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É o desejo que gera o pensamento. .

jamais de filósofo e só sofras se alguém te der


Plotzno
esse nome.
Epicteto
Qual é o lugar do filósofo na cidade? É o
de um escultor de homem. Há em nossos dias professores de filosofia,
Simplício
mas não filósofos.
Thoreau
Os resultados de todas estas escolas e de
todas as suas experiências pertencem a nós. Nós
Sem a virtude, Deus nao é senao uma
não aceitamos uma receita estoica com menos
palavra.
agrado porque nós já nos apropriáramos de Platina
receitas epicuristas.
Nietzsche
"Nada fiz hoje." Não vivestes então? Pois
Querer o bem é preferível a conhecer a essa é a ocupação mais fundamental e ilustre.
verdade. Montaigne
Petrarca

Penso que jamais houve alguém que tivesse


prestado pior serviço ao gênero humano do
que aquele que ensinou filosofia como um
ofício mercenário.
Sêneca

Em geral, so Imaginamos Platão e Aris-


tóteles conrgrandes túnicas de pedantes. Eram
pessoas honestas e, como as outras, rindo com
seus amigos; e, quando se divertiram em fazer
suas Leis e sua Política, fizeram-nas brincando.
Era a parte menos filosófica e menos séria de
sua vida. A mais filosófica consistia em viver
simples e tranquilamente.
Pascal
Se as teorias filosóficas te seduzem, senta-te
e te volta para ti mesmo. Mas não te chames

12 13
Capítulo 3

fi figura de Sócrates

A figura de Sócrates teve influência decisiva sobre a


definição do "filósofo" que Platão. propôs em seu diálogo
Banquete, uma verdadeira tomada de consciência da situa-
ção paradoxal do filósofo no meio dos homens. Por essa
razão, devemos nos deter longamente não no Sócrates
histórico, dificilmente cognoscível, mas na figura mítica
de Sócrates tal qual apresentada pela primeira geração
de seus discípulos.

A figura de Sócrates

Comparou-se muitas vezes Sócrates a Jesus 1 . Entre outras


analogias, é verdade que eles tiveram imensa influência
histórica, embora tenham exercido sua atividade em um
espaço e um tempo limitados em relação à história do
mundo: uma pequena cidade ou um pequeno país, e te-
nham tido um número muito pequeno de discípulos. Os

I. Th. Dennan, Socrate etjésus, Paris, 1944. Sobre Sócrates, cf. F. Wolff,
Socrate, Paris, 1985 [Sócrates: o sorriso da razão, 4• ed., tradução de Franklin
Leopoldo e Silva. São Paulo, Editora Brasiliense, 1987 (Encanto Radical).];
E. Martens, Die Sache des Sokrates, Stuttgart, 1992.

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A definição platônica do filósofo e seus antecedentes A figura de Sócrates

·~
dois não escreveram nada, mas possuímos sobre eles teste- essas escolas: com elas aparece o conceito, a ideia de filo_ . ,
munhas "oculares": sobre Sócrates as Memoráveiil de Xeno- sofia, concebida, nós o veremos, como um discurso vin-
fonte, os diálogos de Platão; sobre Jesus os Evangelhos3 , e, culado a um modo de vida e como um modo de vida
mesmo assim, é muito difícil para nós definir com certeza i vinculado a um discurso.
o que foram o Jesus histórico e o Sócrates histórico. Após
sua morte, seus discípulos4 fundaram escolas para difundir Talvez tivéssemos outra ideia de quem foi Sócrates se
sua mensagem, mas as escolas fundadas pelos "socráticos" a~ o~ras pr~duzidas em todas as escolas fundadas por seus
parecem muito mais diferentes umas das outras do que os ~Iscipulos tivessem sobrevivido e, especialmente, se toda a
cristianismos primitivos, o que nos permite decifrar a com- h~eratura ~os diálogos "socráticos", que põem em cena
plexidade da atitude socrática. Sócrates inspirou, ao mesmo Socrates dialogando ~om seus interlocutores, tivesse sido
tempo1 Antístenes - o fundador da escola cínica, que conservada até nós. E necessário lembrar, em todo caso,
preconizava a tensão e a austeridade e dey~ria influenciar que o dado fundamental dos diálogos de Platão, a ence-
profundamente o estoicismo - e Aristipo - fundador da nação de diálogos ~os quais Sócrates desempenha, quase
escola de Cirene, para quem a arte de viver consistia em sempre, o papel de mterrogador, não é invenção de Platão
tirar o melhor partido possível das situações que se apre- mas que seus famosos diálogos pertencem a um g~nero ~
sentavam concretamente, que não desdenhava o repouso diálogo "socrático", que foi verdadeira moda en't;~ os ais-
e o prazer e deveria, também, exercer influência consi- cí~ulo~ de Sócrates_5. O sucesso dessa forma literária. per-
derável sobre o epicurismo -; mas ele inspirou igualmen- nute _VIslumbrar a ~mpressão extraordinária que a figura
te Euclides - fundador da escola de Megara, célebre por de Socrates produzm sobre seus contemporâneos e sobre-
sua dialética. Um único de seus discípulos, Platão, triun- tudo sobre seus discípulos, e a maneira pela qual conduzia
fou na história, seja porque soube conferir a seus diálogos suas _c~nversa~ ~om seus concidadãos. No caso dos diálogos
um imperecível valor literário, seja antes porque. a escola socraticos redig~dos por Platão, a originalidade dessa forma
que fundou sobreviveu àurante séculos, salvando assim literária consiste menos na utilização de um discurso divi-
seus diálogos e desenvolvendo ou mesmo deformando sua dido em questões e respostas (visto que o discurso dialéti-
doutrina. Em todo caso, um ponto parece comum a todas co existia bem antes de Sócrates) do que no papel de
personagem central assinalado a Sócrates. Disso resulta
2. Ditos e feitos memoráveis de Sócrates, 4• ed., tradução de Líbero Rangel uma relação muito particular entre o autor e sua obra, de
de Andrade, São Paulo, Nova Cultural, 1987 (Os Pensadores).
3. A Bíblia de Jerusalém. São Paulo, Ediçôes Paulinas, 1991; Bfblia- tra-
5. Aristóteles, Poética, 1447 b 10 [Poética, 4• ed. tradução comenta' ·
dução ecumênica. São Paulo, Ediçôes Loyola, 1994; Bíblia- tradução ecumêni- ' d" 1' · , , nos
e m 1ces ana 11lco e onomástico de Eudoro de Souza, São Paulo, Nova Cul-
ca. Versão completa em CD-ROM. São Paulo: Loyola Multimídia, 1997. tural, 1987 (Os Pensadores); Poética, in A Poética Clássica 5• ed tr d - -
4. Leia-se em F. Wolff, Socrate, pp. 112-128, "L'album de famille", que d J · B - ., ., a uçao
e arme _runa, Sa_o Paulo, Cultrix, 1995]. Cf. C. W. Müller, Die Kurzdialo e
caracteriza excelentemente as diferentes personagens. der Appendzx Platonzca, Munich, 1975, pp. 17 ss. ~

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A definição platônica do filósofo e seus antecedentes
A figura de Sócrates

um lado, e entre o autor e Sócrates, de outro. O autor si-


precedente, possuem a sabedoria i , . •/
mula não intervir em sua obra, visto que se contenta apa- mens de Estad ' sto e, o saber-fazer.4 ho-
rentemente em reproduzir um debate que opôs duas teses o, poetas, artesãos - ~ --~~ ---*-
que fosse mais 'b· ' para descobnr alguém
adversas: pode-se, quando muito, supor que ele prefere a sa IO que ele. Percebe entã
pessoas que acreditam tud b - o que todas as
tese que faz Sócrates defender. Ele toma, de alguma ma- . o sa e r na o sabem nad D.
conclru que é o mais sábio or - a. Isso
A

neira, a máscara de Sócrates. Tal é a situação que se en- sabe. O que , I .p .que nao cre saber o que não
o oracu o qrus dizer é ta -~-
contra nos diálogos de Platão. Jamais o "eu" de Platão sábio dos humanos é " ' por nto, que o mais
aparece. O autor não intervém sequer para dizer que foi · , . quem compreendeu oue b
d o na e verdadeirament a· "" ~ . " " :-:t - sua ~a e-
ele que compôs o diálogo, e não se põe em cena na dis- ", . e esproVIda do mínimo val "7 rr. '"I.. -
sera, precisamente a d fi . - or .. .~.a
B
A •

cussão entre os interlocutores. Contudo, evidentemente, diálogo intitulad e mçao platomca do filósofo no
não especifica o que remete a Sócrates e o que remete a o anquete: o filosofo nada b ,
consciente de seu não sa b er. sa e, porem é
ele próprio nos temas debatidos. Portanto, quase sempre
é extremamente difícil distinguir em certos diálogos a A tarefa
--~. .
de Sócra t es, que Ih e fOI. confiad d. D
parte socrática e a parte platônica. Sócrates aparece, assim, pelo oraculo de Delfos isto é -I . .a, IZ a e.fesa,
A

pouco tempo após sua morte, como uma figura mítica. deus Apolo será fazer q'u ' em u tima mstancia, pelo
.A ' e os outros homens t
Mas foi precisamente esse mito que marcou com traços nencia de seu próprio _ b - ornem cons-
p ara realizar essa missãonao S-
sa er, de sua não b d .
. , . sa e ona.
indeléveis toda a história da filosofia. . ' ocrates agira como qu d
sab e, Isto é, com ingenuidad É . . em na a
a ignorância dissimulada o e~r : fad~dosa Iroma socrática:
I . ' can I o com o qual
O não saber socrático e a crítica do saber sofístico e~e.mp o, ele Investigou para saber se h . I , ' p~r
sabw que ele Como a· aVIa a guem mais
. . Iz uma personagem da RepúblicdJ:
Na Defesa de Sócrates, na qual Platão reconstitui, à sua
Ez-la, a habitual ironia de Sócrates t Eu 'á b . .
maneira, o discurso que -Sóc.r-ates pronuncia diante de seus a esses jovens que não q . · 1 sa za e predzssera
juízes por ocasião do processo em que foi condenado, ele . uererzas responder. que s · l .
zgnorância que tud fi . _ ' zmu arzas
narra que um de seus amigos, Querefonte 6 , perguntara ao , o arzas para nao responder às p
que te fossem apresentadas! erguntas
oráculo de Delfos se existia alguém mais sábio (sophós) que
Sócrates, e o oráculo teria respondido que não. Sócrates se É porque, nas discussões, Sócrates é s .
questiona, então, sobre o que o oráculo quis dizer, lançan- rogador: "é que ele c empre o mter-
con1essa nada sabe "
do-se em uma longa investigação junto às pessoas que, se- Aristóteles 9• "Sócrates d . d . . r ' como nota
' eprenan o-se a SI mesmo" - diz
gundo a tradição grega e de quem falamos no capítulo
7. Id., ibid., 23 b.
6. Platão, Defesa, 20-23. :· Pl~tã?, República, I, 337 a.
. Anstoteles, Refutações sofísticas, 183 b 8.
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A figura de Sócrates

Cícero - , "não permite que seus interlocutores digam queteu, Sócrates chega atrasado ois
· senão o que ele quer refutar: assim, pensando em uma imóvel e em p, " P permaneceu a meditar
e, ocupando seu ' · '
coisa e dizendo outra, tinha prazer em usar habitualmente Tão 1 I espinto consigo mesmo"
ogo e e faz sua entrada 1 A - .
essa dissimulação que os gregos denominavam 'ironia"' 10 • anfitrião . na sa a, gatao, que é o
' conVIda-o a sentar-se perto dele "a fi d
Na verdade, não se trata de uma atitude artificial, de um ao teu contato desfrute eu da sáb' .d . ' m e que
parti pris de dissimulação, mas de uma espécie de humor em frente de casa" "S . b Ia I eia que te ocorreu
\ · ena om A t- "
que recusa levar totalmente a sério tantos os outros como Sócrates _ "se d ' ga ao - responde
a si mesmo, porque, precisamente, tudo o que é humano, e . . , essa natureza fosse a sabedoria
r_nais cheio escorresse ao mais vazio" O 1 que. do
mesmo tudo o que é filosófico, é coisa bem pouco assegu- e que o S<!JJ~r ~ã.P.~_ !:1:1ll C>P.eto fabric que e e quer ~zer
rada, de que não se pode ter muito orgulho. A missão de acabado transmi , I d. · ~L.···· - ~ -ªgo, um conteudo
' ssive Iretamente pel .
Sócrates é fazer que os homens tomem consciência de seu não importa qual discurso. a escntura ou por
não saber. Trata-se aqui de uma revolução na concepção '-<-,,-~~=- "-------~,~~

de saber. Sem dúvida, Sócrates pode dirigir-se a estranhos, . Quando Sócrates pretende saber um , . .
e o faz com prazer, dizendo-lhes que têm apenas um saber seJa, que nada sabe é a umca coisa, ou
convencional, que só agem sob a influência de precon- dicional de saber. S~u !~:~~: ~~e r_:~usa a c~n~e_rç~o tra-
ceitos sem fundamento refletido, para mostrar-lhes que transmitir um saber o . . . oso co consistira nao em
seu pretenso saber não repousa sobre nada. Mas ele se discípulos mas ao c'ontq~~ exig~n_a responder às questões dos
' ' rano em znterrorr di ,
dirige sobretudo aos que estão persuadidos, por sua cul- ele mesmo não tem nad 'd. 1 caros SCipulos, pois
a a 1zer- hes nada ·
tura, de possuir "o" saber. Até Sócrates, houve dois tipos de conteúdo teórico d b A . '. a ensmar-1hes
e sa er 1ron1a ' ·
de personagens desse gênero: de um lado os aristocratas em simular aprender ai .. socratica consiste
do saber, isto é, os mestres de sabedoria ou de verdade, levá-lo a descobrir que gu~a COihsa de seu interlocutor, para
nao con ece nada no d , . d
como Parmênides, Empédocles ou Heráclito, que opu- que pretende ~er sábio. omimo o
nham suas teorias à ignor-ância da multidão; de outro,
Mas essa crítica do saber
dupla significação. De um la!:r:~te~ente negativa, tem
os democratas do saber, que pretendiam poder vender
o saber a todo mundo: os sofistas. Para Sócrates, o saber
verdade, como já vislumbramos' de poe que o saber e a
não é um conjunto de proposições e fórmulas feitas que
pelo próprio indivíduo p . s', vem ser engendrados
se pode escrever ou vender; como mostra o início do Ban- ue se c : or Isso ocrates afirma, no Teetetd2
q ontenta, na discussão co . .. · · · '
10. Cícero, Lúculo, 5, 15. Sobre a ironia socrática, cf. R. Schaerer, "Le nhar o papel de parteiro. Ele mes:oo~~:msa'bem ddesem~e­
mécanisme de l'ironie dans ses rapports avec la dialectique", in Revue de ena aenao
métaphysique et de morale, 48: 181-209, 1941; V. Jankélévitch, L1ronie. Paris, 11. Banquete, 174 d-175 d.
1964; ver também G. W. F. Hegel, Leçons sur l'histoire de la philosophie, T. II, 12. Teeteto, tradução dé 'C;ir'!ü Alb
Paris, 1971, pp. 286 ss. sidade Federal do Pará, 1988. s erto Nunes, Belém, Editora Univer-

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A definição platônica do filósofo e seus antecedentes
A figura de Sócrates

· a nadal3 , mas contenta-se em questionar, e· são 1suas


ens1n
questões, suas interrogações, que auxiliam seus mt~r ocu- existência passada. Quando se chega lá, Sócrates não te
tores a panr. "sua" verdade · Essa imagem nos permite en- deixa partir antes de ter, bem a fundo e de uma bela ma-
tender bem que é na alma que se encontra o saber e que neira, submetido tudo à prova de seu exame [. .. } É para
mim uma alegria frequentá-lo. Eu não vejo nenht{m mal que
ao indivíduo cabe descobri-la, até que ele descu~ra, graças
me faça recordar o bem ou o mal que eu tenha feito ou
a Sócrates, que seu saber era vazi~. ~a- pe~s~ectlva de seu
ainda faça. Aquele que faz isso será necessariamente mais
\ próprio pensamento, Platão expnmira mlti~ar_ne~te. essa prudente no resto de sua vida.
ideia, dizendo que todo conhecimento é remm.Iscenna. de
. - qu e a alma teve em uma existênCia, antenor.
uma VIsao Sócrates leva seus interlocutores a examinar-se, a tomar
Será necessário aprender a recordar-se. Para Socra~es, ao consciência de si mesmos. Como "um tavão" 15, fustiga seus
contrário, a perspectiva é muito diferente. As questoes de "interlocutores com questões que os põem em questão, que
Sócrates não conduzem seu interlocutor a saber alguma os obrigam a prestar atenção a si mesmos, a tomar cuidado
,,~ coisa e a chegar a conclusões que se possam form~lar sob consigo mesmos 16: ·

,':':\a forma de proposições sobre este_ ~u aquele objet~. ~


Meu caro, tu, um ateniense da cidade mais importante e mais
'I diálogo socrático chega, ao contrano, a uma apona,.
f~ impossibilidade de concluir e de formular um s~be~. ?u; reputada por sua cultura e poderio, não te pejas de cuidares
de adquirir o máximo de riquezas, fama e honrarias, e de não
antes, é porque o interlocutor descobrirá quão Ilusono e
te importares nem cogitares da razão, da verdade e de melhorar
seu saber que ele descobrirá ao mesmo tempo s~a ~e~da~e, quanto mais a tua alma?
isto é, que, passando do saber a si mesmo, pnnnpiara a
pôr-se a si mesmo em questão. Dito de outro ~odo: no Trata-se bem menos de questionar o saber aparente
diálogo "socrático", a verdadeira questão que esta emJog.o que se acredita possuir do que de se questionar a si mesmo
não é isso de que se fala, mas aquele que fala, como o diz e os valores que dirigem nossa própria vida. No fim das
Nícias, personagem de Pl_a!.'l-- 0 14.·_ contas, após ter dialogado com Sócrates, seu interlocutor
já não sabe muito bem por que age. Ele toma consciência
Não sabes que aquele que se aproxima muito perto de Sócrates
das contradições de seu discurso e de suas própriás con-
e entra em diálogo com ele, mesmo que tenh_a começado, no
tradições internas. E vem a saber, como Sócrates, que nada
início a falar com ele de outra coisa, ele nao se constrang;e
em se~ conduzido em círculo por esse discurso, até que s~a
sabe. Mas, fazendo isso, toma distância em relação à si
necessário dar razão de si mesmo tanto quanto da. manezra mesmo, desdobra-se, uma parte de si mesmo identificando-
pela qual se vive presentemente e daquela que vzveu sua se, de agora em diante, com Sócrates no acordo mútuo
que este exige de seu interlocutor em cada etapa da discus-
13. Ibid., 150 d.
14. Laques, 187 e 6.

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A figura de Sócrates

sao. Opera-se nele uma tomada de consciência de si; ele questão. É isso que d-
se põe a si mesmo em questão. Ba , . a a entender Alcibíades no fim do
nquete. E no elogio a Sócrates pronunciado por Alcib' d
O verdadeiro problema não é, portanto, saber isso ou que surge, pela primeira vez arece . - . Ia es
sentação do I d' 'd p . ' na histona, a repre-
aquilo, mas ser desta ou daquela maneira17: n IV1 uo, caro a Kierkegaa d d I di ,
como personalidade , . . r ' o . n VIduo
Eu que, negligenciando o de que cuida toda gente- rique- umca e Inclassificável E · I I
malmente diz AI0 'b' d 18 • XIstem nor- 1
\ zas, negócios, postos militares, tribunas e funções públicas, '
podem dispor os indivíd
Ia es , diferentes tipos
.

.
nos qua1s se
1

conchavos e lutas que ocorrem na política, coisas em que me uos, por exemplo o " d
neral, nobre e corajoso" como A .I ' gran e ge-
considero de Jato por demais pundonoroso para me imiscuir ricos como B - ·d ' qm es, nos tempos homé-
' rasi as, o chefe espart
sem me perder [. .. ] Eu que me entreguei à procura de cada porâneos; ou ainda o ti o "h ano, entre os contem-
um de vós em particular, a fim de proporcionar-lhes o que e prudente"· N t p ornem de Estado, eloquente
declaro o maior dos benefícios, tentando persuadir cada um nossos dias .M esS~r no te-~po de Homero, Péricles em
. as ocrates e Impossível de I 'fi -
de vós a cuidar menos do que é seu que de si próprio para se pode compará-lo a nenhum outro h c assi car. Nao
vir a ser quanto melhor e mais sensato. aos silenos e aos sátiros EI , , ornem, quanto mais
Esse apelo ao "ser", Sócrates o exerce não somente te. ' absur~Eo, inclassificá~el, ee:q~~~h:~ ~~a~~t~;o exdtrr·raa_vadgean~ r
mesmo· u t ' s1
por suas interrogações, sua ironia, mas também e sobre- - . sou o ta1mente esquisito ( átopos) - .
tudo por sua maneira de ser, seu modo de vida, seu ser senao aporia (perplexidade) "19. ~. e nao cno
mesmo. Essa personalidade única tem ai d .
ce uma espécie de atraçã - . S go : fascmante, exer-
mordem o - o magica. eus discursos filosóficos
coraçao como uma víb ·
O apelo do "indivíduo" ao "indivíduo" diz Alcibíades um estad d ora_ e provocam na alma,
embria ez filos , . o _e possessao, um delírio e uma
, . ~ . . ~fica, Isto e, uma subversão totaFo É
Filosofar não é mais, como queriam os sofistas, adquirir cessano msistlr amda nesse ponto2I S, . ne-
' ; um saber, ou um saber-fazer, uma sophía, mas é pôr-se a si neira irracional sobre aqu I . ocrates age de ma-
mesmo em questão, pois experimenta-se o sentimento de e es que o ouvem pel -
que provoca, pelo amor que inspira. Em u 'd"t emoça?
não ser o que se deveria ser. Tal será a definição de filó- to por um discípulo d S , , m Ia ogo escn-
sofo, do homem que deseja a sabedoria, no Banquete de ,
socrates e ocrates Esquines d E D
diz, a propósito de AI ·b- d e s etos,
Platão. E esse sentimento provém do fato de que se encon- .;"w·JB o Ia es, que, se ele, Sócrates,
trou uma personalidade, Sócrates, que, apenas por sua ( 184 anquete, 221 c-d.
presença, obriga aquele que se aproxima dele a pôr-se em J'g· Teeteto, 149 a.
20. JI;;;;q~-;;te, 215 c e 218 b.
21. Cf. A. M. Ioppolo, O'P · ·
17. Ibid., 36 c. p. 163. znzone e scienza, Napoli, Bibliopolis, 1976,

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A figura de Sócrates
. - l , . do filósofo e seus antecedentes
A defimçao p atomca

. al o de útil a Alcibíades (o que não redigidas por Xenofonte 26, de que, para aprender o ofício
não é capaz de ensmar g S, t s nada sabe) ele crê ao de sapateiro, de carpinteiro, de ferreiro ou de estribeira,
te dado que ocra e ' .
é surpreend en ' amor que expen- deva-se procurar um mestre, e mesmo para domar cava-
menos poder tomá-lo m_elhor, gra~as aom ele22 No Teages, los e bois, mas que, quando se trata da justiça, não se
1 , edida que vwe co .
menta por e e e a ~ ,d Platão mas escrito entre 369 deva procurar um mestre. No texto de Xenofonte, Hípias,
diálogo falsamente atnbm 0 a ' Platão ainda era vivo, o sofista, recorda a Sócrates que ele sempre repete as
a C 23 provavelmente enquanto bi'do mesmas palavras sobre as mesmas coisas. E Sócrates ad-
e 345 · · ' mo sem ter rece
discí ulo diz a Sócrates que, mes . elo mite, com evidente prazer, que é isso que lhe permite
:alquetensinamento de Sócrates!, elare pqo:: ~r::: ~ de fazer seu interlocutor dizer que ele, Hípias, ao contrário,
. c. d star no mesmo ug
sllllples J.ato e e . , Ban uete lhe diz e o repete, os se esforça para sempre dizer algo de novo, mesmo que
poder tocá-lo. O Alobi~des do f, .tq erturbador sobre ele24: se trate da justiça. Sócrates bem que gostaria de saber o
encantos de Sócrates tem um e ei o p , . que Hípias pode dizer de novo sobre um tema que não
. parecia não ser posszvel vzver deveria mudar nunca, mas Hípias recusa-se a responder
De tal modo me sentza q1_1ehme[ ] Pois me fiorça ele a admi-
d" -es como as mzn as ... antes que Sócrates lhe permitisse conhecer sua opinião
em con zço d ,-h ciente em muitos pontos
tir que, embora sendo eu mesmo. ep sobre a justiça:
. da, de mim mesmo me descuzdo.
azn Há muito que zombas dos outros, interrogando e refutando
- . . Sócrates seja mais eloquente e sempre, sem jamais querer prestar contas a ninguém nem sobre
Isso nao sigmfica que o contrário, diz Alcibíades, à
brilhante que os ~utros. ~~m a os parecem completamente nada expor tua opinião.
primeira impressao seus Iscurs
Ao que Sócrates responde:
ridículos25 :
d a de ferreiros, de sapateiros, Como! Hípias, não vês que não cesso de mostrar o que penso
Pois ele fala de bestas e carg ' mesmas palavras dizer ser o justo? Se não por palavras defino-o por atos.
de correeiros, e sempre parece com as ""''"''"-=~,_,,_..,"'-,_~~,~~'r-''"""""'-=8.-'''''"'

as mesmas coisas. _ Ele quer dizer que, por fim, a existência e a vida do
. Al 'b' des faz alusão à argumentaçao homem justo determinam melhor o que é a justiça.
Parece que aqm Cl Ia emórias sobre Sócrates
habitual de Sócrates, presente nas m É essa individualidade poderosa de Sócrates que pode
despertar à consciência a individualidade de seus interlo-
. hines von Sphettos und die Frage
22. K Dõring, "Der Sokrates ~es r~sc 112· 16-30 1984. Cf. também cutores. Mas as reações deles são extremamente diferentes.
· · h Sok.rates", In nermes, · ' ·· 1975 Vimos acima a alegria que Nícias experimentava ao ser
nach dem histonsc en . A endix Platonica, Munchen, , P·
C. W. Müller, Die Kurzdwloge der pp
questionado por Sócrates. Ao contrário, Alcibíades, por sua
233, nota 1. O d Cf C W. Müller, op. cit., P· 128, nota 1.
23. Teages, 13 · · ·
24. Banquete, 215 c-e; 216 a. 26. Xenofonte, Memoráveis, N, 4, 5.
25. Ibid., 221 e.
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58
A definição platônica do filósofo e seus antecedentes A figura de Sócrates

parte, procura resistir à sua influência: diante dele experi- Es~á~ enganado, homem, se pensas que um varão de algum
menta tão somente vergonha e, para escapar dessa atração, prestzmo deve pesar as possibilidades de vida e morte em vez
,algumas vezes chega a desejar sua morte. Em outras pala- ~e considC:~r apenas este aspecto de seus atos: se o que faz· é
tvras, Sócrates só pode convidar seu interlocutor a examinar- JUsto ou zn:;usto, ·de homem de brio ou de covarde.
.1: se, a pôr-se à prova. Para que se instaure um diálogo que

1
: conduza o indivíduo, como o dizia Nícias, a dar razão de , N:sta perspectiva, o que aparece como um não saber
e a piOr morte 28 :
si mesmo e de sua vida, é necessário que aquele que fala
com Sócrates aceite com o próprio Sócrates submeter-se C~"! efeito, se;:hor~s, temer a morte é o mesmo que se supor
às exigências do discurso racional, digamos: às exigências sa~zo q~em nao o e, porque é supor que sabe o que não sabe.
da razão. Em outras palavras, o cuidado de si, o pôr-se a Nznguem sabe ~ que é a morte, nem se, porventura, será para
si mesmo em questão nascem justamente numa superação o homem o mazor dos bens; todos a temem, como se soubessem
da individualidade que se eleva ao nível da universalidade, ser ela o maior dos males. A ignorância mais condenável não
representada pelo lógos comum aos dois interlocutores. é essa de supor saber o que não se sabe?
Sócrates, por sua parte, sabe nada saber sobre a morte
O saber de Sócrates: mas, em contrapartida, afirma que sabe alguma coisa sobre
o valor absoluto da intenção moral outro assunto:

Sei, porém, que é mau e vergonhoso praticar o mal, desobede-


Vislumbramos o que pode ser, para além de seu não
cer a u"! melhor que eu, seja deus, seja home7n;por isso, na
1 saber, o saber de Sócrates. Sócrates diz e repete que nada
alternatzva com males que conheço como tais, jamais fugirei
sabe, que nada pode ensinar aos outros, que os outros
de medo do que não sei se será um bem.
1
devem pensar por si mesmos, descobrir sua verdade por
si mesmos. Mas pode~se muito bem perguntar, em todo É muito interessante constatar que aqui o não saber e
caso, se não há um saber que o próprio Sócrates descobriu o saber condduzem não a conceitos, mas a valores: 0 valor _ /1 ~·
por si mesmo e em si. Uma passagem da Defesa27 , na qual d.a morte,_ e um lado, o valor do bem moral e do mal
saber e não saber são opostos, permite-nos conjeturar isso. n;~ral, ~e ~utro. Sócrates nada sabe do valor que é neces-
Sócrates evoca o que alguns poderiam dizer-lhe: "Não te sano at~~bm.r à morte, pois ela não está em seu poder, pois
pejas, ó Sócrates, de te haveres dedicado a uma ocupação a_ expenenna de sua própria morte lhe escapa por defini-
que te põe agora em risco de morrer?". E ele formula çao. Mas ele sabe o valor da ação moral e da intenção
assim o que poderia responder-lhe: moral, pois elas dependem de sua escolha, de sua decisão,

27. Defesa, 28 b. 28. Ibid., 29 a-b.

60 61
A definição platônica do filósofo e seus antecedentes
A figura de Sócrates

de seu empenho; elas têm, portanto, sua origem. ~ele


v~luntariamente 30 , ou ainda: a virtude é saber31 ; ele quer
mesmo. Ainda aqui o saber não é uma série de propos1çoes,
d1zer que, se o homem comete o mal moral, é porque crê
uma teoria abstrata, mas a certeza de uma escolha, de uma
encontrar o bem, e se ele é virtuoso é que sabe com toda
decisão, de uma iniciativa; o saber não é um saber tout
a sua alma e todo seu ser onde está o verdadeiro bem. 0
court, mas um saber-que-é-necessári~-escolher, ~or;anto u~
\ papel do filósofo consistirá em permitir a seu interlocutor
isaber-viver. E esse saber do valor e que o gu1ara nas dls- "realizar", no sentido mais forte da palavra, o verdadeiro
1cussões travadas com seus mter
. 1ocutores29..
bem, o verdadeiro valor. No fundo do saber socrático, há
amor do bem32 •
E, se algum de vós redarguir que se importa, não me zrez
embora deixando-o, mas o hei de interrogar, examinar e con- O conteúdo do saber socrático é, no essencial, "o
fundir e, se me parecer que afirma ter adquirido a virtude e v~lor ab~(>ll:lt? da intençãoj,rrH>ral" e a certeza de que pro-
não a adquiriu, hei de repreendê-lo por estimar menos o que cura a escolha desse valor. Evidentemente, a expressão é
vale mais e mais o que vale menos. moderna. Sócrates não a teria empregado. Mas ela talvez
Esse saber do valor é extraído da experiência interior s:ja útil para ~essaltar todo o alcance da mensagem socrá-
de Sócrates, da experiência de uma escolha que o compro- tica. Pode-se d1zer que um valor é absoluto para um homem
mete totalmente. Ainda não há aqui um saber senão em quando ele está prestes a morrer por esse valor. É preci-
samente a atitude de Sócrates, quando se trata do "que é
uma descoberta pessoal que vem do interior. Essa interio-
o melhor", isto é, da justiça, do dever, da pureza moral.
ridade é, em contrapartida, reforçada pela representação
Ele repete várias vezes na Defesd 3 : pr-efere a morte e
do daímon, dessa voz divina que, diz ele, nele fala e o im- 0
perigo a renunciar a seu dever e à sua missão. No Críton34
pede de fazer certas coisas. Experiência mística ou imagem
Platão imagina que Sócrates faz falar as leis de Atenas'
mítica, é algo difícil de dizer, mas nela podemos v~r, e~
que o fazem compreender que, se quiser evadir-se e esca~
todo caso, uma espécie de figura do que se chamara ma1s
par à sua condenação, prejudicará toda a cidade, dando
tarde consciência moral.
Parece que Sócrates admitiu implicitan:ente e~istir em . 3.0. Sócr~tes, em Aristóteles, Ética a Nicômaco, VII, 2, 1145 b 21-27 [Ética
a Mcomaco, 4 ed., tradução de Leonel Vallandro e Gerd Bornheim, São
todos os homens umdes{:j() in(ltoc!:].gp<:m:~~ tambem nesse Paulo, Nova Cultural, 1987 (Os Pensadores)].
sentido que se aprese~;;~~ ~~~o um simples parteiro, cu~o 31. Sócrates, em Aristóteles, Ética a Eudemo, I, 5, 1216 b 6-8; Xenofon-
te, Memoráveis, III, 9, 5.
papel limitava-se a fazer que seus interlocutores descobns-
32. A.-:J. Voelke, L'id~e de volon~é dans le stoiCisme, Paris, 1973, p. 194,
sem suas possibilidades interiores. Compreende-se melhor, para o .te~a .do pretenso mtelecrualismo socrático: "La dialectique socrati-
então, a significação do paradoxo socrático: ninguém erra que umt md1ssolublement la connaissance du bien et le choix du bien".
33. Defesa, 28 b ss.

29. Ibid., 29 e. 34. ?ríton, 50 a [ Críton, 3a ed., seleção, introdução e tradução de Jaime
Bruna, Sao Paulo, Cultrix, 1952],

62
63
A definição platônica do filósofo e seus antecedentes
A figura de Sócrates

I
o exemplo de desobediência a suas leis: ele não deve pôr /lucidez, esse rigor para olhar a si mesmo pode dar sentido
sua própria vida acima do que é justo. E como diz Sócrates /à vida37:
no Fédon35 :
Uma vida sem exame não é vida digna de um ser humano.
Há muito que estes mesmos ossos e músculos estariam lá para
Encontramos aqui, talvez ainda confuso e indistinto um
as bandas de Megara ou da Beócia, levados por certa noção
esboço da ideia a ser desenvolvida mais tarde em ;utra
do "melhor': se eu não estivesse convicto de que era mais justo
problem~tica, J?or Kant: a moralidade constitdi-se na pu-
e mais belo submeter-se às leis da cidade, qualquer que fosse a reza_ de mtençao que dirige a ação, pureza que consiste
pena que me é imposta, de preferência a evadir-me e fugir. preosamente em conferir um valor absoluto ao bem moral
Esse valor absoluto da escolha moral aparece também renunciando totalmente ao próprio interesse. '
em outra perspectiva, quando Socrates
, 36 d ec1ara: "N-
ao h'a, .Tudo leva a pensar, por outro lado, que esse saber ja-
para o homem bom, nenhum mal, quer na vida, quer na m~Is po?e ser adquirido. Não é somente aos outros, mas
morte". Isso significa que todas as coisas que parecem a SI mesmo que Sócrates não cessa de submeter a exame.
males aos olhos dos homens, a morte, a doença, a pobre- A pureza da intenção moral deve sem cessar ser renovada
za, não são males para ele. A seus olhos, há apenas um e ~estabelecida. A transformação de si jamais é definitiva.
mal, a falta moral, há apenas um bem, um único valor, a Ex1ge uma e?~R_~tl1a Tt;conquista.
vontade de fazer o bem, o que supõe que ele não recusa
examinar sem cessar e rigorosamente sua maneira de viver,
a fim de ver se ela é sempre dirigida e inspirada por essa Cuidado de si, cuidado dos outros
vontade de fazer o bem. Pode-se dizer, até certo ponto,
.. Falando da estranheza da filosofia, M. Merleau-Pont:fs
que o que interessa a Sócrates não é definir o que pode
dlZla que ela 'jamais está totalmente no mundo, e jamais,
ser o conteúdo teórico e objetivo da moralidade: é neces- entretanto, fora do mundo". Do mesmo modo com
0
sário saber se se quer real-e-concretamente fazer o que se estranho, o inclassificável Sócrates. Ele não está nem no
considera justo e bom: ç:Q~~_se <:lt::v:~agiE: Na Defesa, Sócrates mundo, nem fora.
não dá nenhuma razão teónêa para explicar por que se
obriga a examinar sua própria vida e a vida dos outros. _ De um lado, ele propõe, aos olhos de seus concida-
daos, uma total reversão dos valores que lhe parecem
Contenta-se em dizer, por um lado, que é a missão que incompreensíveis 39 :
lhe foi confiada pelo deus e, por outro, que somente tal
(37_--~~~.:-~~) -
p. 38.'3&-M~eau-Ponty, Eloge de la philosophie et autres essais, Paris, 1965 ,
35. Fédon, 98 e [Fédon, 3' ed., seleção, introdução e tradução de Jaime
Bruna, São Paulo, .Çultrix, 1952].
36. Defesa, 41 d. 39. Defesa, 38 a.

64 65
A definição platônica do filósofo e seus antecedentes A figura de Sócrates

Se vos disser que para o homem nenhum bem supera o discorrer exortam Sócrates a não se deixar levar pela tentação de
cada dia sobre a virtude e outros temas de que me ouvistes evadir-se da prisão e fugir para longe de Atenas, fazendo-o
praticar quando examinava a mim mesmo e a outros, e que compreender que sua salvação egoísta será uma irúustiça
vida sem exame não é vida digna de um ser humano, acre- ~~ra com Atenas. Essa atitude -não é de conformismÕ,
ditareis ainda menos em minhas palavras. porquanto Xenofonte faça dizer a Sócrates que se pode
Seus concidadãos não podem perceber seu convite bem "obedecer às leis aspirando que elas mudem, como
para examinar seus valores, sua maneira de agir, para se vai à guerra aspirando a paz". Merleau-Ponty40 ressaltou
tomar cuidado consigo mesmo, como também para uma bem: "Sócrates tem uma maneira de obedecer que é uma
ruptura radical com a vida cotidiana, com os hábitos e as maneira de resistir", submete-se às leis para provar, no
convenções da vida corrente, com o mundo que lhes é fa- interior da cidade, a verdade de sua atitude filosófica e o
miliar. Mas, de outro lado, esse convite para tomar cuidado valor absoluto da intenção moral. Não é necessário dizer,
consigo mesmo não será um apelo para afastar-se da cidade, então, com Hegel, que "Sócrates retira-se para si mesmo
vindo de UJJl"-lte~em que está, de alguma maneira, fora para buscar a justiça e o bem", mas, com Merleau-Ponty4 \
do mund{ átopo:J ou seja, ~ue é es~~nho, i~classificáv:l, "ele pensava que não se pode ser justo sozinho, do mesmo
absurdo? Sócr-ates não sera o protot1po da Imagem tao modo como o ser sozinho cessa de ser".
disseminada e, por outro lado, afinal tão falsa do filósofo
O cuidado de si é, portanto, indissoluvelmente cuidado
que foge das dificuldades da vida, para refugiar-se em sua
da cidade e cuidado dos outros, como se vê pelo exemplo
boa consciência?
do próprio Sócrates, cuja razão de viver é ocupar-se com
Contudo, o retrato de Sócrates, tal qual desenhado por os outros. Há em Sócrates42 um aspecto ao mesmo tempo
Alcibíades no Banquete de Platão, e também por Xenofonte, "missionário" e "popular", que se reencontrará posterior-
revela-nos, ao contrário, um homem que participa plena- mente em certos filósofos da época helenística:
mente da vida da cidade como ela é, um homem quase
comum, cotidiano, com-muther e filhos, que conversa Eu estou à disposição tanto do pobre como do rico, sem
com todo mundo, nas ruas, nas oficinas, nos ginásios, um distinção [. .. ] Podeis reconhecer que sou bem um homem
bon vivant capaz de beber mais que qualquer outro sem dado pelo deus à cidade por esta reflexão: não é conforme à
embriagar-se, um soldado corajoso e paciente. natureza do homem que eu tenha negligenciado todos os meus
interesses [. .. }para me ocupar do que diz respeito a vós [. .. }
_ O cuidado de si não se opõe ao cuidado da cidade. De
para persuadir cada um a tornar-se melhor.
~maneira igualmente notável, na Defesa de Sócrates e no Criton,
·o que Sócrates proclama como seu dever, como aquilo pelo S40. M. Merleau-Ponty, op. cit., p. 44.
'que deve a tudo sacrificar, mesmo sua vida, é a obediência ) 41. Id., ibid., p. 48.
às leis da cidade, as "Leis" personificadas que, no Criton, 42. Defesa, 32 b e 31 b.

66 67
A definição platônica do filósofo e seus antecedentes

Assim Sócrates está, ao mesmo tempo, fora do mundo


e no mundo transcendendo os homens e as coisas por sua
exigência m~ral e pelo empenho que ela implica: ~isturado Capítulo 4
aos homens e às coisas, porque somente no cotidiano dele
pode compreender a verdadeira filosofia. E, s_em dúvida,
em toda a Antiguidade, Sócrates permanecera o modelo
do filósofo ideal cuia obra filosófica é justamente sua
' :J 44 . , . d
fi definição do filósofo
vida e sua morté3• Como escreveu Plutarco no Imcw o
século II d.C.:
no l;Banquete de rJ>latão
A maior parte das pessoas imagina que a filosofia consiste em
discutir do alto de uma tribuna e dar cursos sobre textos. Mas
0 que escapa totalmente a essas pessoas é a filos_ofia inin_terrupta
que se vê exercer a cada dia de uma manezra perfeztamente Não sabemos com evidência se Sócrates chegou, em
igual a si mesma [. .. ] Sócrates não prepara degraus para suas discussões com seus interlocutores, a empregar a pa-
os ouvintes, não se firma sobre uma tribuna professora[; ele lavra philosophia. É provável, em todo caso, que, caso ela já
não tem horário fixo para discutir ou para passear com seus existisse, ele teria utilizado essa palavra dando-lhe o senti-
discípulos. Mas é algumas vezes gracejando com aqueles, ou do corrente da época, isto é, ele a teria empregado, como
bebendo ou indo à guerra ou à ágora com esses, e finalmente se fazia então, para designar a cultura geral que os sofistas
indo para a prisão e bebendo o veneno, que ele filosofou. Ele e outros poderiam conceder a seus alunos. É esse sentido
\ Voi 0 primeiro a mostrar que, em todos os tempos e em todos que encontramos, por exemplo, nos raros empregos da
\\os lugares, em tudo o que n~s _c~ega
e em tudo o que Jazemos, palavra philosophia que se encontra nas Memoráveis, as me-
\!a vida cotidiana dá a posstbthdade de filosofar. mórias de Sócrates reunidas por seu discípulo Xenofonte.
Mas é certo que é sob a influência da personalidade e do
ensinamento de Sócrates que Platão há de conferir,
no Banquete, à palavra "filósofo", e, portanto, também à
palavra "filosofia", um novo sentido.

O Banquete de Platão
43. CL A-J)ihle, Studien zur griechischen Biographie, 2• ed. Gõttingen,
1970, pp.J3-20. '',\ O Banquete é, com a Defesa, um monumento literário
44. Plutarco, ~e a política é ofício dos velhos, 26, 796 d. dedicado à memória de Sócrates, um monumento maravilho-

68
69
A definição platônica do filósofo e seus antecedentes A definição do filósofo no Banquete de Platão

sa e habilmente construído, como Platão sabia fazer tão bem, meceu Aristófanes e, quando já se fazia dia, Agatão. Sócrates
entrelaçando com arte temas filosóficos e símbolos míticos. [. .. 1 levantou-se e partiu; [. .. 1 chegado ao Liceu ele asseou-se
Como na Defesa, a parte teórica é reduzida ao mínimo: encon- e, como em qualquer outra ocasião, passou o dia inteiro, depois
tram-se apenas algwnas páginas, extremamente importantes, do que, à tarde, foi repousar em casa.
que se referem à visão da Beleza, e o essencial é dedic~do a
Esse fim do diálogo fez sonhar os poetas. Pensa-se aqui
descrever o modo de vida de Sócrates, que se revelara pre-
nos versos de Hõlderlin 2 sobre o sábio que sabe suportar
cisamente como o modelo do filósofo. A definição do filósofa!,
a intensidade da felicidade que lhe oferece o deus:
proposta no curso do diálogo, terá alguns sentidos.
A cada um sua medida. Pesada é a força da infelicidade,
A figura de Sócrates domina todo o diálogo, apresenta-
mais pesada ainda a felicidade. Houve um sabia, contudo, que
do como a narração de certo Aristodemo que relata como
soube permanecer lúcido no banquete, do meio até o coração
Sócrates lhe pede que o acompanhe ao banquete oferecido da noite, e até as primeiras luzes da alva.
pelo poeta Agatão em honra de sua vitória no concurs?
de tragédia. Sócrates chega atrasado de algum lugar pms É com a mesma serenidade, nota Nietzsche, que ele
permanecera durante certo tempo plantado na praça medi- deixa o banquete e sabe entrar na morteS:
tando. Na série de discursos que os participantes do banquete
Ele foi para a morte com a mesma calma com que, na descrição
desenvolverão em honra de Eros, a intervenção de Sócrates
de Platão, ele, o último dos convivas, deixa o banquete ao
é tão longa quanto a de todos os outros oradores reunidos.
despontar da madrugada, para começar um novo dia; enquan-
Quando no fim do banquete chega Alcibíades, embriagado,
to atrás dele, sobre os bancos ou no chão, ficam para trás os
coroado de flores, acompanhado de uma flautista, este
adormecidos companheiros de mesa, para sonhar com Sócrates,
último fará um longo elogio a Sócrates, detalhando todos
o verdadeiro erótico. Sócrates morrendo tornou-se o novo ideal,
os aspectos de sua personalidade. E, nas últimas linhas da
nunca antes contemplado, da nobre juventude grega.
obra, a personagem de Sócrates é a única lúcida e serena,
no meio de convivas adorme_çidos, embora tenha bebido Como bem mostrou D. Babut4 , os menores detalhes
mais que os outros. têm sua importância na construção do diálogo destinado
Agatão, Aristófanes e Sócrates eram os únicos que ainda esta-
2. Hõlderlin, Le Rhin, trad. G. Bianquis, Paris, 1943, pp. 391-393.
vam despertos, e bebiam de uma grande taça que passavam 3. Nietzsche, O nascimento da tragédia, § 13 [N. do T.: vali-me da tradu-
da esquerda para a direita. Sócrates conversava com eles [. .. 1 ção de Rubens Rodrigues Torres Filho, O nascimento da tragédia, 4a ed., São
ForçaV(J,-OS Sócrates a admitir que é de um mesmo homem o Paulo, Nova Cultural, 1987 (Os Pensadores); O nascimento da tragédia ou
helenismo e pessimismo, tradução, notas e posfácio de Jacó Guinsburg, São
saber Jazer uma comédia e uma tragédia [. .. 1 Primeiro ador- Paulo, Companhia das Letras, 1992].
4. D. Babut, "Peinture et dépassement de la réalité dans le Banquet de
l. Sobre os empregos da palavra philosophia e das palavras correlatas Platon", in Revue des études anciennes, 82: 5-29, 1980, artigo republicado in
em Platão, cf. M. Dixsaut, Le Naturel philosophe, Paris, 1985. Parerga, Choix d'articles de D. Babut, Lyon, 1994, pp. 171-196.

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A definição platônica do filósofo e seus antecedentes A definição do filósofo no Banquete de Platão

ao mesmo tempo a pintar Sócrates e a idealizá-lo. A le que fez antes dele o elogio do Amor e, notadamente,
companhia daqueles que bebem delineia um progr~ma declara que o Amor é belo e gracioso. Sócrates principia
que determina simultaneamente o modo como se. ~a de por interrogar Agatão perguntando-lhe se o amor é desej()
beber e o tema dos discursos que cada um dos participan- do que se possui ou do que não se possui. Se é necessário
tes há de pronunciar. O assunto será o Amor. Narrando admitir que o Amor é desejo do que não se possui, e se
o banquete ao qual assistia Sócrates, o diálogo relata,rá, o amor é desejo de beleza, não se deve concluir que o
portanto, a maneira pela qual os convivas darão co~ta de amor não pode ele próprio ser belo, uma vez que não
sua tarefa, em que ordem os discursos suceder-se-ao e o possui a beleza? Depois de ter obrigado Agatão a admitir
que dirão os diferentes oradores. Segun~~ D. B~~ut, os essa posição, Sócrates deverá igualmente expor sua teoria
cinco primeiros discursos, de Fedro, Pausamas, Eruamaco,
do Amor, mas referindo-se a quem o fez compreender o
Aristófanes e Agatão, por uma progressão dialética, pre-
tema do Amor, Diotima, a sacerdotisa de Mantineia, em
param o elogio do Amor por Diotima, a sacerdotisa de
uma conversa que teve alhures com ela. Uma vez que é
Mantineia de quem Sócrates, logo que chega sua vez,
relativo a outra coisa, e a uma coisa da qual é privado,
referirá as palavras.
o Amor não pode ser um deus, como imaginaram sem
De uma extremidade a outra do diálogo, mas sobretu- razão todos os outros convivas que haviam feito até então
do no discurso de Diotima e no de Alcibíades, percebe-se o elogio do Amor; Eros é propriamente um d~ímon,um
que os traços da figura de Eros e os da figura de Sócrates ser intermediário entre os deuses e os homens;~ entre os
tendem a confundir-se. E, finalmente, se eles se entre- imortais e os mortais 5• Não se trata apenas de uma posição
meiam tão estreitamente, a razão é que Eros e Sócrates mediana entre duas ordens de realidades opostas, mas
personificam, um de maneira mítica, outro de maneira de uma situação de mediador: o daímon está em relação
histórica, a figura do filósofo. Tal é o sentido profundo com os deuses e os homens, desempenha um papel nas
do diálogo. iniciações aos mistérios, nos encantos que curam os males
da alma e do corpo, nas comunicações que vêm dos deuses
aos homens, tanto na vignia como no sono. Para melhor
Eros, Sócrates e o filósofo fazê-los compreender essa representação de Eros, Diotima6
propusera a Sócrates uma narração mítica do nascimento
O elogio de Eros por Sócrates é clara e evidentemente desse daímon. No dia do nascimento de Mrodite, houve
composto segundo a maneira propriamente socrática. _Isso um banquete entre os deuses. No fim da refeição, Penia,
quer dizer que Sócrates não fará, como os outros conviVas, a saber, "Pobreza", "Privação", aproxima-se para mendigar.
um discurso no qual afirmará que o Amor tem esta ou
aquela qualidade. Não falará ele próprio, pois nada sabe,
5. Banquete. 202 e.
mas fará falar os outros, e em primeiro lugar Agatão, aque- 6. Ibid., 203 a e ss.

72 73
A definição platônica do filósofo e seus antecedentes A definição do filósofo no Banquete de Platão

Poros, a saber, "Recurso", "Riqueza", "Expediente", esta- No início do diálogo, vimos que, para 1r ao banquete,
va ainda adormecido, embriagado de néctar, no jardim Sócrates, excepcionalmente, banhara-se e calçara-se. Os
de Zeus. Penia estende-se a seu lado a fim de remediar pés descalços e o velho manto de Sócrates eram os temas
sua pobreza tendo um filho dele. E assim ela concebe o favoritos dos poetas cômicos8 • E o Sócrates descrito pelo
Amor. Segundo Diotima, a natureza e o caráter do Amor cômico Aristófanes em suas Nuvenf é um digno filho de
explicam-se por essa origem. Nascido no dia do nascimen- Poros: "linguarudo, ousado, resoluto, velhaco[ ... ] charlatão,
to de Mrodite, é apaixonado pela Beleza. Filho de Penia, raposa". Em seu elogio de Sócrates, Alcibíades também
é sempre pobre, indigente, mendicante. Filho de Poros, é faz alusão à sua impudência, e já antes dele, no início do
inventiva e astucioso. diálogo, Agatão fizera a mesma alusão 10 • Para Alcibíades,
Sócrates é também um verdadeiro mágico 11 , que enfeitiça
A descrição mítica de Diotima, de uma maneira mui-
as almas por suas palavras. Quanto à robustez de Eros, é
to hábil e plena de humor, aplica-se ao mesmo tempo a
encontrada no retrato de Sócrates em armas que Alcibíades
Eros, a Sócrates e ao filósofo. A Eros, em primeiro lugar,
traça: resiste ao frio, à fome, ao medo, tudo sendo capaz
o laborioso:
de suportar, tão bem o vinho quanto as privações 12 •
Ele é sempre pobre, e longe está de ser delicado e belo, como a
maioria imagina, mas é duro, seco, descalço e sem lar, sempre Ora, esse retrato de Eros-Sócrates é, a um só tempo,
por terra e sem forro, deitando-se ao desabrigo, às portas e o retrato do filósofo, na medida em que, filho de Poros e
nos caminhos. de Penia, Eros é pobre e deficiente, mas sabe, por sua
habilidade, compensar sua pobreza, sua privação e sua de-
Mas também, qual um digno filho de Poros, esse Eros ficiência. Para Diotima, Eros é filó-sofo, pois está a meio
amoroso é um "caçador terrível": caminho entre a sophía e a ignorância. Platão 13 não define
Ele é insidioso com o que é belo e bom, e corajoso, decidido e aqui o que entende por sabedoria. Permite-nos apenas en-
enérgico, caçador terrível, serrtpre a tecer maquinarias, ávido tender que se trata de um es_tado transc~!ldente, visto que
de sabedoria e cheio de recursos, afilosofar por toda a vida, a seus olhos, propriamente f~landÔ, somente os deuses são
terrível mago, feiticeiro, sofista.
".8. Encontrar-se-ão alguns exemplos em Diógenes Laércio, Vida dos
Mas a descrição aplica-se a Sócrates, que é também jilósof% II, 27-28.
esse amoroso, esse caçador miseráveF. No fim do diálogo, '··j 9. 1\nstófanes, As Nuvens, 445 ss. [As Nuvens, 4a ed., tradução e notas
Alcibíades o descreverá, participando da expedição militar de Gilda Maria Reale Strazynski, São Paulo, Nova Cultural, 1987 (Os Pen-
sadores)].
de Potideia, atormentado pelo frio de inverno, pés descalços, 10. Banquete, 175 e, 221 e.
coberto por uma roupagem grosseira que mal o protegia. 11. Ibid., 215 c.
12. Ibid., 220 a-d.
7. Ibid., 174 a e 203 c-de 220 b. Cf. V.Jankélévitch, L'Ironie, pp. 122-125. 13. Ibid., 203 e ss.

74 75
A definição platônica do filósofo e seus antecedentes A definição do filósofo no Banquete de Platão

sábios 14 • Pode-se admitir que a sabedoria representa a per- Ainda aqui, reconhece-se logo sob os traços de Eros
feição do saber identificado à virtude. Mas, como já dissemos não só o filósofo, mas Sócrates que, aparentemente, nada
e como deveremos tornar a dizê-lo 15 , na tradição grega o sabe, como os ignorantes, mas que, ao mesmo tempo, é -
saber ou sophía é menos um saber puramente teórico que consciente de nada saber: ele é diferente dos ignorantes,
um saber-fazer, um saber-viver, e nele se reconhecerão tra- pelo fato de, consciente de seu não saber, desejar saber,
ços da maneira de viver, não o saber teórico, de Sócrates
mesmo que, como vimos 16 , sua representação do saber seja
filósofo, que Platão evoca precisamente no Banquete.
profundamente diferente da tradicional. Sócrates ou o
Há, diz Diotima, duas categorias de seres que não filo- filósofo é Eros: privado de sabedoria, de beleza, do bem,
sofam: os deuses e os sábios, por serem eles precisamente deseja, ama a sabedoria, a beleza, o bem. Ele é Eros, o
sábios, e os ignorantes, por crerem ser sábios: que significa que ele é o Desejo, não um desejo passivo e
Nenhum deus filosofa ou deseja ser sábio (sophós) -pois já nostálgico, mas um desejo impetuoso, digno desse "caçador
é -, assim como, se alguém mais é sábio, não filosofa. Nem terrível" que é Eros.
também os ignorantes filosofam ou desejam ser sábios; pois Aparentemente, não há nada mais simples e mais na-
é nisso mesmo que está o difícil da ignorância, no pensar, tural do que essa posição intermediária do filósofo. Ele
quem não é um homem distinto e gentil, nem inteligente, que está a meio caminho entr,e o saber e.. ~ tgn~rância. Pode-se
lhe basta assim. Não deseja portanto quem não imagina ser pensar que lhe· bastará pratíêar sua atividade de filósofo
deficiente naquilo que não pensa lhe ser preciso.
para superar definitivamente a ignorância e alcançar a
Mas Sócrates pergunta ainda: "Quais então, Diotima, sabedoria. Mas as coisas são muito mais complexas.
os que filosofam, se não são nem os sábios nem os igno-
Com efeito, no segundo plano dessa oposição entre
rantes?", ao que responde Diotima:
sábios, filósofos e ignorantes, é possível vislumbrar um es-
São os que estão entre esses dois extremos, e um deles seria o quema lógico de divisão de conceitos que é muito rigoroso
Amor. Com efeito, uma das co1sas mais belas é a sabedoria, e e não autoriza uma perspectiva tão otimista. Diotima opôs
o Amor é amor pelo belo, de modo que éforçoso o Amor serfilósofo os sábios e os não sábios, o que quer dizer que ela fez uma
e, sendo filósofo, estar entre o sábio e o ignorante. E a causa oposição de contradição que não admite nenhum interme- ·----'-''*
dessa sua condição é sua origem: pois é filho de um pai sábio
(sophós) e rico e de uma mãe que não é sábia e pobre.
diário: ou seéé sábÍÕ ou
não, não há meio-termo. Desse
ponto de vista, não se pode dizer que o filósofo seja um
intermediário entre o sábio e o não sábio pois, se não se
14. Cf. Fedro, 278 d [Fedro, tradução de Carlos Alberto Nunes, Belém,
Ed. Universidade Federal do Pará, 1975; Fedro, introdução, tradução e notas é "sábio", se é necessária e decididamente "não sábio". Ele
de José Ribeiro Ferreira, Lisboa/São Paulo, Verbo, 1973.
15. Cf. pp. 39 e 384. 16. Cf. pp. 60 ss.

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A definição platônica do filósofo e seus antecedentes A definição do filósofo no Banquete de Platão

está votado a jamais alcançar a sabedoria. Mas nos não portanto, segundo o Banquete, não é a sabedoria, mas um
sábios Diotima introduziu uma divisão: há os que são in- modo de vida e um discurso determinados pela ideia de
fconscientes de sua não sabedoria, e estes são propriamente sabedoria.
os ignorantes, e há os que são conscientes de sua não
sabedoria, e estes são os filósofos. Dessa vez, pode-se con- Com o Banquete, a etimologia da palavra philosophia, "o
siderar que, na categoria dos não sábios, os ignorantes, amor, o desejo da sabedoria", torna-se o programa da filo-
inconscientes de sua não sabedoria, são o contrário dos sofia. Pode-se dizer que, com o Sócrates do Banquete, a fi-
sábios e, segundo esse ponto de vista, isto é, conforme essa losofia toma definitivamente na hist(ria uma tonalidade a
oposição de contrariedades, os filósofos são intermediários um só teiilP? irônica e trágica. Irônica porque o verdadei-
entre os sábios e os ignorantes, na medida em que são não ro filósofÓ ~~;á· sémpre aquele que sabe nada saber, que
sábios conscientes de sua não sabedoria: eles não são sábios sabe que não é sábio e que não é sábio nem não sábio,
nem ignorantes. Essa divisão é paralela a outra que fora que não está, por sua vez, no mundo dos ignorantes nem
, muito corrente na escola de Platão, a distinção entre "o no mundo dos sábios, nem totalmente no mundo dos ho-
que é bom" e "o que não é bom". Entre os dois não há mens nem totalmente no mundo dos deuses, inclassificável,
meio-termo, pois se trata de uma oposição de contradição. portanto, sem casa ou lugar, como Eros e Sócrates. Trágico,
Mas, nisso que não é bom, pode-se distinguir entre o que também, porque esse ser bizarro é torturado e dilacerado
não é bom nem mau e o que é mau. Agora, a oposição de pelo desejo de alcançar essa sabedoria que lhe escapa e
contrariedade estabelecer-se-á entre o bom e o mau, e que ama. Como Kierkegaard19 , o cristão que gostaria de
haverá um intermediário entre o bom e o mau, a saber, o ser cristão mas sabe que somente Cristo é cristão, o filóso-
que não é "nem bom nem mau" 17 . Esses esquemas lógicos fo sabe que não pode alcançar seu modelo e que jamais
tiveram importância muito grande na escola de Platão 18 • será totalmente o que deseja. Platão instaura, assim, uma
Com efeito, eles servem para distinguir as coisas que só se distância insuperável entre a filosofia e a sabedoria. A filo-
conhecem mais ou menos e as que são suscetíveis de graus ~ofià define-se por ser aquilo do que é privada, isto é, por
de intensidade. O sábio ou o -qüe é bom são absolutos, eles uma norma transcendente que lhe escapa e, contudo, que
não admitem variações: não se pode ser mais ou menos
possui em si de certa maneira, segundo a célebre fórmula
sábio ou mais ou menos bom. Mas o que é intermediário,
pascaliana, tão platônica: "Não me procurarias se já não
o que não é "nem bom nem mau", ou o "filósofo", é sus-
me houvesses achado" 20 • Dirá Plotino 21 : "O que é totalmen-
cetível de mais ou menos: o filósofo jamais atingirá a sabe-
te privado do bem jamais procurará o bem". É porque o
doria, mas pode progredir em sua direção. A filosofia,
19. Kierkegaard, L'Instant, § 19, in CEuvres completes, t. XIX, pp. 300-
17. Platão, Lísis, 218 b 1.
301.
18. H.J Krãmer, Platonismus und hellenistische Philosophie, Berlin, 1971, 20. Pascal, Pensées, § 553 Brunschvicg (Classiques Hachette).
pp. 174-175 e 229-230.
21. Plotino, Eneadas, III, 5 (50), 9, 44; p. 142 Hadot.

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A definição platônica do filósofo e seus antecedentes A definição do filósofo no Banquete de Platão

,Sócrates do Banquete apresenta-se a um só temp? como te de fora do mundo. Como Alcibíades pôde ver na ex-
aquele que pretende não ter nenhuma sabedona e co- pedição de Potideia, Sócrates tem a capacidade de per-
mo um ser de quem se admira a maneira de viver. Porque manecer contente em todas as circunstâncias, de poder,
o filósofo não é um intermediário, mas um mediador, como na expedição militar de Potideia, aproveitar a abundância
Eros. Ele revela aos homens alguma coisa do mundo dos quando há abundância e sobrepujar os outros na arte de
deuses, do mundo da sabedoria. Ele é como os moldes de beber sem embriagar-se e, contudo, quando há escassez, '
silenos22 que, exteriormente, parecem grotescos e ridículo~ suportar corajosamente a fome e a sede, suportar com
mas, apenas abertos, vê-se que têm estátuas de deuses. E facilidade quando não há nada para comer e quando há
assim que Sócrates, por sua vida e por seu discurso, que abundância, suportar facilmente o frio, nada temer, mos-
têm efeito mágico e daimônico, obriga Alcibíades a pôr-se a trando considerável coragem no combate. Ele é indife-
si mesmo em questão e a dizer-se que sua vida não merece rente a todas as coisas que seduzem os homens, beleza,
ser vivida, caso ele se comporte dessa maneira. Notemos, riqueza, vantagem ou outra coisa qualquer, e que lhe
rapidamente, na esteira de L. Robin 23, que é também o
pareça sem valor. Mas é também alguém que pode absor-
próprio Banquete, isto é, a obra literária que Platão escreveu
ver-se totalmente na meditação, retirando-se de tudo o
com esse título, que é semelhante a Sócrates, ele também
que o cerca. Durante-ã~expedição de Potideia, seus com-
um sileno esculpido que, com ironia e humor, dissimula
panheiros de armas viram-no refletir, em pé e imóvel,
as mais profundas concepções.
durante uma jornada inteira. Também desse modo ele
Não é apenas a figura de Eros que é, assim, desvalo- chega ao início do diálogo e é isso que explica seu atra-
rizada e desm:itificada no Banquete, passando do posto de so ao banquete. Platão talvez queira, com isso, dar a
deus ao de daímon, é também a figura do filósofo, que entender que Sócrates fora iniciado pela sacerdotisa de
não é mais o homem que recebe dos sofistas um saber Mantineia nos mistérios do amor e que aprendeu a ver
acabado, mas qualquer um que tenha consciência de sua a verdadeira beleza; aquele que teve essa visão atingirá,
deficiência e, ao mesmo tempo, do desejo que existe em diz a sacerdotisa de Mantineia, a única via que vale a pena
si e que o atrai para o belo e para o bem. ser vivida e obterá, dessa maneira, a excelência ( aretê), a
O filósofo, que toma consciência de si mesmo no virtude verdadeira 25 • A filosofia aparece, dessa vez, torna-

Banquete, assim como o Sócrates que descrevemos maiS • 24
acnna , remos a repetir isto 26, como uma experiência de amor. ~
aparece, não sendo totalmente do mundo, nem totab:~en- Assim, Sócrates revela-se como um"ser qU.e, mesmo
não
sendo um deus, pois apresenta-se antes de tudo como um
22. Banquete, 215 b-c. homem comum, é superior aos homens: é um daímon,
23. L. Robin, introdução, p. CV, nota 2, in Platão, Le Banquet, Paris,
1981 (1"ed.1929). 25. Banquete, 211 d-212 a.
24. Cf. acima pp. 65 ss. 26. Cf. adiante pp. 108 ss.

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A definição platônica do filósofo e seus antecedentes Adfi'-
e mçao do filósofo no Banquete de Platão

amálgama de divindade e humanidade; mas um amálgama de maneira geral b d · ,


, não existe por si, ele é necessariamente ligado a uma es- , a sa e ona sera como um ideal .
e atrai o filósofo e sobretudo fil fi , que gma
j tranheza, quase a um desequilíbrio, a uma dissonância um exerocio, ' d .
de sab ' ,a . oso a sera conSI"derad a
interna. . e o na, pratica de um modo d .d
Essa Ideia será forte ainda em Kant2s , . , : VI a.
Essa definição do filósofo no Banquete terá importância todos os filósofos que defi . I ' : esta Imphota em
capital em toda a história da filosofia. Para os estoicos, por como o amor da sabedo ~e~ etJmo ogic~mente a filosofia
exemplo, da mesma maneira que para Platão, o filósofo ao menos o modelo donaS. , que os filosofas retiveram,
. ' ocrates do B t
é, por essência, diferente do sábio e, na perspectiva dessa Ironia e humor ao qu I c , anque e, em sua
' a Laz eco o Socrates da d
oposição de contradição, o filósofo não se distingue do Banquete de Xenofonte29 El - . . nçante o
comum dos mortais. Pouco importa, dirão os estoicos, vados disso de . . . es sao tradiCIOnalmente pri-
que se encontre a um côvado ou a cento e cinquenta percebeu-o bem;ue mais tiveram necessidade. Nietzschéo
braças na água, não se estará menos afogado 27 • Há, de
Sobre o Fundador do . .
alguma maneira, uma diferença de essência entre o sábio , !'
e o sorrzr q t
crzstzanismo, a vantacrem de S, t
~:o ocra es
e o não sábio, .no sentido em que somente o não sábio é fi ue a enua sua gravidade e a sabedoria plena de
mais ou menos suscetível, enquanto o sábio corresponde nura que dá ao homem o melhor estado de al
ma.
a uma perfeição absoluta que não admite graus. O fato
de o filósofo ser não sábio, porém, não quer dizer que
não haja diferenças entre o filósofo e os outros homens. Isócrates
O filósofo é consciente de seu estado de não sabedoria,
pois deseja a sabedoria, procura progredirpa direção da A oposição entre filosofia e sabedori
outro lado em u d a reencontra-se, por
sabedoria, que, para os estoicos, é uma espécie de estado ' m os contemporâne d Pl -
Isócrates Constatas os e atao, o orador
transcendente que só pode sex atingido por uma mutação . - e ne1e, antes de tudo I -
concepção de filos fi - , , ' uma evo uçao na
brusca e inesperada. E, por outro lado, o sábio não existe o a em relaçao a epoca dos sofistas31:
ou existe muito raramente. O filósofo pode progredir,
A ji~sojiad [. :. 1 que nos deu uma formação em vista da ação
mas sempre para o interior da não sabedoria. Ele tende que zntro uzzu a doç l _ '
para a sabedoria, mas de maneira assintótica, sem jamais . . . ura nas re açoes mútuas, que distin iu
as znfilzczdades provocadas pela ion A • d gu
~:o .• orancza aquelas que p
poder atingi-la. A

vem da necessidade, que nos ensinou a evitar as p . . ro-


rzmezras e
As outras escolas filosóficas não terão uma doutrina tão
precisa sobre a distinção entre filosofia e sabedoria, mas, 28. Cf. adiante pp. 373-380.
29. X:nofonte, Banquete, II, 17-19.
30. Nietzsche ' Humano' sdema .d h
z a o u m a0n o · ·
27. Cícero, Dos termos extremos do bem e do ma~ III, 14, 48. 31. Isócrates, Panegírico, § 47. · vzayante e sua sombra, § 86.

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