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Universidade do Estado da Bahia – UNEB

Departamento de Educação – Campus II / Alagoinhas


Programa de Pós-Graduação em História

Mariana Dourado da Silva

Moléstias e Escravidão na Cidade da Bahia, 1700-1750

Alagoinhas, dezembro de 2021


Mariana Dourado da Silva

Moléstias e Escravidão na Cidade da Bahia, 1700-1750

Dissertação apresentada ao Programa


de Pós-Graduação em História da
Universidade do Estado da Bahia –
Campus II como requisito parcial para
a obtenção do título de Mestre em
História.

Orientador(a): Profa. Dra. Kátia Lorena


Novais Almeida.

Banca examinadora:

Profa. Dra. Kátia Lorena Novais Almeida (Orientadora) – UNEB

Prof. Dra. Daniele Santos de Souza – Instituto Federal da Bahia

Prof. Dr. André Luís Lima Nogueira – Faculdade do Vale do Cricaré

Suplente:

Prof. Dr. Ricardo dos Santos Batista - UNEB

Alagoinhas, dezembro de 2021


FICHA CATALOGRÁFICA
Sistema de Bibliotecas da UNEB

CDD: 981
Ao meu pai Cícero (in memoriam),
e a minha mãe Ironete.
De todos os bens naturais o único, de que goza o escravo é a saúde. O
bem da riqueza, não o alcança; porque nada tem de seu, pois pertence
a seu senhor tudo que lucra. Menos alcança o bem das delícias; pois
vive continuadamente entre os trabalhos e penalidades do cativeiro.
No bem da honra não tem parte alguma; porque pelo direito são só
servos reputados e contados entre as pessoas infames. E assim, só
lhes resta o bem da saúde. Mas se este bem único, lhe tira a
enfermidade; quem não vê que então ficam desamparados de todo o
bem e no estado maior de miséria e desamparo?1

Tudo é prejudicial à saúde, tudo nocivo, e não se pode negar que tudo
procede da falta de governo econômico, e omissões do Tribunal da
Saúde.2

1
BENCI, Jorge. Economia cristã dos senhores no governo dos escravos (1700). São Paulo: Grijalbo, 1977.
p. 74.
2
VILHENA, Luís dos Santos. A Bahia no Século XVIII. Vol. 1. Salvador: Itapuã, 1969. p. 161.
Agradecimentos

Uma vez me disseram que durante a nossa jornada um dos sentimentos mais bonitos
que podemos demonstrar para alguém é a gratidão. Palavra tão simples composta por poucas
letras, mas que para mim carrega um significado que vai além daquele encontrado nos
dicionários. Assim, eu posso dizer que gratidão não é apenas uma forma de agradecimento,
ela é reconhecer e entender o papel do outro a quem você é grato no caminho percorrido até
aqui, por isso, eu não poderia deixar de reconhecer a importância daqueles que fizeram parte
do processo de aprendizagem e construção desse quebra-cabeça (no bom sentido), que foi a
dissertação.
E assim, primeiramente, eu agradeço a FAPESB pelo financiamento necessário para o
desenvolvimento deste estudo em um momento em que a luta pela continuidade da pesquisa
científica e acadêmica vem sofrendo com os inúmeros cortes em relação às verbas destinadas
a educação e ao desenvolvimento científico, pelo governo federal.
Agradeço a Kátia Lorena Novais Almeida, primeiro por aceitar encarar esse desafio ao
meu lado e, também por ter sido durante esse período mais que a minha orientadora. Você foi
amiga, conselheira e muitas vezes, a pessoa que me ajudou a colocar não somente as ideias,
mas também a cabeça no lugar e eu serei sempre grata por você ter feito parte do meu
processo de amadurecimento.
Quero agradecer também imensamente a Daniele Souza e André Nogueira por terem
aceitado o convite para fazer parte da minha banca e por todo o cuidado e contribuições que
foram feitas desde o momento da qualificação até agora.
E falando em contribuições, os meus agradecimentos a Urano Andrade, Carlos da
Silva Jr. e João Reis pela generosidade em conceder a documentação necessária para análise e
escrita desta dissertação. Do mesmo modo, agradeço a Laís Viena, Hélida Conceição, Ediana
Mendes, Maria Elisa Lemos, Ricardo Batista e Geraldo Antônio pelas conversas e indicações
de trabalhos que me ajudaram no processo de compreensão do meu objeto de pesquisa.
Outra pessoa muito importante para a construção desta dissertação vem me
acompanhando desde a graduação. Cândido Domingues, gratidão é muito pouco diante de
tudo que você tem me ensinado, obrigada pela amizade, conselhos, risadas, textos e fontes
que você mandava ou indicava e obrigada principalmente por estar ao meu lado.
Quero também expressar os meus agradecimentos saudosos aos meus amigos que
fazem parte dessa caminhada desde que ela se iniciou lá na UNEB Campus IV em Jacobina,
Iasmim, Matheus, Maríllia, Marconey, Carina e Élson. Aos meus colegas e amigos que o
mestrado me deu Igor, Samir, Bruna, Luís, Aline, Fabiana, Diego e Marina. Agradeço
também aos que me acolheram em Alagoinhas Rafael, Uermerson e Naíse. E aos que em
Alagoinhas se tornaram parte da minha família Felipe e Jailda. E eu também não poderia
deixar de demostrar a minha gratidão para aquelas pessoas que conheci durante o mestrado,
então, eu agradeço profundamente a Gabrielli, Caio, Mikaelly, Bruna Letícia, Ana Beatriz e
Joanne pelos encontros, por todo apoio e pelas risadas. E como diria Emicida “quem tem um
amigo tem tudo, é presente dos deuses, é um ombro pra chorar depois do fim do mundo, é
abrigo em laço, oásis nas piores fases, mas é também alegria”.3 E eu sinto muita alegria em
poder dizer que vocês fazem parte da construção deste trabalho.
E por fim, a minha família que tem sido o meu porto seguro e a base necessária para
continuar sempre lutando e seguindo em frente, principalmente o meu pai que apesar de não
estar mais aqui me ensinou a nunca desistir, a ser sempre forte e corajosa. E como eu disse em
linhas anteriores, agradecer também é reconhecer a importância das pessoas e vocês sem
dúvida fazem parte não só da construção deste trabalho, mas também do meu processo de
amadurecimento enquanto pesquisadora e também como pessoa. Obrigada!

3
Quem tem um amigo (tem tudo). Interprete: Emicida part. Zeca Pagodinho & Tokyo Ska Paradise Orquestra.
Compositores: Emicida e Wilson das Neves. IN: AmarElo. Rio de Janeiro: Sony Music – Laboratório
Fantasma, 2019, faixa 4.
Resumo

Esta dissertação analisa as doenças a partir das suas conexões com o tráfico transatlântico de
escravos e a escravidão na Bahia, durante a primeira metade do século XVIII. Por meio de um
conjunto de fontes (cartas, atas, ofícios da Câmara Municipal, inventários post mortem de
senhores de escravos e dos manuais de medicina douta), este estudo busca compreender as
diversas percepções e imaginários sobre as doenças construídas durante o período estudado e
a contribuição do trato negreiro e da escravidão para o desenvolvimento das moléstias e dos
aleijos entre a população escrava. Para este fim, além dos perfis de senhores e escravos, foram
analisadas as viagens, a mortalidade no Atlântico, as condições de trabalho e os maus-tratos
senhoriais com o objetivo de identificar as moléstias e os aleijos que foram provocados pelo
trabalho forçado e pelo mau tratamento dado aos cativos pelos senhores. O conhecimento de
tais aspectos relacionados à escravidão permitiu uma compreensão sobre a História Social das
Doenças e como senhores e autoridades encaravam as enfermidades.

Palavras-chave: Tráfico de escravos; Escravidão; Doenças; Bahia século XVIII.


Abstract

This dissertation analyzes diseases from their connections with the transatlantic slave trade
and slavery in the Captaincy of Bahia, during the first half of the 18th century. Through a set
of sources (letters, minutes, official letters from the City Hall, post mortem inventories of
slave masters and manuals of learned medicine), this study seeks to understand the different
perceptions and imaginaries about diseases that were built during the period studied and the
contribution of slave trade and slavery to the development of diseases and cripples among the
slave population. To this end, beyond to the profiles of masters and slaves, we analyzed
travels, mortality in the Atlantic, working conditions and mistreatment of landlords in order to
identify the inconveniences and cripples caused by forced labor and bad treatment given to
the captives by the masters. The knowledge of theses aspects related to slavery allows an
understanding of the Social History of Diseases and how masters and authorities faced the
diseases.

Keywords: Slave trade; Slavery; Diseases; 18th century Bahia.


Sumário

Introdução................................................................................................................... 12

Capítulo I: Tráfico de escravos e doenças na Bahia................................................ 24


1.1 A travessia do Atlântico e o adoecimento dos escravos......................................... 34
1.2 Doenças que acometiam os escravos durante a travessia atlântica e em terra
................................................................................................................................ 41
1.3 A última travessia: os assentos dos africanos mortos na Cidade da Bahia
................................................................................................................................ 53

Capítulo II: As doenças decorrentes do trabalho escravo em Salvador


e no Recôncavo........................................................................................................... 66
2.1 Os senhores de escravos na Bahia.......................................................................... 69
2.2 Perfil dos escravos doentes: a dor e o labor em cativeiro....................................... 81
2.3 As doenças que acometiam os cativos.................................................................... 90

Capítulo III: Os aleijos e os maus-tratos senhoriais na Bahia................................ 98

3.1 Perfil da escravatura aleijada de Salvador e do Recôncavo................................... 104


3.2 O cuidado com o escravo doente ou aleijado e a Santa Casa de Misericórdia
da Bahia....................................................................................................................... 116

Conclusão................................................................................................................... 131
Arquivos e Fontes...................................................................................................... 134
Bibliografia Consultada............................................................................................ 135
Lista de tabelas, gráficos, quadros e figuras

Tabela 1: Inventários post mortem de senhores que possuíam escravos doentes e aleijados,
1700-1750......................................................................................................................... 73
Tabela 2: Escravos doentes e aleijados por década, 1700-1750..................................... 76
Tabela 3: Posse de escravos em escravarias acometidas por doenças e aleijos, Salvador,
1700-1750......................................................................................................................... 76
Tabela 4: Ocupações dos escravos doentes, em Salvador e Recôncavo, 1700-
1750................................................................................................................................. 83
Tabela 5: Tipos de doenças entre os escravizados, 1700-1750....................................... 92
Tabela 6: Distribuição dos escravos aleijados e incapazes, Salvador e Recôncavo 1700-
1750................................................................................................................................. 104
Tabela 7: Os principais aleijos e incapacidades entre os escravizados em Salvador e
Recôncavo, 1700-1750.................................................................................................... 115

Gráfico 1: Origem dos doentes e aleijados, 1700-1750.................................................. 88

Quadro 1: Embarcações registradas no Banguê........................................................... 54


Quadro 2: Embarcações no TSTD............................................................................... 55

Figura I: Escravos transportando uma pessoa na rede................................................. 84


Lista de abreviaturas e siglas

AHU – Arquivo Histórico Ultramarino


AHMS – Arquivo Histórico Municipal de Salvador
ANTT – Arquivo Nacional da Torre do Tombo
APEB – Arquivo Público do Estado da Bahia
ASCMB – Arquivo da Santa Casa de Misericórdia da Bahia
TSTD – The Trans Atlantic Slave Trade Database
12

Introdução

O interesse em estudar a história da escravidão na América portuguesa, especialmente


sua relação com as doenças que se desenvolveram no Atlântico ou em cativeiro na primeira
metade do século XVIII, iniciou-se ainda na graduação como bolsista no projeto desenvolvido
pelo professor Cândido Domingues intitulado “Dos portos aos sertões: rotas de comércio,
capitães negreiros e outros agentes do tráfico atlântico de escravos, Bahia século XVIII”,
financiado pelo programa de Iniciação Científica da Universidade do Estado da Bahia,
PICIN/UNEB entre 2015-2016.
Naquela ocasião, foram realizadas pesquisas sobre o tráfico de escravos para a Bahia e
o impacto causado na vida social da cidade pelo desembarque de africanos escravizados
doentes no porto de Salvador. A pesquisa deu origem ao subprojeto intitulado “Moléstias
Internas: saúde e doença de escravos no comércio negreiro para a Bahia, século XVIII”; o
texto apresentado durante a Jornada de Iniciação Científica “Moléstias internas: saúde e
doença de escravos no comércio negreiro para a Bahia, século XVIII”, objetivava analisar os
escravos doentes que desembarcavam em Salvador. Como desdobramento do projeto de
Iniciação Científica o meu Trabalho de Conclusão de Curso (TCC), intitulado “A senzala
doente: escravidão e moléstias na Bahia colonial, 1700-1750”, deu continuidade à pesquisa,
mas diferente do que se foi pensado para o IC, analisei basicamente os conceitos atribuídos às
doenças e a relação estabelecida entre a escravidão e as doenças que se instalaram no
cativeiro.
A partir das lacunas apresentadas pelo IC e o TCC, o projeto inicialmente
desenvolvido para o programa de mestrado era um pouco mais ambicioso, e tinha a pretensão
de analisar o tráfico, o trabalho escravo, as doenças que acometiam os escravizados e as
práticas de cura na Bahia durante a primeira metade do século XVIII. Entretanto, conforme a
pesquisa foi avançando tornou-se evidente a permanência de determinadas lacunas sobre a
historiografia da escravidão e das doenças que precisavam ser abordadas, por isso, após o
exame de qualificação e apoiada nas sugestões apresentadas pela professora Daniele Souza e
pelo professor André Nogueira, a pesquisa tomou outros rumos. Deste modo, as condições de
sobrevivência ao escravismo (tráfico, trabalho e maus-tratos senhoriais), nortearam a escrita
desta dissertação que tem como principal objetivo analisar, a partir das atividades laborais
desenvolvidas em Salvador e no Recôncavo, as doenças e aleijos que acometeram os
africanos escravizados e seus descendentes durante a primeira metade do século XVIII. A
13

escolha do marco espacial levou em consideração as lacunas na historiografia em relação às


doenças na Cidade da Bahia e, em relação às balizas temporais, 1700 e 1750, este foi um
período em que o tráfico transatlântico passou por um incremento considerável em função dos
descobrimentos auríferos, sendo Salvador o principal porto da América portuguesa. Por outro,
a principal fonte da nossa pesquisa norteou essa escolha, uma vez que os inventários post
mortem foram os principais documentos aqui utilizados, tanto por sua natureza seriada,
quanto por darem visibilidade às doenças e aleijos que acometiam os escravizados. Ademais,
questões como o tráfico, os maus-tratos senhoriais, as condições de higiene e trabalho foram
frequentemente debatidas pelas autoridades e pela Câmara Municipal de Salvador na primeira
metade do setecentos.
Nos últimos anos, as diferentes formas de compreensão sobre as doenças têm
produzido uma quantidade significativa de estudos, principalmente entre os campos da
História das Ciências, da História Social e da História Cultural. Paralelamente aos avanços na
área temática, encontram-se alguns estudos que têm se empenhado na construção de diálogos
sobre as doenças e suas conexões ora com a história da escravidão, ora com a história da
saúde propriamente dita. Marc Bloch foi o primeiro historiador a considerar a enfermidade
como objeto de estudo e a partir do seu entendimento acerca dos imaginários que
relacionavam doença e cura ao processo de legitimidade dos poderes que eram atribuídos aos
reis da Europa durante a Idade Média e o século XVIII, possibilitou a abertura de novas
abordagens mostrando principalmente aos historiadores, a historicidade das doenças. 1 E como
as doenças têm história, a partir dos estudos de Jacques Le Goff e da influência da terceira
geração da Escola dos Annales, os historiadores começaram a entender a enfermidade para
além de um fenômeno biológico, mas também como um fenômeno social.2
Enquanto fenômeno social que ameaça a ordem, a moléstia é capaz de modificar,
reorganizar e transformar as estruturas de uma sociedade. Seguindo os passos de Le Goff,
Jacques Revel e Jean-Pierre Peter enfatizaram a importância de pensar a enfermidade junto às
questões sociais, pois, só assim, ela se transformaria na porta de entrada para entendermos os
aspectos políticos, sociais, econômicos e culturais que fazem parte de um determinado corpo
social.3 Frederick F. Cartwright e Michael Biddiss, por exemplo, apresentam um belíssimo e

1
BLOCH, Marc. Os reis taumaturgos: O caráter sobrenatural do poder régio França e Inglaterra. 2ª ed.
Tradução de Antônio Fontoura. São Paulo: Companhia das Letras, 2018.
2
LE GOFF, Jacques et al. As doenças têm história. Tradução de Laurinda Bom. Lisboa: Terramar, 1985.
3
REVEL, Jacques; PETER, Jean-Pierre. O corpo: o homem doente e a sua história. In: LE GOFF, Jacques;
NORA, Pierre (org.). História: novos objetos. Tradução de Terezinha Marinho. Rio de Janeiro: Francisco
Alves, 1974. p. 141-159.
14

minucioso estudo sobre o processo de desorganização e reorganização da sociedade europeia


com o surgimento da peste negra. Suas análises são respaldadas na compreensão da moléstia
enquanto questão social e fundamental para entendermos a queda e o impacto causado sobre
os Impérios construídos ao longo da Idade Média a partir do surgimento das doenças.4
Mas, o que se entendia como doença no período colonial? Segundo o padre e
dicionarista Raphael Bluteau, o termo estava associado à indisposição natural ou a alteração
do temperamento que ofenderia imediatamente alguma parte do corpo, deixando-a enferma.5
Em uma sociedade do Antigo Regime, a moléstia era vinculada, desde a Antiguidade, a
fatores naturais. Analisando o espaço “luso-brasileiro” no século XVIII, para Jean Luiz Neves
Abreu as moléstias foram frequentemente relacionadas à magia/feitiçaria e ao tráfico de
africanos escravizados para a América portuguesa. Para Abreu, a concepção de doença foi
determinada a partir de uma visão sobrenatural do mundo e, em seguida, interpretada como
forma de manifestação da ira divina, o que justificaria não somente a devoção aos santos
católicos, como também o cumprimento das obrigações da vida cristã para preservar a saúde
do corpo.6 André Luiz Lima Nogueira, também observou que o renascimento do hipocratismo
e a medicina das Luzes, no final do século XVII, apesar de compartilhar a ideia de que as
doenças decorriam de fatores naturais, se contrapuseram e, muitas vezes, incluíam em suas
discussões, a crença na ação do sobrenatural para o desenvolvimento das doenças.7
Nessa perspectiva, para as culturas africana e indígena a doença assumia um caráter
sobrenatural. Segundo o historiador Claude Lépine, a enfermidade é um dos primeiros dados
da experiência humana e, por meio dela, o homem é lembrado que toda existência é precária e
que a vida é um desafio provisório que antecedente a morte, e que o corpo humano enfrenta
uma luta constante contra as forças (sobrenaturais) que tentam destruí-lo. Assim, ao
caracterizar-se como fenômeno social por ser compreendida dentro de uma realidade
complexa que atingia diretamente o homem em sua existência biológica, psicológica e social
mediante as implicações políticas e econômicas envolvendo as concepções sobre o homem, o

4
CARTWRIGHT, Frederick F.; BIDDISS, Michael. As doenças e a história. Tradução de Fernanda Oliveira.
Portugal: Publicações Europa-América, 2003.
5
BLUTEAU, Raphael. Vocabulário português & latino: aulico, anatomico, architectonico. Coimbra: Collegio
das Artes da Companhia de Jesus, 1712-1728. 8 v. Disponível em:
http://dicionarios.bbm.usp.br/ptbr/dicionario/edicao/1. Acesso em: 10 de fevereiro de 2021.
6
ABREU, Jean Luiz Neves. O corpo, a doença e a saúde: o saber médico luso-brasileiro no século XVIII.
Tese de doutorado apresentada ao programa de pós-graduação em História da Faculdade de Filosofia e
Ciências Humanas da UFMG, 2006. p. 12.
7
NOGUEIRA, André Luís Lima. Entre cirurgiões, tambores e ervas: calunduzeiros e curadores ilegais em
ação nas Minas Gerais (século XVIII). 2013. Tese (Doutorado em História das Ciências e da Saúde) – Casa de
Oswaldo Cruz, Rio de Janeiro, 2013.
15

corpo, a vida e a morte, a doença é percebida como uma construção cultural, pois toda
sociedade tem uma maneira específica para entendê-la.8 Já Alfred Métraux destacou em sua
análise sobre os povos tupinambás que a origem das moléstias era associada ao sortilégio, ou
seja, a magia ou malefício e como todas as doenças eram causadas por feitiçaria, o cuidado
com o corpo doente dependia das artes mágicas desenvolvidas pelos feiticeiros.9
Daí a origem da interpretação da doença enquanto feitiço. “Doença de feitiço” foi o
termo encontrado por Nogueira nas fontes ao analisar as denúncias sobre feitiçaria e bruxaria
registradas nos Cadernos do Promotor do Santo Ofício. Tais denúncias relacionavam as
práticas de cura dos curadores não licenciados na capitania de Minas Gerais, no curso do
século XVIII, à prática da bruxaria e da feitiçaria. Assim, as “doenças de feitiço” eram
imaginadas como forma de atingir um desafeto.10 Nesse sentido, a ideia de que as pessoas
poderiam entrar na mira daqueles que usavam as práticas mágicas com a intenção de atingir
um desafeto estava, de acordo com Nogueira, enraizada entre os moradores das regiões
auríferas, sobretudo quando se tratava de curas mal sucedidas ou de vinganças planejadas por
aqueles que conheciam a força e a eficácia da feitiçaria.11 Sobrenatural, também foi a
expressão utilizada por Mary Karasch em seu estudo sobre a vida dos escravos no Rio de
Janeiro imperial. Conforme salientou a autora, o entendimento a respeito da origem dos
achaques vinculado as forças divinas ultrapassou as fronteiras da senzala e adentrou a casa
grande, tornando comum entre os senhores de escravos a busca da cura das doenças por meio
das artes mágicas.12
Por outro lado, o tráfico de africanos escravizados foi, por muito tempo,
responsabilizado pelo surgimento das epidemias na América portuguesa. Luiz Felipe de
Alencastro apresentou algumas reflexões sobre o processo de formação do Brasil pelo
Atlântico Sul, explorando as questões de ordem geográfica e política administrativa. Seu
argumento sugere que o processo de “unificação microbiana do mundo” e a progressividade
das moléstias no ultramar, alicerçaram-se diante do curso que tomou a colonização, a
expansão territorial e o contato entre europeus, africanos e indígenas proporcionados pelo

8
LÉPINE, Claude. Os dois reis do Danxome: varíola e monarquia na África Ocidental 1650-1800. Marília:
UNESP; São Paulo: FAPESP, 2000. p. 9.
9
MÉTRAUX, Alfred. A religião dos tupinambás e suas relações com a das demais tribos tupi-guaranis.
Tradução de Estevão Pinto. São Paulo: Companhia Editora Nacional, 1979, p. 181.
10
Além disso, os estudos de André Nogueira se dedicam também a analisar além das práticas de cura não
licenciadas e as ações do Tribunal do Santo Ofício, as doenças que acometiam a população escrava nas minas.
11
NOGUEIRA, op. cit., 2013.
12
KARASCH, Mary C. A vida dos escravos no Rio de Janeiro 1808-1850. Tradução de Pedro Maia Soares.
São Paulo: Companhia das Letras, 2000.
16

movimento do tráfico transatlântico de escravos. Nesse sentido, o tempo das conquistas


marítimas foi apontado como responsável por construir um novo campo patogênico de
doenças mediante as interações entre europeus e africanos. Esse novo ambiente
epidemiológico, inaugurado na América portuguesa pelo desembarque de europeus e
africanos escravizados, tornou vulnerável os povos indígenas que não conheciam a existência
de enfermidades como a lepra e as boubas. Alencastro também argumentou que a
precariedade das condições de sobrevivência durante o período em que os africanos
escravizados aguardavam a travessia atlântica, foi primordial para o desenvolvimento das
doenças nos porões dos navios negreiros.13
Buscando identificar os aspectos demográficos da escravidão africana, à luz do que
classificou como “evolução da cultura afro-americana”, Herbert Klein dissertou acerca das
múltiplas particularidades do comércio transatlântico de escravos. Em suas análises sobre o
movimento do tráfico para a América Latina e o Caribe, observou que o trato negreiro
influenciava não somente aspectos da cultura africana, mas também as estruturas relacionadas
à vida e a morte dos cativos, principalmente na América portuguesa. Em outros termos, era o
comércio de escravos que criava as condições propicias para o surgimento das doenças em
cativeiro.14 Manolo Florentino, Marcelo Ferreira de Assis e Carlos Engemann também
analisaram a doença e a mortalidade entre os escravizados a partir do contato entre as
diferentes esferas microbianas. Com base no estudo dos registros de óbitos dos cativos da
região do Itambi (Rio de janeiro), os autores observaram que as taxas de mortalidade
apresentavam uma estabilidade entre os anos de 1717-1736, seguida de um crescimento da
população escrava para os anos de 1737-1743. Segundo os autores, era o aumento da
população escrava através do desembarque dos africanos na região que provocava o encontro
microbiano e favorecia a mortalidade entre os cativos.15
Sob essa mesma perspectiva, Marcelo Ferreira de Assis, considerou, em estudo
anterior, que o comércio negreiro pelo Atlântico era, na verdade um agente da migração de
doenças e patologias, sendo o principal responsável pelo progresso das enfermidades
infectocontagiosas. Apesar de relacionar os achaques à chegada dos africanos à cidade do Rio
de Janeiro, Assis argumenta que as condições de vida, a insalubridade à qual eram submetidos
13
ALENCASTRO, Luiz Felipe de. O trato dos viventes: formação do Brasil no Atlântico Sul. São Paulo:
Companhia das Letras, 2000. p. 127-138.
14
KLEIN, Herbert S. A escravidão africana: América Latina e Caribe. São Paulo: Editora Brasiliense, 1987.
p.158.
15
ASSIS, M.; ENGEMANN, C.; FLORENTINO, M. Sociabilidade e mortalidade escrava no Rio de Janeiro,
1720-1742. IN: FLORENTINO, M; MACHADO, C. Ensaios sobre a escravidão (I). Belo Horizonte,
UFMG, 2003. p. 192.
17

e a parca alimentação foram decisivos para a continuidade das doenças em alto mar ou em
cativeiro.16
Jaime Rodrigues também aponta que o abastecimento alimentar dos navios (ou a falta
dele), era uma das causas do escorbuto em alto mar. De acordo com o autor, a frequência em
que a doença se manifestava nas embarcações negreiras tornou obrigatória as paradas para o
reabastecimento de água e provisões, mostrando que nem mesmo os navios mais preparados
para as viagens marítimas escapavam do ataque das doenças durante o percurso atlântico.17
Assim, as condições de sobrevivência ao escravismo são, para muitos historiadores,
fundamentais para compreender a relação entre escravidão e doenças. Mary Karasch, com
base nos registros de óbitos da Santa Casa de Misericórdia do Rio de Janeiro, relacionou a
mortandade entre a população escrava a quatro fatores específicos: o cansaço físico, os maus-
tratos senhoriais, a dieta inadequada e a doença. Esse conjunto de fatores elencados pela
autora era o principal responsável pela mortalidade em cativeiro.18 Em estudo recente Keith
Barbosa associou, a partir dos registros de óbitos das freguesias da Candelária e do Irajá, a
mortandade ao campo do domínio senhorial e as condições de vida às quais eram submetidos
os africanos escravizados e seus descendentes.19 A historiadora Tânia Salgado Pimenta
retomou esta discussão para reafirmar não somente a relação da mortalidade com as formas de
sobrevivência ao escravismo, mas as conexões entre a escravidão e as enfermidades, levando
em consideração a higiene, alimentação e o trabalho a que era submetido o escravo.20
Entretanto, apesar destas contribuições ainda há muitas lacunas no campo
historiográfico voltado para a temática da história da escravidão e das doenças na Bahia
colonial. Encontramos nos trabalhos que se dedicaram a analisar as instituições filantrópicas,
o comércio negreiro e o trabalho escravo, abordagens importantes para a construção de um
debate sobre a escravidão a partir das doenças na Bahia setecentista. O trabalho de A. J. R
Russell-Wood sobre a Santa Casa de Misericórdia da Bahia, por exemplo, discute além da
estrutura política administrativa com base nas obras pias e o funcionamento da instituição, a
negligencia dos governantes em relação às enfermidades que desembarcavam junto com os

16
ASSIS, Marcelo Ferreira de. Tráfico atlântico, impacto microbiano e mortalidade escrava, Rio de
Janeiro c. 1790 – c. 1830. Rio de Janeiro: UFRJ, 2002. p. 11-12.
17
RODRIGUES, Jaime. No mar e em terra: história e cultura de trabalhadores escravos e livres. São Paulo:
Alameda, 2016. p.76.
18
KARASCH, op. cit., p. 207.
19
BARBOSA, Keith Valéria de Oliveira. Doença e cativeiro: um estudo sobre mortalidade e sociabilidades
escravas no Rio de Janeiro, 1809-1831. Curitiba: CRV, 2020. p. 27-29.
20
PIMENTA, Tânia Salgado. Doenças. In: SCHWARCZ, Lilia M.; GOMES, Flávio (org.). Dicionário de
Escravidão e Liberdade. São Paulo: Companhia das Letras, 2018. p. 204-210.
18

escravizados e os soldados a serviço do rei, e o desleixo com as condições sanitárias urbanas


em Salvador, entre os séculos XVII e XVIII.21
Sobre as doenças que acometiam os cativos, Daniele Souza em seu estudo sobre o
tráfico transatlântico e o trabalho escravo urbano em Salvador no século XVIII, observou a
partir dos inventários post mortem de senhores de escravos, que a maioria das doenças
analisadas resultava das longas jornadas de trabalho, esforços repetitivos, péssimas condições
de alimentação, higiene, moradia e a falta de descanso e lazer em cativeiro.22 Por outro lado,
Carlos da Silva Jr. enfatizou que as condições insalubres e o precário fornecimento de
alimentos e água aos africanos escravizados, durante a travessia atlântica, transformaram os
porões das embarcações em focos de doenças.23 Cândido Domingues, considerou em seu
estudo sobre os capitães negreiros, que as moléstias eram um dos perigos mais presentes nos
navios negreiros, pois, além de prejudicar o abastecimento da mão de obra escrava na
América portuguesa, elas prejudicavam os ganhos com o tráfico.24
Os estudos sobre a escravidão no Brasil, especialmente para a Bahia, traçaram os
cenários percorridos pelos escravos, senhores e representantes do poder do monarca na
colônia. Obras como as de Pierre Verger, Luiz Viana Filho, Caio Prado Junior, Charles Boxer
e Stuart Schwartz são fundamentais para aqueles que estudam a escravidão e, particularmente
para este trabalho, contribuíram para o entendimento a respeito da dinâmica do tráfico e da
própria escravidão, além de possibilitar construir o cenário em que as doenças eclodiram.25
E para compreender como os maus-tratos e abusos senhoriais promoveram as doenças,
os escritos do padre jesuíta Jorge Benci sobre a economia cristã e o governo dos escravos,
apresentam um panorama das obrigações recíprocas entre senhores e escravos que

21
RUSSELL-WOOD, Anthony. J. R. Fidalgos e filantropos: A Santa Casa da Misericórdia da Bahia, 1550-
1755. Tradução de Sérgio Duarte. Brasília: Editora Universidade de Brasília, 1981. p. 207.
22
SOUZA, Daniele Santos de. Entre o “serviço da casa” e o “ganho”: escravidão em Salvador na primeira
metade do século XVIII. 2010. Dissertação (Mestrado em História) – Faculdade de Filosofia e Ciências
Humanas, Universidade Federal da Bahia, Salvador, 2010. p. 98.
23
SILVA JUNIOR, Carlos Francisco da. Identidades Afro-Atlânticas: Salvador, século XVIII (1700-1750).
2011. Dissertação (Mestrado em História Social) – Faculdade de Filosofia e Ciências Humanas, Universidade
Federal da Bahia, Salvador, 2011, p. 169; SOUZA, op. cit., 2018, p. 169.
24
DOMINGUES, Cândido. Perseguidores da espécie humana: capitães negreiros da Cidade da Bahia na
primeira metade do século XVIII. 2011. Dissertação (Mestrado em História) – Faculdade de Filosofia e
Ciências Humanas, Universidade Federal da Bahia, Salvador, 2011, p. 153-154.
25
VERGER, Pierre. Fluxo e refluxo do tráfico de escravos entre o golfo do Benin e a Bahia de Todos os
Santos: século XVII ao XIX. Tradução de Tasso Gadzanis. São Paulo: Corrupio, 1987; VIANA FILHO, Luiz.
O negro na Bahia: (um ensaio clássico sobre escravidão). 4ª ed. Salvador: EDUFBA, 2008. p. 33-154;
PRADO JÚNIOR, Caio. História econômica do Brasil. 23ª ed. São Paulo: Círculo do Livro, 1986. BOXER,
Charles R. A idade de ouro do Brasil: dores de crescimento de uma sociedade colonial. Tradução de Nair de
Lacerda. São Paulo: Companhia Editora Nacional, 1969. SCHWARTZ, Stuart. Segredos internos: engenhos
e escravos na sociedade colonial 1550-1835. Tradução de Laura Teixeira Motta. São Paulo: Companhia das
Letras, 1988.
19

caracterizavam a sociedade paternalista do Antigo Regime.26 Silvia Lara analisou o


paternalismo enquanto uma política de controle social e a reprodução da ordem escravista a
partir da interpretação do que se entendia como castigo incontestado e castigo exemplar.
Nesse sentido, o controle social e a manutenção da ordem escravista estavam associados ao
exercício de dominação pela força física ou por punições.27 Em estudo posterior, Lara retoma
esta discussão analisando a legitimidade da escravidão africana com base na legislação sobre
os escravos africanos na América portuguesa, apresentando as leis elaboradas pelo monarca
que tinham como objetivo “proteger” os escravos da crueldade praticada pelos senhores em
cativeiro, mas também assegurar que os senhores poderiam devolver um escravo se fosse
comprovado que o mesmo havia sido vendido doente ou manco.28 Outro estudo que nos ajuda
a compreender a dimensão dos maus-tratos senhorias na vida dos cativos, é o de Luiz Mott
que dedicou um capítulo da sua obra Bahia Inquisição & Sociedade, aos maus-tratos
praticados por um dos homens mais ricos da Bahia durante o século XVIII, Garcia d’Ávila
Pereira de Aragão.29
Por se tratar de um estudo que analisa não somente as doenças, mas os escravos
doentes e a relação estabelecida entre senhor e escravo no campo do domínio senhorial, a
investigação a partir dos nomes de cada personagem, conforme observou Carlo Ginzburg, foi
o fio que nos conduziu sobre aspectos fundamentais que caracterizaram a vida dos
personagens.30 Desse modo, ao vislumbrar a história das doenças com base nas experiências
de senhores e escravos, o presente trabalho é tributário dos estudos de E.P Thompson acerca
das relações construídas entre os sujeitos históricos. A partir da compreensão das ações
humanas por intermédio das relações sociais, a História Social foi percebida sob uma nova
perspectiva, ou seja, com suas bases alicerçadas sobre a “experiência humana”. 31 Posto isso,
ao traçar os perfis dos senhores e escravos, a experiência humana configura-se como ponto
crucial para este estudo.
E para identificar aqueles que conduzirão o leitor pela história das doenças que
acometiam os escravizados na Bahia setecentista, analisamos uma amostra de 33 inventários

26
BENCI, Jorge. Economia cristã dos senhores no governo dos escravos (1700). São Paulo: Grijalbo,1977.
27
LARA, Silvia Hunold. Campos da violência: escravos e senhores na capitania do Rio de Janeiro, 1750-1808.
Rio de Janeiro: Paz e Terra, 1988.
28
LARA, Silvia Hunold. Legislação sobre escravos africanos na América portuguesa. Volume 1. Madrid:
Fundación Historica Tavera/Digibis, 2000.
29
MOTT, Luiz. Bahia: inquisição & sociedade. Salvador: EDUFBA, 2010.
30
GUINZBURG, Carlo. “O nome e o como”. In: Carlo Ginzburg, et alli. A micro-história e outros ensaios.
Lisboa, DIFEL, 1991, pp.169-178.
31
THOMPSON, Edward Palmer. Miséria da teoria ou um planetário de erros: Uma crítica ao pensamento de
Althusser. Rio de Janeiro, Zahar Editores, 1981.
20

post mortem de senhores de escravos de Salvador e do Recôncavo na primeira metade do


século XVIII, que sobreviveram ao tempo e registraram escravos doentes e/ou aleijos. Os
inventários são fontes riquíssimas uma vez que arrolava e avaliavam todos os bens deixados
pelo inventariado ao falecer, inclusive os escravizados. O inventário era obrigatório para
todos aqueles sujeitos que possuíam bens a legar e deixavam herdeiros necessários e de menor
idade. Essa fonte permite traçar, além do perfil senhorial, aspectos importantes sobre o
escravizado, tais como: nome, sexo, origem, nação e cor/qualidade, idade presumível ou
descritiva. Menos frequentes na documentação eram ocupação, estado de saúde, se eram
solteiros, casados ou viúvos. Assim, muitas vezes o escrivão de órfãos não registrava o nome
da doença ou aleijo que acometia o escravizado descrevendo-o apenas como doente ou
aleijado, quiçá na tentativa de desvalorizá-lo enquanto bem particular. Apesar disso,
reiteramos que foi a partir do cotejamento documentação que identificamos nomes, idades,
sexo, origem e as doenças e aleijos que acometiam a população escrava. Em outras palavras, a
documentação permitiu construir um perfil para a escravatura doente e aleijada em Salvador e
no Recôncavo na primeira metade do setecentos. O banco de dados construído pelo professor
Carlos da Silva Jr., com base nos inventários post mortem para a primeira metade do
setecentos, foi de vital importância para fazermos comparações entre as escravarias
principalmente em relação aos valores atribuídos aos cativos após a avaliação dos bens.
Do mesmo modo, foi por intermédio das cartas, ofícios e atas do Senado da Câmara
juntamente com uma portaria da Alfândega que foi possível reconhecer as enfermidades
próprias do tráfico de escravos para Bahia. Além disso, as fontes possibilitaram analisar a
ação das autoridades responsáveis pelo funcionamento da capitania diante das questões de
ordem pública como a saúde e a higiene da cidade. Por outro lado, a análise sobre os tratados
de medicina da época: Erário Mineral (1735) de autoria do cirurgião Luiz Gomes Ferreira,
Relação Cirúrgica e Médica (1747) do também cirurgião João Cardoso de Miranda e do
dicionário do padre Raphael Bluteau entre 1712-1728, permitiu construir um diálogo entre as
diferentes abordagens envolvendo as doenças no período estudado.
Por outro lado, a documentação do Arquivo Histórico Ultramarino possibilitou
compreender, por meio das correspondências enviadas à corte pelas autoridades ou por
proprietários de escravos, o impacto causado pelas doenças na cidade e em seus arredores.
Outra fonte indispensável para essa pesquisa foi o livro do banguê da Santa Casa de
Misericórdia da Bahia de 1741-1750. Por meio dos assentos de óbitos dos escravos
desembarcados no porto de Salvador, foi possível compreender um pouco mais sobre a
21

dinâmica do tráfico negreiro que nos ajudaram a determinar como as enfermidades


influenciaram as taxas de mortalidade dos africanos escravizados em alto mar e após o
desembarque na cidade. A pesquisa na base de dados do The Trans Atlantic Slave Trade
Database (TSTD), também foi importante para cruzarmos informações sobre as embarcações
ali registradas com as informadas no livro do banguê. O banco de dados do TSTD forneceu
informações fundamentais acerca das viagens, da quantidade de africanos embarcados e
desembarcados, e as taxas de mortalidade para cada embarcação. A comparação entre as taxas
de mortalidade encontradas no TSTD com aquelas que foram apresentadas pelos estudos
anteriores de David Eltis e David Richardson foi fundamental para identificarmos se as
enfermidades desenvolvidas nos navios possuíam ou não caráter endêmico.32
As leis outorgadas pelo monarca entre 20 e 23 de março de 1688, bem como a carta da
escrava Úrsula, congo, denunciando o mau tratamento dado por sua senhora Ana Cavalcanti,
foram importantes para os desdobramentos desta pesquisa, pois, permitiu entender o lugar do
escravo naquela sociedade pautada por valores do Antigo Regime, como também os
interesses da coroa em relação à “proteção” oferecida aos cativos quando se tratava dos maus-
tratos senhoriais.
E por fim, a pesquisa nos livros dos acórdãos e de despesas da Santa Casa de
Misericórdia, possibilitou a abertura de novos caminhos, isto é, lançar um olhar sobre os
cuidados oferecidos pela irmandade aos escravos doentes com base nos gastos e nos prejuízos
causados pela inadimplência dos senhores que, com frequência, abandonavam os doentes à
própria sorte nas portas da Misericórdia. Além disso, as fontes possibilitaram analisar as
estratégias desenvolvidas pela irmandade para reaver o capital investido nas curas dos
escravos doentes.
O primeiro capítulo, intitulado Tráfico de escravos e doenças na Bahia, apresenta uma
breve descrição da Cidade da Bahia como praça mercantil e importante entreposto comercial
para as relações comerciais entre a América portuguesa e a África. Além disso, analisa,
sobretudo, o impacto causado pelo tráfico de africanos escravizados e pelas doenças na vida
social de Salvador. Na seção A travessia do Atlântico e o adoecimento dos escravos
analisamos como as circunstâncias em que os cativos cruzaram o Atlântico e as doenças
desenvolvidas no interior dos navios são aspectos importantes para mensurar o impacto
gerado pelo processo de escravização na vida dos cativos. Na segunda seção, Doenças que

32
ELTIS, David; RICHARDSON, David. Atlas of the Transatlantic Slave Trade. Yale University Press New
Heven & London. 2010. p. 169-183.
22

acometiam os escravizados durante a travessia atlântica e em terra estudamos as doenças


apontadas pela documentação como enfermidades próprias do tráfico transatlântico de
escravos, suas causas e as possíveis interpretações. Na última seção do capítulo, A última
travessia: os assentos dos africanos mortos na Cidade da Bahia analisamos os registros de
óbitos presentes no livro do banguê da Santa Casa de Misericórdia que apresentam
informações sobre os navios que cruzaram o Atlântico.
No segundo capítulo, denominado As doenças decorrentes do trabalho escravo em
Salvador e no Recôncavo, buscamos compreender as relações estabelecidas entre escravidão e
doença, a partir do trabalho escravo e das condições de sobrevivência em cativeiro. Na
primeira seção, Os senhores de escravos na Bahia, analisamos o perfil dos senhores de
escravos de Salvador e do Recôncavo na primeira metade do século XVIII, com base na
estrutura da posse em escravos. Na segunda seção, Perfil dos escravos doentes: a dor e o
labor em cativeiro identificamos o perfil dos cativos doentes a partir das informações
relacionadas à origem, sexo, idade, avaliação enquanto bem, trabalho desempenhado e estado
de saúde. Na terceira e última seção, As doenças que acometiam os cativos, apresentamos as
principais doenças que se desenvolviam em cativeiro e suas conexões com o trabalho
desenvolvido pelos africanos escravizados e seus descendentes.
No terceiro e último capítulo, Os aleijos e os maus-tratos senhoriais na Bahia,
analisamos como o trabalho escravo e os maus-tratos senhorias contribuíram para a formação
da categoria de escravo aleijado ou incapaz para o serviço em cativeiro entre os doentes.
Além disso, o capítulo dedica-se também a analisar o custo do cuidado oferecido pela Santa
Casa de Misericórdia aos escravos doentes e aleijados. Na primeira seção, Perfil da
escravatura aleijada de Salvador e do Recôncavo estudamos, a partir do sexo, idade,
ocupação e avaliação dos escravos enquanto bem, o perfil daqueles que foram registrados na
documentação como aleijado ou incapaz e identificamos quais os principais aleijos e sua
relação com o trabalho e os maus-tratos senhoriais. Na segunda e última seção, O cuidado
com o escravo doente ou aleijado e a Santa Casa de Misericórdia da Bahia, apresentamos
uma breve análise sobre os gostos da Santa Casa com o auxílio aos doentes, bem como as
medidas tomadas pela instituição nos casos em que os senhores negligenciavam as suas
dívidas com o Hospital da Misericórdia.
Ao estudar a escravidão com o olhar direcionado ao trabalho escravo e aos maus tratos
senhoriais como responsáveis pelo surgimento das doenças entre os escravizados,
procuramos, além de determinar aspectos importantes para a compreensão da vida política,
23

administrativa e econômica da sociedade escravista de Salvador e seu Recôncavo, definir


questões fundamentais para a compreensão do universo social em que a enfermidade estava
inserida durante a primeira metade do século XVIII. Sendo assim, convido o leitor a
mergulhar nas páginas que se seguem e conhecer um pouco mais sobre como a escravidão
impactou no surgimento das doenças na Bahia.
24

CAPÍTULO I

Tráfico de escravos e doenças na Bahia

Importaram-se negros no Brasil durante o período


dos donatários, mas só com a posse do primeiro
governador-geral, em 1549, e com o subsequente
desenvolvimento das fazendas açucareiras é que a
importação de escravos se tornou essencial para a
economia brasileira.1

Um dos períodos mais importantes para a economia da América portuguesa foi o


século XVIII. A Era Moderna, além de desencadear mudanças por toda Europa – como crises
e revoluções –, caracterizou-se também como um momento de expansão política e econômica
para o Brasil colonial.2 Nesse contexto, a capitania da Bahia se destacou no cenário mundial
como uma das áreas açucareiras mais desenvolvidas nos domínios do Império português. A
Cidade da Bahia, como era conhecida Salvador, era o centro administrativo da colônia e
atuava como ponto de convergência entre os dois lados do Atlântico. Sua localização
privilegiada em termos geográficos transformou o porto da cidade em um local estratégico
para a defesa contra ataques de inimigos estrangeiros e a crescente demanda por mão de obra
escrava fez com que Salvador fosse reconhecida como uma urbe escravista e fortemente
marcada pelo tráfico de escravos, afinal, “quase todo o fardo do trabalho doméstico e manual
estava assentado nos braços de africanos escravizados e seus descendentes”.3
O porto de Salvador recebia por ano milhares de africanos escravizados que, além de
movimentar a economia fornecendo mão de obra para os engenhos e lavouras do Recôncavo,
também abastecia as minas da capitania da Bahia, bem como as de Minas Gerais, incluindo
áreas urbanas e residenciais.4 Nesse sentido, o africano escravizado tornou-se uma das
mercadorias mais rentáveis para a economia da colônia.

1
RUSSELL-WOOD, A.J.R. Escravos e libertos no Brasil colonial. Tradução de Maria Beatriz Medina. Rio
de Janeiro: Civilização Brasileira, 2005. p. 53.
2
BOXER, Charles R. A idade de ouro do Brasil: dores de crescimento de uma sociedade colonial. Tradução
de Nair de Lacerda. São Paulo: Companhia Editora Nacional, 1969; ALENCASTRO, Luiz Felipe de. O trato
dos viventes: formação do Brasil no Atlântico Sul. São Paulo: Companhia das Letras, 2000.
3
SOUZA, Daniele Santos de. Entre o “serviço da casa” e o “ganho”: escravidão em Salvador na primeira
metade do século XVIII. 2010. Dissertação (Mestrado em História) – Faculdade de Filosofia e Ciências
Humanas, Universidade Federal da Bahia, Salvador, 2010. p. 15.
4
Para a Bahia, cf. VASCONCELOS, Albertina Lima. As vilas do ouro: sociedade e trabalho na economia
escravista mineradora (Bahia, século XVIII) – Editora UESB, 2015; ALMEIDA, Kátia Lorena Novais.
Escravos e libertos nas minas do Rio de Contas: Bahia, século XVIII. Salvador: EDUFBA, 2018;
CONCEIÇÃO, Hélida Santos. O sertão e o Império: as vilas do ouro na capitania da Bahia (1700-1750).
2018. Tese (Doutorado em História) – Instituto de Filosofia e Ciências Sociais, Universidade Federal do Rio
25

Destacando-se entre os três principais portos do comércio negreiro durante o século


XVIII, a Cidade da Bahia foi percebida pelo olhar de Amédée François Frézier, um dos
muitos viajantes europeus que passaram pela cidade, como uma “Nova Guiné”, onde os
africanos se estabeleciam e desenvolviam atividades laborais por todas as partes.5 Entretanto,
o comércio Atlântico não só promovia as trocas mercantis e o contato entre os diferentes
povos, como contribuía para o desenvolvimento de doenças entre os cativos no além-mar.
Sendo assim, o objetivo deste capítulo é analisar em que medida a travessia do tráfico
transatlântico de escravos favoreceu o avanço das doenças ainda nos porões dos navios
negreiros, e, para isso, faz-se necessário analisar a administração desse comércio na capitania
da Bahia na primeira metade do século XVIII.
Desde sua criação, em 1549, Salvador era estratégica para os interesses da Coroa. De
acordo com Stuart Schwartz, a cidade foi fundamental para que o monarca estabelecesse
controle sobre a colônia. Sua fundação, após a chegada de Tomé de Souza, primeiro
governador daquela capitania, e a iniciativa da Coroa em distribuir sesmarias aos homens que
tivessem condições de edificar engenhos no espaço de três anos indicam que um dos objetivos
era a criação de uma “indústria” açucareira. Nesse sentido, não há como falar sobre Salvador
sem mencionar o Recôncavo, tendo em vista a sua importância no processo de
desenvolvimento da capitania da Bahia.6
Entrelaçado por vários rios de grande porte, como o Paraguaçu, e médio porte, como
o rio Sergipe, o Recôncavo era considerado uma das regiões mais ricas e produtivas da
capitania. Nele estavam edificados cento e cinquenta engenhos, além das lavouras de cana-de-
açúcar e plantações de fumo.7 Segundo Sebastião da Rocha Pita, a região produzia mandioca,
tabaco, açúcar, aguardente e outros gêneros para sua subsistência que garantiam sua
independência em relação a Salvador.8 Assim, conforme a indústria açucareira se desenvolvia,
Salvador tornava-se dependente daquele território para obter, além de alimentos e
combustíveis, uma das principais moedas de troca do comércio de escravos com a Costa da

de Janeiro, Rio de Janeiro, 2018. Para Minas Gerais, cf. FURTADO, Júnia F. Homens de negócio: a
interiorização da metrópole e o comércio nas Minas setecentistas. São Paulo: Hucitec, 1999. KELMER
MATHIAS, C. L. Nas redes do trato negreiro: interação mercantil e formas de acumulação na constituição
do espaço econômico do ouro, c. 1711 - c. 1730. In: I Simpósio Impérios e Lugares no Brasil: território,
conflito e identidade, 2007, Mariana. Anais do evento, 2007. v. 1. p. 1-25.
5
SOUZA, op. cit., p. 60; RUSSELL-WOOD, op. cit., 2005, p. 19.
6
SCHWARTZ, Stuart. Segredos internos: engenhos e escravos na sociedade colonial 1550-1835. Tradução
de Laura Teixeira Motta. São Paulo: Companhia das Letras, 1988. p. 77-94.
7
PITA, Sebastião da Rocha. História da América portuguesa desde o ano de 1500 do seu descobrimento
até o de 1724. São Paulo: Itatiaia, 1976. p. 78.
8
Ibidem, p. 78.
26

Mina: o tabaco. Desse modo, a região serviu como porto de exportação de açúcar, tabaco e
também do couro.9 Conforme aponta Schwartz,

O Recôncavo conferiu a Salvador a sua existência econômica e estimulou a


colonização e o desenvolvimento do sertão; seus senhores de engenhos
dominavam a vida social e política da capitania por toda a sua história. Falar
de Bahia era falar de Recôncavo, e este foi sempre sinônimo de engenhos,
açúcar e escravos.10

Assim, para compreender o funcionamento da colônia é indispensável uma breve


descrição sobre sua administração, posto que as maiores representações do monarca na
América portuguesa eram o governador-geral – que residia na Bahia, sede do vice-reinado,
por ser capital do Brasil – e a Câmara Municipal. Sendo assim, é necessário também
estabelecermos conexões com o poder e o cotidiano, observando as amarrações da
organização local instituídas pela Câmara.
Fundada em 1549, a Câmara tornou-se responsável, a partir da segunda metade do
século XVII, pelos problemas urbanos, como: abastecimento, saúde, higiene, trabalho livre,
entre outros aspectos da vida cotidiana. Para Avanete Pereira Sousa, essa instituição tinha
como objetivo a organização e a administração local e, assim como as capitanias e o Governo
Geral, seguia as determinações da política reinol desde o século XVI.11 Tal como já
argumentou Pereira Sousa, todas as questões relacionadas ao poder e à vida urbana passavam
pela Câmara, incluindo a limpeza e a higiene da cidade, conforme leis e ordenações que
regulamentavam o funcionamento das instituições do Estado português.12 Desse modo, a
tarefa de zelar pela limpeza da cidade era atribuída aos almotacés da câmara, agentes que
fiscalizavam o cumprimento das posturas sobre a higiene e a limpeza de ruas, casas e quintais.
Outro exemplo de serviço deliberado pela Câmara eram as licenças expedidas para os
cirurgiões atuarem na capitania e as queixas a respeito da saúde e higiene da cidade. O exame
e a liberação das licenças aos cirurgiões era responsabilidade do físico-mor residente na corte,
cargo de maior autoridade na hierarquia dos licenciados ligados à Câmara até a instalação da
Fisicatura no Brasil, no início do século XIX.13 As cartas enviadas ao rei – que serão

9
SCHWARTZ, op. cit., p. 79.
10
Idem, p. 94.
11
SOUSA, Avanete Pereira. Poder político local e vida cotidiana: a Câmara Municipal da cidade de Salvador
no século XVIII. Vitória da Conquista: Edições UESB, 2013. p. 20.
12
Ibidem, p. 91.
13
Segundo Tânia Salgado Pimenta, a Fisicatura-mor era um juízo privativo dividido internamente por assuntos
que fossem da competência do físico-mor ou do cirurgião-mor. Sendo um órgão fiscalizador, somente com
27

discutidas mais adiante –, por exemplo, corroboram a ideia de que a Câmara, no século
XVIII, mediava as relações entre a colônia e o monarca, isto é, a Câmara representava, junto
com o vice-rei, o poder régio, e essa forma de administração foi fundamental para que o
monarca estabelecesse controle sobre a América portuguesa.
Outro aspecto que também merece ser discutido é a organização da cidade, não
somente em seus aspectos políticos e econômicos, mas em sua arquitetura enquanto capital do
Estado do Brasil. Assim, como cidade portuária, a Bahia possuía duas características
importantes: o comércio e a escravidão.14
Para compreender o espaço urbano de Salvador, recorremos à obra de Luís dos
Santos Vilhena para dela extrair informações a respeito da estrutura da cidade. Embora aborde
o final dos Setecentos, a obra de Vilhena é importante, pois, além de apresentar a visão de um
contemporâneo daquela sociedade, consideramos que o protótipo de habitação então existente
não sofrera muitas alterações em relação à primeira metade do século. Assim, ao descrever a
Conceição da Praia, o professor régio nomeado para o ensino de grego na Cidade da Bahia,
entre 1787 e 1799, ressaltou que as ruas da freguesia eram estreitas, muito em virtude do
pouco terreno que possuía.15 Sobre o traçado urbano da freguesia da Conceição da Praia,
Vilhena observou que:

Não só de terreno são aqueles habitantes econômicos, como o são também


de ar; porque não satisfeitos com armar casas agaioladas de quatro, e cinco
andares, sobre paredes, como já disse, de tijolo, saem em cada um destes
andares as portas das vigas por quatro, cinco, e mais palmos para fora das
paredes, e sobre essas pontas formam varandas que acompanham toda a
frontaria [...].16

Analisando os inventários post mortem da Cidade da Bahia, na primeira metade do


século XVIII, o historiador Cândido Domingues argumentou que:

Na Cidade da Bahia encontramos muitas casas de pedra e cal e, mais ainda,


de taipa (sustentação de madeira preenchida com barro). Elas poderiam ser

sua autorização é que cirurgiões, médicos, boticários poderiam exercer as suas atividades. Cf. PIMENTA,
Tânia Salgado. Artes de curar: um estudo a partir dos documentos da Fisicatura-mor no Brasil do começo
do século XIX. 1997. Dissertação de (Mestrado em História) – Instituto de Filosofia e Ciências Humanas,
Universidade Estadual de Campinas, 1997, p. 12.
14
DOMINGUES, Cândido. Perseguidores da espécie humana: capitães negreiros da Cidade da Bahia na
primeira metade do século XVIII. 2011. Dissertação (Mestrado em História) – Faculdade de Filosofia e
Ciências Humanas, Universidade Federal da Bahia, Salvador, 2011, p. 70.
15
VILHENA, Luís dos Santos. A Bahia no Século XVIII. Vol. 1. Salvador: Itapuã, 1969. p. 92.
16
VILHENA, op. cit., p. 92.
28

cobertas com telhas ou palha, tinham poucas ou nenhuma janela o que lhes
tornava um ambiente de reduzida circulação de ar.17

O espaço físico das residências não se limitava apenas às edificações. As moradias


coloniais, ou pelo menos a maioria delas, possuíam quintais, hortas, pomares e em alguns
casos jardins e outros anexos – construções cobertas por telhas ou palha – envoltos por muros
que delimitavam o espaço doméstico, onde era comum o cultivo de bananas, laranjas e outros
cítricos, sendo um dos locais mais arejados das casas. Dos quintais muitas famílias tiravam o
seu sustento com a instalação de galinheiros e currais para a criação de aves e porcos. 18 Nos
quintais se acumulavam sujeiras e imundices produzidas por seus moradores. O modo como
as pessoas viviam era apontado como uma das causas da corrupção dos ares e,
consequentemente, das doenças que se espalhavam pela Bahia, bem como o tráfico de
escravos, um dos pilares da economia colonial, foi durante muito tempo pensado pelas
autoridades e letrados da época como fator primordial para o desenvolvimento das várias
epidemias que acometiam o povo da Bahia.
O comércio de escravos esteve presente no cotidiano dos moradores da Cidade da
Bahia desde o século XVI.19 As lavouras açucareira e fumageira existentes no Recôncavo e as
descobertas de ouro no interior da capitania baiana e em Minas Gerais necessitavam de uma
soma cada vez maior de africanos escravizados. Tal demanda possibilitou que o tráfico, no
decorrer do Setecentos, alcançasse dimensões até então não imaginadas. Segundo Daniele
Santos de Souza, ao longo do século XVIII os negociantes da Praça da Bahia movimentaram
o comércio transatlântico de escravos com a Costa da Mina, sua principal fornecedora, e o
porto de Angola. O trato negreiro caracterizou-se como parte integrante e fundamental para a
sustentação da economia colonial, mostrando-se uma das faces mais cruéis do processo de
formação do Brasil.20 Estabelecendo intensas relações através da circulação dos povos e das
mercadorias transportadas no além-mar, Salvador, ainda no findar do século XVI, já se

17
DOMINGUES, op. cit., p. 94.
18
ALGRANTI, Leila Mezan. “Famílias e vida doméstica”, In: SOUZA, Laura de Mello e. (org.). História da
vida privada no Brasil: cotidiano e vida privada na América portuguesa. São Paulo: Companhia das Letras,
1997. p. 91-92.
19
VERGER, Pierre. Fluxo e refluxo do tráfico de escravos entre o golfo do Benin e a Bahia de Todos os
Santos: século XVII ao XIX. Tradução de Tasso Gadzanis. São Paulo: Corrupio, 1987; VIANA FILHO,
Luiz. O negro na Bahia: (um ensaio clássico sobre escravidão). 4ª ed. Salvador: EDUFBA, 2008. p. 33-154;
PRADO JÚNIOR, Caio. História econômica do Brasil. 23ª ed. São Paulo: Círculo do Livro, 1986. p. 23-
106; DOMINGUES, op. cit., 2011; SOUZA, Daniele Santos de. Tráfico, escravidão e liberdade na Bahia
nos “anos de ouro” do comércio negreiro (c.1680-1790). 2018. Tese (Doutorado em História) – Faculdade
de Filosofia e Ciências Humanas, Universidade Federal da Bahia, Salvador, 2018.
20
SOUZA, op. cit., 2018, p. 18.
29

destacava no cenário mercantil Atlântico, tornando-se, portanto, um importante entreposto


comercial para o Império português.21
A contínua entrada de cativos na capitania garantiu a sua posição entre os três portos
mais importantes para o reino no Atlântico Sul. Estima-se que aproximadamente 1.141.629
africanos desembarcaram na Bahia entre o período colonial e os meados do século XIX.22
Na historiografia brasileira, o negócio negreiro tem se tornado o fio condutor para
diversas pesquisas recentes. A sua complexidade, envolvendo uma gama de relações e trocas
no além-mar, mostra que a abertura do Atlântico durante o século XV proporcionou a
constituição de um espaço onde as interações culturais e comerciais se encontravam. 23 Nesse
Novo Mundo, as trocas mercantis, principalmente o tráfico de escravizados, devem ser
percebidas em toda a sua complexidade, por isso é necessário entendê-lo enquanto um
circuito comercial, conduzido, segundo Luiz Felipe de Alencastro, de forma bilateral, ligando
diretamente o Brasil e a África Ocidental. Desde o final do século XVII, esse comércio
bilateral que ligava Angola ao porto do Rio de Janeiro e a Costa da Mina ao porto da Bahia,
permitia que todas as mercadorias que saíssem dos portos brasílicos fossem carregadas sem
desvios para aquela região ocidental da costa africana, sem a necessidade de fazer escala em
Lisboa.24 Desse modo, o mercadejo de escravos foi fundamental para a manutenção da
economia colonial, haja vista a necessidade de mão de obra empregada nos engenhos,
lavouras e mineração. Os cativos também desempenhavam atividades laborais nas cidades,
fazendo todo tipo de trabalho manual, tanto de portas adentro, quanto no espaço público
urbano da cidade.25
A América portuguesa, conforme já exposto, recebia por ano milhares de africanos
escravizados pertencentes a diferentes grupos étnicos. Tal diversidade não só chamou a
atenção dos historiadores que buscaram compreender o processo de formação desses grupos,
como também possibilitou a compreensão do movimento do tráfico Atlântico para a América
21
BOXER, op. cit.; ACIOLLI, Gustavo; MENZ, Maximiliano. Resgate e Mercadorias: uma análise comparada
do tráfico luso-brasileiro de escravos em Angola e na Costa da Mina (século XVIII). In: REIS, João José
(org.). Atlântico de dor: faces do tráfico de escravos. Cruz das Almas: EDUFRB; Belo Horizonte: Fino
Traço, 2016. p. 71-96. FERREIRA, Roquinaldo. “Dinâmica do comércio intracolonial: geribitas, panos
asiáticos e guerra no tráfico angolano de escravos (século XVIII)”. In: João Fragoso, Maria Fernanda Bicalho
& Maria de Fátima Gouvêa (orgs.), O antigo regime nos trópicos: a dinâmica imperial portuguesa
(séculos XVI – XVIII). Rio de Janeiro, Civilização Brasileira, 2001, pp. 351-366.
22
The Transatlantic Slave Trade Database (doravante: TSTD). Disponível em: https://www.slavevoyages.org.
23
THOMPSON, Estevam C. O Atlântico Sul para além da miragem de um espaço homogêneo (Séculos
XV-XIX). Temporalidades, Belo Horizonte, v. 4, n. 2, p. 80-102, ago./dez. 2012.
24
Os dois fluxos indicados pelo autor são as rotas de comércio da Bahia com Angola e do Rio de Janeiro com
Angola. ALENCASTRO, op. cit., p. 28-29.
25
Para Salvador, os estudos recentes de Daniele Santos de Souza têm contribuído para se pensar o espaço
urbano e suas relações econômicas, a partir do trabalho escravo. SOUZA, op. cit., 2010.
30

portuguesa. Assim, alguns historiadores defenderam a ideia de que tal comércio poderia ser
entendido a partir de quatro ciclos específicos.26 Pierre Verger e Luiz Viana Filho, por
exemplo, entendiam que os negócios do tráfico com a África se iniciaram na Guiné a partir do
século XVI, passaram pelas regiões da Angola e do Congo no século XVII e chegaram a
Costa da Mina nos três primeiros quartos do século XVIII e à Baía do Benin entre 1770 e
1850. Essa tese, baseada em períodos específicos, explicava a presença significativa de
escravos de uma determinada nação em relação a outras na colônia, ou seja, se o tráfico era
direcionado para o porto angolano, a predominância de cativos dessa nação seria superior às
demais. Assim, segundo Verger e Viana Filho, quando se iniciava um novo ciclo, o anterior
chegava ao fim o que implicava no aumento do número de escravizados pertencentes a
determinados grupos étnicos em detrimento de outros que desembarcavam na América
portuguesa.27
Maria Inês Cortes de Oliveira se contrapõe a ideia de compreensão das nações
africanas a partir dos ciclos proposta por Verger e Viana Filho. Segundo a autora, no período
denominado como ciclo da Guiné (século XVI), as fronteiras geográficas não estavam bem
estabelecidas e, enquanto os portugueses compreendiam como Guiné o território entre a Costa
da Pimenta até o Gabão, na América portuguesa a região correspondia a toda extensão da
costa ocidental africana. Assim, entravam nos portos brasílicos africanos escravizados
procedentes de Gambia até a região do Congo que recebiam a denominação de “negro da
Guiné ou gentio da Guiné” como se pertencessem a um único grupo étnico.28 Nesse sentido, a
teoria dos ciclos se mostra equivocada uma vez que com o avanço do tráfico por toda a
África, surgiu a necessidade entre a sociedade escravista de identificar os estrangeiros
principalmente aqueles pertencentes as nações consideradas rebeldes e que poderiam causar
problemas, por isso, a teoria dos ciclos e a nomenclatura “negro da Guiné ou gentio da Guiné”
não dão conta de explicar a complexidade da construção dos grupos étnicos no Brasil.
Buscando explicar a maneira como os traficantes organizavam a escravatura, Mariza
de Carvalho Soares discorreu a respeito da noção de “grupos de procedência”, para a autora a
procedência dada aos africanos escravizados era internalizada fazendo com que cada grupo se

26
Para a Bahia, os estudos de Carlos da Silva Jr têm contribuído para se pensar a diversidade em relação às
identidades afro-atlânticas em Salvador e seu Recôncavo, na primeira metade do século XVIII. SILVA JR,
2011.
27
VERGER, op. cit., 1987; VIANA FILHO, op. cit.
28
OLIVEIRA, Maria Inês Cortes de. “’Quem eram os negros da Guiné’”? A origem dos africanos na Bahia”,
Afro - Ásia, Salvador, n° 29/30 (1997), p. 37-40.
31

organizasse a partir da procedência.29 Em seu estudo sobre a formação do candomblé Luís


Nicolau Parés, apresenta o conceito de “denominações meta-étnicas”, para identificar as
designações que foram impostas aos escravizados pela sociedade escravista como, por
exemplo, “negro da Guiné” e o conceito de “denominações étnicas” que segundo o autor era
usado pela comunidade escrava como meio de identificação interna.30 Nessa perspectiva, o
historiador Carlos da Silva Jr. observou que as denominações criadas na América portuguesa
forjaram a organização e os laços de sociabilidade e solidariedade entre os grupos étnicos.31
Assim, a historiografia recente tem desconstruído a tese dos ciclos que, conforme
argumentou Souza, mostra-se equivocada, uma vez que o fim de um ciclo, após o despertar de
outro, não dá conta da complexidade do tráfico de africanos escravizados para a América
portuguesa.32 Nesse sentido, a mudança nas rotas do comércio negreiro de Angola para a
Costa da Mina, pelos traficantes baianos, que do ponto de vista de Verger e Viana Filho teria
sido motivada pela boa aceitação do fumo de terceira qualidade ou refugo naquela região e
que, por lei, era proibido de entrar em Lisboa, juntamente com os estragos causados por uma
epidemia de bexigas que grassava em Angola, teriam contribuído para esse deslocamento do
tráfico. Entretanto, para Souza essas circunstâncias não justificavam a preferência dos
traficantes residentes na Bahia pelo comércio na Costa da Mina.33 Para a historiadora, os
dados coletados no The Trans Atlantic Slave Trade Database (TSTD) subdimensionam as
informações sobre as viagens para Angola, isso porque vários alvarás autorizavam o resgate
de cativos na Costa da Mina com escala em Angola.34
Portanto, a tese de ciclos junto com a epidemia de varíola, e a preferência dos
comerciantes africanos pelo tabaco produzido no Recôncavo, não justificou a mudança nas
rotas do tráfico, dado que o comércio de escravos na Praça de Angola, nesse período, se
mostrava instável em razão da presença constante de ingleses, franceses e holandeses que
disputavam o controle do mercado negreiro naquela região, oferecendo produtos superiores
em relação à qualidade por preços menores comparado ao que era oferecido pelos brasílicos.
Segundo Russel-Wood, além da epidemia de varíola 1685-1687, as guerras internas e as
mudanças nas condições econômicas que alteraram o preço dos cativos, permitiram que os

29
SOARES, Mariza de Carvalho. Devotos da cor: identidade étnica, religiosidade e escravidão no Rio de
Janeiro, século XVIII, Rio de Janeiro, Civilização Brasileira, 2000, p. 116 – 119.
30
PARÉS, Luís Nicolau. A formação do Candomblé: história e ritual da nação jeje na Bahia, Campinas,
Editora da Unicamp, 2006, p. 26.
31
SILVA JR, Carlos da. op. cit., 2011. p. 20.
32
SOUZA, op. cit., 2018, p. 20-21.
33
VERGER, op. cit., p. 12-13 e p. 19-30; VIANNA FILHO, op. cit., p. 93-100.
34
SOUZA, op. cit., 2018, p. 30-31.
32

baianos tratassem do comércio de escravos diretamente com a Costa da Mina, sem a


intervenção dos mercadores de Lisboa.35 De acordo com Souza e Silva Jr., os abusos
praticados pelo Governador de Angola, que desrespeitava as normas e os direitos locais,
contribuíram para a mudança nas rotas do comércio negreiro pelos traficantes baianos.36
Sendo o principal fornecedor de escravizados para o Brasil, as ações das autoridades
angolanas prejudicavam diretamente os negociantes da Praça da Bahia e os seus interesses.
Porém, a transição de um porto para outro começou a ser percebida a partir da implantação da
Lei de Arqueações, outorgada em 18 de março de 1684 por D. Pedro II.
De acordo com José Miller, o regimento das arqueações refletia uma “suposta”
preocupação em relação ao bem-estar dos africanos escravizados a bordo dos navios
negreiros.37 A lei tinha por objetivo reduzir o número de mortes entre os cativos embarcados
para o Brasil. Logo, a norma exigia que vistorias fossem feitas nos navios com o intuito de
averiguar se a quantidade de água e mantimentos era suficiente para a travessia do Atlântico.
Em outras palavras, o regimento defendia que o número de escravizados nos porões das naus
deveria ser proporcional à quantidade de água e alimentos que seriam consumidos. Nessa
perspectiva, Souza afirma que

[...] a norma estipulava que as embarcações levassem mantimentos em


quantidade suficiente para oferecer três refeições e uma canada de água,
cerca de dois litros, diariamente por escravo, o que representava, ao longo da
viagem, aproximadamente 28 pipas a cada 100 africanos.38

As determinações impostas pela lei, assim como as atrocidades cometidas pelo


Governador de Angola e a concorrência estrangeira pelo comércio, resultaram na insatisfação
dos negociantes da Bahia que encontraram na boa aceitação do tabaco de terceira qualidade
pelos comerciantes da Costa da Mina uma alternativa viável tanto para o destino final deste
produto quanto para burlar a lei, afinal o regimento implicava diretamente na quantidade de
escravos que seriam transportados, o que causaria também prejuízo para os envolvidos no
resgate.

35
RUSSELL-WOOD, op. cit., 2005, p. 54.
36
SILVA JUNIOR, Carlos Francisco da. Identidades Afro-Atlânticas: Salvador, século XVIII (1700-1750).
2011. Dissertação (Mestrado em História Social) – Faculdade de Filosofia e Ciências Humanas, Universidade
Federal da Bahia, Salvador, 2011, p. 169; SOUZA, op. cit., 2018, p. 32-35.
37
MILLER, José C. Way of Death: Merchant Capitalism and Angola Slave Trade, 1739-1830. Wisconsin,
The University Wisconsin Press, 1988. p. 330-340.
38
SOUZA, op. cit., 2018, p. 32.
33

Desse modo, era mais vantajoso para os negociantes de escravizados se


estabelecerem fora das vistas da Coroa portuguesa, pois assim poderiam facilmente burlar a
lei. Souza destaca ainda que o cumprimento do regimento restringia o valor pago aos
traficantes e proprietários das embarcações em relação ao frete de escravizados para o Brasil.
Assim, além do número reduzido de cativos que poderiam ser transportados em cada
embarcação, o valor recebido por cada um também sofria alterações. Essas questões tornaram
desvantajoso o negócio negreiro em Angola para os traficantes da Bahia.39
Outra questão de grande importância para o tema desta pesquisa é como o
descumprimento dessa lei prejudicava a saúde dos escravizados. Os africanos escravizados
lutavam pela sobrevivência desde o percurso das prisões até a chegada aos portos de
embarque para o Brasil. Quando embarcavam deparavam-se com um ambiente hostil para a
conservação de sua saúde, ocasionado tanto pela pouca circulação de ar nos porões quanto
pela carência de suprimentos necessários, conforme previa a lei de arqueações.
Segundo Luiz Antônio de Oliveira Mendes que, embora tenha escrito sua “Memória
a respeito do tráfico” no final do século XVIII, nos ajuda a refletir sobre o período aqui
estudado, muitas doenças não se desenvolviam dentro dos navios negreiros, os africanos já
chegavam aos portos de embarque debilitados em razão das péssimas condições de
sobrevivência às quais eram submetidos durante o percurso até as prisões e local de
embarque.40 Assim, as doenças nos portos africanos decorriam, inicialmente, do processo de
escravização, seja por meio de captura, razia ou guerra, as longas jornadas, desde a região em
que fora escravizado até o porto negreiro, sendo vendido e revendido na rede interna de
comércio transatlântico, além das condições nos barracões a beira mar. Segundo Alencastro as
circunstâncias em que aguardavam o embarque para a América portuguesa, isto é,
encurralados nas cercanias juntamente com o cansaço físico, era parte do mau tratamento que
iniciava no percurso terrestre, além da subnutrição e das doenças que os acometiam, e
causavam a morte de muitos cativos, antes mesmo do seu deslocamento para o Brasil.41
Quando embarcados os escravizados deparavam-se com outros fatores prejudiciais à
saúde e a continuidade da vida nos porões dos tumbeiros.42 Muitos escravos, além de
vitimados pelas doenças ficavam deprimidos e tentavam o suicídio atirando-se ao mar quando
39
Ibidem, p. 33.
40
MENDES, Luiz Antônio de Oliveira. Memória a respeito dos escravos e tráfico da escravatura entre a
Costa da África e o Brasil. Lisboa: Real Academia, 1793. p. 46-47.
41
ALENCASTRO, op. cit., p. 83.
42
As péssimas condições de travessia e sobrevivência atlântica junto com o constante risco de morte nos porões
dos navios negreiros, tornaram essas embarcações mais conhecidas como tumbeiros, ou seja, túmulos já que
muitos africanos escravizados não sobreviviam a viagem.
34

eram levados pelos marujos ao convés superior. Segundo Marcus Rediker, durante a viagem,
quando o tempo estava bom, os marujos levavam os escravizados ao convés superior onde
lavavam os rostos e as mãos para que o médico embarcado pudesse examiná-los e, em
seguida, lhes era servida a primeira refeição do dia e água.43
Era nesse momento, entre a alimentação, os exames médicos e a prática de
exercícios, como a dança, que muitos escravos deprimidos se lançavam ao mar. Segundo
Souza, os marinheiros eram, em sua maioria, escravos e ocupavam diversas funções nos
navios, uma delas era a de cozinheiro responsável pela distribuição da comida, sendo outra
função importante a de carcereiro, responsável pela vigília dos escravos durante a estadia e
prática de exercícios no convés superior. A vigilância era fundamental para evitar que aqueles
escravos deprimidos se lançassem ao mar, por isso, quando um cativo se recusava a comer ou
dançar os carcereiros aplicavam punições como o açoite.44 Os capitães, de acordo com
Oliveira Mendes, em alguns casos, proibiam que os cativos fossem levados ao convés
superior para evitar a prática constante do suicídio em alto mar. Além disso, uma medida para
afastar as doenças nos tumbeiros era a limpeza dos porões pelos marinheiros usando esponjas
e vinagre para aliviar o cheiro de morte que acompanhava os navios.45
Assim, diversas situações corroboravam para o surgimento das enfermidades ainda
nos portos africanos que, juntamente com a precariedade das condições da travessia do
Atlântico para o Brasil, tornavam os porões das embarcações negreiras um ambiente propício
às doenças que acometiam os africanos escravizados. Analisar as circunstâncias em que os
cativos cruzavam o Atlântico e as doenças que se desenvolviam no interior dos navios é
importante para mensurar o impacto gerado em suas vidas.

A travessia do Atlântico e o adoecimento dos escravos

Sob condições penosas de sobrevivência, a jornada em alto mar tirava a vida e


enfraquecia os cativos, que muitas vezes já desembarcavam doentes. A presença da doença
nas embarcações e o imaginário da época que associava a doença à entrada dos escravizados

43
REDIKER, Marcus. O navio negreiro: uma história humana. São Paulo: Companhia das Letras, 2011. p.
240-247.
44
SOUZA, op. cit., 2018. p. 231-232.
45
REDIKER, Marcus. op. cit., p. 240-247. SOUZA, Daniele. op. cit., 2018, p. 231-232. MENDES, Luiz
Antônio de Oliveira. p. 50-51.
35

na Cidade da Bahia tornaram-se o principal argumento de muitos autores para justificar o


número elevado de doenças durante todo o período do tráfico de escravos.
Tumbeiro era um codinome para navio negreiro, derivado da palavra tumba que
recebeu essa denominação em virtude das inúmeras mortes que aconteciam durante a
travessia do tráfico transatlântico de escravos.46 Sobre as circunstâncias em que os escravos
cruzavam o Atlântico, novamente recorremos à “Memória a respeito do tráfico” escrita por
Mendes, pois ela apresenta uma descrição sucinta das condições de um navio negreiro que,
muito provavelmente, não se diferem daquelas vivenciadas durante a primeira metade do
Setecentos. Para Mendes, quando os escravizados eram embarcados enfrentavam situações
piores do que aquelas experimentadas no decorrer do percurso das prisões até os portos de
embarque, isso porque, de acordo com o autor, duzentos a trezentos cativos eram levados para
os porões dos tumbeiros ambiente com pouca circulação de ar, escassez de alimento e
reduzida quantidade de água.47 Esses fatores elencados por Mendes em 1793 contribuíram
para o desenvolvimento de epidemias e principalmente para a mortalidade nos navios.
Segundo Russel-Wood, havia uma tendência, principalmente entre as autoridades,
em culpar o “negro bichado” por todas as doenças e enfermidades que se desenvolviam na
colônia, inclusive, as que já existiam na Europa, como a lepra, o escorbuto e as boubas,
moléstias frequentemente associadas aos africanos recém-desembarcados.48 A partir da
década de 1970, a expansão colonial e seus efeitos para a saúde tornaram-se objeto de análises
dos historiadores Emmanuel Le Roy Ladurie, William McNeill e Alfred Crosby, que
compreenderam a “união microbiana” do mundo como um dos impactos da expansão
colonial.49
Seguindo tal perspectiva para o Brasil, Alencastro argumentou que o avanço das
enfermidades, durante o percurso do tráfico de escravos, ocorreu a partir do contato entre os
diferentes povos. Em outras palavras, o movimento do tráfico estimulou o deslocamento de
mercadorias pelo Atlântico e garantiu o desenvolvimento de um ciclo de doenças no
ultramar.50 O referido ciclo, definido por Alencastro como “unificação microbiana do

46
Cf. nota de rodapé 38.
47
MENDES, op. cit., 1793. p. 46-52.
48
RUSSELL-WOOD, Anthony. J. R. Fidalgos e filantropos: A Santa Casa da Misericórdia da Bahia, 1550-
1755. Tradução de Sérgio Duarte. Brasília: Editora Universidade de Brasília, 1981. p. 206.
49
ABREU, Jean Luís; NOGUEIRA, André Luís; KURY, Lorelai B. Na saúde e na doença: enfermidades,
saberes e práticas de cura nas medicinas do Brasil colonial (séculos XVI-XVIII). In: TEIXEIRA, Luiz
Antônio; PIMENTA, Tânia Salgado; HOCHMAN, Gilberto (org.). História da saúde no Brasil. São Paulo:
Hucitec, 2018. p. 27-66.
50
ALENCASTRO, op. cit., p. 127-138.
36

mundo”, a partir do processo de colonização e expansão territorial, impactou diretamente no


estado de saúde dos povos indígenas da América portuguesa, que, a partir do contato com
europeus e africanos, adquiriram moléstias até então por eles desconhecidas. Assim, o trânsito
de portugueses e africanos trouxe doenças que atingiam diretamente os povos nativos, isso
porque os escravizados já conheciam determinadas enfermidades que transitavam da Europa
para a África, como é o caso da lepra. Em relação às moléstias de origens africanas, segundo
o autor
[...] os africanos transmitiram diretamente do Continente Negro ou por via
do Caribe, outro séquito de doenças. O tracoma; a dracunculose (filariose de
aparelho circulatório, conjuntivo e das cavidades serosas), causando a
elefantíase e significativamente chamado de “bicho da costa”, isto é, da
“costa da África”; o amarelão, causado pelo ancilóstomo, parasita intestinal
cujo nome científico é Necator americanos (matador americano), embora
sua origem seja africana, a febre amarela e, provavelmente, um subtipo do
dengue, e, por fim, a malária mais letal, do gênero falciparum (terças
dobres).51

As doenças elencadas por Alencastro, para o século XVII, nos ajudam a pensar sobre
as doenças que se espalhavam dentro dos navios e em Salvador na primeira metade do século
XVIII, pois elas ainda se faziam presentes dado as péssimas condições de transporte,
alimentação e vestimenta dos africanos enviados para o Brasil. É importante destacar também
que os cativos passavam dias andando das prisões até o porto de embarque sobre o sol
escaldante sem ingerir a quantidade de alimentos e água necessários à manutenção da saúde
do corpo. Conforme exposto anteriormente pelo autor, muitos adoeciam e morriam antes
mesmo de embarcarem nos navios negreiros.
A alimentação certamente era uma das maiores preocupações durante a viagem.
Segundo Souza, os navios negreiros demandavam grande quantidade de farinha de mandioca,
o que ocasionou o desabastecimento do produto em Salvador e a intervenção da Câmara que
obrigou, já em fins dos Seiscentos, os “senhorios de embarcações negreiras” a cultivarem 500
covas de mandioca a fim de abastecer seus navios com o produto.52 Para Jaime Rodrigues, um
dos temores em alto mar era justamente a questão do abastecimento alimentar, uma vez que a
falta de alimentos influenciava no surgimento de doenças nos porões dos navios negreiros e
entre a tripulação afetada também com a falta de mantimentos.53

51
Ibidem, p. 128.
52
SOUZA, op. cit., 2018, p. 235.
53
RODRIGUES, Jaime. No mar e em terra: história e cultura de trabalhadores escravos e livres. São Paulo:
Alameda, 2016. p.76.
37

Nesse contexto, nem mesmo as embarcações mais preparadas em relação à


quantidade de mantimentos escapavam de doenças como disenteria e o escorbuto
(enfermidade esta causada pela ausência de vitamina C). Buscando diagnósticos alternativos
para o escorbuto a historiadora Diana Maul de Carvalho, questiona até que ponto a carência
nutricional pode ter contribuído para o desenvolvimento da moléstia, uma vez que nem
sempre as embarcações sofriam com a escassez de alimentos. Analisando a viagem de Vasco
da Gama em direção a carreira das Índias, a autora salientou a ausência de relatos sobre a falta
de alimentos em alto mar, mesmo assim após uma parada no costa oriental africana a doença
se desenvolve no navio, ou seja, é possível que nesse caso ela tenha sido levada até a
embarcação por outros tripulantes que embarcaram durante a parada ou do contato da
tripulação com algum infectado no porto, entretanto, Carvalho não descarta a possibilidade da
enfermidade ter se originado em virtude das múltiplas carências alimentares em outras
embarcações.54 Por outro lado, o escorbuto, conforme salientou Rodrigues, tornavam
necessárias as paradas para abastecimento nas viagens marítimas. 55 Além disso, no interior
dos navios, existia uma hierarquia que se refletia não apenas nas funções da tripulação, mas
também na qualidade dos alimentos consumidos. Nesse caso, a alimentação de oficiais era
diferente da refeição servida aos marinheiros e soldados comuns. Assim, ainda de acordo com
Rodrigues,
Frente à hierarquia que se manifestava, dentre outras coisas, das diferenças
alimentares na mesa dos oficiais em comparação com as dos marinheiros e
soldados comuns, não era surpreendente que os últimos fossem mais
acometidos por escorbuto do que os primeiros. Nesse sentido, – e isso
importa sobremaneira ao historiador – a doença era produzida socialmente.56

Assim, analisando a dieta destinada aos cativos durante a viagem atlântica, a qual era
composta por uma porção de farinha de mandioca, uma canada d’água, carne de baleia
salgada, limão ou laranja na tentativa de se evitar o escorbuto, servidas diariamente, é notório
o quanto as questões sociais foram moldando e definindo as moléstias ao longo do tempo.
Entretanto, como as autoridades do período estudado encaravam e entendiam os achaques?
Segundo Russell-Wood, a Cidade da Bahia passou por várias epidemias no século
XVII e começo do XVIII, e a negligência das autoridades em relação às condições sanitárias
urbanas era uma das causas da alta incidência de doenças em Salvador. Os governantes, vice-
54
CARVALHO, Diana Maul de. Doenças dos escravizados, doenças africanas? In: PORTO, Ângela (Org.).
Doenças e escravidão: sistema de saúde e práticas terapêuticas. Rio de Janeiro: Casa de Oswaldo
Cruz/Fiocruz. CDROM p.1-21, 2007. p. 12-13.
55
Ibidem, p. 76.
56
Ibidem, p. 82.
38

reis e o conselho municipal, de acordo com o autor, não se importavam com os problemas
médicos. Sobre as autoridades da coroa e o conselho municipal, Russell-Wood reconhece que

A responsabilidade por essa situação deve ser atribuída ao conselho


municipal e, em menor grau às autoridades da coroa. O conselho municipal
deixou de agir de três maneiras. As leis que tratavam do saneamento urbano
não eram aplicadas. Não havia inspeção de armazéns, açougues, matadouros
e mercados. Os alimentos e remédios importados da Europa não eram
examinados ao chegarem à Bahia. As autoridades têm também uma parcela
de culpa. A Bahia não era apenas o porto terminal do tráfico de escravos,
mas também um ponto de escala dos navios de guerra que iam para a Índia.
Os decretos reais relativos à higiene e à dieta nos navios negreiros e nos
barcos de guerra não eram implementados. A Bahia era invadida por
escravos, soldados e marinheiros doentes cada vez que um desses navios
chegava ao porto. As autoridades deveriam ter auxiliado a municipalidade a
organizar um hospital, pois muitos dos doentes estavam a serviço do rei.57

A doença, nesse sentido, representava uma ameaça à ordem social. As primeiras


tentativas de controle sobre as enfermidades e os doentes que chegavam ao porto de Salvador,
em embarcações infestadas de moléstias, era a visita de um médico junto com o cirurgião da
Câmara. Após a identificação da presença de alguma enfermidade contagiosa no navio, eles
faziam pedido para cumprimento de uma quarentena. Analisando a documentação da
Provedoria da Alfândega nos deparamos com uma portaria de 1724, designada a um navio
procedente do Calabar com destino à Bahia. Segundo a portaria, ao fim da primeira vistoria,
mandou-se que este navio fizesse quarentena em razão das doenças que trazia. O documento
não informa qual enfermidade acometia os passageiros da embarcação. Entretanto, após uma
segunda visita à embarcação, constatou-se que as moléstias não eram contagiosas, por isso o
Provedor da Alfândega mandou restituir a sua amarração.58 Essa portaria também não
mencionou o número de escravizados que desembarcaram e tampouco a data de primeira
visitação ou outras informações relevantes para a sua identificação.
A partir das informações coletadas no TSTD encontramos uma carregação que
supostamente seria a embarcação que saiu da quarentena em 1724 e foi registrada em portaria.
O navio Nossa Senhora do Rosário e S. Gonçalo, identificado pela numeração #49485, e
capitaneado por Caetano Gonçalves Lima, saiu da Bahia em 9 de abril de 1723 com destino a
região do Calabar e escala em São Tomé. A embarcação retornou à Bahia em 15 de fevereiro
de 1724. A soma de sua carregação inicial seria de 359 cativos embarcados entre os portos do

57
RUSSELL-WOOD, op. cit., 1981, p. 207.
58
Arquivo Público do Estado da Bahia, Seção Colonial Provincial, Maço 461 (Portarias, 1722-24).
Doravante: APEB, SCP, Maço.
39

Calabar e de São Tomé. Contudo, embora tenham desembarcado no porto de Salvador 315
africanos vitimados pelo tráfico, até o momento não há informações mais precisas no TSTD
sobre a taxa de 12,25% de mortes decorrentes da travessia atlântica para esta carregação.
Também não encontramos informações que indicassem que o navio teria ficado em
quarentena após a sua chegada, mas, acreditamos que o Nossa Senhora do Rosário e São
Gonçalo era o mesmo navio que saiu da quarentena em março de 1724.59
Sobre a duração da viagem lembremos que o navio fez escala em São Tomé e pode
ter permanecido um tempo a mais que o esperado nesse porto. É possível que a embarcação
tenha encontrado dificuldades para completar a sua carga em virtude dos conflitos daomeanos
ocorridos naquele período.60 A viagem até a Costa africana durava em média 40 a 45 dias,
entretanto, o gira da viagem completa, incluindo a saída da Bahia, a chegada à África e o
retorno para o porto de Salvador poderia levar de 4 meses a 2 anos, isso porque o capitão do
navio poderia encontrar dificuldades relacionadas ao abastecimento de provisões e escravos
em um determinado porto sendo obrigado a fazer escalar em outro. Outra razão que sustenta
essa hipótese de que o tumbeiro ficou em quarentena é o Nossa Senhora, é o fato de que este
foi único navio registrado no TSTD que saiu da Bahia para resgatar escravos no Calabar,
tendo retornado em 1724. Assim, mesmo com a ausência de informações na portaria, em
virtude da falta de conservação do documento, o fato de esse navio ser o único registrado para
1724 nos leva a crer que se trata da mesma embarcação. Assim como a portaria, o registro
desse navio não apresenta nenhuma informação acerca dos motivos das mortes durante a
travessia.
Ainda para o ano de 1724, encontramos outro pedido para se fazer quarentena de um
navio que havia saído da Ilha de São Tomé, registrado em ofício da Câmara aos oito dias do
mês de fevereiro de 1724.61 Eis o registro:

Senhor. Chegou a este porto um navio, vindo da Ilha de São Tomé, a quem
foi logo visitar o Provedor da Saúde com o médico do partido deste Senado,
e [o] acharam tão infeccionado como consta da cópia do termo que mandou
fazer o mesmo Provedor da Saúde, e sendo necessário que em observância
dele fosse logo o dito navio fazer quarentena se mandou notificar pelo
Alcaide para que partisse logo para o lugar determinado.62

59
TSTD. Acesso em: 23 mar. 2020.
60
Sobre os conflitos envolvendo o Daomé, cf. DOMINGUES, op. cit., p. 46-48; SOUZA, op. cit., 2018, p. 65-
66.
61
APEB, SCP, Maço 111.1, fl. 100f. Ofícios do Governo, 1712-1736.
62
Ibidem.
40

No entanto, assim como na portaria, não foi lançado em ofício o nome da embarcação
ou informações sobre o capitão e a doença que acometia sua tripulação e os escravos
embarcados. Também não foram encontrados registros deste navio no TSTD para o ano de
1724. Ainda assim, a documentação permite que se entenda o posicionamento das autoridades
frente a essas questões. Quando uma enfermidade se manifestava em uma embarcação o
pedido de quarentena era a primeira medida a ser tomada para controlar e evitar que
determinadas moléstias adentrassem a cidade. O desenvolvimento de uma doença contagiosa
pelas ruas de uma cidade colonial provocava resultados indesejáveis, uma vez que poderia
ocasionar epidemia e, consequentemente, levar a uma desordem social. Levando em conta que
a população e as autoridades não estavam preparadas para viver uma epidemia, as cidades
coloniais eram consideradas insalubres, e, por isso, a inspeção do médico e do cirurgião nas
embarcações, além do cumprimento da quarentena fora dos domínios da urbe, eram medidas
consideradas fundamentais.
Em outra ocasião, encontramos um pedido de quarentena destinado a um navio com
procedência de Angola, datado de 26 de março de 1732. Consta na ata que os responsáveis
pela visita foram o médico João Alvares de Vasconcelos e o cirurgião Francisco da Costa
Franco, que mesmo não identificando a doença que acometia os passageiros da embarcação,
solicitaram o seu isolamento justificando que temiam que a enfermidade fosse contagiosa. Por
esse motivo, não é de se estranhar a solicitação de uma segunda inspeção a este navio, após o
período em que os doentes ficaram resguardados. Feita a nova averiguação e constando que a
enfermidade que castigava os embarcados daquele navio era o mal de Luanda, o médico João
Alvares de Vasconcelos, João Cardoso de Miranda e demais médicos e cirurgiões presentes
pediram o desembarque de todos os embarcados para que estes recebessem o devido
tratamento, pois não havia perigo de contágio ou risco de epidemia à população de Salvador e
ao bem comum.63
Localizamos nos registros do TSTD o navio Nossa Senhora da Piedade, identificado
pela numeração #49547, que saiu da Bahia com destino a Luanda e atracou no porto de
Salvador no dia 26 de fevereiro de 1732. Partiu da costa africana capitaneado por João Luís
Porto com 312 africanos embarcados, chegando à Bahia com 267 escravizados. Assim como
em outras situações, a base de dados do TSTD não esclarece os 14,37% de mortes durante o

63
SALVADOR. Documentos Históricos do Arquivo Municipal, 9. Atas da Câmara: 1731-1750. Salvador:
Câmara Municipal, Fundação Gregório de Mattos, 1994. p. 28-29. Estavam presentes: Agostinho de Souza
[...] Bem.do; Francisco Alvares Roiz; Francisco de Almeida Fonseca; Francisco da Costa Franco; Joseph [...]
Viegas e Francisco de Araújo de Azevedo.
41

retorno do navio à Bahia.64 As datas da chegada da embarcação e do pedido de licença para o


desembarque de todos que aguardavam em quarentena, em 26 de março de 1732, nos levam a
acreditar que o navio Nossa Senhora da Piedade é o mesmo registrado em ofício que, após o
período de quarentena, recebeu a licença para desembarque, isso porque, de modo geral, a
segunda visitação acontecia após o período de isolamento.

Doenças que acometiam os escravizados durante a travessia atlântica e em terra

O mal de Luanda ou escorbuto, como dito anteriormente, é uma doença derivada da


ausência de vitamina C, causando hemorragias, alterações nas gengivas e a queda da
resistência imunológica, favorecendo a incidência de outras infecções. Segundo Raphael
Bluteau trata-se de uma enfermidade contagiosa denominada mal de Luanda por ser mais
comum nessa localidade e nas regiões vizinhas ao Oceano Báltico. De acordo com o
dicionarista, os holandeses denominaram a enfermidade como Scorbut, enquanto os
dinamarqueses a chamaram de Crobut, que quer dizer ventre quebrado. Os alemães, por sua
vez, deram-lhe o nome de Scormunt, que significa osso ou boca quebrada. Em todas as
classificações para o período estudado, a doença se caracterizava por apresentar opilações que
atingiam diretamente o estômago, veia cava, o precárdio e, principalmente, o baço e o fígado.
Em sua definição sobre o mal de Luanda, Bluteau relaciona a sua origem à corrupção ou
excesso dos vapores do mar, à ingestão de mantimentos salgados e águas salobras. 65 Em
contrapartida, o cirurgião português João Cardoso de Miranda classificou o escorbuto em
1747 como uma moléstia aguda capaz de matar em poucos dias, com a coagulação do sangue
que comprometia a sua fermentação natural. Assim como Bluteau, o autor da Relação
Cirúrgica e Médica também associou o desenvolvimento desse achaque aos vapores do mar,
ao calor excessivo, ao frio e à introdução de alimentos corruptos durante a viagem atlântica.66

64
TSTD. Acesso em: 19 de maio 2020.
65
BLUTEAU, Raphael. Vocabulárioportuguês& latino: aulico, anatomico, architectonico. Coimbra: Collegio
das Artes da Companhia de Jesus, 1712-1728. 8 v. Disponível em:
http://dicionarios.bbm.usp.br/ptbr/dicionario/edicao/1. Acesso em: 10 de fevereiro de 2021.
66
MIRANDA, João Cardoso de. Relação Cirúrgica e Médica, na qual se trata, e declara especialmente
hum novo método para curar a infecção escorbútica; ou mal de Luanda, e todos os seus produtos,
fazendo para isso manifestos dois específicos, e muito particulares remédios. Lisboa: Officina de Miguel
Rodriguez, impressor do eminentíssimo senhor Cardeal Patriarca, 1747. p. 4-5.
42

A historiadora Diana Maul de Carvalho, fazendo uso das atribuições de Luiz Felipe
de Alencastro, John Huxhan, K.J. Carpenter e Thomas Sydenham, classificou o escorbuto nos
séculos XVII e XVIII, como uma forma de alteração nos humores corpóreos, e seu conjunto
de sintomas e sinais podem ser facilmente encontrados hoje em outras doenças. 67 Com base
em um ensaio sobre as febres de John Huxhan (1776), membro da Royal Society de Londres,
a autora atribui à causa da doença à:

Má qualidade das provisões embarcadas que produzem um estado de


putrefação. Este efeito é consideravelmente aumentado pela umidade e o sal
da atmosfera, bem como pela impureza do ar que se respira entre as pontes.
Os sintomas: erosão das gengivas; mau cheiro e cor alterada das urinas;
úlceras; manchas negras, azuis e marrons que se elevam sobre a pele; língua
salgada; frequentes acessos de febre; disenterias biliosas e sanguinolentas.68

Desse modo, o escorbuto era uma doença originária dos navios que circulavam entre
o continente africano e a América portuguesa, e consequentemente associada aos africanos
escravizados que desembarcavam enfermos na colônia. Entretanto, as causas e sintomas
expostos por Bluteau, Miranda e Carvalho mostram que mesmo que este achaque tenha
relações com o tráfico e os fatores climáticos, ele também era resultado das precárias
condições de sobrevivência no Atlântico e do descumprimento da lei de arqueação que, como
já mencionado, previa que a quantidade de água e mantimentos deveria ser equivalente ao
número de cativos transportados, ou seja, o mal de Luanda pode ser classificado também
como uma enfermidade decorrente do desleixo dos traficantes e proprietários das
embarcações em relação à lei.
Voltando à Ata de 26 de março de 1732, analisada na seção anterior, encontramos
outro dado que nos chama a atenção. De acordo com as informações registradas na
documentação, o capitão e o mestre do navio foram condenados a pagar cinquenta mil réis e
trinta dias de cadeia. A sentença aplicada pelo Juiz de Fora sugere que ambos foram punidos
pela falta de remédios necessários para se tratar os doentes ainda na quarentena, entretanto,

67
Sobre o escorbuto, cf. ALENCASTRO, Luiz Felipe de. O trato dos viventes: formação do Brasil no
Atlântico Sul. São Paulo: Companhia das Letras, 2000. HUXMAM, John. Essai sur les differentes espèces
de fievres, avec un appendice contentant une méthode pour guérir les mariniers des maladies dans les
voyages de lon cours. Paris: Chez D’Houry, 1776. CARPENTER, K. J. The history of scurvy & vitamin
C. Cambridge: Cambridge University Press, 1998. SYDENHAM, Thomas. The entire works. London: F.
Newbery, 1769.
68
CARVALHO, Diana Maul de. Doenças dos escravizados, doenças africanas? In: PORTO, Ângela (Org.).
Doenças e escravidão: sistema de saúde e práticas terapêuticas. Rio de Janeiro: Casa de Oswaldo
Cruz/Fiocruz. CDROM p.1-21, 2007. p. 10.
43

não encontrei informações sobre a existência de uma legislação que previa a prisão e multa
em tais casos.
Os casos aqui analisados demonstram que uma das razões para a obrigatoriedade das
visitas aos navios negreiros pelo médico e cirurgião do Senado era a crença presente no
imaginário da época que associava as moléstias à entrada dos africanos escravizados no porto
da Bahia. O medo pelos estragos que as doenças contagiosas poderiam causar ao bem público
fortaleceu esse imaginário e tornou obrigatória a vistoria e exame da tripulação e dos cativos
embarcados antes do seu desembarque. Como veremos mais adiante, com o avanço dos
achaques pela cidade, tornou-se necessário também estabelecer visitas dos cirurgiões nos
açougues, currais e nas boticas.
Antes de abordarmos esse assunto é importante que seja analisado um fato registrado
no ano de 1743, que chama muita atenção. No dia 30 de setembro daquele ano, o então vice-
rei capitão-geral do Brasil e conde das Galveas, André de Melo e Castro, registrou, em
missiva enviada ao reino, os estragos causados pelas doenças na Cidade da Bahia. Segundo o
vice-rei, aquele ano era um dos mais “infaustos e terríveis vividos até então na Bahia”, pois
com a mudança de estação em abril ocorrera a propagação de doenças que se renovaram e
acometeram com mais força a população já debilitada.
Segundo Melo e Castro, estaria se desenvolvendo na cidade uma possível epidemia
de defluxos, doença classificada como renite infecciosa com secreção de coriza. O vice-rei
também mencionou outra doença, a priorizes. Não encontramos informações que pudessem
nos ajudar na identificação dessa doença. Ainda segundo o vice-rei em sua missiva era
preocupante o número de mortes que poderia resultar das referidas moléstias, que anos antes,
matara mais de cinco mil pessoas naquela Praça.69
Embora a correspondência do vice-rei não apresente dados mais completos para se
analisar tais epidemias, a documentação nos direciona para duas questões importantes: a
primeira é que a metrópole e o monarca tinham conhecimento das doenças que acometiam o
povo da Bahia, e a segunda é o número elevado de mortos anos antes do envio dessa carta ao
rei, o qual provavelmente já tinha conhecimento sobre o impacto das mesmas. Segundo
Antônio Luís Gonçalves da Câmara Coutinho, governador-geral do Estado do Brasil entre
1690-1694, em carta de 9 de julho de 1692, desde o dia 21 de fevereiro do mesmo ano sua

69
“Carta do vice-rei e capitão-general do Brasil, conde das Galveas, André de Melo e Castro ao rei [D. João V]
informando os estragos causados pelas doenças que grassam na cidade da Bahia, sobretudo uma epidemia de
defluxos e priorizes”. AHU. Arquivo Histórico Ultramarino. Bahia. Cx. 78, D. 6444. Disponível em:
http://ahu.dglab.gov.pt/. Acesso em: 19 jun. 2020, fl. 1.
44

majestade havia solicitado que todos os navios que saíssem da Bahia em direção ao reino
levassem cartas informando sobre o estado de saúde do povo daquela praça, ou seja, o
monarca tinha conhecimento do número elevado de mortos citado pelo vice-rei.70
É intrigante o fato de que, mesmo após a morte de mais de cinco mil pessoas e com o
despertar de uma possível epidemia, o vice-rei não tenha solicitado ao monarca o envio de
cirurgiões ou remédios para tratar do povo da Bahia, confirmando a tese de Russell-Wood de
que os governantes pouco se importavam com as questões vinculadas à saúde e à higiene na
colônia. Por outro lado, Affonso Ruy argumentou que tanto a administração geral quanto a
municipal debatiam sobre dar o suporte hospitalar necessário ao povo da Bahia. Assim, “em
1732, os vereadores mantinham em São Lázaro uma enfermaria para os doentes de moléstias
contagiosas, curáveis”.71 Porém, nas fontes até aqui analisadas não percebemos nenhuma
iniciativa das autoridades para melhorar o funcionamento da saúde e higiene na capitania,
além das vistorias aos navios e os pedidos de quarentena. Ademais, o único hospital operante
na Bahia por todo o período colonial era o hospital de São Cristóvão, construído em 1549 a
pedido do governador Tomé de Souza e administrado pela Santa Casa de Misericórdia, de
onde saíam todos os recursos para as despesas e manutenção do hospital.72
Em correspondência datada de 18 de fevereiro de 1750, os oficiais camarários
solicitaram a Sua Majestade a nomeação de um cirurgião para a Câmara. Conforme solicitado
em missiva, o licenciado seria responsável pela fiscalização nos açougues, nos currais e nos
navios que chegassem ao porto de Salvador. Segundo a carta, mesmo com a benignidade dos
ares e clima da Bahia, eram várias as epidemias que grassavam por toda a cidade,
principalmente aquelas consideradas contagiosas e originárias dos navios que vinham das
conquistas com o negócio de escravos, como: sarampos, malignas, defluxos, sarnas,
escorbutos e elefantíases. A missiva evidencia ainda que os cativos enfermos eram
desembarcados sem fazer quarentena e tampouco eram separados dos sadios. Assim, a cidade
mal se recuperava de uma epidemia e já enfrentava outra, “em razão das contínuas entradas
destes navios”.73

70
Carta a mando de Foyos Pereira, secretário de Estado, sobre dar notícia em que estado fica a terra com o mal
contagioso. 1692. p. 70 apud FAZENDA, José Vieira. Revista do Instituto Histórico e Geográfico
Brasileiro. Rio de Janeiro, Imprensa Nacional, 1909.
71
RUY, Affonso. História da câmara municipal da cidade de Salvador. 2ª ed. Salvador: Academia das
Letras da Bahia 1996. p. 197.
72
RUSSELL-WOOD, op. cit., 1981, p. 205-251.
73
APEB, SCP, Maço 198. Correspondência recebida pelo governo da Bahia, Senado da Câmara da Bahia,
1733-1750.
45

Outro ponto a ser considerado é a necessidade de um cirurgião expressa pelos


oficiais camarários. De acordo com o cirurgião da Câmara, o Dr. José Jorge da Rocha, natural
da freguesia de Fonte Arcado do Conselho de Póvoa de Lanhozo, arcebispado de Braga, as
vistorias aos navios eram feitas sem a assistência de um cirurgião e a Câmara necessitava
desse profissional “para plena averiguação das doenças”, pois, as referidas enfermidades
careciam do auxílio das artes cirúrgicas.74 A mesma justificativa é usada pelo Dr. José Jorge
da Rocha quando se refere às vistorias aos açougues cheios de carnes magras que se
corrompiam com facilidade, e eram nocivas à saúde do povo da Bahia. Essas teriam sido as
motivações para o licenciado juntamente com Rodrigo da Costa de Almeida e João Alberto de
Brito da Câmara solicitarem a nomeação de um cirurgião partidista.75
Seja como for, com frequência, são observadas em correspondências como essa um
discurso que se fazia cada vez mais presente à época: a necessidade de médicos e cirurgiões
licenciados na colônia. Mas, não tocaremos neste ponto agora, pois, a análise da missiva
implica estabelecer uma investigação detalhada sobre as doenças registradas na carta. O
sarampo, por exemplo, enfermidade infecciosa e contagiosa, que no período aqui estudado,
recebia outras interpretações, pois, os conhecimentos médicos do passado não sabiam da
existência dos vírus, assim como das bactérias. Assim para a medicina douta tanto a saúde
quanto a doença no período estudado, estavam relacionadas ao equilíbrio dos corpóreos e
qualquer alteração nesse equilíbrio provocava doenças.76 Na primeira metade do século
XVIII, de acordo com o cirurgião João Cardoso de Miranda, o sarampo estava relacionado a
um “maligno fermento” do sangue que provocava uma febre violenta. Miranda assim
descreveu a sua causa: “febre virulenta e uma estranha, e peregrina fermentação, induzida, ou
excitada por um especial fermento, salino, ácido e volátil, que comove o sangue a uma
turbada e violenta ebulição, mediante a qual, se precipita para a cútis a matéria maligna”.77
Eis o modo como a doença se desenvolvia; já em relação aos sintomas ou sinais, o
licenciado destaca as febres, dores de cabeça, sonolência acompanhada de delírios, tremores
ou convulsões, vômito, espirros, tosse e ebulição do sangue.78 Como achaque infeccioso e

74
José Jorge da Rocha atuou na Bahia como cirurgião da Câmara e, em 1758, ocupava o cargo de Juiz de Fora
da Câmara Municipal da Cidade da Bahia. Em 1777, após retorno para Portugal, recebeu a habilitação para a
Ordem de Cristo. Cf. Arquivo Nacional da Torre do Tombo. Mesa da Consciência e Ordens, Habilitações
para a Ordem de Cristo, Letra I e J, Maço 57, n.º 9.
75
APEB, SCP, Maço 198, 1733-1750.
76
NOGUEIRA, op. cit., 2013. MIRANDA, Carlos Alberto Cunha. A arte de curar nos tempos da colônia:
limites e espaços da cura. 3. ed. rev. ampl. e atual. – Recife : Ed. Universitária da UFPE, 2017.
77
MIRANDA, op. cit., p. 113.
78
Ibidem, p. 116.
46

contagioso, é possível supor que, em um ambiente onde havia pouca circulação do ar e em


que os indivíduos eram transportados amontoados, a sua proliferação acontecia de maneira
mais acelerada atingindo e talvez matando um número maior de indivíduos ainda durante a
travessia atlântica.
Nesse sentido, as sarnas também se enquadram entre as moléstias que se
disseminavam com mais facilidade nos porões dos navios. Para o período estudado, a origem
dessa enfermidade não está bem definida, isto porque, conforme Bluteau, a palavra sarna vem
do latim Savies e significa matéria que sai das chagas, apresentando uma aspereza na
superfície da pele acompanhada de vermelhidão e “boletas” secas e úmidas, tinha sua causa
associada à introdução do leite materno ou das amas de leite.79
Por sua vez, Miranda considerou as sarnas e outras enfermidades cutâneas como um
“affecto” ou disposição contra a natureza, quer dizer, vinculada ao sobrenatural e que era
capaz de impedir as ações do corpo.80 Nesse caso, é importante lembrar que era comum a
associação das moléstias ao sobrenatural, principalmente, entre os povos africanos, e nas
sociedades europeias. Para os africanos a enfermidade assumia um caráter sobrenatural. A
saúde dependia da harmonia do homem com seu meio social, antepassados, deuses e com o
cosmo ao qual pertencia. O equilíbrio dessa harmonia consistia em uma vida disciplinada, de
acordo com as exigências da moral. Assim, a moléstia representava um desequilíbrio nesse
sistema, provocado por um erro individual, pela maldade de outras pessoas (feitiçaria), ou
enviada pelos ancestrais ou vodun.81 De acordo com André Luís Lima Nogueira, no século
XVIII, as classificações entre o natural e o sobrenatural eram indistintas. Relacionadas,
muitas vezes, com a imposição “entre o visível e o invisível, o corpóreo e o espiritual, o
mundo dos vivos e dos mortos”. Assim, nas sociedades europeias e no Brasil colonial, era o
sagrado que mediava a relação entre adoecimento e cura.82 Segundo o historiador Timothy
Walker, “misturar o sagrado e o profano era uma característica comum das técnicas de cura

79
BLUTEAU, op. cit. Acesso em: 12 de fevereiro de 2021.
80
MIRANDA, op. cit., p. 212. Sobre o significado da palavra “affecto”, Bluteau fez as seguintes considerações
“é a propriedade, ou atributo, que resulta da natureza de qualquer entidade; e neste sentido há bons, e maus
affectos, chamam os médicos mais particularmente affecto ao efeito de qualquer doença ou achaque, com que
se sente o corpo, ou alguma parte dele em um estado preternatural”.
81
LÉPINE, Claude. Os dois reis do Danxome: varíola e monarquia na África Ocidental 1650-1800. Marília:
UNESP; São Paulo: FAPESP, 2000. p. 9.
82
NOGUEIRA, André Luís Lima. Entre cirurgiões, tambores e ervas: calunduzeiros e curadores ilegais em
ação nas Minas Gerais (Século XVIII). 2013. Tese (Doutorado)– Curso de Pós-Graduação em História das
Ciências e da Saúde, Casa de Oswaldo Cruz – Fiocruz, Rio de Janeiro, 2013, p. 43.
47

populares portuguesas durante os séculos XVII e XVIII”.83 Para Ludwik Fleck, as doenças
venéreas ou dermatológicas como a sarna e a sífilis, por exemplo, possuíam explicações
astrológicas, humorais e de caráter religioso.84 Acreditava-se desde Hipócrates que a
concepção de doença estava relacionada a teoria humoral, ou seja, aos humores corpóreos e a
corrupção dos ares, mas o caráter religioso sempre esteve presente quando se buscava explicar
a origem das doenças. Nesse sentido, era comum esse posicionamento frente a algumas
doenças como as sarnas, que, segundo Miranda, estava ligada ao sobrenatural. Em relação à
crença de sua transmissão via leite materno, é possível considerar que estando o parasita em
contato com a pele da mãe ou ama de leite, o ato de segurar a criança e amamentá-la
possibilitava o contágio, ou seja, através do contato, e não da introdução do leite materno.
Entretanto, quando se trata do desenvolvimento da doença nos porões dos navios
negreiros, devemos levar em consideração que as condições de higiene foram fatores que
influenciavam diretamente no desenvolvimento de enfermidades venéreas ou de pele em alto
mar, a sarna, nesse sentido, se manifestaria com facilidade em um ambiente onde além de
amontoados os escravizados tinham contato com ratos, fezes e com baixa circulação do ar.
Segundo Oliveira Mendes, a sarna era muito comum nos armazéns onde os escravos
aguardavam o embarque para o Brasil, e nos porões dos navios negreiros.85 Carlos Alberto
Cunha Miranda, considerou a sarna uma enfermidade frequente entre os escravizados e que se
desenvolvia principalmente em locais onde a higiene era negligenciada, assim, em alguns
casos, ao coçar a região atingida pela sarna, a irritação da pele poderia se transformar em uma
infecção facilitando o contagio.86
Outra doença citada na correspondência de 1750, e frequentemente relacionada ao
continente africano e ao tráfico de escravos, é a elefantíase. Segundo Alencastro, essa doença
era provocada por uma filariose do aparelho circulatório, conjuntivo e das cavidades serosas,
conhecida na época como “bicho da costa”, da costa da África.87 Recorrendo mais uma vez a
Bluteau, que salientava: “bicho” era gerado nas pernas, que se faz comprido e grosso como
uma corda de viola, comum na região da Costa da Mina.88 Entre os seus sintomas, a

83
WALKER, Timothy D. Médicos, medicina popular e inquisição: a representação das curas mágicas em
Portugal durante o Iluminismo. Tradução de Mariana Pardal Monteiro. Rio de Janeiro/Lisboa: Editora
FIOCRUZ/Imprensa de Ciências Sociais, 2013, p. 63.
84
FLECK, Ludwik. La gênesis y el desarrollo de um hecho científico. Madri: Alianza Editorial, 1986. p. 47-
50.
85
MENDES, op. cit., 1793. p. 79.
86
CUNHA MIRANDA, op. cit., 2017. p. 401-402.
87
ALENCASTRO, op. cit., p. 128.
88
BLUTEAU, op. cit.
48

inflamação e obstrução do fluxo de linfa, levava ao acúmulo de líquido e ao inchaço em


algumas regiões do corpo como pernas e braços, mesmo que fosse impossível o parasita se
transportar para o corpo de outra pessoa, se um mosquito picasse um infectado, ele poderia
transmitir a enfermidade para outra pessoa sadia.
Assim, se imaginarmos mais uma vez os porões das embarcações, como espaços
insalubres devido ao calor, suor e produção de excrementos, era comum o tráfego de
mosquitos que encontrando um cativo ou até mesmo um tripulante com a infecção, a
transmitia. Em relação à doença registrada na missiva como “malignas”, encontramos no
dicionário de Bluteau o termo associado a doenças como herpes, impigem, ulcera e a infecção
gálica. Por outro lado, o dicionarista também utiliza o termo para fazer referência às ações
diabólicas e sobrenaturais. Nesse sentido, as malignas arruinavam o corpo do doente e por ser
relacionada a enfermidades sexualmente transmissíveis como a herpes e a infecção gálica,
sendo relacionadas também ao sobrenatural.89
Voltando à correspondência de 18 de fevereiro de 1750, acreditamos que esse temor
em relação ao contágio por doenças originárias dos navios negreiros pode ser justificado pelo
próprio imaginário que conectava as enfermidades aos africanos escravizados e pelo número
de mortes decorrentes das epidemias que acometeram a cidade em anos anteriores a 1750,
como, por exemplo, as mais de 5 mil mortes registradas em carta pelo vice-rei André de Melo
e Castro em 1743.90 Como nos lembra Jaime Rodrigues, a ligação entre as moléstias e os
povos africanos foi construída ao longo dos séculos, de modo que era comum encontrar esse
tipo de posicionamento nas cartas enviadas ao monarca, quando o assunto eram as doenças.91
Sobre a afirmação de que as embarcações jamais faziam quarentena, acreditamos que
nem sempre elas eram, de fato, fiscalizadas pelo cirurgião quando atracavam no porto.
Contudo, se levarmos em consideração que o pedido de envio de um cirurgião foi registrado
em carta por outro cirurgião, o Dr. José Jorge da Rocha, podemos supor também que essa
informação sobre o não cumprimento da fiscalização teria sido uma estratégia para que um
licenciado fosse enviado à Bahia, afinal seriam o médico e o cirurgião os responsáveis pela
inspeção dos navios. O requerimento como já mencionado em páginas anteriores, enfatizava a
ausência desse profissional e a importância de um cirurgião partidista da Câmara, pois

89
Idem.
90
APEB, SCP, Maço 198, 1733-1750. “Carta do vice-rei e capitão-general do Brasil, conde das Galveas, André
de Melo e Castro ao rei [D. João V] informando os estragos causados pelas doenças que grassam na cidade
da Bahia, sobretudo uma epidemia de defluxos e priorizes”; AHU. Arquivo Histórico Ultramarino. Bahia.
Cx. 78, D. 6444. Disponível em: http://ahu.dglab.gov.pt/. Acesso em: 19 jun. 2020. p. 1.
91
RODRIGUES, op. cit., 2016, p. 73-76.
49

somente esse licenciado poderia, junto com o médico responsável pelas visitas aos navios,
açougues e currais, praticar a arte da cirurgia nas carregações.92 Segundo João Batista de
Cerqueira, “o médico, licenciado ou cirurgião partidista ou do partido, era o profissional
contratado por um hospital ou pelo Senado da Câmara, portanto, pelo poder público para
tratar os pobres, presidiários e necessitados”.93
Em outra ocasião, os oficiais camarários voltaram a discutir em missiva datada de 2
de outubro de 1751, a relevância que teria a chegada de um licenciado a Salvador. Diferente
do Dr. José Jorge da Rocha, em carta analisada anteriormente, os oficiais João Teixeira de
Mendonça, Manoel Xavier Alá e Joaquim Lopes de Almeida Lima, tentaram justificar o
pedido de um cirurgião ao monarca com base na experiência e no bom serviço prestado à
Câmara por outros cirurgiões em anos anteriores a 1751. 94 Vejamos um trecho da carta:

[...] no que atendendo nossos antecessores; e a queixa que fazia o povo da


incapacidade das carnes bovinas, que encontram nos açougues, de que
haveria suspeita, cuidaram em dar providência no prazo tomando por
expediente o ano de 1742, mandar vistorias e exames por médicos, e
cirurgiões nos das carnes tanto nos açougues, como nos currais, abrindo-as, e
examinando-as [...].95

Ainda, segundo os oficiais, os exames e vistorias das carnes bovinas teriam se


iniciado na cidade a partir de 1742. Antes disso, a Câmara ainda não havia solicitado um
cirurgião e “nem este se teve em regular nela”. Em 1730, o vice-rei Conde de Sabugosa Vasco
Fernandes Cézar de Menezes teria nomeado Francisco da Costa Franco para cirurgião da
Câmara, mas em despacho o monarca teria reprovado a nomeação por se achar desnecessária
naquele momento.96 Isso não quer dizer que até 1742 não houvesse cirurgiões atuantes na
Bahia. Diferente do que acontecia com as embarcações negreiras de que temos registros de
vistorias e pedidos de quarentena em 1724, a fiscalização dos alimentos e principalmente das
carnes do gado provenientes dos sertões que enfrentava caminhos agrestes e a falta de água e

92
APEB, SCP, Maço 198, 1733-1750.
93
CERQUEIRA, João Batista de. Da botânica a zoologia: as pesquisas e atividades do cirurgião e licenciado
Francisco Antônio de Sampaio na vila da Cachoeira, capitania da Bahia, no século das luzes. In: XXVIII
SIMPÓSIO NACIONAL DE HISTÓRIA, 2015, Florianópolis, Anais Lugares dos Historiadores: Velhos e
Novos Desafios. Florianópolis: UFSC e UDESC, 2015. p. 1-14. Disponível em:
https://anpuh.org.br/uploads/anais-simposios/pdf/2019-
01/1548945023_f9ffd3dc780d5054fa928c6f2ea4148a.pdf. Acesso em: 27 abr. 2020. p. 2.
94
Arquivo Histórico Municipal de Salvador (AHMS), Cartas do Senado a sua Majestade, Senado da
Câmara (1741-1822), maço 28.10.
95
Ibidem.
96
Ibidem.
50

alimento, deixando o gado magro e doente, tornando necessárias as vistorias pelo cirurgião
aos açougues e currais da Bahia, conforme carta de 1751, se iniciam apenas em 1742.
Sobre as doenças e sua associação com os africanos escravizados recém-
desembarcados, os oficiais enfatizaram mais uma vez a necessidade de um cirurgião partidista
da Câmara para trabalhar na fiscalização dos navios negreiros que traziam escravos infectados
por toda sorte de doenças contagiosas. Vejamos o que diz a carta:

[...] nas ruas se esta vendo nascer nossa ruina por serem os referidos
(escravos) doentes. O navio carregado de escravatura, que vão trazer
ophtalmias, sarnas, ou outras chagas escorbúticas, tumores malignos,
bexigas ou sarampos, que todas são doenças externas, malignas, e
contagiosas, de que este povo experimenta grande prejuízo; e destas tais
doenças, que são mais comuns, que os ditos escravos trazem, não podem
tomar os escravos conhecimento só o médico da Câmara que com o
Provedor da Saúde os visitam por pertencerem mais a faculdade cirúrgica,
que a physica; [...].97

Levando em conta tais considerações, podemos analisar a necessidade de cirurgiões


na Bahia relatada pelos oficiais camarários. Essa urgência, todavia, torna-se questionável,
pois, sabemos que outros práticos de cura, os chamados curandeiros, feiticeiros ou curadores
ilegais auxiliavam os doentes na ausência dos licenciados examinando, prescrevendo
remédios e exercendo outras práticas de cura.98 Nesse sentido, essa suposta carência de
profissionais licenciados na colônia, evidenciada nas correspondências, era em parte suprida
pelos curadores não licenciados. Tânia Salgado Pimenta afirma que, ainda em meados do
século XIX, a população pobre, os escravizados e seus descendentes davam preferência às
práticas de cura dos curandeiros.99 Assim como no período setecentista, esses agentes de cura
se destacavam no tratamento de doenças que os eruditos não conseguiam curar, além disso,
pobres livres e escravizados tinham pouco acesso à medicina erudita, o que facilitava um
contato maior com as curas desenvolvidas pelos curadores não licenciados.
E, certamente, essa urgência em se nomear um cirurgião partidista da Câmara,
narrada em carta, sugere que eram os próprios licenciados ou representantes da Câmara que
sentiam a ausência desses profissionais na Bahia, visto que a missiva de 1750 fora assinada,
como já mencionado, pelo Dr. José Jorge da Rocha, cirurgião partidista que provavelmente

97
Ibidem.
98
PIMENTA, Tânia Salgado. Doenças. In: SCHWARCZ, Lilia M.; GOMES, Flávio (org.). Dicionário de
Escravidão e Liberdade. São Paulo: Companhia das Letras, 2018. p. 205-206.
99
Ibidem, p. 205.
51

trabalhava sozinho realizando as inspeções.100 Na correspondência de 1751, encontramos


outras enfermidades que também eram relacionadas ao desembarque de africanos
escravizados na Bahia, além das moléstias já analisadas, constam na missiva menção a
bexigas, carbúnculos, lepra, disenterias e ophtalmias.101
As bexigas, popularmente conhecidas como varíola, no século XVIII, foram
classificadas, segundo Bluteau, como um mal contagioso e conhecido por cobrir o couro com
“boletas”, provocadas por uma efervescência na “massa sanguínea”.102 Já Miranda, em sua
Relação Cirúrgica e Médica, além de atribuir a sua causa à fermentação do sangue também a
classifica como maligna e contagiosa, sendo os seus sintomas, muito parecidos com os do
sarampo e, por isso, as bexigas, para Miranda, poderiam ser facilmente confundidas com o
sarampo. Nesse caso, para identificá-la era importante observar o corpo do doente, pois as
bexigas apresentavam “vários pequenos tumores sobre a região da cútis, uns elevados no
formato piramidal, e outros não tão elevados, mas sempre cheios de matéria mais (clara), e
mais volátil, do que os dos sarampos”.103
Conforme assinala Miranda era difícil apontar qual a verdadeira causa da doença, isso
porque os estudiosos antigos acreditavam que o achaque era produzido “por um inquinamento
– corrupção ou mancha, infecção ou chaga –, ou imperfeição gerada pelo útero materno que
ligava o feto ao sangue, desse modo, seria esse inquinamento a causa das bexigas, enquanto
os estudiosos modernos atribuíam a sua causa as substâncias lácteas”.104 Entretanto, os
africanos conheciam há muitos anos a varíola e tinham formas próprias e religiosas de
variolizarão (contaminação com formas brandas da doença) para alcançar a imunidade e
evitar os casos graves.
Outra moléstia associada à chegada dos africanos escravizados na Bahia era o
carbúnculo, identificada por Bluteau como tumor ou pústula “flegmonica” que, por apresentar
uma crosta em seu meio, similar ao carvão, “cinzenta e acompanhada de uma vermelhidão
escura”, recebeu o nome de carbúnculo. Um dos seus sintomas, de acordo com o padre, era a
empolação seguida de queimação na região afetada pelo tumor. O carbúnculo se originaria de

100
É durante a segunda metade do século XIX, que a disputa entre médicos e curandeiros pelo reconhecimento e
ascensão social, torna-se mais evidente no Brasil. Cf. SAMPAIO, Gabriela dos Reis. Nas trincheiras da
cura: as diferentes medicinas no Rio de Janeiro imperial. Campinas, SP: Editora da UNICAMP, 2001;
SAMPAIO, Gabriela dos Reis. Tenebrosos mistérios: Juca Rosa e as relações entre crença e cura no Rio de
Janeiro imperial. In: CHALHOUB, Sidney et. al. (org.). Artes e ofícios de curar no Brasil: capítulos de
história social. Campinas, SP: Editora da UNICAMP, 2003. p. 387-426.
101
AHMS, Cartas do Senado a sua Majestade, Senado da Câmara (1741-1822), maço 28.10.
102
BLUTEAU, op. cit. Acesso em: 12 de fevereiro de 2021.
103
MIRANDA, op. cit., 1747, p. 113-116.
104
Ibidem, p. 113-116.
52

uma inflamação e fermentação do sangue, por isso, também apresentava febres pestilentas,
aparecia com frequência nos braços e nas virilhas, matando o doente de repente. 105 O
cirurgião português Luiz Gomes Ferreira relacionou a doença aos seguintes sintomas:
“vômitos, grande febre, ânsias, desmaios e, às vezes, umas veias azuis ao redor”. 106 Em 1730,
Miranda havia sido requisitado pelo sargento-mor Manoel Fernandes da Costa, para tratar de
um escravo acometido pela doença e, segundo as suas observações o carbúnculo se
desenvolveu na parte superior da testa e possuía a aparência de uma “romã aberta”, no ano
seguinte, em 1731, o cirurgião retornou a propriedade do sargento-mor para tratar da saúde de
sua filha que também foi acometida pelo carbúnculo.107
Em relação às disenterias, elas aparecem como um termo médico que indica a
malignidade dos humores, porém não é contagiosa como indicado na correspondência, sendo
frequente, sanguinária e purulenta, a moléstia agia como uma descarga do ventre, entre os
seus sintomas estão a exulceração e as dores nos intestinos provocados por uma matéria acre,
corrosiva e contrária à natureza dos intestinos.108
A lepra, foi catalogada por Bluteau no Setecentos como mal contagioso ou “affecto”
venenoso cuja origem era uma “depravada sanguificação”, ou seja, o desenvolvimento ou
formação das células sanguíneas. Esse processo de sanguificação agia corrompendo o estado
natural do corpo originando a lepra, que também era conhecida como doença ou mal universal
que convém do morbo gálico em grão genérico, sendo muitas vezes confundida, por alguns
autores, com a elefantíase. Segundo Bluteau, os gregos acreditavam que a elefantíase seria
uma “espécie mais letal da lepra”, no entanto, o padre não menciona nenhum dos seus
sintomas.109
Recorrendo a Miranda, também não encontramos outra definição para a enfermidade,
sua causa ou sinais, o mesmo acontece no Erário Mineral de Luiz Gomes Ferreira onde o
autor apenas expõe seus métodos e receitas utilizadas no tratamento de doenças gálicas.110
Porém, entendemos que essa confusão dos gregos em relação à lepra e à elefantíase pode ser
explicada pela semelhança de alguns de seus sintomas, pois, além da lepra apresentar sinais

105
BLUTEAU, op. cit. Acesso em: 12 de fevereiro de 2021. MIRANDA, op. cit., 1747, p. 185.
106
FERREIRA, Luiz Gomes. Erário Mineral. Lisboa: Officina de Miguel Rodrigues, 1735.p. 493. Disponível
em: https://books.google.com.br/books?id=pB8EUKIfz3AC&printsec=frontcover&hl=pt-
BR&source=gbs_ge_summary_r&cad=0#v=onepage&q&f=false. Acesso em 20 jun. 2020.
107
MIRANDA, op. cit., 1747, p. 201-202.
108
BLUTEAU, op. cit. Acesso em: 12 de fevereiro de 2021.
109
Ibidem. Acesso em: 12 de fevereiro de 2021.
110
FERREIRA, op. cit. 1735.
53

de feridas nos pés e mãos, lesões no nariz e nos olhos, causando cegueira, ela também
apresentava inchaço nas regiões afetadas, característica da elefantíase.
A ophtalmia (oftalmia), por sua vez, era reconhecida por João Cardoso de Miranda
como uma “inflamação da túnica adnata, ou conjuntiva dos olhos com dor, vermelhidão, ardor
e lagrimas”. Entre as enfermidades a que os olhos estavam sujeito nesse período seria a
ophtalmia a que mais os atingia. Além disso, a inflamação provocada pela doença causava
chagas e nevoas nos olhos que prejudicavam a visão do doente.111 Recorrendo a Bluteau,
encontramos a mesma definição para a doença e, no Erário Mineral, localizamos uma receita
de colírio para o tratamento da ophtalmia.112 Sendo uma moléstia contagiosa, certamente não
encontraria dificuldade para se desenvolver nos porões das naus e assombrar o povo da Bahia
e os doutos da medicina que com frequência relatavam a existência dessa doença.
Assim, a análise da documentação e das doenças nela mencionadas a partir dos
manuais de medicina e, na sua ausência, como foi compreendido pelo dicionarista da época,
proporciona um entendimento sobre a crença de que as enfermidades eram resultado da
entrada dos africanos escravizados na cidade. A partir da compreensão sobre o que eram as
doenças que acometiam a população, especialmente a população escravizada, é possível
afirmar que essas enfermidades eram produzidas, na verdade, pelas condições precárias a que
eram submetidos os africanos para alimentar o tráfico de escravos para a América portuguesa,
bem como do não cumprimento da lei de arqueação. Entretanto, o cumprimento da lei de
arqueações não resolvia os problemas relacionados à mortalidade, pois muitos cativos já
chegavam ao porto de embarque debilitados o que aumentava as chances de desenvolverem
uma doença e morrerem antes mesmo de chegar ao destino final. Em outras palavras, essas
moléstias eram produzidas socialmente.

A última travessia: os assentos dos africanos mortos na Cidade da Bahia

O livro do banguê (1741-1750) contém registros de africanos mortos após a chegada


ao porto da Cidade da Bahia. Banguê era o esquipe usado pela Santa Casa para enterrar
escravos e indigentes.113 Esses registros possibilitam entender um pouco mais a relação entre
o tráfico e as doenças que acometiam os escravizados durante e após a travessia do Atlântico.

111
MIRANDA, op. cit., 1747, p. 40.
112
FERREIRA, 1735, p. 608.
113
Cf. RUSSELL-WOOD, op. cit., 1981; SOUZA, op. cit., 2010.
54

Assim, encontramos no banguê da Santa Casa de Misericórdia registros de 33 embarcações


que fizeram negócio com a Costa africana entre 1741-1750. Desse número apenas 16 foram
identificadas no livro pelo nome; as demais foram listadas, por exemplo, conforme a seguinte
descrição: “Iate que naufragou”. Quando buscamos os nomes dos proprietários encontramos
somente a observação “interessados na embarcação”. Por isso, analisamos apenas os navios
que conseguimos identificar pelo nome, conforme demonstrado no Quadro 1.

Quadro 1: Embarcações registradas no Banguê

Tipo de embarcação Nome da embarcação Senhor/Proprietário/Capitão


Galera Bom Jesus da Confiança e N.S. da Penha Interessados na embarcação*
da França
Galera NS do Pilar e Santo Antônio das Almas Manuel Menezes de Carvalho
Navio São Miguel Francisco Gonçalves Barros
Navio Santiago das Almas Manuel da Costa de Oliveira
Navio NS da Conceição Santo Antônio e Almas Francisco Barbosa Lima
Galera NS da Penha de França e Boa Hora João Cardoso de Miranda
Corveta NS da Saúde e São Domingos Interessados na embarcação
Corveta Jesus Maria e Joseph João Dias da Cunha
Galera Santa Anna de NS da Conceição Tereza de Jesus Maria–Traficante
Galera NS do Socorro e S. Antônio e Almas Tereza de Jesus Maria – traficante
Galera Jesus Maria Joseph Joseph Fernandes Pereira
Sumaca Santa Anna e Santo Antônio e Almas Luís da Silva Pinto – Senhor
Domingos Gomes Lisboa – Capitão
Iate Santa Anna de Santo Antônio Interessados no iate
Navio Senhor do Bonfim São Pedro e Santo Interessados no navio
Antônio
Galera Santa Rita e Santo Antônio e Almas Interessados na galera
Galera Bom Jesus da Pedra Santa Rita e Interessados na galera
Domingos
Fonte: Livro do Banguê da Santa Casa de Misericórdia, 1741-1750.
*Neste caso, não consta no registro o nome do proprietário da embarcação/escravo.

Ao comparar os dados das embarcações registradas no Banguê com os dados do


TSTD, encontramos informações sobre 10 das embarcações agrupadas no Quadro 1, exceto
para a Corveta Jesus Maria e Joseph, pertencente a João Dias da Cunha, a Galera Santa Anna
de Nª S.ª da Conceição e a embarcação Nª S.ª do Socorro e S. Antônio e Almas, ambas
pertencentes à traficante Tereza de Jesus Maria (viúva do sargento-mor e capitão negreiro
Manoel Fernandes da Costa114), a Sumaca Santa Anna de Santo Antônio e almas, a Galera
Jesus Maria Joseph e sobre o Iate Santa Anna de Santo Antônio. Assim, temos entre 1741-
1750, 81 mortes de cativos registradas no banguê que fazem referência ao tráfico e aos navios
negreiros. Possivelmente, esse número tenha sido bem maior, uma vez que os assentos

114
DOMINGUES, op. cit., 2011, p. 75-171.
55

apresentam lacunas. O cruzamento das mortes lançadas no banguê com os dados do TSTD
para as respectivas embarcações possibilitou tecer algumas hipóteses sobre as doenças que
vitimaram os africanos ao chegarem ao porto da cidade. Antes disso, é importante conhecer
um pouco mais como os senhorios usavam essas embarcações nos negócios negreiros e, para
isso, separamos no Quadro 2 as informações coletadas sobre os navios no TSTD:

Quadro 2: Embarcações no TSTD

Nome Identid Proprietár Capitão Destino Saída Retorn Embarcad Desemb


ade io o os arcados
Bom Jesus da Manoel João Costa
Confiança e 50646 Dias Dorneles da 1742 1742 465 403
NS da Penha Maciel de Abreu Mina
de França
NS da Penha João Francisco Costa
de França e 52013 Cardoso de Henriques da 1741 1742 476 413
Boa Hora Miranda de Moraes Mina
NS do Pilar e Joaquim Domingos Costa
S Antônio das 50622 Rodrigues Luís da da 1740 1741 349 303
Almas Cortinhal Silva Mina
S Miguel e o Manoel João de Costa
Anjo Custódio 50636 Fernandes Vilas Boas da 1741 1742 379 339
da Costa Mina/S
ão
Tomé
Manoel da Manoel Costa
Santiago e 50634 Costa de Lourenço da 1741 1742 279 242
Almas Oliveira Mina/S
ão
Tomé
NS da Francisco Félix Costa
Conceição S 50639 Barbosa Ribeiro da 1741 1742 163 146
Antônio e Lima Correia Mina
Almas
NS da Saúde e Manoel
S Domingos 8731 – Rodrigues Luanda 1741 1742 325 286
Farto
Sr. do Bonfim André Manoel Costa
S Pedro e S 50722 Marques Gonçalves da 1749 1750 714 619
Antônio Lima Mina
Santa Rita e Manoel Nicolau
Santo Antônio 52024 Alvares de Nunes Luanda 1749 1750 334 290
e Almas Carvalho
Bom Jesus da Manoel Jerônimo Costa
Pedra S Rita e 49590 Alvares de Leite da 1750 1750 582 505
Domingos Carvalho Ferreira Mina
Fonte: TSTD, disponível em: Comércio Transatlântico de Escravos - Base de Dados (slavevoyages.org)
56

Ao confrontar as informações do Quadro 2 foi possível conhecer um pouco mais


sobre as viagens negreiras de cada embarcação analisada. A Galera Bom Jesus da Confiança
e Nª S.ª da Penha de França teve como senhorio o capitão Manoel Dias Maciel, que registrou
para os anos de 1741, 1742 e 1743 oito óbitos no banguê concernentes a cativos listados como
carregamento dessa embarcação.115 A Galera fez pelo menos duas viagens para o resgate de
africanos na Costa da Mina, porém, na base de dados do TSTD, localizamos apenas a viagem
de 1742, identificada como #50646 e capitaneada por João Dorneles de Abreu.
Conforme as informações, o Bom Jesus da Confiança e Nª S.ª da Penha de França
teria saído da Bahia no dia 26 de janeiro de 1742, dando início ao comércio naquela região
apenas no dia 17 de outubro do mesmo ano. Não consta no TSTD as datas de saída da Costa
da Mina e chegada ao porto de Salvador, o que nos leva a acreditar que cinco das oito mortes
lançadas no banguê de africanos escravizados que pertenciam à carregação desse navio eram
cativos que desembarcaram em 1741, ou seja, partindo dessa lógica apenas três seriam
escravos dessa carregação registrada no TSTD.116
O que se observa nos assentos do banguê é que para a maioria dos óbitos entre os
cativos não há registro de suas causas, tampouco o nome de seus proprietários. Maria,
falecida em 20 de outubro de 1743, é uma das nossas exceções. Quando faleceu ela foi
registrada como escrava de João Rodrigues Pereira, enquanto os demais foram listados como
escravos do capitão Manoel Dias Maciel e demais interessados na carregação. Nesse sentido,
podemos compreender que existia uma possível relação entre as mortes e as doenças
originadas nos navios, pois se estes cativos tivessem desembarcado sadios eles teriam sido
vendidos. Se isso não aconteceu significa que possivelmente eles tenham sido acometidos por
alguma enfermidade durante a travessia ou ao desembarcar.
Outra questão que corrobora essa hipótese é o fato de as mortes terem acontecido no
intervalo de um ou dois meses, principalmente entre os cativos pertencentes ao capitão
Manoel Dias Maciel. As mortes de Manuel, falecido em 05 de agosto; de Antônio, em 04 de
setembro; e de Francisco, em 30 de novembro de 1741, podem ter resultado de uma moléstia
não cuidada após o desembarque. Maria e José faleceram em 1742, respectivamente em 05 de
março e 09 de junho, provavelmente não em decorrência de doenças contraídas antes ou
durante a travessia. Como já foi dito, não existia a preocupação em separar os escravos
enfermos dos sadios, que, associada às péssimas condições de sobrevivência após o

115
Arquivo da Santa Casa de Misericórdia da Bahia, Livro do Banguê, 1741-1750, p. Ilegíveis, livro: 1257.
Doravante: ASCMB, Livro do Banguê.
116
TSTD. Acesso em: 23/02/2021.
57

desembarque, pode ter contribuído para a proliferação das moléstias entre os cativos enquanto
permaneciam no mercado de vendas ou na casa de Manoel Dias Maciel já que as mortes
ocorreram na casa desse senhor.
Em relação aos três escravos lançados no banguê para o ano de 1743, como indicado,
acreditamos que eles faziam parte da segunda viagem da Galera à Costa da Mina, levando em
consideração os dados do TSTD, isto é, a carregação tinha, inicialmente, 465 cativos
embarcados, mas chegou à Bahia entre o final de 1742 e início de 1743 com 403 escravos.117
Assim como no banguê, a base de dados do TSTD não dispõe de informações sobre as 62
mortes durante o percurso até o porto de Salvador.
As mortes dessa carregação representam 13,3% dos escravos embarcados.
Estatisticamente não é um percentual tão significativo caso houvesse uma epidemia durante a
travessia que pudesse contaminar um grande número de escravos. Conforme apontam David
Eltis e David Richardson, a taxa de mortalidade de escravos africanos durante a viagem para o
Brasil foi consideravelmente inferior em relação à mortalidade de escravos que se dirigiam
para outras regiões, a exemplo do que ocorreu com o Caribe no mesmo período (1638-1775).
Os dados confrontados pelos autores sugerem que uma proporção maior de africanos centro-
ocidentais (12,1%) morreu durante a viagem para o Brasil, enquanto a porcentagem de mortes
atlânticas para os escravizados da Guiné Superior representava 8,2% e os da Costa do Ouro e
da Baía do Benin 7,2%. Para a região caribenha, a taxa de mortalidade entre os cativos da
África Centro-Ocidental era de 16,7% para uma viagem que durava aproximadamente 75
dias. Já a porcentagem para a Guiné Superior era de 13,8% e para a Costa do Ouro e a Baía do
Benin 22,9%.118
Voltando para os nossos 13,3% de mortos do navio Bom Jesus da Confiança e Na S.ra
da Penha de França, e levando em conta que para a Bahia a taxa de mortalidade entre os
cativos durante a travessia atlântica era de 10,3%, não podemos cogitar a existência de uma
epidemia na embarcação. Como veremos mais adiante outras carregações apresentaram
porcentagens semelhantes.119 Assim, podemos considerar que o número de mortos em alto
mar diz muito sobre o prejuízo causado pelas péssimas condições de travessia atlântica à
saúde do escravo. Segundo Rodrigues, a dificuldade em relação ao abastecimento dos navios
com provisões que fossem adequadas e capazes de resistir à longa jornada atlântica e aos

117
Ibidem.
118
ELTIS, David; RICHARDSON, David. Atlas of the Transatlantic Slave Trade. Yale University Press New
Heven & London. 2010. p. 169-183.
119
Ibidem.
58

climas antagônicos permaneceu no decorrer dos séculos e, muitas vezes, essa dificuldade
fazia com que a viagem se estendesse para além do tempo planejado.120
Outra Galera que se destaca é a Nossa Senhora da Penha de França e Boa Hora, que
tinha como senhorio João Cardoso de Miranda, cirurgião português que transitou entre a
Metrópole, Salvador e Minas Gerais durante a primeira metade do século XVIII.121 Além de
cirurgião, Miranda era também homem de negócio e atuava no resgate de africanos
escravizados na Costa da Mina.122
Sabemos também que o licenciado, no espaço de pouco mais de um ano – de julho de
1741 a outubro de 1742 –, sepultou 11 cativos da Costa da Mina entre os adros da Sé e da
Conceição. Mas, observando os registros do livro do banguê, o que de fato chama atenção é
que as mortes ocorreram no espaço de poucos dias, caso de dois cativos chamados José,
ambos de nação mina, que faleceram em 17 e 28 de abril, respectivamente; Francisco e
Manuel, que morreram em 10 e 13 de maio; Maria, falecida em 12 de julho e Mônica no dia
20 do mesmo mês do ano de 1742.123 Entre os falecidos e sepultados por Miranda
encontramos também cinco escravos que pertenciam à carregação Nossa Senhora da Penha
de França e Boa Hora. Todos morreram em um espaço de pouco mais de uma semana, caso
de João, que faleceu no dia 20 de junho; Mariano, em 12 de julho; Mônica, no dia 20 do
mesmo mês; Benedito no dia três de agosto; e, por fim, Francisco, falecido em 10 de outubro
de 1742. Apesar de a morte de Francisco ter sido mais tardia, é possível que todas tenham
decorrido de alguma complicação apresentada por uma enfermidade desenvolvida ainda no
porão do navio negreiro ou enquanto aguardavam a sua venda, uma vez que esses escravos
não foram vendidos e pereceram na casa do licenciado.124
Outra hipótese levantada pelo historiador Cândido Domingues para explicar essas
mortes é a de que o cirurgião adquiria escravos doentes, pois Miranda circulava entre famílias
importantes que solicitavam os seus cuidados como cirurgião, tanto para si quanto para seus
escravos na Bahia. Desse modo, envolvido no tráfico negreiro, o cirurgião aventurou-se

120
RODRIGUES, op. cit., p.75-79.
121
SILVA JUNIOR, op. cit., p. 178-179.
122
Cf. WISSENBACH, Maria Cristina Cortez. Gomes Ferreira e os símplices da terra: experiências sociais dos
cirurgiões no Brasil-Colônia. In: FURTADO, Júnia Ferreira (org.). Erário mineral Luís Gomes Ferreira.
Vol. I e II. Belo Horizonte: Fundação João Pinheiro, Centro de Estudos Históricos e Culturais; Rio de
Janeiro: Fundação Oswaldo Cruz, 2002. p. 105-149; SILVA JUNIOR, op. cit.; BANDINELLI, Isaac
Facchini. Medicina e comércio na dinâmica colonial: a trajetória social de João Cardoso de Miranda
(século XVIII). 2018. Dissertação (Mestrado em História) – Faculdade de História Cultural, Universidade
Federal de Santa Catarina, Florianópolis, 2018.
123
ASCMB, Livro de Banguê, 1741-1743. Livro 1257, p. 32v, 46v, 50v.
124
ASCMB, Livro de Banguê. Carlos da Silva Jr. também utiliza em sua análise os óbitos dos escravos João
Cardoso de Miranda registrados no banguê. Cf.: SILVA JR., op. cit., p. 178.
59

também na compra de escravos doentes, curando-os e fazendo a revenda, prática que lhe
rendia bons lucros.125
É importante ressaltar também que, para a época estudada, qualquer doença, até
mesmo a mais simples, se malcuidada poderia se transformar em algo mais grave,
principalmente nesse processo de adaptação ao Novo Mundo. Se o escravizado já
desembarcava doente dificilmente ele seria vendido de imediato, e poderia ainda arrastar-se
enfermo até vir a óbito. Quando vendido a compradores como Miranda, especialista nas artes
curativas havia a possibilidade de a saúde dos escravos adoecidos ser restaurada, ou do
prolongamento da enfermidade antes do óbito; essa é uma das hipóteses para explicar as
mortes mais tardias na escravaria do licenciado. Ou seja, Miranda talvez investisse na
aquisição de africanos de refugo, algo também comum entre os barbeiros.
Os registros no livro do banguê, assim como na análise da embarcação anterior, não
informam sobre as causas dos óbitos dos seus escravos. Se levarmos em consideração que
esses sujeitos provavelmente desembarcaram juntos em Salvador isso justificaria o curto
período entre uma morte e outra, já que desembarcaram doentes talvez vitimados por
escorbuto, bexigas ou sarampo, doenças contagiosas, cujo contágio era facilitado pela
aglomeração e má alimentação à qual eram submetidos na embarcação. Nesse caso, partindo
da análise das referências encontradas no TSTD sobre a galera pertencente a João Cardoso de
Miranda, constatamos que a viagem de sua embarcação, identificada pelo número #52013,
durou um ano, tendo saído da Bahia em 16 de abril de 1741 e chegando à Costa da Mina em
17 de agosto do mesmo ano. Contudo, não há registro no TSTD sobre a data de saída dessa
embarcação do porto da Bahia antes do dia 17 de abril de 1742.
A viagem do Brasil até a costa da África durava, em média, três ou quatro meses.
Talvez a embarcação tenha passado por algum problema durante a viagem de ida ou até
mesmo no retorno, o que justificaria a demora de um ano para a embarcação chegar à Bahia.
A galera, capitaneada por Francisco Henriques de Moraes, saiu da Costa da Mina com 476
africanos, tendo desembarcado ao final da viagem 413 escravos, entre os quais estavam os
cinco falecidos supracitados, representando 13,2% do total de africanos embarcados. Durante
o século XVIII o Nª Sª da Penha de França e Boa Hora realizou a travessia atlântica dez
vezes, sendo seis na primeira metade do século.126

125
DOMINGUES, op. cit., p. 76.
126
TSTD. Acesso em: 30 mar. 2020.
60

Encontramos para os outros sete navios listados no livro do banguê e no TSTD,


como se observou no Quadro 2, para o período de 1741 e 1742, um e dois registros de óbito.
O Nª Sª do Pilar S. Antônio e Almas, por exemplo, identificado no TSTD pela sequência
#50622, saiu da Bahia com destino a Costa da Mina, com escala em São Tomé, no dia 2 de
agosto de 1740. O capitão Domingos Luís da Cruz deu início à negociação naquela região em
30 de novembro do mesmo ano, chegando à Bahia somente no dia 14 de outubro de 1741.
Não consta entre as informações a data de partida deste navio da África, sabe-se apenas que
ele faria escala em São Tomé e que foram embarcados 349 cativos e desembarcados 303,
cerca de aproximadamente 13,2% morreram em alto mar, entre eles José, escravo de Manuel
Menezes de Carvalho, que veio a óbito dois meses depois do seu desembarque na Bahia, em
02 de dezembro de 1741.127
Caso parecido aconteceu com outro escravizado de nação mina, cujo nome não foi
registrado na documentação, provavelmente porque não lhe foi dado um nome cristão, mas
tinha como senhor Francisco Gonçalves Barros dono do navio S. Miguel e o Anjo Custodio,
capitaneado por João de Vilas Boas e Manoel Antônio da Silva Pontes. Segundo o TSTD, a
embarcação havia iniciado o resgate de africanos na Costa da Mina em 08 de março de 1741,
fez escala em São Tomé e a soma de embarcados no momento de sua partida era de 379,
chegando ao porto de Salvador em 11 de maio de 1742, com um total de 339 cativos.128
Embora a base de dados não ofereça uma análise acerca dos 10,5% de mortos durante a
travessia atlântica, não podemos descartar a possibilidade de uma doença, ter sido a
responsável pelas mortes. Por outro lado, a taxa de mortalidade indica que caso a doença
fosse contagiosa e sem os devidos cuidados, ela teria atingido um percentual maior de
escravos, pois, o escravo mina faleceu no dia 28 de maio de 1742, poucos dias após o seu
desembarque.129
Localizamos no livro do banguê, Luís, mina, escravo de Manoel da Costa Oliveira,
falecido em 02 de junho de 1742, um mês após a sua chegada à Bahia na Galera Santiago e
Almas, que pertencia ao mesmo senhor. Sob a identidade #50634, a galera começou sua
viagem em direção à Costa da Mina e, sob os comandos de Manoel Lourenço e Pedro
Gonçalves Pinheiro, no dia 18 de janeiro de 1741, porém os capitães só iniciaram o negócio
na região a partir do dia 4 de outubro 1741, regressando a Salvador no dia 5 de maio de 1742,

127
ASCMB, Livro de Banguê, pp. Ilegíveis, livro: 1257.
128
TSTD. Acesso em: 23/02/2021.
129
ASCMB, Livro de Banguê, pp. Ilegíveis, livro: 1257.
61

também fazendo escala em São Tomé. Além disso, foram desembarcados, conforme o TSTD,
242 escravizados de um total de 279, uma perda de 13,3%.130
Também encontramos outros dois assentos de óbito, dos escravizados Joana e João,
ambos de nação mina, falecidos respectivamente nos dias 24 e 25 de junho de 1742. Esses
dois escravizados pertenciam a Francisco Barbosa Lima, que também era senhorio da
embarcação Nossa Senhora da Conceição Santo Antônio e Almas. A partir das informações
coletadas no TSTD, descobrimos que o Iate #50639 também resgatava escravizados na Costa
da Mina e que Joana e João, provavelmente, desembarcaram juntos no dia 13 de maio de
1742, já infectados por alguma doença. O Iate era comandado pelos capitães Félix Ribeiro
Correia e Manoel Jacinto Gomes e saiu daquele porto com 163 africanos embarcados. No
entanto, a taxa de mortalidade apresentada era de 10,4% de mortos, incluindo os africanos ora
mencionados que padeceram pouco mais de um mês depois da sua chegada.131
O óbito de Maria, nação angola, que chegou a Salvador a bordo do Nª S.ª da Saúde e
S. Domingos, revela que algumas embarcações não partiam, necessariamente, do porto de
Salvador. Maria morreu no dia 22 de julho de 1742, em casa do capitão Manoel Rodrigues
Farto. Maria fazia parte do grupo de 325 escravizados que embarcaram nessa Corveta que
saiu de Pernambuco com destino a Luanda, tendo chegado ao porto de Salvador no dia 6 de
junho de 1742 com 286 escravizados a bordo, ou seja, uma perda de 12%. Outra Maria, de
nação mina, que veio para a Bahia a bordo do Nª S.ª da Conceição, morreu no dia 12 de
agosto 1742, na casa de Elena Figueira, viúva. Não encontramos as informações sobre esse
barco no TSTD que pudesse auxiliar em sua identificação.132
A já conhecida Tereza de Jesus Maria, viúva do sargento-mor Manoel Fernandes da
Costa, sepultou entre agosto e dezembro de 1749, na freguesia da Conceição da Praia, 14
escravos que faziam parte da carregação da Galera Santa Anna de Nossa Senhora da
Conceição. Assim como em outros casos, não foram informadas as causas da morte no livro
do banguê. As mortes ocorreram entre os meses de agosto e dezembro. Dentre os
escravizados cujos nomes foram mencionados estava Ana, moleca, cujo óbito foi assentado
no dia 21 de setembro. Em outubro encontramos os assentos de Ignácio, falecido no dia 26;
Antônia, no dia 28 e Luís, molecão, no dia 31. Nos meses de novembro e dezembro, mais
cinco registros: Felix, João e Joseph sepultados em 4, 12 e 24 de novembro, e Manuel e

130
ASCMB, Livro de Banguê, pp. Ilegíveis, livro: 1257.TSTD. Acesso em: 23/02/2021.
131
ASCMB, Livro de Banguê, pp. Ilegíveis, livro: 1257.TSTD. Acesso em: 23/02/2021.
132
ASCMB, Livro de Banguê, pp. Ilegíveis, livro: 1257.TSTD. Acesso em: 23/02/2021.
62

Antônio nos dias 1 e 19 de dezembro.133 Os óbitos destacados podem ou não terem sido
provocados por uma enfermidade contraída a bordo da embarcação que cruzou o Atlântico,
pois os cativos chegavam tão debilitados que não se pode descartar a suscetibilidade a
contraírem doenças já na própria cidade de Salvador. Não localizamos informação sobre essa
viagem até a costa africana ou sobre sua tripulação no TSTD. Contudo, como elas ocorreram
em um curto espaço de tempo entre uma e outra, é possível que fossem decorrentes de uma
moléstia mal cuidada, a qual pode ter sido desenvolvida ainda na embarcação ou após o seu
desembarque, uma vez que esses escravizados não foram vendidos quando desembarcados.
Dona Tereza de Jesus Maria possuía ainda outra embarcação que fazia o resgate de
africanos escravizados na costa africana: a Galera Nossa Senhora do Socorro e Santo Antônio
e Almas. Foram localizados no banguê onze escravizados que pertenciam a sua carregação,
mas assim como no caso do Santa Anna de Nª S.ª da Conceição, também não encontramos
nenhuma referência sobre a sua viagem até a costa da África ou tripulação no TSTD.
Analisando os dados coletados no banguê, notamos certa proximidade em relação às mortes
dos cativos da Galera Santa Anna de Nª S.ª da Conceição. Assim, foram registrados três
escravos e uma escrava, cujos nomes não foram mencionados, entre os dias 2, 15, 20 e 21 de
setembro e um no dia 8 de outubro de 1749. Entre novembro e dezembro, faleceram João, no
dia 7 de novembro; um cativo não identificado no dia 9; Cristóvão e Bartolomeu no dia 22;
André no dia 27 de novembro e Gonçalo em 1 de dezembro de 1749.134
Nesse sentido, a partir da análise e comparação entre os períodos em que estes
africanos faleceram, podemos concluir que as duas embarcações podem ter chegado à Bahia
juntas ou até mesmo em datas aproximadas. Outra hipótese que justificaria a propagação de
doenças entre os escravizados seria pensar que, ao desembarcarem no porto de Salvador e
pertencendo à mesma traficante, os cativos de ambas as embarcações tivessem sido reunidos
para serem vendidos. Como não havia uma separação entre doentes e sadios o contágio nesses
casos era comum, ou seja, se havia a presença de uma moléstia contagiosa entre os
desembarcados da Galera Santa Anna de Nª S.ª da Conceição e, supondo que as galeras
chegaram praticamente juntas à Bahia, o contágio era algo que dificilmente não aconteceria.
Joseph Fernandes Pereira, senhorio da Galera Jesus Maria Joseph, sepultou em 11
de setembro de 1749, quatro africanos de nação angola que não foram identificados pelo
nome no cemitério da Santa Casa de Misericórdia, assim como em outros casos, não

133
ASCMB, Livro de Banguê, p. 9,10,15,23,26,27,28,30,31,33,35. Livro: 1259.
134
ASCMB, Livro de Banguê, p. 10, 13, 14, 15, 18, 29, 30, 31, 33. Livro: 1259.
63

conseguimos identificar a galera no TSTD.135 A situação se repete em relação ao navio Jesus


Maria e Joseph, que tinha como senhorio João Dias da Cunha, que enterrou um moleque
escravo de nação mina, no mesmo cemitério no dia 3 de agosto de 1749.
Outra embarcação também não identificada no TSTD foi a Sumaca Santa Anna e
Santo Antônio e Almas, que teve oito escravizados, de sua carregação, sepultados pela
Misericórdia no dia 10 de janeiro de 1750. Entre os defuntos, dois aparecem listados como
pertencentes a Luís da Silva Pinto, sendo um deles “da conta de Bento Martins Galiza”, outro
consta como cativo de Preto Félix, e um como pertencente a Domingos Guimarães Lisboa, os
outros quatro defuntos foram lançados no livro do banguê apenas como parte da carregação
da Sumaca. Essas informações indicam que os senhores provavelmente faziam parte do grupo
que financiaram a viagem da Sumaca até a costa africana, ou seja, eles seriam os interessados
na embarcação, e por isso os gastos com o tratamento e funeral desses escravizados eram
responsabilidade de seus senhores.136
O Iate Santa Anna de S. Antônio é o último da nossa lista que não aparece no TSTD,
entretanto, possui sete registros de óbito no banguê de africanos que integraram a sua
carregação entre março e junho de 1750. Infelizmente, a documentação não dispõe da causa
das mortes, mas é sabido que todos os defuntos eram de nação angola, o que evidencia a
possibilidade de terem desembarcados juntos. Sabemos também que as mortes ocorreram a
partir da segunda metade do mês de março e se prolongaram até a primeira semana de junho,
especificamente.
Outra dificuldade encontrada foi a ausência dos nomes dos falecidos no ato do
registro, todos morreram na casa de Manoel Álvares de Carvalho, morador no Arco de
Ignácio Alvares, sendo quatro homens e três mulheres. Sendo assim, se o Iate chegou ao porto
de Salvador entre os meses de dezembro, janeiro ou fevereiro, infectado por alguma
enfermidade contagiosa e que ao desembarcarem os cativos, já enfraquecidos, não receberam
o tratamento devido, tampouco melhores condições de sobrevivência (moradia, vestimenta e
alimentação), podemos imaginar que esta enfermidade se prolongou e foi tirando a vida destes
cativos aos poucos, mas elas também podem estar associadas a uma doença desenvolvida no
cativeiro, o que também justificaria as mortes de forma consecutiva.137
Ainda sobre as embarcações presentes no banguê, temos o navio Senhor do Bonfim
São Pedro e Santo Antônio, relacionado à morte de quatro defuntos. Tal como no caso

135
ASCMB, Livro de Banguê, pp. 12. Livro: 1259.
136
ASCMB, Livro de Banguê, pp. 41. Livro: 1259.
137
ASCMB, Livro de Banguê, p. 58,59,66,67,74,81. Livro: 1259.
64

anterior, os defuntos não tiveram seus nomes registrados e foram identificados como: um
moleque, dois pretos e uma preta. Buscando-o no TSTD, identificamos o navio sob a
numeração #50722, fazendo o percurso da Bahia à Costa da Mina, pelo capitão Manoel
Gonçalves Lima. Assim, a galera saiu de Salvador em 15 de abril de 1749 e iniciou o resgate
em 22 de outubro deste ano, chegando à Bahia somente no dia 28 de setembro de 1750.
Diante do tempo gasto a espera do embarque e no trajeto até o porto de Salvador, o número de
mortos chegou a 95, ou seja, de 714 africanos embarcados, 619 chegaram ao destino final
com vida, ou seja, houve 13,3% de óbitos.138
Desse modo, os números indicam a existência e a propagação de moléstias entre a
tripulação que, consequentemente, se refletiu no número de mortos durante a travessia
atlântica e também em terra. Embora exista uma diferença de tempo em relação à introdução
da galera em Salvador e as quatro mortes listadas na documentação, esses cativos não foram
vendidos o que mostra que eles foram descarregados do navio já doentes.
Situação parecida acontece com a Galera Santa Rita S. Antônio e Almas capitaneada
por Nicolau Nunes e André Alves Fangueiro e identificada como #52024, que, de acordo com
o TSTD, saiu da Bahia em direção a Luanda em 28 de junho de 1749, iniciando o comércio
naquela região apenas no dia 27 de dezembro e chegou a Salvador em 31 de outubro de 1750,
mais de um ano depois da sua partida com 290 dos 334 escravizados resgatados. Diante da
situação, as mortes de um preto e uma preta em 26 de novembro, e de uma negrinha e um
moleque nos dias 10 e 25 de dezembro de 1750, talvez estivessem relacionadas com as mortes
dos 44 cativos em alto mar.139 Por fim, o navio Bom Jesus da Pedra S. Rita e S. Domingos,
sob a identidade #49590, que havia saído da Bahia em 15 de janeiro do referido ano e antes da
travessia fez uma escala em Princes Island, iniciou o resgate aos 2 dias do mês de maio e
chegou com os escravos em 7 de dezembro de 1750, comandado pelos capitães Jerônimo
Leite Ferreira e Tomás de Souza com 505 dos 582 escravizados embarcados. Essa
embarcação está vinculada à morte de sete escravizados que faleceram após a chegada do
navio. Assim, foi lançada no livro do banguê: uma pretinha no dia 16, dois moleques no dia
21, duas pretas no dia 27 e um preto no dia 28 de dezembro do ano de 1750, fato que ligaria a
mortalidade em terra a ocorrida em alto mar.140
Apesar disso, é importante ressaltar que nem todas as mortes durante a travessia
atlântica tinham relação com as doenças que se instalavam nos tumbeiros, o suicídio como

138
ASCMB, Livro de Banguê, p. 97, 98, 112. Livro: 1259. TSTD. Acesso em: 23/02/2021.
139
ASCMB, Livro de Banguê, p. 111, 120,124. Livro: 1259.TSTD. Acesso em: 23/02/2021.
140
ASCMB, Livro de Banguê, pp. 122, 123, 124,125. Livro: 1259.TSTD. Acesso em: 23/02/2021.
65

vimos anteriormente também causava preocupações entre os capitães e traficantes durante a


viagem. Outra questão que merece ser discutida é a taxa de mortalidade registrada pelo
TSTD, a base de dados apresenta vários algoritmos para as viagens registradas o que nos leva
a acreditar que a mortalidade durante a travessia era superior àquela apresentada para as
embarcações consultadas.
Assim, é possível concluir que as enfermidades, quando relacionadas ao tráfico de
escravos, diferente do que se pensava na época, não era produto da introdução dos africanos
escravizados na cidade, mas sua consequência, ou seja, reflexo das condições de
sobrevivência impostas desde o momento da captura no continente africano até o
desembarque no Brasil, bem como ao que se seguia após este desembarque. Nesse sentido, o
desleixo com o cumprimento da lei de arqueação e a forma como eram tratados, amontoados e
mal alimentados, tornavam os porões dos navios negreiros um lugar de proliferação de
inúmeras doenças. As condições de sobrevivência à travessia atlântica eram as responsáveis
por enfraquecer e adoecer os africanos escravizados. Após o desembarque dos escravizados as
condições de sobrevivência naquela sociedade escravista assumiam papel fundamental para a
construção de um cenário enfermo em Salvador e seu Recôncavo durante a primeira metade
do século XVIII, como veremos no próximo capítulo.
66

CAPÍTULO II

As doenças decorrentes do trabalho escravo em Salvador e no Recôncavo

Desde o final do século XVII, a capital da Bahia,


Salvador, exibia uma vida urbana densa e buliçosa,
e nela o regime do cativeiro havia se instalado no
interior das casas e nas ruas, deixando sua marca
em todo tipo de documentação.1

Invadindo o espaço urbano, africanos escravizados e seus descendentes transitavam


pelas ruas desempenhando e oferecendo a sua força de trabalho. A escravidão floresceu a
passos largos na cidade, nos engenhos e nas lavouras, mobilizando redes comerciais e
constituindo espaços de solidariedade e sociabilidade entre os cativos. A capital
administrativa, além de ser um dos destinos para milhares de africanos, caracterizava-se como
sociedade dependente do trabalho escravo e regida pelas hierarquias sociais produzidas em
seu Recôncavo, conferindo a Salvador, além de sua existência econômica, um modo de
organização social estruturado a partir da produção agrícola.2 Stuart Schwartz observou que as
culturas agrícolas produzidas naquela região foram responsáveis pela permanência da
agricultura entre os pilares que sustentavam a economia baiana no período colonial.3
Como sociedade agrária e escravocrata, o Recôncavo se caracterizava pelo cultivo de
gêneros destinados à exportação, com as melhores e mais valiosas terras voltadas ao plantio
da cana-de-açúcar.4 A produção açucareira, no entanto, sofreu perdas significativas com a
crise vivenciada na primeira metade do século XVIII. Contudo, esse desequilíbrio na indústria
não impediu a continuidade do comércio entre os negociantes da Praça da Bahia e a Costa
africana. Isso porque, a descoberta do ouro intensificou a procura por mão de obra africana
nas Minas e no interior da capitania da Bahia. Segundo Kátia Lorena Novais Almeida, a
corrida pelo ouro provocou uma intensa mobilidade da população que se deslocava em busca

1
REIS, João José. Ganhadores: a greve negra de 1857 na Bahia. São Paulo: Companhia das Letras, 2019. p.
15.
2
SOUZA, Daniele Santos de. Entre o “serviço da casa” e o “ganho”: escravidão em Salvador na primeira
metade do século XVIII. 2010. Dissertação (Mestrado em História) – Faculdade de Filosofia e Ciências
Humanas, Universidade Federal da Bahia, Salvador, 2010. p. 60.
3
SCHWARTZ, Stuart. O Brasil colonial, c. 1580-1750: as grandes lavouras e a periferia. In: SCHWARTZ,
Stuart. História da América Latina colonial. Vol. II. São Paulo: EDUSP; Brasília: FUNAG, 2004. p. 372.
4
Ibidem, p. 372.
67

dos veios auríferos.5 Nos sertões, essa descoberta inseriu o seu território no mapa da
administração do Império português e possibilitou uma aproximação entre a coroa, o governo-
geral, desbravadores, povos indígenas e moradores desse território.6
Nessa perspectiva, o estímulo ao comércio de escravos que seria destinado às Minas
e às regiões de Rio de Contas e Jacobina, promoveu a economia fumageira no Recôncavo,
isto é, a crise na indústria açucareira, a estima dos negociantes da Costa do Marfim pelo fumo
e o aumento do preço dos escravos desembarcados tornaram o cultivo desse gênero cada vez
mais atrativo para os produtores do Recôncavo, uma vez que necessitava de um número
menor de trabalhadores para o seu cultivo e finalização.7 A crise na lavoura açucareira,
causada pela concorrência com o açúcar produzido no Caribe, não se desdobrou em crise
econômica em toda capitania, uma vez que a lavoura fumagueira e o tráfico de escravos
estavam aquecidos por conta da demanda de mão de obra proporcionada pelas minas de ouro.
Imediatamente, a produção de tabaco favoreceu a constituição de uma organização social e
econômica distinta no Recôncavo, que teria sido influenciada pelo seu baixo custo de
produção e feito com que os agricultores abandonassem a cultura de gêneros alimentícios,
tornando comum, principalmente entre os pequenos lavradores de cana-de-açúcar o cultivo de
moderados plantéis de fumo, essa substituição em relação aos gêneros alimentícios contribuiu
para a formação de uma elite na região.8
A mandioca que saía do Recôncavo fazia parte da dieta reservada aos cativos durante
a travessia atlântica e o cativeiro. Havia, portanto, dois tipos de cultivo. Enquanto a cultura de
subsistência era considerada menos nobre, voltada para as famílias e feiras locais, a produção
de farinha em larga escala era comercializada entre os engenhos e as cidades do litoral. 9 O
setor pecuário também deixou suas marcas no Recôncavo. A criação de gado que vinha dos
sertões também era fundamental para o funcionamento dos engenhos que necessitavam de
grande quantidade de carne, couro e da força física destes animais para sua manutenção. Os

5
ALMEIDA, Kátia Lorena Novais. Alforrias nas minas do Rio de Contas setecentista. In: CASTILHO, Lisa
Earl; ALBUQUERQUE, Wlamyra; SAMPAIO, Gabriela dos Reis (org.). Barganhas e querelas da
escravidão: tráfico, alforria e liberdade (séculos XVIII e XIX). Salvador: EDUFBA, 2014. p. 137-182.
6
CONCEIÇÃO, Hélida Santos. O sertão e o Império: as vilas do ouro na capitania da Bahia (1700-1750).
2018. Tese (Doutorado em História) – Instituto de Filosofia e Ciências Sociais, Universidade Federal do Rio
de Janeiro, Rio de Janeiro, 2018. p. 39-40.
7
SOUZA, op. cit., p. 32.
8
SCHWARTZ, Stuart. Segredos Internos: engenhos e escravos na sociedade colonial 1550- 1835. São Paulo:
Companhia das Letras, 1988. p. 85.
9
SCHWARTZ, op. cit., 2004, p. 378-384.
68

senhores de engenho estimulavam o desenvolvimento dos sertões e ocupavam frequentemente


cargos políticos importantes na capital, a exemplo de Nicolau Aranha Pacheco.10
Em 1631, Nicolau Aranha Pacheco, português natural da freguesia de São Vicente e
Arcos de Val-de-Vez, filho de João Aranha e dona Clara Fernandes Faria, entrou para a
milícia como soldado. Em 1638, quando ocupava o cargo de capitão da Infantaria, Pacheco
enfrentou com bravura as tropas do príncipe Maurício de Nassau pelas ruas da freguesia de
Santo Antônio de Além do Carmo. Sua vitória sobre os holandeses garantiu que partisse junto
a André Vidal de Negreiros em direção à capitania de Pernambuco, onde liderou até 1646
quase todas as ações de guerra dentro da insurreição pernambucana. O Mestre de Campo
casado com dona Francisca de Sande foi designado para comandar o terço de Martim Soares
Moreno em carta régia de 22 de abril de 1648. No ano de 1651, Pacheco afastou quatro
embarcações holandesas que buscavam saquear os engenhos de açúcar próximos ao rio
Paraguaçu e, após a expulsão das tropas inimigas da capitania pernambucana, recebeu carta de
sesmaria com “dezesseis léguas de terra, na margem direita, e vinte na esquerda, começando
as oito primeiras do rio das cabeças pelo São Francisco abaixo e as outras oito léguas pelo
mesmo rio São Francisco acima”.11 Tornou-se irmão da Santa Casa de Misericórdia da Bahia
e foi por três vezes Ministro da Ordem Terceira de São Francisco, falecendo no dia 29 de
outubro de 1670.12
O nome de Nicolau Aranha Pacheco esteve intimamente relacionado à guerra contra
os holandeses e à abertura dos caminhos do sertão. Além disso, o Mestre de Campo teria sido
um dos cidadãos mais prestantes da Bahia seiscentista e um dos maiores proprietários de terra
da capitania.13 Esses aspectos da vida de Pacheco nos ajudam a entender como funcionava a
organização social que foi se formando ao longo dos séculos e como homens iguais ao Mestre
de Campo conquistaram cargos políticos na Bahia. Desse modo, de acordo com Schwartz, a
maioria dos portugueses que migravam para a América portuguesa desejava encontrar uma
brecha nas estruturais sociais que possibilitasse a conquista da estabilidade econômica e a
ascensão social, com base na política discriminatória da coroa em relação aos cristãos-novos.
Assim, as oportunidades de admissão em cargos militares, políticos e a concessão da fidalguia

10
SCHWARTZ, op. cit., 1988, p. 94.
11
MATOS, Waldemar. D. Francisca de Sande: a primeira enfermeira do Brasil. Salvador: Imprensa Oficial da
Bahia, 1949. p. 17-19.
12
Ibidem, p. 17-19.
13
Sobre o mestre de campo além de Waldemar Mattos, cf. SILVA JUNIOR, Carlos Francisco da. Identidades
afro-atlânticas: Salvador, século XVIII (1700-1750). 2011. Dissertação (Mestrado em História Social) –
Faculdade de Filosofia e Ciências Humanas, Universidade Federal da Bahia, Salvador, 2011.
69

eram reservados para aqueles que eram considerados puros de sangue e de religião.14 Ao
falecer Pacheco deixou viúva d. Francisca de Sande, uma das proprietárias de escravos mais
abastadas do Recôncavo e que possuía um considerável percentual de cativos doentes e
aleijados, como veremos logo mais.
No Recôncavo, os fazendeiros abastados estruturaram a aristocracia rural vinculada
aos laços de parentesco e aos interesses em comum. A riqueza produzida através do status e
da influência social proporcionou a esses indivíduos o controle sob os cargos municipais nas
cidades, principalmente em Salvador, onde a maioria das instituições era sujeita a dominação
da elite agraria do Recôncavo.15 Segundo Schwartz,

A Câmara Municipal de Salvador era, nesse período, controlada pelos


fazendeiros, então chamados lavradores de cana, seus arrendatários e
dependentes. Em instituições como a Misericórdia e ordens religiosas
exclusivas, como a Terceira Ordem dos Franciscanos, os lavradores de cana
também tinham grande influência.16

Nesse sentido, Nicolau Aranha Pacheco português e cristão-velho, enquadrava-se


muito bem dentro do perfil criado pela aristocracia rural. Assim, o objetivo deste capítulo é
compreender as relações estabelecidas entre o trabalho escravo, as condições de vida em
cativeiro e às doenças que acometiam os escravizados e seus descendentes em Salvador e no
Recôncavo. E, para isso, faz-se necessário estabelecer o perfil dos senhores de escravos que
possuíam entre os seus bens cativos doentes e aleijados.

Os senhores de escravos na Bahia

Maria da Silva era portuguesa natural da Cidade do Porto, casada com o também
português Cosme da Silva da freguesia de Ribeiradio. Certamente, desembarcaram na Bahia
por volta da segunda metade do século XVII, em busca de riquezas como tantos colonos que
aqui se instalaram. Na Cidade da Bahia, dona Maria da Silva e seu marido trabalhavam no
curtume onde produziam solas de sapato que eram exportadas para Lisboa e a Cidade do
Porto. O casal era proprietário de uma morada de casas de dois sobrados de pedra e cal na rua

14
SCHWARTZ, Stuart. Burocracia e sociedade no Brasil colonial: o tribunal superior na Bahia e seus
desembargadores, 1609-1751. Tradução Berilo Vargas – São Paulo: Companhia das Letras, 2011. p. 102-103.
15
Idem, p. 107-108.
16
Ibidem, p. 108.
70

dos Sapateiros, possuía mais casas na fonte dos Sapateiros e também na ladeira do Rego
d’água e no terreiro. Quando faleceu em 1714, dona Maria deixou, além das propriedades, 14
escravos e, um montante avaliado em 27:805$327 contos de réis; entre os seus cativos, cinco
foram inventariados como doentes: Joseph tinha erisipela, João era incapaz do serviço,
Alexandre estava com achaque de opilação, Cristóvão, do serviço de casa, era quebrado da
virilha e, Domingos, oficial de sapateiro, possuía lesões na mão direita.17 O que significava a
avaliação de um escravizado como doente quando do falecimento de um senhor(a)? Ao
registrar a doença de um cativo o escrivão de órfãos, possivelmente, estava acompanhando
pelo inventariante dos bens que o auxiliava naquela tarefa. Talvez essa avaliação considerasse
a saúde como um valor atribuído ao escravizado naquele mercado, embora esse aspecto não
possa ser problematizado a partir desse tipo de fonte o que evidencia sua limitação sob essa
perspectiva.
Considerando que o casal se dedicava ao curtume e que a sua escravaria estava
dividida entre a produção de solas e o trabalho nas ruas, buscamos entender as doenças que
acometeram os escravos de Maria da Silva, a partir das suas respectivas ocupações. Assim, as
lesões na mão direita de Domingos são facilmente associadas ao seu trabalho. Enquanto
oficial de sapateiro, ofício que além de exigir especialização do escravo, também é
caracterizado pela repetição dos movimentos e, nesse sentido, Domingos teria se machucado
durante a sua contínua jornada de trabalho no curtume. Cristóvão, escravo do serviço de casa,
ocupação considerada leve se comparada a outros serviços, estava quebrado da virilha. Sua
condição de saúde mostra a possibilidade desse cativo ter ocupado outras funções dentro da
escravaria, como carregador de rede, por exemplo, e após apresentar os sinais de quebramento
da virilha, Cristóvão tenha sido designado para o serviço de casa.
Em outra situação, acreditando que Joseph fosse, assim como Domingos, oficial de
sapateiro, e que possivelmente ele tenha adquirido erisipela doença, caracterizada pelo
cirurgião João Cardoso de Miranda, como tumor ou inflamação produzida pelo sangue,
através de um machucado provocado enquanto manuseava as ferramentas necessárias para
produção de solas de sapato. Alexandre, doente de opilação, enfermidade determinada por
Antônio de Moraes Silva, como obstrução dos canais ou ductos do corpo, e pelo médico
alemão Reinhold Teuscher, em suas observações sobre as fazendas de café no Rio de Janeiro
Oitocentista, como verminose e diarreia violenta que atingia principalmente a população

17
APEB, SJ, Inventário post-mortem de Maria da Silva, 1714, 04/1585/2054/05.
71

escrava.18 Como verminose, podemos considerar que Alexandre tenha contraído a doença em
virtude das péssimas condições dos alimentos e da falta dos nutrientes e vitaminas essenciais
para o corpo.
Ser “quebrado da virilha” estava relacionado a doenças na coluna, em especial hérnia
de disco, que deixava a pessoa andando puxando a perna, daí a expressão quebrado da virilha.
Segundo Bluteau, quebradura das virilhas era o nome que o povo comum dava às duas hérnias
chamadas pelos médicos de hérnia zirbal.19 Para o dicionarista, a doença se caracterizava por
apresentar inchaços na região dos testículos em forma carnosa ou ventosa e em alguns casos,
sua origem se aproximava da teoria de alteração dos humores do corpo, tornando-a conhecida
como hérnia humoral de sangue.20 Quanto a verminose, além da água e da alimentação
ressalta-se que os cativos andavam descalços, logo mais propensos a adquirir esses e outros
parasitas.
Mas, será que podemos aplicar essa mesma hipótese para escravarias menores? Ou
para senhores que possuíam uma quantidade de escravos acima da média (entre 12 a 35), mas
tinham pouco cabedal frente à sociedade?
O capitão Miguel da Silva Rouzado residia na Cidade da Bahia e quando faleceu em
1748, apesar de não haver monte mor registrado em seu inventário, possuía entre os seus bens
doze escravos africanos do gentio da Costa da Mina. Entre eles, Salvador encontrava-se
doente, lançando sangue pela boca, era tísico, e José estava quase cego dos olhos.21
Infelizmente, não foram registradas no inventário do falecido as ocupações realizadas pelos
escravos doentes, mas se levarmos em consideração que os outros cativos pertencentes ao
capitão Miguel da Silva Rouzado desempenhavam, principalmente, serviços de casa e alguns,
a exemplo de Lourenço, que além do serviço de casa, se ocupava como carregador de rede,
podemos associar a tísica e a cegueira ao trabalho por eles desenvolvido. Luiz Gomes Ferreira
e Raphael Bluteau classificaram a tísica como uma espécie de chaga ou ulceração no bofe
provocada por um humor acre e corrosivo que causava febre lenta, tosse, escarros de sangue e

18
SILVA, Antônio de Morais. Bluteau, Rafael. Diccionario da lingua portugueza composto pelo padre D.
Rafael Bluteau, reformado, e accrescentado por Antonio de Moraes Silva natural do Rio de Janeiro. 1.
ed. Lisboa, Simão Tadeu Ferreira, MDCCLXXXIX [1789]. 2v.: v. 1: XXII, 752 p.; v. 2: 541. PIMENTA,
Tânia Salgado; GOMES, Flávio; KODAMA, Kaori. Das enfermidades cativas: para uma história da saúde e
das doenças do Brasil escravista. In: TEIXEIRA, Luiz Antônio; PIMENTA, Tânia Salgado; HOCHMAN,
Gilberto (org.). História da Saúde no Brasil. São Paulo: Hucitec, 2018. p. 74.
19
BLUTEAU, p. 518.
20
Idem, p. 681-687.
21
Arquivo Público do Estado da Bahia, Seção Judiciário, Inventário post-mortem de Miguel da Silva Rouzado
(1748), 04/1586/2055/02. (Doravante: APEB, SJ).
72

matéria purulenta.22 Desse modo, se Salvador, assim como Lourenço, fosse carregador de
rede, a doença pode ter se desenvolvido a partir das condições de vida e trabalho às quais
eram submetidos que os deixaram com o sistema imunológico propício a esse tipo de
moléstia. O mesmo pode ter acontecido com José, que, provavelmente, desde muito novo
aprendeu o ofício de alfaiate e estando ele forçando a visão repetidamente, levando em
consideração que alfaiates e costureiras trabalhavam dia e noite e, muitas vezes apenas com o
auxílio da luz de velas, chegaremos à conclusão de que esse esforço repetitivo prejudicou
diretamente a visão de José que a perdera ainda muito jovem segundo a documentação.
Caso semelhante é o da escravaria de Nicolau Carneiro da Rocha, filho de Bernardo
Carneiro da Rocha e de dona Guiomar de Souza. Nicolau era casado com sua prima legítima
Anna de Menezes Alencastro e, quando faleceu em 1739, o escrivão não deixou registrado em
inventário o total de seu monte mor. Assim como Miguel da Silva Rouzado, Nicolau possuía
uma escravaria composta por 35 escravos, entre africanos e crioulos, que trabalhavam como
carreiro, carregador de rede, barbeiro, alfaiate e no serviço doméstico. Entre os seus escravos,
Joana estava doente dos pés e não teve a sua ocupação revelada, Matias era barbeiro e
quebrado da virilha, e Antônio que também não teve a sua função registrada, mas era quase
cego do olho esquerdo.23 Em todas essas situações, e tendo como exemplo tais escravarias,
percebe-se o envolvimento entre as moléstias e o trabalho. Sendo assim, tendo em vista as
circunstâncias em que as atividades laborais eram desenvolvidas, analisamos inicialmente o
perfil dos senhores de escravos e na sequência as ocupações atribuídas aos cativos presentes
nos inventários de Salvador e do Recôncavo na primeira metade do século XVIII.
A construção do perfil desses sujeitos possibilitou identificar como a vida
socioeconômica dos senhores determinou a vida dos seus escravos. Nesse sentido, se
imaginarmos, que durante a crise da indústria açucareira, os proprietários de engenhos
enfrentavam a instabilidade frequente do preço do açúcar no mercado mundial atrelada ao
desenvolvimento dessa cultura nas Antilhas e, que após a descoberta do ouro e o
encarecimento da mão de obra escrava, a dificuldade dos produtores baianos para adquirir
africanos escravizados passa a ser sentida em outros setores de produção, como os lavradores
de tabaco, por exemplo, que devido ao fato de não conseguirem adquirir escravos africanos
novos, encontraram na crioulização da população escrava uma alternativa viável para suprir a
necessidade de mão de obra, veremos que todas essas situações determinaram a vida do

22
FERREIRA, op. cit., 1735, p. 1143. BLUTEAU, op. cit., p. 177.
23
APEB, SJ, Inventário post-mortem de Nicolau Carneiro Rocha, 1739, 14-1614-2083-9.
73

escravo. Ao analisar o processo de crioulização no Recôncavo entre 1750-1800, Luís Nicolau


Parés, o considerou como pendular, ou seja, sofreu algumas oscilações ao longo dos anos.24
Nesse sentido, Parés identifica a década de 1740, como marco inicial a crioulização da
população escrava, marcado por uma estabilidade no número de africanos entre as décadas de
1750 e 1820, 48% e 51%. Entretanto, o autor apresenta também um movimento de oscilação
em 1760 com um súbito aumento de africanos para 58%, seguido de novo declínio em 1790.
A população crioula por sua vez, somados escravos e libertos, representavam 56,2% entre os
anos de 1750-1800.25 A contínua busca por alternativas viáveis para suprir a necessidade da
mão de obra tornou possível esse processo de crioulização da população escrava, entretanto, o
aumento do preço dos cativos também influenciou o modo de vida desses indivíduos. Em
outras palavras, se um engenho não possuía a força braçal necessária para o seu
funcionamento e continuava operando com número reduzido de escravos, aumentava o
trabalho dos cativos e, consequentemente, essa nova realidade afetava o estado de saúde
desses sujeitos. A Tabela a seguir apresenta uma amostra dos inventários post-mortem dos
senhores de escravos que possuíam cativos doentes e aleijados.

Tabela 1 – Inventários post mortem de senhores que possuíam escravos doentes e


aleijados, 1700-1750

Ano Inventários Escravos doentes e/ou %


aleijados
1700 1 23 2,71%
1701-1710 2 224 26,44%
1711-720 5 39 4,60%
1721-1730 2 27 3,18%
1731-1740 10 89 10,50%
1741-1750 13 445 52,57%

Total 33 847 100%

Fonte: APEB, SJ, 33 inventários de Salvador (1700-1750).

Os estudos de Carlos da Silva Jr. e de Daniele Souza apontam a existência de 68


inventários post mortem de senhores de escravos para Salvador na primeira metade do século
XVIII. Aqui destacamos apenas os inventários que apresentam, entre os bens arrolados pelos
inventariantes, cativos enfermos e aleijados. Desse modo, os dados indicados na Tabela

24
PARÉS, Luís Nicolau. “Processo de crioulização no Recôncavo Baiano (1750-1800)”. In: Afro-Ásia, n° 33.
Salvador, 2005, pp. 87-132. p. 108-129.
25
Idem, p. 108-129.
74

1correspondem a 33 inventários e 847 cativos que foram agrupados e divididos por década,
com o objetivo de estabelecer a representatividade dos escravos doentes e aleijados naquelas
escravarias. Apesar de trabalhar com a mesma documentação utilizada por Silva Jr. e Souza, o
número de escravos analisados apresenta diferenças, isso porque, Silva Jr. integra, além dos
68 inventários pertencentes a Salvador, outros cinco que seriam de proprietários de escravos
do Recôncavo, que corresponde ao universo de 1.168 escravos, enquanto Souza direciona sua
análise apenas para os 595 cativos da Cidade da Bahia, por isso, os números são diferentes.26
Observando os dados expostos, notamos que entre os escravistas havia perfis
distintos, e os senhores dividiam-se entre pequenos e grandes proprietários de escravos.
Assim, buscando entender as distinções que cercam tais perfis, avaliamos os senhores de
acordo com as décadas em que seus bens foram inventariados. Encontramos para o ultimo ano
do século XVII Francisco Rodrigues Pinto, português e pequeno proprietário que ao falecer
em 1700, deixou para as duas filhas Maria e Ana, uma herança avaliada em 3:314$710 contos
de réis e 23 escravos. Entre os cativos que herdaram do pai, três foram inventariados como
doentes e uma com o nariz furado.27 Outro português que desembarcou na Cidade da Bahia
provavelmente na segunda metade do século XVII, foi Domingos Fernandes (1708), natural
da freguesia de São Julião de Fresto arcebispado de Braga, Domingos Fernandes aparece na
Tabela anterior ao lado de dona Francisca de Sande (1702), Fernandes assim como Rodrigues
Pinto, era um pequeno proprietário e deixou uma herança de 6:280$423 contos de réis, além
de quatro cativos de origem africana. Entre os cativos pertencentes a Domingos Fernandes
apenas Antônio de nação arda foi inventariado como “doente dos pés”.28
Francisca de Sande assim como João Lopes Fiúza (1741), eram moradores do
Recôncavo, mas também possuíam outras propriedades em Salvador e são os dois maiores
senhores de escravos dessa amostra. Juntos eram proprietários de 558 cativos de um total de
847 analisados. Além disso, como veremos mais adiante era em suas escravarias que se
concentravam os maiores números de doentes e aleijados para o período estudado.
Nesse contexto, nomes como Francisca de Sande, Mariana Ferreira de Carvalho e
João Lopes Fiúza aparecem na lista dos senhores que se destacaram não somente pela
quantidade de escravos em suas escravarias, mas pelas fortunas que legaram aos seus
herdeiros. Sande, em 1702, teve seu monte mor estipulado em 28:209$581 contos de réis.
Carvalho, em 1738, deixou uma soma equivalente a 38:047$698 contos de réis, e Fiúza, em

26
SILVA JUNIOR, op. cit. 2011, p. 68; SOUZA, op. cit., p. 50.
27
APEB, SJ, Inventário post mortem de Francisco Rodrigues Pinto, 1700, 04/1766/2236/08.
28
APEB, SJ, Inventário post mortem de Domingos Fernandes. 1708, 05/1705/2175/09.
75

1741, teve sua fortuna avaliada em 92:390$578 contos de réis. Porém, 54,54% dos senhores
que tiveram seus bens avaliados eram pequenos proprietários de escravos, ou seja, aqueles
cujas fortunas foram calculadas em até 6:280$423 contos de réis. Apesar de não serem tão
ricos quanto os senhores de engenho do Recôncavo, os senhores de escravos de Salvador
mantinham certa estabilidade financeira que lhes possibilitaram adquirir duas a três casas na
rua principal de Santo Amaro. Já Miguel da Silva Rouzado e Nicolau Carneiro da Rocha,
possuíam escravarias com número de cativos acima da média para Salvador (12-35 escravos),
o que nos leva a acreditar que mesmo fazendo parte do grupo que não teve o cálculo total de
seus bens inventariados registrado na documentação (21,21%), guardavam uma riqueza
consideravelmente alta, pois, se analisarmos tanto o número de escravos (12-35), quanto às
propriedades desses senhores, percebemos ainda que, embora o monte mor não tenha sido
documentado e não ter sido possível identificá-lo a partir da soma dos seus bens devido às
péssimas condições em que se encontrava a documentação, eles poderiam ser considerados
como senhores intermediários, ou seja, aqueles que estavam entre os pequenos e médios
proprietários de escravos.29 Essa conclusão baseia-se nos valores que foram atribuídos aos
cativos pelo escrivão. Assim, a estimativa para o capital deixado pelo capitão Miguel da Silva
Rouzado, seria de aproximadamente 1:100$000 contos de réis e, para Nicolau Carneiro da
Rocha, estimava-se cerca de 2:060$000 contos de réis, nesse sentido, ambos seriam
considerados pequenos proprietários de escravos.30
A Tabela 2 apresenta os cativos que foram listados na documentação como doentes e
aleijados. Estão incluídos no grupo dos aleijados os cativos que aparecem faltando um dedo,
um olho, uma mão e os incapazes de prestar serviços ao senhor, isso por que, nessas
situações, como veremos mais adiante, a incapacidade ou a perda de um membro do corpo
advinha não só do trabalho, mas das ações senhoriais. Os aleijos serão analisados no próximo
capítulo, mas, na Tabela 2, agrupamos doentes e aleijados para que possamos ter uma noção
do número de escravos acometidos por doenças e aleijões encontrados na documentação.

29
APEB, SJ, 33 inventários de Salvador (1700-1750).
30
APEB, SJ, Inventário post-mortem de Miguel da Silva Rouzado (1748), 04/1586/2055/02. APEB, SJ,
Inventário post-mortem de Nicolau Carneiro Rocha, (1739), 14-1614-2083-9.
76

Tabela2 – Escravos doentes e aleijados por década, 1700-1750

Ano Escravos doentes e aleijados %


1700 3 1,90%
1701-1710 44 27,67%
1711-1720 12 7,54%
1721-1730 4 2,51%
1731-1740 17 10,69%
1741-1750 79 49,71%
Total 159 100%

Fonte: APEB, SJ, 33 inventários de Salvador (1700-1750).

Ao cotejar os dados dos escravos analisados, observa-se uma concentração de doentes


e aleijados em dois períodos específicos. Na década de 1710, o índice era de 27,67% e, na
década de 1740, 49,68% dos escravos arrolados na documentação foram classificados como
enfermos ou incapazes. Entre 1731-1740, foram registrados 10,70%, e 7,54% para os anos de
1711-1720. Já para os anos de 1721 a 1730 temos 2,51%, e ainda 1,90% para 1700. 31 Os
resultados obtidos, embora apresentem disparidades, em virtude da análise dos inventários de
Francisca de Sande e João Lopes Fiúza, ambos senhores do Recôncavo, mostram que as
doenças estavam presentes no ambiente de trabalho, principalmente, na área rural, onde se
concentrava 59,74% dos cativos enfermos, enquanto no espaço urbano essa porcentagem
chega aos 40,26%. Um aspecto a ser considerado nesse cenário, e que contribuirá para
entender esses números, é a estrutura da posse de escravos pelos senhores de Salvador que
possuíam cativos doentes.

Tabela 3 – Posse de escravos em escravarias acometidas por doenças e aleijos, Salvador,


1700-1750

Tamanho da
Escravaria Senhores % Escravos %
1-5 12 38,70% 40 13,84%
6-10 10 32,28% 83 28,71%
11-20 7 22,58% 108 37,37%
21-30 1 3,22% 23 7,97%
31-50 1 3,22% 35 12,11%
Total 31 100% 289 100%

Fonte: APEB, SJ, 33 inventários de Salvador (1700-1750).

31
APEB, SJ, 33 inventários de Salvador (1700-1750).
77

Observa-se na Tabela 3 que a posse de escravos na Cidade da Bahia era disseminada


no tecido social. A maioria dos senhores possuía poucos cativos. Na primeira metade dos
Setecentos, 71% dos senhores de Salvador eram proprietários de até 10 cativos, enquanto
29,2% possuíam de 11 a 35 cativos. Assim, a estrutura da posse de escravos em escravarias
que possuíam doentes e/ou aleijados em Salvador mostrava-se equilibrada, pois, esses 71% de
pequenos senhores reuniam 42,6% dos cativos, enquanto 22,6% dos senhores tinham 37,4%
de escravos em suas posses.32 A análise de Souza sobre a posse de escravos para a Cidade da
Bahia também indica que na primeira metade do século XVIII a posse de escravos estava
concentrada entre os pequenos proprietários. Segundo a autora, 72% dos senhores tinham
sobre seus domínios até 10 escravos, resultado equivalente ao que localizamos, considerando
os proprietários que possuíam escravos doentes e/ou aleijados.33
Schwartz considerou que a distribuição da posse em escravos na Bahia,
principalmente na região do Recôncavo, estava associada a parâmetros de uso da terra. Nessa
perspectiva, no mundo rural, quanto maior a propriedade e a utilidade da terra, maior seria a
concentração de escravos. Diferente das áreas urbanas onde a dimensão média das escravarias
era pequena e a posse de cativos era mais equilibrada. 34 Segundo B.J. Barickman, a posse de
escravos em Salvador (1780-1860), era tão comum que não possuí-los, era sinônimo de
mendicidade extrema. Assim, Barickman descreve a propriedade de escravos em Salvador:

Os cativos trabalhavam não só como criados domésticos, mas em todo tipo de


faina manual, em muitos ofícios qualificados e no pequeno comércio. Em
Salvador, longe de ser um privilégio de uma pequena minoria rica, a posse de
escravos penetrava profundamente a estrutura social da cidade.35

Em relação ao Recôncavo, Barickman considerou que a posse de escravos não foi


exclusividade dos senhores de engenho e lavradores de cana-de-açúcar. Esse historiador
argumentou que outros pequenos produtores (camponeses, pobres e livres), também
utilizaram a mão de obra escrava africana e, nesse sentido, a plantation e a grande agricultura
não foram as únicas a se beneficiar da escravidão africana. Assim, Barickman sugere que em
grande medida a estrutura de posse de escravos no Recôncavo assemelhava-se também à

32
APEB, SJ, 33 inventários de Salvador (1700-1750).
33
SOUZA, Daniele Santos de. Tráfico, escravidão e liberdade na Bahia nos “anos de ouro” do comércio
negreiro (c.1680-1790). 2018. Tese (Doutorado em História) – Faculdade de Filosofia e Ciências Humanas,
Universidade Federal da Bahia, Salvador, 2018., p. 243.
34
SCHWARTZ, Segredos internos, 1985, p. 356-368.
35
BARICKMAN, B.J. Um contraponto baiano: açúcar, fumo, mandioca e escravidão no Recôncavo, 1780-
1860. Tradução de Maria Luiza X. de A. Borges. Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, 2003. p. 101.
78

distribuição da propriedade fundiária. Dessa forma, a riqueza na forma de escravos, era mais
concentrada nas freguesias açucareiras, onde aqueles considerados grandes proprietários
possuíam entre 40 a 50 cativos. Por outro lado, nas outras partes do Recôncavo,
principalmente nas áreas produtoras de fumo e mandioca a distribuição de escravos era mais
uniforme, isto é, entre 5 a 19 cativos.36
Retornando aos inventários, percebemos que com exceção de Francisca de Sande e
João Lopes Fiúza, os outros senhores dispunham entre os seus bens de pequenos imóveis
alugados na cidade e em seus arredores. Notamos também que vinte e oito dos inventariados
investiam a força braçal de seus cativos no trabalho urbano, enquanto cinco, incluindo Sande
e Fiúza, dedicavam-se às atividades rurais.37 Nesse sentido, o perfil dos senhores de escravos
analisados para se pensar a Bahia da primeira metade do século XVIII e as doenças que
acometiam seus cativos era formado, predominantemente, por pequenos proprietários, aqueles
que tinham escravarias compostas por 5 até 10 escravos.
Mas, o que era a riqueza na Salvador colonial? Segundo os estudos de Maria José
Rapassi Mascarenhas, no período entre 1760 e 1808, ainda existia em Salvador duas formas
de sociedade e riqueza, uma mercantil e outra fidalga, a primeira baseada nos bens de
produção (terras, escravos e engenhos), e a segunda nos bens da vida cotidiana (casas, objetos
de ouro ou prata, mobiliário e vestimenta). Em outras palavras, a riqueza na sociedade
colonial estava pautada no viver honradamente, que ia além das posses e da moralidade, isso
porque, esse viver honradamente também se relacionava com os vínculos pessoais. Nesse
sentido, a riqueza era formada por um conjunto de bens que incluíam construções, moradias,
vestimentas, joias, utensílios domésticos, alimentação e o próprio convívio social diziam
muito sobre a riqueza em Salvador. Assim, digamos que para ser considerado rico era preciso
possuir mais do que bens materiais, o indivíduo tinha que ostentar o luxo e a sua qualidade de
vida.38
Por outro lado, Schwartz enfatiza que a riqueza pode ser definida a partir da
quantidade de cativos que um senhor possuía, desse modo, quanto maior a propriedade e a
posse de escravos, maior a riqueza.39 Sendo assim, a partir dos dados levantados pelo autor,
podemos considerar que aqueles 54,54% dos senhores que tiveram as suas fortunas e a posse

36
Idem, p. 216-239.
37
Porém, é importante ressaltar que Sande e Fiúza também eram donos de propriedades na Cidade de Salvador,
assim, também possuíam escravos que se empenhavam no trabalho urbano.
38
MASCARENHAS, Maria José Rapassi. Fortunas coloniais: elite e riqueza em Salvador, 1760-1808. Tese de
doutorado em história econômica pela Universidade de São Paulo – USP, 1998. p. 110-112.
39
SCHWARTZ, op. cit., 1988, p. 356-376.
79

de escravos arrolados nos inventários analisados nesta pesquisa, pertenciam à categoria dos
pequenos proprietários. Entretanto, mesmo que estes indivíduos compondo a maioria entre os
senhores era nas grandes escravarias que se concentrava a maioria dos doentes.
Francisca de Sande nasceu na Bahia e era filha dos portugueses Francisco Fernandes
e dona Clara de Sande. Casou-se com o já conhecido Mestre de Campo Nicolau Aranha
Pacheco com quem teve quatro filhos: Pedro Fernandes Aranha, Francisco Correia de Sande,
Maria Francisca e Francisca Clara de Sande.40 Dona Francisca, após a morte do seu marido,
tornou-se conhecida principalmente pela sua atuação durante a epidemia de febre amarela na
Bahia, na década de 1680. Por conta da sua ação decisiva nas ruas de Salvador, cuidando dos
doentes e transformando sua própria casa em hospital, Sande é reconhecida como a primeira
enfermeira do Brasil.41 Mas não se pode esquecer que dona Francisca era uma das maiores
proprietárias de escravos do Recôncavo e, ao falecer em 1702, além da fazenda de cana na
Patatiba, possuía uma escravaria com 220 cativos, em sua maioria centro ocidentais, e uma
sesmaria nos campos de Garanhum, na capitania de Pernambuco, que, provavelmente, foi
concedida ao seu falecido marido após a expulsão dos holandeses. Desse número, 43
africanos e crioulos apresentavam sinais de doenças e incapacidades decorrentes das
condições de trabalho às quais eram submetidos.42
Matheus, por exemplo, era barbeiro e certamente auxiliou dona Francisca de Sande
em sua ação solidária durante a epidemia, quiçá fazendo o trabalho duro de cuidar dos
doentes. Mas, assim como tantos outros, Matheus talvez não tenha desfrutado de igual sorte
quando foi acometido por erisipela, visto que a doença assim como a febre amarela
representava um risco para a escravaria, afinal sendo produzida por uma inflamação no corpo
a erisipela se assemelhava em alguns pontos à febre amarela, pois, além de possuir uma
natureza contagiosa e sintomas parecidos (febre e dores de cabeça), ambas poderiam levar o
cativo infectado à morte. O caso de Matheus é um tanto curioso se levarmos em consideração
que a sua senhora tratou e curou tantos doentes de febre amarela pouco mais de duas décadas
antes de sua morte. Antônio, que pertencia à mesma escravatura, foi registrado como carreiro
e estava quebrado de uma virilha e dos peitos. Simão, mesmo sem ter a sua ocupação
assinalada na documentação, foi descrito da seguinte forma: “teve a mão levada pela
moenda”.43 A partir desses fragmentos é inegável que a enfermidade e o estado do corpo

40
MATOS, op. cit., p. 17.
41
Ibidem.
42
APEB, SJ, Inventário post-mortem de Francisca de Sande (1702), 01/199/351/01.
43
APEB, SJ, Inventário post-mortem de Francisca de Sande (1702), 01/199/351/01.
80

doente estavam associados ao tipo e à qualidade da ocupação desempenhada pelos escravos.


Mateus pode ter sido infectado pela bactéria causadora da erisipela durante o exercício de sua
atividade como barbeiro. Antônio, conduzindo o carro de boi, após carregá-lo e descarregá-lo
no destino final, não só quebrou uma das virilhas, como também os peitos. Simão, certamente
era um escravo do engenho que acabou perdendo uma das mãos enquanto trabalhava.
Entre os diversos bens que possuía o sargento-mor e senhor de engenho João Lopes
Fiúza encontram-se arrolados entre as terras, engenhos e fazendas, 338 escravos designados
ao serviço em suas propriedades. De acordo com Silva Jr., Fiúza havia se tornado senhor de
engenho por intermédio do casamento com Eugênia Thereza de Menezes, em 1709. Dona
Eugênia pertencia a uma importante família da aristocracia do açúcar. Ao se casar com a filha
de Jerônimo Moniz Barreto, Fiúza herdou o engenho do Baixo, localizado em Paramerim e o
engenho de São Pedro de Tararipe.44 Assim como Francisca de Sande, dedicava-se quase que
exclusivamente a atividades rurais, mas também possuía algumas propriedades em Salvador.
Como já mencionado, essa não é a única característica comum entre Sande e Fiúza. Os dois
maiores senhores de escravos para o período estudado, somam 59,87% dos escravos doentes e
aleijados que compõem essa amostra.45
Assim, no campo do domínio senhorial, o grande proprietário era pouco cuidadoso
com seus escravos. Francisca de Sande, a despeito de ser considerada a primeira enfermeira
do Brasil, tinha 19,54% da sua escravaria doente e/ou aleijada em 1702. Já João Lopes Fiúza
ao falecer em 1741, possuía 15,34% de sua escravatura em igual condição.46 Em
contrapartida, se analisarmos uma escravaria menor como a de Nicolau Carneiro da Rocha
que tinha 8,57% de sua escravaria doente em 1739, perceberemos como esses percentuais
elencados para Sande e Fiúza indicam que os cuidados que o grande proprietário dispensava
aos seus cativos era menor, afinal um ou outro escravo doente não resultaria em grande
prejuízo para um senhor que tinha a posse de 338 cativos, diferente do dano que poderia
causar a senhores como Nicolau Carneiro da Rocha, caso possuísse mais de 8,57% dos seus
35 cativos enfermos.47
Outra questão que merece ser analisada é o poder de barganha, durante o período de
crise na indústria açucareira e a corrida do ouro. Considerando que, se até os senhores de
engenho tinham pouco poder naquele contexto, imagine o pequeno proprietário? Com o que

44
SILVA JUNIOR, op. cit., p. 48.
45
APEB, SJ, Seção Judiciário, 33 inventários de Salvador (1700-1750).
46
APEB, SJ, Inventário post-mortem de Francisca de Sande (1702), 01/199/351/01. APEB, SJ, Inventário post-
mortem de João Lopes Fiúza (1741), 04/1571/2040/05.
47
APEB, SJ, Inventário post-mortem de Nicolau Carneiro Rocha, (1739), 14-1614-2083-9.
81

iria barganhar caso perdesse um escravo vitimado por doença? Certamente, ele não
conseguiria comprar outro escravo para substituir aquele que havia perdido. Nesse sentido, o
pequeno proprietário era mais prejudicado quando um escravo adoecia, talvez por isso, fosse
ele mais cuidadoso, pois, entre os pequenos senhores não encontramos nenhum que possuísse
mais de 5 cativos doentes ou aleijados. Com a exceção de Josefa Maria da Silva que possuía 5
escravos enfermos e aleijados, Francisca de Sande (43) e João Lopes Fiúza (52), 91% dos
senhores analisados nesta amostra possuíam de 1 a 4 cativos doentes ou incapazes. Mas,
proporcionalmente quanto isso representava em uma escravaria de pequenos senhores? João
Rodrigues Nogueira, português e morador da freguesia de Nossa Senhora da Conceição da
Praia, por exemplo, tinha uma escravaria composta por 9 africanos escravizados, sendo que
apenas Francisco, angola, foi listado como doente no inventário do senhor, ou seja, 11,11% de
sua escravaria.48 Percentual parecido com o encontrado para a escravaria de Nicolau Dias
Pereira, 11,76% dos 17 cativos que assenhoreava era doente ou aleijada.49
Os resultados obtidos avigoram as explicações de Schwartz e de Barickman acerca
da posse de escravos, que estaria como já mencionado, relacionada ao uso da terra, isto é,
quanto maior o poderio do senhor e a sua escravatura, maior seria a possibilidade de os
cativos serem acometidos por doenças levando em consideração as condições de vida e
trabalho às quais eram submetidos. Buscando compreender essa dinâmica analisaremos
também o perfil dos escravos doentes.

Perfil dos escravos doentes: a dor e o labor em cativeiro

Os escravos eram a peça fundamental para a estruturação das atividades laborais nas
pequenas e grandes propriedades rurais, assim como no espaço urbano onde se espalhavam
pelas casas comerciais, nos sobrados e na zona portuária. Segundo Souza, ainda podiam ser
facilmente encontrados nas vendas, feiras, abastecendo as residências com água e cuidando da
limpeza das casas e da higiene íntima dos seus senhores.50 Tais aspectos do trabalho escravo
urbano denotam dois pontos já discutidos, a dependência da mão de obra cativa e a
disseminação da posse em escravos que como vimos se concentravam nas mãos dos pequenos
proprietários. Mas, essas características mostram também que a força de trabalho cativa era
aproveitada nos diversos serviços, inclusive no serviço de ganho.

48
APEB, SJ, Inventário post-mortem de João Rodrigues Nogueira (1743), 04/1776/2045/04.
49
APEB, SJ, Inventário post-mortem de Nicolau Dias Pereira (1728), 03/1105/1574/02.
50
SOUZA, op. cit., p. 61.
82

O ganho, de acordo com Souza, havia se tornado uma atividade comum e lucrativa
para os senhores de escravos que residiam em Salvador.51 Isso porque, quando um cativo era
posto no sistema de ganho – e era uma característica própria dos senhores da Bahia –, o
senhor se isentava dos gastos com vestimenta, alimentação e moradia desse cativo que tinha a
liberdade de transitar pelas ruas e oferecer seus serviços a terceiros. Além disso, havia entre
eles um acordo estabelecido pelo proprietário onde o ganhador deveria angariar determinada
quantia que seria entregue ao proprietário semanalmente. Após adquirir o valor estabelecido,
o ganhador poderia acumular pecúlio para si. Segundo João Reis,

Quando escravos, eles e elas contratavam com seus senhores a entrega


semanal de determinada quantia, o que sobrasse podiam embolsar. Esse
sistema, chamado de ganho – daí ganhadeiras e ganhadores –, permitiu que
muitos poupassem o suficiente para comprar suas alforrias.52

Dessa forma, o aluguel dos escravos na cidade era uma estratégia rentável para
aqueles que investiam nesse comércio e para os ganhadores e ganhadeiras que com muito
esforço conseguiam acumular pecúlio e comprar sua liberdade. No entanto, não eram apenas
os ganhadores que circulavam pelas ruas de Salvador operando todo tipo de serviço, e para
entendermos a organização do trabalho nesses espaços e no Recôncavo analisamos as
ocupações desempenhadas pelos cativos doentes que foram assinalados na documentação
através de dois quadros. O primeiro destinado aos ofícios dos escravos do sexo masculino e o
segundo voltado para os afazeres das escravas do sexo feminino com o objetivo de identificar
o perfil dos doentes e quais moléstias eram mais frequentes entre os homens e quais
acometiam mais às mulheres considerando o trabalho que exerciam.

51
Ibidem, p. 61.
52
REIS, op. cit., p. 15.
83

Tabela 4 – Ocupações dos cativos doentes em Salvador e Recôncavo, 1700-1750


Ocupação Número %
Ofícios mecânicos
Barbeiro 2*
Oficial de Sapateiro 3 32,14%
Oficial de Alfaiate 1
Pedreiro 2
Ferreiro 1
Serviços de transporte
Carregador de rede 3
Carregador de cadeira 1 25%
Barqueiro 2**
Marinheiro 1
Serviços domésticos
Serviço de casa 2 7,14%
Serviços rurais
Pastor de gado 1
Taxeiro 2
Carreiro 3
Caldeiro/Pescador 1 35,72%
Serviço do curral 1
Oficial do açúcar 1
Serviço do pasto/roça 1
Total 28 100%
Fonte: APEB, SJ, 33 inventários de Salvador (1700-1750).
*Um dos barbeiros pertencia a Francisca de Sande e provavelmente era escravo de engenho.
**Homem de barco, que o governa.

No espaço urbano, as atividades laborais listadas nos inventários mostram que


predominavam ofícios ligados ao serviço de transporte (carregador de rede e marinheiro, por
exemplo), perfazendo 25% do total, e os ofícios mecânicos (barbeiro e oficial de sapateiro,
por exemplo) correspondem a 32,14% dos cativos cujas ocupações foram registradas. O
transporte de pessoas e mercadorias na cidade era associado à sua própria geografia, dividida
entre alta e baixa. Essa divisão impossibilitava a serventia dos meios de transporte que
dependiam da força animal como o carro de boi, que além de inviável para esse percurso
caracterizava-se como uma condução de alto custo. Para suprir a necessidade de locomoção
da chamada “nobreza da terra”, que se sentia envergonhada e desonrada ao andar sob o sol da
Cidade da Bahia, vulgarizou-se, conforme afirma Souza, o uso de redes, serpentinas e
palanquins como meios de transporte.53
Sendo carregada por dois escravos, a rede seguia à moda das Índias Ocidentais, era
grande, tingida de azul na maioria das vezes e possuía longas franjas que caíam dos dois
lados. As redes eram suspensas por um bambu cujo tamanho variava entre 3,96 e 4,62

53
SOUZA, op. cit., p. 70.
84

metros.54 Esse modelo de transporte permitia a locomoção da nobreza da terra com certa
comodidade, afinal, poderiam, caso fosse do seu agrado, parar nas ruas para cumprimentar
amigos e/ou fazer negócios. Esse regalo tornava-se possível porque cada cativo levava um
bastão que possuía uma forquilha e uma ponta de ferro nas extremidades, quando postos no
chão deixavam a rede suspensa e assim permitia que o senhor estendesse a conversa. Frézier,
em 1714, apresentou em gravura como se dava o transporte de senhores pelos carregadores de
rede no Brasil.
Figura I

Fonte: FRÈZIER, Amédée François. Relation d’un Voyage de la Mer du Sud des Côtes du Chili, du Pérou et do
Brésil, faite pendant les années 1712, 1713 et 1714. Amsterdam, 1717. p. 527.

O serviço de transporte exigia muita maestria dos carregadores, sua habilidade (ou a
falta dela) poderia evitar ou causar acidentes indesejáveis com os clientes, queixas, castigos e
o não pagamento do serviço pelo acidentado. Analisando a gravura de Frézier, é possível
observar como a rede era carregada pelos trabalhadores, suspensa em uma estrutura de
madeira a rede era transportada por dois escravos e cada carregador transportava um bastão
para facilitar a parada do senhor ou cliente pelas ruas da cidade. Aguçando um pouco mais a
nossa observação, percebemos através da curvatura dos corpos, trabalhadores cansados pelo
desgaste ao longo dos anos. Seus corpos foram moldados pelo trabalho, um deles inclusive,
apoiava o bastão no chão enquanto caminhava indício do cansaço que o acometia. Usando
apenas uma espécie de canga andavam sob o sol escaldante e descalços, como era costume
entre os escravizados, o que aumentava as chances de machucarem os ombros ou os pés.
Não era incomum que esse tipo de trabalho deixasse sequelas nos cativos. O trabalho
de carregar pesados fardos, fossem pessoas ou mercadorias, ao longo de anos causava nos

54
SILVA JUNIOR, op. cit., p. 80.
85

cativos o aparecimento de hérnias de disco e outras lesões na coluna, que eram referidas à
época como “quebrado” ou “rendido” da virilha ou do umbigo, sendo tal moléstia a que mais
atingia os carregadores e os escravos dos engenhos, como veremos mais adiante. Podemos
imaginar que ocupando as ruas diariamente e usando a força física para transportar pessoas e
mercadorias pela cidade alta e baixa, os cativos estariam mais vulneráveis a esse tipo de
doença. Sendo assim, a condição de quebrado ou rendido das virilhas era proveniente do
esforço físico e, em alguns casos, também dos maus-tratos e castigos relacionados ao
trabalho.
Os ofícios mecânicos somam 32,14% das ocupações listadas e, basicamente, são
aqueles em que os trabalhadores necessitam de uma especialização e licença para exercer
determinada função. A Tabela 4 registra três sapateiros, um alfaiate e dois barbeiros, sendo
que um deles era da fazenda de dona Francisca de Sande. Russell-Wood afirma que na Bahia
setecentista o ofício de barbeiro era praticamente dominado por escravos e negros livres. De
acordo com seus estudos, a Câmara Municipal de Salvador teria emitido 38 licenças para
barbeiros, das quais 17 foram concedidas para escravos e 21 para negros livres. 55 A
concentração do ofício nas mãos desses sujeitos tem como base a hierarquia presente entre os
práticos de cura, que, além de associar os barbeiros às artes mecânicas, considerava o ofício
uma categoria inferior e, por isso, exercida como observou Russell-Wood por escravos e
libertos.
Segundo Bluteau, o barbeiro dominava muitas funções, pois além das artes de curar,
ele raspava, cortava ou aparava a barba. Havia, ainda, segundo o dicionarista, barbeiros de
lanceta ou sangradores.56 Nesse sentido, os termos barbeiro e sangrador eram usados para
definir o exercício de uma mesma função. Outra questão que pode ter influenciado o número
significativo de escravos nesse ofício, além da ausência de médicos licenciados na colônia,
era a lucratividade que os senhores alcançavam com esses serviços, isto é, se o senhor tinha
sob os seus domínios um prático de cura ele reduzia os gastos com os escravos doentes de sua
escravaria, assim como poderia se beneficiar do seu trabalho para tratar escravos, livres e
libertos. Para Mariza de Carvalho Soares, os barbeiros eram fundamentais, por exemplo, a
bordo dos navios negreiros, e como era um ofício dominado por africanos libertos e
escravizados que somavam práticas de cura africanas ao que aprendiam na América

55
RUSSELL-WOOD, A. J. R. Escravos e libertos no Brasil colonial. Rio de Janeiro: Civilização Brasileira,
2005.p. 93.
56
BLUTEAU, Raphael. Vocabularioportuguez& latino: aulico, anatomico, architectonico. Coimbra: Collegio
das Artes da Companhia de Jesus, 1712-1728. 8 v. Disponível em: http://dicionarios.bbm.usp.br/pt-
br/dicionario/edicao/1. Acesso em: 11 de maio de 2021.
86

portuguesa, os barbeiros eram designados para prestar assistência em casos de doenças entre a
tripulação e os escravos que cruzariam o Atlântico a bordo das embarcações.57
O serviço de casa correspondia apenas 7,14%. Caetano, do gentio da costa, era
escravo do serviço de casa, mas também foi classificado como “negro da cadeia” indicando
que fora preso em razão das dívidas contraída por seu senhor. Além dele, Jacinto e André,
escravos do Ajudante e Alferes José Rodrigues Chaves (1742), foram presos a pedido do
capitão José Luís para garantir o pagamento das dívidas, sendo classificados pelo
inventariante como “negros da cadeia”.58 A partir destes dados, percebe-se que no espaço
urbano havia uma variedade de ocupações para os homens escravizados e libertos e uma
predominância dos cativos entre os serviços de transporte e os ofícios mecânicos. Entretanto,
no Recôncavo predominaram os trabalhos rurais, a exemplo dos carreiros, taxeiros, oficial do
açúcar, escravo do curral, dentre outros, que constituem 35,72%, sobretudo, porque a análise
foi baseada em dois grandes proprietários de escravos, Francisca de Sande e João Lopes
Fiúza.59
O termo “barqueiro”, segundo Bluteau, estava associado ao vocábulo “barquejar” que
significa governar como barqueiro ou andar em barco.60 Encontramos cinco escravos da
fazenda e engenho de dona Francisca de Sande, que ocupavam a função de barqueiro. Como
ofício que exigia longas jornadas no mar ou nos rios próximos às propriedades dos senhores,
era comum que alguns escravos desenvolvessem doenças originarias desse período em que
enfrentavam a umidade nos barcos seguida das temperaturas adversas em terra, como as
micoses e as frieiras. Foi o que provavelmente aconteceu com Bastião Guirra escravo de
Francisca de Sande, inventariado como doente dos pés e avaliado em 80$000 mil réis.61
Se por um lado o trabalho escravo masculino era diversificado e havia ocupações
especializadas, concentrando-se nas fazendas e em determinados serviços urbanos, o
feminino, foi invisibilizado na documentação, restringindo-se aos afazeres domésticos e à lida
na lavoura. Das 47 escravas arroladas nos inventários apenas 12 tiveram suas ocupações
registradas, quatro do serviço de casa, três costureiras, três dos serviços da fazenda, uma
costureira e outra lavadeira. Apesar de relativamente pequeno, esse número mostra a

57
SOARES, Mariza de Carvalho. “African Barbeiros in Brazilian Slave Ports”, in: Cañizares-Esguerra, Jorge;
Childs, Matt D.; Sidbury, James (orgs.) The Black Urban Atlantic in the Age of the Slave Trade
(University of Pennsylvania Press, Philadelphia, Ebook, 2013), pp. 207-230.
58
APEB, SJ, Inventário post-mortem de José Rodrigues Chaves, 1742, 05/2200/2669/03. Cf. SILVA JR, op.
cit. 2011, p. 145.
59
APEB, SJ, 33 inventários de Salvador (1700-1750).
60
BLUTEAU, op. cit., p. 169.
61
APEB, SJ, Inventário post-mortem de Francisca de Sande (1702), 01/199/351/01.
87

existência de um equilíbrio entre os serviços de casa, da fazenda e o ofício de costureira,


enquanto a função de cozinheira e lavadeira apresenta um único registro.62 No geral o trabalho
escravo feminino agregava tarefas de portas afora e de portas adentro, tanto referentes a faina
doméstica, quanto ao trabalho mercantil ou especializado na costura/bordado/renda. No
entanto, levando em consideração as atividades laborais desempenhadas pelas escravas
doentes da amostra aqui analisada, podemos considerar que os trabalhos femininos foram
associados aos afazeres domésticos por serem considerados leves em comparação aos serviços
mais pesados dos engenhos e das ruas. Todavia, o trabalho feminino estava presente nas ruas
de Salvador por meio das ganhadeiras. Segundo Avanete Pereira Sousa, em Salvador o
comércio nas ruas era, em sua maioria, desempenhado por mulheres negras, escravas ou
libertas que entre os anos de 1797 a 1801, representavam mais de 70% das trabalhadoras que
tinham licença para atuar nas ruas da cidade.63 Conforme Pereira Sousa,
Os vendedores de rua eram, geralmente conhecidos como regateiras ou
ganhadeiras, quando mulheres, e regatões ou vendilhões, quando homens.
Porém, no interior desse grupo, havia os denominados vendedores de
caixinhas. Esses indivíduos comercializavam produtos expostos em pequena
caixa de madeira carregada embaixo do braço, o que fez com que
adquirissem tal apelido. Nessas caixinhas, eles vendiam uma série de
miudezas, como linha de cozer, agulhas, botões, alfinetes, grampos para
cabelo, broches, brincos etc. Estima-se que os indivíduos que
desempenhavam esse tipo de comércio eram na quase totalidade mulheres.64

Desse modo, essa visão de leveza em relação ao trabalho doméstico, está associada à
invisibilidade feminina no mundo do trabalho. Aurélia M. Casares destacou em pesquisa
recente a importância de se pensar esse espaço do trabalho feminino moldado através do
processo de invisibilidade. A autora argumenta que havia um silenciamento a respeito do
trabalho das mulheres que, muitas vezes, exerciam múltiplas funções, isto é, trabalhando em
casa e nas ruas, a exemplo das ganhadeiras que vendiam seus quitutes pelas ruas de
Salvador.65

62
APEB, SJ, 33 inventários de Salvador (1700-1750).
63
A autora apresenta dois quadros interessantes para se pensar o comércio ambulante, no Quadro 3 mostra-se
que a maioria das posturas (111) eram relativas ao trabalho ambulante entre 1696-1742, e no Quadro 4
correspondente ao período de 1792-1796 aponta o número de mulheres negras (escravas ou libertas) e
brancas que possuíam a licença municipal para trabalhar nas ruas de Salvador. SOUSA, Avanete Pereira.
Poder político local e vida cotidiana: a Câmara Municipal da cidade de Salvador no século XVIII. Vitória
da Conquista: Edições UESB, 2013. p.45- 46.
64
Idem, p. 46.
65
MARTÍN CASARES, Aurelia. Productivas y silenciadas: el mundo laboral de Las esclavas em España. In:
MARTÍN CASARES, Aurelia; PERIÁÑEZ GÓMEZ, Rocío (ed.). Mujeres esclavas y abolicionistas en la
España de los siglos XVI-XIX. Madrid: Iberoamericana-Vervuert, 2014.
88

Outro aspecto importante a ser considerado é a demografia da escravidão na cidade


da Bahia. Na primeira metade do século XVIII, parte considerável dos escravos que viviam
em Salvador era nascida na África.66 Os estudos de Silva Jr, mostram que entre 1700-1750, os
africanos eram 55,4% da população escrava de Salvador e do Recôncavo, os crioulos 27%,
outros nascidos no Brasil 5,7% e não identificados 11,9%.67 Por outro lado, Souza, argumenta
que 67,5% dos escravizados na Cidade da Bahia eram de origem africana entre 1700-1750,
enquanto os crioulos e mestiços juntos representavam 32,5% da população escrava. 68 Em
nossa análise sobre a demografia, a partir dos 31 inventários de senhores de escravos de
Salvador, encontramos 64 cativos doentes e/ou aleijados, 82,81% era de origem africana,
12,5% crioulos e 4,69% não foi identificada.69 Ao analisar a população escrava doente, a
partir do Gráfico 1, que mostra a distribuição dos doentes por naturalidade, segundo os
inventários, percebe-se que os africanos adoeciam mais comparado aos nascidos no Brasil
crioulos, pardos, mulatos e cabras, uma vez que eram maioria entre os escravizados em
Salvador e no Recôncavo.

Gráfico 1 – Origem dos doentes e aleijados, 1700-1750


120

100

80
África
60
Brasil
40
Não identificados
20

0
Africanos Crioulos Não
identificados

Fonte: APEB, SJ, 33 inventários de Salvador (1700-1750).

A maioria dos escravizados pelo tráfico atlântico eram homens e, consequentemente


a maioria dos doentes na primeira metade do século XVIII, era formada pelos africanos. A

66
Sobre a natureza da escravidão em Salvador na primeira metade do século XVIII, cf. SOUZA, op. cit.;
SILVA Jr., op. cit.
67
SILVA Jr., op. cit. p. 68.
68
As informações foram extraídas da Tabela 2 – Origem dos escravos listados nos inventários post-mortem de
Salvador (1700-1750). IN: SOUZA, op. cit., 2010.p. 52.
69
APEB, SJ, 33 inventários de Salvador (1700-1750).
89

intensidade que tomou o movimento do tráfico atlântico após a descoberta do ouro contribuiu
para que um contingente cada vez maior de homens escravizados desembarcasse na América
portuguesa. Além de sustentar a escravidão na Bahia, o tráfico tornou possível a divisão dos
cativos em dois grupos, africanos e crioulos. Mas, quais rumos tomariam a definição desse
perfil de escravo doente se analisarmos sua faixa etária? De início, cabe salientar que a idade
registrada pelos escrivães nos inventários post mortem é bastante discutível, uma vez que ora
aparecem como idade numérica – em termos de possibilidade, isto é, mais ou menos idade –
ora de forma descritiva. Seguindo a metodologia proposta por Stuart Schwartz, considerei
moço, de maior idade, de maior e moleque, como jovem; velho, muito velho e com mais de
60 anos, como idoso.70
Dos 847 escravizados analisados nesta amostra, 32% foram registrados como jovens e
11% como idosos, entretanto, 57% dos escravos não tiveram sua idade listada nos inventários.
Desse número cabe ressaltar que apenas 116 foram arrolados como doentes. Assim, em
relação aos enfermos, cujas idades foram arroladas, os classificados como “jovens” somam
28,6% dos doentes; os identificados como “idosos” totalizaram 20,3% dos doentes; e aqueles
cujas idades não foram registradas na documentação formam o maior percentual (51,2%) de
doentes do sexo masculino desta amostra. Entre as mulheres, as jovens representavam 15,6%;
as idosas 9,4% e, a maior concentração foi entre aquelas escravizadas cujas idades não foram
registradas pelo escrivão (75%). Se analisarmos essa amostra, desconsiderando os cativos e
cativas que não tiveram as idades registradas, encontramos uma maior concentração entre os
mais jovens, isso porque, entre os adoentados, como veremos mais adiante, os quebrados da
virilha se caracterizavam, principalmente, por ocuparem os serviços de transporte e os
serviços rurais.
Nesse sentido, a população escrava doente se caracterizava como jovem, em plena
idade produtiva, uma vez que a sua reprodução era constantemente alimentada pelo tráfico
negreiro. Quanto aos ofícios, os adoecidos que moravam em Salvador dedicavam-se, em sua
maioria, aos ofícios mecânicos e de transporte. Já os doentes que moravam no Recôncavo
trabalhavam nas atividades do engenho, a exemplo dos oficiais do açúcar, taxeiro, oficiais do
pasto, corte da cana, entre outras ocupações que demandavam maiores esforços físicos. Outro
indicativo que reforça essa hipótese é a análise dos valores desses escravos doentes arrolados
na documentação. Quitéria, por exemplo, escrava crioula de Cristóvão Vieira (1734), era
lavadeira e não teve a sua idade registrada no inventário, mas foi descrita como “doente com

70
SCHWARTZ, op. cit., 1988, p. 286-288.
90

uma chaga”, e avaliada em 80$000 mil réis, diferente de Tereza, mina, escrava do mesmo
senhor que não estava doente, mas por ser idosa foi avaliada em 30$000 mil réis.71 Em outra
ocasião, Antônio, arda, escravo de Domingos Fernandes (1708), foi descrito como “doente
dos pés” e apreciado em 75$000 mil réis, mesmo valor dado a Antônio, guiné, também
escravo do mesmo senhor que não possuía nenhuma doença e foi apenas registrado como
moleque.72 João da Silva, crioulo, escravo do engenho de Francisca de Sande (1702), era
taxeiro foi registrado como doente e recebeu, após a sua avaliação, o valor de 70$000 mil réis,
enquanto Mateus, escravo novo do mesmo engenho recebeu o valor de 80$000 mil réis.73
Os valores apresentados mostram que mesmo quando a faixa etária não foi
registrada, podemos, a partir de algumas comparações, identificar a idade dos escravizados.
Nesse sentido, podemos perceber que mesmo doentes os escravos jovens adquiriam valores
superiores aos escravos idosos que não possuíam nenhuma enfermidade. Desse modo, entre
os doentes havia uma predominância dos mais jovens, pois, se os inventariantes dispusessem
da faixa etária daqueles que formavam a categoria das não identificadas, acreditamos que o
percentual de cativos jovens seria superior. Assim, como dito anteriormente foram arrolados
nos inventários 116 escravos enfermos, e para entendermos esse universo de doenças nas
senzalas faz-se necessário uma abordagem sobre elas e a sua relação com o mundo do
trabalho.

As doenças que acometiam os cativos

A doença assumiu diferentes conceitos e interpretações ao longo do tempo. Enquanto


era associada à introdução de africanos escravizados na colônia, não deixou de ser pensada
como ação divina, tampouco desvinculada da maldade de feiticeiros e forças sobrenaturais.74
A preocupação com a doença ora era percebida na Bahia entre os documentos oficiais, ora nos
relatos médicos e nos manuais de medicina douta que circulavam por toda colônia. Mas, aqui

71
APEB, SJ, Inventário post-mortem de Cristóvão Vieira, 1734, 04/1604/2073/02.
72
APEB, SJ, Inventário post-mortem de Domingos Fernandes, 1708, 05/1705/2175/09.
73
APEB, SJ, Inventário post-mortem de Francisca de Sande (1702), 01/199/351/01.
74
Cf. NOGUEIRA, André Luís Lima. Entre cirurgiões, tambores e ervas: calunduzeiros e curadores ilegais
em ação nas Minas Gerais (século XVIII). 2013. Tese (Doutorado em História das Ciências e da Saúde) –
Casa de Oswaldo Cruz, Rio de Janeiro, 2013. CATAI, Dimas. Médicos, Barbeiros e Feiticeiros: Africanos e
Práticas de cura no Brasil do Século XVIII. In: VIII ENCONTRO ESTADUAL DE HISTÓRIA: Espaços da
História, 2016, Feira de Santana. Anais da Anpuh-BA. Feira de Santana: UEFS, 2016. p. 368-381.
Disponível em: http://www.encontro2016.bahia.anpuh.org/simposio/anaiscomplementares.
91

foram os inventários e o livro do banguê da Santa Casa de Misericórdia da Bahia que me


aproximaram das doenças e dos sujeitos doentes criando a possibilidade de pensar uma
divisão entre as moléstias registradas nos inventários e suas relações com o trabalho escravo.
Em estudo recente, as historiadoras Tânia Salgado Pimenta, Kaori Kodama e o
historiador Flávio Gomes relacionaram a taxa de mortalidade dos escravizados doentes, às
péssimas condições de sobrevivência e ao trabalho por eles executados. Dessa forma, os
autores identificaram as enfermidades próprias da escravidão, como a erisipela e a tísica a
partir dos escritos médicos do período escravista.75 Mary Karasch em trabalho já conhecido
destacou o “mal dos sete dias” (tétano) como a principal causa da mortalidade entre os recém-
nascidos e a tísica como uma das causas da mortandade cativa no Rio de Janeiro.76
Concordando com as ideias propostas por Karasch, Keith Barbosa em seu estudo sobre a
mortalidade escrava nas regiões da Candelária e Irajá, no Rio de Janeiro, entre 1809 e 1831,
compreende que foram exatamente as condições de vida em cativeiro que proporcionaram um
ambiente hostil para a saúde dos cativos.77
Assim, como já apontado ao longo do capítulo, foram analisados 159 escravos
doentes e aleijados, porém, na Tabela 5, foram agrupados apenas os 116 doentes, de modo
que os 43 escravos aleijados serão analisados no próximo capítulo. Para entendermos a
distribuição das moléstias que se desenvolviam no cativeiro, buscando as conexões entre as
enfermidades e o trabalho desempenhado por esses sujeitos, separamos algumas das
enfermidades localizadas nos inventários em grupos divididos por moléstias internas
enfermidades registradas na documentação apenas como inchaço ou dores na região da
barriga), lesões do corpo, doenças do peito e respiratórias. Outras doenças mais especificas,
inclusive a elefantíase – que se apresenta ora com o aparecimento de escaras ora apenas com
inchaço –, foram elencadas tal como aparece na documentação e, aquelas registras pelo
escrivão apenas como escravos doentes foi agrupada como não identificadas.

75
PIMENTA; GOMES; KODAMA, op. cit., p. 67-100.
76
KARASCH, Mary C. A vida dos escravos no Rio de Janeiro 1808-1850. Tradução de Pedro Maia Soares.
São Paulo: Companhia das Letras, 2000.
77
BARBOSA, Keith Valéria de Oliveira. Doença e cativeiro: um estudo sobre mortalidade e sociabilidades
escravas no Rio de Janeiro, 1809-1831. Curitiba: CRV, 2020.
92

Tabela 5 – Tipos de doenças entre os escravizados, 1700-1750

Moléstias Quantidade de escravos acometidos %


Virilhas quebradas 36 31,03
Internas 24 20,68
Lesões do corpo 16 13,79
Doença de peito/respiratória 8 6,89
Tísica 3 2,58
Boubas 3 2,58
Quizila 1 0,86
Quiguilhas 1 0,86
Erisipela 3 2,58
Bexiga 1 0,86
Gota coral 1 0,86
Opilação 1 0,86
Todo pintado de branco 1 0,86
Lesa e esclerosada 1 0,86
Prenha 1 0,86
Corrimentos 1 0,86
Não identificadas 14 12,06
Total 116 100

Fonte: APEB, SJ, 33 inventários de Salvador (1700-1750).

A partir da análise das fontes houve a necessidade, como já mencionado, de formar


algumas categorias entre as doenças. Nesse sentido, a doença do fígado, as pernas grossas e as
doenças da barriga foram classificadas como moléstias internas (20,68%). Em Bluteau o
termo moléstia foi relacionado a enfado e incômodo e, nesse sentido, estaria associada ao
ânimo e ao trabalho do corpo, caracterizando-se como doença. A palavra interna surge em
Bluteau com sentido abstrato, ou seja, classificada como doença interna do corpo. 78 Em
contrapartida, as enfermidades visíveis aos olhos como as chagas, as feridas nas pernas e pés
foram catalogadas como lesões do corpo (13,79%). O grupo formado pelas doenças
respiratórias e de peito corresponde à asma e aos males do peito (6,89%), aqui a tísica é
analisada separadamente porque, diferente da asma, ela se caracteriza como uma doença
respiratória contagiosa (2,58%), e as não identificadas (12,06%) são aquelas enfermidades
que não apresentam na documentação nenhuma característica ou informação relevante para
suas identificações.79
Tânia Pimenta destacou entre os males que mais acometiam a população escrava a
tísica, a disenteria, a varíola, a coqueluche, o sarampo e a escarlatina, que, assim como
aquelas enfermidades causadas por vermes e parasitas – a gastroenterite, a enterite e a

78
BLUTEAU, op. cit., p. 496.
79
APEB, SJ, 33 inventários de Salvador (1700-1750).
93

pneumonia – também eram frequentes e que comumente eram agravadas pelas carências
nutricionais, pelo trabalho e maus-tratos senhoriais.80 Mas, para a Bahia na primeira metade
do século XVIII, Souza aponta com base nos inventários dos senhores de escravos que entre
as enfermidades identificadas, os problemas na visão, as lesões no corpo e as virilhas
quebradas seriam as doenças que mais acometiam a população escrava de Salvador.81
Os resultados obtidos para esta pesquisa baseada nos inventários dos senhores de
escravos mostram divergência em relação a algumas doenças analisadas por Souza,
principalmente as virilhas quebradas que em nossa amostra atingiram 31,03% dos escravos
inventariados. Essa diferença entre os resultados se explica porque Souza, como já
mencionado constrói a sua pesquisa a partir dos inventários de Salvador e do trabalho urbano
– as atividades laborais rurais trabalhadas pela autora também dizem respeito a Salvador e não
a seu Recôncavo –, assim, o número superior de quebrados das virilhas que constam na
Tabela 5 é o resultado da introdução dos inventários de Francisca de Sande e João Lopes
Fiúza, senhores de engenho do Recôncavo.
Os termos “quebrado da virilha” ou “rendido” como vimos ao decorrer do texto
referem-se a hérnia de disco e outras doenças relacionadas a coluna, doença muitas vezes
provocada pelo esforço físico dos cativos. Bluteau a define como “inchação dos testículos”,
“nofa” ou “ventofa”, e a quebradura propriamente dita seria o ato de quebrar a hérnia
intestinal.82 Valentin, crioulo e carreiro do engenho de São Pedro do Pararipe, era escravo de
João Lopes Fiúza e fora registrado como quebrado em sua avaliação. Certamente, Valentim
havia quebrado as virilhas no extenuante trabalho a que era obrigado, isto é, transportando as
mercadorias e o açúcar produzido no engenho.83 Francisco mina, escravo de Maria Pereira do
Lago, era carregador de rede e assim como Valentin foi inventariado como “quebrado”.
Decerto, Francisco andava pelas ruas da cidade carregando sua senhora e ou oferecendo seus
serviços para terceiros e, em suas andanças entre as cidades Alta e Baixa acabou quebrando as
virilhas.84 De acordo com Schwartz, o trabalho exigia que os cativos se abaixassem para
cortarem o mais rente possível ao solo aproveitando a maior concentração de sacarose da
cana. Esse movimento repetitivo, somado aos feixes de cana transportados do partido até o
carro de boi, além dos trabalhos repetitivos feitos dentro do engenho durante a safra,

80
PIMENTA, Tânia Salgado. Doenças. In: SCHWARCZ, Lilia M.; GOMES, Flávio (org.). Dicionário da
escravidão e liberdade: 50 textos críticos. São Paulo: Companhia das Letras, 2018. p. 204.
81
SOUZA, op. cit., p. 99.
82
BLUTEAU, op. cit.
83
APEB, SJ, Inventário post-mortem de João Lopes Fiúza (1741), 04/1571/2040/05.
84
APEB, SJ, Inventário post mortem de Maria Pereira do Lago (1744), 04/1576/2045/01.
94

extenuava e estropiava a coluna desses cativos. Nas cidades, era o transporte de pessoas e
mercadorias que mais causavam danos à coluna. 85
O termo boubento remete a bouba, doença infecciosa João, negro novo, escravo da
fazenda Jaguaripe de dona Francisca de Sande, certamente havia desembarcado no porto de
Salvador havia pouco tempo e quando se instalou na propriedade de sua senhora apresentou
os sintomas da doença de bouba, frequentemente associada aos navios negreiros. Bernardo,
africano de nação arda, era escravo da mesma fazenda e senhora, decerto ocupava-se dos
serviços rurais e, entre o trabalho extenuante e a carência nutricional proporcionada pela vida
em cativeiro, havia desenvolvido inchaço no estômago (verminose), que o fazia comer terra.86
De acordo com os estudos de J. F.X Siguard sobre o Brasil Império, mas que pode ser
considerado para o contexto aqui analisado, o hábito de comer terra ganhou uma feição de
mal endêmico principalmente nas regiões rurais, devido a alimentação pobre destinada aos
escravos – farinha de mandioca, milho e feijão – e as condições de vestimenta inapropriadas
para o trabalho e para as horas de descanso. Nesse sentido, a verminose que fazia com que os
escravos comessem terra, do ponto de vista de Siguard, era identificada como doença própria
da escravidão.87
As bexigas e a gota coral são denominações relacionadas à varíola e à epilepsia, que
eram frequentemente associadas, como visto no capítulo anterior, ao movimento do tráfico
atlântico em direção ao Brasil. No inventário do capitão negreiro Jacinto Gomes (1752), por
exemplo, um moleque do gentio da Costa da Mina pertencente à carregação do capitão Jacinto
Gomes foi avaliado como sem valor, isso porque ele apresentava acidentes contínuos de gota
coral e a sua condição o tornava sem préstimo e, por isso, sem valor. 88 A quizila ou quigila,
por sua vez, toma características e definições que a classificam dentro do entendimento do
período, como “doença de feitiço” ou interdição de preceitos aplicados no tratamento das
doenças.89 Essa enfermidade, de acordo com Bluteau, era uma maldição que os pais dos
escravos vindos de Angola lançavam em seus filhos.90 Apesar de não haver uma referência
explicita à doença nos manuais de medicina, no curso do século XVIII, era comum a
associação de determinadas enfermidades à feitiçaria. Em seu estudo sobre práticas de cura e
curadores ilegais na capitania de Minas Gerais no século XVIII, André Nogueira, utiliza o
85
SCHWARTZ, op. cit., 1988, p. 129-134.
86
APEB, SJ, Inventário post-mortem de Francisca de Sande (1702), 01/199/351/01.
87
SIGUARD, J.F.X. Do clima e das doenças do Brasil ou estatística médica deste Império. Rio de Janeiro:
Editora Fiocruz, 2009.
88
APEB, SJ, Testamento e inventário post-mortem de Jacinto Gomes (1752), 03/1147/1616/02.
89
Sobre a quizila ou quigila como possível rito de tratamento de doenças cf. SOUZA, op. cit., p. 100.
90
BLUTEAU, op. cit.
95

termo “doença de feitiço” para se referir aos achaques que eram provocados pela ação ou ira
dos feiticeiros, levando em consideração a crença difundida entre as autoridades e
representantes da medicina douta que relacionavam a saúde e o corpo doente ao
sobrenatural.91 Karasch ressalta ainda que entre os senhores era comum a crença na origem
das doenças vinculada ao sobrenatural e, consequentemente, à sua cura era advinda da ação
dos feiticeiros.92 Voltando à quigila, encontramos na escravaria de Francisca de Sande, Joana,
congo, que estava acometida de quigila, e decerto acreditava ter sido amaldiçoada por seus
antepassados. Joana ainda era mãe de Luzia crioula, doente de asma.93
Outra condição de saúde que deve ser considerada nesta análise é a de Maria, escrava
africana de nação arda, que pertencia à escravaria da fazenda de dona Francisca de Sande.
Maria foi registrada pelos inventariantes como prenha, fato que chama atenção, pois, Maria,
de acordo com a definição encontrada no dicionário de Bluteau, estava pejada, ou seja, ela
estava grávida e sua condição, conforme os herdeiros da sua senhora, foi relacionada ao
estado de doença.94 Como Maria foi avaliada em 65$000 mil réis, valor condizente ao de
mercado, podemos supor que seu estado de saúde causasse preocupação a sua senhora, uma
vez que tanto a gravidez quanto o parto, dado a mortalidade infantil e circunstâncias precárias
de assistência, representavam um momento de risco aos senhores de escravos. Pejada também
foi o termo usado para dar notícia a Antônio José de Oliveira Guimarães, no dia 8 de maio de
1777, sobre a moléstia que acometia sua escrava. De acordo com Francisco Ignácio Botelho,
médico que visitou a cativa a pedido do senhor, a moléstia vinha em aumento e para afastar a
desconfiança sobre o estado de saúde da escrava, Francisco Ignácio Botelho examinou sua
barriga constatando que parecia pejada de duas crianças. Eis um trecho do registro:

[...] Meu amigo e senhor recebi a de vossa mercê e agora somente sou
a dizer-lhe que a moléstia ou moléstias de sua parda vão em aumento;
ontem a fui ver se na barriga como uma mulher que está pejada de
duas crianças [...].95

Essa percepção da gravidez enquanto doença pode ser entendida a partir dos sentidos
que foi dada à doença no século XVIII. Assim, como vimos anteriormente, a moléstia era o

91
NOGUEIRA, op. cit. 2013.
92
KARASCH, op. cit.
93
APEB, SJ, Inventário post-mortem de Francisca de Sande (1702), 01/199/351/01.
94
Ibidem.
95
ANTT. Feitos Findos. Diversos (documentos referentes ao Brasil), maço 18, nº 15. Carta de Francisco
Ignácio Botelho a Antônio José de Oliveira Guimarães sobre a moléstia que acometia sua escrava.
96

estado enfado e incomodo concernente ao trabalho e ânimo do corpo.96 Os casos de Maria,


arda, e da parda escrava de Antônio José de Oliveira Guimarães, provocam outro
questionamento a respeito do entendimento e concepção sobre a doença, pois, nesses casos
específicos fica evidente que a gravidez é posta como doença exatamente porque, em
determinado momento da gestação, essas escravas estariam correndo risco de morte dada as
circunstâncias precárias em tais situações. Infelizmente, não localizei entre os registros de
batismo os herdeiros de Sande batizando a criança, o que indica que o batismo ocorrera no
Recôncavo, uma vez que Maria era escrava da fazenda.
Outra escrava da mesma senhora, Maria congo, casada com o também escravo João de
Souza, ambos residentes na fazenda Jaguaripe, foi descrita como lesa e esclerosada e, por
isso, sem préstimo para o serviço.97 Antônio, escravo de dona Francisca, foi descrito na
documentação como doente seguido do termo “todo pintado de branco”. Embora a expressão
também fosse utilizada para descrever pessoas idosas com barba e cabelos brancos, é possível
que o escrivão estivesse se referido a uma doença, a exemplo da lepra. Nesse período, a lepra
já era conhecida. Bluteau, por exemplo, a definiu como um mal contagioso que corrompia o
corpo.98
Até que ponto o trabalho exercido pelo escravo contribuiu para o desenvolvimento
das doenças em cativeiro? Retornando aos resultados apresentados na Tabela 5 verifica-se que
36 (31,03%) dos escravos analisados foram acometidos por hérnias ou virilhas quebradas.
Quando relacionados a ocupações desenvolvidas pelos cativos que em sua maioria estavam
prestando serviço no campo e nas cidades entre os serviços de transporte e ofícios mecânicos,
esses dados indicam que foram os esforços físicos decorrentes de tais ocupações os principais
responsáveis pelos quebramentos das virilhas. Podemos considerar também que as doenças
internas e as lesões pelo corpo tenham sido provocadas pelas longas jornadas e péssimas
condições de trabalho enfrentadas, principalmente, no mundo rural dos engenhos e lavouras,
afinal, como nos lembra Schwartz, os escravizados e seus descendentes passavam a maior
parte do tempo dedicando-se ao trabalho para seus senhores e para si – quando necessitava
cuidar das lavouras para sua subsistência –, nesse sentido, o ambiente de trabalho quando
associado às precárias condições de sobrevivência na escravidão apresentadas no capítulo
anterior se transformava em um ambiente hostil e propício a disseminação de doenças entre os
cativos.

96
BLUTEAU, op. cit.
97
APEB, SJ, Inventário post-mortem de Francisca de Sande (1702), 01/199/351/01.
98
BLUTEAU, op. cit., p. 16.
97

Isso não significa, porém, que enfermidades como a tísica ou a asma não tenham sido
desenvolvidas no ambiente de trabalho em que os escravos viviam se levarmos em
consideração o clima úmido e em certa medida chuvoso da região do Recôncavo onde se
encontrava a maioria dos asmáticos e tísicos. Josefa, por exemplo, escrava de João Lopes
Fiúza, era muito velha e além de apresentar problemas na visão, também era asmática.99
Enfim, as doenças que acometiam os escravizados eram resultado tanto do trabalho
por eles executado quanto às péssimas condições em que essas atividades laborais eram
exercidas. Entretanto, os maus-tratos senhoriais também merecem ser pensados como fio
condutor para essa análise e, nesse sentido, refletir sobre os castigos senhoriais como fatores
que colaboraram não só para o surgimento das doenças, mas também para os aleijões ou
incapacidades físicas dos escravizados, será tema do próximo capítulo.

99
APEB, SJ, Inventário post-mortem de João Lopes Fiúza (1741), 04/1571/2040/05.
98

CAPÍTULO III
Os aleijos e os maus-tratos senhoriais na Bahia

O próprio escravismo criava condições em que era


elemento lógico e, na verdade, essencial do
Regime o exercício da dominação pela força física
ou por punições extremas.1

Na capitania da Bahia, assim como em todo território colonial, o escravo era


transformado em mercadoria e submetido a duras condições de trabalho e sobrevivência em
cativeiro. A violência do escravismo tinha relação estreita com o processo de coisificação do
africano escravizado, isto é, sua desumanização estava associada à teoria da superioridade
branca e europeia que buscava legitimar a escravização dos povos africanos.2 Muito se ouviu
falar sobre a “brandura” da escravidão e dos senhores de escravos na América portuguesa.
Segundo a historiadora Silvia Lara, essa discussão sobre a natureza branda ou cruel do
cativeiro, além de ser antiga na historiografia brasileira, apresenta particularidades distintas,
ora se caracterizando por construir uma imagem do senhor amigo e benevolente, ora por
destacar sua crueldade e violência.3 O pano de fundo desse debate remonta ao final do século
XVII e início do século XVIII, quando se tornaram frequentes nos tratados e sermões
jesuíticos que versavam sobre o governo dos escravos nas plantations da América
portuguesa.4
Sobre a legitimidade da escravidão americana, Lara afirma que a legislação
portuguesa se preocupava, sobretudo com aspectos relacionados à escravidão africana, fonte
cada vez mais rentável para o Império português. De acordo com a autora,

A escravização dos povos africanos e seus descendentes, tal como praticada


pelos comerciantes portugueses e pelos colonos do Brasil, era um
procedimento considerado lícito, válido, legítimo e justo diante das leis
divinas, do direito natural e do das gentes.5

1
SCHWARTZ, Stuart. Segredos internos: engenhos e escravos na sociedade colonial 1550-1835. São Paulo:
Companhia das Letras, 1988. p. 123.
2
LARA, Silvia Hunold. Campos da violência: escravos e senhores na capitania do Rio de Janeiro, 1750-
1808. Rio de Janeiro: Paz e Terra, 1988. p.20.
3
Idem, p. 19.
4
MARQUESE, Rafael de Bivar. Ideologia imperial, poder patriarcal e o governo dos escravos nas Américas,
c. 1660-1720. Revista Afro-Ásia, Salvador, n. 31, p. 39-82, 2004.
5
LARA, Silvia Hunold. Legislação sobre escravos africanos na América portuguesa. Volume 1. Madrid:
Fundación Historica Tavera/Digibis, 2000. p. 27.
99

Assim, não é de se estranhar que a legitimidade do cativeiro africano pautada nas leis
divinas e no “direito natural” não causasse espanto entre as autoridades e a população letrada
ou não durante os primeiros séculos da colonização portuguesa. O governo dos escravos e as
obrigações de senhores e escravos foram incorporados ao debate a partir do século XVIII, a
exemplo dos tratados que buscavam justificar a incapacidade dos senhores em governar seus
escravos sob a suposição de que estariam afastados da moralidade católica.6 A ideia do
afastamento dos senhores da moralidade católica versada pelo padre jesuíta Jorge Benci, em
1700, procurava responder aos ataques que a Companhia de Jesus vinha sofrendo desde 1688,
quando questionada sobre a posse de escravos e a vasta quantidade de propriedades que
possuía, bem como a isenção do pagamento dos dízimos.7 Nesse sentido, esse suposto
afastamento dos senhores da moralidade católica era, na verdade, uma estratégia contra tais
questionamentos apontando falhas e erros dos senhores na administração dos escravos. Para
Charles Boxer, o tratamento dado aos cativos sofria variações consideradas naturais, e de
acordo com o caráter do senhor, isto é, se cruel o senhor castigaria o escravo, se bondoso teria
compaixão diante da punição do cativo. Além disso, a gravidade das punições era uma
extensão da vigilância dos feitores, que, segundo Boxer, eram “muitas vezes mulatos
disciplinadores e brutais”.8
Essas considerações sobre o exercício legítimo do cativeiro são fundamentais para
entendermos os abusos e maus-tratos senhoriais e sua relação com o estado de saúde dos
cativos. Naquele período, denúncias sobre a crueldade e a violência senhorial circularam pela
colônia. Embora o castigo fosse uma prerrogativa senhorial para disciplinar os cativos,
sempre que os senhores cruzavam os limites do que se entendia como castigo exemplar,
pautado por questões morais e religiosas, a coroa poderia intervir contra as atrocidades
cometidas nos domínios senhoriais. Segundo Lara, a coroa portuguesa dispunha de
mecanismos políticos, econômicos, jurídicos e sociais para manter o controle sobre os
colonos, nesse sentido, a administração da justiça e a manutenção da relação senhor-escravo
eram estratégias pautadas na continuidade do poder da coroa sobre senhores e escravos nas
suas relações pessoais. Assim, se por um lado o castigo era reconhecido como direito
senhorial, por outro a necessidade da coroa em controlar tal direito promovia um desequilíbrio

6
BENCI, Jorge. Economia cristã dos senhores no governo dos escravos (1700). São Paulo: Grijalbo, 1977;
MARQUESE, op. cit., p. 57.
7
MARQUESE, op. cit., p. 53-54.
8
BOXER, Charles R. A idade de ouro do Brasil: dores de crescimento de uma sociedade colonial. Tradução
de Nair de Lacerda. São Paulo: Companhia Editora Nacional, 1969. p. 31.
100

na relação senhor-escravo, abrindo brechas para questionamentos a respeito do poder


senhorial.9
Foi o que aconteceu com Úrsula, escrava, africana de nação congo, que em 1690
decidiu apelar à justiça régia para denunciar as perversidades de sua senhora, dona Ana
Cavalcanti. A denuncia de Úrsula mostra também que havia por parte do rei de Portugal D.
Pedro II outros receios e medos evidenciados em carta régia do dia 11 de janeiro de 1690,
principalmente caso a senhora se saísse vitoriosa em relação à queixa apresentada por Úrsula,
por isso, tentando evitar possíveis represálias, ordenou que a suplicante fosse vendida.10
As autoridades reinóis também discutiram sobre o comportamento dos senhores na
capitania da Bahia. Em carta régia de 20 de março de 1688, sua Majestade informava ter
conhecimento da crueldade e dos maus-tratos praticados pelos proprietários de escravos, que
“não é lícito aos senhores dos tais escravos, porque só lhes podem dar aquele moderado
castigo que é permitido pelas leis”. Assim, buscando evitar a vingança dos senhores e a fuga
dos castigados, o monarca estabeleceu que nesses casos os cativos deveriam ser vendidos pelo
preço justo a “pessoas que lhes deem bom trato”.11 Em 23 de março de 1688, el-rei enviou
outra carta régia novamente informando conhecer os abusos dos senhores de escravos que
“castigam com crueldade, excedendo aquela moderação que é permitida aos senhores quando
castigam aos escravos”. O soberano ordenava que se chegasse ao conhecimento do
governador o excesso de punições por parte do senhor, o escravo castigado deveria ser
vendido, porém, a notícia de que o senhor estaria sendo punido pelos maus-tratos não poderia
se espalhar entre a população escravizada para se evitar arguições contra os senhores.12 Em
1689 o monarca revogou as leis anteriores, afirmando que tal medida era necessária, pois no
seu entender as ordens provocaram em suas palavras “inconvenientes que de sua execução
resultavam ao meu serviço e à conservação desse Estado”. E como as ordens eram de
conhecimento da população escrava D. Pedro I solicitou que a revogação das leis fosse
comunicada aos escravizados.13

9
LARA, op. cit., 1988, p. 36-66.
10
Arquivo Público do Estado da Bahia, Seção Colonial, Ordens Régias, vol. 1, doc. 56 (Carta do rei de
Portugal ao governador geral do Brasil, de 11 de janeiro de 1690). Silva Junior cita esse e outros
episódios em que a coroa interviu nas ações senhoriais contra seus escravos, cf. SILVA JUNIOR, Carlos
Francisco da. Identidades Afro-Atlânticas: Salvador, século XVIII (1700-1750). 2011. Dissertação
(Mestrado em História Social) – Faculdade de Filosofia e Ciências Humanas, Universidade Federal da Bahia,
Salvador, 2011.p. 36.
11
Carta régia a Matias da Cunha, governador geral do Brasil, de 20 de março de 1688 apud LARA, op. cit.,
2000, p. 198.
12
Carta régia de 23 de março de 1688 apud LARA, op. cit., 2000, p. 199. SOUZA, op. cit., 2010, p. 141.
13
Carta régia de 23 de fevereiro de 1689, apud LARA, op. cit., 2000, p. 201.
101

Apesar disso, no ano seguinte 1690, D. Pedro I voltou atrás na sua decisão e
reafirmou as leis de 20 e 23 de março de 1688 e pôs em prática a lei da escrava citada. A
crueldade dos senhores contrariava as leis, principalmente contra a caridade ao próximo. Por
isso, não causa estranheza o posicionamento de el-rei sobre a denúncia apresentada à justiça
régia por Úrsula, afinal enquanto cabeça do corpo social, o rei deveria cuidar de todos os
vassalos do seu Império e isso, incluía os escravos.14
A coragem em denunciar o mau tratamento dos senhores à justiça muitas vezes
salvava a vida do escravo duramente castigado. E foi certamente a coragem de José Ferreira
Vivas que trouxe a público a crueldade do homem mais rico da Bahia no terceiro quartel do
século XVIII, Garcia d’Ávila Pereira de Aragão. Segundo Luiz Mott, Garcia d’Ávila era um
Mestre de Campo do Recôncavo que conseguiu fortuna e prestígio na Bahia, tendo sido
acusado e levado ao Tribunal do Santo Ofício pelas torturas e heresias que cometia. Dos 47
itens citados pelo denunciante José Ferreira Vivas, que provavelmente era próximo do
acusado, 26 faziam referência a torturas e castigos cruéis contra seus escravos e 21
mencionavam sacrilégios e blasfêmias contra a Santa Igreja católica.15
O item 5, por exemplo, descreve uma das várias torturas praticadas pelo Mestre de
Campo contra um escravo mestiço de aproximadamente 30 anos, chamado Caetano. De
acordo com o relato, Caetano havia sido pego tocando uma rabeca e amarrado em uma cama-
de-vento. Suspenso no ar pelas pernas e braços, ele fora açoitado durante dois dias e, em
seguida, levado às correntes com uma argola no pescoço. No terceiro dia, ainda acorrentado,
fora deixado nu sobre o sol, sem comida nem bebida. À noite, Caetano havia sido tirado das
correntes e levado para a senzala, escapando com vida da perversão do seu senhor devido aos
cuidados que recebera de suas duas tias.16
Relatos como este que revelam a brutalidade dos senhores no tratamento dos seus
escravos, apesar de chocantes, são importantes para compreendermos o lugar do cativo na
sociedade colonial e como os maus-tratos contribuíram para que em alguns casos os escravos
sadios passassem para a condição de aleijado ou incapaz. Mas, qual era o lugar social do
escravo em uma sociedade do Antigo Regime? Antônio Manuel Hespanha e Ângela Barreto
Xavier, ao dissertarem sobre a arquitetura do poder no Império português, analisaram o
processo de idealização do poder centralizado na figura do soberano, a partir da

14
HESPANHA, Antônio Manuel; XAVIER, Ângela Barreto. A representação da sociedade e do poder. In:
MATTOSO, José (Org.). História de Portugal. O Antigo Regime (1620-1807), v. 4. Lisboa: Editorial
Estampa, 1993. p. 121-155.
15
MOTT, Luiz. Bahia: inquisição & sociedade. Salvador: EDUFBA, 2010. p. 67-68.
16
Idem, p. 76-77.
102

transformação do monarca em cabeça do Estado e dos corpos sociais. Desse modo, ao ocupar
essa posição cabia ao rei elaborar as leis e conceder privilégios e obrigações aos seus
vassalos.17 Nesse sentido, essa sociedade compreendia um corpo orgânico composto por
categorias reputadas naturalmente como desiguais, ou seja, uma estrutura social hierarquizada
em que cada grupo possuía direitos, privilégios e obrigações.18
Partindo destas considerações, a integração dos escravos no Império português dava-
se por intermédio de um estatuto que legitimava a escravidão e determinava a sua condição de
mercadoria e propriedade perante a sociedade. Conforme considerou Hebe Maria Mattos,

Para que a concepção corporativa da sociedade predominante no Império


português pudesse informar os quadros mentais e sociais de sua expansão,
era necessária a existência prévia (ou a produção) de categorias de
classificação que determinasse a função e o lugar social dos novos
conversos, fossem mouros, judeus, ameríndios ou africanos.19

Nesse sentido, a escravização dos povos africanos possibilitava a sua incorporação ao


Império, funcionando como uma engrenagem. Em outras palavras, a escravidão dos africanos
era como uma camada em movimento que transitava do paganismo para o corpo social da
cristandade. Assim, o lugar que o africano escravizado e seus descendentes ocupavam nessa
sociedade do Antigo Regime era o de bem particular, mas mesmo como propriedade do
senhor o escravo não deixava de ser parte desse corpo social, do qual o monarca como cabeça
do Estado deveria atender às suas solicitações em nome da ordem e das boas relações entre os
seus vassalos. Por isso, o objetivo de leis como a lei de arqueação discutida no capítulo I, e as
leis de 20 e 23 de março de 1688, que obrigavam o senhor a vender o cativo quando existia a
denuncia de maus-tratos, além de procurar preservar a vida do escravo tinha o objetivo de
evitar fugas, desordens e o prejuízo ao bem comum. Todavia, os maus-tratos não se resumem
apenas às punições senhoriais, eles estavam relacionados também às condições de trabalho
oferecidas a esses escravos, que muitas vezes perdiam um dedo ou uma mão entre um serviço
e outro.

17
HESPANHA, Antônio Manuel; XAVIER, Ângela Barreto. op. cit., 1993.p. 121-155.
18
LIMA, Priscila de. De libertos a habilitados: interpretações populares dos alvarás anti-escravistas na
América portuguesa. Dissertação (Mestrado em história) – Universidade Federal do Paraná, 2011. p. 2.
ALMEIDA, Kátia Lorena Novais. Valer-se da autoridade do trono para obter sua liberdade: fuga e
alforria - Bahia e Lisboa, 1761-1804. REVISTA DE HISTÓRIA JCR, v. 1, p. 1-43, 2020.p. 3.
19
MATTOS, Hebe. A escravidão moderna nos quadros do Império português: O Antigo Regime em perspectiva
atlântica. In: BICALHO, M. F; FRAGOSO, J; GOUVÊA, M. F. (Org.). O Antigo Regime nos trópicos: a
dinâmica imperial portuguesa (séculos XVI-XVIII). Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, 2001. p. 153.
103

Assim, o objetivo deste capítulo é analisar como o trabalho e os maus-tratos senhoriais


contribuíram para a condição do escravo incapaz ou aleijado em cativeiro, uma vez que eram
frequentes as queixas e denúncias levadas à justiça reinol por escravos que sofriam com os
abusos e maus-tratos cometidos pelos senhores. Os escritos da época, principalmente os dos
padres jesuítas Jorge Benci, Economia Cristã dos senhores no governo dos escravos (1700), e
André João Antonil, Cultura e opulência do Brasil (1711), apontavam a incapacidade dos
senhores no governo dos escravos, devido ao seu afastamento da moralidade católica fundada
nas obrigações recíprocas entre o senhor e seus dependentes.20 E para que o leitor compreenda
a nossa escolha em analisar separadamente as doenças e os aleijões, faz-se necessário
entender o conceito e a definição do termo aleijão para o período estudado.
O termo aleijo ou aleijão vem do verbo aleijar e o seu significado está associado aos
termos estropiar, mutilar, lesar e deformar. Segundo Bluteau, o termo “alejão” estava
associado a lesões nos membros do corpo que os tornavam defeituosos, enquanto o termo
“alejar” associava-se ao ato de fazer ou provocar um “alejão” em algum membro do corpo. 21
Outra classificação empregada pelo dicionarista que merece cuidado diz respeito à palavra
“incapaz”, que aparece com frequência nos inventários indicando a incapacidade física dos
cativos. Em Bluteau, essa palavra está relacionada à inépcia nas letras e à falta de habilidade
no campo da aprendizagem. Buscamos ainda nos manuais de medicina douta e não
encontramos referência ao termo manco, que somente aparece nas Ordenações Manuelinas e
Filipinas, sem nenhuma interpretação.22
Contudo, observando o que se tem escrito sobre as fraturas no Erário Mineral (1735),
chegamos à conclusão de que os aleijos estavam associados também a fraturas e feridas que
podiam provocar a perda de um membro do corpo. O cirurgião Luiz Gomes Ferreira, além de
associar os aleijos às fraturas também reconheceu as lesões provocadas por acidentes nas
minas como causa dos aleijos. Entretanto, o escravo poderia ficar aleijado em virtude da
mordida de uma cobra, tumores nos membros do corpo e também se doenças como as boubas
não fossem tratadas de maneira adequada.23 A noção de aleijo proveniente das quebraduras e
dos ferimentos no corpo indica sua relação com o trabalho. Entretanto, a historiografia recente
tem levado em consideração outra vertente para explicar o sentido e o que provocava os

20
MARQUESE, op. cit., p. 41-54.
21
BLUTEAU, Raphael. Vocabulário português & latino: aulico, anatomico, architectonico. Coimbra:
Collegio das Artes da Companhia de Jesus, 1712-1728. 8 v. Disponível em:
http://dicionarios.bbm.usp.br/ptbr/dicionario/edicao/1. Acesso em Julho de 2021.p.233.
22
Cf. LARA, op. cit., 2000, p. 56-57.
23
FERREIRA, op. cit., 1735, p. 631-632, 640-641, 666-667, 763-764, 830-831, 960.
104

aleijos. André Nogueira, por exemplo, apresenta um caso interessante para pensarmos o
aleijo. Segundo o autor, uma escrava de nome Joana havia ficado surda, cega e aleijada em
virtude dos feitiços que Isabel e seus dois filhos, Catarina e Isidoro, lançaram contra ela.24 O
caso mencionado por Nogueira mostra como na sociedade colonial a vida, a doença, as
condições do corpo e a morte eram também relacionadas à feitiçaria e ao sobrenatural. Assim,
não podemos esquecer que algumas incapacidades ou “defeito de nascença”, a exemplo da
cegueira, acompanhavam o escravo por toda vida. Portanto, neste capítulo, serão separadas e
estudadas as incapacidades e aleijos congênitos ou provocados pelos maus-tratos senhoriais.
Antes disso examinaremos o perfil de escravos aleijados e incapazes.

Perfil da escravatura aleijada de Salvador e do Recôncavo

No capítulo anterior foram analisados os escravos doentes, e em certa medida os


aleijados ou incapazes arrolados nos 33 inventários post-mortem de senhores de escravos de
Salvador e do Recôncavo na primeira metade do século XVIII. E para compreendermos a
distribuição dos cativos que possuíam algum “defeito de nascença” ou a falta de um membro
do corpo dentro das escravarias, dividimos-as por décadas, conforme a Tabela 6:

Tabela 6 – Distribuição dos escravos aleijados e incapazes,


Salvador e Recôncavo, 1700-1750

Ano Inventários Quantidade %


1700 1 1 2,32
1701-1710 1 10 23,25
1711-1720 3 3 6,97
1721-1730 - - -
1731-1740 4 4 9,30
1741-1750 7 25 58,16
Total 16 43 100%

Fonte: Arquivo Público do Estado da Bahia, Seção Judiciária, 33 inventários post-mortem de Salvador (1700-1750).
(Doravante: APEB, SJ).

24
NOGUEIRA, André Luís Lima. Entre cirurgiões, tambores e ervas: calunduzeiros e curadores ilegais em
ação nas Minas Gerais (século XVIII). 2013. Tese (Doutorado em História das Ciências e da Saúde) – Casa
de Oswaldo Cruz, Rio de Janeiro, 2013.p. 155.
105

Os dados extraídos de 16 inventários post mortem indicam que 23,25% de escravos


aleijados e incapazes correspondem ao período entre 1701 e 1710, enquanto para os anos de
1741 e 1750 o percentual é de 58,16%. Percebe-se também que para as demais décadas os
números sofreram poucas variações. Em 1700, o índice era apenas de 2,32%, entre 1711 e
1720 os aleijados e incapazes somam 6,97% e, para os anos de 1731-1740, temos 9,30%. Já
para o intervalo 1721-1730 não encontramos registros de cativos sob essa condição.25
Conforme já discutido no capítulo 2 as ocupações dos cativos doentes em Salvador
concentravam-se nos serviços de transporte (25%) e nos ofícios mecânicos (32,14%). No que
a documentação deixa entrever para os aleijados percebe-se uma disparidade entre ocupações
identificadas e não identificadas. Dos 29 escravos registrados como aleijados, apenas três
tiveram suas ocupações assinaladas na documentação um pedreiro, outro carregador de rede e
o último era sapateiro. Assim, os serviços listados somam 10,32%, enquanto os não
identificados perfazem 89,68%, sendo que dentro desse percentual 48,28% e 51,72% dos
cativos viviam em Salvador e no Recôncavo, respectivamente. Além disso, entre os 29 cativos
incapazes, 9 pertenciam à escravaria do já conhecido João Lopes Fiúza e 6 eram da escravaria
de Francisca de Sande. Nesse sentido, podemos considerar inicialmente que os aleijados,
incluindo aqueles cujas ocupações não foram identificadas nos inventários, dedicavam-se
principalmente às atividades laborais rurais como taxeiro, carreiro, serviço da roça, caldeiro,
escravo do engenho e oficial do açúcar.26
Entre os que encontramos informação sobre o ofício, Miguel, benin, era pedreiro e
foi avaliado como “defeituoso de um braço”, e por se encontrar fugido não recebeu nenhum
valor. Assim, se levarmos em consideração que as Ordenações previam a devolução do
escravo africano doente ou manco, seria difícil para os comerciantes de escravos assumirem a
responsabilidade de transportar os que possuíam aleijões e, como Miguel era africano
podemos afirmar que ele não nasceu com o “defeito” no braço, pois, dificilmente diante da
sua condição seria transportado e vendido na Bahia. Entretanto, devido a sua ocupação, uma
atividade que exigia grande esforço físico, é possível que ele tenha lesionado o braço
enquanto trabalhava27 É possível que o mesmo tenha acontecido ao carregador de rede
Caetano, de nação mina, escravo de dona Josefa Maria da Silva, falecida em 1743. Ele era
incapaz, faltava-lhe o olho esquerdo e, ao ser inventariado não recebeu valor algum.

25
APEB, SJ, 33 inventários post-mortem de Salvador (1700-1750).
26
Idem.
27
APEB, SJ, Inventário post-mortem de João Lopes Fiúza (1741), 04/1571/2040/05.
106

Já o caso de Caetano requer atenção, pois sua senhora possuía outros dois escravos
africanos de nação mina, Pedro e Luís, ambos sem o olho esquerdo.28 Ao descrever a
condição dos cativos, o escrivão usou o termo “falto”, que segundo Bluteau denotava carência
e necessidade de prudência e forças, mas também “defeituoso”. 29 Assim, por um lado é
possível que os cativos tenham nascido com uma deficiência congênita e isso explicaria o
“defeito” no olho. Por outro lado, esse “falto do olho esquerdo” que acometeu três cativos de
uma mesma escravaria pode estar associado aos maus-tratos. Nesse sentido, outra questão que
merece ser considerada nessa possibilidade de doença e falta de préstimo para o serviço, como
resultado dos maus-tratos senhoriais, é o fato de que Caetano, Pedro e Luís eram faltos do
mesmo olho, o esquerdo, e se o “defeito” no olho fosse congênito dificilmente os três
escravos perderiam o mesmo olho, por isso, é possível que a incapacidade dos cativos tenha
sido provocada pelo mau tratamento dado pela senhora.
Teria Caetano sido mutilado pelo senhor? Ou teria sido dona Josefa Maria da Silva
que o castigou após a viuvez? Proprietária de 16 escravos, escravaria acima da média para os
padrões da Cidade da Bahia, onde era comum os senhores possuírem entre 5 e 10 escravos,
talvez dona Josefa tenha encontrado dificuldades na administração e no controle dos seus
cativos que se dedicavam ao serviço de casa e ao ganho. Essa dificuldade na administração
dos cativos pode ser compreendida através da relação senhor e escravo, muitas vezes
construído a partir do medo, do respeito, da crença na inviolabilidade da vontade senhorial e
em alguns casos por meio de um jogo mútuo de afinidades e interesses. Em contrapartida,
Lara, observou que para a Metrópole o controle social da colônia através da relação senhor-
escravo significava como dito em linhas anteriores, a manutenção da dominação da coroa
sobre os colonos, no entanto, para os senhores de escravos essa relação era uma forma de dar
continuidade ao domínio senhorial sobre os escravos.30
Para o padre jesuíta Jorge Benci, a continuidade do domínio senhorial se dava por
intermédio das obrigações recíprocas entre senhor-escravo, assim, era responsabilidade do
senhor dar aos seus servos trabalho, sustento e castigo. Sobre os castigos aplicados pelos
senhores o jesuíta afirmou que,

Deixar o senhor viver o escravo à sua vontade, e por mais desordens que
faça, dar tudo por bem feito ou (quando muito) passar com uma repreensão,
é dar-lhe atrevimento, para que se arroje a todo gênero de pecados; pois

28
APEB, SJ, Inventário post-mortem de Josefa Maria da Silva (1743), 7/3195/1.
29
BLUTEAU, op. cit.
30
LARA, op. cit., 1988. p. 36.
107

nenhuma coisa aos homens dá mais ousadia para delinquirem e soltarem a


rédea aos vícios, do que saberem que não hão de ser castigados seus
delitos.31

Assim, para o jesuíta o castigo exemplar coibia a delinquência e os vícios.


Considerando que a maioria das mulheres proprietárias somente assumiam os negócios,
inclusive a administração dos seus escravizados quando no estado de solteiras ou viúvas
naquela sociedade patriarcal, deparavam-se muitas delas com a resistência dos escravos.
Partindo da hipótese de que o “defeito no olho” que acometeu os cativos tenha sido
provocado pelo mau tratamento, é possível que a falta de respeito e desobediência de Caetano,
Pedro e Luís após a morte do senhor tenha induzido dona Josefa Maria da Silva a exercer o
poder disciplinador, castigando-os como forma de advertência. Isso não quer dizer que os
escravizados não resistissem às arbitrariedades dos senhores, pelo contrário, a resistência
sempre existiu, ainda que a figura do senhor em uma sociedade patriarcal tivesse um peso
maior sobre os cativos, nesse sentido, talvez os cativos tivessem perdido o olho por ação do
senhor, marido de Josefa. Os senhores poderiam também castigar com mais crueldade do que
as senhoras, como é o caso do já conhecido Garcia d’Ávila. Entretanto, até que ponto o
castigo era incontestável?
O castigo era um direito e quase uma obrigação prevista na lei quando o escravo
fugia, deixava de trabalhar ou violava as regras impostas pelo senhor. Mas, existiam diante da
lei os limites para controlar a mão dura do senhor e impedir que ele ultrapassasse as fronteiras
que separavam a punição exemplar da dos maus-tratos. O limite imposto pela legislação era
muitas vezes ignorado, os senhores surravam, deixavam acorrentados sob o sol, sem comida
nem bebida, e ainda negavam ao castigado auxílio médico para a cura das chagas e feridas
que se espalhavam pelo corpo.32 Dona Josefa Maria da Silva, por ser mulher em uma
sociedade patriarcal, queria dos seus escravos o mesmo respeito que eles ofereciam ao seu
falecido marido e, buscando a estima dos seus subordinados, talvez não tenha encontrado
alternativa a não ser o uso da força, rompendo com todas as fronteiras do castigo exemplar.
Segundo Lara, a punição exemplar era uma maneira de garantir o controle senhorial a partir
do exercício de reativação do poder que era efetivado com o castigo.33 Assim, quando puniu e

31
BENCI, op. cit., p. 127.
32
Cf. LARA, op. cit., 1988. p. 57-72.
33
Idem, p. 85-86.
108

deixou falto do olho esquerdo Caetano, Pedro e Luís dona Josefa buscava por meio do castigo
a reafirmação do seu poder sobre seus escravizados.34
Retomando a busca pelo perfil dos escravos aleijados, e seguindo a metodologia de
Schwartz proposta no capítulo anterior, considerei crioulinho, de peito e moleque, como
criança; moço, maior e de maior, como jovem; velho, muito velho e com mais de 60 anos,
como idoso.35
Entre os 29 cativos registrados, observa-se que em grande quantidade dos registros
(15) não foram reveladas as respectivas idades dos cativos, 51,74%. Entre aqueles cuja faixa
etária aparece registrada (7), 24,13% eram idosos, os jovens (5) somavam 17,24% e as
crianças (2) chegaram ao índice de 6,89%.36 Todavia, mesmo com essa superioridade das
idades não identificadas, acreditamos que entre os aleijados e incapazes havia uma vantagem
dos idosos sobre os jovens, isso porque, segundo as Ordenações Manuelinas e Filipinas, em
casos de doenças, o senhor tinha o direito de enjeitar o seu escravo apenas se comprovasse
que o mesmo havia sido vendido doente ou estivesse manco.37 Nesse sentido, e levando em
conta que 51,72% dos cativos aleijados e incapazes eram do Recôncavo, é possível considerar
que muitos tenham chegado a essa condição enquanto trabalhavam na manutenção dos
engenhos ou no corte da cana-de-açúcar. Os cativos não poderiam ser rejeitados de acordo
com as referidas Ordenações, ou seja, deveriam ficar sob os “cuidados” dos senhores até a
morte, embora nem sempre a prática social seguisse a norma.
Outro indicativo dessa possível estabilidade entre os aleijados idosos e os mais
jovens torna-se evidente quando examinamos os valores destinados a cada escravo. Segundo
Souza, durante o curso do século XVIII os preços cobrados pelos cativos recém-chegados
passaram por um momento de elevação tornando comum que fossem cobrados de 170$000
até 200$000 por um escravo africano. De acordo com a autora, entre 1700-1725 o preço
médio cobrado por um escravo do sexo masculino era de 90$884 e para uma escrava do sexo
feminino 80$410, entre 1726-1750 o escravo custava em média 85$613 e a escrava 76$264.
A autora estabelece ainda a base média para tais preços, assim, entre 1700-1750 a média de
preço para um escravo era de 86$169 e para uma escrava 74$995. 38 Desse modo, com base
nos preços arrolados para os cativos avaliados nos 33 inventários que compõe esta amostra,

34
APEB, SJ, Inventário post-mortem de Josefa Maria da Silva, 1743, 7/3195/1.
35
SCHWARTZ, op. cit., 1988, p. 286-288.
36
APEB, SJ, inventários post-mortem de Salvador (1700-1750).
37
LARA, op. cit., 2000, p. 56-100.
38
SOUZA, op. cit., 2010. p. 36-96.
109

buscamos identificar as idades dos escravos que não foram registradas pelo escrivão no
momento da avaliação dos bens.
Simão benguela, escravo da fazenda e engenho de dona Francisca de Sande, por
exemplo, “teve a mão direita levada pela moenda”. Sua condição estava diretamente
associada ao trabalho no engenho e sua avaliação fixada em 50$000 deixa transparecer a
possibilidade de Simão ter perdido a mão na moenda quando era jovem. Caso contrário,
receberia um valor inferior como aconteceu com Lourenço, escravo da mesma escravaria, que
não era doente nem aleijado, mas, por ser idoso, foi avaliado em 30$000. Já Domingos teve
dois dedos da mão direita cortados e Manoel era aleijado do braço direito. Ambos foram
avaliados em 70$000, eram jovens e se considerarmos que trabalhavam no engenho,
provavelmente a condição de aleijado veio de um descuido no manuseio da moenda ou do
facão enquanto cortavam a cana-de-açúcar. Schwartz observou que o trabalho nos tambores
do engenho além de repetitivo exigia dos escravos habilidade e atenção, pois, qualquer
descuido no processamento da cana, fosse na velocidade ou na quantidade adequadas para
moenda, causaria a quebra dos tambores ou um acidente de trabalho, assim, o cativo poderia
facilmente ter a mão arrancada ou até ser sugado pela máquina.39 Assim, levando em
consideração que na época da safra o trabalho no engenho era realizado de forma ininterrupta,
ou seja, não parava e dividia-se em turnos, imagine-se que os cativos podiam ter jornadas de
12 a 16h de trabalho e a exaustão física favorecia a ocorrência de acidentes. O uso da enxada
e da foice nos canaviais era um trabalho árduo e contínuo, começava cedo e terminava tarde.
Exigia-se do escravo que cortasse uma determinada quantidade de cana que, segundo
Schwartz, no final do século XVII, eram sete mãos de cana por dia de trabalho. Assim, “cada
mão consistia de cinco dedos, cada dedo continha dez feixes e cada feixe dose canas. Portanto
a cota diária era de 7 mãos x 5 dedos x 10 feixes x 12 canas, ou seja, 4.200 canas no total”.40
A situação se repetia quando os escravos eram designados para o serviço de corte de
lenha para fornalhas e caldeiras, havia uma cota a ser alcançada diariamente onde cada cativo
era responsável por aproximadamente 725 quilogramas de lenha. A jornada e a própria
natureza do trabalho foram fatores determinantes na vida dos escravos, principalmente nas
fazendas e engenhos de cana-de-açúcar. No mundo do trabalho, os cativos eram mal
alimentados, mal amparados e mal vestidos, além disso, um único escravo poderia
desempenhar mais de uma função na propriedade do senhor e ainda, no período da safra, o

39
SCHWARTZ, op. cit. 1988. p. 131.
40
Idem, p. 129.
110

trabalho no engenho era estendido durante a noite tirando do escravo as suas poucas horas de
descanso. Assim, conforme observou Schwartz,

Além dos serviços “normais” de um dia na plantação, os escravos eram


obrigados a construir cercas e outras benfeitorias, cavar fossos, preparar
mandioca e outras tarefas diversas. Esses serviços extras, conhecidos como
“quinguingu”, poderiam aumentar em mais quatro a oito horas o dia de
trabalho.41

As múltiplas atividades laborais atribuídas aos cativos e a longa jornada de trabalho


contribuíram para o os diversos acidentes durante a execução do trabalho, sobretudo nas
lavouras e nos engenhos. Assim, se voltarmos aos casos de Simão, Manuel e Domingos,
escravos da fazenda de dona Francisca de Sande, e supondo que os dois primeiros eram
ocupados no manuseio dos feixes de cana que eram processados na moenda, é possível que
ambos tenham sido vitimados por acidentes no serviço. O mesmo pode ter ocorrido com
Domingos que, provavelmente, cortou os dedos enquanto cortava a lenha para as fornalhas ou
a cana para o engenho. Além disso, a partir das observações de Schwartz sobre os afazeres
que provocavam acidentes, compreende-se que o descuido na moenda, por exemplo, envolvia
outros fatores, ou seja, o cativo passava a maior parte do dia trabalhando de sol a sol, sem
alimento suficiente e tampouco condições necessárias para a preservação da sua saúde,
extenuado pela excessiva carga de trabalho ao longo do dia e, muitas vezes, adentrando a
noite, e, privado das horas de descanso necessárias, retornava para moenda com fome, sono e
exausto. Essas condições certamente deixavam o escravo desatento aos movimentos dos
tambores que carecia de habilidade e atenção, assim, não é difícil imaginar que qualquer
descuido provocaria a perda de um membro do corpo ou até a morte do cativo, caso esse fosse
levado pela moenda.
Voltando aos cativos de dona Francisca, ela certamente não teria ficado com
Domingos e Manuel, caso estivessem doentes ou apresentassem sinais de manqueira no
momento da compra, uma vez que as Ordenações Filipinas asseguravam ao senhor a
devolução do escravo caso este fosse vendido doente ou manco. Dessa forma, possivelmente
o aleijo no braço de Manuel e a ausência dos dedos em uma das mãos de Domingos, estavam
associados ao trabalho executado na fazenda.42

41
Ibidem, p. 129.
42
APEB, SJ, Inventário post-mortem de Francisca de Sande (1702), 01/199/351/01.
111

Em outra situação, os valores atribuídos aos cativos podem nos ajudar a identificar a
sua faixa etária. Félix, jeje, e Miguel, benin, eram escravos do engenho de João Lopes Fiúza.
Félix era “quebrado do braço e incapaz”, enquanto Miguel ocupava a função de pedreiro e era
“defeituoso de um braço”. Ambos não receberam valor quando da avaliação dos bens pelos
herdeiros, possivelmente devido às suas idades avançadas. Esse aspecto merece ser
considerado, pois, quase todos os escravos do sexo masculino classificados como velhos ou
muito velhos na escravaria de João Lopes Fiúza não receberam nenhum valor em suas
avaliações, assim, podemos considerar que Félix e Miguel eram idosos. Isso porque
identificamos a partir da análise do inventário que os idosos aleijados seguiam um padrão
baseado no estado de saúde dos cativos. Aleijados e incapazes, na escravaria de Fiúza, de
modo geral não recebiam nenhum valor no momento da avaliação. Acreditamos que isso
tenha acontecido porque como idosos e aleijados eles não teriam nenhum préstimo para os
herdeiros. Encontramos ainda nessa escravaria outros exemplos em que a idade pode ser
determinada pelo valor atribuído ao cativo em inventário. Marcos, calabar, era aleijado de um
pé, coxo e foi avaliado em 25$000. Miguel angola, “camboio das pernas”, era escravo de casa
e foi apreciado em 30$000 e Paulo trocado que também era angola e recebeu o mesmo valor
era “aleijado de um dedo da mão direita”. Em todos os exemplos, percebe-se que o valor dado
a cada escravo era determinado pelo estado físico de saúde e pela idade de cada escravo.
Raphael, jeje, por exemplo, era “falto de um olho”, mas, em sua avaliação, consta a quantia de
120$000, isto é, ele era um escravo jovem que apesar de sua deficiência recebeu valor
equivalente à função que exercia no engenho. 43
Com a análise dos valores o número de idosos tem um aumento de sete registros para
treze, o mesmo acontece com os jovens que sobem de cinco para dez, a quantidade de
crianças se mantem (2), e aqueles que não tiveram suas idades listadas na documentação
sofrem uma queda de quinze para quatro. Assim, ao colocarmos em perspectiva os valores
atribuídos aos escravos com a idade, verificamos que 44,82% de cativos aleijados ou
incapazes eram idosos, 34,48% jovens e 6,91%, eram crianças, designadas como crioulinhos,
já aqueles cuja faixa etária não foi registrada na documentação, e que na análise anterior
representavam 51,74% dos aleijados agora com a introdução dos valores, somam apenas
13,79%.44 Até aqui as ocupações e a faixa etária dos cativos aleijados e incapazes nos
permitiram traçar um perfil que se direciona, assim como no capítulo anterior, para os

43
APEB, SJ, Inventário post-mortem de João Lopes Fiúza (1741), 04/1571/2040/05.
44
APEB, SJ, 33 inventários post-mortem de Salvador (1700-1750).
112

escravos que desenvolviam principalmente atividades no Recôncavo. Mas, será que os


resultados até aqui analisados sofreriam alterações com a introdução das escravas aleijadas
nesse cenário?
Observei durante a análise dos inventários que apenas uma entre quatorze escravas
avaliadas como aleijadas teve a sua ocupação registrada em inventário. Leonor, mina, era
escrava de Manoel Soares Moreira, morador na “Praia da Cidade”, também conhecida como
Conceição da Praia ou simplesmente Praia, localizada na Cidade Baixa. Ao falecer, Manoel
Soares Moreira deixou 16:467$191 em moradas de casas de pedra e cal em frente ao Forte de
São Francisco e nove escravos que se dividiam entre o serviço de casa e o ganho. Devido ao
péssimo estado de conservação do documento, só foi possível verificar a partilha dos bens.
Leonor mina, era cozinheira e foi descrita em sua avaliação como “aleijada do pé esquerdo”.
Apesar da sua ocupação supostamente não exigir muito esforço físico, podemos supor que o
aleijo de Leonor tenha sido provocado pelas condições de trabalho as quais ela era submetida,
pois, é importante ressaltar que a escravaria de Manoel Soares Moreira, dedicava-se aos
serviços domésticos e ao ganho e, que talvez Leonor ocupasse outra função na escravaria
quando se machucou e ficou aleijada, é possível ainda que Leonor tenha sido castigada em
razão de uma fuga e o aleijo a marca deixada pelo senhor para que ela se lembrasse da sua
condição. Moreira teve ainda outro escravo registrado como aleijado: Caetano, moleque de
nação angola, encontrava-se “falto do dedo mínimo do pé esquerdo”. Assim como Leonor,
Caetano provavelmente perdera o dedo enquanto trabalhava ou em razão da aplicação de
algum castigo. Afinal, ele era jovem, provavelmente recém-chegado de Angola, e,
inconformado com o cativeiro, rebelou-se e teve seu dedo decepado.45
Entre as escravas cujas ocupações não foram identificadas (92,89%), encontramos
35,71% registradas como aleijadas que pertenciam a senhores de escravos de Salvador,
enquanto 64,29% eram do Recôncavo. Desse modo, podemos considerar que, entre aleijados
e aleijadas, havia uma predominância daqueles que viviam no Recôncavo e que,
provavelmente, desempenhavam suas atividades laborais nas roças de gêneros alimentícios,
nas plantações de fumo, nas lavouras de cana-de-açúcar e nos engenhos.
A dificuldade em identificar nos inventários a faixa etária não se faz tão presente
quando se trata das escravas. Apenas 4 das cativas (28,57%) não tiveram suas idades
registradas na documentação, diferente do resultado que encontramos para os escravos
(51,74%). O percentual para as jovens é idêntico ao cálculo anterior (28,57%), enquanto as

45
APEB, SJ, Inventário post-mortem de Manoel Soares Moreira, 1747, 04-1586-2055-01.
113

idosas (6) somam 42,86%.46 A partir de algumas informações sobre as escravarias, buscamos
identificar a idade das escravas agrupadas na categoria não identificada com o objetivo de
descobrir alguma variação nos resultados.
É através da avaliação que podemos supor a idade de algumas escravas. Caterina,
coara, descrita na documentação como cega e avaliada em 10$000 era escrava de Jacinto
Ferreira Feio de Faria (1741), pequeno proprietário de escravos que foi também vereador do
Senado da Câmara de Salvador, ou seja, um senhor de prestigio naquela sociedade, e o monte
mor dos seus bens foi avaliado em 4:868$728. Faria possuía dez cativos que se ocupavam dos
serviços de transporte e ofícios mecânicos. Caterina, coara, não teve sua ocupação arrolada na
documentação, tampouco sua idade, mas sua cegueira nos leva a acreditar que era uma
escrava idosa.47
Entre as cativas cujas idades não foram determinadas no inventário de João Lopes
Fiúza (1741), identificamos Elena, escrava do engenho São Pedro de Pararipe, que em sua
avaliação foi reconhecida como aleijada, e, por isso, avaliada em 20$000 mil réis. Seu aleijo
adveio do árduo trabalho no engenho que, assim como em outros ambientes, necessitava de
certa destreza para ser desenvolvido. Afinal, um movimento errado poderia facilmente
arrancar uma mão, o que provavelmente aconteceu com Elena, descrita na documentação com
“falto da mão direita”. Assim como nos casos anteriores, usaremos algumas informações para
definir a idade de Elena. Até aqui sabemos que a cativa de João Lopes Fiúza perdeu uma mão
na moenda, mas outro detalhe importante para essa investigação é que ela era casada com
Bartolomeu, escravo do mesmo senhor e doente de asma. Bartolomeu foi descrito como velho
no inventário e avaliado em 25$000. Assim, a partir das informações sobre seu marido,
podemos considerar que Elena fazia parte do grupo de escravas aleijadas idosas e,
provavelmente, perdeu sua mão quando ainda era jovem. Entretanto, havia também a
possibilidade de Elena ser mais jovem do que o seu marido, mas diante do valor que lhe foi
atribuído no inventário, baixo em comparação ao que foi avaliado para outros cativos,
acreditamos que ela era idosa. Outro exemplo da mesma escravaria é Júlia, crioula que
possuía um “defeito no olho” e que devido ao seu trabalho no engenho foi avaliada em
50$000. Como mencionado anteriormente, havia um padrão na escravaria de João Lopes
Fiúza, escravos e escravas idosos e aleijados muitas vezes não recebiam nenhum valor e,

46
APEB, SJ, 33 inventários post-mortem de Salvador (1700-1750).
47
APEB, SJ, Inventário post-mortem de Jacinto Ferreira Feio de Faria (1741), 04-1610-2079-04.
114

quando recebiam em geral eram valores muito baixos. Assim, considerando a quantia
estipulada após o exame de Júlia podemos supor que ela era uma escrava jovem.48
Por fim, Leonor mina, mencionada anteriormente, não teve sua idade identificada em
virtude das condições do inventário de Manoel Soares Moreira (1747), que permitiu
reconhecer apenas sua ocupação (cozinheira), condição de saúde (aleijada do pé esquerdo) e o
valor (32$000). Sua avaliação indica que Leonor seria uma cativa idosa, pois seu valor estava
assim como os valores atribuídos a outras cativas abaixo da média apresentada por Souza
(74$995). Voltando aos dados apresentados e às análises feitas sobre os valores das escravas
aleijadas e incapazes registrados na documentação podemos concluir que o grupo das cativas
idosas continua com percentual superior em relação ao grupo das mais jovens. Após a
introdução de Elena e Catarina, essa categoria (idosas) representaria 57,14% das escravas
aleijadas e incapazes que foram examinadas. Enquanto o percentual encontrado para as
escravas jovens também sofreria alterações com a entrada de Júlia a categoria, somando
35,71%, a categoria não identificada ao final somou apenas 7,14%, pois somente Leonor não
teve sua idade identificada.
A presença de escravos e escravas com faixa etária aproximada de 60 anos ou mais
no grupo dos aleijados tornou possível a identificação do seu perfil. Diferente do que vimos
no capítulo anterior, no qual se observou que o percentual de doentes se concentrava entre os
escravos mais jovens (44,20%), aqui as cativas e cativos mais idosos correspondem juntos a
48,83%.49 Nesse sentido, podemos afirmar que aleijos e incapacidades físicas eram mais
comuns entre os africanos escravizados que desempenhavam suas atividades laborais nas
fazendas e engenhos. Além disso, percebemos também que em determinadas situações o
aleijo ou a incapacidade era provocada pela ação dos senhores, isto é, devido ao mau
tratamento dado aos escravos. Outro ponto a ser destacado nesta análise é a existência de
aleijos e incapacidades congênitas, assim, tomando novamente como exemplo o cativo
Miguel, angola, escravo de João Lopes Fiúza, descrito como “camboio das pernas”. Talvez
Miguel já tenha nascido com as pernas tortas e por isso tenha sido designado para o trabalho
de casa. É possível que Nicolau, crioulinho, que pertencia a Fiúza, também tenha nascido com
um “defeito no olho”. Em outros casos, como o de Luís mina, escravo de Luís de Magalhães
Leitão, descrito como surdo e mudo, a incapacidade se evidencia como congênita, entretanto,

48
APEB, SJ, Inventário post-mortem de João Lopes Fiúza (1741), 04-1571-2040-05.
49
APEB, SJ, 33 inventários post-mortem de Salvador (1700-1750).
115

aquelas que foram provocadas pelo trabalho e maus-tratos eram mais frequentes entre os
cativos.50
Mas, quais eram os aleijos e incapacidades físicas que mais acometiam os escravos e
que podem ser relacionados diretamente ao trabalho e aos maus-tratos senhoriais?

Tabela 7 – Os principais aleijos e incapacidades entre os escravizados em Salvador e


Recôncavo, 1700-1750
Aleijos e incapacidades Quantidade %
Quebrado do braço 3 6,97
Incapaz 10 23,31
Defeituoso do braço 1 2,32
Aleijado do pé 4 9,30
Falto de dedos 6 13,95
Camboio das pernas 1 2,32
Falto/ Maneta /Aleijado da mão 5 11,62
Defeito no olho 4 9,30
Falto do olho 4 9,30
Corcunda 1 2,32
Cego 2 4,65
Surdo/mudo 1 2,32
Bexiga estourada 1 2,32
Total 43 100%

Fonte: APEB, SJ, 33 inventários de Salvador (1700-1750).

O que percebemos a partir dos dados apresentados para os escravos aleijados e


incapazes registrados na documentação é uma estabilidade nos resultados, principalmente
entre aqueles que já nasceram com um aleijo ou incapacidade congênita como corcunda,
surdo mudo e camboio das pernas. Os números, no entanto, também não apresentam uma
disparidade quando em situações como cegueira (2) e bexiga estourada (1). Porém, as
pequenas variações começam a se mostrar entre os quebrados do braço (3), defeituosos do
olho (4), faltos do olho (4), aleijados do pé (4), aleijados da mão (5), faltos dos dedos (6) e os
incapazes (10).51 Esses cativos pertenciam, em sua maioria, a senhores que moravam no
Recôncavo e desempenhavam atividades laborais nas lavouras de cana-de-açúcar e nos
engenhos, com exceção de Caetano, Pedro e Luís, escravos de dona Josefa Maria da Silva
(1743), que teriam perdido o olho esquerdo em virtude dos abusos e maus-tratos da senhora.52

50
APEB, SJ, Inventário post-mortem de João Lopes Fiúza (1741), 04/1571/2040/05; Inventário post-mortem de
Luís de Magalhães Leitão (1719), 04/1585/2054/03.
51
APEB, SJ, 33 inventários post-mortem de Salvador (1700-1750).
52
APEB, SJ, Inventário post-mortem de Josefa Maria da Silva, 1743, 7/3195/1.
116

Sendo assim, os aleijões além de se concentrarem na população escrava idosa


acometiam com mais frequência os escravos das fazendas e engenhos. Não podemos esquecer
que os dois maiores senhores de escravos dessa amostra, Francisca de Sande (1702) e João
Lopes Fiúza (1741), moravam no Recôncavo. Ambos possuíam mais escravos doentes e
aleijados do que os outros proprietários analisados no capítulo anterior e, por isso, o total de
doentes e aleijados do Recôncavo era superior aos de Salvador na primeira metade do século
XVIII.53 Outra questão que merece ser considerada nesta pesquisa é a ação do senhor no
tratamento das doenças e cuidado com os aleijos quando eles se faziam presentes na
escravaria, por isso, a nossa última seção se dedicara a uma análise dos gastos registrados pela
Santa Casa de Misericórdia em relação à cura dos escravos doentes, bem como a ação
senhorial diante da doença e dos aleijos provocados pelos acidentes de trabalho.

O cuidado com o escravo doente ou aleijado e a Santa Casa de Misericórdia da Bahia

Os cuidados e as percepções sobre as doenças e os aleijos foram se transformando ao


longo do período colonial. Se por um lado existia a crença no sobrenatural e uma relação que
entrelaçava os costumes europeus, africanos e indígenas na definição do conceito e origem
das doenças, aleijos e práticas de cura, por outro lado, durante a segunda metade do século
XVIII, os conhecimentos médicos sofreram modificações, afastando-se do imaginário que
associava moléstias à magia e às questões religiosas.54 Todavia, mesmo com esse afastamento
do sobrenatural e a valorização da medicina douta, principalmente no que se refere ao
tratamento das enfermidades a partir da segunda metade do século XVIII, não podemos
esquecer que antes disso já existia na Bahia o hospital de São Cristóvão, a Santa Casa de
Misericórdia e a enfermaria de São Lázaro que prestavam assistência aos doentes e
aleijados.55
Existem poucos registros sobre a atuação dessas instituições antes da segunda metade
do século XVIII, entretanto, os livros de acórdãos e despesas da Santa Casa de Misericórdia

53
APEB, SJ, Inventário post-mortem de Francisca de Sande (1702), 01/199/351/01; Inventário post-mortem de
João Lopes Fiúza (1741), 04/1571/2040/05.
54
RIBEIRO, Márcia Moisés. A ciência dos trópicos: a arte médica no Brasil do século XVIII. São Paulo:
Hucitec, 1997. p. 23-24.
55
RUY, Affonso. História da câmara municipal da cidade de Salvador. 2ª ed. Salvador: Academia das
Letras da Bahia 1996. p. 197.RUSSELL-WOOD, Anthony. J. R. Fidalgos e filantropos: A Santa Casa da
Misericórdia da Bahia, 1550-1755. Tradução de Sérgio Duarte. Brasília: Editora Universidade de Brasília,
1981.
117

permitem observar o cuidado oferecido ao escravo doente e o papel da Santa Casa entre 1701
e 1750. Fundada, segundo Russell-Wood, entre abril de 1549 e agosto de 1552, a
Misericórdia ao longo de sua existência adquiriu uma posição de grande importância social na
Bahia. Durante a invasão dos holandeses a capitania teve suas enfermarias ocupadas e
utilizadas como hospital principal pelos invasores.56 O objetivo da irmandade era o cuidado e
auxílio aos pobres, doentes, enjeitados e as obras pias. Maria Renilda Nery Barreto, em estudo
sobre a Santa Casa da Bahia, aponta as sete obras espirituais e corporais em que as
Misericórdias, incluindo a da Bahia, deveriam pautar suas ações. Segundo Barreto,

Cabia à irmandade pautar suas ações em sete obras espirituais (ensinar aos
simples, dar bom conselho a quem pede, castigar com caridade os que erram,
consolar os tristes, perdoar a quem errou, sofrer as injúrias com paciência e
rogar a Deus pelos vivos e pelos mortos) e sete obras corporais (remir
cativos e visitar os presos, curar os enfermos, cobrir os nus, dar de comer aos
famintos, dar de beber a quem tem sede, dar pousada aos peregrinos e pobres
e enterrar os finados).57

A caridade e assistência espiritual ou corpórea tornaram a Misericórdia um espaço de


refúgio para aqueles que viajavam, para as crianças deixadas na roda dos expostos, para os
pobres, doentes e escravos que muitas vezes eram abandonados à própria sorte nas portas da
confraria pelos seus senhores, em casos de doença e óbito. A irmandade recebia ordenados da
Coroa destinados às obras caritativas, mas dependia da caridade particular de terceiros, pois,
embora recebesse rendimentos da Coroa, essa prática não acontecia com tanta frequência, já
que o conselho municipal da cidade enfrentava dificuldades econômicas com certa constância,
o que o tornava incapaz de fazer doações financeiras para a Santa Casa. Assim, segundo
Russell-Wood, “Cabia ao público baiano financiar as atividades caritativas da irmandade por
meio de legados e doações”.58
A maioria dos doadores fazia parte da elite colonial, a chamada “nobreza da
terra”.59Durante o século XVII, as plantações de cana-de-açúcar e as fazendas de gado eram
os mecanismos para se fazer fortuna, por isso os principais irmãos e doadores da Misericórdia
eram proprietários de terras no Recôncavo e no sertão. É no decorrer do século XVIII que

56
RUSSELL-WOOD, op. cit., 1981. p. 65-68.
57
BARRETO, Maria Renilda Nery. A Santa Casa da Misericórdia da Bahia e a assistência aos doentes no
século XIX. In: SOUZA, Christiane Maria Cruz de (org.). História da saúde na Bahia: Instituições e
patrimônio arquitetônico (1808-1958).São Paulo: Manole, 2011. p. 5.
58
RUSSELL-WOOD, op. cit., p. 111.
59
MONTEIRO, Nuno Gonçalo. O “Ethos” Nobiliárquico no final do Antigo Regime: poder simbólico,
império e imaginário social. Almanack braziliense, n. º 2, p. 4-20, 1 nov. 2005.ISSN 1808-8139. DOI
disponível em: Disponível em: http://www.revistas.usp.br/alb/ article/view/11697.
118

ocorrem mudanças nas formas de admissão dos irmãos possibilitando a entrada de


comerciantes, cristãos novos e homens de negócios entre os bem feitores da irmandade.60
Entretanto, cabe ressaltar que foi no reinado de D. José I, quando Sebastião José de Carvalho
e Melo, o Marquês de Pombal, ocupando o cargo de secretário do Estado (1750-1777), e
influenciado pelo movimento ilustrado, em que ocorreram mudanças significativas no
processo de admissão de novos irmãos na Misericórdia, buscando a salvação da alma através
da caridade e a ascensão social como membros de uma das principais instituições sociais da
capitania.61
A necessidade de doações para manutenção dos serviços pela Santa Casa e a busca
por prestigio social pelos irmãos transformaram a irmandade em uma grande proprietária de
terras e imóveis de aluguel. Segundo Augusto Fagundes da Silva Santos, a instituição possuía
até 1772, 132 propriedades que estavam divididas entre casas de aluguel e terras, somando um
total de 115:403$000 contos de réis.62 Russell-Wood, em sua análise sobre as doações
destinadas ao cumprimento de obrigações futuras, considerou que o século XVIII marcou um
momento de declínio financeiro para a irmandade. Assim, de acordo com os dados do autor
para o século XVII, a Misericórdia havia recebido 134:785$820 contos de réis em doações,
quantia superior a 78:304$924 contos de réis recebida durante o século XVIII. Fagundes
apresenta uma explicação plausível para esse declínio evidenciado por Russell-Wood.
Segundo os dados analisados pelo autor, Russell-Wood não levou em consideração a quantia
deixada por João de Mattos de Aguiar (217:092$475 contos de réis), em 1700. Além disso,
esse valor deixado por Aguiar no último ano dos seiscentos gerou lucros para a Santa Casa,
desse modo, se Russell-Wood tivesse considerado a herança deixada por Aguiar, esse declínio
em relação às doações seria menor.63
Em outra análise sobre os legados deixados à Santa Casa, os dados apresentados por
Russell-Wood referentes ao hospital somam para a primeira metade do século XVIII
17:007$332 contos de réis. Por outro lado, as doações para o hospital em igual período
atingiram 10:894$145 contos de réis, quantia significativa para o período.64 Entretanto, a
Misericórdia também oferecia seus serviços para aqueles que podiam pagar (homens e
mulheres livres, escravos e escravas, e libertos). É importante salientar que os escravos

60
RUSSELL-WOOD, op. cit., p. 113-115.
61
Idem, p. 110.
62
SANTOS, Augusto Fagundes da Silva. História financeira da Santa Casa de Misericórdia da Bahia no
século XVIII. Salvador: Quarteto, 2015. p. 83-84.
63
Idem, p. 62-64; RUSSELL-WOOD, op. cit., p. 120-121.
64
RUSSELL-WOOD, op. cit., p. 129.
119

estavam na categoria de pagantes por motivo óbvio: eles eram propriedade de um senhor e,
como tal, o senhor tinha obrigação de arcar com os gastos, principalmente na cura das
doenças e nos funerais.
Os funerais dos escravos que morriam no porto de desembarque e no mercado de
vendas pouco tempo depois de chegarem à Bahia eram realizados no esquife da Santa Casa,
conhecida como banguê.65 Entre 1741-1750, parte considerável dos escravos enterrados pela
Misericórdia pertencia às nações mina e angola. De acordo com a documentação, dos 2.163
funerais registrados para o período em questão 32,63% eram de africanos de nação angola,
25,60% eram africanos mina, os enterros dos benguelas correspondiam a 1,34%, enquanto
moçambique, congo, jeje, são tome, bamba e cabra juntos representavam apenas 1,93% dos
enterrados no banguê entre 1741-1750. O grupo dos crioulos somava 2,82%, os pretos 2,63%
e aqueles cuja origem não foi lançada no banguê pelo escrivão correspondiam a 33,63% dos
funerais.66
Os estudos de Souza sobre os livros do banguê apontam que para o período de 1741-
1800, 49,4% dos escravos sepultados pela Misericórdia vinham dos portos angolanos, 36,3%
eram da Costa da Mina, enquanto 3,4% eram aqueles que nasciam no Brasil (crioulos,
mestiços, pardos, cabras).67 Os resultados apresentados pela autora mostram-se superiores
devido ao período por ela analisado, que corresponde às últimas décadas da primeira metade e
a segunda metade do século XVIII (1741-1800), entretanto, mesmo analisando períodos
diferentes a disparidade entre os resultados mostra-se pequena, principalmente em relação aos
funerais dos crioulos.
Além da origem, outro aspecto relevante sobre os escravizados que eram enterrados
no esquife é a denominação que lhe foi atribuída no momento em que foram lançados no
banguê. Desse modo, o uso dos termos: “uma preta”, “um preto”, “uma escrava”, “um
escravo”, “um molecão”, “uma cria” ou “uma moleca” eram frequentemente usados para
identificar os africanos escravizados que haviam morrido sem receber o batismo e o nome
cristão, ou seja, aqueles que eram considerados escravos boçais. Conforme argumentou
Souza, em geral, além de pertencer a uma carregação ou aqueles que tinham interesse na
carga, os cativos possuíam ainda marcas de ferro pelo corpo que eram usadas para facilitar o
processo de identificação dos proprietários.68 Analisando a sobredita documentação,

65
SOUZA, op. cit., 2018. p. 124-299.
66
ASCMB, Livro do Banguê nº 1257, 1741-1750.
67
SOUZA, op. cit., 2018. p. 125.
68
Idem, p. 125.
120

encontramos para 1741 e 1750, 434 (20,06%) de africanos que cruzaram o Atlântico e
morreram sem receber um nome católico, apesar de relativamente pequeno, tais dados
estatísticos revelam outro aspecto inquietante sobre a escravidão e o tráfico de escravos,
aqueles que morriam sem alcançar o batismo entravam para o rol do que Souza chamou de
“estatística da violência”.69 Em outras palavras, suas mortes representavam a violência do
processo de escravização que se iniciava no continente africano e terminava sob uma cova nos
territórios da América portuguesa.
No que se refere à identificação dos proprietários nos registros do banguê,
percebemos que parte considerável dos senhores (70,45%), não teve seu local de residência
assinalado na documentação, os residentes no Brasil (Bahia, Pernambuco e Rio de Janeiro)
somaram 23,94% entre eles o nosso já conhecido cirurgião João Cardoso de Miranda e a
traficante de escravos dona Teresa Maria de Jesus, os que possuíam moradia na África
(Moçambique, Luanda, Benguela e São Tome) correspondiam a 5,08%, e por fim, os
proprietários que residiam em Portugal apenas 0,50%.70 Voltando aos dados apresentados por
Souza, notamos que sua pesquisa por abarcar um período superior ao que ora é aqui estudado,
indica um percentual superior para os proprietários de Luanda e Lisboa (40,6%).71 Todavia,
apesar de oferecer informações tão precisas a respeito da mortalidade cativa, o banguê não
dispõe de subsídios relevantes para entendermos o cuidado com o escravo doente e aleijado,
por isso, faz-se necessário o estudo sobre outras documentações manuscritas da Santa Casa de
Misericórdia.
Os poucos registros que temos para 1700 e 1750 apontam uma questão crucial para
esta pesquisa: o cuidado dispensado ao escravo doente pela Misericórdia. Assim, nas linhas
que se seguem discutiremos os gastos com o tratamento dos cativos doentes, os funerais, a
ação da Santa Casa diante das dívidas de senhores de escravos que faziam uso do hospital e
da botica da irmandade para curar seus enfermos e não pagavam pelo tratamento, e por fim o
cuidado com o cativo aleijado.
No livro dos acórdãos n. 14, relativo ao período entre 1681 e 1745, encontramos o
registro de um termo enviado a Lisboa no dia 23 de outubro de 1705. Nele, o escrivão Manoel
Dias Figueira, o Provedor Manoel Francisco Lomoretto e outros representantes da
corregedoria responsável pela administração do hospital e botica da Santa Casa levaram ao
conhecimento do monarca, o déficit nos cofres da irmandade causado pelos gastos anuais com

69
Ibidem, p. 125.
70
ASCMB, Livro do Banguê nº 1257, 1741-1750.
71
SOUZA, op. cit., 2018. p. 124.
121

os remédios importados de Lisboa e com os escravos, principalmente com aqueles que


morriam.72 Eis o registro:

[...] Se dizia todos os anos ser grande despesa em escravos que pelo repouso
que eles mesmos teriam, os ditos escravos morriam e com [enterros] deles se
gastava muito o que da mesma sorte se gastava todos os anos nesta casa e
hospital [...].73

Possivelmente esses cativos que faleciam na Misericórdia faziam parte daqueles que
eram deixados pelos senhores como indigentes, doentes ou já mortos nas portas da irmandade,
obrigando-a a arcar com os custos da cura em caso de doença ou com o funeral. Entretanto, os
termos registrados no livro dos acórdãos não apresentam os valores que foram gastos com a
compra de remédios ou com os escravos. Os livros de despesas trazem dados mais completos
sobre os rendimentos das boticas, tumbas, esquifes e do tratamento de escravos doentes.74
Em 31 de agosto de 1736, os cofres da Santa Casa receberam por intermédio do
irmão recebedor das esmolas, Mathias de Torres Bezerra, 117:504$000 contos de réis do
rendimento das tumbas e esquifes. Em setembro do mesmo ano, os cofres arrecadaram com os
enterros nos esquifes 120:480$000 contos de réis. Ambas as quantias eram consideravelmente
altas e mostram que, embora a irmandade dependesse dos doadores para a manutenção de
suas obras pias, ela conseguia arrecadar rendimentos com a realização de funerais. Somados
aos aluguéis de imóveis, doações e legados deixados pelos membros, os rendimentos
constituíam valores significativos para sua preservação, prejudicada em certos momentos pela
inadimplência dos tomadores de empréstimos e em certos casos pelas dívidas pela restauração
da saúde dos escravos.75 As quantias arroladas na documentação provocam um
questionamento interessante acerca do valor cobrado pelo tratamento dos escravos doentes.
Observemos o registro de um rendimento decorrente da cura de um cativo enfermo
pelo hospital da Misericórdia:

Carrego em receita viva ao nosso irmão recebedor das esmolas Mathias de


Torres Bezerra quinze mil seiscentos e noventa réis que recebeu de Caetano

72
Arquivo da Santa Casa de Misericórdia da Bahia. Termo de resolução sobre os gastos com os medicamentos
da botica e com os escravos que faleceram. Livro dos Acórdãos da mesa e resoluções dos definidores
desta Santa Casa de Misericórdia da Bahia n. 14, 1681-1745. p. 57-58.
73
Idem, p. 57-58.
74
Também constam nesses livros as despesas com a compra de escravos, pagamento de salário para médicos e
cirurgiões, juros referentes aos empréstimos, despesas da sacristia e das missas.
75
Arquivo da Santa Casa de Misericórdia da Bahia. Livros de despesas da Santa Casa de Misericórdia da
Bahia, 1701-1738. Livro nº 852, p. 15-22. (Doravante: ASCMB, Livros de despesas da Santa Casa de
Misericórdia da Bahia, Livro nº).
122

de Carvalho da cura de um escravo que se curou no hospital, e


medicamentos que tomou da botica. E de como recebeu a sobredita quantia;
e se obrigou a dar conta dela, assinou comigo esta carga na Bahia e Casa da
Misericórdia aos 16 de maio de 1737. Eu Anselmo Dias escrivão atual da
mesa [que] assinei. Mathias de Torres Bezerra; Anselmo Dias.76

Analisando o termo de receita percebemos que o valor cobrado pela cura do cativo
era consideravelmente alto para os padrões de vida em Salvador. Isto é, suponhamos que
Caetano de Carvalho pertencesse ao grupo dos pequenos proprietários de escravos que
possuíam uma escravaria composta por cinco a dez escravos que se dividiam entre o serviço
de casa e o ganho. Mesmo se isentando de algumas obrigações (moradia, alimento e
vestimenta) com seus ganhadores, a quantia cobrada pelo tratamento do cativo ainda se faria
muito alta, pois, como pequeno proprietário Caetano de Carvalho teria que preservar a
manutenção de toda a sua escravaria.
Outra questão que merece ser considerada nesse aspecto é o preço cobrado pela
farinha de mandioca: $400 réis por alqueire.77 O produto, de acordo com Stuart Schwartz, era
o alimento básico da escravaria e da mesa dos homens livres. Sua inserção no cotidiano dos
escravos era tão importante que em meados do século XVIII a quantidade necessária foi
calculada em um alqueire, algo próximo a 36,27 litros do produto a cada quarenta dias por
escravo.78 Seguindo esse cálculo, suponhamos novamente que Caetano de Carvalho possuísse
uma escravaria composta por 10 escravos, sendo cinco ligados ao serviço de casa e o restante
trabalhando no sistema de ganho. Mesmo o senhor se isentando em parte de suas obrigações
com os escravos ganhadores, ele gastaria aproximadamente dois mil réis só com a compra da
farinha de mandioca necessária para atender cinco escravos. O peixe também fazia parte das
refeições nas senzalas e seu preço variava de acordo com a espécie e com o vendedor, por
exemplo, o dourado custava $25 réis na mão do pescador e $30 réis se comprado na mão de
uma rendeira.79 Assim, além dos gastos com remédios e farinha se o escravo levado por
Caetano de Carvalho ao hospital da Misericórdia estivesse acometido por escorbuto ou
bexigas, ele necessitaria seguir uma dieta o que, certamente, geraria outro gasto com a

76
ASCMB. Livros de despesas da Santa Casa de Misericórdia da Bahia, 1701-1738. Livro nº 852, p. 73.
77
Cf.: DOMINGUES, Cândido. Perseguidores da espécie humana: capitães negreiros da Cidade da Bahia na
primeira metade do século XVIII. 2011. Dissertação (Mestrado em História) – Faculdade de Filosofia e
Ciências Humanas, Universidade Federal da Bahia, Salvador, 2011, p. 211.
78
SCHWARTZ, op. cit., p. 126.
79
Cf.: SOUZA, Daniele Santos de. Entre o “serviço da casa” e o “ganho”: escravidão em Salvador na
primeira metade do século XVIII. 2010. Dissertação (Mestrado em História) – Faculdade de Filosofia e
Ciências Humanas, Universidade Federal da Bahia, Salvador, 2010, p. 78.
123

introdução da galinha para alimentar o enfermo no caso do escorbuto e da cevada para as


bexigas.80
Maria da Conceição, falecida em 1744, deixou um montante avaliado em 612$460
mil réis e uma escravaria composta por oito escravos. Manoel, crioulo, além de aleijado da
mão direita, estava doente do mal de brites. Feliz, calabar, era quebrado da virilha e Antônio,
jeje, doente de quiguilhas. Com base nas custas pagas por Caetano de Carvalho, e apesar de
não poder comparar o tratamento que recebeu o escravo de Caetano de Carvalho com os
escravos inventariados como doentes nos inventários analisados, talvez se dona Maria da
Conceição tivesse levado os doentes e o aleijado até o hospital da Santa Casa, ela gastaria
com os doentes um valor que talvez não coubesse por assim dizer no seu bolso, e assim como
Caetano de Carvalho dona Maria ainda teria de arcar com a manutenção dos demais escravos
de sua escravaria, tornando ou não o valor que seria cobrado demasiadamente caro para a
senhora.81
Dona Maria Teles de Menezes (1716), a viúva de José Pereira Góes possuía 8
escravos do serviço do pasto, roça e uma rendeira. Entre os cativos, Antônio, benguela, era
quebrado da virilha, Antônia, arda, tinha bexigas, Josefa, angola, estava doente e Gonçalo,
crioulinho de três anos, estava cego de um olho. Dona Maria Teles deixou um montante
estipulado em 349$952 mil réis. A partir desse número se a senhora decidisse encaminhar os
doentes ao hospital, certamente o valor cobrado pela instituição faria com que dona Maria
Teles enfrentasse dificuldades para quitar a suposta dívida uma vez que Antônia sua escrava
tinha bexigas e como enfermidade contagiosa, dependia de um tratamento mais dispendioso e
a senhora ainda teria outros gastos além da cura e internação dos doentes.82
Em outra situação registrada no livro de despesas da Misericórdia encontramos o
irmão recebedor das esmolas, Simão Pinto de Queirós, dando conta em receita o valor de
22:310$000 réis que recebeu no dia 3 de fevereiro de 1738 do Coronel José Gayapo de Peralta
pela cura de um escravo no hospital.83 O valor pago pelo coronel foi calculado com base na
permanência do doente no hospital e dos remédios consumidos durante esse período.
Contudo, a Santa Casa cobrava 320 réis por cada dia de internação e tinha a venda de
medicamentos como uma segunda fonte de renda para suprir as necessidades do hospital e os
gastos com os doentes. Não foi informado a quantidade de dias de internação e tampouco os

80
MIRANDA. Relação cirúrgica e médica, op. cit., 1747. p. 3-4, 135.
81
APEB, SJ, Inventário post-mortem de Maria da Conceição (1744), 04/1572/2041/01.
82
APEB, SJ, Inventário post-mortem de Maria Teles de Menezes (1716), 03/1030/1499-01.
83
ASCMB. Livros de despesas da Santa Casa de Misericórdia da Bahia, 1701-1750. Livro nº 853, p. 25v.
124

gastos com os medicamentos que a Santa Casa fez uso para tratar o escravo de Peralta. Os
rendimentos tanto da farmácia quanto do hospital dificilmente alcançavam 100$000 mil réis
e, nesse sentido, não existia a possibilidade de a confraria tornar-se financeiramente
independente já que a maior parte do capital destinado aos serviços médicos vinha das
doações.84 Por outro lado, podemos ainda supor que os cálculos eram estimados a partir da
posse do senhor ou do doente, observemos o registro de rendimento a seguir,

Carrego em receita viva ao nosso irmão recebedor das esmolas Simão Pinto
de Queirós 40$540 réis que recebeu da cura do preto José, que se curou no
hospital. E de como recebeu a sobredita quantia, e se obrigou a dar conta
dela, e assinou comigo esta carga na Bahia e Casa da Misericórdia em 14 de
maio de 1738. Eu João Dias do Passo escrivão atual da mesa. Simão Pinto de
Queirós. João Dias do Passo.85

Certamente, José era um africano liberto. E estado ele, diante de suas pouquíssimas
posses ou da ausência delas, teve sua dívida estipulada pela Santa Casa no valor de 40$540
mil réis. Essa diferença entre os rendimentos deve ser analisada com base nos parâmetros
sociais do Antigo Regime. Afinal, a população da Bahia era em sua maioria formada por
negros (africanos), mulatos e mestiços, escravos ou libertos, que estavam à margem da
sociedade ocupando sempre um lugar de inferioridade. Segundo Russell-Wood, o escravo
ocupava uma condição ambígua, pois ao mesmo tempo em que era objeto da crueldade e
maus-tratos do senhor, era um investimento que carregava uma simbologia de poder, assim, a
posse de escravos representava para o senhor a demonstração do prestigio social diante da
sociedade.86
Entretanto, sua posição ambígua não impedia os senhores de abandonar um escravo
que apresentasse sinais de doença. Era a compaixão apregoada nos sermões jesuíticos que
tratavam das obrigações de senhores e escravos que induzia o senhor a levar um escravo
doente ao hospital. E quanto aos libertos? Qual a posição daqueles alforriados que não tinham
mais a compaixão de seus senhores no cuidado com as doenças? Conforme observou Russell-
Wood, o lugar do liberto diante da sociedade colonial não era tão distinto daquele que ocupou
enquanto escravo, pois, de modo geral, era difícil um forro alcançar sua independência

84
ASCMB. Livros de despesas da Santa Casa de Misericórdia da Bahia, 1701-1750. Livro nº 846, p. 84.
85
ASCMB. Livros de despesas da Santa Casa de Misericórdia da Bahia, 1701-1750. Livro nº 853, p. 36v.
86
RUSSELL-WOOD, op. cit., p. 221.
125

financeira. A maioria, quando emancipada, continuava exercendo os trabalhos do cativeiro ou


tornavam-se dependentes da caridade de instituições como a Santa Casa de Misericórdia.87
Mas, o que acontecia quando o doente curado ou o senhor de escravos se recusava a
pagar pela assistência médica? Como vimos no início deste capítulo, as Ordenações
Manuelinas e Filipinas asseguravam o cuidado e o não abandono do cativo doente ou manco
pelo senhor. Os escritos da época destinados ao governo dos escravos buscavam controlar a
crueldade e os abusos praticados em cativeiro associando deveres e obrigações de senhores,
escravos e demais dependentes, baseando-se na moral e na conduta religiosa. A vigilância e o
controle das autoridades régias não intimidavam personagens como Garcia d’Ávila. Ele
torturava seus cativos e blasfemava contra a Igreja bem debaixo do nariz das autoridades
fiscalizadoras, violando o limite do castigo que era permitido e abandonando seus escravos
enfermos. Entretanto, não podemos esquecer aqueles que levavam os doentes para o hospital
e não pagavam pelo tratamento e medicamentos usados na cura da doença.
Em 30 de junho de 1737, Mathias de Torres Bezerra prestou conta do dinheiro que
recebeu do capitão-mor Luís Carneiro da Rocha da cura de um escravo que se estava
devendo, eis o registro:

Carrego em receita viva ao nosso irmão recebedor das esmolas Mathias de


Torres Bezerra trinta e dois mil e trinta réis que recebeu do capitão mor Luís
Carneiro da Rocha, a saber trinta e um mil novecentos e setenta de resto de
uma cura e demais quantia que havia passado da cura de uma escrava que
haviam dito curar no hospital, e sessenta réis de um mandado que se havia
passado contra ele [...].88

Analisando o termo de receita podemos traçar o cenário percorrido pelo capitão até o
momento em que finalmente ele paga sua dívida com a Misericórdia. Luís Carvalho da Rocha
usufruía da patente de capitão-mor, posição deveras importante para o comando das tropas de
el-rei no além-mar. Certamente o capitão já havia levado outros escravos vitimados pelas
doenças para o hospital da Santa Casa. Talvez tenha sido a primeira vez que Luís Carvalho da
Rocha tenha entrado para a lista de devedores da irmandade. É possível que o capitão, assim
como tantos outros proprietários de escravos, tenha negligenciado sua dívida esperando que
ela caísse no esquecimento ou que os irmãos responsáveis pela cobrança dos rendimentos
continuassem omitindo sua própria incumbência. O que decerto Carvalho da Rocha não
esperava era a reivindicação do débito na justiça, isso porque na sociedade colonial ele

87
Idem, p. 221.
88
ASCMB. Livros de despesas da Santa Casa de Misericórdia da Bahia, 1701-1738. Livro nº 852, p. 85.
126

ocupava um cargo de respeito e a cobrança da dívida, provavelmente causou no capitão


vergonha pela exposição via ordem judicial de sua despesa, obrigando-o a quitá-la
imediatamente.
Enganam-se aqueles que acreditam que esse tipo de situação era inusitado. Na
relação dos devedores da Misericórdia da Bahia entre 1701-1777, além do nome de Luís
Carvalho da Rocha, encontra-se o nome de Domingos Lucas de Aguiar que, entre os anos de
1729 e 1747, ocupou os cargos de procurador da câmara, vereador e provedor da Santa Casa.
Francisco da Rocha Pita, senhor de engenho, também foi incluído na lista de devedores.89
Fosse através da cura dos cativos doentes ou dos empréstimos a juros oferecidos pela
irmandade, era frequente que nomes de figuras ilustres aparecessem entre os maus pagadores,
por isso, não causa estranhamento a resposta da irmandade em forma de mandado judicial
para receber os ordenados.
Ao nos determos sobre os recursos da Santa Casa para obter o recolhimento das
dívidas, encontramos na documentação uma diversidade de assentos que indicam a quitação
de dívidas pelos fiadores em casos de empréstimos. A situação do capitão-mor Luís Carvalho
da Rocha propõe que recorrer à justiça em casos de dívidas do cuidado com a saúde era uma
alternativa viável para reaver as custas com o tratamento, principalmente se o devedor fosse
uma figura pública. Outra estratégia usada pela irmandade entre o final do século XVIII e o
início do século XIX foi a apreensão dos cativos quando os senhores não pagavam a cura no
hospital e os remédios da botica.
Seja como for, a investigação nos livros dos acórdãos e despesas da Santa Casa de
Misericórdia e o episódio envolvendo o capitão-mor Luís Carvalho da Rocha mostram que o
cuidado com o escravo doente dependia exclusivamente do caráter de seu senhor, que poderia
agir com benevolência levando o escravo doente para o hospital ou com crueldade deixando-o
à mercê de sua própria sorte e da caridade da confraria. No entanto, mesmo quando o cativo
vencia o âmago da querela experimentado pela doença recebendo tratamento apropriado nas
instalações da Santa Casa, a “bondade” do seu senhor ainda seria contestada. Segundo os
argumentos de Russell-Wood, o escravo representava para o senhor um investimento
financeiro e prestigio social, entretanto, era frequente o abandono dos enfermos e dos mortos
nas portas da Misericórdia por escravos a mando de seus senhores até o século XVIII.
Somente com a alta dos preços de escravos africanos novos nos setecentos, provocada pela

89
SANTOS, op. cit., p. 227-248.
127

descoberta aurífera, é que os senhores se viram obrigados a gastar com o tratamento dos
cativos doentes, pois era mais barato curar um escravo do que comprar um novo.90
A estima pelo cativo durante o setecentos apresentava um caráter ambíguo, se por
um lado era percebido como ação benevolente, por outro entrava em contraste com as
questões financeiras e a vaidade do senhor que buscava ser reconhecido na sociedade. Desse
modo, podemos considerar que de forma direta ou indireta o cativo doente estava sempre na
condição de dependência, seja do senhor ou da caridade da Santa Casa. A Misericórdia, por
sua vez, mesmo baseada num ideal filantrópico, também dependia dos legados e doações de
terceiros para manutenção das obras pias e do cuidado com os doentes, por isso, a expedição
de uma ordem judicial a um capitão-mor que devia a cura de um escravo pode ser pensada
como última tentativa de reaver o dinheiro que foi gasto pelos cofres da irmandade.
Os estudos recentes sobre a relação senhor e escravo têm demonstrado que os maus-
tratos senhoriais eram um dos principais argumentos utilizados pelos cativos em suas petições
encaminhadas à autoridade régia para justificar a liberdade dos cativos na primeira metade do
século XVIII. Priscila de Lima, ao analisar os pedidos de concessão de liberdade enviados à
corte pelos escravizados, inclusive os da capitania da Bahia no curso do século XVIII,
observou que eram os castigos excessivos que fundamentavam suas petições.91 Entretanto, as
leis outorgadas em 20 e 23 de março de 1688, e que garantiam a obrigatoriedade da venda dos
escravos pelos senhores quando estes sofriam maus-tratos, foram revogadas mediante carta
régia de 23 de fevereiro de 1689, com a justificativa de que tais leis estavam provocando
conflitos entre os senhores e seus escravos.92 Mesmo assim, conforme observou Lima, os
castigos exorbitantes continuaram sendo entendidos como um problema a ser tratado pelas
autoridades, sendo assim, não cabia às autoridades confrontar as leis determinadas pelo
monarca com o objetivo de aplicar punições aos senhores.93
Outra questão que merece ser considerada é o cuidado com o escravo aleijado.
Demonstrei na seção anterior que 64,29% dos aleijados e incapazes para o serviço eram do
Recôncavo, ou seja, aqueles que desempenhavam as suas atividades laborais nos engenhos e
nas plantações de cana-de-açúcar, fumo, mandioca e outros gêneros alimentícios. Nesse
sentido, outro ponto abordado na sobredita seção, foi a relação de determinados afazeres no
mundo rural com as condições de sobrevivência que envolvia além da alimentação, moradia e

90
RUSSELL-WOOD, op. cit., p. 221.
91
LIMA, op. cit. p. 58-59.
92
LARA, op. cit. p. 201.
93
LIMA, op. cit. p. 59.
128

vestimenta, a jornada e a própria natureza das atividades laborais que provocavam os


acidentes de trabalho e até a morte dos cativos. Quais cuidados recebia o escravo que perdia
os dedos, a mão ou o braço enquanto labutava?
A análise na documentação da Misericórdia permitiu apenas uma investigação a
respeito dos gastos que a irmandade adquiriu com a cura dos escravos doentes. Por outro lado,
em relação aos aleijados não encontramos na sobredita documentação nenhuma referência
acerca dos gastos ou dos cuidados que a Santa Casa poderia ter oferecido aos cativos nesta
condição. Porém, isso não quer dizer que o hospital da irmandade não recebia escravos
aleijados, pelo contrário, é possível que os gastos com a assistência aos aleijos tenham sido
agrupados junto com as despesas provenientes da cura das enfermidades ou o aleijo entendido
como doença, afinal o escravo chegaria ferido no hospital e, além disso, os registros da
Misericórdia não especificam quais doenças foram curadas, ou seja, somente apresentam os
valores gastos com as curas.
Apesar disso, é importante lembrar que alguns senhores possuíam em suas
propriedades escravos barbeiros ou sangradores, responsáveis não só pelo cuidado com seus
companheiros doentes, mas também pela assistência a outros cativos fora dos domínios dos
seus senhores. Nesse sentido, não é difícil imaginar que esses escravos (barbeiros e
sangradores), tenham auxiliado no tratamento de seus companheiros que tiveram o desgosto
de perder os dedos, as mãos ou os braços enquanto trabalhavam.
Francisca de Sande, por exemplo, tinha em sua escravaria três escravos de origem
africana que se dedicavam a função de barbeiro. Mateus, doente de erisipela, Francisco e
Pedro que certamente prestaram assistência aos seus companheiros de cativeiro estancando
sangramentos e fechando feridas quando estes se machucavam manuseando suas ferramentas
de trabalho na lavoura ou no maquinário do engenho.94 Desse modo, é possível que essa
situação tenha se repetido na escravaria de João Lopes Fiúza que também possuía três
barbeiros entre os seus escravos: Afonso, Francisco e Bento.95 Para Salvador, encontramos
outros dois barbeiros, Caetano escravo de Jacinto Ferreira Feio de Faria, Matias cativo de
Nicolau Carneiro da Rocha e, um sangrador chamado João escravo de José Rodrigues
Chaves.96 Sendo assim, mesmo com a ausência de registros na documentação da Santa Casa
de Misericórdia sobre os cuidados com os cativos que chegavam feridos e aleijados, a

94
APEB, SJ, Inventário post-mortem de Francisca de Sande (1702), 01/199/351/01.
95
APEB, SJ, Inventário post-mortem de João Lopes Fiúza (1741), 04/1571/2040/05.
96
APEB, SJ, Inventário post-mortem de Jacinto Ferreira Feio de Faria (1741), 04-1610-2079-04.
APEB, SJ, Inventário post-mortem de José Rodrigues Chaves, 1742, 05/2200/2669/03. APEB, SJ, Inventário
post-mortem de Nicolau Carneiro Rocha, 1739, 14-1614-2083-9.
129

presença de escravos barbeiros, principalmente na zona rural onde se concentrava a maior


parte dos aleijados e incapazes para o serviço (64,29%), mostra que havia uma assistência
para esses cativos em casos não só de doença, mas também quando acontecia algum acidente
no ambiente de trabalho, do contrário, o prejuízo do senhor com a morte de um escravo
devido a uma possível hemorragia, por exemplo, seria bem maior do que possuir um escravo
falto de uma mão ou um braço afinal esse mesmo escravo poderia ser designado para outro
serviço “mais leve”.
Além disso, possuir um barbeiro na propriedade era fundamental para o senhor, pois,
dificilmente um cativo que perdeu o braço na moenda sobreviveria sem os cuidados
necessários após o acidente. Por esse lado, a presença desses indivíduos no mundo rural era
além de uma garantia a assistência em casos de acidentes de trabalho, uma forma de evitar o
prejuízo causado pela perda de um escravo ao senhor. Segundo Schwartz, os engenhos as
moendas conduzidas pela força d’água eram mais perigosas, isso porque, havia a
possibilidade de evitar a morte de um escravo nas moendas que funcionavam a partir da força
física dos bois, entretanto, quando o seu funcionamento dependia da água e acontecia algum
acidente era quase que impossível evitar a morte de um cativo pelo maquinário.97
Outra questão que também merece ser levada em consideração, era o desafio
enfrentado pelos barbeiros para tratar e curar um ferimento provocado por um acidente de
trabalho. Assim, se imaginarmos novamente o cenário construído pelas condições de
sobrevivência em cativeiro, onde eram privados não somente da alimentação, vestimenta e
moradia dignas, mas também do descanso físico indispensável para sua subsistência,
chegamos à conclusão de que era difícil diante de tais condições o senhor conceder o aparato
necessário para o cuidado dos aleijados. Mas, o que acontecia após um acidente na moenda?
Quais eram os cuidados que o acidentado recebia de imediato? Após ser retirado do
maquinário, podemos supor que a primeira ação dos seus companheiros fosse comunicar o
ocorrido tanto para o senhor como para o barbeiro da fazenda, que ao chegar ao local depois
de analisar a gravidade dos ferimentos usaria aguardente para controlar o fluxo de sangue.
Para o cirurgião Luiz Gomes Ferreira, a aguardente era um dos remédios mais eficientes
quando se tratava dos ferimentos e fraturas que deixavam o doente aleijado, isso porque,
quando os ossos da perna, por exemplo, eram quebrados o uso da aguardente quente sob o

97
SCHWARTZ, op. cit. p. 131.
130

local evitava o apodrecimento da carne e o aleijo, porém, seu uso também auxiliava quando
era necessário conter um sangramento decorrente de um ferimento.98
Certamente, os barbeiros que pertenciam às escravarias de Francisca de Sande e João
Lopes Fiúza faziam uso de tal método buscando aliviar a dor e evitar a morte de um
companheiro por hemorragia ou infecção, afinal a aguardente evitava também o
desenvolvimento de infecções no local do aleijo. O cuidado com o escravo acidentado estava,
igualmente, relacionado às relações de afinidade ou a ausência delas, pois, a sua ausência
levaria o cativo de maneira brutal a adoecer, perder um membro do corpo ou a visão e até
morrer nos domínios do senhor. A crueldade e os abusos cometidos eram fundamentais para
determinar a vida dos escravos, mas em uma sociedade em que a elite usufruía da posse de
mão de obra escrava podemos sim considerar que muitos senhores dentro da categoria dos
pequenos proprietários não teriam condições para manter sua casa, escravaria e o escravo
doente.
Nesse sentido, o pequeno senhor de escravos, como dito anteriormente, era mais
cuidadoso com seus cativos enquanto os grandes proprietários pouco se preocupavam com as
condições de trabalho às quais submetiam seus escravizados e, sobretudo, despreocupados
com o adoecimento em cativeiro, por isso, não é de se estranhar que senhores como João
Lopes Fiúza e dona Francisca de Sande tivessem sob seus domínios número significativo de
escravos doentes e aleijados em comparação aos pequenos proprietários.

98
FURTADO, Júnia Ferreira (org.).Erário mineral Luís Gomes Ferreira. Vol. I e II. Belo Horizonte:
Fundação João Pinheiro, Centro de Estudos Históricos e Culturais; Rio de Janeiro: Fundação Oswaldo Cruz,
2002. p. 474-486.b
131

Conclusão

Ao longo dessa dissertação procuramos analisar as conexões entre a escravidão e as


doenças tanto desenvolvidas nos porões dos navios negreiros quanto por meio das condições
de trabalho e dos maus-tratos senhoriais. Na primeira metade do século XVIII, Salvador a
despeito de um dos principais portos de desembarque de africanos escravizados na América
portuguesa, dependia quase que exclusivamente do seu Recôncavo. Era naquela região que se
produzia o açúcar e o tabaco usado como moeda de troca entre os traficantes baianos e os
comerciantes de escravos na Costa da Mina. Ademais, o Recôncavo era a porta de entrada
para carne de gado que saia dos Sertões, além de produzir outros gêneros alimentícios como a
farinha de mandioca que abasteciam os navios negreiros e a Cidade da Bahia. No Recôncavo
forjou-se uma elite colonial formada por senhores de engenhos, grandes proprietários de
terras e escravos, que ocupavam, frequentemente, cargos importantes na administração da
Câmara Municipal e em irmandades como a Santa Casa de Misericórdia da Bahia.
Enquanto a cidade de Salvador e seu Recôncavo formavam cenários políticos e
econômicos que se entrelaçavam, as doenças também as invadiram na mesma medida. Por
todas as partes se desenvolviam epidemias e a constante entrada de navios que vinham das
conquistas com a África, engendraram um imaginário que associava as enfermidades aos
africanos escravizados. Durante muito tempo esse foi o principal argumento para justificar as
doenças que acometiam a cidade, negando a responsabilidade do trabalho e dos maus-tratos
senhoriais como fatores que contribuíram para o desenvolvimento de determinadas doenças
que acometiam, principalmente, a população escravizada.
Os dados apresentados pela pesquisa sugerem que as condições em que os africanos
escravizados eram transportados para a América portuguesa contribuíram até certo ponto, no
desenvolvimento das moléstias pela cidade, tendo em vista que as doenças foram produzidas
socialmente. Diante das fontes analisadas as taxas de mortalidade em alto-mar não eram
significativamente altas e raramente ultrapassavam 13%.1 Nesse sentido, não podemos
considerar que a mortalidade estava relacionada a epidemias que se desenvolviam nas
embarcações, pois, as taxas indicam que os cativos morriam durante a travessia do Atlântico
em virtude das condições antecedentes ao embarque (fome, desnutrição, sede, cansaço físico e
mau tratamento), que não eram diferentes das condições que enfrentariam durante o percurso
em direção à Bahia e também pelo suicídio nos tumbeiros. Aqueles que desembarcavam
1
É importante ressaltar que a base de dados do TSTD apresenta algoritmos e que é possível que as taxas de
mortalidade em alto mar fosse bem superior aquelas apresentadas pela base de dados.
132

doentes e vivos, certamente enfrentavam outras adversidades e morriam em razão da ausência


do cuidado médico necessário, e os que sobreviviam eram vendidos enfrentavam outras lutas
pela sobrevivência, nos espaços de domínio senhorial.
Foi através da constituição do perfil dos senhores de escravos da Bahia, que
identificamos as doenças e incapacidades físicas que acometiam os escravizados. Por meio da
análise de variáveis como tipo de escravaria e doenças, foi possível reconhecer não somente
as enfermidades e aleijões decorrentes do trabalho e dos maus-tratos, mas em que momento
da vida, supostamente, esses cativos e cativas foram vitimados pelas doenças. Na busca pelas
conexões entre a escravidão e o trabalho, as ocupações e os locais de moradia dos escravos
tornaram-se fatores determinantes para construção da nossa hipótese acerca das contribuições
do trabalho e dos maus-tratos para o estado de saúde desses doentes.
Assim, a pesquisa possibilitou uma análise no que diz respeito às relações sociais,
políticas, econômicas e culturais que cercam o entendimento sobre o conceito que se tinha na
época das enfermidades, as estratégias das autoridades no controle das doenças e, além das
próprias doenças, tendo em vista que no período estudado as moléstias foram produzidas
socialmente. Sobre as enfermidades que mais acometiam os africanos escravizados, os dados
sugerem que entre os 116 cativos doentes arrolados nos inventários post mortem de Salvador
e o Recôncavo, havia uma concentração entre as virilhas quebradas (31,0%), as moléstias
internas (20,7%), as lesões do corpo (13,8%) e as doenças de peito/respiratórias (6,9%). Por
outro lado, as análises sobre as fontes revelaram que, entre aleijados e incapazes para o
serviço, predominaram as os considerados incapazes (23,31%), falto de dedos (13,95%) e
falto/maneta/aleijado da mão (11,62%).2
As fontes também determinaram as principais atividades laborais desempenhadas
pelos cativos. Desse modo, para Salvador os doentes estavam divididos entre o serviço de
transporte (25%) e os ofícios mecânicos (32,14%), enquanto no Recôncavo eram os serviços
rurais que ocupavam a maior parte dos doentes aqui analisados (35,72%). Entre os aleijados e
incapazes, a maioria trabalhava na região do Recôncavo (59,74%), enquanto (40,26%) residia
em Salvador.3
Quanto à faixa etária, vimos que as doenças eram mais frequentes entre os cativos
mais jovens e os aleijos entre os idosos. Ao longo da pesquisa foi possível compreender como
o trabalho e os maus-tratos senhoriais contribuíram para o desenvolvimento de doenças e

2
APEB, SJ, 33 inventários de Salvador (1700-1750).
3
APEB, SJ, 33 inventários de Salvador (1700-1750).
133

incapacidades físicas entre os cativos, e possibilitou entender alguns dos imaginários que
durante muito tempo conceituaram a origem das moléstias que floresciam na Bahia,
relacionando-as a entrada dos africanos escravizados no porto da cidade.
Assim, a partir do entendimento destes imaginários foi possível determinar em que
medida o tráfico transatlântico de escravos colaborou para que determinadas doenças
(escorbuto, lepra, bexigas, elefantíases dentre outras), desembarcassem junto com os
escravizados em Salvador. Nesse sentido, partindo das considerações que foram feitas ao
longo deste debate, concluímos que as doenças que acometiam os africanos sequestrados e
escravizados, antes e durante a travessia do Atlântico, era resultado das péssimas condições às
quais eram submetidos. Em relação ao trabalho e ao mau tratamento senhorial, percebemos
que tanto a doença quanto os aleijões, também se associavam às condições de trabalho a que
eram submetidos no cativeiro.
Desse modo, o estudo proporcionou lançar novos olhares para o século XVIII e para
as diversas formas de se pensar a escravidão e a doença no mundo colonial e, também a
própria relação senhor versus escravo. As condições de sobrevivência às quais eram
submetidos os escravizados em Salvador e no Recôncavo na primeira metade do setecentos
foram determinantes tanto para as doenças que os acometeram quanto para os aleijos que
padeceram.
134

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