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Florianópolis – SC
2006
2
A RETÓRICA DE TRANSPOSIÇÃO
DA FÁBULA PARA A
CULTURA BRASILEIRA
E A SUA POÉTICA EM LIVROS
PARA CRIANÇAS:
INTENCIONALIDADES
E ESTRATÉGIAS
Millôr Fernandes
3
4
AGRADECIMENTOS
RESUMO
ABSTRACT
This thesis undertakes a two part discussion. The first entails theoretical and
textual bibliographic research on the production of fables that investigates their
profile and presence in Western culture; and textual and interpretive lectures that
seek to reveal the narratives and discursive strategies of this genre. The second
discussion outlines the research and scholarship on fables in Brazilian literature,
focusing in particular on intentionality in production, textual strategy and the
anatomy of moral maxims.
Besides this, the use of fables in children’s literature as expressed in
recreational and educational texts in discussed. In order to achieve the objectives, as
seen in the title of the project, some methodological procedures for research and
scholarship are developed that are necessary for the present work.
In terms of the discussions, the widest proposal, as indicated in the title, is that
which consigns possible rhetorical and poetic procedures, with an emphasis on the
first, as seen in the transposition of Aesop’s fables to Brazilian culture. Such a plan
commits itself to the rhetoric of transposition of the European cânon. In order to fulfill
the strategic procedures of this work, it establishes a system of categories capable of
disciplining the research material and textual scholarship: translation, adaptation,
critical citation and parodic deconstruction.
The work concludes with some reflections, based on one hand in the
confrontation of theory with the literature of fables transposed onto Brazilian culture,
and on the other hand centered on considerations in respect on the type of fable.
7
SUMÁRIO
5. BIBLIOGRAFIA..................................................................................................240
5.1. Do corpus.......................................................................................................... 240
5.2. Do tema..............................................................................................................245
5.3. Geral................................................................................................................. 253
6. APÊNDICE.......................................................................................................... 262
8
1
A opção por exórdio para titular esta unidade não se compromete com a capitatio benevolentiae, mas
envolve-se com a “empresa de sedução” na busca de cumplicidade com o leitor.
2
Preliminarmente, cabe ressaltar que, apesar das várias significações, a palavra fábula será aqui utilizada para
designar narrativa alegórica de caráter exemplar, com estrutura breve, quase sempre protagonizada por
animais em situação de enfrentamento e sintetizada por uma sentença moral, que antecede ou sucede à
narrativa. Tal recorte afasta outras significações do vocábulo, entre elas, o sentido aristotélico como um
conjunto de acontecimentos ligados entre si pela narrativa.
9
3
A defesa pública da Dissertação de Mestrado realizou-se em 6 de setembro de 2001, na Universidade
Federal de Santa Catarina. A banca foi composta pelos professores doutores Eliana Yunes (PUC-RJ), Luís
Felipe Bellintani Ribeiro (UFSC), Tânia Regina de Oliveira Ramos (UFSC); presidida pela orientadora Odília
Carreirão Ortiga (UFSC).
4
As relações entre poética e retórica possuem uma longa história que não cabe ser aprofundada neste
trabalho. Na cultura grega, graças à tradição aristotélica, constata-se a independência entre poética e retórica.
A última afigura-se como reflexão acerca dos modos de persuadir, enquanto que a poética, de caráter mais
generalizado, dizia respeito aos modos de imitação da poietiké. Entretanto, na antiguidade latina o fato
poético é englobado pela retórica e tal tradição parece dominar até o século XVIII, quando a poética torna-se
uma subdivisão da estética filosófica. Com os estudos formalistas, no início do século XX, registra-se o
advento da poética como disciplina autônoma alimentada por diferentes correntes estéticas. Por outro lado, a
retórica, pelo grupo de Liège, renova-se no interesse por figuras de retórica, versificação e estruturas
narrativas. Os organizadores da obra Retórica geral propõem “encarar a retórica não mais como uma arma
dialética, mas como o instrumento da poética” e admitem “não ser um texto verdadeiramente ‘poético’ senão
na medida em que a sua ‘retórica’ é eficaz” (DUBOIS, J. et alii. Retórica geral. Trad. Carlos Felipe Moisés et
alii. São Paulo: Cultrix, 1984, p. 21 e 43. Vide também ARISTÓTELES. Poética. Trad. Eudoro de Souza.
Porto Alegre: Globo, 1966; ARISTÓTELES. Arte retórica e arte poética. Trad. Antônio P. de Carvalho. 14.
ed. Rio de Janeiro: Edições de Ouro, s/d; DUCROT, Oswald; TODOROV, Tzvetan. Dicionário das ciências
da linguagem. 3. ed. São Paulo: Cultrix, 1976; GREIMAS, A.J.; COURTÉS, J. Dicionário de semiótica.
Trad. Alceu Dias Lima et alii. São Paulo: Cultrix, 1979).
10
5
No capítulo que trata da vocação da fábula no processo educativo brasileiro há uma proposta de distinção
entre leitura “formativa” e “funcional”.
6
Os argumentos para o emprego da expressão “fábula esópica” amparam-se em Quintiliano, em Instituições
oratórias, quando esclarece “posto que não tenham sua origem de Esopo, (pois parece que o seu primeiro
autor fora Hesíodo), contudo são chamadas Esópicas, e costumam atrair os ânimos, principalmente da gente
de campo, e ignorante, que ouve com mais simplicidade o que é fingido, e engodados do deleite, dão fácil
assenso às coisas, em que sentem prazer. Menênio Agripa, segundo se conta, congraçou a Plebe com os
Senadores por meio da célebre fábula da rebelião dos membros do corpo humano contra o ventre: e Horácio,
nem ainda na Poesia, teve por baixo o uso deste gênero de Fábula” (QUINTILIANO, M. Fábio. Instituições
oratórias. Trad. Jerônimo S. Barbosa. São Paulo: Cultura, 1944, tomo I, p. 260).
11
7
A palavra estratégia é usada neste trabalho no sentido de ser um guia e uma perspectiva de ação.
8
A proposta de organizar, sob forma de categorias, a transposição dos cânones da fábula de uma cultura para
outra surgiu como resultado de conversa com a orientadora por ocasião da elaboração do projeto desta tese.
9
A expressão gênero será utilizada no sentido particular da espécie narrativa denominada fábula.
10
Jolles aborda duas perspectivas da adivinha. A moderna, forma relativa, coloca “à prova a perspicácia do
adivinhador”. A antiga, forma simples, funde o interrogador, um portador de sabedoria ou um grupo
aglutinado pelo saber, ao adivinhador que aspira ter acesso à sabedoria através da solução do cifrado. A
última perspectiva aproxima adivinha e mito: “se o mito é a forma que reproduz a resposta, a adivinha é a
forma que mostra a pergunta” (JOLLES, André. Formas simples. Trad. Álvaro Cabral. São Paulo: Cultrix,
s/d, p. 111 e 116).
12
11
Ibidem, p. 127.
12
Barthes acrescenta, ainda, que “a narrativa pode ser sustentada pela linguagem articulada, oral ou escrita,
pela imagem, fixa ou móvel, pelo gesto ou pela mistura ordenada de todas estas substâncias; está presente no
mito, na lenda, na fábula, no conto, na novela, na epopéia, na história, na tragédia, no drama, na pantomima,
na pintura (recorde-se a Santa Úrsula de Carpaccio), no vitral, no cinema, nas histórias em quadrinhos, no fait
divers, na conversação. Além disto, sob estas formas quase infinitas, a narrativa está presente em todos os
tempos, em todos os lugares, em todas as sociedades; a narrativa começa com a própria história da
humanidade; não há, em parte alguma, povo algum sem narrativa” (BARTHES, Roland. “Introdução à análise
estrutural narrativa”. In: BARTHES, Roland et alii. Análise estrutural da narrativa. Trad. Maria A. Pinto. Rio
de Janeiro: Vozes, 1971, p. 18).
13
13
Segundo Zumthor, a expressão literatura oral designa, em sentido restrito, “um tipo de discurso com
finalidade sapiencial ou ética”; e, em sentido amplo, “todos os tipos de enunciados metafóricos ou ficcionais
que ultrapassam o valor de um diálogo entre indivíduos: contos, jogos verbais infantis, facécias e outros
discursos tradicionais” (ZUMTHOR, Paul. Introdução à poesia oral. Trad. Jerusa P. Ferreira. São Paulo:
Hucitec, 1997, p. 48).
14
HAUSER, Arnold. História social da literatura e da arte. 4. ed. São Paulo: Mestre Jou, 1982, v. 1, p. 23-
34.
15
UNIVERSAL (Capítulo). Las literaturas orales. Buenos Ayres: Centro Editor de América Latina, n. 154,
p. 7-8, 1971.
14
16
JOLLES, op. cit. p. 84.
17
O crítico literário Harold Bloom sugere que o enigma possa ser uma espécie de “charada verbal”, e
acrescenta que tal palavra possui por base um vocábulo grego que significa “fábula” (BLOOM, Harold.
Jesus e Javé: os nomes divinos. Trad. José Roberto O’Shea. Rio de Janeiro: Objetiva, 2006, p. 46).
15
18
“Los mitos son indicadores silenciosos de las vecciones y de los limites imperceptibles, pero sustanciales,
que la realidad ofrece y que establecen una red de conexiones imprecisables entre sus diversos planos y
dimensiones, a veces en tensas oposiciones dialécticas” (CENCILLO, Luis. Mito, semántica y realidad.
Madrid: Biblioteca de Autores Cristianos, 1970, p. 448).
19
FRYE, Northrop. Fábulas de identidade. São Paulo: Nova Alexandria, 1999, p. 40.
20
Frye afirma que esses “princípios conceituais” – analogia e identidade – são utilizados, com freqüência,
como alegoria “de ciência, de religião ou de moralidade”, objetivando “explicar um ritual ou uma lei”. Eles
podem ser parábola ou exemplo, configurando uma situação ou um argumento específico. Frye lembra, ainda,
que o mito “fornece os principais contornos e a circunferência de um universo verbal que é mais tarde
ocupado pela literatura”. Por isso, os educadores dever-se-iam conscientizar de que “qualquer ensino efetivo
de literatura tem de recapitular sua história e começar, na primeira infância, com mitos, contos populares e
lendas” (Ibidem, p. 40).
16
21
“La fábula es una versión popular cómica, humorística del mito, conserva huellas de la proximidad del
animal, en los orígenes del mundo, a los dioses” (ADRADOS, Francisco Rodriquez. “Mito y fábula”.
Emerita: Revista de Linguistica y Filologia Clasica, Madrid: CSIC, v. 51, n. 1, p. 4, 1993).
22
ADRADOS, Francisco Rodriquez. “La tradición fabulistica griega y sus modelos metricos”. Emerita:
Revista de Linguistíca y Filologia Clasica, Madrid: CSIC, v. 37, n. 2, 1969.
17
Contudo, sobre o que acima foi dito há ainda a considerar outra aproximação
da fábula, agora definida pelos laços estabelecidos com o conto popular. No dizer de
Paul Zumthor, as fronteiras entre mito, fábula e conto são impostas e mutáveis23.
Talvez a apropriação e a transmissão oral dessas modalidades de narrativas
configurem-se responsáveis pela continuidade e aproximação delas em algumas
culturas. Frye, ao tratar de mito, ficção e deslocamento, assinala o continuum
formado por contos populares e por outras formas literárias. Para o autor, há dois
compromissos predominantes nas narrativas populares: desenhar personagens
figuradas, indistintamente, como homens, fantasmas ou animais, e estabelecer
padrões de histórias não complicadas e fáceis de lembrar. Dessa maneira, segundo o
autor, os preceitos da verossimilhança não são considerados em um universo de
“histórias abstratas” e “motivos intercambiáveis”24.
Importa, além das colocações acima, salientar que o grau de autonomia entre
as três espécies narrativas – mito, conto e fábula – varia de acordo com a tradição da
época histórica e do espaço físico de produção. Elas compartilham de estratégias
discursivas e narrativas, apesar de serem variáveis em cada uma delas essas
estratégias, quando possibilitam a identificação das personagens ficcionais com
pessoas do mundo real, quando permitem a representação alegórica do cotidiano do
homem na ficção, e quando admitem a analogia e a identidade da mensagem
moralizante com os padrões sociais de comportamento humano.
Merecem ser aqui colocadas, de forma pontual, algumas considerações sobre a
definição, a origem e os momentos principais da trajetória da fábula, além de
referências aos produtores e à produção canônica do gênero na cultura ocidental.
23
“Termos como mito, fábula, conto e outros traçam, artificialmente, no conjunto ilimitado dos discursos
narrativos, fronteiras ao mesmo tempo impostas e continuamente moventes” (ZUMTHOR, op. cit., p. 53).
24
“Os contos populares não nos contam nada verossímil sobre a vida ou os costumes de qualquer sociedade;
assim, longe de nos dar diálogos, sistemas de imagens ou de comportamentos complexos, eles nem se
importam se seus personagens são homens, fantasmas ou animais. Os contos populares são simplesmente
padrões de história abstratos, descomplicados e fáceis de lembrar, não mais tolhidos por barreiras de
linguagem e de cultura do que pássaros migrantes o são por oficiais de alfândega, e compostos de motivos
intercambiáveis que podem ser contados e indexados” (FRYE, op. cit., p. 35).
18
A fábula tem sido definida pela maioria dos freqüentadores da matéria como
uma narrativa alegórica, concisa e exemplar, protagonizada por animais que
simbolizam vícios e virtudes da humanidade e cujas posturas assemelham-se ao
comportamento do homem. As primeiras considerações teóricas parecem ter surgido
na Grécia, elaboradas por Aristóteles, quando referencia a fábula em seu tratado de
retórica na condição de estratégia de persuasão para suprir o orador “de exemplos”,
objetivando reforçar seu discurso25. O caráter de exemplo é destacado por Werner
Jaeger, ao tratar da formação histórica do homem helênico, quando se refere às
fábulas gregas como narrativas didáticas que “encerravam uma verdade de ordem
geral”26. Essa assertiva merece ser refletida e questionada, promessa cumprida na
última unidade deste trabalho. Sob a intencionalidade de servir de exemplo,
apresenta-se, embora com nuances diferenciadas, tanto em Hesíodo quanto em
Arquíloco. Com O trabalho e os dias, Hesíodo ensina ao irmão Perses como são
injustos o homem e a vida, exemplificando sua visão com a fábula O falcão e o
rouxinol. É oportuno observar que a fábula está inserida em uma narrativa maior que
trata das maléficas conseqüências da injustiça e dos benefícios do trabalho campestre
e marítimo. A respeito de Arquíloco, na parte central de todos os seus épodos,
Adrados registra sempre um ensinamento que a terminologia medieval chamará mais
tarde de exemplum. O poeta satírico ensina ao sogro Licambes, em A águia e a
raposa, que uma impiedade nunca passará sem castigo27.
Sob o enfoque de narrativa, Wolfgang Kaiser define a fábula, na atualidade,
pelo caráter alegórico de narração breve e fácil memorização, e pela supremacia da
presença de animais, apontando o escravo grego Esopo como seu “mítico
25
“As fábulas convêm ao discurso e têm a vantagem de que, sendo difícil encontrar, no passado,
acontecimentos inteiramente semelhantes, é muito mais fácil inventar fábulas. Para imaginá-las, assim como
as parábolas, basta reparar nas analogias, tarefa essa facilitada pela Filosofia [...]. É mister servir-se de
exemplos como demonstrações, porque eles contribuem para estabelecer a prova” (ARISTÓTELES, s/d, op.
cit., p. 144).
26
JAEGER, Werner. Paidéia: a formação do homem grego. Trad. Artur Parreira. São Paulo: Martins Fontes,
1979, p. 89.
27
ADRADOS, 1993, op. cit., p. 2-3.
19
28
KAYSER, Wolfgang. Análise e interpretação da obra literária. 5. ed. Trad. Paulo Quintela. Coimbra:
1970, v. 1, p. 109.
29
SCHAEFFER, Jean-Marie. Qu’este-ce qu’un genre littéraire? Paris: Éditions du Seuil, 1995, p. 122.
30
SCHAEFFER, Jean-Marie. “Aesopus auctor inventus. Naissance d’un genre: la fable ésopique”. Poetique,
Paris: Senil, n. 63/85, p. 347, 1983.
20
31
JUÍZES. Capítulo 9, versículos 8-20. In: Bíblia Sagrada. Trad. João Ferreira de Almeida. Brasília:
Sociedade Bíblica do Brasil, 1969, p. 294. Também, no Antigo Testamento, há o diálogo de uma jumenta
com o seu proprietário, o profeta Balaão. O texto, atribuído a Moisés, que o teria escrito por volta do ano
1400 a.C., narra a intervenção sobrenatural de um ser angelical durante uma peregrinação do profeta com sua
jumenta. De início, apenas o animal enxerga o anjo e por três vezes tenta desviar-se da espada que este trazia
às mãos. Irritado, o profeta chicoteia a jumenta que, então, abre sua boca e justifica sua ação (NÚMEROS.
Capítulo 22, versículos 22-33. In: Bíblia Sagrada, op. cit., p. 187). Recorda-se, aqui, episódio similar na
Ilíada, quando Janto, o cavalo de Aquiles, dirige palavras proféticas ao seu amo, predizendo sua morte
(HOMERO. Ilíada. Trad. Fernando C. de Araújo Gomes. São Paulo: Ediouro, 1998, p. 331).
32
“Isso é profético e reflete o dia em que Israel será atraído por um Anticristo” (LOCKYER, Herbert. Todas
as parábolas da Bíblia. Trad. Carlos de oliveira. São Paulo: Vida, 1999, p. 37).
21
33
REIS. Segundo livro. Capítulo 14, versículo 9. In: Bíblia Sagrada, op. cit., p. 443.
34
ADRADOS, 1993, p. 4-5.
35
Todorov define a narrativa encaixante como sendo “a narrativa de uma narrativa”. E ao contar “a história
de uma outra narrativa, a primeira atinge seu tema essencial e, ao mesmo tempo, se reflete nessa imagem de si
mesma; a narrativa encaixada é ao mesmo tempo a imagem dessa grande narrativa abstrata da qual todas as
outras são apenas partes ínfimas, e também da narrativa encaixante, que a precede diretamente”. Adverte,
ainda, ser “a narrativa de uma narrativa” o destino de toda e qualquer narrativa, podendo ser realizada
através da técnica do encaixe (TODOROV, Tzvetan. As estruturas narrativas. São Paulo: Perspectiva, 1970,
p. 126).
36
TODOROV, op. cit., p. 127.
22
37
LIMA, Rossini Tavares de. Abecê do folclore. 5. ed. São Paulo: Ricordi, 1972, p. 87.
38
O texto Calila e Dimna apresenta a mesma organização estrutural do Pancatantra, narrativas encaixadas.
O original indiano limita-se a cinco divisões, enquanto que sua versão na língua árabe é composta de quatorze
“livros”. O acréscimo no texto árabe justifica-se pelo abrigo de outras narrativas que não estão presentes na
coleção indiana escrita em sânscrito. Utiliza-se, nesta pesquisa, a versão de Ibn Al-Mukafa, que declara a
origem indiana do texto e sua tradução do persa. A obra, traduzida para o português por Mansour Challita, foi
publicada em 1975, no Rio de Janeiro, pela editora Apex.
23
39
AL-MUKAFA, Ibn. Calila e Dimna. Trad. Mansour Challita. Rio de Janeiro: Apex, 1975, p. 37-38.
24
40
CASCUDO, Luís da Câmara. Contos tradicionais do Brasil. 18. ed. Rio de Janeiro: Ediouro, 2003, p. 293.
Nesta mesma linha de pensamento, Jan Thornhill afirma que as histórias variam de lugar para lugar, às
vezes mudando as personagens ou o episódio final, mas a história básica persiste: “For instance, the
Chinese tale I’ve retold about the tortoise flyins with cranes is also told in Índia, but with a turtle and
geese. In Rússia, it’s a flog and ducks, while in México, it’s a snake and vultures” (THORNHILL,
Jan. Crow & fox and other animal legends. New York: Simon & Schuster Books for Young Readers,
s/d, p. 2).
25
41
Segundo Cascudo, o pormenor de o sapo ou o jabuti desejarem participar de uma festa no céu é tipicamente
do continente americano, não constando tal pormenor das variantes clássicas nem das versões subseqüentes na
Europa e na África. O estudioso registra que a tartaruga do Pancatantra “é a avó veneranda desse ciclo”
(Ibidem, p. 2).
42
Não há uniformidade entre os biógrafos de Esopo. La Fontaine, a partir das informações do historiador
grego Maximus Planudes, afirma ter nascido na Frígia, uma região da Ásia Menor. O fabulista grego teria
sido escravo em Samos e morrido em Delfos (LA FONTAINE, Jean de. “A vida de Esopo, o frígio”. In: LA
FONTAINE, Jean de. Fábulas de La Fontaine. Trad. Milton Amado e Eugênio Amado. Belo Horizonte:
Itatiaia, 1989, p. 43-67). Paul Harvey, citando Heródoto, assinala que Esopo viveu durante o reinado de
Âmasis do Egito, no Século VI a.C. Informa que “muitas historietas sobre animais, adaptadas com objetivos
satíricos ou moralizantes, circulavam sob seu nome”. Registra, também, “que Sócrates, enquanto estava na
prisão, pôs algumas delas em versos” (HARVEY, Paul. Dicionário Oxford de literatura clássica grega e
latina. Trad. Mário G. Kury. Rio de Janeiro: Zahar, 1987, p. 210). Esclareço que as notas biográficas
registradas neste trabalho resultam de pesquisa em múltiplas fontes, tais como coletâneas, enciclopédias e
compêndios historiográficos de Literatura, sendo a maioria de domínio público e, portanto, dispensável as
extensas citações de fonte.
43
Também não há consenso com respeito aos dados biográficos de Caio Júlio Fedro. Para uns era um
escravo, nascido na Macedônia, em 15 a.C., e morto em Roma, no ano 50 da Era Cristã. Para outros, entre
eles Paul Harvey, era escravo trácio que veio para Roma e tornou-se liberto na casa de Augusto (HARVEY,
op. cit., p. 228). Embora nascido em território grego, Fedro adotou a terra e a cultura romanas, o que justifica,
nesta tese, identificá-lo como um fabulista latino.
26
44
A trajetória literária de Jean de La Fontaine, nascido em 1621, no ducado de Château-Thierry, na França, é
marcada por uma expressiva produção de fábulas, reunidas por ele em Fábulas escolhidas postas em versos,
responsável por sua notoriedade.
45
ARISTÓTELES, s/d, op. cit., p. 144-145.
46
As edições brasileiras mais recentes das fábulas de Esopo reproduziram 359 fábulas. Os dados
historiográficos confirmam que um dos discípulos de Aristóteles, Demétrio de Falero, fundador da Biblioteca
de Alexandria, organizou, no século IV a.C., a primeira coleção de fábulas, conhecida como Coletânea de
discursos esópicos, que exibia 200 narrativas. Conforme Nikola-Lisa, “We know of Demetrius Phalerius, a
4th century B.C. Athenian statesman, founder of the Alexandria Library. His Aesopia, ou Assemblies of
27
uma narração concisa sob a forma predominante de diálogo entre animais e ocorrida
em espaço físico raramente descrito, o que elimina a função narrativa de descrever. O
narrador reveste-se de impessoalidade, distanciado e pouco presente. As histórias
narradas enfocam, com muita freqüência, os enfrentamentos de animais circunscritos
aos lances adversos efetuados por pares antitéticos, e consagram a vitória do mais
astuto. Nessas narrativas, o tempo é irrelevante e as circunstâncias são, quase sempre,
atemporais.
Nesse sentido, cabe apontar como exemplo de tal modelo o texto A raposa e o
bode, no qual podem ser evidenciadas as leis internas acima apontadas:
Aesopic Tales, is the first collection the Aesopic fables. It contains over two hundred fables in Greek prose,
and was intended as a handbook or manual for writers and speakers” (NIKOLA-LISA, W. “Fablers and
fabulists: a guided tour”. Teaching and Learning Literature, nov./dec., 1996, p. 82-83).
47
ESOPO. Fábulas completas. Trad. Neide Smolka. São Paulo: Moderna, 1994, p. 29.
48
Convém recordar o estudo de Adolfo Hansen quando propõe dois tipos de alegoria: uma construtiva ou
retórica e outra interpretativa ou hermenêutica. A primeira é “uma maneira de falar”; a segunda, um “modo de
28
entender”. Ambas são “complementares”, mesmo que “simetricamente inversas” (HANSEN, João Adolfo.
Alegoria: construção e interpretação da metáfora. São Paulo: Atual, 1986, p. 1). Hansen não menciona a
fábula em seu estudo, contudo, compartilhando de sua linha teórica, é possível enquadrá-la como um modo de
expressão retórico-poética que exibe esta dupla face: a história narrada apresenta-se como um elemento de
expressão e a sentença moral, um elemento de interpretação. Recorda-se, ainda, o estudo de Antoine
Compagnon quando salienta que a alegoria é um instrumento de compreensão da “intenção oculta de um texto
pelo deciframento de suas figuras”. Segundo o autor, a “norma” da interpretação alegórica não deve ser
estabelecida a partir da “intenção original”, mas sim da “conveniência atual” (COMPAGNON, Antoine. O
demônio da teoria: literatura e senso comum. Belo Horizonte: Editora da UFMG, 1999, p. 56). Por outra
óptica, cabe notar que, em estilística, a palavra alegoria apresenta duas significações diferentes: a
personificação de uma abstração, de uma qualidade ou de um defeito; ou pode, também, designar uma
metáfora. De maneira geral, os estudiosos distinguem alegoria do símbolo: o último assenta-se em um objeto
concreto e a primeira, em uma abstração (cfe. POTTIER, Bernard [Org.]. Le Language. Les dictionnaires du
savior moderne. Paris: La Bibliothéque du CEPL, 1973, p. 19).
49
Conforme registra Antônio Inácio de Mesquita Neves, responsável pela primeira tradução e edição das
fábulas de Fedro no Brasil (Rio de Janeiro, 1884), a produção do fabulista latino foi contemplada por grande
número de edições, desde os fins do século XVI, destacando-se a Edição Princeps, por Pierre Pithou (1596),
Autun: Troyes; a Edição crítica, por Louis Havet (1895), Hachette: Paris; e a primeira tradução para o
português, por Manoel de Morais Soares (1805), Lisboa (NEVES, Antônio Inácio de Mesquita. “Fedro:
roteiro bibliográfico”. In: FEDRO, op. cit., p. 32-37).
29
50
FEDRO. Fábulas. Trad. Antônio Inácio de Mesquita Neves. Campinas: Átomo, 2001, p. 128.
51
NETTO, Samuel Pfromm. “De Esopo e Fedro aos Muppets: a trajetória da fábula”. In: FEDRO, op. cit., p.
3-30).
52
LA FONTAINE, Jean de. Fábulas de La Fontaine. Trad. Milton Amado e Eugênio Amado. Belo
Horizonte: Itatiaia, 1989, v. 1, p. 40.
53
FEDRO, op. cit., p. 39. Registra-se que a produção de Fedro está reunida em cinco livros, todos
antecedidos por prólogos, sendo o segundo e o quarto livros sucedidos por epílogos.
54
Cito Enzo Marmorale que aponta a possibilidade de Sejano ter obrigado Fedro a comparecer em juízo
“talvez por causa de alguma de suas fábulas” (MARMORALE, Enzo V. Arte latina. Trad. João Bartolomeu
Júnior. Lisboa: Editorial Estúdios Cor, 1974, v. 2, p. 13).
30
55
“Dos males o menor. Outrora, quando Atenas florescia/ Por suas sábias leis, por seus costumes,/ Uma
irriquieta e falsa liberdade/ A paz lhe perturbou, quebrando o encanto/ Da disciplina antiga. Neste estado/
Facciosos os partidos permitiram/ Que o tirano Pisístrato ocupasse/ Da República o trono: e como os Áticos/
A condição de súditos chorassem/” (FEDRO, op. cit. p. 42-43).
56
Bábrio, romano helenizado, nasceu no final do primeiro século da Era Cristã, tendo exercido a tutela do
filho de Alexander Severus, rei da Síria (cf. “Prefácio”. In: BÁBRIO. Fábulas de Bábrio. Trad. Javier Lopez
Facal. Espanha: Editorial Gredos, 1978, p. 303). Agradeço à Biblioteca Luiz Viana Filho, do Senado Federal,
a cessão reprográfica dessa obra.
57
A fábula de Bábrio segue o modelo de metrificação adotado por Fedro e configurado no metro éleigeion.
Segundo Geir Campos, o éleigeion constava de hexâmetros e pentâmetros datílicos que se organizavam em
dísticos (CAMPOS, Geir. Pequeno dicionário de arte poética. São Paulo: Cultrix, s/d, p. 59).
58
NIKOLA-LISA, op. cit., p. 83.
31
informações sobre o fato de Aviano ter escrito fábulas originais, por outro, os estudos
sobre o assunto destacam a sua capacidade inovadora de construir novas personagens
e de apresentar argumentos inéditos no discurso da sentença moral59. Na Idade
Média, a fábula confirma-se nas funções de exemplum e de exercício literário, em
idêntica situação com outras formas de alegoria, sendo consagrada pelos pregadores
em seus sermões como narrativa de exemplo, o que retoma a função aristotélica da
fábula. A trajetória, no continente europeu, tende a ratificar a vocação de instrumento
moral e sua difusão acentua-se nos séculos XII e XV.
Ainda no período medieval, destacam-se os fabliaux, surgidos na França e
difundidos em alguns países europeus, em especial, na Itália e na Inglaterra.
Desprovidos de objetivos moralizantes clássicos, os fabliaux faziam referências às
situações e às personagens da vida cotidiana com o objetivo de provocar riso60.
Lembra-se a clássica assertiva latina de o riso corrigir os costumes (ridendo castigat
mores). Os fabliaux mantêm laços de identidade com o modelo clássico; porém, os
animais são “humanizados” nas fábulas e, nos fabliaux, os homens são
“animalizados”. A possível identificação de animais aos homens da nobreza e da
política dessa época talvez seja responsável pela baixa produção dos fabliaux (são
conhecidos cerca de 150 obras) e pela duração relativamente curta da espécie (não
mais que 300 anos). É fácil imaginar a força da repressão política e social sofrida
pelos autores.
Em paralelo ao percurso dos fabliaux, o modelo greco-romano da fábula
revelou cultores durante todo o período medieval na Europa, porém, a produção ficou
59
HENRÍQUEZ, Germán Santana. “Aviano Y la transmisión de la fábula gregolatina”. Revista de Filologia,
La Laguna, Universidad de La Laguna, n. 8/9, p. 369, 1989/1990. A dúvida gira em torno da capacidade
criativa ou imitativa de Aviano, pois suas fábulas poderiam ter sido construídas sobre outras, já fixadas pela
tradição. Apesar de considerar a possibilidade de a produção de Aviano ser cópia de outras versões,
Henríquez registra o tratamento surpreendente e inovador que o fabulista dá ao tema da inveja e o uso que faz,
em suas fábulas, do dístico elegíaco capaz de lembrar as elegías de Virgílio e Ovídio.
60
Os fabliaux, segundo Massaud Moisés, caracterizam-se pelo cunho realista e pela característica de “cômico
grosseiro”, oscilando no espaço “entre a simples piada equívoca e a sátira direta, arrasante e, não raro,
pornográfica”. Mais adiante, assinala que a temática gira em torno da classe média, na opção pelos temas
ligados ao adultério, à lascívia do clero, ao rebaixamento social da mulher, à cupidez dos comerciantes, à
32
sujeira e bisonhice do plebeu (MOISÉS, Massaud. Dicionário de termos literários. São Paulo: Cultrix, 1974,
p. 225).
61
No decorrer da pesquisa bibliográfica, teórica e textual, sobre fábulas e fabulistas na Idade Média, na
Modernidade e em tempos atuais, consultei como fonte os mais referenciados pesquisadores do assunto:
Philip A. Wadsworth (The art of allegory in LaFontaine’s fables); P. Gila Reinstein (Aesop and Grimm:
contrast in ethical codes and contemporary values); Samuel Pfromm Netto (De Esopo e Fedro aos Muppets:
a trajetória da fábula); W. Nikola-Lisa (Fablers and fabulists: a guided tour); Ricardo Navas Ruiz
(“Introducción”. In: Fábulas, de Juan Eugenio Hartzunbusc) e Matthew Hodgart (La sátira).
62
FERNÁNDEZ, Emílio Palacios. “Las fábulas de Félix Maria de Samaniego: fabulário, bestiário,
fisiognomía e lición moral”. Revista Literária, Madrid, v. LX, n. 119, p. 81, 1998.
33
Além das intencionalidades clássicas inerentes à fábula, uma nova intenção foi
introduzida pelo fabulista francês: servir de ensinamento às crianças64. Porém, a
maioria dos estudos sobre o fabulista francês assinala não ser possível desconhecer
outras intenções: a retomada da proposta tradicional de satirizar os opressores e o
registro do abuso de poder agora praticado pelas novas classes dominantes, a corte e
63
LA FONTAINE, op. cit., v. 1, p. 197-198.
64
“As fábulas, portanto, são um quadro onde cada um de nós se acha descrito. O que elas nos apresentam
confirma os conhecimentos hauridos em virtude da experiência pelas pessoas idosas e ensina às crianças o
que convém que elas saibam” (Ibidem, p. 39).
34
65
Em conferência realizada no Lycée Français, em 28 de maio de 1927, na França, Afrânio Peixoto narra o
seguinte episódio: “Contou-me o Sr. Alexandre Conty, o homem de arte que é também embaixador de França,
com o mesmo gosto e a mesma autoridade que, em Madagascar, em 1893, traduzida em malgache, fizera
publicar esta fábula de La Fontaine. Pois bem, os nativos tomaram-na como satyra política, e typógrafhos e
impressores tiveram abrigo na Residência Geral de França, senão seriam presos e correriam risco de morte.
Na África, ou ainda na América, sob o sitio, La Fontaine é um grito de liberdade, traduzido na ironia literária”
(PEIXOTO, Afrânio. “La Fontaine”. Revista da Academia Brasileira de Letras, Rio de Janeiro, v. 1, XXV, n.
81, set. 1928. Edição do Annuário do Brasil). A fábula em questão intitula-se Animais doentes de peste.
66
Uma possível intencionalidade das fábulas esópicas é expressa no prólogo do Livro III de Fedro: “Expor
pretendo/ Qual causa deu às fábulas origem/ –Tolhida de expender quanto sentia/ A opressa escravidão, nos
apológicos/ Pequenos contos, procurou disfarces/ Com que desafogar seus pensamentos/ E a calúnia burlar
com fino engenho/ Da vereda que Esopo abriu com glória/ Caminho largo fiz, e sobre os temas/ Que nos ele
deixou hei discorrido/ No que é tocante ao meu triste infortúnio” (FEDRO, op. cit., p. 87).
35
67
A doninha que entrou num celeiro exemplifica o caráter discursivo inovador de La Fontaine, em particular,
quanto à indeterminação do narrador, como se comprova nesta passagem: “É tempo de fugir! Corre ela até o
buraco, mas, agora, já lá não cabe. Meu raciocínio deve estar doente e fraco, mas, se encontro o buraco,
ainda há tempo, quem sabe?” (LA FONTAINE, v. 1, op. cit. p, 226).
68
“La expansión, fenômeno contrario a la concisión, procede por un alargamento de la frase del hipotexto,
una ‘especie de dilatación estilística’, o sea que corresponde aproximadamente a la figura que la retórica
clásica denomina ‘amplificación’. La Fontaine hizo de ella un arte en la creación de sus Fábulas que tienen
como hipotexto lás fábulas de Esopo, cuya expansión fue hecha por médio de figuras circunstanciales
(descripciones, retratos, dialogismos) buscando todas un efecto común que Genette denomina ‘animación
realista” (DORESTE, Dulce M. Gonzáles. “Notas hipertextuales sobre la parodia genettiana: a proposito de
Palimpsestos”. Revista de Filologia de la Universidad de La Laguna, Madri, n. 12, p. 95, 1993).
69
Em A cigarra e a formiga, o fabulista francês introduz na narração referências temporais: “antes de agosto
chegar” e informações de cunho financeiro: “pago com juros, sem mora” (LA FONTAINE, v. 1, p. 73-74).
70
La Fontaine utiliza às vezes as digressões, efetuadas ao longo da narração, como instrumento de defesa de
suas idéias filosóficas. Nesta fábula – A rata metamorfoseada em mulher – a conclusão compromete o
fabulista com as teses fatalistas: “Devemos voltar sempre ao que nos dita a sorte,/ à lei que o Céu fixou do
nascimento à morte./ Podereis o demônio e a magia invocar:/ nenhum ser de seu fim jamais heis de afastar”
( LA FONTAINE, v. 2, p. 185).
71
“E como é que interpreto/ a moral desta história? Vê qual a melhor” (LA FONTAINE, v. 1, p. 150).
72
“Inimigo pequeno, perigo maior”, ou então: “Muitas vezes, quem resiste ao mar,/ pode no rio se afogar”
(Ibidem, p. 185).
73
Destaca-se que as personagens humanas nas fábulas de La Fontaine representam 35% do total de sua
produção.
74
LA FONTAINE, v. 1, p. 309-310.
75
LA FONTAINE, v. 1, p. 162-164.
76
LA FONTAINE, v. 2, p. 59-60.
36
77
Em O rato que se retirou do mundo, La Fontaine faz uma crítica aos monastérios da época, utilizando-se
de uma linguagem evangélica: “não me concernem mais as coisas deste mundo. Que posso, neste antro
profundo, fazer por vós, senão pedir que vos ajude o céu, com todo o empenho?”.
78
NIKOLA-LISA, op. cit., p. 82-87.
79
William Caxton (1422-1491), editor e tradutor inglês, responsabilizou-se por duas coletâneas de fábulas,
traduzidas do alemão para o inglês, Aesop e Reynard the fox.
80
Cabe trazer aqui o testemunho de Harold Bloom sobre a presença de uma corrente considerável da tradição
oral, na obra de Oscar Wilde, “em parte, sem dúvida, apócrifa” (BLOOM, Harold. Gênio: os 100 autores
mais criativos da história da literatura. Trad. José Roberto O’Shea. Rio de Janeiro: Objetiva, 2003, p. 264).
37
81
Apenas à guisa de lembrança, a obra que deu fama internacional a George Orwell (pseudônimo de
Eric Arthur Blair) foi publicada em 1949 com o título Ninety eighty-four.
82
RUIZ, Ricardo Navas. “Introducción”. In: HARTZENBUSC, Juan Eugenio. Fábulas. Madrid: Espasa-
Calpe, 1973, p. 15.
38
83
PINTO, Roquette. Fritz Müller: reflexões biográficas. Blumenau: Cultura em Movimento, 2000, p. 28.
84
SOUZA, Silveira de. “Os sonhos da natureza de Fritz Müller. Fábulas da realidade em poemas escritos por
um naturalista apaixonado pelo estudo das línguas e da literatura”. In: Diário Catarinense, p. 13, 11 dez.
2004.
39
diferença de referenciais, onde todos têm razão e ninguém a tem”85. Além disso,
ocorre a sobreposição dos aspectos naturalistas aos poéticos, quando tematiza a luta
pela sobrevivência, um animal servindo de alimento ao outro, como pode ser lido em
outra fábula de Müller, intitulada Pica-Pau86.
Após essa ligeira digressão para atender a um aspecto de cunho regional,
retoma-se a citação das fábulas e dos fabulistas europeus, ainda que sem
aprofundamento historiográfico. Na Espanha, Félix Maria de Samaniego edita, em
1781, Fabulas en verso castellano para el uso del Seminário Bascongado, uma
imitação livre dos clássicos Esopo, Fedro e La Fontaine e do moderno John Gay, sem
preocupação de originalidade ou princípios estéticos. Na edição pesquisada87, as
fábulas apresentam-se distribuídas em nove “livros” que reúnem 167 fábulas. Ainda
na cultura espanhola, Tomás de Iriarte assina as Fábulas literárias (1787), cuja
peculiaridade estrutural firma-se na posição de a sentença moral anteceder à narração
da história. Para o fabulista espanhol, caberia à fábula atender ao preceito de
aplicação universal e circunscrever-se a três tipos fundamentais: as fundadas em
característica comum de uma espécie animal; as possuidoras de atribuição individual
não compartilhada com os animais da mesma espécie; e as mistas que justapõem a
tipicidade comum da espécie aos atos ou às circunstâncias, atribuídos apenas a
alguns animais88. Iriarte entrecruza, na coletânea citada, 76 fábulas com tais
modalidades narrativas. Também na Espanha, outros autores são citados nos estudos
de Navaz Ruiz, entre os quais Miguel Augustín Príncipe, autor de Fábulas en verso
85
Ibidem, p. 13.
86
“Bom dia, seu pica-pau! De novo assim animado?/ Como andas rápido, árvore acima, árvore ao lado!”/
E em todos os cantos martelas e dás batidinhas,/ onde se escondem as muitas larvinhas!’/ Agora, de cima a
baixo procurou/ e nada para o seu bico encontrou;/ mas ele não se deixa abater:/ ‘Sem esforço nada vai
acontecer!’/ Batendo as asas voa ao próximo tronco/e recomeça o seu trabalho no pau oco,/ e galga adiante,/
como um infante,/ e procura e bica;/ balança e se estica/ e o vermelho topete/ na cabeça reflete./ Escute
agora, escute, ali soa oco;/ deve haver besouros e larvas no toco./ Então ele pára e agarra-se firme,/ o rabo
peralta com apuro comprime,/ e bica e martela com toda violência/ e a floresta inteira escuta a potência./
Assim, rompe na casca um buraco,/ assustando com barulho os bichacos,/ que, depressa, saem fracos;/ e mal
um põe a cabeça de fora,/ o pica-pau – de pronto – o devora” (MÜLLER, Fritz. História natural de sonhos.
Trad. Lia Carmen Puff e Dennis Radünz. Blumenau: Nauemblu Ciência & Arte, 2004, p. 6).
87
SAMANIEGO, Félix Maria. Fábulas. Madrid: Castalia, 1975.
88
IRIARTE, Tomás de. Poesias. 3. ed. Madrid: Espasa-Calpe, 1976, p. 45-46.
40
89
HARTZENBUSC, op. cit.
90
Vale ressaltar que o número de fábulas dessa coletânea – 167 – repete-se na coleção organizada, um século
antes, por Samaniego.
91
NIKOLA-LISA, op. cit., p. 86.
41
92
No cenário francês da atualidade, vale lembrar Jacques Prévert (1900-1977), cuja obra Dia de folga narra
as fábulas da baleia que esfaqueou o pescador e do gato que comeu metade de um passarinho.
93
NIKOLA-LISA, op. cit., p. 87.
94
HODGART, Matthew. La sátira. Trad. Angel Guillén. Madrid: Ediciones Guadarrama, 1969, p. 176.
95
A expressão é tributária de Leyla Perrone-Moisés quando processa a leitura crítica de escritores modernos
(PERRONE-MOISÉS, Leyla. Altas Literaturas: escolha e valor na obra crítica de escritores modernos. São
Paulo: Companhia das Letras, 1998).
42
Henrique O’Neill (Fabulário, 1885), João de Deus96 (Fábulas para a gente moça,
1898), Cabral do Nascimento (Fábulas, 1955)97 e Miguel Torga98 (Bichos, 1940).
Depara-se com uma proposta de releitura do gênero, nos textos de Torga, mais
próximo dos fabliaux e menos da fábula clássica. A obra contém 14 narrativas que
podem ser lidas como fábulas apenas pelo fato de humanizar animais99. Nelas, como
em algumas fábulas pós-La Fontaine, constata-se tanto a manutenção da
intencionalidade satírica clássica quanto a renovação retórica, pós-La Fontaine,
marcada pela ausência, no corpo da narrativa, da sentença moral e da proposta
modeladora de conduta. Menciona-se, também, Ana de Castro Osório100, muito lida
no Brasil nas primeiras décadas do século XX. Em 1935, ela publicou Os animais,
seleção de histórias morais e educativas, dando continuidade a mesma linha de
Contos morais, obra editada em 1903. Algumas fábulas dessa autora constam da
Série Fontes.
Entre os fabulistas italianos, três nomes são aqui referenciados: Leonardo da
Vinci, pelo inusitado da produção; Carlos Alberto Salustri, por representar, na
modernidade, a fábula latina; e Italo Calvino, por testemunhar aspectos da cultura
popular italiana e reforçar a idéia de estar o gênero, em suas adaptações, sujeito a
absorver os usos e os costumes do tempo e espaço onde é produzido.
96
Na obra João de Deus, Poesia, organizada por Cleonice Berardinelli e publicada no Rio de Janeiro pela
Livraria Agir, transcreve-se a fábula Leão Moribundo, uma adaptação da fábula de La Fontaine O leão que
ficou velho, utilizada como alegoria à situação de Portugal diante do Ultimatum inglês de 1890. Em nota de
rodapé, a organizadora registra as palavras de Teófilo Braga: “Quando em 11 de janeiro de 1890 a aliada
Inglaterra impôs a Portugal um Ultimatum brutal para lhe entregar a melhor parte da África, João de Deus
sentiu o mesmo abalo da nação. E sob essa impressão de ultraje escreveu a fábula do Leão Moribundo”
(DEUS, João de. Poesia. Organização Cleonice Berardinelli. Rio de Janeiro: Livraria Agir, 1967).
97
MOISÉS, op. cit. p. 226.
98
TORGA, Miguel. Bichos. 20ª ed. Lisboa: Dom Quixote, 2002.
99
Serve de exemplo o pardal Ladino, “homem feito”; o galo Tenório, “tipo de homem que não se manda
fazer”; e o jerico Morgado, “gente que também vive de boas palavras”.
100
Ana de Castro Osório (1872-1935) destacou-se, ainda, na literatura para crianças, com Contos
traduzidos de Grimm (1904).
43
101
A pesquisa efetuada na Parlin Memorial Library, biblioteca pública municipal de Everett (MA), nos
Estados Unidos, deu-me a oportunidade de encontrar uma tradução dessa obra do italiano para o inglês,
denominada Fables of Leonardo da Vinci. A coletânea reúne 74 fábulas “interpretadas” e “transcritas” por
Bruno Nardini.
102
MARTINHO, Virgílio. “Prefácio”. In: VINCI, Leonardo da. Fábulas e lendas. Trad. Virgilio Martinho.
Editorial Futura: 1974, p. 7.
103
Ibidem, p. 26.
104
Ibidem, p. 9.
44
105
NETTO, op. cit., p. 15-21.
106
GRIECO, Agrippino. Noções geraes de literatura. Rio de Janeiro: Livraria Francisco Alves, s/d, p. 462.
107
DUARTE, Paulo. “Prefácio”. In: TRILUSSA. Versos de Trilussa. São Paulo: Marcus Pereira, 1973, p. 35-
36.
108
TRILUSSA. In: SOARES, Maria Isabel de Mendonça. 366 fábulas... e mais algumas. Lisboa: Ulisseia,
1996, p. 12.
45
109
Convém destacar que entre as antologias dedicadas às fábulas, antigas e atuais, a presença de narrativas
americanas, em particular das Américas do Sul e Central, é rara. Uma das poucas exceções configura-se na
obra Lendas e fábulas dos bichos de nossa América, organizada por Rogério Andrade Barbosa e publicada no
Brasil, em 2003, pela editora Melhoramentos. Da coletânea citada, constam fábulas recolhidas na literatura
popular da Argentina (A raposa e o tatu), da Bolívia (Siripita, o rei dos insetos), da Costa Rica (A festa dos
pombos), da Guatemala (Por que os ratos têm medo das mulheres), do México (Xdznuúm, o colibri), do Peru
(A menina que se transformou numa garça), do Brasil (Por que o japim e o marimbondo são amigos) e dos
Estados Unidos (O castor, o porco-espinho e a canção do vento). Na mesma linha de publicação, cito De olho
nas penas, obra organizada por Ana Maria Machado, reunindo narrativas populares da América Latina,
publicadas no Brasil, em 1981, pela editora Salamandra.
46
setembro de 2001, pode ser lida como uma tentativa de detectar a origem do
terrorismo contra os Estados Unidos, segundo o autor110.
Nos tempos atuais, o uso da fábula não fica restrito ao campo da literatura,
porém, confirma-se em várias áreas do saber como administração, economia,
antropologia, filosofia e literatura de auto-ajuda.
À guisa de ilustração de tal uso no campo administrativo, citam-se as obras
Aprendendo além dos lobos, de David Hutchens, e A organização dos bichos, de
Leonardo Vils, publicadas no Brasil pelas editoras Best Seller e Negócio,
respectivamente, e utilizadas em seminários de administração. Merece, ainda,
menção nessa área, o sucesso do filme A fuga das galinhas, dirigido por Perter Lord
e Nick Park. A história gira em torno de galinhas encarceradas em um galinheiro e
submetidas a trabalhos forçados, que se sujeitam a um treino árduo, intenso e
audacioso com o objetivo de salvar suas “penas”.
Sob a rubrica de literatura de auto-ajuda, a editora Paulus lançou, na década de
1990, quatro obras inéditas, duas do escritor espanhol Peter Ribes (Parábolas e
fábulas para o homem moderno e Mais parábolas e fábulas) e as outras duas dos
professores brasileiros Adailton Altoé e Aparecida Debona111 (Fábulas e parábolas:
aprendendo com a vida, em dois volumes).
110
Ao concluir este breve roteiro de fábulas e fabulistas do Ocidente, cabe lembrar que, apesar de não ter tido
acesso a todas as obras aqui mencionadas, a pesquisa foi enriquecida graças à leitura de alguns textos dos
autores citados em 366 fábulas... e mais algumas, da escritora portuguesa Maria Isabel de Mendonça Soares,
e em Fábulas do mundo todo, trabalho de adaptação do escritor escandinavo Bem Alex.
111
O uso da fábula como ferramenta didática no processo de ensino-aprendizagem é a proposta de Altoé e
Debona. Os textos desses autores reúnem mais de 70 fábulas, todas antecedidas por um preâmbulo, como em
A raposa e o galo rei: “O que acontece quando os grandes se encontram? O que você sabe a respeito de
pactos e compromissos secretos de nossos chefes? Teriam eles algo a ver com os pactos da raposa e do galo?
A quantas anda nosso galinheiro nestes tempos de economia de mercado?” Nessas fábulas, os preâmbulos,
organizados sob forma de perguntas, preparam o leitor para aceitar ou refutar os valores éticos implícitos em
cada narrativa. O ritual de perguntas pode ser lido como uma espécie de narrativa encaixante, capaz de
motivar uma história encaixada e resgatar a forma de diálogo presente no modelo esópico: “– Quanto tempo,
dona galinha?! Estava com saudade!/ – Nós até que não, dona raposa./ – Por que não, se faz tanto tempo que
não freqüento este galinheiro?/ – É que sua presença só nos ameaça e quando não.../ – Mas vim propor um
acordo./ – Que acordo pode haver entre nós, a não ser o de que você desapareça para nunca mais voltar?/ –
Calma, dona galinha. Chame lá o galo do terreiro. Pois quero falar mesmo é com ele./ – Por que com ele?
Aqui todos têm voz./ – Eu sei disso. Mas é ele quem canta mais alto e manda no terreiro...” (ALTOÉ,
Adailton; DEBONA, Aparecida. Fábulas e parábolas: aprendendo com a vida. São Paulo: Paulus, 1998, v. 1,
p. 46-47).
47
Transcreve-se, de Peter Ribes, o texto Salvar ou não salvar a própria pele, por
considerá-lo uma possível representação das múltiplas funções da fábula:
Cada vez que um texto é lido passa a legitimar outras leituras, valendo lembrar
nesse processo que clareza e concisão são as condições necessárias à formulação dos
objetivos e fundamentais ao desenvolvimento e ao direcionamento de quaisquer
leituras ou releituras, evitando a ocorrência de desvios provocados por assuntos
colaterais quando sobrepostos aos centrais. É o que se pretende fazer na seqüência.
Como objetivo mais amplo deste trabalho, busca-se a identificação dos
recursos retóricos, modos, formas e estratégias de transposição da fábula clássica em
seus elementos canônicos para a cultura brasileira113. Além desse objetivo de
comprovar as técnicas e as estratégias de transposição de uma espécie literária, a
fábula, de uma cultura para outra, a tese procura identificar as intencionalidades de
sua presença na literatura para crianças e na literatura escolar brasileira. Vale
enfatizar que, em suas primeiras aparições, a fábula no Brasil liga-se à literatura de
cunho didático; posteriormente, à literatura infantil; e, mais tarde, à literatura para
uso na escola. Isso posto, surgem algumas indagações. Quando e como a fábula surge
na literatura brasileira para crianças? Quando e como a fábula é adotada na literatura
didática? Quais as injunções ideológicas e didáticas que marcam o uso da fábula na
literatura escolar no Brasil? Existe uma faixa etária privilegiada para a leitura das
fábulas no livro de lazer e no livro escolar? Os livros escolares buscam sistematizar
as características canônicas dessa espécie literária?
Tais indagações, gerais e específicas, orientam os procedimentos
metodológicos adotados na construção da tese.
A metodologia configura-se, primeiro, como a arte de dirigir um assunto para
lograr o objetivo desejado. A estratégia de trabalho adotada entrelaça matérias
próximas como a retórica do discurso, a poética da construção formal, a leitura
112
RIBES, Peter. Mais parábolas e fábulas. São Paulo: Paulus, 1999, p. 114-116.
113
O termo cultura, neste trabalho, compromete-se com o perfil assumido por Clifford Geertz, no sentido de
compreendê-la como um padrão de significados, transmitido historicamente, que se expressa por símbolos.
Em síntese, um sistema herdado e manifesto sob formas simbólicas por meio das quais os homens
comunicam, perpetuam e desenvolvem seus conhecimentos e suas atividades em relação à vida (cf. GEERTZ,
Clifford. A interpretação de culturas. Rio de Janeiro: LTC, 1989, p. 103).
50
114
Usa-se o conceito de tradução tomado de empréstimo a Dominique Aury, para quem traduzir consiste em
uma operação pela qual um texto escrito em uma língua torna-se suscetível de ser vertido para outra língua
(Cf. AURY, Dominique. “Prefácio”. In: MOUNIN, Georg. Os problemas teóricos da tradução. São Paulo:
Cultrix, 1975, p. 7).
115
O vocábulo adaptação é aqui utilizado como uma nova construção do texto vertido de outra língua,
considerando-se nesse procedimento os fatores culturais da “língua de chegada”.
116
O conceito de citação crítica motiva-se em Graciela Reyes (Polifonia textual. La citación en el relato
literário. Madrid: Editorial Credos, 1984) e Antoine Compagnon (O trabalho da citação. Trad. Cleonice
Mourão. Belo Horizonte: Editora da UFMG, 1996), entendido aqui como processo de apropriação crítica de
outro texto.
51
117
O termo desconstrução, adotado neste trabalho, inspira-se em Margaret Rose e identifica-se como atitude
“arnaquista” diante dos cânones clássicos, capaz de instaurar uma linguagem paródica (ROSE, Margaret.
Parody: ancient, modern and post-modern. New York: Cambridge University Press, 1993, p. 206).
52
Millôr Fernandes
1
Conforme o relato bíblico, durante o cerco da Babilônia, o rei Baltazar, turvado pelo vinho, blasfemou contra
Deus. No mesmo instante, viu uma mão sair da parede e nela escrever algumas palavras em aramaico: Mene,
Mene, Tequel e Parsim. Por sugestão da rainha-mãe, chama Daniel – sábio judeu e conselheiro da corte – para
interpretar a escrita divina. A mensagem traduz-se em sentença de morte ao soberano a ser cumprida naquela
noite. Vale lembrar que, enquanto os mestres gregos da época instruem o povo com narrativas de aventuras e
dramas, Daniel, exilado na Babilônia, utiliza-se, para a mesma missão, de alegorias, provérbios, aforismos e
máximas. É interessante assinalar, também, a presença de animais e vegetais no Livro de Daniel, composto de
narrativas alegóricas. As visões de Daniel – configuradas por um leão alado, um urso com quatro fileiras de
dentes, uma pantera de quatro cabeças com asas de pássaro, um animal indescritível com um pequeno chifre, um
carneiro que ataca com seus chifres em todas as direções – simbolizam reinos e testemunham profecias a respeito
da decadência de cada um deles. Há, também, a visão de uma árvore, com folhagens formosas e frutos
abundantes. Os animais do campo acham sombra debaixo dela, as aves do céu habitam-na e as pessoas dela
dependem para seu suprimento. Contudo, a árvore, orgulhosa de seu poder, torna-se soberba. Um vigilante do
céu não se agrada da arrogância da planta e ordena sua destruição. A mensagem moral consubstancia-se no
julgamento da soberba dos poderosos.
55
2
Recomenda-se a leitura das considerações feitas pelo autor em “Thématologie et Littétature Comparée”
(BRUNEL, Pierre. “Thématologie et Littétature Comparée”. Exemplaria. Revista Internacional de Literatura
Comparada, Huelva: Espanha, v. 1, p. 13, 1997).
3
VARGA, Aron Kibédi. “Rhétorique et production du texte”. In: Théorie litéraire: problémes et perspectives.
Paris: Presses Universitaires de France, 1989, p. 219-234.
57
4
Vale transcrever um fragmento da argumentação de Sodré: “Dentro do sistema colonial, não há outra
solução. Podemos, desde já, avançar, pois, para a conclusão de que só a eliminação dos restos de colonialismo
que permanecem na estrutura brasileira é capaz de permitir criações originais, nacionais, brasileiras, em todos os
campos” (SODRÉ, Nelson Werneck. História da Literatura Brasileira. Rio de Janeiro: Civilização Brasileira,
1964, p. 480-481).
5
Salienta-se a circunstância de a carga etimológica dos termos transpor e transplantar apresentar quase a
mesma dimensão semântica, embora transplantação ligue-se a uma ação de arrancar de um lugar para outro ou
de substituir; ao passo que a transposição liga-se à ação de conduzir de um lugar para o outro, ou a operação de
58
transferir ou transportar (cfe. CUNHA, Antônio Geraldo da. Dicionário etimológico Nova Fronteira da Língua
Portuguesa. Rio de Janeiro: Nova Fronteira, 1982, p. 783).
6
BIASI, Pierre-Marc de (Org.). “Théorie de ll’Intertextualité”. In: Encyclopedia Universais. Paris, s/d, p.1104-
1106.
7
GENETTE, Gérard. Palimpsestes. La littérature au second degré. Paris: Seuil, 1982.
8
Veja-se o ensaio de Francis Goyet que reflete aspectos da teoria de Michael Riffaterre atinentes às
aproximações entre imitação e intertextualidade (GOYET, Francis. “Imitatio ou intertextualité”. Poétique, Paris:
Seuil, p. 313-320, sept. 1987).
59
9
Embora os estudos de Ángel Rama foquem o contato cultural em países latinos das regiões urbanas de áreas
cosmopolitas com as subculturas regionais, os elementos da estrutura funcional de uma cultura, apontados pelo
autor (os assuntos, a cosmovisão e as formas literárias), podem ser aplicados em qualquer processo de
transposição literária (RAMA, Ángel. Transculturación narrativa en américa latina. México: Siglo Veintiuno
Editores, 1985, p. 34).
60
10
PRATT, Mary Louise. Os olhos do império: relatos de viagem e transculturação. Trad. Jézio H. B. Gutierre.
Bauru: EDUSC, 1992.
11
CANCLINI, Néstor Garcia. Culturas híbridas. Estratégias para entrar e sair da modernidade. Trad. Ana
Regina Lessa e Heloísa Cintrão. São Paulo: EDUSP, 1998.
12
BHABHA, Homi. O local da cultura. Trad. Myriam Ávila et alii. Belo Horizonte: Editora da UFMG, 2001.
13
BARTHES, Roland. Aventura semiológica. Lisboa: Edições 70, s/d, p. 12.
14
BALDENSPERGER, Fernand. “Literatura comparada: a palavra e a coisa”. In: COUTINHO, Eduardo F.;
CARVALHAL, Tânia (Orgs.). Literatura comparada: textos fundadores. Rio de Janeiro: Rocco, 1994, p. 65.
61
15
REMAK, Henry H. H. “Literatura comparada: definição e função”. In: COUTINHO; CARVALHAL (Orgs),
op. cit., p. 175.
16
Para Homi Bhabha, “o trabalho fronteiriço da cultura” funda-se no encontro com “o novo” que não faz parte
“do continuum de passado e presente”. Tal projeto cria “uma idéia do novo como ato insurgente de tradução
cultural”. Em decorrência, ele “retoma o passado como causa social ou precedente estético”, e essa arte “renova
o passado, refigurando-o como um ‘entre-lugar’ contingente, que inova e interrompe a atuação do presente”
(BHABHA, op. cit., p. 27).
62
presentes nas diversas fases históricas do Brasil sem a preocupação descritiva de todas
elas.
Seguem-se dois alinhamentos para proceder à contextualização da fábula na
Literatura Brasileira. O primeiro, o histórico, inscreve a fábula em um contexto mais
amplo, aquele desenhado pelos acontecimentos políticos e sociais, e o segundo, o
estético, faz dialogar a produção das fábulas e os momentos literários da época. Tais
procedimentos aqui pontuados são retomados por ocasião da leitura das categorias de
tradução, adaptação, citação crítica e desconstrução paródica que fundamentam a
leitura.
São introduzidos, agora, alguns posicionamentos em condições de esboçar traços
culturais brasileiros em correspondência com épocas históricas: a colonial, a imperial e
a republicana, esta compreendida em três etapas. A primeira é demarcada pelo período
de 1889 a 1930; a segunda, antecedida pela Revolução de 30, compreende o interregno
de 1934 a 1937, quando ocorre a ditadura de Vargas; e a terceira etapa vai de 1946 aos
tempos atuais, cortada por outra ditadura, a militar, de 1964 a 1985. Inclui-se nela a
fase da redemocratização, consolidada com a Constituição de 1988.
Em Dialética da colonização, encontra-se a proposta de uma teoria da cultura do
Brasil que, segundo Alfredo Bosi, “se um dia existir”, deverá ter como substância
essencial o cotidiano do povo brasileiro, abrangendo o físico, o simbólico e o
imaginário17. A tarefa proposta exige o recorte do modo de viver e da mentalidade das
diferentes classes sociais, tanto a erudita como a de massa. Quando referencia a cultura
popular, o escritor afirma não distinguir as duas esferas de composição, material e
espiritual ou simbólica, passando a afigurar um universo mais abrangente do que o
campo da presente pesquisa. Sobre o primeiro momento de nossa cultura, ressalta o
sucesso dos padrões de comportamento e linguagem, na transposição do Antigo ao
Novo Mundo, responsável por motivar “resultados díspares”18, pois a cultura aqui
17
BOSI, Alfredo. Dialética da colonização. São Paulo: Companhia das Letras, p. 234. Lembra-se que o autor
usa o termo transposição para marcar o transplante dos padrões de comportamento e linguagem do colonizador
ao colonizado.
18
Ibidem, p. 31.
63
19
Ibidem, p. 30.
20
Na tentativa de dimensionar a implantação da cultura européia no extenso território do Brasil, Sergio Buarque
de Holanda destaca a circunstância de ser o brasileiro ainda hoje um desterrado na própria terra e de possuir uma
herança cultural tributária de uma nação ibérica. O historiador recorda a situação de ser Portugal “um dos
territórios-ponte pelos quais a Europa se comunica com os outros mundos”. Assim, a nação portuguesa
configura-se em zona de fronteira e transição portadora de situação ambivalente em relação ao europeísmo, por
um lado dele afastado e por outro o mantendo “como um patrimônio necessário” (HOLANDA, Sérgio Buarque
de. Raízes do Brasil. 20. ed. Rio de Janeiro: Livraria Jose Olympio, 1988, p. 3).
21
Ibidem, p. 12.
22
A expressão, de autoria do escritor Ribeiro Couto, foi motivo de polêmica entre Cassiano Ricardo, contestador
do termo (Revista Colégio, São Paulo, n. 2, nov. 1948), e Sérgio Buarque de Holanda, seu defensor. O último usa
a expressão, “na falta de melhor”, com o sentido restrito de cordialidade, fruto de condições particulares de
nossa vida rural e colonial, que vamos rapidamente superando, e não com o sentido de uma possível bondade
fundamental dos brasileiros (carta-posfácio de Sérgio Buarque dirigida a Cassiano Ricardo, e inserida na
vigésima edição que serviu de leitura nesta pesquisa. Ibidem, p. 145).
23
Ibidem, p. 101.
64
Cascudo, nessa época falava-se em Portugal em “três festas do ano”, Natal, Páscoa e
São João24, celebrações que, tudo indica, foram cultivadas no Brasil.
De igual maneira, os historiadores da literatura contextualizam, ainda que de
forma não sistemática, os cânones de cada um dos momentos estéticos da
transposição25 em paralelo com os acontecimentos culturais da sociedade brasileira.
Alguns desses estudiosos encontram-se referidos aqui. Preliminarmente, registra-se a
quase ausência de informações sobre o papel e a produção da cultura popular nesse
processo.
Segundo José Veríssimo, o início de nossa colonização coincidiu “com a mais
brilhante época da história” dos portugueses, contudo tal brilhantismo “não passou” e,
talvez, não poderia passar “à sua grande colônia americana”. Registra a circunstância
de nenhum dos primeiros cronistas do Brasil consignar quaisquer formas de atividade
intelectual ou de circulação de livros. Em contrapartida, assinala uma “acidental e
vaga” referência à literatura nos escritos do Padre Antonio Vieira, quando este escreve
sobre as “mil lindezas” dos poetas baianos, em 1682, e reconhece, ainda que de
qualidade medíocre, a existência de algumas manifestações literárias que circulavam
em cópias ou pela tradição oral26. Acusa os portugueses de não terem trazido para o
Brasil contribuições do movimento literário que aquela data já ocorria em Portugal.
Aos primeiros colonizadores, incapazes de se integrarem à escassa poética colonial,
passam despercebidos traços culturais dos nativos, pelos portugueses classificados de
“broncos selvagens” cuja cultura expressava-se por mitos e lendas27. As referências à
24
CASCUDO, Luís da Câmara. Dicionário do folclore brasileiro. 10. ed. São Paulo: Global, 2001, p. 230.
25
Porém, essa não é a única possibilidade de leitura contextual das categorias de transposição. Trata-se aqui de
contextualizá-las em um cenário mais amplo organizado por movimentos estéticos e históricos.
26
Veríssimo refere-se não apenas à obra de Bento Teixeira, mas aos textos de Bernardo Vieira Ravasco, Padre
Antonio de Sá, Botelho de Oliveira, além das crônicas da terra elaboradas por Frei Vicente de Salvador, Gabriel
Soares, e da obra Diálogos das grandezas do Brasil, de “ignorado autor” (VERÍSSIMO, José. História da
Literatura Brasileira. Rio de Janeiro: Livraria José Olympio, 1969, p. 19). Embora Veríssimo considere
ignorada a autoria de Diálogo das grandezas do Brasil, o historiador Jose Aderaldo Castello credita a referida
obra a Ambrósio Fernandes Brandão (CASTELLO, José Aderaldo. Manifestações literárias da Era Colonial.
São Paulo: Cultrix, s/d, p. 64).
27
VERÍSSIMO, op. cit., 18-21.
65
cultura brasileira vão surgir nas escolas de “ler, escrever e contar” dos jesuítas,
destinadas aos índios. A sociedade brasileira, na primeira centúria da colonização
(1550-1600), desenvolveu-se, de acordo com Veríssimo, em conformidade com o
modelo português. Uma descrição mais minuciosa dessa sociedade, em 1618, encontra-
se na obra Diálogos das grandezas do Brasil, quando classifica a população em “cinco
condições de gente”: marítima, mercantil, mecânica, serviçal e lavradores, não
incluindo os oficiais públicos, o clero e os homens d’armas de conquista e defesa, por
considerá-los sem desejo de integrar-se à nova terra. A população de origem européia
logrou, pela ótica dessa obra, crescer socialmente ainda que através da fortuna e da
imitação dos costumes europeus28. Mais adiante, Veríssimo analisa a situação
administrativa da Colônia, tecendo elogios à capitania de Pernambuco, de Duarte
Coelho, a mais próspera, capaz de motivar a produção da “mais antiga obra brasileira”,
a Prosopopéia, de Bento Teixeira, em 1601. O historiador adverte aos críticos do autor
e da obra o fato de que, na Colônia e na Metrópole, “o homem de letras ainda sem
público que o pudesse manter” era obrigado “ao louvor hiperbólico, à lisonja enfática, à
bajulação rasteira” em troca de proteção ou paga de favor29.
Entretanto, as manifestações literárias no Brasil Colônia – as primeiras produzidas
por cronistas, viajantes e jesuítas europeus – não são consideradas como produção
brasileira pela maioria dos historiadores, entre os quais, Antonio Candido. Para melhor
compreender o pensamento de Candido, lembra-se sua distinção entre manifestações
literárias e literatura ao definir a última como “sistema de obras ligadas por
denominadores comuns”. Tais denominadores são identificados por elementos
intrínsecos de língua, temas e imagens, combinados com “elementos de natureza social
e psíquica”, e organizados historicamente30 em decorrência de uma consciência
nacional advinda do conhecimento da realidade local, do desejo de contribuir para o
28
Ibidem, p. 18-19.
29
Ibidem, p. 24.
30
CANDIDO, Antonio. Formação da Literatura Brasileira. 4. ed. São Paulo: Livraria Martins, 1957, v. 1, p.
23.
66
31
Ibidem, p. 72.
32
CASTELLO, op. cit., p. 29 e 123.
33
Ibidem, p. 141.
34
A Fábula do Ribeirão do Carmo foi publicada, em 1768, em Obras poéticas, de Cláudio Manuel da Costa. O
texto, com subtítulo de soneto, está construído por 42 versos agrupados em estrofes diversas. Iniciado por quatro
estrofes, sob forma de soneto, o poema desdobra-se em número preponderante de sextetos. Na fábula, o poeta
descreve, apesar das convenções árcades, a paisagem rústica do Ribeirão do Carmo que circunda a cidade de
Mariana, adaptando assim um episódio trágico-amoroso ao cenário brasileiro.
67
35
COUTINHO, Afrânio. Introdução à Literatura no Brasil. 9. ed. Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, 1978,
p. 42.
36
Ibidem, p. 78
37
KOTHE, Flávio R. O cânone colonial. Brasília: UnB, 1997, p. 295-317. Nessa abordagem sobre o cânone
colonial, Kothe sintetiza sua visão ao lembrar que “Duas linhagens básicas constituem a assim chamada
literatura colonial: a religiosa e a laica. O fator religioso também está na linhagem laica (por exemplo, na visão
paradisíaca) e a poesia dita religiosa tem um propósito político (por exemplo, na ‘conversão dos gentios’)”.
68
38
PICCHIO, Luciana Stegagno. História da Literatura Brasileira. Rio de Janeiro: Nova, s/d, p. 20.
39
Ibidem, p. 20.
40
Ibidem, p.30-33.
41
Ibidem, p. 34-35.
42
No Romantismo, o negro é representado na poesia de Castro Alves como vítima da intolerância humana. Não
é ocioso acrescentar que o poeta baiano foi um dos poucos poetas brasileiros a emprestar voz lírica a figuras
ficcionais femininas marginalizadas, como a mãe escrava (Mater dolorosa) e a menina negra (Manuela).
69
43
No folclore negro, conforme Arthur Ramos, o contador de história popular era um fazedor de alô ou conto,
determinando a expressão akpalô. A função desse contador era percorrer vários lugares narrando seus contos. O
pesquisador registra, também, o costume de chamar akpalô-kipatita aquele cuja sobrevivência vincula-se ao
“negócio de contar fábulas” (RAMOS, Arthur. O folclore negro do Brasil. Rio de Janeiro: Casa do Estudante do
Brasil, s/d, p. 150).
44
Ibidem, p. 36.
45
A pesquisa abrangeu as seguintes leituras: História da Literatura Brasileira, de Silvio Romero; História da
Literatura Brasileira, de José Veríssimo; Formação da Literatura Brasileira, de Antonio Candido; História
concisa da Literatura Brasileira, de Alfredo Bosi; História da Literatura Brasileira: prosa e ficção, de Lúcia
Miguel-Pereira; História da Literatura Brasileira, de Nelson Werneck Sodré; Introdução à Literatura
Brasileira, de Alceu Amoroso Lima; A Literatura no Brasil, organizada por Afrânio Coutinho; Introdução à
Literatura no Brasil, de Afrânio Coutinho; O cânone colonial, O cânone imperial, O cânone republicano, de
Flávio R. Kothe; e História da Literatura Brasileira,de Luciana Stegagno Picchio.
46
Segundo Márcia Abreu, o primeiro documento produzido pela Impressão Régia foi a Carta regia ao Conde da
Ponte: abrindo os portos do Brazil ao commercio directo estrangeiro, editada em 28 de janeiro de 1808
(ABREU, Márcia. Os caminhos dos livros. São Paulo: Mercado de Letras, 2003, p. 83). Contudo, a existência de
70
por via legal, exigia um processo controlado pela censura oficial. A pesquisa menciona
os títulos de belas-artes mais solicitados pelos habitantes do Rio de Janeiro em
requisições submetidas à censura portuguesa, entre 1769 e 1807. Os pedidos de
autorização não mencionam números de exemplares, mas é possível pensar, pelo
histórico das remessas, que fosse enviada uma centena de exemplares por unidade de
solicitação. Dentre as 519 obras requisitadas e enviadas para o Brasil, a maioria, num
total de 312, apresenta apenas uma única requisição. É significativa a circunstância de
as Fábulas de Esopo estarem presentes em 11 requisições. A pesquisa consigna, com
menor freqüência, as requisições de obras estrangeiras na língua de origem. Serve de
exemplo a solicitação, em 1801, feita por Paulo Martin, da obra Fables, de Phedro,
editada na capital francesa, em 1796. Trata-se de uma edição bilíngüe, em latim e
francês. De 1808 a 1821, em requisições submetidas ao Desembargo do Paço, no Rio
de Janeiro, encontra-se o registro de 28 requisições de Fables de La Fontaine47. Tais
pedidos e respectivas remessas marcam o primeiro momento da fábula entre nós, a
fábula importada, momento esse não incluído nas categorias aqui construídas pelo fato
de não ter sofrido o processo de transposição, definido neste trabalho como apropriação
cultural de um gênero literário por escritores e leitores brasileiros. O fato não exclui o
interesse por informações atinentes a esse momento.
Sinalizada pelo despertar ideológico da consciência nacional brasileira, processa-
se a passagem do Brasil Colônia ao Brasil Império, graças ao sentimento de lusofobia.
Em Formação histórica do Brasil, Nelson Werneck Sodré assinala não ter sido isolado
o processo da independência brasileira, pois “recebia reflexos europeus e americanos”.
Entre a conspiração de Tiradentes e o grito da Independência, decorre pouco mais de
impressoras clandestinas no Brasil, antes da chegada da Família Real, é testemunhada por diferentes
historiadores. Marisa Lajolo e Regina Zilberman registram a polêmica, no capítulo “Uma colônia sem imprensa
e sem livro”, sobre o funcionamento de tipografias no país. Conforme as autoras, Carlos Rizzini, ao historiar a
trajetória do livro no Brasil, dá ciência da ocorrência de “ensaios de tipografia durante a ocupação holandesa em
Recife” (1630-1654). Outro fato interessante na história da imprensa brasileira, de acordo com a mesma fonte,
deve-se à existência, não obstante curta, da tipografia, no Rio de Janeiro, de Diogo Barbosa Machado, autor da
Biblioteca Lusitana. Em 6 de julho de 1747, com menos de um ano de duração, a tipografia foi fechada por
ordem imperial (LAJOLO, Mariza; ZILBERMAN, Regina. A formação da leitura no Brasil. São Paulo: Ática,
1999, p.122-123).
71
47
ABREU, op. cit., p. 90-114.
48
SODRÉ, Nelson Werneck. Formação histórica do Brasil. 3. ed. São Paulo: Brasiliense, 1964, p. 181-189.
49
VERÍSSIMO, op. cit., p. 111-119.
72
50
Ibidem, p. 120-211.
51
CANDIDO, op. cit., v. 1, p. 271-272.
52
Ibidem, p. 306.
53
ABREU, Capistrano de. “Ensaios e Estudos” (1ª Série), p. 93-95. Apud CANDIDO, op. cit., v. 2, p. 18.
54
BOSI, Alfredo. História concisa da Literatura Brasileira. 3. ed. São Paulo: Cultrix, 1982, p. 96.
73
55
“O tema da Abolição e, em segundo tempo, o da República serão o fulcro das opções ideológicas do homem
culto brasileiro a partir de 1870. Raras vezes essas lutas estiveram dissociadas” (Ibidem, p. 181).
56
KOTHE, Flávio. O cânone imperial. Brasília: Editora da UnB, 2000, p. 67.
57
Ibidem, p. 76.
58
PICCHIO, op. cit., p. 161.
74
que a produção da fábula clássica entre nós enquadra-se em duas categorias, tradução e
adaptação. A primeira inicia-se, em 1849, com Recreio escolástico, de Antonio Maria
Baker, mas sua freqüência atravessa todos os períodos políticos e estéticos até a
atualidade, quando se manifesta em edições bilíngües com maior intensidade. A
segunda categoria, presente, também, em todos os momentos políticos e estéticos
brasileiros, consubstancia-se, a partir de 1852, com o arranjo da Collecção de fábulas
imitadas de Esopo e de LaFontaine, de Justiniano José da Rocha. Prossegue seu
tradicional emprego, em 1857, com a publicação de Fábulas de Esopo. Para uso da
mocidade, arranjadas em quadrinhas, de Paula Brito, e consolida sua prática, em 1860,
com a produção da obra Fábulas, de Anastácio Luis do Bomsucesso, que irá
fundamentar a segunda categoria de transposição.
Também, no Brasil Império, encontram-se as primeiras preocupações didáticas
com as fábulas, quando passam a constar da organização textual de livros escolares que
circulam nos educandários do país. Em Começos da literatura para crianças no Brasil,
Regina Zilberman faz menção à nota publicada pelo poeta Francisco Otaviano59 no
Jornal do Comércio, de 1851, sobre o livro infantil no Brasil. A nota esclarece que, em
1850, os livros de fábulas de Esopo foram substituídos nas escolas da Corte por outras
duas obras: Tesouro dos meninos e Simão de Nântua. O articulista citado lamenta a
troca efetuada pelo sistema educacional vigente, posicionando-se a favor da fábula por
considerá-la mais apropriada ao ensino primário em decorrência de sua ideologia
centrada na veiculação de princípios de vida e modelos de comportamento, ao contrário
dos livros acima citados, que estavam limitados a demonstrar fatos60.
59
Francisco Otaviano de Almeida Rosa (1825-1889) foi senador e destacou-se no campo literário com as obras
Cantos de Selma (1872) e Traduções e poesias (1881). Ao traçar o perfil literário do poeta, Bosi consigna a
popularidade dos versos: “Quem passou pela vida em branca nuvem / e em plácido repouso adormeceu, / quem
não sentiu o frio da desgraça, / que passou pela vida e não sofreu, / foi espectro de homem, não foi homem, / só
passou pela vida, não viveu” (BOSSI, op. cit., p. 129).
60
“Em 1850, nas escolas da Corte, a leitura das Fábulas de Esopo foram, em geral, substituídas pelo Tesouro
dos meninos, e finalmente pelo Simão de Nântua de Jussieu. Concordo que quaisquer desses dois últimos livros
contêm lições de moral mais pura; mas não sei se é um apego às reminiscências da infância, que me faz preferir
ao livro do filósofo escravo (Esopo). O que é verdade é que as boas fábulas são muito recomendáveis; enquanto
os outros livros se esforçam por demonstrar um fato, as fábulas ensinam um princípio, e tanto mais seguramente
que o menino é doutrinado, sem o perceber, por meio de um exemplo trivial de que ele vai por si mesmo tirar a
75
conclusão, que vem a ser uma máxima para a vida” (Apud ZILBERMAN, Regina. “Começos da literatura para
crianças no Brasil”. In: PAULINO, Graça. O jogo do livro infantil. Belo Horizonte: Dimensão, 1997).
76
enquanto que a transição do Império para a República foi suprida com o culto a
Euclides da Cunha. Mais adiante, conclui que a independência da história literária
brasileira, autores e obras, começa pela paródia e prossegue em “marcha triunfal sobre
a desgraça alheia”, não conseguindo representar “a tragédia do povo pobre e
oprimido”62.
A “posição incômoda do intelectual” da época diante da nova sociedade no
Brasil, configurada pela Revolução Industrial, é objeto de enfoque por Alfredo Bosi.
Por um lado, constrói “um rebelde e um protestatário” e, por outro, um “depositário de
desencantos e, o mais das vezes, conformista”63.
Com a chegada da República, no pensamento de Picchio, a sociedade brasileira
assiste à substituição da “aristocracia metropolitana do açúcar e do café” pela
“burguesia da base industrial e comercial”. Assinala, também, que, na literatura, a
ênfase incide sobre o ambiente, a raça, o momento. Dessa maneira, os modelos
pretéritos, cultuados pelos românticos, cedem espaço para fatos e personagens
contemporâneos64.
Na Primeira República, a fábula clássica prossegue sua trajetória de adaptação à
cultura brasileira, agora, sob duas proposições. Uma é representada pela produção de
Anastácio Luis do Bomsucesso que, impulsionada pelo pensamento inovador do
Romantismo, aborda questões políticas como os problemas de transição do regime
monárquico ao republicano. Para ilustrar tal proposição, referencia-se aqui a fábula O
Império e a República. Nela, o diálogo de enfrentamento ocorre entre duas
personagens, a jovem República e o velho Império. Enquanto o último, aniquilado e
triste, pergunta sobre as realizações republicanas, o primeiro, com eloqüência e
orgulho, proclama os feitos do novo regime que transformou o Brasil “num carro de
triumpho”. O velho corta-lhe o entusiasmo aconselhando “menos orgulho” e “um
61
CHACON, Vamireh. “A inauguração da República (imaginário e realidades)”. Revista Tempo Brasileiro, p.
25, out./dez. 1989.
62
KOTHE, Flávio. O cânone republicano I. Brasília: Editora da UnB, 2003, p. 42.
63
BOSI, 1982, op. cit.., p. 187.
64
PICCHIO, op. cit., p. 251.
77
65
BOMSUCESSO, Anastácio Luis do. Fábulas. Rio de Janeiro: Companhia Impressora, 1860, p. 244.
66
Sobre esse momento estético escreve Sodré: “A opulência verbal é o parâmetro a que se submetem os
escritores [...], e as formas desinteressadas e unilaterais de erudição alcançam a valorização máxima” (SODRÉ,
op. cit., p. 453), e, especificamente em relação a Coelho Neto, o escritor Francisco Barbosa o classifica como “o
mais típico representante do convencionalismo literário” (BARBOSA, Francisco de Assis. Achados do vento.
Rio de Janeiro: MEC/INL, 1958, p. 35).
78
67
ANDRADE, Mário de. Aspectos da Literatura Brasileira. 4. ed. São Paulo: Martins, 1972, p. 235.
68
O gosto e a inteligência do público leitor àquela época se sintonizavam com a principal tarefa desse
movimento estético que, segundo Sodré, consistiria “em destruir o existente, o dominante, o consagrado”
(SODRÉ, op. cit., p. 524).
79
69
“Face aos modelos arquetípicos, a obra literária entra sempre numa relação de realização, de transformação ou
de transgressão” (JENNY, Laurent. “A estratégia da forma”. Poética, Coimbra: Livraria Almedina, n. 27, p. 44,
1979).
80
Walter Benjamin
Friedrich Nietzsche
1
THEODOR, Erwin. Tradução: ofício e arte. São Paulo: Cultrix, 1983, p. 13.
81
2
GREIMAS. A. J. Dicionário semiótico. Trad. Alceu Dias Lima et alii. São Paulo: Cultrix, 1989, p. 465.
3
Ibidem, p. 466.
4
ARROJO, Rosemary. In: JOBIM, José Luís (Org.). Palavras da crítica. Rio de Janeiro: Imago, 1992, p.
415. Registra-se, também, o pensamento de P. Brunel, C. Pichois e M. Rousseau sobre a tradução “considerar
o escritor, a língua e o público sob um ângulo novo”. Para eles, o tradutor encontra-se dividido “entre a
submissão ao texto e seu temperamento, entre a crítica e a criação”, obrigando-se, ainda, a considerar o
público. As exigências do público “devem ser cuidadas mais que de costume, porque, postas à parte as
traduções clandestinas executadas a título de exercício de estilo ou de testemunho de amor por uma obra
estrangeira, a tradução corresponde sempre a uma violenta necessidade de publicidade, e sem escrúpulos,
proclama-se comercial e cosmopolita” (BRUNEL, P. et alii. Que é literatura comparada? São Paulo:
Perspectiva, s/d, p. 133).
5
Segundo María Jesús Pérez Quintero, a literatura traduzida deixa de ser considerada mero produto de
segunda categoria, cópia autorizada ou mal menor diante da superioridade do texto original que lhe serve de
modelo, para ser considerada instrumento complexo de mediação capaz de determinar fluxos de influência
entre culturas. O texto traduzido revela-se como “producto de un complejo proceso de comunicación
intercultural realizado bajo coordenadas lingüísticas y culturales distintivas cuyo estudio exige tomar en
consideración los parámetros estéticos y poéticos vigentes en el sistema receptor” (QUINTERO, Maria Jesús.
“Pero cómo te ha dado por leer traducciones? Algunas consideraciones sobre el estudio de la literatura
traducida”. Revista de Filología. Universidad de La Laguna: Madrid, n. 20, p. 266-267, 2002).
82
6
“As tensões entre o autor e o tradutor, língua-cultura de partida e língua-cultura de chegada, texto original e
texto traduzido sempre existirão. Eliminar tais tensões não é o escopo a que a tradução deva visar em nome da
fidelidade” (LARANJEIRA, Mário. Poética da tradução: do sentido à significância. São Paulo: EDUSP,
1993, p. 124).
7
LAGES, Susana Kampff. Walter Benjamin: tradução e melancolia. São Paulo: EDUSP, 2002, p. 215.
8
BENJAMIN, Walter. “Gesammelte Schriften”. Apud LAGES, op. cit., p, 202.
9
Ibidem, p. 215.
10
Ibidem, p. 88.
11
Ibidem, p. 88.
12
KAYSER, Gerhard R. Introdução à literatura comparada. Trad. Teresa Alegre. Lisboa: Fundação
Calouste Gulbenkian, s/d, p. 260-261.
83
13
Segundo Leonardo Arroyo, o principal catálogo de divulgação de obras literárias da época de Antônio
Maria Barker anunciava a obra Parnaso juvenil como uma coletânea de “Poesias morais colecionadas,
adaptadas e oferecidas à mocidade” (ARROYO, Leonardo. Literatura infantil brasileira. 2. ed. São Paulo:
Melhoramentos, 1992, p. 112).
14
Antônio Inácio de Mesquita Neves (1824 - ?), foi professor primário, poeta e jornalista. Além de Fábulas,
publicou Primeiros prelúdios de minha lira (1851), sendo, também, redator do periódico literário Matiz, de
Alagoas.
84
15
Político, poeta, biógrafo, teatrólogo e educador brasileiro, João Cardoso de Meneses e Sousa (1827-1915)
escreveu, também, Cântico do Tupi (1844), A harpa gemedora (1847), Camoneana brasileira (1880) e
Poesias e prosas seletas (1910).
16
“Nutro a vaidosa pretensão de que a infância achará nessas fábulas que se vão ler algumas principais
feições da fisionomia literária do fabulista e aprenderá de cor, sem susto, muitas dessas peças cujo estilo
procurei acomodar aos seus meios de compreensão” (SOUSA, João Cardoso de Meneses e. Fábulas. 2. ed.
Rio de Janeiro: Imprensa Nacional, Biblioteca Escolar do Conselho de Instrução Pública do Império, 1887, p.
17). O tradutor oferece a edição de mil exemplares ao Governo Imperial “para uso das escolas, se a obra fôr
julgada digna de ser adotada” (Ibidem).
17
LA FONTAINE, Jean de. Fábulas. Trad. Bocage et alii. São Paulo: Landy, 2003, v. 1, p. 42-46.
85
18
LOBATO, Monteiro. Fábulas. 37. ed. São Paulo: Brasiliense, 1986, p. 31.
19
Um estudo sobre figuras de retórica, publicado nos Estados Unidos em 1898, conceitua a fábula como uma
ficção narrativa com intenções de ilustrar uma máxima (BULLINGER, E.W. Figures of speech used in the
Bible. Michigan: Baker Book House, 1898, p. 243).
20
Para Antonio Candido, o provérbio consiste em um “instrumento de que o homem dispõe a fim de
interpretar e julgar, de identificar e prever” (CANDIDO, Antonio. O discurso e a cidade. São Paulo: Duas
Cidades, 1983, p. 115).
21
FRYE, Northrop. O código dos códigos: a Bíblia e a literatura. Trad. Flávio Aguiar. São Paulo: Boitempo,
2004, p.153.
86
Um lobo e um cordeiro
compelidos pela sede
tinham vindo
a um mesmo ribeiro;
o lobo estava mais acima e o cordeiro muito mais abaixo.
Então o salteador incitado pela goela voraz
trouxe um motivo de briga.
“Por que” diz ele, “fizeste turva a água a
mim que estou bebendo?”
O lanígero temendo em resposta diz:
“Como posso, dize, fazer isso de que te queixas, ó lobo?
O líquido corre de ti para os meus goles”.
Aquele rebatido pela força da verdade diz:
“Há seis meses disseste mal de mim”.
O cordeiro respondeu:
“Eu na verdade não era nascido”.
“Teu pai, por Hércules, diz aquele, disse mal de mim”.
E assim dilacera o agarrado com morte injusta.
22
Álvaro Ferdinando de Sousa da Silveira publicou, também, Trechos selectos, A língua nacional e o seu
estudo, e Lições de Português.
23
“Lupus et agnus/ compulsi siti/ venerant/ ad eundem rivum;/ lupus stabat superior/ agnusque/ longe
inerior./ Tune latro/ incitatus fauce ímproba/ intulit causam iurgii./ “Cur” inquit/ “fecisti turbulentam/
aquam/ mihi bibenti?”/ Laniger timens/ contra:/ “Qui possum,/ quaeso,/ facere quod quereris,lupe?”/ Liquor
decurrit/ a te/ ad meos haustus./ Me repulsus/ viribus veritatis/ ait:/ “Ante hos sex menses/ male dixisti mihi”/
Agnus respondit:/ “Equidem / non eram natu”/ “Tus pater hercle”/ inquit ille / “male dixit mihi”/ Atque ita/
lacerat correptum/ nece iniusta/ Haec fabula sripta est/ propter illos homines/ qui opprimunt innocentes/
causis fictis” (SILVEIRA, Álvaro Ferdinando de Sousa da. Algumas fábulas de Fedro. São Paulo: Livraria
Francisco Alves, 1927, p. 15-16).
87
Esta fábula foi escrita por causa daqueles homens que oprimem
os inocentes por motivos fingidos24.
Note-se que a tradução de Sousa da Silveira, com base no original citado e publicado
em Paris, no ano de 1895, traz algumas modificações em relação a outras traduções,
em Língua Portuguesa, do mesmo texto de Fedro. Ao comparar a tradução de Sousa
da Silveira com a primeira tradução no Brasil da obra completa do fabulista latino,
executada por Mesquita Neves, em 1884, percebem-se algumas diferenças
fundamentais entre elas. A tradução de Neves apresenta, à guisa de subtítulo, o
primeiro verso – É fácil oprimir o inocente –, procedimento ausente na tradução de
Silveira. Diferem também com respeito à metrificação, processada em hexâmetros (o
decassílabo em língua portuguesa) por Neves, seguindo o modelo de Fedro em suas
fábulas, enquanto Silveira opta pela tradução em versos livres. É provável que a
intencionalidade do último tradutor tenha por motivo o fato de tal metrificação
facilitar a adoção da obra em sala de aula.
Os estudos sobre o tema destacam ainda, entre os tradutores da fábula clássica,
a produção de Maximiano Augusto Gonçalves25 (Fábulas de Fedro – 1937),
composta por uma coletânea com 31 narrativas traduzidas de Fedro. Os textos dessa
coletânea destinam-se à quarta e à quinta séries do curso ginasial. Há que insistir na
semelhança do procedimento de destinação das fábulas às classes mais adiantadas,
adotado, também, pelo educador catarinense Henrique da Silva Fontes, conforme é
demonstrado e refletido mais adiante.
Incluídos no grupo dos tradutores da fábula clássica pertencentes ao século
passado, dois outros autores de coletâneas freqüentam as páginas dos estudos sobre
24
SILVEIRA, op. cit., p. 15-16.
25
Maximiano Augusto Gonçalves, professor do Colégio Pedro II, no Rio de Janeiro, escreveu vários livros de
poesias, contos e livros didáticos. É, também, de sua autoria a obra Fabulário, publicada em 1937. Embora
nesta pesquisa não se tenha localizado a referida obra, foram encontradas três fábulas extraídas da mesma e
reproduzidas em livros didáticos do autor, a saber: A raposa e a máscara, As duas panelas e O caldo de
pedra. Esta última aparece, também, embora com título diferente – A sopa de pedra – em sua obra Os mais
belos contos do folclore; há que se acrescentar que A sopa de pedra busca seu modelo em um conto popular
tributário do folclore português.
88
26
Entre as obras de Mário Donato destacam-se Lendas maravilhosas da Alhambra e a coletânea de contos
populares Espertezas do jabuti.
27
Dintingui-se que Antonio Sales (1868-1940), autor pouco conhecido, foi poeta, romancista, jornalista e
crítico, sendo a obra mais citada o romance Aves de arribação (1914).
28
AMADO, Milton; AMADO, Eugênio. Fábulas de La Fontaine. Belo Horizonte: Itatiaia, 1989.
29
SMOLKA, Neide C. de Castro. Esopo. Fábulas completas. São Paulo: Moderna, 1994.
89
89
1
“Por no considerar nada más que el sistema de las obras, es decir, la ‘red de lás relaciones que se establecen
entre los textos’– la ‘intertextualidad’– que mantienen con los otros ‘sistemas’ que funcionan en el ‘sistema-
90
de-sistemas’ constitutivo de la sociedad” (BORDIEU, Pierre. “El campo literário. Requisitos críticos y
princípios de método”. Revista Critérios, n. XII, p. 25, 1990).
2
Uma das primeiras menções a escritores brasileiros freqüentadores do gênero, refere-se ao Marquês de
Maricá, autor de Máximas, pensamentos e reflexões (1837), coletânea de aforismos, a maioria imitação de
moralistas franceses, obra cujo mérito parece limitado à criação de máximas passíveis de serem usadas como
sentença moral de fechamento das fábulas traduzidas na época. O Marquês, nascido Mariano José Pereira da
Fonseca (1771-1848), desempenhou papel importante no cenário político e cultural brasileiro. D. Pedro I
nomeou-o ministro da Fazenda e senador, além de conceder-lhe os títulos nobiliárquicos de visconde e de
91
marquês. Sua bibliografia compreende Máximas (1846), Novas reflexões (1848), Últimas máximas (1849) e
Coleção completa (1850), reunindo 4.188 máximas.
3
Jornalista, tradutor, crítico e escritor brasileiro, Justiniano José da Rocha (1812-1862) foi um pré-romântico
pertencente à Sociedade Filomática e responsável pela introdução da ficção em folhetim no Brasil. É de sua
autoria um texto ficcional, Os assassínios misteriosos (1839), e um político, sob forma de manifesto, Ação,
reação e transação (1855). A ocasião é oportuna para expressar os meus agradecimentos à Biblioteca
Nacional pela cessão em microfilme da primeira edição da obra Collecção de fabulas imitadas de Esopo e de
LaFontaine (1852), publicada no Rio de Janeiro pela Tipografia Episcopal de Agostinho de Freitas
Guimarães & Cia.
4
CURTIUS, Ernst Robert. Literatura européia e Idade Média latina. Rio de Janeiro: INL, 1957, p. 82-90.
5
ROCHA, Justiniano José da. Collecção de fabulas imitadas de Esopo e de Lafontaine. Rio de Janeiro:
Tipografia Episcopal Agostinho de Freitas Guimarães & Cia., 1852, p. 2.
92
7
Ibidem, p. 6-7.
8
Na impossibilidade de cotejar os originais, o processo comparativo com os textos de Esopo é feito ao longo
do trabalho com base na tradução direta do grego, elaborada por Neide Smolka (ESOPO. Fábulas completas.
São Paulo: Moderna, 1994). Idêntico procedimento é assumido com os textos de Fedro, a partir da tradução
de Antônio Inácio de Mesquita publicada pela primeira vez no Brasil em 1884 (FEDRO. Fábulas. Campinas:
Átomo, 2001); e com os textos de La Fontaine, na coleção traduzida em dois volumes pelos irmãos Milton
Amado e Eugênio Amado (LA FONTAINE, Jean de. Fábulas de La Fontaine. Belo Horizonte: Itatiaia,
1989).
9
“Um lobo, ao ver um cordeiro bebendo de um rio, resolveu utilizar-se de um pretexto para devorá-lo. Por
isso, tendo-se colocado na parte de cima do rio, começou a acusá-lo de sujar a água e impedi-lo de beber.
Como o cordeiro dissesse que bebia com as pontas dos beiços e não podia, estando embaixo, sujar a água
que vinha de cima, o lobo, ao perceber que aquele pretexto tinha falhado, disse: ‘Mas, no ano passado, tu
insultaste meu pai’. E como o outro dissesse que então nem estava vivo, o lobo disse: ‘Qualquer que seja a
defesa que apresentes, eu não deixarei de comer-te’. A fábula mostra que, ante a decisão dos que são maus,
nem uma justa defesa tem força” (ESOPO, op. cit., p. 126).
94
10
Considera-se válida a informação de que o escritor e poeta Francisco de Paula Brito (1809-1861), ainda
jovem, tornou-se tipógrafo e, graças a essa profissão, fazia contatos freqüentes com escritores notáveis, o que
o motivou a constituir sua própria editora. Em 1849, fundou a revista Marmota Fluminense, em cujas páginas
Machado de Assis publica seus primeiros versos e artigos.
11
BRITO, Francisco de Paula. Fábulas de Esopo. Rio de Janeiro: Typografica Dous de Dezembro, 1867, p.
2-3. Também é oportuno aproveitar a ocasião para expressar os meus agradecimentos à Biblioteca Nacional
pela cessão em microfilme da primeira edição dessa obra.
95
Brito conclui pelo mérito das fábulas de Esopo como contos cuja narração é útil e
necessária desde a primeira infância, pois ensinam a formar o juízo, e os costumes
dos meninos.
É possível perceber certo tom paternalista do autor, quando restringe a
utilidade das fábulas a todos aqueles, que não tem maiores conhecimentos12. Por
outro lado, questiona-se a validade das fábulas, no contexto educacional de nossos
dias, por diferentes razões, entre as quais se acentuam a ingenuidade e repetição do
desenho comportamental e o tom dogmático e imperativo da sentença moral. A
dúvida assenta-se no fato de a filosofia pedagógica atual buscar despertar, nas
crianças, os princípios de reflexão e desenvolver a escolha pessoal. Assim, há que se
considerar outros ângulos quanto à manutenção das fábulas no cenário escolar
brasileiro.
Retomando os questionamentos da proposta de Paula Brito, assinala-se que a
repetência dos termos moral, moralidades, juízo e costumes, encontrados no
Prólogo, expressa o comprometimento com as prescrições comportamentais,
implícitas no corpo narrativo e explícitas na moralidade. A motivação pedagógica e
moralizante que permeia todo o fabulário de Paula Brito pode ser evidenciada na
fábula primeira da obra, intitulada O gallo e a perola:
12
Ibidem, p. 4-10.
96
MORALIDADE.
De exemplo serve, aos leitores,
Esta Fabula moral,
Que, lendo tudo, se esquecem
Da obrigação principal.
Essa fábula não foi encontrada em várias versões de Esopo para a língua portuguesa;
porém, a mesma consta do fabulário de Fedro com o título um pouco diferenciado –
O frango e a pérola14. Texto semelhante encontra-se, também, em La Fontaine,
nominado de forma idêntica, O galo e a pérola15, mas desdobrado em duas
narrativas. A primeira registra a ida do galo à joalheria, após ter encontrado a pérola,
e sua fala: “É rara, eu sei: vê que brilho!/ Mas juro que um grão de milho,/ pra mim,
13
Ibidem, p. 11-13.
14
“Muitas vezes despreza-se o melhor/Um frango esgarafunhava/ No monturo provisão,/ Quando feriu-lhe a
atenção/ Uma pérola, que trava/ Entre o bico, – ‘Iniqüidade!/ Disse em tom grave e profundo;/ Ver tanta
preciosidade/ Num lugar sórdido, imundo!/ Oh! Se acaso alguém te visse,/ Dando-te o justo valor,/ Talvez te
restituísse/ O primitivo esplendor./ Eu que te achei, nenhum preço/ Ligo ao teu merecimento;/ Porque, além
do meu sustento,/ De coisa alguma careço./ E, por dizer a verdade,/ Não te enxergo a utilidade.’/ Na dedução
deste conto,/ Faço aqueles conhecer,/ Que dos meus versos o ponto/ Não sabem compreender” (FEDRO.
Fábulas, op. cit., p. 100).
15
“Um galo, escavando o chão,/ acha uma pérola, e então/ vai até a joalheria./ ‘É rara, eu sei: vê que
brilho!/ Mas juro que um grão de milho,/ pra mim, tem maior valia!/ Herdou um tolo, de um sábio, belo e
precioso alfarrábio,/ e o levou à livraria./ ‘Vê que tesouro, que achado! Mas juro que um só ducado, pra
mim, tem maior valia!” (LA FONTAINE, op. cit., p. 121-22).
97
tem maior valia!”. A segunda retoma o tema com outra personagem, um tolo
herdeiro de belo e precioso alfarrábio, sua ida a um outro estabelecimento, a livraria,
para avaliação e, por último, o pronunciamento: “Vê que tesouro, que achado!/ Mas
juro que um só ducado,/ pra mim, tem maior valia!”.
O texto de Paula Brito apresenta alterações e adaptações em relação ao texto de
Fedro. Uma primeira alteração diz respeito à estrutura da fábula em quadras
populares muito ao gosto de alguns poetas românticos brasileiros, rimando o segundo
com o quarto verso. Na apresentação gráfica do texto, o primeiro verso de cada
quadra aparece recuado em relação ao alinhamento dos três seguintes, na narrativa e
na moralidade. Outra alteração situa-se no alongamento narrativo. Enquanto o texto
de Fedro é composto de dezoito versos na narrativa e quatro na moralidade,
apresentando-se a fábula antecipada por uma máxima moralizante, a adaptação de
Paula Brito processa-se nos quartetos, cinco narrativos e três moralizantes.
As adaptações efetuadas no corpo narrativo são mínimas. Citam-se duas
circunstâncias: uma de a personagem possuir linda plumagem e de comer migalhas e
bichinhos, e a outra, de ser o objeto uma fina e linda pedra. Cita-se, ainda, que a
pedra encontra-se no bico do galo em uma fábula, e, em Paula Brito, nas unhas do
galo, a quem juízo não falta. O diálogo entre o frango e a pérola é mais evidente
nesse último texto, pela presença do vocativo (ó fina pedra) e das interrogações (Por
que vens, ó fina pedra [...]?; Vens-me offender com teu brilho?). No desfecho, Fedro
declara que o galo não enxerga utilidade na pérola, enquanto Paula Brito registra o
desprezo do frango pela pedra ao afirmar Sem nella querer tocar. A moralidade do
texto de Fedro admite dupla leitura, o conto pode estar sendo desvalorizado pelo
leitor ou o leitor não identifica a moralidade como ponto axial da fábula. No texto de
Paula Brito, constata-se a comparação metafórica entre a atitude do galo que
encontra uma linda pérola e o procedimento dos leitores que lêem muito, mas
aproveitam pouco; ou o procedimento daqueles que, ao lerem as fábulas de Esopo,
acham graça na narrativa sem atentarem à moralidade.
98
16
Julgo importante registrar que, em paralelo ao exercício da medicina, no Rio de Janeiro, Anastácio Luis do
Bomsucesso (1833-1899) dedicou-se, também, ao cultivo das fábulas como “poeta menor”, segundo Nelson
Werneck Sodré (SODRÉ, Nelson Werneck. História da Literarura Brasileira. 4. ed. Rio de Janeiro:
Civilização Brasileira, 1964, p. 318). A obra Fábulas apresenta-se dividida em dez capítulos, denominados
pelo autor de “livros”. As duzentas narrativas estão distribuídas em número variável da primeira à décima
parte: 20, 23, 23, 24, 18, 20, 20, 20, 18 e 14, respectivamente (BOMSUCESSO, Anastácio Luis do. Fábulas.
Rio de Janeiro: Companhia Impressora, 1860 – microfilmagem cedida pela Biblioteca Nacional).
99
Dá a formiga o labor
A ‘cigarra dá o canto,
Ao leão força, vigor,
17
“No inverno, as formigas estavam fazendo secar o grão molhado, quando uma cigarra, faminta, lhes pediu
algo para comer. As formigas lhe disseram: ‘Por que, no verão, não reservaste também o teu alimento?’. A
cigarra respondeu: ‘Não tinha tempo, pois cantava melodiosamente’. E as formigas, rindo, disseram: ‘Pois
bem, se cantavas no verão, dança agora no inverno./A fábula mostra que não se deve negligenciar em
nenhum trabalho, para evitar tristezas e perigos” (ESOPO, op. cit., v. 1, p. 73).
100
Ao colibri o encanto,
E às rolinhas amor.
18
BOMSUCESSO, op. cit., p. 217.
19
“Cumpre-me apenas lembrar que Joaquim José Teixeira publicou o seu precioso volume de fábulas em
1861; Veríssimo José do Bomsucesso publicou o seu pequeno opúsculo tres annos depois, em quanto que a
publicação das minhas fábulas teve começo em 1854” (Ibidem, p. 264-265). Embora a minha busca desse
“pequeno opúsculo” não tenha alcançado sucesso, na obra O Brasil literário, de Ferdinando Wolf, há um
interessante comentário sobre a produção de Joaquim José Teixeira: “Suas fábulas, têm, é verdade, o defeito
das modernas. Em vez de atentarem à natureza, ao caráter e aos costumes dos animais, transformam-nos em
101
Bomsucesso menciona o fato de Joaquim José Teixeira20 publicar sua obra, Fábulas,
em 1861 e de Veríssimo José do Bomsucesso21 ter publicado uma obra com título
idêntico, Fábulas, em 1864.
Dessa época, menciona-se, ainda, as fábulas de Joaquim Serra22, que
costumava assinar seus escritos literários com o pseudônimo de Pietro de
Castellamare. É interessante destacar que, apesar de não ser mencionado pelos
historiadores, o escritor comparece com várias fábulas em livro escolar catarinense, a
Série Fontes, lidas posteriormente neste trabalho.
Nos fins do século XIX, agora sob a égide do movimento parnasiano, Coelho
Neto23 retoma os temas da fábula em sua produção artística. O escritor filia-se à
categoria de adaptação de modo semelhante ao adotado por Anastácio Bomsucesso,
quando inova o modelo canônico, porém, empresta ênfase valorativa à forma.
Vocábulos eclipsados retornam à circulação, e uma linguagem caída em desuso é
restaurada. Nas duas obras dedicadas ao tema, Apólogos: contos para
creanças(1904) e Fabulário (1907), reúne 33 narrativas cuja função social de
desenvolver o culto à pátria e a devoção aos bons costumes serve, em última
instância, para harmonizar o comportamento individual ao modelo coletivo vigente.
Entretanto, os floreios verbais, evidenciados no uso de palavras arcaicas, adjetivação
homens disfarçados; todavia possuem graça e têm na sua maior parte um fim político. Poderá servir de
exemplo: O burro político, O raposo monarquista e O cão vendedor e comprador” (WOLF, Ferdinando. O
Brasil literário. São Paulo: Editora Nacional, 1955, p. 310).
20
Anoto aqui pelas mesmas razões expostas anteriormente, alguns traços biográficos e bibliográficos a
respeito do autor Joaquim José Teixeira (1811-1885). Conhecido como poeta e romancista, exerceu a
magistratura chegando a presidente de Sergipe. Escreveu Elogio dramático (1840), Versos (1865) e O novo
Gil Brás (1876), entre outros.
21
A principal obra do poeta e jornalista Veríssimo José do Bomsucesso Júnior (1842-1886) parece ter sido
Harpejos d’alma (1865).
22
Político, jornalista, teatrólogo e co-fundador do Instituto Literário Maranhense, Joaquim Serra (1838-1888)
é lembrado pelos estudiosos da Literatura Brasileira por sua obra Versos (1868).
23
O escritor maranhense Henrique Maximiano Coelho Neto (1864-1924) foi deputado federal, jornalista,
presidente da Academia Brasileira de Letras e chegou a ser eleito o Príncipe dos Prosadores Brasileiros.
Amplamente citado em nossa historiografia pela extensão e diversificação de seu fazer artístico, registra-se
que: “Dos trezentos volumes em que poderia ter guardado a sua seara de lavrador da palavra, Coelho Neto
publicou cento e vinte. E aí se enfileiraram contos, novelas, romances, crônicas, peças de teatro, discursos e
artigos de jornal” (MONTELLO, Josué. Caminho da fonte. Rio de Janeiro: Instituto Nacional do Livro, 1959,
p. 305).
102
24
NETO, Maximiliano Coelho. Fabulário. 3. ed. Porto: Livraria Chardron, 1924, p. 13.
103
conflito entre as personagens e no compromisso com a moral, ainda que essa não
esteja presente sob a forma explícita de sentença.
Além dos supracitados adaptadores da fábula à cultura brasileira do século
XIX e primórdios do século XX, como é o caso de Coelho Neto, cuja produção
inicia-se no século XIX e conclui-se no seguinte, considera-se oportuno incluir
também uma série de fabulistas e suas coletâneas, escritas nos séculos XX e XXI,
algumas delas dedicadas ao uso em sala de aula.
Assim, durante o primeiro quartel do século XX, a fábula clássica adaptada
reaparece, entre nós, mais uma vez ligada aos livros escolares. A obra do professor
João Kopke25, Fábulas, editada em 1910, com o subtítulo Leituras morais e
instrutivas. Para uso das classes de língua materna, indica a intencionalidade e a
destinação dos textos. A coletânea composta por 45 narrativas, além do “arranjo”26
de algumas fábulas do cânone clássico, inclui vários contos populares, que buscam
incutir, na criança brasileira, o espírito moralizante da época pelas atitudes
comportamentais das personagens e pela moral declarada na quadra final da narração
da história27. Tais particularidades e algumas outras podem ser comprovadas na
leitura de O cavallo e o cão:
25
Na observância de procedimentos de identificação dos fabulistas citados, informa-se que João Kopke foi
diretor do Instituto Henrique Kopke, em São Paulo (SP), durante a primeira década do século XX.
26
Acrescenta-se que, na capa do livro Fábulas, lê-se a observação a respeito da possibilidade de o leitor
encontrar nele as fábulas para serem usadas nas classes de língua materna “arranjadas pelo director” do
Instituto Henrique Kopke, o professor João Kopke.
27
Ao idealizar sua coletânea de fábulas, Monteiro Lobato faz breve comentário ao amigo Godofredo Rangel
sobre a obra de Kopke: “há umas fábulas de João Kopke, mas em verso – e diz o Correia que os versos de
Kopke são versos de Kopke, isto é, insulsos e de não fácil compreensão por cérebros ainda tenros”
(LOBATO, Monteiro. A barca de Gleyre. São Paulo: Brasiliense, 1951, tomo 2, p. 193).
104
“Aprecias o chicote?”
Lhe pergunta sem mais nada
O cavallo. Não nos consta
Que resposta fosse dada.
28
KOPKE, João. Fábulas. 6. ed. São Paulo: Francisco Alves & Comp., 1912, p. 114-115.
105
29
Seguindo a tradição de outros escritores seus contemporâneos, Baltasar de Albuquerque Martins Pereira
(1862-1928) atuou na área política na condição de deputado federal. No campo literário, foram produzidas
crônicas, poesias e prosa, além de textos jornalísticos.
30
Transcreve-se, aqui, para uma leitura mais completa, a observação crítica de Oiticica: “São fabulas
originaes e não mero acommodamento de alheias ao vernáculo. O Sr. B. Pereira cita o livro de Taine e mostra
haver assimilado a theoria do grande critico. Isso bastou para, na realização, pairar muito acima dos demais
fabulistas em língua portuguesa” (OITICICA, José. Noções geraes de literatura. Rio de Janeiro: Livraria
Francisco Alves, 1929, p. 458).
106
31
Ibidem, p. 459.
107
fábulas, reunidas na obra Fábulas e alegorias. Entre seus críticos, Agrippino Grieco,
por exemplo, denunciou a falta de unidade, o abuso da faculdade de versejar e a
“prosa doméstica”33. O fabulista defendeu-se dessa crítica justificando suas fábulas
pela originalidade e beleza: “As fabulas são novas, um dos mais bellos livros de
fabulas de todas as literaturas”34. Mais tarde, inclina-se diante da crítica,
reconhecendo que sua coletânea abriga “imitações, paraphrases e impressões de
leituras”35.
Na leitura processada, da coletânea de Catulo, constatou-se a formação de
pares inusitados (O cavallo e a preguiça; O burro e o cavallo; O carvão e o tóro de
lenha; O astrônomo e o mendigo), postura que de certa forma repete o modelo das
personagens nas fábulas de Bomsucesso, ou seja, a tendência de acentuar o embate
típico do cânone clássico, e a raridade de ilustrar a narrativa por uma moral explícita,
afigurando-lhe tal procedimento “pedantesco demais” ou “mercadoria de difficil
colocação”, principalmente às crianças36. Para exemplificar essa tendência de não
comprometimento com ensinamentos de ordem moral, veja-se a fábula O cavallo e a
preguiça:
32
O primeiro livro de poemas de Catulo da Paixão Cearense (1863-1946) foi O Marruêro (1912). Depois
lançou Meu sertão (1918), Sertão em flor (1919), Mata iluminada (1928) e Alma do sertão (1928).
33
“O caráter mudável, a falta de unidade do volume de apólogos, traindo a procedência múltipla das
inspirações, fazem, da collectanea, antes um mostruário de personalidades de fabulistas velhos e revelhos, que
a criação inédita, realmente reveladora, de um fabulista novo em folha [...]. Psychologicos estes versos de
Catullo? Isto é o que menos me preoccupa, só me preoccupando que sejam melodiosos. E, infelizmente, nem
sempre são melodiosos, porque o autor, abusando da sua incoercível faculdade de versejar, cáe facilmente na
prosa doméstica, e, ao invés de voar, anda e anda com pés de chumbo” (OITICICA, op. cit., p. 461-462).
34
“São cento e uma fabulas. Custa seis mil réis. Tem 245 paginas. O papel é optimo e a impressão é boa. As
fabulas são novas. Pois bem. Que o leitor compre um exemplar. Leia-o para ignorantes e para sábios. Se
depois de lê-lo todo, não disser que acabou de ler um dos mais bellos livros de fabulas de todas as literaturas,
a primeira vez que me encontrar, parta-me a cara” (CEARENSE, Catulo da Paixão. Fábulas e allegorias. Rio
de Janeiro: Civilização Brasileira, 1934, p. 464).
35
Ibidem, p. 465.
36
“A rigor, Catulo infunde certa graça a esta funcção didática de extrair de um incidente, às mais das vezes
cômico, uma conclusão amarga, procurando tudo dizer sem o recurso final da moralidade, seja porque um tal
effeito se lhe afigure pedantesco demais, seja porque isso de moralidade lhe pareça mercadoria de difficil
collocação nos tempos que correm, até mesmo entre as crianças, sem excluir as crianças de collo”
(OITICICA, op. cit., p. 461).
108
Por vocação, Catulo é mais poeta que fabulista, e talvez seja essa uma das razões que
o levam a distanciar-se do caráter exemplar da fábula européia. Quando a moralidade
presentifica-se na narrativa, a sentença condenatória é evitada.
É interessante observar que, não obstante o título, as fábulas de Catulo, assim
como as narrativas de Bomsucesso, Coelho Neto, Kopke, Baltasar Pereira e de quase
todos os adaptadores, tendem mais à narração típica do conto popular, pelo
alongamento da história, pela adequação às circunstâncias espaciais e temporais e
pela transformação das personagens do fabulário clássico em espécies nativas.
Em idêntica linha de narrativa popular pode-se incluir no presente estudo a
ficção regionalista operada, por exemplo, em Terra de sol (1912), do escritor
Gustavo Barroso38. A recolha do material componente da coletânea deu ênfase às
37
CEARENSE, op. cit., p. 48-49.
38
Gustavo Dodt Barroso (1888-1959) foi deputado federal, fundador do Museu Histórico Nacional, pertenceu
a Academia Brasileira de Letras, tendo cultivado vários gêneros, com ênfase em temáticas ligadas ao folclore.
Entre suas obras destacam-se: Praias e várzeas (1915), Heróis e bandidos (1917), Ao som da viola (1921),
Mula-sem-cabeça (1922), O sertão e o mundo (1924) e Alma sertaneja (1924). Na obra Ao som da viola,
109
fábulas que, pela tradição oral, circulam entre sertanejos. Apesar de Barroso
reconhecer que entre os tabaréus não se encontrem “reminiscências totêmicas”, nem
essa tradição “constrói ciclos de lendas explicativas”, porém, as personagens
consubstanciam-se em figuras de animais. Na leitura de algumas narrações dessas
fábulas, constata-se que o processo narrativo se abre com a clássica evocação dos
tempos primordiais: “ao tempo em que os animais falavam”. Essa é também a marca
ficcional dos contos populares que, mais tarde, é resgatada pela visão do Iluminismo.
Lembra-se que os iluministas buscaram suavizar o desfecho da maioria dos
contos populares endereçados às crianças, sobretudo aqueles ainda tributários da
Idade Média. Contudo, as coletâneas dos irmãos Grimm apresentam marcas de uma
realidade pintada com as tintas do horror, sinalizando a fase de transição entre a
visão pessimista, em textos de violência e agressão, típica da educação medieval, e a
visão idealista de valores, instaurada pelo Iluminismo, em textos narrativos sem a
pregação pelo terror. Segundo Darnton, uma outra estratégia da política iluminista no
campo educacional pode ser circunscrita à secularização da educação, o que em
paralelo determina como último estágio desse comportamento “o surgimento das
modernas disciplinas escolares”39, já no século XIX.
Retomando o tema das fábulas em Gustavo Barroso, transcreve-se, aqui, O
cavalo velho, uma das narrativas de seu fabulário:
reeditada pela Imprensa Nacional em 1950, há um capítulo denominado Fábulas, com os seguintes textos: A
pretensão do sapo, O gato e a onça, A onça e o bode, A onça e a raposa, As fábulas do urubu, O calangro e a
largatixa, A raposa e o sapo, O casamento do calango e O casamento do rato com a catita. É de sua autoria,
também, Apólogos orientais (1920), um livro de fábulas e ensinos morais.
39
Essa digressão encontra seus fundamentos no texto O grande massacre dos gatos e outros episódios da
história cultural francesa, de Robert Darnton. Trad. Sonia Coutinho. 2. ed. Rio de Janeiro: Graal, 1986, p.
270.
110
A fábula produzida por Barroso imbrica-se aos contos populares. Tais narrativas
circulam entre os sertanejos e operam um procedimento alegórico idêntico às fábulas
clássicas, quando os animais passam a ser ícones das virtudes e dos defeitos
humanos. Segundo o autor, no imaginário interiorano brasileiro, por exemplo, o
gavião representa a malvadez; a onça, a ferocidade; e o gato, quando preto, “encarna”
o espírito do mal41.
Válido é o registro, no campo das adaptações da fábula à cultura brasileira, de
outras coletâneas destinadas ao público infanto-juvenil que mesclam a fábula clássica
com a fábula integrante do folclore brasileiro42. No quadro de contribuições para
revitalizar o gênero, registra-se, primeiro, a iniciativa de Sylvio Luiz Panza, autor da
coletânea Fábulas divertidas, configuradas por dez fábulas construídas com duas
particularidades que se expressam pela presença da sentença moral versificada e de
pares inusitados de personagens: a cobra e o rato, o sapo e os mosquitos, o polvo e o
40
SANTOS, Yolanda dos (Seleção e tradução). “Lendas, fábulas e apólogos”. In: Antologia da literatura
mundial. São Paulo: Gráfica Carioca, 1958, p. 141.
41
BARROSO, Gustavo. Terra e sol. Rio de Janeiro: Editor Benjamin de Aguila, 1912, p. 259.
42
Entre os adaptadores mais referendados, em particular em livros didáticos, além dos já mencionados nesta
tese, citam-se: Paulo Menotti Del Picchia, Paulo Mendes Campos, Renato Sêneca de Sá Fleury, Mary França,
Tatiana Belinki, Veronica Hutchinson, J. Pimentel Pinto, Eunice Canini, Ana Maria Machado, Helme Heine,
Lídia de Moraes, Marina Colasanti, Maria Colaço, Clemente Brandenburger, Rachel de Queirós, Olavo Bilac,
Heloisa Jahn, Ítalo Amadio, Ruth Rocha, Hermínio Almendros, Hans Gärtner, Fernanda Lopes de Almeida,
Vera Barreto, Regina Drummond, Sylvia Orthof, Zilda Abujamra Daeir, Viriato Correia, Betty Coelho Silva e
Luciana Garcia.
111
43
AZEVEDO, Ricardo. Contos de bichos do mato. São Paulo: Ática, 2005.
44
ESOPO, op.cit., p. 28.
112
onça, por exemplo, Bandeira, após a transcrição da fábula, tece dados informativos a
titulo de conclusão: Nunca se deve acreditar completamente em tudo o que os outros
dizem. Esta é uma história popular brasileira de origem indígena ou africana. No
entanto, como todas as boas fábulas, serve de lição para qualquer pessoa!45
Mencionam-se, ainda, quatro obras de escritores da “alta literatura”. A
primeira, O gato malhado e a andorinha Sinhá: uma história de amor, escrita por
Jorge Amado, é denominada pelo autor de “velha fábula”, tendo sido elaborada em
Paris, em 1948, e dedicada ao filho João Jorge. De início, o texto compromete-se
com a longa tradição das narrativas populares, quando, na abertura, consagra a
expressão Era uma vez antigamente, mas muito antigamente, nas profundas do
passado quando os bichos falavam. E dá testemunho da origem oral da história a ser
contada, pois ela foi narrada pela Manhã que a contou ao Tempo para ganhar a rosa
azul, e, em idêntica condição, ratifica a tradição oral, pois a Manhã, por sua vez, a
escutara do Vento. A narração conclui-se com a confissão feita pelo autor a respeito
da recepção oral da história: Eu a transcrevo aqui por tê-la ouvido do ilustre Sapo
Cururu que vive em cima de uma pedra46.
A segunda, História de dois amores, de Carlos Drummond de Andrade,
configura uma narrativa poética em torno do tema da amizade entre dois elefantes e
duas pulgas unidos pela mesma corrente de amor, a qual não move apenas pulgas e
elefantes, mas, como disse o poeta, move igualmente o sol e as estrelas47. O autor
declinou da constante clássica do enfrentamento de animais para investir, não em
pares antagônicos, mas na dupla solidária de companheiros ligados pelos laços do
amor fraternal, rompendo assim com um elemento tradicional da fábula.
Em O mistério do coelho pensante, uma obra “doméstica” que só serve para
criança que simpatiza com coelho, Clarice Lispector apresenta Joãozinho, um coelho
45
BANDEIRA, Pedro. O velório da onça. São Paulo: Seed Editorial, s/d, p. 10.
46
AMADO, Jorge. O gato malhado e a andorinha Sinhá: uma história de amor. Rio de Janeiro: Record, 11.
ed., 1983, p. 1-15.
47
ANDRADE, Carlos Drummond. História de dois amores. Rio de Janeiro: Record. 4. ed., s/d., p. 36.
113
pensante que cheirava idéias, e a primeira idéia que cheirou foi uma maneira de
fugir da gaiola de ferro48. O título do texto parece sugerir uma promessa não
realizada: a solução de um mistério. A “longa” e poética narrativa, a ausência de
pares antagônicos e a explícita negação de lições exemplares, frustram a expectativa
de aproximação com a fábula canônica.
A quarta obra, Dr. Urubu e outras fábulas49, de autoria de Ferreira Gullar,
reúne 16 fábulas povoadas por crianças curiosas e animais falantes e irônicos.
Embora conservem a característica clássica do enfrentamento de animais, as fábulas
criadas por Gullar não tornam presente a sentença moral. O raro espaço do diálogo
entre animais e personagens adultos ou entre animais e coro popular, como ocorrem
em algumas fábulas de Esopo, em Ferreira Gullar é dedicado ao diálogo entre
crianças e animais.
Percebe-se, por um lado, que nas fábulas de origem européia, quando
adaptadas à cultura brasileira, prevalecem, em sua maioria, as características do
conto popular: o alongamento da narração, a metamorfose dos animais europeus em
animais da fauna brasileira e a inserção do contexto pela presença de coordenadas
temporais e espaciais. Por outro lado, as fábulas escritas por poetas da chamada “alta
literatura” transcendem as características nativas de tempo e espaço, ao assumirem
uma dimensão poética universal e atemporal.
Por último, ainda no campo das adaptações, registra-se o vínculo da fábula
clássica no Brasil com a cultura popular, em particular, nas adaptações do gênero em
cantorias de grupos. Em suas pesquisas, Sílvio Romero comprova a existência da
tradição oral em Cantos populares do Brasil (1883), com destaque para a fábula O
cão e o urubu, que se transcreve abaixo:
48
LISPECTOR, Clarice. O mistério do coelho pensante. Rio de Janeiro: Rocco, 1999. Lispector confessa que
a história “foi escrita a pedido-ordem” do filho Paulo, e para “exclusivo uso doméstico” (Ibidem, p. 1).
49
GULLAR, Ferreira. Dr. Urubu e outras fábulas. Rio de Janeiro: José Olympio, 2005.
114
U. – Eu direi, cachorro,
Do modo que nós achamos,
Avoando pelos ares
De lá com a vista bispamos.
Depois de termos bispado
Fazemos uns peneirados,
Fechamos de lá asas,
Trás! Na carniça sentados.
C. – Urubu tu te agastaste?
U. – Certamente me agastei,
Pois sou um pássaro brioso;
Se eu sou esfomeado,
50
Tu és um bicho guloso .
Conforme Romero, essa narrativa teria sido colhida no estado do Ceará. Sua difusão
provavelmente deve ser creditada à tradição nordestina dos folhetos impressos
conhecidos por Literatura de Cordel, expostos à venda em barbantes. A fábula
denominada O cão e o urubu está situada no âmbito das cantigas de tenção à maneira
50
ROMERO, Sílvio. Cantos populares do Brasil. Lisboa: 1883, tomo I, p. 296-297.
115
51
Geir Campos define as cantigas como “composições líricas breves e típicas dos primórdios da literatura
galaico-portuguesa” (CAMPOS, Geir. Pequeno dicionário de arte poética. São Paulo: Cultrix, s/d, p. 36). É
nota constante entre os trovadores galego-portugueses não apenas as cantigas d’amor e os cantares d’amigo,
mas também as cantigas d’escarnio e de mal-dizer; nestas últimas, a linguagem e a forma denunciam uma
tensão crescente entre os trovadores, pois “descambavam para o insulto pesado ou expressão obscena”
(TAVARES, Hênio. Teoria literária. Belo Horizonte: Villa Rica, 1974, p. 50).
52
PACHECO, José. “Intriga do cachorro e o gato”. In: MEC. Literatura popular em verso. Rio de Janeiro:
Ministério da Educação e Cultura e Casa Rui Barbosa, 1964, tomo I, p. 205-208.
53
BARROS, Leandro Gomes de. “Casamento e divórcio da lagartixa”. In: MEC, op. cit., p. 211-218.
116
116
1
SCHAEFFER, 1995, op. cit., p. 71.
2
Para o autor, citar é uma forma de escolha que põe em circulação certo objeto. Acrescenta, ainda, ser o grifo
a atividade inicial da citação. Para ele, a citação repete as figuras da leitura que faz renascer a escrita: ablação,
grifo, acomodação e solicitação. Por outro lado, reconhece que o trabalho da escrita é uma reescrita, pois toda
escrita é glosa, citação e comentário. Assim, a leitura é configurada como solicitação, e a escrita como
reescrita, mas ambas não trabalham com o sentido; são, ao final, “manobras e manipulações, recortes e
colagens”. Por último, afirma que toda prática de texto é sempre citação, e por isso considera não ser possível
nenhuma citação (COMPAGNON, op. cit., p. 13-34).
3 “
La citación produce la imagen verbal de outro objeto verbal, real o inventado, anterior, posible, futuro. Ya
sabemos que esta imagen nunca será completa y fiel, ya que su producción se efectúa mediante una inevitable
recontextualización del texto citado [...]. El texto original aparece en el texto citador como una imagen
desprovista de gran parte de su entorno, por lo cual su significado puede ser diferente e incluso opuesto al que
tênia en su situación original. De ahí la distorsión de la imagen, que, sin enbargo, debe ser reconocible: de
outro modo, no quedaria rastro del proceso de citación” (REYES, op. cit., p. 59-60).
118
4
Pertencente aos quadros da “alta literatura”, Olegário Mariano Carneiro da Cunha (1889-1958) foi membro
da Academia Brasileira de Letras. Sua poesia situa-se entre o Parnasianismo-Simbolista e o Modernismo.
Faz-se presente em sua obra duas linhas de produção: a erudita e a popular. Da última incluem-se os textos:
Mundo encantado (1945), Cantigas de encurtar caminho (1949), Tangará conta histórias (1953).
5
Seguindo a mesma linha de dupla produção (erudita e popular), Orígenes Lessa (1903-1986),
membro da Academia Brasileira de Letras, foi publicitário e, mais tarde, redator do Diário da Noite
e de O Estado de São Paulo. Na opinião de Jorge Amado, foi “um dos maiores contistas de toda a
nossa história literária”. A partir da década de 1970, Lessa passa a produzir alguns textos destinados
ao público juvenil, entre os quais destaco A cigarra e a revolta das formigas (1975) e Juca Jabuti,
Dona Leôncia e a Superonça (1983). Nesse último, registra uma série de episódios ocorridos entre os bichos
da floresta Verde-Amarela, tendo como herói o jabuti, repetindo, assim, o ciclo do jabuti presente na cultura
africana e nas culturas indígenas brasileiras.
6
José Monteiro Lobato (1882-1948) é reputado como o autor brasileiro que, em sua época, mais escreveu
para crianças (22 livros que, entre 1925-1950, atingiram a expressiva cifra de um milhão e meio de
exemplares vendidos). Também é considerado inovador na área editorial em nosso país. Uma leitura da obra
de Lobato, ordenada por Josué Montello, enfatiza a feição estilística de sua prosa e a “índole combativa de
seu temperamento”, podendo tal avaliação ser aplicada por analogia às reflexões protestativas e não
conformistas que o escritor faz, pela fala de algumas personagens do Sítio, à moral da fábula clássica:
“Monteiro Lobato é o polemista do conto. Em qualquer de suas novelas curtas há um problema em debate ou
uma censura em forma de protesto. Ele não escreve pelo gosto exclusivo da composição literária. E sim para
dar forma à sua insubmissão e ao seu não-conformismo. Lobato protestou no romance e no artigo de jornal. A
índole combativa de seu temperamento não lhe permitia outra forma de expressão literária” (MONTELLO,
op. cit., p. 362).
119
Em casa apalacetada
e de construção antiga
vivia tal Dona Formiga
muito mal vista e falada.
........................................
Trabalhava o dia inteiro
catando insetos na estrada.
Chegando em casa, cansada,
7
MARIANO, Olegário. In: Nossos clássicos. Poesia. Rio de Janeiro: Livraria Agir, s/d, p. 90-91. Esse poema
popularizou-se quando, em 1941, Mariano adquiriu uma chácara, em Teresópolis (RJ), e a denominou A toca
da cigarra. No portão da entrada, pendurou uma tabuleta que exibia a primeira quadra do poema.
120
A formiga alucinada
em fúria desabalada,
vai à casa da vizinha,
sobe o morro agachadinha
e bate à porta daquela
que cantava, tagarela.
8
nunca consiga dormir .
8
MARIANO, Olegário. Tangará conta histórias. São Paulo: Melhoramentos, 1952.
9
PLATÃO. A República. Trad. Pietro Nassetti. São Paulo: Martin Claret, 2005, p. 267. Em outra obra, Platão
registra o discurso de Sócrates sobre o mito das cigarras que, consideradas na Ática animais semi-lendários,
teriam recebido “das Musas o honroso privilégio de não precisar de alimento durante sua vida; sendo capazes
de cantar, do nascimento à morte, sem comer nem beber” (PLATÃO. Fedro. Trad. Alex Marins. São Paulo:
Martin Claret, 2005, p. 97).
10
Ao contrário de Olegário Mariano, o poeta Olavo Bilac, com o texto As formigas, publicado em Poesias
infantis (1904), enaltece as virtudes do capitalismo (que ele sintetiza na tríade trabalho-economia-riqueza),
através da presença laboriosa da formiga e da condenação ao ócio da cigarra: “Vede! Enquanto negligentes/
’stão as cigarras cantando,/ vão as formigas prudentes/ trabalhando e armazenando./ (...)/ Recordai-vos
todo o dia/ das lições da Natureza:/ o trabalho e a economia/ são as bases da riqueza”. Para uma introdução
básica à “herança bilaquiana” na história da pedagogia brasileira parecem válidas as digressões apresentadas
em Entre-vi-vendo a conspiração mito-poética na criança da Pós-Modernidade, Dissertação de Mestrado em
Literatura Brasileira (PUC-RJ), de Glória Kirinus, defendida em julho de 1992 (p. 42-44).
11
Outros escritores brasileiros vinculados à literatura infanto-juvenil seguiram a mesma trilha de Olegário
Mariano, procurando reabilitar a cigarra clássica. Em Aventuras de uma cigarra, por exemplo, Ivan Engler de
Almeida narra a história de um menino, Pedrinho, que, ao sobrevoar a floresta amazônica, indaga ao pai, um
rico fazendeiro, se os nativos sabem ler, pois queria atirar um livro lá embaixo, para dá-lo de presente aos
índios. A mãe sugere que o filho atire um que tenha muitas ilustrações. Se eles não sabem ler, saberão, pelo
menos, apreciar as gravuras. Então, uma das janelas da pequena aeronave abre-se e, vindo lá de cima,
rodopiando no ar, cai no meio da selva o livro Fábulas de La Fontaine. Mas no meio da floresta amazônica,
longe de qualquer grupo indígena, o exemplar do fabulista aterrissa numa mata espessa onde os animais e
insetos viviam despreocupados. E são eles que vão questionar as atitudes das personagens da fábula clássica.
Após uma série de episódios, a bicharada elege um macaco como juiz para julgar as ações da cigarra e da
formiga que, ao pronunciar a sentença final, realça que as formigas em suas várias espécies constituem um
constante perigo à vida dos homens e animais, condenando a formiga tropical a degredo perpétuo dentro dum
casulo tecido pela dona aranha. Quanto à cigarra, é o próprio narrador quem desenha o seu destino: E a
cigarra, eternamente, como ninguém, cantará a felicidade de viver no Brasil. E, feliz, sabe que a fábula entre
sua espécie e a formiga só poderia, mesmo, ter acontecido noutras terras... Canta, cigarra amazônica. Canta,
122
A obra A cigarra e a revolta das formigas (1975) reúne três dezenas de poemas que
enaltecem a previdência e a determinação da formiga, como se pode verificar em A
fábula antiga:
Há um estilo raro na fábula de Lessa, representado pelo jogo das frases e palavras,
pelo contraste com o vocabulário da fábula clássica, pelo acréscimo do discurso
cigarra do Brasil. Canta eternamente porque a neve jamais te molestará (ALMEIDA, Ivan Engler de.
“Aventuras de uma cigarra”. In: Histórias da Mata-Virgem. São Paulo: Editora do Brasil, s/d, p. 9-66).
12
LESSA, Orígenes. A cigarra e a revolta das formigas. Rio de Janeiro: Edições de Ouro, 1975, p. 135-137.
123
Enquanto a formiga
carrega comida
para o formigueiro,
a cigarra canta,
canta o dia inteiro.
A formiga é só trabalho.
A cigarra é só cantiga.
13
LESSA, op. cit., p. 78.
14
PAES, José Paulo. Olha o bicho. São Paulo: Ática, 1989.
124
15
“As fábulas em português que conheço, em geral traduções de La Fontaine, são pequenas moitas de amora
do mato-espinhentas e impenetráveis, Que é que nossas crianças podem ler? Não vejo nada. Fábulas assim
seriam um início do que nos falta. Como tenho certo jeito para impingir gato por lebre, isto é, habilidade por
talento, ando com idéias de iniciar a coisa. É de tal pobreza e tão besta a nossa literatura infantil que nada
acho para iniciação de meus filhos” (LOBATO, Monteiro. A barca de Gleyre. São Paulo: Brasiliense, 1951,
tomo 2, p. 104).
16
LA FONTAINE, 1989, op. cit., v. 1, p. 30.
125
17
LOBATO, Monteiro. Fábulas. 37. ed. São Paulo: Brasiliense, 1986, p. 17.
18
COUTINHO, Afrânio. A literatura no Brasil. 2. ed. Rio de Janeiro: Sul Americana, 1969, p. 279.
19
Os aspectos relativos à fábula indígena serão abordados no tópico dedicado à Série Fontes. Quanto à
presença do gênero no folclore africano em terras brasileiras, é oportuno lembrar o comentário do antropólogo
Arthur Ramos ao lembrar que, diferentemente do folclore europeu que traz personagens fixas como o lobo e a
raposa, as narrativas de origem africana abrigam uma série de animais tão variáveis quanto a quantidade de
tribos africanas. Lembra, ainda, que esses animais “desempenham funções humanas” e possuem “sentimentos
humanos”, o que aproxima as fábulas africanas das narrativas totêmicas dos índios brasileiros (cfe. RAMOS,
op. cit., p. 157-158).
20
Os animais nativos de maior destaque nas fábulas recolhidas por Lobato são o jabuti (em oito fábulas), o
macaco (em cinco fábulas) e a onça (em três fábulas).
127
enredo. Há, inclusive, certo desprezo pela simplicidade das narrativas, como fica
evidente no comentário das personagens do Sítio ao final da fábula O cágado na festa
do céu:
– Esta história – disse dona Benta – deve ser dos índios. Os povos
selvagens inventaram coisas assim para explicar certas
particularidades dos animais (...).
– Pobres índios! – exclamou Narizinho. – Se as histórias deles são
todas como essa, só mostram muita ingenuidade. Acho que os
negros valem mais que os índios em matéria de histórias. Vá,
21
Nastácia, conte uma história inventada pelos negros .
21
LOBATO, Monteiro. “Histórias de Tia Nastácia”. In: LOBATO, Monteiro. Obra infantil completa de
Monteiro Lobato. São Paulo: Brasiliense, 1975, v. 3, p. 176.
22
Ibidem, p. 202.
128
23
Lembra-se que o escritor Malba Tahan, pseudônimo de Julio César de Mello e Souza (1895-1974),
privilegiou a linha orientalista das fábulas. Nesse campo destaca-se o texto: Uma fábula sobre a fábula,
adaptação de uma lenda oriental em que, sob o aspecto de Fábula, a Verdade consegue adentrar ao palácio do
sultão Harun Al-Raschid, vigário de Alá e senhor do império mulçumano.
24
A produção de Leonardo Arroyo no universo literário infanto-juvenil é marcada com a obra Estórias do
galo e do candimba. Registre-se que candimba, nome dado ao coelho na fábula de Arroyo, é palavra de
origem africana, significando animal esperto. Em Estórias do galo e do candimba, encontram-se três
narrativas do folclore africano, presentes em comunidades rurais do estado do Maranhão, onde o autor fez a
recolha dos textos.
129
Jacques Derrida
1
PERRONE-MOISÉS, Leyla. Altas literaturas. São Paulo: Companhia das Letras, 1998, p. 184.
2
Para Derrida, tal inquietação “só pode ser uma inquietação da linguagem e na própria linguagem”
(DERRIDA, Jacques. A escritura e a diferença. 3. ed. São Paulo: Perspectiva, 2002, p. 12).
130
exclusão e esquecimento daquilo que ele não pode assimilar3. Todo texto acabará se
“desfazendo” ou se “desmontando”, não porque os autores não consigam pensar
logicamente, mas, sim, porque têm de pensar no interior dos sistemas de significação
– os vocabulários – que são construídos sobre um conjunto de oposições binárias
cuja estrutura arbitrária não pode ser justificada. O “desconstrutor” revela as pontas
soltas, as forças que se entrecruzam no interior do próprio texto. Portanto, a
desconstrução é a tentativa de encontrar aqueles pontos no texto em que este deixa de
ser coerente4.
Jonathan Culler, em Sobre la desconstrucción, faz uma leitura, teórica e
crítica, das correntes pós-estruturalistas com ênfase particular na “estratégia geral da
desconstrução” construída por Jacques Derrida. E acrescenta à postura de Derrida
outra formulação, a partir da qual desconstruir o discurso equivale a mostrar como se
anula o pensamento filosófico no qual tal discurso se fundamenta ou a oposição
hierárquica sobre a qual ele se baseia, “identificando no texto as operações retóricas
que cedem lugar a suposta base de argumentação, o conceito chave ou premissa”5.
Ao introduzir a questão, Culler apresenta a desconstrução de maneira distinta como
“posicionamento filosófico, estratégia política ou intelectual e modo de leitura”6.
Em relação a outras posturas da teoria de desconstrução, Joseph Hillis Miller
funda sua conceituação na “consciência metódica do poder demolidor”, sobre o
sentido gramatical, exercido tanto pelas figuras de linguagem quanto pela
argumentação lógica. Por outro ângulo, Miller afirma que todo leitor é um
“desconstrutivista” em potencial e o “poder demolidor” da leitura depende do
conhecimento de cada leitor das figuras de linguagem e do uso retórico desse
conhecimento elaborado pelo leitor, capazes ambos de gerar novos sentidos aos
textos lidos. Porém, alerta que a desconstrução não consiste em procedimento que o
3
DERRIDA, Jacques. Of grammatology. Trad. Gayatri Spivak. London: Johns Hopkins University Press,
1976, p. 158-243.
4
VANHOOZER, Kevin. Há um significado neste texto? Trad. Álvaro Hattnher. São Paulo: Vida, 2005, p.
133-135.
5
CULLER, Jonathan. Sobre la desconstrucción. Trad. Luis Cremades. Madrid: Cátedra, 1984, p. 80.
131
leitor possa efetuar sozinho diante do texto, definindo-se em operação que o texto faz
a si próprio e possibilitando ao leitor o reconhecimento de duas ou mais leituras
“defensáveis”, “justificáveis”, mas “logicamente incompatíveis”7.
Um aspecto cultural da Pós-Modernidade enfatiza a presença do heterogêneo,
da intertextualidade, das operações interdisciplinares. Trata-se de cultura aberta à
releitura transformadora de discursos já estabelecidos pela tradição ocidental. E uma
forma dessa releitura utilizada pela desconstrução manifesta-se pela paródia: discurso
de inversão ou, como classifica Fontanier, figura de construção por revolução8.
Sob outra óptica, Linda Hutcheon lembra que a paródia não destrói o passado,
mas o “sacraliza” e o ridiculariza em simultâneo9. Logo, ao questionar de forma
ambivalente o texto de origem, o processo de descontrução paródica da fábula
clássica termina por legitimar o passado quando lança mão de uma espécie literária
milenar e, em paralelo, quando o dessacraliza pela atitude de implodir os padrões da
narração tradicional e inverter os cânones da moralidade.
Nesse norte, retoma-se a fábula clássica desconstruída em seu modelo
narrativo na busca de categorizar o corpus, privilegiando-se o fabulário de quatro
escritores brasileiros cuja produção, publicada em livro, ocorre nos séculos XX e
XXI: Christovam de Camargo (1935), Millôr Fernandes (1973) Eno Theodoro
Wanke (1993) e Donaldo Schüler (2004).
6
Ibidem, p. 79.
7
MILLER, Joseph Hillis. “As duas retóricas: o bestiário de George Eliot”. In: A ética da leitura. Trad. Eliane
Fittipaldi. Rio de Janeiro: Imago, 1995, p. 133-134. Miller acresce a essas considerações sobre a leitura
algumas reflexões a respeito da escritura, concluindo que ambas envolvem “o verdadeiro conhecimento da
alma humana e também da linguagem. Aqui a retórica como leitura ou conhecimento de tropos entra em jogo
até para Platão. A discussão sobre retórica em Fedro apresenta um programa para os dois tipos de retórica –
como escritura e como leitura” (Ibidem, p. 134).
8
“L’Inversion, que I’on appelle quelquefois Hyperbate, mais qui n’este qu’une des espèces don’t I’Hiperbate
este le genre, consiste dans un arrangement de mots renversé ou inverse, relativement à lórdre où les idées se
succèdent dans I’analyse de la pensée” (FONTANIER, Pierre. Les figures du discours. Paris: Flammarion,
1977, p. 284).
9
HUTCHEON, Linda. Poética do Pós-Modernismo: história, teoria e ficção. Trad. Ricardo Cruz. Rio de
Janeiro: Imago, 1991, p. 165.
132
10
Chistovam de Camargo, escritor quase desconhecido pela historiografia e crítica, publicou 13 obras, entre
as quais Contos impossíveis, histórias de homens e bichos e Novas fábulas, conforme referências constantes
na contracapa do livro Fabulário de vovô índio. Apesar de não ter localizado a obra Novas fábulas, é possível
pensá-la, a partir do título, alinhada também à leitura de desconstrução.
11
O título vovô índio expressa, provavelmente, a acolhida do autor a iniciativa fracassada do governo de
Getúlio Vargas que, no ímpeto de nacionalização da cultura, intentou substituir a figura tradicional do “Papai
Noel” pela imagem de um “bom velhinho” brasileiro, alcunhado de “vovô índio”. A citação as festividades
natalinas são explicitadas na apresentação feita pelo autor à obra, quando comenta: “Vovô Índio está servindo
para muita coisa. Não queiram ver nesse bugre, prestimoso e amigo, um simples estafeta, encarregado da
distribuição de brinquedos, pelo natal [...]. Na sua ronda de fim de anno pelas cidades, procura também Vovô
Índio observar o homem e os bichos que se fizeram seus companheiros naturaes [...]. Explicam-se assim as
fábulas de ambiente urbano, que mostram Vovô Índio, o homem da floresta, tão familiarizado com as nossas
coisas” (CAMARGO, Christovam de. Fabulário de vovô índio. São Paulo: Companhia Editora Nacional,
1935, p. 7).
12
Ibidem, p. 7.
133
13
Na fábula em tela, um leão é convidado a visitar a capital de um país, uma cidade maravilhosa. A
commissão de recepção e festejos tudo faz para proporcionar ao real itinerante uma inolvidável temporada de
prazeres, que o deixasse propenso a concessões e facilitasse a assignatura de tratados vantajosos para os
anfitriões. Porém, a comissão esforça-se para desviá-lo do Jardim Zoológico, onde provavelmente encontraria
o leão motivos para descrer da apregoada amizade dos homens. E cautelosamente evitava que lhe fosse
apresentado, entre outros, o Sr. Washington Pires, ministro da Educação, de medo que esse notável
pedagogo começasse a tratá-lo de real batrachio, crustáceo illustre ou eminente protozoário. No mesmo
texto, o fabulista satiriza os estudos camonianos de Afrânio Peixoto, o estilo literário de Tristão de Athayde e
a indicação de ministro interino para Cavalcanti de Lacerda (CAMARGO, op. cit., p. 53).
14
Ibidem, p. 152.
15
Ibidem, p. 212.
134
16
Ibidem, p. 235-239.
137
17
O modelo original da fábula de Camargo, a narrativa de Esopo, consta da página 76 deste trabalho, quando
se aborda a categoria de adaptação.
18
Ao abordar os tipos de alteração sofrida pelo texto no decurso do processo intertextual, Laurent Jenny cita
a figura retórica da amplificação, apresentada como “transformação dum texto original por desenvolvimento
das suas virtualidades semânticas” (JENNY, op. cit., p. 39).
138
agora virtuosa (Honra, pois, à cigarra, luzeiro, espelho e guia dos patriotas!).
A longa exemplificação acima, necessária aqui para pontuar procedimentos
diferenciados da técnica intertextual de acréscimo que ocorre em um texto originário
de outro, motiva breve digressão sobre a nomenclatura mais adequada a esse
mecanismo, pois a figura da amplificação, da maneira proposta por Laurent Jenny, é
definida pelo âmbito mais abrangente, nele incluindo todas as categorias de
transposição: tradução, adaptação, citação crítica e descontrução paródica. Nelas,
pode-se reconhecer, em menor ou maior grau, o alongamento do texto segundo,
quando relacionado ao original.
No âmbito atual da produção fabulística, três nomes destacam-se na técnica de
desconstrução dessa espécie narrativa: Millôr Fernandes19, Eno Theodoro Wanke20 e
Donaldo Schüler21.
19
Escritor irreverente, desenhista, jornalista, humorista, Millôr Fernandes, nascido Milton Fernandes, em
1924, no Rio de Janeiro, sobressai-se, também, como autor de mais de cem peças teatrais e tradutor de
cinqüenta clássicos da literatura universal.
20
Eno Theodoro Wanke, paranaense nascido em 1929, destaca-se como poeta, historiador literário e
folclorista. Entre suas obras, distinguem-se Nas minhas horas (1953), Caderno de trovas (1955), Sonetos do
bem-querer (1970), Reflexões marotinhas (1981), Pensamentos moleques (1982), Dicionário de cacófatos e
qüiproquós verbais (1984), Mundinho infantil (1990), Ilha verde (1991), além de Fábulas (1993) e Contos
bem humorados (1998).
21
Donaldo Schüler, nasceu em Videira (SC), em 1932. É doutor em Letras e professor de Literatura
Grega, e escreveu vários ensaios, entre eles Narciso errante e Eros: dialética e retórica; e,
139
romances, com destaque para A mulher afortunada; Faustino; Pedro de Malasartes e Império
cabloco. Recentemente traduziu para o português Finnegans wake, de James Joyce.
22
FERNANDES, Millôr. Fábulas fabulosas. 12. ed. Rio de Janeiro: Nórdica, 1991, p. 135.
23
FERNANDES, Millôr. O livro vermelho dos pensamentos de Millôr. Rio de Janeiro: Nórdica, 1973, p. 24.
24
Ao pesquisar sobre o assunto nas coletâneas de fábulas de Millôr, Odília Carreirão Ortiga registra que “as
dedicatórias apresentam-se variadas, quer na sua destinação individual ou coletiva, quer no desvelamento do
dedicador, ou, ainda, na manipulação da leitura textual. Em Fábulas fabulosas, a dedicatória inscreve-se na
primeira e na última das variantes apontadas. Já em Novas fábulas fabulosas, ela é substituída por um
precioso exercício de auto-ironia: a ‘apresentação’, que ilustra a segunda alternativa, ou seja, a revelação do
autor [...]. O último livro de fábulas, Eros uma vez, foi organizado de forma diferente dos dois anteriores: sem
dedicatória que revela o destinatário nem a que desvela o dedicador [...]. Aqui, Millôr assume a atitude
socrática de recusar-se a ‘ensinar’ os seus leitores antes da leitura, preferindo deixá-los encontrar por si
mesmos as soluções no processo de ler” (ORTIGA, Odília Carreirão. O riso e o risível em Millôr: o cômico, o
satírico e o humor. 1992. (Tese de Doutorado) Faculdade de Filosofia, Letras e Ciências Humanas da
Universidade de São Paulo, p. 164-165).
140
25
FERNANDES, 1973, op. cit., p. 131.
26
FERNANDES, 1991, op. cit. p. 116.
141
personagem descrita por Esopo (empurrou a pedra até o local em que estavam os
cachos de uva, trepou na pedra, perigosamente, pois o terreno era irregular e havia
o risco de despencar, esticou a pata e... conseguiu!) e a inversão da mensagem
moralizante (o elogio à frustração rompe com as expectativas do leitor habituado ao
desfecho tradicional).
Para o fabulista-satírico, convém substituir as possíveis certezas pelas
constantes dúvidas. O conselho dado ao filho, Hélio Fernandes, em 1972, reforça tal
menção: “Todas as estórias (sobretudo a História) precisam ser contadas de novo
agora que, afinal, começamos a ser sinceros”27. Essa proposta remete aos
questionamentos invertidos e instigantes vinculados às sentenças morais que fazem
prevalecer nelas a postura do inconformismo, o desejo de ruptura, a demolição da
falsa seriedade e a denúncia de quaisquer formas de hipocrisia humana, social e
política. Todavia, ainda que se comprometa com atitude que à primeira vista parece
envolvida mais com a demolição e menos com a permanência do gênero, Millôr
perpetua a fábula pelo viés da paródia.
A respeito da apropriação por um escritor brasileiro de um gênero literário
vindo “de fora” para o sistema literário nacional, torna-se oportuno salientar o
pensamento de Flávio Kothe que, quando examina os movimentos literários, lembra
que essa atitude “não é apenas imitação ou subserviência”, mas que a “absorção de
fora ocorre basicamente em função de necessidades internas”. É sugestiva sua
afirmação de que para alguns autores a “fascinação” por um outro autor pode ser a
“intuição de que existe um caminho desejável no encontro de um modelo digno de
imitação”28.
Também Eno Wanke dá continuidade, em suas fábulas, a essa linha de
construção invertida, quando adota as mesmas estratégias estruturais e temáticas
27
FERNANDES, 1973, op. cit., p. 56.
28
“Não é apenas imitação ou subserviência (que preponderam nos autores menores), mas, nos autores mais
criativos e talvez permanentes, a absorção de fora ocorre basicamente em função de necessidades internas.
Estas podem já não ser mais claras para a posteridade, que reduz seu conhecimento a alguns textos. Elas
também nem sempre são claras sequer para os autores. Para eles, é antes a fascinação por um autor, a intuição
142
de que existe um caminho desejável no encontro de um modelo digno de imitação” (KOTHE, 1997, op. cit., p
84).
29
WANKE, Eno Theodoro. Fábulas. Rio de Janeiro: Plaquette, 1993, p. 123.
143
animais à beira de um riacho em disputa pelo uso da água. Contudo, nessa paródia o
diálogo sofre modificação ao ser inserida uma indagação “jocosa” em língua
francesa, seguida de tradução livre e explicação satírica (– Qu’ este ce qu’ il-y-a avec
votre dindon? Tradução: “Mas que sucede convosco?” É preciso explicar que o
lobo era da alta roda lupina e tinha lá suas fumaças de galicista. Trabalhando pra
La Fontaine, vejam só, não é que o danado às vezes falava francês, por puro
exibicionismo?). O narrador acrescenta, de forma inusitada ao longo da narração,
outros assuntos: o lobo preocupado com a previsão do tempo (– Será que chove?) e o
carneiro demonstrando conhecimento científico sobre a matéria em questão (– com
os atuais progressos na física aplicada à ciência metereológica, e com o advento dos
satélites artificiais para a previsão e o controle do tempo, pode-se fazer chover onde
bem entender...). E registra a dúvida esboçada pelo lobo a respeito da bomba atômica
(– Cá entre nós, não acredito na bomba atômica. Aquilo é coisa de americano
utilizando efeitos especiais nos noticiários). O desenrolar da história, em Wanke,
demonstra completa inversão dos padrões narrativos clássicos responsáveis pela
descrição do cordeiro vulnerável e facilmente eliminável, quando em sua fábula o
carneiro exibe esperteza na estratégia de alongar o diálogo até poder desferir um
golpe de jiu-jítsu e de obrigar o lobo, lançado no riacho, a clamar por água30. Dessa
forma, o enfrentamento clássico da astúcia do lobo e da ingenuidade do cordeiro
encontra-se desconstruído ao assinalar a inversão dos papéis das personagens da qual
decorre uma moral com valores invertidos.
Outro fabulista brasileiro contemporâneo, Donaldo Schüler, cuja obra –
Refabular Esopo – contém 115 narrativas (todas ilustradas por Elvira Vigna),
combina os mesmos traços de desconstrução da fábula clássica. Schüler revitaliza o
modelo grego retomando personagens e temas esópicos, mas, em paralelo,
“carnavaliza” com tom paródico os princípios morais difundidos pela narrativa
tradicional. Da mesma forma que Christovam de Camargo lança mão de um contador
30
WANKE, Eno Teodoro. Contos bem-humorados (Escritos na juventude). Porto Alegre: Alcance, 1998, p.
20-21.
144
de histórias – vovô índio – para narrar suas fábulas, Schüler, para “refabular Esopo”,
evoca um papagaio que “tinha lido às escondidas” o Além do bem e do mal, de
Nietzsche.
As narrativas de Schüler revelam um fabulista crítico e pessimista,
comprometido com a visão de Mikhail Bakhtin, para quem o satírico é alguém
“carrancudo e sombrio”31, perfil que se pode constatar em A cigarra e a formiga:
Schüler não encerra suas fábulas com uma sentença moral – mesmo que às avessas,
como o faz Millôr –, embora utilize, no fecho de umas poucas fábulas, um recurso
retórico a título de “comentário”, sempre discordante da tradição. Seu fabulário,
acima exemplificado pela paródia de uma narrativa clássica, A cigarra e a formiga,
expressa-se sob a concepção do contraditório, da negação, da recusa dos princípios
31
BAKHTIN, Mikhail. Questões de literatura e de estética. Trad. Aurora F. Bernardini et alii. São Paulo:
UNESP, 1998, p. 439.
145
32
SCHÜLER, Donaldo. Refabular Esopo. Rio de Janeiro: Lamparina, 2004, p. 140-141.
33
SCHÜLER, op. cit., p. 40.
34
SCHÜLER, op. cit., p. 43.
146
1
BRASIL. Parâmetros Curriculares Nacionais. Brasília: MEC, 1999, p. 49.
2
MARROU, Henri-Irénée. Historia de la educación en la Antigüedad. México: Fondo de Cultura
Econômica, 1998, p. 13.
148
3
Lembra-se que no mundo grego a expressão “sistema escolar” apresenta-se de forma diversificada daquela
que se concretiza na modernidade.
4
BRASIL. Constituição da República Federativa do Brasil. Brasília: 1988, Artigo 206, parágrafo III, p. 31.
149
5
ARISTÓTELES, op. cit., p. 144.
6
PLATO. “Phaedo”. In: PLATO. The dialogues of Plato. Chicago: University of Chicago Press, 1952, p.
221.
150
7
Para contextualizar a informação transcrevo o referido texto: “A partir del siglo I d.C. se crean colecciones
de fábulas con intenciones literárias, como las de Fedro e Babrio y, luego, varias de tipo retórico, no eran solo
las versiones semiprosificadas, organizadas en colecciones con mucho elemento común y outro diferencial,
las que dichos autores tenían a su disposición” (ADRADOS, Francisco Rodriquez. “Prolegomenos al estúdio
de la fabula en época helenística”. Emérita: Revista de Lingüística y Filologia Clasica, Madrid, CSIC, 1978,
v. 46, n. 1, p. 78).
8
Apesar da possibilidade da existência de diferentes classificações dos períodos da cultura grega, assume-se
aqui a tríplice divisão: arcaico, incluindo os tempos heróicos e homéricos, clássico e helenístico.
9
FEDRO, op. cit., p. 85-87.
151
10
JAEGER, op. cit., p. 89.
11
ADRADOS, 1978, op. cit., p. 79.
12
LA FONTAINE, op. cit., v. 1, p. 197.
152
13
Cfe. HARVEY, op. cit., p. 181.
14
Marrou, com base em Hipócrates, que dividia a vida humana em oito períodos de sete anos, contrapõe a
instrução helenística à clássica, registrando que: “la educación clásica reclamaba para si los tres primeros,
designados con los nombres de ‘párvulo’ [menor de siete años]; niño [de los siete a los 14 años] y
‘adolescente’ [de los 14 a los 21 años]” (MARROU, op. cit., p. 150).
15
MARROU, op. cit., p. 150-151.
16
Ibidem, p. 204.
17
Em decorrência do contato com a cultura helênica, os estudos retóricos foram introduzidos em Roma no
século I a.C. como matéria da educação mais avançada do jovem latino e passaram a exercer uma forte
influência no período imperial sobre a literatura romana (cf. HARVEY, op. cit., p. 434).
18
Segundo Adrados, em mãos dos filósofos helenistas a fábula passou a ser um recurso de “enseñanza y
proselitismo, de aleccionamento”, concluindo que este caráter entre “docente y literario de la fábula no lo há
perdido luego a lo largo de las centurias” (ADRADOS, 1978, op. cit., p. 26).
19
“Apredan, pues, primero a explicar en un lenguaje puro y sencillo las fabulitas de Esopo, que suceden a los
cuentos de las amas de leche: en segundo lugar a escribirlas con la misma sencillez de estilo; primeramente
desatando el verso, y después traduciéndolo con otras palavras. Depués aprendan a traducirlo con liberdad
153
parafrástica, por la que se permite ya reducir, ya amplificar lo que traducimos, conservando el sentido del
poeta” (QUINTILIANO, M. Fábio. Instituciones oratórias. Trad. Ignácio Rodríguez. Alicante: Biblioteca
Virtual Miguel Cervantes, 2004, p. 42. Edição digital a partir do texto publicado em Madrid pela Libreria de
la Viuda de lo Hermano y Cia., 1887).
20
HENRÍQUEZ, German Santana. “Aviano y la transmisión de la fabula grecolatina”. Revista de Filología,
La Laguna, Universidad de La Laguna, n. 8/9, p. 368, 1989-1990. Por sua vez, Marrou registra que em um
caderno escolar copto, do século IV d.C., os exercícios de recitação eram intercalados por breves textos como
as fábulas de Bábrio (MARROU, op. cit., p. 219).
21
MARROU, op. cit., p. 12.
22
O historiador German Santana Henríquez justifica a preferência pelas fábulas de Aviano no sistema escolar
medieval por entender que eram de fácil escansão e memorização pelos alunos, fato que agradava aos mestres
(cfe. HENRÍQUEZ, op. cit., p. 375).
23
HENRÍQUEZ, op. cit., p. 376.
154
24
FERNANDEZ, Emilio Palácios. “Las fabulas de Félix Maria de Samaniego: fabulário, bestiário,
fisiognomía e lición moral”. Revista Literária, v. LX, n. 119, Madrid, 1998, p. 83.
25
Pode ocorrer que fabulistas ocupem posição de relevo na vida intelectual de sua época. Na literatura
clássica francesa, por exemplo, as fábulas de La Fonatine cintilam em condição similar a outras obras
notáveis, como observa André Alba: “As obras-primas agrupam-se num conjunto harmonioso e completo
onde todos os gêneros estão representados: a comédia com Molière, a tragédia com Racine, a fábula com La
Fontaine, a sátira com Boileau, a eloqüência religiosa com Bossuet, o estilo epistolar com Mme. De Sévigné”
(ALBA, André. Tempos modernos. Trad. Elzon Lenadon. São Paulo: Mestre Jou, 1968, p. 206).
26
Vale registrar que Gilberto Freyre, em Perfil de Euclides da Cunha e outros, cita trechos do Regulamento
do Serviço do Paço, em especial aqueles atinentes à educação de D. Pedro II, quando o jovem imperador
completou doze anos. Um de seus tutores, o francês Renato Pedro Boiret, mestre de geografia e francês,
utilizava as fábulas de La Fontaine para o ensino da Língua Francesa (cfe. FREYRE, Gilberto. Perfil de
Euclides da Cunha e outros. Rio de Janeiro: Livraria José Olympio Editora, 1944, p. 126).
155
27
FERNANDEZ, op. cit., p. 83.
28
Ainda de origem espanhola, Sebastián Mey, em 1616, escreve para um público infantil seu Fabulário, com
vistas a modelar o caráter segundo os preceitos éticos da época, entretanto não há informações sobre o uso de
sua obra no sistema escolar. É o caso, também, de outros fabulistas da Península Ibérica no século XVIII, já
mencionados no exórdio, com destaque para Miguel Augustín Príncipe (Fábulas en verso castellano y en
variedad de rimas, 1861), Cayetano Fernández (Fábulas ascéticas morales, 1865), Pravia e Trueba (Fábulas
de la educación, 1871), e Juan Eugenio Hartzenbusch (Fábulas,1888), todos na Espanha. Em solo português,
nesse mesmo século, o gênero foi cultivado por Almeida Garret (Fábulas e contos, 1853), Henrique O’Neill
(Fabulário, 1885) e João de Deus (Fábulas para a gente moça, 1898). É provável que tais fabulistas
constassem em antologias que circularam no sistema escolar da época, contudo, esta pesquisa não localizou
nenhuma referência explícita a tal possibilidade.
29
“Cinqüenta fábulas de Fedro em que os animais – rãs, lobos, leões, toiros, javalis, cavalos, grous, raposas,
corvos, vacas, ovelhas, veados, jumentos – falam e procedem como se pessoas fossem. Eles são, afinal, meus
meninos, a gente com que viveis e acotovelais todos os dias; que vos ama, ou que vos odeia; que vos presta
auxílio, ou que vos torna difícil a existência. O mundo desses animais é, em suma, o vosso mundo!”
(TAVARES, José Pereira. Cinqüenta fábulas de Fedro. Aveiro, Portugal: Livraria Carlos Alberto, 1929, p.
11).
30
“Em primeiro lugar, lê o mestre; a seguir, lêem os alunos, todos os alunos. Estes devem ler todos os dias,
embora só algumas linhas. Não importa que o mesmo texto seja lido, na mesma sessão, seis, sete ou mais
vezes. Só assim, interessando toda a classe, se conseguirá que todos os leitores, com excepção apenas dos
absolutamente incompetentes, venham a ler com inteligência” (Ibidem, p. 8).
31
“Com ele habituaremos o aluno a pensar, a observar, a distinguir o que é geral e o que é especial ou
secundário, a analisar, a sintetizar, etc. Com esse intuito far-se-hão perguntas acerca do local onde se passa o
156
entrecho da fábula, dos personagens que nela figuram, das suas acções, das causas que as determinaram, das
conseqüências que delas resultaram e do que elas têm de louvável ou condenável” (Ibidem, p. 8).
32
“Segue-se a exposição oral da fábula, por outras palavras e expressões, com o emprego de sinônimos.
Transformar-se há sempre a voz activa em passiva e vice-versa; indicar-se hão os antônimos e expressões
antônimas, bem como os homógrafos, homófonos e homônimos; substituir-se há, sempre que seja possível,
uma frase afirmativa ou negativa pela negativa ou afirmativa correspondente e equivalente; agrupar-se hão as
palavras aparentadas e completar-se hão as respectivas famílias, com a indicação das simples e compostas e
das primitivas e derivadas. – A gramática, em qualquer das suas secções da Fonética, da Morfologia e da
Sintaxe, ministrar-se há sempre a propósito do texto, em doses sóbrias e sabiamente conduzidas – com o
compêndio sempre à mão –, de forma que os alunos venham a reproduzir com plena consciência, e não
mecanicamente, o que lhes for ensinado” (Ibidem, p. 8-10).
33
“Nesta altura, está o aluno perfeitamente apto a reproduzir por escrito o assunto de cada fábula. Pode
exigir-se-lhe, em primeiro lugar, uma redacção em certo número de linhas, para o habituar à concisão. Depois
virão reproduções mais amplas, conservando-se, ou não, o discurso directo em indirecto e o indirecto em
directo, e por fim seguir-se hão as redacções, cada vez mais livres, para desenvolvimento das faculdades de
invenção ou imaginação dos educandos” (Ibidem, p. 10).
34
“Esses planos, em cuja organização, devemos confessá-lo, seguimos, em parte, a orientação de mestres
estrangeiros, pode o professor ou o educador simplificá-los ou desenvolvê-los à vontade, consoante as fôrças
dos educandos [...]. Assim se cultivará a inteligência dos pequenos leitores, ao mesmo tempo que se lhes
enriquecerá o vocabulário e se lhes criará e aperfeiçoará gradualmente o estilo. Não nos esqueçamos de que o
conhecimento da língua se obtém, sobretudo, falando e escrevendo, sob a solícita vigilância do mestre ou do
educador, e frequëntando com a máxima assiduidade, ao lado dum guia seguro, os textos, desde os mais
simples e despretenciosos, como as presentes fábulas, até os que nos são legados pelos bons autores e pelos
artistas da palavra” (Ibidem, p. 1).
35
Para ilustrar a informação, transcrevo a fábula O cão ambicioso e o plano de estudo respectivo: “A tarde
estava muito bonita, mas quente. Ninguém a labutar nos campos. Os trabalhadores dormiam a sesta à
sombra das árvores e dos silvados, esperando a hora de retomar o trabalho. / Nessa tarde cálida, um cão
segui tranquilamente em direcção do próximo ribeiro, levando na boca um pedaço de carne. / Chegou ao
riacho, pousou um instante o leve fardo, tomou-o de novo na boca e meteu resolutamente pela tosca ponte,
que era formada por uma simples tábua, sem qualquer resguardo dos lados. / Que lindo que era esse
bocadinho da natureza! O ribeiro, nesse ponto, parecia mesmo um lago, tão devagar e manso corria; as
árvores das margens, frondosas e verdes, debruçavam-se sobre as águas, como que a cumprimentá-las. Se o
cão não fosse cão, com certeza pararia e ficaria algum tempo a olhar a paisagem. Mas não: sem atender ao
que o cercava, o animal, a meio da ponte, pouco mais ou menos, olhou casualmente para a água e viu que
outro cão marchava no mesmo sentido, por dentro do líquido, com um pedaço de carne na boca, como ele.
Quis roubar-lho. Para isso, inclinou-se e abriu a boca... / Quando percebeu o engano, já era tarde: a
verdadeira carne era levada pela corrente, e o cão que lhe parecera ter visto havia desaparecido. E então, o
tolo, começou a ladrar, virado para o riacho, como se dessa maneira pudesse readquirir o que tinha
perdido!”. Em seguida o autor propõe o “Estudo da fábula”, assim organizado: “1 – Interrogatório: – Em
que época se passou o que aqui se refere? – Como é que sabe isso? – São muitos os personagens que entram
na fábula? – Pode dar uma idéia do lugar por onde o cão seguia? – O cão é inteligente, ou estúpido? – O que
ele fez não é prova da sua pouca inteligência? – Que fez ele, ao dar pelo engano? – Já viu algum cão, ou outro
animal, em idêntica situação? 2 – Exponha o assunto, reduzindo-o ao que é absolutamente essencial e
gastando na exposição dois minutos. Faça a exposição por outras palavras, empregando sinônimos e
expressões sinônimas, e pondo na boca do cão algumas considerações acerca do cão que ele supunha seguir a
157
seu lado, pela água. Indique todas as palavras compostas e derivadas da fábula, mostrando os respectivos
prefixos e sufixos. Conjugue em todos os tempos as expressões roubar-lho e querer roubar-lho e o verbo
cumprimentar, com o pronome as. 3 – Faça da fábula uma redacção em 10 linhas, imaginando o cão a falar
em monólogo a respeito do outro cão. Desenvolva à sua vontade o assunto, tirando do caso uma conclusão
moral e aplicando-a a sociedade” (Ibidem, p. 19-20).
36
Nessa perspectiva, lembra-se que Tavares modificou todos os enunciados morais explicitados por Fedro e,
em algumas fábulas, como em O cão ambicioso, a sentença moral da fábula clássica é omitida por completo,
propondo-se ao aluno desenvolver uma interpretação própria sobre a conclusão moral.
37
“A ação escolar delimita o espaço cultural indicando o que merece ser visto, admirado, retido, do mesmo
modo como os mapas e guias turísticos assinalam os ‘pontos de vista’, os monumentos ou as paragens. Tanto
para a percepção literária como para qualquer outra percepção, a ‘presentificação’ implica na
‘despresentificação’ e as obras-lume, consagradas escolarmente, encobrem inevitavelmente a enxurrada das
demais obras, Esther eclipsando Bajazer, a Cigarra e a Formiga fazendo o mesmo com Psyché, Malherbe
158
levando a melhor sobre Théophile e Marot sobre Rutebeuf” (BORDIEU, Pierre. A economia das trocas
simbólicas. Trad. Sergio Miceli et alii. São Paulo: Perspectiva, 2001, p. 150).
38
A presente pesquisa ficou limitada aos livros que fizeram caminho no sistema escolar, porém, no desdobrar
das etapas do trabalho são citados alguns livros, aqui e acolá, participantes do mundo da infância, sobre os
quais não se obteve comprovação de sua presença nas bibliotecas escolares, fato quase impossível diante da
vastidão do país.
39
Em sua abordagem sobre livros infantis e juvenis, Tereza Colomer afirma que, a partir do século XVIII, a
escola “permaneceu ancorada” em dois tipos de leitura, a “formativa” e a “funcional”. A primeira era
representada por “cartilhas, antologias e livros didáticos”; a segunda, por livros de “leitura de ficção por
simples prazer” (COLOMER, Tereza. A formação do leitor literário: narrativa infantil e juvenil atual. Trad.
Laura Sandroni. São Paulo: Global, 2003, p. 23).
159
160
159
1
Existe certa dificuldade em distinguir literatura infantil e literatura escolar, sobretudo pelo fato de ambas
apresentarem traços em comum, e isso, segundo Marisa Lajolo, “cria um problema curioso para a teoria da
literatura”, pois, de certa forma, “se tem tentado chegar à definição da literatura infantil através de
considerações mais ou menos exteriores ao texto: a soleira de entrada tem sido o público a que se destina e,
até certo ponto, as intenções do autor. O que faz das crianças um grupo privilegiado a ponto de impor a
necessidade de uma compartimentação de sua literatura? Talvez sua absoluta dependência no que respeita à
seleção e consumo de material impresso. É essa mesma dependência que explica a proximidade das fronteiras
entre livro didático e literatura infantil” (LAJOLO, Marisa Philbert. “As artimanhas de persuasão nos textos
didáticos de Bilac”. Cadernos de Literatura e Ensaio, São Paulo, 1980, p. 59).
160
morais. A partir dos estudos sobre a fábula, podem ser inferidas duas funções
fundamentais: educar e entreter, verbos essenciais nos textos de literatura infantil,
muitos dos quais dedicados a fábula.
2
HENRIQUEZ, op. cit., p. 368.
3
MEIRELLES, Cecília. Problemas da literatura infantil. São Paulo: Summus, 1979, p. 69.
4
A finalidade da literatura para criança, afirmam alguns estudiosos, consiste em emocioná-la artisticamente
através de textos que trabalham com o sublime, o cômico, o trágico, ou a aventura e, ao mesmo tempo,
despertar a imaginação, aperfeiçoar a inteligência e aprimorar a sensibilidade (cf. ALMEIDA, Renato.
“Literatura Infantil”. In: COUTINHO, Afrânio (Org.). A literatura no Brasil. Rio de Janeiro: Sul Americana,
1971, p. 183). Por sua vez, o livro infantil reúne, segundo Regina Zilberman, características peculiares:
“desconhece um tema específico (como o romance policial), não é determinado a partir de uma forma (verso
ou prosa, novela ou conto) e, ainda, escorrega livremente da realidade para o maravilhoso” (ZILBERMAN,
Regina. “Literatura infantil e tradição pedagógica”. In: ZILBERMAN, Regina. Literatura infantil:
autoritarismo e emancipação. São Paulo: Ática, 1984, p. 14).
5
ÁRIES, Philipe. História social da criança e da família. Rio de Janeiro: Zahar, 1979, p. 113.
161
6
Com Gutemberg, abandona-se o processo de impressão conhecido por xilografia, em que cada página era
gravada manualmente na madeira antes de ser impressa. Os livros passam a ser impressos em prensa com
tinta, à base de óleo, usando-se letras de metal móveis como molde. A invenção permite, pela primeira vez,
a impressão de livros com letras uniformes, rapidez e preços relativamente acessíveis. Calcula-se que mais
de 30 mil livros foram impressos entre 1456 e 1500, e, considerando-se que as edições do século XV
costumavam ser de menos de 250 exemplares, “a façanha de Gutemberg deve ser considerada prodigiosa”
(MANGUEL, Alberto. Uma história da leitura. São Paulo: Companhia das Letras, 1999, p. 159).
7
A lista das obras destinadas à infância é extensa, contudo, tornam-se necessários os destaques a Contos e
histórias de proveito e exemplo (1575), de Gonçalo Fernandes Trancoso; Fábulas escolhidas postas em
versos (1668), de La Fontaine; Contos de Mamérè l’Lye (1697), de Charles Perrault; Aventuras de Telêmaco
(1699), de François de Salignac de La Mothe Fénelon; Aventuras do barão de Münchhausen (1797),
publicadas, sem indicação de autoria, por Rudolpho Erich Raspe; Contos para crianças e para os lares
(1812), dos irmãos Grimm (Jacob e Wilhelm); Alice no país das maravilhas (1865), de Lewis Carroll,
responsável pelo nonsense no livro infantil; e os mais de 150 contos reescritos por Hans Christian Andersen
(1805-1875), considerado o patrono da Literatura Infantil.
162
quando John Newbery publica na Inglaterra a obra ilustrada Little prety pocket book.
A biblioteca infantil, editada por Newbery, apresentava histórias de origem incerta8.
Pode-se, também, com igual ousadia, recuar além desta data, para apontar
alguns livros que não foram escritos para crianças, mas adotados depois para elas.
Dá-se como exemplo A vida e as estranhas e surpreendentes aventuras de Robinson
Crusoé, de York, marinheiro (1719), de Daniel Defoe e Aventuras de Gulliver
(1726), de Jonathan Swift. A história de Crusoé tornou Defoe famoso como escritor
para a juventude, embora o objetivo do autor fosse criticar a sociedade londrina e,
por extensão, a sociedade burguesa da época, ao mostrar a tentativa de Crusoé de
criar uma sociedade, uma família estruturada, constituída apenas por ele mesmo.
Também a história das peripécias de Gulliver, texto popularizado como leitura
infantil, tem a intenção de satirizar as instituições políticas e religiosas prevalecentes
na Inglaterra contemporânea do autor. As narrativas de Defoe e Swift perdem com a
passagem do tempo sua intencionalidade crítica ou satírica original, permanecendo
apenas a história que se adaptou ao imaginário infantil, passando a constar da
literatura para crianças. Esse apagar do contexto político e social de uma época,
aquela na qual o texto foi produzido, encontra correspondência na trajetória das
fábulas que passam do mundo da sátira à literatura infantil.
8
“Newbery escreveu ou adaptou estórias, não se sabe ao certo, entre as quais a do menino que viveu no país
da aprendizagem, a de Tommy e seu cachorro Jowler e a de Giles Gingerbread” (ALMEIDA, op. cit., p. 183).
9
BENJAMIN, Walter. Magia e técnica, arte e política: ensaios sobre literatura e história da cultura (obras
escolhidas). Trad. Sergio Paulo Rouanet. São Paulo: Editora Brasiliense, s/d, v. 1, p. 236.
163
10
A literatura escolar – desde o surgimento das primeiras escolas públicas de ensino elementar, na
Alemanha do século XVI, quando o duque de Würtenberg adotou, em 1559, um plano de escolas para todo o
país – constitui-se um dos principais instrumentos da pedagogia, tornando-se fonte do saber na escola. Por
sua vez, o livro didático possui, talvez, sua origem na Poética de Aristóteles e no Instituto de Oratória, de
Quintiliano, nos séculos IV a.C. e I d.C., respectivamente (LAJOLO, Marisa; ZILBERMAN, Regina. A
formação da leitura no Brasil. São Paulo: Ática, 1999, p. 120). Entre os historiadores da gênese do livro
didático é freqüente, também, a citação da obra Elementos da geometria, de Euclides, escrito em 300 a.C.,
que circulou por mais de 20 séculos na condição de texto escolar. Tal leitura parece basear-se no estilo
didático e na função pedagógica de ambas as obras. Além dessas, uma outra obra citada neste trabalho, o
Pancatantra, também se tornou clássica no campo de literatura didática, graças a sua finalidade
predominantemente pedagógica, expressa nos diálogos e nas ações das personagens animais, técnica que
visava transmitir o ideário da prática de boas maneiras. A partir da Modernidade surgiram os primeiros
livros didáticos ilustrados para crianças. Cita-se a obra Orbis pictus (1658), escrito por Johannes Amos
Comenius, considerada por alguns pedagogos a precursora da preocupação didática no ensino das ciências
(BORTOLUSSI, Marisa. Análisis teórico del cuento infantil. Madrid: Alambra, 1985, p. 26). Umberto Eco,
ao traçar paralelos sobre cultura clássica grega e tempos mais recentes na América do Norte e na Itália, faz
uma observação curiosa: “Nos tempos antigos, a paidea era transmitida através da conversação filosófica e
da relação homossexual. Nos tempos modernos, usaram-se livros didáticos e lições escolares” (ECO,
Umberto. Ensaios sobre a literatura. Trad. Eliana Aguiar. Rio de Janeiro: Record, 2003, p. 237).
11
Em Portugal, o surgimento de textos em série é implementado, segundo a tradição, a partir de 1515,
quando o embaixador Duarte Galvão remeteu , de Lisboa para a Etiópia, uma pequena biblioteca de livros
escolares. Segundo alguns historiadores, foram enviadas duas mil cartinhas cobertas de pergaminho e 42
“cathacismos, encadernados de tabuas e meio cobertos de couro” (UNICAMP. Disponível em <http:
//www.unicamp.br/memória/base temporal/didáticos.html> Acesso em: 10 jan. 2003). Ressalte-se que as
“cartinhas” foram posteriormente denominadas de “cartilhas”. Três séculos depois, o Livro dos meninos, de J.
Rosado Villas Boas e Vasconcelos, publicado em 1778, é reconhecido como o “primeiro livro original
português destinado às crianças” (COELHO, Nelly Novaes. Dicionário crítico da literatura juvenil
brasileira: séculos XIX e XX. São Paulo: EDUSP, 1995, p. 20).
12
MORAES, Rubens Borba de. “A impressão régia do Rio de Janeiro: origem e produção”. In: MORAES,
Rubens Borba de. Bibliografia da Impressão Régia do Rio de Janeiro. São Paulo: EDUSP/Kosmos, 1993,
vol. 1, p. 24.
13
Educador brasileiro, Abílio César Borges (1824-1891) inspirou Raul Pompéia a criar a personagem
Aristarco, o prepotente e cruel diretor do colégio ficcional descrito em O Ateneu.
164
Macaúbas, criou o Método de Ensino Leitura Universal, texto que passou a fazer
parte do currículo e do método de alfabetização das escolas primárias brasileiras. Ao
assumir a Diretoria de Instrução do Estado da Bahia, o barão propôs um concurso
com diferentes modalidades de premiação a título de incentivo a educadores que se
dispusessem a escrever livros didáticos. À conta disso, o processo de formação da
literatura didática forçou os livros escolares a se adaptarem ao “papel de
coadjuvantes do currículo”14. Acrescenta-se que o livro escolar tornou-se, também,
um produto, “uma mercadoria que produz lucro”15.
14
AGUIAR, Luiz Antonio. In: Jornal do Brasil, Rio de Janeiro, 13 jan. 2001, p. 2.
15
BITTENCOURT, C. F. “Produção didática e programas de ensino das escolas paulistas nas primeiras
décadas do século XX”. Revista da Faculdade de Educação da USP, São Paulo, 1989, v. 2, n.15, p. 77.
16
É provável que as primeiras antologias escolares tenham surgido na Grécia, como a Stéphanos (80 a.C.),
obra que reunia 40 autores, selecionados por Meleagro de Gadara. Por sua vez, a cartilha, enquanto método
de ensinar a ler e escrever, aparece entre os séculos XVI e XVII (BENJAMIN, Walter. Reflexões: a criança,
o brinquedo, a educação. Trad. Marcus Vinicius Mazzari. São Paulo: Summus, 1984, p. 103). As
gramáticas, repositórios da linguagem, despontam entre os gregos no século IV a.C.
17
Apesar da relevância histórica da gramática de Anchieta, segundo o estudioso Samuel Pfrom Netto cabe
ao educador brasileiro Antonio Álvaro Pereira Coruja o crédito da “primeira gramática da língua portuguesa
de certa importância”. A Gramática do Coruja, editada em 1835, é “citada por vários memorialistas
brasileiros como o livro no qual aprenderam os fundamentos do idioma pátrio” (NETTO, op. cit., p. 194).
18
Vale lembrar que, segundo Câmara Cascudo, até o século XVIII, o tupi, idioma nacional na época, não
expressava a glória indígena. Antes, era um liame de aproximação entre colonos brancos e a massa
mameluca. O folclorista brasileiro sustenta que “os piás e curumins não diziam as fábulas do jabuti, mas
possivelmente as de Esopo e Fedro” (CASCUDO, Luis da Câmara. Literatura oral no Brasil. 2. ed. Rio de
Janeiro: Livraria José Olímpio e INL/MEC, 1978, p. 86).
165
19
FREYRE, Gilberto. Sobrados e mocambos. S/d, v. 2, p. 582.
20
NETTO, Samuel Pfromm et alii. O livro na educação. São Paulo: Primor/MEC, 1974, p. 159-170.
21
O debate sobre o livro didático sempre foi acirrado entre pedagogos e historiadores do tema. Flávio Kothe,
por exemplo, sustenta que “o livro ‘didático’ não é apenas interessante pelo seu reducionismo do clássico a
um mínimo denominador comum, mas por fornecer como que a radiografia daquilo que se pretende formar
em termos de mentalidade e visão de mundo de um povo” (KOTHE, 1997, op. cit., p. 223).
166
22
Em paralelo ao livro de entretenimento, aparece no Brasil, em 11 de outubro de 1905, a primeira revista
dedicada ao público infantil, O Tico-tico. Publicada pela editora O Malho, do Rio de Janeiro, a revista
contribuiu para a formação de pelo menos uma geração de brasileiros. Suas páginas traziam histórias em
quadrinhos, curiosidades históricas e científicas, contos, fábulas e lições de civismo e boas maneiras.
23
MEIRELLES, op. cit., p. 22.
24
JOHNSON, Allan G. Dicionário de sociologia. Guia prático da linguagem sociológica. Trad. Ruy
Jungmann. Rio de Janeiro: Jorge Zahar Editor, 1997, p. 179.
25
Júlia Lopes de Almeida (1862-1934), esposa do escritor Filinto de Almeida, tornou-se também conhecida
pela publicação, em 1907, da obra Histórias de nossa terra, influenciada pelo modelo da obra italiana Cuore,
de Edmundo De Amicis. Com a mesma proposta moral e cívica de Contos infantis, nesta segunda obra a
autora reúne contos e episódios da vida familiar.
167
raposas, jabutis, macacos e onças. Os livros editados por Pimentel mantêm a vocação
pedagógico-moralizante, já instaurada nos livros anteriores, de familiarizar a criança
com as linguagens, as normas e as regras do mundo social adulto. Essa concepção
utilitária torna-se explícita no subtítulo do primeiro livro – Sessenta e um contos
populares, morais e proveitosos de vários países, traduzidos e recolhidos
diretamente da tradição local –, e no subtítulo da segunda obra – setenta esplêndidos
e novos contos infantis, dos mais célebres, conhecidos e apreciados (fantásticos,
tristes e alegres), todos eles moralíssimos. As obras de Pimentel podem ser incluídas
na categoria de adaptação das várias espécies literárias à cultura brasileira. Sua visão
pedagógica serve-se da estratégia de abrigar em suas obras textos com
intencionalidades estéticas e ideológicas fundadas em outras culturas visando adaptá-
los à realidade cultural brasileira.
Cita-se, também, aqui, outro autor de livros de leitura para sala de aula: Viriato
Padilha. Em Histórias do arco da velha o subtítulo anuncia: Esplêndida coleção dos
mais célebres contos populares, morais e proveitosos [...]. A nona edição, publicada
em 1959, traz três fábulas extraídas do folclore brasileiro: O burro e o boi, O urso e o
beija-flor, O lobo, o camponês e a raposa. As fábulas colecionadas por Correia
alinham-se ao conto popular, pois, embora mantenham o perfil de enfrentamento
entre as personagens, são demasiadamente alongadas em relação ao modelo esópico
e ignoram qualquer sentença moral explícita.
Um dos maiores sucessos de literatura escolar no país foram os livros Contos
práticos e Através do Brasil. O primeiro, editado em 1894 e organizado por Olavo
Bilac27 e Coelho Neto, tornou-se livro de leitura por mais de 50 anos nas escolas
brasileiras28. O segundo, lançado em 1910 por Bilac e Manuel Bonfim29 para o
26
Alberto Figueiredo Pimentel (1869-1914) foi jornalista, romancista, poeta (ligado ao movimento simbolista
de vanguarda e autor de literatura infantil), tradutor (considerado o pioneiro na tradução dos contos
maravilhosos) e cronista (dito como o criador da crônica social no Brasil).
27
Olavo Braz Martins do Guimarães Bilac (1865-1918) destacou-se como um dos fundadores da Academia
Brasileira de Letras. Poeta parnasiano, Bilac deixou conferências literárias, ensaios críticos, contos, poesias e
obras didáticas.
28
NETTO, op. cit.., p. 178.
168
29
Manoel José Bonfim (1868-1932), além de escritor, teve atuação destacada, como deputado federal, pela
defesa que fez da criação e manutenção das escolas públicas pela União.
30
NETTO, op. cit.., p. 178.
31
Felisberto Rodrigues Pereira de Carvalho foi educador e autor de vários livros didáticos, entre os quais se
destacam: Livros de leitura (uma série de cinco volumes, lançada em 1890); Noções de História Natural;
Elementos de gramática da Língua Portuguesa; Exercícios de aritmética e geometria; Exercícios de estilo e
redação; Seleta de autores modernos.
32
Thales Castanho de Andrade (1890-1977), professor, autor de literatura infantil e de livros didáticos,
exerceu o cargo de diretor-geral do Departamento de Educação do Estado de São Paulo.
33
“Nos livros de leitura de Carvalho, cada lição é geralmente seguida de exercícios de recapitulação,
exercícios de ditado, exercícios de elocução, exercícios de redação, exercícios de invenção e exercícios de
recitação. Estes últimos transcrevem fábulas” (NETTO, Samuel Pfromm et alii, op. cit., p. 174).
34
Saudade, livro escolar que reúne diferentes gêneros (contos, poemas, epístolas), “pertence à linhagem
literária de Coração, publicado na Itália, em 1886, por Edmondo de Amicis. O livro de Thales de Andrade é,
porém, uma produção brasileira, pela temática e principalmente pela linguagem que, de maneira intencional,
altera o tom erudito e sério (próprio da linguagem escrita, tradicional, até então imperante nos livros para
crianças) e procura a naturalidade do falar brasileiro” (COELHO, op. cit., p. 50).
169
O fato de não se ter acesso a todos esses livros citados dificulta dar razão ou não a
Rui Barbosa. Uma coisa, contudo, parece difícil de se contestar: o caráter exemplar
que proporciona ao gênero uma função pedagógica explícita nas obras pioneiras
dedicadas ao público escolar no Brasil. Sob tal vertente crítica, Dante Leite, no
estudo que faz, em 1950, sobre conceitos morais na literatura didática de ensino
primário no Brasil, conclui que os livros por ele pesquisados motivam duas
expectativas na criança: identificar o ideal com o real e o adulto como um ser
perfeito36. Também nesse sentido, Marisa Lajolo lembra que a literatura infantil no
Brasil fundava-se em narrativas cujo “protagonista era o modelo acabado da criança
que a escola se propunha formar”37, citando como paradigma dessa postura as obras
Através do Brasil, de Bilac e Bonfim, e Saudade, de Thales de Andrade, ambas
comprometidas com um fazer pedagógico pragmático e consevador.
O diágnóstico dos livros que circulavam nas escolas brasileiras em um passado
recente pode ser sintetizado em três compromissos básicos neles presentes: a
construção, através da criança, do papel social do cidadão a ser desempenhado na
sociedade; o culto dos heróis da história brasileira como modelos de cidadania; e a
defesa exaltada de um sentimento ufanista de ser brasileiro. A superação desse
comprometimento parece ocorrer com mais intensidade a partir dos anos 1960,
quando as crianças brasileiras assistem à implantação de uma literatura lúdica,
35
BARBOSA, Rui. “A reforma no ensino primário”. In: BARBOSA, Rui. Obras completas. Rio de Janeiro:
Ministério de Educação e Saúde, s/d, p. 223.
36
LEITE, Dante Moreira. “Conceitos morais em seis livros didáticos primários brasileiros”. Boletim da
Faculdade de Filosofia, Ciências e Letras da USP, v. 3, fascículo 119, São Paulo, 1950, p. 206.
37
LAJOLO, Marisa. Do mundo da leitura para a leitura do mundo. São Paulo: Ática, 1997, p. 69.
170
Epígrafe em um manuscrito do
Hitopadexa, datado de 1373.
1
Conforme dados fornecidos pelo jornal O Estado de São Paulo, edição de 27 de novembro de 1995, as
escolas públicas do país recebiam, na época, uma média anual de 110 milhões de livros didáticos distribuídos
pelo Ministério da Educação. A revista Veja, de 21 de maio de 2003, ratifica essa informação e acrescenta que
o governo brasileiro tornou-se “o maior comprador de livros escolares do planeta”, chegando a gastar 600
milhões de reais por ano para distribuir exemplares a alunos da rede pública. E, tomando por base
informações colhidas junto ao Ministério da Educação, a referida reportagem registra que o programa de
livros didáticos no Brasil tem menos êxito do que o esperado porque “os professores são mal preparados. A
maioria tem conhecimentos apenas rudimentares de didática e não consegue aproveitar integralmente os
livros. Os alunos mal conseguem ler os textos. A habilidade do estudante brasileiro para leitura foi
considerada a pior num estudo recente feito em 32 países. A vida útil dos livros didáticos no Brasil está entre
as menores do mundo. Aqui, um livro dura três anos. Na França, é usado por cinco anos. Isso obriga o
governo a fazer mais compras”. O Jornal de Santa Catarina, de 8 de novembro de 2004, publicou dados
fornecidos pelo Ministério da Educação na 50ª Feira do Livro de Porto Alegre, afirmando que o MEC
compra, anualmente, 120 milhões de livros didáticos e 36 milhões de obras de literatura.
2
LAJOLO, Marisa; ZILBERMAN, Regina. A formação da leitura no Brasil. São Paulo: Ática, 1999, p. 120.
172
3
O COLTED foi extindo em 1971, sendo absorvido pelo INL.
173
4
A série Livros de leitura tornou-se também conhecida pelas denominações de Leitura universal e Método
Abílio de alfabetização.
5
RAMOS, Graciliano. Infância. 22. ed. Rio de Janeiro: Record, 1986, p.126.
6
Ibidem, p. 127.
7
Ibidem, p. 127.
8
PINTO, Alfredo Clemente. Seleta em prosa e verso. Porto Alegre: Livraria Selbach, 1883, p. 3.
174
por um período superior a 70 anos, permanecendo até 1930. A obra atingiu o número
de 43 edições e marcou várias gerações de jovens brasileiros. Na Antologia nacional,
privilegiam, os organizadores, diferentes gêneros e autores, todos com a função
precípua de servir de exemplo aos jovens. Assinala-se na sétima edição, publicada
em 1915, a inserção de um novo escritor brasileiro, João Cardoso, Barão de
Paranapiacaba, que adaptou para a nossa cultura a fábula O rato da cidade e o rato
do campo. Após a narrativa, os citados organizadores tiveram o cuidado de introduzir
uma nota explicativa a respeito do trajeto histórico do texto primeiro: “Esta fábula
contada pelo romano Horácio, pelo quinhentista Sá de Miranda, pelo gracioso La
Fontaine, e deste trazida ao vernáculo por João Cardoso, oferece aos estudiosos
ótimo campo para um trabalho de literatura comparada”9. É interessante observar que
os organizadores realizaram um minucioso estudo dessa fábula chegando a precisar a
data de sua transposição para a Literatura Brasileira por João Cardoso, sob forma de
tradução. Lembra-se que o autor é responsável pela tradução em língua vernácula da
obra de La Fontaine, conforme já mencionado neste trabalho quando foi organizada a
categoria dos tradutores.
Dessa maneira, a vocação da fábula permanece por longo tempo na história do
livro didático em nosso país, graças a sua função pedagógica eixada na simplicidade
da linguagem narrativa, no encanto das histórias de enfrentamento e no caráter
exemplar, tanto da narração quanto da moralidade.
Abrindo-se um parêntese para introduzir uma controvérsia atinente à presença
da fábula no sistema escolar europeu, assinala-se que, durante a Renascença,
educadores como Thomas Elyot, em sua obra Boke named Governor, publicada em
1531, recomendava que as fábulas fossem a primeira leitura das crianças. Outros
notáveis educadores, como Francis Bacon e John Locke, endossavam o ensino de
Esopo para crianças10. Sob a luz do pensamento iluminista, surgem opiniões
9
BARRETO, Fausto; LAET, Carlos de. Antologia nacional. 12. ed. Rio de Janeiro: Livraria Francisco Alves,
1927, p. 373.
10
REINSTEIN, P. Gila. “Aesop and Grimm: contrast in ethical codes and contemporary valves”. Children’s
Literature in Education, 1983, p. 45.
175
11
ROUSSEAU, Jean-Jacques. Emílio. Barcelona: s/d, tomo I, p. 139.
12
Apud FERNANDEZ, op. cit., p. 95.
176
13
REBOUL, Olivier. Introdução à retórica. Trad. Ivone C. Benedetti. São Paulo: Martins Fontes, 1998, p.
148.
14
“Questionário: – Que é poesia didactica? Que evolução soffreu a poesia didactica? Que é sátira? Que é
fabula? Qual é a origem da fabula? Será muito difficil compor uma boa fabula? Deve ser em verso a fabula?
Quem é o maior fabulista? Que sabeis dos imitadores de La Fontaine em portuguez? Conheceis bons
fabulistas brasileiros, além dos traductores? Trabalhos escritos: – 1O. Escrevei em prosa as fabulas de
Antonio do Bomsuccesso.– 2O. Commentai a influencia da França nas diversas produções da literatura
nacional, baseando-vos nos trechos incluídos neste compendio” (Noções geraes de Literatura. Rio de Janeiro:
Livraria Francisco Alves, s/d, p. 474). A referência a Bomsuccesso deve estar equivocada: ao longo da obra
não há nenhuma menção a qualquer fabulista com o nome de Antonio do Bomsuccesso, mas sim a Anastácio
do Bomsuccesso.
15
À revelia da teoria de Genett, considera-se aqui o título como intertexto.
16
A escolha pelo Estado de Santa Catarina deve-se ao fato de ser minha terra natal, além de ser o Estado
onde em 1961 instalou-se a UFSC. Selecionei três educandários: dois de ensino particular, em Florianópolis
(Colégio Catarinense e Colégio Coração de Jesus), e dois de ensino público, em Blumenau, sendo um
177
estadual (Conjunto Educacional Pedro II) e o outro municipal (Escola Básica Municipal Machado de Assis).
O corpus da pesquisa abrangeu 100 fábulas inseridas em 70 livros didáticos.
17
O leitor deve estranhar o número reduzido de textos de Monteiro Lobato no estudo da categoria de citação
crítica, porém informa-se que neste universo encontram-se apenas as fábulas transcritas com o acréscimo dos
diálogos entre as personagens do Sítio do Pica-Pau Amarelo, fato que caracteriza essa categoria construída na
tese. A maior parte da produção de Lobato está presente nesses livros unicamente com a fábula adaptada, daí
a sua inclusão na categoria de adaptação.
178
irônico em relação à fábula, findam por ser exercícios moralizantes18. A leitura das
fábulas inseridas na Série Fontes, atividade seguinte, possibilita ainda a reflexão
sobre outras facetas da aplicação dessa espécie narrativa em livros didáticos.
18
SOARES, Magda. “A escolarização da literatura infantil e juvenil”. In: SOARES, Magda A escolarização
da leitura literária: o jogo do livro infantil e juvenil. Belo Horizonte: Autêntica, 1999, p. 43-44. Nessa mesma
linha de análise, acrescentam-se, aqui, as sugestões apontadas por Marisa Lajolo quando aborda a temática da
leitura literária na escola. A estudiosa propõe que não se deva fugir a três encaminhamentos: a inscrição do
texto na época de sua produção, a inscrição do texto no conjunto dos principais juízos críticos que sobre ele se
acumularam e, por último, a inscrição do texto no cotidiano do aluno (LAJOLO, Marisa. Do mundo da leitura
para a leitura do mundo. 3. ed. São Paulo: Ática, 1997, p. 16).
181
Marisa Lajolo
1
GONÇALVES, Rosemari Conti. Gênese da Diretoria de Insrução Pública na Província de Santa Catarina
(1830-1858). 2000 (Dissertação de Mestrado em Educação). Universidade Federal de Santa Catarina,
Florianópolis.
2
Em 2005 o Estado de Santa Catarina possuía 7.128 escolas, nas redes públicas (estadual, federal e
municipal) e na rede particular, com 1.678.798 alunos matriculados na Educação Básica.
3
SANTA CATARINA (Estado). Anais da Secretaria de Estado dos Negócios do Interior e Justiça.
Florianópolis: Typ. Livraria Moderna, 1900, p. 20. Agradeço ao Instituto Histórico e Geográfico de Santa
Catarina pelo acesso ao referido documento.
4
NETTO, op. cit., p. 175.
5
Delminda Silveira de Sousa (1854-1932), pertencente a tradicional família catarinense, foi professora de
Português e Francês no Colégo Coração de Jesus, onde lecionou até idade avançada. A escritora catarinense
183
publicou muitos poemas sob o pseudônimo de Brasília Silva. Entre suas obras destacam-se Lises e martírios
(1908) e Indeléveis versos (1989, edição póstuma).
6
Henrique da Silva Fontes (1885-1965) é catarinense da cidade de Itajaí, desembargador, jornalista, filólogo,
historiador, pioneiro do ensino universitário, co-fundador da Academia Catarinense de Letras, presidente do
Instituto Histórico e Geográfico de Santa Catarina e professor do ensino médio e universitário. Em 1907,
ingressou no magistério como professor particular, no Rio de Janeiro. Em 1908, cursou Engenharia na Escola
Politécnica e, a partir de 1910, fixou residência em Florianópolis, inicialmente como professor no Ginásio
Catarinense e na Escola Normal Catarinense. Bacharelou-se pela Faculdade de Direito do Paraná. De 1919 a
1926 exerceu a função de Diretor de Instrução Pública do Estado de Santa Catarina. Além da Série Fontes, o
professor Henrique escreveu: Ortografia (1931); Prontuário ortográfico e prosódico (1932); O conselheiro
José Mascarenhas Pacheco Pereira de Melo (1938); Lacerda Coutinho (1943); Estudinhos antroponímicos
(1951); A beata Joana Gomes de Gusmão (1954); O irmão Joaquim, o Vicente de Paulo Brasileiro (1958);
Primórdios e primícias (1959); O nosso Cruz e Souza (1961); Pensamentos, palavra e obras (1960-63); e A
irmandade do Senhor dos Passos (1965).
184
O menino estudioso,
obediente, leal e
cuidadoso de suas
obrigações, será depois
um cidadão excelente9.
7
SANTOS, Paulete Maria Cunha dos. Protocolo do bom cidadão. Série Fontes: lições de moral e civismo na
organização da educação em Santa Catarina (1920-1950). 1997 (Dissertação de Mestrado em História).
Universidade Federal da Santa Catarina, Florianópolis, p. 10.
8
“A causa deste empreendimento foi a falta de livros que, podendo ser adquiridos sem sacrifício pelos
remediados, possam também, à larga, ser distribuídos gratuitamente entre aqueles para quem alguns tostões
representam quantia apreciável. Empenhando-se o Estado em tornar efetivas as leis que promulgou sobre a
obrigatoriedade do ensino, precisa por isso facilitar a aquisição de livros; precisa mesmo dá-los aos que não
os possam comprar e aos que relutem em adquiri-los. Mas claro está que nesta série de livros não se procura
somente a exigüidade do custo; com igual cuidado procurou-se também que nela, tanto no assunto como na
feitura do material, sejam observadas as lições de pedagogia, de modo que, ainda sob este aspecto de
importância capital, não sejam os presentes livros inferiores aos seus congêneres” (FONTES, Henrique da
Silva. “Prefácio”. FONTES, Henrique da Silva (Org.). Primeiro livro de leitura: Série Fontes. Florianópolis:
Cysne, 1920).
9
FONTES, Henrique (Org.). Segundo livro de leitura:Série Fontes. Florianópolis: Imprensa Oficial do
Estado, 1935, p. 7.
185
Tal ideário de formação do bom cidadão era compartilhado tanto pela Série como por
outras obras congêneres que circularam em muitos outros educandários no Brasil.
Em paralelo a esse ideário patriótico, depara-se igual preocupação com a construção
da religiosidade do educando. Documenta tal inquietação o teor de uma
correspondência para o padre Thomas Fontes, seu irmão, quando confessa a sua
estima pelo projeto, bem como as suas metas:
10
Carta remetida pelo editor da Série ao Pe. Thomas Fontes, arquivada no acervo Henrique Fontes. A
missiva está também citada na dissertação A correspondência epistolar de Henrique da Silva Fontes
(PREUSS, Mara Aguiar Souza. A correspondência epistolar de Henrique da Silva Fontes. 1998 (Dissertação
de Mestrado em Literatura). Universidade Federal de Santa Catarina, Florianópolis, p. 18.
11
Este aspecto de compromisso com a religião foi ressaltado na obra Centenário de nascimento de Henrique
da Silva Fontes, como se constata: “Homem profundamente religioso, não era um fanático exibicionista nem
um intolerante. Tinha enorme respeito pelas convicções alheias. Todos os dias de trabalho começavam pela
invocação do Espírito Criador e terminavam por uma expressão de ação de graças. Em sua casa acolhedora na
Avenida Trompowski, no tampo de vidro da sua mesa de trabalho, escrevia, no início de cada manhã: ‘veni
Creator Sprictu’ e, ao encerrar as atividades diárias, registrava a outra frase: ‘Deo gratias’, apondo a
respectiva data. E assim fazia na primeira e na última página dos seus livros” (NORBERTO, Ungaretti.
“Henrique Fontes: aspectos humanos”. In: Centenário de nascimento de Henrique da Silva Fontes: aspectos
da vida e da obra. Florianópolis: Conselho Estadual de Educação, 1986, p. 26).
12
Ainda sob a abordagem de temas religiosos em livros escolares, a pesquisa que efetuei junto ao Museu
Histórico Thiago de Castro, em Lages, SC, permitiu-me acesso ao Livro de exercícios para aprender os
elementos da grammatica portugueza, compilado por P.S. e aprovado pelo Conselho Escolar do Estado do
Rio Grande do Sul, conforme Ato n. 5, de 24 de outubro de 1898. A obra, adotada em todas as escolas
públicas gaúchas no final do século XIX, sugere três temáticas ligadas à fé cristã para serem trabalhadas pelos
educandos: O homem temente a Deus, A religião dominante e Deus é misericordioso.
186
13
Faz-se pertinente a informação de que o primeiro Livro de leitura contém 18 páginas; o segundo, 65; o
terceiro, 72; e o último, 83. Na coletânea estão distribuídas 185 pequenas histórias, 95 poesias, 84 provérbios,
188
12 fábulas e 9 epístolas.
14
FONTES, Henrique da Silva. “Prefácio”. In: FONTES, Henrique da Silva (Org.). Quarto livro de leitura:
Série Fontes, Florianópolis: Typ. Livraria Moderna, 1930.
15
BORGES, Abílio César. Primeiro livro de leitura, 20. ed. Ver primeira edição, de 1866, pela Tip. E.
Guyot.
16
LACERDA, Joaquim M. Thesouro da infância. Rio de Janeiro: B.L. Garnier, 1885.
189
17
É oportuno registrar que no Brasil, segundo Hallwell, por volta de 1870 havia 120 mil crianças
matriculadas nos cursos primários e 10 mil nas escolas secundárias (HALLWELL, op. cit., p. 45).
18
O acervo Henrique Fontes está instalado, desde 1985, no subsolo do Residencial Clotilde Fontes, na
Avenida Trompowski, nº. 148, em Florianópolis, SC, construído no terreno de sua antiga residência. A
oportunidade me é oportuna para agradecer a recepção sempre gentil da curadora do acervo, Terezinha
Fontes, filha do professor Henrique Fontes.
190
Ainda que o professor Fontes credite tal fábula a La Fontaine, ela não aparece nas
coleções do fabulista francês, assim como não se encontra na produção dos fabulistas
clássicos anteriores. A pesquisa também não conseguiu encontrar modelo igual nos
inúmeros fabulistas brasileiros enquadrados em quaisquer das categorias aqui
construídas. Contudo, é possível que o Professor Fontes tenha transcrito o referido
texto do Primeiro livro de leitura20, editado em 1918, de Isaura Franco, obra presente
em sua biblioteca. Nesse material escolar, denominado de Ensino instrutivo e
simultâneo da leitura e da escrita, o texto aparece anônimo e com o título História
de um macaco. Essa fábula pode ser pensada como oriunda da cultura popular em
19
FONTES, op. cit., v. 1, p. 2.
20
FRANCO, Isaura. Primeiro livro de leitura. Salvador: Livraria Catiliana, 1918, p.111. Esta autora não foi
citada na relação dos modelos pesquisados por Henrique Fontes porque apenas conseguimos encontrar um
único livro dela, não tendo sido possível, nesta pesquisa, identificar se o mesmo faz parte de uma série.
191
decorrência das marcas da oralidade e por criar uma situação cômica, muito
encontrada nos contos populares.
Outra narrativa – A raposa e as uvas – é creditada a Bocage. Torna-se oportuno
dar conhecimento de que, no volume terceiro das poesias do poeta português,
encontram-se 28 fábulas versificadas, sendo sete traduzidas de La Fontaine,
incluindo-se A raposa e as uvas, e 21 assinadas pelo poeta português21. Na
seqüência, a tradução de Bocage:
21
A pesquisa feita permite pensar duas possibilidades de inserção da fábula no Segundo livro de leitura: o
professor Fontes pode ter consultado a obra de Bocage ou, ainda, uma outra obra também presente em seu
acervo, publicada por Alfredo Campos, Algumas noções de língua e literatura portugueza conforme o
programa official para os alumnos de instrucção secundária, datada de 1891, contendo a mesma tradução
do fabulista português.
22
FONTES, v. 2, p. 5.
23
“Uma raposa faminta, ao ver cachos de uvas em uma parreira, quis pegá-los mas não conseguiu. Então,
afastou-se dela, dizendo: ´Estão verdes´. Assim também, alguns homens, não conseguindo realizar seus
negócios por incapacidade, acusam as circunstâncias” (ESOPO, op. cit., p. 25).
24
“O soberbo finge desprezar o que não pode conseguir./ Faminta, uma raposa bravejava./ Para d’uvas um
cacho agadanhar/ D’alta parreira que sobre ela estava,/ E neste afã pulava a bom pular./ Como, porém,
192
baldado fosse o intento/ De atingir o manjar que a seduzia,/ Parou cansada, e neste quebramento/ Foi-se
afastando, enquanto dizia:/ –‘Inda bem que estão verdes; não as quero;/ Travam como de fel; não as tolero’./
Aqueles que improperam maldizentes/ Do que fazer não podem, neste espelho/ Deverão remirar-se,
conscientes/ De haverem desprezado o bom conselho” (FEDRO, op. cit., p. 117).
25
“Certa raposa astuta, normanda ou gascã,/ quase morta de fome, sem eira nem beira,/andando a caça, de
manhã,/ passou por uma alta parreira/ carregada de cachos de uvas bem maduras,/ Altas demais – não
houve impasse:/ ‘Estão verdes... já vi que são azedas, duras...’/ Adiantaria se chorasse?” (LA FONTAINE,
op. cit., v. 1, p. 211).
26
Leon Tolstoi (1828-1910), escritor russo que, em 1870, escreveu Silabário, uma coletânea escolar de
lendas, contos e fábulas.
27
MORAES, Theodoro de. Meu livro: segundas leituras de accôrdo com o methodo analytico. São Paulo:
Siqueira, Nagel & Cia, 1915, p. 93.
193
Era uma vez um rato que arranjou a sua casa numa despensa e
vivia muito farto, enchendo-se do bom e do melhor.
Um dia foi dar um passeio ao campo e encontrou um amigo que
vivia por ali, mas andava tão magrinho que metia dó.
– Anda daí comigo, verás como engordas depressa.
– Vamos já, sem demora - respondeu o magrinho.
Chegaram à despensa e o dono da casa mostrou um buraco ao
companheiro, dizendo:
– Entra, que essa é a porta da minha sala.
– Não, é melhor entrares tu, que sabes os cantos da casa.
Mas, quando ia entrando, o gato da casa, que ouviu a conversa e
estava à espreita, deu um pulo e apanhou-o nas unhas. O magro,
que isto viu, tratou de fugir, dizendo lá de longe:
– Não! Mais vale ser magro no mato, do que gordo na barriga do
gato29.
28
FONTES, op. cit., v. 2, p. 11.
29
FONTES, op. cit., v. 1, p. 2. Embora o livro do professor Fontes tenha omitido que o texto é uma tradução,
sabe-se que Ana de Castro Osório a traduziu com base nos fabulários de Esopo e La Fontaine.
30
A tradução do original grego, por Neide Smolka, é apresentada como sendo “direta do grego”, embora
cause estranhamento a narrativa alongada. Pode servir de justificativa a advertência feita aos leitores pela
tradutora no prefácio, quando registra as dificuldades de traduzir com fidelidade: “Um rato do campo era
amigo de um rato de casa. O de casa foi convidado, então, pelo amigo para irem comer nos campos. Como
comesse apenas cevada e trigo, disse o rato de casa: ‘Sabe, amigo, tu levas uma vida de formiga. Pois, na
verdade, minha vida é repleta de coisas boas. Vem comigo e poderás usufruir de tudo’. Imediatamente os
dois partiram. O rato de casa mostrou legumes e trigo e ainda figos, queijo, mel e frutas. O outro, admirado,
194
Fontaine conserva o título de Esopo, mas inverte a ordem das personagens, O rato da
cidade e o rato do campo, e, como genuíno representante do estilo de sua época,
transforma um texto em prosa em versos de vocabulário precioso e com rimas
alternadas. A distância da tradução de Ana de Castro Osório do modelo clássico31
pode ser dimensionada pelo discurso narrativo estrategicamente dirigido a um
público infanto-juvenil, sem maior compromisso com a estrutura narrativa da fábula
clássica. A leitura da tradução torna patente duas alterações fundamentais. A
primeira diz respeito à introdução de “era uma vez”, forma tradicional de início dos
contos maravilhosos e populares; a segunda, a transformação sofrida pela sentença
moral clássica, é sintetizada em um provérbio de formato popular. A mescla da
fábula com o provérbio remete à teoria de Northrop Frye, já vista nesta tese, quando
sustenta um estreito vínculo entre uma e outro, ambos com roupagem de “conselho
prudente”32.
o elogiava bastante e maldizia sua própria sorte. Quando iam começar a comer, um homem repentinamente
abriu a porta. Amedrontados e preocupados com o barulho, precipitaram-se os ratos para as frestas. Quando
iam de novo pegar figos secos, outra pessoa apareceu para pegar alguma coisa ali dentro. Ao vê-la,
novamente precipitaram-se para dentro de um buraco. E o rato do campo, esquecendo a fome, suspirou e
disse ao outro: ‘Adeus para ti, amigo! Comes demais, aproveitando com satisfação das coisas, mas com
perigo e muito medo. Quanto a mim, pobre, aproveitando-me da cevada e do trigo, viverei sem medo, sem
desconfiar de ninguém’./A fábula mostra que mais vale viver com simplicidade e ter uma existência pacífica
do que viver na fartura mas com medo de sofrer” (ESOPO, op. cit. p. 137).
31
“Um ratinho citadino/ fez questão de convidar/ seu compadre campesino/ para opíparo jantar./ Num
magnífico tapete/ estavam postos os pratos./ Que fartura! Que banquete!/ Que festa para os dois ratos!/
Súbito, cessa o alarido,/ e o rato urbano se cala:/ é que escutara um ruído/vindo da porta da sala./
Pressentindo algum perigo,/ põe-se a correr o hospedeiro./ Vendo aquilo, o seu amigo/ também o segue
ligeiro./ Por fim o barulho cessa,/ some o medo e a incerteza./ ‘Rebate falso, ora essa!/ Voltemos à
sobremesa.’/ Mas o rural diz que basta,/ agradece a lauta ceia,/ e fala, enquanto se afasta:/ ‘Vem amanhã,
seis e meia,/ jantar na roça comigo:/ comida simples, caseira;/ sem requintes, meu amigo,/ mas sem medo e
sem carreira...” (LA FONTAINE, op. cit., v. 1, p, 94).
32
FRYE, 2004, op. cit., p. 153.
33
Alphonse de Lamartine (1790-1869), poeta e estadista francês, autor de Primeiras meditações poéticas
(1820), Novas meditações poéticas (1823) e Harmonias poéticas e religiosas (1830). Curiosamente, segundo
o escritor português Pinheiro Chagas, o poeta Lamartine detestava La Fontaine “por haver transportado para o
mundo animalesco os vícios da sociedade humana” (CHAGAS, Pinheiro. “La Fontaine e as suas fábulas”. In:
195
fábula na obra Biblioteca infantil: álbum das crianças34, publicada em 1897 por
Figueiredo Pimentel, sendo a fábula em questão atribuída a Lamartine:
LA FONTAINE, Jean de. Fábulas de La Fontaine. Traducções modernas com estudos críticos de Pinheiro
Chagas e Theophilo Braga. Rio de Janeiro: H. Garnier, 1905, p. 12).
34
PIMENTEL, Figueiredo. Biblioteca infantil: álbum das crianças. Rio de Janeiro: Livraria Quaresma, 1956,
p. 128-129.
35
FONTES, op. cit., v. 4, p. 55.
196
entre os fabulistas. A inserção dessa fábula de inovação estrutural tão pouco comum,
reafirma o compromisso da Série com a tradição religiosa, pois vários textos
associam a educação a princípios cristãos, como se observa, por exemplo, no texto
Ao entrar na aula, assinado por Afonso Celso, integrante do Primeiro livro de leitura
da Série:
36
FONTES, op. cit., v. 1, p. 44. Registra-se aqui a informação compartilhada por Samuel Pfromm Netto
quando assinala que “um dos mais antigos livros didáticos publicados no idioma português é a Cartinha de
aprender a ler, de João de Barros, impressa em 1539 pela oficina de Luiz Rodrigues, em Lisboa”. Segundo o
estudioso, presume-se que o material tenha sido usado em terras brasileiras e, além de ensinar as primeiras
letras, reunia os “preceitos e mandamentos da Santa Madre Igreja”. Menos de uma década depois, em 1548,
D. João III esboça sua preocupação com o conteúdo dos ensinos repassados às crianças indígenas, lembrando
a Tomé de Souza: “a principal causa que moveu a mandar povoar as ditas terras do Brasil foi para que a gente
dela se convertesse à nossa Santa Fé Católica” (NETTO, op. cit., p. 155).
197
37
FONTES, op. cit., v. 4, p. 55.
38
“– Não concordo! – berrou Emília. Eu nasci boneca de pano, muda e feia, e hoje sou até ex-Marquesa. Subi
muito. Cheguei a muito mais que vintém. Cheguei a tostão.../ – Isso não impede que a fábula esteja certa,
Emília, porque os fabulistas escrevem as fábulas para as criaturas humanas e não para criaturas unumanas
como você. Você é ´gentinha`, não é bem gente./ Emília fez um muxoxo de pouco caso./ – E ´passo` isso de
ser gente humana! Maior sem-gracismo não conheço.../ – Cuidado, Emília – disse Narizinho. De repente você
estufa demais e acontece como no caso da rã... E sabe o que sai de dentro de você, se arrebentar?/ – Estrelas!
– berrou Emília./ – Sai um chuveiro de asneirinhas.../ Emília pôs-lhe a língua” (LOBATO, op. cit., 1986, p.
10).
198
Além de alterar o título clássico, quando troca um dos elementos do par, a cegonha,
por uma ave nativa, o tucano40, o texto da Série Fontes distancia-se da linguagem e
39
FONTES, op. cit., v. 3, p. 10.
40
Do tupi tu’kã. Ave da família dos rafastídeos, formada por cerca de trinta e sete espécies; no Brasil existem
quatro espécies nativas. O tucano é sedentário e se alimenta especialmente de frutas. A espécie brasileira mais
conhecida possui bico amarelo-alaranjado e garganta branca.
199
41
“Pagar na mesma moeda./ Danificar não se deve,/ Manda a justiça, a ninguém;/ Se preterida, porém,/ For
esta lei salutar,/ Esta fábula demonstra/ Que quem o mal praticar/ Por igual há de pagar./ Dizem que a
raposa, um dia,/ Para cear convidara/ A cegonha, e preparara/ Uma líquida iguaria,/ Que espalhou num
prato raso,/ Para que desta maneira/ Não pudesse, em qualquer caso,/ Provar dela a companheira/
Retribuindo o convite,/ A cegonha despeitada/ Encheu de carne picada/ Um vaso de boca estreita,/ Por onde,
a comer afeita,/ O longo bico enfiava,/ E destarte o apetite/ Da outra mais apurava./ Nesse transe
angustiado,/ Com a raposa e má hora/ Lambia o vaso por fora,/ Sem ter o manjar provado,/ Diz-se que a
cegonha arteira/ Lhe murmurou zombeteira:/ – ‘Quem teve um mau proceder/Resigne-se a igual sofrer”
(FEDRO, op. cit., p. 66-67).
42
“A Comadre Raposa, apesar de mesquinha,/ Tinha lá seus momentos de delicadeza./ Num dos tais,
convidou a cegonha, vizinha,/ a partilhar da sua mesa./ Constava a refeição de um caldo muito ralo,/ servido
em prato raso. Não pôde prová-lo/ a cegonha, por causa do bico comprido./ A raposa, em segundos, havia
lambido todo o caldo./ Querendo desforrar-se da raposa, a comadre um dia a convidou/ para um jantar. Ela
aceitou/ com deleite do qual não fez disfarce./ Na hora marcada, chegou/à casa da anfitriã./Esta, com
caprichoso afã, pedindo desculpas pelo transtorno,/ solicitou ajuda pra tirar do forno/ a carne, cujo cheiro
enchia o ar./ A raposa, gulosa, espiou o cozido:/ era carne moída – e a fome a apertar!/ Eis que a cegonha
vira, num vaso comprido/ e de gargalo fino à beca, todo o conteúdo da travessa!/ O bico de uma entrava
facilmente,/ mas o focinho da outra era bem diferente;/ assim, rabo entre as pernas, a correr,/ foi-se a
raposa. Espertalhão, atende:/ quem hoje planta, amanhã vai colher!” (LA FONTAINE, op. cit., v. 1, p. 117-
118).
43
“Amiga raposa convidou amigo corvo para fazerem uma viagem. A raposa convidou o gambá para seu
companheiro, e o corvo convidou caracará. Partiram. Chegando no meio dos montes, veio a noite e foram
pedir rancho na casa da amiga onça. A onça andava por fora atrás de um rebanho de carneiros, e chegou à
casa muito tarde, trazendo um grande carneiro morto. Os hóspedes, que se achavam em casa, ficaram com
medo./Disse a raposa: ‘Compadre corvo, as coisas não estão boas’. Disse o caracará: ‘Ora, esta é boa, não
temos do que temer; mas você, comadre raposa, é que deve estar em eita, sem ter onde se meta!’ A raposa
deu uma gargalhada e disse: ‘Serei eu pior do que compadre cachorro?’ O caracará: ‘Comigo ninguém
pode; não corro por terra, porque não corto bem o chão; mas corto o vento. Você, amiga raposa, e compadre
gambá, é que têm de se ver hoje; quando ela pegou o compadre carneiro, que é maior de que vocês, quanto
mais!’ Chegou a hora da ceia. A onça convidou os seus hóspedes para cearem. Só a raposa é que pôde
comer, por causa do feitio do prato./A onça fez mais mingau e espalhou numa pedra, e a raposa tornou a
lamber. Depois o corvo disse: ‘Comadre onça, eu não acho boa esta moda: quem lambe come, quem pinica
com fome fica!’ Foram todos dormir. O corvo disse para o caracará: ‘Nós não havemos de ficar com fome’.
Quando a onça pegou no sono, o corvo agarrou nos filhos da onça, e os devorou com o bico; o caracará fez
o mesmo./Safaram-se, deixando a raposa e o gambá dormindo. Quando a onça acordou, procurou os filhos e
só viu os ossos, investiu para a raposa, que escapou-se e foi ao encontro de seus companheiros de viagem e
os encontrou na casa do macaco. A raposa: ‘Agora é ocasião de vingar-me do que vocês me fizeram’. Mas
como era hora de jantar ela esperou. No fim da janta viu um cachorro, teve medo e despediu-se. Foram o
corvo e o caracará para casa do galo e a raposa já estava esperando pela ceia./Chegada a hora, foram todos
cear. O galo espalhou milho por toda a casa e disse:/ ‘Venham de bico/ Que me despico:/ Quem tem focinho/
200
Nem um tico’./ A raposa meia desconfiada:/ ‘Façam o que quiser,/ Durmam vocês, é que se quer’./ Foram
todos dormir, e a raposa foi convidar mais amigas para virem dar cabo de seus inimigos de penas. Deram
cabo de todos, só deixando o gambá, por ser muito fedorento” (ROMERO, op. cit., p. 154-155).
44
CASCUDO, Luis da Câmara. In: ROMERO, Silvio. Folclore brasileiro: contos populares do Brasil. São
Paulo : Itatiais/USP, 1985, p. 155.
45
“A forma etiológica é constante, narrando os costumes dos animais e a possível monotonia resulta da
segurança da observação do folk-ways bestial. É tipicamente uma poranduba, conversa indígena de evocação
de animais. Com o traço cômico que os aproxima dos homens. O final, bem trágico, é expressivo para a
mentalidade indígena, sempre vencendo o mais forte, quando mais astuto. De maior importância não é o lado
moral nem maiores razões aparecem que dispensam a ferocidade consuetudinária de uns e outros”
(CASCUDO, Câmara. In: ROMERO, op. cit., p. 156).
201
46
Os gramáticos portugueses Roquete e Fonseca distinguem o apólogo como gênero e a fábula como
espécie: “Apólogo é palavra grega e significa uma historieta fabulosa, que debaixo do véu da alegoria nos
apresenta uma verdade; fábula é palavra latina (de fari, falar) e significa uma relação não verdadeira, debaixo
de cujo véu se nos faz agradável a verdade. Diferençam-se em que a fábula só apresenta por interlocutores os
animais e cousas inanimadas, e o apólogo, que é mais extenso, faz falar aos animais, aos deuses, aos homens,
às cousas insensíveis, e ainda aos seres abstractos e metafísicos [...]”. Ambos finalizam, admitindo: “Em
linguagem comum usam-se alternativamente estas palavras uma por outra; ainda que a de apólogo é mais
erudita” (ROQUETTE, J. J.; FONSECA, José da. Dicionário dos sinônimos poéticos e de epítetos da Língua
Portuguesa. Porto, Portugal: Lello & Irmão, 1848, p. 55).
47
“O Sr. Pereira verseja optimamente, em português bom, adopta o metro vario com felicidade e suas fabulas
já representam sérios esforços na constituição de um fabulario brasileiro, cousa infieri. Quaesquer restricções
à factura das suas composições não lhe empanam as qualidades reaes. Poder-se-ia notar imprecisão de
scenarios em quase todas; incaracterização do ambiente, onde não se movem bichos nossos, nem crescem
arvores nossas, nem se allude a factos da nossa historia ou vida; certa prolixidez no desenrolar a acção,
censurável quase tanto quanto a desmedida concisão de Esopo ou Lessing. Dado entretanto a immensa
difficuldade do gênero, em que só La Fontaine é grande, todos os senões são desculpabilissimos. Quem já
perlustrou as insulsices de Bom Successo ou Paranapiacaba, dois prodigiosos deformadores do inimitado
francês, não pode recusar palmas à tentativa do Sr. Balthazar Pereira [...]. Em todas as fabulas há centelhas e
observações exactas, argutos lances, simplicidade e uma sempre constante bonhomia” (OITICICA, op. cit., p.
458-59).
202
48
FONTES, op. cit., v. 3, p. 11.
203
49
Ibidem, p. 15.
50
DANIEL. Capítulo 4, versículo 20. In: Bíblia Sagrada. Tradução na linguagem de hoje. São Paulo:
Sociedade Bíblica do Brasil, 1988, p. 1158-1159.
204
51
FONTES, op. cit., v. 3, p. 22.
52
Alguns escritores, como Eurico Santos, optam pela denominação fábulas dos nativos (SANTOS, Eurico.
Histórias, lendas e folclore de nossos bichos. Rio de Janeiro: Cruzeiro, 1957, p. 402). Por sua vez, Couto de
Magalhães utiliza a expressão Lendas aborigenes do Brasil (MAGALHÃES, Couto de. O selvagem. 3. ed.
São Paulo: Companhia Editora Nacional, 1935, p. 211), enquanto Câmara Cascudo prefere perpetuar a
denominação Fábulas indígenas e lembra que tais narrativas tiveram “participação intensa na literatura oral
brasileira mas sempre através da interpretação mestiça, mudados os termos, substituído o herói, trocadas às
vezes as finalidades do conto por efeito da influência catequista. O mestiço transmite a fábula indígena
aproveitando quanto não contrarie sua maneira pessoal de viver, agir e compreender. As égides indígenas não
satisfazem a mentalidade do mameluco, do euriboca, do caboclo. Transfere, para a estória, os valores que o
impulsionam e justificam, aos seus olhos, a conduta” (CASCUDO, 1978, op. cit., p. 97).
206
presenças nos escritos de Silva Campos, Câmara Cascudo e Silvio Romero, cujas
obras fazem parte do acervo do professor Henrique Fontes.
E o homem disse:
– Está bem! Vamos ver a tal cova.
E lá seguiram os três. Chegados à beira da cova,
o homem disse à onça :
– Entre, que eu quero ver como você estava.
A onça entrou.
O homem, então, ajudado pela raposa, rolou a pedra e a
onça não pôde mais sair.
E o homem então disse à onça:
– Agora você fica sabendo que o bem se paga com o bem.
53
E retirou-se com a raposa, e a onça lá ficou dentro da cova .
Uma variante dessa história é coligida por João da Silva Campos54, a qual, segundo
ele, trata-se de uma versão popular restrita a uma região da Bahia55. É provável que
53
FONTES, op. cit., v. 3, p. 18.
54
João da Silva Campos reuniu 81 narrativas, colhidas na Bahia e em outras seis regiões do nordeste e do
extremo-norte. Os textos, entre os quais A raposa e o homem, foram publicados por Basílio de Magalhães, em
1928: “Um viajante, atravessando o leito secco de um rio, viu um peixinho atolado na lama, quase morto.
Pegou-o, atirou-o n’uma poça d’agua que havia mais adeante. Assim que o peixe caiu na poça, o rio foi logo
enchendo, enchendo, de repente e, ao mesmo tempo, o bicho foi crescendo, crescendo, que ficou aquelle
mundo, de grande. Quando o homem quis sair do rio não poude mais. Montou-se nas costas do peixe que
disse:/ – Agora eu vou lhe afogar./ – Você já esqueceu do bem que eu acabei de lhe fazer n’este instante?/ –
É por isso mesmo. O bem se paga é com o mal./ Tanto pediu o homem ao peixe que não n’o afogasse, até que
elle resolveu:/ – Está bem. Eu vou perguntar a todos os bichos que vierem aqui beber água com que é que se
paga o bem. Si disserem que é com o bem, eu deixo você ir-se embora; si, porém, disserem que é com o mal,
eu lhe afogo./ Assim fez e todos os bichos diziam que o bem se paga é com o mal./ – Está ouvindo? Observava
o peixe ao homem, a cada resposta dos bichos./ Por fim veio a raposa, que disse, à pergunta do peixe:/ –
Hein? O que? Chegue-se mais para perto, que eu estou parida e não ouço bem./ O peixe abeirou-se mais,
repetindo a pergunta./ – Já lhe disse que estou surda. Chegue para cá mais um bocadinho./ Veio o peixe ficar
tão perto da beirada do rio, que quase toca em terra, pela terceira vez fazendo a pergunta à raposa. Esta,
então, tirou uma cartilhazinha do seio, toda rota e ensebada, abriu-a e disse:/ – Espere ahi, que eu vou ver
aqui n’este livrinho./ Poz-se a olhar fixamente para o homem, dizendo, com a cartilha aberta:/ –´Quem
tempo tem,/ Quem tempo espera,/ Lá vem o tempo/ Que o demo o leva`./ Tanto repetiu esta lenga-lenga, até
que o homem comprehendeu o que ella queria dizer. Deu um pinote das costas do peixe para a terra e saiu
correndo como um doido. Depois de estar muito longe, parou e disse à raposa que o havia acompanhado na
carreira:/ – Amiga raposa, espere ahi, que quando eu chegar em casa vou lhe mandar um presente, porque
você salvou a minha vida./ Foi para casa e disse à mulher:/ – Eu agora ia morrendo e a raposa salvou-me a
vida. Vou mandar de presente a ella um sacco cheio de gallinhas./ Então ordenou ao creado que botasse uma
porção de gallinhas dentro de um sacco, para levar à raposa; mas a mulher, assim que o marido virou as
costas, tirou as gallinhas do sacco, substituindo-as por dois cachorros brabos./ Quando o creado chegou
junto da raposa, que abriu o sacco, os cachorros desembarafustaram furiosos em cima d’ella. A raposa, pé
no mundo. Corre d’aqui, corre d’alli, embaraçando o rabo nos garranchos e nos espinhos, sempre
perseguida pelos cachorros, deu, finalmente, com um buraco mettendo-se por ele a dentro./ Depois de
descansar um instante, de costas para a entrada do buraco, começou a lamber as patas e a dizer:/ Estas
mãozinhas, que tanto me ajudaram! Estes pezinhos, que tanto me ajudaram! Mas este rabão, que tanto me
atrapalhou! Toma, cachorrão, toma este rabão./ E dizendo isso dava com os quartos para trás. Tanto fez,
tanto fez, dizendo assim e dando de popa, até que botou a ponta do rabo do lado de fora do buraco. Os
cachorros que estavam alli na espiada, pegaram-n’a e pucharam assim a raposa, estraçalhando-a n’um
amem, Jesus” (MAGALHÃES, op. cit., p. 187-188).
55
MAGALHÃES, Basílio de. O folk-lore no Brasil. Rio de Janeiro: Quaresma, 1928, p. 10.
208
essa fábula tenha sido recolhida da coletânea do general Couto Magalhães, que a
buscou na “tradição dos selvagens”56. A mesma versão de Magalhães57 repete-se na
antologia de Luis da Câmara Cascudo, com o título Não faças bem sem saber a quem
(Inti remunhã catú auá cupê requau)58, também identificada como recolha da
oralidade. Nessa fábula ocorre a inversão da moral clássica que prega fazer o bem
sem olhar a quem, o que é substituído pelo seu avesso, com a recomendação de fazer
o bem quando se sabe a quem ele é dirigido. Por sua vez, as modificações efetuadas
pelo professor Fontes ocorrem apenas no plano da linguagem, permanecendo
inalterado o enredo e as personagens.
Por último, a denominação de “fábula indígena”, adotada na Série, consolida-
se na narrativa O jabuti e o gigante, constante do Terceiro livro de leitura:
56
“Esta collecção das lendas da raposa parece completa e, com methodo didactico, fórma o que de melhor
encontrei na tradição dos salvagens [...]. Estas lendas sofreriam, sem desmerecer, o confronto com as fabulas
de Esopo, Phedro e LaFontaine” (MAGALHÃES, 1935, op. cit., p. 257).
57
“Não faças bem sem saberes a quem.Um dia a raposa, estando passeando, ouviu um ronco: u... u... u.../ –
O que será aquilo? Eu vou ver./ A onça enxergou-a e disse-lhe: Eu fui gerada dentro deste buraco, cresci e
agora não posso sahir. Tu me ajudas a tirar a pedra? A raposa ajudou, a onça saiu, a raposa perguntou-lhe:
– Que me pagas?/ A onça, que estava com fome, respondeu: / – Agora eu vou te comer./ E agarrou a raposa
e perguntou: Como é que se paga um bem?/ A raposa respondeu:/ O bem paga-se com o bem. Alli perto há
um homem que sabe todas as coisas; vamos lá perguntar a elle./ Atravessaram por uma ilha; a raposa contou
ao homem que tinha tirado a onça do buraco e que ella, em paga disso, a quiz comer./ A onça disse:/ – Eu a
quero comer, porque o bem se paga com o mal./ O homem disse:/ – Está bem. Vamos ver a tua cova. / Elles
três foram e o homem disse à onça: / – Entra, que eu quero ver como tu estavas./ A onça entrou: o homem e a
raposa rolaram a pedra e a onça não pôde mais sahir. O homem disse:/ – Agora tu ficas sabendo que o bem
se paga com o bem./ A onça aí ficou; os outros foram-se” (MAGALHÃES, 1935, op. cit. p. 258).
58
CASCUDO, Luís da Câmara. Antologia do folclore brasileiro. 5. ed. São Paulo: Global, 2001, p. 213.
209
59
FONTES, op. cit., v. 3, p. 78.
60
Três questões devem ser ressaltadas quanto ao modelo da fábula indígena. Primeiro, a heterogeneidade
cultural do índio no Brasil é, por certo, fruto de um mapa etnográfico que expõe consideráveis distâncias
geográficas e que acentua diferentes línguas faladas pelos silvícolas, fatores suficientes para a presença de
distintas versões de uma mesma fábula indígena. Segundo, são raras as fábulas colhidas entre os índios
brasileiros que apresentam uma sentença moral explícita. Como observa Afrânio Peixoto, na apresentação
que faz da obra Lendas dos nossos índios (1923), de Clemente Brandenburger, “Em vão se procurará ahi o
enfeite, que seria deformação, ou a moralidade, que seria tendência” (BRANDENBURGER, Clemente.
Lendas dos nossos índios. Rio de Janeiro: Livraria Francisco Alves, 1923, p. 10). Um terceiro aspecto, não
menos sugestivo, agora abordado por Câmara Cascudo, manifesta-se no “supremo interesse” que as crianças
indígenas tinham pelas fábulas: “Nossa curiosidade tenta investigar-lhes origens psicológicas.
Sobrevivências totêmicas? Simples atividades lúdicas? Temas para sugestão mental, valorizando habilidade,
destreza, tenacidade, obstinação, alegria dos pequenos, dos humildes, dos fracos ante os possantes, os fortes,
os poderosos? Não saberemos jamais. O espírito dessas fábulas é como a intenção da música descritiva: –
cada ouvinte traduz como sentiu... Jamais concordantes. Os indígenas contaram essas fábulas aos
portugueses? Indígenas guerreiros? Às crianças já batizadas, apesar dos escrúpulos de catecúmenos? Esse
processo de transmissão, precioso para avaliarmos a dispersão de pormenores na marcha, modificações,
aquisições, desaparecimentos, transformações, escapa à nossa verificação” (CASCUDO, 1978, op. cit., p.
92).
210
61
Jabuti, do tupi yabu’ti. Réptil comum nas matas brasileiras, desde a Amazônia até o Espírito Santo.
62
ROMERO, op. cit., p. 159.
63
CASCUDO, Luís da Câmara. In: ROMERO, op. cit., p. 162. Entre as anotações de Câmara Cascudo, cito,
ainda, a sugestão de que esta fábula parece originariamente africana; mas que, também, a narrativa está
presente na coleção de Chandler Harris, em que a tartaruga mede-se com um urso, amarrando a extremidade
da corda numa raiz debaixo dágua; enquanto na Argentina o herói é o quirquinchu, o tatu, e o derrotado, um
potro selvagem. O tatu amarrou a ponta da corda numa raiz, no fundo de um buraco, e o potro foi derrubado,
exausto.
64
É provável que Henrique Fontes tenha extraído esta sentença moral das considerações preliminares que
Couto Magalhães faz em sua obra O Selvagem. Basta conferir: “A collecção das lendas do jabuti, que não sei
ainda si é completa, compõe-se de dez pequenos episódios. Todos elles foram imaginados com o fim de fazer
entrar no pensamento do selvagem a crença na supremacia da intelligencia sobre a força physica”
(MAGALHÃES, 1935, op. cit., p. 221). Uma outra fábula, colhida entre indígenas da área cultural do Xingu-
Tocantins, e publicada por Leonardo Boff com o título Mais vale a esperteza que a força bruta, expressa este
mesmo teor da sentença moral construída pelo Professor Fontes. A narrativa relata a disputa entre uma onça e
um macaco que, vitorioso, aproveita uma festa de casamento para contar “toda a história da onça curiosa e
burra, divertindo a todos com detalhes acontecidos uns e inventados outros. Um velho e sábio macaco, que
tudo ouvia com certa seriedade, arrematou, dizendo: “– É isso aí, irmãos e irmãs macacos: mais vale a
esperteza do que a força bruta. Isso não vale só para nós, símios, mas também para nossos primos, os
211
colonizador. Enfatizando a visão das narrativas indígenas, sejam elas fábulas ou não,
dois nomes merecem citação: Raul Fiker65, para quem essas histórias apresentam uma
consciência mítica, abafada pelo colonizador, e José de Alencar, que aponta nas
narrativas do “selvagem” brasileiro uma “poesia simples, mas graciosa”66.
Outro motivo de reflexão sobre a narrativa indígena repousa na natureza dos
pares antagônicos e na espécie de seu enfrentamento: um confronto esteriotipado
que, apesar das variantes, eixa-se no mesmo princípio clássico da astúcia capaz de
superar a força. Aqui, as proporções corporais antitéticas – jabuti e gigante – são de
ordem descomunal, contudo o jabuti prevalece pela astúcia. No Estudo tipológico-
estrutural do conto maravilhoso, Meletínski afirma que o ritmo de perdas e ganhos
liga o conto de magia ao mito do folclore narrativo e registra que nos mitos “são as
ações culturais e cosmogônicas dos demiurgos que desempenham um papel chave
análogo às provas”; porém, nos contos ocorrem “categorias especiais de provas que
levam à solução de uma colisão individual dramatizada”67. Para o citado estudioso
russo, os protagonistas dessas narrativas se deparam com situações inevitáveis de
desafios e enfrentamentos, situações essas cuja fonte pode ser mítica, de idêntica
origem das “provas” do conto maravihoso68.
Retomando a fábula O jabuti e o gigante, abre-se espaço para uma pequena
digressão sobre o ciclo do jabuti, recorrente e significativo na cultura popular
humanos, que têm sempre tanta dificuldade em aprender as lições da vida” (BOFF, Leonardo. O casamento
entre o céu e a terra. Contos dos povos indígenas do Brasil. São Paulo: Salamandra, 2001, p. 93).
65
FIKER, Raul. Mito e paródia: entre a narrativa e o argumento. São Paulo: UNESP, 2000, p. 25.
66
Alencar ressalta que essa poesia “simples, mas graciosa”, procede de um “poeta primitivo” que “canta a
natureza na mesma linguagem da natureza”. Para o autor de O guarani (1857), o índio brasileiro, representado
pelo herói Peri, procura, “nas imagens que tem diante dos olhos, a expressão do sentimento vago e confuso
que lhe agita a alma”. A narrativa do selvagem nativo “é a que Deus escreveu com as letras que formam o
livro da criação: é a flor, o céu, a luz, a cor, o ar, o sol; sublimes coisas que a natureza fez sorrindo”. E conclui
sua descrição da poesia indígena afirmando que “sua frase corre como o regato que serpeja, ou salta como o
rio que se despenha da cascata; às vezes se eleva ao cimo da montanha, outras desce e rasteja como o inseto,
sutil, delicada e mimosa” (ALENCAR, José de. O guarani. 24. ed. São Paulo: Ática, 1999, p. 117).
67
MELETÍNSKI, E.M. “O estudo tipológico-estrutural do conto maravilhoso”. In: Morfologia do conto
maravilhoso. Rio de Janeiro: Forense-Universitária, 1984, p. 171.
68
Ibidem, p. 172-173. Meletínski destaca, ainda, que os desafiadores e os desafiados se manifestam pelo
caráter (comportamento sagaz, ingênuo ou demonstração de conhecimento das regras do jogo) e pelo
resultado (façanha heróica, prudente ou desastrosa).
212
69
PINTO, op. cit., p. 236.
70
CASCUDO, Luís da Câmara. Dicionário do folclore brasileiro. São Paulo: Global. 10ª ed. 2001, p. 287.
Pode-se perguntar as razões da esperteza do cágado ser tão popular entre os brasileiros. A ensaísta Ângela
Leite de Souza, em Contos de fada: Grimm e a literatura oral no Brasil, comenta a respeito da presença
constante do jabuti no folclore brasileiro: “Todo um ciclo de histórias do jabuti, de procedência amazônica,
era atribuído ao indígena, até que alguns folcloristas encontraram ciclos semelhantes na África do Sul e no
sul dos Estados Unidos, onde havia braços escravos nas plantações. Conclusão: tais contos teriam sido,
nesse caso, trazidos pelo negro, para as Américas” (SOUZA, Ângela Leite de. Contos de fada: Grimm e a
literatura oral no Brasil. Belo Horizonte: Editora Lê, 1996, p. 24).
71
PINTO, op. cit., p. 236. Couto de Magalhães abre a fábula O jabuti e a anta do matto precisamente com
esta expressão: “O jabuti é gente boa, não é gente má” (MAGALHÃES, 1935, op. cit., p. 236).
72
CASTRO, Eduardo Viveiros de. “Os pronomes cosmológicos e o perspectivismo ameríndio”. Mana, n. 2,
p. 126, 1996.
73
Castro define a qualidade perspectiva como uma concepção, comum a muitos povos do continente,
segundo a qual “o mundo é habitado por diferentes espécies de sujeitos ou pessoas, humanas e não-humanas,
que o apreendem segundo pontos de vista distintos” (Ibidem, p. 144).
74
Ibidem, p. 117.
213
75
ANDRADE, Mário de. Macunaíma: o herói sem nenhum caráter. 30. ed. Belo Horizonte: Villa Rica,
1997, p. 124.
76
CASCUDO, 1978, op. cit., p. 90.
77
Ibidem, p. 88.
214
Tzvetan Todorov
1
BARTHES, Roland. O rumor da língua. Trad. Antonio Gonçalves. Lisboa: Edições 70, 1984.
2
ECO, Umberto. Obra aberta: forma e indeterminação nas poéticas contemporâneas. Trad. Giovanni
Cutolo. 9. ed. São Paulo: Perspectiva, 2005.
215
Uma víbora era levada pelo rio sobre um feixe de arbustos. Uma
raposa que passava, ao vê-la, disse: “O piloto é digno da nau”.
4
O homem mau se mete em ações perversas .
A leitura do texto não é de fácil interpretação, mesmo lançando mão dos conceitos de
Hansen que fundamentam a alegoria retórica (história) e a interpretativa (sentença
moral). Pode-se questionar qual dos animais representa o homem mau: a víbora ou a
3
A esse respeito há uma concepção correlata nos estudos sobre o poder da linguagem, de Pedro Cardim,
quando faz o registro que “Tanto los discursos como los ambientes sociales donde esos discursos irrumpen
están dotados de capacidad para actuar sobre las personas, conformando su conducta a través de la
socialización y mediante el trabajo continuo de inculcación de actitudes y de valores” (CARDIM, Pedro.
“Entre textos y discursos. La historiografía y el poder del lenguaje”. Cuadernos de Historia Moderna,
Madrid, Servicio de Publicaciones UCM, n. 17, p.149, 1996).
218
raposa? Embora se possa presumir que a alegoria do homem que age com
perversidade seja representada com maior freqüência pela víbora (lembra-se do
Éden), é possível admitir que a raposa seja, também, objeto dessa alegoria negativa,
na representação do ser invejoso e mesquinho.
As várias referências sobre o conceito de fábula acolhidas neste trabalho não
esgotam a considerável e vetusta matéria. Entre as perspectivas mais atuais,
retomam-se os estudos do espanhol Francisco Adrados, que aduz um ângulo novo à
abundante fortuna teórica do gênero, quando compara fábula e mito. A primeira é
definida como versão popular, cômica e humorística do segundo. É cômica não no
sentido do risível, mas por tratar de situações do cotidiano, ao contrário do mito.
A seguir, apresentam-se as reflexões e os questionamentos sobre o desenho das
categorias de transposição aqui elaboradas e a contextualização historiográfica e
estética de cada uma delas. Enfatiza-se que a organização das fábulas na escala de
categorias evidencia cunho de visão pessoal, ainda que a pesquisa procure justificar,
com elementos contextuais, historiográficos e estéticos, a divisão efetuada na
transposição do gênero.
A tradução da fábula, categoria inicial que atravessa mais de três séculos, tem
se constituído em tarefa atraente, até hoje, para expressivo número de escritores,
porém, o vocabulário indicia marcas lingüísticas da época em que a tradução foi
efetuada. Apesar de a história ser a mesma, a fábula reveste-se de matizes de
linguagem, o que comprova as diferenças de uma tradução elaborada no passado com
outra efetuada na atualidade.
É oportuno aqui um paralelo entre duas traduções de uma fábula de La
Fontaine. De um lado, a produção de João Cardoso, o Barão de Paranapiacaba,
ocorrida em 1883, com o título O jumento que levava relíquias:
4
ESOPO, op. cit., p. 70.
219
Se o magistrado é ignorante,
6
são da toga as saudações .
5
SOUSA, João Cardoso de Meneses e. In: LA FONTAINE, Jean de. Fábulas de La Fontaine traduzidas por
poetas portugueses e brasileiros. São Paulo: Landy, 2003, p. 618-619.
6
AMADO, op. cit., p. 332-333.
220
contexto social de produção. Para realçar o uso de expressões diferentes com igual
sentido, acusa-se a substituição do termo “jaculatória”, na primeira tradução, por
“invocação”, na tradução posterior.
A pesquisa comprova que a adaptação é, das quatro categorias, aquela que
envolve maior produção, principalmente se comparada à citação crítica e à
desconstrução paródica. Ao questionar-se a respeito dessa superioridade numérica,
cabe refletir sobre as razões desse ato em contraponto à produção das demais
categorias. A gama de variações vai dos adaptadores que se distanciam dos
tradutores apenas por pequenas marcas lingüísticas e culturais, até aqueles que
aproximam a fábula do conto popular. Aprofundando a questão, indaga-se qual a
essência dessa variação? O denominador comum apontado pelos estudiosos do tema
consubstancia-se na descrição da fauna e da flora do Brasil como componentes
constantes no cenário da história, lembrando que em Esopo, Fedro e La Fontaine a
presença da natureza comporta uma cenografia de menor projeção. Daí conclui-se
que a intencionalidade dos adaptadores consiste em dar visibilidade às marcas da
identidade brasileira.
Para ilustrar esse traço caracterizador da produção literária desses adaptadores,
reproduz-se, aqui, Os dous candidatos, de Anastácio Luís do Bomsucesso:
Ao approximar-se a quadra
Das questões eleitoraes,
Escutei certa conversa
Entre dous bichos rivaes.
E lá se foram os bichos
Caminho das seducções
E eu tirei de tal conversa
Estas tristes conclusões:
7
BOMSUCESSO, op. cit., p. 170-172.
223
8
VANHOOZER, op. cit., p. 133-135.
9
FERNANDES, 1978, op. cit., p.110.
10
HENRÍQUEZ, op. cit., p. 375.
224
11
Ao mencionar as fábulas de Esopo em um de seus estudos sobre estética, Hegel afirma que nelas o homem
e o animal estão relacionados na perspectiva de que “o primeiro constitui o significado do segundo”, através
da brecha da “não-correspondência” (HEGEL, G. W. Friedrich. Aesthetics: lectures on fine art. New York,
1975, p. 1378).
12
Nesse ponto o pesquisador concorda com Peter Singer ao defender que o “louvor” ou a “reprovação”
constituem-se em estratégias “eficientes para alterar a tendência das ações de uma pessoa” (SINGER, Peter.
Ética prática. Trad. Jefferson L. Camargo. São Paulo: Martins Fontes, 1993, p. 341).
226
13
Adota-se, aqui, a ética como um pensamento próximo da moral, e não como um sistema. Primeiro por nos
faltar condições teóricas para aprofundar a questão; segundo, porque na fábula o perfil de comportamento
ético das personagens antecede o processo de sistematização filosófico da ética.
14
SANTOS, Alckmar Luiz dos. “O efêmero perene: ensaio sobre o Pássaro da escuridão, de Eugênia
Sereno”. In: SANTOS, Alckmar Luiz dos (Org.). Lugares Textuais do Romance, Florianópolis, 2001, p. 94.
227
15
LINS, Osman. Do ideal e da glória: problemas inculturais brasileiros. São Paulo: Summus, 1977, p. 32.
228
aqui uma pesquisa feita em escolas públicas na cidade de Nova Iorque, cujos
resultados conduzem à aprovação condicional, pois os pesquisadores concluíram, a
partir do depoimento dos estudantes, que as fábulas de Esopo mostram-se “cínicas e
inapropriadas” para leitura, porém, as admitem como exercício intelectual
interessante para crianças acima de dez anos16. É interessante observar que a pesquisa
citada não nega o valor das fábulas, mas condiciona a leitura à faixa etária dos
leitores, o que remete à Série Fontes que, de igual maneira, faz uma seleção etária
subjacente a cada livro de leitura.
No terceiro grupo, a rejeição não objetiva as fábulas, mas o estilo dos
fabulistas. Toma-se como modelo o pensamento de Graciliano Ramos referente à
obra Fábulas, de Abílio César Borges, cujo conteúdo textual o crítico denomina de
“apólogos”. Ao refletir sobre o julgamento em pauta, verifica-se, sem qualquer cunho
de partidarismo, que Graciliano, reconhecido como um excelente escritor é, como
crítico, capaz de confundir a pessoa do escritor com a linguagem do seu texto. Se é
possível concordar com a crítica à linguagem feita ao Barão de Macaúbas, quando
Graciliano a define como “confusa” e carregada de “preceitos morais”, por outro
lado não é possível apoiar essa crítica em sua virulência não dirigida ao texto, mas à
figura humana do fabulista, descrito como indivíduo “hirsuto e grave, doutor e
barão”, e que, no entanto, se dedica à tarefa fútil de criar narrativas plenas de “pipilar
conselhos, zumbir admoestações”17. Apesar de severa, a apreciação referente à
linguagem é plausível diante dos arcaismos do texto. Porém, a fala de Graciliano, de
certa forma, isenta de “pedantismo” as personagens da fábula, a mosca e o
passarinho, ao atribuir essa erudição afetada e livresca ao narrador.
Em postura diferenciada da visão pessimista de Graciliano Ramos, outros
cultores da matéria reconhecem na obra do Barão aspectos valorativos. Entre eles,
cita-se Massaud Moisés, que tece elogios ao volume Fábulas, da série Biblioteca
16
REINSTEIN, op. cit., p. 51.
17
RAMOS, op. cit. p. 127.
229
18
MOISÉS, Massaud; PAES, José Paulo (Orgs.). Pequeno dicionário de Literatura Brasileira. 2. ed. São
Paulo: Cultrix, 1980, p. 194. A edição escolar de Os Lusíadas, adaptada pelo Barão de Macaúbas, foi
publicada em 1879.
19
“Tomei de La Fontaine o enredo e vesti-o à minha moda, ao sabor do meu capricho, crente como sou de
que o capricho é o melhor dos figurinos. A mim me parecem boas e bem ajustadas ao fim – mas a coruja
sempre acha lindos os filhotes. Quero de ti duas coisas: juízo sobre a sua adaptabilidade à mente infantil e
anotação dos defeitos de forma” (LOBATO, 1951, op. cit., p. 193).
20
ADRADOS, 1978, op. cit., p. 81.
230
21
REINSTEIN, op. cit., p. 47-48.
22
DARNTON, op. cit., p. 79.
23
PORTELLA, Oswaldo. “A fábula”. Revista de Letras, n. 32, Curitiba, Editora da UFP, 1983, p. 120.
24
Ibidem, p. 123.
231
25
Para o pós-estruturalista Hillis Miller, discípulo de Paul de Man, o ético sempre será “essencialmente
figurativo; isto é, metafórico, ficcional e narratológico” (Apud FREADMAN, Richard; MILLER, Seumas.
Re-pensando a teoria: uma crítica da teoria literária contemporânea. Trad. Aguinaldo J. Gonçalves et alii.
São Paulo: Universidade Estadual Paulista, 1994, p. 89). Portanto, em Hillis Miller há uma redução da ética à
linguagem humana, não possuindo nenhum vínculo com a subjetividade, individualidade, liberdade ou
relações interpessoais.
26
LEWIS, Philip. “Work in progress”. Diacritics, Cornel University, v. 2, n. 3, p. 42, 1972. Alguns outros
autores são introduzidos nesta última unidade em virtude da especificidade da temática aqui sugerida, o
caráter da fábula, com destaque para o pensador francês Maurice Merleau-Ponty.
27
REBOUL, Oliver. Introdução à retórica. São Paulo: Martins Fontes, 1998, p. 152. Nesse mesmo texto,
Reboul assevera que, em princípio, a fábula é “uma alegoria que se reputa capaz de ilustrar, de mostrar, uma
verdade moral. Portanto, é essencialmente pedagógica” (Ibidem, p. 147).
28
ESOPO, op. cit., p. 24.
232
29
BENVENISTE, Émile. Vocabulário das instituições indo-européias. Campinas: Editora da Unicamp,
1995, p. 139.
30
MERLEAU-PONTY, Maurice. A prosa do mundo. Trad. Paulo Neves. São Paulo: Cosac & Naify, 2002.
p. 118. Uma outra assertiva, de Roland Barthes, também se refere ao status da fala e seu contexto social,
histórico e institucional: “falar é exercer uma vontade de poder: no espaço da fala, nenhuma inocência,
nenhuma segurança” (BARTHES, 1984, op. cit., p. 266).
31
“Graças aos signos sobre os quais o autor e eu concordamos, porque falamos a mesma língua, ele me fez
justamente acreditar que estávamos no terreno já comum das significações adquiridas e disponíveis. Ele se
instalou no meu mundo. Depois, imperceptivelmente, desviou os signos de seu sentido ordinário, e estes me
arrastam como um turbilhão para um outro sentido que vou encontrar. Sei, antes de ler Stendhal, o que é um
patife, e posso portanto compreender o que ele quer dizer quando escreve que o fiscal Rossi é um patife.
Mas quando o fiscal Rossi começa a viver, não é mais ele que é um patife, é o patife que é um fiscal Rossi.
Entro na moral de Stendhal pelas palavras de todo o mundo, das quais ele se serve, mas essas palavras
sofreram em suas mãos uma torção secreta” (Ibidem, p. 33-34).
233
32
Ibidem, p. 33.
33
Ibidem, p. 34.
34
SARTRE, Jean-Paul. Que é Literatura? Trad. Carlos Felipe Moisés. São Paulo: Ática, s/d., p. 38.
35
MERLEAU-PONTY, op. cit., p. 35.
36
“Digamos que haja duas linguagens: a linguagem de depois, a que é adquirida e que desaparece diante do
sentido do qual se tornou portadora, e a que se faz no momento da expressão, que vai justamente fazer-me
passar dos signos ao sentido – a linguagem falada e a linguagem falante”(Ibidem, p. 32).
37
MERLEAU-PONTY, Maurice. Fenomenologia da percepção. São Paulo: Martins Fontes, 1999, p. 266.
38
MERLEAU-PONTY, 2002, op. cit., p. 35.
39
“Poderíamos dizer, retomando uma distinção célebre, que as linguagens, quer dizer, os sistemas
constituídos de vocabulário e de sintaxe, os ‘meios de expressão’ que existem empiricamente, são o depósito
e a sedimentação de atos de fala nos quais o sentido não formulado não apenas encontra o meio de traduzir-
se no exterior, mas ainda adquire a existência para si mesmo, e é verdadeiramente criado como sentido. Ou,
ainda, poderíamos distinguir entre uma fala falante e uma fala falada. A primeira é aquela em que a
intenção significativa se encontra em estado nascente [...]. Mas o ato de expressão constitui um mundo
lingüístico e um mundo cultural; ele faz voltar a cair no ser aquilo que tendia para além. Daí a fala falada
que desfruta as significações disponíveis como a uma fortuna obtida. A partir dessas aquisições, tornam-se
impossíveis outros atos de expressão autêntica – aqueles do escritor” (MERLEAU-PONTY, 1999, op. cit., p.
266-267).
234
anônima de igual título. Nesse conto encontram-se todos os ecos das lendas
medievais.
Uma outra indagação pode ainda ser considerada. A vocação da fábula na
tradição clássica centra-se em ser instrumento da cultura crítica e moralizante,
intencionalidade que prosseguiu na maioria dos livros escolares na atualidade.
Porém, essa intencionalidade tradicional sofreu um processo de abertura que retira da
fábula um pouco de seu caráter dogmático e sério. Quais foram, então, as razões que
permitiram tal mudança?
Entendidas como instituições sociais e históricas, a linguagem e os gêneros
literários estão sujeitos às mudanças sociais e políticas determinadas pela época de
seu fazer artístico. Assim, o ideal é o leitor atual da fábula buscar conhecer o
contexto em que foi escrita. Por exemplo, deve considerar a cultura e o regime de
governo da Grécia nos dias de Esopo, lembrando sua condição de escravo. Quando
Fedro explica a criação da fábula, sustenta que o escravo “projetava” em seus
escritos aquilo que “não ousava dizer francamente”, esquivando-se, assim, da
censura “com o pretexto de brincar com histórias inventadas”40. A técnica oblíqua de
discurso, lança mão da alegoria, essência da fábula, além de convenções literárias,
como a organização do texto (bipolar), seu estilo (sóbrio e breve) e códigos (éticos e
morais), para colocar em cena aspectos da natureza e do comportamento do homem,
representado pelos animais ou pela ação das “forças animais que tem em si”; por
outro lado, o aparecimento do homem na fábula ocorre sempre em posição
“mecânica”, muito semelhante à dos animais41.
40
“Agora explicarei brevemente como o tipo de coisa chamada fábula foi inventada. Estando o escravo
sujeito a ser punido por qualquer ofensa, e como não ousava dizer francamente o que desejava dizer,
projetava seus sentimentos pessoais em fábulas, e se esquivava da censura com o pretexto de brincar com
histórias inventadas” (FEDRO, op. cit., p. 11).
41
Para Olivier Reboul, a fábula “é a rejeição absoluta tanto da grandeza épica quanto da profundidade
filosófica; o que ela põe em cena é o homem, mas o homem subjugado pela ação das forças animais que tem
em si. E, mesmo quando a fábula põe homens em cena, eles são tão poucos livres para mudar, são tão
mecânicos quanto os animais”. No cerne do estudo do crítico francês está a proposição de que o
enfrentamento entre os animais simboliza certa relação entre os homens, ou mesmo certa relação no homem,
“pois não somos nós ora cordeiros, ora lobos? O animal da fábula exprime nossa natureza em seu
236
determinismo inexorável: homens conduzidos pelo aquém de si mesmos, sem remissão” (REBOUL, Olivier.
Introdução à retórica. Trad. Ivone C. Benedetti. São Paulo: Martins Fontes, 1998, p. 152).
42
KOTHE, 1997, op. cit., p 91. Por esse prisma, a sentença moral pode constituir-se em “veículo ideológico”
e em “legitimação de estruturas concretas de poder e dominação” (JAMESON, Fredric. O inconsciente
político: a narrativa como ato socialmente simbólico. Trad. Valter L. Siqueira. São Paulo: Ática, 1992, p.
115). Com efeito, de forma genérica, sempre existe a possibilidade de reações conflitantes com relação à
237
palavra escrita, como ressalta Rosalind Thomas: “ela pode abrir possibilidades por meio da educação, ou
servir apenas para reforçar o predomínio de certos grupos sociais” (THOMAS, Rosalind. “A cultura escrita e
a Cidade-Estado na Grécia arcaica e clássica”. In: BOWMAN, Alan K.; WOOLF, Greg (Orgs.). Cultura
escrita e poder no mundo antigo. Trad. Valter Lelis Siqueira. São Paulo: Ática, 1998, p. 43).
43
No comentário que faz sobre a série didática É hora de aprender, de Maria Eugênia e Luiz G. Cavalcante,
uma coletânea destinada ao primeiro grau, a pedagoga Alice Áurea observa que os adaptadores das
narrativas esópicas transcritas “destruíram a alma das fábulas” por excluírem a sua sentença moral
(MARTHA, Alice Àurea Penteado. “A fábula: do didático ao paradidático”. Tema, São Paulo, Faculdades
Teresa Martin, n. 27/29, p. 149, 1996).
44
HELD, Jacqueline. O imaginário no poder: as crianças e a literatura fantástica. Trad. Carlos Rizzi. São
Paulo: Summus, 1980, p. 21.
238
45
“A moral da história não vem, a rigor, no fim da história, mas no começo, antes de começar a história,
determinando toda a sua construção: inventa-se a história para provar a conclusão, não se conclui em função
da história. A diferença entre o gesto semântico e a moral da fábula clássica é que nesta se pode separar o
semântico do gesto, enquanto que na grande obra literária o semântico é o próprio gesto, e vice-versa”
(KOTHE, 1997, op. cit., p 123).
239
Trilussa
46
COMPAGNON, 1999, p. 229.
47
TRILUSSA. In: SOARES, op. cit., p. 39.
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