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Sumário

APRESENTAÇÃO

Apresentação da Primeira edição PDF


Fernanda Lopes Oliveira

COMENTÁRIOS ACADÊMICOS

A História de um Homem Feliz PDF


Tiago Schipanski
Aprender a viver PDF
Antonio Carlos Tarquínio
O caráter cosmopolita do estoicismo PDF
Aldo Dinucci
A radicalidade do cinismo: análise da carta V de Sêneca PDF
George Felipe Bernardes Barbosa Borges

ENTREVISTAS

Entrevista com Donato Ferrara PDF


Donato Ferrara, Diogo da Luz

REFLEXÕES

Sutilezas de um imperador estoico PDF


Thiago Stadler
Cãozinho de estimação PDF
Antonio Carlos Tarquínio

CONEXÕES

De Epicuro para Hermaco - sobre o agora e a amizade PDF


Marcos Adriano Zmijewski
Histórias Terapêuticas PDF
Paulo César Gonçalves
Exercício de atenção: Budismo e Epicteto PDF
Danilo Ulhano Patutti

RELATOS DE EXPERIÊNICA

Relatos acerca do estoicismo epictetiano PDF


Renato Pereira Diniz
O professor estoico: um guia para os perplexos PDF
Donato ferrara
Em busca da medicina da alma PDF
João Leite Ribeiro
ISSN: 2595-3591
APRESENTAÇÃO

Fernanda Lopes Oliveira

2016 é o ano que marca a primeira edição do Colóquio sobre Epicteto,


realizado na Universidade Federal de Sergipe, sob a organização do professor
Aldo Dinucci. De lá para cá, outros dois Colóquios foram realizados no Rio de
Janeiro (UFF, 2017) e no Rio Grande do Sul (PUCRS/UNISINOS, 2018),
criando um importante – e raro – espaço de discussão da filosofia epictetiana
nos círculos acadêmicos brasileiros.
Nesses eventos, os interesses em comum e as amizades formadas fizeram
surgir o grupo Pórtico de Epicteto, dedicado ao estudo e à divulgação da
filosofia estoica. O símbolo adotado, um Ipê Amarelo, sintetiza numa imagem a
filosofia estoica: uma árvore que floresce na seca, quando todas as demais
árvores fenecem. Por esse caráter eminentemente prático dos textos de Epicteto,
pessoas das mais variadas profissões uniram-se ao grupo, compartilhando suas
experiências cotidianas com os ensinamentos reunidos no Manual e nas
Diatribes de Epicteto, enriquecendo as discussões sobre a valiosa contribuição
que o estoicismo pode dar atualmente.
A Revista do Pórtico de Epicteto nasce, assim, com a proposta de ser uma
publicação de divulgação científica que promova o diálogo entre acadêmicos e
não acadêmicos acerca da filosofia de Epicteto, sua interpretação, aplicação e
relação com outras filosofias e áreas do conhecimento. Nesta primeira edição,
apresentamos textos introdutórios e acadêmicos, relatos de experiências
pessoais com a filosofia estoica, reflexões filosófico-literárias e uma entrevista
com Donato Ferrara, criador do blog De Vita Stoica. Para tanto, colaboraram na
editoração Aldo Dinucci (upload e divulgação) Diogo Luz (capa e layout),
Donato Ferrara (revisão) e Fernanda Oliveira (apresentação e seleção).
A História de um Homem Feliz

Tiago Schipanski1∗

Certa vez, em Roma, num dia qualquer do primeiro século da era cristã,
estando Nero fazendo qualquer coisa que dispensasse a presença de seu
secretário Epafrodito, este se divertia com a dor que infligia num escravo que
tinha às suas ordens e caprichos, torcendo-lhe umas das pernas. Diz-se que a
vítima não reclamava, tampouco externava a dor com gemidos ou palavrões;
que apenas ousou o comentário de que a insistência na brincadeira resultaria
numa lesão em seu membro. Ignorando a advertência, a próxima coisa que
Epafrodito ouviu foi o estalar de ossos confirmando o que o escravo Epicteto
antevia. O lesionado, ao constatar que havia repreendido o seu superior
momentos antes acerca da possibilidade que se efetivou, limitou-se a lembrar
disso, ao invés de praguejar o agressor.
Não discordando, contudo, de que uma deficiência física era explícita
quando andava, outra versão de sua fragmentada biografia atesta ser culpa de
um reumatismo o caminhar truncado do jovem Epicteto. Doxógrafos põem as
duas versões à vista2. Não se briga, contudo, pela defesa de uma ou de outra.
Não é o caso, tampouco, o claudicar de suas pernas; não foi nem pra ele, visto
que dizia: “Claudicar é entrave para as pernas, mas não para a escolha” 3. A
escolha que Epicteto fez, fez deste escravo um filósofo, alguém que “legou a

1∗ Graduado em Filosofia pela Universidade Estadual do Paraná campus de União da Vitória.


Contato: tiagoschipanski1994@gmail.com
2 Ver DINUCCI; JULIEN, 2014, pgs. 11 e 12: ARRIANO DE NICOMÉDIA. Encheiridion de

Epicteto. Tradução, introdução e comentários: DINUCCI, Aldo; JULIEN. São Paulo:


Annablume, 2014.
GARCÍA, 1993, pgs. 9 e 10: NICOMÉDIA, Arriano de. Disertaciones Por Arriano. Tradução,
introdução e comentários: GARCÍA, Paloma Ortiz. Madrid: Editorial Gredos, 1993.
3ARRIANO DE NICOMÉDIA, 2014, p. 42.
Revista do Pórtico de Epicteto. Ano 1. Número 1. Maio de 2018

maior lição de sabedoria já dada pela Antiguidade” 4, e alguns estudiosos o


colocam ao lado de Platão, Aristóteles e Epicuro como um dos “gigantes da
filosofia antiga”5.
Epicteto foi quem teve particular importância na sustentação da bandeira
estoica no período romano, nas palavras de Antonio Carlos Tarquínio, é
considerado o maior exemplo de fidelidade ao princípio levantado por Zenão, o
qual sustenta a divindade natural que garantia ao estoico a segurança por ser
uma parte de um todo:

Zenão para enfrentar o arbitrário que tripudia sobre o acaso


utiliza muitas armas: a Providência, a Razão (lógos), a causa, a
lei, e assim vai. Vale tudo para confirmar a ação providencial
que é essencialmente cuidado de tudo no todo, com o fim de
expungir o fortuito do mundo, e salvaguardar a natureza divina
da natureza. Nesse particular, não houve, em toda a história do
Estoicismo, ninguém que fosse melhor, ou mesmo que se
igualasse a Epicteto quanto à sua confiança incondicional na
Providência Divina.6

Epicteto (55-135 d.C.) nasceu na cidade de Hierápolis, na região da


Frígia, e esteve submetido a Epafrodito na condição de escravo — Epafrodito foi
um dos secretários do Imperador romano Nero. A habilidade intelectual de
Epicteto chamou a atenção de Epafrodito, que o enviou até Roma para tomar
lições com o filósofo estoico Caio Musônio Rufo.

Musônio insistia no caráter pratico de moral, que comparava


com a medicina e a música; para ele, as normas de
comportamento moral nos são ensinadas pela natureza e são
um reflexo da vontade divina; ao mesmo tempo, a virtude não é
alcançável sem o conhecimento.7

Apesar de sua condição de escravo e do caráter pouco amigável de seu


senhor, Epicteto conseguiu frequentar as aulas de Musônio Rufo e, devido ao
seu claro desenvolvimento intelectual, ganhou a liberdade de Epafrodito.
4 DUHOT, 2006, p. 32: DUHOT, Jean-Joël. Epicteto e a Sabedoria Estoica. São Paulo:
Loyola, 2006.
5 CRESSON, 1960, p. 10: CRESSON, André. A Filosofia Antiga. 2.ed. São Paulo: Difusão

Européia do Livro, 1960.


6 TARQUÍNIO, p.42: TARQUÍNIO, Antonio Carlos. Epicteto e a paixão no coração do

pensamento. As duas causas de Crisipo e o mergulho em Deus. Cadernos UFS-Filosofia. s/n


7 Ibidem, 1993, p.11.

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Revista do Pórtico de Epicteto. Ano 1. Número 1. Maio de 2018

Assim, assumiu a posição de filósofo orador perambulando pelas ruas


romanas e ensinando suas principais ideias. Foi no período do imperador
Domiciano (81-96 d.C.) que Epicteto foi expulso de Roma, pois as leis
promulgadas por este imperador não poupavam filósofos, matemáticos e
quaisquer outras atividades vinculadas à propagação do saber. Dessa maneira,
Epicteto retornou à sua região da Frígia — parte da moderna Turquia — para
desenvolver a sua filosofia.
Os ensinamentos de Epicteto, que eram exclusivamente feitos pela
oralidade, foram preservados e chegaram até os dias de hoje por meio de duas
obras: as Diatribes (discursos) e o Encheiridion (Manual de Epicteto). Como
destaca Duhot, “ao contrário de nós, o filósofo grego não pensava para escrever
livros, ele podia, eventualmente, escrevê-los porque já os tinha pensado8”; o
registro escrito era apenas uma maneira de “fotografar” o momento em que
tudo acontecia e oferecê-lo, para se tornar conhecido por quem não pode, por
motivos geográficos ou temporais, presenciar as concepções e exemplificações
das ideias pelo filósofo.
Curiosamente a história da obra de Epicteto e a sua transmissão
assemelha-se à de Sócrates, pois, assim como o filósofo ateniense, o escravo
romano teve suas falas anotadas por um de seus discípulos. Se Sócrates teve
como aliado Platão, Epicteto contou com a ajuda de Lúcio Flávio Arriano —
também conhecido como Arriano de Nicomédia — que editou o pensamento de
seu mestre e o imortalizou em livros.
As Diatribes foram compostas por anotações pessoais de aulas a que
Arriano assistiu, embora ele ateste a fidelidade da transcrição das falas do
mestre. O Encheiridion se formou a partir de seleções de máximas das
Diatribes, tornando-se uma obra portátil, com o intuito de estar facilmente à
mão para meditações9.
O termo grego encheirídion se diz do que está à mão, sendo equivalente
ao termo latino manualis, “manual” em nossa língua. Significa também

8 DUHOT, 2006, p.9.


9 Ibidem, 2006, p.37.

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Revista do Pórtico de Epicteto. Ano 1. Número 1. Maio de 2018

“punhal” ou “adaga”, equivalente ao latino pugio, arma portátil usada pelos


soldados romanos atada à cintura.10
O caráter dos ensinamentos de Epicteto, ao qual temos acesso por meio
destes escritos, demonstram o quanto ao filósofo importavam as questões que
diziam respeito à conduta humana, do homem simples.

O que conservamos das explicações de Epicteto, portanto, não


pretende nos oferecer uma exposição completa e ordenada de
toda a filosofia estoica, mas tem por objeto primordial pôr em
relevo o temperamento e os interesses mais característicos do
mestre: as questões morais, ora em seus aspectos mais gerais,
ora em questões específicas que afetam a vida cotidiana.11

A filosofia de Epicteto foi de suma importância na formação do


pensamento sobre a arte de viver no Ocidente e influenciou significativamente
as religiões judaica e cristã12. Sua filosofia pode ser entendida como uma
ferramenta que capacita o homem a lidar com os acontecimentos de modo a
compreendê-los e administrá-los.
Epicteto chama a atenção para que o ser humano transite suas escolhas e
opiniões, reconhecendo o que é modificável ao homem somente no campo das
coisas que podem por ele ser alteradas, para ele assim não tentar, utopicamente,
sem êxito algum, modificar o que não está sob seu controle.
Epicteto deixa isso claro ao dispor exemplos do que está sob o nosso
controle e do que não está13: que a primeira situação refere-se ao que nasce no
interior da pessoa e a segunda ao que lhe é externo. Como todo fenômeno
carrega consigo submissão ao seu agente originador, o que nasce externamente
ao homem não se submete a ele.
Mas, como portar-se diante de um acontecimento não alterável de modo
a garantir a felicidade? No folhear do Manual encontra-se a resposta clara e
direta: “não busques que os acontecimentos aconteçam como queres, mas quer
que aconteçam como acontecem, e tua vida terá um curso sereno14”.

10 DINUCCI; JULIEN, 2012, p.3


11 GARCÍA, 1993, p. 14.
12 Ver DUHOT, capítulos O Encontro com o Judaísmo, p. 177 e Estoicismo e Cristianismo, p.

199.
13 ARRIANO DE NICOMÉDIA, 2012, ps. 35 e 36.
14 Ibidem, p.42.

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Revista do Pórtico de Epicteto. Ano 1. Número 1. Maio de 2018

A aceitação para Epicteto é a maneira que cabe ao homem para que sua
relação com o exterior seja harmoniosa e não se reflita em sua alma de maneira
negativa. Uma vez que nada pode ser feito para redirecionar a vontade da
natureza a seu favor, cabe a ele aceitá-la, direcionando sua vontade a ela. Em
outras palavras, dispor-se totalmente à ordem divina. Assumir a atitude que o
próprio sábio assumiu: “eu uni a Deus a minha faculdade de desejar15”.
Os estoicos associavam a ideia de uma vida de felicidade a uma vida
virtuosa; logo, felicidade e virtude são sinônimos deste ponto de vista. Sabe-se
que felicidade no grego antigo corresponde ao termo eudaimonia. Se
desmembrado, tem-se uma ideia interessante: o prefixo eu significando o bem
ou o bom e daimon fazendo referência aos deuses. Pode-se intuir, a partir disso,
um sentido completo da palavra grega que diz respeito ao conceito de felicidade
remeter à ideia de estar de bem com a divindade. Estando, para os estoicos, a
divindade contida em tudo e em todos, encerrando-se substancialmente na
natureza, podemos concluir que a felicidade estoica se realiza na harmonização
do homem com a natureza.
Este deus-cosmos também sustenta a qualidade de razão como de
diversos outros nomes atribuídos a este princípio criador e presente em tudo o
que é corpóreo. Logo, podemos atribuir, também, a ideia de felicidade estoica a
um bom relacionamento com a razão.
Epicteto há muito já entregou sua centelha divina a outra constituição de
matéria no Universo. Porém sua alma também reside nos ensinamentos que
deixou na Terra. Cabe ao Homem Contemporâneo decidir-se pela felicidade,
pois em mãos tem aquilo que proporcionou ao Filósofo uma vida sublime. E
Epicteto quis compartilhar com os demais o que aprendeu para que os outros
também possam ser realmente felizes. Pois para um estoico, todos somos Um
só.

Referências

ARRIANO DE NICOMÉDIA. Disertaciones Por Arriano. Tradução,


introdução e comentários de Paloma Ortiz García. Madrid: Editorial Gredos,
1993.

15 Diatribes, IV, 1, apud DUHOT, 2006, p. 109-110.

5
Revista do Pórtico de Epicteto. Ano 1. Número 1. Maio de 2018

ARRIANO DE NICOMÉDIA. O manual de Epicteto. Tradução, introdução e


comentários de Aldo Dinucci e Alfredo Julien. São Cristóvão: Universidade
Federal de Sergipe, 2012.
CRESSON, André. A Filosofia Antiga. 2.ed. São Paulo: Difusão Européia do
Livro, 1960.
DUHOT, Jean-Joël. Epicteto e a sabedoria estóica. São Paulo: Loyola,
2006.
TARQUÍNIO, Antonio Carlos. Epicteto e a paixão no coração do pensamento. As
duas causas de Crisipo e o mergulho em Deus. Cadernos UFS-Filosofia, s/n.

6
Aprender a viver

Antonio Carlos Tarquínio

A questão essencial é que podemos passar sem uma série


enorme de aborrecimentos e angústias de toda sorte, que
nos entulham a existência, se nos interessarmos por
aprender a tecnologia do viver, ofertada por pensadores
antigos. Pode-se afirmar que na medida em que
meditaram fundamente acerca dos problemas humanos,
propuseram alternativas de solução, de tão sublime
alcance, que até hoje possuem plena eficácia. Eis o motivo
de haverem se perenizado através do fio do tempo.

Aprender a viver é fundamental. Disso sabiam os filósofos antigos. De


certa forma a interrogação do Cristo: “De que adianta ganhar o mundo todo e
perder sua alma?” já havido sido explorada e desenvolvida aproximadamente
quatro séculos antes de sua aparição por Platão, que em muitos de seus diálogos
refletiu acerca da importância e da centralidade da alma ante as outras
realidades da existência.
Seguiram-no de perto os estoicos no tangente à desenvolução das
questões pertinentes à arte de viver, deixando de lado a metafísica do filósofo
ateniense, que consideravam inadequada à captação do que, para eles,
constituía a realidade essencial.
É porque o Sócrates histórico refletido em alguns diálogos platônicos foi
totalmente absorvido — por exemplo — por um Epicteto.
Alguém poderia argumentar que Epicteto se encontra a quilômetros de
distância dos fundadores do Pórtico — do Estoicismo primitivo — e que,
portanto, não serviria de exemplo no tocante ao uso do platonismo
supostamente levado a cabo pelo Estoicismo.
Revista do Pórtico de Epicteto. Ano 1. Número 1. Maio de 2018

A hipótese seria verdadeira se o Estoicismo não tivesse começado sob a


inspiração de Antístenes, discípulo direto de Sócrates, que viu no mestre de
Platão um modelo de vida, uma vez que para ele Sócrates foi aquele que,
fundamentalmente, não só ensinou a viver, mas sobretudo a bem viver.
Tanto Sócrates como Epicteto ensinavam — mutatis mutandis — ser a
ética o caminho da felicidade entre os homens. Ambos depositavam suas
esperanças na depuração e acrisolamento da alma, de modo a que a verdadeira
virtude viesse a curar o mundo de todas as suas doenças e desequilíbrios.
Certamente, Jesus ratificou plenamente a visão de Platão — pelo menos
aquela apresentada em alguns de seus diálogos. E quanto a Epicteto — ele
seguiu para além do Cristo (considerando a linha do tempo) com as ideias que
foram enriquecendo a noção de alma, apesar de sua descrença na continuidade
da vida post-mortem.
Se para Platão e Jesus a psykhe é considerada imortal, para Epicteto esta
é compreendida como o centro decisório da criatura, conceito impossível de ser
enucleado no pensamento do filósofo ateniense, que acreditava haver muitas
almas no homem.
Somente depois que foi estabelecida a noção de “vontade” como poder
determinante-não-determinado, situado no coração do homem, é que pôde ser
fixada uma verdadeira filosofia da vida.
Enquanto o homem foi pensado e compreendido como ser determinado
por causas exteriores, nenhuma sabedoria existencial encontrou espaço seguro
para se estabelecer.
O Estoicismo fixou as bases sobre as quais, desde a Antiguidade, se
fundaram os alicerces sólidos da arte de viver.

8
O CARÁCTER COSMOPOLITA DO ESTOICISMO

Aldo Dinucci

Em um tempo pródigo em racismos, misoginia, homofobia,


nacionalismos e fanatismos, chamam a atenção certos aspectos do
cosmopolitismo da filosofia estoica, não só o teórico, mas sobretudo o real.
Efetivamente, como veremos a seguir, nenhuma filosofia da Antiguidade atraiu
para os seus quadros pessoas de tão diferentes etnias, gêneros, classes sociais e
orientações sexuais.
Zenão de Cítio1, o fundador do Estoicismo, era um mercador proveniente
de Cítio, cidade localizada na ilha de Chipre, e de origem fenícia. Não sabemos
muito hoje sobre a etnia fenícia, nem mesmo se compreendia uma só etnia ou se
várias, mas somos informados por Diógenes Laércio (7.1) que Zenão era
melanchroos. Os tradutores costumam verter esse termo por “moreno”,
“bronzeado”, mas ele significa literalmente “de cor negra”. Os fenícios eram
hábeis comerciantes, sua civilização (que floresceu entre 1500 e 300 a.C.) se
espalhava nas costas ocidentais da África, no norte da antiga Canaã, nas costas
do Líbano atual. Sendo Zenão de origem fenícia e de tez negra, teríamos no
estoicismo uma filosofia que tem a África como uma das matrizes. Zenão tinha
preferência por rapazes em seus relacionamentos amorosos, embora tenha
deitado duas vezes com uma moça para não ser considerado misógino, como
nos informa novamente Diógenes Laércio (D.L. 7.13).
Seu sucessor na escola estoica foi Cleantes de Assos 2. Originalmente
lutador de boxe e de origem humilde, carregava água das fontes paras as casas a
fim de ganhar o pão (D.L. 7.168). Assos era uma cidade nas costas da Turquia,

1 334 a.C. - 262 a.C. 1º fundador e 1º escolarca do Estoicismo.


2 Ca. 330 a.C - ca. 230 a.C. 2º escolarca da Escola Estoica, aluno e amigo de Zenão.
Revista do Pórtico de Epicteto. Ano 1. Número 1. Maio de 2018

fundada por colonos de Lesbos no século VII a.C. e depois dominada pelos
Persas.
Crisipo, terceiro escolarca do Estoicismo, era natural de Sólis, colônia de
Rodes fundada nas costas da Turquia no século VII a.C.
Diógenes da Babilônia3 (ou da Selêucia), o quarto escolarca do Pórtico,
foi um dos três filósofos enviados a Roma, em 155 a.C., para apelar pelo
cancelamento de uma multa, agradando os ouvintes romanos4 com seus
discursos e abrindo as portas da Itália para o estoicismo. Nascido na Babilônia
(região do Iraque atual), ou mais exatamente em Selêucia, cidade babilônica às
margens do Tigre, foi educado em Atenas por Crisipo.
Diógenes da Babilônia foi sucedido na direção da Escola Estoica por
Panécio de Rodes5, que foi o sétimo e último escolarca em Atenas. Tornando-se
amigo de Cipião Emiliano, introduziu o estoicismo em Roma. Públio Cornélio
Cipião Emiliano Africano Numâncio viveu entre 185 e 129 b.C. e foi duas vezes
cônsul romano, em 147 BC e 134 a.C. Após a morte de Panécio, houve uma
diáspora dos estoicos por todos os domínios romanos, e diversas escolas foram
abertas em diferentes partes do império.
Possidônio de Rodes ou de Apameia (ca. 135 a. C. - 51 a.C.) foi o escolarca
do Pórtico em Rodes. Filósofo estoico, político, astrônomo, geógrafo, historiador
e professor, era tido como o maior polímata de sua época. Aluno de Panécio,
Possidônio, segundo algumas fontes, teria se aproximado da cultura judaica,
citando eventos relacionados ao Antigo Testamento (cf. fragmentos E-K de
Possidônio)6.
Após a introdução do estoicismo em Roma, surgiram vários estoicos
romanos, que acabaram por formar a famosa Oposição Estoica, movimento
republicano que se opunha sistematicamente aos imperadores romanos
tirânicos.

3 Ca. 230 a.C. - ca. 150/140 a.C.


4 Aulo Gélio, Noites Áticas, vii. 14; Cícero, Academica, ii. 45.
5 Ca. 185 - ca. 110/09 a.C.
6 Cf. Bezalel Bar-Kochva. The Image of the Jews in Greek Literature. The Hellenistic Period.

California: University of California press, 2016. Devo essas informações sobre Possidônio ao
caro Eduardo Boechat, grande especialista em Possidônio.

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Revista do Pórtico de Epicteto. Ano 1. Número 1. Maio de 2018

Catão, o velho7, se opôs inicialmente à difusão da cultura grega em Roma.


Entretanto, seu bisneto, Catão, o jovem8, viria a se tornar o mais célebre estoico
romano ao cometer suicídio por se recusar a aceitar a destruição da República e
a ascensão de Júlio César. Após Catão, sucederam-se vários estoicos romanos,
que se tornaram mártires republicanos, tais como Júlio Cano (fl. 30), filósofo
estoico condenado à morte por Calígula; Trásea Peto (ca. 10 - 66), senador
romano e estoico, condenado à morte por Nero; Pacônio Agripino (fl. 60),
acusado junto com Trásea e banido da Itália por volta de 67 d.C.; Helvídio
Prisco (fl. 65), filósofo estoico e político condenado à morte por Vespasiano.
Epicteto assim relembra uma conversa entre Prisco e Vespasiano:
Quando Vespasiano enviou-lhe um pedido para que não comparecesse
ao Senado, Prisco respondeu: “Depende de ti não me permitir ser senador.
Mas, na medida em que eu o for, devo comparecer”.
– Vai, disse Vespasiano, porém, ao comparecer, fica em silêncio.
– Não me interrogues e ficarei silêncio.
– Mas devo interrogar-te.
– E devo dizer o que se me afigura justo.
– Se falares, te condenarei à morte.
– Quando eu te disse que sou imortal? Tu farás o que é teu, eu farei o
que é meu. É teu condenar-me à morte. É meu morrer sem tremer. É teu
condenar-me ao exílio. É meu retirar-me sem me afligir9.
Roma trouxe outra novidade para a filosofia estoica: o Pórtico 10 agora
conclamava as mulheres a estudar filosofia11. De fato, se uniram à Oposição

7 Ca. 234–149 a.C.


8 Marcos Pórcio Catão de Útica viveu entre 95 a.C. (Roma) e abril de 46 a.C. (Útica).
9 Diatribes 1.2.19 ss. (Minha tradução).
10 O ESTOICISMO, O PÓRTICO E A STOA: Um pórtico (porticus, em latim) em uma cidade

grega ou romana da Antiguidade era um passeio coberto com um teto sustentado por colunas.
Os pórticos, originalmente construídos ao redor dos templos para que os devotos se
encontrassem e conversassem, passaram, com o tempo, a ser independentes, de modo a
atenderem a todas as necessidades da vida pública à qual os gregos e romanos se dedicavam
intensamente. Muitos desses pórticos eram construídos ao longo dos locais de assembleia
(ágoras), e eram extremamente luxuosos, com esculturas e obras de arte dos mais famosos
artistas. Na maioria dos pórticos havia assentos que eram assiduamente frequentados pela
intelectualidade de então, que aí entabulava suas conversações. A escola estoica deve seu nome
ao fato de que seu fundador, Zenão de Cítio, reunia-se com seus discípulos numa stoa (a palavra
grega para “pórtico”), mais exatamente na Poikele Stoa, o Pórtico Pintado de Atenas, que
continha pinturas de famosos artistas.
11 Por exemplo, as diatribes 3 e 4 de Musônio Rufo.

11
Revista do Pórtico de Epicteto. Ano 1. Número 1. Maio de 2018

Estoica e ao estoicismo mulheres como Pórcia12, filha de Catão de Útica, e Fânia,


filha de Trásea Peto13. Por suas posições republicanas, Fânia foi condenada ao
exílio por Domiciano em 93. O período imperial também apresentou os maiores
contrastes de classes sociais entre os estoicos, indo desde nosso Epicteto de
Hierápolis14, ex-escravo, também condenado ao exílio ao exílio por Domiciano
em 93, passando por Caio Musônio Rufo15, professor de Epicteto, da classe
equestre, muito ativo politicamente e relacionado à Oposição Estoica, várias
vezes condenado ao exílio16, Lúcio Aneu Sêneca17, da classe senatorial, até
chegar a Marco Aurélio Antonino18, grande imperador romano e célebre estoico.
Com o fim do Império Romano, o interesse pelo estoicismo deslocou-se
para Bizâncio: pelo menos três paráfrases cristãs do Encheiridion de Epicteto
nos chegaram, uma falsamente atribuída a Nilo, outra conhecida como
Paraphrasis Christiana e outra que se encontra no manuscrito Vaticanus gr.
223119. Em 1605, um missionário jesuíta postado na China de nome Matteo
Ricci publicou uma tradução de parte do Encheiridion em ideogramas chineses
por ver em Epicteto uma ponte entre o pensamento cristão e o confuciano20. A
edição acabou por agradar enormemente aos budistas.

12 Vejam aqui um excelente texto de Donald Robertson sobre Pórcia, traduzido por Donato
Ferrara:
https://devitastoica.com/2017/12/31/as-mulheres-estoicas-1-porcia-donald-robertson/#more-
13172
13 Vejam aqui um excelente texto de Donald Robertson sobre Fânia, traduzido por Donato

Ferrara: https://devitastoica.com/2018/01/02/as-mulheres-estoicas-2-fania-donald-
robertson/#more-13175
14 55 - 135. Célebre estoico de quem nos chegaram muitas obras. Fundou uma escola em

Nicópolis.
15 Ca. 30 d.C. - 90 d.C.
16 Vejam aqui minha tradução dos seus fragmentos precedida de nota biográfica:

http://www.scielo.br/scielo.php?script=sci_arttext&pid=S0101-31732012000300015
17 Ca. 4 a.C. - 65 d.C. Também condenado à morte por Nero em 65.
18 26 de Abril de 121 - 17 de março de 180. Imperador romano entre 161 e 180. Reinou com seu

irmão Lúcio Vero entre 161 e 169 (quando Vero veio a falecer).
19 Os códices e o texto grego destas paráfrases foram analisados por Boter (1999), a quem

remetemos o leitor para um exame detalhado.


20 Cf. SPALATIN, SPALATIN, C. A. Matteo Ricci’s use of Epictetus. Korea: Waegwan, 1975, p.

226. Sobre a história da recepção e transmissão do Encheiridion de Epicteto da Antiguidade aos


nossos dias, vejam meu texto publicado na revista de história Fênix:
http://www.revistafenix.pro.br/PDF31/ARTIGO_2_SECAO_LIVRE_ALDO_DINUCCI_FENIX
_JAN_JUL_2013.pdf

12
Revista do Pórtico de Epicteto. Ano 1. Número 1. Maio de 2018

O interesse pelo estoicismo jamais cessou. Onde quer que os textos dos
estoicos se tornam disponíveis, logo surgem interessados, de todas as etnias,
credos e gêneros, para estudá-los e aprender com eles21.
O estoicismo não é casualmente cosmopolita. Tal se deve à sua própria
doutrina de caráter humanista, segundo a qual os humanos constituem uma
grande irmandade. Para os estoicos, vivemos em uma grande cidade cósmica,
habitada por Deuses e humanos. Como nos diz Epicteto: “Não és tu humano?
Parte da cidade: da primeira, dos Deuses e dos humanos, depois desta que é dita
a mais próxima, que é uma pequena imitação da totalidade?” (Epicteto,
Diatribes 2.5.27 – minha tradução). A tese da irmandade de todos os homens se
desenrola com simplicidade a partir daí: se vivemos em uma grande cidade
universal dirigida pelos Deuses, e se os humanos são filhos dos Deuses, então os
humanos são todos irmãos. Essa visão se opôs e se opõe à desigualdade entre os
humanos e à escravidão. Epicteto deixa isso claro em uma de suas diatribes:
Quando, ao pedires água quente, o pequeno servo não te obedecer; ou,
se obedecer, trouxer água morna; ou nem a encontrar na casa, não é
agradável aos Deuses não se irritar nem gritar?
– Então como suportar coisas tais?
– Prisioneiro, não suportas teu próprio irmão, que possui Zeus como
ancestral, que é igualmente filho <de Zeus>, gerado a partir das mesmas
sementes e da mesma semeadura dos céus? Se foste designado a tal posto de
proeminência, imediatamente estabelecer-te-ás como um tirano? Não lembras
quem és e quem comandas? <Não lembras> que são teus congêneres, que são
por natureza teus irmãos, que são descendentes de Zeus?
– Mas eu os comprei, e eles não me compraram.
– Vês para onde olhas? Que <olhas> para a terra, para o precipício,
para essas miseráveis leis dos mortos – e não para as leis dos Deuses?22

21 Como observa Donato Ferrara, há várias iniciativas para promover a difusão do estoicismo no
mundo atual (vejam links aqui: http://socientifica.com.br/2017/10/redescobrindo-os-estoicos-
uma-entrevista-com-aldo-dinucci/), sem mencionar nossa própria iniciativa de formar o Pórtico
de Epicteto, que reúne vários pesquisadores e admiradores do pensamento de Epicteto no Brasil
(cf. nosso link aqui: https://seer.ufs.br/index.php/Epict).
22 Epicteto, Diatribes, 1.13.2-5.

13
A RADICALIDADE DO CINISMO:
ANÁLISE DA CARTA CINCO DE SÊNECA

George Felipe Bernardes Barbosa Borges1

Introdução

Sêneca (1-65), uma das maiores figuras de seu tempo, seja como literato,
filósofo, senador, tutor de imperador ou até mesmo banqueiro, destinou ao seu
discípulo e amigo Lucílio mais de uma centena de cartas. O presente artigo
trata, justamente, da análise de uma dessas cartas – mais precisamente a carta
cinco –, na qual podemos especular que haja uma tensão entre a radicalidade do
cinismo, escola que deu à luz o estoicismo, e o próprio estoicismo, escola à qual
pertence o filósofo da Andaluzia.
Para tanto, faremos inicialmente um breve resumo do que foi o cinismo.
A escola teve como seu fundador Antístenes (445-365), seguidor de Sócrates e
do sofista Górgias. Mas foi com Diógenes de Sinope (404-323), que os cínicos
encontraram seu maior expoente; com certeza, foi ele quem fez o nome do
cinismo romper a barreira dos tempos. Por fim, já no limiar do cinismo grego, a
escola também teve Crates (365-285), um ilustre filósofo chamado de “o abridor
de portas”.
O objetivo central do cinismo era buscar a felicidade humana. Eles
compreendiam que tal felicidade só poderia ser alcançada naturalmente, isto é,
vivendo de acordo com a natureza. Tendo isso em vista, eles negavam qualquer
tipo de interferência cultural na formação do indivíduo, afirmando ser algo

1Bacharel em filosofia pela Universidade Federal de Goiás e mestrando no PPG de Filosofia da


Universidade Federal de Goiás.
Revista do Pórtico de Epicteto. Ano 1. Número 1. Maio de 2018

nocivo, causador de ilusões e vícios. Como consequência, eram vistos como


extremamente radicais em sua filosofia – e eles próprios admitiam isso2.
Os cínicos, em sua filosofia “áspera”, não acomodavam de forma alguma
nenhum tipo de luxo ou adorno, seja intelectual, seja material. Nada que não
tocava urgentemente na vida cotidiana era válido. E, para se libertarem dessas
armadilhas, praticavam a ascese, um constante exercício bem árduo, tanto físico
quanto espiritual.
Apesar de o cinismo ter dado à luz o estoicismo3, veremos, na carta cinco,
destinada a Lucílio, Sêneca fazer duras críticas à escola, que remetem,
justamente, a essa base teórica apresentada.

As críticas de Sêneca

Ao analisarmos esta breve carta minuciosamente, podemos ver pelo


menos cinco críticas pontuais que o filósofo imperial faz ao cinismo. Tais
críticas podem ser acomodadas em uma grande objeção central: uma crítica
geral à radicalidade cínica, que abarcaria todos os outros pontos de dissensão.
Logo no início da epístola, Sêneca recomenda a Lucílio que viva
autenticamente a filosofia, não apenas na aparência. E segue descrevendo o mau
exemplo que, em tese, os cínicos contemporâneos dão: “O aspecto descuidado, o
cabelo por cortar, a barba por fazer, o ódio afetado ao dinheiro, a cama no chão,
são formas deformadas de ambição que tu deves recusar” (SÊNECA, 2014, p.
10). A hipótese que podemos formular nesse caso é que ele esteja atacando,
aqui, apenas os cínicos do período tardio, isto é, os cínicos romanos.
Todavia, ainda sim podemos extrair desses exemplos uma crítica ao
cinismo antigo. Seguindo sua argumentação, Sêneca visa atacar uma das
premissas básicas do cinismo, que é o combate às convenções. Para ele, quando

2 “Mas quando chegam a esta estrada [os adeptos do cinismo] e examinam a sua robustez,
recuam como se estivessem doentes e, de alguma forma, dão voz a uma queixa não sobre sua
própria fraqueza, mas sobre nossa indiferença à dificuldade” (MALHERBE, 1977, p. 107,
tradução nossa).
3 Conta a lenda que Zenão, discípulo de Crates, após este lhe delegar a tarefa de carregar uma

panela de sopa de lentilha e a derrubar com seu bastão desistira, abandonara os ensinamentos
cínicos. Segundo Diógenes Laércio, o fundador da Stoa, apesar de mostrar-se “fortemente
inclinado para a filosofia”, “era muito tímido para adaptar-se ao despudor cínico” (LAÉRCIO,
2008, p.181).

18
Revista do Pórtico de Epicteto. Ano 1. Número 1. Maio de 2018

o estudante de filosofia adere a esse estilo de vida relapso, está indo na


contramão de toda a sociedade. Sêneca afirma categoricamente que não se deve
viver de forma oposta aos seus concidadãos. Acreditamos que isso seja uma
referência ao cinismo, na medida em que tal prática era de praxe para Diógenes.

[...] caminha para trás através das ruas, adentra os teatros


apenas quando as pessoas estão saindo, abraça estátuas
cobertas de neve, rola na areia se os dias são quentes e caminha
descalço no inverno, veste luvas de boxe para se proteger de um
valentão, aponta as pessoas de quem não gosta com o dedo
médio, limpa o catarro da garganta na cara de quem julga
indigno, dorme num tonel ou nos pórticos, só aceita discípulos
que estejam dispostos a carregar um grande peixe ou um pedaço
de queijo em público, assovia em meio à multidão de modo a
expressar seu descontentamento com um orador parvo [...].
(NAVIA, 2009, p. 98)

Como se pode facilmente notar, tais ações de Diógenes despertavam em


seus contemporâneos estranheza e antipatia, na medida em que ele próprio se
colocava como outro em relação a eles, fazendo exatamente tudo ao contrário do
usual. Desse modo, por dois motivos Sêneca aconselha a que não façamos uso
disto em nosso expediente filosófico: primeiro para não atrair atenção
indesejada, segundo porque a filosofia serve para nos conectar aos outros, não
para criar um abismo.
O segundo aspecto que leva Sêneca a fazer tais considerações a Lucílio é
particularmente muito controverso. Porque os cínicos podem, de fato, ser vistos
como misantropos, e seus comportamentos e suas parcas ambições
desconectados das pessoas; contudo, ainda há uma leitura mais incomum, mas
que também tem suporte teórico, pela qual se afirma que os cínicos amavam as
pessoas a partir de um conceito criado por eles mesmos: philanthropia, que
representava o amor do filósofo à massa. Ainda assim, Sêneca tem muitos
motivos para fazer a leitura que fez, colocando os cínicos como párias da
sociedade.
Antes de passar para outras críticas, ainda há outro conselho de Sêneca
que vai ao encontro do que foi discutido nos dois parágrafos anteriores.
Segundo ele, devemos buscar um equilíbrio entre a vida vulgar e a vida

19
Revista do Pórtico de Epicteto. Ano 1. Número 1. Maio de 2018

filosófica. Justamente para não sermos vistos como seres exóticos, recomenda-
se “que todos olhem a nossa vida como algo acima do normal, mas sem que
sejamos uns estranhos para eles” (SÊNECA, 2014, p. 11). O preceptor de Lucílio
salienta que a nossa vida deve ser melhor qualitativamente, não meramente
oposta ou distante da do vulgo.
Sêneca põe isso em jogo porque acredita que um dos papéis do filósofo é
servir como uma referência para os incipientes. Os cínicos, de modo geral, e
principalmente Diógenes, ao se comportarem da forma como se comportavam,
acabavam colocando um obstáculo para si mesmos, que os impedia de alcançar
a excelência no ofício do filosofar.
Num dos trechos mais ferozes da carta, Sêneca afirma que “é
antinatural torturar o próprio corpo” (SÊNECA, 2014, p. 11). Isso mostra sua
opinião em relação a duas noções capitais ao cinismo: a ideia da vida conforme
a natureza e a ideia de áskesis. Ao dizer que o objetivo do estoicismo é viver de
acordo com a natureza (2014, p. 11), e depois fazer tal asserção, é clara a
oposição que Sêneca faz ao que o cinismo crê ser uma vida natural e também ao
seu método de atingi-la.
Para viver naturalmente segundo a doutrina estoica, ao contrário do que
afirmavam os cínicos, não era necessária renúncia à vida social, mudança de
hábitos alimentares, descaso com a higiene e tortura física. Tais preceitos
pertenciam à escola de Diógenes, e o próprio os seguia à risca. Conta-se que
Diógenes comia comida crua, depois de ter observado os animais (2008, p. 171).
Ele fazia isso acreditando estar vivendo conforme a natureza. Evidentemente, ao
adentramos mais no terreno do cinismo, podemos encontrar razões muito mais
razoáveis que esta para justificar tal ação.
Entretanto, isso ilustra bem os propósitos de Sêneca e revela uma das
maiores diferenças entre o estoicismo e o cinismo. Enquanto o cinismo nega
todo e qualquer tipo de luxo e opulência, o estoicismo acredita que tais coisas
são indiferentes. Como quando Diógenes, ao ver duas crianças bebendo água
com as mãos, jogou sua caneca fora (2008, p.161): para o cinismo, a caneca era
um exagero, dado que se podia beber água da mesma maneira sem ela – a
caneca é um objeto supérfluo que nos amolece e enfraquece; ela é um pequeno

20
Revista do Pórtico de Epicteto. Ano 1. Número 1. Maio de 2018

mal que perpetua a ilusão e o vício em nosso espírito4. Já para o estoicismo,


não! A caneca é um indiferente, que mediante um uso sensato pode nos trazer
benefícios5. Quem usa a caneca racionalmente usa-a bem, enquanto quem a usa
irracionalmente, usa-a mal.
Ou seja, viver conforme a natureza para o estoicismo é viver
racionalmente, com a razão julgando o que é um bem, um mal e um indiferente.
Os cínicos, apesar de concordarem com a premissa “viver naturalmente é viver
racionalmente”, discordam de como se deve viver. Não há, como já dissemos,
prerrogativa em nenhuma circunstância. Sêneca é enfático ao discordar dos
preceitos de Diógenes: “A filosofia exige frugalidade, não suplícios, e a
frugalidade não necessita ser desordenada” (SÊNECA, 2014, p. 11).
Além de atacar a “frugalidade desordenada” do cinismo, referindo-se,
como já exploramos um pouco, ao comportamento bárbaro de seus
predecessores, Sêneca também pontua que a simplicidade de estudar e praticar
a filosofia não carece de sacrifícios, remetendo-se abertamente aos exercícios de
ascese dos cínicos. Diógenes Laércio nos relata histórias inusitadas acerca desta
áskesis, como quando Diógenes de Sinope rolou sobre a areia no verão, ou
quando abraçou estátuas e andou descalço na neve e no inverno (DIÓGENES,
2008, pp. 158-160). Tudo isso era feito por ele com o intuito de se acostumar às
dores e aos sofrimentos a que estamos sujeitos. O cínico afirmava que fazendo
tais exercícios estaríamos prontos para quaisquer situações, e poderíamos
enfrentá-las de maneira impassível.

Conclusão

Por fim, podemos concluir que, apesar de muitas similaridades entre as


duas escolas, há também, naturalmente, vários pontos de desacordo e tensão.
Nesta breve correspondência, Sêneca deixa claro ao seu estimado amigo Lucílio
o que lhe desagrada no cinismo.

4É interessante notar que Sêneca elogia Diógenes pela mesma anedota na carta 90.
5Na carta 92, Sêneca dá um exemplo bem parecido que convém citá-lo: “Digo-te mais; a escola
da roupa limpa é algo próprio do homem, pois o homem é, por natureza, um animal limpo e
cuidado. Não é, portanto a roupa que é um bem em si, já que o bem não está na coisa, mas na
qualidade de nossa escola; a moralidade está na nossa forma de agir, não no acto concreto que
praticamos” (Sêneca, 2014, p. 465)

21
Revista do Pórtico de Epicteto. Ano 1. Número 1. Maio de 2018

Todas as suas críticas podem ser elencadas em um único tópico, como


anunciamos logo na aurora do texto. Seu enfoque era o radicalismo que os
cínicos pregavam, no modo de filosofar, vestir-se, comer, falar, agir, em suma,
no modo como eles viviam. Sêneca chega a ironizar a aversão dos cínicos ao
dinheiro, afirmando ser comportamento de “um espírito imperfeito” (2014, p.
11). Preconizava ao seu discípulo uma austeridade bem mais moderada, que não
chamasse atenção indesejada, mas que ainda sim educasse sua alma para o
exercício proveitoso da filosofia.

Referências
GOULET-CAZÉ, Marie-Odile & BRANHAM, R. B (org.). Os cínicos: o
movimento cínico na antiguidade e o seu legado. Trad. Cecília Camargo
Bartalotti. São Paulo: Edições Loyola, 2007.
LAÉRTIOS, Diógenes. Vidas e doutrinas dos filósofos ilustres. Trad. Mário
G. Kury. Brasília: Editora UnB, 2008.
MALHERBE, A. J. The Cynic Epistles: A study Edition. Atlanta: Society of
Biblical Literature, 1977.
NAVIA, L. E. Diógenes, o cínico. Trad. João Miguel Moreira Auto. São Paulo:
Odysseus Editora, 2009.
SÊNECA. Cartas a Lucílio. Trad. J. A. Segurado e Campos. Lisboa: Calouste
Gulbenkian, 2014.
VEYNE, Paul Marie. Sêneca e o estoicismo. Trad. André Telles. São Paulo:
Três Estrelas, 2015.

22
Entrevista com Donato Ferrara, criador do blog
devitastoica.com

Diogo da Luz1

É com grande satisfação que tive a oportunidade de elaborar algumas


perguntas para Donato Ferrara, um admirador do estoicismo que resolveu criar
um blog para falar sobre o assunto. Cuidadoso e bem articulado, Donato
consegue abordar a filosofia estoica de uma maneira simples, mas nunca
superficial, explorando muito bem as questões atemporais dessa doutrina
milenar. Em seu blog encontramos traduções, entrevistas e textos de sua
própria autoria, todos com um conteúdo bem pensado e selecionado que
evidenciam a dedicação e o esmero do autor.
Fiquemos então com a entrevista:

1 - Donato, antes de falar sobre o blog, você poderia nos contar


sobre você e a sua relação com o estoicismo?

Sou formado em Letras. Como tal, mais propenso às discussões que


tratam de estética do que às que tratam, por assim dizer, de ética. Ainda assim,
sempre frequentei alguns filósofos e pensadores. Não posso dizer que tenha
realmente entendido os textos filosóficos que me caíram nas mãos antes dos 30
anos: eu me prendia às sacadas espirituosas e aos arroubos retóricos que havia
ali, mas não sabia muito bem dizer por que aquelas obras eram importantes. E
isso era especialmente verdadeiro com relação aos antigos.

1
Mestre em Filosofia (PUCRS). E-mail: diogoftcons@hotmail.com.
Revista do Pórtico de Epicteto. Ano 1. Número 1. Maio de 2018

Amadurecendo, passei a exigir mais densidade de minhas leituras e mais


coerência das interpretações que fazia. E assim fui levado a entender, por
exemplo, que o gesto de Sócrates que lhe determinou a morte tinha uma relação
estreita com o próprio método que ele havia inventado e posto em prática:
morrer como ele morreu não foi apenas uma consequência social criada por um
revanchismo contra certos indivíduos incômodos na Atenas derrotada na
Guerra do Peloponeso, mas uma necessidade que o próprio Sócrates reconheceu
em si, uma exigência que a vida filosófica lhe impôs naquelas circunstâncias.
“Não mudarei um centímetro, atenienses”, “não fugirei da raia, Críton” — foi
mais ou menos o que ele disse, com bonomia e firmeza. Posteriormente,
encontrei atitudes semelhantes em muitos filósofos do Período Helenístico e de
Roma, os quais me esclareceram que a filosofia tinha uma dimensão prática
fundamental: o filósofo (i. e., o amante da sabedoria) não se portava como os
demais porque era capaz de empregar o pensamento para examinar a vida e
tirar o melhor proveito possível dela. Muitos gregos e romanos pensavam de
maneira muito clara — tão clara que penamos para compreendê-los hoje —, e
isso tinha impacto em seu modo de vida.
O encontro com a obra de Pierre Hadot também teve importância para
mim, fornecendo-me algumas chaves a mais para a decifração dos antigos. Nos
escritos do francês, a distinção entre discurso filosófico e filosofia em si nos dá a
medida exata da distância que separa a filosofia ensinada nos ambientes
universitários atuais — exceções à parte — daquela dos gregos e romanos, visto
que se nota nos modernos uma tendência à absolutização do discurso, como se o
mero manejo de um arsenal crítico e conceitual fosse o suficiente para destacar
o “sujeito filosofante” do comum dos mortais. Se dermos ouvidos a muitos dos
antigos, porém, reconheceremos que ou as palavras têm peso e valor,
comunicando convicções interiores que tentam traduzir-se em ações, ou são
como bolhas de sabão. Também fundamental em Hadot é o seu resgate da noção
de exercício espiritual junto aos antigos, particularmente iluminadora em se
tratando dos estoicos. A “vida examinada” é posta em funcionamento por meio
de certos expedientes de autovigilância, ora analítico-científicos, ora
psicológicos, ora mnemônicos, ora mesmo físicos, que forjam um recesso de
vida contemplativa no próprio seio da vida ativa. Constatar isso na filosofia

24
Revista do Pórtico de Epicteto. Ano 1. Número 1. Maio de 2018

estoica, além da centralidade da excelência/virtude (aretḗ), tornou-a


particularmente atraente para mim.
O professor William B. Irvine convenceu-me, além do mais, de que é
possível aplicar certos aspectos do estoicismo sem comprar, anacronicamente, o
“pacote todo”. O que importa é que desde sempre filosofar é, como bem o
formulou Montaigne, aprender a morrer, não a seduzir incautos. Ou é isso, ou a
filosofia não passa de uma curiosidade intelectual como outra qualquer. Para
mim, ao menos é assim.

2- Como surgiu a ideia de criar um blog sobre estoicismo?

Na verdade foi algo bem pouco original. Eu lia alguns blogs em inglês,
como o “Stoicism Today” (atual “Modern Stoicism”, mantido por Donald
Robertson e Greg Sadler) e o “How to Be a Stoic” (de Massimo Pigliucci), e
resolvi fazer algo parecido em minha própria língua. Hesitei bastante porque
não me considero um estoico, apenas alguém interessado em possíveis
aplicações dessa filosofia na contemporaneidade, e também por não saber se o
conhecimento que tinha sobre o assunto renderia dezenas de posts diferentes.
Até agora, tem dado certo: escrevo devagar, dedicando-me uma ou duas horas
noturnas por dia a meus textos, mas sempre me sai alguma coisa que me parece
razoável. Adquiri um domínio na web (por ser mais difícil abandonar
uma página que me custou algum dinheiro) e também faço traduções, a fim de
dar aos leitores de língua portuguesa uma noção do que vem sendo discutido lá
fora.
O que escrevo ou traduzo não costuma suscitar muita discussão em
forma de comentários, mas às vezes recebo uma ou outra mensagem de alguém
dizendo que foi convencido a ler determinado autor ou a pôr certa ideia em
prática por causa de um post do “De vita stoica”. É gratificante, mas ao mesmo
tempo me põe uma série de responsabilidades. Deixo claro que não sou o porta-
voz de movimento nenhum e que meus textos não exprimem o que é “o”
estoicismo, mas tão-somente uma interpretação muito particular da coisa. Seria
muito bom se a filosofia estoica atualizada tomasse também aqui no Brasil o
vulto que tem tido no exterior — especialmente porque nossa sociedade está

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Revista do Pórtico de Epicteto. Ano 1. Número 1. Maio de 2018

carente de, digamos, valores superiores e de homens e mulheres capazes de


vivê-los no cotidiano —, mas seria detestável se eventualmente tivéssemos
“líderes de seita” ou “gurus” pregando aos outros o que não aplicam a si
mesmos. Os mais antigos adeptos do Pórtico tinham uma concepção de
sabedoria como a de uma meta praticamente inatingível: o sábio autêntico era
tão raro quanto a Fênix Etíope, somente surgia a cada 500 anos. Eles não
supunham diferença perceptível entre o não instruído e o instruído em filosofia,
ambos igualmente tolos (phaûloi). Trata-se, portanto, de uma escola filosófica
que se municiou, desde muito cedo, de vacinas contra a vaidade, a hipocrisia, o
chauvinismo e a prepotência. Quando um aspirante à sabedoria falha em tais
quesitos, falha por sua própria falta de vigilância. Buscando harmonizar-me
com isso, gostaria de que aquilo que publico no “De vita stoica” fosse tomado
como algo não muito diferente de uma exortação nestes termos: “não acredite
em mim, leitor: vá, leia os originais, releia-os, reflita por si mesmo,
experimente as coisas que julgar convenientes, ponha-se à prova, discorde de
mim se achar que erro — mas esteja imbuído da certeza de que é a vida o que
importa, não as palavras com que tentamos corrigi-la ou torná-la melhor”.

3 - Você poderia sugerir um ou dois textos estoicos que lhe


agradam? E qual seria o motivo desses textos lhe agradarem?

Não sugerirei um nem dois, mas três — os que me parecem


indispensáveis. Falo das Cartas a Lucílio, de Sêneca, das Diatribes, de Epicteto
e das Meditações, de Marco Aurélio. Valem a pena não só por serem
provavelmente as obras mais alentadas do corpus estoico — e portanto as mais
ricas em temas e argumentos —, como também por transportarem o leitor para
uma dimensão composta pelo que há de mais cotidiano, concreto e mesmo
íntimo na vida desses grandes personagens do estoicismo da época imperial.
Sob ângulos distintos em cada caso, vemos esses três filósofos submeterem o
material da existência do dia a dia ao escrutínio dos princípios da filosofia do
Pórtico, encontrando soluções para os problemas que surgem, mas também
expondo perplexidades e confessando fraquezas, pontos cegos. De certa
maneira, passamos a fazer parte da vida deles, somos admitidos em um círculo

26
Revista do Pórtico de Epicteto. Ano 1. Número 1. Maio de 2018

muito próximo e exclusivo. Ninguém sai a mesma pessoa que entrou dessas
leituras; a coisa, porém e além do mais, ganha ainda maior interesse a cada
releitura. De modo que são livros que devem ser lidos, relidos, treslidos,
mantidos à cabeceira, à mão, à memória. É uma infelicidade não podermos
contar com bom número de traduções dessas três obras (quando existem!) em
nosso idioma, além de vê-las tão pouco e tão pobremente editadas. É um
ingrediente não negligenciável de nosso isolamento cultural. Nós, que nos
interessamos pelo estoicismo quer no seu aspecto acadêmico, quer no prático,
temos muito a fazer quanto à divulgação desta tradição filosófica no Brasil, tão
antiga mas tão atual.

4 - Você poderia citar um trecho de uma obra estoica que lhe


agrade?

São muitos os trechos interessantes, esclarecedores, inspiradores. Cito


este, que tem muito apelo para mim. Colocando-se contra os que se ocupam de
assuntos filosóficos somente para exibir-se, Epicteto traz à memória algo que
seu mestre Musônio Rufo costumava dizer (está nas Diatribes, III, 23: 29): “Se
vocês ficam folgados o bastante para me aplaudir, é que não digo nada que vale
a pena”. É um dito que cristaliza muito do que os estoicos viam como virtuoso.

27
Sutilezas de um imperador estoico
[ou: De um escravo]

Thiago David Stadler1∗

Certa vez um escravo marcomano, que de pés descalços chegou às


margens do Rio Danúbio (tal como alguém, quando esconde um valioso
sentimento no peito), encontrou-se com um andarilho que voltava da fortaleza
de Carnunto. O escravo no solo prostrou-se, sem fala. Já o andarilho, privado de
fôlego pelo cansaço, parecia um desventurado que a terra sacudiu. Extenuado de
tanto caminhar, debaixo de uma árvore pôs-se. Tempo depois, mais descansado,
não tardou em lançar contra o escravo uma bela pergunta, pois lhe pareceu que
os olhos de seu pouco falante companheiro miravam a algo importante. O que
vês, meu amigo?. De coração e de espírito o escravo respondeu: Apenas o
indiferente. Como se tal coisa entendesse, o andarilho aparentou-se todo
concordante. O escravo, que nessas terras sempre rondava, com paciência
inabalada, muitos viajantes via naquele horizonte irradiante. Rostos como o do
andarilho lhe eram comuns. Embora o silêncio concordante não o fosse.
Não me parece que sejas nem bom nem mau, andarilho. De minha voz
pensante, que se faz quase fora do curso de um rio, mostrou-te atencioso.
Então hei de contar-te sutilezas que ouvi de um imperador romano. Ora, o
andarilho de espáduas curtas e cabelos longos espantou-se. Isto, sem dúvida
alguma, lhe soou mais estranho que o próprio indiferente. Dá-me atenção
agora, já que o silêncio já me ofereceste. Marco Aurélio. Já ouviste falar dele?

1∗Doutor em História. Professor Adjunto do Colegiado de Filosofia da Universidade Estadual do


Paraná campus União da Vitória. Professor Permanente do Programa de Mestrado Profissional
em Filosofia (PROF-FILO). Professor Colaborador do Programa de Pós-Graduação em História
da Universidade Federal do Paraná (PPGHIS). Pesquisador do Núcleo de Estudos
Mediterrânicos (NEMED/UFPR). Contato: thibastadler@gmail.com
Revista do Pórtico de Epicteto. Ano 1. Número 1. Maio de 2018

Logo que ouviu tais palavras, o andarilho assentiu com a cabeça. Caro amigo,
muitos não veem maneira de um escravo maltrapilho proferir tamanho
infortúnio como farei eu, talvez, somente, com o aval de um imperador como
Marco Aurélio. Então me ouve. Vieste para terra, ao contrário do que tudo
parece, sem te preocupares com leis, regras, tribunais, nem mesmo com a
opinião dos outros. Tendo assim, pois, o andarilho refletido, pareceu-lhe certo
que o escravo quase agira com imprudência. Contudo, o escravo, mostrou-se
forte e desejoso de continuar a expressar suas palavras. Por isso tudo o
andarilho deu-lhe ouvidos.
O tempo da vida humana é um ponto e a composição do corpo em seu
conjunto é corruptível. As coisas da alma não passam de sonhos e delírios. Já a
vida é tão somente guerra e exílio. O andarilho, que há muito caminhava sem
rumo, sacudiu outra vez a cabeça. É realmente acertado esse teu pensamento.
Levo o corpo como se em exílio estivesse. Tive por sorte viver, entre os homens,
e alegro-me com as honrarias e a fama que carrego. Embora o esplendor da
vida em exílio certas vezes mostrou-se pleno sofrimento. Avaliando as ações
dentro de sua alma tranquila o escravo respondeu. Não me parece, andarilho,
que entendeste o que ofereço. A fama e a honraria é tão somente esquecimento.
Já a luta entre prazer e sofrimento nada é se alcançada a felicidade interior.
Que pensariam, quando ouvissem que um escravo nas margens do Rio Danúbio,
por onde muitos passavam, proferiu palavras tão duras ao mundo das honrarias
com manifesta equidade? O andarilho, por mais doloroso que fora ouvir
desvantajosas palavras, esperou em cuidadoso silêncio a chegada das novas
sutilezas advindas de um escravo. O que então nos resta a fazer? Somente uma
coisa, a filosofia. Ter familiaridade com a filosofia. Ter constância e
perseverança na filosofia. Capaz de compreender que com estas palavras muito
aprenderia, o andarilho lhe perguntou, de rosto admirado: Se pudesses epilogar
esta filosofia que aprendeste com Marco Aurélio, como ficaria? Com grato
aspecto o escravo lhe disse, em resposta: Necessita de pouco. Aprende a ficar
tranqüilo. Não persigas as frivolidades. Fica longe da retórica. Sê complacente
com aqueles que te ofendem. Vive conforme a natureza.
Deslumbrado com as palavras que, como fogo, abrilhantavam-se diante
de seus olhos, o andarilho ouviu a sentença final daquele escravo sem pingo de

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Revista do Pórtico de Epicteto. Ano 1. Número 1. Maio de 2018

medo. Vou revelar-te, conquanto isso sirva de acréscimo às sutilezas


apontadas por Marco Aurélio. Os ensinamentos que muitas censuras
ganhariam, caso não fossem ditos por um imperador revelam, pois, os atentos
dizeres de outro escravo que Marco Aurélio conheceu a partir de Q. Júnio
Rústico. Perplexo com a revelação, o andarilho perguntou se o escravo citado
era o seu próprio interlocutor. Disse-lhe, então, como última resposta antes de
partir: Pela minha própria boca lhe contarei quem fora tal escravo. Sim, digo
mesmo que o seu nome era Epicteto. Um escravo manco que sutilezas ensinou
a todos àqueles que os ouvidos lhe cederam. Foi desse modo que as sutilezas de
um escravo chegaram aos ouvidos de outro escravo por intermédio de um
imperador romano2.

2 As falas do escravo foram reelaboradas a partir das Meditações ou Solilóquios de Marco


Aurélio. Sendo as referências: I.5; I.6; I.7; I.14; II.17. (MARCO AURELIO. Soliloquios.
Tradução de Don Jacinto Díaz de Miranda. Revisada por J. M. de Estrada. Buenos Aires: Angel
Estrada Editores, 1946).

31
Cãozinho de estimação

Antonio Carlos Tarquínio

Tenho uma amiga que perdeu seu cãozinho de estimação por falecimento
há mais de ano. Logo que o perdeu e anunciou que o havia perdido, aconselhei
adotasse outro.
Não parece que tenha seguido minha recomendação, já que vejo
constantemente as fotos do animalzinho desencarnado em postagens
ininterruptas nas redes sociais.
A atitude fala por si.
Entre o passado e o presente — ela escolheu o passado. Entretanto, o
passado já não é mais...
Você vai me dizer: Puxa! Todo mundo tem direito ao luto. OK. Mas,
quanto tempo durará essa homenagem ao ser querido que se foi?
O caso é que, enquanto sofremos presos ao que passou, os abrigos
seguem abarrotados de animais implorando por uma nesga de atenção, uma
gota de amor...
E isso tudo por quê? Porque queremos que o que morre permaneça vivo.
No entanto, é da essência das coisas não permanecer. A única constante neste
mundo é a mudança, a impermanência.
Como observou certa vez Antonino: “Uva verde, uva madura, uva-passa;
tudo são mudanças, não para o não-ser, mas para o que ainda não é”1.
Ninguém há de chorar porque a oliveira deu azeitonas. E um dia a
própria oliveira descansará também...

1 Meditações, Marco Aurélio, XI, 35.


Revista do Pórtico de Epicteto. Ano 1. Número 1. Maio de 2018

Deixemos o passado para trás e abracemos o presente com todas suas


possibilidades de sorrirmos, de amarmos, de sermos felizes!

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De Epicuro para Hermaco: sobre o agora e a amizade

Marcos Adriano Zmijewski1

Eis que, num belo fim de tarde, sob a agradável luz de mais um pôr do sol
em Atenas, Epicuro se reúne com seu querido e amado amigo Hermaco 2, no
aconchegante gramado do Jardim. Ambos, sem esconderem a alegria que
sentiam por estarem juntos enquanto a vida lhes era favorável, conversavam
sobre a necessidade de se cultivar (i.e., viver com excelência) o instante presente
como se este fosse o único momento que realmente importasse. Naquela
ocasião, o que também importava era a possibilidade de se compartilhar o único
instante que temos disponível com aqueles que, desta ou daquela maneira,
tornam a nossa existência mais prazerosa: os amigos. A amizade, aliás, era o
outro ponto que orientara aquela conversa. Tinham, portanto, interesse em
tratar destas duas coisas: do agora e da amizade. E assim o fizeram.
A começar pelo agora, Epicuro discorria longa e alegremente,
enaltecendo o fato de que sempre é possível viver prazerosamente, ainda que
algumas adversidades se façam presentes, enquanto Hermaco o escutava
atentamente. Trata-se, dizia ele, de algo que depende do saber discernir entre
aquilo que nos traz dores e o que nos proporciona a serena paz no coração. No
entanto, para que estejamos em condições de exercer a faculdade do
discernimento, é preciso, primeiro, que conheçamos a nossa própria natureza,
uma vez que será por meio desse conhecimento que saberemos o que nos é
benéfico e o que nos é prejudicial. — Ocupa-te, portanto, recomenda ele, da

1Graduado em Filosofia pela Universidade Estadual do Paraná (UNESPAR) – campus União da


Vitória. Mestrando em Filosofia pela Universidade Federal de Santa Maria (UFSM). E-mail para
contato: zmijewski.filo@gmail.com.
2 Este que, quando da partida do mestre, passara a ocupar a direção do Jardim. Ao lado de

Metrodoro, Hermaco fora um dos mais fiéis discípulos de Epicuro.


Revista do Pórtico de Epicteto. Ano 1. Número 1. Maio de 2018

investigação acerca do que te é natural e necessário, e evita, caro Hermaco, tudo


aquilo que for fruto da imaginação fantasiosa e do desejo imoderado 3. Fazendo
isso, estarás caminhando em direção daquilo que todos nós buscamos alcançar:
a felicidade. A qualificação do instante presente, querido amigo, se dá mediante
o alcance do estado de ataraxia, que nada mais é do que estar livre de
perturbações, produtos, na maioria das vezes, da ignorância acerca dos assuntos
aqui te apresento. Não significa dizer que a ataraxia é sinônimo de felicidade, e
sim que é por meio da primeira que chegamos até a segunda. Aquele que medita
sobre essas questões e procura conhecer a si mesmo, mediante o estudo que
aqui te recomendo, “colhe os doces frutos de um tempo bem vivido, ainda que
breve4”. Entenda-se, ilustre amigo, que por um tempo bem vivido não me refiro
ao gozo de grandes banquetes, à posse de grandes fortunas e de poder,
tampouco aos deleites do sexo5, mas ao que realmente nos importa: a ausência
de sofrimentos e de dores6, visto que, quando estes se fazem presentes, a
serenidade de espírito e a alegria no coração é que não estão.
Com efeito, o tema da amizade não está distante do que temos dito a
respeito do agora. Pelo contrário, para que possamos aproveitar o instante
presente7 com a devida excelência, devemos contar com a presença dos amigos.
A amizade é, querido Hermaco, “uma necessidade. Da mesma forma que que
lançamos a semente na terra, devemos tomar a iniciativa da amizade; depois ela
cresce e se transforma na vida em comum entre todos aqueles que realizaram
plenamente o ideal da agradável serenidade”8. Ao que Hermaco indaga: — Sob
quais termos essa relação deveria se dar, amável Epicuro? — De amabilidade,

3 EPICURO. Máximas Principais. Trad. João Quartim de Moraes. São Paulo: Edições Loyola,
2013, p. 47, MP XXIX.
4 EPICURO. Carta a Meneceu. Trad. Álvaro Lorencini e Enzo Del Carratore. São Paulo: Editora

UNESP, 2002, p. 31.


5 Ibid., p.45.
6 A razão, tanto dos sofrimentos que nos cercam como das dores que nos machucam, é, na maior

parte dos casos, por conta da ausência. Mas de que ausência se trata? Daquela que diz respeito
ao simples e necessário para nossa subsistência. Por exemplo:uma vez suprida a falta de
alimentação, o sofrimento causado pela falta de alimentos vai embora. Nesse caso, aliás, o pão e
a água, para Epicuro, têm o mesmo poder de um requintado banquete.
7 O famoso (e pouco entendido) carpe diem quam minimum credula postero, do ilustre poeta

romano Horácio (65 – 8 a.C.), tem suas raízes na filosofia de Epicuro. Vide, a esse respeito:
SPINELLI, Miguel. Os Caminhos de Epicuro. São Paulo: Edições Loyola, 2009.
8 LAÉRCIO, Diógenes. Vidas e doutrinas dos filósofos ilustres. Brasília: Editora Universidade de

Brasília, 2008, X, 120.

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Revista do Pórtico de Epicteto. Ano 1. Número 1. Maio de 2018

carinho, justiça, igualdade, responde o mestre. Ser amigo é (para além dos
jargões que circulam mundo afora) tratar o outro como tratamos a nós mesmos!
Tal relação, no entanto, deve ser precedida por um cuidado dirigido por e
perante si mesmo. Só estaremos em condições de ser amigos, no real sentido da
palavra, quando estivermos com o nosso eu bem cuidado, isto é, livre de
aflições, uma vez que, se não estivermos de bem com nós mesmos (eustátheia),
faremos nossos amigos carregarem um fardo que é nosso. Dito de outro modo:
sem esse cuidado, em vez de vivenciarmos grandes momentos ao lado dos
nossos amigos, levaremos até eles os problemas de que não fomos capazes de
dar conta. A amizade é, caro Hermaco, uma relação de carinho e amabilidade
mútua, e não uma relação de favores. É bem verdade que ela começa a partir de
interesses individuais, mas uma vez consolidada, passa a se reger pelo recíproco
amor empreendido por aqueles que se dizem amigos9. Ela é, ainda, o mais
importante fruto da sabedoria. O sábio é aquele que conhece e cuida de si
mesmo, e, por ser assim, está disposto a oferecer os melhores sentimentos que
possui àqueles em cuja proximidade escolheu viver. É a amizade, meu amigo, o
melhor meio para desfrutarmos de uma vida serena e feliz!
Cabe, por fim, recomendar que medites acerca disto que aqui te hei
indicado, bem como sobre todo o resto da doutrina epicurista, ilustre Hermaco.
A vida é, para o sábio, o maior dos bens. Devemos, portanto, prezar por ela,
vivendo a única fração dela a que temos acesso imediato: o agora. Preocupa-te o
menos possível com o amanhã, e não temas o que não está sob os nossos
domínios. Conhecer a natureza do cosmos e do homem pode te ajudar nesta
tarefa. E lembra-te: um dos caminhos para alcançar a serenidade de espírito e a
paz no coração, com excelência, é cultivando a amizade!
Fica bem, querido amigo, e antes de problematizares o instante presente
como muitos o fazem, vive-o!

9“Toda amizade deve ser buscada por si mesma, mas origina-se de seus benefícios”. EPICURO.
Sentenças Vaticanas. Trad. João Quartim de Moraes. São Paulo: Edições Loyola, 2014, p.30, SV
XXIII.

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Histórias Terapêuticas:
Abordagens Diretiva e Interativa

*Paulo Cesar da Silva Gonçalves

Apresentação

Entre 2001 e 2007 realizamos projeto voluntário de atendimento


psicológico a crianças portadoras de câncer na Casa de Apoio do Guará, da
ABRACE, em Brasília, Distrito Federal, partindo da prática de contar histórias
para crianças e pré-adolescentes hospedados naquela instituição.
Nos primeiros sessenta dias, com o objetivo de se estabelecer vínculo
terapêutico com as crianças, intercalamos histórias convencionais com sessões
de brincadeiras, truques e mágicas. Com raríssimas exceções, casos de profundo
estresse físico e emocional decorrente da quimioterapia, quase a totalidade dos
pacientes reagiu positivamente a esses estímulos, demonstrando interesse e
motivação em participar das sessões, sempre em grupos, selecionados por faixas
etárias.
A partir de então, as histórias passaram a ser direcionadas para
determinados objetivos. Identificadas as principais dificuldades das crianças —
tais como: medos arquetípicos e culturais (monstros, bruxas, lobisomem, credos
populares e regionais); temores em relação à doença; medo da morte; rejeição
ao tratamento hospitalar; inadaptação ao novo ambiente (Casa de Apoio) e
mudança de hábitos, entre outras —, o conteúdo das histórias passou a ser
trabalhado de modo a ajustá-lo aos objetivos pretendidos.
Revista do Pórtico de Epicteto. Ano 1. Número 1. Maio de 2018

Surge, então, uma nova forma de contar histórias. Histórias não


tradicionais, com novos conteúdos, adaptados à situação específica vivenciada
pelos pacientes.
Diante de cada situação que se deseje trabalhar — como, por exemplo,
insegurança, baixa autoestima, resistência ao enfrentamento da doença, perdas
traumáticas de órgãos ou partes do corpo em função do tratamento ou cirurgia,
depressão, apatia etc. —, o terapeuta-contador de histórias cria conteúdos e
roteiros que se identifiquem com a dificuldade enfrentada pelo paciente, seja de
forma diretiva , em que narra a história e a ajusta em função das reações da
criança, seja interativa, em que a criança participa da criação do roteiro,
sugerindo soluções e tomando decisões.
Como resultado dessa experiência, foi construído um acervo de histórias,
das quais selecionamos algumas que fazem parte deste trabalho.

HISTÓRIA 1 (Diretiva)

R., paciente do sexo feminino, 11 anos, portadora de tumor ósseo,


apresentando no início da terapia quadro depressivo, insegurança e negação
da doença, por não aceitar a inevitável amputação da perna. A criança se
recusava a falar sobre a cirurgia iminente, no que era reforçada pela mãe, que
se agarrava à crença de uma cura milagrosa, e lhe dizia que “não permitiria
que médico algum lhe cortasse a perna”.

Foi contada a seguinte história:


“Certo dia nasceu uma ninhada de passarinhos sobre os ramos de uma
árvore bem alta. Quando chegaram à idade de voar, a mãe lhes disse: — Batam
as asas com força, aproveitem o vento, saltem e voem pelo céu! Quando passou
uma rajada de vento, todos saltaram e deslizaram pelo ar, exceto um, que depois
de voar certa distância, as asas já não lhe obedeciam, e foi caindo, caindo, até
atingir o chão com força. Sentiu então que não podia se mexer. Uma das asas
havia se quebrado.” (Nesse momento a criança, que acompanhava a história
com muita atenção, perguntou: — “Mas a asa quebrou muito? Como ela
ficou?”). “Bem, como a queda foi muito forte, a asa ficou praticamente separada

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Revista do Pórtico de Epicteto. Ano 1. Número 1. Maio de 2018

do corpo, presa apenas por um pedaço de pele. Mas nesse momento surgiu do
meio do mato um menino, que, vendo o pássaro sofrendo com a asa partida,
teve uma ideia para ajudá-lo. Pegou um graveto (pequeno pedaço de pau) e fez
uma espécie de curativo, unindo as duas partes da asa quebrada e amarrando
firme com uma linha. Pegou cuidadosamente o pássaro e o colocou descansando
em uma moita bem fofinha. Depois de algum tempo chegaram os outros
passarinhos, seus irmãos, e ele lhes contou o que havia acontecido. Amparado
pelos irmãos, ele tentou bater as asas por várias vezes, com muita paciência e
coragem, até conseguir se erguer no ar. O menino, de longe, observou, com
muita alegria, que seu amiguinho aprendera a voar de novo, não com tanta
facilidade e ousadia quanto seus irmãos, mas voava...”
Ao final da história a menina suspirou e disse: — “Olha, o que eu tenho
medo mesmo é de morrer, de não acordar depois da operação!”. A partir daí a
criança conseguiu expressar seus temores e dúvidas com relação à cirurgia,
sendo informada então sobre os procedimentos cirúrgicos e que iria receber
uma prótese, uma perna substituta, e poderia, do mesmo modo que pássaro
voou, voltar a andar, não do mesmo jeito que antes, mas ia andar...
Ficamos surpresos e felizes quando, ao visitá-la no hospital, no dia
seguinte à cirurgia, a enfermeira de plantão contou que, ao chegar à enfermaria,
ela lhe fez um pedido: — “Por favor, chamem uma psicóloga para ajudar minha
mãe, pois ela vai precisar…”. Uma semana depois encontrei a paciente já
circulando pela enfermaria na cadeira de rodas; e ela me apresentava com
orgulho às outras crianças: — “Este é meu psicólogo. Ele faz mágicas e me conta
histórias”.

HISTÓRIA 2 (Diretiva)

J., paciente do sexo feminino, 8 anos, portadora de câncer no olho


esquerdo, com perda do globo ocular, em decorrência da extração do tumor.
Submetida a sessões de radioterapia, a criança apresentava quadro
depressivo, baixa autoestima e dificuldade de interação social, com
incapacidade de expressar suas emoções e sentimentos.

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Revista do Pórtico de Epicteto. Ano 1. Número 1. Maio de 2018

Foi contada a seguinte história:


“Era uma vez uma menina que vivia trancada em sua casa. Jamais saíra
porque tinha medo de tudo, e por isso não conhecia nada do mundo. Os
meninos da rua que passavam em frente à casa zombavam dela, que mais
parecia um bichinho enjaulado. Por mais que seus pais insistissem, nunca teve
coragem nem vontade de sair do seu quarto.

Certa manhã, quando seus pais haviam saído para o trabalho na roça, ela
viu encostado no vidro da janela um coelhinho branco. Levou um susto, pois
nunca havia visto um animal. Estranhou as orelhas compridas e o focinho que
não parava de mexer. Mas em seu coração, pela primeira vez não sentiu medo.
Alguma coisa lhe dizia que podia confiar naquele animalzinho tão fofinho e
bonitinho. Ela se aproximou e, para seu espanto, o coelho lhe falou: — Oi, linda
menina, quer ser minha amiguinha? Nunca ninguém lhe dissera que era linda, e
ela sem pensar fez que “sim” com a cabeça e sorriu.
— Meu nome é Branquinho e quero convidar você para um passeio, disse
o coelhinho. Ela tremeu com o convite, mas Branquinho a tranquilizou: — Não
se preocupe, vou ser seu guia e nada lhe acontecerá!
Na verdade a menina já estava cansada de sentir medo e das zombarias
dos meninos. Respirou fundo e disse: — Está bem, vamos lá!
E os dois saíram porta a fora e seguiram em direção ao bosque.
Branquinho sempre à frente, mostrando o caminho. Passaram por um campo
florido e a menina se maravilhou com tantas cores. À medida que avançavam,
iam surgindo árvores altas e frondosas, com frutos de todos os tipos e sabores.
Ela ia experimentando tudo o que podia. De repente ela percebeu que havia
outros animais na floresta, e o coelhinho ia apresentando um a um: a coruja, a
borboleta, a cobra, o macaco, e os outros coelhos, seus irmãos. Mais adiante ela
viu uma montanha e Branquinho, percebendo a curiosidade da menina, fez sinal
para subirem. Ao chegarem lá em cima, a menina ficou encantada com o que
via: um grande vale, com rios e lagos e, bem longe, ela reconheceu a casa dela,
bem pequenininha. Perto do horizonte surgia o mar, azul, que se confundia com
o céu. O coelhinho explicava a ela que os rios, que lá de cima pareciam cobras,

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Revista do Pórtico de Epicteto. Ano 1. Número 1. Maio de 2018

vinham desde as fontes e seguiam até o mar, onde existiam também muitos
animais, de todos os tamanhos e que se chamavam peixes.
O sol já estava se pondo e Branquinho disse à menina: — Está vendo
como o mundo é bonito e ninguém precisa ter medo dele? A menina sorriu e
percebeu que sua vida tinha mudado. Em vez de medo, ela sentia uma grande
alegria em seu coração, pois sabia que havia aprendido muitas coisas naquele
dia e que tudo agora ia ser diferente.”
Ao final da história a paciente pediu: — “Você me ensina a escrever meu
nome?”.
Depois de muitas tentativas e repetições ela festejou, com entusiasmo, a
vitória de ter aprendido a escrever seu nome, com letras grandes e bonitas. Para
o terapeuta, ao perceber que ela sempre sentira vergonha de não saber escrever
o próprio nome, era a certeza de que sua pequena paciente começava uma
grande e maravilhosa aventura pelos caminhos da vida.

HISTÓRIA 3 (Interativa)

J., paciente do sexo masculino, 6 anos, com distúrbios do sono,


ansiedade e insegurança, expressando, contudo, diante da mãe, acentuado
comportamento agressivo. Com reduzida autoestima, a criança apresentava
gagueira e tiques nervosos.

Foi-lhe proposta a seguinte situação:


Um menino resolve sair de casa e entra numa floresta onde irá enfrentar
desafios e dificuldades. O objetivo é fazer escolhas e tomar decisões, utilizando
criatividade e inteligência. O terapeuta usa uma folha de papel, onde será
desenhado o roteiro da história/aventura.

1º desafio: Você está perdido na floresta e de repente surge um elefante


faminto e furioso, que vem em sua direção. Que fazer? Respostas sugeridas:
Fugir correndo; ficar paralisado de medo ou...?

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Revista do Pórtico de Epicteto. Ano 1. Número 1. Maio de 2018

2º desafio: Você está atravessando uma lagoa, quando surge um jacaré


feroz, com a boca aberta, pronto para comê-lo. Que fazer? Respostas sugeridas:
Sair nadando para fugir; chorar de medo ou...?

3º desafio: No meio do mato apareceu uma cascavel, sacudindo seu


chocalho, pronta para o bote. Que fazer? Respostas sugeridas: Tentar fugir
correndo; jogar uma pedra na cobra ou...?

4º desafio: Um leão feroz e com muita fome aparece à sua frente. Que
fazer? Respostas sugeridas: Gritar por socorro; sair correndo ou...?
Uma terceira opção é o que se espera da criança, mas de um modo geral,
a criança com baixa autoestima ou depressiva tende a optar por uma das duas
primeiras. Foi o que aconteceu com o paciente em questão. Escolheu fugir ou
ficar parado sem saber o que fazer. O terapeuta então pode sugerir uma solução,
para facilitar o insight da criança. Por exemplo, no primeiro desafio diz à
criança: — “Você é inteligente, tenha calma. Se fugir, o elefante certamente irá
alcançar você. Olhe o elefante, ele tem pernas altas. O que você pode fazer?”. A
criança então descobre que pode se abaixar e o elefante passará por cima dela,
sem machucá-la.
No segundo desafio, o terapeuta desenha um pedaço de pau ou galho,
exatamente do tamanho da boca aberta do jacaré, e diz: — “Olhe em volta, veja
se pode usar alguma coisa para evitar a mordida”. A criança então descobre,
após alguma reflexão, que se usar o pedaço de pau na posição vertical poderá
travar a mordida do jacaré.
No terceiro desafio, o terapeuta desenha um galho em forma de Y (tipo
forquilha) e sugere que poderá usá-lo para evitar o bote da cobra. A criança
descobre que pode fazê-lo, usando a forquilha para imobilizar a cobra.
No quarto e último desafio, será exigido que a criança descubra uma
forma criativa de se livrar do leão, o que poderá conseguir após algumas
tentativas frustradas e avaliadas pelo terapeuta. No caso, a criança agarrou um
cipó pendurado numa árvore e conseguiu se salvar.

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Revista do Pórtico de Epicteto. Ano 1. Número 1. Maio de 2018

O que se observa após a história é que a criança tende a melhorar seu


nível de autoconfiança e criatividade, no que é estimulada pelo terapeuta, que
lhe diz: — “Está vendo como você é inteligente? Tenha sempre calma e use
sempre sua inteligência. É normal ter medo das coisas perigosas e ter vontade
de fugir ou desistir. Mas você pode descobrir uma solução inteligente para
enfrentar seus medos e os perigos”.

AVALIAÇÃO DOS RESULTADOS

Apesar do caráter experimental do projeto, observamos expressivo


aumento dos níveis de motivação e criatividade das crianças, significativa
melhora em sua autoestima e, consequentemente, maior facilidade no
enfrentamento da doença e de seus conflitos pessoais.
A descoberta de seu valor como pessoa e a ampliação de sua competência
para a vida ajudam as crianças a se adaptarem à nova fase de sua existência e a
superarem as sequelas do tratamento, como perda de órgãos ou partes do corpo.

O MUNDO MÁGICO DAS HISTÓRIAS

Toda história é como um sonho. Através dela nos movemos com a leveza
da imaginação e o poder da fantasia. Uma história terapêutica deve, portanto,
estimular o mundo virtual que existe em todo ser humano. Um mundo feito de
uma realidade em que tudo é possível, em que somos poderosos e donos do
nosso destino.
Esse SER fantástico que habita nas profundezas da cada um de nós é
intocável, nada pode diminuí-lo ou aumentá-lo, porque ele está além do tempo,
do espaço e de todos os limites. Nenhum mal, nenhuma doença, pode atingi-lo.
Nada pode lhe causar dano. Se perdemos parte do nosso corpo, ELE continua
inteiro; se nosso corpo adoece, ELE continua forte e sadio. Histórias
terapêuticas objetivam revelar à criança a existência dessa dimensão
maravilhosa, tornando-a competente diante da vida e capacitada a enfrentar

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Revista do Pórtico de Epicteto. Ano 1. Número 1. Maio de 2018

com coragem suas dificuldades. Por meio delas a criança assume sua
responsabilidade diante da vida e descobre sua capacidade de fazer escolhas e
tomar decisões, sem culpas e sem medo.

*Paulo Cesar da Silva Gonçalves, psicólogo clínico, formado pela


Universidade do Estado do Rio de Janeiro - UERJ, onde lecionou por doze
anos.

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Exercício de atenção: Budismo e Epicteto

Danilo Patutti

A noção de exercícios espirituais de Pierre Hadot é a chave para


compreendermos a filosofia antiga grega como uma arte de viver baseada em
práticas concretas. Os exercícios filosóficos seriam como ferramentas
terapêuticas para tratar as desarmonias internas da mente1, libertando o sujeito
de uma vida escrava das paixões em favor de uma vida harmoniosa. As paixões,
como as perturbações, os medos, as inquietações e as preocupações, nasceriam
dos assentimentos precipitados da razão2 na forma de juízos de valores. Os
exercícios espirituais teriam a meta de extirpar as causas dessas precipitações e
elevar o praticante ao estado de consciência de si, no qual se alcançaria a visão
exata do mundo, a tranquilidade, a felicidade e a liberdade interiores 3. As
paixões, portanto, nascem de um juízo equivocado, da percepção subjetiva e
parcial da realidade, engendrando falsas concepções de bens e males. Assim, os
exercícios seriam necessários para transformar a visão subjetiva, parcial e
humana do mundo em uma visão objetiva, total e natural.
Epicteto ensina essa difícil mudança de visão e de percepção através do
teorema ontológico4, critério objetivo de distinção entre os domínios humano e
natural. Ele separa a interioridade do sujeito da exterioridade do mundo,
distinguindo o que está sob seu próprio controle – poder de escolha5 e de

1 Ψυχή.
2 Λόγος.
3 Hadot, p. 22, 2014.
4 ἐφ᾽ ἡμῖν καὶ οὐκ ἐφ᾽ ἡμῖν. τῶν ὄντων τὰ μέν ἐστιν ἐφ᾽ ἡμῖν, τὰ δὲ οὐκ ἐφ᾽ ἡμῖν: “das coisas existentes

algumas são encargos nossos, outras não são encargos nossos”. Introdução ao manual de
Epicteto com tradução, capítulo 1, §1, 2017.
5 Προαίρεσις: capacidade de escolha, vontade. Trata-se da escolha moral, isto é, da capacidade de

escolher entre uma ação e outra. É um conceito central na filosofia de Epicteto e de difícil
tradução.
Revista do Pórtico de Epicteto. Ano 1. Número 1. Maio de 2018

determinação absoluta – do que não está sob o próprio poder e lhe é relativo. A
ação humana é o único encargo dos seres humanos que pode ser governado de
modo absolutamente livre6, segundo o campo das possibilidades de escolha. O
campo de ação da escolha divide-se em três pares de tópicos7: o desejo e a
aversão, o impulso e o refreamento, e o assentimento e a suspensão do
assentimento. Para além desses três tópicos encontra-se o domínio da natureza,
do mundo e das coisas exteriores, independentes da capacidade de escolha e da
determinação individuais. A infelicidade e o sofrimento humanos provêm da
tentativa de evitar males inevitáveis e de conquistar bens relativos, isto é, males
independentes da própria vontade e bens independentes da própria ação para
serem adquiridos e conservados. Do ponto de vista da natureza, ou da realidade,
os acontecimentos estão interligados em uma cadeia causal universal,
influenciando-se uns aos outros simultaneamente, portanto, fora do campo de
determinação da própria vontade.
O exercício do teorema ontológico exige uma intensa mobilização da
atenção para filtrar e identificar os verdadeiros valores dos conteúdos das
representações8, tendo em vista permitir o assentimento da razão apenas sobre
as representações compreensivas9. Através de um exame atento é possível
identificar os conteúdos originários do domínio da natureza e os pertencentes
ao domínio da escolha. Os primeiros não possuem valor, são indiferentes10, pois
dependem da conjuntura das circunstâncias. Os segundos possuem valor, pois
sua determinação depende das escolhas individuais. Para os estoicos, assim
como para os budistas, o bem e o mal somente existem no campo moral, pois
somente as ações podem ser determinadas segundo a própria escolha. Nesse
sentido, as ações possuem valor positivo ou negativo dependendo do propósito
do agente. Se o propósito é ser feliz, tranquilo e livre, as ações segundo a

6 Segundo Epicteto, a natureza moral do ser humano é um privilégio inalienável, pois o agir e o
não agir obedecem necessariamente a capacidade de escolha.
7 Τόποι. Esses três topoi são os três tipos de ações da escolha, ou προαίρεσις, livres por natureza

porque são operações internas à mente comandadas pela razão individual.


8 Φαντασίαι.
9 φαντασία καταληπτικὴ: a representação compreensiva é aquela que possui o traço da ἐνάργεια,

isto é, da clara evidência de sua verdade e objetividade. A apreensão desse tipo de representação
significa uma experiência direta e objetiva com a realidade.
10 Ἀδιάφορα.

40
Revista do Pórtico de Epicteto. Ano 1. Número 1. Maio de 2018

natureza11 são boas e as ações contrárias à natureza são más. Agir segundo a
natureza significa agir sob o crivo do teorema ontológico, por isso é preciso tê-lo
sempre à mão, diante dos olhos e nunca esquecê-lo, pois é o principal objeto da
atenção no ensino de Epicteto12.
O sábio estoico é aquele que consegue transformar tudo o que lhe
acontece em um bem, retirando proveito para si mesmo 13. Isso significa,
independentemente da situação, ser capaz de satisfazer os próprios desejos, de
evitar o encontro com as próprias aversões, de agir sempre segundo a justiça e o
bem do outro, e de julgar as coisas segundo a verdade. Deseja-se que as coisas
da vida aconteçam tal como elas acontecem, tem-se aversão aos próprios erros
evitáveis, age-se sempre segundo a perspectiva de participar de um todo, e
julgam-se as coisas segundo a perspectiva da natureza universal 14. Isso significa
governar as operações da escolha sempre segundo a natureza e o teorema
ontológico.
Os exercícios de atenção são centrais nas práticas de transformação do
ser e do viver nos ensinamentos de Epicteto e do budismo. No primeiro, a
atenção é o segredo para evitar o arrebatamento da razão pelas representações
brutas15, ajudando16 a razão a filtrá-las para fornecer o seu assentimento apenas
à vívida evidência17 objetiva das representações compreensivas. No segundo, a
atenção é a chave para dissolver os conflitos interiores da mente e o sofrimento
que os acompanha, pois é através da atenção plena18 dirigida à própria mente
que a verdade sobre a sua natureza é desvelada via experiências de insight19.

11 Κατὰ φύσιν.
12 Discourses, IV.12.15.
13 Introdução ao manual de Epicteto com tradução, p.7, 2017.
14 Interessante notar como o budismo e o estoicismo se aproximam: Os dois concebem o

universo como um todo harmonioso, interligando todos os seus acontecimentos; a liberdade e a


felicidade como um bem viver em harmonia com a natureza da realidade, e o caráter humano
como objeto de aperfeiçoamento para alcançar esse bem viver. Nesse sentido, a descrição do
sábio estoico se aproxima bastante dos traços do iluminado budista. Rinpoche, S. p. 138, 2013:
Sobre a lei universal do carma ou relações de causa e efeito que ligam todas as coisas e seres
existentes. Ver também o capítulo O processo universal.
15 Τραχείᾳ. Introdução ao manual de Epicteto com tradução, capítulo 1, §1, 2017.
16 Hijmans, B.L. p.68, 1959.
17 Discourses, III.3.4: “A mente jamais rejeitaria uma evidente representação do bem, não mais

do que uma moeda de César”: οὐδέποτε δ᾽ ἀγαθοῦ φαντασίαν ἐναργῆ ἀποδοκιμάσει ψυχή, οὐ μᾶλλον
ἢ τὸ Καίσαρος νόμισμα.
18 Mindfulness.
19 Rinpoche, S. p.98, 2013. A natureza da mente é imortal porque participa da totalidade eterna,

a sua contemplação engendra uma profunda tranquilidade e sensação de liberação.

41
Revista do Pórtico de Epicteto. Ano 1. Número 1. Maio de 2018

Nesse sentido, parece haver nessas tradições uma educação da atenção, para
aprender o movimento de recolhimento da atenção sobre si mesmo. A atenção
sobre si é fundamental nesses ensinamentos porque possibilita o viver no
momento presente, atitude necessária para observar o surgimento das
representações e a relação entre a mente e os acontecimentos externos. A
contínua vigilância sobre si permite desvelar a própria interioridade e a sua
relação com a exterioridade. Segundo Rinpoche, a prática da atenção plena
recolhe a mente dispersa sobre a sua natureza e, nesse recolhimento, dissolvem-
se os conflitos mentais provocados pela ilusão da fragmentação do ser20. Desse
movimento em direção a si descobre-se a verdadeira natureza una e imortal da
mente como parte do todo cósmico.
Nos dois ensinamentos há o recolhimento da atenção, entretanto a
diferença está no objeto utilizado para apoiar esse recolher. Em Epicteto, é o
teorema ontológico que deve estar diante dos olhos, filtrando todas as
representações através da sua lente objetiva, por assim dizer, e, nesse sentido,
trata-se de uma intensa atividade mental21 que coloca a atenção no momento
presente22. No budismo tibetano, a exigência mental está no constante lembrar-
se dos princípios fundamentais da existência23; entretanto, a âncora da atenção,
por assim dizer, não são os princípios, mas o corpo. Diferente do estoicismo, o
budismo treina a atenção sobre o corpo e, mais tradicionalmente, sobre a
sensação física do abdómen ou sobre a sensação física do ciclo respiratório. O
corpo é a única parte do ser humano que necessariamente e naturalmente
sempre está no momento presente. Não importa quão dispersa e confusa está a
mente, o corpo vive no presente, engendrando continuamente sensações. A
técnica deste exercício consiste em direcionar a atenção sobre a sensação de
uma parte do corpo e exercitar-se na sua observação. A partir do treino sobre a
sensação dessa parte deve-se somar outra e assim continuamente, até ser capaz
de observar todas as partes do corpo em um único ato de atenção. Desse modo,

20 Idem. p.97, 2013. Ver o capítulo Trazendo a mente para casa.


21 Discourses, IV.12.15: É um esforço de retesamento da mente: τετάσθαι τὴν ψυχὴν.
22 O aparecimento das representações ocorre continuamente a todo instante, logo a única

maneira de percebê-las no seu surgimento é se colocar no momento presente para observá-las e


examiná-las.
23 Rinpoche, S. p. 63, 2013. São três os princípios da realidade: Impermanência, sofrimento e

não-eu.

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Revista do Pórtico de Epicteto. Ano 1. Número 1. Maio de 2018

pode-se fortalecer a atenção, ampliá-la e aprender a conservá-la no corpo


mesmo nas situações mais difíceis, evitando que a mente seja totalmente
arrastada para fora do momento presente pela força dos acontecimentos ou
pelas intensas emoções, perturbações e inquietações internas.
A busca pela sabedoria no estoicismo e pela natureza da mente no
budismo são marcadas por uma educação especial da atenção: a atenção sobre
si mesmo. Através dessa atitude é possível desenvolver a observação de si que
vigia os pensamentos, as emoções, os desejos, os impulsos, todas as
manifestações mentais e corporais e suas relações com os acontecimentos
circunstanciais. Essa vigilância é necessária para conservar a tranquilidade e a
liberdade interiores, porque é através dela que se pode compreender a
transitoriedade das coisas externas e o perigo de se apegar sobre coisas
instáveis.
Assim como o estoicismo, o budismo também alega o valor relativo24, a
indiferença das coisas do domínio da natureza devido à sua transitoriedade, do
mesmo modo defende o valor absoluto dos bens morais frutos das próprias
ações25. Apegar-se às coisas externas significa submeter a própria liberdade,
tranquilidade e felicidade às inconstâncias das coisas alheias, à transitoriedade
do poder alheio. Somente uma intensa e constante atitude de atenção pode levar
à compreensão da impermanência dos objetos externos e, ao mesmo tempo, da
permanência dos internos, isto é, dos princípios que guiam as escolhas. Se o
propósito da vida é o viver segundo a natureza e segundo a verdade da natureza
da mente, nenhum acontecimento nem ninguém pode desviar o sujeito dessa
meta, a não ser ele mesmo. Com efeito, estando atento, ele consegue guiar as
suas escolhas pelos princípios, apegando-se a eles, aos seus próprios bens
imutáveis, e desapegando-se das coisas exteriores mutáveis e transitórias que
extravasam o seu campo de escolha e escapam das suas determinações.
Finalmente, tudo aquilo que verdadeiramente está sob o próprio controle e
24 As coisas do domínio da natureza são indiferentes, mas podem adquirir um valor relativo
conforme o seu uso pelo sujeito.
25 As ações comandadas segundo os princípios sempre serão boas. Discourses, IV.3.11: “Guarde

o teu bem próprio em todas as coisas. Quanto ao restante, guarde na medida do que te foi dado e
use racionalmente, contentando-se apenas com isto. Se não, serás desafortunado, infeliz,
impedido e frustado” (Tradução nossa): τήρει τὸ ἀγαθὸν τὸ σαυτοῦ ἐν παντί, τῶν δ᾽ ἄλλων κατὰ τὸ
διδόμενον μέχρι τοῦ εὐλογιστεῖν ἐν αὐτοῖς, τούτῳ μόνῳ ἀρκούμενος. εἰ δὲ μή, δυστυχήσεις, ἀτυχήσεις,
κωλυθήσῃ, ἐμποδισθήσῃ.

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Revista do Pórtico de Epicteto. Ano 1. Número 1. Maio de 2018

poder de determinação, ou seja, as escolhas de ação e a sua moralidade, nunca


deixará de sê-lo, independentemente das circunstâncias.

Referências bibliográficas

EPICTETO. The discourses as reported by Arrian. Books I and II. London:


Harvard University Press, 1956.
_________. The discourses as reported by Arrian. Books III and IV, manual
and fragments. London: Harvard University Press, 1952.
DINUCCI, A.; JULIEN, A.; TARQUÍNIO, A. Introdução ao manual de Epicteto
com tradução. São Cristóvão: EdiUFS, 2017.
HADOT, P. Exercícios espirituais e filosofia antiga. São Paulo: Perspectiva,
2014.
HIJMANS, B.L. ἄσκησις, notes on Epictetus' educational system. Assen: Van
Gorcum, 1959.
RINPOCHE, S. O livro tibetano do viver e do morrer. São Paulo: Palas Athena,
2013.
SELLERS, J. Roman stoic mindfulness: An ancient technology of the self. In
Ethical Self-Cultivation: Historical and contemporary perspectives. Londres:
Routledge. 2018. (Obra no prelo).

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RELATOS ACERCA DO ESTOICISMO EPICTETIANO

Renato Diniz

“Das coisas existentes, algumas são encargos nossos, outras não.”


(ENCH.1.1)

Sempre tive, desde há muito tempo, uma peculiar admiração pela


filosofia estoica, sobretudo por Epicteto, mas nunca havia tido a oportunidade
de ler e/ou estudar a filosofia epictetiana a partir de fontes confiáveis. Há mais
de sete anos, quis o Destino que eu, ao pesquisar na Internet sobre o tema,
encontrasse esta pérola que é o Encheirídion de Epicteto – obra traduzida e
comentada por Aldo Dinucci. Fiquei encantado com o conteúdo do volume e
com a extrema competência, clareza e precisão do tradutor e de seus
comentários. Entrei em contato com o professor, que, numa atitude altruísta e
empática, enviou-me um exemplar de sua obra. A partir de então, tenho lido,
estudado, memorizado, interpretando os capítulos deste inigualável livro, bem
como as Diatribes, de Epicteto e escritos correlatos do professor Aldo.
Conclusão: hoje digo, com cem por cento de certeza, que o estoicismo
epictetiano me basta plenamente, pois é uma filosofia prática, pragmática e
exequível. Tento praticá-la. Digo “tento”, porque a prática é difícil, e preciso me
esforçar cotidianamente para que minhas atitudes diárias sejam tomadas de
acordo com os princípios morais epictetianos. Em casa, solitariamente;
em qualquer lugar, com outras pessoas ou não. O estoicismo de nosso filósofo
passou a ser minha manifestação de ser, de estar e de perceber o mundo. Enfim,
ocorreu uma mudança para melhor, de cento e oitenta graus, em minha vida.
Estou percebendo e trabalhando os embates – fantasias = representações – que
Revista do Pórtico de Epicteto. Ano 1. Número 1. Maio de 2018

a vida me coloca (tanto os mais brandos quanto os mais duros), com mais
coragem e tranquilidade.

Relato 1

No princípio de maio de 2017, tive uma queda e me aparei com a mão


esquerda, para evitar um dano maior. Como estou com sobrepeso, a queda foi
muito dolorida e machuquei o punho esquerdo. Fui ao Pronto Atendimento –
raios-X – lesão de ligamento escáfulo-semilunar – cirurgia – 40 dias de
recuperação, no mínimo. A cirurgia de mão é uma cirurgia delicada, porque
exige repouso, reabilitação, fisioterapia e gelo. Muito gelo. Dependo
profissionalmente de minhas mãos estarem funcionais para o exercício de
minhas atividades profissionais, que são música instrumental (violão e
contrabaixo) e massagem (shiatsu e reflexologia podal). Marcada a consulta com
o cirurgião de mão para definir a conduta a ser tomada, se cirurgia ou não,
fiquei apreensivo com o resultado do parecer médico. Se tivesse que operar a
mão, o prognóstico era reservado, pois, mesmo com muita disciplina e
fisioterapia, o resultado poderia não ser positivo. Além disso, havia o tempo
parado sem trabalhar, sem produzir o meu sustento, a despesa gerada com
exames, medicações, procedimentos, deslocamentos, etc.
Conclusão: foi impressionante como nosso filósofo me ajudou! Fiz
todos os procedimentos indicados pelo médico (tala, gelo, anti-inflamatório),
enfim, me cuidei. Dentre as várias posturas filosóficas que Epicteto nos deixou,
procurei praticar as seguintes. Deus está me testando e fortalecendo –
está nas Diatribes: enfrentando as dificuldades da vida. Se a cirurgia fosse
indicada – não estaria sob meu encargo a decisão tomada pelo médico.
Teria que enfrentá-la com coragem e tranquilidade, sem lamentações e revoltas.
Claro que eu não iria gostar da situação, mas teria que lidar com ela da melhor
maneira possível, dentro de minhas limitações – resiste e abstém-te! Como
também – “não busques que os acontecimentos aconteçam como
queres, mas queira que aconteçam como acontecem e a tua vida
terá um curso sereno” (acho genial o capítulo 8 do Encheirídion!). Pois
bem, a cirurgia foi descartada, até o momento, e sigo, disciplinadamente, a

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Revista do Pórtico de Epicteto. Ano 1. Número 1. Maio de 2018

rotina de fisioterapia e gelo. Aos poucos estou voltando com as minhas


atividades profissionais.

Relato 2

Um amigo meu de longa data, percussionista e meu parceiro de trabalho


na música, foi diagnosticado com câncer no estômago, e depois de cirurgias,
quimioterapia e muito sofrimento, ele teve metástase e veio a falecer. Prestei
toda a solidariedade a ele e a sua esposa; estive sempre presente, na medida do
possível, durante todo o processo. A esposa de meu amigo estava inconsolável
diante da impossibilidade de reversão do quadro clínico dele. Refleti comigo
mesmo:

quando vires alguém aflito, chorando pela ausência do filho, ou


pela perda de suas coisas, toma cuidado para que a
representação de que ele esteja envolto em males externos não
te arrebates, mas tem prontamente à mão que não é o
acontecimento que o oprime (pois este não oprime outro), mas
sim a opinião sobre o acontecimento. No entanto, não hesites
em solidarizar-te com ele, com tuas palavras, e, caso caiba, em
lamentar-te junto. Mas toma cuidado para também não
gemeres por dentro. (ENCH. Cap. 16)

A morte é inevitável. O corpo, são ou doente, não está sob nosso


encargo.

(...) A morte não tem nada de terrível, ou também a Sócrates


teria se afigurado assim, mas é a opinião a respeito da morte –
de que ela é terrível – que é terrível. (ENCH. Cap. 5a)

Foi duro! Senti muito a sua perda! Mas as perdas são inerentes à vida e
fazem parte do caminho, do todo.

Relato 3

Uns dias atrás, encontrei um conhecido muito rico, cujo pai tem muitas
posses, e começamos a conversar sobre vários assuntos, alguns deles nulos, sem

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Revista do Pórtico de Epicteto. Ano 1. Número 1. Maio de 2018

sentido e enfadonhos. Ele repetiu inúmeras vezes que ganhava cento e vinte mil
reais por mês apenas de um dos empreendimentos que tem, afora outros
recursos que possui. O curioso é que não lhe perguntei nada a esse respeito. A
conversa já estava ficando cansativa, desagradável e tediosa. Pensei comigo
mesmo: “como é ridícula, lamentável e ao mesmo tempo triste, quando uma
pessoa fica acometida por esta paixão – a vaidade”. Aliás, dentro de minha
humildade, sinto que a convivência com as pessoas não está muito fácil. A
banalidade, a superficialidade, a vulgaridade, enfim, a ignorância está
crescendo vertiginosamente. Mas como sou um ser social, tenho que viver e
conviver com essas pessoas. Procurei ficar mais calado e não emitir nenhuma
opinião, crítica, recriminação, ou fazer qualquer juízo de valor.

Fixa, a partir de agora, um caráter e um padrão para ti próprio,


que guardarás quando estiveres sozinho, ou quando te
encontrares com os outros. Na maior parte do tempo, fica em
silêncio, ou, com poucas palavras, fala o que é
necessário...raramente… (ENCH. Cap. 33.1)

Lembrei-me, também disto:“...se queres progredir, conforma-te em


parecer insensato e tolo quanto às coisas exteriores. Não pretendas saber coisa
alguma.”(ENCH. Cap. 13).

O senhor de cada um é quem possui o poder de conservar ou


afastar as coisas desejadas ou não desejadas por cada um.
Então, quem quer que deseje ser livre, nem queira, nem evite ou
dependa de outros. Senão, necessariamente, será escravo
(ENCH. Cap. 14b).

Conclusão: estas posturas epictetianas me ajudaram a suportar a


conversa, mantendo-me calmo e sereno. É isto: sou um admirador
incondicional de Epicteto e, com muita alegria e com grande prazer, busco
praticar seus ensinamentos. Vou tentando progredir a cada dia, com
humildade, dentro de minhas limitações, com esforço e o passar do tempo,
seguindo o estoicismo epictetiano!

70
O PROFESSOR ESTOICO: UM GUIA PARA OS PERPLEXOS

Donato Ferrara
Graduado pela FFLCH/USP

Há cerca de dois anos fui agredido por um de meus alunos. Os golpes, um


soco em meu ombro esquerdo e um empurrão, não tiveram força para
machucar-me, ainda que me tenham atingido, de outra maneira. Por quinze
anos eu tivera êxito em meus esforços por manter do lado de fora das salas onde
leciono a atmosfera que, carregada, permeia tantos setores da sociedade
brasileira: um isolamento quase hermético, talvez. Minhas aulas foram, quero
crer, um refúgio que repelia as investidas da violência, da confusão e mesmo da
vulgaridade a que muitos adolescentes são suscetíveis. Elas ainda são espaços
razoavelmente protegidos, mas a precariedade de tal proteção apareceu-me à
vista com grande claridade naquele momento. Não é de todo possível escapar à
incivilidade quando ela está tão arraigada na cultura em que você vive. E o
incidente, embora pouco importante, desiludiu-me ― e desiludiu-me decisiva
mas positivamente.
No estilhaçar de minhas ilusões, dois fatos me chamaram a atenção. O
primeiro é que a autoridade não é uma coisa por si mesma evidente, sobretudo
para os mais jovens. Professores conscienciosos sabem que, para não
incorrerem nas faltas opostas do autoritarismo e da desmoralização, têm de
inspirar confiança, têm de constituir-se enquanto autoridades de fato, exibindo
conhecimento sólido e um comportamento que os distinga da maioria, mas em
geral ignoram que o profissionalismo e a honradez são vias de mão única. A
reciprocidade virtuosa é um ponto de equilíbrio em risco permanente. “Ame e
seja amado”, “Gentileza gera gentileza”, “Para ser respeitado há que primeiro
dar-se o respeito” são máximas belas e úteis, mas não recobrem a realidade
Revista do Pórtico de Epicteto. Ano 1. Número 1. Maio de 2018

inteira. Elas supõem que o amor, a gentileza e o respeito sejam motivos para a
ação valorizados por todos de modo unânime e homogêneo, o que é falso. Ainda
que consideremos o magistério uma atividade de suma importância, há muita
gente que não pensa assim, e age em conformidade com o que pensa, às vezes de
maneira violenta.
O segundo fato diz respeito à realidade de muitos de meus colegas de
profissão. Tendo sempre trabalhado em estabelecimento particular e pequeno,
minha situação é a de um privilegiado. Todavia, o episódio que me sucedeu
abriu-me os olhos para a extensão do problema em outros lugares. Em agosto
passado, correram o Brasil as fotos da professora catarinense Marcia Friggi,
agredida com socos por um aluno de 15 anos. Subitamente interessada pela
questão, a imprensa nos trouxe alguns dados alarmantes. O Correio Braziliense
de 23 de agosto de 2017 revelou que os educadores brasileiros são os que, no
mundo, mais sofrem intimidações e insultos por alunos: 12,5% deles, garante a
OCDE, relatam pelo menos um ataque verbal por semana. Outro número que
impressiona é o de 4,7 mil profissionais agredidos nas escolas do País, segundo
a Prova Brasil 2015, aplicada somente a algumas séries. Também a Folha de São
Paulo, em reportagem de 18 de setembro, mostrou que, só no primeiro semestre
de 2017, professores paulistas protocolaram 178 queixas junto à polícia,
resultando em algo como dois profissionais agredidos a cada dia letivo. É uma
realidade desoladora apenas entrevista: estamos diante do que é tão-somente a
ponta do iceberg, sem dúvida.
Reitero: a situação em que me vi envolvido só pode ter alguma relevância
se vista em contexto mais amplo ― o da sociedade brasileira. Mas também na
dimensão particular, houve, por assim dizer, outro sentido de abertura em ação,
o que me impediu de ter uma reação desproporcional ao ato. Com efeito,
mantive-me calmo depois dos golpes, sem alçar a voz, não chegando nem
mesmo a expulsar o aluno de sala. E agi assim não porque me faltasse
combustível para a indignação, mas porque sabia que o rapaz, bastante
negligenciado pelos pais, correria o risco, trâmites disciplinares levados até o
fim, de nunca mais frequentar uma escola. Deu certo: dias depois houve um
pedido de desculpas, público e sincero. Anos antes, porém, eu não teria hesitado
em aprontar um escarcéu ― aliás, não teria conseguido deixar de fazê-lo.

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Revista do Pórtico de Epicteto. Ano 1. Número 1. Maio de 2018

Irascível por temperamento, cheguei, no início de meu magistério, a dar murros


em portas por causa de incidentes em classe. Em outro de meus acessos de
fúria, acabei sendo tão incisivo com um aluno que ele foi para casa, destruiu
objetos e desistiu de estudar por muitos anos. Não me orgulho disso.
O que então teria ocasionado esta mudança de atitude, surpreendente até
para mim? Alguns fatores me vêm à mente, dentre os quais sobressaem o
aumento da experiência de vida e a paternidade. Há algo menos comum, porém:
o fato de que tenho frequentado os escritos dos estoicos e procurado adotar
aspectos dessa filosofia em meu cotidiano. Ter-me tornado íntimo de Sêneca, de
Musônio Rufo, do escravo liberto Epicteto e do imperador Marco Aurélio,
grandes vultos do estoicismo na Roma imperial, tem algo a ver com a razoável
diminuição do domínio das emoções violentas sobre mim (as “paixões” dos
antigos) e com o surgimento de certa frieza em momentos de tensão. Entendam-
me: sou apenas alguém que teve a sorte de deparar com uma filosofia que,
avessa a palavrórios, de fato se volta ao aperfeiçoamento humano ― nada mais.
Partindo do que li, vivi e constatei, creio ser possível pinçar, dentre os
escritos que nos chegaram dos estoicos romanos, cinco conselhos que dariam
subsídios também para outros professores. Suponho que estas ideias, nas quais
gosto de meditar, consigam transformar a atitude de meus pares que trabalham
em ambientes cujo nível de tensão interpessoal é de leve a intermediário,
inspirando-lhes mais firmeza e tranquilidade. Quanto aos que se movem por
meios degradados, em que é quase impossível lecionar por haver coisas como
loteamento do espaço por gangues, brigas e bullying diários, tráfico de drogas e
direção omissa ou amedrontada, ofereço-lhes meu respeito e solidariedade
silentes. Não tenho o direito de teorizar acerca de situações que só muito
remotamente se assemelham ao meu cotidiano. De todo modo, a filosofia do
Pórtico não é inócua em casos assim: apenas as sugestões que ela teria a fazer
são de outra sorte. Procedendo por aproximação, elas devem, sem nenhum
exagero, ser buscadas no que os antigos estoicos diziam sobre a maneira de
resistir à tirania ou de manter a sanidade em meio a calamidades.
Eis as ideias que eu gostaria de destacar.

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Revista do Pórtico de Epicteto. Ano 1. Número 1. Maio de 2018

(1) “Das coisas existentes, algumas dependem de nós, outras


não dependem de nós” ― assim poderíamos verter as primeiras palavras de
Epicteto, tais como registradas por seu discípulo Flávio Arriano, no que veio a
ser chamado seu Encheirídion ou Manual. Dotada de boa legibilidade, trata-se
de uma obra que encerra o essencial dos ensinamentos do maior professor de
filosofia estoica da Antiguidade. Nada obstante, o Manual não era um texto
dirigido à divulgação primeira do estoicismo de Epicteto, e sim um repositório
de fórmulas, lembretes e reflexões que, percucientes, eram capazes de trazer à
mente do sujeito mais ou menos versado na filosofia do Pórtico certas balizas
para o bem viver. Assim, pode nos soar banal a constatação de que existem
coisas que dependem de nós e coisas que não dependem de nós, mas quando
vemos a questão desde a perspectiva correta compreendemos que o fato de
haver coisas dentro e coisas fora de nossa alçada tem implicações no plano
ético: devemos nos dedicar àquelas e nos tornar indiferentes a estas. Sendo
“filósofos da exigência”, os estoicos defendiam que um conhecimento
sedimentado deveria necessariamente traduzir-se em ações. Ou em latim: facta,
non verba ― feitos, não palavras.
Seguindo a noção mais geral de Epicteto, reconhecemos que dependem
de nós coisas como nossas operações mentais e movimentos interiores, o que
nos passa pela cabeça, nossas iniciativas, além do modo como reagimos àquilo
que nos cerca. Todo o mais se inscreve na classe dos “indiferentes” ― não por se
tratar de coisas ruins e desimportantes, mas porque fundamentalmente nos
fogem ao controle. E de acordo com Epicteto, você tem uma escolha bastante
séria a fazer: pode tornar-se excelente nas coisas que realmente dependem de
você, conquistando pouco a pouco um tipo de tranquilidade, ou tentar dar conta
de acontecimentos que não são de sua alçada, com todo o desgaste psicológico
que isso pressupõe. De um lado, a realidade; de outro, a ilusão.
Em termos práticos, isso vai contra a imagem romântica do professor
como um misto de sacerdote e assistente social: nossa participação na vida dos
alunos resume-se à sala de aula. É apenas dentro desse espaço, limitado mas
poderoso, que podemos fazer alguma diferença para as gerações vindouras. Isso
não quer dizer que devamos encarar o que temos a cumprir todos os dias de
maneira fria, protocolar. Lidando com pessoas, é natural que se formem laços

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Revista do Pórtico de Epicteto. Ano 1. Número 1. Maio de 2018

afetivos e que em nós observemos o aparecimento de preocupações genuínas


quanto ao futuro das crianças e jovens que nos são submetidos. Os alunos, aliás,
reagem melhor aos professores que de fato se importam com eles. Mas esse
importar-se, que é precioso, não nos pode deixar cegos ante a evidência: o
comportamento dos estudantes, na classe e fora dela, é algo que nos foge
totalmente ao controle. Em particular para os adolescentes, a palavra do
professor é só um elemento em meio a uma cacofonia de exemplos díspares que
se lhes oferecem, muitos dos quais apontam para becos sem saída. De modo que
você, professor, que está a poucos metros de seus alunos, de peito aberto, com
eles partilhando muitas agruras, tem de competir, no mercado da atenção
juvenil, com um youtuber célebre por entrar em uma banheira cheia de creme
de avelã ou com um artista que declara aos quatro ventos que o modo de lidar
com problemas é abusar das drogas. Apenas aceite, pois, que suas advertências
e conselhos podem ser em vão, que a aula instigante que preparou talvez venha
a dar com ouvidos moucos: você não é responsável pela desmotivação ou
inapetência dos alunos. Se cumpriu o seu dever, se fez a sua parte, não há por
que entristecer-se com os caminhos e descaminhos que tomam as coisas.
Depende de você dar bom exemplo, não arrancar a humanidade florescente de
suas más inclinações. Se o mundo executa uma sinfonia infernal, você será
aquele que toca um capricho de Paganini ao violino. Durma bem: você precisa
acordar cedo.

(2) “Eles continuarão a agir do mesmo modo que vê, ainda que
você exploda de raiva” ― escreveu Marco Aurélio em suas Meditações,
espécie de “diário espiritual” do imperador-filósofo (VIII, 4). Ao redigir tal nota
de si para si, motivado por um episódio do cotidiano, ele ecoava a opinião geral
dos estoicos, que não viam vantagem na ira nem em emoções assemelhadas. O
sábio estoico, ideal praticamente inatingível, não se zangava com nada,
mantendo-se em estado de bonomia e tranquilidade inabaláveis. Marco Aurélio,
que se sabia não sábio, reconhece as limitações de sua prática filosófica,
precisando com frequência rememorar-se de que a razão deve interpor-se entre
um acontecimento potencialmente irritante e a reação emocional que a ele se
tem. A si mesmo ele dizia que é necessário considerar as consequências da ira,

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Revista do Pórtico de Epicteto. Ano 1. Número 1. Maio de 2018

sempre piores que o evento que a desencadeou, e que um insulto ou um ato


hostil deve “ficar” com aquele que o praticou, no sentido de que não só não
devemos dar ao provocador a satisfação de nos tirar do sério, como também de
que, sendo a incivilidade um mal para quem se dá a ela, é possível interromper o
curso dos maus sentimentos em nós mesmos, ao invés de incorrermos em
reciprocidade violenta. Tudo isso, claro, é difícil e exige um trabalho interior de
fôlego.
Estariam os estoicos preconizando um tipo de passividade ou de inércia?
Um professor que quisesse se beneficiar do estoicismo hoje deveria aceitar ser
agredido ou suportar humilhações calado? De modo nenhum. Nos casos de
abuso, as instituições têm de ser postas para trabalhar: é uma questão de
justiça. A escola não pode prescindir do binômio premiação-castigo, sem o qual
deixa de ser escola. De mais a mais, a depender do grau da ofensa sofrida, a
polícia, o Judiciário e mesmo a imprensa têm de ser acionados. Contudo, a
passagem de Marco Aurélio que nos ocupa não se centra na resposta
institucional a atos hostis ou fora da lei, não está interessada na reparação de
prejuízos, mas na resposta individual a coisas que nos atingem. Aqui, a justiça
aparece não como valor a ser disseminado pela sociedade (pode e deve sê-lo,
claro), mas como virtude a ser tomada a peito, encarnada, praticada, por uma
pessoa ― na moeda corrente do respeito por outrem. E a justiça, estoica e
racionalmente considerada, exige dessa pessoa que ela perceba que, sendo o
comportamento dos outros algo que dela não depende (item 1), a ira não é uma
resposta adequada às ações alheias que vão contra os desejos que ela tem. Os
outros nos dão provas recorrentes de sua autonomia, e mostrarmos a eles nossa
fúria raramente lhes retifica a atitude ― o ônus fica com o enfurecido, que se
desgasta inutilmente.
Irar-se ainda funciona mais ou menos com crianças (muita vez pelos
motivos errados), mas raramente com adolescentes. Passar um sermão em uma
classe de Ensino Médio renderá chacotas para o ano todo, minará a autoridade
de um professor. Ninguém dá “lições de moral”, no sentido próprio da
expressão, quando não está na plena posse de si, sem raciocinar direito: o que se
ensina, em momentos assim, é o destempero, é a noção de que bater o pé e
estrilar é o suficiente para vencer sem convencer. Jovens tendem a

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Revista do Pórtico de Epicteto. Ano 1. Número 1. Maio de 2018

impressionar-se mais com quem tem autocontrole razoável (porque isso em


geral lhes falta) do que com gente que vive indignada, espumando de raiva ― os
“estressados”. Se você mantiver a cabeça fria quando o pior sobrevier, poderá
agir movido por justiça ao invés de revidar por desejo de vingança. E os alunos
sabem ver a diferença entre essas duas coisas.
Se você não se persuadiu de que a ira não é uma resposta adequada aos
desafios que vivemos, considere ao menos os efeitos contraproducentes, quando
não francamente ridículos, dessa paixão: quantos políticos e quantas figuras
públicas já foram pegos exorbitando diante de câmeras de televisão ― e como é
impossível trazer à mente tais pessoas hoje sem se lembrar desses episódios
lamentáveis que marcaram suas vidas. As câmeras agora estão, como ninguém o
ignora, em todos os lugares. Pense nisso.

(3) “A arte da vida assemelha-se mais à luta que à dança” ― é


como principia outra passagem que Marco Aurélio deixou registrada para si
mesmo (VII, 61). Tal modo de ver as coisas não dista muito de certa concepção
popular segundo a qual trabalhar é “ir à luta” ou “batalhar”. Também se pode
ouvir aqui um eco do que o Sócrates platônico diz a Glauco, no fim da
República, quando sugere que não há maior combate que aquele que faz um
indivíduo tornar-se ou mostrar-se bom ou mau (X, 608b).
O que importa, pois, é a seriedade com que a figura de linguagem é
tomada; para que ela nos possa iluminar a existência, suas consequências têm
de ser desdobradas ― e sobretudo transformadas em prática. Logo, se de fato
virmos a vida como um desafio em que nossa integridade, física e moral, é posta
à prova, teremos de agir como lutadores, os quais não entram em uma contenda
sem preparação rigorosa. Os golpes dos adversários são para eles preocupação
constante: é preciso aprender a esquivar-se e suportar a dor dos choques
inevitáveis. Há, como se sabe, treinos para isso. Com efeito, a nota pessoal do
imperador continua assim: “você tem de manter-se de pé, preparado e em
guarda, enquanto golpes lhe são desferidos, às vezes de maneira inesperada”.
Apesar de nos enxergarmos como batalhadores, temos dificuldades em
lidar com reveses. Decerto recriminaríamos a atitude de um boxeador derrotado
que se pusesse, desfeito em pranto, na posição fetal, ou ainda que partisse para

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Revista do Pórtico de Epicteto. Ano 1. Número 1. Maio de 2018

a agressão aos juízes e ao público. Contudo, boa parte de nossas reações às


situações cotidianas não difere muito das do mau perdedor. Sabe-se que o efeito
cumulativo das frustrações produz não raro um estado de abatimento que pode
ser muito debilitante e duradouro. Professores estão sujeitos a isso porque são
em geral de têmpera idealista e muita vez não encontram, junto à comunidade
escolar, respaldo pelo que fazem. A questão torna-se, pois, agir para mitigar o
peso das coisas que nos frustram em nosso dia a dia ― e ver a vida como um
combate pode ser a melhor alternativa. Em viés mais comezinho, isso quer dizer
que, se uma aula não sair como o planejado, teremos a próxima para “nos
redimir”, assim como há assaltos em uma luta de boxe. Em viés mais
excepcional, quando viermos a enfrentar uma situação de hostilidade e, no
limite, de agressão, significa estarmos preparados para lidar mesmo com isso. É
evidente que ninguém vai para o trabalho com a intenção de ser humilhado ou
atacado (temos, no final das contas, um Código Penal). Bem mais evidente,
porém, é que a posição do professor, sitiado pelas lealdades de grupo dos
estudantes, pelos vícios falsificadores das burocracias do ensino e pela
incompreensão de alguns pais de alunos, é de grande vulnerabilidade. Há então
uma escolha a se fazer: viver como se o pior nunca pudesse irromper na sala de
aula ou manter a guarda alta.
Por piores que sejam, na média, as condições de trabalho de um
professor no presente, elas não se comparam com o que era viver entre
aduladores e traiçoeiros, amparando-se na lealdade do exército e da guarda
pretoriana. Marco Aurélio sabia que nem todos eram hostis a seu mando ― mas
principalmente sabia que existiam os hostis, os que não entendiam ou
valorizavam o que ele fazia. Assim, era parte de seu “regime filosófico” diário
lembrar-se desses tipos indefectíveis com reflexões desta natureza:

Ao amanhecer, diga a si mesmo: hoje me depararei com um


indiscreto, um ingrato, um insolente, um desleal, um invejoso,
um antissocial. Tudo isso lhes sucede por sua ignorância do
bem e do mal. Mas eu, que vi a natureza do bem, que é o certo, e
a do mal, que é o errado, e a da pessoa que comete a falta, que é
afim à minha, partícipe não do mesmo sangue ou semente, mas
da mesma mente e da mesma partícula divina, não posso sofrer
danos de nenhum deles porque nenhum me infectará com seu
erro. Nem posso indispor-me com um semelhante ou odiá-lo,
porque nascemos para uma tarefa comum, como os pés, como

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Revista do Pórtico de Epicteto. Ano 1. Número 1. Maio de 2018

as mãos, como as pálpebras, como os maxilares superior e


inferior. De modo que agir uns contra os outros vai contra a
natureza: e oposição são a ira e a rejeição. (Meditações, II, 1)

E se você jamais pusesse os pés na escola antes de pensar friamente ―


sem expansões mórbidas! ― em todas as coisas que podem dar errado naquele
dia, em todos os caracteres desagradáveis com que provavelmente deparará?
Quem são os indiscretos, os ingratos, os insolentes, os desleais, os invejosos e
os antissociais de seu cotidiano e como agem? Como você pode contornar ou
enfrentar as situações difíceis provocadas por eles? E como você conseguiria
fazer isso sem se deixar tomar por animosidade, sabendo que, no fundo, tem de
cooperar também com os que tornam o convívio mais rude? Note que essa
estratégia funciona bem em qualquer cenário. Se as tais pessoas difíceis criarem
obstáculos ao longo do dia, você terá, ao antecipá-los, reações emocionais mais
contidas e poderá julgar as coisas racionalmente, tomando decisões melhores.
Se nada de espinhoso, por outro lado, se verificar, haverá em você grande
satisfação por ter passado um dia normal e pacífico, aquém de suas piores
expectativas.

(4) “Cada um é tão desgraçado quanto acredita sê-lo” ― escreveu


Lúcio Aneu Sêneca a seu amigo Lucílio, em uma carta que trata do modo de
suportar as doenças e os males do corpo (LXXVIII, 14). Era o remetente um
homem já velho e alquebrado, muito experimentado na asma e em outros
problemas respiratórios. Sêneca insta o amigo a não fazer grande caso dos
sintomas que vinha tendo; isso seria adicionar às dores um peso maior: o da
opinião ou da imaginação (ditadas, em geral, pela autopiedade). Uma coisa é o
sofrimento em si, outra é o sofrimento aumentado pela ideia de que se é um
desgraçado (miser) por sentir aquilo. A primeira opção, em sua crueza, envolve
forças maiores do que nós, sendo, assim que entendemos que não há muito o
que fazer, mais fácil de suportar. A segunda vem com o acréscimo de hábitos
mentais (opinião, imaginação) que nos sabotam, diminuindo nossa capacidade
de resiliência. Parece óbvio, mas uma atitude positiva frente à dor e ao
sofrimento acaba por tornar essas coisas menos terríveis. Em muitos sentidos,
somos nós que criamos nosso próprio padecimento, nosso próprio inferno.

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Revista do Pórtico de Epicteto. Ano 1. Número 1. Maio de 2018

O que Sêneca diz a respeito das dores corporais também se aplica a


outras áreas. E aqui a discussão nos interessa mais de perto, pois o cotidiano de
um professor pode ser muito difícil, cheio de motivos para dissabores e pesares.
Sabe-se que a depressão é um mal que acomete parcela considerável da classe
docente. Não pretendo, de maneira nenhuma, trivializar o problema e dizer que
ele é injustificado. Desprestígio, baixos salários, condições ruins de trabalho e
diversas formas de afronta são em muitos casos dados objetivos, que têm o
poder de abater, de insensibilizar e mesmo de desesperar. Não há solução à vista
para essas e outras questões educacionais ― não em nível macro, ao menos. De
modo que você terá talvez de conviver com coisas assim por muito tempo, quiçá
até o fim de sua carreira. E torna-se vital saber como reagir com sabedoria antes
de cair na depressão.
Você tem plena consciência, pois, do quinhão de tristezas que a profissão
pode proporcionar-lhe: não torne as coisas piores cultivando pensamentos
como “o que fiz para merecer isto?”, “foi para situações assim que estudei
tanto?” e “ninguém sofre o mesmo que eu neste colégio!”. Não é apenas
vergonhoso pensar assim, como também é falso. Ninguém é especial por ter
sofrido ou por ter sido poupado de um sofrimento. Coisas desagradáveis
acontecem ― e são meio aleatórias. Também não é saudável, além de não muito
edificante, o hábito dos queixumes e das reclamações, infelizmente não
incomum nas salas de professores: o que se vê em ocasiões assim são pessoas
não se conformando com o fato de que não controlam o comportamento dos
outros, os mais jovens.
Bem, ninguém controla, ninguém jamais controlou: o primeiro registro
do qual ouvi falar de condenação às inclinações da juventude, vista como
incapaz de manter o que haveria de bom em dada cultura, estaria em uma
inscrição de um vaso de argila babilônico datando de 3000 anos antes de nossa
era. A incomunicabilidade entre gerações é uma constante que responde por boa
parte da história do mundo. E se há um tipo de insolência que nasce da falta de
experiência, também existe uma sorte de rabugice que brota da presunção de ter
vivido o que deveria ser o ponto culminante na evolução humana. Ambas as
perspectivas, por egoístas, por bitoladas, estão erradas. Nossa história é
movimento, não pode deixar de sê-lo. Assim, você pode entender o tamanho do

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Revista do Pórtico de Epicteto. Ano 1. Número 1. Maio de 2018

desafio que a profissão lhe coloca ou esmorecer sob o peso da coisa. Lembre-se
de Epicteto (item 1): o que nos diz respeito de verdade é o modo como lidamos
com as situações (que podem ser dolorosas), não as situações em si.
Se você compreendeu, com o item 2, por que não deve permitir que a ira
tome espaço dentro de sua pessoa, não terá dificuldades para ver por que a
melancolia deve ser igualmente evitada. Use, portanto, a energia que serve de
combustível à estima que você tem por si para colocar-se para além das
suscetibilidades comuns, para tornar-se uma pessoa mais difícil de irritar e
entristecer, para criar ― como diz a expressão colorida de nosso povo e como o
disse Montaigne em seu segundo ensaio, “Da tristeza” ― uma “casca” ou
“carapaça”, diminuindo o atrito com o mundo exterior. Tudo isso principia,
necessariamente, com não se imaginar como uma vítima.

(5) “Os seres humanos foram feitos uns para os outros: ou os


ensine, ou os suporte” ― é mais uma das notas de Marco Aurélio a si mesmo
(VIII, 59). Aqui, ele fazia referência, muito verossimilmente, a várias das
pessoas que o cercavam, as quais podiam incorrer em atitudes incômodas ou
nocivas. Vimos, no item 3, que o imperador-filósofo se preparava desde cedo
para a eventualidade desses encontros desagradáveis.
Jamais se furtando a seus deveres, Marco Aurélio viveu entre os campos
de batalha de além-Danúbio e a corte romana ― dois ambientes perigosíssimos.
Ele tinha poder de vida e morte sobre milhões de pessoas, romanos e bárbaros,
e àquela altura Roma já tinha visto muitos soberanos cederem a pendores
paranoicos ou dissolutos: Calígula, Nero e Domiciano eram ainda lembrados.
Tornar-se um tirano era, portanto, uma possibilidade à disposição do
imperador: usar de seu poder, de suas riquezas e de seus súditos de modo torpe
e cruel era um abismo à margem do qual Marco Aurélio caminhava diariamente,
havendo o perigo constante de um passo em falso. Estamos falando de uma
quantidade de poder que, para pessoas comuns do século XXI, beira o
inimaginável, e que vinha acompanhada de uma vertigem que seria irresistível
para muitos de nós.
Mas o que isso tem a ver com os professores de hoje, dos quais muitos se
veem desafiados em sua autoridade o tempo todo, são desvalorizados e mal e

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Revista do Pórtico de Epicteto. Ano 1. Número 1. Maio de 2018

mal conseguem lecionar? Na superfície, não muito: a desproporção entre as


situações é imensa. Mas, olhando-se um tanto mais fundo, vemos que aquele
que foi o homem mais poderoso da humanidade por dezenove anos nunca se
sentiu autorizado a abusar de suas prerrogativas políticas e militares para
satisfazer seus caprichos. Ele podia condenar qualquer um à morte com um
simples gesto, mas nunca agiu assim ― e seus pensamentos íntimos só falam de
tolerância e justiça. Para manter-se na linha, ele lembrava a si mesmo que os
seres humanos, segundo a visão estoica, viviam uns para os outros, estavam
destinados a cooperar entre si e conviver em harmonia. Quando não se
comportavam assim, estavam agindo contra a própria natureza: como lobos ou
chacais, não como os seres racionais e sociáveis que todos somos ― ou
deveríamos ser.
Mas há algo mais importante e surpreendente: Marco Aurélio via a si
mesmo como um professor, como alguém em posição de ensinar a seus
próximos o caminho para um comportamento melhor. Ele sabia que era um
exemplo para os romanos, e tal constatação o envaidecia menos do que lhe dava
a medida de sua responsabilidade. Ora, se um dos soberanos mais justos da
história julgava nobre ver-se a si próprio como uma espécie de professor, se
colocava grandes mestres como Heráclito e Sócrates acima dos maiores líderes
políticos, por que não deveríamos acreditar nele? Você também, meu
semelhante e meu irmão, sabe que é um exemplo para os alunos que assistem a
suas aulas: às vezes, você será o único espécime de adulto maduro e educado,
não disfuncional, com que certas crianças e certos jovens terão contato nos
primeiros anos da vida. Claro, gostaríamos de dar aos estudantes mais do que o
que temos alcançado, garantindo que todos saíssem da escola com uma
formação intelectual digna do nome. Todavia, isso nem sempre é possível
porque há muitas coisas conspirando contra o ensino. Saibamos, ao menos, que
um professor que demonstre compostura e esforço sempre deixará algo: o
exemplo de alguém devotado ao saber e que tem respeito pela inteligência dos
outros. É que ensinamos o tempo todo e de muitas formas, não só quando
tomamos o giz nas mãos.

CONCLUSÃO

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Revista do Pórtico de Epicteto. Ano 1. Número 1. Maio de 2018

A exposição que fiz ao longo destas páginas tem a pretensão de convencer


meus colegas de profissão de que incorporar certos aspectos do modo de pensar
e agir dos estoicos pode fazer de nós professores melhores, tornando-nos menos
suscetíveis a angústias, mais conscientes e firmes em nossas decisões e, em
última análise, mais íntegros. Acima de tudo, espero que tenha ficado claro que
retificar nossa percepção das coisas é só o primeiro passo: princípios que nos
parecem sensatos, que passamos a repetir para nós mesmos, devem
transparecer em cada ação que tomamos no dia a dia.
Assim, é possível que eu tenha atingido o meu objetivo em algum grau ―
ou que tenha falhado redondamente. Qualquer que seja o caso, insisto no fato
de que vale a pena ler os estoicos. Eles têm bem mais a oferecer que as cinco
citações selecionadas aqui. Quem se aventurar pelos escritos dessa escola
filosófica antiga verá uma proposta de educação do ser humano muito atual, que
não vê o bem supremo nem no poder, nem na fama, nem na riqueza, nem nas
honrarias, mas na excelência ou virtude (em grego, aretḗ ― palavra
provavelmente ligada ao comparativo areíōn, “melhor, mais nobre”, e ao
superlativo áristos, “o melhor, o mais nobre”).
Até agora, ao menos, não encontrei uma proposta melhor. Feitos, não
palavras.

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EM BUSCA DA MEDICINA DA ALMA: RACIONALISMO E
PERTENCIMENTO

João Leite Ribeiro

Tenho 47 anos e fui diagnosticado com esquizofrenia aos 19. Nesse meio
tempo passei por inúmeros tratamentos e, sobretudo, por inúmeros fármacos.
Eles foram inúteis. Consegui me recuperar, no entanto, por meio do estudo de
alguns filósofos.
Neste artigo, vou discutir algumas das dificuldades que a esquizofrenia
traz, e como algumas ideias estoicas e de filosofias que me parecem similares ou
complementares a estas podem ajudar nessas dificuldades.
Ao receber o convite para escrever este artigo, o colaborador desta revista
Donato Ferrara sugeriu que escrevê-lo poderia ser bom para meu
autoconhecimento. É claro que concordei com a ideia, mas depois fiquei
pensando: até que ponto isso existe?
“Conhece-te a ti mesmo”, é verdade, mas será isso possível? Parte da
minha recuperação foi aprender a dar palestras. Numa delas um psicanalista fez
a pergunta inevitável: gostaria de saber sobre seus traumas de infância. Eu
respondi que não me lembrava, que provavelmente não existiram.
Acredito que o estoicismo seja muito diferente da psicanálise nesse
aspecto. Não há a necessidade de ficar investigando o passado, de achar traumas
possivelmente reprimidos, explicações para os desmandos de meus pais. O
estoicismo me parece dizer que, qualquer que seja o passado, qualquer que seja
o drama, uma atitude racional resolve. Para todo mundo.
Na China do ano mil havia um pensador muito parecido com os estoicos.
Ele é infelizmente pouco conhecido no Ocidente. Seu nome aparece às vezes
Revista do Pórtico de Epicteto. Ano 1. Número 1. Maio de 2018

como Chu Hsi e às vezes como Zu Xi. Veja o leitor que interessante. Houve um
pequeno debate entre ele e um artista da época. O artista dizia que a arte era
superior à filosofia porque oferecia muitos caminhos, enquanto que ele, Chu
Hsi, só apresentava um. Ou seja, para Chu Hsi, qualquer que seja o drama a
solução é a mesma. E a solução dele é igual a dos estoicos: racionalismo.
Alguém poderia dizer: mas racionalismo não seria justamente buscar
entender a nossa vida? Não creio que fosse esse o pensamento estoico. Acredito
que o racionalismo deles era uma prudência, um autocontrole no dia a dia,
voltado para a frente, e não para trás. A descoberta de respostas não era tão
importante. Acredito que a boa convivência com o mistério, em Deus, nos
homens, e em si mesmo, era parte do estoicismo. Racionalismo para eles é
muito mais uma atitude, um fim em si mesmo, do que uma busca de respostas.
É claro que gostavam de entender as coisas (quem não gosta?), mas se não
tivessem respostas isso não os afligia. Uma vez mais, na China, dizem que se
Chu Hsi tivesse tido seguidores mais atentos, a China teria desenvolvido a
ciência moderna, mas há um comentário interessante de um contemporâneo
dele: vocês já viram que ele não se importa de concluir nada?
Para mim estoicismo é basicamente isto: uma atitude racional. E nessa
simplicidade talvez esteja sua virtude, porque a pessoa se torna despojada, sem
ambições, sem a necessidade de ser mais do que o próximo.
Vamos supor que eu me dedicasse em terapias a entender meus pais.
Chegaria uma hora em que toda a névoa se dissipasse e eu sentisse um profundo
amor por eles? Não acredito nisso. Prefiro ter uma atitude diferente: estou
sempre disposto a entender a lógica do que eles tiverem a dizer.
Mas isso não é frio? Ater-se à lógica? E os sentimentos, as emoções?
Caro leitor, durante todos estes anos eu fui e voltei várias vezes. Isto é, fiz
o que chamo de “greves de protesto”, nas quais fiquei em silêncio, isolado de
todos, João “contra mundum”. Mas eu voltei. Voltei a ter contato, hoje tenho
contato até com os leitores deste artigo. Isso se deve a essa atitude.
Eu não li isso em nenhum lugar, mas acredito que o estoicismo seja
baseado no fato de que as pessoas gostam de concordar. Quando tento entender
a lógica de meu interlocutor, isso é uma boa vontade com ele, eu procuro

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Revista do Pórtico de Epicteto. Ano 1. Número 1. Maio de 2018

concordar com ele. E se consigo uma concordância, isso traz uma boa emoção. E
pavimenta o caminho para outros encontros, que podem vir a ser emotivos até.
Participando de um grupo de estudos estoicos no Facebook, eu sugeri
algumas questões. Talvez minhas observações não fossem precisas, mas fiquei
chateado com a atitude de um outro membro. Ele discordava de mim só por
discordar. Corria até a Wikipédia para achar qualquer coisa que contradissesse
o que eu dizia. Isso pra mim não é estoicismo. É muito mais sábio, prudente,
equilibrado buscar concordar com as pessoas.
Vamos supor que eu pegue um táxi. Eu particularmente não gosto das
opiniões de um determinado candidato, mas o taxista gosta. Quando ele fala
bem do candidato, se me deixo levar pelas emoções, crio um conflito com ele. É
muito mais sábio simplesmente procurar entender os motivos dele e tentar
concordar. Se eu concordo, ele fica contente, e é melhor para todos.
Eu dirijo grupos de ajuda mútua. São grupos de pessoas com transtornos
mentais que se reúnem no intuito de uns ajudarem os outros.
Outro dia uma participante disse que iria dar à luz Lúcifer. Se eu me
deixar levar pelas emoções, vou achar estranho, bizarro, vou dizer que ela tem
que aumentar o remédio. Mas posso fazer diferente. Posso respeitar, tentar ver a
lógica, por que ela chegou a isso. Ela teve um caminho para chegar a isso, e se eu
tento entender esse caminho, ela se sente respeitada, vai gostar de mim, e isso
pavimenta o caminho para futuras concordâncias.
É assim sempre. O racionalismo não é frio, ele é caloroso, ele promove
encontros.
Alguém poderia dizer: mas a mensagem de amor do Cristo promove
muito mais!
Não digo que o Cristo estivesse errado! A mensagem dele é boa. Só que
para mim, quando acordo pela manhã, se digo “vou hoje amar todo mundo”,
isso é menos eficiente do que se digo “hoje vou ter uma atitude racional”.
Essa atitude racional tem desdobramentos que ajudam em vários
aspectos da doença.
Uma característica da doença é o delírio. O delírio é uma crença
irremovível que a pessoa tem em pensamentos que são só dela. O delírio mais
famoso é o de crer que se é Jesus.

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Revista do Pórtico de Epicteto. Ano 1. Número 1. Maio de 2018

A crença psiquiátrica é de que há um desarranjo químico no cérebro que


causa isso. Eu acredito mais numa causa ambiental. Mas uma vez mais,
pensemos para frente, e não para trás.
Uma vez eu briguei feio no colégio. Cheguei em casa bastante machucado.
Só que o que me doeu mais foi a ausência de perguntas de meus pais sobre o que
tivesse acontecido. Isso leva a pessoa a elaborar teorias sobre o que
possivelmente esteja acontecendo. Ou seja, se meus pais não me perguntaram
nada, deve haver um motivo para isso. E essa especulação é o começo de um
delírio. A pessoa pode ser inteligente e perceber que não há nada de errado com
seus pais. E aí surge a pergunta fatal: se não são meus pais, quem é? Só pode ser
Deus!
Na minha vida comecei a achar que havia câmeras escondidas,
microfones, que produziam um material usado para se fazer um programa de
televisão nos EUA. E fui longe. Como a mídia americana é dominada por judeus,
eu teria um aliado no líder palestino Yasser Arafat.
Essa crença acabou por paralisar minha vida. Como lidar com isso?
O detalhe é que não é ilógico. Se o governo americano quisesse, poderia
armar tudo aquilo que eu achava que era armado. É bobagem chegar para uma
pessoa delirante e dizer isso é falso. A pessoa está cansada de opiniões
contrárias às dela, e vai achar que você é só mais um enchendo o saco.
Eu percorri outro caminho. Percebi que tudo na vida é duvidoso. Se
alguém elogia meu artigo, qual a verdadeira causa? Se alguém critica meu
artigo, qual a verdadeira causa? E assim por diante. O delírio é apenas mais uma
coisa duvidosa. O que não é necessariamente ceticismo. Os estoicos, como
qualquer um que gosta de lógica, provavelmente me perguntariam: mas você
tem certeza? Como você pode ter certeza?
Eu gosto dessa atitude. Se você consome fármacos eles, podem até tirar
você do delírio (o que acontece com frequência mais baixa do que o
proclamado), mas eles não ensinam nada para você: se você parar de tomá-los,
seus delírios voltam. O conceito de que tudo é duvidoso você carrega por sua
vida.
A questão do pertencimento é central. Quando uma revisora de textos
começou a ler meu livro, ela logo me declarou: seu livro é sobre pertencimento.

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Revista do Pórtico de Epicteto. Ano 1. Número 1. Maio de 2018

Todo mundo sofre com isso. Talvez as sociedades primitivas vivam em


grupo com tal intensidade que não sofram disso. Mas no mundo moderno a
questão de não pertencer um dia vai afligir você.
Os estoicos inovaram nisso. Não pertenço a Atenas ou a Corinto, pertenço
ao cosmos. E essa é a melhor resposta.
Dei uma palestra para gente muito pobre, alguns moradores de rua, e
quando falei que pertencia ao cosmos eles me interromperam, e aplaudiram.
Só que eu vou além da ideia de que tenho uma centelha do racionalismo
de Deus e por isso pertenço ao cosmos. Eu gosto das ideias do indiano
Shankara.
Tudo isso é transitório. Meu corpo, o computador, minhas palavras,
minhas ideias. A única coisa não transitória é Brahma. O vazio anterior ao
universo. Gosto de meditar assim.
Assim me sinto pertencente. Tranquilo.
Na verdade faço o que chamo de círculo: tenho uma atitude racional no
dia a dia , o que me traz calma para crer em Brahma, o que por sua vez me traz
calma para ter uma atitude racional, e assim por diante.
A confiança de pertencer é fundamental.
Uma outra característica das pessoas com esquizofrenia é a sensação de
que tomam posse de nós. Ou seja, decisões que deveriam ser nossas caem nas
mãos de outros. Não fui que escolhi tomar remédios; não fui eu que escolhi ser
internado; se deixar, meu pai vem nesse instante e me manda modificar todo o
meu artigo.
Outro dia vinha subindo uma rua próxima, e vinha descendo um
mendigo. Ele vinha pelo meio da rua, e eu tentei avisá-lo disso. Só que ele estava
tão cheio de ser posse dos outros que preferiu não me ouvir e continuar se
arriscando.
Pessoas com esquizofrenia têm essa sensação à flor da pele.
Para lidar com isso, posso pensar que estou com Brahma, ou mesmo que
sou igual a Brahma, e que isso é mais importante do que me chatear com uns e
outros. Posso também pensar que meu racionalismo é só meu, que minha
capacidade de continuar tentando fazer contato com as pessoas não pode ser

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Revista do Pórtico de Epicteto. Ano 1. Número 1. Maio de 2018

eliminada. Na verdade até pode, dependendo da intensidade do remédio, mas


provavelmente um dia a dose vai diminuir, e o racionalismo volta.
Outra característica da esquizofrenia é o que chamo de “biografia não
apresentável”.
O que é isso? É a sensação de que não temos uma vida a narrar para os
outros. Nunca passamos por nada interessante. Isso nos aflige na adolescência
sobretudo. Mas veja-se a minha situação atual: se encontro um antigo colega de
colégio, ele estudou, fez carreira, constituiu família; eu não fiz nada, só consumi
remédios. Como enfrentar isso? Bom, você vai conversando, vai entendo a
lógica, vai concordando e sempre vai lembrando que pertencer ao cosmos é
mais importante do que ter feito uma carreira ou uma família.
E a apatia?
A pergunta que não quer calar: esquizofrênico é preguiçoso? Todo mundo
diz que sim!
Mas é um pouco diferente. Lembrando de Epicuro, é preciso prazer para
seguir em frente. Quando você se sente não pertencente, não vai ter prazer em
nada e por isso não vai trabalhar. Mesmo que você diga que cumpre o dever e
não busca prazer, a verdade é que tem prazer ao cumprir esse dever, prazer
oriundo da sensação de pertencer.
A solução uma vez mais é sentir-se pertencente. É essa sensação que me
move a escrever este artigo em vez de ficar na cama o dia inteiro.
E assim por diante. Racionalismo, pertencimento, prudência, são
assuntos importantes e não tão intransponíveis. É possível conversar sobre isso
com a maioria das pessoas, mesmo pessoas com transtornos mentais. E talvez a
pessoa leve de nossa conversa algo que vai carregar consigo, ao contrário de um
fármaco, que não ensina nada, que perde todo o efeito assim que se para de
tomá-lo.

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