255
Referências bibliográficas
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Janeiro: Jorge Zahar, 1998).
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Escritos, Rio de Janeiro: Jorge Zahar, 2003).
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de Janeiro: Jorge Zahar editor, 1991, 2ªed.
__________. O Seminário. Livro VIII: A transferência (1960-1961). Rio de
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Estudos lacanianos, v. 1, Belo Horizonte, UFMG/Scriptum, 2008.
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MILNER, J-C., Le périple structural: figures et paradigme. Paris: Seuil, 2002.
SAFATLE, V. A paixão do negativo: Lacan e a dialética. São Paulo: Unesp,
2006.
A psicanálise freudiana como um modelo
para a superação da dualidade entre
ciências naturais e ciências humanas
Richard Theisen Simanke1 (UFSCAR)
Introdução
O dualismo metodológico – e, em última instância, ontológico – que
opõe as ciências naturais e as ciências humanas (ou sociais) originou-se
nos meios neokantianos alemães do final do século XIX e organizou, desde
então, uma grande parte da reflexão epistemológica ao longo do século
XX. Enquanto prevaleceu a filosofia da ciência trazida pelo positivismo
lógico, esse dualismo frequentemente assumiu a forma de uma repartição
entre as ciências que possuíam e as que não possuíam uma possibilidade
concreta de se encaixarem no modelo epistêmico da “concepção recebida”
da ciência. A crítica filosófica desse modelo, no entanto, não foi imediata-
mente seguida por um questionamento sistemático da divisão do campo
do conhecimento científico entre as ciências naturais e as humanidades.
A psicanálise freudiana, porém, que surgiu mais ou menos na mesma
época em que essa dualidade foi estabelecida, permaneceu-lhe quase que
completamente indiferente. Embora explicitamente alinhado com a pers-
O dualismo epistemológico
A oposição entre as ciências humanas e naturais nasceu como uma
estratégia defensiva contra a extrapolação progressiva do modelo da física
galilaico-newtoniana para outros campos do conhecimento. Como se sabe,
essa extrapolação foi, sob diversos aspectos, uma bandeira do iluminis-
mo do século XVIII e de seu projeto de uma reforma da sociedade pela
259
Até aqui, nada foi dito a respeito do fato de que toda teoria
psicológica, além de suas realizações do ponto de vista de uma
ciência natural, deve satisfazer ainda outra exigência princi-
pal: ela deve nos explicar aquilo que chegamos a conhecer,
da maneira mais enigmática, por meio de nossa ‘consciência’
(...). (FREUD, 1895/1950, p. 307)
268
Referências bibliográficas
Introdução
O interesse no alcance social da psicanálise, não obstante preo-
cupação legítima e frequentemente recoberta de matizes e intenções
progressistas, arrisca-se a certos tipos de encaminhamento de alcance
eminentemente conservador, não do ponto de vista do conteúdo das
análises, mas pela forma da sua concepção.
Ora a psicanálise se transforma em nota de rodapé de uma filosofia
importante, no que se reduz a pretexto e atriz coadjuvante; ora se presta a
arsenal de conceitos municiadores de análises de sobrevoo, sem eficácia
social, pelo menos de um modo propriamente analítico, posto que no
máximo podem ter um alcance educativo e de admoestação.
Embora não haja nenhum demérito intrínseco nessas estratégias
de abordagem da problemática em causa, é possível explorá-la por outra
vertente, qual seja tentar responder à pergunta do título de uma maneira
não estritamente especulativa, com a preocupação de passar da esfera da
crítica epistemológica à constituição de um modo de exercer uma prática
Que psicanálise?
A psicanálise à altura do problema proposto é a que se compreen-
de como uma teoria do sujeito entendido como ser temporal, tecido de
memória, não necessariamente circunscrito a qualquer aparato anátomo-
fisiológico ou psicofísico.
279
(gozando!), uma vez que é da sua natureza ‘ser faltante’, isto é, desejante
(BAIRRÃO, 2005).
Estrutura temporal, o sujeito é intrinsecamente inobjetivável e, para
subsistir, escapa a si mesmo, em parte ora oculto como coisa existente (não
sujeito, gozo), ora como sentido perdido (faltante, desejo).
Isto é, entretecido em significantes, logicamente anterior a qual-
quer significado ‘objetivo’, o sujeito não é coisa, nem mesmo psíquica, e
se por um lado se testemunha em sentidos, fica em falta, e onde estes lhe
escapam, reifica-se em gozo.
Pensado deste modo, o sujeito se recebe sempre do Outro, de fora, e
portanto a condição mínima de uma escuta analítica já é, numa acepção
larga, eminentemente social.
Não há a mínima razão para proceder a qualquer recuperação do
sujeito como entidade psíquica, nem sequer como objeto suscetível de
análise científica, com base por exemplo num apoio na ideia de ‘compor-
tamento’; e uma vez que se trata de ‘alguém’, sem que em caso algum se
diga objetivamente a natureza desse alguém, estão removidos os principais
obstáculos que nos coagiriam a cogitá-lo singular ou plural (coletivo),
pessoal ou transcendente etc.
Só com esta liberdade se pode demarcar claramente que no âmbito
do analítico se lida com uma função suposta agente, mesmo que ela se
constitua como efeito de uma ação, e desprender-se de quaisquer peias
realistas na abordagem do mundo construído pelo Outro e de preconceitos
quanto aos tipos de interlocutores que se constituem em personagens
emissoras das suas mensagens.
Outro fator da teoria psicanalítica, para a presente finalidade rele-
vante, que aflora com maior nitidez na obra lacaniana, é a superação da
dicotomia entre soma e psique, imprevidentemente abandonada pela
frequente redução do psicanalítico a psicologia, operada por leituras
aquém do alcance da sua obra.
Já em Freud isso se anuncia na forma da ideia de um conceito-limite,
o de pulsão, mas com Lacan consuma-se a superação da necessidade de
abordar a psicanálise como algum ou vários capítulos da história da neu-
281
O sujeito da possessão
A ideia lacaniana de um sujeito que pensa com os pés, é a ideia de
um sujeito que se desloca corporalmente. De um sujeito corporal.
Na mesma linha, no âmbito da possessão, os movimentos do transe
são compreensíveis como uma metáfora e a própria realidade da agência.
São sujeito em ato.
O espaço não é um lugar em que o sujeito anda. O movimento, o
olhar, o ouvir ‘são’ ou ‘criam’ os seus espaços. São cooriginários do sujeito.
Na realidade, o espaço do movimento é o trajeto do que se movimenta.
A forma é inferível, só existe porque algo ‘anda’, o espaço faz-se ao andar.
Um movimento da mão é a mão que se movimenta e a movimen-
tação da mão pelo Outro. Sujeito inscrito no Outro e inscrição do Outro
no corpo. Ato.
Poderá ser o caso de uma imagem vista aproximar-se e transformar-
se numa sensação e esta evoluir para uma dança incontrolável. Mas isso
poderá acontecer, talvez, por, na estrutura/história dessa imagem, ela se
ter ‘codificado’, por exemplo, a partir de um tipo de sensação corporal e/
ou agitação motora... É como se as visões comportassem uma intrínseca
285
O real da possessão
Indubitavelmente o encadeamento dos fenômenos extáticos quer
dizer alguma coisa. Frequentemente, mais do que o que imediatamente é
acessível à consciência e representação dos informantes. Eles descobrem
coisas lá já ditas com admiração. Neste sentido, tem a natureza de uma
linguagem.
Uma linguagem que, embora animada pelos corpos e pulsiona-
lidade do sujeito, para todos os efeitos se apresenta e propõe como um
286
4 Neste sentido, operadores lacanianos como “real” e objeto a podem ser úteis para evitar
a tendência de, ao interpretar os fenômenos extáticos, passar a falsa ideia de que tudo é
significável ou capturável.
287
5 Por exemplo: “Quem vem lá sou eu, quem vem lá sou eu”.
292
que está em jogo algo anterior, atos, que muitas vezes comportam sentidos
apenas a posteriori (ou melhor, ‘produzem’ os seus sentidos).
A este respeito, o que grosso modo se poderia denominar modelagem
lacaniana afina-se harmoniosamente com o fenômeno da possessão, na
medida em que é congruente e permite tomar como assentes dois pontos:
1) A significância logicamente antecedente do sujeito não pode
especificar-se como nada de objetivamente já dado: a natureza ‘última’
do agente é totalmente irrelevante e estruturalmente inacessível.
2) A significância que está em pauta demarca-se do universo es-
trito das entidades linguísticas. É intrinsecamente performática, ação
significante, suscetível de remissão ao sensorial e de alastrar-se a níveis
de linguagem não verbais. O idioma de possessão é um dispositivo meto-
nímico-metafórico poderoso no qual há sempre, redundante ou polisse-
micamente, níveis de significação que muitas vezes atingem diretamente
a sensibilidade e o corpo dos interlocutores.
O ‘modelo’ analítico é útil na medida em que a natureza ambígua
do inconsciente, como sentido sem sentido, abre muitas possibilidades de
articulação de mensagens inadvertidas (inconscientes) e de diálogo com o
incógnito agente, relativamente à interpelação do qual a noção de pulsão,
como instanciadora de um sujeito eminentemente corpóreo instanciado
por significantes esteticamente apensos à sensorialidade e à diversidade
dos sentidos, mostra em plenitude a sua utilidade heurística.
Conclusão
Não há ainda como asseverar ser possível responder positivamente
em todos os casos ao desafio formulado no título. O que se pode oferecer
é a exposição de condicionantes da tentativa de fazê-lo num contexto
cultural cuja especificidade favorece tal exercício.
Pelo menos neste caso, para evitar descaminhos, resumidamente,
a experiência tem mostrado que é importante:
1) Assegurar-se de que os operadores psicanalíticos sejam apenas
isso, e não significados como conteúdos psíquicos aplicáveis, sobre-
poníveis, a fenômenos extáticos. Ou seja, é fundamental garantir que a
293
Referências bibliográficas
parte 4
Afeto, Paixão, Prazer e Gozo
A dimensão afetiva da linguagem
na experiência psicanalítica
Regina Herzog (UFRJ)
1 Sem pretender abrir uma polêmica acerca da pertinência desta leitura, cabe deixar indicado
que a teoria lacaniana de alíngua (Lacan: 1972-3) se propõe apresentar uma concepção de
linguagem que fugiria a esta compreensão indicada por Souza.
301
Referências bibliográficas
Paixão e Gozo
Claudia Murta (UFES)
No início, a Percepção
O texto de Descartes sobre “As paixões da Alma” deixa claro que a
“paixão”, no sentido estrito, é apresentada como um sentimento que surge
de uma reação corporal causada pela percepção de algo. Desse modo, a
percepção é o elemento instaurador de uma paixão.
Do artigo 17 ao artigo 26 de seu texto, antes de apresentar a definição
de “As Paixões da Alma”, Descartes estabelece “as espécies de percepções
que se encontram em nós” (DESCARTES, (2005[1649]), p. 41), percepções
estas que são as paixões. Seguindo a concepção cartesiana, não existe
possibilidade de haver uma paixão sem percepção. Paixões, nesse sentido,
são percepções. Para Descartes, as Paixões, além de percepções, são pen-
samentos: “É fácil compreender que nada resta em nós que devêssemos
atribuir à nossa alma a não ser nossos pensamentos, os quais são prin-
cipalmente de dois gêneros, a saber: uns são as ações da alma, os outros
são suas paixões” (DESCARTES, p. 40). Que as paixões são, para Descartes,
pensamentos, não há dúvida, pois elas são da alma. Contudo, as paixões
são pensamentos que testemunham a união íntima entre corpo e alma
pelo fato de serem percepções.
O pensamento, quando não é uma paixão é, uma vontade ou ação
da alma. Uma vontade pode ser uma ação que começa na alma e termi-
316
na na alma, como pode ser, também, uma ação que começa na alma e
termina no corpo. Uma ação do primeiro tipo é um pensamento puro, já
uma ação do segundo tipo é, por exemplo, uma vontade de caminhar e a
sua ação efetiva.
No sentido geral, uma paixão é uma percepção que, por sua vez, pode
ser causada pela alma, tal como na percepção dos objetos inteligíveis, como
também, nesse sentido geral, a paixão pode ser uma percepção causada pelo
corpo. Quando essa percepção causada pelo corpo tem sua origem no curso
habitual e fortuito dos “espíritos animais” que, na linguagem cartesiana,
seriam equivalentes aos nossos atuais neurotransmissores, essa percepção,
seja relacionada com os objetos externos, seja relacionada com o corpo é,
segundo Descartes, sempre sonho ou devaneio. De outro modo, quando
essa percepção causada pelo corpo tem sua origem na ação dos nervos, seja
relacionada com objetos externos, tais como a luz de uma tocha, ou com o
corpo, tal como a dor, é uma sensação.
Para Descartes, uma paixão no sentido estrito é uma percepção
causada pelo corpo por meio de uma agitação particular dos “espíritos
animais”, mas que se relaciona apenas com a alma, manifestando-se como
sentimentos de medo, cólera entre outros, que são as paixões abordadas
no tratado. Tendo explicitado as diferenças entre paixões em geral e no
sentido estrito, Descartes pode oferecer a definição geral das paixões da
alma como: “percepções, ou sentimentos, ou emoções da alma, que rela-
cionamos especificamente com ela e que são causadas, alimentadas e for-
talecidas por algum movimento dos espíritos” (DESCARTES, (2005[1649]),
p. 47). A verdadeira união de corpo e alma se manifesta nas paixões que
dependem de algum movimento particular dos espíritos.
A paixão é tudo o que, na alma, tem a própria alma como causa e o
corpo como referência; segundo Descartes, “o principal efeito de todas as
paixões nos homens é que elas incitam e dispõem sua alma para querer as
coisas para as quais elas lhes preparam o corpo” (p. 56). Nessa definição a
paixão aparece como testemunho da união íntima entre a alma e o corpo,
na medida em que a alma pode vir a querer o que cada corpo foi preparado
pelas próprias paixões para oferecer. Descartes descreve como exemplo, a
317
A Dor e o Gozo
Durante o trabalho de parto as mulheres experimentam dor, fre-
quentemente uma dor muito intensa, causadora de um grande descon-
forto. Segundo Lacan, em “Psicanálise e Medicina”,
1 O tema da evolução do trabalho de parto foi escrito pelo médico obstetra Paulo Batistuta.
323
desprazer e alívio da tensão. Como desse gozo nada se pode dizer, podemos
percebê-lo por sua manifestação corporal. Algumas das expressões nessas
fotos lembram a expressão de Santa Tereza na estátua de Bernini. Já que
o gozo feminino não entra no campo da linguagem e, dessa forma, não
tem representação possível. Todavia, é no desvelamento do gozo feminino,
como no trabalho de parto, que essa constituição enigmática se evidencia.
Em nosso trabalho, além do registro iconográfico, fazemos entrevistas com
as mulheres que se dispuzeram a falar sobre esse momento vivido por
elas. As entrevistas seguiram o modelo da técnica psicanalítica que é o de
pedir que se fale qualquer coisa que vier à mente. Durante as entrevistas,
em muitos momentos faltaram palavras e, nesse instante, insistimos para
que as entrevistadas falassem o que pudessem transformar em palavras,
sem se preocupar com a forma. É oportuno ressaltar como as mulheres
recém-paridas se admiram ao ver fotografias de seus partos, declarando
não se recordar de terem vivido determinadas cenas retratadas na icono-
grafia que se lhes apresenta.
Dar lugar à palavra no momento em que ela falta, e o sujeito se depara
com a emergência do que faz furo como traumatismo é motivo suficiente
para a abordagem desse grupo específico de sujeitos para os quais o encon-
tro como o real do traumatismo tem passagem obrigatória – mulheres em
período perinatal. Miller aponta que “sem dúvida, no afeto trata-se do corpo,
mais exatamente dos efeitos de linguagem sobre o corpo. (...) A orientação
lacaniana implica, portanto, distinguir as emoções, de registro animal,
vital, em seu aspecto de reação ao que ocorre no mundo, dos afetos como
pertencentes ao sujeito” (MILLER, 1999, p. 47). Para Lacan os afetos são
signos translinguísticos que, indicam, via a manifestação corporal, um
sentimento que se fortalece pelo fato de se inscrever no corpo. Alguns dos
trechos relatados nas entrevistas das puérperas sobre seus partos mostram
a importância de oferecer lugar de palavra a esse instante de silêncio. 2
2 Desde o ano de 2006, o grupo de pesquisa “Parthos” coordenado pela professora Claudia
Murta tem entrevistado gestantes e puérperas a fim de coletar dados sobre os sentimentos
vividos pelas mulheres em período perinatal. Algumas das análises apresentadas nesse texto
fazem parte dos resultados da pesquisa.
325
A.D., tinha 24 anos e era seu primeiro filho. Sua gestação se pro-
longou até a 41ª semana gerando-lhe grande ansiedade. Além disto, seu
trabalho de parto durou 20 horas e superou sua expectativa de dificuldades,
ocasionando-lhe grande cansaço e desgaste. Sua bebê nasceu com 3.120
gramas e Apgar 10/10.
“O parto para mim foi uma coisa esperada. Eu queria um parto hu-
manizado. Eu lembro da dor. Eu não acreditava que ia nascer, mas a dor
indicava que não era um delírio. A dor acordava meu corpo para o nasci-
mento. No parto eu me deparei comigo e me assumi. Agora eu conheço meu
corpo muito mais, eu vi meu corpo trabalhando. Meu corpo gritando, meu
corpo mostrando que eu tenho que trabalhar. Mente e corpo ligados em um
só – vida. Todos os sinais são gritos do corpo. Quando a mulher se entrega,
ouve o corpo, quer aquilo, quer tirar a criança de dentro para tê-la nos
braços, amamentá-la. No momento do nascimento, eu estava anestesiada.
Foi como se eu estivesse no escuro e as pessoas fossem me conduzindo para
eu chegar ao lugar no qual eu queria chegar. A sensação naquela hora foi
de uma realização; foi como se eu não tivesse passado por nada daquilo
ali; um alívio – um contentamento. É um momento forte. Difícil de falar.
Passa-se por tudo aquilo e logo em seguida se chega ao nirvana. O nirvana
é como se tivesse tomado outra anestesia – anestesia geral. O mundo parou
naquele instante. Veio tudo na cabeça àquela hora – tomar posse daquilo
que é meu. Eu chorei tanto naquele momento”.
um Pai Nosso e pedia pelo amor de Deus. Isso para mim demorou uma eter-
nidade, mas segundo o médico durou 15 minutos. Muito sofrimento, mas
muito prazer. Se eu tivesse outro filho, faria tudo da mesma forma. Difícil
falar desse prazer: o sofrimento faz parte. Até a cabeça sair é uma sensação
de muita dor, depois vem a sensação de prazer.
parto ela estava exausta e então recebeu analgesia que lhe permitiu dormir
um pouco e recuperar-se. Depois de cessado o feito analgésico ela estava
com dilatação total do colo uterino e pouco tempo depois sua filha nasceu
naturalmente, com todas as dores de contração, com 3.260 g, Apgar 7/10.
É difícil falar disso. As pessoas podem ficar horrorizadas achando que
é dor – mas não é dor; é uma explosão de sentimentos; é um calor enorme.
Depois que acabou eu me senti vitoriosa, pois achava que nunca ia acabar. Eu
viajei, a gente se apoia em quem tiver do lado não sabendo quem é – eu não
fiquei com vergonha de nada. Eu fazia o que meu corpo estava mandando.
Quando estava em trabalho de parto eu ainda me preocupava com alguma
coisa, mas depois eu não pensava em mais nada. Quando estava no período
expulsivo eu me entreguei para o parto e depois ela nasceu. Nesse momento
eu falei com Deus e pedi ajuda. Senti meu corpo se abrindo e a senti (minha
filha) descendo. Na hora que eu senti que ela estava descendo, eu senti uma
sensação gostosa e um alívio que não foi só físico, foi um alívio de alma. Senti
muita alegria – eu tentava falar e não conseguia, a voz sumiu. Eu chorei de
alegria. Foi o melhor momento da minha vida – em toda a minha vida eu
nunca havia sentido uma sensação igual – uma sensação única. Eu só senti
isso porque eu me entreguei. Isso tudo acontece em um momento só.
Referências bibliográficas
Prazer à exaustão
Francisco Verardi Bocca (PUC-PR)
que fundamente a ação da razão, esta deve ser a que ordena o pronto e
irrestrito atendimento de toda inclinação sensível, para a qual devem estar
dispostas em colaboração todas as faculdades intelectuais. Pois entende
que para isso teriam sido engendradas e só segundo esta atuação tem sua
existência justificada.
Aqui reside uma desconcertante contribuição de Sade para a com-
preensão da natureza humana, a de que a sensibilidade indica por sua in-
clinação sua própria máxima. Acrescido a isso, à razão, como produto dessa
mesma sensibilidade, cabe executar sua máxima, orientando e promovendo
a satisfação de toda inclinação em toda sua intensidade, praticando inclusive
o mal quando lhe representar o bem. Por conta disso, sensação, prazer e
mal ficam doravante relacionados. A introdução dessa última noção suscita
esclarecimentos. O mal, em sua perspectiva, não pode ser assimilado, por
exemplo, à possibilidade de qualificar uma ação quando esta é entendida,
do ponto de vista da moralidade, como um ato criminoso. Isso porque, na
perspectiva da vida sensível, nenhuma ação é má ou criminosa, uma vez
que estão sempre sob a égide do exercício espontâneo e irrestrito dos apelos
e das inclinações da sensibilidade. São, portanto inqualificáveis.
Dessa forma, a noção de razão (e de imaginação como uma de suas
faculdades) como promotora de uma existência humanizada (entenda-se
espiritualizada, moralizada) em detrimento a uma animalizada (entenda-
se sensível, bruta), segundo sustentaram Condillac e La Mettrie, é para Sade
estranha e deve ser combatida. Isso porque para ele todo percurso ascético
ocorre quando a razão atua como agente de orientação, ou mesmo de ele-
vação da sensibilidade, à maneira do que foi recomendado, para ficarmos
em alguns exemplos que nos convém, por Sêneca (04 – 65), Epicuro (341
– 270), T. Hobbes (1588 – 1679), além de Condillac e La Mettrie já citados.
Respeitando os pontos de vista desses autores, diria Sade, a razão só pode,
restringindo os apelos da sensibilidade, instaurar um prazer de segunda
ordem, destacado do orgânico, inclusive conferindo-lhe uma perspecti-
va de fruição compartilhada. O prazer ganha estatuto de uma satisfação
espiritualizada, intelectualizada, por conta do que a própria vida passa a
ser fruída plenamente apenas em comunhão, em sociedade.
335
cionárias. Diz ele, na mesma obra, “pensa-se que este fim será atingido
quando nos tiverem dado as leis? Não acreditamos nisso” (2004b, p. 65).
Identificamos aqui duas questões importantes. A primeira quando
se dispõe a contribuir para o progresso da razão. Ao propô-lo, certamente
não está se referindo ao seu avanço no exercício do controle das paixões
desregradas, das desordens e injustiças sociais, da promoção da igualda-
de, liberdade e fraternidade. Antes, refere-se à promoção de uma razão
esclarecida na medida em é reorientada para o exercício de suas legítimas
funções e finalidades, o atendimento irrestrito das inclinações privadas.
Em seguida, sua descrença no progresso esperado pela oferta de novas leis
(aqui certamente se refere a uma constituição republicana), sem dúvida
se justifica pela convicção de que elas apenas cristalizariam e estabiliza-
riam as ações humanas moralizadas, dando-lhes continuidade e assim
perpetuando os preconceitos morais. Uma ocorrência desse tipo estaria
em contraposição às leis da natureza, em relação às quais todo homem
esclarecido deve finalmente se submeter. Por conta disso, na figura do
republicano reconhece (e repudia) a expectativa da segurança, da soli-
dariedade, da sobrevivência e da estabilidade sustentada por uma razão
pacificadora, enquanto na figura do libertino reconhece (e prestigia) a
expectativa do movimento, do excesso, da convulsão e do perpétuo abalo.
Nessa ordem, Sade construiu um curioso raciocínio para explicar
sua insatisfação e descrença em relação à sociedade francesa. Na mesma
obra, ao elaborar uma espécie de genética do pudor (que atribui às mulhe-
res) denuncia que esse sentimento só está em acordo com as leis de uma
república moralista. Em outra circunstância, diz ele “do impudor nascem
inclinações luxuriantes; o que resulta dessas inclinações compõe os pre-
tensos crimes...” (2004b, p. 85). A partir disso fica esclarecida a inversão
conceitual que operou em relação ao conceito de crime. Submetido à sua
natureza, entende que o homem esclarecido e lúcido, curado dos erros
teóricos que o cativaram, dispondo de uma razão finalmente recuperada
para suas funções naturais, está apto para escutar a voz de sua própria
natureza, e se deixar por ela conduzir e praticar toda ação criminosa que
demanda. Está pronto para atender ao seu imperativo: “A natureza o quer:
338
não tenhais outros freios senão os de vossas inclinações, outras leis senão
os vossos desejos, outra moral que não seja a da natureza” (2004b, p. 91).
Cada homem assim instruído estaria apto para reconhecer que,
como diz ainda na mesma obra, “se houvesse crime em alguma coisa,
seria antes por resistir às inclinações que a natureza nos inspira do que
em combatê-los, pois, persuadidos de que a luxúria é uma consequência
dessas inclinações, trata-se muito menos de extinguir em nós essa pai-
xão do que regrar os meios para satisfazê-la em paz” (2004b, p. 85). Com
isso, mais uma vez apresenta a mesma sequência argumentativa. Recusa
primeiro a possibilidade de resistência, controle ou supressão de toda in-
clinação, pelos procedimentos já expostos, e complementarmente propõe
a ação emancipadora por meio do esclarecimento, do conhecimento e da
obediência ao estatuto da sociedade libertina, bem como da construção e
do provimento material de um local adequado para a adesão e exercício
desimpedido das paixões, o que implica, diz ele em síntese, “em entregar-
se a tudo o que seu temperamento lhe ditar nas casas estabelecidas para
esses fins” (2004b, p. 91).
Para dar maior gravidade às características que estamos imputando
ao seu pensamento, sugerimos ainda discuti-lo na perspectiva da tradição
filosófica. Por exemplo, em contraste com Epicuro, para quem a fruição
do prazer deveria ser moderada pela razão de modo a evitar seu aspecto
pernicioso. Para ele, o prazer estaria na articulação entre ausência de
perturbação, de estímulos, e a estabilidade dela decorrente. A felicidade
estaria assim no controle da excitação, portanto segundo seu máximo
abrandamento. Também de Sêneca, Sade se distanciou, pois como enten-
demos, em seu pensamento a condição para que o homem seja livre e feliz,
do ponto de vista de uma vontade justificada na razão, está na recusa de
toda determinação sensível proveniente do mundo exterior que se efetiva
segundo uma mecânica de estímulos frenética, sorrateira, evasiva e mu-
tante que deve ter na virtude uma força de oposição. Por conta disso cabe
à razão criar resistência ao que Sêneca identificou como uma inclinação
natural da alma para o movimento e para a insaciabilidade. Sua justificativa
repousa justamente na concepção de prazer como sendo o sentimento que,
339
1 Como médico, La Mettrie manifestou uma adesão importante no campo da fisiologia que
foi o compartilhamento com a teoria de Albrecht von Haller (1708 – 1777) relativa à irritação
das fibras, para ele as unidades de base do corpo humano. Segundo Haller os órgãos são
constituídos por articulações de fibras de acordo com o princípio de gravidade, da estática
e da hidráulica. Esta concepção ficou conhecida como iatromecanicismo, desenvolvida pri-
meiramente pelo médico holandês Herman Boerhaave (1668 – 1738), em 1701. Segundo ele
é justamente por uma rede composta de fibras como essas que trafega a sensação, por meio
de vibrações, de agitações. Assim, a sensação irrita a fibra, isto é, a põe em movimento. Dessa
forma, o prazer fica articulado às noções de irritabilidade muscular e de sensibilidade nervosa.
340
2 Sobre isso, no terceiro diálogo de Filosofia na alcova, Sade refletindo sobre as implicações
éticas de nossas experiências, declara que toda excitação (particularmente as que incluem os
corpos alheios) opera na medida em que “faz vibrar a massa de nossos nervos pelo choque
mais violento possível” (2004b, p. 79). É assim por conta desse argumento que retoma a tese
dos “espíritos animais” apontando a circunstância em que abrasam os órgãos da volúpia e
nos dispõem ao prazer.
341
***
extinção da raça humana. Por conta disso, pode-se reconhecer nele uma
consideração a respeito da natureza humana que não prevê sua conser-
vação e sustentação enquanto tal, que não a postula como subsistente,
antes admite seu termo. Como diz seu biógrafo Donald Thomas, “O poder
autodestrutivo da raça humana é o poder supremo, na opinião de Sade, e
a extinção da espécie é inevitável e não deve ser lamentada” (1992, p. 273).
Nesse ponto, mais uma vez ele se apresenta de maneira oposta em
relação aos pensadores de sua época como, para ampliarmos os exemplos,
D. Diderot (1713 – 1784). Para este, o mundo, do ponto de vista material, é
também pensado como presidido por uma relação contínua entre elemen-
tos que ensejam e constituem sempre novas substâncias, que por sua vez
assumem novas composições ou combinações sempre que se decompõem.
Por conta disso, em Carta aos cegos, declara que a gênese de cada coisa
deve-se a esse movimento a que está submetida. Detalhando sua lógica,3
esclarece que em seu movimento interior, cada formulação da matéria
pode apresentar um grau maior ou menor do que chamou de contradição,
responsável por seu aniquilamento. A ausência dessa contradição, que
Diderot reconhece no ser humano, seria o fator responsável por sua con-
servação, que justificaria sua permanência em meio à depuração geral e
constante do mundo material. Longe de pactuar com esse ponto de vista,
Sade, em Dissertação do Papa sobre o crime, afirma que a conservação e
subsistência do homem, ao contrário, só ocorrem em função de “ligações”
que são obra da fraqueza, da educação e dos preconceitos humanos.
Não reconhece alguma forma privilegiada, isto é, que não esteja su-
jeita a algum tipo corrosivo de contradição. Sobre isso, diz Sade, imitando
a voz da natureza: “Lancei-te como lancei o boi, o burro, a couve, a pulga e
3 Diderot, em Carta aos cegos, admite um tipo de conciliação entre necessidade e acaso.
Sobre isso, diz Maria das Graças de Souza, que “o oceano de matéria não é submetido a
nenhum projeto; é o acaso que regula a formação dos seres na origem do mundo. Todavia,
as estruturas, uma vez formadas, tendem a buscar sua estabilidade, é na medida em que
essa estabilidade se institui, as regras que a sustentam se tornam necessárias” (2002, p. 43).
É dessa forma que Diderot concilia ordem com desordem, a destruição com a sobrevivência,
um jogo de oposições onde tudo muda e passa enquanto o todo sobrevive. O que fica evi-
dente é que por essa via, um tipo de finalismo é inserido na natureza, uma vez que, pode-se
admitir, qualquer organização material, desde que não apresente contradições, se capacita
na perspectiva de sua sobrevivência.
346
4 O aspecto pedagógico que estamos atribuindo à Orgia deve, sem dúvida, ser abordado
em diferentes aspectos. Um deles, ainda não referido, contempla o fato de o século XVIII ter
passado por uma reestruturação arquitetônica de seus ambientes domésticos. Até então, de
um modo geral, os cômodos das habitações europeias não possuíam nenhuma função fixa,
os espaços não eram reservados ou especializados, o que implica que os membros de uma
família não dispunham de algum tipo de privacidade como dispomos hoje. Dessa forma, é
justamente pela introdução da função que o ambiente adquire sua característica pedagó-
gica, como por exemplo, a alcova, cuja finalidade é, para Sade, a de servir como ambiente
de exposições teóricas e práticas, e para isso foi mobiliado com uma otomana, um móvel
igualmente adequado para a administração dos ensinamentos. Ela é assim um ambiente
apropriado para produzir e acionar a máquina libertina, pois como lembra Monzani, entre
Justine (a máquina virtuosa) e Juliette, há uma Eugénie sendo produzida. Assim, por advento
de uma organização espacial arquitetônica e de um discurso organizado que esse tipo de
formação foi possível.
348
***
5 Sobre isso, atentemos às teses de Cabanis (p. 424) sobre a influência do físico na morali-
dade, de onde Sade se inspira para sustentar a nutrição como forma de potencialização de
experiências celeradas.
351
6 No futuro teremos que mostrar que há uma contradição (ou seria um avanço?) entre o
discurso materialista que Sade apresenta em sua obra e a organização da Orgia que concebe.
Isso se conseguirmos sucesso em demonstrar ainda que a cena sadeana foi organizada como
sistema físico irreversível, ao modelo entrópico.
352
Referências bibliográficas
parte 5
Clínica e Política
Crítica da Razão Diagnóstica em Psicanálise
Christian Ingo Lenz Dunker (USP)
Introdução
Em 1952 é publicada a primeira versão do Manual Diagnóstico e
Estatístico de Transtornos Mentais (DSM), organizada pela Associação
Psiquiátrica Americana. Ele amplia a classificação utilizada pelo exército,
desde 1918, de modo a uniformizar os critérios semiológicos da prática
diagnóstica em torno de 182 distúrbios (disorders).1 Suas categorias são,
sobretudo, de extração psicodinâmica ressaltando-se a oposição entre
neurose e psicose. O primeiro grupo é referido principalmente em torno
do espectro que vai da ansiedade à depressão, com relativa preservação
da ligação com a realidade. O segundo grupo caracteriza-se pela presença
de alucinações e delírios, com perda substantiva da realidade.2 Quadros de
etiologia biológica e condições responsivas a contextos sociais específicos
encontravam-se representados. O conjunto não refletia uma clara separa-
ção entre o normal e o patológico e a intenção da obra era principalmente
estabelecer um consenso terminológico entre os clínicos.
Em 1974, sob a liderança do psiquiatra Robert Spitzer, forma-se uma
força tarefa com o fim de estabelecer uma nova versão deste Manual. Apa-
1 Grob, GN. (1991). Origins of DSM-I: a study in appearance and reality. Am J Psychiatry.
Apr;148(4):421–31.
2 Wilson, M. (1993). DSM-III and the transformation of American psychiatry: a history. Am
J Psychiatry. 1993 Mar;150(3):399–410.
358
3 Mayes, R. & Horwitz, AV. (2005). DSM-III and the revolution in the classification of mental
illness. J Hist Behav Sci 41(3):249–67
4 First, M. (2002). A Research Agenda for DSM-V: Summary of the DSM-V Preplanning White
Papers Published in May 2002.
5 Berrios, G.E. – The History of Mental Symptims, Cambridge, UK, 1996.
359
6 Lacan, J. – (1955) O Seminário, Livro III – As Psicoses. Jorge Zahar. Rio de Janeiro, 1988.
7 Lacan, J. – (1957) O Seminário, Livro V – As Formações do Inconsciente. Rio de Janeiro, 1999.
8 Lacan, J. – (1992) O Seminário, Livro XVII – O Avesso da Psicanálise. Rio de Janeiro, 1992.
9 Lacan, J.– (1972) O Seminário, Livro XX - ... Mais Ainda. Jorge Zahar, Rio de Janeiro, 1982.
361
19 Dunker, C.I.L. - Espaço, Lugar e Posição: Operadores Éticos da Clínica Psicanalítica. Ide,
São Paulo, v. 37, n. 1, p. 2-11, 2003.
20 Foucault, M. – História da Sexualidade. Vol 1. Graal, Rio de Janeiro, 1985:73-109.
21 Foucault, M. – Não ao sexo Rei. In: Microfísica do Poder, Graal, Rio de Janeiro, 1986:229-242.
22 Foucault, M. – Os Anormais, Martins Fontes, São Paulo, 2002:341.
370
25 Lacan, J. – O Seminário – livro VII – A Ética da Psicanálise, Jorge Zahar, Rio de Janeiro, 1988.
26 Lacan, J. – O Seminário – livro XI Os Quatro Conceitos Fundamentais da Psicanálise, Jorge
Zahar, Rio de Janeiro, 1998.
372
27 Lacan, J. – O Seminário – Livro III – As Psicoses, Jorge Zahar, Rio de Janeiro, 1984.
28 Lacan, J. – O Seminário – Livro V – As Formações do Inconsciente, Rio de Janeiro, 1998.
29 Lacan, J. – O Seminário – Livro II – O Eu na Teoria de Freud e na Técnica da Psicanálise,
Jorge Zahar, Rio de Janeiro, 1985.
30 Lacan, J. – O Seminário – Livro IV – A Relação de Objeto, Jorge Zahar, Rio de Janeiro, 1999.
31 Dunker, C.I.L.- Pathologya da Clínica. Latin American Journal of Fundamental Psychopa-
thology online, http://www.fundamentalpsychopa, v. 4, n. 1, p. 1-1, 2003.
373
32 Identity and hegemony: the role of universality in the constituttion of political logics. In But-
ler, J.;Laclau,E.; & Zizek, S. – Contingency, Hegemony, Universality. Verso, Londres, 2000:44-89.
33 Stravrakakis, Y. – Lacan & the Political. Routledge, Londres, 1999:123.
34 Zizek, S. – For they know not what they do – enjoyment as a political factor.Verso, Londres, 2002.
35 Badiou, A. – O Ser e o Evento, Jorge Zahar, Rio de Janeiro, 1996.
374
2 Aqui, talvez, Foucault esteja fazendo uma reavaliação de sua discussão com Hélio Pele-
grino, ao final das conferências sobre “A verdade e as formas jurídicas”, onde ele colocava
em suspeição a possibilidade da psicanálise questionar radicalmente as relações de poder
(FOUCAULT, 1973/2005, p. 151-152).
380
3 Para uma discussão das teses de Mezan, cf. CHAVES, 1988, “Anexo”.
4 Há exceções a essa regra. Ver por exemplo SUGISAZY (2006).
382
incorporado por Lacan. O próprio Foucault diz, na sua resposta, que ele
está ao lado de Heidegger e não do de Lacan: “é antes ao lado de Heidegger
e a partir de Heidegger que tentei refletir a respeito [das relações entre su-
jeito e verdade]” (FOUCAULT, 1981-1982/2006, p. 233)6. Lembremos a este
respeito, que Foucault diz que se, por um lado, seus estudos são estudos
de “história”, tendo em vista os “campos que tratam e as referências que
assumem”, por outro lado, não são trabalhos de “historiador” (FOUCAULT,
1984, p.13), isto é, continuam sendo trabalhos de um filósofo, mas que são
trabalhos de um filósofo a quem não falta “sentido histórico”, para lembra-
mos a afirmação de Nietzsche, para quem “a falta de sentido histórico é o
defeito hereditário de todos os filósofos” (1878/2000, p. 16). Assim sendo,
o objetivo de Foucault não é, como ele afirma peremptoriamente, nem
fazer uma história dos comportamentos, nem uma história das repre-
sentações, mas sim, uma “história do pensamento”, ou seja, uma história
que visa “definir as condições nas quais o ser humano ‘problematiza’ o
que ele é, e o mundo no qual ele vive” (FOUCAULT, 1984, p. 14). É apenas
em atenção a este modelo historiográfico, concebido como formulação
de problemas, que podemos compreender, em toda a sua extensão e em
toda a sua radicalidade, a confrontação de Foucault com a psicanálise.
Um trabalho desta envergadura ainda está por ser feito.
Referências bibliográficas