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UNIVERSIDADE VEIGA DE ALMEIDA

CURSO DE LETRAS

LICENCIATURA EM LÍNGUA PORTUGUESA E INGLESA

BEATRIZ OLIVEIRA DA SILVA

ROTA DOS EXCLUÍDOS: UMA LEITURA INTERSEMIÓTICA DE VIDAS SECAS E


BACURAU

RIO DE JANEIRO

2021
BEATRIZ OLIVEIRA DA SILVA

ROTA DOS EXCLUÍDOS: UMA LEITURA INTERSEMIÓTICA DE VIDAS SECAS E


BACURAU

Trabalho de Conclusão de Curso apresentado ao Curso de


Graduação em Letras da Universidade Veiga de Almeida, como
requisito obrigatório e necessário para a obtenção do título de
licenciada em Língua Portuguesa e Inglesa, sob orientação do
Professor Cimélio Senna Vasconcelos da Silva.

RIO DE JANEIRO

2021

2
BEATRIZ OLIVEIRA DA SILVA

ROTA DOS EXCLUÍDOS: UMA LEITURA INTERSEMIÓTICA DE VIDAS SECAS E


BACURAU

Trabalho de Conclusão de Curso apresentado


ao Curso de Graduação em Letras da
Universidade Veiga de Almeida, como requisito
obrigatório e necessário para a obtenção do
título de licenciada em Língua Portuguesa e
Inglesa, sob orientação do Professor Cimélio
Senna Vasconcelos da Silva.

Aprovada em: de de 2021.

BANCA EXAMINADORA

________________________________

Orientador: Prof.º Dr. Cimélio Senna Vasconcelos da Silva. (UVA)

________________________________

Avaliador: Prof.º Me. Caio Cesar do Nascimento Paz. (UFF)

_______________________________

Avaliador: Prof.ª Dra. Maria Cristina Prates. (UVA)

Rio de Janeiro
2021

3
DEDICATÓRIA

Dedico este trabalho à minha irmã Luciana e à


minha estimada Chanel, os melhores apoios
emocionais que eu poderia ter. Sem o amor de
vocês nada seria possível.

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AGRADECIMENTOS

Primeiramente, agradeço à minha família, em especial à minha mãe e ao meu pai, por sempre
me apoiarem e por não terem, em nenhum momento, desacreditado da trajetória que escolhi.
Obrigada pelo suporte ao longo dos anos, pelo carinho e por me conceder essa oportunidade.
Agradeço à minha irmã Luciana Oliveira, por sempre me incentivar a leitura e pelo incentivo
constante desde as primeiras aulas do curso de inglês. Obrigada por me apoiar em todos os
momentos, por ser uma inspiração de busca ávida pelo conhecimento e por ser um exemplo
de coragem. Seremos felizes.
Agradeço à minha prima Vanessa Carvalho, pelos conselhos e pelo o empurrão que precisava
para iniciar a minha jornada acadêmica. Obrigada pelas conversas e por vibrar comigo as
pequenas conquistas.
Agradeço à minha querida amiga Larissa Vieira, que a graduação me presenteou, que me
inspira, motiva e principalmente, por pegar na minha mão quando temi prosseguir. Obrigada
por ser estar ao meu lado, compartilhar de momentos inesquecíveis, por tornar essa jornada
intensa mais leve, divertida e possível.
Agradeço à Silvia Maria, minha psicoterapeuta, a sua ajuda foi essencial para essa etapa
Obrigada por auxiliar em meu processo de autofortalecimento pessoal.
Agradeço aos meus professores de inglês, Amanda e Luiz Gustavo, vocês me apresentaram a
licenciatura de forma primorosa, com aulas divertidas e cheias de conhecimentos críticos.
Obrigada por me proporcionar um ensino que me inspira diariamente.
Agradeço aos professores da graduação da Veiga de Almeida, Cristina Prates, Cimélio Senna,
Flávia Cunha e, especialmente à Graziela Mota, que no primeiro período me apresentou
diversas vertentes da área de Letras na qual me apaixonei. Obrigado a todos por tornar a
graduação uma fonte de inspiração e possibilitar reflexões revolucionárias.

5
EPÍGRAFE

Para esse universo e, em geral, para todo trabalho


criador, o essencial é assumir uma
atitude de respeito e de esperança. Não é o
Estado, nem a Universidade, nem a Igreja,
nem a Imprensa, nem qualquer das instituições
conhecidas que deverá encarregar-se do
destino das letras e das artes. O clima natural
destas é o da liberdade de pesquisa formal
e de descoberta de temas e perspectivas. A arte
tem seus modos próprios de realizar os
fins mais altos da socialização humana, como a
autoconsciência, a comunhão com o
outro, a comunhão com a natureza, a busca da
transcendência no coração da imanência.
(BOSI, Alfredo. Dialética da colonização)

6
RESUMO

O presente trabalho tem como objetivo analisar uma obra literária e uma cinematográfica,
mais especificamente, Vidas Secas (1938) e Bacurau (2019). Em busca de refletir sobre a
relação de cultura e discurso, o presente trabalho almeja delimitar semelhanças
inter-semióticas nas obras, utilizando do conceito de Fairclough sobre Análise Crítica do
Discurso observando-o na esfera da prática social.O presente trabalho é corroborado pelo
referencial bibliográfico de autores como: Aristoteles, Bosi (1992), Santaella (1983), Diniz
(1999), Fairclough (1992), Fernandes (2014) e Charaudeu (2013). Como hipótese, acredita-se
que a língua e cultura estão diretamente relacionadas em como os indivíduos se organizam
socialmente, sendo um expositor, da ainda presente, relação de hierarquia entre povos
colonizados e povos que sofreram colonização. As obras brasileiras analisadas neste trabalho,
expõe essa problemática presente intrinsecamente no discurso de como a falta de identidade
cultural se apresenta na micro e macro esfera social.

Palavras-chave: Cultura; Análise Crítica do Discurso; Semiótica.

7
ABSTRACT
The present work aims to analyze a literary and a cinematographic piece, specifically, Vidas
Secas (1938) and Bacurau (2019). Seeking to reflect on the relationship between culture and
discourse, this work aims to delimit inter-semiotic similarities in the works, using Fairclough's
concept of Critical Discourse Analysis, observing it in the sphere of social practice.
Bibliographic by authors such as: Aristoteles, Bosi (1992), Santaella (1983), Diniz (1999),
Fairclough (1992), Fernandes (2014) and Charaudeu (2013). As a hypothesis, it is believed
that language and culture are directly related in how individuals organize themselves socially,
being an exhibitor of the still present hierarchy relationship between colonized peoples and
peoples who suffered colonization. The Brazilian works analyzed expose this problem
intrinsically present in the discourse of how the lack of cultural identity presents itself in the
micro and macro social sphere.

Keywords: Culture; Critical Discourse Analysis; Semiotics.

8
SUMÁRIO

INTRODUÇÃO................................................................................................................ 10
1. CULTURA E IDENTIDADE…………...................................................................... 11
1.2. CULTURA BRASILEIRA ............................................................................ 13
1.3. A CULTURA DO OUTRO ............................................................................ 14
2. ARTE COMO FONTE LEGÍTIMA DE CONHECIMENTO DO MUNDO ......... 16
3. LITERATURA E CINEMA: UMA LEITURA INTERSEMIÓTICA .................... 20

4. DIÁLOGO INTERTEXTUAL ENTRE VIDAS SECAS & BACURAU……….... 23


4.1. ANÁLISE CRÍTICA DO DISCURSO ……………….……………………. 23
4.2. O MUNDO COBERTO DE PENAS……………………………..……….... 25
4.3. O PÁSSARO NOTURNO…………………..………………………………. 27
5. A ROTA DOS EXCLUÍDOS ………...……...…………………………………….... 29
REFERÊNCIAS………………………………………………………………………... 32
.

9
INTRODUÇÃO

A ideia de cultura como um conjunto de práticas sociais, a bem dos fatos, passa pela
elaboração simbólica da existência, justificando, a partir de uma narrativa alegórica, tanto as
técnicas quanto os valores e ritos estabelecidos. Nessa perspectiva, o sentido que se dá ao
homem e sua relação com o mundo estão vinculados a uma origem superior, sobrenatural e
digna de culto. Em outras palavras, toda cultura tem um mito fundador.
Para a constituição de uma cultura, é necessário que todo esse conjunto de valores e de
práticas seja perpetuado nas novas gerações, portanto, a construção de uma identidade,
coletiva ou individual, está alicerçada nos ritos e em cultos, tanto sagrados quanto profanos,
que remontam a tempos imemoriais, simbolicamente presentificados para que haja uma
percepção de continuidade. Segundo o professor Alfredo Bosi:
A possibilidade de enraizar no passado a experiência atual de um grupo se perfaz
pelas mediações simbólicas? E o gesto, o canto, a dança, o rito, a oração, a fala que
evoca, a fala que invoca no mundo arcaico: tudo isso é fundamentalmente religião,
vínculo do presente com o outrora-tornado-agora, laço da comunidade com as forças
que a criaram em outro tempo e que sustêm a sua identidade1.
(BOSI, 1992, p.15)

No intuito de refletir sobre a relação da cultura e o discurso em povos colonizados, o


presente trabalho almeja analisar e delimitar semelhanças nas obras Vidas Secas (1938), de
Graciliano Ramos, e Bacurau (2019), de Kleber Mendonça Filho e Juliano Dornelles.
Utilizando da possível inter- relação semiótica entre as obras para analisar o discurso no
âmbito de prática social, presente no conceito de análise tridimensional do discurso de
Fairclough.
Para atingir esse objetivo, foi necessário realizar uma leitura atenta da obra literária
Vidas Secas, a qual retrata a vida de uma família em meio a seca do sertão, considerando o
contexto da época que foi escrito e os conhecimentos prévios do autor sobre o tema. Assim
como para a análise fílmica de Bacurau, que tem a sua trama desenvolvida em um povoado de
Pernambuco, aferindo o desejo dos produtores com a temática e mensagem presente no filme.

1
BOSI, Alfredo. Dialética da colonização. São Paulo: Companhia das Letras, 1992. (P.15)

10
O presente trabalho é corroborado pelo referencial bibliográfico de autores como:
Aristoteles, Bosi (1992), Santaella (1983), Diniz (1999), Fairclough (1992), Fernandes (2014)
e Charaudeu (2013). Como hipótese, acredita-se que a língua e cultura estão diretamente
relacionadas em como os indivíduos se organizam socialmente, sendo um expositor, da ainda
presente, relação de hierarquia entre povos colonizados e povos que sofreram colonização. As
obras brasileiras analisadas neste trabalho, expõe essa problemática presente intrinsecamente
no discurso de como a falta de identidade cultural se apresenta na micro e macro esfera social.
Deve-se evidenciar que a justificativa deste trabalho se dá pela importância de
proporcionar reflexão sobre língua e poder, bem como a relevância de apresentar a discussão
sobre o tema por meio de conceitos como a semiótica e análise crítica do discurso. Dessa
forma, este trabalho divide-se em cinco seções apresentadas a seguir.
O primeiro capítulo, Cultura e Identidade, apresenta o conceito definido por Alfredo
Bosi, posteriormente são sintetizados o que o autor compreende por Cultura brasileira e
Cultura do outro. No segundo capítulo, utilizando da Poética de Aristóteles como aporte
referencial, é apresentado a Arte como fonte legítima de conhecimento do mundo para
elucidar o papel da mimese e de ação na vida do homem, em alusão à atos de reprodução.
O terceiro capítulo, Literatura e Cinema, é sobre o estudo das linguagens e a
abrangência do conceito de semiótica em relação a traduções intersemióticas. No penúltimo
capítulo, Análise Crítica do Discurso: das obras Vidas Secas & Bacurau, é apresentado o
conceito de análise tridimensional do discurso, utilizados nas presentes obras deste trabalho.
No quinto e último capítulo, buscou-se delimitar semelhanças e inter-relações
semióticas entre Vidas Secas e Bacurau, sendo a elaboração da conclusão do trabalho, com a
finalidade de ratificar a hipótese e concretizar os objetivos propostos.

1. Cultura e Identidade

O processo de desenvolvimento e de entendimento do que é cultura para um grupo se


faz pela necessidade de compreender o seu passado e de como esse passado se perpetua no
presente com as mudanças da atualidade. Com isso, pensar a cultura brasileira, portanto,
implica reconhecer a relação dialética entre colonizador e colonizado. Nesse sentido,

11
“Aculturar um povo se traduziria, afinal, em sujeitá-lo ou, no melhor dos casos, adaptá-lo
tecnologicamente a um certo padrão tido como superior”2.
Ao conhecer sua história e identidade, o indivíduo ou povo consegue delimitar suas
características, virtudes, fraquezas, dentre outros, ou seja, ele consegue performar mais
confiança, por exemplo, sobre os demais que ainda não foram "culturalizados", podendo
exercer sobre esses um certo poder assimétrico. A cultura transpassa as esferas e dialoga
também sobre como o indivíduo está presente no dia a dia social e o que seus símbolos
significam. Bosi (1992, p. 16) elucida esse fator da cultura urbana e a sua relação com o
capital: “Nas sociedades densamente urbanizadas, a cultura foi tomando também a acepção de
condição de vida mais humana, digna de almejar-se, termo final de um processo cujo valor é
estimado, e mais ou menos consciente, por todas as classes e grupos”.
A construção da identidade de um povo entende-se por junções de patrimônios
imateriais culturais que representam o grupo, como a língua, expressões, a história,
semelhanças e diferenças compartilhadas. Compreender a importância do conhecimento das
identidades individual e coletiva é fundamental para a história pessoal e para como se
relaciona o sujeito em sociedade.
Bosi (1992, p. 50) expõe as cicatrizes deixadas nos povos colonizados, quando aponta
que:
Não há dúvida de que, nos traumas sociais e nas migrações forçadas, os sujeitos da
cultura popular sofrem abalos materiais e espirituais graves, só conseguindo
sobrenadar quando se agarram à tábua de salvação de certas engrenagens
econômicas dominantes. Tal sobrevivência não dá, nem poderia dar, resultados
felizes em termos de criação cultural, pois é conduzida às cegas pelos caminhos de
exploração do sistema. O migrante que chega à cidade ou à terra alheia é um homem
mutilado, um ser reduzido ao osso da privação.

Desse modo, a questão dos povos colonizadores e colonizados ainda é muito discutida,
a forma na qual certos grupos tiveram suas características fortificadas e glorificadas, em razão
da depreciação e do enfraquecimento de outros povos, persiste em transparecer no cotidiano
de muitas populações.
Já a língua é uma ferramenta fundamental para o estabelecimento de relações, pois
carrega em si a história, cultura, marcas e expressões de um povo, e, de igual maneira,
também pode ser analisada como uma substância colonizadora, instrumento que delimita
quem detém o poder em uma respectiva comunicação.

2
BOSI, Alfredo. Dialética da colonização. São Paulo: Companhia das Letras, 1992. (P.17)

12
1.2. Cultura brasileira

Com diversas influências, a cultura brasileira geralmente é relacionada à pluralidade,


antes mesmo da invasão portuguesa. Por sua extensão territorial e a presença de diversos
povos originários, delimitar, propriamente, o que é cultura no Brasil não é uma ação simples.
Com o passar dos anos, o país foi habitado também por africanos de diversas aldeias, bem
como por europeus fugitivos de todos os lugares, fazendo a distinção por etnia se tornar
opaca, visto que tais signos e simbologias culturais são estabelecidos por grupos sociais. Ao
cruzar, mesclar e aproximar esses grupos, tem-se a movimentação de “fusão”, adaptação e, às
vezes, formação de novos componentes culturais. Sobre o Brasil, Bosi (1992, p. 46) afirma:
Sob o limiar da escrita tem vivido, desde o século XVI, uma cultura que se gestou
em meio a um povo pobre e dominado. Em um espaço de raças cruzadas e
populações de diversas origens, a sua linguagem acabou ficando também mestiça, a
tal ponto que hoje beira o anacronismo falar de cultura negra ou de cultura indígena
ou mesmo de cultura rústica em estado puro.

Com o progresso da colonização, o processo de aculturação consequentemente se


expande, influenciando modificações na cultura local e comparações não lineares, por
exemplo, de artes sacras. Nessa perspectiva, o europeu projeta sobre o nativo critérios e
expectativas relacionados à sua cultura, desmoralizando ou diminuindo o símbolo local;
gerando, por imposição, uma escala de importância, que por sua vez desconsidera o valor que
o objeto carrega para aquela comunidade existente e o seu possível valor histórico, haja vista
que a cultura é gerada pelas marcas da ancestralidade. A exemplo, Bosi (1992, p. 48) diz que:
As formações artísticas das Minas aparecem como tardias ou defasadas quando
postas em confronto linear com a história dos estilos europeus respectivos; no
entanto, não se tratava de uma arte de simples imitadores nem de uma cultura
deslocada e epigônica, mas de um casamento original de novas necessidades internas
de expressão com modelos ainda prestigiosos vindos de Portugal e da Itália.

A presença da colônia impõe a todos em sua volta, por meio de uso de força, a sua
“soberania” sobre a terra, alterando as dinâmicas sociais. Como efeito resultante, o Brasil se
apresenta, em sua maioria, como um país mestiço de cultura colonial popular, isto é, carrega
em sua identidade cultural as influências dos povos originários, ou seja, africanos, europeus,
dentre outros. Após o convívio entre a arte de fronteira e a cultura brasileira, emanam no
Brasil os traços rústicos e eruditos, trazendo a tônica do anacronismo cultural, posto que há
como marca a não linearidade, presente em povos colonizados. Para Bosi (1992, p. 49-50):

13
Tudo leva a crer que, nesses cruzamentos da cultura letrada envolvente com a não
letrada envolvida, a situação das áreas coloniais apresente aquele convívio de
extremos: os projetos mais agressivos do capitalismo ocidental se plantam por entre
modos de viver antigos e, nesta ou naquela medida, resistentes. Que esse coabitar do
arcaico com o modernizador não seja um paradoxo conjuntural, mas um fenômeno
recorrente na história da colonização, é hipótese que só novas pesquisas de campo e
de texto poderão confirmar.

A cultura é ato de resistência, ancestralidade, é história e memória viva que passa por
gerações. Sendo assim, com influências, havendo modificações ou não, ela sobrevive
bravamente em essência, pois, mesmo com o afloramento do “novo”, permanece a sua
identidade viva na percepção social, sendo a cultura um elemento atemporal, logo, “tudo que
é necessário necessariamente retorna” (BOSI, 1992 p. 47).

1.3. Cultura do outro

Ao decorrer da mestiçagem da cultura do dominador e dominado, há uma discordância


de validação. Enquanto o dominador deseja impor sua cultura ao outro, o mesmo não ocorre
quando é assimilada a aquisição de seus símbolos misturados aos do dominado, e, pela
perspectiva do dominado, ao ser imposta a cultura do outro, ele toma para si, com o desejo de
validação, a “superioridade” proferida, absorvendo e ressignificando esses símbolos,"[...] toda
cultura dominante é absorvida e decodificada pela cultura dominada, de tal modo que, nessa
última, já não fica da cultura superior nada, a não ser, talvez, o desejo que têm os dominados
de apreender os dons e os poderes dos seus patrões”. (Bosi, 1992, p. 337)
Como evidenciado na seção anterior, a cultura brasileira vai se formando com
influências externas, em modo de “aculturação”. Ou seja, ao serem expostos a certos símbolos
e ritos, com frequência ou não, povos colonizados “absorvem” por contato a cultura do
colonizador, propiciando à cultura uma espécie de camadas e de dimensões mais complexas.
Quando de encontro com a cultura popular, esse processo pode se utilizar de fatores
econômicos e sociais para “delimitar” os níveis aos quais essa cultura deve ser palpável. A
cultura erudita "clássica", pertencente às classes com maior poder aquisitivo e/ou acadêmico,
se assemelha aos processos de colono e colônia, quando incutida na relação cultura erudita e
cultura popular. Bosi (1992) disserta sobre:
Mas... e a cultura popular receberá alguma coisa da cultura erudita ou institucional?
Historicamente, não podemos esquecer de que as camadas pobres da população
brasileira (índios, caboclos, negros escravos, e depois forros, mestiços suburbanos,
subproletários em geral) foram colonizadas pela cultura rústica ou, eventualmente,

14
urbana dos portugueses, e pelo catolicismo ritualizado dos jesuítas; e agora, já em
plena mestiçagem e em plena sociedade de classes capitalistas, estão sendo
recolonizadas pelo Estado, pela Escola Primária, pelo Exército, pela indústria
cultural e por todas as agências de aculturação que saem do centro e atingem a
periferia. (Bosi, 1992, p. 336)

No mundo contemporâneo, os canais de comunicação com o povo são mais dinâmicos,


há novas possibilidades de estabelecer e de apresentar culturas de forma instantânea e com
grande frequência. Não à toa, o termo “globalização” já é algo discutido amiúde, não só em
campos acadêmicos, como nas grandes mídias, evidenciando uma importante característica
desses canais, isto é, a exposição por repetição. Essa especificidade é utilizada pelos
produtores de cultura industrial, usufruindo a projeção que desejam “determinar” como a ser
seguida pela cultura popular. Em suma, em boa parte das vezes, a diretriz possui o viés
erudito, para que seja estimulado e marcado almejando o que é “superior”, logo, o que é o
“melhor”.
O poder econômico expansivo dos meios de comunicação parece ter abolido, em
vários momentos e lugares, as manifestações da cultura popular, reduzindo-as à
função de folclore para turismo. Tal é a penetração de certos programas de rádio e
TV junto com as classes pobres, tal é a aparência de modernização que cobre a vida
do povo em todo o território brasileiro, que, à primeira vista, parece não ter sobrado
mais nenhum espaço próprio para os modos de ser, pensar e falar, em suma, viver,
tradicional-populares, o que seria uma fatalidade do neocapitalismo introjetado em
todos os países de extração colonial.
(BOSI, 1992, p. 328)

De mais a mais, a manobra de aquisição dissociativa feita pela elite caminha para um
modo de distanciamento do popular, carregado de academicismo. Existe um interesse nas
produções culturais populares, quanto ao estudo social, quase que animalesco, como se aquele
que está abaixo, supostamente, fosse apenas para produções de seus estudos “superiores”,
como a analogia de Bosi (1992):
A cultura erudita busca renovar-se pelo aproveitamento mais ou menos bruto, mais
ou menos elaborado, do que lhe parece ser a espontaneidade e a vitalidade
populares. Nesse processo, o risco mais comum é repetir, talvez sem as riquezas da
fantasia estética modernista, o fenômeno ideológico e psicológico da projeção, de
que os modernistas, aliás, não escaparam: projeção de neuroses, desequilíbrios,
preconceitos, recalques e desrecalques do intelectual na matéria popular assumida
como válvula de escape da subjetividade pequeno-burguesa.
(BOSI, 1992, p. 334)

Destarte, essa camada volta suas réguas de medidas sociais aos padrões estrangeiros,
nos âmbitos da ética europeia e econômico, estabelecidos por seu lado pela mídia, havendo
nos Estados Unidos da América seu maior exemplo, em vista de eles serem alcunhados como

15
o país de primeiro mundo. A nação, que é grande produtora de conteúdos publicitários que
visam estimular a validação de sua bandeira em relação às demais, dita os comportamentos a
serem seguidos, principalmente em países que sofreram o processo de colonização.
A cultura de massa, a indústria de objetos simbólicos em série, vale-se da cultura
erudita, lança mão dela, para transformar em moda e consumo não poucas de suas
representações. E o fenômeno do kitsch, estudado por Abra-ham Moles, que consiste
em divulgar, junto com consumidores das classes alta e média, palavras, gostos,
melodias, enfim, bens culturais produzidos inicialmente pela chamada cultura
superior.
(BOSI, 1992, p. 527-528)

A cultura do outro é a projeção realizada vista de fora, podendo ocorrer dentro de uma
mesma esfera social e com um viés cultural que se desassocia. Nesse sentido, é possível que
um indivíduo identificado como brasileiro, nascido no Sul do Brasil, criado por um grupo de
mestiços europeus, não se enxergue pertencente da cultura de um brasileiro nascido mais ao
norte do país, que se identifica mais com os povos nativos. Em síntese, esse sujeito é um
reprodutor da cultura do outro, e, do mesmo modo, não valida a cultura de seu compatriota,
pois enxerga o modo de ver do nortista apenas como “cultura do outro”. Nesse caso,
evidenciando o distanciamento com superioridade, Bosi afirma que “O típico popular, com
todas as suas tendências para a caricatura, é um modo pelo qual a indústria cultural projeta o
povo como o outro. O outro é o povo ao mesmo tempo explorado e intocado”. (Bosi, 1992, p.
330).

2. Arte como fonte legítima de conhecimento do mundo

A arte carrega em si funções sociais grandiosas para aqueles que a cercam e para o
mundo, a comunicação de histórias, a relação do real e fantasia, o entretenimento e o tédio.
Ademais, vislumbrada como um movimento que instiga sentimentos e sensações, dialogando
com aquele que a observa, a arte engrandece a experiência humana. Com isso, é outrossim a
representação do homem, que também se desenvolve e se adapta em virtude do seu
conhecimento de mundo, usando a mensagem que a arte transmite para entender e dialogar
com o mundo ao seu redor, como Aristóteles 3 elucida contundentemente:
Uma é que imitar é natural nos homens desde a infância e nisto nisso que se diferem
dos outros animais, pois o homem é o que tem mais capacidade de imitar e é pela

3
ARISTÓTELES , Aristóteles; FUNDAÇÃO CALOUSTE GULBELKIAN. Poética: Tradução do texto grego
APLSTOTEAOY2 ITEPIIIOIHTIKH2, Edição utilizada: R. Kassell, Aristotelis de Arte Poética lÀber (Oxford
1965, reimpr. 1968. 3. ed. Lisboa: Oficinas de imprensa de Coimbra, Lda, 2008.

16
imitação que adquire os seus primeiros conhecimentos; a outra é que todos sentem
prazer nas imitações. Uma prova disso é o que acontece na realidade: as coisas que
observamos ao natural e nos fazem pena agradam-nos quando as vemos
representadas em imagens muito perfeitas, como, por exemplo, as reproduções dos
mais repugnantes animais e de cadáveres. A razão disso é também que aprender não
é só agradável para os filósofos, mas o é igualmente para os outros homens, embora
esses participem dessa aprendizagem em menor escala. E que eles, quando veem as
imagens, gostam dessa imitação, pois acontece que, vendo, aprendem e deduzem o
que representa cada uma, por exemplo, “este é aquele assim e assim”. Quando, por
acaso, não se viu anteriormente o objeto representado, não é a imitação que causa
prazer, mas sim a execução, a cor ou qualquer outro motivo do gênero.
(ARISTÓTELES, 2008 p.42-43)

O homem e a arte carregam a ânsia por se expressar, sendo a arte uma ferramenta
valiosíssima para esse desejo intuitivo. Para muitos, pode parecer que a arte está “engessada”
em museus ou intocável, até porque também pode ser utilizada para contar a História da
humanidade, mas é interessante que seja relembrado que a arte vai muito além do seu caráter
histórico, pois está presente no dia a dia de cada um de diferentes formas. E o poeta, o
contador da história, pelo seu encargo filosófico e de elaboração, tem por consequência o
intento de expressar uma visão mais ampla, universal, diferentemente da História, que, pelo
seu aspecto característico, deve se ater aos fatos. Noutros termos, a História acaba por ser
comparada com a arte, contemplando mais o particular, ou seja, como Aristóteles (2008, p.54)
expõe: “[...] a poesia é mais filosófica e tem um caráter mais elevado do que a História. É que
a poesia expressa o universal, a História o particular”.
Dado o exposto, a diferença entre esses dois aspectos citados não se atrela apenas por
questões estruturais, mas sim pelo fato de como são construídas suas narrativas e as premissas
que devem ser consideradas para tais. Quando o historiador está narrando uma história, ele se
atém apenas para o que de fato aconteceu, sem diminuir, aumentar ou elaborar o ocorrido.
Sem prejuízo da verdade, trata-se de uma narração “plana”, objetiva, de forma que, no
momento em que o poeta está a contar uma história, ele tem a possibilidade de elaborar o fato
a ser descrito, podendo relatar o fato, porém dando dimensões, camadas que elaboram o que
também poderia ter acontecido. Assim, Aristóteles (2008) frisa que:
O historiador e o poeta não se diferem pelo fato de um escrever em prosa e o outro
em verso (se tivéssemos posto em verso a obra de Heródoto, com verso ou sem
verso ela não perderia absolutamente nada quanto ao seu caráter de História).
Diferem é pelo fato de um relatar o que aconteceu e o outro o que poderia acontecer.
(ARISTÓTELES, 2008,p.54)

17
O ser humano é um ser social, e por isso busca se integrar a grupos, pois é por meio da
convivência, de trocas que o dito-cujo começa, que o processo de construção de identidade, a
sua busca por representação e expressão, é, também, construído com as experiências dos
outros. É como se o ser humano observasse seu semelhante como um espelho, porém, ele só
traz para si o que faz sentido para o seu processo ou grupo. Na arte, a representação de uma
história traz na “imitação” a ação do real, para que aqueles que estão por observar possam
traçar pontos de semelhanças com a obra e sua experiência de vida. Assim, quem está de
“fora” consegue estabelecer uma conexão e aquele espetáculo toma vida na experiência de
cada um, de maneira que cada um carrega em si seu próprio contexto.
Uma vez que a imitação representa não só uma ação completa, mas também fatos
que inspiram temor e compaixão, esses sentimentos são muito [mais] facilmente
suscitados quando os fatos se processam contra a nossa expectativa, por uma relação
de causalidade entre si.
(ARISTÓTELES, 2008, p. 56)

A arte, em especial, o trágico dialoga com a realidade e com os homens em uma


performance abrangente da ação, do momento, de um período. É ela a expressão das ações
transcritas pelo poeta sobre aquela sociedade, pois é na ação que é possível elaborar os
sentimentos. Sob esse prisma, a ação trágica marca as possibilidades do que pode acontecer,
isto é, enquanto a vida do espectador é o resultado, a arte é a possibilidade, o imagético que
conforta ou atormenta a realidade, despertando novos caminhos. Para tanto, a ação é o ponto
de observação para o poeta, enquanto que o drama, representando a ação trágica, é o ponto de
referência de observação para o homem. Aristóteles (2008, p. 49) afirma no trecho abaixo
que não haveria tragédia sem ação, mas poderia haver sem caracteres, sem o conhecimento da
motivação, pois os acontecimentos e o enredo são os objetivos principais da execução com
perfeição dela.
E que a tragédia não é a imitação dos homens, mas das ações e da vida [tanto a
felicidade como a infelicidade estão na ação, e a sua finalidade é uma ação, e não
uma qualidade: os homens são classificados pelo seu caráter, mas é pelas suas ações
que são infelizes ou o contrário]. Aliás, eles não atuam para imitar os caracteres, mas
os caracteres é que são abrangidos pelas ações. Assim , os acontecimentos e o
enredo são o objetivo da tragédia e o objetivo é o mais importante de tudo. Além
disso, não haveria tragédia sem acção, mas poderia haver sem caracteres.
(ARISTÓTELES, 2008, p. 49)

Ao provocar sentimentos e desconfortos no espectador/leitor, o trágico dialoga com o


real. Além do mais, a complexidade de expor sentimentos que gerem emoções tão genuínas,
como a raiva, empatia, compaixão e indignação, é um exemplo visualizado na história da

18
família de Vidas Secas, do autor Graciliano Ramos. Para isso, a jornada suscita a conexão da
dura realidade e de seus pequenos detalhes, que conseguem transcrever e se criar no
imaginário de muitos brasileiros, que entendem, de certa maneira, aquele contexto. Quando
vista de fora por aquele que se assemelha, aquela dor se transforma, se conecta e faz sentido,
pois, naquele momento, ele se sente visto, se sente representado, como detalha o filósofo:
Dado que a composição da tragédia mais perfeita não deve ser simples, mas
complexa, e que ela deve imitar fatos que causem temor e compaixão (porquanto
essa é a característica dessa espécie de imitações), é evidente, em primeiro lugar, que
se não devem representar os homens bons a passar da felicidade para a infelicidade,
pois tal mudança suscita repulsa, mas não temor nem piedade; nem os maus a passar
da infelicidade para a felicidade, porque uma tal situação é de todas a mais contrária
ao trágico, visto não conter nenhum dos requisitos devidos, e não provocar
benevolência, compaixão ou temor; nem tão pouco os muito perversos a resvalar da
fortuna para a desgraça.
(ARISTÓTELES, 2008 p.60)

O cotidiano do ser humano não é linear, é marcado por reviravoltas, problemas e


soluções. A não linearidade marca a individualidade de cada um, cada ser é o contador da sua
própria história. Como já frisado, a ação é o pilar do enredo e é durante o desenvolver da ação
que são expostas as problemáticas da história, tecendo as possibilidades que darão rumo à
obra, assim como no dia a dia. Com a mudança de cenário, os sentimentos marcam pontos de
viradas, sejam elas boas ou ruins, posto que estão presentes constantemente;
Toda a tragédia tem um nó e um desenlace: os fatos exteriores à ação e alguns dos
que constituem essa ação formam, muitas vezes, o nó, e o resto é o desenlace.
Entendo por nó o que vai desde o princípio até o momento imediatamente antes da
mudança para a felicidade ou para a infelicidade e por desenlace o que vai desde o
início dessa mudança até o fim.
(ARISTÓTELES, 2008, p. 74)

A arte busca inspiração na vida, o artista é um intérprete da realidade, e, mediante


diversas formas de representação, comunica, questiona e faz entender os dilemas sociais e
rotineiros, possíveis e impossíveis. A arte, assim como a vida (deveria ser), aborda
possibilidades, mudanças, expressões, sentimentos. Segundo Aristóteles (p.97), o poeta é um
imitador, do mesmo modo que o pintor, ou que qualquer criador de imagens que imita,
necessariamente, uma de três coisas possíveis: ou as coisas como eram ou são realmente, ou
como dizem e parecem, ou como deveriam ser.

19
3. Literatura e cinema: uma leitura intersemiótica

Os seres humanos utilizam de diversos meios de linguagens para estabelecer


comunicação, sendo a língua parte da cultura. Dito isso, a linguagem é o instrumento da
comunicação, vai além da escrita, podendo ser verbal ou não, como por exemplo, a musical, a
visual, da natureza. As linguagens estão na literatura, no cinema, no teatro etc., e o indivíduo
está nas linguagens. Sobre o prestígio da linguagem verbal em comparação com as outras, a
autora Lúcia Santaella4 menciona:
Cumpre notar que a ilusória exclusividade da língua, como forma de linguagem e
meio de comunicação privilegiados, é muito intensamente devida a um
condicionamento histórico que nos levou à crença de que as únicas formas de
conhecimento, de saber e de interpretação do mundo são aquelas veiculadas pela
língua, na sua manifestação como linguagem verbal oral ou escrita. O saber
analítico, que essa linguagem permite, conduziu à legitimação consensual e
institucional de que esse é o saber de primeira ordem, em detrimento e relegando
para uma segunda ordem todos os outros saberes, mais sensíveis, que as outras
linguagens, as não verbais, possibilitam.
(SANTAELLA, 1983, p.10-11)

A presença de diversas linguagens possibilita a extensão de canais de comunicação. E


o processo de transmissão da mensagem se inicia na escolha do emissor, que, pelo desejo de
se fazer compreendido, se atenta ao melhor meio de comunicação para se conectar ao
receptor. O escritor, ao escolher o texto, seleciona cada palavra e seu lugar na frase para
construir o sentido da sua mensagem. Já um diretor de cinema, por exemplo, terá outros
recursos para a construção desse caminho até o receptor, pois, diferentemente do texto em que
se pode marcar na escrita, a descrição de pensamentos e de sensações na linguagem
cinematográfica, o pensar e o sentir são representados pelas ações, e construídos por um
conjunto de fatores, como cenário, atuação, angulação, dentre outros, para que a mensagem
seja transmitida.
A ciência das linguagens é a Semiótica, e é por intermédio de seus conceitos sobre
tradução de linguagens que será possível traçar semelhanças entre obras de formatos distintos
que se relacionam por traços culturais, pois, segundo Santaella (1983, p. 13), o objeto de
estudo da semiótica são todas as linguagens possíveis, ou seja, investiga qualquer fenômeno
como fenômeno de produção de significado e de sentido. Sendo o texto escrito ou visual, pode

4
SANTAELLA , Lúcia. O que é semiótica. 1. ed. [S. l.]: Editora Brasiliense, 1983. v. 103.

20
haver nele mensagens que dialoguem entre si, pela intertextualidade e/ou ser uma tradução
intersemiótica.
A tradução surge de uma necessidade de adaptação da comunicação na tentativa de
estabelecer contato com diferentes línguas, povos e culturas. Nos seus primórdios, era
entendido que quanto mais fiel ao texto original, mais bem executada fora a tradução,
principalmente em casos de trabalhos escritos, ou seja, devia ser o mais próximo do texto
“original”, o que é compreensível se destacarmos os textos autoritários, como Bíblia e
Alcorão. Porém, em outras diferentes obras, a tradução dotada de contextualização pode
enriquecer ou facilitar a compreensão da mensagem pelo receptor. Diniz5 (1999, p.29) disserta
sobre: “Em outros menos centrais e menos autoritários, tolera-se uma tradução menos fiel,
porém ocasionalmente mais bem elaborada. E é aí que entra a questão do aperfeiçoamento da
linguagem pela cultura receptora, já que não se está julgando a correspondência ao original”.
Ao cogitar a tradução de uma obra, há categorias externas ao texto que devem ser
elaboradas, pois, assim como o discurso que é influenciado e marcado por ideologismos, ao
traduzir um texto “origem”, devem ser compreendidos a vontade e o local do tradutor com o
seu trabalho, pois fatores culturais que ele carrega poderão transparecer no resultado do
texto-alvo. Diniz elucida sobre o método de tradução descrito por Lefevere:
A essas três categorias que vão além do texto, apontadas como base para análise de
qualquer tradução - conhecimento , credibilidade e autoridade - ainda podemos
acrescentar mais duas: a imagem de um texto, autor ou cultura que o tradutor,
consciente ou inconscientemente, quer projetar, e a audiência, ou seja, o público
leitor, o grupo de leitores a quem a tradução se destina e que querem a tradução por
razões diferentes.
(DINIZ, 1999. p. 29 APUD LEFEVERE, 1992a)

Traduzindo a obra de “origem” para “alvo”, embora estejam ligadas pela relação de
semelhança, não significa que é a mesma obra, pois o processo de tradução resulta numa nova
obra. Assim, é essa que pode conter o mesmo sentido e significado da de “origem”, porém, ao
sofrer a transformação, se torna uma obra independente, assim como a original. Em resumo, é
como se carregassem o mesmo DNA em essência, mas com traços que as diferenciam para
uma adaptação mais primorosa. Diniz assevera (1999):
(...) dois textos considerados como tradução um do outro, um filme e uma peça de
teatro, são obras inteiramente independentes, sui generis, mas, ao mesmo tempo,
intimamente relacionadas. Como resultado do processo transformacional, surge uma
estrutura totalmente nova. E o texto tem de ser visto como uma obra autônoma que

5
DINIZ , Thaïs Flores Nogueira. Literatura e cinema: Da semiótica à tradução cultural. Ouro Preto, Minas
Gerais: Editora UFOP, 1999. 190 p.

21
não pode ser adequadamente compreendida e julgada, se tomada apenas como uma
transformação da outra.
(DINIZ, 1999, p. 32)
Nessa perspectiva, tornar-se uma composição independente não deve ser algo
relacionado a um aspecto ruim, tendo em vista que suas particularidades são escolhidas por
um propósito, comunicar-se com um novo público. Ao traduzir um poema para o audiovisual,
por exemplo, é permitido atualizar a forma de linguagem e, consequentemente, expor um
novo olhar sobre o “passado”, que se faz presente na sociedade contemporânea. Diniz sobre a
transformação da linguagem:

O século XX mostra-se rico em manifestações que procuraram maior integração


entre as artes. Uma mostra dessa riqueza subjaz ao interesse no estudo das
inter-relações com elas. Nesse contexto, a tradução intersemiótica - do texto para o
palco ou do teatro para o cinema, por exemplo - em qualquer situação consistiria na
procura de equivalências entre os sistemas. Isso quer dizer que um elemento x que
ocupa um determinado lugar num determinado sistema de signos, o teatro, por
exemplo, seria substituído na tradução por um outro elemento x que exerça a mesma
função, porém no outro sistema de signos - o cinema, em outro caso.
(DINIZ, 1999, p. 32)

Com base nisso, a autora de Literatura e cinema expõe que, ao compreender a tradução
como transformação, propõe enxergar a tradução como ação de produção, isto é, o tradutor
utiliza da obra original para “criar” perspectivas de transmissão da mensagem, utilizando da
cultura receptora para construir o elo com o leitor/espectador. Entender o sentido e significado
do objeto de investigação é tão importante quanto conhecer a cultura do receptor, haja vista
que são partes fundamentais para as transposições dentro dos seus respectivos sistemas
semióticos.
No momento em que não se considera mais a tradução como mimese, cópia do
original, mas sim como atividade voltada para as condições de produção e recepção,
a tradução passa a ser vista como transformação. Essa transformação pode ocorrer a
partir da cultura receptora, que passa a ser o foco das atenções, e se distancia da
cultura de origem. Mas pode ocorrer numa via de mão dupla, partindo
simultaneamente das duas culturas, a receptora e a produtora.
(DINIZ, 1999, p. 38)

A tradução de composições de linguagens DIFERENTES é um trabalho minucioso,


delicado e detalhista, pois deve ser executada com um conjunto de fatores para que se torne
uma adaptação coesa e de acordo com o sentido base. Na tradução de uma obra literária para
um filme, há elementos que possibilitam a inserção da intertextualidade, estabelecendo
tradução por semelhança, ou seja, SÃO obras “distintas” de tempos adversos que trazem a

22
mesma temática, mesma mensagem, pois se atêm a contextos e culturas. Apresentando a
adaptação fílmica como tradução, Diniz ressalta:
(...) todo filme deve ser estudado como um conjunto de elementos de práticas
discursivas (ou comunicativas, ou semióticas), cuja produção foi determinada por
outras práticas discursivas prévias e pelo contexto histórico geral. O estudo da
adaptação consiste pois em encontrar e explicar as relações entre as práticas
discursivas e seus contextos respectivos (sociocultural, político e econômico); em
descobrir quais as práticas de transfer que têm (ou não) funcionado como adaptação,
tradução, paródia; e por fim, em explicar por que tudo isso ocorreu da maneira como
ocorreu.
(DINIZ, 1999, p. 43)

No presente trabalho, pretende-se desenvolver e evidenciar os conceitos de


inter-relação nas obras Vidas Secas, de Graciliano Ramos, de cunho literário, e Bacurau, de
Juliano Dornelles e de Kleber Mendonça Filho, de cunho cinematográfico, que não carregam
propriamente uma dita relação de tradução direta, mas possuem em essência uma relação de
semelhanças por outros elementos diferentes de apenas tradução legítima de um texto.
(Mesmo que os estudos de tradução (e de adaptação) dividam, com a literatura
comparada e as teorias de intertextualidade, o método e o campo de trabalho, a
definição histórica do objeto de estudo ainda indica a especialidade relativa da
disciplina. Assim o conceito de adaptação fica limitado aos textos que funcionaram
como adaptação/tradução e seu campo de trabalho reúne as práticas discursivas e os
contextos situacionais. O objetivo é o estudo sistemático das relações intersemióticas
entre essas práticas discursivas e seus contextos.
(DINIZ, 1999, p. 43)

4. Diálogo intertextual entre Vidas Secas & Bacurau

4.1. Análise crítica do discurso

A análise crítica do discurso pelo modelo tridimensional é um artifício significativo


para pesquisas que visam compreender e analisar o discurso com foco nas mudanças sociais.
Para Fairclough6 (FERNANDES APUD. FAIRCLOUGH 2001), o discurso, em sentido de
prática social, se apresenta em modo de ação e em modo de representação, logo, como as
pessoas agem e representam sobre o mundo e em relação a outras pessoas; e a relação
dialética entre discurso e estrutura social. 

6
FAIRCLOUGH, Norman. Language and power. 2. ed. Harlow: Pearson Professional
Education, 2001.
23
O modelo tridimensional é dividido, como o próprio nome sugere, em três esferas de
análise, sendo elas: o texto; a prática discursiva; e a prática social. Na dimensão do texto, a
análise crítica do discurso pode ser examinada pelo âmbito da metafunção interpessoal, que
foca a análise da construção social e das identidades, e/ou no âmbito da
metafunção ideacional, que foca a construção social da realidade, ambos por meio da escolha
de Lexicalização e de transitividade. Na prática discursiva, são analisados por meio da
interpretação aspectos diversos, como a intertextualidade, interdiscursividade e coerência, em
um plano mais amplo das diferentes vozes e discursos em um mesmo texto. Por último, na
dimensão da prática social, a análise engloba o estudo ideológico, as estruturas de poder e a
hegemonia no discurso. 
A Análise Crítica do Discurso é composta por categorias de extrema relevância nesse
estudo e serão utilizadas nesse trabalho, como ideologia e hegemonia, evidenciando o
controle interacional. Na metafunção interpessoal, as interações comunicativas são as
características que ditam a análise, pois, segundo Fernandes7 (2014. P. 96), essas
especificidades podem fornecer informações sobre relações de poder assimétricos que
permeiam diversos gêneros. Nessa feita, tem-se, por exemplo, a “Tomada de turno”, elemento
que determina a organização de quem fala e quando fala, sendo o fator determinante que
estabelece a relação de poder, em sua maioria assimétrico.
O conceito de Ideologia ainda gera alguns debates por sua abrangência de significados,
e, para Fairclough, como expõe Fernandes, “a ideologia está presente tanto nas estruturas, que
constituem “o resultado de eventos passados e as condições para eventos atuais”, quanto nos
eventos, “que reproduzem e transformam as estruturas que os condicionam” (FERNANDES
2014, P.122 APUD FAIRCLOUGH 1994 P.89), sendo importante ferramenta de articulação de
discursos e intensificadores políticos e sociais.
Na análise crítica do discurso, entende-se a correlação de hegemonia com poder, pois
está presente direta e indiretamente na estrutura de prática social, podendo estar “no” discurso
ou “por trás” do discurso. Poder esse que também usa a linguagem visual como ferramenta de
comunicação, como expõe Charaudeau8:

7
FERNANDES, A. C. O modelo tridimensional para análises de discurso críticas. In:
_______. Análise de discurso crítica: para leitura de textos da contemporaneidade. Curitiba:
Intersaberes, 2014.
8
CHARAUDEU, Patrick. Discurso das mídias/ Patrick Charaudeau; tradução Angela M.
S. Corrêa. 2. ed., 2ª reimpressão. - São Paulo: Contexto, 2013.
24
As mídias são criticadas por constituírem um quarto poder; entretanto, o cidadão
aparece com frequência como refém delas, tanto pela maneira como é representado,
quanto pelos efeitos passionais provocados, efeitos que se acham muito distantes de
qualquer pretensão à informação. (CHARAUDEAU, 2013, p. 13)

4.2. O mundo coberto de penas

Uma obra de 1938, de cunho regionalista escrita por Graciliano Ramos9, autor
alagoano renomado, aborda em seu caráter romancista a (sobre)vivência de uma família de
moradores do sertão nordestino e a busca por uma vida digna, humanizada, longe do anseio
dos voos dos pássaros e do olhar serrado dos urubus.
Em Vidas Secas, é narrada a jornada de Fabiano, de sua esposa Sinhá Vitória, de seus
dois filhos, o mais velho e o mais novo, e da cachorra Baleia. No período de seca, eles são
obrigados a procurar um lugar que proporcione condições mínimas de sobrevivência. Entre
“andanças” pelo chão vermelho de terra batida, encontram uma fazenda que, a princípio, está
abandonada e estabelecem residência. Na esperança de dias melhores, Fabiano sonha com o
pasto, com as vacas. A família volta a acreditar que não estão sozinhos, há fé. Com o retorno
da chuva, não foi a grama que retornou, mas sim o dono da fazenda, até então abandonada, e
o retirante volta ao seu lugar de subordinado, a função de vaqueiro.
A família faz planos e sonha com um futuro mais abastado, todavia, aos primeiros
sinais de nova seca, são acometidos pelo temor do esperado, a mudança, a angústia de ter que
se lançar à própria sorte em busca de novo refúgio, de uma nova cama sem nó, na qual se
permita sonhar com um futuro mais humano para os filhos.
A questão da linguagem é devidamente evidenciada no texto, desde a escolha da
escrita do autor, que é muito próxima na forma oral, marcando o regionalismo, até a
construção do imagético feito pelos personagens, como a descrição da forma de comunicação
gestual da família e dos sonhos de uma cadela. Em sua obra, Graciliano usa de diversos
arquétipos de linguagens e, com isso, consegue ilustrar ao leitor diversas formas de discursos
assimétricos e como eles influenciam e se comportam na prática social.
O pai da família, Fabiano, tem grandes anseios com a língua, admira seu Tomás da
Bolandeira, mas não consegue entender como um homem dos jornais tivera aquele fim, que

9
RAMOS , Graciliano. Vidas Secas: 1892-1953, Graciliano Ramos; posfácio de Marilene Felinto. 89. ed. Rio de
Janeiro: Record, 2003.

25
julgava ser o de um homem bruto, de estômago doente e com as pernas fracas diante da seca
do sertão.
A bem do raciocínio, Fabiano se aproximava mais dos bichos do que de humanos, não
gostava de estar em situações de enfrentamento por meio da língua. Dessa lógica, na visão
dele, ela só servia para enganá-lo, de forma que o fazendeiro usava dessa ferramenta somente
para fazer as contas, e utilizava vez ou outra ao longo do dia palavras como “juros” no seu
trabalho, especificamente com seu Inácio da bodega da cidade, bem como em seus preços que
variam, e, principalmente, com autoridades, como no caso do Soldado Amarelo. Os homens
da cidade, o ambiente e a língua “pomposa” falada lá o intimidavam, pois, como Graciliano
(1892-1953) descreve, o homem bruto até conseguia cantar de galo na caatinga, mas na rua se
encolhia.
Sinhá Vitória era astuta, e Fabiano admirava e entendia que ela tinha visão sobre as
coisas que lhe aconteciam, e questionava o destino fatídico da mulher, que tinha como sonho
uma cama com amarrações em couro, como a de seu Tomás da Bolandeira. A matriarca era
expressiva, e, por mais que a família não fosse muito audível, havia comunicação. Sinhá
Vitória respondia-lhe com sons guturais, apontava com os beiços ou sinalizava com o corpo
inteiro. Guardava os sapatos de festa, que, mesmo machucando-a, gostava de como se sentia
ao calçá-los. Sentia-se como as moças da cidade devido àquilo, e, em ocasiões especiais,
portava um guarda-sol fechado. Sinhá Vitória sabia da importância da imagem para os
ambientes da cidade, a mulher que (sobre)vivia em meio à caatinga queria ser vista, queria ser
humanizada, queria ser digna.
O filho mais velho era curioso, tinha vontade de entender as palavras, “falar bonito” e
queria que os pais falassem mais. Diferentemente de Fabiano, que quer e se distancia, o
menino não vê a língua como algo que se deva evitar, mas a pouca exposição à prática o
colocava em situações curiosas, como quando ouviu a palavra “inferno” e achou bonita, ou
quando, ao redor do fogo, tenta desvendar a história contada por seu pai e, ao questioná-lo,
reflete sobre a veracidade por trás do discurso. O menino vê na mãe uma possibilidade maior
de sanar o seu desejo, pois julga que ela é menos bruta do que o pai, e também recorre à
cadela, Baleia, por considerá-la mais expressiva e “falante”.
O filho mais novo já se aproximava mais da imagem do pai, o homem trajado em
couros, com as rosetas polidas na bota sob um cavalo. O jovem menino naquele então busca
coragem no imagético do pai, montando em um cabrito para orgulhar a família. No entanto, a

26
tentativa não sai como o esperado e ele se retira, reprime seu descontentamento, não
comunica, em um padrão similar ao de seu patriarca.
Baleia, a cadela mediadora, estabelece pontes de comunicação, e, em algumas
situações, é o canal mais próximo da linguagem. A cadela fala com os olhos, com o balançar
do rabo, focinho e nos pequenos saltos, quando necessário. Baleia faz parte da família e é uma
exceção à parte, pela sua característica que se contrapõe aos outros integrantes.

4.3. O pássaro noturno

Bacurau (2019), o filme de Kleber Mendonça Filho e de Juliano Dornelles10,


apresenta em linguagem visual o que Aristóteles define como catarse (katharsis), algo como
“purificação” da alma e do corpo, que, motivada por uma situação traumática, gera uma
descarga emocional.
A obra cinematográfica é composta por uma integração dos gêneros de aventura,
ficção científica e ação com estética fílmica dos faroestes hollywoodianos, situada no sertão
nordestino, com personagens compostos de características presentes no imaginário brasileiro,
dos guerreiros da caatinga. O filme narra a história de um povoado no meio de Pernambuco,
que está sendo acometido por uma crise hídrica, e, sem amparo de políticas públicas, precisa
se organizar para viver quase de forma independente, haja vista que são colocados como
“invisíveis”, fora do mapa. O filme apresenta diversos núcleos, e a articulação de discurso e a
hierarquia social acompanham essa mudança, explicada no recorte descrito a seguir, presente
do minuto 57:00 até 1:05:00.
Ao chegar ao local determinado pelo grupo de estrangeiros, os dois brasileiros se
sentam em volta da mesa com eles para discutir como foi a execução de cada grupo em cada
missão dada. Cada grupo reporta o sucesso de suas missões, enquanto que os dois brasileiros
observam atentamente todos falarem em inglês, o idioma predominante de cada integrante ali.
É importante ressaltar o desconforto do líder ao ouvir o idioma daquela região, que é o
português. Ao mencionar a missão, um dos estrangeiros questiona o grupo de brasileiros, se as

10
BACURAU. Direção: Juliano dornelles; Kleber Mendonça Filho. Roteiro: Kleber Mendonça filho;
Juliano Dornelles. Brasil; França: Ancine; Arte France Cinéma, 2019. DVD.

27
duas pessoas mortas foram ou eram amigas do casal. Sem embargo, o homem afirma que:
“Amigos não matam amigos no Brasil”.
E então, há uma série de questionamentos quanto à origem dos dois e eles afirmam
que vieram do Sul, além de relatarem que esse estado recebe influências alemãs e italianas;
sendo, inclusive, uma região muito rica. Os dois brasileiros afirmam ser iguais aos
estrangeiros por obterem fortes influências de outros países e voltam a ser motivo de piada,
por se acharem superiores aos moradores de Bacurau, tal como por acharem que estão perto
de serem iguais aos estrangeiros.
A cena inteira é marcada pelo controle de retomada do discurso vindo do grupo,
principalmente do líder, que deixa explícita a ordem de hierarquia social naquele ambiente, e
também a postura de submissão do casal brasileiro para com eles, diferentemente da postura
em relação aos naturais da cidade Bacurau. Nesses termos, Souza11 disserta sobre o racismo
culturalista da seguinte forma:
O racismo culturalista passa a ser uma dimensão não refletida do comportamento
social, seja na relação entre povos, seja na relação entre classes de um mesmo país.
Um brasileiro de classe média que não seja abertamente racista também se sente, em
relação às camadas populares do próprio país, como um alemão ou um americano se
sente em relação a um brasileiro: ele se esforça para tratar essas pessoas como se
fossem gente igual a ele. (SOUZA, 2019, p. 20-21)

No discurso, é perceptível, desde a dimensão do texto, que existe uma assimetria de


poder, e todo discurso tem a intenção de transmitir uma mensagem. Desse modo, consoante
Charaudeau, “A informação é essencialmente uma questão de linguagem, e a linguagem não é
transparente ao mundo, ela apresenta sua própria opacidade, através da qual se constrói uma
visão, um sentido particular do mundo”. (CHARAUDEAU, 2013, p. 19).
Na dimensão da prática social, a ideologia é marcada por variados modos. No discurso
detentor do poder, é perceptível a presença constante do modo de união com a estratégia de
padronização e a de simbolização de união, sendo essas que buscam legitimar as relações de
dominação, por meio da defesa de uma linha de raciocínio de poder defendido por uma forma
de unidade que une um coletivo com semelhanças. Por exemplo, no discurso do casal, é muito
presente o modo de legitimação por racionalização e narrativa, pela busca do pertencimento e
do acolhimento daquele grupo. Para tanto, reforçam o modo de fragmentação de sua
identidade para o povo de Bacurau, aplicando a diferenciação, sendo que o casal não enxerga

11
SOUZA, Jessé. A elite do atraso: Da escravidão a Bolsonaro. ed. atual. e aum. Rio de Janeiro: Estação Brasil,
2019.

28
que essa relação já está presente, só que eles são os objetos a serem diferenciados pelos
estrangeiros que não veem como eles se descrevem. 
A tentativa de descrição das colonizações europeias que o Sul teve como ponte de
semelhança evidencia a falta de conhecimento e de pertencimento identitário que o casal
sofre, até mesmo a falta de consciência de classe deles para o povo de Bacurau. Assim sendo,
é lembrado a todo momento pelos estrangeiros em suas falas para com eles que o casal não
faz parte do grupo e que os brasileiros não são como eles na escala de nível e de poder, como
é enfatizado pela fala de Michael, quando pede que não falem “brasileiro” no ambiente em
que estão. 
Sendo assim, é possível notar a tentativa de se encontrar com aquele povo e de se
encontrar de alguma forma. Aliás, povos estrangeiros dentro do Brasil é sinônimo de
prestígio. Com isso, é possível observar que a falta de identidade e até mesmo a consciência
de classe entre o casal permanece, ao não saber suas raízes, seus traços e até mesmo a sua
história. A partir do filme, é possível refletir e perceber que o povo brasileiro continua sem
saber de onde vem, em vista de que a obra expõe a necessidade e importância de saber a sua
história, de construir e de disseminar a sua identidade cultural, fortificando suas raízes e
discursos entre seu povo e mundo.

5. A rota dos excluídos

Sabe-se que a cultura é um elemento decisivo para que uma tradução seja feita. Por
isso, em conjunto com os equivalentes intersemióticos, é possível estabelecer o conceito de
tradução por semelhança, sem necessariamente prestigiar o conceito de fidelidade. Nessa
última seção, há o desejo de traçar os elementos equivalentes por semelhança entre as obras
citadas previamente, isto é, Vidas Secas, de Graciliano Ramos, e Bacurau, de Kleber
Mendonça Filho e Juliano Dornelles. Nesse sentido, ambas dialogam sobre temáticas
similares. O filme apresenta ao espectador, por meio de estilização, assuntos que já são de
conhecimento popular de uma forma catártica, como se fosse o segundo ato e o livro o
primeiro, por serem complementares.

29
No livro, é elaborada a ideia de humanos "animalescos" na visão estrutural social. Ao
não se enxergar como digno de humanidade, Fabiano se sente acolhido no pelo dos bichos,
sua brutalidade é tida como característica vexatória e marginalizada, como fica claro em
situações que se passam na cidade, local de grande desconforto ao personagem, pois não se
sente parte da mesma esfera social. No filme, essa questão é desenvolvida pelo arco entre os
estrangeiros imperialistas, os nativos (o povoado de Bacurau) e a estrutura de poder (prefeito).
Na relação Política pública e povo, tem-se o fato de que o prefeito “vende” o povoado para
um jogo de caça humana para os estrangeiros, nivelando-os como caça animal esportiva,
desumanizando toda uma comunidade, que para ele só é prestigiada em ano de eleição. E na
relação estrangeiros e povoado, é nítido que o vilarejo é tido como algo inferior, que aqueles
seres humanos não são dignos de vida, e muito menos estão no nível deles, visto que, em uma
das cenas, Jake comenta com o grupo que quase matou pessoas na sua terra, mas Deus o
poupou dessa barbárie e concedeu a ele essa oportunidade de marcar “pontos” em Bacurau.
A família de Fabiano e o povo de Bacurau são exemplos de abandono de políticas
públicas, que, ao enfrentarem situações de adversidade, têm de se organizar de forma
independente para sobreviver, pois só têm a eles mesmos. Devido ao cenário cá exposto, vale
acentuar ao povo nordestino que o sertão é sinônimo de resistência popular, potência e de
independência estrutural.
A figura do pássaro é presente em ambos os trabalhos. No texto de Graciliano, os
pássaros são o aviso de que a seca está por vir novamente, e, na obra fílmica, o pássaro é o
símbolo da cidade, Bacurau é um pássaro de hábitos noturnos, atento como o povo da cidade.
Se no livro a presença dos pássaros lhes causa temor, pelo o que esperam à frente, no filme
esse temor é ressignificado pelo povo do sertão, que, ao entender que são os detentores do
poder cultural, se defendem de forma inteligente e organizada, assim como o pássaro sai à
caça pelo breu da caatinga.
No início das narrativas, ambas são marcadas por símbolos mórbidos. É possível notar,
com a chegada de Teresa em um caminhão-pipa pela estrada de Bacurau, que o local está
cheio de caixões largados, evidenciando a situação em que o povoado se encontra. Em Vidas
Secas, não muito distante, a obra tem início com a família em busca de um novo abrigo, e,
para isso, andam pelo sertão em meio às carcaças que não sobreviveram. E sinalizando que a
prudência deve ser algo que se carrega com muita estima, de modo que em todo canto há risco
iminente, seja pelo corte de água ou pela aparição do fazendeiro, o sertanejo só tem o sertão.

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Domingas e Sinhá Vitória são personagens que detêm a figura da mulher nordestina, a
mulher potente, que articula as tarefas e passos para que se possa caminhar. Carregam suas
mazelas, mas não amolecem, são pilares fundamentais para que homens como Fabiano
saibam a quem recorrer quando precisam se organizar. Em Domingas, nota-se a imagem de
uma agente de saúde, que zela iniludivelmente pelo povo. As duas possuem trejeitos broncos,
e isso não as faz menos humanas ou capazes. São mulheres que dialogam e entendem a
brutalidade do sertão em essência.
Tony Junior, os sulistas e Soldado Amarelo, o prefeito da cidade, são parte do poder
público e que deveria viabilizar uma vida mais digna para o povoado. Em contrapartida, só
aparecem para trazer desserviço aos nativos, com remédios sem prescrição, alimentos
vencidos e os livros que são levados em um caminhão e jogados como entulho. Toda essa
articulação esdrúxula, no olhar do prefeito, é uma grande feitoria para seu “eleitorado”. Com
o Soldado Amarelo, Fabiano conhece o lado sórdido da política, o homem da “lei” utiliza da
inocência, subordinação e da falta de letramento do homem bruto para tirar vantagem, e se
apoia em seu cargo para conseguir o que quer, colocando o personagem em um situação
vexatória e de vulnerabilidade. É na cadeia que Fabiano questiona para que e quem serve a
lei/política.
Após matarem o casal sulista, João e Maria, o grupo de caçadores descobre que João é
servidor público do governo brasileiro, um homem que facilitou mortes de seus compatriotas
para um grupo de extermínio que fazia parte do lado que deveria resguardar a segurança do
povo, ratificando a posição entre Estado e o sertanejo.
O foragido, Lunga, é uma espécie de justiceiro do nordeste. Ele é a personificação dos
pensamentos podados de Fabiano e sua família. Lunga é desejo de transformação,
organização. Quanto ao pássaro Bacurau, é atento, astuto, perspicaz e promove a
movimentação de adaptação pela sobrevivência, de proteção pelo que se tem. Lunga está na
movimentação de mudança, assim como os pensamentos de Fabiano sinalizam quando é hora
de seguir, pois ambos carregam memória, mas sabem da importância da ação sem olhar para
trás, do sentimento do que tem que ser feito. Para Fabiano, é a morte da cachorra, a dúvida de
“e se passar para os meninos?”. A morte também é defesa.
O museu de Bacurau é o simbolismo palpável da memória cultural de um povo, a
construção de identidade popular, e que quando é preciso, deve-se olhar para suas raízes, para
se fortalecer e para poder seguir, já que um povo consciente de sua história é um povo

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fortificado. Entendem quem são e o que deve ser feito. A espingarda de Fabiano é memória, é
memória do pássaro caindo, da perda da cachorra Baleia, e a certeza de que há muito a se
defender, portanto, seguir.
Após um atento percurso teórico e análise fílmica das obras, foi possível estabelecer a
relação das obras. Mesmo não sendo traduções diretas, ambas apresentam problemáticas
similares em correspondência que atravessam o tempo e dialogam com o receptor
contemporâneo, visto que o sertão é o seu próprio “bioma”, ele se reestrutura dentro das
estruturas sociais. Essa movimentação é possível por intermédio da língua, sendo ela, em
grande parte, ferramenta de reprodução de um discurso sistêmico e segregador, acaba por
dificultar o conhecimento do conceito de identidade cultural para aqueles que são
invisibilizados e fadados apenas à sobrevivência.

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