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PROGRAMA DE PÓS-GRADUAÇÃO
MESTRADO ACADÊMICO EM PROCESSOS E MANIFESTAÇÕES CULTURAIS
Novo Hamburgo
2018
CAMILA MARIANA SCHUCH
Novo Hamburgo
2018
CAMILA MARIANA SCHUCH
BANCA EXAMINADORA
____________________________________________________
Orientadora: Profª. Drª. Juracy I. Assmann Saraiva – Universidade Feevale
____________________________________________________
Co-orientador: Prof. Dr. Daniel Conte – Universidade Feevale
____________________________________________________
Prof. Dr. Carlos Bach – Secretaria de Educação de Novo Hamburgo
____________________________________________________
Prof. Dr. Ernani Mügge – Universidade Feevale
Dedico este trabalho aos meus pais.
AGRADECIMENTOS
Agradeço aos meus pais, Rose e Luis, pelo amor, pela paciência, pelo apoio e
por nunca medirem esforços para ajudar na realização dos meus sonhos.
Agradeço ao meu amor, Jaison, que entrou na minha vida no início dessa
etapa, me apoiou ao longo desses dois anos e nunca deixou de acreditar em mim.
Agradeço aos meus amigos, Ju, Bel e Gil, ao lado dos quais iniciei a vida de
estudante e de bolsista e que me mostraram que o estudo proporciona amizades
verdadeiras e nos torna mais empáticos.
Agradeço aos meus alunos, do Colégio Estadual 8 de Setembro, com os
quais aprendo diariamente e que proporcionam alegrias e sorrisos às minhas
manhãs.
Agradeço à Equipe Diretiva do Colégio Estadual 8 de Setembro pelo apoio e
pela compreensão.
Agradeço aos meus professores, especialmente à minha orientadora,
professora Juracy, que é um exemplo inspirador de amor à leitura e à educação, no
qual me espelho.
Agradeço à Universidade Feevale, espaço que foi uma segunda casa durante
oito anos de minha vida e onde cresci como profissional e, especialmente, como ser
humano.
Agradeço à CAPES, pelo auxílio que oportunizou a realização do mestrado.
“[...] você sabe por que livros como este são tão
importantes? Porque têm qualidade. E o que significa
a palavra qualidade? Para mim significa textura. Este
livro tem poros. Tem feições. Este livro poderia
passar pelo microscópio. Você encontraria vida sob a
lâmina, emanando em profusão infinita”
(Fahrenheit 451 – Ray Bradbury).
RESUMO
This paper analyzes Purple Hibiscus, by Chimamanda Ngozi Adichie, to verify how
the narrator's strategies of composition, developed in the novel, represent a process
of family oppression, transforming the narrative into denunciation and problematizing
identity conflicts, which envelop the social context. The relevance of the theme is
justified, since literature allows the reader to experience other realities, identify with
characters and understand human conflicts. It’s a research of bibliographic nature,
encompassing the analysis of compositional aspects to understand the constitution of
narrative subjectivity. From this understanding, cultural categories are listed, and
their analysis is performed, establishing the dialogue between the text and the socio-
historical context. We conclude that literature, as a cultural manifestation, contributes
to the reader's understanding of everyday reality.
1 INTRODUÇÃO
Histórias têm sido usadas para expropriar e tornar maligno. Mas histórias
podem também ser usadas para capacitar e humanizar. Histórias podem
destruir a dignidade de um povo, mas histórias também podem reparar essa
1
dignidade perdida .
1
A palestra completa “Perigo de uma história única” pode ser assistida no link
https://www.youtube.com/watch?v=D9Ihs241zeg
15
2
A República de Biafra foi um estado secessionista no sudeste da Nigéria. O movimento separatista
foi liderado pelo povo igbo devido às tensões estabelecidas entre os diferentes povos da região. O
conflito iniciou em 1967 e perdurou por três anos.
3
O Prêmio da Paz do Comércio de Livros Alemão é um prêmio internacional de paz concedido
anualmente na Feira do Livro de Frankfurt, na Alemanha.
16
4
O questionamento dessa transferência de crenças e do desprezo aos ritos locais será visualizada na
análise de Hibisco roxo no quinto capítulo
17
comércio nas bacias do Níger e do Congo” (HERNANDEZ, 2008, p. 61) foi o último
motivo. Além disso, os ingleses também desejavam exercer seu domínio do Cabo
ao Cairo, porém encontravam empecilhos para isso, pois também outros países
europeus estavam interessados na exploração dessa região.
Os motivos descritos acima apontam para interesses econômicos
semelhantes na África, que incluíram “o estabelecimento de pontos de ocupação
com a assinatura de inúmeros tratados com os potentados africanos, tornando-os
presas fáceis para os colonialismos europeus dos finais do século XIX”
(HERNANDEZ, 2008, p. 61). Havia tratados que envolviam o tráfico de escravos e
o comércio para justificar o envolvimento europeu em questões africanas. Além
disso, havia aqueles que estabeleciam a renúncia de autoridades locais africanas
em troca de proteção. Nesses casos, os colonizados se comprometiam a não
assinar outros tratados com nações.
Entretanto, esse estabelecimento efetivo dos colonizadores não se deu
rapidamente, pois, somente depois da partilha do continente, os europeus tomaram
consciência da vastidão do território africano. Portanto, as políticas coloniais
demoraram de 10 a 20 para serem instituídas (FAGE, 2010, p. 404).
Como exposto anteriormente, na África sob colonização inglesa, os britânicos
estabeleceram uma administração indireta, que “consistia em respeitar as estruturas
tradicionais de poder, transformava os antigos chefes em colaboradores dos
administradores coloniais” (SERRANO, 1995, p. 53). Portanto, os britânicos:
5 Todas citações retiradas da obra The work of representation, de Stuart Hall, são traduções livres da
autora.
6
Representation is the production of the meaning of the concepts in our minds through language. It is
the link between concepts and language which enables us to refer to either the ‘real’ world of objects,
people or events, or indeed to imaginary worlds of fictional objects, people and events (HALL, 1997,
p.7).
7
“In the first place, then, meaning depends on the system of concepts and images formed in our
thoughts which can stand for or ‘represent’ the world, enabling us to refer to things both inside and
7
outside our heads” (HALL, 1997, p. 3).
22
8
That is because it consists not of individual concepts, but of different ways of organizing, clustering,
arranging and classifying concepts, and of establishing complex relations between them. For example,
we use the principles of similarity and difference to establish relationships between concepts or to
distinguish them from one another (HALL, 1997, p. 3).
9
We must also be able to represent or exchange meanings and concepts, and we can only do that
when we also have access to a shared language. Language is therefore the second system of
representation involved in the overall process of constructing meaning (HALL, 1997, p. 4).
10
The meaning is constructed by the system of representation. It is constructed and fixed by the code,
which sets up the correlation between our conceptual system and our language system in such a way
23
[...] os signos visuais têm alguma relação com a forma e a textura dos
objetos que eles representam. Mas, como também foi apontado
anteriormente, uma imagem visual bidimensional de uma rosa é um sinal -
não deve ser confundida com a planta real com espinhos e flores crescendo
12
no jardim .
Além da representação de uma rosa não ser a planta, como exemplificou Hall
(1997), também é possível representar conceitos fictícios, que existem somente no
imaginário. Logo, esta abordagem, como exposta, é limitada.
A segunda abordagem, a intencional, é oposta à anterior. Conforme essa
teoria, é o falante da língua que determina o significado, ou seja, ele estabelece o
that, every time we think of a tree, the code tells us to use the English word TREE, or the French word
ARBRE (HALL, 1997, p. 7).
11
To belong to a culture is to belong to roughly the same conceptual and linguistic universe, to know
how concepts and ideas translate into different languages, and how language can be interpreted to
refer to or reference the world (HALL, 1997, p. 8).
12
[...] visual signs do bear some relationship to the shape and texture of the objects which they
represent. But, as was also pointed out earlier, a two dimensional visual image of a rose is a sign – it
should not be confused with the real plant with thorns and blooms growing in the Garden (HALL, 1997,
p. 10).
24
significado único por meio da linguagem. Neste caso, as palavras significam o que o
produtor delas quer que elas signifiquem. Hall (1997) afirma que essa teoria está de
acordo com o fato de que todos os usuários da linguagem se valem dela para
expressar sentimentos particulares. Entretanto, em uma teoria ampla de
representação, essa abordagem não dá conta de explicar o processo:
Essa teoria aponta para o fato de que não são as palavras escritas, sons e
imagens visuais que estabelecem o significado nem os usuários do código de modo
individual. Coletivamente, significado e significante estabelecem o signo a partir de
sistemas representacionais.
Na teoria construcionista ou construtivista do significado da linguagem não se
rejeita a existência do mundo material, porém os construcionistas afirmam que não
se pode misturar o mundo material, local onde as coisas existem de fato, com os
processos simbólicos, em que a representação se concretiza. O significado não é
propagado pelo mundo material, mas, sim, pelo sistema de linguagem. Os
integrantes de uma determinada cultura que, ao utilizarem seus sistemas conceituais
e linguísticos, dão significado ao mundo:
13
We cannot be the sole or unique source of meanings in language, since that would mean that we
could express ourselves in entirely private languages. But the essence of language is communication
and that, in turn, depends on shared linguistic conventions and shared codes. Language can never be
wholly a private game (HALL, 1997, p. 11).
14
The third approach recognizes this public, social character of language. It acknowledges that neither
things in themselves nor the individual users of language can fix meaning in language. Things don’t
mean: we construct meaning, using representational systems – concepts and signs (HALL, 1997, p.
11).
25
15
It is social actors who use the conceptual systems of their culture and the linguistic and other
representational systems to construct meaning, to make the world meaningful and to communicate
about that world meaningfully to others (HALL, 1997, p. 11).
16
It is because a particular sound or word stands for, symbolizes or represents a concept that it can
function, in language, as a sign and convey meaning – or, as the constructionists say, signify (HALL,
1997, p. 11).
17
In representation, constructionists argue, we use signs, organized into languages of different kinds,
to communicate meaningfully with others. Languages can use signs to symbolize, stand for or
reference objects, people and events in the so-called ‘real’ world. But they can also reference
imaginary things and fantasy worlds or abstract ideas which are not in any obvious sense part of our
material world (HALL, 1997, p. 14).
26
Essa dispersão das pessoas ao redor do globo produz identidades que são
moldadas e localizadas em diferentes lugares e por diferentes lugares.
Essas novas identidades podem ser desestabilizadas, mas também
desestabilizadoras (WOODWARD, 2001, p. 22).
18
First, the concepts which are formed in the mind function as a system of mental representation
which classifies and organizes the world into meaningful categories. If we have a concept for
something, we can say we know its ‘meaning’. But we cannot communicate this meaning without a
second system of representation, a language. Language consists of signs organized into various
relationships (HALL, 1997, p. 14).
27
Assim como Hall (2001), Woodward (2001) também fala sobre as identidades
que evocam um passado histórico. No entanto, enquanto que o primeiro destaca que
isso acontece na tentativa de compreensão, o segundo afirma que a recorrência à
história cria novas identidades:
Isso implica que é apenas por meio da relação com o Outro, da relação com
aquilo que é, com precisamente aquilo que falta, com aquilo que tem sido
chamado de seu exterior constitutivo, que o significado “positivo” de
qualquer termo – e, assim, sua “identidade” – pode ser construído (HALL,
2001, p. 110).
Nessa perspectiva, não são somente as diferenças entre grupos que devem
ser observadas, mas as diferenças em relação a um mesmo coletivo. Além disso,
uma visão não essencialista atenta para as mudanças de um entendimento de
identidade ao longo do tempo. Logo, as identidades somente são objeto de estudos
e de questionamentos por não serem essencialistas. Caso assim fossem, elas
30
e no qual vive periodicamente, já que divide sua vida entre a Nigéria e os Estados
Unidos.
Na literatura de Adichie, há ricos e pobres, que vivem nas cidades ou em
aldeias; há intelectuais, mas há também personagens pouco instruídas; há mulheres
submissas, empresárias, médicas, jornalistas e há, também, personagens que se
identificam completamente com a cultura europeia e que negam sua identidade igbo,
como é o caso de Eugene, de Hibisco roxo.
Ela mostra ao leitor uma Nigéria moderna, que mescla a influência inglesa e
as tradições nativas, um país que vivencia os reflexos de um longo período colonial
e que foi seguido de governos totalitários desde sua independência. Logo, em sua
obra, a identidade nigeriana é explorada, visto que, no panorama em que são
mostradas as questões que perpassam o país, são apresentadas aos leitores a
diversidade religiosa e a ligação com a cultura inglesa, que gera identidades.
No romance de estreia da autora, Hibisco Roxo, em 2003, Adichie apresenta
personagens cujos conflitos de identidade revelam as diferenças que constituem a
sociedade nigeriana. Nesse encontro, as relações mostram-se dilemáticas,
segregacionistas e, por vezes, apaziguadoras.
O segundo romance é intitulado Meio sol amarelo e foi lançado em 2006.
Conforme a autora, a primeira e a segunda obra cumpriram uma obrigação com seu
país e sua família:
Penso em Meio Sol Amarelo como a obra que eu tinha que escrever. Como
se a história me tivesse pedido. Sei que pode soar estranho, mas eu tinha
essa sensação, porque levava essa carga familiar e estava muito obcecada.
Queria homenagear meu avô e ver como [a Guerra Civil da Nigéria] dividiu
meus pais e teve impacto na minha própria vida. Era uma grande
responsabilidade. Foi um livro muito difícil, não apenas porque a guerra é
19
um tema difícil, mas também por ser muito pessoal .
19
Trecho da entrevista concedida ao jornal El país. A entrevista pode ser conferida no link
https://brasil.elpais.com/brasil/2017/10/01/cultura/1506882356_458023.html?%3Fid_externo_rsoc=FB
_BR_CM
20
Segundo a autora, em entrevista concedida ao Milênio, da Globo News, ela dedicou-se seis anos
na escrita desse romance. Entrevista completa no link http://g1.globo.com/globo-
news/milenio/videos/t/milenio/v/milenio-escritora-militante-feminista-tem-livro-lido-por-toda-
ny/6030588/
32
tão híbridos quanto a população de seu país. As personagens centrais são as irmãs
Olanna e Kainene e Odenigbo, que lutam pela independência de Biafra.
O terceiro romance é Americanah, que, conforme a autora, foi o que ela
realmente queria escrever. Depois da estabilidade adquirida com o lançamento de
Meio sol amarelo, a nigeriana elaborou uma narrativa mais simples, porém com
temas complexos como raça, racismo e gênero: “Queria quebrar certas convenções.
Eu me permiti questionar certas ideias sobre a literatura, sobre como escrever temas
21
sociais, como escrever sobre a raça nos Estados Unidos” .
Essa obra foi lançada em 2013, e o título faz alusão à forma como os
nigerianos chamam àqueles que saem da Nigéria para viver nos Estados Unidos e,
consequentemente, acabam modificados pelo país norte americano.
Em Americanah, Ifemelu é uma jovem nigeriana apaixonada por literatura e
por Obinze. Devido às greves dos professores universitários, que protestavam
contra o governo ditatorial, ela deixa a Nigéria para ir estudar nos Estados Unidos.
Quando chega à América do Norte, a personagem se dá conta de uma realidade
dura: as chances para alguém negro não são tantas e, pela primeira vez, ela
percebe a questão racial e a carga negativa presente no fato de ser negra.
Dribladas as dificuldades iniciais, ela decide criar um blog em que
problematiza a temática racial. A partir dele, ela obtém sucesso, porém não se sente
satisfeita. Depois de mais de dez anos nos Estados Unidos, Ifemelu resolve voltar
para seu país de origem para reencontrar-se consigo e com seu grande amor,
Obinze.
Nessa narrativa, Adichie reflete sobre experiências pessoais que vivenciou
quando chegou aos Estados Unidos, com dezenove anos, como quando sua colega
de quarto se surpreendeu com o fato de uma africana falar tão bem inglês 22,
mostrando desconhecer completamente aspectos como a colonização de países da
África, que, durante bastante tempo, ficaram sob o domínio da Inglaterra. Além
desse episódio, outro vivido pela autora, e retratado na ficção, ocorreu no Brasil. Ela
21
Trecho da entrevista concedida ao jornal El país (link citado anteriormente).
22
Esse episódio Adichie comenta na palestra O perigo de uma história única (link citado
anteriormente).
33
23
Esse episódio Adichie comenta em entrevista concedida ao Milênio, da Globo News (link citado
anteriormente).
24
A obra foi lançada somente em 2017 no Brasil.
25
Palestra completa disponível no link https://www.youtube.com/watch?v=hg3umXU_qWc
34
26
Peirce foi um estudioso americano de diversas áreas da ciência, tais como física, química,
psicologia etc. Dentre tantas contribuições, suas descobertas no campo da semiótica influenciam
estudos de pesquisadores, dos quais as pesquisas de Santaella são um exemplo.
35
Portanto, de acordo com a definição acima, Hibisco roxo é um signo, que tem
como objeto a opressão familiar, temática que perpassa toda a narrativa. A
compreensão dos motivos pelos quais a opressão é exercida é do âmbito do efeito
interpretante. Logo, o leitor dessa obra tem acesso “ao objeto do signo, àquilo que o
romance representa, pela mediação do signo” (SANTAELLA, 2004, p. 9), a qual é
realizada pela linguagem.
Segundo Santaella (2004), o signo é triádico, e a conceptualização peirceana
abrange três teorias, que são as seguintes: a significação, a objetivação e a
interpretação. A primeira consiste na “relação do signo consigo mesmo”
(SANTAELLA, 2004, p. 10) e está ligada à sua natureza. Essa parte abarca a
análise dos elementos que configuram o signo, ou seja, a análise de aspectos
estruturais quando se trata de uma narrativa literária. A segunda diz respeito à
relação do signo com o objeto: “com aquilo que determina o signo e que é, ao
mesmo tempo, aquilo que o signo representa e ao qual se aplica, e que pode ser
tomado em sentido genérico como o contexto do signo [...]” (SANTAELLA, 2004, p.
10). Portanto, é a objetivação que trata do tema representado. A última é a
interpretação, parte em que entra a relação do signo com o intérprete, pois consiste
na “relação do fundamento com o interpretante” (SANTAELLA, 2004, p. 10).
36
Diante da síntese acima, é válido ressaltar que este trabalho não almeja
realizar uma análise semiótica da narrativa literária, porém os apontamentos teóricos
de Santaella (2005) contribuem para a ampliação do conceito de signo, bem como
de texto.
Como Santaella (2005), Barthes (2004) também pensa a respeito do conceito
de texto e o amplia. Ele se vale da definição de texto de Julia Kristeva 27, para fins
epistemológicos:
27
Julia Kristeva é búlgura e é conhecida por ser uma estudiosa da linguagem com uma significativa
obra publicada. Seus estudos abrangem teoria da intertextualidade e da semiótica. É uma das
principais autoras estruturalistas.
37
[...] ela situa o sujeito (do escritor, do leitor) no texto, não como uma
projeção, ainda que fantasmática (não há “transporte” de um sujeito
constituído), mas como uma “perda” [...]; donde sua identificação com o
gozo; é pelo conceito de significância que o texto se torna erótico (para isso,
ele não precisa representar “cenas” eróticas (BARTHES, 2004, p. 274).
28
Do latim textus, de textum (tecido, entrelaçamento).
39
Deve-se admitir, pois, que a intencionalidade literária tem uma dupla face, é
o indício de uma dupla potencialidade: ela inclina a obra para sua
materialização. Mas, por outro lado, permite à linguagem desligada da sua
função prática virar-se para o mundo: ela é um apelo de sentido e de
presença (LEFEBVE, 1980, p. 50).
Por esta palavra entendo o fato de que o discurso tenta, numa certa
medida, encarnar na própria forma do significante os sentidos denotativos e
conotativos que dele se destacam; por outras palavras, instituir um
paralelismo entre as estruturas do significante e as significações; ou, ainda,
fazer do significante, por diversos artifícios, uma espécie de duplo do
significado, e como que sua imagem (LEFEBVE, 1980, p. 68).
Consoante Lefebve (1980), é por isso que encarnação (um ideal) é utilizada
junto à imitação (prática que intenciona um ideal). Portanto, a primeira é uma
29
Significante.
30
Significado.
43
uma ausência, pois não vem até nós senão uma imagem (LEFEBVE, 1980,
p. 82).
[...] o autor pode projectar sobre ele certas atitudes ideológicas, éticas,
culturais, etc., que perfilha, o que não que dizer que o faça de forma directa
50
31
Ao narrador autodiegético será dada uma atenção especial, pois é nesta categoria que a narradora
de Hibisco roxo se encaixa.
51
- Chinwe só quer que você fale com ela primeiro - sussurrou Ezinne. - Sabe,
ela começou a chamar você de riquinha metida porque você não fala com
ninguém. Ela disse que você não devia se achar tudo isso só porque seu
pai é dono de um jornal e de todas aquelas fábricas, pois o pai dela também
é rico.
- Eu não me acho tudo isso.
- Por exemplo, hoje, no pátio, ela disse que você estava se achando e que
foi por isso que não começou o juramento na primeira vez que Madre Lucy
chamou seu nome.
- Eu não escutei na primeira vez que Madre Lucy me chamou (ADICHIE,
2011, p. 57).
Kambili mente à colega para não contar a ela os verdadeiros motivos pelos
quais ficara em silêncio no momento em que deveria fazer o juramento. As colegas
consideram-na arrogante quando, na verdade, o comportamento da personagem é
52
resultado da violência imposta pela figura paterna, o que a leva a uma inibição
intransponível.
Entretanto, mesmo depois de saber o que as meninas da escola pensam
dela, Kambili não muda sua forma de agir no colégio, pois, apesar de saber que a
imagem que dela fazem é equivocada, o julgamento que importa é o do pai:
Continuei a ser considerada uma riquinha metida pela maioria das minhas
colegas de turma até o final do semestre. Mas não me preocupei muito com
isso, pois carregava nas costas um peso maior - a preocupação de ficar em
primeiro lugar. Era como tentar equilibrar um saco de cimento na cabeça
todos os dias, sem poder usar a mão para firmá-lo. Eu ainda via as letras
dos meus livros virando uma névoa vermelha, ainda via a alma do meu
irmão caçula entremeada de filetes de sangue (ADICHIE, 2011, p. 59).
Eu quis dizer que sentia muito, que não queria que ela não gostasse de nós
porque não víamos televisão. Quis lhe contar que, embora antenas
parabólicas imensas estivessem espetadas no alto da nossa casa de Enugu
e da nossa casa ali, não víamos tv. Papa não incluía um tempo (ADICHIE,
2011, p. 88).
Nesse trecho, ela silencia quanto ao fato de que não assiste televisão, forma
de lazer que era proibida pelo pai, o que reafirma sua incapacidade de falar e
também de expor a opressão exercida pela figura paterna. Se Kambili dissesse que
o pai estabelecia horários rigorosos, entre os quais o de assistir à televisão não
estava incluído, a prima tomaria conhecimento da violência que ela sofria. Além
disso, exporia o comportamento paradoxal de Eugene: ele ostenta, em sua casa,
aparelhos eletrônicos modernos, que remetem ao mundo exterior, porém é
retrógrado nos costumes.
Outro trecho que mostra a inabilidade da narradora de falar ocorre quando a
adolescente é incapaz de responder a questionamentos das amigas de Amaka, ao
perguntarem a ela sobre seu cabelo:
53
Queria dizer às meninas que meu cabelo era de verdade, que eu não usava
extensões, mas as palavras não saíam. Eu sabia que elas ainda estavam
conversando sobre cabelo, comentando como o meu era comprido e cheio.
Queria conversar com elas, rir com elas, rir tanto até começar a pular no
mesmo lugar como elas faziam, mas meus lábios insistiram em permanecer
fechados. Como eu não quis gaguejar, comecei a tossir e corri para o
banheiro (ADICHIE, 2011, p. 152).
Fiquei chateada por ela ter dito "seu pai" em vez de "tio Eugene". Ela nem
olhou para mim ao dizer isso. Olhei para ela e me senti como alguém vendo
preciosos grãos de areia dourada escapar pelos dedos sem poder fazer
nada (ADICHIE, 2011, p. 102).
estranho que nós duas tivéssemos a mesma idade, quinze anos. Ela parecia bem
mais velha, ou talvez fosse sua enorme semelhança com tia Ifeoma, ou o jeito como
me olhava direto nos olhos” (ADICHIE, 2011, p. 87). Enquanto Kambili é incapaz de
se dirigir a alguém por meio de uma conversa ou de um olhar, Amaka não tem medo
de dizer o que pensa, o que, segundo a narradora, faz a prima parecer mais velha,
mais madura. Em contrapartida, Kambili sente-se como uma criança, o que reforça a
ideia de seu isolamento e de sua incapacidade de relacionar-se com o entorno.
Além de perceber que há uma diferença na forma de agir de ambas, Kambili
também admira a prima, pois, diferentemente dela, Amaka é vaidosa: “Embora eu
tentasse me concentrar na missa, não conseguia parar de pensar no batom de
Amaka, me perguntando como seria espalhar cor nos meus lábios”. (ADICHIE, 2011,
p. 98). A vaidade é algo abominado pela protagonista devido à forma como a
religiosidade é experenciada em sua casa, e, nessa passagem, ela mostra a
oposição entre as jovens, pois, enquanto Kambili é uma adolescente que foi
ensinada a não chamar atenção sobre si, Amaka cuida da própria aparência e usa
maquiagem até mesmo para ir à missa.
Outra oposição que existe entre ambas as personagens diz respeito à sua
condição econômica: Kambili é rica e a ela nada falta; Amaka é alguém que lida
diariamente com a falta de suprimentos básicos, tais como o leite e a água. Em
contrapartida, Amaka é alguém que sabe enfrentar situações como a apresentada
no trecho: “Amaka pechinchou com a vendedora por algum tempo, depois sorriu e
apontou para as pirâmides que queria. Eu me perguntei como seria fazer aquilo”.
(ADICHIE, 2011, p. 144). O registro do discurso indireto traz a pergunta da
narradora, que expressa o desejo de ter autonomia, de saber se comunicar e de ter
poder de persuasão. Além disso, ao pechinchar por algo, Amaka se mostra como
alguém que ajuda a própria família, enquanto Kambili tem, incialmente, um papel
passivo em seu núcleo familiar.
A personalidade de Kambili também se expõe quando é comparada ao irmão,
Jaja. Antes da convivência com a família de tia Ifeoma, os irmãos eram muito
parecidos: silenciosos, submissos ao pai e não falavam sobre a opressão vivenciada
em casa:
Mesmo assim, Jaja sabia o que eu comia de almoço todos os dias. Havia
um menu colado na parede da cozinha, que Mama mudava duas vezes por
55
Quando o irmão fala abertamente sobre o castigo violento impingido pelo pai,
Kambili se dá conta de que a sensação que a domina e que a impede de falar não é
mais sentida pelo irmão. Neste momento, a atenção da narradora recai sobre o
físico de Jaja. Ela o apresenta como alguém que se transformou, alguém que sabe o
que está fazendo, que ocupa um espaço. Entretanto, a mudança de Jaja tem uma
razão de ser: Ifeoma, assim como cultiva flores que crescem em seu jardim, a tia
cultiva um terreno fértil para as relações libertadoras e transformadoras, que
modificam Jaja. Aos olhos de Kambili, ele desabrocha e se torna alguém diferente
dela.
Portanto, a narrativa, ao apresentar Amaka como alguém que se expressa
facilmente, olha a todos nos olhos e consegue o que quer, e Jaja como alguém que
fala sobre o que sente e sobre a realidade violenta que o cerca, além de se sentir à
vontade em meio às flores, delineia aspectos da subjetividade de Kambili. Dessa
forma, quanto à narradora, é ratificada a incapacidade do diálogo, a insegurança, e o
sentimento de inutilidade, uma vez que a jovem julga não ser importante para
aqueles com quem vive e para o contexto onde vive.
Ao expor a si mesma em oposição a Amaka e a Jaja, Kambili demonstra a
falta de consciência acerca das próprias potencialidades. Todavia, o fato de não
reconhecer em si mesma talentos e qualidades é um reflexo do ambiente opressor
56
instituído pelo pai, em que a adolescente, assim como o irmão, agem devido ao
medo de sofrer punições e não porque se sentem estimulados a crescer e a se
desenvolver:
Naquele instante, percebi que era isso que tia Ifeoma fazia com os meus
primos, obrigando-os a ir cada vez mais alto graças à forma como falava
com eles, graças ao que esperava deles. Ela fazia isso o tempo todo,
acreditando que eles iam conseguir saltar. E eles saltavam. Comigo e com
Jaja, era diferente. Nós não saltávamos por acreditarmos que podíamos;
saltávamos porque tínhamos pânico de não conseguir (ADICHIE, 2011, p.
238).
- Está vendo como sua prima fica nos olhando quietinha? - perguntou padre
Amadi, me indicando. - Ela não desperdiça energia com discussões
intermináveis. Mas sua mente está cheia de pensamentos, dá para perceber
(ADICHIE, 2011, p. 184).
Diante do elogio do religioso, a jovem, que não está acostumada a ter suas
características exaltadas, fica sem graça, como se aquele reconhecimento não fosse
apropriado, fosse quase indecente. Ao mesmo tempo, sorrir era tão incomum, que,
ao fazê-lo, ela não reconhece o som do próprio riso: “Eu ri. O som foi esquisito,
como se eu estivesse ouvindo a risada de um estranho numa gravação. Acho que
nunca tinha me ouvido rir antes”. (ADICHIE, 2011, p. 191).
Entretanto, em episódio anterior, a jovem, encorajada pela tia, respondeu a
Amaka:
57
Não precisa gritar, Amaka - disse eu finalmente. - Não sei preparar as folhas
de orah, mas você pode me mostrar como se faz.
Não sei de onde surgiram aquelas palavras tranquilas. Não quis olhar para
Amaka, não quis ver a expressão de desprezo em seu rosto, não quis incitá-
la a dizer outra coisa para mim, pois sabia que não ia conseguir retrucar.
Achei que estava imaginando coisas quando ouvi o som, mas então olhei
para Amaka - e ela estava mesmo rindo.
- Então você sabe falar alto, Kambili - disse ela (ADICHIE, 2011, p. 181).
Eu ri. Rir parecia muito fácil agora. Muitas coisas pareciam fáceis agora.
Jaja também estava rindo, assim como Amaka, e todos nós estávamos
sentados na grama, esperando Obiora chegar. Ele caminhava devagar,
segurando alguma coisa que depois eu vi ser um gafanhoto (ADICHIE,
2011, p. 299).
- Você vai beber leite fresco saído de uma garrafa. Não vai mais ter de
tomar leite em pó ralo nem leite de soja feito em casa - disse eu.
Amaka deu uma gargalhada que mostrou o buraco entre seus dois dentes
da frente.
- Você é engraçada - disse.
Ninguém jamais tinha me dito aquilo. Guardei o comentário para mais tarde,
para refletir várias vezes sobre o fato de eu ter feito Amaka rir, de que eu
possuía aquela habilidade (ADICHIE, 2011, p. 280).
58
Eu queria deixar Papa orgulhoso e tirar notas tão boas quanto as dele.
Precisava que ele tocasse minha nuca e afirmasse que eu estava
realizando o propósito de Deus. Precisava que ele me abraçasse com força
e dissesse que muito é esperado daqueles que muito recebem. Precisava
que ele sorrisse, daquele jeito que iluminava seu rosto e aquecia algo
dentro de mim. Mas eu ficara em segundo lugar. Estava maculada pelo
fracasso (ADICHIE, 2011, p. 45).
Por não ser bem-sucedida, segundo o ponto de vista do pai, que exige que
ela seja a primeira em tudo, Kambili sente-se culpada por decepcionar Eugene.
Assim, quase não acredita quando Jaja enfrenta o pai:
Em toda a minha vida aquilo jamais acontecera, nunca. Tive certeza de que
os muros da nossa casa iam desmoronar e esmagar as plumérias. O céu
desabaria. Os tapetes persas que se estendiam sobre o chão brilhante de
mármore iam encolher. Algo ia acontecer (ADICHIE, 2011, p. 21).
Quando o irmão pede para levantar antes de todos terem terminado de jantar,
a narradora percebe o rompimento da normalidade, como se a ordem familiar
estivesse, metaforicamente, desmoronando. Jaja, ao desafiar o chefe da família,
acaba com a ordem instituída e, por essa razão, Kambili é tomada pelo medo de um
possível castigo.
O medo, que Kambili sente pela figura paterna, é tão grande que a
acompanha mesmo quando está longe de Eugene:
Eu me perguntei se teria de confessar que tinha dormido no mesmo quarto
de um pagão. Fiz uma pausa no meio da minha reflexão para rezar, pedindo
que Papa jamais descobrisse que Papa-Nnukwu nos visitara e que eu
dormira no mesmo quarto que ele (ADICHIE, 2011, p. 161).
Nessa passagem, Kambili carrega consigo uma culpa dupla: ela tem medo do
pai e medo também de ter pecado, pois sua fé considera errado conviver com
alguém cujos preceitos religiosos não estejam de acordo com os dos cristãos.
Além disso, ela sabe que, se o pai descobrir que ela convivera com o avô,
será castigada violentamente. O medo é, pois, velho conhecido da narradora, e os
castigos estabelecidos pelo pai a surpreendem devido à dureza com que são
aplicados: “Eu já conhecia o medo, porém quando o sentia ele nunca era o mesmo
da outra vez, como se viesse em sabores e cores diferentes”. (ADICHIE, 2011, P.
209).
60
Portanto, Eugene é temido pela filha, sendo visto como um carrasco, de quem
é preciso proteger os mais fracos:
Os olhos de Jaja disseram que ele sabia que eu também queria ir. Não
consegui encontrar as palavras em nossa língua dos olhos para explicar
que sentia um nó na garganta só de pensar em ficar cinco dias sem ouvir a
voz de Papa ou seus passos na escada (ADICHIE, 2011, p. 118).
Na casa da tia, Kambili percebe a diferença entre os castigos que Ifeoma dava aos
filhos e os do pai:
Desviei o olhar. Amaka pegou minha mão. A mão dela estava quente, como
a de uma pessoa se recuperando de malária. Ela não disse nada, mas
imaginei que estávamos pensando a mesma coisa - em como era diferente
para mim e para Jaja (ADICHIE, 2011, p. 260).
Tirei minhas pantufas. O chão frio de mármore roubou o calor dos meus
pés. Quis dizer a Jaja que meus olhos estavam formigando com as lágrimas
62
que eu não havia chorado, que eu ainda queria e tentava escutar os passos
de Papa na escada. Que havia pedaços esparramados dentro de mim que
me machucavam e que eu jamais poderia colocá-los de volta no lugar, pois
todos aqueles lugares haviam desaparecido. Em vez disso, falei: - St. Agnes
vai estar lotada para a missa do funeral de Papa. Jaja não respondeu
(ADICHIE, 2011, p. 305).
Jaja pega a colher e volta a devorar o arroz. O silêncio paira sobre nós, mas
é um tipo diferente de silêncio, um que me permite respirar. Tenho
pesadelos sobre o outro tipo, aquele que existia na época em que Papa
estava vivo (ADICHIE, 2011, p. 319).
Eu quis dizer que sentia muito por Papa ter quebrado as estatuetas dela,
mas as palavras que saíram foram:
- Sinto muito que suas estatuetas tenham quebrado, Mama (ADICHIE,
2011, p. 17).
63
No fragmento acima, Kambili usa a voz passiva e, com isso, omite o nome
daquele que realizou a ação, ou seja, Papa. Logo, o que fica expresso, além da
pena, é que ambas não comentam sobre a violência que sofrem em casa.
Assim como a adolescente, Beatrice apresenta, inicialmente, uma certa
submissão ao marido, mas, ao longo de sua narração, a protagonista mostra a mãe
como alguém cujas atitudes são incompreensíveis:
Anos antes, quando eu ainda não entendia, eu me perguntava por que ela
limpava as estatuetas sempre depois de eu ouvir aquele som vindo do
quarto deles, um som que parecia ser de alguma coisa batendo na porta
pelo lado de dentro. [...] Eu descia e a via parada ao lado da estante de
vidro com um pano de prato encharcado de água e sabão. Ela dedicava
pelo menos quinze minutos a cada estatueta de bailarina. Nunca havia
lágrimas em seu rosto. Da última vez, há apenas duas semanas, quando
seu olho inchado ainda estava da cor preto-arroxeada de um abacate
maduro demais, Mama rearrumara as estatuetas depois de limpá-las
(ADICHIE, 2011, p. 17).
Mama tocou minha mão. O rosto dela estava inchado de tanto chorar e seus
lábios estavam ressecados, com pedaços de pele transparente saindo. Quis
poder me levantar e abraçá-la, mas também quis empurrá-la para longe,
com tanta força que sua cadeira cairia para trás (ADICHIE, 2011, p. 225).
Mama não parece se importar com sua aparência; nem mesmo parece se
dar conta dela. Está diferente desde que Jaja foi preso, desde que começou
a dizer às pessoas que foi ela quem matou Papa, que colocou veneno no
chá dele. Mama até escreveu cartas aos jornais. Mas ninguém acreditou
nela; ainda não acreditam. Pensam que a dor e a incapacidade de aceitar a
realidade – de que seu marido morreu e de que seu filho está na prisão – a
65
ela está reclusa reflete uma atenta observação daqueles que estão à sua volta: “Eu
não me perguntei, nem tentei me perguntar, o que Mama fizera para precisar ser
perdoada” (ADICHIE, 2011, p. 42). Nessa passagem, é constatado o silenciamento
da personagem, ou seja, a negação como uma forma de aceitação da própria vida.
Assim, fica evidente que Kambili sabe da violência que a mãe sofre, mas
desconhece a razão pela qual o pai agiu violentamente nem por que a mãe deve
receber perdão divino.
Contudo, a mudança é perceptível quando Kambili entra em contato com a
família de tia Ifeoma, pois passa a vivenciar e observar um modo diferente de levar a
vida, uma forma mais livre de viver. Sendo assim, é a partir do recurso de
focalização interna que se torna viável reconhecer essa mudança:
32
Esse trecho já foi utilizado no trabalho, porém é importante para elucidar o contínuo de informações.
72
Nesse trecho, Kambili fica ao lado de Jaja, indo junto com ele a Nsukka, na
casa da tia, para passar a Páscoa. No entanto, a atitude foi tomada pelo irmão, a
quem ela apenas segue. Portanto, embora exista uma oposição quanto à figura
paterna, Kambili comporta-se passivamente, sem oferecer resistência às normas
que a oprimem.
Outra personagem fundamental para a constituição identitária de Kambili é
Beatrice. Ao divergir de papa, a protagonista fica ao lado da mãe, pois, assim como
a adolescente, essa personagem também sofre com a violência advinda de Eugene.
No entanto, a narrativa diz que a jovem se opõe também à mama, pois,
diferentemente dessa, que se mantém reclusa no próprio silêncio, Kambili anseia por
uma nova vida, depois do desfecho que levou à morte do pai:
76
A voz metálica logo toma conta do carro. Eu me viro para ver se Mama se
incomoda, mas ela está olhando fixamente para o banco da frente; acho
que nem consegue ouvir nada. Na maioria das vezes, ela só responde
assentindo ou balançando a cabeça e eu me pergunto se escutou mesmo.
Eu costumava pedir que Sisi conversasse com Mama, porque ela ficava
horas sentada na sala de estar com Sisi. Mas Sisi contou que Mama não
respondia, que ela só olhava para o nada, em silêncio (ADICHIE, 2010, p.
311).
Será que Jaja tinha esquecido que nós não contávamos a ninguém, que
havia tanto que nunca contávamos a ninguém? Quando as pessoas
perguntavam, ele sempre dizia que seu dedo era assim por causa de "uma
coisa" que acontecera em nossa casa. Assim, ele não mentia, e as pessoas
imaginavam que tinha havido algum acidente, talvez com uma porta
pesada. Eu quis perguntar a Jaja por que ele tinha contado a verdade a tia
Ifeoma, mas sabia que não era preciso, sabia que ele próprio não tinha a
resposta para aquela pergunta (ADICHIE, 2010, p. 165).
33
Dos quais são exemplos, os conflitos religiosos entre cristãos e mulçumanos e os conflitos entre
pastores de ovelhas da tribo Fulani, predominantemente muçulmana, contra agricultores e
fazendeiros cristãos, que ocorreram em 2018.
79
5.3.1 Religiosidade
uma avaliação negativa da atitude do padre, a protagonista não canta, pois sofreria
castigos do pai.
A narrativa também mostra que a fé de Eugene é incompreensível a Kambili:
Mais tarde, no jantar, Papa nos mandou rezar dezesseis novenas. Pelo
perdão de Mama. E no domingo, que seria o primeiro domingo após o
Advento, ficamos na igreja depois da missa e começamos as novenas. O
padre Benedict respingou água benta em nós. Algumas gotas caíram em
meus lábios e senti seu gosto salgado e envelhecido enquanto rezávamos.
Se Papa achava que Jaja ou eu começávamos a sentir sono na décima
terceira recitação do Apelo a São Judas Tadeu, sugeria que voltássemos ao
início. Tínhamos de rezar bem certinho. Eu não me perguntei, nem tentei
me perguntar, o que Mama fizera para precisar ser perdoada (ADICHIE,
2011, p. 42).
Por professar uma fé que é representada pela figura paterna, cujas atitudes
Kambili não entende, é possível concluir que ela desconhece a crença que segue e
pratica. Além disso, a protagonista não entende as atitudes do pai em relação ao
avô, que sobrepõe crenças aos laços de afeto. O dogmatismo de Eugene é
demonstrado na passagem em que não permite a entrada do pai em sua residência,
pois considera o patriarca um pagão:
Entretanto, a divindade é vista, pela personagem, como algo com o qual ela
estabelece uma relação de intimidade. Para a menina, Deus é um outro, algo que é
sempre novo, que não se adapta e que não parece ter vínculos, assim como o padre
Benedict, que não possui vínculos estreitos com o local onde vive:
Eu jamais fora ver os mmuo, jamais ficara sentada num carro estacionado
ao lado de milhares de pessoas, todas ali para assistir à mesma coisa. Uma
vez Papa passara de carro conosco por Ezi Icheke, há alguns anos, e ele
murmurara alguma coisa sobre pessoas ignorantes vestindo máscaras e
participando de rituais pagãos. Disse que as histórias sobre os mmuo, de
que eles eram espíritos que haviam surgido de formigueiros, que podiam
fazer cadeiras saírem correndo e manter a água em cestas abertas, tudo
isso era folclore demoníaco. Folclore Demoníaco. Da maneira como Papa
falara, tinha parecido perigoso. (ADICHIE, 2010, p. 94).
No texto, Kambili vai ao festival na companhia do avô, da tia e dos primos. Lá,
embora lembre das palavras de Eugene, não encontra o perigo nem o demônio,
naquilo que o pai classifica como “folclore demoníaco”.
Por praticarem um catolicismo ortodoxo, Kambili e Jaja desconhecem o modo
como tradicionalmente as pessoas devem se portar em um mmuo34:
- Como eles fazem isso, PapaNnukwu? Como as pessoas entram nessa
fantasia? - perguntou Jaja.
- Psiu! Eles são mmuo, são espíritos! Você está falando como uma mulher! -
disse PapaNnukwu, irritado, voltando-se para lançar um olhar furioso a Jaja.
Tia Ifeoma riu e falou em inglês.
34
O mmuo é um espetáculo anual, que é encenado durante o período de seca na região em que se
localizada a cidade nigeriana de Awka, território tradicionalmente igbo.
82
- Jaja, é proibido dizer que tem gente lá dentro. Você não sabia?
- Não.
Ela observava Jaja com atenção.
- Você não fez a ima mmuo, fez? Obiora fez há dois anos, na cidade natal
do pai dele.
- Não, não fiz - murmurou Jaja.
Olhei para Jaja e me perguntei se a sombra em seus olhos era vergonha.
Subitamente eu quis, pelo seu bem, que houvesse feito a ima mmuo, a
iniciação ao mundo dos espíritos (ADICHIE, 2010, p. 96).
O pai tem o hábito de beber chá e o divide com os filhos, dando-lhes apenas
um gole. A bebida muito quente, que machuca a língua da protagonista, representa
85
O almoço foi fufu e sopa de onugbu. O fufu estava macio e fofo. Sisi sabia
fazê-lo muito bem; ela pilava energeticamente o inhame, acrescentando
gotas de água à tigela, suas bochechas se contraindo a cada tum-tum-tum
do pilão. A sopa estava grossa, com pedaços grandes de carne cozida e
peixe seco e com muitas folhas verde-escuras de onugbu. Comemos em
silêncio. Eu fazia bolinhas de fufu com os dedos, molhava-as na sopa,
sempre pegando pedaços de peixe, e as levava à boca. Eu tinha certeza de
que a sopa estava boa, mas não conseguia sentir seu gosto. Minha língua
parecia feita de papel (ADICHIE, 2010, p. 18).
Nós sempre nos preparávamos para alimentar a cidade toda no Natal, para
que nenhuma pessoa que aparecesse em nossa casa tivesse de ir embora
sem comer e beber até atingir o que Papa chamava de um nível razoável de
satisfação. Afinal, o título de Papa era omelora, Aquele Que Faz pela
86
O ritual expresso acima acontece todo o Natal, quando Eugene vai com
Beatrice, Jaja e Kambili à casa em Abba35. Devido ao título de benfeitor, ele tem a
obrigação de abrir a residência para as pessoas que vivem no lugarejo. Entretanto,
essa tradição não demonstra um convívio harmonioso com os integrantes da
localidade:
- Vão lá para cima se trocar - disse Mama, pondo uma das mãos em meu
ombro e a outra no de Jaja. - Sua tia e seus primos vão chegar daqui a
pouco.
No segundo andar, Sisi pusera oito lugares na mesa de jantar, com pratos
largos cor de caramelo e guardanapos combinando, passados a ferro até
formar perfeitos triângulos (ADICHIE, 2010, p. 101).
Esse trecho mostra que, apesar de as portas da casa estarem abertas, não
há um envolvimento com as pessoas que ali circulam, sublinhando-se, no ritual, que
o poder de Eugene sobre os habitantes da aldeia decorre de seu dinheiro e não de
uma verdadeira liderança.
Diferentemente dos rituais, cuja ordenação é mantida pelo pai, os momentos
compartilhados com mama representam vínculos de afetuosidade:
35
Abba é uma cidade na área do governo local de Nwangele, no estado de Imo, que se localiza no
sudoeste da Nigéria.
87
Olhei para o arroz jollof, as bananas fritas e a meia coxa de galinha que
estavam no meu prato e tentei me concentrar, tentei engolir a comida. Os
pratos também não combinavam. Chima e Obiora comiam em pratos de
plástico, enquanto o resto de nós comia em pratos simples de vidro, sem
flores delicadas ou linhas prateadas. Risadas flutuavam acima da minha
cabeça. Palavras jorravam da boca de todos, muitas vezes sem procurar
nem receber nenhuma resposta. Lá em casa, só falávamos quando
tínhamos algo importante a dizer, sobretudo quando estávamos sentados à
mesa. Mas meus primos pareciam simplesmente falar, falar, falar (ADICHIE,
2010, p. 130).
O riso sempre ressoava pela casa de tia Ifeoma e, não importava de que
cômodo vinha, se espalhava por todos os outros. As discussões nasciam
rapidamente e rapidamente também morriam. As orações da manhã e da
noite eram sempre pontuadas por canções animadas em igbo que em geral
36
A religiosidade foi explorada na seção anterior, porém é citada aqui como uma forma de ilustrar o
modo como esse rito integrar a família da personagem Ifeoma.
88
exigiam que batêssemos palmas para marcar o ritmo. Havia pouca carne
nas refeições, o pedaço de cada pessoa tinha a largura de dois dedos e o
comprimento de meio dedo. O apartamento estava sempre brilhando -
Amaka esfregava o chão com uma escova, Obiora varria, Chima afofava as
almofadas das cadeiras. Cada um tinha sua vez de lavar a louça, incluindo
eu e Jaja. Depois que lavei os pratos sujos de garri, Amaka pegou-os da
bandeja onde eu os pusera para secar e os colocou de molho na água
(ADICHIE, 2010, p. 151).
5.3.3 Língua
nossa propriedade. Vovô tinha a pele muito clara, era quase albino, e diziam
que esse fora um dos motivos pelos quais os missionários haviam gostado
dele. Insistia em falar inglês, sempre, com um forte sotaque igbo. Sabia
latim também, citando muitas vezes os artigos do Concilio Vaticano I, e
passava a maior parte do tempo em St. Paul's, onde havia sido o primeiro
catequista. Insistira para que o chamássemos de Vovô em vez de Papa-
Nnukwu ou Nna-Ochie. Papa ainda falava muito dele, os olhos cheios de
orgulho, como se Vovô fosse seu pai. Ele abriu os olhos antes da maioria do
nosso povo, dizia Papa; foi um dos poucos que acolheram os missionários
(ADICHIE, 2010, p. 75).
O sogro era querido por Eugene, pois, assim como ele, aderira à cultura
religiosa dos missionários ingleses, e é pela língua que se manifesta mais
precisamente essa aderência aos hábitos estrangeiros. Em contrapartida, com o avô
paterno, com quem Kambili convive restritamente, a linguagem se torna uma
espécie de empecilho: “O lábio inferior dele tremeu, assim como sua voz, e às vezes
eu levava um ou dois segundos para compreender o que ele dizia, pois seu dialeto
era muito antigo; suas palavras não tinham as inflexões anglicizadas das nossas”
(ADICHIE, 2010, p. 72). A forma de falar desse é, pois, uma barreira para o diálogo
e para a manutenção da relação, visto que é reflexo da negação de costumes tão
caros a papa.
Para Eugene, a língua inglesa também se liga mais diretamente ao divino:
Papa queria que o padre Benedict ouvisse nossa confissão. Não nos
confessamos em Abba porque Papa não gostava de se confessar em igbo
e, além disso, Papa dissera que o padre de Abba não era suficientemente
espiritual. Esse era o problema com nosso povo, explicara Papa: nossas
prioridades estavam erradas; nos importávamos demais com igrejas
enormes e estátuas imponentes. Um homem branco jamais faria isso
(ADICHIE, 2010, p. 114).
Quando contei isso a Jaja, ele deu de ombros e disse que Papa devia estar
falando em línguas, embora nós dois soubéssemos que Papa não gostava
que as pessoas falassem em línguas, porque era isso que os pastores
falsos das igrejas-cogumelo pentecostais faziam (ADICHIE, 2010, 220).
91
6. CONSIDERAÇÕES FINAIS
e o exótico hibisco roxo, que é uma flor geneticamente modificada por uma amiga
bióloga de Ifeoma. A planta, que dá nome ao livro, cresce exuberantemente no
jardim da tia, em Nsukka, e encanta Jaja, que ganha uma muda para plantar em
Enegu.
O hibisco roxo, delicado e singular, floresce ao ser cultivado, também, no
jardim da casa de Kambili. Simbolicamente, a planta dá indícios da transformação
que a protagonista narra: a coloração roxa indica a morte da opressão. É em meio à
estonteante diversidade natural, que o enredo trágico e cruel de Adichie é instituído.
A flor metaforiza a situação apresentada: para viver no contexto nigeriano é preciso
aceitar a mudança e a transformação, visto que a negação da diversidade cultural
gera a opressão e conflitos identitários. É isto que se desejou mostrar com Em meio
às flores: a denúncia da palavra inscrita em Hibisco roxo.
95
REFERÊNCIAS
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______. Para Educar Crianças Feministas. São Paulo: Companhia das Letras, 2017.
______. Sejamos Todos Feministas. São Paulo: Companhia das Letras, 2015.
______. Chimamanda Ngozi Adichie: “Nossa época obriga a tomar partido”. El País:
o jornal global, São Paulo, 11 out. 2017. Disponível em:
<https://brasil.elpais.com/brasil/2017/10/01/cultura/1506882356_458023.html?%3Fid
_externo_rsoc=FB_BR_CM> Acesso em 03 jun. 2018.
______. Escritora militante feminista tem livro lido por toda Nova York. Disponível
em: < https://globosatplay.globo.com/globonews/v/6030211> Acesso em: 03 jun.
2018.
BARTHES, Roland. Texto (teoria do). In: ____. Inéditos. São Paulo: Martins Fontes,
2004. p. 261 – 289.
____. The work of the representation. In: HALL, Stuart (Org.). Representation.
Cultural representation and cultural signifying practices. London/Thousand Oaks/
New Delhi: Sage/Open University, 1997.
NUNES, Alyxandra Gomes. Things fall apart de Chinua Achebe como romance de
fundação da literatura nigeriana em língua inglesa. 2005. 147 f. Dissertação
(Mestrado em Letras) – Unicamp, Campinas, SP, 2005.
SARAIVA, Juracy Assmann. O circuito das Memórias. São Paulo: EdUSP, 2009.
SILVA, Tomaz Tadeu da (Org.). Identidade e diferença. – 15. ed. – Porto Alegre:
Editora Vozes, 2001.