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TECENDO VOZES:
Estudo sobre a partilha de saberes femininos no espaço da biblioteca
JUAZEIRO DO NORTE
2022
SAUANNY DE OLIVEIRA LIMA
TECENDO VOZES:
Estudo sobre a partilha de saberes femininos no espaço da biblioteca
JUAZEIRO DO NORTE
2022
SAUANNY DE OLIVEIRA LIMA
TECENDO VOZES
Dissertação apresentada ao
Programa de Pós-graduação em
Biblioteconomia, da Universidade
Federal do Cariri, como requisito
parcial para obtenção do título de
Mestre em Biblioteconomia. Área de
concentração: Informação, cultura e
memória.
BANCA EXAMINADORA
_____________________________________________
Prof. Dr. Luís Celestino de Franca Júnior (Orientador)
Universidade Federal do Cariri (UFCA)
_____________________________________________
Prof.ª Dr.ª Camila do Espírito Santo Prado de Oliveira
Universidade Federal do Cariri (UFCA)
_____________________________________________
Prof. Dr. Luiz Manoel Lopes
Universidade Federal do Cariri (UFCA)
_____________________________________________
Prof.ª Dr.ª Regiane Lorenzetti Collares
Universidade Federal do Cariri (UFCA)
.
Ao longo da maior parte da História,
‘anônimo’ foi uma mulher
(Virginia Woolf)
AGRADECIMENTOS
A Deus(a) agradeço ao dom da vida, força e persistência de todos os dias.
A minha família por todo apoio e carinho de sempre, estes são
fundamentais na minha caminhada. Em especial a minha amada mãe, Solange
Oliveira tão presente em todos os momentos, sempre me incentivando e sendo
minha maior inspiração. Ao meu pai Juscileno de Lima por todo apoio. Ao meu
irmão Saymon por toda parceria e ao meu irmão Ruan, que se mantém vivo
todos os dias em minha mente, alma e coração.
Aos verdadeiros amigos que fazem os dias serem mais leves.
Meu imenso agradecimento à bibliotecária, Liliane Gomes, pois sem ela
este projeto não aconteceria da forma que foi realizado, ela foi a ponte entre mim
e o Colégio Salesiano, para que pudéssemos fazer juntos essa união e difundir
ainda mais o projeto, pela sua confiança, organização e cumplicidade meu
imenso muito obrigada.
Aos mediadores do Tecendo Vozes que se dispuseram a fazer parte
desse projeto de forma gratuita, somando imensamente com os seus
conhecimentos e formando assim um imenso debate, uma grande troca de
experiências. Uíni Barros, Pablo Soares, Rodolfo Santana, Monique Aires,
Anderson Maia, Luiz Celestino, Eliete Bezerra, Jade Luiza, Suellen Lôbo e Kleber
Fidélis. Deixo aqui minha gratidão, sem vocês esse projeto não teria acontecido
com adições tão únicas e preciosas.
Ao psicanalista Ádamo Brasil e ao meu companheiro Felipe Fernandes,
agradeço por serem fundamentais na minha rede de apoio, pois não é fácil se
desnudar sobre temas tão íntimos, fortes e muitas vezes doloridos, sem terapia
e acolhimento. O trajeto de recontar histórias de mulheres, e recontar a minha
própria, em diversos momentos põe o dedo na ferida, ao mesmo tempo que a
cicatriz. Este projeto tem essa dupla função para mim e espero que ele possa
tocar outras pessoas sobre os temas abordados.
Ao Prof. Dr. Luís Celestino de Franca Júnior que me orientou durante essa
jornada acadêmica. Por toda partilha de conhecimentos, compreensão, incentivo
e imensa empatia, meu muito obrigado.
À banca examinadora, Prof.ª Dr.ª Camila do Espírito Santo Prado de
Oliveira, Prof. Dr. Luiz Manoel Lopes e Prof.ª Dr.ª Regiane Lorenzetti Collares,
agradeço por sua disponibilidade em somar com esta pesquisa, por
compartilharem suas impressões e imenso conhecimento.
À todas as mulheres que sobreviveram a violências domésticas, físicas e
como eu violência sexual, para estas mulheres eu sou imenso acolhimento e
gratidão.
Às mulheres escritoras, que contaram histórias reais ou fictícias, mas que
das duas formas deram voz a outras mulheres, que compartilharam os seus
gritos de sobreviventes, a estas sou orgulho e admiração. A maior missão do
Tecendo Vozes é ecoar, acolher e até mesmo desmistificar algumas questões
que por vezes são silenciadas socialmente. Nós nos recusamos a morrer
silenciadas no esquecimento. Avante!
RESUMO
1 INTRODUÇÃO
O projeto Tecendo Vozes nasce de uma proposta literária que visa incentivar a
leitura de textos escritos por mulheres, mas antes de adentrarmos os aspectos que
envolvem esta pesquisa, te convido a fazer um exercício. Imagine agora a sua estante
de livros, ou quaisquer aparatos em que você optou por guardar os mesmos, pense
estar passando a mão por seus livros favoritos, sentindo a textura de cada um,
observando as cores e tamanhos diferentes. Agora, observe um elemento específico
dos seus livros, o nome do autor ou autora que escreveu esta obra, pense naquelas
obras que mais te marcaram, não importa o gênero, vá elencando os nomes de
autores que escreveram tais textos, te darei um minuto para pensar, de olhos
fechados. Quais eram estes autores? Terminado o exercício fica uma questão, se
você tirasse todos os livros escritos por homens da sua estante, quantos sobrariam?
Seja qual foi o resultado do seu exercício, o projeto Tecendo Vozes busca
aumentar o número de escritos femininos na sua estante, é esta questão que dá norte
a presente pesquisa. Este projeto visa aumentar o repertório do leitor acerca de livros
escritos por mulheres, consistindo em uma reunião de pessoas em um espaço
vinculado a uma biblioteca, seja ele físico ou virtual, para debater textos produzidos
por mulheres e que contenham vivências de mulheres, sejam elas reais ou ficcionais.
Ao longo da história contemplamos diferentes visões sobre as mulheres, por
vezes contadas pelo sexo masculino. Porém, alguns destes olhares relatam o papel
feminino como protagonista, ou até mesmo autora da fala sobre si própria. A mulher
desempenha assim o papel de agente social da sua própria história (PERROT, 2008).
Esta pesquisa busca colocar a mulher como protagonista de narrativas no espaço da
biblioteca e aprofundar o debate sobre uma literatura produzida por mulheres, uma
escrita feminina.
1
A autora opta por escrever seu nome próprio em letras minúsculas, como forma de posicionamento político.
Ela afirma que: “o mais importante em meus livros é a substância e não quem sou eu” (HOOKS, 2009).
10
2 METODOLOGIA
3 MEMÓRIAS DE MULHERES
O que queremos ressaltar então acerca de uma prática que em tempos foi tão
comum como a de contar histórias, repassar os conhecimentos por meio da oralidade,
assumiu novas formas com o tempo. Embora, o uso da memória seja efetuado tanto
nas sociedades orais, quanto nas sociedades que utilizam a escrita. Estando a
memória em suas diferentes formas cotidianamente presente para os indivíduos
(LeGOFF, 1990). Dentro do contexto de memória e história temos como ícone do
suporte a informação a figura do livro, estando este sob a proteção do espaço da
biblioteca.
De acordo com Vieira (1983), assim se constitui uma biblioteca viva, capaz de
produzir cultura, crescendo o papel do bibliotecário socialmente, e assim,
remodelando também a relação com a memória social. Ao que concerne à biblioteca
universitária, esta foi criada no séc. XIII, devido a própria demanda dos alunos e a
doações dos nobres. Vemos então a ascensão da figura do(a) bibliotecário(a)
enquanto difusor(a) da informação (SANTOS, 2012). Por meio do projeto Tecendo
Vozes visamos abranger a figura do(a) bibliotecário(a), ao ser mediador de temas
como gênero e memória.
A memória que parece ser algo tão individual também deve ser entendida como
um fenômeno coletivo, construído pelas experiências sociais constantes. A
característica flutuante da memória faz com que fatos sociais passem a ser relevantes
na história de uma pessoa, marcando a sua essência. Na memória individual,
incluímos, excluímos, relembramos determinados fatos em detrimento a outros,
selecionando consciente ou inconscientemente nossas lembranças (POLLAK, 1992).
Observando o contexto de uma sociedade patriarcal em que a história é narrada por
quem vence, vemos as histórias de mulheres serem mediadas por uma hegemonia
masculina. Para esta pesquisa em questão optamos utilizar o conceito de memória
definido por Tedeschi, sendo ele:
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Dado isso, podemos observar que o meio em que vivemos vai alterar nossa
percepção dos fatos, assim como nossa visão particular afetará nossa memória
individual. Temos características particulares, cargas culturais, afetos por pessoas
singulares, que vão alterar como nos relacionamos com os fatos e lugares, alteram
nossa experiência, e consequentemente a memória resultante dessas ações.
13
Somos influenciados por uma série de caracteres que definiram como nos
relacionamos com determinados grupos (HALBWACHS, 2006). De acordo com o
autor, em um nível geral, os eventos que dizem respeito à maioria da comunidade
compõem uma memória coletiva. Ao passo que atravessam cada sujeito vão sendo
formadas memórias próprias, de acordo com a forma que o sujeito se apropria dos
dados. Segundo este mesmo autor, a memória coletiva constrói leis naturais. Esse
discurso de naturalização assume o poder de demarcar e de regular os discursos
(FOUCAULT, 1996). As ações resultantes desse processo reiteram o que foi dito e
ressaltado ao longo do tempo.
Explicar as categorias fundacionais de sexo, gênero e desejo como
afeitos de uma formação específica de poder supõe uma forma de
investigação crítica, a qual, Foucault, reformulando Nietzsche, chamou
de “genealogia”. A crítica genealógica recusa-se a buscar as origens do
gênero, a verdade intima do desejo feminino, uma identidade sexual
genuína ou autêntica que a repressão impede de ver; em vez disso, ela
investiga as apostas políticas, designando como origem e causa
categorias de identidade que, na verdade, são efeitos de instituições,
práticas e discursos cujos pontos de origem são múltiplos e difusos.
(BUTLER, 2013, p. 9).
A tomada de consciência acerca destes elementos, e das representações que
estes fazem, está presente na formação da memória individual. Neste contexto, outro
pesquisador que aborda a temática da memória é Le Goff (1990) sendo que sua base
se dá na memória documental. Para ele, a memória está figurando um dos fatores na
luta pelo poder social, e acrescenta ainda que o domínio de uma memória coletiva é
o desejo de uma classe que busca ser dominante dentro de um contexto social. Não
só a forma como se conta a história, mas os sujeitos que são silenciados, contribuem
na formação da memória coletiva. Assim, podemos observar a memória individual
como um ponto de vista sobre a memória coletiva de acordo com as relações
tramadas no espaço por cada integrante do grupo, e as influências sociais. A produção
das lembranças está ligada às relações em diversos ambientes, isoladamente e
também em conjunto, a memória é uma unidade composta por multiplicidades
(HALBWACHS, 2006).
Segundo Foucault (1979) se tem uma ordem do discurso que é ritualizada, para
se ter acesso a esta é necessário se fazer presente dentro de um circuito, em uma
relação de dominação entre diferentes poderes. Nas diversas sociedades estes
discursos são regulados, escolhidos, regidos, onde indivíduos são incluídos e
excluídos nesse sistema de apoderação. Estando relegado a mulher um papel
secundário ao homem.
14
porém com uma remuneração que chegou a alcançar um terço do salário recebido
pelos homens. Outro ponto, é que devido a condições precárias de formas de
manutenção a vida encontradas nesse contexto social, também podemos ver
mulheres como líderes de revoluções e protestos, até mesmo por comida, por verem
os seus filhos perecerem a fome (FEDERICI, 2017).
Ainda em um contexto histórico, de acordo com Silvia Federici (2017), em
meados do século XVI, vemos uma caça às bruxas, como medida do Estado para
manter uma proporção populacional. De acordo com a canção feminista “Abordo de
Estado”, que tem origem na Itália em 1971, as mulheres eram obrigadas a “produzir
filhas e filhos para o Estado”, este controle estatal provocava uma alienação sobre o
próprio corpo da mulher. O que se estende a diversos âmbitos da sua vida, como a
desvalorização do trabalho da mulher, e sua delegação para o espaço doméstico.
Fatos estes, que geralmente não estão citados em um contexto histórico, quando se
pensa na origem do capitalismo, em obras clássicas como a de Karl Marx.
Marx também reconheceu que “muito capital que aparece hoje nos Estados
Unidos, sem certidão de nascimento, é sangue infantil ainda ontem
capitalizado na Inglaterra” (ibidem, p.945). Por outro lado, não encontramos
em seu trabalho nenhuma menção às profundas transformações que o
capitalismo introduziu na reprodução da força de trabalho e na posição social
das mulheres. Na análise de Marx sobre a acumulação primitiva tampouco
aparece alguma referência à “grande caça às bruxas” dos séculos XVI e XVII,
ainda que essa campanha terroristas patrocinada pelo Estado tenha sido
fundamental para a derrota do campesinato euroupeu, facilitando sua
expulsão das terras anteriormente comunais (FEDERICI, 2017, p.120).
Essa mudanças históricas – que tiveram auge no século XIX com a criação
da figura da dona de casa em tempo integral – redefiniram a posição das
mulheres na sociedade e com relação aos homens. A divisão sexual do
trabalho que emergiu daí não apenas sujeitou as mulheres ao trabalho
reprodutivo, mas também aumentou sua dependência, permitindo que o
Estado e os empregadores usassem o salário masculino como instrumento
para comandar o trabalho das mulheres (FEDERICI, 2017, p.145).
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questão social das mulheres negras (HOLANDA, 1994). Vemos então que o
feminismo fez-se refletir sobre história e cultura.
Sendo assim, vemos que o modelo essencialista que havia sido proposto nos
séculos XVIII e XIX que propõe uma dominação masculina, ao ser refutado e debatido
abre espaço para um modelo mais igualitário, a partir de uma visão feminista. No que
concerne ao discurso feminista vemos a literatura como importante veículo de difusão
de ideias e ideais.
Ao passo que as autoras Rosália A. Cavalcanti e Ana Lúcia Francisco (2016)
revelam suas impressões em formas de palavras, suas vivências viram textos e o
feminismo se torna verbo a ser propagado entre os leitores. Para elas, artista vê aquilo
que não é possível ao sujeito comum e transforma suas impressões em palavras,
frases, textos e em verbos. “Esses verbos podem ser transformados em ações na luta
por uma sociedade melhor e mais justa” (CAVALCANTI; FRANCISCO, 2016, p.47).
No ensaio de Viginia Woolf, nomeado Um teto todo seu, a autora aborda
questões como o binarismo cultural e dominação masculina, bem como o fato de
algumas mulheres terem seus textos dados como anônimos, pela falta de espaço
dentro do contexto educacional, social e político. A autora profere um discurso
feminista em seu texto, problematizando questões como: A mulher pode ser escritora?
O que é ser escritora?
2
O livro citado é o clássico O segundo sexo, que tem como referência: BEAUVOIR, S. O Segundo Sexo: A
Experiência Vivida. Rio de Janeiro: Ed. Nova. Fronteira, 1980.
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É traçada uma linha de divisão entre o ‘nós’ atores que desempenham papel
de reforço dentro de uma tradição arraigada, e ‘eles’ que de acordo com as
representações culturais se integra ou se exclui (HALL, 2005). O simbolismo que é
atribuído a estes corpos tem repercussão que perpassa as relações pessoais, até a
divisão social de trabalho. Assim a dicotomia que é associada aos sexos como
cabeça/coração, resistente/ frágil, cima/ baixo, atividade/ passividade acabam
revelando uma postura por vezes negativas do próprio sexo (BOURDIEU, 2002).
Possuir uma identidade cultural nesse sentido é estar primordialmente em
contato com um núcleo imutável e atemporal, ligando ao passado o futuro e
o presente numa linha ininterrupta. Esse cordão umbilical é o que chamamos
“tradição”, cujo teste é o de sua fidelidade às origens, sua presença
consciente diante de si mesma, sua “autenticidade”. É, claro, um mito- com
todo potencial real dos nossos mitos dominantes de moldar nossos
imaginários, influenciar nossas ações, conferir significado às nossas vidas e
dar sentido à nossa história (HALL, 2003 p.29).
Para a oficina foi escolhida uma sala de aula para proporcionar aos estudantes,
diferentes momentos dentro da atividade. Um primeiro em que sentamos ao chão, em
formato de círculo, realizando uma dinâmica para nos conectarmos e trocarmos
conhecimentos. Já no segundo momento, cada aluno sentava em uma cadeira para o
processo de produção do fanzine, da forma que lhe fosse mais confortável e
interessante, já que conforme Gomes (2014):
3
SATRAPI. Marjane. Persépolis. Tradução: Paulo Werneck. São Paulo: Companhia das Letras, 2007.
SATRAPI. Marjane. Bordados. Tradução: Paulo Werneck. São Paulo: Companhia das letras, 2010.
4
ADICHIE, Chimamanda Ngozi. Americanah. São Paulo: Companhia das letras, 2014.
5
LEÃO, Ryane. Tudo nela brilha e queima. São Paulo: Planeta, 2017.
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ao longo deste relato. (III) A terceira parte foi a apresentação de livros elegidos pela
mediadora aos participantes, todos eles atendendo aos requisitos de serem
produzidos e contarem experiências de mulheres. (IV) Por fim, foi produzido um
fanzine6 pelos participantes com indicações de produções femininas na literatura, para
que este fosse posteriormente compartilhado com mais pessoas.
O mundo que nos é mostrado, não é um reflexo, mas uma refração (assim
como a informação). Isso significa que sempre veremos o mundo de maneira
deformada, a partir desses olhares? A chave é essa: são vários olhares e,
estes, nos permitem confrontá-los, estabelecer relações, identificar
interesses. O "nosso" olhar crítico possibilita uma aproximação com o real
(este é um termo complexo, mas, de maneira simplista, pode ser empregado
aqui). Em suma: nosso conhecimento se constrói mediado e, da mesma
forma, somos mediadores na construção do conhecimento dos outros
(ALMEIDA JUNIOR, 2015, p.11).
6
Fanzine é uma revista artesanal, produzida manualmente para compartilhar informações sobre um determinado
tema, escolhido pelos seus produtores. São feitas cópias, a partir da versão original produzida para serem
distribuídas ao público.
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integrantes, foi formado por pessoas com trajetórias, níveis de leitura, lugares de fala
e reflexão distintos. E, por isso, com anseios, discursos, sentimentos e necessidades
também diversas.
Para GOMES (2014) essa relação entre ética e mediação se fortalece na
medida em que relacionamos a atividade mediadora ao ato de cuidar, ou seja, aquele
que recorre ao profissional da informação precisa sentir-se acolhido dentro do
ambiente de pertença informacional. Por isso, na oficina, a mediadora apresentou-se
como tal, definiu claramente os objetivos e critérios do projeto e indicou as obras
escolhidas para dar início as discussões. Entretanto, nada esteve engessado. A
formação do círculo e a abertura de espaço de fala para todos os membros, de acordo
com as suas necessidades, criou um ambiente acolhedor, de cumplicidade e
companheirismo. Nenhum saber foi super ou subestimados, todas as contribuições
tiveram seu valor e foram relacionadas, somadas ou confrontadas por outros
discursos dentro do grupo, respeitando a pluralidade de vivências dos sujeitos.
Finalizando sua reflexão afirmando que o feminino compõe todos nós, “Todos somos
frutos de uma mulher, a água é feminina e ela nos compõe”.
Outro encontro que podemos citar como emblemático dentro do projeto, foi o
realizado no dia 08 de março de 2021, data em que é celebrado o dia da mulher. Neste
encontro tivemos a participação da advogada Monique Aires Lima, e da autora deste
projeto, Sauanny Oliveira. A edição teve como tema a violência contra a mulher e
contou com debate sobre as obras A Cor Púrpura, de Alice Walker e Crônica Elis, de
Sauanny Oliveira.
A advogada presente também esclareceu sobre lei de feminicídio no Brasil,
onde não se tem um caso específico que marcou o início da discussão acerca do
feminicídio, bem como sua introdução no ordenamento jurídico brasileiro. O que se
sabe é que o debate sobre ele já vinha sendo introduzido desde o início dos anos
noventa no âmbito dos estudos antropológicos e sociais voltados às teorias feministas.
A obra “Violência de gênero. Poder e Impotência” (SAFFIOTI E ALMEIDA, 1995), foi
uma das primeiras a abordar tal temática.
Mesmo não havendo um caso estopim que levou à iniciativa de um projeto de
lei ao Congresso Nacional para introduzir a qualificadora de feminicídio no Código
Penal brasileiro, o Brasil sentiu a necessidade de tal inovação através da grande
pressão estrangeira (tratados internacionais de qual o Brasil é signatário) diante dos
autos índices de violência contra a mulher no país. A lei nº 13.104 de 2015 foi
promulgada em 09 de março de 2015 para alterar o artigo 121 do Código Penal, bem
como o artigo 1º da Lei nº 8.072 de 1990 a fim de reconhecer o feminicídio como uma
nova qualificadora do crime de homicídio e incluí-lo no rol de crimes hediondos.
Monique Aires também abordou as diferentes formas de violência que uma
mulher pode sofrer, não com abusos físicos, mas como também de caráter
psicológico. Dentro deste contexto tivemos a leitura da crônica Elis, presente no Anexo
1 deste trabalho. Este texto possui caráter autobiográfico, e relata a vivência de uma
mulher que foi violentada sexualmente. A autora afirmou durante a edição do projeto
que o processo de escrita da crônica teve início dentro de um processo terapêutico e
a auxiliou no processo de lidar com o trauma sofrido.
Ao compartilhar o seu relato em forma de crônica a autora busca relatar a si
mesma, como forma de fortalecer outras mulheres que possam ter passado por
situações de violência semelhantes a sua. Bem como, abordar a importância da
denúncia em casos de violência contra mulher. O encontro foi o de maior alcance,
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A última edição citada aqui, será a que abordou o livro Memórias da Plantação
de Grada Kilomba. A bibliotecária que mediou o encontro, Liliane Gomes, abordou
que esta obra tem como objetivo descolonizar o pensamento, o conhecimento e
também a língua. Grada aborda nesta obra um racismo estrutural relacionado a
língua, a cultura, a memória, ao pensamento, buscando ter uma perspectiva bastante
abrangente sobre estes temas. Se referindo ao colonialismo como uma ferida que
nunca foi tratada, uma ferida que dói sempre, e que por vezes sangra. Segundo ela:
“Parece-me que não há nada mais urgente do que começarmos a criar uma nova
linguagem. Um vocabulário no qual nós possamos todas/xs/os encontrar, na condição
humana” (KILOMBA, 2019, p. 21).
“[...] A língua, por mais poética que possa ser, também têm uma dimensão
política de criar, fixar e perpetuar relações de poder e violência, pois cada palavra que
usamos define o lugar de uma identidade” (KILOMBA, 2019, p. 14). Essa citação se
relaciona intimamente com o intuito do Tecendo Vozes, já que observamos nesse
projeto a importância da fala, da palavra e da literatura como agentes
transformadores. Nesta obra a autora analisa histórias autobiográficas, que são
relatadas em forma de entrevista, de mulheres negras que moram em Berlim, lugar
onde desenvolveu sua tese de doutorado. Fazendo assim, do próprio livro, uma forma
7
O encontro está disponível através do link: <https://www.youtube.com/watch?v=nkgANBglXu8>.
33
6 CONSIDERAÇÕES FINAIS
Nada adianta ao leitor ter acesso aos livros, se não há a recepção dos textos
contidos neles por meio da mediação, seja ela informacional, tecnológica,
cultural, literária; utilizando-se dos recursos de comunicação impresso,
eletrônico ou oral (BORTOLIN, 2010, p.106).
REFERÊNCIAS
BEAUVOIR, Simone de. O segundo sexo: a experiência vivida. 2 ed. São Paulo:
Difusão europeia do livro, 1967.
BUTLER, Judith. (1993). Corpos que pesam: sobre os limites discursivos do “sexo”.
In: LOPES LOURO, G. (org.). O corpo educado: Pedagogias da sexualidade. Belo
Horizonte: Autêntica, 1999.
ONG, Walter J. Oralidade e Cultura Escrita. Tradução: Enid Abreu Dobránsky. São
Paulo: Papirus,1998.
PERROT, Michelle. Minha história das mulheres. 1 ed. São Paulo: contexto, 2008.
TELLES, Norma. Escritoras, escritas, escrituras. In: DEL PRIORE, Mary (org.).
História das mulheres no Brasil. 2. ed. São Paulo: Contexto, 1997, p.408-9.
WOOLF, Virgínia. Um teto todo seu. Rio de Janeiro: Nova Fronteira, 2004.
40
ANEXOS
Dizia toda orgulhosa enquanto via a neta correr pela rua cumprida. Mas aquele dia
não era qualquer dia, tinha festa, muita gente arrumada tentando manter conversas
sobre qualquer coisa do cotidiano: a conta de luz cara, fulaninho que morreu,
cicraninho que casou, e o filho do meio da Dona Maria, aquela que era casada com
Seu Zé, sim que morava ali no fim da rua e sempre dava ‘bom dia’ a todo mundo, o
filho do meio dela tinha entrado na faculdade e ido morar em São Paulo.
Enquanto isso Elis se preocupava mesmo era em pular corda, o mais rápido que
conseguisse, até que os seus joelhos lhe pedissem encarecidamente por um
descanso. Quem caísse perdia a vez, lembrava.
Limpando os joelhos, que lhe tinham sussurrado confessando que não aguentavam
mais, Elis viu de canto de olho o rapaz que morava perto da pracinha, aquele que
vendia sorvete, vir lhe ajudar a levantar.
-Foi só um pulo! – disse o rapaz - Isso já é hora de menina estar dormindo. Vamos
que eu te levo para casa!
Sem dizer nada, Elis obedeceu e foi com rapaz para casa. Abriu a porta que estava
apenas encostada, já que em dia de muito movimento não faz perigo, de acordo com
41
o raciocínio sempre exato da sua vó. Colocou o pijama e foi para a cama, mas aquele
dia não era qualquer dia, Elis só percebeu isso quando sentiu a mão quente do rapaz
por entre suas coxas, lhe tocando devagar, não entendeu, também não deu em
perguntar, ficou ali parada, inerte, esperando tudo acabar, o coração apunhalando
dentro do peito, fechou os olhos com força, logo vai acabar, adormeceu, ou apenas
esqueceu porque não queria nunca mais lembrar.
No outro dia Elis ainda era menina, sua maior preocupação dessa vez era comer os
docinhos, que sabia que avó tinha trazido da festa, antes dos primos chegarem. E ir
pular corda, sem cair, claro. Ao fim do dia se tivesse sorte e fizesse as tarefas podia
ir tomar soverte na pracinha, perto de casa.
***
Passaram-se muitos sorvetes, com eles os anos. Elis já não pulava corda, agora fazia
yoga, depois corria para o trabalho, a noite ia para a faculdade - às vezes para assistir
as aulas, outras só para conversar com os amigos no barzinho da esquina – ali ela se
sentia em casa. Nesse tal bar, tinha muita gente desarrumada tentando manter
conversas sobre qualquer coisa do cotidiano: o cinema, o feminismo, a identidade e o
ex namorado do Mário, aquele que fazia o curso de música, sim o Mário que é do
movimento estudantil e sempre dava ‘bom dia’ a todo mundo, o ex namorado dele
tinha sido aprovado no mestrado e ido morar no Rio.
E assim Elis ia seguindo, como uma feliz aquariana, mas que não acreditava em
signos. Até que num desses encontros, apareceu Fernando, que entre uma cerveja e
outra chegara ali, no seu apartamento. No princípio pensou ser uma imensa gentileza,
lhe levar em casa. Lhe botar na cama. Lhe tirar a roupa...
-Espera. Não! Não tira minha roupa! – Disse Elis, como num susto.
Elis se fez desperta, corou, lembrou da noite de sua infância. Disse que não, tentou
afastá-lo. Como queria agora não ser a menina magrela e ter uma super força.
Naquele momento se sentia como fagulha entre a carne, seu coração em brasa fervia
o corpo trêmulo, fechou os olhos, não adormeceu, ficou ali parada, inerte, esperando
tudo acabar.
42
No outro dia, Elis ainda era mulher, não haviam os docinhos da festa, nem o sorvete
na pracinha. Tomou um banho, esfregando com força cada parte do seu corpo,
tentando limpar por dentro.
-E se minha avó tivesse evitado? E se eu tivesse evitado? Dizem que dormir ajuda.
Mas como é que dorme quando os pensamentos desatinam a não parar, tão rápido
como ela desejara pular corda. E se? Olhando o relógio viu que estava atrasada para
yoga. Nada que a yoga não melhore, sussurrou para si mesma, tentando se
convencer.
Mas não conseguiu sair da cama, a primeira lágrima já tinha saltado do olho, depois
disso já não havia o que fazer, Elis transbordava. Sem nem perceber já estava
xingando os deuses, semideuses, não deuses, o universo inteiro:
- Não me disseram que um raio não cai duas vezes no mesmo lugar? Cadê a doutora
uma hora dessas? Um ano inteiro de psicanálise para isso. Porque isso aconteceu
comigo outra vez? Logo, eu. Eu que faço saudação ao sol, adoto cachorro de rua,
chego na hora no trabalho, nunca reprovei nada na faculdade, não como carne, já ouvi
todos os discos da Gal Costa, e dou ‘bom dia’ a todo mundo, logo eu.
Num impulso de raiva, levantou da cama para dar de cara com seu reflexo no espelho,
frente aquele rosto vermelho, e olhos inchados, viu o que a muito não conseguia
enxergar: Ela, em seu todo, uma mulher.
Achou-se injusta. Pensou em si, e nas mulheres que não eram ela, nas que não fazem
saudação ao sol, nas que não querem saber de bicho nenhum, nas que nunca foram
pontuais, nas que não sabiam ler e escrever, nas que amavam um bom churrasco, e
nas que por infelicidade nunca tinham ouvido falar em Gal Costa, ‘logo elas’, todas
elas. Elas e todas as outras que não tinham nada a ver com sua lista de argumentos
particulares indiscutíveis. Chegou à conclusão certeira: Ninguém, nunca, nenhuma
mulher devia ter que passar por isso.
***
já virou ação. Ao tentar nomeá-la nos damos com aqueles que dizem ser tomados por
revelações, iluminações, ou qualquer coisa que já estava ali, dentro de nós, esperando
aquela gota de coragem para nos fazer germinar. Tinha que se ter coragem, porque
dentro de si habitava o medo. Elis sentiu essa coragem dentro de si, como um soluço,
que quando se vê já está ali, que não surgiu do nada, mas tampouco se consegue
explicar com facilidade.
Elis botou roupa no corpo, sandália no pé, se sentiu muitas, perdoou-se por não ter
feito isso antes, e sentou-se em frente ao computador, ali escreveu:
“Ah, a vida
Dentro de mim
Eu grito!
Eu sou muitas
***
Ela não fez o poema, ele já estava feito dentro si, só brotou pelos seus dedos com
uma necessidade de ser lido, de ser reconhecido ao passar pela mão de suas iguais.
Literatura também é arma menina, cortante, potente, pulsante. Elis, decidiu que
naquele momento merecia uma pausa, pausa para celebrar a vida, porque era sim
uma sobrevivente, lembrou da doutora que uma vez já lhe salvara a vida:
-Cadê a doutora uma hora dessas, todos esses anos de psicanálise para isso! Agora
eu entendo, no fim das contas cuidar da mente é cuidar de si. Tive que escalar tudo
isso, para ver a fortaleza que me tornara.
Teve a certeza que merecia uma cerveja, daquele seu bar favorito que ficava no topo
de uma ladeira, parecendo proposital tal localização para aumentar a sede dos que
se aventuravam chegar até ali.
Enquanto subia a ladeira a mente divagava para desviar do esforço, finalmente Elis
sabia que a culpa não era da menina, nem da vó, nem de sorvetes em praças, ou
cervejas em bares. Uma imensidão de pensamentos para uma ladeira enorme, se
apoiava no poder das palavras; luta e liberdade. Elis sabia que não era a mesma, e
não tentaria definir o que se tornara, pelo menos não agora, agora ela fluiria dentro si,
ela se faria ser ouvida, teceria vozes, a sua e a de muitas. Já ouvia o som ligado no
bar, e o canto de Maria Betânia dizendo: “Não mexe comigo que eu não ando só”, e
assim continuava a subir, até encontrar o seu destino:
-Bel, me vê uma cerveja bem gelada, por favor. Que hoje é meu aniversário, hoje eu
nasci de novo, hoje é dia de celebrar!
Sauanny Oliveira
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ANEXO 2 – FANZINE
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