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o

PROGRESSISMO
A

DE SENECA
PUBLICAÇÕES DA FACULDADE DE FILOSOFIA DE
Assr
I
PU TILJ AÇ ô ES PERiôDTCAS

REVISTA DE LETR S
( E~t P BLT CAÇÃO )

II
EST ·nos E ENSAIOS
ç
O PROGRESSISMO DE S.ÊNECA
JOSt VA~ DE ~ BESSELAAR

PROBLEMAS DA FORMAÇÃO HUMANA


W. S. JONAS SPEYER
(NO PR~LO)

" FOLHAS CAIDAS" - A CRITICA E A POES IA


NAIEF SAFÀDY
(NO PllELO)

LíMITES DE LA ESTILÍSTICA
(EL IDEARIUM CRÍTICO DO DÁMASO ALO NSO)

JÚLIO GARCIA MOREJÓN


(NO PRELO)

Direitos Reservados
FACULDADE DE FILOSOFIA 1 CI:ÊNCIAS E LETRAS DE ASSIS
I XSTITCTO ISOLADO DE E\"Sl \" 0 SUPERIOR DO GOVtR..l'W DO ESTA.ÚO
RUA 7 DE SETE~BRO, 14, ASSIS, S.AO PAULO , BRASIL
Procedenc; a
! / DOAÇÃO

íf{
JOSÉ VAN DEN BESSELAAR
DOUTOR PELA UNIVERSIDADE DE NIMEGA
PROFESSOR DE LtNGUA E LTTERA'T'TTRA
LATINA DA FACULDADE DE FILOSOFIA,
CH:NCIAS E LETRAS DE ASSIS

o
PROGRESSISMO
DE SÊNECA

PUBLICAÇÃO DA FACULDADE DE
FILOSOFIA, CH:NCIAS E LETRAS DE ASSIS

il~11i1llíl1ílfiílif
0-043.494-4 PRESERVE SUA FONTE
DE CONHECIMENTO

81BLI01ECA CE~THAL
19 UC- ~ ~- 0~
PREFACIO

O presente trabalho reproduz , com algumas ampliações e


ligeiros retoques, o texto da aula inaugural que tive a honra
de proferir, no início do ano letivo, na Faculdade de Filosofia,
Ciências e Letras de Assis. O que é novo, são as numerosas
anotações, colocadas no fim do estudo e destinadas aos especialis ...
tas que nelas poderão encontrar a bibliografia consultada, abun ...
dante material de abonação e a discussão de certos problemas que
dificilmente poderiam ser tratados no corpo do texto sem ihe
tirar o caráter de preleção. Com a organização dêste trabalho
em duas partes espero poder atingir dois públicos diferentes:
o leitor culto, mas não especializado em filologia clássica, e o
filólogo profissional.
o AUTOR
Assis, 30 de maio de 1960

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ElpÍltio Ferreira Paes


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(7) . 61fttwet;~iêa9e ea-t:Mica
-1,r1,C1,Q.

1983
U made longa tradição quer que o professor, a quem cabe a honra
iniciar solenemente as atividades do novo ano acadêmico,
vincule sua aula inaugural à matéria que pretende expor aos
alunos no decurso do ano. Obedecendo a esta tradição, tomo
a liberdade de ocupar vossa atenção, durante algum tempo, com
Sêneca, o preceptor e ministro de Nero, autor que me proponho
a ler com os alunos do segundo ano . Como tema especial desta
aula escolhi o Progressismo de Sêneca, tendo em vista confrontá-lo
com o Progressismo moderno.
Há poucos autores clássicos que tanto falam no progresso das
ciências e das artes , tanto frisam o poder criador do espírito
humano, como Sêneca. Tornou-se célebre esta frase do nosso
autor : "Tempo virá em que a posteridade se admirará da nossa
ignorância em coisas tão óbvias " 1 . Não menos famosa tornou-se
uma passagem da sua tragédia "Medéia", em que parece ter
vaticinado o descobrime.~to do Novo Mundo2 , dizendo : "O
Oceano deixará de ser uma barreira, despontará uma região
enorme, e Thule 3 não será mais o limite do mundo" 4 • Sêneca
sabe perfeitamente bem que o cabedal do saber humano não é
coisa acabada , mas que cada geração tem a tarefa de ampliar,
emendar e aprofundar o patrimônio do passado; diz êle : "Os
antepassados legaram-nos não só muitas invenções, mas também
numerosos problemas não resolvidos ainda 5 . . • Nunca se desco--
brirá coisa alguma , se nos contentarmos com aquilo que já foi
descoberto. Aliás, quem segue outrem, não descobre nada ,
ou melhor nem sequer procura 6 • • • Vejo nos meus antecessores
não tiranos , mas guias 7 . . . A natureza nos doou a razão,
faculdade imperfeita, mas suscetível de aperfeiçoamentos ...
Procedamos como um bom pai de família e aumentemos o que
recebemos : os nossos herdeiros devem receber de nós um maior
patrimônio ainda. Resta fazer muito trabalho e restará futura--
mente; quem nascer daqui a mil séculos, ainda terá a possibi--
lidade de dar a sua contribuição9 • • . O mundo seria coisa insig--
nificante, se nêle não encontrassem tôdas as gerações um objeto
de estudo. Há certas iniciações que se fazem por graus;
assim como, em Elêusis, se guardam alguns objetos para serem
mostrados aos que regressam , assim a natureza não revela de
vez os seus mistérios" 10 •

.,.
10

E ssa s sen tenças , fáceis de mu1tip1icar 11 , poderiam indu.zir 0


leitor mod erno a considerar S êneca como precu rsor da teoria
do p rogresso ; mas tenhamos cuida do com con cl usões precipi-
tadasi z. A primeira obrig ação de um fil ólogo , ao interpretar
as obras li terárias do passado , consis te em sit ua r as se ntenças
no se u con texto imediato , o qual, por sua vez , deve ser enqua-
d rado no ambien te sociológico e ideológico d a época . Eis a
tare fa que assum i para esta aula ina ugura l. M as antes de
aborda rmos o nosso a ssunto propria mente dito, parece conve-
niente q ue fa ça mos alguns reparos p relim ina re s sôb re a filosofia
da hi stória em gera l, e sôbre o Progressismo , d e modo particular.
S êneca não foi filósofo da história. A filosofi a da história -
ao menos , no quadro da civilizaçã o ocidenta l 13 , ,......, nasceu só
no século XVIII com as obras de Vico, Voltai re e Herder,
filha secularizada da teologia cristã da hi stória , ina ugurada no
século V pela obra magistral de Santo Ago sti n ho D e Civitate
Dei. Sem dúvida , os pensadores antigos refletiram sôb re pro-
blemas que, ainda hoje em dia , são fundamentais pa ra a elabo--
ração de uma filosofia da história ( p . e. Deus e o m undo;
transcendência e imanência; o destino humano , etc.) , ma s essas
especulações de ordem metafísica e ética não eram diretamente
e, muito menos ainda, sistemàticamente aplicadas à matéria
histórica. Vários historiadores, cientistas e filósofos da A nti--
guidade desenvolveram também teorias diretamente relacionadas
com assuntos que , nos dias de hoje, fazem parte integrante da
filosofia da história ( p . e. barbárie e civilização; o progresso das
artes e das ciências; a evolução etc. ) , mas , mesmo fa zendo
1

assim , não chegaram a elaborar uma disciplina que sistematizasse


ou sintetizasse, num plano filosófico, o total dos fenô menos
históricos . Sendo assim, estamos capacitados , na melhor das
hipóteses, para reconstruir a posteriori a " filosofia da h istória"
de um dado autor clássico, uma filosofia implícita , d igamos :
embrionária , - reconstrução que se nos toma possível apenas
mediante a combinação criteriosa de dados dispersos e , muitas
vêzes , heterogêneos . Emprêsa um tanto precária e , tratando--se
de· um autor pouco sistemático como foi Sêneca 14 , extremamente
difícil, mas não quixotesca ou impossível.
Sêneca não faz exceção à regra geral : também êle não elaborou
uma filosofia da história . Até chega a revelar certo desprêzo
pelos estudos históricos , dizendo : " Alguns se mataram , descre--
vendo os feitos de reis estrangeiros , bem como os sofrimentos
e os atos atrevidos dos povos entre si. Mas como é melhor
extirpar seus próprios vícios do que transmitir os de outrem
à posteridade! " 15 Já para AristótelesI6 , a história era coisa
11

" menos sé ria " 17 do que a poesia , porquanto os fato s hi stóricos,


na sua contingência e na sua individualidade concreta. são
"impensáveis"; o moralista Sêneca, empenhado sobretudo em
criar uma ordem harmônica nos atos humanos , via na hi stória
í]pena s a luta desordenada e caótica das paixões individuais e
coletivas , espetáculo indigno da atenção demorada por parte de
um sábio estóico.18 Quando muito , possuía ela valor só por lhe
fornecer historietas e anedotas , com as quais pudesse condimentar
sua s li ções de moral. Não raro confundia épocas, pessoas e
19
situa ções históricas • Pouco lhe importava o aspecto histórico
própriamente dito ; o que lhe interessava, era o ato moral como
exemplo horrendo ou inspirador, mas destituído do seu cará ter
temporal.
Para ser " progressista" _, é esta nossa segunda observação
,_, não basta que se constate o fato de progredirem as artes
e as ciências; fôsse assim , quase todos os pré--socráticos 20 , Aris--
tóteles21 , Lucrécio 22 , o naturalista Plínio 23 , São Tomás de Aquino-2 4
e muitos outros pensadores da Antiguidade e da Idade Média
deveriam ser catalogados como "progressistas". O que é o
critério decisivo, nesta questão, é: qual é o significado que se
atribui ao fato do progresso? Só a avaliação positiva do pro--
gresso é que faz o Progressismo. Ora, o Progressismo moderno,
como mentalidade, nasceu na Renascença,25 , tornou--se uma teoria
bem definida no século XVIII, principalmente com as obras de
Condorcet e de Lessing, para se depositar como fermento ativo
nos sistemas filosóficos e científicos que, no século XIX, haviam
de ser elaborados por Hegel, Marx, Comte e Spencer. Não
podemos acompanhar aqui as diversas feições de que a teoria
do progresso se foi revestindo no decurso de dois ou três séculos;
basta dizermos que todos os sistemas mencionados revelam um
grande otimismo histórico. O progresso não é apenas um fato
secamente verificado, mas muito mais um fato calorosamente
aclamado, um fato benéfico para o indivíduo e para a coletivi-
dade; o progresso é um fato universal, não se limitando ao
desenvolvimento das artes e das ciências, mas chegando a
estender--se a todos os setores do universo humano: à política ,
à economia, à moral, etc.; segundo muitos, êste progresso seria
uma necessidade intrínseca, a lei fundamental da história humana.
O tempo trabalha forçosamente em prol da humanidade, a
despeito dos obscurantistas, dos burgueses instalados, dos reacio--
nários: ao passo que o futuro é saudado com sentimentos de
entusiasmo, o passado _, pelo menos, em alguns sistemas 26 -
vem a ser abominado como uma noite de trevas, como um
pesadelo opressivo, como uma culpa coletiva da humanidade. O
12

Progressismo dos séculos XVIII e XIX gozava muitas vêzes


do prestígio de um novo dogma religioso : a salvação do homem
pelo próprio homem .
Sem dúvida , a teoria do progresso, na sua forma radical de
progresso integral e de determinismo histórico 27 , está hoje desa-
creditada : as experiências dolorosas , pelas quais passou o homem
do século XX, não pouco contribuíram para o mito perder seu
poder mágico. O homem contemporâneo, avêsso a simplismos
de tôdas as espécies e vivendo entre temores e esperanças,
tornou-se consciente da ambivalência do progresso científico e
técnico. Ambivalência, e não simples neutralidade, pois que ,
no plano concreto da história , as conquistas das ciências e da
tecnologia aumentam consideràvelmente a potência , não só do
bem , mas igualmente a do mal2 8 ; tanto podem concorrer para
escravizar o homem como para libertá-lo; os anais da humani-
dade registram, no dizer de Péguy 29 , não só ganhos, mas
também perdas. Outrossim , está-se evidenciando cada vez mais
que o progresso integral não se pode efetuar sem a livre decisão ,
sem a orientação espiritual e sem a responsabilidade por parte
do homem, ,_ três fatôres de ordem eminentemente moral.
Mas o Progressismo, embora desacreditado na sua forma radical,
continua vivendo entre os nossos contemporâneos como menta-
lidade. Mentalidade bastante difícil de definir com precisão,
mas talvez admitindo esta fórmula descritiva : o Progressismo
hodierno, sem acreditar no progresso necessário e indefinido da
humanidade, vive da esperança de que o nosso planeta pode
- e deve - tornar-se mais habitável para todos os indivíduos
e para todos os povos; tem a convicção de que muitos dos nossos
males políticos, sociais, econômicos e culturais , outrora consi-
derados como inevitáveis e aceites como tendo caráter fatal ou ,
eventualmente, providencial , podem - e devem ,_ ser eliminados
do globo terrestre mediante um esfôrço inteligente e esclarecido
por part~ ~o homem; dinâmico e ativista , apela da indolência
para. a atividade e do fatalismo para a responsabilidade histórica,
convida~do to~os os homens a colaborar com aquilo que se
chama .º sentido da história". As últimas motivações dêste
Progressismo podem ser ,_ e são de fat ·t d ·
conforme seja o adepto, crist~ ·t· . e o , _, mm o iversas,
t 1· t . . ao, pos1 1v1sta ou marxista, espiri-
ua 1~ a ou matenalista ; também é muito diferente o papel que
os diversos progressistas atribuem à "liberdade humana ". Tôdas
essas e numerosas outn1s d. A • ~
mundo de h 0 • . '· ivergencias nao impedem que, no
Je , exista o fe11 ameno
• d o p rogress1smo.
.
13

O fato não é de estranhar. Nos últimos duzentos anos e ,


pri ncipalm E:nte , nos últimos cinco decênios , o homem renovou
él fac e da terra , revolucionando a sociedade, quebrando padrões

seculares d e vida , abalando normas de pensamento e de ação


outrora reputadas invioláveis , e unificando o nos ~o planeta que
já se está tornando muito pequeno. Diante dessas profundas
alterações na vida dos indivíduos e das coletividades seria incon--
cebível que o homem não se pusesse a refletir sôbre o alcance,
0 valor e o significado do seu progresso. E assim como, há
muitos séculos, o homem , depois de sair do estado relativamente
estacionário da pré--história , se assustou do seu progresso e,
levado por um certo sentimento de mal--estar e até de culpabi--
lidade, imaginou o mito do Século de Ouro 30 , do mesmo modo
o homem moderno . não sabendo para onde vai levá--lo o pro--
gresso vertiginoso da sua tecnologia , pode sucumbir à tentação
de idealizar seu passado histórico , correndo o risco de se trans--
formar num "saudosista". Progressistas e passadistas são dois
fenômenos complementares , dois polos carregados de dinamismo
histórico : a oposição que existe entre os dois , pode ser altamente
fecunda para a evolução da humanidade, mas levada ao extremo,
torna--se trágica e nefasta. O contraste entre as duas atitudes
nunca falta por completo, mas admite vários graus de intensi--
dade, sendo que essa variação é o índice das diferenças carac..-
terísticas que existem entre épocas chamadas estacionárias e
épocas revolucionárias. Nos tempos de Sêneca , havia muito
menos progresso científico e técnico do que nos dias de hoje;
conseguintemente, o conflito era muito menos agudo . Havia
menos progressistas , mas também menos reacionários.
Voltando ao nosso assunto : o homem moderno está geralmente
inclinado a esperar uma melhoria essencial das suas condições
de vida pelo cultivo metódico das ciências e pelo domínio cada
vez mais adequado da natureza pela tecnologia. Qual a atitude
de Sêneca perante as ciências e a técnica?
Para compreendermos bem a atitude de Sêneca, precisamos ter
uma idéia das opiniões tradicionais que a escola filosófica , a
que pertencia 31 , tinha a êsse respeito. Ora , o Estoicismo dividia
a filosofia em três grandes setores : a lógica ( que abrangia a
lógica formal, a gnoseologia , a gramática e a retórica) , a física
( uma espécie de cosmologia de cunho mais filosófico do que
puramente científico) e a ética. Já os fundadores da escola
gostavam de comparar a função da física , dentro do seu sistema,
à de um pomar; a lógica seria a cêrca do pomar, e a ética a
pr~d-~tora dos frutos 32 • A comparação exprime bem como, na
opmiao dos estóicos , a ética possuía a supremacia sôbre as duas
14

outras disciplinas ; para êles a f ·J f·


. d , I aso ia era t
a orienta ora da vida De - d , an es de ma ·
t. d d . a cor o com as t d~ is nada
icas a ín ole romana , a Estoa en encías prag . .
Roma , foi acentuando cada vez ma,1·susma ve~ transplanta da pmara-
. d eu cara ter f • a
a1n a que reconhecendo a lógica33 e sob t d e ic1sta. Sêneca
Part es in · t egrantes d o sistema35 'b re u o , a fis1ca
· 34 como'
pletamen te à moraJ36. , aca ou por subjugá-las com-

Q~anto às artes liberais que o estóico Posid- . .


universal do século J a C 37 hav · . t odnio, grande sabia
- . . , ia in egra o no siste d
esco1a , Seneca nem sequer lhes deixa o b 1 ~a a
, f ·J f· e o nome d1zend 0
que so a 1 oso 1a merece êsse título porque so· 1 ' 1·b
h d , e a I erta o
ornem as suas paixões 38. As artes liberais quando ·t
39
~êm apenas fu~ção propedêutica : convém tê-la~ estudado,m~~;
e J?Ouco conveniente para um sábio conUnuar a estudá-las; muitas
co1~as que elas nos en:inam são tão supérfluas e ineptas que
sena melhor desaprende-las. A música ensina-me como devo
produzir tons tristes: mas eu quero aprender a não chorar nos
contratempos da vida 40 . A geometria ensina-me como devo
dividir uma área: mas eu quero aprender a repartí-la generosa-
mente com meu irmão; o que eu quero aprender é' perder todos os
meus terrenos sem perder a alegria interna 41 • Na realidade, as
artes liberais exorbitam da sua função propedêutica, chegando a
exercer uma verdadeira tirania não só sôbre a escola , mas também
sôbre a vida dos adultos: non vitae sed scholae discimus 42 , e para
o moralista Sêneca, a única expressão autêntica da vida humana
é o esfôrço contínuo para adquirir a virtude.
São sobremaneira violentas suas invectivas contra a filologia e
contra tôda a erudição literária da sua época : ela tornaria 0
homem verboso, orgulhoso e pedante.43 A o mencionar · . a .des--
fruição da biblioteca de Alexandria , não lhe correm as lagrEimas
. l · 44 ssa
na face , mas fala com desprêzo na stu d wsa uxuria ·
laboriosidade insípida limitou-se, durante muito tempo, aos glhregodso,
- 1 t- espa an
os inventores da filologia . mas agora o ma es a-se - e fun--
também entre os romanos 45 . Dependesse de Sêneca, nao s
dariam Faculdades de Letras 46 .
~ a da
. 1·r1 essa cerc
Não só as artes liberais , também a
·d -
d 1ªo eavo
1
ca, d ataques do
filosofia estóica , torna,.se repeti as vezes . . . os corifeus dª
os
48
nosso autor. Nem sequer Zenão 47 e Cri~ipho 't mulado, entre
escola , escapam às censuras. O primeiro · · tin a , orglorioso.
Oa
r;
"N h ma 1e
muitos , o seguinte si]oqismo: en um ela pátria na 5e
"o
morrer pe1a patna , . e, g1onoso.
. Logo , morrer p espar tanos nate
,., dos
mal algum". Imaginai, diz Sêneca, ª rea⪺ enfrentar a mor
...., ·-- -< .... :l-::1c: se'. Leônidas os tivesse exorta o a
15

com êsse silogismo : ninguém pegaria nas armas. Mas o que


lhes disse o rei? "Meus soldados " , disse , "agora ide almoçar,
sabendo que hoje à noite jantareis no reino dos mortos! " 4 9.
Sêneca , embora bom dialético e apreciador da lógica como
arma defensiva contra os sofismas 50 , sabe muito bem que
a dialética freqüentemente não passa de um jôgo brilhante da
inteligência , não nos obrigando a nada . Aprecia.-a do mesmo
modo que as artes liberais em geral : a dialética pode ser estudo
útil como disciplina propedêutica, mas, prolongando.-se na vida
de um adulto, corre o risco de mantê.-lo afastado da sabedoria
( o único verdadeiro objeto da filosofia) , de encher.-lhe a cabeça
de coisas completamente desnecessárias e, eventualmente, peri.-
gosas, e até de profanar a filosofia 51 •
Tratando.-se de decisões de ordem moral, ninguém se deixa le.var
por argumentos abstratos ou silogismos engenhosos. O que nos
pode estimular a praticar a virtude, é a palavra simples, mas
inspiradora , de uma pessoa em que a virtude, por assim dizer,
se concretizou: tais "exemplos vivos" da virtude 52 não se limitam
a apregoar a verdade com suas palavras, mas dela testemunham
com seus atos 53 • Palavras espedosas, além de poderem ser fàcil-•
mente abusadas para enganar os outros, não garantem a posse
da virtude por parte de quem as fala; o que importa, é a vivê'ncia
pessoal da virtude 54 • Sêneca é autor "existencial" ( não digo,
"existencialista") como poucos outros autores clássicos: não se
cansa de nos incutir que é necessário vivermos a verdade , de
a assimilarmos visceralmente: 5, de nos precavermos contra "ver--
dades mortas". A filosofia não é passa.-tempo 56 , nem ornamento
exterior 57 , e muito menos ainda mercadoria 58 ; a vida não é
brincadeira 59 , mas um duro serviço militar 60 , para o qual nos
deve preparar o estudo da sabedoria , o único remédio dos nossos
males 61 ; a filosofia é uma disciplina que merece ser adorada 62 •
Somo bom romano. Sêneca desconfia instintivamente do intelec.-
tualismo çrrego 63 em matéria de moral: por mais racionalista que
seja sua filosofia , o saber puro não é suficiente; depois de têrmos
visto o que devemos fazer, pode faltar.-nos a vontade ( muito dife ..
rente do "desejo" 64 ), mas velle non discitur: "querer não se
aprende pelos livros" 65 • Por mais importante que sejam os
66
dogmata filosóficos , a vida moral não se resume num ato de
adesão protocolar a verdades abstratas; ela é muito mais um ato da
vontade, um exercício duro e constante: o 1rovo~ dos cínicos 67 •
Por isso mesmo, Sêneca inventa um sistema de exercícios ascéticos
para se acostumar à pobreza e aos outros golpes da fortuna 68 •
As argúcias da nossa inteligência, sempre disposta a alegar um
16

álibi são impotentes contra a voz da nossa consciência q


impi~dosamente os nossos atos , mesmo que consigamos ue julga
ao julgamento d e outros 69 . Por isso
. mesmo, s- eneca recoescapar
ao seu amigo Luc1-1·10 o so J·l'
1 oqmo· 1n
, t 1mo
· consigo mesmmenda
0 70
submete tôdas as noites , seus atos a um minucioso exame ' d:
consciência 71 .
A vida moral não _ se identifi~a com ª. observação das disposi~
ções Iegais72, e mmto menos amda consiste em conformar-se com
as opiniões sempre flutuantes da massa 73; a virtude e o pecado
não são predisposições fatais 74 , mas envolvem a plena responsa,.
bilidade humana . Em virtude da profunda uuµ1ra1'eiet. que existe
entre todos os sêres humanos , os nossos atos , sejam bons , sejam
maus , têm uma vasta repercussão na sociedade em que vivemos :
nemo errat uni sibi, sed dementiam spargit in proximos accipitque
invicem 75 • A virtude Hnatural " do não--sábio não passa , na
melhor das hipóteses , de species atque umbra virtutis 76 , sendo
apenas o impulso pasageiro de um coração generoso 77 ; o sábio
age constantemente na base segura de uma convicção intelectual7ª;
o que êle quer, é sempre a mesma coisa : o bonum honestum 79 .
Ora , quais são os serviços que a erudição lhe poderia prestar
nos seus esforços para atingir o supremo bem humano?
Erudição e §iil?e.flori? são, portanto , duas coisas completamente
diferentes. Alguns ·são eruditos sem possuirem a sabedoria,
outros são sábiq_s sem serem eruditos . Em tese, a combinação
das duas qualidades seria o ideal. Mas a vida é breve , e longa
a arte 80 : não corramos o risco de perder o essencial por causa
de coisas acessórias e desnecessárias . Quem está à procura de
uma parteira para sua filha em dores de parto, não perde seu
tempo precioso olhando, na rua, para os cartazes dos jogos e
dos teatros 81 . Outrora, diz Sêneca, era possível ser sábio sem
possuir a mínima erudição; mas , visto que, no decurso dos séculos,
o mal se ia revestindo de caráter cada vez mais sutil, tornou--se
necessária também uma defesa mais sutil do bem82. A grande
finalidade da filosofia especulativa é a-- de d efender e de alimentar
a: vida_ mor~l. O maior perigo a que as disciplinas teóricas da
filosofia estao expostas é exatamente o de se transformarem de
in st rumentos em fins , o que, segundo o nosso autor . está aco~--
tecendo na Roma imperial: quae philosophia fuit, facta philoloqta
e st83 , frase que havia de granjear a plena aprovação de Nietzsche.
Sêneca , embora longe de ser anti--racionalista8 4 , subjuga , tal como
~ 01st oi , todos os valores culturais à moral, ao bonum hone5 fu}n ,
\ nao reconhecendo a autonomia nem da cultura nem da erudiçao.
nem da e st éticaS 5 , nem da investigação científica. T al como
17

·onrnncista ru sso resume-se, também para êle, a filosofia


para o l ' . d
nesta fórmula : a filo sofia é a arte de v1:7er bem e . . . e morrer
bem. Com efeito, o problema da morte e a grande e a constante
0
bsessão do nosso autor8 6 • Não precisamos deter-nos em mostrar
ue tal atitude perante a vida e a morte é incapaz de inspirar
~m programa de atividades científicas ou tecnológicas.
M não é o mesmo Sêneca autor de um tratado intitulado
N : :urales Quaestiones == " Investigações sôbre a Natureza " ? Não
há dúvida , e escrevendo esta obra, Sêneca nada fêz senão con-
tinuar uma tradição já inaugurada pelos fundadores do Estoicismo
que , como já vimos , integraram a " física " no sistem_a da ~s~~la8,~.
Mas tenhamos a cautela de interpretar bem o termo f1s1ca .
Se O objeto material das investigações físicas feitas por Sêneca
coincide, em grande parte, com o da física atual e das disciplinas
dela derivadas , o espírito que o anima é totalmente diferente.
Além disso , não devemos buscar no tratado de Sêneca pesquisas
pessoais ou descobertas originais : sua obra é apenas fruto de
leituras assíduas e constantes, não passando de uma compilação
feita com bom senso e bom gôsto . Quem estiver empenhado em
conhecer a mentalidade de um físico profissional na Antiguidade
e os métodos científicos empregados na época helenística , deverá
ler as obras de Arquimedes e não perderá muito em preterir o
tratado de Sêneca. Nosso autor estudou com maior afinco os
livros eruditos dos seus predecessores do que o livro da natureza;
suas N aturales Quaestiones não marcam época na história da
física antiga , sendo que seu valor principal consiste em permitir--
no~ a recons~rução de diversas teorias emitidas pelos gregos ,
cuias obras nao chegaram aos nossos dias.
Nelas encontramos, no fundo , a mesma preocupação eticista. Todo
e qualquer assunto abordado por nosso autor apresenta-lhe a
oportunidade de tirar uma conclusão moral, coisa inconcebível
num manual con~emporâneo de física. Diz Sêneca: "Sempre
d.e~emo_s t~r. o .~ mdado de combinar um preceito útil com a expo-
Siçao c1enttf1ca 88 . O espelho foi inventado para que o homem
se. conhecesse a si próprio, e não para ser instrumento da sua
vaidad: ou da sua luxúria 89 ; o estudo da formação da neve dá-lhe
0
en~~!º de dizer que são estúpidos os homens que compram
~aro ~gua gelada misturada com muito ar" para conservar frios
. ens vinhos90 . o ·t 1 -b
l·nt ercam
- b' '
·f capi u O so rc os ventos , que nossibilitam 0
tiva 10 pac1 ico entre povos remotos , ocasiona-lhe uma invec-
contra as guerra 91 C . .,
daqu 1 s · orno nos parece mveJavel a inçrenuidade
e es tempos qu • d d' ,
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m1s ra as pela
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acre itavam nas lições de moral
s- . . .
julgando u , . na u:eza. eneca acreditava piamente nelas ,
ª
9 e fisica nao só nos premune contra a ganância , a
18

luxúria , a sensualidade, mas também ..- à maneira de um Lucrécio


,......., nos liberta do mêdo e de ou_tros afetos_ perturbantes , por nos
tornar cientes das causas do raio ,_ do trovao , de terremotos , etc.
" Não há nenhum fenômeno que nao provoque a nossa admiração
e , ao mesmo tempo , o nosso pavor. E visto que a ignorância é
a causa do nosso pavor, não vale a pena saber, para que ces-
semos de apavorar--nos? Como é melhor investigar as causas de
tudo isso , dedicando--se a êsse estudo de todo o coração! "92
Há uma conexão mais íntima ainda entre o estudo da natureza
e a ética. A física constitui , por assim dizer, a base como também
o coroamento da vida moral. É na natureza que o homem
descobre o indicativo das leis eternas que regem o Universo93;
ora , o sábio esforça--se por transformar êsse indicativo num ímpe--
rativo para sua vida pessoal 94 ; mas uma vez estabelecida a
harmonia entre o macrocosmo e microcosmo, o sábio volta à
natureza para se deleitar na sua contemplação 95 • Para êle, não
há discrepância entre a lei que rege o Universo e a que orienta
os nossos atos morais ; o mesmo Ao-yos , a mesma Razão que
move, organiza e governa o cosmos , vive também naquele que
consegue reÇ1ular todos os seus atos pela razão. A razão índi--
' vidual do sábio , isenta de afetos e de paixões , é parcela pura da
Razão universal 96 ; do mesmo modo que o mundo material é
governado pela divina Providência, do mesmo modo o sábio
domina perfeitamente o seu corpo , tendo na sua razão individual
uma providência particular97 • O sábio vive " de acôrdo com
a natureza " 98 . A contemplação do cosmos confronta--o com o
Todo Divino . tornando--o humilde e encorajando--o a prosseguir
seu caminho 99 . Destarte Sêneca poderá dizer que a moral é a
parte humana da filosofia , e a física a parte divina 100 . Mas só
o sábio, não o meramente erudito, é capaz de entender os altos
desígnios da natureza , o que equivale a cÜzer que podemos estudar
também estultamente a natureza , profanando--a com as nossas
segundas intenções.
Ao homem antigo , em geral , interessavam mais as causas metem"'
píricas do que as leis positivas , no sentido moderno da palavra,
iS t o é, as relações constantes qu~ existem entre dois fenôme~o_s:
suas experiências eram rudimentares , ,......., nós diríamos , superficiats,
,......., e pouco metódicas101 . Ao passo que a física contemporânea
revela uma certa tendência " iconoclasta" chegando a destruir asl
· 1 '
image~s P ásticas da nossa percepção imediata e tendo ~or 1 das
·dea
red_uzir todos os processos físicos a fórmulas matemáttca_s ·,.,
mai_s abstratas que deixam perplexas as nossas faculdades 11nagd1
nattvas 10 2 · S eneca emprega, na sua descrição dos f enom enos ·raª
A A

natureza , uma linguagem cheia de "antropomorfismos" : à roanet


19

literat 0 103, pre fere argumentos "persuasivos " próprios


de um bom " 1d " d
de um orador a argumentos cone u endtes e1:1prega ~s por um
, t· 104 . plena men te consciente o cara ter conJectura 1 e
materna teo ' , . . ·d d
, mo aleatório da s teorias f1sicas emiti as por seus pre e-
ate mes f· na ver d a d e d a
cessares , Confessa não possuir granded con iança . - 1 1ouvave- 1
maior. parte delas1 os , sem porém deixar e registra-
. . as com
. .
. - A ciência experi mental, .- mmuc1osa, paciente, s1ste-
aplteaçao. . .. . . . _ . ,, •d d b ·
, · t·1ca e , por assim dizer , Judiciaria 106 , no senti o e o rigar
ma
a natureza a dar uma resposta determinada a u~~ ~ergunta
tes formulada pela inteligência humana
an·mental
, .- esta cienc1a expe-
é uma invenção dos tempos mo d ernos. D e d ubvos . .
mve-
~: rados que eram , os antigos sucumbiam fàcilmente à tentação
do pen samento "generalizador", mostrando-se muito apressados
em construir belas teorias de "cosmovisão" sôbre os alicerces
frág eis de uma rápida observação, feita sem sistema e sem
métodol 07_ Interessava-lhes mais a síntese filosófica do que a
análise científica.
Além disso, o estudo da natureza, para ser digno de um homem
livre, devia ser "desinteressado " 1º8 ; o cosmos se lhes afigurava
muito mais um belo objeto de devota contemplação do que um
terreno a ser conquistado pela ciência e pela técnica. Hoje em
dia, apesar de ainda existirem cultivadores da " física pura" ,
investiga-se a natureza, em grau cada vez mais crescente, por
causa das suas aplicações práticas, isto é, por causa da possi-
bilidade de se transformarem elas , um dia , em conquistas técnicas.
Ora, tal atitude seria quase sacrílega para a grande maioria
dos <PVnKot antigos também Sêneca rejeitaria a divisa de
Bacon : "Saber é poder". Se tornasse a viver no mundo atual ,
decerto nos condenaria por prostituirmos a razão e por a sub-
jugarmos a interêsses de ordem material; achar-nos-ia brutais,
agressivos e interesseiros 109 . A técnica antiga , comparada com
a ~oder_n~, era coisa insignificante e, feita abstração de alguns
pre-socrahcos e alguns especialistas helenísticos ( p. e. Arqui-
m: des) , era reputada ocupação indigna de um homem livre.
~ene_ca , acedendo a esta opinião, chama-lhe de arte vulgar e
Pórdid~, em que não há nada de beleza moral, nada de decôrollO.
ara ele, as invenções técnicas não têm nada a ver com a
sabedoria , - como queria Posidônio 111 - , mas antes constituem
uma
d · de apostasia
es? écie . da natureza , porquanto são produtos
ª _cobiça e da luxúria humanas. Pôsto que seja a ra,z ão que
as inventa ' n-ao as inventa
· - reta 112 , que só se interessa
1 b a razao
fée º. er;i13 humano. Até escravos miseráveis podem ser grandes
decn_icos : os homens do Século de Ouro viviam num estado
ignorância salutar quanto à fabricação de produtos comple-

n
----
19

l)Ot 11 litcrnto º.l, prefere " argumentos "persuasivos" próprios


1
de· 11111 1 d "
radar a argumentos cone u entes emprega os por um
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. . t ura 1 e
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,· ·mo aleatório das teorias físicas emiti as por seus pre e-
íl te mes
. con (essa não possuir grande con f.iança na ver d a d e d a
cesso1cs ,
. ...,rte de]c IO S sem porém deixar
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aplicação. A ciência experi.~ en~ª!: :-'.. mmuc1osa, ?ªciente, s1_ste-


mática e, por assim dizer, JUd1c1ana 106 , no sentido de obngar
irntureza a dar uma resposta determinada a uma pergunta
:ntes formulada pela inteligência humana , ,_ esta ciência expe-
:imental é uma invenção dos tempos modernos. Dedutivos inve-
terados que eram , os antigos sucumbiam fàcilmente à tentação
do pensamento " generalizador", mostrando,..se muito apressados
em construir belas teorias de "cosmovisão" sôbre os alicerces
frágeis de uma rápida observação , feita sem sistema e sem
métodol07. Interessava ... lhes mais a síntese filosófica do que a
análise científica.
Além disso, o estudo da natureza, para ser digno de um homem
livre, devia ser "desinteressado" 108 ; o cosmos se lhes afigurava
muito mais um belo objeto de devota contemplação do que um
terreno a ser conquistado pela ciência e pela técnica. Hoje em
dia , apesar de ainda existirem cultivadores da " física pura" ,
investiga ... se a natureza, em grau cada vez mais crescente, por
causa das suas aplicações práticas , isto é , por causa da possi-
bilidade de se transformarem elas, um dia, em conquistas técnicas.
Ora, tal atitude seria quase sacrílega para a grande maioria
dos cpvnKot antigos : também Sêneca rejeitaria a divisa de
Bacon: "Saber é poder". Se tornasse a viver no mundo atual,
decerto nos condenaria por prostituirmos a razão e por a sub-
jugarmos a interêsses de ordem material; achar ... nos-ia brutais,
agressivos e interesseiros 109 • A técnica antiga, comparada com
ª ~oder!1~· era coisa insignificante e, feita abstração de alguns
pre... socrattcos e alguns especialistas helenísticos ( p. e. Arqui-
8:des), era reputada ocupação indigna de um homem livre.
:n~ca, acedendo a esta opinião, chama-lhe de arte vulgar e
pº rd1 d~, em que não há nada de beleza moral, nada de decôro 11 º.
ra ele, as invenções técnicas não têm nada a ver com a
sa edoria, - como queria Posidônio 111 ,_, mas antes constituem
duma especie · · d e apostasia da natureza, porquanto são produtos
aª _cobiça e da luxúria humanas. Pôsto que seja a ra-z ão que
8
Inventa, não as inventa a razão reta 112 que só se interessa
' ié: 10
• he1;3 humano.
13
1

Até escravos miserávei s podem ser grandes


de n_icos
igno ... .
; os homens do Século de Ouro viviam num estado
1
ranc1a sa utar quanto à fabricação de produtos comple-
20

tamente inúteis e supérfluos 1 14 • A sabedoria ocupa


muito alto para dirigir os trabalhos manuais· ela é a ~m lugar
d as a 1mas 11 ·.s p or isso
• S~ :
mesmo, eneca nao dá grand
orientadon
'
- · ~ t- · d ,
as mvençoes ecmcas a sua epoca : o vidro, as abóbad e valor
aquecimento central, a . estenografia, etc. 116 Mas· sabeinosas,que0
nosso autor, como mmtos outros desprezadores da técnica
serviu grato de algumas inovações do seu tempo , principalm ~n::
da estenografia 117.
O mundo moderno prefere trabalhar com Marta a meditar com
Maria. Hoje existe, por tôda a parte, a mística do trabalho.
Não podemos investigar aqui as raizes históricas do "trabalhismo··
moderno; só queremos dizer que, na Antigüidade e na Idade
Média, a apreciação do trabalho, de um modo geral, era muito
diferente 118 . Mediante o trabalho inteligente e produtivo, o
homem esforça--se por humanizar o mundo exterior, transfor-
mando--o, por assim dizer, no seu corpo anorgânico; assim fazendo.
espera poder humanizar,..se cada vez mais a si próprio, tornando-se 1
mais inteligente, mais consciente de si, mais livre. O trabalhador
moderno, inclusive o "trabalhador intelectual" ,...,, têrmo inexistente
outrora _, quer transformar ou, para usarmos uma palavra de
moda, tra nsfigurar o mundo, não duvidando de que essa trans-
11 9
figuração reverta em benefício para si e seus semelhantes -
Essa dialética do trabalho é completamente alheia ao pensam ento
de Sêneca: apesar de apreciar, como bom estóico, um paradoxo
ousado, julgaria o título de um livro moderno Penser avec les
mains o maior dos absurdos 120 .
Sem d úvida, Sêneca elogia repetidas vêzes o labor ir:7prob~~·
mas sempre tendo em vista o esfôrço moral para atingir a virtudeL ·
Enfileiran do,..se na doutrina tradicional da sua escola, .:icred:ta
que o homem nasce, não só para a contemplação, mas tambrn
para a ação 122 ; em algumas passagens da sua obra podemos_ /r
~ue a ~01_1tem~Jaç~o para êle, romano prag1~a_tista . é apenas ~s~ d~
mtermed10, nao term o finaJ12.1. Mas aqut e grande O pe! 19 O
entendermos mal o significado da palavra actio ou açao,- te
homem ativo era para os antigos ~m geral, não o fab ncnn
' ' como
ou produtor de bens ex teriores . e sim , o homem que agde . 'd 0
Ííl tVl U
ente mora 1, o hornem que realiza o bem humano como b da
e como mem bro de um a sociedade, sobretudo como mern ro v
, d - fél ro ,roift
1ro"~~ ou res publica; o qu e em preconiza o nao e e ,. ir'',
( o f·azer " , o " Ea brica r " , o .. pro d uzir ,, ) , mas ;o 1r parrHv (o agi de
0 ret-o procediment-o do homem como indivíduo, c~mo Pªmen·

famí lia, co~? cidadão, etc. ) . Já a Estoa gr~g~ havia r~ ~~·endo


1
dado ao sa b10 a participação ativa na vidél ovd, na1ª q 0 unca
~aber do recolhi mento apregoado por Epicuro 124 , Seneca

21

. •tou esta tese 125 , mas no fim da sua vida, quando as circuns--
reJel
~ ·as da época Ih e d 1·f·1cu 1tavam ca d a vez mais
· a participaçao
· · -
tanc1 d . 1 , 'd
. na política, passou a ar maior va or a vi a reco ida, ao Ih · .
a t1va ,. d 1 U ·
otium, salientando outra tese ,es_t01ca , segun, º. a qua . ? mv_e;~º
, a verdadeira pátria do sab10 126 . O sabio servira a paLna
~nstituída pelos homens , quando lhe fôr possível e se puder
~ornar,. , se útil para ela 127 , mas êsse serviço da pátria humana é,
110 fundo , uma coisa indiferente, que com nada de essencial
contribui para a virtude ou a para a felicidade do sábio. O
sábio é útil para a comunidade por ser sábio; ou devemos julgar
que Zenão e Crisipo , que vi~iam a!ast~dos _da vida política,
mas legislavam para a humamdade mteira , nao prestaram um
serviço extremamente útil para o gênero humano ?128
Destarte chega Sêneca a elogiar cada vez mais o otium , o ócio , o
lazer que, quanto eu saiba , um só filósofo moderno teve a coragem
de defender: o alemão Josef Pieper 129 . Otium é a tradução
latina da palavra qrcÇJa axo'ATJ , que deu origem ao têrmo
moderno "escola" ( école, school, Schule, etc.); só quem tiver
axoÀTJ ( = "lazer" ) , só quem estiver livre de ocupações banais 130 ,
poderá pensar em aperfeiçoar . . se a si próprio como ser humano ,
em freqüentar a "escola " . Quer.o que me entendais bem: não
prentendo defender aqui um conceito nristocrático e irreparàvel-
rnente superado da escola; não é meu mtuito quebrar lanças pela
chamada elite pelas classes privilegiadas ( o abuso constante· das
palavras "elite" e "privilégios" em jornais e debates parlamentares
faz com que o homem moderno ignore quase por completo o
valor autêntico dêsses dois conceitos) . Pelo contrário , quereria
abrir a escola para todos os idôneos e para todos os aptos ,
qua1quer que seja a origem social dos alunos. Mas o que quero
frisar é que o otium dos antigos não é nem luxo nem preguiça 13I;
otium não é simples inatividade ou mero dolce f ar niente, tão
pouco como escola é viveiro de preguiça ou de inércia. Otiam
é suma atividade do homem enquanto homem; é atividade desin-
teressada; é atividade do espírito que se concentra na contem-
plação. Ora, a ação humana, para ser verdadeiramente humana ,
d:ve alimentar-se constantemente da contemplação: a cultura
nao pode subsistir sem um mínimo de contemplação. Uma es.-
cola superior e principalmente, uma Faculdade de Filosofia, trairia
sua vocação, se nela não se reservasse um lugar também para a
<Ty>-11.! isto é para estudos desinteressados, para a contem ..
~ ªi~º·
eh
Uma especialização meramente técnica, mesmo em matéria
iteratura e de filologia , sem uma reflexão aprofundada sôbre
0
.. ornem enquanto homem, - digamos: sem uma espécie de
antropologia filosófica" , - poderia levar-nos ao estado de uma
22

barbárie civilizada que , no di zer de Vico , é a pior de tôdas as


barbáries .

H ã o de me perdoar esta digressão , aliás ocasionada pelo tema .


Agora . voltando ao nosso assunto , p odemos dizer que Sêneca
apreci a va muito mais do q ue o homem do século XX a vida
contemplativa ( ô f3ws r3 €wprJ,LKOS ) , e qu e pela vid a ·· ativa ··
en tend ia , em prim eiro lug ar , a atividade moral e político-social
d o homem ( ~ {3w) 1rpa.K.nKo~ ) • e não ~ua ativida de produtiva de
bens e x teriores ( 0 /3 1./J) 1rotrJ nKos '. O hom o f aber p recia - Ihe.
para falarmos em têrmos modernos . uma espécie d~ alienação
do homem ao próprio homem ; a contemplação da ordem cósm ica
parecia- lhe a mais bela ocupação humana ; se investigava a n atu-
reza , não a investigava em função de um programa tecnológico .
mas em virtude do seu ideal de vir sapiens que regula seus
atos pelas leis que regem o Universo, e encontra o supremo
prazer 132 em contemplá-las desinteressadamente .
Quais são as razões do desprêzo que o mundo clássico tinha
pelo trabalho manual e pela técnica? Ao que parece . contri-
buíram para êle diversos fatôres bastante difíceis de hierarquizar ,
tais como, o caráter aristocrático e conservador da sociedade
antiga e , -- fenômeno concomitante - seu regime escravocrata.
Poderíamos mencionar também o feitio especulativo da inteligên cia
clássica, mais inclinada a deleitar- se em belos sistemas harmônicos
que satisfizessem à intuição sintética, do que disposta a dedi car-se
a longos e pacientes trabalhos de pesquisas analíticas.

Mas existe outra razão , talvez mais fundamental. Para os gregos


os romanos , -- principalmente, desde os escritos da velhice
â Platão133 ,......, 0 cosmos era algo de divino : ou manifestação
v7sível da divindade , ou então.' apêndice necessári<:> _da mesma;
- aproximavam com sentimentos de temor religioso. Ora.
d e 1e se · 1 para se lhe
·t de não criava uma pre d 1spos1çao
' · - favorave
1 t
os segredos134. p 01· a D
ta a u1 B'bl' d ·
<=andarem t ia que re duzm a natureza
à sua categoria de obra _de ~m e~s tra~!~ef _ente É -J~ssoal;
foi a Bíblia que " naturalizou a - na urr~~t ,d ºà na_ i ia que
omem recebeu de Deus a missao e~p ic1 ~ e ommba:d a terra.
0 h t lássico Deus é mmtas vezes conce 1 o como
No pensa?,'ledn
" . nto
° c . ações humanas , atos atentatórios da majes-
as rea 1iz ·d d "
cd1umde. . a136 ou então, a técnica é cons1 era ª1·dcodmo daposf~asia
ta e ivm ,,Í 37 Nenhuma das duas menta 1 a es esa 1a 0
da natureza ·. a obra das mãos de Deus; quando muito.
homem a aperfeiçoar a de animal curiosum 138 , a repensa r o
, d d sua na turez
convida ..o , a .ª. O homem não é eh ama d º. para coa J b
r
sarnento divino . e muito menos ainda , como
pen o ato criador de Deus, -
com
23

Cristianismo, para colaborar com a obra redentora do ·Deus,.,


0 _., e sim , para ser o espectador maravilhado de um
Homem , d · • 139
Universo pretensamente 1v1no .
. · ·,zação do Kósmos não se efetuou sem a colaboração da
A.~divm1• helenística em gran d e d etrimento nao - so- d a re 1ig1ao,
· .-
c1encia ' . · f
também da ciência : a teosofia e a teurg1a oram--se reves,.,
como
• d no início da era crista, ~ d e um prestigio
- . c1en
. t·i f·ico . F a 1so
tm s~igio de uma ciência disparatada e desviada 140 , de cujos
excessos Sêneca com sua rob usta sensatez se manhn
pre . h a d.1stante.
A tendência dos antigos para o imanentismo obscurecia--lhes a
visão da verdade libertadora de que Deus é o absolutamente
Outro; bem sabendo que o mundo não pode existir separado de
Deus, não conseguiam separar devidamente Deus do mundo.
Foi só a filosofia cristã que, partindo dos conceitos bíblicos
de "Aquêle que é" e da criação livre e integral, conseguiu
penetrar mais a fundo no mistério da transcendência e da ima,.,
nência divina. Ora, o imanentismo amesquinha a majestade de
Deus; invertendo a " fórmula " 141 cristã do Deus.-Homem , teima
em proclamar deus o homem .
Sêneca fala diversas v êzes na existência , na natureza e nos
atributos de Deus , bem como no conhecimento humano da divin.-
dade. Ao falarmos de Deus, convém--nos, diz êle, uma atitude
de respeito e de reserva 142 ; em alguns passos julga que a cortina
que nos esconde o Grande Mistério, será levantada só no além--
túmulo143; mas o autor sabe que Deus, se é que se revela neste
mundo , se revela apenas ao intelecto , não aos sentidos 144 . Deus
existe; o fato é provado pela ordem que existe no Universo 145 ,
pela Providencia 146 e pelo consensus gentium 147 • Mas é bastante
difícil definirmos o conceito do nosso autor a respeito da divin,.,
dade : tão numerosas são suas hesitações , tão ecléticas suas
afirmações. Por mais problemática que seja a teologia de Sêneca ,
pod:mos verificar que , apesar de fazer algumas tentativas no
~entido de se aproximar do teísmo, professa uma espécie de
1
~anentismo que, embora um pouco diferente da doutrina tradi,.,
cional da sua escola , com ela, no fundo , se reconcilia148 . Sêneca
sate também que os atributos essenciais da sua divindade são
~ ondade e a justiça: Deus não quer nem pode fazer mal aos
49
a ome?~~ • Escreve muitas páginas edificantes sôbre Deus -, e
. r:ligiao, combate a supertição e as praxes de um culto exte,.,,
hiorizado, frisa a boa disposição interior como a essência do
d~mbm reli~io~o , disposição que se manifesta também em ~tos
enevolencia para com o próximo 150 ; apesar de tudo isso,
temos
d a impressao- d e que nosso autor nao - f 01. h ornem pro f un,.,
amente religioso : desconhecia a submissão total por parte do
24

homem à di vindade , e eticista autônomo e até orgu lhoso .


que o sábio pode igualar,..,se aos deuses , ou até sup~ }ulgava
~ra. 1os1s1
Outra razão do desprêzo da técnica , muito afim à ante . . ·
f d b ·d t, · rior · e o
ato e . se r con ~e 1 a ha ma enaÉ, nodpdensamento dos antigos
com o c01sa exterior a o ornem . ver a e , o Estoicismo p f ·
· f •
sava uma d outrma rancamente momsta , separand~se cons .
ro es-
d h c1en-
tem e_n ~e d a esco 1a p 1atomca e renova~ o o i1ozoísmo dos pré,.,
A •

scorat1cos ( sobretudo, o de Herachto) , que enriqueceu com


numerosos elementos aristotélicos . Mas Posidônio, a quem •á
nos referimos , introduziu um certo dualismo na E stoa , dualis~o
que , embora estranho às idéias fundamentais da escola , foi
adotado t a mbém por Sêneca . A alma human a sem deixar de
perten cer à substância primitiva que constitui o U nive rso. acha-se.
nesta vida terrestre , encarcerada na prisão do corpo 152 ; o homem.
no que tem de mais próprio, mais íntimo , mais d ivino , vive neste
mundo num estado da pior aliena ção imaginável. O ra , se tal é
a situação do homem , o corpo e as condições materiais do seu
ambiente tornam,. , se, para êle , algo de exterior. Meu corpo não é
" eu" , mas eu "tenho" um corpo ou " me sirvo" de um corpo,
invólucro frágil e imperecível da minha alma ; daí não é lon go
o caminho para eu desprezar meu corpusculum 153, para aviltar
meu foedus atque olidus venter 154 • Ao contrário do que se
pensa muitas vêzes , a oposição entre o espírito e a carne é mais
clássica do que bíblica 155 . No pensamentos dos gregos e dos
romanos , Deus não é o criador, mas apenas o modelador e o
organizador da matéria 156 ; esta constitui um princípio rebelde
à ordem divina 157 , ou então , é uma coisa completamente inerte,
sem élan vitaf1 58 • O que vale , é a alma , e só ela 159 . O ra, a
alma humana , entre os estóicos , tende a ser identificada com a
razão , parcela da Razão Universal que penetra com seu 1r11fµua
o mundo 160 . Também êste dualismo metafísico, ainda que nos
escritos do nosso filósofo se encontre em forma mitigada , não
deve ter constituído um estímulo para o homem fazer conqui5tas
técnicas.
Tão pouco o estimulou a fazer revoluções sociais, econômica_s .e
políticas. O revolucionário e o reformador têm que levar ª s;/1?
15
o mundo em que vive; no dizer de Chesterton, what we nee
· but some
not t h. e co [d. acceptance of the world as a com_promise,. No
way m whrch we can heartily hate and hearttly l_ove it: · ~vorld:
one doubts that an ordinary man can get on wrth t_hzs it bat
but we demand not strength enough to get on wit h 8
h
'l'l(le
~trength enough to get it on. Can he hate it enoug~ t~ 16~ Se
it, an yet love it enough to think it worth chang~ng. mava
Seneca nao e h egava a odiar o mun do, ao menos nao o a
A -
25

suficientemente para se dedicar cordialmente à sua transformação.


Sua moral, como a de Epicteto, poderia ser resumida no famoso
adágio: sustine et abstine == " suporta e abstém-te!" l62 _ É uma
moral de introversão , de auto-concentração, não isenta de certo
egocentrismo. A moral moderna não visa , em primeiro lugar, à
concentração do sujeito em si próprio, mas muito mais à exoansão
das suas fôrças espirituais através do seu ambiente hu~ano e
infra-humano; o que ela quer , é antes de mais nada "encarnar-se" .
O mundo moderno não acha que as condições materiais em que
vive o homem , sejam " indiferentes" ( &.oiacpof a , na linguagem
dos estóicos 163 ) para êle poder realizar o bem humano; o que
os altruístas entre os progressistas tencionam com os seus planos
de melhorar o padrão de vida de indivíduos e de coletividades ,
é exatamente a elevação da moral , a expansão de humanismo
integral entre todos os indivíduos e todos os povos da terra.
Para êles, a amontoação de imensas riquezas nas mãos de poucas
pessoas é uma praga social e uma injustiça berrante; por isso
mesmo, querem distribuí-las de modo mais racional, eficiente e
equitativo. Sêneca vê o perigo da riqueza sob outro aspecto :
considera-a uma calamidade para a vida moral do rico; o dinheiro
escraviza o homem à matéria, tornando-o insensível, orgulhoso ,
voluptuoso e esquecido da sua condição de simples mortal; não
é o homem que tem o dinheiro, mas é o dinheiro que o tem a
êle164 ; além disso , o rico perde inevitàvelmente o sossêgo de
ammo ( securitas), condição imprescindível para uma vida
virtuosa165. A pesar de acreditar no comunismo primitivo dos
homens do Século de Ouro166, apesar de doutrinar a igualdade
fundamental de todos os homens 167 , apesar de escrever uma bela
carta sôbre a ignomínia da escravatura 168 , Sêneca, apesar de tudo
isso , aceita a situação social tal como a encontrou , e não cogita
de pro jetar um prog rama revolucionário. Atitude lógica do seu
ponto de vista , pois que a matéria é uma coisa extetj.or , de
pouca ou nenhuma importância para a nossa vida interna. A
única verdadeira escravidão é obedecer às paixões , e desobedecer
à voz da razão; também o escravo pode guindar-se à liberdade
interior do sábio1 69. Pouco importa a condição social ou eco~ômica
do homem ; Sócrates não foi patrício, Cleantes carregou baldes
para regar as hortas . e Platão não tanto enobreceu a filosofia
como foi enobrecido por ela110. Muitos pretensos senhores são
os escravos mais vis do mundo 171 .
Sêneca tende a identificar o homem com a ra-zão 172 , esquecendo
que o homem , além de ser razão , é muito mais ainda. ~orno todos
os homens inteligentes de tôdas as épocas, percebe muito bem
que o mundo em que vivemos não é dominado pela razão , mas
--
26

muito mais pelos instintos e J?elos ressentimentos , pelo amor


cego e pelo ódio exacerbado . E através destas paixões con tra-
ditórias dos povos e dos seus líderes que se realiza , no pensamento
de vários filósofos modernos , o caminhar da human idade para
um mundo melhor: Deus , recorrendo a um estratagema , serve-se
da comédia humana para transformá - la num sublime drama divino.
Sêneca ignora por completo tal estratagema da d ivinda de ( List
der Vernun[t , como dizia Hegel) : abomina as paixões, os afetos,
os ressentimentos 173 • não lhes reconhecendo a função de motores
inconscientes do progresso histórico , mas ven do nêles só d esordem
e caos .
To go l].Jith the crowd e to be different is indecent, ,_ êsses dois
" slogans " do americanismo contemporâneo, são, no fundo , expres-
sões que revelam certo respeito , embora desvirtuado . pelo simples
homem do povo. Sêneca , membro de uma sociedade aristocrática .
despreza a massa: o que ela quer, está diametralmente o po st
ao ideal do sábio 174 ; o sábio deve esforçar-se por ser diferen te
da massa 175 ; em questões referentes ao bem h umano . não é a
maioria que tem o voto decisivo 176 • Pouco d em ocrático 177 , ma s
altivo e orgulhoso , encerrado na sua tôrre de ma rfim . separa -s
da massa sem compaixão ,_ sentimento indigno de um sábio
estóico 178 ,......, e , pior ainda , sem o estímulo d a inq uietu de pela
sorte dos humildes que é um a das nota s características dos
melhores entre os progressistas modernos . E mbora não lhe seja
alheja uma certa simpatia para com os que sofrem ( simpatiél
afetiva , a despeito da sua doutrina estóica 17 9 ) , desconfia dos
impulsos do coração. O dinamismo social dos tempos modernos.
apesar de ter sido aplicado freqüentemente em sentido an ti-
cristã o , tem suas raízes históricas muito mais nos protestos
enérHicos e na indignação moral dos p rofetas de Israel do qt e
no mundo estático e fechado dos auto res clássicos . O que
impressiona sobretudo o leitor moderno das obras de Sên ec •
é o fato de lhe faltar o calor do coração hum a no : desconhecia o
dinamismo contido na sublime paíavra evangélica : misereor super
trzrbam . O sábio estóico, apesar de ser anima l social1 80 vive
num esplêndido isolamento, fugindo ao contacto con ta gioso da
massa 18 1 com seus estúpidos desejos temores dos qu ais não se
isentam nem seus próprios pais 182 • Indignar-se ou entristecer-se
com aqui1o que o povo faz ou padece , seria igual a roubar, ~o
:-ábio sua serenidade ( arrarlf.ta ) 18 3 : no fundo . í1 corn edlél
, . c1s 1g 4
humana merece mais nossas risadas do que nossas lagnm< ·
O 11omem mo d erno ga b a - se nao _ so, d os seus progressos científicos
, . ~
e t ecn1cos 1
mas ta 1'vez mais ,. am . d o d o seu progr essa no, .setor,,
moral, falando com certa repugnância dos peca d os "h is · torJCOS
- 1

27

da humanidade: a escravatura , a Inquisição, as torturas , a explo-


ração econômica , o colonialismo, etc. 18 5 Segundo muitos progres--
sistas , o homem vindouro será mais justo ainda , - ou , segundo
algun ~. será até perfeitamente justo, - e isso devido a um
p;ocesso de m~r~lização_ pro~r:ss~va em virtude de ~m desenvol--
vimento harmomco da mteligencia humana , ou entao, devido a
um a organização mais racional dêste planeta, que impossibilitará
tôda e qualquer exploraç2.o do homem pelo homem . Em Sên eca
nada disso. Antes propende, como é natural num moralista ,
para exagerar os vícios da época, flagelando impiedosamente a
ganância , a sensualidade, o orgulho e outros vícios que con-
tra stam flagrantemente com a simplicidade idílica dos costumes
antigos 186 • Sem dúvida , não declara o passado isento dos
pecados de hoje 187 , e até chega a dizer que as queix as dos
moralistas sôbre a decadência dos costumes são universais , e
que os vícios variam de aparência , não de natureza , conforme as
diversas épocas 188 . Mas nunca revela otimismo nem em relação à
mo ralidade de hoje nem em relação à de amanhã : "sempre
devemos proferir a mesma sentença: somos maus , fomos maus e
- acrescento-o a contragosto ,_ seremos maus" 189 . O sábio
perfeito é ave rara , comparável à fênix que nasce uma só vez
num período de quinhentos anos 190 , e Sêneca não nutre a espe--
rança de se tornar mais . freqüente , no futuro , êsse fenôm eno .
ve rdadeira maravilha do Universo 191 .
À mc1 ior pa rte dos chamados sábios estão apenas caminhando para
~ sabedoria: não são sapientes, mas apenas proficientes, isto é,
progressistas" rumo ao ideal mais ou menos remoto da sabedoria
perfeita 192 F , ,_ e nosso autor não hesita em incluir-se neste
númer? 193 . É êste o único tipo de progresso legítimo admitido
por Seneca , em comparação com o qual tôdas as outras espécies
de progresso não possuem nenhum valor autônomo. Mas o
progresso não é fato necessário nem coletivo nos anais da huma-
nidade : cada um de nós tem de retomar laboriosamente o camin ho
:11° ~trado pelos que nos precederam na sabedoria; a conversão
ª.J10
10sofia é um início absoluto , comparável à conversão no sen-
}\ kierkegaardiano; o saber humano progride, sim , mas a
1
osofia de uma época "avançada" pode fàcilmente degenerar
em cavilação , em erudição filosófica ou em ostentação retórica 194 .
Sêneca
. · .. ·d a d e c1-ass1ca
· com o mm·tos outros autores d a A ntigm · , es t'a
;erso no Kósmos divino , do qual se reputa uma parcela exígua ,
as coriscante. O Universo é o Todo Divino, objeto digno de
contempl
i - d evota e fervorosa. Ora , a etermdade
açao . e- atn'b uto
c~~rescindível da divindade. Como reconciliar a eternidade divina
0
ProcE>sso, onipresente no cosmos, de nascimento , de flores--
28

cência , de emurchecimento e de morte? É pela teoria da perio-


dici<lade do mundo 195 .
B ste mundo em qu e vivemos, já exi stiu inúmera s v Azes e tom :
A d . f. . ( íd
a existir inúmera s ezes, usque a zn m llum: repetir- e-ão n; 0 ó
os fenômenos fí sicos , mas tam bém o acontecimentos histór ico
O movimento do tem po é circular: num círc ulo. ca da movim nt~
progressivo representa, ao m esm o tempo, um ret roc es o ao pont
inicial. Das cinzas do velho mundo surgirá um novo mu ,do. e
tudo se repetirá , não uma só vêz, mas infinita s v~zes. como.
aliás , o mesmo fat o já se deu inúmeras vêzes. A teoríJ do Eterno ·.·,,•êtêí
Retôrno encontra ~se nã o apenas na E stoa, mas em qua se to os ~-·~õlír·
os sistemas da Antigüidade clássica: conhecem -na vários pré-
socrá ticos . Platã o , Aristóteles, os pitagóricos, os neopl atônicos. ::_:110:
etc. 196 Diziam os estóicos: " H averá outra vez um Sócrat s -·:'Í !
----·
um Platão, bem como ca da um dos seus concidadãos; todos
terão as mesmas experiências e se ocuparão com as m smas
coisas " 197 . Isto quer dizer: Sócra tes se casará outra vez com ·:: :tôrn,
Xantipa , e outra vez haverá briga entre os dois. Isto quer ~:::!:a['
dizer também : eu já preferi inúm eras vêzes esta aub inaugural.
e a proferirei inúmeras vêzes ainda , e t udo será p erfeitamente
igual ao dia de hoje: a sala, o auditório, o assunto , ma s waças
a Deus, ninguém se lembrará da rep etição 198 • •
·:::J ~L
.:.'.'Hà
Em poucos autores clássicos encontra mos a lei do Eterno Retôrno ·~:~ (Or,
formulad a com ta nta ên fas e e in sistência como nas obras de
Sêneca. Eis a lgumas d as p assagens mais expressivas: "Virá < 10
~ ('•
',,
o dia que nos dará à lu.z outra vez, e muitos se recu sariam a reviver, ,11J
se não esti vessem totalmente es queci d os da s ua vida anterior 199 • · ·
A Natureza compõe e dissolve, executando uma lei implacável;
ma s tudo o que dissolve, será composto outra vez 2ºº. . . Q uando
vier o tempo em que o mundo se extinguirá para, depois, se
renovar, o umverso se desmoron ará devido à atua ção de fôrças
interna s, os astros se entrechocarão, e na confl ag ra ção de tôda
a ma téria , um imenso incêndio consumirá as estrêlas que agora
brilha m n uma ordem harmoniosa . Também nós, a lma bem--
aventu rad a s e eternas quando aprouver a Deus con stru ir de
no~o êste mu n do , seremos uma exígua parte da imen sa ru ína
un_iversal e retorn aremos aos antigos elementos 2º1 . . . Tõdas as
coi sas e 5tã o concatenadas entre si num círculo de ferro; tudo
p a ssa , só para voltar. Não faço nem vejo nada de novo. T amanha
m~no_ton ia aca ba por cau sar enfado. A vida , s egundo mui: 05 ·
mao e a ma rga, mas comp letamente supérflua"202 . L'homme, e est
d e lrop como d· J bora
n um ' izem a guns ex is tenciali stas modernos. em
contexto diferente.

• .' 1·
. ----- -

28

cência, de emurchecimento e de morte? É pela teoria da perio-


dicidade do mundo 195 •
Êste mundo em que vivemos, já existiu inúmeras vêzes e tornará
a existir inúmeras vêzes , usque ad inf initum; repetir ... se ... ão não só
os fenômenos físicos , mas também os acontecimentos históricos.
O movimento do tempo é circular: num círculo, cada movimento
progressivo representa , ao mesmo tempo, um retrocesso ao ponto
inicial. Das cinzas do velho mundo surgirá um novo mundo, e
tudo se repetirá , não uma só vêz , mas infinitas vêzes, como,
aliás, o mesmo fato já se deu inúmeras vêzes. A teoria do Eterno
Retôrno encontra ... se não apenas na Estoa, mas em quase todos
os sistemas da Antigüidade clássica: conhecem ... na vários pré-
socráticos . Platão , Aristóteles , os pitagóricos, os neoplatônicos,
etc. 19 6 Diziam os estóicos: " Haverá outra vez um Sócrates e
um Platão , bem como cada um dos seus concidadãos; todos
terão as mesmas experiências e se ocuparão com as mesmas
coisas" 197 • Isto quer dizer: Sócrates se casará outra vez com
Xantipa , e outra vez haverá briga entre os dois. Isto quer
dizer também : eu já preferi inúmeras vêzes esta aula inaugural,
e a proferirei inúmeras vêzes ainda, e tudo será perfeitamente
igual ao dia de hoje : a sala , o auditório, o assunto , mas graças
a Deus , ninguém se lembrará da repetição 19 S. •

► Em poucos autores clássicos encontramos a lei do Eterno Retôrno


• formulada com tanta ênfase e insistência como nas obras de
Sêneca. Eis algumas das passagens mais expressivas: "Virá

• o dia que nos dará à luz outra vez , e muitos se recusariam a reviver .
r. se não estivessem totalmente esquecidos da sua vida anterior 199 .. •
..•..• .
A Natureza compõe e dissolve , executando uma lei implacável;
~as tudo o que dissolve , será composto outra vez 2ºº. . . Quando
,..
.t'.
vier O tempo em que o mundo se extinguirá para, depois, se
~enovar, o universo se desmoronará devido à atuação de fôrças

...

mtern~s ,_ os astros se entrechocarão, e na conflagração de tôda
il
ª ~ateria , um imenso incêndio consumirá as estrêlas que agora
'• brilham numa ordem harmoniosa. Também nós , almas bem·
."•
l
~
aventu:adas e eternas , quando aprouver a Deus construir de
no:º est e mundo , seremos uma exígua parte da imensa ruina
► -\ universal e ret ornaremos aos antigos
.
t ..
.. . elementos2º1 . . • T~d
o as as
, "' coisas e_st ão concatenadas entre si num círculo de ferro ; tudo
.. .... passa, so_ para voltar. Não faço nem vejo nada de novo. Tamanha

"' ..
.-: ..
• ·.·
, ,
mm~no~onia acaba por causar enfado. A vida segundo muitos .
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a, mas completamente supérflua"202. L'honzme, e es
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..... rop, como dizem 1 d mbora
. . .•. num conte tO d· ª guns existencialistas mo ernos, e
..-~.•:."·, • ·
• 11·
:.
x iferente.

....
.~.·•.-
•- •·•
29

~ não se restringe a expor a doutrina do Eterno Retôrno;


Seneca
. intensamente, nao - sem sen t 1men
· t os d e pro f un d a angustia
, · .
vive-a muitos autores d a epoca
C , he 1ems , t·1co-romana , com b.ma
0
:ºutrina com a teoria do Ma gnus Annus ( TEÀEos t:viavTos) :
ª 1,: do ciclo comum do ano solar, existe o ciclo enorme de
ª e erosos anos solares, em cujo inverno o mundo será destruido
num
ela água (diluvium: KaTaKÀv~µos ) e em CUJO - , pe1o f ogo
. verao
~ conflagratio; eK1rv6wc,Ls ) 20 3. Então Júpiter, -- a quem todo
e qua lquer nome convém , porc;ue nenhum é completamente ade-
quado204 ,....., concentrado em si próprio , repousará um instante
para, logo depois, reiniciar seu jôgo eterno205. A primeira geração
dos homens, diretamente provinda das mãos divinas, será boa
e inocen te, mas a malícia não tardará em introduzir-se no Século
de Ouro206; não precisamos de um preceptor para aprender os
v1c10 s; êles mesmos se apressam em insinuar-se no nosso
coração 207 .
A lei do Eterno Retôrno não é exclusividade da cultura clássica,
sendo que se encontra também nas mitologias e nas especulações
filosóficas da Babilônia, da índia e da China 208. O homem
primitivo, ao que parece, tem mêdo de se entregar ao fluxo
incessante do tempo que o arrasta não sabe para onde; por
isso mesmo, agarra-se à fi xidez de um arquétipo mitológico que,
morrendo, se renova constantemente209. Não podemos demorar-
nos aqui em discutir a origem histórica e a evolução do mito do
Eterno Retôrno na cultura clássica; só queremos salientar que
a crença nos ciclos cósmicos e históricos é mais a expressão
do que a fonte de um certo pessimismo entre os antigos 2 1º: a
nosso ver, êles não se tornaram pessimistas por adotarem a lei
do Eterno Retôrno, mas a adotaram por causa do seu pessimismo
em relação ao processo histórico. E por que eram pessimistas?
Porque, encarcerados no cosmos juntamente com seus deuses
cósmicos , propendiam para uma certa interpretação fatalista da
história; nada sabiam de uma salvação fora dos ciclos. Santo
Ago~tinho, adaptando um versícu]o de um salmo para combater
T lei do_ Eterno Retôrno, disse: / n circuitu impii ambulant 2 11 •
, al~ez fosse mais justo dizermos que os antigos não eram tanto
~mpios quanto infelizes; daí o tom pessimista que é característico
dedtantos autores clássicos desde Homero até o fim da Antigüi-
.:; e. É bem conhecida a amarga sentença do poeta Teógnis :
melhor para o homem é não ter nascido e não enxergar
~s r~os do sol; depois disso, atravessar quanto antes o limiar
P~l ades e jazer no túmulo " 21 2 . Encontramos o eco dessa
hu avra na obra de Sêneca: "Nada é tão falaz como a vida
mana , nada tão insidioso; ninguém aceitaria a vida . a não ser


.--
.......r... _ - -•

\ 30

que nos fôsse dada sem nós sabermos. Se não-nascer é


. . a me1hor
sorte ao a l cance d o h ornem , a c01sa preferivel depois di s .
, • O, JU 1go
eu, e viver pouco tempo e ser reposto no estado prímitivo··2u_
Na Bíblia 214 encontramos
. . _ conceitos completamente diferent es no
que se re f ere a s1tuaçao do homem dentro do Universo :
idéia de um Deus transcendente, Pessoa e Criador do céu e dª
terra; a idéia de um início absoluto e de um fim absolu to d:
história; a idéia da história como prelúdio da eternidade. o
tempo, tal como é concebido pela Bíblia , é retilíneo , e por is 0
mesmo, adquire valor positivo: cada um dos seus momentos é
único, insubstituível, irrepetível, original e cheio de significado:
tudo leva a um fim . um fim não visível pelos olhos "carnais ",
mas vislumbrado por quem vive na esperança das coisas vin~
\... douras. A esperança é o grande Leítmotiv da Bíblia: o Velho
Testamento vive das expectativas messiânicas, o Novo Testa~
mento anela ardentemente a manifestação da glória do Verbo
Encarnado, em que todos os "eleitos" serão g1orificados e em
que todo o Universo será maravilhosamente transfigurado. A
esperança inabalável na fidelidade de um Deus transcendente.
senhor soberano do tempo, dá à história bíblica seu caráter
profético , em oposição ao feitio cosmológico que é típico da
história tal como era concebida pelo mundo clássico. Êste caráter
profético se comunicou à cultura ocidental, que se nutriu. dura:it
tantos séculos, do pensamento bíblico. A teoria do progresso.
embora muitas vêzes manejada contra o Cristianismo ( talve:
não sem a culpa da Cristandade histórica 215 ), é no fundo a
secularização de uma idéia religiosa depositada nos linos
sagrados2 16 . Nietzsche, que muitos anos lutou desesperadame~tc
para reintroduzir a Roda da Existência na nossa civilizaçao.
não tinha ilusões quanto às raizes históricas do Progressismo.
Parece um paradoxo: o mundo clássico, que tanto exaltava 0
homem e o humanismo estimulava menos as faculdades criadoras
do homem do que a Bíblia, que tributa louvores efusivos só_ ª
Deus, o Senhor absoluto da história. Parece que o verdadeiro
humanismo se ri do humanismo. Os antigos endeusava~ ª
natureza, mas assim fazendo, tinham não só um conceito calh~carn,,
•· to 1a
tural de Deus, mas levados por um mêdo supersticioso,. , ida
,
t am b em o camm · h o para uma mvest1gaçao
· · - au t~noma
~
e intrepborar
18
da natureza. Sua mundividência não os convidava ª e~ ta e
com o ato criador de Deus aperfeiçoando a natureza ru .. 217
' d tureza ,
transformando ... a, por assim dizer, "numa segun a na roente
mas os incentivava apenas a contemplar um mundo preten: essas
perfeito e até divino. Também os deuses e salvadores
-
31

fi as tao comon~n es por cau:: da sua prof da me.lanc lia


esta,·am , i ncula os aos proce$S0 cíclico d e eterna re ·ção.
hora a c ença _no co s os d·úno e nos d euses có::micos se
o a e quase um Yersal a época hclenís ·co-romana . os regos
romanos não se abandonaYam ao desespêro nem a um
mo entorpece or: o d esespêro pressupõe a perda de um a
e ança infini a . e essa a A ti üidade n nca a concebeu:
o Destino inexorá,·el que . na escola es óica . devido à sua aliança
com o ~ . adq ·riu tôdas as características de um a noção
filosófi ca ( aµa.&µ6'1]: Fa tum ) foi. na mesma escola . contraba-
lançado pela doutrina da dignidade-" 18 . da liberdade-d e da
res on abilida e?- 0 humanas. Incoerência de sis e.ma . é Yerdad e.
mas incoerência feliz que pro ·a que a na ure::a humana
é mais forte do que uma doutrina filosófica. A filosofia chegou
a ser o remédio da miséria h u rnc11a 221 . e o filósofo tornou-se o
orientador das a lma~.
A filosofia mostra ao homem a bela ordem que reina as regiõ~s
celestes; ensina-lhe que ambém êle se deve in egrar - e line-
ente - nesta ordem universal 223 . !as a ordem que existe
1

no mundo sublunar não parece burla sinis ra de um Destino


cruel? ão parece evidente que a di\;ndade. tão solíci a em
manter em equilíbrio os clive.Los elementos do Unin~rso. pouco
se preocupa com o globo terrestre . entregando-o à céga F ortuna .- -4
A essas perguntas a E stoa responde enfàticamente que e:i~te
a divina Providência e que ela se estende também aos n~g~a~s
humanos. Mas como reconciliar a existência da Pr0\7 denoa
bondo a com o fato inequívoco do "justo sofredor''? A esta
per9unta cruciante a Estoa dá várias respostas, alguma~ das
quais se encontram também em Sêneca. Uma reza ass1.n1 : 0
homem não passa de uma parcela do Universo : o bem-e 5t ar_ do
0
Todo pode exigir o sacrifício das partes 2r. Outra resposta e_:
sofrimento é prova da eleição divina : Deus submet: seus f~~•ontos
·t - 1 ~26 Ideia que
ao sofrimento para prová-los e para exerci a- os · ·d d ..
. • t- as que na reah a e. e
parece muito próxima da doutrina cns a . m d-
. d ,. t dem a apoucar a or
mutio iferente. visto que os estmcos en . d -.
·d d ?27 Outra resposta am a e. ª
ch egando a negar-lhe a rea l 1 a e- · p ·d- · op-e
matéria , princípio rebelde à atuação da divina rovi encia.
a esta sua própria causalidade228 •
t e as estações. 0
A pesar da bela harmonia que rege os as ros 'd . mas neste
Un·1verso estóico é um a b surd o , um cárcere , .
sem sai a , -
O sábio enfrenta
mundo absurdo há um raio de luz: 0 sabio. . Fatum-29 •
co · d se superior ao
ra1osamente seu destino, mostran o- . 7 Perdes teu
"Por que choras? Por que formulas desc1os.
.. ~ ...... - .......
....

32

tempo. . . Tudo se desenvolve de acôrd .


v ez foi estabelecido d es de et rnamente
O que acon tece contigo, . ~ .
0
T
c. ?1 aquilo qu um a
li iras aonde t d
n ao , novidad e. , u o vai.
h um ana. A- con t eceu a teu pai, a tua mã .a et es ta él conJ ·çc1-0 1

t d d
a o os o s que te prece eram; 0 mes mo aconte .
. eus antepas · -id
e · ( os.
. d
qu e so b revierem e pois d e ti. O Uni ve rso cera t.
a todo
s os
d . b . es a ama rréldo a
um enca eamen to mqu e rave1 e tota lmente inalterá I d
deixando~se a rra s tar por e1as" 2Jo. ve e c-ius<1 s,

O sá bio estóico é completa mente autôno mo e a uto-suficient


Nada 23 1
~ despera ou teme dos imorta is ; a sabedoria que êle poss .·
., lf l ,
n a_o a ev~ a uma gra ça divina, ma s a si próprio ; êle · igual. ou
232

ate supenor aos deu ses 233 . In sensível aos golpes da Fortuna,
concentra tôdas as fôrças menta is em si próprio, tal como Júpiter
nos intervalos periódicos entre du as criações; no fundo, é um
grande solitário, condenado que está a monologar consigo em
vez de poder entrar num diálogo amoroso com o Outro 2.1 •1• Pode
ser que tudo lhe contrarie ou lhe seja hostil, êle se pertence a
si próprio: suus est 235 , sendo capaz de defender sua autonomia
contra todos e tudo. Em última análise, pode recorrer delihe-
radamente à morte vo1untária 236 , sôbre a qual o Destino cessa de
exercer seu domínio. A morte é ou o fim de tudo , ou então --
para o sábio ,. . . . . o início de uma vida melhor23 7 .
Estas poucas linhas foram suficientes para mostrar como são
consideráveis as diferen ças entre o id eal da sabedoria estóica
e o da santidade cristã. As convergências são mais apa:en~es
do que reais, visto serem fragmentos de duas mundi videncias
completamente diferentes : isolá-los do seu contexto seria violenta'.
. a e ta
os fatos. 239 O confronto mostrou ~nos também como Senec
longe da mentalidade modern a: n ele há pouco dinamis~o. pouc~
inquietude social, nada de profetismo, nada de confiança n
· l d. que sua
futuro da humanidade. O que não equiva e a izer •tor
ão de urn 1ei
o b ras e sua persona 1ida d e não mereçam a a enç t d ento
moderno. Tanto o homem como o autor constituem um ocum
impressionante da humanitas rom ana.
, , s apenas comparar
N o sso ass unto , pore m , era outro: quenamo ·tas outra
· - entre mUJ
d ua s menta 1id a des h istóricas. d uas pos1çoes ,......, ara encarar
que são poss íveis ..- qu e o espírito hum ano adotou P
s ua situaçã o no te mpo . ·d cornbi-
, ·co da v1 '1 , •
Em Sênec<1 n contrnmos grande sentimento tragi b iaguez roman-
nc1do com grande lucid ez intele tu a1; n~da d~ em :enos ]íri~º rnj;
tica, ou d e moleza e fe min a d a. Amor fatt gen uino .d Amerz-Lzed I'
18
tamb , m m nos for a do do que le mos no Ja -ttrl ,. , rta rnelartc 0 ·
Nie l·zsche; resignação viril, n ão d estitu ída d e uma ce
33

as resignação também piedosa que , às vêzes , se reveste de feçiões


: utênticamente religiosas, Diz Sêneca : "Qual é a atitude
conveniente a um sábio? Entregar-se ao Destino. É um grande
consôlo saber-se arrastado juntamente com o Universo . Seja
qual fôr a fôrça misteriosa que assim nos ordenou viver e morrer ,
a mesma fatalidade inexorável prende também os deuses"z39. E ,
parafraseando o hino do estóico Cleantes, diz : " Guia-me , ó pai
celeste, para onde te aprouver conduzir-me . Quero-te obedecer
sem demora e prontamente. Caso não queira , serei forçado a
seguir-te gemendo. . . O Destino conduz brandamente quem
se conforma , mas arrasta o recakitrante" 240 • Cumpre confessarmos
que o tom religioso que percebemos aqui, é mais próprio do
piedoso Cleantes que do moralista auto-suficiente que foi Sêneca.
O mundo clássico tinha menos ilusões do que o mundo moderno ,
porque tinha menos esperança. Desconhecia cette petite fille
[' éspérance, de que Péguy nos deu uma imagem encantadora.
La foi que j' aime le mieux, dit Dieu, e' est l' espérance .
Com efeito, a esperança não é somente uma âncora , mas talvez
muito mais ainda um motor dinâmico.

a\ n •r r- , ~ e, f
..V O ,_ l l) \ , .J . ~CQ. CO Q)~'-")r : :> ;:> .) ,

/;:, idio Ferreira 'Paes


ofeiecioo à,
~wt~~iôa&e ~'1tó¾ca
1983

IIBLIOTé.CA c: r..: nH\L


P U C - R·S.
A. OTAÇõES

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