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UNIVERSIDADE ESTADUAL DE FEIRA DE SANTANA - UEFS

PROGRAMA DE PÓS-GRADUAÇÃO MESTRADO EM HISTÓRIA

LARISSA GODINHO MARTINS DOS SANTOS

A CANTORIA DE SÃO GABRIEL: FESTA, CONFLITOS E SOCIABILIDADES NO


SERTÃO BAIANO – (1991-1999)

FEIRA DE SANTANA
2018
II

LARISSA GODINHO MARTINS DOS SANTOS

A CANTORIA DE SÃO GABRIEL: FESTA, CONFLITOS E SOCIABILIDADES NO


SERTÃO BAIANO – (1991-1999)

Dissertação apresentada ao Programa de Pós-


Graduação em História da Universidade Estadual
de Feira de Santana como requisito parcial para
obtenção do título de Mestre em História.

Orientador: Prof. Dr. Clóvis Ramaiana Moraes


Oliveira.

FEIRA DE SANTANA
2018
III

Ficha Catalográfica – Biblioteca Central Julieta Carteado

Santos, Larissa Godinho Martins dos


S236c A cantoría de São Gabriel: festa, conflitos e sociabilidades no sertão
baiano – (1991-1999)./Larissa Godinho Martins dos Santos. – 2018.
170f.: il.

Orientador: Clóvis Ramaiana Moraes Oliveira


Dissertação (mestrado) – Universidade Estadual de Feira de Santana,
Programa de Pós-Graduação em História, 2018.

1.Cantoria de São Gabriel – Festa. 2.Memória. 3.Sociabilidade.


I.Oliveira, Clóvis Ramaiana Moraes, orient. II.Universidade Estadual de
Feira de Santana. III. Título.

CDU : 398 (814.22)

Maria de Fátima de Jesus Moreira – Bibliotecária – CRB5/1120


IV

TERMO DE APROVAÇÃO

Larissa Godinho Martins dos Santos

A CANTORIA DE SÃO GABRIEL: FESTA, CONFLITOS E SOCIABILIDADES NO


SERTÃO BAIANO – (1991-1999).

Dissertação aprovada como requisito parcial para obtenção do título de Mestre em História do
Programa de Pós-Graduação em História da Universidade Estadual de Feira de Santana, pela
seguinte banca examinadora:

_____________________________________________________
Prof. Dr. Clóvis Ramaiana Moraes Oliveira – UEFS
(Orientador)

____________________________________________________
Prof. Dr. Antônio Maurício Freitas Brito – UFBA
(Avaliador externo)

___________________________________________________
Profa. Dra. Elciene Rizzato Azevedo – UEFS
(Avaliadora interna)

Feira de Santana, ____ de _________de 2018.


V

Com todo amor, a mainha que me deu a vida e


a Bento que me fez renascer!
VI

AGRADECIMENTOS

Como tudo que nós fazemos na vida, o mestrado foi um caminho com percalços e
também alegrias. Momentos de ansiedade e aflição por conta dos prazos e leituras atrasadas
foram meus espinhos. As amizades verdadeiras que construí na UEFS, que levarei para
sempre, e o meu filho foram as rosas que conquistei nessa trajetória.
Gostaria de agradecer aos colegas do mestrado, e posso me orgulhar em dizer que é
possível fazer verdadeiras amizades em um Programa de Pós-graduação. Obrigada pelas
trocas de experiências maravilhosas: Maria, Vânia, Táfila, Mirian, Nayanne, Laiane, Isabel,
Cristiane, Miléia, Antônio, Guillermo, Fernando e João. Foi ótimo dividir esse momento com
vocês. Agradeço a Julival, sempre nos orientando, informando e lembrando os prazos. Juli,
você dá vida ao programa com sua gentileza e cuidado. Agradeço aos professores que nos
proporcionaram momentos de conhecimento regados a generosidade e solidariedade.
Agradeço a meu orientador Clóvis Ramaiana pelas significativas contribuições e,
especialmente, pela sensibilidade em relação a minha gravidez durante o mestrado. Obrigada!
Agradeço a banca por ter aceitado o convite em participar do processo de avaliação.
Obrigada Elciene Azevedo por sua serenidade e Maurício Brito por sua generosidade, a
ambos pelas pertinentes contribuições e referências na qualificação, e pela disposição em
ajudar. Agradeço a CAPES pelo financiamento desta pesquisa, incluindo a licença
maternidade. Que possamos viver tempos melhores nesse país, onde a pesquisa não seja
considerada um gasto e sim um importante investimento.
Obrigada aos entrevistados que abriram as portas de suas casas para nos receber e se
dispuseram falar sobre suas experiências. Sem a generosidade de cada um de vocês esta
pesquisa não teria sido concluída. Obrigada também as pessoas que não pude entrevistar, mas
que sei a importância de cada um para a construção da Cantoria de São Gabriel nesse trajeto
de 28 anos de história da festa. Solange, Ana, Welton Gabriel, Reginaldo Manso, Laís
Oliveira, os participantes da roda de São Gonçalo, do Reisado, os Querubins e tantos outros
sujeitos que constroem ano após ano a Cantoria. A todos vocês tenho profundo respeito e
gratidão.
Como jamais esqueço de onde vim, agradeço pelo que conquistei, a minha casa, a
UNEB campus XIII. Aos meus amigos que sempre torceram por mim: Graziela, Priscila,
Alcione, Arilma, Daniana, Franciny, Izaura, Thaianne, Poliana, Jéssica, Rosi, Álani, Fabiana,
Atílio e Juliana, Adriana, Gessivania, Michelle, Gleiton, Talita e Paulo, Agamenon, Izac, Jhon
e Lucas Mendes, amo vocês. Aos meus professores, por todo incentivo, ajuda e
VII

disponibilidade desde a construção do projeto: Marinelia Silva, minha orientadora, um


exemplo de simplicidade e gentileza, agradeço pelas orientações e torcida; Bel Pires pela
leitura do projeto, pelos os livros que me emprestou e pela torcida; Izabel Melo pelas ricas
colaborações no TCC; Rodrigo Lopes; Luiz Alberto; Silene Arcanja; Sidney Oliveira; Carlos
Nássaro; Hamilton Rodrigues; e em especial a Regiane Lopes, uma mulher maravilhosa que
tive a sorte de ser aluna, obrigada pelas fecundas correções no TCC, pelo carinho e por
acreditar tanto em seus alunos, te amo, Rê.
Agradeço as vibrações positivas enviadas pelas amigas de infância de São Gabriel.
Nas idas à cidade, quase sempre para pesquisar, me proporcionaram muitos momentos de
alegria. Obrigada a Valéria, Luana, Carol, Michele, Lidiane e Nuncia.
Em Feira de Santana pude desfrutar de ótimas amizades que tornaram a morada e o
mestrado mais leve. Agradeço a Fran pela acolhida, pela disposição em nos ajudar, pelas
conversas sobre a pesquisa e a vida, muito obrigada por tudo amiga. Obrigada também a
Gilvan, seu companheiro, pelas inúmeras risadas e pelas vezes que me salvou quando o
precário transporte público não passou. Agradeço a minha prima e amiga Eduarda, pelas
longas conversas, sempre disposta a ouvir sobre a pesquisa e interessada no meu
desenvolvimento no mestrado. Obrigada também a Kaique, o primo que ganhei. Agradeço ao
meu amigo, vizinho e colega de profissão, Rui Marcos pelos deliciosos almoços e cafés, pelas
conversas e palavras de sabedoria para encarar com serenidade os percalços da vida. A Eric
pela agradável companhia e a Thayllane, amiga da primeira infância que, por ironia do
destino reencontrei no Feira VI. A Karine, pela disponibilidade de imprimir o texto. Aos
amigos das outras turmas de mestrado: Roberta, Leonardo, Alane e Fabiano. Outros amigos
que conquistei na trajetória de estudante da história: Raul, Iracélli, Cleidinho, Gabi e Rodrigo,
obrigada pelas conversas sobre pesquisas. Especialmente a Iracélli que fez a leitura do texto.
Dos amigos que dividiram comigo a morada em Feira, quero agradecer em especial a
Alci. Sua serenidade, leveza e amizade acalmaram muitas vezes meu coração aflito, obrigada
pela companhia, pelo apoio, pelas leituras do texto, pelos debates na hora das refeições e
todas as outras coisas. Obrigada por ter sido a melhor companhia que eu poderia ter nesse
trajeto. Amigos feirenses e migrantes nessa cidade foi muito bom ter cada um de vocês nesse
processo.
Na reta final fui surpreendida com uma nova morada, Uruçuca, lugar que também me
trouxe novos amigos e reencontros. Agradeço a Roberta que de Feira veio para essa cidade e
pude conviver com mais proximidade, obrigada pela disponibilidade de leituras, sugestões e
solidariedade no momento mais conturbado da pesquisa, no pós-parto. Junto a Roberta tive o
VIII

apoio de Candice e Ísis, minhas três mosqueteiras que formaram uma rede de apoio muito
importante para que eu pudesse dar conta de escrever e cuidar de Bento. Serei eternamente
grata a vocês, meninas. Agradeço também aos meninos: Othon, Cassiano, Gésus e Victor,
obrigada pelos momentos de distração.
Sem o apoio as coisas ficam bem mais difíceis de serem concretizadas. Sou muito
grata a minha família por sempre ter confiado em mim e dado o suporte necessário. Meus
amados irmãos que sempre estiveram preocupados como andava a pesquisa e me ouviram
falar tanto dela, agradeço a Raphaela (Rapha), Jamil (Jam) por me ajudar nas transcrições,
Raphael (Fael) e a Priscila (Pri) que teve um incentivo especial por estar passando pela
mesma experiência que eu, ambas no mestrado de história, compartilhamos leituras, dúvidas e
ouvimos uma a outra sobre as pesquisas. Agradeço a meu pai, Aribaldo, por tudo e pelas
vezes que me socorreu em Feira de Santana sempre que passava por lá. Aos meus sobrinhos
lindos que me acalmaram o coração tantas vezes: Ana Luiza e Davi; e aos lindos sobrinhos da
família Rosa também. Agradeço aos cunhados Lidianny, Filipe, Santhiago, Luciana, Regina e
Karina pelos pensamentos e vibrações positivas. A minha sogra que se tornou uma segunda
mãe, Dona Dete, obrigada por ter cuidado tão bem de mim e de Bento no pós-parto, por ter
me dado cobertura para estudar e escrever, disponibilizado seu tempo em nome da conclusão
do texto e em nome do amor que sente pela gente. Família, amo muito vocês.
A família e amigos foram fundamentais para a conclusão da pesquisa, mas mainha foi
meu maior suporte, se dispôs a me acompanhar em quase todas as entrevistas, largando seus
afazeres para se dedicar aos objetivos de sua filha. Ela ajudou na pesquisa, emocionalmente e
financeiramente para que eu pudesse concluir o mestrado. Na reta final, me acompanhou em
entrevistas cuidando de Bento e dedicou seu tempo, tão atarefado, para cuidar dele enquanto
eu mergulhava na escrita. Joselice Godinho, eu te agradeço imensamente por tudo que faz por
mim, obrigada por ser essa mulher incrível. Te amo incondicionalmente.
Agradeço ao meu companheiro Rafael, que tornou mais leve o caminhar durante esse
processo. Foi ele que me segurou nos momentos de fraqueza, me ouviu, deu colo, abraço e
muito amor. Confiou em mim, muitas vezes mais do que eu mesma, dizendo sempre com a
voz mansa: “Você vai conseguir, Lari”. Agradeço pelos livros, pela leitura do texto e pelas
críticas necessárias. Obrigada por estar sempre comigo e pelo que fez e foi durante o pós-
parto. Você nos blindou no nosso momento mais frágil, um recém-nascido, uma recém-mãe,
um turbilhão de sentimentos e uma dissertação para ser finalizada. Sem você, provavelmente,
teríamos sofrido para conseguir finalizar a pesquisa. Eu sempre serei grata por você fazer
valer o significado que a palavra companheiro tem. Quero, com você e Bento, seguir
IX

aprendendo todos os dias, a ser família. Amo você. Aproveito e deixo o meu abraço a todas as
mulheres que tiveram seus filhos abandonados pelos pais.
Quero agradecer e dedicar essa dissertação ao meu co-autor, meu filho Bento. É isso
mesmo, co-autor, pois éramos como um só. Ele habitou em mim durante a maior parte da
escrita, compartilhou entrevistas, leituras, ideias, dúvidas e até mesmo as ansiedades e as
noites de insônia. Bento me acolheu, nasceu para nos mostrar à vida de outro ângulo, me deu
colo quando eu achava que era eu quem estava lhe dando, me abraçou quando eu achava que
eu estava o abraçando. Me deu a força necessária para finalizar a escrita e a coragem que me
faltava. Obrigada meu filho, por me fazer despertar para outras questões e me transformar a
cada dia em uma pessoa melhor. Te amo muito.
Ser mãe e pesquisadora passou a ser um ato de luta, luta pela quebra de paradigmas
construídos por uma sociedade machista, que por muito tempo tenta definir o “papel” da
mulher. Esta pesquisa seve para mostrar que mães também podem pesquisar. Em nome de
todos os olhares e comentários machistas sobre a gravidez de mulheres, na graduação e pós-
graduação, é preciso sempre afirmar que podemos tudo o que quisermos, com filhos, sem
filhos, do jeito que decidirmos, porque todos os lugares, diante de qualquer circunstancias,
são lugares de mulher. Deixo aqui um abraço apertado a todas as mães trabalhadoras que se
dividem, ou melhor, se completam, entre a labuta e o cuidado da suas crias. Nós podemos!
X

RESUMO

Esta pesquisa tem como objetivo apresentar e discutir a história da construção e da


consolidação da Cantoria de São Gabriel-Ba, desde a sua criação em 1991 até 1999, quando
ela passou a ganhar reconhecimento na cidade. A Cantoria foi criada pelo Culturarte, grupo
formado por sujeitos que possuíam uma trajetória de militância política e de envolvimento
cultural na cidade desde os finais dos anos 1970. A princípio, buscamos compreender a
atuação do Movimento de Arte e Cultura (MAC) e dos Jovens Unidos a Procura da Paz
(JUPP), dois grupos de jovens que atuaram na cidade entre 1979 e 1988, considerados como
importantes influências para a formação tanto do Culturarte quanto da Cantoria. Em um
segundo momento, discutimos as memórias dos membros do Culturarte e de políticos locais
acerca da Cantoria, os embates e disputas em torno da aquisição de patrocínio para a
construção do evento. Por fim, discutimos as memórias de sujeitos que participavam da festa,
mas não tinham envolvimento com a construção do evento. Ao longo da pesquisa,
percebemos que a Cantoria é um espaço de sociabilidade e algazarra, mas, sobretudo, de
disputa e conflitos. Enfim, analisamos a Cantoria e o seu processo de transformação, seu
grupo fundador e as estruturas sociais da localidade. Compreendemos a festa não apenas
como válvula de escape da vida cotidiana, mas como a representação do social. A pesquisa foi
construída a partir da História Oral, pois sua fonte principal são as memórias dos sujeitos que
fundaram o Culturarte e a Cantoria, dos políticos locais e da população que participou de
algumas edições da festa.
Palavras chave: Festa; Memória; Sociabilidade.
XI

ABSTRACT
This research aims to present and discuss the history of the construction and consolidation of
Cantoria of São Gabriel-Ba, from its creation in 1991 until 1999 when it become recognized
in the city. Cantoria was created by Culturarte, a group formed by people who had a trajectory
of political militancy and cultural involvement in the city since the late 1970s. At first, we
sought to understand the acting of the Art and Culture Movement (ACM) and the United
Youth for Peace (UYP), two groups of young people that worked in the city between 1979
and 1988, and considered as important influences for formation both of the Culturarte, and of
the Cantoria. In a second moment, we discussed the memories of members of Culturarte and
local politicians about Cantoria, the struggles and disputes surrounding the acquisition of
sponsorship for the construction of the event. Finally, we discussed the memories of subjects
who participated in the party, but them were not involved with the construction of the event.
From that, we realized that the Cantoria is a space of sociability and uproar, but above all, of
dispute and conflicts. In short, we analyze the Cantoria and its process of transformation, its
founding group and the social structures of the locality. That is why we understand the party
not only as a way of escape from everyday life, but as the representation of the social. The
research was built from the Oral History, because its main source are the memories of the
subjects who founded the Culturarte and the Cantoria, of the local politicians and the
population that participated in some editions of the party.
Key words: Party; Memory; Sociability.
XII

SUMÁRIO

INTRODUÇÃO ................................................................................................................................... 15

1.0 MOVIMENTOS CULTURAIS EM SÃO GABRIEL: ARTE, POLÍTICA E CONFLITO ... 25


1.1 Um sertão que luta: O MAC e o JUPP e suas influências para surgimento do Culturarte. ......... 28
1.1.1 Um sonho podado: De Movimento de Arte e Cultura à “Maconha Álcool e Cocaína” ....... 29
1.1.2 JUPP- Religião, arte e militância. ........................................................................................ 52
1.2 O surgimento do Grupo Culturarte.............................................................................................. 67

2.0 A CANTORIA E O COMEÇO DO CAMINHO: A ORGANIZAÇÃO, A FESTA E


PELEJAS PARA SEGUIR NA CAMINHADA ............................................................................... 76
2.1 Início da caminhada: primeiras ideias, organização da festa, trabalho coletivo e labuta ............ 76
2.2 De grupo de “desocupados” à instituição filantrópica: a busca por recursos e incentivos
governamentais. ................................................................................................................................ 98
2.3 Pelejas pela continuidade, táticas para ganhar espaço .............................................................. 110

3.0 “MUITO MAIS DO QUE O IMAGINADO”: CANTORIA, A FESTA DA CIDADE ......... 120
3.1 Sociabilidade em São Gabriel na década de 1990: a Cantoria enquanto espaço de identidade e
socialização ..................................................................................................................................... 120
3.2 O Culturarte: Conflitos externos e internos ............................................................................... 127
3.3 As transformações da festa e suas características ..................................................................... 138
3.4 Cantoria: Festa e identidade ...................................................................................................... 147
4.0 CONSIDERAÇÕES FINAIS.....................................................................................................155

5.0 REFERÊNCIA ............................................................................................................................ 163


5.1 Fontes ........................................................................................................................................ 163
5.2 Bibliografia ............................................................................................................................... 166
6.0 ANEXO I......................................................................................................................................166
XIII

Lista de ilustrações:

IMAGEM I: Cartaz da I Cantoria em São Gabriel. Ano, 1991. Retirado do acervo de


fotografias da Fundação Culturarte...........................................................................................82

IMAGEM II: Barraca da Fundação Culturarte na terceira Cantoria. 1993. Acervo de Agnolia
Rocha........................................................................................................................................86

IMAGEM III: Cartaz da II Cantoria em São Gabriel. Ano, 1992. Retirado do acervo da
Fundação Culturarte..................................................................................................................96

IMAGEM IV: Cartaz da III Cantoria em São Gabriel. Ano, 1993. Retirado do acervo da
Fundação Culturarte................................................................................................................104

IMAGEM V: Cartaz da VI Cantoria em São Gabriel. Ano, 1996. Retirado do acervo da


Fundação Culturarte................................................................................................................110

IMAGEM VI: Fotografia do espaço da festa na praça da Cantoria em 1996, retirado do acervo
da Fundação Culturarte...........................................................................................................111

IMAGEM VII: Show de Belchior na IX Cantoria em São Gabriel-Ba em 1999. Acervo da


Fundação Culturarte................................................................................................................142
XIV

Lista de abreviaturas e siglas:

MAC – Movimento de Arte e Cultura

JUPP – Jovens Unidos a Procura da Paz

PT – Partido dos Trabalhadores

PC DO B – Partido Comunista do Brasil

PTB – Partido Trabalhista Brasileiro

CESEP - Centro de Serviços Educacionais do Pará

ACM – Antônio Carlos Magalhães

CEB- Comunidade Eclesial de Base

FHC – Fernando Henrique Cardoso


15

INTRODUÇÃO

A pesquisa que então apresentamos tem como objetivo compreender a construção e


aceitação da Cantoria e, a partir dela, entender também as relações sociais na cidade de São
Gabriel na década de 1990. A Cantoria é uma festa que foi criada em 1991, pelo Culturarte,
grupo que fundou um movimento cultural, na cidade, em 1990. Seu maior propósito era a
materialização da festa anualmente. São Gabriel, palco dos conflitos e refrescos que narramos,
faz parte da microrregião de Irecê, localizada na Chapada Diamantina setentrional, no
Nordeste da Bahia, a 489 km de Salvador.
Nosso interesse por São Gabriel surgiu durante a graduação, no momento da
realização do Trabalho de Conclusão de Curso, no qual discutimos as ações dos grupos de
jovens que atuaram na cidade: Movimento de Arte e Cultura (MAC), Jovens Unidos à
Procura da Paz (JUPP) e, por último, o surgimento do Culturarte em 1990. Naquele momento,
nosso interesse mais específico foi entender, a partir das narrativas orais, a atuação e
resistência do MAC e do JUPP nos fins dos anos 1970 e 1980 e suas influências culturais
deixadas na cidade. No contexto, o Brasil estava permeado pela atmosfera da Ditadura Civil-
Militar e pelo processo de redemocratização.
A pesquisa atual analisa o recorte temporal que vai de 1991, ano da primeira edição da
Cantoria, até 1999, momento em que a festa já se encontrava difundida e reconhecida como
festa da cidade. Porém, acreditamos na importância do retorno aos fins da década de 1970 e
1980 para compreendermos melhor os grupos MAC e JUPP, bem como o contexto no qual
atuaram, como estavam inseridos nos seus processos de atuação, e quais suas influências para
o surgimento do Culturarte. O recuo foi fundamental para compreendermos, principalmente,
as questões políticas e de exercício do poder daquele município, marcado pela permanência
de grupos políticos aliados aos partidos de direita que faziam monopólio do poder público.
O Movimento de Arte e Cultura surgiu em 1979 no período ditatorial. Entre os três
grupos, foi o que teve menor duração. Segundo os entrevistados, o grupo tinha como objetivo
promover eventos culturais. Mas, por estarem vivendo um período conturbado, foram
impedidos de prosseguir. A maioria dos entrevistados acredita que o Culturarte e a Cantoria
foram à materialização dos desejos do MAC. Para eles, a ideia era bem próxima do que a
Cantoria se tornou. O JUPP teve também participação cultural, voltada para o teatro. Ele era
ligado à igreja e tinha um caráter social forte, já que uma das preocupações do grupo, segundo
os relatos, era ajudar os necessitados. Já o Culturate, para os entrevistados, foi uma
continuidade do sonho dos jovens do MAC, mas sobre forte influência das correntes políticas
16

seguidas pelos jovens do JUPP que eram em grande maioria ligados ao Partido dos
Trabalhadores (PT) e ao Partido Comunista do Brasil (PC do B). Os entrevistados construíram
memórias baseadas na lógica de uma trajetória de movimentos culturais alinhados às questões
políticas da cidade. Diante disso, entendemos que para compreendermos a Cantoria e o seu
grupo fundador, é necessário pensar sobre as ações dos sujeitos que viveram em São Gabriel
de outra época.
As memórias dos entrevistados trazem as trajetórias dos três grupos MAC, JUPP e
Culturarte de forma muito parecida, ambos formados por jovens que buscaram realizar
movimentos culturais na cidade. Esses jovens, por vezes, foram perseguidos, discriminados e
malvistos por uma classe política e uma parcela da sociedade, cada um à sua época. Em geral,
a ideia deles é que, em São Gabriel, em todas as épocas, pessoas que construíram algum tipo
de movimento incomodaram.
A Cantoria só foi fazer sentido para maior parte da população a partir de meados da
década de 1990. Analisamos a festa a partir da perspectiva de um espaço comum de troca e
sociabilidade. Contudo, nos atentamos para os processos que o evento passou durante o
período pesquisado, questionando quem festejava, quem interagia, o que ela era e significava
para o grupo fundador e para as demais pessoas da cidade.
Para Georg Simmel, a sociabilidade seria uma interação entre iguais, que estão ligadas
intimamente às formas sociais. Uma dada sociedade é formada por grupos ou classes sociais e
as relações desses grupos resultam de sentimentos como impulsos, desejos, necessidade e
satisfação de estar em convívio com outras pessoas.1 O que nos parece ter sido o caso dos
jovens do Culturarte que em maior proporção, interagiram entre si nos primeiros anos da
festa. Concordamos com Simmel ao pensarmos a sociabilidade, contudo, acrescentamos que
sociabilidade é também a interação entre diferentes, já que no ato de festejar grupos diversos
se encontram e dialogam.
Em vista disso, a Cantoria é pensada tanto como um modo de festejar, quanto como
um espaço de representação de conflitos que se configuravam na vida citadina. Buscamos
entender a complexidade das relações, quase sempre conflituosas, dentro da sociedade em São
Gabriel na década de 1990. As relações culturais resultam em um campo de disputa contínua
entre uma cultura dominante e uma cultura subalterna – a cultura das classes populares. Essa
luta cultural assume várias formas como distorção, incorporação, negociação e resistência.
Para E. P. Thompson,

1
SIMMEL, Georg. Questões fundamentais da Sociologia: indivíduo e sociedade. Rio de Janeiro: Zahar, 2006,
p. 59-72.
17

Em todas as sociedades, naturalmente, há um duplo componente essencial: o


controle político e o protesto, ou mesmo a rebelião. Os donos do poder
representam seu teatro de majestade, superstição, poder, riqueza e justiça
sublime. Os pobres encenam seu contrateatro, ocupando o cenário das ruas,
dos mercados e empregando o simbolismo do protesto.2

Em outras palavras, de um lado os dominantes agem com o seu “teatro”, do outro as


classes populares reagem com o “contrateatro”. Nesse sentido, a Cantoria pode ser entendida
como uma demonstração do que Thompson chamou de contrateatro, na medida em que pode
ser vista como ferramenta para conquista de espaço em uma cidade que por muito tempo foi
administrada por uma elite política que buscava determinar as organizações dos sujeitos
naquela localidade.
A Cantoria aparece enquanto uma representação do social, um lugar de encontro,
restabelecimento de valores e também de laços afetivos entre as pessoas. Para Natalie Zemon
Davis, “em vez de ser apenas uma „válvula de segurança‟ desviando a atenção da realidade
social, a vida festiva pode perpetuar certos valores da comunidade”.3 Portanto, a Cantoria é
entendida, para além de momentos de distrações, como um espaço em que as disputas da vida
real se apresentavam.
O estudo de manifestações culturais proporciona um leque de possibilidades para
pensarmos as representações e experiências dos sujeitos em uma determinada sociedade. No
Brasil, por muito tempo, tais eventos tiveram grande importância no meio social. Desde o
período colonial, muitas cidades se organizavam em função dos períodos festivos. Segundo
Guilherme Leonel, nas cidades brasileiras, até o século XIX, as festas foram os
acontecimentos mais importantes, sinônimo de lazer, de ações coletivas e de garantia da
presença da população no espaço público.4 Nesse sentido, a festa se apresenta como um
importante elemento de análise, pois a partir dela torna-se possível compreender uma dada
sociedade.
A história da construção da Cantoria em São Gabriel e as constantes tensões em seu
processo de formação apontam para a necessidade de uma investigação mais profunda sobre
as relações que a festa propiciou. Para investigar a Cantoria e a dinâmica da cidade em 1990,
utilizamos como fontes principais os relatos orais. A História Oral enquanto metodologia foi
nosso condutor principal.

2
THOMPSON, E. P. Folclore, Antropologia e História Social. In: NEGRO, Antônio Luigi; SILVA, Sérgio
(Orgs). As peculiaridades dos ingleses e outros artigos. Campinas: UNICAMP, 2001, p. 227-267.
3
DAVIS, Natalie Zemon. Culturas do povo. Rio de Janeiro: Paz & Terra, 1990, p. 87.
4
LEONEL, Guilherme Guimarães. Festa e Sociabilidade: reflexões teóricas e práticas para a pesquisa dos
festejos como fenômenos urbanos contemporâneos. Cadernos de História, Belo Horizonte, v. 11, n. 15, p. 35-
57, jun./dez., 2010, p. 39.
18

Realizamos vinte e três entrevistas entre os anos de 2012 e 2018, assim distribuídas:
de 2012 a 2014, período da graduação, fizemos cinco; e de 2016 a 2018, período do mestrado,
dezoito. Ouvimos membros da Fundação Culturarte, ex-prefeitos da cidade e pessoas que não
fizeram parte do grupo, mas acompanharam o surgimento e desenvolvimento da Cantoria.
Separamos os entrevistados em três grupos: memórias dos fundadores e participantes do
grupo; memórias dos políticos; e memórias de habitantes da cidade sem vínculo com o
Culturarte. No terceiro grupo encaixamos a entrevista do padre Pedro Ghirelli,5que não falou
da Cantoria, mas sobre a sociedade gabrielese nos anos de 1970 e 1980, quando o MAC e
JUPP atuaram. A partir das memórias dos entrevistados buscamos entender como era a
dinâmica da cidade e como a festa foi se construindo ao passar dos anos. 6
A História Oral vem contribuindo muito para a produção historiográfica, porém ainda
há discussões e críticas sobre os usos dessa fonte. Muitos historiadores ainda acreditam que
uma pesquisa pode ser mais precisa por meio de fontes escritas, vendo assim a oralidade
como uma fonte “incerta” ou sujeita a maiores alterações dos fatos.
No entanto, como destaca Maria Jonotti, não “resta dúvida que a história oral, a partir
dos anos 1970, quebrou uma série de paradigmas anteriores”7. Ainda segundo a autora, a
História Oral há algum tempo vem desconstruindo formas antigas de construção da história.
Assim entendemos que a História Oral, enquanto um método apoiado na memória, como
qualquer outra fonte, produz as representações do real. Assim, concordamos com Michael
Pollak, que destaca:

[se] a memória é socialmente construída, é óbvio que toda documentação


também o é. Para mim não há diferença fundamental entre fonte escrita e
fonte oral. A crítica da fonte, tal como todo historiador aprende a fazer, deve,
a meu ver, ser aplicada as fontes de tudo quanto é tipo. Desse ponto de vista,
a fonte oral é exatamente comparável à fonte escrita. 8

Entendemos a importância de uma diversidade de fontes para o cruzamento de ideias.


Entretanto, em alguns pontos da pesquisa, contamos exclusivamente com a fonte oral. Assim
como outras fontes, foi preciso questioná-las para investigarmos os fatos, aqui entendidos de
acordo com a concepção defendida por Alessandro Portelli.

55
Explicaremos mais frente sobre quem é Pier Luigi Ghirelli.
66
Ver no Anexo I as informações sobre os entrevistados, suas trajetórias em movimentos culturais, em partidos
políticos e participação na política local.
7
JANOTTI, Maria de Lourdes Monaco. A incorporação do testemunho oral na escrita historiográfica:
empecilhos e debates. História Oral, [S. l.] v. 13, n. 1, p. 9-22, jan./jun. 2010, p. 11.
8
POLLAK, Michael: Memória e identidade social. Estudos Históricos, Rio de Janeiro, vol. 5, n 10, p. 200-212.
1992, p. 207.
19

Não temos, pois, a certeza do fato, mas apenas a certeza do texto: o que
nossas fontes dizem pode não haver sucedido verdadeiramente, mas está
contado de modo verdadeiro. Não dispomos de fatos, mas dispomos de
textos; e estes, a seu modo, são também fatos, ou o que é o mesmo: dados de
algum modo objetivos, que podem ser analisados e estudados com técnicas e
procedimentos em alguma medida controláveis. 9

Concordando com Portelli, estamos seguras em relação à existência da narração das


pessoas que viveram a festa. Cada uma, a seu modo, traz um ponto de vista dos
acontecimentos, os quais acreditamos ser, também, os fatos. A partir da disposição de
mecanismos de interpretação e cruzamentos de informações, entendemos que os textos
narrados sobre a Cantoria possibilitam reconstruir a trajetória da festa.
Ainda de acordo com Portelli, as “memórias, não nos oferecem um esquema de
experiências comuns, mas sim um campo de possibilidades compartilhadas, reais ou
imaginárias”.10 Representam, na maioria das vezes, o que os entrevistados sentem, pondo em
questão aí, as relações pessoais dos indivíduos. Neste sentido, o sujeito só “pode dizer apenas
o que sabe, o que lembra ou acredita recordar haver visto. Sua autoridade narrativa deriva
justamente do caráter restritivo do ponto de vista”.11 Diante do significado do evento para
cada sujeito, surge a capacidade de se construir várias interpretações do acontecido. Como
salientou Portelli, é coerente o reconhecimento da subjetividade, mas somando-se a ela a
objetividade dos fatos.12
Ao tratarmos das memórias, além da subjetividade, é importante pensarmos a
seletividade presente nas lembranças. “Nem tudo fica gravado. Nem tudo fica
registrado”.13Existem também os conflitos das memórias, os esquecimentos e silenciamentos.
Todos esses elementos são características presentes nas memórias de quem produz o seu
relato, o que demanda atenção de quem as ouve e busca interpretá-las, desde o momento da
entrevista, no que diz respeito aos gestos e posturas dos entrevistados.
Ao realizar as entrevistas, foi preciso conversas prévias para estabelecer uma relação
de confiança. Conquistar a confiança dos entrevistados, talvez seja uma das maiores
dificuldades de trabalhar com os relatos de memórias. Ainda em 2012, quando iniciei as
entrevistas para a pesquisa da graduação, procurei Antônio Alecrim Freire Neto, o Netão, um
dos membros do MAC e do Culturarte, mas ele se negou a dar seu relato. Antes de concluir a

9
PORTELLI, Alessandro. Filosofia e fatos. Tempo, Rio de Janeiro, v. 1, n. 2, p. 59-72, 1996, p. 62.
10
Ibid., 71
11
Ibid., p. 63-64
12
Ibid., p. 72
13
POLLAK, 1992, p. 203.
20

pesquisa,fiz mais uma tentativa em 2014, e mais uma vez ele não quis conversar sobre o
assunto. Respeitei e segui. Em 2017, com um pouco mais de experiência, tentei conversar
mais uma vez com Netão e novamente o entrevistado não falou sobre a sua atuação no MAC e
no Culturarte. Sua resistência nos causou frustração, entretanto, foi importante para entender
que nem todas as pessoas estão ou estarão dispostas a rememorar suas experiências,
principalmente quando elas causam algum tipo de sofrimento. É isso que acredito acontecer
com Netão, já que atualmente não possuí mais relação de amizade com a maioria dos
membros do Culturate e não participa de nenhum movimento cultural na cidade.
Passei a notar que por ser uma jovem pesquisadora as pessoas não confiavam muito
em mim. O caso de Netão e a desconfiança de alguns entrevistados por conta da diferença de
idade me fizeram adotar como estratégia convidar minha mãe para me acompanhar nas
entrevistas. Sua presença serviu, em certa medida, para minimizar minha timidez e conquistar
de forma mais rápida a confiança dos entrevistados. A figura dela me deixava mais desinibida
e senti que os entrevistados acreditavam mais na pesquisa com a sua presença.
O resultado das entrevistas que realizei, junto a minha mãe, foi de longas horas de
conversa e pausas para cafés. Portanto, assim como Joana Maria Pedro e suas dificuldades,
acredito “que a disposição em falar mais, ou menos, teve alguma relação com o perfil da
entrevistadora”.14No nosso caso, falaram pouco quando estive sozinha e falaram bastante com
a presença de minha acompanhante, que tem a mesma faixa etária dos entrevistados.
Provavelmente, identificaram-se, pois além da idade, muitos entrevistados são professores,
assim como mainha, que possivelmente foi outro elemento de identidade importante para que
o diálogo fluísse mais facilmente.
Para investigar o passado, a partir das memórias trazidas nas falas, fez-se necessário
entender as múltiplas emoções. Nas entrevistas percebemos saudades, alegria, satisfação, mas
nos temas tabus como os conflitos, notamos a existência de mágoas. Em algumas falas
aparece, até mesmo, o sentimento de raiva, alimentada por conta das desavenças. A tristeza
apareceu quando se falava acerca da situação atual da festa, que por conta dos desmontes
promovidos pelo governo golpista Michel Temer, o grupo encontra-se em dificuldades de
obter verbas federais. Em consequência disso, no ano de 2017, a festa não aconteceu.
Diante das características das memórias citadas acima, compreendemos o cuidado
necessário ao tratar dessa fonte, que dialoga com pessoas vivas, que se dispuseram a falar
sobre suas vidas. Como colocou Portelli, “o principal paradoxo da história oral e das

14
PEDRO, Joana Maria. A experiência com contraceptivos no Brasil: uma questão de geração. Revista
Brasileira de História, São Paulo, v. 23, n. 45, p. 239-260, 2003, p. 246.
21

memórias é, de fato, que as fontes são pessoas, não documentos”15 Desse modo, foi a partir
das falas dos sujeitos, reproduzindo suas diversas memórias sobre suas experiências, que
tornou-se possível analisarmos as ações e relações sociais dentro e fora da Cantoria.
As memórias dos sujeitos que experimentaram a Cantoria na década de 1990 iluminam a
pesquisa. Os relatos orais funcionaram como luzes, na medida em que clarearam o passado
investigado. Cada luz foi posta em um lugar estudado, matutado e calculado, para que o seu
reflexo iluminasse da melhor forma. Com o clarão coletivo proposto pelas memórias, a partir
do ponto que escolhemos, pudemos enxergar gentes, festejos, folia, músicas, alegria,
conflitos, disputas políticas e sociabilidades. Entretanto, também enxergamos o que estava
“na sombra”, os temas tabus, como uso de drogas e brigas internas.
Além das entrevistas, utilizamos atas, fotografias, Jornal da Fundação Culturarte,
poemas, cordel e livros de memórias. O cruzamento das fontes nos ajudou a montar o
contexto no qual a Cantoria se inseria, seguindo sempre os indícios para uni-las. Para
cruzarmos essa diversidade de fontes, nos baseamos nas considerações de Carlo Ginzburg
sobre o paradigma indiciário.
O método baseia-se na semiótica médica e privilegia os sinais e indícios trazidos nos
documentos. Para Ginzburg, se a realidade é opaca, é a partir dos pormenores que podemos
decifrá-la. O paradigma indiciário tem caráter detetivesco que sugere ao pesquisador a análise
minuciosa das fontes, para captar os sinais que ela traz. Também pontua a necessidade do
cruzamento de fontes diversas ligadas por um mesmo objeto, com a finalidade de montar um
“quebra-cabeça” de forma mais consistente.16
Em relação ao uso das atas, nos baseamos na concepção de Esquinsani e Nascimento.
Segundo Esquinsani, atas são documentos elaborados em reuniões de organizações, entidades,
associações, com objetivo de registrar formalmente os acontecimentos. Entretanto, elas são
escritas a partir dos pontos de vista de quem as elaboram, na medida em que são sínteses. As
atas são documentos oficiais e uma fonte rica para a pesquisa histórica. São entendidas como
um lugar de memória no ponto de vista metodológico e historiográfico. 17 Para Nascimento,
mesmo que as atas sejam documentos oficiais e formais, não possuem formalidades
excessivas, tendo como principais características a escrita clara, direta, breve e

15
PORTELLI, 1996, p. 60.
16
GINZBURG, Carlo. Mitos, Emblemas e sinais:morfologia e história. São Paulo: Cia das letras, 1989.
17
ESQUINSANI, Rosimar Serena Siqueira. As atas de reuniões enquanto fontes para a história da educação:
pautando a discussão a partir de um estudo de caso. Educação Unisinos, São Leopoldo, v. 11, n. 2, p.103-110.
2007, p. 104.
22

simples.18Nesse sentido, podem ser entendidas como resumos de reuniões ou encontros


institucionais elaborados a partir da pauta discutida. Com as atas buscamos entender o
processo de transformação do Culturarte em Fundação, as articulações para a realização da
Cantoria, bem como perceber como os membros avaliavam as edições da festa.
A Fundação Culturarte possui um grande acervo fotográfico das cantorias.
Examinamos em média, cem fotografias. Contudo, selecionamos apenas algumas para serem
apresentadas junto ao texto escrito. As fotos selecionadas representam os cartazes de algumas
edições, a estrutura do palco da segunda edição, a barraca do Culturarte, o espaço chamado de
praça da Cantoria e o show de Belchior.A fotografia integra muitos setores da vida e tem
como principal função representar as diversas práticas sociais. A fonte registra fatos e
acontecimentos vividos por sujeitos em determinados contextos, podendo ser entendida
enquanto narrativas visuais. O uso da fotografia enquanto fonte exige problematizar o
contexto de produção, as motivações do fotógrafo, as técnicas utilizadas e também os diversos
detalhes trazidos. As fotografias usadas foram quase todas tiradas pelos membros da
Fundação Culturarte sem nenhuma técnica profissional. Foram fotografias tiradas
aleatoriamente no momento que se vivia, entretanto, cada uma foi realizada por uma
motivação específica.
Segundo Lima e Carvalho, apoiando-se em Pierre Bourdieu, as ações fotográficas
“devem ser entendidas dentro de um campo de força, em que cada indivíduo ou grupo se
posiciona e, a partir desse lugar, apropria-se da fotografia como marcador social (construção
de identidade, exclusões, aspirações, status etc.)”.19As fotografias possibilitaram analisar as
formas de organização dos sujeitos que construíram e frequentaram a festas, por isso, foi uma
fonte indispensável, além de proporcionar mais uma forma de análise, possibilita ao leitor
uma narrativa visual.
A partir do conjunto de fontes selecionadas, buscamos compreender a invenção da
Cantoria, as tensões, a trajetória da festa na década de 1990 no que diz respeito às sua
organização, formação e desenvolvimento e as tensões geradas com sua existência até o
momento de aceitação pela sociedade gabrielense. Buscamos ainda compreender a trajetória
de grupos Culturais em São Gabriel como o MAC, JUPP e Culturarte, pensando as complexas

18
NASCIMENTO, Erivaldo Pereira do. Gêneros do Universo Oficial/Empresarial: Para além dos manuais de
redação. Revista de Gestão e Secretariado, São Paulo, v. 1, n. 2, p. 123- 142, Jul./dez. 2011, p. 138.
19
LIMA, Solange Ferraz de; CARVALHO, Vânia Carneiro de. Fotografias: Usos sociais e historiográficos. In:
PINSKY, Carla Bassanezi Pinsky; LUCA, Tania Regina de (Orgs.). O historiador e suas fontes.São Paulo:
Contexto, 2009, p. 43.
23

relações conflituosas entre membros de movimentos de cultura com políticos locais e parte da
população.
Para pensarmos a história da festa foi preciso um balanço historiográfico sobre o tema.
Percebemos que há abordagens, em grande parte, direcionadas aos períodos Colonial,
Imperial e Primeira República. Mary Del Priore, por exemplo, elabora um estudo numa
perspectiva cultural, sobre festa na colônia.20Martha Abreu analisa a festa do Divino no
Império com perspectiva da história social da cultura21. Por fim, Maria Clementina, também
na perspectiva da história social, estuda o carnaval carioca até a Primeira República. 22
Em relação a uma historiografia baiana sobre festa, grande parte dos estudos da
temática analisa o carnaval ou festas de populações negras e religiosas. Outra característica é
o olhar direcionado, em sua maioria, para Salvador e Recôncavo. Acreditamos existir certa
escassez de trabalhos examinando os festejos na contemporaneidade, sobretudo, profanos, nas
cidades do interior da Bahia. Em vista disso, o estudo sobre a Cantoria de São Gabriel é
necessário, em função da importância de dar visibilidade às relações e manifestações dos
sujeitos comuns do sertão da Bahia, deslocando assim a atenção da capital e Recôncavo para
o interior do Estado.
Partimos da inspiração de Emmanuel Le Roy Ladurie no seu belíssimo texto O
carnaval de Romans: Da candelária à quarta feira de cinzas 1579- 1580, que a partir do
estudo do carnaval da cidade romanesa, conseguiu pensar vários setores daquela localidade e
regiões próximas, como conflitos entre católicos e protestantes, levantes dos camponeses,
reivindicações dos plebeus e conflitos com as classes dominantes. O autor conseguiu trazer a
economia, divisões sociais, religiosas, tensões e conflitos entre classes cujo desfecho foi o
massacre de camponeses, cruzado com as folias do carnaval. Longe de termos chagado
próximos à grandeza e complexidade da pesquisa do autor, cada linha lida sobre os romaneses
me motivou a contar as experiências de sujeitos partindo de uma festividade. Mesmo longe no
tempo e no espaço, a Cantoria de São Gabriel e o Carnaval de Romans foram construídos e
festejados por gentes e em volta de cada festejo existiu uma sociedade que se relacionou
solidariamente e também conflituosamente. 23

20
DEL PRIORE, Mary Lucy. Festas e utopias no Brasil colonial. São Paulo: Brasiliense, 2000.
21
ABREU, Martha. O império do Divino: Festas religiosas e cultura popular no Rio de Janeiro, 1830-1900. Rio
de Janeiro: Nova Fronteira; São Paulo: Fapesp, 1999.
22
CUNHA, Maria Clementina Pereira.Ecos da folia. Uma história social do carnaval carioca entre 1880 e 1920.
São Paulo: Cia das Letras, 2001.
23
LA ROY LADURIE, EMMANUEL. O carnaval de Romans: da candelária à quarta-feira de cinzas, 1579-
1580/ Emmanuel Le Roy Ladurie. Tradução Maria Lúcia Machado. São Paulo: Cia das letras, 2002.
24

Acreditamos que as festas se apresentam como um universo crucial para pensarmos a


sociedade, o cotidiano dos sujeitos e suas relações entre si e com o mundo. Um estudo da
Cantoria de São Gabriel traz sugestivas e fecundas contribuições para os estudos acerca da
história da festa no sertão baiano e nos possibilita conhecer o passado de pessoas “comuns” e
suas relações. Nas últimas décadas, os estudiosos têm pensado a festa como importante lugar
de sociabilidade, mas, sobretudo, como lugar de conflitos e tensões sociais.24
A dissertação está estruturada em três capítulos. No primeiro, buscamos compreender
a atuação tanto do MAC, quanto do JUPP, pensando a sociedade de São Gabriel nos fins dos
anos de 1979 e nos anos de 1980, bem como os reflexos da ditadura sobre as questões
políticas na cidade. Buscamos entender as relações entre a elite política local da época com a
juventude que atuava nos grupos e que estavam alinhados a partidos de esquerda, e a
participação de Padre Pedro Ghirelli e suas críticas às formas de governar na localidade. Além
disso, discutimos como esses dois grupos influenciaram o surgimento do Culturarte.
No segundo capítulo traçamos o perfil dos membros do Culturarte, como o grupo se
organizou para realizar as primeiras Cantorias, as tensões que foram provocadas com a
materialização da festa e o processo de transformação do grupo em Fundação e a busca por
incentivos governamentais. Analisamos, também, as relações do grupo com os prefeitos na
década de 1990 e como seus posicionamentos políticos influenciaram na construção da
Cantoria.
No terceiro e último capítulo buscamos compreender quais eram as principais formas
de lazer e/ou sociabilidade dos jovens em São Gabriel na década de 1990 e como a festa
chega para integrar essas opções de encontro. Analisamos, ainda, as relações do Culturarte
com outras pessoas da cidade e como eram visto por uma parcela da sociedade. Além disso,
trouxemos os conflitos internos do grupo e analisamos as transformações e os caminhos que a
Cantoria trilhou para ser aceita e reconhecida como a festa da cidade e como parte da
identidade de muitos gabrielenses.
Portanto, para além de pensar os anos de refrescos proporcionados pelas algazarras da
festa, esta narrativa se interessa em apresentar as tensões existentes na festa e os diversos
aspectos sociais que se interligam ao evento desde disputas políticas, tensões de classes,
conflitos internos, economia e a vida na cidade.

24
LEONEL, Guilherme Guimarães. Entre a cruz e os tambores: conflitos e tensões nas Festas do Reinado.
(Divinópolis - M.G).2009. Dissertação (Mestrado em Ciências Sociais) – Pontifícia Universidade Católica de
Minas Gerais, Belo Horizonte, 2009.
25

1.0 MOVIMENTOS CULTURAIS EM SÃO GABRIEL: ARTE, POLÍTICA E


CONFLITO

Na pequena cidade do sertão da Bahia marcava no calendário 20 de abril de 1991 e


algo “novo” acontecia. Era uma prosa só. Nas vendas, nas bodegas, nas calçadas, onde tinha
duas ou mais pessoas todos comentavam sobre uma Cantoria que iria acontecer. Na praça
principal, a Minervino José Vaz, o reboque do caminhão de “Loro Papagaio” já estava posto.
O cartaz com a programação já havia sido distribuído, o som testado e a decoração acabada.
Foram utilizadas palhas secas, compradas na mão de seu Nicolino para a construção da
barraca. O dinheiro era pouco, mas não faltou criatividade.25
Às quinze horas os jovens já circulavam na praça e a festa logo iniciou. Teve roda de
capoeira, teatro e dança. À noitinha, os cantores começaram a se apresentar, a maioria com
suas violas cantando as coisas do sertão. Seu Dimas, o poeta da Jurema, também aceitou
participar do evento da moçada. E, para que os roqueiros não ficassem desanimados, o filho
do poeta Dimas, Carlos Simões, mais conhecido como Jacaré, trouxe aquele rock “pauleira”
para abrilhantar ainda mais o evento. Jacaré, de tão empolgado, quebrou o violão no “palco”,
como era comum em um típico show de Rock In Roll.26
Há quem diga que o reboque balançava muito, mas conseguiu suportar todas as
apresentações, pois não se tem notícias de que alguém tenha caindo de lá.27Foram duas noites
de festa. A plateia foi apenas um punhado de gente. As memórias são de que o movimento
contou com a presença de poucas pessoas, porque havia preconceito em relação aos jovens
que queriam inovar com a criação de uma festa.28 Contudo, mesmo com pouco público, os
organizadores sentiram-se realizados e convictos que iriam continuar.
São Gabriel, 22 de abril, a festa já havia terminado, entretanto os falatórios se
prolongaram. Por coincidência, em uma das noites do evento, aconteceram dois assaltos na

25
PEREIRA, João Purcino. João Purcino Pereira: depoimento I [mar. 2013]. Entrevistadora: Larissa Godinho
Martins dos Santos. Bahia. São Gabriel-Ba, 2013. 1 arquivo mp3 (56 min. e 37 seg.). Entrevista concedida para
pesquisa histórica.
26
SANTOS, Welington Oliveira. Welington Oliveira Santos: depoimento I [jan. 2017]. Entrevistadora: Larissa
Godinho Martins dos Santos. São Gabriel-Ba, 2017. 1 arquivo mp3 (1 h. 03min. e 46 seg.). Entrevista concedida
para pesquisa histórica.
27
SILVA, Antônio Carlos Rodrigues da. Antônio Carlos Rodrigues da Silva: depoimento I [jul. 2012].
Entrevistadora: Larissa Godinho Martins dos Santos. São Gabriel-Ba, 2012. 1 arquivo mp3 (46 min. e 21 seg.).
Entrevista concedida a autora para pesquisa histórica.
28
PEREIRA, op. cit, loc. cit.
26

cidade e, como já se podia imaginar, a culpa recaiu sobre os “festeiros” e “desocupados”.29


Um cidadão chamado Bira, não deixou de afirmar com convicção: “foi esse povo, esses
„maconheiros‟ aí que fizeram esse negócio aí ôh, trouxeram o povo para rua para os ladrões
roubar”.30 Se só um punhado de gente foi à rua, é certo que o povo estava em suas casas e no
máximo alguns curiosos poderiam ter ficado nas portas de suas casas, para verificar a
“baderna”. De qualquer modo, os jovens do Culturarte afirmam que nada tiveram a ver com
os roubos e seu Bira não teve provas para comprovar as acusações. Segundo os membros
fundadores da festa, a fala do morador, comerciante de São Gabriel, foi mais uma entre tantos
falatórios que surgiram diante da manifestação que acabava de ser inventada naquele abril de
1991.
Eis nas linhas acima um breve resumo da primeira edição da Cantoria de São Gabriel,
baseado nos relatos orais dos membros dos grupos culturais que existiram na cidade. Os
entrevistados, membros do Culturarte, são de faixa etária entre 45 e 55 anos, alguns deles
foram membros também do MAC e do JUPP, são trabalhadores de funções variadas:
funcionários públicos, professores, pintores, marceneiros, autônomos etc. A maioria possuía o
segundo grau completo e nos dias atuais muitos possuem nível superior – em licenciatura ou
pedagogia, principalmente.
As histórias do surgimento do Culturarte e da Cantoria aparecerão mais a frente,
porque antes é preciso apresentar o cenário em que os fundadores atuaram. Vamos passear
pelas raízes de suas influências. Isso porque o surgimento do grupo e da Cantoria está inserido
em uma disputa por espaço que vinha sendo travada por jovens ligados aos movimentos
culturais e as classes dominantes locais, formadas por integrantes de grupos políticos e
pessoas com poder aquisitivo elevado.
São Gabriel faz parte da microregião de Irecê, localizada na Chapada Diamantina
setentrional, a 489 km de Salvador. A região de São Gabriel é ligada à capital pela BA-052,
inaugurada em 12 de janeiro de 1974, por Antônio Carlos Magalhães, à época governador da
Bahia.31 A estrada foi construída com o intuito de facilitar o transporte, para o resto do país,do
feijão – o “ouro” da região nesse período – e outros produtos cultivados em Irecê. A
exportação de feijão foi, por muitas décadas, tão intensa que o itinerário ficou conhecido
29
A ideia de desocupados é uma visão do senso comum. Na cidade de São Gabriel nos anos de 1990, a pessoa
que não tinha trabalho fixo ou trabalhava com música e/ou outras formas de arte era facilmente rotulada de
irresponsável.
30
PEREIRA, João Purcino. João Purcino Pereira: depoimento I [mar. 2013]. Entrevistadora: Larissa Godinho
Martins dos Santos. Bahia. São Gabriel-Ba, 2013. 1 arquivo mp3 (56 min. e 37 seg.). Entrevista concedida para
pesquisa histórica.
31
O GOVERNADOR inaugura a estrada do feijão. Folha do Norte, Feira de Santana, ano 4, n. 5476, p. 01, 12
de Jan. 1974.
27

como “Estrada do Feijão”. A estrada teve um papel importante para a regionalização daquelas
redondezas.32
Segundo Alécio Gomes Dos Reis, na década de 1960, a região de Irecê já conhecia os
investimentos dos projetos modernizadores governamentais. Para o autor, a BA-052 foi uma
das maiores ações governamentais feitas nessa região a favor da modernização, de acordo
com as perspectivas da época. Reis aponta que o asfalto da BA-052 intensificou os discursos
modernizantes, pois o governo baiano reforçou, com o investimento no asfalto, as narrativas
em defesa ao progresso. 33
Os projetos modernizadores das décadas de 1960 e 1970 – estradas, instalação de
indústrias – estiveram pautados no imaginário de sertão que permeou durante todo o processo
histórico do país, pensando-o como um lugar bárbaro, não civilizado, adormecido e a par das
transformações que estavam acontecendo nos centros urbanos. Ou seja, o sertão ainda como
um outro Brasil.34De modo que o Brasil “civilizado”, composto pelos habitantes dos grandes
centros, tinha como objetivo “salvar” aquele povo, apresentando-lhes o progresso.Por
conseguinte, a ideia do governo baiano seguia a mesma lógica em relação à estrada,
pensando-a como uma forma de “despertar” do sertão “adormecido”.35
Paralelo ao surgimento do asfalto, o cenário que contemplava as pessoas que
chegavam à região de Irecê era, supostamente, composto por uma paisagem que prevalecia
quase todos os meses do ano. Céu azul, quase sem nuvens, o sol forte iluminando a vegetação
com sua diversidade de árvores e plantas características daquele sertão, a maioria com poucas
folhas. Dependendo da época do ano, o verde era bem tímido nas árvores. Passaríamos por
mandacaru de boi e facheiro, parreira, umbuzeiro, angico, aroeira, macambira, xiquexique,
quebra faca, cansanção, favela, caroá, coroa de frade, jurema preta e barriguda. 36 O solo da
região era muito fértil, coberto por uma terra “vermelha”. Hoje o clima é seco e quente, mas
na década de 1970, o clima era mais chuvoso e a seca não castigava tanto a região que, junto

32
REIS, Alécio Gama dos. O que farpa o boi farpa o homem: das memórias campo dos vaqueiros do sertão de
Irecê (1943 – 1985). 2012. Dissertação (Mestrado em História) – Departamento de Ciências Humanas e
Filosofia, Universidade Estadual de Feira de Santana, Feira de Santana, 2012. p. 198.
33
Ibid.
34
AMADO, Janaína. Região, Sertão, Nação. Estudos Históricos, Rio de Janeiro, v. 8, n. 15, p. 145·151, 1995.
35
REIS, op. cit., loc. cit.
36
Nomes científicos da vegetação predominante no território de São Gabriel; “angico (Anadenanthera colubrina);
aroeira (Myracrodruon Urundeuva); coroa de frade (Melocactus bahiensis); xiquexique (Cephalocereux
gounellei); jurema preta (Mimosa hostilis); quebra faca (Croton conduplicatus); umbuzeiro (Spondias tuberosa);
favela (Cnidoscolus phyllacanthus); mandacaru de boi (Cereus jamacaru); mandacaru facheiro (Pilosocereus
pachycladus); pereiro (Aspidosperma pyrifolium); caroá (Neoglaziovia Variegata); cansanção (Cnidoscolus
vitifolius); macambira (Bromelia laciniosa)” In: SANTOS, Raphael Godinho Martins. Registros rupestres da
Toca do Gado, Município de São Gabriel – BA. 2016. Trabalho de Conclusão de Curso (Bacharelado em
Arqueologia e Preservação Patrimonial) – UNIVASF: Universidade Federal do Vale do São Francisco, São
Raimundo Nonato, 2016. p. 32.
28

ao rico solo, garantiam boas colheitas. É provável que todas as árvores que citamos
enfeitassem e dividissem a paisagem junto às “intermináveis” plantações de feijão as margens
do asfalto.
Com a construção da rodovia, além de uma infinidade de caminhões carregando o
precioso grão, algumas empresas de viação começaram a fazer também o percurso entre Irecê
e Salvador e vice versa. Isso facilitou, em alguma medida, o deslocamento de estudantes e
outros grupos, possibilitando a disputa de informações principalmente na questão política e
cultural.37 Os jovens que faziam o itinerário Salvador-Irecê/São Gabriel trouxeram tendências
marcantes nos grandes centros, dinamizando a pequena vila com ritmos, tendências e
informações. A nova dinâmica possibilitou o questionamento do imaginário e hábitos de
alguns sujeitos daquela pequena vila.
Os entrevistados apontam que o grupo Culturarte, na década de 1990, carregava
também a necessidade de continuar com atividades culturais na cidade. Entre 1979 a 1988
atuaram em São Gabriel dois grupos que já promoviam movimentos culturais, o MAC
(Movimento de Arte e Cultura) e o JUPP (Jovens Unidos à Procura da Paz). Netão,
considerado um dos mentores do MAC, era um desses jovens que estudava na capital e que
por muitas vezes fez o itinerário São Gabriel-Salvador. Por conta disso, ele foi um importante
personagem nesse processo de intermediação de informações para muitos jovens da vila nos
fins dos anos de 1970 e década de 1980.38
O MAC e o JUPP se constituíram a partir de algumas características diferentes, mas
com alguns pontos em comum, com o desejo de promover eventos e atividades culturais na
cidade e de se envolver em questões políticas e sociais. Ambos tiveram contato com as ideias
defendidas pelo pároco ligado a Teologia da Libertação, Pier Luigi Ghirelli, conhecido como
Padre Pedro, que atuou dando um importante apoio aos jovens. Padre Pedro foi uma figura
significativa em São Gabriel. As memórias apontam que o padre militou em favor da
igualdade, contra as injustiças e contra a falta de interesse dos políticos locais com o bem-
estar da comunidade.

1.1 Um sertão que luta: O MAC e o JUPP e suas influências para o surgimento do
Culturarte.

37
FIGUEIREDO, Antônio Régie Evaristo de. Antônio Régie Evaristo de Figueiredo: depoimento I [mar. 2013].
Entrevistadora: Larissa Godinho Martins dos Santos. São Gabriel-Ba, 2013. 1 arquivo mp3 (20 min.). Entrevista
concedida para pesquisa histórica.
38
Ibid.
29

Eu não fui nem do MAC nem do JUPP, mas eu recebi essa


influência política do JUPP e essa influência artística e cultural
do MAC. É como se a gente fosse o que ficou, o que restou [...]
e que seguia.39

Há algum tempo, em São Gabriel, jovens já “quebravam a tranquilidade” da Vila de


hábitos e comportamentos conservadores, ditados por uma sociedade que era pautada por uma
moral voltada para a família, o trabalho, a igreja e a ordem. Em tempos de cerceamento da
liberdade de expressão no Brasil, época ainda de Ditadura Civil-Militar, em 1979, um grupo
de “desordeiros” passou a movimentar a tão “tranquila” São Gabriel. A epígrafe acima, trecho
retirado da narrativa oral de Welington Oliveira, membro do Culturarte, demonstra que o
grupo também foi fruto de influências do Movimento de Arte e Cultura e dos Jovens Unidos a
Procura da Paz. Narrativas como a de Welington nos motivaram a buscar entender algumas
ações dos Grupos MAC e JUPP para compreendermos o porquê de as memórias apontarem a
atuação dos dois grupos como importante para surgimento do Culturarte e para a construção
da Cantoria de São Gabriel.
O MAC e o JUPP responderam frequentemente, em suas ações, às ideias errôneas de
um sertão adormecido. Foram contra aos hábitos, costumes e políticas que eram estabelecidos
na época. O MAC, um movimento ligado à musicalidade, e o JUPP, um grupo surgido dentro
da igreja, mas que promoveu ações artísticas, como teatro. As memórias dos entrevistados
trazem a ideia de que os jovens dos dois grupos foram importantes influências para o
Culturante, e que nos fins dos anos de 1970 e anos de 1980 se articularam. De alguma
maneira, os grupos questionaram e buscaram criar mecanismos de vida alternativos ao que era
posto, como por exemplo, não seguir uma estética padrão e se movimentar para construir algo
novo.

1.1.1 Um sonho podado: De Movimento de Arte e Cultura à “Maconha Álcool e


Cocaína”40

São Gabriel em 1979. Alguns jovens formaram um grupo que nomearam de


Movimento de Arte e Cultura com o intuito de articular atividades culturais. As memórias dos

39
SANTOS, Welington Oliveira. Welington Oliveira Santos: depoimento I [jan. 2017]. Entrevistadora: Larissa
Godinho Martins dos Santos. São Gabriel-Ba, 2017. 1 arquivo mp3 (1 h. 03min. e 46 seg.). Entrevista concedida
para pesquisa histórica.
40
As iniciais do grupo MAC, que significavam Movimento de Arte e Cultura, foram modificadas por algumas
pessoas da população para, MAC- Maconha, Álcool e Cocaína, na tentativa de criar uma imagem negativa dos
jovens.
30

entrevistados apontaram para uma média de quinze a vinte participantes.41 Entretanto, diante
de alguns esquecimentos e conflitos de memórias, só conseguimos identificar nove membros:
Netão, chamado pelos outros entrevistados de “o mentor”; Olavo Novaes; Antônio Carlos
(Toinho);42José Resende; Edson Pedro de Abreu (Nenga), Valdelício Barreto Vaz; Fátima
Oliveira; José Carlos Dourado das Virgens (Zé das Virgens) e Carlos Simões (Jacaré).43
Dos nove membros identificados, conseguimos entrevistar apenas cinco: Valdelício
Barreto, Fátima Oliveira, Antônio Carlos, José das Virgens e Olavo Novaes. Todos residem
em São Gabriel e se disponibilizaram a falar. José Resende e Edson Pereira não estão mais
vivos, Carlos Simões reside em Irecê, mas não conseguimos marcar uma entrevista, devido às
suas ocupações. E Netão, como foi citado anteriormente, preferiu o silêncio. Por isso, depois
de algumas tentativas de entrevistá-lo, resolvemos respeitar sua vontade. Além dos
entrevistados que participaram do grupo, ouvimos relatos de membros do Culturarte que
presenciaram ou construíram memórias sobre a atuação do MAC de acordo com histórias
contadas sobre o grupo. Segundo Fátima Oliveira,

Tinha pessoas bem jovens, no meu caso mesmo, na época eu era adolescente
ainda, né?! Chegando a juventude. E algumas pessoas com a faixa etária aí
de vinte anos, vinte e poucos anos, e algumas pessoas com dezesseis,
dezessete anos, era o meu caso. [...] Aí, assim, muitos de nós, eu inclusive,
44
eram bem jovem ainda. Adolescentes.

A fala da entrevistada aponta para uma faixa etária dos jovens do MAC que variava
entre dezesseis e vinte anos. Pela idade atual dos entrevistados que variam entre 54 à 60 anos
é possível que a idade fosse nessa faixa apontada por Maria de Fátima. Nas memórias
narradas pelos entrevistados, os principais objetivos do Movimento de Arte e Cultura era o
desenvolvimento de atividades culturais, que valorizassem a cultura em geral. Os estilos
musicais curtidos por eles eram o rock, principalmente internacional, e a considerada MPB
em geral. Segundo Valdelício Barreto,

41
SILVA, Antônio Carlos Rodrigues da. Antônio Carlos Rodrigues da Silva: depoimento I [jul. 2012].
Entrevistadora: Larissa Godinho Martins dos Santos. São Gabriel-Ba, 2012. 1 arquivo mp3 (46 min. e 21 seg.).
Entrevista concedida a autora para pesquisa histórica.
42
NOVAES, Olavo. Olavo Novaes: depoimento I [set. 2012]. Entrevistadora: Larissa Godinho Martins dos
Santos. São Gabriel-Ba, 2012. 1 arquivo mp3 (36 min. e 13 seg.). Entrevista concedida para pesquisa histórica.
43
PEREIRA, João Purcino. João Purcino Pereira: depoimento I [mar. 2013]. Entrevistadora: Larissa Godinho
Martins dos Santos. Bahia. São Gabriel-Ba, 2013. 1 arquivo mp3 (56 min. e 37 seg.). Entrevista concedida para
pesquisa histórica.
44
ABREU, Maria de Fátima Oliveira. Maria de Fátima Oliveira Abreu: depoimento I [dez. 2016].
Entrevistadora: Larissa Godinho Martins dos Santos. Bahia: São Gabriel-Ba, 2016. 1 arquivo mp3 (32 min. e 30
seg.). Entrevista concedida para pesquisa histórica.
31

A gente só ouvia música bonita. Era Zé Ramalho, Alceu Valença, Luiz


Gonzaga[...]. Quem mais naquela época? (pausa para pensar). Era...
Dominguinhos, Zé Geraldo, Belchior, esse povo aí. Caetano Veloso,
Gilberto Gil, era esse povo aí que a gente ouvia na época. Por isso, também,
que a gente era chamado de rebelde, porque esses caras só andavam tudo
preso por causa da música não era? Aí era Baez, Bob Dylan a gente não
entendia muito bem, mas aí a gente achava bonito, aí a gente ia pesquisar o
que ela estava cantando em inglês. Para poder traduzir, pedia as pessoas para
traduzir, quem soubesse, porque também não tinha internet nem computador
e às vezes a gente também comprava um livrinho, por exemplo, que vinha
em português e inglês né?!45

Valdelício Barreto lembra a dificuldade dele e de seus parceiros para traduzir a letras
das músicas, o que aponta a preocupação deles em ler e interpretar as canções que ouviam.
Ainda sobre os artistas que ouviam Antônio Carlos também citou “Chico Buarque, Caetano
Veloso, Gil, Novos Baianos, Elomar, Zé Geraldo, Xangai, sem contar alguns estrangeiros
como: Joan Baez, Bob Dylan, Pink Floyd, entre outros”.46
Para Valdelício Barreto, o estilo musical ouvido por eles demarcava muito qual
ideologia política carregavam e defendiam. As memórias dos membros do MAC são
atravessadas pela ideia de que eles, em São Gabriel, assim como jovens dos grandes centros,
queriam fazer uso da arte, sobretudo da música, como forma de liberdade. Valdelício narra
como se tivessem, naquele momento, consciência de estarem experimentando a atmosfera de
pensar a música como um dos maiores mecanismos de protesto.

Eu com outras pessoas, que eram pessoas que já apreciavam a boa música,
tinha relação com algumas pessoas que foram embora daqui, né? Que
mandavam algumas coisas. Naquela época ainda era fita cassete, era forma
mais fácil de veicular a música, e alguns vinis. Então, assim, essas pessoas
com interação com algumas pessoas que foram para fora, conhecendo alguns
nomes da música popular brasileira... Tinha esse desejo, assim, de ouvir
mesmo a boa música, de ter um evento cultural que tocasse aquilo que
gostava de ouvir. Então, um grupo de jovens, de adolescentes, se juntou com
esse intuito. Inclusive o MAC, era Movimento de Arte e Cultura, no intuito
mesmo de produzir a arte e a cultura, de poder realizar os shows. Isso foi
ainda na década de 1970, né?! [...] Mas tinha um viés político. Porque essa
ligação da cultura, de pensar as muitas coisas, que naquele tempo era

45
FILHO, Valdelício Barreto Vaz. Valdelício Barreto Vaz Filho: depoimento I [dez. 2016]. Entrevistadora:
Larissa Godinho Martins dos Santos. São Gabriel-Ba, 2016. 1 arquivo mp3 (51 min e 54 seg.). Entrevista
concedida para pesquisa histórica.
46
S SILVA, Antônio Carlos Rodrigues da. Antônio Carlos Rodrigues da Silva: depoimento I [jul. 2012].
Entrevistadora: Larissa Godinho Martins dos Santos. São Gabriel-Ba, 2012. 1 arquivo mp3 (46 min. e 21 seg.).
Entrevista concedida a autora para pesquisa histórica.
32

produzido na área musical, por exemplo, né? Na área musical no sentido das
composições de contrapor ao sistema, então era essa linha de pensamento. 47

Segundo Fátima Oliveira, eles batizaram o grupo de Movimento de Arte e Cultura,


fazendo alusão ao principal objetivo do grupo de promover algo no campo artístico e cultural,
mas que não estava desconectado das questões políticas e sociais.48A memória da entrevistada
traz a ideia de que o grupo tinha o intuito de produzir arte e contrapor o sistema, característica
de muitos grupos artísticos da época, e que para ela o MAC estava alinhado a essa lógica. “O
MAC tinha algo a mais, tínhamos uma ideologia política, pensávamos na cultura, na arte, no
seu reconhecimento, na sua valorização e procurávamos nos inserir na política.” 49
Para eles, não existia uma homogeneidade de estilo seguido pelos membros, de modo
que os entrevistados apontam que eles se vestiam cada um a sua maneira. Os homens do
grupo lembram muito em suas falas o estilo masculino dos seus membros, como a barba e os
cabelos grandes. Olavo Novaes afirma que usavam símbolos revolucionários como o chapéu
de Che Guevara.50 Para Antônio Carlos, “todos tinham seu estilo próprio”51, mas reiterou a
fala de Olavo Novaes: “a gente andava com chapéu com a estrela de Che”52.
As memórias construídas por todos os entrevistados seguem a lógica de que o MAC
estava conectado com as tendências dos fins dos anos de 1970 e que eles seguiam uma linha
de pensamento voltada para a esquerda. Os símbolos trazidos pelos entrevistados são
indicativos demonstrados para confirmar suas versões sobre as posições políticas defendidas
por eles na época. A lógica de um grupo artístico com caráter político aparece em todas as
falas dos entrevistados que falaram sobre o MAC. Esta característica pode ser explicada pelo
fato de que, como sugere Janaína Amado, a memória, assim como a história, tem a capacidade
de

[...] associar vivências individuais e grupais com vivências não


experimentadas diretamente pelos indivíduos ou grupos: são as vivências dos
outros, das quais nos apropriamos, tornando-as nossas também, por meio de
conversas, leituras, filmes, histórias, músicas, pinturas, fotografias... Nossas

47
ABREU, Maria de Fátima Oliveira. Maria de Fátima Oliveira Abreu: depoimento I [dez. 2016]. Entrevistadora:
Larissa Godinho Martins dos Santos. Bahia: São Gabriel-Ba, 2016. 1 arquivo mp3 (32 min. e 30 seg.). Entrevista
concedida para pesquisa histórica.
48
SILVA, Antônio Carlos Rodrigues da. Antônio Carlos Rodrigues da Silva: depoimento I [jul. 2012].
Entrevistadora: Larissa Godinho Martins dos Santos. São Gabriel-Ba, 2012. 1 arquivo mp3 (46 min. e 21 seg).
Entrevista concedida a autora para pesquisa histórica.
49
Ibid.
50
NOVAES, Olavo. Olavo Novaes: depoimento I [set. 2012]. Entrevistadora: Larissa Godinho Martins dos
Santos. São Gabriel-Ba, 2012. 1 arquivo mp3 (36 min. e 13 seg.). Entrevista concedida para pesquisa histórica.
51
SILVA, op. cit, loc. cit.
52
Ibid.
33

memórias são formadas de episódios e sensações que vivemos e que outros


viveram.53

Ainda segundo a autora, é preciso pensar nas possíveis construções da memória, isso
porque elas são formadas por eventos vividos por nós e pelos outros. Nos dias atuais, se
construiu uma memória voltada para a ideia de que pessoas envolvidas com a arte nos anos
ditatórias questionaram o sistema. Isso é um campo perigoso, na medida em que a memória é
formada por fragmentos do vivido que mistura-se as memórias herdadas, como nos alertou
Pollak.54 Isso indica que as memórias dos entrevistados possam estar em fusão com memórias
herdadas.
A maioria dos entrevistados aponta que a ideia de reunir para construir algum
movimento cultural em São Gabriel se deu pelo contato de alguns jovens do MAC com
pessoas que moravam fora e traziam tendência da música e ideias que serviram de inspiração
para eles. As idas e vindas de alguns dos jovens a Salvador fez com que circulassem ideias no
âmbito cultural e político que estavam em alta na capital do estado e no Brasil.55

Minha geração que nasceu nos anos 60 teve uma oportunidade,


principalmente através de Netão que estudava em Salvador, Wilson de seu
Zuza.Mas especialmente Netão que trazia para cá quando aqui não tinha
energia não tinha nada, não tinha televisão, não tinha nada, ele trazia um
gravadorzinho e trazia as músicas de Bob Dylan, que a princípio não tem
nada a ver com Cantoria, mas é música. Bob Dylan, Joan Baez, Janis Joplin.
Aí veio o primeiro disco de Zé Ramalho, eu me lembro, o primeiro disco de
Raul Seixas. Aí a gente começou a ter esse gosto por esse tipo de música,
Elomar, isso bem antes do MAC. Eu destacaria aí, Netão, que morava em
Salvador, estudava em Salvador, começou a trazer alguns elementos e a
gente começou a ter uma visão diferente da música, da cultura. 56

As tendências e influências absorvidas pelo MAC, segundo os entrevistados, tiveram


em Netão um importante mediador. Ele foi um dos membros que estudava administração em
Salvador, na Universidade Federal da Bahia, e estava sempre fazendo o itinerário Salvador-
São Gabriel. José das Virgens relata a importância da personagem, pois ele lhes apresentou
discos de artistas nacionais e internacionais, expandindo suas ideias sobre música e arte em
geral. Segundo os relatos, Netão trazia livros, discos, fitas de bandas da Capital. Antônio

53
AMADO, Janaína. O grande mentiroso: tradição, veracidade e imaginação em história oral. História, São
Paulo, n. 14, p. 125-136, 1995, p.132.
54
POLLAK, 1992, p. 204.
55
SILVA, Antônio Carlos Rodrigues da. Antônio Carlos Rodrigues da Silva: depoimento II [mai., 2014].
Entrevistadora: Larissa Godinho Martins dos Santos. São Gabriel-Ba, 2014. 1 arquivo mp3 (7 min e 10 seg.).
Entrevista concedida para pesquisa histórica.
56
VIRGENS, José Carlos Dourado Das. José Carlos Dourado Das Virgens: depoimento I [jul., 2018].
Entrevistadora: Larissa Godinho Martins dos Santos. São Gabriel-Ba, 2018. 1 arquivo mp3(45 min. e 36 seg.).
Entrevista concedida para pesquisa histórica.
34

Régie, membro do Culturarte que não participou do MAC e que se considera um dos
melhores amigos de Netão, narrou:

Ele estudava administração, não chegou a concluir não, era uma época de...
Período de ditadura, de movimento cultural muito grande. Ele participou de
todos os movimentos culturais de Salvador, ele é obcecado por teatro,
cinema, né?! Por todo tipo de cultura. Então, Netão viveu tudo isso aí, e aí
não deu pra ele concluir o curso, mas é... Netão é um dos grandes
intelectuais de São Gabriel. [...] Netão, é um cara sossegado, silencioso, um
cara sem magoas. Diria que um dos novos eremitas. Sou muito amigo dele,
talvez um dos maiores amigos dele aqui no Gabriel.57

A narrativa de Antônio Régie está carregada de elogios a Netão, muito provavelmente


pela amizade e admiração que o entrevistado demonstrou ter pela personagem do MAC.
Assim como Antônio Régie, outras narrativas orais também o apontou como importante
figura para a circulação de ideias em São Gabriel naquele período. O entrevistado apresenta
Netão como um sujeito que teve muito envolvimento com movimentos artísticos e
engajamento com os debates da época. Alguns depoimentos alimentam a ideia de que Netão
apresentou-lhes elementos fundamentais para formação das ideias do grupo. Segundo
Valdelício Barreto,

O MAC era complicado porque a gente era diferente! A gente era jovens
diferentes. As vezes a gente também ia para Salvador, ia em um canto,em
outro, e a gente via as coisas lá e queria trazer para aqui e o povo não
aceitava. Cabelo grande em salvador era normal, mas aqui no interior não
era, e a gente usava os cabelos grandes. Eu, Netão, Zé Resende que até
faleceu. Naquele tempo existia uma moda americana que era Black, os
Blacks, um negócio assim, né?! E o cabelo era bem grandão assim
(demonstrando os cabelos Black com as mãos em volta da cabeça),
espichados, “cabelo ruim”58, sabe? Aí fazia aquela bacia assim, era a maior
moda no mundo, mas aqui no Gabriel não podia não. Aí a polícia, também
não gostava, a polícia pressionava a gente. Tinha hora que você tava na rua e
a polícia vinha pra cima, corrigia a gente sem a gente fazer nada, que tal?59

57
FIGUEIREDO, Antônio Régie Evaristo de. Antônio Régie Evaristo de Figueiredo: depoimento I [mar. 2013].
Entrevistadora: Larissa Godinho Martins dos Santos. São Gabriel-Ba, 2013. 1 arquivo mp3 (20 min.). Entrevista
concedida para pesquisa histórica.
58
A expressão “cabelo ruim” usada por Valdelício tem um caráter racista. Isso mostra que o entrevistado carrega
as marcas socioculturais do seu tempo. Assim, expressões como “cabelo ruim” tem a ver com o racismo
estrutural que ainda povoa nosso presente. Por isso, as pessoas tendem a usar as palavras sem perceberem seu
caráter racista. “Cabelo ruim” é uma entre tantas que ainda são usadas naturalmente pelas pessoas.
59
FILHO, Valdelício Barreto Vaz. Valdelício Barreto Vaz Filho: depoimento I [dez. 2016]. Entrevistadora:
Larissa Godinho Martins dos Santos. São Gabriel-Ba, 2016. 1 arquivo mp3 (51 min e 54 seg.). Entrevista
concedida para pesquisa histórica.
35

A memória trazida pelo entrevistado aponta que, além de Netão, outra figura muito
importante para o MAC foi José Rezende – membro já falecido, como apontado. Valdelício
fala sobre a estética do grupo e defende a ideia de que ela sofria influências externas,
principalmente por conta dessa ponte entre São Gabriel e Salvador como a moda Black Power
que teve seu auge em 1970.60 Ao usar o termo “cabelo ruim”, o entrevistado nos dá pistas de
que existia negros entre os membros do grupo, pois o uso do cabelo black poderia ser uma
característica da aceitação de sua identidade negra, já que essas discussões estavam sendo
postas nos anos de 1970 pelo movimento negro. Jandira Pereira relatou sobre Zé Rezende:

Zé era negro, ele era negro e usava aquele cabelo. (referindo-se ao estilo
Black) e a roupa que meu primo usava também, e naquela época meu primo
chegou usar roupa que hoje você vê os negros usando e meu primo
enfrentou, mas ele foi tão castigado a ponto dele mesmo chegar e tirar a vida
dele, ele bebeu veneno por isso, porque assim, tanta discriminação que hoje
a gente vê, naquela época era pior, ele sofria muito, muito, muito, muito.61

A entrevistada narra características e dificuldades enfrentadas por seu primo José


Resende. Jandira Pereira, assim como Valdelício Barreto, traz a ideia do uso do cabelo black e
da afirmação de uma identidade negra. A fala da entrevistada é interpretada por nós enquanto
texto de denúncia, relatando de forma firme que seu primo sofreu muito preconceito em São
Gabriel por conta do seu estilo e ideias, e que essa discriminação teria motivado o seu
suicídio.

Ele achou melhor tirar a vida dele do que dar continuidade, mas ele ainda
chegou a usar muita coisa que eu vejo hoje usando, que lá naquela época
ninguém tinha coragem de usar, que era aquele cabelo que fazia as tranças,
ele usava aquela capuz, ele enfrentava essa gente toda. É tanto que Neto
também usava, Neto usava cabelo grande assim também como ele, só que
Neto era branco e ele era negro. [...] Ele não deixou registro (referindo-se ao
suicídio de Zé Resende), mas assim eu falo por observar e ouvir, porque eu
nunca ouvi uma palavra de elogio, nem da família nem da sociedade, só
cacete, cacete, crítica... Uma, já era negro, e sofria preconceito.[...] Outra
coisa, eu também falei com X62 será que também não era porque ele era
usuário e não queria que a família soubesse? Você vê naquela época uma
63
mulher, se ela tivesse relação com um homem, ela era condenada.
60
VAUGHAN, Patrícia Anne. A imagem americana de beleza física e as mudanças provocadas pelo “black
power” na década de 60. Revista de Letras, v. 1, n 22, p. 59-65. jan./dez. 2000.
61
SENA, Jandira Francisco Pereira. Jandira Francisca Pereira Sena: depoimento I [out. 2017]. Entrevistadora:
Larissa Godinho Martins dos Santos. São Gabriel-Ba, 2017. 1 arquivo mp3( 44 min.). Entrevista concedida para
pesquisa histórica.
62
O X foi usado para substituir o nome da pessoa com quem à entrevistada comentou sobre o primo, já que a
pessoa referida não autorizou o uso do seu nome na pesquisa.
63
SENA, Jandira Francisco Pereira. Jandira Francisca Pereira Sena: depoimento I [out. 2017]. Entrevistadora:
Larissa Godinho Martins dos Santos. São Gabriel-Ba, 2017. 1 arquivo mp3( 44 min.). Entrevista concedida para
pesquisa histórica.
36

José Resende ou Zé Resende, como era popularmente conhecido, era muito amigo de
Netão. A ideia de um movimento ligado à música foi criado pelos “amigos inseparáveis”.
Segundo a entrevistada, Resende, por ser negro, pobre e usar drogas, sofreu muito mais
preconceito da sociedade do que Netão, que para Jandira, era branco. A entrevistada informa
outros estilos de cabelo e adereços usados pelo primo e membros do MAC, como tranças e
capuzes, referindo-se aos gorros ou toucas usados geralmente para guardar as tranças ou o
cabelo black. Um ponto significativo na fala de Jandira Pereira foi à questão das drogas. Para
ela, alguns assuntos eram tratados como tabus, como a sexualidade das mulheres e o uso de
drogas, o que para ela pode ter sido mais um agravante para que Resende fosse discriminado.
Como foi narrado na introdução, Netão foi nossa maior dificuldade no momento das
entrevistas. Foram três tentativas para entrevistá-lo sobre o grupo. Todas foram recusadas. Ele
mora sozinho, fomos a sua casa e em uma das vezes ele nos convidou a entrar e sentar para
uma conversa rápida, porque o entrevistado não conversava muito. Questionamos que os seus
companheiros do MAC e pessoas que conhecem a história do grupo sempre citavam o nome
dele como mentor. Diante dos questionamentos sobre sua atuação no MAC, o entrevistado
utilizou poucas palavras para nos responder: “Não me lembro de mais nada. Esse assunto me
magoa muito”.
O silêncio de Netão sobre sua participação no grupo fez com que entendêssemos
algumas coisas ditas sobre ele, as quais só ele poderia confirmá-las ou negá-las, mas a partir
das poucas palavras ditas e também não ditas,nos permitiu refletir sobre algumas coisas
importantes. A sua primeira fala afirmando que não lembrava de mais nada, entra em
contradição com a segunda, quando afirmou que o assunto o magoava muito. Percebemos que
não se trata de um mero esquecimento, mas de um silêncio. Podemos identificar aí um
ressentimento por parte do entrevistado, pois ao afirmar ter esquecido, talvez seja mais sua
vontade de esquecer certas memórias que o magoam e, por conseguinte, silenciar-se.64
A mágoa de Netão sobre os movimentos culturais em São Gabriel pode estar
relacionada não só ao MAC, mas também ao Culturarte, pois na década de 1990 ele integrou
o movimento, mas por conta de divergências internas rompeu com o grupo. Os possíveis
conflitos travados entre Netão e Culturarte podem ter causado o seu afastamento dos
movimentos culturais e o silenciamento das memórias sobre a sua atuação também no MAC.
Essa é uma pergunta que não teremos a resposta partindo do próprio sujeito, já que ele se

64
POLLAK, Michel:Memória, esquecimento e Silêncio. Estudos Históricos, Rio de Janeiro, v. 2, n 3, p. 3-15.
1989. p. 6.
37

negou a falar, mas como foi dito por Régie, seu amigo, “ele não tem mágoa” o que indica o
conflito.65 Além do mais, hoje, Freire não mantém contato com os membros nem do MAC,
nem do Culturarte, o que comprova o seu rompimento com o universo cultural da cidade.
Como relatou Jandira Pereira e os demais entrevistados, eles acreditam que a agitação
trazida pelo Movimento de Arte e Cultura, em 1979, não foi bem vista por uma parcela da
sociedade.66 Desde políticos, que a partir dos relatos mostram indícios de estarem ligados as
ideias da Ditadura Civil-Militar, defensores da “moral e os bons costumes”; até a polícia, vista
como agente de repressão; e também parte da população, vista por eles como
conservadora.67Segundo os entrevistados, a estética e estilos da maioria dos membros
contribuiu significativamente para a imagem estereotipada do grupo frente à sociedade.

O MAC ele surgiu em um período assim, politicamente complicado, né? Na


Ditadura militar, resquícios da Ditadura Militar. [...] Então, a juventude
mobilizada para um evento cultural que pensava diferente queria ouvir
coisas diferentes, apreciavam músicas diferentes, então assim, esse grupo
gerou um certo incomodo, né? Acho que uma preocupação mesmo da classe
política, por causa do viés político né? [...]Então o MAC sofreu uma
perseguição, uma perseguição que não foi possível dar continuidade, porque
as forças reacionárias também eram muito fortes, né? Então, assim, era
muito ameaçador.68

Fátima Oliveira narra que o grupo se mobilizou para promover eventos culturais
peculiares, ouviam músicas que ela denomina como diferentes, e acredita que os membros do
MAC eram sujeitos com posturas diferenciadas. A entrevistada defende a ideia de que o grupo
foi perseguido pela classe política dominante da época pelo fato de os jovens possuírem um
entendimento político. Ao mesmo tempo, aponta que as perseguições ocorreram, sobretudo,
por estarem em período ditatorial e serem vistos como ameaça social. A ideia de Fátima é
atravessada pela lógica de que eles eram um grupo cultural, mas que tinham um caráter
ideológico de protesto, o que figurava como principal motivo para serem perseguidos. Sobre
65
FIGUEIREDO, Antônio Régie Evaristo de. Antônio Régie Evaristo de Figueiredo: depoimento I [mar. 2013].
Entrevistadora: Larissa Godinho Martins dos Santos. São Gabriel-Ba, 2013. 1 arquivo mp3 (20 min.). Entrevista
concedida para pesquisa histórica.
66
A gente incomodada, citada pro Valdelício e por outros entrevistados, trata-se de algumas pessoas de classes
mais abastardas, como políticos locais, comerciantes, empresários e pessoas com pensamentos pautados nos
costumes e hábitos construídos por uma moral cristã e tradicional. FILHO, Valdelício Barreto Vaz. Valdelício
Barreto Vaz Filho: depoimento I [dez. 2016]. Entrevistadora: Larissa Godinho Martins dos Santos. São Gabriel-
Ba, 2016. 1 arquivo mp3 (51 min e 54 seg.). Entrevista concedida para pesquisa histórica.
67
NOVAES, Olavo. Olavo Novaes: depoimento I [set. 2012]. Entrevistadora: Larissa Godinho Martins dos
Santos. São Gabriel-Ba, 2012. 1 arquivo mp3 (36 min. e 13 seg.). Entrevista concedida para pesquisa histórica.
68
ABREU, Maria de Fátima Oliveira. Maria de Fátima Oliveira Abreu: depoimento I [dez. 2016]. Entrevistadora:
Larissa Godinho Martins dos Santos. Bahia: São Gabriel-Ba, 2016. 1 arquivo mp3 (32 min. e 30 seg.). Entrevista
concedida para pesquisa histórica.
38

a relação deles com a música nos anos de 1970 e 1980, a entrevistada deixa entrever que foi
bastante comum em centros urbanos, pois “a música foi um dos principais elementos de
expressão cultural da década de 1970, constituindo-se em um instrumento de contestação,
reivindicação e inconformismo da sociedade.” 69

Por termos um pensar diferente [...], por também estarmos no período da


ditadura à repressão era muito grande, isso durou pouco tempo. Fomos
detonados pela perseguição. Sofremos atos violentos de total desrespeito as
nossas ideias.70

De acordo com Antônio Carlos, para além de pensar na cultura e na arte, eles
buscavam discutir sobre o poder local e acreditava também que esse fosse um dos principais
objetivos a serem perseguidos. Os entrevistados apontam que eles foram vistos com
estranheza e passaram a ser alvo de preconceito por uma parcela da comunidade e algumas
pessoas da classe política da época. É possível que o conservadorismo das pessoas da pequena
vila, alimentado pelo clima ditatorial, tenha sido um combustível importantíssimo para nutrir
os conflitos com o MAC.71 Aqui também podemos levantar as suspeitas, já apontadas, no que
diz respeito à construção da memória em relação a posição atual dos entrevistados sobre a
ditadura. Segundo Valdelício Barreto, o MAC foi

um negócio que surgiu assim, sem muita organização... Mas a gente tentou
ainda fazer alguma coisa. Porque na verdade, a parte mais difícil era aonde
se juntar, né?! Fazer as reuniões! Não tinha lugar! Porque se fosse para a
minha casa, pai não aceitava. Se fosse para a casa do outro, o pai não
aceitava. E naquele tempo os filhos eram criados diferentes. [...] Naquela
época os pais não aceitavam o desenvolvimento dos filhos, eles travava,
né?!72

No trecho acima é possível identificar conflitos familiares, no qual o entrevistado


aponta a condenação dos pais dos membros do grupo em relação às reuniões do MAC. No
Brasil, em 1979, aconteceram muitas transformações políticas, culturais, econômicas e

69
LIMA, 2013, p. 198.
70
ABREU, Maria de Fátima Oliveira. Maria de Fátima Oliveira Abreu: depoimento I [dez. 2016]. Entrevistadora:
Larissa Godinho Martins dos Santos. Bahia: São Gabriel-Ba, 2016. 1 arquivo mp3 (32 min. e 30 seg.). Entrevista
concedida para pesquisa histórica.
71
SILVA, Antônio Carlos Rodrigues da. Antônio Carlos Rodrigues da Silva: depoimento I [jul. 2012].
Entrevistadora: Larissa Godinho Martins dos Santos. São Gabriel-Ba, 2012. 1 arquivo mp3 (46 min. e 21 seg.).
Entrevista concedida a autora para pesquisa histórica.
72
FILHO, Valdelício Barreto Vaz. Valdelício Barreto Vaz Filho: depoimento I [dez. 2016]. Entrevistadora:
Larissa Godinho Martins dos Santos. São Gabriel-Ba, 2016. 1 arquivo mp3 (51 min e 54 seg.). Entrevista
concedida para pesquisa histórica.
39

sociais.73 Era ainda momento de conflitos políticos, porém o país já estava conquistando
aberturas em meio ao regime militar.74 Entretanto, a liberdade de expressão ainda era
limitada. Na vila de São Gabriel, a partir do relato de Valdelício, é possível pensar que as
famílias faziam força para ajudar a reprimir a juventude que buscava sair da normatividade.
Valdelício Barreto aponta que, para a materialização das reuniões do grupo, um dos
maiores problemas foi encontrar um espaço para as reuniões, pois em suas casas seriam
podados pelos pais, já que, naquele período, a maioria não concordava com a ideia de formar
grupos, promover arte ou qualquer outra ação que fosse considerada como “vadiagem”.
Entretanto, mesmo contra a maioria dos pais, os entrevistados narraram que o grupo
conseguiu realizar algumas reuniões e decidiram promover alguns bingos para arrecadar
fundos para construírem uma sede de suas reuniões. Algumas memórias apontam também que
realizaram algumas movimentações artísticas, como pequenas rodas de violão.75
O memorialista de São Gabriel, João Purcino, autor do livro “Terra do Arcanjo:
historiografia da cidade de São Gabriel-Ba” – que foi membro do JUPP e posteriormente do
Culturarte – não participou do MAC, mas por possuir a mesma faixa etária dos participantes
do movimento presenciou a atuação daqueles jovens. Em entrevista, mostrou ter muitas
lembranças do grupo:

O MAC foi no final dos anos 70. [...] No MAC tinha um pessoal militante,
era ditadura. [...]O MAC eu não participei diretamente como membro do
grupo, mas eu lembro de um movimento musical que eles faziam. Eu lembro
do movimento que eles faziam! Além de movimentos musicais eles faziam
mutirões, eles participaram de vários mutirões, construíram aquele centro
comunitário ali pra comunidade. Peças teatrais eles organizavam na rua. [...]
O MAC não demorou muito, porque eles eram um grupo rebelde, aí logo
acabou.76

João Purcino relatou algumas ações do MAC, como a construção de um Centro


Comunitário. Aponta que o grupo o construiu para a comunidade, versão que entra em

73
A ditadura age de maneira mais disfarçada. O bipartidarismo chega ao fim, e nesse momento começam a
surgir as primeiras ideias para a construção do PT – Partido dos trabalhadores. Os projetos modernizadores de
“colonização” dos sertões se intensificavam, modificando a economia, mas, também, os modos de trabalho e de
vida de muitas pessoas.
74
REIS, Daniel Arão. Ditadura, anistia e reconciliação.Estudos Históricos, Rio de Janeiro, v. 23, n. 45, p. 171-
186, jan./jun.,2010, p. 176 e 177.
75
SILVA, Antônio Carlos Rodrigues da. Antônio Carlos Rodrigues da Silva: depoimento I [jul. 2012].
Entrevistadora: Larissa Godinho Martins dos Santos. São Gabriel-Ba, 2012. 1 arquivo mp3 (46 min. e 21 seg).
Entrevista concedida a autora para pesquisa histórica.
76
PEREIRA, João Purcino. João Purcino Pereira: depoimento I [mar. 2013]. Entrevistadora: Larissa Godinho
Martins dos Santos. Bahia. São Gabriel-Ba, 2013. 1 arquivo mp3 (56 min. e 37 seg.). Entrevista concedida para
pesquisa histórica.
40

conflito com as memórias dos membros do grupo. Para o grupo, a construção do atual Centro
Comunitário de São Gabriel aconteceu com o intuito de ser a sede das reuniões do MAC.
Entretanto, não conseguiram realizar o objetivo para o qual o centro foi construído, pois
alegam que o processo de construção foi bem mais complexo, envolvendo séries de
perseguição e resistência.77

A gente pegou aquele pontinho no fundo ali da igreja. Compramos o terreno


num sorteio que a gente fez. Aí compramos o material para levantar. Nós
conseguimos levantar! Quando chegou na parte da cobertura, nós
compramos a madeira.[...] Aí Edimário, vereador, mandou queimar a
madeira! E todo dia ele ia lá onde estava a gente pedir para a gente não
construir aquilo que a polícia ia correr atrás da gente. [...]E Edimário, até que
um dia botou a polícia para correr atrás da gente. A gente estava lá em cima
pregando os pregos, e a polícia quando chegava, começava a zoar desde lá
daquela ladeira com a sirene ligada né? Aí lé [sic] vem, Unhêu, unhêu,
unhêu, unhêu! Aí os cara: É a polícia! Bora correr? Aí pulamos! Todo
mundo novo né? Pulamos de cima e corremos para dentro do mato. (risos)
Uma coisa que era nossa, que a gente tinha conseguido, comprado. Nós
ainda conseguimos cobrir com muita dificuldade. 78

A afirmativa da compra de um espaço e perseguição movida contra a construção é


narrada por quase todos os membros, tanto do MAC quanto de pessoas do Culturarte que
conheceram as histórias do grupo, evidenciando uma memória construída em relação à ideia
de que o MAC foi perseguido. A narrativa acima demonstra como a ação de construção de um
ponto de encontro causou incômodo aos políticos locais e intensificou os atos de perseguição
ao grupo, resultando em atos de violência. Valdelício Barreto trouxe dois episódios de
perseguição movidos pelo vereador representante da vila de São Gabriel entre os anos de
1977 a 1982. No primeiro caso, o vereador mandou queimar as madeiras que seriam usadas
para construir o telhado do ponto de encontro do grupo; o segundo foi quando colocou a
polícia atrás deles por terem insistido em construir o telhado. A fala de Valdelício Barreto é
permeada pela lógica de que o então vereador se esforçou para que eles desistissem do grupo.
Antônio Carlos também narra o episódio,

com muito esforço conseguimos comprar um terreno e realizamos um bingo,


para compra de materiais para cobertura daquele salão paroquial, para que
assim toda comunidade pudesse reunir-se em um espaço próprio. Colocamos

77
FILHO, Valdelício Barreto Vaz. Valdelício Barreto Vaz Filho: depoimento I [dez. 2016]. Entrevistadora:
Larissa Godinho Martins dos Santos. São Gabriel-Ba, 2016. 1 arquivo mp3 (51 min e 54 seg.) . Entrevista
concedida para pesquisa histórica.
78
Ibid.
41

o material no pé da obra, no outro dia chegamos lá e estava queimado grande


parte do material (madeira).[...]79

Os relatos tanto de Valdelício Barreto quanto de Antônio Carlos sobre a construção do


centro comunitário, talvez tenha sido a experiência que mais marcou a memória dos jovens.
Ao narrarem o episódio, transmitiram a ideia de que o impedimento de reunirem-se
configurou em um sonho roubado. Essas memórias se apresentam em tons de denúncias.80O
episódio aconteceu no início do ano de 1980 e os entrevistados não souberam precisar o mês,
mas como o grupo surgiu em fins de 1979 e a construção do centro foi próxima a sua
desarticulação, acreditamos ter sido no primeiro semestre do ano de 1980. Segundo os
entrevistados, o ex-vereador, já falecido, Edimário Eduão Ferreira81, foi à personagem que
mais perseguiu o grupo, partindo para o conflito declarado aos jovens do MAC.82 Sobre as
perseguições do vereador, João Purcino relatou que

esses movimentos culturais, movimentos sociais nosso da época, a gente era


perseguido pela política. São Gabriel não era cidade, tinha Edimário foi
candidato a vereador, e o prefeito da época em Irecê era Joacy. Na época que
Joacy era prefeito, o vereador daqui era Edimário. Edimário perseguia,
Edimário perseguia os movimentos. E pessoas sempre acusaram ele de ter
tocado fogo naquele salão quando tava em construção. Acusaram ele,
disseram que ele tinha a ver, mandou tocar fogo, porque achava os jovens
uma ameaça.83

João Purcino foi membro do JUPP, grupo que surgiu depois do MAC. Não participou
do Movimento de Arte e Cultura, entretanto acompanhou sua atuação. O entrevistado informa
como os membros compreenderam a perseguição do vereador em relação aos jovens. A
narrativa acima mostra que a ideia de se reunir incomodou políticos locais. O salão foi

79
SILVA, Antônio Carlos Rodrigues da. Antônio Carlos Rodrigues da Silva: depoimento II [mai., 2014].
Entrevistadora: Larissa Godinho Martins dos Santos. São Gabriel-Ba, 2014. 1 arquivo mp3 (7 min e 10 seg.).
Entrevista concedida para pesquisa histórica.
80
FILHO, Valdelício Barreto Vaz. Valdelício Barreto Vaz Filho: depoimento I [dez. 2016]. Entrevistadora:
Larissa Godinho Martins dos Santos. São Gabriel-Ba, 2016. 1 arquivo mp3 (51 min e 54 seg.). Entrevista
concedida para pesquisa histórica.
81
Edimário Ferreira Eduão foi um político muito conhecido em São Gabriel, filho de família tradicional e
respeitada na cidade “os Eduão”. Entretanto, foi considerado pelos entrevistados como o maior “algoz” dos
grupos de jovens de São Gabriel entre os anos de 1970 a 1980.
82
FILHO, Valdelício Barreto Vaz. Valdelício Barreto Vaz Filho: depoimento I [dez. 2016]. Entrevistadora:
Larissa Godinho Martins dos Santos. São Gabriel-Ba, 2016. 1 arquivo mp3 (51 min e 54 seg.) . Entrevista
concedida para pesquisa histórica.
83
PEREIRA, João Purcino. João Purcino Pereira: depoimento I [mar. 2013]. Entrevistadora: Larissa Godinho
Martins dos Santos. Bahia. São Gabriel-Ba, 2013. 1 arquivo mp3 (56 min. e 37 seg.). Entrevista concedida para
pesquisa histórica.
42

construído com o intuito de se tornar sede do Movimento de Arte e Cultura para realizarem as
reuniões e também para uso da comunidade em geral.
Segundo os entrevistados, diante das perseguições por parte de Edimário Eduão
Ferreira, como o episódio citado acima, o grupo decidiu doar o local à Igreja Católica. Os
membros do MAC apontam que o vereador atuava seguindo os ideais dos militares,
fiscalizando e autorizando reprimir a quem saísse da ordem, o que certamente pressionou os
jovens a desistirem do ponto de reuniões. São Gabriel ainda fazia parte do Município de Irecê,
que tinha como prefeito Joacy Nunes Dourado (1977-1982),84prefeito filiado à Aliança
Renovadora Nacional (ARENA), partido que deu sustentação ao Regime Militar. Quando São
Gabriel se emancipou, sua primeira eleição aconteceu em 1985, elegendo Renan Pereira como
prefeito, com mandato de 1986 a 1988, pelo Partido Trabalhista Brasileiro (PTB).Renan
Pereira foi apoiado pelo então governador João Durval Carneiro. Edimário Eduão Ferreira
também se elegeu como vereador pelo PTB, se tornando o primeiro presidente da câmara.
Sobre a atuação de Edimário, Renan Pereira relatou que recordava de sua atuação, pois
ele era “atuante, fez um bom trabalho aqui, tinha boa amizade. Foi vereador em Irecê e
aqui.”85Renan Pereira trouxe em sua fala uma imagem positiva sobre Edimário, alegando que
o ex-vereador fez um bom trabalho, tanto quando atuou em Irecê quanto em São Gabriel. A
fala de Renan traz episódios dele com Edimário, demonstrando que eram amigos, o que pode
justificar os elogios em relação a personagem. Valdelício Barreto justifica as perseguições em
outro trecho, apontando:

[...] porque na verdade, é o seguinte. No final da ditadura militar, eles não


aceitavam você se reunir. Porque se você se reunisse você estava criando
estratégias. E aí não podia formar grupo, era proibido! [...] Porque a gente ia
começar a fazer reunião e começar a bater de frente com o governo, aí
naquela época o governo não aceitava. Quando o governador vinha...(pausa
para pensar). O governador ACM vinha fazer discurso aqui na praça, as
pessoas mais perseguidas eram a gente, inclusive eu andei apanhando, sem
fazer nada, só estava em pé, entendeu? E aí, era assim, dessa forma. Você
não podia, se você fosse oposição, você era tratado como um lixo, entendeu?
Não podia fazer política, então, quando você falava em fazer grupo eles não
aceitavam.86
84
Disponível em<http://www.al.ba.gov.br/deputados/Deputados-Interna.php?id=704>Acesso em: 03 mar. 2017.
85
PEREIRA, João Purcino. João Purcino Pereira: depoimento I [mar. 2013]. Entrevistadora: Larissa Godinho
Martins dos Santos. Bahia. São Gabriel-Ba, 2013. 1 arquivo mp3 (56 min. e 37 seg.). Entrevista concedida para
pesquisa histórica.
86
FILHO, Valdelício Barreto Vaz. Valdelício Barreto Vaz Filho: depoimento I [dez. 2016]. Entrevistadora:
Larissa Godinho Martins dos Santos. São Gabriel-Ba, 2016. 1 arquivo mp3 (51 min e 54 seg.) Entrevista
concedida para pesquisa histórica.
43

Diante do relato acima, compreendemos que, para o entrevistado, as perseguições


sofridas por ele e seus amigos aconteceram por serem jovens atuantes assumidamente contra o
governo e políticos locais, no contexto de fins de Ditadura Civil-militar. A fala de Valdelício
informa que em São Gabriel também teve censura nos anos ditatoriais e que ele mesmo foi
alvo de repressão por ir à praça pública assistir ao discurso de Antônio Carlos Magalhães, isso
por ser assumidamente contrário as ideias do governo. Para Valdelício, se o fato de ir à rua
assistir a um discurso de ACM resultava em apanhar da polícia, construir o grupo era uma
coisa inaceitável pelas autoridades alinhadas ao aparato repressor. Diante do episódio narrado
por Valdelício, é possível pensar como o carlismo agiu de forma violenta sobre diversas
localidades, sendo apoiado pelos representantes locais. Antônio Carlos Magalhães era aliado
das ideias ditatoriais e nesse processo foi um símbolo de ordem para muitas pessoas.
A fala de Valdelício Barreto sobre a ação coercitiva da polícia sugere também como as
imagens daqueles jovens poderiam ser perturbadoras para as autoridades locais. A memória
de Valdelício é construída a partir da ideia de que ele apanhou por ter ido assistir ao comício
de Antônio Carlos Magalhães, mesmo sem simpatizar com suas ideias, o que pôde ter sido
interpretado como afronta ou ameaça.
Os membros do grupo e pessoas que acompanharam a atuação dos jovens que foram
entrevistados possuem uma memória de que o MAC foi perseguido e entrou em conflito com
a classe dominante da época, como políticos da alçada de Edimário Eduão. Políticos com esse
perfil agiam de acordo com as regras sustentadas pelo regime militar, a exemplo das ideias
relativas à liberdade de expressão, à estética e à socialização da cultura.87
A ditadura nos fins dos anos 1979 já caminhava para o fim, porém as ações violentas
contra civis ainda eram comuns. Nesse contexto, a figura do governador da Bahia, citado por
Valdelício Barreto, representava a ordem88 e a obediência. Antônio Carlos Magalhães
governou o estado baiano de 1979 a 1983, representante também da Arena, assim como Joacy
Dourado, então prefeito de Irecê, e Edimário Eduão, vereador representante de São Gabriel, o

87
FILHO, Valdelício Barreto Vaz. Valdelício Barreto Vaz Filho: depoimento I [dez. 2016]. Entrevistadora:
Larissa Godinho Martins dos Santos. São Gabriel-Ba, 2016. 1 arquivo mp3 (51 min. e 54 seg.) Entrevista
concedida para pesquisa histórica.
88
PEREIRA, Carla Galvão. Continuidade ou mudança? Análise comparativa entre os governos de Antônio
Carlos Magalhães em 1971-1975 e 1991-1995.(Salvador –BA) . 2007. Dissertação (Mestrado em Ciências
Sociais) -, Universidade Federal da Bahia, Faculdade de Filosofia e Ciências Humanas– Salvador, 2007.
44

que aponta para ideia de que eles também estavam vinculados aos ideais e projetos dos
militares.89Sobre as repressões sofridas pelos jovens, Fátima Oliveira narra que

O grupo (MAC) não foi visto com bons olhos, e assim, principalmente, pela
classe política, porque vivia ainda na ditadura militar. Porque essa ligação da
cultura, de pensar as muitas coisas que nesses tempos produzido na área
musical, por exemplo, né? Na área musical no sentido das composições de
contrapor ao sistema. Então, essa linha de pensamento preocupava as classes
dominantes políticas, né?90

Para Fátima Oliveira a classe política dominante estava preocupada com as ações dos
jovens, o que gerava perseguições que faziam parte do modelo de cerceamento de liberdade
imposto pelo regime militar. As falas dos entrevistados são permeadas pela ideia de que para
as autoridades locais as atitudes do MAC eram de muita ousadia, isso porque seria inaceitável
que um grupo de jovens e adolescentes se reunissem para produzir eventos que vinculassem a
arte em geral, sobretudo, show com músicas. Ainda mais quando as músicas que o grupo
ouvia eram, em grande medida, produções de artistas que foram coagidos pelo regime militar
por afrontarem a ordem com músicas de “teor duvidoso”.
O caso do MAC em São Gabriel narrado pelos entrevistados foi algo comum no país
naquele contexto. A marginalização de alguns jovens e a violência gratuita eram recorrentes,
para não dizer corriqueiras. Acreditamos que a hostilidade das autoridades locais, enfatizada
em todos os relatos de memórias, pode ter sido motivada pelo imaginário criado no período
ditatorial. Como aponta Enrique Serra Padrós, nos tempos de ditadura existiu um imaginário
de que havia um “inimigo interno”. A ideia foi absorvida por muitas pessoas da sociedade que
passaram a acreditar na existência de “inimigos da nação”, classificados em primeiro plano os
comunistas. De maneira mais ampla, todas as pessoas que demonstraram ações e
comportamentos que fugiam a regra também era enquadrado como inimigas.91
Foi a partir desse imaginário que se propagou o estranhamento de hábitos,
contribuindo para o engendramento de conflitos políticos que estimulavam antipatias, medos,
raiva e outros sentimentos que, na maioria das vezes, levava à denúncia de pessoas que eram
vistas como estranhas ou subversivas. De acordo com as considerações de Padrós e as falas

89
PEREIRA, 2007, p. 66.
90
ABREU, Maria de Fátima Oliveira. Maria de Fátima Oliveira Abreu: depoimento I [dez. 2016]. Entrevistadora:
Larissa Godinho Martins dos Santos. Bahia: São Gabriel-Ba, 2016. 1 arquivo mp3 (32 min. e 30 seg.) Entrevista
concedida para pesquisa histórica.
91
PADRÓS, Enrique Serra (org.). “As Ditaduras de Segurança Nacional”: Brasil e Cone Sul. Porto Alegre:
CORAG, 2006. p. 15-22.In: Terrorismo de Estado e luta de classes: repressão e poder na América Latina sob a
doutrina de segurança nacional. História e Luta de Classes, n. 4, jul. 2007.
45

dos entrevistados, é possível que os membros do MAC tenham sido associados a algo
perigoso ou rebelde. Nesse contexto, não precisava de muito para ser alvo de especulação,
bastava não seguir as normas ditadas pela sociedade, para logo ser rotulado como desordeiro.
As autoridades da época faziam manutenção desse imaginário frequentemente.
Humberto Pereira, ao analisar os jornais A Tarde e o Jornal da Bahia, percebeu como
Os Novos Baianos92 e muitos outros jovens na década de 1970 sofreram perseguições em
Salvador, por apenas andarem com violões e adotarem uma estética “cabeluda”, marcada pela
irreverência e questionamento das normas vigentes. Essa característica contribuiu de
justificativa para colocarem os “cabeludos” no “xilindró”.93Eram prisões que não possuíam
nenhum fundamento, pois aconteciam sem mandato. No entanto, o arbítrio era legitimado pela
sociedade civil baiana. 94
Em Salvador, as prisões eram ações preconceituosas, intolerantes e abusivas, pautadas
no abuso de poder e sem nenhuma acusação aos jovens. Esse foi um modelo repressivo que se
estendeu para além da capital, já que existem estudos de ações repressivas em várias cidades
do interior da Bahia95. De acordo com os relatos dos entrevistados, o que aconteceu com o
MAC e posteriormente com o JUPP foi perseguição e coerção que existiram por conta da
ditadura civil-militar. O caso de Valdelício Barreto que apanhou da polícia por ter ido ao
comício é representativo dessa atmosfera. Para os entrevistados, a repressão por parte dos
políticos locais, bem como o preconceito da sociedade conservadora em relação ao MAC,
foram bastante fortes. Para Olavo Novaes, “fazer um grupo é uma coisa e botar ele a público é

92
Os Novos Baianos foi um grupo que abdicou de algumas instâncias do sistema, construindo um estilo de vida
alternativo, como viver em comunidade. Formaram, também, um grupo musical.Entre os componentes estavam
Pepeu Gomes, Baby do Brasil, Paulinho Boca de Cantor e Moraes Moreira. Pereira analisou notas em O Jornal
da Bahiae percebeu como o grupo e outros jovens, por usarem uma estética diferenciada, foram adjetivados de
maneira negativa, incluindo ser chamado de hippie como forma pejorativa. A atmosfera da década de 1970, em
que o MAC estava inserido, foi um momento em que a imagem do hippie foi deturpada e marginalizada pelo
regime.
93
Pereira mostra um trecho da fala do delegado de Salvador, Orlando Bacelar, nos anos de 1970. O delgado se
pronunciou à respeito dos jovens, reforçando : “A grossura vai continuar, pois vagabundo, que não tem profissão
definida, sem dinheiro, sem fazer nada [sic], sem tomar banho e outras safadezas serão recolhidos ao xadrez, até
que seja feita a necessária triagem, portanto a polícia não é obrigada a conhecer quem é artista, cantor ou ator de
teatro [AJ18]”. A narrativa demonstra como era grande a hostilidade em relação aos jovens que não seguiam os
padrões. PEREIRA, Humberto Santos. “O Mistério do Planeta”. Um estudo sobre a história dos Novos Baianos
(1969- 1979). (Salvador –BA.). 2009. Dissertação (Mestrado em História) - Universidade Federal da Bahia,
Faculdade de Filosofia e Ciências Humanas – Salvador, 2009. p.58.
94
Ibidem, p. 58.
95
Cf.: ZACHARIADHES, Grimaldo Carneiro et al. (Orgs.)Ditadura Militar na Bahia: novos olhares, novos
objetos, novos horizontes. Salvador:EDUFBA, 2009.
46

96
outra totalmente diferente. Pois, a sociedade era preconceituosa, muito, muito”. Para
Antônio Carlos,

a população, por ser muito preconceituosa, agia, mas não mostrava a sua
cara. Viviam num processo de disse me disse. A única certeza que tínhamos
é que o alvo éramos nós. [...] Era muita discriminação. É tanto que deram um
nome que “denegriu”97 a imagem do grupo que foi maconha, álcool e
cocaína. 98

O grupo ficou conhecido nos quatro cantos da cidade como um grupo que fazia uso de
entorpecentes. Isso fez com que o Movimento de Arte e Cultura (MAC) passasse a ser
conhecido por uma parcela da população como Maconha, Álcool e Cocaína, o que para
Antônio Carlos foi uma forma de “denegrir” a imagem do grupo.
Segundo Valdelício Barreto, o “pessoal achava que a gente usava droga, porque a
gente tinha o cabelo grande que, na verdade, a gente tinha o cabelo grande porque a gente
queria ser diferente, porque jovem é assim, né?”.99O entrevistado acredita que o apelido
gerado a partir das siglas do grupo se justifica numa forma de preconceito com os
participantes por conta da estética diferente adotada por eles.100
A narrativa de Antônio Carlos e dos demais membros do MAC defende a ideia de que
havia uma estratégia para desarticular o grupo, qual seja, a difamação mediante acusações e
apelidos pejorativos, como “maconheiros”, “cocaíneiros”, “cabeludos”, “hippies”,
“vagabundos” e “rebeldes”. O uso dessas denominações contribuía para que os pais dos
jovens se sentissem envergonhados e, consequentemente, proibissem seus filhos de participar
do movimento. Como os entrevistados apontam, ter um filho visto como maconheiro numa
vila com costumes conservadores era um constrangimento grande diante da população.101

96
NOVAES, Olavo. Olavo Novaes: depoimento I [set. 2012]. Entrevistadora: Larissa Godinho Martins dos
Santos. São Gabriel-Ba, 2012. 1 arquivo mp3 (36 min. e 13 seg.). Entrevista concedida para pesquisa histórica.
97
Tal qual apontamos na nota 58, mais uma vez aparece uma expressão racista que precisa ser colocada entre
aspas, os sujeitos trazem a marca da sua cultura, em que naturalizam expressões com caráter racista, como:
“cabelo ruim” e “denegriu”. É preciso sinalizar essas expressões, para que os leitores não naturalizem também,
essas palavras.
98
SILVA, Antônio Carlos Rodrigues da. Antônio Carlos Rodrigues da Silva: depoimento I [jul. 2012].
Entrevistadora: Larissa Godinho Martins dos Santos. São Gabriel-Ba, 2012. 1 arquivo mp3 (46 min. e 21 seg).
Entrevista concedida a autora para pesquisa histórica.
99
FILHO, Valdelício Barreto Vaz. Valdelício Barreto Vaz Filho: depoimento I [dez. 2016]. Entrevistadora:
Larissa Godinho Martins dos Santos. São Gabriel-Ba, 2016. 1 arquivo mp3 (51 min. e 54 seg.) Entrevista
concedida para pesquisa histórica.
100
A memória dos apelidos Maconha, Álcool e Cocaína foi narrada por Valdelício Barreto e Antônio Carlos,
mas também por Fátima Oliveira, Antônio Gégie, Aimá Rocha, Olavo Novais e Welington Oliveira.
101
SANTOS, Welington Oliveira. Welington Oliveira Santos: depoimento I [jan. 2017]. Entrevistadora: Larissa
Godinho Martins dos Santos. São Gabriel-Ba, 2017. 1 arquivo mp3 (1 h. 03min. e 46 seg.). Entrevista concedida
para pesquisa histórica.
47

Porque assim, apesar de eu estar com quarenta e oito, na época do MAC eu


ainda era muito criança, muito menino, setenta e nove, eu estava com dez
anos. Então, quando eu comecei a compreender mais a gostar de música com
quatorze quinze anos, mas era essa nossa influência, mas era uma influência
assim que tinha um peso enorme, o fato de a gente gostar disso (do MAC) a
gente já passava a ser considerado maconheiro, cachaceiro.102

Os jovens que compuseram o grupo logo tiveram a imagem atrelada às drogas, à


vadiagem, à rebeldia e aos hippies. Welington Oliveira aponta que ele e os demais
simpatizantes do MAC por apoiarem e concordarem com as ideias do grupo, mesmo depois
de sua desarticulação, também passaram a ser denominados com adjetivos pejorativos. João
Purcino afirma que “eles na comunidade tinham uma participação né? Mas uns eram metido à
hippie, outros eram metidos a artista né?”103. O Movimento Hippie104 era visto de forma
pejorativa, tanto que para muitos serem chamados de hippie era uma ofensa, pois o adjetivo
estava diretamente associado ao uso de drogas. 105
A partir da análise das narrativas orais, acreditamos que muitas das perseguições
sofridas pelos membros do MAC ocorreram por eles terem sido vistos como estranhos para a
sociedade. Mesmo que o grupo tenha sido simpatizante do Movimento Hippie e sofrido
influências desse movimento, segundo os entrevistados, no grupo não existiram hippies.106 A
simbologia da estética de alguns membros poderia confundi-los facilmente, mas a ideologia
os diferenciava em muitos aspectos, pois nos anos de 1970 nem todos os jovens estavam
dispostos a se desprender de todas as instâncias sociais como era a proposta do Movimento
Hippie107 e, ao que nos parece, esse não era o propósito dos jovens do MAC.

102
SANTOS, Welington Oliveira. Welington Oliveira Santos: depoimento I [jan. 2017]. Entrevistadora: Larissa
Godinho Martins dos Santos. São Gabriel-Ba, 2017. 1 arquivo mp3 (1 h. 03min. e 46 seg.). Entrevista concedida
para pesquisa histórica.
103
PEREIRA, João Purcino. João Purcino Pereira. 53 anos: [MAR.2013]. Entrevistadora: Larissa Godinho
Martins dos Santos. Bahia: São Gabriel, 2013. Áudio mp3. Entrevista concedida a autora para pesquisa
histórica.
104
O Movimento Hippie nasceu nos Estados Unidos na década de 1960, chegando ao Brasil nos fins dos anos de
1970. A filosofia de vida hippie negava várias instancias do sistema. PEREIRA, 2009, p. 27.
105
Para Humberto Pereira, os jornais da Bahia elaboravam notícias que traziam o movimento hippie relacionado
à subversão, que logo se espalhou pela Bahia. Em pouco tempo, o jornal A Tarde “reconfigurou seu conceito de
hippie para o equivalente a “vadio” e “perturbador da ordem” 105.Ibidem, p.56. E, certamente, a imagem
deturpada do hippie chegou logo a São Gabriel, de forma que os integrantes do MAC foram criminalizados,
também, por serem “metidos a hippie”.
106
SILVA, Antônio Carlos Rodrigues da. Antônio Carlos Rodrigues da Silva: depoimento II [mai., 2014].
Entrevistadora: Larissa Godinho Martins dos Santos. São Gabriel-Ba, 2014. 1 arquivo mp3 (7 min. e 10 seg..
Entrevista concedida para pesquisa histórica.
107
PEREIRA. 2009, p. 26.
48

A década de 1970 foi cenário de inclinação à Contracultura por parte de uma parcela
da população mundial.108 O MAC109, assim como o Movimento Hippie e movimentos da
Contracultura110 sentiram a “grossura” da polícia. Claro que em cada localidade do Brasil
houve suas especificidades. Uns grupos sentiram mais que os outros. Em contraponto a esses
movimentos, o uso do medo cotidiano como mecanismo de controle dos sujeitos agiu como
uma arma poderosa, de modo que aqueles que não seguissem os padrões determinados
sofriam punições severas.111
A memória do passado dialoga com o presente de forma que o discurso do
entrevistado é construído a partir de referenciais estabelecidos no presente. Para Pollak, a
“fronteira entre o dizível e o indizível, o confessável e o inconfessável, separa, em uma
memória coletiva subterrânea”112.A partir de Pollak, é possível pensar na existência de uma
memória subterrânea em relação ao uso de entorpecentes dos membros do MAC, haja vista
que na década de 1970 o uso de substâncias psicoativas fazia parte da vida de muitos jovens.
Assim, não descartamos a possibilidade de que eles tenham usado essas substâncias, já que a
concepção do uso de alucinógenos era totalmente diferente do imaginário em que estão
inseridos hoje, onde o tema é um tabu. Segundo Valdelício Barreto:

E eu não bebo e nem vejo necessidade de beber, lá quando dá certo eu dou


umas pitadinhas de pitu, eu gosto da pitu, aquela da latinha, ela é gostosa, aí
eu tomo uma dosinha só pra animar mas eu não bebo, que tal? Nunca bebi.
Desde quando o pessoal achava que a gente usava droga, que a gente tinha
cabelo grande.113

Valdelício, ao trazer as memórias relacionadas ao uso de entorpecentes, nega ter usado


e afirma não fazer uso nem de bebidas alcoólicas desde os tempos do MAC, quando
associavam os membros do grupo ao uso de drogas por conta do modo de vida que levavam.

108
PEREIRA. 2009, p. 26.
109
É provável que o MAC tenha bebido em muitos movimentos germinados nos anos 1960 e 1970, como o
underground. A cultura Underground se enquadra no sentimento libertário da contracultura que não só pensava
em música, mas fazia do rock uma arma de contestação social em que idealizavam mexer com as estruturas.
SAGGIORATO, Alexandre. “Rock brasileiro na década de 1970”: contracultura e filosofia hippie. História:
Debates e Tendências. [S. l.] – v. 12, n. 2, jul./dez. 2012. p. 298.
110
“A contracultura era entendida como uma cultura de negação ou contestação da cultura hegemônica,
entendida, no período, como autoritária e elitista, que tentava determinar os padrões.” LIMA, Artemilson de.
Excurso sobre o conceito de Contracultura. Natal- RN, 2013- Instituto Federal do Rio Grande do Norte.
setembro/2013. p. 185.
111
PADRÓS, Enrique Serra. Ditaduras de Segurança Nacional em regiões de fronteira:O Rio Grande do Sul e a
rede de Direitos Humanos.In: Simpósio Nacional de História, 27., Porto Alegre. Anais XXVII Simpósio
Nacional de Hisória. São Paulo: ASF-Brasil, 2013, p. 1-16
112
POLLAK, 1989, p.8.
113
FILHO, Valdelício Barreto Vaz. Valdelício Barreto Vaz Filho: depoimento I [dez. 2016]. Entrevistadora:
Larissa Godinho Martins dos Santos. São Gabriel-Ba, 2016. 1 arquivo mp3 (51 min. e 54 seg.) Entrevista
concedida para pesquisa histórica
49

Antônio Carlos diz que no grupo não havia usuários, destacando: “eu, por exemplo, nem sabia
o que era cocaína.”114 Antônio Régie, membro do Culturarte, narrou:

Eu acho que poderia ter ali, um ou outro que usava ali, mas naquela época,
é.... (pausa para pensar).Eu não gosto de droga e nem faço apologia à droga,
mas eu diria assim, ali foi um percurso de rebeldia, de jovens rebeldes,
transgressores.Mas, evidentemente, as pessoas que fazem algo diferente, pra
sociedade é malvisto, e toda mudança causa impacto. Eu acho, mas que por
conta de atitudes preconceituosas da elite política de São Gabriel, porque os
jovens eram politizados, intelectualizados.115

Percebemos que existiu uma resistência em assumir que os membros do grupo faziam
uso de substâncias ilícitas. Segundo Régie, o MAC era “rebelde” e diante da intensidade que
alguns jovens viviam aquele momento, poderia ser que um ou outro fizesse uso. Entretanto,
ele justifica que os adjetivos partiam para depreciá-los. É possível que exista um
silenciamento por conta dos lugares que eles ocupam hoje – pais e mães de “família” e
trabalhadores –, por conta disso não querem ser lembrados como usuários de drogas ilícitas.
A concepção do uso de drogas naquele período estava relacionado a expandir a mente,
a percepção do universo e liberdade do ser, por isso o consumo de entorpecentes era bastante
comum naquela época em meios a grupos com características semelhantes ao MAC.Muitos
jovens das décadas de 1960 e 1970 possuíam comportamentos semelhantes. A estética de
cabelos e barbas compridos foi como uma bandeira para muitos deles116. Para muitos, viver de
forma “despojada” era uma manifestação do pensamento político, uma forma de resistência ao
sistema, uma maneira de ser livre.
Para Marcelo Ridenti, as aspirações de algumas pessoas naquele contexto eram
alimentadas por sentimentos de um “romantismo-revolucionário”, quando ele identificou nas
produções artísticas no Brasil, a partir do fim dos anos 1950, uma estrutura de sentimentos
que denomina de sentimento da brasilidade (romântico) revolucionária.117 Ridenti definiu uma

114
SILVA, Antônio Carlos Rodrigues da. Antônio Carlos Rodrigues da Silva: depoimento II [mai., 2014].
Entrevistadora: Larissa Godinho Martins dos Santos. São Gabriel-Ba, 2014. 1 arquivo mp3 (7 min. e 10 seg..
Entrevista concedida para pesquisa histórica.
115
FIGUEIREDO, Antônio Régie Evaristo de. Antônio Régie Evaristo de Figueiredo: depoimento I [mar. 2013].
Entrevistadora: Larissa Godinho Martins dos Santos. São Gabriel-Ba, 2013. 1 arquivo mp3 (20 min.) Entrevista
concedida para pesquisa histórica.
116
PEREIRA, 2009, p.49.
117
RIDENTI, Marcelo. “Intelectuais e romantismo revolucionário. São Paulo em perspectiva, São Paulo,
v.15,n.2, p. 13-19, 2001.p.83. Esse sentimento romântico-revolucionário foi uma onda de ideais que clamavam
por um país melhor e justo.117 RIDENTI, Marcelo. Artistas e intelectuais no Brasil pós-1960,2001, p.81-110.
p.13. Disponível
em:<http://webcache.googleusercontent.com/search?q=cache:A7_RXGPZtvwJ:www.scielo.br/pdf/ts/v17n1/v17
n1a03+&cd=1&hl=pt-BR&ct=clnk&gl=br>Acesso em: 15 de abril de 2017.
50

parcela dos jovens da década de 1970 como uma geração que acreditava em um mundo mais
justo e que usava, principalmente, a arte para expressar seus sentimentos.
A partir das colocações de Ridenti e das falas dos entrevistados, podemos pensar que
em São Gabriel os jovens do MAC apresentaram características similares a da juventude
apresentada por Ridente118Diante das evidências, acreditamos que,não obstante o MAC tenha
sofrido influências do Movimento Hippie e da Contracultura, principalmente na questão
musical, o grupo não se caracterizava como nenhum dos dois. Parece-nos que o MAC era
composto pela junção e ressignificação de elementos de movimentos da contracultura,
alimentado pelo romantismo-revolucionário apontado por Ridenti.
Em algumas narrativas orais conseguimos identificar prováveis conflitos de memórias
que, possivelmente, são resultado da participação dos entrevistados em outros grupos. Isto
porque alguns membros do MAC participaram também do Culturarte e, em alguns momentos,
as experiências das duas vivências se cruzavam, o que exigiu atenção em relação às flutuações
e transformações na memória.119 Segundo Fátima, os membros do grupo, na tentativa de
resistir, buscaram o apoio de uma figura importante da época, o padre Pier Luigi Ghirelli, ou
Pedro Luiz Ghirelli e para os mais íntimos, apenas padre Pedro.120 Fátima relatou que

Nós tivemos assim uma parceria importante, um apoio importante na época,


do padre Pedro né? Que foi um padre que fez um trabalho muito bom aqui
na comunidade e ele dava um apoio, tanto nas perseguições que o grupo
sofreu, chegando a reunir com a gente algumas vezes. Procurou o grupo,
conversou, perguntou qual era o propósito mesmo do grupo, e ele era uma
pessoa que era muito envolvida com as causas sociais, culturais também,
então, ele tentou aproximar e foi importante. Inclusive eu acho que foi isso
também que ajudou para que tenha ocorrido algo assim, no ponto de vista da
perseguição, mais grave né? Porque teve esta ligação. 121

Para Fátima Oliveira, Padre Pedro foi uma das autoridades locais da época que
defendeu os jovens. Ela afirma que em meio as perseguições, o padre conversou com o grupo
na tentativa de entender quais eram os objetivos deles em relação ao MAC. Ela acredita que o
padre pode ter ajudado para que os jovens não sofressem algum tipo de violência física em
meio aos conflitos. O Movimento de Arte e Cultura teve uma rápida participação na história

118
NOVAES, Olavo. Olavo Novaes: depoimento I [set. 2012]. Entrevistadora: Larissa Godinho Martins dos
Santos. São Gabriel-Ba, 2012. 1 arquivo mp3 (36 min. e 13 seg.). Entrevista concedida para pesquisa histórica.
119
POLLAK, 1992. P. 206.
120
ABREU, Maria de Fátima Oliveira. Maria de Fátima Oliveira Abreu: depoimento I [dez. 2016].
Entrevistadora: Larissa Godinho Martins dos Santos. Bahia: São Gabriel-Ba, 2016. 1 arquivo mp3 (32 min. e 30
seg.) Entrevista concedida para pesquisa histórica
121
Ibid.
51

de São Gabriel, pois as repressões por parte de autoridades da época desarticulou o grupo de
jovens rapidamente.
O MAC teve muito pouco tempo, foi na época da ditadura e São Gabriel
ainda pertencia a Irecê, que aqui emancipou em 1985, ainda pertencia a
Irecê. E aí a gente sofreu meio que uma perseguição política. É como se
aquele grupo viesse para fazer uma revolução, e não tinha nada disso, claro!
Uma revolução que poderia acontecer, era na cultura, mas foi um negócio
muito rápido. O movimento sofreu uma espécie de atentado, não é? Um
negócio meio estranho, aí desandou, a turma parou. 122

A fala de José das Virgens é mais uma que afirma a existência de uma perseguição
política. Existe uma memória entre os entrevistados de que o MAC durou por volta de nove
meses, e que a pouca duração do grupo foi consequência das perseguições por parte dos
políticos locais motivados pela atmosfera do regime militar. Antônio Carlos relatou que “Não
conseguimos levar adiante com o projeto, muitos foram embora da cidade e o grupo acabou
enfraquecendo, chegando ao fim.”123Valdelício lamentou: “pobre do MAC foi tão perseguido
que desandou, né?”.124Os entrevistados acreditam que houve cerceamento de liberdade e
ações repressoras, relacionadas ao regime ditatorial. Eles apontam que o MAC teve acesso às
tendências da época como músicas, estilo e informações em geral, mas que foram podados
por políticos locais.125
Precisamos atentar para a possibilidade de flutuações da memória de forma
involuntária. Isso por conta da dimensão que a ditadura tem nos dias atuais no imaginário das
pessoas. Os relatos orais foram analisados a partir das possibilidades e buscamos narrar à
história dos movimentos culturais em São Gabriel a partir do ponto em que os sujeitos
acreditam ter vivido, apontando as possibilidades de conflitos ou outros elementos presentes
nas memórias.
Para os entrevistados, o MAC ainda realizou algumas coisas, a exemplo de reuniões,
bingos e a construção do Centro Comunitário. Com a desarticulação do grupo, alguns

122
VIRGENS, José Carlos Dourado Das. José Carlos Dourado Das Virgens: depoimento I [jul., 2018].
Entrevistadora: Larissa Godinho Martins dos Santos. São Gabriel-Ba, 2018. 1 arquivo mp3(45 min. e 36 seg.)
Entrevista concedida para pesquisa histórica.
123
SILVA, Antônio Carlos Rodrigues da. Antônio Carlos Rodrigues da Silva: depoimento I [jul. 2012].
Entrevistadora: Larissa Godinho Martins dos Santos. São Gabriel-Ba, 2012. 1 arquivo mp3 (46 min. e 21 seg.).
Entrevista concedida a autora para pesquisa histórica.
124
FILHO, Valdelício Barreto Vaz. Valdelício Barreto Vaz Filho: depoimento I [dez. 2016]. Entrevistadora:
Larissa Godinho Martins dos Santos. São Gabriel-Ba, 2016. 1 arquivo mp3 (51 min. e 54 seg.). Entrevista
concedida para pesquisa histórica.
125
SILVA, Antônio Carlos Rodrigues da. Antônio Carlos Rodrigues da Silva: depoimento I [jul. 2012].
Entrevistadora: Larissa Godinho Martins dos Santos. São Gabriel-Ba, 2012. 1 arquivo mp3 (46 min. e 21 seg.).
Entrevista concedida a autora para pesquisa histórica.
52

membros migraram para outros movimentos que estavam nascendo, como os Jovens Unidos à
Procura da Paz (JUPP) e o Partido dos Trabalhadores (PT). As memórias seguem uma lógica
de que o MAC influenciou os membros JUPP e posteriormente os membros do Culturarte.126

1.1.2 JUPP- Religião, arte e militância.

O grupo Jovens Unidos à Procura da Paz nasceu dentro da Igreja Católica. Mas, para
além dos fins religiosos, permeavam por outras questões como culturais e política. Os
membros do JUPP não foram tão estereotipados quanto os jovens do MAC. Entretanto, sua
existência foi marcada por momentos de tensão. Segundo os entrevistados, o próprio Edmário
Eduão teve desavenças com o grupo, quando ainda era vereador representante de São Gabriel
e, posteriormente, enquanto vereador e presidente da câmara quando a vila se tornou cidade.
Logo após o fim do MAC, em meados do ano de 1980, surgiu o JUPP. Segundo os
entrevistados, os jovens tinham como principais objetivos fazer ações socioculturais,
promovendo, por exemplo, atividades culturais de caráter político que questionassem a
realidade em que estavam inseridos. Ademais, tinha a função evangelizadora, pois, não
obstante ter um perfil militante era um grupo cristão.
A partir do livro de memórias Terra dos arcanjos, fizemos uma relação de alguns
componentes do grupo. Foram integrantes do JUPP: João Purcino; Francisco (Liu); Clóvis
Durões; Dirlei Ferreira; Gui Ferreira Rocha; Íris Martins; Vagner Gama; Vinícius Batista
Rocha; Jovelina Silva; José Carlos; Vera Lúcia; Sônia Machado; Vileide dos Santos; Itac
Assis127; Joab Rocha; Edgar; José das Virgens.128
Para alguns jovens do JUPP, a ligação com a Igreja Católica poderia significar um
ponto “positivo”, pois isso, de alguma maneira, garantiria certa proteção diante da repressão
pelas classes dominantes. Eles tiveram um importante “padrinho”, o padre Pedro Luiz
Ghirelli, o mesmo que tentou dar suporte ao MAC. Foi principalmente por conta do apoio do
padre que o grupo conseguiu apresentar algumas de suas peças teatrais, fazer reuniões e
debates. Porém, isso não foi suficiente para que não existissem críticas e perseguições ao
grupo. O próprio padre foi alvo de perseguição política.

126
FIGUEIREDO, Antônio Régie Evaristo de. Antônio Régie Evaristo de Figueiredo: depoimento I [mar. 2013].
Entrevistadora: Larissa Godinho Martins dos Santos. São Gabriel-Ba, 2013. 1 arquivo mp3 (20 min.). Entrevista
concedida para pesquisa histórica.
127
Ibid.
128
A questão de gênero para analisar os grupos é importantíssima, pois nos leva a pensar qual o papel da mulher
em São Gabriel em fins da década de 1970 e na década de 1980. Como era a atuação dessas mulheres dentro dos
grupos e a relação entre elas e os homens.
53

Pedro Ghirelli nasceu em 16 de março de 1942, na Itália, na região de Emilia, em


Leguigno.129Tornou-se padre em 1967 e foi enviado ao Brasil em 1970 pela missão das
igrejas de Emilia.130 Ele foi recebido na Diocese de Ruy Barbosa, mas atuou também na
Diocese de São Domingos, em Irecê, sendo destinado para a Paróquia de São Gabriel Arcanjo
em São Gabriel. Padre Pedro passou quase duas décadas no estado da Bahia em missão,
retornando à Itália em 1989.131
Em 1980, ano do surgimento do JUPP, Pedro era padre na vila de São Gabriel, que
fazia parte da rede de paróquias administradas pela Diocese de Irecê. Segundo as narrativas
dos entrevistados, o padre era ligado a Teologia da Libertação132. Para eles, padre Pedro
estava alinhado às lutas contra as injustiças sociais e teceu várias críticas aos políticos locais,
apontando o abandono relegado à população, principalmente nos períodos de seca.
No início dos anos de 1980, a região já passava por longas estiagens e inúmeras
famílias não tinham outra forma de se sustentar. De acordo com os entrevistados, as
autoridades locais não atendiam as demandas mínimas de sobrevivência de grande parte da
população.133As características que foram atribuídas pelos entrevistados ao padre eram
também as principais características da atuação dos padres ligados à Teologia da Libertação
na América Latina.134 O próprio Pedro relatou sobre o seu contato com Teologia da
Libertação no Brasil:

Conheci a Teologia da libertação e tentei vivê-la na atuação pastoral: ter o


pobre e o povo como sujeito ativo da vida e propor um Evangelho que
liberta. Em particular, devolver a palavra ao pobre tirando o medo. Conheci
pessoalmente Leonardo Boff, pe. Clodovis Boff, pe. Oscar Beozzo, pe.
Libanio, pe. José Comblin e outros.135Meu pensamento era isso, as minhas
leituras, a minha atuação era dentro deste espírito. Eu tive a ocasião de ir
para São Paulo, tinha um centro pastoral em uma avenida, que agora eu não

129
Disponível em <http://parrocchiemontecavoloesalvarano.it/parrocchia/parroci-diaconi/>Acesso em: 17 nov.,
2016.
130
As missões italianas resultaram no livro organizado pelo Centro Missionário Diocesano de Reggio Emilia
editado em 2015 por Pedro, “50 anni di cammino insieme. La Chiesa reggiana in Bahia–Brasile”. Disponível em
<http://s2ew.reggioemilia.chiesacattolica.it/pls/reggioemilia/v3_s2ew_consultazione.mostra_pagina?id_pagina=
29329&limite_id_sezione=0&limite_id_sito=0>Acesso em 01 dez., 2016.
131
Disponível em <http://www.tuttomontagna.it/archivio-dett.php?id=39>Acesso em:17 nov., 2016.
132
FIGUEIREDO, Antônio Régie Evaristo de. Antônio Régie Evaristo de Figueiredo: depoimento I [mar. 2013].
Entrevistadora: Larissa Godinho Martins dos Santos. São Gabriel-Ba, 2013. 1 arquivo mp3 (20 min.). Entrevista
concedida para pesquisa histórica.
133
Segundo Pedro, os problemas eram “falta de estradas, falta de escolas, desvalorização dos produtos na época
da colheita, pouca assistência aos doentes, seca, salários baixos, etc.” GHIRELLI, Pier Luigi. Pier Luigi Ghirelli.
74 anos: [JAN.2017]. Entrevistadora: Larissa Godinho Martins dos Santos. Itália/Brasil;Feira de Santana, 2017.
Correio eletrônico. Entrevista concedida a autora para pesquisa histórica
134
A Teologia da Libertação foi um movimento que surgiu na América Latina na década de 1970 e que a partir
dos problemas sociais, fez uma nova interpretação dos Evangelhos. ZACHARIADHES, 2008, pp. 4 e 5.
135
ZACHARIADHES, 2008, pp. 4 e 5.
54

lembro o nome, que recolhia todos os panfletos e material de todo o Brasil.É


uma coisa maravilhosa não é? Eu voltei para cá com um monte de material
deste tipo, era dentro deste espírito que a gente trabalhava. Eu conheci aqui
no Brasil a Teologia da Libertação. Oscar Beozzo, eu tive um conhecimento
pessoal, tive na casa dele, ele também teve na minha casa na Itália. E
também Clodovis Boff que eu participei de um curso de três meses depois
que saí daqui e fui para São Paulo, um curso da CESEP136, onde se
apresentava a Teologia da Libertação.Dentro deste curso estava Clodovis
Boff e Oscar Beozzo que nos acompanharam por três meses.137

Além dos jovens do JUPP, o próprio padre Pedro relatou ter conhecido, no Brasil, a
Teologia da Libertação e buscou vivê-la na prática. Segundo ele, foi a partir das leituras,
ideias e espírito dessa Teologia que ele passou a celebrar suas missas e cursos de formação
para a comunidade. E esteve em contato com padres que foram importantes teólogos e
escritores da Teologia da Libertação no Brasil. Os principais objetivos do movimento estavam
ligados ao combate às injustiças e a libertação dos povos. Padre Pedro apontou que sua
preocupação em sua missão era também a libertação do povo pobre, para que se tornassem
sujeitos ativos de suas vidas.138
A Teologia da Libertação tinha como principal objetivo não mais apenas ajudar os
pobres como a igreja pregava, mas tentar mudar as estruturas para assim acabar com as
desigualdades e injustiças. Por conta das ideias do movimento, muitos confrontos foram
travados e vários adeptos do Movimento foram perseguidos. Rodrigo Camilo aponta que os
adeptos da Teologia da Libertação no Brasil atuaram junto aos fieis denunciando os abusos do
Regime Militar, o que acarretou inúmeras críticas por parte da cúpula conservadora da Igreja
Católica.139
É permissível pensar que as perseguições aos adeptos do movimento não se
restringiram apenas aos grandes centros. Segundo os entrevistados, em certa medida,
experiências repressivas foram compartilhadas por padre Pedro em São Gabriel. Um exemplo
do alinhamento do padre com as ideias da Teologia da Libertação eram os seus discursos de
conscientização em relação às injustiças. Para eles, o seu sermão estava direcionado a

136
Centro de Serviços Educacionais do Pará.
137
GHIRELLI, Pier Luigi. Pier Luigi Ghirelli: depoimento II [jul. 2018]. Entrevistadora: Larissa Godinho
Martins dos Santos. São Gabriel-Ba, 2018. 1 arquivo mp3 ( 53 min. e 13 seg.). Entrevista concedida para
pesquisa histórica.
138
GHIRELLI, Pier Luigi. Pier Luigi Ghirelli: depoimento I [jan. 2017]. Entrevistadora: Larissa Godinho
Martins dos Santos. Itália/Brasil; Feira de Santana, 2017. 1 arquivo via Correio eletrônico . Entrevista concedida
para pesquisa histórica.
139
CAMILO, Rodrigo Augusto Leão. A Teologia da Libertação no Brasil: Das formulações iniciais de sua
doutrina aos novos desafios da atualidade. II Seminário de pesquisa da Faculdade de Ciências Sociais. UFG- da
Universidade Federal de Goiás. 2011.
55

provocar uma análise crítica na população em relação à pobreza, que estava diretamente
ligada ao Estado e não à vontade de Deus. 140
De acordo com Zaira Vieira, na segunda metade do século XX, as desigualdades das
classes e as mazelas movidas pelo capital se alastravam por toda América Latina, inclusive no
Brasil. O país se encontrava em um momento conturbado nas esferas política, social e
econômica. Assim, a crise que atingia a indústria no país causou queda no ritmo do
crescimento econômico e o empobrecimento da população trabalhadora. Isso adicionado à
perda momentânea do apoio à Igreja pelo Estado. A conferência dos bispos em Medellin, em
1968,também contribuiu para o ganho de espaço dos bispos que defendiam a ideia de ser uma
nova Igreja Latino-Americana.141
Os problemas sociais desenvolvidos, principalmente pela Guerra Fria, atrelados às
novas formas de governos ditatoriais, provocaram a necessidade de agir sobre o social. Os
adeptos à Teologia da Libertação, na América Latina, se aproximaram das ideias comunistas,
construindo alianças com os mesmos.142Assim, logo foram enquadrados como subversivos,
pois compartilhavam as ideias dos considerados “inimigos do Estado”.143
Para Zachariadhes, as ideias da Teologia da Libertação confrontavam algumas
doutrinas da Igreja Católica no que diz respeito, principalmente, à postura desta instituição
frente às ditaduras civis-militares. Para isso, a Teologia recorreu, principalmente, às ciências
sociais, especialmente às correntes marxistas, para auxiliar seus seguidores na análise da
realidade latino-americana. Os teólogos da libertação fizeram uma releitura do marxismo,
adaptando-o a realidade e experiências sociais deles e a sua visão cristã.144As memórias de
padre Pedro, bem como os livros que possuía, apontam para a ideia de que ele simpatizava
com as ideias marxistas.
De acordo com os entrevistados, padre Pedro era dono de uma grande livraria com
livros de filosofia, autores que discutiram sobre o marxismo e conscientização política. João
Purcino afirmou que “ele tinha uma livraria que vendia livros, bem baratinho, a preço de
custo. Uma livraria que vendia livros de conscientização e livros religiosos”. Com a livraria

140
GHIRELLI, Pier Luigi. Pier Luigi Ghirelli: depoimento I [jan. 2017]. Entrevistadora: Larissa Godinho
Martins dos Santos. Itália/Brasil; Feira de Santana, 2017. 1 arquivo via Correio eletrônico . Entrevista concedida
para pesquisa histórica.
141
VIEIRA, Zaira Rodrigues. “Uma análise do pensamento social de Leonardo Boff no período áureo da teologia
da libertação”.Visioni Latino Americana é La nivista Del Centro Studi per l‟America Latina. P.61.
142
ZACHARIADHES, Grimaldo Carneiro.“BOVES ET OVES”:Católicos e Marxistas na Bahia.IV Encontro
Estadual de História - anpuh-ba história: Sujeitos, Saberes e Sráticas. 29 de Julho a 1° de Agosto de 2008.
Vitória da Conquista - BA. pp. 4 e 5.
143
FICO, Carlos. “Versões e controvérsias sobre 1964 e a ditadura militar”. Revista Brasileira de História. São
Paulo, v. 24, nº 47, p.29-60. 2004.
144
ZACHARIADHES, 2008, p. 5.
56

montada pelo padre, muitos jovens passaram a ter acesso a livros antes trazidos apenas pelos
amigos que estudavam fora.145Sobre a livraria, padre Pedro relatou,

Eu tinha aberto uma livraria em Irecê perto da catedral, eu procurava ter na


livraria...Estes livros eram vendidos, quando alguém me pedia eu emprestava
também os meus, entendeu? Mas eu procurava os últimos livros da literatura
sobre política para colocar na livraria. Lembro do diário de Che Guevara,
saíram tantos do diário de Che Guevara. Eu trazia para a livraria e via o que
estava saindo e trazia mais. Uma sala bem grande era a livraria, eu sei que os
jovens se encontravam lá, discutiam. Lá tinha os últimos livros da literatura,
duas, três cópias, livros de conscientização, livro de conscientização política,
os livros da igreja, destes trabalhos, estas cartilhas que se usava. Então,
quando eu fazia reunião explicava, o mês da bíblia, ao fazer esse trabalho
passim, assim, vocês encontram os livrinhos na livraria. Em vez de eu ficar
aí distribuindo, na livraria eles encontravam, qualquer dia que chegasse lá
encontrava, cartilhas mesmo de conscientização, agora abriram duas, mas
são bem diferentes da que tinha.146

Segundo padre Pedro, ele procurou trazer exemplares de livros que dialogassem sobre
as lutas de classes para que os jovens tivessem acesso. Em relato, ele cita o exemplo do
Diário de Che como um dos livros mais comprados pelos jovens na época. Sobre a leitura dos
livros da livraria, João Purcino relatou que a repressão era tão severa e pulverizada pelos
muitos espaços que nem mesmo os pais poderiam saber que eles liam livros relacionados ao
marxismo.147“Nossa época era diferente da época de hoje.Em nossa época não tinha
democracia, né?! Então eu li muita coisa clandestina, escondida. Meu pai não podia ver os
livros de Marx, de Engels e outros relacionados.”148Diante da fala do entrevistado, podemos
relativizar a sua fala, pois é possível que nem todos os pais se preocupassem tanto com o que
os filhos estavam lendo. A partir da fala de Purcino, compreendemos que nos primeiros anos
do grupo, ainda em regime militar, o medo da repressão provavelmente os motivou a fazer
algumas leituras às escondidas. Entretanto, é preciso questionar a memória da clandestinidade
das leituras, visto que os livros de Marx não eram vetados; eram, inclusive, vendidos nas
bancas. Portanto, não existia punição para quem fosse encontrado lendo Marx. Sobre a
clandestinidade de leituras, Antônio Régie pontua:

145
PEREIRA, João Purcino. João Purcino Pereira: depoimento I [mar. 2013]. Entrevistadora: Larissa Godinho
Martins dos Santos. Bahia. São Gabriel-Ba, 2013. 1 arquivo mp3 (56 min. e 37 seg.). Entrevista concedida para
pesquisa histórica.
146
GHIRELLI, Pier Luigi. Pier Luigi Ghirelli: depoimento II [jul. 2018]. Entrevistadora: Larissa Godinho
Martins dos Santos. São Gabriel-Ba, 2018. 1 arquivo mp3 (53 min. e 13 seg.). Entrevista concedida para
pesquisa histórica.
147
PEREIRA, João Purcino. João Purcino Pereira: depoimento I [mar. 2013]. Entrevistadora: Larissa Godinho
Martins dos Santos. Bahia. São Gabriel-Ba, 2013. 1 arquivo mp3 (56 min. e 37 seg.). Entrevista concedida para
pesquisa histórica.
148
Ibid.
57

Eu li livros de Marx escondido ainda, pós ditadura, em 1988. A ditadura


terminou em 1985, mas ainda tinham muita ressalva em questão do
marxismo, e eu ainda lembro.Eu lia os livros dentro da roça, ia e levava livro
de Max, Engels, Che Guevara.Nós íamos pra roça com medo de sermos
perseguidos, tínhamos medo ainda de haver alguma perseguição.149

Na fala acima, o entrevistado, assim como Purcino, traz a memória de que eles tiveram
acesso aos livros de Marx, Engels e Che. Esse imaginário de proibições é relatado na fala de
Régie como algo que foi intenso entre ele e seus amigos nos fins dos anos de 1980. Em
conversa informal questionei quais livros especificamente destes autores tiveram acesso nos
anos de 1980. Os dois entrevistados só conseguiram lembrar de três: “O 18 de brumário de
Luis Bonaparte”; “O capital” e “O diário do Che na Bolívia”. A partir da conversa, podemos
pontuar os possíveis exageros e flutuações de suas memórias. Entre os entrevistados, apenas
três falam sobre os livros com detalhes e com propriedade.
Segundo o próprio padre e demais entrevistados, padre Pedro Ghirelli dialogava muito
com os jovens, sempre para desenvolver atividades com o objetivo de minimizar as mazelas
causadas pelo esquecimento governamental. De acordo com as memórias, Pedro era um padre
sensível às injustiças sociais. Entretanto, as lembranças do padre apontam que ele não seguia
a ideologia da Doutrina Social150 de pensar a caridade como a solução para a pobreza. Diante
das circunstâncias de miséria, ele via a necessidade de ajudar a comunidade. Segundo João
Purcino,

Padre Pedro chegava: “andei por ai a seca está braba”, muita fome. Aí
botava nós pra cadastrar as famílias mais carentes e distribuir cesta
básica, comprava no mercado com recurso dele mesmo. Padre Pedro era
rico. [...] amigo do povo, realizou muitos trabalhos relevantes na região.
Construiu junto às comunidades envolvidas igrejas, centros comunitários,
livrarias, olarias, marcenarias e oficinas de corte e costura.151

149
FIGUEIREDO, Antônio Régie Evaristo de. Antônio Régie Evaristo de Figueiredo: depoimento I [mar. 2013].
Entrevistadora: Larissa Godinho Martins dos Santos. São Gabriel-Ba, 2013. 1 arquivo mp3 (20 min.). Entrevista
concedida para pesquisa histórica.
150
A Doutrina Social que a igreja pregava, baseada na Rerum Novarum, ao mesmo tempo em que pensava nos
trabalhadores, rejeitava o socialismo. Deste modo, seu objetivo maior, era ajudar os pobres pela caridade e não
acabar com a pobreza, a partir de uma modificação no sistema. SILVA, Marinélia Sousa da.“Padre não deve se
meter em política?”: Conflitos de política e religião em Riachão do Jacuípe nas ultimas décadas do século XX.
(Salvador –BA). 2005. Dissertação (Mestrado em História) -, Universidade Federal da Bahia, Faculdade de
Filosofia e Ciências Humanas– Salvador, 2005. P.97.
151
PEREIRA, João Purcino. João Purcino Pereira: depoimento I [mar. 2013]. Entrevistadora: Larissa Godinho
Martins dos Santos. Bahia. São Gabriel-Ba, 2013. 1 arquivo mp3 (56 min. e 37 seg.). Entrevista concedida para
pesquisa histórica.
58

Como apontou o entrevistado, o pároco realizava, junto aos jovens do grupo, projetos
sociais. Na maioria das vezes, aconteciam em épocas de longas estiagens, pois, na década de
1980,a maior parte da população sobrevivia da agricultura familiar, fator determinante para
que na época da seca passassem por momentos difíceis.152 “Eu percebia que agricultura vivia
com toda essa problemática de chove não chove, sempre presente, chove, não chove, perdeu,
plantou.”153
Para padre Pedro, o fato da região, à época, ter sua economia voltada em grande
medida para a agricultura era um problema, na medida em que as longas estiagens deixavam a
maior parte da população desamparada. O JUPP atuava ao lado do padre nas questões sociais,
construindo canteiro de praças, limpando terrenos baldios, cadastrando famílias e distribuído
cestas básicas e, até mesmo, construindo casas para os desabrigados.154 Sobre a atuação do
JUPP, o primeiro prefeito de São Gabriel, eleito em 1985, narrou um episodio dos jovens:

Era um grupo de jovens ligado à igreja. Era João Purcino e o pessoal. Aquela
praça da igreja (Referindo-se à praça da igreja matriz) foi eu que fiz também.
Não tem aqueles bancos ali? Foi eles quem fizeram.O grupo de jovens que
fez na época que São Gabriel era município de Irecê, plantaram aquelas
algaroba, e quando eu assumi a prefeitura eu calcei. Aí eles eram oposição,
eles eram ligados ao PT e ao PCdo B.E quando eu construi a praça eles
foram à prefeitura: “Prefeito nós viemos aqui porque você sabe que fomos
nós que começamos ali.” Eu, como não sou de criar confusão, falei: “Tudo
bem, nós não vamos inaugurar com uma festa, mas com uma missa na praça,
aí vocês vaie eu também”. Não quis briga não, aí deu certo.155

Renan Pereira foi o primeiro prefeito de São Gabriel, eleito nas eleições de 1985,
apoiado por Antônio Carlos Magalhães e João Durval.156 No trecho acima ele narra a
construção da pracinha da igreja pelos jovens do JUPP, bem como apareceu na fala de João

152
PEREIRA, João Purcino. João Purcino Pereira: depoimento I [mar. 2013]. Entrevistadora: Larissa Godinho
Martins dos Santos. Bahia. São Gabriel-Ba, 2013. 1 arquivo mp3 (56 min. e 37 seg.). Entrevista concedida para
pesquisa histórica.
153
GHIRELLI, Pier Luigi. Pier Luigi Ghirelli: depoimento II [jul. 2018]. Entrevistadora: Larissa Godinho
Martins dos Santos. São Gabriel-Ba, 2018. 1 arquivo mp3 (53 min. e 13 seg.). Entrevista concedida para
pesquisa histórica.
154
PEREIRA, João Purcino. João Purcino Pereira: depoimento I [mar. 2013]. Entrevistadora: Larissa Godinho
Martins dos Santos. Bahia. São Gabriel-Ba, 2013. 1 arquivo mp3 (56 min. e 37 seg.). Entrevista concedida para
pesquisa histórica.
155
PEREIRA, Renan dos Santos. Renan dos Santos Pereira: depoimento I [Nov.. 2017]. Entrevistadora: Larissa
Godinho Martins dos Santos. São Gabriel-Ba, 2017. 1 arquivo mp3 (31 min. e 44 seg. ). Entrevista concedida
para pesquisa histórica.
156
“Porque eu era candidato do governo no grupo de Antônio Carlos Magalhães na época. João Durval
governador da Bahia na época a gente era dos partidos ligados ao governo tanto eu como o professor Osvaldo.
Osvaldo era do PFL e eu do PTB.” PEREIRA, Renan dos Santos. Renan dos Santos Pereira: depoimento I [Nov..
2017]. Entrevistadora: Larissa Godinho Martins dos Santos. São Gabriel-Ba, 2017. 1 arquivo mp3 (31 min. e 44
seg. ). Entrevista concedida para pesquisa histórica. No trecho da entrevista de Renan ele relata que ele e outro
candidato das eleições de 1985 eram apoiados pelo governado João Durval e ACM.
59

Purcino anteriormente. O grupo iniciou a construção da praça aos arredores da igreja matriz.
Segundo Renan Pereira,seus integrantes não aceitaram uma festa de inauguração, já que o
local não tinha sido construído apenas pelo prefeito. Segundo o relato de Renan, ele acredita
que os jovens quiseram brigar por serem “da oposição”, ligados aos partidos de esquerda. O
episódio mostra uma tensão entre a JUPP e prefeito em 1986, justificada por uma das partes
por acontecer por divergências políticas.
O JUPP, além dos projetos sociais junto ao padre, realizou projetos culturais. Com o
incentivo do padre Pedro passou a apresentar peças teatrais para a comunidade. Segundo os
entrevistados, as peças teatrais tinham caráter crítico e politizador permeadas, principalmente,
pelas questões de opressão e exploração das classes marginalizadas. Segundo João Purcino,
na época do grupo de jovens nosso aí, veio de Salvador umas duas pessoas
fazer palestra sobre teatro, teatro do oprimido de Augusto Boal. Palestra
importante. Oxe, esse pessoal ligado ao movimento, a gente, era ousadopra
época.157

João Purcino narrou episódios em que tiveram acesso às tendências da arte teatral que
estavam em alta em Salvador, a exemplo do Teatro do Oprimido.158 O entrevistado destaca
que uma das manifestações cultural mais importante apresentadas pelo grupo foi às peças
teatrais que, segundo ele, tinham mensagens críticas. Ele lembra que tiveram acesso a
palestras de profissionais ligados ao Teatro do Oprimido de Boal.159
Purcino busca demonstrar que as questões políticas eram ignoradas por grande parte
da igreja e o teatro possibilitou representar as críticas aos governantes de forma lúdica. Isso
porque o alinhamento dos movimentos sociais e culturais com a dimensão política não era
permitido pelos políticos locais, a maioria deles católicos.160

157
PEREIRA, João Purcino. João Purcino Pereira: depoimento I [mar. 2013]. Entrevistadora: Larissa Godinho
Martins dos Santos. Bahia. São Gabriel-Ba, 2013. 1 arquivo mp3 (56 min. e 37 seg.). Entrevista concedida para
pesquisa histórica.
158
O Teatro do Oprimido era uma tendência na arte teatral, que tinha como objetivo despertar o espectador, a
partir da arte, para as explorações, opressões e injustiças. DALL‟ORTO, Felipe Campo. “O Teatro Do Oprimido
na formação da cidadania”. Fenix: Revista de História e Estudos Culturais. Abril/maio/junho de 2008. Vol. 5 ano
V nº 2. ISSN.1807-6971.
159
Augusto Boal nasceu no Rio de Janeiro em 1931. Foi criador e idealizador do Teatro Do Oprimido.
DALL‟ORTO, 2008.
160
FIGUEIREDO, Antônio Régie Evaristo de. Antônio Régie Evaristo de Figueiredo: depoimento I [mar. 2013].
Entrevistadora: Larissa Godinho Martins dos Santos. São Gabriel-Ba, 2013. 1 arquivo mp3 (20 min.). Entrevista
concedida para pesquisa histórica.
60

O padre foi o grande aliado do JUPP. ao mesmo tempo em que pedia a colaboração da
comunidade para com os jovens, ele também cedia o altar da própria igreja para que as peças
fossem apresentadas. João Purcino relata que

o povo era um povo “conservador” e não queria deixar. Aí a gente ia no


padre Pedro e dizia: “Padre Pedro, nós estamos aí com uma peça de teatro
pronta pra apresentar.” - E não tinha o local, né?! O local mesmo era a igreja
“dele” que é grande. –“Mas os velhos aí não querem deixar não, como é que
faz?!” Aí ele dizia: “Deixem comigo!” O padre ia rezar a missa, no meio do
sermão, ele puxava a atenção: Oh gente, os jovens estão com uma peça de
teatro aí. Parece boa! E vão apresentar aqui na igreja e não criem problema.
A juventude aqui são os velhos de amanhã! Ele dizia no meio de todo mundo
(risos).161

Com o apoio do padre, peças teatrais foram apresentadas dentro da igreja pelo JUPP, o
que causou, segundo os entrevistados, a insatisfação de muitas pessoas. Eles acreditam que a
não aceitação aconteceu pelo fato de as peças teatrais possuírem um caráter crítico e isso
também incomodou os políticos locais. Sobre a atuação teatral José das Virgens narra,

O grupo era ligado a pastoral da juventude, mas quando você tinha pessoas
religiosas como padre Pedro, aí ele trazia alguns elementos da formação
cristã, trazia uns elementos de formação cultural, incentivava a gente a fazer
teatro, incentiva a gente a despertar para a luta de classe né? Tipo, entender
como funcionava a sociedade, né? Era uma espécie de formação política. 162

O entrevistado acredita que o incentivo de Padre Pedro para a arte, no caso o teatro,
era uma forma de despertá-los também para a luta de classes, mesmo que grupo fosse
religioso. Graças a presença e atuação do padre, eles passaram por uma formação política. A
memória de José das Virgens segue a mesma lógica da fala anterior de João Purcino. Segundo
Padre Pedro,

Eu incentivava. Celebrava a via sagrada (sacra), colocando os temas sociais,


o sofrimento do hoje, percebia que alguém criticava, diretamente comigo
não falavam. Eles que estavam no território. É claro que percebiam melhor

161
PEREIRA, João Purcino. João Purcino Pereira: depoimento I [mar. 2013]. Entrevistadora: Larissa Godinho
Martins dos Santos. Bahia. São Gabriel-Ba, 2013. 1 arquivo mp3 (56 min. e 37 seg.). Entrevista concedida para
pesquisa histórica.
162
VIRGENS, José Carlos Dourado Das. José Carlos Dourado Das Virgens: depoimento I [jul., 2018].
Entrevistadora: Larissa Godinho Martins dos Santos. São Gabriel-Ba, 2018. 1 arquivo mp3(45 min. e 36 seg.)
Entrevista concedida para pesquisa histórica.
61

as críticas e com eles certamente houve reações, mas comigo o pessoal não
tinha coragem de falar diretamente.163

Padre Pedro, assim como Purcino e José das Virgens, acredita que as peças possuíam
teor críticos e que por conta disso os jovens eram criticados. O padre não fala da ligação dos
jovens com o Teatro do Oprimido, como narrou anteriormente Purcino, mas confirma a ideia
de usar a arte teatral para abordar os problemas da comunidade local, que era uma
característica do Teatro do Oprimido. Sobre sua atuação na região, padre Pedro informa que

O trabalho principal que tentamos realizar foi a criação das CEBS, e espero
tenha atingido também o povo de São Gabriel. A finalidade era de apresentar
um Evangelho Libertador: tirar o povo da fé fatalista (é Deus quem quer),
para enfrentar os problemas da vida com responsabilidade e na união.
Educar a uma fé que responsabiliza. Tentamos levar o povo a se organizar
em comunidade crista, assumindo e repartindo os ministérios, criar
associação, sindicato, partido.164

Padre Pedro informa que se preocupou em conscientizar os leigos, instruindo-os a se


organizarem por meio de instituições que poderiam trazer benefícios para suas vidas, como
associações, Comunidades Eclesiais de Base, sindicatos e a se filiarem a partidos que
tivessem um olhar voltado para o povo. As autoridades administrativas não aceitavam as
“provocações” de padre Pedro, nem tampouco daqueles jovens. Segundo Antonio Régie,
Pedro

era um padre muito politizado viu, muito politizado.Eu me lembro dele


ainda.Muito politizado, intelectualizado e participava da teologia da
libertação, mas não era bem visto, ele não ensinava o ato litúrgico não, ele
ensinava consciência política, pra ação social.Algumas pessoas ligadas a
igreja tradicional e conservadora via com maus olhos as atividades políticas
do padre Pedro aqui em São Gabriel.165

O entrevistado que passou a se aproximar do JUPP já nos últimos anos do grupo trata
padre Pedro como um indivíduo muito politizado que usava das missas para dialogar os
problemas sociais locais. Por isso, era malvisto por pessoas conservadoras da igreja. As

163
GHIRELLI, Pier Luigi. Pier Luigi Ghirelli: depoimento II [jul. 2018]. Entrevistadora: Larissa Godinho
Martins dos Santos. São Gabriel-Ba, 2018. 1 arquivo mp3 (53 min. e 13 seg.). Entrevista concedida para
pesquisa histórica.
164
Ibid.
165
FIGUEIREDO, Antônio Régie Evaristo de. Antônio Régie Evaristo de Figueiredo: depoimento I [mar. 2013].
Entrevistadora: Larissa Godinho Martins dos Santos. São Gabriel-Ba, 2013. 1 arquivo mp3 (20 min.). Entrevista
concedida para pesquisa histórica.
62

pessoas conservadoras eram o bispo166, os políticos e seus familiares, que certamente se


sentiam ofendidos com o sermão do padre. Padre Pedro relata:

Acho que nosso trabalho atrapalhou primeiro a política de Dourado. Ele se


chama Joacy Dourado. Ele perdeu as eleições. Talvez um pouquinho pelo
trabalho da gente (risos). Joacy era prefeito, é claro, era aquele que tinha o
poder no momento. Então, criticando o poder, criticava ele. A mulher dele
tem muita raiva de mim, é católica, ia à missa e disse que eu só falava mal
de Joacy.Eu sei que ela tem (risos). Eu tentava aplicar o evangélico à
realidade. Aí ganhou o Doinha, mas Doinha foi pior do que Joacy. Não sei
se o povo diz isso. Nós continuamos nossa atitude crítica também com
Doinha, porque a coisa foi de atitudes feias. Como eu digo, eu nunca entrei
diretamente na política, nosso trabalho era educar e conscientizar, abrir os
olhos. Com certeza, com certeza, Doinha não gostava do nosso trabalho.167

Padre Pedro acredita que, a partir das ações de conscientização política conduzidas por
ele na igreja, influenciou a derrota de Joacy Dourado nas eleições de 1981. Joacy, segundo os
entrevistados, perseguiu o MAC e atuava de forma conservadora. Isso fez com que ele virasse
alvo das críticas do padre em suas missas. Padre Pedro narra que a mulher de Joacy
frequentava a missa e ouvia seus sermões e críticas, o que a deixava com raiva. Com a saída
de Joacy Dourado e a vitória de Hildebrando Seixas, padre Pedro permaneceu tecendo críticas
às formas de governar. Pedro relata que o governo de Hildebrando chegou a ser pior do que o
de Joacy Dourado. João Purcino destaca que logo Hildebrando Seixas tomou uma providência
em relação à postura de Pedro.

Depois em 1982 o prefeito foi Doinha. Perseguia a gente também, que tal?!
Ele perseguia agente, eu lembro como hoje, quando ele nos perseguia. Acho
que porque a gente era uns jovens rebeldes, e aí, bem que incomodava. Esses
negócios, sabe?! [...] Padre Pedro foi expulso quando Doinha era prefeito.
Expulsaram ele. A livraria era dele, particular, e ele vendeu essa livraria.
Nós botamos um colega nosso pra tocar e o prefeito botou a polícia e tomou.
Botou a polícia e tomou, foi.168

166
Nasceu em 1º de julho de 1921, em Belém de Maria – Pernambuco. No dia 13 de junho de 1983, foi enviado
para ocupar o cargo de 2º Bispo da Diocese de Irecê. Durante 11 anos prestou serviços à Diocese. Renunciou no
dia 02 de março de 1994 e retornou à sua Cidade Natal, onde faleceu no dia 12 de abril de 2000.
http://diocesedeirece.org.br/bispos-antecessores Acesso em 15 de julho de 2018às 14:40.
167
GHIRELLI, Pier Luigi. Pier Luigi Ghirelli: depoimento II [jul. 2018]. Entrevistadora: Larissa Godinho
Martins dos Santos. São Gabriel-Ba, 2018. 1 arquivo mp3 (53 min. e 13 seg.). Entrevista concedida para
pesquisa histórica.
168
PEREIRA, João Purcino. João Purcino Pereira: depoimento I [mar. 2013]. Entrevistadora: Larissa Godinho
Martins dos Santos. Bahia. São Gabriel-Ba, 2013. 1 arquivo mp3 (56 min. e 37 seg.). Entrevista concedida para
pesquisa histórica.
63

João Purcino narra que em 1984 padre Pedro Ghirelli foi expulso da paróquia pelo
então prefeito de Irecê Hildebrando Seixas de Souza Filho,169conhecido como Doinha, que
atuou de 1983-1986. Para o entrevistado, o prefeito perseguia os jovens e o padre por não
concordar com os seus posicionamentos. A memória de João Purcino pode ser entendida
também como instrumento de denúncia contra um adversário. A reafirmação da memória do
grupo contra os antigos agentes vinculados à ARENA dá poder para que eles denunciem seus
“algozes”. Sobre a livraria narrada por Purcino, padre Pedro relata:

quando fui embora fechei tudo.Entreguei tudo. Eu sei que tinha acertado
com uma moça, que ela queria comprar e depois ir vendendo, então eu fiz
um escrito para que depois ela fosse pagando a paróquia. Fiz um abatimento
de um 50%, mas no dia que ela foi buscar os livros o bispo mandou a
polícia, então o bispo prendeu tudo e não sei o que fez. Tínhamos um capital
de livros significativo. 170

Para padre Pedro, a livraria era importante para que jovens pobres tivessem acesso à
livros da literatura e com teor de conscientização política. Nas duas falas, a de João Purcino e
de Padre Pedro, eles narram que o fim da livraria se deu com a apreensão da polícia. O
primeiro justifica ter sido o prefeito quem ordenou a ação truculenta da polícia; o segundo
acredita ter sido o bispo. A partir da fala dos dois, é possível pensar que o prefeito e o bispo
agiram juntos para colocar um fim na atuação tanto do padre quanto dos jovens.
A memória da livraria compartilhada por João Purcino e padre Pedro é trazida como
um espaço de socialização dos jovens do grupo que tinham acesso a livros que foram
importantes na formação política deles. Sobre sua saída da região de Irecê, padre Pedro
relatou:

Minha saída, primeiramente, foi o bispo, o bispo não aceitava muito bem a
nossa pastoral, a nossa maneira. Então, a primeira dificuldade foi com o bispo.
O bispo pediu apoio a Donhia e Doinha deu todo apoio. Então os dois se
juntaram, mas quem deu a primeira iniciativa foi o bispo Edgar Carício de
Gouvêa. Sobre isso se interessar eu tenho um bocado de documento, tenho
toda a papelada, as reações do povo as cartas que escreveram. As pessoas
reagiram muito, porque foi de muito sofrimento para quem acompanhava toda
essa caminhada, fui humilhado. O bispo chegou a mandar demitir dois jovens
do Banco do Bradesco só porque eram do grupo de Jovens. Então foi um

169
Hildebrando Seixas, professor, contador, agricultor, mais conhecido como Doinha, foi eleito pelo povo para
exercer o mandato de prefeito no período de 1982. RUBEM, Jackson. História de Irecê para jovens. 1ª edição.
Irecê: Print Fox, 2013, p.84.
170
GHIRELLI, Pier Luigi. Pier Luigi Ghirelli: depoimento II [jul. 2018]. Entrevistadora: Larissa Godinho
Martins dos Santos. São Gabriel-Ba, 2018. 1 arquivo mp3 (53 min. e 13 seg.). Entrevista concedida para
pesquisa histórica.
64

período de sofrimento, quem acompanhava toda essa caminhada sofreu. As


pessoas se lamentavam nas cartas porque afastavam os padres. O bispo dizia
que nós não educávamos na maneira certa os leigos. Aconteceu que o grupo
de jovens, aproveitando que eu tinha saído três dias, ido para Salvador, eles
chegaram no bispo e tiveram uma conversa, e talvez, talvez tenha usado
palavras um pouco duras e ele se ofendeu e acusou que eu tinha mandado os
jovens fazer aquilo, como responsável. Eu nem sabia que eles teriam aquela
conversa. E disse que eu não educava da forma correta os jovens daqui. Essa
foi à justificativa, aí ele “pediu” para nós sairmos daqui. Eu fui para Utinga e
outro padre foi para Ipirá. Voltamos para a diocese de Rui Barbosa.171

Padre Pedro, assim como João Purcino, acredita na interferência de Doinha para que
ele fosse retirado da Paróquia São Domingos de Irecê. Entretanto, o padre aponta como figura
central o bispo Edgar Carício de Gouvêa que, segundo ele, era aliado político do então
prefeito. Ao narrar sobre sua saída, Pedro relatou de maneira comovida, lembrando que foi
humilhado e acusado de não ensinar os jovens de forma correta como manda a igreja.
Com o retorno do padre Pedro à paróquia de Ruy Barbosa, o JUPP passou a realizar
suas atividades com menor frequência, pois já não tinha a igreja como palco para suas artes.
As atividades do grupo foram acontecendo de forma mais tímida. Além da perda do apoio de
Pedro, os jovens passaram a lidar com outras demandas da vida como casar, cuidar de filho e
trabalhar.172 Por conseguinte, começou o desmembramento processual, e em 1988 chegou ao
fim.
Podemos pensar a atuação do JUPP em duas etapas, de 1980 a 1984 e de 1985 a 1988.
Os primeiros anos do grupo foram vividos ainda no período da ditadura militar, quando São
Gabriel ainda estava sob a condição de vila e eles contavam com o apoio de padre Pedro. Em
1985 padre Pedro foi transferido173 e São Gabriel se emancipou. Dessa forma, os
entrevistados apontam que os primeiros anos do grupo foram os mais intensos, enquanto que
a partir de 1985 a atuação passou a acontecer de forma mais tímida.
Em 1980, muitos jovens que fizeram parte do MAC e os que atuavam no JUPP, com a
abertura política, passaram a filiar-se ao Partido dos Trabalhadores (PT) e ao Partido
Comunista do Brasil (PC do B). No fim dos anos de 1980 e na década seguinte alguns
membros desses dois grupos passaram a concorrer à política local como Zé das Virgens,
Antônio Carlos (Toinho Vice) e João Purcino. Segundo padre Pedro,

171
GHIRELLI, Pier Luigi. Pier Luigi Ghirelli: depoimento II [jul. 2018]. Entrevistadora: Larissa Godinho
Martins dos Santos. São Gabriel-Ba, 2018. 1 arquivo mp3 (53 min. e 13 seg.). Entrevista concedida para
pesquisa histórica.
172
PEREIRA, João Purcino. João Purcino Pereira: depoimento I [mar. 2013]. Entrevistadora: Larissa Godinho
Martins dos Santos. Bahia. São Gabriel-Ba, 2013. 1 arquivo mp3 (56 min. e 37 seg.). Entrevista concedida para
pesquisa histórica.
173
Ibid.
65

Eu incentivava nas reuniões, nos meios de informação (o folheto editado por


ele), incentivava a participação política, não se entregando a um coronel,
mas assumindo um partido que compartilhasse, que ajudasse a compartilhar
com a comunidade e enfrentasse o problema do povo. Talvez alguma pessoa
tenha me convidado para entrar no PT, eu não fui o criador do PT aqui, a
minha foi uma tarefa educativa, ajudar as pessoas a pensar de uma maneira
crítica, não se entregar ao coronel, porque até pouco tempo era o coronel que
mandava, o chefe político que dizia em quem mandar.174

A fala de padre Pedro aponta para a sua participação como incentivador dos jovens a
procurarem partidos que defendessem o povo. Naquele cenário de desigualdade que
caminhava para o fim de regime militar, o Partido dos Trabalhadores nascia como uma nova
alternativa aos jovens. Padre Pedro justificou nunca ter se filiado a partido algum no Brasil,
mas acreditou nas ideias do PT e por isso incentivou que os jovens aderissem a partidos mais
à esquerda. Sobre a atuação dos jovens do JUPP no PT José das Virgens afirma que
participou

da fundação do PT em 1980 em Irecê. Eu tinha exatamente 18 anos. Eu


morava aqui e fui estudar na Esagri, eu saí daqui para estudar na Nova
Esagri. Essa turma nossa, eu, Ivon, essa turma nossa aqui foi toda,
praticamente, para a Esagri, escola técnica chegando, nova.E aí em 1980 o
PT estava sendo fundado nacionalmente e chegou um estudante de direito de
Salvador chamado Denivaldo Henrique Almeida, esse camarada já foi direto
me procurar na Escola, certo? Aí nós criamos a comissão provisória do
Partido dos Trabalhadores de Irecê, que Gabriel fazia parte, pertencia a
Irecê. Em 85 Gabriel se emancipou, e teve sua primeira eleição, e aí nós já
fundamos o PT. Só que na primeira eleição o MDB era o grande partido que
abrigava os partidos de esquerda, tipo o Partido Comunista do Brasil, tipo o
Partido Comunista Brasileiro, o PC do B o PCB, e o PT era um outro partido
que estava surgindo, mas a gente não se sentiu assim com força.Eu
particularmente muito jovem para ter uma candidatura para vereador do PT,
então a gente terminou indo no barco do MDB aqui né?175

Podemos pensar que a filiação na década de 1980 ao PT e ao PC do B foi um


desdobramento de oposições anteriores, muito por conta de uma aproximação ao MDB.
Segundo José das Virgens, eles estavam, desde o MAC, com inclinação à esquerda, o que

174
GHIRELLI, Pier Luigi. Pier Luigi Ghirelli: depoimento II [jul. 2018]. Entrevistadora: Larissa Godinho
Martins dos Santos. São Gabriel-Ba, 2018. 1 arquivo mp3 (53 min. e 13 seg.). Entrevista concedida para
pesquisa histórica.
175
VIRGENS, José Carlos Dourado Das. José Carlos Dourado Das Virgens: depoimento I [jul., 2018].
Entrevistadora: Larissa Godinho Martins dos Santos. São Gabriel-Ba, 2018. 1 arquivo mp3(45 min. e 36 seg.).
Entrevista concedida para pesquisa histórica.
66

pode ter contribuído para a desarticulação do MAC em função dos ataques de políticos da
ARENA, como Joacy Dourado e Edimário Eduão. No trecho acima, José das Virgens narra
sobre o seu envolvimento com o Partido dos Trabalhadores no início dos anos de 1980,
quando ainda era estudante da escola técnica em Irecê. Para o entrevistado, o PT surgiu na
região no mesmo momento em que estava surgindo nacionalmente e foi fundado em São
Gabriel logo após a emancipação da cidade. Segundo José das Virgens, ele e outros membros
do JUPP passaram a participar da política desde as primeiras eleições de São Gabriel e
tiveram força para concorrê-las a partir de 1988.

Aí em 1988, na segunda eleição, como PT e o PC do B, nós fizemos uma


coligação, eu para prefeito e Toinho, que até o apelido pegou Toinho Vice,
Antônio Nunes da Gama para vice-prefeito. Montamos uma chapa, foi
quando Haroldo Lima veio para o nosso palanque, padre Pedro tava na
região de Utinga já depois daquela perseguição que ele sofreu aqui na
diocese. Tava na região de Utinga e veio para o nosso palanque também.A
gente fez a campanha no município todo com um carro só, uma
caminhonete, tinha sete candidato a vereador e eu e Toinho vice, mas quem
ganhou a eleição, nesse caso, foi Raimundinho.176

Na memória de José das Virgens, os membros do JUPP tiveram uma relação muito
íntima com partidos de esquerda, sobretudo, o PT. José das Virgens junto a Antônio Nunes
concorreram às eleições de 1988. Ele relata que padre Pedro não estava mais na diocese São
Domingos e voltou à região para apoiá-los durante as campanhas eleitorais, o que mostra o
envolvimento mais efetivo do pároco com as questões eleitorais da região. Segundo José das
Virgens, eles não venceram as eleições, mas a partir daquele pleito ele passou a concorrer
eleições durante a década de 1990, quando já era membro do Culturarte. O entrevistado
credita que aquela eleição foi o início para que ele e outros integrantes do Culturarte
passassem a participar ativamente do PT e da política local.
Para Antônio Régie, a atuação do MAC e do JUPP em São Gabriel foi importante para
o amadurecimento político e cultural dos jovens que nos anos de 1990 fundaram o
Culturarte.177Segundo ele, essas influências se acentuaram em torno de ideias e diálogos
vindos dos partidos de esquerda nos anos de 1980. De forma geral, os entrevistados observam

176
VIRGENS, José Carlos Dourado Das. José Carlos Dourado Das Virgens: depoimento I [jul., 2018].
Entrevistadora: Larissa Godinho Martins dos Santos. São Gabriel-Ba, 2018. 1 arquivo mp3(45 min. e 36 seg.).
Entrevista concedida para pesquisa histórica.
177
FIGUEIREDO, Antônio Régie Evaristo de. Antônio Régie Evaristo de Figueiredo: depoimento I [mar. 2013].
Entrevistadora: Larissa Godinho Martins dos Santos. São Gabriel-Ba, 2013. 1 arquivo mp3 (20 min.). Entrevista
concedida para pesquisa histórica.
67

que mesmo depois que o MAC e o JUPP deixaram de existir, suas influências perduraram na
cidade.178 É provável que tenha se criado entre as pessoas do meio cultural uma memória de
uma linearidade cultural alinhada a uma militância política dos dois grupos que influenciaram
os membros do Culturarte. Para Antônio Carlos, o MAC, não obstante ter durado menos de
um ano, “influenciou muito a nova geração”.179 Segundo Antônio Régie,

como já tinha essa posterioridade do MAC, depois veio o JUPP. [...] Eram
pessoas politizadas e por sua vez liam muito, escreviam muito. [...] Comecei
a ter interesse pelo marxismo, pela sociologia, filosofia, e, sobretudo, depois
pela cultura popular. [...] Isso foi atribuído a esse meio intelectualizado e
politizado de São Gabriel. [...] esse pessoal que participou primeiro do MAC,
depois do grupo JUPP, né? Nunca pararam por aí, sempre nas escolas, um
pessoal muito descontente, uma juventude meio rebelde né?[...] [...] então
como já tinha essa antecedência do MAC e do JUPP, aí um grupo de pessoas
aluiu a praça né? Então, começamos a formatar a ideia de cultural e que,
sobretudo, poderia fazer algo de bom pra São Gabriel.180

O entrevistado atribui um ideal cultural e político ao MAC e ao JUPP que influenciou


posteriormente os jovens do início da década de 1990 como uma espécie de legado. Porém, é
importante pensarmos na racionalização da memória que ajudou a construir os relatos orais
desses sujeitos. Isso porque, é provável que não existisse, no momento do
evento/acontecimento, uma consciência de continuidade. A memória construída por todos os
entrevistados do MAC, do JUPP e do Culturarte apontam para a ideia de uma movimentação
cultural e política em São Gabriel desde os fins dos anos de 1970 que foi importante para
determinar as características do Culturarte e da Cantoria de São Gabriel.

1.2 O surgimento do Grupo Culturarte

São Gabriel, 1991. Em uma roda de amigos tocavam-se as violas, cujas músicas
preferidas eram as que cantavam o sertão. Uma mistura de nota musical com poesia. Mas

178
PEREIRA, João Purcino. João Purcino Pereira: depoimento I [mar. 2013]. Entrevistadora: Larissa Godinho
Martins dos Santos. Bahia. São Gabriel-Ba, 2013. 1 arquivo mp3 (56 min. e 37 seg.). Entrevista concedida para
pesquisa histórica.
179
SILVA, Antônio Carlos Rodrigues da. Antônio Carlos Rodrigues da Silva: depoimento I [jul. 2012].
Entrevistadora: Larissa Godinho Martins dos Santos. São Gabriel-Ba, 2012. 1 arquivo mp3 (46 min. e 21 seg.).
Entrevista concedida a autora para pesquisa histórica.
180
FIGUEIREDO, Antônio Régie Evaristo de. Antônio Régie Evaristo de Figueiredo: depoimento I [mar. 2013].
Entrevistadora: Larissa Godinho Martins dos Santos. São Gabriel-Ba, 2013. 1 arquivo mp3 (20 min.). Entrevista
concedida para pesquisa histórica.
68

também tocavam-se diversas canções da música popular brasileira (MPB) e do rock


internacional. Herança advinda dos, agora veteranos, que em décadas passadas disseminaram
na vila/cidade ritmos, canções e ideias. Entre uma música e outra, um dedo de prosa junto às
experiências dos ex-membros do MAC e do JUPP e o entusiasmo pela transformação, surgiu
a ideia de criar um movimento cultural em São Gabriel. A prosa surgiu logo após chegarem
da Semana de Arte do Uibaí, pois, segundo os entrevistados, com o fim do MAC e do JUPP,
as atividades culturais estavam paradas em São Gabriel, de modo que o evento mais próximo
no qual eles se identificavam era a Semana de Artes da cidade vizinha. Uibaí é uma cidade
que também faz parte da microregião de Irecê e está localizada a 64 km de São Gabriel. Um
dos entrevistados, João Purcino, afirma que:

Toinho-vice, Itamá, Erismá, Antônio Galego, Netão, esse pessoal, que foi
pra uma Semana de Artes no Uibaí.Que a Semana de Arte no Uibaí fazia na
semana santa, quinta-feira santa, sexta-feira. Fazia o evento cultural, aí
participaram de um evento cultural na semana de arte do Uibaí. [...] aí eles
falaram: vamos fazer um evento em São Gabriel? Vamos fazer! Aí pronto.181

A Semana de Arte de Uibaí possui certa tradição na região. Ela é considerada um dos
primeiros eventos culturais que buscou valorizar elementos característicos daquele sertão,
com estilos musicais e artísticos parecidos com os que os jovens de São Gabriel
contemplavam, a exemplo de Elomar, Xangaí etc; o que os motivava a prestigiar o evento
sempre que possível. Os membros do Culturarte acreditam que a Semana de Artes de Uibaí
foi o lampejo para que eles decidissem trazer novamente para São Gabriel ações culturais,
como já tinham feito o MAC e o JUPP. As influências culturais eles já possuíam e também
contavam com o apoio das experiências dos veteranos. Com a Semana de Artes surgiu ideias
do que fazer e como fazer.
Depois daquela roda de prosa, viola e cantorias começaram a se organizar. Welington
Oliveira teria questionado: “Toinho você que já está ai há muito tempo no meio dos
movimentos, reivindicando melhorias, vamos fazer uma festa?”.182Da roda entre amigos,
várias ideias foram florescendo até a materialização do evento. Segundo Welington Oliveira,
membro do Culturarte,

181
PEREIRA, João Purcino. João Purcino Pereira: depoimento I [mar. 2013]. Entrevistadora: Larissa Godinho
Martins dos Santos. Bahia. São Gabriel-Ba, 2013. 1 arquivo mp3 (56 min. e 37 seg.). Entrevista concedida para
pesquisa histórica.
182
SILVA, Antônio Carlos Rodrigues da. Antônio Carlos Rodrigues da Silva: depoimento I [jul. 2012].
Entrevistadora: Larissa Godinho Martins dos Santos. São Gabriel-Ba, 2012. 1 arquivo mp3 (46 min. e 21 seg.).
Entrevista concedida a autora para pesquisa histórica.
69

Então, assim, a gente teve um período que a gente estava em uma situação
crítica em São Gabriel em relação a lazer. E a gente questionava, por quê?
Na época a gente pensava assim...Barra do Mendes tem o carnaval, Lapão
tem um carnaval, o Uibaí tem o São João de tradição, Jussara e Central tem a
festa da cidade, Irecê teve um período que fazia a semana de artes e São
Gabriel não tinha nada. Em Xique-Xique tinha carnaval e São Gabriel não
tinha. Então, Gabriel ficou sem referência, assim, em relação a um evento.
Então, assim, foi pensando mais em uma perspectiva de ter opção de lazer.183

Conforme a narrativa, o que motivou o surgimento do grupo foi a busca pela criação
de um evento que se apresentasse como uma opção de lazer, onde pudessem socializar os seus
gostos musicais e artísticos, o que também oportunizaria a quem fosse artista do grupo se
apresentar. A partir da fala de Welington Oliveira podemos perceber que como no MAC e no
JUPP, os jovens que formariam o Culturarte estavam conectados com influências externas.
Desse modo, para além das influências internas dos grupos locais já existentes, eles
dialogavam com ideais de fora que foram importantes estímulos para a criação do Culturarte e
da Cantoria.
O grupo tinha em média quinze pessoas com faixa de idade entre vinte e trinta anos.
Além dos jovens da década de 1990, os veteranos de movimentos culturais da cidade também
o compuseram.184 Faziam parte do Culturarte: Itamá Rocha, Aimá Rocha, Antônio Carlos
(Toinho Galego), Antônio (Tonho-Vice), Antônio Freire (Netão), David Farias, Luiz Sérgio
(Lula), Welington Oliveira, José Carlos das Virgens (Zé das Virgens), Solange, Rêges Abreu,
Ariovaldo (Ló), João Purcino, Agnolia de Oliveira Rocha, Valdelício Barreto Vaz. É possível
que os entrevistados tenham esquecido de alguém que tenha participado do momento inicial
do grupo, entretanto, estes foram os nomes citados nos relatos e que conseguimos identificar
na primeira ata da Fundação Culturarte de 1993. A maior parte dos membros eram homens,
contando com a presença de apenas duas mulheres. Na época, a maioria absoluta tinha o
segundo grau completo que variava entre magistério, contabilidade e técnico agrícola. De
acordo com Welington Oliveira,
Então, tinha técnicos agrícolas, que era eu, Tonho vice, Luiz Sérgio [...]
Tinha músico, Tonho Galego e Ló. Ló que estava iniciando e Tonho Galego
que já tocava até em banda, não era nem no estilo regional, mas era músico.
Tinha marceneiro, que era Rêgis, e Davi de Anselmo era também
marceneiro. Pintor, Ló também era músico e pintor,e produtor rural. Então,
assim, eram profissões diferenciadas, tinham professores também no meio,
na época era Aimá [...] Era assim, essa galera de salário mínimo mesmo, uns
que eram marceneiro, outros que eram professor. Na época não sei se

183
SANTOS, Welington Oliveira. Welington Oliveira Santos: depoimento I [jan. 2017]. Entrevistadora: Larissa
Godinho Martins dos Santos. São Gabriel-Ba, 2017. 1 arquivo mp3 (1 h. 03min. e 46 seg.). Entrevista concedida
para pesquisa histórica.
184
Ibid.
70

professor chegava a ganhar um salário mínimo, então, assim, éramos pobres


mesmo.185

Para o entrevistado, um número significativo de membros do Culturarte possuía


profissão. Realizavam trabalhos autônomos que variavam entre as tarefas na roça, marcenaria,
pintura, música ou professores, atividades que na década de 1990 não eram tão rentáveis. A
partir das profissões, é possível apontar que esses sujeitos possuíam um baixo poder
econômico, entretanto a grande maioria teve acesso à educação formal. A maioria era
assalariada, com exceção de Itamá Rocha, que era funcionário público da Fundação Nacional
de Saúde, e João Purcino, que certamente começou a ganhar mais quando se tornou vereador
na década de 1990, embora o salário de vereador não fosse alto numa cidade recém-
emancipada como São Gabriel na época.186
Além deles, três pessoas no grupo eram consideradas como classe média, já que
pertenciam a famílias que possuíam poder aquisitivo na cidade: eram os casos de Zé das
Virgens, filho de Raul Ferreira das Virgens, e Netão, filho de Olívio Freire. Tanto Olívio,
quanto Raul das Virgens ascenderam socialmente. Raul era um importante comerciante que
entrou para a carreira política em 1958 como vereador, em Irecê, representando a vila de São
Gabriel.187 Olívio foi um importante produtor rural e comerciante da cidade, sendo
considerado como um dos homens de posses nos anos de 1970.
É possível afirmar que o grupo Culturarte foi composto em grande maioria por pessoas
de nível econômico baixo, mesmo que existissem três ou quatro sujeitos que possuíam uma
condição financeira um pouco melhor. Analisando as memórias, levamos em conta alguns
indícios que nos leva a pensar os sujeitos do grupo não eram extremamente pobres, mas
também não eram donos de muitos bens e posses.
Os indícios partem das profissões que exerciam, como o trabalho na roça, na
carpintaria e na escola, como professor, por exemplo, que não eram comumente exercidas por
pessoas com poder aquisitivo elevado. Além disso, o fato de pedirem patrocínio para
realização dos eventos, de alguma forma, legitima as narrativas dos entrevistados, pois se
tivessem um capital econômico ao menos mediano, com uma “vaquinha” entre eles,
possivelmente, daria para realizar a festa, já que na primeira edição o custo não foi tão alto.

185
SANTOS, Welington Oliveira. Welington Oliveira Santos: depoimento I [jan. 2017]. Entrevistadora: Larissa
Godinho Martins dos Santos. São Gabriel-Ba, 2017. 1 arquivo mp3 (1 h. 03min. e 46 seg.). Entrevista concedida
para pesquisa histórica.
186
Ibid.
187
PEREIRA, João Purcino; PEREIRA, Leonellia. “Terra dos arcanjos”. Historiografia da cidade de São Gabriel-
Ba. 1ª edição: Print Fox, 2010.
71

A partir das falas, foi possível notar a construção de uma memória que, de alguma
forma, buscava enfatizar a ideia de sujeitos “pobres”, mas que eram honestos, já que o grupo
era formado por trabalhadores que tinham sua própria renda e o evento não teria fins
lucrativos. Entendemos que os entrevistados se preocuparam em falar sobre o assunto,
provavelmente, por conta das memórias que carregam relacionadas ao momento da
construção do evento, quando o grupo ganhou a conotação de desocupados e tiveram a
honestidade questionada.188Depois da ideia de criar um grupo, vieram os encontros e
discussões para definirem possíveis nomes, divisões de trabalho e como colocar em prática as
ideais que surgiam. 189

A gente sentou um dia e pensamos, mesmo farreando. Aí pensamos em criar


esse grupo na época. E depois fizemos reuniões. Aí nessas reuniões fomos
discutir essa questão de nomes, né? Inclusive o Culturarte foi uma ideia
minha, porque entraram em discussão três ou quatro nomes na época, cada
qual dava uma ideia como poderia ser o nome. Aí eu criei esse nome
Culturarte, porque era arte junto com cultura. Aí foi aprovado o meu nome.
190

O empenho de materializar a ideia de criar um grupo passa a tomar forma, o que


motivou os futuros integrantes a pensarem em elementos básicos, como o nome. Podemos
perceber que desde o início existia o impulso de uma coletividade e diálogo para tudo que
iriam decidir. Como narra João Purcino e Valdelício Barreto, para nomearem o grupo fizeram
votação de possíveis ideias e o nome Culturarte foi sugerido por Valdelício, vencendo a
votação com a maioria dos votos.
Segundo as narrativas, os membros do Culturarte temeram que as influências do
MAC, do JUPP e a trajetória de militância dos membros, pudessem atrapalhar o processo de
aceitação do grupo pela população gabrielense. Entretanto, segundo os entrevistados, a
vontade de construir um evento era muito forte entre eles, e com todas as dificuldades o grupo
prosseguiu com sua ideia de invenção de uma festa/evento.
Aí a gente pensou na possibilidade de fazer um evento, não se pensavamos
se seria cantoria. Aí a gente, pow, Cantoria ou uma Semana de Arte? Que a
gente tava vindo do Uibaí que teve uma Semana de Arte. Foi lá que a gente
188
SANTOS, Welington Oliveira. Welington Oliveira Santos: depoimento I [jan. 2017]. Entrevistadora: Larissa
Godinho Martins dos Santos. São Gabriel-Ba, 2017. 1 arquivo mp3 (1 h. 03min. e 46 seg.). Entrevista concedida
para pesquisa histórica.
189
PEREIRA, João Purcino. João Purcino Pereira: depoimento I [mar. 2013]. Entrevistadora: Larissa Godinho
Martins dos Santos. Bahia. São Gabriel-Ba, 2013. 1 arquivo mp3 (56 min. e 37 seg.). Entrevista concedida para
pesquisa histórica.
190
FILHO, Valdelício Barreto Vaz. Valdelício Barreto Vaz Filho: depoimento I [dez. 2016]. Entrevistadora:
Larissa Godinho Martins dos Santos. São Gabriel-Ba, 2016. 1 arquivo mp3 (51 min. e 54 seg.). Entrevista
concedida para pesquisa histórica.
72

conheceu Dinho Oliveira, Cal Alves e pessoas que participaram aqui da


primeira Cantoria. Então, vamos fazer uma Semana de Arte. Aí a gente
percebeu que a gente não tinha musculatura para uma Semana de Arte.
Então, vamos fazer pelo menos alguns shows na praça, então?! Começou a
nascer daí da Cantoria.191

A ideia de que a Cantoria surgiu na tentativa de produzir algum movimento cultural ou


evento, sem saber mais ou menos o que seria, mas que reunisse ideias, gostos musicais e
artísticos contemplados pelo grupo é compartilhada por todos os entrevistados. Welington
Oliveira atribui a influência do surgimento do evento também aos artistas, já parcialmente
famosos, como Dinho Oliveira e Cal Alves, influências musicais que estiveram presentes
desde a primeira edição da festa. Diante das memórias do surgimento do Culturarte,
entendemos que mesmo que o ato de lembrar seja individual, as memórias são construídas
coletivamente. Antônio Montenegro aponta que por mais particular que seja um relato
memorialístico, ele “carrega as marcas da rede social, profissional, política, cultural daquele
entrevistado.”192
Entendemos que cada membro do Culturarte tenha experimentado de forma individual
o momento de nascimento do grupo; e por mais que exista uma memória coletiva sobre o
surgimento do grupo – as aspirações, os objetivos e as vontades de materializá-lo – o
nascimento do evento teve proporções subjetivas no imaginário de cada um. Para Valdelicio
Barreto, era a oportunidade de mostrar suas músicas se apresentando no palco de uma festa.
Para Welington Oliveira, foi uma alternativa de espaço de lazer. Já para Antônio Carlos, foi
uma forma de ressignificação da cultura local. Cada um teve anseios e experimentou o
processo de formação do grupo e do evento também de uma forma específica.
Em meio às memórias coletivas sustentadas, para além das subjetividades, há a ideia
que a Cantoria carregava em sua essência um caráter de luta e resistência na perspectiva da
transformação social. Mesmo que o Culturarte tenha sido criado em 1990, em um período
politicamente democrático, tanto a fixação do grupo, quanto a materialização das ideias do
evento, passaram por tensões. Antônio Régie aponta que,

inicialmente as pessoas ligadas a arte e a cultura, principalmente da região,


acharam bom a formação de um grupo cultural. Mas outras pessoas, não.
Porque têm umas restrições, né?! As pessoas ligadas à igreja conservadora, à

191
SANTOS, Welington Oliveira. Welington Oliveira Santos: depoimento I [jan. 2017]. Entrevistadora: Larissa
Godinho Martins dos Santos. São Gabriel-Ba, 2017. 1 arquivo mp3 (1 h. 03min. e 46 seg.). Entrevista concedida
para pesquisa histórica.
192
MONTENEGRO, Antonio Torres. “Travessias e Desafios”. Retirado em;
http://www.revista.ufpe.br/revistaclio/index.php/revista/article/viewFile/106/78. 2011. Acessado em 10/09/2016.
p.7.
73

elite conservadora, viu como um grupo de jovens rebeldes, maconheiros.


Sempre teve essa conotação de preguiçosos. Porque toda mudança ela causa
impacto, né?! Então, a partir daí, algumas pessoas de pensamento mais
conservador não enxergou com bons olhos. Mas outras pessoas viram com
bons olhos o movimento social, político e cultural. Mas sem dúvidas para a
maioria da população era um movimento avulso, um movimento sem
interesse nenhum, de preguiçosos, de um bando de baderneiros.
Principalmente, pessoas ligadas ao grupo político que desde a emancipação
domina São Gabriel.193

A memória apresentada acima denuncia a perseguição sofrida tanto pelo Culturarte,


quanto pelo MAC e JUPP por parte da “elite política” de São Gabriel. Segundo o
entrevistado, esse grupo controlava São Gabriel, desde antes da emancipação da
cidade.194Para ele, parte da população discriminou o novo grupo e a festa que estava sendo
planejada, muito por conta de um preconceito em relação àqueles jovens e por já existir essa
conotação de que os grupos de jovens que se organizaram na cidade estavam ligados à
vagabundagem e às drogas. É possível que essa percepção tenha vindo de ideias dos grandes
centros que repercutiram no interior, principalmente, porque a cidade ainda estava “presa” a
muitos costumes conservadores.
Além da relação com o MAC, associando-o ao uso de drogas, às ideologias e escolhas
partidárias de seus membros, o Culturarte, segundo os entrevistados, foi bastante influenciado
pelos jovens do JUPP. Isso contribuiu muito para que o Culturarte fosse perseguido. A
maioria dos seus membros estava ligada ao Partido dos Trabalhadores (PT) e ao Partido
Comunista do Brasil (PC do B). De acordo com Welington Oliveira, a influência do JUPP e
do MAC

[...] tinha um peso enorme, o fato de a gente gostar disso [ideias e estilos do
MAC e JUPP]. A gente já passava a ser considerado maconheiro,
cachaceiro. Apesar de eu estar com 48, na época do MAC eu ainda era muito
criança, em 1979 eu estava com dez anos [...] mas era essa influência. Mas
era uma influência no tipo de música e um pessoal mais crítico que também
não acompanhava a corrente política majoritária. Ia para o PC do B ou para o
PT. Então, o fato de ser PC do B ou PT em São Gabriel, significava ser

193
FIGUEIREDO, Antônio Régie Evaristo de. Antônio Régie Evaristo de Figueiredo: depoimento I [mar. 2013].
Entrevistadora: Larissa Godinho Martins dos Santos. São Gabriel-Ba, 2013. 1 arquivo mp3 (20 min.). Entrevista
concedida para pesquisa histórica.
194
Em 1978 o vereador Edmário Eduão da ARENA, com o apoio do Deputado estadual Edvaldo Lopes também
da ARENA, passou a buscar a emancipação do município de São Gabriel. O projeto de lei nº 4842/78 foi feito
em nome do deputado, criando o município. Porém, por erros de dados do IBGE o projeto não se valida.In:
Projeto de lei nº 4842/78 – Arquivo da câmara municipal de São Gabriel. Isso aponta que os políticos que
estavam envolvidos no projeto de emancipação e que possuíam poder na região eram políticos de direita, ligados
ao regime militar.
74

maconheiro e as vezes não era. Mas é por conta do movimento que se


constituiu, era uma forma do pessoal manter o curral.195

Diante as palavras do entrevistado, eles foram influenciados por estilos musicais


alternativos, a maioria com caráter de protesto, que o MAC lhes “apresentou”. Também foram
influenciados por ideais políticos defendidos por grande parte dos membros do JUPP, que
tinham uma aproximação com os partidos de esquerda. Essas influências poderiam, em meio a
população, definir as características do grupo Culturarte, pois seguir esses ideais políticos e
um estilo vida alternativos, que subvertia a normatividade social, facilmente poderia levar os
jovens a serem associados a vagabundos, comunistas e maconheiros.
Esses adjetivos foram modificados com o passar dos anos. Em alguns momentos,
tiveram um peso maior do que em outros, mas até os dias atuais, numa cidade interiorana
como São Gabriel, os jovens que são denominados como maconheiros ou vagabundos, são
vistos como uma espécie de escória social. Segundo a memória de Welington Oliveira,
inicialmente, foi dessa forma pejorativa que foram vistos por uma parcela da população.
Algumas frações de jovens de São Gabriel não se acomodaram diante do autoritarismo
de figuras locais ligadas ao regime militar, processo histórico que oprimiu e tentou
desestabilizar vários grupos populares. Desde a década de 1970 pelas bandas daquele sertão, a
ousadia e “rebeldia” andou ao lado de alguns deles. Mesmo na década de 1990, em tempos de
“democracia”, no interior da Bahia, o que era novo e diferente sofria rejeição e levava certo
tempo para ser aceito. Segundo Welington Oliveira,

porque nossa base foi o MAC. Nossa base, assim, filosófica, artística,
cultural, foi o MAC, Movimento de Arte e Cultura. Mas era essa influência,
mas era uma influência que tinha um peso enorme. [...] Eu não fui nem do
MAC e do JUPP, mas eu recebi essa influência, influência política do JUPP
e essa influência artística e cultural do MAC, é como se a gente fosse assim,
o que ficou o que restou, além de alguns, além de alguns remanescentes,
como Netão, Zé das virgens, João Purcino, Toinho, que vieram desses
movimentos que estavam com a gente, e a gente que recebeu influência deles
e que seguia.196

A maior parte das memórias dos membros do Culturarte aponta para a importante base
filosófica, política e artística dos grupos MAC e JUPP na construção do grupo. Eles acreditam
que esses grupos tenham sido fundamentais para o processo de maturação de ideias
defendidas pelo Culturarte e pelo processo de construção e elaboração daCantoria. Talvez, a

195
SANTOS, Welington Oliveira. Welington Oliveira Santos: depoimento I [jan. 2017]. Entrevistadora: Larissa
Godinho Martins dos Santos. São Gabriel-Ba, 2017. 1 arquivo mp3 (1 h. 03min. e 46 seg.). Entrevista concedida
para pesquisa histórica.
196
Ibid.
75

militância da maioria dos jovens que formou o Culturarte tenha sido um dos grandes desafios
para conquistar um espaço dentro da cidade de São Gabriel.
As disputas por um espaço surgem a partir de práticas cotidianas que fazem com que
os sujeitos construam suas liberdades. Tais práticas fazem com que os indivíduos se
reapropriem do espaço organizado pelas técnicas da produção sociocultural, de modo que são
capazes de ressignificar os espaços urbanos. Os sujeitos inseridos nas cidades manipulam e
improvisam o espaço.197 Dessa forma, o ato de pensar e construir um evento na praça se
caracteriza como uma forma de reelaboração da cidade de São Gabriel, por parte do
Culturarte. Assim, para os entrevistados, a Cantoria era a continuidade, o resgate, a
ressignificação de um espaço de sociabilidade naquele sertão.

197
CERTEAU, Michel de. “A invenção do cotidiano I”: Artes de fazer. Petrópolis: Vozes, 1994. PP.174 e 175.
76

2.0 A CANTORIA E O COMEÇO DO CAMINHO: A ORGANIZAÇÃO, A FESTA E


PELEJAS PARA SEGUIR NA CAMINHADA

A narrativa construída sobre as primeiras edições da Cantoria neste capítulo é baseada


em narrativas orais, em poemas, fotos, cartazes e nas atas da Fundação Culturarte. Foi a partir
do lembrar, mas também do esquecer e do silenciar de mulheres e homens que construíram a
festa que revisitar o passado. As memórias de quem construiu com ideias, mãos e suor e que
viveu a Cantoria, são luzes utilizadas para delinear o passado que buscamos enxergar. A fonte
oral possibilitou acesso ao cotidiano de labuta, sonhos, conflitos e algazarras.
Neste capítulo, analisamos a partir das memórias dos entrevistados como foram
realizadas as primeiras Cantorias, as primeiras ideias trazidas pelo grupo Culturarte e como
foram organizados e divididos o trabalho de elaboração da festa. Além disso, buscamos
enxergar as táticas utilizadas pelo grupo fundador para ganhar espaço: o processo de
transformação do grupo em fundação e a busca por incentivos governamentais. Igualmente,
tentamos entender as tensões que foram provocadas com a materialização da Cantoria e como
aconteceu o início da aceitação da festa pelos habitantes da cidade.

2.1 Início da caminhada: primeiras ideias, organização da festa, trabalho coletivo e


labuta

O ano de1991 começou com muito trabalho coletivo e dedicação para os jovens do
Culturarte que se uniram e labutaram para a materialização da tão sonhada festa. Era
momento de fazer tudo muito bem pensado para evitar qualquer “poda” por parte de grupos
políticos da época e evitar também o estranhamento da população. Para isso, era necessário
buscar “dissociar” a militância partidária dos membros do grupo da festa.198 Segundo
Welington Oliveira,

[...] a gente estava assim, com um pouco de receio por conta do que tinha
acontecido com o JUPP e com o MAC [...]aí tinha esse receio, né?! A gente
tinha como base o MAC e o JUPP que foram perseguidos e a gente não
queria ser perseguido. Nada de ser ideológico. O Cultutrarte nasce assim, de
uma pluralidade incrível. Esta questão partidária, nos primeiros anos, a gente
trabalhou muito bem para não deixar influenciar a questão política. Porque a
questão política já tinha influenciado muito os grupos aqui em São Gabriel.
Assim, os grupos passaram a ter uma conotação pejorativa, por conta do

198
SANTOS, Welington Oliveira. Welington Oliveira Santos: depoimento I [jan. 2017]. Entrevistadora: Larissa
Godinho Martins dos Santos. São Gabriel-Ba, 2017. 1 arquivo mp3 (1 h. 03min. e 46 seg.). Entrevista concedida
para pesquisa histórica.
77

posicionamento político das pessoas. Então, nós tentamos montar um grupo


que não tivesse esse vínculo ideológico e aí, foi por aí que nasceu a Cantoria,
a festa.199

A fala de Welington Oliveira aponta para a tentativa de desassociar o evento que


organizavam dos seus posicionamentos políticos, narrativa que também apareceu nos
depoimentos de outros membros. Existia uma preocupação em transmitir para a população
uma “boa” imagem do grupo, numa tentativa de mostrar que o Culturarte não era partidário e
o evento não seria construído para se tornar palco de discursos eleitorais. Eles construíram um
discurso que parte de uma memória na qual o Culturarte e a Cantoria eram coisas separadas
de suas militâncias.
As influências do MAC e JUPP e as experiências em partidos de esquerda, na década
de 1980, evidenciam que a militância fazia parte da identidade desses sujeitos. A participação
em outro grupo cultural associado às drogas, como o MAC, o engajamento com partidos de
esquerda, as disputas nas eleições de 1988 e as tensões com políticos nos anos de 1980,
demonstra o perfil dos membros do Culturate no início de 1990. Portanto, é possível que hoje
eles queiram silenciar, talvez, de forma consciente, suas militâncias em relação à festa, na
tentativa de responder aos falatórios que existiram na cidade em relação ao grupo e a Cantoria
no passado, de que a festa era organizada por maconheiros de esquerda. Há na maioria das
falas uma preocupação em afirmar que o grupo não levantou bandeiras de partidos na festa,
ou usaram o palco para promover candidatos. Os membros do grupo, em suas falas tentaram
reafirmar que o Culturarte enquanto instituição não se posicionou em nenhum ano da década
de 1990 a favor de um partido ou candidatura de nenhum sujeito. Por outro lado, os sujeitos
que formavam o grupo tinham seus posicionamentos políticos para além do Culturarte, o que
serviu de elemento importante para falatórios e conflitos.
O grupo pode não ter se posicionado em relação a partidos na festa, mas é possível
notar que em alguns momentos, por mais que eles tenham buscado “sair” da militância, é
perceptível suas posições partidárias no processo de construção do evento. As ações dos
jovens do Culturarte e os elementos que foram pensados para constituir a festa, dizem muito
sobre o que eles defendiam e acreditavam. Consequentemente, a população entendeu aquele
evento com inclinações à esquerdas, voltados para a baderna e para a desordem.

199
SANTOS, Welington Oliveira. Welington Oliveira Santos: depoimento I [jan. 2017]. Entrevistadora: Larissa
Godinho Martins dos Santos. São Gabriel-Ba, 2017. 1 arquivo mp3 (1 h. 03min. e 46 seg.). Entrevista concedida
para pesquisa histórica.
78

Principalmente porque a maioria dos membros do grupo já militava em partidos como o


Partido dos Trabalhadores e o Partido Comunista do Brasil.
Diante disso, acreditamos que todas as ações dos sujeitos são políticas e ideológicas,
inclusive a organização de uma festa. Por mais que a Cantoria não tivesse vinculo com
partidos, as influências do MAC e do JUPP, as músicas que escolheram para serem tocadas, a
decoração que usaram e também as roupas que vestiam, representavam o posicionamento que
defendiam. Isso ficou visível em trechos das falas dos entrevistados e em fotografias da festa
como, por exemplo, detalhes da decoração da barraca, como as fotos de Che Guevara que era
e ainda é um símbolo da resistência. Além disso, o posicionamento do grupo ficava marcado
nos discursos de protesto de cantores que subiram no palco da Cantoria e as reuniões para
decidirem se iriam aceitar ou não patrocínio de determinado político, por conta da ideologia
política que ele seguia. Segundo Welington Oliveira,
Todos sugeriam, mas passava pela discussão coletiva. Isso era tão serio que
até assim, até de onde vinha o recurso tinha que ser discutido. “Mas a gente
aceita recurso de tal político?”“De tal instituição?” Reunia para decidir isso.
Isso aí trava um pouco, sabe?200

Welington Oliveira demonstrou o espíritode coletividade existente no grupo e o


cuidado que tinham em decidir tudo em conjunto. O entrevistado mostra que essa forma de
trabalhar travou um pouco o desenvolvimento da organização do grupo, já que várias reuniões
deveriam ser feitas para discutir passo a passo do processo. Isso, principalmente, quando se
tratava de questões que pudessem desviar os ideais dos fundadores como a aceitação de
patrocínios de políticos ou instituições que possuíam ações contrárias às que eles acreditavam.
Assim como colocou Bezerra,
As festas desempenham um importante papel na relação entre o homem e o
meio, pois estas manifestações sempre refletiram o modo como os grupos
sociais pensam, percebem e concebem seu ambiente, valorizam mais ou
menos certos lugares.201

A partir da fala de Welington e dialogando com Bezerra, entendemos que as


manifestações culturais refletem o pensar dos grupos sociais e as suas relações com o meio
em que estão inseridos. No caso da Cantoria, acreditamos que seus símbolos e sua
organização transmitiram o modo como seus organizadores, o grupo Culturarte, pensavam e

200
SANTOS, Welington Oliveira. Welington Oliveira Santos: depoimento I [jan. 2017]. Entrevistadora: Larissa
Godinho Martins dos Santos. São Gabriel-Ba, 2017. 1 arquivo mp3 (1 h. 03min. e 46 seg.). Entrevista concedida
para pesquisa histórica.
201
BEZERRA, Amélia Cristina Alves. “Festa e cidade”: entrelaçamentos e proximidades. ESPAÇO E
CULTURA, UERJ, RJ, N. 23, P. 7-18, JAN./JUN. DE 2008. PP. 7 e 8.
79

percebiam o mundo e também a interação de outros participantes. A Cantoria demonstrou a


importância de valorizar lugares, priorizando o sertão, o sertanejo e a sua musicalidade.
Logo na primeira Cantoria, a festa se tornou espaço de críticas aos grupos políticos da
cidade. Um dos cantadores contratados, Cal Alves, desabafou, no “palco” da Cantoria, sobre o
abandono e o abuso de poder de grupos políticos que por décadas perseguiam os jovens que
buscavam usar a arte para transformar. A fala de Cal Alves, que não era de São Gabriel,
naquela noite de cantoria, era a reprodução das falas dos membros do grupo que se
silenciaram em nome da construção da Cantoria.202 Para Welington Oliveira:
A gente era perseguido não pelo fato de fazer parte da Fundação Culturarte,
mas fora da Fundação, a gente era militante, militante político e aí a gente
fazia muita zuada. Então, existiu perseguição e é essa coisa, quem é contra é
tipo bandido, bandido assim, maconheiro, por exemplo, mas não porque
fazia parte da Fundação, mas por conta da nossa trajetória anterior, porque a
maioria dos que faziam parte da Fundação eram militantes de oposição.203

Welington Oliveira acredita que o Culturarte foi perseguido por políticos da situação e
por pessoas da população que os apoiavam. Para Welington, ser militante de esquerda em São
Gabriel era estar diretamente associado a uma imagem negativa. Por isso ele acredita que o
problema do preconceito e da perseguição ao Culturarte se deu por conta, principalmente, dos
posicionamentos políticos dos membros. Na narrativa acima, o entrevistado apontou que eles
procuraram trabalhar bem as questões políticas dentro do grupo para evitar que fossem
perseguidos como outros grupos o foram em outros tempos. Entretanto, apesar da censura,
eles conseguiram comunicar seus posicionamentos político e ideológico.
Os membros do grupo afirmaram que mesmo com todos os cuidados que tiveram para
não serem marginalizados, não tiveram sucesso, pois circulou na cidade uma má impressão
sobre eles. Na fala de Welington, ele faz questão de frisar que a perseguição não era em
relação à fundação, o que mostra a preocupação dos entrevistados, atualmente, de reforçar
uma imagem positiva da Fundação Culturarte que em alguns momentos foi contestada ou
estigmatizada. No momento das entrevistas, para vários membros do grupo, foi encarado
como um momento de responder a críticas, acusações e falatórios que foram lançados sobre
eles naquela época. Por conta disso, há uma preocupação em analisar os significados possíveis
da construção memorial dos membros do grupo e demais entrevistados. Isso possibilita
entender até que ponto a população e os políticos perseguiram e marginalizaram esses jovens,

202
SANTOS, Welington Oliveira. Welington Oliveira Santos: depoimento I [jan. 2017]. Entrevistadora: Larissa
Godinho Martins dos Santos. São Gabriel-Ba, 2017. 1 arquivo mp3 (1 h. 03min. e 46 seg.). Entrevista concedida
para pesquisa histórica.
203
Ibid.
80

quais as motivações para tais perseguições e até que ponto Culturarte reagiu, cedeu e/ou
dialogou com a sociedade.
Para a materialização da festa, o trabalho coletivo desenvolvido pelo grupo era a
arrecadação de fundos, a elaboração de cartazes, a realização de contatos com os músicos, a
organização das bebidas e comidas, a coleta, na roça, de estacas de pau para montar a barraca,
cavar os buracos no chão para fixar as estacas da barraca e a compra de palhas. 204 Eles
procuraram vários meios de arrecadar fundos, pois, segundo os entrevistados, não tinham
dinheiro. Sem recursos financeiros, sabiam que nada se realizaria. Então, mesmo com as
divergências políticas, os jovens do grupo procuraram o apoio da prefeitura de São Gabriel.
Segundo Wellington Oliveira, eles buscaram outras táticas para serem aceitos, além da
tentativa de separar a Cantoria da militância, recorrendo ao poder público. O diálogo com o
poder público foi uma forma de tentar pressioná-lo a valorizar as manifestações culturais da
cidade que por muito tempo foram ignoradas ou reprimidas pelas autoridades políticas, como
nos casos do MAC e JUPP. Além disso, esse artifício era também uma tática de
sobrevivência. A aproximação com os governantes, além de possibilitar a captação de
recursos, facilitava, por não irem para o embate direto, a aceitação da população.205
O prefeito da época da primeira Cantoria era Raimundo Pereira Rocha, do Partido
Trabalhista Brasileiro (PTB). Nas eleições de 1988, na qual ele foi eleito, o grupo Culturarte
ainda não existia, mas os jovens e o prefeito já tinham se encontrado em outras ocasiões. Nas
eleições de 1988, como foi citado no primeiro capítulo, dois membros do Culturarte
concorreram às eleições com Raimundo Pereira Rocha. José Carlos Dourado das Virgens – Zé
das Virgens – candidato a prefeito e Antonio Carlos Nunes da Gama – Toinho Vice. Ofato
contribuiu para relacionar a festa à política local.206
Mesmo sabendo que a maior parte dos membros do Culturarte eram de partidos de
esquerda e que foram seus opositores na eleição passada, Raimundo Pereira Rocha resolveu
patrocinar a primeira Cantoria. O cartaz de anúncio da festa traz a prefeitura de São Gabriel
entre os nomes dos patrocinadores, o que confirma que houve algum tipo de colaboração para

204
FILHO, Valdelício Barreto Vaz. Valdelício Barreto Vaz Filho: depoimento I [dez. 2016]. Entrevistadora:
Larissa Godinho Martins dos Santos. São Gabriel-Ba, 2016. 1 arquivo mp3 (51 min. e 54 seg.). Entrevista
concedida para pesquisa histórica.
205
Ibid.
206
PEREIRA, João Purcino; PEREIRA, Leonellia. Terra dos arcanjos. Historiografia da cidade de São Gabriel-
Ba. 1ª edição: Print Fox, 2010. Pp. 124 e 125.
81

a realização do evento. Entretanto, a ajuda deve ter sido pequena, uma vez que não se refletiu
na estrutura da festa.207
Raimundo Pereira Rocha, o Raimundinho como era conhecido, era irmão de Carlos
Simões – apelidado de Jacaré – e de Jerônimo, artistas e amigos de alguns membros do
Culturarte que foram atrações da primeira edição da festa. Esse fato pode ter contribuído para
que o prefeito colaborasse com o evento. Além da imagem de Jerônimo e, sobretudo, de
Jacaré como possíveis mediadores entre o prefeito e o grupo para conseguir apoio, uma
manobra que pode ter ajudado ainda mais, tanto para o apoio, quanto para uma minimização
de conflitos, foi o convite do grupo Culturarte ao poeta da Jurema, Dimas Pereira, 208 que era
pai de Jacaré, Jerônimo e do prefeito Raimundinho. Seu Dimas era um dos moradores mais
respeitados de São Gabriel. Segundo Welington Oliveira,

entrou seu Dimas, que era o pai de Raimundinho, o poeta da Jurema, que era
pai de dois músicos que também apresentaram na primeira Cantoria, Jacaré,
que na época era roqueiro, e Jerônimo. Então, surgiu essa ideia do resgate. E
também uma forma de desconstruir aquela imagem que se fazia de todo
mundo do movimento cultural de São Gabriel. Tinha uma conotação
pejorativa: “é movimento de maconheiro, de cachaceiro”. Como a gente
queria fazer uma coisa diferente, já para não ter esse embate e poder seguir,
então a gente começou a valorizar isso e deu um respaldo muito grande ao
grupo. Trazer uma pessoa de tradição, filho nativo mesmo de São Gabriel,
acho que é filho de um dos primeiros fundadores, e fazer uma apresentação
na praça. Então, vai se falar o que de um grupo como esse? Um grupo de
baderna? Não! Talvez se a gente só colocasse Jacaré com o rock, que ele até
quebrou o violão na primeira cantoria (risos). Mas aí com a presença de seu
Dimas, acho que foi assim um peso importante nessa coisa, aí a partir daí
começou essa coisa da valorização, né?209

Para o entrevistado, a imagem de Dimas Pereira foi um ponto importante para a


primeira edição da Cantoria. A disponibilidade dele em participar da Cantoria, para além de
um apoio em relação ao prefeito e políticos local, deu uma “cobertura” aos jovens para que o

207
SANTOS, Welington Oliveira. Welington Oliveira Santos: depoimento I [jan. 2017]. Entrevistadora: Larissa
Godinho Martins dos Santos. São Gabriel-Ba, 2017. 1 arquivo mp3 (1 h. 03min. e 46 seg.). Entrevista concedida
para pesquisa histórica.
208
Dimas Pereira Rochaé neto de um dos primeiros casais que habitaram no território gabrielense, Antônio
Pereira Rocha e Hermenegilda Ana Rocha. (Dimas Pereira, o poeta da jurema. Org: Lívia Ramaiana. Editora,
Print Fox.) Nasceu em São Gabriel em 26 de julho de 1925 Seu Dimas escreveu várias poesias e ficou conhecido
como peta da Jurema. Jurema é o nome dado a território que fica no alto próximo a cidade de São Gabriel.
Faleceu em 31 de agosto de 1991, no mesmo ano da primeira edição da Cantoria. (PEREIRA, 2010. P. 35)
209
SANTOS, Welington Oliveira. Welington Oliveira Santos: depoimento I [jan. 2017]. Entrevistadora: Larissa
Godinho Martins dos Santos. São Gabriel-Ba, 2017. 1 arquivo mp3 (1 h. 03min. e 46 seg.). Entrevista concedida
para pesquisa histórica.
82

evento fosse realizado. A narrativa de Welington Oliveira aponta para uma espécie de tática,
para que eles não fossem malvistos pela população, como aconteceu com os grupos anteriores
ao Culturarte. A tática partia da perspectiva de que a participação de um homem tão
respeitado quanto seu Dimas daria ao evento uma conotação positiva, de seriedade.210 Por
outro lado, nas falas de outros entrevistados, seu Dimas não foi só convidado apenas como
uma manobra de aceitação, mas também por conta da importância cultural que ele
representava para São Gabriel e para aqueles jovens do Culturarte.
Mesmo que todos os entrevistados recordem de seu Dimas de forma positiva em
relação à Cantoria e ao grupo, ao analisarmos seus poemas nas décadas de 1970 e 1980, é
possível perceber que a relação de alguns jovens com o poeta não tenha sido tão harmônica.
Alguns dos poemas criticavam os cabeludos, a guerrilha e o movimento de esquerda, no
contexto em que alguns jovens do Culturarte se articulavam para formar o MAC.
Em vista disto, podemos pensar que os membros do Culturarte entenderam que na
década de 1970 o poeta partilhava de uma visão de mundo que criticava práticas mudancistas,
mas com alguma aderência ao anticomunismo. No entanto, independente do teor de suas
críticas, ele ainda era uma referência na cultura na cidade. Isso porque, como apontou
Wellington acima, na primeira edição da festa, a figura de seu Dimas foi importante para
marcá-la positivamente.
No que se refere aos poemas de seu Dimas, a maior parte da população só teve acesso
a muitos deles recentemente, em função da publicação, em 2010, da publicação do livro
Dimas Pereira, o poeta da Jurema, organizado por sua filha, Lívia Ramaiana. Segue um dos
poemas publicados na coletânea:

A modernagem de hoje
Que está na onda avançada,
Com sua moda escandalosa,
Sua vida depravada.
Quando reúne a maloca
É aquele papo profundo,
Se papo fosse vantagem,
Sapo mandava no mundo.
Barba e cabelos cumpridos,
Ficam nas equinas em pé,
Fazendo gestos com os lábios
E chupando picolé.[...]211

210
SANTOS, Welington Oliveira. Welington Oliveira Santos: depoimento I [jan. 2017]. Entrevistadora: Larissa
Godinho Martins dos Santos. São Gabriel-Ba, 2017. 1 arquivo mp3 (1 h. 03min. e 46 seg.). Entrevista concedida
para pesquisa histórica.
211
ROCHA, Dimas pereira. “Dimas Pereira, o poeta da Jurema”. Org: Lívia Ramaiana. Crítica aos
cabeludos,1977. P. 29. Ed. Print Fox. Irecê.
83

O trecho selecionado é parte do poema intitulado “Crítica aos cabeludos”, escrito em


1977. O autor faz uma crítica à estética e comportamentos dos jovens daquele período, pois
eles seriam frutos da “modernagem” que invadiu a pequena e tranquila vila de São Gabriel.
Ele não estava se referindo ao MAC, pois o grupo só teve início em 1979, mas é provável que
jovens do MAC já usassem essa estética antes de criarem o grupo, portanto, poderiam estar
entre os cabeludos que tanto incomodavam seu Dimas. Seus poemas dos fins das décadas de
1970 e início de 1980 foram escritos, em sua grande maioria, para criticar a modernidade e a
mudança de hábitos dos mais novos. Para ele, as transformações que estavam acontecendo em
São Gabriel eram ruins, porque elas, supostamente, aumentavam a “vadiagem”. Ele era um
crítico ferrenho de “alguns” comportamentos de jovens daquele período. 212
Seu Dimas, em 1990, na Cantoria, certamente se identificou com o caráter de resgate
da festa, com o tipo de música, com as escolhas estéticas relacionadas ao sertão e a roça e
com a prosa dos meninos, com a memória de um sertão de musicalidade. Todos esses
elementos fizeram com que ele socializasse canções e poesias com alguns jovens que foram
do MAC e que viveram os anos citados no poema.
Por conseguinte, é provável que entre a questão política e a relação familiar,
Raimundinho tenha optado por deixar de lado as disputas partidárias e ajudado na construção
da Cantoria, já que contribuir para a realização do evento poderia lhe trazer mais pontos
positivos do que negativos. Porém, é importante entender que, para além da pessoa do
prefeito, muitos outros políticos aliados ao seu grupo, como comerciantes locais que também
o apoiavam, não contribuíram com a festa. Pelo contrário, ajudaram a propagar preconceitos
de que a Cantoria não passava de baderna de jovens desocupados.213
Quando os membros do grupo narram que nos primeiros anos os prefeitos deram
ajudas pequenas, podemos pensar que as colaborações não tenham sido tanto quanto eles
esperavam, já que a Cantoria era um dos poucos eventos que acontecia na cidade. De todo
modo, ajudando pouco ou muito, os entrevistados afirmaram que eles colocavam no cartaz

212
ROCHA, Dimas pereira. “Dimas Pereira, o poeta da Jurema”. Org: Lívia Ramaiana. Ed. Print Fox. Irecê.
213
FIGUEIREDO, Antônio Régie Evaristo de. Antônio Régie Evaristo de Figueiredo: depoimento I [mar. 2013].
Entrevistadora: Larissa Godinho Martins dos Santos. São Gabriel-Ba, 2013. 1 arquivo mp3 (20 min.). Entrevista
concedida para pesquisa histórica.
84

como patrocinador qualquer órgão, instituição, comércio ou pessoa que ajudasse a realização
da festa. 214
Percebemos que a maioria dos entrevistados preferiram não expor muito suas opiniões
em relação às pessoas que estavam assumindo os cargos públicos na época, certamente,
porque esses nomes ainda fazem parte do jogo político atual. É possível que tal
posicionamento seja para não gerar mais conflitos. Entretanto, conseguimos identificar
algumas denúncias, queixas e conflitos com prefeitos em algumas narrativas. Sobre os anos
posteriores à primeira edição da Cantoria, as narrativas irão apresentar embates com o prefeito
Edes José da Rocha, por exemplo.
Por mais rebelde que o grupo tenha sido, tendo enfrentado alguns políticos locais, ele
negociou e foi moderado em alguns aspectos como, por exemplo, aceitar ajuda dos prefeitos,
mesmo sendo uma ajuda mínima, e divulgando o apoio da prefeitura municipal no cartaz. É
provável que essa relação de negociação tenha sido uma tática para desvincular a imagem da
festa da imagem de militantes de esquerda que os fundadores carregavam e também uma
forma de conseguir mais fundos. Ao analisarmos as falas dos participantes do Culturarte
percebemos a preocupação em justificar que a prefeitura não ajudava da forma que deveria e
que as ajudas apareciam a partir da relação de algum membro do grupo com o prefeito.215
Como precisavam de mais dinheiro, eles passavam de porta em porta, nas casas
comerciais da cidade e no comércio de Irecê, em busca de recursos para a realização do
evento. A coleta de fundos foi realizada coletivamente, mediante o empenho dos membros de
passarem a “cuia” 216. É assim que o entrevistado Welington Oliveira define: “foi tudo a base
da cuia” 217. Contaram também com a boa vontade de algumas pessoas, atentas e curiosas, que
pararam alguns minutos para ouvi-los divulgar a Cantoria. Contudo, a maior parte da

214
SANTOS, Welington Oliveira. Welington Oliveira Santos: depoimento I [jan. 2017]. Entrevistadora: Larissa
Godinho Martins dos Santos. São Gabriel-Ba, 2017. 1 arquivo mp3 (1 h. 03min. e 46 seg.). Entrevista concedida
para pesquisa histórica.
215
FILHO, Valdelício Barreto Vaz. Valdelício Barreto Vaz Filho: depoimento I [dez. 2016]. Entrevistadora:
Larissa Godinho Martins dos Santos. São Gabriel-Ba, 2016. 1 arquivo mp3 (51 min. e 54 seg.). Entrevista
concedida para pesquisa histórica.
216
Cuia é um tipo de “vaso feito do fruto maduro da cuieira, depois de esvaziado do miolo. Uma espécie de
concha utilizada para diversas aplicações, desde uso para medidas de produtos a uso como prato ou utensílio
para acondicionar produto.” http://www.dicionarioinformal.com.br/cuia/acesso em 03/05/2016. Em alguns
recantos do sertão é chamada também de cabaceira. Existe uma proximidade entre passar a cuia e pedir esmolas,
remetendo à expressão “com a cuia na mão”.Deste modo,a cuia virou símbolo de recipiente apropriado para
arrecadar dinheiro, por isso a expressão de Wellington de que a festa foi realizada a base da cuia. – Grifos nosso.
217
SANTOS, Welington Oliveira. Welington Oliveira Santos: depoimento I [jan. 2017]. Entrevistadora: Larissa
Godinho Martins dos Santos. São Gabriel-Ba, 2017. 1 arquivo mp3 (1 h. 03min. e 46 seg.). Entrevista concedida
para pesquisa histórica.
85

população estava descrente no evento, já que uns acharam logo que seria uma baderna, outros
acharam graça, mas por conhecer os meninos – já que na cidade todos se conheciam –,
acabaram por ajudar de alguma maneira. Foram poucas as pessoas que colaboraram, mas para
os entrevistados houve, sim, quem acreditasse neles, mesmo que eventualmente, algumas
ajudas tenham disso consequência da sensibilidade pelo esforço e trabalho coletivo.218
Um cartaz foi elaborado trazendo a programação do evento. Ele foi impresso e colado
pela cidade. Nele, os jovens divulgaram os dois dias de festa que aconteceria entre 20 e 21 de
abril de 1991. O cartaz trazia a programação e anunciava as atrações que começariam a partir
das 15:00 horas. A programação contava com a exibição de vídeos, a apresentação de dança e
teatro, rodas de capoeira e shows de cantadores, no turno da noite. Nessa primeira edição, a
Cantoria, como foi citado, contou com a presença de seu Dimas Pereira – o poeta da Jurema
que já estava adoentado e fragilizado, vindo a falecer no mesmo ano. Contou, também, com a
participação de Dinho Oliveira, Geronias, Gerônimo e Jacaré e alguns membros do Culturarte
como Ariovaldo Santos (Ló), Valdelício Barreto e Antônio Carlos ( Toinho Galego).219

Cartaz da I Cantoria em São Gabriel. Ano, 1991. Retirado do acervo de fotografias da Fundação
Culturarte.

218
SANTOS, Welington Oliveira. Welington Oliveira Santos: depoimento I [jan. 2017]. Entrevistadora: Larissa
Godinho Martins dos Santos. São Gabriel-Ba, 2017. 1 arquivo mp3 (1 h. 03min. e 46 seg.). Entrevista concedida
para pesquisa histórica.
219
Cartaz da primeira cantoria de São Gabriel de 1991. Retirado do acervo de fotografias da Fundação
Culturarte. Acesso em 10/08/2014.
86

O cartaz foi elaborado pelos membros do Culturarte e impresso com apoio dos
patrocinadores. Podemos perceber que eles anunciaram com destaque apenas o dia 21 de
abril, mas logo abaixo segue uma programação desde o dia 20 de abril que anuncia, além dos
shows, uma diversidade de manifestações artísticas.
Feito de forma simples, o cartaz trouxe apenas a cor azul. Para demarcar o caráter da
festa, eles escolheram como ilustração o desenho de um cantador com a viola, o que
demonstra a preocupação com os ritmos que a Cantoria apresentaria. Esse recurso foi uma
forma de mostrar que o cantador, a viola e as canções eram os principais símbolos da festa. O
cabelo alto, em estilo black220, do cantador ilustrado no desenho representa a imagem de um
homem negro, o que reflete também a preocupação do grupo com as questões raciais.221
A praça principal, local onde aconteceu a festa, fica na parte central da cidade, e era o
maior ponto de vendas e onde estavam localizadas as principais casas comerciais da época. Os
jovens do Culturarte tiveram a “ousadia” de montar o reboque de caminhão exatamente ali.
Durante todo o dia, eles se dedicaram aos preparativos, causando curiosidade e inquietação a
boa parte da população. Como vimos no cartaz e de acordo com os relatos, apenas alguns
comerciantes colaboraram, isso porque a grande maioria era contra a realização da festa.
O vídeo apresentado no primeiro dia de Cantoria foi baseado nos poemas de João
Cabral de Melo Neto, “Morte e vida Severina”, dirigido por Zelito Viana e lançado em
1977.222Ele narra a história de um sertanejo retirante que partiu para o litoral com o objetivo
de fugir da fome, da miséria e da opressão. O filme se aproxima muito da realidade do lugar
que a festa aconteceu. Em São Gabriel foi comum um grande índice de migração para os
grandes centros urbanos, em busca de melhorias de vida, já que a seca castigava há anos
aquela região.
Por seu turno, a peça teatral foi montada e apresentada em homenagem aos povos
indígenas, pelo fato de o Dia do Índio ter sido um dia antes da Cantoria e pela identificação
que a maioria do grupo tinha em relação à cultura indígena. É comum que, naquela região,

220
No capítulo anterior Valdelício Barreto relatou sobre os cabelos Black que usavam quando eram ainda do
MAC. Naquele período as influência das questões raciais começavam a ganhar espaço através do movimento dos
Panteras Negras e da luta pelos direitos civis nos EUA, que foram bastante influenciados pela atmosfera da
contracultura. É importante frisar também o caso do membro do MAC, José Resende que segundo a entrevistada
Jandira Pereira, utilizou nos anos de 1970 e 1980 elementos estéticos que afirmava sua identidade negra, e para a
entrevistada, era criticado, principalmente, por conta da sua cor da pele. Segundo os entrevistados, estes sujeitos
do MAC e suas ideias agregaram-se ao Culturarte em 1990.
221
Aqui podemos pensar as contradições que marcam qualquer movimento político. O mesmo grupo político
que, talvez, estava preocupado em afirmar uma estética negra e disputar o campo racial, naturalizava sentimentos
racistas que qualificam de “ruins” cabelos crespos. O que explica essa contradição é justamente o fato de o
racismo ser estrutural, que faz com que as pessoas naturalizem expressões racistas.
222
Retirado de http://www.adorocinema.com/filmes/filme-242121/ . Acesso em 01/08/2017.
87

muitos tenham avós e bisavós indígenas, já que os sertões foram povoados por muitos
deles.223Os sentidos das duas escolhas, tanto do filme, quanto do tema da peça teatral, falam
muito sobre o que eles queriam com a festa: trazer para a arte coisas que faziam parte do
quotidiano. No cartaz, as representações do negro, da migração do sertanejo em busca de
trabalho e dos povos indígenas, atravessaram a primeira edição da Cantoria, apresentando o
que ela significava enquanto movimento cultural para seus criadores.
Como mostra o cartaz, os shows musicais como foram compostos em sua maioria
pelos próprios componentes do Culturarte e alguns artistas da cidade e região. Além da
programação, a divulgação informava também os nomes dos seus patrocinadores que ocupou
a maior parte do anúncio. Entre os patrocinadores encontramos estabelecimentos comerciais
de Irecê e apenas alguns de São Gabriel, além de nomes de cidadãos comuns. Segundo
Welington, as pessoas

[...] davam 20, 10, 30, 40 reais, de acordo com a capacidade, mas depois da
primeira, que eles perceberam e a gente fez tudo certinho desde a primeira,
quem deu 10 reais, quem deu 20 o nome saiu no cartaz como patrocinador
[...] no cartaz ia o nome do cara, até da pessoa que deu como pessoa física e
ai eu acho que isso ai causou um impacto positivo, é a coisa da transparência
[...]224

De acordo com a narrativa acima, algumas pessoas, que não eram comerciantes ou não
estavam ligadas a instituições, também fizeram doações e, mesmo que tenha sido em pequena
quantia, tiveram os nomes gravados no cartaz, juntamente com os nomes dos comércios e
órgãos que patrocinaram. No cartaz, observamos ainda entre os patrocinadores o nome de
Netão. Ele, como já foi mencionado, era de família abastada e também colaborou
financeiramente para a materialização do evento e, mesmo fazendo parte do grupo, seu nome
foi para o cartaz.
Como eles não conseguiram muito recurso com a arrecadação de fundos, tiveram de
pensar em outros meios para aumentar a renda. Pensaram, então, na construção de uma
barraca, para vender bebidas e comidas, que seria administrada através do revezamento dos

223
Ata da assembleia geral extraordinária da Fundação Culturarte. Realizada em 05/04/ 1993 no Salão
Comunitário - Praça da Matriz, s/n em São Gabriel-Ba. Retirada do arquivo da Fundação Culturarte. Acesso em
12/09/2012.
224
SANTOS, Welington Oliveira. Welington Oliveira Santos: depoimento I [jan. 2017]. Entrevistadora: Larissa
Godinho Martins dos Santos. São Gabriel-Ba, 2017. 1 arquivo mp3 (1 h. 03min. e 46 seg.). Entrevista concedida
para pesquisa histórica.
88

próprios membros do Culturarte.225 A ideia da barraca era trabalhosa, mas era uma boa forma
de conseguir mais recursos para custear as despesas da festa. Segundo Valdelício Barreto,

Fizemos uma barraca de palha de coco. Inclusive, essa barraca, mesmo


cantando, quem cuidou dessa barraca foi eu e Aimá. Era cantor e ao mesmo
tempo barraqueiro (risos). Aí a gente colocou a barraca e tal e ficamos lá[...]
a gente fez essa barraca e fez a primeira Cantoria, mas a barraca ocorreu
tudo bem e o objetivo da barraca era para puder ajudar na despesa da
programação e tal.226

A barraca era vista como mais um risco para aquele projeto que tinha muitos motivos
para não dar certo. Foi mais uma aposta que os fundadores fizeram para conseguir
materializar o sonho do evento. As funções foram divididas entre quem iria ficar controlando
as vendas, comprar as bebidas, organizar a decoração da barraca etc. Mas o momento de
feitura da barraca aconteceu da forma que o grupo primava: coletivamente. Como afirmou
Welington Oliveira, “Tudo em regime de mutirão. Vai fazer a barraca? Vinha todo
mundo.”227 Até o artista Dinho Oliveira, que foi contratado para a primeira cantoria,
participou da construção da barraca. Caiu caatinga adentro a procura de “pau” para a
construção das estruturas do bar da Cantoria.228 Valdelício Barreto narrou um dos episódios
que lhe marcou a memória no momento de construção da barraca.229

para fazer a barraca a gente fazia de palha de coco, hoje não, você coloca um
toldo assim e já é uma barraca. Naquela época não. A gente tinha que fazer
de palha de coco e fechar, rodeava todinha e deixava só a porta de entrada,
né? Para controlar o balcão e tal. E aí, a gente foi comprar as palhas lá em
seu Nicolino.Quando nós chegamos lá, aí nós contamos as palhas, nós não,
ele. Ele contou as palhas e deu cento e uma palhas e aí ele tirou a palha e
jogou no chão (risos). Aí falamos: “não seu Nicolino, só sobrou uma. Para
que o senhor vai querer essa palha? Não vai secar? Não vai prestar”. Aí ele
falou: “se você quiser levar as cem leva, se não quiser, podem jogar no chão
todas e não precisa levar”. Que tal? (risos). Por causa de uma palha, até hoje
eu me recordo das palhas. Ele preferia perder as cem palhas, de vender, por
causa de uma que ficou. Aí nós trouxemos para cá. Aí compramos e mesmo
assim ele ficou com a palha dele, que tal? Ele não deu não (risos). Nem deu
a palha, nem deu os cocos que estavam no chão (risos). Velho ruim. Já
morreu.

225
FILHO, Valdelício Barreto Vaz. Valdelício Barreto Vaz Filho: depoimento I [dez. 2016]. Entrevistadora:
Larissa Godinho Martins dos Santos. São Gabriel-Ba, 2016. 1 arquivo mp3 (51 min. e 54 seg.). Entrevista
concedida para pesquisa histórica.
226
Ibid.
227
SANTOS, Welington Oliveira. Welington Oliveira Santos: depoimento I [jan. 2017]. Entrevistadora: Larissa
Godinho Martins dos Santos. São Gabriel-Ba, 2017. 1 arquivo mp3 (1 h. 03min. e 46 seg.). Entrevista concedida
para pesquisa histórica.
228
Ibid.
229
Ibid.
89

Valdelício Barreto considerou o trabalho coletivo e a busca por materiais para a


ornamentação da barraca um dos momentos mais marcantes da construção da primeira edição
da festa. O depoente qualificou negativamente Nicolino, o vendedor de palha e desenha de
maneira hostil a maneira como foram tratados em alguns momentos. Isso nos leva a pensar
que, se a atitude de Nicolino não era recorrente com as demais pessoas na cidade, sua ação
pode representar a falta de simpatia que uma parcela da população também tinha com os
membros do grupo. As memórias dos membros fundadores são construídas a partir da ideia de
que, assim como Nicolino, muitos outros “Nicolinos”, de alguma forma, desprezaram o
empenho dos jovens do Culturarte motivados por antipatia, desconfiança ou preconceito.
O Culturarte não possui fotos da primeira Cantoria. Portanto, não conseguimos
encontrar imagens da barraca que aparece na narrativa de Valdelício Barreto, As fotos mais
antigas que conseguimos encontrar são da terceira Cantoria. Na terceira edição do evento, a
arquitetura já não era feita somente de pau e palhas, mas pelas narrativas dos sujeitos
percebemos que muitos elementos ainda eram os mesmos. A partir da fotografia da terceira
edição da festa, podemos imaginar como era trabalhoso construí-la, especialmente no
primeiro ano da Cantoria.

Barraca da Fundação Culturarte na terceira Cantoria. 1993 . Acervo de Agnolia Rocha.

A barraca da terceira Cantoria já possuía lona para cobertura, mas ainda foram usadas
palhas e a estrutura ainda era de madeira. Na fotografia de 1993 aparecem algumas pessoas
que eram consumidores da barraca. Dentro dela, mais ao fundo, podemos observar os cartazes
90

que compuseram a decoração que, provavelmente, foram utilizados desde a primeira barraca.
Aparecem duas imagens de Che Guevara, de Charlie Chaplin e de Cazuza. Esses três
personagens podem representar os ideias de que o grupo se alimentava. Cazuza foi um cantor
e compositor rotulado de rebelde, polêmico e boêmio. O artista mesclou o Rock com velhos
sambistas cariocas, retomando composições de Noel Rosa. Adotou uma atitude de criticidade
aos poderes instituídos. A musicalidade e o uso da arte como forma de expressão crítica de
Cazuza dialogava com a proposta que o Culturarte trazia para a Cantoria. Charlie Chaplin, um
ator e produtor de filmes, ficou conhecido, principalmente, pelo seu filme Tempos Modernos
que traz uma crítica devastadora à modernização capitalista, que fazia das máquinas uma
extensão dos corpos dos operários, destruindo diferentes alteridades. Os elementos criticados
por Chaplin no filme dialogavam com o que o Culturarte imaginava, principalmente se
levarmos em consideração a experiência vivida pela região de Irecê, da avançada
modernizadora, citada no capitulo primeiro. Já Che Guevara, foi um líder guerrilheiro e um
dos grandes ícones de uma parte da juventude das décadas de 1980 e 1990. Ele simbolizava a
luta, a liberdade, a revolução.230 Che também pode ser pensado como um indicador de outro
caminho, de uma andança que desconsiderava a hegemonia modernizadora proposta pelos
EUA, apresentava-se como alternativa de pensar a latinidade no Brasil. É importante pontuar
a força dos ritmos latinos, caribenhos, jamaicanos, sul-americanos na formação musical dos
jovens da idade dos fundadores da Cantoria, pois eles ouviam Capinan, Gilberto Gil, Edson
Gomes e outros.
Com base nas personagens que eles elegeram para decorar a barraca, dá para fazer a
leitura de quais posicionamentos políticos defendiam, principalmente, a partir da imagem de
Che Guevara que desempenhou um importante papel junto aos grupos de esquerda, na luta
pela liberdade e contra o imperialismo. Sem dúvida, ele foi um ícone para os membros do
Culturarte que estavam alinhados aos partidos de esquerda.
A barraca exigiu bastante esforço dos jovens, pois eles não tinham experiência e ainda
assim conseguiram vender bem.231 O acesso à câmera fotográfica era difícil, mas todas as
poses possíveis foram feitas no filme da câmera de Fátima Oliveira. Em seguida, realizaram

230
Grifos nosso, escrito com base em biografias sobre as vidas das personagens. ANDERSON, Jon Lee Che
Guevara [recurso eletrônico]: uma biografia / Jon Lee Anderson; tradução M. H. C. Côrtes. – Rio de Janeiro:
Objetiva, 2012. recurso digital.BAZAIN, André. Charlie Chaplin/ André Bazin; prefácio de François Truffaut;
posfácio de Eric Rohmer; tradução de, André Talles. – Rio de Janeiro: Jorge Zahar. Ed., 2006.
http://cazuza.com.br/ acesso em 04/07/2017.
231
FILHO, Valdelício Barreto Vaz. Valdelício Barreto Vaz Filho: depoimento I [dez. 2016]. Entrevistadora:
Larissa Godinho Martins dos Santos. São Gabriel-Ba, 2016. 1 arquivo mp3 (51 min. e 54 seg.). Entrevista
concedida para pesquisa histórica.
91

uma vaquinha para a revelação das fotos. Para a tristeza dos fundadores, o filme queimou e
não restou uma só foto de recordação da primeira edição da Cantoria de São Gabriel. Fátima
Oliveira, a dona da câmera, é viúva de Nenga. Ambos participaram do MAC, mas no
momento da realização da primeira Cantoria ela não fazia parte do Culturarte, mas
simpatizava com o evento, de modo que pouco tempo depois da primeira edição, aderiu ao
grupo. Mesmo sem fotografias para representar as rememorações dos entrevistados,
certamente por ter sido a primeira, a Cantoria de 1991 é sempre a mais lembrada e citada nas
entrevistas. 232
As falas dos membros do Culturarte possuem, quase sempre, ao se referirem às ideias
gerais de construção do evento, uma sincronização. Elas se organizam e são transmitidas sob
a atmosfera de enfrentamentos com alguns grupos da cidade. Para eles, houve uma parcela da
população que estranhou o evento, muito por conta da personalidade e posicionamentos
políticos dos idealizadores e fundadores do projeto. Eles também trazem em suas memórias a
ideia de conflito entre uma classe desfavorecida – membros do grupo e simpatizantes – contra
um grupo dominante: políticos, comerciantes e as pessoas que alimentavam estranhamento
em relação à estética e estilo de vida das pessoas do Culturarte. É importante salientar que ao
lembrarem os conflitos, em muitos trechos das entrevistas, os depoentes lembraram que não
só as classes dominantes entranharam o novo projeto, pois muita gente de diferentes esferas
da sociedade também estranhou ou rejeitou a ideia da festa.
As tensões aparecem de forma mais acentuada nas narrativas no momento inicial de
labuta pela realização da Cantoria e nos fins dos anos de 1990, com a gestão do então prefeito
Edes Rocha. Entendemos a memória da rejeição da Cantoria nos anos iniciais como uma
memória marcante entre os membros do grupo. Em vista disso, questionamos de que forma os
entrevistados experimentaram o passado e transmitem suas experiências, escolhendo a
maneira que querem ser lembrados. Para pensarmos essas questões, não negligenciamos os
conflitos de memórias e os possíveis exageros, como a construção de memórias que os
coloquem em uma posição destaque para serem lembrados de forma gloriosa. Por isso, é
provável que a construção da memória de uma virada vitoriosa tenha surgido principalmente
na tentativa de registrar a história como acreditam que foi e deve ser lembrada. Os sujeitos
organizam suas memórias e lembranças a partir das suas relações com o vivido. Como
afirmou Portelli, as lembranças dos entrevistados são possibilidades entre o real e o

232
ROCHA, Itamá Glicério. Itamá Glicerio Rocha: depoimento I [Mai. 2017]. Entrevistadora: Larissa Godinho
Martins dos Santos. São Gabriel-Ba, 2017. 1 arquivo mp3 (17 min. e 37 seg. ). Entrevista concedida para
pesquisa histórica.
92

imaginário e a forma que cada indivíduo se relaciona com o fato define o horizonte de
expectativas sobre a história lembrada.233
Ao analisarmos as memórias narradas pelos entrevistados, foi necessário entender as
representações, a ficção, a autovalorização e as múltiplas emoções. São cuidados importantes
para que seja feita uma boa interpretação do vivido.234Para Alassair Thomson;

O processo de recordar é uma das principais formas de nos identificarmos


quando narramos uma história. Ao narrar uma história, identificamos o que
pensamos que éramos no passado, quem pensamos que somos no presente e
o que gostaríamos de ser. As histórias que relembramos não são
representações exatas de nosso passado, mas trazem aspectos desse passado
e os moldam para que se ajustem às nossas identidades e aspirações atuais.235

Podemos dizer que as identidades dos entrevistados moldam suas reminiscências que
são “passados importantes que compomos para dar um sentido mais satisfatório a nossa vida,
à medida que o tempo passa, e para que exista maior consonância entre identidade, passado e
presente.” Memória e identidade estão sempre interligadas. Isso porque, quem os
entrevistados acreditam que são no momento atual e o que querem ser afeta diretamente quem
eles julgam ter sido. 236
Ao pensarmos as sincronizações das memórias das vivências do grupo, ou seja, as
memórias coletivas do Culturarte nos atentamos para o que apontou Joel Candau sobre as
memórias holístas ou retóricas holístas, que são retóricas que tendem a ser
universalizantes.237Isso porque, a tentativa de trazer uma memória coletiva de um grupo pode
ser reducionista, deixando na sombra aquilo que não é compartilhado. Essa perspectiva serve,
principalmente, para analisarmos a memória de uma comunidade ou grupos numerosos, nos
quais as falas de muitos sujeitos são silenciadas e o depoimento de outros sujeitos é usado
para contemplar a memória de todos, criando assim, uma memória coletiva do grupo.
Quando analisamos um grupo menor como o Culturarte, acreditamos ser possível trazer
algumas memórias coletivas dele. A memória dos participantes/fundadores se organiza a
partir dessa lógica, mesmo com suas especificidades. Assim, ela é compartilhada por todos os
membros do grupo. Isso não significa que as memórias coletivas não precisem ser
problematizadas, é preciso nos atentarmos também e, sobretudo, para as memórias
individuais, analisando as especificidades e subjetividades.

233
PORTELLI, 1996, p. 71.
234
POLLAK, 1989, p. 207.
235
THOMSON, 1997, p. 57
236
THOMSON, 1997, p. 57
237
CANDAU, Joel. “Memória e identidade”. São Paulo: Contexto, 2011, p.30
93

Os relatos orais são fundamentais para a construção da narrativa do evento, pois elas
dão forma ao que vai ser lembrado e tornado memória. Para Antônio Torres Montenegro, a
narrativa oral é uma fonte que nos oferece “uma outra perspectiva historiográfica, ou seja,
movimentos, lutas, reflexões, sentimentos, relações de poder e de trampolinagem [...] que as
demais fontes não costumam oferecer.”238 Concordamos com ele e, ao pensarmos as
narrativas orais construídas sobre a Cantoria, acreditamos que só teríamos acesso aos detalhes
de construção, conflitos e disputas a partir das falas de quem os viveu. Portanto, a mesma
crítica que fazem a fonte oral sobre uma certa volatilidade, serve para qualquer outro tipo de
fonte.239
Para pensarmos as construções das memórias, entrevistamos outras pessoas da cidade
que não compuseram o Culturarte, mas que acompanharam o surgimento do grupo e o
desenvolvimento da festa. Marilú Soares narrou que a população de São Gabriel

via como uma maloca, sabe? Que não queria nada. Às vezes a gente que era
casada, que tava pelo meio, defendia muito, dizendo que ali era bom, que era
um desenvolvimento pra nossas crianças que tava chegando aí e tudo, mas os
outros aqui não via com bons olhos não.240

Marilú Soares não fazia parte do grupo e nem era amiga dos membros do Culturarte,
no entanto, frequentou as primeiras Cantorias. A fala da entrevistada traz uma memória que
dialoga com a dos idealizadores da Cantoria, ela aponta que a população não via com bons
olhos o movimento e lembra que ela e outras pessoas fizeram muitas vezes a defesa da festa.
Assim como Marilú, Jandira Lima, que também não tinha ligação com o grupo e disse:

Acho que no início pode ter tido preconceito, mas não tem mais não. Porque
assim, foi só mais aquele rock pauleira na época, então esse tipo de música
era mais visto assim, como músicas das pessoas que usavam drogas,
maconha, esse pessoal aí.241

Jandira Lima inicia sua narrativa dizendo que “pode ter tido preconceito”, sem afirmar
se lembra se houve ou não. Entretanto, ela termina sua fala descrevendo o “rock pauleira” da
primeira edição, afirmando que eram músicas associadas a pessoas que usavam drogas. Essa
lembrança pode representar a leitura que muitas pessoas fizeram na época da festa. As

238
MONTENEGRO, 2011, p.4.
239
Ibidem, p. 8
240
DOURADO, Marilú Soares dos Santos. Marilú Soares dos Santos Dourado: depoimento I [Nov. 2017].
Entrevistadora: Larissa Godinho Martins dos Santos. São Gabriel-Ba, 2017. 1 arquivo mp3 ( 7 min. e 34 seg. ).
Entrevista concedida para pesquisa histórica.
241
SOUZA, Jandira Benício Lima. Jandira Benício Lima Souza: depoimento I [Out. 2017]. Entrevistadora:
Larissa Godinho Martins dos Santos. São Gabriel-Ba, 2017. 1 arquivo mp3 (11 min. ). Entrevista concedida para
pesquisa histórica.
94

memórias de Marilú Soares e Jandira Lima foram construídas, assim como a dos membros, a
partir de lembranças que seguem a lógica de um conflito alimentado por preconceito de uma
parte da população local contra a ideia do movimento cultural promovido pelo Culturarte. É
possível identificar em cada fala um ponto de vista desse momento, mas tanto as dos
componentes do grupo, quanto às das pessoas que não tiveram nenhum envolvimento com a
organização da Cantoria, trazem uma memória, que pode ser entendida como coletiva, da
dificuldade de aceitação dos gabrielenses em relação ao novo evento. Durval Muniz afirma
que,

Devemos estar atentos para uma diferenciação fundamental entre “memórias


individuais” e a “memória coletiva”. A memória individual, segundo
Halbwachs, é um ponto de vista sobre a memória coletiva, ela é apenas uma
configuração individual assumida pelo cruzamento das diferentes séries de
lembranças e reminiscências, emoções, imaginações que compõem a
“memória coletiva”.242

Muniz, ancorado nas considerações de Maurice Halbawchs, aponta que as memórias


individuais são construídas a partir das reminiscências, das emoções, das lembranças e
também das imaginações. Entretanto, nem tudo é imaginação. Por isso, acreditamos que
houve essa tensão inicial em relação à festa como afirmaram os entrevistados. Contudo, cabe
a nós questionar essas memórias individuais, porque cada memória individual é um ponto de
vista sobre memória coletiva, pois na “memória fica o que significa”.243Como apontou
Halbawchs,“cada memória individual é um ponto de vista sobre a memória coletiva, que este
ponto de vista muda conforme o lugar que ocupo, e que mesmo este lugar muda segundo as
relações que mantenho com os outros meios”.244
Segundo Muniz, partindo das considerações de Halbawachs, as memórias são
construídas a partir dos lugares ocupados pelos sujeitos e das relações que eles mantêm com
determinados meios.Por isso, o lembrar está relacionado ao que mais significou na
experiência vivida para cada entrevistado e também com quem ele é hoje.
Segundo os relatos orais dos membros do Culturarte, eles foram chamados de
baderneiros, de maconheiros e até acusados de envolvimento com assaltos ocorridos nos dias
festivos, o que levou o Culturarte a procurar maneiras de construir e lapidar uma imagem do
grupo e da Cantoria. As narrativas dos fundadores trazem lembranças de enfrentamentos à

242
ALBUQUERQUE JR. Durval Muniz de: “Violar Memórias e Gestar a História”: Abordagem a uma
problemática fecunda que torna a tarefa do historiador um “parto difícil”. CLIO: Revista do Curso de Mestrado
em História, Recife, v. 1, n. 15, p. 38-52 1994, p. 45
243
HALBWACHS, 2013 apud ALBUQUERQUE, 1994, pp. 40 e 41.
244
ALBUQUERQUE, 1994, pp. 40 e 41.
95

rejeição, ao preconceito e às acusações. A maioria acredita que “peitaram” autoridades e gente


influente.245 Contudo, acreditamos que em muitos pontos, eles tenham usado táticas de
conciliação para que a festa acontecesse e seguisse. É preciso observar as astúcias dos
falantes, pois talvez esteja em curso um reordenamento da memória dos membros do grupo, já
que essa disputa é tão marcante em suas lembranças, com o objetivo de valorizar ainda mais o
papel desempenhado por eles.
Ao problematizarmos as falas dos membros do grupo, percebemos que os fundadores
da Cantoria elaboraram a memória dentro da lógica do “nós contra eles”, baseados numa
travessia dura, mas triunfante. Essa lógica é um ponto de vista do real, traçada a partir do
lugar de criadores. As memórias que eles buscam transmitir são a de uma virada vitoriosa. Em
geral, partem da ideia de uma festa que foi vista como uma baderna e se tornou, com o passar
dos anos, um “grande evento” que foi elevado à festa da cidade. Assim, há para eles uma
satisfação em rememorar a ideia de construção de um evento que ganhou grande proporção
para além da região de Irecê. Portanto, acreditamos que seja comum que haja uma tentativa do
grupo de enaltecer e glorificar características como “força, coragem e vitória” do Culturarte.
Contudo, entendemos que “as memórias estão sujeitas a constantes deslocamentos”.246
Como apontou Stuart Hall, há na atualidade uma luta por parte da cultura dominante
de reorganizar a cultura popular, porém, essa luta é continua é permeada por um movimento
marcado tanto pela resistência quanto por aceitação.247 Se pensarmos a partir de Hall e das
memórias trazidas pelos fundadores, podemos entender que o Culturarte, em meio a essa
relação desigual com a classe dominante, usou da negociação e da aceitação de algumas
condições em nome da festa.
Para demonstrarmos como é marcante na memória dos membros do Culturarte, os
intensos falatórios em relação a Cantoria, no começo da caminhada, selecionamos um trecho
de um cordel de Erismar Novaes. Eri, como é conhecido, é irmão mais novo de Itamá e Aimá
Rocha que estavam no grupo desde sua formação e também se tornou membro do Culturarte
alguns anos mais tarde. O cordel é uma homenagem aos 20 anos de Cantoria. Ele evoca o
começo da festa.

245
PEREIRA, João Purcino. João Purcino Pereira: depoimento I [mar. 2013]. Entrevistadora: Larissa Godinho
Martins dos Santos. Bahia. São Gabriel-Ba, 2013. 1 arquivo mp3 (56 min. e 37 seg.). Entrevista concedida para
pesquisa histórica.
246
ALBUQUERQUE, 1994, p.40
247
HALL, Stuart. Notas sobre a desconstrução do “popular”. In: HALL, Stuart. “Da Diáspora”: Identidades e
mediações culturais. Liv Sovik (org.); Trad. Adelaine La Guardia Resende. Belo Horizonte: Editora UFMG;
Brasilia: Representação da UNESCO no Brasil, 2003. p. 247-264. p. 255
96

Cidade do interior da Bahia


São Gabriel acordou para a poesia
Nas mãos de jovens de envergadura
Que gestaram no peito o desejo
Valendo-se de um lampejo
Inventaram a capital da cultura.

A vida é bela, também é dura


É necessária muita candura
Para chegar até o firmamento
Vou relatar em poesia de cordel
As agruras e todo o doce mel
Dos vinte anos deste evento.

Desde o primeiro momento


Que nasceu este rebento
Foi um grande zunzunzum!
Em cima de um caminhão
Vinte e um de abril na marcação
De mil novecentos e noventa e um.248

O cordel de Erismar Novaes traz a Cantoria como um despertar do povo daquele


sertão para a poesia, endossando a ideia de que jovens determinados e corajosos tiveram força
para materializar um sonho: a festa. Vemos que seus versos e suas estrofes estão a todo o
momento enaltecendo as ações dos membros do Culturarte e até mesmo os responsabilizando
pelo despertar da população para arte, trazendo a mesma ideia de algumas entrevistas de
enaltecer o grupo e festa. O autor arrisca dizer até que a Cantoria transformou a cidade do
Sertão na Capital da Cultura. Essa memória, hoje, é compartilhada por todos os membros do
Culturarte e por muita gente da cidade.
É importante pensar o lugar de fala do autor do cordel que é membro fundador do
Culturarte, o que justificaria o esforço de reconhecer os grandes feitos e esforços do grupo
para realizar e enaltecer a importância da Cantoria para a cidade. A primeira estrofe, cheia de
orgulho e vitória, está relacionada ao olhar de Erismar para a Cantoria já nos anos de 2010,
ano de escrita do cordel, quando a festa já tinha reconhecimento regional e nacional.
Nas duas últimas estrofes o autor passa do amargo dos zunzunzuns para a doçura da
vitória, demonstrando as pelejas pela qual passaram. Elas se referem, principalmente, às
primeiras edições, quando a festa foi alvo de muito falatório e rejeição, como enfatizaram os
entrevistados. As últimas linhas do trecho do cordel se organizam na mesma lógica linear das
memórias dos participantes/fundadores do Culturarte, que tiveram uma grande ideia da
Cantoria, passaram por adversidades e no final triunfaram.

248
NOVAES, Erismar. Vinte anos de Cantoria. Jornal da Fundação Culturarte. Informativo Oficial da
Fundação Culturarte de São Gabriel-Ba. Ano V- 5ª edição – junho de 2010, p. 7.
97

Na ata da Assembleia Geral Extraordinária, de 05 de abril de 1993, os membros do


grupo fizeram um resumo da primeira e da segunda edição da festa e apontaram que o sucesso
da primeira Cantoria foi motivador da segunda edição. Logo adiante, na mesma ata, registrou-
se que a segunda edição já seria uma tradição, informando que a Cantoria “forçosamente se
tradicionalizou”. 249
Como ata é um documento oficial de instituições, no caso da Fundação Culturarte, é
comum que seus membros afirmassem que a festa foi um sucesso na tentativa de valorizar e
enaltecer o evento. Em ata, o grupo não citou a rejeição à festa de forma direta, entretanto, o
“forçosamente” pode demonstrar a insistência da Cantoria para ser aceita e se fixar na cidade.
Já o “tradicionalizou”, segue a lógica do esforço do grupo em legitimar a festa enquanto uma
tradição na cidade.
Os textos nas atas podem demonstrar o desejo dos jovens de fixar o evento na cidade,
quando optaram tratá-lo nos documentos oficiais da Fundação com um olhar positivo,
evitando apontar os conflitos. Isso, possivelmente, foi mais uma tática utilizada pelo grupo
para legitimar o evento. A festa só tinha duas edições, ainda não era bem vista por parte
população e não despertava o interesse de muitos patrocinadores. Portanto, o uso de discursos
que exaltaram a festa poderia ajudar na captação de recursos Municipais, Estaduais e
Federais.
Pondo em diálogo as falas dos fundadores, do cordel e da ata da Fundação Culturarte,
podemos entender que no início da década de 1990 houve, por parte do Culturrate, a
preocupação em dar continuidade ao projeto da festa e com isso transformar a imagem do
grupo. A partir do cordel e das falas, percebemos um esforço dos fundadores para constituir
uma memória enaltecedora da Cantoria e do grupo em relação a cultura local.
O memorizar dos fundadores perpassa sempre pela ideia de que mesmo diante dos
conflitos enfrentados, como as acusações e os rótulos de baderneiros ou até maconheiros, eles
prosseguiram com a ideia, que inicialmente parecia ser utópica, de construir uma festa da
cidade.250

249
Ata da assembleia geral extraordinária da Fundação Culturarte. Realizada em 05/04/ 1993 no Salão
Comunitário - Praça da Matriz, s/n em São Gabriel-Ba. Retirada do arquivo da Fundação Culturarte.
250
SILVA, Antônio Carlos Rodrigues da. Antônio Carlos Rodrigues da Silva: depoimento II [mai., 2014].
Entrevistadora: Larissa Godinho Martins dos Santos. São Gabriel-Ba, 2014. 1 arquivo mp3 (7 min. e 10 seg.).
Entrevista concedida para pesquisa histórica.
98

2.2 De grupo de “desocupados” à instituição filantrópica: a busca por recursos e


incentivos governamentais.

Com a conclusão da primeira Cantoria, os “baderneiros”, como muitos os


classificaram, passaram a pensar em táticas para se organizar e formar um grupo e um evento
mais consistente. Optaram pela formação de uma “casa de cultura”, que foi criada com o
intuito de ser espaço para reuniões e promoção de outros eventos pequenos nos intervalos de
uma Cantoria e outra. Dessa forma, poderiam arrecadar fundos para a Cantoria que
continuava sendo para eles o principal evento.251
Na ata de 05 de abril de 1993 constam os resumos da primeira edição da Cantoria.
Neles, encontramos a seguinte frase: “Ficamos em maus lençóis para a realização da II
Cantoria”.252 A frase se refere à falta de retorno financeiro da primeira edição da festa. Por
conseguinte, resolveram fundar uma “casa de cultura” com o objetivo de angariar lucros e
evitar a contração de mais dividas.
Para a realização da segunda edição da festa foi arrecadado dinheiro com a realização
de eventos, durante todo o ano de 1991 e parte de 1992, como pequenas rodas de viola,
festivais, etc.253 No cartaz da segunda edição, consta que o evento ocorreu entre 18 a 21 de
abril de 1992, o que demonstra mais um ato de coragem do Culturarte. Isso porque, com
apenas dois dias de festa, na edição de 1991, já haviam sofrido várias críticas, mesmo assim,
arriscaram que a execução do evento fosse de quatro dias consecutivos. Para além das críticas,
os membros do grupo se mostraram empenhados, ao apostarem em um investimento de quatro
dias, o que dava maiores chances de lhes trazer mais dívidas.
Além do dinheiro arrecadado com pequenos eventos, o Culturarte já estava
conquistando algumas pessoas que se dispuseram a ajudar. Identificamos esses novos
colaboradores no cartaz da festa, onde constam nomes de casas comerciais, em sua maior
parte de São Gabriel, além de pessoas físicas, algumas até de poder aquisitivo elevado, que
estavam envolvidos na política local.254 O cartaz da segunda edição foi elaborado seguindo o
mesmo estilo do primeiro, trazendo as atrações no primeiro momento e logo abaixo os nomes
251
FILHO, Valdelício Barreto Vaz. Valdelício Barreto Vaz Filho: depoimento I [dez. 2016]. Entrevistadora:
Larissa Godinho Martins dos Santos. São Gabriel-Ba, 2016. 1 arquivo mp3 (51 min. e 54 seg.). Entrevista
concedida para pesquisa histórica.
252
Ata da assembleia geral extraordinária da Fundação Culturarte. Realizada em 05/04/ 1993 no Salão
Comunitário - Praça da Matriz, s/n em São Gabriel-Ba. Retirada do arquivo da Fundação Culturarte.
253
FILHO, Valdelício Barreto Vaz. Valdelício Barreto Vaz Filho: depoimento I [dez. 2016]. Entrevistadora:
Larissa Godinho Martins dos Santos. São Gabriel-Ba, 2016. 1 arquivo mp3 (51 min. e 54 seg.). Entrevista
concedida para pesquisa histórica.
254
Cartaz da II Cantoria em São Gabriel em 1992. Retirado do acervo da Fundação Culturarte.
99

dos patrocinadores. O desenho escolhido para o segundo ano trazia mais elementos do sertão:
o sertanejo, a enxada, o chão rachado e o sol.

Cartaz da II Cantoria em São Gabriel. Ano, 1992. Retirado do acervo da Fundação Culturarte.

O desenho, diferente do primeiro do primeiro cartaz, vem na parte de cima, antes das
atrações, dos dias, do horário e do local. Ela representa, para além da musicalidade, o sertão e
o sertanejo, trazendo elementos característicos da caatinga: um grande sol chegando ao
poente, o chão rachado e o sertanejo com uma enxada no ombro. Para demonstrar a
musicalidade, o horizonte é representado por uma grande viola onde o sol está se pondo. A
imagem representa fim do dia de trabalho de um sertanejo, já que o sol está baixo e a
personagem se encontra caminhando com a enxada no ombro. A ideia do trabalhador indo em
direção “ao poente” – a grande viola – remete à ideia do trabalhar e do brincar.
Na parte dos patrocinadores, notamos nomes que fizeram parte do cenário político da
cidade, como Clodoaldo Pereira Rocha que foi prefeito apoiado por Raimundo Pereira, nas
eleições de 1992, e Edes José da Rocha, que se tornou prefeito em 1997.255 Segundo a
memória dos membros do grupo, foi o prefeito que mais travou embates com eles. 256 Isso

255
PEREIRA, João Purcino; PEREIRA, Leonellia, 2010, p. 125.
256
ROCHA, Erismar Novaes. Erismar Novaes Rocha: depoimento I [Jan.. 2018]. Entrevistadora: Larissa
Godinho Martins dos Santos. São Gabriel-Ba, 2018. 1 arquivo mp3 ( 1h. 58. min. e 27 seg. ). Entrevista
concedida para pesquisa histórica.
100

aponta que, mais políticos locais se interessaram em patrocinar a festa, talvez por enxergá-la
como uma forma de promover seus nomes e conquistar votos.
O relato registrado em ata sobre a segunda Cantoria foi escrito no ano seguinte, em
1993, quando o grupo se tornou Fundação. Na análise da segunda Cantoria, texto lavrado por
Luiz Sergio Batista Neiva, apontou-se que o evento foi feito com dificuldade. Não obtiveram
lucros na primeira edição, mas junto aos comerciantes e ao poder público, a festa foi realizada
com sucesso.257
Diante disso, foi registrado em ata o apoio da prefeitura, mas ela não menciona nada
em relação aos demais políticos que patrocinaram à festa. Em entrevista, Welington Oliveira
apontou que o grupo fazia reuniões para decidir se era consenso aceitar patrocínio de tal
figura pública ou não, levando em conta os posicionamentos que eles defendiam e a postura
do possível patrocinador.258 Porém, o nome de alguns políticos nos cartazes demonstra que
em alguns momentos o grupo deixou de lado as divergências ideológicas e aceitou a ajuda de
algumas personalidades.
Ao analisarmos a ata, percebemos as dificuldades do grupo em realizar à Cantoria,
mas fica visível em todo o texto a tentativa de elevar o evento e realçar a vitória do grupo. 259
Isso pode se justificar por ter sido lavrada na primeira Assembléia Geral Extraordinária do
grupo enquanto Fundação, o que motivou à elaboração de uma ata mostrando, sobretudo, as
belezas do evento e sua capacidade de, a cada ano, alcançar bons resultados.
Segundo os relatos dos membros, eles passaram a elaborar estratégias para levantar
fundos, fazendo alguns eventos entre uma Cantoria e outra, como rodas de viola, festinha de
São João e também à criação de um bar que, segundo Agnolia Oliveira, durou pouco por
conta de uma reação adversa da maioria da população A entrevistada aponta:

Aí a gente começou a fazer também. Depois da Cantoria veio São João, mas
dentro da Fundação. Na época alugamos uma pizzaria quase defronte aos
Correios, não sei se você lembra não?! Aí ficamos três ou foi quatro meses
com esse bar, essa pizzaria, era uma pizzaria, mas a gente alugou pra montar
esse bar. Bar da Fundação Culturarte. A gente montou o bar.Aí depois a
gente foi às tradições do São João, às participações nas festas juninas, pau de
sebo.Foi muito bom, isolamos as ruas, mas tudo sempre pra arrecadar fundos

257
Ata da assembleia geral extraordinária da Fundação Culturarte. Realizada em 05/04/ 1993 no Salão
Comunitário - Praça da Matriz, s/n em São Gabriel-Ba. Retirada do arquivo da Fundação Culturarte.
258
PEREIRA, João Purcino. João Purcino Pereira: depoimento I [mar. 2013]. Entrevistadora: Larissa Godinho
Martins dos Santos. Bahia. São Gabriel-Ba, 2013. 1 arquivo mp3 (56 min. e 37 seg.). Entrevista concedida para
pesquisa histórica.
259
Ata da assembleia geral extraordinária da Fundação Culturarte. Realizada em 05/04/ 1993 no Salão
Comunitário - Praça da Matriz, s/n em São Gabriel-Ba. Retirada do arquivo da Fundação Culturarte.
101

pro grupo, pra melhorar o grupo. A intenção sempre era essa.Mas aí sempre
vinham as críticas.260

A partir da fala de Agnolia, é possível perceber que eles se empenharam em tentar


organizar melhor o grupo. Na tentativa de arrecadar fundos montaram até um bar, primeiro
porque o ramo de bebidas era um comercio rentável na pequena cidade; segundo, porque em
um bar daria para conciliar os pequenos “shows” realizados pelos próprios artistas do
Culturarte. Mas como a entrevistada apontou acima, a ideia do bar também foi motivos de
críticas, porque a imagem do grupo ainda estava associada à baderna. As críticas, junto à
dificuldade de manter um estabelecimento, fizeram com que o bar durasse um tempo muito
curto, o que fez com que o grupo se empenhasse ainda mais para se tornar uma fundação.
A ideia de transformar o grupo em Fundação Culturarte teve a finalidade de conseguir
recursos governamentais, já que nos primeiros anos da década de 1990 foram criadas e
reelaboradas as leis de incentivo à cultura, o que para o grupo seria uma oportunidade de
ampliar a festa. Segundo as narrativas dos entrevistados, os recursos municipais, as doações e
os lucros de pequenos eventos que realizavam não eram suficientes para arrecadar uma
quantia considerável. A ideia de tornar aquele grupo uma instituição filantrópica, sem fins
lucrativos, se deu também como forma de se legitimar perante a sociedade gabrielense. Uma
instituição, burocraticamente registrada, diminuiria a ideia de fraude, de lucrar diante
arrecadação de dinheiro e talvez até minimizasse a ideia de baderna.261
Desse modo, aos 29 dias do mês de novembro do ano de 1992, no salão comunitário
na praça Nova Matriz, em São Gabriel, reuniram-se os membros do grupo Culturarte e
lavraram uma ata com o objetivo de construir uma Fundação, sob a forma de sociedade civil e
sem fins lucrativos.262 É importante lembrar que o salão comunitário, que consta em ata, é o
mesmo onde, em 1979, o MAC foi impedido de concluir a construção para que não se
reunissem. De acordo com a ata:

Ata de assembleia geral de construção da Fundação CulturArte. Sessão de


29/11/1992. Realizada no Salão Comunitário, praça da Matriz, s/n em São
Gabriel-Ba. [...]Aos vinte nove dias do mês de novembro do ano de um mil
novecentos e noventa e dois (1992), no salão comunitário, na praça nova

260
ROCHA. Agnolia de Oliveira. Agnolia de Oliveira Rocha: depoimento I [Dez. 2016]. Entrevistadora: Larissa
Godinho Martins dos Santos. São Gabriel-Ba, 2016. 1 arquivo mp3 ( 37 min. e 10 seg. ). Entrevista concedida
para pesquisa histórica.
261
SANTOS, Welington Oliveira. Welington Oliveira Santos: depoimento I [jan. 2017]. Entrevistadora: Larissa
Godinho Martins dos Santos. São Gabriel-Ba, 2017. 1 arquivo mp3 (1 h. 03min. e 46 seg.). Entrevista concedida
para pesquisa histórica.
262
Ata de assembleia geral de construção da Fundação Culturarte. Realizada em 29/11/1992 no Salão
Comunitário - Praça da Matriz, s/n em São Gabriel-Ba. Retirada do arquivo da Fundação Culturarte.
102

Matriz, s/n em São Gabriel-Ba, reuniu-se as pessoas a seguir indicados, com


o propósito de construírem uma Fundação, sob a forma de sociedade civil
sem fins lucrativos e para ordenar os trabalhos, a assembleia escolheu por
aclamação, o senhor Itamá Glicério Rocha que chamou a mim João Purcino
Pereira para lavrar esta ata. Seguidamente se procedeu a leitura e discussão
do estatuto social que foi feito artigo por artigo. O estatuto foi aprovado
pelos votos de todas as pessoas seguidamente identificadas. No
prosseguimento dos trabalhos a assembleia procedeu a eleição dos primeiros
membros da diretoria. Presidente Itamá Glicério Rocha, secretario Luiz
Sérgio Batista Neiva, tesoureiro Antonio Carlos Rodrigues da Silva.E para
membros do conselho fiscal (efetivos), Antonio Carlos Nunes da Gama,
Ariovaldo Otacílio do Santos, Welington Oliveira Santos;Para suplentes do
conselho fiscal, Pedro Paulo Dourado das Virgens, Joab Rosa da Rocha e
Artênio Abreu Farias. 263

A reunião para a constituição da Fundação aconteceu no fim de 1992 e o grupo se


tornou Fundação Culturarte no ano seguinte. O trecho acima, da ata lavrada por João Purcino
Pereira, traz alguns detalhes de como foi realizada o processo de constituição da Fundação,
como a construção do estatuto e a eleição para a primeira diretoria. É possível perceber que a
ata foi elaborada com o objetivo de demonstrar que os membros do grupo seguiram todos os
passos legais, burocráticos e democráticos para conquistar o projeto de se tornar Fundação.
Nesse primeiro momento, segundo as entrevistas dos fundadores, já havia duas mulheres no
grupo, Agnolia Oliveira e Solange Alves, mas, como consta na ata, nenhuma ocupou cargo na
primeira diretoria.264
Segundo os fundadores, a busca da valorização da Cantoria era constante e cheia de
percalços. A cultura, aqui entendida como manifestações culturais e artísticas, nunca foi
tratada com muito cuidado pelos governantes no Brasil. Contudo, a partir dos anos de 1980
265
algumas mudanças passaram a acontecer e a cultura passou a ter mais atenção. Segundo
Rubim, por todo período republicano, a cultura brasileira viveu uma relação de autoritarismo
e descaso.266
No processo de redemocratização, no imediato pós-ditadura militar, várias
modificações foram feitas nos órgãos administrativos. Uma delas foi à criação do Ministério
da Cultura e junto a isso, nasceram às leis de incentivo às manifestações culturais, as
chamadas leis de incentivo fiscal. Elas funcionam como um acordo entre governo e empresas

263
Ata de assembleia geral de construção da Fundação Culturarte. Realizada em 29/11/1992 no Salão
Comunitário - Praça da Matriz, s/n em São Gabriel-Ba. Retirada do arquivo da Fundação Culturarte.
264
Sobre a atuação de mulheres em instituições políticas ver: Alves, Iracélli da Cruz . A política no feminino:
uma história das mulheres no Partido Comunista do Brasil – Seção Bahia (1942-1949) / Iracélli da Cruz Alves. –
Feira de Santana, 2015.
265
RUBIM, Antonio Albino Canelas.Políticas públicas de cultura no Brasil e na Bahia.2007.Disponível em:
http://www.cult.ufba.br/Artigos/POL%C3%8DTICAS%20P%C3%9ABLICAS%20DE%20CULTURA%20NO
%20BRASIL%20E%20NA%20BAHIA%20-%20I.pdf Acesso em 10/06/2017. Pp. 1-2.
266
Ibidem, pp. 4 -5.
103

privadas, no qual parte dos impostos pagos ao governo são direcionados para patrocinar
manifestações artísticas.267
Em 1986, no governo de José Sarney, foi criada a primeira lei de incentivo fiscal, a
Lei Sarney, de número 7.505. Ela tinha por princípio estimular a participação da iniciativa
privada no fomento à produção cultural brasileira, através da concessão de benefícios fiscais
aos patrocinadores.268A lei durou só até 1990, por conta, principalmente, dos seus frágeis
dispositivos organizativos. Foi alvo de acusações de fraudes, com a acusação de desvio de
verbas. Segundo Rubin,

A Lei Sarney também foi extinta, e para assegurar mudanças na forma de


gerir a área deu lugar à Lei Rouanet: a Lei 8. 313 de 22/12/1991, que
instituiu o Programa Nacional de Apoio à Cultura CPRONACJ foi criada
durante o Governo Collor, pelo então secretário da Cultura, Sérgio Paulo
Rouanet. A Lei Rouanet, como ficou conhecida, veio em substituição à
primeira lei de incentivo fiscal, Lei Sarney.269

Em 1990, o presidente Fernando Collor de Mello revogou a primeira lei de incentivo


fiscal em vigência no Brasil. Mesmo que a Lei Sarney não tenha sobrevivido aos cortes do
governo Collor, ela foi o empurrão inicial para a criação de uma das principais leis de
incentivo à cultura na década de 1990, a lei Rouanet, criada em dezembro de 1991.
Nesse período, o Brasil se moldava a um modelo de gestão voltado para o
neoliberalismo econômico, de forma mais acentuada.270 Segundo Mariella Viera, a partir dos
fins dos anos de 1980 e mais especificamente na década de 1990, as políticas culturais
passaram a aderir uma política neoliberal.271 Naqueles anos, o ponto culminante da política
neoliberal em relação à cultura, se deu sobretudo no governo de Fernando Henrique
Cardoso.272Segundo Gomes, “esta nova lógica de financiamento privilegia o mercado, uma
vez que o poder de decisão sobre que projetos ou ações financiar é da iniciativa privada, ainda
que o dinheiro seja público.”273

267
RUBIM, 2007, pp. 2 -3.
268
VIEIRA, Mariella Pitombo. “Política cultural na Bahia”: o caso do Fazcultura / Mariella Pitombo
Vieira.(Dissertação de Mestrado, Programa de Pós-Graduação em Comunicação e Cultura Contemporâneas da
Universidade Federal da Bahia da Bahia, 2014) p.24.
269
Ibidem, pp. 33.
270
Ibidem, pp. 89-90.
271
Ibidem, p.89.
272
No governo de FHC iniciou-se de forma indiscriminada as privatizações de empresas estatais, a abertura
econômica para entrada de empresas internacionais etc. O que caracterizou a sua escolha pela política neoliberal.
VIEIRA, 2004, p.3
273
GOMES, Weslaine Wellida.Rouanet: a (re) forma de uma lei.Revista três [...] pontos. 8.1. 2014. P. 31-38. P.
33.
104

A partir da Lei Sarney, a cultura entrou na pauta das empresas privadas, com a
isenção fiscal do dinheiro público. As empresas passaram a ter um papel importante no
desenvolvimento cultural do país. O Estado deu o poder às grandes empresas de decidirem
sobre o destino da produção cultural no país, isso porque, são os empresários que decidiam
quem patrocinar.274 Através da lei Rouanet, “o Estado busca parcerias com a iniciativa
privada como forma de captar recursos para a área cultural, e para tanto, cria incentivos fiscais
para que as empresas invistam em atividades culturais.”275A lei Rouanet passou a ser
almejada pelo grupo Culturarte. Segundo Welington Oliveira,

Existia a lei Rouanet, que é muito antiga e a gente já pensou nisso, é tanto
que a gente registrou como fundação, porque fundação era o modelo de
instituição apta para fazer essa captação, acho que a gente nunca conseguiu.
[...] A gente até foi uma vez em Salvador e eles acharam o evento pequeno,
falaram; “ah quem banca muito a lei Rouanet é a Coca-cola, é a Bhrama, é a
Skin, ai são grandes eventos.” Tinha muitos recursos. Eu já estava em Feira,
acho que foi lá para a quarta, quinta, quinta ou sexta cantoria. A gente
conversou com um cara lá sobre a Fundação Cultural e nessa época ele
falou:- moço, é muito bonito o trabalho de vocês, mas a dimensão é pequena,
porque quem patrocina a lei Rouanet é essas grandes multinacionais e lá em
São Gabriel não vai dar visibilidade para eles. Eles patrocinam é o carnaval
de Salvador. 276

Diante da fala de Welington, percebemos que o grupo conhecia as leis de incentivo


que tinham sido criadas e na tentativa de conseguirem financiamento para a Cantoria,
resolveram institucionalizar o grupo, para atender as exigências para a captação. Mas a lei era
um jogo de interesses entre empresas e governantes, de modo que o marketing era um dos
pontos mais importantes para os patrocinadores. Por conta disso, os empresários
selecionavam seus receptores de recursos de forma desigual. Durante a década de 1990, os
recursos da lei estavam mais concentrados no sul e sudeste do Brasil e com foco apenas em
grandes eventos.277 Portanto, os membros do Culturarte tentaram, mas não conseguiram
financiamento, porque mesmo que o evento tivesse uma proposta interessante, não se
enquadrava nas preferências dos financiadores.
Ainda de acordo com Welington Oliveira, eles tentaram captar os recursos entre a
quarta e sexta Cantoria. Entre o governo de Itamar Franco e o de Fernando Henrique Cardoso.

274
VIEIRA, 2004, p.89.
275
GOMES, 2014, p. 34.
276
SANTOS, Welington Oliveira. Welington Oliveira Santos: depoimento I [jan. 2017]. Entrevistadora: Larissa
Godinho Martins dos Santos. São Gabriel-Ba, 2017. 1 arquivo mp3 (1 h. 03min. e 46 seg.). Entrevista concedida
para pesquisa histórica.
277
BELEM, Marcela Purini. DONADONE, Julio César. A Lei Rouanet e a construção do “mercado de
patrocínios culturais”. NORUS. [S. l.] Vol. 01, nº 01, p. 51-61. jan./jun. De 2013.
105

Fernando Collor que, governou entre 1990-1992, segundo Gomes, foi um presidente que
impôs severo retrocesso no âmbito cultural, pois ele extinguiu o Ministério da Cultura. Em
1992, o referido ministério foi recriado, no governo de Itamar Franco, que governou até 1994.
No entanto, não houve uma maior participação do Estado no que tange às formas de
financiamento público no campo da cultura. Pelo contrário, a política de incentivos fiscais
iniciada no governo Sarney foi reforçada.278
Segundo Gomes, a partir de 1995, no governo de Fernando Henrique Cardoso, o
Estado continuou fazendo pouco investimento às manifestações culturais. As leis de incentivo
foram à principal política voltada para a cultura do governo FHC, administrada por Francisco
Weffort, o então secretario de cultura.279A lei Rouanet sofreu uma profunda reforma em 1995
em seus dispositivos legais, como o aumento da renda passível de ser usada como incentivo
fiscal, de modo que “outros tipos de pessoa jurídica tornaram-se aptos a abater de seu imposto
de renda recursos transferidos para projetos culturais”280. FHC transformou a lei Rouanet na
principal lei voltada à cultura em seu governo e valorizou a ideia de parceria entre Estado,
produtores culturais e empresas que apoiavam às artes.281Para Rubim, a década de 1990 no
que se refere às políticas voltadas para a cultura seguiu uma tradição de instabilidade,
principalmente, se pensarmos na grande quantidade de dirigentes que assumiram os órgãos
nacionais de cultura entre 1985 e 1994.282
Durante toda a década de 1990, as tentativas de aquisição de patrocínio do Culturarte,
através da lei Rouanet, foram sem sucesso, mas o grupo prosseguiu com a Fundação, o que
para eles garantiu certo respaldo perante a sociedade. Em 1994, João Purcino Pereira 283,
membro fundador, era vereador e instaurou a lei 157/94, de 11 de março, a qual declarava a
Fundação Culturarte enquanto uma instituição de utilidade pública.

Projeto de lei nº 157/94 de 11 de março de 1994

Declaração de utilidade pública a Fundação Culturarte

278
GOMES, 2014, p. 33.
279
Ibidem, p. 33.
280
DURAND, José Carlos Garcia. GOUVEIA, Maria Alice. BERMAN, Graça. “Patrocínio empresarial e
incentivos fiscais a cultura no Brasil”: análise de uma experiência recente. RAE - Revista de Administração de
Empresas São Paulo. Vol. 37, n º 04, p. 38-44. Out./Dez. De 1997. P. 41
281
VIEIRA, 2004, p. 88.
282
RUBIM, 2007, p. 07.
283
João Purcino se tornou vereador pelo PSB – Partido Socialista Brasileiro nas eleições de 1988, antes do
Culturarte surgir. Foi reeleito em 1992;1996;2000. Em seus mandatos teve preocupação especial com a cultura.
João Purcino ficou vereador durante toda a década de 1990 como oposição dos prefeitos eleitos, o que pode ter
influenciado ainda mais, para que a classe política dominante relacionasse o Culturarte à ações políticas
partidárias de oposição aos seus governos.
106

A mesa da câmara municipal de vereadores de São Gabriel, Estado da Bahia,


faz saber que o legislativo Municipal aprova a seguinte lei.
Art. 1º-Fica considerada na utilidade pública a Fundação Culturarte.
Inscrita nº ccc (MF) nº 63.111.306/0001-35, com sede a foro no município
de São Gabriel Estado da Bahia, na Praça Nova Matriz, s/n fundada em 20
de novembro de 1993, tem por finalidade manter estabelecimento artístico
que venha promover Movimentos Culturais e recreativos, como também
cursos sobre arte e lazer da comunidade e de seus associados. O tempo de
duração é indeterminado. Administrado e representado por uma diretoria,
conselho fiscal e assembléia geral, a reforma se dará por deliberação de dois
terços dos seus associados em assembléia geral, bem como sua extinção será
decidida pela assembléia geral, através de sua maioria. Em caso de extinção
da Fundação o seu patrimônio será destinado a Associações e ou Fundações
que tenha propostas semelhantes.
Art. 2º Está lei entrará em vigor na data de sua publicação,
revogadas as disposições em contrario.
Sala das sessões, em 11 de março de 1994
João Purcino Pereira
Vereador284

Como mostra a fonte acima, a Fundação tinha a finalidade de manter estabelecimento


artístico. O projeto de lei idealizado por João Purcino foi aprovado em 18 de março de 1994
pela plenária e promulgado pelo presidente da câmara, Anísio Martins Neto. A partir daí, o
Culturarte passou a ser reconhecido oficialmente pelo município enquanto entidade
filantrópica. O documento acima foi escrito por João Purcino. No texto, ele traz o endereço da
sede do grupo, os objetivos da Fundação, que segundo ele seria promover movimentos
culturais, para além da Cantoria. Além disso, ele informa que a Fundação objetivava
promover cursos, o que só aconteceu anos depois. Ademais, João Purcino também explica a
formação da Fundação e como funcionaria seu processo de extinção.
O texto é muito semelhante aos textos das primeiras atas da Fundação. O autor da lei não
perdeu de vista a ideia de mostrar a instituição como uma coisa importante para a
comunidade, por ser burocraticamente organizada, seguindo todos os trâmites legais. A
Fundação seguiu contando com os pequenos patrocínios de alguns comerciantes, da prefeitura
e angariando recursos dos pequenos eventos que realizavam. Com a criação da Fundação
Culturarte, os membros do grupo passaram a registrar em atas todas as reuniões e os
resultados obtidos em cada Cantoria, o que nos possibilitou perceber, em certa medida, como
eles descreveram a forma como se organizavam e suas expectativas em relação ao evento.

284
Retirada do arquivo da Câmara Municipal de São Gabriel. Disponível na câmara de vereadores de São
Gabriel. Acesso em 07/07/2017.
107

*
Na terceira Cantoria, o cartaz foi simples, assim como o das duas primeiras edições,
entretanto ele tinha menos informações que os outros. Esse cartaz não está estruturado como
os anteriores, que levavam o nome de patrocinadores e o local da festa. Na nova formatação,
constava a imagem de um sertanejo com uma viola no ombro, a data da festa, os artistas e o
horário. A festa aconteceu nos dias 23, 24 e 25 de abril de 1993.

Cartaz da III Cantoria em São Gabriel. Ano, 1993. Retirado do acervo da Fundação Culturarte.

“A terceira Cantoria, já foi aqui nessa pracinha que é a quadra hoje”285. O cartaz da
terceira Cantoria não traz o local onde aconteceu a festa, mas a narrativa de Agnolia Oliveira
aponta que aconteceu no antigo largo, onde hoje se localiza a principal quadra poliesportiva
da cidade. No ano da terceira Cantoria, o largo era apenas chamado de praça. O cartaz anuncia
os dias festivos e logo abaixo traz a arte iconográfica. Ela segue a mesma lógica do cartaz
anterior: o pôr do sol, o sertanejo, a viola e o chão rachado para representar a seca do sertão.
Um grande sol se pondo, novamente, para representar o fim do dia de labuta do
sertanejo, que agora carrega no ombro sua viola. A viola no ombro e o pé de feijão em forma

285
ROCHA. Agnolia de Oliveira. Agnolia de Oliveira Rocha: depoimento I [Dez. 2016]. Entrevistadora: Larissa
Godinho Martins dos Santos. São Gabriel-Ba, 2016. 1 arquivo mp3 ( 37 min. e 10 seg. ). Entrevista concedida
para pesquisa histórica.
108

de nota musical, uma referência ao produto que dava sentido à economia da região, aponta
para a afirmação implícita no cartaz anterior, a junção do trabalho e da ludicidade como uma
forma de „ser sertanejo‟, que labuta e brinca.
No ano de 1993, o prefeito de São Gabriel era Clodoaldo Pereira da Rocha. Segundo
Clodoaldo Rocha, ser prefeito naquele período foi bastante complicado, pois a seca foi muito
grande e a economia ficou extremamente prejudicada, fazendo com que as pessoas vivessem
momentos financeiramente delicados.

Foi um momento muito difícil, porque foi um momento de muita seca, de


muita crise, né?! Aqui naquele tempo não tinha esse negócio de bolsa
família, esses negócios, não tinha nada disso, né?! Naquele tempo, a
economia girava em torno da agricultura, só que a agricultura tava passando
por uma situação complicada e não tinha essas bolsas todas que hoje tem né?
[...] O município todo não tinha água. Naquele tempo, a situação da água era
muito crítica. E o comercio evoluiu muito, naquele tempo era bem mais
voltado para a agricultura, hoje o comercio já sobrevive sem a agricultura.
Também nossa agricultura está morta há muito tempo e o comercio está
sobrevivendo bem, graças a Deus. Você vê que muita gente hoje está
trabalhando, a prefeitura sempre abre o espaço dela, mas o comércio absorve
muita mão de obra aqui, além do mais, muita gente daqui de São Gabriel,
hoje, trabalha em Irecê e naquele tempo não trabalhava, né? Isso aí ajudou
muito, né? Muito mesmo. [...]Não tinha nenhum recurso voltado para a
cultura. Na verdade, a prefeitura naquela época, não tinha FUNDEB, não
tinha essa questão do SUS, não tinha nada, naquele tempo era no grito aí. O
recurso era 370 mil para tudo, hoje é quase 3 milhões.[...] Mas eu patrocinei
todas as Cantorias daquela época. O patrocínio era pouco, mas eu
patrocinei.286

Para Clodoaldo, era muito difícil administrar a cidade nessa época, pois existia um
único recurso que vinha para administrar toda a cidade, cujo valor era muito pequeno diante
da necessidade do povo. Ele justifica que por conta da grande estiagem e do pouco recurso
que entrava na prefeitura não fez muita coisa do que pretendia fazer, principalmente, em
relação à questão da cultura. Por isso, ele priorizou a educação, a saúde e a moradia, já que
muitas casas do município ainda eram de taipa. Ele informa ainda que não patrocinou com
muito recurso a Cantoria quando foi prefeito, mas que ajudou como podia, pois sabia da
importância da festa, já que ele alegou que gostava de cantorias e participou quando prefeito e
em várias outras edições.287 Segundo Valdelício,

286
ROCHA, Clodoaldo Pereira da. Clodoaldo Pereira da Rocha: depoimento I [Nov. 2017]. Entrevistadora:
Larissa Godinho Martins dos Santos. São Gabriel-Ba, 2017. 1 arquivo mp3 ( 12 min. e 18 seg. ). Entrevista
concedida para pesquisa histórica.
287
Ibid.
109

Raimundinho contribuiu, depois já veio Clodoaldo, e aí Clodoaldo já


contribuiu também, mas com muita dificuldade naquela época né? Tinha
aquela questão política que a gente era mais simpatizante da esquerda, né? E
aí gerava aquela coisa, né?!288

O membro do Culturarte confirma que o prefeito Clodoaldo Pereira contribuiu com a


festa e reforça a fala do ex-prefeito sobre a questão da dificuldade que a cidade passava no
período entre 1993 e 1996. Porém, Valdelício aponta a questão política e ideológica que, para
ele e os demais membros do grupo, era um fator importante para que a ajuda fosse mínima.
Welington Oliveira narra:

quando a gente iniciou o prefeito era Raimundo, no primeiro mandato dele,


Raimundo Pereira Rocha era um que levava na brincadeira, mas sempre
apoiou. Para você ter uma ideia, cinquenta por cento da despesa da Cantoria.
Raimundinho, quando era prefeito, ele bancava, e por incrível que pareça, a
gente pensou assim:- Raimundinho não tem essa formação acadêmica, como
tem Clodoaldo, que veio depois, e dava cinquenta por cento, Clodoaldo vai
bancar cem por cento, que ele sabe da importância da cultura para o
município. Por incrível que pareça, diminuiu o apoio, Raimundinho apoiou,
a gestão de Raimundo apoiou mais do que a gestão de Clodoaldo. [...] sei
que teve essa diferença, Raimundo bancava 50% nas duas ou foi três
Cantoria que ele foi prefeito, enquanto na de Clodoaldo, deu apoio mas não
chegou a cinquenta por cento não do recurso. Mas eu ainda acho que a
prefeitura poderia custear mais, porque é a festa da cidade né? Um
patrimônio da região, do território(sic).289

Welington, diferente de Valdelício, não menciona nem a dificuldade que a cidade


passava na época e nem a questão política. Mas confirma que a ajuda de Clodoaldo em
relação ao prefeito anterior foi bem pequena. Welington informa ainda que eles sabiam que
Clodoaldo acreditava na importância da festa e, por isso, nutriam grandes expectativas em
relação à administração do ex-prefeito, mas eles se frustraram diante das atitudes de
Clodoaldo, que também gostava de cantoria. Clodoaldo Pereira entende que poderia ter
ajudado mais, e justifica sua “falha” devido aos poucos recursos que a prefeitura recebia na
década de 1990. O ex-prefeito afirmou que não ajudou mais porque precisou eleger outras
prioridades em seu mandato. Em relação à questão das divergências políticas, apontadas por
Valdelício, Clodoaldo apontou:

288
FILHO, Valdelício Barreto Vaz. Valdelício Barreto Vaz Filho: depoimento I [dez. 2016]. Entrevistadora:
Larissa Godinho Martins dos Santos. São Gabriel-Ba, 2016. 1 arquivo mp3 (51 min. e 54 seg.). Entrevista
concedida para pesquisa histórica.
289
SANTOS, Welington Oliveira. Welington Oliveira Santos: depoimento I [jan. 2017]. Entrevistadora: Larissa
Godinho Martins dos Santos. São Gabriel-Ba, 2017. 1 arquivo mp3 (1 h. 03min. e 46 seg.). Entrevista concedida
para pesquisa histórica.
110

O diálogo com o Culturarte era bom. Eu cantava, fazia zuada nas festas de
Cantoria, o povo ia lá para casa, Xangaí, Elomar, Dércio Marques que era
muito o pessoal da época, né? Ia para casa e passava dois dias lá comendo
bode e zuando(sic). Era bom demais. Eu não tive conflitos porque eu
também gostava das cantorias (risos). Ia para assistir, amanhecia o dia com a
galera, vinha para casa de madrugada. Era bom, eu sempre gostei da
Cantoria, até hoje eu gosto. E o Culturarte fazia a Cantoria. Na campanha
política nós era(sic) contra, mas na Cantoria nós era(sic) a favor (risos).290

Para Clodoaldo Pereira, a questão política não interferiu em sua colaboração para a
realização da festa, pois ele entendia que o Culturarte, mesmo tendo divergências políticas em
relação a suas opiniões, era o grupo que realizava a Cantoria, que era um evento que ele
também gostava e que participou muito. Ele informa ainda que sabia separar as questões: na
política estavam em lados separados, mas na festa estavam do mesmo lado. Apesar de
Valdelício destacar a questão da divergência política em relação a Clodoaldo, os demais
membros do grupo não apontaram nenhum conflito direto com o ex-prefeito. Segundo os
relatos orais, apesar de serem adversários conseguiram manter uma relação estável. A
Fundação seguiu se desdobrando para complementar os recursos.

2.3 Pelejas pela continuidade, táticas para ganhar espaço

A quarta e a quinta Cantoria foram momentos importantes, pois a festa crescia


progressivamente, tendo um público cada vez maior e se tornando difundida na cidade. A fala
dos membros do grupo diverge um pouco sobre quando a festa passou a ser vista como um
evento de sucesso. Para uma parte dos membros, isso aconteceu logo depois da segunda
edição, quando avaliam a realização da Cantoria como um sucesso. Para outra parte, isso
aconteceu a partir da quarta. Contudo, para a grande maioria do grupo, só a partir da sexta, da
sétima e da oitava edição da Cantoria que ela passa a crescer e, no fim dos anos de 1990, a se
tornar de fato a festa da cidade. Isso pode ser entendido de acordo com o que cada um pensa
em relação a ideia de sucesso, já que alguns membros acreditam que quando passaram a trazer
artistas renomados para a festa, ela passou a ser um evento grandioso.
Na quarta Cantoria, por exemplo, Elomar e Xangaí se apresentaram no palco da festa,
o que muitas pessoas consideram como atrações de grande impacto na cidade. Já outros
integrantes do grupo acreditam que a grandiosidade do evento se deu a partir da junção de

290
ROCHA, Clodoaldo Pereira da. Clodoaldo Pereira da Rocha: depoimento I [Nov. 2017]. Entrevistadora:
Larissa Godinho Martins dos Santos. São Gabriel-Ba, 2017. 1 arquivo mp3 ( 12 min. e 18 seg. ). Entrevista
concedida para pesquisa histórica.
111

grandes atrações, a quantidade de pessoas que passaram a frequentar e a organização da


cidade em relação aos dias do evento. Por isso, a maior parte dos entrevistados acredita que a
festa passou a ganhar visibilidade a partir da quarta edição, mas que só foi aceita pela
população no fim dos anos de 1990, depois de quase uma década de trabalho do Culturarte.
Ao analisarmos as fotografias do público, podemos perceber que na sexta edição o número de
pessoas já era maior, mas a partir da sétima e, principalmente, da oitava se tornou perceptível
uma adesão maior das pessoas.
Da quarta a sexta Cantoria, a festa ainda estava sendo feita com pouco apoio da
prefeitura, como apontaram as falas dos entrevistados acima. O grupo foi conseguindo trazer
personalidades importantes dentro do universo dos cantadores, como Elomar, Xangaí, Roze e
Zé Geraldo. Eram artistas que para a realidade da Cantoria, eram relativamente caros, mas que
por conta da amizade de Dinho Oliveira, um cantador que por admirar o trabalho do
Culturarte, passou a fazer vários contatos com artistas, lhes apresentando a festa e a história
do grupo. Para a maioria dos entrevistados, foi só depois da quarta Cantoria, com a presença
de Elomar, Xangaí e Dércio Marques, que a visão da população em relação ao evento passou
a mudar. Agnolia relatou: “a quarta Cantoria já veio Xangaí, Elomar. Aí eles já foram pra
Rádio aí na Líder, parece. Na Regional, já foram pra rádio em Irecê. Então, foi só elogios, o
pessoal começou a acreditar e graças a Deus até agora só sucesso”. Aimá compartilha da ideia
de Agnolia que o reconhecimento só passou a vir depois da quarta edição da festa.

Ah, isso demorou bastante, acho que demorou uns três ou quatro anos, ela
realmente começou a ter o respeito das pessoas quando começaram a surgir
cantores de nome nacional, tipo Zé Geraldo. Quando Zé Geraldo veio pra
primeira Cantoria, que eu não sei se foi à terceira ou quarta, aí que a coisa
mudou, porque Zé Geraldo já era uma figura conhecida nacionalmente, todo
mundo já ouvia, né?! Depois falaram, os caras tão arrebentando, olha quem
veio aí. Aí começou a vim outros nomes e foi ganhando respeito, mas foi
esses da música popular brasileira, já conhecidos nacionalmente que fez dar
aceitação, a partir daí. Até a primeira, segunda e terceira a gente trabalhou
mais com nomes locais e regionais. [...]Mas pra engatar mesmo, para as
pessoas compreenderem mesmo que era uma coisa diferente, uma coisa
grande, foi a partir desses nomes nacionais.E foi diminuindo o
preconceito.291

Para os membros do grupo, a conquista do Culturarte em trazer nomes renomados da


música brasileira possibilitou amenizar o preconceito que a população tinha sobre a Cantoria.
Para eles, como apontou Aimá, as pessoas passaram a acreditar no grupo, no evento,

291
ROCHA, Aimá Glicério Rocha. Aimá Glicério Rocha: depoimento I [Mai. 2017]. Entrevistadora: Larissa
Godinho Martins dos Santos. São Gabriel-Ba, 2017. 1 arquivo mp3 ( 31 min. e 40 seg. ). Entrevista concedida
para pesquisa histórica.
112

percebendo que eles realmente estavam se organizando na tentativa de efetivar a festa como a
festa da cidade. Luiz Sérgio narra:

Eu acho que da quarta em diante ela pegou mais peso, né?! Porque as três
primeiras foi meio que improviso, sem muita organização, por falta de
experiência. Porque pra você organizar um evento você tem que ter muita
experiência com artista, com palco, com povo, com imprensa. E ninguém
tinha na época, né?! Recurso que talvez seja o mais importante, porque sem
recurso ninguém faz, não tem como fazer. Eu acho que a partir da quarta a
Cantoria começou a pegar mais profissionalismo.292

Para Luiz Sérgio, o descrédito das pessoas em relação à festa nos três primeiros anos
estava associado à falta de profissionalismo do grupo para realizar o evento. Mas, a partir de
1994, o grupo já era uma Fundação, o que possibilitou conseguir mais patrocínio se
comparando aos primeiros anos, e passaram a realizar a festa de forma mais profissional. Para
Welington Oliveira, além da profissionalização da organização do evento e da vinda de
artistas com reconhecimento nacional, um fator que também ajudou para que as pessoas
perdessem o preconceito e passassem a ir à festa, foi à inserção de outros ritmos, além das
modas de violas e cantorias. Segundo Welington,

na quarta que já foi ali na praça onde tem aquela quadra, aí já aparecia
alguns nomes de projeção nacional, como Zé Geraldo Edinardo, Elomar e
Xangai.Por conta disso, a cantoria passou a ser conhecida, aí já aparecia um
público maior, mas um público maior que gostava também da música.Eu
acho que só teve o envolvimento de toda a população quando abriu mais.
Porque não existia no início aquela coisa de encerrar com forró, encerrar
com reggae, acho que isso aí, a partir disso aí, começou a se transformar
assim num evento da cidade, na festa da cidade.293

A partir da quarta cantoria, como relataram os outros membros do grupo, o


preconceito em relação à festa diminuiu. Entretanto, segundo Welington, o público que
passou a frequentar a festa depois de sua quarta edição ainda era um público pequeno, restrito
às pessoas que gostavam de cantorias, de modo que a festa só passou a ser frequentada pela
maioria da população quando o grupo passou a inserir outros ritmos musicais como o forró, o

292
NEIVA, Luiz Sérgio Batista. Luiz Sérgio Batista Neiva: Depoimento I [Dez. 2016]. Entrevistadora: Larissa
Godinho Martins dos Santos. São Gabriel-Ba, 2016. 1 arquivo mp3 ( 20 min. e 16 seg. ). Entrevista concedida
para pesquisa histórica.
293
SANTOS, Welington Oliveira. Welington Oliveira Santos: depoimento I [jan. 2017]. Entrevistadora: Larissa
Godinho Martins dos Santos. São Gabriel-Ba, 2017. 1 arquivo mp3 (1 h. 03min. e 46 seg.). Entrevista concedida
para pesquisa histórica.
113

reggae e o pop rock. Essa mistura de ritmos passou a acontecer a partir da oitava Cantoria se
intensificando, sobretudo, nos anos 2000.
Para a maioria dos entrevistados, a partir da sexta edição, um número maior de pessoas
passou a frequentar o evento. Para eles, foi a partir daí que as pessoas passaram a entender
melhor qual o objetivo do Culturarte. O cartaz da sexta edição apresenta o local de realização
do evento como a praça da Cantoria, o que pode ser um indício para pensarmos que o largo
onde acontecia a festa já era identificado pela população como o lugar da Cantoria.Para
Bezerra,

No Brasil, boa parte dos registros existentes sobre a festa traz consigo o
cenário urbano, onde os espaços públicos, a exemplo da rua e da praça, se
colocam como os locais privilegiados das festividades.[...] A festa tem
ocupado uma centralidade no processo de re(organização) do espaço da
cidade.294

Com a Cantoria não foi diferente, pois ela também privilegiou a praça como espaço
para a sua realização, reorganizando a cidade a partir da transformação do largo em praça da
festa, demarcando aquela localidade central da cidade como o espaço de sociabilidade
promovido pelo grupo. A mudança de topônimo é muito importante, pois isso demonstra o
caminhar da festa para construir seu enraizamento no imaginário da cidade. O cartaz da sexta
edição abandonou a lógica de trabalho e labuta que estavam presentes nas edições anteriores

Cartaz da VI Cantoria em São Gabriel. Ano, 1996. Retirado do acervo da Fundação Culturarte.

294
BEZERRA, 2008, p.8
114

O cartaz segue o estilo dos anteriores, com a arte iconográfica, nome das atrações,
local, dias e patrocinadores da festa. As imagens aparecem coloridas, trazendo alguns dos
símbolos dos cartazes anteriores como o grande sol, as notas musicais e a viola. Uma
particularidade desse cartaz é a pomba, que representa a paz, iluminando a viola que aparece
com uma flor brotando dela. Partimos da ideia de que o grupo usou uma arte que atraísse as
pessoas, pois a pomba iluminando a viola com uma flor representa a paz, remetendo à ideia de
apresentar o evento como “iluminado” e de paz, talvez até buscando consolidar a imagem de
um grupo ordeiro e responsável. A imagem do trabalhador rural não aparece como nos outros
cartazes, pois a relação entre labuta e festejo deixa de aparecer nos cartazes só reaparecendo
novamente nas ilustrações do cartaz da décima edição.
Em relação aos patrocinadores, o cartaz também apresenta uma particularidade, pois
nos outros cartazes aparecem vários nomes de estabelecimentos comerciais e pessoas físicas e
no da sexta edição o único patrocinador é a Prefeitura Municipal. Em 1996, Clodoaldo Pereira
era o prefeito de São Gabriel e no fim deste mesmo ano, Edes Rocha, se elegeu prefeito com o
apoio de Clodoaldo. A partir da sexta edição, o único patrocinador que aprecia no cartaz era a
prefeitura, pois o grupo passou a elaborar faixas com os nomes de quem colaborou com a
festa. Porém, na décima edição, o nome da prefeitura também foi retirado do cartaz.

Fotografia do espaço da festa na praça da Cantoria em 1996, retirado do acervo da Fundação


Culturarte.
115

A fotografia ilustra o espaço onde aconteceu a sexta edição. Esse é o antigo largo que
passou a se chamar praça da Cantoria. Os nomes dos patrocinadores, que aumentaram
consideravelmente, passaram a ter um espaço de maior destaque. Se antes apareciam apenas
no pequeno cartaz, agora apareciam estampados em faixas e um pequeno outdoor. É possível
visualizar dos dois lados do palco e no outdoor ao fundo da foto os anúncios com os nomes
dos colaboradores, o que demonstra que a festa já contava com uma quantidade relevante de
incentivadores.
A fotografia traz também algumas crianças brincando no local, uma barraca e um
carrinho de doces. As crianças circulando no local da festa revela uma naturalização do
evento, mostrando que mesmo antes de começar havia pessoas circulando no local da
festividade, interagindo com o espaço. As outras barracas demonstram o aumento de
ambulantes e barraqueiros na Cantoria. Em 1996, a festa passou a acontecer no meio do ano,
no início do mês de junho, o que segundo os membros do grupo, foi uma estratégia para se
adequar melhor ao público, pois muita gente de São Gabriel que morava fora ia passear na
cidade no mês de junho e aproveitavam as festas juninas, de modo que a Cantoria sendo
realizada no início do mês antecederia o afamado São João de Irecê.
A Sétima Cantoria aconteceu em 1997, quando a festa já estava sendo frequentada por
muitas pessoas da cidade, mas o grupo permanecia na luta para mantê-la e ampliá-la. Porém,
para os membros do grupo, naqueles anos, momento também do governo de Edes Rocha, o
grupo enfrentou maiores dificuldades por questões de divergências políticas. Para eles, as
ideias do ex-prefeito divergiam das ideias das propostas do Culturarte. Mas, segundo os
membros, a prefeitura ainda assim contribuiu para a festa. Segundo Valdelício,

já veio Edes Rocha que também patrocinou. [...] A Cantoria, também, passou
por um processo meio difícil, só que a gente também era um grupo mais
cabeça dura, né? Itamá aí, o bicho tem a cabeça dura que ninguém muda,
Aimá também com aquela cabeça dele que também não mudava, João
Purcino, também era um dos radicais da época, hoje que ficou diferente, mas
João Purcino sempre foi da linha dura, né? Peitava Edes Rocha aí nas
esquinas, aí e tal. E Edes Rocha também valentão na época, porque o bicho
era um ACM.295

De acordo com Valdelício Barreto, Edes Rocha também patrocinou as Cantorias


quando era prefeito, mas que aquele foi o momento em que o grupo enfrentou mais
dificuldades em relação ao poder público. Porém, o entrevistado divide a “culpa” dos
295
FILHO, Valdelício Barreto Vaz. Valdelício Barreto Vaz Filho: depoimento I [dez. 2016]. Entrevistadora:
Larissa Godinho Martins dos Santos. São Gabriel-Ba, 2016. 1 arquivo mp3 (51 min. e 54 seg.). Entrevista
concedida para pesquisa histórica.
116

conflitos entre o ex-prefeito e os membros do grupo. Valdelício para definir o autoritarismo


de Edes Rocha compara-o com Antônio Carlos Magalhães – um ídolo do ex-prefeito que tem
até os dias atuais mantém várias fotos do político em sua casa –296, entretanto pontua que a
“radicalidade” do grupo também interferiu para que não existisse um bom diálogo entre os
dois lados. “Peitar” o prefeito, para Valdelício, talvez não tenha sido uma forma acertada de o
grupo agir, pois isso pode ter influenciado o ex-prefeito em não patrocinar a Cantoria. Esse
comportamento pode ter influenciado também algumas ações hostis em relação ao grupo. Para
Welington Oliveira,

alguns grupos Culturais, pessoas ligadas a Fundação teve assim, no período


de Edes Rocha que chegou a proibir e tal, mas não a Cantoria em si, mas
assim, alguns movimentos.Sábados com música na praça, na época de Edes
Rocha, teve essa proibição, ele podou esse movimento aí.297

O membro do Culturarte apontou que o ex-prefeito não proibiu a Cantoria, porém


acabou interferindo em pequenos movimentos culturais realizados pelos membros fundadores.
O relato da proibição das rodas de violão na praça foi apontado pelos demais membros do
grupo, que acreditam que talvez a proibição de Edes Rocha tenha sido uma forma de
autoritarismo e de perseguição aos “adversários” políticos. Sobre a sua relação com o Grupo
Culturarte, Edes Rocha relatou que,

Eu peguei esse Culturarte mesmo, e sempre via... (pausa para pensar).O


problema do Culturante é que eles são um pessoal (sic) (pausa para pensar).
É o seguinte! Hoje já não está mais assim, já mudou muito, tão melhor de se
entender, já é outra coisa, hoje está diferente. Mas antes era o seguinte, ele
era todo oposição (referindo-se ao Culturarte). E uma oposição que eles
faziam oposição terrível, uma oposição que eu não sei nem como.[...]Eu
chamei finado Di (pessoa que coordenou a obras) a Cantoria é onde é essa
quadra hoje, mas eles faziam ali no barro, no barro puro, no chão. Aí eu
falei:- Di, ali tá um negócio sem jeito, feio demais, nós somos adversários,
mas mesmo assim eu não estou satisfeito com aquilo ali, vamos calçar
aquela praça? - Vamos! Mas só falta trinta dias? Mas a gente corre pra isso,
corri atrás, fui em Jacobina, comprei pedra, comprei tudo, fiz a lajota, né?!
Quando eles tinham marcado a festa, né? Faltando oito dias, nós aprontamos
a praça, já fizeram na pracinha toda calçadinha, toda arrumada, né?! Mas não
teve um pra vir falar comigo, nem pra me agradecer. 298

296
ROCHA, Edes José da. Edes José da Rocha: depoimento I [Nov.. 2017]. Entrevistadora: Larissa Godinho
Martins dos Santos. São Gabriel-Ba, 2017. 1 arquivo mp3 ( 1h. e 10 min.). Entrevista concedida para pesquisa
histórica.
297
SANTOS, Welington Oliveira. Welington Oliveira Santos: depoimento I [jan. 2017]. Entrevistadora: Larissa
Godinho Martins dos Santos. São Gabriel-Ba, 2017. 1 arquivo mp3 (1 h. 03min. e 46 seg.). Entrevista concedida
para pesquisa histórica.
298
ROCHA, Edes José da. Edes José da Rocha: depoimento I [Nov.. 2017]. Entrevistadora: Larissa Godinho
Martins dos Santos. São Gabriel-Ba, 2017. 1 arquivo mp3 ( 1h. e 10 min.). Entrevista concedida para pesquisa
histórica.
117

Edes Rocha traz em seu relato memórias do Culturarte enquanto um grupo radical, que
fazia oposição ao seu governo. Ele entende que muitas vezes ajudou o grupo, como no caso
do calçamento do largo onde aconteceu algumas das primeiras edições da Cantoria, que não
foi reconhecido pelo Culturarte. A praça foi uma obra pública, construída para a comunidade.
Entretanto, Edes acredita que por ser o espaço onde acontecia a festa e pelo fato do grupo ser
oposição, a sua atitude pode ser considerada como uma boa ação. O ex-prefeito contou que os
membros do grupo eram extremamente hostis e de difícil diálogo.
Não, não tínhamos um bom diálogo. Só nas horas que eles iam me pedir
patrocínio. Inclusive já teve, não posso jogar pedra em todo mundo, Vilma
que foi presidente e eu dei uma determinada ajuda e ela me esperou lá, não
sei se uma vez, duas vezes pra fazer a abertura. E eu também chateado, não
com ela, com ela eu fiquei feliz, com os outros membros, porque tinha uns
que não queriam me ver, eu acho, que nem lá no meio do povão. Aí por isso
eu não fiz a abertura, mas com Neto mesmo aqui (apontando para a casa ao
lado, a residência de Netão), Neto era um dos caras mais amigável, inclusive
só foi dois anos e não quiseram mais ele, porque ele tinha diálogo comigo e
foram umas das melhores Cantorias que foi feita aqui, foi na mão de Neto.
Eu não recordo mais, mas acho que foi no primeiro mandato ainda, não
recordo o ano. Mas as melhores Cantorias, por quê? Além deu dar o
patrocínio maior, a ele eu dava o patrocínio bem maior, os outros dava o
patrocínio, não vou dizer também que ia dar muito patrocínio a
inimigo.Você não vai dar essas coisas, mas eu dava um patrocínio razoável,
por exemplo, se eles pedissem 15.000 eu dava 3.000. Já com Neto, tudo ele
gastou acima de 35.000, porque eu dava meu patrocínio bom e ainda saia
com ele às casas, onde a gente pedia o patrocínio, já com outros, pra lhe ser
franco, eu não fazia nada, mas também não cortava, que eu não sou de
perseguir ninguém, também se eu não lhe ajudar, não ajudo, mas também
não maltrato.299

Edes Rocha não recorda o ano exato das duas cantorias que ele disse terem sido as
melhores, mas acreditamos que foi a sétima e oitava, pois Netão ainda estava no grupo. Ele
era vizinho e amigo de Edes Rocha, o que facilitou o diálogo com o prefeito. Segundo o ex-
prefeito, o diálogo durou pouco tempo, pois o grupo acreditava que a relação entre ambos
poderia dar oportunidade ao ex-prefeito de se promover através do evento. Edes traz os
membros do Culturarte como “inimigos” e que por isso não os ajudava tanto quanto quando
Netão, que era seu amigo, estava no grupo.
O fim da década de 1990 foi um momento em que a festa já estava sendo frequentada
por muita gente da cidade e até da região, já sendo vista por muitos como a festa da cidade.
Isso até motivou Edes Rocha a se interessar em patrocinar e a reformar a praça onde a festa

299
ROCHA, Edes José da. Edes José da Rocha: depoimento I [Nov.. 2017]. Entrevistadora: Larissa Godinho
Martins dos Santos. São Gabriel-Ba, 2017. 1 arquivo mp3 ( 1h. e 10 min.). Entrevista concedida para pesquisa
histórica.
118

acontecia naquele período, como foi narrado por ele no relato acima. O grupo não aceitava
que políticos fizessem a abertura do evento para não envolver questões políticas no palco da
festa e, como apontou o ex-prefeito, isso era uma questão que o chateava muito, pois ele
gostaria de ajudar e abrir o evento como era tradição em quase todos os eventos patrocinados
pela prefeitura na cidade.
Havia uma política do Culturarte em não aceitar a participação política partidária no
palco da festa, o que não era entendido por quase nenhum dos políticos da época, já que fazia
parte da cultura da cidade, que em eventos, inaugurações e campeonatos, os políticos da
cidade fizessem a abertura. Com a saída de Netão da Fundação Culturarte, por conta de brigas
internas, a dificuldade aumentou ainda mais para estabelecer diálogo entre o grupo e o
prefeito. A partir das narrativas dos membros e do ex-prefeito, é possível perceber que
realmente existia uma grande desavença entre eles, a ponto de Edes Rocha justificar seu
pouco patrocínio a festa, por ser organizada por “inimigos” que o perseguia.
Os membros da Fundação apontam que quem perseguia era quem detinha o poder.
Segundo eles, o ex-prefeito colocava dificuldade para ajudá-los, fazendo referência ao corte
de recursos e também à proibição de alguns eventos paralelos à Cantoria. Na fala de Edes, ele
confirma que ajudou, mas que não ia ajudar tanto quem era inimigo, pois, para ele, o grupo
também o via como inimigo, a ponto de não querer sua presença na festa, nem mesmo em
meio ao povo. Portanto, fica claro o embate. As narrativas representam a dificuldade no
entendimento entre ambas as partes. Assim, as questões políticas, tanto para o grupo, quanto
para o ex-prefeito eram de fato o principal motivo para que eles não entrassem em acordo.
Diante das memórias das pessoas que estavam envolvidas nesse conflito, é perceptível
em suas falas a tristeza, as magoas e até a raiva ao lembrarem dos fatos. Em linhas gerais,
para a Fundação existia um político carrasco, o ACM do sertão, que governava com
autoritarismo e sem muito diálogo com quem não seguisse a sua linha de pensamento. Esse
“carrasco” tinha um amigo de infância que fazia parte do grupo, que tentou mediar uma
aproximação entre o prefeito e o Culturarte. Mas as ideias do amigo, Netão, em tentar
promover uma união entre Culturarte e prefeito gerou um conflito interno que ocasionou em
sua saída do grupo. Já para o ex-prefeito, existia um grupo de jovens rebeldes de esquerda que
criticavam fortemente seu governo, mas queria que a prefeitura, independente de divergências
políticas, patrocinasse a festa. Para o Culturarte, a festa era para o povo e o município deveria
ajudar na execução, usando recursos voltados à cultura, sem que a festa fosse usada como
meio de capitação de votos. Ao que parece, Edes Rocha queria ajudar a transformar a festa em
um evento da cidade, mas que a prefeitura tivesse, também, seu protagonismo.
119

Pensando sobre isso, Bezerra aponta “que a festa apresenta ainda um caráter político,
pois na maioria das vezes são utilizadas como forma de legitimação das elites políticas
locais.”300 Talvez esse seja um dos motivos para que, nos fins dos anos 1990, Edes Rocha e os
demais políticos da cidade tenham se interessado tanto na festa. Partindo da possibilidade de
que ela, que cada vez mais ganhava apreciadores, se tornasse o mecanismo de legitimação e
manutenção do seu governo. Além disso, havia também um interesse comercial, já que
quando esses eventos são institucionalizados pelo poder público, eles tendem a assumir a
forma de grandes espetáculos nas cidades, atraindo pessoas e consequentemente gerando
renda.301
As brigas entre o ex-prefeito e grupo aconteceram já no fim dos anos de 1990.
Naquele momento, a partir da oitava Cantoria, a festa passou a ganhar visibilidade na região e
até fora dela, isso possibilitou que além do pequeno patrocínio destinado pela prefeitura, eles
passassem a contar com ajuda de mais comerciantes e simpatizantes do evento. Contando com
uma estrutura já bem mais profissionalizada e com grandes artistas da música brasileira, o
palco ganhou uma estrutura melhor, de modo que eles contrataram até uma pessoa para fazer
a locução da festa para anunciar as atrações.302 A Cantoria já não era mais vista como lugar de
baderna e de “maconheiro de esquerda”, passando a ser reconhecida como um lugar de
“música boa” em que muitas famílias frequentavam. Ela conquistou, naquele momento, o
lugar de festa da cidade.

300
BEZERRA, 2008, p.12.
301
Ibidem, p.8
302
Cartaz da VIII cantoria.
120

3.0 “MUITO MAIS DO QUE O IMAGINADO”: CANTORIA, A FESTA DA CIDADE

Neste capítulo fizemos um levantamento das principais formas de lazer e


sociabilização dos jovens em São Gabriel, na década de 1990. Além disso, pensamos como a
festa chegou para integrar essas opções de encontro. Para pensarmos as questões que
levantamos, entrevistamos cinco pessoas que não participaram do grupo e possuem a mesma
faixa etária dos membros do Culturarte, o que possibilita entendermos a dinâmica de
entretenimento na cidade, através do que eles gostavam de fazer e como receberam a festa.
Buscamos entender as transformações e os caminhos que a Cantoria trilhou para ser
aceita e reconhecida como a festa da cidade e parte de uma identidade de muitos gabrielenses.
Para isso, analisamos os processos de identificação dos indivíduos com o mundo externo e as
relações dos sujeitos com o mundo, o que resulta na criação de novas identidades. A Cantoria
neste capítulo é pensada enquanto representação social, pois traz símbolos, costumes, crenças,
características, tensões e conflitos da sociedade gabrielense que deram forma a festividade.

3.1 Sociabilidade em São Gabriel na década de 1990: a Cantoria enquanto espaço de


identidade e socialização

No fim dos anos de 1980 e início de 1990 as opções de lazer dos jovens em São
Gabriel eram bem restritas. Os divertimentos e momentos de sociabilização variavam entre
campeonatos de futebol que era um divertimento, majoritariamente, masculino, festas em
casas de parentes e amigos como casamentos, batizados e aniversários. Os shows e festa de
rua eram poucos. Não existia uma festa fixa em nenhuma data comemorativa em São Gabriel.
Por isso, muitos jovens frequentavam festas nas cidades vizinhas como aniversários das
cidades, São João, Semana de Artes e Carnaval.303
Porém, no fim dos anos de 1980, foi fundada em São Gabriel uma boate denominada
Rock in Rio, em homenagem ao famoso Rock in Rio,304realizado naquele contexto no Rio de
Janeiro. Segundo alguns entrevistados como Orlando Novaes, naquela época, a boate foi um

303
SANTOS, Welington Oliveira. Welington Oliveira Santos: depoimento I [jan. 2017]. Entrevistadora: Larissa
Godinho Martins dos Santos. São Gabriel-Ba, 2017. 1 arquivo mp3 (1 h. 03min. e 46 seg.). Entrevista concedida
para pesquisa histórica.
304
O Rock in Rio é um festival musical sediado no Rio de Janeiro. “O ano era o de 1985 e o país passava por
grandes transformações. Após longo período sob uma ditadura militar, o país começava a dar os primeiros
passos rumo à democracia. Foi nesse cenário que nasceu o Rock in Rio. Pela primeira vez, um país da América
do Sul sediou um evento musical desse tipo.” Retirado in: http://rockinrio.com/rio/pt-BR/historia acesso em:
28/12/2017 ás 8:10.
121

dos principais pontos de socialização dos jovens em São Gabriel, mas nem todos os jovens
frequentavam-na. Jandira Ferreira, natural de São Gabriel e habitante até os dias de hoje na
cidade, apontou que tinha muita vontade de ir às boates, mas seu pai não permitia devido à
imagem profana que espaços como esses tinham na época. Ela e os amigos se divertiam nos
finais dos anos de 1980 e início de 1990, época de sua juventude, principalmente em festas
privadas e domésticas. Jandira narrou,

A gente fazia nessa época assim, eu com o grupo de amigos e amigas da


época, a nossa diversão não era tão voltada para festas de rua, porque assim,
as festas não eram como hoje, né? Porque hoje tem festas em todos os locais,
em todas as regiões, mas naquela época não se ouvia tanto em falar em festa.
[...] Também da forma como eu fui criada e os meus pais eles não tinha,
assim sabe, aquela segurança de deixar a gente ir pras festas, e aí as festas
que nós íamos sempre era de casamento, batizados, porque um batizado na
década de 80, filha, era comparada com uma festa mesmo, porque o que
tinha de bebida, o que tinha de comida e de dança, e tudo era como se fosse
uma festa mesmo. 305

Para Jandira, desde os fins dos anos de 1980, as opções de lazer na cidade eram poucas
e à criação conservadora da maior parte das mulheres tornava difícil à ida dela e de outras
jovens nos poucos eventos que aconteciam na cidade. Por conta disso, o que ficou marcado
em sua memória foi à participação em comemorações particulares, “de família”, como
argumentou à entrevistada. Os batizados, casamentos e aniversários eram, para Jandira, o
maior meio de socialização e diversão com seu grupo de amigos. A entrevistada fala dos
eventos como se eles fossem festas, fazendo uma comparação com os festejos de rua.
Entendemos, entretanto, que tais encontros “de família” eram festas, sim, já que festa é toda
celebração que tenha indivíduos socializando por alguma motivação e que ela seja formada
por crenças e símbolos.306 Em relação à nova boate Rock in Rio, Jandira Pereira aponta que,

Quando saiu a Rock in Rio, a primeira Rock in Rio era ali onde era a Cesta
do povo que hoje está a pizzaria, era ali a Rock in Rio. Gente, mas eu tinha
vontade de ir na Rock in Rio. E eu lembro de Tetê Spindola quando surgiu a
Rock in Rio aqui no Brasil, que Tetê Spindola fez o sucesso com aquela
música “ você pra mim foi um sonho”, ele tocou aí, todo mundo queria
aprender essa música e aquela época da Rock in Rio que foi uma explosão
no Rio de Janeiro. E foi e colocaram aqui uma boate da Rock in Rio, aqui em
Gabriel e eu tinha uma vontade de ir na Rock in Rio. Década de1990, já foi
90, quando a Rock in Rio veio aqui foi na década de 90, eu não cheguei a ir,
mas as minhas colegas todas iam, quando era na segunda feira, na escola,
todo mundo ia com uma novidade da Rock in Rio pra contar, porque
305
SENA, Jandira Francisco Pereira. Jandira Francisca Pereira Sena: depoimento I [out. 2017]. Entrevistadora:
Larissa Godinho Martins dos Santos. São Gabriel-Ba, 2017. 1 arquivo mp3( 44 min.). Entrevista concedida para
pesquisa histórica.
306
TEIXEIRA, 2010, p. 16.
122

colocava aquelas luzes coloridas né?! (...) E as meninas chegavam: “gente,


luzes negras”. E elas passavam maquiagem e era uma graça lá dentro. Eu sei
que tudo era novidade, quando chegavam assim, mas pra nós que já morava
muito longe, nossos pais não deixavam.307

Além da distância, por morar em um bairro afastado do centro da cidade, onde se


localizava a boate, o espaço não era visto como um lugar indicado para as “moças de família”
frequentarem. Como salientou Jandira, ela e algumas amigas frequentavam festas de
“família”. Entretanto, é possível observar, diante sua fala, que mesmo que a boate tivesse uma
imagem negativa, algumas moças compareceram e viveram o espaço de interação na cidade.
Segundo as falas dos entrevistados, a boate foi muito frequentada, principalmente, pelo fato
de os donos do local terem apostado em nomes de artistas nacionais que agradava uma boa
parte dos jovens da cidade naquele período. Tetê Spindola foi uma das artistas que, ao se
apresentar na Rock in Rio, causou grande alvoroço entre os jovens em São Gabriel. A artista
também foi atração muito esperada na nona Cantoria e contou para um grande público.
Jandira Pereira apontou que a boate Rock in Rio foi, nos fins dos anos 1980 e em 1990,
um dos maiores pontos de sociabilidade dos jovens em São Gabriel. Além da Rock in Rio,
também surgiu outra boate chamada Berimbau que foi outro espaço de festa e encontro de
alguns jovens. Orlando Novaes, diferente de Jandira Pereira que foi privada de ir em algumas
festas por ser mulher, viveu as boates e também participou de festas da região. Segundo
Orlando Novaes, os meios de lazer do seu grupo de amigos eram

Jogar futebol, participar de alguma festinha, muita pouca coisa, pouca coisa
tinha na época, era bola mesmo e festinha que era no Berimbau e era lá na
porta! Tinha também festa em Presidente Dutra, Barra do Mendes que era o
Carnaval que a gente não perdia também, Xique-Xique, Jussara. Toda
Região tinha festa, só que o mais correto era festa na cidade né, e que não
tinha.308

Para Orlando Novaes, o futebol era um importante meio de lazer para os jovens
homens nos anos de 1980 e 1990. Os times na cidade eram compostos por homens, entretanto,
quando aconteciam os campeonatos, eram momentos de homens e mulheres se encontrarem.
Há na cidade um grande interesse de muitos jovens, até os dias atuais, pelo futebol. Os
campeonatos ainda são ponto de encontros significativos. Orlando não cita a Rock in Rio, mas

307
SENA, Jandira Francisco Pereira. Jandira Francisca Pereira Sena: depoimento I [out. 2017]. Entrevistadora:
Larissa Godinho Martins dos Santos. São Gabriel-Ba, 2017. 1 arquivo mp3( 44 min.). Entrevista concedida para
pesquisa histórica.
308
ABREU, Orlando Novaes. Orlando Novaes Abreu: depoimento I [Set. 2017]. Entrevistadora: Larissa Godinho
Martins dos Santos. São Gabriel-Ba, 2017. 1 arquivo mp3 ( 9 min. ). Entrevista concedida para pesquisa
histórica.
123

fala da Berimbau. Ele aponta que a maioria dos frequentadores ficavam na porta da boate, que
hora ou outra entravam, de modo que a frente da boate já havia se tornado ponto de encontro,
paquera e divertimento. Os entrevistados narram que em São Gabriel não existiam festas
oficiais. Orlando Novaes, assim como muitos outros entrevistados, incluindo os membros da
Fundação Culturarte, se deslocavam às cidades vizinhas para “pegar” festas.
A Cantoria surgiu, no contexto em que as boates se tornaram “populares” em São
Gabriel, como mais uma opção de lazer e sociabilidade para os jovens da cidade. Entretanto,
nem todos os jovens se identificavam com os estilos musicais propostos na Cantoria, pois nos
anos 1990, em São Gabriel, em grande medida, as músicas escutadas eram o sertanejo, o axé,
o brega e a jovem guarda.
Segundo Jandira Pereira, “ouvia muita música da jovem guarda da época, é tanto que
até hoje eu sinto saudades, que era José Roberto, Jerry Adriane na época, Roberto Carlos,
aquelas músicas assim, então era esse tipo de música.”309 Orlando Novaes apontou que “era as
músicas melhor que existia no mundo, Roberto, Paulo Sergio, música pop, nesse tempo não
existia esse negócio de funk, não.”310 A partir da fala dos dois entrevistados podemos
perceber que existia entre os jovens uma diversidade musical significativa em São Gabriel,
pois eles eram embalados em maior proporção pelo chamado brega e pela jovem guarda311.
Marilú Soares apontou a Música Popular Brasileira como o estilo musical que gostava de
ouvir. Assim como Jandira Pereira, as principais festas que frequentava eram os batizados, os
casamentos. Quando a Cantoria surgiu, se tornou para ela um novo lugar de lazer.

Eu ia em festa assim: casamento, batizado. Era as festas mais próxima,


assim, e que a gente mais frequentava, eram essas festas. [...]Naquela época,
o que a gente fazia mesmo era participar das Cantorias.Aí era o divertimento
nosso, era um lugar que era familiar e a gente podia amanhecer o dia,
cantava, dançava a noite toda e as músicas, era mais essas músicas velhas

309
SENA, Jandira Francisco Pereira. Jandira Francisca Pereira Sena: depoimento I [out. 2017]. Entrevistadora:
Larissa Godinho Martins dos Santos. São Gabriel-Ba, 2017. 1 arquivo mp3( 44 min.). Entrevista concedida para
pesquisa histórica.
310
ABREU, Orlando Novaes. Orlando Novaes Abreu: depoimento I [Set. 2017]. Entrevistadora: Larissa Godinho
Martins dos Santos. São Gabriel-Ba, 2017. 1 arquivo mp3 ( 9 min. ). Entrevista concedida para pesquisa
histórica.
311
De acordo com Paulo César Araújo, o termo “brega” começou a ser divulgado a partir dos anos de 1980 para
denominar de forma pejorativa a música entendida como cafona.O brega é uma mistura de bolero, samba e
balada romântica.ARAÚJO, Paulo Cesar de. Eu não sou cachorro não. Rio de Janeiro: Record, 2005. A jovem
Guarda surgiu bem antes, nos anos de 1960 a partir de um programa de televisão transmitido pela Rede Record,
porém foi bem mais que um programa, tornou-se um estilo musical que influenciou vários outros ritmos no
futuro. Os principais nomes da Jovem Guarda foram Roberto Carlos, Erasmo Carlos e Wanderléa. FRÓES,
Marcelo. Jovem Guarda em Ritmo de Aventura. São Paulo: Editora 34, 2000.
124

não era essas músicas de hoje não, eu nem sei te dizer os nomes das músicas
(pausa para pensar) é MPB, o que mais tocada na época. (sic) 312

A partir da fala de Marilú Soares, compreendemos que, assim como os membros do


Culturarte, alguns jovens preferiam o rock, o que se convencionava chamar de Música
Popular Brasileira e as cantorias. As narrativas de Marilú Soares e de Jandira Pereira nos
revela como as mulheres em São Gabriel eram privadas de frequentar algumas festas por
conta do controle moral por parte de pais guiados por uma lógica machista comum na cidade.
As entrevistadas trazem as Cantorias como um novo e importante espaço de sociabilidade
para elas.
Assim como Marilú e demais entrevistados, Ednilson Miranda contou sobre as opções
de lazer que eles tinham em São Gabriel, as músicas que ouviam, as festas que frequentavam
em outras localidades. A Cantoria passou a ser, para ele, a festa que fazia questão de
frequentar todos os anos. Segundo Ednilson Miranda,

Acho que ouvia de tudo um pouco, pop Rock, Rock, o próprio estilo musical
aqui da Bahia mesmo, timbalada e MPB. A gente tinha boates, e hoje já não
existe mais boates, mas nessa década de 80 e 90 São Gabriel tinha boates.
Também as festas fora. Eu, juntamente com alguns amigos, fretava carro na
época e ia para Irecê, Presidente Dutra, Lapão. Era aniversário da cidade,
carnaval etc.[...] Participei da primeira Cantoria. Tenho lembranças que foi
na praça ali onde é chamada a praça do comercio, eu lembro que foi feito em
cima de uma carroceria de caminhão e principalmente com artistas mais
locais, ainda sem investimento grande na questão de trazer artistas famosos
de fora.[...] Teve uma Cantoria que ela foi realizada lá na praça da quadra,
que terminou com chuva, essa foi muito interessante, nem só eu, mas muitas
pessoas que estavam lá ficou marcada como referência.Foi umas das
primeiras, mas essa época já teve a apresentação de Zé Geraldo, mas eu não
lembro a data não. Essa marcou, apesar de ter algumas atrações nacionais
boas, teve a contribuição da chuva, aquele inverno e a praça cheia e ninguém
saiu pela questão da chuva.313

A narrativa de Ednilson Miranda é sincronizada com as das demais pessoas


entrevistadas em relação às opções de lazer. Ele, assim como Marilú Soares, gostava do estilo
proposto pela Cantoria e aderiu à festa, vendo-a como mais um importante espaço de lazer e
sociabilização na década de 1990. O entrevistado relembra, com carinho, as primeiras edições
da festa e mostra como a Cantoria proporcionou momentos emocionantes em sua vida.
312
DOURADO, Marilú Soares dos Santos. Marilú Soares dos Santos Dourado: depoimento I [Nov. 2017].
Entrevistadora: Larissa Godinho Martins dos Santos. São Gabriel-Ba, 2017. 1 arquivo mp3 ( 7 min. e 34 seg. ).
Entrevista concedida para pesquisa histórica.
313
MIRANDA, Ednilson Martins De. Ednilson Martins De Miranda: depoimento I [Out. 2017]. Entrevistadora:
Larissa Godinho Martins dos Santos. São Gabriel-Ba, 2017. 1 arquivo mp3 ( 8 min. e 45 seg. ). Entrevista
concedida para pesquisa histórica.
125

Ednilson, Marilú e até mesmo Orlando Novaes foram alguns dos jovens que naquele contexto
ajudaram a somar o público da festa e, consequentemente, ajudaram a ampliar o evento.
Mesmo que pessoas como Jandira Pereira e Orlando Novaes tenham frequentado
poucas edições da Cantoria, na década de 1990, eles contribuíram para aumentar o número de
espectadores naquele momento em que a festa se formava pouco a pouco. Eles apontaram que
foram em algumas edições da festa, entretanto, também fizeram críticas ao Culturarte e à
própria Cantoria. Segundo Orlando Novaes, ele e alguns de seus amigos não gostavam muito
do ritmo de músicas que eram priorizados na Cantoria, mas iam por ser mais uma festa na
cidade e um meio de diversão, já que as opções eram restritas.314 Isso sugere que algumas
pessoas em São Gabriel não frequentaram as primeiras Cantorias por não gostarem do estilo
musical, pois nem todos os jovens gostavam das modas de violas e cantigas, como os jovens
do Culturarte. E, como Orlando Novaes, existiam muitos jovens que preferiam ir à festa a
ficar em casa, não por gostarem da programação, mas por ver ali mais um espaço de encontro,
paquera e diversão. Sobre a festa, Orlando Novaes apontou que,

Cantoria é uma coisa que sou muito por fora. Frequentei muito pouco,
pouquíssimo, nunca foi muito meu tipo de música. No início foi muito
difícil, esse pessoal da Cantoria foi um pessoal muito confiante que
acreditaram que ela ia crescer e não pararam mais, mas no início foi muito
difícil, as pessoas iam muito pouco pra festa, não tinha cantores de fora, só
cantores local mesmo, mas no início foi muito difícil. As pessoas preferiam
ir pra outra festa do que a Cantoria. As pessoas criticavam, e como
criticavam.Até hoje eu não participo, se for um Zé Geraldo, eu vou.315

Orlando Novaes narra à dificuldade de a Cantoria cair no gosto dos gabrielenses,


muito por conta do estilo musical da festa. Uma crítica presente na fala do entrevistado é a
programação, isso porque nas primeiras edições a maioria dos artistas que se apresentaram
eram artistas locais, o que fazia com que alguns jovens optassem em ir a outras festas fora da
cidade. A Cantoria não era nem de longe um dos programas preferidos de Orlando Novaes,
mas no fim de sua fala ele demonstra que frequentou algumas edições, principalmente pelo
fato de o Culturarte conseguir trazer alguns artistas de reconhecimento nacional como Zé
Geraldo, que agradava um público numericamente maior. Assim como Orlando Novaes,
muitas pessoas não frequentaram a Cantoria apenas por preconceito, mas por falta de interesse
e afinidade com o estilo.

314
ABREU, Orlando Novaes. Orlando Novaes Abreu: depoimento I [Set. 2017]. Entrevistadora: Larissa Godinho
Martins dos Santos. São Gabriel-Ba, 2017. 1 arquivo mp3 ( 9 min. ). Entrevista concedida para pesquisa
histórica.
315
Ibid.
126

A narrativa de Orlando Novaes serve para compreendermos que a festa faz parte da
memória de muitas pessoas de São Gabriel, mas não de todas as pessoas da cidade. Orlando
Novaes é uma das pessoas que não possui uma identificação com a festa. O Culturarte e a
Cantoria não tiveram importância em sua trajetória. Entretanto, sua memória dialoga com a
dos membros do grupo em relação as dificuldade e às críticas que os fundadores sofreram
para construir a festa.
A partir das entrevistas realizadas com homens e mulheres com faixa etária entre 40 a
67 anos, percebemos que, nas décadas de 1980 e 1990, em São Gabriel, a música era um
elemento presente na vida das pessoas, contando com uma diversidade muito grande de
gostos musicais. Segundo Erismar Novaes, na década de 1990,

começa deixar de existir os clubes fechados, ou eles passam a existir de


outras formas, existia ali o Rock in Rio, Berimbau que ainda eram os espaços
fechados para tocar música, e dançar, e extravasar.E esse início dos anos 90
entram em decadência e diminui, inclusive diminui esse negócio de eventos.
Então, não era fácil. O acesso ao lazer era totalmente restrito. Tanto que é
dessa época, vale pontuar, os passeios para o pai Inácio, que era como nós
chamávamos, que era para ir ali para o Rio Mucugê na Chapada Diamantina.
Eram dois meses organizando, vendendo passagem para lotar um ônibus,
dois ônibus que se deslocava para a Chapada Diamantina para passar um dia
de lazer. Era em busca desse lazer, porque não existia ali nada que pudesse
ter.316

Como apontou o entrevistado, foi na década de 1990 quando os clubes entraram em


declínio e as opções de lazer passaram a ser quase nenhuma, que os jovens tiveram de
inventar maneiras de socialização e diversão, como viagens. Os passeios para a Chapada
Diamantina era um roteiro muito desejado pelos jovens de São Gabriel, mas é importante
pontuar que nem todo mundo tinha condições financeiras para fazer parte desses itinerários.
Outra opção eram os encontros nas casas de amigos. Nesse contexto, a Cantoria apareceu
como uma opção de lazer e confraternização gratuita. O Culturarte priorizou, na festa, as
modas de viola e as cantorias, além de trazer um pouco do rock, que era até ouvido por um
número maior de jovens na época. Para o Culturarte, a Cantoria se construiu ano após ano e
foi se profissionalizando, se organizando, crescendo e aos poucos foi ampliando os estilos
musicais, sem perder de vista a valorização das cantorias. Aos poucos as pessoas foram
conhecendo a festa.

316
ROCHA, Erismar Novaes. Erismar Novaes Rocha: depoimento I [ Jan.. 2018]. Entrevistadora: Larissa
Godinho Martins dos Santos. São Gabriel-Ba, 2018. 1 arquivo mp3 ( 1h. 58. min. e 27 seg. ). Entrevista
concedida para pesquisa histórica.
127

3.2 O Culturarte: Conflitos externos e internos

Alguns jovens passaram a participar da Cantoria, porém por muito tempo – talvez até
os dias atuais – as pessoas da cidade nutriram uma antipatia em relação aos membros do
Culturate. Isso pode ser reflexo do preconceito e do estranhamento que existiu em relação ao
grupo nos primeiros anos de organização da festa. Além disso, há uma outra questão. A
antipatia existe, principalmente, por parte das pessoas que eram jovens no período em que o
grupo iniciou suas ações e acreditavam que o Culturarte se considerava uma vanguarda em
São Gabriel. Isso fez com que algumas pessoas não tivessem o interesse em aderir ao grupo.
A festa foi aceita e passou a fazer parte da vida da maioria dos habitantes em São Gabriel,
mas os jovens do Culturarte ainda continuaram sendo alvo de críticas. Muitos jovens
passaram a frequentar a festa, mas se distanciavam da possibilidade de ingressar no grupo.
Segundo Jandira Pereira,

na minha concepção, eu só acho assim, que eram pessoas que só enxergava


isso aqui ó (apontou para o umbigo). Quem tava lá dentro não tinha uma
visão de ampliar, só visava seu próprio interesse, eram pessoas egoístas. O
que eu vejo, o que faltou foi isso, pessoas que tinham uma visão assim pra
ampliar mesmo. Porque assim, se é pro lugar, pra atender a necessidade.317

Jandira Pereira viveu os anos de construção do Culturarte e da Cantoria. Ela foi uma
das pessoas que não gostava tanto do estilo musical que a Cantoria apresentava, mas sabia da
importância da festa para a cidade e por isso passou a frequentar o evento. Porém, ela também
foi uma das pessoas que criou uma identidade com a festa, criticava, e ainda hoje critica, o
modo de atuação do grupo e sua forma de se apresentar para a sociedade. Em sua fala, Jandira
Pereira aponta a maneira fechada que o Culturarte atuou durante os seus primeiros anos de
atuação. Para a entrevistada, existia um pensamento individualizado, voltado apenas para
pessoas que eram membros, faltando vontade de agregar outros jovens ao projeto. Ela acredita
que o projeto da Cantoria poderia ter sido usado como meio de trazer jovens para o mundo da
arte e que se isso tivesse sido feito lá atrás, hoje, o Culturarte poderia estar agindo nesse
sentido. Para ela, o Culturarte não teve sucesso em promover outras atividades para além da
Cantoria, por conta da falta de vontade dos membros da Fundação em aceitar novas pessoas e
novas ideias.

317
SENA, Jandira Francisco Pereira. Jandira Francisca Pereira Sena: depoimento I [out. 2017]. Entrevistadora:
Larissa Godinho Martins dos Santos. São Gabriel-Ba, 2017. 1 arquivo mp3( 44 min.). Entrevista concedida para
pesquisa histórica.
128

A visão que Jandira Pereira tem do Culturarte, enquanto um grupo que se sentia uma
vanguarda na época, era a visão de muitas pessoas em relação ao grupo.318Orlando Novaes
afirmou: “Nunca participei daquilo ali” ao se referir ao grupo. O tratamento de Orlando em
relação à Fundação como “aquilo ali”, demonstra como ainda hoje há pessoas que
demonstram desinteresse em relação ao desenvolvimento e atividade do Culturarte.
A partir das entrevistas, entendemos que a leitura feita por outros jovens em relação ao
grupo poderia ser facilmente a de um grupo que se via com superioridade na cidade, por
gostar de estilos musicais diferenciados, de um estilo de vida diferente, por estar sempre
buscando participar da vida social da cidade e pela ousadia de protagonizar um evento
cultural. Jandira Pereira lembra que o grupo fazia questão de ser restrito. Para os seus
membros, entretanto, o grupo sempre esteve aberto a quem quisesse participar.
Provavelmente, havia uma falta de comunicação entre o Culturarte e outros jovens da época
que se interessavam pela construção do evento. Segundo Erismar Novaes,

[...] é preciso compreender a Cantoria como uma intervenção cultural, como


o único espaço de protagonismo desse grupo. Então assim, claro que esse
grupo de pessoas tinha muito orgulho do que fazia, e claro que ele tinha uma
leitura de cultura diferente de hoje, e tinha alguns aspectos de imaturidade.
Então assim, era um grupo que ouvia Bob Dylan, Joan Baez, que ouvia a
cantoria de Elomar Figueira de Melo, era um grupo que tinha acesso a uma
cultura para além dos limites de São Gabriel e do que se convenciona a
chamar de cultura de massa, que era a cultura do brega, do sertanejo, do axé
que era bem forte. [...] Havia uma leitura inocente, e é importante você
sempre pontuar isso, de que a cultura que esses jovens estavam propondo de
interação da cultura universal com cultura de raiz sertaneja, que é a cantoria,
era superior ao axé e aos ritmos que havia, era uma leitura inocente da coisa,
mas havia um orgulho ligado (sic) aquilo, um orgulho de fazer. Então, havia
uma presunção de estar construindo algo maior, porque se não, não tinha
sentido de estar fazendo o que era cultura corrente, mas é o orgulho e o nariz
empinado, vinha mais de um aspecto de estar ali naquele espaço, único
espaço de protagonismo e de afirmação para aquele grupo social que se
juntou, do que está trazendo uma coisa nova.319

Erismar Novaes foi o único membro do grupo que afirmou que existia por parte dele e
de seus amigos, uma ideia de superioridade no projeto da Cantoria em relação a outros
eventos e festas que aconteciam na cidade. Para ele, esse orgulho existia, mas era fruto de
318
SENA, Jandira Francisco Pereira. Jandira Francisca Pereira Sena: depoimento I [out. 2017]. Entrevistadora:
Larissa Godinho Martins dos Santos. São Gabriel-Ba, 2017. 1 arquivo mp3 ( 44 min.). Entrevista concedida para
pesquisa histórica.
319
ROCHA, Erismar Novaes. Erismar Novaes Rocha: depoimento I [ Jan.. 2018]. Entrevistadora: Larissa
Godinho Martins dos Santos. São Gabriel-Ba, 2018. 1 arquivo mp3 ( 1h. 58. min. e 27 seg. ). Entrevista
concedida para pesquisa histórica.
129

uma ingenuidade, pois eram jovens e imaturos, o que fez com que eles fossem movidos pela
ideia de uma vanguarda que construía um evento bem maior, perto do que existira ali até
então. Isso fica evidente, principalmente, em relação aos estilos musicais que a maioria dos
jovens da cidade gostavam, já que o grupo considerava que as músicas ouvidas por eles, como
as cantorias, o rock e a MPB, eram mais educativas, poéticas e inteligentes do que os outros
estilos como o brega, o axé e o sertanejo. Para eles, é possível que essa diferença no gosto
musical impactasse em suas posições políticas que refletiam na realização da festa, na ideia de
valorização da cultura, dos costumes e dos símbolos locais e nos estilos musicais priorizados
na festa.
Erismar Novaes aponta que o “nariz em pé”, uma das críticas recorrentes direcionadas
ao grupo, não existia por eles se acharem superiores. O entrevistado evidencia que a maneira
fechada e, as vezes hostil, de dialogar com outras pessoas era uma forma de defesa, já que
eles se viam no lugar de marginalizados. Eram pessoas que acreditavam que a Fundação
Culturarte e a festa eram os únicos lugares de protagonismo, onde podiam expressar suas
ideias e afirmar suas identidades. Entretanto, o entrevistado não deixa de colocar que
acreditavam que a Cantoria era uma festa diferenciada, já que ali era organizado por pessoas
“pensantes”, questionadoras e que tinham percepções inquietantes acerca do mundo.
Pensando a festa com esse propósito, Bezerra aponta que,

As festas, contudo, não têm sido utilizadas somente para afirmar a coesão
dos habitantes nas cidades e, portanto, das relações hegemônicas, mas
também foram e são utilizadas para construir uma unidade e (re) significar a
identidade de grupos subalternizados historicamente.320

Concordando com a citação de Bezerra e analisando as falas de Erismar Novaes,


podemos pensar que a Cantoria era um lugar onde aquele grupo se encontrava e (re)
significava suas identidades e se reafirmavam. Era um local onde buscavam socializar com a
sociedade os seus gostos, talentos e ideias de mundo, e onde buscavam ser aceitos, mas que ao
mesmo tempo, procuravam preservar o lugar de protagonismo em uma festa que ganhou
grande dimensão e passou a fazer parte da vida dos habitantes de São Gabriel. Desse modo, o
Culturarte era, para os seus membros, um lugar onde podiam ser protagonistas da expressão
das ideias de liberdade - Portanto, não queriam perder esse espaço. È provável que eles
acreditassem que a ampliação do grupo fosse uma ameaça de perda de lugar social. Além
disso, acreditamos que havia o desejo de preservarem as ideias centrais do grupo.

320
BEZERRA, 2008, p.9.
130

Provavelmente a leitura que faziam é de que se o grupo fosse demasiado aberto, não
conseguiram impor suas ideias em função das divergências. Segundo Erismar:

Você está lidando com gente rebelde, rebelde na acepção política da palavra.
Rebeldia naquele sentido que é um grupo que saiu dos estágios de evolução
para a transformação, é um grupo que ainda não é revolucionário, mas que
enxerga um mundo diferente do que está ali e questiona esse mundo e age
sobre esse mundo. Então, o rebelde é, antes de qualquer coisa, um
pretensioso, né?! Porque senão, não existe rebeldia, porque se existe
ponderação, não existe rebeldia (risos). Então, não dá para negar a percepção
que parte da sociedade tinha e tem ainda desse grupo em relação à atuação,
mas não dá para analisar ele sem levar em consideração a análise
psicológica, a análise política, análise das relações sociais que essa
sociedade já travava anterior a 1991 com esse grupo que era de
marginalização. Então toda ação tem uma reação.321

O entrevistado lembra as emoções que moviam o grupo – incluindo o orgulho e o


“nariz em pé” citado acima – como uma resistência à marginalização sofrida por alguns deles
desde os anos de 1970, que permaneceu em 1990. Para Erismar Novaes, isso explica uma boa
parte da resistência que tiveram em ampliar o grupo, em dialogar com pessoas que
frequentaram algumas das reuniões da Fundação e com os políticos locais. Para o
entrevistado, é impossível entender o que foi o Culturarte na década de 1990 sem buscar
compreender o MAC e JUPP, sem pensar as questões políticas que o grupo defendia e,
principalmente, sem pensar as questões psicológicas daqueles jovens. Por isso, para ele, não
dá para tecer críticas antes de conhecer a trajetória de luta, na cidade, dos indivíduos que
integram o Culturarte.
A partir da fala dos entrevistados e, sobretudo, da fala de Erismar Novaes, entendemos
que os jovens fundadores acreditam que a rebeldia do grupo foi importante para que
defendessem espaços que, para eles, foi negado por muito tempo, e que, ainda na década de
1990, foi motivo de disputas. A forma como o grupo agia e se colocava para a sociedade pode
ser entendida como mecanismo de defesa. Esse posicionamento, conforme justificou o
entrevistado, muitas vezes foi interpretada como prepotência e arrogância, contribuindo para
que o grupo fosse criticado por parte de algumas pessoas. O fato de alguns jovens não
teremconquistado sucesso em dialogar com grupo, fez com que pessoas como Jandira Pereira
alimentasse, nos dias atuais, a visão de um núcleo de pessoas fechadas.

321
ROCHA, Erismar Novaes. Erismar Novaes Rocha: depoimento I [Jan.. 2018]. Entrevistadora: Larissa
Godinho Martins dos Santos. São Gabriel-Ba, 2018. 1 arquivo mp3 ( 1h. 58. min. e 27 seg. ). Entrevista
concedida para pesquisa histórica.
131

Naquela época, é possível que Jandira Pereira já enxergasse o grupo como fechado.
Entretanto, é provável que as conclusões em relação ao perfil do grupo tenham sido
construídas com o passar dos anos e essa ideia tenha se formado nos dias atuais. Em relação à
inserção de outros jovens no grupo, Erismar Novaes colocou que,

Esse grupo tinha uma linguagem própria e uma forma de interação própria. E
não era tão homogêneo como se imagina, né? Então, era comum muitas
discussões, o sangue ferver durante as decisões. Então, sempre que se
tentava essa ampliação da Fundação, da recepção de outras pessoas, era um
estagio muito doloroso para quem era chegado, que não entendia a
linguagem cultural daquele grupo. Então assim, não era uma questão de
resistência a outras forças que não se ampliava. Não se ampliava de fato e
era uma crítica. Foi se ampliando em quantidade, muito lentamente, quem
vinha de fora. Só pessoas fortes para permanecer naquele ambiente hostil,
porque não tinha uma dinâmica. Mas eu vejo como aspecto de um grupo que
ainda não sabia lidar com seus sentimentos, com as críticas frente a
sociedade. Ao mesmo tempo, chegava muita gente tentando se inserir no
Culturarte.Saía muita gente porque os processos desse grupo de decisão, de
definição de encaminhamento, de discussão de conflito interno eram
intensos também e as pessoas não estavam acostumadas. Então, para quem
não participou desse ato fundador, e mesmo alguns que participaram, era um
processo totalmente alienígena do que as pessoas tinham visto até ali, então
se você não tinha participado para entender, para se sentir parte daquilo ali,
você ia dizer, “eu não vou participar disso aqui não, isso é um bando de
maluco”(risos).Entende?322

A expressão “vir de fora” faz referência às pessoas que não tiveram envolvimento com
o grupo desde o início, ou que não tivesse uma trajetória de militância próxima à daqueles
jovens. Para o entrevistado, era muito difícil para quem não estava desde o começo
permanecer no grupo, já que as reuniões eram sempre muito intensas. Segundo o entrevistado,
era preciso entender e se reconhecer nas ideias do grupo, entender sua linguagem e suas
proposições. Quando o entrevistado fala em linguagem própria, entendemos que ele se refere
a uma forma subjetiva de articulação e construção da festa. No entanto, a fala pode ser
interpretada como uma escolha do grupo em manter a restrição.
Erismar Novaes aponta, ainda, a dificuldade que até “os fortes” – referindo-se aos
fundadores do grupo e da Cantoria – tiveram em permanecer. Alguns chegaram a desistir do
projeto por conta dos intensos conflitos internos nos momentos de definições, organização e
análise da festa. O entrevistado justifica as grandes tensões internas e algumas externas, muito

322
ROCHA, Erismar Novaes. Erismar Novaes Rocha: depoimento I [Jan.. 2018]. Entrevistadora: Larissa
Godinho Martins dos Santos. São Gabriel-Ba, 2018. 1 arquivo mp3 ( 1h. 58. min. e 27 seg. ). Entrevista
concedida para pesquisa histórica.
132

por conta da imaturidade de lidarem com as críticas e os diversos sentimentos. Os que


surgiam dentro do grupo, como medo, insegurança, vaidade, tristeza e raiva, e os causados
pelos contatos externos por conta da rejeição, do estranhamento, as perseguições e a
difamação.
A partir da análise das narrativas de Jandira Pereira e de Erismar Novaes, podemos
perceber que além da discriminação em relação aos membros do grupo por conta de suas
ideias, do estilo e do jeito de agir, as pessoas não se aproximavam do grupo por acreditarem
que eles se sentiam superiores aos demais jovens, por ouvirem músicas diferentes, por
defenderem ideias diferentes e por terem dificuldades de dialogar. A partir da fala de Erismar,
compreendemos que, de certa maneira, eles acreditaram ser uma vanguarda, e ainda que tenha
sido por ingenuidade, eles acabaram reiterando esse papel.
Para Erismar Novaes, o Culturarte estava em processo de construção e os jovens
fundadores em processo de aprendizagem. Por isso, não saber lidar com as emoções e nem
com as críticas foi, para ele, mais um dos fatores que dificultou a interação com outros jovens,
impossibilitando a ampliação do grupo. Eles tiveram dificuldades em dialogar entre si, amigos
que desde muitos anos dividiam ideias, gostos e militâncias. Acreditamos que tenha sido
ainda mais difícil dialogar com quem não viveu os movimentos culturais e políticos que eles
viveram em São Gabriel antes do Culturarte. Para o entrevistado, esse distanciamento de
pensamentos causava, na maioria das pessoas que frequentava as reuniões do grupo, um susto.
Isso porque a ânsia de construir e de viver aquela festa era movida por fortes emoções que na
maioria das vezes eram mal administradas. Sobre os conflitos internos, Erismar Novaes
descreveu as reuniões como um ambiente muitas vezes hostil, o que revela que existiu pouca
conexão de ideias até entre companheiros de longas datas, levando a saída de alguns
fundadores,

essa dificuldade que a Culturarte tinha e que ainda tem de crescimento,


muito embora hoje continua nesse processo, porque o participar é um
processo complexo e quando não se desenvolve, e isso no campo de análise
de participação, a afetividade, que é um aspecto significativo de criação de
sinergia entre o grupo. Então, era um grupo que durante o processo de
construir a Cantoria, brigava, quebrava o pau, levantava o dedo.Nos
momento mais graves pessoas saiam chorando da reunião e não voltaria
mais.Mas aí era o mesmo grupo que ao final da primeira noite estava se
abraçando e se confraternizando e na comunhão que eu te relatei nas coisas
que me marcaram na Cantoria.323

323
ROCHA, Erismar Novaes. Erismar Novaes Rocha: depoimento I [ Jan.. 2018]. Entrevistadora: Larissa
Godinho Martins dos Santos. São Gabriel-Ba, 2018. 1 arquivo mp3 ( 1h. 58. min. e 27 seg. ). Entrevista
concedida para pesquisa histórica.
133

Segundo o entrevistado, era preciso ter afetividade em relação aos outros membros do
grupo para permanecer na Fundação, pois a troca de afeto era um ponto significativo para
minimizar os atritos e manter a vida do grupo. Os momentos de discordâncias, de hostilidade
e, algumas vezes, de agressividade, entre eles, ocasionaram a saída de várias pessoas como foi
pontuado, sendo o caso mais marcante o de Netão. Ele carrega, até os dias atuais, uma magoa
em relação ao Culturarte, ao ponto de cortar relações com quase todos os membros do
grupo.324 Por outro lado, Erismar apontou que, na maioria das vezes, depois dos conflitos tudo
voltava ao normal ao fim da realização do evento, isso porque existia uma afetividade entre as
pessoas. Caso contrário, o número de pessoas que deixariam o grupo seria bem maior, de
modo que talvez o grupo nem existisse mais, já que o fazer da Cantoria mexia muito com as
emoções de cada pessoa. Além dos conflitos com outros jovens por falta de diálogo, para
Erismar Novaes, as memórias mais doloridas são as dos conflitos internos.

Para mim, o que mais mancha as minhas lembranças é que a gente poderia
ter evitado muitos conflitos internos, poderíamos ter cuidado mais um do
outro, dos membros da Fundação. Poderíamos ter sido mais cuidadosos e
poderíamos compreender que diferentes pessoas têm diferentes formas de
perceber o mundo e diferentes níveis de sensibilidade. É, já me magoei
muito e certamente já magoei pessoas nesse processo de tentar encontrar o
melhor jeito de fazer a Cantoria. Isso, somado a vários fatos, foi afastando
muita gente e deixando muita gente entristecida. Pessoas que, inclusive, se
recusa a retomar o seu caminho de colaboração. Para mim, das lembranças
que eu trago, de arrependimento, é que nós, membros da Fundação,
deveríamos ter aprendido mais como lidar com os sentimentos e com o
compromisso de cuidar um do outro para nos fortalecermos e chegarmos
aqui nesse dia mais fortes, e todos. E aí, pessoas ficaram pelo caminho,
alguns porque desistiram da militância, porque é um ato de militância, outros
porque saíram magoados e alguns que aproveitaram essa magoa par dar esse
distanciador (sic.) do espaço de militância. Então, não soubemos lidar com
boa parte dos conflitos, que era com o lidar com fazer Cantoria.325

Erismar Novaes elenca como um dos seus arrependimentos a falta de cuidado com os
companheiros do grupo. Para ele, a falta de maturidade emocional para dialogarem entre si foi
responsável pela saída de muita gente, o que em muitos momentos enfraqueceu o grupo.
Segundo Erismar, fundadores maduros o suficiente para gerenciar suas emoções, facilitaria o
324
ROCHA. Agnolia de Oliveira. Agnolia de Oliveira Rocha: depoimento I [Dez. 2016]. Entrevistadora: Larissa
Godinho Martins dos Santos. São Gabriel-Ba, 2016. 1 arquivo mp3 ( 37 min. e 10 seg. ). Entrevista concedida
para pesquisa histórica.
325
ROCHA, Erismar Novaes. Erismar Novaes Rocha: depoimento I [ Jan.. 2018]. Entrevistadora: Larissa
Godinho Martins dos Santos. São Gabriel-Ba, 2018. 1 arquivo mp3 ( 1h. 58. min. e 27 seg. ). Entrevista
concedida para pesquisa histórica.
134

diálogo entre seus pares e com outras pessoas. A partir dos relatos orais, é possível perceber
que os membros fundadores andavam quase sempre na ofensiva, atitude reativa causada pelo
histórico das difíceis trajetórias dos movimentos culturais na cidade, o que pode ter
dificultado uma relação de cordialidade com comerciantes, políticos e pessoas que não
gostavam do grupo e da festa. A dificuldade de ampliar o grupo e dialogar para além dos
limites institucionais contribuíram para a demora de conquistar o lugar de festa da cidade, já
que a instabilidade nas relações internas e externas do grupo refletia muitas vezes nas
organizações da festa.
Erismar Novaes também aponta que fazer a Cantoria era, para o grupo, um ato de
militar pelo que eles acreditavam e que muita gente deixou de acreditar nos propósitos da
festa e aproveitaram os conflitos para justificar suas ausências. Esse pode ter sido o caso de
Netão e de muitos outros que abandonaram a militância na Cantoria por não se reconhecerem
nos caminhos que ela tomava. Sobre esse conflito Olavo Novaes, que foi membro do MAC,
aponta:

Eu penso que a Cantoria seja uma coisa maravilhosa para a nossa cidade.
Apesar que hoje as pessoas que formaram o Culturarte, tão bem aí, e pensam
que Netão é o vilão da história, eu vejo eles como umas pessoas que não vê o
sentido das coisas. Mas eu não tenho magoa deles não.326

Olavo Novaes era companheiro de Netão nos tempos do MAC e é um dos que acredita
que Netão tenha sido um importante personagem para a construção e desenvolvimento da
Cantoria. Olavo afirma não ter mágoa, o que pode ser entendido como um silenciamento de
memórias, já que o entrevistado fala das mágoas antes mesmo de ser questionado e critica
outros membros fundadores do grupo.327 Olavo informa que Netão recebeu o rótulo de “vilão”
co conflito que resultou em seu afastamento do grupo e seu distanciamento dos membros,
distancia que permanece atualmente. Em todo o seu relato, Olavo defende a imagem do amigo
e entende que o Culturarte tomou rumos diferentes daqueles projetados no processo de
criação. Não nos interessa e nem é de nossa responsabilidade entrar na questão de quem teve
ou não razão nos conflitos internos. Nosso compromisso é perceber e questionar as emoções
trazidas nas memórias de pessoas que atuaram no grupo, entre elas estão a mágoa, a raiva e a
tristeza em relação às desavenças.

326
ABREU, Orlando Novaes. Orlando Novaes Abreu: depoimento I [Set. 2017]. Entrevistadora: Larissa
Godinho Martins dos Santos. São Gabriel-Ba, 2017. 1 arquivo mp3 ( 9 min. ). Entrevista concedida para
pesquisa histórica.
327
POLLAK, 1989. P. 4.
135

No que diz respeito aos conflitos internos mencionados por Erismar Novaes e também
por Olavo Novaes, existem divergências de memórias. Alguns confirmam a existência dos
conflitos e outros, ao lembrarem da dinâmica do grupo, silenciam sobre eles. Vejamos as falas
de Valdelício Vaz e de Aimá Rocha:

Não existiam conflitos. Não tinha conflitos sabe por quê? Não tinha chefe.
Porque onde tem chefe, que um tem mais dinheiro do que o outro, aí fica
aquele negócio. Agora todo mundo era caçando ideia, a gente estava
comprando ideia.328

Não... Em torno da cantoria não, na verdade era um grupo muito unido nesse
aspecto, né?! Nunca teve essas divergências que confundissem os objetivos
da fundação. É normal que as pessoas pensem diferente, né?!Que tenham
alguns pensamentos diferentes, mas sempre se correu em torno dos objetivos
da fundação, nunca houve grandes divergências que tornasse isso qualquer
motivo pra impedimento da realização da cantoria ou qualquer outra
atividade da fundação.329

A primeira fala é de Valdelício Barreto. Nela, observamos que o entrevistado silencia


sobre os conflitos, especialmente quando ele afirma que não existiu nenhuma tensão entre
eles, já que ninguém determinava ordem à ninguém. Ele acredita que a paz do grupo se deu
por não existir um chefe. Para ele, a imagem de um chefe poderia ser uma coisa negativa. O
silenciamento de Valdelício tem muito a ver com a lógica de silenciar memórias negativas
dentro do grupo, na tentativa de mostrar o Culturarte sempre de forma positiva. Por outro
lado, é possível que para ele a continuidade da festa fosse mais importante do que os
conflitos. Por isso, ele não deu destaque as divergências, trazendo o que realmente lhe é
relevante ou que ficou marcada em sua memória.
Já Aimá Rocha mostra o grupo como muito unido, onde as pessoas olhavam na mesma
direção, ponto importante para garantir a construção da festa. O entrevistado aponta que não
houve “grandes divergências”, o que não implica em negar contendas. No entanto, ele não as
classificou como importantes, talvez com o mesmo objetivo de Valdelício, qual seja, tentar
construir a imagem positiva do Culturarte. A fala de Valdelício Barreto e a de Aimá Rocha
são diferentes da de Erismar Novaes. Erismar, do mesmo modo que Olavo Novaes pontuou a
hostilidade, as brigas e as intrigas que aconteceram em muitas reuniões, elencadas como

328
FILHO, Valdelício Barreto Vaz. Valdelício Barreto Vaz Filho: depoimento I [dez. 2016]. Entrevistadora:
Larissa Godinho Martins dos Santos. São Gabriel-Ba, 2016. 1 arquivo mp3 (51 min. e 54 seg.). Entrevista
concedida para pesquisa histórica.
329
ROCHA, Aimá Glicério Rocha. Aimá Glicério Rocha: depoimento I [Mai. 2017]. Entrevistadora: Larissa
Godinho Martins dos Santos. São Gabriel-Ba, 2017. 1 arquivo mp3 ( 31 min. e 40 seg. ). Entrevista concedida
para pesquisa histórica.
136

causadoras de grandes problemas no grupo, a exemplo do desligamento de membros e até


mesmo o fim da relação entre alguns deles.
Além de Aimá Rocha, outros membros rememoraram os anos de convivência,
descrevendo os conflitos como brandos, registrando as divergências e as tensões nas tomadas
de decisão para a construção da festa. Nenhum deles falou tão abertamente quanto Erismar
Novaes. Agnolia Oliveira, Luiz Sérgio e Itamá Rocha, na sequência, falaram dos conflitos da
seguinte forma:

É, tinha e ainda tem até hoje. Tem que ter, que é pra gente debater e discutir
e chegar num consenso do que é melhor. Tudo vai à votação. Tudo que a
gente faz é através de votação. A gente abre pra votação e a maioria que
decide. 330

Eu acho que sempre existiu, porque quando você forma uma comissão de
vinte, trinta pessoas, todo mundo pensa diferente. Às vezes o cara tem uma
ideia e a maioria não aceita. Até eu já fiquei com raiva também.
Unanimidade não vai existir nunca. Ah, muitas pessoas saíram, eu mesmo
fui de uns. Muita gente saiu. 331

Sempre, são discussões de ideia, né? É, e de propostas e de ideologias.


Nunca político, porque a Fundação ainda bem que conseguiu nesse tempo
todo ser apolítica. Mas têm as opiniões divergentes e que se discute, de
repente eu penso diferente do outro membro da Fundação. E o que falta
nessa Fundação, fazer através da discussão. 332

A primeira fala é de Agnolia Oliveira, uma das duas mulheres que participou da
fundação do grupo. A entrevistada não pontuou momentos de tensões entre ela e os homens
do grupo, mas confirmou a existência de discussões positivas nas reuniões, as quais ela
acredita que eram e ainda são um fator que dão movimento ao grupo. Na segunda fala, Luiz
Sérgio confirma o que Erismar afirmou sobre a saída de muita gente do grupo, deixando claro
que ele mesmo saiu por conta de divergências de ideias. Já na terceira fala, Itamá Rocha
também lembra que houve discordâncias de pensamentos entre os jovens fundadores. Os três
entrevistados apontam a existência de conflitos de ideias e buscaram trazê-los como uma
coisa positiva para a construção da Cantoria.

330
ROCHA. Agnolia de Oliveira. Agnolia de Oliveira Rocha: depoimento I [Dez. 2016]. Entrevistadora: Larissa
Godinho Martins dos Santos. São Gabriel-Ba, 2016. 1 arquivo mp3 ( 37 min. e 10 seg. ). Entrevista concedida
para pesquisa histórica.
331
NEIVA, Luiz Sérgio Batista. Luiz Sérgio Batista Neiva: Depoimento I [Dez. 2016]. Entrevistadora: Larissa
Godinho Martins dos Santos. São Gabriel-Ba, 2016. 1 arquivo mp3 ( 20 min. e 16 seg. ). Entrevista concedida
para pesquisa histórica.
332
ROCHA, Itamá Glicério. Itamá Glicerio Rocha: depoimento I [Mai. 2017]. Entrevistadora: Larissa Godinho
Martins dos Santos. São Gabriel-Ba, 2017. 1 arquivo mp3 (17 min. e 37 seg. ). Entrevista concedida para
pesquisa histórica.
137

Dos três entrevistados, apenas Luiz Sergio comentou a saída de pessoas por conta de
brigas. No entanto, ele não apresentou isso como problema para a continuidade dos projetos
naquela época. Outro ponto significativo na fala de Itamá Rocha foi sua preocupação em falar
que as divergências não eram políticas, alegando que a Fundação era apolítica. Sabemos que
não existe ser humano apolítico, pois todos se posicionam de algum modo. A própria
construção da festa é um ato político. No entanto, acreditamos que a fala do entrevistado
busca explicar que não havia política partidária explícita dentro do Culturarte, seguindo a
lógica de “defesa” do grupo.
As falas dos membros do Culturarte seguem a mesma lógica de “zelar” uma imagem
positiva do grupo. Isso fica visível porque a maioria dos entrevistados demonstra entender as
divergências como importantes para o desenvolvimento do projeto coletivo. Eles preferiram
exaltar os pontos positivos, sem tocar nas questões que levaram ao desligamento de muitos
membros, por não quererem ser lembrados de maneira negativa. Segundo Marieta Ferreira,

E nesse sentido é que se devem entender os embates próprios do campo da


memória. A todo momento, indivíduos e grupos tomam posições diante dos
acontecimentos e, ao fazerem isso, utilizam-se de memórias e reelaboram o
passado recente.333

As memórias do grupo em relação aos conflitos internos e externos, seguem uma


lógica parecida, contando com algumas exceções. É notório que os entrevistados, assim como
nos alertou Amado, tomaram posições diante do vivido e reelaboraram o passado.334 A grande
maioria deles construiu uma memória de um grupo unido, onde tinham pequenas divergências
de ideias e sem muitas intervenções. Por outro lado, foram poucos os que construíram a
memória de um grupo conflituoso e com dificuldades de articulação.
Segundo os relatos tanto dos membros fundadores, quanto de pessoas que não foram
do grupo, o Culturarte enfrentou conflitos com políticos pelo fato de a maioria dos membros
seguirem as ideias de partidos de esquerda. Além das dificuldades financeiras, os membros
apontam as dificuldades para conquistarem um lugar de protagonismo, tendo que lidar com a
difamação, o autoritarismo e com suas próprias emoções. Para eles, era preciso muita vontade
de construir e possuir uma identidade em relação à Cantoria, mas era sobretudo a vontade de
vencer e conquistar um lugar que prevalecia.

333
FERREIRA, Marieta de Moraes. Oralidade e memória em projetos testemunhais. In: LOPES, A. H.;
VELLOSO, M. P.; PESAVENTO, S. J. (Orgs.). História e linguagens: texto, oralidade e representações. Rio de
Janeiro: 7 Letras, 2006. p. 195 - 203. P.201.
334
AMADO, 1995, p.132.
138

As diferenças internas foram narradas na maioria dos relatos como um elemento sem
muita importância. Em suas narrativas, os membros fundadores elegeram como marcantes os
conflitos externos. O silenciamento em torno das divergências internas parte da tentativa de
serem lembrados como um grupo que teve uma trajetória harmoniosa.

3.3 As transformações da festa e suas características

A Cantoria trazia um conjunto de símbolos e elementos que a constituiu, entre eles,as


músicas, as cantorias que eram apresentadas a partir da junção do cantador, da harmonia da
viola e a canção. O estilo musical foi um dos principais símbolos da festa, tanto que a partir
dele o nome da festa foi eleito. Apesar de todos os outros escutados pelos membros do grupo,
as cantorias eram o que realmente tocavam os corações dos jovens fundadores.335
Os elementos em torno da festa eram todos voltados para a realidade da cidade: o
sertão, a seca, o trabalhador da roça, a caatinga etc. Existia toda a preocupação em trazer para
a festa a identidade sertaneja daquele povo. Os símbolos que estiveram presentes nos cartazes
também apareciam nas canções, pois os cantadores geralmente cantavam o seu cotidiano.
Talvez esse seja um elemento que justifique o porquê de os jovens fundadores gostarem tanto
do estilo; eles se reconheciam nas canções.
“Mais qui tempão de Deus no sertão catinguêro, vô dá um fora. Só dano um pulo
agora in Son Palo Triang' Mineêro.[...] Eu volto se assim Deus quisé.”336 Esse trecho é da
música Curva de Rio de Elomar Figueira Melo,337 um cantador muito citado pelo
entrevistados. Elomar e sua música retratam uma realidade vivida por muitas pessoas de São
Gabriel: a migração para o sudeste do país, sobretudo, para São Paulo, em busca de trabalho
devido aos grandes períodos de estiagens. A música é um exemplo de proximidade das
canções com a realidade dos fundadores.
Nos fins da década de 1990, a Cantoria passou a se institucionalizar, no sentido de se
firmar no calendário de comemorações da cidade e a ser frequentada por uma grande
quantidade de pessoas de São Gabriel, região e de lugares longe. Com isso, a festa passou a

335
FILHO, Valdelício Barreto Vaz. Valdelício Barreto Vaz Filho: depoimento I [dez. 2016]. Entrevistadora:
Larissa Godinho Martins dos Santos. São Gabriel-Ba, 2016. 1 arquivo mp3 (51 min. e 54 seg.). Entrevista
concedida para pesquisa histórica.
336
Trecho da música Curvas do Rio de Elomar Figueira Melo, retirada do disco: Parcelada Malunga; Álbum
musical de Arthur Moreira Lima, Elomar, Xangai e Zé Gomes. 1980: Gravadora: EMI.
337
Cantador e compositor. Nascido em 21 de Dezembro de 1937 em Vitória da Conquista - Ba. Retirado
em:<http://www.elomar.com.br/biografia.html.> Acesso em 31/07/2018.
139

movimentar a economia da cidade. Para o ex-prefeito Edes Rocha, a Cantoria foi uma das
festas que ajudou, naquele período, a movimentar o comércio local.

[...] você enche a cidade de gente, três dias, quatro dias e aí movimenta com
certeza, movimenta e muito, tem suas despesas? Tem! Você agrada o
público e o comerciante. Porque veja, você está passando dificuldade, mas se
você, por exemplo, em uma noite ganha 200, 300 reais a mais, já lhe ajuda a
pagar seus compromissos. E se você tem um comércio maior, você ganha
muito mais, porque aí não ia vender só o comerciante que trabalha a noite, ia
vender dono de sapataria, de uma lojinha, que você compra uma roupinha lá,
mesmo que vá sacrificar seu salário.338

Edes Rocha demonstra entender que, na cidade, a festa se tornou um investimento


econômico positivo. Realizá-la implicava em investir recursos que daria retorno positivo.
Além de gerar trabalhos temporários, como no caso dos ambulantes339 que trabalham durante
a festa vendendo comidas e bebidas, os comerciantes também lucram bastante, já que a cidade
fica cheia e o consumo aumenta consideravelmente. Para ele, a festa movimenta
principalmente o comércio de roupas e sapatos. Em São Gabriel faz parte dos costumes
comprar vestimentas novas para ir às festas.
O ex-prefeito considera que a festa é uma boa maneira de agradar ao público, tanto
pelo lazer, porque a Cantoria propicia um espaço de socialização, quanto aos comerciantes
que aumentam seus lucros durante os dias festivos. Isso ajuda a explicar a institucionalização
da festa, fato que gerou conflitos entre os membros do Culturate, principalmente quando Edes
Rocha quis mudar a festa de lugar. Edes Rocha passou a pleitear a ideia de transferir a
Cantoria para um lugar mais centralizado, na praça da feira. Para ele, a praça da feira seria o
lugar mais adequado para as pessoas frequentarem, o que possibilitaria também uma maior
dinâmica comercial, já que lá era um ponto comercial importante da cidade onde já existiam
bares, quiosques e mercados. Depois de muitas brigas, a Cantoria passou a acontecer na praça
da feira, chamada pelo ex-prefeito de praça de eventos. De acordo com Edes Rocha,

a praça de evento, ainda hoje, seria aqui (referindo-se a praça da feira). Lá


não tem o comerciante, lá não tem nada, e aqui não, ficava pertinho, todo

338
ROCHA, Edes José da. Edes José da Rocha: depoimento I [Nov. 2017]. Entrevistadora: Larissa Godinho
Martins dos Santos. São Gabriel-Ba, 2017. 1 arquivo mp3 ( 1h. e 10 min.). Entrevista concedida para pesquisa
histórica.
339
Esse e outras atividades podem ser entendidas como subemprego. Mas esse tipo de atividade é de suma
importância para uma cidade com poucas oportunidades.
140

mundo negociava. Vamos dizer que o bolo era dividido pra todo mundo. E lá
só pra quem vem de fora, e o outro fica aí atoa sem ter nada.340

A fala de Edes Rocha faz referência ao local onde a Cantoria é realizada atualmente.
Ele defende, ainda hoje, a ideia de que a festa deveria acontecer no local estabelecido por ele
em seu mandato, na praça da feira. O Culturarte resistiu à transferência porque considerava
que a Cantoria estava bem acomodada na “praça da Cantoria”. Contudo, a resistência foi
vencida quando o prefeito resolveu construir uma quadra poliesportiva no local onde a festa
acontecia. Resultado: acabaram mudando para a parte central da cidade.
Segundo Bezerra, a “institucionalização se expressa através da concentração das festas
na área central da cidade em um tempo determinado, a exemplo do São João que ocorre
durante todo o mês de junho em um espaço reservado ao evento”.341 Bezerra aponta que a
realização das festas nas áreas centrais das cidades se caracteriza como um elemento da
institucionalização pelas elites políticas locais. Por conseguinte, acreditamos que a
intervenção de Edes Rocha na Cantoria em transferi-la para a área central da cidade foi uma
tentativa de institucionalizá-la, movido pelo interesse lucrativo e pela potencial captação de
votos em torno da festa. Segundo Erismar Novaes,

a gente acaba sendo transferido com a intervenção da quadra para a praça da


feira e sai da praça da feira e vai buscar a Pedro Gama, a praça Pedro Gama
mais tarde (local onde a festa acontece atualmente), em busca de apoio de
barraqueiros.Ou seja, o pagamento por locação de espaço se tornou uma
renda muito importante para fazer o evento.Houve anos de arrecadar na
praça entorno de 10 % do custo da Cantoria, e havia um conflito ali com os
donos de bar do entorno da feira, porque eles se negavam a dar qualquer
apoio e aí a gente foi buscar uma praça onde a gente tivesse capacidade de
fechar a praça e ter a capacidade de controlar o fluxo. 342

A narrativa acima é de um conflito ocorrido já nos anos 2000, mas que existia desde
os anos de 1990. Ela mostra a dificuldade do Culturarte, nos anos de 1990, de conseguir com
os comerciantes fundos para a realização da festa no entorno da praça, que nos dias festivos
colocavam barracas na frente dos seus estabelecimentos. Eles não conseguiram dialogar com
os comerciantes da área central da cidade e firmar um acordo para que a festa continuasse ali.
Depois de alguns anos preferiram ir para uma praça mais afastada, distante da parte central de

340
ROCHA, Edes José da. Edes José da Rocha: depoimento I [Nov. 2017]. Entrevistadora: Larissa Godinho
Martins dos Santos. São Gabriel-Ba, 2017. 1 arquivo mp3 ( 1h. e 10 min.). Entrevista concedida para pesquisa
histórica.
341
BEZERRA, 2008, p.14.
342
ROCHA, Erismar Novaes. Erismar Novaes Rocha: depoimento I [ Jan.. 2018]. Entrevistadora: Larissa
Godinho Martins dos Santos. São Gabriel-Ba, 2018. 1 arquivo mp3 ( 1h. 58. min. e 27 seg. ). Entrevista
concedida para pesquisa histórica.
141

São Gabriel. A Praça Pedro Gama possibilitaria, na concepção do grupo, maior controle sobre
a organização do evento, pois eles regulariam melhor o fluxo de barracas e poderiam usar a
locação dos pontos para ajudar nas despesas da festa.
Para Edes Rocha, eles não quiseram “repartir o bolo”. Essa atitude do Culturarte pode
ser entendida também como uma resistência ao protagonismo das elites políticas locais no
processo de institucionalização da festa. Provavelmente pretendiam diminuir o poder dessas
elites nas definições centrais do evento, o que inclui a escolha do local de sua realização.
Os políticos locais passaram visar a festa como uma maneira de gerar lucros para a
cidade e possivelmente angariar votos, mas não davam uma contrapartida, já que
financeiramente não contribuíam à contendo. Assim a cantoria só acontecia porque seus
membros se esforçavam no trabalho de arrecadação de verbas. Para o Culturarte, a festa
deveria ser prioridade, já que era fonte de lucros para o município e para comerciantes locais.
Sobre a Cantoria como elemento importante para a economia local, Erismar Novaes coloca
que,

A partir de 1993, a Cantoria passa sim a movimentar a economia da cidade.


Quando começa a consolidar ali um fluxo maior e a festa começa a ter,
ganhar esse... (pausa para pensar). Quando as pessoas reservam um dinheiro
para comprar roupa, quando vem um fluxo de pessoas de fora e traz
recursos, movimenta muito a economia da cidade. Mas mesmo assim eu
acho que ainda está muito aquém do potencial que ela tem, de gerar renda e
ocupação durante o período do evento. Sempre foi muito mal explorado esse
aspecto da Cantoria. Mas movimentava, sim, porque havia um gasto, fluem
os gastos, as pessoas gastam mais, mas ainda é subutilizado isso por conta da
ausência de uma estrutura e de um olhar mais estratégico, e aí a prefeitura de
São Gabriel, como poder público, tem uma boa parte da responsabilidade
disso.343

Em meados da década de 1990 a Cantoria passou ser mais frequentada. Para Erismar
Novaes, o crescimento se deu no pós 1993. Segundo ele, nesse momento a festa começou a
fazer parte da expectativa das pessoas, ainda que de forma paulatina. De acordo com sua
perspectiva, os dias festivos, bem como os dias imediatamente anteriores ao evento,
movimentavam a economia local. Isso porque as pessoas compravam roupas e calçados para
irem ao evento, além de aumentar o fluxo de pessoas circulando. Os dias de Cantoria
provocaram o aumento das vendas nos mercados, nas farmácias e dentro do próprio circuito
da festa, com a compra de comidas e bebidas. A partir de meados dos anos de 1990, além da
barraca da Fundação, eles abriram espaço para que outras pessoas vendessem comidas e
343
ROCHA, Erismar Novaes. Erismar Novaes Rocha: depoimento I [ Jan.. 2018]. Entrevistadora: Larissa
Godinho Martins dos Santos. São Gabriel-Ba, 2018. 1 arquivo mp3 ( 1h. 58. min. e 27 seg. ). Entrevista
concedida para pesquisa histórica.
142

bebidas. Para o entrevistado, o aumento do público da festa se deu muito por conta das
atrações de renome nacional que o Culturarte conseguiu trazer. Desde a quarta edição, depois
da participação de Zé Geraldo, muitas pessoas passaram a frequentar a festa e acreditar no
evento. De acordo com Erismar,

a grande guinada na Cantoria, ela vai acontecer a partir da presença de Zé


Geraldo em 1993, né? O marco de uma memória emocional. Então, a partir
de 1994, talvez 1993 ainda, você vai pegar um pequeno grupo ali, e a partir
dali as pessoas começam a ter expectativas de esperar, as lojas já começam a
se preparar mais para vender roupa. E o final desse período é quando ela se
consolida como o evento, eu acho que em 1999. Quando Belchior sobe ao
palco da Cantoria é que toma corpo de um grande evento. E muito embora
eu faço a definição da Cantoria por atrações, qual é a atração, eu vejo ela e
pretendo discutir internamente isso, mais como encontro de culturas do que
encontros de atrações, mas as atrações foram muito fortes para dar essa força
a Cantoria. Então ela começa a movimentar e passa a ser a festa o principal
evento da cidade. 344

A Cantoria passou a ter um maior fluxo de público a partir de 1994, começando ali a
movimentar a cidade, levando alguns comerciantes a se programar para os dias festivos.
Segundo o entrevistado, o processo de evolução da Cantoria foi provocado em maior
proporção pelas atrações: Zé Geraldo, uma atração de reconhecimento nacional, motivou as
pessoas a frequentarem a Cantoria no pós 1993. O entrevistado justifica que, para a Fundação,
as atrações com reconhecimento nacional não definiam a grandiosidade do evento em cada
edição, já que eles acreditavam na cultura local. Entretanto, para ele, é inevitável não pensar o
crescimento da festa, reconhecimento, aumento do público e patrocínio, sem pontuar a
responsabilidade que as “grandes atrações” tiveram nesse fenômeno. O depoente reitera sua
fala anterior afirmando que,

eu acho que a transformação, ela começa acontecer em 1993 e 1994, quando


ela começa essa inversão, ela começa a criar outro status.É o período que
começa-se a quebrar as barreiras e quando fomos conseguindo valor das
atrações.São elas que vai dando esse tom, então se você perceber a Cantoria
de 93 a Fundação Culturarte traz Zé Geraldo, eu estava na praça, naqueles
preparativos, foi o ano que eu quebrei a perna, então eu estava de muletas,
mas fiquei na praça até de madrugada com o gesso tomando chuva e
correndo o risco de mofar (risos). É, até horas antes ali, o pessoal fazendo os
preparativos na praça que iria se chamar a partir dali a praça da Cantoria, que
era a praça do parquinho e iria se transformar na praça da Cantoria, e
futuramente a quadra, as pessoas estavam falando que era mentira. - Aonde
que esses caras vão conseguir trazer alguém que já botou música em novela.
Então, até aquele momento ali, e o espanto e a magia daquela noite é muito
344
ROCHA, Erismar Novaes. Erismar Novaes Rocha: depoimento I [ Jan.. 2018]. Entrevistadora: Larissa
Godinho Martins dos Santos. São Gabriel-Ba, 2018. 1 arquivo mp3 ( 1h. 58. min. e 27 seg. ). Entrevista
concedida para pesquisa histórica.
143

forte. E aí em 1994 Elomar e Xangaí que são os inspiradores do batismo do


evento. Aí mesmo assim, em 1995, quando a gente se vê obrigado a fazer
uma Cantoria com atrações que é de uma qualidade fantástica. Para mim é
uma das Cantorias mais marcantes que tinha ali João Bá, Zé Costa, Eusébio
de Santana, Mazé, Irene Portela, se não me falte a memória, que foi uma
Cantoria menos virtuosa no ponto de vista de mídia, a praça já está cheia, as
pessoas já estão vindo. Isso em 1995.345

Assim como Erismar, a maioria dos membros do Culturarte segue o mesmo raciocínio
de que a terceira Cantoria foi um dos momentos mais marcantes da história da festa na década
de 1990. Isso acontece por ter sido nessa edição que eles conseguiram dinheiro suficiente para
trazer Zé Geraldo, um cantor de reconhecimento nacional e muito ouvido pela população.
Para Erismar, as pessoas desacreditaram da possibilidade daquele grupo trazer um cantor tão
famoso, isso porque a festa ainda não tinha repercussão na cidade. No entanto, nota-se em sua
fala, e de outros entrevistados, que naquele momento eles conseguiram surpreender muitas
pessoas que até então criticavam a festa e não acreditavam no grupo. Para Welington Oliveira,

a terceira e quarta Cantoria que eu participei ela não significava a festa da


cidade não, significava assim, um movimento alternativo, mesmo de
valorização da música popular brasileira e da música regional. [...] Mas uma
coisa é certa, o show de Zé Geraldo, o primeiro que foi lá para a terceira
Cantoria, eu acho que a partir daí São Gabriel a região toda passou a
conhecer, porque era o nome assim conhecido apesar de não estar na mídia,
mas já tinha algumas músicas conhecidas. Teve um show de Dércio
Marques, quase ninguém curtiu, mas nunca vi uma coisa tão bonita no
mundo como esse show de Décio Marques e de Roze na terceira Cantoria,
um negócio assim, mas só para quem gostava. Na verdade o povo gostou
mesmo de Zé Geraldo. 346

Welington Oliveira reforça a fala de Erismar Novaes no que diz respeito ao momento
em que a festa passou a ser vista por algumas pessoas com outros olhos. Para os membros do
grupo, depois da ida de Zé Geraldo na terceira Cantoria, algumas pessoas começaram a
frequentar e acreditar naquela festa. Além de ter sido o momento em que eles surpreenderam
grande parte da população, aquela foi uma das edições que marcou muitos membros pelo
significado que o cantor tinha para eles. Valdelício Barreto apontou que:

345
ROCHA, Erismar Novaes. Erismar Novaes Rocha: depoimento I [ Jan.. 2018]. Entrevistadora: Larissa
Godinho Martins dos Santos. São Gabriel-Ba, 2018. 1 arquivo mp3 ( 1h. 58. min. e 27 seg. ). Entrevista
concedida para pesquisa histórica.
346
SANTOS, Welington Oliveira. Welington Oliveira Santos: depoimento I [jan. 2017]. Entrevistadora: Larissa
Godinho Martins dos Santos. São Gabriel-Ba, 2017. 1 arquivo mp3 (1 h. 03min. e 46 seg.). Entrevista concedida
para pesquisa histórica.
144

Zé Geraldo, ave Maria, era um mito (falando com muita empolgação) no dia
que a gente trouxe, né? Parece que foi na terceira cantoria, e aí o povo
chorava, dançava, pulava em cima do palco, quase caia, o palco era pequeno,
foi uma festa. Aí já aceitaram. O público chorava, não sabia se chorava ou se
ria. No show dele choveu. Ave Maria, foi um dos melhores shows!Foi
bonito, foi bonito demais, ele cantou inspirado e todo mundo com aquela
sede de conhecer Zé Geraldo, né? E aí ele e um guitarrista que ele trouxe
com ele, era um show de lascar, oh, retado (empolgação ao relatar). Foi um
347
dos melhores shows que Zé Geraldo já fez no Gabriel.

Os membros do Culturate eram fãs de Zé Geraldo e tiveram a oportunidade de assistir


ao show e de conversar com um artista que eles ouviam desde muitos anos, isso significou
muito para eles. Como pontuou Valdelício, o encontro despertou muitas emoções e fez com
que o evento ficasse marcado na memória da maioria. Ele aponta também que, naquele
momento, as pessoas passaram a aceitar a festa e que junto a eles o público também se
emocionou. Além dos membros fundadores, Ednilson Miranda, frequentador da festa, narrou
essa Cantoria como um momento especial.

teve uma Cantoria que ela foi realizada lá na praça da quadra, que terminou
com chuva.Essa foi muito interessante, nem só eu, mas muitas pessoas que
estavam lá ficou com marco como referência.Foi umas das primeiras, mas
essa época já teve a apresentação de Zé Geraldo, mas eu não lembro a data
não. Essa marcou, apesar de ter algumas atrações nacionais boas, teve a
contribuição da chuva, aquele inverno e a praça cheia e ninguém saiu pela
questão da chuva. 348

Ednilson Miranda, como Valdelício, apontou a felicidade em assistir a um show de Zé


Geraldo. A chuva foi retratada como elemento importante para aquela edição. Tanto que se
tornou um marco de memória. Nas falas de Erismar, Ednilson e Valdelício sobre a terceira
Cantoria, a chuva aparece como elemento fundamental para ter tornado aquele momento tão
especial. Na época, a cidade passava por longos períodos de estiagem e a chuva simbolizava a
esperança, fartura e benção. Portanto, uma Cantoria com um ídolo nacional e com chuva foi
motivo de muita festa, emoção e felicidade.
Os entrevistados demarcam o pós-show de Zé Geraldo como momento crucial para
que as pessoas passassem a acreditar no Culturarte e na Cantoria. Contudo, como foi

347
SANTOS, Welington Oliveira. Welington Oliveira Santos: depoimento I [jan. 2017]. Entrevistadora: Larissa
Godinho Martins dos Santos. São Gabriel-Ba, 2017. 1 arquivo mp3 (1 h. 03min. e 46 seg.). Entrevista concedida
para pesquisa histórica.
348
MIRANDA, Ednilson Martins De. Ednilson Martins De Miranda: depoimento I [Out. 2017]. Entrevistadora:
Larissa Godinho Martins dos Santos. São Gabriel-Ba, 2017. 1 arquivo mp3 ( 8 min. e 45 seg. ). Entrevista
concedida para pesquisa histórica.
145

apontado, as principais atrações da festa eram as cantorias e modas de viola, porém, a


inserção de cantores da Música Popular Brasileira contribuiu para que um número maior de
pessoas se interessassem em participar dos dias festivos.
Na oitava edição, mais uma vez Zé Geraldo foi uma das atrações. Entretanto outros
grandes artistas foram convidados como Xangaí, um cantador de cantorias, muito conhecido
na região, que fez com que o evento alcançasse uma proporção muito grande. Na nona edição,
foi realizada uma Cantoria “grandiosa”, se pensarmos em “grandes atrações”. Quando
falamos em grandes atrações, nos referimos a artistas com uma carreira consolidada
nacionalmente e também em atrações com cachês caros para a realidade da Fundação. A
nona edição da Cantoria foi a maior dos anos de 1990, em nível de público e de artistas, pois
em 1999 a Fundação contratou Tetê Spíndola e Alzira Spíndola, Saulo Laranjeira e Belchior,
esperado por muitas pessoas da cidade e da região. Nessa altura, a Cantoria já era vista como
a festa da cidade.

Show de Belchior na IX Cantoria em São Gabriel-Ba em 1999. Acervo da Fundação Culturarte.

Esta fotografia foi retirada do acervo da Fundação Culturarte e mostra o início do


esperado show de Belchior. Ele era um artista que tinha sua carreira consolidada no país e que
tinha uma importante representatividade, especialmente por denunciar em sua arte, desde os
tempos da Ditadura Civil-Militar, as injustiças sociais. O show de Belchior apareceu nas falas
146

de muitos entrevistados e até os dias atuais é um motivo de orgulho, tanto para a Fundação
quanto para as pessoas da cidade. Erismar Novaes, ao falar sobre a nona Cantoria, destacou:

a Cantoria de 1999 é algo grandioso no ponto de vista de atrações e de


ascensão de público, de 1998 e de 1999. Veja só, em um evento só, você
tinha Saulo Laranjeira – a memória nos trai, uma Cantoria, vai entrando na
outra – mas tinha Saulo Laranjeira, Tetê Spindola e Alzira, Belchior, o
famoso show de Belchior que faltou energia. Aquilo tudo era muito
grandioso para se imaginar um evento em qualquer lugar do Brasil, e que
estava acontecendo ali em São Gabriel, então esse período de transição
começa, na minha opinião, em 1993, 1994, 1995 e 1996 para mim é um
experimento dessa força, mesmo sem atrações que estavam na grande mídia,
as pessoas vem de fora e já se reúnem na cidade.E1997, 1998 e 1999 eu acho
que é quando a gente começa a voltar a ter Cantorias grandiosas, assim no
ponto de vista de artistas renomados e de pessoas.349

Diante da análise das falas dos membros do Culturarte, das de pessoas que não eram
do grupo e das fotografias da festa, podemos entender que as atrações foram as grandes
responsáveis pelo crescimento da Cantoria. Conseguiram trazer artistas conhecidos
nacionalmente, investindo na possibilidade de apresentações de cantores ouvidos por uma
parcela significativa da população. Isso possibilitou que o grupo e a Cantoria conquistassem
o interesse e expectativa das pessoas, de modo que nos fins da década de 1990, a festa já
estava difundida e fazia parte da vida da cidade.
Uma estimativa de dados levantados pelos membros do Culturarte sobre o público que
frequentou a Cantoria nos anos 2000, podem servir de base para pensarmos o público da
década de 1990, já que acreditamos que nos fins dos anos de 1990, quando a festa passou a
crescer, não houve uma mudança significativa na quantidade de pessoas que faziam parte do
evento, a não ser pelo aumento do número de turistas. A estimativa feita por eles, nos anos
2000, era que a maior parte do público da festa era formado por pessoas de São Gabriel, cerca
350
de oitenta por cento dos espectadores. Como o número de turista aumentou entre os fins
dos anos de 1990 e 2014, significa que o maior público da Cantoria na década de 1990 era
composto por cidadãos gabrielenses.
No fim da última década do século passado, a Cantoria passou a se moldar como a
festa da cidade, isso porque ela já mobilizava muita gente e mexia diretamente na dinâmica do
local. As pessoas se preparavam para a festa, compravam roupas para ir à praça, marcavam
com amigos, recebiam amigos de outras cidades em suas casas, bebiam, dançavam,

349
ROCHA, Erismar Novaes. Erismar Novaes Rocha: depoimento I [ Jan.. 2018]. Entrevistadora: Larissa
Godinho Martins dos Santos. São Gabriel-Ba, 2018. 1 arquivo mp3 ( 1h. 58. min. e 27 seg. ). Entrevista
concedida para pesquisa histórica.
350
Ibid.
147

namoravam, assistiam aos shows e se emocionavam. A festa começava a fazer parte da


identidade de muitos gabrielenses. Assim como a festa estudada por Bezerra, em Mossoró, a
Cantoria “vem sendo apropriada de várias formas, pois tem assumido tanto o papel de
espetáculo da cidade, projetando-a tanto no mercado quanto na (re)significação e reafirmação
da identidade local.”351

3.4 Cantoria: Festa e identidade

No fim da década de 1990, a Cantoria se tornou um espaço de identificação de muitas


pessoas na cidade e também um espaço de construção de identidades. Lá, alguns se
reconheciam na decoração, nas músicas, nas relações e interações com outras pessoas, de
modo que ao se relacionarem com o ambiente também construíam suas identidades. Segundo
Erismar Novaes,
Ela está cravada na identidade do gabrielense e na memória cultural. Ela é
uma força cultural que se ela deixar de existir é como um repentista deixar
de fazer repente... [...] E a Cantoria, eu acho que já tem esse espaço, que ela
existe, tem um brilho nos olhos, um orgulho no peito, e um conjunto de
valores que fortalece a cultura local. E a responsabilidade de quem faz a
Cantoria já está nesse nível de que se isso se perde, vai junto com ele parte
do brilho desse povo. 352

Erismar Novaes fala do lugar de membro da Fundação, por conta disso, entende a
Cantoria de forma muito subjetiva. A Cantoria faz parte da identidade dos membros da
Fundação e de suas famílias. Entretanto, na narrativa acima, ele entende que a festa está
cravada na identidade de toda a sociedade gabrielense. A fala do entrevistado é construída a
partir da sua experiência. Entendemos que o evento faz parte da identidade de grande parte da
população, mas não podemos afirmar que toda a população se reconhece quando vai à
Cantoria, ou que possuí uma identidade formada a partir dela. Para Erismar Novaes, as
pessoas que nasceram nos fins dos anos de 1980 e início de 1990 possuem mais identificação
com a Cantoria, pois quando a festa passou a se popularizar ela alcançou principalmente as

351
BEZERRA, 2008, p. 12
352
ROCHA, Erismar Novaes. Erismar Novaes Rocha: depoimento I [ Jan.. 2018]. Entrevistadora: Larissa
Godinho Martins dos Santos. São Gabriel-Ba, 2018. 1 arquivo mp3 ( 1h. 58. min. e 27 seg. ). Entrevista
concedida para pesquisa histórica.
148

escolas municipais. Muitas professoras fizeram projetos voltados para importância da cultura
regional e fez com que muitas crianças crescessem conhecendo e gostando da Cantoria.353
De acordo com Erismar Rocha,

Se você pegar um grupo de sua geração, da geração de 1990, que nasceu e se


criou em São Gabriel, ou talvez um grupo a partir de 1988, é impossível não
perceber, eu deduzo, principalmente as pessoas que estão na Cidade [...] se
você pegar o sujeito ali da sua geração, que compreende de 1988 a 1995 é
impossível pensar a cultura de São Gabriel sem pensar a Cantoria [...]
Imagino que você tenha amigos que tenha vivido e que sejam dessa geração,
tente entender o que eles acham de São Gabriel sem a Cantoria.354

Erismar acredita que a Cantoria teve um impacto muito grande na infância e


adolescência dos jovens que nasceram nos fins da década de 1980. É possível concordar com
alguns aspectos da fala do entrevistado, pois ao analisarmos a quantidade de jovens em São
Gabriel que a partir da Cantoria aprendeu a tocar instrumentos musicais, a cantar e também a
quantidade de jovens que compõe o público da festa na última década, percebemos que havia
uma quantidade de jovens considerável que conheceram a Cantoria. Jandira Pereira, mesmo
tendo feito várias críticas ao grupo Culturarte, pontuou sobre a importância da festa nas
escolas na década de 1990. Segundo ela,

Não fui em nenhuma das primeiras Cantorias, mas vivia todas, porque as
escolas trabalhavam, a gente trabalhava tudo que ia ser trabalhado na
cantoria, agente trabalhava na sala de aula.Por exemplo, eu lembro de Décio
Marques quando eu fiz o trabalho... a gente divulgou alguns trabalhos que
ele ia apresentar, por exemplo algumas músicas, a gente trabalhava com os
meninos.Depois fizemos o projeto, ele foi conhecer lá na escola que eu
trabalhava, cantou com os meninos, só que eu não tenho nada registrado.355

353
SENA, Jandira Francisco Pereira. Jandira Francisca Pereira Sena: depoimento I [out. 2017]. Entrevistadora:
Larissa Godinho Martins dos Santos. São Gabriel-Ba, 2017. 1 arquivo mp3( 44 min.). Entrevista concedida para
pesquisa histórica.
354
ROCHA, Erismar Novaes. Erismar Novaes Rocha: depoimento I [Jan.. 2018]. Entrevistadora: Larissa
Godinho Martins dos Santos. São Gabriel-Ba, 2018. 1 arquivo mp3 ( 1h. 58. min. e 27 seg. ). Entrevista
concedida para pesquisa histórica.
355
SENA, Jandira Francisco Pereira. Jandira Francisca Pereira Sena: depoimento I [out. 2017]. Entrevistadora:
Larissa Godinho Martins dos Santos. São Gabriel-Ba, 2017. 1 arquivo mp3( 44 min.). Entrevista concedida para
pesquisa histórica.
149

Jandira Pereira, em muitos trechos de sua entrevista, ao rememorar a atuação do grupo


Culturarte, quase sempre partia de uma imagem negativa. Mas nos fins dos anos de 1990,
junto a outras professoras, construíram um projeto para trabalharem com alunos nas escolas
municipais de São Gabriel, sobre a cultura local. Apresentaram a Cantoria aos alunos e
trabalharam com canções para pensarem questões regionais. A entrevistada aponta que o
projeto foi realizado próximo aos dias de Cantoria, o que fez com que o músico Dércio
Marques fosse à escola conhecer os resultados dos alunos a partir da análise de suas músicas.
As ações de professoras como Jandira Pereira contribuíram também para que a
Cantoria fosse plantada nas vidas das crianças da década de 1990. Nas décadas seguinte isso
se intensificou. Os professores municipais sempre tiveram interesse em falar da Cantoria e o
Culturarte, na virada do milênio, na décima edição da festa, passou a elaborar outros projetos
paralelos à Cantoria, como aula de instrumentos musicais, oficina sobre música e aulas de
capoeira.356 Eram ações voltadas, principalmente, para os alunos da rede municipal.357 Desse
modo, muitas crianças e adolescentes construíram uma identidade em relação à festa. Stuart
Hall afirma que,
os indivíduos são formados subjetivamente através de sua participação com
relações sociais mais amplas; e, inversamente, do modo como os processos e
as estruturas são sustentados pelos papéis que os indivíduos neles
desempenham. Essa “internalização” do exterior no sujeito, e essa
“externalização” do interior, através da ação no mundo social (como
discutida antes), constituem a descrição sociológica primária do sujeito
moderno e estão compreendidas na teoria da socialização.358

Segundo Hall, a sociologia partiu da teoria de socialização dos indivíduos. Ele entende
que as identidades dos sujeitos são formadas de maneira subjetiva, ou seja, cada um constrói
suas identidades de maneiras diferentes. Essa construção é formada a partir da socialização
que se dá no contato com o outro, nas relações sociais. O mundo exterior contribui para a
construção interior do sujeito. Com isso, as estruturas interferem na construção dos indivíduos
e, a partir do papel que cada sujeito desempenha na sociedade e a relação que cada um tem
com o mundo, serve como um marcador importante para a formação identitária. Para Hall,

em vez de falar de identidade como uma coisa acabada, deveríamos falar de


identificação, e vê-la como um processo em andamento. A identidade surge
não tanto das plenitudes da identidade que já está dentro de nós como
individuos, mas de uma falta de inteireza que é “preenchida!” a partir de
nosso exterior, pelas formas através das quais nós imaginamos ser vistos por
outros.Psicanaliticamente, nós continuamos buscando a “identidade” e

356
Cartaz da X Cantoria de São Gabriel em 26 a 28 d e05 de 2000. Retirado do acervo da Fundação Culturarte.
357
Projeto de apresentação da Cantoria para capitação de patrocínio. 2015. Acervo da Fundação Culturarte
358
HALL, Stuart. A identidade cultural na pós-modernidade. Rio de Janeiro. DP&A, 2006. P.31
150

construindo biografias que tecem as diferentes partes de nossos eus divididos


numa unidade fantasiado da plenitude. [...] Assim, a identidade é realmente
algo formado, ao longo do tempo, através de processos inconscientes, e não
algo inato, existente na consciência no momento do nascimento. Existe
sempre algo „imaginário‟ ou fantasiado sobre sua unidade. Ela permanece
sempre incompleta, está sempre „em processo‟, sempre „sendo formada‟. 359

Concordamos com Stuart Hall quando ele aponta que a identidade não é algo fixo ou
acabado. Por isso falamos em identificação, por estarmos em constante construção dos nossos
eus e, por conseguinte, a identificação com algo que já existe em nós seria uma forma de
“preenchimento” do que somos. Nesse caso, a representatividade assume um importante papel
de formação de identidade, daí a importância de nos reconhecermos em locais, objetos e
pessoas que fazem parte de nossas relações sociais. Nossas identidades estão em contínuo
processo de construção, seja a partir do reconhecimento com o que já existe em nós que
ajudará a fortalecer uma identidade; ou na construção de um eu que ainda não existe. Durante
toda a nossa vida estamos desenvolvendo identidades a partir da experiência vivida.
Partimos das considerações de Stuart Hall para pensarmos a Cantoria como elemento
de identificação para muitas pessoas e elemento de construção de identidades de tantas outras.
Isso porque acreditamos que quando a Cantoria passou a ganhar uma dimensão maior e a criar
relações para além da festa, a exemplo dos projetos na escola e outras ações, tornou-se
possível que a comunidade, de algum modo, desenvolvesse uma identificação maior com o
evento. Portanto, todos esses elementos foram importantes para que a festa se consolidasse.
Para Erismar Novaes,

Então, a Cantoria já entrou nesse nível, de que é algo impregnado na cultura


local, a ponto de que se ela faltar morre muitos aspectos e muitos valores
sociais que ela conseguiu consolidar e em alguns casos construir. Veja que a
maior parte dos fatos, a Cantoria consolidou valores, ela não criou valores, é
bom ressaltar. Valores do sertanejo. Muito embora ela interaja com diversas
culturas, mas o valor do sertanejo, o valor da terra, o valor da caatinga, são
valores reforçados pela Cantoria, e sobressaltados, né? 360

Para Erismar Novaes, jovens e adultos se identificaram com os elementos que a festa
trazia, como os costumes sertanejos. O entrevistado acredita que a Cantoria passou, naquele

359
HALL, 2006. Pp. 38-39
360
ROCHA, Erismar Novaes. Erismar Novaes Rocha: depoimento I [ Jan.. 2018]. Entrevistadora: Larissa
Godinho Martins dos Santos. São Gabriel-Ba, 2018. 1 arquivo mp3 ( 1h. 58. min. e 27 seg. ). Entrevista
concedida para pesquisa histórica.
151

momento e nos anos seguintes, a fazer parte das identidades dos habitantes da cidade. Para
ele, isso fica nítido quando conversasse com jovens na faixa etária entre 20 a 30 anos, a
grande maioria pontua a Cantoria como elemento importante de sua infância e adolescência.
Muitos jovens foram à festa com seus pais, participaram de algum projeto da Fundação e
entenderam a festa como um dos principais meios de encontro na adolescência. Além de
identificar na festa com o que já existia dentro de si, a Cantoria também formou identidades.
As trocas e costumes da sociedade gabrielense, presentes na Cantoria, mostram que ela
trouxe para a praça, seja na decoração, nos cartazes, nos repentes e cordéis, as coisas do
sertão. Ela falou da fé daquele povo, das dificuldades, da agricultura e da seca, da vontade de
vencer. Trouxe também a imagem da política local refletida na dificuldade de adquirir
patrocínios, de diálogo e nas perseguições a quem era oposição a quem governava. Segundo
Erismar Novaes,

Há uma transformação social que não dá para se perder. Assim, quando a


gente faz a defesa da cultura, e aí eu não estou falando da cultura artística,
mas quando a gente faz uma defesa da cultura das pessoas, a gente faz
aquela reflexão de que cultura é uma parte da identidade que confere os
valores, dignidade ou não né? Mas os valores sociais que ela agrega. 361

A fala de Erismar parte de uma memória construída na mesma lógica dos outros
membros, trazendo a importância cultural que a festa tem para a cidade. É preciso
problematizar seu relato, já que os relatos de memória são o que os entrevistados sentem no
presente em relação ao vivido. Isso porque o entrevistado, assim como todos os membros da
Fundação, traz uma memória dos vitoriosos e de exaltação a Cantoria. Eles foram os
elaboradores da festa, por isso sentem, na atualidade, o orgulho pelo que foi criado.
É preciso pensar também a ideia de valores que ele acredita que a festa agregava. A
Cantoria tinha o objetivo de reforçar os costumes sertanejos, mas os valores sociais,no
momento em que ela foi inventada, eram completamente conservadores. A festa não buscou
consolidá-los. Não esquecemos que seus organizadores eram vistos como rebeldes. Além dos
símbolos do sertão, ela trazia consigo símbolos de resistência, de quebra de paradigmas e
superação de uma marginalização dos jovens artistas. Nesse sentido, a Cantoria pode ser
entendida como elemento de quebra de alguns valores sociais. É possível pensar que a
Cantoria tenha ressignificado valores.

361
ROCHA, Erismar Novaes. Erismar Novaes Rocha: depoimento I [ Jan.. 2018]. Entrevistadora: Larissa
Godinho Martins dos Santos. São Gabriel-Ba, 2018. 1 arquivo mp3 ( 1h. 58. min. e 27 seg. ). Entrevista
concedida para pesquisa histórica.
152

Por outro lado, o entrevistado fala também de valores da região de São Gabriel como o
de valorizar culturalmente o local, representando elementos característicos da cidade, como o
reisado e outros atributos que faziam parte da cultura do lugar. Entendemos que isso foi um
misto de resistência e ousadia, mas que não rompeu de todo com a cultura da região.

O fato de que projetamos a “nós próprios” nessas identidades culturais, ao


mesmo tempo que internalizamos seus significados e valores, “tornando-os
parte de nós”, contribui para alinhar nossos sentimentos subjetivos com os
lugares objetivos que ocupamos no mundo social e cultural. A identidade,
então, costura (eu, para usar uma metáfora médica, “sutura”) os sujeitos á
estrutura. Estabiliza tanto os sujeitos quanto os mundos culturais que eles
habitam, tornando ambos reciprocamente mais unificados e previsíveis.362

Teixeira aponta a ideia de que os sujeitos absorvem valores, símbolos e significados


das identidades culturais, a ponto de passarem a fazer parte deles, o que contribui para a
formação do indivíduo. A identidade, como apontou Teixeira, costura o sujeito ao mundo, os
colocando em diálogo para que os sujeitos se nivelem aos lugares que ocupam. Em certa
medida, podemos pensar que alguns indivíduos que passaram a fazer parte da Cantoria, e a tê-
la como parte de sua identidade, absorveram valores que ela apresentava como a própria
rebeldia, ou o apreço pela musicalidade.
Diante do que foi dito, a Cantoria passou a ser vista como a festa da cidade e fazer
parte da identidade de muitos gabrielenses. As pessoas passaram a se programar em relação
aos dias festivos, e uma parcela da sociedade passou até mesmo, a fazer outras comemorações
em suas casas para receber parentes e amigos que se deslocavam de suas cidades para
participarem da Cantoria.363 Nesse sentido, eram realizados grandes almoços, churrascos e
bebedeiras para celebrar os dias festivos. Portanto, para muitos, existia uma afetividade em
relação à Cantoria, de modo que é possível pensar que uns possuíam uma identidade mais
vibrante em relação à festa, outros se identificavam e esperavam discretamente pelos dias de
festa. Por outro lado, alguns não se identificaram com ela. Guarinello aponta que

362
TEIXEIRA, Joaquim de Sousa. Festa e Identidade: Joaquim de Sousa Teixeira. Artigo originalmente
publicado em Comunicação & Cultura, Nº 10, Outono–Inverno 2010, Revista do CECC - Centro de Estudos de
Comunicação e Cultura da Faculdade de Ciências Humanas da Universidade Católica Portuguesa (Lisboa), e
republicado pela on-line LUSOSOFIA. NET com autorização da sua Directora, a Profª Doutora Isabel Capeloa
Gil. PP 11 e 12
363
ROCHA. Agnolia de Oliveira. Agnolia de Oliveira Rocha: depoimento I [Dez. 2016]. Entrevistadora: Larissa
Godinho Martins dos Santos. São Gabriel-Ba, 2016. 1 arquivo mp3 (37 min. e 10 seg. ). Entrevista concedida
para pesquisa histórica.
153

A festa é uma produção do cotidiano, uma ação coletiva, que se dá num


tempo e lugar definido e especial, implicando a concentração de afetos e
emoções em torno de um objeto que é celebrado e comemorado e cujo
produto principal é a simbolização da unidade dos participantes na esfera de
uma determinada identidade. Festa é um ponto de confluência das ações
sociais cujo fim é a própria reunião ativa de seus participantes.364

A partir da citação acima, entendemos que a festa é uma reprodução do social e é


também o ponto de encontro das ações sociais dos sujeitos que ali festejam. Diante da
reflexão que Guarinello faz, podemos dizer que na Cantoria o social de São Gabriel é
representado pelas ações coletivas dos seus sujeitos. Havia uma divisão no espaço da festa: na
frente do palco estavam os produtores do evento se relacionando com os seus pares; nas
barracas, estavam as pessoas mais idosas; no centro da festa, estavam os jovens365; no fundo
da festa, na parte de trás, ou em algum lugar distante das barracas, estavam os políticos de
oposição. Segundo Edes Rocha, ele sentia que não era bem vindo nem no meio do público,
mas que ia mesmo assim para festa.366
É interessante pensarmos nos conflitos de interesses dentro da festa. Quando Erismar
Novaes e outros entrevistados falam que o Culturarte se concentrava em frente ao palco, é
possível identificar que havia uma tentativa do grupo em demarcar um lugar na Cantoria,
usando a frente do palco para mostrar que eram os criadores, idealizadores e construtores da
festa. Portanto, mesmo que elites políticas locais estivessem presentes ali, eles ainda seriam os
protagonistas. Essa luta entre classes dominantes e dominadas é constante no âmbito da
cultura, como pontuou o autor Stuart Hall. 367
A Cantoria também representava os sentimentos. Como Erismar apontou, as memórias
dele e de outros entrevistados, como Welington, Valdelício, Edinilso e Agnolia, estão
marcadas por muito choro. Eles apontaram que na festa as pessoas choravamde felicidade,
saudade, mágoas, e ali reviviam emoções do cotidiano ao ouvir as canções e ao reencontrarem
amigos. Como apontou Guarinello, a festa é um espaço de concentração de emoções. As
pessoas que confraternizam e festejam estão inseridas em uma unidade, ligados a partir de
uma identidade que implica, assim, em uma condensação de afetos. O que é o caso da
Cantoria para a maior parte dos entrevistados. Ela se constituiu em um espaço de

364
GUARINELLO, 2001 apud BEZERRA, 2008, p.10
365
Analise de fotografias retiradas do acervo da Fundação Culturarte.
366
ROCHA, Edes José da. Edes José da Rocha: depoimento I [Nov. 2017]. Entrevistadora: Larissa Godinho
Martins dos Santos. São Gabriel-Ba, 2017. 1 arquivo mp3 ( 1h. e 10 min.). Entrevista concedida para pesquisa
histórica.
367
HALL, 2003, p.255
154

sociabilidade e interação, mas não podemos negar ela enquanto espaço de disputa como foi
mencionado acima. Para Bezerra, “a festa é uma produção social que pode gerar vários
produtos, tanto materiais como comunicativos ou, simplesmente, simbólicos”.368
Bezerra, baseando-se nas considerações de Guarinello, pontua que o produto mais
significativo gerado pela festa é a identidade nos sujeitos participantes. Partindo dessa
reflexão, pensamos que os entrevistados acreditam que a Cantoria também tenha gerado como
produto uma identidade nas gerações mais antigas e, sobretudo, nas gerações mais jovens que
viveram a festa em sua infância e adolescência. Para Guarinello,

a festa gera a concretização efetivamente sensorial de uma determinada


identidade que é dada pelo compartilhamento do símbolo que é comemorado
e que, portanto, se inscreve na memória coletiva como um afeto coletivo,
como a junção das expectativas individuais,como um ponto em comum que
define a unidade dos participantes.369

É possível pensar a Cantoria percebendo que a memória em festejar os dias do evento,


a ideia de confraternização, de socialização e de reconhecimento com aquela festa se tornou
elemento marcante na memória de quem festejou e foi entrevistado. Esse é um ponto que
podemos elencar como um denominador comum que define a unidade dos participantes. O
que foi decidido lembrar e ser esquecido tem a ver com as relações de poder, de como os
grupos querem ser lembrados. Por isso, “esquecer também é uma das faces do campo da
memória. Estudar o que é esquecido e o que é lembrado parece fundamental para entender o
presente.”370
Segundo Bezerra, “Em se tratando desse processo na cidade, os “vencedores”, na
maioria dos casos, são aqueles que detêm o “direito” de falar pela cidade e, portanto, de
representá-la.”371 Por conta disso, percebemos nas narrativas do grupo fundador a tentativa de
lembrar, principalmente, as coisas positivas. Se constituiu uma memória dos vencedores que
querem o poder de representar a cidade. Para pensarmos outros aspectos da festa, José
Teixeira argumentou que,

Sem espírito e corpo não há festa. Vivendo do extra quotidiano, a festa


carece dos elementos do quotidiano (principalmente da refeição) para marcar
a presença carnal do grupo. Quanto à identificação, o elemento formal da
festa (as «representações e crenças», os imperativos ou o porquê do rito, o

368
BEZERRA, 2008, p.10
369
GUARINELO, 2001apud BEZERRA, 2008, p.10
370
FERREIRA, 2006, pp. 200 – 201.
371
BEZERRA, 2008, p.11
155

«para quê» ou «porquê» da celebração, o objecto intencional da festa) tem a


primazia sobre o seu elemento material (os ingredientes da festividade). 372

Consideramos que, para além da representação das relações sociais, a festa precisa de
elementos do quotidiano para existir, pois eles lhe dão vida e movimento. Como citou
Teixeira, a refeição é um importante ingrediente para que os grupos garantam presença na
festa, as bebidas também, pois no Brasil se apresentam como um importante elemento de
diversão e até de socialização. No caso da Cantoria, outro elemento significativo era a
presença do artesanato, meio de trabalho de muitos gabrielenses. Sobre as identificações dos
sujeitos com as festas, o autor coloca como principais ingredientes das festividades as crenças,
as representações e os objetos intencionais. Segundo a memória dos membros fundadores, a
Cantoria surgiu para celebrar, para unir, para promover lazer e movimento na cidade que era
tão carente de “algazarras”.
Por entendemos que a identidade seja uma ação política “construída com base nas
representações, nos discursos, nos sistemas de classificações simbólicas”,373 pensamos que a
Cantoria também teve como objeto intencional a ação política. Talvez muitos não
compreendessem que festejar partisse de uma ação política, como apontou Itamá Rocha, mas
isso está marcado nas memórias dos fundadores, a partir da ideia de que estar ali celebrando
era “um ato de militância”.374

Era um evento cultural sistematizado que buscava transformação. Não havia


isso, e talvez ainda não exista coletivamente uma conceituação profunda do
que é de fato a Cantoria. Do que ela representa do ponto de vista cultural, do
ponto de vista político, do ponto de vista de transformação social, havia um
instinto de fazer para transformar, e um instinto de intervir nos processos
locais.375

Os membros do grupo compreendiam os objetivos da festa, mas não tinham, nas


primeiras edições, a ideia de que festejar era um ato político em si. Entretanto, é recorrente
nos relatos orais dos fundadores que existia a vontade de intervir nos processos locais, fossem
eles políticos, econômicos ou sociais. Eles apontam que havia uma consciência de perceber a
Cantoria como objeto de transformação. Por conseguinte, entendemos que a ideia da festa
como mecanismo de transformação social pode ter sido uma memória construída e

372
TEIXEIRA, 2010, p.15
373
BEZERRA, 2008, p.11.
374
ROCHA, Erismar Novaes. Erismar Novaes Rocha: depoimento I [Jan.. 2018]. Entrevistadora: Larissa
Godinho Martins dos Santos. São Gabriel-Ba, 2018. 1 arquivo mp3 ( 1h. 58. min. e 27 seg. ). Entrevista
concedida para pesquisa histórica.
375
Ibid.
156

desenvolvida com passar dos anos, quando os fundadores olharam e analisaram o que tinha
sido feito. É muito provável que enquanto estavam envolvidos com a construção das
primeiras edições da Cantoria, eles não tivessem consciência da dimensão do que estavam
construindo, nem tão pouco se conseguiriam analisar os conflitos que estavam vivendo. Eles
apenas viviam. É provável que a partir do distanciamento e amadurecimento dos fatos
vividos, os membros do grupo tenham construído essa ideia sobre a Cantoria.
O entrevistado acredita não existir, ainda nos dias de hoje, uma definição coletiva do
que de fato era a festa e o que ela representava. Entretanto, existem muitas definições. Esses
sujeitos trazem a festa como lugar de liberdade de expressão, lugar das pessoas que
geralmente não tinham voz na sociedade, espaço para extravasar os sentimentos. Além dos
objetivos da Fundação Culturarte, ela passou a ter outros objetivos intencionais, a partir do
momento que começou a ser um elemento de identificação de vários sujeitos da cidade. Isso
explica a dificuldade de uma definição acabada do que a Cantoria era, queria e representava.
Bezerra, partindo das ideias de Durkheim, afirma que,

através dos ritos comemorativos os indivíduos são revigorados em sua


natureza de seres sociais, pois as gloriosas lembranças que fazem reviver
diante de seus olhos e das quais eles se sentem solidários, dá-lhes uma
impressão de força e de confiança. 376

Partindo da ideia de que os ritos são responsáveis por fazer os participantes reviverem
outros momentos do passado, de mexer com os sentimentos, analisamos a fala de Erismar
Novaes sobre o estado de espírito das pessoas nas noites de Cantoria. O entrevistado afirma:

É o esforço das pessoas se envolvendo no braçal desde o início, e muitas


lágrimas ao final da primeira noite. De todas as Cantorias até a oitava, eu
lembro de muito choro (risos), de alegria, de realização por estar vendo o
evento, de emoção. Sempre ao final da primeira noite, depois de algumas
cervejas (risos) e do evento está rodando, a quantidade de choro de emoção
de abraço, de confraternização entre as pessoas, é uma lembrança emocional
fantástica que eu carrego. E aí assim, eu falo como testemunha ocular e por
ter participado de alguns desses choros em algumas das primeiras
Cantorias.377

O entrevistado rememora como a festa mexia com as emoções dos participantes e era
responsável por despertar sentimentos diversos como o choro, a saudade, a alegria de estar ali,

376
BEZERRA, 2008, p.10
377
ROCHA, Erismar Novaes. Erismar Novaes Rocha: depoimento I [Jan.. 2018]. Entrevistadora: Larissa
Godinho Martins dos Santos. São Gabriel-Ba, 2018. 1 arquivo mp3 ( 1h. 58. min. e 27 seg. ). Entrevista
concedida para pesquisa histórica,
157

a alegria do reencontro com amigos e familiares, a comunhão, a solidariedade. Os ritos têm o


poder de deixar as pessoas solidárias, o que lhes dá uma impressão de força e confiança que
poderiam ser vistas nos membros do grupo Culturate. A partir da memória de Erismar,
quando o entrevistado fala da alegria de ver o evento sendo realizado e por estarem ali
festejando, é bem provável que se os membros do grupo se sentiam confiantes e realizados.
Para Agnolia Oliveira,

A Cantoria significa uma parte da minha vida mesmo. Cultural mesmo, foi
uma coisa muito significante. Acho que nem só pra mim, mas pra muita
gente aqui. A arte, a música eu acho que traz muitas coisas boas pra vida da
gente. Um significado muito bom.378

Para a entrevistada, a festa faz parte de sua vida e tem um significado muito
importante em sua trajetória. Agnolia Oliveira acredita que ela significa isso para muita gente
da cidade. Entretanto, é importante salientar que o ato de festejar é coletivo, mas também
individual. Cada um tem seu jeito de sentir e expressar o que foi sentido. Certamente, o que a
Cantoria era, objetivava e representava para os membros do Culturarte, não era entendido
igualmente por outros participantes. A festa despertou sentimentos diferentes nas pessoas e o
ato de lembrar de quem a viveu foi em muitos aspectos subjetivo. A ideia da Cantoria como
ato de militância só tem sentido para os membros fundadores. Como apontou Janaína Amado,

Cada ser humano pode ser identificado pelo conjunto de suas


memórias; embora estas sejam sempre sociais, um determinado
conjunto de memórias só pode pertencer a uma única pessoa.
Somente a memória possui as faculdades de separar o eu dos
outros, de recuperar acontecimentos, pessoas, tempos, relações e
sentimentos.379

As memórias são sociais, construídas a partir das relações com o outro, mas algumas
memórias são individuais, pois cada sujeito tem a capacidade de lembrar acontecimentos de
forma única. Além disso, as memórias têm a habilidade de separar o eu do outro, a partir da
forma que se lembra. Por conta, disso memória e identidade andam juntas.
Para os estudiosos da festa, “os indivíduos são revigorados em sua natureza de seres
sociais”.380 Desse modo, são estimulados os sentimentos bons dos sujeitos, o que não elimina
a ideia de tensão, já que nas festas as lembranças podem trazer tristeza e até conflitos entre os

378
ROCHA. Agnolia de Oliveira. Agnolia de Oliveira Rocha: depoimento I [Dez. 2016]. Entrevistadora: Larissa
Godinho Martins dos Santos. São Gabriel-Ba, 2016. 1 arquivo mp3 (37 min. e 10 seg. ). Entrevista concedida
para pesquisa histórica.
379
AMADO, 1995, p.132
380
BEZERRA, 2008, p.10
158

participantes. Celebrar é reviver, é sentir, é ser sujeito social inserido em um “calderão” de


crenças, lembranças, símbolos e elementos de uma dada sociedade, sendo compartilhado com
outros sujeitos.
Diante de toda uma mobilização nas rotinas das pessoas por conta dos dias festivos, da
ansiedade para os dias de Cantoria e uma preocupação em se preparar para recebê-la,
entendemos a festa como parte da identidade de muitas pessoas em São Gabriel, e
consequentemente, reconhecida como a festa da cidade. A Cantoria de São Gabriel marcou o
imaginário da cidade na década de 1990. A festa foi responsável por construir e firmar
identidades, quebrar paradigmas e enraizar novos valores sociais. Foi, por assim dizer, a
representação das tensões sociais que ali existiu e seguiu, em 1990, construindo marcos nas
memórias de muitos sujeitos. Se fosse possível entrevistar uma parte significativa dos
habitantes da cidade e lhes perguntar uma memória que envolva a festa, certamente, todos
teriam uma lembrança ligada ao evento. Assim, entendemos que a Cantoria conquistou um
lugar naquele pedaço de chão do sertão baiano.
159

4.0 CONSIDERAÇÕES FINAIS

A história da Cantoria, festa do sertão baiano, foi construída a partir do que os


entrevistados lembraram e/ou quiseram lembrar, do que esqueceram ou quiseram esquecer.
Ouvimos as pessoas que criaram, frequentaram e patrocinaram a festa com ouvidos atentos e
olhar observador nos sujeitos que nos contaram a história com propriedade, narrando as
minúcias dos dias vividos no “ontem”. A partir daí construímos, ou ousamos reconstruir, o
cenário da cidade na década de 1990 com as personagens reais que se relacionaram e
divergiram em relação à festa. As memórias do grupo fundador, de ex-prefeitos e de outros
participantes, delinearam os caminhos que traçamos para entender a trajetória da Cantoria nos
seus primeiros nove anos de existência; anos marcados por rejeição, estranhamento,
resistência, tensões externas e internas, e também aceitação.
Desde os fins dos anos de 1970, antes mesmo de São Gabriel ser cidade, existiu uma
juventude que buscou inovar, criar e questionar o mundo naquele lugar. Jovens que se
reuniram para ouvir música, tocar e pensar em espaços alternativos para se expressarem, a
partir do MAC e do JUPP. Os fatos analisados evidenciaram que os sujeitos que atuaram nos
anos entre 1979 a 1988 realizaram ações significativas para a época. O cenário de atuação era
uma cidade com costumes interioranos, além do agravante de estarem no contexto do Regime
Militar e no conturbado processo de redemocratização. Os entrevistados – integrantes dos
grupos e habitantes de São Gabriel que acompanharam suas ações– acreditam que estes
grupos foram de fundamental importância para o desenvolvimento das questões culturais e
políticas na cidade. Suas ações iam desde a realização de rodas com músicas, até a busca de
melhorias para o povo, criticando o descaso dos grupos políticos que exerciam o poder na
localidade por muito tempo.
As memórias, em sua grande maioria, apontaram que a partir da resistência e rebeldia
dos sujeitos do MAC e JUPP nasceram importantes influências para a criação do grupo
Culturarte e, consequentemente, da Cantoria. A partir das análises das fontes, entendemos que
as influências no campo cultural na cidade estão diretamente ligadas ao conjunto de ações
desenvolvidas tanto pelo MAC, quanto pelo JUPP.Com fim do MAC e do JUPP, foi embora
também a ditadura e uma nova conjuntura política se moldou. O partido dos Trabalhadores
(PT) e o Partido Comunista do Brasil (PC do B) já tinham chegado em São Gabriel, nos ano
de 1980, e alguns jovens aderiram a suas ideias e passaram a militar nos dois partidos.
Desde 1985, a cidade passou a ser governada por partidos aliados à direita. Durante
muito tempo um determinado grupo político, ou um grupo de políticos, sempre formaram as
160

chapas vitoriosas que se revezavam no poder. Dessa maneira, o poder político local esteve por
anos nas mãos das mesmas pessoas, o que deu manutenção a uma forma de governar voltada
paras os interesses de quem governava. É importante ressaltar as formas de fazer política
ainda comum no sertão da Bahia, onde políticos trocam empregos ou promessas de empregos
por votos. Com isso, eles se elegem e levam ao poder quem eles querem, de modo que o povo
contido pela esperança ou até mesmo por ameaças, votam e apoiam uma elite política local
que pouco se preocupa com a saúde, educação e menos ainda com a cultura.
O Culturarte surgiu e junto a ideia da Cantoria, num contexto em que a cidade passava
por fortes problemas econômicos, pois a década de 1990 foi um período de longas estiagens e
a agricultura, o principal meio de sobrevivência da população, passou por sérios problemas.
Numa sociedade conservadora, com políticos majoritariamente de direita e sua população
majoritariamente cristã, a festa criada por pessoas que militavam em partidos de esquerda,
“zoadentos”, como pontuou um entrevistado, e profanos, causou, em um primeiro momento,
um “susto” e estranhamento nas pessoas.
O cenário em que a festa surgiu era marcado por seca, pobreza, falta de emprego,
esquecimento e abandono das esferas estadual e federal, poucas casas comerciais e quase
nenhuma forma de lazer. Segundo Erismar Novaes, a festa foi fruto de uma gama de ações,
ideias e influencias de pessoas e grupos que agiam e percebiam o mundo de forma diferente
do que estava posto.
A festa surgiu como uma nova forma de sociabilidade para os jovens de São Gabriel –
o que não significa dizer que toda juventude se identificou com ela. Essa ideia prevalece para
a maioria dos entrevistados. Para o grupo fundador, a Cantoria significou mais do que espaço
do que um novo espaço de lazer. Também foi uma forma de disputa por espaço,
protagonismo, sociabilidade, criação e ressignificação de identidades. Isso possibilitou
(re)estabelecer laços e valores sertanejos de representar a vida real como o cotidiano com da
seca, do trabalhador, do repentista, do cordel e do grupo de roda.
A Cantoria rompeu, mais uma vez – por acreditarmos que o MAC e o JUPP também
tenham rompido – com uma normatividade, estabelecida naquela cidade por uma moral
seguida por grande parte da população. Por conta disto e, o que já era de “costume” na cidade,
a festa foi malvista e criticada pela maioria dos gabrielenses. Os maldizeres foram muitos. É
importante pensar que o grupo foi rebelde em muitos aspectos, mas também negociou para
que, mesmo com toda oposição contra a realização do evento, pudesse acontecer em 1991 e
também nos anos seguintes.
161

O leque de fontes nos permitiu vislumbrar que os conflitos foram frutos de


divergências políticas já existentes antes mesmo da Cantoria, isso porque a localidade traz a
política como um importante elemento nas vidas e relações dos seus sujeitos. O “lado”
político do qual você faz parte poderia, como nos dias atuais, significar muito e ser indício
importante para justificar divergências em outros assuntos como a criação e organização de
uma festa.
As fontes nos permitiram entender também os conflitos internos. Eles divergiram nas
escolhas de atrações, de aceitação de patrocínio, de ceder ou não para que um determinado
prefeito realizasse a abertura da festa. Todos estes temas foram motivos de divergências que
proporcionaram a saída de muitas pessoas do grupo. A dificuldade que tiveram em estabelecer
diálogo ficou marcada nas memórias dos fundadores como imaturidade, mas pode ser vista
também como uma ação comum em relações grupais, em que os sentimentos, anseios e ideias
de cada indivíduo podem ser combustíveis para contrapontos, argumentações, divergências,
brigas e até mesmo agressões verbais. O caso de Netão foi o mais intenso, sua saída teve a ver
com sua íntima amizade com o prefeito Edes Rocha. O ex-prefeito foi entre os três prefeitos
que atuaram na década de 1990 o que teve mais dificuldades de estabelecer relação com o
grupo, por conta da grande distância entre as formas de pensar entre ele e os integrantes.
Acreditamos que o Culturarte passou por toda a década de 1990 enfrentando
dificuldades para crescer. De acordo com os fundadores, teria sido a dificuldade de diálogo
com quem não possuía uma trajetória de militâncias junto a eles. Para outros entrevistados,
que não faziam parte do grupo, o Culturarte se considerava uma vanguarda. Dificuldade para
dialogar ou uma vanguarda? Não podemos responder, podemos pontuar que, diante das atas,
descobrimos que o grupo manteve uma média de vinte a trinta participantes em cada ano e
uma rotatividade muito pequena de pessoas. Talvez fosse uma escolha, talvez uma dificuldade
que pretendiam superar, ou apenas eles estivessem vivendo sem preocupação acerca do
número de integrantes.
Para um dos membros do grupo, Antônio Régie, a pedagogia do Culturarte era
também, uma pedagogia de transformação, de encontro e, sobretudo, troca de ideias.
Entretanto, a Cantoria, o maior fruto do grupo Culturarte, representou um espaço de
sociabilidade e troca de ideias desde o início para os membros do grupo, mas para grande
parte da sociedade gabrielense isso só acontece a partir de meados de 1990.
Segundo os relatos orais, a Cantoria, a partir da quarta edição, passou a se popularizar
por conta da conquista de trazer um artista que tinha reconhecimento nacional e era
reconhecido pelos mais diversos grupos da cidade. A partir daí, a festa passou a mudar de
162

figura para a sociedade Gabrielense. Se no início ela foi malvista e rejeitada, em meados da
década de 1990, ela passou a ser frequentada paulatinamente pela sociedade e a fazer parte do
interesse da classe política local. O interesse dos políticos pela festa se deu na tentativa de
instituí-la e utilizá-la para dar manutenção aos seus governos, pois se era de interesse do povo,
era “importante” para os seus governantes. A partir de 1996, nos cartazes da festa, o local
onde a Cantoria passou a acontecer que antes era anunciado como praça pública, passou a ser
anunciado como “Praça da Cantoria”. Esse é um indício importante para acreditarmos que ela
já estava se consolidando na cidade.
A virada da festa não se deu de forma repentina, foi um processo. No fim dos anos de
1990, ela passou a ser reconhecida como a festa da cidade, passando de festa marginalizada
para um evento extremamente importante para São Gabriel. A Cantoria, durante a década de
1990, foi espaço de encontro e lazer, ela ajudou a movimentar a cidade, a economia local e se
fixou nas memórias da população gabrielense. A Cantoria é uma festa que, diante dos relatos,
tem caráter “popular”, carrega em seu histórico tensões e resistências no processo de
surgimento que se caracterizou pela busca de aceitação por parte dos habitantes da cidade e de
luta pela sua continuidade.
As lembranças dos momentos de folia, rememorados pelos entrevistados foram
marcadas por entusiasmo, acompanhado de sorrisos e expressões de satisfação. Ver a
felicidade estampada nos rostos que rememoravam experiências de outrora é uma das
melhores partes de se trabalhar com História Oral. Os fatos apresentados na pesquisa
evidenciam que as festas são fenômenos primordiais e indissociáveis da vida em sociedade.
Mulheres e homens, ao festejarem, se encontram, relacionam-se e representam suas práticas
da vida real.
Escrever e analisar a história da Cantoria foi um processo que demorou alguns anos
para ser realizado. Entretanto, mesmo com os percalços, uma parte da história da festa do
sertão foi concluída e contada nesta pesquisa. Esperamos que ela possibilite que outros
capítulos dessa história sejam escritos.
163

5.0 REFERÊNCIA
5.1 Fontes

Fonte oral: Entrevistas:

ABREU, Maria de Fátima Oliveira. Maria de Fátima Oliveira Abreu: depoimento I [dez.
2016]. Entrevistadora: Larissa Godinho Martins dos Santos. Bahia: São Gabriel-Ba, 2016. 1
arquivo mp3 32 min. e 30 seg.) Entrevista concedida para pesquisa histórica.
ABREU, Orlando Novaes. Orlando Novaes Abreu: depoimento I [Set. 2017]. Entrevistadora:
Larissa Godinho Martins dos Santos. São Gabriel-Ba, 2017. 1 arquivo mp3 ( 9 min. ).
Entrevista concedida para pesquisa histórica.

ARAÚJO, Marcio Gonçalves de. Marcio Gonçalves de Araújo: depoimento I [Jan. 2012].
Entrevistadora: Larissa Godinho Martins dos Santos. Bahia. São Gabriel-Ba, 2012. 1 arquivo
mp3 (56 min. e 37 seg.). Entrevista concedida para pesquisa histórica.
DOURADO, Marilú Soares dos Santos. Marilú Soares dos Santos Dourado: depoimento I
[Nov. 2017]. Entrevistadora: Larissa Godinho Martins dos Santos. São Gabriel-Ba, 2017. 1
arquivo mp3 ( 7 min. e 34 seg. ). Entrevista concedida para pesquisa histórica.

FIGUEIREDO, Antônio Régie Evaristo de. Antônio Régie Evaristo de Figueiredo:


depoimento I [mar. 2013]. Entrevistadora: Larissa Godinho Martins dos Santos. São Gabriel-
Ba, 2013. 1 arquivo mp3 (20 min.). Entrevista concedida para pesquisa histórica.
FILHO, Valdelício Barreto Vaz. Valdelício Barreto Vaz Filho: depoimento I [dez. 2016].
Entrevistadora: Larissa Godinho Martins dos Santos. São Gabriel-Ba, 2016. 1 arquivo mp3
(51 min. e 54 seg.). Entrevista concedida para pesquisa histórica.

GHIRELLI, Pier Luigi. Pier Luigi Ghirelli: depoimento I [jan. 2017]. Entrevistadora: Larissa
Godinho Martins dos Santos. Itália/Brasil; Feira de Santana, 2017. 1 arquivo via Correio
eletrônico . Entrevista concedida para pesquisa histórica.

GHIRELLI, Pier Luigi. Pier Luigi Ghirelli: depoimento II [jul. 2018]. Entrevistadora: Larissa
Godinho Martins dos Santos. São Gabriel-Ba, 2018. 1 arquivo mp3 (53 min. e 13 seg.).
Entrevista concedida para pesquisa histórica.

MIRANDA, Ednilson Martins De. Ednilson Martins De Miranda: depoimento I [Out. 2017].
Entrevistadora: Larissa Godinho Martins dos Santos. São Gabriel-Ba, 2017. 1 arquivo mp3 ( 8
min. e 45 seg. ). Entrevista concedida para pesquisa histórica.

NEIVA, Luiz Sérgio Batista. Luiz Sérgio Batista Neiva: Depoimento I [Dez. 2016].
Entrevistadora: Larissa Godinho Martins dos Santos. São Gabriel-Ba, 2016. 1 arquivo mp3
(20 min. e 16 seg. ). Entrevista concedida para pesquisa histórica.

NOVAES, Olavo. Olavo Novaes: depoimento I [set. 2012]. Entrevistadora: Larissa Godinho
Martins dos Santos. São Gabriel-Ba, 2012. 1 arquivo mp3 (36 min. e 13 seg.). Entrevista
concedida para pesquisa histórica.
164

PEREIRA, João Purcino. João Purcino Pereira: depoimento I [mar. 2013]. Entrevistadora:
Larissa Godinho Martins dos Santos. Bahia. São Gabriel-Ba, 2013. 1 arquivo mp3 (56 min. e
37 seg.). Entrevista concedida para pesquisa histórica.
PEREIRA, Renan dos Santos. Renan dos Santos Pereira: depoimento I [Nov.. 2017].
Entrevistadora: Larissa Godinho Martins dos Santos. São Gabriel-Ba, 2017. 1 arquivo mp3
(31 min. e 44 seg. ). Entrevista concedida para pesquisa histórica.

ROCHA, Aimá Glicério Rocha. Aimá Glicério Rocha: depoimento I [Mai. 2017].
Entrevistadora: Larissa Godinho Martins dos Santos. São Gabriel-Ba, 2017. 1 arquivo mp3
(31 min. e 40 seg. ). Entrevista concedida para pesquisa histórica.

ROCHA, Clodoaldo Pereira da. Clodoaldo Pereira da Rocha: depoimento I [Nov. 2017].
Entrevistadora: Larissa Godinho Martins dos Santos. São Gabriel-Ba, 2017. 1 arquivo mp3
(12 min. e 18 seg. ). Entrevista concedida para pesquisa histórica.

ROCHA, Edes José da. Edes José da Rocha: depoimento I [Nov. 2017]. Entrevistadora:
Larissa Godinho Martins dos Santos. São Gabriel-Ba, 2017. 1 arquivo mp3 ( 1h. e 10 min.).
Entrevista concedida para pesquisa histórica.

ROCHA, Erismar Novaes. Erismar Novaes Rocha: depoimento I [Jan.. 2018]. Entrevistadora:
Larissa Godinho Martins dos Santos. São Gabriel-Ba, 2018. 1 arquivo mp3 (1h. 58. min. e 27
seg. ). Entrevista concedida para pesquisa histórica.

ROCHA, Itamá Glicério. Itamá Glicerio Rocha: depoimento I [Mai. 2017]. Entrevistadora:
Larissa Godinho Martins dos Santos. São Gabriel-Ba, 2017. 1 arquivo mp3 (17 min. e 37
seg.). Entrevista concedida para pesquisa histórica.

ROCHA. Agnolia de Oliveira. Agnolia de Oliveira Rocha: depoimento I [Dez. 2016].


Entrevistadora: Larissa Godinho Martins dos Santos. São Gabriel-Ba, 2016. 1 arquivo mp3
(37 min. e 10 seg. ). Entrevista concedida para pesquisa histórica.

SANTOS, Welington Oliveira. Welington Oliveira Santos: depoimento I [jan. 2017].


Entrevistadora: Larissa Godinho Martins dos Santos. São Gabriel-Ba, 2017. 1 arquivo mp3
(1h. 03min. e 46 seg.). Entrevista concedida para pesquisa histórica.
SENA, Jandira Francisco Pereira. Jandira Francisca Pereira Sena: depoimento I [out. 2017].
Entrevistadora: Larissa Godinho Martins dos Santos. São Gabriel-Ba, 2017. 1 arquivo mp3
(44 min.). Entrevista concedida para pesquisa histórica.
SILVA, Antônio Carlos Rodrigues da. Antônio Carlos Rodrigues da Silva: depoimento I [jul.
2012]. Entrevistadora: Larissa Godinho Martins dos Santos. São Gabriel-Ba, 2012. 1 arquivo
mp3 (46 min. e 21 seg.). Entrevista concedida a autora para pesquisa histórica.

SILVA, Antônio Carlos Rodrigues da. Antônio Carlos Rodrigues da Silva: depoimento II
[mai., 2014]. Entrevistadora: Larissa Godinho Martins dos Santos. São Gabriel-Ba, 2014. 1
arquivo mp3 (7 min. e 10 seg.). Entrevista concedida para pesquisa histórica.
SOUZA, Jandira Benício Lima. Jandira Benício Lima Souza: depoimento I [Out. 2017].
Entrevistadora: Larissa Godinho Martins dos Santos. São Gabriel-Ba, 2017. 1 arquivo mp3
(11 min. ). Entrevista concedida para pesquisa histórica.
165

VIRGENS, José Carlos Dourado Das. José Carlos Dourado Das Virgens: depoimento I [jul.,
2018]. Entrevistadora: Larissa Godinho Martins dos Santos. São Gabriel-Ba, 2018. 1 arquivo
mp3 (45 min. e 36 seg.) Entrevista concedida para pesquisa histórica.

Atas – Acervo Fundação Culturarte:

Ata de assembleia geral de construção da Fundação CulturArte. Sessão de 29/11/1992.


Realizada no Salão Comunitário, praça da Matriz, s/n em São Gabriel-Ba.
Ata de posse dos cargos de direção da Fundação Culturarate. Sessão de 07/01/1993. Realizada
no Salão Comunitário, praça da Matriz, s/n em São Gabriel-Ba.
Ata de avaliação da I e II Cantoria, e organização da III Edição. Sessão de 05/04/1993.
Realizada no Salão Comunitário, praça da Matriz, s/n em São Gabriel-Ba.

Fotografias e Cartazes:
Fotografia do espaço da festa na praça da Cantoria em 1996, retirado do acervo da Fundação
Culturarte.
Show de Belchior na IX Cantoria em São Gabriel-Ba em 1999. Acervo da Fundação
Culturarte.
Barraca da Fundação Culturarte na terceira Cantoria. 1993. Acervo de Agnolia Rocha. P.83
Cartaz da I cantoria de São Gabriel de 1991. Retirado do acervo de fotografias da Fundação
Culturarte. Acesso em 10/08/2014.
Cartaz da II cantoria de São Gabriel de 1991. Retirado do acervo de fotografias da Fundação
Culturarte. Acesso em 10/08/2014
Cartaz da III Cantoria em São Gabriel. Ano, 1993. Retirado do acervo da Fundação
Culturarte.
Cartaz da VI Cantoria em São Gabriel. Ano, 1996. Retirado do acervo da Fundação
Culturarte.

Texto memorialístico:

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com autorização da sua Directora, a Profª Doutora Isabel Capeloa Gil.
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170

6.0 Anexo I: Tabela de identificação e trajetória dos entrevistados.

Filiação em Partidos e
Nome Profissão Idade Atuaçã Atuação Atuação no Participação na política local
o no no JUPP Culturarte
MAC

Agnolia de Professora 54 Não Não Sim Não


Oliveira Rocha

Aimá Glicério Filiado ao PT em


Rocha Professor 52 Não Não Sim 15/05/1990. Vereador de São
Gabriel pelo PT entre
2001/2004.

Antônio Alecrim Aposenta --- Sim Não Sim ----


Freire Neto do

Antonio Carlos Autônomo 56 Sim Não Sim Filiado ao PSDB em


Rodrigues da Silva 11/07/1993

Antônio Régie Técnico


Evaristo de Agrícola 46 Não Não Sim Não
Figueiredo

Clodoaldo Pereira Professor/a 57 Não Não Não Prefeito de São Gabriel 1992
da Rocha gricultor pelo PFL.

Prefeito de São Gabriel


Edes José da Aposentad 70 Não Não Não 1996/2000 pelo PFL.
Rocha o Candidato a prefeito de São
Gabriel em 2008 pelo DEM.

Ednilson Martins Professor 43 Não Não Não Filiado ao PT em 10/06/2012


de Miranda

Erismar Novaes Servidor 39 Não Não Sim Filiado ao PT em 01/10/2011


Rocha Público

Itamá Glicério Agente de


Rocha Saúde 52 Não Não Sim Não

Jandira Benício Professora 51 Não Não Não Não


Lima Souza

Jandira Francisco Professora 49 Não Não Não Não


Pereira Sena
171

Vereador em 1988. Vereador


em 1992; Vereador em 1996.
João Purcino Agente de 59 Não Sim Sim Vereador em 2000 PSB.
Pereira Saúde Candidato a vereador em
2008 PDT.
Candidato a prefeito de São
José Carlos Técnico Gabriel 1988. Candidato a
Dourado das em 56 Sim Sim Sim Deputado Estadual 1993.
Virgens agropecuá Deputado Estadual em
ria 1998/2002 e 2006.
Candidato a prefeito de São
Gabriel em 2000. E prefeito
de Irecê em 2008, pelo PT.

Luiz Sérgio Comercian 47 Não Não Sim Não


Batista Neiva te

Marcio Gonçalves Agente de 42 Não Não Sim Não


de Araújo endemias
Filiada ao PC do B em
Maria de Fátima Professora 52 Sim Sim Sim 16/12/1987; Candidata a
Oliveira Abreu vereadora em 2000 PC do B;
Vereadora em 2004 PC do B

Marilú Soares dos Professora 57 Não Não Não Não


Santos Dourado aposentada

Olavo Nestor de Comercian 63 Sim Não Não Filiado ao PT em 31/01/1986.


Novais te

Orlando Novaes Comercian 58 Não Não Não Não


Abreu te

Pier Luigi Ghirelli Padre 76 Não Não Não Não


Prefeito de São Gabriel em
Renan dos Santos Agricultor 72 Não Não Não 1985. Candidato a prefeito de
Pereira São Gabriel em 1996 pelo
PTB.

Valdelício Barreto Agricultor 53 Sim Não Sim Filiado ao PT desde


Vaz Filho 20/12/2014

Welington Professor 49 Não Não Sim Filiado ao PT em 23/03/2015


Oliveira Santos

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