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Banca examinadora:
Suplente:
CDD: 981
Ao meu pai Cícero (in memoriam),
e a minha mãe Ironete.
De todos os bens naturais o único, de que goza o escravo é a saúde. O
bem da riqueza, não o alcança; porque nada tem de seu, pois pertence
a seu senhor tudo que lucra. Menos alcança o bem das delícias; pois
vive continuadamente entre os trabalhos e penalidades do cativeiro.
No bem da honra não tem parte alguma; porque pelo direito são só
servos reputados e contados entre as pessoas infames. E assim, só
lhes resta o bem da saúde. Mas se este bem único, lhe tira a
enfermidade; quem não vê que então ficam desamparados de todo o
bem e no estado maior de miséria e desamparo?1
Tudo é prejudicial à saúde, tudo nocivo, e não se pode negar que tudo
procede da falta de governo econômico, e omissões do Tribunal da
Saúde.2
1
BENCI, Jorge. Economia cristã dos senhores no governo dos escravos (1700). São Paulo: Grijalbo, 1977.
p. 74.
2
VILHENA, Luís dos Santos. A Bahia no Século XVIII. Vol. 1. Salvador: Itapuã, 1969. p. 161.
Agradecimentos
Uma vez me disseram que durante a nossa jornada um dos sentimentos mais bonitos
que podemos demonstrar para alguém é a gratidão. Palavra tão simples composta por poucas
letras, mas que para mim carrega um significado que vai além daquele encontrado nos
dicionários. Assim, eu posso dizer que gratidão não é apenas uma forma de agradecimento,
ela é reconhecer e entender o papel do outro a quem você é grato no caminho percorrido até
aqui, por isso, eu não poderia deixar de reconhecer a importância daqueles que fizeram parte
do processo de aprendizagem e construção desse quebra-cabeça (no bom sentido), que foi a
dissertação.
E assim, primeiramente, eu agradeço a FAPESB pelo financiamento necessário para o
desenvolvimento deste estudo em um momento em que a luta pela continuidade da pesquisa
científica e acadêmica vem sofrendo com os inúmeros cortes em relação às verbas destinadas
a educação e ao desenvolvimento científico, pelo governo federal.
Agradeço a Kátia Lorena Novais Almeida, primeiro por aceitar encarar esse desafio ao
meu lado e, também por ter sido durante esse período mais que a minha orientadora. Você foi
amiga, conselheira e muitas vezes, a pessoa que me ajudou a colocar não somente as ideias,
mas também a cabeça no lugar e eu serei sempre grata por você ter feito parte do meu
processo de amadurecimento.
Quero agradecer também imensamente a Daniele Souza e André Nogueira por terem
aceitado o convite para fazer parte da minha banca e por todo o cuidado e contribuições que
foram feitas desde o momento da qualificação até agora.
E falando em contribuições, os meus agradecimentos a Urano Andrade, Carlos da
Silva Jr. e João Reis pela generosidade em conceder a documentação necessária para análise e
escrita desta dissertação. Do mesmo modo, agradeço a Laís Viena, Hélida Conceição, Ediana
Mendes, Maria Elisa Lemos, Ricardo Batista e Geraldo Antônio pelas conversas e indicações
de trabalhos que me ajudaram no processo de compreensão do meu objeto de pesquisa.
Outra pessoa muito importante para a construção desta dissertação vem me
acompanhando desde a graduação. Cândido Domingues, gratidão é muito pouco diante de
tudo que você tem me ensinado, obrigada pela amizade, conselhos, risadas, textos e fontes
que você mandava ou indicava e obrigada principalmente por estar ao meu lado.
Quero também expressar os meus agradecimentos saudosos aos meus amigos que
fazem parte dessa caminhada desde que ela se iniciou lá na UNEB Campus IV em Jacobina,
Iasmim, Matheus, Maríllia, Marconey, Carina e Élson. Aos meus colegas e amigos que o
mestrado me deu Igor, Samir, Bruna, Luís, Aline, Fabiana, Diego e Marina. Agradeço
também aos que me acolheram em Alagoinhas Rafael, Uermerson e Naíse. E aos que em
Alagoinhas se tornaram parte da minha família Felipe e Jailda. E eu também não poderia
deixar de demostrar a minha gratidão para aquelas pessoas que conheci durante o mestrado,
então, eu agradeço profundamente a Gabrielli, Caio, Mikaelly, Bruna Letícia, Ana Beatriz e
Joanne pelos encontros, por todo apoio e pelas risadas. E como diria Emicida “quem tem um
amigo tem tudo, é presente dos deuses, é um ombro pra chorar depois do fim do mundo, é
abrigo em laço, oásis nas piores fases, mas é também alegria”.3 E eu sinto muita alegria em
poder dizer que vocês fazem parte da construção deste trabalho.
E por fim, a minha família que tem sido o meu porto seguro e a base necessária para
continuar sempre lutando e seguindo em frente, principalmente o meu pai que apesar de não
estar mais aqui me ensinou a nunca desistir, a ser sempre forte e corajosa. E como eu disse em
linhas anteriores, agradecer também é reconhecer a importância das pessoas e vocês sem
dúvida fazem parte não só da construção deste trabalho, mas também do meu processo de
amadurecimento enquanto pesquisadora e também como pessoa. Obrigada!
3
Quem tem um amigo (tem tudo). Interprete: Emicida part. Zeca Pagodinho & Tokyo Ska Paradise Orquestra.
Compositores: Emicida e Wilson das Neves. IN: AmarElo. Rio de Janeiro: Sony Music – Laboratório
Fantasma, 2019, faixa 4.
Resumo
Esta dissertação analisa as doenças a partir das suas conexões com o tráfico transatlântico de
escravos e a escravidão na Bahia, durante a primeira metade do século XVIII. Por meio de um
conjunto de fontes (cartas, atas, ofícios da Câmara Municipal, inventários post mortem de
senhores de escravos e dos manuais de medicina douta), este estudo busca compreender as
diversas percepções e imaginários sobre as doenças construídas durante o período estudado e
a contribuição do trato negreiro e da escravidão para o desenvolvimento das moléstias e dos
aleijos entre a população escrava. Para este fim, além dos perfis de senhores e escravos, foram
analisadas as viagens, a mortalidade no Atlântico, as condições de trabalho e os maus-tratos
senhoriais com o objetivo de identificar as moléstias e os aleijos que foram provocados pelo
trabalho forçado e pelo mau tratamento dado aos cativos pelos senhores. O conhecimento de
tais aspectos relacionados à escravidão permitiu uma compreensão sobre a História Social das
Doenças e como senhores e autoridades encaravam as enfermidades.
This dissertation analyzes diseases from their connections with the transatlantic slave trade
and slavery in the Captaincy of Bahia, during the first half of the 18th century. Through a set
of sources (letters, minutes, official letters from the City Hall, post mortem inventories of
slave masters and manuals of learned medicine), this study seeks to understand the different
perceptions and imaginaries about diseases that were built during the period studied and the
contribution of slave trade and slavery to the development of diseases and cripples among the
slave population. To this end, beyond to the profiles of masters and slaves, we analyzed
travels, mortality in the Atlantic, working conditions and mistreatment of landlords in order to
identify the inconveniences and cripples caused by forced labor and bad treatment given to
the captives by the masters. The knowledge of theses aspects related to slavery allows an
understanding of the Social History of Diseases and how masters and authorities faced the
diseases.
Introdução................................................................................................................... 12
Conclusão................................................................................................................... 131
Arquivos e Fontes...................................................................................................... 134
Bibliografia Consultada............................................................................................ 135
Lista de tabelas, gráficos, quadros e figuras
Tabela 1: Inventários post mortem de senhores que possuíam escravos doentes e aleijados,
1700-1750......................................................................................................................... 73
Tabela 2: Escravos doentes e aleijados por década, 1700-1750..................................... 76
Tabela 3: Posse de escravos em escravarias acometidas por doenças e aleijos, Salvador,
1700-1750......................................................................................................................... 76
Tabela 4: Ocupações dos escravos doentes, em Salvador e Recôncavo, 1700-
1750................................................................................................................................. 83
Tabela 5: Tipos de doenças entre os escravizados, 1700-1750....................................... 92
Tabela 6: Distribuição dos escravos aleijados e incapazes, Salvador e Recôncavo 1700-
1750................................................................................................................................. 104
Tabela 7: Os principais aleijos e incapacidades entre os escravizados em Salvador e
Recôncavo, 1700-1750.................................................................................................... 115
Introdução
1
BLOCH, Marc. Os reis taumaturgos: O caráter sobrenatural do poder régio França e Inglaterra. 2ª ed.
Tradução de Antônio Fontoura. São Paulo: Companhia das Letras, 2018.
2
LE GOFF, Jacques et al. As doenças têm história. Tradução de Laurinda Bom. Lisboa: Terramar, 1985.
3
REVEL, Jacques; PETER, Jean-Pierre. O corpo: o homem doente e a sua história. In: LE GOFF, Jacques;
NORA, Pierre (org.). História: novos objetos. Tradução de Terezinha Marinho. Rio de Janeiro: Francisco
Alves, 1974. p. 141-159.
14
4
CARTWRIGHT, Frederick F.; BIDDISS, Michael. As doenças e a história. Tradução de Fernanda Oliveira.
Portugal: Publicações Europa-América, 2003.
5
BLUTEAU, Raphael. Vocabulário português & latino: aulico, anatomico, architectonico. Coimbra: Collegio
das Artes da Companhia de Jesus, 1712-1728. 8 v. Disponível em:
http://dicionarios.bbm.usp.br/ptbr/dicionario/edicao/1. Acesso em: 10 de fevereiro de 2021.
6
ABREU, Jean Luiz Neves. O corpo, a doença e a saúde: o saber médico luso-brasileiro no século XVIII.
Tese de doutorado apresentada ao programa de pós-graduação em História da Faculdade de Filosofia e
Ciências Humanas da UFMG, 2006. p. 12.
7
NOGUEIRA, André Luís Lima. Entre cirurgiões, tambores e ervas: calunduzeiros e curadores ilegais em
ação nas Minas Gerais (século XVIII). 2013. Tese (Doutorado em História das Ciências e da Saúde) – Casa de
Oswaldo Cruz, Rio de Janeiro, 2013.
15
corpo, a vida e a morte, a doença é percebida como uma construção cultural, pois toda
sociedade tem uma maneira específica para entendê-la.8 Já Alfred Métraux destacou em sua
análise sobre os povos tupinambás que a origem das moléstias era associada ao sortilégio, ou
seja, a magia ou malefício e como todas as doenças eram causadas por feitiçaria, o cuidado
com o corpo doente dependia das artes mágicas desenvolvidas pelos feiticeiros.9
Daí a origem da interpretação da doença enquanto feitiço. “Doença de feitiço” foi o
termo encontrado por Nogueira nas fontes ao analisar as denúncias sobre feitiçaria e bruxaria
registradas nos Cadernos do Promotor do Santo Ofício. Tais denúncias relacionavam as
práticas de cura dos curadores não licenciados na capitania de Minas Gerais, no curso do
século XVIII, à prática da bruxaria e da feitiçaria. Assim, as “doenças de feitiço” eram
imaginadas como forma de atingir um desafeto.10 Nesse sentido, a ideia de que as pessoas
poderiam entrar na mira daqueles que usavam as práticas mágicas com a intenção de atingir
um desafeto estava, de acordo com Nogueira, enraizada entre os moradores das regiões
auríferas, sobretudo quando se tratava de curas mal sucedidas ou de vinganças planejadas por
aqueles que conheciam a força e a eficácia da feitiçaria.11 Sobrenatural, também foi a
expressão utilizada por Mary Karasch em seu estudo sobre a vida dos escravos no Rio de
Janeiro imperial. Conforme salientou a autora, o entendimento a respeito da origem dos
achaques vinculado as forças divinas ultrapassou as fronteiras da senzala e adentrou a casa
grande, tornando comum entre os senhores de escravos a busca da cura das doenças por meio
das artes mágicas.12
Por outro lado, o tráfico de africanos escravizados foi, por muito tempo,
responsabilizado pelo surgimento das epidemias na América portuguesa. Luiz Felipe de
Alencastro apresentou algumas reflexões sobre o processo de formação do Brasil pelo
Atlântico Sul, explorando as questões de ordem geográfica e política administrativa. Seu
argumento sugere que o processo de “unificação microbiana do mundo” e a progressividade
das moléstias no ultramar, alicerçaram-se diante do curso que tomou a colonização, a
expansão territorial e o contato entre europeus, africanos e indígenas proporcionados pelo
8
LÉPINE, Claude. Os dois reis do Danxome: varíola e monarquia na África Ocidental 1650-1800. Marília:
UNESP; São Paulo: FAPESP, 2000. p. 9.
9
MÉTRAUX, Alfred. A religião dos tupinambás e suas relações com a das demais tribos tupi-guaranis.
Tradução de Estevão Pinto. São Paulo: Companhia Editora Nacional, 1979, p. 181.
10
Além disso, os estudos de André Nogueira se dedicam também a analisar além das práticas de cura não
licenciadas e as ações do Tribunal do Santo Ofício, as doenças que acometiam a população escrava nas minas.
11
NOGUEIRA, op. cit., 2013.
12
KARASCH, Mary C. A vida dos escravos no Rio de Janeiro 1808-1850. Tradução de Pedro Maia Soares.
São Paulo: Companhia das Letras, 2000.
16
e a parca alimentação foram decisivos para a continuidade das doenças em alto mar ou em
cativeiro.16
Jaime Rodrigues também aponta que o abastecimento alimentar dos navios (ou a falta
dele), era uma das causas do escorbuto em alto mar. De acordo com o autor, a frequência em
que a doença se manifestava nas embarcações negreiras tornou obrigatória as paradas para o
reabastecimento de água e provisões, mostrando que nem mesmo os navios mais preparados
para as viagens marítimas escapavam do ataque das doenças durante o percurso atlântico.17
Assim, as condições de sobrevivência ao escravismo são, para muitos historiadores,
fundamentais para compreender a relação entre escravidão e doenças. Mary Karasch, com
base nos registros de óbitos da Santa Casa de Misericórdia do Rio de Janeiro, relacionou a
mortandade entre a população escrava a quatro fatores específicos: o cansaço físico, os maus-
tratos senhoriais, a dieta inadequada e a doença. Esse conjunto de fatores elencados pela
autora era o principal responsável pela mortalidade em cativeiro.18 Em estudo recente Keith
Barbosa associou, a partir dos registros de óbitos das freguesias da Candelária e do Irajá, a
mortandade ao campo do domínio senhorial e as condições de vida às quais eram submetidos
os africanos escravizados e seus descendentes.19 A historiadora Tânia Salgado Pimenta
retomou esta discussão para reafirmar não somente a relação da mortalidade com as formas de
sobrevivência ao escravismo, mas as conexões entre a escravidão e as enfermidades, levando
em consideração a higiene, alimentação e o trabalho a que era submetido o escravo.20
Entretanto, apesar destas contribuições ainda há muitas lacunas no campo
historiográfico voltado para a temática da história da escravidão e das doenças na Bahia
colonial. Encontramos nos trabalhos que se dedicaram a analisar as instituições filantrópicas,
o comércio negreiro e o trabalho escravo, abordagens importantes para a construção de um
debate sobre a escravidão a partir das doenças na Bahia setecentista. O trabalho de A. J. R
Russell-Wood sobre a Santa Casa de Misericórdia da Bahia, por exemplo, discute além da
estrutura política administrativa com base nas obras pias e o funcionamento da instituição, a
negligencia dos governantes em relação às enfermidades que desembarcavam junto com os
16
ASSIS, Marcelo Ferreira de. Tráfico atlântico, impacto microbiano e mortalidade escrava, Rio de
Janeiro c. 1790 – c. 1830. Rio de Janeiro: UFRJ, 2002. p. 11-12.
17
RODRIGUES, Jaime. No mar e em terra: história e cultura de trabalhadores escravos e livres. São Paulo:
Alameda, 2016. p.76.
18
KARASCH, op. cit., p. 207.
19
BARBOSA, Keith Valéria de Oliveira. Doença e cativeiro: um estudo sobre mortalidade e sociabilidades
escravas no Rio de Janeiro, 1809-1831. Curitiba: CRV, 2020. p. 27-29.
20
PIMENTA, Tânia Salgado. Doenças. In: SCHWARCZ, Lilia M.; GOMES, Flávio (org.). Dicionário de
Escravidão e Liberdade. São Paulo: Companhia das Letras, 2018. p. 204-210.
18
21
RUSSELL-WOOD, Anthony. J. R. Fidalgos e filantropos: A Santa Casa da Misericórdia da Bahia, 1550-
1755. Tradução de Sérgio Duarte. Brasília: Editora Universidade de Brasília, 1981. p. 207.
22
SOUZA, Daniele Santos de. Entre o “serviço da casa” e o “ganho”: escravidão em Salvador na primeira
metade do século XVIII. 2010. Dissertação (Mestrado em História) – Faculdade de Filosofia e Ciências
Humanas, Universidade Federal da Bahia, Salvador, 2010. p. 98.
23
SILVA JUNIOR, Carlos Francisco da. Identidades Afro-Atlânticas: Salvador, século XVIII (1700-1750).
2011. Dissertação (Mestrado em História Social) – Faculdade de Filosofia e Ciências Humanas, Universidade
Federal da Bahia, Salvador, 2011, p. 169; SOUZA, op. cit., 2018, p. 169.
24
DOMINGUES, Cândido. Perseguidores da espécie humana: capitães negreiros da Cidade da Bahia na
primeira metade do século XVIII. 2011. Dissertação (Mestrado em História) – Faculdade de Filosofia e
Ciências Humanas, Universidade Federal da Bahia, Salvador, 2011, p. 153-154.
25
VERGER, Pierre. Fluxo e refluxo do tráfico de escravos entre o golfo do Benin e a Bahia de Todos os
Santos: século XVII ao XIX. Tradução de Tasso Gadzanis. São Paulo: Corrupio, 1987; VIANA FILHO, Luiz.
O negro na Bahia: (um ensaio clássico sobre escravidão). 4ª ed. Salvador: EDUFBA, 2008. p. 33-154;
PRADO JÚNIOR, Caio. História econômica do Brasil. 23ª ed. São Paulo: Círculo do Livro, 1986. BOXER,
Charles R. A idade de ouro do Brasil: dores de crescimento de uma sociedade colonial. Tradução de Nair de
Lacerda. São Paulo: Companhia Editora Nacional, 1969. SCHWARTZ, Stuart. Segredos internos: engenhos
e escravos na sociedade colonial 1550-1835. Tradução de Laura Teixeira Motta. São Paulo: Companhia das
Letras, 1988.
19
26
BENCI, Jorge. Economia cristã dos senhores no governo dos escravos (1700). São Paulo: Grijalbo,1977.
27
LARA, Silvia Hunold. Campos da violência: escravos e senhores na capitania do Rio de Janeiro, 1750-1808.
Rio de Janeiro: Paz e Terra, 1988.
28
LARA, Silvia Hunold. Legislação sobre escravos africanos na América portuguesa. Volume 1. Madrid:
Fundación Historica Tavera/Digibis, 2000.
29
MOTT, Luiz. Bahia: inquisição & sociedade. Salvador: EDUFBA, 2010.
30
GUINZBURG, Carlo. “O nome e o como”. In: Carlo Ginzburg, et alli. A micro-história e outros ensaios.
Lisboa, DIFEL, 1991, pp.169-178.
31
THOMPSON, Edward Palmer. Miséria da teoria ou um planetário de erros: Uma crítica ao pensamento de
Althusser. Rio de Janeiro, Zahar Editores, 1981.
20
32
ELTIS, David; RICHARDSON, David. Atlas of the Transatlantic Slave Trade. Yale University Press New
Heven & London. 2010. p. 169-183.
22
CAPÍTULO I
1
RUSSELL-WOOD, A.J.R. Escravos e libertos no Brasil colonial. Tradução de Maria Beatriz Medina. Rio
de Janeiro: Civilização Brasileira, 2005. p. 53.
2
BOXER, Charles R. A idade de ouro do Brasil: dores de crescimento de uma sociedade colonial. Tradução
de Nair de Lacerda. São Paulo: Companhia Editora Nacional, 1969; ALENCASTRO, Luiz Felipe de. O trato
dos viventes: formação do Brasil no Atlântico Sul. São Paulo: Companhia das Letras, 2000.
3
SOUZA, Daniele Santos de. Entre o “serviço da casa” e o “ganho”: escravidão em Salvador na primeira
metade do século XVIII. 2010. Dissertação (Mestrado em História) – Faculdade de Filosofia e Ciências
Humanas, Universidade Federal da Bahia, Salvador, 2010. p. 15.
4
Para a Bahia, cf. VASCONCELOS, Albertina Lima. As vilas do ouro: sociedade e trabalho na economia
escravista mineradora (Bahia, século XVIII) – Editora UESB, 2015; ALMEIDA, Kátia Lorena Novais.
Escravos e libertos nas minas do Rio de Contas: Bahia, século XVIII. Salvador: EDUFBA, 2018;
CONCEIÇÃO, Hélida Santos. O sertão e o Império: as vilas do ouro na capitania da Bahia (1700-1750).
2018. Tese (Doutorado em História) – Instituto de Filosofia e Ciências Sociais, Universidade Federal do Rio
25
de Janeiro, Rio de Janeiro, 2018. Para Minas Gerais, cf. FURTADO, Júnia F. Homens de negócio: a
interiorização da metrópole e o comércio nas Minas setecentistas. São Paulo: Hucitec, 1999. KELMER
MATHIAS, C. L. Nas redes do trato negreiro: interação mercantil e formas de acumulação na constituição
do espaço econômico do ouro, c. 1711 - c. 1730. In: I Simpósio Impérios e Lugares no Brasil: território,
conflito e identidade, 2007, Mariana. Anais do evento, 2007. v. 1. p. 1-25.
5
SOUZA, op. cit., p. 60; RUSSELL-WOOD, op. cit., 2005, p. 19.
6
SCHWARTZ, Stuart. Segredos internos: engenhos e escravos na sociedade colonial 1550-1835. Tradução
de Laura Teixeira Motta. São Paulo: Companhia das Letras, 1988. p. 77-94.
7
PITA, Sebastião da Rocha. História da América portuguesa desde o ano de 1500 do seu descobrimento
até o de 1724. São Paulo: Itatiaia, 1976. p. 78.
8
Ibidem, p. 78.
26
Mina: o tabaco. Desse modo, a região serviu como porto de exportação de açúcar, tabaco e
também do couro.9 Conforme aponta Schwartz,
9
SCHWARTZ, op. cit., p. 79.
10
Idem, p. 94.
11
SOUSA, Avanete Pereira. Poder político local e vida cotidiana: a Câmara Municipal da cidade de Salvador
no século XVIII. Vitória da Conquista: Edições UESB, 2013. p. 20.
12
Ibidem, p. 91.
13
Segundo Tânia Salgado Pimenta, a Fisicatura-mor era um juízo privativo dividido internamente por assuntos
que fossem da competência do físico-mor ou do cirurgião-mor. Sendo um órgão fiscalizador, somente com
27
discutidas mais adiante –, por exemplo, corroboram a ideia de que a Câmara, no século
XVIII, mediava as relações entre a colônia e o monarca, isto é, a Câmara representava, junto
com o vice-rei, o poder régio, e essa forma de administração foi fundamental para que o
monarca estabelecesse controle sobre a América portuguesa.
Outro aspecto que também merece ser discutido é a organização da cidade, não
somente em seus aspectos políticos e econômicos, mas em sua arquitetura enquanto capital do
Estado do Brasil. Assim, como cidade portuária, a Bahia possuía duas características
importantes: o comércio e a escravidão.14
Para compreender o espaço urbano de Salvador, recorremos à obra de Luís dos
Santos Vilhena para dela extrair informações a respeito da estrutura da cidade. Embora aborde
o final dos Setecentos, a obra de Vilhena é importante, pois, além de apresentar a visão de um
contemporâneo daquela sociedade, consideramos que o protótipo de habitação então existente
não sofrera muitas alterações em relação à primeira metade do século. Assim, ao descrever a
Conceição da Praia, o professor régio nomeado para o ensino de grego na Cidade da Bahia,
entre 1787 e 1799, ressaltou que as ruas da freguesia eram estreitas, muito em virtude do
pouco terreno que possuía.15 Sobre o traçado urbano da freguesia da Conceição da Praia,
Vilhena observou que:
sua autorização é que cirurgiões, médicos, boticários poderiam exercer as suas atividades. Cf. PIMENTA,
Tânia Salgado. Artes de curar: um estudo a partir dos documentos da Fisicatura-mor no Brasil do começo
do século XIX. 1997. Dissertação de (Mestrado em História) – Instituto de Filosofia e Ciências Humanas,
Universidade Estadual de Campinas, 1997, p. 12.
14
DOMINGUES, Cândido. Perseguidores da espécie humana: capitães negreiros da Cidade da Bahia na
primeira metade do século XVIII. 2011. Dissertação (Mestrado em História) – Faculdade de Filosofia e
Ciências Humanas, Universidade Federal da Bahia, Salvador, 2011, p. 70.
15
VILHENA, Luís dos Santos. A Bahia no Século XVIII. Vol. 1. Salvador: Itapuã, 1969. p. 92.
16
VILHENA, op. cit., p. 92.
28
cobertas com telhas ou palha, tinham poucas ou nenhuma janela o que lhes
tornava um ambiente de reduzida circulação de ar.17
17
DOMINGUES, op. cit., p. 94.
18
ALGRANTI, Leila Mezan. “Famílias e vida doméstica”, In: SOUZA, Laura de Mello e. (org.). História da
vida privada no Brasil: cotidiano e vida privada na América portuguesa. São Paulo: Companhia das Letras,
1997. p. 91-92.
19
VERGER, Pierre. Fluxo e refluxo do tráfico de escravos entre o golfo do Benin e a Bahia de Todos os
Santos: século XVII ao XIX. Tradução de Tasso Gadzanis. São Paulo: Corrupio, 1987; VIANA FILHO,
Luiz. O negro na Bahia: (um ensaio clássico sobre escravidão). 4ª ed. Salvador: EDUFBA, 2008. p. 33-154;
PRADO JÚNIOR, Caio. História econômica do Brasil. 23ª ed. São Paulo: Círculo do Livro, 1986. p. 23-
106; DOMINGUES, op. cit., 2011; SOUZA, Daniele Santos de. Tráfico, escravidão e liberdade na Bahia
nos “anos de ouro” do comércio negreiro (c.1680-1790). 2018. Tese (Doutorado em História) – Faculdade
de Filosofia e Ciências Humanas, Universidade Federal da Bahia, Salvador, 2018.
20
SOUZA, op. cit., 2018, p. 18.
29
portuguesa. Assim, alguns historiadores defenderam a ideia de que tal comércio poderia ser
entendido a partir de quatro ciclos específicos.26 Pierre Verger e Luiz Viana Filho, por
exemplo, entendiam que os negócios do tráfico com a África se iniciaram na Guiné a partir do
século XVI, passaram pelas regiões da Angola e do Congo no século XVII e chegaram a
Costa da Mina nos três primeiros quartos do século XVIII e à Baía do Benin entre 1770 e
1850. Essa tese, baseada em períodos específicos, explicava a presença significativa de
escravos de uma determinada nação em relação a outras na colônia, ou seja, se o tráfico era
direcionado para o porto angolano, a predominância de cativos dessa nação seria superior às
demais. Assim, segundo Verger e Viana Filho, quando se iniciava um novo ciclo, o anterior
chegava ao fim o que implicava no aumento do número de escravizados pertencentes a
determinados grupos étnicos em detrimento de outros que desembarcavam na América
portuguesa.27
Maria Inês Cortes de Oliveira se contrapõe a ideia de compreensão das nações
africanas a partir dos ciclos proposta por Verger e Viana Filho. Segundo a autora, no período
denominado como ciclo da Guiné (século XVI), as fronteiras geográficas não estavam bem
estabelecidas e, enquanto os portugueses compreendiam como Guiné o território entre a Costa
da Pimenta até o Gabão, na América portuguesa a região correspondia a toda extensão da
costa ocidental africana. Assim, entravam nos portos brasílicos africanos escravizados
procedentes de Gambia até a região do Congo que recebiam a denominação de “negro da
Guiné ou gentio da Guiné” como se pertencessem a um único grupo étnico.28 Nesse sentido, a
teoria dos ciclos se mostra equivocada uma vez que com o avanço do tráfico por toda a
África, surgiu a necessidade entre a sociedade escravista de identificar os estrangeiros
principalmente aqueles pertencentes as nações consideradas rebeldes e que poderiam causar
problemas, por isso, a teoria dos ciclos e a nomenclatura “negro da Guiné ou gentio da Guiné”
não dão conta de explicar a complexidade da construção dos grupos étnicos no Brasil.
Buscando explicar a maneira como os traficantes organizavam a escravatura, Mariza
de Carvalho Soares discorreu a respeito da noção de “grupos de procedência”, para a autora a
procedência dada aos africanos escravizados era internalizada fazendo com que cada grupo se
26
Para a Bahia, os estudos de Carlos da Silva Jr têm contribuído para se pensar a diversidade em relação às
identidades afro-atlânticas em Salvador e seu Recôncavo, na primeira metade do século XVIII. SILVA JR,
2011.
27
VERGER, op. cit., 1987; VIANA FILHO, op. cit.
28
OLIVEIRA, Maria Inês Cortes de. “’Quem eram os negros da Guiné’”? A origem dos africanos na Bahia”,
Afro - Ásia, Salvador, n° 29/30 (1997), p. 37-40.
31
29
SOARES, Mariza de Carvalho. Devotos da cor: identidade étnica, religiosidade e escravidão no Rio de
Janeiro, século XVIII, Rio de Janeiro, Civilização Brasileira, 2000, p. 116 – 119.
30
PARÉS, Luís Nicolau. A formação do Candomblé: história e ritual da nação jeje na Bahia, Campinas,
Editora da Unicamp, 2006, p. 26.
31
SILVA JR, Carlos da. op. cit., 2011. p. 20.
32
SOUZA, op. cit., 2018, p. 20-21.
33
VERGER, op. cit., p. 12-13 e p. 19-30; VIANNA FILHO, op. cit., p. 93-100.
34
SOUZA, op. cit., 2018, p. 30-31.
32
35
RUSSELL-WOOD, op. cit., 2005, p. 54.
36
SILVA JUNIOR, Carlos Francisco da. Identidades Afro-Atlânticas: Salvador, século XVIII (1700-1750).
2011. Dissertação (Mestrado em História Social) – Faculdade de Filosofia e Ciências Humanas, Universidade
Federal da Bahia, Salvador, 2011, p. 169; SOUZA, op. cit., 2018, p. 32-35.
37
MILLER, José C. Way of Death: Merchant Capitalism and Angola Slave Trade, 1739-1830. Wisconsin,
The University Wisconsin Press, 1988. p. 330-340.
38
SOUZA, op. cit., 2018, p. 32.
33
eram levados pelos marujos ao convés superior. Segundo Marcus Rediker, durante a viagem,
quando o tempo estava bom, os marujos levavam os escravizados ao convés superior onde
lavavam os rostos e as mãos para que o médico embarcado pudesse examiná-los e, em
seguida, lhes era servida a primeira refeição do dia e água.43
Era nesse momento, entre a alimentação, os exames médicos e a prática de
exercícios, como a dança, que muitos escravos deprimidos se lançavam ao mar. Segundo
Souza, os marinheiros eram, em sua maioria, escravos e ocupavam diversas funções nos
navios, uma delas era a de cozinheiro responsável pela distribuição da comida, sendo outra
função importante a de carcereiro, responsável pela vigília dos escravos durante a estadia e
prática de exercícios no convés superior. A vigilância era fundamental para evitar que aqueles
escravos deprimidos se lançassem ao mar, por isso, quando um cativo se recusava a comer ou
dançar os carcereiros aplicavam punições como o açoite.44 Os capitães, de acordo com
Oliveira Mendes, em alguns casos, proibiam que os cativos fossem levados ao convés
superior para evitar a prática constante do suicídio em alto mar. Além disso, uma medida para
afastar as doenças nos tumbeiros era a limpeza dos porões pelos marinheiros usando esponjas
e vinagre para aliviar o cheiro de morte que acompanhava os navios.45
Assim, diversas situações corroboravam para o surgimento das enfermidades ainda
nos portos africanos que, juntamente com a precariedade das condições da travessia do
Atlântico para o Brasil, tornavam os porões das embarcações negreiras um ambiente propício
às doenças que acometiam os africanos escravizados. Analisar as circunstâncias em que os
cativos cruzavam o Atlântico e as doenças que se desenvolviam no interior dos navios é
importante para mensurar o impacto gerado em suas vidas.
43
REDIKER, Marcus. O navio negreiro: uma história humana. São Paulo: Companhia das Letras, 2011. p.
240-247.
44
SOUZA, op. cit., 2018. p. 231-232.
45
REDIKER, Marcus. op. cit., p. 240-247. SOUZA, Daniele. op. cit., 2018, p. 231-232. MENDES, Luiz
Antônio de Oliveira. p. 50-51.
35
46
Cf. nota de rodapé 38.
47
MENDES, op. cit., 1793. p. 46-52.
48
RUSSELL-WOOD, Anthony. J. R. Fidalgos e filantropos: A Santa Casa da Misericórdia da Bahia, 1550-
1755. Tradução de Sérgio Duarte. Brasília: Editora Universidade de Brasília, 1981. p. 206.
49
ABREU, Jean Luís; NOGUEIRA, André Luís; KURY, Lorelai B. Na saúde e na doença: enfermidades,
saberes e práticas de cura nas medicinas do Brasil colonial (séculos XVI-XVIII). In: TEIXEIRA, Luiz
Antônio; PIMENTA, Tânia Salgado; HOCHMAN, Gilberto (org.). História da saúde no Brasil. São Paulo:
Hucitec, 2018. p. 27-66.
50
ALENCASTRO, op. cit., p. 127-138.
36
As doenças elencadas por Alencastro, para o século XVII, nos ajudam a pensar sobre
as doenças que se espalhavam dentro dos navios e em Salvador na primeira metade do século
XVIII, pois elas ainda se faziam presentes dado as péssimas condições de transporte,
alimentação e vestimenta dos africanos enviados para o Brasil. É importante destacar também
que os cativos passavam dias andando das prisões até o porto de embarque sobre o sol
escaldante sem ingerir a quantidade de alimentos e água necessários à manutenção da saúde
do corpo. Conforme exposto anteriormente pelo autor, muitos adoeciam e morriam antes
mesmo de embarcarem nos navios negreiros.
A alimentação certamente era uma das maiores preocupações durante a viagem.
Segundo Souza, os navios negreiros demandavam grande quantidade de farinha de mandioca,
o que ocasionou o desabastecimento do produto em Salvador e a intervenção da Câmara que
obrigou, já em fins dos Seiscentos, os “senhorios de embarcações negreiras” a cultivarem 500
covas de mandioca a fim de abastecer seus navios com o produto.52 Para Jaime Rodrigues, um
dos temores em alto mar era justamente a questão do abastecimento alimentar, uma vez que a
falta de alimentos influenciava no surgimento de doenças nos porões dos navios negreiros e
entre a tripulação afetada também com a falta de mantimentos.53
51
Ibidem, p. 128.
52
SOUZA, op. cit., 2018, p. 235.
53
RODRIGUES, Jaime. No mar e em terra: história e cultura de trabalhadores escravos e livres. São Paulo:
Alameda, 2016. p.76.
37
Assim, analisando a dieta destinada aos cativos durante a viagem atlântica, a qual era
composta por uma porção de farinha de mandioca, uma canada d’água, carne de baleia
salgada, limão ou laranja na tentativa de se evitar o escorbuto, servidas diariamente, é notório
o quanto as questões sociais foram moldando e definindo as moléstias ao longo do tempo.
Entretanto, como as autoridades do período estudado encaravam e entendiam os achaques?
Segundo Russell-Wood, a Cidade da Bahia passou por várias epidemias no século
XVII e começo do XVIII, e a negligência das autoridades em relação às condições sanitárias
urbanas era uma das causas da alta incidência de doenças em Salvador. Os governantes, vice-
54
CARVALHO, Diana Maul de. Doenças dos escravizados, doenças africanas? In: PORTO, Ângela (Org.).
Doenças e escravidão: sistema de saúde e práticas terapêuticas. Rio de Janeiro: Casa de Oswaldo
Cruz/Fiocruz. CDROM p.1-21, 2007. p. 12-13.
55
Ibidem, p. 76.
56
Ibidem, p. 82.
38
reis e o conselho municipal, de acordo com o autor, não se importavam com os problemas
médicos. Sobre as autoridades da coroa e o conselho municipal, Russell-Wood reconhece que
57
RUSSELL-WOOD, op. cit., 1981, p. 207.
58
Arquivo Público do Estado da Bahia, Seção Colonial Provincial, Maço 461 (Portarias, 1722-24).
Doravante: APEB, SCP, Maço.
39
Calabar e de São Tomé. Contudo, embora tenham desembarcado no porto de Salvador 315
africanos vitimados pelo tráfico, até o momento não há informações mais precisas no TSTD
sobre a taxa de 12,25% de mortes decorrentes da travessia atlântica para esta carregação.
Também não encontramos informações que indicassem que o navio teria ficado em
quarentena após a sua chegada, mas, acreditamos que o Nossa Senhora do Rosário e São
Gonçalo era o mesmo navio que saiu da quarentena em março de 1724.59
Sobre a duração da viagem lembremos que o navio fez escala em São Tomé e pode
ter permanecido um tempo a mais que o esperado nesse porto. É possível que a embarcação
tenha encontrado dificuldades para completar a sua carga em virtude dos conflitos daomeanos
ocorridos naquele período.60 A viagem até a Costa africana durava em média 40 a 45 dias,
entretanto, o gira da viagem completa, incluindo a saída da Bahia, a chegada à África e o
retorno para o porto de Salvador poderia levar de 4 meses a 2 anos, isso porque o capitão do
navio poderia encontrar dificuldades relacionadas ao abastecimento de provisões e escravos
em um determinado porto sendo obrigado a fazer escalar em outro. Outra razão que sustenta
essa hipótese de que o tumbeiro ficou em quarentena é o Nossa Senhora, é o fato de que este
foi único navio registrado no TSTD que saiu da Bahia para resgatar escravos no Calabar,
tendo retornado em 1724. Assim, mesmo com a ausência de informações na portaria, em
virtude da falta de conservação do documento, o fato de esse navio ser o único registrado para
1724 nos leva a crer que se trata da mesma embarcação. Assim como a portaria, o registro
desse navio não apresenta nenhuma informação acerca dos motivos das mortes durante a
travessia.
Ainda para o ano de 1724, encontramos outro pedido para se fazer quarentena de um
navio que havia saído da Ilha de São Tomé, registrado em ofício da Câmara aos oito dias do
mês de fevereiro de 1724.61 Eis o registro:
Senhor. Chegou a este porto um navio, vindo da Ilha de São Tomé, a quem
foi logo visitar o Provedor da Saúde com o médico do partido deste Senado,
e [o] acharam tão infeccionado como consta da cópia do termo que mandou
fazer o mesmo Provedor da Saúde, e sendo necessário que em observância
dele fosse logo o dito navio fazer quarentena se mandou notificar pelo
Alcaide para que partisse logo para o lugar determinado.62
59
TSTD. Acesso em: 23 mar. 2020.
60
Sobre os conflitos envolvendo o Daomé, cf. DOMINGUES, op. cit., p. 46-48; SOUZA, op. cit., 2018, p. 65-
66.
61
APEB, SCP, Maço 111.1, fl. 100f. Ofícios do Governo, 1712-1736.
62
Ibidem.
40
No entanto, assim como na portaria, não foi lançado em ofício o nome da embarcação
ou informações sobre o capitão e a doença que acometia sua tripulação e os escravos
embarcados. Também não foram encontrados registros deste navio no TSTD para o ano de
1724. Ainda assim, a documentação permite que se entenda o posicionamento das autoridades
frente a essas questões. Quando uma enfermidade se manifestava em uma embarcação o
pedido de quarentena era a primeira medida a ser tomada para controlar e evitar que
determinadas moléstias adentrassem a cidade. O desenvolvimento de uma doença contagiosa
pelas ruas de uma cidade colonial provocava resultados indesejáveis, uma vez que poderia
ocasionar epidemia e, consequentemente, levar a uma desordem social. Levando em conta que
a população e as autoridades não estavam preparadas para viver uma epidemia, as cidades
coloniais eram consideradas insalubres, e, por isso, a inspeção do médico e do cirurgião nas
embarcações, além do cumprimento da quarentena fora dos domínios da urbe, eram medidas
consideradas fundamentais.
Em outra ocasião, encontramos um pedido de quarentena destinado a um navio com
procedência de Angola, datado de 26 de março de 1732. Consta na ata que os responsáveis
pela visita foram o médico João Alvares de Vasconcelos e o cirurgião Francisco da Costa
Franco, que mesmo não identificando a doença que acometia os passageiros da embarcação,
solicitaram o seu isolamento justificando que temiam que a enfermidade fosse contagiosa. Por
esse motivo, não é de se estranhar a solicitação de uma segunda inspeção a este navio, após o
período em que os doentes ficaram resguardados. Feita a nova averiguação e constando que a
enfermidade que castigava os embarcados daquele navio era o mal de Luanda, o médico João
Alvares de Vasconcelos, João Cardoso de Miranda e demais médicos e cirurgiões presentes
pediram o desembarque de todos os embarcados para que estes recebessem o devido
tratamento, pois não havia perigo de contágio ou risco de epidemia à população de Salvador e
ao bem comum.63
Localizamos nos registros do TSTD o navio Nossa Senhora da Piedade, identificado
pela numeração #49547, que saiu da Bahia com destino a Luanda e atracou no porto de
Salvador no dia 26 de fevereiro de 1732. Partiu da costa africana capitaneado por João Luís
Porto com 312 africanos embarcados, chegando à Bahia com 267 escravizados. Assim como
em outras situações, a base de dados do TSTD não esclarece os 14,37% de mortes durante o
63
SALVADOR. Documentos Históricos do Arquivo Municipal, 9. Atas da Câmara: 1731-1750. Salvador:
Câmara Municipal, Fundação Gregório de Mattos, 1994. p. 28-29. Estavam presentes: Agostinho de Souza
[...] Bem.do; Francisco Alvares Roiz; Francisco de Almeida Fonseca; Francisco da Costa Franco; Joseph [...]
Viegas e Francisco de Araújo de Azevedo.
41
64
TSTD. Acesso em: 19 de maio 2020.
65
BLUTEAU, Raphael. Vocabulárioportuguês& latino: aulico, anatomico, architectonico. Coimbra: Collegio
das Artes da Companhia de Jesus, 1712-1728. 8 v. Disponível em:
http://dicionarios.bbm.usp.br/ptbr/dicionario/edicao/1. Acesso em: 10 de fevereiro de 2021.
66
MIRANDA, João Cardoso de. Relação Cirúrgica e Médica, na qual se trata, e declara especialmente
hum novo método para curar a infecção escorbútica; ou mal de Luanda, e todos os seus produtos,
fazendo para isso manifestos dois específicos, e muito particulares remédios. Lisboa: Officina de Miguel
Rodriguez, impressor do eminentíssimo senhor Cardeal Patriarca, 1747. p. 4-5.
42
A historiadora Diana Maul de Carvalho, fazendo uso das atribuições de Luiz Felipe
de Alencastro, John Huxhan, K.J. Carpenter e Thomas Sydenham, classificou o escorbuto nos
séculos XVII e XVIII, como uma forma de alteração nos humores corpóreos, e seu conjunto
de sintomas e sinais podem ser facilmente encontrados hoje em outras doenças. 67 Com base
em um ensaio sobre as febres de John Huxhan (1776), membro da Royal Society de Londres,
a autora atribui à causa da doença à:
Desse modo, o escorbuto era uma doença originária dos navios que circulavam entre
o continente africano e a América portuguesa, e consequentemente associada aos africanos
escravizados que desembarcavam enfermos na colônia. Entretanto, as causas e sintomas
expostos por Bluteau, Miranda e Carvalho mostram que mesmo que este achaque tenha
relações com o tráfico e os fatores climáticos, ele também era resultado das precárias
condições de sobrevivência no Atlântico e do descumprimento da lei de arqueação que, como
já mencionado, previa que a quantidade de água e mantimentos deveria ser equivalente ao
número de cativos transportados, ou seja, o mal de Luanda pode ser classificado também
como uma enfermidade decorrente do desleixo dos traficantes e proprietários das
embarcações em relação à lei.
Voltando à Ata de 26 de março de 1732, analisada na seção anterior, encontramos
outro dado que nos chama a atenção. De acordo com as informações registradas na
documentação, o capitão e o mestre do navio foram condenados a pagar cinquenta mil réis e
trinta dias de cadeia. A sentença aplicada pelo Juiz de Fora sugere que ambos foram punidos
pela falta de remédios necessários para se tratar os doentes ainda na quarentena, entretanto,
67
Sobre o escorbuto, cf. ALENCASTRO, Luiz Felipe de. O trato dos viventes: formação do Brasil no
Atlântico Sul. São Paulo: Companhia das Letras, 2000. HUXMAM, John. Essai sur les differentes espèces
de fievres, avec un appendice contentant une méthode pour guérir les mariniers des maladies dans les
voyages de lon cours. Paris: Chez D’Houry, 1776. CARPENTER, K. J. The history of scurvy & vitamin
C. Cambridge: Cambridge University Press, 1998. SYDENHAM, Thomas. The entire works. London: F.
Newbery, 1769.
68
CARVALHO, Diana Maul de. Doenças dos escravizados, doenças africanas? In: PORTO, Ângela (Org.).
Doenças e escravidão: sistema de saúde e práticas terapêuticas. Rio de Janeiro: Casa de Oswaldo
Cruz/Fiocruz. CDROM p.1-21, 2007. p. 10.
43
não encontrei informações sobre a existência de uma legislação que previa a prisão e multa
em tais casos.
Os casos aqui analisados demonstram que uma das razões para a obrigatoriedade das
visitas aos navios negreiros pelo médico e cirurgião do Senado era a crença presente no
imaginário da época que associava as moléstias à entrada dos africanos escravizados no porto
da Bahia. O medo pelos estragos que as doenças contagiosas poderiam causar ao bem público
fortaleceu esse imaginário e tornou obrigatória a vistoria e exame da tripulação e dos cativos
embarcados antes do seu desembarque. Como veremos mais adiante, com o avanço dos
achaques pela cidade, tornou-se necessário também estabelecer visitas dos cirurgiões nos
açougues, currais e nas boticas.
Antes de abordarmos esse assunto é importante que seja analisado um fato registrado
no ano de 1743, que chama muita atenção. No dia 30 de setembro daquele ano, o então vice-
rei capitão-geral do Brasil e conde das Galveas, André de Melo e Castro, registrou, em
missiva enviada ao reino, os estragos causados pelas doenças na Cidade da Bahia. Segundo o
vice-rei, aquele ano era um dos mais “infaustos e terríveis vividos até então na Bahia”, pois
com a mudança de estação em abril ocorrera a propagação de doenças que se renovaram e
acometeram com mais força a população já debilitada.
Segundo Melo e Castro, estaria se desenvolvendo na cidade uma possível epidemia
de defluxos, doença classificada como renite infecciosa com secreção de coriza. O vice-rei
também mencionou outra doença, a priorizes. Não encontramos informações que pudessem
nos ajudar na identificação dessa doença. Ainda segundo o vice-rei em sua missiva era
preocupante o número de mortes que poderia resultar das referidas moléstias, que anos antes,
matara mais de cinco mil pessoas naquela Praça.69
Embora a correspondência do vice-rei não apresente dados mais completos para se
analisar tais epidemias, a documentação nos direciona para duas questões importantes: a
primeira é que a metrópole e o monarca tinham conhecimento das doenças que acometiam o
povo da Bahia, e a segunda é o número elevado de mortos anos antes do envio dessa carta ao
rei, o qual provavelmente já tinha conhecimento sobre o impacto das mesmas. Segundo
Antônio Luís Gonçalves da Câmara Coutinho, governador-geral do Estado do Brasil entre
1690-1694, em carta de 9 de julho de 1692, desde o dia 21 de fevereiro do mesmo ano sua
69
“Carta do vice-rei e capitão-general do Brasil, conde das Galveas, André de Melo e Castro ao rei [D. João V]
informando os estragos causados pelas doenças que grassam na cidade da Bahia, sobretudo uma epidemia de
defluxos e priorizes”. AHU. Arquivo Histórico Ultramarino. Bahia. Cx. 78, D. 6444. Disponível em:
http://ahu.dglab.gov.pt/. Acesso em: 19 jun. 2020, fl. 1.
44
majestade havia solicitado que todos os navios que saíssem da Bahia em direção ao reino
levassem cartas informando sobre o estado de saúde do povo daquela praça, ou seja, o
monarca tinha conhecimento do número elevado de mortos citado pelo vice-rei.70
É intrigante o fato de que, mesmo após a morte de mais de cinco mil pessoas e com o
despertar de uma possível epidemia, o vice-rei não tenha solicitado ao monarca o envio de
cirurgiões ou remédios para tratar do povo da Bahia, confirmando a tese de Russell-Wood de
que os governantes pouco se importavam com as questões vinculadas à saúde e à higiene na
colônia. Por outro lado, Affonso Ruy argumentou que tanto a administração geral quanto a
municipal debatiam sobre dar o suporte hospitalar necessário ao povo da Bahia. Assim, “em
1732, os vereadores mantinham em São Lázaro uma enfermaria para os doentes de moléstias
contagiosas, curáveis”.71 Porém, nas fontes até aqui analisadas não percebemos nenhuma
iniciativa das autoridades para melhorar o funcionamento da saúde e higiene na capitania,
além das vistorias aos navios e os pedidos de quarentena. Ademais, o único hospital operante
na Bahia por todo o período colonial era o hospital de São Cristóvão, construído em 1549 a
pedido do governador Tomé de Souza e administrado pela Santa Casa de Misericórdia, de
onde saíam todos os recursos para as despesas e manutenção do hospital.72
Em correspondência datada de 18 de fevereiro de 1750, os oficiais camarários
solicitaram a Sua Majestade a nomeação de um cirurgião para a Câmara. Conforme solicitado
em missiva, o licenciado seria responsável pela fiscalização nos açougues, nos currais e nos
navios que chegassem ao porto de Salvador. Segundo a carta, mesmo com a benignidade dos
ares e clima da Bahia, eram várias as epidemias que grassavam por toda a cidade,
principalmente aquelas consideradas contagiosas e originárias dos navios que vinham das
conquistas com o negócio de escravos, como: sarampos, malignas, defluxos, sarnas,
escorbutos e elefantíases. A missiva evidencia ainda que os cativos enfermos eram
desembarcados sem fazer quarentena e tampouco eram separados dos sadios. Assim, a cidade
mal se recuperava de uma epidemia e já enfrentava outra, “em razão das contínuas entradas
destes navios”.73
70
Carta a mando de Foyos Pereira, secretário de Estado, sobre dar notícia em que estado fica a terra com o mal
contagioso. 1692. p. 70 apud FAZENDA, José Vieira. Revista do Instituto Histórico e Geográfico
Brasileiro. Rio de Janeiro, Imprensa Nacional, 1909.
71
RUY, Affonso. História da câmara municipal da cidade de Salvador. 2ª ed. Salvador: Academia das
Letras da Bahia 1996. p. 197.
72
RUSSELL-WOOD, op. cit., 1981, p. 205-251.
73
APEB, SCP, Maço 198. Correspondência recebida pelo governo da Bahia, Senado da Câmara da Bahia,
1733-1750.
45
74
José Jorge da Rocha atuou na Bahia como cirurgião da Câmara e, em 1758, ocupava o cargo de Juiz de Fora
da Câmara Municipal da Cidade da Bahia. Em 1777, após retorno para Portugal, recebeu a habilitação para a
Ordem de Cristo. Cf. Arquivo Nacional da Torre do Tombo. Mesa da Consciência e Ordens, Habilitações
para a Ordem de Cristo, Letra I e J, Maço 57, n.º 9.
75
APEB, SCP, Maço 198, 1733-1750.
76
NOGUEIRA, op. cit., 2013. MIRANDA, Carlos Alberto Cunha. A arte de curar nos tempos da colônia:
limites e espaços da cura. 3. ed. rev. ampl. e atual. – Recife : Ed. Universitária da UFPE, 2017.
77
MIRANDA, op. cit., p. 113.
78
Ibidem, p. 116.
46
79
BLUTEAU, op. cit. Acesso em: 12 de fevereiro de 2021.
80
MIRANDA, op. cit., p. 212. Sobre o significado da palavra “affecto”, Bluteau fez as seguintes considerações
“é a propriedade, ou atributo, que resulta da natureza de qualquer entidade; e neste sentido há bons, e maus
affectos, chamam os médicos mais particularmente affecto ao efeito de qualquer doença ou achaque, com que
se sente o corpo, ou alguma parte dele em um estado preternatural”.
81
LÉPINE, Claude. Os dois reis do Danxome: varíola e monarquia na África Ocidental 1650-1800. Marília:
UNESP; São Paulo: FAPESP, 2000. p. 9.
82
NOGUEIRA, André Luís Lima. Entre cirurgiões, tambores e ervas: calunduzeiros e curadores ilegais em
ação nas Minas Gerais (Século XVIII). 2013. Tese (Doutorado)– Curso de Pós-Graduação em História das
Ciências e da Saúde, Casa de Oswaldo Cruz – Fiocruz, Rio de Janeiro, 2013, p. 43.
47
populares portuguesas durante os séculos XVII e XVIII”.83 Para Ludwik Fleck, as doenças
venéreas ou dermatológicas como a sarna e a sífilis, por exemplo, possuíam explicações
astrológicas, humorais e de caráter religioso.84 Acreditava-se desde Hipócrates que a
concepção de doença estava relacionada a teoria humoral, ou seja, aos humores corpóreos e a
corrupção dos ares, mas o caráter religioso sempre esteve presente quando se buscava explicar
a origem das doenças. Nesse sentido, era comum esse posicionamento frente a algumas
doenças como as sarnas, que, segundo Miranda, estava ligada ao sobrenatural. Em relação à
crença de sua transmissão via leite materno, é possível considerar que estando o parasita em
contato com a pele da mãe ou ama de leite, o ato de segurar a criança e amamentá-la
possibilitava o contágio, ou seja, através do contato, e não da introdução do leite materno.
Entretanto, quando se trata do desenvolvimento da doença nos porões dos navios
negreiros, devemos levar em consideração que as condições de higiene foram fatores que
influenciavam diretamente no desenvolvimento de enfermidades venéreas ou de pele em alto
mar, a sarna, nesse sentido, se manifestaria com facilidade em um ambiente onde além de
amontoados os escravizados tinham contato com ratos, fezes e com baixa circulação do ar.
Segundo Oliveira Mendes, a sarna era muito comum nos armazéns onde os escravos
aguardavam o embarque para o Brasil, e nos porões dos navios negreiros.85 Carlos Alberto
Cunha Miranda, considerou a sarna uma enfermidade frequente entre os escravizados e que se
desenvolvia principalmente em locais onde a higiene era negligenciada, assim, em alguns
casos, ao coçar a região atingida pela sarna, a irritação da pele poderia se transformar em uma
infecção facilitando o contagio.86
Outra doença citada na correspondência de 1750, e frequentemente relacionada ao
continente africano e ao tráfico de escravos, é a elefantíase. Segundo Alencastro, essa doença
era provocada por uma filariose do aparelho circulatório, conjuntivo e das cavidades serosas,
conhecida na época como “bicho da costa”, da costa da África.87 Recorrendo mais uma vez a
Bluteau, que salientava: “bicho” era gerado nas pernas, que se faz comprido e grosso como
uma corda de viola, comum na região da Costa da Mina.88 Entre os seus sintomas, a
83
WALKER, Timothy D. Médicos, medicina popular e inquisição: a representação das curas mágicas em
Portugal durante o Iluminismo. Tradução de Mariana Pardal Monteiro. Rio de Janeiro/Lisboa: Editora
FIOCRUZ/Imprensa de Ciências Sociais, 2013, p. 63.
84
FLECK, Ludwik. La gênesis y el desarrollo de um hecho científico. Madri: Alianza Editorial, 1986. p. 47-
50.
85
MENDES, op. cit., 1793. p. 79.
86
CUNHA MIRANDA, op. cit., 2017. p. 401-402.
87
ALENCASTRO, op. cit., p. 128.
88
BLUTEAU, op. cit.
48
89
Idem.
90
APEB, SCP, Maço 198, 1733-1750. “Carta do vice-rei e capitão-general do Brasil, conde das Galveas, André
de Melo e Castro ao rei [D. João V] informando os estragos causados pelas doenças que grassam na cidade
da Bahia, sobretudo uma epidemia de defluxos e priorizes”; AHU. Arquivo Histórico Ultramarino. Bahia.
Cx. 78, D. 6444. Disponível em: http://ahu.dglab.gov.pt/. Acesso em: 19 jun. 2020. p. 1.
91
RODRIGUES, op. cit., 2016, p. 73-76.
49
somente esse licenciado poderia, junto com o médico responsável pelas visitas aos navios,
açougues e currais, praticar a arte da cirurgia nas carregações.92 Segundo João Batista de
Cerqueira, “o médico, licenciado ou cirurgião partidista ou do partido, era o profissional
contratado por um hospital ou pelo Senado da Câmara, portanto, pelo poder público para
tratar os pobres, presidiários e necessitados”.93
Em outra ocasião, os oficiais camarários voltaram a discutir em missiva datada de 2
de outubro de 1751, a relevância que teria a chegada de um licenciado a Salvador. Diferente
do Dr. José Jorge da Rocha, em carta analisada anteriormente, os oficiais João Teixeira de
Mendonça, Manoel Xavier Alá e Joaquim Lopes de Almeida Lima, tentaram justificar o
pedido de um cirurgião ao monarca com base na experiência e no bom serviço prestado à
Câmara por outros cirurgiões em anos anteriores a 1751. 94 Vejamos um trecho da carta:
92
APEB, SCP, Maço 198, 1733-1750.
93
CERQUEIRA, João Batista de. Da botânica a zoologia: as pesquisas e atividades do cirurgião e licenciado
Francisco Antônio de Sampaio na vila da Cachoeira, capitania da Bahia, no século das luzes. In: XXVIII
SIMPÓSIO NACIONAL DE HISTÓRIA, 2015, Florianópolis, Anais Lugares dos Historiadores: Velhos e
Novos Desafios. Florianópolis: UFSC e UDESC, 2015. p. 1-14. Disponível em:
https://anpuh.org.br/uploads/anais-simposios/pdf/2019-
01/1548945023_f9ffd3dc780d5054fa928c6f2ea4148a.pdf. Acesso em: 27 abr. 2020. p. 2.
94
Arquivo Histórico Municipal de Salvador (AHMS), Cartas do Senado a sua Majestade, Senado da
Câmara (1741-1822), maço 28.10.
95
Ibidem.
96
Ibidem.
50
alimento, deixando o gado magro e doente, tornando necessárias as vistorias pelo cirurgião
aos açougues e currais da Bahia, conforme carta de 1751, se iniciam apenas em 1742.
Sobre as doenças e sua associação com os africanos escravizados recém-
desembarcados, os oficiais enfatizaram mais uma vez a necessidade de um cirurgião partidista
da Câmara para trabalhar na fiscalização dos navios negreiros que traziam escravos infectados
por toda sorte de doenças contagiosas. Vejamos o que diz a carta:
[...] nas ruas se esta vendo nascer nossa ruina por serem os referidos
(escravos) doentes. O navio carregado de escravatura, que vão trazer
ophtalmias, sarnas, ou outras chagas escorbúticas, tumores malignos,
bexigas ou sarampos, que todas são doenças externas, malignas, e
contagiosas, de que este povo experimenta grande prejuízo; e destas tais
doenças, que são mais comuns, que os ditos escravos trazem, não podem
tomar os escravos conhecimento só o médico da Câmara que com o
Provedor da Saúde os visitam por pertencerem mais a faculdade cirúrgica,
que a physica; [...].97
97
Ibidem.
98
PIMENTA, Tânia Salgado. Doenças. In: SCHWARCZ, Lilia M.; GOMES, Flávio (org.). Dicionário de
Escravidão e Liberdade. São Paulo: Companhia das Letras, 2018. p. 205-206.
99
Ibidem, p. 205.
51
100
É durante a segunda metade do século XIX, que a disputa entre médicos e curandeiros pelo reconhecimento e
ascensão social, torna-se mais evidente no Brasil. Cf. SAMPAIO, Gabriela dos Reis. Nas trincheiras da
cura: as diferentes medicinas no Rio de Janeiro imperial. Campinas, SP: Editora da UNICAMP, 2001;
SAMPAIO, Gabriela dos Reis. Tenebrosos mistérios: Juca Rosa e as relações entre crença e cura no Rio de
Janeiro imperial. In: CHALHOUB, Sidney et. al. (org.). Artes e ofícios de curar no Brasil: capítulos de
história social. Campinas, SP: Editora da UNICAMP, 2003. p. 387-426.
101
AHMS, Cartas do Senado a sua Majestade, Senado da Câmara (1741-1822), maço 28.10.
102
BLUTEAU, op. cit. Acesso em: 12 de fevereiro de 2021.
103
MIRANDA, op. cit., 1747, p. 113-116.
104
Ibidem, p. 113-116.
52
uma inflamação e fermentação do sangue, por isso, também apresentava febres pestilentas,
aparecia com frequência nos braços e nas virilhas, matando o doente de repente. 105 O
cirurgião português Luiz Gomes Ferreira relacionou a doença aos seguintes sintomas:
“vômitos, grande febre, ânsias, desmaios e, às vezes, umas veias azuis ao redor”. 106 Em 1730,
Miranda havia sido requisitado pelo sargento-mor Manoel Fernandes da Costa, para tratar de
um escravo acometido pela doença e, segundo as suas observações o carbúnculo se
desenvolveu na parte superior da testa e possuía a aparência de uma “romã aberta”, no ano
seguinte, em 1731, o cirurgião retornou a propriedade do sargento-mor para tratar da saúde de
sua filha que também foi acometida pelo carbúnculo.107
Em relação às disenterias, elas aparecem como um termo médico que indica a
malignidade dos humores, porém não é contagiosa como indicado na correspondência, sendo
frequente, sanguinária e purulenta, a moléstia agia como uma descarga do ventre, entre os
seus sintomas estão a exulceração e as dores nos intestinos provocados por uma matéria acre,
corrosiva e contrária à natureza dos intestinos.108
A lepra, foi catalogada por Bluteau no Setecentos como mal contagioso ou “affecto”
venenoso cuja origem era uma “depravada sanguificação”, ou seja, o desenvolvimento ou
formação das células sanguíneas. Esse processo de sanguificação agia corrompendo o estado
natural do corpo originando a lepra, que também era conhecida como doença ou mal universal
que convém do morbo gálico em grão genérico, sendo muitas vezes confundida, por alguns
autores, com a elefantíase. Segundo Bluteau, os gregos acreditavam que a elefantíase seria
uma “espécie mais letal da lepra”, no entanto, o padre não menciona nenhum dos seus
sintomas.109
Recorrendo a Miranda, também não encontramos outra definição para a enfermidade,
sua causa ou sinais, o mesmo acontece no Erário Mineral de Luiz Gomes Ferreira onde o
autor apenas expõe seus métodos e receitas utilizadas no tratamento de doenças gálicas.110
Porém, entendemos que essa confusão dos gregos em relação à lepra e à elefantíase pode ser
explicada pela semelhança de alguns de seus sintomas, pois, além da lepra apresentar sinais
105
BLUTEAU, op. cit. Acesso em: 12 de fevereiro de 2021. MIRANDA, op. cit., 1747, p. 185.
106
FERREIRA, Luiz Gomes. Erário Mineral. Lisboa: Officina de Miguel Rodrigues, 1735.p. 493. Disponível
em: https://books.google.com.br/books?id=pB8EUKIfz3AC&printsec=frontcover&hl=pt-
BR&source=gbs_ge_summary_r&cad=0#v=onepage&q&f=false. Acesso em 20 jun. 2020.
107
MIRANDA, op. cit., 1747, p. 201-202.
108
BLUTEAU, op. cit. Acesso em: 12 de fevereiro de 2021.
109
Ibidem. Acesso em: 12 de fevereiro de 2021.
110
FERREIRA, op. cit. 1735.
53
de feridas nos pés e mãos, lesões no nariz e nos olhos, causando cegueira, ela também
apresentava inchaço nas regiões afetadas, característica da elefantíase.
A ophtalmia (oftalmia), por sua vez, era reconhecida por João Cardoso de Miranda
como uma “inflamação da túnica adnata, ou conjuntiva dos olhos com dor, vermelhidão, ardor
e lagrimas”. Entre as enfermidades a que os olhos estavam sujeito nesse período seria a
ophtalmia a que mais os atingia. Além disso, a inflamação provocada pela doença causava
chagas e nevoas nos olhos que prejudicavam a visão do doente.111 Recorrendo a Bluteau,
encontramos a mesma definição para a doença e, no Erário Mineral, localizamos uma receita
de colírio para o tratamento da ophtalmia.112 Sendo uma moléstia contagiosa, certamente não
encontraria dificuldade para se desenvolver nos porões das naus e assombrar o povo da Bahia
e os doutos da medicina que com frequência relatavam a existência dessa doença.
Assim, a análise da documentação e das doenças nela mencionadas a partir dos
manuais de medicina e, na sua ausência, como foi compreendido pelo dicionarista da época,
proporciona um entendimento sobre a crença de que as enfermidades eram resultado da
entrada dos africanos escravizados na cidade. A partir da compreensão sobre o que eram as
doenças que acometiam a população, especialmente a população escravizada, é possível
afirmar que essas enfermidades eram produzidas, na verdade, pelas condições precárias a que
eram submetidos os africanos para alimentar o tráfico de escravos para a América portuguesa,
bem como do não cumprimento da lei de arqueação. Entretanto, o cumprimento da lei de
arqueações não resolvia os problemas relacionados à mortalidade, pois muitos cativos já
chegavam ao porto de embarque debilitados o que aumentava as chances de desenvolverem
uma doença e morrerem antes mesmo de chegar ao destino final. Em outras palavras, essas
moléstias eram produzidas socialmente.
111
MIRANDA, op. cit., 1747, p. 40.
112
FERREIRA, 1735, p. 608.
113
Cf. RUSSELL-WOOD, op. cit., 1981; SOUZA, op. cit., 2010.
54
114
DOMINGUES, op. cit., 2011, p. 75-171.
55
apresentam lacunas. O cruzamento das mortes lançadas no banguê com os dados do TSTD
para as respectivas embarcações possibilitou tecer algumas hipóteses sobre as doenças que
vitimaram os africanos ao chegarem ao porto da cidade. Antes disso, é importante conhecer
um pouco mais como os senhorios usavam essas embarcações nos negócios negreiros e, para
isso, separamos no Quadro 2 as informações coletadas sobre os navios no TSTD:
115
Arquivo da Santa Casa de Misericórdia da Bahia, Livro do Banguê, 1741-1750, p. Ilegíveis, livro: 1257.
Doravante: ASCMB, Livro do Banguê.
116
TSTD. Acesso em: 23/02/2021.
57
desembarque, pode ter contribuído para a proliferação das moléstias entre os cativos enquanto
permaneciam no mercado de vendas ou na casa de Manoel Dias Maciel já que as mortes
ocorreram na casa desse senhor.
Em relação aos três escravos lançados no banguê para o ano de 1743, como indicado,
acreditamos que eles faziam parte da segunda viagem da Galera à Costa da Mina, levando em
consideração os dados do TSTD, isto é, a carregação tinha, inicialmente, 465 cativos
embarcados, mas chegou à Bahia entre o final de 1742 e início de 1743 com 403 escravos.117
Assim como no banguê, a base de dados do TSTD não dispõe de informações sobre as 62
mortes durante o percurso até o porto de Salvador.
As mortes dessa carregação representam 13,3% dos escravos embarcados.
Estatisticamente não é um percentual tão significativo caso houvesse uma epidemia durante a
travessia que pudesse contaminar um grande número de escravos. Conforme apontam David
Eltis e David Richardson, a taxa de mortalidade de escravos africanos durante a viagem para o
Brasil foi consideravelmente inferior em relação à mortalidade de escravos que se dirigiam
para outras regiões, a exemplo do que ocorreu com o Caribe no mesmo período (1638-1775).
Os dados confrontados pelos autores sugerem que uma proporção maior de africanos centro-
ocidentais (12,1%) morreu durante a viagem para o Brasil, enquanto a porcentagem de mortes
atlânticas para os escravizados da Guiné Superior representava 8,2% e os da Costa do Ouro e
da Baía do Benin 7,2%. Para a região caribenha, a taxa de mortalidade entre os cativos da
África Centro-Ocidental era de 16,7% para uma viagem que durava aproximadamente 75
dias. Já a porcentagem para a Guiné Superior era de 13,8% e para a Costa do Ouro e a Baía do
Benin 22,9%.118
Voltando para os nossos 13,3% de mortos do navio Bom Jesus da Confiança e Na S.ra
da Penha de França, e levando em conta que para a Bahia a taxa de mortalidade entre os
cativos durante a travessia atlântica era de 10,3%, não podemos cogitar a existência de uma
epidemia na embarcação. Como veremos mais adiante outras carregações apresentaram
porcentagens semelhantes.119 Assim, podemos considerar que o número de mortos em alto
mar diz muito sobre o prejuízo causado pelas péssimas condições de travessia atlântica à
saúde do escravo. Segundo Rodrigues, a dificuldade em relação ao abastecimento dos navios
com provisões que fossem adequadas e capazes de resistir à longa jornada atlântica e aos
117
Ibidem.
118
ELTIS, David; RICHARDSON, David. Atlas of the Transatlantic Slave Trade. Yale University Press New
Heven & London. 2010. p. 169-183.
119
Ibidem.
58
climas antagônicos permaneceu no decorrer dos séculos e, muitas vezes, essa dificuldade
fazia com que a viagem se estendesse para além do tempo planejado.120
Outra Galera que se destaca é a Nossa Senhora da Penha de França e Boa Hora, que
tinha como senhorio João Cardoso de Miranda, cirurgião português que transitou entre a
Metrópole, Salvador e Minas Gerais durante a primeira metade do século XVIII.121 Além de
cirurgião, Miranda era também homem de negócio e atuava no resgate de africanos
escravizados na Costa da Mina.122
Sabemos também que o licenciado, no espaço de pouco mais de um ano – de julho de
1741 a outubro de 1742 –, sepultou 11 cativos da Costa da Mina entre os adros da Sé e da
Conceição. Mas, observando os registros do livro do banguê, o que de fato chama atenção é
que as mortes ocorreram no espaço de poucos dias, caso de dois cativos chamados José,
ambos de nação mina, que faleceram em 17 e 28 de abril, respectivamente; Francisco e
Manuel, que morreram em 10 e 13 de maio; Maria, falecida em 12 de julho e Mônica no dia
20 do mesmo mês do ano de 1742.123 Entre os falecidos e sepultados por Miranda
encontramos também cinco escravos que pertenciam à carregação Nossa Senhora da Penha
de França e Boa Hora. Todos morreram em um espaço de pouco mais de uma semana, caso
de João, que faleceu no dia 20 de junho; Mariano, em 12 de julho; Mônica, no dia 20 do
mesmo mês; Benedito no dia três de agosto; e, por fim, Francisco, falecido em 10 de outubro
de 1742. Apesar de a morte de Francisco ter sido mais tardia, é possível que todas tenham
decorrido de alguma complicação apresentada por uma enfermidade desenvolvida ainda no
porão do navio negreiro ou enquanto aguardavam a sua venda, uma vez que esses escravos
não foram vendidos e pereceram na casa do licenciado.124
Outra hipótese levantada pelo historiador Cândido Domingues para explicar essas
mortes é a de que o cirurgião adquiria escravos doentes, pois Miranda circulava entre famílias
importantes que solicitavam os seus cuidados como cirurgião, tanto para si quanto para seus
escravos na Bahia. Desse modo, envolvido no tráfico negreiro, o cirurgião aventurou-se
120
RODRIGUES, op. cit., p.75-79.
121
SILVA JUNIOR, op. cit., p. 178-179.
122
Cf. WISSENBACH, Maria Cristina Cortez. Gomes Ferreira e os símplices da terra: experiências sociais dos
cirurgiões no Brasil-Colônia. In: FURTADO, Júnia Ferreira (org.). Erário mineral Luís Gomes Ferreira.
Vol. I e II. Belo Horizonte: Fundação João Pinheiro, Centro de Estudos Históricos e Culturais; Rio de
Janeiro: Fundação Oswaldo Cruz, 2002. p. 105-149; SILVA JUNIOR, op. cit.; BANDINELLI, Isaac
Facchini. Medicina e comércio na dinâmica colonial: a trajetória social de João Cardoso de Miranda
(século XVIII). 2018. Dissertação (Mestrado em História) – Faculdade de História Cultural, Universidade
Federal de Santa Catarina, Florianópolis, 2018.
123
ASCMB, Livro de Banguê, 1741-1743. Livro 1257, p. 32v, 46v, 50v.
124
ASCMB, Livro de Banguê. Carlos da Silva Jr. também utiliza em sua análise os óbitos dos escravos João
Cardoso de Miranda registrados no banguê. Cf.: SILVA JR., op. cit., p. 178.
59
também na compra de escravos doentes, curando-os e fazendo a revenda, prática que lhe
rendia bons lucros.125
É importante ressaltar também que, para a época estudada, qualquer doença, até
mesmo a mais simples, se malcuidada poderia se transformar em algo mais grave,
principalmente nesse processo de adaptação ao Novo Mundo. Se o escravizado já
desembarcava doente dificilmente ele seria vendido de imediato, e poderia ainda arrastar-se
enfermo até vir a óbito. Quando vendido a compradores como Miranda, especialista nas artes
curativas havia a possibilidade de a saúde dos escravos adoecidos ser restaurada, ou do
prolongamento da enfermidade antes do óbito; essa é uma das hipóteses para explicar as
mortes mais tardias na escravaria do licenciado. Ou seja, Miranda talvez investisse na
aquisição de africanos de refugo, algo também comum entre os barbeiros.
Os registros no livro do banguê, assim como na análise da embarcação anterior, não
informam sobre as causas dos óbitos dos seus escravos. Se levarmos em consideração que
esses sujeitos provavelmente desembarcaram juntos em Salvador isso justificaria o curto
período entre uma morte e outra, já que desembarcaram doentes talvez vitimados por
escorbuto, bexigas ou sarampo, doenças contagiosas, cujo contágio era facilitado pela
aglomeração e má alimentação à qual eram submetidos na embarcação. Nesse caso, partindo
da análise das referências encontradas no TSTD sobre a galera pertencente a João Cardoso de
Miranda, constatamos que a viagem de sua embarcação, identificada pelo número #52013,
durou um ano, tendo saído da Bahia em 16 de abril de 1741 e chegando à Costa da Mina em
17 de agosto do mesmo ano. Contudo, não há registro no TSTD sobre a data de saída dessa
embarcação do porto da Bahia antes do dia 17 de abril de 1742.
A viagem do Brasil até a costa da África durava, em média, três ou quatro meses.
Talvez a embarcação tenha passado por algum problema durante a viagem de ida ou até
mesmo no retorno, o que justificaria a demora de um ano para a embarcação chegar à Bahia.
A galera, capitaneada por Francisco Henriques de Moraes, saiu da Costa da Mina com 476
africanos, tendo desembarcado ao final da viagem 413 escravos, entre os quais estavam os
cinco falecidos supracitados, representando 13,2% do total de africanos embarcados. Durante
o século XVIII o Nª Sª da Penha de França e Boa Hora realizou a travessia atlântica dez
vezes, sendo seis na primeira metade do século.126
125
DOMINGUES, op. cit., p. 76.
126
TSTD. Acesso em: 30 mar. 2020.
60
127
ASCMB, Livro de Banguê, pp. Ilegíveis, livro: 1257.
128
TSTD. Acesso em: 23/02/2021.
129
ASCMB, Livro de Banguê, pp. Ilegíveis, livro: 1257.
61
também fazendo escala em São Tomé. Além disso, foram desembarcados, conforme o TSTD,
242 escravizados de um total de 279, uma perda de 13,3%.130
Também encontramos outros dois assentos de óbito, dos escravizados Joana e João,
ambos de nação mina, falecidos respectivamente nos dias 24 e 25 de junho de 1742. Esses
dois escravizados pertenciam a Francisco Barbosa Lima, que também era senhorio da
embarcação Nossa Senhora da Conceição Santo Antônio e Almas. A partir das informações
coletadas no TSTD, descobrimos que o Iate #50639 também resgatava escravizados na Costa
da Mina e que Joana e João, provavelmente, desembarcaram juntos no dia 13 de maio de
1742, já infectados por alguma doença. O Iate era comandado pelos capitães Félix Ribeiro
Correia e Manoel Jacinto Gomes e saiu daquele porto com 163 africanos embarcados. No
entanto, a taxa de mortalidade apresentada era de 10,4% de mortos, incluindo os africanos ora
mencionados que padeceram pouco mais de um mês depois da sua chegada.131
O óbito de Maria, nação angola, que chegou a Salvador a bordo do Nª S.ª da Saúde e
S. Domingos, revela que algumas embarcações não partiam, necessariamente, do porto de
Salvador. Maria morreu no dia 22 de julho de 1742, em casa do capitão Manoel Rodrigues
Farto. Maria fazia parte do grupo de 325 escravizados que embarcaram nessa Corveta que
saiu de Pernambuco com destino a Luanda, tendo chegado ao porto de Salvador no dia 6 de
junho de 1742 com 286 escravizados a bordo, ou seja, uma perda de 12%. Outra Maria, de
nação mina, que veio para a Bahia a bordo do Nª S.ª da Conceição, morreu no dia 12 de
agosto 1742, na casa de Elena Figueira, viúva. Não encontramos as informações sobre esse
barco no TSTD que pudesse auxiliar em sua identificação.132
A já conhecida Tereza de Jesus Maria, viúva do sargento-mor Manoel Fernandes da
Costa, sepultou entre agosto e dezembro de 1749, na freguesia da Conceição da Praia, 14
escravos que faziam parte da carregação da Galera Santa Anna de Nossa Senhora da
Conceição. Assim como em outros casos, não foram informadas as causas da morte no livro
do banguê. As mortes ocorreram entre os meses de agosto e dezembro. Dentre os
escravizados cujos nomes foram mencionados estava Ana, moleca, cujo óbito foi assentado
no dia 21 de setembro. Em outubro encontramos os assentos de Ignácio, falecido no dia 26;
Antônia, no dia 28 e Luís, molecão, no dia 31. Nos meses de novembro e dezembro, mais
cinco registros: Felix, João e Joseph sepultados em 4, 12 e 24 de novembro, e Manuel e
130
ASCMB, Livro de Banguê, pp. Ilegíveis, livro: 1257.TSTD. Acesso em: 23/02/2021.
131
ASCMB, Livro de Banguê, pp. Ilegíveis, livro: 1257.TSTD. Acesso em: 23/02/2021.
132
ASCMB, Livro de Banguê, pp. Ilegíveis, livro: 1257.TSTD. Acesso em: 23/02/2021.
62
Antônio nos dias 1 e 19 de dezembro.133 Os óbitos destacados podem ou não terem sido
provocados por uma enfermidade contraída a bordo da embarcação que cruzou o Atlântico,
pois os cativos chegavam tão debilitados que não se pode descartar a suscetibilidade a
contraírem doenças já na própria cidade de Salvador. Não localizamos informação sobre essa
viagem até a costa africana ou sobre sua tripulação no TSTD. Contudo, como elas ocorreram
em um curto espaço de tempo entre uma e outra, é possível que fossem decorrentes de uma
moléstia mal cuidada, a qual pode ter sido desenvolvida ainda na embarcação ou após o seu
desembarque, uma vez que esses escravizados não foram vendidos quando desembarcados.
Dona Tereza de Jesus Maria possuía ainda outra embarcação que fazia o resgate de
africanos escravizados na costa africana: a Galera Nossa Senhora do Socorro e Santo Antônio
e Almas. Foram localizados no banguê onze escravizados que pertenciam a sua carregação,
mas assim como no caso do Santa Anna de Nª S.ª da Conceição, também não encontramos
nenhuma referência sobre a sua viagem até a costa da África ou tripulação no TSTD.
Analisando os dados coletados no banguê, notamos certa proximidade em relação às mortes
dos cativos da Galera Santa Anna de Nª S.ª da Conceição. Assim, foram registrados três
escravos e uma escrava, cujos nomes não foram mencionados, entre os dias 2, 15, 20 e 21 de
setembro e um no dia 8 de outubro de 1749. Entre novembro e dezembro, faleceram João, no
dia 7 de novembro; um cativo não identificado no dia 9; Cristóvão e Bartolomeu no dia 22;
André no dia 27 de novembro e Gonçalo em 1 de dezembro de 1749.134
Nesse sentido, a partir da análise e comparação entre os períodos em que estes
africanos faleceram, podemos concluir que as duas embarcações podem ter chegado à Bahia
juntas ou até mesmo em datas aproximadas. Outra hipótese que justificaria a propagação de
doenças entre os escravizados seria pensar que, ao desembarcarem no porto de Salvador e
pertencendo à mesma traficante, os cativos de ambas as embarcações tivessem sido reunidos
para serem vendidos. Como não havia uma separação entre doentes e sadios o contágio nesses
casos era comum, ou seja, se havia a presença de uma moléstia contagiosa entre os
desembarcados da Galera Santa Anna de Nª S.ª da Conceição e, supondo que as galeras
chegaram praticamente juntas à Bahia, o contágio era algo que dificilmente não aconteceria.
Joseph Fernandes Pereira, senhorio da Galera Jesus Maria Joseph, sepultou em 11
de setembro de 1749, quatro africanos de nação angola que não foram identificados pelo
nome no cemitério da Santa Casa de Misericórdia, assim como em outros casos, não
133
ASCMB, Livro de Banguê, p. 9,10,15,23,26,27,28,30,31,33,35. Livro: 1259.
134
ASCMB, Livro de Banguê, p. 10, 13, 14, 15, 18, 29, 30, 31, 33. Livro: 1259.
63
135
ASCMB, Livro de Banguê, pp. 12. Livro: 1259.
136
ASCMB, Livro de Banguê, pp. 41. Livro: 1259.
137
ASCMB, Livro de Banguê, p. 58,59,66,67,74,81. Livro: 1259.
64
anterior, os defuntos não tiveram seus nomes registrados e foram identificados como: um
moleque, dois pretos e uma preta. Buscando-o no TSTD, identificamos o navio sob a
numeração #50722, fazendo o percurso da Bahia à Costa da Mina, pelo capitão Manoel
Gonçalves Lima. Assim, a galera saiu de Salvador em 15 de abril de 1749 e iniciou o resgate
em 22 de outubro deste ano, chegando à Bahia somente no dia 28 de setembro de 1750.
Diante do tempo gasto a espera do embarque e no trajeto até o porto de Salvador, o número de
mortos chegou a 95, ou seja, de 714 africanos embarcados, 619 chegaram ao destino final
com vida, ou seja, houve 13,3% de óbitos.138
Desse modo, os números indicam a existência e a propagação de moléstias entre a
tripulação que, consequentemente, se refletiu no número de mortos durante a travessia
atlântica e também em terra. Embora exista uma diferença de tempo em relação à introdução
da galera em Salvador e as quatro mortes listadas na documentação, esses cativos não foram
vendidos o que mostra que eles foram descarregados do navio já doentes.
Situação parecida acontece com a Galera Santa Rita S. Antônio e Almas capitaneada
por Nicolau Nunes e André Alves Fangueiro e identificada como #52024, que, de acordo com
o TSTD, saiu da Bahia em direção a Luanda em 28 de junho de 1749, iniciando o comércio
naquela região apenas no dia 27 de dezembro e chegou a Salvador em 31 de outubro de 1750,
mais de um ano depois da sua partida com 290 dos 334 escravizados resgatados. Diante da
situação, as mortes de um preto e uma preta em 26 de novembro, e de uma negrinha e um
moleque nos dias 10 e 25 de dezembro de 1750, talvez estivessem relacionadas com as mortes
dos 44 cativos em alto mar.139 Por fim, o navio Bom Jesus da Pedra S. Rita e S. Domingos,
sob a identidade #49590, que havia saído da Bahia em 15 de janeiro do referido ano e antes da
travessia fez uma escala em Princes Island, iniciou o resgate aos 2 dias do mês de maio e
chegou com os escravos em 7 de dezembro de 1750, comandado pelos capitães Jerônimo
Leite Ferreira e Tomás de Souza com 505 dos 582 escravizados embarcados. Essa
embarcação está vinculada à morte de sete escravizados que faleceram após a chegada do
navio. Assim, foi lançada no livro do banguê: uma pretinha no dia 16, dois moleques no dia
21, duas pretas no dia 27 e um preto no dia 28 de dezembro do ano de 1750, fato que ligaria a
mortalidade em terra a ocorrida em alto mar.140
Apesar disso, é importante ressaltar que nem todas as mortes durante a travessia
atlântica tinham relação com as doenças que se instalavam nos tumbeiros, o suicídio como
138
ASCMB, Livro de Banguê, p. 97, 98, 112. Livro: 1259. TSTD. Acesso em: 23/02/2021.
139
ASCMB, Livro de Banguê, p. 111, 120,124. Livro: 1259.TSTD. Acesso em: 23/02/2021.
140
ASCMB, Livro de Banguê, pp. 122, 123, 124,125. Livro: 1259.TSTD. Acesso em: 23/02/2021.
65
CAPÍTULO II
1
REIS, João José. Ganhadores: a greve negra de 1857 na Bahia. São Paulo: Companhia das Letras, 2019. p.
15.
2
SOUZA, Daniele Santos de. Entre o “serviço da casa” e o “ganho”: escravidão em Salvador na primeira
metade do século XVIII. 2010. Dissertação (Mestrado em História) – Faculdade de Filosofia e Ciências
Humanas, Universidade Federal da Bahia, Salvador, 2010. p. 60.
3
SCHWARTZ, Stuart. O Brasil colonial, c. 1580-1750: as grandes lavouras e a periferia. In: SCHWARTZ,
Stuart. História da América Latina colonial. Vol. II. São Paulo: EDUSP; Brasília: FUNAG, 2004. p. 372.
4
Ibidem, p. 372.
67
dos veios auríferos.5 Nos sertões, essa descoberta inseriu o seu território no mapa da
administração do Império português e possibilitou uma aproximação entre a coroa, o governo-
geral, desbravadores, povos indígenas e moradores desse território.6
Nessa perspectiva, o estímulo ao comércio de escravos que seria destinado às Minas
e às regiões de Rio de Contas e Jacobina, promoveu a economia fumageira no Recôncavo,
isto é, a crise na indústria açucareira, a estima dos negociantes da Costa do Marfim pelo fumo
e o aumento do preço dos escravos desembarcados tornaram o cultivo desse gênero cada vez
mais atrativo para os produtores do Recôncavo, uma vez que necessitava de um número
menor de trabalhadores para o seu cultivo e finalização.7 A crise na lavoura açucareira,
causada pela concorrência com o açúcar produzido no Caribe, não se desdobrou em crise
econômica em toda capitania, uma vez que a lavoura fumagueira e o tráfico de escravos
estavam aquecidos por conta da demanda de mão de obra proporcionada pelas minas de ouro.
Imediatamente, a produção de tabaco favoreceu a constituição de uma organização social e
econômica distinta no Recôncavo, que teria sido influenciada pelo seu baixo custo de
produção e feito com que os agricultores abandonassem a cultura de gêneros alimentícios,
tornando comum, principalmente entre os pequenos lavradores de cana-de-açúcar o cultivo de
moderados plantéis de fumo, essa substituição em relação aos gêneros alimentícios contribuiu
para a formação de uma elite na região.8
A mandioca que saía do Recôncavo fazia parte da dieta reservada aos cativos durante
a travessia atlântica e o cativeiro. Havia, portanto, dois tipos de cultivo. Enquanto a cultura de
subsistência era considerada menos nobre, voltada para as famílias e feiras locais, a produção
de farinha em larga escala era comercializada entre os engenhos e as cidades do litoral. 9 O
setor pecuário também deixou suas marcas no Recôncavo. A criação de gado que vinha dos
sertões também era fundamental para o funcionamento dos engenhos que necessitavam de
grande quantidade de carne, couro e da força física destes animais para sua manutenção. Os
5
ALMEIDA, Kátia Lorena Novais. Alforrias nas minas do Rio de Contas setecentista. In: CASTILHO, Lisa
Earl; ALBUQUERQUE, Wlamyra; SAMPAIO, Gabriela dos Reis (org.). Barganhas e querelas da
escravidão: tráfico, alforria e liberdade (séculos XVIII e XIX). Salvador: EDUFBA, 2014. p. 137-182.
6
CONCEIÇÃO, Hélida Santos. O sertão e o Império: as vilas do ouro na capitania da Bahia (1700-1750).
2018. Tese (Doutorado em História) – Instituto de Filosofia e Ciências Sociais, Universidade Federal do Rio
de Janeiro, Rio de Janeiro, 2018. p. 39-40.
7
SOUZA, op. cit., p. 32.
8
SCHWARTZ, Stuart. Segredos Internos: engenhos e escravos na sociedade colonial 1550- 1835. São Paulo:
Companhia das Letras, 1988. p. 85.
9
SCHWARTZ, op. cit., 2004, p. 378-384.
68
10
SCHWARTZ, op. cit., 1988, p. 94.
11
MATOS, Waldemar. D. Francisca de Sande: a primeira enfermeira do Brasil. Salvador: Imprensa Oficial da
Bahia, 1949. p. 17-19.
12
Ibidem, p. 17-19.
13
Sobre o mestre de campo além de Waldemar Mattos, cf. SILVA JUNIOR, Carlos Francisco da. Identidades
afro-atlânticas: Salvador, século XVIII (1700-1750). 2011. Dissertação (Mestrado em História Social) –
Faculdade de Filosofia e Ciências Humanas, Universidade Federal da Bahia, Salvador, 2011.
69
eram reservados para aqueles que eram considerados puros de sangue e de religião.14 Ao
falecer Pacheco deixou viúva d. Francisca de Sande, uma das proprietárias de escravos mais
abastadas do Recôncavo e que possuía um considerável percentual de cativos doentes e
aleijados, como veremos logo mais.
No Recôncavo, os fazendeiros abastados estruturaram a aristocracia rural vinculada
aos laços de parentesco e aos interesses em comum. A riqueza produzida através do status e
da influência social proporcionou a esses indivíduos o controle sob os cargos municipais nas
cidades, principalmente em Salvador, onde a maioria das instituições era sujeita a dominação
da elite agraria do Recôncavo.15 Segundo Schwartz,
Maria da Silva era portuguesa natural da Cidade do Porto, casada com o também
português Cosme da Silva da freguesia de Ribeiradio. Certamente, desembarcaram na Bahia
por volta da segunda metade do século XVII, em busca de riquezas como tantos colonos que
aqui se instalaram. Na Cidade da Bahia, dona Maria da Silva e seu marido trabalhavam no
curtume onde produziam solas de sapato que eram exportadas para Lisboa e a Cidade do
Porto. O casal era proprietário de uma morada de casas de dois sobrados de pedra e cal na rua
14
SCHWARTZ, Stuart. Burocracia e sociedade no Brasil colonial: o tribunal superior na Bahia e seus
desembargadores, 1609-1751. Tradução Berilo Vargas – São Paulo: Companhia das Letras, 2011. p. 102-103.
15
Idem, p. 107-108.
16
Ibidem, p. 108.
70
dos Sapateiros, possuía mais casas na fonte dos Sapateiros e também na ladeira do Rego
d’água e no terreiro. Quando faleceu em 1714, dona Maria deixou, além das propriedades, 14
escravos e, um montante avaliado em 27:805$327 contos de réis; entre os seus cativos, cinco
foram inventariados como doentes: Joseph tinha erisipela, João era incapaz do serviço,
Alexandre estava com achaque de opilação, Cristóvão, do serviço de casa, era quebrado da
virilha e, Domingos, oficial de sapateiro, possuía lesões na mão direita.17 O que significava a
avaliação de um escravizado como doente quando do falecimento de um senhor(a)? Ao
registrar a doença de um cativo o escrivão de órfãos, possivelmente, estava acompanhando
pelo inventariante dos bens que o auxiliava naquela tarefa. Talvez essa avaliação considerasse
a saúde como um valor atribuído ao escravizado naquele mercado, embora esse aspecto não
possa ser problematizado a partir desse tipo de fonte o que evidencia sua limitação sob essa
perspectiva.
Considerando que o casal se dedicava ao curtume e que a sua escravaria estava
dividida entre a produção de solas e o trabalho nas ruas, buscamos entender as doenças que
acometeram os escravos de Maria da Silva, a partir das suas respectivas ocupações. Assim, as
lesões na mão direita de Domingos são facilmente associadas ao seu trabalho. Enquanto
oficial de sapateiro, ofício que além de exigir especialização do escravo, também é
caracterizado pela repetição dos movimentos e, nesse sentido, Domingos teria se machucado
durante a sua contínua jornada de trabalho no curtume. Cristóvão, escravo do serviço de casa,
ocupação considerada leve se comparada a outros serviços, estava quebrado da virilha. Sua
condição de saúde mostra a possibilidade desse cativo ter ocupado outras funções dentro da
escravaria, como carregador de rede, por exemplo, e após apresentar os sinais de quebramento
da virilha, Cristóvão tenha sido designado para o serviço de casa.
Em outra situação, acreditando que Joseph fosse, assim como Domingos, oficial de
sapateiro, e que possivelmente ele tenha adquirido erisipela doença, caracterizada pelo
cirurgião João Cardoso de Miranda, como tumor ou inflamação produzida pelo sangue,
através de um machucado provocado enquanto manuseava as ferramentas necessárias para
produção de solas de sapato. Alexandre, doente de opilação, enfermidade determinada por
Antônio de Moraes Silva, como obstrução dos canais ou ductos do corpo, e pelo médico
alemão Reinhold Teuscher, em suas observações sobre as fazendas de café no Rio de Janeiro
Oitocentista, como verminose e diarreia violenta que atingia principalmente a população
17
APEB, SJ, Inventário post-mortem de Maria da Silva, 1714, 04/1585/2054/05.
71
escrava.18 Como verminose, podemos considerar que Alexandre tenha contraído a doença em
virtude das péssimas condições dos alimentos e da falta dos nutrientes e vitaminas essenciais
para o corpo.
Ser “quebrado da virilha” estava relacionado a doenças na coluna, em especial hérnia
de disco, que deixava a pessoa andando puxando a perna, daí a expressão quebrado da virilha.
Segundo Bluteau, quebradura das virilhas era o nome que o povo comum dava às duas hérnias
chamadas pelos médicos de hérnia zirbal.19 Para o dicionarista, a doença se caracterizava por
apresentar inchaços na região dos testículos em forma carnosa ou ventosa e em alguns casos,
sua origem se aproximava da teoria de alteração dos humores do corpo, tornando-a conhecida
como hérnia humoral de sangue.20 Quanto a verminose, além da água e da alimentação
ressalta-se que os cativos andavam descalços, logo mais propensos a adquirir esses e outros
parasitas.
Mas, será que podemos aplicar essa mesma hipótese para escravarias menores? Ou
para senhores que possuíam uma quantidade de escravos acima da média (entre 12 a 35), mas
tinham pouco cabedal frente à sociedade?
O capitão Miguel da Silva Rouzado residia na Cidade da Bahia e quando faleceu em
1748, apesar de não haver monte mor registrado em seu inventário, possuía entre os seus bens
doze escravos africanos do gentio da Costa da Mina. Entre eles, Salvador encontrava-se
doente, lançando sangue pela boca, era tísico, e José estava quase cego dos olhos.21
Infelizmente, não foram registradas no inventário do falecido as ocupações realizadas pelos
escravos doentes, mas se levarmos em consideração que os outros cativos pertencentes ao
capitão Miguel da Silva Rouzado desempenhavam, principalmente, serviços de casa e alguns,
a exemplo de Lourenço, que além do serviço de casa, se ocupava como carregador de rede,
podemos associar a tísica e a cegueira ao trabalho por eles desenvolvido. Luiz Gomes Ferreira
e Raphael Bluteau classificaram a tísica como uma espécie de chaga ou ulceração no bofe
provocada por um humor acre e corrosivo que causava febre lenta, tosse, escarros de sangue e
18
SILVA, Antônio de Morais. Bluteau, Rafael. Diccionario da lingua portugueza composto pelo padre D.
Rafael Bluteau, reformado, e accrescentado por Antonio de Moraes Silva natural do Rio de Janeiro. 1.
ed. Lisboa, Simão Tadeu Ferreira, MDCCLXXXIX [1789]. 2v.: v. 1: XXII, 752 p.; v. 2: 541. PIMENTA,
Tânia Salgado; GOMES, Flávio; KODAMA, Kaori. Das enfermidades cativas: para uma história da saúde e
das doenças do Brasil escravista. In: TEIXEIRA, Luiz Antônio; PIMENTA, Tânia Salgado; HOCHMAN,
Gilberto (org.). História da Saúde no Brasil. São Paulo: Hucitec, 2018. p. 74.
19
BLUTEAU, p. 518.
20
Idem, p. 681-687.
21
Arquivo Público do Estado da Bahia, Seção Judiciário, Inventário post-mortem de Miguel da Silva Rouzado
(1748), 04/1586/2055/02. (Doravante: APEB, SJ).
72
matéria purulenta.22 Desse modo, se Salvador, assim como Lourenço, fosse carregador de
rede, a doença pode ter se desenvolvido a partir das condições de vida e trabalho às quais
eram submetidos que os deixaram com o sistema imunológico propício a esse tipo de
moléstia. O mesmo pode ter acontecido com José, que, provavelmente, desde muito novo
aprendeu o ofício de alfaiate e estando ele forçando a visão repetidamente, levando em
consideração que alfaiates e costureiras trabalhavam dia e noite e, muitas vezes apenas com o
auxílio da luz de velas, chegaremos à conclusão de que esse esforço repetitivo prejudicou
diretamente a visão de José que a perdera ainda muito jovem segundo a documentação.
Caso semelhante é o da escravaria de Nicolau Carneiro da Rocha, filho de Bernardo
Carneiro da Rocha e de dona Guiomar de Souza. Nicolau era casado com sua prima legítima
Anna de Menezes Alencastro e, quando faleceu em 1739, o escrivão não deixou registrado em
inventário o total de seu monte mor. Assim como Miguel da Silva Rouzado, Nicolau possuía
uma escravaria composta por 35 escravos, entre africanos e crioulos, que trabalhavam como
carreiro, carregador de rede, barbeiro, alfaiate e no serviço doméstico. Entre os seus escravos,
Joana estava doente dos pés e não teve a sua ocupação revelada, Matias era barbeiro e
quebrado da virilha, e Antônio que também não teve a sua função registrada, mas era quase
cego do olho esquerdo.23 Em todas essas situações, e tendo como exemplo tais escravarias,
percebe-se o envolvimento entre as moléstias e o trabalho. Sendo assim, tendo em vista as
circunstâncias em que as atividades laborais eram desenvolvidas, analisamos inicialmente o
perfil dos senhores de escravos e na sequência as ocupações atribuídas aos cativos presentes
nos inventários de Salvador e do Recôncavo na primeira metade do século XVIII.
A construção do perfil desses sujeitos possibilitou identificar como a vida
socioeconômica dos senhores determinou a vida dos seus escravos. Nesse sentido, se
imaginarmos, que durante a crise da indústria açucareira, os proprietários de engenhos
enfrentavam a instabilidade frequente do preço do açúcar no mercado mundial atrelada ao
desenvolvimento dessa cultura nas Antilhas e, que após a descoberta do ouro e o
encarecimento da mão de obra escrava, a dificuldade dos produtores baianos para adquirir
africanos escravizados passa a ser sentida em outros setores de produção, como os lavradores
de tabaco, por exemplo, que devido ao fato de não conseguirem adquirir escravos africanos
novos, encontraram na crioulização da população escrava uma alternativa viável para suprir a
necessidade de mão de obra, veremos que todas essas situações determinaram a vida do
22
FERREIRA, op. cit., 1735, p. 1143. BLUTEAU, op. cit., p. 177.
23
APEB, SJ, Inventário post-mortem de Nicolau Carneiro Rocha, 1739, 14-1614-2083-9.
73
24
PARÉS, Luís Nicolau. “Processo de crioulização no Recôncavo Baiano (1750-1800)”. In: Afro-Ásia, n° 33.
Salvador, 2005, pp. 87-132. p. 108-129.
25
Idem, p. 108-129.
74
1correspondem a 33 inventários e 847 cativos que foram agrupados e divididos por década,
com o objetivo de estabelecer a representatividade dos escravos doentes e aleijados naquelas
escravarias. Apesar de trabalhar com a mesma documentação utilizada por Silva Jr. e Souza, o
número de escravos analisados apresenta diferenças, isso porque, Silva Jr. integra, além dos
68 inventários pertencentes a Salvador, outros cinco que seriam de proprietários de escravos
do Recôncavo, que corresponde ao universo de 1.168 escravos, enquanto Souza direciona sua
análise apenas para os 595 cativos da Cidade da Bahia, por isso, os números são diferentes.26
Observando os dados expostos, notamos que entre os escravistas havia perfis
distintos, e os senhores dividiam-se entre pequenos e grandes proprietários de escravos.
Assim, buscando entender as distinções que cercam tais perfis, avaliamos os senhores de
acordo com as décadas em que seus bens foram inventariados. Encontramos para o ultimo ano
do século XVII Francisco Rodrigues Pinto, português e pequeno proprietário que ao falecer
em 1700, deixou para as duas filhas Maria e Ana, uma herança avaliada em 3:314$710 contos
de réis e 23 escravos. Entre os cativos que herdaram do pai, três foram inventariados como
doentes e uma com o nariz furado.27 Outro português que desembarcou na Cidade da Bahia
provavelmente na segunda metade do século XVII, foi Domingos Fernandes (1708), natural
da freguesia de São Julião de Fresto arcebispado de Braga, Domingos Fernandes aparece na
Tabela anterior ao lado de dona Francisca de Sande (1702), Fernandes assim como Rodrigues
Pinto, era um pequeno proprietário e deixou uma herança de 6:280$423 contos de réis, além
de quatro cativos de origem africana. Entre os cativos pertencentes a Domingos Fernandes
apenas Antônio de nação arda foi inventariado como “doente dos pés”.28
Francisca de Sande assim como João Lopes Fiúza (1741), eram moradores do
Recôncavo, mas também possuíam outras propriedades em Salvador e são os dois maiores
senhores de escravos dessa amostra. Juntos eram proprietários de 558 cativos de um total de
847 analisados. Além disso, como veremos mais adiante era em suas escravarias que se
concentravam os maiores números de doentes e aleijados para o período estudado.
Nesse contexto, nomes como Francisca de Sande, Mariana Ferreira de Carvalho e
João Lopes Fiúza aparecem na lista dos senhores que se destacaram não somente pela
quantidade de escravos em suas escravarias, mas pelas fortunas que legaram aos seus
herdeiros. Sande, em 1702, teve seu monte mor estipulado em 28:209$581 contos de réis.
Carvalho, em 1738, deixou uma soma equivalente a 38:047$698 contos de réis, e Fiúza, em
26
SILVA JUNIOR, op. cit. 2011, p. 68; SOUZA, op. cit., p. 50.
27
APEB, SJ, Inventário post mortem de Francisco Rodrigues Pinto, 1700, 04/1766/2236/08.
28
APEB, SJ, Inventário post mortem de Domingos Fernandes. 1708, 05/1705/2175/09.
75
1741, teve sua fortuna avaliada em 92:390$578 contos de réis. Porém, 54,54% dos senhores
que tiveram seus bens avaliados eram pequenos proprietários de escravos, ou seja, aqueles
cujas fortunas foram calculadas em até 6:280$423 contos de réis. Apesar de não serem tão
ricos quanto os senhores de engenho do Recôncavo, os senhores de escravos de Salvador
mantinham certa estabilidade financeira que lhes possibilitaram adquirir duas a três casas na
rua principal de Santo Amaro. Já Miguel da Silva Rouzado e Nicolau Carneiro da Rocha,
possuíam escravarias com número de cativos acima da média para Salvador (12-35 escravos),
o que nos leva a acreditar que mesmo fazendo parte do grupo que não teve o cálculo total de
seus bens inventariados registrado na documentação (21,21%), guardavam uma riqueza
consideravelmente alta, pois, se analisarmos tanto o número de escravos (12-35), quanto às
propriedades desses senhores, percebemos ainda que, embora o monte mor não tenha sido
documentado e não ter sido possível identificá-lo a partir da soma dos seus bens devido às
péssimas condições em que se encontrava a documentação, eles poderiam ser considerados
como senhores intermediários, ou seja, aqueles que estavam entre os pequenos e médios
proprietários de escravos.29 Essa conclusão baseia-se nos valores que foram atribuídos aos
cativos pelo escrivão. Assim, a estimativa para o capital deixado pelo capitão Miguel da Silva
Rouzado, seria de aproximadamente 1:100$000 contos de réis e, para Nicolau Carneiro da
Rocha, estimava-se cerca de 2:060$000 contos de réis, nesse sentido, ambos seriam
considerados pequenos proprietários de escravos.30
A Tabela 2 apresenta os cativos que foram listados na documentação como doentes e
aleijados. Estão incluídos no grupo dos aleijados os cativos que aparecem faltando um dedo,
um olho, uma mão e os incapazes de prestar serviços ao senhor, isso por que, nessas
situações, como veremos mais adiante, a incapacidade ou a perda de um membro do corpo
advinha não só do trabalho, mas das ações senhoriais. Os aleijos serão analisados no próximo
capítulo, mas, na Tabela 2, agrupamos doentes e aleijados para que possamos ter uma noção
do número de escravos acometidos por doenças e aleijões encontrados na documentação.
29
APEB, SJ, 33 inventários de Salvador (1700-1750).
30
APEB, SJ, Inventário post-mortem de Miguel da Silva Rouzado (1748), 04/1586/2055/02. APEB, SJ,
Inventário post-mortem de Nicolau Carneiro Rocha, (1739), 14-1614-2083-9.
76
Tamanho da
Escravaria Senhores % Escravos %
1-5 12 38,70% 40 13,84%
6-10 10 32,28% 83 28,71%
11-20 7 22,58% 108 37,37%
21-30 1 3,22% 23 7,97%
31-50 1 3,22% 35 12,11%
Total 31 100% 289 100%
31
APEB, SJ, 33 inventários de Salvador (1700-1750).
77
32
APEB, SJ, 33 inventários de Salvador (1700-1750).
33
SOUZA, Daniele Santos de. Tráfico, escravidão e liberdade na Bahia nos “anos de ouro” do comércio
negreiro (c.1680-1790). 2018. Tese (Doutorado em História) – Faculdade de Filosofia e Ciências Humanas,
Universidade Federal da Bahia, Salvador, 2018., p. 243.
34
SCHWARTZ, Segredos internos, 1985, p. 356-368.
35
BARICKMAN, B.J. Um contraponto baiano: açúcar, fumo, mandioca e escravidão no Recôncavo, 1780-
1860. Tradução de Maria Luiza X. de A. Borges. Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, 2003. p. 101.
78
distribuição da propriedade fundiária. Dessa forma, a riqueza na forma de escravos, era mais
concentrada nas freguesias açucareiras, onde aqueles considerados grandes proprietários
possuíam entre 40 a 50 cativos. Por outro lado, nas outras partes do Recôncavo,
principalmente nas áreas produtoras de fumo e mandioca a distribuição de escravos era mais
uniforme, isto é, entre 5 a 19 cativos.36
Retornando aos inventários, percebemos que com exceção de Francisca de Sande e
João Lopes Fiúza, os outros senhores dispunham entre os seus bens de pequenos imóveis
alugados na cidade e em seus arredores. Notamos também que vinte e oito dos inventariados
investiam a força braçal de seus cativos no trabalho urbano, enquanto cinco, incluindo Sande
e Fiúza, dedicavam-se às atividades rurais.37 Nesse sentido, o perfil dos senhores de escravos
analisados para se pensar a Bahia da primeira metade do século XVIII e as doenças que
acometiam seus cativos era formado, predominantemente, por pequenos proprietários, aqueles
que tinham escravarias compostas por 5 até 10 escravos.
Mas, o que era a riqueza na Salvador colonial? Segundo os estudos de Maria José
Rapassi Mascarenhas, no período entre 1760 e 1808, ainda existia em Salvador duas formas
de sociedade e riqueza, uma mercantil e outra fidalga, a primeira baseada nos bens de
produção (terras, escravos e engenhos), e a segunda nos bens da vida cotidiana (casas, objetos
de ouro ou prata, mobiliário e vestimenta). Em outras palavras, a riqueza na sociedade
colonial estava pautada no viver honradamente, que ia além das posses e da moralidade, isso
porque, esse viver honradamente também se relacionava com os vínculos pessoais. Nesse
sentido, a riqueza era formada por um conjunto de bens que incluíam construções, moradias,
vestimentas, joias, utensílios domésticos, alimentação e o próprio convívio social diziam
muito sobre a riqueza em Salvador. Assim, digamos que para ser considerado rico era preciso
possuir mais do que bens materiais, o indivíduo tinha que ostentar o luxo e a sua qualidade de
vida.38
Por outro lado, Schwartz enfatiza que a riqueza pode ser definida a partir da
quantidade de cativos que um senhor possuía, desse modo, quanto maior a propriedade e a
posse de escravos, maior a riqueza.39 Sendo assim, a partir dos dados levantados pelo autor,
podemos considerar que aqueles 54,54% dos senhores que tiveram as suas fortunas e a posse
36
Idem, p. 216-239.
37
Porém, é importante ressaltar que Sande e Fiúza também eram donos de propriedades na Cidade de Salvador,
assim, também possuíam escravos que se empenhavam no trabalho urbano.
38
MASCARENHAS, Maria José Rapassi. Fortunas coloniais: elite e riqueza em Salvador, 1760-1808. Tese de
doutorado em história econômica pela Universidade de São Paulo – USP, 1998. p. 110-112.
39
SCHWARTZ, op. cit., 1988, p. 356-376.
79
de escravos arrolados nos inventários analisados nesta pesquisa, pertenciam à categoria dos
pequenos proprietários. Entretanto, mesmo que estes indivíduos compondo a maioria entre os
senhores era nas grandes escravarias que se concentrava a maioria dos doentes.
Francisca de Sande nasceu na Bahia e era filha dos portugueses Francisco Fernandes
e dona Clara de Sande. Casou-se com o já conhecido Mestre de Campo Nicolau Aranha
Pacheco com quem teve quatro filhos: Pedro Fernandes Aranha, Francisco Correia de Sande,
Maria Francisca e Francisca Clara de Sande.40 Dona Francisca, após a morte do seu marido,
tornou-se conhecida principalmente pela sua atuação durante a epidemia de febre amarela na
Bahia, na década de 1680. Por conta da sua ação decisiva nas ruas de Salvador, cuidando dos
doentes e transformando sua própria casa em hospital, Sande é reconhecida como a primeira
enfermeira do Brasil.41 Mas não se pode esquecer que dona Francisca era uma das maiores
proprietárias de escravos do Recôncavo e, ao falecer em 1702, além da fazenda de cana na
Patatiba, possuía uma escravaria com 220 cativos, em sua maioria centro ocidentais, e uma
sesmaria nos campos de Garanhum, na capitania de Pernambuco, que, provavelmente, foi
concedida ao seu falecido marido após a expulsão dos holandeses. Desse número, 43
africanos e crioulos apresentavam sinais de doenças e incapacidades decorrentes das
condições de trabalho às quais eram submetidos.42
Matheus, por exemplo, era barbeiro e certamente auxiliou dona Francisca de Sande
em sua ação solidária durante a epidemia, quiçá fazendo o trabalho duro de cuidar dos
doentes. Mas, assim como tantos outros, Matheus talvez não tenha desfrutado de igual sorte
quando foi acometido por erisipela, visto que a doença assim como a febre amarela
representava um risco para a escravaria, afinal sendo produzida por uma inflamação no corpo
a erisipela se assemelhava em alguns pontos à febre amarela, pois, além de possuir uma
natureza contagiosa e sintomas parecidos (febre e dores de cabeça), ambas poderiam levar o
cativo infectado à morte. O caso de Matheus é um tanto curioso se levarmos em consideração
que a sua senhora tratou e curou tantos doentes de febre amarela pouco mais de duas décadas
antes de sua morte. Antônio, que pertencia à mesma escravatura, foi registrado como carreiro
e estava quebrado de uma virilha e dos peitos. Simão, mesmo sem ter a sua ocupação
assinalada na documentação, foi descrito da seguinte forma: “teve a mão levada pela
moenda”.43 A partir desses fragmentos é inegável que a enfermidade e o estado do corpo
40
MATOS, op. cit., p. 17.
41
Ibidem.
42
APEB, SJ, Inventário post-mortem de Francisca de Sande (1702), 01/199/351/01.
43
APEB, SJ, Inventário post-mortem de Francisca de Sande (1702), 01/199/351/01.
80
44
SILVA JUNIOR, op. cit., p. 48.
45
APEB, SJ, Seção Judiciário, 33 inventários de Salvador (1700-1750).
46
APEB, SJ, Inventário post-mortem de Francisca de Sande (1702), 01/199/351/01. APEB, SJ, Inventário post-
mortem de João Lopes Fiúza (1741), 04/1571/2040/05.
47
APEB, SJ, Inventário post-mortem de Nicolau Carneiro Rocha, (1739), 14-1614-2083-9.
81
iria barganhar caso perdesse um escravo vitimado por doença? Certamente, ele não
conseguiria comprar outro escravo para substituir aquele que havia perdido. Nesse sentido, o
pequeno proprietário era mais prejudicado quando um escravo adoecia, talvez por isso, fosse
ele mais cuidadoso, pois, entre os pequenos senhores não encontramos nenhum que possuísse
mais de 5 cativos doentes ou aleijados. Com a exceção de Josefa Maria da Silva que possuía 5
escravos enfermos e aleijados, Francisca de Sande (43) e João Lopes Fiúza (52), 91% dos
senhores analisados nesta amostra possuíam de 1 a 4 cativos doentes ou incapazes. Mas,
proporcionalmente quanto isso representava em uma escravaria de pequenos senhores? João
Rodrigues Nogueira, português e morador da freguesia de Nossa Senhora da Conceição da
Praia, por exemplo, tinha uma escravaria composta por 9 africanos escravizados, sendo que
apenas Francisco, angola, foi listado como doente no inventário do senhor, ou seja, 11,11% de
sua escravaria.48 Percentual parecido com o encontrado para a escravaria de Nicolau Dias
Pereira, 11,76% dos 17 cativos que assenhoreava era doente ou aleijada.49
Os resultados obtidos avigoram as explicações de Schwartz e de Barickman acerca
da posse de escravos, que estaria como já mencionado, relacionada ao uso da terra, isto é,
quanto maior o poderio do senhor e a sua escravatura, maior seria a possibilidade de os
cativos serem acometidos por doenças levando em consideração as condições de vida e
trabalho às quais eram submetidos. Buscando compreender essa dinâmica analisaremos
também o perfil dos escravos doentes.
Os escravos eram a peça fundamental para a estruturação das atividades laborais nas
pequenas e grandes propriedades rurais, assim como no espaço urbano onde se espalhavam
pelas casas comerciais, nos sobrados e na zona portuária. Segundo Souza, ainda podiam ser
facilmente encontrados nas vendas, feiras, abastecendo as residências com água e cuidando da
limpeza das casas e da higiene íntima dos seus senhores.50 Tais aspectos do trabalho escravo
urbano denotam dois pontos já discutidos, a dependência da mão de obra cativa e a
disseminação da posse em escravos que como vimos se concentravam nas mãos dos pequenos
proprietários. Mas, essas características mostram também que a força de trabalho cativa era
aproveitada nos diversos serviços, inclusive no serviço de ganho.
48
APEB, SJ, Inventário post-mortem de João Rodrigues Nogueira (1743), 04/1776/2045/04.
49
APEB, SJ, Inventário post-mortem de Nicolau Dias Pereira (1728), 03/1105/1574/02.
50
SOUZA, op. cit., p. 61.
82
O ganho, de acordo com Souza, havia se tornado uma atividade comum e lucrativa
para os senhores de escravos que residiam em Salvador.51 Isso porque, quando um cativo era
posto no sistema de ganho – e era uma característica própria dos senhores da Bahia –, o
senhor se isentava dos gastos com vestimenta, alimentação e moradia desse cativo que tinha a
liberdade de transitar pelas ruas e oferecer seus serviços a terceiros. Além disso, havia entre
eles um acordo estabelecido pelo proprietário onde o ganhador deveria angariar determinada
quantia que seria entregue ao proprietário semanalmente. Após adquirir o valor estabelecido,
o ganhador poderia acumular pecúlio para si. Segundo João Reis,
Dessa forma, o aluguel dos escravos na cidade era uma estratégia rentável para
aqueles que investiam nesse comércio e para os ganhadores e ganhadeiras que com muito
esforço conseguiam acumular pecúlio e comprar sua liberdade. No entanto, não eram apenas
os ganhadores que circulavam pelas ruas de Salvador operando todo tipo de serviço, e para
entendermos a organização do trabalho nesses espaços e no Recôncavo analisamos as
ocupações desempenhadas pelos cativos doentes que foram assinalados na documentação
através de dois quadros. O primeiro destinado aos ofícios dos escravos do sexo masculino e o
segundo voltado para os afazeres das escravas do sexo feminino com o objetivo de identificar
o perfil dos doentes e quais moléstias eram mais frequentes entre os homens e quais
acometiam mais às mulheres considerando o trabalho que exerciam.
51
Ibidem, p. 61.
52
REIS, op. cit., p. 15.
83
53
SOUZA, op. cit., p. 70.
84
metros.54 Esse modelo de transporte permitia a locomoção da nobreza da terra com certa
comodidade, afinal, poderiam, caso fosse do seu agrado, parar nas ruas para cumprimentar
amigos e/ou fazer negócios. Esse regalo tornava-se possível porque cada cativo levava um
bastão que possuía uma forquilha e uma ponta de ferro nas extremidades, quando postos no
chão deixavam a rede suspensa e assim permitia que o senhor estendesse a conversa. Frézier,
em 1714, apresentou em gravura como se dava o transporte de senhores pelos carregadores de
rede no Brasil.
Figura I
Fonte: FRÈZIER, Amédée François. Relation d’un Voyage de la Mer du Sud des Côtes du Chili, du Pérou et do
Brésil, faite pendant les années 1712, 1713 et 1714. Amsterdam, 1717. p. 527.
O serviço de transporte exigia muita maestria dos carregadores, sua habilidade (ou a
falta dela) poderia evitar ou causar acidentes indesejáveis com os clientes, queixas, castigos e
o não pagamento do serviço pelo acidentado. Analisando a gravura de Frézier, é possível
observar como a rede era carregada pelos trabalhadores, suspensa em uma estrutura de
madeira a rede era transportada por dois escravos e cada carregador transportava um bastão
para facilitar a parada do senhor ou cliente pelas ruas da cidade. Aguçando um pouco mais a
nossa observação, percebemos através da curvatura dos corpos, trabalhadores cansados pelo
desgaste ao longo dos anos. Seus corpos foram moldados pelo trabalho, um deles inclusive,
apoiava o bastão no chão enquanto caminhava indício do cansaço que o acometia. Usando
apenas uma espécie de canga andavam sob o sol escaldante e descalços, como era costume
entre os escravizados, o que aumentava as chances de machucarem os ombros ou os pés.
Não era incomum que esse tipo de trabalho deixasse sequelas nos cativos. O trabalho
de carregar pesados fardos, fossem pessoas ou mercadorias, ao longo de anos causava nos
54
SILVA JUNIOR, op. cit., p. 80.
85
cativos o aparecimento de hérnias de disco e outras lesões na coluna, que eram referidas à
época como “quebrado” ou “rendido” da virilha ou do umbigo, sendo tal moléstia a que mais
atingia os carregadores e os escravos dos engenhos, como veremos mais adiante. Podemos
imaginar que ocupando as ruas diariamente e usando a força física para transportar pessoas e
mercadorias pela cidade alta e baixa, os cativos estariam mais vulneráveis a esse tipo de
doença. Sendo assim, a condição de quebrado ou rendido das virilhas era proveniente do
esforço físico e, em alguns casos, também dos maus-tratos e castigos relacionados ao
trabalho.
Os ofícios mecânicos somam 32,14% das ocupações listadas e, basicamente, são
aqueles em que os trabalhadores necessitam de uma especialização e licença para exercer
determinada função. A Tabela 4 registra três sapateiros, um alfaiate e dois barbeiros, sendo
que um deles era da fazenda de dona Francisca de Sande. Russell-Wood afirma que na Bahia
setecentista o ofício de barbeiro era praticamente dominado por escravos e negros livres. De
acordo com seus estudos, a Câmara Municipal de Salvador teria emitido 38 licenças para
barbeiros, das quais 17 foram concedidas para escravos e 21 para negros livres. 55 A
concentração do ofício nas mãos desses sujeitos tem como base a hierarquia presente entre os
práticos de cura, que, além de associar os barbeiros às artes mecânicas, considerava o ofício
uma categoria inferior e, por isso, exercida como observou Russell-Wood por escravos e
libertos.
Segundo Bluteau, o barbeiro dominava muitas funções, pois além das artes de curar,
ele raspava, cortava ou aparava a barba. Havia, ainda, segundo o dicionarista, barbeiros de
lanceta ou sangradores.56 Nesse sentido, os termos barbeiro e sangrador eram usados para
definir o exercício de uma mesma função. Outra questão que pode ter influenciado o número
significativo de escravos nesse ofício, além da ausência de médicos licenciados na colônia,
era a lucratividade que os senhores alcançavam com esses serviços, isto é, se o senhor tinha
sob os seus domínios um prático de cura ele reduzia os gastos com os escravos doentes de sua
escravaria, assim como poderia se beneficiar do seu trabalho para tratar escravos, livres e
libertos. Para Mariza de Carvalho Soares, os barbeiros eram fundamentais, por exemplo, a
bordo dos navios negreiros, e como era um ofício dominado por africanos libertos e
escravizados que somavam práticas de cura africanas ao que aprendiam na América
55
RUSSELL-WOOD, A. J. R. Escravos e libertos no Brasil colonial. Rio de Janeiro: Civilização Brasileira,
2005.p. 93.
56
BLUTEAU, Raphael. Vocabularioportuguez& latino: aulico, anatomico, architectonico. Coimbra: Collegio
das Artes da Companhia de Jesus, 1712-1728. 8 v. Disponível em: http://dicionarios.bbm.usp.br/pt-
br/dicionario/edicao/1. Acesso em: 11 de maio de 2021.
86
portuguesa, os barbeiros eram designados para prestar assistência em casos de doenças entre a
tripulação e os escravos que cruzariam o Atlântico a bordo das embarcações.57
O serviço de casa correspondia apenas 7,14%. Caetano, do gentio da costa, era
escravo do serviço de casa, mas também foi classificado como “negro da cadeia” indicando
que fora preso em razão das dívidas contraída por seu senhor. Além dele, Jacinto e André,
escravos do Ajudante e Alferes José Rodrigues Chaves (1742), foram presos a pedido do
capitão José Luís para garantir o pagamento das dívidas, sendo classificados pelo
inventariante como “negros da cadeia”.58 A partir destes dados, percebe-se que no espaço
urbano havia uma variedade de ocupações para os homens escravizados e libertos e uma
predominância dos cativos entre os serviços de transporte e os ofícios mecânicos. Entretanto,
no Recôncavo predominaram os trabalhos rurais, a exemplo dos carreiros, taxeiros, oficial do
açúcar, escravo do curral, dentre outros, que constituem 35,72%, sobretudo, porque a análise
foi baseada em dois grandes proprietários de escravos, Francisca de Sande e João Lopes
Fiúza.59
O termo “barqueiro”, segundo Bluteau, estava associado ao vocábulo “barquejar” que
significa governar como barqueiro ou andar em barco.60 Encontramos cinco escravos da
fazenda e engenho de dona Francisca de Sande, que ocupavam a função de barqueiro. Como
ofício que exigia longas jornadas no mar ou nos rios próximos às propriedades dos senhores,
era comum que alguns escravos desenvolvessem doenças originarias desse período em que
enfrentavam a umidade nos barcos seguida das temperaturas adversas em terra, como as
micoses e as frieiras. Foi o que provavelmente aconteceu com Bastião Guirra escravo de
Francisca de Sande, inventariado como doente dos pés e avaliado em 80$000 mil réis.61
Se por um lado o trabalho escravo masculino era diversificado e havia ocupações
especializadas, concentrando-se nas fazendas e em determinados serviços urbanos, o
feminino, foi invisibilizado na documentação, restringindo-se aos afazeres domésticos e à lida
na lavoura. Das 47 escravas arroladas nos inventários apenas 12 tiveram suas ocupações
registradas, quatro do serviço de casa, três costureiras, três dos serviços da fazenda, uma
costureira e outra lavadeira. Apesar de relativamente pequeno, esse número mostra a
57
SOARES, Mariza de Carvalho. “African Barbeiros in Brazilian Slave Ports”, in: Cañizares-Esguerra, Jorge;
Childs, Matt D.; Sidbury, James (orgs.) The Black Urban Atlantic in the Age of the Slave Trade
(University of Pennsylvania Press, Philadelphia, Ebook, 2013), pp. 207-230.
58
APEB, SJ, Inventário post-mortem de José Rodrigues Chaves, 1742, 05/2200/2669/03. Cf. SILVA JR, op.
cit. 2011, p. 145.
59
APEB, SJ, 33 inventários de Salvador (1700-1750).
60
BLUTEAU, op. cit., p. 169.
61
APEB, SJ, Inventário post-mortem de Francisca de Sande (1702), 01/199/351/01.
87
Desse modo, essa visão de leveza em relação ao trabalho doméstico, está associada à
invisibilidade feminina no mundo do trabalho. Aurélia M. Casares destacou em pesquisa
recente a importância de se pensar esse espaço do trabalho feminino moldado através do
processo de invisibilidade. A autora argumenta que havia um silenciamento a respeito do
trabalho das mulheres que, muitas vezes, exerciam múltiplas funções, isto é, trabalhando em
casa e nas ruas, a exemplo das ganhadeiras que vendiam seus quitutes pelas ruas de
Salvador.65
62
APEB, SJ, 33 inventários de Salvador (1700-1750).
63
A autora apresenta dois quadros interessantes para se pensar o comércio ambulante, no Quadro 3 mostra-se
que a maioria das posturas (111) eram relativas ao trabalho ambulante entre 1696-1742, e no Quadro 4
correspondente ao período de 1792-1796 aponta o número de mulheres negras (escravas ou libertas) e
brancas que possuíam a licença municipal para trabalhar nas ruas de Salvador. SOUSA, Avanete Pereira.
Poder político local e vida cotidiana: a Câmara Municipal da cidade de Salvador no século XVIII. Vitória
da Conquista: Edições UESB, 2013. p.45- 46.
64
Idem, p. 46.
65
MARTÍN CASARES, Aurelia. Productivas y silenciadas: el mundo laboral de Las esclavas em España. In:
MARTÍN CASARES, Aurelia; PERIÁÑEZ GÓMEZ, Rocío (ed.). Mujeres esclavas y abolicionistas en la
España de los siglos XVI-XIX. Madrid: Iberoamericana-Vervuert, 2014.
88
100
80
África
60
Brasil
40
Não identificados
20
0
Africanos Crioulos Não
identificados
66
Sobre a natureza da escravidão em Salvador na primeira metade do século XVIII, cf. SOUZA, op. cit.;
SILVA Jr., op. cit.
67
SILVA Jr., op. cit. p. 68.
68
As informações foram extraídas da Tabela 2 – Origem dos escravos listados nos inventários post-mortem de
Salvador (1700-1750). IN: SOUZA, op. cit., 2010.p. 52.
69
APEB, SJ, 33 inventários de Salvador (1700-1750).
89
intensidade que tomou o movimento do tráfico atlântico após a descoberta do ouro contribuiu
para que um contingente cada vez maior de homens escravizados desembarcasse na América
portuguesa. Além de sustentar a escravidão na Bahia, o tráfico tornou possível a divisão dos
cativos em dois grupos, africanos e crioulos. Mas, quais rumos tomariam a definição desse
perfil de escravo doente se analisarmos sua faixa etária? De início, cabe salientar que a idade
registrada pelos escrivães nos inventários post mortem é bastante discutível, uma vez que ora
aparecem como idade numérica – em termos de possibilidade, isto é, mais ou menos idade –
ora de forma descritiva. Seguindo a metodologia proposta por Stuart Schwartz, considerei
moço, de maior idade, de maior e moleque, como jovem; velho, muito velho e com mais de
60 anos, como idoso.70
Dos 847 escravizados analisados nesta amostra, 32% foram registrados como jovens e
11% como idosos, entretanto, 57% dos escravos não tiveram sua idade listada nos inventários.
Desse número cabe ressaltar que apenas 116 foram arrolados como doentes. Assim, em
relação aos enfermos, cujas idades foram arroladas, os classificados como “jovens” somam
28,6% dos doentes; os identificados como “idosos” totalizaram 20,3% dos doentes; e aqueles
cujas idades não foram registradas na documentação formam o maior percentual (51,2%) de
doentes do sexo masculino desta amostra. Entre as mulheres, as jovens representavam 15,6%;
as idosas 9,4% e, a maior concentração foi entre aquelas escravizadas cujas idades não foram
registradas pelo escrivão (75%). Se analisarmos essa amostra, desconsiderando os cativos e
cativas que não tiveram as idades registradas, encontramos uma maior concentração entre os
mais jovens, isso porque, entre os adoentados, como veremos mais adiante, os quebrados da
virilha se caracterizavam, principalmente, por ocuparem os serviços de transporte e os
serviços rurais.
Nesse sentido, a população escrava doente se caracterizava como jovem, em plena
idade produtiva, uma vez que a sua reprodução era constantemente alimentada pelo tráfico
negreiro. Quanto aos ofícios, os adoecidos que moravam em Salvador dedicavam-se, em sua
maioria, aos ofícios mecânicos e de transporte. Já os doentes que moravam no Recôncavo
trabalhavam nas atividades do engenho, a exemplo dos oficiais do açúcar, taxeiro, oficiais do
pasto, corte da cana, entre outras ocupações que demandavam maiores esforços físicos. Outro
indicativo que reforça essa hipótese é a análise dos valores desses escravos doentes arrolados
na documentação. Quitéria, por exemplo, escrava crioula de Cristóvão Vieira (1734), era
lavadeira e não teve a sua idade registrada no inventário, mas foi descrita como “doente com
70
SCHWARTZ, op. cit., 1988, p. 286-288.
90
uma chaga”, e avaliada em 80$000 mil réis, diferente de Tereza, mina, escrava do mesmo
senhor que não estava doente, mas por ser idosa foi avaliada em 30$000 mil réis.71 Em outra
ocasião, Antônio, arda, escravo de Domingos Fernandes (1708), foi descrito como “doente
dos pés” e apreciado em 75$000 mil réis, mesmo valor dado a Antônio, guiné, também
escravo do mesmo senhor que não possuía nenhuma doença e foi apenas registrado como
moleque.72 João da Silva, crioulo, escravo do engenho de Francisca de Sande (1702), era
taxeiro foi registrado como doente e recebeu, após a sua avaliação, o valor de 70$000 mil réis,
enquanto Mateus, escravo novo do mesmo engenho recebeu o valor de 80$000 mil réis.73
Os valores apresentados mostram que mesmo quando a faixa etária não foi
registrada, podemos, a partir de algumas comparações, identificar a idade dos escravizados.
Nesse sentido, podemos perceber que mesmo doentes os escravos jovens adquiriam valores
superiores aos escravos idosos que não possuíam nenhuma enfermidade. Desse modo, entre
os doentes havia uma predominância dos mais jovens, pois, se os inventariantes dispusessem
da faixa etária daqueles que formavam a categoria das não identificadas, acreditamos que o
percentual de cativos jovens seria superior. Assim, como dito anteriormente foram arrolados
nos inventários 116 escravos enfermos, e para entendermos esse universo de doenças nas
senzalas faz-se necessário uma abordagem sobre elas e a sua relação com o mundo do
trabalho.
71
APEB, SJ, Inventário post-mortem de Cristóvão Vieira, 1734, 04/1604/2073/02.
72
APEB, SJ, Inventário post-mortem de Domingos Fernandes, 1708, 05/1705/2175/09.
73
APEB, SJ, Inventário post-mortem de Francisca de Sande (1702), 01/199/351/01.
74
Cf. NOGUEIRA, André Luís Lima. Entre cirurgiões, tambores e ervas: calunduzeiros e curadores ilegais
em ação nas Minas Gerais (século XVIII). 2013. Tese (Doutorado em História das Ciências e da Saúde) –
Casa de Oswaldo Cruz, Rio de Janeiro, 2013. CATAI, Dimas. Médicos, Barbeiros e Feiticeiros: Africanos e
Práticas de cura no Brasil do Século XVIII. In: VIII ENCONTRO ESTADUAL DE HISTÓRIA: Espaços da
História, 2016, Feira de Santana. Anais da Anpuh-BA. Feira de Santana: UEFS, 2016. p. 368-381.
Disponível em: http://www.encontro2016.bahia.anpuh.org/simposio/anaiscomplementares.
91
75
PIMENTA; GOMES; KODAMA, op. cit., p. 67-100.
76
KARASCH, Mary C. A vida dos escravos no Rio de Janeiro 1808-1850. Tradução de Pedro Maia Soares.
São Paulo: Companhia das Letras, 2000.
77
BARBOSA, Keith Valéria de Oliveira. Doença e cativeiro: um estudo sobre mortalidade e sociabilidades
escravas no Rio de Janeiro, 1809-1831. Curitiba: CRV, 2020.
92
78
BLUTEAU, op. cit., p. 496.
79
APEB, SJ, 33 inventários de Salvador (1700-1750).
93
pneumonia – também eram frequentes e que comumente eram agravadas pelas carências
nutricionais, pelo trabalho e maus-tratos senhoriais.80 Mas, para a Bahia na primeira metade
do século XVIII, Souza aponta com base nos inventários dos senhores de escravos que entre
as enfermidades identificadas, os problemas na visão, as lesões no corpo e as virilhas
quebradas seriam as doenças que mais acometiam a população escrava de Salvador.81
Os resultados obtidos para esta pesquisa baseada nos inventários dos senhores de
escravos mostram divergência em relação a algumas doenças analisadas por Souza,
principalmente as virilhas quebradas que em nossa amostra atingiram 31,03% dos escravos
inventariados. Essa diferença entre os resultados se explica porque Souza, como já
mencionado constrói a sua pesquisa a partir dos inventários de Salvador e do trabalho urbano
– as atividades laborais rurais trabalhadas pela autora também dizem respeito a Salvador e não
a seu Recôncavo –, assim, o número superior de quebrados das virilhas que constam na
Tabela 5 é o resultado da introdução dos inventários de Francisca de Sande e João Lopes
Fiúza, senhores de engenho do Recôncavo.
Os termos “quebrado da virilha” ou “rendido” como vimos ao decorrer do texto
referem-se a hérnia de disco e outras doenças relacionadas a coluna, doença muitas vezes
provocada pelo esforço físico dos cativos. Bluteau a define como “inchação dos testículos”,
“nofa” ou “ventofa”, e a quebradura propriamente dita seria o ato de quebrar a hérnia
intestinal.82 Valentin, crioulo e carreiro do engenho de São Pedro do Pararipe, era escravo de
João Lopes Fiúza e fora registrado como quebrado em sua avaliação. Certamente, Valentim
havia quebrado as virilhas no extenuante trabalho a que era obrigado, isto é, transportando as
mercadorias e o açúcar produzido no engenho.83 Francisco mina, escravo de Maria Pereira do
Lago, era carregador de rede e assim como Valentin foi inventariado como “quebrado”.
Decerto, Francisco andava pelas ruas da cidade carregando sua senhora e ou oferecendo seus
serviços para terceiros e, em suas andanças entre as cidades Alta e Baixa acabou quebrando as
virilhas.84 De acordo com Schwartz, o trabalho exigia que os cativos se abaixassem para
cortarem o mais rente possível ao solo aproveitando a maior concentração de sacarose da
cana. Esse movimento repetitivo, somado aos feixes de cana transportados do partido até o
carro de boi, além dos trabalhos repetitivos feitos dentro do engenho durante a safra,
80
PIMENTA, Tânia Salgado. Doenças. In: SCHWARCZ, Lilia M.; GOMES, Flávio (org.). Dicionário da
escravidão e liberdade: 50 textos críticos. São Paulo: Companhia das Letras, 2018. p. 204.
81
SOUZA, op. cit., p. 99.
82
BLUTEAU, op. cit.
83
APEB, SJ, Inventário post-mortem de João Lopes Fiúza (1741), 04/1571/2040/05.
84
APEB, SJ, Inventário post mortem de Maria Pereira do Lago (1744), 04/1576/2045/01.
94
extenuava e estropiava a coluna desses cativos. Nas cidades, era o transporte de pessoas e
mercadorias que mais causavam danos à coluna. 85
O termo boubento remete a bouba, doença infecciosa João, negro novo, escravo da
fazenda Jaguaripe de dona Francisca de Sande, certamente havia desembarcado no porto de
Salvador havia pouco tempo e quando se instalou na propriedade de sua senhora apresentou
os sintomas da doença de bouba, frequentemente associada aos navios negreiros. Bernardo,
africano de nação arda, era escravo da mesma fazenda e senhora, decerto ocupava-se dos
serviços rurais e, entre o trabalho extenuante e a carência nutricional proporcionada pela vida
em cativeiro, havia desenvolvido inchaço no estômago (verminose), que o fazia comer terra.86
De acordo com os estudos de J. F.X Siguard sobre o Brasil Império, mas que pode ser
considerado para o contexto aqui analisado, o hábito de comer terra ganhou uma feição de
mal endêmico principalmente nas regiões rurais, devido a alimentação pobre destinada aos
escravos – farinha de mandioca, milho e feijão – e as condições de vestimenta inapropriadas
para o trabalho e para as horas de descanso. Nesse sentido, a verminose que fazia com que os
escravos comessem terra, do ponto de vista de Siguard, era identificada como doença própria
da escravidão.87
As bexigas e a gota coral são denominações relacionadas à varíola e à epilepsia, que
eram frequentemente associadas, como visto no capítulo anterior, ao movimento do tráfico
atlântico em direção ao Brasil. No inventário do capitão negreiro Jacinto Gomes (1752), por
exemplo, um moleque do gentio da Costa da Mina pertencente à carregação do capitão Jacinto
Gomes foi avaliado como sem valor, isso porque ele apresentava acidentes contínuos de gota
coral e a sua condição o tornava sem préstimo e, por isso, sem valor. 88 A quizila ou quigila,
por sua vez, toma características e definições que a classificam dentro do entendimento do
período, como “doença de feitiço” ou interdição de preceitos aplicados no tratamento das
doenças.89 Essa enfermidade, de acordo com Bluteau, era uma maldição que os pais dos
escravos vindos de Angola lançavam em seus filhos.90 Apesar de não haver uma referência
explicita à doença nos manuais de medicina, no curso do século XVIII, era comum a
associação de determinadas enfermidades à feitiçaria. Em seu estudo sobre práticas de cura e
curadores ilegais na capitania de Minas Gerais no século XVIII, André Nogueira, utiliza o
85
SCHWARTZ, op. cit., 1988, p. 129-134.
86
APEB, SJ, Inventário post-mortem de Francisca de Sande (1702), 01/199/351/01.
87
SIGUARD, J.F.X. Do clima e das doenças do Brasil ou estatística médica deste Império. Rio de Janeiro:
Editora Fiocruz, 2009.
88
APEB, SJ, Testamento e inventário post-mortem de Jacinto Gomes (1752), 03/1147/1616/02.
89
Sobre a quizila ou quigila como possível rito de tratamento de doenças cf. SOUZA, op. cit., p. 100.
90
BLUTEAU, op. cit.
95
termo “doença de feitiço” para se referir aos achaques que eram provocados pela ação ou ira
dos feiticeiros, levando em consideração a crença difundida entre as autoridades e
representantes da medicina douta que relacionavam a saúde e o corpo doente ao
sobrenatural.91 Karasch ressalta ainda que entre os senhores era comum a crença na origem
das doenças vinculada ao sobrenatural e, consequentemente, à sua cura era advinda da ação
dos feiticeiros.92 Voltando à quigila, encontramos na escravaria de Francisca de Sande, Joana,
congo, que estava acometida de quigila, e decerto acreditava ter sido amaldiçoada por seus
antepassados. Joana ainda era mãe de Luzia crioula, doente de asma.93
Outra condição de saúde que deve ser considerada nesta análise é a de Maria, escrava
africana de nação arda, que pertencia à escravaria da fazenda de dona Francisca de Sande.
Maria foi registrada pelos inventariantes como prenha, fato que chama atenção, pois, Maria,
de acordo com a definição encontrada no dicionário de Bluteau, estava pejada, ou seja, ela
estava grávida e sua condição, conforme os herdeiros da sua senhora, foi relacionada ao
estado de doença.94 Como Maria foi avaliada em 65$000 mil réis, valor condizente ao de
mercado, podemos supor que seu estado de saúde causasse preocupação a sua senhora, uma
vez que tanto a gravidez quanto o parto, dado a mortalidade infantil e circunstâncias precárias
de assistência, representavam um momento de risco aos senhores de escravos. Pejada também
foi o termo usado para dar notícia a Antônio José de Oliveira Guimarães, no dia 8 de maio de
1777, sobre a moléstia que acometia sua escrava. De acordo com Francisco Ignácio Botelho,
médico que visitou a cativa a pedido do senhor, a moléstia vinha em aumento e para afastar a
desconfiança sobre o estado de saúde da escrava, Francisco Ignácio Botelho examinou sua
barriga constatando que parecia pejada de duas crianças. Eis um trecho do registro:
[...] Meu amigo e senhor recebi a de vossa mercê e agora somente sou
a dizer-lhe que a moléstia ou moléstias de sua parda vão em aumento;
ontem a fui ver se na barriga como uma mulher que está pejada de
duas crianças [...].95
Essa percepção da gravidez enquanto doença pode ser entendida a partir dos sentidos
que foi dada à doença no século XVIII. Assim, como vimos anteriormente, a moléstia era o
91
NOGUEIRA, op. cit. 2013.
92
KARASCH, op. cit.
93
APEB, SJ, Inventário post-mortem de Francisca de Sande (1702), 01/199/351/01.
94
Ibidem.
95
ANTT. Feitos Findos. Diversos (documentos referentes ao Brasil), maço 18, nº 15. Carta de Francisco
Ignácio Botelho a Antônio José de Oliveira Guimarães sobre a moléstia que acometia sua escrava.
96
96
BLUTEAU, op. cit.
97
APEB, SJ, Inventário post-mortem de Francisca de Sande (1702), 01/199/351/01.
98
BLUTEAU, op. cit., p. 16.
97
Isso não significa, porém, que enfermidades como a tísica ou a asma não tenham sido
desenvolvidas no ambiente de trabalho em que os escravos viviam se levarmos em
consideração o clima úmido e em certa medida chuvoso da região do Recôncavo onde se
encontrava a maioria dos asmáticos e tísicos. Josefa, por exemplo, escrava de João Lopes
Fiúza, era muito velha e além de apresentar problemas na visão, também era asmática.99
Enfim, as doenças que acometiam os escravizados eram resultado tanto do trabalho
por eles executado quanto às péssimas condições em que essas atividades laborais eram
exercidas. Entretanto, os maus-tratos senhoriais também merecem ser pensados como fio
condutor para essa análise e, nesse sentido, refletir sobre os castigos senhoriais como fatores
que colaboraram não só para o surgimento das doenças, mas também para os aleijões ou
incapacidades físicas dos escravizados, será tema do próximo capítulo.
99
APEB, SJ, Inventário post-mortem de João Lopes Fiúza (1741), 04/1571/2040/05.
98
CAPÍTULO III
Os aleijos e os maus-tratos senhoriais na Bahia
1
SCHWARTZ, Stuart. Segredos internos: engenhos e escravos na sociedade colonial 1550-1835. São Paulo:
Companhia das Letras, 1988. p. 123.
2
LARA, Silvia Hunold. Campos da violência: escravos e senhores na capitania do Rio de Janeiro, 1750-
1808. Rio de Janeiro: Paz e Terra, 1988. p.20.
3
Idem, p. 19.
4
MARQUESE, Rafael de Bivar. Ideologia imperial, poder patriarcal e o governo dos escravos nas Américas,
c. 1660-1720. Revista Afro-Ásia, Salvador, n. 31, p. 39-82, 2004.
5
LARA, Silvia Hunold. Legislação sobre escravos africanos na América portuguesa. Volume 1. Madrid:
Fundación Historica Tavera/Digibis, 2000. p. 27.
99
Assim, não é de se estranhar que a legitimidade do cativeiro africano pautada nas leis
divinas e no “direito natural” não causasse espanto entre as autoridades e a população letrada
ou não durante os primeiros séculos da colonização portuguesa. O governo dos escravos e as
obrigações de senhores e escravos foram incorporados ao debate a partir do século XVIII, a
exemplo dos tratados que buscavam justificar a incapacidade dos senhores em governar seus
escravos sob a suposição de que estariam afastados da moralidade católica.6 A ideia do
afastamento dos senhores da moralidade católica versada pelo padre jesuíta Jorge Benci, em
1700, procurava responder aos ataques que a Companhia de Jesus vinha sofrendo desde 1688,
quando questionada sobre a posse de escravos e a vasta quantidade de propriedades que
possuía, bem como a isenção do pagamento dos dízimos.7 Nesse sentido, esse suposto
afastamento dos senhores da moralidade católica era, na verdade, uma estratégia contra tais
questionamentos apontando falhas e erros dos senhores na administração dos escravos. Para
Charles Boxer, o tratamento dado aos cativos sofria variações consideradas naturais, e de
acordo com o caráter do senhor, isto é, se cruel o senhor castigaria o escravo, se bondoso teria
compaixão diante da punição do cativo. Além disso, a gravidade das punições era uma
extensão da vigilância dos feitores, que, segundo Boxer, eram “muitas vezes mulatos
disciplinadores e brutais”.8
Essas considerações sobre o exercício legítimo do cativeiro são fundamentais para
entendermos os abusos e maus-tratos senhoriais e sua relação com o estado de saúde dos
cativos. Naquele período, denúncias sobre a crueldade e a violência senhorial circularam pela
colônia. Embora o castigo fosse uma prerrogativa senhorial para disciplinar os cativos,
sempre que os senhores cruzavam os limites do que se entendia como castigo exemplar,
pautado por questões morais e religiosas, a coroa poderia intervir contra as atrocidades
cometidas nos domínios senhoriais. Segundo Lara, a coroa portuguesa dispunha de
mecanismos políticos, econômicos, jurídicos e sociais para manter o controle sobre os
colonos, nesse sentido, a administração da justiça e a manutenção da relação senhor-escravo
eram estratégias pautadas na continuidade do poder da coroa sobre senhores e escravos nas
suas relações pessoais. Assim, se por um lado o castigo era reconhecido como direito
senhorial, por outro a necessidade da coroa em controlar tal direito promovia um desequilíbrio
6
BENCI, Jorge. Economia cristã dos senhores no governo dos escravos (1700). São Paulo: Grijalbo, 1977;
MARQUESE, op. cit., p. 57.
7
MARQUESE, op. cit., p. 53-54.
8
BOXER, Charles R. A idade de ouro do Brasil: dores de crescimento de uma sociedade colonial. Tradução
de Nair de Lacerda. São Paulo: Companhia Editora Nacional, 1969. p. 31.
100
9
LARA, op. cit., 1988, p. 36-66.
10
Arquivo Público do Estado da Bahia, Seção Colonial, Ordens Régias, vol. 1, doc. 56 (Carta do rei de
Portugal ao governador geral do Brasil, de 11 de janeiro de 1690). Silva Junior cita esse e outros
episódios em que a coroa interviu nas ações senhoriais contra seus escravos, cf. SILVA JUNIOR, Carlos
Francisco da. Identidades Afro-Atlânticas: Salvador, século XVIII (1700-1750). 2011. Dissertação
(Mestrado em História Social) – Faculdade de Filosofia e Ciências Humanas, Universidade Federal da Bahia,
Salvador, 2011.p. 36.
11
Carta régia a Matias da Cunha, governador geral do Brasil, de 20 de março de 1688 apud LARA, op. cit.,
2000, p. 198.
12
Carta régia de 23 de março de 1688 apud LARA, op. cit., 2000, p. 199. SOUZA, op. cit., 2010, p. 141.
13
Carta régia de 23 de fevereiro de 1689, apud LARA, op. cit., 2000, p. 201.
101
Apesar disso, no ano seguinte 1690, D. Pedro I voltou atrás na sua decisão e
reafirmou as leis de 20 e 23 de março de 1688 e pôs em prática a lei da escrava citada. A
crueldade dos senhores contrariava as leis, principalmente contra a caridade ao próximo. Por
isso, não causa estranheza o posicionamento de el-rei sobre a denúncia apresentada à justiça
régia por Úrsula, afinal enquanto cabeça do corpo social, o rei deveria cuidar de todos os
vassalos do seu Império e isso, incluía os escravos.14
A coragem em denunciar o mau tratamento dos senhores à justiça muitas vezes
salvava a vida do escravo duramente castigado. E foi certamente a coragem de José Ferreira
Vivas que trouxe a público a crueldade do homem mais rico da Bahia no terceiro quartel do
século XVIII, Garcia d’Ávila Pereira de Aragão. Segundo Luiz Mott, Garcia d’Ávila era um
Mestre de Campo do Recôncavo que conseguiu fortuna e prestígio na Bahia, tendo sido
acusado e levado ao Tribunal do Santo Ofício pelas torturas e heresias que cometia. Dos 47
itens citados pelo denunciante José Ferreira Vivas, que provavelmente era próximo do
acusado, 26 faziam referência a torturas e castigos cruéis contra seus escravos e 21
mencionavam sacrilégios e blasfêmias contra a Santa Igreja católica.15
O item 5, por exemplo, descreve uma das várias torturas praticadas pelo Mestre de
Campo contra um escravo mestiço de aproximadamente 30 anos, chamado Caetano. De
acordo com o relato, Caetano havia sido pego tocando uma rabeca e amarrado em uma cama-
de-vento. Suspenso no ar pelas pernas e braços, ele fora açoitado durante dois dias e, em
seguida, levado às correntes com uma argola no pescoço. No terceiro dia, ainda acorrentado,
fora deixado nu sobre o sol, sem comida nem bebida. À noite, Caetano havia sido tirado das
correntes e levado para a senzala, escapando com vida da perversão do seu senhor devido aos
cuidados que recebera de suas duas tias.16
Relatos como este que revelam a brutalidade dos senhores no tratamento dos seus
escravos, apesar de chocantes, são importantes para compreendermos o lugar do cativo na
sociedade colonial e como os maus-tratos contribuíram para que em alguns casos os escravos
sadios passassem para a condição de aleijado ou incapaz. Mas, qual era o lugar social do
escravo em uma sociedade do Antigo Regime? Antônio Manuel Hespanha e Ângela Barreto
Xavier, ao dissertarem sobre a arquitetura do poder no Império português, analisaram o
processo de idealização do poder centralizado na figura do soberano, a partir da
14
HESPANHA, Antônio Manuel; XAVIER, Ângela Barreto. A representação da sociedade e do poder. In:
MATTOSO, José (Org.). História de Portugal. O Antigo Regime (1620-1807), v. 4. Lisboa: Editorial
Estampa, 1993. p. 121-155.
15
MOTT, Luiz. Bahia: inquisição & sociedade. Salvador: EDUFBA, 2010. p. 67-68.
16
Idem, p. 76-77.
102
transformação do monarca em cabeça do Estado e dos corpos sociais. Desse modo, ao ocupar
essa posição cabia ao rei elaborar as leis e conceder privilégios e obrigações aos seus
vassalos.17 Nesse sentido, essa sociedade compreendia um corpo orgânico composto por
categorias reputadas naturalmente como desiguais, ou seja, uma estrutura social hierarquizada
em que cada grupo possuía direitos, privilégios e obrigações.18
Partindo destas considerações, a integração dos escravos no Império português dava-
se por intermédio de um estatuto que legitimava a escravidão e determinava a sua condição de
mercadoria e propriedade perante a sociedade. Conforme considerou Hebe Maria Mattos,
17
HESPANHA, Antônio Manuel; XAVIER, Ângela Barreto. op. cit., 1993.p. 121-155.
18
LIMA, Priscila de. De libertos a habilitados: interpretações populares dos alvarás anti-escravistas na
América portuguesa. Dissertação (Mestrado em história) – Universidade Federal do Paraná, 2011. p. 2.
ALMEIDA, Kátia Lorena Novais. Valer-se da autoridade do trono para obter sua liberdade: fuga e
alforria - Bahia e Lisboa, 1761-1804. REVISTA DE HISTÓRIA JCR, v. 1, p. 1-43, 2020.p. 3.
19
MATTOS, Hebe. A escravidão moderna nos quadros do Império português: O Antigo Regime em perspectiva
atlântica. In: BICALHO, M. F; FRAGOSO, J; GOUVÊA, M. F. (Org.). O Antigo Regime nos trópicos: a
dinâmica imperial portuguesa (séculos XVI-XVIII). Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, 2001. p. 153.
103
20
MARQUESE, op. cit., p. 41-54.
21
BLUTEAU, Raphael. Vocabulário português & latino: aulico, anatomico, architectonico. Coimbra:
Collegio das Artes da Companhia de Jesus, 1712-1728. 8 v. Disponível em:
http://dicionarios.bbm.usp.br/ptbr/dicionario/edicao/1. Acesso em Julho de 2021.p.233.
22
Cf. LARA, op. cit., 2000, p. 56-57.
23
FERREIRA, op. cit., 1735, p. 631-632, 640-641, 666-667, 763-764, 830-831, 960.
104
aleijos. André Nogueira, por exemplo, apresenta um caso interessante para pensarmos o
aleijo. Segundo o autor, uma escrava de nome Joana havia ficado surda, cega e aleijada em
virtude dos feitiços que Isabel e seus dois filhos, Catarina e Isidoro, lançaram contra ela.24 O
caso mencionado por Nogueira mostra como na sociedade colonial a vida, a doença, as
condições do corpo e a morte eram também relacionadas à feitiçaria e ao sobrenatural. Assim,
não podemos esquecer que algumas incapacidades ou “defeito de nascença”, a exemplo da
cegueira, acompanhavam o escravo por toda vida. Portanto, neste capítulo, serão separadas e
estudadas as incapacidades e aleijos congênitos ou provocados pelos maus-tratos senhoriais.
Antes disso examinaremos o perfil de escravos aleijados e incapazes.
Fonte: Arquivo Público do Estado da Bahia, Seção Judiciária, 33 inventários post-mortem de Salvador (1700-1750).
(Doravante: APEB, SJ).
24
NOGUEIRA, André Luís Lima. Entre cirurgiões, tambores e ervas: calunduzeiros e curadores ilegais em
ação nas Minas Gerais (século XVIII). 2013. Tese (Doutorado em História das Ciências e da Saúde) – Casa
de Oswaldo Cruz, Rio de Janeiro, 2013.p. 155.
105
25
APEB, SJ, 33 inventários post-mortem de Salvador (1700-1750).
26
Idem.
27
APEB, SJ, Inventário post-mortem de João Lopes Fiúza (1741), 04/1571/2040/05.
106
Já o caso de Caetano requer atenção, pois sua senhora possuía outros dois escravos
africanos de nação mina, Pedro e Luís, ambos sem o olho esquerdo.28 Ao descrever a
condição dos cativos, o escrivão usou o termo “falto”, que segundo Bluteau denotava carência
e necessidade de prudência e forças, mas também “defeituoso”. 29 Assim, por um lado é
possível que os cativos tenham nascido com uma deficiência congênita e isso explicaria o
“defeito” no olho. Por outro lado, esse “falto do olho esquerdo” que acometeu três cativos de
uma mesma escravaria pode estar associado aos maus-tratos. Nesse sentido, outra questão que
merece ser considerada nessa possibilidade de doença e falta de préstimo para o serviço, como
resultado dos maus-tratos senhoriais, é o fato de que Caetano, Pedro e Luís eram faltos do
mesmo olho, o esquerdo, e se o “defeito” no olho fosse congênito dificilmente os três
escravos perderiam o mesmo olho, por isso, é possível que a incapacidade dos cativos tenha
sido provocada pelo mau tratamento dado pela senhora.
Teria Caetano sido mutilado pelo senhor? Ou teria sido dona Josefa Maria da Silva
que o castigou após a viuvez? Proprietária de 16 escravos, escravaria acima da média para os
padrões da Cidade da Bahia, onde era comum os senhores possuírem entre 5 e 10 escravos,
talvez dona Josefa tenha encontrado dificuldades na administração e no controle dos seus
cativos que se dedicavam ao serviço de casa e ao ganho. Essa dificuldade na administração
dos cativos pode ser compreendida através da relação senhor e escravo, muitas vezes
construído a partir do medo, do respeito, da crença na inviolabilidade da vontade senhorial e
em alguns casos por meio de um jogo mútuo de afinidades e interesses. Em contrapartida,
Lara, observou que para a Metrópole o controle social da colônia através da relação senhor-
escravo significava como dito em linhas anteriores, a manutenção da dominação da coroa
sobre os colonos, no entanto, para os senhores de escravos essa relação era uma forma de dar
continuidade ao domínio senhorial sobre os escravos.30
Para o padre jesuíta Jorge Benci, a continuidade do domínio senhorial se dava por
intermédio das obrigações recíprocas entre senhor-escravo, assim, era responsabilidade do
senhor dar aos seus servos trabalho, sustento e castigo. Sobre os castigos aplicados pelos
senhores o jesuíta afirmou que,
Deixar o senhor viver o escravo à sua vontade, e por mais desordens que
faça, dar tudo por bem feito ou (quando muito) passar com uma repreensão,
é dar-lhe atrevimento, para que se arroje a todo gênero de pecados; pois
28
APEB, SJ, Inventário post-mortem de Josefa Maria da Silva (1743), 7/3195/1.
29
BLUTEAU, op. cit.
30
LARA, op. cit., 1988. p. 36.
107
31
BENCI, op. cit., p. 127.
32
Cf. LARA, op. cit., 1988. p. 57-72.
33
Idem, p. 85-86.
108
deixou falto do olho esquerdo Caetano, Pedro e Luís dona Josefa buscava por meio do castigo
a reafirmação do seu poder sobre seus escravizados.34
Retomando a busca pelo perfil dos escravos aleijados, e seguindo a metodologia de
Schwartz proposta no capítulo anterior, considerei crioulinho, de peito e moleque, como
criança; moço, maior e de maior, como jovem; velho, muito velho e com mais de 60 anos,
como idoso.35
Entre os 29 cativos registrados, observa-se que em grande quantidade dos registros
(15) não foram reveladas as respectivas idades dos cativos, 51,74%. Entre aqueles cuja faixa
etária aparece registrada (7), 24,13% eram idosos, os jovens (5) somavam 17,24% e as
crianças (2) chegaram ao índice de 6,89%.36 Todavia, mesmo com essa superioridade das
idades não identificadas, acreditamos que entre os aleijados e incapazes havia uma vantagem
dos idosos sobre os jovens, isso porque, segundo as Ordenações Manuelinas e Filipinas, em
casos de doenças, o senhor tinha o direito de enjeitar o seu escravo apenas se comprovasse
que o mesmo havia sido vendido doente ou estivesse manco.37 Nesse sentido, e levando em
conta que 51,72% dos cativos aleijados e incapazes eram do Recôncavo, é possível considerar
que muitos tenham chegado a essa condição enquanto trabalhavam na manutenção dos
engenhos ou no corte da cana-de-açúcar. Os cativos não poderiam ser rejeitados de acordo
com as referidas Ordenações, ou seja, deveriam ficar sob os “cuidados” dos senhores até a
morte, embora nem sempre a prática social seguisse a norma.
Outro indicativo dessa possível estabilidade entre os aleijados idosos e os mais
jovens torna-se evidente quando examinamos os valores destinados a cada escravo. Segundo
Souza, durante o curso do século XVIII os preços cobrados pelos cativos recém-chegados
passaram por um momento de elevação tornando comum que fossem cobrados de 170$000
até 200$000 por um escravo africano. De acordo com a autora, entre 1700-1725 o preço
médio cobrado por um escravo do sexo masculino era de 90$884 e para uma escrava do sexo
feminino 80$410, entre 1726-1750 o escravo custava em média 85$613 e a escrava 76$264.
A autora estabelece ainda a base média para tais preços, assim, entre 1700-1750 a média de
preço para um escravo era de 86$169 e para uma escrava 74$995. 38 Desse modo, com base
nos preços arrolados para os cativos avaliados nos 33 inventários que compõe esta amostra,
34
APEB, SJ, Inventário post-mortem de Josefa Maria da Silva, 1743, 7/3195/1.
35
SCHWARTZ, op. cit., 1988, p. 286-288.
36
APEB, SJ, inventários post-mortem de Salvador (1700-1750).
37
LARA, op. cit., 2000, p. 56-100.
38
SOUZA, op. cit., 2010. p. 36-96.
109
buscamos identificar as idades dos escravos que não foram registradas pelo escrivão no
momento da avaliação dos bens.
Simão benguela, escravo da fazenda e engenho de dona Francisca de Sande, por
exemplo, “teve a mão direita levada pela moenda”. Sua condição estava diretamente
associada ao trabalho no engenho e sua avaliação fixada em 50$000 deixa transparecer a
possibilidade de Simão ter perdido a mão na moenda quando era jovem. Caso contrário,
receberia um valor inferior como aconteceu com Lourenço, escravo da mesma escravaria, que
não era doente nem aleijado, mas, por ser idoso, foi avaliado em 30$000. Já Domingos teve
dois dedos da mão direita cortados e Manoel era aleijado do braço direito. Ambos foram
avaliados em 70$000, eram jovens e se considerarmos que trabalhavam no engenho,
provavelmente a condição de aleijado veio de um descuido no manuseio da moenda ou do
facão enquanto cortavam a cana-de-açúcar. Schwartz observou que o trabalho nos tambores
do engenho além de repetitivo exigia dos escravos habilidade e atenção, pois, qualquer
descuido no processamento da cana, fosse na velocidade ou na quantidade adequadas para
moenda, causaria a quebra dos tambores ou um acidente de trabalho, assim, o cativo poderia
facilmente ter a mão arrancada ou até ser sugado pela máquina.39 Assim, levando em
consideração que na época da safra o trabalho no engenho era realizado de forma ininterrupta,
ou seja, não parava e dividia-se em turnos, imagine-se que os cativos podiam ter jornadas de
12 a 16h de trabalho e a exaustão física favorecia a ocorrência de acidentes. O uso da enxada
e da foice nos canaviais era um trabalho árduo e contínuo, começava cedo e terminava tarde.
Exigia-se do escravo que cortasse uma determinada quantidade de cana que, segundo
Schwartz, no final do século XVII, eram sete mãos de cana por dia de trabalho. Assim, “cada
mão consistia de cinco dedos, cada dedo continha dez feixes e cada feixe dose canas. Portanto
a cota diária era de 7 mãos x 5 dedos x 10 feixes x 12 canas, ou seja, 4.200 canas no total”.40
A situação se repetia quando os escravos eram designados para o serviço de corte de
lenha para fornalhas e caldeiras, havia uma cota a ser alcançada diariamente onde cada cativo
era responsável por aproximadamente 725 quilogramas de lenha. A jornada e a própria
natureza do trabalho foram fatores determinantes na vida dos escravos, principalmente nas
fazendas e engenhos de cana-de-açúcar. No mundo do trabalho, os cativos eram mal
alimentados, mal amparados e mal vestidos, além disso, um único escravo poderia
desempenhar mais de uma função na propriedade do senhor e ainda, no período da safra, o
39
SCHWARTZ, op. cit. 1988. p. 131.
40
Idem, p. 129.
110
trabalho no engenho era estendido durante a noite tirando do escravo as suas poucas horas de
descanso. Assim, conforme observou Schwartz,
41
Ibidem, p. 129.
42
APEB, SJ, Inventário post-mortem de Francisca de Sande (1702), 01/199/351/01.
111
Em outra situação, os valores atribuídos aos cativos podem nos ajudar a identificar a
sua faixa etária. Félix, jeje, e Miguel, benin, eram escravos do engenho de João Lopes Fiúza.
Félix era “quebrado do braço e incapaz”, enquanto Miguel ocupava a função de pedreiro e era
“defeituoso de um braço”. Ambos não receberam valor quando da avaliação dos bens pelos
herdeiros, possivelmente devido às suas idades avançadas. Esse aspecto merece ser
considerado, pois, quase todos os escravos do sexo masculino classificados como velhos ou
muito velhos na escravaria de João Lopes Fiúza não receberam nenhum valor em suas
avaliações, assim, podemos considerar que Félix e Miguel eram idosos. Isso porque
identificamos a partir da análise do inventário que os idosos aleijados seguiam um padrão
baseado no estado de saúde dos cativos. Aleijados e incapazes, na escravaria de Fiúza, de
modo geral não recebiam nenhum valor no momento da avaliação. Acreditamos que isso
tenha acontecido porque como idosos e aleijados eles não teriam nenhum préstimo para os
herdeiros. Encontramos ainda nessa escravaria outros exemplos em que a idade pode ser
determinada pelo valor atribuído ao cativo em inventário. Marcos, calabar, era aleijado de um
pé, coxo e foi avaliado em 25$000. Miguel angola, “camboio das pernas”, era escravo de casa
e foi apreciado em 30$000 e Paulo trocado que também era angola e recebeu o mesmo valor
era “aleijado de um dedo da mão direita”. Em todos os exemplos, percebe-se que o valor dado
a cada escravo era determinado pelo estado físico de saúde e pela idade de cada escravo.
Raphael, jeje, por exemplo, era “falto de um olho”, mas, em sua avaliação, consta a quantia de
120$000, isto é, ele era um escravo jovem que apesar de sua deficiência recebeu valor
equivalente à função que exercia no engenho. 43
Com a análise dos valores o número de idosos tem um aumento de sete registros para
treze, o mesmo acontece com os jovens que sobem de cinco para dez, a quantidade de
crianças se mantem (2), e aqueles que não tiveram suas idades listadas na documentação
sofrem uma queda de quinze para quatro. Assim, ao colocarmos em perspectiva os valores
atribuídos aos escravos com a idade, verificamos que 44,82% de cativos aleijados ou
incapazes eram idosos, 34,48% jovens e 6,91%, eram crianças, designadas como crioulinhos,
já aqueles cuja faixa etária não foi registrada na documentação, e que na análise anterior
representavam 51,74% dos aleijados agora com a introdução dos valores, somam apenas
13,79%.44 Até aqui as ocupações e a faixa etária dos cativos aleijados e incapazes nos
permitiram traçar um perfil que se direciona, assim como no capítulo anterior, para os
43
APEB, SJ, Inventário post-mortem de João Lopes Fiúza (1741), 04/1571/2040/05.
44
APEB, SJ, 33 inventários post-mortem de Salvador (1700-1750).
112
45
APEB, SJ, Inventário post-mortem de Manoel Soares Moreira, 1747, 04-1586-2055-01.
113
idosas (6) somam 42,86%.46 A partir de algumas informações sobre as escravarias, buscamos
identificar a idade das escravas agrupadas na categoria não identificada com o objetivo de
descobrir alguma variação nos resultados.
É através da avaliação que podemos supor a idade de algumas escravas. Caterina,
coara, descrita na documentação como cega e avaliada em 10$000 era escrava de Jacinto
Ferreira Feio de Faria (1741), pequeno proprietário de escravos que foi também vereador do
Senado da Câmara de Salvador, ou seja, um senhor de prestigio naquela sociedade, e o monte
mor dos seus bens foi avaliado em 4:868$728. Faria possuía dez cativos que se ocupavam dos
serviços de transporte e ofícios mecânicos. Caterina, coara, não teve sua ocupação arrolada na
documentação, tampouco sua idade, mas sua cegueira nos leva a acreditar que era uma
escrava idosa.47
Entre as cativas cujas idades não foram determinadas no inventário de João Lopes
Fiúza (1741), identificamos Elena, escrava do engenho São Pedro de Pararipe, que em sua
avaliação foi reconhecida como aleijada, e, por isso, avaliada em 20$000 mil réis. Seu aleijo
adveio do árduo trabalho no engenho que, assim como em outros ambientes, necessitava de
certa destreza para ser desenvolvido. Afinal, um movimento errado poderia facilmente
arrancar uma mão, o que provavelmente aconteceu com Elena, descrita na documentação com
“falto da mão direita”. Assim como nos casos anteriores, usaremos algumas informações para
definir a idade de Elena. Até aqui sabemos que a cativa de João Lopes Fiúza perdeu uma mão
na moenda, mas outro detalhe importante para essa investigação é que ela era casada com
Bartolomeu, escravo do mesmo senhor e doente de asma. Bartolomeu foi descrito como velho
no inventário e avaliado em 25$000. Assim, a partir das informações sobre seu marido,
podemos considerar que Elena fazia parte do grupo de escravas aleijadas idosas e,
provavelmente, perdeu sua mão quando ainda era jovem. Entretanto, havia também a
possibilidade de Elena ser mais jovem do que o seu marido, mas diante do valor que lhe foi
atribuído no inventário, baixo em comparação ao que foi avaliado para outros cativos,
acreditamos que ela era idosa. Outro exemplo da mesma escravaria é Júlia, crioula que
possuía um “defeito no olho” e que devido ao seu trabalho no engenho foi avaliada em
50$000. Como mencionado anteriormente, havia um padrão na escravaria de João Lopes
Fiúza, escravos e escravas idosos e aleijados muitas vezes não recebiam nenhum valor e,
46
APEB, SJ, 33 inventários post-mortem de Salvador (1700-1750).
47
APEB, SJ, Inventário post-mortem de Jacinto Ferreira Feio de Faria (1741), 04-1610-2079-04.
114
quando recebiam em geral eram valores muito baixos. Assim, considerando a quantia
estipulada após o exame de Júlia podemos supor que ela era uma escrava jovem.48
Por fim, Leonor mina, mencionada anteriormente, não teve sua idade identificada em
virtude das condições do inventário de Manoel Soares Moreira (1747), que permitiu
reconhecer apenas sua ocupação (cozinheira), condição de saúde (aleijada do pé esquerdo) e o
valor (32$000). Sua avaliação indica que Leonor seria uma cativa idosa, pois seu valor estava
assim como os valores atribuídos a outras cativas abaixo da média apresentada por Souza
(74$995). Voltando aos dados apresentados e às análises feitas sobre os valores das escravas
aleijadas e incapazes registrados na documentação podemos concluir que o grupo das cativas
idosas continua com percentual superior em relação ao grupo das mais jovens. Após a
introdução de Elena e Catarina, essa categoria (idosas) representaria 57,14% das escravas
aleijadas e incapazes que foram examinadas. Enquanto o percentual encontrado para as
escravas jovens também sofreria alterações com a entrada de Júlia a categoria, somando
35,71%, a categoria não identificada ao final somou apenas 7,14%, pois somente Leonor não
teve sua idade identificada.
A presença de escravos e escravas com faixa etária aproximada de 60 anos ou mais
no grupo dos aleijados tornou possível a identificação do seu perfil. Diferente do que vimos
no capítulo anterior, no qual se observou que o percentual de doentes se concentrava entre os
escravos mais jovens (44,20%), aqui as cativas e cativos mais idosos correspondem juntos a
48,83%.49 Nesse sentido, podemos afirmar que aleijos e incapacidades físicas eram mais
comuns entre os africanos escravizados que desempenhavam suas atividades laborais nas
fazendas e engenhos. Além disso, percebemos também que em determinadas situações o
aleijo ou a incapacidade era provocada pela ação dos senhores, isto é, devido ao mau
tratamento dado aos escravos. Outro ponto a ser destacado nesta análise é a existência de
aleijos e incapacidades congênitas, assim, tomando novamente como exemplo o cativo
Miguel, angola, escravo de João Lopes Fiúza, descrito como “camboio das pernas”. Talvez
Miguel já tenha nascido com as pernas tortas e por isso tenha sido designado para o trabalho
de casa. É possível que Nicolau, crioulinho, que pertencia a Fiúza, também tenha nascido com
um “defeito no olho”. Em outros casos, como o de Luís mina, escravo de Luís de Magalhães
Leitão, descrito como surdo e mudo, a incapacidade se evidencia como congênita, entretanto,
48
APEB, SJ, Inventário post-mortem de João Lopes Fiúza (1741), 04-1571-2040-05.
49
APEB, SJ, 33 inventários post-mortem de Salvador (1700-1750).
115
aquelas que foram provocadas pelo trabalho e maus-tratos eram mais frequentes entre os
cativos.50
Mas, quais eram os aleijos e incapacidades físicas que mais acometiam os escravos e
que podem ser relacionados diretamente ao trabalho e aos maus-tratos senhoriais?
50
APEB, SJ, Inventário post-mortem de João Lopes Fiúza (1741), 04/1571/2040/05; Inventário post-mortem de
Luís de Magalhães Leitão (1719), 04/1585/2054/03.
51
APEB, SJ, 33 inventários post-mortem de Salvador (1700-1750).
52
APEB, SJ, Inventário post-mortem de Josefa Maria da Silva, 1743, 7/3195/1.
116
53
APEB, SJ, Inventário post-mortem de Francisca de Sande (1702), 01/199/351/01; Inventário post-mortem de
João Lopes Fiúza (1741), 04/1571/2040/05.
54
RIBEIRO, Márcia Moisés. A ciência dos trópicos: a arte médica no Brasil do século XVIII. São Paulo:
Hucitec, 1997. p. 23-24.
55
RUY, Affonso. História da câmara municipal da cidade de Salvador. 2ª ed. Salvador: Academia das
Letras da Bahia 1996. p. 197.RUSSELL-WOOD, Anthony. J. R. Fidalgos e filantropos: A Santa Casa da
Misericórdia da Bahia, 1550-1755. Tradução de Sérgio Duarte. Brasília: Editora Universidade de Brasília,
1981.
117
permitem observar o cuidado oferecido ao escravo doente e o papel da Santa Casa entre 1701
e 1750. Fundada, segundo Russell-Wood, entre abril de 1549 e agosto de 1552, a
Misericórdia ao longo de sua existência adquiriu uma posição de grande importância social na
Bahia. Durante a invasão dos holandeses a capitania teve suas enfermarias ocupadas e
utilizadas como hospital principal pelos invasores.56 O objetivo da irmandade era o cuidado e
auxílio aos pobres, doentes, enjeitados e as obras pias. Maria Renilda Nery Barreto, em estudo
sobre a Santa Casa da Bahia, aponta as sete obras espirituais e corporais em que as
Misericórdias, incluindo a da Bahia, deveriam pautar suas ações. Segundo Barreto,
Cabia à irmandade pautar suas ações em sete obras espirituais (ensinar aos
simples, dar bom conselho a quem pede, castigar com caridade os que erram,
consolar os tristes, perdoar a quem errou, sofrer as injúrias com paciência e
rogar a Deus pelos vivos e pelos mortos) e sete obras corporais (remir
cativos e visitar os presos, curar os enfermos, cobrir os nus, dar de comer aos
famintos, dar de beber a quem tem sede, dar pousada aos peregrinos e pobres
e enterrar os finados).57
56
RUSSELL-WOOD, op. cit., 1981. p. 65-68.
57
BARRETO, Maria Renilda Nery. A Santa Casa da Misericórdia da Bahia e a assistência aos doentes no
século XIX. In: SOUZA, Christiane Maria Cruz de (org.). História da saúde na Bahia: Instituições e
patrimônio arquitetônico (1808-1958).São Paulo: Manole, 2011. p. 5.
58
RUSSELL-WOOD, op. cit., p. 111.
59
MONTEIRO, Nuno Gonçalo. O “Ethos” Nobiliárquico no final do Antigo Regime: poder simbólico,
império e imaginário social. Almanack braziliense, n. º 2, p. 4-20, 1 nov. 2005.ISSN 1808-8139. DOI
disponível em: Disponível em: http://www.revistas.usp.br/alb/ article/view/11697.
118
60
RUSSELL-WOOD, op. cit., p. 113-115.
61
Idem, p. 110.
62
SANTOS, Augusto Fagundes da Silva. História financeira da Santa Casa de Misericórdia da Bahia no
século XVIII. Salvador: Quarteto, 2015. p. 83-84.
63
Idem, p. 62-64; RUSSELL-WOOD, op. cit., p. 120-121.
64
RUSSELL-WOOD, op. cit., p. 129.
119
estavam na categoria de pagantes por motivo óbvio: eles eram propriedade de um senhor e,
como tal, o senhor tinha obrigação de arcar com os gastos, principalmente na cura das
doenças e nos funerais.
Os funerais dos escravos que morriam no porto de desembarque e no mercado de
vendas pouco tempo depois de chegarem à Bahia eram realizados no esquife da Santa Casa,
conhecida como banguê.65 Entre 1741-1750, parte considerável dos escravos enterrados pela
Misericórdia pertencia às nações mina e angola. De acordo com a documentação, dos 2.163
funerais registrados para o período em questão 32,63% eram de africanos de nação angola,
25,60% eram africanos mina, os enterros dos benguelas correspondiam a 1,34%, enquanto
moçambique, congo, jeje, são tome, bamba e cabra juntos representavam apenas 1,93% dos
enterrados no banguê entre 1741-1750. O grupo dos crioulos somava 2,82%, os pretos 2,63%
e aqueles cuja origem não foi lançada no banguê pelo escrivão correspondiam a 33,63% dos
funerais.66
Os estudos de Souza sobre os livros do banguê apontam que para o período de 1741-
1800, 49,4% dos escravos sepultados pela Misericórdia vinham dos portos angolanos, 36,3%
eram da Costa da Mina, enquanto 3,4% eram aqueles que nasciam no Brasil (crioulos,
mestiços, pardos, cabras).67 Os resultados apresentados pela autora mostram-se superiores
devido ao período por ela analisado, que corresponde às últimas décadas da primeira metade e
a segunda metade do século XVIII (1741-1800), entretanto, mesmo analisando períodos
diferentes a disparidade entre os resultados mostra-se pequena, principalmente em relação aos
funerais dos crioulos.
Além da origem, outro aspecto relevante sobre os escravizados que eram enterrados
no esquife é a denominação que lhe foi atribuída no momento em que foram lançados no
banguê. Desse modo, o uso dos termos: “uma preta”, “um preto”, “uma escrava”, “um
escravo”, “um molecão”, “uma cria” ou “uma moleca” eram frequentemente usados para
identificar os africanos escravizados que haviam morrido sem receber o batismo e o nome
cristão, ou seja, aqueles que eram considerados escravos boçais. Conforme argumentou
Souza, em geral, além de pertencer a uma carregação ou aqueles que tinham interesse na
carga, os cativos possuíam ainda marcas de ferro pelo corpo que eram usadas para facilitar o
processo de identificação dos proprietários.68 Analisando a sobredita documentação,
65
SOUZA, op. cit., 2018. p. 124-299.
66
ASCMB, Livro do Banguê nº 1257, 1741-1750.
67
SOUZA, op. cit., 2018. p. 125.
68
Idem, p. 125.
120
encontramos para 1741 e 1750, 434 (20,06%) de africanos que cruzaram o Atlântico e
morreram sem receber um nome católico, apesar de relativamente pequeno, tais dados
estatísticos revelam outro aspecto inquietante sobre a escravidão e o tráfico de escravos,
aqueles que morriam sem alcançar o batismo entravam para o rol do que Souza chamou de
“estatística da violência”.69 Em outras palavras, suas mortes representavam a violência do
processo de escravização que se iniciava no continente africano e terminava sob uma cova nos
territórios da América portuguesa.
No que se refere à identificação dos proprietários nos registros do banguê,
percebemos que parte considerável dos senhores (70,45%), não teve seu local de residência
assinalado na documentação, os residentes no Brasil (Bahia, Pernambuco e Rio de Janeiro)
somaram 23,94% entre eles o nosso já conhecido cirurgião João Cardoso de Miranda e a
traficante de escravos dona Teresa Maria de Jesus, os que possuíam moradia na África
(Moçambique, Luanda, Benguela e São Tome) correspondiam a 5,08%, e por fim, os
proprietários que residiam em Portugal apenas 0,50%.70 Voltando aos dados apresentados por
Souza, notamos que sua pesquisa por abarcar um período superior ao que ora é aqui estudado,
indica um percentual superior para os proprietários de Luanda e Lisboa (40,6%).71 Todavia,
apesar de oferecer informações tão precisas a respeito da mortalidade cativa, o banguê não
dispõe de subsídios relevantes para entendermos o cuidado com o escravo doente e aleijado,
por isso, faz-se necessário o estudo sobre outras documentações manuscritas da Santa Casa de
Misericórdia.
Os poucos registros que temos para 1700 e 1750 apontam uma questão crucial para
esta pesquisa: o cuidado dispensado ao escravo doente pela Misericórdia. Assim, nas linhas
que se seguem discutiremos os gastos com o tratamento dos cativos doentes, os funerais, a
ação da Santa Casa diante das dívidas de senhores de escravos que faziam uso do hospital e
da botica da irmandade para curar seus enfermos e não pagavam pelo tratamento, e por fim o
cuidado com o cativo aleijado.
No livro dos acórdãos n. 14, relativo ao período entre 1681 e 1745, encontramos o
registro de um termo enviado a Lisboa no dia 23 de outubro de 1705. Nele, o escrivão Manoel
Dias Figueira, o Provedor Manoel Francisco Lomoretto e outros representantes da
corregedoria responsável pela administração do hospital e botica da Santa Casa levaram ao
conhecimento do monarca, o déficit nos cofres da irmandade causado pelos gastos anuais com
69
Ibidem, p. 125.
70
ASCMB, Livro do Banguê nº 1257, 1741-1750.
71
SOUZA, op. cit., 2018. p. 124.
121
[...] Se dizia todos os anos ser grande despesa em escravos que pelo repouso
que eles mesmos teriam, os ditos escravos morriam e com [enterros] deles se
gastava muito o que da mesma sorte se gastava todos os anos nesta casa e
hospital [...].73
Possivelmente esses cativos que faleciam na Misericórdia faziam parte daqueles que
eram deixados pelos senhores como indigentes, doentes ou já mortos nas portas da irmandade,
obrigando-a a arcar com os custos da cura em caso de doença ou com o funeral. Entretanto, os
termos registrados no livro dos acórdãos não apresentam os valores que foram gastos com a
compra de remédios ou com os escravos. Os livros de despesas trazem dados mais completos
sobre os rendimentos das boticas, tumbas, esquifes e do tratamento de escravos doentes.74
Em 31 de agosto de 1736, os cofres da Santa Casa receberam por intermédio do
irmão recebedor das esmolas, Mathias de Torres Bezerra, 117:504$000 contos de réis do
rendimento das tumbas e esquifes. Em setembro do mesmo ano, os cofres arrecadaram com os
enterros nos esquifes 120:480$000 contos de réis. Ambas as quantias eram consideravelmente
altas e mostram que, embora a irmandade dependesse dos doadores para a manutenção de
suas obras pias, ela conseguia arrecadar rendimentos com a realização de funerais. Somados
aos aluguéis de imóveis, doações e legados deixados pelos membros, os rendimentos
constituíam valores significativos para sua preservação, prejudicada em certos momentos pela
inadimplência dos tomadores de empréstimos e em certos casos pelas dívidas pela restauração
da saúde dos escravos.75 As quantias arroladas na documentação provocam um
questionamento interessante acerca do valor cobrado pelo tratamento dos escravos doentes.
Observemos o registro de um rendimento decorrente da cura de um cativo enfermo
pelo hospital da Misericórdia:
72
Arquivo da Santa Casa de Misericórdia da Bahia. Termo de resolução sobre os gastos com os medicamentos
da botica e com os escravos que faleceram. Livro dos Acórdãos da mesa e resoluções dos definidores
desta Santa Casa de Misericórdia da Bahia n. 14, 1681-1745. p. 57-58.
73
Idem, p. 57-58.
74
Também constam nesses livros as despesas com a compra de escravos, pagamento de salário para médicos e
cirurgiões, juros referentes aos empréstimos, despesas da sacristia e das missas.
75
Arquivo da Santa Casa de Misericórdia da Bahia. Livros de despesas da Santa Casa de Misericórdia da
Bahia, 1701-1738. Livro nº 852, p. 15-22. (Doravante: ASCMB, Livros de despesas da Santa Casa de
Misericórdia da Bahia, Livro nº).
122
Analisando o termo de receita percebemos que o valor cobrado pela cura do cativo
era consideravelmente alto para os padrões de vida em Salvador. Isto é, suponhamos que
Caetano de Carvalho pertencesse ao grupo dos pequenos proprietários de escravos que
possuíam uma escravaria composta por cinco a dez escravos que se dividiam entre o serviço
de casa e o ganho. Mesmo se isentando de algumas obrigações (moradia, alimento e
vestimenta) com seus ganhadores, a quantia cobrada pelo tratamento do cativo ainda se faria
muito alta, pois, como pequeno proprietário Caetano de Carvalho teria que preservar a
manutenção de toda a sua escravaria.
Outra questão que merece ser considerada nesse aspecto é o preço cobrado pela
farinha de mandioca: $400 réis por alqueire.77 O produto, de acordo com Stuart Schwartz, era
o alimento básico da escravaria e da mesa dos homens livres. Sua inserção no cotidiano dos
escravos era tão importante que em meados do século XVIII a quantidade necessária foi
calculada em um alqueire, algo próximo a 36,27 litros do produto a cada quarenta dias por
escravo.78 Seguindo esse cálculo, suponhamos novamente que Caetano de Carvalho possuísse
uma escravaria composta por 10 escravos, sendo cinco ligados ao serviço de casa e o restante
trabalhando no sistema de ganho. Mesmo o senhor se isentando em parte de suas obrigações
com os escravos ganhadores, ele gastaria aproximadamente dois mil réis só com a compra da
farinha de mandioca necessária para atender cinco escravos. O peixe também fazia parte das
refeições nas senzalas e seu preço variava de acordo com a espécie e com o vendedor, por
exemplo, o dourado custava $25 réis na mão do pescador e $30 réis se comprado na mão de
uma rendeira.79 Assim, além dos gastos com remédios e farinha se o escravo levado por
Caetano de Carvalho ao hospital da Misericórdia estivesse acometido por escorbuto ou
bexigas, ele necessitaria seguir uma dieta o que, certamente, geraria outro gasto com a
76
ASCMB. Livros de despesas da Santa Casa de Misericórdia da Bahia, 1701-1738. Livro nº 852, p. 73.
77
Cf.: DOMINGUES, Cândido. Perseguidores da espécie humana: capitães negreiros da Cidade da Bahia na
primeira metade do século XVIII. 2011. Dissertação (Mestrado em História) – Faculdade de Filosofia e
Ciências Humanas, Universidade Federal da Bahia, Salvador, 2011, p. 211.
78
SCHWARTZ, op. cit., p. 126.
79
Cf.: SOUZA, Daniele Santos de. Entre o “serviço da casa” e o “ganho”: escravidão em Salvador na
primeira metade do século XVIII. 2010. Dissertação (Mestrado em História) – Faculdade de Filosofia e
Ciências Humanas, Universidade Federal da Bahia, Salvador, 2010, p. 78.
123
80
MIRANDA. Relação cirúrgica e médica, op. cit., 1747. p. 3-4, 135.
81
APEB, SJ, Inventário post-mortem de Maria da Conceição (1744), 04/1572/2041/01.
82
APEB, SJ, Inventário post-mortem de Maria Teles de Menezes (1716), 03/1030/1499-01.
83
ASCMB. Livros de despesas da Santa Casa de Misericórdia da Bahia, 1701-1750. Livro nº 853, p. 25v.
124
gastos com os medicamentos que a Santa Casa fez uso para tratar o escravo de Peralta. Os
rendimentos tanto da farmácia quanto do hospital dificilmente alcançavam 100$000 mil réis
e, nesse sentido, não existia a possibilidade de a confraria tornar-se financeiramente
independente já que a maior parte do capital destinado aos serviços médicos vinha das
doações.84 Por outro lado, podemos ainda supor que os cálculos eram estimados a partir da
posse do senhor ou do doente, observemos o registro de rendimento a seguir,
Carrego em receita viva ao nosso irmão recebedor das esmolas Simão Pinto
de Queirós 40$540 réis que recebeu da cura do preto José, que se curou no
hospital. E de como recebeu a sobredita quantia, e se obrigou a dar conta
dela, e assinou comigo esta carga na Bahia e Casa da Misericórdia em 14 de
maio de 1738. Eu João Dias do Passo escrivão atual da mesa. Simão Pinto de
Queirós. João Dias do Passo.85
Certamente, José era um africano liberto. E estado ele, diante de suas pouquíssimas
posses ou da ausência delas, teve sua dívida estipulada pela Santa Casa no valor de 40$540
mil réis. Essa diferença entre os rendimentos deve ser analisada com base nos parâmetros
sociais do Antigo Regime. Afinal, a população da Bahia era em sua maioria formada por
negros (africanos), mulatos e mestiços, escravos ou libertos, que estavam à margem da
sociedade ocupando sempre um lugar de inferioridade. Segundo Russell-Wood, o escravo
ocupava uma condição ambígua, pois ao mesmo tempo em que era objeto da crueldade e
maus-tratos do senhor, era um investimento que carregava uma simbologia de poder, assim, a
posse de escravos representava para o senhor a demonstração do prestigio social diante da
sociedade.86
Entretanto, sua posição ambígua não impedia os senhores de abandonar um escravo
que apresentasse sinais de doença. Era a compaixão apregoada nos sermões jesuíticos que
tratavam das obrigações de senhores e escravos que induzia o senhor a levar um escravo
doente ao hospital. E quanto aos libertos? Qual a posição daqueles alforriados que não tinham
mais a compaixão de seus senhores no cuidado com as doenças? Conforme observou Russell-
Wood, o lugar do liberto diante da sociedade colonial não era tão distinto daquele que ocupou
enquanto escravo, pois, de modo geral, era difícil um forro alcançar sua independência
84
ASCMB. Livros de despesas da Santa Casa de Misericórdia da Bahia, 1701-1750. Livro nº 846, p. 84.
85
ASCMB. Livros de despesas da Santa Casa de Misericórdia da Bahia, 1701-1750. Livro nº 853, p. 36v.
86
RUSSELL-WOOD, op. cit., p. 221.
125
Analisando o termo de receita podemos traçar o cenário percorrido pelo capitão até o
momento em que finalmente ele paga sua dívida com a Misericórdia. Luís Carvalho da Rocha
usufruía da patente de capitão-mor, posição deveras importante para o comando das tropas de
el-rei no além-mar. Certamente o capitão já havia levado outros escravos vitimados pelas
doenças para o hospital da Santa Casa. Talvez tenha sido a primeira vez que Luís Carvalho da
Rocha tenha entrado para a lista de devedores da irmandade. É possível que o capitão, assim
como tantos outros proprietários de escravos, tenha negligenciado sua dívida esperando que
ela caísse no esquecimento ou que os irmãos responsáveis pela cobrança dos rendimentos
continuassem omitindo sua própria incumbência. O que decerto Carvalho da Rocha não
esperava era a reivindicação do débito na justiça, isso porque na sociedade colonial ele
87
Idem, p. 221.
88
ASCMB. Livros de despesas da Santa Casa de Misericórdia da Bahia, 1701-1738. Livro nº 852, p. 85.
126
89
SANTOS, op. cit., p. 227-248.
127
descoberta aurífera, é que os senhores se viram obrigados a gastar com o tratamento dos
cativos doentes, pois era mais barato curar um escravo do que comprar um novo.90
A estima pelo cativo durante o setecentos apresentava um caráter ambíguo, se por
um lado era percebido como ação benevolente, por outro entrava em contraste com as
questões financeiras e a vaidade do senhor que buscava ser reconhecido na sociedade. Desse
modo, podemos considerar que de forma direta ou indireta o cativo doente estava sempre na
condição de dependência, seja do senhor ou da caridade da Santa Casa. A Misericórdia, por
sua vez, mesmo baseada num ideal filantrópico, também dependia dos legados e doações de
terceiros para manutenção das obras pias e do cuidado com os doentes, por isso, a expedição
de uma ordem judicial a um capitão-mor que devia a cura de um escravo pode ser pensada
como última tentativa de reaver o dinheiro que foi gasto pelos cofres da irmandade.
Os estudos recentes sobre a relação senhor e escravo têm demonstrado que os maus-
tratos senhoriais eram um dos principais argumentos utilizados pelos cativos em suas petições
encaminhadas à autoridade régia para justificar a liberdade dos cativos na primeira metade do
século XVIII. Priscila de Lima, ao analisar os pedidos de concessão de liberdade enviados à
corte pelos escravizados, inclusive os da capitania da Bahia no curso do século XVIII,
observou que eram os castigos excessivos que fundamentavam suas petições.91 Entretanto, as
leis outorgadas em 20 e 23 de março de 1688, e que garantiam a obrigatoriedade da venda dos
escravos pelos senhores quando estes sofriam maus-tratos, foram revogadas mediante carta
régia de 23 de fevereiro de 1689, com a justificativa de que tais leis estavam provocando
conflitos entre os senhores e seus escravos.92 Mesmo assim, conforme observou Lima, os
castigos exorbitantes continuaram sendo entendidos como um problema a ser tratado pelas
autoridades, sendo assim, não cabia às autoridades confrontar as leis determinadas pelo
monarca com o objetivo de aplicar punições aos senhores.93
Outra questão que merece ser considerada é o cuidado com o escravo aleijado.
Demonstrei na seção anterior que 64,29% dos aleijados e incapazes para o serviço eram do
Recôncavo, ou seja, aqueles que desempenhavam as suas atividades laborais nos engenhos e
nas plantações de cana-de-açúcar, fumo, mandioca e outros gêneros alimentícios. Nesse
sentido, outro ponto abordado na sobredita seção, foi a relação de determinados afazeres no
mundo rural com as condições de sobrevivência que envolvia além da alimentação, moradia e
90
RUSSELL-WOOD, op. cit., p. 221.
91
LIMA, op. cit. p. 58-59.
92
LARA, op. cit. p. 201.
93
LIMA, op. cit. p. 59.
128
94
APEB, SJ, Inventário post-mortem de Francisca de Sande (1702), 01/199/351/01.
95
APEB, SJ, Inventário post-mortem de João Lopes Fiúza (1741), 04/1571/2040/05.
96
APEB, SJ, Inventário post-mortem de Jacinto Ferreira Feio de Faria (1741), 04-1610-2079-04.
APEB, SJ, Inventário post-mortem de José Rodrigues Chaves, 1742, 05/2200/2669/03. APEB, SJ, Inventário
post-mortem de Nicolau Carneiro Rocha, 1739, 14-1614-2083-9.
129
97
SCHWARTZ, op. cit. p. 131.
130
local evitava o apodrecimento da carne e o aleijo, porém, seu uso também auxiliava quando
era necessário conter um sangramento decorrente de um ferimento.98
Certamente, os barbeiros que pertenciam às escravarias de Francisca de Sande e João
Lopes Fiúza faziam uso de tal método buscando aliviar a dor e evitar a morte de um
companheiro por hemorragia ou infecção, afinal a aguardente evitava também o
desenvolvimento de infecções no local do aleijo. O cuidado com o escravo acidentado estava,
igualmente, relacionado às relações de afinidade ou a ausência delas, pois, a sua ausência
levaria o cativo de maneira brutal a adoecer, perder um membro do corpo ou a visão e até
morrer nos domínios do senhor. A crueldade e os abusos cometidos eram fundamentais para
determinar a vida dos escravos, mas em uma sociedade em que a elite usufruía da posse de
mão de obra escrava podemos sim considerar que muitos senhores dentro da categoria dos
pequenos proprietários não teriam condições para manter sua casa, escravaria e o escravo
doente.
Nesse sentido, o pequeno senhor de escravos, como dito anteriormente, era mais
cuidadoso com seus cativos enquanto os grandes proprietários pouco se preocupavam com as
condições de trabalho às quais submetiam seus escravizados e, sobretudo, despreocupados
com o adoecimento em cativeiro, por isso, não é de se estranhar que senhores como João
Lopes Fiúza e dona Francisca de Sande tivessem sob seus domínios número significativo de
escravos doentes e aleijados em comparação aos pequenos proprietários.
98
FURTADO, Júnia Ferreira (org.).Erário mineral Luís Gomes Ferreira. Vol. I e II. Belo Horizonte:
Fundação João Pinheiro, Centro de Estudos Históricos e Culturais; Rio de Janeiro: Fundação Oswaldo Cruz,
2002. p. 474-486.b
131
Conclusão
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APEB, SJ, 33 inventários de Salvador (1700-1750).
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APEB, SJ, 33 inventários de Salvador (1700-1750).
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incapacidades físicas entre os cativos, e possibilitou entender alguns dos imaginários que
durante muito tempo conceituaram a origem das moléstias que floresciam na Bahia,
relacionando-as a entrada dos africanos escravizados no porto da cidade.
Assim, a partir do entendimento destes imaginários foi possível determinar em que
medida o tráfico transatlântico de escravos colaborou para que determinadas doenças
(escorbuto, lepra, bexigas, elefantíases dentre outras), desembarcassem junto com os
escravizados em Salvador. Nesse sentido, partindo das considerações que foram feitas ao
longo deste debate, concluímos que as doenças que acometiam os africanos sequestrados e
escravizados, antes e durante a travessia do Atlântico, era resultado das péssimas condições às
quais eram submetidos. Em relação ao trabalho e ao mau tratamento senhorial, percebemos
que tanto a doença quanto os aleijões, também se associavam às condições de trabalho a que
eram submetidos no cativeiro.
Desse modo, o estudo proporcionou lançar novos olhares para o século XVIII e para
as diversas formas de se pensar a escravidão e a doença no mundo colonial e, também a
própria relação senhor versus escravo. As condições de sobrevivência às quais eram
submetidos os escravizados em Salvador e no Recôncavo na primeira metade do setecentos
foram determinantes tanto para as doenças que os acometeram quanto para os aleijos que
padeceram.
134
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