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UNIVERSIDADE FEDERAL DO CARIRI

CENTRO DE CIÊNCIAS SOCIAIS APLICADAS


PROGRAMA DE PÓS-GRADUAÇÃO EM BIBLIOTECONOMIA
MESTRADO PROFISSIONAL EM BIBLIOTECONOMIA

SAUANNY DE OLIVEIRA LIMA

TECENDO VOZES:
Estudo sobre a partilha de saberes femininos no espaço da biblioteca

JUAZEIRO DO NORTE
2022
SAUANNY DE OLIVEIRA LIMA

TECENDO VOZES:
Estudo sobre a partilha de saberes femininos no espaço da biblioteca

Defesa apresentada ao Programa de


Pós-Graduação em Biblioteconomia,
da Universidade Federal do Cariri,
como requisito parcial para obtenção
do título de Mestre em
Biblioteconomia. Área de
concentração: Informação, cultura e
memória.

Orientador: Prof. Dr. Luís Celestino


de Franca Júnior.

JUAZEIRO DO NORTE
2022
SAUANNY DE OLIVEIRA LIMA

TECENDO VOZES

Dissertação apresentada ao
Programa de Pós-graduação em
Biblioteconomia, da Universidade
Federal do Cariri, como requisito
parcial para obtenção do título de
Mestre em Biblioteconomia. Área de
concentração: Informação, cultura e
memória.

Data de aprovação: 30/03/22

BANCA EXAMINADORA

_____________________________________________
Prof. Dr. Luís Celestino de Franca Júnior (Orientador)
Universidade Federal do Cariri (UFCA)

_____________________________________________
Prof.ª Dr.ª Camila do Espírito Santo Prado de Oliveira
Universidade Federal do Cariri (UFCA)

_____________________________________________
Prof. Dr. Luiz Manoel Lopes
Universidade Federal do Cariri (UFCA)

_____________________________________________
Prof.ª Dr.ª Regiane Lorenzetti Collares
Universidade Federal do Cariri (UFCA)
.
Ao longo da maior parte da História,
‘anônimo’ foi uma mulher
(Virginia Woolf)
AGRADECIMENTOS
A Deus(a) agradeço ao dom da vida, força e persistência de todos os dias.
A minha família por todo apoio e carinho de sempre, estes são
fundamentais na minha caminhada. Em especial a minha amada mãe, Solange
Oliveira tão presente em todos os momentos, sempre me incentivando e sendo
minha maior inspiração. Ao meu pai Juscileno de Lima por todo apoio. Ao meu
irmão Saymon por toda parceria e ao meu irmão Ruan, que se mantém vivo
todos os dias em minha mente, alma e coração.
Aos verdadeiros amigos que fazem os dias serem mais leves.
Meu imenso agradecimento à bibliotecária, Liliane Gomes, pois sem ela
este projeto não aconteceria da forma que foi realizado, ela foi a ponte entre mim
e o Colégio Salesiano, para que pudéssemos fazer juntos essa união e difundir
ainda mais o projeto, pela sua confiança, organização e cumplicidade meu
imenso muito obrigada.
Aos mediadores do Tecendo Vozes que se dispuseram a fazer parte
desse projeto de forma gratuita, somando imensamente com os seus
conhecimentos e formando assim um imenso debate, uma grande troca de
experiências. Uíni Barros, Pablo Soares, Rodolfo Santana, Monique Aires,
Anderson Maia, Luiz Celestino, Eliete Bezerra, Jade Luiza, Suellen Lôbo e Kleber
Fidélis. Deixo aqui minha gratidão, sem vocês esse projeto não teria acontecido
com adições tão únicas e preciosas.
Ao psicanalista Ádamo Brasil e ao meu companheiro Felipe Fernandes,
agradeço por serem fundamentais na minha rede de apoio, pois não é fácil se
desnudar sobre temas tão íntimos, fortes e muitas vezes doloridos, sem terapia
e acolhimento. O trajeto de recontar histórias de mulheres, e recontar a minha
própria, em diversos momentos põe o dedo na ferida, ao mesmo tempo que a
cicatriz. Este projeto tem essa dupla função para mim e espero que ele possa
tocar outras pessoas sobre os temas abordados.
Ao Prof. Dr. Luís Celestino de Franca Júnior que me orientou durante essa
jornada acadêmica. Por toda partilha de conhecimentos, compreensão, incentivo
e imensa empatia, meu muito obrigado.
À banca examinadora, Prof.ª Dr.ª Camila do Espírito Santo Prado de
Oliveira, Prof. Dr. Luiz Manoel Lopes e Prof.ª Dr.ª Regiane Lorenzetti Collares,
agradeço por sua disponibilidade em somar com esta pesquisa, por
compartilharem suas impressões e imenso conhecimento.
À todas as mulheres que sobreviveram a violências domésticas, físicas e
como eu violência sexual, para estas mulheres eu sou imenso acolhimento e
gratidão.
Às mulheres escritoras, que contaram histórias reais ou fictícias, mas que
das duas formas deram voz a outras mulheres, que compartilharam os seus
gritos de sobreviventes, a estas sou orgulho e admiração. A maior missão do
Tecendo Vozes é ecoar, acolher e até mesmo desmistificar algumas questões
que por vezes são silenciadas socialmente. Nós nos recusamos a morrer
silenciadas no esquecimento. Avante!
RESUMO

A sociedade de base patriarcal atua em áreas diversas, consequentemente


observamos o silenciamento de vozes femininas em diversos âmbitos, dentre
eles, temos a literatura, que compõe o espaço da biblioteca. A presente pesquisa
aborda o projeto Tecendo Vozes, que busca debater obras escritas por mulheres
e que contém histórias de mulheres no espaço da biblioteca, aqui serão
abordados alguns pontos principais do projeto e experiências vivenciadas no
mesmo. A relevância desta pesquisa se dá no âmbito do processo de utilização
da biblioteca como conceito vivo e interativo com os membros da comunidade.
No tocante ao objetivo geral desta pesquisa temos como base analisar de que
forma as obras literárias produzidas por mulheres e que contam histórias de
mulheres, podem atuar como ferramenta de fomento às discussões acerca da
identidade feminina e memória no espaço da biblioteca. Já que no que concerne
a criação literária, o feminino além de assumir um papel de fala, pode assumir o
papel de tencionar as amarras e limitações patriarcais.
Palavras-chave: Literatura. Memória. História. Biblioteca. Feminino.
ABSTRAC
The patriarchal-based society operates in various areas, consequently we
observe the silencing of female voices in various areas, among them, we have
literature, which makes up the library space. This research approaches the
project Weaving Voices, which seeks to debate works written by women and
contains stories of women in the library space, here will be addressed some main
points of the project and experiences experienced in the same. The relevance of
this research takes place within the process of using the library as a living and
interactive concept with community members. With regard to the overall objective
of this research, we are based on analyzing how literary works produced by
women and telling stories of women, can act as a tool to foster discussions about
female identity and memory in the library space. Since in terms of literary
creation, the feminine, in addition to assuming a role of speech, can assume the
role of intending patriarchal ties and limitations.
Keywords: Literature. Memory. History. Library. Feminine.
TABELA DE QUADROS

QUADRO 1 – Calendário das edições do projeto Tecendo Vozes ........ 29


SUMÁRIO
1. INTRODUÇÃO ................................................................................... 7
2. METODOLOGIA ................................................................................. 10
3. MEMÓRIAS DE MULHERES ............................................................. 11
3.1 MEMÓRIA E O ECO DE VOZES FEMININAS ................................ 11
3.2 HISTÓRIA DE MULHERES “ANÔNIMAS” ....................................... 14
3.3 ELAS POR ELAS .............................................................................. 17
4. A CONSTRUÇÃO DO PROJETO TECENDO VOZES....................... 22
5. TRANSMITINDO SABERES FEMININOS NA
BIBLIOTECA........................................................................................... 29
6. CONSIDERAÇÕES FINAIS ................................................................ 34
7. REFERÊNCIAS .................................................................................. 36
ANEXOS ............................................................................................. 39
ANEXO 1 – CRÔNICA ELIS............................................................... 39
ANEXO 2 – FANZINE ......................................................................... 44
7

1 INTRODUÇÃO

O projeto Tecendo Vozes nasce de uma proposta literária que visa incentivar a
leitura de textos escritos por mulheres, mas antes de adentrarmos os aspectos que
envolvem esta pesquisa, te convido a fazer um exercício. Imagine agora a sua estante
de livros, ou quaisquer aparatos em que você optou por guardar os mesmos, pense
estar passando a mão por seus livros favoritos, sentindo a textura de cada um,
observando as cores e tamanhos diferentes. Agora, observe um elemento específico
dos seus livros, o nome do autor ou autora que escreveu esta obra, pense naquelas
obras que mais te marcaram, não importa o gênero, vá elencando os nomes de
autores que escreveram tais textos, te darei um minuto para pensar, de olhos
fechados. Quais eram estes autores? Terminado o exercício fica uma questão, se
você tirasse todos os livros escritos por homens da sua estante, quantos sobrariam?
Seja qual foi o resultado do seu exercício, o projeto Tecendo Vozes busca
aumentar o número de escritos femininos na sua estante, é esta questão que dá norte
a presente pesquisa. Este projeto visa aumentar o repertório do leitor acerca de livros
escritos por mulheres, consistindo em uma reunião de pessoas em um espaço
vinculado a uma biblioteca, seja ele físico ou virtual, para debater textos produzidos
por mulheres e que contenham vivências de mulheres, sejam elas reais ou ficcionais.
Ao longo da história contemplamos diferentes visões sobre as mulheres, por
vezes contadas pelo sexo masculino. Porém, alguns destes olhares relatam o papel
feminino como protagonista, ou até mesmo autora da fala sobre si própria. A mulher
desempenha assim o papel de agente social da sua própria história (PERROT, 2008).
Esta pesquisa busca colocar a mulher como protagonista de narrativas no espaço da
biblioteca e aprofundar o debate sobre uma literatura produzida por mulheres, uma
escrita feminina.

Neste sentido, a construção da problemática desta pesquisa se dá em: Como


o espaço da biblioteca funciona enquanto local para uma mediação consciente acerca
de obras autobiográficas produzidas por mulheres? Como o(a) profissional da
informação pode utilizar a literatura produzida por mulheres na biblioteca em que atua,
para mediar o acesso a informação e debater sobre identidade feminina, mesmo que
de forma virtual? Quais pontos podem ser aperfeiçoados no projeto Tecendo Vozes
para uma melhor experiência junto ao público?
8

O objetivo geral da presente pesquisa desenvolvida no Programa de Mestrado


Profissional em Biblioteconomia da Universidade Federal do Cariri (UFCA), se
configurou a princípio em aprofundar como o espaço das Bibliotecas da UFCA –
compostas pelos campi localizados em Juazeiro do Norte, Crato, Barbalha e Brejo
Santo – poderiam ser palco para o debate sobre obras produzidas por mulheres, tendo
como mediador o profissional da informação. Devido ao cenário atual com a pandemia
de COVID-19 e lockdown, o projeto acabou se remodelando, se vinculando a
biblioteca do Colégio Salesiano, e optamos por realizar as edições do projeto de forma
virtual através da plataforma Google Meet e lives no Youtube, devido às medidas de
segurança de distanciamento social, para evitar o contágio através do vírus.
Para alcance de tal objetivo, identificam-se como etapas necessárias:
Compreender como as narrativas escritas por mulheres podem atuar como elemento
usado na mediação de debates dentro do espaço da biblioteca; elencar obras escritas
por mulheres e que contem histórias de mulheres; analisar a difusão de uma narrativa
feminina escrita por mulheres em obras ficcionais e/ou reais.
Para o desenvolvimento da pesquisa será aprofundado o conceito de mediação
relativo à Ciência da informação (GOMES, 2014); (ALMEIDA JUNIOR, 2015), bem
como o estudo de memória coletiva (HALBWACHS, 2006); (LeGOFF, 1990), relatar a
si mesmo e identidade cultural (HALL, 2005); (FOUCALT, 1996); (HOOKS, 2013).
Faremos análise das obras abordadas, elencando as problemáticas trazidas pelas
autoras que se ligam as questões de gênero.
O produto desta pesquisa é um manual, que será disponibilizado online no
formato de e-book para os bibliotecários, profissionais da educação, profissionais da
informação e demais interessados. Tendo como meta guiar o processo do uso da
literatura feminina como elemento que pode vir a somar na desconstrução de
identidades culturais relacionadas ao gênero feminino, e como estas podem ser
utilizadas como difusoras de informação e material propulsor para uma série de
reflexões no tocante ao gênero.
A proposta principal é que sejam discorridos os pontos centrais dos livros com
os participantes através da figura de um (a) mediador (a) e estas questões são
debatidas junto ao público, buscando alcançar novos leitores (as) para as obras em
questão. Essa ação também visa aumentar o repertório de livros dos participantes
acerca de escritoras. A primeira edição desse projeto ocorreu como parte integrante
da X Semana de Letras (SEMALE), no dia 10 de outubro de 2019, na Universidade
9

Regional do Cariri (URCA), de forma presencial. As demais edições ocorrem de forma


virtual, vinculadas à Biblioteca Salesiana Luiz Magalhães, tendo iniciado no dia 18 de
setembro de 2020, se mantendo até o ano de 2021.
A proposta desta pesquisa é um convite a ouvir mulheres contarem suas
histórias, a partir da sua própria voz. bell hooks 1(2019), afirma que o indivíduo
oprimido socialmente, deve resistir como sujeito e não como objeto, de forma
questionadora, consciente e atuante no meio, sendo assim buscar questionar a
sociedade a sua volta, os meios a que estão sujeitados e assim produzir ferramentas
que vão de frente a essas questões. Enfocando assim, a diversidade de experiências
e vivência de cada mulher, e as diferentes opressões as quais está sujeita
socialmente. Sendo assim, as autoras escolhidas para compor o Tecendo Vozes
buscam refletir essa diversidade, como textos escritos por mulheres plurais, que
buscam utilizar a literatura, como forma de renovação da voz que narra suas histórias,
formando um sistema e resistência em um meio que as oprime.

1
A autora opta por escrever seu nome próprio em letras minúsculas, como forma de posicionamento político.
Ela afirma que: “o mais importante em meus livros é a substância e não quem sou eu” (HOOKS, 2009).
10

2 METODOLOGIA

Para abordagem da pesquisa em questão, se optou por realizar uma análise


qualitativa, de caráter exploratório, já que visa levantar informações sobre um
determinado objeto. Se justificando por se ter como objetivo analisar e compreender
o assunto estudado detalhadamente, através de suas características e significado, de
acordo com Richardson (2011):

Há, naturalmente, situações que implicam estudos de conotação qualitativa


e, nesse sentido, alguns estudiosos têm identificado, pelo menos, três: 1.
Situações em que se evidencia a necessidade de substituir uma simples
informação estatística por dados qualitativos. Isso se aplica, principalmente,
quando se trata de investigação sobre fatos do passado ou estudos
referentes a grupos dos quais se dispõe de pouca informação. 2. Situações
em que se evidencia a importância de uma abordagem qualitativa para
compreender aspectos psicológicos, cujos dados não podem ser coletados
de modo completo por outros métodos devido à complexidade que encerra.
Nesse sentido, temos estudos dirigidos à análise de atitudes, expectativas,
valores, etc. 3. Situações em que observações qualitativas são usadas como
indicadores do funcionamento de estruturas sociais (RICHARDSON, 2011, p.
80).

Serão abordados neste estudo conceitos de práticas culturais sociais, se


fazendo necessária uma abordagem qualitativa, que se alinha com a produção do
produto que consiste em um manual em formato de e-book, que tem como intuito
contribuir com o processo de difusão do conhecimento. Esta pesquisa possui caráter
documental, tendo como base a análise de conteúdo. Sendo assim, observaremos as
informações contidas no projeto em diálogo com um contexto cultural e social amplo.
Esta pesquisa se utilizará de elementos de diferentes fontes metodológicas para
abranger as temáticas abordadas, sendo estes, elementos da análise do discurso e
elementos da análise de conteúdo.
A escolha do e-book foi feita pela sua fácil disponibilização online, fomentando
a democratização do conhecimento, para os profissionais da informação interessados
em realizar tal prática. O manual contém tanto o passo a passo de como realizar o
projeto vinculado a uma biblioteca que tenha interesse, quanto também relata como
se deram as edições já realizadas do Tecendo Vozes, entre os anos de 2020 a 2021.
Abordando os principais pontos debatidos relativos a cada obra elencada.
11

3 MEMÓRIAS DE MULHERES

Nas linhas a seguir apresentamos os principais conceitos e teorias que darão


embasamento a esta pesquisa.

3.1 MEMÓRIA E O ECO DE VOZES FEMININAS

O que queremos ressaltar então acerca de uma prática que em tempos foi tão
comum como a de contar histórias, repassar os conhecimentos por meio da oralidade,
assumiu novas formas com o tempo. Embora, o uso da memória seja efetuado tanto
nas sociedades orais, quanto nas sociedades que utilizam a escrita. Estando a
memória em suas diferentes formas cotidianamente presente para os indivíduos
(LeGOFF, 1990). Dentro do contexto de memória e história temos como ícone do
suporte a informação a figura do livro, estando este sob a proteção do espaço da
biblioteca.
De acordo com Vieira (1983), assim se constitui uma biblioteca viva, capaz de
produzir cultura, crescendo o papel do bibliotecário socialmente, e assim,
remodelando também a relação com a memória social. Ao que concerne à biblioteca
universitária, esta foi criada no séc. XIII, devido a própria demanda dos alunos e a
doações dos nobres. Vemos então a ascensão da figura do(a) bibliotecário(a)
enquanto difusor(a) da informação (SANTOS, 2012). Por meio do projeto Tecendo
Vozes visamos abranger a figura do(a) bibliotecário(a), ao ser mediador de temas
como gênero e memória.
A memória que parece ser algo tão individual também deve ser entendida como
um fenômeno coletivo, construído pelas experiências sociais constantes. A
característica flutuante da memória faz com que fatos sociais passem a ser relevantes
na história de uma pessoa, marcando a sua essência. Na memória individual,
incluímos, excluímos, relembramos determinados fatos em detrimento a outros,
selecionando consciente ou inconscientemente nossas lembranças (POLLAK, 1992).
Observando o contexto de uma sociedade patriarcal em que a história é narrada por
quem vence, vemos as histórias de mulheres serem mediadas por uma hegemonia
masculina. Para esta pesquisa em questão optamos utilizar o conceito de memória
definido por Tedeschi, sendo ele:
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Ao abordarmos a memória coletiva numa perspectiva de gênero podemos ver


que ela possui um movimento de recepção e transmissão. Esse movimento
é o que forja a memória do grupo, e o que estabelece o contínuo de sua
memória. A memória definida desta maneira não se trata de um acúmulo de
conhecimentos, datas, referências, objetos, pelo contrário, está formada por
práticas culturais, tradicionais, valores, ritos, modos de relação, símbolos,
crenças, determinados muitas vezes por representações do que é ser homem
e mulher na história, definindo sua identidade (TEDESCHI, 2014, p. 42).

No contexto da memória social coletiva observamos que os relatos são


construídos com base em experiências, desenvolvimentos em meios familiares,
sociais, nacionais, não envolvendo apenas um sujeito, mas uma série de indivíduos
que contribuíram para a formação desse passado (HALBWACHS, 2006). Essas
experiências modificam a visão de si e do outro (MOREIRA, 2005).
Conforme Perrot (2008) as mulheres precisavam romper com o silêncio que
lhes foi submetido na história, no entanto, como se haveria de supor, essa
tarefa não foi fácil, pois a maioria dos escritos sobre mulheres foram
produzidos por homens, o que na opinião da autora dificultou imensamente o
trabalho de reconstituição do passado feminino. As mulheres não
representavam a si mesmas, elas eram representadas (DUBY apud
PERROT, 2008, p. 24).

Quem narra, presencia o relato de suas vidas, e faz em dupla qualidade de


indivíduos singulares e de sujeitos coletivos. Cada um destes relatos é único, mas no
caminho da construção social sua subjetividade tem sofrido influência familiar, social,
cultural, socioeconômica do meio em que viveram e ainda vivem. Como sujeitos
singulares que são, encarnam de maneira única e irrepetível valores, modas,
costumes, normas, mitos de ordem familiar, grupal, social, que as incluem no que
fazem dentro de um contexto social que não é estático, está continuamente afetado
por contradições, rivalidade e tensões de seus membros (TEDESCHI, 2014).
A memória, história: longe de serem sinônimos, tomamos consciência que
tudo opõe uma à outra. A memória é a vida, sempre carregada por grupos
vivos e, nesse sentido, ela está em permanente evolução, aberta à dialética
da lembrança e do esquecimento, inconsciente de suas deformações
sucessivas, vulnerável a todos os usos e manipulações, suscetível de longas
latências e de repentinas revitalizações. A história é a reconstrução sempre
problemática e incompleta do que não existe mais. A memória é um
fenômeno sempre atual, um elo vivido num eterno presente; a história, uma
representação do passado (...) A memória é um absoluto e a história só
conhece o relativo (NORA, 1993 p. 9).

Dado isso, podemos observar que o meio em que vivemos vai alterar nossa
percepção dos fatos, assim como nossa visão particular afetará nossa memória
individual. Temos características particulares, cargas culturais, afetos por pessoas
singulares, que vão alterar como nos relacionamos com os fatos e lugares, alteram
nossa experiência, e consequentemente a memória resultante dessas ações.
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Somos influenciados por uma série de caracteres que definiram como nos
relacionamos com determinados grupos (HALBWACHS, 2006). De acordo com o
autor, em um nível geral, os eventos que dizem respeito à maioria da comunidade
compõem uma memória coletiva. Ao passo que atravessam cada sujeito vão sendo
formadas memórias próprias, de acordo com a forma que o sujeito se apropria dos
dados. Segundo este mesmo autor, a memória coletiva constrói leis naturais. Esse
discurso de naturalização assume o poder de demarcar e de regular os discursos
(FOUCAULT, 1996). As ações resultantes desse processo reiteram o que foi dito e
ressaltado ao longo do tempo.
Explicar as categorias fundacionais de sexo, gênero e desejo como
afeitos de uma formação específica de poder supõe uma forma de
investigação crítica, a qual, Foucault, reformulando Nietzsche, chamou
de “genealogia”. A crítica genealógica recusa-se a buscar as origens do
gênero, a verdade intima do desejo feminino, uma identidade sexual
genuína ou autêntica que a repressão impede de ver; em vez disso, ela
investiga as apostas políticas, designando como origem e causa
categorias de identidade que, na verdade, são efeitos de instituições,
práticas e discursos cujos pontos de origem são múltiplos e difusos.
(BUTLER, 2013, p. 9).
A tomada de consciência acerca destes elementos, e das representações que
estes fazem, está presente na formação da memória individual. Neste contexto, outro
pesquisador que aborda a temática da memória é Le Goff (1990) sendo que sua base
se dá na memória documental. Para ele, a memória está figurando um dos fatores na
luta pelo poder social, e acrescenta ainda que o domínio de uma memória coletiva é
o desejo de uma classe que busca ser dominante dentro de um contexto social. Não
só a forma como se conta a história, mas os sujeitos que são silenciados, contribuem
na formação da memória coletiva. Assim, podemos observar a memória individual
como um ponto de vista sobre a memória coletiva de acordo com as relações
tramadas no espaço por cada integrante do grupo, e as influências sociais. A produção
das lembranças está ligada às relações em diversos ambientes, isoladamente e
também em conjunto, a memória é uma unidade composta por multiplicidades
(HALBWACHS, 2006).
Segundo Foucault (1979) se tem uma ordem do discurso que é ritualizada, para
se ter acesso a esta é necessário se fazer presente dentro de um circuito, em uma
relação de dominação entre diferentes poderes. Nas diversas sociedades estes
discursos são regulados, escolhidos, regidos, onde indivíduos são incluídos e
excluídos nesse sistema de apoderação. Estando relegado a mulher um papel
secundário ao homem.
14

Diante deste cenário, a pesquisa pensa em uma possibilidade de informação


fora da lógica massiva, tendo como base a literatura, com sustentação na memória,
dando acesso a uma experiência subjetiva. Como uma possibilidade frente ao
discurso hegemônico, estas formas de discursos alternativos dão voz aos que
geralmente não são consultados como fontes oficiais (POSSEBON, 2011).
Compreender a memória nas tensões que compõem um meio heterogêneo dá
abertura para observar a expressão social. Disputas cotidianas que giram em torno
do pensamento e práticas a serem visibilizadas, em um processo de resistência.
Entendendo a cultura como parte de um processo cotidiano em diálogo com a
subjetividade dos atores sociais (TEDESCHI, 2014). Levando a prática de tornar o
natural, estranho para assim pensá-lo e problematizá-lo, perceber as coisas, ideias,
lugares sob uma nova ótica na superação lógica e empírica (CANEVACCI, 2004).

3.2 HISTÓRIA DE MULHERES “ANÔNIMAS”

O surgimento da tipografia configurou a precedência para as demais


tecnologias comunicacionais que nos marcam atualmente (McLUHAN, 1977). A
escrita, o alfabeto, que nos parecem tão comuns hoje, e nos sãos ensinados desde
cedo, trouxeram consigo uma inovação que iria perdurar anos, e influenciar nosso
modo de pensar, até mesmo nossa linguagem. Modificar a forma de aprender, do
saber e do ouvir, com a palavra impressa, tanto a compreensão, quanto o suporte irão
se modificar, remodelando a capacidade de reprodução e interpretação (ONG, 1998).
A escrita a que nos acostumamos é o passo de uma inovação comunicacional, assim
como as tecnologias presentes nas diversas plataformas que vão nos proporcionar
novas e diferentes experiências.
Não apenas o processo da escrita sofre modificações ao passar do tempo,
historicamente a visão que era dada ao feminino também se remodelou ao longo dos
anos. De acordo com Nunes (2000), até o século XVII a visão social sobre as mulheres
era baseada em um cristianismo arcaico, que delegava as mulheres serem inferiores
aos homens, já que estas teriam sido criadas através da costela de Adão, tendo dentre
suas características comportamentos sexuais, pecadoras, as herdeiras de Eva, sendo
assim, também teriam herdado o pecado original. Os elementos apontados acima,
indicam uma visão sobre a mulher difundida na época, já que o clero detinha entre os
seus feitos a produção do conhecimento.
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Sendo assim, observamos nestes discursos religiosos a confirmação da


superioridade masculina, sendo relegado a mulher o erro de ter comido a maçã e
caído em tentação, no mito da criação, as ditas herdeiras Eva carregariam em seus
corpos o fardo do pecado original. “As mulheres estejam sujeitas aos seus maridos
como ao Senhor, porque o homem é a cabeça da mulher, como Cristo é a cabeça da
Igreja... Como a Igreja está sujeita a Cristo, estejam as mulheres em tudo sujeitas aos
maridos” (ARAÚJO, 2012, p. 46).

Com a Reforma Protestante, observamos que no século XVI, se inicia um


debate acerca da educação feminina, este tem como pano de fundo o objetivo de que
as mulheres sejam ativas no processo de integração dos seus maridos a Igreja
Luterana. Acompanhando esta linha de pensamento a Igreja Católica também molda
sua visão sobre o feminino, com o intuito de atingir mais fiéis, mas apenas no século
XVIII, com o advento da Revolução Francesa, que irá se ter uma maior mudança na
visão desigual sobre a mulher em detrimento ao homem, teremos então argumentos
biológicos para justificar as funções domésticas serem relegadas as mulheres
(NUNES, 2000).
O físico da mulher marcaria sua predestinação por sinais particulares: a
fragilidade dos ossos, a forma alongada da bacia, a moleza dos tecidos, a
estreiteza do cérebro e a superabundância das fibras nervosas deixariam
perceber que a mulher tem como vocação natural a maternidade (NUNES,
2000, p. 39).

Ao colocar a relação da família como balizador central, um determinado


discurso fomenta dominação, e divergência de classes. Tais fatos culminam em uma
série de padrões e comportamentos impostos e dados como aceitáveis. O matrimonio
e a religião por vezes atuando como órgãos reguladores dessa ordem. A
transformação da imagem da mulher em mãe redefine a imagem da mulher que se
adequa as funções desejadas que esta desempenhe. Entre o século XIX e XX vemos
essa divisão binária que relega a mulher a função de maternidade, e remete ao espaço
privado, enquanto cabe ao homem ocupar o espaço público (NUNES, 2000).
Das leis do Estado e da Igreja, com frequência bastante duras, à vigilância
inquieta de pais, irmãos, tios, tutores e à coerção informal, mas forte, de
velhos costumes misóginos, tudo confluía para o mesmo objetivo: abafar a
sexualidade feminina que, ao rebentar as amarras, ameaçava o equilíbrio
doméstico, a segurança do grupo social e a própria ordem das instituições
civis e eclesiásticas (ARAÚJO, 2012, p. 45).

Em um contexto histórico desigual no tocante ao capitalismo, observamos que


no início da sociedade capitalista as mulheres ascenderam como força de trabalho,
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porém com uma remuneração que chegou a alcançar um terço do salário recebido
pelos homens. Outro ponto, é que devido a condições precárias de formas de
manutenção a vida encontradas nesse contexto social, também podemos ver
mulheres como líderes de revoluções e protestos, até mesmo por comida, por verem
os seus filhos perecerem a fome (FEDERICI, 2017).
Ainda em um contexto histórico, de acordo com Silvia Federici (2017), em
meados do século XVI, vemos uma caça às bruxas, como medida do Estado para
manter uma proporção populacional. De acordo com a canção feminista “Abordo de
Estado”, que tem origem na Itália em 1971, as mulheres eram obrigadas a “produzir
filhas e filhos para o Estado”, este controle estatal provocava uma alienação sobre o
próprio corpo da mulher. O que se estende a diversos âmbitos da sua vida, como a
desvalorização do trabalho da mulher, e sua delegação para o espaço doméstico.
Fatos estes, que geralmente não estão citados em um contexto histórico, quando se
pensa na origem do capitalismo, em obras clássicas como a de Karl Marx.

Marx também reconheceu que “muito capital que aparece hoje nos Estados
Unidos, sem certidão de nascimento, é sangue infantil ainda ontem
capitalizado na Inglaterra” (ibidem, p.945). Por outro lado, não encontramos
em seu trabalho nenhuma menção às profundas transformações que o
capitalismo introduziu na reprodução da força de trabalho e na posição social
das mulheres. Na análise de Marx sobre a acumulação primitiva tampouco
aparece alguma referência à “grande caça às bruxas” dos séculos XVI e XVII,
ainda que essa campanha terroristas patrocinada pelo Estado tenha sido
fundamental para a derrota do campesinato euroupeu, facilitando sua
expulsão das terras anteriormente comunais (FEDERICI, 2017, p.120).

Historicamente o papel da mulher vem sendo demarcado de acordo com a


postura masculina (WOODWARD, 2000; BOURDIEU, 2002; FOUCALT, 1988)
situação que dá base para posturas desiguais. É criado um imaginário de que o
homem é o que sustenta o lar, que dá força de trabalho e a mulher ficam reservadas
as atividades domésticas, cuidar dos filhos e da cozinha, dados que também
demonstram uma postura heteronormativa e patriarcal que são agentes históricos de
controle e repressão feminina, sendo formado por um conjunto de instituições que
legitimam o poder masculino (BONNICI, 2007).

Essa mudanças históricas – que tiveram auge no século XIX com a criação
da figura da dona de casa em tempo integral – redefiniram a posição das
mulheres na sociedade e com relação aos homens. A divisão sexual do
trabalho que emergiu daí não apenas sujeitou as mulheres ao trabalho
reprodutivo, mas também aumentou sua dependência, permitindo que o
Estado e os empregadores usassem o salário masculino como instrumento
para comandar o trabalho das mulheres (FEDERICI, 2017, p.145).
17

O contexto de gênero parte de uma formulação cultural de poder entre o


masculino e o feminino. Para Judith Butler (2013), não é o bastante inquirir como as
mulheres podem obter uma maior representação na linguagem e na política, a “crítica
feminista também deve compreender como a categoria das “mulheres”, o sujeito do
feminismo, é produzida e reprimida pelas mesmas estruturas de poder por intermédio
das quais busca-se a emancipação” (BUTLER, 2013, p. 19).
A palavra proferida por mulheres cotando sua própria história, como
protagonistas, tendo como suporte a figura do livro, pode formular uma desmontagem
do que chamamos de mulher, ao formularem uma narrativa que quebra um
silenciamento feminino sobre a sua própria vivência, e por vezes quebrando um olhar
heteronormativo.

Se na aurora da modernidade o corpo feminino, descrito a partir da ênfase


nos órgãos reprodutivos, no ‘cérebro menor’ e na ‘fragilidade dos nervos’, foi
utilizado para definir o lugar ‘naturalmente’ inferior das mulheres na
sociedade, justificando a sua permanência no espaço privado, hoje um novo
território se constitui para pensar a relação entre os sexos. A crítica ao modelo
essencialista da diferença sexual dos séculos XVIII e XIX prosperou e deu
frutos. Caiu por terra o projeto de tornar universal o modelo da dominação
masculina, em que a mulher só tem lugar como objeto (ARÁN, 2003, p. 400).

Temos um enunciado que carrega consigo o potencial para provocar uma


performance, repensando a materialidade e a fixidez dos corpos. A questão é que
estes corpos podem subverter a norma genérica a ressignificá-la. Saindo da
fundamentação subordinada do feminino tanto no âmbito social, quanto econômico e
político. A mulher pode assumir papel de protagonismo e ecoar a sua própria história.

3.3 ELAS POR ELAS

No século XIX, observamos a ascensão de um movimento que adquire caráter


político, ocorrendo nos Estados Unidos da América, este movimento luta por ideais
igualitários e direitos das mulheres, sendo denominado de feminismo. A fase inicial do
feminismo é marcada pelo movimento sufragista, que luta pelo direito das mulheres
terem participação política, votarem e serem votadas.
Seguindo a linha do tempo, vemos em 1980 o neofeminismo, que busca uma
transformação mais abrangente nas situações sociais e culturais que envolvem
homens e mulheres. Mais adiante nos anos 90, o feminismo retoma seus próprios
ideais problematizando novas questões, e dando maior atenção a pautas como a
18

questão social das mulheres negras (HOLANDA, 1994). Vemos então que o
feminismo fez-se refletir sobre história e cultura.

Nesse sentido, o enunciado proposto por Simone de Beauvoir na frase mais


falada, lida e comentada desse livro2 – “Ninguém nasce mulher: torna-se
mulher” – provocou um deslocamento da naturalização da condição feminina
construída nos séculos XVIII e XIX e abriu um leque de possibilidades para
pensar “o que o sujeito pode se tornar, sendo (também) mulher”. O efeito
social provocado pelas mulheres na luta por seus direitos introduziu a
necessidade de pensar sua história. A partir daí, incorporou-se no horizonte
do trabalho reflexivo o efeito histórico da relativização da ‘essencialização’ do
feminino. Na medida em que foi sendo tecida uma história coletiva, puderam-
se reconstruir histórias individuais e reinventar projetos para o futuro (ARÁN,
2003, p.400).

Sendo assim, vemos que o modelo essencialista que havia sido proposto nos
séculos XVIII e XIX que propõe uma dominação masculina, ao ser refutado e debatido
abre espaço para um modelo mais igualitário, a partir de uma visão feminista. No que
concerne ao discurso feminista vemos a literatura como importante veículo de difusão
de ideias e ideais.
Ao passo que as autoras Rosália A. Cavalcanti e Ana Lúcia Francisco (2016)
revelam suas impressões em formas de palavras, suas vivências viram textos e o
feminismo se torna verbo a ser propagado entre os leitores. Para elas, artista vê aquilo
que não é possível ao sujeito comum e transforma suas impressões em palavras,
frases, textos e em verbos. “Esses verbos podem ser transformados em ações na luta
por uma sociedade melhor e mais justa” (CAVALCANTI; FRANCISCO, 2016, p.47).
No ensaio de Viginia Woolf, nomeado Um teto todo seu, a autora aborda
questões como o binarismo cultural e dominação masculina, bem como o fato de
algumas mulheres terem seus textos dados como anônimos, pela falta de espaço
dentro do contexto educacional, social e político. A autora profere um discurso
feminista em seu texto, problematizando questões como: A mulher pode ser escritora?
O que é ser escritora?

O texto prossegue denunciando que, no século XIX, as mulheres que de-


sejassem se tornar escritoras necessitavam, ainda, se esconder sob um
pseudônimo masculino. Esse fenômeno só viria a ser desfeito com o advento
do século XX, no qual as mulheres emergiram como escritoras, poetas e
pesquisadoras, sem a necessidade de ocultar seu nome (CAVALCANTI;
FRANCISCO, 2016, p.46).

Podemos assim observar que a apropriação das mulheres de um lugar a que


lhes foi historicamente relegado, como o de construírem o seu próprio discurso, é uma

2
O livro citado é o clássico O segundo sexo, que tem como referência: BEAUVOIR, S. O Segundo Sexo: A
Experiência Vivida. Rio de Janeiro: Ed. Nova. Fronteira, 1980.
19

ferramenta de resistência. Ao passo que podem também elaborar discursos


feministas, visando a igualdade e questionando padrões socialmente impostos, as
mesmas fazem da palavra um potencial de desconstrução de padrões dados e tecem
suas vozes de acordo com suas vivências.
Outra autora que aborda a potencialidade do discurso, no contexto da mulher
negra é Grada Kilomba, na introdução do seu livro Memórias da Plantação, a mesma
esclarece uma série de terminologias que são usadas, ou tem origens, em termos que
subjugam as mulheres negras. Ela termina seu glossário com a seguinte afirmação:
“Parece-me que não há nada mais urgente do que começarmos a criar uma nova
linguagem. Um vocabulário no qual possamos todas/xs/os encontrar, na condição
humana” (KILOMBA, 2019, p.15).
Em seu texto Kilomba aborda o fato da escrita ter a potencialidade para ter
acesso a uma história oculta que foi renegada historicamente, já que não seriam todos
os discursos a ter espaço e visibilidade igualitária. Sendo assim, ao fazer o processo
de escrita essas vozes femininas sairiam do lugar do outro, aquele sobre quem é
contada a história e se tornaria sujeito. Neste espaço de sujeito, se apropriaria de sua
própria história, seria narradora da sua própria ótica (KILOMBA, 2019).
No contexto da escrita sobre mulheres, pode-se observar historicamente estas
sendo representadas em obras sob um olhar masculino. Dentre as reflexões que o
movimento feminista proporciona, leva o feminino a ser visto como um ser
multifacetário, entre uma destas faces podemos identificar a mulher enquanto autora.
Em um contexto nacional brasileiro observamos mulheres adotarem pseudônimos
para terem seus escritos aceitos pelo público:

Descontentes com tamanha discriminação, nos primeiros anos do século XX,


mulheres de todo o Brasil, principalmente dos grandes centros como, por
exemplo, São Paulo, Rio de Janeiro e Minhas Gerias, começaram a publicar
matérias em revistas e jornais usando pseudônimos para manter em sigilo
sua identidade de escritora. Esse foi o início de uma prática que, mais tarde,
viria a ser considerada como um dos maiores ganhos dos movimentos
feministas em território nacional – o direito de expressão escrita (ESSER,
2014, p.10).

Tem-se assim uma identidade de submissão feminina, sendo questionada


através da literatura. Ao colocar a relação da família como balizador central, um
determinado discurso fomenta dominação, e divergência de classes. Tais fatos
culminam em uma série de padrões e comportamentos impostos e dados como
20

aceitáveis. O matrimonio e a religião por vezes atuando como órgãos reguladores


dessa ordem.
Assim, a passividade que caracterizará essencialmente a mulher “feminina”
é um traço que se desenvolve nela desde os primeiros anos. Mas é um êrro
pretender que se trata de um dado biológico: na verdade, é um destino que
lhe é imposto por seus educadores e pela sociedade (BEAUVOIR, 1967, p.
21).

É traçada uma linha de divisão entre o ‘nós’ atores que desempenham papel
de reforço dentro de uma tradição arraigada, e ‘eles’ que de acordo com as
representações culturais se integra ou se exclui (HALL, 2005). O simbolismo que é
atribuído a estes corpos tem repercussão que perpassa as relações pessoais, até a
divisão social de trabalho. Assim a dicotomia que é associada aos sexos como
cabeça/coração, resistente/ frágil, cima/ baixo, atividade/ passividade acabam
revelando uma postura por vezes negativas do próprio sexo (BOURDIEU, 2002).
Possuir uma identidade cultural nesse sentido é estar primordialmente em
contato com um núcleo imutável e atemporal, ligando ao passado o futuro e
o presente numa linha ininterrupta. Esse cordão umbilical é o que chamamos
“tradição”, cujo teste é o de sua fidelidade às origens, sua presença
consciente diante de si mesma, sua “autenticidade”. É, claro, um mito- com
todo potencial real dos nossos mitos dominantes de moldar nossos
imaginários, influenciar nossas ações, conferir significado às nossas vidas e
dar sentido à nossa história (HALL, 2003 p.29).

O contexto de gênero parte de uma formulação cultural de poder entre o


masculino e o feminino. Formulando a desmontagem do que chamamos de mulher,
observando que ações podem ser produzidas por palavras. Temos um enunciado que
carrega consigo o potencial para provocar uma performance, repensando a
materialidade e a fixidez dos corpos. Essa performatividade vai de encontro as normas
regulatórias que colocam sujeitos nas margens sociais (BUTLER, 1993). A questão é
que estes corpos podem subverter a norma genérica a resignificá-la. Saindo da
fundamentação subordinada do feminino tanto no âmbito social, quanto econômico e
político. A mulher pode assumir papel de protagonismo em sua história.
bell hooks (1989), faz a distinção entre o sujeito e objeto, ao afirmar que o
sujeito assume o protagonismo de sua história e identidade, podendo somente eles
definirem quem são. Já na dimensão de objeto a identidade é definida por outrem, a
história é contada com base na relação tecida com os sujeitos. Para a autora essa
tomada de lugar, na passagem de objeto à sujeito é um processo político de
reinvenção e resistência. Podemos citar aqui o poema de Sam-La Rose, que afirma:
“Por que eu escrevo / Porque tenho que / Porque minha voz / em todas as suas
dialéticas / foi silenciada por muito tempo”.
21

Traçando um diálogo entre o proposto pela autora e o poema citado acima,


vemos um paralelo de ideais, em que se vê na escrita um refúgio e uma forma de
expressão que está para além de repassar o conhecimento, como também um espaço
de apropriação e resistência. No Brasil, este movimento tem início com os ditos
cadernos “goiabada”, que eram escritos por mulheres como forma de relatar receitas
e também sua vida cotidiana, rendendo imenso lucro aos veículos de imprensa
(TELLES; SHARPE, 1997).
Vemos assim, uma mudança da mulher presente na literatura apenas como
adorno masculino, para um papel de protagonismo da sua própria fala. Sendo que,
historicamente foi negado a figura feminina até mesmo o direito de ler e escrever. Para
Telles (2012), a pena era mantida fora do alcance das mulheres, e antes de tentarem
alcança-la, “precisaram escapar dos textos masculinos que as definiam como
ninharia, nulidade ou vacuidade, como sonho e devaneio, e tiveram de adquirir
autonomia para propor alternativas a autoridade que as aprisionava". (TELLES, 2012,
p.409).
Esse preconceito que paira em torno da criação literária de autoria feminina
nada mais é do que uma resistência social que, imbuída em pensamentos
arcaicos ainda considera a mulher como sujeito inferior ao homem. Legitimar
uma escritora seria o mesmo que comprovar que a mulher está, de fato,
equiparada ao homem em mais uma questão social (ESSE, 2014, p. 14).

O projeto Tecendo Vozes busca usar o espaço da biblioteca para potencializar


discursos que rompem parâmetros e estereótipos patriarcais, dando maior visibilidade
a obras produzidas por mulheres. Buscando driblar um preconceito literário, que faz
com que autoras femininas nem sempre alcancem uma grande esfera pública.
22

4 A CONSTRUÇÃO DO PROJETO TECENDO VOZES

Dentro do processo de construção do projeto, inicialmente foram escolhidos


alguns livros que seriam indicação de obras produzidas por mulheres e que contam
histórias sobre mulheres. A partir disso, podem ser elencadas algumas questões
como: Por que utilizar histórias de mulheres? Quais as obras usadas como indicação
de leitura ao público? Por que estas obras foram escolhidas? Pretendemos neste texto
abordar essas questões de forma sucinta e inicial.
Ao longo da história contemplamos diferentes visões sobre as mulheres. Alguns
destes olhares relatam o papel feminino como protagonista ou, até mesmo, autora da
fala sobre si própria. A mulher desempenha, assim, o papel de agente social da sua
própria história (PERROT, 2008). Dentro do contexto da sociedade com base
patriarcal em que vivemos, o Tecendo Vozes busca colocar a mulher como
protagonista de narrativas e dar visibilidade as produções femininas como narradoras
das suas próprias experiências. Por isso, foi estabelecido o critério de abordar apenas
obras produzidas por mulheres e que relatam histórias femininas.
No tocante a dimensão dialógica da mediação o projeto Tecendo Vozes, busca
aumentar o repertório do leitor e promover uma troca de experiências acerca das
obras que marcaram a sua trajetória, de acordo com tema delimitado pelo projeto.
Usamos o termo “leitor”, com base na proposição de Sueli Bortolin, que enuncia:

Pensar a leitura, a literatura e o leitor numa perspectiva estreita é um


equívoco, pois a literatura em si é uma manifestação aberta, dinâmica, que
possibilita expressão da imaginação do leitor; leitor que deve ser entendido
em seu sentido amplo, isto é, todo aquele que tem na sua essência,
independentemente das suas condições: sociais, econômicas, educacionais,
psicológicas, religiosas, culturais e afetivas, a capacidade de perceber
minimamente ou profundamente as manifestações ocorridas em seu contexto
e fora dele (BORTOLIN, 2010, p.20).

As obras a serem compartilhadas com o público foram eleitas a partir de


categorias que não se enquadram ao meio massivo de visibilidade literário, que são:
(I) A metodologia da escrita de si; (II) Relatos da mulher estrangeira; (III) A narrativa
da mulher negra; (IV) Histórias de mulheres que não se enquadram ao padrão
heterossexual, sejam elas lésbica, bissexuais ou transsexuais. A partir dessas
categorias norteadoras, foram selecionados os seguintes textos: A crônica “Elis”,
produzida por Sauanny Oliveira (escrita de si); os livros “Persépolis” e “Bordados”
23

ambos da autora Marjane Satrapi (mulher estrangeira) 3, o livro “Americanah” de


Chimamanda Ngozi Adichie (mulher negra)4, e por fim o livro “Tudo nela brilha e
queima” de Ryane Leão (mulher bissexual) 5.
No Anexo 2, que constitui o fanzine, é possível observar que essas indicações
de leitura foram combinadas aos textos e referências trazidas pelos próprios
participantes. Dessa forma, a partir da combinação de seus repertórios e leituras,
formou-se um produto final diverso, que combina as obras supracitadas com a
particularidade de cada um dos membros integrantes.

O processo dialógico [da informação] possibilita a interlocutores distintos o


encontro e a manifestação das subjetividades que emanam da interlocução
inter e intrasubjetiva. Na mediação consciente, a dialogia torna exequível o
exercício da crítica e a observação mais clara das incompletudes e lacunas
que promovem a desestabilização dos conhecimentos estabilizados em cada
sujeito. Ao mesmo tempo, o processo cooperativo e de 'trocas" objetivas e
subjetivas também é capaz de fazer com que seja acionada no sujeito desse
processo o que Vygotsky (1998,2001,2003, 2003) denominou de zona de
desenvolvimento proximal, entendida como uma instância potencializadora
do desenvolvimento interior e da construção de sentidos, o que é
imprescindível à apropriação da informação (GOMES, 2014, p.48).

Para a oficina foi escolhida uma sala de aula para proporcionar aos estudantes,
diferentes momentos dentro da atividade. Um primeiro em que sentamos ao chão, em
formato de círculo, realizando uma dinâmica para nos conectarmos e trocarmos
conhecimentos. Já no segundo momento, cada aluno sentava em uma cadeira para o
processo de produção do fanzine, da forma que lhe fosse mais confortável e
interessante, já que conforme Gomes (2014):

Os sujeitos da ação comunicativa precisam transitar com 'conforto' no


'ambiente' do encontro, no espaço da interlocução, precisam desenvolver
sentimento de pertença, já que o encontro promissor com a informação é
aquele capaz de gerar o terreno propício para o desenvolvimento intelectual
e a construção do conhecimento" (GOMES, 2014, p. 50).

Conforme citamos anteriormente, foi realizada a “Dinâmica da Teia”, em que,


primeiro, todos se sentavam em formato de círculo. O círculo rompe com a noção de
hierarquia e coloca todos em um mesmo nível, atendendo assim a diretriz do projeto
que foge de modelo hierárquico e se volta para a educação horizontal. Estando todos
iguais nessa formação, é repassado um barbante, cada pessoa que recebe esse
barbante indica uma obra que tenha lhe marcado em seu repertório de leitor,

3
SATRAPI. Marjane. Persépolis. Tradução: Paulo Werneck. São Paulo: Companhia das Letras, 2007.
SATRAPI. Marjane. Bordados. Tradução: Paulo Werneck. São Paulo: Companhia das letras, 2010.
4
ADICHIE, Chimamanda Ngozi. Americanah. São Paulo: Companhia das letras, 2014.
5
LEÃO, Ryane. Tudo nela brilha e queima. São Paulo: Planeta, 2017.
24

atendendo os pré-requisitos já citados e repassa o barbante para outro que também


está no círculo. Seguindo assim até que todos tenham feito suas indicações. Ao fim,
temos diante de nós uma teia, no espaço que o barbante foi se entrelaçando, na
medida em que era lançado para uma nova pessoa. Essa representação indica a
mescla dos conhecimentos que foram compartilhados. Cada nova fala se somava com
a anterior e nos instigava a praticar novas leituras. Em alguns casos, havia
reconhecimento e identificação entre as leituras e referências dos participantes.
Dentro dessa abordagem, compreende-se a mediação como uma ação
semiótica, dependente das diversas linguagens, e que para alcançar sucesso
é também dependente da consciência de seus agentes de que todos os
envolvidos na ação mediadora são interlocutores, portanto, também
protagonistas do processo. Tais características da mediação colocam mais
uma vez a sua dimensão estética em pauta, em especial por reafirmar a
mediação como uma ação ligada ao movimento multidirecional, a um agir na
vida, representando uma ação geradora de experiências a partir do encontro
com a informação e com o outro {ou outros) que a produziram, promovem e
disponibilizam, e ainda do encontro com os próprios dispositivos
(instrumentos, processos, produtos, serviços, espaços e ambientes) que
possibilitam a busca, o acesso e o uso da informação (GOMES, 2014, p.51).

Para Pareyson (1993 apud GOMES, 2014) na medida em que os sujeitos


sociais interagem, eles se estabelecem em um constante e infindável processo de
formativo, a partir do qual "a experiência possibilita o aprender e alteração do estágio
intelectual, cognitivo e afetivo do sujeito". Na oficina, a mediadora propôs uma série
de obras escritas por mulheres, explicou como se dá o processo de elaboração prática
e criativa de um fanzine e suscitou a leitura de uma crônica conjunta. Embora todas
essas atividades tenham sido pré-definidas por ela, o resultado da oficina foi uma
construção conjunta, que derivou da interação e entrelaçamento das subjetividades
de cada um dos integrantes. A partir disso, é possível inferir que todos eles saíram
modificados dessa experiência. Em maior ou menor grau, todos foram apresentados
a outras obras, outras vivências, outros modelos de produção de comunicação.
A oficina foi dividida em quatro momentos, sendo eles: (I) Leitura dinâmica:
Sentados em círculo, os participantes realizaram conjuntamente e em voz alta a leitura
da crônica “Elis”, texto de autoria da mediadora Sauanny Oliveira que narra a
experiência de uma mulher vítima de violência sexual. Nessa atividade, cada pessoa
ficou responsável pela leitura de um parágrafo, possibilitando que todos passassem
pela experiência do ouvir e ser ouvido. (II) Em seguida, houve um momento de partilha
de saberes com a dinâmica da teia. Nela, os participantes foram convidados a
compartilhar suas próprias indicações de livros e textos produzidos por mulheres que
foram relevantes nas vidas de cada um deles. Essa dinâmica será melhor explicada
25

ao longo deste relato. (III) A terceira parte foi a apresentação de livros elegidos pela
mediadora aos participantes, todos eles atendendo aos requisitos de serem
produzidos e contarem experiências de mulheres. (IV) Por fim, foi produzido um
fanzine6 pelos participantes com indicações de produções femininas na literatura, para
que este fosse posteriormente compartilhado com mais pessoas.

O mundo que nos é mostrado, não é um reflexo, mas uma refração (assim
como a informação). Isso significa que sempre veremos o mundo de maneira
deformada, a partir desses olhares? A chave é essa: são vários olhares e,
estes, nos permitem confrontá-los, estabelecer relações, identificar
interesses. O "nosso" olhar crítico possibilita uma aproximação com o real
(este é um termo complexo, mas, de maneira simplista, pode ser empregado
aqui). Em suma: nosso conhecimento se constrói mediado e, da mesma
forma, somos mediadores na construção do conhecimento dos outros
(ALMEIDA JUNIOR, 2015, p.11).

Para acessarmos as impressões dos participantes, ao final da oficina foi


aplicado um questionário aberto, composto por duas perguntas norteadoras: "Quais
os pontos fortes dessa experiência?" e "Que aspectos você melhoraria?". Para essa
atividade, não foi exigida a identificação dos participantes, permitindo que eles se
sentissem mais confortáveis para explanar suas ideias e opiniões. As imagens 1 – 5
apresentam algumas das respostas ao questionário, conforme abaixo:

6
Fanzine é uma revista artesanal, produzida manualmente para compartilhar informações sobre um determinado
tema, escolhido pelos seus produtores. São feitas cópias, a partir da versão original produzida para serem
distribuídas ao público.
26

IMAGEM 1 - RESPOSTA DE PARTICIPANTE NÃO IDENTIFICADO AO


QUESTIONÁRIO BASE

IMAGEM 2 - RESPOSTA DE PARTICIPANTE NÃO IDENTIFICADO AO


QUESTIONÁRIO BASE
27

IMAGEM 3 - RESPOSTA DE PARTICIPANTE NÃO IDENTIFICADO AO


QUESTIONÁRIO BASE
28

IMAGEM 4 - RESPOSTA DE PARTICIPANTE NÃO IDENTIFICADO AO


QUESTIONÁRIO BASE

IMAGEM 5 - RESPOSTA DE PARTICIPANTE NÃO IDENTIFICADO AO


QUESTIONÁRIO BASE

Nesse sentido, podemos mencionar que a oficina do Tecendo Vozes contou


com a participação de um grupo de estudantes em nível de graduação ou pós
graduação. Grupo este que, apesar da proximidade de formação acadêmica dos
29

integrantes, foi formado por pessoas com trajetórias, níveis de leitura, lugares de fala
e reflexão distintos. E, por isso, com anseios, discursos, sentimentos e necessidades
também diversas.
Para GOMES (2014) essa relação entre ética e mediação se fortalece na
medida em que relacionamos a atividade mediadora ao ato de cuidar, ou seja, aquele
que recorre ao profissional da informação precisa sentir-se acolhido dentro do
ambiente de pertença informacional. Por isso, na oficina, a mediadora apresentou-se
como tal, definiu claramente os objetivos e critérios do projeto e indicou as obras
escolhidas para dar início as discussões. Entretanto, nada esteve engessado. A
formação do círculo e a abertura de espaço de fala para todos os membros, de acordo
com as suas necessidades, criou um ambiente acolhedor, de cumplicidade e
companheirismo. Nenhum saber foi super ou subestimados, todas as contribuições
tiveram seu valor e foram relacionadas, somadas ou confrontadas por outros
discursos dentro do grupo, respeitando a pluralidade de vivências dos sujeitos.

5 TRANSMITINDO SABERES FEMININOS NA BIBLIOTECA

A primeira edição do projeto Tecendo Vozes ocorreu dentro da programação


da X SEMALE com o intuito de ser uma ação experimental, possibilitando a reflexão
acerca do desenvolvimento da atividade, bem como a identificação de pontos de
melhoria. Para isso, foram aplicados questionários para os participantes opinarem
sobre os pontos positivos e negativos da experiência vivenciada.
Tendo base nessas informações foram organizadas as edições do projeto
online, em parceria com a biblioteca Biblioteca Salesiana Luiz Magalhães, a convite
da bibliotecária responsável pelo espaço, Liliane Gomes. Foram elencadas as
seguintes obras para serem abordadas no projeto Tecendo Vozes:

Quadro 1: Calendário das edições do projeto Tecendo Vozes

Data Mediador(a) Obra


18/09/20 Sauanny Oliveira Abertura: Crônica Elis, de Sauanny Oliveira e
Bordados, de Marjane Satrapi
25/09/20 Liliane Gomes Memórias da plantação: episódios de Racismo,
de Grada Kilomba
30

02/10/20 Eliete Bezerra Histórias de ninar para garotas rebeldes: 100


fábulas sobre mulheres extraordinárias, de Elena
Favilli
09/10/20 Jade Luiza História da Beleza no Brasil, de Denise
Bernuzzi de Sant'anna.
23/10/20 Pablo Soares Pipi Raiolaser – A anunciação da nova era, de
Pipi Raiolaser, pseudônimo de Pablo Soares
30/10/20 Kleber Fideles A bela e a Fera, de Elizabeth Rudnick
06/11/20 Suellen Lôbo Para educar crianças feministas: um manifesto,
de Chimamanda A. N.
13/11/20 Anderson Maia A hora da estrela, de Clarice Lispector
27/11/20 Luís Celestino Paraíso, de Tatiana Salem
24/02/21 Rodolfo Santana Eu, Tituba: Bruxa negra de Salem, de Maryse
Condé
08/03/21 Monique Aires e A Cor Púrpura, de Alice Walker e Crônica Elis,
Sauanny Oliveira de Sauanny Oliveira
06/04/21 Uini Barros Grama, de Keum Suk Gendry-Kim
Fonte: Elaborado pela autora (2021).
No produto desta pesquisa, que consiste em um e-book, estão contidos os
relatos das edições acima, mas aqui iremos nos deter a alguns encontros que foram
emblemáticos, durante o projeto. Dentre essas edições uma delas foge ao padrão de
ser escrita por uma mulher, sendo esta Pipi Raiolaser – A anunciação da nova era,
que foi escrita por Pablo Soares, utilizando um pseudônimo feminino de Pipi Raiolaser.
O encontro com Pipi Raiolaser foi marcado por uma série de particularidades que o
tornaram singular. Tanto pelo encontro em si que fora planejado originalmente para
ocorrer de forma presencial, mas que, por conta do isolamento social obrigou o
encontro a ocorrer de forma virtual através de uma sala do GoogleMet, como pelo fato
de a autora em questão ser ao mesmo tempo Pablo Soares e Pipi Raiolaser o que
provoca necessariamente uma reflexão sobre a escrita feminina.
Pablo Soares, em dado momento do encontro que realizou a medição afirma
que “A mão que escreveu foi dessa personagem”, ao se referir que o processo de
escrita do cordel, teria sido feito por uma essência feminina. O autor também ressalta
que por vezes se sentiu impelido a conter trejeitos femininos, enquanto homem
homossexual, e o cordel foi uma forma de expressar sua essência feminina.
31

Finalizando sua reflexão afirmando que o feminino compõe todos nós, “Todos somos
frutos de uma mulher, a água é feminina e ela nos compõe”.
Outro encontro que podemos citar como emblemático dentro do projeto, foi o
realizado no dia 08 de março de 2021, data em que é celebrado o dia da mulher. Neste
encontro tivemos a participação da advogada Monique Aires Lima, e da autora deste
projeto, Sauanny Oliveira. A edição teve como tema a violência contra a mulher e
contou com debate sobre as obras A Cor Púrpura, de Alice Walker e Crônica Elis, de
Sauanny Oliveira.
A advogada presente também esclareceu sobre lei de feminicídio no Brasil,
onde não se tem um caso específico que marcou o início da discussão acerca do
feminicídio, bem como sua introdução no ordenamento jurídico brasileiro. O que se
sabe é que o debate sobre ele já vinha sendo introduzido desde o início dos anos
noventa no âmbito dos estudos antropológicos e sociais voltados às teorias feministas.
A obra “Violência de gênero. Poder e Impotência” (SAFFIOTI E ALMEIDA, 1995), foi
uma das primeiras a abordar tal temática.
Mesmo não havendo um caso estopim que levou à iniciativa de um projeto de
lei ao Congresso Nacional para introduzir a qualificadora de feminicídio no Código
Penal brasileiro, o Brasil sentiu a necessidade de tal inovação através da grande
pressão estrangeira (tratados internacionais de qual o Brasil é signatário) diante dos
autos índices de violência contra a mulher no país. A lei nº 13.104 de 2015 foi
promulgada em 09 de março de 2015 para alterar o artigo 121 do Código Penal, bem
como o artigo 1º da Lei nº 8.072 de 1990 a fim de reconhecer o feminicídio como uma
nova qualificadora do crime de homicídio e incluí-lo no rol de crimes hediondos.
Monique Aires também abordou as diferentes formas de violência que uma
mulher pode sofrer, não com abusos físicos, mas como também de caráter
psicológico. Dentro deste contexto tivemos a leitura da crônica Elis, presente no Anexo
1 deste trabalho. Este texto possui caráter autobiográfico, e relata a vivência de uma
mulher que foi violentada sexualmente. A autora afirmou durante a edição do projeto
que o processo de escrita da crônica teve início dentro de um processo terapêutico e
a auxiliou no processo de lidar com o trauma sofrido.
Ao compartilhar o seu relato em forma de crônica a autora busca relatar a si
mesma, como forma de fortalecer outras mulheres que possam ter passado por
situações de violência semelhantes a sua. Bem como, abordar a importância da
denúncia em casos de violência contra mulher. O encontro foi o de maior alcance,
32

contando com a participação de 92 pessoas, e foi realizado do formato de live7 no


Youtube. “Por meio de uma literatura intimista, confessional, cheia de características
próprias da essência feminina, a mulher pôde se revelar para o mundo na tentativa de
se redefinir, de escrever sua própria história sem medo de opressões, agressão física
ou moral” (ESSER, 2014, p.12).

A última edição citada aqui, será a que abordou o livro Memórias da Plantação
de Grada Kilomba. A bibliotecária que mediou o encontro, Liliane Gomes, abordou
que esta obra tem como objetivo descolonizar o pensamento, o conhecimento e
também a língua. Grada aborda nesta obra um racismo estrutural relacionado a
língua, a cultura, a memória, ao pensamento, buscando ter uma perspectiva bastante
abrangente sobre estes temas. Se referindo ao colonialismo como uma ferida que
nunca foi tratada, uma ferida que dói sempre, e que por vezes sangra. Segundo ela:
“Parece-me que não há nada mais urgente do que começarmos a criar uma nova
linguagem. Um vocabulário no qual nós possamos todas/xs/os encontrar, na condição
humana” (KILOMBA, 2019, p. 21).

Uma questão pontuada pela Liliane em sua mediação é que o prefácio da


edição observa algumas particularidades da Língua Portuguesa, em comparação ao
alemão e o inglês. Observando que o português tem muito mais resquícios coloniais
e patriarcais. Uma palavra destacada pela autora é a palavra sujeito, que se relaciona
a um sujeito de direitos, enquanto pessoa, enquanto indivíduo e enquanto humano.
Bem como, esse sujeito é o sujeito da oração, aquele que faz ação e não aquele que
sofre a ação.

“[...] A língua, por mais poética que possa ser, também têm uma dimensão
política de criar, fixar e perpetuar relações de poder e violência, pois cada palavra que
usamos define o lugar de uma identidade” (KILOMBA, 2019, p. 14). Essa citação se
relaciona intimamente com o intuito do Tecendo Vozes, já que observamos nesse
projeto a importância da fala, da palavra e da literatura como agentes
transformadores. Nesta obra a autora analisa histórias autobiográficas, que são
relatadas em forma de entrevista, de mulheres negras que moram em Berlim, lugar
onde desenvolveu sua tese de doutorado. Fazendo assim, do próprio livro, uma forma

7
O encontro está disponível através do link: <https://www.youtube.com/watch?v=nkgANBglXu8>.
33

de questionar e romper o silêncio destas mulheres negras. Buscando promover uma


descolonização do conhecimento, para a autora uma das vias possíveis para que esta
ação ocorra é transformar os espaços criativos, concomitantemente em espaços de
resistência.
34

6 CONSIDERAÇÕES FINAIS

O projeto Tecendo Vozes busca levar ao público, através de uma experiência


de mediação, posicionamentos socioculturais de mulheres escritoras, e suas óticas
através dos textos ali apresentes. Compondo em todas obras aqui citadas, aspectos
biográficos, sendo esse ponto comum escolhido, para dar maior visibilidade a essas
mulheres e lembrar aos leitores ali presentes, a importância de ouvir as histórias de
mulheres através da sua própria voz.

Nada adianta ao leitor ter acesso aos livros, se não há a recepção dos textos
contidos neles por meio da mediação, seja ela informacional, tecnológica,
cultural, literária; utilizando-se dos recursos de comunicação impresso,
eletrônico ou oral (BORTOLIN, 2010, p.106).

Quem narra, presencia o relato de suas vidas, e faz em dupla qualidade de


indivíduos singulares e de sujeitos coletivos. Cada um destes relatos é único, mas no
caminho da construção social sua subjetividade tem sofrido influência familiar, social,
cultural, socioeconômica do meio em que viveram ou vivem. Como sujeitos singulares,
encarnam de maneira única e irrepetível valores, modas, costumes, normas, mitos de
ordem familiar, grupal, social, que as incluem no que fazem dentro de um contexto
social que não é estático, pelo contrário, está continuamente afetado por contradições,
rivalidade e tensões de seus membros (TEDESCHI, 2014).
O dito “segundo sexo”, ao se proporem como autoras da sua própria história
quebram padrões patriarcais impostos historicamente, e reproduzidos por diferentes
discursos, por vezes ressaltados socialmente por Igreja e Estado.

[...] a reflexão sobre a escrita de autoria feminina remete ao processo


histórico que a produz, como fenômeno cultural, bem como as relações de
poder no contorno de interesses que ocorrem na sociedade e que irão
influenciar em seus significados. Dessa forma, é preciso refletir sobre o
passado para que se possa compreender o presente (TEIXEIRA, 2008, p.
67).

As autoras abordadas no projeto possuem discursos próprios sobre suas


experiências e vivências que proporcionam novas reflexões dentro do espaço da
biblioteca e busca dar maior visibilidade a autoras femininas, para que estas obras
alcancem novos leitores, novas mentes e semeiem um processo reflexivo sobre uma
sociedade desigual.
De acordo com a experiência do desenvolvimento do projeto, observamos que
a iniciativa de aumentar o repertório dos leitores foi alcançada, já que tivemos um
35

público diverso presente em nossas edições desenvolvidas, que na maioria das


ocasiões não conhecia a obra abordada, mas que se mantinha curioso em buscar
desfechos e conhecer mais sobre cada autora.
No âmbito da realização do projeto de forma presencial e virtual, tivemos um
engajamento do público nas duas modalidades, sendo que não nos prendemos ao
número de participantes presentes em cada encontro, mas sim na riqueza do debate
realizado com estes. Entretanto, no que concerne as lives realizas no Youtube, nas
últimas edições do projeto, estas apesar de permitirem a reprodução do encontro
mesmo que o participante não possa estar presente no dia e horário marcados,
enfraquece o debate, que é o nosso maior objetivo. Já que nesta modalidade os
participantes não participam através de suas falas, mas apenas de comentários
escritos, o que o diminuiu a interação, reduzindo o contato com os participantes.
Diante disto, nas edições virtuais do projeto vimos um maior ganho realizando estas
através de uma videoconferência na plataforma do Google Meet.
Por fim, tivemos encontros engrandecedores e um público fiel que nos
acompanhou durante estes dois anos em que o projeto aconteceu. Alguns dos
participantes nos solicitaram serem até mesmo mediadores em edições futuras, dada
a identificação com o projeto, fato este que foi concretizado nas edições de 2021 que
tiveram como mediadores Anderson Maia e Jade Luiza. As edições realizadas nos
fortaleceram a acreditar na potência da literatura e da palavra, já que: “nenhuma vitória
era melhor do que a da palavra dita” (LEVY, 2014, p. 154).
36

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ANEXOS

ANEXO 1 – Crônica Elis


Elis
-Tá da cor do chão, menina!
Elis, se encolhia sabendo que dali viriam as típicas reclamações da avó, “É avoada
essa, menina”, “Já caiu de novo? ”, “ Tava brincando na terra quente, vai adoecer. ”.
Ela ouvia tudo e ia tomar banho, para no outro dia repetir as mesmas coisas das quais
a vó se queixara. Era quase um ritual antes da janta, e após o banho cessavam as
queixas, a água já havia limpado tudo, e era hora de dormir. Mas aquele dia era
especial, tinha festa na rua, a própria avó fez questão de lhe dar banho, fez cachinho
no cabelo, botou a sandália mais bonita no pé, e perfumou a menina inteira.

-Agora sim, tá parecendo uma mocinha!

Dizia toda orgulhosa enquanto via a neta correr pela rua cumprida. Mas aquele dia
não era qualquer dia, tinha festa, muita gente arrumada tentando manter conversas
sobre qualquer coisa do cotidiano: a conta de luz cara, fulaninho que morreu,
cicraninho que casou, e o filho do meio da Dona Maria, aquela que era casada com
Seu Zé, sim que morava ali no fim da rua e sempre dava ‘bom dia’ a todo mundo, o
filho do meio dela tinha entrado na faculdade e ido morar em São Paulo.

Enquanto isso Elis se preocupava mesmo era em pular corda, o mais rápido que
conseguisse, até que os seus joelhos lhe pedissem encarecidamente por um
descanso. Quem caísse perdia a vez, lembrava.

-33,34,35... Caiu! – Riam as crianças em coro.

Limpando os joelhos, que lhe tinham sussurrado confessando que não aguentavam
mais, Elis viu de canto de olho o rapaz que morava perto da pracinha, aquele que
vendia sorvete, vir lhe ajudar a levantar.

-Foi só um pulo! – disse o rapaz - Isso já é hora de menina estar dormindo. Vamos
que eu te levo para casa!

Sem dizer nada, Elis obedeceu e foi com rapaz para casa. Abriu a porta que estava
apenas encostada, já que em dia de muito movimento não faz perigo, de acordo com
41

o raciocínio sempre exato da sua vó. Colocou o pijama e foi para a cama, mas aquele
dia não era qualquer dia, Elis só percebeu isso quando sentiu a mão quente do rapaz
por entre suas coxas, lhe tocando devagar, não entendeu, também não deu em
perguntar, ficou ali parada, inerte, esperando tudo acabar, o coração apunhalando
dentro do peito, fechou os olhos com força, logo vai acabar, adormeceu, ou apenas
esqueceu porque não queria nunca mais lembrar.

No outro dia Elis ainda era menina, sua maior preocupação dessa vez era comer os
docinhos, que sabia que avó tinha trazido da festa, antes dos primos chegarem. E ir
pular corda, sem cair, claro. Ao fim do dia se tivesse sorte e fizesse as tarefas podia
ir tomar soverte na pracinha, perto de casa.

***

Passaram-se muitos sorvetes, com eles os anos. Elis já não pulava corda, agora fazia
yoga, depois corria para o trabalho, a noite ia para a faculdade - às vezes para assistir
as aulas, outras só para conversar com os amigos no barzinho da esquina – ali ela se
sentia em casa. Nesse tal bar, tinha muita gente desarrumada tentando manter
conversas sobre qualquer coisa do cotidiano: o cinema, o feminismo, a identidade e o
ex namorado do Mário, aquele que fazia o curso de música, sim o Mário que é do
movimento estudantil e sempre dava ‘bom dia’ a todo mundo, o ex namorado dele
tinha sido aprovado no mestrado e ido morar no Rio.

E assim Elis ia seguindo, como uma feliz aquariana, mas que não acreditava em
signos. Até que num desses encontros, apareceu Fernando, que entre uma cerveja e
outra chegara ali, no seu apartamento. No princípio pensou ser uma imensa gentileza,
lhe levar em casa. Lhe botar na cama. Lhe tirar a roupa...

-Espera. Não! Não tira minha roupa! – Disse Elis, como num susto.

Elis se fez desperta, corou, lembrou da noite de sua infância. Disse que não, tentou
afastá-lo. Como queria agora não ser a menina magrela e ter uma super força.
Naquele momento se sentia como fagulha entre a carne, seu coração em brasa fervia
o corpo trêmulo, fechou os olhos, não adormeceu, ficou ali parada, inerte, esperando
tudo acabar.
42

No outro dia, Elis ainda era mulher, não haviam os docinhos da festa, nem o sorvete
na pracinha. Tomou um banho, esfregando com força cada parte do seu corpo,
tentando limpar por dentro.

Deitou. Lembrou muito da avó.

-E se minha avó tivesse evitado? E se eu tivesse evitado? Dizem que dormir ajuda.

Mas como é que dorme quando os pensamentos desatinam a não parar, tão rápido
como ela desejara pular corda. E se? Olhando o relógio viu que estava atrasada para
yoga. Nada que a yoga não melhore, sussurrou para si mesma, tentando se
convencer.

Mas não conseguiu sair da cama, a primeira lágrima já tinha saltado do olho, depois
disso já não havia o que fazer, Elis transbordava. Sem nem perceber já estava
xingando os deuses, semideuses, não deuses, o universo inteiro:

- Não me disseram que um raio não cai duas vezes no mesmo lugar? Cadê a doutora
uma hora dessas? Um ano inteiro de psicanálise para isso. Porque isso aconteceu
comigo outra vez? Logo, eu. Eu que faço saudação ao sol, adoto cachorro de rua,
chego na hora no trabalho, nunca reprovei nada na faculdade, não como carne, já ouvi
todos os discos da Gal Costa, e dou ‘bom dia’ a todo mundo, logo eu.

Num impulso de raiva, levantou da cama para dar de cara com seu reflexo no espelho,
frente aquele rosto vermelho, e olhos inchados, viu o que a muito não conseguia
enxergar: Ela, em seu todo, uma mulher.

Achou-se injusta. Pensou em si, e nas mulheres que não eram ela, nas que não fazem
saudação ao sol, nas que não querem saber de bicho nenhum, nas que nunca foram
pontuais, nas que não sabiam ler e escrever, nas que amavam um bom churrasco, e
nas que por infelicidade nunca tinham ouvido falar em Gal Costa, ‘logo elas’, todas
elas. Elas e todas as outras que não tinham nada a ver com sua lista de argumentos
particulares indiscutíveis. Chegou à conclusão certeira: Ninguém, nunca, nenhuma
mulher devia ter que passar por isso.

***

Os pensamentos se assentavam aos poucos, ao longo dos dias, naquele impulso de


virar atitude. Elis sentia aquela vontade vinda de dentro, que quando nos damos conta
43

já virou ação. Ao tentar nomeá-la nos damos com aqueles que dizem ser tomados por
revelações, iluminações, ou qualquer coisa que já estava ali, dentro de nós, esperando
aquela gota de coragem para nos fazer germinar. Tinha que se ter coragem, porque
dentro de si habitava o medo. Elis sentiu essa coragem dentro de si, como um soluço,
que quando se vê já está ali, que não surgiu do nada, mas tampouco se consegue
explicar com facilidade.

Elis botou roupa no corpo, sandália no pé, se sentiu muitas, perdoou-se por não ter
feito isso antes, e sentou-se em frente ao computador, ali escreveu:

“Ah, a vida

A vida é essa amargamente deliciosa sobremesa

Que devora a gente

Quisera eu só ter colocado o pé

E sentido o maravilhoso frisson que é água dessa imensa piscina

O lado bom da vida.

Mas não, tive que mergulhar fundo.

Dentro de mim

Quase que empurrada a força, nessas águas gélidas

Que doem até os meus ossos

Mas já que estou aqui, em meio esse oceano

Sem bote salva vidas que me leve

Serei eu minha própria marinheira, serei ondas que reverberam.

Ah, me bota papel e caneta na mão para você ver:

Eu grito!

Eu conto a minha história, e a sua, e a dela

Eu sou muitas

E nesse bordado imenso nós vamos tecendo vozes


44

Você vai ouvir

Como o grito de uma mulher ferida ecoa forte!”

***

Ela não fez o poema, ele já estava feito dentro si, só brotou pelos seus dedos com
uma necessidade de ser lido, de ser reconhecido ao passar pela mão de suas iguais.
Literatura também é arma menina, cortante, potente, pulsante. Elis, decidiu que
naquele momento merecia uma pausa, pausa para celebrar a vida, porque era sim
uma sobrevivente, lembrou da doutora que uma vez já lhe salvara a vida:

-Cadê a doutora uma hora dessas, todos esses anos de psicanálise para isso! Agora
eu entendo, no fim das contas cuidar da mente é cuidar de si. Tive que escalar tudo
isso, para ver a fortaleza que me tornara.

Teve a certeza que merecia uma cerveja, daquele seu bar favorito que ficava no topo
de uma ladeira, parecendo proposital tal localização para aumentar a sede dos que
se aventuravam chegar até ali.

Enquanto subia a ladeira a mente divagava para desviar do esforço, finalmente Elis
sabia que a culpa não era da menina, nem da vó, nem de sorvetes em praças, ou
cervejas em bares. Uma imensidão de pensamentos para uma ladeira enorme, se
apoiava no poder das palavras; luta e liberdade. Elis sabia que não era a mesma, e
não tentaria definir o que se tornara, pelo menos não agora, agora ela fluiria dentro si,
ela se faria ser ouvida, teceria vozes, a sua e a de muitas. Já ouvia o som ligado no
bar, e o canto de Maria Betânia dizendo: “Não mexe comigo que eu não ando só”, e
assim continuava a subir, até encontrar o seu destino:

-Bel, me vê uma cerveja bem gelada, por favor. Que hoje é meu aniversário, hoje eu
nasci de novo, hoje é dia de celebrar!

Sauanny Oliveira
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ANEXO 2 – FANZINE
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