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APRESENTAÇÃO
COMENTÁRIOS ACADÊMICOS
ENTREVISTAS
REFLEXÕES
CONEXÕES
RELATOS DE EXPERIÊNICA
Tiago Schipanski1∗
Certa vez, em Roma, num dia qualquer do primeiro século da era cristã,
estando Nero fazendo qualquer coisa que dispensasse a presença de seu
secretário Epafrodito, este se divertia com a dor que infligia num escravo que
tinha às suas ordens e caprichos, torcendo-lhe umas das pernas. Diz-se que a
vítima não reclamava, tampouco externava a dor com gemidos ou palavrões;
que apenas ousou o comentário de que a insistência na brincadeira resultaria
numa lesão em seu membro. Ignorando a advertência, a próxima coisa que
Epafrodito ouviu foi o estalar de ossos confirmando o que o escravo Epicteto
antevia. O lesionado, ao constatar que havia repreendido o seu superior
momentos antes acerca da possibilidade que se efetivou, limitou-se a lembrar
disso, ao invés de praguejar o agressor.
Não discordando, contudo, de que uma deficiência física era explícita
quando andava, outra versão de sua fragmentada biografia atesta ser culpa de
um reumatismo o caminhar truncado do jovem Epicteto. Doxógrafos põem as
duas versões à vista2. Não se briga, contudo, pela defesa de uma ou de outra.
Não é o caso, tampouco, o claudicar de suas pernas; não foi nem pra ele, visto
que dizia: “Claudicar é entrave para as pernas, mas não para a escolha” 3. A
escolha que Epicteto fez, fez deste escravo um filósofo, alguém que “legou a
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Revista do Pórtico de Epicteto. Ano 1. Número 1. Maio de 2018
3
Revista do Pórtico de Epicteto. Ano 1. Número 1. Maio de 2018
199.
13 ARRIANO DE NICOMÉDIA, 2012, ps. 35 e 36.
14 Ibidem, p.42.
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Revista do Pórtico de Epicteto. Ano 1. Número 1. Maio de 2018
A aceitação para Epicteto é a maneira que cabe ao homem para que sua
relação com o exterior seja harmoniosa e não se reflita em sua alma de maneira
negativa. Uma vez que nada pode ser feito para redirecionar a vontade da
natureza a seu favor, cabe a ele aceitá-la, direcionando sua vontade a ela. Em
outras palavras, dispor-se totalmente à ordem divina. Assumir a atitude que o
próprio sábio assumiu: “eu uni a Deus a minha faculdade de desejar15”.
Os estoicos associavam a ideia de uma vida de felicidade a uma vida
virtuosa; logo, felicidade e virtude são sinônimos deste ponto de vista. Sabe-se
que felicidade no grego antigo corresponde ao termo eudaimonia. Se
desmembrado, tem-se uma ideia interessante: o prefixo eu significando o bem
ou o bom e daimon fazendo referência aos deuses. Pode-se intuir, a partir disso,
um sentido completo da palavra grega que diz respeito ao conceito de felicidade
remeter à ideia de estar de bem com a divindade. Estando, para os estoicos, a
divindade contida em tudo e em todos, encerrando-se substancialmente na
natureza, podemos concluir que a felicidade estoica se realiza na harmonização
do homem com a natureza.
Este deus-cosmos também sustenta a qualidade de razão como de
diversos outros nomes atribuídos a este princípio criador e presente em tudo o
que é corpóreo. Logo, podemos atribuir, também, a ideia de felicidade estoica a
um bom relacionamento com a razão.
Epicteto há muito já entregou sua centelha divina a outra constituição de
matéria no Universo. Porém sua alma também reside nos ensinamentos que
deixou na Terra. Cabe ao Homem Contemporâneo decidir-se pela felicidade,
pois em mãos tem aquilo que proporcionou ao Filósofo uma vida sublime. E
Epicteto quis compartilhar com os demais o que aprendeu para que os outros
também possam ser realmente felizes. Pois para um estoico, todos somos Um
só.
Referências
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Revista do Pórtico de Epicteto. Ano 1. Número 1. Maio de 2018
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Aprender a viver
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O CARÁCTER COSMOPOLITA DO ESTOICISMO
Aldo Dinucci
fundada por colonos de Lesbos no século VII a.C. e depois dominada pelos
Persas.
Crisipo, terceiro escolarca do Estoicismo, era natural de Sólis, colônia de
Rodes fundada nas costas da Turquia no século VII a.C.
Diógenes da Babilônia3 (ou da Selêucia), o quarto escolarca do Pórtico,
foi um dos três filósofos enviados a Roma, em 155 a.C., para apelar pelo
cancelamento de uma multa, agradando os ouvintes romanos4 com seus
discursos e abrindo as portas da Itália para o estoicismo. Nascido na Babilônia
(região do Iraque atual), ou mais exatamente em Selêucia, cidade babilônica às
margens do Tigre, foi educado em Atenas por Crisipo.
Diógenes da Babilônia foi sucedido na direção da Escola Estoica por
Panécio de Rodes5, que foi o sétimo e último escolarca em Atenas. Tornando-se
amigo de Cipião Emiliano, introduziu o estoicismo em Roma. Públio Cornélio
Cipião Emiliano Africano Numâncio viveu entre 185 e 129 b.C. e foi duas vezes
cônsul romano, em 147 BC e 134 a.C. Após a morte de Panécio, houve uma
diáspora dos estoicos por todos os domínios romanos, e diversas escolas foram
abertas em diferentes partes do império.
Possidônio de Rodes ou de Apameia (ca. 135 a. C. - 51 a.C.) foi o escolarca
do Pórtico em Rodes. Filósofo estoico, político, astrônomo, geógrafo, historiador
e professor, era tido como o maior polímata de sua época. Aluno de Panécio,
Possidônio, segundo algumas fontes, teria se aproximado da cultura judaica,
citando eventos relacionados ao Antigo Testamento (cf. fragmentos E-K de
Possidônio)6.
Após a introdução do estoicismo em Roma, surgiram vários estoicos
romanos, que acabaram por formar a famosa Oposição Estoica, movimento
republicano que se opunha sistematicamente aos imperadores romanos
tirânicos.
California: University of California press, 2016. Devo essas informações sobre Possidônio ao
caro Eduardo Boechat, grande especialista em Possidônio.
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grega ou romana da Antiguidade era um passeio coberto com um teto sustentado por colunas.
Os pórticos, originalmente construídos ao redor dos templos para que os devotos se
encontrassem e conversassem, passaram, com o tempo, a ser independentes, de modo a
atenderem a todas as necessidades da vida pública à qual os gregos e romanos se dedicavam
intensamente. Muitos desses pórticos eram construídos ao longo dos locais de assembleia
(ágoras), e eram extremamente luxuosos, com esculturas e obras de arte dos mais famosos
artistas. Na maioria dos pórticos havia assentos que eram assiduamente frequentados pela
intelectualidade de então, que aí entabulava suas conversações. A escola estoica deve seu nome
ao fato de que seu fundador, Zenão de Cítio, reunia-se com seus discípulos numa stoa (a palavra
grega para “pórtico”), mais exatamente na Poikele Stoa, o Pórtico Pintado de Atenas, que
continha pinturas de famosos artistas.
11 Por exemplo, as diatribes 3 e 4 de Musônio Rufo.
11
Revista do Pórtico de Epicteto. Ano 1. Número 1. Maio de 2018
12 Vejam aqui um excelente texto de Donald Robertson sobre Pórcia, traduzido por Donato
Ferrara:
https://devitastoica.com/2017/12/31/as-mulheres-estoicas-1-porcia-donald-robertson/#more-
13172
13 Vejam aqui um excelente texto de Donald Robertson sobre Fânia, traduzido por Donato
Ferrara: https://devitastoica.com/2018/01/02/as-mulheres-estoicas-2-fania-donald-
robertson/#more-13175
14 55 - 135. Célebre estoico de quem nos chegaram muitas obras. Fundou uma escola em
Nicópolis.
15 Ca. 30 d.C. - 90 d.C.
16 Vejam aqui minha tradução dos seus fragmentos precedida de nota biográfica:
http://www.scielo.br/scielo.php?script=sci_arttext&pid=S0101-31732012000300015
17 Ca. 4 a.C. - 65 d.C. Também condenado à morte por Nero em 65.
18 26 de Abril de 121 - 17 de março de 180. Imperador romano entre 161 e 180. Reinou com seu
irmão Lúcio Vero entre 161 e 169 (quando Vero veio a falecer).
19 Os códices e o texto grego destas paráfrases foram analisados por Boter (1999), a quem
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O interesse pelo estoicismo jamais cessou. Onde quer que os textos dos
estoicos se tornam disponíveis, logo surgem interessados, de todas as etnias,
credos e gêneros, para estudá-los e aprender com eles21.
O estoicismo não é casualmente cosmopolita. Tal se deve à sua própria
doutrina de caráter humanista, segundo a qual os humanos constituem uma
grande irmandade. Para os estoicos, vivemos em uma grande cidade cósmica,
habitada por Deuses e humanos. Como nos diz Epicteto: “Não és tu humano?
Parte da cidade: da primeira, dos Deuses e dos humanos, depois desta que é dita
a mais próxima, que é uma pequena imitação da totalidade?” (Epicteto,
Diatribes 2.5.27 – minha tradução). A tese da irmandade de todos os homens se
desenrola com simplicidade a partir daí: se vivemos em uma grande cidade
universal dirigida pelos Deuses, e se os humanos são filhos dos Deuses, então os
humanos são todos irmãos. Essa visão se opôs e se opõe à desigualdade entre os
humanos e à escravidão. Epicteto deixa isso claro em uma de suas diatribes:
Quando, ao pedires água quente, o pequeno servo não te obedecer; ou,
se obedecer, trouxer água morna; ou nem a encontrar na casa, não é
agradável aos Deuses não se irritar nem gritar?
– Então como suportar coisas tais?
– Prisioneiro, não suportas teu próprio irmão, que possui Zeus como
ancestral, que é igualmente filho <de Zeus>, gerado a partir das mesmas
sementes e da mesma semeadura dos céus? Se foste designado a tal posto de
proeminência, imediatamente estabelecer-te-ás como um tirano? Não lembras
quem és e quem comandas? <Não lembras> que são teus congêneres, que são
por natureza teus irmãos, que são descendentes de Zeus?
– Mas eu os comprei, e eles não me compraram.
– Vês para onde olhas? Que <olhas> para a terra, para o precipício,
para essas miseráveis leis dos mortos – e não para as leis dos Deuses?22
21 Como observa Donato Ferrara, há várias iniciativas para promover a difusão do estoicismo no
mundo atual (vejam links aqui: http://socientifica.com.br/2017/10/redescobrindo-os-estoicos-
uma-entrevista-com-aldo-dinucci/), sem mencionar nossa própria iniciativa de formar o Pórtico
de Epicteto, que reúne vários pesquisadores e admiradores do pensamento de Epicteto no Brasil
(cf. nosso link aqui: https://seer.ufs.br/index.php/Epict).
22 Epicteto, Diatribes, 1.13.2-5.
13
A RADICALIDADE DO CINISMO:
ANÁLISE DA CARTA CINCO DE SÊNECA
Introdução
Sêneca (1-65), uma das maiores figuras de seu tempo, seja como literato,
filósofo, senador, tutor de imperador ou até mesmo banqueiro, destinou ao seu
discípulo e amigo Lucílio mais de uma centena de cartas. O presente artigo
trata, justamente, da análise de uma dessas cartas – mais precisamente a carta
cinco –, na qual podemos especular que haja uma tensão entre a radicalidade do
cinismo, escola que deu à luz o estoicismo, e o próprio estoicismo, escola à qual
pertence o filósofo da Andaluzia.
Para tanto, faremos inicialmente um breve resumo do que foi o cinismo.
A escola teve como seu fundador Antístenes (445-365), seguidor de Sócrates e
do sofista Górgias. Mas foi com Diógenes de Sinope (404-323), que os cínicos
encontraram seu maior expoente; com certeza, foi ele quem fez o nome do
cinismo romper a barreira dos tempos. Por fim, já no limiar do cinismo grego, a
escola também teve Crates (365-285), um ilustre filósofo chamado de “o abridor
de portas”.
O objetivo central do cinismo era buscar a felicidade humana. Eles
compreendiam que tal felicidade só poderia ser alcançada naturalmente, isto é,
vivendo de acordo com a natureza. Tendo isso em vista, eles negavam qualquer
tipo de interferência cultural na formação do indivíduo, afirmando ser algo
As críticas de Sêneca
2 “Mas quando chegam a esta estrada [os adeptos do cinismo] e examinam a sua robustez,
recuam como se estivessem doentes e, de alguma forma, dão voz a uma queixa não sobre sua
própria fraqueza, mas sobre nossa indiferença à dificuldade” (MALHERBE, 1977, p. 107,
tradução nossa).
3 Conta a lenda que Zenão, discípulo de Crates, após este lhe delegar a tarefa de carregar uma
panela de sopa de lentilha e a derrubar com seu bastão desistira, abandonara os ensinamentos
cínicos. Segundo Diógenes Laércio, o fundador da Stoa, apesar de mostrar-se “fortemente
inclinado para a filosofia”, “era muito tímido para adaptar-se ao despudor cínico” (LAÉRCIO,
2008, p.181).
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filosófica. Justamente para não sermos vistos como seres exóticos, recomenda-
se “que todos olhem a nossa vida como algo acima do normal, mas sem que
sejamos uns estranhos para eles” (SÊNECA, 2014, p. 11). O preceptor de Lucílio
salienta que a nossa vida deve ser melhor qualitativamente, não meramente
oposta ou distante da do vulgo.
Sêneca põe isso em jogo porque acredita que um dos papéis do filósofo é
servir como uma referência para os incipientes. Os cínicos, de modo geral, e
principalmente Diógenes, ao se comportarem da forma como se comportavam,
acabavam colocando um obstáculo para si mesmos, que os impedia de alcançar
a excelência no ofício do filosofar.
Num dos trechos mais ferozes da carta, Sêneca afirma que “é
antinatural torturar o próprio corpo” (SÊNECA, 2014, p. 11). Isso mostra sua
opinião em relação a duas noções capitais ao cinismo: a ideia da vida conforme
a natureza e a ideia de áskesis. Ao dizer que o objetivo do estoicismo é viver de
acordo com a natureza (2014, p. 11), e depois fazer tal asserção, é clara a
oposição que Sêneca faz ao que o cinismo crê ser uma vida natural e também ao
seu método de atingi-la.
Para viver naturalmente segundo a doutrina estoica, ao contrário do que
afirmavam os cínicos, não era necessária renúncia à vida social, mudança de
hábitos alimentares, descaso com a higiene e tortura física. Tais preceitos
pertenciam à escola de Diógenes, e o próprio os seguia à risca. Conta-se que
Diógenes comia comida crua, depois de ter observado os animais (2008, p. 171).
Ele fazia isso acreditando estar vivendo conforme a natureza. Evidentemente, ao
adentramos mais no terreno do cinismo, podemos encontrar razões muito mais
razoáveis que esta para justificar tal ação.
Entretanto, isso ilustra bem os propósitos de Sêneca e revela uma das
maiores diferenças entre o estoicismo e o cinismo. Enquanto o cinismo nega
todo e qualquer tipo de luxo e opulência, o estoicismo acredita que tais coisas
são indiferentes. Como quando Diógenes, ao ver duas crianças bebendo água
com as mãos, jogou sua caneca fora (2008, p.161): para o cinismo, a caneca era
um exagero, dado que se podia beber água da mesma maneira sem ela – a
caneca é um objeto supérfluo que nos amolece e enfraquece; ela é um pequeno
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Conclusão
4É interessante notar que Sêneca elogia Diógenes pela mesma anedota na carta 90.
5Na carta 92, Sêneca dá um exemplo bem parecido que convém citá-lo: “Digo-te mais; a escola
da roupa limpa é algo próprio do homem, pois o homem é, por natureza, um animal limpo e
cuidado. Não é, portanto a roupa que é um bem em si, já que o bem não está na coisa, mas na
qualidade de nossa escola; a moralidade está na nossa forma de agir, não no acto concreto que
praticamos” (Sêneca, 2014, p. 465)
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Referências
GOULET-CAZÉ, Marie-Odile & BRANHAM, R. B (org.). Os cínicos: o
movimento cínico na antiguidade e o seu legado. Trad. Cecília Camargo
Bartalotti. São Paulo: Edições Loyola, 2007.
LAÉRTIOS, Diógenes. Vidas e doutrinas dos filósofos ilustres. Trad. Mário
G. Kury. Brasília: Editora UnB, 2008.
MALHERBE, A. J. The Cynic Epistles: A study Edition. Atlanta: Society of
Biblical Literature, 1977.
NAVIA, L. E. Diógenes, o cínico. Trad. João Miguel Moreira Auto. São Paulo:
Odysseus Editora, 2009.
SÊNECA. Cartas a Lucílio. Trad. J. A. Segurado e Campos. Lisboa: Calouste
Gulbenkian, 2014.
VEYNE, Paul Marie. Sêneca e o estoicismo. Trad. André Telles. São Paulo:
Três Estrelas, 2015.
22
Entrevista com Donato Ferrara, criador do blog
devitastoica.com
Diogo da Luz1
1
Mestre em Filosofia (PUCRS). E-mail: diogoftcons@hotmail.com.
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Na verdade foi algo bem pouco original. Eu lia alguns blogs em inglês,
como o “Stoicism Today” (atual “Modern Stoicism”, mantido por Donald
Robertson e Greg Sadler) e o “How to Be a Stoic” (de Massimo Pigliucci), e
resolvi fazer algo parecido em minha própria língua. Hesitei bastante porque
não me considero um estoico, apenas alguém interessado em possíveis
aplicações dessa filosofia na contemporaneidade, e também por não saber se o
conhecimento que tinha sobre o assunto renderia dezenas de posts diferentes.
Até agora, tem dado certo: escrevo devagar, dedicando-me uma ou duas horas
noturnas por dia a meus textos, mas sempre me sai alguma coisa que me parece
razoável. Adquiri um domínio na web (por ser mais difícil abandonar
uma página que me custou algum dinheiro) e também faço traduções, a fim de
dar aos leitores de língua portuguesa uma noção do que vem sendo discutido lá
fora.
O que escrevo ou traduzo não costuma suscitar muita discussão em
forma de comentários, mas às vezes recebo uma ou outra mensagem de alguém
dizendo que foi convencido a ler determinado autor ou a pôr certa ideia em
prática por causa de um post do “De vita stoica”. É gratificante, mas ao mesmo
tempo me põe uma série de responsabilidades. Deixo claro que não sou o porta-
voz de movimento nenhum e que meus textos não exprimem o que é “o”
estoicismo, mas tão-somente uma interpretação muito particular da coisa. Seria
muito bom se a filosofia estoica atualizada tomasse também aqui no Brasil o
vulto que tem tido no exterior — especialmente porque nossa sociedade está
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muito próximo e exclusivo. Ninguém sai a mesma pessoa que entrou dessas
leituras; a coisa, porém e além do mais, ganha ainda maior interesse a cada
releitura. De modo que são livros que devem ser lidos, relidos, treslidos,
mantidos à cabeceira, à mão, à memória. É uma infelicidade não podermos
contar com bom número de traduções dessas três obras (quando existem!) em
nosso idioma, além de vê-las tão pouco e tão pobremente editadas. É um
ingrediente não negligenciável de nosso isolamento cultural. Nós, que nos
interessamos pelo estoicismo quer no seu aspecto acadêmico, quer no prático,
temos muito a fazer quanto à divulgação desta tradição filosófica no Brasil, tão
antiga mas tão atual.
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Sutilezas de um imperador estoico
[ou: De um escravo]
Logo que ouviu tais palavras, o andarilho assentiu com a cabeça. Caro amigo,
muitos não veem maneira de um escravo maltrapilho proferir tamanho
infortúnio como farei eu, talvez, somente, com o aval de um imperador como
Marco Aurélio. Então me ouve. Vieste para terra, ao contrário do que tudo
parece, sem te preocupares com leis, regras, tribunais, nem mesmo com a
opinião dos outros. Tendo assim, pois, o andarilho refletido, pareceu-lhe certo
que o escravo quase agira com imprudência. Contudo, o escravo, mostrou-se
forte e desejoso de continuar a expressar suas palavras. Por isso tudo o
andarilho deu-lhe ouvidos.
O tempo da vida humana é um ponto e a composição do corpo em seu
conjunto é corruptível. As coisas da alma não passam de sonhos e delírios. Já a
vida é tão somente guerra e exílio. O andarilho, que há muito caminhava sem
rumo, sacudiu outra vez a cabeça. É realmente acertado esse teu pensamento.
Levo o corpo como se em exílio estivesse. Tive por sorte viver, entre os homens,
e alegro-me com as honrarias e a fama que carrego. Embora o esplendor da
vida em exílio certas vezes mostrou-se pleno sofrimento. Avaliando as ações
dentro de sua alma tranquila o escravo respondeu. Não me parece, andarilho,
que entendeste o que ofereço. A fama e a honraria é tão somente esquecimento.
Já a luta entre prazer e sofrimento nada é se alcançada a felicidade interior.
Que pensariam, quando ouvissem que um escravo nas margens do Rio Danúbio,
por onde muitos passavam, proferiu palavras tão duras ao mundo das honrarias
com manifesta equidade? O andarilho, por mais doloroso que fora ouvir
desvantajosas palavras, esperou em cuidadoso silêncio a chegada das novas
sutilezas advindas de um escravo. O que então nos resta a fazer? Somente uma
coisa, a filosofia. Ter familiaridade com a filosofia. Ter constância e
perseverança na filosofia. Capaz de compreender que com estas palavras muito
aprenderia, o andarilho lhe perguntou, de rosto admirado: Se pudesses epilogar
esta filosofia que aprendeste com Marco Aurélio, como ficaria? Com grato
aspecto o escravo lhe disse, em resposta: Necessita de pouco. Aprende a ficar
tranqüilo. Não persigas as frivolidades. Fica longe da retórica. Sê complacente
com aqueles que te ofendem. Vive conforme a natureza.
Deslumbrado com as palavras que, como fogo, abrilhantavam-se diante
de seus olhos, o andarilho ouviu a sentença final daquele escravo sem pingo de
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Cãozinho de estimação
Tenho uma amiga que perdeu seu cãozinho de estimação por falecimento
há mais de ano. Logo que o perdeu e anunciou que o havia perdido, aconselhei
adotasse outro.
Não parece que tenha seguido minha recomendação, já que vejo
constantemente as fotos do animalzinho desencarnado em postagens
ininterruptas nas redes sociais.
A atitude fala por si.
Entre o passado e o presente — ela escolheu o passado. Entretanto, o
passado já não é mais...
Você vai me dizer: Puxa! Todo mundo tem direito ao luto. OK. Mas,
quanto tempo durará essa homenagem ao ser querido que se foi?
O caso é que, enquanto sofremos presos ao que passou, os abrigos
seguem abarrotados de animais implorando por uma nesga de atenção, uma
gota de amor...
E isso tudo por quê? Porque queremos que o que morre permaneça vivo.
No entanto, é da essência das coisas não permanecer. A única constante neste
mundo é a mudança, a impermanência.
Como observou certa vez Antonino: “Uva verde, uva madura, uva-passa;
tudo são mudanças, não para o não-ser, mas para o que ainda não é”1.
Ninguém há de chorar porque a oliveira deu azeitonas. E um dia a
própria oliveira descansará também...
34
De Epicuro para Hermaco: sobre o agora e a amizade
Eis que, num belo fim de tarde, sob a agradável luz de mais um pôr do sol
em Atenas, Epicuro se reúne com seu querido e amado amigo Hermaco 2, no
aconchegante gramado do Jardim. Ambos, sem esconderem a alegria que
sentiam por estarem juntos enquanto a vida lhes era favorável, conversavam
sobre a necessidade de se cultivar (i.e., viver com excelência) o instante presente
como se este fosse o único momento que realmente importasse. Naquela
ocasião, o que também importava era a possibilidade de se compartilhar o único
instante que temos disponível com aqueles que, desta ou daquela maneira,
tornam a nossa existência mais prazerosa: os amigos. A amizade, aliás, era o
outro ponto que orientara aquela conversa. Tinham, portanto, interesse em
tratar destas duas coisas: do agora e da amizade. E assim o fizeram.
A começar pelo agora, Epicuro discorria longa e alegremente,
enaltecendo o fato de que sempre é possível viver prazerosamente, ainda que
algumas adversidades se façam presentes, enquanto Hermaco o escutava
atentamente. Trata-se, dizia ele, de algo que depende do saber discernir entre
aquilo que nos traz dores e o que nos proporciona a serena paz no coração. No
entanto, para que estejamos em condições de exercer a faculdade do
discernimento, é preciso, primeiro, que conheçamos a nossa própria natureza,
uma vez que será por meio desse conhecimento que saberemos o que nos é
benéfico e o que nos é prejudicial. — Ocupa-te, portanto, recomenda ele, da
3 EPICURO. Máximas Principais. Trad. João Quartim de Moraes. São Paulo: Edições Loyola,
2013, p. 47, MP XXIX.
4 EPICURO. Carta a Meneceu. Trad. Álvaro Lorencini e Enzo Del Carratore. São Paulo: Editora
parte dos casos, por conta da ausência. Mas de que ausência se trata? Daquela que diz respeito
ao simples e necessário para nossa subsistência. Por exemplo:uma vez suprida a falta de
alimentação, o sofrimento causado pela falta de alimentos vai embora. Nesse caso, aliás, o pão e
a água, para Epicuro, têm o mesmo poder de um requintado banquete.
7 O famoso (e pouco entendido) carpe diem quam minimum credula postero, do ilustre poeta
romano Horácio (65 – 8 a.C.), tem suas raízes na filosofia de Epicuro. Vide, a esse respeito:
SPINELLI, Miguel. Os Caminhos de Epicuro. São Paulo: Edições Loyola, 2009.
8 LAÉRCIO, Diógenes. Vidas e doutrinas dos filósofos ilustres. Brasília: Editora Universidade de
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carinho, justiça, igualdade, responde o mestre. Ser amigo é (para além dos
jargões que circulam mundo afora) tratar o outro como tratamos a nós mesmos!
Tal relação, no entanto, deve ser precedida por um cuidado dirigido por e
perante si mesmo. Só estaremos em condições de ser amigos, no real sentido da
palavra, quando estivermos com o nosso eu bem cuidado, isto é, livre de
aflições, uma vez que, se não estivermos de bem com nós mesmos (eustátheia),
faremos nossos amigos carregarem um fardo que é nosso. Dito de outro modo:
sem esse cuidado, em vez de vivenciarmos grandes momentos ao lado dos
nossos amigos, levaremos até eles os problemas de que não fomos capazes de
dar conta. A amizade é, caro Hermaco, uma relação de carinho e amabilidade
mútua, e não uma relação de favores. É bem verdade que ela começa a partir de
interesses individuais, mas uma vez consolidada, passa a se reger pelo recíproco
amor empreendido por aqueles que se dizem amigos9. Ela é, ainda, o mais
importante fruto da sabedoria. O sábio é aquele que conhece e cuida de si
mesmo, e, por ser assim, está disposto a oferecer os melhores sentimentos que
possui àqueles em cuja proximidade escolheu viver. É a amizade, meu amigo, o
melhor meio para desfrutarmos de uma vida serena e feliz!
Cabe, por fim, recomendar que medites acerca disto que aqui te hei
indicado, bem como sobre todo o resto da doutrina epicurista, ilustre Hermaco.
A vida é, para o sábio, o maior dos bens. Devemos, portanto, prezar por ela,
vivendo a única fração dela a que temos acesso imediato: o agora. Preocupa-te o
menos possível com o amanhã, e não temas o que não está sob os nossos
domínios. Conhecer a natureza do cosmos e do homem pode te ajudar nesta
tarefa. E lembra-te: um dos caminhos para alcançar a serenidade de espírito e a
paz no coração, com excelência, é cultivando a amizade!
Fica bem, querido amigo, e antes de problematizares o instante presente
como muitos o fazem, vive-o!
9“Toda amizade deve ser buscada por si mesma, mas origina-se de seus benefícios”. EPICURO.
Sentenças Vaticanas. Trad. João Quartim de Moraes. São Paulo: Edições Loyola, 2014, p.30, SV
XXIII.
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Histórias Terapêuticas:
Abordagens Diretiva e Interativa
Apresentação
HISTÓRIA 1 (Diretiva)
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do corpo, presa apenas por um pedaço de pele. Mas nesse momento surgiu do
meio do mato um menino, que, vendo o pássaro sofrendo com a asa partida,
teve uma ideia para ajudá-lo. Pegou um graveto (pequeno pedaço de pau) e fez
uma espécie de curativo, unindo as duas partes da asa quebrada e amarrando
firme com uma linha. Pegou cuidadosamente o pássaro e o colocou descansando
em uma moita bem fofinha. Depois de algum tempo chegaram os outros
passarinhos, seus irmãos, e ele lhes contou o que havia acontecido. Amparado
pelos irmãos, ele tentou bater as asas por várias vezes, com muita paciência e
coragem, até conseguir se erguer no ar. O menino, de longe, observou, com
muita alegria, que seu amiguinho aprendera a voar de novo, não com tanta
facilidade e ousadia quanto seus irmãos, mas voava...”
Ao final da história a menina suspirou e disse: — “Olha, o que eu tenho
medo mesmo é de morrer, de não acordar depois da operação!”. A partir daí a
criança conseguiu expressar seus temores e dúvidas com relação à cirurgia,
sendo informada então sobre os procedimentos cirúrgicos e que iria receber
uma prótese, uma perna substituta, e poderia, do mesmo modo que pássaro
voou, voltar a andar, não do mesmo jeito que antes, mas ia andar...
Ficamos surpresos e felizes quando, ao visitá-la no hospital, no dia
seguinte à cirurgia, a enfermeira de plantão contou que, ao chegar à enfermaria,
ela lhe fez um pedido: — “Por favor, chamem uma psicóloga para ajudar minha
mãe, pois ela vai precisar…”. Uma semana depois encontrei a paciente já
circulando pela enfermaria na cadeira de rodas; e ela me apresentava com
orgulho às outras crianças: — “Este é meu psicólogo. Ele faz mágicas e me conta
histórias”.
HISTÓRIA 2 (Diretiva)
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Certa manhã, quando seus pais haviam saído para o trabalho na roça, ela
viu encostado no vidro da janela um coelhinho branco. Levou um susto, pois
nunca havia visto um animal. Estranhou as orelhas compridas e o focinho que
não parava de mexer. Mas em seu coração, pela primeira vez não sentiu medo.
Alguma coisa lhe dizia que podia confiar naquele animalzinho tão fofinho e
bonitinho. Ela se aproximou e, para seu espanto, o coelho lhe falou: — Oi, linda
menina, quer ser minha amiguinha? Nunca ninguém lhe dissera que era linda, e
ela sem pensar fez que “sim” com a cabeça e sorriu.
— Meu nome é Branquinho e quero convidar você para um passeio, disse
o coelhinho. Ela tremeu com o convite, mas Branquinho a tranquilizou: — Não
se preocupe, vou ser seu guia e nada lhe acontecerá!
Na verdade a menina já estava cansada de sentir medo e das zombarias
dos meninos. Respirou fundo e disse: — Está bem, vamos lá!
E os dois saíram porta a fora e seguiram em direção ao bosque.
Branquinho sempre à frente, mostrando o caminho. Passaram por um campo
florido e a menina se maravilhou com tantas cores. À medida que avançavam,
iam surgindo árvores altas e frondosas, com frutos de todos os tipos e sabores.
Ela ia experimentando tudo o que podia. De repente ela percebeu que havia
outros animais na floresta, e o coelhinho ia apresentando um a um: a coruja, a
borboleta, a cobra, o macaco, e os outros coelhos, seus irmãos. Mais adiante ela
viu uma montanha e Branquinho, percebendo a curiosidade da menina, fez sinal
para subirem. Ao chegarem lá em cima, a menina ficou encantada com o que
via: um grande vale, com rios e lagos e, bem longe, ela reconheceu a casa dela,
bem pequenininha. Perto do horizonte surgia o mar, azul, que se confundia com
o céu. O coelhinho explicava a ela que os rios, que lá de cima pareciam cobras,
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vinham desde as fontes e seguiam até o mar, onde existiam também muitos
animais, de todos os tamanhos e que se chamavam peixes.
O sol já estava se pondo e Branquinho disse à menina: — Está vendo
como o mundo é bonito e ninguém precisa ter medo dele? A menina sorriu e
percebeu que sua vida tinha mudado. Em vez de medo, ela sentia uma grande
alegria em seu coração, pois sabia que havia aprendido muitas coisas naquele
dia e que tudo agora ia ser diferente.”
Ao final da história a paciente pediu: — “Você me ensina a escrever meu
nome?”.
Depois de muitas tentativas e repetições ela festejou, com entusiasmo, a
vitória de ter aprendido a escrever seu nome, com letras grandes e bonitas. Para
o terapeuta, ao perceber que ela sempre sentira vergonha de não saber escrever
o próprio nome, era a certeza de que sua pequena paciente começava uma
grande e maravilhosa aventura pelos caminhos da vida.
HISTÓRIA 3 (Interativa)
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4º desafio: Um leão feroz e com muita fome aparece à sua frente. Que
fazer? Respostas sugeridas: Gritar por socorro; sair correndo ou...?
Uma terceira opção é o que se espera da criança, mas de um modo geral,
a criança com baixa autoestima ou depressiva tende a optar por uma das duas
primeiras. Foi o que aconteceu com o paciente em questão. Escolheu fugir ou
ficar parado sem saber o que fazer. O terapeuta então pode sugerir uma solução,
para facilitar o insight da criança. Por exemplo, no primeiro desafio diz à
criança: — “Você é inteligente, tenha calma. Se fugir, o elefante certamente irá
alcançar você. Olhe o elefante, ele tem pernas altas. O que você pode fazer?”. A
criança então descobre que pode se abaixar e o elefante passará por cima dela,
sem machucá-la.
No segundo desafio, o terapeuta desenha um pedaço de pau ou galho,
exatamente do tamanho da boca aberta do jacaré, e diz: — “Olhe em volta, veja
se pode usar alguma coisa para evitar a mordida”. A criança então descobre,
após alguma reflexão, que se usar o pedaço de pau na posição vertical poderá
travar a mordida do jacaré.
No terceiro desafio, o terapeuta desenha um galho em forma de Y (tipo
forquilha) e sugere que poderá usá-lo para evitar o bote da cobra. A criança
descobre que pode fazê-lo, usando a forquilha para imobilizar a cobra.
No quarto e último desafio, será exigido que a criança descubra uma
forma criativa de se livrar do leão, o que poderá conseguir após algumas
tentativas frustradas e avaliadas pelo terapeuta. No caso, a criança agarrou um
cipó pendurado numa árvore e conseguiu se salvar.
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Toda história é como um sonho. Através dela nos movemos com a leveza
da imaginação e o poder da fantasia. Uma história terapêutica deve, portanto,
estimular o mundo virtual que existe em todo ser humano. Um mundo feito de
uma realidade em que tudo é possível, em que somos poderosos e donos do
nosso destino.
Esse SER fantástico que habita nas profundezas da cada um de nós é
intocável, nada pode diminuí-lo ou aumentá-lo, porque ele está além do tempo,
do espaço e de todos os limites. Nenhum mal, nenhuma doença, pode atingi-lo.
Nada pode lhe causar dano. Se perdemos parte do nosso corpo, ELE continua
inteiro; se nosso corpo adoece, ELE continua forte e sadio. Histórias
terapêuticas objetivam revelar à criança a existência dessa dimensão
maravilhosa, tornando-a competente diante da vida e capacitada a enfrentar
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com coragem suas dificuldades. Por meio delas a criança assume sua
responsabilidade diante da vida e descobre sua capacidade de fazer escolhas e
tomar decisões, sem culpas e sem medo.
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Exercício de atenção: Budismo e Epicteto
Danilo Patutti
1 Ψυχή.
2 Λόγος.
3 Hadot, p. 22, 2014.
4 ἐφ᾽ ἡμῖν καὶ οὐκ ἐφ᾽ ἡμῖν. τῶν ὄντων τὰ μέν ἐστιν ἐφ᾽ ἡμῖν, τὰ δὲ οὐκ ἐφ᾽ ἡμῖν: “das coisas existentes
algumas são encargos nossos, outras não são encargos nossos”. Introdução ao manual de
Epicteto com tradução, capítulo 1, §1, 2017.
5 Προαίρεσις: capacidade de escolha, vontade. Trata-se da escolha moral, isto é, da capacidade de
escolher entre uma ação e outra. É um conceito central na filosofia de Epicteto e de difícil
tradução.
Revista do Pórtico de Epicteto. Ano 1. Número 1. Maio de 2018
determinação absoluta – do que não está sob o próprio poder e lhe é relativo. A
ação humana é o único encargo dos seres humanos que pode ser governado de
modo absolutamente livre6, segundo o campo das possibilidades de escolha. O
campo de ação da escolha divide-se em três pares de tópicos7: o desejo e a
aversão, o impulso e o refreamento, e o assentimento e a suspensão do
assentimento. Para além desses três tópicos encontra-se o domínio da natureza,
do mundo e das coisas exteriores, independentes da capacidade de escolha e da
determinação individuais. A infelicidade e o sofrimento humanos provêm da
tentativa de evitar males inevitáveis e de conquistar bens relativos, isto é, males
independentes da própria vontade e bens independentes da própria ação para
serem adquiridos e conservados. Do ponto de vista da natureza, ou da realidade,
os acontecimentos estão interligados em uma cadeia causal universal,
influenciando-se uns aos outros simultaneamente, portanto, fora do campo de
determinação da própria vontade.
O exercício do teorema ontológico exige uma intensa mobilização da
atenção para filtrar e identificar os verdadeiros valores dos conteúdos das
representações8, tendo em vista permitir o assentimento da razão apenas sobre
as representações compreensivas9. Através de um exame atento é possível
identificar os conteúdos originários do domínio da natureza e os pertencentes
ao domínio da escolha. Os primeiros não possuem valor, são indiferentes10, pois
dependem da conjuntura das circunstâncias. Os segundos possuem valor, pois
sua determinação depende das escolhas individuais. Para os estoicos, assim
como para os budistas, o bem e o mal somente existem no campo moral, pois
somente as ações podem ser determinadas segundo a própria escolha. Nesse
sentido, as ações possuem valor positivo ou negativo dependendo do propósito
do agente. Se o propósito é ser feliz, tranquilo e livre, as ações segundo a
6 Segundo Epicteto, a natureza moral do ser humano é um privilégio inalienável, pois o agir e o
não agir obedecem necessariamente a capacidade de escolha.
7 Τόποι. Esses três topoi são os três tipos de ações da escolha, ou προαίρεσις, livres por natureza
isto é, da clara evidência de sua verdade e objetividade. A apreensão desse tipo de representação
significa uma experiência direta e objetiva com a realidade.
10 Ἀδιάφορα.
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natureza11 são boas e as ações contrárias à natureza são más. Agir segundo a
natureza significa agir sob o crivo do teorema ontológico, por isso é preciso tê-lo
sempre à mão, diante dos olhos e nunca esquecê-lo, pois é o principal objeto da
atenção no ensino de Epicteto12.
O sábio estoico é aquele que consegue transformar tudo o que lhe
acontece em um bem, retirando proveito para si mesmo 13. Isso significa,
independentemente da situação, ser capaz de satisfazer os próprios desejos, de
evitar o encontro com as próprias aversões, de agir sempre segundo a justiça e o
bem do outro, e de julgar as coisas segundo a verdade. Deseja-se que as coisas
da vida aconteçam tal como elas acontecem, tem-se aversão aos próprios erros
evitáveis, age-se sempre segundo a perspectiva de participar de um todo, e
julgam-se as coisas segundo a perspectiva da natureza universal 14. Isso significa
governar as operações da escolha sempre segundo a natureza e o teorema
ontológico.
Os exercícios de atenção são centrais nas práticas de transformação do
ser e do viver nos ensinamentos de Epicteto e do budismo. No primeiro, a
atenção é o segredo para evitar o arrebatamento da razão pelas representações
brutas15, ajudando16 a razão a filtrá-las para fornecer o seu assentimento apenas
à vívida evidência17 objetiva das representações compreensivas. No segundo, a
atenção é a chave para dissolver os conflitos interiores da mente e o sofrimento
que os acompanha, pois é através da atenção plena18 dirigida à própria mente
que a verdade sobre a sua natureza é desvelada via experiências de insight19.
11 Κατὰ φύσιν.
12 Discourses, IV.12.15.
13 Introdução ao manual de Epicteto com tradução, p.7, 2017.
14 Interessante notar como o budismo e o estoicismo se aproximam: Os dois concebem o
do que uma moeda de César”: οὐδέποτε δ᾽ ἀγαθοῦ φαντασίαν ἐναργῆ ἀποδοκιμάσει ψυχή, οὐ μᾶλλον
ἢ τὸ Καίσαρος νόμισμα.
18 Mindfulness.
19 Rinpoche, S. p.98, 2013. A natureza da mente é imortal porque participa da totalidade eterna,
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Nesse sentido, parece haver nessas tradições uma educação da atenção, para
aprender o movimento de recolhimento da atenção sobre si mesmo. A atenção
sobre si é fundamental nesses ensinamentos porque possibilita o viver no
momento presente, atitude necessária para observar o surgimento das
representações e a relação entre a mente e os acontecimentos externos. A
contínua vigilância sobre si permite desvelar a própria interioridade e a sua
relação com a exterioridade. Segundo Rinpoche, a prática da atenção plena
recolhe a mente dispersa sobre a sua natureza e, nesse recolhimento, dissolvem-
se os conflitos mentais provocados pela ilusão da fragmentação do ser20. Desse
movimento em direção a si descobre-se a verdadeira natureza una e imortal da
mente como parte do todo cósmico.
Nos dois ensinamentos há o recolhimento da atenção, entretanto a
diferença está no objeto utilizado para apoiar esse recolher. Em Epicteto, é o
teorema ontológico que deve estar diante dos olhos, filtrando todas as
representações através da sua lente objetiva, por assim dizer, e, nesse sentido,
trata-se de uma intensa atividade mental21 que coloca a atenção no momento
presente22. No budismo tibetano, a exigência mental está no constante lembrar-
se dos princípios fundamentais da existência23; entretanto, a âncora da atenção,
por assim dizer, não são os princípios, mas o corpo. Diferente do estoicismo, o
budismo treina a atenção sobre o corpo e, mais tradicionalmente, sobre a
sensação física do abdómen ou sobre a sensação física do ciclo respiratório. O
corpo é a única parte do ser humano que necessariamente e naturalmente
sempre está no momento presente. Não importa quão dispersa e confusa está a
mente, o corpo vive no presente, engendrando continuamente sensações. A
técnica deste exercício consiste em direcionar a atenção sobre a sensação de
uma parte do corpo e exercitar-se na sua observação. A partir do treino sobre a
sensação dessa parte deve-se somar outra e assim continuamente, até ser capaz
de observar todas as partes do corpo em um único ato de atenção. Desse modo,
não-eu.
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o teu bem próprio em todas as coisas. Quanto ao restante, guarde na medida do que te foi dado e
use racionalmente, contentando-se apenas com isto. Se não, serás desafortunado, infeliz,
impedido e frustado” (Tradução nossa): τήρει τὸ ἀγαθὸν τὸ σαυτοῦ ἐν παντί, τῶν δ᾽ ἄλλων κατὰ τὸ
διδόμενον μέχρι τοῦ εὐλογιστεῖν ἐν αὐτοῖς, τούτῳ μόνῳ ἀρκούμενος. εἰ δὲ μή, δυστυχήσεις, ἀτυχήσεις,
κωλυθήσῃ, ἐμποδισθήσῃ.
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Referências bibliográficas
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RELATOS ACERCA DO ESTOICISMO EPICTETIANO
Renato Diniz
a vida me coloca (tanto os mais brandos quanto os mais duros), com mais
coragem e tranquilidade.
Relato 1
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Relato 2
Foi duro! Senti muito a sua perda! Mas as perdas são inerentes à vida e
fazem parte do caminho, do todo.
Relato 3
Uns dias atrás, encontrei um conhecido muito rico, cujo pai tem muitas
posses, e começamos a conversar sobre vários assuntos, alguns deles nulos, sem
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sentido e enfadonhos. Ele repetiu inúmeras vezes que ganhava cento e vinte mil
reais por mês apenas de um dos empreendimentos que tem, afora outros
recursos que possui. O curioso é que não lhe perguntei nada a esse respeito. A
conversa já estava ficando cansativa, desagradável e tediosa. Pensei comigo
mesmo: “como é ridícula, lamentável e ao mesmo tempo triste, quando uma
pessoa fica acometida por esta paixão – a vaidade”. Aliás, dentro de minha
humildade, sinto que a convivência com as pessoas não está muito fácil. A
banalidade, a superficialidade, a vulgaridade, enfim, a ignorância está
crescendo vertiginosamente. Mas como sou um ser social, tenho que viver e
conviver com essas pessoas. Procurei ficar mais calado e não emitir nenhuma
opinião, crítica, recriminação, ou fazer qualquer juízo de valor.
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O PROFESSOR ESTOICO: UM GUIA PARA OS PERPLEXOS
Donato Ferrara
Graduado pela FFLCH/USP
inteira. Elas supõem que o amor, a gentileza e o respeito sejam motivos para a
ação valorizados por todos de modo unânime e homogêneo, o que é falso. Ainda
que consideremos o magistério uma atividade de suma importância, há muita
gente que não pensa assim, e age em conformidade com o que pensa, às vezes de
maneira violenta.
O segundo fato diz respeito à realidade de muitos de meus colegas de
profissão. Tendo sempre trabalhado em estabelecimento particular e pequeno,
minha situação é a de um privilegiado. Todavia, o episódio que me sucedeu
abriu-me os olhos para a extensão do problema em outros lugares. Em agosto
passado, correram o Brasil as fotos da professora catarinense Marcia Friggi,
agredida com socos por um aluno de 15 anos. Subitamente interessada pela
questão, a imprensa nos trouxe alguns dados alarmantes. O Correio Braziliense
de 23 de agosto de 2017 revelou que os educadores brasileiros são os que, no
mundo, mais sofrem intimidações e insultos por alunos: 12,5% deles, garante a
OCDE, relatam pelo menos um ataque verbal por semana. Outro número que
impressiona é o de 4,7 mil profissionais agredidos nas escolas do País, segundo
a Prova Brasil 2015, aplicada somente a algumas séries. Também a Folha de São
Paulo, em reportagem de 18 de setembro, mostrou que, só no primeiro semestre
de 2017, professores paulistas protocolaram 178 queixas junto à polícia,
resultando em algo como dois profissionais agredidos a cada dia letivo. É uma
realidade desoladora apenas entrevista: estamos diante do que é tão-somente a
ponta do iceberg, sem dúvida.
Reitero: a situação em que me vi envolvido só pode ter alguma relevância
se vista em contexto mais amplo ― o da sociedade brasileira. Mas também na
dimensão particular, houve, por assim dizer, outro sentido de abertura em ação,
o que me impediu de ter uma reação desproporcional ao ato. Com efeito,
mantive-me calmo depois dos golpes, sem alçar a voz, não chegando nem
mesmo a expulsar o aluno de sala. E agi assim não porque me faltasse
combustível para a indignação, mas porque sabia que o rapaz, bastante
negligenciado pelos pais, correria o risco, trâmites disciplinares levados até o
fim, de nunca mais frequentar uma escola. Deu certo: dias depois houve um
pedido de desculpas, público e sincero. Anos antes, porém, eu não teria hesitado
em aprontar um escarcéu ― aliás, não teria conseguido deixar de fazê-lo.
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(2) “Eles continuarão a agir do mesmo modo que vê, ainda que
você exploda de raiva” ― escreveu Marco Aurélio em suas Meditações,
espécie de “diário espiritual” do imperador-filósofo (VIII, 4). Ao redigir tal nota
de si para si, motivado por um episódio do cotidiano, ele ecoava a opinião geral
dos estoicos, que não viam vantagem na ira nem em emoções assemelhadas. O
sábio estoico, ideal praticamente inatingível, não se zangava com nada,
mantendo-se em estado de bonomia e tranquilidade inabaláveis. Marco Aurélio,
que se sabia não sábio, reconhece as limitações de sua prática filosófica,
precisando com frequência rememorar-se de que a razão deve interpor-se entre
um acontecimento potencialmente irritante e a reação emocional que a ele se
tem. A si mesmo ele dizia que é necessário considerar as consequências da ira,
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desafio que a profissão lhe coloca ou esmorecer sob o peso da coisa. Lembre-se
de Epicteto (item 1): o que nos diz respeito de verdade é o modo como lidamos
com as situações (que podem ser dolorosas), não as situações em si.
Se você compreendeu, com o item 2, por que não deve permitir que a ira
tome espaço dentro de sua pessoa, não terá dificuldades para ver por que a
melancolia deve ser igualmente evitada. Use, portanto, a energia que serve de
combustível à estima que você tem por si para colocar-se para além das
suscetibilidades comuns, para tornar-se uma pessoa mais difícil de irritar e
entristecer, para criar ― como diz a expressão colorida de nosso povo e como o
disse Montaigne em seu segundo ensaio, “Da tristeza” ― uma “casca” ou
“carapaça”, diminuindo o atrito com o mundo exterior. Tudo isso principia,
necessariamente, com não se imaginar como uma vítima.
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CONCLUSÃO
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EM BUSCA DA MEDICINA DA ALMA: RACIONALISMO E
PERTENCIMENTO
Tenho 47 anos e fui diagnosticado com esquizofrenia aos 19. Nesse meio
tempo passei por inúmeros tratamentos e, sobretudo, por inúmeros fármacos.
Eles foram inúteis. Consegui me recuperar, no entanto, por meio do estudo de
alguns filósofos.
Neste artigo, vou discutir algumas das dificuldades que a esquizofrenia
traz, e como algumas ideias estoicas e de filosofias que me parecem similares ou
complementares a estas podem ajudar nessas dificuldades.
Ao receber o convite para escrever este artigo, o colaborador desta revista
Donato Ferrara sugeriu que escrevê-lo poderia ser bom para meu
autoconhecimento. É claro que concordei com a ideia, mas depois fiquei
pensando: até que ponto isso existe?
“Conhece-te a ti mesmo”, é verdade, mas será isso possível? Parte da
minha recuperação foi aprender a dar palestras. Numa delas um psicanalista fez
a pergunta inevitável: gostaria de saber sobre seus traumas de infância. Eu
respondi que não me lembrava, que provavelmente não existiram.
Acredito que o estoicismo seja muito diferente da psicanálise nesse
aspecto. Não há a necessidade de ficar investigando o passado, de achar traumas
possivelmente reprimidos, explicações para os desmandos de meus pais. O
estoicismo me parece dizer que, qualquer que seja o passado, qualquer que seja
o drama, uma atitude racional resolve. Para todo mundo.
Na China do ano mil havia um pensador muito parecido com os estoicos.
Ele é infelizmente pouco conhecido no Ocidente. Seu nome aparece às vezes
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como Chu Hsi e às vezes como Zu Xi. Veja o leitor que interessante. Houve um
pequeno debate entre ele e um artista da época. O artista dizia que a arte era
superior à filosofia porque oferecia muitos caminhos, enquanto que ele, Chu
Hsi, só apresentava um. Ou seja, para Chu Hsi, qualquer que seja o drama a
solução é a mesma. E a solução dele é igual a dos estoicos: racionalismo.
Alguém poderia dizer: mas racionalismo não seria justamente buscar
entender a nossa vida? Não creio que fosse esse o pensamento estoico. Acredito
que o racionalismo deles era uma prudência, um autocontrole no dia a dia,
voltado para a frente, e não para trás. A descoberta de respostas não era tão
importante. Acredito que a boa convivência com o mistério, em Deus, nos
homens, e em si mesmo, era parte do estoicismo. Racionalismo para eles é
muito mais uma atitude, um fim em si mesmo, do que uma busca de respostas.
É claro que gostavam de entender as coisas (quem não gosta?), mas se não
tivessem respostas isso não os afligia. Uma vez mais, na China, dizem que se
Chu Hsi tivesse tido seguidores mais atentos, a China teria desenvolvido a
ciência moderna, mas há um comentário interessante de um contemporâneo
dele: vocês já viram que ele não se importa de concluir nada?
Para mim estoicismo é basicamente isto: uma atitude racional. E nessa
simplicidade talvez esteja sua virtude, porque a pessoa se torna despojada, sem
ambições, sem a necessidade de ser mais do que o próximo.
Vamos supor que eu me dedicasse em terapias a entender meus pais.
Chegaria uma hora em que toda a névoa se dissipasse e eu sentisse um profundo
amor por eles? Não acredito nisso. Prefiro ter uma atitude diferente: estou
sempre disposto a entender a lógica do que eles tiverem a dizer.
Mas isso não é frio? Ater-se à lógica? E os sentimentos, as emoções?
Caro leitor, durante todos estes anos eu fui e voltei várias vezes. Isto é, fiz
o que chamo de “greves de protesto”, nas quais fiquei em silêncio, isolado de
todos, João “contra mundum”. Mas eu voltei. Voltei a ter contato, hoje tenho
contato até com os leitores deste artigo. Isso se deve a essa atitude.
Eu não li isso em nenhum lugar, mas acredito que o estoicismo seja
baseado no fato de que as pessoas gostam de concordar. Quando tento entender
a lógica de meu interlocutor, isso é uma boa vontade com ele, eu procuro
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concordar com ele. E se consigo uma concordância, isso traz uma boa emoção. E
pavimenta o caminho para outros encontros, que podem vir a ser emotivos até.
Participando de um grupo de estudos estoicos no Facebook, eu sugeri
algumas questões. Talvez minhas observações não fossem precisas, mas fiquei
chateado com a atitude de um outro membro. Ele discordava de mim só por
discordar. Corria até a Wikipédia para achar qualquer coisa que contradissesse
o que eu dizia. Isso pra mim não é estoicismo. É muito mais sábio, prudente,
equilibrado buscar concordar com as pessoas.
Vamos supor que eu pegue um táxi. Eu particularmente não gosto das
opiniões de um determinado candidato, mas o taxista gosta. Quando ele fala
bem do candidato, se me deixo levar pelas emoções, crio um conflito com ele. É
muito mais sábio simplesmente procurar entender os motivos dele e tentar
concordar. Se eu concordo, ele fica contente, e é melhor para todos.
Eu dirijo grupos de ajuda mútua. São grupos de pessoas com transtornos
mentais que se reúnem no intuito de uns ajudarem os outros.
Outro dia uma participante disse que iria dar à luz Lúcifer. Se eu me
deixar levar pelas emoções, vou achar estranho, bizarro, vou dizer que ela tem
que aumentar o remédio. Mas posso fazer diferente. Posso respeitar, tentar ver a
lógica, por que ela chegou a isso. Ela teve um caminho para chegar a isso, e se eu
tento entender esse caminho, ela se sente respeitada, vai gostar de mim, e isso
pavimenta o caminho para futuras concordâncias.
É assim sempre. O racionalismo não é frio, ele é caloroso, ele promove
encontros.
Alguém poderia dizer: mas a mensagem de amor do Cristo promove
muito mais!
Não digo que o Cristo estivesse errado! A mensagem dele é boa. Só que
para mim, quando acordo pela manhã, se digo “vou hoje amar todo mundo”,
isso é menos eficiente do que se digo “hoje vou ter uma atitude racional”.
Essa atitude racional tem desdobramentos que ajudam em vários
aspectos da doença.
Uma característica da doença é o delírio. O delírio é uma crença
irremovível que a pessoa tem em pensamentos que são só dela. O delírio mais
famoso é o de crer que se é Jesus.
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