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«(...

) aquilo que os gregos chamam alêtheia,


a desocultação, o descobrimento.
Aquele olhar que às vezes está pintado
àproa dos barcos.»

Sophia de Mello Breyner Andresen


© Congregação das Irmãs Reparadoras
de Nossa Senhora de Fátima, 2014

Título: As grandes maravilhas de Fátima

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ALÊTHEIA EDITORES
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Autor: VISCONDE DE MONTELO


Padre Manuel Nunes Formigão

Capa e Paginação:
Rita L.Henriques

Impressão e acabamento:
Várzea da Rainha Impressores, Óbidos
www.varzeadarainha.pt

ISBN: 978-989-691-265-9
Depósito Legal: 375013/14

Junho de 2014
INDICE

Apresentação
Prefácio

I Parte: As Aparições da Santissima Virgem


1. A visão dos pastorinhos
2. Lourdes e Fátima
3. Uma cura extraordinária
4. Notas e comentários
5. O dia 13 de Agosto de 1917
6. O dia 13 de Setembro de 1917
7. As declarações dos videntes
8. Nas vésperas do grande milagre
9. No dia do grande milagre
10. Depois do grande milagre
11. Últimos interrogatórios
12. A morte de Francisco Marto
13. A morte de Jacinta Marto

II Parte: As Grandiosas Manifestações de Fé e Piedade


1. Glória e Reparação
2. Portugal junto do trono da sua Padroeira
3. Fátima, centro dos corações
4. Fátima, polo magnético das almas
5. Os prodígios da Virgem
6. O paraíso na terra
7. Dez anos depois
8. Fátima e o “Poverello”
9. As glórias da Mãe de Deus
10. A cidade da Virgem aos pés de Maria
11. A Terra da Virgem
12. A grande peregrinação de Outubro

Apêndices
Promessas aos devotos do Santo Rosário
Estatutos da Confraria de Nossa Senhora do Rosário de Fátima

Documentação Fotográfica
APRESENTAÇÃO

No 10º aniversário das aparições, o Padre Manuel Nunes


Formigão tomou a iniciativa de publicar As grandes maravilhas de
Fátima. Era a primeira publicação em forma de livro sobre os
singulares eventos, que desde 1917 tinham ocorrido na Cova da Iria
e sobre os quais ele mesmo tinha escrito em pequenos artigos e
crónicas, desde 1918, publicados em modestos periódicos eclesiais
sob o pseudónimo de Visconde de Montelo.
Com tal publicação retomava artigos seus anteriores, com a
finalidade de proclamar o chamado “milagre de Fátima”, divulgando
a mensagem e acompanhando o evoluir dos acontecimentos, que
tinham apaixonado profundamente o país inteiro. O subtítulo indica
as três partes que o compõem: 1ª parte: As aparições da Santíssima
Virgem; 2ª parte: As grandiosas manifestações de fé e piedade; 3ª
parte: As curas extraordinárias. De facto, alguns dos capítulos da 1ª
parte tinham aparecido no jornal “A Guarda”, a partir de 1918,
depois retomados no opúsculo Os episódios maravilhosos de
Fátima (1921); os capítulos da 2ª parte, provêm de crónicas
publicadas no jornal “Voz da Fátima”, entre 1922 e 1927; a 3ª parte
é constituída por narrações de curas e de presumíveis milagres, que
Padre Formigão foi reunindo até 1927.1 A edição é já ilustrada com
várias fotos.
Depois da recente publicação dos primeiros escritos do Padre
Formigão sobre Fátima,2 as Irmãs Reparadoras decidiram continuar
a reedição das suas obras, publicando As grandes maravilhas de
Fátima, pelo impacto que então teve o livro e pelo testemunho que,
hoje, representa, em formato actualizado, na proximidade do
centenário das aparições3.
A primeira parte é introduzida por um Prefácio e pelo capítulo “A
visão dos pastorinhos”, com os quais o autor salienta, a modos de
grande introdução, as questões abordadas no decorrer do livro.
Coloca as aparições da Senhora “mais brilhante que o sol” ou a
visão dos três pastorinhos no tempo e no espaço, no contexto
politico e eclesial, no campo teológico e da religiosidade popular.
Sumariamente, indica o conteúdo da mensagem, os sinais, as
conversões e as curas, como características de um fenómeno tão
extraordinário. Também põe em relevo o fenómeno do “milagre do
sol”, “a torrente caudalosa das multidões”, “a formidável vaga
humana”, assim como o ridículo e vacuidade das atitudes dos
opositores.
Os capítulos da 1ª parte de As grandes maravilhas de Fátima
recebem um título novo. O facto de o Padre Formigão recuperar os
textos já publicados justifica-se: os textos que preparara, além de
terem sido objecto de acurada atenção, ainda não tinham tido a
divulgação que os meios anteriores não tinham garantido.
Continuavam válidos e para preparar outros não lhe sobrava o
tempo! E o tempo veio a dar-lhe razão, porque na edição crítica
documental de Fátima, tudo o que saiu da pena do Padre Formigão
foi “aproveitado” e copiado, sendo considerado uma testemunha
privilegiada em todo o processo.
Particular relevo é dado nesta parte aos interrogatórios dos
pastorinhos, só em parte divulgados antes nos Episódios. Os
interrogatórios do Padre Formigão constituem uma parte muito
significativa desta obra, não só pelos três capítulos que ocupam,
mas também pelo seu conteúdo. Na sua primeira edição, o Padre
Formigão apresentou as respostas dos pastorinhos como raiz e
fonte das “Grandes maravilhas de Fátima”, mas por alguns receios
omitiu a sua publicação integral.
Sensível à importância do problema, Padre Formigão procura por
todos os meios legítimos chegar à verdade daquilo que os três
videntes diziam ter visto e ouvido. Agora, pela primeira vez, se
apresentam em obra de divulgação. A sua atitude de seriedade e a
complexidade do problema podem avaliar-se pelo volume I da
Documentação Critica de Fátima (DCF)4. Aqui encontramos textos
de interrogatórios não publicados antes (caps. 9, 10, 11).
A segunda parte é constituída por 12 capítulos, provenientes dos
artigos que o Padre Formigão, sob o pseudónimo de Visconde de
Montelo (V. de M.), publicou no jornal “Voz da Fátima”, para cuja
fundação e divulgação muito contribuiu. Aos 11 capítulos da 1ª
edição, cobrindo o arco de cinco anos, junta-se nesta o capitulo
sobre “A grande peregrinação de Outubro 1927”. Através dessas
crónicas ficamos a compreender a evolução e o crescimento físico,
eclesial e humano do fenómeno Fátima. Aí se espelha a fé de um
povo e o entusiasmo do jornalista, que tudo procura acompanhar,
seja junto à capelinha, seja nas grandes celebrações da missa e do
terço, seja nas procissões, etc.
Partindo do tema “Glória e Reparação”, fala da Padroeira, da
“Lourdes portuguesa”, das glórias da Mãe de Deus, da peregrinação
no 7º centenário de S. Francisco de Assis, da peregrinação
nacional, de peregrinações de Lisboa, do Porto e de outras
povoações, da Terra da Virgem. Nas Crónicas compraz-se a indicar
meios de transporte, nomes de personagens mais ou menos
ilustres, as origens das peregrinações nacionais e estrangeiras.
Além da Padroeira, um lugar especial é reservado ao Santo
Condestável, como o prova também a sua actividade pastoral em
Santarém.
São impressionantes as expressões com que o Padre Formigão
olha para a Cova da Iria: Cantinho do Éden, visão do céu, formoso
oásis do deserto da vida, jardim perfumado, terra sagrada e bendita,
pólo magnético das almas, o paraíso na terra, estância de mistério e
prodígios, imponente santuário, planalto sagrado, o primeiro
santuário nacional…
Depois de divulgar os sucessos maravilhosos, compraz-se a falar
do suave e místico encanto que se vive em Fátima, da patética
cerimónia da bênção dos enfermos, da adoração do Santíssimo, das
comunhões, das missas, das confissões, do jornal “Voz da Fátima”,
etc.
As suas informações constituem uma das fontes privilegiadas
para a história do Santuário; fala de arco de triunfo, pórtico
monumental, capela nova, fonte de água miraculosa, sineta do
santuário, megafones.
Além dos nomes de médicos e de outros personagens, o Padre
Formigão anota em cada peregrinação os nomes dos bispos (de
Leiria e de Beja) e dos sacerdotes que pregaram ou celebraram
missa (por exemplo: O santo dr. Cruz, Cónego Francisco Maria
Felix, Dr. Luis Castelo Branco, Dr. Manuel Marques dos Santos, P.
Paulo Durão Alves, P. Manuel Pereira da Silva, P. Luís de Sousa, P.
Manuel de Sousa, P. Agostinho Marques Ferreira, P. João Nunes
Ferreira, P. Manuel Dias Costa, P. Agostinho Pinto Veloso).
A terceira parte da primeira edição é toda dedicada à exposição
de dezassete casos de curas consideradas miraculosas, que o
Padre Formigão expõe ao mesmo tempo com entusiasmo e com
reserva. À semelhança de Lourdes, onde esteve em contacto com o
sector dos doentes, ele prestou particular atenção a esse campo,
seguindo de perto o posto de verificações médicas. Tendo em conta
o cuidado da Igreja em reconhecer a prova dos milagres, o Padre
Formigão limitava-se a descrever os casos como jornalista, e a
apresentá-los como homem de fé, aberto à força dos sinais, na
esperança de uma decisão acordada entre a autoridade eclesiástica
e o campo da ciência médica. Nos anos seguintes, à falta dessa
decisão e à ausência de uma verdadeira motivação para a
insistência na sua divulgação, optou-se pela sua omissão, na
presente edição do livro.
Correspondendo a esse espaço, insere-se variada documentação
fotográfica, anterior à data da publicação do livro em 1927. As fotos
da época reproduzem o espaço da Cova da Iria, os pastorinhos e
seus familiares, as multidões que aí acorriam nos dias 13 de cada
mês, a construção da Capelinha e o atentado de que foi objecto, o
pavilhão dos doentes, a fonte miraculosa, a celebração da missa e
procissões, etc.
O primeiro apêndice sobre “As promessas aos devotos do
Rosário” é repetição do que inserira no opúsculo Os acontecimentos
de Fátima (1923). O Padre Formigão aproveita a oportunidade de
publicar também, como segundo apêndice, os “Estatutos da
Confraria de Nossa Senhora do Rosário de Fátima”,
presumivelmente da sua autoria5.
Perante “uma matéria assaz delicada e melindrosa” (Prefácio), o
Padre Formigão sublinha que a autoridade eclesiástica seguiu o
caminho da prudência. Só depois de o bispo de Leiria, D. José
Correia da Silva, ter autorizado a celebração da missa nos dias 13
de cada mês6, o Padre Formigão deixou um apontamento sobre a
primeira missa em 13 de Outubro de 19217.
E perante a complexidade de tais acontecimentos, não deixa de
salientar que o bispo da diocese nomeou uma Comissão Canónica
para inquirir sobre os factos e para elaborar um relatório sobre os
mesmos, da qual Padre Formigão era elemento eminente.
Em todos os momentos e fases significativas do processo de
inquirição, o Padre Formigão está presente, não por decisão própria
mas por escolha do bispo de Leiria. Com a sua prudência, sentido
crítico, saber teológico e zelo pastoral, acompanhou sempre o
evoluir dos acontecimentos. Sem querer, ele viu-se no meio da
trama de tais eventos e, por causa dessa consciência, sentiu-se
impelido, não só a testemunhar o que tinha visto e ouvido, mas
também o que ia observando e reflectindo, a partir da sua própria
participação nas cerimónias que se iam sucedendo, entre a
surpresa e a admiração. Apesar de o fazer sob pseudónimo, ele é,
desde os primórdios, o alto-falante dos pastorinhos e o grande
cronista de tudo quanto ia sucedendo na Cova da Iria.
Perante isso, ele não encontra outra palavra senão a de
“maravilha”, para falar do que acontecera na Cova da Iria (1ª Parte)
e aí ia acontecendo (2ª e 3ª Partes). Na palavra “maravilha”, que ele
repete com frequência, cruzam-se os sentimentos de estupefacção,
mistério, alegria, comoção, e, com a repetição da palavra, ele acaba
por significar aquela vivência espiritual própria da contemplação
perante o inefável. Com base na ideia bíblica, que fala das
“maravilhas” operadas por Deus (cf. Sl 66,1-5; 107,24) e em Maria
(cf. Lc 1,49), Formigão dá expressão a esse sentimento de
maravilha, que está para além das curas físicas e dos milagres, e
que consiste na contemplação de um misterioso desígnio revelado
mediante a SS.ma Virgem a três crianças. Tratava-se de uma
realidade que ultrapassava a dimensão pessoal, para se tornar num
dado que envolvia a própria comunidade eclesial.
No meio de um ambiente adverso, condicionado até, por medidas
de oposição violenta e por desconfiança no seio da própria Igreja,
uma tal experiência do Padre Formigão não podia deixar de ser
proclamada pelos meios possíveis, para que pudesse ser ouvida e
vista por todos, crentes e não crentes. Era “o grande sinal” de Deus,
o esplendor da fé, experimentado como “maravilhas” (plural de
intensidade), que ele não podia calar!
Ao aproximar-se o centenário das Aparições, os textos deste livro
vêm, com a frescura e a verdade que os caracteriza, enriquecer o
conhecimento de tal fenómeno nas suas origens e permitir a
redescoberta do amor que o Padre Formigão nutria por tudo quanto
se relacionava com Fátima, reconhecendo a justiça do título que lhe
foi atribuído de “apóstolo de Fátima”. Assim, o seu apostolado
continua, contribuindo para uma vivência mais consciente e mais
maravilhada da mensagem de Nossa Senhora para o mundo
mediante os pastorinhos!
Os capítulos da 1ª parte do presente livro, citados segundo a
publicação original, são quase todos assinados por Visconde de
Montelo e foram recentemente reeditados numa nova colecção sob
o título Fátima, Os primeiros Escritos. Os capítulos da 2ª parte
encontram-se no jornal “Voz da Fátima”, a partir da sua fundação,
também com a assinatura V. de M. Uns e outros se encontram na
Documentação Crítica de Fátima, obra importante, mas de difícil
acesso ao grande público.
A presente edição fica a dever muito ao revdo Dr. Luciano Cristino
pelas suas sugestões. À sua dedicação pelas coisas de Fátima,
junta-se o preito da nossa gratidão.

Monsenhor Dr. Arnaldo Pinto Cardoso


Postulador da causa de canonização do
Padre Manuel N. Formigão (Visconde de Montelo)
PREFÁCIO

Mercê de reiteradas e cativantes solicitações de numerosos


amigos e de muitas outras pessoas, algumas delas desconhecidas,
que se nos dirigiram nesse sentido, resolvemos dar à estampa este
novo livro, como natural sequência e complemento do opúsculo “Os
episódios maravilhosos de Fátima”, que o público se dignou acolher
com tanto interesse e favor.
Esta obra singela e despretensiosa não aspira a ser um trabalho
completo, em que se pronuncie a última palavra sobre o assunto
que versa. É uma obra de ocasião, feita de peças diversas e
desconexas, redigidas sob a impressão de momento, e portanto
naturalmente falha de outra unidade além daquela que lhe imprime
tão-somente a intenção do autor, que quis oferecer aos seus leitores
uma vista retrospectiva de conjunto sobre algumas fases e aspectos
mais interessantes dos episódios maravilhosos de Fátima. Na longa
série de quadros, constituídos pelos quarenta e três capítulos do
opúsculo, não se expõem todos os factos ocorridos, não se
encadeiam sistematicamente os sucessos uns nos outros e não se
profere um juízo crítico definitivo.
Trata-se duma matéria, assaz delicada e melindrosa que, em
virtude da sua índole peculiar e da sua relação íntima com a vida
moral e os destinos do homem, tem logrado apaixonar
profundamente o país inteiro, despertando júbilo e entusiasmo nuns,
indiferença noutros, ódio e malquerenças nalguns, felizmente bem
poucos e de nula cotação intelectual e moral. A autoridade
eclesiástica competente, que já nomeou uma comissão de inquérito
aos acontecimentos de Fátima, ainda não se pronunciou sobre esta
questão controversa, sendo lícito a todos os católicos apreciá-la
como lhes aprouver e emitir livremente sobre ela o seu modo de
pensar. Por esse motivo, sem outra preocupação que não seja a de
encontrar e traduzir a verdade, o autor apresenta intencionalmente,
num feixe de notas e observações, mas sobretudo de factos, e
factos bem averiguados e de todo o ponto incontestáveis, o
fenómeno religioso, extraordinário e admirável, vulgarmente
chamado “o milagre de Fátima”.
Daí a variedade de estilo, a repetição de conceitos e reflexões, a
insistência em certos pontos que mais vivamente impressionaram o
espírito do autor, cujo papel, nesta obra, é mais o dum simples
cronista ou repórter, aliás consciencioso e imparcial, do que o dum
historiador ou dum crítico, no sentido legítimo e próprio da palavra.
Esta última missão, mais alta e de maior responsabilidade, reserva-
a ele para mais tarde, quando a Igreja tiver proferido em causa tão
momentosa, a sua sentença definitiva e inapelável. Só então verá a
luz da publicidade a obra em preparação “História crítica dos
acontecimentos de Fátima” em dois volumes: “As Aparições” e “As
curas miraculosas”. Entretanto Nossa Senhora do Rosário abençoe
este humilde tentame destinado a propagar o seu culto e a levar às
almas torturadas pala dúvida ou martirizadas por sofrimentos físicos
ou morais um pouco de luz, consolação e conforto.
Do precursor deste livro, o opúsculo “Os episódios maravilhosos
de Fátima”, de carácter particular, apenas algumas dezenas de
exemplares foram enviados para as livrarias, não se tendo
anunciado a sua publicação nem oferecido exemplares aos diversos
órgãos da imprensa periódica. Apesar disso, o ilustre escritor sr.
Conselheiro Fernando de Sousa (Nemo), director do diário católico
“A Época”, de Lisboa, dignou-se publicar no número daquele jornal
de 5 de Março de 1922, uma benévola apreciação desse modesto
trabalho que, aproveitando o ensejo, agradecemos
reconhecidamente e com a devida vénia passamos a transcrever. É
do teor seguinte:
“Os episódios maravilhosos de Fátima”, pelo Visconde de
Montelo. – É um opúsculo ilustrado de 27 páginas de tipo miúdo, em
que são pormenorizadamente narrados os factos extraordinários
ocorridos em 1917 em Fátima.
Três crianças asseveravam ter-lhes aparecido uma figura feminina
de sobrenatural beleza e ter-lhes dirigido a palavra pedindo a
construção duma capela em sua honra, recomendando penitência e
a recitação do rosário e declarando por fim que era Nossa Senhora
do Rosário. Acorreram a Fátima milhares de pessoas, afirmando
muitas terem visto um extraordinário aspecto do sol. Deram-se em
seguida curas extraordinárias. Afluíram ao lugar da aparição
multidões cada vez mais numerosas, intervindo as autoridades para
contrariar esse movimento pacífico, pela força.
O snr. Visconde de Montelo empreendeu a narrativa
circunstanciada e imparcial dos acontecimentos, submetendo o seu
opúsculo ao juízo da autoridade eclesiástica que autorizou a
impressão, considerando o seu trabalho um depoimento
consciencioso.
Aguardando que a Igreja se pronuncie sobre os factos ocorridos e
reconheça o seu carácter sobrenatural, julgamos interessante a
leitura dum relato bem escrito da pessoa que o censor eclesiástico
declara “possuir ciência sólida e sólida piedade”.
A prudente reserva da autoridade eclesiástica é a que nos cumpre
imitar, fugindo aos escolhos, quer da credulidade excessiva perante
narrativas de factos sobrenaturais quer da incredulidade sistemática
recusando testemunhos fidedignos. – Nemo”.8
I PARTE

AS APARIÇÕES DA SANTÍSSIMA
VIRGEM
1. A VISÃO DOS PASTORINHOS

Ninguém ignora hoje no nosso país que, há precisamente dez


anos, uma série de acontecimentos de todo o ponto extraordinários
e por enquanto inexplicáveis, se desenrolou em plena serra de Aire,
a pouco mais de dois quilómetros da aldeia de Fátima, num local
conhecido pela designação popular de “Cova da Iria” e situada à
beira da estrada, que liga Vila Nova de Ourém à histórica vila da
Batalha e à pitoresca e graciosa cidade do Lis.
No dia treze de Maio de 1917, três crianças, Lúcia de Jesus,
Francisco Marto e Jacinta Marto, respectivamente de dez, nove e
sete anos de idade, andavam apascentando um rebanho de
ovelhas, quando à hora do meio-dia solar, depois de rezarem em
comum o terço do rosário, como costumavam fazer, lhes apareceu
de repente sobre uma azinheira um vulto de donzela de celestial
beleza.
“A Aparição, diz o autor deste livro no seu opúsculo Os episódios
maravilhosos de Fátima, parecia não ter mais de dezoito anos de
idade. O vestido era duma alvura puríssima de neve, assim como o
manto, orlado de ouro, que lhe cobria a cabeça e a maior parte do
corpo. O rosto, duma nobreza de linhas irrepreensível e que tinha
um não sei quê de sobrenatural e divino, apresentava-se sereno e
grave e como que toldado duma leve sombra de tristeza. Das mãos,
juntas à altura do peito, pendia-lhe, rematado por uma cruz de ouro,
um lindo rosário, cujas contas, brancas de arminho, pareciam
pérolas. De todo o seu vulto, circundado dum esplendor mais
brilhante que o do sol, irradiavam feixes de luz, especialmente do
rosto, duma formosura impossível de descrever e superior a
qualquer beleza humana”9.
A Aparição pediu às crianças que voltassem àquele sítio, à
mesma hora, no dia treze dos meses seguintes, até Outubro.
Nesses seis meses a concorrência de devotos e curiosos ao local
das aparições foi aumentando consideravelmente de mês para mês.
Segundo os cálculos mais exactos, estiveram presentes trinta mil
pessoas em treze de Setembro e cerca de setenta mil em treze de
Outubro.
Durante as aparições estabelecia-se entre a Visão e a Lúcia um
diálogo, em que aquela fazia à inocente pastorinha diversos pedidos
e promessas.
Disse entre outras coisas que recomendasse a todos a recitação
do terço e o arrependimento dos pecados para aplacar a justiça
divina e suspender castigos iminentes, comunicou um segredo e
pediu que se erigisse uma capela em sua honra.
Sinais extraordinários no céu e fenómenos meteorológicos de
origem desconhecida atraíam as atenções da multidão enquanto
durava o colóquio misterioso, merecendo especial referência uma
densa e formosa nuvem branca que envolvia a azinheira e as
crianças e que só a certa distância se tornava visível.
Entre as promessas ou profecias há uma a que se não pode
negar um valor excepcional, porque da parte da Visão tinha
evidentemente por objectivo demonstrar a realidade das aparições e
o seu carácter sobrenatural. A Visão, logo nas primeiras aparições,
anunciou que no dia treze de Outubro havia de operar um milagre,
para que toda a gente acreditasse que era realmente a Senhora do
Rosário, como ela se intitulou nesse mesmo dia, que se dignava
aparecer mais uma vez em terras de Portugal, a fim de prodigalizar
graças e bênçãos a todos os que a ela recorressem.
E de facto, nesse dia entre todos assaz memorável, à hora do
colóquio habitual, em presença duma multidão inumerável,
composta de pessoas de todas as classes e condições sociais e
procedentes de todos os pontos do país, cujos sentimentos
traduziam, constituindo por isso mesmo a mais autêntica e legítima
representação nacional, um fenómeno estranho, um sucesso
inaudito, um prodígio tão estupendo que jamais se apagará da
memória dos que a ele tiveram a dita de assistir, se realizou no
lugar, onde, segundo tradições respeitáveis, o Santo Condestável,
que a Igreja nesse ano elevava às honras dos altares, esteve
orando na véspera da batalha de Aljubarrota. “O sol, como disse um
grande diário, tremeu, o sol teve nunca vistos movimentos bruscos
fora de todas as leis cósmicas”10, o sol girou vertiginosamente sobre
o seu eixo como a mais bela roda de fogo de artifício que se possa
imaginar, revestindo sucessivamente todas as cores do arco-íris e
projectando em todos os sentidos feixes de luz dum efeito
surpreendente. E este fenómeno, astronómico ou meteorológico,
que os aparelhos dos observatórios não registaram, repetiu-se por
três vezes distintas, durando no seu conjunto cerca de dez minutos.
A nova de acontecimentos tão maravilhosos foi logo transmitida
pela imprensa de grande circulação a todos os ângulos do país e
pelo telégrafo até aos confins do mundo.
Desde então a torrente caudalosa das multidões tem-se
despenhado ininterruptamente sobre aquela estância privilegiada. A
fama de curas assombrosas de vítimas de toda a sorte de
enfermidades, de conversões admiráveis de ímpios e descrentes de
todas as classes sociais, da morte trágica de criaturas desvairadas
pelo sectarismo anti-religioso, que a pretexto das aparições
ousaram blasfemar da Virgem bendita, concorreu poderosamente
para engrossar cada vez mais essa torrente, provocando
manifestações de Fé e piedade em nada inferiores às dos célebres
santuários consagrados à augusta Mãe de Deus e dos homens.
Doravante nada será capaz de deter a marcha vitoriosa da
formidável vaga humana que, num vaivém contínuo, se precipita em
catadupas gigantescas sobre os cumes áridos e escalvados da
serra de Aire.
As potências infernais, utilizando como instrumentos cegos e
inconscientes alguns raros indivíduos duma inferioridade mental
incompatível com o progresso e a civilização moderna, têm
envidado os maiores esforços e lançado mão de todos os meios,
ainda os mais ignóbeis, para obstar à repetição dessas cenas
sublimes e comoventes, que atestam irrecusavelmente a pujante
vitalidade religiosa dum povo inteiro.
Em Março de 1922 um grupo de ... infelizes destruiu com bombas
de dinamite a capelinha erigida pela piedade popular em
comemoração das aparições11.
Por vezes a autoridade civil, ludibriada por essas pessoas, tem
prestado, embora sempre de má vontade em virtude do ridículo a
que se expõe esgrimindo contra moinhos de vento, um concurso
valioso mas contraproducente à efectivação dos seus planos
maquiavélicos, que pretendem em vão coonestar com o pretexto de
que as manifesta-ções de Fátima revelam ou pelo menos significam
o que quer que seja de hostil às instituições vigentes. Nada há mais
absurdo nem mais pueril do que tão ridículo pretexto. Toda a gente
sabe que essas manifestações são de índole puramente religiosa,
não tendo havido jamais a mínima perturbação da ordem pública, a
mais ligeira nota discordante, um acto menos correcto ou menos
deferente, para com quem quer que fosse.
A autoridade eclesiástica durante quatro anos manteve-se
inquebrantavelmente numa atitude de benévola expectativa,
resistindo a instantes solicitações de toda a ordem que, aliás com o
maior respeito e na melhor das intenções, lhe eram feitas pelo
elemento popular e por entidades categorizadas, das opiniões
políticas mais divergentes, para intervir num pleito de tanta
importância, já em si mesmo, já pelas suas consequências, e decidi-
lo com o ditame seguro e incontestável do seu sagrado e venerando
magistério.
Em 1922, porém, julgou chegado o momento oportuno de quebrar
o seu silêncio e fê-lo com uma prudência e uma sabedoria
admiráveis, de que só a Igreja conhece o segredo, autorizando o
culto público de Nossa Senhora na Cova da Iria, mas reservando-se
o juízo definitivo sobre o carácter das aparições e a origem e
natureza dos fenómenos astronómicos e meteorológicos ali
sucedidos desde treze de Maio até treze de Outubro de 1917, assim
como das curas extraordinárias atribuídas à intercessão de Nossa
Senhora do Rosário de Fátima. Ao mesmo tempo nomeava uma
comissão incumbida de proceder a um longo e rigoroso inquérito e
de elaborar um relatório fundamentado depois de ouvir o
depoimento de testemunhas fidedignas e a opinião de peritos
idóneos e notáveis pelo seu critério, inteligência e saber.
Hoje, dez anos após as aparições, os trabalhos da comissão
canónica estão quase concluídos, e tudo leva a crer que dentro em
breve seja proferida a sentença definitiva, satisfazendo-se assim a
expectativa ansiosa de muitos milhões de almas, sedentas de ideal,
dominadas pela nobre paixão da verdade e do bem12.
2. LOURDES E FÁTIMA

Meu caro Amigo:


Acuso a recepção da tua estimada carta em que me fazes um
pedido que parece quase uma intimação, tão veementes e
categóricos são os termos em que o formulas.
Apelas para a minha consciência e não hesitas em afirmar
peremptoriamente que me incumbe o rigoroso dever de tornar do
domínio público o que sei acerca dos acontecimentos de Fátima.
Permite-me que discorde da tua opinião. Os episódios
extraordinários que há dezasseis meses a esta parte se têm
desenrolado naquela humilde povoação alcandorada num dos
contrafortes da serra de Aire, revestem, pela sua natureza e pelas
suas consequências, um carácter tão delicado e tão melindroso que
considero uma temeridade indesculpável ocupar-me deles
prematuramente.
Não ignoras que me interessaram sempre os factos miraculosos
de Lourdes, cuja natureza está hoje perfeitamente definida perante
a ciência, sempre exigente, e perante a Igreja, ainda mais exigente
do que a ciência. Nenhum espírito recto, embora céptico ou
incrédulo, ousa contestar a índole preternatural desses factos.
Em 1906 trezentos e quarenta e seis médicos franceses, entre os
quais numerosos e ilustres professores de Universidades e
membros da Academia de Medicina, proclamaram a sua crença nos
milagres de Lourdes, assinando uma declaração nesse sentido e
autorizando a publicação dos seus nomes. Convém notar que essa
declaração via a luz da publicidade precisamente na época em que
as peregrinações à Jerusalém do Ocidente eram alvo de violentos
ataques, que não se entibiavam sequer perante o fenómeno
estupendo do milagre passado ao estado de permanência, na frase
tão expressiva como rigorosamente verdadeira, do Dr. Verger,
professor da Faculdade de Medicina de Montpellier, que estudou
conscienciosa e profundamente a história das curas miraculosas.
Na cidade privilegiada da Virgem passei semanas e meses,
durante alguns anos, no intuito porventura pouco louvável de ver,
apalpar e, se assim me posso exprimir, surpreender o sobrenatural.
Desempenhando alternativamente, na qualidade de simples
soldado voluntário, os serviços honrosos e disputados de maqueiro,
servente das piscinas, enfermeiro e correspondente particular dum
dos primeiros diários católicos do nosso país, tive por diversas
vezes ocasião de presenciar as curas mais assombrosas realizadas
instantaneamente e assistir à verificação e confirmação dessas
curas, feitas por médicos competentes, muitos deles insuspeitos, no
Bureau des Constatations Médicales.
Conheces tão bem como eu a história maravilhosa dos
acontecimentos de Lourdes.
Sabes como eles foram combatidos logo desde o início com um
encarniçamento verdadeiramente providencial, não só pelos
inimigos declarados da Religião e da Igreja, mas ainda por
numerosos crentes, aliás bem intencionados. Os próprios
representantes da autoridade civil, desde o barão de Massy até ao
comissário de polícia Jacomet, promoveram a guerra mais
formidável de que há memória a essas manifestações irrecusáveis
do sobrenatural, julgando zelar dessa forma os interesses
superiores da Religião do Estado. Houve momentos até durante as
aparições, em que aqueles mesmos que já estavam intimamente
convencidos da realidade delas, sentiram a sua fé ou
completamente perdida ou, pelo menos, profundamente abalada
nos seus fundamentos. É que às vezes a Providência, nos seus
desígnios insondáveis, compraz-se em envolver no véu do mistério
as suas obras mais portentosas para castigo dos ímpios e provação
dos crentes. A verdade impôs-se, porém, a breve trecho, com a
força indomável da evidência, enchendo de consolação os bons e
de confusão os maus.
Quatro anos depois das aparições, a autoridade eclesiástica, pela
boca de Monsenhor Bertrand-Sévère, bispo de Tarbes, proferia o
seu veredictum, que reconhecia nos factos de Lourdes uma
intervenção sobrenatural e divina.
A partir desse momento, escritores de grande envergadura, desde
Henri Lasserre, o historiador de Nossa Senhora de Lourdes, Barbet,
Estrade e o dr. Dozous, testemunhas das aparições, até ao dr.
Boissarie e ao cónego Bertrin, fazem a apoteose da Virgem de
Massabielle, descrevendo com a exactidão mais escrupulosa os
sucessos portentosos de que as margens do Gave têm sido teatro
desde 1858 até aos nossos dias.
Mas, se é lícito aproximar pelo pensamento Lourdes e Fátima e
cotejar os acontecimentos miraculosos da formosa cidade dos
Pirenéus com os factos extraordinários sucedidos na humilde
povoação da serra de Aire, declaro com franqueza que não
reconheço em mim a autoridade, o critério e a competência
indispensáveis para tratar condignamente destes últimos, como
qualquer dos escritores acima nomeados se ocupou dos primeiros.
Acresce que a autoridade eclesiástica tem guardado absoluto
silêncio sobre o assunto, sinal evidente de que os elementos de
informação que possui não a habilitam, por enquanto, a pronunciar-
se num sentido favorável à realidade sobrenatural das aparições.
Mas tu pedes-me que, sem embargo disso, narre os factos de que
tenho conhecimento e exponha a minha opinião acerca deles.
Fá-lo-ei tão somente para satisfazer o pedido dum amigo que
muito prezo e estimo. Se julgares, pois, que vale a pena interessar a
opinião pública nestas coisas, conquanto não estejam ainda de todo
esclarecidas, e precisamente por esse motivo, e que a consciência
católica tem direito a que não se lhe oculte o que se passa em
Fátima, mesmo com o risco de se escandalizar aqueles que,
entrincheirados na torre de marfim da sua sabedoria e da sua
prudência, crêem zelar superiormente os interesses da Igreja,
recusando-se a estudar estes factos ou negando-lhes a priori todo o
valor, sob pretexto de que a Religião Católica não precisa de novas
provas para abonar a sua origem divina, o que aliás é verdade, faz
como melhor entenderes e publica o que te parecer conveniente.
Devo, porém, advertir-te desde já de que, mercê das múltiplas
ocupações que me absorvem quase o dia inteiro, escrevo estas
cartas currente calamo, não sendo, por isso, de admirar que falte à
minha exposição, singela e despretensiosa, aquele nexo lógico e
aquela correcção de frase que seria para desejar e que
evidentemente não pode ter.
Um só pensamento me norteia: o de dizer a verdade.
Um só desejo me abrasa: o de conhecer toda a verdade. Faça-se
luz!
E por hoje basta.

14-IX-918
Teu amigo dedicado
V. de M.
3. UMA CURA EXTRAORDINÁRIA

Meu caro Amigo:


A questão da origem e natureza dos acontecimentos
extraordinários de Fátima, como eu já insinuava na minha última
carta, é uma questão completamente aberta.
A Igreja não se pronunciou ainda sobre eles. O campo está, pois,
patente a todas as discussões. Qualquer pensador tem o direito de
apreciar, como melhor lhe aprouver, esses acontecimentos,
negando a sua procedência sobrenatural, pondo-a em dúvida ou
admitindo-a, que a ninguém assiste o direito de censurar.
O católico não possui menos liberdade de apreciação e de crítica
no exame desta matéria do que o ateu. É por isso mesmo que todas
as opiniões sinceras merecem deferência e respeito; sobretudo num
pleito como este, que ninguém conseguiu até hoje resolver
satisfatoriamente, é justo que todos respeitem, mesmo que a não
perfilham, a conclusão a que chegar um estudioso na investigação
que conscienciosamente fizer.
Os sucessos de Fátima constituem um fenómeno
incontestavelmente digno de estudo.
Numa época em que a ciência atingiu, por assim dizer, o seu
apogeu, seria deveras para lamentar que esse fenómeno múltiplo e
complexo não se impusesse à atenção daqueles que, pelo seu
critério e pela sua competência, estão em condições de poder
estudar com proveito e apreciar devidamente a sua origem e
natureza.
Eu sei que ilustres professores dos nossos mais altos institutos
científicos continuam dedicando a sua esclarecida atenção ao
estudo dos fenómenos meteorológicos sucedidos no dia treze de
cada mês desde Maio a Outubro e ao grandioso fenómeno solar
presenciado por mais de cinquenta mil pessoas, no dia treze de
Outubro próximo findo, num dos planaltos da orla setentrional da
serra de Aire.
Mas é absolutamente indispensável que, no interesse da verdade,
seja ela qual for, todos contribuam com a sua quota parte para a
solução deste difícil problema, até hoje insolúvel, para a decifração
deste singular enigma, até hoje impenetrável. É o que intento fazer,
escrevendo-te esta carta e autorgando-te a liberdade de publicares
o que te parecer conveniente.
Posto isto, era propósito meu principiar hoje a narração histórica
dos factos ocorridos em Fátima, se não me perguntasses na tua
última carta se já se tinham verificado algumas curas extraordinárias
que abonassem dalgum modo a origem sobrenatural desses factos.
Para satisfazer a tua legítima curiosidade, passo a descrever uma
das muitas curas de que tenho conhecimento, consumada e,
segundo parece, definitivamente assegurada no dia treze de
Outubro no próprio local das aparições, aonde desde então, sem
embargo das violências brutais e sacrílegas do fanatismo anti-
religioso, sempre inimigo da verdadeira liberdade de crença,
concorrem cada mês centenas e milhares de pessoas de todas as
classes e condições sociais e de todos os pontos do país, numa
romagem piedosa e inofensiva que edifica, comove e encanta.
Maria do Carmo, de quarenta e sete anos de idade, natural do
lugar do Arnal, freguesia de Maceira, concelho de Leiria, casada
com Joaquim dos Santos, havia cinco anos que sofria duma
enfermidade bastante grave, que apresentava todos os sintomas
característicos de tuberculose. Na primeira fase da doença
experimentava, de vez em quando, dores, aliás não muito fortes, na
cabeça, no estômago e nos intestinos
Em princípio de 1916 as dores agravaram-se dum modo
extraordinário. Eram contínuas e difíceis de suportar. Sentia-as
então também nas costas e, ainda com mais intensidade, no peito.
Ao mesmo tempo começou a padecer da falta de ar.
As mãos, os pés e o ventre incharam-lhe imenso. Suspeitava-se
que tivesse um tumor no útero. Definhava e emagrecia a olhos
vistos. Três meses depois não parecia a mesma pessoa, porque, de
nutrida que era, tornara-se magra em extremo. Não podia pôr à
cabeça nenhum objecto um pouco pesado pelas tonturas que isso
lhe ocasionava. Tinha com frequência vontade de vomitar, embora
não vomitasse.
Quando tomava algum alimento e enquanto durava a digestão,
aumentavam as dores de cabeça. As dores de estômago quase que
não permitiam dormir. Para não passar pior, comia muito pouco.
Sustentava-se exclusivamente ou quase exclusivamente de leite.
Uma tosse funda e seca atormentava-lhe sem cessar o peito. A
saliva sabia-lhe muitas vezes a sangue. Todos os vizinhos estavam
persuadidos de que a infeliz se achava tuberculosa..Ela própria não
deixava aproximar de si os filhos com medo do contágio.
O curandeiro da terra, que conhecia perfeitamente a gravidade do
mal, estando um dia a conversar com alguns amigos e vendo-a
passar próximo, disse-lhe, num tom de convicção que não deixava
margem a dúvidas, que ela estava irremediavelmente perdida, não
devendo viver mais de quinze dias.
Passava-se isto em meados de Julho do ano próximo findo
[1917]. Debalde procurou lenitivo para os seus incómodos nos
recursos da medicina. Pobre como era e não havendo médico
senão a alguns quilómetros de distância, na Batalha, foi ali só uma
vez com o marido consultar o distinto e hábil clínico Dr. Moreira
Padrão. Os remédios que esse facultativo aceitou não lhe
produziram alívio algum.
Nestas circunstâncias não alimentava nenhumas ilusões acerca
da gravidade do seu estado, e aguardava resignadamente a morte.
Por essa ocasião corria de terra em terra, dum extremo ao outro
do país, a nova consoladora de que a Virgem Santíssima, desde o
mês de Maio precedente, aparecia todos os meses no dia treze a
umas humildes criancinhas que apascentavam gado num local
vulgarmente denominado “Cova da Iria” pertencente à freguesia de
Fátima, concelho de Vila Nova de Ourém, a sete léguas de distância
de Maceira. Um clarão de suave esperança iluminou subitamente o
seu espírito abatido e amargurado. Cheia de Fé, invoca a Mãe de
Deus e, para obter por sua intercessão a cura tão suspirada, faz a
promessa de ir quatro vezes a Fátima a pé e descalça. Escolheu o
dia treze de Agosto para iniciar o cumprimento da sua promessa.
Mas o marido, aliás homem temente a Deus, considerando tal
empresa uma verdadeira temeridade, opôs-se à sua ida. “Nós
somos pobres, dizia ele à mulher, não dispomos de recursos para
alugar um carro em que possas efectuar a jornada sem perigo e
com probabilidade de lá chegares viva. Tem paciência, mas não te
deixo ir.”
Na verdade o seu estado de fraqueza era tão grande que se
cansava imenso quando caminhava, por pouco que fosse. A cerca
de duzentos metros da casa de habitação possui um pequeno
prédio rústico. Havia muito tempo que era raro lá ir e, quando o
fazia, precisava de se sentar um sem número de vezes à beira do
caminho para descansar. As filhas faziam toda a lida da casa,
indicando e distribuindo a mãe os diversos serviços, sem poder
ajudá-las, como desejava, por lhe minguarem as forças. Insistiu,
porém, tanto com o marido que este, vendo a sua inabalável
confiança, acedeu à suas porfiadas instâncias e resolveu-se a
acompanhá-la.
Veio finalmente o dia treze de Agosto tão ardentemente esperado.
À uma hora da madrugada desse dia a doente pôs-se a caminho em
companhia do marido, que continuava a considerar semelhante
jornada como uma temeridade e uma loucura. Descansou várias
vezes no percurso.
Eram nove horas da manhã, quando chegou ao local das
aparições. Estava bastante extenuada, sentia muitas dores. Toda
ela, segundo a sua própria expressão, era uma dor. Alguns instantes
depois, com grande surpresa, experimentou notáveis alívios.
Sentou-se à sombra duma grande e copada azinheira, onde
tomou algum alimento, e ali se conservou até às três horas da tarde,
pondo-se então novamente em marcha. No regresso as dores eram
menos intensas e não se sentia tão fatigada como à ida.
De dia para dia as melhoras acentuaram-se cada vez mais.
Entretanto começou a tomar alimentos sólidos, mas o seu principal
alimento continuava a ser o leite. Em treze de Setembro voltou pela
segunda vez a Fátima, não lhe causando a viagem tanto incómodo
como em treze de Agosto. De cada vez que lá ia, rezava o terço do
rosário, tanto na ida como no regresso, não conversando nem
prestando atenção às conversas das pessoas que a
acompanhavam.
A partir desse dia melhorou ainda mais.
Já trabalhava um pouco em casa e ia com menos dificuldade à
fazenda. A treze de Outubro partiu de manhã cedo, como das outras
vezes, mas, antes de chegar a Fátima, surpreendeu-a a memorável
chuva torrencial que assinalou aquele dia de Outono.
Apesar de se ter molhado toda, ensopando a chuva a roupa que
vestia, sentiu-se perfeitamente bem no local das aparições. As
dores desapareceram para não mais voltarem.
A intumescência do ventre e dos membros superiores e inferiores
desapareceu igualmente como por encanto. Tendo regressado a
casa, desde esse dia até hoje come de tudo, a qualquer hora do dia
ou da noite, e, por mais indigestos que sejam os alimentos, não
experimenta o mais leve incómodo. Não tornou a sentir falta de ar.
Trabalha muito e pode pôr à cabeça fardos pesados, como antes da
doença. Nunca mais teve tosse. Está gorda, sente-se forte e goza
de excelente saúde. Jamais, em tempo algum da sua vida, se
lembra de ter passado tão bem.
No dia treze de Novembro foi de novo a Fátima, a fim de
agradecer a sua cura à Virgem do Rosário.
Eis a narração mais exacta possível da doença e da cura de
Maria do Carmo redigida em face do processo verbal a que procedi
de motu-próprio no dia doze de Fevereiro, em Maceira, na presença
de várias testemunhas fidedignas e nomeadamente do marido, os
quais todos confirmaram a exactidão do seu depoimento. Não cito
nomes de testemunhas, porque todos os habitantes da freguesia
estão intimamente convencidos de que a cura daquela enferma não
se pode explicar de modo nenhum pela acção das forças naturais.
Poder-se-á considerar realmente essa cura como sobrenatural?
Não me compete a mim dizê-lo: é à ciência e sobretudo à Igreja.
Será fácil estabelecer com segurança o seu carácter sobrenatural,
depois de decorridos tantos meses e não tendo havido
provavelmente uma observação médica tão minuciosa como
convinha? Ignoro-o, nem com isso me preocupo. O meu intuito é
simplesmente chamar a atenção das pessoas sérias e cultas,
quaisquer que sejam os seus princípios religiosos ou as suas
opiniões acerca da índole dos acontecimentos de Fátima, para estes
e outros factos que se me antolham dignos dum estudo especial,
porque talvez possam contribuir para se determinar claramente a
natureza desses acontecimentos. Serão eles o resultado de meras
ilusões dos sentidos, especialmente da fantasia? Serão uma
manifestação habilmente arquitectada pelo poder das trevas? Serão
obra de Deus? É o que importa averiguar, sem ideias preconcebidas
e sem parti pri, como convém a um crítico consciencioso e imparcial.

30-IX-918
Teu amigo dedicado
V. de M.
4. NOTAS E COMENTÁRIOS

Meu caro Amigo


Espero da tua nunca desmentida benevolência que releves o meu
prolongado silêncio acerca dos já célebres acontecimentos de
Fátima.
A terrível pandemia bronco-pneumónica que, como um flagelo
inexorável da Justiça Divina, assolou o mundo inteiro, ceifando mais
vidas humanas do que a própria grande guerra europeia, obrigou-
me a interromper, mau grado meu, a série das minhas
correspondências sobre esse momentoso tema, para me dedicar
inteiramente, como me cumpria, ao exercício da minha profissão,
salvando das garras da morte centenas de existências preciosas.
Seguiram-se os sucessos políticos que todos conhecemos e que tão
lamentavelmente convulsionaram o nosso país, perturbando por
muito tempo a normalidade da vida social.
Veio por último, ordenada pela autoridade civil local, a suspensão
arbitrária do semanário “A Guarda”, onde mandavas publicar as
minhas singelas e despretensiosas cartas. Por todas as razões
expostas só hoje volto a pegar na pena para reatar o fio da nossa
conversa epistolar. A mais comezinha delicadeza impunha-me o
dever imperioso de te dar estas explicações antes de começar a
ocupar-me de novo dum assunto que tão grato é ao coração de
muitas dezenas de milhares de portugueses.
Que se passou em Fátima durante o longo período decorrido
desde a publicação da minha última carta?
Limitar-me-ei, por hoje, a registar apenas certos factos, que
merecem especial menção, porque estão intimamente relacionados
com outros factos anteriores, de que são porventura a consequência
e a contraprova.
Um dos personagens do maravilhoso drama da serra de Aire, o
humilde e inocente pastorinho, já não pertence a este mundo.
A epidemia bronco-pneumónica, quase a declinar, roçou com a
sua asa negra a pobre criança, ferindo-a de morte. A mais nova das
videntes, irmã do finado, encontra-se actualmente no hospital de
Vila Nova de Ourém com uma pleurisia supurante, sendo convicção
dos médicos que está irremediavelmente perdida.
Outro facto digno de registo é que a capela mandada erigir pela
Aparição, no local em que tantas vezes se manifestara aos humildes
pastorinhos, já se acha concluída. Edificada à beira da grande
estrada distrital que, partindo de Vila Nova de Ourém e passando
pela Batalha, vai terminar em Leiria, ela semelha, na sóbria
correcção das suas linhas um marco gigantesco, a cuja sombra se
senta por instantes o viandante, cansado da peregrinação da vida, a
fim de recobrar os alentos e as energias de que carece para chegar
são e salvo à pátria ardentemente suspirada.
A concorrência de piedosos romeiros àquela estância privilegiada,
longe de diminuir, tem aumentado consideravelmente de dia para
dia.
Sobretudo nos Domingos e dias santificados é bastante
comovente o espectáculo que ali se desenrola aos olhos do
observador. Ainda no dia treze do corrente mês, como tive ocasião
de ver com os meu próprios olhos, milhares de peregrinos e
numerosas peregrinações vindas de terras distantes e até doutros
concelhos visitaram a devota capela. Ali se ouve o brando ciciar das
preces que se elevam fervorosas para o Céu, enquanto os ecos
repercutem ao longe o som mavioso dos cânticos populares em
honra da augusta Mãe de Deus. Rara é a hora do dia ou da noite
em que esteja completamente deserto o local das aparições.
Notícias de curas extraordinárias, de prodígios assombrosos, de
inúmeras e admiráveis graças espirituais e temporais obtidas por
intercessão de Nossa Senhora do Rosário, circulam de grupo em
grupo e todos à porfia procuram os que se julgam privilegiados da
Virgem para os conhecer pessoalmente e ouvir da sua boca a
narração exacta e pormenorizada dos factos reputados miraculosos.
Das paredes interiores da graciosa capela pende uma infinidade de
ex-votos, aos quais se vêm juntar todos os dias novos testemunhos
da gratidão das almas favorecidas com as mercês do Céu.
O clero, cuja atitude nesta matéria tem sido superior a todo o
elogio, acatando com o maior escrúpulo as determinações da
autoridade eclesiástica, continua a guardar a mais prudente reserva,
conservando-se alheio a todas as manifestações de Fé e piedade
que se realizam no local das aparições.
Na íntima convicção de que, se os acontecimentos de Fátima têm
a Deus como origem, hão-de desafiar triunfalmente a hostilidade
dos seus inimigos, as vicissitudes do tempo e a contradição das
coisas humanas, aguarda com serenidade o futuro, sem querer de
modo algum comprometer o seu bom nome e a dignidade da Igreja,
intervindo na consolidação duma obra, que decerto há-de ruir por
terra, se as suas causas forem de ordem meramente natural.
Na verdade, são mais que suficientes os motivos de credibilidade
que tornam a adesão do espírito humano aos dogmas da Fé e aos
princípios da moral cristã um acto racional e justo. A Religião
Católica, para se fazer abraçar pelas inteligências rectas e pelos
corações bem formados, não precisa que se repitam os prodígios
dos primeiros tempos do Cristianismo.
A própria Lourdes, com os seus surdos que ouvem, os seus
cegos que vêem, os seus mudos que falam, os seus paralíticos que
andam, numa palavra, com os seus portentosos milagres,
cientificamente demonstrados e absolutamente incontestáveis, que
são a admiração e o assombro do mundo inteiro, era-lhe
perfeitamente dispensável.
Eis o que me oferecia dizer-te a propósito dos sucessos de
Fátima, depois do meu longo silêncio de quase dez meses.
Numa próxima carta recomeçarei a descrição dos episódios
maravilhosos de que é teatro a encantadora povoação, santificada
pela presença e pelas orações do Santo Condestável na véspera da
memorável batalha de Aljubarrota.

24-VII-919
V. de M.
5. O DIA 13 DE AGOSTO DE 1917

Meu caro Amigo:


Era nos meses de Junho e Agosto de há dois anos. Os jornais de
grande circulação, pela pena dos seus correspondentes em Torres
Novas e Vila Nova de Ourém, publicavam notícias pormenorizadas
de acontecimentos assombrosos sucedidos em Fátima no dia treze
desses meses.
Esses correspondentes, criaturas decerto honestas e simpáticas,
mas sem as habilitações científicas necessárias para poderem
apreciar com justeza os referidos acontecimentos, comentavam-nos
ineptamente, à luz dos preconceitos da escola liberal e racionalista
hauridos no meio ignaro em que viviam, e imperfeitamente
assimilados. Excluíam a priori, como é claro, a existência e até a
mera possibilidade duma intervenção divina. Todas as hipóteses,
ainda as mais inverosímeis, que tentassem explicar dalguma forma
a origem e natureza de sucessos extraordinários, eram de bom
grado aceites, desde o momento em que prescindissem por
completo do sobrenatural.
O correspondente do jornal “O Século”, no número de vinte e três
de Julho, depois de dizer que no dia treze desse mês em Torres
Novas, vila abundante em alquilarias, não havia sequer um carro
para alugar, chegando mesmo a fechar bastantes estabelecimentos,
acrescenta que no local das aparições se encontravam reunidos
alguns milhares de pessoas e que se ouviu um ruído semelhante ao
ribombar do trovão, prorrompendo as crianças num choro aflitivo,
fazendo gestos epilépticos e caindo depois em êxtase, e conclui
declarando que o seu parecer é que se trata duma premeditada
especulação financeira, cuja fonte de receita existe nas entranhas
da serra em qualquer manancial de águas minerais, recentemente
descobertas por algum indivíduo astucioso que à sombra da religião
quer transformar a serra de Aire numa estância miraculosa como a
velha Lourdes.
O correspondente do “Diário de Notícias” se a memória não me
falha, pretende achar na sugestão a explicação cabal desses factos.
Entretanto a notícia das aparições espalha-se por todo o país com
a rapidez do relâmpago.
O nome de Fátima é pronunciado como uma esperança fagueira
de bênçãos e graças celestes por centenas de milhares de lábios
dum extremo ao outro de Portugal. Os estranhos sucessos
passados nesse recanto desconhecido da Estremadura atraem dia a
dia àquele local um sem número de pessoas de todas as classes e
condições sociais. A sede do sobrenatural apodera-se dum povo
fundamentalmente cristão, que uma longa e intensa propaganda de
doutrinas deletérias não lograva perverter.
A perseguição acintosa feita durante estes anos à crença herdada
de seus antepassados, longe de obliterar nele o sentimento
religioso, avivou-o e fortaleceu-o, contra a expectativa dos inimigos
da Religião, que são simultaneamente inimigos da Pátria.
O peso das desgraças que oprimiam os portugueses obrigava-os,
como em todas as épocas de grandes calamidades nacionais, a
levantar os olhos do pó da terra e a volvê-los para o céu, donde
unicamente esperavam o remédio para tantos e tão graves males.
Por outro lado a hipótese duma mistificação, adrede preparada por
pessoas interessadas, era instintivamente repelida pelo bom senso
da parte sã da população do país.
Não é, pois, de admirar a afluência enorme de peregrinos que se
verificou em Julho e Agosto, quando a notícia das aparições se
tornara mais conhecida. Sobretudo os concelhos de Leiria, Vila
Nova de Ourém e Torres Novas, quase que se despovoaram.
O espectáculo da concorrência do dia treze de Agosto foi
sobremaneira comovente. Eis como o descreve uma testemunha
ocular e fidedigna.
“Depois de descansar um pouco, fui andando devagar para o local
das aparições.
Quando lá cheguei, estavam muitas pessoas rezando e cantando
versos a Nossa Senhora em torno do arbusto, onde se verificam as
aparições. Esse arbusto é uma pequena azinheira que está já
reduzida ao tronco, tantos são os ramos que lhe têm tirado.
Entretive-me alguns momentos a conversar com diversas pessoas
das minhas relações. Já lá se via a essa hora muita gente.
Eu e alguns amigos meus, que entretanto chegaram e vieram
juntar-se comigo, fomos sentar-nos à sombra duma árvore, e ali nos
conservámos bastante tempo. Então é que começou a afluir imenso
povo. De todas as direcções vinham inúmeras pessoas, mas
principalmente dos dois lados da estrada distrital é que era uma
verdadeira enchente.
Veículos de todos os tamanhos e de todos os feitios sucediam-se
uns aos outros sem interrupção. Vinha gente a pé, a cavalo e de
bicicleta. A vista dos carros espalhados pela encosta, do gado a
pastar à sombra das árvores, da longa série de automóveis na
estrada, dos montes gigantescos de bicicletas, constituía um
espectáculo sobremodo interessante. Pelo meio dia astronómico,
hora certa das aparições, comprimiam-se nesse local alguns
milhares de pessoas.
Eu não sou versado na ciência do cálculo, mas parecia-me, e era
a opinião geral, que se achavam presentes mais de cinco mil almas.
Estavam todos aguardando ansiosamente a chegada das crianças,
que já tardavam.
Entretanto aparece um rapaz com a triste notícia de que o
administrador de Vila Nova de Ourém, depois de ter dito aos pais
das crianças, a quem tinha ido visitar, que as levava de boa vontade
na sua charrette para o local das aparições, os ludibriara
miseravelmente, fazendo subir as crianças para a charrette e
fugindo com elas para Ourém. Com efeito assim tinha sucedido.
Esse homem, perverso e cobarde, atraiçoara todo aquele povo.
Parece, porém, ter havido em tudo isto uma intenção especial da
Providência, porque aquele lugar, em que passa constantemente
muita gente, estava quase deserto àquela hora, sendo únicas
testemunhas oculares o prior de Fátima e alguns amigos que
estavam na varanda da residência paroquial e com quem pouco
antes o administrador estivera conversando. O povo, quando soube
o que se tinha passado, ficou indignadíssimo. Eu e alguns amigos
voltámos logo para a povoação de Fátima. Ali informamo-nos
minuciosamente do modo como as coisas se tinham passado.
Daí a poucos momentos chegaram uns homens muito contentes
dizendo que Nossa Senhora tinha aparecido. Dirigi-me
imediatamente a toda a pressa para o local. As estradas vinham já
cheias de gente que comentavam o assombroso facto. A cada grupo
perguntava o que tinham visto. Todos a uma voz afirmavam que
tinham ouvido um trovão e visto junto da carrasqueira um relâmpago
e uma nuvem formosíssima, que se elevou nos ares e a breve
trecho desapareceu. Numa palavra, todos tinham ficado satisfeitos
e, pelo que ouvi dizer a vários indivíduos de Vila Nova de Ourém, o
administrador parece ter arriscado muito a vida com o rapto das
crianças. Algumas pessoas instruídas e ponderadas disseram que,
embora se tivessem verificado alguns sinais misteriosos, não havia
prova suficiente da sua sobrenaturalidade. Outras asseguravam que
não haviam notado nada de anormal. Outras, finalmente,
proclamavam que, depois de se ter falado com as crianças, não se
podia duvidar da realidade das aparições”.
Eis como numa carta a um amigo, escrita por essa ocasião, o
signatário narra, a largos traços e com uma singeleza encantadora,
o que se passou no dia da quarta aparição. De todos os períodos da
carta transpira uma sinceridade sem igual, tanto mais para apreciar
quanto é certo que essa carta não era destinada à publicidade.
Julguei dever transcrevê-la para fazeres uma ideia aproximada da
importância do concurso de peregrinos e curiosos no dia da quarta
aparição e do estado geral dos espíritos em face de tão
extraordinários acontecimentos. Quero crer que não darás por
malbaratado o tempo que empregaste na sua leitura.

20-VIII-919
Teu amigo dedicado
V. de M.
6. O DIA 13 DE SETEMBRO DE 1917

Meu caro Amigo:


Aproximava-se o dia treze de Setembro. A notícia dos estranhos
acontecimentos do mês anterior tinha sido levada a todos os
recantos do país pelos dois colossos de informação da imprensa
periódica da capital.
A população das povoações do concelho de Vila Nova de Ourém
e dos concelhos limítrofes era a que estava mais ao facto do que se
tinha passado, em virtude da relativa proximidade do local das
aparições, que permitia a muitos habitantes daquela vastíssima área
ir assistir, sem grande incómodo e sem avultadas despesas, aos
fenómenos já conhecidos. Inúmeras pessoas, que das outras vezes
não tinham ido a Fátima, estavam agora resolvidas a efectuar a
longa e penosa jornada para satisfazerem, umas a sua devoção,
outras a sua curiosidade. Todavia a imprensa católica mantinha por
dever de ofício a mais prudente reserva perante os acontecimentos,
cuja verdadeira origem se ignorava, e apenas um ou outro
semanário da província aludiu de passagem a esse assunto tão
delicado e melindroso para pôr de sobreaviso os fiéis contra
maquinações possíveis de homens mal intencionados ou do poder
das trevas.
As crianças que se proclamavam testemunhas oculares das
aparições e que tinham sido presas, arbitrariamente e à falsa fé,
pelo administrador de Vila Nova de Ourém, já estavam, havia muito
tempo, em liberdade. Aquela autoridade, tendo-as levado para sua
casa, deteve-as aí durante dois dias, confiando-as aos cuidados de
sua esposa, que as tratou com todo o carinho.
Durante esses dias submeteu-as a interrogatórios repetidos e
capciosos, tentando debalde fazê-las cair em contradições e
recorrendo, também sem resultado, a promessas e ameaças, já
para as obrigar a confessar que estavam desempenhando uma
comédia ensinada, já para lhes arrancar o segredo que, segundo
elas diziam, a Aparição lhes comunicara e que a ninguém podiam
revelar.
Desta sorte um abuso bastante censurável da autoridade
administrativa, que tão profunda como justa indignação provocou
em todos os que dele tiveram conhecimento, constituiu um acto
providencial, que veio reforçar a convicção geral, nesse tempo já
formada, de que as crianças não faltavam conscientemente à
verdade.
Cedendo a um sentimento irresistível de curiosidade, justificado
por factos tão extraordinários, embora sem lograr vencer de todo a
repugnância que sentia em fazê-lo pelo receio de parecer dar uma
importância excessiva ao que talvez não passasse duma ridícula
superstição popular, resolvi partir para Fátima juntamente com
alguns amigos e por isso tomei no dia doze à tarde o combóio do
norte e apeei-me em Torres Novas, donde, na madrugada do dia
imediato, segui de carro para a povoação já tão afamada. O
espectáculo que presenciei durante a jornada, desde a princesa do
Almonda até à pátria adoptiva de Gonçalo Hermigues, era por
demais surpreendente. Decerto não levarás a mal que nesta altura
dê a palavra ao signatário da carta descritiva das cenas
maravilhosas do dia treze de Agosto, o qual noutra carta para o
mesmo signatário narra com tanta precisão e com tão encantadora
singeleza os acontecimentos do dia treze de Setembro, que não
resisto ao desejo de também a transcrever. É do teor seguinte:
“Como no mês próximo findo, fui também este mês, no dia treze,
a Fátima, mas desta vez sem o esperar, porque não era fácil nem
tinha tenção de lá ir.
Foi o caso que no dia doze à noite chegou aqui F. num enorme
chars-à-bancs, que transportava para Fátima dezasseis pessoas da
Benedita ansiosas por assistir aos fenómenos que costumam
verificar-se no dia treze de cada mês desde Maio do corrente ano.
F. prenoitou em minha casa e no dia seguinte de manhã convidou-
me a tomar lugar no carro, convite a que acedi com alvoroço.
Na véspera tinham passado por esta povoação verdadeiros
bandos de pessoas, que vinham dos lados do mar, tendo dormido
aqui grande número delas. À hora aprazada subimos para o carro e
partimos. Durante a jornada comovi-me imenso e por mais duma
vez me assomaram as lágrimas aos olhos ao constatar a Fé e
piedade ardente de tantos milhares de romeiros.
Os caminhos e atalhos iam cheios de gente. Não havia carreiro,
por mais pequeno que fosse, que não trouxesse pessoas à estrada.
Era uma peregrinação verdadeiramente digna deste nome, cuja
vista, só por si, fazia chorar de comoção. Nunca me fora dado
presenciar em toda a minha vida tão grande e tão empolgante
manifestação de Fé. Não se via nem se ouvia coisa alguma que
traduzisse o mais imperceptível sentimento de leviandade ou
mesmo um propósito de divertimento inocente.
O harmónio, indispensável em todas as romarias e festas de
aldeia, brilhava pela sua ausência. Não havia a desenvoltura própria
da gente moça do campo, nem ao menos as costumadas graças e
chalaças inofensivas, acompanhadas de estridentes gargalhadas.
Eram quase dez horas, quando atingimos o termo da nossa jornada.
A multidão, que àquela hora já era enorme, aproximava-se cheia de
respeito do local das aparições. Os homens descobriram-se. Quase
todas as pessoas se ajoelhavam e rezavam com fervor.
Logo que chegámos, dirigimo-nos a casa das crianças,
fotografámo-las e conversámos com elas. Foi essa a cena que mais
me impressionou. Fiquei positivamente encantado. Aquela
simplicidade angélica e aquela absoluta despreocupação, que elas
manifestam, não podem mentir. Não têm o acanhamento próprio das
crianças rudes dos campos e das serras na presença de pessoas
desconhecidas.
Tanto se lhes dá falar com uma pessoa estranha como com
muitas. As respostas são sempre as mesmas. Parecem adultos na
maneira de se exprimir. De casa das crianças seguimos para a
residência paroquial, onde estavam, além do pároco, alguns amigos
meus e de F. com os quais trocámos impressões sobre o assunto do
dia. Passada meia hora, pusemo-nos a caminho do local das
aparições.
Ao meio dia em ponto, hora astronómica, o sol começou a perder
o brilho. Não houve quem não notasse esse facto, que desde Maio
precedente se repetia sempre no dia treze de cada mês à mesma
hora. Pouco depois a mais velha das crianças ordenou aos
circunstantes que rezassem.
Nunca esquecerei a violenta impressão que senti ao ver cair de
joelhos tantos milhares de fiéis, que chorando rezavam em voz alta
e imploravam cheios de confiança a protecção maternal da Rainha
do Céu. Foi neste momento que muitos circunstantes viram uma
oval, pouco mais volumosa que um ovo, de cor branca, viva e
brilhante, com parte mais larga voltada para baixo, descrever no
firmamento uma comprida linha recta. Alguns observaram esse
fenómeno por mais, outros por menos tempo. Eu não o vi e tenho
pena disso.
O Dr. F. e muitos patrícios meus afirmam que também o viram.
Alguns destes, cuja seriedade não é lícito pôr em dúvida,
asseguram ter percebido uma espécie de flores que caíam do céu,
mas não tocavam no chão, desaparecendo ao chegarem a certa
altura. A atmosfera tomou uma cor amarela, talvez por causa da
diminuição da luz solar.
O que se passou nesse rápido quarto de hora nunca esquece,
mas não é fácil de descrever. O aspecto da imensa multidão
ajoelhada, a sua expectativa ansiosa e inquieta, a devoção com que
invocava a Rainha do Céu e enfim a augusta solenidade de
momento constituíam um espectáculo admirável e enternecedor.
Logo que o sol recuperou a sua luz habitual, as crianças, que se
tinham conservado sempre junto da carrasqueira e que declaravam
ter-lhes aparecido pela quinta vez a Virgem Santíssima, retiraram
para suas casas e ao mesmo tempo partiram as primeiras levas de
povo que pouco a pouco dispersou. Os cálculos mais reduzidos
avaliavam em quinze a dezassete mil as pessoas presentes no
momento da aparição. Havia, porém, quem fosse de opinião que
estavam mais de vinte mil. Não dou o meu parecer, mas o certo é
que nunca vi tanta gente junta. “Era um lindo espectáculo”.
Obrigado pelo amor da verdade, não quero concluir sem dizer que
as minhas impressões do que se passou neste dia em Fátima não
foram animadoras.
Não me aproximei do local das aparições, quase não conversei
com ninguém, ficando na estrada a cerca de trezentos metros de
distância, e apenas constatei a diminuição da luz solar, que me
pareceu um fenómeno sem importância, devido porventura à
elevada altitude da serra. Continuei, por isso, a manter-me numa
prudente, posto que benévola expectativa, como sucedia desde os
acontecimentos de Agosto, porque antes deles esboçava
invariavelmente um sorriso de absoluta incredulidade ao ouvir
qualquer referência às aparições de Fátima. E hoje fico por aqui,
que esta já vai longa.

5-IX-919
Teu amigo
V. de M.
7. AS DECLARAÇÕES DOS VIDENTES
(27 DE SETEMBRO DE 1917)13

No intuito de completar as impressões colhidas no dia treze do


corrente mês de Setembro e habilitar-me com os elementos
indispensáveis para fundamentar, tanto quanto possível, um juízo
seguro acerca dos acontecimentos que nos últimos cinco meses se
têm desenrolado a três quilómetros ao norte da aldeia de Fátima, no
local denominado Cova da Iria, fui, pela segunda vez, na quinta-feira
passada, vinte e sete, àquela pitoresca aldeia, graciosamente
alcandorada num dos contrafortes da majestosa serra de Aire.
Eram três horas da tarde quando me apeei do trem que de Torres
Novas me conduzira por Vila Nova de Ourém à humilde povoação,
cujo nome é hoje pronunciado como uma promessa de bênçãos e
graças celestes por dezenas de milhares de lábios dum extremo ao
outro de Portugal. O reverendo pároco, a quem logo procurei, não
estava em casa, tinha saído para fora da freguesia e só à noite
devia voltar.
Pesaroso por não poder trocar com ele algumas palavras sobre o
assunto que ali me levava, resolvi ir a casa das crianças que se
dizem favorecidas com as aparições da Virgem Santíssima e ouvir
da boca delas a narrativa pormenorizada dos estranhos sucessos,
cuja notícia tem atraído dia a dia a Fátima um sem número de
pessoas de todas as classes e condições sociais.
À distância de dois quilómetros da igreja paroquial e do
presbitério, num insignificante lugarejo chamado Aljustrel,
pertencente à freguesia, ficam situadas as modestas habitações das
famílias dos pastorinhos.
As duas crianças mais novas estavam ausentes. Dirigi-me a casa
da mais velha, onde a mãe me convidou a entrar e sentar-me,
convite a que acedi. A uma pergunta minha sobre o paradeiro da
filha que procurava, respondeu-me que ela andava a vindimar numa
pequena propriedade que lhe pertencia e que ficava dois
quilómetros distante.
Alguém se prestou logo a ir chamá-la, a pedido da mãe.
Entretanto as duas crianças mais novas, que tinham regressado do
campo, sabendo pelas vizinhas que eu lhes desejava falar, vieram
ter comigo.
São dois irmãos, um menino e uma menina. Chegou primeiro a
menina.
Chama-se Jacinta de Jesus, tem sete anos de idade e é filha de
Manuel Pedro Marto e de Olímpia de Jesus. Bastante alta para a
sua idade, um pouco delgada sem se poder dizer magra, de rosto
bem pronunciado, tez morena, modestamente vestida, descendo-lhe
a saia até à altura dos artelhos, o seu aspecto é o duma criança
saudável, acusando perfeita normalidade no seu todo físico e moral.
Surpreendida com a presença de pessoas estranhas, que me
tinham acompanhado e que não esperava encontrar, a princípio
mostra um grande embaraço, respondendo com monossílabos e
num tom de voz quase imperceptível às perguntas que lhe dirijo.
Momentos depois aparece o irmão, rapaz de nove anos de idade
que entra com um certo desembaraço no quarto, onde estávamos,
conservando o barrete na cabeça, decerto por não se lembrar de
que devia descobrir-se. Um sinal, que a irmã lhe fez nesse sentido,
não foi percebido por ele. Convidei-o a sentar-se numa cadeira ao
meu lado, obedecendo imediatamente e sem nenhuma relutância.

[Interrogatório de Francisco]
Principiei sem demora a interrogá-lo sobre o que tinha visto e
ouvido desde o mês de Maio último na Cova da Iria, no dia treze de
cada mês, durante o tempo da aparição.
Entre mim e ele estabeleceu-se o curto diálogo que segue.
– Que é que tens visto na Cova da Iria nos últimos meses?
– Tenho visto Nossa Senhora.
– Onde é que ela aparece?
– Em cima duma carrasqueira.
– Aparece de repente ou tu vê-la vir dalguma parte?
– Vejo-a vir do lado onde nasce o sol e colocar-se sobre a
carrasqueira.
– Vem devagar ou depressa?
– Vem sempre depressa.
– Ouves o que ela diz à Lúcia?
– Não ouço.
– Falaste alguma vez com a Senhora? Ela já te dirigiu a palavra?
– Não, nunca lhe perguntei nada; fala só com a Lúcia.
– Para quem olha, também para ti e para a Jacinta ou só para a
Lúcia?
– Olha para todos três; mas olha durante mais tempo para a
Lúcia.
– Já alguma vez chorou ou se sorriu?
– Nem uma coisa nem outra; está sempre séria.
– Como está vestida?
– Tem um vestido comprido e por cima do vestido um manto que
lhe cobre a cabeça e desce até à extremidade do vestido.
– De que cor são o vestido e o manto?
– São brancos, tendo o vestido riscas douradas.
– Qual é a atitude da Senhora?
– É a de quem está a rezar. Tem as mãos postas à altura do peito.
– Traz alguma coisa nas mãos?
– Traz entre a palma e as costas da mão direita umas contas, que
estão pendentes sobre o vestido.
– E nas orelhas que tem?
– As orelhas não se vêem, porque estão cobertas com o manto.
– De que cor são as contas?
– São também brancas.
– A Senhora é bonita?
– É sim.
– Mais bonita do que aquela menina que tu ali vês?
– Mais.
– Mas há senhoras muito mais bonitas que aquela menina...
– É mais bonita que qualquer pessoa que eu visse.

[Interrogatório de Jacinta]
Concluído o interrogatório do Francisco, chamei de parte a
Jacinta, que andava a brincar na rua com outras crianças, fi-la
sentar num banquinho ao pé de mim e submeti-a também a um
interrogatório, logrando obter dela respostas completas e
minuciosas como as do irmão.
– Tens visto Nossa Senhora no dia treze de cada mês desde Maio
para cá?
– Tenho visto.
– Donde é que ela vem?
– Vem do céu, do lado do sol.
– Como está vestida?
– Tem um vestido branco, enfeitado a ouro e na cabeça um manto
também branco. Em volta da cintura há uma fita dourada que desce
até à orla do vestido.
– Usa botas ou sapatos?
– Não usa botas nem sapatos.
– Então tem só meias?
– Parece que tem meias, mas talvez os pés sejam tão brancos
que pareçam trazer meias calçadas14.
– De que cor são os cabelos?
– Não se lhe vêem os cabelos, que estão cobertos com o manto.
– Traz brincos nas orelhas?
– Não sei, porque também não se lhe vêem as orelhas.
– Qual é a posição das mãos?
– As mãos estão postas à altura do peito, com os dedos voltados
para cima.
– As contas estão na mão direita ou na esquerda?
A esta pergunta a criança responde primeiro que estavam na mão
direita, mas em seguida, devido a uma insistência da minha parte,
mostra-se perplexa e confusa, não sabendo precisar bem qual das
suas mãos corresponde àquela com que a Aparição segurava o
rosário.
– Que foi que Nossa Senhora recomendou à Lúcia com mais
empenho?
– Mandou que rezássemos o terço todos os dias.
– E tu reza-lo?
– Rezo-o todos os dias com o Francisco e com a Lúcia.

[Interrogatório de Lúcia]
Meia hora depois de terminado o interrogatório de Jacinta Marto,
aparece a Lúcia de Jesus. Vinha, como já disse, duma pequena
propriedade de sua família, situada a dois quilómetros de distância,
onde tinha estado a vindimar. Mais alta e mais nutrida que as outras
duas crianças, de tez mais clara, robusta e saudável, apresenta-se
diante de mim com um desembaraço que contrasta singularmente
com o acanhamento e a timidez excessiva da Jacinta. Singelamente
vestida como esta, a sua atitude não denota e o seu rosto não
traduz nenhum sentimento de vaidade, nem tão pouco de confusão.
Sentando-se, a um aceno meu, numa cadeira, ao meu lado,
presta-se da melhor vontade a ser interrogada sobre os
acontecimentos de que ela é a principal protagonista, sem embargo
de se sentir visivelmente fatigada e abatida, mercê das visitas
incessantes que recebe e dos inquéritos repetidos e prolongados a
que é submetida.
Filha de António dos Santos, de cinquenta anos de idade, e de
Maria Rosa, de quarenta e oito anos, tem um irmão e quatro irmãs,
todos mais velhos do que ela: Maria, de vinte e seis anos, já casada,
Teresa, de vinte e quatro, Manuel, de vinte e dois, Glória de vinte, e
Carolina, de quinze. Completou dez anos de idade em vinte e dois
de Março do corrente ano. Tinha oito anos15 quando fez a sua
primeira comunhão. A mãe, tipo da mulher cristã e da boa dona de
casa, entregue às lides domésticas, procurou sempre inspirar aos
filhos o santo temor de Deus e levá-los ao cumprimento de todos os
seus deveres morais e religiosos. Altamente preocupada com os
sucessos que atraem a todo o momento as atenções de milhares de
pessoas para a sua pobre habitação, até há pouco tempo ignorada
do mundo, nota-se desde logo que o seu espírito hesita, numa
ansiedade inquieta, entre a esperança de que a filha seja realmente
privilegiada com a aparição da Virgem e o receio de que ela seja
vítima duma alucinação, que lhe traga desgostos e cubra de ridículo
toda a sua família. A uma pergunta minha acerca da piedade da sua
Lúcia, responde que não acha nela nada de extraordinário neste
particular, vendo-a rezar da mesma forma e com o mesmo fervor
que antes das aparições, exactamente como fazem as suas irmãs.
Dou princípio ao interrogatório da vidente.
– É verdade que Nossa Senhora te tem aparecido no local
chamado Cova da Iria?
– É verdade.
– Quantas vezes já te apareceu?
– Cinco vezes, sendo uma cada mês.
– Em que dia do mês?
– Sempre no dia treze, excepto no mês de Agosto, em que fui
presa e levada para a vila (Vila Nova de Ourém)pelo senhor
administrador. Nesse mês só a vi alguns dias depois, a dezanove16
no sítio dos Valinhos.
– Diz-se que a Senhora te apareceu também o ano passado. Que
há de verdade a esse respeito?
– O ano passado nunca me apareceu, nem antes de Maio deste
ano; nem eu disse isso a pessoa alguma, porque não era exacto.
– Donde é que ela vem? Das bandas do nascente?
– Não sei; não a vejo vir de parte alguma; aparece sobre a
carrasqueira17 e quando se retira é que toma a direcção do ponto do
céu em que nasce o sol.
– Quanto tempo se demora? Muito ou pouco?
– Pouco tempo.
– O suficiente para se recitar um Padre Nosso e uma Avé Maria,
ou mais?
– Mais, bastante mais, mas nem sempre o mesmo tempo; talvez
não chegasse nunca para rezar o terço.
– Da primeira vez que a viste, não ficaste assustada?
– Fiquei, e tanto assim que quis fugir com a Jacinta e o Francisco,
mas ela disse-nos que não tivéssemos medo, porque não nos faria
mal.
– Como é que está vestida?
– Tem um vestido branco, que desce quase até aos pés18, e
cobre-lhe a cabeça um manto da mesma cor e do mesmo
comprimento que o vestido.
– O vestido não tem enfeites?
– Vêem-se nele, na frente, dois cordões dourados, que descem
do pescoço e se reúnem por uma borla, também dourada, à altura
do meio do corpo.
– Tem algum cinto ou alguma fita?
– Não tem.
– Usa brincos nas orelhas?
– Usa umas argolas pequenas e de cor amarela.
– Qual das mãos segura as contas?
– A mão direita.
– Eram um terço ou um rosário?
– Não reparei bem.
– Terminavam por uma cruz?
– Terminavam por uma cruz branca, sendo as contas também
brancas. A cadeia era igualmente branca.
– Perguntaste-lhe alguma vez quem era?
– Perguntei, mas declarou que só o diria a treze de Outubro.
– Não perguntaste donde vinha?
– Perguntei donde era e ela respondeu-me que era do Céu.
– E quando foi que lhe fizeste essa pergunta ?
– Da segunda vez, a treze de Junho.
– Sorriu-se alguma vez ou mostrou-se triste?
– Nunca se sorriu nem se mostrou triste, mas sempre séria.
– Recomendou-te, e aos teus primos, que rezassem algumas
orações?
– Recomendou-nos que rezássemos o terço em honra de Nossa
Senhora do Rosário a fim de se alcançar a paz para o mundo.
– Mostrou desejos de que no dia treze de cada mês estivessem
muitas pessoas durante a aparição na Cova da Iria?
– Não disse nada esse respeito+.
– É certo que te revelou um segredo, proibindo que o
descobrisses a quem quer que fosse?
– É certo.
– Diz respeito só a ti ou também aos teus companheiros?
– A todos três.
– Não o podes manifestar ao menos ao teu confessor?
A esta pergunta guardou silêncio, parecendo um tanto enleada, e
julguei não dever insistir repetindo a pergunta.
– Consta que, para te veres livre das importunações do senhor
administrador no dia em que foste presa, lhe contaste, como se
fosse o segredo, uma coisa que o não era, enganando-o assim e
gabando-te depois de lhe teres pregado essa partida: é verdade?
– Não é; o senhor administrador quis realmente que eu lhe
revelasse o segredo, mas, como eu o não podia dizer a ninguém,
não lho disse, apesar de ter insistido muito comigo para esse fim. O
que fiz, foi contar tudo o que a Senhora me disse, excepto o
segredo, e talvez por esse motivo o senhor administrador ficasse
julgando que eu lhe tinha revelado também o segredo. Não o quis
enganar.
– A Senhora mandou-te aprender a ler?
– Mandou, sim, da segunda vez que apareceu.
– Mas, se ela disse que te levaria para o Céu no mês de Outubro
próximo, para que te serviria aprenderes a ler?
– Não é verdade isso: a Senhora nunca disse que me levaria para
o Céu em Outubro e eu nunca afirmei que ela me tivesse dito tal
coisa.
– Que declarou a Senhora que se devia fazer ao dinheiro que o
povo deposita na Cova da Iria ao pé da carrasqueira?
– Disse que o devíamos colocar em dois andores, levando eu, a
Jacinta e mais duas meninas um deles, e o Francisco, com mais
três rapazes, o outro, para a igreja da freguesia. Parte desse
dinheiro seria destinado ao culto e festa da Senhora do Rosário e a
outra parte para ajuda duma capela nova.
– Onde quer a Senhora que se edifique a capela? Na Cova da
Iria?
– Não sei: ela não o disse.
– Estás muito contente por Nossa Senhora te ter aparecido?
– Estou.
– No dia treze de Outubro Nossa Senhora virá só?
– Vem também São José com o Menino e será concedida a paz
ao mundo.
– Nossa Senhora fez mais alguma revelação?
– Declarou que no dia treze de Outubro fará com que o povo
acredite que ela realmente aparece.
– Por que razão não raro baixas os olhos, deixando de fitar a
Senhora?
– É que ela às vezes cega.
– Ensinou-te alguma oração?
– Ensinou e quer que a recitemos depois de cada mistério do
rosário.
– Sabes de cor essa oração?
– Sei.
– Dize lá...
– Ó meu Jesus, perdoai-nos, livrai-nos do fogo do inferno e aliviai
as almas do Purgatório, especialmente as mais abandonadas19.
8. NAS VÉSPERAS DO GRANDE
MILAGRE
(11 DE OUTUBRO DE 1917)

Convencido da sinceridade absoluta das três crianças, que


disseram ter visto cinco vezes Nossa Senhora, no local denominado
Cova da Iria, da freguesia de Fátima, concelho de Vila Nova de
Ourém, e ter ela declarado que no dia treze de Outubro corrente
havia de fazer que todo o povo acreditasse no seu aparecimento,
voltei pela terceira vez àquela povoação. Embora receasse que as
crianças fossem vítimas duma alucinação, hipótese que aliás tudo
me fazia repelir, ou que os acontecimentos extraordinários que ali se
realizavam fossem provocados pelo espírito das trevas para fins
desconhecidos, no meu espírito ia-se radicando cada vez mais a
convicção de que Fátima era o lugar destinado pela Rainha do Céu,
Padroeira de Portugal, para teatro de novos prodígios da sua
bondade e misericórdia. Por esse motivo resolvi partir com alguns
dias de antecedência, tomando no dia dez, às onze horas e meia da
manhã, na estação de Santarém, o comboio que me devia conduzir
a Chão de Maçãs, estação do caminho de Ferro mais próxima da
que talvez venha a ser considerada, por mercê de Deus, a Lourdes
ou a La Salette Portuguesa. Uma charrette transportou-me a Vila
Nova de Ourém, donde, após haver trocado impressões com o
rev.do pároco daquela vila sobre os acontecimentos que motivaram
a minha viagem, segui noutra charrette para Fátima, onde me apeei
às onze horas da noite, dirigindo-me imediatamente para o lugar do
Montelo, a dois quilómetros de distância. Ali fiquei hospedado em
casa da família Gonçalves, muito considerada pela sua honestidade
e pelos seus sentimentos religiosos. No dia seguinte de manhã
propus-me ir interrogar novamente os videntes de Aljustrel, onde
residem, a três quilómetros de Montelo. Antes disso, porém,
interroguei Manuel Gonçalves Júnior, de trinta anos de idade,
casado, filho do meu hospedeiro, homem inteligente e dotado de
muito bom senso e de faculdades invulgares de observação.

Depoimento de Manuel Gonçalves Júnior


São do teor seguinte as perguntas que lhe fiz e as respectivas
respostas:
– Os pais das crianças de Aljustrel que se dizem favorecidas com
aparições de Nossa Senhora têm boa fama, são gente honrada e de
bons costumes?
– Os pais do Francisco e da Jacinta são pessoas muito boas,
profundamente religiosos e respeitados por todos. O pai tem fama
de ser o homem mais sério do lugar. É incapaz de enganar alguém.
O pai da Lúcia embriaga-se às vezes e frequenta pouco a igreja.
Não é, porém, dotado de maus sentimentos. No dia treze de Julho,
alguns companheiros mal intencionados embriagaram-no, no intuito
de o levarem a praticar desatinos no local das aparições.
Efectivamente, embora, como sempre, tivesse deixado ir a filha
àquele local, mandou retirar o povo (ele é o proprietário da charneca
onde está a carrasqueira que serve de pedestal à aparição). O povo,
vendo-o em estado de embriaguez, não se importou com essa
intimação, e um homem empurrou-o, fazendo-o cair. A mãe é uma
mulher honesta, religiosa, e amante do trabalho.
– Que pensam os habitantes de Fátima a respeito do que as
crianças dizem? Não as acreditam? Julgam-nas mentirosas? Ou
julgam-nas vítimas duma alucinação?
– A princípio o povo não queria ir à Cova da Iria. Ninguém
acreditava nas crianças. Em treze de Junho, dia da segunda
aparição, havia festa na igreja da freguesia em honra de Santo
António. Na Cova da Iria estavam apenas, à hora da aparição, umas
sessenta pessoas. Os pais do Francisco e da Jacinta tinham ido de
manhã cedo para Porto de Mós à feira chamada “dos treze”, com o
fim de comprar bois, e chegaram já de noite. Na sua ausência a
casa encheu-se-lhes de gente, que queria ver as crianças e
interrogá-las. Presentemente uma grande parte do povo julga que
as crianças falam verdade. Pela minha parte, estou convencido
disso.
– Nos dias das aparições tem havido sinais extraordinários? Há
muitas pessoas que afirmam tê-los visto?
– Os sinais são muitos. Em Agosto quase todos os que estavam
presentes viram esses sinais. Uma nuvem baixou até carrasqueira.
Em Julho notava-se o mesmo. Não havia poeira no local. A nuvem
empoou os ares, que pareciam enevoados.
– Houve mais algum sinal?
– Viam-se no céu, próximo do sol, umas nuvens brancas que se
tornavam sucessivamente vermelhas vivas (cor de sangue), cor de
rosa e amarelas. O povo tornou-se desta última cor. A luz do sol
diminuiu bastante de intensidade. Sentiu-se também um rumor em
Julho e em Agosto.
– Suspeita-se de alguém que tenha induzido as crianças a
representar uma comédia?
– Não, nem isso é verosímil.
– Tem vindo muita gente de fora ver as crianças e falar com elas?
– Têm vindo inúmeras pessoas de toda a parte.
– Elas aceitam o dinheiro que lhe queiram dar?
– Têm aceitado qualquer coisa, quando teimam muito com elas,
mas não aceitam por sua vontade.
– As famílias são pobres? Vivem do seu trabalho? Têm
propriedades?
– Não são pobres. São até abastadas. E, se a família da Lúcia
não o é mais, isso é devido à circunstância de o pai se entregar com
frequência à embriaguez, descurando assim o amanho das suas
propriedades.
– Há em Fátima pessoas que tenham estado ao pé das crianças
durante as aparições?
– Em Julho estiveram ao pé delas Jacinto de Almeida Lopes, do
lugar da Amoreira, e Manuel de Oliveira, deste de Montelo.
– Que faz a Lúcia durante o tempo da aparição?
– Reza o terço. Quando se dirige à Senhora, fala alto. Eu próprio
a ouvi em Junho, porque estava próximo. Algumas pessoas afirmam
que ouvem o som das respostas.
– O local das aparições é muito frequentado também nos outros
dias por pessoas piedosas ou por curiosos?
– É muito frequentado, sobretudo aos Domingos. A maior
concorrência é à noite. Vão ali muitas pessoas, de longe e de perto,
e mais ainda de fora da freguesia. Rezam o terço e cantam cânticos
populares em honra da Virgem.
Terminado este interrogatório, pus-me a caminho de Aljustrel e,
tendo chegado àquele lugar, dirigi-me sem demora a casa da Lúcia.
Estava junto da sua habitação dando serventia a um pedreiro que
consertava o telhado. Logo que me viu, pediu-me a bênção
respeitosamente.
A mãe apareceu no mesmo instante e acedeu da melhor vontade
ao pedido de me deixar interrogar de novo a filha. Primeiro, porém,
fiz-lhe algumas perguntas.

Depoimento da mãe da Lúcia


– Sua filha é parenta do Francisco e da Jacinta?
– É prima, porque meu marido é irmão da mãe deles.
– Como soube que a Senhora apareceu a sua filha da primeira
vez? Foi ela que lho contou?
– Tive conhecimento desse facto pela família das outras crianças,
porque a Lúcia aconselhou os seus companheiros a não dizerem
nada, com receio de que lhes ralhassem. Só depois de interrogada
por mim é que disse o que tinha visto.
– Nunca repreendeu sua filha por ir à Cova da Iria? Deu-lhe
sempre inteira liberdade de lá ir no dia treze de cada mês?
– Nunca a proibi de ir a esse sítio. Umas vezes perguntava-lhe se
queria ir e ela respondia afirmativamente, outras vezes ela mesma
dizia que iria, se eu lhe desse licença.
– As três crianças costumam ir sozinhas ao local das aparições ou
vão acompanhadas doutras crianças?
– Vão sós. Quase sempre vão também outras crianças, mas são
acompanhadas pelos pais e ficam ao pé deles, não se juntando com
a Lúcia e os primos dela.
– As crianças guardavam o gado? A quem é que ele pertencia?
– A Lúcia guardava um pequeno rebanho de ovelhas e os primos
outro. Pertenciam os rebanhos às respectivas famílias. Às vezes
juntavam o gado, mas unicamente porque queriam. As ovelhas que
a Lúcia guardava, já as vendi.
– Como é que as crianças têm ido vestidas?
– Da primeira vez iam mal arranjadas, como andam quase
sempre os pastores. Das outras vezes, no dia treze de cada mês,
vão vestidas de fato claro e levam um lenço branco na cabeça.
– Consta-me que possui um livro intitulado “Missão abreviada” e
que às vezes o lê a seus filhos. É verdade?
– É verdade; possuo esse livro e tenho-o lido a meus filhos.
– Leu a história da aparição de La Salette diante da Lúcia e
doutras crianças?
– Só diante da Lúcia e dos outros meus filhos.
– A Lúcia falava às vezes na história de La Salette, mostrando de
qualquer modo que essa história tinha produzido grande impressão
no seu espírito?
– Nunca lhe ouvi dizer nada a esse respeito, se bem me recordo.
– Quando as crianças foram presas pelo administrador de Vila
Nova de Ourém, foi alguém reclamar que as restituísse aos pais?
– Um irmão do Francisco e da Jacinta foi falar com eles a casa do
administrador. A senhora do administrador perguntou-lhe se ia
buscar as crianças, ao que ele respondeu negativamente. O próprio
administrador as veio trazer a Fátima.
– Tem vindo muita gente ver sua filha?
– Tem vindo muita gente quase todos os dias.

Concluído este interrogatório, convidei quatro indivíduos dignos


de todo o crédito a assistir como testemunhas ao interrogatório da
Lúcia: Anastácio da Teresa, Gonçalves da Silva e Manuel
Henriques, todos de Aljustrel, e Francisco Rodrigues, da Moita do
Martinho. Imediatamente dei princípio à inquirição da vidente.

Interrogatório da Lúcia
Disseste-me há dias que Nossa Senhora queria que o dinheiro
oferecido pelo povo fosse levado para a igreja em dois andores.
Como é que arranjam os andores e quando é que eles devem ser
levados para a igreja?
– Os andores compram-se com o dinheiro oferecido e serão
levados nas festas da Senhora do Rosário.
– Sabes com certeza em que sítio é que Nossa Senhora deseja
que se edifique uma capela em sua honra?
– Não sei ao certo, mas julgo que ela quer a capela na Cova da
Iria.
– Que disse ela que havia de fazer para que todo o povo
acreditasse que ela aparecia?
– Disse que havia de fazer um milagre.
– Quando foi que disse isso?
– Disse-o umas poucas de vezes, mas só uma vez, na ocasião da
primeira aparição, é que lhe fiz a pergunta.
– Não tens medo de que o povo te faça mal, se não vir nada de
extraordinário nesse dia?
– Não tenho medo nenhum.
– Sentes dentro de ti alguma coisa, alguma força que te arraste
para a Cova da Iria no dia treze de cada mês?
– Sinto vontade de lá ir e ficava triste se não fosse.
– Viste alguma vez a Senhora benzer-se, rezar, ou desfiar as
contas do rosário?
– Não vi.
– Mandou-te rezar?
– Mandou-me rezar umas poucas de vezes.
– Disse-te que rezasses pela conversão dos pecadores?
– Não disse; mandou-me só rezar à Senhora do Rosário para que
acabasse a guerra.
– Viste os sinais que as outras pessoas dizem ter visto, como uma
estrela, rosas a despregarem-se do vestido da Senhora, etc.?
– Não vi a estrela nem outros sinais extraordinários.
– Ouviste algum rumor, trovão ou tremor de terra?
– Nunca ouvi.
– Sabes ler?
– Não sei.
– Andas a aprender a ler?
– Não ando.
– Como cumpres então a ordem que a Senhora te deu nesse
sentido?
– ! ..........................
– Quando dizes ao povo que ajoelhe e reze, é a Senhora que
manda que o digas?
– Não é a Senhora que manda, sou eu que quero.
– Sempre que ela aparece, tu ajoelhas?
– Às vezes fico de pé, outras vezes ajoelho-me.
– Quando fala, a sua voz é doce e agradável?
– É.
– Que idade parece ter a Senhora?
– Parece ter uns quinze anos.
– De que cor é o cadeado do rosário?
– É branco.
– E o crucifixo?
– O crucifixo também é branco.
– O véu cobre a testa da Senhora?
– Não cobre; vê-se-lhe a testa bem.
– O esplendor que a envolve é bonito?
– É mais bonito que a luz do sol e muito brilhante.
– A Senhora nunca te saudou com a cabeça ou com as mãos?
– Nunca.
– Nunca se sorriu para ti?
– Também não.
– Costuma olhar para o povo?
– Nunca a vi olhar para ele.
– Ouves as conversas, rumores e gritos do povo, durante o tempo
em que vês a Senhora?
– Não ouço.
– A Senhora pediu-te em Maio que voltasses todos os meses até
Outubro à Cova da Iria?
– Disse que voltássemos lá de mês a mês durante seis meses, no
dia treze.
– Ouviste ler a tua mãe o livro chamado “Missão abreviada”, onde
se conta a história da aparição de Nossa Senhora a um menino e
uma menina?
– Ouvi.
– Pensavas muitas vezes nessa história e falavas dela a outras
crianças?
– Não pensava nessa história, nem a contei a ninguém.
Concluída esta inquirição, dirigi-me a casa das outras crianças,
procedendo ali à sua inquirição, na presença do pai e dalgumas das
irmãs. Interroguei primeiro a Jacinta.

Interrogatório da Jacinta
– A Senhora recomendou que rezassem o terço?
– Recomendou.
– Quando?
– Quando apareceu pela primeira vez.
– Ouviste também o segredo ou foi só a Lúcia que o ouviu?
– Eu também ouvi.
– Quando o ouviste?
– Da segunda vez, no dia de Santo António.
– Esse segredo é para serem ricos?
– Não é.
– É para serem bons e felizes?
– É. É para bem de todos os três.
– É para irem para o Céu?
– Não é.
– Não podes revelar o segredo?
– Não posso.
– Porquê ?
– Porque a Senhora disse que não disséssemos o segredo a
ninguém.
– Se o povo soubesse o segredo, ficava triste?
– Ficava.
– Como tinha a Senhora as mãos?
– Tinha-as erguidas.
– Sempre erguidas?
– Às vezes voltava as palmas para o céu.
– A Senhora disse em Maio que queria que fossem à Cova da Iria
mais vezes?
– Disse que queria que fôssemos lá durante seis meses, de mês a
mês, até que em Outubro dissesse o que queria.
– Ela tem na cabeça algum resplendor?
– Tem.
– Podes olhar bem para o rosto?
– Não posso, porque faz mal aos olhos.
– Ouviste sempre bem o que a Senhora disse?
– Da última vez não ouvi tudo por causa do barulho que o povo
fazia.
Segue-se a inquirição do Francisco.

Interrogatório ao Francisco
– Que idade é que tens?
– Tenho nove anos feitos.
– Só vês a Senhora ou ouves também o que ela diz?
– Só a vejo, não ouço nada do que ela diz.
– Tem algum clarão em volta da cabeça?
– Tem.
– Podes olhar bem para a cara dela?
– Posso olhar, mas pouco, por causa da luz
– Tem alguns enfeites no vestido?
– Tem uns cordões de ouro.
– De que cor é o crucifixo do rosário?
– É branco.
– E a cadeia do rosário?
– Também é branca.
– O povo ficava triste se soubesse o segredo?
– Ficava.
Em seguida entretive-me em demorada conversa com o pai das
inocentes crianças acerca dos acontecimentos que tanto o têm
preocupado. Forneceu-me informações bastante interessantes que
passo a referir, porque lançam muita luz sobre esses
acontecimentos20.
9. NO DIA DO GRANDE MILAGRE
(13 DE OUTUBRO DE 1917)

Depois da aparição, às sete horas da noite, em casa da família do


Francisco e da Jacinta.

Interrogatório da Lúcia
– Nossa Senhora tornou a aparecer hoje na Cova da Iria?
– Tornou.
– Estava vestida como das outras vezes?
– Estava vestida do mesmo modo.
– Apareceram também São José e o Menino Jesus?
– Apareceram.
– Apareceu mais alguém?
– Apareceu também Nosso Senhor abençoando o povo e a
Senhora de dois naipes.
– Que queres dizer com isso? A Senhora de dois naipes?!
– Apareceu a Senhora vestida como a Senhora das Dores, mas
sem espada no peito, e a Senhora vestida, não sei bem como, mas
parece-me que era a Senhora do Carmo.
– Vieram todos ao mesmo tempo, não é verdade?
– Não; primeiro vi a Senhora do Rosário, S. José e o Menino,
depois vi só Nosso Senhor, depois a Senhora das Dores e por fim a
Senhora que me pareceu ser a Senhora do Carmo.
– O Menino Jesus estava em pé ou ao colo de S. José?
– Estava ao colo de S. José.
– O Menino era crescido?
– Era pequenino.
– Que idade parecia ter?
– Era para aí dum ano.
– Porque disseste que a Senhora, duma das vezes, te pareceu
estar vestida como a Senhora do Carmo?
– Porque tinha umas coisas penduradas na mão.
– Apareceram por cima da carrasqueira?
– Não; apareceram ao pé do sol, depois de ter desaparecido a
Senhora ao pé da carrasqueira.
– Nosso Senhor estava em pé?
– Só o vi da cintura para cima.
– Quanto tempo durou a aparição na carrasqueira? O suficiente
para se poder rezar o terço?
– Não chegava, parece-me.
– E no sol as figuras, que viste, demoraram-se muito?
– Pouco tempo.
– A Senhora disse-te quem era?
– Disse que era a Senhora do Rosário.
– Perguntaste-lhe o que queria?
– Perguntei.
– E que disse ela?
– Disse que se emendasse a gente, que não ofendesse a Nosso
Senhor que estava muito ofendido, que rezasse o terço e pedisse
perdão dos nossos pecados, que a guerra acabaria hoje e que
esperássemos os nossos soldados muito brevemente.
– Disse mais alguma coisa?
– Disse também que queria que lhe fizessem uma capela na Cova
da Iria.
– Com que dinheiro se há-de edificar a capela?
– Julgo que com o que lá se juntar.
– Disse alguma coisa a respeito dos nossos soldados mortos na
guerra?
– Não falou neles.
– Disse-te que avisasses o povo, para que olhasse para o sol?
– Não disse.
– Disse que queria que o povo fizesse penitência?
– Disse.
– Empregou a palavra penitência?
– Não. Disse que rezássemos o terço e nos emendássemos dos
nossos pecados e pedíssemos perdão a Nosso Senhor, mas não
falou em penitência.
– Quando foi que começou o sinal no sol? Foi depois da Senhora
desaparecer?
– Foi.
– Viste vir a Senhora?
– Vi.
– Donde vinha ela?
– Do nascente.
– E das outras vezes?
– Das mais vezes não olhei.
– Viste-a ir-se embora?
– Vi.
– Para onde?
– Para o nascente.
– Como desapareceu?
– Pouco a pouco.
– O que desapareceu primeiro?
– Foi a cabeça. Depois o corpo. A última coisa que vi foram os
pés.
– Quando se foi embora, ia recuando ou voltou as costas ao
povo?
– Ia com as costas voltadas para o povo.
– Levou muito tempo a desaparecer?
– Gastou pouco tempo.
– Estava envolvida nalgum clarão?
– Veio no meio de um esplendor. Desta vez também cegava. De
vez em quando eu tinha de esfregar os olhos.
– Nossa Senhora tornará a aparecer?
– Não faço conta que torne a aparecer, não me disse nada.
– Não tens tenção de voltar à Cova da Iria no dia treze?
– Não tenho.
– A Senhora não fará mais milagres? Não curará enfermos?
– Não sei.
– Não lhe fizeste nenhum pedido?
– Eu disse-lhe hoje que tinha vários pedidos a despachar e ela
disse que despachava uns, outros não.
– Não disse quando os despachava?
– Não disse.
– Sob que invocação quer que se faça a capela na Cova da Iria?
– Disse hoje que era a Senhora do Rosário.
– Disse que queria que fosse lá muita gente de toda a parte?
– Não mandou lá ir ninguém.
– Viste os sinais do sol?
– Vi. Vi-o andar à roda.
– Viste também sinais na carrasqueira?
– Não vi.
– Quando era a Senhora mais bonita, desta ou das outras vezes?
– O mesmo.
– Até onde lhe descia o vestido?
– Até mais baixo que o meio da perna.

Interrogatório da Jacinta
– Além de Nossa Senhora, quem é que viste hoje, quando
estavas na Cova da Iria?
– Vi S. José e o Menino Jesus.
– Onde é que os viste?
– Vi-os ao pé do sol.
– O que é que a Senhora disse?
– Disse que rezassem o terço a Nossa Senhora todos os dias e
que a guerra acabava hoje.
– A quem é que disse isso?
– Disse-o à Lúcia e a mim. O Francisco não ouviu.
– Ouviste-lhe dizer quando vinham os nossos soldados?
– Não ouvi.
– Que mais disse ela?
– Disse que fizessem uma capela na Cova da Iria.
(Doutra vez a Jacinta expressou-se assim: “Disse que fosse a
gente fazer lá uma capela”).
– Ouviste dizer isso a ela ou à Lúcia?
– A ela.
– Donde veio a Senhora?
– Veio do nascente.
– E para onde foi quando desapareceu?
– Foi para o nascente.
– Foi-se embora recuando de frente para o povo?
– Não; voltou as costas.
– Não disse que voltassem à Cova da Iria?
– Tinha dito antes que era a última vez que vinha e hoje disse
também que era a última vez.
– A Senhora não disse mais nada?
– Disse hoje que rezasse a gente todos os dias o terço à Senhora
do Rosário.
– Onde é que ela disse que a gente devia rezar o terço?
– Não disse onde.
– Disse que o fôssemos rezar à igreja?
– Nunca disse isso.
– Onde rezas o terço com mais gosto, aqui em tua casa ou na
Cova da Iria?
– Na Cova da Iria.
– Por que gostas mais de o rezar lá?
– Por nada.
– Com que dinheiro disse a Senhora que se havia de fazer a
capela?
– Disse que fizessem uma capela, não quis lá saber do dinheiro.
– Olhaste para o sol?
– Olhei.
– Viste os sinais?
– Vi.
– Foi a Senhora que mandou olhar para o sol?
– Não mandou olhar para o sol.
– Então como pudeste ver os sinais?
– Voltei os olhos para o alto.
– O Menino Jesus estava ao lado direito ou ao lado esquerdo de
S. José?
– Estava ao lado direito.
– Estava em pé ou ao colo?
– Estava em pé.
– Vias o braço direito de S. José?
– Não via.
– Que altura tinha o Menino? Chegava com a cabeça ao peito de
S. José?
– O Menino não chegava à cintura de S. José.
– Quantos anos parecia ter o Menino?
– Era como a Deolinda do José das Neves (criança de um para
dois anos).
Segue-se finalmente o

Interrogatório do Francisco
– Desta vez também viste Nossa Senhora?
– Vi.
– Que Senhora era?
– Era a Senhora do Rosário.
– Como estava vestida?
– Estava vestida de branco e tinha o terço na mão.
– Viste S. José e o Menino?
– Vi.
– Onde os viste?
– Ao lado do sol.
– O Menino estava ao colo de S. José ou ao lado dele?
– Estava ao lado dele.
– O Menino era grande ou pequeno?
– Era pequenino.
– Era do tamanho da Deolinda do José das Neves?
– Era assim bem como ela.
– Como tinha a Senhora as mãos?
– Tinha as mãos postas.
– Viste-a só na carrasqueira ou também ao pé do sol?
– Vi-a também ao pé do sol.
– Qual era mais claro e brilhante: o sol ou o rosto da Senhora?
– O rosto da Senhora era mais claro; a Senhora era branca.
– Ouviste o que a Senhora disse?
– Não ouvi nada do que a Senhora disse.
– Quem te disse o segredo? Foi a Senhora?
– Não foi; foi a Lúcia.
– Podes dizê-lo?
– Não o digo.
– Não o dizes, porque tens medo da Lúcia; receias que ela te
bata, não é verdade?
– Não.
– Então porque não o dizes? Porque é pecado?
– O segredo é para bem da tua alma, da alma da Lúcia e da
Jacinta?
– É.
– É para bem da alma do sr. Prior?
– Não sei.
– O povo ficava triste se o soubesse?
– Ficava.
– De que lado veio a Senhora?
– Veio da banda do nascente.
– E, quando desapareceu, foi para o mesmo lado?
– Foi também para o nascente.
– Ia recuando?
– Ia com as costas voltadas para nós.
– Ia devagar ou depressa?
– Ia devagar.
– Ela caminhava como nós?
– Não caminhava; ia certinha, não mexia os pés.
– Que parte da Senhora desapareceu primeiro?
– Foi a cabeça.
– Agora viste-a tão bem como das outras vezes?
– Agora vi-a melhor que o mês passado.
– Quando era mais bonita, agora ou das outras vezes?
– Tão bonita agora como o mês passado.
10. DEPOIS DO GRANDE MILAGRE
(19 DE OUTUBRO DE 1917)

Interrogatório das crianças


No dia dezanove de Outubro de 1917, pela uma hora da tarde,
parti para Fátima pela estrada de Leiria. Cheguei àquela povoação
às três horas.
Na Cova da Iria, junto da azinheira das aparições, algumas
piedosas mulheres do campo, ajoelhadas, rezam devotamente o
terço. A azinheira, reduzida ao tronco, que tem pouco mais dum
palmo de altura, está envolta em ramos de plantas silvestres e
flores. A devoção dos peregrinos, que desejavam conservar uma
recordação do arbusto, que servira de pedestal à Virgem, durante as
aparições, aniquilou-o quase completamente. Tudo o mais se
conserva no mesmo estado em que se via no dia onze, antevéspera
da última aparição.
Dirigi-me em seguida a casa da família da Jacinta, onde se
encontravam os três videntes, que estavam sendo submetidos a um
interrogatório pelo rev.do José Ferreira de Lacerda, pároco da
freguesia dos Milagres e director do semanário “O Mensageiro”, de
Leiria, e actualmente alferes-capelão do Corpo Expedicionário
Português, o qual tinha vindo à sua terra em gozo de licença e quis,
antes de regressar a França, ver e falar com as crianças de
Aljustrel. Acompanhavam o rev.do Lacerda outro sacerdote de Leiria
e o pároco de Fátima. O número de visitantes das crianças aumenta
de dia para dia. Vêm a toda a hora, dos pontos mais distantes e
opostos do país. As crianças sentem-se bastante abatidas. A Lúcia
sobretudo, devido a ser interrogada mais detidamente, acha-se de
todo exausta, notando-se que o cansaço excessivo a obriga a
responder a algumas das perguntas que lhe são feitas sem a
atenção e reflexão que era para desejar. Responde às vezes quase
maquinalmente, sucedendo com frequência não se recordar bem de
certas circunstâncias das aparições, ao contrário do que sucedia
antes do dia treze de Outubro. Se não há cuidado em poupar as
crianças à fadiga das inquirições frequentes e demoradas, a sua
saúde corre risco de sofrer um profundo abalo.
Com autorização prévia dos pais da Jacinta, em cuja casa tinha
dormido a última noite a Lúcia, sua sobrinha, interroguei
separadamente as três crianças na presença da senhora D. Maria
Cândida Avelar e Silva e de suas filhas, as senhoras D. Laura de
Avelar e Silva, D. Maria de Avelar e Silva e D. Leonor de Avelar e
Silva Constâncio, da quinta da Comenda, Alcanhões (Santarém).
Comecei pelo interrogatório à Lúcia, que é do teor seguinte:

Interrogatório da Lúcia
– No dia treze do corrente Nossa Senhora disse que a guerra
acabava nesse mesmo dia? Quais foram as palavras que
empregou?
– Disse assim: “A guerra acaba ainda hoje, esperem cá pelos
seus militares muito breve”.
– Ela disse: “Esperem cá pelos seus militares ou “Esperai cá
pelos vossos soldados”?
– Disse: “Esperem cá pelos seus militares”.
– Mas olha que a guerra ainda continua!... Os jornais noticiam que
tem havido combates depois do dia treze!... Como se explica isto, se
Nossa Senhora disse que a guerra acabou nesse dia?
– Não sei. Só sei que lhe ouvi dizer que a guerra acabava no dia
treze. Não sei mais nada.
– Algumas pessoas afirmam que te ouviram dizer nesse dia que
Nossa Senhora tinha declarado que a guerra acabava brevemente.
É verdade?
– Eu disse tal e qual como Nossa Senhora tinha dito.
– No dia vinte e sete do mês passado fui a tua casa falar contigo,
lembras-te?
– Lembro-me de o ver cá.
– Pois nesse dia disseste-me que Nossa Senhora tinha dito que
no dia treze de Outubro vinham também S. José e o Menino Jesus e
que depois disso brevemente acabaria a guerra, não nesse dia.
– Não me recordo já bem como ela disse. Podia ter dito isso; não
sei. Talvez não entendesse bem a Senhora.
– No dia treze do corrente mandaste ao povo que olhasse para o
sol?
– Não me lembro de assim fazer.
– Mandaste fechar os chapéus?
– No outro mês atrás mandei. Da última vez não me lembro de ter
mandado.
– Sabias quando devia começar o sinal no sol?
– Não.
– Olhaste para ele?
– Olhei; parecia que era a lua.
– Porque foi que olhaste para o sol?
Olhei, porque toda a gente disse que olhassem para o sol.
– Nossa Senhora disse que pediria a seu Divino Filho pelas almas
dos soldados mortos na guerra?
– Não, senhor.
– Disse que o povo seria castigado, se não se emendasse dos
seus pecados?
– Não me lembro se ela o disse. Parece-me que não.
– No dia treze não tinhas dúvidas como agora acerca do que a
Senhora disse. Como se explicam as tuas dúvidas de hoje?
– Nesse dia lembrava-me melhor; tinha sido há menos tempo.
– Que viste há cerca dum ano? Tua mãe diz que tu e as outras
crianças viram um vulto embrulhado numa espécie de lençol, que
não deixava ver o rosto. Porque me disseste o mês passado que
não foi nada?
! .....
– Dessa vez fugiste?
– Cuido que fugi.
– No dia onze deste mês não me quiseste dizer que no dia treze
haviam de aparecer Nosso Senhor abençoando o povo e Nossa
Senhora das Dores? Foi com receio de que eu fizesse troça de ti,
como outras pessoas já tinham feito, dizendo que isso era
impossível? Ou era porque estavam presentes muitas pessoas
estranhas e tiveste acanhamento de dizer isso diante de tanta
gente?
– ! .........
– Quando foi que Nossa Senhora te disse que se haviam de dar
essas aparições no dia treze de Outubro?
– Foi no dia em que apareceu nos Valinhos ou no outro dia treze.
Não sei bem.
– Viste também Nosso Senhor?
– Vi uma figura que parecia um homem; parecia Nosso Senhor.
– Onde estava essa figura?
– Estava ao lado do sol.
– Viste-a abençoar o povo?
– Não vi; mas Nossa Senhora tinha dito que Nosso Senhor viria
abençoar o povo.
– Se o povo soubesse o segredo que Nossa Senhora te revelou,
ficava triste?
– Cuido que ficava como está, quase à mesma.
Em seguida procedi ao

Interrogatório do Francisco
– Viste no dia treze deste mês Nosso Senhor abençoando o
povo?
– Não vi. Vi, mas foi Nossa Senhora.
– Viste a Senhora das Dores e a Senhora do Carmo?
– Não vi. A Nossa Senhora parecia a que eu cá vi em baixo.
Estava vestida do mesmo modo.
– Não olhaste para o sol?
– Olhei.
– Não viste S. José e o Menino Jesus?
– Vi.
– Estavam longe ou perto do sol?
– Perto do sol.
– De que lado do sol estava S. José?
– Estava do lado esquerdo.
– E de que lado estava Nossa Senhora?
– Do lado direito.
– Onde estava o Menino Jesus?
– Estava ao pé de S. José.
– De que lado?
– Não reparei de que lado.
– O Menino era grande ou pequenino?
– Era pequenino.
– Quando a Senhora estava sobre a carrasqueira ouvias o que ela
dizia à Lúcia?
– Não ouvia.
– Ouvias o som da sua voz?
– Também não ouvia.
– Parecia que não falava?
– Parecia.
– Não a vias mexer os beiços?
– Não via.
– Não a vias rir-se?
– Também não.
– Viste os sinais do sol? Que foi que viste?
– Olhei e vi que o sol andava à roda. Parecia uma roda de fogo.
– Quando foi que apareceram os sinais, antes ou depois que a
Senhora desapareceu ao pé da carrasqueira?
– Foi quando a Senhora desapareceu.
– Ouviste a Lúcia avisar o povo para que olhasse para o sol?
– Ouvi. Deu um grito que olhasse o povo para o sol.
– Foi a Senhora que a mandou avisar o povo, para que olhasse
para o sol?
– Foi. A Senhora apontou com o dedo para a banda onde está o
sol.
– Quando foi que fez isso?
– Foi quando desapareceu.
– Os sinais do sol começaram logo?
– Começaram.
– Quais foram as cores que viste no sol?
– Vi cores muito bonitas, azul, amarelo e outras.
A inquirição da Jacinta efectuou-se no percurso de Aljustrel a
Fátima, ouvindo-a também a senhora D. Leonor de Avelar
Constâncio, que levava a criança pela mão, atrás da Lúcia e do
Francisco, que eram acompanhados pelas outras senhoras acima
mencionadas.
Eis o relato do seu interrogatório.

Interrogatório da Jacinta
– No dia treze do corrente viste ao pé do sol Nosso Senhor, a
Senhora das Dores e a Senhora do Carmo?
– Não vi.
– Mas a onze deste mês disseste-me que deviam aparecer.
– Disse. A Lúcia é que viu outra Senhora, eu não.
– Viste S. José?
– Vi. A Lúcia disse que S. José estava dando a paz.
– Olhaste para o sol?
– Olhei.
– E que é que viste?
– Vi o sol encarnado, verde e doutras cores e vi que andava à
roda.
– Ouviste a Lúcia avisar o povo para que olhasse para o sol?
– Ouvi. Ela disse numa voz muito alto que olhassem para o sol. O
sol andava à roda.
– Foi a Senhora que a mandou avisar o povo?
– A Senhora não disse nada.
– Que disse a Senhora desta última vez?
– Disse: “Venho aqui para te dizer que não ofendam mais a Nosso
Senhor, que está muito ofendido, que, se o povo se emendar, acaba
a guerra, e, se não se emendar, acaba o mundo.” A Lúcia ouviu
melhor do que eu o que a Senhora disse.
– Disse que a guerra acabava nesse dia ou que acabava
brevemente?
– Nossa Senhora disse que, quando chegasse ao Céu, acabava a
guerra.
– Mas a guerra ainda não acabou!...
– Acaba, acaba.
– Mas então quando acaba?
– Cuido que acaba no Domingo.
11. ÚLTIMOS INTERROGATÓRIOS
(2 DE NOVEMBRO DE 1917)

Interrogatório da Lúcia
– Não me tens querido dizer o que viste o ano passado.
Provavelmente julgas que se trata de uma coisa sem importância
que não vale a pena averiguar bem. Pois crê que estás enganada.
Preciso de saber o que foi que viste então e como foi que as coisas
se passaram.
– É certo que te apareceu um vulto branco?
– É.
– Em que sítio?
– Vi esse vulto no Cabeço, às Estrumeiras, ao pé da Cova da Iria.
– Quantas vezes o viste?
– Não me recordo quantas vezes.
– Viste-o no chão ou em cima de alguma árvore?
– Vi-o em cima de uma azinheira.
– O que te parecia esse vulto?
– Parecia-me uma pessoa embrulhada num lençol.
– Dirigiste-lhe a palavra?
– Não lhe disse nada.
– Andavas sozinha ou estavam contigo outras pessoas?
– Da 1ª vez eu andava com a Teresa do José Matias da Casa
Velha, e com o Manuel do Justino Pereira.
– Eles também viram?
– Disseram que também tinham visto.
– Da 2ª vez quem estava presente?
– Estavam o Manuel do José das Neves, de Aljustrel, e o Manuel
da Maria de Jesus, da Casa Velha.
– E da 3ª vez?
– Da 3ª vez andávamos só eu e o João Marto que disse que não
tinha visto.
– O vulto estava de cada vez na mesma árvore?
– Apareceu em mais de uma árvore de cada vez.
– Como estava vestido?
– Estava todo vestido de branco. Eu não lhe via os braços nem os
pés. – Quem viu primeiro o vulto?
– Os outros viram primeiro e disseram-me.
– Quanto tempo se demorou?
– Demorou-se pouco tempo.
– Disse alguma coisa?
– Não disse nada.
– Quem julgas que fosse esse vulto?
– Não sei o que era. – Era Nossa Senhora?
– Cuido que não era Nossa Senhora.
– É verdade que uma vez em que estavas a rezar o terço, o gado
que apascentavas foi para o campo onde havia trigo e chícharo já
crescido, sem que comesse nenhuma dessas plantas?
– É verdade.
– Quando foi que isso sucedeu?
– Não me recordo, mas parece-me que foi num Domingo.
– Não viste o gado comer o trigo e o chícharo?
– Não vi.
– Mas sabes com certeza que não comeu?
– Sei, porque um dos donos da propriedade disse que o gado não
tinha dado perda.
– Afastaste o gado desse sítio?
– Afastámo-lo depois de rezar o terço.
– A quem pertencia a propriedade?
– Pertencia ao José Matias e a Francisco António da Casa Velha.
São dois talhões pegados.
– Porque não afastaste o gado logo que o viste ir para o campo
semeado?
– Não afastei logo porque queria rezar o terço.
– Não receavas que ele comesse o que estava semeado?
– Pensava que ele comia, mas deixei-o andar.
– Então não sabias que a tua obrigação era retirares
imediatamente o gado para que ele não causasse dano?
– Já me confessei dessa falta.
– Ouvi contar que tinhas dito a uma pessoa que havias de viver
mais de vinte anos. É verdade?
– Não me recordo.
– Antes de cada aparição vias algum relâmpago?
– Às vezes via um, outras vezes via dois. Os ares estavam turvos,
como de trovoada.
– Da primeira vez que a Senhora te apareceu o céu estava sem
nuvens?
– Não me recordo se havia nuvens.
– Quando a Senhora te apareceu da 1ª vez o que é que estavas a
fazer?
– Rezei o terço antes de ela vir.
– Quando sucedeu a primeira aparição ajoelhaste-te ou ficaste de
pé?
– Da primeira vez fiquei de pé.
– A Senhora vinha sempre envolta num esplendor?
– Vinha.
– De que cor era esse esplendor?
– Era muito claro, muito branco.
– O esplendor aparecia primeiro que a Senhora?
– Aparecia quase ao mesmo tempo que a Senhora.
– Da primeira vez pediste ao Francisco e à Jacinta que não
dissessem à família nada do que tinham visto?
– Pedi.
– Porquê?
– Porque o ano passado minha mãe ralhou-me, quando eu lhe
disse que tinha visto o vulto branco, e disse-me que eu andava a
mentir.
– Tua mãe soube por ti da 1ª aparição?
– Não; foi pelo Francisco e pela Jacinta ou por pessoas a quem
eles tivessem contado o que viram.
– Conta-me o que ouviste dizer à Senhora em Maio.
– Em Maio a Senhora disse que não tivéssemos medo porque
não nos fazia mal. Perguntei-lhe donde era e ela disse-me que era
do Céu. Perguntei-lhe o que queria e ela respondeu que fôssemos
lá todos os meses de mês a mês e ao fim de seis meses dizia o que
queria.
– Porque foste daí em diante ao local das aparições no dia 13 e
não noutro dia de cada mês?
– Fui no dia 13 porque fazia um mês. Entendi que devia ir no dia
13, porque o dia da primeira aparição era 13.
– Fizeste-lhe mais algumas perguntas?
– Perguntei se íamos para o Céu e a Senhora disse que sim, mas
que o Francisco devia rezar as contas.
– A Senhora disse mais alguma coisa?
– Talvez dissesse mais alguma coisa, mas não me lembro.
– O que foi que disse a Senhora em Junho?
– Disse que continuássemos a ir à Cova da Iria e que
aprendêssemos a ler.
– Disse mais alguma coisa?
– Estava presente um filho do Manuel Carreira, da Moita,
aleijadinho das pernas e das costas. Perguntei à Senhora se o
curava, e ela disse que seria curado dentro de um ano. Já se curou
pouco a pouco das costas. Perguntei também se a Senhora era
servida converter uma mulher da Moita e ela disse que a converteria
dentro de um ano.
– Que mais disse a Senhora?
– Não me recordo de mais nada.
– Que disse a Senhora em Julho?
– Disse que continuássemos a ir à Cova da Iria e que rezássemos
o terço a Nossa Senhora do Rosário para que abrandasse a guerra,
que só ela lhe poderia valer. Pedi à Senhora a cura de enfermos e a
conversão de pecadores que me tinham recomendado e ela disse-
me que melhoraria uns, outros não, e converteria uns, outros não.
– Disse mais alguma coisa?
– Não me recordo que tivesse dito mais nada nesse dia.
– Que disse a Senhora em Agosto?
– Em Agosto não fui lá.
– Mas que disse ela no domingo seguinte quando te apareceu no
sítio dos Valinhos?
– Nos Valinhos disse que se não tivéssemos sido presas não
seria o milagre tão conhecido e que teriam vindo S. José com o
Menino dar a paz ao mundo e Nosso Senhor dar a bênção ao povo.
– Que mais disse Ela?
– Perguntei-lhe o que devia fazer ao dinheiro que se tinha juntado
e ela disse que o levássemos em dois andores à Senhora do
Rosário, nos dias das festas da Senhora do Rosário.
– Foste tu que te lembraste de fazer essa pergunta?
– Não; quem tinha o dinheiro é que me mandou fazer essa
pergunta.
– A Senhora não disse mais nada?
– Tornei a pedir pelos doentes e pecadores recomendados e ela
disse que uns seriam melhorados e outros convertidos dentro de um
ano. Nesse dia não lhe perguntei mais nada.
– O que disse a Senhora em Setembro?
– Não me recordo do que Ela disse. Talvez fosse nesse dia que
disse que em 13 de Outubro havia de vir S. José com o Menino e
Nosso Senhor dar a bênção ao povo e Nossa Senhora do Rosário
com um anjinho de cada lado e Nossa Senhora das Dores com um
arco de flores.
– A treze de Outubro viste os anjinhos e o arco de flores?
– Não vi, não reparei, quando a Senhora apareceu ao pé do sol.
– O que disse a Senhora em Outubro?
– Perguntei-lhe o que me queria. Disse que não ofendessem mais
a Deus Nosso Senhor, que já estava muito ofendido, que rezassem
o terço a Nossa Senhora do Rosário que lhes perdoasse os
pecados (sic), querendo ir para o Céu, e disse também que queria
que fizessem ali uma capelinha à Senhora do Rosário ou que ela
era a Senhora do Rosário. Eu não sei se ela disse “à Senhora do
Rosário” ou “eu sou a Senhora do Rosário”.
– Que mais disse ela?
– Eu disse-lhe que tinha muitos pedidos de curas e conversões e
ela disse que melhoraria e converteria uns, outros não.
– Não disse mais nada?
– Disse: “a guerra acaba hoje e esperem cá pelos seus militares
muito breve”.
– Não disse que a guerra acabava logo que chegasse ao Céu?
– Não me recordo se disse que era logo que chegasse ao Céu.
– Nesse dia disseste ao povo que fechasse os chapéus?
– Não me recordo que o dissesse.
– Soltaste um grito dizendo ao povo que olhasse para o sol?
– Não me recordo que soltasse tal grito.
– É verdade que a Senhora apontou para o sol?
– Não me recordo que o tivesse feito.
– De que cor era o traje de Nossa Senhora ao pé do sol?
– O manto era azul e o vestido branco.
– E o de Nosso Senhor, o de S. José e o do Menino?
– O de S. José era encarnado, e o de Nosso Senhor e o do
Menino penso que também eram encarnados.
– Quando foi que perguntaste à Senhora o que é que fazia para
que o povo acreditasse que era ela que te aparecia?
– Perguntei-lhe umas poucas de vezes; a primeira vez que
perguntei cuido que foi em Junho.
– Quando te disse o segredo?
– Parece-me que foi da 2ª vez.

Interrogatório da Jacinta
– O que foi que disse a Senhora da primeira vez que apareceu, no
mês de Maio?
– A Lúcia perguntou o que lhe queria e ela disse que fôssemos lá
de mês a mês até fazer seis meses e que no último mês diria o que
queria.
– A Lúcia fez-lhe mais alguma pergunta?
– Perguntou se ela ia para o Céu e a Senhora disse que sim.
Perguntou depois se eu ia para o Céu e ela disse que sim. Depois
perguntou se o Francisco ia para o Céu e ela disse que sim, mas
que havia de rezar as contas.
– A Senhora disse mais alguma coisa?
– Não me lembro que tivesse dito mais nada nesse dia. Foi dessa
vez que o gado foi para os chícharos.
– Que disse a Senhora da segunda vez, em Junho?
– A Lúcia disse: O que me quer? A Senhora respondeu: quero
que aprendam a ler.
– A Lúcia fez mais alguma pergunta?
– Pediu pelos doentes e pecadores e a Senhora disse que
melhorava uns e os convertia, outros não.
– A Senhora disse mais alguma coisa?
– Naquele dia não disse mais nada.
– O que disse a Senhora em Agosto?
– Em Agosto não fomos lá.
– Queres dizer o que foi que a Senhora disse no domingo
seguinte nos Valinhos?
– A Lúcia perguntou à Senhora se trazia o meu Manuel (um irmão
da Jacinta que está servindo no exército em Cabo Verde) e ela disse
que trazia cá todos.
– Que mais disse a Senhora?
– Disse que, se não abalássemos para Ourém, viria S. José e o
Menino dar a paz ao mundo e Nossa Senhora do Rosário com dois
anjinhos, um de cada lado.
– Que mais disse?
– Disse que fizéssemos dois andores e que os levássemos à festa
da Senhora do Rosário, que eu, a Lúcia e mais duas meninas
vestidas de branco levássemos um e o Francisco com três rapazes
levasse o outro.
– Disse mais alguma coisa?
– Não disse nada.
– Que disse a Senhora em Setembro?
– Não me recordo.
– Que disse a Senhora em Outubro?
– A Lúcia disse: “Que me quer”? A Senhora respondeu: “não
ofendam mais a Nosso Senhor que estava muito ofendido”. Disse
que perdoava [sic] os nossos pecados, querendo ir para o Céu.
Disse também que rezasse a gente o terço. Disse que esperassem
cá os militares muito breve e que acabava a guerra naquele dia.
Disse que fizesse a gente lá uma capela e não sei se disse “à
Senhora do Rosário” ou que “ela era a Senhora do Rosário”.

Novo interrogatório da Jacinta


No mesmo dia dois de Novembro, antes do precedente:
– De que lado estava o Menino Jesus quando o viste no dia treze
de Outubro ao pé do sol?
– O Menino Jesus estava no meio, ao lado direito de S. José,
ficando Nossa Senhora do lado direito do sol.
– A Senhora que viste ao lado do sol era diferente da que viste
sobre a carrasqueira?
– A Senhora que estava ao pé do sol tinha fato branco e manto
azul, a que eu vi ao pé da carrasqueira tinha o fato e o manto
brancos.
– De que cor eram os pés da Senhora que apareceu na
carrasqueira?
– Os pés da Senhora eram brancos, cuido que ela trazia meias.
– De que cor era o fato de S. José e o do Menino?
– O de S. José era encarnado, o do Menino parece-me que era
também encarnado.
– Quando foi que a Senhora revelou o segredo?
– Cuido que foi em Julho.

Interrogatório do Francisco
– De que lado estava o Menino Jesus quando o viste ao pé do
sol?
– Estava mais perto do sol, do lado esquerdo dele, mas do lado
direito de S. José.
– A Senhora que viste ao pé do sol era diferente da que viste
sobre a carrasqueira?
– A Senhora que estava ao pé do sol parecia a mesma que eu cá
vi em baixo.
– Viste Nosso Senhor abençoando o povo?
– Não vi Nosso Senhor.

Novo interrogatório da Lúcia


Antes do precedente no mesmo dia.
– O que a Senhora trazia nos pés eram meias? Tens a certeza
disso?
– Cuido que eram meias, mas podiam não ser.
– Tu nunca disseste o segredo, nem mesmo disseste que o povo
ficava triste se o soubesse. O Francisco e a Jacinta dizem que
ficava triste. Se tu não podes dizer isso, também eles o não podiam
dizer. Que te parece?
– Não sei se eles deviam ou não dizer, que o povo ficava triste.
Nossa Senhora disse que não devíamos dizer nada a ninguém. Por
isso não posso dizer nada.
– Tu disseste uma vez que a Senhora tinha meias brancas. Então
eram as meias ou eram os pés?
– Se eram meias, eram brancas, mas eu não sei ao certo se eram
meias ou se eram os pés.
– A saia era sempre do mesmo comprimento?
– A saia da última vez parecia mais comprida.

Breve interrogatório da Lúcia


A três de Novembro
– Quando foi que a Senhora te ensinou a oração que devias rezar
depois de cada mistério?
– Parece-me que foi no terceiro mês.
– Quantas foram as pessoas que a Senhora prometeu curar e
converter?
– Eu pedi por muitas e ela disse que curava e convertia umas,
outras não.
– Quantas vezes lhe fizeste esse pedido?
– Parece-me que foi cinco vezes, ora por umas pessoas, ora por
outras.

Interrogatório de João Marto


De 14 [sic, por 11] anos de idade, irmão do Francisco e da
Jacinta.
– A 19 de Agosto, com quem andavas tu a apascentar o gado nos
Valinhos?
– Andava com o Francisco e a Lúcia.
– A Jacinta também estava presente?
– Não estava.
– A Lúcia pediu-te que a fosses chamar?
– Pediu.
– O que foi que ela te disse?
– Disse-me que fosse chamar a Jacinta, porque parecia que ia
aparecer Nossa Senhora.
– E tu foste logo chamá-la?
– Não; eu não queria ir, mas a Lúcia deu-me um vintém para que
eu fosse, e então fui.
– A Jacinta estava em casa?
– Não estava; só encontrei lá a mãe, minha irmã estava à porta da
casa da Lúcia.
– Ela quis ir de boa vontade aos Valinhos?
– Quis.
– Quando chegaram, o que estavam fazendo a Lúcia e o
Francisco?
– Estavam sentados, mas levantaram-se quando chegámos.
– O que fizeram depois?
– A Lúcia disse à Jacinta que olhasse para onde parecia que
devia aparecer Nossa Senhora. A Jacinta pôs-se a olhar para esse
lado.
– Puseram-se todos de joelhos?
– Não; todos estavam de pé. A Lúcia não ajoelhou.
– Viste alguma coisa?
– Não vi nada. Só ouvi a Lúcia falar com Nossa Senhora ao pé da
carrasqueira.
– Ouviste o que Nossa Senhora disse?
– Não ouvi.
– O que foi que a Lúcia disse à Senhora?
– Perguntou-lhe o que é que ela cá vinha fazer.
– Ouviste a resposta da Senhora?
– Não ouvi, mas a Lúcia esteve um bocadito à espera.
– A Lúcia fez mais perguntas?
– Fez. Tornou a falar, mas não me lembro do que disse, a não ser
da última pergunta que foi se ela trazia cá o meu Manuel.
– A Lúcia não te contou depois o que a Senhora lhe tinha dito?
– Disse-me no mesmo dia ao pé da carrasqueira, logo de
caminho, que, se não fosse levada para a aldeia (Vila Nova de
Ourém) no dia 13, o milagre não seria tão conhecido.
– Que horas eram quando Nossa Senhora apareceu?
– Era quase noite.
– Demoraram-se ainda muito no sítio?
– O Francisco e a Jacinta vieram-se embora e ficámos eu e a
Lúcia. O Francisco e a Jacinta voltaram e disseram-me depois que
tinham ido rezar lá, mas eu fiquei longe a guardar as ovelhas e não
as ouvi rezar.
12. A MORTE DE FRANCISCO MARTO

Francisco Marto, primo de Lúcia de Jesus, a protagonista das


aparições de Fátima, adoeceu gravemente no dia vinte e três de
Dezembro de 1918, atacado da terrível epidemia bronco-
pneumónica, que então grassava em todo o mundo. Nessa data,
todas as pessoas da sua família estavam de cama, feridas pelo
mesmo flagelo, à excepção do pai. Este e algumas vizinhas
caridosas tratavam desveladamente dos enfermos, envidando todos
os esforços para que nada lhes faltasse.
Durante cerca de quinze dias a inocente criança ficou retida no
leito com a força da doença, segundo a expressão da mãe,
levantando-se nos princípios de Janeiro num estado de grande
fraqueza que, longe de diminuir, foi pelo contrário aumentando de
dia para dia. Uma vez durante as aparições, tendo a Lúcia
perguntado à misteriosa Senhora que lhe falava, se ela e a Jacinta
iriam para o Céu, e obtendo resposta afirmativa, fez idêntica
pergunta acerca do Francisco, respondendo a Visão que também
lhe caberia tamanha ventura, mas que primeiro havia de rezar
muitas vezes o terço.
Desde esse momento até adoecer, o ditoso vidente nunca mais
deixou passar um dia sem oferecer essa singela homenagem à
Rainha do Céu.
Depois que se levantou da cama, não sentindo às vezes forças
para rezar o terço inteiro, dizia tristemente à mãe que não podia
rezar senão metade. A boa mulher procurava tranquilizá-lo
lembrando que, se lhe custasse pronunciar as palavras da Oração
Dominical e da Saudação Angélica, dissesse essas orações só com
o pensamento, que Nossa Senhora lhe aceitaria o seu obséquio
com o mesmo agrado. Recomendava frequentemente à mãe que
não se esquecesse da oração que a Santíssima Virgem tinha
ensinado aos três videntes, porque ele nunca se esquecia de a
rezar. E, quando a pobre mulher se lamentava de que não raro a
omitia por lapso da memória, o pequeno ponderava-lhe que a podia
rezar mesmo pelos caminhos.
Uma vez por outra queixava-se sentidamente de que não sabia
oferecer o terço como muita gente tinha a felicidade de saber, o que
lhe causava bastante pena.
Apesar de nunca mais ter tido saúde, de quando em quando dava
um pequeno passeio, chegando a ir até à Cova da Iria. Quando
alguém lhe asseverava que havia de melhorar, a sua resposta era
logo um não, proferido com um ar misterioso e num tom que
impressionava extraordinariamente. Como um dia sua madrinha
Teresa de Jesus prometesse, na presença dele, pesá-lo a trigo se
Nossa Senhora o melhorasse, declarou peremptoriamente que era
inútil fazer essa promessa, porque jamais alcançaria a graça da sua
cura. Possuía uma consciência em extremo delicada, sem embargo
da sua pouca idade e de haver recebido uma formação religiosa
muito deficiente e rudimentar. Uma vez em que o aconselhavam a
levar as ovelhas, confiadas à sua guarda, pela orla das
propriedades da madrinha, que decerto se não opunha a isso, não
quis fazê-lo sem licença expressa dela por julgar que fosse um
roubo.
No dia dois de Abril a família, achando-o pior de saúde, mandou-o
recolher à cama e chamou o pároco para o confessar. Não tinha
ainda feito a sua primeira comunhão e por isso receava que não lhe
fosse permitido receber Nosso Senhor. Grande, extraordinária até,
foi, pois, a sua alegria, quando o pároco lhe prometeu trazer no dia
seguinte de manhã o Sagrado Viático. Na véspera pediu à mãe que
o deixasse estar em jejum até essa hora, pedido a que ela acedeu
sem relutância assegurando-lhe que não lhe daria nada a tomar
depois da meia noite.
Quando chegou o pároco com o Santíssimo Sacramento, quis
sentar-se na cama para se confessar e comungar, o que não lhe foi
consentido. Ficou radiante de contentamento por ter recebido pela
primeira vez no seu peito o Pão dos Anjos e, quando o pároco se
retirou, perguntou à mãe se não tornaria a comungar, ao que ela
retorquiu que o não sabia.
Durante o resto do dia pediu de tempos a tempos água e leite. À
noite pareceu agravar-se ainda mais o seu estado, mas,
perguntando-lhe a mãe como se sentia, declarou que não estava
pior e que não lhe doía nada.
No dia seguinte, sexta-feira, cinco de Abril, pelas dez horas da
manhã, sem agonia, sem um gemido, nem um ai, com um ligeiro
sorriso à flor dos lábios, a alma daquele anjo da terra desprendia-se
suavemente dos frágeis liames do corpo e voava para o seio de
Deus. Contava dez anos, nove meses e vinte e quatro dias de
idade, pois tinha nascido no dia onze de Junho de 1908, às três
horas da noite21.
As suas últimas palavras foram para a madrinha, a quem pediu,
alguns instantes antes de soltar o derradeiro suspiro, quando a viu
assomar à porta, que o abençoasse e perdoasse os desgostos que
porventura lhe tivesse dado.
Os seus despojos mortais jazem sepultados em campa rasa no
humilde cemitério paroquial de Fátima.
13. A MORTE DE JACINTA MARTO

É crença geral entre o povo que toda a família dos videntes de


Fátima, assim como também estes, estão condenados a
desaparecer dentro de pouco tempo, e acrescenta-se que isso lhes
teria sido anunciado pela Aparição. Qualquer que seja o fundamento
desta crença, o certo é que o pequeno Francisco, irmão da Jacinta,
já faleceu, a Jacinta também, assim como uma irmã dela, o pai da
Lúcia da mesma forma, e a mãe esteve há pouco tempo à morte.
Das três crianças resta apenas a Lúcia, que era a que conversava
com a Senhora, segundo ela afirma.
A Jacinta, que era relativamente robusta, foi acometida pela
pneumónica, donde lhe resultou uma pleurisia purulenta, seguida
doutras complicações.
Tendo vindo a Fátima um distinto especialista da capital, e tendo
observado a pequena, empenhou-se em que ela fosse para Lisboa,
a fim de ver se, por meio duma operação, ainda era possível salvá-
la.
Buscou-se alojamento em casa dalgumas pessoas abastadas,
mas não se conseguiu.
Foi então hospedar-se na pobre morada duma modesta criatura
que a recebeu de bom grado, com grande contentamento da
pequena que, tirada do seu meio provinciano, toda ela era
acanhamento e confusão.
Para fazer a operação escolheu-se o hospital de D. Estefânia.
Antes, porém, de recolher ao hospital, a criança disse que a
Senhora lhe havia aparecido, assegurando-lhe que morria, e por
esse motivo achava que a operação era inútil.
Apesar disso, e muito embora ela insistisse em afirmar que tudo
era inútil, fez-se-lhe a operação, que correu bem, conquanto sem
êxito feliz, como se viu.
Quatro dias antes de morrer, como a pequena tivesse grandes
dores e se queixasse, dizia-lhe a criatura que a havia recolhido e a
quem tratava por madrinha, que suportasse com paciência as suas
dores, que isso seria muito agradável a Deus.
Na manhã do dia seguinte disse-lhe a Jacinta:
– Olhe, madrinha! Eu já não me queixo! Nossa Senhora tornou-
me a aparecer, dizendo que em breve me viria buscar e que me
tirava as dores!
E de facto, desde esse dia até que morreu, segundo consta, não
tornou a queixar-se, nem deu mostras de sofrimento.
Tendo sucedido a madrinha passar ou sentar-se ao pé da cama,
não longe do sítio em que a Jacinta disse ter visto a Senhora, a
vidente exclamou:
– Tire-se daí, madrinha, que aí esteve a Senhora!...
E a mesma preocupação se lhe apresentava, quando alguma
enfermeira passava pelo mesmo sítio.
Como fossem ao hospital algumas pessoas, imodestamente
vestidas, ou visitá-la, ou ver outros doentes, e algumas enfermeiras
se apresentassem com certos exageros, no traje, dizia indicando
essas pessoas e referindo-se a determinados enfeites e decotes:
– Para que serve aquilo!? Se soubesse o que é a eternidade!...
Falando dalguns médicos que ela julgava serem incrédulos,
lastimava-os dizendo:
– Coitados, mal sabem o que os espera!
Afirmava a vidente que Nossa Senhora lhe havia comunicado:
que o pecado que leva mais gente à perdição era o pecado da
carne, que era preciso deixarem-se de luxos, que não deviam
obstinar-se no pecado como até aqui, e que era preciso fazer muita
penitência.
E parece que a Senhora, ao dizer isto, se mostrava muito
consternada, porque a pequena acrescentava:
Ai! Eu tenho muita pena de Nossa Senhora! Tenho muita pena!
Enquanto esteve em casa, antes de ir para o hospital, vivia em
companhia doutra pequenita, a quem recomendava muitas vezes
que fosse muito obediente, que não fosse preguiçosa e que nunca
faltasse à verdade.
Pouco antes de morrer, perguntando-lhe se queria tornar a ver a
mãe, respondeu: que a família dela durava pouco tempo e que em
breve se encontrariam no Céu.
Disse mais que Nossa Senhora devia ainda aparecer outra vez,
mas não a ela, porque com certeza morria, segundo ela lhe disse.
Pediu licença para se confessar, muito embora se tivesse
confessado e comungado antes de entrar para o hospital.
Foi confessá-la o rev.do prior dos Anjos, dr. Pereira dos Reis, mas
não teve tempo de lhe dar a Sagrada Comunhão.
Entrou para o hospital no dia dois de Fevereiro e morreu no dia
vinte.
Depois de falecer, alguém aventou a ideia de a transportarem
para a terra da sua naturalidade e assim se fez, promovendo-se
uma subscrição para esse fim.
Muitas pessoas que a não tinham querido receber em sua casa,
depois que a pequena morreu já se mostravam solícitas em lhe
prestar homenagem, até talvez com um bocadinho de exagero, o
que provocou alguns reparos justos dum ilustre sacerdote.
Esteve o cadáver da pequena na casa do despacho da igreja dos
Anjos, aguardando a remoção para a estação e as necessárias
formalidades, saindo depois com grande acompanhamento.
Alguém notou a coincidência de, quando saiu o enterro, se achar
na igreja o dr. Domingos Pinto Coelho e algumas pessoas da
família, que por incidente ali haviam ido, e relacionou este facto com
o célebre artigo escrito por esse ilustre advogado em Outubro de
1917, o qual apesar de ortodoxo, motivou reparos dalguma gente
que ferve em pouca água.
A pequena deixou dois segredos para uma pessoa que se tem
interessado por este assunto.
Em suma e em conclusão:
Deus permita que a luz da verdade resplandeça sobre este caso,
não só pelo que possa ter de miraculoso, como pelas
consequências que daí possam resultar para a regeneração
espiritual desta nossa querida Pátria.
Entretanto, seja como for, vamos nós cumprindo a exortação que
a pequena atribui a Nossa Senhora e que é, afinal, a doutrina da
Igreja.
Façamos penitência! Evitemos o luxo e o pecado da carne! Não
nos obstinemos no pecado, para que não nos suceda como a uns
infelizes a quem a pequena se referiu, quando, dizendo-lhe a
madrinha que era preciso também orar por sua intenção, ela
respondeu:
Pois sim, madrinha, mas esses já não têm remédio.
II PARTE

GRANDES MANIFESTAÇÕES DE
FÉ E PIEDADE
1. GLÓRIA E REPARAÇÃO

Treze de Maio de 1922.


Que deliciosas recordações não desperta esta data memorável
nas almas crentes e piedosas dum país inteiro! Cinco anos são
passados, depois que, segundo o testemunho de três inocentes
crianças, a augusta e gloriosa Rainha dos Anjos se dignou aparecer
pela primeira vez nas cumeadas da serra de Aire para derramar
graças de predilecção sobre o povo que a havia escolhido como sua
Padroeira.
Fátima! É para esta terra bendita, para o seu imponente santuário,
que tem por pavimento a montanha, por paredes o horizonte e por
cúpula a abóbada celeste, para a sua singela capelinha, que mãos
sacrílegas ousaram profanar, para a sua fonte maravilhosa,
manancial perene de curas extraordinárias, é para este verdadeiro
cantinho do Éden que no dia de hoje se volvem, de todos os pontos
de Portugal, os olhos e os corações de centenas de milhar de fiéis.
Nesta hora solene entre as mais solenes, não há cidade, por mais
remota e esquecida, não há aldeia, ainda a mais humilde e
ignorada, onde ao menos alguns lábios não suspirem, trémulos de
comoção, o nome dulcíssimo de Fátima, onde sequer alguns
corações não palpitem de júbilo e entusiasmo ao evocar o suave e
místico encanto que este nome encerra.
Ainda há bem pouco tempo Fátima era apenas uma insignificante
e quase desconhecida povoação.
E contudo hoje, dum extremo ao outro de Portugal, milhões de
vozes a proclamam a terra privilegiada entre as terras, onde as
almas atribuladas, os corações doloridos e os corpos martirizados
vão buscar luz e conforto, alegria e paz, remédio ou lenitivo para as
suas mágoas, para as suas angústias, para os seus incomportáveis
sofrimentos físicos ou morais.
De facto, a outrora ignorada Fátima é actualmente o mais belo
centro de devoção a Nossa Senhora no nosso país.
À voz augusta da Mãe de Deus, que se dignou aparecer a três
humildes pastorinhos, centenas de milhar de peregrinos e visitantes
acorrem de toda a parte, em ondas impetuosas, com um entusiasmo
que recorda o das Cruzadas, e perante o minúsculo santuário
comemorativo das aparições desfilam cheios de respeito e
veneração e com as almas transbordando da mais intensa e mais
pura alegria.
Ah! como são simultaneamente belos e grandiosos na sua
incomparável simplicidade esses cortejos intermináveis que circulam
naquela imensa esplanada, celebrando as glórias e cantando as
misericórdias da augusta Virgem do Rosário!
Que espectáculo surpreendente nos oferece a multidão
inumerável dos abandonados da ciência humana que ali vão buscar
remédio, lenitivo ou conforto para as suas terríveis enfermidades!
Salvé, Fátima, formoso oásis do deserto da vida, jardim
perfumado pelas brisas do Céu, terra sagrada e bendita, onde cada
rochedo assinala um prodígio e cada pedra é testemunha duma
bênção da Imaculada!
Salvé, mil vezes salvé!
Há pouco mais de dois meses, em seis de Março, a horas mortas
da noite, a ordeira e pacífica população de Fátima acordava
sobressaltada com o eco formidável da explosão de quatro bombas
de dinamite colocadas por mãos criminosas de sectários facciosos e
intolerantes no interior da modesta ermida que a piedade popular
tinha erguido na Cova da Iria como padrão comemorativo das
aparições.
A notícia do hediondo e sacrílego atentado voou com a rapidez do
relâmpago do norte ao sul do país e provocou em todas as almas
bem formadas um sentimento unânime de indignação e de protesto,
pondo mais uma vez em foco essa pitoresca aldeia, graciosamente
alcandorada num dos contrafortes da serra de Aire, onde há cinco
anos se deram acontecimentos maravilhosos, que jamais se
apagarão da memória dos homens. Toda a imprensa se referiu a
esse atentado com palavras de viva reprovação, cujo eco se
repercutiu nas duas casas do parlamento, tendo o governo
prometido pela voz do ministro das colónias castigar os seus
autores com todo o rigor das leis e sem nenhuma espécie de
contemplação.
No dia treze do mesmo mês, por iniciativa do rev.do pároco,
realizou-se em Fátima uma solene procissão de desagravo. Quatro
mil pessoas acompanharam o majestoso cortejo desde a igreja
paroquial até ao lugar das aparições, num percurso de cerca de três
quilómetros. Nesse local estavam já naquele momento mais de seis
mil pessoas. Num altar improvisado em frente da capela celebrou-se
uma missa campal, durante a qual a multidão ajoelhada rezou, com
recolhimento e fervor, o terço do Rosário. Era sobremaneira
comovente o espectáculo daquela imensa multidão, de mãos postas
e orando, em que se viam pessoas de todas as classes e condições
sociais. Foi uma grandiosa e edificantíssima manifestação de fé e
amor à Virgem, que não teria revestido tamanho brilho e
imponência, se não fora o repugnante e execrando atentado.
Mas a piedade dos católicos, ofendidos no mais íntimo, mais
delicado e mais respeitável dos seus sentimentos, não ficou
plenamente satisfeita com este acto soleníssimo de desagravo.
Espontaneamente, sem convites, sem preparação de espécie
alguma, um movimento nacional de fé e reparação começa a
esboçar-se, toma vulto e cresce desmesuradamente de dia para dia
até se converter, em treze de Maio, na mais estupenda e
significativa manifestação religiosa dos últimos tempos em Portugal.
Desejando presenciar essa cena de incomparável beleza, esse
espectáculo assombroso e empolgante, que por todos os títulos
devia revestir a grandiosidade duma autêntica apoteose, tomámos o
comboio que parte da estação do Rossio às seis horas e cinquenta
minutos da tarde. Eram quase onze horas da noite quando
chegámos a Torres Novas. No hotel daquela importante vila
estremenha já não havia um único quarto disponível. Valeu-nos
nessa contingência imprevista a gentileza cativante dum médico
nosso amigo que providencialmente encontrámos e que, com a
fidalga hospitalidade tradicional na sua família, nos ofereceu em sua
casa pousada e agasalho, que aceitámos gostosamente.
Durante toda a noite passaram sem cessar grupos de peregrinos
que, pelos caminhos ásperos e pedregosos da serra, se dirigiam
para Fátima.
No dia seguinte de manhã havia na histórica vila um movimento
desusado, só comparável com o dos dias mais festivos do ano. Nas
esquinas das ruas estavam afixados exemplares dum pasquim
intitulado A Comédia de Fátima e dum manifesto em resposta
subordinado à epígrafe Uma especulação reaccionária. Era mais um
episódio, eloquentemente significativo, da eterna luta entre o bem e
o mal.
Centenas de peregrinos visitavam as igrejas, assistiam às missas,
comungavam e, após a acção de graças, encaminhavam-se para a
praça atulhada de camiões, camionetas, automóveis, trens e outros
veículos, a fim de ocuparem os lugares que lhes estavam
reservados.
Os trens partiam primeiro, tomando a direcção de Pedrógão e
subindo vagarosamente a estrada da serra, pitoresca em extremo,
mas bastante íngreme. Pouco depois das oito horas põem-se em
andamento os camiões e automóveis que, por não poderem
atravessar a serra, têm de fazer um percurso quase três vezes mais
longo, dando a volta por Vila Nova de Ourém. O automóvel que nos
transporta adianta-se a todos os outros.
Duas horas mais tarde, depois de contemplarmos por momentos
o histórico castelo de Ourém, de que foi titular o Santo Condestável
D. Nuno Álvares Pereira, subíamos, com a velocidade de quarenta
quilómetros à hora, a linda e magnífica estrada que conduz
directamente a Fátima. Era constante o trânsito de veículos de toda
a espécie, desde os automóveis luxuosos até aos carros das fainas
agrícolas e às carroças mais ordinárias. Ranchos de homens e
mulheres de todas as idades e condições seguiam a pé para
Fátima, rezando o terço do Rosário ou cantando cânticos sagrados.
Na véspera e durante toda a manhã choveu sempre, com
pequenas intermitências. Estamos já no alto da serra, donde se
desfruta um lindíssimo panorama. Parámos junto da igreja
paroquial, que anda em obras, as quais se vão realizando muito
lentamente por falta de recursos.
Entrámos, ouvimos missa e comungámos. Tomado algum
alimento, incorporámo-nos na procissão, que entretanto se tinha
organizado e se punha em marcha para a “Cova da Iria”.
Era uma visão do Céu, que encantava e comovia até às fibras
mais íntimas da alma.
O governador civil de Santarém tentara impedir a todo o custo o
cortejo religioso, que classificava de “parada das forças
reaccionárias de todo o país”. Felizmente o administrador do
concelho, assumindo uma atitude digna e correcta e sobremodo
prestigiosa para as Instituições, houve por bem não cumprir as
ordens do governador civil, que por sectarismo estreito e odiento
não hesitava em cometer um inqualificável abuso de autoridade. O
presidente do ministério, entrevistado por um jornalista católico,
afirmou dum modo peremptório que o governo não tinha proibido a
peregrinação a Fátima.
E, efectivamente, em que sofriam as Instituições ou como
perigava a República com aquela romagem piedosa?
A procissão prosseguia lentamente a sua marcha ovante em
demanda do sítio das aparições. De todas as estradas, caminhos e
veredas continua a chegar gente, vinda de perto e de longe, que
avança sob a chuva, de cabeça descoberta. Ao meio dia, à chegada
da procissão, o espectáculo torna-se soberbo, único e indescritível.
Segundo o cálculo de oficiais do estado-maior do nosso exército,
que estavam presentes e com quem falámos, o total daquele
oceano humano devia ser superior a sessenta mil pessoas.
Eclesiásticos, titulares, magistrados, parlamentares, oficiais,
professores dos mais importantes estabelecimentos de ensino,
médicos, advogados, jornalistas, grandes proprietários do Norte, da
Estremadura, das duas Beiras e do Alentejo, senhoras da primeira
nobreza de Portugal, caminhavam numa promiscuidade altamente
edificante, irmanados pela mesma fé e pelos mesmos sentimentos,
lado a lado de homens e mulheres da mais humilde condição social,
de pobres e rudes, mas dignos e honrados, habitantes das aldeias e
dos campos.
Eram dois rios de gente que iam juntar as suas águas caudalosas
e as suas vagas gigantescas naquela vastíssima bacia cingida de
colinas e outeiros.
Próximo da capela dezenas de milhar de pessoas aguardavam
ansiosamente a chegada do colossal e imponentíssimo cortejo.
Resplandecendo duma formosura soberanamente ideal, a
veneranda Imagem de Nossa Senhora de Fátima, precedida de
irmandades, jovens católicos, anjos, virgens, cruzes, círios e
bandeiras, é levada num andor aos ombros de aristocratas da mais
alta linhagem e de humildes filhos do povo.
Entre a assistência vêem-se duas mulheres vestidas de rigoroso
luto, que se tornam alvo da atenção e simpatia dos peregrinos: são
Maria Rosa, mãe da Lúcia, a protagonista das aparições, que está
sendo educada num colégio do Norte, e Olímpia de Jesus, mãe dos
seus co-videntes, Francisco e Jacinta, já falecidos.
Entretanto a chuva cessa de cair. Meia hora depois começa a
missa campal celebrada num altar improvisado junto das ruínas da
capela pelo rev.do Agostinho Marques Ferreira, pároco de Fátima.
O astro rei brilha em pleno zénite, cortejado de nuvens diáfanas
duma alvura puríssima de neve. O silêncio incomparável dos
momentos solenes é profundo.
Logo ao Introito toda aquela mole de povo ajoelha, reza e canta. À
elevação todos curvam a cabeça e ao Sanctus e ao Agnus Dei
todos batem no peito, testemunhando assim o ardor da sua crença,
espontaneamente e sem respeitos humanos. Um coro imenso canta
o “Bendito”. Algumas centenas de fiéis recebem o Pão dos Anjos de
mãos postas e orando com fervor.
Vêem-se muitos olhos marejados de lágrimas. Um eflúvio do Alto,
um sopro divino parece perpassar através das almas. Dir-se-ia que
se respira ali a largos haustos uma atmosfera de sobrenatural.
Julgamo-nos por momentos em Lourdes, nas margens do Gave,
junto da gruta de Massabielle, a assistir à missa, ou na esplanada
do Rosário durante a procissão do Santíssimo Sacramento.
Terminada a missa, o distinto orador sagrado, rev.do dr. José
Pedro Ferreira, sobe ao púlpito e disserta sobre a fé e a devoção à
Virgem, no meio do mais respeitoso silêncio, apesar de, como ele
próprio disse no princípio do sermão, não poder ser ouvido sequer
por uma décima parte da assistência.
De novo se organiza a procissão para o regresso. Nela se
incorporam pessoas de todas as classes e condições sociais.
Reza-se o terço e cantam-se diversos cânticos, como na ida.
Em torno da fonte que brotou próximo da capela, em Novembro,
pouco depois da primeira missa campal, vêem-se numerosos
peregrinos bebendo água ou enchendo com ela recipientes de todos
os feitios e tamanhos, que guardam religiosamente e levam para
suas casas.
Junto da capela danificada pelas bombas explosivas, ricos,
remediados e pobres oferecem os seus donativos para a construção
do projectado santuário em honra de Nossa Senhora do Rosário.
Os grupos vão-se dissolvendo. São cinco horas. O nosso
automóvel conduz-nos à estação do Entroncamento, onde tomamos
o rápido Porto-Lisboa, levando connosco a recordação imperecível
de tantas cenas duma beleza e majestade supremas e a saudade
inefável daqueles lugares benditos, em que a alma se sente liberta
dos liames do corpo, mais longe do mundo, mais perto de Deus...
2. PORTUGAL JUNTO DO TRONO DA
SUA PADROEIRA

Alvoreceu o dia doze de Outubro de 1922, polvilhado da luz de


ouro do sol e embalsamado com suaves fragrâncias, como um dia
formoso entre os mais formosos de Outubro, sem uma nuvem a
empanar o brilho do céu e sem uma brisa agreste a fustigar a terra.
Os sinos da capital acabavam de tanger compassadamente as nove
horas. Na estação do Rossio numerosos peregrinos sobem
apressadamente para o comboio da linha 4, que está prestes a
partir. Entre eles destacam-se algumas das figuras mais distintas do
laicado católico: professores, médicos, advogados e jornalistas.
Ouve-se o silvo estridente da locomotiva e o comboio põe-se em
movimento.
Nas estações do percurso surgem de vez em quando grupos de
peregrinos ou peregrinos isolados. Em Santarém a lotação do nosso
compartimento está completa. Em Torres Novas apeiam-se muitos
peregrinos, que no dia seguinte de madrugada partirão em trens,
camions e automóveis para a terra do mistério e do prodígio.
Prosseguimos a nossa viagem. Depois de longa demora no
Entroncamento, o comboio recomeça a sua marcha e às duas horas
e meia apeamo-nos em Chão de Maçãs. Um carro, que aguardava a
nossa chegada, conduz-nos rapidamente a Ourém. No dia imediato,
após a missa e o petit déjeuner, seguimos para Fátima através da
serra.
Durante a noite tinha chovido bastante. Àquela hora, porém, nem
uma gota de água caía do céu, onde corriam velozes algumas
nuvens, que por vezes ensombravam o sol.
Quando já próximo de Fátima, avistámos a estrada que liga Vila
Nova de Ourém àquela povoação, ficámos agradavelmente
surpreendidos e sobremaneira encantados com o admirável cenário
que se desenrolava diante dos nossos olhos. Subiam a estrada,
numa extensão de muitos quilómetros, inúmeros veículos de todas
as espécies e de todos os tamanhos repletos de gente.
Eram onze horas quando nos apeámos junto da igreja paroquial.
O espectáculo que então se oferece à vista é imponente. Lá
dentro realiza-se a festa do Sagrado Coração de Jesus, festa
simpática e comovente, a que dá um realce singular e um encanto
inefável a solenidade da primeira comunhão das crianças.
Uma multidão inumerável enchia literalmente o vasto e
antiquíssimo templo e apinhava-se na rua próximo das portas,
impedindo o acesso.
Mais de quarenta missas se tinham celebrado ali naquela manhã.
À missa solene comungaram cerca de três mil e duzentas pessoas,
incluindo as crianças. No largo terreiro adjacente à igreja vêem-se
dezenas e dezenas de veículos. Cumprimentamos vários amigos e
conhecidos que vão aparecendo de todos os lados.
A chuva começa de novo a cair, miúda e impertinente.
Querendo observar tudo minuciosamente, dirigimo-nos a pé para
a Cova da Iria. Pela estrada, num percurso de dois quilómetros e
meio, circulam milhares de pessoas num vaivém contínuo.
Três quartos de hora depois avistávamos do meio da estrada o
lugar que, segundo os pastorinhos da Visão, foi consagrado pela
presença da Virgem Santíssima. Uma enorme vaga humana, de
muitos milhares de pessoas, rodeia a capela comemorativa das
aparições, semi-destruída pelo nefando atentado de Março. De toda
a parte aflui gente a cada momento. De vez em quando um novo
grupo de peregrinos vem ocupar o seu posto junto da capela.
Todas as províncias de Portugal, desde o Minho e Trás-os-Montes
até ao Alentejo e Algarve, se acham aqui representadas, nesta
grandiosa e incomparável homenagem nacional de amor e
reconhecimento à Virgem do Rosário. Lá vêm os peregrinos do
Porto e os de Lisboa, estes muito mais numerosos do que aqueles.
A chuva cai agora com violência, mas ninguém se retira. Pelo
contrário, a imensa mole humana engrossa cada vez mais. Muitos
peregrinos rezam o terço em grupos, alternadamente e em voz alta.
Uma nobre senhora de Faro volta-se para o irmão, cónego da Sé
daquela cidade, e com os olhos marejados de lágrimas diz-lhe:
“Este espectáculo impressiona-me e comove-me profundamente”.
Súbito, ouve-se o som argentino duma campainha. É o sinal de
que a missa campal vai começar. Celebra-a o vigário da vara de
Ourém. Um sacerdote de Lisboa sobe ao púlpito improvisado e com
voz sonora e vibrante profere durante o Introito os artigos do Credo,
que o povo repete com calor e entusiasmo, numa sentida profissão
de fé. Em seguida principia a recitação do terço em comum. Já não
são grupos isolados que rezam. É a oração uníssona da multidão, o
rumor fremente dum verdadeiro oceano de almas. São dezenas de
milhar de bocas que erguem as suas vozes para o Céu, fundindo-as
numa prece colectiva à gloriosa Rainha do Rosário.
Ouve-se de novo o som da campainha. É o toque de Sanctus. A
oração torna-se ainda mais intensa e fervorosa. É que se aproxima
o momento augusto e solene da consagração. Jesus, o Rei do Céu
e da Terra, está prestes a descer sobre o altar, à voz portentosa do
ungido do Senhor. Logo que a campainha anuncia a realização do
grande mistério do amor de Deus, a multidão, no ardor da sua fé,
curva-se reverente, ajoelha e adora o Verbo humanado, oculto aos
olhos do corpo sob o véu das espécies eucarísticas. Do alto do
púlpito ressoam as invocações, que o sacerdote profere, repetindo
três vezes cada uma delas:
Senhor, nós Vos amamos!
Senhor, nós Vos adoramos!
Senhor, nós esperamos em Vós!
Senhor, curai os nossos enfermos!
Sagrado Coração de Jesus, tende piedade de nós!
Hossana, hossana, hossana ao Filho de David!
Ó Maria, saúde dos enfermos, rogai por nós!
Nossa Senhora do Rosário, abençoai o nosso Portugal!
Após as invocações, canta-se o comovente “Adoremus in
aeternum Sanctissimum Sacramentum.”
Rezada a ladainha de Nossa Senhora, ministra-se a Sagrada
Comunhão. Mais de duzentas pessoas num fervor de êxtase,
recebem em seus peitos Jesus Hóstia.
O cântico popular “Bendito e louvado seja o Santíssimo
Sacramento da Eucaristia” é repetidas vezes cantado por um coro a
que a multidão responde alternadamente: “Fruto do ventre sagrado
da Virgem puríssima Santa Maria.” Há quem veja sinais
extraordinários no céu.
Terminada a missa, sobe ao púlpito o rev.do dr. Francisco Cruz,
de Lisboa. Pronuncia algumas palavras, singelas e desataviadas,
mas que penetram suavemente até ao fundo dos corações. É um
santo que está falando. A sua figura emaciada e ascética, o seu ar
acolhedor e calmo, de unção e suavidade angélica, a fama das suas
incomparáveis e assombrosas virtudes, só por si valem bem um
longo e substancioso sermão.
Durante cerca de meia hora discorre com eloquência apostólica
sobre a devoção à Virgem do Rosário e encarece a necessidade da
oração e da penitência.
Concluída a prática, muitos peregrinos retiram. Mas a maior parte
deles têm dificuldade em arrancar-se daquele cantinho do Céu, que
seduz e fascina as almas e prende e cativa os corações.
São talvez quarenta mil pessoas. Distribuem-se gratuitamente
milhares de estampas de Nossa Senhora do Rosário e de
exemplares da “Voz da Fátima”, que são procurados ansiosamente
e acolhidos com alvoroço. Os trens, camions e automóveis vão
partindo pouco a pouco.
As primeiras sombras da noite descem sobre a serra. Apenas
alguns raros grupos de habitantes dos arredores se conservam
ainda em oração humilde e piedosa junto do padrão comemorativo
dos sucessos maravilhosos.
Entretanto ao longe, nas estradas e pelos atalhos da montanha,
os peregrinos que regressam aos seus lares, depois duma jornada
longa e incómoda, vão murmurando as suas preces ou cantando os
seus cânticos religiosos com a alma a transbordar duma alegria que
não é deste mundo e acariciando a fagueira esperança de voltarem
brevemente àquele centro incomparável de devoção e de amor à
Virgem, onde ficaram presos para sempre os seus corações
saudosos e agradecidos.
3. FÁTIMA
CENTRO DOS CORAÇÕES

O trono de Jesus e Maria


Raiou enfim o dia treze de Outubro de 1925, tão ansiosamente
esperado, qual dia formosíssimo e delicioso de Primavera, alegre e
feliz, cheio de graça e encantos, como um mimo inestimável do Alto,
espargindo a flux sobre a terra, recém-saída das sombras
nocturnas, torrentes de luz suave e pura, que deleitava os olhos e
inebriava as almas.
Mais uma vez a charneca sagrada de Fátima vai ser teatro de
grandiosas manifestações de fé e piedade cristã. De todos os
recantos de Portugal, desde as veigas encantadoras do Minho até
aos campos fertilíssimos do Algarve, das cidades, vilas e aldeias,
centenas de milhar, porventura milhões de corações, volvem-se
para essa estância bendita, num impulso irresistível de devoção
ardente e acrisolada.
Fátima é hoje, incontestavelmente, na nossa querida Pátria, o
trono mais esplendoroso de Jesus no seu Sacramento de Amor e o
centro mais augusto de devoção para com a Virgem Santíssima.
E assim se explica que as multidões dos crentes se precipitem
sem cessar, em catadupas gigantescas, sobre a charneca árida e
interminável da serra de Aire, onde só medra o pinheiro bravo e mal
vegetam a urze e a azinheira.
Foi ali, com efeito, naquele solo abençoado, que, há precisamente
oito anos, a gloriosa Rainha dos Anjos pousou os seus pés virginais
para anunciar a três humildes pastorinhos a necessidade do
arrependimento e da penitência a fim de conjurar os castigos divinos
prestes a cair sobre nós, em expiação dos culpas individuais e das
iniquidades colectivas.
A velada de armas
No dia doze à tarde começam a chegar a Fátima, como guarda
avançada dum poderoso exército, as primeiras caravanas de
peregrinos. São homens, mulheres e crianças das classes mais
humildes da sociedade, que a pé, a cavalo ou em carros, percorre
enormes distâncias para poderem retemperar a sua fé e desafogar
os seus sentimentos de piedade, ainda antes da chegada do grosso
da peregrinação, aos pés da branca estátua da Augusta Rainha do
Santíssimo Rosário, na minúscula mas graciosa capela das
aparições.
Durante a noite, sobretudo às primeiras horas, a Cova da Iria e as
suas imediações oferecem um espectáculo curioso e sobremaneira
encantador. São milhares de sombras que se movem, como
estranhos fantasmas, na escuridão da noite, à luz pálida das
estrelas, ora isoladamente, ora em grupos, por vezes numerosos,
para irem render as suas homenagens à Rainha do Céu no próprio
local em que ela se dignou aparecer.
A cada instante chega aos nossos ouvidos o brando cicio das
preces dum grupo que passa a pequena distância ou o eco
longínquo dum cântico popular em honra da Virgem. Toda a noite –
a noite de vigília, – junto da capela comemorativa das aparições, os
turnos de peregrinos sucedem-se uns aos outros, recitando
devotamente as suas orações ou cantando com entusiasmo os seus
cânticos religiosos.
Do alto da estrada distrital, a Cova da Iria, com os milhares de
velas que os romeiros levam na mão, parece um lago imenso de luz,
em que a abóbada celeste reflecte, como num espelho, as miríades
de estrelas que polvilham a sua superfície.
Aqui e acolá, ao pé duma árvore, debaixo dum carro ou junto dum
valado, estão deitados sobre mantas ou esteiras inúmeros devotos
que descansam das fadigas duma longa viagem e se preparam com
um sono reparador para assistir com mais proveito espiritual às
solenidades do dia seguinte.
Como são belas e admiráveis as almas generosas dos nossos
valentes serranos que, obedientes à voz da Virgem, ali vão, à terra
bendita das aparições, num grande espírito de fé e num propósito
consciente de expiação e resgate, fazer penitência por si e pelos
seus irmãos transviados e, reparando os crimes nacionais, implorar
a salvação da Pátria!

O comboio especial
Pouco depois da meia-noite, partiu de Lisboa, da estação do
Rossio, um comboio especial, expressamente organizado pela
Companhia dos Caminhos de Ferro Portugueses para conduzir a
Fátima os peregrinos da capital. Este comboio teve uma curta
paragem em todas as estações para receber os peregrinos das
diversas terras situadas ao longo do percurso. Às cinco horas e
meia da manhã, chegou, sem nenhum incidente desagradável, à
estação terminus – o novo apeadeiro de Seiça-Ourém, inaugurado
no dia quatro do corrente mês entre as estações de Chão de Maçãs
e Caxarias.
Na estação do Rossio tomaram lugar no comboio especial
centenas de passageiros, não se tendo enchido logo completamente
todas as carruagens, porque a maior parte dos peregrinos de Lisboa
e do Sul do país haviam partido nos comboios da véspera, tanto da
linha do Norte, em direcção a Torres Novas e Chão de Maçãs, como
da linha de Oeste, com destino a Leiria

Os servitas de Santarém
Quando parou no apeadeiro de Seiça, o comboio estava
completamente cheio. Dezoito servitas, membros da Associação
Nun’Álvares de Santarém, que tinham embarcado na estação
daquela cidade, prestaram relevantes serviços, com um zelo e
dedicação inexcedíveis, à chegada do comboio especial.
Sob as ordens de dois chefes delegados da direcção daquela
benemérita colectividade, ajudaram a conduzir os enfermos para os
diversos meios de transporte que estacionavam no largo terreiro
situado em frente do apeadeiro. Correctos e delicados no seu trato,
cheios de caridade para com as pobres vítimas de tamanhas
misérias humanas, desempenharam a sua rude tarefa de maqueiros
voluntários com uma perfeição verdadeiramente admirável, que
mereceu os encómios de todas as pessoas que foram testemunhas
da sua acção.
Bem hajam os simpáticos jovens católicos da Associação
Nun’Álvares de Santarém, que tão distintamente se assinalaram
naquela jornada de glória, pela feliz iniciativa que tiveram de ir
inaugurar o serviço de transporte dos enfermos da peregrinação
nacional no apeadeiro de Seiça. O seu gesto nobilíssimo ficará para
sempre registado em letras de ouro nos anais gloriosos de Nossa
Senhora de Fátima e nos fastos brilhantíssimos da sua prestimosa
instituição, honra e lustre da Juventude Católica Portuguesa.

A grande romagem
Assomam já no Oriente os primeiros alvores da madrugada. O
espesso manto de trevas que envolvia o planalto sagrado dissipa-se
como que por encanto. O ambiente, cuja temperatura descera uns
poucos de graus durante as últimas horas da noite, não tarda que
seja aquecido pelos raios suavemente tépidos do sol nascente.
À medida que as horas passam, o movimento de peões,
cavaleiros e veículos intensifica-se duma maneira assombrosa, num
crescendo cada vez maior.
Centenas e centenas de automóveis, desde os mais luxuosos e
elegantes até aos de tipo mais modesto, camions, camionettes,
chars-à-bancs, motocicletes, bicicletes, galeras, trens, charrettes,
carroças, carros de bois, numa palavra, todos os meios de
transporte, ainda os mais primitivos e extravagantes, são utilizados
para a condução dos peregrinos, pejando a estrada e os terrenos
adjacentes, numa extensão dalguns quilómetros. A Cova da Iria
apresenta aos que vão chegando um panorama deslumbrante,
incomparável, único. Mais de cem mil pessoas, de ambos os sexos,
de todas as idades e de todas as classes, cobrem literalmente o
vasto espaço que medeia entre a estrada distrital e a capela das
missas.
A Virgem Santíssima, através da sua linda Imagem, reprodução
genial da Aparição, da casa Fânzeres, de Braga, parecia envolver
num doce olhar de ternura maternal aquela multidão enorme, que
vinha ali tributar-lhe, em nome de Portugal fidelíssimo, a
homenagem que lhe era devida como sua Rainha e Padroeira e
solicitar da sua omnipotência suplicante tesouros de graças e
bênçãos preciosíssimas.

A Capela das Aparições


São dez horas da manhã, A circulação de veículos na estrada
torna-se quase impossível. A dupla fila deles, que se formou desde
as primeiras horas do dia, é cada vez mais comprida. Na capela das
aparições os fiéis rezam as suas orações, cumprem as suas
promessas ou tocam objectos de piedade, como terços e medalhas,
na branca estátua da Virgem do Rosário. Homens, mulheres e
crianças, sem distinção de classes, empunhando velas acesas, dão,
uma e mais vezes, de joelhos, a volta à capela, em cumprimento de
votos feitos em horas de angústia, rompendo a custo por entre a
mole densíssima de povo que a rodeia. Sob o alpendre, por detrás
do histórico santuário, alguns servitas procedem à distribuição
gratuita de cinquenta mil exemplares da “Voz da Fátima”.
É naquele local, aos pés da veneranda Imagem de Nossa
Senhora do Rosário, que se avalia e, por assim dizer, se apalpa a
intensidade da crença do bom povo português. Pessoas de todas as
categorias sociais, numa amálgama nivelador inspirado por um vivo
sentimento de igualdade e fraternidade cristã, ali se juntam, a cada
instante, erguendo os olhos e as mãos suplicantes para Aquela que
é justamente chamada o refúgio dos pecadores e a saúde dos
enfermos.
E a vaga humana, túmida e encapelada, circula continuamente
num fluxo e refluxo cadenciado, desde as proximidades da fonte
miraculosa até à parte posterior da capela comemorativa das
aparições. Feliz o povo que crê e ora assim!
A fonte miraculosa
Em volta da fonte miraculosa, que brotou, cristalina e abundante,
a poucos passos da azinheira sagrada, depois da primeira missa
campal, uma multidão inumerável fervilha desde manhã cedo, na
ansiedade irreprimível de fazer larga provisão da água benéfica e
salutar. A forma circular da fonte prodigiosa facilita bastante a
aquisição do precioso líquido, que jorra copiosamente por quinze
grandes torneiras de metal amarelo, que simbolizam pelo seu
número os quinze mistérios do Santíssimo Rosário. Algumas
torneiras só podem ser utilizadas por aqueles fiéis que se limitam a
beber água no próprio local em que ela é fornecida.
A ligeira impaciência dos mais apressados é facilmente contida
pelos servitas, que regulam, ao mesmo tempo com prudência e
firmeza, o difícil acesso às torneiras. O aprovisionamento da linfa
maravilhosa dura horas compridas, intermináveis, desde as
primeiras da manhã até às últimas da tarde. Os peregrinos enchem
recipientes de todos os tamanhos, que levam consigo para as suas
terras distantes com a fagueira esperança de provocar, mediante a
aplicação da água, a cura dalguma pessoa de família ou de amizade
ou, ao menos, proporcionar um pouco de lenitivo aos seus
sofrimentos.

A Capela das Missas


Aproxima-se o meio-dia solar, a hora dos sucessos misteriosos
dos colóquios inefáveis entre a Virgem e os videntes, nos páramos
desertos e escalvados de Fátima.
A multidão, que se reúne e comprime em frente da capela das
missas, é agora mais densa do que nunca. Rios, ribeiros e regatos
humanos descem, sem solução de continuidade, por todos os
caminhos, veredas e atalhos, da periferia para o centro do vasto
anfiteatro formado pelo local das aparições. Desde o raiar da aurora,
as missas sucedem-se umas às outras sem interrupção nos dois
altares da capela. À primeira missa que se celebrou assistiram os
servos de Nossa Senhora do Rosário e um grupo numeroso de
escuteiros católicos de Leiria, que receberam com uma piedade
edificante o Pão dos Anjos.
Enquanto se celebram as missas, diversos sacerdotes distribuem
a Sagrada Comunhão a milhares de fiéis que, para a poderem
receber com devidas disposições, se tinham preparado, nas suas
terras ou durante a viagem, com a recepção do Sacramento da
Penitência, acusando as suas culpas aos pés do ministro do Senhor
e expiando-as no cadinho duma contrição sincera e salutar.

Os enfermos
Entretanto os enfermos à medida que vão chegando ao local,
dirigem-se para o respectivo pavilhão, erecto em frente da capela.
Os paralíticos e os doentes, cujo estado é mais grave, são
conduzidos em macas pelos servitas. Mas o seu número é tão
avultado que as macas são insuficientes para a condução rápida de
todos. Como expediente de ocasião, sugerido pela necessidade,
dois servitas de Santarém, jovens de porte distinto e maneiras
delicadas, dão-se as mãos e formam com os braços uma espécie de
cadeira, em que transportam uma senhora paralítica, que tinha
vindo da Beira Baixa em automóvel e cujo marido testemunha o seu
reconhecimento e a sua comoção com a voz entrecortada pelos
soluços e com os olhos marejados de lágrimas.
As macas são colocadas no chão, dum e doutro lado, em frente
da capela. Nas bancadas do pavilhão sentam-se indistintamente os
demais doentes. Em breve nem um só lugar se encontra vago.
Aquele hospital improvisado dum dia alberga nesse momento cerca
de mil vítimas de todas as misérias físicas que torturam a
humanidade.
São tuberculosos, paralíticos, cegos, cancerosos, epilépticos,
enfermos de toda a espécie, que a fé conduziu àquela estância
bendita da esperança. É que ali a augusta Mãe de Deus não raro
lhes mitiga as dores ou cura os males de que padecem, derramando
sempre sobre todos graças preciosíssimas de conforto e
resignação. E por isso nunca doente algum, animado de genuíno
espírito cristão, se arrependeu de ter percorrido a dolorosa via sacra
da peregrinação a Fátima.

A estátua da resignação
Entre as senhoras enfermas há uma que, mais que qualquer das
outras, atrai particularmente a atenção de todos os circunstantes.
Tuberculosa em último grau, tão magra que semelha um esqueleto,
de rosto atrofiado pelo sofrimento, dir-se-ia a estátua viva da
resignação cristã. Exausta de forças, sem alento e sem vida,
desprezada como um mísero farrapo humano, que para nada serve
e de que todos se afastam num egoísmo cruel com receio do
contágio, sente-se feliz naquele lugar bendito em que a caridade
exerce sobrenaturalmente o seu império.
Muito nova ainda, casada de há poucos anos, conforma-se com a
santa vontade de Deus, esperando tranquilamente alguns alívios
para o seu mal ou ao menos um sorriso de doce conforto da Divina
Consoladora dos aflitos. À cabeceira, velando com todo o carinho
por aquela a quem deu o ser, está sentado o pai, simpático e
venerando ancião, patriarca duma numerosa família, em que
florescem tradicionalmente a crença mais pura e as mais sólidas
virtudes cristãs.
A multidão que cerca o pavilhão dos doentes ora com fervor pela
cura de todos esses infelizes.
Milhares de almas boas, impulsionadas pela compaixão à vista de
tamanhos infortúnios, procuram fazer violência ao Céu com as suas
ardentes invocações a Jesus Sacramentado e com a recitação
incessante do terço do Rosário.

Os servitas e os escuteiros
O serviço de fiscalização da entrada e acondicionamento dos
doentes, organizado pelos servitas, que são quase todos do grupo
de Torres Novas, é primorosamente dirigido pelos seus chefes. Dois
médicos especialistas, dos mais distintos da capital, presidem a
esse serviço, cada um na sua respectiva secção. Conjuntamente
com os servitas, lado a lado, trabalham sem descanso os escuteiros
de Leiria, que rivalizam com eles em esforço inteligente e extremada
dedicação.
Quase todos na flor da idade, esbeltos e garbosos, respirando
juventude e força, superiormente educados pela doutrina do
escutismo estudada à luz dos princípios cristãos e pela livre sujeição
a uma rígida disciplina militar, desempenham a sua espinhosa e
delicada tarefa com acertado critério e com uma cordura extrema,
na obediência total, completa, absoluta às ordens dos seus chefes.
Duma gravidade irrepreensível no exercício das suas funções, sem
embargo dos seus verdes anos, eles impõem-se aos jovens do
nosso tempo como modelos acabados de submissão aos legítimos
superiores e de respeito e cortesia para com todos.

A missa dos enfermos


É meio-dia solar em ponto. A assistência canta em uníssono o
Credo de Lourdes, de Dumont, cujos acordes melodiosos se
repercutem ao longe e ao largo, de quebrada em quebrada, por toda
a extensão da montanha, como notas vibrantes dum hino de fé e de
triunfo.
Em seguida um sacerdote sobe ao altar central para oferecer o
Santo Sacrifício por todos os enfermos e peregrinos presentes e por
todas as pessoas que queriam, mas por qualquer motivo não
puderam ir nesse dia a Fátima.
Enquanto se celebra a missa, todos os assistentes,
alternadamente com outro sacerdote que ocupa o púlpito, rezam o
terço do Rosário, entremeado de preces, louvores e cânticos.
O silêncio – o silêncio dos momentos solenes – torna-se mais
profundo. A comoção, que se lê em todos os rostos, é cada vez
mais intensa. Os doentes associam-se à oração comum e a sua
esperança reanima-se, cresce e fortifica-se.
Depois de cada dezena do Rosário, faz-se a breve e comovente
súplica que a radiosa Aparição ensinou aos humildes pastorinhos de
Aljustrel.
Chega o momento soleníssimo da consagração, que faz
estremecer as almas e palpitar os corações. O filho de Deus
humanado, à voz do seu ministro, torna-se presente sob as
espécies eucarísticas tão real e perfeitamente como está no Céu, à
direita de seu Eterno Pai.
O silêncio é agora completo. Apenas se percebem o ligeiro
murmúrio das orações dalgumas almas piedosas e os suspiros
abafados e os soluços a custo reprimidos dos pobres enfermos.
Ao toque da campainha, aquela mole imensa de crentes – o escol
de Portugal cristão – prostra-se por terra e adora com o celebrante a
Vítima Sacrossanta dos nossos altares.
Segue-se a comunhão do celebrante que, após alguns breves
instantes, ministra o Pão dos Anjos a um grande número de fiéis
que não tinham podido recebê-lo mais cedo.

A bênção dos enfermos


Terminara a missa.
Vai realizar-se a cerimónia mais bela e mais comovente desse dia
para sempre memorável: a bênção do Santíssimo Sacramento aos
enfermos.
Como outrora, ao percorrer as cidades, vilas e aldeias da
Palestina, ensinando a todos o caminho do Céu e prodigalizando
bênçãos e graças, o Divino Mestre, agora oculto sob o véu das
espécies sacramentais, pertransit benefaciendo, passa igualmente
fazendo o bem.
Está ali, encerrado na magnífica custódia de ouro, visível aos
olhos do espírito iluminado pela luz da fé, aquele mesmo Jesus que,
durante a sua vida pública perdoava os pecados, curava as doenças
e aliviava toda a sorte de misérias.
A crença viva daquela multidão no dogma sublime e altamente
consolador da presença real, a sua confiança inabalável no poder e
na bondade de Jesus no Santíssimo e Augustíssimo Sacramento da
Eucaristia e o seu amor ardente a quem tanto amou os homens e
por eles se sacrificou, padecendo e morrendo numa cruz de
ignomínia, reflectem-se nos olhos de todos os que têm a ventura de
assistir a esta cena augusta e inefável.

As invocações
No púlpito o sacerdote que preside às cerimónias começa a fazer,
numa voz forte e bem timbrada, as invocações de Lourdes:
Senhor, nós vos adoramos!
Senhor, nós temos confiança em vós!
Vós sois o meu Senhor e o meu Deus!
Vós sois a Ressurreição e a vida!
Senhor, cremos em Vós, mas aumentai a nossa fé!
Senhor, dizei uma só palavra e serei curado!
Canta-se o Parce Domine – que é simultaneamente uma oração e
um acto de arrependimento – e, em seguida, continuam as
invocações, sempre enternecedoras, mas agora mais
movimentadas, mais veementes, mais do fundo da alma:
Senhor, aquele a quem amais está doente!
Ó Deus, vinde em nosso auxílio, vinde depressa socorrer-nos!
Senhor, fazei que eu veja!
Senhor, fazei que eu ande!
Senhor, fazei que eu ouça!
Saúde dos enfermos, rogai por nós!
Estas invocações, três vezes repetidas por dezenas de milhar de
bocas, reboam formidáveis, como outros tantos gritos de angústia,
naquele templo imenso, sem pavimento e sem cúpula, procurando
forçar o Céu a condoer-se da infeliz e lastimosa legião de farrapos
humanos, que, de longe e com tanto sacrifício, ali vieram, cheios da
mais doce confiança, implorar a misericórdia infinita do Senhor.
As últimas invocações são dirigidas a Nossa Senhora e concluem
com a breve súplica pela nossa Pátria, que traduz sem dúvida a
causa final das aparições:
“Nossa Senhora do Rosário, salvai-nos e salvai Portugal!”
A assistência repete com ardor, com entusiasmo, com transporte,
essas invocações. São brados de alma que se elevam no espaço,
estuantes de expressão, são gritos de angústia que anelam penetrar
o Céu, são súplicas de fogo que saem de peitos alanceados pela
compaixão ou ulcerados pela dor e que sobem confiada e
humildemente até aos pés de Deus.
E os doentes, de mãos postas e olhos fitos na Hóstia Santa e
Imaculada, traduzem com as suas súplicas e com as suas lágrimas,
os sentimentos de fé, esperança e amor que abrasam os seus
corações.
O anjo do conforto parece ter descido àquela efémera mansão de
dor e roçado com as suas asas brancas de neve os corpos
macerados por tantos e tão grandes sofrimentos visíveis e as almas
atormentadas por um sem número de fundas mágoas e terríveis
provações ocultas.
E aqueles rostos, estranhamente desfigurados pelo martírio físico
ou moral, mas santamente transfigurados pela resignação, reflectem
um misterioso clarão de Paraíso, o consolo duma doce esperança e
a paz suavíssima de Deus.
O celebrante traça, finalmente, com o ostensório de ouro, o sinal
da cruz sobre as legiões inumeráveis de fiéis ajoelhados a seus pés
em atitude de adoração.
Sobe ao púlpito o dr. Luis Castelo Branco, o glorioso sobrinho de
Camilo, que num rapto de eloquência sagrada, entre as lágrimas de
comoção da assistência, celebra as glórias imarcescíveis de Maria
Santíssima e canta um formoso hino à Pátria, implorando para ela
as bênçãos do Céu.
Organiza-se de novo a procissão que reconduz a estátua de
Nossa Senhora do Rosário da capela das missas para a das
aparições. Milhares de fiéis tomam parte nesse cortejo imponente. O
entusiasmo faz vibrar intensamente as almas e traduz-se numa
manifestação que atinge as proporções duma verdadeira apoteose.

As curas
Súbito começam a circular de grupo em grupo rumores vagos de
curas miraculosas. Aqui é uma criança de dois anos, cega de
nascença, que diante da Imaculada Virgem, adquire de repente o
uso perfeito do sentido da vista, no meio da estupefacção dos pais,
que choram de alegria e de gratidão.
Acolá é um paralítico que caminhava dificilmente com o apoio de
duas muletas e com o auxílio de pessoas amigas e que, tocando
com a mão no andor da Virgem, recupera subitamente o movimento
dos membros inferiores.
Mais além é uma senhora tuberculosa que, depois de muitos anos
de sofrimentos indizíveis, alcança a saúde tão desejada, sentindo
circular nas suas veias uma nova vida, que a omnipotência divina
infundiu no seu corpo exausto e quase inerte.
São curas completas ou melhoras consideráveis de doenças
reputadas humanamente incuráveis, que enchem de assombro e
funda comoção os que delas têm conhecimento.
Mas como averiguar a exactidão dos factos que se narram, quer
na sua substância, quer nas circunstâncias em que se verificaram,
no meio daquela babilónia de cerca de duzentas mil pessoas?!
Que os privilegiados da Virgem não se esqueçam de cumprir o
rigoroso dever que lhes incumbe de comunicar à respectiva
comissão canónica, por intermédio do jornal “Voz da Fátima”, a
notícia das curas de que foram objecto.
Quantas graças desta natureza ficam sepultadas, por descuido,
no pó do esquecimento, com prejuízo da glória de Deus e sem
proveito para as almas!
É, pois, mister que a notícia dessas curas, logo que elas se
realizem, seja enviada, com os pormenores considerados
interessantes, ao rev.do dr. Manuel Marques dos Santos, promotor
fiscal da comissão canónica e professor de ciências eclesiásticas no
Seminário de Leiria.

O êxodo dos peregrinos


Principia então a debandar o grosso da peregrinação. Pouco a
pouco vão-se descongestionando os recintos das capelas e as
imediações da fonte miraculosa. Na estrada distrital circulam outra
vez milhares de veículos.
A ordem mais perfeita naquela multidão tão variada, naquele
oceano infinito de povo que parece obedecer, em todos os seus
movimentos, a uma voz única de comando, como um exército
disciplinado num vasto campo de batalha.
E todos os peregrinos lá se vão, cheios de saudade do dia
inolvidável que passaram no planalto sagrado de Fátima, no meio
duma atmosfera saturada de sobrenatural, mais longe da terra, mais
perto do Céu!
4. FÁTIMA,
PÓLO MAGNÉTICO DAS ALMAS

A Lourdes portuguesa
Glória a Deus no Céu e na terra louvor, honra e bênção à doce e
piedosa Virgem do Rosário, que do seu trono magnificente de
Fátima vem espargindo graças a flux sobre os seus filhos queridos,
em toda a vasta extensão da bendita terra de Portugal!
Quantas almas ulceradas pela culpa receberam das suas mãos
virginais o dom precioso duma contrição salutar!
Quantos corações alanceados por mágoas pungentes hauriram
no seu coração maternal o bálsamo dulcíssimo dum poderoso
lenitivo ou duma consolação inefável!
Quantos corpos torturados por longos e cruciantes sofrimentos
encontraram o alívio ou a cura dos seus males, recorrendo à
protecção valiosíssima d’Aquela que é justamente chamada pelos
Santos Padres a Omnipotência suplicante e por toda a Igreja a
Saúde dos enfermos!
Nos páramos sagrados e misteriosos de Fátima a Rainha dos
Anjos ergue o seu sólio de amor e misericórdia sobre um pedestal
formado pelos corações de milhões de portugueses.
Efectivamente, de todos os pontos do território nacional, desde as
margens encantadoras do Minho e do Lima até às praias
perenemente verdejantes do Algarve, desde a graciosa Pérola do
Oceano até aos sertões adustos da nossa África, aos palmares da
Índia e à própria China, desde as duas Américas às regiões
longínquas da Oceânia, em toda a parte onde palpitam corações
portugueses e se fala a formosa língua de Camões e Vieira, um coro
de louvores se eleva para a Virgem sem mácula que, sob a
invocação de Nossa Senhora do Rosário, se dignou aparecer, para
felicidade dos portugueses, nos planos áridos e escalvados do
planalto de Fátima.
Esta terra santificada pela presença da Rainha dos Anjos,
privilegiada com as bênçãos mais preciosas do Céu e ungida pela
piedade de toda a nação, é hoje, sobre a face do mundo, o centro
da mais enternecida e fervorosa devoção à gloriosa Mãe de Deus e
dos homens e simultaneamente o trono mais esplendoroso de Jesus
no seu Sacramento de amor, a Santíssima e Augustíssima
Eucaristia.
E é por isso que Fátima, essa humilde povoação, feudo minúsculo
do condado do Santo Condestável, ainda há poucos anos quase
desconhecida e hoje aureolada dum prestígio sem igual, constitui o
mais poderoso íman dos corações, o pólo magnético espiritual para
onde se voltam irresistivelmente as almas sedentas de paz, de vida,
amor e luz.
Salvé, Fátima, mil vezes salvé!

A assombrosa mobilização das almas


Muitos dias antes do nono aniversário da primeira aparição da
Virgem aos humildes pastorinhos de Aljustrel, treze de Maio de
1926, já em diversos pontos do país grupos de peregrinos se
punham em marcha para a estância das aparições e dos prodígios.
Que maravilhoso espectáculo o desse longo e interminável concurso
de romeiros que por tantas estradas se dirigem a Fátima! São
ranchos de homens e mulheres das classes mais humildes que
rezam e cantam louvores à Virgem e que, de tempos a tempos,
param e sentam-se à beira dos caminhos para comerem os seus
suculentos farnéis ou para descansarem das fadigas da viagem.
Lá vão, cheios duma alegria sã e santa, através das cidades, vilas
e aldeias, ora subindo ao cume dos montes, ora descendo até ao
fundo dos vales, recitando o terço ou cantando cânticos religiosos e
suspirando ardentemente pela hora da chegada à nesga da terra
que o contacto dos pés virginais de Maria Santíssima santificou para
todo o sempre.
E os grupos sucedem-se constantemente uns aos outros, em
centenas de estradas, em milhares de caminhos, como as fitas
cinematográficas se desenrolam no écran, formando um
espectáculo encantador, deslumbrante, uma verdadeira e grandiosa
manifestação de fé e piedade colectiva, uma assombrosa
mobilização das almas.

As primeiras vésperas
Na manhã do dia doze o movimento de peregrinos começou a
intensificar-se dum modo prodigioso.
Durante todo o dia esse movimento cresce cada vez mais, numa
progressão ascendente, atingindo o seu máximo na manhã do dia
seguinte. Os comboios ordinários e especiais vomitam legiões de
peregrinos nas plataformas das estações mais próximas de Fátima.
Depois veículos de toda a espécie, desde o camion gigantesco e
veloz até ao ronceiro carro de bois, desde o automóvel de luxo até
ao pesado chars-à-bancs e à humilde e ligeira bicicleta, transportam
esses peregrinos para o local das aparições.
Durante vinte e quatro horas, desde o meio dia de quarta feira até
ao meio dia de quinta feira da Ascensão, o planalto sagrado de
Fátima assemelha-se a uma bacia imensa, onde em catadupas
gigantescas se precipitam torrentes caudalosas, rios intermináveis,
cujas gotas de água são seres humanos, cujas ondas são massas
compactas de fiéis, multidões inumeráveis de peregrinos.
Na véspera à noite, naquela estância abençoada do Céu,
milhares de velas, acendidas pela piedade dos crentes, polvilham de
luz e cor o grandioso anfiteatro da Cova da Iria, transformando
aquele recinto num templo gigantesco tendo por pavimento o solo
da charneca coberto de urzes e azinheiras e por cúpula a abóbada
celeste cravejada de miríades de estrelas. E desse templo único na
terra, evolam-se para o Céu súplicas veementes, invocações
fervorosas, hinos de júbilo, reconhecimento e amor, que sobem até
às mãos de Maria e das mãos de Maria até aos pés de Deus.
A apoteose da Virgem
Às dez da manhã do dia treze, a Cova da Iria é um lago imenso
de gente que se aglomera em torno da capela das aparições, do
pavilhão dos doentes e da fonte miraculosa. Os servos de Nossa
Senhora do Rosário transportam em macas os paralíticos e os
doentes, cujo estado é mais grave, para o recinto destinado a
receber enfermos, em frente da capela das missas.
No Posto das verificações médicas, inaugurado nesse mesmo dia,
muitos clínicos de vários pontos do país, entre os quais distintos
especialistas e lentes das universidades, examinam os enfermos
que vão chegando, trazidos ou acompanhados pelos servitas, e
fornecem-lhes, após o exame, o cartão de ingresso no respectivo
pavilhão.
Numerosos fiéis, de todas as idades, cumprem as suas
promessas, dando voltas de joelhos à capela das aparições, por
entre a multidão apinhada junto dela em oração fervorosa. No
recinto dos doentes as Servas de Nossa Senhora, cuja associação
tinha sido inaugurada com a maior solenidade no dia seis, assistem
carinhosamente os doentes, prestando-lhes o seu desvelado auxílio
com uma dedicação enternecedora, que só a caridade cristã sabe
inspirar. Envergando batas brancas, duma alvura puríssima de neve,
elas parecem anjos descidos do Céu para confortar as vítimas de
tantos flagelos que ali se encontram santamente resignadas, com as
lágrimas nos olhos, o sorriso nos lábios e a paz no coração.
Aqui e acolá vêem-se reporters dos principais jornais e revistas do
país fotografando aspectos da multidão e artistas cinematográficos
filmando colégios, associações e grupos organizados de peregrinos,
precedidos dos seus lindos, ricos e vistosos estandartes, alguns dos
quais reproduziam a cena empolgante, cheia de beleza e de
encanto, da aparição da Virgem aos pastorinhos.

As missas e as comunhões
Entretanto, desde as seis horas da manhã, celebra-se o Santo
Sacrifício, quase sem interrupção, nos três altares da capela nova.
Assistem a essas missas os doentes, que são cada vez mais
numerosos, e uma multidão de povo que engrossa a olhos vistos, de
momento para momento.
Vêem-se nessa multidão representadas todas as classes sociais.
São titulares da velha nobreza, sacerdotes e médicos, juízes e
advogados, professores e alunos das universidades e dos institutos
de instrução secundária e superior, capitalistas e lavradores,
senhoras, donzelas e crianças, humildes camponeses e mulheres
do povo. E toda esta mole, atenta e devota, reza e canta,
implorando a saúde para os enfermos, remédio para todas as
necessidades, e celebrando as glórias imarcescíveis da augusta
Padroeira da Nação.
Quase ininterruptamente, enquanto se celebram as missas,
quatro sacerdotes distribuem a Sagrada Comunhão aos fiéis que se
prepararam para ela com a recepção do sacramento da confissão. E
milhares de partículas consagradas vão unir cerca de cinco mil e
quinhentos corações inocentes ou purificados pela penitência, numa
união sublime e inefável, com o coração Sacratíssimo de Jesus,
com o próprio Deus feito homem, no seu Sacramento de amor.

A procissão
É uma hora e meia em ponto.
A estátua de Nossa Senhora do Rosário de Fátima, duma
formosura incomparável, é conduzida aos ombros dos servitas, da
capela das aparições para a capela das missas. O cortejo que a
acompanha é encantador na sua simplicidade. Quando o andor
chega ao limiar do pavilhão dos doentes, a cena que se passa é
indescritível. Dezenas de milhar de mãos agitam no ar lenços
brancos que parecem pombas a voar, estrugem salvas de palmas,
bastas e nutridas, e reboam no espaço vivas e aclamações à
Virgem.
Quase todos os olhos estão marejados de lágrimas de comoção.
A Virgem passa, como uma visão de Paraíso, espalhando
profusamente bênçãos e graças. E a multidão, enternecida, prostra-
se a seus pés, bendizendo-a e saudando-a como sua Rainha e
Mãe, como augusta Padroeira de Portugal.

A missa dos enfermos


Vai principiar a missa dos enfermos, que é aplicada por estes e
por todos os peregrinos. A oração intensifica-se. O silêncio e o
recolhimento são mais profundos. Respira-se um ambiente saturado
de sobrenatural. Tem-se a impressão bem sentida que se vai operar
um contacto misterioso entre o Céu e a terra, entre Deus e a
natureza. O terço do Rosário é recitado em coro.
Imediatamente após a elevação, a Santíssima Eucaristia é
aclamada por centenas de milhar de bocas num cântico
formosíssimo, repassado de piedade e unção. Continua a recitação
do terço, sempre estuante de fervor, seguindo-se a da ladainha
lauretana.
Ao communio distribui-se pela última vez o Pão dos Anjos. Acaba
a missa. Vai dar-se aos enfermos a bênção com o Santíssimo
Sacramento. É o momento mais solene dos cultos do dia treze. Mil
enfermos aguardam cheios da mais viva ansiedade a passagem do
Rei de amor. E Jesus passa efectivamente, como outrora nas ruas e
praças da Palestina, espalhando o bem.
Aqueles rostos emaciados por tantos sofrimentos físicos, aqueles
olhos, que reflectem nitidamente mágoas pungentes de almas
torturadas, aquelas mãos que, no seu gesto de súplica, traduzem
angústia e pesares de corações ulcerados, dirigem-se para o Divino
Mestre, numa expressão patética de dor, implorando lenitivo,
resignação e conforto. E os farrapos humanos que ali ostentam as
suas misérias físicas numa exposição macabra, adoram
profundamente o Deus humanado por nós, o homem das dores, vir
dolorum, como lhe chama a Sagrada Escritura.
Terminou a bênção dos enfermos. Vai ser dada agora a bênção a
todo o povo. O ministro do Senhor traça no espaço, com o
ostensório de prata, uma cruz sobre a multidão, que ajoelha a seus
pés e se benze devotamente.
A Imagem da Virgem é reconduzida para a sua capela.

“Levanta-te e anda”
Sucede então um facto extraordinário. Uma senhora de nome D.
Helena Violeta Pereira da Silva e Sousa, moradora na rua do Alto de
Vila, 318, Foz do Douro, paralítica das mãos e dos membros
inferiores, em virtude dum envenenamento por meio de arseniato
ministrado por uma criada, ao aproximar-se da Imagem já colocada
sobre o seu pedestal, sente-se subitamente curada e, soltando-se
dos braços robustos dos servitas que a seguram e amparam,
ajoelha em fervorosa acção de graças à Virgem. Passados breves
momentos levanta-se e corre em direcção à capela das missas,
para adorar e agradecer a sua cura a Jesus Sacramentado. Na
sacristia, em que entra seguida de muitos peregrinos, e em que nos
encontrávamos também nessa ocasião, fizemos-lhe algumas
perguntas.
A multidão aclama entusiasticamente a Virgem Santíssima, que
mostrava assim mais uma vez o seu valimento junto de Deus e a
sua bondade para connosco.
D. Helena é conduzida ao Posto de verificações médicas, onde
vários facultativos a examinaram detidamente. Saindo do Posto, vai
despedir-se de Nossa Senhora e, sempre ladeada pelos bravos
escuteiros de Leiria, que formam a haie para a livrar dos efeitos da
curiosidade e do entusiasmo popular, dirige-se para o automóvel
que a transporta a Leiria.
No dia vinte e seis, de passagem para o Congresso Eucarístico
Nacional, que se realizou em Braga nos últimos dias de Maio, fomos
vê-la à sua casa da Foz do Douro, constatando a permanência da
cura, cuja notícia causou enorme sensação em todo o Porto, onde a
sua família é muito conhecida.
A ditosa senhora tem sido visitada por inúmeras pessoas entre as
quais alguns médicos, que desejavam conhecer pessoalmente a
privilegiada da Virgem.
Entretanto a multidão vai diminuindo cada vez mais. A estrada
distrital descongestiona-se pouco a pouco. No local sagrado ouve-
se apenas o ciciar das última preces e os piedosos cânticos de
despedida dos romeiros retardatários.
A noite desce lentamente sobre o teatro de tamanhas maravilhas,
envolvendo-o nas pregas do seu manto escuro.
A breve trecho, nessa antecâmara do Céu reina o silêncio
majestoso dos grandiosos templos desertos e apenas, de quando
em quando, se ouve o eco repetir o cântico longínquo de algum
grupo de peregrinos em honra d’Aquela que, no dizer do inspirado
poeta,
“Quando Roma em culto alçava
Dom Nuno a trono de luz,
veio a Fátima sorrir-nos
a doce Mãe de Jesus;

Veio dizer-nos, na bruma


da nossa tarde sombria,
que ora do Céu por nós velam
frei Nuno e Santa Maria!”
5. OS PRODÍGIOS DA VIRGEM
(13 DE SETEMBRO DE 1926)

A romagem
Suave e amena, exuberante de luz e cor, e levemente refrescada
por uma branda viração do Norte, como uma das manhãs mais
formosas da quadra primaveril, a manhã do dia treze de Setembro
convidava os devotos de Nossa Senhora de Fátima a fazer mais
uma vez a piedosa romagem mensal.
Às quatro horas atravessávamos com a velocidade de quarenta
quilómetros à hora, as fertilíssimas planícies do Ribatejo, em
demanda do local bendito das aparições da Virgem, santificado por
tantas e tão assombrosas graças e bênçãos do Céu.
À medida que avançamos, vão-nos ficando para trás algumas das
povoações mais importantes daquela riquíssima região, em que a fé
dos nossos antepassados, amortecida durante tantos anos, mercê
de circunstâncias várias, começa a despertar e a desentranhar-se
em frutos salutares de vida cristã, graças à devoção de Nossa
Senhora de Fátima e à actividade incansável de zelosos obreiros do
Evangelho.
Almeirim, Alpiarça, Chamusca, Golegã, àquela hora ainda imersas
no silêncio profundo dum sono reparador, deixam no nosso espírito,
à sua passagem, a impressão triste e consternadora de povoações
extintas, mortas, de vastíssimas necrópoles, em que porventura as
transformasse de repente um violento e inesperado cataclismo.
Às oito horas surge, na nossa frente, donairosa e linda, com o seu
sorriso branco e coroada pelo seu desmantelado castelo medieval, a
gentil princesa do Almonda, a histórica vila de Torres Novas.
Ao longe erguem-se os primeiros contrafortes da serra de Aire,
em cujo sopé se assentam as humildes aldeias de Pedrógão e
Alqueidão, pontos de passagem forçados em direcção à terra
sagrada de Fátima para os peregrinos do sul do país, que queiram
apreciar da estrada, no cimo da montanha, um dos panoramas mais
grandiosos de toda aquela encantadora região.
Depois entra-se em pleno coração da serra. São encostas
íngremes e escarpadas, cobertas de mato raquítico e de oliveiras
enfezadas, montes e vales áridos e desertos, onde, de longe em
longe, se vêem alguns rebanhos de cabras rebuscando as poucas
ervas que brotam a custo entre as pedras soltas e nos interstícios
das rochas de mármore e de granito.
Em seguida aparecem sucessivamente o Bairro, Maxieira,
Boleiros e, por fim lá avulta, a pequena distância, no cimo duma
colina, a poética e graciosa povoação de Montelo, donde já se divisa
a igreja paroquial de Fátima com a sua torre esguia erguida para as
alturas, como o símbolo das preces que se evolam continuamente
dos peitos dos habitantes crentes e piedosos das quarenta aldeias
daquela vasta e populosa freguesia.

No local das aparições


Eis-nos chegados ao local das aparições, vulgarmente chamado a
Cova da Iria.
Nessa ocasião – são quase onze horas – acumula-se no
gigantesco anfiteatro uma multidão enorme de muitos milhares de
pessoas. Os peregrinos não são numerosos como nos meses
precedentes, por causa dos trabalhos agrícolas e sobretudo por
causa da proximidade do mês de Outubro, em que se realiza a
segunda peregrinação nacional, para a qual a maior parte dos
devotos gosta de se reservar.
Contra o costume, fora do dia das grandes peregrinações,
predominou desta vez entre os fiéis o elemento das classes
aristocrática e burguesa.
A estrada distrital está literalmente ocupada, numa extensão de
muitas centenas de metros, por veículos de toda a espécie, que
dificultam sobremaneira o trânsito.
Apesar disso continuam a chegar, a cada momento, camionetes,
automóveis e trens, que transportam peregrinos procedentes de
todos os distritos do país.
O espectáculo, que ao meio dia oferece o local das aparições, é
verdadeiramente empolgante. Os peregrinos estão espalhados por
toda a vasta extensão do recinto murado, mas concentram-se
sobretudo em torno dos três pontos preferidos: o pavilhão dos
doentes, a capela das aparições e a fonte miraculosa.
Os servitas de Torres Novas e os seus auxiliares, sempre
indefessos no desempenho da sua nobre e árdua tarefa, conduzem
em macas, desde a estrada até ao respectivo pavilhão, os
paralíticos e os enfermos em estado grave.
As servas de Nossa Senhora do Rosário, envergando as suas
batas alvinitentes, solícitas e desveladas como anjos de caridade,
prestam os cuidados do seu ministério a tantas vítimas do sem
número de flagelos que afligem a pobre humanidade.
Os escuteiros de Leiria, sob a direcção dos seus chefes, fazem o
serviço de ordem, executando rigorosamente a sua consigne com
zelo, prudência e abnegação cristã.

A inscrição dos doentes


Dirigimo-nos para o Posto das verificações médicas. Às portas
estacionam alguns escuteiros que regulam o serviço de entrada e
saída dos doentes. Graças à especial deferência dum dos chefes,
somos imediatamente admitidos no interior do edifício e, poucos
momentos depois, encontramo-nos numa sala espaçosa, onde o
director do Posto, o dr. Pereira Gens, da Batalha, coadjuvado por
servos e servas de Nossa Senhora do Rosário, examina doentes de
ambos os sexos, redigindo breves processos verbais, e lhes fornece
as senhas de ingresso no respectivo pavilhão.
Na ocasião em que entramos já estão registados cerca de
duzentos enfermos. Diante de nós desfila então uma série, longa e
interminável, de vítimas de todas as misérias humanas. E a todas
elas, o ilustre clínico, com uma paciência inesgotável, acolhe
benevolamente, ouvindo, com atenção e interesse, a exposição
sumária dos males, de que padecem. São tuberculosos, cegos,
surdos, paralíticos, cancerosos, doentes de mal de Pott e de tantas
outras misérias físicas, que vão por seu pé ou são levados em
macas pelos servitas para junto da capela das missas.
A um canto da sala, jaz prostrado sobre uma cadeira, aguardando
a sua vez, um indivíduo cujo aspecto revela intenso sofrimento.
Bastante novo ainda, exausto de forças, de rosto pálido e emaciado,
com todos os sintomas de tuberculose pulmonar, esse pobre farrapo
humano inspira, a todos os que o vêem, a mais viva simpatia e a
mais profunda comiseração. Aproximámo-nos dele e formulámos
algumas perguntas. Chama-se Manuel Monteiro de Carvalho e
Pinho e mora na Praça das Flores, 165, Porto. Faz parte do grupo
de peregrinos da cidade da Virgem que, em número de trinta e
quatro, vieram visitar, em piedosa romagem, a sua celeste Padroeira
no santuário da sua predilecção. Há quatro anos que sofre da
terrível doença que o reduziu a tão lastimoso estado. Constatando a
sua extrema fraqueza, perguntamos-lhe se quer ser transportado
em maca para o abrigo dos doentes. Responde afirmativamente e
agradece com efusão. Prevenimos um dos servitas presentes, que
vai sem demora buscar uma maca e, auxiliado por um confrade,
conduz o enfermo para o pavilhão, logo que o médico, após um
rápido exame, lhe entrega a desejada senha de ingresso.

Os doentes
São quase horas da missa dos doentes. O recinto que a estes é
reservado está quase completamente cheio. O estado de alguns é
bastante grave. Apressamo-nos a colher dos seus lábios umas
breves informações.
Aqui é uma paralítica de Torres Vedras, que sofre há oito anos de
reumatismo e que, tendo vindo há três anos a Fátima, obteve
sensíveis melhoras.
Acolá é uma senhora da Marinha Grande que há dezoito meses
se queixa de violentas dores intestinais e que, havendo consultado
um grande número de médicos, se sujeitou debalde aos vários
tratamentos prescritos.
Mais além é um rapaz, dos Pousos, de vinte anos de idade, que
há seis anos, sendo militar e estando de guarda aos prisioneiros
alemães internados em Peniche, tomou banho no mar e em seguida
cometeu a imprudência de adormecer sobre a areia quente da praia,
ficando completamente paralítico.
Noutra parte é um rapaz de dezoito anos, de Lisboa, atacado,
desde os dois anos de idade, de paralisia e atrofia geral.
Depois é um homem de Sanfins do Douro, actualmente morador
na capital, que começou há dois anos a sofrer de tuberculose
pulmonar, tendo-se agravado o seu estado a partir de Outubro
último.
É ainda um cavalheiro das Caldas da Rainha, há vinte anos
paralítico e neurasténico.
É, finalmente, o dr. X. tão ilustre pelo seu saber como pela sua
piedade que, preso à sua cadeira de paralítico, em que é
transportado por dois servitas, reza devotamente o terço,
implorando a sua cura, mas santamente resignado à vontade de
Deus.

A missa dos doentes


É uma hora e trinta e sete minutos. Depois de conduzida
processionalmente a estátua de Nossa Senhora do Rosário da
capela das aparições para a capela das missas, os sacerdotes e
seminaristas presentes cantam em coro o Credo de Lourdes
Principia em seguida a missa dos doentes. Do alto do púlpito o
rev.do dr. Marques dos Santos, capelão-director dos Servos de
Nossa Senhora do Rosário, dá início à recitação do terço, que é
feita alternadamente com a multidão.
O silêncio torna-se mais profundo, o recolhimento é cada vez
maior, a devoção intensifica-se. Chega o momento da elevação. A
hóstia branca e imaculada, em que Jesus encarnou dum modo
inefável às mãos do celebrante, por meio das palavras misteriosas
da consagração, como encarnou outrora no seio virginal de Maria
Santíssima, ergue-se no espaço, entre a terra e o Céu, como vítima
augusta de expiação dos pecados individuais e das iniquidades
colectivas.Toda aquela mole imensa de fiéis ajoelha no pó da
charneca e adora profundamente o Filho de Deus oculto sob as
Sagradas Espécies no seu Sacramento de amor. Súbito um cântico
piedoso e comovente irrompe de milhares de bocas, em louvor da
Santíssima e Augustíssima Eucaristia. Continua a recitação do
terço, interrompida pela elevação. Ao Domine, non sum dignus a
multidão inclina-se reverente, depois o celebrante consome as
Sagradas Espécies e por fim um sacerdote, revestido de sobrepeliz
e estola, vai buscar a píxide de ouro para administrar o Pão dos
anjos àquelas pessoas que, devidamente confessadas, não tinham
tido o ensejo de o receber nas missas anteriores.
Terminada a missa, expõe-se o Santíssimo Sacramento na
riquíssima custódia oferecida há dois anos pela Associação dos
Filhos de Maria de Benfica e canta-se o Adoremus. Depois realiza-
se a cerimónia sempre nova, sempre bela e comovente, da bênção
dos enfermos.

Bênção dos enfermos


Os paralíticos e os doentes em estado mais grave, que jazem
sobre colchões em frente das bancadas do pavilhão, são os
primeiros a receber a suspirada bênção.
O sacerdote traça com a custódia o sinal da cruz sobre cada um
daqueles enfermos, cujos olhos marejados de lágrimas, fixam, numa
expressão resignada de dor e de súplica, a Divina Hóstia de amor.
Entretanto começam a fazer-se as invocações, implorando remédio
para todas as misérias humanas, lenitivo e conforto para todos os
sofrimentos.
E a comovente cerimónia, que arranca lágrimas de todos os
olhos, continua a efectuar-se lentamente, de bancada em bancada,
de fila em fila, num ritmo cadenciado e grave, dum encanto
indefinível e duma majestade incomparável.
Já receberam a bênção de Jesus-Hóstia cerca de metade dos
doentes.
De repente ouve-se um grito. É o tuberculoso Carvalho e Pinho,
aquele “farrapo” humano de que acima falámos, que, depois de
receber a bênção, exclama, no auge da alegria: “Viva Jesus
Sacramentado!” E logo a seguir: “Viva o Santíssimo Sacramento!
Estou curado!”
A impressão produzida por estas palavras sobre a assistência é
absolutamente indescritível.
Um frémito de comoção percorre toda aquela enorme massa de
gente, que se agita como um mar encapelado por súbita e furiosa
procela
Dir-se-ia que a impele vigorosamente uma força sobrenatural e
invencível, a que debalde tenta resistir. Todos anelam ver com os
seus próprios olhos, todos querem aproximar-se do feliz mortal que,
dizendo-se curado, se proclama por isso mesmo privilegiado da
Virgem.
Os sacerdotes e os servitas procuram acalmar o entusiasmo da
multidão, que é facilmente contido pelo respeito devido a Jesus
Sacramentado.
As lágrimas dos doentes são agora mais abundantes, as suas
súplicas mais fervorosas e veementes, e ao mesmo tempo mais viva
e mais firme a sua confiança na bondade, na misericórdia e no amor
do Divino Mestre, que passa fazendo o bem, como outrora, durante
a sua vida mortal, quando percorria vilas e aldeias da Judeia, da
Samaria e da Galileia.
Por fim canta-se o Tantum ergo e dá-se a bênção geral a toda a
assistência, encerrando-se o Santíssimo no sacrário, para ser, daí a
poucos instantes, consumido pelo celebrante da última missa.
Segue-se o sermão, que foi pregado pelo rev.do dr. João
Francisco dos Santos, professor no Seminário do Porto.
Os actos oficiais da peregrinação concluem com a condução da
estátua da Virgem bendita para o seu pedestal, acima da azinheira
sagrada, no venerando padrão comemorativo dos sucessos
maravilhosos de 1917, a santa capela das aparições.
No Posto das verificações médicas
São quase quatro horas da tarde. Dirigimo-nos novamente para o
Posto das verificações médicas. Na mesma sala, onde algumas
horas antes tínhamos visto Carvalho e Pinho num estado que
inspirava vivíssima compaixão, encontramo-lo agora, alegre e
sorridente, rodeado de várias pessoas que o assediam com
inúmeras perguntas. Interrogamo-lo acerca do seu estado.
Responde que não está completamente curado, como a princípio
supunha, mas que experimenta consideráveis melhoras que atribui
à misericórdia de Jesus Sacramentado e à intercessão maternal de
Maria Santíssima. Alguns servitas, no intuito de o livrarem do
assédio dos curiosos, cujo número aumenta cada vez mais,
convidam-no a entrar para um dos gabinetes do Posto.
Ali continuamos a interrogá-lo. Quando nos dizia que tinha um
irmão jesuíta a fazer os seus estudos na Áustria, observámos-lhe
que decerto à consecução de tão grande graça não tinham sido
estranhas as orações dessa alma, que generosamente se
consagrou ao serviço de Deus na vida religiosa, o que ele confirmou
com um aceno de cabeça e sorrindo de satisfação.
Passa-se depois uma cena íntima altamente patética.
Três pessoas da sua família, que chegam do Porto naquele
instante, entram precipitadamente no quarto e, ao vê-lo tão diferente
do que era, choram de comoção. Uma delas abraça-o num pranto
desfeito, exclamando: “Há quatro anos que nunca te vi assim”.
Carvalho e Pinto repreende-as amigavelmente, estranhando as
lágrimas que derramam. “Ah! – obtempera uma delas – é que às
vezes também se chora de alegria!”

Uma cura
De boca em boca corre a notícia, que nos chega aos ouvidos, de
se ter operado, por ocasião da bênção do Santíssimo, uma cura
sobremodo interessante. Um nosso amigo, bem informado,
assegura-nos que a pessoa, que foi objecto dessa cura, humilde
criada de servir, está nesse momento no Posto médico.
Depois de a termos procurado em vão, durante algum tempo,
vamos encontrá-la noutro gabinete, rodeada de algumas servitas e
de pessoas das suas relações, que com ela tinham vindo na
peregrinação do Porto. Interrogamo-la. O seu nome é Maria Rosa
Ribeiro, tem vinte e dois anos de idade e é natural de Ponte da
Barca. Há dezasseis anos que sofre duma úlcera no estômago. O
médico que a tratava, não tendo conseguido debelar o mal com os
meios de que dispunha, aconselha-a a ir para o Porto, a fim de a
submeter a uma operação.
Naquela cidade consegue ser recebida como serviçal em casa
duma ilustre e benemérita portuense, a Senhora D. Maria José
Pestana Leão.
Há sete meses que não toma outro alimento que não seja leite.
Passa mal as noites, quase sempre sentada na cama. É-lhe
impossível conciliar o sono. As hemorragias são frequentes. Dez
dias antes da peregrinação começa a ter uma hemorragia
abundante, que nada é capaz de fazer estancar.
O dr. Albino dos Santos, professor da Faculdade de Medicina,
com consultório na rua Fernandes Tomás, seu médico assistente,
como a enferma lhe comunicasse que desejava ir em peregrinação
a Fátima, recusa-se a dar o seu consentimento, por recear que o
fluxo de sangue aumente e produza consequências graves e até
porventura fatais para a saúde da sua cliente. A enferma,
impulsionada pela sua viva confiança no poder da Santíssima
Virgem, determina correr todos os riscos, desobedecendo ao
médico, e toma lugar no comboio entre os peregrinos do grupo do
Porto.
Logo que entra no comboio cessa por completo a hemorragia, que
nunca mais se renovou. Durante a viagem o seu mal estar é grande
e maior se torna ainda em toda a manhã do dia treze.
Apesar de várias vezes lhe oferecerem leite, conserva-se até à
uma hora sem tomar alimento algum. A essa hora, cedendo a
instâncias repetidas de pessoas amigas, sorve alguns golos daquela
bebida. Assiste à missa dos enfermos e à bênção particular sem
experimentar o mais pequeno alívio dos seus incómodos.
No momento em que o celebrante dá a bênção geral, acha-se
repentinamente curada. ”Uma coisa que eu não sei explicar – dizia
ela – subiu por mim acima e desapareceu, desaparecendo ao
mesmo tempo, como que por encanto, todo o meu mal. Sente um
apetite extraordinário, verdadeiramente devorador, tendo a certeza
de que qualquer alimento que ingerisse, não lhe faria mal. Mas
aceita o sacrifício de obedecer a um dos médicos do Posto, que lhe
recomendou que fosse prudente, abstendo-se por enquanto de
tomar alimento sólido.
Por deferência do clínico de serviço, conseguimos ler a
declaração do médico assistente de Rosa Maria Ribeiro, que é do
teor seguinte:
Dr. Albino dos Santos – assistente de Medicina – Rosa Maria
Ribeiro, criada da ex.ma senhora D. Maria José Pestana Leão, sofre
do estômago há mais dum ano (dores, vómitos e hematémeses).
Pelos sintomas que apresenta e pela sua resistência ao tratamento
adequado, deve tratar-se duma gastrite ulcerosa.
Porto, 8 de Setembro de 1926
a) Albino dos Santos
Aguardamos serenamente o veredictum definitivo da Ciência e da
Igreja acerca da natureza desta cura, acatando-o de antemão,
qualquer que ele seja, como é nosso dever de cristãos, prudentes e
dóceis aos ditames da legítima autoridade nesta matéria.
Depois do nosso regresso, ouvimos falar ainda doutra cura,
também duma úlcera, e realizada igualmente numa pessoa do grupo
privilegiado da cidade da Virgem.
Oportunamente forneceremos aos nossos leitores as informações
que entretanto pudermos obter acerca desta nova prova do poder e
da bondade da augusta Rainha do Santíssimo Rosário.

O regresso dos peregrinos


São cinco horas da tarde. As clareiras produzidas pela retirada
são de momento para momento cada vez maiores nas fileiras
compactas da imensa legião dos peregrinos de Fátima.
Ouvem-se aqui e acolá os derradeiros cânticos de despedida e os
saudosos adeus à Virgem.
A breve trecho reinam de novo o silêncio e a solidão naquela
estância bendita da esperança que a Rainha dos Anjos santificou
com a sua augusta presença e onde ela prodigaliza graças e
bênçãos a flux sobre o povo que a saúda como sua nobre e
piedosíssima Padroeira.
6. O PARAÍSO NA TERRA
(13 DE OUTUBRO DE 1926)

A grande peregrinação nacional


Imponentíssimas manifestações de fé e piedade
A grandiosa e deslumbrante procissão de velas
Lago de fogo e de luz – Preces e cânticos
Mais perto de Deus
Mais um dia de glória para Deus, de triunfo para a Virgem, de
graças e bênçãos para as almas, foi sem dúvida o dia treze de
Outubro de 1926.
Realizou-se nesse dia a segunda grande peregrinação nacional
do corrente ano. Se a primeira, a do mês de Maria, constituiu uma
das manifestações de fé e piedade mais grandiosas e mais
comoventes de que tem sido teatro a terra das aparições e dos
prodígios – a misteriosa Fátima – a peregrinação do mês do Rosário
rivalizou absolutamente com ela, não se podendo considerar inferior
sob nenhum aspecto.
Nos últimos dias que precederam o nono aniversário da sexta
aparição da augusta Virgem do Rosário aos inocentes pastorinhos
de Aljustrel, dezenas de milhares de peregrinos iniciavam a sua
romagem, partindo de todos os pontos de Portugal em demanda da
serra de Aire, que é hoje na nossa Pátria o trono mais esplendoroso
e magnificente de Jesus, Rei de Amor, no Diviníssimo Sacramento
da Eucaristia e ao mesmo tempo o Santuário mais belo e mais
venerado de sua Mãe Imaculada, a Rainha do Sacratíssimo
Rosário.
No dia doze à noite, como se lia nos relatos dos jornais de grande
circulação, mais de cinquenta mil pessoas acampavam no planalto
de Fátima, dispostas a recuperar com um sono reparador as forças
gastas durante a viagem, para poderem assistir com mais fruto às
solenidades religiosas do dia seguinte.
Às oito horas, organiza-se, segundo o costume, a procissão das
velas, em que tomam parte dezenas de milhar de fiéis, cada um
com uma vela na mão, e que percorre, durante mais duma hora, o
trajecto habitual em torno dos santuários.
Vista do alto da estrada que a cinge do lado do sul, a Cova da Iria,
esse palco gigantesco, onde há nove anos se desenrolaram cenas
sublimes, verdadeiramente divinas, duma beleza e majestade
incomparáveis, parece um lago de luz, a cratera dum vulcão em
actividade, vomitando sem cessar grande quantidade de matérias
ígneas e formando deslumbrantes rios de fogo, que circulam
lentamente em todas as direcções.
Os peregrinos, impulsionados pelo entusiasmo da sua fé viva e
pelo ardor da sua piedade acrisolada, aclamam a Virgem bendita,
que se dignou escolher aquela estância privilegiada para derramar o
bálsamo da sua ternura maternal sobre tantos corpos e tantos
corações torturados pela dor.
Do seio dessa multidão inumerável elevam-se constantemente
para o Céu mil preces e cânticos, exprimindo com veemência os
sentimentos e as aspirações da grande e generosa alma de
Portugal.
Como são ditosos aqueles que logram respirar, ao menos durante
alguns momentos, esse ambiente saturado de sobrenatural,
pairando numa região em que o homem se julga mais longe da terra
e mais perto de Deus!

Dia de luz e de encantos


As peregrinações organizadas
Os estandartes
Peregrinação de penitência
Os romeiros isolados
O dia treze, como em Maio, como nos meses seguintes,
amanheceu esplêndido, cheio de luz e de encantos, como um
formosíssimo dia de Primavera.
O movimento de peregrinos aumenta cada vez mais, atingindo o
seu máximo de intensidade desde as oito horas até ao meio dia.
É durante esse espaço de tempo que chegam as peregrinações
organizadas. São agora cerca de trezentos romeiros de
Gondemaria, concelho de Vila Nova de Ourém, guiados pelo rev.do
Luis de Sousa, levando à frente um lindo e vistoso estandarte
alusivo aos acontecimentos maravilhosos de Fátima, cuja estreia é
feita nesse dia.
É mais logo um grupo de senhoras da melhor sociedade duma
nobre e histórica cidade, a mais linda de Portugal, que, animadas de
verdadeiro espírito de penitência, percorreram a pé cerca de trinta
quilómetros, para irem render a homenagem da sua piedade filial à
Rainha do Rosário, no santuário da sua predilecção.
São depois oitenta pessoas de Benfica (Lisboa) que,
acompanhadas pelo seu zelosíssimo pároco, vêm depor aos pés de
Maria o preito do seu amor, ostentando um rico estandarte de seda,
bordado a ouro. E os grupos sucedem-se uns aos outros de envolta
com um sem número de peregrinos isolados, que em toda a espécie
de veículos são conduzidos até próximo do local das aparições.

Dezenas de missas
Confissões de homens e rapazes
A distribuição da Sagrada Comunhão
O transporte dos doentes para o pavilhão
Oração fervorosa dos fiéis
Desde as quatro horas da manhã que os sacerdotes, previamente
inscritos, celebram sem interrupção nos três altares da capela nova.
Muitos limitaram-se a comungar, por não lhes ter cabido a vez de
dizer missa, mercê da grande afluência de clero.
Nas dependências da capela, alguns sacerdotes confessam
homens e rapazes. Outros distribuem o Pão dos Anjos a milhares de
pessoas que nas suas terras se tinham preparado para esse acto
pela confissão sacramental.
Os doentes, à medida que vão chegando, são colocados sobre
colchões ou sentam-se nas bancadas do respectivo pavilhão,
conforme a gravidade do seu estado.
Os servos de Nossa Senhora do Rosário andam constantemente
numa roda viva, transportando os doentes ou prestando-lhes os
serviços e cuidados de que precisam.
Em torno do pavilhão milhares de pessoas conservam-se
alternativamente de pé e de joelhos durante horas consecutivas
para ocuparem os lugares donde melhor possam assistir ao
desenrolar dos actos religiosos. A oração de todos é intensa e
fervorosa e feita no meio do maior recolhimento e do mais profundo
silêncio.

Os médicos do Posto de verificações


O dr. Pereira Gens, chefe do Posto
Severidade de atitude e rigor de processos
Médicos-juízes de investigação
As súplicas dos enfermos e dos seus protectores
natos
sistematicamente desatendidas
Saudades de Lourdes
No Posto das verificações médicas dirigem as diferentes acções
muitos distintos clínicos, dos quais alguns envergam as blusas
brancas de serviço.
São, entre outros, os drs. Eurico Lisboa, Weiss de Oliveira,
Gabriel Ribeiro, Luz Preto, Augusto Mendes e Cortês Pinto.
Superintende nos serviços do Posto é o médico dr. Pereira Gens.
Imitando, sem talvez o suspeitarem, os médicos de serviço
permanente no Bureau des Constatations médicales, de Lourdes, os
médicos do Posto de Fátima dão a impressão de oficiais em tempo
de guerra à frente dos seus regimentos, numa atitude enérgica e
decidida de defensiva e ofensiva em toda a linha. Quem os observa
no exercício das suas funções, acolhendo com caridade, mas
severamente a legião imensa de doentes que lhes vão solicitar a
senha indispensável para entrarem no respectivo pavilhão, e os vê
em extremo receosos e suspicazes, procedendo mais como juízes
do que como médicos, interrogando capciosamente aqueles que se
apresentam, fazendo-os às vezes cair em contradição, desprezando
todos os empenhos e solicitações e recusando-lhes as senhas de
ingresso, apesar das suas súplicas instantes e das queixas sentidas
dos seus males, julga-se em presença de ateus e incrédulos que
estão ali como agentes do demónio, apostados a contrariar e a
combater todas as manifestações do sobrenatural.
Alguns sacerdotes, que apresentavam pessoas enfermas do seu
conhecimento, eram repelidos sem contemplação, porque não
traziam atestados médicos, que julgavam desnecessários, por
estarem convencidos de que bastava a sua palavra para garantir a
realidade e gravidade da doença, difícil de diagnosticar sem uma
demorada e profunda observação, ali impossível de fazer.
Que saudades não haviam de ter, naquele momento de dolorosa
humilhação, esses sacerdotes, que algumas vezes encontrámos em
Lourdes, de visita ao Bureau des Constatations, onde eram sempre
acolhidos com menos desconfiança e com mais benevolência...
talvez por serem estrangeiros. Bem hajam os médicos do Posto pela
sua atitude, que a tantos desagrada, mas que é tão própria para
assegurar a seriedade dos seus processos e impô-los ao respeito
de todas as pessoas, crentes e descrentes.

A procissão
Dezenas de milhar de pessoas saúdam a Virgem
Lágrimas de comoção
A bênção da Mãe de Deus
É meio dia solar. A veneranda Imagem de Nossa Senhora do
Rosário é conduzida aos ombros das suas servas da capela das
aparições para a capela das missas. Em todo o vasto anfiteatro da
Cova da Iria, desde o pavilhão dos doentes até aos muros de
cintura, dezenas e dezenas de milhar de pessoas acenam com os
lenços, saudando a Rainha dos Anjos. Quando o cortejo entra no
recinto reservado aos doentes, o entusiasmo atinge as raias do
delírio.
Os vivas estrugem nos ares, as aclamações sucedem-se às
aclamações e os olhos de todos marejam-se de lágrimas de
comoção e de ternura. E a Virgem bendita, sorrindo e abençoando,
passa através da multidão, que ajoelha a seus pés, presa dos seus
encantos e fascinada pela sua beleza e pela sua bondade.

O Credo de Lourdes
A missa dos doentes
A recitação do terço do Rosário
A ladainha lauretana
A bênção dos enfermos e a bênção geral
O sobrinho de Camilo Castelo Branco fala à
multidão
A sagrada Imagem foi colocada sobre a sua peanha ao lado
direito do altar central. Canta-se o Credo de Lourdes. Começa a
missa dos doentes.
Do púlpito o capelão-director, com voz firme mas comovida,
principia a recitação do terço. A assistência redobra de atenção e de
fervor.
Aproxima-se o momento solene da Consagração. Todos
ajoelham. A Hóstia Santa é elevada pelo celebrante entre a terra e o
Céu, vítima de propiciação pelos pecados do mundo. Canta-se um
cântico piedoso em louvor do Santíssimo Sacramento.
Continua a recitação do terço, que é rematada pela ladainha
lauretana. Depois do Communio, distribui-se pela última vez o Pão
dos Anjos e, terminada a Missa, faz-se a exposição do Santíssimo,
durante a qual se canta o Adoremus.
Segue-se a patética cerimónia da bênção dos enfermos, que se
efectua na forma costumada e conclui com a bênção geral, dada do
alto da varanda do pavilhão.
Depois o rev.do Luís Castelo Branco, sobrinho de Camilo, tece,
em palavras entusiásticas e comovidas, o panegírico da Mãe de
Deus. Por fim organiza-se de novo a procissão, para reconduzir a
branca estátua da Virgem ao padrão popular comemorativo das
aparições e dos sucessos maravilhosos.

Servitas e escuteiros
O Patronato do Porto
As duas curas instantâneas de treze de Setembro
último
O poder e a bondade de Maria
São quase três horas da tarde. No Posto de verificações médicas
os clínicos de serviço ocupam os seus lugares. Servitas e escuteiros
circulam continuamente nas dependências do Posto. Vêem-se
algumas senhoras da direcção do Patronato do Porto, fundado por
iniciativa da Liga da Acção Social Cristã, daquela cidade, que
vieram acompanhar duas empregadas dessa instituição, ambas
curadas instantaneamente de úlceras no estômago, em treze de
Setembro último. Respirando saúde e bem estar as miraculadas
agradeciam efusivamente à Santíssima Virgem a sua cura, que
atestava bem alto o poder incomparável e a bondade sem limites da
celeste Padroeira de Portugal.

O regresso dos peregrinos


As últimas despedidas à Virgem
A hora mística das Trindades
O pólo magnético das almas
Pouco a pouco a multidão vai-se dispersando. Os grupos de
peregrinos tornam-se cada vez menos compactos e menos
numerosos. A cada momento partem veículos conduzindo os
piedosos romeiros de Fátima aos seus lares distantes. Apenas um
ou outro devoto fica ainda dirigindo à Virgem uma última súplica,
esquecido talvez da hora tardia e da distância do seu lar.
A noite aproxima-se rapidamente, tendo já descido o sol no
horizonte. É a hora mística das Trindades, que convida a rezar e a
pensar no Céu.
De vez em quando os ecos repercutem os sons dum hino
religioso popular, que algum peregrino canta na viagem de regresso.
Momentos depois, a noite envolve com o seu negro manto aquela
estância privilegiada pelas graças de Deus e pelas bênçãos de
Maria, estância que é, sem contestação, o pólo magnético das
almas, o centro de atracção do mundo espiritual, o ponto em torno
do qual gravitam todos os corações de boa vontade.
7. DEZ ANOS DEPOIS
(13 DE MAIO DE 1927)

A grande romagem de Maio


O trono das graças de Maria
O primeiro decénio após as aparições
Fátima, estância de mistério e de prodígios
Mais uma vez, no planalto sagrado de Fátima, se desenrolou um
dos espectáculos mais grandiosos e mais belos, que a olhos
humanos é dado contemplar sobre a terra.
Durante três dias e três noites consecutivas, as multidões
acorreram de todos os pontos de Portugal, em devota romagem, ao
santuário das aparições, impulsionadas por uma fé viva e por uma
piedade ardente e acrisolada.
Ali, representada na sua Imagem veneranda sobre um pedestal
de glória, a augusta Virgem do Rosário, semelhante a uma visão
radiosa do Paraíso, recebe as homenagens de seus filhos, que a
aclamam como sua Padroeira e lhe dirigem súplicas estuantes de
confiança e amor.
Centenas de milhar de fiéis lá vão cada ano depositar a seus pés
virginais um tributo espontâneo de saudações e de lágrimas, de
flores e de lumes, de esperança e de acções de graças.
Incessantemente, pessoas de todas as condições sociais
arrastam os joelhos pelas pedras duras da Cova da Iria, em torno do
padrão comemorativo dos sucessos maravilhosos, cumprindo votos
e promessas feitas em horas negras de cruciante angústia.
De perto e de longe, mesmo dos confins de Portugal, voam até
aos pés da Mãe de Deus tantas almas sedentas de consolação,
tantos corações ulcerados pela dor.
Naquela região de mistérios e de prodígios, que a Rainha do Céu
escolheu para seu trono de graças, há bálsamo para todas as
mágoas, lenitivo para todos os sofrimentos, resignação e conforto
para todas as desditas!
E, por isso, Fátima é, e continuará sempre a ser, o pólo magnético
das almas, o centro de atracção dos corações, que uma força
sobrenatural, poderosa e irresistível, arrasta suavemente para
aqueles plainos escalvados e desertos, onde apenas vegetam a
urze e a azinheira.
E agora, treze de Maio de 1927, dez anos depois da primeira
aparição, novamente as multidões se precipitam, em torrentes
caudalosas, no vasto recinto murado da Cova da Iria, teatro das
cenas, ao mesmo tempo mais assombrosas e mais comoventes, de
que há memória desde os tempos bíblicos.

O recinto das aparições


A procissão das velas
A apoteose da Virgem
Um lago e um rio de luz
Assombroso espectáculo de fé e piedade
A vigília de armas
No dia dez chegam a Fátima os primeiros peregrinos. Desde esse
dia até à manhã do dia treze, a romagem cresce de hora para hora.
Na véspera à tarde, o vasto anfiteatro da Cova da Iria está cheio de
fiéis.
Às vinte e duas horas começa a organizar-se a procissão das
velas. O aspecto do local transforma-se como que por encanto,
mercê dos milhares de luzes acesas de repente pelos peregrinos,
que se preparam para tomar parte no imponente e deslumbrante
cortejo em honra da Virgem.
Dir-se-ia um enorme lago de fogo, cheio de ondas encapeladas,
donde sai um rio de luz, manso e tranquilo, que, partindo da
capelinha das aparições, serpenteia em torno dos santuários, sobe
à estrada e, passando sob o arco de triunfo, desce pela avenida
central para ir desaguar junto da estátua da Virgem, onde, duas
horas antes, tinha surgido.
Os milhares de fiéis que tomam parte no cortejo, a multidão
inumerável dos que assistem à sua passagem, as preces e os
cânticos, que brotam de lábios trémulos de comoção, a fé viva e a
piedade estreme daquela imensa mole de pessoas de todas as
classes sociais e de todos os pontos do país, tudo isto constitui um
espectáculo assombroso, que simultaneamente comove e encanta,
elevando as nossas almas, num suave arroubo místico, para regiões
inacessíveis às agitações e misérias deste mundo.
À meia-noite termina a apoteose da Virgem com o canto do
Credo, a magnífica profissão de fé dos Apóstolos, cujos acentos
ecoam nos montes vizinhos, repercutindo-se de quebrada em
quebrada até se perderem ao longe.
Extintos os últimos ecos do Credo, a maior parte da multidão
dispersa-se na melhor ordem, indo formar os seus acampamentos
para a vigília nocturna.
Pequenas, mas inúmeras fogueiras de velas, iluminam o recinto e
aquecem o chão, que ainda se conservava húmido, devido às fortes
bátegas de água que tinham caído durante o dia.
E pela noite adiante nem uma só nota profana vibra naquele
ambiente de intensa piedade, ouvindo-se apenas o brando ciciar
das preces dos peregrinos que velam junto dos companheiros
profundamente adormecidos num sono reparador das forças gastas
em tão longa e penosa viagem.

A missa dos servitas


A comunhão dos servitas e dos escuteiros
Cerca de oitenta missas
Os servitas e os escuteiros
As peregrinações com os seus estandartes
A fonte de água miraculosa
Uma cena comovente
Às três horas da manhã, os sacerdotes previamente inscritos no
respectivo registo começam a celebrar a santa missa nos três
altares da capela nova, sucedendo-se uns aos outros sem
interrupção.
A segunda missa é rezada pelo rev.do dr. Marques dos Santos,
capelão-director dos servitas, que a ela assistem, recebendo das
suas mãos o Pão dos Anjos.
Entretanto, chegam grupos de escuteiros católicos de Lisboa, de
Leiria e de Coimbra que, depois de ouvirem missa e de
comungarem, organizam, juntamente com os servitas e sob a
direcção dos seus chefes, o serviço de ordem e de transporte dos
enfermos.
Pouco a pouco, vão-se reunindo as servas de Nossa Senhora do
Rosário que, envergando batas alvinitentes, dão-se pressa em
iniciar a sua piedosa tarefa de assistência aos enfermos.
Às sete horas, uma chuva miudinha e impertinente principia a cair,
molhando tudo e todos, sem conseguir, porém, que os peregrinos
desistam de ficar para as cerimónias oficiais da peregrinação.
Sucessivamente, de espaço a espaço, transpõem o arco de
triunfo e descem pela avenida central longas e numerosas
peregrinações precedidas dos seus párocos, confrarias e
estandartes.
Junto de nós, rezando o terço ou cantando piedosos cânticos,
desfilam processionalmente, entre outras, as peregrinações do
Beato (180 pessoas), de Belas, Nazaré, Coruche (150 pessoas),
Ansião (100 pessoas), Filhas de Maria de Vagos, Pombal (120
pessoas), Figueiró dos Vinhos, Vila Nova de Foz Coa, Martigança,
Benedita (150 pessoas), Rio de Moinhos, Monte Real, Esposende,
Viana do Castelo, Soure, Teixoso, Vila do Conde e Braga.
São lindos e vistosos os estandartes, alguns dos quais
representam a cena incomparável da aparição da Virgem aos
pastorinhos. Os cânticos comovem pelo sentimento que a letra e a
música traduzem e pela expressão de fé e piedade com que são
executados.
Algumas peregrinações, como a de Pombal e a de Figueiró dos
Vinhos, fizeram o percurso a pé! Os peregrinos desta última
passaram a noite em adoração ao Santíssimo exposto na igreja
paroquial de Fátima, onde assistiram à missa e receberam a
Sagrada Comunhão.
São quase nove horas. Uma grande multidão aglomera-se em
torno da primeira fonte. Numerosos servitas dirigem o serviço de
acesso. Filas, sem cessar renovadas, de quarenta e cinquenta
pessoas, aguardam em frente de cada uma das quinze torneiras a
sua vez de beberem ou de encherem os recipientes que trazem
consigo.
Fervem as ordens, repetem-se os avisos. E aquela multidão
inumerável, paciente e dócil, obedece sem relutância, cumprindo
pontualmente as instruções dos servitas, dadas muitas vazes com
energia, mas sempre com caridade.
Subimos à estrada. O espectáculo é único e indescritível. Vêem-
se dezenas de milhar de camions, automóveis, trens e outros
veículos ao longo da estrada e nos terrenos adjacentes, numa
extensão de muitos quilómetros. Dir-se-ia que toda a população do
país se tinha transportado naquele dia, a um sinal da sua augusta
Padroeira, para junto do seu santuário predilecto, na Lourdes
portuguesa.
Por entre a multidão que enxameia na estrada ouvem-se
frequentemente frases que exprimem admiração e assombro,
observações e comentários acerca do número de peregrinos e da
grandiosidade daquele espectáculo de fé e piedade cristã, único na
história da nossa nacionalidade.
A assistência é avaliada em trezentas mil pessoas. De repente na
avenida central, depois da passagem duma das peregrinações,
depara-se uma cena bastante singela, mas em extremo comovente,
cuja vista arranca lágrimas de muitos olhos.
Uma mulher de meia idade, rezando em silêncio, desce
vagarosamente de joelhos, a avenida. Ao lado, dando-lhe a mão,
caminha o marido, empunhando uma vela acesa, e à frente dois
filhos gémeos de oito anos e uma filha de treze, cada um deles
também com uma vela na mão. Vieram a pé da Ribeira de Rio de
Moinhos, onde residem, cumprir a promessa que tinham feito e
agradecer à Santíssima Virgem a cura da esposa e mãe, que se
encontrava gravemente enferma, em perigo de vida e desenganada
da ciência humana.

O Posto de verificações médicas


Os médicos e os doentes
A resignação e a confiança dos enfermos
A oração de cem mil pessoas
Como costuma suceder em treze de Maio e em treze de Outubro,
os doentes são também desta vez muito numerosos.
Os servitas transportam em macas os paralíticos e aqueles
doentes, cujo estado é mais grave, para o Posto de verificações
médicas e depois para o respectivo pavilhão. Os enfermos que
podem andar reúnem-se em frente do Posto e aguardam a sua vez
de serem examinados e de receberem o cartão de ingresso no
recinto reservado.
Entre os médicos que prestam obsequiosamente os seus serviços
vêem-se os drs. Augusto Mendes, Luz Preto, Weiss de Oliveira,
Eurico Lisboa, Pereira Gens, Veloso da Costa, Garcia de Carvalho e
Gabriel Ribeiro que examinam e registam algumas centenas de
enfermos, procedentes de todas as regiões do país e atacados de
toda a espécie de enfermidades.
Havia doentes de Penela, Louriçal, Mira, Vila Franca de Xira,
Cuba, Lisboa, Torres Novas, Constância, Trancoso, Cartaxo,
Alcobaça, Lousã, Cantanhede, Porto de Mós, Aldeia Galega,
Gavião, Coruche, Tomar, Guarda, Figueiró dos Vinhos, Cabeceiras
de Basto, Oleiros, Carregal do Sal, Leiria, Castelo Branco, Abrantes,
Fundão, Mangualde, Alquembrão, Valverde, Ansião, Sintra,
Pedrógão, Elvas, Pombal, Crato, Monte Real, Gouveia, Covilhã,
Lourinhã, Gois, Oliveira do Hospital, Nogueira do Cravo, Louredo,
Évora, Foz do Arelho, Penacova, Batalha, Albufeira, etc.
A inscrição estava já encerrada às onze horas por não comportar
mais doentes o pavilhão que lhes é destinado em frente da capela
das missas.
No pavilhão rezam os doentes com fervor e esperam
resignadamente a hora da última missa. Em volta, mais de cem mil
pessoas juntam as suas preces às dos enfermos, suplicando para
eles a cura dos seus males e a resignação e o conforto de que
carecem para os suportarem com mérito para o Céu.

A procissão solene
Representantes de todas as classes
As Confrarias e Irmandades
A revoada dos lenços, as palmas e os vivas
É quase meio-dia solar. Organiza-se junto da capela das
aparições a procissão solene do costume, agora muito mais solene
e imponente, para conduzir a branca estátua de Nossa Senhora de
Fátima para a capela das missas.
O cortejo põe-se em marcha. Acompanha-o uma multidão enorme
de fiéis de todas as classes e condições sociais. Abrem o cortejo os
pendões de várias irmandades e confrarias. Seguem-se os servitas
em filas cerradas. Depois a veneranda Imagem é conduzida aos
ombros dos servitas. Quando esta chega ao Pavilhão, milhares de
lenços brancos, semelhando um bando de pombas, são agitados de
longe e de perto, ao mesmo tempo que estrugem os vivas e ecoam
as palmas e os olhos de todos se marejam de lágrimas de comoção.

O Credo de Lourdes
A missa dos doentes
O terço do Rosário
Sete mil comunhões
Um coro uníssono de vozes fortes e afinadas canta o Credo de
Dumont. Em seguida o celebrante da missa dos doentes sobe ao
altar central e principia o Santo Sacrifício.
Ao mesmo tempo o rev.do capelão-director dos serviços dá início
à recitação do terço do Rosário, que é rezado alternadamente com o
povo. O silêncio é profundo e a devoção dos fiéis intensifica-se à
medida que se aproxima o momento augusto da Consagração.
De vez em quando ouve-se um cântico em honra de Jesus Hóstia
ou da Santíssima Virgem. Quando a Vítima Sacrossanta dos nossos
altares é levantada entre o Céu e a terra, toda aquela mole de povo
ajoelha no chão, curva-se e adora a Jesus escondido sob as
espécies do seu Sacramento de Amor.
A comunhão é mais uma vez distribuída aos fiéis. Deviam ter
comungado cerca de sete mil pessoas, durante as oitenta missas
celebradas desde a madrugada.

A bênção dos doentes


Lágrimas de comoção
Súplicas veementes
Apoteose final à Rainha do Céu e da terra
Dia de triunfo e de glória
Após a missa, o celebrante, depois de incensar a Hóstia Santa,
exposta num ostensório de ouro, pega nele e desce os degraus do
altar para dar princípio à bênção dos doentes. Os servitas, os
escuteiros e numerosos sacerdotes acompanham o Santíssimo. Os
doentes, sentados nos bancos do pavilhão ou deitados nas suas
macas, oram com fervor e aguardam confiadamente a hora da cura
ou do conforto divino.
Jesus passa fazendo o bem, como outrora, durante a sua vida
mortal, nas cidades e vilas da Palestina. Quase todos os doentes e
muitas outras pessoas choram de comoção. A cena que se passa é
empolgante e patética. Esses pobres farrapos humanos, vítimas
dum sem número de misérias físicas – paralíticos, cancerosos,
cegos, surdos-mudos, tísicos, leprosos, etc. – de mãos postas e
olhos fitos na Hóstia Santa, imploram, numa prece silenciosa mas
veemente, um olhar de misericórdia, uma palavra de consolação e
de conforto.
As invocações pelos enfermos, instantemente repetidas, de
momento para momento, redobram de intensidade e parecem fazer
violência ao Céu, para que se apiede daquela legião de
desgraçados.
Depois o sacerdote sobe ao altar e, cantado o Tantum ergo, dá a
bênção a toda a multidão ajoelhada a seus pés.
Após a bênção sobe ao púlpito o rev.do Paulo Durão Alves, que
fala sobre a devoção a Nossa Senhora e o cumprimento dos
deveres cristãos.
Por último organiza-se de novo a procissão a fim de reconduzir a
Imagem de Nossa Senhora para a capela das aparições. Repete-se
o espectáculo comovente da primeira procissão e os vivas, as
palmas e os cânticos e o acenar dos lenços constituem uma
verdadeira apoteose à Rainha do Céu e da terra.
Pouco a pouco a multidão dispersa-se e os veículos conduzem ao
seu destino os romeiros, que vão cantando os seus cânticos de
despedida à Virgem.
Os anais de Fátima, – a Lourdes portuguesa, a Jerusalém do
Ocidente – registam, em letras de ouro, mais um dia de triunfo e de
glória para a Virgem, mais um espectáculo grandioso e empolgante
de fé e piedade cristã, único nas páginas imortais da história de
Portugal.
8. FÁTIMA E O “POVERELLO”
(13 DE JUNHO DE 1927)

O Serafim de Assis
A missa comemorativa do sétimo centenário
de S. Francisco – Quatro mil comunhões
A homenagem da Lourdes Portuguesa
De acordo com o capelão-director dos santuários de Nossa
Senhora de Fátima, o rev.do Superior Provincial dos beneméritos
Filhos do Seráfico Padre S. Francisco de Assis resolveu consagrar o
dia treze de Junho de 1927 à comemoração festiva do glorioso
Patriarca no ocal das aparições.
Bem escolhido foi esse dia para tal comemoração, porque já a
Santa Igreja o assinalara com a glorificação dum dos membros mais
ilustres da Ordem Seráfica, o grande Santo António de Lisboa, cujas
palmas triunfais é justo entrelaçar com as do Santo Fundador.
Os prestimosos Filhos de S. Francisco envidaram todos os
esforços para a celebração condigna das festas centenárias, que
resultaram brilhantíssimas e impregnadas dos mais vivos
sentimentos de fé e piedade.
Para dar uma ideia da importância das solenidades franciscanas
de Fátima, basta dizer que na missa de comunhão geral, que se
celebrou às nove horas, comungaram mais de quatro mil pessoas.
Naquele local abençoado que é hoje o trono mais esplendoroso
de Jesus no seu Sacramento de amor e o centro do mais acendrado
culto à Rainha do Céu, ficam admiravelmente bem as homenagens
nacionais ao Santo que se distinguiu pelo seu amor ao Amor que
não é amado e pela sua devoção à Augusta Mãe de Deus.
No coro imponente e unânime de louvores que a cristandade
eleva ao Seráfico Patriarca neste sétimo centenário do seu ditoso
trânsito, a Lourdes portuguesa, centralizando e coroando as
comemorações da Pátria de Santo António, ocupa
incontestavelmente o primeiro lugar pela grandiosidade das suas
homenagens e pela sinceridade e ternura da sua devoção.

Confiança e alegria duma mãe


As obras no recinto das aparições
A nova fonte miraculosa
Os grupos de peregrinos
A procissão das velas na véspera à noite
Pouco depois das seis horas da manhã do dia treze parava na
estrada que domina o local das aparições, a camionette em que se
faziam transportar os beneméritos servitas de Torres Novas que
tanto se distinguem pelo seu trabalho indefesso, pela sua nunca
desmentida dedicação, pelo seu esforço criterioso e persistente e
pela rigidez da sua disciplina no desempenho da sua tão simpática
como delicada missão.
Junto da primeira fonte miraculosa uma mulher do povo, com uma
criança ao colo, conversa com um peregrino que acaba de fazer a
sua provisão de água, apesar da grande dificuldade do acesso,
mercê da afluência de concorrentes. A criança era completamente
cega de nascença. No dia treze de cada mês, durante onze meses
consecutivos, a mãe, cheia de fé e confiança, dirige-se a Fátima,
para suplicar à Santíssima Virgem que restitua a vista ao filho
estremecido... Pouco a pouco ele vai melhorando, sem nenhum
tratamento, e agora já vê bastante, embora não esteja ainda curado.
No recinto das aparições acham-se em construção alguns novos
edifícios
Entre a capela das missas e o Posto das verificações médicas, à
direita deste último, erguem-se já as paredes do hospital-sanatório.
Um pouco mais longe, a meia encosta, vêem-se os alicerces da
capela das confissões, semelhante na forma e no estilo à
Penitenciaria de Lourdes, de recente fundação.
Ao lado da estrada, dum e doutro lado do pórtico monumental,
levantam-se numerosas e grossas colunas de mármore branco, que
imprimem à entrada dos santuários um cunho de majestade e
imponência incomparáveis. Lá em baixo, no fundo do vale, a nova
fonte miraculosa, situada apenas à distância de cinco ou seis metros
da primeira e ainda mais abundante do que ela, é continuamente
objecto de atenção dos peregrinos, que a contemplam cheios de
admiração pelo poder e bondade da Virgem Santíssima.
Naquela região de tão elevada altitude, árida e deserta, onde
vegetam apenas alguns arbustos e árvores raquíticas e enfezadas e
onde num raio dalgumas léguas não há água de nascente, mas só
poços e cisternas com água das chuvas, é verdadeiramente
providencial uma tão grande abundância de água, indispensável
para ocorrer à devoção dos peregrinos, satisfazer a sede deles e
dos animais que ali vão todos os meses em número de muitos
milhares, e facilitar extraordinariamente as grande obras já iniciadas
ou em projecto.
Entretanto chegam numerosos grupos de peregrinos. Na estrada
vêem-se camiões de Condeixa, Cartaxo, Caldas da Rainha, Torres
Vedras, Penacova, Alcobaça, Bombarral, Alpiarça, Tomar, Sertã,
Albergaria-a-Velha, Pernes, Torres Novas e outras terras.
No meio da multidão que enche a estrada de lés a lés, um
peregrino do Pedrógão de Torres Novas conversa com um
sacerdote seu amigo.
Profundamente crente e duma cultura invulgar, narra ao seu
interlocutor, em palavras frementes de entusiasmo, que revelam a
mais viva comoção, o espectáculo imponente e assombroso da
procissão das velas na tarde do dia precedente.
No ardor da sua admiração comovida, as palavras brotam-lhe dos
lábios, traduzindo graciosamente, em imagens cheias de beleza e
encanto, os pensamentos que lhe acodem ao espírito piedoso e
gentilíssimo.
Na sua expressão saturada de poesia, o maravilhoso cortejo, que
contemplara do alto da estrada, formou primeiro um coração, de
proporções gigantescas, todo abrasado em chamas e tão perfeito,
tão bem delineado, como nem o grande Carlos Reis, com o poder
evocador do seu espírito, com toda a magia encantadora da sua
paleta e do seu pincel, era capaz de reproduzir na tela, em
miniatura. Depois, desenhou um bouquet, de tamanho descomunal,
composto das flores mais belas, mais raras, de variegadas cores,
que pareciam ter os seus pecíolos presos nas imediações da fonte
miraculosa. Quando os peregrinos, num protesto veemente de fé e
piedade, levantavam as velas ao alto e cantavam o Avé, como em
Lourdes, – a divina cidade dos Pirineus, – dir-se-ia que o lago de
fogo formado por dezenas de milhar de lumes, era um formoso e
magnificente jardim de açucenas, constantemente agitadas pelo
leve sopro da brisa nocturna.

A peregrinação de Lisboa
O comboio especial
O estandarte
O distintivo dos peregrinos
O regresso à capital
Louvável iniciativa
Lisboa mais uma vez se impôs à admiração dos crentes pela
intensidade do espírito religioso que anima as suas peregrinações, e
pelo superior critério, com que as sabe organizar e dirigir.
A peregrinação deste mês, promovida pela Irmandade do Senhor
dos Passos, da Igreja da Conceição Velha, perfazia um total de
duzentas e trinta pessoas, que partiram da estação do Rossio na
manhã do dia treze em comboio especial
Era dirigida pelo rev.do dr. Manuel Augusto Peres, delegado do
Patriarcado, que tinha como auxiliares no desempenho do seu
múnus os rev.dos Catarino e Salvação, capelães da referida igreja.
Os peregrinos ostentavam no peito o distintivo da peregrinação,
que era um laço roxo com uma medalha do Senhor dos Passos, à
qual muitos juntaram uma medalhinha com a efígie de Nossa
Senhora de Fátima.
O estandarte da peregrinação, lindo e vistoso como poucos, foi
pintado por senhoras da freguesia da Conceição Velha e representa
a cena das aparições.
Tendo chegado à Cova da Iria, os peregrinos encaminham-se
para junto do Santuário, cantando um dos hinos de Fátima.
Durante a missa da peregrinação, celebrada pelo rev.do dr. Peres,
foi administrada a Sagrada Comunhão aos peregrinos.
Depois da assistência aos restantes actos do programa oficial, a
peregrinação de Lisboa regressou, como tinha vindo, em numerosos
meios de transporte, ao apeadeiro de Seiça (Ourém), onde a
aguardava o comboio especial, que a reconduziu a Lisboa. Bem-
haja a Irmandade da freguesia da Conceição Velha pela feliz
iniciativa que teve e que foi coroada dum êxito consolador, e praza a
Deus que outras corporações congéneres sigam o seu exemplo,
tomando iniciativas idênticas, que tanta glória dão a Deus e que
tanto bem fazem às almas.

Posto de verificações médicas


Várias curas
Cura duma senhora tuberculosa
Uma cura em Braga
Os médicos de serviço
As listas dos doentes inscritos
No Posto das verificações médicas intensifica-se cada vez mais,
de instante para instante, o movimento de vaivém dos doentes.
O rev.do Manuel Pereira Silva, administrador da Voz da Fátima, a
quem a voz do povo chama com razão o secretário de Nossa
Senhora, põe em relevo o facto altamente consolador do aumento
considerável de curas nos últimos tempos. Desde treze de Maio
último, chegou à redacção daquele jornal a notícia de mais de
quarenta curas novas atribuídas à intercessão de Nossa Senhora de
Fátima. Muitas dessas comunicações são acompanhadas de
atestados médicos e outros documentos comprovativos da
autenticidade e do carácter sobrenatural das curas. Entre estas
merecem especial referência as de dois homens, um que tinha uma
úlcera no estômago havia mais de vinte anos e o outro surdo
durante quarenta e nove anos, e a duma religiosa dominicana, que
sofria igualmente duma úlcera no estômago.
Entre as pessoas que compareceram no Posto para anunciarem a
cura das suas doenças, nota-se uma senhora casada de nome
Emília Urbana Rita, de vinte anos de idade, moradora em Setúbal.
Tuberculosa em terceiro grau, tratada sem resultado por vários
médicos em Setúbal e em Lisboa, desenganada da ciência humana
a tal ponto que um médico dos mais ilustrados da capital disse que
ele não era Deus para a curar, recuperou em três dias a saúde, que
outrora desfrutava, graças à intercessão de Nossa Senhora de
Fátima, tendo-lhe sido constatada a cura no Hospital de Santa
Maria. Apresentou-se vestida com o trajo azul e branco da Virgem,
tendo vindo assim de Setúbal, acompanhada do marido, para o
oferecer como ex-voto.
Numa das galerias do Posto uma mulher alta, apresentando
saúde e robustez, narra comovidamente, numa pequena roda de
servitas, a cura interessante de que foi objecto. Chama-se
Ermelinda Fernandes, tem vinte e sete anos, á casada e mora em
Gualtar, próximo de Braga, Havia quatro meses que sofria
horrivelmente de várias complicações dum parto difícil, agravando-
se de dia para dia o seu estado, que fazia prever, num curto espaço
de tempo, um desenlace fatal. Ungida já e sacramentada, segundo
a sua própria expressão, em perigo iminente de morte, pediu, por
conselho duma vizinha, a cura a Nossa Senhora de Fátima,
prometendo, se fosse despachada a sua súplica, fazer uma
peregrinação em acção de graças ao santuário das aparições.
Imediatamente a protecção da Mãe de Deus se fez sentir, e a
moribunda, restituída, com grande espanto da família e da
população da sua terra à vida e à saúde, de que gozava antes do
parto, põe-se a caminho, fazendo uma tão longa viagem para dar
cumprimento à sua promessa.
Dirigem o serviço do Posto o dr. Pereira Gens, da Batalha,
médico-chefe, auxiliado por alguns colegas, entre os quais o dr.
Fernando Correia, das Caldas da Rainha, e o dr. João Alvim, de
Ourém. Como já há muitos anos sucede em Lourdes, os estudantes
de medicina começam a frequentar o Posto, coadjuvando os
médicos e estudando os casos clínicos mais notáveis, que ali se
oferecem à sua observação. Nos anais do Posto de Fátima ficará a
ocupar o primeiro lugar na lista dos estudantes de medicina, que ali
prestaram os seus serviços, o simpático jovem e talentoso e distinto
aluno da Faculdade de Medicina da Universidade de Lisboa, sr.
José Carvalho Reis e Silva, filho do importante proprietário do
Pedrógão de Torres Novas, sr. António Carlos Reis e Silva.
Às onze horas, quando se encerrou definitivamente a inscrição,
tinham sido facultados cartões de identidade, para poderem ser
admitidos no respectivo pavilhão, a cerca de trezentos doentes.

A procissão da Imagem da Virgem


O Credo de Dumont
A missa oficial
Preces e cânticos
A bênção dos doentes
O sermão oficial
A debandada
Pouco antes do meio dia solar, organiza-se o cortejo que deve
acompanhar a veneranda estátua de Nossa Senhora de Fátima da
capela das aparições até à capela das missas.
A linda Imagem passa entre alas compactas de povo, que a
saúda entusiasticamente com palmas e vivas e um contínuo agitar
de milhares de lenços brancos. Colocada a Imagem num pedestal
erguido para esse fim à direita do altar-mor, um coro, forte e bem
timbrado, executa proficientemente o Credo de Dumont.
Terminado o canto, começa a missa dos doentes. Enquanto ela se
celebra, o capelão-director dos servitas reza, juntamente com o
povo, o terço do Rosário. Depois da elevação do cálix, a multidão
canta um piedoso cântico popular em honra do Santíssimo
Sacramento.
Em seguida à missa, realiza-se, na forma do costume, a
cerimónia da bênção dos doentes. Dada a bênção geral, o rev.do
Luis de Sousa, ilustre filho de S. Francisco, prega um substancioso
sermão acerca da devoção do glorioso Santo a Nossa Senhora e,
reconduzida processionalmente a Imagem da Virgem à capela das
aparições, procede-se à admissão dum grande número de fiéis de
ambos os sexos na Ordem Terceira Franciscana. Principia então a
debandada.
Os veículos vão partindo uns após outros para os seus destinos, o
recinto dos santuários descongestiona-se pouco a pouco, e ao pôr
do sol mal se via um ou outro peregrino retardatário rezando uma
última súplica à Virgem e apartando-se a custo e cheio de saudade
daquela estância privilegiada do Céu.
9. AS GLÓRIAS DA MÃE DE DEUS
(13 DE JULHO DE 1927)

Vigília de armas
A torrente caudalosa das multidões
A imponente procissão das velas
Espectáculo assombroso e comovente
Vibrantíssimo hino de fé
Mais perto de Deus
As primeiras sombras nocturnas descem lentamente sobre a
Cova da Iria. É o dia doze de Julho de 1927, véspera daquele em
que se comemora a terceira aparição da Rainha do Céu aos
humildes pastorinhos de Fátima. Uma multidão compacta dalguns
milhares de pessoas, de ambos os sexos, e de todas as idades e
categorias sociais, aglomera-se junto dos santuários.
Aproxima-se a hora do espectáculo mais deliciosamente
arrebatador que jamais olhos humanos lograram contemplar em
terras de Portugal e que só ali, naquela estância bendita, se oferece
à vista das multidões maravilhadas, extasiando as almas e
abrasando os corações.
O tempo passa veloz. Entretanto as estradas de Torres Novas, da
Batalha e de Vila Nova de Ourém e os caminhos e atalhos da
montanha despejam sem cessar novas vagas de peregrinos no lago
imenso da planície sagrada.
De repente, naquele local privilegiado, opera-se, como que por
encanto, uma assombrosa e encantadora mutação de cenário. O
vasto anfiteatro, até então silencioso e imerso nas trevas da noite,
anima-se com os cânticos em honra da Virgem e inflama-se com os
milhares de lumes, que se acendem para a grandiosa procissão das
velas.
Dali a pouco, na suavidade da noite estrelada e calma, desenrola-
se a perder de vista uma longa e deslumbrante fita de luz que sobe
à estrada, passa sob o pórtico monumental e desce pela grande
avenida até se concentrar junto da capelinha das aparições.
Daquelas almas empolgadas pela piedade sai então, como um
protesto veemente contra todas as negações impotentes da
impiedade, um vibrante hino de fé e de esperança cristã – as
majestosas e sublimes afirmações do Credo.
Ditosos, incomparavelmente ditosos, aqueles momentos solenes,
em que parece efectuar-se um místico contacto entre a terra e o
Céu, e os corações dos homens, alheados do mundo vil e
mesquinho e desprendidos das coisas efémeras deste vale de
lágrimas e de misérias, se elevam, tocados pela graça divina, para
as regiões misteriosas de além túmulo, acolhendo-se ao seio
paternal e misericordioso de Deus.

Noite de oração, de penitência e de repouso


O primeiro capelão privativo dos santuários
Jesus-Hóstia sempre presente na Cova da Iria
No limiar da vida e às portas da eternidade
Após uma noite passada sobre a terra dura e fria, no recolhimento
da oração e na contemplação das verdades eternas, ou no
descanso das fadigas duma longa e penosa viagem, os peregrinos,
acampados na Cova da Iria ou nas suas imediações, erguem-se às
primeiras horas da manhã, com as forças da alma e do corpo
restauradas, para dar início às práticas religiosas, que uma piedade
acrisolada lhes inspira.
A partir deste dia, o glorioso santuário de Fátima possui um
capelão privativo. Sua Excelência Reverendíssima, o Senhor D.
José Alves Correia da Silva, venerando Bispo de Leiria, realizando
um seu desejo muito ardente e muito antigo, que era também o de
todos os peregrinos, dignou-se nomear, por carta datada do dia
treze de Julho, capelão de Nossa Senhora de Fátima, o rev.do
Manuel de Sousa, ex-pároco de Seiça.
Novo e de constituição robusta e saudável, dotado duma
inteligência lúcida e duma cultura invulgar realçadas pelos primores
duma educação esmerada, cheio de zelo pela glória de Deus e pela
salvação das almas, tudo permite esperar que o primeiro capelão da
Lourdes Portuguesa há-de justificar a escolha que o ilustre Prelado
diocesano fez da sua pessoa para o desempenho desse lugar de
tamanha responsabilidade e de tão honrosos como pesados
encargos.
A nomeação do capelão permanente, cuja posse se efectuou
neste dia sem as solenidades usuais em tais circunstâncias, implica
outra graça importantíssima, que o venerando Prelado de Leiria se
dignou também conceder: a conservação habitual do Santíssimo
Sacramento no local das aparições.
Doravante os peregrinos de Fátima encontrarão ali a toda a hora
do dia e da noite o Rei do Céu e da terra, realmente presente no seu
Sacramento de Amor, e associarão no doce desafogo da sua
piedade e nas fervorosas homenagens da sua devoção, o culto
latrêutico de Jesus-Hóstia ao culto de hiperdulia em honra da
augusta Mãe de Deus.
Como penhor das bênçãos do Céu sobre esta terra de mistérios e
prodígios, precisamente no dia em que Jesus se digna estabelecer
ali a sua morada permanente, a Providência dispõe que dos sete
sacramentos, fontes perenes de vida sobrenatural, o primeiro e o
último sejam administrados a duas peregrinas.
Mediante prévia autorização do venerando Prelado, pela mão
ungida do rev.do Agostinho Marques Ferreira, zeloso pároco de
Fátima, as águas lustrais do Baptismo caem sobre a cabeça duma
criança do sexo feminino, a quem ele põe o nome de Maria,
fazendo-a nascer para a vida da graça e tornando-a filha adoptiva
de Deus e membro da Igreja.
E aquela mão sagrada, que regenerara a privilegiada menina,
pouco depois administrava a Extrema-Unção a uma doente do
Alentejo, que a todos os que a viam enchia de comiseração e que,
mercê da gravidade do seu estado, não pôde sair do automóvel que
a conduzira a Fátima.

O registo dos enfermos


Cura de duas criadas de servir do Porto
Sofrimento e resignação
Devoção dos peregrinos
Água miraculosa
As servas e os servos de Nossa Senhora do
Rosário
A oração dos fiéis
São nove horas. A multidão que enxameia na Cova da Iria, em
torno dos santuários ou junto das fontes da água miraculosa, torna-
se cada vez mais densa e compacta.
De todos os lados afluem a cada momento novos peregrinos. No
Posto das verificações médicas procede-se ao exame dos doentes,
fazendo-se a inscrição dos seus nomes no registo respectivo e
entregando-se-lhes a senha de ingresso no pavilhão da capela das
missas.
Em poder da comissão canónica acham-se mais dois atestados
médicos: os que comprovam a cura de duas criadas de servir do
Porto no dia treze de Setembro último em Fátima.
O pavilhão dos doentes vai-se enchendo a olhos vistos de vítimas
de todos os males físicos que afligem a pobre humanidade. Nos
seus rostos emaciados por longos e cruciantes sofrimentos reflecte-
se a paz e serenidade de almas alentadas pelo doce conforto da
esperança e da resignação cristã.
Na capela comemorativa das aparições numerosos devotos
cumprem as suas promessas, rezam com fervor à Virgem do
Rosário, solicitando graças ou agradecendo benefícios recebidos,
ou tocam medalhas, terços e outros objectos de piedade na sua
linda e veneranda Imagem.
Em torno da primeira fonte comprime-se, desde as primeiras
horas da manhã, uma multidão enorme de fiéis, que aguardam a
sua vez de recolherem em recipientes, que trazem consigo para
esse fim, a preciosa linfa, instrumento de tantas maravilhas que
atestam o poder e a bondade maternal de Maria Santíssima.
Os servos e as servas de Nossa Senhora do Rosário, em número
de muitas dezenas, exercem sem descanso a sua missão
abençoada, efectuando o transporte dos enfermos, mantendo o
serviço de ordem ou prodigalizando as finezas da sua caridade a
tantas almas martirizadas pela dor, a tantos corpos torturados pela
doença.
É quase meio-dia solar. Já algumas dezenas de sacerdotes
celebram a santa missa.
Muitas vezes, quase incessantemente, foi administrado o Pão dos
Anjos. A multidão, aglomerada em volta do recinto destinado aos
doentes, aguarda ansiosamente os últimos actos oficiais da
peregrinação.
A oração é mais intensa, o silêncio e o recolhimento cada vez
maiores. De todos os pontos do vasto anfiteatro, acorrem
numerosos peregrinos que vão engrossar consideravelmente a
assistência. Um profundo e vivo espírito de fé anima aquelas almas
prostradas em face do altar, onde adoram escondido na Hóstia
Santa o Deus de amor, e um sopro quente de esperança eleva-as
acima das mesquinhas preocupações da terra até aos páramos
serenos e reconfortantes da vida sobrenatural e divina.
Tudo se prepara para a missa e bênção dos enfermos.

O cortejo da Virgem
Uma missa nova
A fé e a piedade dos peregrinos
A bênção dos doentes
O sermão oficial
A sineta do santuário adverte os peregrinos de que a missa dos
peregrinos vai começar. Lá em baixo, ao pé da capela das aparições
nota-se um movimento desusado. É a procissão que se está
organizando. A branca estátua da Virgem é tirada do seu pedestal e
conduzida aos ombros dos servitas para a capela das missas.
Milhares de pessoas acompanham a Imagem, num impulso
edificante de fé e piedade.
Quando ela chega ao limiar do pavilhão, um frémito de amor e de
alegria agita aquele mar imenso de almas.
Milhares de lenços brancos flutuam no ar semelhando lindas
pombas, estrugem no espaço vivas e aclamações à Virgem,
estalejam nutridas salvas de palmas, e lágrimas de comoção brotam
de todos os olhos.
Um coro de vozes, másculas e bem timbradas, canta em
uníssono o Credo de Lourdes.
Terminado o canto, sobe ao altar central o nóvel sacerdote, rev.do
dr. Mário Lopes de Carvalho, de Torres Novas, que vai celebrar pela
primeira vez o augusto sacrifício dos nossos altares.
Assistem-lhe os rev.dos Joel de Deus Magno e António Pires e
serve de padrinho o rev.do João Nunes Ferreira, capelão dos
servitas de Torres Novas. A missa principia no meio da comoção
geral dos assistentes, do pranto desfeito dos sacerdotes e das
manifestações inequívocas da piedade de todos os fiéis
O rev.do dr. Marques dos Santos reza o terço do Rosário
alternadamente com o povo. Depois da elevação, canta-se um hino
litúrgico em honra do Santíssimo Sacramento.
Acabada a missa, o celebrante reveste-se de capa de asperges
para dar a bênção. Cantado o Adoremus in aeternum, desce os
degraus do altar e dá a bênção com o Santíssimo a cada um dos
enfermos. Depois, volta ao altar, e cantado o Tantum ergo traça,
sobre a multidão ajoelhada a seus pés, o sinal augusto da nossa
redenção com a custódia de ouro, em que Jesus repousa na Hóstia
Santa como num trono de misericórdia e de amor.
Sobe em seguida ao púlpito o rev.do Castelo Branco, sobrinho de
Camilo, que veio expressamente pregar na missa nova do dr. Mário
de Carvalho e que, a propósito desse acto, fez um substancioso e
eloquente sermão.
Depois do sermão, reorganiza-se o cortejo a fim de se conduzir a
Imagem da Virgem para o seu pedestal na capela das aparições.
Os sacerdotes, os servitas e o povo acompanham a Imagem,
soltando aclamações e cantando piedosos cânticos, seguindo-se
depois a cerimónia do beija-mão do novo sacerdote.
Os peregrinos dispersam pouco a pouco. O sol desce no
horizonte, entre as brumas da montanha distante. As primeiras
sombras da noite envolvem os fiéis que, ao pôr do astro-rei, se
encontram na Cova da Iria.
Já não se ouve o brando ciciar das preces, nem os soluços
abafados dos enfermos, nem o murmúrio das vagas da multidão,
que se entrechocam. Apenas, de vez em quando, trazido nas asas
do vento, chega àquele lugar de paz bendita o som da buzina
dalgum automóvel ou o eco apagado dalgum cântico em honra da
Virgem, atestando as profundas comoções do dia e a saudade
infinda daqueles lugares povoados de mistérios e transbordantes de
graças e de prodígios.
10. A CIDADE DA VIRGEM
AOS PÉS DE MARIA
(13 DE AGOSTO DE 1927)

A grande peregrinação do Porto


Apostolado da Oração de Paranhos
O rev.do Dr. Manuel Pereira da Silva
Solene tríduo de preparação
O santo dr. Francisco Cruz
Missa de Comunhão Geral
No dia treze do mês de Setembro do ano findo, a nobre e gloriosa
cidade da Virgem trouxe algumas dezenas de seus filhos, em terna
e piedosa romagem, aos pés da sua augusta Padroeira, erguida em
trono de misericórdia e de amor no venerando Santuário de Fátima.
Muitos doentes, alguns em estado bastante grave,
acompanharam a peregrinação, a fim de implorarem a cura de seus
males e, Aquela que com razão é chamada a Saúde dos enfermos –
Salus infirmorum – envolveu-os num doce olhar, curando uns,
melhorando outros, confortando e consolando todos com a ternura
inefável do seu coração maternal.
A notícia dos inúmeros favores extraordinários com que essa
minúscula mas bem organizada peregrinação, que não perfazia um
total de cinquenta pessoas, foi privilegiada pela Mãe da Divina
Graça, espalhou-se com uma rapidez prodigiosa pela região do
norte do país e, ao mesmo tempo que propagava a devoção a
Nossa Senhora de Fátima, suscitava a ideia duma nova romagem
mais numerosa e mais imponente e aplanava o caminho para a sua
realização.
E assim foi que a direcção do Apostolado da Oração de
Paranhos, de acordo com o abade daquela freguesia, rev.do dr.
Manuel Pereira da Silva, tomou a iniciativa de organizar uma
peregrinação do Porto a Fátima, precedida da conveniente
preparação religiosa.
Nos dias nove, dez e onze de Agosto efectuou-se, na linda e
espaçosa igreja paroquial um tríduo solene, tendo pregado todos os
dias o rev.do dr. Cruz, cuja fama de santidade atraiu àquele templo
um concurso extraordinário de fiéis de todos os pontos da formosa
capital do Norte. As verdades eternas e os preceitos da moral cristã
foram expostos pelo orador com a proficiência e a unção que lhe
são peculiares, tendo produzido as suas singelas mas
substanciosas práticas frutos abundantes e ubérrimos de salvação.
No dia onze, pelas oito horas, celebrou-se a missa de Comunhão
Geral, aproximando-se devotamente da mesa eucarística centenas
de fiéis, na sua grande maioria peregrinos.
Para o brilho e relevo acentuadamente piedoso que tiveram estas
solenidades e para a boa organização e êxito feliz da peregrinação
– a primeira grande peregrinação do Norte, que levou a Fátima mais
de seiscentos portuenses, contribuíram em larga escala o
extremado zelo e dedicação do rev.do abade de Paranhos e do
rev.do dr. Cruz, assim como o esforço incansável e a abnegação a
toda a prova dos membros da direcção do Apostolado da Oração
daquela freguesia, entre os quais, sem desprimor para ninguém, são
dignos de especial referência, os srs. Joaquim José Esteves e
António Costa.

Na estação de S. Bento
Partida do comboio especial
Durante a viagem
A nobre e linda princesa do Lis
Na vasta e majestosa Sé Catedral
Alocução de boas vindas do venerando
Antístite Leiriense
Bênção do Santíssimo
A partida do comboio especial, que havia de conduzir os
peregrinos do Porto à encantadora princesa do Lis, estava marcada
para a uma hora da tarde. Pouco depois do meio-dia começaram a
afluir à estação de S. Bento os peregrinos, a quem era facultado o
ingresso na gare mediante a apresentação da competente senha de
inscrição. Os chefes dirigiram o serviço com serenidade e cordura
tão difíceis de manter em tais ocasiões e os peregrinos esmeravam-
se na obediência pronta às instruções que lhes eram dadas.
Só quase às duas horas os últimos peregrinos conseguiram
ocupar os seus lugares.
Na plataforma, parentes e pessoas das relações dos peregrinos,
em grande número, faziam as suas despedidas. Momentos depois o
chefe da estação dá o sinal da partida, ouve-se o silvo estridente da
locomotiva e o comboio especial larga a todo o vapor na direcção do
sul, transpondo montes e vales na sua marcha veloz em demanda
da região das maravilhas divinas, a terra sagrada e mil vezes
bendita de Fátima.
Durante a viagem os peregrinos nas suas respectivas carruagens
rezam o terço em comum, geralmente sob a presidência dum
sacerdote, e cantam piedosos hinos de louvor à Virgem. O chefe do
comboio procede à revisão dos bilhetes, usando sempre duma
gentileza e amabilidade cativantes para com todos os passageiros,
sem por isso deixar de cumprir conscienciosamente os seus
deveres profissionais. Nalgumas estações o comboio pára, com
curta demora, a fim de receber novos peregrinos ou por exigências
do serviço ferroviário.
Durante o percurso os empregados das estações e as demais
pessoas que estacionam nas plataformas acolhem com visíveis
demonstrações de respeito e benevolência, se não de simpatia, a
passagem da peregrinação ao nosso primeiro santuário nacional.
Às sete horas da tarde o comboio entra nas agulhas da estação
de Leiria. A gloriosa cidade episcopal debruça-se sobre as mansas
águas do rio Lis para nelas ver retratados os seus encantos e do
alto do seu velho e histórico castelo, de ameias arruinadas,
contempla absorta em êxtase, a vasta planície, rica de hortas e
pomares, povoada de aldeias e casais, que se estende a seus pés
por léguas e léguas sem conto. Veículos de todas as espécies e
tamanhos transportam para Leiria a onda humana que o comboio
despejou e, meia hora depois, era cheio de encanto o espectáculo
que oferecia a Sé Catedral, que tinha vestido as suas melhores
galas para receber festivamente no seu seio a grande e luzida
embaixada da cidade da Virgem.
Centenas de lâmpadas eléctricas iluminavam o vasto recinto, que
comportava uma multidão imensa composta de peregrinos e de
habitantes da cidade que com eles queriam confraternizar, desde a
primeira hora, aos pés de Deus e junto do altar de Maria.
O venerando e ilustre Prelado, sua Excelência Reverendíssima o
Senhor D. José Alves Correia da Silva, aproveita o ensejo para,
numa breve e eloquente alocução, verdadeiramente paternal,
impregnada de fé e ditada pelo seu bondoso coração de Pastor de
almas, dar as boas vindas aos seus hóspedes dalguns dias e
recomendar-lhes que façam a sua romagem com espírito de
piedade e penitência.
A bênção do Santíssimo pôs remate a esta singela mas
comovente recepção, dirigindo-se logo muitos peregrinos para
Fátima e ficando outros ainda durante algum tempo em Leiria para
jantar ou descansar.
Uma respeitável senhora desta cidade, num rasgo altamente
simpático de rara gentileza, ofereceu um grande cesto com deliciosa
fruta das suas propriedades, para que os peregrinos mais sequiosos
se refrigerassem comendo-a por ocasião da sua chegada.

Ascensão da montanha sagrada


Imponente e majestosa procissão das velas
Primeira adoração nocturna na
Cova da Iria
Preces e cânticos
Bênção do Santíssimo Sacramento
Missa de alva
Durante todo o dia de sexta-feira, véspera do décimo aniversário
da antepenúltima aparição de Nossa Senhora aos pastorinhos,
numerosos peregrinos, de todas as classes e condições sociais e de
diversos pontos do país, percorrem, a pé ou em veículos de todos
os feitios e tamanhos, as estradas que conduzem a Fátima.
Sobre a tarde, pela noite adiante e principalmente às primeiras
horas da manhã, o concurso de peregrinos intensifica-se dum modo
assombroso, despejando, como um rio gigantesco, verdadeiras
catadupas humanas na vasta bacia do local das aparições,
Às nove horas da noite realiza-se mais uma vez a majestosa
procissão das velas, a que imprime um singular realce a presença
da maior parte dos peregrinos do Porto, a piedade sincera e
profunda de todos os fiéis de ambos os sexos que nela tomam parte
e a boa ordem e regularidade com que se desenrola, desde o
princípio até ao fim, em que se canta o Credo de Lourdes.
O Rei do Céu e da terra, oculto sob as espécies de pão no seu
Sacramento de Amor, a Santíssima e Augustíssima Eucaristia, é
exposto pela primeira vez durante a noite na Cova da Iria à
adoração dos fiéis sobre um trono de luzes e de flores armado com
muita arte e raro gosto no altar mor da capela das missas.
É então que as almas eleitas ali presentes ou dispersas pelo país
que, num rasgo de amor e generosidade, se ofereceram à justiça
divina como vítimas de expiação pelas culpas individuais e pelas
iniquidades colectivas da nossa Pátria, volvem os olhos ou o
pensamento para Jesus-Hóstia – a Vítima por antonomásia – a fim
de apresentarem ao Eterno Pai, em união com ele e no mesmo
espírito de reparação e desagravo, o incenso rescendente das suas
adorações e das suas súplicas, o ouro precioso do reconhecimento
da realeza e dos direitos de Deus e a mirra agridoce dos seus
sacrifícios, das suas renúncias e das suas imolações
compensadoras.
No meio do silêncio e da solidão da noite, à luz de prata dum
pálido e formoso luar, naquela estância privilegiada, onde cada
pedra é testemunha dum prodígio do Céu, o espírito alheia-se mais
facilmente das preocupações do mundo, a oração é mais intensa e
fervorosa, o recolhimento torna-se mais profundo e a multidão,
apesar do frio e do desconforto do local ao ar livre permanece de
joelhos, rezando e cantando, num preito ardente de glória, amor e
reparação ao Rei imortal dos séculos.
Após a hora de adoração em comum, a peregrinação do Porto,
então já presente na quase totalidade dos seus membros, faz a sua
hora privativa de adoração, guardando sempre o maior silêncio e
dando inequívocas provas duma piedade sólida e bem formada.
Põe remate a estes cultos encendrados a Jesus-Hóstia a bênção
com o Santíssimo Sacramento.
Por fim, às quatro horas e meia da manhã, começa a longa série
de missas celebradas pelos sacerdotes peregrinos. A primeira é do
rev.do dr. Manuel Marques dos Santos, professor no Seminário de
Leiria e capelão-director da Associação dos servos de Nossa
Senhora do Rosário de Fátima.
Assistem a ela, entre outras pessoas, muitos escuteiros e
servitas, que recebem, com a mais viva e edificante devoção, o Pão
dos Anjos.

Peregrinação dos Riachos


Grupo de peregrinos de Torres Novas
Grupo da Murtosa
Fé e piedade dos peregrinos
Confissões e Comunhões
Riachos, pequena povoação laboriosa e profundamente cristã,
situada entre a estação do Entroncamento e a vila de Torres Novas,
enviou este mês a Fátima uma luzida representação para depor aos
pés da Augusta Virgem do Rosário as homenagens da sua
veneração e do seu amor filial.
Eram mais de cem os membros desta brilhante e piedosa
embaixada, a que presidiu o venerando pároco, o rev.do Paulo
Marques, sacerdote ilustre e zeloso, que vive todo entregue à
pastoreação da grei que Deus confiou à sua guarda, cuidando com
a maior solicitude e dedicação dos seus interesses espirituais e
materiais.
Aproveitando o ensejo para visitarem o grandioso mosteiro da
Batalha, padrão imortal das nossas glórias nacionais, os peregrinos,
em vez de partirem directamente para Fátima, seguiram em
camiões para Leiria, onde chegaram no dia treze de manhã e em
cuja catedral ouviram a santa missa celebrada pelo venerando
Prelado, que lhes fez uma comovente prática e lhes ministrou a
Sagrada Comunhão.
De Torres Novas seguiu também para Fátima um apreciável
número de romeiros, todos sócios da Associação da Juventude
Católica daquela importante vila, constituindo um grupo presidido
pela figura inconfundível de padre e pastor de almas que é o rev.do
João Nunes Ferreira, pároco de S. Pedro de Torres Novas.
A Murtosa enviou igualmente ao local, que a Rainha dos anjos
santificou com a sua presença visível, uma brilhante plêiade de
filhos seus, que não recuaram perante as fadigas duma longa
jornada em camião por estradas quase intransitáveis.
Edificava a todos a devoção dos peregrinos, sobretudo dos
homens e rapazes, que se associavam sem respeitos humanos e
com a maior gravidade e compostura aos actos de piedade
colectiva.
As confissões de pessoas do sexo masculino, únicas até hoje
autorizadas nos santuários da Cova da Iria nos dias treze, mercê da
falta de sacerdotes disponíveis para atender todos os que precisam
de recorrer ao tribunal da penitência, elevaram-se a muitas centenas
e não foram mais numerosas, porque a maior parte dos peregrinos
já se tinham preparado nas suas terras com a confissão
sacramental para poderem fazer a Comunhão em Fátima.
Desde as cinco horas da madrugada até cerca das duas horas da
tarde foi distribuído o Pão dos anjos a muitos milhares de fiéis, que
para o receberem se colocavam em extensas filas duplas, cujas
extremidades chegavam por vezes até ao meio da esplanada.
Espectáculo sublime e arrebatador, que impressionava
profundamente e comovia até às lágrimas.

O Posto das verificações médicas


No pavilhão dos doentes
Dedicação dos servos e servas de Nª Srª do
Rosário
A miraculada Rosa de Jesus Morais, do Porto
Procissão da veneranda Imagem
A missa oficial
Bênção dos doentes
A afluência de doentes ao Posto das verificações médicas para ali
serem observados e obterem a desejada senha de ingresso no
respectivo Pavilhão não foi inferior à dos dois meses anteriores.
Preside ao serviço de inspecção médica o dr. Pereira Gens, da
Batalha, director do Posto. O acesso é regulado pelos servitas e
escuteiros, transportando aqueles os doentes e fiscalizando estes
as entradas.
Perante os médicos vai desfilando a interminável série das vítimas
de sem número de males físicos que afligem a pobre humanidade.
Os doentes, que tinham seguido uns por seu pé e outros em
macas do Posto para o Pavilhão, rezam cheios de confiança,
suplicando a cura das suas enfermidades ou ao menos o bálsamo
do conforto celeste e a perfeita conformidade com a vontade de
Deus.
Os servos e as servas de Nossa Senhora do Rosário rivalizam
uns com os outros em dedicação, solicitude e carinho para com
esses pobres membros padecentes da Igreja militante,
multiplicando-se, por assim dizer, para atenderem a todas as suas
necessidades.
Entre as pessoas que foram agradecer a sua cura a Nossa
Senhora chama a atenção dos peregrinos uma rapariga de nome
Rosa de Jesus Morais, moradora na rua de Costa Cabral, 150,
Porto, que sofria dum tumor de natureza suspeita na região torácica
e que se curou com fricções de água milagrosa de Nossa Senhora
de Fátima, tendo apresentado atestado do dr. Forbes Costa.
À uma hora da tarde organiza-se, na forma do costume, a
procissão da Imagem que é conduzida aos ombros dos servitas da
capela das aparições para a capela das missas. O rumor produzido
pelo fluxo e refluxo da multidão tomada de entusiasmo, que se
comprime à passagem do cortejo, as preces e cânticos, os vivas e
aclamações à Virgem, o acenar dos lenços, as palmas vibrantes e
repetidas, constituem uma cena que não parece deste mundo e os
olhos de todos inundam-se de lágrimas de funda comoção.
Seguem-se a missa oficial, o sermão pregado pelo eloquente
abade de Cete, da peregrinação do Porto, e a bênção dos doentes,
que renova a comoção geral.
Entre outros sacerdotes, acompanha Jesus-Hóstia o santo dr.
Cruz, cujas orações os doentes solicitam mudamente, beijando-lhe
a mão ungida e sagrada.
Terminam as cerimónias oficiais com a bênção geral e a procissão
que reconduz a Imagem da Virgem à sua capela.

A debandada geral
No grandioso mosteiro da Batalha
O Santo Condestável D. Nuno Alvares Pereira
Gentileza e fidalguia da hospitaleira população
de Leiria
Regresso da peregrinação do Porto
Primeiras peregrinações da Espanha
Quando a branca estátua da Virgem de Fátima foi novamente
colocada sobre o seu pedestal, o rev.do abade de Cete tornou a
erguer a voz clara, forte e bem timbrada, para celebrar os louvores
de Maria e dirigir-lhe um adeus terno e saudoso em nome dos
peregrinos da cidade invicta.
Terminada esta breve alocução de despedida, toda repassada de
entusiasmo e de sentimento, principia a debandada geral dos
peregrinos, que em número de muitos milhares se encontram na
Cova da Iria. Uma grande parte deles, mormente os peregrinos do
Porto, seguem sem demora para a histórica vila da Batalha, a fim de
visitarem o templo monumental do mesmo nome, o grandioso
mosteiro anexo e o túmulo do soldado desconhecido.
É precisamente neste dia que a Santa Igreja, cujas glórias estão
entretecidas com as glórias de Portugal, celebra este ano a vigília
da Assunção de Nossa Senhora ao Céu; em que as reduzidas
hostes lusitanas alcançaram nos campos de Aljubarrota um dos
mais assinalados triunfos de que há memória sobre os numerosos e
valentes terços de Castela. Ao espírito do cristão e do patriota
assoma neste dia, nimbado de luz e resplandecente de glória, a
figura máxima da nossa epopeia nacional, o Santo Condestável D.
Nuno Álvares Pereira.
Os peregrinos, depois da visita ao monumento, juntam-se no largo
fronteiro e vão partindo pouco a pouco, para Leiria, onde a
população os acolhe, como à vinda, com a mais cativante gentileza
e a mais fidalga hospitalidade. Durante as primeiras horas da noite,
depois de jantar, dirigem-se para a estação, à medida que chegam
os veículos contratados para os transportar.
E lá vão, a caminho da cidade invicta, modelo consumado de fé
viva e de trabalho indefesso, os passageiros do comboio especial,
que iniciam a sua longa viagem de regresso às onze horas da noite,
cansados do corpo, mas com as almas retemperadas para as lutas
tormentosas da existência.
Para o dia treze do próximo mês de Setembro anuncia-se uma
peregrinação de Lisboa e para o dia treze de Outubro seguinte a
peregrinação diocesana de Viseu, uma grande peregrinação do Sul
do país, presidida por um dos nossos mais ilustres Prelados, e duas
peregrinações espanholas, uma de Bilbau e a outra de Salamanca.
Bem hajam os nossos irmãos de raça e de crença que,
impulsionados pela fé que fez grandes os dois povos da Península,
principiam já a confraternizar e a rivalizar connosco, em santa e
salutar emulação, nas homenagens de piedade e de amor filial para
com a augusta Virgem do Rosário, no seu glorioso santuário de
Fátima!
11. A TERRA DA VIRGEM
(13 DE SETEMBRO DE 1927)

Na tarde do dia 12 de Setembro de 1927


A peregrinação de Lisboa (Conceição Velha)
A peregrinação de Vila de Rei
As peregrinações de Arieiro e Ansião
O rev.do Rafael Jacinto
O nobre e ilustre Visconde de Santarém
No sino grande da igreja paroquial de Fátima acabavam de soar,
compassadas e graves, as badaladas que anunciavam as sete
horas da tarde.
Por toda a extensão da estrada, entre a igreja e o local das
aparições, circulam continuamente veículos e peões, que se dirigem
para a Cova da Iria.
Em torno do recinto murado dos santuários, sobre a estrada e nas
imediações, estacionam camions, automóveis e carros de tiro, que
dificultam o trânsito.
À boca da noite começam a chegar as peregrinações. A primeira
é a da freguesia da Conceição Velha, de Lisboa, que pela segunda
vez envia a Fátima uma representação dos seus paroquianos,
numerosa e luzida. Os peregrinos, que eram cerca de duzentos, ao
contrário do que sucedeu no mês passado, em lugar de
desembarcarem no apeadeiro de Seiça-Ourém, apearam-se na
estação do Entroncamento, onde os aguardavam as lindas e
cómodas camionettes dos irmãos Clara, de Torres Novas;
atravessaram a vila sem parar e subiram a estrada, longa e
íngreme, da serra de Aire, em direcção a Fátima.
Pouco depois, por entre as primeiras sombras da noite, que
lentamente vai envolvendo tudo no seu manto escuro, avista-se, a
pequena distância, uma multidão de indivíduos de ambos os sexos,
que se aproximam cada vez mais. É a peregrinação de Vila de Rei,
composta de duzentas e cinquenta pessoas e presidida pelo
respectivo pároco rev.do Rafael Jacinto, alma grande e generosa de
sacerdote e de apóstolo, honra e lustre do clero da diocese de
Portalegre. Seguem-se a esta várias outras peregrinações e grupos
de romeiros, que vêm expressamente de véspera para poderem
incorporar-se na procissão das velas. Entre essas peregrinações
merecem especial referência a de Areeiro (Coimbra) e a de Ansião,
notáveis pela sua boa organização e pelo número avultado dos seus
membros.
Um dos peregrinos, que se agregaram ao grupo de Lisboa, foi o
nobre Visconde de Santarém, fidalgo ilustre pelo sangue e pelos
primores de carácter e de coração que o distinguem, e ainda mais
pela firmeza e desassombro da sua fé e pela sinceridade da sua
piedade cristã.

A procissão das velas


A adoração nocturna
Os sermões durante a adoração
O curso teológico do Seminário do Porto de
1919-1922
O abade de Cete e o Padre Anselmo
O concurso de peregrinos
São já dez horas da noite, avizinha-se o momento, tão
ansiosamente esperado, da procissão das velas. Os romeiros
presentes, que já perfazem àquela hora muitos milhares,
concentram-se defronte da capela das aparições, onde o rev.do dr.
Marques dos Santos, capelão-director dos servitas, pouco antes de
se iniciar a procissão, faz diversas recomendações e avisos.
Alguns instantes depois, o recinto dos santuários semelha, a
quem o contempla do alto da estrada ou do cume dos montes
adjacentes, um imenso lago de fogo. Dir-se-ia que miríades de
estrelas se desprendem do firmamento e vieram cravar-se na Cova
da Iria, abrasando-a de repente num incêndio colossal. Súbito,
desse lago partem como setas duas filas de luz, que sobem
lentamente até à estrada, passam por baixo do pórtico principal;
descem a avenida central e, contornando a capela das missas,
voltam de novo a engolfar-se, sem solução de continuidade, no
braseiro imenso, quase apagado e que outra vez se reacende, do
recinto das aparições.
Milhares de peregrinos, cada um com a sua vela na mão, depois
de rezarem o terço junto da estátua da Virgem, cantam, sem cessar,
o Avé de Lourdes, durante esse imponente e deslumbrante cortejo
nocturno, longo e interminável, que conclui com o grave e majestoso
canto do Credo.
Espectáculo encantador e sublime, que empolga e arrebata os
corações dos crentes e que dos olhos dos próprios incrédulos faz
brotar doces lágrimas de funda e involuntária comoção.
A meio da noite expõe-se o Santíssimo Sacramento num trono de
lumes e flores e principia a cerimónia oficial da adoração nocturna.
Efectuam-se sucessivamente cinco turnos de adoração, que duram
cada um cerca duma hora. Em cada turno um sacerdote faz uma
prática adequada ao acto, ao local e ao momento.
Entre outros sacerdotes pregam os rev.dos Manuel Dias Costa,
abade de Cete, e Agostinho Pinto Veloso.
Estes dois distintos oradores, que com mais seis sacerdotes
constituíram o curso trienal de teologia do Seminário do Porto
correspondente aos anos de 1919-1922, vieram, de comum acordo,
realizar neste dia em Fátima a primeira reunião de confraternização
do seu curso.
Feliz ideia a dessa bela romagem ao Santuário de Fátima,
juntando-se ali como irmãos, aos pés da Mãe do Céu, a fim de
haurirem, sob o manto da sua protecção maternal, neste dia de
júbilo santo, energia, coragem e conforto para a santificação da sua
vida e da dos fiéis confiados ao seu zelo de pastores de almas.
Às cinco horas, depois de cantado o Tantum ergo e a oração
respectiva, termina a exposição com a bênção geral e encerramento
do Santíssimo Sacramento.
Principiam em seguida as missas, que são celebradas sem
interrupção nos três altares da capela nova pelos sacerdotes que
previamente tinham feito inscrever os seus nomes no livro de registo
destinado a esse fim.

Uma cura extraordinária


Cenas comoventes
As promessas dos peregrinos
Um grupo de criadas de servir
Alma de português e de crente
Os jovens católicos
O dr. Vítor Marques de Oliveira
Na estrada, a poucos passos do pórtico central, uma família de
distinção prepara-se para assistir às últimas cerimónias oficiais do
dia. É a respeitável família Moreira, moradora na rua da Piedade,
45, Porto, que da cidade da Virgem veio em automóvel, por estradas
quase intransitáveis para agradecer uma graça temporal
extraordinária concedida a um dos seus membros, a senhora D.
Emília das Neves Marinho Moreira. Essa veneranda senhora tinha,
no pé esquerdo, havia muito tempo, um volumoso quisto, que o seu
médico assistente assegurava não poder ser eliminado senão por
meio duma operação. A piedosa senhora fez então a promessa de ir
a Fátima em devota romagem, se a Santíssima Virgem se dignasse
curá-la sem necessidade de intervenção cirúrgica, que o facultativo
julgava indispensável.
Tendo aplicado água de Lourdes, por não possuir água de Fátima,
e invocando, cheia de confiança, Nossa Senhora de Fátima, o quisto
com grande surpresa e alegria dela e de toda a família,
desapareceu completamente no espaço de pouco mais de quinze
dias.
Um carro descoberto passa na estrada, em direcção a Vila Nova
de Ourém. Ao avistarem o santuário das aparições, os passageiros
erguem-se de pé, num impulso irresistível de piedade, e aclamam a
Virgem, cantando entusiasmados o Salvé, nobre Padroeira.
Ao mesmo tempo desce de joelhos a avenida principal uma
mulher do povo, com uma vela acesa na mão e ladeada dum
filhinho e duma filhinha de poucos anos de idade, que a
acompanharam a pé.
Em torno da capela das aparições, homens, mulheres e crianças,
rezando com velas na mão, cumprem, sem respeitos humanos,
promessas feitas em horas de angústia e que lhes alcançaram o
poderoso valimento da Mãe de Deus.
Entre os grupos de peregrinos destaca-se um pela qualidade dos
seus membros e pela piedade de que dão mostras. É um grupo de
criadas de servir duma importante cidade da Estremadura, que
chegaram a Fátima na véspera à noite, depois duma viagem de três
horas em Camionette. Algumas pisavam pela primeira vez a terra
sagrada dos mistérios e dos prodígios, mas a alegria santa e a
devoção edificante eram iguais em todas, que iam ali depor, aos pés
de Maria, os tesouros das suas homenagens e dos seus sacrifícios,
consagrar-lhe os seus corações e pedir-lhe a força moral necessária
para triunfarem sempre nas lutas incruentas, mas por vezes
formidáveis da vida.
Agregados a esse grupo interessante vieram também à Lourdes
portuguesa uma senhora respeitável, irmã dum sacerdote ilustre,
honra do clero nacional, que a todos edificava com a sua piedade
acrisolada, e um excelente casal formado por um funcionário do
Estado aposentado e sua esposa, cuja união e boa disposição de
espírito atraíam as simpatias de todos. Alma naturalmente cristã e
genuinamente portuguesa, esse simpático e venerando ancião
manifestava sem rebuço a sua fé que a Virgem Santíssima decerto
havia de afervorar, derramando sobre ele as melhores bênçãos do
Céu.
Os moços católicos pertencentes às diversas organizações da
nossa juventude salientavam-se pela sua actividade e dedicação,
merecendo particular referência os beneméritos e incansáveis
servitas de Torres Novas. Um dos novos, que se impunha à atenção
e consideração de todos, era o dr. Vítor Marques de Oliveira, antigo
presidente da direcção da Juventude Católica de Lisboa. Este
jovem, dos mais esperançosos da actual geração, já cheio de
méritos pelos serviços prestados à causa da santa Igreja, é um
exemplo vivo de virtude e de actividade operosa, digno de ser
proposto em toda a linha aos jovens seus contemporâneos como
modelo a venerar e imitar.

Os sacerdotes e seminaristas
O cónego Félix e o dr. Cruz
Primeira comunhão duma menina
A missa dos doentes
O sermão oficial
A bênção do Santíssimo Sacramento
Cura assombrosa dum distinto médico de Lisboa
Os sacerdotes e, durante as férias do verão, também os
seminaristas, acorrem, em número avultado, a Fátima, cada dia
treze. Eles vão ali retemperar a sua fé e afervorar a sua piedade em
contacto com as multidões dos crentes, naquele ambiente saturado
de sobrenatural. Entre os sacerdotes que foram a Fátima neste dia
treze destacam-se dois, que pertencem ao número das figuras mais
prestigiosas e mais beneméritas do clero português e que são
modelos consumados de trabalho indefesso pela causa de Deus e
das mais acrisoladas virtudes: os rev.dos dr. Francisco Rodrigues da
Cruz e cónego Francisco Maria Félix.
Não há ninguém no nosso país que não conheça, ao menos pela
fama singular de santidade que o aureola, esse vulto incomparável
de apóstolo que é o dr. Cruz.
Menos conhecido pelas condições especiais em que exerce a sua
prodigiosa actividade, mas não menos insigne pelos dotes de
espírito e coração que o exornam e pelas suas extraordinárias
benemerências é o rev.do cónego Félix, reitor do Seminário
Patriarcal em Santarém. Há longos anos colocado à testa daquele
instituto eclesiástico de educação e ensino, um dos primeiros de
Portugal, que dirige com superior critério, ele é verdadeiramente the
right man in the right place, exercendo o seu alto e espinhoso cargo
com uma competência e uma dedicação a toda a prova.
Que humildade e piedade edificantes as dessas duas grandes e
venerandas personagens da Igreja, encanecidas no serviço de Deus
e carregadas de méritos, ajudando, como simples acólitos e com
uma devoção fervorosa, o sacerdote que celebrava a missa dos
enfermos!
Às onze horas mais uma cena comovente se desenrola no local
das aparições. É a menina Lígia Sucena e Graça, de Aveiro, que faz
a sua primeira comunhão junto da capela das missas. Vestida de
branco, com o rosto gentil envolto no véu imaculado das virgens, a
ditosa criança – anjo de inocência e de candura – aproxima-se,
trémula de comoção, da mesa eucarística e recebe pela vez
primeira o divino Prisioneiro do Sacrário no seu Sacramento de
amor.
Que a lembrança deste dia de graças e bênçãos, o mais belo da
tua vida sobre a terra, nunca se apague da tua memória, mimosa e
feliz menina, para que, sempre fiel a Jesus, possas sulcar sem
perigo o mar encapelado da existência e chegar, sã e salva, pela
mão de Maria, ao porto da eternidade bem-aventurada!
À uma hora e meia, depois de conduzida processionalmente a
Imagem da Virgem para a capela nova, começa a missa dos
doentes. Enquanto ela se celebra, o rev.do capelão-director dos
servitas reza o terço em voz alta, alternando com a assistência. À
elevação toda aquela mole imensa de povo se prostra diante de
Jesus-Hóstia, adorando-o num transporte estuante de fé e amor.
Ao Communio é distribuído pela última vez o Pão dos Anjos.
Terminada a missa, sobe ao púlpito o rev.do abade de Cete, que
escolhe para tema do seu sermão o tramo da Ladainha Lauretana –
Causa nostrae laetitiae, ora pro nobis.
Após o sermão, canta-se o Tantum ergo e dá-se a bênção com o
Santíssimo.
Por fim a Imagem de Maria é reconduzida para a capela das
aparições, seguindo-a uma multidão inumerável, que a aclama cheia
de entusiasmo e de ternura.
A Voz da Fátima é distribuída gratuitamente em número de muitos
milhares de exemplares. É o rev.do Manuel Pereira da Silva,
secretário de Nossa Senhora, como o povo crente o designa, que
preside a esta distribuição. O benemérito e modesto sacerdote,
preclaro ornamento do clero da sua diocese, anuncia a publicação
no próximo número da Voz da Fátima, do relato interessantíssimo
da cura maravilhosa dum distinto médico de Lisboa, vítima dum
horrível desastre de motocicleta, o sr. dr. Acácio da Silva Ribeiro. “O
meu desastre – como ele próprio diz numa carta endereçada ao
administrador da Voz da Fátima – assombrou toda a gente que o
conheceu e me visitou no Hospital, e algumas centenas de pessoas
foram, contando-se algumas dezenas (mais de cinco ou seis) de
médicos”.
Bendita seja a Virgem Nossa Senhora de Fátima, que no seu
trono de misericórdia e de amor continua a espargir sobre os
portugueses seus filhos os dons mais preciosos e as graças mais
escolhidas, para glória de Deus e salvação das almas.
12. A GRANDE PEREGRINAÇÃO
NACIONAL
(13 DE OUTUBRO DE 1927)

Primeiras chuvas do Outono


O décimo aniversário da última aparição
Movimento de peregrinos
Chegada a Fátima
A procissão das velas
A triste e melancólica estação outonal, depois de muitos dias
verdadeiramente primaveris, de sol brilhante e de céu sem nuvens,
assinala a sua existência com frequentes bátegas de água e
violentas chuvas torrenciais. É no meio da luta dos elementos
desencadeados, em plena revolta armada da natureza, que se inicia
e se leva a cabo a grande peregrinação nacional de 13 de Outubro.
De vários pontos do país, numerosos grupos de pessoas tinham
partido a pé, muitos dias antes, em dura e quase heróica
peregrinação de penitência, a fim de se associarem em Fátima às
solenes comemorações do décimo aniversário da sexta e última
aparição de Nossa Senhora do Rosário aos humildes e rudes, mas
inocentes pastorinhos de Aljustrel.
No dia doze o movimento de peregrinos, que se servem de todos
os meios de transporte ao seu alcance, toma de repente um
incremento extraordinário, quase assombroso, inundando, às
primeiras horas da tarde, a Cova da Iria e as suas imediações de
milhares de veículos, de diversos feitios e tamanhos, e duma
multidão de indivíduos de ambos os sexos e de todas as idades,
classes e condições sociais. Às dez horas da noite, a camionette
que nos conduz à estância privilegiada da Augusta Mãe de Deus,
pára na estrada distrital, a algumas centenas de metros do local das
aparições.
É nessa ocasião que principia a procissão das velas. Querer
descrever o que foi esse espectáculo grandiosíssimo e assombroso,
é pretender o impossível. Nunca em Portugal, nunca talvez no
mundo inteiro, nem mesmo em Lourdes, a divina cidade dos
Pirenéus, se visse uma manifestação religiosa tão grande na
singeleza da sua estrutura, tão saturada de fé e piedade, tão
estuante de ternura e amor filial para com a celeste Padroeira da
Nação. Ninguém, por mais tíbia que fosse a sua crença, era capaz
de contemplar de olhos enxutos aquele cortejo imponentíssimo, em
que tomavam parte dezenas de milhar de pessoas, cada uma com a
sua vela acesa na mão, cantando os louvores da Virgem. A
deslumbrante procissão levou quase três horas a desfilar, realizando
um percurso de alguns quilómetros em torno do muro que circunda
o local das aparições. As turmas de peregrinos que se precipitavam
em torrentes caudalosas pela abertura do arco triunfal, as filas
múltiplas e intermináveis que circulavam por toda a parte no recinto
sagrado, o canto do Avé de Lourdes repetido ao mesmo tempo em
milhares de coros, por dezenas de milhar de vozes, num sem
número de tons, desde o mais agudo ao mais grave, a solenidade
do momento e o ambiente sobrenatural que tudo envolvia,
constituíam um espectáculo duma beleza e dum encanto
inigualáveis, que deslumbrava os olhos, assombrava as almas e
empolgava os corações.
E todas aquelas dezenas de milhar de pessoas, que tomavam
parte na procissão das velas, traduziam os seus sentimentos em
exclamações de surpresa e em lágrimas da mais viva e intensa
comoção.
E quando, ao terminar o deslumbrante cortejo, aquelas legiões de
almas proclamam sem respeito humano a sua fé diante de Jesus-
Hóstia, encerrado no Sacrário da Capela das Missas, cantando com
entrain os sublimes artigos do Credo, o entusiasmo popular atinge
as raias do delírio e a manifestação assume as proporções duma
verdadeira apoteose.
A adoração nocturna
Preces e cânticos
A pregação do venerando Bispo de Leiria
Peregrinação diocesana de Viseu
Inauguração oficial de oito megafones.
Cerca da meia-noite principia a adoração nocturna. O Rei do Céu
e da terra, oculto sob as espécies de pão no seu Sacramento de
amor, é exposto solenemente ao culto dos fiéis numa riquíssima
custódia de ouro, no alto dum trono de lumes e flores. Pela primeira
vez, dois venerandos Prelados tomam parte oficial nas solenidades
religiosas do dia treze. Revestidos com as vestes episcopais,
iniciam a sua participação, prostrando-se aos pés do trono de
Jesus-Hóstia, a fim de Lhe renderem as homenagens da sua
adoração e de Lhe testemunharem o seu amor. Ia começar a
primeira hora de adoração, presidida pelo ilustre antístite de Leiria,
que a Virgem Santíssima escolheu, como primeiro Bispo da diocese
restaurada, para assumir sobre os seus ombros a empresa
gigantesca (de fazer surgir dum terreno deserto e pedregoso a obra
prodigiosíssima dos augustos santuários de Fátima).
Durante a hora de adoração, o rev.do dr. Marques dos Santos
reza o terço do Rosário alternadamente com o povo. Nos intervalos
das dezenas, depois de recitada a oração jaculatória que a Virgem
ensinou aos pastorinhos, o Senhor Bispo de Leiria explica, numa
prática ao alcance de todas as inteligências, o sentido do mistério
seguinte. Como o dia treze ocorreu este mês numa quinta-feira, os
mistérios meditados foram os mistérios gozosos.
1º Assim como o Anjo apareceu a Nossa Senhora na modesta
Casa de Nazaré, assim Nossa Senhora apareceu aos humildes
pastorinhos.
2º Assim como Nossa Senhora visitou sua prima Santa Isabel,
assim nós devemos visitar os pobrezinhos, os enfermos e
encarcerados, propagando sobretudo as Conferências de S. Vicente
de Paulo.
3º Em honra do Menino Jesus, que nasceu na lapinha de Belém,
porque os parentes e amigos o não quiseram receber em suas
casas, devemos nós olhar pelas criancinhas que vivem
abandonadas, quer material quer espiritualmente, porque o egoísmo
duns e a incredulidade doutros assim o determina.
4º Assim como Jesus foi apresentado no templo e depois foi
baptizado, nós devemos vigiar para que os meninos sejam
baptizados sem perda de tempo e levados à igreja desde a mais
tema idade para ali receberem a instrução religiosa que, porventura,
não possam ter na casa e na escola.
5º Porque o Menino Jesus, tão novinho, já pregava no templo,
devemos nós lembrar-nos dos seminaristas, futuros pregadores da
palavra de Deus, amparando-os moral e materialmente com orações
e conselhos, mais ainda do que com esmolas, todavia bem precisas
para sustentação dos Seminários.
A segunda hora de adoração foi privativa da peregrinação
diocesana de Viseu e presidida pelo Rev.do P. Marinho, seu director.
As orações e os cânticos, tão lindos e tão comoventes, atraíram até
junto da capela milhares de peregrinos que estavam afastados.
Desde a meia-noite que os sacerdotes inscritos no respectivo
registo principiaram a celebrar a Santa Missa em quatro altares,
sucedendo-se uns aos outros sem interrupção. Tinham-se inscrito
mais de cem sacerdotes, tendo ficado sem celebrar muitos que o
não haviam feito com a devida antecedência.
Foi nesta noite para sempre memorável, que se realizou a
inauguração oficial de oito megafones de extraordinária potência,
instalados pelo distinto engenheiro Rocha e Melo, da fábrica de
cimentos de Maceira, que faziam ecoar por todo o vasto recinto,
com grande admiração do povo, as preces, os cânticos e as
palavras dos oradores e dos dirigentes dos actos religiosos.

O senhor Bispo de Beja e os servitas


Peregrinação de Lisboa, Porto, Coimbra
Braga, Viseu, Alcobaça, Porto de Mós, etc.
A missa do venerando Bispo de Leiria e a
comunhão geral
No Posto das Verificações médicas
A legião dos doentes
A chuva torrencial.
Às três horas da madrugada, depois de dada a bênção geral com
o Santíssimo Sacramento, que em seguida é reposto no sacrário, o
senhor D. José do Patrocínio Dias, ilustre Bispo de Beja, celebrou a
missa dos servitas. O venerando prelado distribuiu o Pão dos Anjos
aos servitas e escuteiros que o recebiam com visíveis sentimentos
de piedade, edificando todos os circunstantes com o seu
recolhimento e fervor.
Foram numerosas e importantes as peregrinações que de
diversos pontos do país vieram a Fátima tomar parte nas
solenidades comemorativas da sexta aparição. Merecem especial
referência as de Lisboa, Porto, Braga, Coimbra, Viseu, Alcobaça e
Porto de Mós.
Esta última só chegou na manhã do dia treze. Era composta de
cerca de oitocentas pessoas de todas as freguesias do respectivo
concelho e presidida pelo rev.do Francisco Carreira Poças, que a
promoveu e que celebrou a missa da peregrinação. A de Alcobaça
constava de quatrocentas pessoas, sendo metade só da vila, e era
dirigida pelo rev.do pároco Henrique Vieira.
Às sete horas o ilustre Bispo de Leiria celebrou a missa de
Comunhão geral. Ao Communio, um grupo de dez sacerdotes
distribui a sagrada comunhão a mais de nove mil fiéis. No Posto das
verificações médicas procede-se ao exame e inscrição dos doentes
que, ao receberem a senha de ingresso no Pavilhão, se dirigem
imediatamente para ali.
São centenas de vítimas de todas as misérias físicas que torturam
a humanidade e que ali se reúnem como em Lourdes para implorar
de Aquela que é chamada a saúde dos enfermos e a consoladora
dos aflitos, lenitivo para as suas dores e conforto para as suas
almas.
Durante toda a manhã a chuva caiu, por várias vezes com
violência, mas a intervalos. Depois da Missa dos servitas, redobrou
de violência, encharcando completamente o local das aparições.

Curas sensacionais
Uma paralítica de Viseu
Um doente de mal de Pott, de Braga
Lágrimas de alegria duma mãe
O interesse da imprensa
A opinião dos médicos
No pavilhão dos doentes, junto do parapeito da capela das
missas, está sentada em cima dum colchão, ao lado doutros
farrapos humanos, uma rapariga, que parece ter pouco mais de
vinte anos de idade.
Vinca-lhe o rosto pálido e macerado uma expressão de íntimo
júbilo e nos seus olhos brilha um clarão de suave e fagueira
esperança. Uma paralisia geral consecutiva a uma queda
desastrosa, imobilizara por completo no grabato dum hospital o seu
corpo franzino e mirrado. Dores horríveis atormentavam-na sem
cessar.
Almas caridosas promoveram uma subscrição para que ela
pudesse tomar parte na peregrinação diocesana de Viseu. Durante
a viagem toma leite e, ao contrário do que costumava suceder, não
o vomita.
As dores abrandam consideravelmente. À passagem da
peregrinação de Alcobaça, quando se aproxima dela o estandarte
em que está pintada a cena das aparições, sente que uma força
estranha a impele a ajoelhar-se e após doze anos consegue pela
primeira vez tomar essa posição. Uma alegria mista de inquietação
e temor apodera-se da sua alma e transborda-lhe dos olhos, dos
lábios, de todo o seu ser. A servita que está ao seu lado anima-a e
conforta-a, inspirando-lhe confiança no poder e na bondade da Mãe
de Deus.
Aproximamo-nos dela e interrogamo-la. Dominada por uma
comoção profunda, responde com extrema dificuldade às perguntas
que lhe fazemos.
Durante a viagem de regresso as melhoras acentuam-se de hora
para hora e é já por seu pé que entra no hospital donde tinha saído
em braços para a partida.
Entre os doentes da peregrinação de Braga, encontra-se ao colo
da mãe uma criança do sexo masculino, de sete anos de idade,
atacada, segundo o diagnóstico médico, duma doença terrível, o
mal de Pott. Filho de Manuel Fernandes Braga, um poço de doença,
tuberculoso e alcoólico, já falecido, e de Maria da Conceição Braga,
moradora na Rua Nova de Santa Cruz, nº 19, herdou do pai o nome
e as doenças. Há cerca de um ano o seu estado agravou-se,
aparecendo-lhe perfeitamente declarado o mal de Pott – cifose
lombar bem pronunciada, amolecimento da espinha dorsal,
atrofiamento das pernas, uma das quais encurtou dois dedos, dores
intensas em todo o dorso, gânglios escrofulosos no pescoço e falta
de apetite.
Em Coimbra, onde pernoitou no regresso, a mãe verifica com
surpresa e com uma alegria tão grande que lhe provoca as lágrimas,
a cura do filho. No dia seguinte, essa cura provocou o assombro dos
quatro médicos que trataram a feliz criança. A velha e pacata cidade
dos Arcebispos impressiona-se e agita-se com a sensacional
notícia, uma romagem de muitas centenas de pessoas inicia-se para
casa da privilegiada família, a imprensa de grande circulação,
tomando conta do caso, narra-o em colunas cerradas de prosa e
cheias de pormenores interessantes e a ciência médica proclama
unanimemente a certeza consoladora da cura extraordinária,
inexplicável e porventura miraculosa.

A Procissão da Virgem do Rosário


A missa oficial
A bênção das doentes
O sermão do senhor Bispo de Beja
O regresso dos peregrinos.
A procissão da Virgem do Rosário realiza-se, na forma do
costume, mas talvez com mais imponência e majestade. A entrada
da Sagrada Imagem no Pavilhão dos doentes é uma das cenas
mais empolgantes que é dado presenciar sobre a terra e tão
grandiosa e tão bela que a pena sente a sua impotência para a
descrever.
A explosão de piedade dos peregrinos, o acenar dos lenços por
toda a vastidão imensa do recinto das aparições, desde o alto da
estrada distrital até às colinas adjacentes, o reboar dos vivas e das
aclamações entusiásticas, o estralejar das palmas, as súplicas, os
soluços, as lágrimas dos doentes, enfim, a comoção vivíssima e
irreprimível de tantas dezenas de milhar de crentes, tudo são
facetas admiráveis desse quadro assombroso da procissão da
Virgem, que faz vibrar intensamente as cordas mais íntimas da
nossa alma, elevando-a para regiões que não são deste mundo.
Ao meio dia e meia hora, depois do canto do Credo, um sacerdote
sobe ao altar central da capela das missas e começa o augusto
sacrifício dos nossos altares, enquanto o capelão director dos
servitas inicia a recitação em comum do terço do Rosário.
Terminada a missa, expõe-se o Santíssimo Sacramento e o
Senhor Bispo de Leiria dá a bênção a cada um dos doentes. A
comoção do ilustre Prelado é visível e traduz-se em lágrimas que
lhe correm pelas faces.
Os doentes soluçam e todos choram ao ouvirem e ao repetirem
as invocações dirigidas a Jesus oculto sob as espécies eucarísticas
na custódia de ouro.
A bênção dos doentes é coroada com a bênção geral.
Depois, o senhor Bispo de Beja pronuncia um discurso breve,
mas eloquente e incisivo, repassado de fervor religioso e de
sentimento patriótico.
Começou por pedir três vezes a Nossa Senhora que mostrasse
ser nossa Mãe: Monstra te esse matrem.
Mas seria preciso recordar com tamanha insistência a Nossa
Senhora a sua prerrogativa materna, se Ela nunca esqueceu os
seus deveres de Mãe, nunca afastou o seu rosto de nós, nunca
consentiu que o seu coração deixasse de gotejar sangue pelos
pecadores?... Não; mas a recordação é precisa, não para Ela, mas
para nós, que somos fracos e pusilânimes e à semelhança das
crianças, que só adormecem com o braço da mãe bem seguro, não
vá ela fugir-lhes, também nós precisamos de estar assegurados do
seu patrocínio, para que saibamos que ela está disposta a ser daqui
para o futuro, mais solícita, mais terna e mais carinhosa, se isso é
possível.
Talvez seja ousadia apelar para os sentimentos maternais de
Nossa Senhora, neste lugar onde pulsa o coração do país inteiro e
onde, há dez anos, milhares de portugueses se sentem mais
próximos do Céu, mais crentes e mais patriotas. Vem ali pela
primeira vez e não pode deixar de sentir uma estranha emoção ao
ver aquele lugar, que quer geográfica quer espiritualmente é o
coração de Portugal, e onde a vizinhança de Aljubarrota e da
Batalha lhe trazem à memória as gloriosas recordações do nosso
passado de heróis.
Houve um momento da nossa vida nacional em que tudo pareceu
submergir-se: templos profanados, bispos e padres presos ou
expulsos, a religião vilipendiada e esquecida. Mas Nossa Senhora
não se esqueceu de que nós a havíamos um dia escolhido para
Rainha e veio então a este lugar trazer-nos um argumento de fé, um
argumento de piedade e de reparação nacional, mostrar-nos
claramente que não é em vão que para Ela apelamos e nela pomos
toda a nossa esperança.
Fátima é um lugar de festa, mas festa sem foguetes nem arraial,
onde nós vimos retemperar a fé, para melhor procedermos na nossa
vida pública e particular.
Fátima é um lugar de oração e de penitência, um lugar onde
Nossa Senhora nos convida a meditarmos na maneira como temos
cumprido os nossos deveres para com Deus e os seus
representantes na terra, para com o próximo e connosco mesmos.
Façamos esta meditação e depois prometamos ser para o futuro
mais observantes da sua lei.
Em seguida, peçamos-lhe por todos, pelo Sumo Pontífice, para
que Deus o conserve e o livre de seus inimigos; pelas nossas
famílias, para que ela as abençoe e as livre das ciladas que hoje em
dia se armam às famílias cristãs; pela nossa Pátria, cercada de
perigos tantos e tão grandes.
Aqui em Fátima, nunca deve esquecer-se esse lado patriótico
desta romagem de piedade.
Peçamos pelos nossos doentes, de forma que eles consigam
curar-se ou levem daqui a resignação para os seus males.
Não ouso pedir milagres, pois que maior milagre se podia exigir
do que o de ver esta multidão, vinda de todos os pontos do país,
arrostar com todas as dificuldades, com a chuva, com o mau estado
das estradas, com tantas contrariedades para virem até ali prestar o
culto da sua homenagem a Nossa Senhora?!
Para todos, Senhora, sede propícia e misericordiosa. Mostrai que
sois nossa Mãe!
Quando os megafones produziam as últimas palavras do
venerando Prelado, uma chuva torrencial começava a cair para não
cessar senão às primeiras horas da noite.
E era sob as cataratas do céu abertas de par em par que os
peregrinos subiam até à estrada adjacente a fim de se recolherem
nos veículos que os aguardavam e que os haviam de conduzir aos
seus lares distantes, com as almas docemente esmagadas por
tantas e tão fundas emoções e cheias de saudades daqueles dois
dias inolvidáveis passados na terra sagrada de Fátima, a futura
cidade da Virgem.
APÊNDICES

1. PROMESSAS AOS DEVOTOS DO SANTO


ROSÁRIO
A Rainha do Céu assegurou ao Beato Alano Rocha que o Rosário
era “uma fonte de salvação para os povos”.
Passada a época esplendorosa de S. Domingos, começou a
resfriar sucessivamente a devota influência do Rosário. Por isso,
dois séculos depois, segundo reza a crónica dominicana, aprouve à
Santíssima Virgem revelar-se novamente para fazer surgir a
devoção do seu Rosário, servindo-se então do santo dominicano
Alano da Rocha.
Lê-se, pois, em várias tradições que, em 1490, a Santíssima
Virgem apareceu a este santo dominicano, lançou-lhe ao pescoço
um rosário de pérolas, e disse-lhe o seguinte:
“Meu filho, conheces perfeitamente a antiga devoção do meu
Rosário, pregada e difundida pelo teu Patriarca e meu servo
Domingos e pelos religiosos seus filhos espirituais e teus irmãos.
Pois este exercício nos é extremamente agradável, a meu Filho e a
Mim, e santamente utilíssimo aos fiéis.
Quando o meu servo Domingos começou a pregar o meu Rosário
em Itália, França, Espanha e noutras regiões, foi tal a reforma do
mundo, que parecia haverem-se transformado os homens terrenos
em espíritos angélicos, ou que os Anjos teriam descido do Céu a
habitar a terra.
Os hereges convertiam-se maravilhosamente aos milhares, e os
católicos ansiavam ardentissimamente o martírio em defesa da Fé.
Graças a esta indigne devoção, renovaram-se as esmolas,
fundaram-se hospitais e edificaram-se templos. A santidade dos
fiéis, o desprezo do mundo, a autoridade do Pontífice, a justiça dos
Príncipes, a paz dos povos e a honestidade das famílias, tudo então
florescia prodigiosamente. Ninguém, pois, era considerado
verdadeiro cristão, se não tivesse e recitasse o meu Rosário.
Inclusivamente os operários nunca lançavam mão de suas
ocupações antes de oferecerem em minha honra este tributo, e a
Deus este sacrifício. Tal era a grande reputação do santo Rosário
que para mim não havia nem há culto mais agradável, depois do
augusto Sacrifício da Missa.
Ora eu desejo imenso a salvação e o bem de todos os fiéis e
podem todos obter facilmente esta graça por meio desta devoção
tão agradável a Mim e a meu Filho. Eu quero, pois, que ela se
restaure novamente na Igreja, para consolação dum grande número
de almas. Serás tu quem agora pregará o meu Rosário, exortando
todos os fiéis a recitá-lo devotamente.
Afervora e anima os religiosos da tua Ordem a fazer o mesmo, e
eu autorizarei a vossa doutrina e a vossa pregação com numerosos
prodígios.
– A todos aqueles que recitarem o meu saltério ou Rosário,
prometo a minha especialíssima protecção.
– Será o Rosário uma arma potentíssima contra o inferno:
extinguirá os vícios, destruirá o pecado e vencerá as heresias.
– Todos aqueles que se me recomendarem por intermédio do meu
Rosário jamais se condenarão eternamente.
– Quem recitar devotamente o meu Rosário, meditando os seus
santos mistérios, será isento de grandes perigos, não morrerá de
morte repentina; mas converter-se-á, se for pecador, aumentará em
graça, se for justo, e todos se tornarão dignos da glória eterna.
– Os verdadeiros devotos do meu Rosário não morrerão sem
Sacramentos.
– As almas devotas do meu Rosário serão, depois da morte, livres
do Purgatório.
– Os verdadeiros filhos do meu Rosário gozarão duma subida
glória no Céu.
– O que me pedirem por meio do meu Rosário, eu de boamente
lho obterei.
– Os que propagarem o meu Rosário serão socorridos por Mim
em todas as suas necessidades.
– A devoção com o meu Rosário é um poderoso sinal de
predestinação.
Dizem as crónicas que o Bem-aventurado Alano foi depois um fiel
instrumento das determinações de Maria Santíssima. Quinze anos
consagrou em pôr em execução aquelas instruções divinas, sempre
abrasado num santo fervor, agente de prodígios estupendos e com
um êxito maravilhoso. E o Rosário atingiu novamente o seu antigo
esplendor.
Confiados esperançosamente nas consoladoras promessas da
Virgem do Rosário, acolhamo-nos, como diz Leão XIII, debaixo da
protecção divina de Maria Santíssima e procuremos “amar cada vez
mais a devoção do seu Rosário, que os nossos antepassados
seguiam, não só como remédio sempre pronto para os seus males,
mas como ornamento da sua piedade cristã”.

2. ESTATUTOS DA CONFRARIA
DE NOSSA SENHORA DO ROSÁRIO
DE FÁTIMA
Artigo 1º – É canonicamente erecta no Santuário de Fátima uma
Confraria denominada – Confraria de Nossa Senhora do Rosário
de Fátima.
Artigo 2º – Esta Confraria tem por fim: trabalhar pela conversão
dos pecadores; reparar os pecados sociais das nações; promover o
cumprimento dos preceitos da Santa Igreja, especialmente quanto
ao domingo e dias santos;
d) orar e auxiliar as Missões entre cristãos e infiéis;
e) sufragar as benditas almas do Purgatório;
f) orar pelos doentes e por todas as necessidades espirituais e
temporais recomendadas por Nossa Senhora do Rosário de Fátima;
Artigo 3º – Além das indulgências que serão pedidas à Santa Sé,
os confrades terão direito:
a) à participação em todos os sacrifícios, boas obras e
mortificações dos doentinhos que recorrem a Nossa Senhora de
Fátima;
b) às Missas que se celebrarem no Santuário ou fora dele por
esta intenção:
Artigo 4º – Os confrades têm obrigação:
a) de viverem cristãmente;
c) de darem a esmola mensal de $20 (200 réis), sendo metade
para Missas, segundo os fins da Confraria (art.2º) e a outra parte
para o culto de Nossa Senhora. Estas esmolas serão recebidas em
listas por colectores ou colectoras que se prestem a esta obra de
piedade e caridade.
Artigo 5º – Os confrades são aconselhados:
a recitarem todos os dias, de preferência em público, ou em
família ou, pelo menos em particular, o terço do Santo Rosário;
b) a comungarem, sendo possível, mensalmente e da mesma
forma assistirem ao Santo Sacrifício da Missa no dia 13 de cada
mês em união com os peregrinos;
c) a trazerem consigo uma medalha tendo dum lado a imagem do
S. Coração de Jesus e do outro a de Nossa Senhora do Rosário de
Fátima. Esta medalha pode substituir os escapulários.
Artigo 6º – A Confraria de Nossa Senhora do Rosário de Fátima
terá uma direcção composta de presidente, secretário e tesoureiro,
nomeados pelo Prelado Diocesano. Esta comissão presta contas
todos os anos, na forma do direito, ao Ex.mo Senhor Bispo.

Aprovados os estatutos ut supra na forma do Direito


Leiria, 15 de Janeiro de 1928

+ JOSÉ, Bispo de Leiria


DOCUMENTAÇÃO FOTOGRÁFICA

1 – Imagem primitiva de Nossa Senhora de Fátima


2 – Os três pastorinhos: Lúcia, Francisco e Jacinta, no dia 13 de Outubro de 1917

3 – Os três pastorinhos: Francisco, Lúcia e Jacinta, 1917


4 – Os pais e irmãos de Francisco e Jacinta Marto

5 – Lúcia com os pais e irmãs


6 – Os pais de Francisco e Jacinta Marto
7 – Lúcia e Jacinta na Reixida – Setembro de 1917

8 – Francisco, Lúcia e Jacinta depois da aparição de 13 de Julho de 1917


9 – Jacinta Marto

10 – Jacinta Marto – Setembro de 1917


11 – Lúcia de Jesus aos 16 anos

12 – Cova da Iria - 13 de Outubro de 1917


13 – Cova da Iria - 13 de Outubro de 1917

14 – Cova da Iria - 13 de Outubro de 1917


15 – Cova da Iria - 13 de Outubro de 1917

16 - Cova da Iria - 13 de Outubro de 1917


17 – Os videntes no local das aparições em fins de Outubro de 1917

18 – Jacinta levada ao colo depois dos acontecimentos de Outubro de 1917


19 – Cova da Iria - 13 de Outubro de 1917

20 – Os pastorinhos levados pelo Administrador (reconstituição)


21 – Os três videntes fotografados no adro da igreja paroquial - 13 de Julho de
1917

22 – Os pastorinhos junto ao arco que assinala o local das aparições, com


peregrinos
23 – Peregrinação na Cova da Iria - em 1920

24 – Os pastorinhos cortando a corda para porem à cintura (reconstituição)


25 – Aljustrel - Local onde apareceu Nossa Senhora em 19 de Agosto de 1917

26 - Procissão na Cova da Iria com a imagem de Nossa Senhora


27 – A Capela das Aparições construída em Agosto de 1918

28 – Chegada de uma peregrinação – 13 de Outubro de 1921


29 – Peregrinos em oração na Cova da Iria – 13 de Outubro de 1921

30 – A primeira missa na Capelinha das aparições – 13 de Outubro de 1921


31 – Peregrinos na Cova da Iria cumprindo promessas – 13 de Setembro de 1921

32 – A Capelinha dinamitada – 6 de Março de 1922


33 – Procissão de desagravo – 13 de Março de 1922

34 – Procissão de desagravo – 13 de Março de 1922


35 – Peregrinos na Cova da Iria em oração – 1922

36 – A fonte da Cova da Iria – 1922


37 - Peregrinação na Cova da Iria – 1922

38 – Peregrinação na Cova da Iria – 1922


39 - Peregrinação de 13 de Março de 1922, depois da capelinha dinamitada

40 - Peregrinação na Cova da Iria em 13 de Maio de 1923


41 – Peregrinação em 1925

42 – Peregrinação na Cova da Iria em 13 de Maio de 1925


43 – Peregrinos rodeiam a Capelinha das Aparições e o Pavilhão dos doentes

44 - A Cova da Iria em 13 de Maio de 1925, com povo e Servitas ao redor do


fontenário
45 – Peregrinos no recinto da Cova da Iria – 13 de Maio de 1925

46 – Uma procissão na Cova da Iria com Nossa Senhora


47 – A bênção dos doentes na Cova da Iria

48 – Sacerdotes e povo diante da Imagem de Nossa Senhora


49 – Uma Servita abraçando uma doente na Cova da Iria – 13 de Maio de 1927

50 – Servitas e maqueiros na Cova da Iria – 13 de Maio de 1927


51 – Peregrinação na Cova da Iria em 13 de Maio de 1927

52 – Peregrinação em 13 de Maio de 1927 – Ao fundo, o pórtico de entrada.


53 – Peregrinação na Cova da Iria em 13 de Maio de 1927

54 – Peregrinos no recinto da Cova da Iria – Maio de 1927


55 – Peregrinos rodeiam o fontenário da Cova da Iria

56 – A multidão aclamando a Virgem Maria


57 – Peregrinos e Pavilhão dos doentes na Cova da Iria

58 – Peregrinação em 13 de Maio de 1927 –A imagem de Nossa Senhora de


Fátima é conduzida para a Capelinha das Aparições.
PUBLICAÇÃO ORIGINAL
DOS CAPÍTULOS

AS GRANDES MARAVILHAS
DE FÁTIMA 1921
I Parte: As Aparições da Santíssima Virgem

Prefácio: As grandes maravilhas de Fátima 1921.


A visão dos pastorinhos: As grandes maravilhas de Fátima [1921]
p.11.
Lourdes e Fátima: A Guarda, 28.09.1918.
Uma cura extraordinária: A Guarda, 5.10.1918.
Notas e comentários: A Guarda, 16.08.1919.
O dia 13 de Agosto de 1917: A Guarda, 30.08.1919.
O dia 13 de Setembro de 1917: A Guarda, 13.09.1919.
As declarações dos videntes: A Guarda, 11.10.1919; Os episódios
maravilhosos de Fátima, p. 15-20.
Nas vésperas do grande milagre: Voz da Fátima, nº. 8, 13.05.1923.
No dia do grande milagre: DCF 1, Doc. 14.
Depois do grande milagre: DCF 1, Doc. 16.
Últimos interrogatórios: DCF 1, Doc. 17.
A morte de Francisco Marto: Voz da Fátima, nº.13, 13.10.1923.
A morte de Jacinta Marto: A Guarda, 5.06.1920; DCF 3-2 Doc. 528.

II Parte: Grandes Manifestações de Fé e Piedade

Glória e Reparação: Voz da Fátima, nº.8, 13.05.1923.


Portugal junto do trono da sua Padroeira: Voz da Fátima, nº.2,
13.11.1922.
Fátima, centro dos corações: Voz da Fátima, nº.38, 13.11.1925.
Fátima, polo magnético das almas: Voz da Fátima, nº.45,
13.06.1926.
Os prodígios da Virgem: Voz da Fátima, nº.49, 13.10.1926.
O paraíso na terra: Voz da Fátima, nº.50, 13.11.1926.
Dez anos depois: Voz da Fátima, nº.57, 13.06.1927.
Fátima e o “Poverello”: Voz da Fátima, nº.58, 13.07.1927.
As glórias da Mãe de Deus: Voz da Fátima, nº.59, 13.08.1927.
A Cidade da Virgem aos pés de Maria: Voz da Fátima, nº.60,
13.09.1927.
A Terra da Virgem: Voz da Fátima, nº.61, 13.10.1927.
A grande peregrinação nacional 13 de Outubro de 1927: Voz da
Fátima, nº. 62, 13.11.1927.

APÊNDICES
Promessas aos devotos do Santo Rosário: Os acontecimentos de
Fátima, 1923, cap. XI.
Estatutos da Confraria de Nossa Senhora do Rosário de Fátima:
Voz da Fátima, n.64, 13.01.1928.

DOCUMENTAÇÃO FOTOGRÁFICA
Notas finais

1 Ver, no fim do livro, as fontes originais dos diversos capítulos.


2 Visconde de Montelo, Fátima: Os primeiros escritos (1917-1923), Fátima 2010.
3 A primeira edição das Grandes maravilhas de Fátima obteve o “pode imprimir-
se” por D. José Alves Correia da Silva, a 13 de Setembro de 1927, mas o fim
de impressão só foi em Abril de 1928. O jornal “Novidades” impresso na União
Gráfica, de 12 de Abril de 1928, refere que o livro acaba de sair do prelo; A
“Voz da Fátima” de 13 de Abril de 1928, também refere que o livro GMF
acabava de “sair do prelo”.
4 Documentação Critica de Fátima I, Santuário de Fátima 1992; 2ª edição, 2013.
5 Os “Estatutos da Confraria de Nossa Senhora do Rosário de Fátima” puderam
ser incluídos na publicação das GMF, porque o livro só saiu em Abril de 1928.
6 DCF, 3.3, Doc.. 640, de 14 de Setembro de 1921, p. 177.
7 DCF, 3.3, Doc.. 647, de 13 de Outubro de 1921, p. 190.
8 Jornal “A Época”, 5 Março 1922, p.2; DCF 3,3 Doc. 708.
9 Os episódios maravilhosos de Fátima, Guarda, Casa Veritas, 1921, p. 8.
10 Jornal “O Século”, 15 Outubro 1917.
11 A capelinha, edificada de 28 de Abril a 15 de Junho de 1919, foi objecto de
atentado em 6 de Março de 1922.
12 O Bispo de Leiria D. José Alves Correia da Silva só em 13 de Outubro de 1930
declarou em Carta Pastoral “como dignas de crédito” as aparições e permitiu
oficialmente o culto de Nossa Senhora de Fátima.
13 Publicado em “A Guarda”, de 11 de Outubro de 1919, sem o interrogatório da
Lúcia. Cf. Fátima, Os primeiros escritos, p. 41– 46 (interrogatórios do
Francisco e Jacinta); p. 47 – 51, (interrogatório da Lúcia).
14 Cf. Fragmento do interrogatório, DCF 1, pp. 48-49.
15 Segundo as Memórias, p. 54, tinha seis anos.
16 Cf. DCF 1, nota 259.
17 Cf. DCF 1, nota 265.
18 “que desce até um pouco abaixo do meio da perna”, DCF 1, nota 279.
19 Cf. Fátima: Os primeiros escritos, p. 51, nota 33. O Padre Formigão, a 26 de
Abril de 1955, respondia assim ao artigo 18 das “posições e artigos” para o
processo da beatificação de Jacinta Marto: “No manuscrito que tenho
presente, que tem a data de 27 de Setembro de 1917 e foi escrito por mim,
está a jaculatória tal como a Lúcia a ditara e como se encontra no Inquérito
Paroquial: “Ó meu Jesus, perdoai-nos, livrai-nos do fogo do Inferno, levai as
alminhas todas para o Céu principalmente aquelas que mais precisarem”.
Logo que me foi possível, fiz uma análise conscienciosa a esta jaculatória que
me pareceu, na segunda parte – “levai as alminhas todas para o Céu,
principalmente aquelas que mais precisarem” – falha de sentido teológico.
Admiti que tivesse havido uma interpretação menos exacta da parte dos
Videntes, crianças rudes e ignorantes. Esta expressão “alminhas” é, em
Portugal, consagrada, e refere-se às Almas do Purgatório. Vivia-se, então, em
plena Grande Guerra, que tantas vezes ceifava, dia a dia, comparecendo as
almas mal preparadas diante de Deus. Por isso, a forma mais consentânea
pareceu-me esta: “Ó meu Jesus, perdoai-nos, livrai-nos do fogo do Inverno.
Aliviai as Almas do Purgatório principalmente as mais abandonadas”. E assim
lhe dei a possível possibilidade, e assim é conhecida em toda a parte. Mais
tarde, a revelação da 1.ª parte do segredo, exarada nos manuscritos da Ir.
Lúcia – a visão do Inferno e as particulares íntimas desta aparição –
permitiram dar a devida interpretação à jaculatória transmitida pelos Videntes”
(Arquivo Formigão 7-35, publicado em A. M. MARTINS – Novos documentos
de Fátima, Porto: Livraria Apostolado da Imprensa, 1984, p. 364).
20 O Padre Formigão não reproduz a conversa de que tomou apontamentos que
foram editados na DCF 1, p. 93-97.
21 O P. Formigão equivoca-se na data do falecimento do Francisco, que foi a 4 de
Abril, pelas 10 horas da noite.

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