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UNIVERSIDADE FEEVALE

PROGRAMA DE PÓS-GRADUAÇÃO
MESTRADO ACADÊMICO EM PROCESSOS E MANIFESTAÇÕES CULTURAIS

CAMILA MARIANA SCHUCH

EM MEIO ÀS FLORES: A DENÚNCIA DA PALAVRA INSCRITA EM HIBISCO


ROXO

Novo Hamburgo
2018
CAMILA MARIANA SCHUCH

EM MEIO ÀS FLORES: A DENÚNCIA DA PALAVRA INSCRITA EM HIBISCO


ROXO

Dissertação apresentada à banca como requisito à


obtenção de título de Mestre pelo Programa de
Pós-Graduação em Processos e Manifestações
Culturais da Universidade FEEVALE.

ORIENTADORA: Prof.ª Drª. Juracy I. Assmann Saraiva


CO-ORIENTADOR: Prof. Dr. Daniel Conte

Novo Hamburgo
2018
CAMILA MARIANA SCHUCH

EM MEIO ÀS FLORES: A DENÚNCIA DA PALAVRA INSCRITA EM HIBISCO


ROXO

Dissertação apresentada à banca como requisito à obtenção de título de Mestre pelo


Programa de Pós-Graduação em Processos e Manifestações Culturais da
Universidade FEEVALE.

Aprovado em ______ de __________________ de 2018.

BANCA EXAMINADORA

____________________________________________________
Orientadora: Profª. Drª. Juracy I. Assmann Saraiva – Universidade Feevale

____________________________________________________
Co-orientador: Prof. Dr. Daniel Conte – Universidade Feevale

____________________________________________________
Prof. Dr. Carlos Bach – Secretaria de Educação de Novo Hamburgo

____________________________________________________
Prof. Dr. Ernani Mügge – Universidade Feevale
Dedico este trabalho aos meus pais.
AGRADECIMENTOS

Agradeço aos meus pais, Rose e Luis, pelo amor, pela paciência, pelo apoio e
por nunca medirem esforços para ajudar na realização dos meus sonhos.
Agradeço ao meu amor, Jaison, que entrou na minha vida no início dessa
etapa, me apoiou ao longo desses dois anos e nunca deixou de acreditar em mim.
Agradeço aos meus amigos, Ju, Bel e Gil, ao lado dos quais iniciei a vida de
estudante e de bolsista e que me mostraram que o estudo proporciona amizades
verdadeiras e nos torna mais empáticos.
Agradeço aos meus alunos, do Colégio Estadual 8 de Setembro, com os
quais aprendo diariamente e que proporcionam alegrias e sorrisos às minhas
manhãs.
Agradeço à Equipe Diretiva do Colégio Estadual 8 de Setembro pelo apoio e
pela compreensão.
Agradeço aos meus professores, especialmente à minha orientadora,
professora Juracy, que é um exemplo inspirador de amor à leitura e à educação, no
qual me espelho.
Agradeço à Universidade Feevale, espaço que foi uma segunda casa durante
oito anos de minha vida e onde cresci como profissional e, especialmente, como ser
humano.
Agradeço à CAPES, pelo auxílio que oportunizou a realização do mestrado.
“[...] você sabe por que livros como este são tão
importantes? Porque têm qualidade. E o que significa
a palavra qualidade? Para mim significa textura. Este
livro tem poros. Tem feições. Este livro poderia
passar pelo microscópio. Você encontraria vida sob a
lâmina, emanando em profusão infinita”
(Fahrenheit 451 – Ray Bradbury).
RESUMO

O presente trabalho analisa Hibisco roxo, de Chimamanda Ngozi Adichie, para


verificar como as estratégias de composição da narradora, desenvolvidas no
romance, representam um processo de opressão familiar, transformando a narrativa
em denúncia e problematizando conflitos de identidade, que abrangem o contexto
social. A relevância do tema justifica-se, pois a literatura possibilita ao leitor
experimentar outras realidades, identificar-se com personagens e compreender
conflitos humanos. Trata-se de uma pesquisa de natureza bibliográfica, que faz uma
reflexão acerca dos conceitos de identidade e de representação, trata da natureza e
da especificidade do modo narrativo, englobando a análise de aspectos
composicionais para compreender a constituição da subjetividade narradora. A partir
dessa compreensão, são elencadas categorias culturais e realizada sua análise,
estabelecendo-se o diálogo do texto com o contexto sociohistórico. Conclui-se que a
literatura, como uma manifestação cultural, contribui para que o leitor compreenda a
realidade cotidiana.

PALAVRAS-CHAVE: Hibisco roxo; literatura; manifestação da cultura; narrativa;


contexto.
ABSTRACT

This paper analyzes Purple Hibiscus, by Chimamanda Ngozi Adichie, to verify how
the narrator's strategies of composition, developed in the novel, represent a process
of family oppression, transforming the narrative into denunciation and problematizing
identity conflicts, which envelop the social context. The relevance of the theme is
justified, since literature allows the reader to experience other realities, identify with
characters and understand human conflicts. It’s a research of bibliographic nature,
encompassing the analysis of compositional aspects to understand the constitution of
narrative subjectivity. From this understanding, cultural categories are listed, and
their analysis is performed, establishing the dialogue between the text and the socio-
historical context. We conclude that literature, as a cultural manifestation, contributes
to the reader's understanding of everyday reality.

KEY WORDS: Purple hibiscus; literature; manifestation of narrative; culture; context.


Sumário
1 INTRODUÇÃO .................................................................................................... 11
2 UMA ESCRITORA E MÚLTIPLAS HISTÓRIAS .................................................. 14
2.1 DADOS BIOGRÁFICOS DE CHIMAMANDA NGOZI ADICHIE .................... 14
2.2 FATOS HISTÓRICOS E A RELAÇÃO COM A LITERATURA PRODUZIDA
NO CONTINENTE AFRICANO ........................................................................... 16
2.3 REPRESENTAÇÃO, DINAMISMO DA CULTURA E FORMAÇÃO
IDENTITÁRIA ..................................................................................................... 21
2.4 A MULTIPLICIDADE IDENTITÁRIA NA OBRA DE CHIMAMANDA NGOZI
ADICHIE ............................................................................................................. 30
3 PERCURSO TEÓRICO PARA FUNDAMENTAR A ANÁLISE DE HIBISCO
ROXO .................................................................................................................... 34
3.1 CONCEITO DE TEXTO ................................................................................ 34
3.2 DISCURSO LITERÁRIO E FINALIDADE DA NARRATIVA .......................... 38
4 HIBISCO ROXO: O LEITOR DIANTE DA NARRATIVA ...................................... 45
4.1 UMA HISTÓRIA DE REPRESSÃO E REMISSÃO........................................ 45
4.2 A SUBJETIVIDADE DA VOZ ENUNCIADORA ............................................. 49
4.2.1. Bases para a reflexão sobre o agente do discurso ................................... 49
4.2.2 A subjetividade inscrita na palavra ............................................................. 51
4.2.3 A subjetividade decorrente dos afetos e revelada pela palavra ................. 58
4.3 ASPECTOS COMPOSICIONAIS: TEMPO E MODO.................................... 65
5 ENTRE A FICÇÃO E A TEORIA: REFLEXÃO SOBRE IDENTIDADE E
CULTURA .............................................................................................................. 74
5.1 VÍNCULOS ENTRE A ESTRUTURA TEXTUAL E A REALIDADE ............... 74
5.2 O PROBLEMA DA IDENTIDADE ................................................................. 75
5.3 CATEGORIAS CULTURAIS DA NARRATIVA E SUA RELAÇÃO COM O
CONTEXTO NIGERIANO ................................................................................... 78
5.3.1 Religiosidade ............................................................................................. 79
5.3.2 Ritos familiares e comunitários .................................................................. 84
5.3.3 Língua ........................................................................................................ 89
6. CONSIDERAÇÕES FINAIS ............................................................................... 92
REFERÊNCIAS...................................................................................................... 95
11

1 INTRODUÇÃO

A literatura é essencial para o desenvolvimento das pessoas, não somente no


plano intelectual e cognitivo, mas também para o aprimoramento do senso crítico e
da responsabilidade social. A mudança que a literatura proporciona decorre da
adesão ao fictício, que possibilita ao leitor experimentar outras realidades, identificar-
se com personagens e compreender conflitos humanos.
Diante desse posicionamento, justifica-se a leitura e análise de Hibisco roxo,
de Chimamanda Ngozi Adichie, que, a partir dos recursos narrativos que compõem a
narrativa, instaura uma voz enunciadora, cujo estudo presentifica um processo de
opressão decorrente do encontro de culturas diversas e seu impacto na constituição
de identidades, revelando essa problemática para os leitores, que, por sua vez,
passam a compreender reflexos de um processo colonial, sob uma perspectiva
diferente da historiográfica.
O corpus da pesquisa oportuniza o aprofundamento do estudo do tema das
tensões culturais, provocadas pela transferência de paradigmas alheios ao grupo a
que são impostos, e a reflexão sobre a influência dos encontros na vida de
indivíduos e grupos. A partir da pesquisa, é ressaltada a importância da literatura
como manifestação cultural, apta a explicitar conflitos sociais e individuais.
A questão que norteia o estudo é a seguinte: as estratégias de composição
da narradora, desenvolvidas em Hibisco roxo, de Chimamanda Ngozi Adichie, que
representam um processo de opressão familiar, transformam a narrativa em
denúncia e problematizam conflitos de identidade, que abrangem o contexto social?
A partir da questão norteadora, o estudo analisa as estratégias narrativas,
desenvolvidas em Hibisco roxo, para verificar como instituem a opressão familiar e
como revelam conflitos identitários, conferindo à obra o papel de denúncia de uma
realidade cruel.
12

Para dar forma à pesquisa, a dissertação divide-se em seis capítulos. O


primeiro deles compreende a introdução; o segundo apresenta um panorama acerca
da bibliografia de Adichie, para a qual converge uma gama de personagens que
ilustram a multiplicidade das identidades nigerianas; traz, também, um quadro
acerca de aspectos historiográficos da colonização e posterior descolonização da
Nigéria. Após, são revisados os conceitos de identidade e de representação, visto
que é a partir de um processo de representação que os conflitos identitários são
expostos em Hibisco roxo.
O terceiro capítulo discute o conceito de texto, sendo adotada a definição de
Roland Barthes (2004), para quem o texto é definido como um mecanismo
translinguísitico, ou seja, uma construção significativa que vai além dos aspectos
manifestados pela linguagem. Nesta parte da monografia, é discutida a natureza do
modo narrativo, e a importância dos conceitos de materialização e de
presentificação.
O quarto capítulo consiste na análise de Hibisco roxo, sob o ângulo da
narração. Primeiramente, é apresentado um resumo da obra. Em seguida, é
analisada a constituição da subjetividade narradora, classificada como autodiegética,
pois a personagem principal e enunciadora da diegese. Essa parte compreende,
ainda, o estudo de elementos que confluem para a natureza do narrador, tais como
tempo, espaço e focalização.
Por último, no quinto capítulo, é realizada a compreensão de categorias
culturais elencadas por meio da análise da narrativa, que são os seguintes: a
religiosidade, os ritos familiares e comunitários e a língua. Explora-se, também, a
problemática da identidade, articulando estudos sobre História, representação e
identidade aos aspectos narrativos, visto que a obra permite a compreensão de
elementos que vão além da linguagem, pois, por ser uma manifestação cultural,
promove o reconhecimento de aspectos da sociedade nigeriana. O sexto e último
capítulo engloba uma síntese das conclusões dos capítulos centrais da dissertação,
reafirmando a importância da literatura e da obra de Adichie.
A metodologia empregada é de cunho bibliográfico, e as obras consultadas
contribuem para assinalar o caráter interdisciplinar do mestrado. A convergência
entre literatura e história possibilita a inserção do trabalho na linha de pesquisa
Linguagens e Processos Comunicacionais e contribui para reafirmar a importância
13

da área da cultura. Esse é um mérito da dissertação, que traz conhecimentos


àqueles que desejam investir em estudos avançados que enfocam as manifestações
da cultura, como processos comunicacionais representativos de contextos sociais e
históricos.
14

2 UMA ESCRITORA E MÚLTIPLAS HISTÓRIAS

2.1 DADOS BIOGRÁFICOS DE CHIMAMANDA NGOZI ADICHIE

No ano de 2009, Adichie proferiu uma palestra promovida pelo Tecnology,


entertainment and design (TED). No discurso, a autora fala sobre como visões
estereotipadas são problemáticas e sobre a importância de narrativas diversas para
o conhecimento e para a valorização de lugares e de pessoas:

Histórias têm sido usadas para expropriar e tornar maligno. Mas histórias
podem também ser usadas para capacitar e humanizar. Histórias podem
destruir a dignidade de um povo, mas histórias também podem reparar essa
1
dignidade perdida .

Ao afirmar que histórias têm o poder de tirar a dignidade, a autora se refere às


narrativas que contribuíram para que visões equivocadas e preconceituosas fossem
disseminadas acerca da África. Ela relata que também foi afetada por isso, visto que
nasceu na Nigéria, um país do continente africano sobre o qual muitas histórias de
pobreza e de miséria são compartilhadas.
Portanto, Adichie estabelece narrativas diferentes daquelas que circulam no
ocidente através dos meios de comunicação, por exemplo. Seus livros oportunizam,
justamente, a reparação da dignidade de africanos, e, mais especificamente, de
nigerianos, e permitem ao leitor ir além de estereótipos difundidos no Ocidente.
Adichie nasceu em Enugu, na Nigéria, em 15 de setembro 1977. Pertencente
à classe média, ela é filha de um professor universitário e de uma secretária, Ifeoma.

1
A palestra completa “Perigo de uma história única” pode ser assistida no link
https://www.youtube.com/watch?v=D9Ihs241zeg
15

Passou a infância em um campus da Universidade da Nigéria, em Nsukka, onde os


pais trabalhavam.
Começou a ler aos quatro anos e escrever aos sete. Uma característica das
narrativas que escrevia na infância era que as personagens e os espaços
representavam elementos da cultura ocidental e não tinham relação de semelhança
com quem ela era nem com o local onde vivia. A criação dessas narrativas era um
reflexo de suas leituras: ela lia somente autores europeus e norte-americanos.
Contudo, isso mudou quando, ainda jovem, entrou em contato com a literatura
africana, especialmente, com a obra do autor nigeriano Chinua Achebe (1930-2013),
um dos ficcionistas mais populares da Nigéria.
Albert Chinualumogu Albert, nome de batismo do escritor, era apaixonado por
ficção. Teve contato com muitas narrativas em casa e, posteriormente, na escola, e
as histórias que o habitavam fizeram com que ele refletisse sobre o papel da
literatura e da arte para os leitores africanos (NUNES, 2005, p. 10).
Quando iniciou a jornada acadêmica, Chinua dedicou-se a escrever sobre os
africanos. Primeiramente, cursou Medicina, porém, depois optou por Ciências
Humanas. Formou-se em Letras, em 1953, mas, na universidade, a bibliografia
condizia com os parâmetros da metrópole. Portanto, não era ligada à realidade da
África nem da Nigéria (NUNES, 2005, p. 11).
Foi radialista e, em 1967, quando estourou a guerra de Biafra2, Chinua
Achebe se afastou do cargo para apoiar o igbos, que sofriam com o confronto.
Durante a independência de Biafra, ele trabalhou para o Ministério da Informação.
Posteriormente, lecionou e foi pesquisador na Universidade da Nigéria. Além disso,
foi professor visitante em universidades norte-americanas. Sua bibliografia é
composta por romances, contos e poemas. O mais famoso livro de Chinua é Things
fall a part, publicado em 1958. Ele ganhou diversos prêmios literários, tais como o
Prêmio da Paz do Comércio Livreiro Alemão 3, em 2002.
Em entrevista à Globo News, Adichie afirmou que admira o trabalho desse
autor, cuja obra é inspiração para ela, pois, ao entrar em contato com suas

2
A República de Biafra foi um estado secessionista no sudeste da Nigéria. O movimento separatista
foi liderado pelo povo igbo devido às tensões estabelecidas entre os diferentes povos da região. O
conflito iniciou em 1967 e perdurou por três anos.
3
O Prêmio da Paz do Comércio de Livros Alemão é um prêmio internacional de paz concedido
anualmente na Feira do Livro de Frankfurt, na Alemanha.
16

narrativas africanas, ela passou a contar histórias diferentes daquelas que


habitavam seu imaginário influenciado pela cultura ocidental. Segundo a escritora, o
pouco conhecimento que os ocidentais têm da África leva a estereótipos e a uma
narrativa única que não alcança a realidade e não abarca a riqueza histórica e
cultural dos diferentes países do continente africano.
Portanto, Adichie expõe uma visão mais abrangente da Nigéria e traduz o
processo de exploração pelo qual o país passou. Nos romances, personagens
representam a diversidade nigeriana, o que confirma a importância de múltiplas
histórias. Consequentemente, é necessário fazer uma revisão dos eventos
históricos, cujos conflitos estão presentes nas obras da escritora e que resultaram
na constituição da nação nigeriana.

2.2 FATOS HISTÓRICOS E A RELAÇÃO COM A LITERATURA PRODUZIDA NO


CONTINENTE AFRICANO

A partir de 1830, o continente africano passou a ser dividido entre


missionários e exploradores. Os religiosos, fossem eles católicos ou protestantes,
eram movidos por diferentes objetivos, entre eles a vontade de:

empreender a conversão dos africanos não apenas ao cristianismo, mas ao


conjunto de valores próprios da cultura ocidental europeia. O segundo, por
sua vez, era ensinar a divisão das esferas espiritual e secular, crença
absolutamente oposta à base do variado repertório cultural africano fundado
na unidade entre vida e religião. Já a terceira (sic) referia-se à pregação
contrária a uma série de ritos sagrados locais, o que minava influência de
4
chefes tradicionais africano (HERNANDEZ, 2008, p. 54) .

Já os exploradores, além do interesse econômico, empreendiam suas


viagens ao continente imbuídos por um espírito de aventura “despertado pelo
imaginário sobre a África” (HERNANDEZ, 2008, p. 54). Segundo Leila Leite
Hernandez (2008, p. 54), os desbravadores vinham à procura de monstros
gigantes, pigmeus, etc. Além disso, havia a idealização de reinos muito ricos e
cheios de mistérios, entre os quais o Califado de Sokoto (Nigéria) é um exemplo.
Inicialmente, a história sobre a existência de seres monstruosos no
continente africano movia os exploradores, porém o que deu “impulso decisivo à

4
O questionamento dessa transferência de crenças e do desprezo aos ritos locais será visualizada na
análise de Hibisco roxo no quinto capítulo
17

exploração do continente africano foi a procura por grandes eixos de acesso ao


interior, da maior importância para os interesses comercias, sobretudo dos
ingleses e franceses” (HERNANDEZ, 2008, p. 55). Eles procuravam pela nascente
do Rio Níger, do Zaire e do Zambeze.
A exploração tinha o objetivo de monitorar os “principais cursos dos rios e,
em consequência, o fornecimento dos produtos das suas circunvizinhanças, e de
estabelecer tratamentos diplomáticos com os principais chefes africanos, em
particular nas regiões das bacias do Níger e do Congo” (HERNANDEZ, 2008, p.
57).
Essas viagens de exploração empreendidas pelos europeus aceleraram o
processo de desestruturação do continente africano. Além disso, elas acentuaram
as discussões sobre a partilha do território. Contudo, a divisão do território
africano, que começou na segunda metade do século XIX, só foi estabelecida na
Conferência de Berlim, que começou em 1884 e terminou somente no ano
seguinte. Logo, essa reunião “é o grande marco na expansão do processo de
“roedura” do continente africano, iniciado por volta de 1430 com a entrada
portuguesa na África” (HERNANDEZ, 2008, p. 45).
Não há muita informação sobre o que aconteceu internamente na
Conferência que levou aos resultados e aos acordos estabelecidos, porém há uma
consensualidade no que diz respeito aos motivos que levaram a reunião a
acontecer. O primeiro se refere “aos interesses do Rei Leopoldo II da Bélgica de
criar um império ultramarino” (HERNANDEZ, 2008, p. 59), disfarçado por uma aura
filantrópica, que visaria combater o comércio de escravos e proteger as atividades
religiosas. O segundo motivo foi “a frustrada corrida de Portugal por seus
interesses em torno do já referido fato da conquista do “mapa cor-de-rosa””
(HERNANDEZ, 2008, p. 61). Essa proposta almejava o estabelecimento de uma
região “Angolomoçambicana” a partir da ligação entre Angola e Moçambique, que
abrangeria os países Zâmbia e Zimbábue. O terceiro motivo foi o expansionismo
da política francesa, expresso no controle do Egito pela França e pela Grã-
Bretanha, em 1879, de que resultou o envio de expedições ao Congo, a ratificação
de tratados com líderes africanos na bacia do Congo e o estabelecimento de
iniciativas comerciais na Tunísia e em Madagascar. (HERNANDEZ, 2008, 61). Os
interesses revelados pela Grã-Bretanha “em torno da livre navegação e do livre
18

comércio nas bacias do Níger e do Congo” (HERNANDEZ, 2008, p. 61) foi o último
motivo. Além disso, os ingleses também desejavam exercer seu domínio do Cabo
ao Cairo, porém encontravam empecilhos para isso, pois também outros países
europeus estavam interessados na exploração dessa região.
Os motivos descritos acima apontam para interesses econômicos
semelhantes na África, que incluíram “o estabelecimento de pontos de ocupação
com a assinatura de inúmeros tratados com os potentados africanos, tornando-os
presas fáceis para os colonialismos europeus dos finais do século XIX”
(HERNANDEZ, 2008, p. 61). Havia tratados que envolviam o tráfico de escravos e
o comércio para justificar o envolvimento europeu em questões africanas. Além
disso, havia aqueles que estabeleciam a renúncia de autoridades locais africanas
em troca de proteção. Nesses casos, os colonizados se comprometiam a não
assinar outros tratados com nações.
Entretanto, esse estabelecimento efetivo dos colonizadores não se deu
rapidamente, pois, somente depois da partilha do continente, os europeus tomaram
consciência da vastidão do território africano. Portanto, as políticas coloniais
demoraram de 10 a 20 para serem instituídas (FAGE, 2010, p. 404).
Como exposto anteriormente, na África sob colonização inglesa, os britânicos
estabeleceram uma administração indireta, que “consistia em respeitar as estruturas
tradicionais de poder, transformava os antigos chefes em colaboradores dos
administradores coloniais” (SERRANO, 1995, p. 53). Portanto, os britânicos:

fizeram do princípio de administração indireta sua regra de ouro na


administração colonial na África. Esse princípio, que consistia em respeitar
as estruturas tradicionais de poder, transformava os antigos chefes em
colaboradores dos administradores coloniais, aos quais respondiam por sua
administração local, pelo recolhimento de impostos, pela resolução de
conflitos, etc. (SERRANO, 1995, p.53).

Além do estabelecimento de protetorados, a ocupação, de fato, se


estabeleceu com o auxílio de forças militares. Foi com a instituição de Lagos como
colônia inglesa sob domínio direto de um governante, que a Inglaterra efetivou de
fato seu domínio neste país africano.
Por meio dessa forma de governo se desenvolviam “princípios necessários e
orientadores para autonomias futuras dos territórios, pela transferência de poderes
19

para um governo autônomo numa “descolonização” pacífica e sob o controle da


potência colonial, neste caso, a Inglaterra” (SERRANO, 1995, p. 54).
Conforme J. D. Fage (2010), “na década de 20, o domínio indirecto tornou-se
a doutrina oficial inglesa para a administração das colônias africanas e, assim,
permanece até o fim dos anos 40, sendo-lhe atribuída uma justificação filosófica” (p.
428). Com o domínio inglês, os nigerianos foram subordinados às leis europeias,
pois era a metrópole que exercia o poder. A economia de mercado era imposta e a
exploração dos locais beneficiava o império.
Portanto, diferentemente das colônias portuguesas, onde a independência se
deu após processos violentos de luta pela liberdade, a Nigéria atingiu a
independência a partir de um acordo político, que promoveu a independência das
colônias britânicas da África ocidental, área da qual a Nigéria faz parte, e, com o
término da Segunda Guerra Mundial, os ingleses incorporaram uma política de
unificação nas colônias.
Em 1957, a Costa do Ouro, que viria a ser chamada de Gana, alcançou sua
independência e, logo após, em 1960, a Nigéria atingiu a sua autonomia com uma
federação de três regiões: Norte, Leste e Oeste do país. Entretanto, este processo
se configurou como um dos mais frustrados da política britânica, pois resultou na
anexação de três territórios heterogêneos entre si, em aspectos tais como economia,
cultura e etnias (FAGE, 2010, p. 529).
Depois da independência, a Nigéria iniciou um processo de reestruturação da
política e da sociedade. Entretanto, essa tarefa não foi executada facilmente, pois
muitos foram os problemas resultantes dos anos de domínio inglês. Além dos
reflexos mais claros do imperialismo, a reestruturação política não foi concluída,
porque o país sofreu um golpe militar, que se estendeu de 1966 a 1999, que
impossibilitou o desenvolvimento pós-independência.
O panorama exposto se apresenta como um campo rico de estudos. O
continente africano, como um todo, sentiu os efeitos da colonização e,
posteriormente, da descolonização, os quais influenciaram a produção literária e a
maneira como essa foi divulgada. Sendo assim, a literatura produzida na África
ganha destaque, pois nela pode-se apreender, ainda que parcialmente, a realidade
social e política de nações como a Nigéria, cuja configuração expõe o conflito entre
culturas.
20

Adetunji Bamisile (2010) baseado na obra de Chidi Amuta (1984, p. 55-58),


em Towards a Sociology of African Literature, identifica três fases históricas pelas
quais os escritores africanos passaram. Segundo ele (2010), essas fases estão
interligadas, apesar de serem diferentes, e os escritores que delas fazem parte
tinham como objetivo melhorar a conjuntura de vida dos africanos (p. 33).
Em meados de 1920, ocorreu a primeira fase, chamada de “Reafirmação
cultural”: “Na África Ocidental a voz mais predominante foi a da filosofia e a do
movimento da negritude cultural, o que promoveu a recuperação e regeneração do
valor e orgulho africanos (costumes da raça negra)” (BAMISILE, 2010, p. 34). A
segunda fase foi intitulada de “Crise de identidade”. Ela foi caracterizada pelo
impasse que os jovens africanos viviam ao serem influenciados pela educação
ocidental na Europa e em universidades. Já no terceiro estágio, que foi a “Fase do
nacionalismo e da Luta pela independência”, os escritores queriam “pôr fim ao
domínio colonial e criar um estado soberano, com autoridade, ou que exerça, sem
restrição” (BAMISILE, 2010, p. 35). Eles objetivavam um governo genuinamente
africano e, portanto, opuseram-se às lideranças coloniais. Nas obras desse período,
há a denúncia contra o colonialismo e a aspiração da independência nas colônias
inglesas, francesas e portuguesas.
Além dos três estágios, Bamisile (2010) elencou mais um, que é chamado de
“Fase da Tristeza na era Pós Colonial”. Aqui, há referência ao contexto pós-
independência, em que os africanos passaram a viver em um processo de
exploração, a que foram submetidos pelos próprios conterrâneos, e na qual se
constata a corrupção nos governos africanos. Portanto, os objetivos e expectativas
dos escritores do período anterior haviam sido frustrados, e os escritores fizeram de
suas narrativas uma forma de denúncia da realidade. Obras de autores como
Pepetela (1941), Mia Couto (1955) e da autora que é objeto de estudo dessa
dissertação, Adichie, se encaixam nesse contexto. Eles expõem em sua obra, por
meio da representação literária, personagens extremamente marcantes inseridos em
um cenário literário, que chama a atenção mundialmente.
Sendo assim, a diversidade de personagens que compõem as narrativas de
Adichie traduz, ficcionalmente, o universo nigeriano. Logo, será exposta uma
reflexão a respeito dos conceitos de representação e de identidade, com remissão
aos estudos de Stuart Hall (1997/2001), Kathryn Woodward (2001) e Tomaz Tadeu
21

da Silva (2001), que trazem esclarecimentos relativos a essas questões conceituais,


as quais são importantes para a realização de análises no decorrer do trabalho.

2.3 REPRESENTAÇÃO, DINAMISMO DA CULTURA E FORMAÇÃO IDENTITÁRIA

Para iniciar a discussão sobre representação, é preciso levar em


consideração a compreensão de Stuart Hall (1997) sobre cultura como um conjunto
de valores ou significados compartilhados, razão por que o conceito de
representação ocupa um espaço importante nos estudos culturais, visto que é ela
que conecta significado e linguagem à cultura (p. 1):

Representação é a produção do significado dos conceitos em nossas


mentes através da linguagem. É o elo entre conceitos e linguagem que nos
permite nos referir ao mundo "real" de objetos, pessoas ou eventos, ou
56
mesmo a mundos imaginários de objetos, pessoas e eventos ficcionais .

Portanto, há dois sistemas de representação envolvidos no processo: o


mental e a linguagem. O primeiro abrange todos os objetos, seres e eventos que as
pessoas concebem enquanto ideias. Conforme Hall (1997), sem esses conceitos é
impossível compreender o mundo significativamente. Portanto, os significados
dependem de conceitos e de imagens: “Em primeiro lugar, então, o significado
depende do sistema de conceitos e imagens formado em nossos pensamentos que
podem representar ou "representar" o mundo, permitindo-nos nos referir às coisas
dentro e fora de nossas cabeças”7. Trata-se, pois, de um processo básico de algo
complexo, que é a representação.
Entretanto, as pessoas não formam apenas conceitos de coisas reais e
perceptíveis. Elas carregam também conceitos abstratos, não tangíveis, além de
compreensões sobre coisas e situações que não foram experenciadas, como a
morte, por exemplo.

5 Todas citações retiradas da obra The work of representation, de Stuart Hall, são traduções livres da
autora.
6
Representation is the production of the meaning of the concepts in our minds through language. It is
the link between concepts and language which enables us to refer to either the ‘real’ world of objects,
people or events, or indeed to imaginary worlds of fictional objects, people and events (HALL, 1997,
p.7).
7
“In the first place, then, meaning depends on the system of concepts and images formed in our
thoughts which can stand for or ‘represent’ the world, enabling us to refer to things both inside and
7
outside our heads” (HALL, 1997, p. 3).
22

Segundo Hall (1997), as representações mentais são um sistema e não são


concebidas individualmente, elas correspondem a esquemas mentais coletivos:

Isso porque não consiste em conceitos individuais, mas em diferentes


maneiras de organizar, agrupar, organizar e classificar conceitos e
estabelecer relações complexas entre eles. Por exemplo, usamos os
princípios de similaridade e diferença para estabelecer relações entre
8
conceitos ou para distingui-los uns dos outros .

Hall (1997) destaca que os significados construídos, a partir do sistema de


representações mentais, dependem da relação de pessoas, objetos, situações e
eventos, reais ou ficcionais, com os sistemas conceituais (p.3). Contudo,
compartilhar um sistema conceitual semelhante não é o suficiente:

Também devemos ser capazes de representar ou trocar significados e


conceitos, e só podemos fazer isso quando temos acesso a um idioma
compartilhado. A linguagem é, portanto, o segundo sistema de
9
representação envolvido no processo global de construção de significado .

O compartilhamento desse mapa conceitual comum, que os integrantes de


uma mesma cultura carregam, se dá por intermédio da linguagem. É possível
correlacionar conceitos e ideias a palavras escritas, sons e imagens visuais, que, de
acordo com Hall (1997), constituem os signos. Entretanto, o autor salienta que a
relação entre os sistemas de representação e seus objetos é arbitrária, ou seja, não
há uma conexão direta entre signos e conceitos.
O significado não é a coisa em si, não está na palavra, no som ou na imagem,
e são os integrantes de uma determinada cultura que naturalizam a relação que
estabelece o signo:

O significado é construído pelo sistema de representação. Ele é construído


e fixado pelo código, que estabelece a correlação entre nosso sistema
conceitual e nosso sistema de linguagem de tal forma que, toda vez que
pensamos em uma árvore, o código nos diz para usar a palavra inglesa
10
TREE, ou o francês palavra ARBRE .

8
That is because it consists not of individual concepts, but of different ways of organizing, clustering,
arranging and classifying concepts, and of establishing complex relations between them. For example,
we use the principles of similarity and difference to establish relationships between concepts or to
distinguish them from one another (HALL, 1997, p. 3).
9
We must also be able to represent or exchange meanings and concepts, and we can only do that
when we also have access to a shared language. Language is therefore the second system of
representation involved in the overall process of constructing meaning (HALL, 1997, p. 4).
10
The meaning is constructed by the system of representation. It is constructed and fixed by the code,
which sets up the correlation between our conceptual system and our language system in such a way
23

Portanto, de acordo com Hall (1997), uma forma de compreender o que é


cultura é pensar nos mapas conceituais compartilhados, na linguagem e nos códigos
que regem o vínculo entre conceitos e signos.
Como já dito anteriormente, pertencer a uma cultura é ter em comum o
mesmo mundo conceitual e linguístico: “Pertencer a uma cultura é pertencer
aproximadamente ao mesmo universo conceitual e linguístico, saber como conceitos
e ideias se traduzem em diferentes linguagens e como a linguagem pode ser
interpretada como referência ou referência ao mundo”11.
Uma tentativa de compreender como os significados são estabelecidos são as
teorias reflexiva, intencional e construcionista. Hall (1997) fala brevemente sobre as
duas primeiras, porém é na terceira que o autor encontra consonância com sua
compreensão de representação.
A teoria reflexiva afirma que o significado está no objeto, na ideia em si, e a
linguagem é um espelho que reflete esse significado verdadeiro. Portanto, essa
abordagem afirma que a linguagem imita a verdade que está fixada no mundo.
Segundo Hall (1997), há verdade nessa teoria, pois, por vezes, os signos visuais
podem estar ligados com a forma e a textura do que representam. Entretanto, a
representação não dever ser confundida com a coisa em si:

[...] os signos visuais têm alguma relação com a forma e a textura dos
objetos que eles representam. Mas, como também foi apontado
anteriormente, uma imagem visual bidimensional de uma rosa é um sinal -
não deve ser confundida com a planta real com espinhos e flores crescendo
12
no jardim .

Além da representação de uma rosa não ser a planta, como exemplificou Hall
(1997), também é possível representar conceitos fictícios, que existem somente no
imaginário. Logo, esta abordagem, como exposta, é limitada.
A segunda abordagem, a intencional, é oposta à anterior. Conforme essa
teoria, é o falante da língua que determina o significado, ou seja, ele estabelece o

that, every time we think of a tree, the code tells us to use the English word TREE, or the French word
ARBRE (HALL, 1997, p. 7).
11
To belong to a culture is to belong to roughly the same conceptual and linguistic universe, to know
how concepts and ideas translate into different languages, and how language can be interpreted to
refer to or reference the world (HALL, 1997, p. 8).
12
[...] visual signs do bear some relationship to the shape and texture of the objects which they
represent. But, as was also pointed out earlier, a two dimensional visual image of a rose is a sign – it
should not be confused with the real plant with thorns and blooms growing in the Garden (HALL, 1997,
p. 10).
24

significado único por meio da linguagem. Neste caso, as palavras significam o que o
produtor delas quer que elas signifiquem. Hall (1997) afirma que essa teoria está de
acordo com o fato de que todos os usuários da linguagem se valem dela para
expressar sentimentos particulares. Entretanto, em uma teoria ampla de
representação, essa abordagem não dá conta de explicar o processo:

Não podemos ser a única e exclusiva fonte de significados na linguagem,


pois isso significaria que poderíamos nos expressar em idiomas
inteiramente privados. Mas a essência da linguagem é a comunicação e,
por sua vez, depende de convenções linguísticas compartilhadas e códigos
13
compartilhados. A linguagem nunca pode ser totalmente um jogo privado .

Hall (1997) destaca que a linguagem é social, ou seja, mesmo ideias e


pensamentos íntimos se relacionam com significados instituídos coletivamente. Por
consequência, diferentemente das abordagens anteriores, é na terceira teoria, a
construcionista, que o aspecto social da linguagem é enfatizado e compreendido:

A terceira abordagem reconhece esse caráter público e social da


linguagem. Ela reconhece que nem as coisas em si nem os usuários
individuais da linguagem podem consertar o significado na linguagem. As
coisas não significam: nós construímos significado, usando sistemas
14
representacionais - conceitos e sinais .

Essa teoria aponta para o fato de que não são as palavras escritas, sons e
imagens visuais que estabelecem o significado nem os usuários do código de modo
individual. Coletivamente, significado e significante estabelecem o signo a partir de
sistemas representacionais.
Na teoria construcionista ou construtivista do significado da linguagem não se
rejeita a existência do mundo material, porém os construcionistas afirmam que não
se pode misturar o mundo material, local onde as coisas existem de fato, com os
processos simbólicos, em que a representação se concretiza. O significado não é
propagado pelo mundo material, mas, sim, pelo sistema de linguagem. Os
integrantes de uma determinada cultura que, ao utilizarem seus sistemas conceituais
e linguísticos, dão significado ao mundo:
13
We cannot be the sole or unique source of meanings in language, since that would mean that we
could express ourselves in entirely private languages. But the essence of language is communication
and that, in turn, depends on shared linguistic conventions and shared codes. Language can never be
wholly a private game (HALL, 1997, p. 11).
14
The third approach recognizes this public, social character of language. It acknowledges that neither
things in themselves nor the individual users of language can fix meaning in language. Things don’t
mean: we construct meaning, using representational systems – concepts and signs (HALL, 1997, p.
11).
25

São os atores sociais que usam os sistemas conceituais de sua cultura e os


sistemas linguísticos e outros sistemas representacionais para construir
significado, tornar o mundo significativo e comunicar sobre esse mundo de
15
maneira significativa para os outros .

De acordo com Hall (1997), a representação é um trabalho, que utiliza


realizações materiais, mas o significado não depende desse aspecto, ele se realiza
a partir da função simbólica: “É porque um determinado som ou palavra significa,
simboliza ou representa um conceito que pode funcionar, na linguagem, como um
sinal e transmitir significado - ou, como dizem os construcionistas, significam”
(Tradução livre da autora da dissertação)16.
Portanto, a representação é a formação do significado por meio da linguagem:

Na representação, os construcionistas argumentam, usamos sinais,


organizados em linguagens de diferentes tipos, para nos comunicarmos
significativamente com os outros. Os idiomas podem usar sinais para
simbolizar, representar ou referenciar objetos, pessoas e eventos no
chamado mundo "real". Mas eles também podem referenciar coisas
imaginárias e mundos de fantasia ou ideias abstratas que não são, em
17
nenhum sentido óbvio, parte do nosso mundo material .

Segundo Hall (1997), a linguagem não é um espelho que reflete o mundo,


mas o significado é construído pela e na linguagem, através daquilo que é chamado
de língua. A prática produz o significado, ou seja, aquilo que Hall (1997)
convencionou chamar de trabalho da representação.
Esse trabalho depende dos dois sistemas expostos acima relacionados:

Primeiro, os conceitos formados na mente funcionam como um sistema de


representação mental que classifica e organiza o mundo em categorias
significativas. Se tivermos um conceito para algo, podemos dizer que
sabemos o seu "significado". Mas não podemos comunicar esse significado

15
It is social actors who use the conceptual systems of their culture and the linguistic and other
representational systems to construct meaning, to make the world meaningful and to communicate
about that world meaningfully to others (HALL, 1997, p. 11).
16
It is because a particular sound or word stands for, symbolizes or represents a concept that it can
function, in language, as a sign and convey meaning – or, as the constructionists say, signify (HALL,
1997, p. 11).
17
In representation, constructionists argue, we use signs, organized into languages of different kinds,
to communicate meaningfully with others. Languages can use signs to symbolize, stand for or
reference objects, people and events in the so-called ‘real’ world. But they can also reference
imaginary things and fantasy worlds or abstract ideas which are not in any obvious sense part of our
material world (HALL, 1997, p. 14).
26

sem um segundo sistema de representação, uma linguagem. A linguagem


18
consiste em signos organizados em vários relacionamentos .

Os signos só se constituirão como tais se houver códigos que possibilitem a


tradução dos significados em linguagem. Logo, os códigos são fundamentais para o
significado e a representação. Eles não existem simplesmente, mas resultam de um
padrão estabelecido socialmente. Além disso, a internalização deles possibilita que
as pessoas se tornem membros de suas culturas.
Assim, por via dos códigos, que os integrantes de uma mesma cultura
partilham, são produzidos discursos, e é, conforme Hall (2001), a partir do discurso
que identidades são construídas culturalmente.
Atualmente, a questão da identidade suscita discussões diversas, e há
processos característicos da modernidade tardia que influenciam a compreensão
deste conceito. Segundo Hall (2001), um deles é o processo de migração livre e
forçada.
A migração não modifica somente àqueles que saem de seus locais de
origem, mas também àqueles que recebem imigrantes, ou seja, ela estabelece
identidades plurais:

Essa dispersão das pessoas ao redor do globo produz identidades que são
moldadas e localizadas em diferentes lugares e por diferentes lugares.
Essas novas identidades podem ser desestabilizadas, mas também
desestabilizadoras (WOODWARD, 2001, p. 22).

Além dos processos migratórios, povos colonizados e colonizadores também


se inserem nas problemáticas identitárias:

Já na Europa pós-colonial e nos Estados Unidos, tanto os povos que foram


colonizados quanto aqueles que os colonizaram têm respondido à
diversidade do multiculturalismo por meio de uma busca renovada de
certezas étnicas. Seja por meio de movimentos religiosos, seja por meio do
exclusivismo cultural, alguns grupos étnicos têm reagido à sua
marginalização no interior das sociedades “hospedeiras” pelo apelo a uma
enérgica reafirmação de suas identidades de origem (WOODWARD, 2001,
p. 24).

18
First, the concepts which are formed in the mind function as a system of mental representation
which classifies and organizes the world into meaningful categories. If we have a concept for
something, we can say we know its ‘meaning’. But we cannot communicate this meaning without a
second system of representation, a language. Language consists of signs organized into various
relationships (HALL, 1997, p. 14).
27

Destarte, a identidade é uma problemática da modernidade tardia, visto que


os estudos que visam compreendê-la são atuais, pois, na concepção da natureza
sociológica do sujeito, os teóricos entendiam a constituição identitária a partir da
existência de um “eu interior”, o qual entrava em consonância com o contexto
cultural, e, nesse encontro, estabilizava-se e unificava-se (HALL, 2001, p. 13).
Entretanto, essa compreensão não explica mais o sujeito fragmentado da pós-
modernidade.
Sendo assim, diante dos processos que são fruto de um mundo globalizado,
as identidades evocam uma origem histórica com a qual mantém uma correlação.
Contudo, conforme Hall (2001), elas se valem desse passado histórico não para a
produção do que são, mas com a intenção de compreender aqueles que virão a ser:

As identidades parecem invocar uma origem que residiria em um passado


histórico com o qual elas continuariam a manter certa correspondência. Elas
têm a ver, entretanto, com a questão da utilização dos recursos da história,
da linguagem e da cultura para a produção não daquilo que nós somos,
mas daquilo do qual nos tornamos. Têm a ver não tanto com as questões
“quem nós somos” ou “de onde nós viemos”, mas muito mais com questões
“quem nós podemos nos tornar”, “como nós temos sido representados” e
“como essa representação afeta a forma como nós podemos representar a
nós próprios” (HALL, 2001, P. 109).

Assim como Hall (2001), Woodward (2001) também fala sobre as identidades
que evocam um passado histórico. No entanto, enquanto que o primeiro destaca que
isso acontece na tentativa de compreensão, o segundo afirma que a recorrência à
história cria novas identidades:

Aquilo que parece ser simplesmente um argumento sobre o passado e a


reafirmação de uma verdade histórica pode nos dizer mais sobre a nova
posição-de-sujeito do guerreiro do século XX que está tentando defender e
afirmar o sentimento de separação e de distinção de sua identidade
nacional no presente do que sobre aquele suposto passado (WOODWARD,
2001, p. 11).

As identidades ocorrem a partir da narrativização do eu, o que não diminui a


validade política ou material da construção identitária. Segundo Hall (2001), por
serem identidades:

construídas dentro e não fora do discurso que nós precisamos compreendê-


las como produzidas em locais históricos e institucionais específicos, no
interior de formações e práticas discursivas específicas, por estratégias e
iniciativas específicas (2001, p. 109).
28

Além do mais, as identidades trazem também marcas de poder. Elas indicam


uma diferença em vez de algo uno, sem diferenciações. Portanto, as identidades são
edificadas a partir da alteridade:

Isso implica que é apenas por meio da relação com o Outro, da relação com
aquilo que é, com precisamente aquilo que falta, com aquilo que tem sido
chamado de seu exterior constitutivo, que o significado “positivo” de
qualquer termo – e, assim, sua “identidade” – pode ser construído (HALL,
2001, p. 110).

Hall (2001) se vale do termo identidade e dá a ele o significado de ponto de


sutura. Segundo o teórico, por um lado, a identidade une os discursos e as práticas
que objetivam fazer com que pessoas assumam seus locais como “sujeitos sociais
de discursos particulares” (p. 112), e, por outro, “os processos que produzem
subjetividades, que nos constroem como sujeitos aos quais se pode “falar”” (HALL,
2001, p. 112). Portanto, são provisórias e construídas a partir do discurso:

[...] as identidades são as posições que o sujeito é obrigado a assumir,


embora “sabendo” [...], sempre, que elas são representações, que a
representação é sempre construída ao longo de uma “falta”, ao longo de
uma divisão, a partir do lugar do Outro e que, assim, elas não podem,
nunca, ser ajustadas – idênticas – aos processos de sujeito que são nelas
investidos (HALL, 2001, p. 112).

Woodward (2001) também enfatiza a característica relacional da construção


identitária que é marcada pela diferença, ou seja, ela depende de algo fora dela para
existir. Portanto, há a busca pela unicidade, porém, para se constituírem, as
identidades se estabelecem a partir da diferença: para uma se afirmar há a negação
de outra.
Tomaz Tadeu da Silva (2001) também enfatiza a importância da alteridade
para a constituição identitária, que é dependente da diferença:

“Sou brasileiro” – ponto. Entretanto, eu só preciso fazer essa afirmação


porque existem outros seres humanos que não são brasileiros. Em um
mundo imaginário totalmente homogêneo, no qual todas as pessoas
partilhassem a mesma identidade, as afirmações de identidade não fariam
sentido (SILVA, 2001, p. 75).

Esse autor destaca, também, que a afirmação de uma identidade, em


detrimento da negação de outra, carrega uma carga negativa referente àquela que é
negada:
29

As afirmações sobre diferença também dependem de uma cadeia, em geral


oculta, de declarações negativas sobre (outras) identidades. Assim como a
identidade depende da diferença, a diferença depende da identidade.
Identidade e diferença são, pois, inseparáveis (SILVA, 2001, p. 75).

Além disso, a identidade é estabelecida por meio de símbolos. Associa-se a


conformação identitária de uma pessoa ao que ela usa: os acessórios servem como
significantes, cujos significados são construídos culturalmente. Por essa razão, ela
também é social,

O social e o simbólico referem-se a dois processos diferentes, mas cada um


deles é necessário para a construção e a manutenção das identidades. A
marcação simbólica é o meio pelo qual damos sentido a práticas e a
relações sociais, definindo, por exemplo, eu que é excluído e quem é
incluído (WOODWARD, 2001, p. 14).

Conforme Woodward (2001), a representação, que produz identidade,


incluindo “as práticas de significação e os sistemas simbólicos por meio dos quais os
significados são produzidos” (p. 17). Através dos significados, originados pelas
representações, é dado sentido à existência. Ao compreender o processo de
representação culturalmente, identidades individuais e coletivas são estabelecidas.
Para a compreensão de significados gerados no processo de representação é
necessário conhecer as posições-de-sujeito que são produzidas e como os sujeitos
ocupam essas posições, que, por sua vez, são construídas a partir de discurso, o
que coaduna a ideia da narrativização do eu, de Hall (2001).
Outro aspecto apontado por Woodward (2001) é a característica não
essencialista da identidade:

Na base da discussão sobre essas questões está a tensão entre


perspectivas essencialistas e perspectivas não essencialistas sobre
identidade. Uma definição essencialista da identidade “sérvia” sugeriria que
existe um conjunto cristalino, autêntico, de características que todos os
sérvios partilham e que não se altera ao longo do tempo. Uma definição não
essencialista focalizaria as diferenças, assim como as características
comuns ou partilhadas, tanto entre os próprios sérvios quanto entre os
sérvios e outros grupos étnicos (WOODWARD, 2001, p 12).

Nessa perspectiva, não são somente as diferenças entre grupos que devem
ser observadas, mas as diferenças em relação a um mesmo coletivo. Além disso,
uma visão não essencialista atenta para as mudanças de um entendimento de
identidade ao longo do tempo. Logo, as identidades somente são objeto de estudos
e de questionamentos por não serem essencialistas. Caso assim fossem, elas
30

permaneceriam sempre iguais, sem a necessidade de serem problematizadas e


compreendidas.
Portanto, as identidades não são fixas nem homogêneas, apesar de
processos como o da globalização apontarem para o estabelecimento de
identidades globalizadas, devido à rede comum que surge entre cultura e hábitos
econômicos.
Esse processo, apesar de não ser novo, leva as discussões sobre identidade
a um âmbito em que aspectos identitários são definidos por características comuns.
Além disso, também faz com que identidades locais sejam reivindicadas em uma
tentativa de resistência:

A globalização, entretanto, produz diferentes resultados em termos de


identidade. A homogeneidade cultural promovida pelo mercado global pode
levar ao distanciamento da identidade relativamente à comunidade e à
cultura local. De forma alternativa, pode levar a uma resistência que pode
fortalecer e reafirmar algumas identidades nacionais e locais ou levar ao
surgimento de novas posições de identidade (WOODWARD, 2001, p. 21).

Como visto nesta sessão, os estudos apontam para a característica relacional


da identidade e que ela é simbólica: há marcas, as quais são signos, que, a partir da
representação, podem ser compreendidos culturalmente.
É possível observar que a pós-modernidade, a partir de processos tais como
imigração e a globalização, sublinha a fragmentação do sujeito que, não só possui
múltiplas identidades, mas vivencia alterações constantes. Neste contexto, a
tentativa de compreender o processo de construção de identidades e de como ela
funciona encontra suporte nos textos literários, que se tornam uma rica fonte de
exploração dessa temática.

2.4 A MULTIPLICIDADE IDENTITÁRIA NA OBRA DE CHIMAMANDA NGOZI


ADICHIE

A literatura, como uma manifestação cultural, é um meio pelo qual a


identidade poder ser discutida, e é o que faz Adichie. Em suas narrativas, a autora
explora uma gama diversa de personagens, o que torna sua obra complexa,
constituindo um quadro que representa o hibridismo cultural do país onde ela nasceu
31

e no qual vive periodicamente, já que divide sua vida entre a Nigéria e os Estados
Unidos.
Na literatura de Adichie, há ricos e pobres, que vivem nas cidades ou em
aldeias; há intelectuais, mas há também personagens pouco instruídas; há mulheres
submissas, empresárias, médicas, jornalistas e há, também, personagens que se
identificam completamente com a cultura europeia e que negam sua identidade igbo,
como é o caso de Eugene, de Hibisco roxo.
Ela mostra ao leitor uma Nigéria moderna, que mescla a influência inglesa e
as tradições nativas, um país que vivencia os reflexos de um longo período colonial
e que foi seguido de governos totalitários desde sua independência. Logo, em sua
obra, a identidade nigeriana é explorada, visto que, no panorama em que são
mostradas as questões que perpassam o país, são apresentadas aos leitores a
diversidade religiosa e a ligação com a cultura inglesa, que gera identidades.
No romance de estreia da autora, Hibisco Roxo, em 2003, Adichie apresenta
personagens cujos conflitos de identidade revelam as diferenças que constituem a
sociedade nigeriana. Nesse encontro, as relações mostram-se dilemáticas,
segregacionistas e, por vezes, apaziguadoras.
O segundo romance é intitulado Meio sol amarelo e foi lançado em 2006.
Conforme a autora, a primeira e a segunda obra cumpriram uma obrigação com seu
país e sua família:

Penso em Meio Sol Amarelo como a obra que eu tinha que escrever. Como
se a história me tivesse pedido. Sei que pode soar estranho, mas eu tinha
essa sensação, porque levava essa carga familiar e estava muito obcecada.
Queria homenagear meu avô e ver como [a Guerra Civil da Nigéria] dividiu
meus pais e teve impacto na minha própria vida. Era uma grande
responsabilidade. Foi um livro muito difícil, não apenas porque a guerra é
19
um tema difícil, mas também por ser muito pessoal .

Essa obra retrata um período que transformou a Nigéria, e esse quadro é


elaborado minuciosamente por Adichie20, que instituiu um universo de personagens

19
Trecho da entrevista concedida ao jornal El país. A entrevista pode ser conferida no link
https://brasil.elpais.com/brasil/2017/10/01/cultura/1506882356_458023.html?%3Fid_externo_rsoc=FB
_BR_CM
20
Segundo a autora, em entrevista concedida ao Milênio, da Globo News, ela dedicou-se seis anos
na escrita desse romance. Entrevista completa no link http://g1.globo.com/globo-
news/milenio/videos/t/milenio/v/milenio-escritora-militante-feminista-tem-livro-lido-por-toda-
ny/6030588/
32

tão híbridos quanto a população de seu país. As personagens centrais são as irmãs
Olanna e Kainene e Odenigbo, que lutam pela independência de Biafra.
O terceiro romance é Americanah, que, conforme a autora, foi o que ela
realmente queria escrever. Depois da estabilidade adquirida com o lançamento de
Meio sol amarelo, a nigeriana elaborou uma narrativa mais simples, porém com
temas complexos como raça, racismo e gênero: “Queria quebrar certas convenções.
Eu me permiti questionar certas ideias sobre a literatura, sobre como escrever temas
21
sociais, como escrever sobre a raça nos Estados Unidos” .
Essa obra foi lançada em 2013, e o título faz alusão à forma como os
nigerianos chamam àqueles que saem da Nigéria para viver nos Estados Unidos e,
consequentemente, acabam modificados pelo país norte americano.
Em Americanah, Ifemelu é uma jovem nigeriana apaixonada por literatura e
por Obinze. Devido às greves dos professores universitários, que protestavam
contra o governo ditatorial, ela deixa a Nigéria para ir estudar nos Estados Unidos.
Quando chega à América do Norte, a personagem se dá conta de uma realidade
dura: as chances para alguém negro não são tantas e, pela primeira vez, ela
percebe a questão racial e a carga negativa presente no fato de ser negra.
Dribladas as dificuldades iniciais, ela decide criar um blog em que
problematiza a temática racial. A partir dele, ela obtém sucesso, porém não se sente
satisfeita. Depois de mais de dez anos nos Estados Unidos, Ifemelu resolve voltar
para seu país de origem para reencontrar-se consigo e com seu grande amor,
Obinze.
Nessa narrativa, Adichie reflete sobre experiências pessoais que vivenciou
quando chegou aos Estados Unidos, com dezenove anos, como quando sua colega
de quarto se surpreendeu com o fato de uma africana falar tão bem inglês 22,
mostrando desconhecer completamente aspectos como a colonização de países da
África, que, durante bastante tempo, ficaram sob o domínio da Inglaterra. Além
desse episódio, outro vivido pela autora, e retratado na ficção, ocorreu no Brasil. Ela

21
Trecho da entrevista concedida ao jornal El país (link citado anteriormente).
22
Esse episódio Adichie comenta na palestra O perigo de uma história única (link citado
anteriormente).
33

esperava na fila executiva de um aeroporto, quando um funcionário pediu para que


ela se encaminhasse à fila da classe econômica23.
Além dos três romances, a autora também escreveu um livro de contos, com
título em português: No seu pescoço, lançado em 200924. Nele, há contos que
versam principalmente sobre questões de gênero, mas a problematização de
questões raciais e étnicas perpassa toda a obra.
A bibliografia da autora também conta com pequenos manifestos: Sejamos
todos feministas (2014) e Para educar crianças feministas (2017). O primeiro
originou-se a partir de uma palestra promovida pelo TED25, em que questiona os
papéis de gênero e elenca novas formas de pensar sobre eles. O segundo foi
elaborado a partir de um pedido de uma amiga, que tinha acabado de se tornar mãe
e queria criar sua filha sob uma perspectiva feminista.
Diante do panorama exposto acima, observa-se que o universo ficcional de
Adichie apresenta uma discussão acerca de aspectos identitários. A diversidade de
personagens indica a relação, que por vezes é tensa, entre a cultura europeia e a
cultura local e resulta em identidades múltiplas, que se modificam com o tempo e
com os encontros. Portanto, mostra um sujeito que, na tentativa de não aquiescer ao
estrangeiro, busca mostrar aquele que é.
Com efeito, para compreender como se dá a discussão acerca da identidade,
é essencial entender como a ficção de Adichie é construída, visto que, para que seja
possível depreender a significação de uma obra, é necessário analisar como a
história e o discurso se apresentam e se inter-relacionam. Portanto, o próximo
capítulo será destinado à compreensão das especificidades da narrativa, que é
objeto de estudo deste trabalho.

23
Esse episódio Adichie comenta em entrevista concedida ao Milênio, da Globo News (link citado
anteriormente).
24
A obra foi lançada somente em 2017 no Brasil.
25
Palestra completa disponível no link https://www.youtube.com/watch?v=hg3umXU_qWc
34

3 PERCURSO TEÓRICO PARA FUNDAMENTAR A ANÁLISE DE HIBISCO ROXO

3.1 CONCEITO DE TEXTO

O terceiro capítulo deste trabalho compreende a elaboração de um panorama


acerca do que estudiosos, tais como Iuri Lotman (2003), Roland Barthes (2004) e
Lucia Santaella (2005), discutem sobre texto, para que a natureza do objeto de
pesquisa, no caso, a obra literária, seja delimitada.
Durante muito tempo, a compreensão de texto que orientou os estudos
linguísticos e literários assumia a tradição saussureana, segundo a qual o texto é
uma representação por meio da linguagem. De acordo com essa concepção, a
linguagem precede o texto, e esse tem uma função básica, que é comunicar, e, por
isso, “todo texto ha sido visto como material em el que se manifiestan las leyes del
linguaje, como uma espécie de mineral del que los lingüistas extraen por fundición la
estrutura del lenguaje”. (LOTMAN, 2003, p. 1). Entretanto, nas últimas décadas,
pesquisas ampliaram essa compreensão tradicional de texto.
Com o desenvolvimento de estudos, o texto passou a ser compreendido como
algo que precede a linguagem e não o contrário, visto que ele não é mais concebido
com um envoltório possuidor de um sentido homogêneo e cristalino, que
passivamente comunica a mensagem, a qual é percebida pelo receptor. De acordo
com os estudos culturais, o texto passa a ser definido como um gerador de
significações (LOTMAN, 2003, p. 2). Logo, essa definição ampliou as possibilidades
para linguistas e semioticistas, e é neste contexto que se insere Santaella, que é
uma pesquisadora brasileira conhecida por ser divulgadora de estudos de Charles
Sanders Peirce26 (1839-1914).

26
Peirce foi um estudioso americano de diversas áreas da ciência, tais como física, química,
psicologia etc. Dentre tantas contribuições, suas descobertas no campo da semiótica influenciam
estudos de pesquisadores, dos quais as pesquisas de Santaella são um exemplo.
35

Atualmente, é possível observar o aumento do número de signos e, de acordo


com Santaella (2004), essa proliferação exige que os signos sejam lidos:

[...] a proliferação ininterrupta de signos vem criando cada vez mais a


necessidade de que possamos lê-los, dialogar com eles em um nível mais
profundo do que aquele que nasce da mera convivência e familiaridade. O
aparecimento da ciência semiótica desde o final do século XIX coincidiu
com o processo expansivo das tecnologias da linguagem (SANTAELLA,
2004, p. 14).
Além disso, também é necessário destacar que os estudos peirceanos se
baseiam na gramática especulativa, a qual amplia significativamente o conceito de
signo:

[...] o signo é qualquer coisa de qualquer espécie (uma palavra, um livro,


uma biblioteca, um grito, uma pintura, um museu, uma pessoa, uma
mancha de tinta, um vídeo etc.) que representa uma outra coisa, chamada
de objeto do signo, e que produz um efeito interpretativo em uma mente real
ou potencial, efeito este que é chamado de interpretante do signo
(SANTAELLA, 2005, p. 8).

Portanto, de acordo com a definição acima, Hibisco roxo é um signo, que tem
como objeto a opressão familiar, temática que perpassa toda a narrativa. A
compreensão dos motivos pelos quais a opressão é exercida é do âmbito do efeito
interpretante. Logo, o leitor dessa obra tem acesso “ao objeto do signo, àquilo que o
romance representa, pela mediação do signo” (SANTAELLA, 2004, p. 9), a qual é
realizada pela linguagem.
Segundo Santaella (2004), o signo é triádico, e a conceptualização peirceana
abrange três teorias, que são as seguintes: a significação, a objetivação e a
interpretação. A primeira consiste na “relação do signo consigo mesmo”
(SANTAELLA, 2004, p. 10) e está ligada à sua natureza. Essa parte abarca a
análise dos elementos que configuram o signo, ou seja, a análise de aspectos
estruturais quando se trata de uma narrativa literária. A segunda diz respeito à
relação do signo com o objeto: “com aquilo que determina o signo e que é, ao
mesmo tempo, aquilo que o signo representa e ao qual se aplica, e que pode ser
tomado em sentido genérico como o contexto do signo [...]” (SANTAELLA, 2004, p.
10). Portanto, é a objetivação que trata do tema representado. A última é a
interpretação, parte em que entra a relação do signo com o intérprete, pois consiste
na “relação do fundamento com o interpretante” (SANTAELLA, 2004, p. 10).
36

Diante da síntese acima, é válido ressaltar que este trabalho não almeja
realizar uma análise semiótica da narrativa literária, porém os apontamentos teóricos
de Santaella (2005) contribuem para a ampliação do conceito de signo, bem como
de texto.
Como Santaella (2005), Barthes (2004) também pensa a respeito do conceito
de texto e o amplia. Ele se vale da definição de texto de Julia Kristeva 27, para fins
epistemológicos:

Definimos o texto como um aparato translinguístico que redistribui a ordem


da língua estabelecendo a relação de uma fala comunicativa em vista da
informação direta com diferentes enunciados anteriores ou sincrônicos
(BARTHES, 2004, p. 269).

A partir dessa definição, o autor estabelece conceitos teóricos imanentes à


definição acima, tais como práticas significantes, produtividade, significância,
fenotexto e genotexto.
As práticas significantes referem-se ao fato de que a significação de um texto
não acontece no âmbito da abstração, como pressuposto por Saussure, mas, sim, a
partir de um trabalho, o qual envolve concomitantemente “num único movimento o
debate entre o sujeito e o Outro e o contexto social” (BARTHES, 2004, p. 270).
Portanto, a energia ativa da linguagem está implicada nessa definição. Trata-se,
então, de uma atividade dialética, a qual tem como centro a pluralidade.
A produtividade engloba o “teatro de uma produção em que se reúnem o
produtor do texto e seu leitor” (BARTHES, 2004, p. 271). Tal fato significa que o
texto se “movimenta”, pois a escrita não o fixa; ele permanece em um trabalho de
produção:

Descontrói a língua de comunicação, de representação ou de expressão (na


qual o sujeito, individual ou coletivo, pode ter a ilusão de imitar ou exprimir-
se) e reconstrói uma outra língua, volumosa, sem fundo nem superfície, pois
seu espaço não é o da figura, do quadro, da moldura, mas o espaço
estereográfico, do jogo combinatório, infinito assim que se saia dos limites
da comunicação corrente [...] e da verossimilhança narrativa ou discursiva
(BARTHES, 204, p. 271).

Portanto, é por causa da produtividade que se opera

27
Julia Kristeva é búlgura e é conhecida por ser uma estudiosa da linguagem com uma significativa
obra publicada. Seus estudos abrangem teoria da intertextualidade e da semiótica. É uma das
principais autoras estruturalistas.
37

a redistribuição, sobrevém o texto desde que, por exemplo, o escrevedor


e/ou o ledor comecem a jogar com o significante, seja (em se tratando do
autor) produzido sem cessar “jogos de palavras”, seja (em se tratando do
leitor), inventando sentidos lúdicos, mesmo que o autor do texto não os
tenha previsto e mesmo que fosse historicamente impossível prevê-los: o
significante pertence a todos; é o texto que, na verdade, trabalha
incansavelmente, não o artista ou o consumidor. (BARTHES, 2004, P. 271).

A produtividade se refere a um trabalho do texto, o qual não é estático e não


engessa em suas barreiras um significado uno. Logo, falar em significação é um
tanto quanto limitado. Sendo assim, um terceiro conceito teórico que engloba a
definição é a significância, que “é um processo durante o qual o “sujeito” do texto,
escapando à lógica do egocogito e enveredando por outras lógicas (a do significante
e a da contradição), se debate com o sentido e se descontrói (“perde-se”)[...]”
(BARTHES, 2004, p. 273).
A significância é diferente da significação, pois não se trata de uma tentativa
de domínio da língua, do sentido expresso pelo texto. É o contrário disso: é a
ampliação das possibilidades interpretativas:

A significância, contrariamente à significação, não poderia, portanto, reduzir-


se à comunicação, à representação, à expressão: ela situa o sujeito (do
escritor, do leitor) no texto, não como uma projeção, ainda que fantástica
(não há “transporte” de um sujeito constituído), mas como uma “perda” [...]
(BARTHES, 2004, p. 274).

É por causa da significância que o texto se torna erótico: trata-se, pois, de um


sem fim, em que o sujeito diante do texto quer sempre mais:

[...] ela situa o sujeito (do escritor, do leitor) no texto, não como uma
projeção, ainda que fantasmática (não há “transporte” de um sujeito
constituído), mas como uma “perda” [...]; donde sua identificação com o
gozo; é pelo conceito de significância que o texto se torna erótico (para isso,
ele não precisa representar “cenas” eróticas (BARTHES, 2004, p. 274).

Além dos conceitos apresentados acima, o autor distingue ainda fenotexto e


genotexto. O primeiro é a matéria da semiologia, visto que é no âmbito desse que se
apresenta o contingente da obra:

Os métodos de análise que se praticam comumente (antes da semanálise e


fora dela) aplicam-se ao fenotexto; a descrição fonológica, estrutural,
semântica – em suma, a análise estrutural – convém ao fenotexto, porque
essa análise não formula nenhuma pergunta sobre o sujeito do texto: versa
sobre enunciados, não sobre enunciações (BARTHES, 2004, p. 274).
38

Já o genotexto, de acordo com Barthes (2004), é da esfera da significância.


Ele é heterogêneo, pois trata do aspecto verbal e também pulsional, ou seja, é de
sua alçada ocupar-se de como se constitui o sujeito da enunciação. Logo, é devido
ao genotexto que a análise da semiologia clássica é superada, visto que vai além do
estudo estrutural dos enunciados.
Os conceitos teóricos apresentados se integram e formam um tecido, que se
liga ao conceito de texto devido à etimologia da palavra texto28 e também devido à
metáfora que Barthes (2004) estabelece ao pensar nesse conceito: o texto é uma
rede em que há nós, porém, também, há furos. Estes devem ser preenchidos;
aqueles dão coesão e coerência à obra a qual se deseja ler.
Em síntese, inicialmente, o conceito de linguagem restringia-se a uma
imitação do mundo. Entretanto, com o advento de estudos no campo da semiótica,
da linguística e da literatura, houve uma ampliação do conceito de signo que,
consequentemente, ampliou o que até então se entendia por texto.
Apesar de uma imagem, um filme, uma propaganda e uma obra literária
serem todos textos, cada um deles carrega consigo especificidades, e, para uma
leitura competente dos mesmos, é necessário conhecer suas formas de
manifestação e as particularidades de cada um deles.
Sendo assim, para que se possa entender a natureza do objeto que este
trabalho analisa, é necessário tratar das características da narrativa literária, que faz
parte do modo narrativo, porém se distingue de outras narrativas devido à sua
natureza ficcional e ao trato especial dispensado à linguagem.

3.2 DISCURSO LITERÁRIO E FINALIDADE DA NARRATIVA

De acordo com Juracy Assman Saraiva (2001), a narrativa literária está


inserida no modo narrativo, pois é uma variedade desse discurso, que pode ser
apresentado “sob múltiplas matérias de expressão, assumir diversas funções
socioculturais e variados enquadramentos pragmáticos” (p. 51).
Portanto, a prática de narrar se manifesta por meio de diversas formas, tais
como a linguagem verbal ou escrita, o desenho, a pintura, a fotografia, a dança, a

28
Do latim textus, de textum (tecido, entrelaçamento).
39

escultura, etc. Sendo assim, o emprego de narrativas pode ser presenciado em


todos os momentos da vida humana.
A narrativa literária ganha uma particularidade distintiva em relação às demais
porque ela instaura a ficção:

Esse último aspecto introduz a natureza singular e artificial do ato narrativo


e, ao estabelecer uma distinção entre suas diversas formas de
manifestação, determina as condições de sua existência, demarcando a
ruptura fundamental entre a narrativa de ficção e as demais (SARAIVA,
2001, p. 51).

Logo, a narrativa literária se assemelha às manifestações do modo narrativo


devido à narratividade, porém se diferencia por ser ficcional e, também, pelo trato
especial destinado à linguagem:

A instalação de um mundo possível e a convencionalidade de relato, ou


seja, o artifício da linguagem verbal, determinam a especificidade da
narrativa literária e permitem sua aproximação ou distanciamento em
relação às outras produções que fazem parte do modo narrativo (SARAIVA,
2001, p. 51).

Segundo Maurice-Jean Lefebve (1980), o discurso literário segue um código


que é parecido com o da linguagem do cotidiano, mas distingue-se dessa, pois a
literatura se vale da linguagem de uma forma particular, a qual estabelece regras da
língua literária, qual seja, o código retórico (p. 24).
Conforme esse autor, o código retórico possui regras que vão além do
aspecto linguístico somente. A linguagem literária não almeja uma comunicação
pura e simples, pelo contrário: ela a obscurece. O código retórico nunca está
acabado, pois ao longo do tempo ele evolui e se modifica; a língua, quando
submetida ao código retórico, não almeja atingir um sentido transparente, ou seja,
uma narrativa literária nunca será fechada; na linguagem cotidiana, as regras são
respeitadas, caso contrário a comunicação pode ficar comprometida; no código
retórico as regras estão sempre sujeitas a serem transgredidas (LEFEBVE, 1980, p.
26).
Portanto, a linguagem literária possui a mesma natureza da língua utilizada
cotidianamente. Contudo, aquela é mais rica que esta e instala significações
diversas, pois, enquanto a primeira mantém o significante com o objetivo de
preservar o significado, almejando fazer de todo significado um novo significante, a
segunda suprime o significante em benefício do significado (LEFEBVE, 1980, p. 38).
40

Entretanto, a linguagem literária não se encerra a si mesma. Apesar do


tratamento dispensado ao significante, ela se mantém aberta e introduz ao mundo
questionamentos sobre esse, o qual não é respondido pela ciência nem pela
sociologia. A literatura “não se contenta com “fotografar” uma realidade pré-
existente; interroga o mundo sobre sua realidade e a linguagem sobre a sua
obsessão de uma adequação perfeita ao ser do mundo” (LEFEBVE, 1980, p. 39).
A obra literária é um espaço em que um movimento duplo e oposto é
estabelecido: por um lado, ela, como objeto de linguagem se volta para si mesma;
por outro lado, ela se abre para o mundo, interrogando-o:

A obra [...] é campo de dois movimentos ou tendências contraditórios: por


um lado, fecha-se sobre si mesma enquanto linguagem; por outro lado,
abre-se para as coisas do mundo, reproduzidas numa presença total e
numa realidade inigualada (LEFEBVE, 1980, p. 43).

Ao se fechar sobre si, a linguagem literária chama atenção para o próprio


discurso e não somente para a significação instalada por esse. Ela desloca a parte
abstrata para um segundo plano e dá ênfase ao aspecto material da linguagem: “A
literatura utiliza as figuras retóricas como uma arma no seu antagonismo com o
sentido puro, com a significação abstrata que tomaram as palavras na fala cotidiana”
(LEFEBVE, 1980, p. 45).
A linguagem literária se distingue da cotidiana, pois é dotada de propriedades
de materialização e de presentificação, que, simultaneamente, constituem, a partir
de um exercício dialético, uma imagem:

A literatura é precisamente o campo dialético que se desdobra entre estes


dois pólos, entendendo por dialética o fato de que nenhum destes pólos
existe separadamente, que um é necessariamente a condição do outro, e
que a materialização e a presentificação estão numa estreita relação de
solidariedade: são elas que, no espaço assim aberto, constituem a imagem
(LEFEBVE, 1980, p. 47).

O instrumento de que se ocupa a ciência literária não é a literatura em si,


mas, sim, o que faz de uma obra uma obra literária, que é o que os formalistas
russos chamaram de literariedade: “A questão está, pois, em saber como é que um
texto escapa à linguagem usual e se constitui numa linguagem particular que pode,
então, ser qualificada de literária” (LEFEBVE, 1980, p. 47).
É a intencionalidade literária que promove o desligamento do discurso de seu
uso cotidiano para um status em que a linguagem se apresenta como nova “em que
41

o processo de significação contaria mais que o sentido da coisa significada”


(LEFEBVE, 1980, p. 48). E é nesse contexto que a linguagem, como discurso, se
destaca, ou seja, se materializa.
Entretanto, esse é apenas um dos fatores, pois a intencionalidade literária é
que promove a ação dialética, a qual eleva o discurso cotidiano a discurso literário:

Deve-se admitir, pois, que a intencionalidade literária tem uma dupla face, é
o indício de uma dupla potencialidade: ela inclina a obra para sua
materialização. Mas, por outro lado, permite à linguagem desligada da sua
função prática virar-se para o mundo: ela é um apelo de sentido e de
presença (LEFEBVE, 1980, p. 50).

De acordo com Lefebve (1980), a materialização se mostra como conotação


reflexiva; a presença abarca a conotação e inicia a presentificação. Quanto à
primeira, trata-se da capacidade do discurso literário de ser designado como tal,
como literatura: “isto é enquanto objeto de linguagem que marca a sua presença
material de discurso, a sua gratuidade relativamente à ordem prática” (p. 51).
Estruturas que pertencem ao discurso literário marcam a materialização do
significante e a presentificação do significado a partir de um jogo que resulta da
intencionalidade literária:

O discurso literário é habitualmente um discurso figurado, na acepção


restrita desta palavra, quer dizer, um discurso em que o significante e o
significado revelam alterações que o distinguem e o afastam da linguagem
corrente (LEFEBVE, 1980, p. 55).

Quanto ao discurso figurado, não se trata, porém, de qualquer figura, pois só


é considerada como tal aquela que “na medida em que corresponde a uma certa
alteração de sentido, na medida em que enriquece a obra com significações novas”
(LEFEBVE, 1980, p. 56). Contudo, significações múltiplas não precisam ser
necessariamente o objetivo último de uma obra, pois o que o discurso literário
almeja é ser uma ferramenta que possibilita o entendimento da realidade, o que,
segundo Lefebve (1980), é a presentificação.
Portanto, uma figura é classificada como tal devido ao valor conotativo, ou
seja, ela deve locupletar a obra com significações sugeridas pelo contexto em que
será utilizada. Logo, o sentido conotado “só advém à palavra numa dada situação e
por referência a um certo contexto (de linguagem ou vivido)” (LEFEBVE, 1980, p.
58).
42

Sendo assim, não é possível ater-se definitivamente a um sentido expresso


por uma narrativa literária, pois ela evidencia um sentido que pode ser incerto: “[...] é
concebível que todo o significado emanado se torne, por seu turno, um ponto de
partida, um novo significante que interrogamos e a partir do qual um novo significado
pode despontar” (LEFEBVE, 1980, 63). Isso se estabelece também quando o
significado se apresenta desordenadamente, já que, na narrativa literária, todo o
“significado ganha uma consistência de significante portador de um sentido pelo
menos possível” (LEFEBVE, 1980, p. 64).
Portanto, baseado na intencionalidade literária, acontecem dois processos
ligados entre si e que, por isso, estabelecem a particularidade da literatura, que são
a materialização ou opacidade do significado e a presentificação dos significados.
Entretanto, além desses procedimentos, há outro processo que, de acordo com
Lefebve (1980), almeja em primeira instância solucionar a questão dialética unindo
as duas características desenvolvidas anteriormente, que é a imitação:

Por esta palavra entendo o fato de que o discurso tenta, numa certa
medida, encarnar na própria forma do significante os sentidos denotativos e
conotativos que dele se destacam; por outras palavras, instituir um
paralelismo entre as estruturas do significante e as significações; ou, ainda,
fazer do significante, por diversos artifícios, uma espécie de duplo do
significado, e como que sua imagem (LEFEBVE, 1980, p. 68).

Quanto ao significado, Lefebve (1980) se refere a uma certa ideia de


referente, ou seja, de realidade indicada, já quando se refere à encarnação, ligando-
a ao significante, trata das técnicas que dão existência às figuras de linguagem.
Num primeiro momento, pode-se pensar que as figuras acrescem a
materialidade e a opacidade do discurso literário, mas, o que se observa, é que elas
possuem uma finalidade oposta ao estabelecerem

[...] uma verdadeira transparência, pois tendem a suprimir a distância que


29 30
existe entre Sa e o Sé , a encarnar o segundo na própria matéria do
primeiro, para nos dar pelo menos a ilusão de que vemos, tocamos,
experimentamos na nossa audição, ou na nossa dicção até, ideias ou
emoções que, em geral, não são na linguagem mais que puras
representações do espírito (LEFEBVE, 1980, p. 69).

Consoante Lefebve (1980), é por isso que encarnação (um ideal) é utilizada
junto à imitação (prática que intenciona um ideal). Portanto, a primeira é uma

29
Significante.
30
Significado.
43

investida para tentar superar a opacidade característica da linguagem literária para


aproximar o discurso retórico da linguagem original, em que significante e significado
se ajustam.
Entretanto, a imitação não é algo que pertence ao discurso literário. Ela é
encontrada frequentemente na linguagem cotidiana:

A língua oferece já exemplos sob a forma das onomatopeias. Na


conversação, a velocidade do falar, os bruscos silêncios, a imitação de um
sotaque regional, a insistência em certas palavras ou em certos fonemas
[...], as repetições intencionais [...] podem, em certos casos, traduzir
diretamente o estado de espírito [...] de quem fala (LEFEBVE, 1980, p. 70).

Esse processo é possível quando se refere aos diferentes elementos da


linguagem que são levados em consideração em diferentes níveis que lhes são
próprios. Ao se tratar de discurso falado e escrito, é possível diferenciar uma
imitação fonética e uma rítmica, uma imitação da estrutura ou até gráfica. Conforme
Lefebve (1980), isso é muito comum na poesia (p. 72).
Diante disso, Lefebve (1980) destaca que a encarnação não soluciona o
paradoxo estabelecido pelo movimento dialético instaurado pela literatura. Na
verdade, esse processo somente ilustra a tentativa que, por vezes, a literatura
instaura de apresentar-se como pura, transparente e original (p. 79):

Os seus processos não encarnam, em rigor, o significado na matéria, mas


limitam-se a imitá-lo, a representá-lo, e poderíamos dizer que toda forma de
imitação não é mais que imitação da encarnação propriamente dita. Por
outras palavras, a imitação tende a constituir a obra em imagem do seu
sentido (LEFEBVE, 1980, p. 79).

É, pois, essa incapacidade do discurso literário de estabelecer uma linguagem


ideal que o classifica como tal. Conforme Lefebve (1980), é o que fica comprovado
quando há imitações semelhantes e que, por assim se apresentarem, acabam sendo
classificadas como narrativas literárias simplórias. Isso comprova, também, a
questão levantada acerca da estrutura do código retórico: a estrutura do discurso
literário é exaltada devido à intencionalidade a partir de figuras que dão uma
aparência material à linguagem. Além disso, são instauradas conotações, que são
os significantes:

O discurso constitui-se, como dizíamos, numa espécie de máscara que


revela e oculta, em simultâneo, uma presença escondida. E para melhor
demonstrar o seu poder e a sua astúcia ocorre-lhe contrafazer na sua
própria substância uma imagem dessa presença: que é também apenas
44

uma ausência, pois não vem até nós senão uma imagem (LEFEBVE, 1980,
p. 82).

De acordo com essa definição da natureza paradoxal do discurso literário,


em que, ao voltar-se para a própria materialidade, abre-se para o mundo, Saraiva
(2001) destaca a função final da literatura. Conforme a autora, a narrativa literária
“visa promover a crença na realidade ficcional e possibilitar a compreensão da
existência humana através da adesão a esse universo contado” (p. 52). Logo, a
literatura auxilia as pessoas a encontrarem respostas aos seus questionamentos,
pois apresenta, de forma ordenada, acontecimentos que, na vida cotidiana, são
vivenciados desordenadamente (SARAIVA, 2001, p. 52).
Neste capítulo, foram definidos aspectos relativos à concepção de texto que
configuram o discurso narrativo, os quais o diferenciam de outras manifestações do
mesmo modo e do discurso cotidiano, com o objetivo de compreender a natureza da
narrativa literária Hibisco roxo. Ela se classifica como literária devido ao trabalho
com a linguagem e a seu caráter ficcional.
Ao entender que a narrativa não se encerra somente com a análise dos
aspectos da materialidade, almeja-se compreender as questões problematizadas
pela obra, que é uma manifestação cultural. Ela presentifica, por meio de um
processo de representação, o conflito identitário da jovem Kambili, resultado do
confronto de culturas, e permite também a análise e compreensão de aspectos
socioculturais da sociedade nigeriana.
45

4 HIBISCO ROXO: O LEITOR DIANTE DA NARRATIVA

4.1 UMA HISTÓRIA DE REPRESSÃO E REMISSÃO

Ambientada na Nigéria pós-colonial e sob o regime de uma ditadura militar, a


história de Hibisco roxo é narrada a partir do ponto de vista de Kambili, uma
adolescente de 15 anos.
A família de Kambili é composta pelo papa, Eugene, um católico fanático
convertido ainda jovem pelos religiosos ingleses, que nega suas raízes; pela mama,
Beatrice, uma mulher submissa ao marido, e pelo irmão mais velho, Chukwuka, mas
que, ao longo de toda a narrativa, é chamado pelo apelido de Jaja, que é um jovem
muito inteligente.
A etnia da família é igbo, um dos maiores grupos étnicos africanos.
Entretanto, essa identidade é negada pelo chefe da família e é assumida a cultura
do colonizador inglês, de quem foram adotadas a língua e a religião. Além disso,
trata-se de uma família extremamente rica, pois papa é um empresário de sucesso,
dono de fábricas de produtos alimentícios e de um jornal, o Standard, cujas edições
fazem oposição ao governo militar.
Na narrativa, o dia a dia dessas personagens é apresentado, e o que se
constata é que o cotidiano transcorre a partir de regras rígidas estabelecidas pelo
chefe da família, que estipula horários para estudos, para orações, para refeições,
ou seja, desde o princípio da história o leitor percebe que a liberdade dos jovens e
da mulher é limitada por uma atitude impositiva da figura paterna.
A condição financeira da família possibilita a Kambili e a Jaja estudarem em
escolas particulares e de confissão católica. O pai considera-os abençoados e, por
isso, não aceita insucessos. Os filhos devem sempre ocupar os primeiros lugares e
conquistarem as melhores notas, caso contrário são severamente punidos. Esse
posicionamento paterno gera na jovem uma mistura de sentimentos como o temor,
46

que, por vezes, se confunde com admiração. O medo de decepcionar papa e de


seus castigos violentos a perseguem e conduzem seu comportamento.
Kambili e Jaja são amigos, apesar de não verbalizarem as situações de
violência e de opressão que vivem, eles se entendem através desse silêncio que os
une.
Eugene limita seus relacionamentos a pessoas que se converteram ao
catolicismo e é muito respeitado em sua comunidade religiosa, visto que, para ela,
faz generosas doações em dinheiro. As outras pessoas são por ele consideradas
pagãs, pois não seguem aquele que ele considera o verdadeiro Deus.
Entre essas pessoas, está o seu próprio pai, Papa Nwukwu, com quem ele
corta relações por não se converter à religião dos colonizadores. Papa Nwukwu é
velho e muito pobre e, em decorrência de sua idade avançada, está doente, o que
não sensibiliza Eugene, que dá ao pai pouca ajuda e nenhuma atenção. Além disso,
ele priva os filhos do relacionamento com o avô paterno. Em épocas festivas,
quando vão à aldeia da qual fazem parte, Kambili e Jaja podem ficar com o avô
somente 15 minutos, e não podem comer nem beber nada do que o anfitrião
oferece, sob pena de serem castigados.
Outra personagem dessa narrativa é a tia Ifeoma, irmã de Eugene, e os três
filhos dessa, Amaka, Obiora e Chima. Ela é uma professora universitária e viúva que
vive com os filhos em Nsukka, cidade nigeriana onde se situa a Universidade da
Nigéria. Diferentemente do irmão, Ifeoma incentiva que seus filhos sejam pessoas
livres e contestadoras e, em sua casa, a religião herdada dos colonizadores convive
perfeitamente com os costumes igbo.
Contudo, o que tira a paz dessa personagem são as péssimas condições de
vida resultantes dos problemas que sua profissão enfrenta e a saúde do pai, que é
prejudicada pela pobreza e falta de serviços básicos, como um atendimento médico.
A universidade em que trabalha está inserida em um contexto de inúmeros
problemas, resultantes da corrupção do governo nigeriano. Faltam recursos e as
greves de professores, de funcionários e de alunos são uma realidade vivenciada
por essa mulher.
Além de privados do relacionamento com o avô, Kambili e Jaja também não
conhecem bem a tia e os primos. Entretanto, isso muda depois que eles são
autorizados pelo pai a passar uma semana das férias com Ifeoma, sob a condição
47

de seguirem um horário rígido, estipulado pelo chefe da família. Na casa da tia, os


jovens conhecem uma realidade muito diferente da vivenciada até então. Apesar da
escassez de alimentos, gás, água e gasolina, a rotina da família de Ifeoma
transcorre feliz.
Kambili se admira e, ao mesmo tempo, se choca ao ver seus primos
realizando refeições em meio a conversas e risadas espontâneas, e que contrastam
muito com as refeições de sua casa, onde a comida é abundante, mas as conversas
se resumem a orações longas e respostas breves às perguntas do pai. Portanto,
esse mundo novo apresenta a Kambili e a Jaja uma liberdade por eles
desconhecida.
As situações vivenciadas na casa da tia ensinam aos irmãos, e principalmente
a Kambili, uma convivência livre em que eles possuem voz, pois elas os tiram do
silêncio em que se encontravam. Kambili, que não tinha amigas, encontra em
Amaka, que tem a mesma idade que a sua, uma referência, já que esta é o seu
oposto: contestadora, decidida e acostumada a dizer o que pensa e ser respeitada
por isso.
Além de Amaka, outra personagem mexe com Kambili, o padre Amadi, um
missionário jovem, diferente do padre da igreja que ela frequenta com os pais.
Apesar de ser católico e falar inglês, ele não nega suas raízes, e respeita as crenças
e costumes nativos. Ele, inclusive, canta músicas em Igbo em suas missas, um
costume rechaçado por Eugene. O religioso é aquele que apresenta à narradora um
novo jeito de viver sua fé.
A visita na casa da tia é prolongada devido a circunstâncias políticas, pois o
editor do jornal do pai é raptado pelo governo, o que possibilita uma maior
convivência com a família dessa. Durante esse período, por causa da frágil saúde de
Papa Nwukwu, Tia Ifeoma busca o pai para dar a ele maiores cuidados. O fato
aproxima Kambili e Jaja do avô, perturbando a jovem, que se vê mais uma vez
desrespeitando o pai, razão por que existe a possibilidade de sofrer punições
severas, o que realmente acontece.
Durante a estadia dos jovens na casa de Ifeoma, Papa Nwukwu morre e, por
isso, é impossível aos jovens esconderem do pai a convivência com o avô. Muito
bravo, Eugene busca os filhos sem saber que nada voltaria a ser como era antes
dessas férias, pois o silêncio que existia entre os irmãos foi quebrado e a
48

submissão, rompida. Como punição, por terem convivido com um homem


considerado pagão, Papa queimou os pés de Kambili. Eram os mesmos castigos
que Eugene recebera dos padres, durante a sua educação religiosa.
Entretanto, outro fato leva Kambili e Jaja de volta à casa de Ifeoma, em
Nsukka. Entre as coisas de Kambili, havia um quadro que Amaka pintara e dera à
prima para que ela se lembrasse do avô. A pintura foi encontrada por Eugene que,
cheio de ódio, passa a castigar a menina, dando-lhe chutes, enquanto essa se
protege, abraçada à lembrança de Papa Nwukwu.
Apesar da violência sofrida, Kambili se reestabelece, após ser internada em
um hospital e, para se recuperar completamente, vai viver, juntamente com seu
irmão, mais um tempo com a tia e os primos. Contudo, a situação econômica na
casa da tia piora, pois a greve não termina, e a professora universitária é acusada
de participar de protestos. Diante dessa situação, Ifeoma começa a cogitar sobre a
possibilidade de mudar-se com a família para os Estados Unidos, onde poderia dar
aulas e receber seu salário, possibilidade que não agradava a todos da família.
Depois de algum tempo, Beatrice aparece na casa da cunhada. Ela havia sido
espancada por Eugene e trazia consigo a notícia de que o marido não passava bem.
Segundo ela, a pressão que papa estava sofrendo por ser dono de um jornal
opositor ao governo militar afetava sua saúde.
Eles voltam para casa, mas o ambiente no lar de Kambili não é mais o
mesmo. No dia seguinte ao retorno, um Domingo de Ramos, Jaja se nega a tomar a
eucaristia. Em consequência disso, Papa atira o missal no jovem e acerta também o
armário de estatuetas da esposa.
Jaja decide que ele e a irmã irão passar a Páscoa com a tia, e assim
acontece. Ficam lá até o dia em que recebem a ligação de mama dizendo que o pai
havia sido encontrado morto.
O desfecho trágico da narrativa ocorre com a declaração de mama que diz
ser a culpada pela morte do marido, a quem matara por envenenamento.
Entretanto, motivado pela convivência com os primos, que compartilham
responsabilidades na família, Jaja assume a culpa e, por isso, vai preso. A mãe, a
partir de então, silencia, pois aqueles que estão ao seu redor não acreditam que ela
é a verdadeira responsável pelo ocorrido. Kambili encerra a narração, expressando
a esperança de dias melhores depois que o irmão deixar a prisão.
49

4.2 A SUBJETIVIDADE DA VOZ ENUNCIADORA

4.2.1. Bases para a reflexão sobre o agente do discurso

A interpretação de Hibisco roxo é resultante do trabalho de análise da


narrativa, com base nos estudos teóricos de Gérard Genette [1980-], Juracy
Assmann Saraiva (2001) e Carlos Reis e Ana Cristina M. Lopes (2002), os quais
contribuem para entender a natureza e o papel do narrador no processo de
comunicação da história.
De acordo com Reis e Lopes (2002), a palavra narração compreende o
processo de enunciação. Essa definição está em consonância com os estudos da
narratologia, os quais abarcam duas categorias fundamentais, que são o plano da
história e o do discurso, o qual abrange a comunicação narrativa, o tratamento dado
à temporalidade e a focalização.
Segundo Saraiva (2001), a análise dos processos composicionais da narrativa
possibilita responder aos seguintes questionamentos: “quem narra a história? Para
quem a história é narrada? Quando ocorre a narração? Como se dá a transmissão
das informações? Qual(is) o(s) ângulo(s) avaliativo(s) que perpassa(m) o ato de
narrar?” (p. 56).
Fundamental no processo narrativo, o narrador é o sujeito encarregado da
narração. Diferentemente do autor, aquele que narra a história faz parte do universo
ficcional:

Entendida como acto e processo de produção do discurso narrativo, a


narração envolve necessariamente o narrador enquanto sujeito responsável
por esse processo. Daqui se infere que, do ponto de vista da narratologia, a
narração integra-se no mesmo campo da ficcionalidade em que aquela
entidade se insere e com ela o universo diegético representado, não se
confundindo, pois, com a criação literária atribuída ao autor empírico (REIS;
LOPES, 2002, p. 249).

O narrador é uma criação do autor, a quem cabe, pois, a responsabilidade por


este:

[...] o autor pode projectar sobre ele certas atitudes ideológicas, éticas,
culturais, etc., que perfilha, o que não que dizer que o faça de forma directa
50

e linear, mas eventualmente cultivando estratégias ajustadas à


representação artísticas dessas atitudes [...] (REIS; LOPES, 2002, p. 258).

Quanto ao nível de participação na história, o narrador pode ser


heterodiegédico ou homodiegético. Essa última categoria apresenta um narrador
protagonista, que é, então, autodiegético31, ou um narrador que é uma personagem
secundária, sendo, pois, testemunha dos eventos narrados.
O narrador heterodiegético é aquele que relata uma história na qual não se
insere como personagem. Por sua posição diante do discurso, esse é imbuído de
uma certa autoridade, que não é questionada. O relato, nesse caso, é feito em
terceira pessoa. Além disso, ele ocupa, na maioria das vezes, uma posição de
ulterioridade, a qual pode lhe conferir o completo conhecimento dos fatos, que são
por ele manipulados através de analepses ou prolepses.
O narrador homodiegético testemunha, caracteriza-se por veicular
“informações advindas da sua própria experiência diegética; quer isto dizer que,
tendo vivido a história como personagem, o narrador retirou daí informações de que
carece para construir o seu relato” (REIS; LOPES, 2002, p. 265). Entretanto, quando
ele não é o protagonista da história, a distância entre a personagem central e o
narrador complexifica aspectos como o tempo, a distância e a focalização. Além
disso, os julgamentos do narrador recairão sobre o protagonista, o que exige uma
atenção especial quanto à subjetividade daquele que narra.
O narrador autodiegético se configura como “a entidade responsável por uma
situação ou atitude narrativa específica: aquele em que o narrador da história relata
suas próprias experiências como personagem central dessa história” (REIS; LOPES,
2002, p. 259). Sendo assim, aspectos tais como perspectiva narrativa, tempo e
manipulação de tipos de distância ganham especial relevo. Em Hibisco Roxo, a
narrativa é exposta por meio de um narrador autodiegético, razão por que o leitor aí
apreende a representação de uma subjetividade narradora cujas especificidades
serão aqui delineadas.

31
Ao narrador autodiegético será dada uma atenção especial, pois é nesta categoria que a narradora
de Hibisco roxo se encaixa.
51

4.2.2 A subjetividade inscrita na palavra

A leitura da narrativa permite ao leitor reconhecer em Kambili, a narradora,


uma jovem que, nas tramas da narração, expõe a transformação pela qual passa,
devido a encontros familiares que a libertam das amarras da opressão exercida pelo
pai.
Inicialmente, é possível constatar que a narradora é apresentada como uma
jovem muito tímida. A timidez que a caracteriza impede-a de fazer coisas que ela
sabe, como, por exemplo, na situação exposta na passagem a seguir:

- Kambili Achike, por favor, inicie o juramento - disse.


Madre Lucy jamais me escolhera. Eu abri a boca, mas as palavras se
recusaram a sair.
- Kambili Achike?
Madre Lucy e o resto da escola olhavam para mim.
Limpei a garganta e tentei forçar as palavras a saírem. Eu conhecia o
juramento, estava dizendo-o mentalmente. Mas as palavras não saíam. O
suor debaixo dos meus braços estava quente e molhado (ADICHIE, 2010, p.
55).

No trecho acima, fica evidente a incapacidade de Kambili de se expressar


diante de outras pessoas mesmo quando é solicitada a falar de algo que conhece.
Apesar de o silêncio de Kambili diante da ordem da freira ser fruto da insegurança
que a consome, as colegas a veem como uma menina “metida” que, devido ao
dinheiro do pai, considera-se melhor do que as outras garotas do colégio:

- Chinwe só quer que você fale com ela primeiro - sussurrou Ezinne. - Sabe,
ela começou a chamar você de riquinha metida porque você não fala com
ninguém. Ela disse que você não devia se achar tudo isso só porque seu
pai é dono de um jornal e de todas aquelas fábricas, pois o pai dela também
é rico.
- Eu não me acho tudo isso.
- Por exemplo, hoje, no pátio, ela disse que você estava se achando e que
foi por isso que não começou o juramento na primeira vez que Madre Lucy
chamou seu nome.
- Eu não escutei na primeira vez que Madre Lucy me chamou (ADICHIE,
2011, p. 57).

Kambili mente à colega para não contar a ela os verdadeiros motivos pelos
quais ficara em silêncio no momento em que deveria fazer o juramento. As colegas
consideram-na arrogante quando, na verdade, o comportamento da personagem é
52

resultado da violência imposta pela figura paterna, o que a leva a uma inibição
intransponível.
Entretanto, mesmo depois de saber o que as meninas da escola pensam
dela, Kambili não muda sua forma de agir no colégio, pois, apesar de saber que a
imagem que dela fazem é equivocada, o julgamento que importa é o do pai:

Continuei a ser considerada uma riquinha metida pela maioria das minhas
colegas de turma até o final do semestre. Mas não me preocupei muito com
isso, pois carregava nas costas um peso maior - a preocupação de ficar em
primeiro lugar. Era como tentar equilibrar um saco de cimento na cabeça
todos os dias, sem poder usar a mão para firmá-lo. Eu ainda via as letras
dos meus livros virando uma névoa vermelha, ainda via a alma do meu
irmão caçula entremeada de filetes de sangue (ADICHIE, 2011, p. 59).

A passagem acima possibilita verificar que o ambiente familiar da narradora


prejudica suas relações com as pessoas e também o desempenho escolar. Portanto,
as cobranças impostas pelo pai são desgastantes para a menina e um fardo que ela
carrega.
A sensação paralisante e de completa insuficiência que toma conta da
protagonista diante de situações em que é necessário expressar-se perpassa toda a
narrativa:

Eu quis dizer que sentia muito, que não queria que ela não gostasse de nós
porque não víamos televisão. Quis lhe contar que, embora antenas
parabólicas imensas estivessem espetadas no alto da nossa casa de Enugu
e da nossa casa ali, não víamos tv. Papa não incluía um tempo (ADICHIE,
2011, p. 88).

Nesse trecho, ela silencia quanto ao fato de que não assiste televisão, forma
de lazer que era proibida pelo pai, o que reafirma sua incapacidade de falar e
também de expor a opressão exercida pela figura paterna. Se Kambili dissesse que
o pai estabelecia horários rigorosos, entre os quais o de assistir à televisão não
estava incluído, a prima tomaria conhecimento da violência que ela sofria. Além
disso, exporia o comportamento paradoxal de Eugene: ele ostenta, em sua casa,
aparelhos eletrônicos modernos, que remetem ao mundo exterior, porém é
retrógrado nos costumes.
Outro trecho que mostra a inabilidade da narradora de falar ocorre quando a
adolescente é incapaz de responder a questionamentos das amigas de Amaka, ao
perguntarem a ela sobre seu cabelo:
53

Queria dizer às meninas que meu cabelo era de verdade, que eu não usava
extensões, mas as palavras não saíam. Eu sabia que elas ainda estavam
conversando sobre cabelo, comentando como o meu era comprido e cheio.
Queria conversar com elas, rir com elas, rir tanto até começar a pular no
mesmo lugar como elas faziam, mas meus lábios insistiram em permanecer
fechados. Como eu não quis gaguejar, comecei a tossir e corri para o
banheiro (ADICHIE, 2011, p. 152).

A timidez impossibilita a protagonista de falar com o outro, expressar


opiniões, desejos e sentimentos; impede-a de relacionar-se com as pessoas. Devido
a isso, ela se sente pequena e estranha diante daqueles que deveriam ser familiares
a ela, como mostra o seguinte trecho:

Ficamos em silêncio por um instante e eu perguntei:


- Como estão meus primos?
A educação me mandava fazer a pergunta; mesmo assim, era estranho
pedir notícias de primos que eu mal conhecia.
- Eles já estão vindo. Estão com seu Papa-Nnukwu. Quando eu saí de lá,
ele havia acabado de começar a contar uma de suas histórias. Você sabe
como ele gosta de falar.
- Ah - disse eu.
Eu não sabia que Papa-Nnukwu gostava de falar. Nem mesmo sabia que
ele contava histórias (ADICHIE, 2011, p. 80).

A narrativa traduz a impossibilidade de falar por uma metáfora, estabelecida


pela própria narradora:

Fiquei chateada por ela ter dito "seu pai" em vez de "tio Eugene". Ela nem
olhou para mim ao dizer isso. Olhei para ela e me senti como alguém vendo
preciosos grãos de areia dourada escapar pelos dedos sem poder fazer
nada (ADICHIE, 2011, p. 102).

Ao referir-se aos grãos de areia, Kambili expressa a incapacidade de


estabelecer uma comunicação com a prima, alguém que é importante para ela, visto
que a personagem valoriza as relações familiares. Além disso, ao fazer uso dessa
figura, é possível perceber que a inaptidão foge ao controle de Kambili. Logo, ela
quer falar, mas algo a impede, embora admire a prima, Amaka, por ser capaz de
dizer o que pensa: “Eu ficava atônita de ver Amaka fazendo aquilo, abrindo a boca e
deixando as palavras jorrar com tanta facilidade”. (ADICHIE, 2011, p. 108).
Portanto, para entender como é construída a subjetividade narradora é
preciso reconhecer a oposição, na narrativa, entre ela, Amaka e Jaja. Kambili não
tem, inicialmente, consciência de suas potencialidades e está fechada em si. Ela se
sente muito diferente da prima, mesmo que ambas tenham quinze anos: “Era muito
54

estranho que nós duas tivéssemos a mesma idade, quinze anos. Ela parecia bem
mais velha, ou talvez fosse sua enorme semelhança com tia Ifeoma, ou o jeito como
me olhava direto nos olhos” (ADICHIE, 2011, p. 87). Enquanto Kambili é incapaz de
se dirigir a alguém por meio de uma conversa ou de um olhar, Amaka não tem medo
de dizer o que pensa, o que, segundo a narradora, faz a prima parecer mais velha,
mais madura. Em contrapartida, Kambili sente-se como uma criança, o que reforça a
ideia de seu isolamento e de sua incapacidade de relacionar-se com o entorno.
Além de perceber que há uma diferença na forma de agir de ambas, Kambili
também admira a prima, pois, diferentemente dela, Amaka é vaidosa: “Embora eu
tentasse me concentrar na missa, não conseguia parar de pensar no batom de
Amaka, me perguntando como seria espalhar cor nos meus lábios”. (ADICHIE, 2011,
p. 98). A vaidade é algo abominado pela protagonista devido à forma como a
religiosidade é experenciada em sua casa, e, nessa passagem, ela mostra a
oposição entre as jovens, pois, enquanto Kambili é uma adolescente que foi
ensinada a não chamar atenção sobre si, Amaka cuida da própria aparência e usa
maquiagem até mesmo para ir à missa.
Outra oposição que existe entre ambas as personagens diz respeito à sua
condição econômica: Kambili é rica e a ela nada falta; Amaka é alguém que lida
diariamente com a falta de suprimentos básicos, tais como o leite e a água. Em
contrapartida, Amaka é alguém que sabe enfrentar situações como a apresentada
no trecho: “Amaka pechinchou com a vendedora por algum tempo, depois sorriu e
apontou para as pirâmides que queria. Eu me perguntei como seria fazer aquilo”.
(ADICHIE, 2011, p. 144). O registro do discurso indireto traz a pergunta da
narradora, que expressa o desejo de ter autonomia, de saber se comunicar e de ter
poder de persuasão. Além disso, ao pechinchar por algo, Amaka se mostra como
alguém que ajuda a própria família, enquanto Kambili tem, incialmente, um papel
passivo em seu núcleo familiar.
A personalidade de Kambili também se expõe quando é comparada ao irmão,
Jaja. Antes da convivência com a família de tia Ifeoma, os irmãos eram muito
parecidos: silenciosos, submissos ao pai e não falavam sobre a opressão vivenciada
em casa:

Mesmo assim, Jaja sabia o que eu comia de almoço todos os dias. Havia
um menu colado na parede da cozinha, que Mama mudava duas vezes por
55

mês. Mas ele sempre me perguntava o que eu tinha comido. Com


frequência fazíamos perguntas cujas respostas já sabíamos. Talvez
fizéssemos isso para não precisarmos formular as outras perguntas,
aquelas cujas respostas não queríamos saber (ADICHIE, 2011, p. 29).

O trecho ilustra o modo como a narrativa configura, inicialmente, no texto, a


relação dos filhos de Eugene. Perguntas superficiais preenchem os diálogos para
que certas coisas nunca sejam ditas, o que é uma forma de negar a violência
exercida pelo pai. Entretanto, esse comportamento modifica-se quando, na casa de
tia Ifeoma, Kambili percebe que Jaja fala sobre o que acontecia com eles:

Ao ouvir aquilo, meus olhos pularam diversas linhas do texto da página.


Como Jaja fazia aquilo? Como conseguia falar com tanta facilidade? Será
que não tinha as mesmas bolhas de ar na garganta que não deixavam as
palavras saírem, só um gaguejar? Ergui os olhos para observá-lo, para
observar sua pele negra coberta de gotas de suor que brilhavam no sol. Eu
nunca tinha visto seu braço se mover daquele jeito, jamais tinha visto a luz
penetrante que surgia em seus olhos quando ele estava no jardim de tia
Ifeoma (ADICHIE, 2011, p. 156).

Quando o irmão fala abertamente sobre o castigo violento impingido pelo pai,
Kambili se dá conta de que a sensação que a domina e que a impede de falar não é
mais sentida pelo irmão. Neste momento, a atenção da narradora recai sobre o
físico de Jaja. Ela o apresenta como alguém que se transformou, alguém que sabe o
que está fazendo, que ocupa um espaço. Entretanto, a mudança de Jaja tem uma
razão de ser: Ifeoma, assim como cultiva flores que crescem em seu jardim, a tia
cultiva um terreno fértil para as relações libertadoras e transformadoras, que
modificam Jaja. Aos olhos de Kambili, ele desabrocha e se torna alguém diferente
dela.
Portanto, a narrativa, ao apresentar Amaka como alguém que se expressa
facilmente, olha a todos nos olhos e consegue o que quer, e Jaja como alguém que
fala sobre o que sente e sobre a realidade violenta que o cerca, além de se sentir à
vontade em meio às flores, delineia aspectos da subjetividade de Kambili. Dessa
forma, quanto à narradora, é ratificada a incapacidade do diálogo, a insegurança, e o
sentimento de inutilidade, uma vez que a jovem julga não ser importante para
aqueles com quem vive e para o contexto onde vive.
Ao expor a si mesma em oposição a Amaka e a Jaja, Kambili demonstra a
falta de consciência acerca das próprias potencialidades. Todavia, o fato de não
reconhecer em si mesma talentos e qualidades é um reflexo do ambiente opressor
56

instituído pelo pai, em que a adolescente, assim como o irmão, agem devido ao
medo de sofrer punições e não porque se sentem estimulados a crescer e a se
desenvolver:

Naquele instante, percebi que era isso que tia Ifeoma fazia com os meus
primos, obrigando-os a ir cada vez mais alto graças à forma como falava
com eles, graças ao que esperava deles. Ela fazia isso o tempo todo,
acreditando que eles iam conseguir saltar. E eles saltavam. Comigo e com
Jaja, era diferente. Nós não saltávamos por acreditarmos que podíamos;
saltávamos porque tínhamos pânico de não conseguir (ADICHIE, 2011, p.
238).

Entretanto, a partir do convívio com a família de tia Ifeoma e com o padre


Amadi, as qualidades e as habilidades de Kambili passam a ser exaltadas:

- Está vendo como sua prima fica nos olhando quietinha? - perguntou padre
Amadi, me indicando. - Ela não desperdiça energia com discussões
intermináveis. Mas sua mente está cheia de pensamentos, dá para perceber
(ADICHIE, 2011, p. 184).

O religioso enxerga Kambili para além da menina, cujo silêncio é confundido


com um sentimento de superioridade, como julgavam as colegas da escola e,
inicialmente, a prima Amaka. Ele percebe que a personagem observa atentamente a
todos ao seu redor e sobre eles guarda opiniões. Também é Amadi que vê, na
adolescente, talento para o esporte e diz a ela que deve sorrir:

- Você tem boas pernas para correr. Devia praticar mais.


Desviei o olhar. Ninguém jamais me dissera algo parecido. Parecia próximo
demais, íntimo demais, que os olhos dele estivessem nas minhas pernas,
em qualquer parte do meu corpo.
- Você não sabe sorrir? - perguntou o padre Amadi.
- O quê?
Ele esticou o braço e deu um leve puxão nos cantos da minha boca.
- Sorria. (ADICHIE, 2011, p. 188).

Diante do elogio do religioso, a jovem, que não está acostumada a ter suas
características exaltadas, fica sem graça, como se aquele reconhecimento não fosse
apropriado, fosse quase indecente. Ao mesmo tempo, sorrir era tão incomum, que,
ao fazê-lo, ela não reconhece o som do próprio riso: “Eu ri. O som foi esquisito,
como se eu estivesse ouvindo a risada de um estranho numa gravação. Acho que
nunca tinha me ouvido rir antes”. (ADICHIE, 2011, p. 191).
Entretanto, em episódio anterior, a jovem, encorajada pela tia, respondeu a
Amaka:
57

Não precisa gritar, Amaka - disse eu finalmente. - Não sei preparar as folhas
de orah, mas você pode me mostrar como se faz.
Não sei de onde surgiram aquelas palavras tranquilas. Não quis olhar para
Amaka, não quis ver a expressão de desprezo em seu rosto, não quis incitá-
la a dizer outra coisa para mim, pois sabia que não ia conseguir retrucar.
Achei que estava imaginando coisas quando ouvi o som, mas então olhei
para Amaka - e ela estava mesmo rindo.
- Então você sabe falar alto, Kambili - disse ela (ADICHIE, 2011, p. 181).

Na passagem acima, uma mudança significativa pode ser observada: Kambili


expõe indignação diante do comportamento de Amaka ao oralizar sua insatisfação,
mas a reação da narradora surpreende também a ela mesma. Além disso, a jovem
espera uma reprimenda da prima, que, por sua vez, elogia-a, ou seja, estabelece-se
um laço e também um incentivo para que a protagonista passe a agir assim diante
de outras circunstâncias de sua vida.
Logo, é a convivência com a tia, com os primos e com o padre Amadi que
estimula Kambili a sair dela mesma e a tomar consciência de suas competências. A
partir da mudança, sorrir torna-se natural para ela:

Eu ri. Rir parecia muito fácil agora. Muitas coisas pareciam fáceis agora.
Jaja também estava rindo, assim como Amaka, e todos nós estávamos
sentados na grama, esperando Obiora chegar. Ele caminhava devagar,
segurando alguma coisa que depois eu vi ser um gafanhoto (ADICHIE,
2011, p. 299).

A risada espontânea da jovem ocorre diante do comentário da tia, em um


momento descontraído, quando a família dá uma última volta em Nsukka, antes da
mudança para os Estados Unidos. Neste passeio, Ifeoma, Amaka, Obiora, Chima,
Jaja e Kambili dão vazão a sentimentos diante da eminência da viagem, e a
protagonista consegue expressar-se naturalmente.
Portanto, se no início da história a adolescente se sente nervosa, impedida de
falar por causa das “bolhas” que surgiam em sua garganta, devido às alterações de
seu modo de ser, ela sorri e também faz os outros rirem, como no seguinte trecho:

- Você vai beber leite fresco saído de uma garrafa. Não vai mais ter de
tomar leite em pó ralo nem leite de soja feito em casa - disse eu.
Amaka deu uma gargalhada que mostrou o buraco entre seus dois dentes
da frente.
- Você é engraçada - disse.
Ninguém jamais tinha me dito aquilo. Guardei o comentário para mais tarde,
para refletir várias vezes sobre o fato de eu ter feito Amaka rir, de que eu
possuía aquela habilidade (ADICHIE, 2011, p. 280).
58

Ao sair de si mesma, Kambili se transforma e é devido a essa transformação


que a jovem instaura sua narração. A mudança da personagem é concretizada nas
malhas da ficção e a escrita evidencia sua modificação. Ao escrever, ela expõe a
situação vivenciada dentro de casa e como essa influencia os rumos trágicos que a
história da família toma. Assim se, inicialmente, a narrativa apresenta Kambili como
alguém que cala, depois de tornar-se mais madura e sensível, a narradora é capaz
de apresentar, por meio de sua narração, a conflituosa relação com seu pai.

4.2.3 A subjetividade decorrente dos afetos e revelada pela palavra

A subjetividade da narradora também é concebida por suas relações de afeto,


entre as quais avultam a relação de amor e ódio pelo pai e a relação de compaixão e
repúdio pela mãe.
No texto, é possível perceber que Kambili sente orgulho de Eugene. Quando
o padre fala de como Papa ajuda e tem um papel fundamental na igreja que
frequentam, ela esconde a admiração pelo pai: “E eu ficava sentada com meus
joelhos apertados um contra o outro, ao lado de Jaja, tentando deixar meu rosto sem
expressão e impedir que meu orgulho ficasse visível nele, pois Papa dizia que a
modéstia era muito importante” (ADICHIE, 2011, p. 11).
Entretanto, o apreço que a personagem expressa pelo pai dá lugar ao medo:

Depois que troquei de roupa, fiquei sentada em frente à janela do meu


quarto; o cajueiro ficava tão próximo dela que eu poderia esticar o braço e
arrancar uma de suas folhas, se não fosse pela tela prateada contra
mosquito. As frutas amarelas em forma de sino pendiam preguiçosamente
da árvore, atraindo abelhas que zumbiam e batiam contra a rede da minha
janela. Ouvi Papa indo até seu quarto para fazer a sesta da tarde. Fechei os
olhos e fiquei imóvel, esperando que ele chamasse Jaja, que Jaja entrasse
em seu quarto. Mas longos minutos de silêncio se passaram, e eu abri os
olhos e pressionei a testa contra os basculantes da janela para ver o lado
de fora (ADICHIE, 2011, p. 15).

O trecho apresenta a sensação de opressão que domina Kambili, na ocasião


em que aguarda o castigo que, supostamente, o pai iria infligir em Jaja, por ter se
recusado a tomar a comunhão e ter saído da mesa sem licença. Diante de sua
impotência, a personagem estabelece vínculos com a realidade externa, como uma
tentativa de fuga da angústia anterior: ela descreve o cajueiro e os ruídos do pai, e,
ao apelar para os aspectos visuais e sonoros, dá a dimensão da sua angústia.
59

Por sentir medo do pai, Kambili tenta agradar a ele:

Eu queria deixar Papa orgulhoso e tirar notas tão boas quanto as dele.
Precisava que ele tocasse minha nuca e afirmasse que eu estava
realizando o propósito de Deus. Precisava que ele me abraçasse com força
e dissesse que muito é esperado daqueles que muito recebem. Precisava
que ele sorrisse, daquele jeito que iluminava seu rosto e aquecia algo
dentro de mim. Mas eu ficara em segundo lugar. Estava maculada pelo
fracasso (ADICHIE, 2011, p. 45).

Por não ser bem-sucedida, segundo o ponto de vista do pai, que exige que
ela seja a primeira em tudo, Kambili sente-se culpada por decepcionar Eugene.
Assim, quase não acredita quando Jaja enfrenta o pai:

Em toda a minha vida aquilo jamais acontecera, nunca. Tive certeza de que
os muros da nossa casa iam desmoronar e esmagar as plumérias. O céu
desabaria. Os tapetes persas que se estendiam sobre o chão brilhante de
mármore iam encolher. Algo ia acontecer (ADICHIE, 2011, p. 21).

Quando o irmão pede para levantar antes de todos terem terminado de jantar,
a narradora percebe o rompimento da normalidade, como se a ordem familiar
estivesse, metaforicamente, desmoronando. Jaja, ao desafiar o chefe da família,
acaba com a ordem instituída e, por essa razão, Kambili é tomada pelo medo de um
possível castigo.
O medo, que Kambili sente pela figura paterna, é tão grande que a
acompanha mesmo quando está longe de Eugene:
Eu me perguntei se teria de confessar que tinha dormido no mesmo quarto
de um pagão. Fiz uma pausa no meio da minha reflexão para rezar, pedindo
que Papa jamais descobrisse que Papa-Nnukwu nos visitara e que eu
dormira no mesmo quarto que ele (ADICHIE, 2011, p. 161).

Nessa passagem, Kambili carrega consigo uma culpa dupla: ela tem medo do
pai e medo também de ter pecado, pois sua fé considera errado conviver com
alguém cujos preceitos religiosos não estejam de acordo com os dos cristãos.
Além disso, ela sabe que, se o pai descobrir que ela convivera com o avô,
será castigada violentamente. O medo é, pois, velho conhecido da narradora, e os
castigos estabelecidos pelo pai a surpreendem devido à dureza com que são
aplicados: “Eu já conhecia o medo, porém quando o sentia ele nunca era o mesmo
da outra vez, como se viesse em sabores e cores diferentes”. (ADICHIE, 2011, P.
209).
60

Portanto, Eugene é temido pela filha, sendo visto como um carrasco, de quem
é preciso proteger os mais fracos:

- Nós vamos cuidar do menino. Vamos protegê-lo.


Eu sabia que Jaja estava falando em proteger o bebê de Papa, mas não fiz
nenhum comentário. Em vez disso, perguntei:
- Como você sabe que vai ser um menino? (ADICHIE, 2011, p. 29).

No trecho acima, os filhos conversam depois de saber que a mãe está


grávida. Jaja omite que eles iriam proteger o irmão caçula, mas Kambili entende. A
proteção é necessária para que Eugene não impinja castigos violentos ao filho que
nascerá, da forma como fizera com os mais velhos. Esse diálogo denota que as
personagens têm consciência de que a situação violenta na qual vivem não é normal
e que o responsável pelo ambiente opressor é o pai.
Na narrativa também fica claro que o comportamento do pai torna Kambili não
só incapaz de se expressar, como exposto mais acima, mas, também, transforma-a
em alguém sem autonomia, cujas escolhas acerca da própria vida são delegadas ao
chefe da família: “Assenti automaticamente, embora tia Ifeoma não pudesse me
enxergar. Eu nunca me perguntara em que universidade estudaria nem em que me
formaria. Quando chegasse a hora, Papa decidiria” (ADICHIE, 2011, p. 140). Apesar
de ser uma adolescente inteligente, ela nunca havia pensado sobre o curso que faria
quando chegasse a hora de ingressar na universidade. A educação que recebe do
pai torna-a passiva e dependente como se sua vida não lhe pertencesse.
Kambili e Jaja vivenciam a opressão e ambos veem, na ida à casa de tia Ifeoma, a
possibilidade de se livrarem, mesmo que só por um período, das imposições e do
medo que sentem cotidianamente:

Os olhos de Jaja disseram que ele sabia que eu também queria ir. Não
consegui encontrar as palavras em nossa língua dos olhos para explicar
que sentia um nó na garganta só de pensar em ficar cinco dias sem ouvir a
voz de Papa ou seus passos na escada (ADICHIE, 2011, p. 118).

No trecho, a narrativa evidencia os sentimentos de Kambili em relação à


convivência com o pai: não ouvir a voz nem os passos de Eugene seria libertador.
Logo, o que a narradora deseja comunicar ao irmão, por meio do olhar, é sua
expectativa em relação a uma vida em liberdade.
61

Na casa da tia, Kambili percebe a diferença entre os castigos que Ifeoma dava aos
filhos e os do pai:

Desviei o olhar. Amaka pegou minha mão. A mão dela estava quente, como
a de uma pessoa se recuperando de malária. Ela não disse nada, mas
imaginei que estávamos pensando a mesma coisa - em como era diferente
para mim e para Jaja (ADICHIE, 2011, p. 260).

Nessa passagem, o texto evidencia a diferença do objetivo pelo qual as


punições são aplicadas: as primas estão de mãos dadas enquanto Ifeoma explica
porque está castigando o filho, o que faz Kambili refletir, já que o pai bate nela, no
irmão e na mãe por razões que os três desconhecem.
O laço familiar, baseado no medo e na opressão, compõe Eugene como uma
personagem que causa estranheza à própria filha, o que se manifesta quando ela o
associa à residência na aldeia: “Nossa casa ainda me deixava sem ar de tão
majestosa, com sua brancura e seus quatro andares, o chafariz na frente, os
coqueiros ladeando-a e as laranjeiras pontilhando o jardim em frente” (ADICHIE,
2011, p. 62). É o chefe da família que deixa Kambili sem ar, pois a casa onde eles
passam o Natal é a materialização da altivez e do poder do pai, os quais fazem dele
uma pessoa distante e inatingível para a menina.
O estranhamento em relação a Papa aumenta com as férias dos jovens longe
dos pais:

Fiquei congelada, sentindo a pele dos meus braços derreter e se misturar


aos braços de junco da cadeira. A morte de Papa-Nnukwu obscurecera tudo
mais, empurrando o rosto de Papa para um lugar indistinto em minha
mente. Mas agora esse rosto ganhara vida de novo. Ele estava na porta,
olhando para Obiora. Eu não me lembrava daquelas sobrancelhas cheias;
nem daquele tom de pele marrom. Talvez, se Obiora não houvesse dito "Tio
Eugene", eu não teria sabido que era Papa, que aquele estranho alto de
túnica bem cortada era Papa (ADICHIE, 2011, p. 199).

A realidade na casa de tia Ifeoma e a morte do avô transformam Eugene em


“vaga” lembrança para Kambili, que quase não o reconhece, quando ele chega em
Nsukka. Portanto, ao se libertar das amarras da opressão paterna, o pai se torna um
estranho para a protagonista.
Se em vida Papa era alguém desconhecido para Kambili, depois de seu
falecimento, ele passa a ser uma memória sobre a qual as personagens silenciam:

Tirei minhas pantufas. O chão frio de mármore roubou o calor dos meus
pés. Quis dizer a Jaja que meus olhos estavam formigando com as lágrimas
62

que eu não havia chorado, que eu ainda queria e tentava escutar os passos
de Papa na escada. Que havia pedaços esparramados dentro de mim que
me machucavam e que eu jamais poderia colocá-los de volta no lugar, pois
todos aqueles lugares haviam desaparecido. Em vez disso, falei: - St. Agnes
vai estar lotada para a missa do funeral de Papa. Jaja não respondeu
(ADICHIE, 2011, p. 305).

Os irmãos não se comunicam mais pelo olhar, e o falecimento de Eugene,


assim como tudo em relação ao pai, é silenciado entre os irmãos. Além disso, esse
trecho evidencia, mais uma vez, os sentimentos contraditórios de Kambili por Papa,
pois ela não chora o falecimento de Eugene, mas sente como se devesse fazer isso.
Os filhos não conversam sobre a morte de Eugene, assim como, a narradora
e a mãe, que não tocam nesse assunto depois da prisão de Jaja. Elas não
conversam sobre, por exemplo, terem descoberto somas de dinheiro que papa
doava a hospitais, a orfanatos, etc. O silêncio de ambas diante da caridade revelada
pode indicar a insatisfação com alguém que fora muito ruim com elas, mas, em
contrapartida, extremamente generoso com estranhos. Além disso, é possível
afirmar que as doações constituíam uma forma de o chefe da família absolver-se,
perante Deus, do mal que fazia aos filhos e à esposa.
Papa torna-se uma espécie de “tabu” e sobre ele a família nada comenta.
Entretanto, o silêncio, depois do falecimento de Eugene, é diferente, pois esse
permite que fiquem à vontade, como explica a narradora:

Jaja pega a colher e volta a devorar o arroz. O silêncio paira sobre nós, mas
é um tipo diferente de silêncio, um que me permite respirar. Tenho
pesadelos sobre o outro tipo, aquele que existia na época em que Papa
estava vivo (ADICHIE, 2011, p. 319).

A morte de Eugene significa, portanto, a libertação da opressão e, no


presente da narração, a convivência com ele é uma lembrança, cuja manifestação
se dá em sonhos ruins, isto é, em pesadelos de Kambili.
Outra personagem cuja relação afetiva é importante para compreender a
protagonista de Hibisco roxo é a figura materna, Beatrice. Inicialmente, a
protagonista sente piedade da mãe:

Eu quis dizer que sentia muito por Papa ter quebrado as estatuetas dela,
mas as palavras que saíram foram:
- Sinto muito que suas estatuetas tenham quebrado, Mama (ADICHIE,
2011, p. 17).
63

No fragmento acima, Kambili usa a voz passiva e, com isso, omite o nome
daquele que realizou a ação, ou seja, Papa. Logo, o que fica expresso, além da
pena, é que ambas não comentam sobre a violência que sofrem em casa.
Assim como a adolescente, Beatrice apresenta, inicialmente, uma certa
submissão ao marido, mas, ao longo de sua narração, a protagonista mostra a mãe
como alguém cujas atitudes são incompreensíveis:

Anos antes, quando eu ainda não entendia, eu me perguntava por que ela
limpava as estatuetas sempre depois de eu ouvir aquele som vindo do
quarto deles, um som que parecia ser de alguma coisa batendo na porta
pelo lado de dentro. [...] Eu descia e a via parada ao lado da estante de
vidro com um pano de prato encharcado de água e sabão. Ela dedicava
pelo menos quinze minutos a cada estatueta de bailarina. Nunca havia
lágrimas em seu rosto. Da última vez, há apenas duas semanas, quando
seu olho inchado ainda estava da cor preto-arroxeada de um abacate
maduro demais, Mama rearrumara as estatuetas depois de limpá-las
(ADICHIE, 2011, p. 17).

A adolescente não compreende que a limpeza das estatuetas é uma forma


de a mãe expurgar a dor da violência imposta por Eugene e também não consegue
perceber que a passividade da mãe é aparente, visto que, ao higienizar e ao
organizar os objetos, ela demonstra uma forma de resistência. Somente depois da
morte do pai é que a personagem entende a atitude da mãe.
Antes disso, Kambili vê a progenitora como alguém que, simplesmente, não
se incomoda com a situação ao redor dela, o que pode ser exemplificado pela
atitude da mãe, que assume tarefas que caberiam à protagonista: “Não era certo
permitir que uma pessoa mais velha fizesse suas tarefas, mas Mama não se
incomodava; havia muita coisa com que ela não se incomodava”. (ADICHIE, 2011,
p. 25). A narradora, implicitamente, faz um julgamento acerca da mãe nessa
passagem, sugerindo que também a ela não importa a opressão exercida pelo pai.
Contudo, por mais incompreensível que Beatrice pareça ser, Kambili
estabelece vínculos mais estreitos com a mãe:

Nossas férias foram curtas, de apenas duas semanas, e no sábado logo


antes da volta das aulas Mama levou Jaja e a mim ao mercado para
comprar novas sandálias e mochilas. Não precisávamos delas; nossas
mochilas e sandálias de couro marrom ainda estavam novas, só tinham um
semestre. Mas aquele ritual era o único que pertencia só a nós três
(ADICHIE, 2011, p. 44).
64

No trecho destacado, a protagonista apresenta um momento que é somente


da mãe e dos filhos. Ela ressalta que os três vão ao mercado juntos para comprar
coisas das quais não necessitam. A escolha dos materiais escolares significa uma
liberdade momentânea para todos eles.
Logo, é possível constatar que Kambili também alimenta pela mãe
sentimentos contraditórios:

Mama tocou minha mão. O rosto dela estava inchado de tanto chorar e seus
lábios estavam ressecados, com pedaços de pele transparente saindo. Quis
poder me levantar e abraçá-la, mas também quis empurrá-la para longe,
com tanta força que sua cadeira cairia para trás (ADICHIE, 2011, p. 225).

A mistura de sentimentos, apresentada no trecho, é resultado do que a jovem


sente pela mãe. A protagonista nutre afeto pela figura materna, mas também a
repele, pois culpa Beatrice pela situação em que se encontra: ferida em um hospital,
depois de ser espancada pelo pai.
Depois da morte do pai, Kambili entende que a subalternidade da mãe é
simulada:

- Você vai comprar estatuetas novas? - perguntei.


[...]
- Kpa - disse ela. - Não vou comprar novas.
Talvez Mama soubesse que não ia mais precisar das estatuetas; que
quando Papa atirou o missal em Jaja, não foram apenas elas que se
quebraram, mas todo o resto. Só agora eu percebia isso, permitindo-me
pensar naquela possibilidade (ADICHIE, 2011, p. 22).

O “só agora” remete ao tempo da narração, quando, depois dos fatos


concluídos, Kambili compreende o porquê de a mãe não desejar estatuetas novas:
ela já não precisa delas. O plano, que resulta na morte de Eugene, está, naquele
momento da ação, sendo posto em prática. Assim, Beatrice, que aos olhos da
protagonista é submissa, livra a família da opressão, assassinando o marido.
Depois da morte de Eugene, Beatrice se fecha em si mesma, pois Jaja
assume a responsabilidade pelo crime e ninguém acredita que esposa fora capaz de
envenenar o próprio marido:

Mama não parece se importar com sua aparência; nem mesmo parece se
dar conta dela. Está diferente desde que Jaja foi preso, desde que começou
a dizer às pessoas que foi ela quem matou Papa, que colocou veneno no
chá dele. Mama até escreveu cartas aos jornais. Mas ninguém acreditou
nela; ainda não acreditam. Pensam que a dor e a incapacidade de aceitar a
realidade – de que seu marido morreu e de que seu filho está na prisão – a
65

transformaram nessa aparição de corpo horrivelmente ossudo e pele


sarapintada de cravos negros do tamanho de sementes de melância
(ADICHIE, 2011, p. 310).

A protagonista respeita a atitude da mãe, já que, assim como ela e Jaja,


mama também fora vítima da violência de Eugene. Consequentemente, quando
pessoas próximas indicam curandeiros capazes de tirar mama do estado em que se
encontra, Kambili apenas agradece, mas nada faz (ADICHIE, 2011, p. 310).
Portanto, a narrativa, ao exprimir o modo como se estabelece a relação de
Kambili e de papa, denota como os sentimentos da narradora por Eugene são
paradoxais. Incialmente, é evidenciado o orgulho que a personagem sente pelo
chefe da família, a quem ela se esforça para agradar. Entretanto, essa admiração se
confunde com o medo, visto que o pai é representado como um homem violento e
opressor, que lhe impõe castigos severos e uma rotina rígida. A conduta austera e
violenta estabelece uma barreira que Kambili não consegue transpor, e Papa é um
homem que ela realmente não conhece e sobre o qual evita até falar depois de
morto, pois não deseja se lembrar de quem ele foi e fez. Logo, Kambili tem
consciência da culpa do pai sobre o destino que todos têm.
No tocante, ao relacionamento de Kambili com a mãe, o texto revela que os
sentimentos da protagonista se modificam ao longo da narração. A princípio,
Beatrice é aquela por quem a jovem sente pena e a quem não compreende. Essa
falta de compreensão gera, na adolescente, uma afeição contraditória, visto que
Kambili também culpa a mãe pelo que acontece a eles, pois essa não confronta o
marido, permitindo a violência contra os filhos. Entretanto, isso muda quando Kambili
descobre que foi a mãe que envenenou Eugene. Ao aceitar a decisão da mãe, a
filha demonstra que a compreende e revela, também, o amor e o respeito que sente
pela figura materna, além de gratidão. Ao admitir o assassinato, fica evidente que
Kambili também não via outra saída para sua libertação, senão a morte do pai.

4.3 ASPECTOS COMPOSICIONAIS: TEMPO E MODO

Nesta seção, serão analisados como são estruturados os aspectos que


compõem a narrativa Hibisco roxo. Para isso, serão utilizados estudos de autores
citados anteriormente, visto que servem de base teórica para este capítulo do
66

trabalho. Logo, atentar-se-á ao tempo, às anacronias e ao modo para compreender


como se dá a construção dos aspectos composicionais, entre os quais a
subjetividade, analisada anteriormente, faz parte.
Quanto ao tempo, o narrador autodiegético está, na maioria dos casos,
colocado em uma posição ulterior em relação ao que conta. Há, portanto, uma
distância entre a história, que se localiza no passado, e a narração, no presente:

Sobrevém então uma distância temporal mais ou menos alargada entre o


passado da história e o presente da narração; dessa distância temporal
decorrem outras: ética, afectiva, moral, ideológia, etc., pois que o sujeito no
presente recorda não é já o mesmo que viveu os factos relatados (REIS;
LOPES, 2002, p. 260).

Segundo Reis e Lopes (2002), o tempo de narração compreende a ligação


entre a narração com o acontecimento do evento. Portanto, é “possível [...]
determinar a distância temporal a que se encontra esse acto produtivo (e também o
narrador que o protagoniza, bem como aquilo que o envolve) relativamente à história
que nele se relata” (REIS; LOPES, 2002, p. 251).
Vários foram os autores que sistematizaram as possibilidades de colocação
temporal da narrativa, entre eles Genette [198-], que estabeleceu quatro tipos de
narração:

ulterior (posição clássica da narrativa no passado, sem dúvida, e de muito


longe a mais frequente), anterior (narrativa predicativa, geralmente no
futuro, mas que nada proíbe que seja conduzida no presente [...]),
simultânea (narrativa no presente, contemporânea da ação) e intercalada
(entre os momentos da ação) (GENETTE, [198-], p. 216).

Depois de apresentados os quatro pontos de vista distinguidos por Genette


[198-], é necessário destacar que eles estão vinculados a outras categorias da
estruturação da narração, tais como a distância e a perspectiva narrativa. Sendo
assim, o tempo de narração forma um todo, de que resultam diferentes estratégias,
as quais afetam os domínios que compõem o discurso.
Ao atentar para o tempo, é possível perceber, que, quando os fatos narrados
acontecem, a narradora é uma adolescente de 15 anos, o que é possível saber no
trecho em que Kambili se compara à prima Amaka: “Era muito estranho que nós
duas tivéssemos a mesma idade, quinze anos. Ela parecia bem mais velha, ou
talvez fosse sua enorme semelhança com tia Ifeoma, ou o jeito como me olhava
direto nos olhos” (ADICHIE, 2011, p. 87).
67

Entretanto, a enunciadora não é mais a jovem de 15 anos, pois conta sua


história 31 meses depois dos trágicos acontecimentos, ou seja, ela tem, no momento
da narração, 18 anos, como ilustra o seguinte trecho:

Aqueles ombros que floresceram em Nsukka, que ficaram largos e fortes,


vergaram-se nos trinta e um meses que Jaja passou aqui. Quase três anos.
Se alguém houvesse tido um filho quando ele veio para cá, a criança já
estaria falando, estaria no jardim de infância (ADICHIE, 2011, p. 314).

Logo, a distância temporal entre a personagem principal e aquela que narra é


pequena, porém a mudança que ocorre na vida de Kambili confere à narradora uma
maturidade significativa, pois não se trata mais da menina silenciosa e submissa ao
pai. Contudo, a narradora ainda não se considera completamente destemida, o que
expõe na descrição de seu primo: “Olhei para ele de novo. Obiora era uma versão
destemida e masculina do que eu jamais poderia ter sido aos catorze anos, do que
eu ainda não era” (ADICHIE, 2011, p. 148).
Entretanto, no fim da narrativa, na parte denominada Um silêncio diferente: o
presente, há uma mudança da narradora diante dos episódios. Nesse momento, é
possível perceber que a narração ulterior se modifica para uma narração simultânea,
pois a enunciadora passa a utilizar o tempo verbal no presente:

Mama e eu quase nunca vamos à prisão juntas. Em geral, Celestine me traz


um dia ou dois antes de trazê-la, todas as semanas. Ela prefere assim,
acho. Mas hoje é um dia diferente, especial – eles finalmente nos deram a
certeza de que Jaja vai ser solto (ADICHIE, 2011, p. 310).

O uso dos verbos “ir” e “ser” no presente do indicativo mudam o ângulo


temporal da narradora. Enquanto, anteriormente Kambili narra acontecimentos por
ela profundamente conhecidos, a narradora desconhece o modo como os fatos
transcorrerão e apenas expõe a sua esperança de viver dias melhores ao lado da
mãe e do irmão, que sairá da prisão.
Portanto, a temporalidade é dividida entre o que aconteceu antes do Domingo
de Ramos (Falando com nossos espíritos: Antes do Domingo de Ramos) e após
essa comemoração religiosa (Os pedaços de deuses: Após o Domingo de Ramos),
além da parte final, que, como dito anteriormente, é narrada de forma simultânea.
Dessa forma, os eventos diegéticos acontecem em um período aproximado de seis
meses, entre o Natal de um ano e a Páscoa do ano seguinte.
68

Além de demarcarem o tempo, as remissões às datas religiosas cristãs


instituem significações. O Natal, para os irmãos, é um período no qual surge uma
nova possibilidade de vida, pois eles saem do silêncio em que se encontram e
rompem com as imposições exercidas pelo pai, devido à convivência com a tia. O
Domingo de Ramos, que é, para os católicos, a data que marca o início da Semana
Santa, é celebrado para lembrar a entrada de Cristo em Jerusalém. Logo, quando
Jaja se nega a tomar a eucaristia, ele institui uma mudança e, assim como Cristo
trouxe a esperança ao povo de Israel, ele muda o destino de sua família. Com a
morte de Eugene, depois da Páscoa, morre também a opressão que Kambili, Jaja e
mama sofrem. Portanto, eles renascem para um novo modo de vida.
Entretanto, esses momentos não são apresentados ao leitor de forma linear.
A narradora se vale de anacronias, que obrigam o leitor a depreender significados e
fazer inferências acerca das possibilidades interpretativas, trazidas pela menção às
festas. O conhecimento da totalidade dos fatos, devido à experiência, concede à
narradora o poder de manipular a história, embora ela não tenha um domínio pleno
sobre o agir, o saber e o pensar das demais personagens.
De acordo com Reis e Lopes (2002), prolepses dizem respeito “a todo o
movimento de antecipação, pelo discurso, de eventos cuja ocorrência, na história, é
posterior as presente da acção” (p. 340). Os estudiosos afirmam também que esse
tipo de anacronia é a que melhor se conforma à narração em primeira pessoa “pelo
seu declarado caráter retrospectivo, que autoriza o narrador a alusões ao futuro [...]
que de certo modo fazem parte do seu papel” (p. 341).
A primeira parte da narrativa intitulada Quebrando deuses: Domingo de
Ramos configura-se como uma prolepse: “As coisas começaram a se deteriorar lá
em casa quando meu irmão, Jaja, não recebeu a comunhão, e Papa atirou seu
pesado missal em cima dele e quebrou as estatuetas da estante” (ADICHIE, 2001, p.
9). O leitor é convidado a aderir à narrativa, e, além disso, a inferir os objetivos da
narradora, que instala o ato narrativo para denunciar a forma como a opressão, fruto
da figura paterna, destrói sua família e, de certo modo, para “inocentar” a mãe que,
ao assassinar o pai, os liberta da violência na qual estão envolvidos.
Além de prolepses, há em trechos em que a narradora se vale de outro
recurso de anacronia: a analepse. De acordo com Reis e Lopes (2002), esse
segundo tipo corresponde a uma espécie de “flash-back, isto é, um “movimento
69

temporal retrospectivo destinado a relatar eventos anteriores ao presente da acção e


mesmo, nalguns casos, anteriores ao seu início” (p. 29). Esse recurso, além de
desempenhar funções na narrativa estruturalmente, é responsável por alargar as
potencialidades semânticas do texto.
No trecho abaixo, é observada a presença de analepse:

Papa sentou-se à mesa e encheu uma xícara usando o serviço de chá de


porcelana com flores cor-de-rosa nas bordas. Esperei que ele oferecesse
um gole para mim e outro para Jaja, como sempre fazia. Um gole de amor,
era como Papa chamava aquilo, pois a gente divide as pequenas coisas
que amamos com as pessoas que amamos. Deem um gole de amor, dizia
ele, e Jaja ia primeiro. Depois eu segurava a xícara com as mãos e a levava
aos lábios. Um gole [...] Mas Papa não disse "Deem um gole de amor"; ele
não disse nada, e eu o observei enquanto levava a xícara aos lábios
(ADICHIE, 2011, p. 14).

Na passagem, a narradora interrompe sua enunciação para explicar o ritual


comum em que os filhos compartilham do chá de papa. Isso é feito para salientar
que há uma quebra da normalidade com o não compartilhamento da bebida, que
comprova a mudança que está acontecendo na casa de Eugene, a qual será
narrada posteriormente. Essa explicitação é importante, pois a regularidade e a
ordem são prezadas pelo pai, que só por um motivo muito sério seria capaz de
romper com a rotina e com os rituais muito rígidos estabelecidos por ele mesmo.
Além da temporalidade e de anacronias, outro aspecto da composição da
narrativa que deve de ser analisado é a focalização, que, no caso do narrador
autodiegético, é interna ou externa, isso por causa da posição privilegiada que esse
tipo de narrador ocupa. Conforme Lopes e Reis (2002), a subjetividade, no caso
desse narrador, presente no enunciado, recai sobre o eu-personagem e não sobre o
eu-narrador. Além disso, a posição de omnisciência refere-se ao narrador, pois
nesse tipo de narração não é possível ao agente do discurso acessar a interioridade
de outras personagens:

Trata-se de uma limitação natural, já que o campo de consciência do


narrador restringe-se forçosamente: “Ele ou ela podem especular apenas do
exterior a propósito de outras mentes, e assim tudo que este narrador
limitado refere acerca de outras personagens deve basear-se naquilo que
ele logicamente observar, conjectuar ou escutar” (REIS; LOPES, 2002, p.
261).

Na narrativa aqui em estudo, é possível tirar conclusões acerca das


avaliações de Kambili, cujas posições denotam incialmente que o silêncio no qual
70

ela está reclusa reflete uma atenta observação daqueles que estão à sua volta: “Eu
não me perguntei, nem tentei me perguntar, o que Mama fizera para precisar ser
perdoada” (ADICHIE, 2011, p. 42). Nessa passagem, é constatado o silenciamento
da personagem, ou seja, a negação como uma forma de aceitação da própria vida.
Assim, fica evidente que Kambili sabe da violência que a mãe sofre, mas
desconhece a razão pela qual o pai agiu violentamente nem por que a mãe deve
receber perdão divino.
Contudo, a mudança é perceptível quando Kambili entra em contato com a
família de tia Ifeoma, pois passa a vivenciar e observar um modo diferente de levar a
vida, uma forma mais livre de viver. Sendo assim, é a partir do recurso de
focalização interna que se torna viável reconhecer essa mudança:

Até então eu me sentira como se não estivesse ali, como se estivesse


apenas observando uma mesa onde se podia dizer o que você quisesse,
quando quisesse, para quem quisesse, onde o ar era livre para ser
respirado à vontade. - O arroz está bom, tia Ifeoma, muito obrigada.
- Se gostou do arroz, então coma o arroz - disse tia Ifeoma.
- Talvez ele não seja tão bom quanto o arroz chique que ela come em casa
- disse Amaka.
- Amaka, deixe sua prima em paz - disse tia Ifeoma.
Eu não falei mais nada até o almoço acabar, mas ouvi cada palavra que os
outros disseram, cada risada e cada piadinha. Eram meus primos que
falavam quase tudo, enquanto tia Ifeoma apenas olhava, comendo devagar.
Ela parecia um técnico de futebol que treinara bem seu time e estava
satisfeita em ficar no banco, só assistindo (ADICHIE, 2010, p. 130).

Há, inicialmente, um estranhamento materializado na postura de Kambili que


nem sabe como agir naquele local onde se pode falar livremente. A narradora
expressa, pois, que observa tudo atentamente e proporciona ao leitor uma avaliação
positiva daquele ambiente, visto que declara a satisfação que tia Ifeoma parece
sentir com os filhos. Portanto, a focalização que prepondera é a interna, que, por sua
vez, se dirige para uma externa (REIS; LOPES, 2002, p. 261), ainda que essa
mesma perspectiva venha carregada da avaliação da protagonista.
Reis e Lopes (2002) destacam que a focalização omnisciente, do tipo de
narrador aqui em questão, é muito distinta da do heterodiegético, pois o “máximo de
potencial informativo de que o narrador autodiegético pode desfrutar deriva da
situação de ulterioridade em que se encontra e mesmo da sua variável capacidade
de retenção memorial” (REIS; LOPES, 2002, p. 261). Portanto, a focalização
omnisciente, no caso de uma narração autodiegética, restringe-se a um potencial
71

informativo, baseado naquilo que a memória consegue reter. Como é percebido no


seguinte trecho:
Mesmo assim, Jaja sabia o que eu comia de almoço todos os dias. Havia
um menu colado na parede da cozinha, que Mama mudava duas vezes por
mês. Mas ele sempre me perguntava o que eu tinha comido. Com
frequência fazíamos perguntas cujas respostas já sabíamos. Talvez
fizéssemos isso para não precisarmos formular as outras perguntas,
aquelas cujas respostas não queríamos saber (ADICHIE, 2011, p. 29).

Kambili não tem acesso à interioridade de Jaja, mas conhece os hábitos do


irmão, cujas intenções vão além de simplesmente saber o que a irmã havia comido.
O questionamento estabelece um diálogo entre ambos, em que perguntas
supérfluas são feitas para evitar que eles falem da realidade na qual estão inseridos:
um ambiente violento e opressor. Portanto, a narradora não tem um conhecimento
ilimitado, mas é observadora e sagaz e, devido a isso, depreende significados a
partir da observação do comportamento daqueles que a cercam.
A focalização está inserida no modo, que é o recurso que, segundo Reis e
Lopes (2002), diz respeito à quantidade de informações: “o modo rege a regulação
da informação narrativa; pode, com efeito, contar-se mais ou menos o que se relata
[...]” (p. 237). Portanto, é essa categoria que engloba a “seleção quantitativa e
qualitativa daquilo que é narrado” (p. 237).
Em Hibisco roxo é constatado que a narradora, ao estabelecer a narração,
encobre informações: “- Se tia Ifeoma for embora, eu quero ir com eles – disse Jaja.
Eu não respondi. Havia muita coisa que eu queria dizer e muita coisa que eu não
queria dizer” (ADICHIE, 2010, p. 248). Nesse trecho, Kambili deixa claro que seu
silenciamento é proposital, ela não quer falar, pois, ao verbalizar tudo que se passa
em seu íntimo, ela daria vazão aos sentimentos oprimidos e deveria admitir toda a
violência na qual eles estão envolvidos.
Outra passagem que evidencia a forma como a narradora lida com as
informações, que expõe em seu discurso, é a seguinte: “Não era certo permitir que
uma pessoa mais velha fizesse suas tarefas, mas Mama não se incomodava; havia
muita coisa com que ela não se incomodava32” (ADICHIE, 2010, p. 25). Ao
estabelecer o discurso dessa maneira, Kambili encobre os fatos com os quais a mãe
não se importava, e se referem à violência que todos sofrem. Ela faz um julgamento

32
Esse trecho já foi utilizado no trabalho, porém é importante para elucidar o contínuo de informações.
72

sobre a mãe e convida o leitor a atentar para a importância do papel de mama na


narrativa.
Devido ao desnudamento da opressão imposta pelo pai, Kambili modifica sua
narração. O leitor percebe que um silêncio diferente (ADICHIE, 2010, p 319) paira
entre as personagens, mas os acontecimentos não são mais silenciados:

- Eles fizeram uma autópsia - disse.


- Encontraram veneno no corpo de seu pai.
Mama disse aquilo como se soubéssemos do veneno no corpo de Papa,
como se fosse alguma coisa que havíamos colocado dentro dele de
propósito, para ser encontrada, do mesmo jeito que os brancos, nos livros
que eu lia, escondiam ovos de Páscoa para seus filhos acharem.
- Veneno? - repeti.
Mama amarrou melhor a canga e foi até as janelas; abriu as cortinas e
verificou se os basculantes estavam fechados, impedindo que a chuva
entrasse na casa. Seus movimentos eram tranquilos e lentos. Quando ela
falou, sua voz também estava tranquila e lenta.
- Comecei a colocar o veneno no chá dele antes de ir para Nsukka. Sisi
arrumou-o para mim; o tio dela é um curandeiro poderoso (ADICHIE, 2010,
p. 305).

Essa mudança no fluxo das informações transmitidas ao leitor está


diretamente ligada à condição em que a narradora se encontra. Kambili está em um
ambiente livre da opressão personificada pelo pai. Na liberdade em que se encontra,
ela é capaz de se expressar, o que se reflete no modo como as informações são
expostas em sua narração. Além disso, há a presença do discurso direto ao
reproduzir a fala de Beatrice integralmente, personagem que pouco se expressa até
então, o que estabelece uma aproximação entre o leitor e a narrativa.
Por conseguinte, é possível constatar que o texto institui uma narradora que
ocupa uma posição de ulterioridade diante dos fatos, o que é comum quando se
trata de narrador autodiegético. Somente no fim da narrativa, Kambili passa a contar
os acontecimentos simultaneamente. Nessa parte, é constatada uma inovação da
autora, que coloca narradora e leitor na mesma posição de conhecimento das
circunstâncias diegéticas. Além disso, a temporalidade estabelece significações,
como é possível depreender a partir da ligação dos episódios diegéticos, que
acontecem em um período de seis meses, com as datas cristãs. Devido à posição
ulterior, é constatada a presença de anacronias, as quais, por meio de uma leitura
atenta, dão indícios e permitem ao leitor estabelecer inferências.
A focalização destaca a transformação pela qual a protagonista passa. O
recurso técnico evidencia que se trata de uma narradora que é extremamente
73

observadora, cujo silêncio revela uma profunda e atenta observação do entorno. O


modo evidencia a forma como a mudança pela qual a protagonista passa se liga à
quantidade de informações fornecidas pela narradora. Inicialmente, ao narrar os
acontecimentos enquanto ainda está inserida em um contexto de violência e
opressão, a narradora encobre fatos, instituindo uma narração que dá a entender as
agressões e o cerceamento da liberdade. Contudo, depois da morte de Eugene, as
informações são mais claras, os episódios narrados ficam mais evidentes. Além
disso, é constatada a presença marcante do discurso direto, recurso narrativo que
resulta em uma aproximação entre o texto narrativo e o leitor.
74

5 ENTRE A FICÇÃO E A TEORIA: REFLEXÃO SOBRE IDENTIDADE E CULTURA

5.1 VÍNCULOS ENTRE A ESTRUTURA TEXTUAL E A REALIDADE

No capítulo anterior, foi realizada uma análise do modo como a subjetividade


narradora está construída em Hibisco roxo. Para isso, foram analisadas as
características da materialidade do texto e exploradas suas possibilidades
interpretativas, de acordo com o que se pretendeu realizar neste trabalho. Segundo
Lefebvre, a materialidade se constitui dos artifícios e convenções que compõem a
estrutura do texto; entretanto, como obra de arte, o texto complementa-se pela
presentificação, uma vez que sua totalidade reenvia "ao mundo como problema"
(LEFEBVE, 1980, p. 186), provocando a reação do leitor diante da realidade estética
figurada.
Sob esse aspecto, o posicionamento de Lefebve converge para o de Barthes,
para quem todo estudo acerca da linguagem faz parte do que ele classifica como
fenotexto, conceito teórico em que estão inseridos os trabalhos de investigação
estrutural e semântica. No entanto, a narrativa não se encerra somente em um
estudo voltado para suas características estruturais e,

Em decorrência disso, a orientação analítica - centrada nos componentes


do discurso - prevê sua própria superação, pois se faz necessário
reintegrar, ao circuito interno da produção-interpretação, o circuito externo,
cujos protagonistas são o autor e o leitor, inscrevendo-se também nesse
processo compreensivo o acontecimento, que, embora percebido como
fictício, carrega consigo o apelo à presentificação do real (SARAIVA, 2009,
p.39).

Hall (1997) chama a atenção para o trabalho de representação da linguagem,


mediante o qual o discurso literário estabelece o processo que Lefebvre e Saraiva
denominam de presentificação. Assim, a partir da instalação de um universo ficcional
de significações múltiplas, a narrativa literária possibilita a compreensão de
experiências humanas de um determinado tempo e lugar, entre as quais se situam a
75

problemática da identidade e formas de vida do cotidiano, que são reflexos da


cultura. Sob esse ponto de vista, foram elencadas as categorias língua, religiosidade
e ritos de integração social, cuja exploração contribui para a compreensão da
realidade histórica que Chimamanda Ngozi Adichie deseja vicariamente representar.

5.2 O PROBLEMA DA IDENTIDADE

No capítulo anterior foram definidos traços da personagem narradora,


evidenciado o processo de conformação de sua identidade. Em síntese, percebeu-
se que Kambili se constitui enquanto sujeito por relações de oposição ou de
semelhança com outras personagens. Esse mesmo processo ocorre na constituição
dos sujeitos em suas relações na malha social.
A primeira relação que se destaca é a que ela estabelece em referência ao
pai, cuja autoridade é por ela questionada, pois, para a jovem, Eugene está errado,
porém não se opõe a ele claramente:
Depois que Jaja falou com tia Ifeoma, ele desligou e disse: - Nós vamos
para Nsukka hoje. Vamos passar a Páscoa em Nsukka.
Eu não perguntei o que ele queria dizer com aquilo nem como convenceria
Papa a nos deixar ir. Observei-o bater na porta de Papa e entrar.
- Eu e Kambili vamos para Nsukka - ouvi-o dizer.
Não ouvi o que Papa disse, mas Jaja respondeu:
- Nós vamos para Nsukka hoje, não amanhã. Se Kevin se recusar a nos
levar, vamos assim mesmo. Vamos andando, se for preciso (ADICHIE,
2010, p. 240).

Nesse trecho, Kambili fica ao lado de Jaja, indo junto com ele a Nsukka, na
casa da tia, para passar a Páscoa. No entanto, a atitude foi tomada pelo irmão, a
quem ela apenas segue. Portanto, embora exista uma oposição quanto à figura
paterna, Kambili comporta-se passivamente, sem oferecer resistência às normas
que a oprimem.
Outra personagem fundamental para a constituição identitária de Kambili é
Beatrice. Ao divergir de papa, a protagonista fica ao lado da mãe, pois, assim como
a adolescente, essa personagem também sofre com a violência advinda de Eugene.
No entanto, a narrativa diz que a jovem se opõe também à mama, pois,
diferentemente dessa, que se mantém reclusa no próprio silêncio, Kambili anseia por
uma nova vida, depois do desfecho que levou à morte do pai:
76

A voz metálica logo toma conta do carro. Eu me viro para ver se Mama se
incomoda, mas ela está olhando fixamente para o banco da frente; acho
que nem consegue ouvir nada. Na maioria das vezes, ela só responde
assentindo ou balançando a cabeça e eu me pergunto se escutou mesmo.
Eu costumava pedir que Sisi conversasse com Mama, porque ela ficava
horas sentada na sala de estar com Sisi. Mas Sisi contou que Mama não
respondia, que ela só olhava para o nada, em silêncio (ADICHIE, 2010, p.
311).

Kambili também se constitui ao se identificar com tia Ifeoma e com os primos,


especialmente, Amaka. A relação de identificação que acontece não está ligada ao
fato de a protagonista ser igual aos parentes, mas porque ela nutre uma admiração
por eles:

Os filhos dela apareceram alguns minutos depois. Estavam diferentes,


talvez porque pela primeira vez eu os via na casa deles e não em Abba,
onde eram visitas na casa de Papa-Nnukwu. Obiora tirou os óculos escuros
e colocou-os no bolso do short quando entrou. Ele riu quando me viu.
- Jaja e Kambili chegaram! - disse Chima com sua vozinha.
Trocamos abraços, com nossos corpos se tocando rapidamente. Amaka
mal deixou que a lateral de seu corpo encostasse na minha e logo se
afastou. Estava com um batom diferente, mais para vermelho do que para
marrom, e o vestido marcava seu corpo esguio (ADICHIE, 2010, p. 127).

Nesse trecho, é possível perceber, na forma como Kambili descreve a prima,


uma certa admiração pela aparência da jovem, cujo estilo e valorização dos próprios
traços encantam a protagonista, a quem foi ensinada ser a vaidade um pecado.
A passagem seguinte também evidencia o fascínio que Kambili sente por
aquilo que ela não é:
- Eugene - disse tia Ifeoma bem alto -, eu estava dizendo que Jaja e Kambili
deviam passar algum tempo comigo e as crianças amanhã.
Papa soltou um grunhido e continuou andando até a porta.
- Eugene!
Toda vez que tia Ifeoma se dirigia a Papa, meu coração parava e depois
começava a bater de novo, freneticamente. Era por causa daquele tom
atrevido; ela não parecia reconhecer que aquele era Papa, que ele era
diferente, especial. Tive vontade de apertar os lábios dela para fechá-los, e
também para pegar um pouco de batom cor de bronze nos dedos
(ADICHIE, 2010, p. 85).

A narradora destaca o modo como a relação entre o pai e a tia se configura.


Ifeoma, diferentemente da menina, não nutre um fascínio por Eugene e não há entre
os dois adultos a relação hierárquica, como a existente entre o chefe da família e a
filha. Ao querer pegar um pouco do batom, Kambili também almeja pegar para si um
pouco da atitude feminina da tia.
77

Outra personagem que constitui uma oposição importante em relação à


protagonista é Jaja. Inicialmente, o irmão é muito parecido com Kambili, mas, ao
conviver com a tia, o menino facilmente sai do silêncio no qual está inserido:

Será que Jaja tinha esquecido que nós não contávamos a ninguém, que
havia tanto que nunca contávamos a ninguém? Quando as pessoas
perguntavam, ele sempre dizia que seu dedo era assim por causa de "uma
coisa" que acontecera em nossa casa. Assim, ele não mentia, e as pessoas
imaginavam que tinha havido algum acidente, talvez com uma porta
pesada. Eu quis perguntar a Jaja por que ele tinha contado a verdade a tia
Ifeoma, mas sabia que não era preciso, sabia que ele próprio não tinha a
resposta para aquela pergunta (ADICHIE, 2010, p. 165).

De acordo com Kambili, Jaja não entende sua própria transformação, no


entanto, ao contrário dela, o jovem consegue externar a violência que sofre dentro
de casa.
Portanto, as oposições são importantes para evidenciar o conflito identitário
em que Kambili se encontra, resultante da educação austera e da violência exercida
pelo pai, visto que a narradora se transforma e se estabelece a partir das relações
estabelecidas ao longo da narrativa. Ao compreender a importância da alteridade
para a constituição identitária de Kambili, encontra-se consonância com Woodward
(2014), cuja concepção de identidade foi explorada no segundo capítulo.
Para a autora, as identidades se instituem a partir da diferença e para que
uma se estabeleça há a negação de outra. Logo, ao se opor ao pai e à mãe, Kambili
percebe aquilo que ela não é e não quer ser, ou seja, violenta, intolerante ou
fechada em si mesma; ao se opor à tia, a Amaka e a Jaja, ela percebe o que ela
ainda não é, mas que almeja ser, um modelo a ser seguido, corajosa, contestadora
e dona de si. Além disso, por meio do discurso, a partir da instituição da narração, a
narradora produz sua identidade, a qual é constituída social e simbolicamente, por
intermédio de seu contexto cultural, cujos significados, formados por meio de um
processo de representação, serão explorados a seguir.
Ao transferir a problemática identitária, apresentada em Hibisco roxo, para um
contexto mais amplo, é possível depreender aspectos acerca da identidade
nigeriana, cujos apontamentos históricos registram uma conformação resultante da
pluralidade cultural. Ela decorre de identidades múltiplas que se modificam ao longo
do tempo e que se diferenciam até mesmo dentro de um único grupo étnico, como é
78

o caso da etnia igbo, representada na narrativa, em que diversas identidades


individuais se manifestam.
A obra traz a representação do conflito de identidade de uma jovem
pertencente à etnia igbo, que é um dos maiores grupos étnicos da Nigéria,
compondo quase 20% da população desse país, e da África. Entretanto, por mais
que a protagonista pertença a esse povo, ela vive em um lar onde há a negação
dessa cultura e a valorização da do colonizador inglês, que, quando chegou à
Nigéria, trouxe consigo um modelo de governo, a língua e a religião.
Nesse sentindo, a narrativa evidencia a violência presente no processo de
negação das identidades locais, que provoca uma espécie de isolamento daquele
que assume essa postura. A sociedade nigeriana tem em sua formação uma
profusão de etnias e de comunidades religiosas, que se modificaram ao longo de
sua história, devido a encontros e a desencontros, que geraram conflitos, de que são
exemplos a violência entre comunidades cristãs e muçulmanas e os distúrbios entre
os iorubás e hauçás33.

5.3 CATEGORIAS CULTURAIS DA NARRATIVA E SUA RELAÇÃO COM O


CONTEXTO NIGERIANO

No quarto capítulo, foi destacada a condição paradoxal da literatura, que, por


meio da aderência à sua natureza ficcional, promove a compreensão de aspectos
humanos, que no dia a dia não se apresentam aos sujeitos de forma ordenada e
ampla, como nas obras literárias. Além disso, a literatura, por ser uma manifestação
cultural, também suscita um movimento duplo: a literatura serve como um meio pela
qual a cultura pode ser compreendida, ao mesmo tempo em que a cultura é uma
espécie de lente pela qual é possível enxergar a literatura de modo mais preciso.
Sendo assim, nesta parte do trabalho será feita a análise de como categorias
culturais, estabelecidas a partir da leitura, se constituem em Hibisco roxo.

33
Dos quais são exemplos, os conflitos religiosos entre cristãos e mulçumanos e os conflitos entre
pastores de ovelhas da tribo Fulani, predominantemente muçulmana, contra agricultores e
fazendeiros cristãos, que ocorreram em 2018.
79

5.3.1 Religiosidade

A primeira categoria a ser analisada é a da religiosidade. Esse aspecto é


importante para entender quem é a protagonista Kambili e a forma como a relação
com a religião pode ser estabelecida. O modo como a personagem vivencia a sua
fé, ao longo da narrativa, evidencia a transformação pela qual a protagonista passa,
visto que sua mudança está diretamente ligada à modificação de como a fé é
percebida e experenciada pela jovem.
O texto apresenta, inicialmente, a maneira como a família de Kambili pratica a
religião. O modelo a ser seguido por todos na casa da jovem é o pai:

Papa se sentava todas as vezes no banco da frente para assistir à missa,


na ponta que dá para a nave, com Mama, Jaja e eu junto dele. Era o
primeiro a receber a comunhão. A maioria das pessoas não se ajoelhava
para receber a hóstia no altar de mármore, perto do qual fica a estátua loura
em tamanho real da Virgem Maria. Mas Papa, sim. (ADICHIE, 2011, p. 9).

Na passagem acima, fica evidente o modo rigoroso como Eugene perpetra


sua fé, com muita retidão e extrema ortodoxia.
Além de ser exemplo para aqueles com quem convive, Papa é mencionado
no sermão do pároco da igreja a que a família pertence: “Durante seus sermões, o
padre Benedict sempre falava do papa, do meu pai e de Jesus - nessa ordem. Ele
usava meu pai para ilustrar os evangelhos” (ADICHIE, 2011, p. 10). Portanto, é
possível depreender que as personagens são membros de uma igreja em que a
rigidez na forma de levar a fé é exemplar.
Educada nesses moldes, a protagonista reproduz o jeito rigoroso de vivenciar
a fé para agradar ao pai:

A congregação toda se agitou de repente. Alguns suspiraram, outros


abriram a boca num enorme O. Estavam acostumados com os sermões
demorados do padre Benedict, com sua voz anasalada e monótona.
Lentamente, começaram a cantar também. Eu olhei para Papa, que
comprimiu os lábios. Ele virou a cabeça para ver se eu e Jaja estávamos
cantando e assentiu, satisfeito, quando nos viu de lábios selados (ADICHIE,
2011, p. 34).

Nessa passagem, o desagrado de Eugene com a canção no meio da missa é


comprovado pela expressão facial, que é observada por Kambili. Embora, não faça
80

uma avaliação negativa da atitude do padre, a protagonista não canta, pois sofreria
castigos do pai.
A narrativa também mostra que a fé de Eugene é incompreensível a Kambili:

Mais tarde, no jantar, Papa nos mandou rezar dezesseis novenas. Pelo
perdão de Mama. E no domingo, que seria o primeiro domingo após o
Advento, ficamos na igreja depois da missa e começamos as novenas. O
padre Benedict respingou água benta em nós. Algumas gotas caíram em
meus lábios e senti seu gosto salgado e envelhecido enquanto rezávamos.
Se Papa achava que Jaja ou eu começávamos a sentir sono na décima
terceira recitação do Apelo a São Judas Tadeu, sugeria que voltássemos ao
início. Tínhamos de rezar bem certinho. Eu não me perguntei, nem tentei
me perguntar, o que Mama fizera para precisar ser perdoada (ADICHIE,
2011, p. 42).

Por professar uma fé que é representada pela figura paterna, cujas atitudes
Kambili não entende, é possível concluir que ela desconhece a crença que segue e
pratica. Além disso, a protagonista não entende as atitudes do pai em relação ao
avô, que sobrepõe crenças aos laços de afeto. O dogmatismo de Eugene é
demonstrado na passagem em que não permite a entrada do pai em sua residência,
pois considera o patriarca um pagão:

Mais tarde naquela manhã, quando saímos de carro de nossa propriedade,


eu me virei para permitir que meus olhos passassem, -+-mais uma vez,
pelas pilastras e muros brancos e cintilantes de nossa casa, pelo perfeito
arco de água prateado que o chafariz fazia. Papa-Nnukwu jamais pisara ali,
pois quando Papa decretara que não permitiria pagãos em sua propriedade,
não abrira exceção nem para o próprio pai (ADICHIE, 2011, p. 70).

Nesse trecho, há uma reflexão da protagonista sobre a atitude paterna, que


impede o próprio pai de usufruir de mais conforto. Além de proibir a entrada do idoso
na casa, Papa também limita a convivência dos filhos com o avô, que podem vê-lo
apenas por quinze minutos na época natalina:

- Eu perdi a hora, a culpa foi minha - disse Jaja.


- O que vocês fizeram lá? Comeram alimentos oferecidos aos ídolos?
Profanaram suas línguas cristãs?
Fiquei paralisada; não sabia que línguas também podiam ser cristãs. – Não
- afirmou Jaja (ADICHIE, 2011, p. 73).

Por terem ultrapassado o tempo estipulado, Jaja e Kambili sofrem uma


advertência. Mais uma vez, a reflexão da protagonista, que soa quase infantil, indica
que ela não depreende o sentido da religiosidade, mas, mesmo assim, não a
questiona.
81

Kambili concebe a divindade como um ser concreto, a quem atribui traços


humanos:

Quando ela deu meia-volta e retornou à rua de onde tínhamos vindo,


comecei a sonhar e imaginei Deus colocando as colinas de Nsukka em seus
lugares com suas imensas mãos brancas, que tinham sombras de lua
crescente embaixo das unhas como as do padre Benedict (ADICHIE, 2011,
p. 141).

Entretanto, a divindade é vista, pela personagem, como algo com o qual ela
estabelece uma relação de intimidade. Para a menina, Deus é um outro, algo que é
sempre novo, que não se adapta e que não parece ter vínculos, assim como o padre
Benedict, que não possui vínculos estreitos com o local onde vive:

O padre Benedict já estava em St. Agnes havia sete anos, porém as


pessoas ainda se referiam a ele como "o nosso novo padre". Talvez não
tivessem feito isso se ele não fosse branco. Mas o padre Benedict ainda
parecia novo no lugar (ADICHIE, 2011, p. 10).

Entretanto, quando entra em contato com a família de Ifeoma, Kambili passa


a ter um modo novo de vivenciar a própria fé. Inicialmente, a protagonista busca, nos
outros, as marcas da condenação que Eugene destaca:

Eu jamais fora ver os mmuo, jamais ficara sentada num carro estacionado
ao lado de milhares de pessoas, todas ali para assistir à mesma coisa. Uma
vez Papa passara de carro conosco por Ezi Icheke, há alguns anos, e ele
murmurara alguma coisa sobre pessoas ignorantes vestindo máscaras e
participando de rituais pagãos. Disse que as histórias sobre os mmuo, de
que eles eram espíritos que haviam surgido de formigueiros, que podiam
fazer cadeiras saírem correndo e manter a água em cestas abertas, tudo
isso era folclore demoníaco. Folclore Demoníaco. Da maneira como Papa
falara, tinha parecido perigoso. (ADICHIE, 2010, p. 94).

No texto, Kambili vai ao festival na companhia do avô, da tia e dos primos. Lá,
embora lembre das palavras de Eugene, não encontra o perigo nem o demônio,
naquilo que o pai classifica como “folclore demoníaco”.
Por praticarem um catolicismo ortodoxo, Kambili e Jaja desconhecem o modo
como tradicionalmente as pessoas devem se portar em um mmuo34:
- Como eles fazem isso, PapaNnukwu? Como as pessoas entram nessa
fantasia? - perguntou Jaja.
- Psiu! Eles são mmuo, são espíritos! Você está falando como uma mulher! -
disse PapaNnukwu, irritado, voltando-se para lançar um olhar furioso a Jaja.
Tia Ifeoma riu e falou em inglês.

34
O mmuo é um espetáculo anual, que é encenado durante o período de seca na região em que se
localizada a cidade nigeriana de Awka, território tradicionalmente igbo.
82

- Jaja, é proibido dizer que tem gente lá dentro. Você não sabia?
- Não.
Ela observava Jaja com atenção.
- Você não fez a ima mmuo, fez? Obiora fez há dois anos, na cidade natal
do pai dele.
- Não, não fiz - murmurou Jaja.
Olhei para Jaja e me perguntei se a sombra em seus olhos era vergonha.
Subitamente eu quis, pelo seu bem, que houvesse feito a ima mmuo, a
iniciação ao mundo dos espíritos (ADICHIE, 2010, p. 96).

Nessa passagem, Kambili e Jaja parecem lamentar por desconhecerem


elementos que são comuns à cultura dos primos, da tia e do avô e do cotidiano
deles. Então, a protagonista começa a perceber que a educação religiosa,
proporcionada por Eugene, limita sua vida e a de seu irmão e que ele pode estar
equivocado quando prega que sua fé é a única verdadeira.
A religiosidade está muito presente na família da personagem Ifeoma, que
também é católica, porém é praticada de uma forma diferente da de Kambili:

Tia Ifeoma e Obiora também começaram a cantar, e as vozes dos três se


misturaram. Olhei nos olhos de Jaja. Os dele estavam brilhantes,
sugestivos. Não! Eu disse a ele, piscando os meus firmemente. Não estava
certo. Não se devia começar a cantar no meio do rosário. Eu não cantei e
Jaja também não. Amaka começou uma nova canção ao final de cada
dezena, sempre escolhendo canções animadas em igbo que faziam tia
Ifeoma emitir sons guturais, como uma cantora de ópera que tira as
palavras da base do estômago (ADICHIE, 2010, p. 135).

Ao participar desse momento na casa da tia, a protagonista fica inicialmente


relutante. Com tudo que aprendera com Eugene, aquilo que estava acontecendo
parecia ser muito errado. Todavia, devido à convivência com Ifeoma, ela passa a
viver um conflito interno gerado pelo confronto entre a forma como a religião é
conduzida pelo pai e pela irmã desse: “Pressionei meus lábios, mordendo o lábio
inferior, para que minha boca não começasse a cantar sozinha, para que ela não me
traísse” (ADICHIE, 2010, p. 149).
Por meio do vínculo com Ifeoma, Kambili aprende que o avô não é um pagão,
como considerado por Eugene, mas um espiritualista. Além disso, a tia faz a menina
perceber que a fé do avô é bastante semelhante a deles:

Quando tia Ifeoma me acordou, o quarto estava na penumbra e o cricrilar


dos grilos noturnos soava mais baixo. O canto de um galo entrou pela janela
que ficava acima da minha cama.
- Nne - disse tia Ifeoma, dando tapinhas no meu ombro. - Seu Papa-Nnukwu
está na varanda. Vá ver o que ele está fazendo.
Eu me senti completamente acordada, embora tenha precisado usar os
dedos para forçar os olhos a abrir. Lembrei do que tia Ifeoma tinha dito
83

ontem, sobre Papa-Nnukwu ser um tradicionalista e não um pagão.


(ADICHIE, 2010, p. 177).

Kambili observa o avô praticando um ritual e constata que o idoso ora


agradecendo ao dia e pedindo proteção a todos, inclusive para o filho Eugene, o
qual o ignora e não zela por sua saúde e conforto, mesmo sendo muito rico. Outra
coisa que chama a atenção da protagonista é que o avô sorri durante toda a oração:
“Ele ainda sorria quando me virei silenciosamente e voltei para o quarto. Eu nunca
sorria depois de rezar o rosário em casa. Nenhum de nós sorria” (ADICHIE, 2011, p.
180). Estabelece-se, pois, uma oposição entre a celebração que a adolescente
conhece e pratica e aquela que ela presencia na varanda, ao amanhecer.
Outra personagem que contribui para a mudança de Kambili é o padre Amadi.
Em uma passagem, ele pergunta à protagonista se ela tinha gostado da partida de
futebol. Diante da anuência de Kambili, ele diz que via Deus nos meninos com quem
jogara (ADICHIE, 2010, p. 188). Esse diálogo acontece quando a adolescente vai
com o religioso praticar esportes. O pároco jovem e nigeriano mostra à protagonista
uma forma equilibrada de viver a religiosidade e mostra, também, que Deus, o qual
Kambili via com mãos brancas, podia ser encontrado naqueles meninos nigerianos
humildes de mãos negras.
Por fim, o que pode ser observado na narrativa é que há uma espécie de
reconciliação entre Kambili e a própria fé:

E também levo as cartas do padre Amadi comigo porque elas me dão a


graça divina. Amaka diz que as pessoas se apaixonam por padres porque
querem competir com Deus, querem ter Deus como rival. Mas nós não
somos rivais, Deus e eu, estamos apenas compartilhando. Eu não me
pergunto mais se tenho o direito de amar o padre Amadi; simplesmente o
amo (ADICHIE, 2010, p. 317).

O padre Amadi é a figura que representa a estabilidade quanto à religiosidade


da protagonista. O amor que ela se permite sentir pelo religioso pode ser visto como
uma metáfora para uma forma equilibrada e saudável de viver a própria fé.
Portanto, primeiramente, a personagem Eugene é o modelo a ser seguido, o
que conduz Kambili a assumir uma atitude intolerante perante o outro. Ela não
compreende a profissão da fé nos moldes do pai, mas esse panorama muda ao
entrar em contato com a família de Ifeoma e com padre Amadi, que proporciona à
protagonista uma maneira diferente de experenciar a religiosidade, que une o
84

tradicional, representado pelo avô, e o cristianismo, trazido pelos missionários


ingleses. Tudo isso, sem que se estabeleça uma hierarquia entre um e outro credo.
Na casa da tia, não se prega a existência de uma religião superior, ambas, naquele
espaço, são equivalentes.
Ao transferir as concepções religiosas de Ifeoma para o contexto nigeriano,
constata-se que a religiosidade é um modelo pelo qual as pessoas guiam a própria
existência e motiva as ações dessas. A tradição espiritualista igbo e o cristianismo
ortodoxo não se mantêm sem recíprocas influências na sociedade delineada em
Hibisco roxo, a qual presentifica, por meio da linguagem, a sociedade nigeriana, que
professa o sincretismo religioso.
Assim, a narrativa mostra a permanência da religião e sua importância por
meio da reunião de ritos tradicionais e do cristianismo. Esse procedimento literário
presentifica a realidade de um país onde coexistem diversas religiões, sendo o
catolicismo uma das mais expressivas, visto que é professado por quase metade da
população, sendo que o grupo étnico igbo compõe a maior parte desse grupo.

5.3.2 Ritos familiares e comunitários

A segunda categoria, reveladora de marcas da cultura nigeriana, são os ritos,


que são importantes para compreender a organização da família de Kambili e a de
tia Ifeoma, bem como para estabelecer uma oposição entre ambas, procedimentos
que levam à compreensão da organização social da família nigeriana. A partir da
análise de passagens do texto, que evidenciam os costumes das personagens, é
possível depreender significações acerca de seus valores.

Inicialmente, o leitor conhece os hábitos do núcleo familiar de Eugene, em


que a ordem e a rotina são valorizados:

Depois eu segurava a xícara com as mãos e a levava aos lábios. Um gole.


O chá estava sempre muito quente, sempre queimava minha língua, e se
comêssemos algo apimentado no almoço minha língua ferida me
machucava. Mas não tinha importância, pois eu sabia que quando o chá
queimava minha língua, ele estava queimando o amor de Papa em mim
(ADICHIE, 2010, p. 14).

O pai tem o hábito de beber chá e o divide com os filhos, dando-lhes apenas
um gole. A bebida muito quente, que machuca a língua da protagonista, representa
85

a severidade da conduta do pai. Ademais, Kambili associa o amor com violência,


pois os castigos impingidos por papa, assim como o líquido fervente, são tidos como
sinônimo de afeto.
Várias passagens da narrativa relatam o modo como as refeições acontecem
na casa da protagonista:

O almoço foi fufu e sopa de onugbu. O fufu estava macio e fofo. Sisi sabia
fazê-lo muito bem; ela pilava energeticamente o inhame, acrescentando
gotas de água à tigela, suas bochechas se contraindo a cada tum-tum-tum
do pilão. A sopa estava grossa, com pedaços grandes de carne cozida e
peixe seco e com muitas folhas verde-escuras de onugbu. Comemos em
silêncio. Eu fazia bolinhas de fufu com os dedos, molhava-as na sopa,
sempre pegando pedaços de peixe, e as levava à boca. Eu tinha certeza de
que a sopa estava boa, mas não conseguia sentir seu gosto. Minha língua
parecia feita de papel (ADICHIE, 2010, p. 18).

Acima, Kambili narra a refeição após a missa do Domingo de Ramos, em que


Jaja negara a eucaristia. Todos estão aflitos diante da possibilidade de mais uma
punição severa de Eugene. Afora isso, o que se nota é a abundância de comida, que
demonstra o poder econômico de papa, e o silêncio, visto que os almoços em família
eram sempre assim: os filhos e a mulher só falam para responder a perguntas do
chefe da casa. Outro fragmento que reitera a forma como acontecem os almoços é o
seguinte:

No almoço, comemos arroz jollof, pedaços de azu do tamanho de punhos


fechados, fritos até que os ossos ficassem crocantes, e ngwo-ngwo. Papa
comeu a maior parte do ngwo-ngwo, mergulhando sua colher no caldo
apimentado na tigela de vidro. O silêncio pairava sobre a mesa como as
nuvens azul-enegrecidas que há no meio da estação de chuvas (ADICHIE,
2010, p. 38).

Embora a hora do alimento seja sinônimo de comunhão, na casa de Kambili,


é um momento que transcorre perpassado por um silêncio que é pesado e
desconfortável, como as nuvens que prenunciam temporais. Além disso, nele é
reforçado o poder e o egoísmo de Eugene, a quem a maior parte da comida é
destinada.
Portanto, uma forma de evidenciar a riqueza de papa é por meio da comida
em demasia:

Nós sempre nos preparávamos para alimentar a cidade toda no Natal, para
que nenhuma pessoa que aparecesse em nossa casa tivesse de ir embora
sem comer e beber até atingir o que Papa chamava de um nível razoável de
satisfação. Afinal, o título de Papa era omelora, Aquele Que Faz pela
86

Comunidade. Mas não era só Papa que recebia visitas; as pessoas da


cidade iam em bando a todas as grandes casas com grandes portões, e às
vezes levavam até potes para guardar as sobras depois. Era Natal
(ADICHIE, 2010, p. 63).

O ritual expresso acima acontece todo o Natal, quando Eugene vai com
Beatrice, Jaja e Kambili à casa em Abba35. Devido ao título de benfeitor, ele tem a
obrigação de abrir a residência para as pessoas que vivem no lugarejo. Entretanto,
essa tradição não demonstra um convívio harmonioso com os integrantes da
localidade:

- Vão lá para cima se trocar - disse Mama, pondo uma das mãos em meu
ombro e a outra no de Jaja. - Sua tia e seus primos vão chegar daqui a
pouco.
No segundo andar, Sisi pusera oito lugares na mesa de jantar, com pratos
largos cor de caramelo e guardanapos combinando, passados a ferro até
formar perfeitos triângulos (ADICHIE, 2010, p. 101).

Esse trecho mostra que, apesar de as portas da casa estarem abertas, não
há um envolvimento com as pessoas que ali circulam, sublinhando-se, no ritual, que
o poder de Eugene sobre os habitantes da aldeia decorre de seu dinheiro e não de
uma verdadeira liderança.
Diferentemente dos rituais, cuja ordenação é mantida pelo pai, os momentos
compartilhados com mama representam vínculos de afetuosidade:

Todo domingo antes do almoço, enquanto dizia a Sisi para colocar um


pouco mais de azeite de dendê na sopa ou um pouco menos de curry no
arroz de coco, e enquanto Papa tirava sua sesta, Mama trançava meu
cabelo. Ela se sentava numa poltrona perto da porta da cozinha e eu me
sentava no chão com a cabeça entre suas coxas. Embora a cozinha fosse
arejada, com as janelas sempre abertas, mesmo assim meu cabelo
absorvia os cheiros da comida. Depois, quando eu trazia a ponta da trança
ao nariz, sentia o cheiro de sopa de egusi, de utazi ou de curry (ADICHIE,
2010, p. 40).

Nesse trecho, Kambili e Mama compartilham o momento de trançar os


cabelos, que acontece sempre no mesmo dia, antes da refeição. Esse rito integrador
é desenvolvido sem a presença paterna, e o modo como é narrado demonstra o
quanto Kambili gosta dele.

35
Abba é uma cidade na área do governo local de Nwangele, no estado de Imo, que se localiza no
sudoeste da Nigéria.
87

Em contraposição à maneira como os rituais familiares acontecem na casa de


Eugene, são expostos os da casa de Tia Ifeoma, os quais, inicialmente, chocam
Kambili:

Olhei para o arroz jollof, as bananas fritas e a meia coxa de galinha que
estavam no meu prato e tentei me concentrar, tentei engolir a comida. Os
pratos também não combinavam. Chima e Obiora comiam em pratos de
plástico, enquanto o resto de nós comia em pratos simples de vidro, sem
flores delicadas ou linhas prateadas. Risadas flutuavam acima da minha
cabeça. Palavras jorravam da boca de todos, muitas vezes sem procurar
nem receber nenhuma resposta. Lá em casa, só falávamos quando
tínhamos algo importante a dizer, sobretudo quando estávamos sentados à
mesa. Mas meus primos pareciam simplesmente falar, falar, falar (ADICHIE,
2010, p. 130).

Na passagem acima, a protagonista está presente no ritual da família de tia


Ifeoma sem participar efetivamente dele. Acostumada a não falar, ela observa como
todos reagem em um momento, em que, apesar da pouca comida e da simplicidade
dos objetos, as pessoas ao redor da mesa estão realmente em comunhão. Há, pois,
uma celebração da diversidade, da liberdade e da família.
Os ritos próprios da religiosidade também são diferentes no lar de Ifeoma36:

Quando terminamos, rezamos a oração da manhã na sala, uma série de


rezas curtas pontuadas por canções. Tia Ifeoma rezou pela universidade,
pelos professores e administradores e, por fim, pediu que encontrássemos a
paz e o riso naquele dia. Quando estávamos fazendo o sinal da cruz, ergui
o rosto para ver a expressão de Jaja, para ver se ele também estava
perplexo em saber que tia Ifeoma e sua família pediam pelo riso em suas
orações (ADICHIE, 2010, p. 137).

O fragmento mostra a fé sendo experenciada mais naturalmente, conciliando


a religião cristã, representada pelo sinal da cruz, com canções, que, apesar de não
estar expresso, eram entoadas em igbo. A suplica pelo riso, uma influência direta da
tradição espiritualista professada pelo avô, Papa-Nnukwu é contraposta à
severidade de Eugene.
No entanto, a liberdade na forma de viver da família Ifeoma não significa uma
ausência de compromisso e responsabilidades:

O riso sempre ressoava pela casa de tia Ifeoma e, não importava de que
cômodo vinha, se espalhava por todos os outros. As discussões nasciam
rapidamente e rapidamente também morriam. As orações da manhã e da
noite eram sempre pontuadas por canções animadas em igbo que em geral

36
A religiosidade foi explorada na seção anterior, porém é citada aqui como uma forma de ilustrar o
modo como esse rito integrar a família da personagem Ifeoma.
88

exigiam que batêssemos palmas para marcar o ritmo. Havia pouca carne
nas refeições, o pedaço de cada pessoa tinha a largura de dois dedos e o
comprimento de meio dedo. O apartamento estava sempre brilhando -
Amaka esfregava o chão com uma escova, Obiora varria, Chima afofava as
almofadas das cadeiras. Cada um tinha sua vez de lavar a louça, incluindo
eu e Jaja. Depois que lavei os pratos sujos de garri, Amaka pegou-os da
bandeja onde eu os pusera para secar e os colocou de molho na água
(ADICHIE, 2010, p. 151).

No trecho, é mostrado que todos os membros da família, inclusive Jaja e


Kambili, têm um papel importante a exercer para a manutenção daquele ambiente
de muita conversa, risadas e poucas discussões. Diferentemente da casa de
Eugene, os irmãos são acolhidos e valorizados como sujeitos fundamentais no lar de
Ifeoma. Além disso, outra oposição presente na passagem faz referência à escassez
de alimentos na casa da tia, o que não é um empecilho para a preservação da
harmonia familiar.
Os ritos, que por vezes se ligam às expressões religiosas, evidenciam a
maneira como as coisas são conduzidas na casa de papa e de Ifeoma: no ambiente
chefiado por Eugene, os rituais instituem uma ordem que oprime àqueles que nele
vivem, ou seja, não são integradores. Além disso, a abundância de alimentos e de
luxo não traz conforto a Kambili, a Jaja e a Beatrice, porém enfatiza o poder do
chefe da família. Em contrapartida, os rituais, que são genuinamente integradores,
instituídos na casa da tia propiciam um universo livre, ideal para as relações
emancipadoras.
Transposto para o contexto cultural, Hibisco roxo apresenta uma sociedade
na qual a integração é muito valorizada, seja ela entre a comunidade ou entre a
família. O rito que integra a comunidade, como o realizado em época natalina,
evidencia a importância de cuidar daqueles que fazem parte da aldeia, que, no caso
da narrativa, fica em Abba. Para tanto, o membro mais rico e poderoso ganha o
título de “omelora”, cujo significado é claro: “aquele que faz pela comunidade”.
Portanto, há a responsabilidade de alimentar e de abrir as portas da própria casa às
pessoas que lhe conferiram tal distinção.
Assim como é necessário cuidar das pessoas que fazem parte da sociedade,
é preciso cuidar do núcleo familiar. Há, na narrativa, uma oposição clara de
costumes: entre os do colonizador britânico e os da etnia igbo. Por meio da leitura
de Hibisco roxo, é possível concluir que os moldes ingleses resultam em um
cerceamento da liberdade dos costumes, como se a família estabelecida nessa
89

configuração não se encaixasse na sociedade nigeriana, pois, para mantê-la,


acontece uma espécie de isolamento e um severo controle. Já ao apresentar uma
família em que a tradição igbo não é negada, o texto mostra uma valorização do
cuidado para com aqueles que a compõem, os quais, se necessário, se sacrificam
pela manutenção do bem-estar dos familiares. Portanto, a narrativa evidencia
diferenças na concepção das famílias e como esse núcleo social privado demonstra
uma maior intensidade na relação entre seus membros quando se trata de uma
família nigeriana.
Além disso, os ritos integradores acontecem na hora das refeições. Adichie
tem o especial cuidado de apresentar as comidas típicas nigerianas, como uma
forma de ampliar e modificar a visão que as pessoas têm deste país e,
especialmente, do continente africano. A representação da organização da família e
de seus ritos integradores enriquece o conhecimento que os leitores têm sobre a
cultura de África, o que contribui para a valorização de seus aspectos humanos e
para a eliminação de estereótipos que há sobre o continente.
Por meio da literatura dessa autora, é possível conhecer os sabores que
compõem a mesa da Nigéria: entre os pratos típicos, há muita mistura, como o arroz
jollof, uma receita que reúne arroz, vegetais, muita pimenta e às vezes carne; há
também o fufu, que é uma massa espessa, que, no Brasil, é feita à base de aipim. A
culinária nigeriana também é composta por muitos caldos, como a sopa de eguzi,
que é rica em proteínas, e a sopa de utazi, que é feita uma erva. Todos esses pratos
são citados na narrativa.

5.3.3 Língua

A última categoria, cuja importância é visível no que se refere à oposição


entre culturas, é a língua. A partir da linguagem, são depreendidos crenças e
concepções de mundo, principalmente de Eugene, o que possibilita a compreensão
dos valores, auxiliando a entender como se instala a opressão que perpassa a
narrativa.
Papa valoriza àqueles que se esforçam para se expressar em inglês:

Quando chegávamos a Abba todo Natal, Papa passava na casa do Vovô na


nossa ikwu nne, ou casa de solteira de nossa mãe, antes mesmo de irmos à
90

nossa propriedade. Vovô tinha a pele muito clara, era quase albino, e diziam
que esse fora um dos motivos pelos quais os missionários haviam gostado
dele. Insistia em falar inglês, sempre, com um forte sotaque igbo. Sabia
latim também, citando muitas vezes os artigos do Concilio Vaticano I, e
passava a maior parte do tempo em St. Paul's, onde havia sido o primeiro
catequista. Insistira para que o chamássemos de Vovô em vez de Papa-
Nnukwu ou Nna-Ochie. Papa ainda falava muito dele, os olhos cheios de
orgulho, como se Vovô fosse seu pai. Ele abriu os olhos antes da maioria do
nosso povo, dizia Papa; foi um dos poucos que acolheram os missionários
(ADICHIE, 2010, p. 75).

O sogro era querido por Eugene, pois, assim como ele, aderira à cultura
religiosa dos missionários ingleses, e é pela língua que se manifesta mais
precisamente essa aderência aos hábitos estrangeiros. Em contrapartida, com o avô
paterno, com quem Kambili convive restritamente, a linguagem se torna uma
espécie de empecilho: “O lábio inferior dele tremeu, assim como sua voz, e às vezes
eu levava um ou dois segundos para compreender o que ele dizia, pois seu dialeto
era muito antigo; suas palavras não tinham as inflexões anglicizadas das nossas”
(ADICHIE, 2010, p. 72). A forma de falar desse é, pois, uma barreira para o diálogo
e para a manutenção da relação, visto que é reflexo da negação de costumes tão
caros a papa.
Para Eugene, a língua inglesa também se liga mais diretamente ao divino:

Papa queria que o padre Benedict ouvisse nossa confissão. Não nos
confessamos em Abba porque Papa não gostava de se confessar em igbo
e, além disso, Papa dissera que o padre de Abba não era suficientemente
espiritual. Esse era o problema com nosso povo, explicara Papa: nossas
prioridades estavam erradas; nos importávamos demais com igrejas
enormes e estátuas imponentes. Um homem branco jamais faria isso
(ADICHIE, 2010, p. 114).

Na passagem, Kambili fala sobre a preferência do pai, que não aprova a


língua igbo em missas e não abre exceções nem para uma confissão em Abba. Para
ele, um padre nigeriano não é suficientemente espiritual nem tão refinado quanto ele
acredita ser o correto. Portanto, a partir do julgamento de Eugene, constata-se que
ele considera religiosos europeus superiores, a quem os costumes se ligam à cor da
pele. Neste outro trecho, a forma de pensar de papa é ressaltada:

Quando contei isso a Jaja, ele deu de ombros e disse que Papa devia estar
falando em línguas, embora nós dois soubéssemos que Papa não gostava
que as pessoas falassem em línguas, porque era isso que os pastores
falsos das igrejas-cogumelo pentecostais faziam (ADICHIE, 2010, 220).
91

Entretanto, há momentos em que papa se expressa em igbo, como no


fragmento: “- Vamos ver, ngwanu - disse Papa, falando igbo pela primeira vez e
franzindo rapidamente o cenho, de forma que suas sobrancelhas quase se uniram”
(ADICHIE, 2010, p. 107). O uso da língua por ele considerada inapropriada, liga-se,
pois, ao fato de que, no fragmento, Eugene está sendo contrariado pela irmã, que
insiste que os sobrinhos devem passar um tempo das férias na casa dela, em
Nsukka, o que ele não vê com bons olhos.
Logo, nos momentos de contrariedade e de raiva, em que o pai perde o
controle, ele fala em igbo:

Amaka me sacudiu, embora seus movimentos já houvessem me acordado.


Eu estava oscilando na fronteira entre o sono e a vigília, imaginando Papa
aparecendo para vir nos buscar, imaginando a fúria em seus olhos
avermelhados, a enxurrada de palavras em igbo vindas de sua boca
(ADICHIE, 2010, p. 193).

A língua, que é a última categoria cultural aqui analisada, é problematizada


em torno da personagem Eugene, cuja formação religiosa nega tudo que é
tradicional, inclusive a forma de falar, para aderir a cultura advinda dos religiosos
britânicos. Entretanto, a língua inglesa, ao forçar uma pureza na linguagem, se
apresenta como algo que não é natural para ele, pois nas passagens em que perde
o controle sobre si, ele se expressa em igbo.
Essa categoria, mais uma vez, reafirma o caráter plural da sociedade
nigeriana, constituída culturalmente a partir do encontro de identidades, o que
interfere diretamente no modo de falar, visto que a forma como a língua é expressa
é reflexo da miscigenação cultural de uma nação que, atualmente, é constituída por
influências dos britânicos, das tradições igbos, iorubá, hauçá e outros grupos étnicos
menores.
A análise das categorias culturais permite compreender valores, costumes e
hábitos que, delineados em Hibisco roxo, são representativos da sociedade
nigeriana, comprovando que a literatura não se encerra em si mesma. Por fim, o
texto literário ilumina a realidade, que, cotidianamente, não se apresenta de forma
organizada, ajudando a compreendê-la. Como afirma Chimamanda, somente a
instauração de histórias múltiplas pode romper com os estereótipos, que, sendo
limitadores, impedem as pessoas de enxergar e de entender o outro e sua cultura.
92

6. CONSIDERAÇÕES FINAIS

Como uma manifestação cultural, a literatura expõe conflitos humanos, que,


por meio dela, podem ser compreendidos, pois a obra literária presentifica
organizadamente fatos que, na vida, se expõem de modo confuso ou passam
despercebidos. A revelação ocorre porque os acontecimentos são expostos por
meio de um contingente passível de estudo e de observação, cuja matéria-prima é a
linguagem.
A análise de processos composicionais de Hibisco roxo permite elucidar a
capacidade da literatura de iluminar dramas humanos. Ela presentifica a denúncia
da violência, exercida pela figura paterna, por meio da subjetividade narradora.
Devido à educação opressora, a protagonista Kambili é tímida e sufocada pelo
sentimento de incapacidade. No entanto, ao estabelecer relações com a família da
tia e ao perceber a transformação de Jaja, seu irmão, ela vivencia um conflito de
identidade, pois se vê diante da oposição entre a configuração de sua família e a de
Ifeoma, sua tia. O contraste entre famílias ocorre, porque Eugene, pai de Kambili,
adere à cultura do colonizador britânico, enquanto a tia traz para sua família uma
forma de viver que conjuga as influências britânicas com a tradição igbo.
Nesse contexto, a personagem toma consciência de si ao perceber-se
enquanto sujeito autônomo, e essa transformação resulta na e da narração, em que
ela expõe toda a violência que vivenciara e o que acontecera para que ela, o irmão e
a mãe se libertassem da crueldade de Eugene.
Ao relacionar a problemática da identidade com um contexto mais amplo, por
meio de Hall (2001), que afirma que a identidade é um processo discursivo que se
dá mediante a narrativização do eu, é possível evidenciar que Hibisco roxo narra a
identidade nigeriana, a qual é estabelecida por meio da diversidade cultural, fruto de
processos que configuraram essa sociedade, marcada pela multiplicidade étnica,
religiosa e pela colonização britânica e a posterior descolonização, em que,
93

entretanto, permanece um clima de tensão insolúvel, porque as diferenças instalam


um embate constante.
Além dos aspectos identitários, a narrativa promove a compreensão e a
valorização da cultura nigeriana ao mostrar como essa sociedade estabelece e
vivencia a religiosidade, os ritos que integram a família e a comunidade e a língua.
Portanto, o leitor é guiado, por meio das malhas da ficção, a conhecer a Nigéria,
visto que Hibisco roxo propicia o entendimento de aspectos históricos e sociais da
sociedade representada na narrativa.
Ao atentar para a primeira categoria cultural destacada, a religiosidade, é
possível perceber que ela tem uma importância fundamental, pois dá significação à
existência. Além disso, nota-se a presença do hibridismo de religiões, visto que a
sociedade nigeriana é diversa. A representação dos ritos familiares e comunitários
denota uma cultura em que é necessário cuidar do outro, seja ele da família ou
pertencente à mesma comunidade. Ao analisar a segunda categoria cultural,
também fica evidente uma oposição entre a configuração familiar nigeriana e aquela
que adere à cultura do colonizador: na primeira as relações acontecem naturalmente
e com afetuosidade e, na segunda, há um forte controle e um cerceamento da
liberdade. A última categoria, a língua, ratifica o caráter plural da Nigéria, visto que a
forma de expressão conjuga o inglês às influências tradicionais.
Diante desse panorama, observa-se que a obra age sobre os leitores,
modificando sua compreensão de mundo, pois a narrativa auxilia na instituição de
novas histórias possíveis sobre a Nigéria, ou seja, contribui para romper com
estereótipos que existem sobre esse país e o continente Africano.
Hibisco roxo, exercendo seu poder de denúncia, transforma-se em um apelo à
aceitação da diversidade de culturas e, no âmbito dessas, da valorização de
diferentes identidades, sejam elas distintas pelo gênero, pela condição social ou pela
etnia. Portanto, aqueles que leem a obra de Adichie aprendem acerca dos aspectos
culturais da sociedade nigeriana, os quais resultam de um processo que pode ser
transposto para um contexto mais amplo, visto que diversas sociedades são fruto de
colonização, similar a que a Nigéria passou.
A narrativa de Adiche, ambientada na Nigéria, é representada
detalhadamente e presentifica, ao leitor, o clima, cheiros e a natureza exuberante do
país. A história se passa em meio a cajueiros, plumérias, lírios africanos, buganvílias
94

e o exótico hibisco roxo, que é uma flor geneticamente modificada por uma amiga
bióloga de Ifeoma. A planta, que dá nome ao livro, cresce exuberantemente no
jardim da tia, em Nsukka, e encanta Jaja, que ganha uma muda para plantar em
Enegu.
O hibisco roxo, delicado e singular, floresce ao ser cultivado, também, no
jardim da casa de Kambili. Simbolicamente, a planta dá indícios da transformação
que a protagonista narra: a coloração roxa indica a morte da opressão. É em meio à
estonteante diversidade natural, que o enredo trágico e cruel de Adichie é instituído.
A flor metaforiza a situação apresentada: para viver no contexto nigeriano é preciso
aceitar a mudança e a transformação, visto que a negação da diversidade cultural
gera a opressão e conflitos identitários. É isto que se desejou mostrar com Em meio
às flores: a denúncia da palavra inscrita em Hibisco roxo.
95

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