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Universidade do Estado da Bahia – UNEB


Departamento de Educação – Campus II/Alagoinhas
Programa de Pós-Graduação em História

Igor Campos Santos

A “Princesa do Sul” na Narrativa Ficcional de Jorge


Amado e na Imprensa Escrita Local: representações da
Cidade de Ilhéus-Ba na década de 1920

Alagoinhas, setembro de 2021


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Igor Campos Santos

A “Princesa do Sul” na Narrativa Ficcional de Jorge


Amado e na Imprensa Escrita Local: representações da
Cidade de Ilhéus-Ba na década de 1920

Dissertação apresentada ao Programa de Pós-


Graduação em História da Universidade do
Estado da Bahia – Campus II como requisito
parcial para a obtenção do título de Mestre em
História.

Orientadora: Profa. Dra. Celeste Maria Pacheco


de Andrade

Banca examinadora:

Profa. Dra. Celeste Maria Pacheco de Andrade


UNEB (Orientadora)

Profa. Dra. Lina Maria Brandão de Aras


UFBA (membro externo)

Prof. Dr. Paulo Santos Silva


UNEB (membro interno)

Alagoinhas, setembro de 2021


FICHA CATALOGRÁFICA
Sistema de Bibliotecas da UNEB

CDD: 981
FOLHA DE APROVAÇÃO
"A “PRINCESA DO SUL” NA NARRATIVA FICCIONAL DE JORGE AMADO E NA
IMPRENSA ESCRITA LOCAL: REPRESENTAÇÕES DA CIDADE DE ILHÉUS-BA NA
DÉCADA DE 1920"

IGOR CAMPOS SANTOS

Dissertação apresentada ao Programa de Pós-Graduação em História – PÓSHISTÓRIA, em


30 de setembro de 2021, como requisito parcial para obtenção do grau de Mestre em
História pela Universidade do Estado da Bahia, conforme avaliação da Banca Examinadora:

Professora Dra. CELESTE MARIA PACHECO DE ANDRADE


UNEB
Doutorado em História
Pontifícia Universidade Católica de São Paulo

Professor Dr. PAULO SANTOS SILVA


UNEB
Doutorado em História Social
Universidade de São Paulo

Professora Dra; LINA MARIA BRANDÃO DE ARAS


UFBA
Doutorado em História Social
Universidade de São Paulo
“O olhar percorre as ruas como se fossem páginas
escritas: a cidade diz tudo o que você deve pensar,
faz você repetir o discurso, e, enquanto você
acredita estar visitando Tamara, não faz nada além
de registrar os nomes com os quais ela define a si
própria e todas as suas partes.”

Ítalo Calvino, As cidades invisíveis, 1972.


Agradecimentos

Esta pesquisa teve início no ano de 2018, no último semestre do curso de História da
Universidade Estadual de Santa Cruz, instituição que me proporcionou uma qualificada
formação acadêmica e me possibilitou sonhar em alcançar níveis ainda mais altos na educação
superior. Ao ingressar no Programa de Pós-Graduação em História da Universidade do Estado
da Bahia, felicidade que compartilhei com amigos e familiares, percebi que muitas ideias que
eu tinha precisavam de amadurecimento e para isso contei com o apoio dos professores Paulo
Silva, Elisangela Ferreira e Celeste Maria Pacheco de Andrade. Desse momento em diante,
muitas coisas mudaram nos caminhos desta pesquisa, acredito que para melhor.
Sem me alongar muito, primeiramente gostaria de agradecer a principal financiadora
desse estudo, a pessoa que mais insistiu na minha educação, minha mãe Leide Selma. Sem a
ajuda dela e de meus irmãos Fernando, Fábio, Nerivan e Najla, todos Campos a quem agradeço
de coração, eu não teria como me manter estudando em outra cidade em regime de “dedicação
exclusiva”. Foram eles, principalmente, que possibilitaram essa pesquisa.
Agradeço também aos meus amigos e amigas que compartilharam do meu entusiasmo,
minha raiva e tristeza durante este percurso. Não dá para citar todos, mas é importante apontar
ao menos alguns, como Rodrigo Lelis, leitor e crítico dos meus textos, Samir Santana, amigo
com quem convivi por alguns meses em Alagoinhas, Tiago Casaes, companheiro de pesquisa e
debates sobe Ilhéus, Tauã Fernandes, com quem muito briguei e os demais companheiros e
companheiras do grupo de Whatsapp que frequentemente me animavam e estressavam: Ana
Cecília, Deyse, Luciana, Bruno, Josi. Não tem como esquecer dos colegas de turma, com quem
bebi, conversei e curti o mestrado, Luís, Bruna, Mariana e Aline.
Também faço um agradecimento especial aos amigos que acompanharam a labuta que
tive, que leram e teceram comentários proveitosos de algumas versões do meu texto, como
Thaiara e Mateus.
Finalmente, agradeço à equipe do CEDOC-UESC, Stella e Mônica, por me aturarem
durante o tempo em que eu estive buscando as fontes que necessitava para a construção deste
texto.
Resumo

A Cidade de Ilhéus, localizada no Sul da Bahia, passou por processos de modificações urbanas
que motivaram a formulação de representações sociais sobre seu espaço urbanizado na década
de 1920. O objetivo desta pesquisa é analisar essas representações referentes ao período citado,
presentes na ficção e na imprensa escrita local. O ponto de partida deste estudo foi o interesse
pela história da Cidade e a forma como o setor empresarial, em conjunto com a municipalidade
de Ilhéus, explora a obra do escritor Jorge Amado a partir de interesses econômicos, como o
turismo. Nas representações sociais presentes em grande parte das produções textuais a respeito
da cidade percebemos a exclusão de indivíduos subalternizados da história de Ilhéus. Por isso
o empenho deste estudo na desmistificação de narrativas memorialísticas, construídas por um
grupo social dominante (elite cacaueira), que por muito tempo foi a base dessas representações.
O estudo está amparado na tendência da Nova História Cultural, que entende a realidade não
apenas por meio da materialidade da existência, mas também por sua subjetividade, dando
maior ênfase aos processos mentais da construção do real. Identificamos o imaginário urbano
de Ilhéus através das representações presentes nas narrativas jornalísticas do O Commercio e
do Correio de Ilhéus; e na ficção, pelo romance Gabriela, Cravo e Canela (1958). Utilizamos
o paradigma indiciário, de Carlo Ginzburg, buscando nas fontes os vestígios de um passado que
foi silenciado e esquecido, os indivíduos excluídos da história e os resquícios de suas memórias.
Em complemento, aplicamos o método de montagem por choque contrastivo, nos permitindo
desconstruir a imagem do passado e formular novas interpretações e representações dos
acontecimentos históricos. A dissertação tem a seguinte estrutura: introdução, três capítulos. O
primeiro intitulado “História, Teoria e Literatura: Ilhéus, Jorge Amado e Imprensa Escrita
Local”; o segundo “Olhares Sobre a Cidade de Ilhéus: narrativas jornalísticas e literárias” e o
terceiro “O Imaginário Urbano e a Cidade Subalterna” e as considerações finais.

Palavras-chave: Ilhéus. Representações. Imaginário Urbano.


Abstract

The City of Ilhéus, located in the south of Bahia, went through processes of urban changes that
motivated the formulation of social representations about its urbanized space in the 1920s. The
objective of this research is to analyze these representations referring to the mentioned period,
present in fiction and in the local written press. The starting point of this study was the interest
in the city's history and the way in which the business sector, together with the municipality of
Ilhéus, explores the work of writer Jorge Amado from economic interests, such as tourism. In
the social representations present in most textual productions about the city, we notice the
exclusion of subalternate individuals from the history of Ilhéus. That is why the effort of this
study to demystify memorialists narratives, constructed by a dominant social group (cocoa
elite), which for a long time was the basis of these representations. The study is supported by
the trend of the New Cultural History, which understands reality not only through the
materiality of existence but also through its subjectivity, giving greater emphasis to the mental
processes of the construction of reality. We identified the urban imaginary of Ilhéus through
the representations present in the journalistic narratives of O Commercio and Correio de Ilhéus;
and in fiction, by the novel Gabriela, Cravo e Canela (1958). We use the evidential paradigm,
by Carlo Ginzburg, seeking in the sources the traces of a past that was silenced and forgotten,
the individuals excluded from history and the remnants of their memories. In addition, we apply
the contrastive shock montage method, allowing us to deconstruct the image of the past and
formulate new interpretations and representations of historical events. The dissertation has the
following structure: introduction, three chapters. The first is entitled “History, Theory, and
Literature: Ilhéus, Jorge Amado and Local Written Press”; the second is “Olhares sobre a cidade
de Ilhéus. journalistic and literary narratives” and the third “The Urban Imaginary and the
Subaltern City” and the final considerations.

Keywords: Ilhéus. Representations. Urban Imaginary.


Sumário
Lista de abreviaturas e siglas ................................................................................................................... 8
Introdução................................................................................................................................................ 9
Capítulo 1 - História, Teoria e Literatura: Ilhéus, Jorge Amado e Imprensa Escrita Local .................. 15
Algumas considerações conceituais e metodológicas ....................................................................... 16
Ilhéus e a figuração de seu passado no romance de Jorge Amado e na imprensa escrita local ......... 29
Capítulo 2 - Olhares Sobre a Cidade de Ilhéus: narrativas jornalísticas e literárias .............................. 44
Um percurso no tempo e espaço da Vila de São Jorge dos Ilhéus .................................................... 45
De cidade colonial à “Princesa do Sul”: Ilhéus nas narrativas da imprensa escrita local ................. 53
As visões imaginárias de Ilhéus na ficção de Jorge Amado .............................................................. 66
Capítulo 3 - O Imaginário Urbano e a Cidade Subalterna ..................................................................... 77
Um passeio pela terra de Jorge Amado e da Gabriela ....................................................................... 78
Percursos ficcionais por uma “outra” Ilhéus ..................................................................................... 85
Indícios de uma “outra” Ilhéus na Imprensa Escrita Local ............................................................. 104
Considerações finais ............................................................................................................................ 122
Arquivos e Fontes................................................................................................................................ 124
Bibliografia consultada........................................................................................................................ 126
Lista de abreviaturas e siglas
CEDOC – Centro de Documentação e Memória Regional

Cel. – Coronel

IBGE – Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística

PRD – Partido Republicano Democrata

UESC – Universidade Estadual de Santa Cruz

UNEB – Universidade de Estado da Bahia


9

Introdução

A Cidade de Ilhéus, localizada no Sul da Bahia, passou por processos de modificações


urbanas motivadas pela prosperidade econômica proveniente da lavoura cacaueira durante a
década de 1920. Nesse período, a partir das divulgações feitas pela imprensa escrita local a
respeito dos melhoramentos públicos e da riqueza gerada pelo cacau, foram produzidas
configurações narrativas que representavam a urbe como a “Princesa” ou “Rainha do Sul” e
“Capital do Cacau”. Essas representações ganharam o mundo por meio dos romances da “saga
do cacau” de Jorge Amado, que, ambientados no município de Ilhéus, descrevem com riqueza
de detalhes o contexto histórico dos anos 1920 e 1930, a vida e os costumes dos habitantes da
cidade.
Em Cacau Amado apresentou Ilhéus como o destino de inúmeros migrantes que partiam
de suas terras natais, no Norte ou Nordeste, fugindo da seca e da extrema pobreza, em busca
das “riquezas fáceis” encontradas nas “terras do cacau”. Nesse romance, o protagonista José
Cordeiro, imaginando a região cacaueira como um Eldorado devido às frequentes notícias que
chegavam aos estados nortistas e nordestinos, a respeito da sua prosperidade econômica, deixa
São Cristóvão, em Sergipe, e segue para Ilhéus. Ao desembarcar na cidade, boa parte de suas
expectativas são frustradas no pouco tempo em que esteve hospedado em sua área central,
percebendo as desigualdades sociais gritantes que existiam naquele local.
Já em São Jorge dos Ilhéus, o escritor, ao mesmo tempo em que construiu uma imagem
de beleza, progresso e civilidade para a cidade considerada a “Rainha do Sul”, também expôs
aos seus leitores a urbe dos subalternizados. Jorge Amado, por meio de uma relação de
contraste, recriou espaços, sujeitos e hábitos diferenciados presentes em Ilhéus, demonstrando
assim a diversidade do social e as diferentes formas de perceber o espaço citadino. Ainda assim,
a representação da cidade como “Capital do Cacau” e “Rainha do Sul” ganhou mais força e se
perpetuou no imaginário do seu público leitor.
No romance Gabriela, Cravo e Canela, Ilhéus é construída narrativamente como uma
urbe que sofria com o atraso promovido pelos seus governantes pertencentes às oligarquias
coronelistas, mas que tinha um grande potencial para progredir. Com o avanço das forças do
progresso, representadas por Mundinho Falcão e seu grupo, a cidade passou a receber diversos
beneficiamentos, favorecendo a economia cacaueira e a civilidade naquele meio urbano. Nessa
narrativa transparece o clima festeiro de alegria e prosperidade pelo qual passava a “Princesa
10

do Sul”, seja no tempo narrado ou no tempo da narração, da mesma forma em que são
demonstrados os aspectos subalternizados da vida na urbe.
Na imprensa escrita local de Ilhéus também encontramos representações sociais do
urbano. O jornal O Commercio destacou a beleza a prosperidade econômica do município,
assim como teceu críticas à administração municipal contra as arbitrariedades do poder público
e os descasos em relação aos bairros subalternizados. Em contrapartida, o Correio de Ilhéus era
só elogios para com o intendente e seu governo; nesse periódico encontramos as principais
representações de Ilhéus como “Princesa” ou “Rainha do Sul”, um dos principais núcleos de
desenvolvimento da Bahia, podendo ser comparada até mesmo com a capital, Salvador.
No decorrer dos capítulos discutimos mais esses romances, fazendo algumas interseções
entre Cacau, Terras do Sem-Fim e São Jorge dos Ilhéus com Gabriela, Cravo e Canela, que é
o nosso principal objeto de estudo em conjunto com os periódicos citados. Do mesmo modo,
os órgãos de imprensa também são explorados com maior profundidade nos capítulos seguintes.
O objetivo desta pesquisa é analisar as representações produzidas sobre a Cidade de
Ilhéus, referentes à década de 1920, presentes na ficção e na imprensa escrita local. Buscamos
com isso recuperar e evidenciar seu imaginário urbano, representações e memórias, tanto as
que reafirmam, quanto as que contradizem – com destaque para estas – a memória coletiva dos
coronéis do cacau e a memória social estabelecida para a urbe. Em outras palavras,
interpretamos a cidade por meio da desconstrução das narrativas que levavam em consideração
apenas a riqueza, o progresso, a beleza e a civilidade representadas nos jornais locais e nos
romances de Jorge Amado. Assim podemos reconhecer a diversidade do social e das formas de
viver a/na urbe.1
Por esse motivo, tomando como base a História Cultural Urbana, este estudo se
enquadra na linha de pesquisa Sociedade e Práticas Narrativas do Programa de Pós-Graduação
em História da Universidade do Estado da Bahia (UNEB) – Campus II, na área de História,
Cultura e Práticas Sociais. A pesquisa se articula com esta linha por buscar compreender a
produção de narrativas sobre a Cidade de Ilhéus, que a representaram e contribuíram para a
cristalização de um imaginário a respeito da urbe. Desse modo, o foco de análise são as
narrativas literárias e jornalísticas, reconhecendo assim semelhanças entre ambas, que formam
uma unidade por meio de diferentes apropriações e que, em conjunto, auxiliaram na construção
desse imaginário urbano.

1
Os conceitos apresentados nesse paragrafo serão discutidos no Capítulo 1.
11

O ponto de partida para este estudo foi o interesse pela história da cidade e sua evolução
urbana, bem como pela forma como o setor empresarial e a municipalidade de Ilhéus explora
turisticamente, em seu espaço central, a obra literária do escritor Jorge Amado. As pesquisas
acadêmicas que discutem o processo de urbanização de Ilhéus e sua expansão para as áreas
periféricas, ou suburbanas, privilegiam as questões ambientais e econômicas que a perpassam
e não tem como objetivo analisar aspectos relacionadas às práticas sociais e memórias dos
sujeitos que habitavam esses espaços. Da mesma forma, a apropriação do romance Gabriela,
Cravo e Canela, de Jorge Amado, pelo setor turístico da cidade não levou em consideração a
diversidade de atores sociais, dos personagens amadianos e os lugares onde viviam.
A partir disso, percebemos a exclusão dos indivíduos subalternizados da história da
cidade e de sua publicidade,2 assim como da produção científica a seu respeito.3 Por outro lado,
através de estudos historiográficos mais recentes a respeito de Ilhéus, com o recorte temporal
nas décadas de 1920 e 1930, observamos a utilização de outras categorias de análises que
privilegiaram discussões sobre esse setor social, levando em consideração sua participação no
mundo do trabalho, no jogo político, suas práticas e suas vivências urbanas.4 Contudo, essas
pesquisas não são voltadas para a análise do imaginário urbano de Ilhéus, ou das narrativas que
o propagaram.
Sendo assim, o empenho neste estudo se justifica pela sua contribuição para a
historiografia local no sentido da desmistificação de narrativas memorialísticas, construídas por
um grupo social dominante (elite cacaueira), que foi a base da construção das representações
sociais sobre a cidade de Ilhéus. Do mesmo modo que sua importância está no reconhecimento
e evidenciação de representações de espaços urbanos, sujeitos e práticas sociais que eram
considerados “bárbaros”, “imorais” ou “atrasados” e foram rejeitados pela memória social da
cidade. Nossa tese é a constatação de existência de outras memórias que foram silenciadas e

2
Ver: MENEZES, Juliana S. Da Literatura ao Turismo Cultural: O caso do Quarteirão Jorge Amado.
Dissertação (Mestrado em Cultura e Turismo) Universidade Estadual de Santa Cruz/Universidade Federal da
Bahia, Ilhéus/Salvador, 2004.
3
Historiadores como Philipe Murilo de Carvalho e Mary Ann Mahony, em suas respectivas pesquisas já apontaram
autores e estudos que tinham como objeto de estudo a sociedade cacaueira, mas que não levava em consideração
os sujeitos subalternizados. Segundo os pesquisadores, a maior parte da produção científica do século XX
destacava e dava crédito apenas à memória coletiva dos coronéis do cacau. Ver: CARVALHO, Philipe M. S. de.
Trabalhadores, Associativismo e Política no Sul da Bahia (Ilhéus e Itabuna, 1919-1934). Tese (Doutorado em
História) – Faculdade de Filosofia e Ciências Humanas, Universidade Federal da Bahia, Salvador, 2015;
MAHONY, Mary A. Um passado para justificar o presente: memória coletiva, representação histórica e dominação
política na região cacaueira da Bahia. Cadernos de Ciências Humanas - Especiaria v. 10, n.18, jul. - dez. 2007.
4
Como exemplo podemos citar a tese de doutorado de Philipe Murillo de Carvalho e o livro organizado por ele e
Erahsto de Souza. Ver: CARVALHO, Philipe M. S. de. Trabalhadores, Associativismo... Op. Cit.;
CARVALHO, Philipe Murillo S. de; SOUSA, Erahsto F. de (Orgs.). Entre o fruto e o ouro: escritos de história
social do sul da Bahia. Itabuna, Ba: Mondrongo, 2014.
12

passaram por esquecimentos, mas que podem ser percebidas na narrativa ficcional e
parcialmente recuperadas através dos jornais.
Partimos da problematização da representação atual de Ilhéus, que é vista como a
“cidade de Jorge Amado e Gabriela”, terra dos coronéis do cacau e do “fruto do ouro”; e
buscamos responder onde está, nesta representação, os sujeitos e espaços subalternizados que
aparecem nos romances da “saga do cacau” e também constituíam a cidade, ou por qual motivo
eles foram apagados da memória social e do imaginário urbano. Da mesma forma que também
procuramos os motivos da construção desse imaginário urbano, na década de 1920, que
privilegiou a área central da cidade e sua estética. E também o porquê dos acontecimentos e
personagens narrados nos romances da “saga do cacau”, escritos por Jorge Amado, serem
confundidos com a própria história e fatos reais da cidade.5
Estamos nos amparando na tendência historiográfica da Nova História Cultural, que
entende a realidade não só por meio da materialidade da existência, mas também por sua
subjetividade, dando maior ênfase aos processos mentais da construção do real. É a partir desta
concepção que trabalhamos com os conceitos de representação, imaginário urbano e memória;
sendo a representação utilizada como uma forma de percepção e composição da realidade social
ou a presentificação de uma ausência através de uma imagem que assume o seu lugar e a
reconstrói em memória; o imaginário urbano é entendido como um sistema de construção de
ideias e valores sobre a cidade, que abriga em si duas formas de compreensão do espaço
citadino, a racional e a sensível; e, finalmente, a memória é tomada como um procedimento
intelectual de construção narrativa sobre o passado vivido, por quem rememora ou por sua
“comunidade afetiva”, experienciando novamente o ocorrido, fragmentando e substituindo a
experiência real.
Identificamos esse imaginário urbano de Ilhéus através das representações presentes nas
narrativas jornalísticas e ficcionais. Pela imprensa escrita local, a partir das publicações dos
jornais O Commercio (1920-1924) e Correio de Ilhéus (1921-1930); e na ficção, através de um
dos romances da “saga do cacau”, Gabriela, cravo e canela (1958), intersecionado pelas demais
narrativas da mesma saga – Cacau (1933) e São Jorge dos Ilhéus (1944) – do escritor Jorge
Amado. Os jornais encontram-se no Centro de Documentação e Memória Regional (CEDOC),
da Universidade Estadual de Santa Cruz (UESC), e a maior parte está em boas condições de
preservação, podendo ser consultados sem muitas dificuldades.

5
MASCARENHAS, Anabel Guerra S. A Influência da Obra de Jorge Amado nas Representações Sociais da
Região Cacaueira. Revista Espaço Acadêmico, nº 126, Novembro, 2011. p. 109.
13

Nesse sentido, levamos em consideração a aproximação entre História e Literatura,


buscando perceber na produção do conhecimento histórico a utilização de procedimentos
ficcionais, do mesmo modo que reconhecemos na literatura o emprego de documentação
histórica para atingir maiores níveis de verossimilhança.
Para atingirmos o objetivo de evidenciar “outros” imaginários urbanos, representações
e memórias sociais, utilizamos o método indiciário, caracterizado como uma forma de
conhecimento que tem como foco os vestígios, indícios e rastros que possibilitam ao
investigador/historiador construir um percurso narrativo a fim de descobrir as “raízes” de um
acontecimento ou fato, para além de sua superfície.6
Ao mesmo tempo, tentamos estabelecer uma leitura a contrapelo das fontes, buscando
nelas os vestígios de um passado que foi silenciado e esquecido, os indivíduos excluídos da
história e os resquícios de suas memórias. Assim nos foi possível a aproximação de uma outra
história, “que traga à memória a tradição (...) dos vencidos7.”
Esses vestígios podem ser encontrados nas notas policiais e denúncias publicadas nos
jornais que circularam em Ilhéus no período estudado e no romance já citado e tomado como o
principal objeto de estudo dentre as narrativas ficcionais, Gabriela Cravo e Canela, como
veremos ao longo dos capítulos.
Também fazemos uso do método de montagem por choque contrastivo, de Walter
Benjamin, nos permitindo desconstruir a imagem do passado e formular novas interpretações e
representações dos acontecimentos históricos com base no momento presente, construindo
assim uma relação dialética entre ambos. Esse método é possível pelo fato de nos ampararmos
nos fragmentos do passado que chegaram até o momento atual e que, aparentemente, não
tiveram relevância no percurso histórico. Contudo, são eles que proporcionam um “despertar”
para a ideia que temos do passado. Da mesma forma, “através do cruzamento de imagens
contrárias, [podemos] obter a revelação da coerência de sentido de uma época” 8, permitindo
colocar frente a frente representações e imagens contrastantes da cidade, sejam aquelas
construídas pelas elites e pelo poder público ou as das classes populares e dos subalternizados.
Paralelamente, partimos do método que nos permite ler a cidade como um texto, através
das narrativas produzidas sobre ela. Na busca de uma leitura mais completa sobre os espaços

6
GINZBURG, Carlo. Sinais: raízes de um paradigma indiciário. In: GINZBURG, Carlo. Mitos, Emblemas,
Sinais. Morfologia e História. Tradução de Federico Carotti. São Paulo: Companhia das Letras, 1989.
7
PERIUS, Oneide. Walter Benjamin: considerações sobre o conceito de história. Tempo da Ciência (16) 32:
123-135 2º semestre 2009. p. 130.
8
PESAVENTO, Sandra. O Imaginário da Cidade: visões literárias do urbano – Paris, Rio de Janeiro, Porto
Alegre. 2ª ed. Porto Alegre: Ed. Universidade UFRGS, 2002. p. 19.
14

urbanos, nos atentamos às suas formas e usos, de modo secundário, com a intenção de
encontrarmos em meio às modificações urbanas ocorridas em Ilhéus, e narradas pelos jornais e
romances, as ressignificações atribuídas aos diversos espaços, tanto pelo poder público como
pela população subalternizada.
A dissertação está organizada pela introdução, três capítulos e as considerações finais.
O primeiro capítulo História, Teoria e Literatura: Ilhéus, Jorge Amado e Imprensa Escrita
Local, fazemos a discussão teórica que norteia todo o estudo e na sequência abordamos as
figurações do passado colonial de Ilhéus na ficção amadiana referente à “saga do cacau” e nos
jornais que circulavam pela cidade.
O segundo capítulo, Olhares Sobre a Cidade de Ilhéus: narrativas jornalísticas e
literárias discute as narrativas configuradas pela imprensa escrita local e pelo romance
Gabriela, Cravo e Canela. Apresentamos um panorama histórico sobre as representações da
Vila de São Jorge no período colonial e na sequência abordamos as representações sobre as
transformações urbanas e sociais da cidade nos anos 1920.
No terceiro e último capítulo, O Imaginário Urbano e a Cidade Subalterna, partimos
das análises das publicações feitas pelos jornais e do romance Gabriela, Cravo e Canela (1958),
interseccionado por São Jorge dos Ilhéus (1944), de Jorge Amado, com o intuito de
percebermos outras vozes e memórias silenciadas, evidenciando uma outra representação
histórica sobre a cidade de Ilhéus no contexto da década de 1920.
15

Capítulo 1 - História, Teoria e Literatura: Ilhéus, Jorge Amado e


Imprensa Escrita Local

A fé poética dá corpo às sombras, dá-lhes um semblante de


verdade, nos faz sofrer “por nada! Por Hécuba!”. A fé
Histórica funcionava (e funciona) de modo totalmente
diferente. Ela nos permite superar a incredulidade,
alimentada pelas objeções recorrentes do ceticismo,
referindo-se a um passado invisível, graças a uma série de
oportunas operações, sinais traçados no papel ou no
pergaminho, moedas, fragmentos de estátuas erodidas pelo
tempo etc. Não só. Permite-nos, como mostrou Chapelain,
construir a verdade a partir das ficções [fables], a história
verdadeira a partir da falsa. (Carlo Ginzburg, em Paris,
1647: um diálogo sobre ficção e história, 2006)

A ocupação do território que hoje compreende a costa do dendê e a costa do cacau é


antiga e remonta aos grupos dos povos nativos Tupiguaranis. 9 Foi entre a desembocadura do
Rio Jaguaripe e a barra do Jequitinhonha que em 1534 definiram-se os limites das 50 léguas da
Capitania de São Jorge dos Ilhéus, doada por D. João III ao Escrivão da Fazenda Real, Jorge
de Figueiredo Correia.10 O sítio escolhido para a instalação da Vila sede da Capitania foi o
Outeiro de Santo Antônio, ou Morro da Matriz Velha, conhecido hoje por Outeiro de São
Sebastião. Seu nome foi uma homenagem ao Donatário, assim como uma referência às ilhotas
que se encontravam próximas do litoral.11
Desde a fundação da Capitania até os dias atuais, a Vila e posteriormente Cidade de
Ilhéus vem sendo objeto de múltiplas representações, formuladas por administradores,
viajantes, sacerdotes, políticos, romancistas e outros sujeitos que vivenciaram ou vivenciam o
cotidiano da urbe. Os relatos a respeito da Vila produzidos entre os séculos XVI e XIX
oscilavam entre positivos e negativos, porém, já no início do século XX, as narrativas sobre a
recém elevada cidade passaram a ter um caráter mais otimista, celebrando o momento de
prosperidade econômica que atravessava aquele pedaço da Bahia.12 Essas narrativas assumiram

9
Ver: DIAS, M. H. MORALES, W. F. GOMES, R. L. História, Arqueologia e Georreferenciamento na percepção
da ocupação territorial da vila de Ilhéus (Bahia, Brasil): período pré-colonial ao século XVII. In: Documentos
de Trabajo do XIV Congreso Internacional de Historia Agraria. Congreso Internacional de la Seha, Badajós,
2013.
10
DIAS, Marcelo H. Economia, sociedade e paisagens da Capitania e Comarca de Ilhéus no período colonial.
Tese (Doutorado em História) – Universidade Federal Fluminense, Niterói, 2007. P. 9.
11
CASTRO, Epaminondas B. Formação Econômica e Social de Ilhéus. Ilhéus-Ba: Prefeitura Municipal de
Ilhéus, 1981, p. 24-25. RIBEIRO, André L. R. Urbanização, poder e práticas relativas à morte no sul da Bahia,
1880-1950. Tese (Doutorado em História) – Faculdade de Filosofia e Ciências Humanas, Universidade Federal da
Bahia, Salvador, 2008, p. 69.
12
Ver: MAHONY, Mary A. Um passado para justificar o presente: memória coletiva, representação histórica e
dominação política na região cacaueira da Bahia. Cadernos de Ciências Humanas - Especiaria v. 10, n.18, jul.
- dez. 2007. p. 737-793.
16

a condição de representações sociais que foram fortalecidas por sua ampla divulgação na
imprensa escrita local e nos romances referentes à região cacaueira – produzidos por autores
como Jorge Amado e Adonias Filho –, e, finalmente, se perpetuando no meio acadêmico.13
O objetivo desse capítulo é desenvolver o debate teórico-metodológico que permeia toda
a pesquisa. Na primeira parte apresentamos a linha de interpretação historiográfica que
seguimos e os conceitos que são utilizados de forma recorrente nos capítulos seguintes, ao
mesmo tempo em que apontamos as principais fontes empregadas neste estudo e justificamos
suas escolhas. A segunda parte dedica-se a discutir a respeito das figurações do passado colonial
de Ilhéus em Terras do Sem-Fim (1943) e Gabriela, Cravo e Canela (1958), de Jorge Amado,
e nos textos publicados pela imprensa escrita local. Além disso, examinamos brevemente a
influência que a memória coletiva teve na produção literária do romancista e nas publicações
jornalísticas, tornando-os propagadores e lugares de uma memória social da cidade.

Algumas considerações conceituais e metodológicas

Inicialmente é necessário elucidarmos alguns conceitos que permeiam essa pesquisa e


os aparatos teóricos-metodológicos que utilizamos para fundamentá-la, assim como os motivos
que levaram à sua escolha.
Tendo como objeto de estudo as representações sociais formuladas a respeito da Cidade
de Ilhéus referentes à década de 1920, presentes no romance Gabriela, Cravo e Canela (1958)
do escritor Jorge Amado14; e nos jornais O Commercio (1920-1924) e Correio de Ilhéus (1921-
1930), imprensa escrita local, tomamos como base a tendência da Nova História Cultural.
Segundo Roger Chartier, essa abordagem “tem por principal objeto identificar o modo
como em diferentes lugares e momentos uma determinada realidade social é construída,
pensada, dada a ler.”15 O historiador francês utiliza a noção de representação como pedra
angular desta perspectiva historiográfica, pela sua capacidade de articulação com as práticas
sociais e com a ideia de apropriação. Além disso, Chartier procura se afastar do debate estéril

13
Idem. Ver também: DANTAS, Robson N. Entre a arte, a história e a política: itinerários e representações da
“ficção brasiliana” e da nação brasileira em Adonias Filho (1937-1976). Tese (Doutorado em História) –
Universidade Estadual de Campinas, Campinas, SP, 2010.; RIBEIRO, Danilo O. A cidade cinquentenária: entre
os manuseios de memórias e os sonhos de futuro (Itabuna, BA, décadas de 1950 e 1960). Dissertação (Mestrado
em História) – Faculdade de Filosofia e Ciências Humanas, Universidade Federal da Bahia, Salvador, 2014.
14
Destacamos que representações sobre a cidade, presente em outros romances referentes à “saga do cacau”, do
mesmo escritor, como Cacau (1933), Terras do Sem-Fim (1943) e São Jorge dos Ilhéus (1944) também serão
vistas, intersecionando assim a análise principal das representações presentes em Gabriela, Cravo e Canela.
15
CHARTIER, Roger. A História Cultural: entre práticas e representações. Tradução de Maria Manuela
Galhardo. Rio de Janeiro: Bertrand Brasil; Lisboa: Difel, 2002, p. 17.
17

a respeito da diferenciação entre a “objetividade das estruturas (...) e subjetividades das


representações”16, pois atesta que “as próprias representações do mundo social são os
componentes da realidade social.”17 Ou seja, as representações não são meros reflexos do
mundo material, mas antes constituintes e modeladoras do que se habituou chamar “mundo
real”. Como afirma Lynn Hunt: “Todas as práticas, sejam econômicas ou culturais, dependem
das representações utilizadas pelos indivíduos para darem sentido a seu mundo.”18
É a partir desta concepção que trabalhamos com o conceito de representação, entendo-
o como uma forma de percepção e composição da realidade social, determinadas por interesses
de diferentes grupos que as fabricam e tentam impor aos demais. O sentido que adotamos é o
da “representação como dando a ver uma coisa ausente” ou a presentificação da ausência de
um objeto através de uma imagem que assume o seu lugar e o reconstrói em memória, figurando
tal qual ele é.19 A partir disso cria-se uma relação de compreensão entre o “signo visível e o
referente por ele significado”, que podem ser próximas ou não, ou seja, o signo pode ser
parecido ou diferir do referente.20 Do mesmo modo, ao longo do texto tratamos as
representações como fenômenos sociais que, ao mesmo tempo em que preservam determinadas
ideias, ações, sentidos e concepções, corporificando e constituindo o mundo real, também
sofrem modificações, transformando a própria realidade.21 Em resumo, nas palavras de Ilana
Goldstein “quando se analisam representações, mais importante do que provar sua (falta de)
verdade objetiva é compreender sua eficácia social – por que e para quem fazem sentido.”22
Sandra Pesavento afirma que “ao longo da década de 1990, a emergência de uma história
cultural veio proporcionar uma nova abordagem ao fenômeno urbano”23, a cidade passou a ser
considerada como “um problema e um objeto de reflexão, a partir das representações sociais
que produz e que se objetivam em práticas sociais.”24 É nesse sentido que adentramos à linha

16
Ibidem, p. 18.
17
Idem. “Intellectual History or Social History? The French Trajectories” In: Modern European Intellectual
History: Reappraisals and New Perspectives. Orgs: LACAPRA, Dominick and KAPLAN, Steven L. Ithaca:
Cornell University Press, c1982. P. 30. Apud HUNT, Lynn. A Nova Historia Cultural. Trad. Jefferson Luis
Camargo. São Paulo, Martins Fontes, 1992, (O Homem e a História). p. 9.
18
HUNT, Lynn. Ibidem, p. 25.
19
CHARTIER, Roger. Op. Cit., p. 20-21.
20
Ibidem.
21
MOSCOVICI, Serge. Representações Sociais: investigações em psicologia social. Traduzido do inglês por
Pedrinho A. Guareschi. 5 ed. Petrópolis: Vozes, 2007.
22
GOLDSTEIN, Ilana S. O Brasil Best-Seller de Jorge Amado: Literatura e Identidade Nacional. São Paulo:
Editora Senac, 2003. p. 34.
23
PESAVENTO, Sandra Jatahy. Cidades visíveis, cidades sensíveis, cidades imaginárias. Rev. Bras. Hist. São
Paulo, v. 27, n. 53, p. 11-23, jun. 2007. Disponível em
http://www.scielo.br/scielo.php?script=sci_arttext&pid=S0102-01882007000100002&lng=pt&nrm=iso. acessos
em 26 nov.2020. p. 13.
24
Ibidem.
18

da História Cultural Urbana e investigamos o imaginário urbano da Cidade de Ilhéus na década


de 1920, buscando a

cidade sensível (...) construída pelo pensamento e que identifica, classifica e qualifica
o traçado, a forma, o volume, as práticas e os atores desse espaço urbano vivido e
visível, permitindo que enxerguemos, vivamos e apreciemos desta ou daquela forma
a realidade tangível.25

Entendemos o imaginário como um “sistema produtor de ideias e imagens, que suporta,


na sua feitura, as duas formas de apreensão do mundo: a racional e a conceitual que formam o
conhecimento científico, e a das sensibilidades e emoções, que correspondem ao conhecimento
sensível.”26 De forma resumida, o imaginário é um “sistema de ideias e imagens de
representação coletiva, [que] teria a capacidade de criar o real” e dar significado às coisas.27
Como já especificado, nesta pesquisa alcançamos o imaginário urbano de Ilhéus
principalmente através das representações presentes nas narrativas jornalísticas e ficcionais.
Seja pela imprensa local a partir das publicações do jornal O Commercio (1920-1924) e do
Correio de Ilhéus (1921-1930), ou na ficção, no nosso caso o romance Gabriela, Cravo e
Canela (1958) intersecionado por outros romances da “saga do cacau”. Os jornais encontram-
se no Centro de Documentação e Memória Regional (CEDOC), da Universidade Estadual de
Santa Cruz (UESC), e a maior parte está em boas condições de preservação, podendo ser
consultados sem muitas dificuldades.
Jacques Le Goff faz um alerta aos historiadores sobre o caráter monumental do
documento histórico, enfatizando que devemos dar atenção às suas condições de produção e
intencionalidades. De acordo com o francês, o termo monumento designa às heranças do
passado que perpetuam uma memória coletiva, portanto intencional, enquanto o documento
tinha um sentido de ensino que evoluiu para “prova”, sendo amplamente utilizado no
vocabulário legislativo e caracterizado como um dado objetivo. Le Goff ainda evidencia que a
escola positivista, ao buscar fundamentar um método científico para a história, priorizou o
termo documento, pois se pensava que sua produção e conservação se dava por questões
objetivas, enquanto os monumentos guardavam em si a intencionalidade de sua criação e
preservação.28

25
Ibidem, p. 14.
26
Idem. História e Literatura: uma velha-nova história. In: História e Literatura: Identidades e Fronteiras. Orgs.:
COSTA, Cléria B. da; MACHADO, Maria Clara. T. Uberlândia: EDUFU, 2006. p. 12.
27
Idem. O Imaginário da Cidade: visões literárias do urbano – Paris, Rio de Janeiro, Porto Alegre. 2 ed. Porto
Alegre: Ed. Universidade UFRGS, 2002. p. 8.
28
LE GOFF, Jacques. Documento/Monumento. In: LE GOFF, Jacques. História e Memória. Campinas:
Unicamp, 1996, P. 535-549. p. 538-539.
19

É nesse viés que entendemos os órgãos da imprensa local aqui analisados como
documentos/monumentos, pois não podemos esquecer que eles, além de perpetuarem uma
memória coletiva, expressavam visões de mundo e intencionalidades que correspondiam aos
interesses dos líderes partidários que eram os seus proprietários; e foram conservados por algum
propósito. Em suma, qualquer “documento deve ser submetido a uma crítica mais radical” 29,
pois é produto de uma sociedade e cabe ao historiador descobrir as suas condições de produção
histórica e sua intencionalidade (consciente ou não), ou seja, é necessário desmitificar o
significado aparente do documento.
Compreendemos que as narrativas jornalísticas se situam na fronteira entre o
documental e a ficção30 e, tendo em mente o grau de ficcionalidade das fontes, as percebemos
“enquanto força ativa da vida moderna, muito mais ingrediente do processo do que registro dos
acontecimentos, atuando na constituição dos nossos modos de vida, perspectivas e consciência
histórica.”31
A opção pelos jornais O Commercio (1920-1924) e o Correio de Ilhéus (1921-1930)
está relacionada com o contexto de modificações urbanas ocorridas na cidade, quando houve
frequentes publicações que contribuíram com a formulação de representações a respeito de
Ilhéus. Além disso, é interessante observar que entre esses órgãos da imprensa local ocorreram
violentos embates políticos, ocasionando visões antagônicas a respeito da administração
pública da cidade e consequentemente seu estado moral e sanitário.
Em relação à literatura, a escolha dos romances de Jorge Amado deve-se ao fato do
autor ser considerado um dos principais divulgadores da região cacaueira e do Brasil.32 Amado
não foi o único escritor conhecido da região cacaueira, ele mesmo cita outros romancistas e
poetas que contribuíram para a riqueza da literatura do sul da Bahia e sua importância no cenário
nacional, tais como Adonias Filho – seu colega nos tempos do ginásio Ipiranga, em Salvador –
, Jorge Medauar, Hélio Pólvora, seu irmão James Amado, Cyro de Mattos e Sosígenes Costa –
poeta que foi uma das inspirações para a criação do personagem Sérgio Moura em São Jorge
dos Ilhéus.33 Porém, o romancista popular foi o mais conhecido, nacional e

29
Ibidem, p. 287.
30
PESAVENTO. Sandra. O Imaginário da Cidade... Op. cit., p. 19.
31
CRUZ, Heloisa de F.; PEIXOTO, Maria do R. da C. Na Oficina do Historiador: conversas sobre história e
imprensa. Projeto História, São Paulo, n.35, p. 253-270, dez. 2007. p. 257.
32
Ver: GOLDSTEIN, Ilana S. O Brasil Best-Seller... Op. Cit.; MAHONY, Mary A. Um passado... Op. cit., p.
772; MENEZES, Juliana S. Da Literatura ao Turismo Cultural: O caso do Quarteirão Jorge Amado. Dissertação
(Mestrado em Cultura e Turismo) Universidade Estadual de Santa Cruz/Universidade Federal da Bahia,
Ilhéus/Salvador, 2004. p. 14.
33
AMADO, 1990. Apud RAILLARD, Alice. Conversando com Jorge Amado. Rio de Janeiro: Record, 1990. p.
152. Em nota de rodapé de sua tese, o historiador Robson Dantas lista algumas obras literárias que “documentam”
a história do Sul da Bahia, entre eles estão os romances de Jorge Amado referentes à saga do cacau, romances de
20

internacionalmente,34 e os críticos e analistas da sua obra literária reafirmaram o aspecto


documental dos seus romances, pois “funciona, portanto, como via de acesso à realidade
brasileira extraliterária.”35
Optamos por priorizar Gabriela, Cravo e Canela pelo fato desse romance ser
“considerado um divisor de águas na carreira do escritor.”36 Sendo publicado em 1958,
momento em que o romancista estava desligado das atividades do Partido Comunista. O
romance marca para a crítica especializada uma nova fase na produção literária de Jorge
Amado, fazendo com que a “utopia político-panfletária”, característica do período da
militância, “cede[sse] lugar à utopia racial e sensorial, entremeada de humor.”37 De acordo com
Goldstein, essa “ruptura” ampliou seu público leitor e também provocou uma série de críticas
ferozes dos seus amigos intelectuais ainda ligados ao PC.38
Em geral, as críticas ao romance, feitas por sujeitos com posições político-ideológicas
divergentes das de Amado, foram muito contraditórias ao longo das décadas. Logo após a sua
publicação elas se vincularam ao campo da estética e da análise do contexto político e social, e
nos anos noventa foram direcionadas às questões culturais. Nas décadas de 1950 e 1960, críticos
como Álvaro Lins, que já desqualificavam as produções literárias precedentes de Jorge Amado,
deram ênfase às questões estéticas e realizaram a chamada “crítica das falhas”. Avaliava-se
negativamente a linguagem utilizada pelo autor, marcada pela oralidade, a forma de
organização da narrativa e a formulação dos personagens considerados clichês. Em
contrapartida, no mesmo período, Jacob Guinsburg destacou o “abandono ‘da crueza estilística’
presentes nos romances anteriores a GCC” e ressaltou o amadurecimento do autor.39
Também nesse período foram comuns avaliações do romance baseadas em análises “do
contexto social e político em que a narrativa de Jorge Amado se situa[va], basicamente, nos
anos de 1925 (época em que se passa a estória) e 1958 (ano de publicação do romance).”40

Adonias Filho, Jorge Medauar, Euclídes Neto, Cyro de Mattos, Afrânio Peixoto e os contos de Hélio Pólvora. Ver:
DANTAS, Robson N. Entre a arte, a história e a política... Op. cit., p. 12.
34
Em reportagem publicada no ano de 2012, pelo jornal virtual Gazeta do Povo, é dito que a obra amadiana “foi
traduzida em mais de cinquenta países e em 49 idiomas, talvez um dos autores brasileiros mais consumidos no
estrangeiro em sua época, junto com o gaúcho Erico Verissimo.” Ver: HANATI, Yuri Al. A cultura e a baianidade
de Jorge Amado. Gazeta do Povo, Caderno G, 1:01, 08/08/2012. Disponível em:
https://www.gazetadopovo.com.br/caderno-g/a-cultura-e-a-baianidade-de-jorge-amado-
2c1unnj3o69x436cpj6lj0le6/. Acessado em 11 de abr. de 2021.
35
GOLDSTEIN, Ilana S. O Brasil Best-Seller... Op. cit., p. 226.
36
Ibidem, p. 152.
37
Ibidem, p. 153.
38
Ibidem.
39
NACIMENTO, Renata Maria S. do. Revisitações a Gabriela: uma experiência de leitura da recepção crítica do
romance. Dissertação (Mestrado em Literatura e Cultura) - Universidade Federal da Bahia, Instituto de Letras,
Salvador/BA, 2005. p. 27-33.
40
Ibidem, p. 37.
21

Destacava-se o processo de transformação e desenvolvimento acontecidos na trama,


relacionando-os com o contexto desenvolvimentista pelo qual passava o Brasil, do mesmo
modo que se privilegiou uma “leitura das relações de poder” político em âmbito nacional.41 O
próprio autor relaciona a escrita do romance ao contexto que vivenciava:

Gabriela é um livro que eu diria muito otimista sobre a vida (...). É um livro otimista,
e naquele momento havia um certo sentimento de orgulho nacional no Brasil (...).
[Ocorria] Uma grande efervescência em todos os setores [brasileiros]. Foi neste clima
que escrevi Gabriela, e, de uma certa maneira, é verdade, o livro corresponde à
realidade deste clima. Houve uma confluência de coisas.42

O ponto de concordância a respeito da obra de Amado, e destacado entre os críticos, foi


o amadurecimento literário do romancista relacionado a uma certa ruptura com o engajamento
político-partidário a partir de Gabriela, Cravo e Canela. É comum que se divida sua atividade
literária em duas fases, sendo a primeira caracterizada pela militância no Partido Comunista,
quando Amado “firma seu forte compromisso com uma arte engajada, revolucionária”,
conectando-se ao “modelo de cultura e arte do PC” que privilegiava a função social nas
produções artísticas.43 A segunda fase é marcada pela liberdade criativa, o humor, a
sensualidade e uma forma mais espontânea de narração, mas ainda assim afinada com a crítica
social e o comprometimento com o povo.44
De acordo com Marina Darmaros,

Gabriela marca uma virada na obra do autor não só por deixar de lado o foco nos
temas sociais e se aprofundar no erotismo, mas por colocar um capitalista como o
herói forasteiro que traz o progresso a uma cidadezinha baiana. A mudança coincide
com momento importante da vida do escritor e da história soviética: os quatro anos
de intervalo entre a publicação de Gabriela e da obra anterior de Amado no Brasil (Os
subterrâneos da liberdade, de 1954) são marcados pelo discurso secreto proferido por
Nikita Khrushov no 20° Congresso do Partido Comunista (1956) pelo ponto final no
culto à personalidade que se promove após a morte de Stálin (1953), além da desilusão
e certo distanciamento de Jorge do Partido – neste sentido, um dos recursos mais
usados para alegar seu afastamento é a carta, como aponta, entre outros, Osvaldo
Peralva (1962, p. 186), na qual o escritor se diz “cercado de sangue e lama” (...)45

41
Ibidem, p. 38-39.
42
AMADO, 1990. Apud RAILLARD, Alice. Conversando com... Op. cit., p. 272-274.
43
SILVA, Márcia R. da. O rumor das cartas: um estudo da recepção de Jorge Amado. Salvador: Fundação
Gregório de Matos: EDUFBA, 2006. p. 59-60, 65.
44
Ver: SÁ, Alzira Q. G. T. de. GABRIELA, CRAVO E CANELA: POSSÍVEIS LEITURAS ENTRE OS
JARDINS DO MUSEU RODIN. Revista Iberoamericana de Turismo – RITUR, Penedo, v. 4, Número Especial,
p. 142-161, 2014. http://www.seer.ufal.br/index.php/ritur , p. 146;
45
DARMAROS, Marina. Caso Jorge Amado: O poder soviético e a publicação de Gabriela, Cravo e Canela.
2020. Tese (Doutorado em Literatura e Cultura russa) – Faculdade de Filosofia, Letras e Ciências Humanas da
Universidade de São Paulo, São Paulo, 2020. p. 123.
22

Contudo, o próprio escritor nega essa divisão e demarca a unidade de sua obra. Em suas
palavras, a separação de seus romances em duas partes “É uma estupidez, uma bobagem
total”46, e continua:

Tudo isso é uma tolice incomensurável. Mas perdura até hoje: as duas obras, a do
início, revolucionária, denunciando a injustiça social, e a outra. Não, minha obra é
uma unidade, do primeiro ao último momento. Só se pode dizer que existe, no início,
uma profusão do discurso político, correspondendo ao que eu era então. 47

Todavia, Jorge Amado, reconhecendo que “Gabriela aparece como uma etapa clara de
uma outra época”48 em sua produção literária, também ressalta que ele não abandonou a
preocupação com as causas sociais no romance. Ele toma o humor como a característica mais
importante de suas narrativas a partir dessa fase, pois o romancista passou a usá-lo “como uma
arma, a mais eficaz de todas, para denunciar o presente e defender os interesses do povo”49
Além disso, a importância de privilegiarmos esse romance nesta pesquisa também se
deve ao fato dele ter sido o primeiro adaptado para a televisão, já em 1961 pela extinta TV Tupi,
e de ser a referência de divulgação da Cidade de Ilhéus.50 Goldstein afirma que as “Inúmeras
adaptações para cinema e televisão tornaram o universo de Jorge Amado definitivamente
visível”51, e com a consolidação da mídia televisiva como um influente meio de comunicação
na década de 1970 a Rede Globo produziu uma segunda adaptação do romance em 1975. Essa
versão da novela veio “a se constituir em um marco significativo do segundo momento da
recepção amadiana, uma vez que tal adesão ocorre quando a mídia televisiva se expande em
rede nacional.”52
A apropriação das obras de Amado pela mídia provocou “a aproximação do romancista
com o público”53 e redefiniu sua recepção, aumentando a vendagem de seus romances “a cada
novela realizada a partir de suas narrativas”.54 Para um país com altas taxas de analfabetismo
essa propagação midiática das suas tramas adaptados no meio televisivo foi importante para a
democratização da sua atividade literária55, proporcionando o surgimento do “fã midiático”:

46
AMADO, 1990. Apud RAILLARD, Alice. Conversando com... Op. cit., p. 266.
47
Ibidem, p. 267.
48
Ibidem.
49
Ibidem, p. 268.
50
NACIMENTO, Renata Maria S. do. Revisitações a Gabriela... Op. Cit., p. 27; MENEZES, Juliana S. Da
Literatura ao Turismo Cultural... Op. cit.
51
GOLDSTEIN, Ilana S. O Brasil Best-Seller... Op. cit., p. 231.
52
SILVA, Márcia R. da. O rumor das cartas... Op. cit., p. 76.
53
Ibidem, p. 82.
54
Ibidem, p. 156.
55
Ilana Goldstein afirma que “só a novela Gabriela foi vista por 25 milhões de telespectadores”. Ver:
GOLDSTEIN, Ilana S. O Brasil Best-Seller... Op. cit., p. 298.
23

aquele que “demonstra pouco ou nenhuma leitura das obras, restringindo o conhecimento delas
através da mídia, acima de tudo pelas referências às adaptações para novelas e (...) para o
cinema.”56
Em acréscimo, as adaptações dos seus romances, principalmente Gabriela, também
contribuíram com a propagação de representações sociais sobre a região cacaueira, sobretudo
da Cidade de Ilhéus. Essas representações foram apropriadas pelo turismo, que passou a vender
a imagem de Ilhéus como “Terra da Gabriela”57, já na década de 1980, e no início dos anos
2000 incentivaram as modificações do centro histórico da cidade com a criação do chamado
“Quarteirão Jorge Amado” e dos “Circuitos Cravo e Canela”, bem como a restauração de
prédios históricos.58 O objetivo dessas reformas era aproximar a materialidade do espaço central
de Ilhéus às descrições literárias sobre a urbe no interior da narrativa.59
A análise que faremos da representação social da Cidade de Ilhéus nesse romance será
interseccionada por representações persentes em outras obras do mesmo autor e que também
pertencem a “saga do cacau”, sendo estas Cacau (1933), Terras do Sem-Fim (1943) e São Jorge
dos Ilhéus (1944). Esses romances fazem parte do período em que Amado pertencia aos quadros
do Partido Comunista e compõem uma forma de interpretação do mundo baseada na teoria
marxista-leninista, na qual se estabelece uma escrita militante e panfletária a serviço da
conscientização da classe trabalhadora.60 São narrativas que por apresentarem ricas descrições
sobre a cidade, contribuem com a análise das representações sociais da urbe e complementam
o que vemos em Gabriela, Cravo e Canela.
Apreciamos a literatura “como uma leitura específica do urbano, capaz de conferir
sentidos e resgatar sensibilidades aos cenários citadinos, às suas ruas e formas arquitetônicas,
aos seus personagens e às sociabilidades que nesse espaço têm lugar.”61 Por isso, tomamos
como essencial a aproximação entre História e Literatura nesta pesquisa.
A literatura pode ser compreendida como “uma recriação imaginária do real” e oferece
“leituras possíveis de vida” através da configuração de “um tempo passado na compreensão
narrativa”.62 Além disso, tendo o “real” como referente ela pode negá-lo ou confirma-lo,

56
SILVA, Márcia R. da. O rumor das cartas... Op. cit., p. 36.
57
GOLDSTEIN, Ilana S. O Brasil Best-Seller... Op. cit., p. 97.
58
MENEZES, Juliana S. Da Literatura ao Turismo Cultural... Op. cit., p. 83.
59
Podemos concluir, a parir do texto de Menezes, que o objetivo da secretaria de Turismo da cidade e do setor
empresarial era materializar a literatura amadiana no centro da cidade, apontando prédios e lugares como pontos
onde aconteceram os fatos narrados em Gabriela, Cravo e Canela. Ibidem.
60
Ver: DUARTE, Eduardo de Assis. Jorge Amado: romance em tempo de utopia. Natal: UFRN. Editora
Universitária, 1995.
61
PESAVENTO, Sandra. O Imaginário da Cidade... Op. cit., p. 10.
62
LEENHARDT, Jacques; PESAVENTO, Sandra J. (Org.) Discurso Histórico e Narrativa Literária. Campinas:
Editora da UNICAMP, 1998. p. 13-14.
24

“construindo sobre ele toda uma outra versão, ou ainda para ultrapassá-lo”63 e por isso se
constitui como uma fonte que guarda em si o “discurso privilegiado de acesso ao imaginário
das diferentes épocas”.64
Da mesma forma, entendemos a historiografia como uma narrativa que representa o
passado e toma o seu lugar, substituindo o tempo vivido por um tempo figurado
narrativamente.65 Em outras palavras, a história como escrita seria um “um romance real” ou
uma “narrativa verídica”, na acepção de Paul Veyne66, e neste caso os historiadores são os
narradores dos fatos que aconteceram, enquanto os homens e mulheres de determinado contexto
narrado são os personagens da trama tecida através do auxílio dos vestígios do tempo passado
que chegaram até o presente da escrita.67 Sendo uma narrativa que interpreta e representa o
passado, a história, que também guarda em si alguns graus de ficcionalidade, não tem a intenção
e nem poderia fazer “reviver” o vivido, pois existem defasagens que separam a realidade vivida
da reflexão narrativa.
Compreendemos as narrativas como configurações textuais que abarcam uma
estruturação em três atos (começo, meio e fim), uma intriga (que liga suas partes em uma
sequência necessária, fazendo concordar os discordantes e possibilitando uma compreensão por
meio do próprio texto), personagens (que protagonizam a trama) e acontecimentos (que
demarcam as mudanças de sorte dos personagens). Paul Ricoeur expandiu as exigências da
estrutura dramática da tragédia, presente na Poética de Aristóteles, a fim de fazê-la suportar
todos os gêneros ficcionais (especialmente o romance) e os não ficcionais (a própria história).
Ele ainda reconhece os graus de ficcionalidade da escrita histórica, mas prefere resguardar as
diferenças entre os dois gêneros (história e romance) como ficcional e não ficcional,
diferenciando-os pela questão da verdade do acontecido. 68
Dessa maneira, a História e a Literatura guardam uma relação de proximidade por
diversas semelhanças na configuração narrativa que assumem: são interpretações da realidade
que a representam, buscam em algum grau a verossimilhança com o vivido como garantia de
sua aceitação pelo leitor e apresentam uma ordem narrativa (intriga) que relaciona os

63
PESAVENTO, Sandra J. História & Literatura: uma velha-nova história. In: COSTA, Cléria B.; MACHADO,
Maria C. T. (Org.). História e Literatura: identidade de fronteiras. Uberlândia: EDUFU. 2006. p. 14.
64
Ibidem.
65
Ver: RICOEUR, Paul. Tempo e Narrativa (tomo I). Tradução de Constança Marcondes Cesar. Campinas:
Papirus, 1994.
66
VEYNE, Paul M. Como se Escreve a História – Faucault Revoluciona a História. Tradução de Alda Baltar e
Maria Auxiadora Kneipp. Ed. 4. Brasília: Editora Universidade de Brasília, 1998.
67
Ibidem.
68
RICOEUR, Paul. Tempo e Narrativa (tomo I). Tradução de Constança Marcondes Cesar. Campinas: Papirus,
1994. p. 133-293.
25

acontecimentos e os personagens que dela fazem parte, nos permitindo compreender o mundo.69
Contudo, enquanto o literato é livre para inventar os personagens, os acontecimentos e a sua
trama, afastando-se ou aproximando-se dos acontecimentos históricos; o historiador deve
manter-se fiel às possibilidades apontadas pelas suas fontes, pois a história é um discurso que
busca aproximar-se do real acontecido, representando-o. Em suma, a história é um
“conhecimento por meio de documentos” 70
Por ser construída a partir de um processo seletivo de documentos, discursos e imagens,
a história abriga em si uma memória social que também é “uma representação que se socializa
e que tem um conteúdo pragmático e mobilizador”, do mesmo modo que “a literatura também
constitui uma socialização das memórias, das narrativas e dos discursos.”71
Nesta pesquisa entendemos a memória social como estabelecido por Michael Pollak:
um fenômeno construído social e individualmente, tanto por acontecimentos de escala
individual como por aqueles que dizem respeito a um grupo ou à própria nação e também por
pessoas, personagens e lugares que conhecemos direta ou indiretamente.72 A construção de uma
memória social pressupõe disputas entre diferentes grupos sociais para a preservação da sua
memória como a única possível, ocasionando o silenciamento e, consequentemente, o
apagamento de outras memórias coletivas e individuais.73 Ou seja, devemos ser conscientes do
caráter seletivo da memória ao pensarmos nas relações entre as representações sociais da
Cidade de Ilhéus e a sua história oficial.74
Ao falar sobre a abordagem sociológica de linha durkheimiana, “que consiste em tratar
fatos sociais como coisas”75, Pollak afirma que nela:

[É] possível tomar diferentes pontos de referência como indicadores empíricos da


memória coletiva de um determinado grupo, uma memória estruturada com suas
hierarquias e classificações, uma memória também que, ao definir o que é comum a
um grupo e o que o diferencia dos outros, fundamenta e reforça os sentimentos de
pertencimento e as fronteiras sócio-culturais.76

69
Ibidem.
70
VEYNE, Paul M. Como se Escreve a História... Op. cit., p. 18.
71
LEENHARDT, Jacques; PESAVENTO, Sandra. (Orgs.). Apresentação. In.: Discurso Histórico... Op. cit., p.
13.
72
POLLAK, Michael. Memória e Identidade Social. Estudos Históricos, Rio de Janeiro, vol. 5. n. l0, 1992, p.
200-212.
73
Idem. Memória, Esquecimento, Silêncio. Estudos Históricos, Rio de Janeiro, vol. 2, n. 3, 1989. p. 3-15.
74
Por história oficial entendemos aquela financiada por instituições de pesquisas como a CEPLAC, consolidada
por pesquisadores durante o século XX e ensinada nas escolas da cidade.
75
POLLAK, Michael. Memória, Esquecimento, Silêncio... Op. cit., p. 3.
76
Ibidem.
26

E continua dizendo que nessa tradição metodológica “a ênfase é dada à força quase
institucional dessa memória coletiva, à duração, à continuidade e à estabilidade.”77 Para ele,
Maurice Halbwachs,

longe de ver nessa memória coletiva uma imposição, uma forma específica de
dominação ou violência simbólica, acentua as funções positivas desempenhadas pela
memória comum, a saber, de reforçar a coesão social, não pela coerção, mas pela
adesão afetiva ao grupo, donde o termo que utiliza, de "comunidade afetiva". Na
tradição européia do século XIX, em Halbwachs, inclusive, a nação é a forma mais
acabada de um grupo, e a memória nacional, a forma mais completa de uma memória
coletiva.78

Além disso, o sociólogo austríaco conclui que “Em vários momentos, Maurice
Halbwachs insinua não apenas a seletividade de toda memória, mas também um processo de
"negociação" para conciliar memória coletiva e memórias individuais (...)”.79
Nesse sentido, buscamos diferenciar a memória social apreendida em Pollak, da
memória coletiva definida por Halbwaches como um fenômeno coletivo de rememoração que
abriga um conjunto de lembranças em comum, vividas ou transmitidas pelos sujeitos que
compõem um grupo e que acaba por constituir as memórias individuais dos seus integrantes,
bem como visa se estender à coletividade social alcançando o nível nacional.80 Como
elucidação da utilização dos conceitos, quando falarmos de memória coletiva estaremos nos
referindo à memória de um grupo – os coronéis –, que alcançou a expressão de reconhecimento
a nível regional, transformando-se em memória da zona do cacau e posteriormente em
história.81 Em relação à memória social, a utilização do conceito será feita quando nos
referirmos à memória de um grupo que se impôs aos demais, não sem antes passar por disputas.
Compreendemos que a memória dos coronéis do cacau foi, de forma geral, imposta aos
habitantes da cidade, pois passou por processos de disputas com tantas outras e acabou
vitoriosa, provocando o silenciamento e esquecimento das demais. É através do conceito de
memória social que reconhecemos a existência de várias “outras memórias”, individuais e
coletivas, pertencentes a diferentes grupos e indivíduos subalternizados.
Pierre Nora reflete sobre a necessidade da construção de lugares de memória, que
possibilitem a preservação e cristalização do passado vivo através de objetos, monumentos,

77
Ibidem.
78
Ibidem.
79
Ibidem.
80
HALBWACHS, Maurice. A Memória Coletiva. São Paulo: Vértice, 1990, p. 51-54.
81
Ver: MAHONY, Mary A. Um passado para justificar o presente... Op. cit.; RIBEIRO, André L. R. Urbanização,
poder e práticas... Op. cit.
27

cerimônias, gestos. Essa necessidade da criação de lugares que nos faça lembrar do vivido se
deve ao fato da massificação da informação no mundo atual, que impossibilita a existência dos
“meios de memória”, sendo necessária a criação de arquivos, monumentos, cerimônias, entre
outros pontos de referências, para o seu armazenamento.82 Sendo assim, consideramos os
jornais e os romances aqui tornados fontes como esses lugares que capturam a memória, a
preservando e cristalizando, pois, apresentam as dimensões materiais, funcionais e simbólicas.
Como explica Pierre Nora,

Os três aspectos coexistem sempre. (...) É material por seu conteúdo demográfico;
funcional por hipótese, pois garante, ao mesmo tempo, a cristalização da lembrança e
sua transmissão; mas simbólica por definição, visto que caracteriza por um
acontecimento ou uma experiência vividos por um pequeno número uma maioria que
deles não participou. (sic.)83

Como vimos, as representações da Cidade de Ilhéus presentes nos romances de Jorge


Amado, e mais especificamente em Gabriela, Cravo e Canela, foram apropriadas pela
televisão; a representação televisiva, por sua vez, foi apropriada pelo setor turístico da cidade.
Dessa forma, ocorreu a atualização dos significados das narrativas e da memória social de
Ilhéus, refigurando84 no espaço urbano configurações arquitetônicas e espaciais que remetem
ao tempo narrado do romance citado, tornando “contemporâneo e semelhantes o que era
diferente e afastado no passado”.85
Para Paul Ricoeur a apropriação é realizada através da compreensão narrativa pelo leitor
numa relação de distanciamento ente o presente (do leitor) e o tempo narrado (mundo do texto)
e de aproximação da experiência vivida no passado refigurada no momento da leitura. Ou seja,
ao ler um texto e compreendê-lo, o leitor se apropria da experiência figurada e a aproxima da
própria experiência, compreendendo a si e ao mundo ao seu redor.86

82
NORA, Pierre. Entre Memória e História: a Problemática dos Lugares. Proj. História, São Paulo. (10), dez,
1993.
83
Ibidem, p. 21.
84
Entendemos por refiguração a “reinvenção da Intriga através da “compreensão” da mesma”. BARROS, José.
D’A. Tempo e Narrativa em Paul Ricoeur: considerações sobre o círculo hermenêutico. Fênix – Revista de
História e Estudos Culturais Janeiro/ Fevereiro/ Março/ Abril de 2012 Vol. 9 Ano IX nº 1, p. 24. Aplicando ao
caso de Ilhéus, ocorreu uma nova forma de ver e compreender o espaço central da cidade através da literatura
amadiana. Sobre essa modificação no espaço central da cidade para atender o setor turístico, ver: MENEZES,
Juliana S. Da Literatura ao Turismo Cultural... Op. cit.
85
LEPETIT, Bernard. É possível uma hermenêutica urbana? In: Por Uma Nova História Urbana. LEPETIT,
Bernard; seleção de textos, revisão crítica e apresentação de Heliana Angotti Salgueiro. São Paulo: Editora da
EDUSP, 2001. p. 137-153, p. 151.
86
Ver: RICOEUR, Paul. Tempo e... Op. Cit.; BARROS, José. D’A. Tempo e Narrativa em Paul Ricoeur... Op.
cit.
28

Na Nova História Cultural, tal como definida por Chartier, a apropriação “tem por
objetivo uma história social das interpretações, remetidas para as suas determinações
fundamentais (que são sociais, institucionais, culturais) e inscritas nas práticas específicas que
as produzem.”87 De acordo com o historiador, as práticas de apropriação são formas
diferenciadas de leitura e interpretações dos textos que dependem do contexto histórico e
pertencimento social dos leitores, além, é claro, dos dispositivos tipográficos.88
Para alcançar o objetivo dessa dissertação lemos a cidade como um texto, como sugere
Bernard Lepetit, a partir das narrativas produzidas a seu respeito. Nesse sentido, a fim de uma
leitura mais completa sobre os espaços urbanos nos atentamos às suas formas e usos, com a
intenção de encontrarmos em meio às modificações urbanas ocorridas em Ilhéus e narradas
pelos jornais e romances as ressignificações atribuídas aos diversos espaços, tanto pelo poder
público como pela população subalternizada. Compreendemos que ambos, poder municipal e
sujeitos subalternizados, interpretaram e intervieram na cidade de diferentes formas e em
diferentes graus.89
Também aplicamos o método de montagem por choque contrastivo, de Walter
Benjamin, que nos permitiu, através da “desmontagem” ou “desconstrução” da imagem que
temos do passado, construir uma nova interpretação dos acontecimentos distanciados no tempo
influenciado pelo “agora” (presente), por meio de uma relação dialética entre ambos.90
A desconstrução e reconstrução foi efetuada com o auxílio dos “escombros”, ou
fragmentos, do passado que escoaram até o presente e que aparentemente não tinham nenhuma
relevância91, mas foram eles que nos proporcionam um “despertar” das representações que
fazemos sobre o passado da cidade. Esse método nos oportuniza “através do cruzamento de
imagens contrárias, obter a revelação da coerência de sentido de uma época”92, permitindo
colocar frente a frente representações e imagens contrastantes da cidade, seja aquela construída
pelas elites e pelo poder público ou a praticada e vivenciada pelas classes populares e
subalternizados.
Adentramos assim na tentativa de “escovar a história à contrapelo”93, procurando nos
vestígios do passado as vozes silenciadas dos oprimidos para que assim possamos contar uma

87
CHARTIER, Roger. A História Cultural... Op. cit., p. 26.
88
Ibidem.
89
LEPETIT, Bernard. É possível uma... Op. cit.
90
Ver: BOLLE, Willi. “Um Painel com Milhares de Lâmpadas” Metrópole & Megacidade... Op. cit.
91
GINZBURG, Carlo. Sinais: Raízes de um paradigma indiciário. In: Mitos, Emblemas, Sinais: Morfologia e
História.. São Paulo: Companhia das Letras, 1989, p. 143-179.
92
PESAVENTO, Sandra. O Imaginário da Cidade... Op. cit., p. 19.
93
BENJAMIN, Walter. Sobre o Conceito da História. In.: Obras Escolhidas - Vol. 1. Tradução de Sérgio Paulo
Rouanet. 3 ed. São Paulo: Brasiliense, 1987, p. 222-233.
29

outra história “que traga à memória a tradição (...) dos vencidos.”94 Essas vozes foram abafadas,
mas percebemos os fragmentos de sua existência por meio dos indícios presentes nos jornais
que circularam em Ilhéus no período estudado e também nos romances de Jorge Amado
referentes à saga do cacau, como veremos ao longo dos capítulos.
Ginzburg adverte sobre a necessidade de conceder mais importância aos detalhas que
aparentam ser insignificantes, pois eles podem fornecer pistas a respeito de questões de grande
importância para a pesquisa. Da mesma forma, propõe que devemos partir de um dado
particular para atingir um conhecimento do geral, exemplificando como podemos ir do micro,
costurando as conexões entre os indícios, para o macro, alcançando uma explicação mais
completa de algum evento histórico.95
Cabe a nós, historiadores, resgatar por meio do conhecimento indiciário esses “restos”
do esquecimento e com eles formar testemunhos do passado, colocando-os em destaque para
assim despertar “as centelhas da esperança”, reconhecendo “que também os mortos não estarão
em segurança se o inimigo vencer.”96

Ilhéus e a figuração de seu passado no romance de Jorge Amado e na imprensa escrita


local

A história de Ilhéus tem seu início no século XVI, quando a Coroa portuguesa repartiu
o território recém-descoberto no ultramar, reclamado no Tratado de Tordesilhas, em Capitanias
Hereditárias para facilitar o processo de colonização e exploração de suas riquezas. Ao fidalgo
Jorge de Figueiredo Correia foi doado, em 1534, 50 léguas de terras em uma região
“densamente coberta por florestas e habitada pelos Tupinikin, no litoral, pelos Kamakã-
Mongoió e Aimorés, também conhecidos por Grên e Botocudos, no interior”97, criando-se
assim a Capitania de São Jorge dos Ilhéus.
Alguns administradores, sacerdotes e viajantes que passaram ou moraram em Ilhéus,
entre os séculos XVI e XIX, produziram relatos que descreviam as terras da Capitania e da Vila
sede, apresentando informações a respeito de suas riquezas, economia e população. Nesses
textos são constantes as narrações sobre a fertilidade da terra, a abundância de madeiras e a
presença de rios caudalosos e perenes, elementos que indicavam a potencialidade econômica

94
PERIUS, Oneide. Walter Benjamin: considerações sobre o conceito de história. Tempo da Ciência (16) 32:
123-135 2º semestre 2009, p. 130.
95
GINZBURG, Carlo. Sinais: raízes de um paradigma... Op. cit.
96
BENJAMIN, Walter. Ibidem., p. 224-225.
97
FREITAS, Antônio F. G. de; PARAÍSO, Maria H. B. Caminhos ao Encontro do Mundo: A Capitania, os
Frutos de Ouro e a Princesa do Sul – Ilhéus 1534-1940. Ilhéus: Editus, 2001, p. 13. Grifo dos autores.
30

daquele território e justificavam a instalação da indústria açucareira.98 Mais tarde, no século


XX, algumas dessas descrições foram apropriadas por políticos, memorialistas e pesquisadores
de diversas áreas com o objetivo de explicar os motivos da estagnação econômica de Ilhéus do
período colonial, até o início da implantação da lavoura cacaueira em 1800.99
Jorge Amado também fez menção a esse passado colonial em Gabriela, Cravo e Canela,
especialmente para demarcar o distanciamento entre a Ilhéus próspera e rica, no auge da
economia cacaueira, e aquela dos tempos imemoriais dos engenhos de açúcar.
Devemos lembrar que Amado era um homem pertencente à elite cacaueira e participava
de uma “comunidade afetiva”100, compartilhando com os sujeitos de seu meio social uma
memória coletiva referente aos tempos das disputas pelas terras para o plantio do cacau. De
acordo com a brasilianista Mary Ann Mahony, essa memória se baseava nas experiências dos
homens e mulheres que migraram para Ilhéus e enriqueceram às custas da exploração da lavoura
cacaueira. Nesse processo, em busca de se diferenciarem da antiga elite local – ligada à
escravidão e ao tráfico negreiro –, foi gerada uma “tradição narrativa” fundamentada na ideia
de que estes sujeitos conquistaram suas fortunas através dos esforços do seu próprio trabalho e
foram os responsáveis pelo estabelecimento da riqueza e do progresso das cidades da região.101
Do mesmo modo, essa narrativa baseada na memória coletiva dos “desbravadores” das
terras do cacau, que inspirou Jorge Amado, embasou estudos históricos sobre o sul da Bahia.102
A partir dela criou-se uma espécie de historiografia de caráter teleológico sobre a região, tendo
a lavoura cacaueira como o “destino manifesto” daquela área que correspondia à Capitania de
São Jorge dos Ilhéus.103 Segundo essa versão, a indústria açucareira foi uma tentativa de
desenvolvimento econômico colonial que não logrou sucesso devido a incapacidade
administrativa da antiga elite local, não sendo suficiente os grandes investimentos dos
proprietários de engenhos e a presença de elementos naturais propícios nessas paragens.

98
Fernando Sales em seu livro, Memória de Ilhéus, reúne vários dos relatos produzidos sobre a Capitania e Vila,
posteriormente cidade, de São Jorge dos Ilhéus, entre os séculos XVI e XX. Ver: SALES, Fernando. Memória de
Ilhéus. Edição comemorativa do centenário de sua elevação à cidade. Ilhéus-Ba: Prefeitura Municipal de Ilhéus,
1981.
99
Ver: DIAS, Marcelo H. Economia, sociedade e paisagens... Op. cit., p. 10. MAHONY, Mary A. Um passado
para justificar o presente... Op. cit., p. 749-756. FREITAS, Antônio F. G. de; PARAÍSO, Maria H. B. Caminhos
ao Encontro do Mundo... Op. cit.
100
A comunidade afetiva é composta por sujeitos que compartilham vivências e memórias, permitindo que uma
memória individual complemente a outra e que a memória coletiva seja compartilhada por todos os homens e
mulheres que compões essa comunidade. Ver: HALBWACHS, Maurice. A Memória Coletiva... Op. cit., p. 33.
101
MAHONY, Mary A. Um passado para... Op. cit., p. 739.
102
Ibidem, p. 764.
103
Ver: GUIMARÃES, Lucia M. P. Memórias partilhadas: os relatos dos viajantes oitocentistas e a ideia de
civilização do cacau... História, Ciências, Saúde. Manguinhos, vol. VIII (suplemento), 1059-70, 2001. p. 1069.
31

Nesta interpretação histórica, não houve tentativas mais expressivas de estabelecer


outros produtos agrícolas como principais artigos de exportação a fim de mobilizar a economia
local, até as últimas décadas do século XVIII, quando membros da extensa família Sá
adquiriram as terras que pertenciam aos jesuítas após sua expulsão do Brasil pelo Marquês de
Pombal em 1750.104 Investiu-se então timidamente na plantação de café, algodão, arroz,
produtos de menor expressão na balança econômica e no cacau105. Este último foi amplamente
cultivado pelos colonos alemães e franceses, e pelos migrantes nordestinos que se
estabeleceram em Ilhéus, sendo então considerado o produto destinado a gerar o crescimento
econômico do sul da Bahia em fins dos XIX.
A memória coletiva dos coronéis e a narrativa fundada a partir dela contribuiu com a
consolidação de ideias negativas sobre o passado imemorial de Ilhéus. Falava-se de atraso
colonial, decadência econômica, isolamento comercial e despovoamento dessas terras. Os
motivos elencados para tal situação eram os constantes ataques indígenas, as matas fechadas –
que impediam a interiorização dos colonos –, a falta de ancoradouros naturais e, principalmente,
a má administração pública.106 Em contrapartida, as plantações de cacau, as demarcações das
terras transformadas em fazendas produtoras do “fruto de ouro” 107
e a coragem dos
“desbravadores” foram ressaltados como os propulsores do desenvolvimento regional,
demarcando assim uma diferença entre o início do século XX e os tempos coloniais.
Esses elementos de diferenciação entre dois períodos históricos estiveram “presentes na
expressiva maioria dos textos produzidos no século XX acerca do Sul da Bahia e de seu
passado, com destaque para a produção acadêmica, literária e jornalística.”108 Podemos ver isso

104
RIBEIRO, André L. R. Família, Poder e Mito o município de S. Jorge dos Ilhéus (1880-1912). Ilhéus, BA:
Editus, 2001. p. 42-43.
105
Francisco Borges de Barros, em sua Memória sobre o município de Ilhéus afirma que o cacau foi introduzido
primeiramente em Canavieiras, antes pertencente à Ilhéus, no ano de 1746, porém, de acordo com Leo Zehntner a
introdução do cacau na Bahia ocorreu em 1755, em Ilhéus na década de 1760. Não se sabe ao certo qual dos
pesquisadores apresentam datas corretas ou aproximadas, contudo, André Ribeiro e Ayalla Silva argumentam em
seus estudos que nos aldeamentos indígenas, comandados por missionários, já se cultivava o cacau nos quintais,
assim como nas margens dos rios de propriedades privadas que produziam cana-de-açúcar e mandioca. Ver:
CASTRO, Epaminondas B. Formação Econômica e Social de Ilhéus. Ilhéus-Ba: Prefeitura Municipal de Ilhéus,
1981. p. 46; BARROS, Francisco B. de. Memória Sobre o Município de Ilhéus. 3 ed. Ilhéus-Ba: Editus, 2004.
p. 97; RIEBIRO, André L. R. Família, Poder e Mito... Op. cit., p. 148; SILVA, Ayalla O. Ordem imperial e
aldeamento indígena: Camacãs, Guerens e Pataxós no Sul da Bahia. Ilhéus, BA: Editus, 2017.
106
Ver: DIAS, Marcelo H. Economia, sociedade e paisagens... Op. cit.
107
Termo usado por jornais que circulavam na cidade de Ilhéus nos anos 1920 e por vários autores que escreveram
sobre o cacau. Fruto de ouro pela cor da casca do coco do cacau e pelo seu alto valor comercial.
108
SANTOS, Victor L. P. História, verdade, ficção: fronteiras epistemológicas no romance de Jorge Amado.
Dissertação (Mestrado em História) – Universidade Estadual de Feira de Santana, Feira de Santana, 2019. p. 49.
32

em um trecho do romance Gabriela, Cravo e Canela, quando Jorge Amado conta que São Jorge,
padroeiro da cidade, vinha “dirigindo, bem ou mal, os destinos dessa terra”109,

Do seu cavalo na lua, seguia assim o santo o destino movimentado desse São Jorge
dos Ilhéus desde cerca de quatrocentos anos. Vira os índios trucidarem os primeiros
colonizadores e serem por sua vez trucidados e escravizados, vira erguerem-se os
engenhos de açúcar, as plantações de café, pequenos uns, medíocres as outras. Vira
essa terra vegetar, sem maior futuro, durante séculos. Assistira depois à chegada das
primeiras mudas de cacau (...). Não imaginando que, com o cacau, chegava a riqueza,
um tempo novo para a terra sob sua proteção. (...) Vira a região de súbito crescer,
nascerem vilas e povoados, vira o progresso chegar a Ilhéus (...). 110

É importante termos em mente que esse romance compõe o “ciclo do cacau”, em


conjunto com Cacau (1933), Terras do Sem-Fim (1943), São Jorge dos Ilhéus (1944) e Tocaia
Grande (1983).111 Assim, alguns críticos definem Gabriela, Cravo e Canela como um romance
histórico caracterizado pelo realismo crítico, pois “em seus traços formais e temáticos” discute
a “história de homens particulares, vivenciando situações típicas.”112 Outros afirmam que é uma
narrativa de costumes, em que confluem “em enfrentamento crítico, o tema da
sujeição/libertação feminina e o tema do atraso/progresso urbano.”113
Sendo um ou outro, a narrativa conta “A história de Nacib e Gabriela [que] remonta ao
ano de 1925, ‘um tempo curto de meses e longo de acontecimentos’, particularmente decisivo
na crônica da cidade de Ilhéus”. 114 Para José Paulo Paes, a omissão de um compromisso
ideológico nesse romance o difere dos publicados anteriormente, especialmente de Cacau, o
tornando livre em relação as “coerções mais tirânicas do chamado realismo socialista” 115 e
consequentemente mais leve. Contudo, Jorge Amado relata que em uma edição cubana “um
crítico literário marxista” que prefaciou Gabriela o considerou um livro marxista, “em que a
sociedade era analisada com lucidez e rigor perfeitos”.116
Em Terras do Sem-Fim, romance histórico com estrutura épica que retrata o processo
de conquista da terra e a luta pelas matas do Sequeiro Grande entre o Coronel Horácio da
Silveira e Sinhô Badaró, também nos são apresentadas algumas passagens que dizem respeito

109
AMADO, Jorge. Gabriela, Cravo e Canela: crônica de uma cidade do interior. São Paulo: Companhia das
Letras, 2008. p. 19.
110
Ibidem.
111
GOLDSTEIN, Ilana S. O Brasil Best-Seller... Op. cit., p. 154-155.
112
SANTOS, João Paulo F. dos. Jorge Amado e o Romance Histórico do Cacau. Dissertação (Mestrado em
Letras) – Instituto de Letras, Universidade de Brasília, 2017. p. 54.
113
PAES, José Paulo. Posfácio - Arte de Mestre. In: AMADO, Jorge. Gabriela, Cravo e Canela... Op. cit., p.
402.
114
Ibidem, p. 400.
115
Ibidem, p. 399-400.
116
AMADO, 1990. Apud RAILLARD, Alice. Conversando com... Op. cit., p. 266.
33

aos tempos coloniais em Ilhéus. São figurações sobre a imponente mata, com seus “troncos
[que] eram centenários, [de] um eterno verde [que] se sucedia pelo monte afora, invadindo a
planície (...)”117, ou trechos referentes à escravidão e aos engenhos de açúcar daquela região:

Um dia, muitos anos antes, quando a floresta cobria muito mais terra, (...) quando os
homens ainda não pensavam em derrubar as árvores para plantar a árvore do cacau
que todavia não chegara da Amazónia, Jeremias se acoitou naquela mata. Era um
negro jovem, fugido da escravidão. Os capitães-do-mato o perseguiam e ele entrou
pela floresta, onde moravam os índios e não saiu mais dela. Vinha de um engenho de
açúcar onde o senhor mandara chicotear as suas costas escravas. (...) mesmo quando
alguém lhe disse que a abolição dos escravos havia sido decretada, ele não quis sair
da mata.118

Ainda em relação aos engenhos, em alguns recortes da narrativa é possível interpretar o


processo de suplantação da lavoura canavieira pela cacaueira como uma etapa fundamental do
desenvolvimento regional:

Quando os homens iniciaram no Rio-do-Braço a plantação da nova lavoura [de cacau],


ninguém pensava que ela ia terminar com os engenhos de açúcar, os alambiques de
cachaça e as roças de café que existiam em redor do Rio-do-Braço, de Banco-da-
Vitória, de água-Branca, os três povoados da beira do rio Cachoeira que ia dar no
porto de Ilhéus. Mas o cacau não só liquidou os alambiques, os pequenos engenhos e
as roças de café, como andou mata adentro.119

O narrador continua acrescentando que o cacau promoveu o progresso de Ilhéus e das


cidades que começavam a nascer em seu entorno. Também é interessante notar que esse
fragmento se assemelha a um trecho do artigo de autoria de J. de Araújo Góes, publicado em
1905 na revista carioca Espelho. No texto é afirmado que em fins do XIX e início do XX a
cidade “Era a esse tempo a vertigem do desenvolvimento. No interior tinha-se a impressão de
um país recentemente descoberto, colonizado por levas de imigrantes destemidos (...). A
caminho da mata viam-se destroços de engenhos de açúcar, de serrarias, de uma época
morta.”120
Em outro trecho do romance, já perto do fim, compara-se “Jorge de Figueiredo Correia
que fora donatário da capitania dos Ilhéus e que plantara ali os primeiros engenhos
rudimentares, engenhos de açúcar que logo os índios destruíram” com os homens “que vieram

117
Idem. Terras do Sem Fim. Rio de Janeiro: Record, 2001. Livro Virtual. Link: http://lelivros.love/book/baixar-
livro-terras-do-sem-fim-jorge-amado-em-pdf-epub-e-mobi-ou-ler-online/. p. 19. Acessado em 22 de abr. de 2019.
118
Ibidem, p. 62.
119
Ibidem, p. 71.
120
GÓES, J. de Araújo. Apud, BRANDÃO, Arthur; ROSÁRIO, Milton. Estórias da História de Ilhéus. Ilhéus,
Ba: Edições SBS Ltda. 1970. p. 41.
34

depois, trazendo a planta do cacau.” 121 Comparações desse tipo servem para nos indicar que os
elementos dos tempos coloniais pertencem a um passado remoto e sem sucesso, enquanto os
migrantes, o “desbravamento” das matas e o cacau fazem parte de uma empreitada que logrou
êxito e pertence a uma memória ainda viva.122
Eduardo de Assis Duarte afirma que Amado incorpora neste romance o “modelo
romanesco” de “representação histórica”, a fim de atrair os leitores através de uma forma já
popularizada. Ao mesmo tempo, reforça que o romancista interpretou o processo histórico da
formação da zona do cacau por meio da concepção etapista do desenvolvimento econômico
nacional.123
Antonio Candido elogia a narrativa de Terras do Sem-Fim, afirmando que é um “belo
livro que representa na produção do autor um momento de excepcional importância, pois é o
primeiro indício de uma maturidade que se anuncia cheia de força.”124 Em seguida destaca que
o conjunto da obra de Jorge Amado, até o momento da publicação desse romance, “se desdobra
segundo uma dialética da poesia e do documento, este tentando levar o autor para o romance
social”,125 enquanto a poesia dá amplitude à sua atividade literária.

Em Terras do sem fim, chegamos como que à solução do movimento dialético


assinalado: chegamos, por assim dizer, à fórmula da estética de Jorge Amado.
Documento e poesia se fundem harmoniosamente através do romance histórico.
Porque este livro é de certo modo um romance histórico (...)126

Candido ressalta que “Os livros deste autor nascem uns dos outros, germinam de
sementes lançadas anteriormente, semente que às vezes permanecem muito tempo em
latência”127 e aponta que o número de temas em seus romances é pequeno, possibilitando um
retorno a eles e seu desenvolvimento em narrativas posteriores. Em concordância com Antonio
Candido, Paes indica uma continuidade que “se escalona na série de romances que vão de

121
AMADO, Jorge. Terras... Op. cit., p. 116.
122
Ver: HALBWACHS, Maurice. A Memória Coletiva... Op. cit. Para o autor a memória é afetiva e se liga a um
passado “vivido” ou “vivo”, enquanto a história, mais distante, é um passado “morto”, já esquecido, portanto, não
capaz de ser lembrado através da memória coletiva.
123
DUARTE, Eduardo de Assis. Jorge Amado... Op. cit., p. 150. O etapismo foi uma análise materialista do
processo político e econômico brasileiro formulado pelo Partido Comunista na década de 1920, e entendia que o
Brasil, por ser um país “essencialmente agrícola”, estava sujeito a uma estrutura de poder “semifeudal” no plano
local, enquanto no plano internacional o país era submetido ao imperialismo das grandes nações. Desse modo, era
necessário que houvesse uma aliança entre os comunistas e a pequena burguesia comercial e industrial para
alcançar a etapa da democracia burguesa e posteriormente “encaminhar a revolução socialista”. Ibidem, p. 29.
124
CANDIDO, Antonio. Poesia, documento e história. In: Brigada Ligeira e outros escritos. Rio de Janeiro: Ouro
sobre Azul, 2004. p. 44. Ensaio produzido em 1945.
125
Ibidem.
126
Ibidem, p. 45.
127
Ibidem.
35

Cacau a Gabriela”, e continua dizendo que “podem alguns deles até ser vistos como retomada
e ampliação, em separado, de motivos apenas esboçados no primeiro desses dois livros [Cacau],
e que, enriquecidos de todas as conotações adquiridas durante o percurso, voltarão a confluir
no segundo deles [Gabriela].”128
O próprio autor dos romances confirma que em muitos de seus livros há o prenúncio de
outras narrativas que desenvolveu posteriormente, salientando que a primeira ideia para
Gabriela está em um capítulo de Terras do Sem-Fim intitulado “O mar” e “a segunda, já mais
explícita, encontra-se numa cena de São Jorge dos Ilhéus, com uma personagem de nome
Rita.”129
Em relação à característica poética e documental presente em Terras do Sem-Fim, citada
por Candido, podemos vê-la com mais amplitude em Gabriela quando o autor historiciza, de
forma livre e criativa por meio da memória coletiva, o processo de construção da região
cacaueira a partir das lutas pela dominação das terras. Percebemos que há um certo
distanciamento em relação ao passado colonial no romance quando o narrador comenta que

Muita coisa recordava ainda o velho Ilhéus de antes. Não o do tempo dos engenhos,
das pobres plantações de café, dos senhores nobres, dos negros escravos, da casa
ilustre dos Ávilas. Desse passado remoto sobravam apenas vagas lembranças, só
mesmo o Doutor se preocupava com ele. Eram os aspectos de um passado recente, do
tempo das grandes lutas pela conquista da terra. Depois que os padres jesuítas haviam
trazido as primeiras mudas de cacau. Quando os homens, chegados em busca de
fortuna, atiraram-se para as matas e disputaram, na boca das repetições e dos
parabéluns, a posse de cada palmo de terra.130

Desse passado longínquo só restou nomes e escombros, como os “celebrados Ávilas” e


seu solar, entre Ilhéus e Olivença, que estava em “negras ruínas ante o mar, cercadas de
coqueiros”.131

Tudo isso fazia parte de um passado esquecido pelos cidadãos de Ilhéus. Uma nova
vida começara com o aparecimento do cacau, o que acontecera antes não contava.
Engenhos e alambiques, plantações de cana e de café, legendas e histórias, tudo havia
desaparecido para sempre, cresciam agora as roças de cacau e as novas legendas e
histórias narrando como os homens lutaram entre si pela posse da terra.132

O que importava era a lembrança dos “barulhos” envolvendo os coronéis e seus


jagunços, conflitos que formaram o caráter de homens e mulheres que participaram do processo

128
PAES, José Paulo. Posfácio - Arte de Mestre. In: AMADO, Jorge. Gabriela... Op. cit., p. 401.
129
AMADO, 1990. Apud RAILLARD, Alice. Conversando com... Op. cit., p. 158.
130
Idem. Gabriela, Cravo e Canela... Op. cit., p. 25.
131
Ibidem, p. 35.
132
Ibidem, p. 38.
36

de construção da região cacaueira em um período marcado pela presença rotineira das mortes
violentas.133

Quando os homens, chegados em busca de fortuna, atiraram-se para as matas e


disputaram, na boca das repetições e dos parabéluns, a posse de cada palmo de terra.
Quando os Badarós, os Oliveiras, os Braz Damásio, os Teodoros das Baraúnas, outros
muitos, atravessavam os caminhos, abriam picadas, à frente dos jagunços, nos
encontros mortais. Quando as matas foram derrubadas e os pés de cacau plantados
sobre cadáveres e sangue. (...) Era esse passado que ainda estava presente em detalhes
da vida da cidade e nos hábitos do povo.134

Acontecimentos desse tipo também foram vivenciados por familiares de Jorge Amado
e o autor comenta que seu pai “muito corajoso, participou de todas essas lutas”, sendo “ferido
três vezes: na primeira eu [Jorge Amado] estava com ele, e tinha um ano de idade.”135

(...) Meu pai cortava cana para a égua, sua montaria predileta. O jagunço, postado
atrás de uma goiabeira, a repetição apoiada na forquilha de um galho (assim o enxergo
na nítida rememoração), esperou o bom momento para descarregar a arma. O que teria
salvo o condenado? Um movimento brusco dele ou da égua, talvez, pois o animal
recebeu a bala mortal, enquanto nos ombros e nas costas do coronel João Amado de
Faria vieram incrustar-se caroços de chumbo que ele jamais retirou, visíveis sob a pele
até o fim da vida.136

Amado continua contando outros casos de emboscadas e de ferimentos a bala que seu
pai sofreu nesse período, porém informa que o Cel. João Amado não era um homem arrogante,
“era de uma bondade sem fim. Extremamente bom, generoso, e cultivava a amizade (...)” e “não
era de ficar contando façanhas, ou de falar muito de si” 137. Por outro lado, era sua mãe Eulália
Leal, também envolvida nas disputas pelas terras juntamente com seus irmãos (tios de Jorge
Amado), “quem contava sobre as lutas, meu pai nunca falava nisso. (...) Eu não soube nada
através dele; soube-o pelos outros. Soube pelo que a vida me ensinou, e pelo que vi.”138
Em resumo, o pai do romancista, “desbravador de terras” que “(...) plantara cacau, a
riqueza do mundo. Na época das grandes lutas”139, e sua mãe, que “dormia com uma carabina
sob o travesseiro”140, assim como alguns de seus tios maternos141, viveram o período de
expansão da lavoura cacaueira e compartilharam com Amado as memórias dos riscos e

133
Ver: RIBEIRO, André L. R. Urbanização, poder e práticas... Op. cit.
134
AMADO, Jorge. Gabriela, Cravo e Canela... Op. cit., p. 25.
135
Idem, 1990. Apud RAILLARD, Alice. Conversando com... Op. cit., p. 187.
136
Idem. O menino grapiúna. Ilustrações de Floriano Teixeira. 22ª Ed. Rio de Janeior: Record, 2004. p. 7.
137
Idem, 1990. Apud RAILLARD, Alice. Conversando com... Op. cit., p. 187.
138
Ibidem.
139
Idem. O menino grapiúna... Op. cit., p. 6.
140
Idem, 1990. Apud RAILLARD, Alice. Conversando com... Op. cit., p. 189.
141
Ibidem.
37

aventuras daquelas terras perigosas: “De tanto ouvir minha mãe contar, a cena se tornou viva e
real como se eu houvesse guardado memória do acontecido: a égua tombando morta, meu pai,
lavado em sangue, erguendo-me do chão.”142
Da mesma forma, o escritor também recorda de acontecimentos que presenciou ainda
menino, como as frequentes brigas de bar, assassinatos bárbaros, os advogados de defesa dos
Coronéis e seus julgamentos públicos.

Era assim; estes são os elementos da minha infância... um mundo bárbaro, que às
vezes tinha elementos da Idade Média, um tempo cheio de aventureiros, prostitutas,
um mundo que também tinha um lado divertido, muito vital, os franceses e os
poloneses, as brigas de bar, um sem-número de brigas de bar.143

E com base nessa memória coletiva, transmitida oralmente por seus pais ou adultos de
seu convívio, em conjunto com suas próprias vivências e lembranças de infância formadas
quando ainda morava em Ilhéus, Jorge Amado construiu um imaginário sobre a região cacaueira
e formulou o universo literário a respeito dessa Bahia, a “Bahia do cacau”.144 A partir deste
ponto de ancoragem, o narrador assegura, em Gabriela, Cravo e Canela, que não foi com os
escrúpulos “que progrediram as cidades do sul da Bahia, que se rasgaram as estradas,
plantaram-se as fazendas, criou-se o comércio, construiu-se o porto, elevaram-se edifícios,
fundaram-se jornais, explorou-se cacau para o mundo inteiro. Foi com tiros e tocais (...)”145
De acordo com Eduardo de Assis Duarte, a trama narrada em Terras do Sem-Fim faz
parte de um contexto de transição situado entre a Primeira República e a “revolução de 1930”.
Nesse caso, o personagem Sinhô Badaró é tomado como o representante da antiga aristocracia
que dominava a política local, enquanto o Coronel Horácio, desbravador da mata atlântica que
construiu riquezas com suas próprias mãos, seria o símbolo da nova ordem oligárquica que
comandaria o progresso da zona do cacau. Duarte ainda afirma que essa mudança de domínio
político marca o fim de uma etapa econômica brasileira arcaica para uma mais “moderna”.146
Em contrapartida, o historiador André Ribeiro afirma que em Terras do Sem-Fim os
eventos narrados na estória são baseados nas lembranças que o autor tinha dos acontecimentos
ligados à política local, pois de 1917 a 1918 ocorreu em Ilhéus um conflito pela posse da mata

142
Idem. O menino grapiúna... Op. cit., p. 6.
143
Idem, 1990. Apud RAILLARD, Alice. Conversando com... Op. cit., p. 194.
144
Sobre a construção das narrativas amadianas partindo da memória coletiva dos coronéis, ver: RIBEIRO, André
L. R. Urbanização, poder e práticas... Op. cit., p. 121-123. Em relação às “Bahias de Amado”, ver: ANDRADE,
Celeste M. Pacheco de. Bahias de Amado: a ficção fundando uma outra geografia. In: FONSECA, Aleilton;
PEREIRA, Rubens Alves (Orgs.). Rotas & imagens: literatura e outras viagens. Feira de Santana: UEFS, 2002.
145
AMADO, Jorge. Gabriela, Cravo e Canela... Op. cit., p. 48.
146
DUARTE, Eduardo de Assis. Jorge Amado... Op. cit., p. 183.
38

do Sequeiro Grande, correspondente literária da mata do Sequeiro do Espinho. Além disso,


alguns personagens da trama são inspirados em pessoas reais que estavam diretamente
envolvidas nessas lutas e por fim, o governo federal fez intervenções no Sul da Bahia enviando
o encouraçado Deodoro, que ficou ancorado no porto de Ilhéus como garantia da ordem.147
Ribeiro também explica que a mudança do poder político narrado no romance, marcando a
decadência das antigas aristocracias rurais no mandonismo local, ocorreu em 1912 na cidade,
quando o Cel. Antônio Pessoa garantiu a chefia do poder executivo do município.148
Seja qual for a interpretação, o fato é que podemos notar o entrelaçamento entre o tempo
narrado no romance com o tempo da narração, ou contexto da escrita do autor e sua memória.149
Terras do Sem-Fim foi escrito em 1942 e publicado em 1943, durante o exílio do romancista,
ou seja, apenas doze anos após os eventos da “revolução de 1930”. Jorge Amado considerou o
golpe de 1930 como uma verdadeira revolução, que trouxe benefícios sociais e políticos para a
população brasileira, porém, já na década de 1940, sob a vigência do Estado Novo, sentia-se
traído por Vargas, que passou a perseguir os escritores considerados subversivos,
principalmente os comunistas.150
Para Antonio Candido “a literatura, como fenômeno de civilização, depende, para se
constituir e caracterizar, do entrelaçamento de vários fatores sociais” e por isso precisamos “ter
consciência da relação arbitrária e deformante que o trabalho artístico estabelece com a
realidade, mesmo quando pretende observa-la e transpô-la rigorosamente, pois a mimese é
sempre uma forma de poiese.”151 Jorge Amado fez exatamente esse movimento em seus
romances da Saga do Cacau, pois, ao mesmo tempo que altera em sua narrativa a ordem de
acontecimentos vividos por sujeitos tornados personagens, o escritor inventa tantos outros,
acrescentando uma maior carga emotiva à trama. Porém, o próprio Candido salienta o caráter
documental das narrativas de Amado, afirmando que

Encarados do ângulo documentário, os seus romances constituem sempre uma


asserção e uma informação. Informação de níveis de vida, de ofícios, de gêneros de
ocupação, de miséria, de luta econômica, de produtos; asserção de certos pontos de
vista de onde se descortinam atitudes sociais, reivindicações proletárias,
desajustamento de classes.152

147
RIBEIRO, André L. R. Urbanização, poder e práticas... Op. cit., p. 147-149.
148
Ibidem, p. 64.
149
Ver: ECO, Umberto. Seis Passeios Pelos Bosques da Ficção. São Paulo: Companhia das Letras, 1994.
150
Ver: AMADO, 1990. Apud RAILLARD, Alice. Conversando com... Op. cit.
151
CANDIDO, Antonio. Literatura e Sociedade. Ouro Sobre Azul: Rio de Janeiro, 2006. p. 20-21.
152
Idem. Poesia, documento e história... Op. cit., p. 46.
39

Ainda assim, isso não impede a fluição da liberdade criativa dos escritores de ficção, e
“mesmo dentro da orientação documentária, é o quinhão da fantasia, que as vezes precisa
modificar a ordem do mundo justamente para torna-la mais expressiva; de tal maneira que o
sentimento da verdade se constitui no leitor graças a esta traição metódica.”153
Sandra Pesavento expressa bem esse aspecto da Literatura, associando-a com a escrita
da História. Partindo dos livros de Capistrano de Abreu (Capítulos da História Colonial) e de
José de Alencar (Iracema), a historiadora nos apresenta exemplos de como “textos históricos
comportam recursos ficcionais e textos literários cercam-se de estratégias documentais de
veracidade”154 a fim de alcançarem uma verossimilhança nas suas versões do passado. Da
mesma forma que a história se utiliza de recursos ficcionais, a literatura pode se apropriar de
artifícios documentais para a construção de sua narrativa, sem com isso privar a liberdade
criativa do autor. O que interessa ressaltar é que mesmo o texto ficcional contém uma verdade
interna, e tudo que acontece na narrativa é tido como acontecimento verdadeiro na obra
literária.155
Flavio Loureiro Chaves afirma que o cruzamento entre História e a Literatura faz com
que a “ficção imaginária ilumine a realidade insatisfatória que lhe deu origem”.156 Para ele, a
historicidade é um elemento inerente à estrutura textual de qualquer gênero literário, sendo
assim, os romances podem ser históricos tanto por se referirem diretamente à História como
por nos permitirem visualizar elementos cotidianos do seu tempo de escrita contidos na própria
narrativa. Além disso, os literatos têm suas próprias visões históricas que transpõem em seus
textos.157
Esse é justamente o caso do escritor Jorge Amado, que, ao nos transportar para o mundo
inventado por ele, está ao mesmo tempo, interpretando a partir da rememoração, os
acontecimentos que ouviu e presenciou nas terras do cacau. Sejam os casos de assassinatos
bárbaros ligados às lutas pela posse da terra, as disputas políticas de grupos antagônicos, os
problemas dos encalhes de navios no porto, ou a beleza da cidade em crescimento com a
abertura de novas ruas, a construção de palacetes monumentais, a ascensão da economia
cacaueira e a desigualdade social produzida por ela. Em suma, o autor “intérprete do Brasil”158

153
Idem. Literatura e Sociedade... Op. cit., p. 21.
154
PESAVENTO, Sandra J. Fronteiras da Ficção: Diálogos da História com a Literatura. Revista História das
Ideias. Vol. 21. Faculdade de Letras, Coimbra. 2000. p. 56.
155
Ibidem.
156
CHAVES, Flávio L. História e Literatura. Porto Alegre: Ed. Da Universidade/UFRGS, 1998. p. 9.
157
Ibidem, p. 19-23.
158
GOLDSTEIN, Ilana S. O Brasil Best-Seller... Op. cit.
40

nos leva para a sua realidade e nos induz a “extrapolar” a ficção, acreditando que tudo o que
ele escreveu corresponde aos fatos que aconteceram na materialidade da existência.159
Candido constata que “as melhores expressões do pensamento e da sensibilidade têm
quase sempre assumido, no Brasil, forma literária.”160 Para o autor, a literatura por muito tempo
foi mais do que apenas questão de estética, contribuindo, no caso brasileiro, para a interpretação
da realidade e dos problemas nacionais, antes mesmo que os saberes e a racionalidade científica.
Em suas palavras: “Diferentemente do que sucede em outros países, a literatura tem sido aqui,
mais do que a filosofia e as ciências humanas, o fenômeno central da vida do espírito.”161
E como veremos nos próximos capítulos, Jorge Amado foi um dos principais interpretes
da realidade da região cacaueira e mais especificamente da cidade de Ilhéus, ultrapassando
muitos de seus antecessores pelo simples fato de denunciar, em seus romances, as desigualdades
sociais e as condições de vida a que homens e mulheres, trabalhadores diretos ou indiretos do
cacau, estavam submetidos.
Os romances do escritor são, por isso, lugares de memórias, pois, além de guardarem
em si a memória coletiva dos Coronéis do cacau, também se esforçam em preservar vestígios
das memórias subalternizadas. Ainda assim, seu empenho em apresentar outra realidade, aquela
dos bairros habitados pela população pobre e dos sujeitos “mal afamados”, para além da
riqueza, do progresso e dos palacetes, construídos pela renda do cacau, foi totalmente dissolvido
pelas apropriações dos seus romances feitas de forma recorrente pela mídia televisiva, por
governantes e agências turísticas. E é dessa forma que Gabriela, Cravo e Canela vem sendo
considerada um lugar de memória que conserva a memória social da cidade firmada na ideia de
riqueza, ostentação, progresso, civilidade e beleza, silenciado e nos fazendo esquecer dos
problemas sociais e da vida dos sujeitos subalternizados.
Também consideramos a imprensa escrita local como um lugar de memória que
preserva e expressa intencionalmente a memória dos Coronéis do cacau, e que contribuiu
igualmente para a formação da memória social da Cidade. O jornal O Comércio pertencia ao
Cel. Misael Tavares – banqueiro, fazendeiro e grande produtor de cacau – e seguia a tendência
política de seu proprietário, tornando-se, a partir de 1919, órgão de imprensa opositora à
oligarquia que governava o município sob o comando do Cel. Antônio Pessoa.162 Enquanto

159
Ibidem, p. 220.
160
CANDIDO, Antonio. Literatura e Sociedade... Op. cit., p. 136.
161
Ibidem.
162
Ver: CARVALHO, Philipe Murillo S. de. Trabalhadores, associativismo e política no sul da Bahia (Ilhéus
e Itabuna, 1918-1934). Tese (doutorado) – Faculdade de Filosofia e Ciências Humanas, Universidade Federal da
Bahia, Salvador, 2015. p. 98.
41

isso, seu concorrente Correio de Ilhéus, propriedade do Cel. Antônio Pessoa, era o órgão oficial
do Município e do Partido Republicano Democrata, que governou a cidade até a revolução de
1930. Os periódicos compartilhavam as visões de mundo dos seus proprietários, que, em alguns
momentos, se envolviam diretamente na redação dos jornais, como era o caso do Correio de
Ilhéus que tinha na figura de redator chefe o seu proprietário.
Nesses jornais percebemos a publicação de artigos escritos com o objetivo de valorizar
a ação dos “desbravadores” das terras do cacau, comentando seus “grandes feitos” em prol do
desenvolvimento da região e da cidade. Geralmente, em datas de aniversário de alguns sujeitos
pertencentes ao partido político do qual o periódico era órgão oficial, publicava-se um texto
descrevendo brevemente a trajetória do aniversariante nas terras do cacau e sua importância
para o crescimento e progresso da urbe, como podemos ver nas felicitações dirigidas ao
Intendente Cel. Eustáquio Bastos no Correio de Ilhéus em 19 de setembro de 1922:

Eustáquio Bastos, sergipano de nascimento, de feito, tornou-se, de muito, credor de


nossa consideração e do nosso respeito. (...) Chegando a esta terra, cujas
prodigalidades fáceis, muita vez, seduzem os espíritos menos resistentes, onde, a
miúde, o forasteiro aporta, flamejando em ambições desordenadas, compreendeu sr.
ex. que Ilhéus, trato de terra que Deus abençoou, sobre ser uma messe de riquezas
incalculáveis, igualmente, era bom o campo de ação fecundo, onde os homens podiam
encontrar elementos de vitória, garantidores dos êxitos individuais e, também, da
coletividade. (...)163

Ou como vemos nas palavras dirigidas ao Comendador Domingos Fernandes, “abastado


fazendeiro neste município e uma das figuras de prol da nossa sociedade.”164:

Possuidor de um bom caráter e de uma fortuna considerável, venceu na vida a golpe


de esforços e de trabalho, sendo reconhecidamente probo e honesto.
É um dos grandes benfeitores desta terra, que o viu nascer, e o acata pelos seus dotes
morais e virtudes cívicas que o põe em destaque na nossa sociedade.
Vários melhoramentos foram por ele aqui introduzidos, e se destaca como um dos
mais importantes, a completa reforma da Igreja de N. S. da Vitória, feita à sua custa,
gastando nessa obra cerca de trinta contos de reis. (...)165

O passado colonial da urbe também foi figurado narrativamente em alguns artigos


publicados no jornal Correio de Ilhéus, a fim de buscar um afastamento desse tempo
considerado decadente e diferenciá-lo do presente próspero no qual a cidade se encontrava
naquele momento. Isso pode ser percebido no discurso de posse do Intendente Mario Pessoa,
quando ele se referiu ao tempo que foi deixado para trás na história da cidade:

163
CEL. Eustáquio Bastos. Correio de Ilhéus, Ilhéus, p. 1, ano II, n 195, 19 set. 1922.
164
COMENDADOR Domingos Fernandes. Correio de Ilhéus, Ilhéus, p. 1, ano IV, nº 327, 04 ago. 1923.
165
Ibidem.
42

Recordo-me ainda do seu aspecto colonial, triste e desolador, resultado das


impiedosas incursões do Aymoré e da indisposição de seus donatários com os colonos,
que fruíam as mercês do solo sem atentarem nas possibilidades espantosas do futuro
promissor que lhes era de todo em todo indiferente.
É esta visão do passado que eu evoco neste instante, tal como ela foi, verdes nas
florestas que ocultavam a grandeza que hoje contêm palmos nos “frutos de ouro”,
pendentes da áurea árvore.
E a imagem da terra que foi confunde-se agora com a da terra boa e acolhedora, que
é, tranquila no seu progresso recrescente, mais a mais confiante no seu futuro
grandioso, de extraordinárias recompensas.166

Em um artigo sobre alguns melhoramentos que chegavam à cidade, foi escrito que

Até bem pouco tempo, nada mais éramos do que uma sombra viva daquele passado
colonial que fôramos, estacionados que vivíamos numa apatia desoladora. Não
possuíamos ruas porque as vias públicas eram becos acanhadíssimos e sem
calçamentos, vielas horríveis e inacessíveis, onde mal podiam transitar os pedestres
ou as carroças anacrônicas. (sic.)167

Esse recorte vai ao encontro das memórias do Cel. Antônio Pessoa, quando relatou sobre
sua chegada em Ilhéus em fins do século XIX, informando que a cidade

Era a esse tempo muito pequena e de tudo se ressentia, o que contrastava com a
vastidão do território, a fertilidade do solo, a abundância de matas virgens contendo
boas madeiras de lei e os rios caudalosos, piscosos. (...) Animais vacum, cavalar,
muar, caprino e lanígero pastavam e dormiam no meio das ruas, emporcalhando os
passeios das casas.168

Eusínio Lavigne fez um relato semelhante a respeito do estado de Ilhéus em 1881, ano
de sua elevação à cidade. Segundo o advogado, a pequena urbe era “bisonha, em suas doze ruas
arrevesadas, pontilhada de casas de palha e chãos vagos, apenas três à direta do comércio, hoje
Pedro II, a Barroso e uma parte de hoje Marquês de Paranaguá, calçadas à pedra bruta.”169
No próximo capítulo exploraremos mais essa tentativa de diferenciação entre o passado
colonial, considerado distante e decadente, e o momento pelo qual passava a cidade na década
de 1920.170 Nesse período, os intendentes de Ilhéus planejaram e colocaram em prática uma
série de melhoramentos urbanos que imprimiram em seu espaço central uma nova imagem para

166
O novo governo de Ilhéus – Posse solene. Correio de Ilhéus, Ilhéus, p. 2, ano IV, nº 389, 03 jan. 1924.
167
UM grande melhoramento: já possuímos auto-omnibus. Correio de Ilhéus, Ilhéus, p. 1, ano VI, nº 731, 06 abr.
1926.
168
PESSOA, Antônio. Apud, BRANDÃO, Arthur; ROSÁRIO, Milton. Estórias da História de Ilhéus... Op. cit.,
p. 39.
169
PESSÔA, Mário de Castro. Vultos de Ilhéus – O Coronel dos Coronéis: Antônio Pessôa de Castro e Silva.
Ilhéus: Nova Ideia – Projetos Gráficos e Editoriais, 2005. p. 26.
170
Ver: RIBEIRO, André L. R. Urbanização, poder e práticas... Op. cit., p. 99.
43

a urbe, ligada à estética europeia e às ideias de progresso e civilidade.171 Foi também nesses
anos que ocorreu a formulação da representação social de Ilhéus, e sua divulgação pela
imprensa escrita, como a “Capital do Cacau” e “Princesa do Sul”.
Todavia, na rica cidade do cacau também existiam problemas ligados à desigualdade
social, a exemplo de alguns bairros próximos ao centro que não eram beneficiados com os
serviços básicos de saneamento e iluminação elétrica; tampouco os sujeitos que habitavam
esses locais recebiam algum tipo de assistência.
Sabendo disso, tentamos recuperar os fragmentos das vivências, práticas e memórias
desses sujeitos também através da imprensa escrita local. Conseguimos, por meios dos indícios
disponíveis nos jornais e na literatura, “escutar os ecos das vozes que emudeceram”172 ou foram
silenciadas e passaram por um processo de esquecimento, sendo apagadas da história local e
das representações sociais da cidade. Isso foi possível por meio do método indiciário173
associado com a tentativa de realizamos uma leitura a contrapelo dos periódicos aqui já citados,
a fim de encontrar em suas páginas os resquícios das vozes silenciadas dos oprimidos. Dessa
forma, pudemos criar uma outra interpretação da história de Ilhéus, levando em consideração
essa cidade apagada da memória social, como veremos no terceiro capítulo.

171
Ibidem, p. 89.
172
BENJAMIN, Walter. Sobre o Conceito da História... Op. cit.. p. 223.
173
GINZBURG, Carlo. Sinais: raízes de um paradigma... Op. cit.
44

Capítulo 2 - Olhares Sobre a Cidade de Ilhéus: narrativas


jornalísticas e literárias

Sobre uma peanha de esmeralda, olhando na curva defronte


o mimoso presépio do “Pontal” e do outro lado, através do
morro do Unhão, o oceano imenso que se perde na curva
azulada do horizonte sem fim, a decantada e formosa
Princesa do Sul, a vetusta colonial de Jorge de Figueiredo
Correia, num arranque de protesto a mais de dois séculos de
inércia, aparece fascinadora e donairosa, realmente, qual
princesa encantada que, num milagre de ressureição,
despertasse do tálamo de ouro surpreendida pela
transformação do seu castelo, para os efeitos da Vida e do
Progresso. (Benedicto Propheta, em Correio de Ilhéus: A
Cidade de Ilhéus, 14 de maio de 1925).

Localizada entre o mar e os morros, antes dominados por florestas subequatoriais, a


pequena vila de São Jorge dos Ilhéus conheceu um significativo progresso material em fins do
século XIX, transformando-se rapidamente em algumas décadas a partir de sua elevação a
categoria de cidade.174
Nos anos 1920, Ilhéus experimentou um processo acelerado de modificações urbanas
proporcionado pelo contexto de crescente alta do preço do cacau. Vários melhoramentos
públicos foram implementados na cidade, houve uma preocupação por parte do poder municipal
em executar uma série de obras de saneamento e infraestrutura urbana em seu espaço central,
bem como em regulamentar as construções privadas e o comportamento dos seus habitantes.
Para isso foram criadas leis municipais, a Planta Cadastral da Cidade e do São João da Barra
(distrito de fronte para o centro de Ilhéus), Planos Diretores e o Código de Postura Municipal
sofreu uma ampliação. O objetivo da intendência era “sanear o meio” e “civilizar os hábitos”;
e com esse objetivo efetuou um grande plano de embelezamento, associando estética e
funcionalidade técnica nas novas composições arquitetônicas da cidade.175
Todas essas inovações, acompanhadas pela sensação de aceleração e transformação do
meio, foram narradas pelos jornais de circulação local e pelos romances de Jorge Amado
referentes à saga do cacau, tornando-se elementos que comporiam as representações urbanas
de Ilhéus.
Isto posto, o objetivo do presente capítulo é discutir as narrativas que contém diferentes
representações a respeito do meio urbano de Ilhéus dos anos 1920, configuradas pela imprensa
local, nos jornais O Commercio e Correio de Ilhéus, e pela ficção de Jorge Amado, mais

174
FREITAS, Antônio F. G. de; PARAÍSO, Maria H. B. Caminhos ao Encontro do Mundo... Op. cit., p. 133.
175
RIBEIRO, André L. R. Urbanização, poder e... Op. cit., p. 86.
45

especificamente o romance Gabriela, Cravo e Canela. Contudo, antes de chegarmos ao ponto


principal, apenas pelo viés comparativo, fazemos um breve panorama sobre as representações
construídas em relação a antiga Vila colonial de São Jorge dos Ilhéus. Partimos das discussões
dessas representações, suas mudanças e influência na transformação do espaço citadino,
levando em consideração os dispositivos tipográficos em que se encontram, os contextos de
produção e o pertencimento social de seus autores (se possível, no caso dos jornais). Nesse
sentido, realizamos uma análise interna e externa dessas fontes, estando ciente do caráter
monumental do documento, atentando às suas condições de produção e intencionalidades.

Um percurso no tempo e espaço da Vila de São Jorge dos Ilhéus

A maior parte das cidades que nasceram nos primeiros séculos da colonização ainda
preservam algumas de suas “marcas” do passado, tanto na tipologia da arquitetura de edifícios
religiosos e administrativos como nos traços morfológicos de suas ruas.176 André Ribeiro afirma
que “o litoral sul baiano inclui alguns dos mais antigos núcleos urbanos erguidos pelos
portugueses no Brasil”177, sendo São Jorge dos Ilhéus “uma das cinco primeiras vilas que se
criaram”178 em todo o território da América portuguesa. Uma das principais características
dessas povoações era o aproveitamento topográfico do local escolhido para seu
estabelecimento, “de acordo com o uso peninsular de se edificarem as vilas sobre elevações,
para mais fácil defesa contra assaltos”.179
Em Ilhéus não foi diferente. A Vila de São Jorge foi erguida sobre o morro denominado
Santo Antônio, hoje Outeiro de São Sebastião, um local com visão privilegiada do mar, do rio
e das matas ao redor, que permitia aos colonos avistarem antecipadamente possíveis inimigos
propensos a atacar por qualquer uma dessas direções. Porém, ainda no século XVII, ocorreu o
gradativo abandono do seu perímetro original a transferindo para a base do Outeiro de São
Sebastião, numa planície de manguezal aterrada entre o mar, o rio Cachoeira e o morro da
Vitória.180

176
RIBEIRO, André L. R. Urbanização, poder e... Op. cit., p. 69; DIAS, Marcelo; OLIVREIRA, Ruana;
ANDRADE, Iuri. Morfologia urbana da vila colonial de São Jorge dos ilhéus (Bahia – Brasil, Séculos XVI a XIX).
Urbana: Rev. Eletrônica Cent. Interdiscip. Estud. Cid. Campinas, SP v.11, n.1 [20] p.149-171 jan./abr. 2019.
p. 151.
177
RIBEIRO, André L. R. Urbanização, poder e... Op. cit., p. 69.
178
CASTRO, Epaminondas B. Formação Econômica... Op. cit., p. 27.
179
Ibidem, p. 26.
180
RIBEIRO, André L. R. Urbanização, poder e... Op. cit., p. 70-73. O morro da Vitória atualmente é chamado
de alto Teresópolis.
46

Ao descreverem a Capitania em seus relatos, os viajantes, sacerdotes, administradores,


entre outros sujeitos, também mencionaram a Vila sede, apresentando informações importantes
sobre sua situação econômica, o sítio escolhido, seus principais prédios e o número de
habitantes que nela viviam. Além disso, com base nesses textos, alguns cronistas do século XX
formularam representações acerca do seu local de assentamento, que variaram entre
julgamentos anacrônicos e visões deslumbrantes do povoado.
Em meados de 1570 Gandavo escreveu que “Esta povoação é uma vila muito formosa,
e de muitos vizinhos, a qual está em cima de uma ladeira à vista do mar, situada ao longo de
um rio onde entram os navios. Este rio também se divide pela terra dentro em muitas partes
(...)”.181 Já nos anos 1930, Epaminondas de Castro, baseando-se em documentos históricos e
apoiando-se em sua imaginação em conjunto com a própria paisagem de seu presente, a
representa como estando em um local “com excelente vista para o mar” onde “se levantaram as
casas públicas e as de residência, quase todas de taipa e cobertas de palha, a primeira capelinha
e, presumivelmente, as estacadas e fortificações indispensáveis”.182
Francisco Borges de Barros, eivado com a mentalidade positivista característica de sua
época e tendo como princípio as ideias de progresso, modernidade e ordem, afirmou que na vila
colonial “a construção era feita em desordem, (...) [e] com o aumento das casas, formavam-se
ruas tortuosas, becos e vielas, que demonstravam e ainda hoje demonstram em todo o país o
pouco caso dos que só se preocupavam com a fortuna rápida (...)”.183 Por sua vez, João da Silva
Campos, ao citar essa passagem em sua crônica, responde em uma nota no fim do capítulo que:

O historiógrafo baiano não está com a razão. Os portugueses que construíram vilas e
cidades no Brasil não fizeram mais que edifica-las à imagem e semelhança das do seu
país, com exceções raríssimas. Não se pode exigir de um povo que transporte consigo
para terras estranhas senão os seus costumes tradicionais. Não foi por outro motivo
que os espanhóis construíram na América suas aglomerações urbanas com as ruas
cortadas em xadrez. Porque assim se usava na pátria.184

Seguindo este exemplo, Marcelo Dias, Ruana Oliveira e Iuri Andrade, ao estudarem o
traçado e a morfologia urbana da Vila de Ilhéus, atestaram que além de seguir os princípios
urbanos portugueses, que dividiam a cidade em parte alta e parte baixa – concentrando no alto
“os edifícios religiosos e administrativos, localizados nos pontos dominantes”185 e ainda as

181
GANDAVO, Pero de Magalhães. Tratado da Terra do Brasil: história da província Santa Cruz, a que
vulgarmente chamamos Brasil. Brasília: Senado Federal, Conselho Editorial, 2008. p. 102.
182
CASTRO, Epaminondas B. Formação Econômica... Op. cit., p. 26.
183
BARROS, Francisco B. de. Memória... Op. cit., p. 95.
184
CAMPOS, João da S. Crônica da Capitania... Op. cit., p. 43.
185
DIAS, Marcelo; OLIVREIRA, Ruana; ANDRADE, Iuri. Morfologia Urbana... Op. cit., p. 154.
47

moradias dos colonos; e no baixo “o porto e todo o aparato comercial e fiscal relacionado ao
comércio ultramarino, como alfândega, armazéns etc.”186 –, ela também adotava os
componentes que se articulavam na formação dos territórios urbanos das cidades portuguesas:
o vernáculo e o erudito.187
No primeiro deles levavam-se em conta as características topográficas do sítio
escolhido, suas linhas naturais e a partir daí construíam-se as ruas e erguiam-se os principais
edifícios em pontos elevados do terreno. Esse componente “corresponde usualmente às
primeiras fases de implementação urbana, sem maior rigor de técnicas”188, enquanto o segundo
“está relacionado a momentos de evolução urbana” utilizando-se de “técnicas e teorias para a
definição de um traçado mais regular de base geométrica.” 189
João da Silva Campos afirmou que Tomé de Souza, durante visita às capitanias do sul
em 1552, ao chegar na vila de Ilhéus mandou que se erguesse um pelourinho, construíssem
muros e outros equipamentos para a proteção do povoado e dos engenhos, casas onde
funcionariam a cadeia e a governança municipal e se alinhassem as ruas de acordo com a
localização dos novos edifícios.190 Conforme Dias, Oliveira e Andrade, muito provavelmente o
agente que levou a cabo as ordenações de alinhamento das ruas da vila foi o castelhano e cristão-
novo Filipe de Guillem, um matemático que lá viveu entre 1539 e 1549 exercendo nesse período
as funções de juiz ordinário e vereador. Ainda na década de 1550, quando da fundação da cidade
de Salvador, Guillem foi chamado por Tomé de Souza para auxiliá-lo nos trabalhos de abertura
das ladeiras e ruas, além do serviço de concelho e governança.191
Castro avalia sobre a unanimidade dos relatos a respeito da prosperidade da vila em seus
primeiros anos de formação, destacando a “rara fertilidade da terra, bem regada de águas e
pompeante de vigorosa e opulenta vegetação” que fez dela, “a breve trecho, uma das mais
florescentes e abastadas do país”.192 Por volta de 1570 Gandavo estimou que toda a capitania
tinha cerca de duzentos vizinhos, bem como confirmou a reconstrução do mosteiro da
Companhia de Jesus dentro da povoação e a presença de oito engenhos de açúcar em seu
termo.193

186
Ibidem, p. 153.
187
Ibidem, p. 152.
188
Ibidem.
189
Ibidem.
190
CAMPOS, João da S. Crônica da Capitania... Op. cit., p. 78.
191
DIAS, Marcelo; OLIVREIRA, Ruana; ANDRADE, Iuri. Morfologia Urbana... Op. cit., p. 156-157; No capítulo
IV da Crônica da Capitania de São Jorge dos Ilhéus, João da Silva Campos apresenta um pouco da trajetória de
vida de Guillem. Ver: CAMPOS, João da S. Crônica da Capitania... Op. cit., p. 58-62.
192
CASTRO, Epaminondas B. Formação Econômica... Op. cit., p. 28-29.
193
GANDAVO, Pero de Magalhães. Tratado... Op. cit., p. 39.
48

Poucos anos depois Gabriel Soares de Souza escreveu que a vila já foi “muito abastada
e rica, e teve quatrocentos ou quinhentos vizinhos”, alega novamente a presença do mosteiro
dos jesuítas e de outro que começava a ser construído, dedicado a São Bento, porém, constata
que a povoação não tinha “nenhuma fortificação nem modo para se defender de quem a quiser
afrontar.”194 Fernão Cardim, uma década depois, encontrou a vila com apenas cinquenta
vizinhos mais o vigário e apenas três engenhos de açúcar, todavia, atesta a fertilidade daquelas
terras afirmando serem elas “abastada de mantimentos, criações de vacas, porcos, galinhas, e
algodões”, além de que “as árvores de espinho são nestas terras tantas que os matos estão cheios
de laranjeiras e limoeiros de toda sorte”.195 Contraditoriamente, no mesmo período, Anchieta
declarou que a povoação tinha “150 vizinhos de Portugueses com seu vigário, [e] seis engenhos
de açúcar a uma e duas léguas da vila”.196
No século XVII, Albernaz relatou que a vila de São Jorge “foi antigamente habitada por
muita gente e se foi diminuindo per razão da guerra dos Aimorés”.197 Em síntese, nas palavras
de Arthur Brandão e Milton Rosário, nesse período a vila estava decadente, “embora ainda fosse
classificada como uma das melhores do Brasil pela fertilidade do solo, pela abundância de águas
e madeiras de lei.”198 De acordo com Ribeiro, ao que tudo indica, em fins desse mesmo século
“os moradores foram abandonando a chapada do morro de São Sebastião e ocupando os terrenos
da baixada entre o manguezal e o mar.”199
As ruas que deram origem ao traçado urbano na planície já haviam sido abertas nas
primeiras décadas da ocupação colonial, seguindo o princípio de divisão entre “cidade alta” e
“cidade baixa”, sendo essas a Rua do desembarcadouro do Tambepe, a Rua direita do Porto e
a Rua do Porto.200 Existiam na “cidade baixa” alguns dos prédios que demarcariam a sua malha
urbana, como a capela de São Sebastião, “situada de costas para o mar e para a vila velha, e de
frente para a urbe que se expandia”201, a capela de Nossa Senhora da Vitória, construída no alto

194
SOUZA, Apud SALES, Fernando. Memória... Op. cit., p. 21.
195
CARDIM, Apud SALES, Fernando. Memória... Op. cit., p. 27.
196
ANCHIETA, José de. Informação da Província do Brasil para nosso Padre. In: Cartas Jesuíticas III: Cartas,
Informações Fragmentos Históricos e Sermões do Padre Joseph de Anchieta, S. J. (1554 – 1594). Rio de Janeiro:
Civilização Brasileira, 1933. p. 417.
197
ALBERNAZ, Apud CASTRO, Epaminondas B. Formação Econômica... Op. cit., p. 44.
198
BRANDÃO, Arthur; ROSÁRIO, Milton. Estórias da História de Ilhéus. Ilhéus, Ba: Edições SBS Ltda. 1970.
p. 24. Dois jornalistas, um paulista e o outro ilheense, que resolveram escrever um livro sobre Ilhéus, e que,
segundo eles, tinha a pretensão de reunir “os fatos mais importantes” da cidade, “desde os idos de sua fundação
até os nossos dias (1970), sem serem considerados historiadores.
199
RIBEIRO, André L. R. Urbanização, poder e... Op. cit., p. 74.
200
DIAS, Marcelo; OLIVREIRA, Ruana; ANDRADE, Iuri. Morfologia Urbana... Op. cit., p. 160. Os autores do
artigo atestam a existência do porto e da alfândega no local onde hoje é o Antigo porto, na atual Av. 2 de julho, e
do desembarcadouro das grandes naus, que não conseguiam transpassar a barra “difícil e perigosa” do rio
cachoeira, no porto marítimo do Tambepe, no local onde foi construído o porto do Malhado.
201
Ibidem, p. 161.
49

do Morro da Vitória – atual Teresópolis – e o Mosteiro de São Bento, atual Palácio Paranaguá,
abandonado pelos monges beneditinos durante os conflitos contra os Aimorés e reivindicado
pelos jesuítas nas primeiras décadas de 1600.202
No final do século XVIII as descrições sobre a flora, sua fertilidade e a vila, seus
habitantes, sua economia e seus aspectos materiais, voltaram a fazer parte dos escritos de
viajantes e administradores que passaram pela Comarca de Ilhéus.203 Alguns dos elementos
presentes nesses relatos foram amplamente utilizados durante o século XX na formação da
narrativa sobre o passado da cidade e da região. Luís dos Santos Vilhena afirmou que a Vila de
Ilhéus foi fundada

em uma baixa fúnebre, a qual continua com extensa vargearia à beira da costa (...)
consta porém que fora muito povoada nos seus princípios, que tivera Alfândega, boas
Casas de Câmara e Misericórdia, duas fortalezas, almoxarife, Provedor de Fazenda, e
seu escrivão, bem como um suficiente colégio de jesuítas, indícios tudo de grandeza
em outro tempo, famílias limpas, e casas abonadas; hoje porém tudo está arruinado,
e desfeito, sem que já parece vila, mas sim uma pobre aldeia. 204

Vilhena continua sua descrição direcionada agora à povoação, que segundo ele há pouco
tempo

[...] não passava de 280 fogos com 2000 almas pouco mais ou menos compreendendo
todas as idades, sexos, e qualidades. Vivem esses povos em indigências sumas, quando
a Providência os colocou em um dos países mais férteis da América Portuguesa.
Apesar da nímia fecundidade do terreno não passa a lavoura daquela pobre gente de
alguma mandioca, e arroz que descascado faz o ramo do seu comércio para a Bahia,
ao que acediam alguma madeira que tiravam das matas, e do que tudo estão hoje
privados em razão do novo plano sobre os cortes das madeiras [...] 205

Notamos aqui um dos elementos difundidos por romancistas, cronistas e pesquisadores


do século XX que escreveram sobre Ilhéus: a situação de miséria pela qual passava os habitantes
da vila no período colonial.
Em 1817 Aires do Casal escreveu em seu estudo que “Ilhéus, ou S. Jorge, noutro tempo
vila considerável e florescente, tem decaído”206 e citou as três igrejas existentes: a “paroquial,
dedicada à Invenção da Vera cruz tem a ermida de S. Sebastião junto à praia, e a de Nossa
Senhora da Vitória, sobre a colina a que dá o nome.”207 De acordo com Balthazar da Silva

202
Ibidem, p. 161-163.
203
Ilhéus se tornou comarca em 1754, quando seu último donatário, D. Antônio José de Castro, a trocou por um
título de nobreza, e outras vantagens, com a Coroa portuguesa.
204
VILHENA, Apud SALES, Fernando. Memória... Op. cit., p. 51. (Grifo meu).
205
Ibidem. (Grifo meu).
206
CASAL, Apud SALES, Fernando. Memória... Op. cit., p. 63. (Grifo do autor).
207
Ibidem. Grifo do autor.
50

Lisboa, essas igrejas estavam “reduzidas a casas de morcegos, sem terem as sagradas e
veneráveis imagens, de que se honravam o adorno competente”208 e da mesma forma o antigo
colégio jesuítico “que serve de casa de câmara”209 estava em ruínas. Ainda assim, Casal
considerou o território como sendo “abastada de pescado e dos víveres do país”, com subúrbios
“aprazíveis; seu porto capaz de grandes sumacas, e defendido por vários fortins.”210 Para ele
aquela vila seria “riquíssima depois de bem multiplicados os agricultores”211. Por fim aponta
os produtos que se exportavam dali para a Bahia: “farinha, arroz, café, aguardente, madeira e
algum cacau.”212
Ainda na segunda década dos oitocentos, em viagens ao sul da Bahia, naturalistas
destacaram a exuberância da natureza considerada “intocada” em Ilhéus e fizeram comentários
a respeito da vila e seus habitantes. O príncipe Maximiliano de Wied-Neuwied ao chegar no
Porto de Ilhéus escreveu sobre as suas belezas naturais, testemunhando que “do lado da terra,
elevam-se espessas florestas, e, do lado da vila, uma colina coberta de vegetação, dentre cuja
sombria folhagem emerge a igreja de Nossa Senhora da Vitória. Do alto dela, avista-se um dos
mais belos panoramas inimagináveis (...).”213
Após fazer uma breve síntese da história daquele povoado, apontando as sequências de
eventos que desencadearam seu empobrecimento, o jovem nobre sinalizou que “a própria vila
de Ilhéus se compõe de pequenas casas cobertas de telha, em parte maltratadas, em decadência
ou abandonadas; as ruas são mais ou menos regulares, cobertas de capim.”214 O príncipe
também informou que não havia grande movimentação urbana, exceto aos domingos e dias de
festas religiosas, quando os moradores “das redondezas acorrem à vila, para a missa.”215
Os naturalistas Johann von Spix e Karl von Martius confirmavam a beleza do local onde
se situava a vila, informando que “a ponta de terra arenosa, em cuja margem ocidental está
edificada a vila, é guarnecida de um profuso coqueiral ondeante, imprimindo um particular
216
encanto a bela palmeira onde quer que apareça” , e logo percebem também a presença da

208
LISBOA, Balthazar da S. Memória Topográfica... Op. cit., p.120.
209
CASAL, Apud SALES, Fernando. Memória... Op. cit., p. 63.
210
Ibidem.
211
Ibidem, p. 58.
212
Ibidem. P. 63. O cacau só veio a adquirir maior prestígio durante a segunda metade do século XIX, quando se
tornou um produto importante na pauta de exportação local e, posteriormente, o principal produto da economia
baiana. Ver: CASTRO, Epaminondas B. Formação Econômica... Op. cit.; MAHONY, Mary A. Um passado...
Op. cit.; RIBEIRO, André L. R. Urbanização, poder e... Op. cit.
213
WIED-NEUWIED, Apud SALES, Fernando. Memória... Op. cit., p. 76.
214
Ibidem, p. 77.
215
Ibidem.
216
SPIX & MARTIUS, Apud SALES, Fernando. Memória... Op. cit., p. 91. No século seguinte, o jovem Jorge
Amado também escreveu sobre o belo coqueiral daquelas praias em uma redação solicitada pelo seu professor de
português do internato em Salvador. Ver: AMADO, Jorge. O menino grapiúna... Op. cit., p. 85.
51

“mata fechada” sobre o morro da Vitória. Os dois se perguntaram o que teria levado aquele
povoado, tão antigo e de paisagem tão adorável, a se tornar um lugar abandonado com “apenas
algumas cabanas pobres, em ruas cheias de capim”, ao que responderam que tal situação era
motivada pela falta de “educação, diligência e atividade” dos seus habitantes.217
O francês Ferdinand Denis (1837) julgava que os habitantes dos Ilhéus se contentavam
com o pouco alimento que encontravam e resumia essa condição com as seguintes palavras:
“mal alimentado, mal vestido, ainda mal alojado, sempre entregue a sua indolência, declara que
não deseja cousa alguma além do que o céu lhe tem concedido.”218 E o Arquiduque
Maximiliano de Habsburgo, em passagem por Ilhéus no ano de 1860, interessado em conhecer
o “mato virgem”, registrou suas impressões sobre a vila que lhe parecia “simplesmente uma
aldeia” ou “um amontoado de casas”, em resumo: “um lugar abandonado por Deus e pelo
mundo.”219 Enfatizando o isolamento vivenciado naquele local, o nobre registra que um vapor
por ali aportava apenas uma vez por mês, dando aos moradores a ilusão de estrem ligados ao
mundo.220
É importante ressaltar que as percepções desses viajantes sobre Ilhéus, seus habitantes,
costumes locais e arquitetura das moradias, dependiam de um referencial da sociedade europeia,
que na época passava por grandes transformações urbanas e industriais.221 Além disso, em seus
relatos estão presentes constantemente as ideias racialistas, destacando a superioridade dos
brancos europeus “puros”, sempre aptos ao trabalho, e repreendendo o resultado da
miscigenação entre os antigos colonos portugueses, os povos indígenas e os africanos
escravizados, originando “horríveis mulatos, de todos os tipos e misturas sanguíneas”222
herdeiros da indolência.
Na segunda metade do século XIX a cultura do cacau começou a se expandir em Ilhéus,
nas margens do rio Cachoeira, nas fazendas próximas ao rio Almada e no vasto interior coberto
por matas.223 Ocorreram sucessivas migrações de europeus e brasileiros que, vindos do norte
da Bahia ou de outros estados do Nordeste, se estabeleceram nas terras doadas pelo Estado ou
em áreas devolutas, com a intenção de conquistarem espaços nas matas e plantarem cacau.224
Estima-se que em 1850 a Bahia exportou 293 toneladas do cacau produzido em Ilhéus e na

217
SPIX & MARTIUS, Apud SALES, Fernando. Memória... Op. cit., p. 91-92.
218
DENIS, Apud CASTRO, Epaminondas B. Formação Econômica... Op. cit., p. 49.
219
HABSBURGO, Apud AUGEL, Moema P. A Visita de Maximiliano da Áustria a Ilhéus. Salvador, Ba: Centro
de Estudos Baianos - UFBA, 1981. p. 12.
220
Ibidem, p. 13.
221
GUIMARÃES, Lucia M. P. Memórias partilhadas... Op. cit., p. 1064.
222
HABSBURGO, Apud AUGEL, Moema P. A Visita de Maximiliano... Op. cit., p. 13.
223
RIBEIRO, André L. R. Urbanização, poder e... Op. cit., p. 43.
224
Ibidem, p. 43-44.
52

década seguinte houve um incremento de 91%, saindo dos portos de Salvador 570 toneladas da
amêndoa, já em 1880 o volume exportado foi de 1.510 toneladas225, um crescimento que atraiu
a “atenção e a curiosidade da Província”, segundo Castro.226
Borges de Barros destacou a prosperidade pela qual passava a região afirmando que
“nos dias do primeiro e do segundo Império foi extraordinário o seu desenvolvimento devido à
cultura do cacau.”227 Ressalta que “apesar do desenvolvimento, a cidade apresentava um
aspecto antiquado, como as demais do Estado; de ruas estreitas e tortuosas, sem serviço de água,
sem iluminação suficiente.”228 Ainda assim, seu relevante crescimento econômico e
progressivo aumento populacional possibilitou que os “chefes políticos ilheenses pleiteassem
na Assembleia Provincial, no início da década de 1880, a elevação da vila à categoria de
cidade”.229
Só a título de conhecimento, no recenseamento de 1872230 a população total da
Freguesia de São Jorge dos Ilhéus foi calculada em 5.682 pessoas, entre livres e escravizados,
somando 40 transeuntes que por ali estavam. Entre esses 5.682 indivíduos, 165 vinham de
outros estados e 226 eram estrangeiros. Já no ano de 1881 o número de habitantes do município
era aproximadamente de 6.700231, tendo o núcleo urbano de Ilhéus 1.042 almas, incluídos aí 65
indivíduos escravizados.232
No dia sete de junho de 1881 em debate sobre o projeto da elevação da vila à cidade, na
Assembleia Provincial, o deputado Carneiro da Rocha argumentou a respeito da importância
daquele antigo povoado que voltava a florescer e progredir rapidamente, mencionando a
constante migração que ocorria para lá, a rendosa lavoura cacaueira e seu reconhecimento como
6º distrito eleitoral da província da Bahia.233
Finalmente, no dia 28 daquele mesmo mês, foi aprovada a lei que transformou a colonial
vila de Ilhéus em cidade, instalando-se solenemente no dia 14 de agosto. Aquele lugarejo ainda
esperaria mais algumas décadas para se transformar na “Capital do Cacau” e modificar seus

225
Ibidem, p. 43.
226
CASTRO, Epaminondas B. Formação Econômica... Op. cit., p. 52.
227
BARROS, Francisco B. de. Memória... Op. cit., p. 96.
228
Ibidem.
229
RIBEIRO, André L. R. Urbanização, poder e... Op. cit., p. 82.
230
BRASIL/IBGE. Recenseamento do Brazil em 1872 - Bahia. Disponível em:
https://biblioteca.ibge.gov.br/biblioteca-catalogo.html?id=225477&view=detalhes. Acessado em 13 de abril de
2020.
231
CASTRO, Epaminondas B. Formação Econômica... Op. cit., p. 52.
232
CAMPOS, João da S. Crônica da Capitania... Op. cit., p. 404. É necessário saber que a área do município de
Ilhéus sofreu uma redução no ano de 1873, perdendo os distritos de Comandatuba e de Una.
233
CASTRO, Epaminondas B. Formação Econômica... Op. cit., p. 17. Segundo Castro, nesse período a vila
contava com 255 eleitores. Devemos lembrar que durante o Império o voto era censitário.
53

traços coloniais, sendo representada pelos correligionários do Cel. Antônio Pessoa234, até o
início da década de 1910, como uma cidade antiquada, bárbara e insalubre. A partir de então
com a ascensão política dos “pessoísta”, as representações sobre a cidade foram modificadas e
compartilhadas, sendo mais conhecidas as produzidas na década de 1920 e 1930, na imprensa
escrita local, e as das de 1940 e 1950 na ficção amadiana.

De cidade colonial à “Princesa do Sul”: Ilhéus nas narrativas da imprensa escrita local

Desde as últimas décadas do século XIX, os governantes de Ilhéus, seguindo os


exemplos vistos em outras urbes brasileiras, começaram a investir em melhoramentos urbanos
na área central da cidade.235 É possível supor que, inicialmente, eram ações tímidas e
descontínuas visando promover o saneamento desse espaço, privilegiando poucas ruas, com a
provável intenção de beneficiar pessoas ou grupos ligados à intendência municipal. A partir da
ascensão do Cel. Antonio Pessoa236 ao poder executivo do município, em 1912, os projetos de
modificações urbanas foram continuados, sofrendo pausas em determinados períodos devido à
situação financeira, fenômenos de força maior ou grandes conflitos armados em Ilhéus; e,
somente na década de 1920, grandes planejamentos na infraestrutura pública foram sendo
sistematizados e concretizados.237
Antes de tudo, é necessário termos em mente que nessa cidade do interior da Bahia as
políticas de transformações do espaço urbano ocorreram em menor escala, se comparadas a
algumas capitais de estados brasileiros. Do mesmo modo, os melhoramentos públicos
começaram a ser implantados tardiamente, somente em fins dos XIX, em relação a Salvador e
ao Rio de Janeiro238. Todavia, a partir do crescimento das rendas provenientes da lavoura
cacaueira, seus governantes empreenderam pequenas alterações na área central da urbe,
inspirando-se em centros comerciais fora da Bahia – principalmente na capital federal – com
os quais estabeleciam contatos mais frequentes.239

234
RIBEIRO, André L. R. Urbanização, poder e... Op. cit., p. 90.
235
Ibidem, p. 76.
236
A facção política comandada por Antonio Pessoa rivalizava há muito tempo com o outro grupo que dirigia a
política local desde o império, sob a liderança da tradicional família Adami de Sá. Nesse sentido, a conquista do
poder por Pessoa significaria um rompimento com a política, a memória e a história do passado da cidade.
Significaria (no futuro do pretérito do indicativo), pois, em realidade, o que ocorreu foi uma continuidade política
de ações, mandos e desmandos. Ver: CARVALHO, Philipe Murillo S. de. Trabalhadores... Op. cit., p. 42-43;
RIBEIRO, André L. R. Urbanização, poder e... Op. cit., p. 86.
237
Ibidem.
238
O Rio de Janeiro, então capital do Brasil começou seu processo de transformações urbanas, de maneira tímida,
já em 1808, com a chegada da família real no Brasil RIBEIRO, André L. R. Urbanização, poder e... Op. cit., p.
78.
239
Ibidem, p. 79.
54

Desse modo, a cidade foi enquadrando-se timidamente em uma “lógica higienista” de


“renovação urbana a partir dos seus princípios de melhoramento e embelezamento e,
principalmente, a [partir da] criação de uma imagem de civilidade.”240 Nas palavras de Ribeiro:

O primeiro administrador modernizante foi Domingos Adami de Sá (1904-1908), que


iniciou as obras do antigo porto, a rede de esgotos, calçamento de ruas e estradas para
o interior do município. A administração Mangabeira-Lavigne de Lemos (1908-1912)
deu seguimento a essa política: instalou redes de água e esgoto; calçou as principais
ruas com paralelepípedos; levou a termo, por meio de desapropriações, vasta série de
demolições; inaugurou o primeiro trecho do cais do porto; e lançou as primeiras
pontes de alvenaria nas estradas.241

Ao estudarem as transformações urbanas ocorridas em Salvador, Ana Fernandes e


Marco Aurélio Gomes afirmam que “Apesar de a gestão de J. J. Seabra (1912-1916) concentrar
um surto de modernizações importantes na cidade, outros também podem ser detectados.”242 E
continuam apontando que:

A cidade moderna, idealizada enquanto cidade regular, higiênica, funcional, fluida,


homogênea, equilibrada, sincrônica e gerida cientificamente, revela-se,
concretamente, como resultado de um longo período de gestação e de mudanças que
se acumulam, em resposta a problemas concretos que se colocam a uma sociedade
viva e em transformação necessária. 243

Ambos argumentam que o processo de modernização da capital baiana teve início em


1820, com o governo do 8º Conde dos Arcos (1810-1818), quando o mesmo, motivado pela
abertura dos portos que acarretou uma certa liberdade comercial e maiores contatos com os
países europeus, promoveu “obas de melhoramentos no porto e no bairro comercial”, bem
como buscou o “aformoseamento da cidade através de posturas que busca[ram] regularizar a
construção de casas e sua estabilidade”, entre outros feitos.244
Porém, essas mudanças, que tinham o objetivo de gerar uma urbe moderna e como
consequência a cidade civilizada, foram descontinuadas, sendo retomadas em dois “momentos
de modernizações” posteriores: entre 1850 e 1890, com o a criação de uma junta de Higiene
Pública, reformulação do Código de Posturas e o oferecimento de serviços públicos de
iluminação e distribuição de água, e entre os anos de 1900 e 1920, com várias obras de expansão

240
Ibidem.
241
Ibidem, p. 83-84.
242
FERNANDES, Ana; GOMES, Marco Aurélio A. de F.; Idealizações Urbanas e a Construção da Salvador
Moderna: 1850-1920. In: Cidade & História. Org.: FERNANDES, Ana; GOMES, Marco Aurélio A. de F.;
Salvador: UFBA, 1992. p. 53-65.
243
Ibidem.
244
Ibidem, p. 55-56.
55

da cidade e aprimoramento dos serviços de transportes visando a melhor circulação na


capital.245
A partir da leitura de um documento da Câmara de vereadores da Vila de São Jorge, em
que se discutia a construção de uma nova fonte de água, a “estagnação de pântanos nos terrenos
da vila” e “a organização e novas posturas”, Ribeiro aponta as primeiras décadas do século XIX
como o início das intervenções do poder público na infraestrutura de Ilhéus.246 Porém, ao que
parece, essas obras não tinham o propósito, e nem carregavam o sentido, de promover a ideia
de modernidade e civilidade tão presente nas grandes metrópoles mundiais no mesmo período.
Pelo contrário, como se observa no documento, não há em nenhum momento a menção aos
termos moderno, modernidade, civilidade ou saneamento e higienização.247 Dessa forma,
podemos considerar que as ações tomadas pelos vereadores eram de intervenções habituais e
características dos pequenos povoados interioranos, servindo para amenizar as dificuldades
diárias dos seus habitantes.
Em Ilhéus percebemos que esses “momentos de modernizações”, como os descritos por
Fernandes e Gomes no caso de Salvador, ocorreram em intervalos menores, mais precisamente
entre 1887, quando o Delegado de higiene “reclama[va] urgência [no] saneamento [da] cidade,
conserto [de] fontes, [e] falta d’água”248, e a década de 1930, período em que foram aprovados
e postos em práticas alguns pontos dos dois planos diretores desenvolvidos para o município.249
Entretanto, apesar de Ribeiro afirmar que a cidade começou a mudar seu “traçado colonial” no
fim do século XIX, quando “começou a ganhar cada vez mais construções de tipo moderno”
devido ao rápido aumento da riqueza dos Coronéis250, um conferencista que passou por Ilhéus
na primeira década do século XX, e para lá retornou em 1929, relatou que no período em que
conheceu a cidade o seu espaço urbano tinha uma aparência antiquada, havia ainda muitas ruas
tortuosas, sem calçamento e prédios coloniais. Em suas palavras:

Até o aspecto da cidade, como o seu casario pesado e inestético, irregularíssimo e


tristonho, assentado e mantido no mesmo plano de edificação e com as suas linhas de

245
Ibidem, p. 55-58.
246
RIBEIRO, André L. R. Urbanização, poder e... Op. cit., p. 76.
247
BARROS, F. B. de. Ilhéus, documentos que interessam à sua história. Salvador, Imprensa Oficial do Estado,
1933. p. 8-9.
248
CAMPOS, João da Silva. Crônica da Capitania... Op. cit., p. 413.
249
Em sua crônica, João da Silva Campos relata a sequência desses melhoramentos na cidade ocorridos ao longo
dos anos, além de outros eventos que considera de maior relevância para a história e memória de Ilhéus.
Demarcamos aqui a década de 1930 como um dos eixos do “período de modernização”, porém, nas décadas
seguintes Ilhéus passou por outros processos importantes de construções e modificações urbanas. Ver: LAPA,
Marilene Oliveira. Produção da cidade, planejamento e meio ambiente: o caso de Ilhéus. Dissertação (Mestrado
em Desenvolvimento Regional e Meio Ambiente) – Universidade Estadual de Santa Cruz, Ilhéus, 2003.
250
RIBEIRO, André L. R. Urbanização, poder e... Op. cit., p. 80.
56

arquitetura bisonha e inexpressiva, dos seus primeiros povoadores, ao tempo do


Brasil-colonial, como que nos dava uma ideia da situação moral, de tristeza e
intranquilidade da sua gente (...).251

Em resumo, “A cidade não dava boa impressão, ruas sem alinhamento, casas em
desordem, montureiras, pântanos e cloacas na via pública”.252
É possível afirmar também que, embora a ocorrência gradual de melhoramentos urbanos
tenha modificado o aspecto central da cidade, o chamado “processo de modernização” em
Ilhéus privilegiou um padrão de renovação estética na arquitetura e nas formas urbanas.253
Ocorreu também uma remodelação do espaço para adequá-lo aos seus novos usos e funções,
contando com a realização de desapropriações para abertura de novas ruas e alinhamento de
outras. Apesar disso, a sua antiga morfologia, ou o “traçado colonial” da cidade, não
desapareceu por completo, tendo o centro da zona urbana se alicerçado “nos antigos
arruamentos coloniais.”254
Mesmo com a execução de melhoramentos urbanos, o governo local estimulava mais as
políticas de embelezamento com o objetivo de “maquiar” o centro da cidade, pois as “marcas”
coloniais continuavam presentes no espaço central. É proveitoso também afirmar que as formas
da cidade foram atualizadas, mas seus usos não sofreram grandes alterações de imediato,
levando a uma série de ressignificações desses espaços públicos.255
De acordo com Rinaldo Leite, em Salvador, durante o governo de J. J. Seabra, não houve
realmente um processo de modernização tal qual os das grandes metrópoles mundiais e, no caso
do Brasil, como os das cidades do Rio de Janeiro e de São Paulo. Em vez disso, na capital
baiana ocorreu um “processo civilizatório”, com o intuito de educar a população soteropolitana
nas normas de civilidade e promover o saneamento físico e moral da/na cidade e em seus
habitantes.256 O historiador defende que o processo de urbanização das cidades brasileiras tinha
como foco “um projeto higienizador urgente, o qual se procurou efetivar seguindo três

251
CARDOSO, J. Apud. CAMPOS, João da Silva. Crônica da Capitania... Op. cit., p. 442.
252
RAMOS, Eduardo. Apud. CAMPOS, João da Silva. Crônica da Capitania... Op. cit., p. 462. O autor do relato
o escreveu no ano de 1905, durante uma viagem que realizou no sul da Bahia, quando ficou hospedado em Ilhéus.
253
De acordo com Ribeiro, Ilhéus seguiu o modelo de urbanização parisiense, o qual “foi executado em torno de
dois eixos: a remodelação do espaço, pondo em prática um projeto urbanístico e a renovação arquitetônica.” Ver:
RIBEIRO, André L. R. Urbanização, poder e... Op. cit., p. 77.
254
DIAS, Marcelo; OLIVREIRA, Ruana; ANDRADE, Iuri. Morfologia Urbana... Op. cit., p. 153.
255
Para saber mais sobre as relações entre as formas e os usos da cidade, ver: LEPETIT, Bernard. É possível uma
hermenêutica urbana? In: Por Uma Nova História Urbana. LEPETIT, Bernard; seleção de textos, revisão crítica
e apresentação de Heliana Angotti Salgueiro. Tradução de Cely Arena. São Paulo: Editora da EDUSP, 2001. p.
137-153.
256
Ver: LEITE, Rinaldo C. N. E a Bahia Civiliza-se... Ideias de Civilização e Cenas de Anti-civilidade em um
Contexto de Modernização Urbana: Salvador, 1912-1916. Dissertação (Mestrado em História) – Universidade
Federal da Bahia, Salvador, 1996.
57

orientações”: promoção de políticas sanitárias de combate e prevenção contra moléstias,


intervenções nas estruturas físicas das cidades e “a implementação de uma campanha de
controle e modificações dos hábitos, costumes e modos de comportamento dos habitantes das
cidades, especialmente as camadas populares”.257
Leite ainda afirma que “o vínculo inexorável entre higienização e urbanização (...)
prosseguiu estabelecendo vínculos sucessivos, contíguos, múltiplos e recíprocos entre muitos
outros fenômenos”258 como a modernização, normatização, moralização dos costumes, controle
social e a regulamentação dos usos do espaço. Segundo ele, a expressão “civilizar” reuniu todos
os sentidos dos demais termos e “resumia todo este complexo de relações” nas publicações dos
jornais que circulavam em Salvador.259
Partindo desta análise, levantamos a hipótese de que em Ilhéus não houve em realidade
um processo de modernização aos moldes das grandes metrópoles, mas uma ação política que
também teve como objetivo civilizar o meio urbano e os habitantes da cidade. Embora
compreendamos que, segundo Marshall Berman, “ser moderno é encontrar-se em um ambiente
que promete aventura, poder, alegria, crescimento, autotransformação e transformação das
coisas em redor — mas ao mesmo tempo ameaça destruir tudo o que temos, tudo o que sabemos,
tudo o que somos”260; e que Ilhéus, no início do século XX, estava passado por um momento
parecido de criação e destruição, concordamos com Rinaldo Leite que, na futura “Princesa do
Sul” assim como em Salvador:

As reformas urbanas modernizadoras deveriam cumprir um objetivo pedagógico


sobre os habitantes da cidade, de modo que a exposição pública da nova civilidade
por meio dos melhoramentos materiais pudesse ser internalizada pelas pessoas,
influenciando-as. Os habitantes citadinos passariam então a se orientar pelos bons
exemplos que elas (as reformas) representavam, abandonando então certos hábitos
“ruins” que serviam para contradizer ou negar a civilização.261

Não podemos negar a possibilidade de que a consciência moderna/modernista estivesse


presente em uma parcela dos habitantes de Ilhéus durante o processo de reformas urbanas
“modernizadoras” pelo qual passava a cidade. É possível percebermos esse sentimento
“modernizante” em alguns gestores municipais e em redatores da imprensa escrita local por

257
Ibidem, p. 11.
258
Ibidem.
259
Ibidem.
260
BERMAN, Marshall. Tudo Que é Sólido Desmancha no Ar – A aventura da modernidade. Tradução de Carlos
Felipe Moisés e Ana Maria L. Ioriatti. São Paulo: Companhia das Letras, 1986. p. 15.
261
LEITE, Rinaldo C. N. E a Bahia Civiliza-se... Op. cit., p. 15.
58

meio de artigos publicados no jornal Correio de Ilhéus, na década de 1920, em que


consideravam modernas a cidade e as ações da intendência:

[Ilhéus é] capaz de lhe oferecer todo conforto que seja possível se encontrar em uma
cidade progressista e adiantada. Pequenina embora, a cidade tem todos os requisitos
da “urbs” moderna: tem luz elétrica, tem serviço de esgotos e de abastecimento
d’água. Ilhéus possui a felicidade de contar sempre [com] administradores que olham
com simpatia desvelada o bom nome da terra e compreendem que ela deve andar na
vanguarda de todos os outros núcleos do Estado.262

Porém, ao que parece, essa modernidade pode ser caracterizada mais como um discurso
ou uma representação das transformações arquitetônicas e beneficiamentos que o centro da
cidade recebeu, do que como a concretização de uma mudança ampla e real na morfologia
urbana e nos padrões da vida social em Ilhéus. Por outro lado, as ideias de progresso e
civilidade, amplamente destacada nas narrativas jornalísticas, foram largamente empregadas
para guiar as ações da intendência em todo o espaço urbano, incluindo-se aí os arrabaldes e as
zonas suburbanas.263 Vemos isso na publicação de 26 de agosto de 1924, do Correio de Ilhéus,
felicitando a abertura de um edital de concorrência pública para o calçamento de “três
importantes vias públicas, situadas nos pontos mais centrais e mais transitados da cidade”:264

(...) A rua 28 de junho, que, segundo uma expressão corrente, é o “coração da cidade”,
comunica as duas belas e importantes praças Dr. Seabra, e Cons. Luiz Vianna e é,
ademais, caminho forçado para os nossos grandes hotéis. Por ali transitam, portanto,
de preferência, os forasteiros, a quem certo desagradaria, como a nós mesmos muito
desagrada, observar aquele deplorável estado de coisas, numa cidade que justamente
se gaba das suas atuais condições estéticas e higiênicas.
Calçadas convenientemente as aludidas ruas, de alinhamento, aliás, tão irregular,
ganharão elas um aspecto incomparavelmente mais lisonjeiros para nossos foros de
progresso e civilização.265

De acordo com Le Goff, “É a experiência do progresso que leva a acreditar nele, a sua
estagnação é, em geral, seguida de uma crise de tal ideia. Acontecerá, portanto, que a aceleração
do progresso material fará nascer, pelo contrário, um o do progresso.”266 Ou seja, aplicando ao
caso de Ilhéus, o crescimento econômico da cidade, associado às frequentes obras de
melhoramentos, símbolos importantes para uma região com poucos grandes centros comerciais,
ocasionou o surgimento da ideia de progresso no imaginário dos seus habitantes.

262
ILHÉOS, -- a “Princeza do Sul da Bahia”. Correio de Ilhéus, Ilhéus, p. 1, ano V, nº 666, 29 dez. 1925.
263
Como já dito, veremos mais sobre os arrabaldes e as zonas suburbanas no terceiro capítulo.
264
INTERESSES da cidade. Correio de Ilhéus, Ilhéus, p. 2, ano IV, nº 488, 26 ago. 1924.
265
Ibidem. Grifos nossos.
266
LE GOFF, Jacques. “Progresso/Reação”. In.: LE GOFF, Jacques. História e Memória. Campinas: Unicamp,
1996. p. 232-276.
59

Simultaneamente, a noção de civilização é associada também a de progresso, e, para Le Goff,


“Esta ideia é antes de mais nada de natureza econômica e social.”267
Segundo Ribeiro, “a civilidade e a crença no progresso” em Ilhéus estavam “presentes
nas intervenções e modelos construídos”, sendo eles “enfatizados pelos jornais, cronistas,
memorialistas e outros literatos” por serem “indicadores de progresso e modernidade”. 268 Do
mesmo modo, a esses valores eram associados os de moralidade, estética e higiene. Podemos
ver a exaltação desses dois últimos no seguinte recorte:

Damos abaixo, gostosamente, a integra do oficio que o Ilustre Superintendente da


Estrada de Ferro dirigiu ao Exmo. Snr. Dr. Mario Pessoa, intendente deste município,
a propósito das obras de saneamento e estética efetuadas na praça Visconde de Cayrú,
nesta cidade.
Realmente, a intendência fez ali notável melhoramento, pois embelezou e saneou uma
das zonas mais movimentadas de Ilhéus e aumentou o número das nossas praças,
concorrendo, desse jeito, para o bem estar da população.269

Posteriormente, quando da inauguração dessa mesma praça, esses valores são


ressaltados novamente:

A obra inaugurada representa um duplo acontecimento para nossa cidade, por isso que
ela realiza o saneamento daquela frequentada zona, como facilita o trafego de carros,
automóveis e carroças, dantes impossibilitados pelos gradis inestéticos que afeiavam
(sic.) aquele lugar. Obra inadiável, portanto, a fim de se extinguirem os focos de
miasmas e mosquitos que ali se entretinham com prejuízo para a saúde pública.
Tudo ali, agora, é bonitinho, bem disposto, artístico, higiênico e elegante. 270

A título de informação, ou curiosidade, o local onde foi construído a praça Cayrú era
antes uma área pantanosa, de manguezal, aterrada apenas na década de 1910, quando o
empresário Bento Berilo de Oliveira adquiriu uma concessão pública para a construção da
ferrovia e, posteriormente, do primeiro trecho do cais do porto.271 Deve ser por esse motivo que
tal sítio ainda era considerado um “foco de miasmas”. Soma-se isso à sua aproximação com
ruas ainda sem saneamento básico ou qualquer outro melhoramento público, onde moravam
trabalhadores urbanos e outros sujeitos subalternizados da cidade.

267
Ibidem, p. 257.
268
RIBEIRO, André L. R. Urbanização, poder e... Op. cit., p. 89.
269
OS surtos de uma boa política administrativa. Correio de Ilhéus, Ilhéus, p. 1, ano V, nº 601, 30 maio, 1925.
Grifo nosso.
270
A cidade conquistou, ante-hontem, mais um lindo logradouro público. Correio de Ilhéus, Ilhéus, p. 1, ano V,
nº 607, 13 jun. 1925.
271
BARROS, Francisco B. de. Memória... Op. cit. p. 99-107; RIBEIRO, André L. R. Urbanização, poder e...
Op. cit.; CAMPOS, João da Silva. Crônica da Capitania... Op. cit.
60

Ainda a partir desse trecho é possível identificar um elemento muito presente em Ilhéus,
alvo de várias campanhas negativas nos periódicos e intensa fiscalização municipal: as
carroças.272 De acordo com Philipe Carvalho, o poder público municipal acreditava que a
presença das carroças no centro da cidade testemunhava contra os foros de progresso e
modernidade que se pensava para a urbe.273
As narrativas publicadas na imprensa escrita local contribuíram na formulação de
representações sociais sobre a cidade, acabando por criar uma realidade extratextual que,
ultrapassando o papel, constituía uma existência material garantida pelo imaginário. Para Serge
Moscovici “O que as sociedades pensam de seus modos de vida, os sentidos que conferem a
suas instituições e as imagens que partilham, constituem uma parte essencial de sua realidade e
não simplesmente um reflexo seu.”274 Entendemos com esse autor que as representações sociais
são “construções intelectuais de pensamento” relacionadas “às emoções coletivas que as
acompanham, ou que elas despertam”275 e sua criação depende de um processo de
familiarização que concentra a ancoragem e a objetivação das ideias, percepções, emoções,
sentimentos, objetos e pessoas, sendo a comunicação o elemento que perpassa todo o
procedimento.276
Em resumo, a “finalidade de todas as representações é tomar familiar algo não-familiar,
ou a própria não-familiaridade”277 e a comunicação é essencial nesse processo, pois é a partir
dela que vários indivíduos compartilham suas percepções sobre o mundo. Dessa forma, a
construção das representações necessariamente retorna à memória coletiva, pois é através dela
que tentamos estabelecer referências para compreender o que nos é estranho, ou seja, partimos
do que conhecemos como habitual com o intuito de assimilar o incomum, o inabitual e assim
significá-lo e representá-lo, tornando concreto o que antes era abstrato.
Percebemos esse processo de familiarização através dos jornais que circulavam em
Ilhéus no período estudado, quando os redatores comunicavam ao público leitor a importância
das obras públicas realizadas no centro da cidade, comparando-as com as reformas urbanas de
outras cidades brasileiras. Notamos isso quando O Correio de Ilhéus fez um elogio aos projetos
das novas construções na recém-inaugurada Avenida Alvares Cabral (atual Soares Lopes):

272
Discutiremos mais sobre as ruas onde moravam os sujeitos subalternizados e a presença das carroças em Ilhéus
no capítulo seguinte, quando entrarmos no tema da cidade “real”, que se contrapõe a cidade que se queria ou se
imaginava.
273
CARVALHO, Philipe Murillo S. de. Trabalhadores... Op. cit., p. 48-49.
274
MOSCOVICI, Serge. Representações Sociais... Op. cit., p. 172.
275
Ibidem, p. 182.
276
Ibidem, p. 54.
277
Ibidem.
61

Os projetos que hoje mostramos aos nossos leitores, bem significam o que há de ser
aquela avenida, construída e ornada em estilo arquitetônico digno de um povo
progressista e distinto como o nosso, em nada deixando a desejar as existentes nos
meios adiantados, podendo, até, sem laivos de megalomania, ser comparada à Beira
Mar, do Rio de Janeiro, com a diferença mesológica apenas. 278

Heloísa Cruz e Maria do Rosário Peixoto chamam atenção ao trabalho de pesquisa com
fontes da imprensa em geral, e especificamente da hemerografia, alertando aos cuidados que
devemos tomar no trato com as mesmas, pois “o passado não nos lega testemunhos neutros e
objetivos e [sabemos] que todo documento é suporte de prática social, e por isso, fala de um
lugar social e de um determinado tempo, sendo articulado pela/na intencionalidade histórica
que o constitui”279. Desse modo, “não adianta simplesmente apontar que a imprensa e as mídias
‘têm uma opinião’, mas que em sua atuação delimitam espaços, demarcam temas, mobilizam
opiniões, constituem adesões e consensos”280. Por isso a imprensa é pensada como o espaço de
construção de uma memória coletiva e afirmação da mesma, através das notícias e mensagens
que transmite ao seu público, formando opiniões, divulgando ideias e disseminando valores.
Segundo Gisela Taschner, no início do século XX, os jornais da Folha da Noite ainda
não eram regidos pela lógica do lucro e da mercadoria, pois o ofício dos jornalistas era tido
como uma “missão” e sua principal característica nesse período era a sua vinculação à luta
política. Em suas palavras: “eram jornais de causa, que defendiam determinada linha editorial
e tipo de conteúdo”281, tendo na elaboração da sua mensagem, o apoio a algum grupo ao qual o
jornalista representava.282 A autora também destaca que nos jornais ainda não existia uma
estruturação ordenada em sua diagramação, organização e disposição das mensagens, separação
entre notícias mais importantes e outras de menor grau, tamanho e ordenação das seções, entre
outras características.283 Essas mesmas particularidades são observadas no Correio de Ilhéus e
no O Commercio, que apresentavam uma certa desordem em relação em seu padrão de
diagramação, disposições das imagens, espaçamento da publicidade, além da composição de
sua mensagem essencialmente política e econômica com a defesa da vida pública pautada nos
moldes do conservadorismo burguês.

278
AS bellas conquistas de Ilhéos. Correio de Ilhéus, Ilhéus, p. 1, ano VI, nº 775, 22 Jul. 1926.
279
CRUZ, Heloisa de F.; PEIXOTO, Maria do R. da C. Na Oficina do Historiador... Op. cit., p. 258.
280
Ibidem.
281
TASCHNER, Gisela. Folhas ao Vento, análise de um conglomerado jornalístico no Brasil. Rio de Janeiro: Paz
e Terra, 1992. p. 30.
282
Ibidem.
283
Ibidem, p. 47.
62

Na imprensa escrita de Ilhéus observamos que ocorriam conflitos de interesse entre


esses dois periódicos, principalmente quando se referiam ao saneamento da cidade. Enquanto
o Correio de Ilhéus destacava a urbe como higiênica e saneada, O Commercio reclamava que
o governo municipal

Deixa que se liquide, por mãos criminosas, a rede de esgotos, furada em vários pontos,
entupida em muitos outros, e, no jornal da intendência, manda que se lhe entoe
hosanas como o salvador dos créditos do município, como o primus inter pares dos
administradores que Ilhéus tem tido.284

Igualmente, na visão dos redatores desse jornal, a Cidade de Ilhéus tinha amplas
potencialidades econômicas, mas sofria com uma administração incompetente e irresponsável,
pois, a urbe se encontrava em uma situação de violência e arbitrariedades constantes
promovidas pelos inspetores e guardas municipais. Além disso, afirmava-se que os munícipes
sofriam com os terríveis impostos sem o devido retorno na qualidade dos serviços públicos,
como podemos ver na publicação do dia 24 de março de 1922 intitulada “O descaso dos poderes
públicos: um exemplo frisante”285:

O fim exclusivo, único dos poderes públicos em nossa zona, tem sido, até então,
explorar a fortuna dos munícipes, sobrecarrega-los de impostos, taxas, quotas, tarifas,
obrigações, levando do povo, anualmente, centenas e milhares de contos e
distribuindo este dinheiro fabuloso em orgias administrativas e politicagens, não nos
trazendo os melhoramentos que mui razoavelmente fazemos jus pelos nossos serviços,
e sobretudo pela nossa volumosa contribuição monetária. Ao contrário de
beneficiamento, recebemos os aumentos dos dízimos onerando sempre a mais a
produção agrícola, taxando num crescendo as mercadorias de importação para o
consumo interno.286

Todavia, este mesmo órgão de imprensa também publicou relatos positivos sobre a
cidade, escritos por viajantes, como podemos verificar:

Mais adiante e as ruas dão-me a excelente impressão de que vou de estar numa
capital!...
Passeio a cidade...
Ilhéus é linda!...
Ilhéus, é essa pequena maravilha, essa pequena Athenas sul baiana pingenteada (sic.)
de jardins bifurcados nas suas praças losangadas (sic.) e floridas! (...)
(...) Ilhéus é linda, simplesmente, e nada na cadência elegante das suas marés, nos
traçados pequenos e direitos das suas avenidas largas, na profusão clara da sua
iluminação, na policromia variada dos seus canteiros floridos e ogivos (sic.), no
cavalheirismo clássico dos seus cidadãos, na graça e beleza das suas mulheres, enfim,
em tudo quanto essa formosa cidade bizantina possui, como se fora uma pérola batida

284
O deplorabilíssimo estado dos esgotos. O Commercio, Ilhéus, p. 2, ano V, n. 1134, 24 mar. 1922.
285
O descaso dos poderes públicos – um exemplo frisante. O Commercio, Ibidem.
286
Ibidem.
63

pelo oceano azul e por um sol de ouro, cuja beleza maravilhosa a minha rude pena,
jamais, nunca poderia escrever...287

No Correio de Ilhéus, a cidade passou a ser chamada de “Princesa” e “Rainha do Sul”,


ou “Capital do Cacau”, destacando sempre os melhoramentos públicos e a política de
embelezamento que estava sendo promovida na área central da urbe, além da moral cristã de
seus habitantes.

E tu, Ilhéus católica, recebe hoje na coroação da Virgem, a tua coroa de Rainha do
Sul!
Fizeram-te rainha os surtos maravilhosos do teu progredimento material; fizeram-te
rainha a feracidade e opulência de tua gleba privilegiada; fizeram-te rainha a beleza e
o encanto panorâmico de teu aspecto geográfico; fizeram-te rainha os dotes
excepcionais em que foi tão pródiga a natureza, mas, rainha, guardaram-te a coroa
para hoje.
Guardaram-te a coroa para hoje, Ilhéus, porque só hoje, escalonando as culminâncias
de uma conquista tão altaneira e soberba como a Conquista, em que alçaste o
Santuário da Virgem, como, um padrão profético de vitória; só hoje, vibrando no
bronze de tua história, a hora suprema das reivindicações morais e religiosas de tua
sociedade (...)288

Esta representação da cidade bela, próspera e civilizada era reproduzida e reforçada na


imprensa escrita de outros estados. Na Capital Federal (Rio de Janeiro), o periódico O Jornal
publicou uma matéria sobre Ilhéus intitulada “Ilhéus, – A “Princesa do Sul” da Bahia: Sob a
administração laboriosa e honesta do mais jovem de seus intendentes”289, que foi reproduzida
parcialmente pelo Correio de Ilhéus. Nela, é dito que

Ilhéus, na Bahia, é chamada a “Princesa do Sul”. Seja pela topografia, muito pitoresca
e muito sugestiva; seja pelo cuidado que lhe dispensam os seus administradores, a
antiga donataria de Jorge de Gouvea (sic.) faz jus ao título.
Não há quem indo a Ilhéus não simpatize logo com a terra, tão acolhedora ela se
mostra, e não ame o seu povo, tão acessível e sociável ele se denuncia ao primeiro
encontro, ao primeiro gesto, ao primeiro contato.290

Na sequência é elogiada a administração do então intendente Mario Pessoa e os


“importantes melhoramentos e reformas urbanas” que iam sendo implantados na cidade, como
calçamentos em ruas principais, construções e reformas de escolas, melhoramentos de praças e
vias de acesso e abertura de grandes avenidas (2 de julho e Alvares Cabral).

287
ILHÉOS – impressões. O Commercio, Ilhéus, p. 1, ano VIII, nº 1503, 17 out. 1924.
288
MEZ Mariano: encerramento das festas. Correio de Ilhéus, Ilhéus, p. 1, ano III, nº 301, 02 jun. 1923.
289
ILHÉUS, – A “Princesa do Sul” da Bahia: Sob a administração laboriosa e honesta do mais jovem de seus
intendentes. O jornal, Rio de Janeiro, p. 7, nº 2094, 15 out. 1925. Disponível em:
http://memoria.bn.br/docreader/DocReader.aspx?bib=110523_02&pagfis=22854. Acessado em 30 de jun. de
2018. Reprodução não autorizada.
290
Ibidem.
64

As ações fiscalizadoras da intendência e as obras públicas sempre receberam destaque


nas páginas do Correio de Ilhéus, além das construções de prédios privados que seguiam os
padrões arquitetônicos estabelecidos pelo Código de Posturas. Em 1926 foi publicada uma
notícia sobre as recentes construções da Av. Alvares Cabral (atual Av. Soares Lopes) que tomou
toda a primeira página do periódico; no texto elogiava-se a construção da Avenida, que segundo
a matéria “será a mais linda representação da beleza artística e material considerada a sublime
beleza natural de Ilhéus, ficando assim como deslumbrante aréola da Rainha do Sul”291,
atribuindo-lhe excessivos adjetivos e ideais civilizadores. Em seguida, foi apresentado os
desenhos das novas construções que se encontravam “em franco trabalho (...) naquela Avenida,
em observância aos projetos” e também se destacou que “os prédios cujos projetos foram
aprovados, serão os mais elegantes de arquitetura distinta e moderna (...)”292.
Ademais, os proprietários dos prédios foram agraciados com elogios e outros benefícios,
como fica claro no trecho em seguida:

Assim, pois, é bem que louvemos a boa vontade e o gosto daqueles que, primeiro,
concorreram a colaborar na grande obra do atual governo, cooperando assim, pela
perfectibilidade daquele formoso trecho da nossa já elegante cidade.
D. Amélia Sá, Cel. Justino Andrade, Alvaro Vieira, Pedro Simas, Antonio Bras do
Bomfim e Francisco Moreno, eis os gloriosos nomes que hão de ficar perpetuados, na
memória de Ilhéus, como iniciadores da construção predial na futuramente elegante
Avenida Pedro Alvares Cabral, fazendo jus, portanto, a gratidão da alma inteira desta
terra, como colaboradores da obra estupenda de sua grandeza. (...)
Além de que, não é demais que acentuemos, a lei municipal n. 271, outorga aqueles
que construírem prédios naquele trecho, a isenção de impostos por dez anos, ou então
aplica o imposto de duzentos mil reis por metro linear de terreno baldio, cobrado
anualmente, o qual, diga-se de passagem, está sendo já devidamente cobrado.293

Na visão dos redatores e do poder público municipal, aquelas pessoas que construíssem
prédios nos trechos da nova Avenida estariam prestando um grande serviço à cidade e ficariam
“perpetuados na memória de Ilhéus”. Contudo, o maior de todos os privilégios concedidos seria
a isenção dos impostos sobre as construções que atendessem aos requisitos da municipalidade
e seguissem estritamente os parâmetros estabelecidos no Capítulo II do Código de Posturas do
Município de Ilhéus, que ia desde a formalidade da licença, até a maneira de se canalizar a água
e esgoto das residências.294 O artigo 199º das posturas municipais ainda estabelecia a proibição
de construções ou reconstruções de “prédios de um só pavimento, no perímetro central, salvo
as ruas Tiradentes, Visconde de Ouro Preto, Cel. Bento Berillo, D. Pedro II e Dr. Manoel

291
AS bellas conquistas de Ilhéos. Correio de Ilhéus, Op. Cit., p. 1.
292
Ibidem.
293
Ibidem. Grifo nosso.
294
ESTADO DA BAHIA. Código de Posturas do Município de Ilhéus. Município de Ilhéus, 1925. p. 16-39.
65

Vitorino, nas quais será facultada a construção ou reconstrução de sobrados (...)” e no art. 200º
fica claro que “as reconstruções em que se der o acréscimo de um ou mais pavimentos (...)
gozarão da isenção do imposto de décima, por espaço de 5 anos, se houver sido rigorosamente
observado o plano aprovado pela intendência”295.
Aqui percebemos a elitização do espaço central da cidade, pois aqueles que podiam
construir ou mesmo ter um terreno baldio nesse lugar eram pessoas que possuíam capital
suficiente. Concluímos isso com base nas especificações que deveriam ser seguidas para a
elevação de um prédio – principalmente os sobrados com dois ou mais pavimentos –, uma vez
que essas construções tinham um valor elevado para ser executada por pessoas que não
pertenciam à burguesia cacaueira junto dos coronéis ou trabalhadores liberais, prestigiados
social e profissionalmente, como médicos e advogados. Além do mais, o imposto para manter
um terreno baldio nesse mesmo espaço era extremamente elevado e de certo modo isso
contribuía para o afastamento da população pobre do centro da cidade, já que não podiam pagar
pelo imposto nem construir palacetes. Com tudo isso, as construções das “belas obras que
contribuiriam para o embelezamento e o progresso moral e material da cidade”296 eram
“incentivadas” pela intendência.
Finalmente, para o periódico, Ilhéus já podia ser considerado o “primeiro município do
Estado da Bahia”, contudo, não se limitava apenas a isso, sendo uma das cidades que “mais
pesa na balança econômico-financeira” da União.297 Portanto, verificamos o desejo de elevar a
urbe à categoria de principal centro econômico não só da Bahia, mas também do Brasil,
comparando-a não mais com Salvador – preferindo até mesmo distanciar-se da capital baiana
– e sim com o Rio de Janeiro, símbolo do progresso e modernidade nacional naquele momento,
criando-se assim “uma identidade diferenciada do próprio Estado”.298
Procurou-se criar uma imagem de Ilhéus que a afastasse de seu passado colonial, das
suas antigas formas e das velhas práticas de seus habitantes.299 Além disso, as representações
do urbano formuladas pelos jornais contribuíram com as mudanças de práticas sociais nesse
espaço em constante transformações. Podemos ver em publicações dos jornais ou nas crônicas
e memórias escritas a respeito de Ilhéus que as “boas famílias” passaram a frequentar clubes,

295
Ibidem, p. 40. Grifo nosso.
296
AS bellas conquistas de Ilhéos. Correio de Ilhéus, Op. Cit., p. 1.
297
Ibidem.
298
FREITAS, Antônio F. G. de; PARAÍSO, Maria H. B. Caminhos ao Encontro do Mundo... Op. cit., p. 150-
152.
299
RIBEIRO, André L. R. Urbanização, poder e... Op. cit., p. 89.
66

conferências literárias, cafés, cinemas; incentivou-se a prática de desportos “civilizados”, com


o intuito de promover a cultura física e a evolução moral dos indivíduos.
João da Silva Campos, cronista contratado na década de 1930 para escrever a história
de Ilhéus desde a sua fundação, descreve esse momento da seguinte forma: “Era a agitação
incessante no comércio, nos trapiches, na gare, nos bares, e essa agitação o dia inteiro, de sol a
sol, era que se repetia à noite nos cinemas, nos cafés, nos rumores alegres que vinham dos
clubes. Uma cidade em plena vida de trabalho, de progresso, de fartura.”300 Contudo, a cidade
ainda preservava “em sua forma e traçado os vestígios de outras épocas”301, bem como velhos
hábitos ainda eram visíveis com certa frequência.302

As visões imaginárias de Ilhéus na ficção de Jorge Amado

O romancista Jorge Amado, em seus romances da saga do cacau, também escreveu sobre
o “processo de modernização” pelo qual passava a cidade na década de 1920. Amado, que
nasceu em Ferradas (atualmente distrito de Itabuna) e cresceu em Ilhéus, vivenciou uma parte
das modificações e melhoramentos urbanos implementados na urbe no período citado, bem
como, provavelmente, teve contato com as narrativas que circulavam na imprensa escrita local
a respeito desse processo. A partir de suas vivências e memórias, “O menino grapiúna” criou
todo um universo ficcional que posteriormente sofreu sucessivas apropriações por parte dos
seus leitores, da mídia televisiva e cinematográfica, dos governantes da cidade e de empresas
turísticas.
Contando um pouco sobre sua vida, o escritor traça o percurso que sua família fez com
ele até chegar em Ilhéus:

Fui para Ilhéus com um ano e pouco, um ano e quatro meses. Nasci em Ferradas, mas,
quando chegou a colheita do Rio Cachoeira, em janeiro de 1914, que destruiu a
plantação de meu pai, fomos para Ferradas, e de lá para Itabuna; depois continuamos
diretamente até Ilhéus, onde meu pai foi morar, no Pontal, e fazer tamancos, com
minha mãe.303

Em 1923, aos onze anos, o pequeno Jorge foi colocado em um internato em Salvador,
onde começou a ter um maior contato com o mundo das letras e da literatura clássica.304 É

300
CAMPOS, João da S. Crônica da Capitania... Op. cit., p. 620.
301
PESAVENTO, Sandra. O Imaginário da Cidade... Op. cit., p. 55.
302
Retomaremos essa discussão no capítulo 3.
303
AMADO, 1990. Apud RAILLARD, Alice. Conversando com... Op. cit., p. 191.
304
COMPANHIA DAS LETRAS. Jorge Amado. Vida. Disponível em:
http://www.jorgeamado.com.br/vida.php3?pg=0. Acesso em: 01 de jun. de 2021; AMADO, 1990. Apud
RAILLARD, Alice. Conversando com... Op. cit., p. 31.
67

possível que as representações referentes à Cidade de Ilhéus, formuladas principalmente pelo


jornal Correio de Ilhéus, tenham chegado ao jovem estudante a partir da imprensa da capital,
que vez ou outra copiava artigos dos jornais locais, ou publicava notícias sobre os progressos
conquistados pela “Princesa do Sul”. Exemplo disso é uma publicação feita em 1926 pelo
Diário de Notícias da Capital, transcrita pelo Correio de Ilhéus, intitulada “Sirva-nos de
exemplo... A cidade de Ilhéus já tem inaugurado o seu serviço de auto-ônibus”:

Com o título e subtítulos acima, o nosso brilhante confrade “Diário de Notícias” da


Capital, em sua edição de 5 do corrente, assim se exprimiu acerca da inauguração do
serviço de auto-ônibus nesta cidade: (...).
O progresso da “Princesa do Sul”
Foi inaugurado o serviço de auto-ônibus
Ilhéus continua à vanguarda dos demais municípios em matéria de expansão
econômica, realizações administrativas, – do progresso, enfim.
Dia a dia chegam à capital notícias de que se rasgam novas avenidas, facultam-se ao
público novos ou melhores serviços ou se projetam melhoramentos.
Ontem chegou-nos um telegrama anunciando a inauguração do tráfego de “auto-
ônibus”, com o qual a florescente cidade acaba de resolver o problema da viação
pública. (...).305

Da mesma forma, Amado pode ter entrado em contato com as narrativas relacionadas
às representações da “Princesa do Sul” por meio do jornal Diário da Bahia, quando trabalhou
como repórter investigativo ainda aos 14 anos, escrevendo reportagens policias para esse órgão
de imprensa.306 Em todo caso, o menino que se tornou um grande escritor também passava as
férias escolares em Ilhéus, em suas palavras “à beira-mar, ou na fazenda de meu pai”307.
O próprio autor confirma que suas criações ficcionais se baseavam em suas memórias
de infância:

Eram coisas da minha infância... (...) São as coisas que vivi, que conheci em minha
infância, e que estão na base de tudo o que depois criei e recriei. Até mesmo os
romances da Bahia (...), mesmo aí há muitos reflexos da infância, muitas coisas que
se encontram ligadas ao tempo da minha vida na região cacaueira.308

Segundo Amado, a escrita de Cacau – romance de cunho realista, publicado em 1933,


que “assinala a guinada à esquerda da obra amadiana”309 – aconteceu entre “fins de 32 e nos
primeiros dias de 33”310, após entrar para a Juventude Comunista e começar sua militância. O

305
SIRVA-NOS de exemplo... A cidade de Ilhéus já tem inaugurado o seu serviço de auto-omnibus. Correio de
Ilhéus, Ilhéus, p. 1, ano VI, nº 733, 10 abr. 1926.
306
AMADO, 1990. Apud RAILLARD, Alice. Conversando com... Op. cit., p. 32.
307
Ibidem, p. 31.
308
Ibidem, p. 196.
309
DUARTE, Eduardo de Assis. Jorge Amado... Op. cit., p. 56.
310
AMADO, 1990. Apud RAILLARD, Alice. Conversando com... Op. cit., p. 55.
68

escritor ainda assegura que escreveu grande parte dele “em Ilhéus, em Itabuna, já sob a
influência do dito ‘romance proletário’”.311
A chegada do romancista em Ilhéus foi noticiada pelo então órgão oficial do município,
o Diário da Tarde312, em 1932. Ao que parece, Amado alcançou um bom reconhecimento local
após publicar seu primeiro romance, O País do Carnaval, sendo muito apreciado pelo meio
letrado da cidade.

Pelo vapor “Itapura” que chegou hoje pela manhã a esta cidade, veio da capital do
país o escritor Jorge Amado, nosso ilustre conterrâneo e uma das mais bizarras
afirmações de talento da nova geração brasileira.
O autor de “O País do Carnaval” aproveitará a sua estadia, nesta cidade, em visita à
sua família, para fazer a revisão do seu novo romance, que aparecerá ainda este ano.
Em Ilhéus o jovem escritor pretende fazer uma conferência sobre “O moderno sentido
da poesia brasileira” que será patrocinada por elementos de destaque da sociedade
ilheense e decerto atrairá uma numerosa assistência de intelectuais, dado o tema
escolhido pelo sr. Jorge Amado.313

Este “novo romance” citado pelo jornal se tratava do livro Rui Barbosa nº 2, que nunca
saiu do prelo, e de acordo com o escritor ele teve “o bom senso de não publicá-lo. Pois foi
justamente no momento em que as influências de esquerda foram fortes” para si.314
Um exemplo dessa influência em sua escrita e forma de pensar é visível em um texto
que o autor fez para o Diário da Tarde, sob o título de “A nova literatura proletária”. Nele,
Amado anunciou o novo método de escrita dos romances, se afastando da moralidade burguesa
e sua futilidade estética, com a intenção de retratar a crueza da vida dos trabalhadores. Nas
palavras do escritor:

Momento de grande agitação proletária, esse que estamos vivendo quando as massas
trabalhadoras se levantam reclamando os seus direitos de maioria explorada, também
uma nova literatura surge, a literatura do proletariado. Literatura que esmagará sem
dúvida os livros pó de-arroz da burguesia falida. (...)315

311
Ibidem.
312
O periódico Diário da Tarde foi fundado por Francisco Dórea, Eusínio Lavigne e Carlos Monteiro, dirigido
pelos dois primeiros. Eusínio Lavigne, redator chefe do jornal, era também advogado, cacauicultor, líder político
da oposição e escritor, tornando-se o primeiro prefeito de Ilhéus após a “Revolução de 1930”. Ver: BARRETO,
Antonio V. S. Memória e ficção: as publicações literárias do jornal Diário da Tarde - Ilhéus, como construto de
memória da Região do Cacau. Tese (Doutorado em Estudos da Linguagem) - Universidade Federal do Rio Grande
do Norte. Centro de Ciências Humanas, Letras e Artes. Programa de Pós-graduação em Estudos da Linguagem.
Natal, RN, 2018.
313
EM visita a Ilhéus – Chegou hoje à cidade o autor de “O País do Carnaval”. Diário da Tarde, Ilhéus, p. 4, ano
V, nº 1.281, 06 jul. 1932.
314
AMADO, 1990. Apud RAILLARD, Alice. Conversando com... Op. cit., p. 48.
315
Idem. A nova literatura proletária. Diário da Tarde, Ilhéus, p. 2, ano V, nº 1.284, 09 jul. 1932.
69

O Diário da Tarde ainda publicou outros textos de Jorge Amado em seu suplemento
literário, como críticas de novas obras, análises de personalidades do mundo das letras e partes
do seu romance não publicado, Rui Barbosa nº 2316, e Cacau, que estava em sua fase inicial de
escrita.317 Este romance é o único da saga em que o tempo narrado coincide com o tempo da
narração (ou da escrita), pois a maior parte dos acontecimentos da narrativa se passam também
na década de 1930 – o início da estória tem mais um caráter de memória, quando José Cordeiro,
o Sergipano, relembra sua infância em São Cristóvão -SE. Por isso não nos deteremos muito
nele, sendo mais viável partirmos diretamente para Gabriela, Cravo e Canela e sua trama,
demarcada temporalmente nos anos 1920.
Mesmo que os fatos narrados nesse romance não se desenrolem na mesma realidade
fictícia de Terras do Sem-Fim e de São Jorge dos Ilhéus, podemos situá-lo cronologicamente
entre ambos, visto que o autor marca o ano de 1925 como o início da narrativa: “ Assim era em
Ilhéus, naqueles idos de 1925, quando floresciam as roças nas terras adubadas com cadáveres
e sangue e multiplicavam-se as fortunas, quando o progresso se estabelecia e transformava-se
a fisionomia da cidade.”318
Nesse trecho podemos ver que o narrador fez referência à história da região, ao mesmo
tempo em que retorna ao tema abordado em Terras do Sem-Fim. Todavia, no decorrer da
narrativa vai ficando nítido que esse passado sangrento e violento, mesmo que ainda visível em
algumas práticas sociais, estava sendo deixado para trás, em vista do progresso que modificava
os hábitos urbanos e o aspecto da cidade:

Porque, apesar do propalado e envaidecedor progresso da cidade (“Ilhéus civiliza-se


em ritmo impetuoso”, escrevera o dr. Ezequiel Prado, grande advogado, no Diário de
Ilhéus), ainda se glosava, acima de tudo, naquela terra, uma história assim violenta de
amor, ciúmes e sangue. Ia-se perdendo, no passar dos tempos, o eco dos últimos tiros
trocados nas lutas pela conquista da terra, mas daqueles anos heroicos ficara um gosto
de sangue derramado no sangue dos ilheenses. E certos costumes: o de arrotar
valentia, de carregar revólveres dia e noite, de beber e jogar. Certas leis também, a
regularem suas vidas.319

Do mesmo modo, é possível colocar Gabriela, Cravo e Canela como antecessor


temporal de São Jorge dos Ilhéus, uma vez que os acontecimentos narrados no romance

316
Idem. Trecho de Romance. Diário da Tarde, Ilhéus, p. 2, ano VI, nº 1.494, 23 mar. 1933.
317
Idem. Convalescença (trecho do romance Cacau, em preparação). Diário da Tarde, Ilhéus, p. 2, ano V, nº 1.315,
16 ago. 1932.
318
AMADO, Jorge. Gabriela, Cravo e Canela... Op. cit., p. 12.
319
Ibidem.
70

sinalizam a transição de uma cidade bárbara para a civilizada “Princesa” ou “Rainha do Sul”,
que vemos com mais profundidade em São Jorge dos Ilhéus.320
Como já dissemos no primeiro capítulo, o romance Gabriela Cravo e Canela guarda
grandes relações com o seu contexto de escrita (tempo da narração), e o próprio escritor admitiu
isso.321 A febre nacionalista do desenvolvimentismo dos anos 1950 pode ser claramente
percebida ao longo da trama, através dos combates entre a “modernidade” (representada por
Mundinho Falcão, os novos costumes e os vários elementos que concorrem para o progresso
do município, como as estradas de rodagem, os melhoramentos do porto, as novas construções
públicas e privadas, a vida noturna da cidade, os novos ambientes de lazer, entre outros) e o
tradicionalismo (representado pelo Coronel Ramiro Bastos, o mandonismo dos chefes políticos,
os costumes antigos e violentos, e a resistência às inovações recém-implantadas no meio
urbano).322
Contudo, o romance também faz referência aos processos de transformações pelos quais
a urbe passou na década de 1920, tendo, inclusive, descrições de acontecimentos que se
assemelham a acontecimentos reais. Isso ocorre porque o autor tomou “o mundo real por pano
de fundo de sua história”323, e, “um dos acordos ficcionais básicos de todo romance histórico é
o seguinte: a história pode ter um sem-número de personagens imaginárias, porém o restante
deve corresponder mais ou menos ao que aconteceu naquela época no mundo real.”324 Todavia,
não devemos limitar o autor e sua narrativa, aceitando a existência de elementos ficcionais, não
existentes na realidade, em romances históricos ou realistas, devido ao fato de que o romancista
pode fazer o que bem entender com seu texto ficcional.325 E como afirma Ribeiro: “De qualquer
forma, todos os romances citados estão impregnados de memória, formando um conjunto de
depoimentos ficcionais que representam as diferentes fases históricas por que passou a região
produtora de cacau e as mudanças de comportamento cultural.”326
No romance, a cidade é representada como o centro urbano do sul da Bahia e intitulada
a “Rainha do Sul”, ou “Capital do Cacau”: “Naqueles anos Ilhéus começara a ser conhecida
nos estados da Bahia e de Sergipe como a Rainha do Sul. A cultura do cacau dominava todo o
sul do estado da Bahia, não havia lavoura mais lucrativa, as fortunas cresciam, crescia Ilhéus,

320
Soma-se ainda o fato de que as ações descritas em São Jorge dos Ilhéus acontecem entre a década de 1930 e
1940, naquele universo ficcional. Ver: COMPANHIA DAS LETRAS. Jorge Amado. Obra, São Jorge dos Ilhéus.
Disponível em: http://www.jorgeamado.com.br/obra.php3?codigo=12611. Acesso em: 01 de jun. de 2021.
321
RAILLARD, Alice. Conversando com... Op. cit., p. 266-267.
322
SÁ, Alzira Q. G. T. de. Gabriela, cravo e canela... Op. cit., p. 146-147.
323
ECO, Umberto. Seis Passeios Pelos Bosques... Op. cit., p. 100.
324
Ibidem, p. 112.
325
Ibidem, p. 113-114.
326
RIBEIRO, André L. R. Urbanização, poder e... Op. cit. p. 119.
71

capital do cacau.”327 Ela era o destino de artistas, conferencistas, empresários, prostitutas e


retirantes que fugiam da seca do Nordeste:

Naquele tempo, no rastro do cacau dando dinheiro, chegavam à cidade de alastrada


fama, diariamente, pelos caminhos do mar, do rio e da terra, nos navios, nas barcaças
e lanchas, nas canoas, no lombo dos burros, a pé abrindo picadas, centenas e centenas
de nacionais e estrangeiros oriundos de toda parte: de Sergipe e do Ceará, de Alagoas
e da Bahia, do Recife e do Rio, da Síria e da Itália, do Líbano e de Portugal, da Espanha
e de ghettos variados.328

E no começo da trama, havia ainda muita expectativa de crescimento para a urbe, como
podemos constatar na fala do personagem Pelópidas Ávila, o Doutor: “É como eu lhes digo:
nuns quantos anos, um lustro talvez, Ilhéus será uma verdadeira capital. Maior que Aracaju,
Natal, Maceió... Não existe hoje, no norte do país, cidade de progresso mais rápido. Ainda há
dias li num jornal do Rio...”329
De fato, como vimos, houve publicações em periódicos da Capital Federal a respeito de
Ilhéus que a colocava como uma cidade em constante expansão econômica e material e, nos
anos 1920, o Correio de Ilhéus procurava sempre reafirmar o papel de destaque da urbe em
comparação com os demais municípios baianos.

Da “Revista dos Municípios”, que se edita na Capital, extraímos os seguintes dados


de referência aos municípios que enviaram ao Tribunal de Contas, as leis de
orçamento que estão vigorando no exercício de 1925 corrente, dos quais
mencionaremos os mais importantes, pela ordem de valor dos mesmos.
ILHÉUS 610:000$000
Santo Amaro 486:920$000
Itabuna 330:000$000
Belmonte 218:884$587
Feira de Santana 204:000$000 (...)330

Ao que tudo indica a comparação feita, tanto no romance como nos periódicos que
circulavam na cidade, entre Ilhéus e outros municípios – até mesmo com capitais estaduais –
sobre seu crescimento, tinha mais a ver com o desenvolvimento de sua economia do que com
o verdadeiro tamanho da urbe, territorialmente falando, pois “as distâncias em Ilhéus eram
ridículas”.331

327
AMADO, Jorge. Gabriela, Cravo e Canela... Op. cit., p. 23.
328
Ibidem, p. 44.
329
Ibidem, p. 27.
330
OS Municípios mais prósperos do Estado. Correio de Ilhéus, Ilhéus, p. 2, ano V, n. 558, 14 fev. 1925.
331
AMADO, Jorge. Gabriela, Cravo e Canela... Op. cit., p. 56.
72

Da mesma forma que observamos na imprensa escrita local, o termo progresso aparece
constantemente no romance, ilustrando a tão celebrada prosperidade econômica pelo qual
passou a região cacaueira na década de 1920.

Progresso era a palavra que mais se ouvia em Ilhéus e em Itabuna naquele tempo.
Estava em todas as bocas, insistentemente repetida. Aparecia nas colunas dos jornais,
no cotidiano e nos semanários, surgia nas discussões na Papelaria Modelo, nos bares,
nos cabarés. Os ilheenses repetiam-na a propósito das novas ruas, das praças
ajardinadas, dos edifícios no centro comercial e das residências modernas na praia,
das oficinas do Diário de Ilhéus, das marinetes saindo pela manhã e à tarde para
Itabuna, dos caminhões transportando cacau, dos cabarés iluminados, do novo Cine-
Teatro Ilhéus, do campo de futebol, do colégio do dr. Enoch, dos conferencistas
esfomeados vindos da Bahia e até do Rio, do Clube Progresso com seus chás
dançantes. “É o progresso!” Diziam-no orgulhosamente, conscientes de concorrerem
todos para as mudanças tão profundas na fisionomia da cidade e nos seus hábitos. 332

Podemos ver também que, para o personagem Mundinho, Ilhéus era “Uma terra nova,
rica, onde tudo está por fazer, onde tudo está começando. O que está feito em geral é ruim, é
preciso mudar. É, por assim dizer, uma civilização a construir.”333 Em outras palavras, a
civilização do cacau ainda estava por se fazer, era necessário antes abandonar totalmente as
velhas práticas incivilizadas em favor dos novos hábitos sociais, trazidos pelo dito progresso.
Sendo assim, só com a adoção de novas formas de viver, os habitantes da “Princesa do Sul”
atingiriam a dita civilização.

Os filhos dos coronéis indo cursar os colégios mais caros das grandes cidades, novas
residências para as famílias nas novas ruas recém-abertas, móveis de luxo mandados
vir do Rio, pianos de cauda para compor as salas, as lojas sortidas, multiplicando-se,
o comércio crescendo, bebida correndo nos cabarés, mulheres desembarcando dos
navios, o jogo campeando nos bares e nos hotéis, o progresso enfim, a tão falada
civilização.334

É interessante destacar uma frase dita pelo Cel. Amâncio Leal ao Doutor, enquanto
discutiam sobre política e aguardavam a entrada do navio, trazendo Mundinho Falcão, ao porto:
“— Ouça, Doutor: fala-se muito de progresso, de civilização, da necessidade de mudar tudo em
Ilhéus. Não ouço outra conversa o dia inteiro. Mas, me diga uma coisa: quem é que fez esse
progresso? Não fomos nós, os fazendeiros de cacau?”335 A partir dela percebemos como o
narrador, ao mesmo tempo em que vincula os coronéis à prosperidade econômica da cidade,
retira deles a competência de civilizar aquele meio.

332
Ibidem, p. 23.
333
Ibidem, p. 80.
334
Ibidem, p. 17. Grifo nosso.
335
Ibidem, p. 55.
73

Em contrapartida, André Ribeiro afirma que a “validação do discurso literário”, nos


romances do cacau de autoria de Jorge Amado e Adonias Filho, levaram a uma ressignificação
da “imagem dos pioneiros do cacau” pelos seus “descendentes grapiúnas”, fazendo com que
“Humildes desbravadores” fossem “heroicizados como fundadores de uma civilização na
violenta epopeia do cacau.”336 Para o historiador “Amado e Adonias legitimam o poder dos
coronéis ao conferir-lhes o status de construtores da civilização do cacau, fruto do esforço
pessoal na luta contra índios, febres, animais, jagunços e fraudes jurídicas, os “caxixes”. 337
Além disso, ele também destaca o papel de “protetores do progresso” da cidade, desempenhado
por coronéis como Antonio Pessoa e Misael Tavares,338 ambos inspirações de personagens
amadianos como o próprio Ramiro Bastos e Maneca Dantas em Terras do Sem-Fim, ou Manoel
Misael Teles em Cacau.339
Retornando para Gabriela, Cravo e Canela, dentre os novos hábitos sociais
considerados civilizados, e introduzidas na cidade por meio do “progresso”, estavam as idas ao
cinema, bailes e chás-dançantes no Clube Progresso, as conferências literárias de intelectuais
vindos de Salvador e do Rio de Janeiro, o futebol nas tardes de domingo, o passeio na nova
avenida da praia e nas praças embelezadas, as idas aos cafés e sorveterias, além, claro, dos
cabarés e dos bares. Em suma, “a cidade esplendia em vitrines coloridas e variadas”340 e não
faltavam opções de lazer para as famílias ilheenses e nem para os homens, solteiros ou não.
Ainda no romance, muitas dessas novas práticas eram associadas à imoralidade pelos
coronéis e alguns habitantes da urbe mais conservadores, e o próprio termo “progresso” se
tornou sinônimo de imoral. Exemplo disso é quando o dr. Maurício, conversando no bar de
Nacib sobre o assassinato de dona Sinhazinha, responde à investida de João Fulgêncio quando
afirma que as novas formas de tratamento empregadas pelo dentista Osmundo e as novas
práticas que se viam em Ilhéus eram provenientes do progresso: “ — A esse progresso, eu
chamo de imoralidade...”341. Ainda nas palavras deste personagem, a sociedade de Ilhéus
começava a “penetrar-se de veneno, direi melhor: de lama dissolvente...”342
Nhô-Galo, que participava da discussão, procurando desarmar o “argumento”
apresentado logo responde: “— De que costumes o senhor fala? Dos bailes, dos cinemas... Mas

336
RIBEIRO, André L. R. Urbanização, poder e... Op. cit., p. 126.
337
Ibidem, p. 138.
338
Ibidem, p. 82.
339
Ver: RAILLARD, Alice. Conversando com... Op. cit., p. 189.
340
AMADO, Jorge. Gabriela, Cravo e Canela... Op. cit., p. 24.
341
Ibidem, p. 115.
342
Ibidem.
74

eu vivo aqui há mais de vinte anos e sempre conheci Ilhéus como uma terra de cabarés, de
bebedeira farta, de jogatina, de mulheres-damas... Isso não é d’agora, sempre existiu.”343
Além da imagem de progresso e civilização que Amado construiu sobre Ilhéus, é visível
também a “cidade perdição”, que, por associação, se aproxima da imagem de Gabriela, formosa,
sensual, cheirosa e cheia de atributos que chamavam a atenção dos mais variados homens. Ao
mesmo tempo, era livre, inocente, simples e não se deixava dominar por ninguém, tendo uma
vida dinâmica para além do que se planejava para ela.
Todavia, é a ideia de progresso e riqueza que prevalece na representação a respeito da
cidade:

Havia um ar de prosperidade em toda parte, um vertiginoso crescimento. Abriam-se


ruas para os lados do mar e dos morros, nasciam jardins e praças, construíam-se casas,
sobrados, palacetes. Os aluguéis subiam, no centro comercial atingiam preços
absurdos. Bancos do sul abriam agências, o Banco do Brasil edificara prédio novo, de
quatro andares, uma beleza!344

E assim como nos jornais, ressaltava-se o papel dos homens ricos da região, pois eles
tinham a “obrigação de concorrer para o progresso da cidade construindo boas residências,
bangalôs, palacetes.”345
É interessante destacar que em nenhum momento Jorge Amado escreveu que a cidade
era moderna ou modernizada, preferindo empregar os termos progresso e civilização quando se
referia ao desenvolvimento do meio urbano. Talvez isso se deva ao fato de que o escritor
conhecia grandes cidades modernas, tendo viajado para vários países europeus e morado em
Paris antes de escrever Gabriela, Cravo e Canela. Certamente o autor reconhecia que as
mudanças urbanas pelas quais Ilhéus havia passado, nada mais eram que processos
civilizatórios, mais de embelezamento que de mudanças funcionais no meio urbano e social.
Em vez disso, o escritor usa o termo “moderno” para se referir aos novos tipos de
modelos arquitetônicos adotados pelos coronéis em suas residências no centro da cidade, como
o palacete do Cel. Melk Tavares, “uma casa em ‘estilo moderno’, a primeira a ser construída
pelo arquiteto trazido por Mundinho Falcão (...). Em suas linhas claras e simples, contrastava
com os sobradões pesados e as casas baixas, coloniais.”346 De acordo com André Ribeiro, “Nas
construções e reformas postas em prática, tanto pelo poder público como por particulares,

343
Ibidem.
344
Ibidem, p. 23.
345
Ibidem, p. 29.
346
Ibidem, pP. 101.
75

buscou-se um sentido monumental.”347 Além disso, como vimos acima, eram concedidas
isenções das décimas urbanas para os cidadãos que construíssem prédios ou casas, que
seguissem o padrão instituído pela intendência, na área central ou nos novos bairros que então
se abriam.
João da Silva Campos, em sua crônica, apontou que “A febre do progresso que agitava
o organismo social e econômico da região pronunciava-se cada dia mais intensa. As edificações
novas repetiam-se em crescendo, procurando incentivá-las sempre o governo municipal.”348
Demonstrando a prosperidade e o desenvolvimento urbano, Silva Campos levantou dados sobre
o número de construções urbanas em 1926 na sede do município, indicando 1.294 prédios,
sendo 1.162 térreos e 132 sobrados.349
É bom lembrarmos que os sentidos dessas novas construções, sejam elas públicas ou
particulares, eram apagar os traços de um passado distante, mas ainda muito presente na cidade,
e, em simultâneo, supervalorizar o presente próspero que se vivia. Percebemos isso tanto na
ficção, quando Jorge Amado ressalta o desenvolvimento urbano de Ilhéus afastando a cidade
dos tempos coloniais e dos períodos de “desbravamento”, como nos jornais, em publicações
que consideravam “pobre e feia” a antiga vila e comemoravam a destruição de monumentos
seculares julgados “ruinosos e inestéticos”.350
Nesse capítulo o enfoque foi nas representações sociais sobre Ilhéus, presentes nas
narrativas publicadas pela imprensa escrita local e na ficção de Jorge Amado, mais
precisamente em Gabriela, Cravo e Canela. Vemos que essas representações privilegiaram
certos aspectos da cidade e o momento econômico que se vivia, destacando sempre o progresso,
a civilização, a estética e os valores morais cristãos. É também perceptível nesses veículos
tipográficos e suas narrativas que a presença da memória coletiva dos coronéis do cacau é
constante, direta ou indiretamente. Muitas vezes o resgate de um passado recente na construção
dos textos é nítido, seja para valorizar as ações do poder público municipal e legitimar as
reformas urbanas que se planejavam e realizavam, ou para criticar velhos hábitos e o
conservadorismo, no caso da literatura, ainda muito presente nos moradores da urbe.
Os jornais apresentados aqui, especialmente o Correio de Ilhéus, tiveram papeis
fundamentais na formação de uma memória social a respeito da Cidade de Ilhéus dos anos 1920,
contribuindo com sua consolidação na historiografia local. A partir das narrativas publicadas

347
RIBEIRO, André L. R. Urbanização, poder e... Op. cit., p. 84.
348
CAMPOS, João da S. Crônica da Capitania... Op. cit., p. 616.
349
Ibidem, p. 614.
350
MELHORAMENTOS na Praça de S. Jorge – desapareceu o velho cruzeiro. Correio de Ilhéus, Ilhéus, p. 1,
ano IV, nº 413, 28 fev. 1924; ***. Correio de Ilhéus, Ilhéus, p. 1, ano IV, nº 486, 21 ago. 1924.
76

em suas páginas principais criou-se a representação de Ilhéus como uma urbe moderna,
civilizada e próspera, valorizando os investimentos públicos nas mudanças estéticas
viabilizadas através de novas construções e melhoramentos, além das belezas naturais ao seu
redor. As contradições sociais vivenciadas no espaço urbano eram “ignoradas ou não
reconhecidas”351, e, quando recebiam algum destaque na imprensa, no pouco espaço que
tinham, geralmente eram tratadas como caso de polícia ou objeto da caridade da elite cristã
ilheense, a fim de promover a moralização dos costumes e dos modos de viver da população
subalternizada.
A ficção amadiana também contribuiu com a construção da representação de Ilhéus
como a “Princesa” ou “Rainha do Sul” e “Capital do Cacau”, fortalecendo a memória coletiva
dos coronéis do cacau e estimulando a elaboração de uma memória social para cidade. 352 As
sucessivas apropriações dos romances da saga do cacau promoveu a valorização de uma
narrativa que enaltecia as ações dos produtores e comerciantes de cacau e os apresentava como
agentes do desenvolvimento urbano da cidade; do mesmo modo que reformularam e
impulsionaram as representações a respeito da urbe, destacando sua riqueza, progresso e as suas
belezas materializadas no espaço central de Ilhéus.353 As adaptações, televisiva e
cinematográfica, de Gabriela, Cravo e Canela não levaram em conta, ou relegaram a um
segundo plano, a crítica social do autor em relação às desigualdades sociais vividas na região
cacaueira e seus personagens subalternizados.
Finalmente, ainda nos dias atuais percebemos a força dessas representações no centro
histórico de Ilhéus, que se tornou um lugar de memória por meio dos antigos casarões, dos
monumentos e das praças e ruas que levam o nome de coronéis e antigos governantes. Em fins
da década de 1990 e início do novo milênio, o espaço central da cidade foi revitalizado e passou
por algumas mudanças, tomando como base os elementos da ficção amadiana a fim de
promover e incentivar o turismo cultural na urbe. Ruas principais transformaram-se em
calçadões, praças e palacetes foram restaurados, investiu-se em propagadas com a temática dos
romances da saga do cacau, principalmente Gabriela, tudo isso para abrigar uma representação
e uma memória social urbana de prosperidade, ostentação, beleza e sensualidade.354

351
FREITAS, Antônio F. G. de; PARAÍSO, Maria H. B. Caminhos ao Encontro do Mundo... Op. cit., p. 139.
352
Ver: MAHONY, Mary A. Um passado para justificar o presente... Op. cit.; RIBEIRO, André L. R.
Urbanização, poder e práticas... Op. cit.
353
Ver: MENEZES, Juliana S. Da Literatura ao Turismo Cultural... Op. cit.
354
Idem; MOREIRA, Gilsélia L. A reprodução do espaço urbano da Cidade de Ilhéus: turismo, segregação e
mercantilização do espaço. In.: Revista da Casa da Geografia de Sobral (RCGS), Sobral – CE, V. 15, n. 1, p.
32-48, 2013. p. 40-41.
77

Capítulo 3 - O Imaginário Urbano e a Cidade Subalterna

(...) se entendemos que é na literatura que, sobretudo, se


manifesta o imaginário de uma época, com os seus sonhos e
pesadelos, podemos tomá-los, lado a lado, como formas de
dizer o social e deles fazer a leitura que buscamos sobre a
cidade. (Sandra Pesavento, em O Imaginário da Cidade:
visões literárias do urbano – Paris, Rio de Janeiro, Porto
Alegre, 1999).

Como vimos no capítulo anterior, durante a década de 1920 Ilhéus passou por processos
de transformações urbanas promovidas pela intendência em conjunto com os Coronéis e
homens de negócios, detentores de grandes capitais, que alteraram principalmente o seu espaço
central. Todavia, outras zonas da cidade não receberam a mesma atenção que a região do centro
urbano, e arrabaldes populosos como o Alto da Conquista, Unhão (Outeiro de São Sebastião) e
Ilha das Cobras (ou rua do Gameleiro) continuavam sem os serviços públicos recém-
implantados, como esgoto, água encanada, calçamento e energia elétrica. Nesses espaços
subalternizados não existiam boas condições sanitárias, em épocas de chuvas as casas e as ruas
alagavam, enchendo-se de lama e acumulando água parada; existiam cocheiras para vacas e
cavalos; seus habitantes criavam animais nos quintais das casas, como galinhas, patos e porcos,
para consumo próprio ou comercialização; as casas, em sua maioria, eram de madeira cobertas
por palha. Em suma, esses lugares eram a antítese da imagem do progresso e civilização que se
criou para Ilhéus.
Na imprensa escrita local esses espaços eram retratados como o foco das moléstias e da
imoralidade, onde prosperava a jogatina, a violência e a prostituição, e sua população era
considerada “mal afamada”. Porém, na ficção amadiana esses lugares são dotados de forças de
resistência revolucionária e descritos detalhadamente na intenção de denunciar as mazelas do
progresso e do capitalismo imperialista. Seus habitantes são reconhecidamente pertencentes à
classe trabalhadora, explorados cotidianamente, mas sempre resistindo da forma que podem.
Sabemos que nesse período o poder municipal tentou impor uma série de normas de
comportamentos aos sujeitos que moravam ou circulavam pelo centro de Ilhéus, e
principalmente sobre os habitantes das zonas suburbanas. Contudo, esses sujeitos não
obedeceram passivamente às imposições da intendência, adaptando suas formas de viver e se
portar socialmente, resistindo e ressignificando o espaço urbano da forma que podiam.
O objetivo do capítulo é evidenciar outras vivências e memórias deixadas de fora da
representação e da memória social de Ilhéus, valorizando-as historicamente como fundamentais
no próprio processo de construção da cidade. Para tal fim, partimos dos indícios encontrados
78

nas narrativas jornalísticas, procurando nas notas policiais, colunas de reclamações e críticas, e
nas notas sanitárias, essa população subalternizada; tentamos com isso realizar uma leitura a
contrapelo dessa fonte. Assim como damos destaque às representações dessa “outra” cidade
presentes nos romances de Jorge Amado referentes à saga do cacau. Dessa forma construímos
uma interpretação sobre a cidade de Ilhéus da década de 1920, visando contrapô-la com a
representação já cristalizada no imaginário urbano e na memória coletiva dos coronéis do cacau.

Um passeio pela terra de Jorge Amado e da Gabriela

No fim da década de 1980 e início dos anos 1990 a região cacaueira entrou em uma
grave crise econômica, forçando os produtores de cacau e o poder público municipal a
encontrarem novas fontes de renda. Problemas gerados pela redução da produção do grão,
somados aos baixos preços do produto no mercado internacional, foram agravados pela praga
conhecida como “vassoura de bruxa”, que destruiu grande parte das plantações do fruto. 355 A
partir daí, o município entrou em um período de declínio, levando “a região à estagnação
econômica e a um rápido empobrecimento das classes média regional e trabalhadora, gerando
conflitos sociais no setor urbano e rural.”356
Nesse contexto de instabilidade, a administração pública e o setor empresarial local
investiram no potencial turístico da cidade, aproveitando o momento de sua “redescoberta” em
âmbito nacional:

O declínio da lavoura cacaueira estimulou investimentos em outras atividades


produtivas tais como: turismo, fruticultura e informática. O turismo, por exemplo,
atividade até então relegada a um segundo plano, passou a fazer parte da pauta de
interesse da iniciativa privada e do poder público, por força da necessidade de reerguer
a economia regional.357

Mesmo que o empresariado local tenha optado pelo desenvolvimento do turismo no


município, atraídos pelo forte apelo econômico desse setor produtivo, foi a partir de estratégias
públicas que essa atividade se impôs “como promotora de desenvolvimento na cidade de Ilhéus
e região.”358

355
MAGALHÃES, Apud. MOREIRA, Gisélia L. Ilhéus, a terra da Gabriela cravo e canela: de espaço do cacau a
espaço do turismo. GeoTextos, vol. 9, n. 1, jul. 2013. 129-150. p. 141.
356
Ibidem.
357
Ibidem, p. 141-142.
358
Ibidem.
79

Nesta conjuntura, alguns espaços da cidade como o centro histórico e outros pontos
turísticos sofreram transformações e foram ressignificados, passando por um processo de
adequação ao turismo cultural. As formas urbanas permaneceram quase intactas, mas seus usos
foram modificados e a antiga área habitacional passou a constituir uma grande área comercial.
Ruas centrais tornaram-se calçadões, casarões antigos – que remontam ao início do século XX
– foram restaurados, praças públicas receberam reformas e melhorias, tudo isso com base na
obra amadiana e principalmente no romance Gabriela, Cravo e Canela.359 Em outras palavras,
o poder público em conjunto com a iniciativa privada selecionou fragmentos da cidade,
referenciados na ficção de Amado, e materializou em seu espaço central os elementos da
narrativa do escritor; ou seja, a representação social da Ilhéus dos anos 1920 tornou-se a imagem
“real” da urbe contemporânea.
Juliana Menezes, pesquisando a implementação e implantação do projeto “Quarteirão
Jorge Amado” em Ilhéus, confirma que a divisão dos circuitos turísticos é uma alusão ao
romance Gabriela, e o próprio nome de ambos (Circuito “Cravo” e Circuito “Canela) deixa
nítida essa referência. De acordo com a pesquisadora, os prédios escolhidos para as reformas

foram selecionados de acordo com a sua importância histórica e estão espalhados pelo
centro da cidade. (...) A escolha dos patrimônios que compõem cada circuito foi feita
de acordo com a proximidade entre eles. (...) O projeto Quarteirão Jorge Amado inclui
obras de recuperação total ou parcial dos casarões, que nem sempre respeitam as suas
características originais.360

Para Gisélia Moreira, essas novas alterações do espaço central da cidade, e sua adequação
ao turismo cultural, promoveram a construção de uma nova imagem para Ilhéus, que “passou
da condição de ‘Capital do Cacau’ à ‘Terra da Gabriela Cravo e Canela”. 361 Como vimos no
primeiro capítulo, de acordo com Goldstein, pelo menos desde os anos 1980 a cidade já era
conhecida como a “Terra da Gabriela”362. Contudo, segundo Menezes essa imagem apelava
para a sensualidade “como forma de promover a cidade”363, concorrendo assim para a
construção de representações machistas e sexistas a respeito das mulheres ilheenses e baianas,
além de influenciar o índice de prostituição e turismo sexual no município.364 Por esse motivo,
mudou-se o cognome da cidade, acrescentando-se o nome do escritor Jorge Amado.

359
Ibidem, p. 145.
360
MENEZES, Juliana S. Da Literatura ao Turismo Cultural... Op. cit., p. 82.
361
MOREIRA, Gisélia L. Ilhéus, a terra da Gabriela cravo e canela... Op. cit., p. 146.
362
GOLDSTEIN, Ilana S. O Brasil Best-Seller... Op. cit., p. 97.
363
MENEZES, Juliana S. Da Literatura ao Turismo Cultural... Op. cit., p. 80.
364
Ibidem.
80

Ainda assim, no imaginário coletivo local a presença da personagem Gabriela é muito


real e vários comerciantes utilizam seu nome, bem como os de outros personagens do romance,
para denominar seus estabelecimentos.365 E, geralmente, faixadas de lojas carregam a imagem
de uma mulher sensual com a pele da cor de cravo, representando a personagem. De acordo
com Maria de Lourdes Simões,

O signo Jorge Amado está por toda a parte. Por vezes, sentindo-se um tanto dono da
"marca", o local, em exploração banalizadora, expõe a imagem de uma Gabriela em
ônibus urbanos, lanchonetes, pousadas... Coloca o nome em tipos de sanduíche,
sorvetes, chocolates; busca, dessa forma, atrair pela beleza, sensualidade, cheiro (de
cravo e canela), instituindo o "tipo" Gabriela, vinculada ao tempo áureo do cacau.366

Segundo Heine “o que Jorge Amado fez foi criar e dar nomes aos seus personagens,
descrever acontecimentos e tramas semelhantes às vividas na região para redigir o seu
romance”367. Vemos isso com frequência em Gabriela, Cravo e Canela, quando o autor relata
acontecimentos que se assemelhavam aos noticiados nos jornais de Ilhéus da década de 1920,
como a desobstrução da entrada do porto para possibilitar a entrada de navios de grande caldo
e a exportação direta do cacau, ou os melhoramentos introduzidos na cidade pela intendência –
atribuídos a Mundinho Falcão no romance -; além das referências feitas às ruas reais, como
veremos à frente. Por esse motivo, muito do que se lê em seus romances acaba sendo assumido
como verdade histórica por vários leitores, e, como afirma Mascarenhas:

Amado muitas vezes é recebido por seu público como um historiador, e não apenas
romancista. Casas em Ilhéus são apontadas como sendo as casas onde viveram
determinadas personagens, e, sem qualquer preocupação em investigar se é fato, são
assumidas como tal.368

Márcia da Silva afirma que “alguns leitores (...) não ‘conseguem’ estabelecer a distinção
entre o real e o ficcional” nas narrativas amadianas, e alguns lamentam não terem conhecido os
personagens do escritor quando viajaram para a “Terra de Jorge Amado”.369 O próprio autor
desdenha do produtor do filme Gabriela, Cravo e Canela (1983), quando, para justificar a
escolha de um ator italiano (Marcello Mastroianni) escalado no papel de Nacib, realizou uma

365
Ibidem, p. 79.
366
SIMÕES. Maria de L. N. JORGE AMADO e ILHÉUS em “via de mão dupla”. - De história e ficção para o
desenvolvimento – SARAPEGBE: Rivista di Cultura e Società del Brasile e altri mosaici. Numero Speciale Anno
I, n. 2, aprile-giugno 2012. p. 4. Disponível em:
http://www.sarapegbe.net/articolo.php?quale=43&tabella=articoli#portoghese. Acessado em 20 de abr. de 2020.
367
HEINE, Maria Luíza. Jorge Amado e Os Coronéis do Cacau. Ilhéus: Editus, 2004. p. 83.
368
MASCARENHAS, Anabel Guerra S. A Influência da Obra de Jorge Amado nas Representações Sociais da
Região Cacaueira. Revista Espaço Acadêmico, nº 126, Novembro, 2011. p. 109.
369
SILVA, Márcia R. da. O rumor das cartas... Op. cit., p. 40-42.
81

“profunda pesquisa sobre as origens” do personagem, descobrindo que ele não era árabe, “mas
sim de uma família italiana, napolitana...”.370
Na maioria das vezes, essa “confusão” ocorre porque o “turista-leitor desloca-se em
busca de reconhecer a região das páginas de Jorge Amado”371 e não apenas isso, “ele [o turista-
leitor] teimosamente se reporta à sua leitura do texto ficcional, procurando locais, hábitos, tipos
culinários. Estranha não encontrar, em Ilhéus, a cidade lida na ficção (...)”.372 Contudo, Simões
alerta que “evidentemente essa cidade alvo da curiosidade turística, não é aquela pintada pelo
narrador de Gabriela (...)” e continua informando que “para muitos, não adianta a explicação
de que o imaginário apenas capta as suas ideias da realidade, processa-as e as torna em
fingimento (...)”373.
Da mesma forma, como afirma Menezes,

(...) a literatura e outras artes podem retratar características próprias da cidade


recuperadas pela memória ou pelos traços da história encontradas na arquitetura de
seus monumentos, fazendo com que os moradores da cidade e os turistas conheçam a
sua cultura e a sua história através de suas obras, podendo construir a sua própria
imagem sobre ela.374

É isso que verificamos no centro histórico da cidade, onde os vários casarões remetem
ao passado “próspero” dos tempos do cacau e também fazem referência à ficção de Jorge
Amado. Esse espaço central da cidade, e seus monumentos, foi transformado em lugar de
memória, da mesma forma que os romances amadianos e a imprensa escrita local que circulou
em Ilhéus na década de 1920. Todavia, as memórias possíveis de recuperação ou rememoração
imediata por meio desses documentos/monumentos (Literatura, Arquitetura e Imprensa) são
aquelas relacionadas aos coronéis do cacau.
Dito de outro modo, a memória coletiva dos “donos da terra”, divulgada nos jornais da
cidade, reforçada e ampliada nos romances de Jorge Amado – por meio de suas diversas
apropriações – e materializada no centro histórico através da ressignificação desse espaço,
acabou por se tornar a memória social da Cidade de Ilhéus. Esse processo não ocorreu sem

370
AMADO, 1990. Apud RAILLARD, Alice. Conversando com... Op. cit., p. 279.
371
SIMÕES, Maria de L. N. De Leitor a Turista na Ilhéus de Jorge Amado. Revista Brasileira de Literatura
Comparada, n. 6. Belo Horizonte: ABRALIC, 2002, p. 177-183. p. 180.
372
Ibidem, p. 182.
373
Ibidem, p. 181.
374
MENEZES, Juliana S. Da Literatura ao Turismo Cultural... Op. cit., p. 31.
82

conflitos e resistências375, contudo, as outras memórias a respeito da urbe e da sociedade


cacaueira desse período foram silenciadas e/ou esquecidas.
De acordo com Mary Ann Mahony376, a produção intelectual referente à região
cacaueira, até fins dos anos 1990, baseou-se em uma “tradição narrativa”377 que priorizou as
ações dos homens e mulheres que migraram para Ilhéus e enriqueceram à custa da exploração
da lavoura cacaueira. Como já vimos, esta narrativa, baseada na memória coletiva dos coronéis
do cacau, era fundamentada na ideia de que estes sujeitos conquistaram suas fortunas através
do esforço do próprio trabalho e foram os responsáveis pelo estabelecimento da riqueza e do
progresso das cidades da zona cacaueira.
Ainda conforme a brasilianista, esta “tradição [narrativa] virou mito quando começou a
superdimensionar o papel histórico deste grupo em detrimento do papel de outros grupos
(...)”378 sendo repetida tantas vezes, em diferentes configurações textuais, que acabou se
tornando memória social e finalmente a história da região.379 Ou seja, a partir da memória
coletiva dos “novos-ricos”380 construíram-se narrativas que representaram a região cacaueira e
a Cidade de Ilhéus como a “Princesa do Sul”, terra de prosperidade, progresso e modernidade.
Posteriormente essa memória tornou-se social e firmou-se como história da cidade, silenciando
e apagando, nesse processo, outras memórias subalternizadas.
O historiador Philipe Murillo de Carvalho afirma que a literatura e a memória
corroboraram com a narrativa de progresso e prosperidade de Ilhéus, “porque reafirmam um
passado de glória e de mérito sobre a região”.381 Para ele, o meio acadêmico, com notáveis
contribuições do meio literário, “referendou a tese do poder absoluto dos coronéis”382 e “deram
pouca ou nenhuma visibilidade à atuação dos de baixo nas franjas das oligarquias de Ilhéus e
de Itabuna até 1930.”383 Além disso, em sua tese Carvalho faz uma análise do processo de
modificações urbanas realizado em Ilhéus nesse período e suas consequências para a população

375
Ver: CRUZ, Heloísa F.; FENELON, Déa R.; PEIXOTO, Maria do R. C. Muitas Memórias, Outras Histórias
(intro.) in: Muitas Memórias, Outras Histórias. Orgs.: ALMEIDA, Paulo R.; FENELON, Déa R.; KHOURY,
Yara A.; MACIEL, Laura A. São Paulo: Olho d’Água, 2004, p. 5-13. p. 6.
376
MAHONY, Mary A. Um passado para justificar o presente... Op. cit., p. 739.
377
O termo “tradição narrativa” é utilizado pela historiadora em seu texto e vamos nos referir a ele colocando-o
entre aspas.
378
Ibidem.
379
Ibidem.
380
A historiadora denominou o grupo de sujeitos que migraram para Ilhéus e que enriqueceram por meio da lavoura
cacaueira de “novos-ricos”, diferenciando-os da velha aristocracia da terra com quem rivalizavam politicamente.
Ver: MAHONY, Mary A. Um passado para justificar o presente... Op. Cit.; RIBEIRO, André L. R. Urbanização,
poder e práticas... Op. Cit.; RIBEIRO, André L. R. Família, Poder e Mito o município de S. Jorge dos Ilhéus
(1880-1912). Ilhéus, BA: Editus, 2001.
381
CARVALHO, Philipe Murillo S. de. Trabalhadores... Op. cit., p. 35.
382
Ibidem, p. 17.
383
Ibidem, p. 168.
83

subalternizada que habitava os subúrbios e retiravam o seu sustento dos trabalhos nas ruas da
cidade.
André Ribeiro também reconhece o papel da “tradição narrativa” na construção de uma
imagem relacionada às ideias de progresso e modernidade para Ilhéus a partir da implementação
de uma série de melhoramentos urbanos.384 O historiador afirma que através das reformas
urbanas efetuadas pelos coronéis “novos-ricos” em Ilhéus, empreendeu-se um distanciamento
entre aquele momento e o passado da Cidade, buscando diferenciar a nova administração
municipal do governo anterior e valorizar o presente próspero e moderno em comparação com
o passado “antiquado e decadente”.385 Desse modo, a “tradição narrativa” deu “ênfase à nova
fisionomia urbana que se delineou com a abertura de novas ruas, o alargamento das antigas, as
melhorias do porto”386, eliminando deliberadamente dos textos “qualquer vestígio do tempo
anterior ao cacau, a Ilhéus colonial e barroca [que] não se encaixava nas novas formas do viver
moderno e progressista imaginado pelos homens do cacau.”387
Nesse processo de construção narrativa e fixação de uma memória social da cidade
ocorreu a exclusão de grupos subalternizados (compostos em sua maioria por pessoas negras e
indígenas), de forma semelhantes a outras urbes que pretendiam, por meio de projetos
urbanizadores, se tornar modelos de civilização e progresso.388 O objetivo era eliminá-los da
memória da cidade e de sua história, descredibilizando suas práticas cotidianas, maneiras de
viver e sua importância para a formação da sociedade cacaueira. Por esse motivo devemos nos
atentar e perceber como “certas representações alcançam destaque e domínio públicos no
transcorrer das disputas sociais”.389
O silenciamento sistemático das memórias populares não ocorre por acaso. A memória
está estritamente ligada a história, logo, a exclusão de umas em detrimento de outras está
associada ao projeto político das classes dominantes, que buscaram preservar seus costumes e
práticas, concretizando sua dominação.390 Concordamos que “a memória histórica constitui

384
RIBEIRO, André L. R. Urbanização, poder... Op. cit., p. 79.
385
É necessário destacar que essa diferenciação entre passado e presente e a qualificação negativa dada ao passado
colonial de Ilhéus, em relação à sua prosperidade causada pela agricultura cacaueira, foi produzida pela “tradição
narrativa” amparada na memória desses coronéis considerados “desbravadores” da mata atlântica.
386
RIBEIRO, André L. R. Urbanização, poder... Op. cit., p. 90.
387
Ibidem.
388
Ver: COSTA, Francisca D. S. da. “Quando viver ameaça a ordem urbana: Manaus 1900-1915. In: Cidades.
Org. FENELON, Déa Ribeiro. São Paulo: PUC-SP/ Olho dágua, 1999; SANTOS, Carlos José F. dos. Nem Tudo
Era Italiano: São Paulo e Pobreza (1890-1915). São Paulo: Annablume, 1998.
389
KHOURY, Yara A. Muitas Memorias, Outras Histórias: Cultura e o Sujeito na História. In: Muitas Memórias,
Outras Histórias. Orgs.: ALMEIDA, Paulo R.; FENELON, Déa R.; KHOURY, Yara A.; MACIEL, Laura A. São
Paulo: Olho d’Água, 2004. p. 116-138. p. 133.
390
CRUZ, Heloísa F.; FENELON, Déa R.; PEIXOTO, Maria do R. C. Muitas Memórias, Outras Histórias (intro.)
in: Muitas Memórias... Op. cit. p. 6.
84

uma das formas mais poderosas e sutis de dominação e de legitimação”, por isso, “é um campo
minado pelas lutas sociais”.391 Sendo assim, é dever do historiador, e uma ação política,
“reavivar lembranças e narrativas de sujeitos excluídos e dissidentes”, produzindo “outras
histórias” que deem conta do cotidiano e das práticas de sujeitos reais e comuns.392
A partir desta compreensão, podemos, e devemos, observar por diferentes ângulos o
“processo civilizador” pelo qual Ilhéus passou na década de 1920. A cidade não era somente
glória, mas também desastre393 e somos capazes de notar a existência dessas duas realidades
distintas nela, sendo admissível falarmos da coexistência de várias urbes394: a idealizada,
planejada pela elite local e profissionais liberais guiados pelos ideais de progresso e civilização,
seguindo o exemplo de grandes metrópoles brasileiras e europeias na aplicação dos saberes
técnicos sobre o espaço que se tinha; e a “cidade real”395, palco dos conflitos sociais, lugar de
desigualdades que remetiam ao atraso colonial, onde os hábitos da população subalternizada
se opunham às ideias de modernidade e civilidade.396
O “projeto modernizador” da cidade, realizado a partir de uma série de reformas e planos
de urbanização da área central, criou novas significações para a utilização dos espaços públicos
e provocou uma complexa relação de disputa e de força entre os diferentes segmentos sociais,
modificando até suas maneiras de atuação frente a essa nova realidade.397 Podemos notar certas
“adaptações” em relação aos comportamentos de alguns atores sociais quando utilizavam de
diferentes formas as ruas ou outros pontos estratégicos da cidade, resistindo às determinações
da intendência de modo sutil, quando vendiam produtos, ofereciam serviços ou até mesmo se
divertirem com os jogos e outros “vícios” em locais não apropriados.398
Para discutirmos essa “outra” cidade e as memórias silenciadas, devemos trazer à tona
o meio urbano como espaço de múltiplas vivências, de experiências socialmente construídas,
lugar de tensões e disputas, conflitos e resistências.399 Diferentemente do Urbanista, que

391
Ibidem.
392
Ibidem.
393
Ver: PESAVENTO, Sandra. O Imaginário da Cidade... Op. cit., p. 66.
394
PECHMAN, Robert M. (Org.) Olhares Sobre a Cidade. Rio de Janeiro: Ed. UFRJ, 1994. p. 2.
395
Falamos em “cidade real”, entre aspas, porque compreendemos que mesmo a cidade idealizada, como a
“Princesa” ou “Rainha do Sul”, pode ser constituída por uma força imaginária mais real que a própria
materialidade, a produzindo e sendo produzida por ela. Ver: PESAVENTO, Sandra. O Imaginário da Cidade...
Op. cit., p. 8.
396
PECHMAN, Robert M. (Org.) Olhares Sobre a Cidade... Op. cit.
397
KHOURY, Yara A. Muitas Memorias, Outras Histórias... Op. cit. 136.
398
NEVES, Margarida de Souza. O Povo na Rua: um “Conto de duas cidades”. In: Olhares Sobre a Cidade. Org.:
PECHMAN, Robert M.; Rio de Janeiro: Ed. UFRJ, 1994. P. 135-155. p. 146.
399
BRESCIANI, Maria Stella. Cidade e História. In: Cidades: história e desafios. Org.: OLIVEIRA, Lúcia Lippi.
Rio de Janeiro: Fundação Getúlio Vargas, 2002, p. 16-35. p. 30.
85

enxerga a cidade através de um saber teórico que se pretende neutro, despolitizado, científico400,
tendo o meio urbano apenas como um “espaço inerte, onde se projeta uma transformação cuja
a origem está além de configurações propriamente espaciais”401, reconhecemos o papel da
cidade, e mais precisamente do espaço historicamente construído, “como fonte da mudança
social”; ou seja, “do papel da cidade no processo de transformação da sociedade”. 402 Em
resumo, a cidade aqui não é tomada como um “cenário”, onde acontecem os fatos históricos e
sim como um “transformador elétrico”, “como se os sujeitos, todos, entrassem dentro de um
liquidificador; e, então, a transformação se dá de forma muito mais rápida; se agita”.403

Percursos ficcionais por uma “outra” Ilhéus

De acordo com Pechman, “diferentes olhares se voltaram para a cidade no intuito de


identificar e desvendar ali, por onde passavam as linhas do destino da civilização”. 404 Para o
pesquisador, os primeiros que voltaram seus olhares para a cidade como “cenário para [a]
observação do mundo”405 foram os romancistas, que observaram os problemas e os impactos
da vida urbana sobre os cidadãos, retirando daí a matéria-prima para sua interpretação do
mundo. Em seguida vieram os higienistas e médicos, que tentaram transformar a cidade em um
corpo saudável, e, para tal objetivo, associaram-se aos engenheiros em busca de promover as
reformas sanitárias pretendidas. Na sequência, temos o olhar dos filantropos, pesquisadores
sociais e moralistas que se preocuparam com as condições e o modo de vida dos trabalhadores
urbanos. Por fim, “na trilha dos médicos, filantropos, moralistas e utopistas, surgem os técnicos
da cidade com seu ‘olhar clínico’: os urbanistas”.406
No caso de Ilhéus, os primeiros “olhares” lançados sobre a cidade não foram os dos
romancistas e sim os dos médicos e higienistas, que buscaram através do poder municipal
promover mudanças infraestruturais em seu espaço central. Sem contar os inúmeros olhares de
cronistas, memorialistas, pesquisadores e viajantes que passaram pela cidade e deixaram
registros a respeito de suas percepções do meio urbano.

400
PECHMAN, Robert M. (Org.) Olhares Sobre a Cidade... Op. cit., p. 7.
401
ROLNIK, Raquel. História Urbana: história na cidade? In: Cidade & História. Orgs.: FERNANDES, Ana;
GOMES, Marco Aurélio A. de F. Salvador: UFBA, 1992. P. 27-29. p. 27.
402
Ibidem.
403
Ibidem.
404
PECHMAN, Robert M. (Org.) Olhares Sobre a Cidade... Op. cit., p. 5.
405
Ibidem.
406
Ibidem.
86

Entretanto, voltemos inicialmente ao primeiro olhar sobre a cidade que Pechman cita, o
dos romancistas. Margarida Neves, visando “lançar mais um ‘olhar sobre a cidade’, desta vez
buscando ‘o povo na rua”407, utiliza como fonte as crônicas de autores cariocas produzidas entre
1870 e 1920; destacando a presença das “multidões anônimas” da cidade nesses textos. Segundo
ela, enquanto a elite e os governantes preocupavam-se com o perigo dessas multidões e
salientavam seus aspectos de atraso e barbárie, os cronistas enfatizavam o modo de vida dos
sujeitos que a constituíam e suas maneiras sutis de resistência, mesmo sem se darem conta, na
cidade símbolo da modernidade brasileira.
Neves afirma que esses cronistas também já reconheciam a existência de duas cidades
distintas, a cidade-capital e a cidade-noturna, ou a cidade europeia e a cidade indígena.408 É a
partir das informações contidas nessas crônicas que a autora remonta a história da urbanização
do Rio de Janeiro sob o ponto de vista de atores sociais que viveram o/no período, destacando
a maneira como eles perceberam tais mudanças.
Em seus romances da saga do cacau Jorge Amado fez algo semelhante ao que os
cronistas cariocas fizeram. Como vimos anteriormente, as narrativas do romancista são
conhecidas por apresentarem belas descrições da cidade em seu período de auge econômico.
Contudo, ele também elabora um longo relato das condições de pobreza dos trabalhadores
urbanos e rurais, suas moradias, das ruas periféricas e arrabaldes da urbe. Em suma, o escritor
apontou e discutiu as ambiguidades sociais e espaciais presentes na “Princesa do Sul”, seja a
construída em seu imaginário ou a materializada no espaço e tempo em que Amado viveu.
Vemos, por exemplo, em Cacau que o escritor construiu um relato, pela voz do narrador
João Cordeiro ou Sergipano, sobre a vida dos trabalhadores, operários e “alugados”, bem como
a respeito do regime de explorações a que esses sujeitos estavam submetidos. Ilhéus aparece
nesse romance como um dos pontos preferenciais de sergipanos e outros nordestinos que
migravam em busca de melhores condições de vida, na esperança de enriquecimento fácil
através do trabalho na lavoura cacaueira, pois “o cacau exercia sobre eles uma fascinação
doentia”.409 A cidade é apresentada como a “terra do cacau e do dinheiro”410, para onde se
encaminhou o protagonista após ser demitido da fábrica na qual trabalhava em São Cristóvão -
SE.

407
NEVES, Margarida de Souza. O Povo na Rua: um “Conto de duas cidades”. In: Olhares Sobre a Cidade. Org.:
PECHMAN, Robert M.; Rio de Janeiro: Ed. UFRJ, 1994. p.135-155. p. 135.
408
Ibidem, p. 138-139.
409
AMADO, Jorge. Cacau. Rio de Janeiro: Companhia das Letras, 2010, p. 14. Livro Virtual. Link:
<http://lelivros.love/book/baixar-livro-cacau-jorge-amado-em-pdf-epub-e-mobi/#tab-additional_information>
410
Ibidem, p. 17.
87

No primeiro momento, da viagem até a chegada em Ilhéus, a narração é marcada pela


esperança na partida para uma terra com mais oportunidades, abandonando o trágico passado
pessoal do protagonista. Porém, após alguns dias vivendo na cidade, esse sentimento é
substituído pela fome, desespero e ódio.
Ao desembarcar no porto, o Sergipano foi informado por um carregador que devia
procurar pensão na Ilha das Cobras, “aglomerado de ruelas que se escondia no fim da cidade
pequena e movimentada”411, deixando nítido que era esse o local para onde ia os migrantes
recém-chegados que buscavam trabalho e riquezas. As diferenças nas espacialidades urbanas e
a desigualdade social podem ser percebidas através da experiência vivenciada pelo narrador em
seus momentos mais desesperadores enquanto estava na cidade, como quando, na noite
iluminada pelas lâmpadas elétricas do centro, parado em frente à padaria e sentindo fome,
tentado a roubar pães, ele delira:

Pensei em Jesus multiplicando os pães, mas logo depois não via mais Jesus.
Via a fome. A fome com os cabelos de Jesus e os seus olhos suaves. A fome
multiplicava os pães, enchia a pastelaria toda, deixando um canto apenas para
o empregado. Após multiplicar, dividia. A fome tinha agora um manto de juiz
e a mesma expressão terna de Jesus. E dava os pães todos aos ricos, que
entravam em procissão com notas de cem mil-réis nos dedos com anéis e
mostrava um grande pedaço de língua aos pobres, que na porta estendiam os
braços secos. Mas os pobres invadiam a “X do Problema”, derrubavam a
imagem da fome e levavam os pães.412

O trecho lembra um pouco “A Família de olhos” do poema Os Olhos dos Pobres, de


Charles Baudelaire, analisado por Berman, porém, pela perspectiva do pobre, que no caso é o
próprio narrador-personagem. De acordo com o filósofo, nos versos do poeta francês essa
“família de olhos”, composta pelo pai, pelo menino e pelo bebê, observava com fascínio as
luzes da modernidade que começavam então a transformar a Paris de Haussmann; em suas
palavras: “A fascinação dos pobres não tem qualquer conotação hostil; sua visão do abismo
entre os dois mundos é sofrida, não militante; não ressentida mas resignada.”413 Comparando
com o trecho de Cacau, percebemos que o fascínio do Sergipano em frente a padaria é motivado
pela fome e, ao contrário dos pobres de Baudelaire, o narrador tem nitidamente uma visão
militante e crítica no que se refere a percepção das diferenças que separavam os ricos, que
adquiriam o pão “com notas de cem mil-réis nos dedos com anéis”, dos pobres, “que na porta

411
Ibidem, p.18
412
Ibidem, p. 19
413
BERMAN, Marshall. Tudo Que é Sólido Desmancha no Ar... Op. cit., p. 145.
88

estendiam os braços secos”, mas que também podiam invadir a “X do Problema”, derrubar a
imagem da fome e levar os consigo os pães.414
Como um “leitor especial do social”415, Jorge Amado fez uma crítica às contradições
socioeconômicas presentes na “Capital do Cacau”, demostrando que o que se falava sobre
Ilhéus em outros estados não era totalmente verdadeiro. Na curta estadia do Sergipano no centro
da cidade é possível notarmos algumas dessas diferenças, desde a sua chegada, quando foi
imediatamente direcionado para a “Ilha das Cobras” em busca de pensões baratas para
trabalhadores, até o momento em que embarcou no trem com destino à fazenda de Manuel
Teles, onde conseguiu um emprego de “alugado”. Nesse meio tempo, ele circulou brevemente
por alguns espaços da urbe.
Após o delírio em frente a padaria, o Sergipano resolveu então “rodar” por todas as ruas
da cidade, para então esquecer a fome e não pensar em furtar para comer, evidenciando o
pequeno tamanho do espaço central. O último lugar em que parou foi em frente ao prédio da
intendência, onde encontrou um guarda-civil admirando o jardim da praça. Os dois iniciaram
um diálogo, saíram caminhando até o porto e em certo momento o guarda falou para o
Sergipano:

Uma merda, uma porcaria essa vida. Às vezes eles, os ricos, me dizem: Por que você
faz tanto filho, Roberto? Ora porquê... Que havia a gente de fazer senão filhos? A
gente não vai a cinema, não vai a divertimento algum... Apontava o morro da
Conquista:
– Moro lá em cima, camarada. Há pouca comida e muita boca. Mas num dia de fome
sempre se encontra o que comer.
Chegamos ao porto. Um prédio enorme dormia, pesado na noite. Roberto explicou:
– Um sobrado do Coronel Manuel Misael de Sousa Teles. Ricaço daqui. Embaixo é o
Banco dele. Tem dinheiro...416

Segundo Sandra Pesavento, “O escritor (...) espreita e consegue ver as coisas, (...) tece
reflexões, se perde e se encontra nas ruas, fazendo falar o que se encontra aparentemente em
silêncio, desvelando sentidos.”417 É exatamente isso que constatamos quando o romancista dá
voz aos personagens que se queixam das suas condições de vida não tão boas em uma cidade
considerada tão rica e próspera. Talvez essa consciência social de Amado tenha se desenvolvido
durante sua adolescência, quando passou a “viver muito intensamente a vida popular da

414
AMADO, Jorge. Cacau... Op. cit., p. 19.
415
PESAVENTO, Sandra. O Imaginário da Cidade... Op. cit., p. 53.
416
AMADO, Jorge. Cacau... Op. cit., p. 20 (Grifo nosso).
417
PESAVENTO, Sandra. O Imaginário da Cidade... Op. cit., p. 53.
89

Bahia”418 e iniciou os seus trabalhos como repórter investigativo de porta de cadeia, aos 14
anos, para o jornal Diário da Bahia. Segundo o escritor, ele

(...) ia às delegacias para me informar sobre o que ocorrera desde a véspera – os


acidentes, os crimes, as brigas, qualquer coisa; ia ao necrotério para saber quem
morrera, em que estado estava o cadáver, quantas facadas recebera, em que
circunstâncias, etc., para o registro de fatos diversos (...)419

Em síntese, esses são alguns dos espaços urbanos por onde o narrador-personagem de
Cacau passou antes de ir para o trabalho na fazenda do Coronel Manuel Teles: o porto, a “Ilha
das Cobras”, o Centro e a Conquista. A “Ilha das Cobras” e a Conquista constituíam os
arrabaldes onde habitava a classe trabalhadora e os pobres da cidade, o centro é o locus da
riqueza e o porto é o ponto de encontro entre as diferentes classes sociais, mas nem por isso
deixaria de ser um território hierarquizado.
O local denominado “Ilha das Cobras” voltou a fazer parte da narrativa amadiana em
São Jorge dos Ilhéus. Nesse romance, Jorge Amado apresentou esse espaço como “a zona mais
baixa de toda a cidade, a mais pobre também”420, que, durante os temporais, sofria com os
constantes alagamentos. O narrador da trama explica que isso foi provocado pela intendência,
que havia “derrubado uma parte do morro próximo para rasgar as ruas novas do moderno bairro
junto à estrada de ferro”, fazendo com que o local ficasse “sem nenhuma defesa” contra as
chuvas.421
Assim se refere o narrador em relação àquele espaço:

Diziam os habitantes que, na estação das chuvas, o bairro ficava totalmente isolado
da cidade. Daí o nome de Ilha que lhe haviam dado. Não só ficava cercado de água,
como ficava inundado, a água por dentro das casas, ilha e lago ao mesmo tempo. Toda
a água que corria pela cidade terminava por vir dar ali, por inundar a Ilha das Cobras.
E trazia no arrastão, o barro vermelho que sobrara do morro posto abaixo, as ruas
tortuosas viravam um lamaçal visgoso (sic.), terrível de atravessar. Uns poucos postes
iluminavam essa orgia de vermelho sujo, colorido estranho que muitos habitantes da
cidade limpa não sabiam sequer que existia. Uma que outra lâmpada elétrica brilhava
no interior de algumas cabanas. Na maioria, porém bruxuleava a luz vermelha dos
candieiros, pondo mais sombra que claridade nos interiores. Aqui, na Ilha das Cobras,
viviam os operários da estrada de rodagem, muitos ferroviários, alguns da fábrica de
chocolate, carregadores do porto, estivadores das docas. 422

418
AMADO, 1990. Apud RAILLARD, Alice. Conversando com... Op. cit., p. 33
419
Ibidem, p. 32.
420
Idem. São Jorge dos Ilhéus. São Paulo: Livraria Martins, 1944. P. 332. Livro Virtual. Disponível em
https://drive.google.com/drive/folders/1UBS-fUaPENxJeCuY_S5nom1B60_Zy5Cu. Acesso em 20 jun. 2019, p.
131.
421
Ibidem, p. 131-132.
422
Ibidem, p. 132.
90

A “Ilha das Cobras”, como veremos mais adiante através dos jornais, era um conjunto
de ruas localizadas próxima ao centro da cidade, entre a estação de trem e o morro onde se
localiza o bairro Conquista. Nos anos 1920 esse espaço era considerado zona suburbana, pelo
fato de ser um local de habitação popular dos sujeitos subalternizados, ou “mal afamados”, e
não recebia grande parte dos melhoramentos públicos que chegavam para a área central,
localizada a poucos metros.
Esse era o espaço “onde os mais pobres moravam, aqueles que não podiam pagar sequer
uma cabana, nem na Conquista, nem no Unhão”423, e a maioria das moradias encontradas ali
eram os “mocambos de palha, [com] as paredes de barro batido”. Em resumo, a “Ilha das
Cobras” era o “lugar onde os ilheenses nunca levavam os turistas que saltavam dos aviões no
interesse de conhecer a civilização do cacau.”424
De acordo com Pesavento,

Uma cidade é, sem dúvida, antes de tudo, uma materialidade de espaços construídos
e vazios, assim como é um tecido de relações sociais, mas o que importa, na produção
do seu imaginário social, é a atribuição de sentido, que lhe é dado, de forma individual
e coletiva, pelos indivíduos que nela habitam.425

Vimos no segundo capítulo que o imaginário social da cidade foi construído a partir da
valorização de um “projeto civilizador”, destacando-se sempre as ideias de progresso,
civilidade e moralidade. Contudo, é visível na ficção amadiana outros sentidos atribuídos aos
espaços urbanos, sendo os bairros “proletários” considerados pelo autor como lugares
miseráveis, onde prevaleciam as péssimas condições de vida devido à exploração sofrida pelos
trabalhadores, aos baixos salários e ao “esquecimento” do poder público sobre aquela área e
seus habitantes. O escritor também demonstrou, por meio de sua narrativa, que a “Ilha das
Cobras”, bem como outros bairros como a Conquista e o Unhão (Outeiro), eram vistos pela
população de Ilhéus e pelo poder municipal como bairros perigosos, habitados por vadios,
ladrões, desordeiros, vigaristas e todo tipo de pessoas fora dos padrões de moralidade desejados.
A única intervenção pública frequente nesses bairros era a da polícia, que buscava reprimir os
focos de desordem e imoralidade, além da “ameaça comunista”.426

423
Ibidem, p. 131.
424
Ibidem.
425
PESAVENTO, Sandra. O Imaginário da Cidade... Op. cit., p. 32.
426
AMADO, Jorge. São Jorge dos Ilhéus... Op. cit., p. 134-135.
91

E para deixar ainda mais nítido o contraste social vivenciado na “Rainha do Sul”, o
narrador manifestou a diferença entre o centro da cidade, iluminado pelas “luzes do progresso”,
até o bairro “proletário”, mal iluminado com pequenas lâmpadas em postes de madeira:

No centro da cidade, nas avenidas junto ao mar, nas ruas de botequins próximos ao
porto, a iluminação era farta, os focos de luz iluminavam o caminho daqueles que se
recolhiam. Mas à proporção que a cidade caminhava para os morros, as luzes
diminuíam, os postes mais distantes uns dos outros, não eram mais os postes de ferro
torneado de três globos elétricos, elegantes e poderosos das avenidas, eram uns postes
altos de madeira, com uma lâmpada minúscula em cima. Apenas iluminavam um
metro em redor, manchas de luz na escuridão que a chuva aumentava.427

Enquanto isso, nas humildes habitações dos operários brilhavam fracamente as luzes
vermelhas dos candeeiros ou fifós: “Uma que outra lâmpada elétrica brilhava no interior de
algumas cabanas. Na maioria, porém, bruxuleava a luz vermelha dos candieiros, pondo mais
sombra que claridade nos interiores.”428 E em uma dessas casas “Numa saleta de barro batido,
(...) o fifó ilumina[va] os rostos cansados de alguns homens.”429
Além de percebermos as referências feitas à realidade material da cidade na década de
1930, também é possível analisar essas passagens sobre a iluminação das ruas e das casas como
uma analogia ao progresso, e talvez à modernidade, e à esperança de mudança social comunista.
Essas descrições de “iluminação farta” e “luz que iluminavam o caminho”, bem como a sua
diminuição em direção aos bairros suburbanos e as “manchas de luz na escuridão”, ou a luz
vermelha do fifó que “ilumina os rostos cansados de alguns homens” podem ser vistas como
metáforas ou alegorias da vida moderna e da célula comunista que havia sido implantada em
Ilhéus.
No primeiro caso, a presença abundante de iluminação pública no centro da cidade
demonstra o avanço das forças produtivas na sociedade cacaueira, que permitiu a introdução e
o aumento da quantidade de melhoramentos urbanos e tecnológicos manifestados naquele
espaço como progresso e civilidade. Em contrapartida, enquanto se tomava distância daquela
zona em direção aos espaços subalternizados, as “luzes” do progresso iam diminuindo e se
tornavam apenas “manchas”, sendo possível perceber a separação entre aquele mundo
“moderno” e civilizado, e esse outro mundo de “atrasos”, “imoralidade”; em suma, um “mundo
de escuridão”. Por outro lado, a luz vermelha dos candeeiros aparece como o modo mais
frequente de iluminação das casas dos trabalhadores, que “ilumina” seus “rostos cansados”,
demonstrando que o progresso ainda não os alcançou.

427
Ibidem, p. 131-132.
428
Ibidem, p. 132.
429
Ibidem, p. 141
92

Essa descrição da “luz vermelha”, que brilha nas casas do bairro proletário e ilumina os
trabalhadores, também pode ser lida como uma analogia ao Comunismo e seu papel libertador
por meio da instrução, daqueles homens e mulheres subalternizados, para a promoção da
mudança social. Isso porque, no romance, o personagem Joaquim era uma das lideranças do PC
em Ilhéus e ia até à Ilha das Cobras e à Conquista para se reunir com sujeitos pertencentes ao
“operariado” em pequenas células naquelas “cabanas” onde moravam. Finalmente, quando o
narrador diz que a luz vermelha do candeeiro colocava “mais sombra que claridade nos
interiores”430, pode ser uma metáfora para a ignorância do proletariado e sua dificuldade no
entendimento da teoria revolucionária.
O próprio Jorge Amado já comentou que “nunca lera Marx” e que não sabia se seus
amigos do partido o leram, mas afirmava com certeza que “a maioria dos líderes do PC sem
dúvida jamais o leu.”431 Em Navegação de Cabotagem ele voltou a afirmar que muitos dos
intelectuais dirigentes do partido e líderes de células liam sem entender as “brochuras traduzidas
do russo ou do chinês para o espanhol”432, “arrotando” teorias.
Ainda em São Jorge dos Ilhéus, o escritor mencionou outros aspectos da cidade e a
diversidade de seus habitantes, como as prostitutas dos diversos cabarés de ricos e de pobres, a
rua das rameiras, as casas de jogos, os bares e os bêbados, os mendigos e os biribanos. Esses
últimos, segundo o narrador, eram os “meninos abandonados” que jogavam futebol na praia
com “bola de pano, os gritos alegres, o olhar malicioso”433 e no fim do dia “cansados do jogo.
Dormirão sob as pontes, nos bancos de jardim, no vão das casas abandonadas.”434 As suas
primeiras experiências “profissionais” era o “roubo de postas de bacalhau e pedaços de carne
seca nas casas de comércio. Por vezes levavam a caixa de dinheiro também, mas isso era raro.
Alguns continuavam na profissão (...)”.435 Em suma, os “biribanos” eram os filhos dos
habitantes dos bairros proletários, Conquista, Unhão e, principalmente, da Ilha das Cobras.
O narrador também descreve essas crianças como “negrinhos e mulatinhos” que tinham
a “pele sobre os ossos, escaveirados” de coloração amarelada, provavelmente causada por
alguma doença ou falta de vitaminas, além disso, eram “sabidos de fazer medo.”436 Da mesma
forma que os meninos das fazendas, estes da Ilha das Cobras morriam com facilidade, devido

430
Ibidem, p. 132.
431
Idem, 1990. Apud RAILLARD, Alice. Conversando com... Op. cit., p. 74
432
Idem. Navegação de Cabotagem: apontamentos para um livro de memória que jamais escreverei. São Paulo:
Companhia das Letras, 2012, p. 32. Livro Virtual. Disponível em: https://lelivros.love/book/download-navegacao-
de-cabotagem-jorge-amado-em-epub-mobi-e-pdf/. Acessado em 25 de set. de 2019.
433
Idem. São Jorge dos Ilhéus... Op. cit., p. 53.
434
Ibidem, p. 55-56.
435
Ibidem, p. 135.
436
Ibidem, p. 134.
93

à falta de condições sanitárias e deficiências alimentares pelas quais passavam. De acordo com
o narrador, esses moleques

Enquanto eram pequenininhos chafurdavam na lama da Ilha das Cobras e, como se


achassem pouco, dedicavam parte do dia a pescar siris nos pântanos próximos.
Voltavam com os pés negros da lama do mar, alguns siris dependurados em uma corda
improvisada com cipós. Por vezes esses siris eram o jantar de uma família.437

Por vezes, na narrativa, fica evidente a situação de carestia de vida pela qual passava
dos habitantes mais pobres da cidade. Além desses siris, mencionados anteriormente como uma
alternativa de jantar das famílias menos abastadas, outra opção para o sustento da casa era o
cultivo de pimenta, limões e tangerinas nos quintais e sua venda no mercado municipal. No
romance, o narrador ainda destacou essa situação enfatizando que “Ilhéus era uma cidade de
vida cara, talvez a cidade de vida mais cara do Brasil. Qualquer legume custava um dinheirão,
a carne andava por um preço absurdo, todos os produtos, mesmo os mais necessários, vinham
de fora (...)”.438 E, do mesmo modo, os aluguéis tinham preços abusivos, pois “por mais rápido
que andasse o crescimento das ruas da cidade, ainda assim o número de casas era insuficiente
para os moradores.”439
Mesmo assim a fama da riqueza de Ilhéus e da região cacaueira atraía migrantes de
diversos lugares do nordeste que fugiam da seca, fincando suas “barracas miseráveis” nas
proximidades do mercado municipal: “era a mesma gente magra e triste que desciam das terras
pobres do Norte em busca de trabalho nas terras ricas do cacau”440 e seguiam “nas segundas-
classes dos trens” para as grandes fazendas produtoras do “fruto de ouro”.
Em certo ponto da narrativa, o narrador assume a postura de um flâneur urbano, “que
se delicia com o andar sem rumo pelas ruas (...) não escapando o menor detalhe à sua
observação.”441 Contando sobre a ida de Jeremias até a reunião da célula comunista em uma
casa na Ilha das Cobras, a voz narrativa destaca o vazio das ruas encharcadas pela chuva que
caia,

apenas os bares ficaram apinhados de gente. A orquestra do “El-Dorado”, um dos


cabarés da cidade, acompanha Joaquim durante um pedaço de caminho, jazz
estridente, bom para dançar. Joaquim caminha com cuidado, seus sapatos são feitos
com solas de pneu velho e escorregam com grande facilidade. As notas estridentes do
clarinete do jazz vêm morrer na chuva, Joaquim atravessa a rua do Sebo, onde moram

437
Ibidem, p. 135.
438
Ibidem, p. 59.
439
Ibidem.
440
Ibidem, p. 61.
441
PESAVENTO, Sandra. O Imaginário da Cidade... Op. cit., p. 64.
94

rameiras baratas. Uma o chama através da janela, ele apressa o passo. Quase escorrega
na esquina, volta a andar devagar.442

É importante destacarmos algo interessante nesse trecho, a rua do Sebo, local de moradia
das “rameiras baratas”. É visível uma hierarquização até dos espaços de habitação dessas
profissionais do sexo, enquanto as mais baratas viviam próximas às ruas sem calcamento e
outros serviços públicos, as mais caras moravam na rua São Sebastião, no centro da urbe.443
Essa diferenciação é ainda visível em relação aos cabarés e seus frequentadores, bem como suas
localizações. O “Trianon”, que era o mais luxuoso, onde “quase só os coronéis e os exportadores
tinham entrada” e “faziam ponto as rameiras mais caras, as francesas e as polacas”, ficava numa
rua de frente para o mar; o “Bataclã”, mais democrático, “era na rua do Unhão, diante do porto”;
o “El-Dorado” era um humilde espaço onde os empregados do comércio festejavam; “o “Far-
West”, na rua do Sapo, atraía os capatazes chegados das fazendas, pequenos lavradores,
estivadores e gente do mar. (...) Por vezes havia barulhos, a polícia intervinha.”444 E, finalmente,
existia o “Retiro”, “um sórdido cabaré na beira do cais, onde cerveja era luxo. Iam operários,
trabalhadores do campo que baixavam à cidade, malandros, vagabundos e ladrões.”445 Em todos
eles a jogatina era frequente, a embriaguez habitual e a prostituição quase obrigatória.
Podemos dizer que Jorge Amado construiu uma outra imagem da cidade, que no auge
de sua riqueza era pensada como lugar de vícios, excessos e imoralidades. Como exemplo disso
o escritor, através do narrador do romance, destaca o “Terno do Ipicilone”, um tipo de “festejo”
“que, pela madrugada, quando a cidade dormia, homens e mulheres, embriagados, arrancavam
saias e calças, e, seminus, marchavam do cabaré para as ruas de rameiras, cantando a canção
oficial do “Terno”.”446 Ademais, existiam os vícios nas bebidas alcoólicas e nas drogas, como
a cocaína, consumida também nos cabarés pelos “mocinhos ricos”. Em suma, resume-se que
“A alta [do cacau] trazia na sua festa de dinheiro quanta coisa boa e ruim, havia pelas cidades
grandes.” 447
Após o período de alta forçada nos preços da amêndoa do cacau, a cidade entrou em um
estado de decadência. Os coronéis, empobrecidos pelas dívidas que contraíram com os
exportadores e suas casas comerciais, tiveram que leiloar suas fazendas para quitar suas dívidas.
Isso provocou o desemprego de vários “alugados” e sua expulsão das terras onde trabalhavam,

442
AMADO, Jorge. São Jorge dos Ilhéus... Op. cit., p. 136.
443
Ibidem, p. 280.
444
Ibidem, p. 172-173.
445
Ibidem, p. 173.
446
Ibidem.
447
Ibidem, p. 231.
95

tendo como única opção seguir para as zonas urbanas. Sem dinheiro e sem habitação certa,
esses homens e mulheres passaram da condição de trabalhadores para a de pedintes, tendo de
viver em barracas improvisadas no porto da cidade esperando alguma solução da intendência.
Em Gabriela, Cravo e Canela, as contradições sociais narradas em São Jorge dos Ilhéus
aparecem de forma menos escancarada, o tom humorístico define de forma irônica como são
apresentadas as desigualdades vividas na cidade. Enquanto nos romances anteriores da saga do
cacau o escritor descreveu com crueza de detalhe as condições desumanas e miseráveis em que
viviam os trabalhadores, em Gabriela, Amado optou por utilizar um tom mais leve, porém ainda
ácido. Aparentemente, não há uma crítica social densa em relação às condições de vida dos
subalternos que habitavam a urbe, contudo, por meio de uma leitura mais atenciosa, é visível o
julgamento do autor em relação aos contrastes urbanos, econômicos e sociais em Ilhéus.
É importante enfatizarmos que São Jorge dos Ilhéus foi escrito enquanto o romancista
ainda fazia parte dos quadros do Partido Comunista, e, por esse motivo, a crítica social mais
aberta era uma característica que se sobressaia. Amado reconheceu que, enquanto estava no
partido, a função social da arte era mais valorizada do que os seus aspectos puramente estéticos
e era papel dos artistas denunciarem as explorações do sistema Capitalista sobre a classe
trabalhadora, ao mesmo tempo, deviam direcionar o proletariado para o caminho
revolucionário.448 Para Duarte, esse romance “cumpre o propósito do texto político engajado
nos objetivos de curto prazo: formar um pensamento, contar a história não-oficial, propagar a
utopia.”449
Ainda de acordo com Eduardo de Assis Duarte, no período de escrita e publicação de
São Jorge dos Ilhéus, “o autor estava imbuído da cega disciplina militante, fruto do centralismo
leninista e de um verdadeiro culto da ideologia.”450 É por esse motivo que nessa narrativa há
um “sentido fortemente panfletário que impregna o texto (...) e que cumpre objetivos de curto
prazo.”451
Por outro lado, nas palavras do próprio romancista, “Gabriela aparece como uma etapa
clara de uma outra época” na obra do escritor.452

O que caracteriza Gabriela é uma respiração mais ampla, um conhecimento mais


profundo da realidade, uma complexidade muito maior. Se há um elemento novo e
importante, mais importante do que tudo que caracteriza meus livros anteriores, é o

448
Ver: AMADO, Jorge. Navegação de Cabotagem... Op. cit.
449
DUARTE, Eduardo de Assis. Jorge Amado... Op. cit., p. 189.
450
Ibidem, p. 201.
451
Ibidem.
452
AMADO, 1990. Apud RAILLARD, Alice. Conversando com... Op. cit., p. 267.
96

humor. Ele surge em minha obra com Gabriela, e depois ficou para sempre, e é um
dos elementos fundamentais da minha criação.453

E isso não impediu Amado de escrever um romance realista que representasse a


sociedade cacaueira, apresentando denúncias contra o tradicionalismo arcaico e o sexismo dos
habitantes de Ilhéus.
Vale destacar também a desilusão pela qual passou o romancista em 1956, depois do
20º Congresso Comunista, que culminou com a descoberta e divulgação dos crimes de Stalin
ocasionando o distanciamento de Jorge Amado do Partido Comunista e consequentemente a
mudança em seu processo de criação literária.454
Como vimos no Capítulo 2, o espaço urbano da cidade foi representado no romance
como um lugar em constantes transformações materiais, por meio de melhoramentos públicos
e novas construções privadas, e sociais, com a adoção de novos hábitos por parte da população
que vivia no centro. O narrador afirma que “A cidade ia perdendo, a cada dia, aquele ar de
acampamento guerreiro que a caracterizara no tempo da conquista da terra: fazendeiros
montados a cavalo, de revólver à cinta, amedrontadores jagunços de repetição em punho
atravessando ruas sem calçamento (...)”.455 Todavia, mesmo com os nítidos indícios de
progresso e civilidade, também é ressaltado que ainda eram visíveis algumas “marcas do
passado” em Ilhéus:

(...) ainda se misturavam em suas ruas esse impetuoso progresso, esse futuro de
grandezas, com os restos dos tempos da conquista da terra, de um próximo passado
de lutas e bandidos. Ainda as tropas de burros, conduzindo cacau para os armazéns
dos exportadores, invadiam o centro comercial, misturando-se aos caminhões que
começavam a fazer-lhes frente. Passavam ainda muitos homens calçados de botas,
exibindo revólveres, estouravam ainda facilmente arruaças nas ruas de canto,
jagunços conhecidos arrotavam valentias nos botequins baratos, de quando em vez
um assassinato era cometido em plena rua. Cruzavam essas figuras, nas ruas calçadas
e limpas, com exportadores prósperos, vestidos com elegância por alfaiates vindos da
Bahia, com incontáveis caixeiros-viajantes ruidosos e cordiais, sabendo sempre as
últimas anedotas, com os médicos, advogados, dentistas, agrônomos, engenheiros,
chegados a cada navio.456

De acordo com Sandra Pesavento, no processo de remodelação e urbanização do Rio de


Janeiro, em fins do século XIX, os poderes públicos, de modo a criarem uma nova identidade
para a velha cidade colonial e promover uma imagem moderna, efetuaram uma série de

453
Ibidem.
454
Ver: DARMAROS, Marina. Caso Jorge Amado: O poder soviético e a publicação de Gabriela, Cravo e Canela.
2020. Tese (Doutorado em Literatura e Cultura russa) – Faculdade de Filosofia, Letras e Ciências Humanas da
Universidade de São Paulo, São Paulo, 2020.
455
AMADO, Jorge. Gabriela, Cravo e Canela... Op. cit., p. 23-24
456
Ibidem, p. 24
97

demolições dos elementos urbanos que remetiam ao passado. Nas palavras da historiadora: “Os
referenciais da cidade velha iam, aos poucos, sendo destruídos, e a percepção espacial
reorientava aquela do tempo: o Rio apagava o seu passado e inscrevia o seu futuro no
presente.”457 As formas urbanas mudavam, porém, os velhos hábitos ainda persistiam no tecido
social da metrópole em transformação:

Fossem só materiais e concretas as imagens do contraste entre o velho/condenado e o


novo/desejado, e a tarefa de construir uma cidade realmente maravilhosa seria fácil...
Mas havia as socialidades antigas, os velhos hábitos denunciadores de barbárie,
aliados à ignorância do povo.458

Percebemos uma situação parecida em Ilhéus, narrada em Gabriela, Cravo e Canela e


pelos redatores dos jornais que circulavam na cidade, como veremos a frente. Contudo, ambos
ressaltavam questões diferentes relacionados a esses “velhos hábitos denunciadores de
barbárie”. O narrador, por exemplo, associou o atraso e o tradicionalismo dos habitantes do
município ao coronelismo que vigorava naqueles tempos e não permitia que novas ideias e
novos hábitos, vindos das grandes cidades, encontrassem aprovação no seio da sociedade
cacaueira, tudo em nome da moralidade cristã.
Algumas práticas sociais do período do “desbravamento” das terras do cacau ainda
faziam parte do dia-a-dia da cidade, como o costume de andar armado: “ANDANDO PARA A
ESTRADA DE FERRO, NA HORA TRISTE DO CREPÚSCULO, O CHAPELÃO de abas
largas, o revólver na cinta, Nacib recordava Sinhazinha.”459 O narrador acrescenta que, mesmo
com as nítidas mudanças materiais e simbólicas, Ilhéus ainda “estava longe de ser realmente
civilizada. Falava-se muito em progresso, o dinheiro corria solto, o cacau rasgava estradas,
erguia povoados, mudava o aspecto da cidade, mas conservavam-se os costumes antigos, aquele
horror.”460 Essa situação se tornou evidente com a notícia do assassinato de Sinhazinha e
Osmundo pelo coronel Jesuíno, marido traído.
Em suma, demonstra-se que:

Modificava-se a fisionomia da cidade, abriam-se ruas, importavam-se automóveis,


construíam-se palacetes, rasgavam-se estradas, publicavam-se jornais, fundavam-se
clubes, transformava-se Ilhéus. Mais lentamente porém evoluíam os costumes, os
hábitos dos homens. Assim acontece sempre, em todas as sociedades. 461

457
PESAVENTO, Sandra. O Imaginário da Cidade... Op. cit., p. 185.
458
Ibidem.
459
AMADO, Jorge. Gabriela, Cravo e Canela... Op. cit., p. 127.
460
Ibidem, p. 128.
461
Ibidem, p. 12.
98

Pesavento constata a recorrência da identificação da cidade com a ideia de civilização e


cultura, ao mesmo tempo em que “seja também associada aos termos da barbárie e
selvageria.”462 De acordo com a historiadora, “As metáforas da selva e da jungle, nitidamente
antiurbanas, convivem com a noção de urbanidade, que exprime uma conduta social adequada
e a polidez nas relações humanas.”463 E é isso que vemos na maior parte de Gabriela, Cravo e
Canela, quando é narrada as inovações na arquitetura e formas urbanas e as novas práticas
sociais de lazer que se misturavam aos velhos costumes de mando, de violência, de
demonstração de “macheza”: “Na feira explodia uma rixa, gente corria, uma navalha brilhava
aos últimos raios do sol, os gritos chegavam até ali. Todo fim de feira era assim, com bêbedos
e barulhos.”464 Bem como antigos prédios e ruas ainda faziam parte da configuração urbana.
Da mesma forma que em São Jorge dos Ilhéus, também nos é possibilitado pelo narrador
da trama perceber a diversidade de habitantes da cidade e dos diferentes espaços em que viviam
ou frequentavam. Exemplo disso é quando Nacib vai em busca de uma nova cozinheira nos
morros e em outros locais de habitação populares da cidade: “INICIARA A DESESPERADA
BUSCA PELO MORRO DO UNHÃO. (...) Nacib percorrera Ilhéus de ponta a ponta, naquela
primeira manhã de sol após a longa estação das chuvas.”465 Desfazendo o acordo com duas
“cabrochas” que iriam ajudar sua antiga cozinheira nos preparativos do banquete para a festa
de inauguração da empresa de ônibus da cidade, o protagonista recebeu informações de que no
morro da Conquista encontraria outra, famosa e de “mão-cheia”.466
Então,

Nacib tocou-se para a Conquista, a ladeira ainda escorregadia das chuvas, um grupo
de negrinhas a rir quando ele caiu, sujando os fundilhos da calça. De informação em
informação, localizou a casa da cozinheira. No alto do morro. Uma casinha de madeira
e zinco. Daquela vez ia com certa esperança. Seu Eduardo, dono de vacas leiteiras,
confirmara-lhe os predicados de Mariazinha. Trabalhara uns tempos em sua casa,
tinha um tempero de fazer gosto. Seu único defeito era a bebida, cachaceira
memorável.
Quando bebia pintava o diabo: faltara com o respeito a dona Mariana, por isso
Eduardo a despedira.467

462
PESAVENTO, Sandra. O Imaginário da Cidade... Op. cit., p. 44.
463
Ibidem.
464
AMADO, Jorge. Gabriela, Cravo e Canela... Op. cit., p. 130.
465
Ibidem, p. 67.
466
Ibidem.
467
Ibidem, p. 68.
99

Após ouvir a recusa de sua oferta de trabalho, Nacib seguiu para a feira da cidade onde
lhe aconselham a ir até o Pontal, a fim de continuar sua busca. O sírio logo “Tomou a canoa,
atravessou o ancoradouro. Andou pelas poucas ruas de areia, sob o sol, onde crianças pobres
jogavam futebol com bola de meia.”468 Contudo, não obteve sucesso na procura de uma nova
cozinheira nesse local. No fim do dia, decidindo ir até o “mercado dos escravos”, espaço onde
os migrantes que vinham do sertão fugindo da seca armavam suas barracas à espera de um
emprego nas roças de cacau469, o protagonista finalmente encontrou sua cozinheira, Gabriela.
É interessante ressaltarmos algumas características físicas dessas mulheres
trabalhadoras apresentadas pelo narrador. É dito que uma das “cabrochas” do Unhão tinha a
“boca sem dentes”; Mariazinha, da Conquista, morava em uma “casinhola miserável” e estava
“sentada à porta (...) [com] os pés descalços, a pentear os cabelos compridos, a matar piolhos.
Era uma mulher de uns trinta, trinta e cinco anos, gasta pela bebida.”470 Na feira, Nacib ofereceu
trabalho a “Uma negra gorda, um torso na cabeça, colares e pulseiras”471, que lhe torceu o nariz.
Ainda nesse espaço, viu uma diversidade de objetos, animais e indivíduos:

Árabes pobres, mascates das estradas, exibiam suas malas abertas, berliques e
berloques, cortes baratos de chita, colares falsos e vistosos, anéis brilhantes de vidro,
perfumes com nomes estrangeiros, fabricados em São Paulo. Mulatas e negras,
empregadas nas casas ricas, amontoavam-se ante as malas abertas (...). Um camelô,
com uma cobra mansa e um pequeno jacaré, anunciava a cura de todas as moléstias
para um grupo a cercá-lo. (...) Bilhas de barro, moringas, potes para água fresca,
panelas, cuscuzeiros, e cavalos, bois, cachorros, galos, jagunços com suas repetições,
homens montados, soldados de polícia e cenas de tocaia, de enterro e casamento,
valendo um tostão, dois, um cruzado, obra das mãos toscas e sábias dos artesãos. Um
negro quase tão alto quanto Nacib virava um copo de cachaça de um trago, cuspia
grosso no chão.472

Finalmente, quando encontrou Gabriela, é dito que a personagem estava em um estado


deplorável, igualmente a todos retirantes que se encontravam no “mercado dos escravos”: “Uns
molambos, uma imundície, os cabelos duros de pó.”473
Também percebemos o contraste espacial da cidade com maior nitidez quando o
narrador comenta a respeito da repercussão do assassinato de Sinhazinha e do Dr. Osmundo:

A NOTÍCIA DO CRIME ESPALHARA-SE NUM ABRIR E FECHAR DE OLHOS.


Do morro do Unhão ao morro da Conquista, nas casas elegantes da praia e nos

468
Ibidem, p. 71.
469
Ibidem.
470
Ibidem, p. 68.
471
Ibidem, p. 69.
472
Ibidem, p. 70-71.
473
Ibidem, p. 141.
100

casebres da ilha das Cobras, no Pontal e no Malhado, nas residências familiares e nas
casas de mulheres públicas, comentava-se o acontecido.474

Verificamos nesse trecho a existência de diferentes espaços que também faziam parte
da cidade, além do centro que se transformava e civilizava – local onde ocorreu o bárbaro
assassinato, controvertendo o seu status de civilidade. Além disso, observamos a recorrência
desses lugares e dos sujeitos que os habitam nos romances de Jorge Amado ambientados na
região cacaueira, bem como aos temas relacionados aos subalternizados.
Uma das temáticas abordadas em todos os romances da saga do cacau é a migração de
sergipanos e demais retirantes, que vêm do sertão do norte da Bahia ou de outros estados do
Nordeste, fugindo da seca, da extrema pobreza de onde nasceram ou motivados pela fama de
prosperidade e riqueza fácil que corria sobre as terras do cacau.

(...) a fama de Ilhéus corria mundo, os cegos cantavam suas grandezas nas violas, os
caixeiros-viajantes falavam daquelas terras de fartura e valentia, ali um homem se
arranjava num abrir e fechar de olhos, não havia lavoura mais próspera que a do cacau.
Os bandos de imigrantes desciam do sertão, a seca nos seus calcanhares,
abandonavam a terra árida onde o gado morria e as plantações não vingavam,
tomavam as picadas em direção ao sul. (...). Chegavam dizimados, restos de famílias,
quase mortos de cansaço, mas os corações pulsavam de esperança naquele dia
derradeiro de marcha. Um pouco mais de esforço e teriam atingido a cidade rica e
fácil. As terras do cacau onde dinheiro era lixo nas ruas.475

E quando chegavam à cidade, por não terem dinheiro para alugar pensões nos bairros
mais pobres, iam direto para o “mercado dos escravos”, onde armavam suas barracas e ficavam
acampados.

Antes de começar o morro da Conquista ficava o “mercado dos escravos”. Alguém


assim apelidara, há tempos, o lugar onde os retirantes acampavam à espera de
trabalho. O nome pegara, ninguém chamava de outra maneira. Amontoavam-se ali os
sertanejos fugidos da seca, os mais pobres entre quantos deixavam suas casas e suas
terras no apelo do cacau.476

Mais uma vez, o narrador, através desses trechos, demonstra a situação de extrema
pobreza e desigualdade social existente na “Capital do Cacau” Ilhéus, considerada uma cidade
rica, bela e civilizada. Mas como observamos, a urbe não era feita somente pelo que suas
representações sociais apresentavam e ainda apresentam: a estética moderna, o alto grau de

474
Ibidem, p. 105.
475
Ibidem, p. 94
476
Ibidem, p. 130.
101

civilidade ou suas transformações materiais; e o escritor ainda revelada outros “traços” da


“Rainha do Sul” para seu leitor.
Em certo ponto da narrativa, Nacib, ao presenciar o cortejo do enterro de Osmundo e
Sinhazinha pensou: “Vida salafrária, cheia de hipocrisia, cidade sem coração onde só o dinheiro
contava.”477 Sandra Pesavento, analisando as representações literárias da Paris moderna,
afirmou que nelas “A cidade é, na mesma medida, monstro devorador e mãe que dá guarida e
refúgio a todos os seus filhos, suscitando aquela atitude de atração-repúdio típica da
modernidade de que nos fala Berman.”478 É isso que vemos na Ilhéus representada em alguns
pontos do romance Gabriela, Cravo e Canela, uma cidade que ao mesmo tempo devora
indivíduos, mastiga-os e cospe o produto daquela sociedade, finalmente tornando-se mãe dos
homens e mulheres grapiúnas – uma mãe que claramente dá a mão aos filhos mais poderosos e
negligencia os que mais precisam de ajuda.
Assim como em São Jorge dos Ilhéus, em Gabriela o escritor também apresentou uma
diferenciação nos “espaços de prazer” masculino, os cabarés, que geralmente tinha suas
localizações relacionadas ao contraste socioespacial urbano. Constatamos isso quando o
narrador escreve que “O Bataclan e o Trianon eram os principais cabarés de Ilhéus,
frequentados pelos exportadores, fazendeiros, comerciantes, viajantes de grandes firmas.”479
Em contrapartida, “nas ruas de canto havia outros, onde se misturavam trabalhadores do porto,
gente vinda das roças, as mulheres mais baratas. O jogo era franco em todos eles, garantindo os
lucros.”480
A cidade vício, palco de imoralidades, aparece novamente nesse romance, quando
examinamos a presença constante dos personagens masculinos da trama nos cabarés ou nas
casas de “mulheres damas”. Identificamos na narrativa a aceitação dos “cabarés, as casas de
mulheres da vida, a orgia desenfreada das noites de Ilhéus. Os homens precisavam daquilo (...)”,
isso por parte do Coronel Ramiro e seus companheiros que dominavam a cidade e julgavam
como negativo e imoral as inovações levadas por Mundinho, como o Clube Progresso.481 Dessa
forma, a hipocrisia da consciência burguesa conservadora de alguns personagens, apontada pelo
narrador, é considerada a motivadora da falta de religiosidade dos habitantes de Ilhéus.
Pesavento declara que “A cidade é, ao mesmo tempo, o teatro alegórico de realização
da virtude e do vício, agora inseparáveis, o que permite uma relativização dos valores e um

477
Ibidem, p. 149.
478
PESAVENTO, Sandra. O Imaginário da Cidade... Op. cit., p. 48.
479
AMADO, Jorge. Gabriela, Cravo e Canela... Op. cit., p. 142.
480
Ibidem.
481
Ibidem, p. 74.
102

certo ceticismo diante da ambivalência de um processo que nela habitam.”482 É justamente isso
que notamos nos pensamentos do personagem Ramiro, que ao aceitar a existência dos cabarés
e das “casas de damas” estaria aceitando a imoralidade na urbe, contudo, não concorda com a
presença de um clube de dança para os jovens e as mulheres casadas por ser considerado um
lugar que fere os princípios da família cristã. O que torna esse pensamento mais contraditório
é o fato de que “os coronéis do cacau não primavam pela religiosidade, não frequentavam
igrejas, rebeldes à missa e à confissão, deixando essas fraquezas para as fêmeas da família”.483
Outro ponto a ser destacado no romance é a assimetria da distribuição de melhoramentos
públicos entre os bairros da cidade. Enquanto o centro da urbe recebia a maior parte dos novos
serviços e passava por reformas “modernizantes”, os arrabaldes, ou bairros pobres,
continuavam com ruas sem calçamento, de barro ou areia, como era o caso do Pontal, do Unhão
e da Conquista. Esses locais também eram considerados bairros perigosos, por facilitarem a
fuga ou o esconderijo de foras da lei em seus “bosques ralos de árvores, [e] densos de mato”484,
como foi o caso do personagem Fagundes ao atirar contra o intendente de Itabuna.
Nessa situação em particular, o narrador da estória comenta que durante a busca pelo
criminoso a polícia entrou “nas casas pobres, vasculhando-as de alto a baixo”485, uma atitude
típica da Primeira República. De acordo com Sidney Chalhoub, neste período a polícia agia “a
partir do pressuposto da suspeição generalizada, da premissa de que todo cidadão é suspeito
de alguma coisa até prova em contrário e, é lógico, alguns cidadãos são mais suspeitos do que
outros.”486 Pela inexistência de políticas públicas de igualdade racial e social no Brasil do início
do século XX, geralmente os mais atingidos pelas perseguições e arbitrariedades policiais eram
os pretos e pobres, independentemente se trabalhavam ou não; e em Ilhéus não era diferente.487
O narrador também destaca que a cidade “hospedava numerosos malandros, vigaristas,
batedores de carteira, gente pouco recomendável fugida da Bahia e de outras praças.”488
Podemos imaginar que o poder público municipal acreditava que esses sujeitos viviam nos
bairros pobres, pois era para lá que as forças policiais iam de imediato quando procuravam por
criminosos ou suspeitos. Esse foi o caso da busca por Fernand, o cozinheiro, quando se
suspeitou que ele houvesse sido vítima de algum mal: “O delegado e os soldados bateram o

482
PESAVENTO, Sandra. O Imaginário da Cidade... Op. cit., p. 48.
483
AMADO, Jorge. Gabriela, Cravo e Canela... Op. cit., p. 17.
484
Ibidem, p. 301.
485
Ibidem.
486
CHALHOUB, Sidney. Cidade febril: cortiços e epidemias na Corte Imperial. São Paulo: Companhia das
Letras, 1996. p. 23.
487
Ver: CARVALHO, Philipe Murillo S. de. Trabalhadores... Op. cit., p. 41.
488
AMADO, Jorge. Gabriela, Cravo e Canela... Op. cit., p. 384.
103

porto, o Unhão, a Conquista, o Pontal, a ilha das Cobras.”489 Isso se devia ao fato de que a maior
parte da população desses locais, senão toda ela, era composta por sujeitos subalternizados, a
maioria trabalhadores e ganhadores urbanos.
Em um descampado em frente à Rua do Unhão, próximo ao porto, era possível ver
“Negras [que] vendiam mingau e cuscuz, milho cozido e bolos de tapioca”490, uma delas
“formosa (...) [e] especialista em mingau e cuscuz de puba, descia o morro, o tabuleiro sobre a
cabeça, vestida com a saia colorida de chitão e a bata engomada e decotada a mostrar metade
dos seios rijos.”491 Via-se também os pescadores cedinho, descarregando o peixe fresco e os
carregadores esperando os vapores para o desembarque de malas e objetos de viajantes e o
embarque de sacas de cacau. Nos bairros pobres também se encontravam cozinheiras como
Mariazinha, da Conquista, e lavadeiras como Raimunda, mãe de Tuísca, do Pontal. Nas noites
da cidade era possível encontrar “Os mais pobres casais, mendigos, malandros, putas sem
pouso, [que] faziam sua cama de amor na praia escondida entre os rochedos, embolavam na
areia.”492
No romance, novamente, o narrador assume a postura de um flâneur e nos faz caminhar
com Gabriela por algumas ruas da cidade, quando a personagem foi até o Cabaré Bate-Fundo
entregar um recado ao jagunço Loirinho. Um dos locais pelos quais ela passou foram os “trilhos
da estrada de ferro, [por onde se] chegava às casas pobres das ruas de canto. Mulheres-damas,
de última classe, passavam por ela e a estranhavam.”493 O ambiente do local é descrito como
barulhento, “com músicas de pandeiro e violão”494, e “Da porta do Bate-Fundo, na rua pouco
iluminada, saía um rumor de conversas, de gargalhadas e gritos.”495 O narrador ainda apresenta
uma variedade de sujeitos presentes naquele espaço:

Um velho tocava violão, um rapazola batia pandeiro. Mulheres envelhecidas,


demasiadamente pintadas, algumas bêbedas. Outras eram cabrochas de extrema
juventude. Uma delas, de cabelos escorridos e face magra, não devia ter ainda quinze
anos completos. (...) As mulheres, as velhas e as mocinhas, olhavam-na [Gabriela]
com desconfiança. De onde vinha aquela concorrente, bonita e excitante? Outro
homem também a chamava. O dono do bar, um mulato perneta, andava para ela, a
perna de pau fazendo um ruído seco ao pisar. Um tipo vestido de marinheiro, de um
baiano talvez, passou o braço em torno à sua cintura (...)496

489
Ibidem.
490
Ibidem, p. 28.
491
Ibidem.
492
Ibidem, p. 240-241.
493
Ibidem, p. 307.
494
Ibidem, p. 308.
495
Idem.
496
Ibidem.
104

Finalmente, perto do final do romance, comenta-se sobre as comemorações de fim de


ano em todos os bairros subalternos, com “sambas de umbigada nas casas pobres dos morros,
da ilha das Cobras. A cidade festiva e festeira, cachaçadas e brigas nos cabarés e botequins das
ruas de canto. Cheios os bares e os cabarés do centro.”497 O escritor fecha o livro com uma
representação festiva para a Ilhéus do cacau, a cidade se tornou o espaço da celebração da
felicidade de Nacib e Gabriela, bem como de todos os habitantes que “conquistaram” o tão
sonhado porto internacional e a exportação direta do cacau.

Indícios de uma “outra” Ilhéus na Imprensa Escrita Local

Na imprensa escrita local, que circulou na cidade durante a década de 1920, também
foram divulgadas notícias que hoje podem nos revelar os contrastes sociais existentes em Ilhéus,
porém, relegados a pequenas notas ou registros de reclamações. Não houve a intenção, por parte
da redação dos jornais O Commercio e Correio de Ilhéus, de configurar uma narrativa a respeito
da urbe que a representasse considerando os aspectos como a prostituição, a pobreza, a carestia
de vida, a “jogatina desenfreada”, a falta de condições sanitárias nos arrabaldes, entre outros
elementos. Pelo contrário, como vimos no segundo capítulo, foi privilegiada uma representação
positiva, constituída apenas pelas imagens de progresso, beleza e civilização de Ilhéus.
A historiadora Sandra Pesavento explica que as intervenções urbanas ocorridas no Rio
de Janeiro, no fim do século XIX e início do XX, “não se resumiu ao traçado da cidade, mas
pretendeu penetrar fundo nas socialidades e valores do povo.”498 O poder público da capital
federal promoveu uma série de demolições de habitações coletivas (Cortiços) e destruições de
ruas antigas para facilitar a expulsão dos pobres do centro da cidade que se modernizava,
entretanto, isso não foi tudo, também “seguiram-se proibições de hábitos e costumes populares,
numa verdadeira arremetida disciplinatória: cães vadios, vacas, mendigos, pessoas descalças ou
sem paletó são impedidos de circular livremente pela cidade, como até então faziam.”499
Em Ilhéus ocorreu algo parecido, ressalvadas as devidas proporções, e a intendência
municipal sob o comando do médico Mario Pessoa chegou a reformular o Código de Posturas
no ano de 1924, ampliando-o com vistas a “disciplinar e organizar o uso da cidade.”500

497
Ibidem, p. 323.
498
PESAVENTO, Sandra. O Imaginário da Cidade... Op. cit., p. 176.
499
Ibidem.
500
CARVALHO, Philipe Murillo S. de. Trabalhadores... Op. cit., p. 45.
105

O primeiro código tinha sido publicado em 1905 e consistia em modestos 9 capítulos


e 83 artigos, que versavam sobre licenças profissionais, vigilância sanitária e controle
de atividades urbanas (festas, jogos, comércio etc.). A revisão realizada em 1924
ampliou o dispositivo jurídico para 743 artigos, contemplando questões omissas na
versão mais antiga da lei. Num período em que a legislação do trabalho era muito
frágil, foi através deste mecanismo que as autoridades regulamentaram parte das
relações de trabalho de caixeiros, de feirantes e de carroceiros.501

Como temos discutido, a história de Ilhéus foi baseada em uma memória coletiva dos
coronéis do cacau e da classe dominante regional, e dessa forma, quando essa memória se
tornou social, foram preservadas apenas as representações positivas a respeito da cidade,
excluindo delas os sujeitos subalternizados e os bairros onde habitavam. Assim, as imagens que
se propagaram sobre a cidade eram relativas à sua prosperidade, seu “progresso”, urbanização
e sua “civilização”, como se na urbe não existissem desigualdades sociais e todos os cidadãos
tivessem os direitos básicos garantidos. Essa situação fez com que, por muito tempo, homens,
mulheres e espaços urbanos que não estavam diretamente ligados à elite local fossem apagados
da história de Ilhéus.502
É dessa forma que devemos tomar a história como algo inacabado e rememorar o
passado da cidade e dos sujeitos subalternizados, a fim de redimi-los e reparar as injustiças
pelas quais passaram.503 Para isso, fazemos a partir daqui a análise dos indícios que colhemos
nos jornais utilizados nesta pesquisa, a fim de encontrar fragmentos das vozes silenciadas dos
oprimidos para que assim possamos contar uma história “que traga à memória a tradição (...)
dos vencidos.”504 São estes vestígios que nos proporcionam um “despertar” das representações
que fazemos sobre o passado da cidade e cabe a nós, como historiadores, resgatar esses
testemunhos do esquecimento e colocá-los em destaque, despertando “no passado as centelhas
da esperança”, sabendo “que também os mortos não estarão em segurança se o inimigo
vencer.”505
Nos periódicos O Commercio e Correio de Ilhéus as notas e reclamações relacionadas
à violência, prostituição, carestia, insalubridade nos bairros populares, entre outros, eram
comuns e frequentes. Alguns fragmentos nos permitem perceber uma outra realidade daquela

501
Ibidem.
502
Ver: MAHONY, Mary A. Um passado para justificar o presente... Op. cit.; RIBEIRO, André L. R.
Urbanização, poder e práticas... Op. cit.; CARVALHO, Philipe Murillo S. de. Trabalhadores... Op. cit.
503
Ver: BENJAMIN, Walter. Sobre o Conceito da História... Op. cit.; LÖWY, Michael. Walter Benjamin: aviso
de incêndio – uma leitura das teses “Sobre o conceito de história”. Tradução de Wanda Nogueira Caldeira Brant.
São Paulo: Boi Tempo, 2005. p. 50.
504
GINZBURG, Carlo. Sinais: raízes de um paradigma... Op. cit.; PERIUS, Oneide. Walter Benjamin:
considerações sobre o conceito de história. Tempo da Ciência (16) 32: 123-135 2º semestre 2009. p. 130.
505
BENJAMIN, Walter. Sobre o Conceito da História... Op. cit., p. 224-225.
106

cidade considerada a “Princesa do Sul”, sinônimo de progresso e civilidade, e é nessa “cidade


real”506 que alcançamos os vestígios das memórias silenciadas e apagadas.
Da mesma forma que fizemos no tópico anterior, começaremos as análises com o
assunto relacionado à migração, divulgado no jornal O Commercio. Em uma publicação do dia
20 de março de 1922 foi destacada a violência policial contra “um pobre rapaz, filho de
Barcellos, que para aqui emigrou depois de lá em sua terra ter perdido os últimos parentes”507,
chamado Juvenal Jorge dos Passos. Segundo os redatores, o jovem “naturalmente ingênuo e
sem costume de viagem em cidades movimentadas”508 que se dirigiu à Ilhéus em busca de
emprego, certo dia “teve uma necessidade physiologica (sic.) e ao satisfaze-la foi preso
correcionalmente.”509 Juvenal passou seis dias na prisão municipal, onde, segundo afirmou ao
repórter, sofreu vários vexames, inclusive espancamentos a facão pelos praças que estavam de
serviço, deixando suas costas marcadas.
De acordo com Philipe de Carvalho, os migrantes advindos dos estados do norte e
principalmente do Nordeste, onde ocorriam secas frequentes, eram associados “à pobreza e à
miséria, atributos vistos de modo pejorativo pela sociedade da época.”510 Geralmente grupos de
homens e mulheres vinham a procura de melhores condições de vida e um emprego que lhes
proporcionassem um acúmulo de rendas para talvez um dia retornarem aos seus estados de
origem, porém, muitas vezes esses sujeitos acabavam por entrar na mendicância ou na
criminalidade a fim de garantir sua sobrevivência.511 Em todo caso, a maioria dos que chegavam
a Ilhéus e não encontravam alternativas para conseguir dinheiro, ou os que aqui já viviam,
quando não moravam nas ruas ou galpões abandonados, habitavam os bairros suburbanos
considerados “mal afamados”.512
Ainda no ano de 1922, o mesmo jornal publicou outra nota, agora referente aos
“Barracões condenados na rua do Gamelleiro”513, reclamando uma providência à
municipalidade. De acordo com o fragmento, estavam sendo “construindo na rua do
Gamelleiro, dentro do pântano ali existente, barracões de madeiras, pocilgas imundas
condenadas, com o fim de aluga-los aos pobres”514 e alguns casebres de “tabiques” já eram

506
PECHMAN, Robert M. (Org.) Olhares Sobre a Cidade... Op. cit., p. 2.
507
ESPANCADO a facão. O Commercio, Ilhéus, p. 2, ano VI, nº 1132, 20 mar. 1922.
508
Ibidem.
509
Ibidem.
510
CARVALHO, Philipe M. S. de. Trabalhadores, Associativismo... Op. cit., p. 37.
511
Ver: CARVALHO, Philipe M. S. de. Trabalhadores, Associativismo... Op. cit.; FREITAS, Antônio F. G. de;
PARAÍSO, Maria H. B. Caminhos ao Encontro do Mundo... Op. cit.
512
Ibidem. Ibidem.
513
BARRACÕES condenados na Rua do Gameleiro. O Commercio, Ilhéus, p. 2, ano VI, nº 1553, 08 maio 1922.
514
Ibidem.
107

habitados, significando um atentado à higiene pública. O redator da nota apela à intendência


uma solução para que “os charcos do Gamelleiro e imediações” desapareçam para o bem da
saúde pública, pois “eles constituem o maior perigo para as populações circunvizinhas pelos
enormes focos de mosquitos e muriçocas ali desenvolvidos e tão prejudiciais como
transmissores de terríveis enfermidades”515.
A rua do Gamelleiro, mais conhecida como Ilha das cobras516, como vimos na ficção
amadiana, era o local de habitação de uma parcela da população subalternizada da cidade e
ficava próxima ao perímetro central da urbe, onde morava boa parte da burguesia cacaueira.
Para os redatores dos jornais esse espaço subalterno constituía um “risco” para as “boas
famílias” da cidade, seja sanitário, moral ou estético. Sua proximidade, incômoda aos olhos da
elite, também era sentida através do medo das transmissões de doenças provenientes da
insalubridade do local e da ideia de que seria ali o locus da violência e imoralidade de Ilhéus.
Para o poder municipal, era necessário ocultar essa “outra” cidade e, ao mesmo tempo, reprimir
os hábitos perigosos das classes subalternizadas que viviam nesse espaço.517
Pesavento também apresenta a “cidade esgoto” representada na ficção parisiense do
século XIX. Segundo ela, essa “Metáfora da cidade, o esgoto é o outro lado do real, é aquilo
que a cidade não aceita, condena e/ou procura ocultar.”518 No caso de Ilhéus, essa metáfora
pode ser utilizada para identificar o aglomerado de ruas formado pela Rua do Gamelleiro e a 7
de Setembro, bem como o bairro da Conquista e outras localidades consideradas insalubres,
focos de moléstias e depravações. A historiadora conclui seu pensamento afirmando que “É
nesse ponto que consideramos ser o esgoto uma imagem simbólica da "outra Paris", talvez mais
propriamente Paris do que a outra que se exibe à luz do dia.”519 Igualmente, podemos considerar
isso para o caso de Ilhéus.
O bairro da Conquista também era alvo frequente de reclamações e, da mesma forma
que a “Ilha das Cobras”, não recebia a atenção necessária da municipalidade, provocando
desconforto na parcela mais rica da população ilheense. No dia 15 de janeiro de 1924 o Correio
de Ilhéus publicou uma pequena nota, com um tom de denúncia, a respeito do incomodo
causado nesse arrabalde devido à instalação de “cocheiras ou estábulos” em umas de suas ruas.
O autor da publicação alegou que os moradores da localidade pediam uma providência ao Fiscal

515
Ibidem.
516
Ver: SOUB, José Nazal. Minha Ilhéus: fotografias do século XX e um pouco de nossa história. 3 ed. Itabuna:
Via Litterarum, 2013.
517
Ver: CARVALHO, Philipe M. S. de. Trabalhadores, Associativismo... Op. cit., p. 66.
518
PESAVENTO, Sandra. O Imaginário da Cidade... Op. cit., p. 78.
519
Ibidem.
108

Geral do Município, afirmando que a solução mais rápida seria a proibição da instalação ou
manutenção dessas estruturas no local. Para o redator, tal medida contribuiria tanto “para o
trânsito dos moradores daquele subúrbio como [para] a saúde pública”520. A nota é finalizada
com a opinião de que “O fétido desprendido desses currais para cuja extinção estão sendo de
há muito reclamados os cuidados dos poderes competentes, tem sido insuportável. Urge, pois
uma providência.”521
As reformas urbanas que ocorreram no centro da cidade “não corresponderam às
necessidades das classes subalternas, embora pudessem ser feitas em seu nome, pela designação
geral dos "interesses do povo".”522 Bairros como a Conquista ou a “Ilha das cobras” estavam
na “contramão da ordem”523 e não receberam quase nenhum dos beneficiamentos do processo
de urbanização que aconteceu no espaço central de Ilhéus, por isso mantinham um aspecto
considerado insalubre e inestético em relação ao o “resto” da cidade. O cronista João da Silva
Campos escreveu que, em 1919, um “ilustre munícipe” ao ser entrevistado na capital baiana
criticou a situação administrativa pela qual passava a urbe, em suas palavras: “Bastava olhar do
mar, à chegada da barra, para se constatar o aspecto feio, disforme, antiestético do arrabalde da
Conquista, nas suas edificações sem alinhamento, formando vielas tortuosas, casinholas de
palha, integrando um conjunto desarmonioso.”524
A partir do processo de urbanização da cidade, a administração municipal identificou a
existência de currais, estábulos e barracos como elementos antiprogressistas na urbe que se
civilizava e modernizava. Na década de 1920 era frequente o discurso em favor da higienização
e embelezamento promovidos pelo poder público no centro da cidade, devemos lembrar que
este é um período em que “Há uma curiosa operação de "limpeza" da memória social, varrendo-
se tudo aquilo que possa evocar o "popular" e o "antigo", que é preciso superar.”525 Ou seja,
enquanto a intendência buscava o afastamento de uma memória vinculada ao passado
considerado decadente, era necessário manter em Ilhéus a aparência de uma cidade moderna,
limpa e civilizada.
Contudo, a Conquista não estava localizada no “perímetro central” da cidade e, além
disso, o Art. nº 627 do Código de Posturas permitia que fossem instaladas cocheiras fora dessa
área, mediante algumas observações526. Também foi estabelecido no parágrafo único do Art. nº

520
CURRAL em plena rua? Não pode continuar. Correio de Ilhéus, Ilhéus, p. 1, ano IV, nº 394, 15 jan. 1924.
521
Ibidem.
522
PESAVENTO, Sandra. O Imaginário da Cidade... Op. cit., p. 93.
523
Ibidem, p. 205.
524
CAMPOS, João da S. Crônica da Capitania... Op. cit., p. 563.
525
PESAVENTO, Sandra. O Imaginário da Cidade... Op. cit., p. 169.
526
ESTADO DA BAHIA. Código de Posturas do Município de Ilhéus. Município de Ilhéus, 1925. p. 150-1.
109

371 que “Fora do perímetro urbano é permitida a criação de gado, mas em recintos fechados
por cerca de madeira ou arame”.527 Talvez por isso a presença de estábulos e currais ainda
fossem comuns naquele arrabalde. Dessa forma, uma questão fica evidente quanto à reclamação
a respeito da instalação ou manutenção dessas estruturas no local: se a Conquista era um bairro
subalternizado, relativamente afastado do centro que se “modernizava”, quais os verdadeiros
motivos do incômodo dos redatores do Correio de Ilhéus para enfatizar a urgência da retirada
das cocheiras dali?
Uma resposta possível é o fato de que nesse arrabalde, habitado em sua maioria por
trabalhadores urbanos, viviam muitos carroceiros e talvez por isso os “malcheirosos” estábulos
ainda faziam parte da sua paisagem. Sabendo disso os redatores do Correio de Ilhéus, órgão
oficial do PRD no município, com o objetivo de formular um discurso que justificasse o
controle sobre esses sujeitos e os impedissem da circular livremente pela área central da urbe
com suas carroças, consideradas “símbolos ligados ao atraso e a pobreza”528, atacaram tudo o
que estava ligado aos veículos de tração animal e seus condutores. Sendo assim a denúncia
publicada pelo jornal era de interesse dos grupos políticos locais, justamente pelo fato desses
trabalhadores habitarem no logradouro.
Para Pesavento, “As cidades modernas apresentam, como questão urbana, a necessidade
de pôr em exercício os serviços de vigilância e segurança pública.”529 Em Ilhéus podemos ver
a execução desse serviço, principalmente sobre os carroceiros, por meio das leis impostas no
Código de Postura que determinava uma série de medidas visando dificultar, ou até mesmo
eliminar, a utilização das carroças como o principal meio de transporte da urbe.530 Em conjunto
com essa vigilância, a Câmara Municipal criou uma lei que concedia isenção de impostos para
companhias ou particulares que adquirissem “auto-caminhões” até o ano de 1928531 e
implantou na cidade o serviço de auto-ônibus. O objetivo do poder público era diminuir ou
eliminar a dependência da população em relação às carroças.
Algumas medidas, amplamente divulgadas no Correio de Ilhéus, motivaram a
campanha contra os carroceiros e os veículos de tração animal, bem como a continuidade de

527
Ibidem, p. 85. Segundo o Art. 5º do Código de Posturas de Ilhéus (1924): “A zona urbana da cidade subdivide-
se em perímetro central e perímetro adjacente”, sendo os bairros da Conquista, Vitória, Copacabana e Unhão
pertencentes, de acordo com o Art. 7º, à área adjacente. Com a criação do Plano Diretor de 1933, a cidade foi
zoneada, tornando a Conquista pertencente à zona residencial periférica. Ver: ILHÉUS. Plano Director para a
Remodelação e Expansão da Cidade de Ilhéos – Relatório. Estabelecimento Dos Dois Mundos: 1933.
528
CARVALHO, Philipe M. S. de. Trabalhadores, Associativismo... Op. cit., p. 48.
529
PESAVENTO, Sandra. O Imaginário da Cidade... Op. cit., p. 83.
530
Ver: CARVALHO, Philipe M. S. de. Trabalhadores, Associativismo... Op. cit., p. 48. Ver: ESTADO DA
BAHIA. Código de Posturas do Município... Op. cit., p. 77.
531
LEI nº 297. Correio de Ilhéus, Ilhéus, p. 3, ano V, nº 601, 30 maio 1925.
110

seu trânsito pela cidade. Notícias relacionadas aos benefícios dos carros e auto-caminhões eram
publicadas constantemente, juntamente com comemorações da chegada de novos automóveis
em Ilhéus, buscando sempre desqualificar as carroças.532 A intendência também passou a alegar
que a circulação de veículos puxados por animais causava prejuízos aos cofres públicos, pois
os equinos “emporcalhavam” as ruas, danificavam jardins e destruíam meios-fios e como
solução para esses problemas restringiu as licenças das carroças, aumentando seu valor.533
Esse aumento arbitrário causou o descontentamento generalizado dos condutores de
carroças, que, como ação reivindicatória, também aumentaram os preços das “carroçadas”.534
Philipe de Carvalho analisa esse processo e os métodos adotados pelos carroceiros para resistir
as imposições vindas de cima, assim como suas formas de luta pelo seu modo de viver. Para
além disso, é necessário reconhecer aqui a presença desses sujeitos na rua, que “torna-se
também o lugar de enfrentamentos das desigualdades sociais”535, ganhando sua vida e fazendo
valer seus interesses; assim como é importante destacar sua continuidade no dia a dia da urbe,
por mais tempo do que a elite cacaueira desejava.
A utilização dos cavalos como meio de transporte também não cessou após as reformas
urbanas no centro da cidade, um indício de sua continuidade está nas Posturas Municipais, nos
artigos que regulavam o trânsito de montarias e também em reclamações publicadas no Correio
de Ilhéus. Em 1925 o jornal recebeu a denúncia de que “alguns indivíduos” estavam apostando
corridas pelas vias mais movimentadas da urbe, contrariando assim o Código de Posturas. A
reclamação acompanhava a solicitação de uma providência imediata pelas autoridades
competentes.536
A respeito disso, o Código de posturas em seu Art. nº 305 penalizava em 30$000 os
cavaleiros que transitassem pela cidade “sem suas cavalgaduras seladas e embricadas”, além
disso, os animais deviam andar “a trote, passo curto ou meia marcha, sendo terminantemente
proibidas as corridas ou disparadas”537. Essa determinação era reforçada no Art. nº 309, alínea
a: “É terminantemente proibido: a) Correr a cavalo e conduzir animais em disparada pelas ruas
e praças da cidade e das povoações do Município”.538 As posturas também proibiam o

532
OUTRO auto-caminhão na cidade – chegou hontem o da limpeza pública. Correio de Ilhéus, Ilhéus, p. 1, ano
V, nº 622, 18 jul. 1925.
533
UM imposto que se agrava – as suas razões: as carroças e o seu tributo. Correio de Ilhéus, Ilhéus, p. 1, ano VI,
nº 700, 16 jan. 1926.
534
CARVALHO, Philipe M. S. de. Trabalhadores, Associativismo... Op. cit., p. 48.
535
PESAVENTO, Sandra. O Imaginário da Cidade... Op. cit., p. 42.
536
CORRIDAS de cavalos pelas ruas – com A F. M. Correio de Ilhéus, Ilhéus, p. 1, ano V, nº 616, 04 jul. 1925.
537
ESTADO DA BAHIA. Código de Posturas do Município... Op. cit., p. 68.
538
Ibidem, p. 69.
111

“estacionamento de tropas ou animais soltos em qualquer lugar do perímetro urbano” sem a


devida licença previamente concedida pela municipalidade.539
Seja como for, ao que parece, o uso habitual de carroças e animais para transportes de
carga ou de pessoas continuou frequente, mesmo com todo o progresso e civilidade alcançado
pela “Princesa do Sul”. A tentativa de eliminação dos elementos que indicavam atraso e
lembravam o passado não surtiu efeitos imediatos e a imagem de urbe “moderna” estava mais
no papel e no imaginário das elites que na materialidade das ações cotidianas.
Outro alvo frequente da repressão promovida pelo poder municipal foram as prostitutas,
principalmente as das “ruas de canto”.540 Em 1924 O Commercio publicou uma denúncia
intitulada “A rua Araújo Pinho – Foco de Depravação”541 na qual reclamava do “procedimento
depravado das ‘horizontais’ que ali residem, as quais, sem o menor respeito às famílias, lançam
impropérios e pornografias, em altas vozes, à noite, ou se apresentam pelas portas em trajes
indecentes (...)”.542 O redator pede que “o sr. Delegado do termo providencie pela moralidade
daquela via pública, ordenando o rigoroso policiamento e ordens terminantes para que não seja
interrompido o sossego público”543, porém, ainda segundo a mesma nota, os próprios soldados
de polícia participavam dos “berreiros” e da promiscuidade.

Os palavrões, as indecências, os vozerios nas casas duvidosas chegam nítidos aos


ouvidos de quem passa, escandalizando, depondo dos nossos morigerados costumes.
Indivíduos de baixa esfera, marinheiros e até mesmo policiais, sem respeito e sem
decoro, embriagados, fazem com as decaídas berreiros e ‘fréges’, incomodando a
vizinhança.544

Um mês antes da denúncia feita pelo O Commercio, o jornal Correio de Ilhéus havia
publicado um edital baixado pelo Delegado de Polícia do Termo de Ilhéus que proibia “o
trânsito de ‘horizontais’ e bem assim ajuntamentos, nas portas de residência das mesmas”
depois das 22 h.545 Pelo visto a determinação não surtiu o efeito esperado, pois, em 1928 a
intendência, aproveitando o impulso de uma campanha saneadora contra os Hotéis, pousadas e
bares da cidade considerados insalubres, lançou seus olhares novamente para o meretrício,

539
Ibidem, p. 88.
540
Ruas de canto eram aquelas que ficavam nos limites do centro da cidade com bairros populares. Geralmente
eram ruas que sofriam frequentemente campanhas moralizadoras.
541
A rua Araújo Pinho – Foco de Depravação. O Commercio, Ilhéus, p. 1, ano VIII, nº 1489, 12 set. 1924.
542
Ibidem.
543
Ibidem.
544
Ibidem.
545
EDITAL. Correio de Ilhéus, Ilhéus, p. 2, ano IV, nº 490, 30 ago. 1924.
112

atingindo também os estabelecimentos de jogos de azar, visando reprimir essas práticas


consideradas viciosas por meio da campanha moralizadora.
No dia 11 de setembro de 1928 uma coluna intitulada “Pela Moral Social – enérgicas
providências contra os excessos do meretrício”, informou que

Ilhéus (...) toma agora a iniciativa de exercer necessária fiscalização do meretrício,


procurando reprimir-lhe os excessos tão de gravidade para o organismo social.
Assim, vai começar agora rigorosa polícia de costumes, cujos resultados aguardamos
satisfatórios e excelentes.
O de que devemos tratar é da regulamentação dessa gente fora da lei, fora, por assim
dizer, da vida, que sem princípios sociais não há completa existência.
Meretrizes são meretrizes, e, como tal, expungidas da sociedade.
Não queremos, todavia, discutir a infelicidade dessas miseráveis criaturas que, ou por
fraqueza moral, ou por necessidade, ou degradação mesmo, escorregam para a treva
desse vício, entregando-se a esse mister que repugna a sociedade transformadas em
vendedoras de prazeres e propagadoras dessas infames afecções que degeneram o
físico organismo social.546

Dois dias após essa publicação, o Correio de Ilhéus parabenizou as ações policiais
contra os “abusos do meretrício” por meio de outra coluna, iniciada com a justificativa de que
a repressão “parece campanha saneadora, moralizadora das mais relevantes e dignas” para os
“bem formados espíritos”.547

Assim, para louvar sinceramente é a pronta ação da polícia local que procura, empós
da nossa nota, exercer rigorosa e acertada repressão contra os excessos, que se iam
tornando perigosos, do meretrício entre nós.
Nas ruas, na Avenida, nos cinemas, por todo o canto e em todas as ocasiões, era
terrível o contato desses elementos com as famílias, trazendo estas em constantes
vexames, pela vergonha da promiscuidade.
Agora, todavia, se vai regularizando a espécie, não sendo permitido que transitem,
livremente, ostensivamente, pelas ruas, essas decaídas.
Muito bem.548

A perseguição contra as “meretrizes” motivou a criação de um cadastro, pela polícia, de


todas as “horizontais” e também a aplicação de algumas medidas para coibir suas ações, tais
como a proibição de “que as ‘mariposas’ se debrucem livre e ostensivamente às janelas dos
prostíbulos”, impedir que elas andassem em grupos pelas ruas e “Só permitir que saiam elas
depois das 22 horas, acompanhadas.”549 Caso não respeitassem tais medidas, as penalidades
seriam a “pena celular” e a retirada forçada da cidade das reincidentes.550

546
PELA Moral Social – enérgicas providências contra os excessos do meretrício. Correio de Ilhéus, Ilhéus, p. 1,
ano VIII, nº 1093, 11 set. 1928.
547
A repressão do meretrício – a acção da polícia. Correio de Ilhéus, Ilhéus, p. 1, ano VIII, nº 1094, 13 set. 1928.
548
Ibidem.
549
A campanha moralizadora – outras caçadas. Correio de Ilhéus, Ilhéus, p. 2, ano VIII, nº 1095, 15 set. 1928.
550
Ibidem.
113

Algumas medidas também foram tomadas contra indivíduos considerados desordeiros


e vagabundos, como a prisão por 24 horas daqueles “que não prove o exercício de algum
mister”, “Fazer assinar termo de ocupação a todo o que não na tiver” (sic.) e, finalmente,
“Deportar, da cidade, todo aquele que, tendo assinado o termo, seja encontrado na
reincidência.”551 De acordo com Phelipe Murilo de Carvalho, estas ações do poder municipal
estavam alinhadas com a ideologia da ordem e do progresso alcançadas por meio do trabalho e
“qualquer manifestação popular que estivesse fora desta ética do trabalho, era considerada
nociva aos preceitos da ordem social, taxada sumariamente de vadiagem ou de ociosidade.”552
Ainda no mês de setembro de 1928, a Intendência Municipal, por meio do Correio de
Ilheus, informou que a Campanha Moralizadora “será definitiva; não efêmera”553,
comemorando os resultados já obtidos e justificando algumas falhas. Destacou-se a necessidade
de afirmar “categoricamente: não duvide alguém da sinceridade com que estamos agindo, não
julgue efêmera, transitória a nossa tentativa, por que obra será duradoura, eficiente, sobre estar
de pleno acordo com os princípios de moralidade (...).”554 Além disso, comemorou-se a saída
de várias “horizontais” e desocupados da cidade, deixando-a “na mais absoluta calma, sem
aquele vozerio e aquele estrepitoso transitar, até altas horas da noite, produzidos pelos grupos
de ‘mariposas’ e ‘besouros’” e permitindo que os cidadãos pudessem “andar livremente, sem
receio de algum mal-entendido”.555
Todavia, ao que parece as reclamações da década de 1920 em relação à prostituição e
ao “foco de depravação” da Rua Araújo Pinho não surtiram efeitos definitivos, ou houve o
relaxamento do poder público para com essa situação e aquele lugar. Seja o que for, sabemos
que em primeiro de abril de 1936 outra pequena nota relacionada à prostituição na mesma rua
foi publicada no Diário da Tarde, informando que na “porta do prédio n. 15 onde residem várias
mundanas, uma das quais Theresa de tal, incorrera no desagrado de Balbina de tal conhecida
pelo seu caráter belicoso.”556 A briga foi motivada por ciúmes, segundo o redator, mas o
interessante é observar que quase 12 anos após as reclamações noticiadas pelo jornal O
Commercio, a situação da cidade, e principalmente daquela rua, não parece ter mudado tanto.
Por meio desses indícios, podemos imaginar que as meretrizes e os vadios continuaram
fazendo parte do cotidiano da cidade, mesmo com as frequentes perseguições promovidas pelo

551
Ibidem.
552
CARVALHO, Philipe M. S. de. Trabalhadores, Associativismo... Op. cit., p. 60.
553
A campanha moralizadora: medida será definitiva e não ephemera. Correio de Ilhéus, Ilhéus, p. 1, ano VIII,
nº 1096, 18 set. 1928.
554
Ibidem.
555
Ibidem.
556
UM conflito à meia noite. Diário da Tarde, Ilhéus, p. 1, ano IX, nº 2380, 01 abr. 1936.
114

poder público municipal. As fontes também apontam que o objetivo da municipalidade era
desvincular a imagem de Ilhéus, como “Princesa” ou “Rainha do Sul”, das práticas consideradas
imorais, avessas aos preceitos da ordem, progresso, modernidade e civilidade. E geralmente os
“sujeitos imorais” eram aqueles que não se enquadravam na nova lógica trabalhista da Primeira
República, ou seja, aqueles que não tinham vínculos empregatícios que possibilitassem um
controle quase paternalista.
Como mencionamos, as bancas e as casas de jogos de azar também foram um dos focos
de repressão por parte do poder público municipal através da campanha moralizadora. Esse
“vício” já era considerado um problema constante na cidade desde o início da década de 1920,
atingindo até mesmo os quartéis da polícia:

O jogo de cartas – vício canceroso e degradante que deturpa a sociedade e que pela
polícia tem recebido corretivo e fiscalização, em toda parte, aqui invadiu o quartel
policial e ganhou campo, arrastando à tarimba meia dúzia de soldados que não podem
e nem devem continuar embebidos em tão pernicioso divertimento.557

De acordo com os redatores do Correio de Ilhéus, o vício nas jogatinas já dominava


Itabuna, cidade vizinha, e distritos do município de Ilhéus, como Água Preta e Sequeiro de
Espinho. Em certo momento é escrito em tom de apelo que “O jogo (...) não pode continuar de
rota batida e desassombradamente, estendendo suas raízes, sem as devidas providências das
autoridades policiais que têm atribuições de eliminar tamanho mal da face da nossa
sociedade.”558 Em outras ocasiões, o jogo era associado ao alcoolismo, perversão e algazarras,
pois havia “certas quitandas, e casas de jogos que, em Pontal, permanecem até alta madrugada,
numa orgia infernal, a vender cachaça a indivíduos desclassificados, perturbando, dessarte, o
sossego e transgredindo a lei.”559
Medidas como destruição e fechamento de casas e bancas de jogos na cidade,
principalmente em bairros como a Conquista, na Rua do Gamelleiro, e no Pontal560, ou o
confisco do dinheiro proveniente das mesas de apostas ilegais561, até a promulgação de um
edital pela polícia proibindo “todo e qualquer jogo de azar” na cidade e em seus distritos562,
foram tomadas. Mas nada foi tão enérgico quanto as ações promovidas durante a campanha
moralizadora de 1928, pois as casas de jogos, ou os Cabarés, eram associados também à

557
NO quartel policial – o jogo triunfa. Correio de Ilhéus, Ilhéus, p. 1, ano I, nº 23, 20 out. 1921.
558
CONTRA o jogo – providencias policiaes. Correio de Ilhéus, Ilhéus, p. 1, ano II, nº 89, 10 jan. 1922.
559
COM a polícia ou com a fiscalização. Correio de Ilhéus, Ilhéus, p. 1, ano II, nº 120, 18/03/1922.
560
O Jogo. Correio de Ilhéus, Ilhéus, p. 2, ano III, nº 265, 08 mar. 1923.
561
PARA o hospital. Correio de Ilhéus, Ilhéus, p. 2, ano III, nº 284, 24 abr. 1923.
562
EDITAL. Correio de Ilhéus, Ilhéus, p. 3, ano IV, nº 456, 12 jun. 1924.
115

prostituição: “De há muito que se clama, com razão, contra o jogo desbragado e contra a
prostituição ostensiva, em clubes e lupanares, onde inúmeros rapazes e homens casados
deixavam as suas economias e prejudicavam a sua saúde e o seu crédito.”563 Segundo os
redatores do periódico, era preciso “por termo à jogatina e as diversões reprovadas, que vão dia
a dia corrompendo a mocidade de Ilhéus.”564
Por meio da campanha moralizadora foi fechado o cabaré El-Dourado, considerado
pelos redatores do jornal como “o maior e mais horrível cancro” e “antro negregado de jogatina”
da sociedade ilheense.565 De acordo com a notícia, foi informado ao proprietário do local que o
jogo não seria permitido ali, “nem permitido também os excessos do ‘cabaret’, que tanto mal
faziam ao sossego das famílias circunvizinhas.”566 Talvez seu fechamento tenha sido motivado
por ser um espaço frequentado por uma diversidade de sujeitos subalternizados, pois outros
bares e cabarés, como o “Trianon” e o “Bataclã”, não sofreram as mesas perseguições.
Inclusive, no ano de 1926, no “Trianon”, reconhecidamente salão de jogatinas, ocorreu um
“formidável pandemônio” motivado por roubos no jogo. É informado no Correio de Ilhéus que
“De tudo isso resultou sair o agredido ensanguentado e roto, com o rosto escoriado”, gerando
também o incômodo ao sossego público “pela gritaria horrível que se estabeleceu” na Praça
Luís Viana.567
O Art. nº 418 do Código de Posturas estabelecia que “todos os jogos de parada, aposta
ou azar, por meio de cartas, dados, búzios, roletas ou qualquer outro meio ao mesmo fim
destinado” eram considerados ilícitos.568 Não sabemos o que se jogava no “Trianon”, contudo,
é possível que os jogos considerados ilegais fizessem parte de seu catálogo e a casa de diversões
não sofria fiscalização da polícia porque se enquadrava no Art. nº 422 do mesmo Código, onde
determinava que “As disposições deste Capítulo não se entendem com os jogos que se fazem
nos clubes particulares, sob a denominação de “Clubes fechados”, e cujo funcionamento tiver
sido permitido.”569 Desse modo, percebemos que o divertimento público das classes
subalternizadas também era motivo de perseguição e repressão pela polícia.
No período em questão a ideia de que o ócio era prejudicial para a classe trabalhadora
foi propagada pelos periódicos, discursos médicos e pelos governantes, que investiram na

563
CASAS de jogos. Correio de Ilhéus, Ilhéus, p. 1, ano IV, nº 486, 21 ago. 1924.
564
JOGATINA e libertinagem. Correio de Ilhéus, Ilhéus, p. 1, ano VIII, nº 109413 set. 1928.
565
A campanha moralizadora – medida será definitiva; não ephemera. Correio de Ilhéus, Ilhéus, p. 2, ano VIII,
nº 1096 18 set. 1928.
566
Ibidem.
567
O “Trianon” em polvorosa. Correio de Ilhéus, Ilhéus, p. 2, ano VI, nº 820, 18 nov. 1926.
568
ESTADO DA BAHIA. Código de Posturas do Município... Op. cit., p. 96.
569
Ibidem, p. 97.
116

repressão contra esse “mal”. Segundo esse discurso, o ócio levava os indivíduos desocupados
aos vícios que corrompiam a moral e a ordem social, e o jogo era uma das suas formas mais
perigosas. Ilhéus, sendo uma cidade com grande circulação de dinheiro pelas ruas, era um ótimo
palco para a propagação da jogatina e, ao que tudo indica, uma das principais formas de lazer
dos subalternizados, e quiçá uma fonte de ganhos extras, era o jogo de apostas ilegais.
Também eram frequentes as publicações sobre a carestia de vida na cidade. Como
vimos, Ilhéus enriquecera com o cultivo do cacau, proporcionando um surto de progresso e
desenvolvimento urbano no município. Porém, a monocultura cacaueira também gerou uma
incrível desigualdade socioeconômica em toda a região e, além disso, em um território onde se
privilegiava a produção de apenas uma cultura, voltada exclusivamente para a exportação, a
carestia de vida foi uma constante no cotidiano da população mais pobre. Antônio Guerreiro de
Freitas e Maria Hilda Paraíso afirmam que “os sinais de riqueza eram acompanhados pelos de
pobreza, não só nas ruas e praças de Ilhéus, como também nas rotas e caminhos da região”.570
Em 1922 o Correio de Ilhéus fez publicações sobre a importância e a necessidade de se
implantar a policultura nas fazendas do município. O objetivo nitidamente expresso era o da
diversificação econômica por meio do plantio do café nas terras onde predominava o cacau,571
porém, a policultura também poderia resolver a crise de abastecimento de gêneros alimentícios
da cidade, abaixando os preços dos produtos de primeira necessidade. Em 1928 o problema
persistia, e o mesmo jornal fez outra publicação discutindo as possibilidades do plantio de
banana e laranja como potenciais culturas diversificadoras da economia local:

E problema é esse que ressalta aos olhos menos experientes, visto como, é verdade,
equilíbrio não pode haver satisfatório da balança econômico-financeira de povo que,
apenas cuidando da cultura de certo e determinado artigo, esteja na eterna dependência
de todos os outros, mesmo os de primeira necessidade.
Infelizmente os nossos lavradores, aferrados à errônea ideia de que o solo ubérrimo
de Ilhéus somente produz, com vantagens, o cacau, não quiseram, ainda, fazer a
proporcional divisão de suas energias, para o trato proveitoso de tantas outras culturas,
que, sobre aumentarem as possibilidades de riqueza, estabeleceriam, racionalmente,
o equilíbrio financeiro, econômico da lavoura, do comércio, do povo.
(...) A bananeira e a laranjeira, por exemplo, oferecem, a quem as cultiva, as mais
imediatas vantagens e os lucros mais compensadores (...).572

Outra medida pensada pela intendência foi a implantação das feiras “livres”, que
deveriam funcionar somente aos sábados. De acordo com O Commercio,

570
FREITAS, Antônio F. G. de; PARAÍSO, Maria H. B. Caminhos ao Encontro do Mundo... Op. cit., p. 139.
571
É preciso plantar café. Correio de Ilhéus, Ilhéus, p. 1, ano II, nº 161, 27 jun. 1922.
572
INSISTINDO no magno problema – cuidemos da policultura. Correio de Ilhéus, Ilhéus, p. 1, ano VIII, nº
1075, 31 jul. 1928.
117

Com a instituição das decantadas “feiras livres”, o governo, o comércio, a imprensa,


todas as classes, enfim, julgaram que tínhamos empregado um meio fácil e prático
para o desenvolvimento da policultura, pois o incremento de concorrer ao mercado
sem pesados impostos e a vantagem das vendas diretas entre o produtor e o
consumidor eram motivos para se pensar no bom êxito da empresa.
Desenvolvendo a policultura, fomentando o cultivo das hortas e chácaras, dos
milharais, dos pomares, forçosamente teríamos a abundância, a concorrência e daí o
custo da vida vinha a tornar-se mais barato (...).573

Contudo, o plano não saiu como desejado devido às ações de “açambarcadores dos
produtos, os atacadistas que não deixavam os lavradores comunicar diretamente com os
compradores.”574 Então, para dificultar o “desvio” dos produtos que deveriam ser vendidos
diretamente ao consumidor, o poder municipal taxou os feirantes e “proibiu, terminantemente,
que o pequeno lavrador venha vender seus produtos na cidade, em meio da semana, sob pena
de multa!”575 Essa determinação pode ter gerando mais complicações em torno do problema da
carestia de vida e O Commercio ressaltou justamente isso quando criticou a intendência pela
adoção descabida desse controle sobre os feirantes: “De que serve à população, a “feira” aos
sábados somente? As verduras, frutas, lenha, carvão e outros gêneros não são necessários
cotidianamente? Pode a pobreza armazenar tudo isto por 7 dias? Não é possível.”576
Como resposta ao periódico rival, o Correio de Ilhéus publicou no dia seguinte à
publicação do O Commercio uma explicação, informando que o intendente, percebendo o risco
do “desaparecimento” das feiras, colocou “em pratica medidas administrativas muitíssimos
racionais, tais como as proibições das vendas por atacado, antes das 14 h.”577 Contudo, os
feirantes e atacadistas, encontrando uma brecha na determinação, burlavam-na: os
açambarcadores “faziam, antes desta hora, as suas compras, embora só retirassem da feira as
mercadorias, depois da hora regulamentar, o que muito concorria para o encarecimento de todos
os gêneros e, o que era pior, para a falta dos ditos gêneros aos que procuravam fazer suas
provisões.”578 Sabendo da situação, a intendência, por meio da fiscalização municipal, começou
a confiscar as mercadorias vendidas antes da hora permitida, irritando muitos feirantes que
“aborrecidos com a ideia de vender mais baratos os seus produtos e em maior espaço de tempo,

573
AS feiras “livres” e a asfixia dos pequenos lavradores. O Commercio, Ilhéus, p. 1, ano VI, nº 1188, 02 ago.
1922.
574
Ibidem.
575
Ibidem.
576
Ibidem.
577
FEIRAS Livres – mais justiça e menos paixão. Correio de Ilhéus, Ilhéus, p. 1, ano II, nº 176, 03 ago. 1922.
578
Ibidem.
118

começaram de abandonar as feiras aos sábados, para exporem os seus gêneros, no mesmo local,
em todos os dias úteis da semana.”579
Para o historiador Philipe Murilo de Carvalho, a intenção do governo municipal com as
medidas implantadas para regulamentar e fiscalizar os feirantes “era impedir que os pequenos
lavradores realizassem sua economia de modo autônomo.”580 Ou seja, o poder público, numa
tentativa de controlar a vida e o trabalho de sujeitos que não tinham nenhum vínculo
empregatício, impôs uma série de determinações que prejudicavam o pequeno produtor.
Todavia, acreditamos que o objetivo da intendência também era tentar manter um controle
rígido sobre os preços dos gêneros de subsistência, evitando sua escassez ou a alta dos preços.
Não que isso tenha sido feito como uma política de auxílio aos setores subalternizados para
facilitar seu acesso aos gêneros de primeira necessidade, antes disso, era mais uma medida para
evitar possíveis desordens causadas pela fome.
Seja como for, sabe-se que durante toda a década de 1920 os pequenos lavradores
continuaram levando seus produtos até a feira livre da cidade para venderem tanto no varejo
como no atacado aos açambarcadores: “Por sinal, esta prática continuou sendo uma das
alternativas viáveis para que os pequenos permanecessem a ganhar a cidade até as décadas
finais do século XX (...).”581 Encontramos no Correio de Ilhéus denúncias contra “alguns
quitandeiros desta cidade” que iam às feiras para “açambarcar todos os produtos que estão
expostos à venda, deixando o povo a ver navios”582 e, de acordo com outra nota, publicada no
ano de 1928, os produtos comprados pelos “atravessadores” eram revendidos por preços
exorbitantes.583
Outro problema usual na cidade era o aumento frequente do preço do pão e da carne
verde, além da adulteração do leite.584 Uma das táticas adotadas pelos subalternos para
garantirem sua alimentação e escaparem do aumento súbito dos preços dos gêneros era a
utilização dos seus quintais, ou currais, presentes em zonas suburbanas, para a criação de
animais para consumo. Isso explicaria a legislação municipal que proibia a criação de gado no

579
Ibidem.
580
CARVALHO, Philipe M. S. de. Os ganhadores da cidade: viver e trabalhar em Ilhéus, sul da Bahia, 1920-1930.
In.: LEITE, Rinaldo C. N.; SANTOS, Aline A. C. dos; SILVA, Miranice M. da (Orgs.). Cidades interioranas da
Bahia: modernidade, civilidade e sociabilidades. Feira de Santana: UEFS Editora, 2016. p. 219-259. p. 246
581
Ibidem, p. 252.
582
MUITO bom senhor fiscal. Correio de Ilhéus, Ilhéus, p. 3, ano VI, nº 824, 27 nov. 1926.
583
É um abuso! Os açambarcadores de artigos da feira. Correio de Ilhéus, Ilhéus, p. 2, ano VIII, nº 1058 19 jun.
1928.
584
O Pão pela hora da morte. Correio de Ilhéus, Ilhéus, p. 1, ano II, nº 160, 22 jun. 1922; ONDE vamos parar –
carne verde a 2$000 o kilo. Correio de Ilhéus, Ilhéus, p. 1, ano III, nº 383, 15 dez. 1923; A falsificação do leite.
Correio de Ilhéus, Ilhéus, p. 1, ano IV, nº 473, 24 jul. 1924.
119

perímetro urbano (Art. 371)585, assim como impedia a circulação de animais livres pelas ruas
da cidade, como “cães, galinhas e outros”586 cabendo a apreensão dos mesmos pela fiscalização
municipal.
Outra publicação do Correio de Ilhéus também sugere que a criação de animais para
consumo, nos quintais das casas dos bairros subalternizados, era comum na cidade. Nela, é
exposto os efeitos de um forte temporal que atingiu Ilhéus durante a noite, causando imensos
prejuízos à sua área central, como alagamentos em estabelecimentos comerciais e em
residências. Quase nada foi mencionado sobre os “bairros proletários”, somente que “Vários
moradores desses lugares [Conquista, Unhão, Alto da Pimenta, São Sebastião e Pontal] tiveram
prejuízos de roupas, calçados, móveis, galinhas, patos, perús, etc.”587
Da mesma forma, podemos notar a presença de pequenas criações de galinhas também
na Rua do Café, uma área consideravelmente mais próxima do centro recém-urbanizado, e no
lugar denominado Alto do Ceará, através de uma notícia sobre roubos de galináceos que vinha
ocorrendo nesses locais:

As “raposas humanas” abandonaram o Alto do Ceará, e agora estão agindo na rua A,


ao Café. Hoje mesmo esteve em nossa redação, o nosso amigo capitão Pacífico do
Amor Divino, residente naquele trecho de rua, queixando-se de que as referidas
“raposas” deram em seu quintal, conduzindo várias galinhas.
Iguais reclamações temos recebidos de vários moradores daquele lugarejo.
Urge da polícia uma providência.588

Dessa maneira, pensamos que, provavelmente, para a população mais pobre era mais
fácil e proveitoso se manter com suas pequenas criações de animais para consumo, do que
comprando produtos vendidos nas quitandas, encarecidos ou até, em alguns casos, adulterados.
Além disso, também existia a possibilidade desses sujeitos optarem por comercializar esses
animais nas feiras livres, para assim complementar suas rendas, ou até mesmo ter uma.
Finalmente, só a título de curiosidade, na década de 1930 muitos problemas persistiram
na cidade. Como exemplo, os bairros habitados por sujeitos subalternizados parecem não ter
recebidos os beneficiamentos que vinham acontecendo no centro da urbe desde os anos 1920.
Em uma coluna do Diário da Tarde o então prefeito Eusínio Lavigne, desqualificando as
gestões anteriores e acusando-as de incompetência no assunto de urbanizar a cidade por meio

585
ESTADO DA BAHIA. Código de Posturas do Município... Op. cit., p. 85.
586
OLHEM a fiscalização. Correio de Ilhéus, Ilhéus, p. 1, ano IV, nº 431, 10 abr. 1924.
587
GRANDE Temporal – vias públicas inundadas – casas danificadas. Correio de Ilhéus, Ilhéus, p. 1, ano IV,
nº426, 29 mar. 1924.
588
QUEM rouba tanta galinha. Correio de Ilhéus, Ilhéus, p. 2, ano VI nº 757, 08 jun. 1926.
120

de um plano sistemático, escreveu que o meio urbano de Ilhéus cresceu sem nenhuma ordem e
por isso bairros como a Conquista eram desalinhados,

(...) a rua do Café obstruindo, nos dias de chuva torrencial, a rua Bento Berillo. A
‘Pimenta’, mal arranjada. A ‘Fonte da Cruz’, metendo-se por um charco. E tudo isso
vem emperrar a execução de muitos serviços públicos, com sacrifício da higiene em
geral e com maior dispêndio dos dinheiros públicos (...)589

Contudo, os problemas não eram restritos à questão de um plano de ordenação desses


bairros, serviços como iluminação pública também era algo raro nesses locais, sendo até
normalizado sua ausência comparada com o centro da cidade como podemos ver nas “Notas e
Ecos” do Diário da Tarde: “Não é preciso dizer que os bairros mais afastados da ‘urbs’ carecem
de iluminação. Mas é necessário acentuar que os nossos pontos mais centrais e mais
movimentados, estão muitos deles, continuamente sob o regime da treva.”590 Em 1936 a
situação se repetiu e o jornal publicou que

(...) a falta de luz nas ruas dos subúrbios. Aquilo, até, é já uma coisa habitual. Faltar
luz no Gamelleiro, no Ceará, na Conquista, é, pode-se dizer, uma anormalidade
normal, coisa de todo dia, aliás de toda noite. Agora, porém, que as trevas estão
invadindo as ruas centrais da cidade, o fato merece um reparo mais forte. 591

Em síntese, à elite cacaueira era permitida o “progresso”, enquanto a classe


subalternizada era relegada à escuridão e insalubridade. Situações como essas eram tidas como
comuns para os “bairros afastados”. Quando um temporal atingiu Ilhéus em 1932, o jornal
minimizou os danos provocados pela chuva nos arrabaldes, afirmando que “Toda a cidade
sofreu as consequências do vendaval, e muitas casas foram invadidas pelas águas, notadamente
as dos bairros mais afastados da cidade.”592 Não deram mais informações sobre o estado das
moradias e de seus habitantes, demonstrando que esses sujeitos não tinham importância, ao
menos para a redação do periódico.
O prefeito Eusínio Lavigne, que prometeu concretizar o plano de urbanização da cidade
baseado em um plano geral e sistemático em 1931, não cumpriu o que disse e em 1936 o bairro
da Pimenta e a Conquista ainda sofriam com problemas relacionados ao saneamento e

589
LEGIÃO de Outubro: Ilhéus Novo – minha administração. Diário da Tarde, Ilhéus, p. 1, ano IV, nº 981, 01
jul. 1931.
590
NOTAS e ecos. Diário da Tarde, Ilhéus, p. 2, ano IV, nº 994, 17 jul. 1931.
591
TREVAS espessas: ruas, no centro da cidade, completamente às escuras. Diário da Tarde, Ilhéus, p. 4, ano
IX, nº 2393, 20 abr. 1936.
592
O temporal de hontem: alagações, desabamentos e outros efeitos do aguaceiro. Diário da Tarde, Ilhéus, p. 1,
ano V, nº 1284, 09 jul. 1932.
121

infraestrutura urbana. Segundo uma pequena nota do Diário da Tarde, “Os moradores na
baixada da Pimenta, nas ruas situadas por detrás do Gamelleiro, apelam para os poderes
públicos no sentido de ser melhorada a situação daquela zona que parece ser a mais esquecida
do grande bairro da cidade.”593 No texto foi informado que o serviço de abastecimento de água
não chegava até o local “embora a respectiva empresa já tenha prometido levar até lá o
serviço”594, havia luz elétrica, porém só nas horas mais tardes da noite e as condições sanitárias
não eram das melhores, pois ocorria o acúmulo de “águas que ficam estagnadas, criando
germens patógenos.”595 A Pimenta era também um bairro de habitações populares nesse
período.

593
A zona da Pimenta: não podem ser menos desejáveis as condições de habitabilidade. Diário da Tarde, Ilhéus,
p. 1, ano IX, nº 2384, 06 abr. 1936.
594
Ibidem.
595
Ibidem.
122

Considerações finais

O espaço urbano de Ilhéus cresceu ainda mais desde 1920 e nesses últimos 100 anos a
cidade ganhou novos bairros, passou por processos de desenvolvimento e crises econômicas,
expansões e contrações demográficas. Nas últimas décadas, a renda do município não se baseia
mais na safra do cacau, mas na exploração do turismo cultural que vende a imagem de uma
cidade bela, sensual, palco das ações dos coronéis e do amor de Nacib por Gabriela. Por isso,
do fim dos anos 1990 ao início dos 2000 o centro da cidade passou por modificações que o
adequou à atividade turística, revitalizando espaços, restaurando palacetes e melhorando ruas.
Ainda hoje o município é conhecido como a “Terra de Jorge Amado e da Gabriela” e
dos “Coronéis do cacau”, preservando desse modo uma memória social que exclui outros
grupos sociais. O passado da cidade é lembrado de forma saudosista pelos memorialistas e, na
opinião popular, o senso comum predomina quando se fala sobre o período de auge econômico
da região: consideram que Ilhéus era uma cidade bonita, limpa, organizada, rica e próspera. Em
contrapartida, quando se menciona o presente, comentários a respeito da falta de diversificação
na economia local, e sua decadência, logo surgem.
Fala-se também que hoje a cidade é pobre, em comparação aos seus “anos dourados”,
que o poder público não se importa mais com questões ligadas ao bem-estar dos cidadãos, que
a violência urbana cresceu e nada disso existia nos “tempos do cacau”. São comentários e
opiniões deste tipo que contribuem com a fortificação da memória social que silencia aspectos
da cidade no passado que guardam semelhanças com o presente. Além do mais, não é que essas
coisas não existiam nos tempos dos domínios dos coronéis, e sim que elas não foram
transmitidas com a mesma frequência que as representações da cidade, as quais ressaltavam o
“progresso” e a “civilidade” de Ilhéus.
Dito de outra forma, as representações sobre Ilhéus que predominaram no imaginário
urbano, formuladas principalmente na década de 1920 pela imprensa escrita local e nas décadas
de 1930 a 1950 na ficção amadiana, foram baseadas em uma memória social que privilegiou as
ações e vivências dos coronéis e da elite cacaueira. Por isso, nesta pesquisa nos empenhamos
em desconstruir a narrativa memorialística que identificava nas décadas de 1920 e 1930 o
melhor momento histórico já presenciado em Ilhéus. Da mesma forma que buscamos
reconstruir uma representação do seu passado levando em consideração diferentes sujeitos e
espaços, que sofreram o silenciamento de suas vozes e o esquecimento de suas memórias por
parte da história local.
123

Através do método indiciário e da análise dos indícios encontrados nos jornais,


romances, arquitetura urbana, memórias e outros documentos/monumentos, podemos recompor
memórias outras, subalternas, mesmo que parcialmente. Com a observação atenta dessas fontes,
somos capazes de constatar a diversidade do social e construir outras histórias que tenham como
objeto de análise central as vivências, formas de agir, pensar e sentir de atores sociais pouco
valorizados. Sentimos que esta pesquisa alcançou seu objetivo de trazer à tona os resquícios de
outras vivências que construíram e praticaram a cidade.
A primeira metade do século XX, em Ilhéus, é um período rico para pesquisas que
considere as memórias silenciadas dos sujeitos apagados da história local. Existe uma variedade
de documentos/monumentos disponíveis que nos permitem analisar essas outras vivências e
valorizar a presença e a atuação dos indivíduos subalternizados na cidade e na História de
Ilhéus. Nesta pesquisa utilizamos, principalmente, apenas dois tipos de fontes que nos
permitiram alcançar os resultados obtidos: a imprensa escrita e a ficção.
Não conseguimos realizar uma leitura a contrapelo, tal como queríamos, pois não
encontramos nesses documentos/monumentos a voz direta dos oprimidos, ou mesmo
depoimentos que passaram por filtros e intermediários que os deformaram.596 Por sua vez, é
permitido dizer que, por meio dos indícios encontrados nos jornais e na literatura amadiana da
saga do cacau, conseguimos formular outra representação para a cidade de Ilhéus, que leva em
consideração a “cidade real”, aquela vivenciada em sua completude pelos sujeitos
subalternizados.

596
GINZBURG, Carlo. O queijo e os vermes: o cotidiano e as ideias de um moleiro perseguido pela inquisição.
São Paulo: Companhia das Letras, 1987. p. 13.
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