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Editoras:

Hevelin Cristine de Oliveira Batista


Larissa da Silva Pedreira
Vanessa Aparecida da Silva
Organização:
Profa. Dra. Sandra Batista da Costa
Elaboração:
Aika Fabiana França Albini Bonagura
Catharine Fialka
Fabilim Gonçalves
Hevelin Cristine de Oliveira Batista
Willian Jorge Chiaq
Revisão:
Pesquisa em Letras: Me. Cleusa Maria Denz dos Santos

Práticas discursivas e sociolinguísticas Diagramação e projeto gráfico:


Hevelin Crisitne de Oliveira Batista
Capa:
Hevelin Cristine de Oliveira Batista
Elementos utilizados: Freepik
APRESENTAÇÃO

A produção do conhecimento acadêmico, científico e


tecnológico é uma atribuição da universidade, portanto os
graduandos devem ser motivados a participar de eventos a
Dados Internacionais de Catalogação na Publicação (CIP) fim de familiarizem-se com as práticas discursivas comuns
(Câmara Brasileira do Livro, SP, Brasil) nessa comunidade. Para tanto, precisam ter acesso a co-
Pesquisa em letras [livro eletrônico] : práticas nhecimentos cientificos e compartilhar saberes utilizando
discursivas e sociolinguísticas / Aika diversos genêros textuais recorrentes no campo universi-
tário.
Bonagura...[et al.] ; organização Sandra
Batista da Costa. -- 1. ed. -- Curitiba, PR :
Editora Amicitia, 2023. Mas, a apropriação dessas práticas é árdua e nem
PDF
sempre bem-sucedida entre os universitários, eles necessi-
Outros autores: Catharine Fialka, Fabilim Regina tam de orientações teórico-metodológicas para apodera-
Serafim Gonçalves, Hevelin Cristine de Oliveira
Batista, Willian Jorge Chiaq. rem-se de habitus próprios desse campo. A assimilação dos
Bibliografia. usos da linguagem acadêmica requer conhecimentos acer-
ISBN 978-65-980174-0-8
ca de estratégias linguístico-discursivas, percepção do pa-
1. Análise de discurso 2. Artigos - Coletâneas
3. Discurso 4. Linguística 5. Sociolinguística -
pel social do evento comunicativo, dos participantes, bem
Estudo e ensino I. Bonagura, Aika. II. Fialka, como das relações que esses sujeitos estabelecem com o co-
Catharine. III. Gonçalves, Fabilim Regina Serafim.
IV. Batista, Hevelin Cristine de Oliveira.
nhecimento.
V. Chiaq, Willian Jorge. VI. Costa, Sandra A elaboração do artigo acadêmico, como trabalho de
Batista da.
conclusão de curso de graduação (TCC), é uma forma de
23-153628 CDD-401.4 agir no mundo, não é a apropriação de uma técnica de es-
Índices para catálogo sistemático: crita reproduzida e desvinculada do contexto de produção.
1. Sociolinguística 401.4 Essa elaboração é uma prática social que requer um fazer
Aline Graziele Benitez - Bibliotecária - CRB-1/3129
científico pautado em um propósito comunicativo.
A obra “Pesquisa em Letras: práticas discursivas e
sociolinguísticas” apresenta quatro artigos elaborados por
licenciados em Letras Português-Inglês, da Pontifícia Uni-
versidade Católica do Paraná (PUCPR), Aika Bonagura,
Willian Chiaq, Catharine Fialka, Fabilim Gonçalves e He-
velin Batista. Os trabalhos foram elaborados na disciplina natureza misógina desses discursos e constata que o sexis-
de Prática Profissional: Trabalho de Conclusão de Curso de mo hostil configura um discurso agressivo e faz uso do si-
Letras e ministrada pelas professoras Me. Caroline Kretz- lenciamento e da censura. A autoratambém observa que a
mann e Dra. Rosana Nicola. A Profa. Dra. Sandra Batista diferença entre sexismo benevolente e elogio é sutil e alerta
da Costa orientou os trabalhos e proporcionou suporte teó- os usuários do facebook sobre o uso, nos comentários, de pa-
rico-metodológico na condução dos estudos, incentivou o lavras e expressões que indicam hostilidade e podem carac-
processo de leitura, escrita e revisão dos artigos, propician- terizar o discurso misógino.
do aos estudantes a reflexão acerca de usos de linguagem , No terceiro capítulo, “Neologismos no repertório
ou seja, um exercício efetivo de prática social de letramento da comunidade de fãs brasileiros da cultura k-pop”, Fabilim
acadêmico. Gonçalves identifica e descreve os neologismos presentes
No primeiro capítulo desta obra “Foi o diabo!: ethos nas mensagens escritas por membros da comunidade de fãs
e ironia no periódico Mephistopheles”, Aika Bonagura brasileiros da cultura K-pop no Twitter. Segundo a autora, a
e Willian Chiaq analisam o funcionamento da ironia na análise dos itens lexicais indica que a composição por jus-
composição do ethos discursivo em excertos de uma crônica taposição é o processo de formação de palavras de maior
do folhetim Mephistopheles, publicada no volume n° 04, em produtividade nos dados selecionados, seguido da deriva-
18 de julho de 1874. O diabo é o locutor desse texto e iden- ção sufixal. Outro fenômeno examinado é o uso de abre-
tifica-se na crônica um conteúdo crítico e ácido constituído viações, especialmente siglas. Ela destaca que o emprego de
pela ironia. Segundo os autores, essa estratégia enunciativa neologismos nas mensagens se configura como gírias. Para
é utilizada com o propósito de denunciar questões de cunho Gonçalves, este é um recurso estilístico utilizado pela co-
moral e ético que escandalizavam a sociedade brasileira da munidade de prática K-pop a fim de estabelecer a identida-
época. A ironia configura a polifonia revelado mais de uma de do grupo e o sentimento de pertencimento.
voz, consequentemente, mais de um ponto de vista de sen- No quarto capítulo, “Regionalismo linguístico
tido. Os autores consideram que a ironia, na crônica anali- e identidade Cultural em Torto Arado”, Hevelin Batista
sada, "uma marca estilistica que compõe o ethos diabólico". examina na obra Torto Arado, de Itamar Vieira Junior, o
No segundo capítulo, “Sexismo, silenciamento e re- uso de palavras e expressões regionais que caracterizam
sistência: críticas de usuários do facebook à atriz Gal Gadot, a identidade cultural. O estudo da autora propicia
a mulher maravilha”, Catharine Fialka analisa comentários uma interface entre Sociolinguística e Literatura, pois
feitos em post na página AdoroCinema, da plataforma Fa- fundamenta-se em pressupostos acerca dos regionalismos
cebook, sobre a atriz Gal Gadot, intérprete da personagem linguísticos e literários, de modo a destacar a relação entre
Mulher Maravilha. Fialka examina, nesses comentários, a eles e explicar que a presença, na obra, de vocábulos típicos
da Bahia indica aspectos da identidade cultural da região. PREFÁCIO
Ao analisar vocábulos que correspondem aos campos
semânticos: religioso, geográfico, fauna e flora, nas duas Esta obra reúne Trabalhos de Conclusão de Curso
primeiras partes da obra, a autora elucida a ambientação (TCC) escritos por acadêmicos de Letras da Pontifícia Uni-
do espaço narrativo e destaca que as motivações e ações dos versidade Católica do Paraná e concluídos em 2022. To-
personagens estão inscritas nesse cenário. Segundo a autora, dos foram orientados pela Prof.ª Sandra Batista Costa, que
Torto Arado estabelece uma aproximação entre mundo real possui doutorado e pós-doutorado pela Unicamp, dedican-
e literário, ao associar o perfil de personalidades do sertão do-se a estudos sobre texto e discurso, linguagem, socieda-
nordestino com personagens literários cuja linguagem de e ensino de língua materna.
configura aspectos culturais e sociais dessa região. Tanto os trabalhos de análise do discurso como os
O conjunto de artigos expostos nesta obra contribui de sociolinguística permitem perceber a experiência des-
com a produção do conhecimento e motivou a formação de sa orientadora no desenvolvimento de pesquisas e no co-
acadêmicos do curso de Letras. Os autores empenharam-se nhecimento sobre os temas abordados. Fica evidente sua
para elaborar e divulgar os trabalhos de pesquisa realizados. habilidade no processo de mediação do aprendizado dos
Assim convido o leitor a explorar os artigos apresentados orientandos durante a investigação dos fenômenos lin-
nesta obra a fim de inteirar-se dos estudos empreendidos guístico-discursivos e sociolinguísticos, sob a perspectiva
pelos licenciados. que cada estudante desejou abordar. Poucas vezes tem-se
a oportunidade de reconhecer a habilidade de um mes-
Sandra Batista da Costa mo orientador por meio dos trabalhos de pesquisa de seus
Doutora e Pós-doutora em Linguística pela Unicamp orientandos organizados em um livro.
Profª da Pontifícia Universidade Católica do Paraná Por outro lado, cabe destacar que esse processo en-
volve outros profissionais no percurso do ensino da pesqui-
sa. Especificamente no caso do currículo de Letras desses
estudantes, essa trajetória foi traçada desde o sexto período,
em uma disciplina de instrumentalização e planejamento
da pesquisa em Letras. Nela, os estudantes tiveram o que se
denomina “ensino para a pesquisa”, elaborando seus pro-
jetos, conforme as linhas de pesquisa do corpo docente do
curso de Letras da instituição.
E ainda, ao longo dos sétimo e oitavo períodos, os
acadêmicos, ao mesmo tempo que tinham seus orientado- SUMÁRI0
res, continuaram a receber formação para além dos as-
pectos técnicos e normativos e da elaboração de trabalhos
acadêmicos. Trata-se de um trabalho integrado de docentes Apresentação .......................................................................... 5
e orientadores que compõe uma trilha de três disciplinas
cuja intenção é preparar novas gerações de professores pes- Prefácio ................................................................................... 9
quisadores orientadas para a transformação qualitativa da
produção acadêmico-científica dos estudos linguísticos, li- Parte 1 – Prática de análise discursiva ............................ 12
terários e de ensino de línguas.
Desse modo, esta obra representa uma iniciativa 1. “Foi o diabo!”: ethos e ironia no periódico
dos próprios estudantes que, satisfeitos com sua produção, Mephistopheles
desejam compartilhá-la; e por si só, sua divulgação surge Aika Fabiana França Albini Bonagura e Willian Jorge Chiaq ...13
como um lugar privilegiado do dizer, ocupado por dife-
2. Sexismo, silenciamento e resistência: críticas de
rentes sujeitos que se relacionam e que provocam distintos
usuários do facebook à atriz Gal Gadot, a mulher
gestos de pesquisa, reflexão e diálogo, sempre marcado pela
maravilha
incompletude.
Catharine Fialka .............................................................................. 60
As/os estudantes de Letras ou interessadas(os) pela
ciência linguística se depararão com temas que trazem à
Parte 2 – Prática de análise sociolinguística ................. 99
baila estudos da Sociolinguística e Análise do Discurso,
com originalidade e rigor científico. 3. Neologismos no repertório da comunidade de fãs
brasileiros da cultura k-pop
Profª Josélia Ribeiro
Fabilim Regina Serafim Gonçalves ...............................................100
Coordenadora do curso de Letras da Pontifícia Universidade
Católica do Paraná 4. Regionalismo linguístico e identidade cultural em
Doutora em Linguística pela UFPR Torto arado
Profª Rosane Nicola Hevelin Cristine de Oliveira Batista ............................................150
Profª do Curso de Letras da Pontifícia Universidade Católica do
Paraná
Doutora em Educação pela PUCPR.
1.
“FOI O DIABO!”: ETHOS E
IRONIA NO PERIÓDICO
MEPHISTOPHELES

Aika Fabiana França Albini Bonagura1


Willian Jorge Chiaq2
Profª. Dr.ª Sandra Batista da Costa3

BEM-VINDO(A) AO ESPETÁCULO

Neste trabalho, analisa-se o funcionamento da


ironia na composição do ethos discursivo em uma crônica
Parte 1 – Prática de análise discursiva do folhetim “Mephistopheles”. Alguns folhetins jornalísticos
de crítica social que circulavam no século XIX, em várias
capitais do país, como São Paulo, Rio de Janeiro, Curitiba e
Pernambuco, apresentavam a figura do diabo como autor de
textos cômicos publicados nesses jornais. Ao analisar textos
jornalísticos desses folhetins nos quais o diabo é o locutor,
identifica-se um conteúdo crítico e ácido constituído pelo
uso da ironia. Essa estratégia enunciativa é utilizada com
o propósito de apresentar opiniões e denunciar questões

1
Licenciada em Letras Português-Inglês pela Pontifícia Universidade Católica
do Paraná. E-mail: aikafranca@gmail.com
2
Licenciado em Letras Português-Inglês pela Pontifícia Universidade Católica
do Paraná. E-mail willianjchiaq@gmail.com
3
Orientadora - Doutora e Pós-Doutora em Linguística, UNICAMP.
Professora da Pontifícia Universidade Católica do Paraná – e-mail: sandra.
costa@pucpr.br
Pesquisa em Letras: práticas discursivas e sociolinguísticas Aika Fabiana França Albini Bonagura & Willian Jorge Chiaq

de cunho moral e ético que escandalizavam a sociedade Este artigo está disposto em seções. Na primeira
brasileira da época. Esses jornais foram influenciados apresenta-se a caracterização histórica do periódico, seu
por periódicos europeus que criticavam comportamentos contexto de produção, noções composicionais e estilísticas
pseudomoralistas fundamentados em valores religiosos, de periódicos do séc. XIX e características de periódicos
sociais e econômicos de famílias abastadas, bem como com a persona do diabo. Na seção seguinte, expõem-se
destacavam o sofrimento dos pobres e a falta de amparo pressupostos discursivos acerca do ethos e da ironia e na
social a esse grupo. próxima apresentam-se os pressupostos metodológicos,
A imagem prévia que se tem do diabo é de uma persona expondo o processo de seleção do corpus e caracterização do
irônica, por vezes até sarcástica, é possível que essa imagem periódico escolhido. Em seguida, analisam-se os segmentos
indique ao interlocutor do periódico “Mephistopheles” discursivos selecionados e por último apresentam-se as
a intenção discursiva desse locutor. A partir desse fato, considerações finais.
levanta-se a seguinte questão: como a utilização da ironia,
presente em textos jornalísticos desse folhetim, contribui IMPRENSA BRASILEIRA: IMPLANTAÇÃO E
para construção do ethos da persona do diabo? Têm-se, pois, RENOVAÇÃO
como objetivo analisar neste trabalho analisar a construção
do ethos, de modo a caracterizar o tom irônico da persona do Para compreender o cenário e a relevância da
diabo em crônica no folhetim “Mephistopheles”. produção de periódicos no Brasil, apresentam-se aspectos
Para alcançar esse propósito, realiza-se a revisão de históricos e políticos acerca da implementação da imprensa
literatura a fim de compreender a natureza de periódicos no país, bem como fatores que influenciaram sua vinda.
que circularam no século XIX, a configuração do ethos e da Além disso, retrata-se o surgimento de periódicos que
ironia. Recorre-se a Sodré (1999), Bahia (1990) e Melo (1973) recorreram à figura do diabo a fim de apresentar uma
para a contextualização histórica do surgimento da imprensa crítica social.
no Brasil e a Cagnin (2005) com a finalidade de caracterizar
periódicos que utilizam a persona do diabo. Para explicar INTRODUÇÃO DA IMPRENSA NO BRASIL
a relação entre gênero discursivo, ethos e ironia, utilizam-
se os estudos de Maingueneau (1993), Bakhtin (1997) e A história da implementação da imprensa no Brasil é
Karwoski (2009). Seleciona-se uma crônica do folhetim conturbada, visto que, ao longo do processo de sua fundação,
“Mephistopheles” de modo a compreender o funcionamento ocorreram fatos importantes e conflituosos: Colonialismo,
discursivo da ironia na construção do perfil ideológico que Independência, Abolição da Escravatura e Proclamação da
configura a persona do enunciador, ou seja, diabo. República. A tipografia brasileira e o país desenvolveram-

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Pesquisa em Letras: práticas discursivas e sociolinguísticas Aika Fabiana França Albini Bonagura & Willian Jorge Chiaq

se à medida que esses episódios ocorriam. também era expressamente proibida, salvo a bíblia que,
Melo (1973) explica que a imprensa chega de forma apesar de permitida, restringia-se apenas ao uso da igreja e
oficial no Brasil em 1808 com a corte portuguesa instalando- dos jesuítas, pois era utilizada com o intuito de catequizar.
se no Rio de Janeiro, 198 anos após a prática jornalística Com a finalidade de atingir “uma justiça bastarda
ser introduzida na Europa. A tipografia instalada no Brasil e vendida, ora contra uma igreja conveniente, ora contra
tinha função de apresentar e contextualizar as atividades da o colonialismo tirânico” (BAHIA, 1990, p. 32), não era
coroa à população que aqui habitava. Mas, a implantação incomum que artistas, como Gregório de Matos e outros,
da imprensa foi conturbada, pois a Igreja e a Coroa distribuíssem sátiras poéticas em panfletos, cartas e canções
detinham o controle sobre a colônia. Sodré (1999), Bahia de tom crítico. Eles expressavam-se como bem queriam,
(1990) e Martins (2001) elucidam que essas instituições seja de forma oral ou escrita, para expor suas ideias. Com
controlavam a palavra impressa e, principalmente, a a impossibilidade de recorrer à tipografia, autores de
liberdade de expressão, esses fatores, contribuíram para o gazetins recorriam à gazeta manuscrita. Foi somente em 1º
desenvolvimento tardio da imprensa brasileira. de junho de 1808, com a publicação do Correio Brasiliense
Entre os séculos XVIII e XIX, surgem movimentos (1808-1822), que surge a autêntica imprensa brasileira.
populares em busca do ideal nacionalista e da identidade Antes desse acontecimento, é importante destacar
cultural, contudo a atuação da imprensa que deveria que a corte portuguesa tinha uma imprensa própria que
propiciar esses sentimentos era considerada uma publicava a Gazeta do Rio de Janeiro, seu jornal oficial.
contravenção, e propagar a liberdade de pensamento. Para Sodré (1999) destaca que esse jornal não era atrativo, pois
a Coroa, a permanência na ignorância era uma virtude era visivelmente controlado e atendia aos interesses da
maior do que a busca pelo conhecimento e desenvolvimento coroa, ou seja, não se preocupava com questões relacionadas
da cultura. Em resumo, as “trevas da ignorância” eram à democracia e aos demais problemas que o país enfrentava.
mais vantajosas do que garantir a civilidade; Sodré (1999) Os textos desse jornal se restringiam apenas às notícias
esclarece que essa estratégia perpetua a dominação política retiradas de gazetas portuguesas e inglesas. Além da Gazeta
e ideológica. Para garantir a permanência nessa condição, do Rio de Janeiro, os únicos materiais impressos eram
a corte portuguesa assinou a Carta Régia, de 1747, que exclusivamente legislativos ou diplomáticos. Sodré (1999) e
proibia a impressão de documentos e livros que fossem Bahia (1990) elucidam que o objetivo principal desse jornal
contrários à religião, ao governo e aos bons costumes. era apresentar o Brasil como um país livre de queixas, um
Portanto, além da clara censura e proibição da tipografia, “paraíso terrestre”.
a carta ainda condenava à prisão ou ao exílio aqueles que Contrário a essa ideia, surge o Correio Brasiliense, cujo
infringissem a lei. Vale ressaltar que a importação de livros fundador foi Hipólito da Costa, criador e único redator do

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Pesquisa em Letras: práticas discursivas e sociolinguísticas Aika Fabiana França Albini Bonagura & Willian Jorge Chiaq

folhetim; ele introduz um ponto de vista crítico com relação um ano antes da independência; esse episódio desencadeou
às questões econômicas, políticas e sociais do Brasil. Bahia o surgimento de jornais e panfletos. Bahia (1990) destaca
(1990) apresenta de forma concisa e objetiva os propósitos que o sentimento de liberdade se propagou com o fim do
desse periódico: colonialismo, mas não se pode esquecer do atraso de três
séculos do jornal impresso.
Hipólito da Costa luta no Correio por prin- Sodré (1999) e Bahia (1990) apontam que um fator
cípios liberais e democráticos, contra prá-
ticas obscurantistas e despóticas. Defende fundamental para o atraso no desenvolvimento do meio
mudanças substanciais no sistema político, jornalístico está diretamente relacionado ao sistema
administrativo, econômico e social vigente econômico, pois a manutenção da imprensa depende de
no Brasil e em Portugal. Quer a emancipa- capital financeiro. Na primeira metade do século XIX, o país
ção de seu país, não por métodos violentos,
passava por uma crise econômica, instabilidade política e
mas por meios legais (BAHIA, 1990, p. 27).
havia um alto índice de analfabetismo. A correlação desses
fatores impossibilitou a produção cultural brasileira. A
O jornal editado por Costa tem como objetivo
volta da família imperial a Lisboa e a Independência do
alcançar a liberdade de expressão e de pensamento, bem
Brasil propiciaram condições para o estabelecimento de
como libertar o povo brasileiro da ignorância promovida
uma imprensa autêntica. O desenvolvimento do comércio
pela censura imposta pela Coroa. Devido à expressividade
e a criação de novas políticas fez com que fossem possíveis o
e à oposição à Coroa e ao que ela representava, o jornal foi
estabelecimento do jornal e a construção de uma identidade
caçado e proibido no Brasil. A fim de dar continuidade à
nacional.
publicação do jornal, o periódico passou a ser publicado
A chegada da imprensa periódica ilustrada, após a
na capital inglesa, Londres, e era trazido clandestinamente
invenção da litografia, foi fundamental, pois esse tipo de
para o Brasil. Muitos outros materiais eram trazidos para
jornal registra de forma fidedigna os acontecimentos da
o país da mesma forma. Apesar de o Correio Brasiliense ser
República, como a escravidão. A ilustração é um elemento
considerado um marco da autêntica imprensa brasileira,
importante, já que insere, no cotidiano jornalístico, sátira,
pois expôs as condições do país e a luta pela justiça social,
ironia, informalidade e deboche. Além disso, esse recurso
Sodré (1999) ressalta que Hipólito da Costa, exilado pela
possibilita a explicitação da informação à população
Coroa, utilizava um ponto de vista internacional para lidar
analfabeta que recebia a notícia de forma mais acessível,
com problemas internos, o que tornava seu discurso mais
esclarece Martins (2001). A aparição de recursos gráficos,
doutrinário do que noticioso.
tais como o cartum em periódicos, contribuiu para a
Outro acontecimento que marcou a história da
comunicação direta, pois o cartunista, ao utilizar recursos
imprensa brasileira foi a queda da censura prévia em 1821,

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Pesquisa em Letras: práticas discursivas e sociolinguísticas Aika Fabiana França Albini Bonagura & Willian Jorge Chiaq

visuais variados, conseguia expressar suas ideias sem A PERSONA DO DIABO EM TEXTOS JORNALÍSTICOS
recorrer à linguagem verbal.
Os periódicos tornaram-se ferramentas políticas, A presença do diabo como protagonista em livros ou
pois, por meio da sátira, abordavam questões a respeito como locutor de textos jornalísticos pode parecer estranha
de temas da política mundial e incitavam o debate. Em para aqueles que se deparam, pela primeira vez, com esse
qualquer sociedade, a ideia de apresentar críticas sempre recurso estilístico, mas essa estratégia enunciativa foi
gera muitas reflexões. Santos esclarece (2012, p. 9): tendência durante a segunda metade do século XIX. Mas,
desde a idade média, o diabo, entidade maléfica, traiçoeira
Segundo Ângela Alonso (2002), uma geração e vulgar aparece em periódicos e livros. Com relação
envolvida num movimento amplo de crítica ao aspecto sociocultural, a sociedade da época contava
às instituições, aos valores e às práticas da
ordem imperial, cujo nascimento marca-se
com teatros, missas e bailes para a população distrair-
a partir da quebra de um dos pilares da Mo- se. Aos domingos ocorriam, sobretudo, festas religiosas e
narquia – a escravidão – com o fim do trá- procissões; as músicas se restringiam às loas e modinhas
fico negreiro em 1850 e a lei do ventre livre religiosas.
em 1871 (ALONSO, 2002). Ela incorporou
Em 1864 apareceu, no Brasil, a primeira revista
as ideias europeias e as adaptou às questões
nacionais, como a utopia do progresso, com a temática do diabo, o “Diabo Coxo”, ilustrada por
através da adoção de conceitos spenceristas Ângelo Agostini. Cagnin (2005, p. 12) assinala: “Foi um
que correlacionavam o progresso, a ciência pandemônio! Um atropelo! Foi o diabo!”. O periódico
e a indústria, a fim de fazer ingressar o país sacudiu a cidade de São Paulo após a Semana Ilustrada, que
no rol das sociedades modernas (GRAHAM,
1973). Entretanto, a nação brasileira nes- marcou a chegada da caricatura no país, porque possibilitou
se período dispunha de alguns entraves ao a “democratização da imagem”.
progresso e à dita civilização. Para resolver Deve-se destacar que, em 1832, o padre Miguel do
essas questões, era preciso cancelar privilé- Sacramento Lopes Gama publica, em Recife, o periódico “O
gios de grupos e indivíduos e sujeitá-los a
uma lei comum, inclusive a família real.
Carapuceiro”. Silveira (2007) destaca que esse jornal chama
a atenção do leitor, pois está presente em sua ilustração um
Como ferramenta política de crítica social, os vendedor de carapuças. O jornal apresenta críticas morais
periódicos, de certa forma, influenciaram na percepção e satíricas à sociedade e aos seus costumes. Sua produção,
de valores éticos e morais de uma sociedade de regime no Brasil, pode ter influenciado diretamente os jornais que
escravocrata. surgiram anos mais tarde a fim de expor críticas a partir da
voz moralizadora do diabo.

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Pesquisa em Letras: práticas discursivas e sociolinguísticas Aika Fabiana França Albini Bonagura & Willian Jorge Chiaq

O “Diabo Coxo”, revista ilustrada, foi considerada Vários jornais nacionais incorporaram a imagem do
um marco, pois promoveu uma mudança de perspectiva diabo: Gaveta da Diabo (Rio de Janeiro), Mephistópheles
na linguagem jornalística, mas é preciso considerar que (Rio de Janeiro), Diabo da Meia Noite (Rio de Janeiro),
a figura do diabo já havia sido introduzida na literatura Diabo a Quatro (Rio de janeiro), O diabo: órgão infernal
desde a Idade Média. Em 1641, o escritor espanhol Luís (Ceará), O Diabo: periódico crítico, chistoso e moralisador
Velez de Guevara publicou o “El Diablo Cojuelo” e alguns (Bahia), O Diabo Azul (Paraná), O diabo no mundo (Rio de
anos depois Alain René Lesage se inspirou e escreveu um Janeiro), O tio do Diabo (Bahia) e O Diabrete (Rio Grande
livro com a mesma temática e título, “Le Diable Boiteux. Os do Sul). Além dos periódicos publicados no Brasil, destacam-
livros tratam da: se, também, as publicações em Paris, Lisboa e Madri. Deve-
se levar em consideração que o discurso jornalístico como
[...] história de Asmodeu, o coxo, pobre dia- as “obras diabólicas” entram neste contexto.
bo preso numa garrafa. Libertado por um
estudante, concedeu ao jovem o poder de Para Dela Silva e Santos (2018, p. 301), “o jornalístico
ver, através dos tetos e das paredes das ca- é um dos discursos produzidos e em circulação na mídia, em
sas, o que se passava com as pessoas no seu nossa formação social, e se constitui sócio historicamente”,
interior. (CAGNIN, 2005, p. 14). logo os periódicos são frutos do seu tempo. O possível
pseudônimo Mephistopheles tenha servido para ocultar
A introdução da figura do diabo foi utilizada pelo a identidade dos produtores do discurso a fim de evitar
autor para representar e satirizar, por meio do humor, a censuras e retaliações. Pêcheux (1997a, p. 75), explica que
sociedade da época, logo entende-se o porquê do diabo “um discurso é sempre pronunciado a partir de condições
passar por uma mudança de perspectiva, pois essa persona de produção dadas”, ou seja, para o autor, o processo de
torna-se crítica com relação aos costumes e valores sociais. produção discursiva consiste no “conjunto de mecanismos
A popularidade desse gênero deve-se à expectativa formais que produzem um discurso de tipo dado em
da população com relação à crítica feita à sociedade, havia, circunstâncias dadas” (PECHEUX, 1997b, p. 74). Assim o
portanto, uma identificação, por parte dos leitores, com tom sarcástico e denunciador, do diabo, revela uma voz
o estilo do discurso apresentado, ainda que o enunciador social que se posiciona de modo crítico e representa um
fosse o diabo. A presença desse enunciador tornou-se o “selo segmento social.
de identificação” com o público. O leitor poderia estar em Utilizar a figura do diabo como enunciador de um
qualquer parte do país ou do mundo, mas, se visse um texto texto jornalístico é algo genial. Como o narrador irônico dá
com o título aludindo ao diabo, sabia que ali se encontrava voz a dois enunciadores e a enunciação é polissêmica, os
um conteúdo de teor crítico, irônico e satírico. fatos e acontecimentos expostos são duvidosos, portanto o

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Pesquisa em Letras: práticas discursivas e sociolinguísticas Aika Fabiana França Albini Bonagura & Willian Jorge Chiaq

conteúdo não é confiável. Assim, o texto ganha uma camada A primeira realiza-se de forma imediata no processo
a mais, e o leitor necessita de uma leitura mais atenta para comunicativo, principalmente na modalidade oral, a fala.
evitar armadilhas pela ironia. O texto construído dessa A segunda, contrária à primeira, surge de uma necessidade
forma, aos olhos dos leitores distraídos pode ganhar um comunicativa mais complexa, isto é, passa por um processo
sentindo sério, mas para o leitor perspicaz o texto pode ser de transformação e adquire características específicas por
considerado sarcástico, crítico. ser utilizada em contextos formais. Apesar das diferenças
entre as duas categorias, Karwoski (2009) esclarece
GÊNERO DISCURSIVO, ETHOS E IRONIA que não há uma separação clara entre ambas devido às
particularidades dos gêneros e ao continuum que configura
A seguir, a caracterização do gênero discursivo, além a composição discursiva.
do ethos e ironia. A respeito dos gêneros discursivos e ethos De modo geral, o gênero apresenta especificidades
há uma breve explicação fundamentada por Marcuschi que propiciam a estabilidade discursiva, contudo o contexto
(2008), Bakhtin (1997), Maingueneau (1993), estes sendo de produção interfere em sua atualização, pois o propósito
abordados e relacionados por Karwoski (2009). Realiza-se, comunicativo atua na configuração discursiva. Os gêneros
também, uma reflexão sobre a ironia, seus elementos e a são relativamente estáveis, sua dinamicidade deriva da
subversão que o fenômeno produz no discurso. necessidade social. Além disso, eles são passíveis de alteração
em função do meio e da intenção comunicativa.
ESTILO E ETHOS Bakhtin (1997) explica que a composição do gênero
leva em conta três elementos fundamentais para construção
Segundo Marcuschi (2008, p. 156), os gêneros são de um enunciado:
“formas culturais e cognitivas de ação social corporificadas
de modo particular na linguagem, temos de ver os gêneros O enunciado reflete a condição específica
como entidades dinâmicas”. Portanto, o gênero é um e as finalidades de cada uma dessas esferas,
fenômeno social que surge e sofre mudanças devido às não só por seu conteúdo (temático) e por seu
estilo verbal, ou seja, pela seleção operada
necessidades cotidianas às quais se submete, por essa razão, nos recursos da língua – recursos lexicais,
Bakhtin (1997) ressalta que os gêneros são enunciados fraseológicos e gramaticais –, mas também,
relativamente estáveis, pois são dinâmicos e surgem a partir e sobretudo, por sua construção composi-
de uma necessidade social. cional. Estes três elementos (conteúdo te-
mático, estilo e construção composicional)
O filósofo da linguagem explica que os gêneros se fundem-se indissoluvelmente no todo do
dividem em duas categorias: primários e secundários. enunciado, e todos eles são marcados pela

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especificidade de uma esfera de comunica- discursivas que colaboram na produção de enunciados


ção. Qualquer enunciado considerado isola- estão sujeitas às circunstâncias e às especificidades na
damente é, claro, individual, mas cada esfe-
ra de utilização da língua elabora seus tipos construção de um estilo. Karwoski (2009, p. 13) conclui que
relativamente estáveis de enunciados, sendo o estilo corresponde às
isso que denominamos gêneros do discurso.
(BAKHTIN, 1997, p. 279). escolhas linguístico-enunciativas que o
enunciador explicita em seus enunciados e,
agindo conscientemente ou não, explicita
O gênero discursivo é composto pela temática, seu ethos na maneira de dizer, no seu tom,
estilo verbal (escolha de recursos linguísticos) e construção captado e construído pelo enunciatário.
composicional. A relação entre esses três elementos é
responsável pela construção dos enunciados. Portanto, o discurso é inseparável da voz, ou melhor,
Karwoski (2009) considera que conteúdo temático, os recursos estilísticos tornam o discurso único. Karwoski
construção composicional e estilo correlacionam-se com (2009) considera que estilo e ethos estão diretamente
o ethos. O autor explica que o conteúdo, considerado relacionados e colaboram na constituição de sentidos, pois
isoladamente, não influencia de forma direta a composição o interlocutor, ao identificar e reconhecer marcas estilísticas
do gênero por se tratar de relações semânticas, isto é, na composição discursiva, compreende que esses elementos
incapacidade de o conteúdo especificar e definir o gênero. O indicam o efeito de sentido. Para compreender a noção
segundo elemento, construção composicional, corresponde de ethos, deve-se considerar a integração do discurso ao
à estrutura e estabelece relação entre conteúdo temático corpo, ou seja, à postura e aos gestos que o orador utiliza na
e estilo. O pesquisador acrescenta que a estrutura aliada construção do discurso, no caso, a junção da voz discursiva
apenas ao conteúdo fornece uma vaga ideia do que seria o e do corpo.
gênero. Por fim, o terceiro elemento, estilo, é considerado por Maingueneau (1993) e Bakhtin (1976 apud
Karwoski (2009) como o mais importante, pois está ligado GONÇALVES, 2004, p. 1189) consideram que não só os
intrinsicamente aos outros dois. O estilo pode ser entendido recursos da língua estão ligados à construção de sentidos,
como marcas linguísticas que funcionam e auxiliam no mas também aspectos como tom, entonação e representação.
reconhecimento do gênero, bem como pode assinalar uma Sendo assim, “o que é dito e o tom que é dito são igualmente
“marca individual do enunciador”. (KARWOSKI, 2009, p. importantes e inseparáveis” (MAINGUENEAU, 1993, p.
12). 46), ou seja, torna o enunciador parte integrante do discurso.
Além desses três elementos, são importantes também Segundo Gonçalves (2004), aspectos como voz e
os fatores externos, tais como o meio, pois as esferas corpo não são suficientes para sustentar o ethos enunciativo,

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é preciso considerar que caráter e corporalidade associam- no instante em que o texto ou orador assume para si um
se à voz. Logo, Maingueneau argumenta que: determinado discurso e persuadem o ouvinte/leitor por
meio dele.
O “caráter” corresponde a este conjunto de Gonçalves (2004) esclarece que a noção de ethos está
traços “psicológicos” que o leitor-ouvinte
atribui espontaneamente à figura do enun- relacionada à forma como o ouvinte entende e reconhece a
ciador, em função do seu modo de dizer [...] informação exposta pelo interlocutor, ou seja, ao significado
“corporalidade” que remete a uma represen- do que está sendo dito. Segundo o autor, o receptor adere
tação do corpo do enunciador da formação a uma atitude responsiva ativa, de maneira que ele pode
discursiva. Corpo que não é oferecido ao
olhar, que não é uma presença plena, mas
aceitar ou declinar (total ou parcialmente), completar ou
uma espécie induzida pelo destinatário adaptar o discurso. É fundamental que o orador considere
como correlato de sua leitura. (MAINGUE- a construção da própria credibilidade, ou seja, a confiança
NEAU, 1993, p. 47). deve resultar do discurso e não da opinião sobre o caráter
do orador. A credibilidade está relacionada ao caráter de
Ou seja, a corporalidade é a representação do corpo quem pronuncia o discurso.
na formação discursiva. E o caráter alude as características Gonçalves (2004, p. 1191) esclarece que “o ethos
que definem a personalidade e o modo de agir perante um do gênero se mescla ao do enunciador, o qual forma sua
grupo, portanto, a credibilidade está relacionada com a imagem a partir das representações éticas que guarda do
maneira como o enunciador age e se apresenta. seu enunciatário”, em outros termos, o locutor “coloca-se
A interação de discurso e corpo correspondem, na perspectiva da imagem construída”. No caso da crônica
portanto, ao que Maingueneau (1993) denominou no periódico Mephistopheles, na qual o diabo é o locutor, a
“incorporação”, ou seja, o momento em que o co-enunciador composição discursiva leva o leitor a identificar uma voz
adere ao discurso, à imagem construída. Dessa maneira, a diabólica que incorpora a persona do demônio a fim de
incorporação propicia eficácia discursiva, ou melhor, “poder apresentar uma crítica social.
que tem de suscitar uma crença”. (MAINGUENEAU, 1993,
p. 48). Em outras palavras, trata-se da forma como o orador A FUNÇÃO ENUNCIATIVA DA IRONIA
toma para si um discurso tornando-o verossímil, por meio
da incorporação discursiva, pouco importando se o que Considera-se que a ironia é uma figura de linguagem
está sendo dito é realmente verdade, bastando, apenas, que tem como função apresentar palavras ou sentenças em
que seja credível diante do público a quem se destina. A seu sentido contrário, isto é, as informações apresentadas
“incorporação” ou a “corporização” do enunciado ocorre diretamente não concordam com seu sentido oculto, ou

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seja, com a intenção enunciativa. Maingueneau (1993, p. 1993, p. 100).


98) amplia essa noção ao elucidar que a ironia “subverte a
fronteira entre o que é assumido e o que não é pelo locutor”. O analista do discurso elucida ainda:
O reconhecimento e a interpretação da ironia
dependem da identificação de recursos variados que a Um enunciado irônico faz ouvir uma voz di-
ferente da do “locutor”, a voz de um “enun-
colocam em evidência. Maingueneau (1993) esclarece que, ciador” que expressa um ponto de vista in-
por ser um fenômeno sutil, o enunciado irônico é capaz sustentável. O “locutor” assume as palavras,
de negar ou afirmar algo sem realmente fazer de forma mas não o ponto de vista que elas represen-
explícita. Para a ironia ser ressaltada, é preciso que seja tam. (MAINGUENEAU, 1993, p. 77).
expressa por meio do exagero ou símbolos gráficos que
permitam delimitar pausas e/ou evidenciar a entonação. No discurso irônico, o locutor faz ouvir a voz de
O autor acrescenta que, na falta desses recursos, deve- dois enunciadores, o primeiro (E1) expressa um ponto
se atentar para o contexto a fim de identificar elementos de vista estabelecido a partir do sentido literal e o outro
contraditórios. (E2) apresenta um paradoxo, um ponto de vista absurdo.
Segundo o autor, a ironia é um “gesto dirigido a um A função contraditória da ironia e sua capacidade de
destinatário”, de forma que, ela é “destinada a desmontar subverter o que é dito e entendido devem ser captadas pelo
certas sanções ligadas às normas da instituição da linguagem” leitor a fim de que o propósito comunicativo do discurso
(Maingueneau, 1993, p. 99). Considera-se que a ironia é um irônico seja efetivado. Assim o uso estilístico da ironia, em
meio de dizer algo sem realmente fazê-lo. Ou seja, embora textos do periódico Mephistopheles nos quais o locutor é o
o caráter normativo social e da língua estabeleça o que diabo, configura o ethos de uma persona crítica.
deve ser feito ou dito em um determinado contexto, o uso
da ironia permite que essa norma seja infringida de modo ARTIFÍCIOS DIABÓLICOS
sutil. Maingueneau (1993) explica:
Realiza-se, neste trabalho, uma pesquisa de
O interesse estratégico da ironia reside no abordagem qualitativa com a finalidade de compreender,
fato de que ela permite ao locutor escapar às por meio de revisão de literatura e da análise de uma crônica
normas de coerência que toda argumenta- selecionada do periódico brasileiro “Mephistopheles”, o
ção impõe: o autor de uma enunciação irô-
nica produz um enunciado que possui, a um funcionamento da ironia na composição do ethos discursivo
só tempo, dois valores contraditórios, sem, da persona do diabo. Expõe-se a seguir o processo de
no entanto, ser submetido as sanções que seleção do corpus, a justificativa da escolha do periódico
isto deveria acarretar. (MAINGUENEAU,

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Mephistopheles, apresenta-se as características gerais desse Tabela 1 Mapeamento de periódicos


periódico e da crônica. Nome Ano  Local

(disponíveis)

SELEÇÃO DO CORPUS 1. A Gaveta do Diabo 1867 RJ 2


2. Mephistopheles 1874 RJ 72
O interesse pelo estudo do periódico 3. O Diabo no Mundo 1849 RJ 1
“Mephistopheles” surgiu no segundo semestre de 2021, a 4. Diabo A’quatro: Illustração
1881 RJ 5
partir de uma atividade acadêmica apresentada à disciplina Infernal
Prática Profissional: Gestão e Organização de Centros 5. O Diabo: Órgão Infernal 1895 CE 1
Documentais, Museus e Instituições, sobre periódicos 6. O Diabo Azul: Periódico
1878 PR 1
brasileiros do século XIX. Esse trabalho motivou identificar Litterario, Critico e Chistoso
a utilização da figura do diabo como editor e locutor de 7. O Diabo: Periódico Crítico,
1889 BA 1
textos de periódicos desse período, bem como levantar a Chistoso e Moralisador
questão acerca do porquê desse personagem ser empregado 8. O Tio do Diabo: Orgão Infernal 1891 BA 1
para expor, na época, opiniões e notícias do Brasil e do
mundo. Então, iniciou-se um levantamento de periódicos 9. Mephisto: Orgam dos
1893 CE 2
Conspiradores Infernaes
que trouxessem o ser maléfico como enunciador. Para tanto, 10. O Mephistopheles  1882 MS 5
realizou-se um levantamento na plataforma BNDigital -
11. Lucifer: Orgão do povo  1881 ES 7
Fundação Biblioteca Nacional, no acervo da Hemeroteca 12. O satanaz  1881 BA 2
Digital, considerando os seguintes critérios de busca: 13. O satanaz: Periódico Crítico e
1832 RJ 1
nomes dos periódicos relacionados à persona diabo e suas Socialista
variantes; o cronista assumindo o papel da personagem, 14. O diabrete: Crítico, Literário e
1885 BA 3
ao assinar nomes que remetessem ao diabo, como satã ou Noticioso 

Mephisto; as datas de lançamento e publicação datados 15. Diabrete: Periódico da Pilheria,


1883 RJ 37
do século XIX. Apresenta-se, na tabela 1, a síntese do da Crítica e do Ridículo 
mapeamento realizado. 16. O Diabrete 1880 RS 1
17. O Capêta: Periódico Crítico,
1887  AL 1
Litterario e Noticioso 
Fonte: os autores, 2022.
Todos os periódicos, dispostos na tabela 1, foram

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consultados e constatou-se que eles apresentavam a mesma ver aqueles que “escondem-se ás vezes por detrás da cruz”
característica, um enunciador que assume a persona do diabo. (MEPHISTOPHELES, 1874a, p. 02). Portanto, ao ser capaz
Mas, cada periódico apresenta seu grau de criticidade, uns de reconhecer a natureza humana pela proximidade de
eram mais explícitos do que outros. A litografia também pensamentos e ações consideradas cruéis, ele tem como
podia ser um diferencial, pois nem todas continham objetivo encontrar e desmascarar pessoas que apresentam
ilustrações. essas características
Na seleção realizada com o intuito de escolher o
folhetim que mais se adequaria à proposta deste estudo, CARACTERIZAÇÃO DO PERIÓDICO MEPHISTOPHELES
constatou-se que o periódico Mephistopheles apresentava E DA CRÔNICA
mais volumes conservados e sua trajetória, ou seja, seus
dois anos de publicação. Dessa maneira, ele atendia às Mephistopheles foi publicado pela primeira vez
necessidades desta pesquisa. Além disso, é nele que a figura em 27 de junho de 1874, no estado do Rio de Janeiro e sua
do diabo se mostrou mais evidente. última publicação foi realizada em novembro de 1875. Há
No volume 1 desse periódico, por exemplo, o locutor um contraste muito grande entre a primeira publicação e
apresenta-se: “Eu sou Mephistopheles, alma de Satan, a última. Os primeiros exemplares apresentavam um tom
coração de gelo. Tive alma de anjo; n’um dia rebelou- mais crítico do que os últimos. Alguns editoriais sugerem
se, e fui precipitado” (MEPHISTOPHELES, 1874a, p. 02). que os leitores não estavam satisfeitos com a forma como
Ele segue contando de forma breve sua história, relata o as notícias e crônicas eram redigidas, ou seja, o tom satírico
momento em que se rebelou contra Deus, sua queda e o utilizado pelos escritores e a figura do diabo pareciam não
endurecimento de seu coração, ao longo dos séculos, devido agradar a todos. É preciso considerar que a sociedade da
à falta de esperança no mundo e no coração das pessoas. época era muito religiosa e, passível de censurar o jornal,
Tudo isso tornou-o um ser cruel, como ele explica “Ri[o] como sugere o seguinte excerto retirado do décimo volume:
do mal como do erro, hypocrisia como do crime. /E sou
Este mundo é incomprehensivel!
franco!” (MEPHISTOPHELES, 1874a, p. 02). Percebe-se Todos querem passar por moços bonitos,
que ele é sincero ao expor suas críticas. E, como desvincula- embora tenham catadura hedionda e hor-
se dos padrões sociais, não é obrigado a segui-los. Mephisto ripilante.
é capaz de enxergar o que está por trás das máscaras [...]
Parece extemporaneo este nosso cavaco.
sociais: “Conheço os meus em distancia, os meus iguaes, Não é assim. Temos razões para desconfiar
os que tentam subir á força, os que tiveram alma de anjo, de que qualquer expressão nossa vá ferir a
os que têm coração de gelo” e, não obstante, pode, também susceptibilidade de certa gente, que se con-

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sidera em cheiro de santidade, e que se mo- por católicos que, como apontam, “se dizem apóstolos!”.
lesta com alguma alfinetada inocente que Além disso, defendem-se explicando a necessidade que
se lhe dá e que vae tocar em alguma se suas
chagas.
o enunciador tem de escrever de modo sincero expondo
Grande celeuma levantou o ultimo numero a falta de verdade, mas esta quando é explícita causa um
do Mephistopheles! alvoroço.
[...] A estrutura desse folhetim apresenta geralmente as
Esses juízos temerários são condemnados
seguintes seções: recados á Penna; chronica da semana; pelos
severamente pela Igreja, de quem se diziam
apóstolos! theatros, seção de espetáculos da época; estudos physiologico;
[...] curiosidades; textos satíricos e críticos; provérbios; para
A própria verdade é muitas vezes incommo- matar o tempo, charadas para distrair; poesias e litografias.
da e irritante, pelo principio de que nem to- Normalmente, as imagens das litogravuras apresentavam
das as verdades se dizem.
A mesma virtude escandalisa. Ao hypocri- sátiras, assim como as charges da atualidade. Todas as
ta o que mais pesa e afflige é um acto me- seções, com exceção das litografias, estão divididas em uma
ritório, um rasgo de virtude. Elle não póde estrutura de três colunas. Todos os textos, incluindo as
suportar que se faça e obre bem, quando gravuras, possuem teor crítico e irônico.
se julga dispensado de o praticar, illudindo
pelas apparencias em que faz consistir todo
Optou-se por analisar, neste trabalho, excertos
seu mérito. de uma crônica selecionada da seção chronica da semana,
[...] presente no volume 4.  Sá (1987) esclarece que a crônica é
Assim é; mas nem sempre a penna póde ser um gênero de circulação popular com um ciclo útil:
molhada na tinta da benevolência, em que
o escritor se quer inspirar. A indignação um texto bem elaborado, artisticamente re-
transborda e lá se diz a cousa como real- criando um momento belo da nossa vulga-
mente é. ridade diária. Mas esse lado artístico exige
[...] um conhecimento técnico, um manejo ade-
Estão satisfeitos leitores? Aceitem nos- quado da linguagem. (Sá, 1987, p. 22)
sas desculpas, que são sinceras. (MEPHIS-
TOPHELES, 1874c, p. 2, itálico original).
Para a crônica ser compreendida, o(s) receptor(es)
devem conhecer a situação a qual esse texto faz referência
Torna-se evidente que o periódico sofreu represálias
a fim de que o propósito comunicativo do autor seja
devido ao conteúdo publicado no volume anterior e,
entendido e aproveitado.
evidentemente, a equipe responsável pela produção
  O gênero crônica, muitas vezes, está presente
responde às críticas denunciando as atitudes tomadas

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no meio jornalístico, ela aborda temas do cotidiano e CRÔNICA DA SEMANA: A CADEIA VELHA
é publicada diariamente. A crônica pode apresentar
linguagem coloquial, é uma narrativa curta e o espaço Na crônica, o autor descreve de modo crítico as
narrativo interior é delimitado. duas funções da cadeia velha, uma vez que se reúnem
nela políticos para zelar pela gestão pública e ficam
Do latim, a palavra “crônica” (chronica) re- detidos nela bêbados. As duas funções da cadeia velha são
fere-se a um registro de eventos marcados aparentemente opostas, pois um grupo mantém a ordem e
pelo tempo (cronológico); e do grego (khro-
nos) significa “tempo”. Portanto, elas estão
o outro é responsável pela desordem, elas têm em comum
extremamente conectadas ao contexto em o fato de serem consideradas pelo cronista como um vício,
que são produzidas, por isso, com o passar pois a política e a bebida provocam a embriaguez.
do tempo ela perde sua “validade”, ou seja, Inicialmente o cronista dirige-se aos leitores e
fica fora do contexto (DIANA, 2022). explica que naquela semana, por motivo de força maior,
não haveria uma crônica. E dá continuidade ao texto,
A crônica selecionada para análise apresenta o relacionando política ao estado de embriaguez, declara ter
locutor Mephisto, que critica a sociedade de sua época, ficado embriagado e explica o ocorrido durante o período
utilizando a ironia para dar um toque sutil de humor ao em que esteve na cadeia velha4.
texto. Após essa introdução, o autor descreve a aparência
da cadeia velha, do senhor fardado que fica sentado à mesa
A PUBLICAÇÃO QUE O DIABO ASSINOU tomando notas e da sala grande, um cômodo em que são
apresentadas as pessoas que frequentam o lugar:
Nesta seção, analisa-se o texto jornalístico localizado
na seção ‘Chronica da semana’ (anexo A), presente no muitos homens, todos com ares pretencio-
periódico Mephistopheles. Nesse texto, Mephisto critica e, sos, uns sentados, outros de pé, uns fuman-
principalmente, denuncia a forma como os parlamentares do, outros conversando, e de vez em quando
levanta-se um, que falla dirigindo-se a to-
tomam decisões e aprovam leis. Essa crônica encontra-se dos, mas a quem poucos escutam (MEPHIS-
no volume n° 04 e foi publicada em 18 de julho de 1874. TOPHELES, 1874b, p. 02).

4
Segundo Pereira (2010), foi um edifício construído em 1640 e contava com
três vereadores que eram responsáveis por cuidar tanto da cidade como do
setor financeiro. Além disso, a construção também abrigava criminosos,
visto que no andar superior trabalhavam os vereadores enquanto, no andar
inferior, havia a cadeia, o que gerou a denominação de cadeia velha.

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O autor comenta que alguém havia lhe dito que A IRONIA NA COMPOSIÇÃO DO ETHOS DA PERSONA
aqueles homens, os frequentadores do local, só faziam DO DIABO
discutir e fumar, mas seriam considerados os salvadores
da pátria. O autor explica como eles se tratavam, ou seja, Para análise da crônica, foram selecionados sete
principalmente com insultos. Essa forma de tratamento excertos organizados em sete quadros. Em cada quadro
refletia também nas ações desses homens “esta quebra a destacam-se o enunciado expresso pelo locutor (L), o
bancada, aquele bate com os pés, todos fazem algazarra” sentido literal desse enunciado é exposto pelo enunciador 1
(MEPHISTOPHELES, 1874b, p. 02). O cronista assinala (E1) e o sentido absurdo, normalmente a crítica, transmite a
que era desse modo que as leis eram elaboradas para o povo. intenção do enunciador 2 (E2). Na última coluna, apresenta-
O cronista elucida que há naquele local vários tipos de se o ethos, ou seja, a imagem constituída da persona do
pessoas “alli ha de tudo”, desde a advogados e médicos Diabo. Apresentam-se a seguir os segmentos selecionados
até padres e, citado com grande ênfase, a presença de e a análise.
gaúchos. E ele termina seu relato mencionando que os
últimos dias foram um esgotamento de tudo, após uma briga (1) Annuncio aos meus piisimos5 leitores que não tenho
entre um “rochunchudo e um velho todo encanecido” hoje chronica para oferecer-lhes. Não me acusem
(MEPHISTOPHELES, 1874b, p. 02). Ao final, retoma por isso. E’ de certo uma falta, mas, como vão ver os
acontecimentos importantes ocorrido na cidade, pede leitores, é também uma falta desculpavel.
desculpas e promete elaborar uma crônica minuciosa no
Quadro 1 - Persona dissimulada
número seguinte.
Ironia
Enunciador 2
Enunciador 1 Ethos
Locutor (Sentido
(Sentido literal) (Diabo)
subentendido)

5
Segundo o dicionário online Houaiss, o adjetivo piíssimo (etim. lat. pĭus,a,um
no sentido de ‘que cumpre o dever, puro, justo, honesto, casto’) significa: 1 que
revela piedade ou caridade; piedoso, caritativo; 2 devoto, religioso.

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Anúncio aos meus (2) Já alguem disse, e todos os dias ahi se repete, que a
piisimos leitores que O locutor des- politica é uma bebedeira. Embebedei-me, meus
não tenho hoje chro- culpa-se por não
nica para oferecer- ter um conteúdo
O locutor tem caros leitores, e levei me toda semana a correr para
muito a dizer, a cadeia velha, apenas engolia o ultimo bocado do
-lhes. Não me acusem para apresentar
pois elabora Dissimulado.
por isso. E’ de certo naquele volume,
uma crônica de almoço, e sem poder conter as pernas ou a vontade
uma falta, mas, como então faz um
vão ver os leitores, relato de sua
teor crítico. (não sei bem ao certo) que para alli me levavam.
é também uma falta semana.
desculpavel.
Fonte: os autores, 2022. Quadro 2 – Persona debochada
Ironia
Em (2) o E1 desculpa-se com o público por não Enunciador 2
Enunciador 1 Ethos
poder trazer uma crônica semanal como normalmente faz Locutor (Sentido
e explica o ocorrido, apresentando um motivo aceitável. (Sentido literal) (Diabo)
subentendido)
Portanto, para justificar o acontecimento, o E1 faz um Já alguem disse, e
relato descrevendo como foi sua semana. todos os dias ahi se
O propósito do E2 pode ser percebido, ao longo da repete, que a politica O locutor des-
é uma bebedeira. qualifica a polí-
leitura, pelo leitor perspicaz que identifica o não ‘ter nada a O locutor expli-
ca que a política tica assinalando
ser dito’ como uma falsa justificativa. Esse ponto se sustenta Embebedei-me, meus
que ela é uma
Debochado
caros leitores, e levei é uma bebedeira e desmora-
pelo fato de haver uma crônica subsequente. Ou seja, o e conta que se bebedeira, um
me toda semana a lizadordas
uso da ironia possibilita ao cronista criticar determinadas correr para a cadeia embriagou, por- vício. E explica
práticas
que foi levado
atitudes sem comprometer-se, pois o sentido do enunciado velha, apenas engolia tanto foi levado, políticas.
durante uma para a cadeia
de E2 pode ser negado pelo cronista (E’ de certo uma falta, o ultimo bocado do
velha por ter se
almoço, e sem poder semana, para a
mas, como vão ver os leitores, é também uma falta desculpável). cadeia velha. embriagado.
conter as pernas ou a
Portanto, a persona do diabo é dissimulada.
vontade (não sei bem
ao certo) que para alli
me levavam.
Fonte: os autores, 2022.

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O enunciado (1) é irônico e apresenta ambiguidade Já alguem disse, e


enunciativa. Os enunciadores E1 e E2 vinculam a política à todos os dias ahi se
embriaguez, mas o segundo tem o propósito de desqualificar repete, que a politica
é uma bebedeira. O locutor des-
a política, pois a cadeia velha é utilizada como prisão para creve a cadeia A cadeia velha é
punir, por exemplo, bêbados e como espaço reservado às Embebedei-me, meus velha como um um lugar desa-
caros leitores, e levei
atividades políticas. A persona do diabo configura-se como lugar agradável gradável, além
me toda semana a e descreve um disso, o oficial Crítica, de-
debochado que desqualifica a política. correr para a cadeia oficial, ocupa- que está lá não núncia
velha, apenas engolia do, realizando tem um papel
(3) Entra-se, e gosta-se logo, Há uma mesa na entrada, o ultimo bocado do seu trabalho de realmente im-
onde um velho toma notas, tendo sempre a seu lado, almoço, e sem poder maneira muito portante.
conter as pernas ou a profissional.
um personagem esguio, com ares diplomaticos,
vontade (não sei bem
oculos fixos, lapis na mão e fardado de general, O que ao certo) que para alli
elle faz não sei, mas é bonito de ver-se! me levavam.
Fonte: os autores, 2022.

Quadro 3 – Persona crítica


O E1 relata a chegada a um local, que o leitor, ao
Ironia ler o texto completo, sabe que se trata da cadeia velha. E1
Enunciador 2 esboça apreciação do local desde a entrada, depois descreve
Enunciador 1 Ethos
Locutor (Sentido o ambiente e as pessoas que ali estão, entre elas um militar.
(Sentido literal) (Diabo)
subentendido) E1 explica que embora não saiba o que elas fazem, é algo
agradável de se observar.
O E2, apresenta uma crítica pois é possível observar
a ocupação de militares que não têm um papel realmente
relevante naquele contexto. Dando assim uma noção crítica
ao modelo organizacional e ocupacional dos trabalhadores
daquele ambiente.

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(4) Disseram-me que eram eles salvadores da patria. O E2 nos transmite a noção de que as pessoas ali
Acredito que a patria será salva, porque, embora não teriam como ser os salvadores da pátria, pois falam
ninguem escute, e todos palestrem e fumem muito, muito e fazem pouco, além de ninguém se importar ou dar
em compensação, faz-se muito discurso. importância para eles: Acredito que a patria será salva, porque,
embora ninguem escute, e todos palestrem e fumem muito, em
compensação, faz-se muito discurso.
Quadro 4 – Persona crítica O segmento a seguir reforça a crítica vista no quadro
Ironia (3), sobre o aspecto organizacional do local, algo bem
Enunciador 1
Enunciador 2
Ethos problemático considerando que, teoricamente, se trata de
Locutor (Sentido um ambiente público, pago com o dinheiro dos impostos.
(Sentido literal) (Diabo)
subentendido)
O locutor ex- (5) Este quebra a bancada, aquelle bate com os pés, todos
Disseram-me que
eram eles salvadores
pressa que as fazem algazarra. Que movimento! Que actividade!
pessoas que
da patria. Acredito O locutor du- Quanta eloquencia! E no fim de contas sahe uma lei,
discutem as leis
que a patria será
são tidas como
vida se a pátria mas que lei! Mesmo bem feitinha que é um regalo6.
salva, porque, embo- realmente será Crítica e
salvadores da
ra ninguem escute, salva, visto que, denúncia
pátria. Ele acre- Quadro 5 – Persona denunciadora
e todos palestrem e muitos se fala e
dita que real-
fumem muito, em pouco se faz. Ironia
mente são, pela
compensação, faz-se
disseminação de Enunciador 2
muito discurso. Enunciador 1 Ethos
vários discursos. Locutor (Sentido
Fonte: os autores, 2022. (Sentido literal) (Diabo)
subentendido)

O E1 expressa que há uma fala prévia sobre as pessoas


daquele ambiente, caracterizando-os como ‘salvadores da
pátria’. Assim, acredita que as pessoas realmente serão os
salvadores, porque embora ninguém de fato os escute, elas
fumam, falam, palestram e discursam muito, então isso
poderia ser uma via de melhoria da nação. 6
Segundo o dicionário online Houaiss, o verbo regalar (etim, fr. régaler (1611)
‘dar-se prazeres’; (1636) ‘agradar alguém’, de régal no sentido de ‘festim;
presente’; ver reg(i)-) significa: 1 proporcionar regalo ou prazer a (alguém
ou si mesmo); 2 oferecer como presente a; brindar, ofertar.

46 47
Pesquisa em Letras: práticas discursivas e sociolinguísticas Aika Fabiana França Albini Bonagura & Willian Jorge Chiaq

O locutor elo- regalo.


Este quebra a ban-
cada, aquelle bate
gia a postura O locutor critica Portanto, há um tom de ironia revelado pela
na tomada de a postura parla- ambiguidade enunciativa, denunciando as atitudes dos
com os pés, todos
decisões par- mentar expondo
fazem algazarra. Que
lamentares e a falta de decoro
políticos e a negligência na tomada de decisões.
movimento! Que
ressalta que as que consequen-
actividade! Quanta Denúncia
leis aprovadas temente leva a (6) Esgotaram a materia, esgotaram a eloquencia, esgotaram
eloquencia! E no fim
de contas sahe uma
são muito bem- aprovação de leis tudo! Foi um verdadeiro esgôto!
-feitas ao ponto ineficazes para o
lei, mas que lei! Mes-
de serem um bem-estar po-
mo bem feitinha que Quadro 6 – persona debochada
presente para a pular.
é um regalo. Ironia
população.
Fonte: os autores, 2022. Enunciador 2
Enunciador 1 Ethos
Locutor (Sentido
(Sentido literal) (Diabo)
Em (5), o E1 apresenta ao leitor, em um tom animado, subentendido)
a forma como os políticos tomam decisões durante o O locutor ex- O locutor assina-
Esgotaram a materia, plica que os la que as ideias
processo de elaboração e aprovação de leis. Além disso,
esgotaram a eloquen- argumentos, o não servem
em elogio, ressalta que nessa execução, tudo é tão bem cia, esgotaram tudo! diálogo, tudo foi para nada e se
Deboche e
feito e oferecido de bom grado à população que recebe um Denúncia.
Foi um verdadeiro consumido por assemelham aos
presente. Porém, seguindo para uma segunda interpretação esgôto! uma extenuante dejetos despeja-
que nos leva ao E2, levando em consideração o contexto, discussão. dos nos esgotos.

destaca-se a crítica e um tom implícito de denúncia. E2 Fonte: os autores, 2022.


critica a postura dos parlamentares, supostos salvadores, Em (6), o E1 preocupa-se em apontar que devido
pois utilizam meios como berros e gestos violentos ao invés a uma briga dentro do parlamento, os argumentos
de dialogar, destacado no seguinte excerto: Que movimento! utilizados foram esgotados durante a discussão entre os
Que actividade! Quanta eloquencia! parlamentares, concluindo que todas as questões discutidas
Nesse mesmo ponto, é também elucidado que a geraram um verdadeiro esgotamento. Há, nesse ponto, a
conduta esperada de pessoas responsáveis por um país é ironia que pode ser destaca pelo excerto: Foi um verdadeiro
contraditória, pois as leis são elaboradas de tal forma que esgôto!
acabam por negligenciar o bem-estar da população. Não se Para compreender a utilização da ironia enfatiza-
sabe se de fato o que está sendo proposto é ou não eficaz. se o uso da palavra esgôto, que, primeiramente, pode ser
Destaca-se o excerto: mas que lei! Mesmo bem feitinha que é um entendida como ‘cansaço’ ou ‘término’, porém E2

48 49
Pesquisa em Letras: práticas discursivas e sociolinguísticas Aika Fabiana França Albini Bonagura & Willian Jorge Chiaq

faz uso dela no sentido de ‘despejar líquidos ou dejeções’. O E2, dissimulado, apesar de ter anunciado que não
Portanto, a discussão e a forma como os argumentos são haveria crônica, aquela semana, ele acaba por elaborar
apresentados, remetem à forma como o esgoto é produzido uma crônica, diferente dos moldes tradicionais do
e, consequentemente, descartado. periódico. O cronista explica: No numero seguinte darei uma
chronica minuciosa para resgatar-me da falta de hoje. Não há a
(7) No numero seguinte darei uma chronica minuciosa necessidade de desculpas, pois houve uma crônica, aí está o
para resgatar-me da falta de hoje. emprego da ironia no discurso.
O cronista, ao utilizar como recurso a ironia, gera
no texto o fenômeno da polifonia, fazendo com que o texto
Quadro 7 – persona dissimulada apresente mais de uma voz (L, E1 e E2) e, consequentemente,
Ironia mais de um sentido. Karwoski (2009) considera que o
Enunciador 1
Enunciador 2
Ethos ethos e o estilo estão relacionados e colaboram ativamente
Locutor (Sentido na construção de sentidos, portanto, ao compreender
(Sentido literal) (Diabo)
subentendido) o estilo como uma particularidade do enunciador e o
O locutor pro- ethos corporifica uma persona debochada, dissimulada,
mete aos leitores O locutor de- desmoralizado, crítica e denunciadora.
que no próximo clara que uma
No numero seguinte
volume do peri- crônica foi apre-
Nos segmentos analisados, tem-se ciência de que o
darei uma chronica diabo é o enunciador do discurso e ele assume a persona de
ódico, trará uma sentada, mesmo
minuciosa para res- Dissimulado
crônica de ver- que não manti- Mephisto. O ethos dessa persona se constrói ao incorporar
gatar-me da falta de
hoje.
dade ao público vesse o padrão a ironia quando utiliza a dissimulação para transmitir a
a fim de redimir dos volumes
mensagem pretendida. Essa personagem passa a adquirir um
pela falta come- anteriores.
tida. tom denunciativo, debochado e provocador. Esses elementos
Fonte: os autores, 2022. unem-se à figura popular de uma personagem totalmente
ambígua e nem um pouco confiável, apresentando um
O E1, ingênuo, promete que no exemplar seguinte produto, que mescla os conhecimentos e crenças do leitor
irá apresentar uma crônica detalhada para compensar a com acontecimentos da época. Dessa forma, ao ser uma
falta do exemplar, como uma espécie de remição. personagem de caráter duvidoso que utiliza o recurso da
ironia para alcançar seu propósito de denunciar, o discurso
será subvertido de forma que o destinatário compreenda
o que está sendo dito, sem, de fato, conter uma mensagem

50 51
Pesquisa em Letras: práticas discursivas e sociolinguísticas Aika Fabiana França Albini Bonagura & Willian Jorge Chiaq

explícita (MAINGUENEAU, 1993). Ao reconhecer o mas revestida em hipocrisias.


propósito comunicativo da crônica, o leitor pode aceitar, Identifica-se, ao longo da análise dos excertos
declinar, completar ou adaptar o discurso a partir do que selecionados, a presença da ironia, compreendida como um
foi compreendido (GONÇALVES, 2004, p. 1191). fenômeno sutil capaz de transmitir determinada mensagem
A ironia é um elemento específico do discurso de forma dissimulada; ela contribui para a construção
presente na crônica, logo, ela configura-se com um recurso do discurso que caracteriza a persona do diabo. Ou seja,
estilístico empregado pelo autor. conforme Maingueneau (1993), ao utilizar a sutileza e
a dissimulação com intuito de tornar o discurso crível,
É O DIABO! são empregados recursos linguísticos com o propósito
de denunciar certas normativas sociais a fim de criticar
Este trabalho propôs-se a analisar a construção do atitudes e fazer com que o leitor crítico compreenda o que
ethos, de modo a caracterizar o tom irônico da persona do foi dito (MAINGUENEAU, 1993, p. 77).
diabo em uma crônica do folhetim Mephistopheles. A fim Os elementos constituintes do discurso irônico
de alcançar o objetivo exposto, o artigo fundamentou-se, são fundamentais para a compreensão do que se entende
principalmente em pressupostos delineados por Bakhtin como ethos que caracteriza a persona do diabo. O modo
(1997), Maingueneau (1993) e Karwoski (2009) para como constrói seu discurso, no caso, trata-se de sua marca
esclarecer o conceito de gênero discursivo, bem como estilística.
seus elementos composicionais, além de explicar a noção Diante disso, percebe-se o valor contido, não
de ethos e ironia com a finalidade de analisar a crônica do somente na crônica, mas no periódico como um todo.
periódico Mephistopheles, publicada no volume n° 04 desse Primeiramente, deve-se levar em conta o resgate de um
periódico, em 18 de julho de 1874. dado com, aproximadamente, 150 anos que, além de seu
Não é possível compreender, a princípio, o que valor histórico, revela também a forma como a imprensa,
motivou a sociedade da época a consumir um jornal com por meio da crônica e de outros gêneros do jornal, não age
um nome e uma personagem tão controversos, porém, ao de maneira imparcial, mas sim, expõe opinião em um relato
perceber os aspectos satíricos e críticos que constroem do cotidiano. Outro aspecto considerado com relação à
um humor, entende-se o motivo. O humor contagiante do coletânea de jornais selecionados é sua versatilidade, visto
periódico, apesar de não abranger todos os seus assinantes, que o conteúdo dos folhetins, ao incluir diversos gêneros,
portava uma forma inovadora de tornar o diabo um crítico pode ser aproveitado em áreas como a história, a linguística,
da moral vigente, principalmente, capaz de desmascarar o jornalismo e a literatura. Esse aproveitamento implica,
uma sociedade escondida por trás de valores e princípios, também, a litografia da época que produzia imagens de

52 53
teor crítico e satírico comparáveis às charges e aos cartuns REFERÊNCIAS
de hoje.
Portanto, por se tratar de um corpus pouco conhecido, BAHIA, Juarez. Jornal, História e técnica. Volume 1, 4. ed. [atualizada,
abre oportunidades para novos e diferentes estudos revista e aumentada]. São Paulo, Editora Ática S.A., 1990.
nas mais variadas vertentes, tornando-a uma pesquisa BAKHTIN, Mikhail. Estética da Criação Verbal. São Paulo: Martins
potencialmente rica. Fontes, 1997.
Quanto ao periódico Mephistopheles, ao analisar
todos os volumes disponíveis na hemeroteca digital, CAGNIN, Antonio. Foi o Diabo! In: Diabo Coxo – 1864-1865. Edição
pode-se perceber o quão a obra sofreu censura, perdendo fac-similar, São Paulo: Editora da Universidade de São Paulo, 2005,
seu enunciador ‘diabólico’, levando em consideração a p. 09-19.
sociedade calcada no catolicismo.
DELA SILVA, S.; GOMES DOS SANTOS, R. A mídia e os dizeres sobre
Refletindo um pouco sobre o hoje, muito
o professor no Brasil: uma análise do discurso jornalístico. Cadernos
provavelmente periódicos com esse tom não seriam bem
de Letras da UFF, v. 28, n. 57, p. 299-317, 26 dez. 2018. Disponível
aceitos por uma parcela da população, tanto pelos valores
em: https://periodicos.uff.br/cadernosdeletras/article/view/43965.
religiosos, como pelo risco da falta de interpretação de
Acesso: 26 nov. 2022.
texto. Muito provavelmente as pessoas seriam incapazes
de compreender o uso da ironia ou não teriam interesse DIANA, Daniela. Crônica. Toda Matéria, 2022. Disponível
na temática que embasa o periódico. "Por consequência, em: https://www.todamateria.com.br/cronica/#:~:text=A%20
o conteúdo eventualmente seria tomado como verdade cr%C3%B4nica %20%C3%A9%20um%20g%C3%AAnero,de%20
absoluta, gerando efeitos negativos relacionados à censura acontecimentos%20corriqueiros%20do%20cotidiano. Acesso em: 18
ou ao cancelamento em redes sociais. Logo, infere-se set. 2022.
que uma parcela da sociedade não estaria pronta para o
GONÇALVES, João Batista Costa. ETHOS E GÊNERO DISCURSIVO:
discurso do diabo”.
UMA ESTREITA RELAÇÃO.JORNADA - GELNE, XX., 2004, João
Pessoa. Anais [...]. João Pessoa: [s. n.], 2004. 14 p. Tema: ETHOS E
GÊNERO DISCURSIVO: UMA ESTREITA RELAÇÃO. Disponível
em: http://www.gelne.com.br/arquivos/anais/gelne_2004/PDF/
Jo%E3o%20Batista%20Costa%20Gon%E7alves.pdf. Acesso em: 23
out. 2021.
KARWOSKI, Acir Mário. GÊNERO DISCURSIVO E ETHOS: _________________., periódico. Cidade do Rio de Janeiro, Rio de
UMA APROXIMAÇÃO.  In:  Simpósio Internacional de Estudos de Janeiro, nº 4, 1874b, p.2. Disponível em: <http://memoria.bn.br/
gêneros Textuais. 2009. Tese (Pós-Graduação em Letras - Doutorado) DocReader/DocReader.aspx?bib=714186&pagfis=24>. Acesso em: 27
- Universidade Federal do Triângulo Mineiro (UFTM), [S. l.], 2009. ago. 2021.
Disponível em: https://www.ucs.br/ucs/extensao/agenda/eventos/
_________________., periódico. Cidade do Rio de Janeiro, Rio de
vsiget/portugues/anais/arquivos/genero_discursivo_e_ethos_uma_
Janeiro, nº 10, 1874c, p.2. Disponível em: <http://memoria.bn.br/
aproximacao.pdf. Acesso em: 14 maio 2022.
DocReader/DocReader.aspx?bib=714186&pagfis=69>. Acesso em: 27
LAKATOS, Eva Maria; MARCONI, Marina de Andrade. Metodologia ago. 2021.
científica. 7. ed., São Paulo: Atlas, 2017.
PÊCHEUX, M. [1975]. Semântica e discurso: uma crítica à
MARCUSCHI, Luiz Antônio. Produção de texto, análise de gêneros afirmação do óbvio. 3. ed. Campinas: Editora da Unicamp, 1997a.
e compreensão. São Paulo: Parábola Editorial, 2008.

MAINGUENEAU, Dominique. Novas tendências em análise do PÊCHEUX, Michel. Análise Automática do Discurso (AAD-69)  IN
discurso. Tradução Freda Indursky. Campinas- SP. Pontes: Editora GADET, F. HAK, T. (Org.). Por Uma Análise Automática do Discurso:
da Universidade Estadual de Campinas. 2. ed. 1993. Uma Introdução à Obra de Michel Pêcheux. 3ª Ed. Campinas, SP:
Editora da UNICAMP, 1997b, p. 74.
MARTINS, Ana Luiza. Revistas em Revista: Imprensa e Práticas
culturais em Tempos de República, São Paulo (1890-1922). São Paulo,
Editora da Universidade de São Paulo, Fapesp, Imprensa Oficial do PEREIRA, Robson. Herói Brasileiro: A história dos últimos dias
Estado, 2001. de Tiradentes. Assembleia Legislativa do Estado do Rio de janeiro
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MELO, José Marque de. Sociologia da Imprensa Brasileira: A
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DocReader/DocReader.aspx?bib=714186&pagfis=2 >. Acesso
em: 27 ago. 2021. REGALAR. In HOUAISS, Grande Dicionário Houaiss. São Paulo/SP:
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uol.com.br/corporativo/apps/uol_www/v6-0/html/index.php#15>.
Acesso em: 09 set. 2022. ANEXO A – CHRONICA DA SEMA-
NA – MEPHISTOPHELES – Nº 04
SÁ, Jorge de. A crônica. São Paulo: Ática, 1987.

SANTOS, Marina Pózes Pereira. Literatura e Imprensa no Brasil


de fins do século XIX. Programa Nacional de Apoio à Pesquisa da
Fundação Biblioteca Nacional. 2012, p. 9.

SILVEIRA, E. M. Gonçalves, O CARAPUCEIRO: um periódico


satírico na primeira metade do século XIX. Faculdade de Letras da
UFMG. Belo Horizonte, 2007. Disponível em: <https://repositorio.
ufmg.br/handle/1843/ECAP-74QKCP>. Acesso em: 14 maio. 2022.

SODRÉ, Nelson Werneck. História da Imprensa no Brasil. 4. ed.


[atualizada]. Rio de Janeiro, Mauad, 1999.
Pesquisa em Letras: práticas discursivas e sociolinguísticas Catharine Fialka

Sexismo, silenciamento É notável o crescimento dos usuários das redes


sociais, principalmente do Facebook. Há mais de 130 milhões
e Resistência: críticas de

2.
de brasileiros com contas ativas nessa rede e elas aumentam
usuários do facebook À 3% ao ano. Essa rede é uma das mídias mais utilizadas pelos
atriz gal gadot, A Mulher usuários do mundo e encontram-se nela diversas páginas
que apresentam uma ampla variedade de assuntos.
Maravilha Os usuários expressam opiniões nas postagens
inseridas nas páginas do Facebook; todos esses textos (posts
Catharine Fialka1 e comentários) transmitem crenças, valores e são acessados
Prof.ª Dr.ª Sandra Batista da Costa2 por vários internautas que podem compartilhar esses
materiais. As ideias presentes nesses textos podem ser
PARA INÍCIO DE CONVERSA acolhidas ou não. No ano de 2014, foram apresentados
muitos pontos de vista que desqualificaram a aparência
Muito se discute sobre os conteúdos polêmicos feitos por física da atriz Gal Gadot. Este trabalho tem, pois, como
usuários das redes sociais, em posts. Neste estudo, analisam-se objeto de estudo, comentários feitos na página Adorocinema,
comentários sexistas, presentes em posts de páginas do Facebook, do Facebook, sobre a notícia acerca de um pronunciamento
sobre a atriz Gal Gadot, intérprete da super-heroína Mulher feito por Gadot, “Eles disseram que meus seios eram muito
Maravilha. Essa temática é relevante, pois as redes sociais são pequenos”, postada no dia 25 de março de 2015.
ferramentas de comunicação utilizadas frequentemente por As opiniões feitas, a partir desse pronunciamento,
muitos usuários, além de serem um meio de interação, trocas de revelam, sobretudo, que o discurso misógino é utilizado de
ideias e propagação de valores. O sexismo existe de diferentes forma natural, embora seu conteúdo seja ofensivo. Eles se
formas e aparece em diversos contextos, portanto faz-se limitam às críticas pejorativas sobre a aparência física da
necessário discutir e reconhecer formas de manifestação do atriz, bem como comparam-na com outras atrizes a fim de
sexismo, bem como conhecer contextos nos quais identificam- ofender Gadot. Os cartunistas3, que são majoritariamente
se esse tipo de discurso. do sexo masculino, desenham de forma erótica as heroínas
femininas, como a Mulher Maravilha, idealizando um corpo
perfeito que está muito distante do real. O padrão corporal
1
Licenciada em Letras Português – Inglês pela Pontifícia Universidade
Católica do Paraná. E-mail: kkathyfialka@gmail.com
2
Orientadora - Doutora e Pós-Doutora em Linguística pela Universidade 3
Diz-se de ou pessoa que cria ou desenha cartuns, tiras cômicas, histórias
Estadual de Campinas. Professora na Universidade Católica do Paraná. em quadrinhos de humor, desenhos ou ilustrações humorísticas (in
E-mail: sandra.costa@pucpr.br MICHAELIS)

60 61
Pesquisa em Letras: práticas discursivas e sociolinguísticas Catharine Fialka

estabelecido para as super-heroínas é propagado, de modo usada no Brasil, sendo assim, as críticas feitas nas postagens
geral, pelas mídias. Em razão disso, são feitas apreciações expostas nessa plataforma podem gerar incômodo ou até
ofensivas em relação à aparência da atriz Gadot, uma vez mesmo motivar o discurso de ódio. Dentre eles encontra-
que seu corpo não retrata a imagem pré-estabelecida da se o discurso sexista presente em alguns comentários no
heroína Mulher Maravilha. Tomando como referência Facebook.
esse contexto, levanta-se a seguinte questão: por que
os comentários feitos em post, encontrados nas páginas REDE SOCIAL FACEBOOK
do Facebook, sobre a atriz Gal Gadot, são considerados
sexistas? Este trabalho tem por objetivo analisar estes As tecnologias digitais vêm avançando rapidamente,
textos relacionados a atriz, verificando a natureza sexista bem como as mídias sociais que facilitam a conexão
do discurso. com o mundo e propõem interação social entre pessoas.
Para fundamentar este estudo, recorre-se aos O Facebook, por exemplo, é uma das plataformas mais
pressupostos de Fiske e Glick (1996) acerca das formas de utilizadas por usuários no mundo. Os usuários dessa
sexismo e aos estudos de Orlandi (2007, 2020) e Brandão rede podem fazer postagens, compartilhamentos, curtir
(2004) sobre discurso, sujeito e sentido. Utilizam-se essas fanpages com diferentes temáticas, reagir aos comentários
noções a fim de examinar o efeito de sentido dos conteúdos ou posts, comentá-los e também podem dialogar com outros
misóginos. usuários. Todas essas práticas discursivas são realizadas em
Para apresentar o estudo realizado, expõe-se, função do interesse e gosto de cada usuário.
primeiramente, o modo como posts e comentários presentes Os internautas maiores de 13 anos têm, desde 2004,
no Facebook são compostos e a caracterização do discurso acesso livre ao Facebook. Atualmente, são mais de 2,8 bilhões
sexista. Em seguida, recorre-se a pressupostos da Análise de usuários no mundo (BARROS, 2021). Essa plataforma
do Discurso (AD) para explicar discurso, sujeito e sentido. é a segunda rede social mais usada no Brasil, possui mais
Depois, explicita-se o processo de seleção e organização dos usuários ativos em nosso país; são mais de 130 milhões de
comentários sobre a postagem de Gal Gadot e são realizadas brasileiros que têm contas ativas nessa rede social. Grande
análises dos segmentos discursivos selecionados. Por fim, parte dos usuários tem entre 18 e 34 anos e as postagens
são apresentadas as considerações finais. realizadas no Facebook atingem 8,5% do público. Segundo o
OPUS – Consulturias&Pesquisa, os usuários da rede social
FACEBOOK E DISCURSO SEXISTA em questão são majoritariamente do sexo feminino, 49% do
seu público, e 37% são do sexo masculino.
O Facebook está entre as três redes sociais mais Existem outras características dos usuários, como:

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Pesquisa em Letras: práticas discursivas e sociolinguísticas Catharine Fialka

classe social, idade, sexo, religião, posição política etc. das postagens utilizam imagens que podem ser selecionadas
Os dados apresentados caracterizam o perfil do usuário pelo próprio usuário ou escolhidas entre as ilustrações
do Facebook, sendo alguns dos fatores que influenciam o disponibilizadas automaticamente na plataforma que
discurso. oferece gravuras relacionadas ao assunto desejado.
Segundo estudos: As linguagens verbal e não verbal desempenham um
papel importante, pois interligam-se; o leitor atualiza o
Desde a sua criação em fevereiro de 2004 até sentido do texto de modo a relacioná-lo com o contexto de
os dias de hoje, o Facebook transformou-se num
extraordinário caso de sucesso através do domí-
produção a fim de captar o propósito comunicativo.
nio massivo de milhões de interações sociais, A postagem parte de uma publicação e existem três
diárias. Esta nova esfera de comportamentos so- formas de interagir com o post: curtição, comentários e
ciais acarreta um fascínio inerente, mas também compartilhamentos (EMEDIATO, 2015). O conteúdo da
fornece aos cientistas sociais uma oportunidade,
sem precedentes, de observação de comporta-
publicação motiva o estabelecimento de diálogos com o
mentos num cenário natural, de testar hipóteses texto postado, ou seja, as apreciações propiciam a interação
num domínio totalmente novo e de recrutar com com o autor do post ou até mesmo com outros internautas.
eficiência participantes de todas as partes do Emediato (2015) recorre aos estudos de Kerbrat-Orecchioni
mundo e dos mais diversos perfis demográficos.
(1995) para explicar o processo dialógico próprio do
(CORREIA; MOREIRA, 2014, P. 11).
comentário, cujo procedimento integra três locutores. O
As postagens do Facebook motivam um número trílogo acontece da seguinte forma: o locutor 1 (L1) responde
significativo de curtidas em que os usuários aprovam o ao locutor 2 (L2), mas acaba dialogando indiretamente com
teor dos posts; essa aceitação denomina-se “engajamento”. o locutor 3 (L3).
A aprovação da publicação revela muito sobre as ideias As respostas aos comentários podem ser positivas,
e crenças da pessoa, pois, ao compartilhar, os usuários negativas ou até “julgamento axiológico” que consiste
divulgam o discurso que está postado, fazendo com que na inserção de exposição de valores pessoais, pois
outros internautas visualizem e tenham acesso ao conteúdo esses pareceres podem ser “uma concordância ou uma
do post. discordância” sobre a publicação (EMEDIATO, 2015, p.
174).
POST NO FACEBOOK A curtição é um ato não verbal realizado por meio de
ícones e pode ser realizada para demonstrar validação da
Dentre as características dos posts feitos no Facebook publicação ou do comentário. O Facebook evolui conforme a
estão o uso de linguagens verbal e não verbal, pois a maioria necessidade dos usuários, então a plataforma disponibilizou

64 65
Pesquisa em Letras: práticas discursivas e sociolinguísticas Catharine Fialka

as reações com emojis: DA LIBERDADE DE EXPRESSÃO AO DISCURSO SEXISTA

Figura 1 - Emojis usados como reações do Facebook De acordo com o Inciso IX do Artigo 5 da Constituição
Federal de 1988 “é livre a expressão da atividade intelectual,
artística, científica e de comunicação, independentemente
de censura ou licença”. Porém, o exercício da liberdade de
expressão no Facebook não está acima de outros direitos.
Fonte: G1, 2017 Alguns usuários acabam confundindo o direito
à liberdade de expressão com o direito de falar o que se
O compartilhamento pode ser um sinal de aceitação quer e postam nas redes sociais discursos intolerantes e
do post, pois o usuário se apropria da publicação e divulga-a de ódio, promovendo, por exemplo, discriminação racial,
em sua página. Esse processo de compartilhamento homofobia e sexismo. Barros (2014, p. 3660) define o
propaga os discursos das publicações relacionadas ao outro discurso intolerante apresentando três características:
e ao mundo configurando tipos de “discursos ordinários:
do ponto de vista narrativo, são discur-
a modalidade subjetiva (afetiva, axiológica), a modalidade sos de sanção aos sujeitos considera-
intersubjetiva (injuntiva, interpelativa) e a modalidade dos como maus cumpridores de certos
objetiva (deôntica, alética, epistêmica)" (EMEDIATO, 2015, contratos sociais; são discursos passionais,
p. 175). em que prevalecem as paixões do ódio e do
medo em relação ao "diferente”; desenvol-
O Facebook tornou-se um local de interação e
vem temas e figuras a partir da oposição
circulação de ideias. Os usuários têm acesso aos termos de semântica fundamental entre a identidade e
uso da plataforma, entretanto alguns internautas, muitas a diferença.
vezes, ignoram as instruções de como agir dentro dela,
gerando desconforto e, em alguns casos, disseminando Dando continuidade na explicação, Silva et al. 2011
discursos de ódio e de intolerância. Esses usuários se esclarece:
sustentam no princípio da liberdade de expressão propagado
O discurso de ódio compõe-se de dois ele-
pela Constituição Brasileira, mas a liberdade de expressão
mentos básicos: discriminação e externali-
não deve ser praticada, nas redes sociais, com o propósito dade. É uma manifestação segregacionista,
de estimular o discurso de ódio. baseada na dicotomia superior (emissor) e
inferior (atingido) e, como manifestação que
é, passa a existir quando é dada a conhecer

66 67
Pesquisa em Letras: práticas discursivas e sociolinguísticas Catharine Fialka

por outrem que não o próprio autor. A fim parece estar tomando novos contornos”.
de formar um conceito satisfatório, devem Fiske e Glick (1996) explicam a ambivalência
ser aprofundados esses dois aspectos, come-
çando pela externalidade (SILVA et al. 2011, ideológica no sexismo, ou seja, formas distintas, valores e
p. 447). ideias incompatíveis, que configuram visões de sexismo:
hostil e benevolente. O hostil é perceptível, e aparece
Os discursos de ódio estão impregnados de ideias escancaradamente, já o benevolente é natural, quase
racistas, fascistas, separatistas, puristas, sexistas, etc. Esses imperceptível. Apesar de os conceitos serem distintos, estão
discursos expõem os indivíduos, os valores, as opiniõese as interligados no contexto e no modo como são ditos. Fiske
crenças visíveis na linguagem verbal quanto não verbal que e Glick (1996) explicam que a caracterização das formas
exprimem uma idealização, exteriorizando assim uma visão de sexismo depende do modo como o falante profere seu
de mundo. Os sujeitos que produzem discursos intolerantes discurso em um contexto, por exemplo, “As mulheres
não aceitam diferenças e tentam diminuir o outro, porque não devem ter cargos importantes” (sexismo hostil) e “As
o produtor do discurso vislumbra um mundo pautando-se mulheres devem ser protegidas” (sexismo benevolente).
apenas em suas verdades. Os conteúdos desses enunciados são diferentes e a
O sexismo é uma discriminação referente ao gênero, interpretação deles varia, pois depende de cada indivíduo.
entretanto as mulheres e as meninas são as mais afetadas. Além de denominar as duas formas de sexismo, o hostil e o
Os discursos misóginos propagam-se, visto que o machismo benevolente, os autores apresentam mais três características:
ainda está bastante enraizado na sociedade. A desigualdade paternalismo, diferenciação de gênero e heterossexualidade
de gênero promove o machismo e faz com que mulheres (FISKE; GLICK, 1996).
e meninas sofram, pois estas ações ocorrem de diferentes Formiga et al. (2002) explicam cada uma dessas
formas: linguagens, imagens, tradições, religiões e políticas. noções. O paternalismo é um modelo de relacionamento
Formiga et al. (2002) explicam que há muitos semelhante ao que existe entre pai e filho; paternalismo
movimentos que defendem a igualdade de gênero, dominante é uma forma de sexismo hostil, pois o homem
promovendo os direitos da mulher no âmbito civil sente-se superior à mulher, tornando-a incapaz. No
ou político, mas assinalam que aspectos históricos da benevolente, o paternalismo é protetor, uma vez que se
dominação do homem ainda imperam sobre a mulher. considera a proteção e o cuidado do homem em relação
Formiga et al. (2002, p. 105) elucidam que “esta forma à mulher. Para esclarecer esse princípio, Formiga et al.
flagrante do sexismo parece estar condenada a sucumbir. (2002, p. 105) elucidam que “a mulher é um ser débil”, ou
Na sociedade atual, com sanções legais contra juízos e seja, a mulher é um indivíduo incapaz de se proteger, um ser
condutas discriminatórias em relação ao gênero, o sexismo dependente que necessita do outro.

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A diferenciação de gênero expressa-se no hostil, pois enaltece positivamente a mulher e, apesar de elevá-la,
o homem é detentor das habilidades e tem capacidade para expressa preconceito: “As mulheres devem ser queridas
administrar instituições; no benevolente, essa diferenciação e protegidas pelos homens; todo homem deve ter uma
expõe as características das mulheres de forma positiva, mulher a quem amar; e o homem está incompleto sem a
mas ao invés de prestigiar seu desempenho profissional, mulher” (FORMIGA, et al. 2002, p. 106). Os autores ainda
destaca a beleza e a aparência física da mulher. Além disso, acrescentam que o discurso misógino coloca a mulher na
o homem é posto como mentor da carreira profissional da posição de afetividade dentro da família e com dever de
mulher. apoiar o homem, bem como esclarecem o benevolente:
A concepção de heterossexualidade é identificada no
hostil, pois considera-se que a mulher usa da sua sexualidade este tipo de sexismo reflete atitudes em re-
lação às mulheres as quais, embora as con-
para governar o homem “e a motivação sexual deste templem de maneira estereotipada e desem-
está associada a um desejo de intimidade com a mulher” penhando papéis restritivos, possuem para
(FORMIGA et al., 2002, p. 105). Os autores apresentam o sexista um tom subjetivamente positivo e
mais exemplos de sexismo hostil a fim de caracterizar a tendem a estimular comportamentos tipi-
camente pró-sociais (por exemplo, ajudar as
concepção de heterossexualidade: “as mulheres tentam mulheres) ou que promovam a intimidade
ganhar poder controlando os homens; as mulheres (por exemplo, revelar às mulheres aspectos
exageram os problemas que têm no trabalho; e uma vez pessoais) (MLADINIC, 1998, apud FORMI-
que uma mulher consiga que o homem se comprometa com GA, et al. 2002, p. 106).
ela, tenta controlá-lo estritamente” (FORMIGA et al., 2002,
p. 106). Em outras palavras, a mulher se aproveita da sua A misoginia toma formas em diferentes contextos:
sensualidade para conseguir as coisas. Para o benevolente, a na política ou em empresas, as mulheres são questionadas
heterossexualidade expressa-se na necessidade que mulher sobre sua capacidade de administrar; nos esportes, a
e homem têm de viver um com o outro, entretanto essa habilidade das atletas é o assunto; no cinema, a sexualidade
dependência refere-se principalmente às mulheres, pois da mulher é discutida: se ela tem ou não biotipo para aquela
para ser feliz, a mulher precisa da companhia do homem, determinada produção.
exemplificam Fiske e Glick (1996). Um conceito recente que vem ganhando destaque
A hostilidade revela crenças e condutas de indivíduos é o body shaming, um termo da língua inglesa que significa
que inferiorizam as mulheres em relação aos homens, “vergonha do corpo”. Sousa e Andrade (2020, p.59) definem
pois, de acordo com esse princípio, o sexo masculino body shaming como “não é uma vergonha causada por seus
deve deter o poder e a tomada de decisão. A benevolência medos e traumas. É, ao contrário, a vergonha causada pelo

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olhar e ofensas de outra pessoa. Prática que tem ganhado e crenças. Orlandi (2020, p. 44) esclarece que “podemos
cada vez mais força e espaço na internet”. começar por dizer que a ideologia faz parte, ou melhor, é
O body shaming vem ocorrendo de forma recorrente a condição para a constituição do sujeito e dos sentidos”. A
nas redes sociais, pois nelas não há uma política que filtre autora acrescenta (p. 48) que o sujeito é “ao mesmo tempo
esses tipos de comentários. O sexismo é, então, a fala do livre e submisso”, assim como utiliza discursos de outrem.
outro que se sobrepõe à mulher. Brandão (2004, p. 110) esclarece ainda que “o sujeito não
é origem, a fonte absoluta do sentido, porque na sua fala
DISCURSO, SUJEITO E SENTIDO outras falam se dizem”.
Orlandi (2020, p.20) apresenta a definição de
A Análise de Discurso (AD) de linha francesa trata discurso: “o discurso é efeito de sentidos entre locutores”,
do estudo do discurso, abordando a conexão entre discurso pois não há apenas uma interpretação, mas diferentes
e ideologia. Orlandi (2020, p.13) explica que o “discurso entendimentos e elucida:
é assim palavra em movimento, prática de linguagem:
com o estudo do discurso observa-se o homem falando”. Para a Análise do Discurso, não existe um
Portanto, na Análise de Discurso (AD), o social, o homem e sentido a priori, mas um sentido que é cons-
truído, produzido no processo de interlocu-
a história compõem o sentido do discurso. Tendo em vista ção, por isso deve ser referido às condições
essa perspectiva, a AD analisa aspectos sociais, históricos de produção (contexto histórico-social, in-
e políticos ao considerar que a construção ideológica do terlocutores...) do discurso. Segundo Pe-
sujeito está inscrita no discurso. cheux, o sentido de uma palavra muda de
acordo com a formação discursiva a que
Pêcheux (1975 apud ORLANDI, 2020, p. 15) explica
pertence (BRANDÃO, 2004, p. 109).
que “não há discurso sem sujeito e não há sujeito sem
ideologia: o indivíduo é interpelado em sujeito pela ideologia Dessa maneira, o sentido de uma palavra, de uma
e é assim que a língua faz sentido”. O sujeito da análise do expressão não está colado no significante, mas é determinado
discurso é o produtor do discurso e o contexto social é levado pelas posições ideológicas presentes no processo sócio
em conta. No discurso, o sujeito é influenciado por forças histórico e no qual as palavras e expressões são produzidas.
externas, podendo ocupar diferentes lugares na estrutura Para entender o efeito de sentido, basta contrapor o modo
social, portanto sua voz ecoa a partir do locus social e como os interlocutores compreendem um enunciado, sendo
ideológico do qual enuncia. Assim, o sujeito pode assumir possível que os interlocutores tenham impressões diferentes
a voz do religioso, político, pai de família etc., pois ele está de um mesmo enunciado. Desse modo, o processo de
inserido em um meio social e é transpassado por ideologias interação social entre sujeitos contribui para a composição

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do sentido. do. No autoritarismo, não há reversibilida-


Orlandi (2007, p. 68) elucida também que há outro de possível no discurso, isto é, o sujeito não
pode ocupar diferentes posições: ele só pode
lugar de constituição do sentido, o silêncio. Segundo ocupar o “lugar” que lhe é destinado, para
ela, “o silêncio é a própria condição da produção de produzir os sentidos que não lhe são proibi-
sentido. Assim, ele aparece como o espaço ‘diferencial’ da dos. A censura afeta, de imediato, a identi-
significação: ‘lugar’ que permite à linguagem significar”. O dade do sujeito (ORLANDI, 2007, p.79).
silêncio é fundamental, tendo significação própria, não é
um acréscimo à linguagem, mas tem sua própria natureza Essa censura precisa ser provada com elementos
semântica. linguísticos para explicitar que houve o silenciamento local.
Segundo ela, o silêncio fundador consiste no O sujeito é inserido na formação discursiva por
movimento necessário dos sentidos, tendo relação histórica meio do silenciamento constitutivo e/ou do local, e nesse
e ideológica, “porque sempre se diz a partir de uma totalidade caso, ele é proibido pela censura de dizer o que deve ser
histórica, onde são produzidas todas as representações do dito, provocando assim, a atenuação dos sentidos. Para se
mundo, todas as espécies de crenças e de conhecimentos” contrapor à censura, a resistência trabalha com um jogo
(BERTOLUCCI, 1997, p. 148). Orlandi (2007, p. 73) de palavras, ressignificando o contexto. Orlandi (2007)
apresenta, além do silêncio fundador, “a noção de política acrescenta que o sujeito, ao ser censurado na formação
do silêncio, que se subdivide em: silêncio constitutivo e discursiva, é proibido de ocupar certos lugares.
silêncio local”. Outra forma de silenciamento apresentada por
O silêncio constitutivo configura-se no âmbito Orlandi (2007) é o meio-plágio, esse é mais imperceptível,
do dizer e do não-dizer, pois ao dizer algo, omitem-se entretanto também se caracteriza como censura no cenário
outros sentidos, pois não são desejáveis em uma situação. intelectual. O meio-plágio acontece de forma que a censura
No silêncio constitutivo, os sentidos formam-se por meio busca calar a voz do outro e a si mesmo; o sentido não é
da introdução do sujeito em uma determinada formação unicamente de um indivíduo, porém todos querem o sentido
discursiva (ORLANDI, 2007). No silêncio local, o sujeito é exclusivamente para si.
censurado, impedido de falar, não pode dizer o que deve ser Como o sentido possibilita ao sujeito definir sua
dito, ou seja, proíbe-se o indivíduo de dizer algo. identidade, se ele for proibido, censurado de dizer, o efeito
de sentido muda, afetando assim, sua individualidade.
A situação típica de censura traduz exata-
mente essa asfixia: ela é a interdição mani- ORGANIZAÇÃO DA PESQUISA
festa da circulação do sujeito, pela decisão
de um poder de palavra fortemente regula- Realiza-se, neste trabalho, uma pesquisa qualitativa,

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com coleta de comentários de páginas do Facebook a fim de ou às configurações dos usuários que permitem apenas
compor uma coleção de textos para análise da natureza aos amigos verem estes textos. A figura 3 ressalta a fala de
do discurso sexista. Além da coleta de textos para análise, Gadot, deixando o pronunciamento da atriz entre aspas.
efetivou-se uma pesquisa bibliográfica “com base em A coleta preliminar de dados contou com 421
material já elaborado, constituído principalmente de livros comentários e foram escolhidos preliminarmente desse
e artigos científicos” (GIL, 2002, p. 44). Para tanto, utilizou- corpus 78. Por fim, selecionaram-se dessa coletânea
se, sobretudo, à noção de sexismo, recorrendo a Formiga 8, pois esses são representativos do discurso sexista e
et al. (2002) e a Glick e Fisk (1996), que dialogam com foram distribuídos entre três sessões por apresentarem as
outros autores para fundamentar essa noção. Também seguintes características: (i) referência à atriz Gal Gadot ou
foram utilizados pressupostos de Orlandi (2007; 2020), que ao seu seio; (ii) silenciamento imposto à atriz; (iii) presença
dialoga com estudiosos da Análise do Discurso a fim de de elogio em oposição ao sexismo benevolente.
expor a relação entre discurso, sujeito e sentido. Para alcançar o objetivo desta pesquisa, analisam-se
Para a coleta de comentários sobre o os comentários escolhidos empregando, sobretudo, noções
pronunciamento feito pela atriz Gal Gadot, escolheu-se a de sexismo hostil e benevolente (GLICK; FISKE, 1996), bem
fanpage Adorocinema, pois se trata de uma página com mais como efeito de sentido e silenciamento (ORLANDI, 2007,
de 10 milhões de curtidas, ou seja, são mais de 10 milhões de 2020; BRANDÃO, 2004) a fim de verificar a natureza
usuários que acompanham as postagens do Adorocinema. O misógina do discurso.
objetivo da página é informar sobre filmes a serem lançados
e os que já estão nos cinemas, mas também noticiam fatos ANÁLISE
sobre os atores.
É importante ressaltar que a postagem feita sobre A liberdade de expressão é um direito do sujeito,
Gadot destaca que a atriz rebate críticas referentes ao seu entretanto nas redes sociais, nesse caso o Facebook,
corpo, ressaltando que se fosse em outro momento de sua proliferam textos de diferentes conteúdos, ideias, estilos,
vida essas falas seriam muito difíceis de ler ou escutar. A etc.
situação que a atriz passou caracteriza o body shaming, ou Os comentários, selecionados previamente,
seja, constranger o outro a partir de comentários com apresentaram uma característica comum, todos têm relação
críticas corporais. com o post publicado sobre Gal Gadot. Ou seja, os sujeitos
Foram coletados, entre os períodos 12 de março a 17 fazem referência diretamente a Gadot e expressam opiniões
de maio de 2022, 421 comentários do post sobre Gadot. Há sobre a estrutura física da atriz. São apresentadas na tabela
mais discursos, mas eles não são visíveis devido à exclusão 1 informações sobre esses sujeitos e sobre a natureza dos 78

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comentários selecionados. Tabela 2 - Padrão social dos 6 primeiros comentários

Sem re-
Tabela 1 - Padrão social dos 78 comentários Sexis- Sexismo Total de
Grupos lação aos
Total mo benevo- Elogios comentá-
Sem re- por Sexo sexismos
Sexis- Sexismo de Hostil lente rios
Grupos Elo- lação aos ou elogio
mo % benevo- % % % co-
por Sexo gios sexismos
Hostil lente men-
ou elogio
tários Masculino 2 12 4 2 44
Masculino 26 59 12 27 4 9 2 5 44
Feminino 2 9 3 7 34
Feminino 15 44 9 26 3 9 7 21 34
TOTAL 4 21 7 9 78
TOTAL 41 21 7 9 78
Fonte: a autora, 2022.
Fonte: a autora, 2022.

Dos 6 primeiros textos selecionados, 5 são


Apesar de grande parte dos usuários do Facebook
representativos do discurso misógino dirigido ao post sobre
serem mulheres, os comentários selecionados são feitos
Gadot, bem como indicam que vários leitores de HQs, da
principalmente por indivíduos do sexo masculino (44) que
Mulher Maravilha, tomam como referência a imagem
fazem, em sua maioria, uso de linguagem sexista: hostil (59%)
projetada dessa persona nessas histórias e idealizam um
e benevolente (27%). Dos 34 feitos pelo sexo feminino, 44%
padrão corporal para a heroína. Com efeito, esses leitores
expressam sexismo hostil e 26% benevolente. A participação
sentem-se frustrados quando não identificam, no corpo da
de mulheres no debate travado sobre a atriz Gadot foi menor
atriz, o padrão corporal delineado nas imagens dos HQs.
do que de homens e, tendem a utilizar mais expressões
Foi selecionado o mesmo número de comentários
hostis do que as mulheres. Esses dados podem indicar uma
feitos por homens (3) e por mulheres (3) de modo a
certa resistência de mulheres a debater temas relacionados
exemplificar a natureza do discurso dirigido à atriz Gadot.
aos super-heróis ou a engajar-se em discussões de natureza
Dentre os 3 elaborados por homens, 2 são marcados pela
misógina, mas, quando elas participam, também fazem uso
hostilidade e 1 pela benevolência (FISKE; GLICK, 1996).
de pontos de vista hostis.
Há, nas postagens feitas por mulheres, dois hostis e um
Apresentam-se a seguir informações sobre a
elogio. Embora as mulheres também façam comentários
natureza dos 6 primeiros comentários selecionados para
ofensivos, existe a presença de 1 elogio.
análise.
Para evidenciar a natureza machista dos 6 primeiros
comentários selecionados, a análise foi subdividida em
subseções. Primeiramente, apresentam-se os que possuem

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números consideráveis de curtidas e respostas, além Os comentários (1) e (2) apresentam aspectos do
disso são expostas diferenças e semelhanças entre esses sexismo hostil, pois a linguagem é agressiva, por exemplo,
comentários. Depois, destacam-se o discurso sexista hostil (1) “Se coloca uma atriz q não tem peito, bunda, perna
e as formas de silenciamento presentes nos comentários. e abdômen definido, fica feio” (grifos nossos). Em (1) o
Na última subseção, exemplifica-se a diferença entre elogio desempenho da atriz é avaliado considerando o corpo
e sexismo benevolente, assinalando que a diferença entre idealizado da personagem Mulher Maravilha, ou seja, o
eles é por vezes sutil e quase imperceptível. padrão corporal idealizado pauta-se em valores ideológicos.
O exemplo (2) utiliza “ARQUETIPO DE DEUSAS E
REFERÊNCIA À ATRIZ GAL GADOT OU AO SEU SEIO HEROINAS que são por excelência, SENSUAIS” e apresenta
um padrão corporal e sensual observado em ilustrações de
HQs (grifos nossos), revelando crenças sociais e históricas.
Além disso, em (2) utiliza-se a abreviação de uma ofensa
“pqp”, isso torna o comentário ainda mais hostil.
Os sujeitos finalizam da seguinte maneira: (1) “É
melhor nem ter escolhido essa atriz”, (2) “e essa atriz de
sensual não tem nada” (grifos nossos). Ao utilizarem “essa
atriz”, os sujeitos estão mantendo-a distante, demonstrando
desinteresse e desprezo com relação à escolha da atriz.
Os comentários apresentam palavras que podem
O comentário (1) foi realizado pelo sujeito 1 (S1) e o representar um efeito de sentido diferente para cada
(2) pelo sujeito 2 (S2), respectivamente: leitor, mas cada interpretação depende de ideias, valores e
Tanto (1) como (2) pautam-se em valores ideológicos ideologia dos interlocutores (ORLANDI, 2020).
e crenças de que é necessário ter um corpo perfeito para Em (1) e (2) Gal Gadot é julgada por sua aparência
uma atriz interpretar a super-heroína Mulher Maravilha. física e não por sua competência profissional, apreciações
Os excertos a seguir destacam essa questão: (1) “é uma apresentam características de hostilidade, (FISKE; GLICK,
amazona”; (2) “heróis clássicos”, “DEUSAS” e “HEROÍNAS”. 1996) que contam com a adesão de muitos usuários do
Os usuários estão transferindo o padrão corporal de Facebook. Esses comentários recebem muitas reações,
uma personagem fictícia para o mundo real e eles têm revelando que há quem compartilhe dessas posições
a expectativa de que as características corporais dessa ideológicas, conforme dados apresentados na Tabela 3.
heroína sejam compatíveis com o corpo da atriz.

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Tabela 3 - Socialização dos comentários Em (3), uma mulher, exprime sua resistência por
meio de questionamentos irônicos e debochados dirigidos
Total de
Comentá- Curtidas Curtidas Total de comentário
ao excerto (2). Em (3) ressalta-se que a crítica à estrutura
rios masculinas femininas curtidas de física da atriz não é uma atitude adequada. O debate segue,
comentário pois, o sujeito que elabora (2), responde ao sujeito 3 (S3),
por meio do comentário 4, expondo sua opinião de modo
(1) 16 74 63 8 ofensivo. Assim, é nítida a tentativa do sujeito 2 (S2) de
(2) 11 23 34 93 silenciar a mulher que elabora (3) (ORLANDI, 2007).
Fonte: a autora, 2022.
O comentário (4) é elaborado pelo sujeito 2 (S2) em
resposta ao sujeito 3 (S3).
É importante ressaltar que o sujeito que elaborou
(2) reage curtindo o comentário (1), demonstrando
identificação com relação à ideia de que a atriz deveria ter
um corpo tal como o da heroína do HQ. A grande maioria (4)
que reage e responde ao comentário (1) é do sexo feminino,
apenas um sujeito demonstra resistência a esse discurso. A
personificação de uma estrutura física ideal impera nas 8
respostas ao comentário (1).
O comentário (2) foi menos curtido (34 curtidas) do Faz-se em (4) referência a uma pia cheia de louça
que (1) que apresentou 63 curtidas, entretanto o número (grifos nossos); o conteúdo do comentário revela uma
de respostas ao (2) é bem significativo, pois houve 93 ideologia sexista, pois considera-se que a mulher não
respostas. Estas apresentam resistência com relação ao deveria estar fazendo uso das redes sociais, mas sim cuidado
discurso sexista, principalmente com relação ao tema da dos afazeres domésticos (FISKE; GLICK, 1996). Ou seja,
sensualidade. A resposta (3) foi elaborada pelo sujeito 3 (S3) retoma-se o contexto histórico e ideológico de que “lugar
e é um exemplo de questionamento dirigido ao (2). de mulher é na cozinha”. O comentário (4), ao responder
uma mulher fazendo uso de palavras agressivas, manifesta
o machismo histórico (FISKE E GLICK, 1996). Em (4) o
sujeito (S2) dirige-se ao sujeito 3 (S3) de modo a acusá-la
(3) “Nao e vc uma feminazi” (grifos nossos), com o objetivo de
ofendê-la, pois popularmente essa palavra é utilizada para

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designar as feministas extremistas que odeiam os homens O sujeito 3 (S3)


“pqp qto mimi...
e sentem-se superiores a eles. O prefixo femi refere-se ao (1) vai lavar louça”
é uma mulher O sujeito 3 (S3)
radical que se deve retirar-se do
feminismo, já o sufixo nazi atende ao termo nazismo, ou Sujeito 2 “vc uma femi-
sente superior debate.
seja, a composição da palavra é uma forma agressiva de se nazi”
aos homens.
referir as mulheres. Fonte: a autora, 2022.

Sintetiza-se no Quadro 1 a análise dos comentários (1), (2), (3) e (4). Os comentários (1), (2) e (4) são exemplos de sexismo
Segmento
Efeito de sentido hostil e apresentam evidências de silenciamento, ou seja, as
Comentário Sexismo hostil Silenciamento/
discursivo escolhas das palavras que compõem o discurso produzem o
censura
efeito de sentido de retirar e/ou excluir a atriz e os usuários
“não tem peito,
(1) bunda, perna e
Gadot não tem da plataforma e principalmente de censurar o discurso
um corpo ideal.
Sujeito 1 abdômen defini- do outro (ORLANDI; 2020; 2007). Os comentários (1) e
Atriz deve ser ex-
do, fica feio”.
cluída do papel de
(2) expressam opiniões semelhantes sobre Gadot, ou seja,
“não tem peito, Gadot não é Mulher Maravilha. se ela não tem estrutura física para atuar como Mulher
(1) bunda, perna e
Sujeito 2 abdômen defini-
sensual. Maravilha, de acordo com esses usuários, o correto é a atriz
do, fica feio”. não atuar como heroína.
“não gostou da
O sujeito 3 (S3) profere um discurso provocador
mina que vai dirigindo-se ao sujeito 2 (S 2); o comentário de (S3) é uma
fazer a Mulher tentativa de calar (S2), excluindo este do debate. Esta é uma
Maravilha no
filme? Volta pra O sujeito 2 (S2) é
forma de cancelamento, ou seja, uma estratégia de excluir
sua preciosa um homem limi- O sujeito 2 (S2) a voz do indivíduo das redes sociais, fazendo com que suas
(1) HQ...” tado, estúpido, deve ser excluído palavras sejam desconsideradas, além disso, conteúdos de
Sujeito 3 “Ficar criticando pois está focado do debate sobre o
o corpo da atriz apenas no corpo filme.
sua página pessoal podem sofrer com denúncias realizadas
em vez de ver se de Gadot. na própria plataforma Facebook.
ela interpreta
bem é uma ati-
SILENCIAMENTO IMPOSTO À ATRIZ
tude no mínimo
imbecil.”
Os comentários (5) e (6) são dirigidos à atriz ou
referem-se aos seios de Gal Gadot, evidencia-se neles a
prática do silenciamento.

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agressivo ao empregar o termo “escroto” para se referir


(5) ao corpo da atriz (grifos nossos). Essa palavra é pejorativa,
pois tem sentido ofensivo. Infere-se a partir do trecho “tem
que malhar muito a mulher maravilha é um exemplo de que
as mulheres não são um sexo frágil”, que o corpo de Gadot
(6) não é compatível com o da personagem. A hostilidade só
intensifica o machismo presente em (6).
Cada mulher tem um biotipo físico, portanto não se
Os comentários 5 e 6 exprimem o sexismo hostil e deve impor um padrão de beleza e de força. No trecho “as
menosprezam a fala da atriz, desconsiderando a resposta mulheres não são um sexo frágil” a fragilidade em questão
que Gadot dá aos críticos. Ambos os sujeitos (S5 e S6) usam não se refere necessariamente ao uso da força física,
a expressão “esse papinho” (grifos nossos), minimizando a ressalta-se o papel de guerreira, batalhadora e combativa
importância do discurso da atriz ao rebater as críticas feitas que é imposto à mulher para que ela, ao igualar-se ao
ao seu corpo. Em (5) tenta-se, de modo hostil, silenciar ainda homem, possa ser respeitada por ele.
mais a atriz: “deveria ficar de boca fechada e surpreender na Além disso, destaca-se em (6) que os atores necessitam
caracterização e atuação” (grifos nossos) (ORLANDI, 2007). modificar sua estrutura corporal para desempenhar certos
O modalizador “deveria” expressa polidez e conselho, mas papéis, ainda complementa que se Gal Gadot não tiver
por ser utilizado de modo irônico, tem o sentido de censura. perfil físico, não precisa continuar com o papel de Mulher
O verbo “ficar” transmite a ideia de manter-se em um lugar; Maravilha. Exige-se da atriz aparência e estrutura física,
a locução verbal (“deveria ficar”) liga-se à expressão “boca mas sua capacidade profissional é posta de lado. Resume-se
fechada” que expressa o silenciamento, ou seja, tirar a voz no quadro 2 a análise dos comentários (5) e (6):
da atriz (ORLANDI, 2007). No comentário (5) transparece
a indignação perante o discurso de Gal Gadot. Embora a Quadro 2 - Silenciamento: efeito de sentido
atriz tenha rebatido críticas direcionadas a ela, sofre uma Segmento
Efeito de sentido
tentativa de silenciamento pelo sujeito 5, pois ele expõe Comentário Sexismo hostil Silenciamento/
discursivo
censura
que a intérprete da Mulher Maravilha não surpreenderá
“mas fica ai
na atuação e por isso ela não deve ser ouvida nem rebater (1)
mandando esse
Forma pejo-
críticas. Sujeito 5 rativa de dizer O discurso de Ga-
papinho”
que Gadot fala dot não convence.
O comentário do sujeito 6 (S6) inicia com palavras de (1) “ela vem com
demais.
baixo calão, hostilizando Gal Gadot. Ele segue com o tom Sujeito 6 esse papinho”

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A intérprete
da Mulher
“deveria ficar de (7)
Maravilha não
boca fechada e
(5) deve refutar as A atriz deve
surpreender na
Sujeito 5 críticas, pois seu silenciar-se.
caracterização e
corpo não segue
atuação”
o padrão da
personagem.
“porra os atores (8)
tem que se Gadot não tem o
modificar de biotipo físico da
Atriz deve ser
acordo com os Mulher Mara-
(6) excluída do papel
personagens e vilha, então não
Sujeito 6 de Mulher
se ela não tem pode interpre-
Maravilha. Como já mencionando, o sexismo benevolente é
corpo da mulher tar o papel da
maravilha pede heroína. utilizado de forma sutil, podendo ser confundido com
para sair” elogios (FISKE; GLICK, 1996). Há diferenças entre o
Fonte: a autora, 2022. sentido do comentário (7) e do (8). O (7) inicia destacando
a atuação da atriz e acrescenta “o resto é o resto” (grifos
O silenciamento presente nos comentários (5) e nossos), ressaltando assim a importância da competência
(6) caracterizam o sexismo hostil, pois as críticas feitas ao profissional da atriz e explicando que detalhes físicos não
biotipo físico da atriz determinam um padrão corporal, são relevantes.
uma vez que a corporeidade de Gadot não corresponde a O comentário (7) esclarece que as adaptações de
essa expectativa, ela, segundo eles, deve silenciar-se. Assim HQs, livros etc. são de alguma forma alteradas no mundo
o sexismo está entrelaçado com o silenciamento e a censura cinematográfico, ou seja, os filmes não representam
(ORLANDI, 2007). fielmente as histórias impressas. Além disso, o sujeito 7 (S7)
acrescenta que “Quem estiver preocupado com o corpo
PRESENÇA DE ELOGIO EM OPOSIÇÃO AO SEXISMO da atriz ao invés da sua interpretação... que não assista”,
BENEVOLENTE. ressaltando a atuação profissional de Gadot, prestigiando
a interpretação e não o perfil corporal da atriz. Destaca-se
Além dos 6 comentários anteriores foram analisados ainda em (7) que os usuários que se sentirem incomodados
mais dois comentários. O comentário (7) foi realizado pelo não precisam assistir ao filme.
sujeito 7 (S7) e o (8) por sujeito 8 (S8), respectivamente: O comentário (8) inicia com uma referência às

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Pesquisa em Letras: práticas discursivas e sociolinguísticas Catharine Fialka

HQs da Mulher Maravilha e esclarece que essa heroína demais!! E tenho certeza de que ela será uma ótima mulher
foi delineada nos quadrinhos para se tornar símbolo do maravilha!!” (grifos nossos). Dessa forma, exalta a imagem
feminismo4, uma forma de luta pelo “direito da mulher”. física da atriz, utilizando o sexismo benevolente, pois
O sujeito (S8) expõe em seu comentário aspectos históricos infere-se que a beleza da atriz é um fator relevante, ou seja,
da personagem, utilizando o termo “estereótipo” para só será uma excelente mulher maravilha uma atriz bonita
se referir ao corpo sexualizado da Mulher Maravilha, (FISKE; GLICK, 1996).
complementando que originalmente a super-heroína de Ao comparar os comentários (7) e (8), observam-
HQ’s não tinha tais características: “ela não tinha peitão se diferenças entre elogio e sexismo benevolente. Em (7),
e nem bunda grande!!” (grifos nossos). Para acrescentar ressalta-se a atuação da atriz, mas no final do comentário
e esclarecer aos outros usuários, (S8) reforça a ideia da (8), exalta-se sua beleza. Apesar de as palavras serem
origem da Mulher Maravilha “Ele crio por causa de um brandas e positivas, no comentário (8) a aparência física é
ideal, e não pra ela ser gostosa”. O emprego de “ele” refere-se assinalada e não seu desempenho profissional.
a Marston5, criador da personagem super-heroína. Ou seja, Resume-se no quadro 3 a análise dos comentários
a criação da personagem tem uma motivação ideológica e (7) e (8):
não está limitada ao padrão físico, à força e à beleza. No
comentário (8), o sujeito continua explicando que o conceito Quadro 3 – Sexismo benevolente em comparação com elogio:
de “ser gostosa” não tinha expressividade na época em que a efeito de sentido
personagem teve origem. Completando sua fala, (S8) utiliza
a expressão pejorativa “um bando de burro” para se referir Segmento Sexismo Efeito de
Comentário Elogio
aos demais sujeitos. discursivo benevolente sentido
Ao final do comentário, (S8) expõe sua opinião:
“A Gal Gadot é uma tremenda gata!! Mulher linda por “o que
Gal Gadot
A atuação é profissio-
importa é
profissional nal, uma
(7) a atuação Não consta
4“
A Mulher Maravilha não é apenas uma princesa amazona que usa botas é mais im- atriz que só
dela, o resto
fabulosas. Ela é o elo perdido numa corrente que começa com as campanhas portante. precisa atuar
é o resto”.
pelo voto feminino nos anos 1910 e termina com a situação conturbada do bem.
feminismo em século mais tarde. O feminismo construiu a Mulher Maravilha.
E, depois, a Mulher Maravilha reconstruiu o feminismo (...)” (LEPORE, 2017,
p. 14).
5
Psicólogo, inventor e autor de alguns livros. “Willian Moulton Marston, que
acreditava que as mulheres deviam dominar o mundo (...)” (LEPORE, 2017, p.
19).

90 91
Pesquisa em Letras: práticas discursivas e sociolinguísticas Catharine Fialka

“A Gal opondo-se ao teor sexista e/ou preconceituosos de alguns


Gadot discursos (ORLANDI, 2020; 2007).
(...) é uma
tremenda
Entre os comentários expostos houve o discurso
Gadot será benevolente (8), pois, embora tenham sido feitos elogios
gata!! Mu-
A beleza é uma ótima
lher linda
posta acima
Exaltar
Mulher a Gadot, o uso de certas palavras revela, de forma sutil, o
(8) por demais!! a beleza
E tenho
da interpre-
física.
Maravilha sexismo (FISKE; GLICK, 1996).
tação. devido à
certeza que
beleza.
ela será CONSIDERAÇÕES FINAIS
uma ótima
mulher ma-
ravilha!!” Este trabalho analisou comentários feitos em
Fonte: a autora, 2022. post do Facebook a partir de uma notícia sobre um
pronunciamento da atriz Gal Gadot. A fala da atriz está
A comparação entre os comentários (7) e (8) relacionada às críticas recebidas. Verificou-se o teor sexista
exemplifica a diferença entre elogio e sexismos benevolente de 8 comentários representativos do debate travado nessa
(FISKE; GLICK, 1996). Em (8), contextualizam-se fatos sobre rede social. Para fundamentar este estudo, foi necessário
a origem da Mulher Maravilha nas HQs, entretanto o sujeito compreender o modo como são compostas essas opiniões
8 (S8) exalta a beleza física da atriz, destacando que Gadot na plataforma do Facebook e os tipos de discurso sexista, a
será uma excelente heroína por sua beleza. Já (7) assinala a correlação entre discurso, sujeito e sentido propostas pela
importância da atuação profissional de Gal Gadot. Análise do Discurso. Ao final, foram analisados comentários
Ao analisar os 8 comentários, observa-se que a relacionados ao post de Gadot, de modo a identificar a
hostilidade foi intensificada devido ao uso de palavras natureza do discurso misógino.
de baixo calão e o sexismo benevolente mostrou-se de Os comentários feitos em post, encontrados
maneira sutil, quase imperceptível (FISKE; GLICK, 1996). na plataforma Facebook sobre a atriz Gal Gadot, são
Além disso, crenças e ideologias que configuram o discurso considerados sexistas, porque apresentam discurso ofensivo
sexista foram percebidas por usuários do Facebook, pois e agressivo, com uso de palavras de baixo calão e insultos
alguns reagiram e responderam a esses comentários. As referentes ao corpo da atriz. Há ainda excertos que indicam,
curtidas identificam compatibilidade de ideias e crenças, de modo sutil, o sexismo benevolente, quase imperceptível,
possibilitando que usuários não se expressem de forma uma vez que a polidez é utilizada de forma irônica, como
explícita, mas validem o que foi escrito. A maioria das crítica e não elogio.
respostas nos comentários é uma forma de resistência, As práticas sexistas hostis e de silenciamento estão

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Pesquisa em Letras: práticas discursivas e sociolinguísticas Catharine Fialka

associadas, pois muitas vezes o sujeito, ao apresentar uma de diferentes maneiras, a voz feminina, mas alguns usuários
atitude machista, silencia o outro. Dessa maneira, as redes resistem às falas que expressam machismo.
sociais contribuem com a validação de ideias, valores e Este trabalho amplia as reflexões acerca do discurso
também com a censura, já que as curtidas são um modo sexista e soma-se a outras pesquisas que contribuem com
de expressar acordo com relação a princípios e práticas a análise de discursos presentes na rede social Facebook,
sociais e uma forma de confirmar um ponto de vista, sem uma vez que essa plataforma atinge um público vasto e
que o sujeito se comprometa diretamente. Os comentários está repleta de discursos misóginos. É interessante dar
podem estimular o discurso agressivo, pois alguns usuários continuidade ao estudo realizado verificando outros posts
confundem liberdade de expressão com o direito de falar presentes em páginas de divulgação cinematográfica, com o
o que querem, proferindo discursos intolerantes e de ódio propósito de examinar se o padrão corporal, o ideal estético,
que rompem com acordos sociais. se sobrepõe à atuação profissional de outras atrizes.
Este trabalho contribui para evidenciar crenças
e ideais que estão presentes historicamente em HQs, e
são referências de modelos ideológicos compartilhados
discursivamente nas postagens.
Vale ressaltar ainda que o sentido é determinado
pelas posições ideológicas dos sujeitos e é indicado pelo
contexto de produção (contexto histórico, os interlocutores
envolvidos e outros), por isso a interpretação sempre pode
ser outra em função desse contexto. Ou seja, o sentido de
uma palavra ou uma expressão pode mudar de acordo com
a posição ideológica do sujeito e do contexto comunicativo,
portanto um discurso pode ser considerado sexista e hostil
para um e não ser para o outro.
Ao debater a questão do discurso misógino e de
suas formas de manifestação, este trabalho destaca que por
muito tempo o teor sexista e hostil de vários discursos foi
desconsiderado, nesse sentido algumas vozes foram ouvidas
e outras caladas. O sexismo, seja hostil ou benevolente, é
uma forma de silenciar a mulher. Essa prática tenta calar,

94 95
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pp. 59 - 76.

Parte 2 – Prática de análise sociolinguística


Pesquisa em Letras: práticas discursivas e sociolinguísticas Fabilim Regina Serafim Gonçalves

NEOLOGISMOS NO O termo K-pop não é a única expressão em língua in-


glesa adotada por fãs brasileiros dessa cultura. No Twitter,
REPERTÓRIO DA

3.
um serviço de microblog que permite aos usuários enviar e
COMUNIDADE DE receber atualizações pessoais de outros contatos por meio
FÃS BRASILEIROS DA de textos em até 280 caracteres, conhecidos como tweets, os
indivíduos, pertencentes à comunidade de fãs brasileiros de
CULTURA K-POP K-pop, empregam diariamente diversos termos grafados em
inglês. Desses, alguns são usados com maior recorrência, re-
Fabilim Regina Serafim Gonçalves1 cebendo então uma nova atribuição de significado no con-
Prof.ª Dr.ª Sandra Batista da Costa2 texto de fãs do gênero K-pop.
A escolha deste tema se dá em razão de motivação
pessoal, visto que a pesquisadora, sendo uma apreciadora
INTRODUÇÃO
da cultura K-pop, está em contato diariamente com mem-
bros da comunidade brasileira de fãs, tendo familiaridade
A criação e expansão da internet propiciou o sur-
com gírias desse grupo e com a área de estudos sociolin-
gimento de novas formas de interação humana, principal-
guísticos. Este trabalho mostra-se relevante, pois contribui
mente por meio das redes sociais. Os usuários desses ser-
para a ampliação das pesquisas a respeito da cultura K-pop
viços podem interagir instantaneamente com pessoas que
e de vocábulos próprios dessa comunidade de prática, uma
partilham interesses em comum, além de serem capazes de
vez que ambos são raramente estudados pela academia.
acessar facilmente conteúdos produzidos do outro lado do
Assim, com o intuito de analisar neologismos oriun-
mundo. É nesse contexto que se encontra a comunidade de
dos do inglês, empregados com significado próprio no
fãs brasileiros de K-pop, um gênero musical originário da
contexto da cultura K-pop no Brasil, parte-se da seguinte
Coreia do Sul, caracterizado por conter uma variedade de
questão: quais neologismos, grafados em língua inglesa e
elementos audiovisuais: incorpora gêneros como pop, rock
empregados frequentemente nas mensagens escritas pela
e hip-hop, apresenta danças sincronizadas e é influenciado
comunidade de fãs brasileiros da cultura K-pop no Twitter,
por tendências de vestuário.
caracterizam o modo de fala desse grupo? De acordo com
essa problematização, o objetivo deste trabalho é identifi-
1
Licenciada em Letras - Português/Inglês pela Pontifícia Universidade
Católica do Paraná. E-mail: serafimfabilim@gmail.com car e descrever neologismos presentes nas mensagens es-
2
Orientadora - Doutora e Pós-Doutora em Linguística pela Universidade critas pela comunidade de fãs brasileiros da cultura K-pop
Estadual de Campinas. Professora na Pontifícia Universidade Católica do no Twitter para, a partir da análise, classificar as unidades
Paraná. E-mail: sandra.costa@pucpr.br

100 101
Pesquisa em Letras: práticas discursivas e sociolinguísticas Fabilim Regina Serafim Gonçalves

neológicas, considerando-as como manifestação estilística GÊNERO MUSICAL K-POP


de uma comunidade de prática.
Em virtude de sua perspectiva sociolinguística, este K-pop, abreviação da expressão inglesa Korean
trabalho baseia-se nos estudos de Labov (2008 [1972]), que Pop (pop coreano, em português), é um gênero musical
explica a noção de comunidade de fala, bem como nas pes- originário da Coreia do Sul, rico em diversos elementos
quisas de Eckert-Ginet (2010) e Eckert (2012) a respeito de visuais e estilos musicais. O K-pop faz parte da chamada
comunidade de prática. Recorre-se também aos pressupos- Onda Coreana (Korean Wave em inglês, Hallyu em coreano),
tos de Alves (1984, 1994), acerca do neologismo, estrangei- designação dada à exportação global de elementos culturais
rismo e empréstimo. Além disso, são utilizados estudos de sul-coreanos, como k-dramas3 (abreviação de Korean
Cabello (1991) e Preti (2000), com relação às gírias comuns Dramas, dramas coreanos em português), cosméticos, obras
e de grupo. cinematográficas, pratos típicos da culinária e a própria
Este artigo está organizado em seções. Na primei- língua coreana.
ra, caracteriza-se o gênero musical K-pop, descrevem-se a Dentre todos os elementos da Hallyu citados, a
comunidade brasileira de fãs desse gênero musical e o uso cultura K-pop destacou-se, pois foi a primeira a conquistar
que faz do Twitter. Na segunda, apresentam-se as noções de um número considerável de fãs no ocidente. Essa cultura
comunidade de fala e de prática. Em seguida, na terceira se- tem como centro o gênero musical K-pop, que se converte em
ção, explica-se a natureza do neologismo, estrangeirismo, diversos produtos secundários, como videoclipes, álbuns,
empréstimo e da gíria. Na seção seguinte, descrevem-se os shows, lives, documentários, jogos, produtos de beleza,
procedimentos metodológicos. Na quinta seção, realiza-se acessórios, roupas, entre outros. Optou-se neste artigo por
a análise do repertório lexical; por último, são apresentadas expor especificamente o gênero musical K-pop.
as considerações finais. A música popular coreana surgiu durante a ocupação
japonesa (1910-1948), com adaptações de melodias de
O GÊNERO MUSICAL K-POP E SUA COMUNIDADE DE FÃS hinos dos Estados Unidos e da Grã-Bretanha, objetivando
BRASILEIROS NO TWITTER restaurar o sentimento de soberania coreana. Depois da
divisão da Coreia em Norte e Sul, em 1945, as músicas
Nesta seção serão apresentados o gênero musical sul-coreanas passaram a importar elementos do blues,
K-pop e a caracterização do perfil de fãs brasileiros dessa swing, rock e jazz norte-americanos. A influência ocidental
comunidade que acessam a rede social Twitter. perpetuou-se nos anos seguintes, permitindo a propagação,

3
Séries coreanas, semelhante às novelas.

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Pesquisa em Letras: práticas discursivas e sociolinguísticas Fabilim Regina Serafim Gonçalves

em meados das décadas de 70 e 80, do estilo folk e depois a JYP Entertainment e YG Entertainment – conhecidas sob a
adoção das baladas, canções mais lentas e geralmente com alcunha de “Big Three” (em português, “As Três Grandes”).
letras românticas (MINISTRY OF CULTURE, SPORTS De acordo com a expansão do acesso à internet, o K-pop
AND TOURISM, 2011). se tornou global, principalmente em 2012, com a massiva
O trio Seo Taiji and Boys, que manteve suas atividades popularização da música Gangnam Style (Estilo de
entre 1992 e 1996, inovou a indústria musical ao apresentar Gangnam, em português), do rapper Psy. O ritmo diferente,
em suas canções elementos da música tradicional coreana a dança curiosa e o refrão repetitivo conquistaram diversas
mesclados ao hip-hop, além de danças e adequação visual da premiações ocidentais e orientais, além de milhões de
aparência dos integrantes de acordo com a moda do hip-hop. dólares para a economia sul-coreana. Na época, alguns
As letras das canções do Seo Taiji and Boys eram direcionadas grupos de K-pop que já tinham certo reconhecimento
ao público jovem e verbalizavam críticas sociais. Ao passaram a se beneficiar do caminho pavimentado por Psy.
perceber a popularidade do trio, a indústria musical da Dentre eles, podem ser citados os masculinos Big Bang, Super
Coreia do Sul começou a investir na formação de grupos Junior, Shinee e Beast, e os femininos Kara, Girls’ Generation,
similares, criando algo característico no K-pop: o “sistema Wonder Girls e 2NE1. Na divisão de gerações do K-pop, são
de ídolos”. Empresas de entretenimento preparam jovens tidos como a segunda. Todos estrearam entre 2005 e 2009,
aspirantes a artistas em áreas como canto, dança e rap, alguns ainda em atividade (DEWET; IMENES; PAK, 2019).
para que formem grupos e, em um determinado momento, Após conquistar um número crescente de fãs inter-
façam sua estreia para o público. Os primeiros grupos a nacionais, a Hallyu continuou sua propagação por meio
seguirem essa organização, como H.O.T., S.E.S., Shinhwa e de grupos da terceira geração, como Exo, Red Velvet, Got7,
g.o.d, tiveram resultados satisfatórios, conquistando uma Monsta X, Twice, Seventeen, Blackpink e BTS, sobretudo a par-
gama de fãs sul-coreanos considerável a partir de 1995. tir de 2016, e perduram até hoje como grupos com maior
Atualmente, são denominados pelos fãs como grupos da reconhecimento. Este último, BTS (acrônimo de Bangtan
primeira geração do K-pop (MINISTRY OF CULTURE, Sonyeondan4), tem conquistado fama no mundo inteiro,
SPORTS AND TOURISM, 2011). mas principalmente nos Estados Unidos da América, o que
A partir dos anos 2000, o K-pop iniciou sua expansão pode ser comprovado com sua posição em primeiro lugar
global, visando atingir o mercado exterior como maneira na Billboard Hot 1005 em 2020 e sua primeira indicação ao
de arrecadar lucros. Assim, as características marcantes
do gênero começaram a tomar forma, principalmente 4
“Escoteiros à Prova de Balas”, em português.
na voz de cantores como BoA e Rain. Com o tempo, três 5
Considerado o maior chart (literalmente tabela, parada musical) americana.
produtoras sobressaíram-se no ramo: SM Entertainment, A classificação é baseada em vendas, execuções em rádio e streaming online em
plataformas de música.

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Pesquisa em Letras: práticas discursivas e sociolinguísticas Fabilim Regina Serafim Gonçalves

Grammy6 com a música Dynamite em 2021, feitos anterior- asiática. Com relação à língua inglesa, 33,6% sabiam o bá-
mente nunca alcançados por um grupo de K-pop. A súbita sico do idioma, 31,6% consideravam possuir conhecimento
popularidade do BTS gerou à sua empresa, Big Hit Enter- intermediário da língua e 26,8% consideravam-se fluentes.
tainment, condições de crescer e formar a HYBE Corporation, No que diz respeito à localização geográfica, a maior par-
conglomerado que agora reúne diversas gravadoras e se te dos fãs residem na região Sudeste, seguida pelas regiões
equipara às citadas “Big Three”. Sul, Nordeste, Centro-Oeste e Norte. Os cinco estados
mais citados foram São Paulo, Rio de Janeiro, Paraná, Rio
A COMUNIDADE DE FÃS BRASILEIROS DE K-POP Grande do Sul e Minas Gerais. Sobre a preferência entre
grupos femininos ou masculinos de ídolos, 48% dos fãs que
O maior show de K-pop ocorrido até hoje no Brasil foi responderam ao questionário optaram por grupos mascu-
do grupo BTS, em 2019, no tour Love Yourself: Speak Yourself. linos. Como resultado, na lista de grupos favoritos de K-pop
O evento aconteceu no estádio Allianz Parque, em São Pau- os primeiros foram Exo, Shinee, Girls’ Generation, 2NE1 e Big
lo, em dois dias de apresentação, cada dia com a presença Bang, sendo os quatro primeiros pertencentes à gravadora
de mais de 40 mil pessoas. Os shows resultaram em um DVD SM Entertainment e os dois últimos à YG Entertainment, am-
gravado e comercializado pela gravadora do grupo, Big Hit bas integrantes da “Big Three”.
Entertainment. Antes mesmo da explosão da música Gang- A pesquisa de Almeida e Berto (2015) prossegue des-
nam Style de Psy, o Brasil já recebia diversos artistas sul-co- tacando questões com relação à Onda Coreana. Na época,
reanos para esses e outros eventos, sendo atualmente um 49,5% dos fãs entraram em contato com o K-pop por meio
dos países da América do Sul que mais empreendem nesse da internet. Entretanto, apenas 0,5% declararam que seu
tipo de entretenimento. interesse veio a partir da música Gangnam Style de Psy. Além
Almeida e Berto (2015) realizaram, no ano de 2014, disso, 40% afirmaram terem sido apresentados ao K-pop por
uma pesquisa quali-quantitativa sobre o perfil da comuni- meio de amigos, familiares ou conhecidos. No momento da
dade de fãs da cultura K-pop, compartilhando um questio- pesquisa em questão, apenas 25,9% responderam já ter ido
nário com vinte e sete perguntas, direcionadas a quatorze a pelo menos um show de K-pop, e 72,8% dos que não foram
grupos de K-pop organizados no Facebook. O resultado da gostariam de participar de um. A respeito das fanfictions,
análise das perguntas indicou que, dentre as mil pessoas que que são narrativas sobre artistas criadas de fãs para fãs,
responderam, 85,5% eram do gênero feminino e 51,9% ti- 40,4% dos pesquisados afirmaram ler esse gênero, enquan-
nham idade entre 15 e 18 anos. Além disso, 92,2% dos res- to 26,2% além de leitores eram escritores de fanfictions. A
pondentes afirmaram não pertencer à família de origem pesquisa também revelou que 79,1% dos fãs possuem, além
do perfil no Facebook, uma conta no Twitter. Finalmente, os
Considerada a principal premiação musical do Estados Unidos da América.
6

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Pesquisa em Letras: práticas discursivas e sociolinguísticas Fabilim Regina Serafim Gonçalves

autores chegaram à conclusão de que o perfil do fã brasi- pesquisa, feita entre 1° de janeiro e 31 de dezembro de 2021,
leiro de K-pop é do gênero feminino, com idade entre 15 e revelando que foram registrados 7,8 bilhões de tweets glo-
18 anos, sem origem asiática, influenciado a conhecer essa bais relacionados ao K-pop durante esse período. Além dis-
cultura a partir da internet e de pessoas próximas. so, foram enumerados os países com maior número de fãs e,
entre os 20 citados, o Brasil ocupou o 7° lugar, atrás apenas
OS FÃS BRASILEIROS DA CULTURA K-POP NO TWITTER da Indonésia, Japão, Filipinas, Coreia do Sul, Estados Uni-
dos e Tailândia. Os cinco grupos de K-pop mais comentados
O Twitter é um serviço de microblog, ou seja, os usuá- no Brasil são, respectivamente: BTS, Blackpink, Ateez, TXT e
rios são capazes de enviar e receber postagens de outros NCT.
contatos em atualizações (intituladas tweets) com no máxi-
mo 280 caracteres e quatro imagens. Cada usuário possui COMUNIDADE DE FALA E COMUNIDADE DE PRÁTICA
um perfil, ao acessá-lo encontram-se: informações pessoais;
número de seguidores do usuário e número de pessoas que Nesta seção são apresentadas considerações a respei-
este segue; as postagens criadas e compartilhadas; respostas to de comunidade de fala e comunidade de prática.
que ele escreve para outros tweets; atualizações que foram A Sociolinguística Variacionista, também denomina-
curtidas; e outros aspectos relacionados ao perfil. Ao ana- da Teoria da Variação e Mudança, consiste em uma área de
lisar as contas de fãs brasileiros de K-pop, constata-se que estudos proposta por Labov (2008 [1972]), com a intenção
elas podem ser divididas em três categorias mais visíveis: de explicar a variação da língua em sociedade. Essa verten-
(i) pessoal, quando o usuário geralmente usa seu próprio te da Sociolinguística define a língua como sendo hetero-
nome e fotos, interagindo com conteúdos relacionados a gênea, trazendo a percepção de que há diferentes maneiras
cultura K-pop, mas também de outras áreas; (ii) fan account7, de utiliza-lá de acordo com os falantes ou grupos sociais
um perfil voltado quase que totalmente para os artistas fa- envolvidos em uma situação comunicativa.
voritos, muitas vezes sem conter informações pessoais do A variação linguística, segundo Coelho et al. (2015,
dono da conta, como nome ou fotos; (iii) fanbase8, perfil vol- pp.19-49), ocorre de acordo com regras que gerenciam a
tados para um artista ou grupo, administrado por uma ou comunicação, fazendo com que variantes sejam utilizadas
mais pessoas, com o intuito de postarem notícias, traduções por integrantes de determinada comunidade. Além disso,
e imagens. forças denominadas condicionadores são fatores que regu-
No início do ano de 2022, o Twitter divulgou uma lam o uso dessas variantes. Os condicionadores dividem-se
em dois grupos: (i) internos ou linguísticos, podendo ocor-
Em português, literalmente “conta de fã”.
7
rer variações em diferentes níveis (lexical, fonológico, mor-
Em português, literalmente “base de fãs”.
8

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Pesquisa em Letras: práticas discursivas e sociolinguísticas Fabilim Regina Serafim Gonçalves

fossintático e discursivo); (ii) externos ou extralinguísticos, riante padrão da língua.


como localização geográfica, sexo/gênero, faixa etária, po- Entende-se que, para Labov (2008 [1972], p.188),
sição social e estilo. “uma comunidade de fala não pode ser concebida como
Em 1962, os condicionadores extralinguísticos fo- um grupo de falantes que usam as mesmas formas; ela
ram alvo do estudo pioneiro de Labov (2008 [1972], pp.19- é mais bem definida como um grupo que compartilha
62) na ilha de Martha’s Vineyard, em Massachusetts, Esta- as mesmas normas a respeito da língua”. Partindo da
dos Unidos. Esse estudo foi motivado pela observação de concepção laboviana a respeito de comunidade de fala,
que os ditongos /ay/ e /aw/, variantes padrão, poderiam ser compreende-se que o critério para definição do conceito
pronunciados com maior centralização da primeira vogal, não é o uso linguístico compartilhado entre os membros da
gerando outras três variantes para cada um dos ditongos. comunidade, mas sim as normas em comum empregadas
Foram realizadas entrevistas com 69 nativos da ilha, elen- pelos falantes da língua. Portanto, entende-se que, de certa
cando diversas situações de fala, incluindo responder per- maneira, o aspecto linguístico sobrepõe-se aos aspectos
guntas, contar experiências de vida e ler textos. Por fim, os sociais da comunidade em questão.
condicionadores linguísticos mostraram-se pouco ou não A pesquisadora Eckert (2012) propõe dividir as
significativos, uma vez que os resultados da pesquisa de La- práticas dos estudos sociolinguísticos historicamente
bov (2008 [1972]) indicaram que a variação fonológica era em três “ondas”: (i) a primeira trabalha a variação com o
amparada na identidade e atitude dos falantes da ilha. objetivo de estabelecer correlações amplas entre categorias
Um segundo estudo realizado por Labov (2008 sociais e variáveis linguísticas, como retratado no estudo
[1972], p.63-90) e relevante na área da Sociolinguística Va- de Labov sobre o /r/ pós-vocálico, empregado por
riacionista tinha como objetivo compreender as variações atendentes de lojas de departamentos em Nova York; (ii)
fonológicas empregadas a partir da consoante /r/ em posi- a segunda onda visa aprofundar-se nas categorias sociais
ção pós-vocálica, tendo como sujeitos da pesquisa atenden- envolvidas na variação, utilizando métodos etnográficos
tes de três lojas de departamento em Nova York com status para compreender quais processos locais influenciam essa
diferentes: Saks, classe média alta; Macy’s, classe média bai- variação, a exemplo do estudo de Labov na Ilha de Martha’s
xa; e Klein, classe operária. Com a intenção de analisar o Vineyard; (iii) e, por conseguinte, a terceira e mais recente,
uso de /r/ dos 264 entrevistados, sem que esses apresentas- trata a variação como um sistema complexo de significados
sem uma fala monitorada explícita, o pesquisador se passou sociais em potencial dentro de uma comunidade, podendo
por um cliente. Os resultados indicaram que os atendentes ser utilizado pelos indivíduos com o intuito de construir
das lojas de status superior utilizavam o /r/ enfático mais estilos identitários. Assim, a escolha por uma das três
frequentemente, demonstrando a adesão a essa nova va- vertentes depende do objeto de interesse de cada pesquisa.

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A terceira onda apresenta o conceito de comunidades da a formação de gírias comuns e de grupo.


de prática, que, de acordo com Eckert-Ginet (2010, p.102): é O léxico é um sistema vivo e o que lhe confere esse
um conjunto de pessoas agregadas em razão do engajamento caráter é a mutabilidade, uma vez que certas palavras se
mútuo em um empreendimento comum. Modos de fazer tornam arcaicas ao mesmo tempo que novas unidades le-
coisas, modos de falar, crenças, valores, relações de poder xicais são formadas. Quanto a essas últimas são denomi-
– em resumo, práticas – emergem durante sua atividade nados neologismos que, de acordo com Boulanger (1979,
conjunta em torno do empreendimento. apud ALVES, 1984), podem ser unidades lexicais de criação
A comunidade de prática, diferente de comunidade de recente; palavras existentes que incorporaram um novo sig-
fala, encontra-se em um nível “micro” e predominantemente nificado; ou ainda, palavras há pouco tempo emprestadas
qualitativo, prezando pelos estilos individuais como marcas de um sistema linguístico estrangeiro. Segundo o autor, os
de identidades sociais. Além disso, os integrantes de uma neologismos enquadram-se em três tipos: (i) formais, cria-
comunidade de prática não precisam estar inseridos na dos por meio de derivação, composição, siglas, redução de
mesma região geográfica e ter contato presencialmente, palavras ou pela articulação de uma ou diversas sílabas que
como ocorreu nos estudos de Labov (2008 [1972]). Dito isso, apresentem valor significante inédito; (ii) semânticos, cria-
os fãs brasileiros de K-pop usuários do Twitter consistem, dos pela atribuição de um novo significado a um segmento
neste estudo, em uma comunidade de prática discursiva. fonológico já existente; e (iii) por empréstimo, resultados da
Apesar de reconhecer a relevância de estudos acerca adoção de um lexema estrangeiro.
da noção de comunidade de fala, delineados pela vertente Segundo Alves (1994), a neologia por empréstimo
laboviana, este trabalho ancora-se na noção de comunidade apresenta-se em diferentes níveis, a começar pelo estran-
de prática proposta por Eckert-Ginet (2010). Ou seja, geirismo, um termo externo que ainda não faz parte do
o foco desta pesquisa é identificar o modo como uma acervo lexical do idioma. Assim, os estrangeirismos surgem
comunidade de fãs da cultura K-pop faz uso de neologismos. de empregos eventuais por meios de comunicação em ge-
Considera-se que o uso desse recurso configura uma prática ral, além de serem facilmente encontrados em vocabulários
socioestilística realizada por esse grupo social. técnicos. Em suma, buscam traçar efeito estilístico ou evo-
car outra cultura por meio de um item léxico preciso. Ainda
NEOLOGISMO, ESTRANGEIRISMO, EMPRÉSTIMO E A de acordo com a autora:
FORMAÇÃO DE GÍRIAS A fase propriamente neológica do item léxico estran-
geiro ocorre quando está se integrando à língua receptora,
São elucidados, nesta seção, os conceitos de neologis- integração essa que pode manifestar-se através de adap-
mo, estrangeirismo e empréstimo, além de ser caracteriza- tação gráfica, morfológica ou semântica. [...] Morfossinta-

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ticamente, a integração à língua portuguesa manifesta-se maknae9, o integrante mais novo de um grupo de ídolos, e
nos casos em que o estrangeirismo começa a formar deri- sasaeng10, um fã obsessivo.
vados e compostos (ALVES, 1994, pp.77-78). Tendo em vista que os neologismos presentes nes-
A adaptação gráfica não é uma regra: há registro de te estudo são estrangeirismos ou empréstimos empregados
unidades lexicais estrangeiras sem mudanças ortográficas com significados especiais por uma comunidade de prática,
na incorporação ao sistema português, bem como formas é possível, pois, caracterizá-los como gírias. Assim, de acor-
gráficas já integradas ao português que concorrem com o do com Preti (1996, pp.139-140, apud PRETI, 2000, p.245),
elemento grafado de acordo com a língua de origem. Por o fenômeno gíria pode ser estudado sob duas perspectivas:
fim, o emprego frequente de um estrangeirismo pode le-
vá-lo a ser considerado parte do acervo lexical português, a primeira, a da chamada gíria de grupo,
isto é, a de um vocabulário de grupos sociais
ocasionando sua inserção como empréstimo linguístico em restritos, cujo comportamento se afasta da
dicionários. maioria, seja pelo inusitado, seja pelo confli-
Nesse estudo, os neologismos grafados em língua to que estabelecem com a sociedade. No pri-
inglesa serão o objeto principal, entretanto, é necessária a meiro caso, estão os grupos jovens ligados à
música, à dança, às diversões, aos pontos de
compreensão de que nem todos vieram diretamente do in- encontro nos shoppings, à universidade, etc;
glês. O K-pop, mesmo sendo um gênero musical coreano, foi no segundo, estão os grupos comprometidos
profundamente influenciado pela indústria cultural ame- com as drogas, com a prostituição, com o
ricana, além de ter sido elaborado para a comercialização homossexualismo, com o roubo e o crime,
com o contrabando, com o ambiente das
global em um período histórico em que o inglês é a língua
prisões, etc.
franca. Portanto, algumas palavras grafadas em inglês fo-
ram neologismos primeiramente da língua coreana, como Uma segunda perspectiva, a da gíria comum, é a
a própria palavra K-pop, em coreano, 케이팝 (romanização: que estuda a vulgarização do fenômeno, isto é, o momento
keipap). Com a expansão mundial do pop coreano, esses em que, pelo contato dos grupos restritos com a sociedade,
neologismos passam a ser empregados em língua inglesa e, essa linguagem divulga-se, torna-se conhecida, passa a fa-
posteriormente, em língua portuguesa. Mesmo em núme- zer parte do vocabulário comum, perdendo sua identidade
ro consideravelmente menor, alguns estrangeirismos da inicial.
língua coreana estão presentes no repertório dos fãs brasi- Os neologismos que compõem o corpus deste traba-
leiros de K-pop. Dentre esses, podem ser citadas as palavras

Em alfabeto coreano, 막내.


9

Em alfabeto coreano, 사생.


10

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lho são, principalmente, gírias de grupo, utilizadas por jo- e apresenta conteúdos principalmente voltados para o
vens fãs de uma cultura fomentada por um gênero musical pop coreano. Atualmente, esse perfil possui mais de 100
de origem asiática. Preti (2000, p.64) complementa que as mil seguidores, sendo a maior fanbase gerenciada por um
gírias podem aparecer em dicionários, rotuladas com ru- conjunto de pessoas dedicada à cultura K-pop no Twitter.
bricas como “vulgar” ou “popular”, por serem frequente- Diariamente, centenas de contas pessoais e fan accounts
mente ligadas às situações de comunicação informais ou a interagem com o conteúdo postado pela Nunca Pause o MV
interlocutores menos cultos. Essa classificação tende a ex- por meio de favoritos, quotes, retweets e comentários.
ternalizar o estereótipo de que as gírias estão associadas à Durante os meses de agosto e novembro de 2021, foi
marginalidade ou à irreverência dos jovens, demonstrando elaborada, via método observacional, uma lista preliminar
preconceito e ausência de respaldo do ponto de vista lin- com 30 neologismos. Para escolher essas palavras, foram
guístico. adotados os seguintes critérios: vocábulo em língua inglesa
Cabello (1991) explica que os processos de formação de uso recorrente e característico da identidade da comu-
da gíria brasileira ocorrem nos níveis fonético, morfossin- nidade K-pop. Para dar continuidade ao processo de seleção,
tático, lexical e semântico e elucida ainda que a “sequência entre os dias 1° e 11 de abril de 2022, foram coletados tweets
estrangeirismo, peregrinismo e empréstimo [...] correspon- que apresentavam algumas dessas palavras. Esses tweets fo-
de a sequência gíria de grupo, gíria comum e linguagem co- ram postados pela conta Nunca Pause o MV ou em resposta a
mum” (CABELLO, 1991, p.31). Considera-se que os neolo- ela. No período estipulado para a coleta de dados, de 1° a
gismos dispostos neste estudo são, principalmente, gírias de 11 de abril, 22 dos 30 neologismos coletados previamente
grupo configuradas no nível lexical. foram empregados ao menos uma vez, delimitando o corpus
desta pesquisa. A soma do número de ocorrências foi rea-
PROCEDIMENTOS PARA A PESQUISA lizada manualmente, a partir dos tweets filtrados pela “pes-
quisa avançada” do Twitter.
A pesquisa apresentada neste artigo é de natureza Os dados selecionados foram submetidos ao critério
qualitativa (MINAYO et al., 2002, p. 22) e contempla o lexicográfico, recorrendo aos dicionários Houaiss (versão
estudo sociolinguístico de neologismos grafados em língua online) e Michaelis (versão online). Esse critério é uma forma
inglesa empregados pela comunidade de prática discursiva de caracterizar os neologismos como estrangeirismos ou
de fãs brasileiros de K-pop usuários do Twitter. Para a coleta como empréstimos. Ademais, conta-se também com o
de dados, foi escolhido o perfil brasileiro Nunca Pause o MV dicionário online inglês-português WordReference, visando
(@npomvtt), que se identifica como um “Portal de notícias, encontrar a tradução dos vocábulos fora do contexto da
charts e interação sobre música, cultura e cotidiano asiático” cultura K-pop e eventuais neologismos na própria língua

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inglesa. utilizadas pelos fãs de K-pop no Twitter.


Com o propósito de apresentar, descrever e analisar
as unidades lexicais selecionadas, foram utilizadas 3 Quadro 1 - Composições por justaposição com abreviações
categorias: (i) composição por justaposição e por aglutinação; Neologis-
(ii) derivação sufixal; (iii) demais neologismos. mos por WordRefe- Ocorrên-
Houaiss Michaelis
Os dados foram organizados em 6 quadros, cada um emprésti- rence cias
mo
deles composto por 5 colunas. A primeira indica a grafia
original do item lexical e as demais formas empregadas; a verbetes não
segunda e a terceira colunas apresentam os resultados para encontrados. boygroup: 1
boy group verbetes verbetes
a pesquisa do neologismo nos dicionários online da língua não encon- não en- *apresenta bg: 6
(boygroup,
portuguesa Houaiss e Michaelis; a quarta contém a tradução bg) trados. contrados. as palavras
separada- total: 7
da palavra, caso esteja inserida no dicionário online WordRe-
mente.
ference; e, finalmente, na última coluna apresenta-se a soma
do número de ocorrências selecionadas no período entre 1°
e 11 de abril de 2022. verbetes não girlgroup e
encontrados. girl group:
girl group verbetes verbetes
ANÁLISE *apresenta 12
(girgroup, não encon- não en-
trados. contrados. as palavras gg: 21
gg)
Nesta seção, são analisados os neologismos que com- separada-
mente. total: 33
põem o corpus deste trabalho considerando sua construção
morfossintática, o que resulta nas seguintes subseções: (i)
composições por justaposição e por aglutinação; (ii) deri-
vação sufixal; (iii) demais neologismos. Considera-se que
os neologismos selecionados são, principalmente, gírias de
grupo utilizadas por uma comunidade de fãs de K-pop, mas
há algumas que escapam dessa classificação.

COMPOSIÇÃO POR JUSTAPOSIÇÃO E POR AGLUTINAÇÃO

Apresenta-se no Quadro 1 o primeiro conjunto de


palavras, composições por justaposição com abreviações,

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CB: (sf) A maior recorrência dos termos relacionados a gru-


banda do comeback (n): pos femininos, em comparação aos grupos masculinos, pode
cidadão regresso, ser explicada pelo atual contexto dos fãs brasileiros, pois,
(citizens retorno (sm),
comeback: nos últimos meses, esta comunidade tem recebido com re-
band), (sm) volta (sf).
comeback verbetes 125 lativo entusiasmo as músicas cantadas por girlgroups. Nesses
transre-
não en- *principais dois primeiros neologismos, o uso da sigla é mais comum
(cb) ceptor que cb: 17
contrados. resultados.
funciona do que a forma completa, diferente do que ocorre com a
nesta ban- total: 142
CB: verbete palavra comeback. Esta palavra, como indicado na tradução
da, abrev. não encon- do dicionário WordReference, tem o sentido de retorno, e é o
de caixa- trado.
-baixa. substantivo usado para nomear a volta de um artista com a
apresentação de um álbum ou single novo:
mv: verbete
mV: símb. não music vi-
de milivolt. encontrado. (3) Eu simplesmente não consigo entender como a
music video verbetes deo: 0
não en-
YG acha normal o Blackpink ficar praticamente 2 anos sem
music video: music mv: 134
(mv) contrados. fazer comeback. [...]
verbete não video (n):
encontrado. videoclipe total: 134
(sm). (4) P Nation faz os melhores anúncios de cb
Fonte: a autora, 2022.
Especialmente no K-pop, o comeback de um solista
ou grupo representa a produção de muitos produtos e a
Os neologismos girlgroup e boygroup são gírias utili-
realização de diversos eventos, portanto, os comebacks são
zadas pela comunidade brasileira de fãs de K-pop e denomi-
aguardados e recebidos com extrema euforia pelos fãs. O
nam um grupo feminino e um grupo masculino de artistas,
emprego em menor número da palavra em forma de sigla
respectivamente. Há ocorrências dessas palavras grafadas
pode ser explicado por ser um item lexical relativamente
juntas e separadas, como indicam os exemplos:
novo, ainda em processo de assimilação e aceitação pela
(1) VEIO AÍ! Sakura é a primeira integrante revelada maior parte da comunidade. O contrário acontece com o
do novo girl group ‘LE SSERAFIM’. último neologismo do quadro: a sigla MV foi tão bem incor-
porada no léxico dos fãs de K-pop que a sua forma completa,
(2) Esse é o poder do maior girlgroup do mundo music video, sequer foi citada durante os onze dias de coleta
de dados. Como indica o WordReference, music video pode ser

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facilmente traduzido para “videoclipe”: A composição sintagmática por meio de siglas cria
uma unidade neológica, que, por sua vez, surge com o pro-
(5) O final inesperado desse MV me choca até hoje pósito de economia discursiva, na intenção de tornar o pro-
cesso da comunicação mais simples e eficaz (ALVES, 1994).
A versão traduzida, “videoclipe”, foi empregada ape- Conforme pesquisas realizadas nos dicionários online Hou-
nas uma vez, pelo portal Nunca Pause o MV – que, curiosa- aiss e Michaelis, as siglas registradas no acervo são as mais
mente, possui a sigla MV em seu próprio nome –, quando usadas pela população, como os documentos CPF e RG.
anunciou a possível colaboração de uma cantora brasileira Assim, a aparição da sigla CB, abreviação do empréstimo
com um girlgroup coreano. O emprego puramente estilístico citizens band, inserida no dicionário Houaiss, configura uma
de MV pode ser um modo de construção da identidade des- provável exceção. A citizens band, traduzida como “banda do
sa comunidade de prática (ECKERT-GINET, 2010), de for- cidadão”, é um sistema de comunicações individual de cur-
ma a diferenciar-se de outros nichos de música pop, como o ta distância via rádio, que utiliza uma banda de frequên-
americano ou o brasileiro. cias altas. O uso dessa tecnologia surgiu durante a Segunda
A utilização de abreviações, principalmente em for- Guerra Mundial, criadas para fins militares em grande es-
ma de sigla, é um fenômeno comum na comunidade de prá- cala, instaladas em aparelhos conhecidos como walky-talkies.
tica dos fãs de K-pop, desde os grupos formados na primeira Com o fim da Guerra, a população se interessou pela ferra-
geração, que tinham nomes como H.O.T e S.E.S (MINISTRY menta, apropriando-se dela e a nomeando citizens band, ou
OF CULTURE, SPORTS AND TOURISM, 2011). Ademais, da forma abreviada, CB.
esse emprego pontual tende a ser característico de jovens São expostos no Quadro 2 neologismos compostos
nas redes sociais, principalmente no Twitter, que limita a por meio de justaposição contendo exclusivamente a raiz
postagem em no máximo 280 caracteres, fazendo com que fan:
os usuários suprimam letras com frequência.
Além de aparecer em letra minúscula (4), como é Quadro 2 - Composições por justaposição com uso de fan
usual na construção de discursos informais nas redes so-
ciais, as siglas também aparecem grafadas com letra maiús- Neologis-
cula (5), como é sua característica natural: mos por Ocor-
Houaiss Michaelis WordReference
emprésti- rências
mo
(6) [..] Sou stan GG, pois BG não curto, mas ainda
ouço o Stray Kids [...]

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Wheein é uma integrante do girlgroup Mamamoo.


Nesse caso, ela teria uma fanmeeting sozinha, uma vez que,
fanmeeting:
verbete não além das músicas do grupo, também promove as suas como
fanmee-
verbete verbete não encontrado. solista.
não en- encontra- total: 4 A palavra fansign tem um significado semelhante.
ting *apresenta
contrado. do.
as palavras Como a tradução das palavras indica, em um fanmeeting, os
separadamente. fãs conhecem um artista ou grupo, ao passo que em um fan-
sign, um ou mais idols apenas distribuem assinaturas, ou seja,
autógrafos. Fanmeetings e fansigns são eventos comuns para
grupos de idols que vêm ao Brasil, por serem muito menores
fansign: verbete e mais fáceis de produzir do que shows. Quando anunciados,
não encontrado.
verbete verbete não os fãs logo usam as redes sociais para se organizarem:
fansign não en- encontra- *apresenta total: 2
contrado. do. as palavras (8) Grupo no whatsapp para quem vai no fansign no
separadamente. Rio de janeiro [...]

Fonte: a autora, 2022. Além desses dois neologismos, outras palavras uti-
lizam a raiz fan, como a do próximo quadro e a palavra
Fanmeeting é o nome dado a um evento em que os ar- fanchant. Fanchant nomeia o “canto dos fãs”, trechos especí-
tistas, chamados pelos fãs de K-pop de idols, ficam sentados ficos das músicas em que o público canta mais alto ou lista
em uma longa mesa, recebendo fã por fã, para conversar em coro o nome de todos os integrantes do grupo. Outras
durante alguns minutos e receber presentes. Em alguns composições por justaposição demonstram a produtivida-
casos, os grupos ou solistas que realizam um fanmeeting de desse modo de formação de palavras, como hi touch, um
cantam músicas e participam de brincadeiras. Nas quatro evento em que os fãs em fileira apenas tocam as mãos dos
ocorrências, o emprego de fanmeeting foi feito pelo portal artistas, e lightstick, um objeto pequeno que emite luz, usado
Nunca Pause o MV, que informava uma situação, como por principalmente durante os shows, em design único para cada
exemplo: grupo ou solista.
Durante os onze dias de coleta de dados, de 1° a 11
(7) Wheein do MAMAMOO anunciou o Fanmeeting de maio de 2022, a palavra fanmeeting foi empregada qua-
solo “D-DAY” para o dia 17 de abril. tro vezes, enquanto fansign, apenas duas. Fanchant, hi touch e

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lightstick não foram usadas em nenhum momento. Esse uso Quadro 3 - Composição por aglutinação
escasso, em comparação com a sigla MV, que apresentou
134 citações, demostra que esses neologismos são oriundos Neologismos Ocor-
de um contexto mais específico. Portanto, os neologismos por Houaiss Michaelis WordReference rên-
presentes no vocabulário dos fãs brasileiros de K-pop pos- empréstimo cias
suem certa diversidade.
O uso recorrente da raiz fan na criação de palavras
pode ser reflexo da necessidade linguística de integrar o
fã aos elementos do K-pop, buscando demonstrar uma es-
stan (stalker verbete não verbete não verbete não total:
pécie de unificação da comunidade, uma vez que existem + fan) encontrado. encontrado. encontrado. 46
fãs no Brasil inteiro e no mundo todo. Dessa forma, pode
haver uma centralidade daquele que consome o conteúdo,
não daquele que o cria, fomentando assim um sentimento
Fonte: a autora, 2022.
de pertencimento à comunidade de prática (ECKERT-GI-
NET, 2010). A origem de stan é creditada ao rapper Eminem, que
De modo geral, os seis neologismos destacados nos compôs uma música nos anos 2000 com essa palavra como
quadros anteriores são compatíveis com os pressupostos título. Stan, a união das raízes stalker e fan, na canção de
expostos em pesquisas de Alves (1994). Ou seja, são estran- Eminem caracterizam um fã obcecado pelo artista. Com o
geirismos que se classificam como substantivos, a classe passar dos anos, a palavra foi perdendo sua força pejora-
gramatical com maior ocorrência de empréstimo na lín- tiva, ao passo que atualmente designa um fã dedicado, que
gua portuguesa, como indica a autora. Além disso, todos acompanha as atividades do ídolo com frequência. Com o
adotam o gênero masculino, processo comum ao receber sentido de “fã”, esse item lexical pode ser categorizado como
neologismos da língua inglesa que não utiliza a flexão de substantivo, entretanto, a palavra stan também é um verbo
gênero. O plural pode ser obtido da forma usual nas línguas que designa o ato de apoiar um artista ou grupo por meio
portuguesa e inglesa, acrescentando o morfema -s no final do consumo de seus conteúdos. Em forma de verbo, o neo-
da palavra. No caso das siglas gg e bg, há ocorrência também logismo recebe flexões de acordo com a língua portuguesa,
do plural sem a flexão de número da abreviação. como ilustra esse tweet de interação criado por uma admi-
O Quadro 3 apresenta apenas um neologismo que nistradora do portal Nunca Pause o MV, no dia 11 de abril:
se formou por meio de composição por aglutinação, tendo
perda fonética e morfológica:

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(9) Qual foi o grupo que introduziu vocês ao Kpop?? stan ainda não está presente no dicionário de tradução in-
Vocês ainda staneiam? Fiquei curiosa glês-português WordReference.
Além de “stanear” um grupo ou solista, uma pessoa
A publicação recebeu mais de mil respostas, a maior pode simplesmente preferir grupos femininos, ser stan gg
parte delas empregando o termo stan como substantivo ou (6), ou o inverso, gg stan:
verbo:
(14) nem sou gg stan mas vou responder pq vi mta
(10) ITZY, sou stan até hj mas não é meu grupo utt mais coisa. [...]

(11) bts e ainda sou stan O mesmo processo ocorre com aqueles que acompa-
nham apenas grupos masculinos, podendo ser intitulados
(12) [...] continuo staneando e elas ainda são meu gru- stan bg ou bg stan.
po ultimate [...] O neologismo fandom (13), criado a partir da justapo-
sição por aglutinação das palavras fan e kingdom, consegue
(13) Busters, e ainda staneio, mas não sou tão ativa no abranger um número ainda maior de falantes, pois envol-
fandom quanto eu era antes ve fãs de filmes, séries, livros e demais produções. Um fan-
dom é, como sinaliza sua tradução “reino dos fãs”, a junção
O uso do verbo “stanear” com flexões adequadas à
dos entusiastas de um conteúdo específico. No universo do
língua portuguesa, como ilustram os exemplos, pode in-
K-pop, cada um dos milhares de grupos e solistas possui um
dicar que esse neologismo esteja na fase de peregrinação,
fandom, que recebe um nome próprio. Ainda em resposta à
sofrendo alterações morfológicas enquanto é aceito pela
pergunta do @npomvtt (9), alguns usuários citaram ser parte
comunidade de prática (CABELLO, 1991).
de um fandom específico:
Diferente dos neologismos fanmeeting e fansign, que
são usados praticamente apenas por membros da comuni- (15) bts, não me considero army mas os amo demais [...]
dade de fãs de K-pop, a palavra stan é empregada por outras
comunidades, principalmente nas redes sociais. A recorrên- (16) conheci com o exo, lá em 2018, e hoje ainda con-
cia de stan é tão marcante que alguns dicionários de língua tinuo sendo exol
inglesa, como o Oxford English Dictionary e o Merriam-We-
bster Dictionary, já estão inserindo o verbete em seu acervo, Aqueles que se identificam com mais de um grupo e,
fazendo com que deixe de ser um neologismo em língua in- consequentemente participam de mais de um fandom, são
glesa. Provavelmente devido à sua recente popularização, denominados multifandoms.

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DERIVAÇÃO SUFIXAL
rapper (sm+f):
cantor(a) e/ou
No Quadro 4 estão palavras que apresentaram em compositor(a)
rapper (sm+f): rapper (n):
sua composição o sufixo -er, significando “alguém que pra- rapper praticante de
de rap; pessoa
cantor de total: 1
tica algo”: que adota o rap
rap. rap (loc sm).
como estilo de
música para
Quadro 4 - Derivações sufixais com uso de -er cantar e dançar.
Neolo-
gismos
WordRefe- líder (sm+f): o
por Houaiss Michaelis Ocorrências
rence que tem au-
emprés- líder (sm+f): pes-
toridade para
timo soa com poder
comandar
ou coorde- de decidir, de se
center [US] nar outros; fazer obedecer;
(n): centro, pessoa cujas pessoa com
líder: 3
[basquete] líder ações e pala- capacidade de
leader (n):
pivô (sm), vras exercem influenciar nas leader: 0
verbete não verbete não en- (leader) líder.
center meio-cam- total: 1 influência so- ideias e ações de
encontrado. contrado. pista (sm/ outras pessoas. total: 3
bre o pensa-
sf). mento e com-
*principais portamento
de outras. *principais re-
resultados.
sultados.
*principais
dancer (n):
resultados.
dançarino
verbete não verbete não
dancer (sm), total: 3
encontrado. encontrado.
dançarina Fonte: a autora, 2022.
(sf).
Um grupo de idols de K-pop é dividido em funções. O
center, como indica a tradução do WordReference, é a pessoa
que fica no “centro”. Essa posição tende a ser literal, ou seja,
o center é o membro que, geralmente, aparece no meio nas
fotos em grupo e costuma receber trechos do refrão da mú-

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Pesquisa em Letras: práticas discursivas e sociolinguísticas Fabilim Regina Serafim Gonçalves

sica. O artista encarregado dessa posição pode ser trocado (19) [...] as mini divas são tão talentosas, tem uma das
a cada comeback do grupo. Outra posição determinada para maiores main dancers da 4° geração [...]
um membro, mas passível de troca a qualquer momento,
é denominada “líder”, um empréstimo do inglês leader, já Além das três primeiras gerações de grupos de K-pop,
adaptado ao sistema linguístico do português. Esse emprés- os fãs discutem a existência de uma nova, a quarta, geral-
timo já é tão natural ao falante brasileiro que, entre 1° e 11 mente envolvendo grupos que estrearam a partir de 2018
de abril de 2022, a palavra líder foi citada 3 vezes, enquanto (DEWET; IMENES; PAK, 2019).
sua correspondente leader, nenhuma. A baixa frequência no emprego center, dancer, rapper e
líder durante os dias observados se devem, presumivelmen-
(17) Foi divulgado que a líder do novo grupo da Hybe te, ao contexto atual do K-pop. Nos primeiros grupos forma-
x Source Music, LE SSERAFIM, será Kim Chaewon. [...] dos, os integrantes eram divididos por posições seguindo
um certo rigor, em contraste aos grupos atuais, nos quais
Algumas funções em um grupo de K-pop são insubs- alguns sequer possuem membros com funções designadas
tituíveis: dancer, o “dançarino”, como exposto no Quadro oficialmente.
4; vocal, o “vocalista”, uma palavra presente no inglês, mas A produtividade do sufixo -er também é comprovada
que já é empregada no português por originar-se do latim; pela existência da palavra manager. Traduzindo literalmen-
e rapper, a “pessoa que faz rap”, um empréstimo do inglês te, manager é um “gerente” ou um “diretor”. No universo do
presente nos dicionários de língua portuguesa Houaiss e Mi- K-pop, manager é uma pessoa encarregada de acompanhar
chaelis. Como demonstra o exemplo, um integrante pode ter um ou mais idols em suas atividades, para orientá-los e au-
mais de uma posição no grupo: xiliá-los.
Todos os substantivos nesse subgrupo possuem fle-
(18) sim gente a go yurim é a bona do wjsn, lead dan- xão de dois gêneros, feminino e masculino, sem alterar a
cer, center, vocal e rapper do wjsn desde 2016. [...] grafia. Quanto a forma plural, líder recebe o morfema
-es, ao passo que as demais palavras apenas -s. Enquanto
Lead dancer é o “dançarino de apoio”, assim como líder e rapper são empréstimos, as gírias center e dancer são
existe lead vocal, sendo o “vocalista de apoio”, e lead rapper, estrangeirismos.
sendo o “rapper de apoio”. Em geral, trata-se do segundo in- São dispostas, no Quadro 5, as derivações sufixais
tegrante do grupo com melhores qualidades em uma dessas que apresentam uma palavra com a adição do sufixo -ie,
áreas. O membro com maior aptidão segue a mesma lógica, significando “alguém caracterizado por ser algo” e outra
é intitulado main + posição: com o sufixo -ee, um morfema que transforma verbos em

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Pesquisa em Letras: práticas discursivas e sociolinguísticas Fabilim Regina Serafim Gonçalves

substantivos: usada com relativa frequência pelos fãs de K-pop, devido ao


lançamento quase diário de novos idols na indústria musi-
Quadro 5 - Derivação sufixal com uso de -ie e -ee
cal:
Neolo-
gismos
por WordRefe- Ocor- (20) Choa anuncia seu debut oficial para o dia 9 de
Houaiss Michaelis
em- rence rências Abril.
présti-
mo
(21) Nada mais icônico do que o debut do SNSD.
rookie (n):
recruta,
rookie
verbete não verbete não encon-
novato, total: 3 Essa palavra já está dicionarizada como “debute” nos
encontrado. trado.
inexperiente dicionários de língua portuguesa consultados, emprestada
(sm). do francês début. Em sua forma verbal, o empréstimo “de-
trainee (sm+f):
trainee (sm+f): pro- butar” é usado pelos fãs de K-pop de acordo com as flexões
pessoa que
está sendo
fissional, geralmen- da língua portuguesa. Como substantivo, somente a forma
te recém-formado debut é empregada.
treinada,
ou em início de
especial-
carreira, que passa
mente para
por um processo (22) Eu entrei pro kpop na mesma época que o iz*one
um trabalho
determinado;
de treinamento e
trainee (n): debutou. [...]
aprendizado prá-
profissional estagiário,
tico, numa deter-
trainee geralmente trainee (sm), total: 3 (23) Blackpink e ainda hj sou blink,conheci logo na
minada empresa, e
recém-for- aprendiz
mado que
que, diferentemen-
(adj). época que elas debutaram
te do estagiário,
participa de
é um empregado
programa de
registrado, sendo O item lexical debut mostrou-se produtivo, pois os fãs
treinamento
preparado para brasileiros de K-pop o empregam com o prefixo pré-, para
profissionali-
ocupar um cargo indicar conteúdos produzidos antes do lançamento oficial
zante ofere-
estratégico dentro
cido por uma
da organização. do idol ou grupo na mídia:
empresa.
Fonte: a autora, 2022. (24) [...] meninas aces que no pré-debut escreveram
Comeback é a palavra usada para nomear o retorno uma música [...]
com um novo trabalho, mas o primeiro álbum ou single de
um artista ou grupo é denominado debut. A palavra debut é Antes de debutar, os jovens são trainees: não rara-

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Pesquisa em Letras: práticas discursivas e sociolinguísticas Fabilim Regina Serafim Gonçalves

mente passam anos se especializando em canto, dança, rap da empresa, ocorre o disband.
e outros campos, muitas vezes sem receber salário – pelo
contrário, em alguns casos pagam pela capacitação. (28) o disband do pristin foi a pior coisa que podia ter
acontecido na terceira geração [...]
(25) A hybe implorou mt pra essa menina virar trai-
nee, tenho certeza. [..] O supracitado neologismo está dicionarizado em
língua portuguesa como “debandar”. Assim como o subs-
Trainee é um empréstimo linguístico no português, tantivo “debute”, não foi registrado nenhum uso da forma
como indicado por sua presença nos dicionários online “debandar” durante os onze dias observados. Além do subs-
Houaiss e Michaelis. tantivo disband, com o sentido de fim, o verbo disband foi
Já o estrangeirismo rookie, como sugere a tradução empregado de acordo com as flexões morfológicas usuais
com sentido de “novato” do WordReference, caracteriza um da língua portuguesa, utilizando a raiz disband- e não de-
grupo que teve o seu debut há menos de um ano. Portanto, band-:
no universo do K-pop, rookie pode ser um adjetivo ou um
substantivo: (29) [...] que tb n ajudou em promoção do nu’est e agr
esse tb disbandou [...]
(26) [...] Um grupo rookie q demora meses pra lançar
comeback... (30) [...] até MENTIR que o grupo continuaria com 3
e logo depois disbandar o grupo sem elas saberem [...]
(27) O aespa, um rookie, no meio de gigantes! Tudo
pra mim Entretanto, usar verbos no passado como “deu” ou
“teve” antes da palavra disband mostrou-se mais comum:
A gíria rookie é produtiva, pois pode ser combina-
da com o item lexical monster, criando o monster rookie, ou (31) Blac7. Infelizmente deu disband
adaptado a ordem sintática portuguesa, rookie monster, defi-
nindo um grupo que debutou recentemente, mas com gran- (32) [...] e qnd teve o disband chorei horrores, pois ti-
de sucesso. nha menos de 1 ano q tinha conhecido eles [...]
Além de debut, outra palavra em inglês, originária
do francês, faz parte do vocabulário dessa comunidade de Como indica Alves (1994), a língua francesa era tida
prática: disband, adaptação inglesa de débander. Quando um como de prestígio na primeira metade do século XX, desen-
grupo é finalizado, por término do contrato ou intermédio cadeando o emprego de numerosos francesismos no por-

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Pesquisa em Letras: práticas discursivas e sociolinguísticas

tuguês e no inglês. Contemporaneamente, o mundo globa- K-pop:


lizado destacou o inglês como língua franca, ocasionando K-pop (n): K-pop 19
(sm) kpop:
o empréstimo de palavras inglesas em diversos contextos. K-pop verbetes não verbetes não
Korean pop 108
Como indica o uso de debut e disband, alguns desses itens le- (kpop) encontrados. encontrados.
music. total:
xicais emprestados são originários do francês, que já foram 127
emprestados diretamente dessa língua para o português,
kpo-
contando com ajustes morfológicos e fonéticos antes de se- kpo-
pper: 4
rem dicionarizados. pper
verbetes não verbetes não verbetes não kpoper:
(kpo-
Cabello (1991, p.33) esclarece que a renovação cons- per)
encontrados. encontrados. encontrados 8
total: 12
tante é característica da gíria, ou seja, depois de um período
de desaparecimento, os termos podem voltar, com o mes-
mo sentido anterior ou modificado. Esse fenômeno permite
que palavras que foram emprestadas do francês, no século idol
verbete não verbete não idol (n): ídolo
total: 18
encontrado. encontrado. (sm).
passado, possam reaparecer como estrangeirismos ingleses,
com pequenas alterações e um significado específico dentro
de uma comunidade de prática.

OUTROS NEOLOGISMOS

O último quadro apresenta as palavras que não se


encaixaram completamente em nenhum dos dois grupos
anteriores:

Quadro 6 - Demais neologismos


Neolo-
gismos
por Ocor-
Houaiss Michaelis WordReference
em- rências
présti-
mo

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Pesquisa em Letras: práticas discursivas e sociolinguísticas Fabilim Regina Serafim Gonçalves

bias (sm):
processo de
distorção da
percepção utt: verbete não
da realidade, encontrado.
como resulta- ultimate (adj):
bias (sm): distor- do do envol- maior, principal, ultima-
bias for [some- ulti-
ção do julga- vimento do máximo, extremo, te: 3
thing/somebody] mate verbetes não verbetes não
mento de um observador melhor (adj). utt: 26
(n): preferência, (utt) encontrados. encontrados.
observador por naquilo (socie- the ultimate (n): total: 29
inclinação, pro-
estar ele intima- dade, cultura, máximo, extremo,
pensão (sf)
mente envolvido classe etc.) que [figurado] cúmulo
com o objeto de está observan- (sm).
bias in favor of
sua observação; do; tendência
[something/some-
tendência a mos- preconcei-
body] (n): inclina-
trar preconceito tuosa contra
ção, tendência (sf)
contra um grupo um grupo e
e preferência em favoritismo em
bias bias against total: 6
relação a outro; relação a ou-
[something/some-
inclinação de um tro; inclinação
body] (n): precon- Fonte: a autora, 2022.
fenômeno mais para favoreci-
ceito (sm)
para um sentido mento a algo
do que para ou alguém; O substantivo próprio K-pop é empregado frequente-
bias (n): predispo-
outro; preferên- tendência ao
cia, favoritismo; favoritismo;
sição, parcialidade mente sem hífen, como indicam as 108 citações e os exem-
(sf), viés (sm)
característica, preferência; plos (9 e 22), uma possível consequência da supressão de
virtude ou apti- característica caracteres realizada por essa comunidade de prática. Mas
*principais resul-
dão dominante ou traço predo-
na personalidade minante da
tados. o emprego com hífen, como está registrado o vocábulo no
de alguém. personalidade WordReference, também é empregado:
ou do tempe-
ramento de um
indivíduo; erro
(33) Conheci o K-pop com o Super Junior, mas foi o
sistemático ou Monsta x que me fez assumir essa vida!
tendenciosida-
de; viés. K-pop é a união da sigla K, de Korean, e da palavra
abreviada pop, oriunda de popular. Mostrou-se um item le-

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Pesquisa em Letras: práticas discursivas e sociolinguísticas Fabilim Regina Serafim Gonçalves

xical produtivo, pois, acrescentando o anteriormente men- e idol = ídolo, provavelmente são empregadas estilistica-
cionado sufixo -er, nomeou o fã desse gênero musical: o mente como forma de criar uma identidade da comunida-
kpopper. A gíria kpopper, grafada com um p a mais, é prova- de de acordo com suas práticas, diferenciando-a de outros
velmente uma adaptação fonética inglesa, que, como indica grupos semelhantes (ECKERT-GINET, 2010).
o uso em dobro de kpoper, está perdendo força entre os fãs Bias, mesmo em geral não sendo uma palavra de co-
brasileiros. nhecimento popular, apareceu dicionarizada nos acervos
do Houaiss e Michaelis, com um significado semelhante a tra-
(34) [...] acho que o CLC que me fez perceber que eu dução indicada pelo WordReference. No contexto do K-pop,
tinha virado kpopper mesmo KKKK a palavra bias tem relação com a tradução de “preferência,
favoritismo”, uma vez que designa no integrante favorito
(35) meu deus eu não sei o nome da música nem de de um fã em um determinado grupo.
quem canta, mas aposto que todo kpoper conhece esse mv
(37) [...] Mds to sentindo que vai ser minha bias
Assim como o uso expressivo da raiz fan possivel-
mente indica uma forma de expressar linguisticamente o Junto com o estrangeirismo bias, ou empregado se-
sentimento de pertencimento dos indivíduos integrantes paradamente, pode aparecer a gíria wrecker. Bias wrecker de-
dessa comunidade de prática, a criação e o emprego de kpo- nomina o segundo integrante favorito de um fã em um gru-
pper também pode ser uma forma de agrupamento. Algo po, tão amado ao ponto de quase roubar a posição do bias.
similar ocorre com os entusiastas do gênero musical rock, Por fim, ultimate (12), ou sua sigla utt (10), apresen-
denominados com frequência como rockeiros ou roqueiros, ta significado semelhante, porém com intensidade maior,
termo específico que provavelmente não existe entre os como sugere sua tradução de “máximo”: designa o idol ou
apreciadores de música pop. grupo favorito de um fã dentro de todo o universo do K-pop.
A gíria idol é usada para denominar o artista, tendo
como tradução “ídolo”: (38) Twice e sim eu ainda staneio e é meu grupo UTT

(36) Mais velha no k-pop que muito idol da quarta ge- De acordo com o Quadro 6, quatro gírias são estran-
ração tem de idade geirismos (K-pop, kpopper, idol, ultimate) e uma é classificada
como empréstimo lexical (bias), uma vez que é um elemento
Palavras com correspondência na língua portugue- já integrado ao sistema linguístico (ALVES, 1994). Todas as
sa, que certamente não precisariam da grafia inglesa, como palavras podem ser definidas como substantivo. Com ex-
music video = videoclipe, debut = debute, disband = debandar

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Pesquisa em Letras: práticas discursivas e sociolinguísticas Fabilim Regina Serafim Gonçalves

ceção de K-pop, um nome próprio que apresenta o gênero Concluiu-se que, de certa forma, o emprego desses neolo-
masculino, as demais podem ser empregadas em ambos os gismos é um estilo da comunidade de prática, usado com a
gêneros, sem a necessidade da adição de um morfema. A intenção de criar uma identidade do grupo e construir um
forma plural é aplicável, com a anexação de -s ao final do sentimento de pertencimento.
neologismo, em idol, kpopper e ultimate. De acordo com os Diante disso, apresentou-se uma pequena amostra
dicionários online Houaiss e Michaelis, a forma plural de bias do que pode ser explorado linguisticamente no repertório
segue a gramática inglesa, formando biases. Na prática, a dos fãs desse gênero musical, limitada a observação do em-
comunidade de fãs brasileiros de K-pop utiliza a grafia bias prego de estrangeirismos e empréstimos por um portal no
tanto para o singular quanto para o plural. Twitter e seus seguidores durante onze dias. A análise apre-
sentada foi resultado desse corpus específico e dos autores
CONSIDERAÇÕES FINAIS citados, abrindo horizontes para demais interpretações e
estudos aprofundados na área.
Este artigo teve como objetivo principal identificar e
descrever os neologismos presentes nas mensagens escritas
por membros da comunidade de fãs brasileiros da cultura
K-pop no Twitter, classificando, a partir da análise, as unida-
des neológicas, considerando-as como manifestação estilís-
tica de uma comunidade de prática.
Além de serem neologismos, criações lexicais re-
centes em uma língua, os estrangeirismos e empréstimos
(ALVES 1984, 1994) analisados caracterizaram-se princi-
palmente como gíria de grupo (CABELLO, 1991; PRETI,
2000), por estarem inseridos na comunicação de uma co-
munidade de prática (ECKERT-GINET, 2010).
De forma geral, o corpus apresentou um número
maior de estrangeirismos do que empréstimos lexicais. No
processo de formação de palavras, a composição por justa-
posição mostrou-se como o fenômeno de maior produtivi-
dade, seguido pela derivação sufixal. Um terceiro fenômeno
expressivo foi o uso de abreviações, especialmente siglas.

144 145
REFERÊNCIAS thro-092611-145828. Acesso em: 18 abr. 2022. 166 p.

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Hevelin Cristine de Oliveira Batista

REGIONALISMO barreiras geográficas e culturais conhecidas, promovendo


a percepção de aspectos sociais de diferentes comunidades.
LINGUÍSTICO E

4.
O regionalismo literário é uma das características
IDENTIDADE do romance brasileiro; ele exalta singularidades do Brasil
CULTURAL EM TORTO e, também, coloca-se como manifesto político e social,
deixando transparecer, de forma crítica, o contexto histórico
ARADO e social de regiões brasileiras. O regionalismo linguístico
destaca particularidades configurando a herança cultural
do local e sua presença em obras literárias brasileiras já
Hevelin Cristine de Oliveira Batista1 percorre longos anos, sendo possível identificá-lo em obras
Orientadora: Prof.ª Drª Sandra Batista da Costa2 de escritores como: José de Alencar, Graciliano Ramos,
Guimarães Rosa entre outros. A utilização de vocábulos
próprios de um local é um instrumento de afirmação da
PARA INÍCIO DA CONVERSA identidade local e nacional, valorizando as particularidades
de determinado grupo e região. Dessa maneira, é possível
O presente artigo tem como objetivo analisar o uso
caracterizar os personagens de uma obra literária por meio
de regionalismo linguístico na obra Torto Arado, de Itamar
da linguagem e do uso de expressões típicas.
Vieira Junior. O romance se passa na Chapada Diamantina
Esta pesquisa tem como objeto de estudo o
e é possível observar que o emprego desse recurso linguístico
uso de regionalismo linguístico no romance Torto
assinala na obra aspectos da identidade regional e cultural.
Arado e fundamenta-se, sobretudo, em pressupostos
O estudo de expressões regionais presentes em obras
Sociolinguísticos para responder à questão: como o uso
literárias é relevante, pois proporciona uma interface
de regionalismo caracteriza a identidade cultural na obra
entre estudos sociolinguísticos e literários. Uma obra
Torto Arado? Tem-se, então, como objetivo deste trabalho
literária com características realistas desperta no leitor o
analisar, nesse romance, o uso de expressões típicas que
sentimento de identificação e o transporte para além das
caracterizam a identidade cultural de uma região.
Este trabalho está fundamentado nos estudos de
1
Hevelin Cristine de Oliveira Batista licenciada em Letras Português-Inglês Cândido (2007) e Albuquerque (2021), que apresentam o
do Curso pela Pontifícia Universidade Católica do Paraná. E-mail: hevelin.
batista@pucpr.br regionalismo como característica da formação da literatura
2
Doutora e Pós-D0utora em Linguística pela Universidade Estadual de brasileira, nos pressupostos de Coutinho (1964), pois
Campinas. Professora na Pontifícia Universidade Católica do Paraná. elucida as características de obras literárias regionais, e na
E-mail: sandra.costa@pucpr.br

151
Pesquisa em Letras: práticas discursivas e sociolinguísticas Hevelin Cristine de Oliveira Batista

pesquisa realizada por Preti (2003), que esclarece os modos do enredo destacou o romance que conquistou, no ano de
de fala em diálogos da literatura brasileira. Os estudos de 2020, os prêmios LeYa, Jabuti e Oceanos. O romance foi
Biderman (2001), Coelho (2015), Aragão (2000) e Bagno escrito por Itamar Vieira Junior, baiano, geógrafo e doutor
(1999) são utilizados com o intuito de explicar a noção de em estudos étnicos e africanos pela Universidade Federal
regionalismo proposta pela sociolinguística. da Bahia. O autor aborda no romance um tema atual e
Este artigo está estruturado em seções. Na primeira, relevante que assinala o lugar da mulher preta: seu direito
é feita uma contextualização do romance Torto Arado. Na à fala e à constituição da sua memória.
seção seguinte, apresenta-se uma revisão de literatura acerca A obra foi iniciada por Itamar aos 16 anos. Nessa
dos regionalismos literário e linguístico de modo a destacar época, ele já tinha um esboço do enredo, mas só anos
a relação entre essas noções. Na seção de metodologia, depois ele conseguiu concluir o livro. O autor foi muito
explica-se o processo de coleta e da organização dos dados. influenciado pela literatura regionalista dos anos 20 e 30,
Na próxima, apresenta-se a análise de dados selecionados o que o motivou a escrever a história das irmãs Bibiana e
da obra e se encerra com as considerações finais. Belonísia, sua família e a terra (VIEIRA JUNIOR, 2021, n.p).
O escritor, que é servidor público do INCRA,
TORTO ARADO: CONTEXTUALIZAÇÃO trabalhou mais de 15 anos no interior do Nordeste junto às
famílias quilombolas, ribeirinhas e assentados da reforma
Esta seção tem como objetivo contextualizar a obra agrária. Esse trabalho possibilitou ao autor aproximar-
Torto Arado de modo a assinalar aspectos sociais e culturais se da comunidade quilombola de Iuna, na Chapada
que caracterizam o romance, bem como indicar a relação Diamantina, onde coletou dados que enriqueceram sua tese
entre linguagem e sociedade. Os estudos sociolinguísticos de doutorado, defendida na Universidade Federal da Bahia.
focam-se na linguagem como mediação da relação entre Essas atividades possibilitaram ao pesquisador conhecer
sujeito e mundo, portanto ao contextualizar a obra, tem- o “Brasil profundo” (VIEIRA JUNIOR, 2021), como ele
se como propósito indicar a relação entre contexto e se refere ao sertão. Além disso, seu trabalho em campo
fenômenos da linguagem. propiciou a obtenção de um vasto material para a escrita
do romance que outrora já havia sido esboçado por ele.
ORIGEM, ASPECTOS HISTÓRICOS E GEOGRÁFICOS A narrativa de Torto Arado se passa na Fazenda de
Água Negra, na Chapada Diamantina e, embora a época
A obra Torto Arado, publicada em 2019, ganhou não tenha sido mencionada com exatidão no romance,
grande notoriedade no cenário literário e foi considerada há indícios de que a história ocorreu nos anos 60. Em
por alguns críticos uma literatura clássica; a desenvoltura Água Negra, vivem famílias descendentes de escravos que

152 153
Pesquisa em Letras: práticas discursivas e sociolinguísticas Hevelin Cristine de Oliveira Batista

trabalham em troca de alimento e moradia. O FEMININO E A PRÁTICA RELIGIOSA


A Chapada Diamantina está localizada no coração
do sertão baiano, onde nascem alguns rios da bacia A expressão “torto arado”, que nomeia o romance,
hidrográfica baiana. O município central da Chapada é é um objeto de trabalho braçal, utilizado na roça pelos
Lençóis, que surgiu em meados do século XIX e era muito antepassados das personagens e simboliza uma herança
conhecido pelo garimpo de diamante na região. A presença escravocrata. A primeira cena do romance é marcada pelo
de negros escravizados foi marcante no local. Muitas trágico momento vivido pelas irmãs, Bibiana e Belonísia,
famílias traziam escravos para trabalhar na mineração em pois um acidente, ocorrido em fração de segundos, marca
busca de diamantes nas lavras diamantinas. Além disso, e entrelaça a vida das duas, e a partir desse momento uma
os escravos eram designados para outros trabalhos e, com delas se torna a voz da outra. Como elucida o autor, a
o tempo, firmaram residência na Chapada (SCARANO, faca que decepa a língua de uma delas simboliza um país
1994). dividido pela violência e pelo racismo (VIEIRA JUNIOR,
A escravidão no Brasil foi abolida oficialmente em 13 2021). O emudecimento pela ausência da língua representa
de maio de 1888, mas só acabou no papel, porque os negros o silenciamento das mulheres ancestrais que não são
continuaram vivendo em situações análogas ao sistema prioridades nas políticas públicas, não costumam aparecer
escravocrata. A ilusão da abolição foi mascarada pelas cartas na literatura, muito menos em outras expressões artísticas
de alforria, mas na realidade a exploração continuava, pois do Brasil.
para a grande maioria, não havia remuneração (VIEIRA O romance destaca o crescimento das irmãs, bem
JUNIOR, 2021), pois a abolição não foi acompanhada de como as diferenças que havia entre elas. Bibiana não queria
políticas reparatórias e de inclusão para que os escravizados o que já estava predestinado a uma mulher negra; ela
fossem libertos com dignidade. Ou seja, a escravidão não desejava estudar, ser professora e conhecer o que o mundo
acabou, só mudou a forma de manter um tipo de trabalho tinha a lhe oferecer. Ela é diferente de Belonísia, que se
escravo. Encontram-se ainda hoje na região da Chapada contentava com o trabalho na terra, ser dona de casa e
Diamantina vários grupos quilombolas que fizeram e constituir família, apesar de não poder ser mãe. A dualidade
fazem parte da história do local. Eles possuem uma grande entre essas personagens se faz presente na história: voz e
bagagem cultural acumulada pela herança histórica e silêncio; desejo de viver na cidade grande e contentamento
memória de seus ancestrais. Resquícios das questões com a vida no campo; fertilidade e infertilidade. As irmãs se
relacionadas ao regime escravocrata e suas consequências opõem, mas por muito tempo precisaram ser uma só, pois
são retratadas no romance. uma precisou ser a voz da outra.
A obra traz o feminino como protagonista, pois o

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Pesquisa em Letras: práticas discursivas e sociolinguísticas Hevelin Cristine de Oliveira Batista

romance está dividido em três partes e em cada uma delas remédios e curas para o povo. Donana, mãe de Zeca Chapéu,
há uma voz feminina que assume a narrativa. A narradora foi a responsável por repassar o dom para o filho, sendo um
da primeira parte do livro é Bibiana e da segunda parte dos símbolos de espiritualidade no romance, pois costuma
é Belonísia. Na terceira parte, o autor introduz outra voz falar sozinha (ou com alguma entidade não nomeada na
feminina, a entidade Santa Rita Pescadeira. Ela está presente história).
desde o início na prática do Jarê por meio da personagem A história de Torto Arado faz o leitor imergir em um
de Dona Miúda. espaço cultural de representatividade e desigualdade. Como
O enredo propicia uma imersão na região do afirma Vieira (2021, n.p) "Absolutamente tudo que é narrado
sertão nordestino, assinalando, ao longo da narrativa, em Torto Arado ainda é presente no mundo rural brasileiro
os resquícios da escravidão. A rica tradição do sertão em 2020. Ainda há pessoas vivendo no campo em condições
brasileiro está presente na história como parte da cultura análogas à escravidão ou em regime de escravidão mesmo".
da prática religiosa instituída naquele pedaço de terra. A ficção se repete na realidade brasileira atual, pois, mesmo
Uma das temáticas abordadas no livro é o Jarê, uma prática a história sendo contada há décadas, é possível notar a
religiosa única das Lavras Diamantinas. Esse culto religioso atemporalidade e o diálogo com os dias de hoje.
surgiu em meados do século XIX, com fortes ligações com
o período da mineração nessa região (SENNA, 1998). REGIONALISMO LITERÁRIO E LINGUÍSTICO
Considerado o "candomblé dos caboclos", o Jarê tem
influências do catolicismo, umbanda e espiritismo e se Apresentam-se nesta seção as características dos
difere pelas batidas únicas. Essa prática surgiu na Chapada regionalismos literário linguístico de modo a destacar
Diamantina e foi liderada pelas nagôs, etnia das mulheres a relação entre eles e explicar que o modo de fala de
africanas escravizadas e alforriadas. personagens indica a representação da identidade regional
Em Torto Arado, o Jarê, como o autor mesmo expôs, e cultural.
era uma prática religiosa de resistência espiritual e cultural
REGIONALISMO EM OBRAS LITERÁRIAS BRASILEIRAS
(VIEIRA JUNIOR, 2021). As noites de Jarê aconteciam
em encontros entre os trabalhadores da fazenda que se
O regionalismo literário é caracterizado como
reuniam em cultos com brincadeiras, comidas e nessas
a apresentação de particularidades de determinada
ocasiões as entidades se faziam presentes. As entidades
localidade, destacando a posição geográfica ou herança
eram comandadas pelos encantados que estavam presentes
histórica daquele lugar. Além do mais, a partir dele é
na comunidade em um espaço sobrenatural. Zeca Chapéu
possível identificar a cultura, os costumes e modos de fala,
é o curandeiro que em contato com os encantados prepara

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Pesquisa em Letras: práticas discursivas e sociolinguísticas Hevelin Cristine de Oliveira Batista

diferenciando grupos culturais que vivem em um mesmo


país, isto é, o regionalismo singulariza o indivíduo de modo Essa substância decorre, primeiramente, do
fundo natural - clima, topografia, flora, fau-
a destacar características de um grupo social.
na etc. - como elementos que afetam a vida
Na literatura, essa corrente surgiu em meados do humana na região; e em segundo lugar, das
século XIX, em uma fase do romance brasileiro, com o maneiras peculiares da sociedade humana
intuito de exprimir o nacionalismo, a cultura, os costumes estabelecida naquela região e que a fizeram
e as expressões linguísticas brasileiras. Segundo Candido distinta de qualquer outra.
(2007), era possível criar uma relação de equilíbrio entre
De acordo com Coutinho (1964), esse estilo literário
a forma literária e a busca pela construção da identidade
regional é fracionada em grupos bem caracterizados, tais
nacional.
como: nortista, nordestino, baiano, central e gaúcho. São
Ambas [natureza e pátria] conduziam a uma esses os mais recorrentes na cena literária nacional.
literatura que compensava o atraso material É possível verificar nas obras literárias as
e a debilidade das instruções por meio da representações linguísticas em situações que se aproximam
supervalorização dos aspectos regionais, fa-
zendo do exotismo razão de otimismo social
do contexto real de fala, uma vez que os autores dão vida à
(CANDIDO, 2007, p. 170). construção de personagens nas narrativas. O regionalismo
linguístico no âmbito literário é percebido na construção
Coutinho (1964, p. 202) apresenta duas definições de cultural dos personagens e nas suas falas que expressam
obra regional; primeiramente ele explica: características diatópicas ou diastráticas.

Num sentido largo, toda obra de arte é re- No Realismo-Naturalismo brasileiro, a


gional quando tem por pano de fundo algu- presença de personagens mais populares,
ma região particular ou parece germinar in- de baixa cultura, oriundos de um meio am-
timamente desse fundo. Neste sentido, um biente mais pobres e menos escolarizado ou
romance pode ser localizado numa cidade e dos grandes aglomerados urbanos, levou os
tratar de problema universal, de sorte que a prosadores a registrar vocábulos, constru-
localização é incidental. ções, pronúncias tidas como subpadrões lin-
guísticos, mas expressivos para completar
a descrição social dos tipos marginalizados
Na segunda definição, Coutinho (1964, p. 202) (...) (PRETI, 2004, p. 119).
considera que uma não é considerada regional por estar
localizada em uma determinado local, mas por apresentar
uma “substância real” das singularidades desta região: Em decorrência desses fatores, os autores dão vida

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às personagens que caracterizam grupos sociais da nossa Brasil se dá por vários fatores, entre eles estão a dimensão
sociedade. territorial e as migrações que acontecem no decorrer da
Embora o mundo narrado não seja necessariamente história e constituem a identidade nacional. Biderman
verdadeiro, o espaço literário criado é portador de símbolos (2001, p.136) explica que o regionalismo é "qualquer fato
provenientes de um contexto histórico de uma região linguístico (palavra, expressão, ou seu sentido) peculiar a
existente. A literatura toma como referência o mundo real, uma ou outra variedade regional do português falado no
ou seja, uma verossimilhança, com o objetivo de tornar a Brasil”. Os regionalismos caracterizam, pois, o modo de fala
obra mais tangível e proporcionar ao leitor o sentimento de uma região. Não há fronteiras explícitas que delimitam
de identificação, como ocorre em Torto Arado. O autor do os usos regionais, embora se reconheça que essas variantes
romance salienta: “Sou um autor brasileiro que escreve a se expressam com maior especificidade à medida que se
partir da Bahia. E a Bahia reúne muitas das referências que adentra no interior do sertão brasileiro. Os diferentes
espelham o que é este país” (VIEIRA JUNIOR, 2021, n.p). modos de fala não são apenas variações da norma culta,
as expressões típicas variam de uma região para outra
REGIONALISMO LINGUÍSTICO dentro da nação e singularizam os sujeitos, envolvendo sua
cultura, seus costumes, culinária etc. Biderman (2001, p.
A Sociolinguística estuda a língua em seu uso real, 14) explica:
destacando, por exemplo, aspectos típicos do modo de fala
de uma região, uma vez que a língua conta com variações [...] discutir a configuração dos regionalis-
sociais que fundamentam a cultura e a história das pessoas mos no âmbito de uma língua implica con-
siderar a noção de norma regional e popu-
e do lugar em que vivem. Rodrigues Leite esclarece: lar, já que esses fatos linguísticos se situam
na esfera da variação lexical de natureza
A variação diastrática refere-se aos modos diatópica, ou seja, a variação que se processa
de falar que correspondem a códigos de
comportamento de determinados grupos no eixo horizontal ou espacial.
sociais. A variedade diastrática corresponde
ao uso linguístico partilhado por um grupo Coelho et al. (2015) explicam que os exemplos mais
social, cujos membros mantêm entre si re- recorrentes de variação linguística são os de nível lexical,
lação de identidade que os diferenciam em quase sempre ligados aos regionalismos, como por exemplo
relação a outros grupos. (RODRIGUES LEI-
bergamota (ou vergamota), tangerina, laranja cravo e
TE, 2010, n.p).
mimosa; pão francês, pão de trigo, cacetinho, filãozinho.
A variação geográfica na e da língua portuguesa no A autora esclarece que por meio da análise da

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distribuição geográfica de formas lexicais, é possível meio da fala, é possível identificar a origem do indivíduo.
delimitar as áreas e dessa maneira demarcá-las pelo seu Muitas vezes, o modos de fala típico de um local acaba
modo característico de fala, indicando vocábulos que são desencadeando preconceito linguístico, pois contrapõem-se
sempre usados em um local, mas não são identificados à norma-padrão do português; o autor assinala: “O domínio
em outros. Mas, ela assinala que as áreas lexicais “não da norma culta é um instrumento de ascensão social”
são delimitadas por fronteiras fixas e imutáveis; elas se (BAGNO, 2003, p. 69), portanto o uso de uma variedade
sobrepõem, na medida em que os diferentes fatores se linguística não privilegiada pode promover a desigualdade
interseccionam” (COELHO et al., 2015, p. 25). A língua, e a exclusão social. Mas, o emprego de regionalismo
como um organismo vivo, não se limita de modo fixo, linguístico em obras literárias pode dar voz, mesmo que de
está sempre em transição e evolução, uma vez que sofre maneira fictícia, aos falantes de uma variedade linguística
influências de aspectos sociais. não privilegiada, criando assim, para um grupo social, um
Aragão (2000) esclarece que é fundamental sentimento de representação e pertencimento.
compreender o contexto sociocultural no qual a língua é O texto literário não representa perfeitamente a
utilizada para examinar as variações da língua e justificar materialidade linguística real e espontânea, mas o autor,
fatos que são difíceis de determinar apenas linguisticamente, por meio de recursos estilísticos, pode aproximar-se de
pois há uma relação intrínseca entre língua, sociedade uma situação de fala. Preti (2004) esclarece:
e cultura. Ela considera que o estudo do léxico pode
indicar que as práticas socioculturais das comunidades Sendo uma manifestação escrita, o texto lite-
rário pressupõe um processo de elaboração,
estão refletidas em seu léxico. A autora justifica seu ponto de reflexão, de planejamento, que se afas-
de vista recorrendo a Barbosa; este explica (1993, p.1) taria, em tese, da dinâmica da língua oral
“[...] o léxico representa, por certo, o espaço privilegiado espontânea, que se desenvolve, não raro, de
desse processo de produção, acumulação, transformação forma imprevista, em face da situação inte-
racional. Mas, por outro lado, os objetivos
e diferenciação desses sistemas de valores.” O léxico, do escritor são de natureza estética e não há
enquanto caracterização da identidade cultural, está no limites na escolha das variantes linguísticas
centro da sociedade e reflete as tendências da comunidade. para atingi-los. Por isso, o emprego de re-
Aragão (2000) conclui que, para estudar a língua, é preciso cursos da oralidade pode ser uma estratégia
intencional para dar a seu diálogo de ficção
relacioná-la com a sociedade e a cultura nas quais o falante
uma proximidade maior com a realidade
se insere. (PRETI, 2004, p. 120).
Para Bagno (1999), o regionalismo é uma forma de
retratar a identidade cultural de uma região, já que por O texto literário pode aproximar-se de situações

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reais de comunicação quando utiliza recursos linguísticos signo marcador de falas das personagens que, em sua maioria,
aceitáveis ao contexto comunicativo. A narração pode se são representantes de classes sociais desfavorecidas. Assim,
desenvolver com a escolha de recursos lexicais e semânticos os autores utilizam do recurso lexical, morfossintático e
que caracterizam experiências cotidianas do uso da discursivo para dar vida às personagens assinalando o meio
linguagem e configuram o modo de fala de sujeitos comuns. social e aproximando a obra literária desse contexto. Esse
Há no romance Torto Arado o predomínio do uso da é um trabalho minucioso, pois envolve diversos elementos
linguagem culta, em razão disso alguns leitores levantam que buscam a aproximação com a oralidade, além disso,
a seguinte questão sobre o modo de fala dos personagens: a utilização dessa estratégia facilita a compreensão e o
Como uma família semianalfabeta, residente em uma área entendimento dos grupos e das regiões descritos na obra.
interiorana apresenta um vocabulário culto? Considera- Embora haja uma complexidade na relação da literatura
se que para uma obra ser caracterizada regional, ela não com a realidade, a transposição da língua falada no
precisa limitar-se apenas ao uso de uma variedade não convívio real por meio de personagens fictícios, não é um
padrão, ela pode apresentar marcas regionais de modo trabalho simples. São diversos os fatores que permeiam esse
a caracterizar aspectos históricos, geográficos, sociais, contexto, como: escolaridade, classe social, sexo, idade etc.
econômicos, políticos e culturais de uma região. Na obra Preti (2003) apresenta três problemas de ordem
Torto arado, é possível identificar palavras e expressões linguística na reprodução escrita de diálogos entre
típicas de um local que indicam o modo de fala de um personagens. O primeiro é a ortografia, pois é muito difícil
grupo social que vive em uma comunidade quilombola na o escritor romper com as barreiras entre língua falada/
Chapada Diamantina. língua escrita. O segundo é o elemento suprassegmental, ou
seja, a dinâmica vocal, o ritmo e a entonação apresentam
UTILIZAÇÃO DE REGIONALISMO LINGUÍSTICO EM OBRA significados próprios e o valor expressivo da mensagem.
LITERÁRIA Para representar os elementos suprassegmentais, a escrita
possui sinais de pontuação, maiúsculas, repetição de espaços,
Muitos escritores utilizam em suas obras a linguagem entre outros, porém, os recursos são limitados e acabam
popular com o intuito de criar uma aproximação com a delimitando o texto. O terceiro problema é o trabalho do
realidade oral. Esse modo de fala surge como um importante autor para compor a linguagem do personagem, pois o estilo
recurso de expressividade linguística e, na maioria dos do autor pode interferir na linguagem dos personagens.
casos, eles são oriundos de vocabulários que se formam e se Candido elucida essa questão ao explicar:
modificam pela utilização dos diversos grupos de falantes.
Na literatura contemporânea, o regionalismo é um A nossa interpretação dos seres vivos é mais
fluida, variando de acordo com o tempo ou

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as condições da conduta. No romance, po- autor baiano e a obra se passa no sertão nordestino. Ele
demos variar relativamente a nossa inter- assinala ainda:
pretação da personagem; mas o escritor lhe
deu, desde logo, uma linha de coerência fi-
Logo no texto da orelha do livro surgem
xada para sempre, delimitando a curva da
elementos que, comumente, servem para
sua existência e a natureza do seu modo-de-
caracterizar uma obra como regionalista: a
-ser. Daí ser ela relativamente mais lógica,
história se passa “nas profundezas do sertão
mais fixa do que nós. (CANDIDO, 2007).
baiano”, envolve “filhas de humildes traba-
lhadores rurais descendentes de escravos”,
Ainda que o autor busque a mais alta verossimilhança as personagens crescem entre a “rotina do
e fidelidade com o mundo real para compor seus campo, as tradições religiosas afro-brasi-
personagens, há limites impostos pela ortografia e leiras - com suas velas, incensos e ladainhas
imemoriais - e a absorvente vida familiar”,
pontuação, como, por exemplo, a tentativa de reproduzir
numa “história de vida e morte, de combate
um diálogo entre pessoas (PRETI, 2003). Fica entendido
e redenção”.
então que a construção de personagens oscila entre uma
transposição fiel ou uma invenção totalmente imaginária. Albuquerque Jr. (2021) recorre ao crítico Antonio
Ou seja, nos diálogos, pode-se dizer que a reprodução dos Candido para explicar que a classificação de uma obra
dialetos sociais e dos níveis de fala aproxima-se do uso real regional está reservada à literatura que se produz em
na prosa de costumes, quando a linguagem é utilizada pelo regiões subalternas econômica, política e artisticamente.
autor a fim de transparecer uma determinada realidade Segundo ele, a crítica literária classifica uma obra como
(PRETI, 2003). regional, nacional ou universal, pautando-se em critérios
Na literatura, diversos autores empregam em suas geopolíticos, dessa maneira, considera as hierarquias de
obras dialetos sociais com o intuito de reproduzir com poder entre espaços, nações, regiões e continentes que
mais realidade as falas dos personagens e proporcionar a definem lugares centrais ou periféricos indicados no texto
associação entre real e fictício, tornando assim, a escrita literário. Albuquerque Jr (2021, n.p.) esclarece:
mais verdadeira para o leitor. Dessa maneira, é possível
delimitar um eixo entre a realidade e a ficção, mesmo que E eu completaria, nos espaços também poli-
de forma limitada, proporcionando a proximidade do leitor ticamente subalternos e vistos como subal-
com o texto. ternos do ponto de vista cultural e artístico.
Muitas vezes foram e são as próprias elites
O romance Torto Arado é considerado uma obra letradas, quando não os próprios autores,
regionalista, Albuquerque Jr (2021, n.p) justifica esse ponto oriundos desses espaços vistos como pe-
de vista argumentando que o romance é escrito por um riféricos (como o Norte, o Nordeste, o Rio

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Grande do Sul), que reivindicam e assumem cultural e regional.


esse lugar do regional, assumindo, assim, Para coleta, seleção e organização do corpus,
muitas vezes sem se darem conta, a própria
subalternidade e menoridade da literatura recorreu-se à primeira parte da obra narrada por Bibiana,
que fazem. e à segunda parte narrada por Belonísia. Ao todo foram
selecionados trinta e dois (32) vocábulos e expressões
Para explicar os recursos utilizados por Vieira Junior dessas duas partes e agrupados nos campos: (a) religioso; (b)
na composição de seu romance regionalista, recorre-se à geográfico; (c) fauna e flora.
entrevista da qual o autor participou no programa Roda Foram utilizados os dicionários Michaelis e Houaiss,
Viva (2020). Nessa ocasião, ele conta que, para escrever o versões on-line, para verificar se as palavras selecionadas
romance, recorreu à sua pesquisa etnográfica, uma vez são consideradas regionalismos linguísticos, uma vez que
que, para elaborá-la, coletou dados realizando diversas essa classificação é indicada nesses dicionários. Recorreu-
entrevistas com diferentes pessoas da região da Bahia. se também a outras referências a fim de complementar a
Nessas entrevistas, ele identificou uma certa melodia no análise dos dados.
falar e o uso de expressões regionais, portanto procurou A fim de organizar e analisar os dados, foram
incorporar à sua obra esses recursos com o objetivo de criar organizados quadros nos quais são apresentados expressões
proximidade com o modo de fala do povo daquela região e e vocábulos selecionados da obra, bem como indica-se
fazer com que o leitor identificasse essa proximidade. a página em que se encontram. Apresentam-se também
nesses quadros a síntese do verbete do dicionário ou
PARA ENTENDER MELHOR informações sobre os vocábulos e o número de ocorrência
dessas palavras na obra. Após os quadros, são apresentados
Para realizar este estudo, realizou-se (i) revisão de excertos do romance nos quais se destacam alguns
literatura a fim de apresentar pressupostos teóricos que vocábulos. Algumas palavras não são classificadas pelo
fundamentam essa pesquisa; (ii) leitura e releitura da obra dicionário Michaelis e Houaiss como regionalismo da Bahia,
Torto Arado para coleta e seleção de diálogos nos quais se mas podem ser utilizadas nessa região, por isso selecionou-
destacam o uso de regionalismo linguístico; (iii) organização se para o presente estudo.
e análise de dados que evidenciam o uso de expressões
regionais, no romance, e caracterizam a identidade regional ANÁLISE
e cultural. O objeto de estudo deste trabalho é, pois, o uso,
no romance, de regionalismos linguísticos que indicam a Para apresentar e analisar os dados, foram
relação entre linguagem e sociedade, bem como a identidade organizadas duas subseções, na primeira estão os dados

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selecionados da Parte 1 e na segunda da Parte 2 do romance. (1) Eram famílias que depositavam suas esperanças nos poderes
de Zeca Chapéu Grande, curador de Jarê, que vivia para
PARTE 1: BIBIANA restituir a saúde do corpo e do espírito aos que necessitavam
(VIEIRA JUNIOR, 2019. p.29).
Apresentam-se nos Quadros, 1, 2 e 3 palavras
selecionadas da parte 1 da obra que estão classificadas no Em (1) o Jarê é apresentado como uma religião
dicionário Michaelis e/ou Houaiss como regionalismo da para alento dos problemas do corpo e do espírito. O Jarê,
Bahia. muito mais do que uma dança, como explica o dicionário
Michaelis, proporciona as pessoas cuidados com a saúde.
Quadro 1 - Campo religioso (parte 1): regionalismo (BA) O termo curador, nesse excerto, ganha conotação de
Nº de
curandeiro, pois “Eram famílias que depositavam suas
Vocábulo e esperanças nos poderes de Zeca Chapéu Grande, curador
Verbete ocorrências Link
página
parte I de Jarê”. Conforme salienta Vieira Junior (2019), há na
obra elementos da identidade religiosa de matriz africana,
REG (BA), DANÇA,
REL Dança ritual https://
bem como o sentimento de pertencimento à cultura de
originária da África, michaelis.uol. comunidades da Chapada Diamantina (BA), onde se
Jarê comum em certos com.br/moderno- desenvolve o romance.
terreiros da Bahia. 19 portugues/
p. 27 busca/portugues-
Informações
brasileiro/
complementares
jar%C3%A9
var.: jarê.

Fonte: a autora, 2022.

O verbete do dicionário indica que jarê é um


regionalismo (BA) e apresenta a variação jaré. A palavra
“Jarê” tem uma grande incidência em toda a obra. Na
primeira parte são contabilizadas dezenove (19) ocorrências,
o que indica a relevância dessa religião na obra. A primeira
ocorrência está no seguinte excerto:

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Quadro 2 - Campo Fauna e Flora (parte 1): regionalismo (BA) Nos quadros 2 e 3, é possível identificar alguns dos
Vocábulo
Nº de vocábulos utilizados na narração feita por Bibiana que são
Verbete ocorrências Link
e página exemplos de regionalismos:
parte I

https:// (2) [...] Os ovos do chupim cresciam debaixo da beleza do


REG (BA), michaelis.uol. canto do sofrê e até de zabelê no chão. Mas nunca vi ovo de
Sofrê ZOOL V.
1
com.br/moderno- chupim no ninho de paturi. Por que será? É o que guardo
p. 40 corrupião, portugues/busca/ das conversas que tínhamos quando nos encontrávamos em
acepção 1. portugues-brasileiro/ nossa casa, quando muito, na casa da família de tio Servó,
Sofr%C3%AA%20/ no sequeiro do rio Santo Antônio. (VIEIRA JUNIOR, 2019.
p.40).
https://michaelis.uol.
Zabelê 1 REG (BA, com.br/moderno-
ES) V. jaó, 1 portugues/busca/ (3) Continuávamos a colher buriti e dendê para levar para a
p. 40 acepção 2. portugues-brasileiro/ feira da cidade às segundas-feiras. Minha mãe, as comadres,
zabel%C3%AA/ eu, Belonísia e Domingas catávamos os frutos nas várzeas
dos marimbus (VIEIRA JUNIOR, 2019. p.65).

Quadro 3 - Campo geográfico (parte 1): regionalismo (BA)


Em (2), Bibiana apresenta uma breve descrição da
Vocábulo
Nº de região e dos pássaros que ali habitam. Nesse excerto, o nome
Verbete ocorrências Link
e página
parte I
dos pássaros é descrito conforme a variante diatópica, isto é,
o léxico pertinente àquela região: “sofrê” e “zabelê”, espécies
de aves comuns no espaço onde a história acontece; essas
REG (BA) Área https://houaiss.uol.
coberta de lodo à com.br/corporativo/
palavras são classificadas pelo dicionário Michaelis on-line
Marimbus como regionalismo baiano. O pássaro “sofrê”, da familía,
margem de rios, em 8 apps/uol_www/
p. 38
que há vegetação v6-0/html/index. Icterus jamacaii, é também conhecido em outras regiões do
palustre. php#51
Brasil como “sofreu”, indicando assim a variação linguística
regional. O verbete indica ao leitor a palavra “corrupião”,
https://michaelis.
REG (BA) Trecho que, de acordo com o dicionário, é uma forma de designar
uol.com.br/
Sequeiro de rio pouco
p. 74 profundo e cheio de
4 modernoportugues/ o “sofrê” ou “sofreu”.
busca/portugues-
pedras. O pássaro Crypturellus zabele, denominado por
brasileiro/Sequeiro/
Bibiana como Zabelê, é comum no nordeste, centro-oeste
Fonte: a autora, 2022.
e Sul do país. O dicionário Michaelis acrescenta que esse

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pássaro também é denominado de “Zambelê”, ocorrendo designa uma região alagada pelas águas.
o acréscimo do grafema /m/ e a da vogal nasal. O verbete Apresentam-se nos Quadros, 4 e 5 palavras
desse dicionário também indica ao leitor que busque a selecionadas da parte 1 da obra. Embora esses vocábulos
palavra “jaó”, que é variação de jaó-do-sul, zabelê, zambelê. não tenham sido classificados pelo dicionário Michaelis e
Em (2) Bibiana faz referência também aos pássaros por outras fontes como regionalismo da Bahia, é possível
“chupim” e “paturi”, que, embora não sejam classificados que sejam utilizadas frequentemente nessa região.
pelo dicionário Michaelis como regionalismo da Bahia,
podem ser palavras utilizadas na região. Segundo esse Quadro 4 - Campo Fauna e Flora (parte 1):
dicionário, o chupim pertence à família Molothrus bonariensis vocábulos presentes na obra
e apresenta a variante “chopim” e a origem etimológica Nº de
Vocábulo e
do tupi xopí. De acordo com o Michaelis, o pássaro paturi página
Verbete ocorrências Link
parte I
(Netta erythrophthalma) cuja etmologia é potirý habita tanto
a região da Chapada Diamantina e outras regiões do Brasil, https://michaelis.
recebe apenas a cor da pelagem como acréscimo do nome uol.com.br/
MG farinha de milho
moderno-
paturi-preta. Beiju p. 75
grossa e torrada, com
5 portugues/
Em (2) aparece também “sequeiro”, que é um flocos, que se come
busca/
ger. com leite
regionalismo. Além da descrição apresentada no quadro portugues-
3, essa palavra ganha outras conotações, como: lugar para brasileiro/Beiju/
se secar roupa; lugar onde se desidratam frutas; lugar não BOT Denominação https://michaelis.
regado por águas. O autor descreve as memórias de Bibiana comum às várias uol.com.br/
Jatobá árvores do gênero moderno-
utilizando a palavra “sequeiro” aproximando o leitor de Hymenæa, da família portugues/
aspectos geográficos “no sequeiro do rio Santo Antônio”que p.75 6
das leguminosas, de busca/
assinalam a identidade e a cultura, reafirmando a frutos comestíveis, de portugues-
valorização da região. que se extrai o copal brasileiro/
(resina). jatob%C3%A1/
De acordo com o Sistema Estadual de Informações
Ambientais e Recursos Hídricos (SEI, 2000), “Marimbus” é
a formação dos rios Utinga, São José, Roncador e Garapa,
que confluem para o rio Santo Antônio na área do Parque
Nacional da Chapada Diamantina (PNCD). Segundo o
dicionário Houaiss, “Marimbus” é um regionalismo que

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BOT Denominação https://michaelis. Em (3) o termo “buriti” tem acepção de fruto de uma
comum às várias uol.com.br/ palmeira. Segundo o dicionário Michaelis, a palavra tem sua
árvores do gênero moderno- origem etimológica no tupi3 (mbyrytý) e nomeia os frutos das
Juanco Hymenæa, da família portugues/
das leguminosas, de
6
busca/
palmeiras dos gêneros Astrocaryum, Mauritia, Mauritiella
p. 82
frutos comestíveis, de portugues- e Trithrinax. Esse vocábulo pode ser utilizado como
que se extrai o copal brasileiro/ meriti, miriti, moriti, muriti, muritim, muruti e o coletivo
(resina). jatob%C3%A1/ é buritizal, muritinzal, muritizal. Embora o dicionário não
Árvore de copa classifique “buriti” como regionalismo da Bahia, é possível
frondosa (Phytolacca que a palavra seja utilizada frequentemente na região, uma
dioica), da família https://
vez que há 15 ocorrências na parte 1 da obra.
das fitolacáceas, michaelis.
nativa da região dos uol.com.br/
Pampas no Sul do moderno- Quadro 5 – Campo religioso (parte 1):
Umbuzeiro
p. 92
Brasil, da Argentina e 3 portugues/ vocábulos empregados na obra
do Uruguai, de caule busca/ Nº de
esponjoso, grandes portugues- Vocábulo
Verbete ocorrências Link
folhas elípticas e brasileiro/ e página
parte I
luzidias, geralmente umbuzeiro/ O quarto de santo,
utilizadas na também chamado em
medicina tradicional. Quarto *https://ileorixa.
nagô de peji é o local
dos santos 5 com.br/wp/o-quar-
Denominação comum onde ficam guardados
p.21 to-de-santo/
às palmeiras dos os assentamentos dos
gêneros Astrocaryum, Orixás do axé.
Mauritia, Mauritiella https://michaelis. Qualquer entidade ou
uol.com.br/ https://michaelis.
e Trithrinax, da espírito de ancestrais
moderno- uol.com.br/moder-
família das arecáceas, Encanta- indígenas e africanas
Buriti portugues/ 12 noportugues/busca/
de folhas em forma dos p. 80 que se cultua nos ter-
15 busca/ portugues-brasilei-
p. 24 de leque, usadas em reiros de candomblés
portugues- ro/encantado/
coberturas de casas de caboclo.
simples e para a brasileiro/buriti/
Fonte: a autora, 2022.
extração de óleo e
fibras; buritizeiro,
muritizeiro, No quadro 5, é possível identificar vocábulos utiliza-
murutizeiro.
Fonte: a autora, 2022. 3
Identidade das nações indígenas do Brasil que perpassa a língua dos muitos
regionalismos e, nesse caso, sem fronteiras geográficas.

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dos na narração feita por Bibiana que indicam serem típi- Quadro 6 – Campo religioso (parte 1):
cos da região: nomes de entidades religiosas presentes na obra
Nº de
Vocábulo
(4) Havia beleza nos cantos que antecediam a aparição da Verbete ocorrências Link
e página
encantada, e muito mais encanto quando meu pai deixava parte I
o quarto dos santos para dançar ao som dos atabaques, no REL Orixá feminino
meio da sala. (VIEIRA JUNIOR, 2019. p.60). que controla os raios,
https://michaelis.uol.
os ventos e as tempes-
com.br/moderno-
Iansã tades, caracterizado
Em (4), a palavra “encantada” e a expressão “quarto 2 -portugues/busca/
p. 58 pelas cores vermelha
portugues-brasilei-
dos santos” são próprias do campo religioso. No dicioná- e branca, tida como
ro/Ians%C3%A3/
mulher de Xangô.
rio, “encantado” designa entidades ou espíritos de ances-
Etimologia: ior iya-san
trais indígenas cultuados em terreiros de caboclos. Dado
Grupo indígena que
o seu significado, é possível fazer uma alusão à prática do habitava a costa
Jarê, visto que essa religião é formada também por entida- brasileira, desde o
des de origem indígena. Além do mais, esse termo aparece norte de São Paulo até https://michaelis.
Cabo Frio, o vale do uol.com.br/moder-
12 vezes na primeira parte da obra, o que indica a relação Tupinam- Paraíba RJ (onde eram noportugues/busca/
1
entre linguagem e identidade cultural em Torto Arado. bá p. 61 chamados tamoios), portuguesbrasilei-
A expressão “quarto dos santos” aparece cinco vezes do recôncavo baiano ro/Tupinamb%-
até a foz do rio São C3%A1%20/
na obra e faz menção ao lugar onde ficavam os santos, o Francisco, o Mara-
altar e os símbolos dos orixás; é o lugar mais sagrado das nhão, o Pará, e a ilha
casas religiosas/terreiros. Como os dicionários consultados Tupinambarana.
não apresentam a definição dessa expressão, recorreu-se ao https://michaelis.uol.
site Fortaleza ilê orixá ogum adioko e oya tofã (ILEORIXA, Ente fantástico, es- com.br/moderno-
pécie de sereia, meio -portugues/busca/
2014). Nesse site, a expressão “Quarto dos santos” é designa mulher, meio peixe, portugues-brasi-
“peji”. O termo “peji”, no dicionário Michaelis (2022, n.p), Mãe que habita rios e lago- leiro/m%C3%A3e-
é denominado como altar dos orixás no candomblé e em D’Água as; aiuara-aiuara, iara,
1
-d%E2%80%99%-
p. 48 uiara.* C3%A1gua/
outras seitas relacionadas. Então, há indícios de que essa ex-
Caboclos da segunda
pressão seja comumente usada na região pelos praticantes linhagem que perten- http://www.canti-
de Jarê. cem à Aldeia d’Água. gasdojare.com.br/
São apresentadas no Quadro a seguir palavras utili- sobre-as-cantigas.
html
zadas na parte 1 da obra que designam entidades religiosas.
Fonte: a autora, 2022.

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(5) Tio Servó também assumia, por um breve tempo, um dos dade cultural e religiosa de comunidades da Chapada Dia-
atabaques, sempre no começo da festa, ou quando um en- mantina, uma vez que são utilizadas no Jarê.
cantado de sua estima, como Tupinambá, vinha girar na sala
entre os presentes. Muitas vezes, Sutério vinha participar da
PARTE DOIS: BELONÍSIA
audiência e também ensaiava tocar o atabaque nos interva-
los entre um giro e outro (VIEIRA JUNIOR, 2019. p.61).
São apresentadas nessa seção palavras e expressões
selecionadas da parte 2 da obra. Como foram escolhidos,
Conforme elucida Banaggia (2017), a presença in-
das duas partes do livro, alguns vocábulos iguais, optou-se
dígena no surgimento do Jarê tem a ver com as entidades
por excluir dos quadros a síntese dos verbetes e o link de
espirituais da população indígena que foi deixada ou expul-
acesso. Apresentam-se no Quadro 7 a palavra “jaré”, um re-
sa de seu território. De início, esses cultos eram compostos
gionalismo (BA) utilizado na parte 2 da obra.
apenas pelos nagôs e posteriormente o Jarê chegou à for-
ma de hoje, no qual, as entidades indígenas já fazem parte
Quadro 7 – Campo religioso (parte 2): regionalismo (BA)
do culto, ganharam seu espaço dentro das casas de culto e
Vocábulo e página Nº de ocorrências parte II
passaram a predominar cantigas dessas entidades que são
Jarê p. 86 21
comumente chamadas de “caboclos”, mesmo eles apresen-
Fonte: a autora, 2022
tando uma certa distinção (aldeias, povos ou forças). Nesse
contexto, há a aldeia d’água, formada pelos espíritos dos
No quadro 7, é possível identificar o termo classifica-
domínios aquáticos, que são vistos como calmos e dóceis.
do como regionalismo na fala de Belonisia:
O termo “mãe-d’água” é a tradução portuguesa do que os
indígenas conheciam como Iara ou Uiara (do tupi y-îara, (6) Em dezembro, caiu um aguaceiro com trovoada, bem no dia da
“senhora das águas” ou “mãe-d’água”), segundo a mitologia festa de Santa Bárbara. Dona Tonha trouxe as vestes guardadas
indígena. e engomadas do ano anterior para o jarê, e meu pai, quanto mais
velho ficava, mais envergonhado parecia, por ter que se vestir com
Como o dicionário apresenta as variações: aiuara- saia e adè (VIEIRA JUNIOR, 2019. p.100).
-aiuara, iara, uiara, é possível que a expressão Mãe D’água
seja utilizada apenas no Jarê. Já a designação de Tupinam- A palavra “jarê”, que designa a religião de matriz
bá, de acordo com o dicionário Michaelis, faz referência a africana praticada na Chapada Diamantina, teve 21 ocor-
um grupo indígena, porém o termo Tupinambá é também rências na parte 2, o que indica a identidade religiosa dos
uma entidade, conhecida como Índio (BANAGGIA, 2017). personagens, bem como assinala uma prática cultural dessa
Embora o dicionário não classifique as palavras do região da Bahia. A palavra “adè” está registrada no dicio-
Quadro 6 como regionalismo, elas caracterizam a identi- nário Michaelis como “adê”, sendo um termo religioso que

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designa um tipo de ornamento para a cabeça usado por al- REL [com inicial mai-
guns orixás (Iansã, Iemanjá, Nariã, Oxum). úscula] Orixá ioruba
da caça e dos caçado-
Estão presentes nos Quadros 8 e 9 palavras selecio-
res, cujo instrumento https://michaelis.uol.
nadas da parte 2 da obra que, embora não tenham sido Oxóssi simbólico são o arco com.br/moderno-
classificadas pelo dicionário Michaelis como regionalismo p. 177 e a flecha unidos, 3 -portugues/busca/
da Bahia, podem ser consideradas vocábulos típicos dessa feitos de bronze, portugues-brasilei-
metal branco ou ferro. ro/Ox%C3%B3ssi/
região e de outras regiões brasileiras. Habita as matas, e sua
dança representa uma
Quadro 8 – Campo religioso (parte 2): palavra empregada na obra caçada.
Vocábulo e página Nº de ocorrências parte II orixá feminino cuja
https://michaelis.uol.
Nanã epifania, no can-
Encantados p. 82 22 com.br/moderno-
p. 177 domblé, são as águas
1 -portugues/busca/
Fonte: a autora, 2022. profundas e lodosas, e
portugues-brasilei-
na umbanda, a chuva e
ro/Nan%C3%A3/
a lama inicial
No quadro 8, destacam-se 22 ocorrências do termo
“encantados”, assinalando a proeminência da temática re- https://www.otem-
po.com.br/cidades/
ligiosa na obra. Cosme e Damião eram
dia-de-sao-cosme-
dois irmãos gêmeos,
Nos Quadros 9 e 10, há vocábulos dos campos re- -e-damiao-conhe-
considerados curan-
ligioso, fauna e flora empregados por Belonísia na segun- Cosme e
deiros - médicos na
ca-a-historia-dos-
Damião -santos-e-a-ora-
da parte do romance. Essas palavras indicam como e em p. 177
comunidade onde 1
cao-1.2739800
que condições os personagens vivem, bem como destacam viviam.
https://micha-
Dupla de policiais que
elementos que caracterizam aspectos culturais da Chapada fazem ronda juntos.
elis.uol.com.br/
palavra/8mR5/
Diamantina.
cosme%20e%20da-
mi%C3%A3o/
Quadro 9 – Campo religioso (parte2):
Tupinam- Citado anterior-
nomes de entidades religiosas presentes na obra bá p. 177
Citado anteriormente 1
mente
Nº de
Vocábulo Caboclos da Força http://www.canti-
Verbete ocorrências Link Sete-Serra
e página da Mata o Sultão das gasdojare.com.br/
parte I p. 177 2
Matas, considerado o sobre-as-cantigas.
Iansã citado aanterior- líder da linhagem * html
Citado anteriormente 1
p. 177 mente

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Caboclos da Força http://www.canti- dos espíritos das matas, das águas, das serras e do ar. Meu pai
Mineiro curava loucos e bêbados, colocaria meu pedaço de língua em
da Mata o Sultão das gasdojare.com.br/
p. 177 4 minha boca.” (VIEIRA JUNIOR, 2019. p. 120)
Matas, considerado o sobre-as-cantigas.
líder da linhagem html
(9) “O motivo era a encantada de dona Miúda, a tal Santa
Marinhei- http://www.canti-
Caboclos da segunda Rita Pescadeira, a mesma que de vez em quando surgia no
ro gasdojare.com.br/
linhagem que perten- 1 jarê de meu pai.” (VIEIRA JUNIOR, 2019. p. 132)
p. 177 sobre-as-cantigas.
cem à Aldeia d’Água
html

Não foi encontrada Não foram encontrados, no dicionário Michaelis,


http://www.canti-
Nadador uma definição, mas todos os termos presentes no Quadro 9, por essa razão, re-
gasdojare.com.br/
p. 177 a menção à entidade 1 correu-se ao site Memórias das Cantigas do Jarê e ao artigo
cantiga-aldeia-da-
aparece em uma canti-
ga do Jarê.
gua.html “Conexões afro-indígenas no jarê da Chapada Diamanti-
na”, de Gabriel Banaggia.
Mãe
Citado anterior- No excerto (6), os nomes “Sete-Serra”, “Iansã”, “Mi-
D’Água Citado anteriormente 2
mente
p. 177 neiro”, “Marinheiro”, “Nadador”, “Cosme e Damião”, “Mãe
Caboclos da Força http://www.canti- D’Água”, “Tupinambá”, “Tomba-Morro”, “Oxóssi”, “Pombo
Tomba-
-Morro
da Mata o Sultão das
1
gasdojare.com.br/ Roxo” e “Nanã” designam entidades populares do Jarê que
Matas, considerado o sobre-as-cantigas.
p. 177
líder da linhagem html
aparecem durante as festividades. Como confirma Senna
(1998), a origem dessa prática é o encontro de entidades
Fonte: a autora, 2022.
africanas com as entidades originárias da região da Chapa-
da Diamantina, os espíritos de índigenas.
A religião é uma questão relevante em Torto Arado
Banaggia (2017) explica que cada um desses nomes,
e a incidência de termos religiosos, em especial, na segunda
nesse culto religioso, tem uma cantiga própria que remete
parte, é elevada, como nas seguintes passagens:
à entidade. Essas cantigas costumam ser cantadas em or-
(7) “Que lhe acompanhem Sete-Serra, Iansã, Mineiro, Mari- dem, respeitando a hierarquia, uma linhagem de caboclos
nheiro, Nadador, Cosme e Damião, Mãe D’Água, Tupinam- a serem chamados durante a festividade. O chamamen-
bá, Tomba-Morro, Oxóssi, Pombo Roxo, Nanã.” (VIEIRA to costuma começar por Ogum, seguido dos caboclos da
JUNIOR, 2019. p. 177) segunda linhagem que pertencem à Aldeia d’Água, como
(8) “O curador Zeca Chapéu Grande tudo podia. Se trans-
Marinheiro, Sereia, Iemanjá e Mãe d’Água. Na sequência,
formava em muitos encantados nas noites de jarê. Mudava a chama-se por Iansã (ou Santa Bárbara) e Xangô e essas en-
voz, cantava, rodopiava ágil pela sala, investido dos poderes tidades são decorridas dos caboclos da terceira linhagem, a

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Força da Mata, considerados os mais bárbaros, por serem lo, pois é como se o espírito montasse na pessoa.
caboclos de índigenas guerreiros, os guardiões do terreiro. Como explica Coutinho (1964. p 202), há a “substân-
Os caboclos da Força da Mata e o Sultão das Matas, são cia real” das singularidades de uma determinada região em
considerados os líderes da linhagem: Eru, Tomba Morro, Torto Arado. Quando Itamar traz as entidades do Jarê para
Índio, Oxóssi, Sete Serra, Turco Leão, Jericó e Mineiro. O a trama, ele consegue aproximar o leitor de peculiaridades
autor esclarece também que há a linhagem do “povo velho” de comunidades da Chapada Diamantina e assinalar carac-
também chamados de nagôs: Nagô, Nanã, Oxalá, Balauê. terísticas regionais da obra com o uso de vocábulos típicos
Por último, é a linhagem das crianças que são representadas desse culto religioso.
principalmente por Cosme e Damião, que são santos cató- A religião é uma das grandes protagonistas da obra.
licos, mas vistos no Jarê, por consequência do sincretismo . A riqueza de detalhes da obra possibilita ao leitor adentrar
De acordo com o dicionário Michaelis, Cosme e Da- no universo cultural e religioso de comunidades da Chapa-
mião recebe o significado de “Dupla de policiais que fazem da Diamantina e entender o povo que tem o Jarê como re-
ronda juntos”; já na denominação religiosa, são santos ir- gente de suas vidas, pois é ao redor desse culto religioso que
mãos gêmeos. Há também menção ao “Nadador” que, em- a trama e os personagens se desenvolvem, com sua fé e com
bora não tenha sido encontrado um significado claro para costumes típicos daquele pedaço de terra.
o seu nome, é provável que seja um regionalismo, pois foi
mencionado no livro e identificado na canção de Jarê que Quadro 10 – Campo Fauna e Flora (parte 2):
está no site indicado no Quadro 9. vocábulos empregadas na obra
Em (8) há menção a Santa Rita Pescadeira, uma Nº de
Vocábulo e
Verbete ocorrências Link
das personagens de Torto Arado e a terceira narradora da página
parte I
obra é também uma entidade real do Jarê. Santa Rita Pes- BOT Erva aquática
cadeira aparece em uma caatinga no Jarê, essa que é encon- (Cyperus papyrus), em
trada também na seguinte passagem da obra: touceiras, da família
das ciperáceas, de cau- https://michaelis.
Papiro les triangulares, longos uol.com.br/moder-
(10) (...) ouvimos sua voz fraca, quase inaudível, entoar uma
p. 91 e flexíveis, terminados 1 no-portugues/bus-
cantiga, ‘Santa Rita Pescadeira, cadê meu anzol? Cadê meu em umbelas, com fo- ca/portugues-bra-
anzol? Que fui pescar no mar’ (VIEIRA, 2019. p. 80). lhas somente na base, sileiro/Papiro%20/
própria das margens
Viera esclarece, em entrevista publicada por Yvette alagadiças do rio Nilo
(África central).
Vieira, que no Jarê e em outras crenças brasileiras as pessoas
que incorporam esse tipo de espírito são chamadas de cava-

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Arbusto ou arvoreta https://michaelis.


Cabelos-de- (Erythroxylun cam- uol.com.br/mo- Umbuzeiro Citado anterior-
Citado anteriormente 3
-nego pestre), da família das derno-portugues/ p. 92 mente
1
p. 91 eritroxiláceas, comum busca/portugues-
em várias regiões -brasileiro/cabelo- ZOOL Serpente não
brasileiras. -de-negro/ peçonhenta da família
dos colubrídeos (Spilo-
BOT Planta herbácea https://michaelis.
tes pullatus), encon-
(Hypotytrum pun- uol.com.br/mo-
Capins-na- trada da Costa Rica ao
gens), da família das derno-portugues/ https://michaelis.
valha 1 Paraguai e Argentina,
ciperáceas, nativa das busca/portugues- Caninana uol.com.br/moder-
de cor pardo-ama-
Guianas e do Brasil.. -brasileiro/capim- p. 111 1 no-portugues/bus-
relada com desenhos
-navalha/ ca/portugues-bra-
azuis, que chega
Denominação comum sileiro/caninana/
a alcançar 3 m de
a diversas palmeiras, comprimento; araboia,
em geral cespitosas, do cainana, cobra-tigre,
gênero Astrocaryum iacaninã, papa-ovo,
https://michaelis.
e Bactris, nativas papa-pinto.
uol.com.br/moder-
da América do Sul,
Tucum p. 91 2 no-portugues/bus-
especialmente do Junco Citado anterior-
ca/portugues-bra- Citado anteriormente 3
Brasil, do Paraguai e p. 82 mente
sileiro/Tucum/
da Bolívia, com folhas
que fornecem fibras Mamífero artiodác-
e frutos comestíveis; tilo e não ruminante
tucunzeiro. (Tayassu tajacu), da fa- https://michaelis.
Caititu mília dos taiaçuídeos, uol.com.br/moder-
Denominação comum
https://michaelis. p. 125 encontrado nas matas 2 no-portugues/bus-
a várias plantas do gê-
uol.com.br/mo- das Américas, de pela- ca/portugues-bra-
Mandacaru nero Cereus, da famí-
derno-portugues/ gem cinza-escura, um sileiro/Caititu/
p. 91 lia das cactáceas, que 3
busca/portugues- colar de pelos brancos
ocorrem geralmente
-brasileiro/Manda- e patas pretas
em regiões quentes e
caru/
secas. Beiju Citado anterior-
Citado anteriormentre 4
BOT Árvore de grande https://michaelis. p. 75 mentre
porte (Genipa ameri- uol.com.br/mo-
Jenipapeiro
cana), da família das derno-portugues/ Jatobá Citado anterior-
p. 91 1 Citado anteriormentre 7
rubiáceas, nativa das busca/portugues- p.103 mentre
regiões tropicais das -brasileiro/Jenipa-
Américas. peiro/ Fonte: a autora, 2022.

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No excerto (11), há dois termos que estão presentes caracterizam experiências cotidianas de uso da linguagem
no Quadro 10. e que configuram o modo de fala de sujeitos comuns que
vivem em comunidades da Chapada Diamantina.
(11) Acampou com os meninos perto do pé de jatobá. Colheu
frutos caídos. Colheu a semente de jatobá para fazer beiju. PARA ENCERRAR...
O beiju que matou a fome de seus ancestrais e mataria a
fome de sua descendência (VIEIRA, 2019. p. 168).
O presente artigo teve como objetivo apresentar o
“Jatobá” é uma árvore de frutos comestíveis e no uso de regionalismos que caracterizam a identidade cul-
dicionário Michaelis não consta como um termo regional tural na obra Torto Arado. Para tanto, realizaram-se uma
baiano. Entretanto, há variações dessa mesma palavra, tais revisão de literatura, leitura e releitura do romance e coleta
como: jataí, jataicica, jatibá, jatubá, jetaí, jetaicica, jitaí, ju- e seleção de vocábulos da obra. A análise se deu a partir da
taí, jutaicica. E, ao pesquisar o termo jutaí, ele se mostra, investigação de vocábulos selecionados das partes 1 e 2 da
no mesmo dicionário, como um termo regional baiano. Ou obra e organizados em quadros. Nesse processo, houve a
seja, jutaí é uma variação de jatobá. interpretação dos dados a partir de excertos retirados da
“A palavra beiju” tem sua origem no tupi mbeiú e há obra. Os trechos escolhidos permitiram analisar vocábulos
variação desse termo como biju. O dicionário Michaelis in- que caracterizam regionalismos, interpretação e contextu-
dica que “beiju é um regionalismo mineiro. Mas na variação alização da obra.
mineira, esse beiju não tem semente de jatobá em seu pre- Assim, é possível constatar que os regionalismos pre-
paro. Beiju de jatobá é uma comida tipicamente indígena sentes na obra caracterizam a identidade e, por conseguin-
(SITE SOBREMESAH) e essas variações presentes indicam te, a construção dos personagens no romance. Dito isso,
que essa palavra possa ser utilizada como um termo regio- Torto Arado, em especial, consegue fazer uma aproximação
nal baiano, pois o beiju de minas, por exemplo, não é o mes- do mundo real com o mundo literário, destacando o perfil
mo da Bahia. de personalidades do sertão nordestino por meio de perso-
Os quadros 1, 2, 3 e 7 apresentam vocábulos conside- nagens literários. Torna-se bastante significativa a relação
rados, por dicionários pesquisados, como regionalismos. Os entre a linguagem construída e os fatores sociais que se re-
vocábulos apresentados nos quadros 4, 5, 6, 8, 9 e 10, embo- lacionam a um contexto real do Brasil.
ra não tenham sido classificados, por dicionários como re- A ambientação do espaço narrativo, desenvolvida
gionalismos, podem ser palavras utilizadas frequentemente por meio dos campos semânticos selecionados no corpus
na Bahia, uma vez que o autor, ao elaborar a obra, recorreu (religioso, geográfico, fauna e flora), contribui para expli-
à pesquisa etnográfica que havia realizado. citar a identidade cultural. A partir do espaço narrativo, o
O autor de Torto Arado utiliza recursos lexicais que personagem apresenta suas motivações, ações e cenários

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Pesquisa em Letras: práticas discursivas e sociolinguísticas

dentro da história. REFERÊNCIAS


Ao analisar os dados, verificou-se a necessidade de
dar continuidade ao estudo realizado, uma vez que deter-
ARAGÃO, Maria do Socorro Silva. Do baianês ao piauiês: a onda de
minar se uma palavra é de fato um regionalismo da Bahia
dicionários regionais nordestinos. Revista do GELNE Vol 2,Nº 1,
requer um trabalho detalhado de pesquisa. Esse trabalho
2000, p. 53-59.
contribui e estimula a realização de novos estudos que esta-
beleçam a interface entre Sociolinguística e literatura. Ou BANAGGIA GABRIEL. Conexões afroindígenas no jarê da Chapa-
seja, analisar o modo de fala de personagens que vivem em da Diamantina. Revista de @ntropologia da UFSCar, 9 (2), jul./dez.
regiões desfavorecidas e protagonizam minorias que não 2017.
costumam ter voz.
BARBOSA,M.A. O léxico e a produção da cultura: elementos semânti-
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Contexto, 2015. nossas raízes”, diz autor de “Torto arado”. Disponível
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DIÁRIO DO NORDESTE. Torto Arado é literatura regionalista?
-pensar-no-brasil-profundo-porque-pensamos-em-nossas-raizes-di-
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