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CULTURA, MEMÓRIA E DESENVOLVIMENTO: UMA BREVE

REFLEXÃO/PROPOSIÇÃO A PARTIR DOS CINEMAS ANTIGOS DE


SALVADOR

Armando Alexandre Costa de Castro1

Resumo: O objetivo deste artigo é apresentar uma reflexão acerca das potencialidades
de uma idéia (ou proposta) de ressurgimento do circuito de cinemas antigos da cidade
Salvador, como resultante de políticas governamentais voltadas para a memória,
formação de público, formação profissional e turismo cultural, entre outros, num
cenário contemporâneo das tecnologias, mas, também, da relevância da economia
criativa para a sociedade. Em outras palavras, a gestão governamental no campo da
cultura deveria se restringir ou priorizar apenas a criação e administração de editais? A
manutenção da preponderância deste regime escópico não afeta e inviabiliza novas
possibilidades para a sociedade, os artistas e os gestores culturais? Para tanto, o
referencial teórico registra autores como George Yúdice, Cliford Geertz, Milton Santos,
Celso Furtado, Joseph Schumpeter, entre outros. A metodologia escolhida, ainda que
este trabalho se encontre numa versão embrionária, contempla um levantamento
bibliográfico acerca da cultura enquanto agente econômico, identitário e de cidadania.
Também se registrou um mapeamento dos cinemas antigos de Salvador, a partir de
entrevistas semiestruturadas com dois aposentados soteropolitanos e ativos
frequentadores destes cinemas, entre as décadas de 1950 e 1980.
Palavras-chave: Cultura, Desenvolvimento, Memória, Cidade, Cinema.

Introdução

No mundo contemporâneo, assim como em outras épocas, a relação entre cultura


e desenvolvimento é essencial para a inscrição/manutenção de identidades, de
pertencimentos/rupturas, de aspectos econômicos e mercadológicos, da fruição do modo

1
Docente do Centro de Cultura, Linguagens e Tecnologias Aplicadas da Universidade Federal do
Recôncavo da Bahia (CECULT/UFRB). aaccastro@gmail.com
de ser e fazer arte, e, porque não dizer, dos aspectos estratégicos desta no tocante à sua
contribuição aos projetos de nação, quando estes foram formulados.
Muitas das nações apresentadas como “desenvolvidas”, por excelentes
indicadores sociais ̶ educação, saúde, renda, economia etc ̶ , fomentam e monitoram o
seu campo cultural, através de políticas públicas, fundos patrimoniais, regulação, entre
outros. A relação cultura e desenvolvimento é, portanto, compreendida como relevante
para o próprio conceito de nação e estratégica quando pensada no desenvolvimento
desta, principalmente no contexto contemporâneo, de acentuada corrida tecnológica,
guerra fiscal, comoditização, “indústria 4.0”, especulação financeira e ampliação do que
se convencionou denominar de globalização.
Indiscutivelmente, este olhar estratégico acerca da cultura como recurso
(YÚDICE, 2006) é um desafio para os países menos desenvolvidos, por tudo que
registram de estatísticas no campo educacional e social, mas, por outro espectro, pode se
configurar como ampliação das possibilidades de inclusão sociocultural, de políticas
públicas inovadoras e vinculadas ao patrimônio histórico-cultural material e imaterial, e,
não menos relevante, da geração de emprego e renda nestes tempos tão escassos.
Neste breve argumento, destaque para o cinema no campo do entretenimento,
enquanto linguagem artística, atividade econômica e patrimônio cultural. Nesta direção,
a relação entre cinema e cidade também é dinâmica e possui presença constante na
cinematografia. Para muito além do espaço físico, as cidades também oportunizam o
protagonismo de suas tramas, de suas histórias, de seus cenários, de suas personagens,
de seus comportamentos, universos simbólicos, enfim, de um conjunto significativo de
possibilidades de registros, ficcionais ou documentais, tendo o espaço geográfico como
ponto de partida para o roteiro.
Não obstante, outro fator surge na relação entre cinema, memória e a cidade de
Salvador, uma vez que a história do cinema da Bahia é marcada por um amplo e diverso
protagonismo no campo do pensamento cinematográfico, da produção etc. Dentre eles,
destaque para realizadores/desbravadores/críticos/amantes da sétima arte, como Rex
Schindler, Glauber Rocha, Walter da Silveira, Roberto Pires, Póla Ribeiro, Cláudio
Marques, Edgard Navarro, Orlando Senna, João Carlos Sampaio, Jorge Alfredo, entre
outros.
O objetivo deste artigo é apresentar uma reflexão acerca das potencialidades do
circuito de cinemas antigos da cidade Salvador, como resultante de políticas
governamentais voltadas para a memória, formação de público, formação profissional,
organização de eventos, de festivais e para o turismo cultural num cenário
contemporâneo das tecnologias, mas, também, da relevância da economia criativa para a
sociedade. Em outras palavras, a gestão governamental no campo da cultura deveria se
restringir ou priorizar apenas a criação e administração de editais? A manutenção da
preponderância deste regime escópico não afeta e inviabiliza novas possibilidades para
a sociedade, os artistas e os gestores culturais?
A metodologia escolhida contempla um levantamento bibliográfico acerca da
cultura enquanto agente econômico, identitário e de cidadania. Também se registrou um
mapeamento dos cinemas antigos de Salvador, a partir de entrevistas semiestruturadas
com dois aposentados soteropolitanos, ativos frequentadores destes cinemas entre as
décadas de 1950 e 1980.

Cultura e desenvolvimento no contexto contemporâneo

No contexto contemporâneo, o desenvolvimento econômico está lastreado na


capacidade dos países em aplicar e transformar o conhecimento em geração e
distribuição de riquezas, a partir de elementos como criação e, principalmente, na
inovação. Nesta direção, a propriedade intelectual surge como elemento relevante junto
à proteção e valorização dos produtos, processos ou demais bens intangíveis. Entender
os movimentos e resultantes artísticos e estéticos, também enquanto bens culturais de
uma sociedade, significa compreender a potencialidade destes no campo da economia
criativa.
A ciência e tecnologia impactaram, significativamente, a produção de bens e
serviços, o comércio e economia internacional, o desenvolvimento social, mas, também,
o desenvolvimento econômico. Economias de escala logo sucumbiram às economias de
escopo, aumentando a variedade de produtos, mas, também, de fornecedores
(ANDERSON, 2006).
Se a relação entre propriedade intelectual e Desenvolvimento evoca mais
questões relacionadas aos direitos autorais pertinentes às criações e performances
artísticas, ampliação do acesso à cultura e educação, disseminação da cultura artística,
direitos humanos e garantia da dignidade humana, entre outros, ao Desenvolvimento
Econômico discute-se, principalmente, aspectos vinculados à Propriedade Industrial e à
Inovação.
Inovação aqui compreendida como a forma mais eficaz de concorrência,
destacando o seu caráter ativo e desequilibrador, na medida em que a continuidade das
vantagens obtidas por meio destas inovações são, necessariamente, temporárias, sujeitas
à obsolescência do fluxo natural da “destruição criadora” (SCHUMPETER, 1982). Ou
Inovação como fator resultante da aplicabilidade do conhecimento no processo
produtivo, com o objetivo de criar produto e/ou processo que eleve ou amplie os níveis
de lucro das empresas ou organizações.
Para Elster (2000, p. 86), há uma diferenciação entre Inovação e Invenção que é
marcada, principalmente, pela tecnologia. A primeira se destaca como “[...] la
producción de nuevo conocimiento tecnológico”, e a segunda é conceituada como “[...]
la creación de alguna idea científica, teoría o concepto que pueda conducir a la
innovación”.
O panorama mundial atual, pós-crise, acerca da Inovação é dinâmico, e ressalta
aspectos de recuperação econômica e tendência de maior colaboração entre empresas e
países no assunto propriedade intelectual e Inovação. Novas tecnologias e modelos de
negócios estão aparecendo como desafio para as relações políticas internacionais. Em
linhas gerais, segundo a OMPI (2010), é necessário ampliar a compreensão e olhar
acerca do comportamento inovador, pois há sinais evidentes de que a ciência e a
tecnologia, a pesquisa e o desenvolvimento tem sido a estratégia de algumas das
maiores organizações empresariais durante a crise. Não poderia ser assim, auxiliando as
políticas governamentais também?

Inovação por Schumpeter


Considerado um dos maiores economistas da primeira metade do século XX, o
austríaco Joseph Schumpeter (1883-1950) analisou a dinâmica do desenvolvimento
econômico no sistema capitalista. Diferindo dos economistas clássicos e se
aproximando, por outro lado, de Karl Marx, considerava o progresso técnico o fator
determinante da dinâmica capitalista, e não o crescimento da população, o aumento da
produção e o acúmulo de recursos. Para este autor, o desenvolvimento econômico está
fundamentado em três fatores principais: as inovações tecnológicas, o crédito bancário e
o empresário inovador. Durante os anos 1950 e 1960, sua obra passou por um momento
de esquecimento, tendo vivido um novo período de popularidade a partir da década de
1970, com a crise econômica mundial e a emergência das novas tecnologias
(informática, engenharia biológica, etc.).
A inovação por ele enfatizada é aquela que representa uma ruptura com o padrão
anterior, originária da percepção de oportunidades de mercado, mais especificamente
das possibilidades de ganho pelos agentes econômicos, dotados de visão, capacidade de
planejar, conceber e implementar estratégias. Ao identificar as inovações como a forma
mais eficaz de concorrência, Schumpeter (1982) destaca o seu caráter ativo e
desequilibrador, na medida em que a continuidade das vantagens obtidas por meio
destas inovações são, necessariamente, temporárias, sujeitas à obsolescência do fluxo
natural da “destruição criadora” – a essência da dinâmica capitalista.
Neste sentido, “destruição criadora” é compreendida como a dinâmica a partir da
qual cada nova tecnologia destrói ou diminui o valor de antigas técnicas e posições
mercadológicas. O novo produto passa a ocupar o espaço do velho produto e novas
estruturas de produção destroem antigas estruturas. Para Schumpeter (1984), o
capitalismo não é e nem pode ser estacionário. Em outras palavras, contrariamente ao
pensamento neoclássico de equilíbrio estático, o trabalho de Schumpeter permite uma
análise dinâmica da realidade econômica.

O capitalismo é, por natureza, uma forma ou método de transformação


econômica e não, apenas, reveste o caráter estacionário, pois jamais poderia
tê-lo. Não se deve esse caráter evolutivo do processo capitalista apenas ao
fato de que a vida econômica transcorre em um meio natural e social que se
modifica e que, em virtude dessa mesma transformação, altera a situação
econômica. Esse fato é importante e essas transformações (guerras,
revoluções e assim por diante) produzem freqüentemente transformações
industriais, embora não constituam seu móvel principal. Tampouco esse
caráter evolutivo se deve a um aumento quase automático da população e do
capital, nem às variações do sistema monetário, do qual se pode dizer
exatamente o mesmo que se aplica ao processo capitalista. O impulso
fundamental que põe e mantém em funcionamento a máquina capitalista
procede dos novos bens de consumo, dos novos métodos de produção ou
transporte, dos novos mercados e das novas formas de organização industrial
criadas pela empresa capitalista (SCHUMPETER, 1984, p. 110).

Este impulso, também conhecido como “destruição criativa” promove as


empresas inovadoras, que respondem às novas solicitações do mercado, e fecha as
empresas sem agilidade para acompanhar as mudanças. Ao mesmo tempo, orienta os
agentes econômicos para as novas tecnologias e novas preferências dos clientes.
Elimina postos de trabalho, ao mesmo tempo em que cria novas oportunidades de
trabalho e possibilita a criação de novos negócios.
É no capitalismo, segundo este autor, que o conhecimento aplicado da sociedade
e o meio ambiente sociocultural são considerados os elementos mais importantes e
responsáveis pelos “saltos” e “repentes” que se verificam no sistema econômico. Na
perspectiva schumpeteriana, o desenvolvimento se processa de forma desarmoniosa,
com a prevalência de um elevado grau de riscos de incertezas. Neste ambiente, não cabe
ao homem comum, mas sim a um sujeito especial, talentoso e motivado, a ação de
investir e promover negócios rentáveis. Este indivíduo, o empresário inovador, é
diferente do capitalista, simples detentor ou gestor dos meios de produção. O
empresário inova e é movido por uma pluralidade de motivos que transcendem a
racionalidade.
Como destaca o autor, o processo de inovação a partir de novas combinações é
endógeno a estrutura do sistema econômico e o empresário inovador desempenha papel
fundamental para propor e tornar economicamente relevantes tais iniciativas. Em outras
palavras o inovador é responsável pela a introdução de uma inovação e sua “aceitação”
pelo mercado, condição necessária para proporcionar um novo dinamismo da economia.

(...) a função do empresário é reformar ou revolucionar o sistema de produção


através do uso de uma invenção ou, de maneira mais geral, de uma nova
possibilidade tecnológica para a produção de uma nova mercadoria ou
fabricação de uma antiga em forma moderna, através da abertura de novas
fontes de suprimento de materiais, novos canais de distribuição,
reorganização da indústria, e assim por diante (SCHUMPETER, 1984, p.
166).
Dada as limitações do conhecimento e de uma racionalidade previsível, o
sistema só será eficiente, na compreensão de Schumpeter, se os empresários não se
restringirem a administrar as estruturas existentes, mas o fizerem gerando inovação.
Sobre os limites da racionalidade, o autor salienta que o conhecimento não suprime o
acaso e, portanto, nunca há receita ou precedente para orientar as escolhas com absoluta
certeza.
O empresário inovador descrito por Schumpeter tem uma estreita relação com o
líder carismático descrito por Weber, mas situa-se em uma posição de antítese de um
tipo de administração burocrática, também descrita pelo pensador alemão. Na visão
schumpeteriana, o empresário inovador é tido como sujeito do processo de “destruição
criadora”, sendo, portanto, figura central da dinâmica capitalista.
Considerando que o diferencial do capitalismo de outros sistemas é a existência
do crédito, ele acreditava que a grande qualidade do empresário não será o capital que
possui, mas as sua capacidade de liderança (intuição, visão, competência e
determinação) – qualidades que não se reduzem ao cálculo racional, mas que mantêm
uma relação estreita com fatores psicológicos e sociais.
Considerando que a lógica do capital está muito centrada no lucro, não seria
possível ao Estado, através de políticas governamentais no campo da arte e da cultura,
também atuar como protagonista em atividades em que não se registra o interesse dos
empresários numa perspectiva da tríade: economia, identidade e cidadania? Neste caso,
os cinemas antigos de Salvador poderiam abrigar muito da história de vanguardismo dos
baianos neste campo, como também serem museus dinâmicos de apreciação, fruição e
formação.
Para Schumpeter, o desenvolvimento econômico está fundamentado em três
fatores principais: as inovações tecnológicas, o crédito bancário e o empresário
inovador. As duas primeiras existem, mas há inovação no empresariado baiano neste
campo ou apenas a procura por editais? Fica a questão. No campo governamental, isto
não configuraria um descarte dos padrões capitalistas em que somente o lucro é a
questão, e não promoveria um outro modelo de desenvolvimento ancorado na dimensão
da cultura e das liberdades dos cidadãos (FURTADO, 1984)?
Em linhas gerais, as inovações são os elementos motrizes da evolução do
capitalismo, ao passo que a busca pelo lucro (resultado das novas combinações)
constitui o fator promotor da dinâmica econômica. Os lucros advindos do processo de
inovação colaboram para o acirramento da competição capitalista: as inovações
tenderiam apresentar um processo de difusão desigual e se concentrar em alguns setores
da economia que procurariam manter-se na dianteira do progresso técnico.
Diante deste cenário, Schumpeter questiona a idéia comum, segundo a qual a
“concorrência perfeita” seria a forma de maximizar o bem-estar econômico. Sob essa
competição perfeita, todas as indústrias produziriam os mesmos produtos, os venderiam
pelo mesmo preço e teriam acesso à mesma tecnologia.
Apoiando-se nas concepções de Castoriadis sobre o simbólico, Norberto Silva
(2004) afirma que marcas se alimentam do imaginário. Poder-se-ia perguntar, então,
como se cria uma marca? Para Norberto Silva (2004), uma marca é um campo
simbólico que se alimenta do real (o histórico de seus produtos e obras) e do imaginário
(através da comunicação). Este circuito de antigos cinemas soteropolitanos poderia ser
uma marca, não?
Neste sentido, sem idealizações ou romantismo, o circuito de cinemas antigos
pode ser analisado pela lógica do consumo, estando vinculados à lógica formal da
moda, do mercantil, e submetidos à sua renovação permanente, ou, já inserido no que
Schumpeter operacionalizava como “(...) processo de rejuvenescimento intermitente da
maquinaria econômica” (1984, p. 32).
Para tal, as relações com a publicização, com os órgãos de imprensa e de mídia
são essenciais e imprescindíveis. Não basta criar; é preciso, independente de ser uma
ação governamental, colocar o novo produto no horizonte de sentidos do cidadão
consumidor, enquadrando, e fazendo com que ele seja percebido como portador de
vetores de sentido necessários à compreensão e fruição artística.
Neste sentido, pode-se tomar o campo político como a arena dos conflitos e das
tensões que discursam prevendo bens e benefícios comunitários, assim como atua
promovendo sentidos e silêncios necessários para a permanência e manutenção do
crédito, ou seja, do capital político das dinâmicas simbólicas. Nesta linha de
pensamento, Bhabha (1998) opera agregando, contemporaneamente, o sentido político
ao simbólico:

De fato, o exercício do poder pode ser ao mesmo tempo politicamente eficaz


e psiquicamente afetivo, pois a liminaridade discursiva, através da qual ele é
representado, pode dar maior alcance para manobras e negociações
estratégicas (BHABHA, 1998, p. 206).

Bhabha amplia e corrobora, neste sentido, a perspectiva de Foucault acerca da


relação sujeito e poder, e sua inscrição “num campo de possibilidade esparso que se
apóia sobre estruturas permanentes” (FOUCAULT, 2010, p.287). Freund (1987)
afirma, a partir do conceitual weberiano, que “nenhum sistema é capaz de reproduzir
integralmente a infinidade do real e nenhum conceito é capaz de reproduzir
integralmente a diversidade intensiva de um fenômeno particular” (FREUND, 1987,
p.48). Diversidade é o que não falta na história do cinema na Bahia. De Glauber Rocha
a Cláudio Marques, passando por Edgard Navarro, entre outros.

Não obstante, o Cinema é sujeito de poder, mas, também está sujeito ao poder de
instâncias e forças mais “permanentes”: a própria cidade e seus agentes, estruturas e
instituições políticas que se instituem, para muito além de alguns dias, como agentes de
poder, transformação e manutenção de sistemas. O econômico, inclusive. Para Canclini
(2003, p.265):

O populismo tornou possível para os setores populares novas interações com


a modernidade, tanto com o Estado quanto com outros agentes hegemônicos:
que suas demandas de trabalho, moradia e saúde sejam parcialmente
escutadas, que os grupos subalternos aprendam a relacionar-se com
funcionários, fazer trâmites, falar por rádio e televisão, fazer-se re-conhecer.
[...] Nesse processo é importante a convergência do populismo político com a
indústria cultural. Ao levar em conta que nas sociedades modernas o povo
existe como massa, como público de um sistema de produção simbólica que
transcendeu sua etapa artesanal, os populistas tratam de que o povo não
permaneça como destinatário passivo das ações comunicacionais.

Além da própria cidade, seus agentes, estruturas e instituições políticas que se


instituíram, Canclini afirma ser o próprio conceito de popular que está sendo
reconfigurado estrategicamente, de modo a edificar ou viabilizar permanências, ainda
que lastreadas em desigualdades, escassez de recursos naturais, e precarização da
condição humana, como é o caso de Salvador, capital da Bahia.

O circuito de cinemas antigos de Salvador

A relação de cinemas abaixo registra alguns fatores importantes, tais como o


fato de o único ainda em atividade é o Cine Tupy, localizado na baixa dos Sapateiros, e
conhecido pela exclusividade do gênero erótico em sua programação. Num
levantamento ainda preliminar, dentro do contexto do processo de transformação
ocorrido com a cidade ao longo das últimas décadas, as demais salas de cinema se
converteram em igrejas, supermercados, ou foram “abandonados”. Estes últimos, seja
pela temporalidade de inventários familiares, seja pela ausência de recursos econômicos
das famílias proprietárias, registram uma depreciação significativa das estruturas
arquitetônicas.

Quadro 1. Cinemas antigos de Salvador2


Cinema Rua/Bairro Região
Tupy Baixa dos Sapateiros Centro Histórico de Salvador
Jandaia Baixa dos Sapateiros Centro Histórico de Salvador
Aliança Baixa dos Sapateiros Centro Histórico de Salvador
Pax Baixa dos Sapateiros Centro Histórico de Salvador
Excelsior Praça da Sé Centro Histórico de Salvador
Liceu Rua Saldanha da Gama Centro Histórico de Salvador
Cine Art Rua D´Ajuda Centro Histórico de Salvador
Glória (passou a se Rua D´Ajuda Centro Histórico de Salvador
chamar Tamoio)
Guarany Praça Castro Alves Centro Histórico de Salvador
Cine Bahia Rua Carlos Gomes Centro Histórico de Salvador
Cine Capri Dois de Julho Centro
Cine Politeama Politeama Centro
Cine Roma Roma Cidade Baixa
Cine Bonfim Calçada Cidade Baixa
Cine Itapagipe Itapagipe Cidade Baixa
Cine Brasil Liberdade Cidade Alta
Cine Nazaré Nazaré Centro
Cine Astor Rua D´Ajuda Centro Histórico de Salvador

2
Produzida a partir de entrevistas semi-estruturadas com os aposentados Carlos Andrade
Cardoso e Antônio Menezes, ambos moradores do Centro Histórico de Salvador, no período
compreendido entre 1950 e 1980.
Cine Rio Vermelho Rio Vermelho Cidade Alta/Orla
Fonte: Pesquisa de campo do autor, 2017.

A presença de boa parte dos cinemas no Centro Histórico de Salvador, ou


mesmo na Cidade Baixa, são informações históricas que já falam muito das
transformações impostas ou registradas na cidade. Até meados de 1970, muito da
efervesc~encia cultural de Salvador se passava pelo Centro Antigo, assim como parte da
população de classe média/alta, por lá residia.
Para Santos (2012), as relações sociais são componentes indissociáveis do meio
físico, integrando o tempo como um aspecto considerável do espaço geográfico,
ressaltando o dinamismo da paisagem a partir dos fenômenos da urbanização e
metropolização. Os cinemas antigos não estão nesta reflexão?

Considerações finais

As recentes transformações e avanços tecnológicos, calcados em expressivos


investimentos na área de ciência e tecnologia, apontam para expressões como “era
informacional”, “era do conhecimento”, “capitalismo cognitivo”, “capital intelectual”, e
o processo diferenciado de produção da ciência e tecnologia tem gerado distorções e
assimetrias de desempenho entre os países, com vantagem para os líderes da economia
mundial. Como consequência, disparidades per capita de produtividade e
competitividade.
Neste sentido, investir num circuito dinâmico de cinemas antigos é pensar a
oferta de cursos, de museus, de produtos, da sociabilidade dos cafés e livrarias, de
eventos, de encontros e de muita produção cinematográfica, porque não dizer e propor.
Direcionar lentes e câmeras para o que ainda não existe pode ser vanguarda e
empreendedorismo, ao mesmo tempo. Quem disse que o Estado e as políticas
governamentais no campo da cultura não poderiam encabeçar estes movimentos,
transformações, inquietações e dinamicidade?
Não há, neste breve trabalho, ainda em fase inicial, uma proposta romantizada
de dinamicizar os 19 cinemas antigos de Salvador, aqui apresentados. Ao contrário, é
provocar e ressaltar, com este mapeamento, que não há um espaço para a história do
protagonismo baiano na sétima arte. A política governamental não poderia inovar,
(dis)tensionar, esgarçar os tecidos, as lacunas e os arranjos já conhecidos? No mais,
cabe a pergunta: qual espaço, em Salvador, abriga informações deste conjunto histórico
de cinemas?
No campo museal, o que afirmar da Casa do Rio Vermelho como espaço de
contínua troca de afetos entre o público e a dupla de escritores Jorge Amado e Zélia
Gattai? Memória de livros, personagens e da própria cidade, e Estado. Por quê a demora
de espaços como estes numa estratégia de transformar e registrar a cidade como
referência no campo da cultura cinematográfica? Por quê a ausência de olhar estratégico
neste sentido e direção, quando se tem conhecimento da relevância da indústria cultural
enquanto vetor econômico, identitário e cidadão? Nem tudo é petróleo e gás, amigos...
O caos e o desencantamento do mundo projetam isto, até mesmo em cinemas que ainda
poderão existir...

Referências

BHABHA, Homi. O local da cultura. Belo Horizonte: Ed. UFMG, 1998.

CANCLINI, N. Culturas híbridas: estratégias para entrar e sair da modernidade. São


Paulo: USP, 2003.

FOUCAULT, Michel. O sujeito e o poder. In.: DREYFUS, H. I.; RABINOW, P.


Michel Foucault: uma trajetória filosófica: para além da estrutura e da hermenêutica.
Rio de Janeiro: Forense Universitária, 2010.

FREUND, Julien. Sociologia de Max Weber. Rio de Janeiro: Fonte Universitária,


1987.

FURTADO, C. Criatividade e Dependência na civilização industrial. São Paulo: Circulo


do Livro, 1978.

FURTADO, C. Cultura e desenvolvimento em época de crise. São Paulo: Paz e Terra,


1984.

NORBERTO SILVA, Elaine. Estratégias corporativas de marcas e estratégias sociais de


diferenciação: uma análise a partir do automóvel. In.: Tempo Social, Revista de
Sociologia da USP, v. 16, nº 02. 2004.

SANTOS, Milton. O centro da cidade do Salvador. São Paulo: Editora da


Universidade de São Paulo, 2012.

SCHUMPETER, J. Capitalismo, Socialismo e Democracia. Rio de Janeiro: Zahar,


1984.

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