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Salvador – BA
2016
Fernanda Gomes Rocha
Salvador – BA
2016
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CDD: 981.42
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Universidade Federal da Bahia
Faculdade de Filosofia e Ciencias Humanas
PROGRAMA DE POS-GRADUA~O EM HISTORLA
=-OOCURSO
La<;:osde familia: Escravos e libertos em inas do Rio de Contas - Bah' (1840 -1888)
Aos trinta e um dias do mes de mart,;o do ana de dois mil e dezesseis, nas dependencias da Faculdade de
Filosofia e Ciencias umanas da Universidade Federal da Bahia (UFBA), foi instalada a sessao publica para
julgamen~o do trabalho final elaborado por Fernanda Gomes Rocha, mestranda do Programa de Pes-
graduar;ao em Histeria Social do Brasil. Apes a abertura da sessao, a professora Maria de Fatima Novaes
Pires, orientadora e presidente da banca julgadora, deu seguimento aos trabalhos, apresentando as demais
examinadoras, Foi dada a palavra a autora, que fez sua exposit,;ao e, em seguida, ouviu a leitura dos
respectivos pareceres dos integrantes da banca, Terminada a leitura, procedeu-se a argui<;ao e respostas do
havendo a tratar, foi encerrada a sessao e lavrada a presente ata que sera assinada p~r quem de direito.
Ao findar esta etapa da minha vida acadêmica olhei para trás, observei que toda essa
caminhada não foi percorrida sozinha e compreendi que a história é constituída de extensas
redes de solidariedades, parcerias, renúncias momentâneas e doação. Agora, chegou o
momento de deixar registrado e retribuir todo o carinho e atenção recebidos por aqueles que
me ajudaram a escrever mais uma página da minha vida. Gostaria de agradecer àqueles que,
de alguma forma, segurou em minha mão e me sustentou.
Inicialmente, agradeço ao Deus único e poderoso que sirvo, o Senhor Jesus. Razão de
toda minha existência, sem teu amor e misericórdia nada seria!!!
À professora Maria de Fátima Novaes Pires por acreditar em minha pesquisa e aceitar
o convite para me orientar. Não tenho palavras para expressar o quanto sou grata à senhora,
não somente pelos ensinamentos ofertados, pela autonomia e confiança concedida e assim
conduzir o trabalho a partir da minha experiência com as fontes, mas, principalmente, pelos
momentos de descontração vivenciados, nos quais pude tecer sólidos laços de solidariedade e
amizade que extrapolaram os muros acadêmicos.
Às professoras Isabel Cristina Ferreira dos Reis e Kátia Lorena de Novais Almeida,
que teceram comentários pertinentes no meu exame de qualificação e contribuíram com o
aprimoramento desta pesquisa, assim como pela compreensão ao aceitarem receber o texto
com pouco prazo para a leitura.
Outro professor que muito colaborou com este trabalho foi Jonis Freire. De Niterói –
RJ, ele me envia, via correio e/ou e-mail, livros, dissertações, revistas e artigos, obras de
difícil acesso e outras “saindo do forno”, sempre me atualizando com os trabalhos sobre
escravidão e ajudando a labutar com as fontes. Jonis, te agradeço de coração!
Aos professores, colegas e amigos do curso de mestrado em História Social da
Universidade Federal da Bahia - UFBA. Em especial, aos professores João José Reis e Maria
José Rapassi Mascarenhas que cordialmente me receberam, sempre dispostos a me ouvir e
ajudar e que muito contribuíram com o meu “ofício”. Às colegas Eliane Maia e Raiza Canuta,
pela maravilhosa companhia, longas conversas entre o ir e vir da UFBA e, claro, pelas
experiências compartilhadas. Aos colegas Moisés Amado, Daniel Vital, Virgílio Sena, Rafael
de Oliveira, Rafael Rosa, Jamille Cardoso e Débora Ataíde pelos momentos de descontração,
nos quais pude compreender que o aprendizado acadêmico extrapola os muros institucional.
Quero agradecer também aos professores e amigos da graduação na Universidade do
Estado da Bahia - UNEB campus VI / Caetité e funcionários do Arquivo Público de Caetité –
APMC. Locais onde foram germinadas as primeiras sementinhas desta árvore e pude adquirir
experiência no trato com as fontes. Nessa fase, tive o privilégio de conhecer, ser aluna,
orientanda e amiga de Marcos Profeta, que com sensibilidade conduziu os meus primeiros
contatos com os documentos e a escrita da história, e de construir uma linda amizade com
Gabriela Nogueira, uma das primeiras influências e empurrões que tive, das quais muito me
orgulho.
À amiga-irmã, companheira e cúmplice deste trabalho, Napoliana Santana que sem a
sua amizade, solidariedade e parceria não teria conseguido chegar até aqui. Pelas incontáveis
horas de conversas ao telefone que de amiga passava a ser psicóloga, “co-orientadora” e, em
alguns momentos, sendo até chata, mas, sem nenhuma dúvida, o meu maior suporte. Ao
amigo-irmão Alan Passos, sempre gentil e disposto a me acolher e ajudar a enfrentar a
grandiosa capital baiana, Salvador. Companheiro de longos debates sobre as vivências
humanas, teoria da história e a este tão competitivo mundo acadêmico. À Poly e Alanzim,
como carinhosamente os chamo, dedico este trabalho!
No período em que vivi em Salvador fui acolhida gentilmente pela família Teixeira. O
patriarca Ney Teixeira juntamente com a sua esposa Luiza carinhosamente me deram abrigo
provisório, tempo necessário para me instalar na Capital. Camila, a filha do casal, sempre
disposta a me orientar a caminhar na cidade grande. Outra família que me ajudou em Salvador
foi a formada por Naiara Rocha e Alessandro Melo, sempre que precisava eles estavam
dispostos a me ajudar. Era almoços, passeios, conversas e muita diversão ao lado deles e do
pequenino Heitor, filho do casal que nasceu neste período, me proporcionando experiências
com a maternidade. A vocês meu muito obrigada!
Não poderia deixar de agradecer às funcionárias do Arquivo Público de Rio de Contas:
Gardênia Chaves, Eucaria Cotrim, Vanília Gottschall e Daniela Novais, sempre tão
prestativas e dispostas a contribuir com a escrita da história de Rio de Contas, certamente sem
o apoio e carinho de vocês não teria dado conta da empreitada com as fontes. Ao amigo
Eliovaldo Cardoso, sempre solicito e disposto a me socorrer no período em que estava longe
do arquivo, fosse fotografando os inventários ou lançando os dados coletados nas tabelas do
Excel e à amiga Ana Clara Sampaio que também me ajudou com as fontes, transcrevendo-as e
digitando os dados coletados. Ao Padre Valderí Tavares da Paróquia do Santíssimo
Sacramento de Rio de Contas por ter concedido os registros eclesiásticos à pesquisa, à minha
madrinha Ednalva Oliveira por ter intermediado os acordos com o Padre e também ao padre
Joaquim Almeida que, na ausência de Pe Valderi, permitiu que continuasse as pesquisas e
conhecesse um pouco do rico acervo documental desta Paróquia. Ao meu sogro Dilson
Novais, topografo e agrimensor, que me ajudou a conhecer geograficamente as fazendas,
sítios e povoados da freguesia de Nossa Senhora de Livramento e colaborou com a execução
dos mapas utilizados nesta pesquisa. E agradeço a Tadeus Dias pela paciência e solicitude ao
confeccionar os mapas e me orientar sobre os espaços geográficos.
Às profª Maria Gorette da Silva Ferreira, tão atenciosa e prestativa, que desde a
qualificação vem me ajudando com a gramática, e a Martina Luz, que contribuiu com a leitura
final do texto e fez importantes considerações gramaticais. À Marcia Kelly, companheira
desde a graduação que me ajudou com o resumo em inglês.
Agradeço ao Concelho Nacional de Pesquisa – CNPQ, pela concessão da bolsa de
financiamento deste trabalho de pesquisa.
Deixei para o final a base de tudo, minha família! À minha mãe Lucélia Gomes pela
determinação, garra e persistência adquiridas, ao grande exemplo de luta e força de vontate.
Ao meu esposo Nayron Rocha por apoiar, acreditar, incentivar e compreender minhas
constantes ausências, a ti, minha vida, dedico este estudo. Aos meus irmãos Alexandre e
Marcus, pelas renuncias e confiança.
Resumo
The aim of this work is to study the spiritual and consanguineous family ties of slaves and
freedmen in Minas do Rio de Contas, a region called alto sertão in Bahia state, in the years
1840 and 1888. Thus, the church records were analyzed, inventories, books of notary note,
trying, whenever possible, to understand the meaning of family in the lives of these
individuals and how, through the sacrament of baptism, marriage and death they created
safety nets and mutual help with people from different social legal status. It was a concern to
investigate the sponsorship from the experiences of slaves and freedmen, analyzing their
personal choices and seeking to interpret the possible arrangements of daily survival.
Thereby, it was possible to identify the formation of large families that not only involved the
consanguineous kinship (father, mother and son), but also the spiritual (godparents), entwined
by the sponsorship, the relations of sociability, affectivity, fellowships and community ties.
Furthermore, the importance of the spiritual bonds formed in the brotherhood of Our Lady of
the Rosary for the slave life, especially at the time of death.
Lista de Gráficos
Gráfico 02: Percentual da população cativa, na faixa etária de 13 a 45 anos, por década. ...... 62
Gráfico 03: População cativa, na faixa etária de 13 a 25 anos, por gênero. ........................... 63
Lista de Histogramas
Histograma 01: Família de Leandra, escrava pertencente a Caetano Antunes Pereira, 1840 –
1883..................................................................................................................................... 46
Histograma 02: Vínculos familiares dos escravos de Caetana Luiza de Castro, matriculados
em 1872. .............................................................................................................................. 49
Histograma 03: Laços da família de Jose e Joanna, escravos pertencentes a Joaquim Pereira de
Castro Coelho. ..................................................................................................................... 61
Histograma 04: Laços familiares de Henrique Dias Coelho e Tiburcia Alves Coelho, escravos
pertencentes a Manoel Alves Coelho Sobrinho..................................................................... 84
Histograma 05: Laços familiares de José, escravo, pertencente ao Capitão Antônio Sempronio
Alves. .................................................................................................................................. 94
Histograma 07: Laços de compadrio do escravo Nicolau, cabra, “official de varios officios”,
pertencente ao Coronel Miguel Alves Coelho .................................................................... 112
Histograma 08: Laços familiares de Clara, escrava pertencente a Sebastião Jose do Bomfim
.......................................................................................................................................... 116
Histograma 09: Laços de família: a escrava Ramona, os filhos e o marido. ........................ 122
Histograma 10: Redes de convívio: laços familiares e sociais do casal Raimundo e Maria,
escravos de Jeronymo de Sousa Gomes, 1844-1852 ........................................................... 125
Histograma 11: Redes de convívio: laços familiares e sociais do liberto Jose Borba Galo e da
esposa Luduvina, escrava, 1843-1849 ................................................................................ 128
Lista de Imagens
Lista de Mapas
Mapa 01: Freguesias existentes no termo de Minas do Rio de Contas no século XIX. .......... 21
Lista de Quadros
Quadro 01: Escravos pertencentes a Constancia Joaquina das Neves Dourado, Sítio do
Bebedouro, Morro do Fogo – 1864. ..................................................................................... 68
Quadro 02: Causas das mortes de escravos, ingênuos e libertos nos registros de óbitos, 1840-
1888................................................................................................................................... 143
Quadro 03: Óbitos de escravos e ingênuos por propriedade, 1840-1888. ............................ 144
Lista de Tabelas
Tabela 01: média de cativos por propriedade, Minas do Rio de Contas –1840 a 1888........... 43
Tabela 02: nacionalidade dos escravos nos inventários de Minas do Rio de Contas, 1840-
1888..................................................................................................................................... 50
Tabela 03: idade da população cativa de Minas do Rio de Contas, 1840-1888. ..................... 56
Tabela 04: população cativa de Minas do Rio de Contas, distribuída por década, faixa etária e
gênero – 1840-1888. ............................................................................................................ 62
Tabela 05: classificação da cor dos escravos inventariados – Minas do Rio de Contas, 1840-
1880..................................................................................................................................... 75
Tabela 06: classificação da cor de escravos e libertos nos registos de batismo da Freguesia do
Santíssimo Sacramento da Villa de Nossa Senhora do Livramento do Rio de Contas, 1838-
1863..................................................................................................................................... 78
Tabela 07: quantidade de casamentos envolvendo escravos, libertos e livres pobres nas Minas
de Rio de Contas nos anos de 1873 a 1888 ........................................................................... 87
Tabela 08: formação dos casais por estatuto jurídico e sexo – Minas do Rio de Contas, 1873-
1888..................................................................................................................................... 90
Tabela 10: Faixa etária dos nubentes por gênero - Minas do Rio de Contas, 1873-1888 ....... 97
Tabela 11: formação dos pares de cônjuges por faixa etária, 1873 – 1888 .......................... 100
Tabela 12: Legitimidade nos batizados que “forao feitos fora da Matriz do SS Sacramento da
Villa do Rio de Contas”, 1838 – 1888 ................................................................................ 117
Tabela 13: Estatutos jurídicos dos compadres e comadres dos escravos da Freguesia do
Santíssimo Sacramento do Rio de Contas, 1838-1859 ........................................................ 131
Tabela 14: Formação dos padres de padrinhos e madrinhas dos escravos e libertos – Minas do
Rio de Contas, 1838-1888 .................................................................................................. 138
Tabela 15: Quantidade de óbitos assentados nos livros de registros da freguesia de Nossa
Senhora do Livramento e das filias da freguesia do Santíssimo Sacramento da Vila do Rio de
Contas, 1840-1888. ............................................................................................................ 148
Tabela 16: Óbitos de escravos, libertos e ingênuos, distribuídos por década, faixa etária e
gênero, Minas do Rio de Contas, 1840-1888. ..................................................................... 158
Tabela 17: Estado civil dos escravos e libertos acima de 10 anos, registrados nos livros de
óbitos de Minas do Rio de Contas, nos anos de 1840 a 1888. ............................................. 161
Sumário
1. INTRODUÇÃO ............................................................................................................ 13
2.3. A experiência da cor: mudança de cor e hierarquia social de escravos e libertos ..... 67
3.2. Batismo e compadrio: laços espirituais que unem a família numa comunidade ..... 101
4.1. Alguns aspectos das condições de vida e saúde: As doenças e as causas das mortes
de escravos, ingênuos e libertos no alto sertão. ............................................................... 141
1. INTRODUÇÃO
1
Acervo da Paróquia do Santíssimo Sacramento de Rio de Contas. Diocese de Livramento de Nossa Senhora –
BA. Livro de registro de batizados realizados nas Capelas e filiais da Matriz desta Freguesia do Santíssimo
Sacramento da Villa de Nossa Senhora do Livramento do Rio de Contas. 1856 -1863. fl. 146. Sobre a condição
socioeconômica dos padrinhos, ver: APMRC. Seção Judiciária. Série Inventários. ID: Sophia Rodrigues da
Silva. 1866-1866. Cx 88 / Est 03 / Prat 03 / Mç 172 / Doc 1209 / auto com 19 folhas.
2
Acervo da Paróquia do SS. Sacramento de Rio de Contas. Diocese de Livramento de Nossa Senhora – BA
Livro de Registro de Óbitos da Matriz e suas filias: Nossa Senhora Santana, Nossa Senhora do Rosário e do
Cemitério Paroquial. 1874-1915. fl. 4.
3
Ibid, fl. 9v.
14
pregressa de escravos e libertos, por exemplo, a rede familiar tecida em meio às labutas pela
sobrevivência, assim como as condições de vida e saúde diante da dura experiência sob o
cativeiro.4 A apresentação deste breve fragmento possibilita entrever as relações que
interessam no presente trabalho, cujo objetivo central é interpretar as vivências de escravos e
libertos, tendo em vista a formação e ampliação dos laços de família, em Minas do Rio de
Contas, entre 1840 a 1888.
O interesse pelo tema aqui estudado surgiu no decorrer da graduação em História, na
Universidade do Estado da Bahia – campus VI, Caetité. Na época, foram realizadas diversas
leituras e reflexões sobre a escravidão no Brasil, as quais suscitaram a necessidade de estudar
as relações escravistas no interior da Bahia. Mas quem eram esses escravos e libertos? Como
organizaram suas vidas no interior da Bahia? Como compreender experiências sociais
pregressas? São algumas das questões feitas, mas não respondidas pelas leituras realizadas.
Estas indagações conduziram-me a uma constante busca por fontes que possibilitassem
aproximações das múltiplas vivências escravas experimentadas na região das Minas do Rio de
Contas, no século XIX. Nesta busca, deparei-me com o acervo documental da Paróquia do
Santíssimo Sacramento de Rio de Contas, que mostrou viabilidade para o desenvolvimento
deste trabalho. Após longas conversas e acordos com o pároco local – sabe-se o quanto essas
instituições são ciosas dos seus documentos – iniciei as pesquisas a uma documentação
volumosa, rica e com documentos inéditos.5
Destaco que a experiência adquirida na monitoria do Arquivo Público Municipal de
Caetité (APMC) e na Cúria Diocesana de Caetité, para além de permitir conhecimento
arquivístico, foi relevante para aumentar o meu interesse pela pesquisa histórica e, sobretudo,
aumentar o desejo de se compreender as nuances da escravidão. Acredito que o envolvimento
4
O conceito de experiência abordado neste trabalho consiste nos estudos do historiador Edward Palmer
Thompson, sobretudo, na obra A miséria da Teoria – 1981. Para este autor “[...] os homens e mulheres também
retornam como sujeitos, dentro deste termo – não como sujeitos autônomos, ‘indivíduos livres’, mas como
pessoas que experimentam suas situações e relações produtivas determinadas como necessidades e interesses e
como antagonismos, e em seguida ‘tratam’ essa experiência em sua ‘consciência’ e sua cultura (as duas outras
expressões excluídas pela prática teórica) das mais complexas maneiras (sim, ‘relativamente autônomas’) e em
seguida (muitas vezes, mas nem sempre, através das estruturas de classe resultantes) agem, por sua vez, sobre
sua situação determinada”. THOMPSON, Edward P. A Miséria da Teoria. Rio de Janeiro: Zahar, 1981, p. 182.
5
O acervo da Paróquia do Santíssimo Sacramento de Rio de Contas, referente ao século XIX, é composto por
quatro livros de batismo correspondentes aos períodos: 1811-1812, 1838-1859, 1856-1863 e 1887-1905; três
livros de óbitos: 1825-1874, 1874-1915 e 1839-1861 e um livro de casamento: 1873-1914. Estes livros guardam
o “nascer, casar e morrer” de cerca de 10 mil indivíduos que moravam em Minas do Rio de Contas, naquela
época. Além disso, o acervo documental da Paróquia conta com vários livros de batismo, casamento e banhos
matrimoniais do século XX. O acervo foi aberto à pesquisa pelo Pe. Valderi Tavares da Silva por intermédio da
Sra. Ednalva Oliveira de Souza e, posteriormente, pelo Pe. Joaquim Almeida Barros, que, gentilmente, me
permitiu prosseguir com as pesquisas e conhecer um pouco da documentação existente no acervo da paroquia do
Santíssimo Sacramento de Rio de Contas.
15
6
Conforme Cicinato Ferreira Neto, nos estudos sobre o clero na região do Ceará, os atos de desobrigas
consistiam “[...] numa visita feita por um padre a um local onde não existia clero, igreja ou capela, nem oratório
privado, a fim de permitir aos seus moradores, receber os sacramentos católicos. [...] Para custear o
deslocamento, era cobrada uma taxa de desobriga, geralmente uma quantia por boi que o fazendeiro ou morador
possuísse”. FERREIRA NETO, Cicinato. Estudos de História Jaguaribana: Documentos, notas e Ensaios
Diversos para a História do Baixo e Médio Jaguaribe. Fortaleza, Premius, 2003, p. 230. Ainda sobre as
desobrigas, Elisangela Oliveira Ferreira revela que eram “[...] o cumprimento do preceito da confissão anual
durante a quaresma, denotando a ação do sacerdote, que nessa oportunidade comparecia nas comunidades para
‘desobrigar’ os fiéis. Com o tempo o seu significado ampliou-se para designar o giro dos párocos pelas
comunidades rurais em qualquer época do ano”. FERREIRA, Elisangela Oliveira. “Entre vazantes, caatingas e
serras: trajetórias familiares e uso social do espaço no sertão do São Francisco, no século XIX”. (Tese de
Doutorado, Universidade Federal da Bahia, 2008), p. 95. Nas fontes pesquisadas neste trabalho, foram
encontrados registros de batismos realizados em atos de desobrigas e em missões religiosas, os quais, baseando
nos estudos de Lycurgo Santos Filho, sobre o alto sertão, foram compreendidos como sinônimos. Sobre as
desobrigas nos sertões baiano, ver: ...”; ALMEIDA, Kátia Lorena Novais. Alforrias em Rio de Contas, século
XIX. Salvador: EDUFBA, 2012, p. 153, SANTOS FILHO, Lycurgo. Uma Comunidade Rural do Brasil Antigo:
aspectos da vida patriarcal no sertão da Bahia nos séculos XVIII e XIX. São Paulo: Cia Editora Nacional, 1956,
p. 187-8 e Ferreira. “Entre vazantes, caatingas...”, p. 95.
7
O conceito de cotidiano utilizado neste estudo baseia-se nos estudos de Maria Odila Leite da Silva Dias, sobre
o quotidiano e poder em São Paulo oitocentista. A autora apresenta o cotidiano como tempo histórico que “[...]
tem se revelado na história social como área de improvisação de papeis informais, novos e de potencialidades de
conflitos e confrontos, em que se multiplicam formas peculiares de resistência e luta. Trata-se de reavaliar o
político no campo da história social do dia-a-dia”. DIAS, Maria Odila Silva. Quotidiano e poder em São Paulo
no século XIX. 2. Ed. rev. São Paulo: Brasiliense, 1995, p. 14-15.
16
Católica, ora na condição de uniões consensuais, identificar a importância das redes sociais
tecidas por esses sujeitos nas lutas pela sobrevivência e investigar a influência dos
sacramentos católicos em suas vivências cotidianas. Facultam ainda, compreender alguns
aspectos da sociedade riocontense da época a partir do “esmiuçar das mediações sociais”.
Conforme explicita Maria Odila Leite Silva Dias, ao estudar a hermenêutica do cotidiano:
Desse modo, foi possível observar, através da consulta aos documentos, o tecer de
redes e a formação de laços de famílias que envolviam não somente o parentesco
consanguíneo (pai, mãe e filho), mas também os laços espirituais de compadrio, as relações
afetivas, de solidariedade e de vizinhanças formalizadas no sacramento do batismo e nos
matrimônios.9 Ainda, permitiu identificar os vínculos sociais entre escravos, libertos e livres
(pobres e ricos) constituídos na irmandade de Nossa Senhora do Rosário. Logo, perscrutar os
registros eclesiásticos possibilitou penetrar na multiplicidade das mediações sociais durante o
período escravista, descortinando sociabilidades entre sujeitos de diferentes estatutos jurídicos
e sociais, como também, uma possível compreensão da vida particular de escravo e liberto
dentro do convívio familiar e comunitário. Assim, tanto dentro como fora do cativeiro, a
noção de família passa a ter outra dimensão, e, nesse sentido, é (re)criada. Com isso, “[...] a
fim de transcender definições estáticas e valores culturais herdados”, foi possível historicizar
os conceitos de família escrava e compadrio tendo em vista as singularidades locais e
regionais.10
Cabe ressaltar que, para compreender os laços da vida familiar desses sujeitos em suas
especificidades foi preciso uma leitura atenta e minuciosa em diversos tipos de fontes, como
8
DIAS, Maria Odila Silva. “Hermenêutica do cotidiano na historiografia contemporânea”. In: Projeto História,
n. 17, pp. 223-258, 1998, p.232.
9
Na obra Ser escravo no Brasil, a historiadora Kátia de Queirós Mattoso interpretou o compadrio como “as
solidariedades procuradas”. O conceito de compadrio apresentado por Mattoso é de grande relevância para este
estudo. Para a autora, “os laços do compadrio são o próprio fundamento da vida de relação. Eles se harmonizam
perfeitamente com as regras dessa sociedade brasileira baseada na família extensa, ampliada, patriarcal. E os
laços não prendem apenas padrinho e afilhado, ligam o padrinho, sua família e os pais da criança batizada, cujo
grupo, em seu conjunto, ganha uma promoção excepcional”. MATTOSO, Kátia de Queiróz. Ser escravo no
Brasil. 3 ed. São Paulo: Brasiliense, 1990, p. 132.
10
DIAS, Maria Odila Silva. “Teoria e Métodos dos estudos feministas: perspectiva histórica e hermenêutica do
cotidiano”. In: COSTA, Albertina de Oliveira e BRUSCHINI, Cristina. (Org.). Uma questão de Gênero. São
Paulo: Fund. Carlos Chagas/Rosa dos Ventos, 1992, p. 41.
17
11
Conforme o historiador Carlo Ginzburg a análise micro-história é bifronte, “[...] por um lado, movendo-se
numa escala reduzida, permite em muitos casos uma reconstituição do vivido impensável noutros tipos de
historiografia. Por outro lado, propõe-se indagar as estruturas invisíveis dentro das quais aquele vivido se
articula”. O autor explicita ainda, como o nome pode guiar o pesquisador no labirinto documental,
possibilitando-o “reconstituir o entrelaço de diversas conjunturas”, visto que “as linhas que convergem para o
nome e que dele partem, compondo uma espécie de teia de malha fina, dão ao observador a imagem gráfica do
tecido social em que o indivíduo está inserido”. GINZBURG, Carlo. “O Nome e o como: troca desigual e
mercado historiográfico”. In: ______. A micro-história e outros ensaios. Ed. Bertrand Brasil, Cad. Memória e
Sociedade, 1989, p 175 e 177-78, respectivamente.
12
O método da “ligação nominativa de fontes” foi denominado e utilizado pelo historiador Robert Slenes no
livro Cafundó: A África no Brasil, recentemente reeditado (2013). Nele, o autor utiliza o nome como vestígio
para seguir as pistas nos arquivos e reconstituir histórias do Cafundó pregressas da África, ver: VOGT, Carlos,
FRY, Peter e SLENES, Robert. Cafundó: a África no Brasil: linguagem e sociedade. 2ª ed. Campinas, SP:
Editora da Unicamp, 2013, p. 49-123. Com esta perspectiva metodológica, pode-se citar: CHALHOUB, Sidney.
Visões da Liberdade: uma história das últimas décadas da escravidão na Corte. São Paulo: Companhia das
Letras, 1990; SLENES, Robert. W. Na Senzala uma flor: esperanças e recordações na formação da família
escrava, século XIX. 2ª ed. corrigida. Campinas – São Paulo: Editora da Unicamp, 2011; ______. “Senhores e
Subalternos no Oeste Paulista”. In: NOVAIS, Fernando A. (Cord.); ALENCASTRO, Luiz Felipe de (org).
História da Vida Privada no Brasil: cotidiano e vida privada na América portuguesa. São Paulo: companhia das
Letras, vol.2, 1997, PP. 233-290; REIS, Isabel Cristina Ferreira dos. “A família negra no tempo da escravidão:
Bahia, 1850-1888”. (Tese de Doutorado. Universidade Estadual de Campinas. 2007). REIS, João José.
Domingos Pereira Sodré, um sacerdote africano: escravidão, liberdade e candomblé na Bahia do século XIX.
São Paulo. Companhia das Letras, 2008; ______; GOMES; Flávio dos Santos e CARVALHO, Marcus Joaquim
de. O alufá Rufino: tráfico, escravidão e liberdade no Atlântico negro. São Paulo. Companhia das Letras, 2010;
FREIRE, Jonis. Escravidão e Família escrava na Zona da Mata Mineira oitocentista. São Paulo: Alameda,
2014; dentre outros. E, voltados para a história dos sertões baianos, têm-se os trabalhos de Ferreira. “Entre
vazantes, caatingas...”; NOGUEIRA, Gabriela Amorim. “‘Viver por si’, viver pelos seus: famílias e comunidade
de escravos e forros no ‘Certam de Cima do Sam Francisco’ (1730-1790) ”. (Dissertação de Mestrado.
Universidade do Estado da Bahia. 2011); SANTANA, Napoliana Pereira. “Família e Microeconomia escrava no
sertão do São Francisco (Urubu-BA, 1840 a 1880) ”. (Dissertação de Mestrado. Universidade do Estado da
Bahia. 2012); ORTIZ, Ivanice Teixeira Silva. “Trabalho escravo, laços de família e liberdade no Alto Sertão da
Bahia: Caetité (1830 - 1860)”. (Dissertação de Mestrado. Universidade do Estado da Bahia, 2014); dentre outros.
13
GEERTZ, Clifford. A interpretação das culturas. Rio de Janeiro: Zahar, 1989, p. 15.
14
Santana. “Família e Microeconomia...”, p. 22.
18
15
Dias. “Hermenêutica do cotidiano...”, p. 258.
16
Freire. “Escravidão e família...”, p. 162.
17
Conforme os estudos do historiador Erivaldo Fagundes Neves, sobre o povoamento e o desenvolvimento do
sertão baiano, a região do alto sertão da Bahia abarca uma vasta área territorial do Estado, cuja identificação se
dá por meio da cultura, usos e costumes. A região não tem contornos precisos, é constituída por uma população
“[...] consciente da identidade sócio-ambiental, desenvolvida com vínculos de parentesco e de vizinhança,
práticas comuns de folguedos, religião, tradições, representação política, atividades econômicas, enfim, usos e
costumes, na convicção de conterraneidade e no sentimento de integração naquele sertão. Todos esses
19
sentimentos, sensações e afinidades, além de se desenvolverem num espaço geográfico específico, constituem
práticas sociais, políticas, econômicas e culturais de uma comunidade, aglutinada num determinado contexto, a
partir de certo tempo – a transição para o século XVIII, quando se iniciou a ocupação econômica regional –,
transmitidas por sucessivas gerações, como sua memória, forjando suas representações e preservando seu
patrimônio histórico-cultural. [...] Esse espaçamento alcança a região da Serra Geral, partes do Médio São
Francisco e da Chapada Diamantina”. NEVES, Erivaldo Fagundes. “Posseiros, Rendeiros e Proprietários:
Estrutura Fundiária e Dinâmica Agro-Mercantil no Alto Sertão da Bahia (1750-1850) ”. (Tese de Doutorado.
Universidade Federal de Pernambuco. 2003), p. 18-9.
20
conjuntura social, econômica e cultual da época. Conforme Stuart Schwartz, nos estudos
sobre o compadrio escravo:
É sempre muito difícil recuperar tais laços, mas no ato ritual do batismo e do
parentesco religiosamente sancionado do compadrio, que acompanha esse
sacramento, temos uma oportunidade de ver a definição mais ampla de
parentesco no contexto dessa sociedade católica escravocrata e de
testemunhar as estratégias de escravos e senhores dentro das fronteiras
culturais determinadas por esse relacionamento espiritual.18
18
SCHWARTZ, Stuart B. Segredos internos: engenhos e escravos na sociedade colonial, 1550- 1835. São Paulo:
Companhia das Letras, 1988, p. 330.
21
Mapa 01: Freguesias existentes no termo de Minas do Rio de Contas no século XIX.
O mapa 01 acima retrata a área geográfica que correspondia o termo de Minas do Rio
de Contas, nas últimas décadas do século XIX. Revela as freguesias existentes na época,
dentre elas, a freguesia de Nossa Senhora do Livramento da Vila do Rio de Contas, principal
localidade analisada nesta pesquisa.
Como observado, os registros eclesiásticos são fontes essenciais para a compreensão
da vida familiar de escravos e libertos no alto sertão da Bahia. No entanto, para se entender as
especificidades dessas relações familiares, foi necessária a interlocução com variadas fontes,
entre elas, inventários post-mortem, processos-crime, livros de notas do tabelionato, literatura
regional e os relatos de viajantes que passaram pela região, no século XIX.
Mediante a investigação nas inúmeras páginas dos inventários post-mortem, foi
possível identificar as particularidades do contexto estudado. Sua problematização
possibilitou visualizar, através das descrições dos bens arrolados, a dinâmica socioeconômica
de Minas do Rio de Contas oitocentista. Nas primeiras décadas do século XIX, a região
passou por uma crise econômica devido à escassez do ouro e, para se erguer novamente,
buscou-se o crescimento da lavoura, da criação de gado e do comércio. Permitiu examinar
alguns aspectos da vida escrava, como a naturalidade, o estado civil, as condições de saúde, as
conquistas de alforrias, a ampliação e a manutenção dos laços de famílias e, assim identificar
a predominância de cativos brasileiros nas propriedades sertanejas, sendo a maioria sujeitos
oriundos da região. Ainda, foi possível apontar a experiência da cor desses segmentos no
momento das avaliações dos bens e sugerir que a categoria cor no alto sertão estava ligada ao
lugar social do sujeito e do olhar o avaliador.
O diálogo com a literatura regional e com os relatos de viajantes que percorreram o
interior da Bahia possibilitou compreender as particularidades da vida sociocultural e
econômica da região em estudo e entrever as vivências cotidianas dos sertanejos ricos e
pobres, a exemplo de alguns aspectos da vida religiosa e suas influências no dia a dia desses
segmentos. Pesquisar trajetórias de vida por meio da leitura atenta e do cruzamento de vários
tipos de fontes facultou observar outras nuances da escravidão no alto sertão da Bahia, no
decorrer do século XIX.
Reconstituir experiências de vida familiar e social de escravos e libertos exigiu um
olhar cuidadoso aos pormenores, foi um trilhar nas entrelinhas das fontes para compreender as
multiplicidades do viver e sobrevier desses sujeitos sociais nos sertões da Bahia. Outrossim,
foi na perspectiva da História Social da escravidão que o presente estudo buscou analisar os
arranjos de sobrevivência elaborados e reelaborados cotidianamente por esses segmentos a
23
fim de constituírem diversas relações, bem como interpretar suas experiências vinculadas às
peculiaridades da escravidão na região em estudo.
Nas últimas três décadas, vários historiadores vêm seguindo os caminhos trilhados
pela História Social da escravidão e novos trabalhos, baseados em fontes e abordagens
diversas, vêm despontando na historiografia brasileira, inclusive sobre família escrava. De
acordo com Robert Wayne Slenes, esses estudos têm “contestado diretamente a antiga visão
da vida sexual e familiar do escravo como pouco mais do que uma desordem cultural, ou [...]
uma ‘vasta promiscuidade primitiva’”. Noutras palavras, Slenes ressalta que as novas
pesquisas “[...] têm apresentado dados qualitativos sugerindo que a constituição de famílias
(inclusive externas, incorporando pessoas não aparentadas) interessava aos escravos como
parte de uma estratégia de sobrevivência dentro do cativeiro”.19
O historiador José Flávio Motta, ao examinar os últimos vinte e cinco anos de
pesquisa historiográfica sobre a família escrava, destaca que as mesmas buscaram
[...] aprofundar cada vez mais a análise das características apresentadas pela
família cativa, sua estabilidade possível, seus vínculos com a economia
encetada e com o tamanho dos planteis de escravos. Sobretudo estuda-se a
questão da natureza mesma dessa instituição família e o papel a ela
reservado no período escravista brasileiro.20
19
SLENES, Robert. W. Na Senzala uma flor: esperanças e recordações na formação da família escrava, século
XIX. 2ª ed. corrigida. Campinas – São Paulo: Editora da Unicamp, 2011, p. 53 e 54, grifos do autor. Cabe aqui
ressaltar que Robert Slenes foi um dos primeiros historiadores a estudar a família escrava no Brasil. Em sua tese
de doutorado já defendia a existência de núcleos familiares, “[...] concluído que a família conjugal escrava,
apesar de sua vulnerabilidade diante das condições da escravidão, ‘havia emergido como uma instituição social
viável’, [...]. Como consequência, ‘[a família] provavelmente ajudou muitos escravos a reterem sua identidade e
lidarem efetivamente com as pressões psicológicas da escravidão [...]” (Slenes. Na Senzala uma..., p. 28). Como
também, as pesquisas desenvolvidas por Kátia Mattoso (Ser escravo no Brasil - 1990 e Família e sociedade na
Bahia – 1988), as quais apresentam os primeiros indícios de famílias escravas na Bahia.
20
MOTTA, José Flávio. “A família escrava na historiografia brasileira: os últimos 25 anos”. In: SAMARA, Eni
Mesquita (org.). Historiografia brasileira em destaque: ‘olhares, recortes e tendências’. São Paulo: Humanitas /
FFLCH / USP, 2002, p. 251-52.
24
econômica, seja pelo sistema de “sorte ou giz” ou pelo cultivo de alimentos e cereais em suas
“roças próprias”.
Diante disso, é redundante afirmar o aumento na produção historiográfica acerca do
tema, conquanto pode-se atestar que esses estudos têm abarcando variados aspectos da vida
familiar escrava como casamento, compadrio, reprodução natural, endogamia, legitimidade,
uniões consensuais, estabilidade, mobilidade, autonomia escrava, identidades culturais,
comunidade escrava, estratégias de sobrevivência, dentre outros.21 Noutras palavras, são
pesquisas que articularam “[...] maneiras de inquirir as experiências dos próprios escravos,
entender o sentido que eles mesmos conferiam aos seus labores e lutas cotidianas, resgatá-los,
enfim da ‘enorme condescendência da posteridade’”.22
Desse modo, o diálogo teórico e metodológico com a produção historiadora se fez
essencial para a compreensão das relações históricas de escravos e libertos que foram “[...]
tecidas através de lutas, conflitos, resistências e acomodações, cheias de ambiguidades”.23
O livro Na senzala, uma flor: esperanças e recordações, de Robert W. Slenes, é uma
importante referência aos estudos da família escrava. Nele, o autor utiliza uma diversidade de
fontes, dialoga com a antropologia e a linguística e suscita uma revisão do significado da
expressão termo família escrava, que para ele, denota “[...] um mundo mais amplo que os
21
Destacam-se, aqui, os trabalhos realizados por: LUNA, Francisco Vidal & COSTA, Iraci Del Nero da. “Vila
Rica: nota sobre casamentos de escravos (1727-1826) ”. In: África Revista do Centro de Estudos Africanos da
USP, n. 4, 1981; OLIVEIRA, Maria Inês Côrtes de. O liberto: o seu mundo e os outros. São Paulo: Corrupio;
[Brasília, DF]: CNPq, 1988; GUDEMAN, Stephen. & SCHWARTZ Stuart. “Purgando o pecado original:
compadrio e batismo de escravos na Bahia no século XVIII”. In: REIS, João José (org.), Escravidão e invenção
da liberdade: estudos sobre o negro no Brasil, São Paulo: Brasiliense, Brasília CNPq, 1988; SLENES, Robert
W. “Escravidão e família: padrões de casamento e estabilidade familiar numa comunidade escrava. Campinas,
século XIX”. In: Estudos Econômicos. São Paulo: 17(2), 1987; _______. “Lares negros, olhares brancos:
histórias da família escrava no século XIX”. In: Revista Brasileira de Historia, 8:16, mar. 1988; ______. Na
Senzala uma...; FLORENTINO, Manolo & GÓES, José Roberto. Paz nas senzalas: famílias escravas e tráfico
atlântico, Rio de Janeiro, c.1790-1850. Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, 1997; FARIA, Sheila de Castro e
SLENES, Robert W. “Família escrava e trabalho”. In: Revista Tempo. Rio de Janeiro: Sete Letras, nº6, 1998;
MOTTA, José Flavio. Corpos escravos, vontades livres: posse de cativos e família escrava em Bananal (1801-
1829). São Paulo: FAPESP: Annablume, 1999; REIS, Isabel Cristina Ferreira dos. Histórias de vida familiar e
afetiva de escravos na Bahia do século XIX. Salvador: Centro de Estudos Baianos, 2001; ______. “A família
negra no tempo da escravidão: Bahia, 1850-1888”. (Tese de Doutorado. Universidade Estadual de Campinas.
2007); TEIXEIRA, Maria Heloísa. “Reprodução e famílias escravas em Mariana (1850-1888) ”. (Dissertação de
Mestrado. Universidade de São Paulo. 2001); ROCHA, Cristiany Miranda. Histórias de Famílias Escravas. São
Paulo: editora da Unicamp, 2004; VASCONCELLOS, Marcia Cristina de. “Famílias escravas em Angra dos
Reis, 1801-1888”. (Tese de Doutorado. Universidade de São Paulo. 2006); ENGEMANN, Carlos. De laços e de
nós. Rio de Janeiro: Apicuri, 2008; Freire. “Escravidão e família...”; Nogueira. “‘Viver por si’...”; Santana.
“Família e Microeconomia...”; MATTOS, Hebe Maria. Das cores do silêncio: o significado da liberdade no
Sudeste escravista (Brasil, século XIX). 3ª ed, rev. Campinas, SP: Editora da Unicamp, 2013. Mattos (2013);
dentre outros.
22
CHALHOUB, S.; SILVA, F.T. “Sujeitos no imaginário acadêmico: escravos e trabalhadores na historiografia
brasileira desde os anos 1980”. In: Cadernos AEL, v.14, n.26, 2009, p. 22.
23
LARA, Silvia Hunold. “Blowin’ in the wind: E.P.Thompson e a experiência negra no Brasil”. In: Projeto
História, nº 12 (1995): 43-56, p. 46.
25
escravos criaram a partir de suas ‘esperanças e recordações’”.24 Para tanto, apresenta questões
novas para a compreensão da vida escrava, como a importância das relações familiares
constituídas pelos cativos, as quais os possibilitavam (re)constituir estratégias cotidianas a fim
de adquirirem melhores condições de vida sob o cativeiro. Slenes aponta, ainda, alguns
benefícios conquistados pelos escravos a partir da formação de laços familiares, como a
obtenção de espaços próprios, a exemplo da moradia, e com isso mais “liberdade” para a
manutenção e preservação de suas heranças culturais. Todavia, revela que a família poderia
fomentar a autonomia escrava, como também, limitar as ações dos escravos frente às políticas
senhorias transformando-os em “reféns”.
O historiador Jonis Freire, desenvolveu importante trabalho sobre famílias escravas
em Minas Gerais, no século XIX. Sob o título “Escravidão e família escrava na Zona da Mata
Mineira Oitocentista”, essa pesquisa tem demonstrado, dentre outras questões, o importante
papel dos laços espirituais de compadrio para a vida escrava e as estratégias utilizadas pelos
cativos na formação dos pares de padrinhos. Freire, acompanhando trajetórias de famílias
escravas, discute sobre a manutenção e ampliação da posse escrava, demonstra o grau de
estabilidade dessas famílias e evidencia que a formação de famílias cativas “[...] não passava
necessariamente pelo reconhecimento da igreja, e que os laços familiares se desenvolveram
amplamente dentro das relações ditas ilícitas”.25 Conforme o autor,
24
Slenes. Na Senzala uma..., p. 59.
25
Freire. “Escravidão e família...”, p. 10.
26
Ibid.
27
No que tange à historiografia baiana sobre família escrava, os estudos ainda são incipientes, podendo citar:
Oliveira. O Liberto...; Reis. Histórias de vida...; ______. “A família negra...”; MARTINS, Taiane Dantas. “Da
Enxada ao Clavinote: Experiências, Liberdade e Relações Familiares de Escravizados no Sertão baiano, Xique-
Xique (1850-1888) ”. (Dissertação de Mestrado. Universidade do Estado da Bahia. 2010); Nogueira. “‘Viver por
26
si’...”; Santana. “Família e Microeconomia...”; Ortiz. “Trabalho escravo, laços...”; GONÇALVES, Victor Santos.
“Escravos e senhores na terra do cacau: alforrias e família escrava - São Jorge dos Ilhéos, 1806 -1888”
(Dissertação de Mestrado. Universidade Federal da Bahia. 2014). Vale destacar também alguns historiadores que
fizeram referências parciais à família escrava na Bahia, como: GUDEMAN, Stephen. & SCHWARTZ Stuart.
“Purgando o pecado...”; PIRES, Maria de Fátima Novaes. O crime na cor: escravos e forros no alto sertão da
Bahia –1830- 1888. São Paulo: Annablume, 2003; ______. Fios da Vida: tráfico internacional e alforrias nos
sertoins de Sima – BA (1860-1920). São Paulo: Annablume, 2009; FRAGA FILHO, Walter. Encruzilhadas da
Liberdade: histórias de escravos e libertos na Bahia (1870-1910). São Paulo: Editora da UNICAMP, 2006;
Ferreira. “Entre vazantes, caatingas...”; Almeida. Alforrias em Rio...; dentre outros.
28
Gudeman & Schwartz. “Purgando o pecado...”, p. 49.
29
Reis. “A família negra...”, p. 22.
27
30
Santana. “Família e Microeconomia...”, p. 60.
31
Ortiz. “Trabalho escravo, laços...”, p. 49.
28
32
Ver: Pires. O crime na... e ______. Fios da Vida...
33
Almeida. Alforrias em Rio..., p. 160.
29
Analisei, no segundo capítulo, a importância dos laços de família para a vida escrava.
Dedicando as experiências de escravos e libertos que buscaram tecer laços de amizade,
respeito, confiança, afeto, sociabilidade no meio dos seus e entre a população livre da região
do alto sertão da Bahia. Assim, demonstro alguns aspectos da vida afetiva e social desses
segmentos, tecendo considerações sobre o casamento, o convívio comunitário, legitimidades,
uniões consensuais e compadrio.
No terceiro capítulo documentei alguns aspectos das condições de vida de escravos,
ingênuos e libertos por meio da análise das doenças e dos óbitos desses segmentos. Examino
os laços de famílias, em especial, através dos registros de óbitos, assim como a importância
desses vínculos no momento da morte. E ainda disserto sobre a participação de escravos e
libertos na irmandade de Nossa Senhora do Rosário e o seu significado para o cotidiano
daqueles sujeitos no alto sertão da Bahia e os laços espirituais de irmãos constituídos, os quais
não se restringiram aos compromissos e deveres da mesma, eles, decerto, resultaram em
duradouras relações de respeito, cumplicidade e amizade.
30
A epígrafe acima foi retirada da canção Nas Areias da Estrada de Ouro, do músico e
compositor Elomar Figueira de Mello, baiano, que, com sensibilidade e erudição, tem
retratado e difundido em suas canções o cotidiano e as experiências vivenciadas pelos sujeitos
históricos do sertão da Bahia, inclusive a vida socioeconômica desses sertanejos.35 Os versos
sugerem o caminho da riqueza proporcionado pelo ouro de outrora encontrado na região do
alto sertão da Bahia, a qual atraiu muitos senhores de engenho, escravos e senhoras.
Em quase todo o Setecentos, a exploração do ouro foi a principal atividade que
sustentou a economia do alto sertão, o qual era encontrado nos cascalhos dos rios e córregos e
extraído nas lavras e/ou nas faisqueiras, onde trabalhavam mineradores, escravos e livres
pobres, “homens que viviam de olhos voltados para o chão, chumbados às bateias, onde
lavavam a areia dourada do rio e o cascalho rebrilhante”.36 A imagem abaixo, apesar de
retratar, possivelmente, a lavagem do ouro em Minas Gerais, no final do Oitocentos, permite
visualizar como este metal foi explorado nas Minas do Rio de Contas e as ferramentas
34
MELLO, Elomar Figueira de. “Nas estradas das areias de ouro”. In: ______. Das Barrancas do Rio Gavião.
São Paulo: Polygram, 1973. Disponível em < http://www.elomar.com.br/discografia/barrancas.html > acessado
em 06/08/2015.
35
De acordo com os estudos de Eduardo de Carvalho Ribeiro, Elomar Figueira de Mello nasceu no início do
século XX, na Fazenda Boa Vista, na atual cidade de Vitória da Conquista, na Bahia. Cresceu ouvindo e
vivenciando as cantigas sertanejas, os violeiros, os cantadores e repentistas tradicionais, assim, pôde observar e
absorver formas arcaicas dos cancioneiros dos sertões. É músico, compositor, poeta, cantor, arquiteto, criador de
bodes e, certamente, um propagador da cultura brasileira. Sua obra é estuda em diversas áreas do conhecimento,
entre elas a história, a geografia, a antropologia e a sociologia. Ver: RIBEIRO, Eduardo de Carvalho. “Os
Gêneros do Discurso na Obra Operística de Elomar Figueira Mello: uma abordagem bakhtiniana”. (Dissertação
de Mestrado. Universidade Federal de Minas Gerais. 2011).
36
Santos Filho. Uma Comunidade Rural..., p. 5. Sobre a extração do ouro nas Minas do Rio de Contas no século
XVIII, ver: ALMEIDA, Kátia Lorena Novais. “Escravos e Libertos nas Minas do Rio de Contas – Bahia, século
XVIII”. (Tese de Doutorado. Universidade Federal da Bahia. 2012-B). IVO, Isnara Pereira. “O Ouro de Boa
Pinta e a Abertura Das Minas Da Bahia: Sertões Conectados, Adaptabilidades e Trânsitos Culturais no século
XVIII”. IN: PAIVA, Eduardo França, IVO, Isnara Pereira e MARTINS, Ilton Cesar (Orgs). Escravidão,
Mestiçagem, Populações e Identidades Culturais. São Paulo: Annablume, 2010 e VASCONCELOS, Albertina
Lima. “Ouro: Conquistas, tensões, poder, mineração e escravidão – Bahia do século XVIII”. (Dissertação de
Mestrado. Universidade Estadual de Campinas. 1998).
31
comuns a esta atividade, por exemplo, a bateia e o almocafre (enxada específica para a
mineração). É possível ainda notar a presença de sujeitos negros, adulto e criança, lavando o
ouro sob o olhar de possíveis senhores de escravos, visto que o rio onde trabalhavam passava
perto das casas desses prováveis senhores. Acredito que não seria exagero fazer esta alusão,
posto que a fotografia do renomado Marc Ferrez, datada de 1880, sugere similaridades entre
as regiões.
37
GOMES, Joseldeth. “Povoamento da Chapada Diamantina”. Revista do Instituto Geográfico e Histórico da
Bahia. Salvador, n. 77, p.222-233, 1952. p. 231-32. Sobre o ouro e o povoamento do alto sertão, ver também:
Erivaldo Fagundes e MIGUEL, Antonieta (Org.). Caminhos do Sertão: ocupação territorial, sistema viário e
intercâmbios colônias dos sertões da Bahia. Salvador, Ed. Arcádia, 2007; AGUIAR, Durval Vieira de.
Descrições práticas da Província da Bahia, com declaração de todas as distâncias intermediárias das cidades,
vilas e povoações. Rio de Janeiro/Brasília: Cátedra/INL, 1979. p. 147-158; ATAÍDE, Gonçalo Pereira de. Minas
do Rio de Contas, hoje município do Rio de Contas. Bahia: Typ. São Miguel, 1940 e LIMA, Joaquim Manoel
Rodrigues. Memórias sobre o Estado a Bahia. Salvador: Typ. e Encadernação do Diário da Bahia, 1893. A
respeito da criação da Vila de Minas do Rio de Contas, a mineração e vida dos sertanejos no Setecentos ver:
Almeida. “Escravos e Libertos...”; Ivo. “O Ouro de Boa...” e Vasconcelos. “Ouro: Conquistas, tensões...”.
38
Neves e Miguel (Org.). Caminhos do Sertão..., p. 59-60.
39
Ver: Almeida. Alforrias em Rio..., p. 31-41.
40
Para o desenvolvimento desse tópico, selecionei os inventários dos proprietários de escravos, localizados nos
registros de paroquias, ou melhor, os mais recorrentes nos assentos de batismo. Assim, analisei 138 processos de
inventários e todos com o monte mor acima de Rs. 5:000$000 de réis. Destes, em quatro inventários não
constavam escravos, em um, o senhor João de Souza Nunes os libertou, noutro, o senhor Ursino de Souza Meira
os vendeu para pagar as dividas. Consta, ainda, que o capitão Antonio Clemente do Bomfim investiu na
atividade de usurário e, quiçá, no comércio, vendendo e emprestando dinheiro a escravos de outrem e Martiniano
José de Oliveira era comerciante de “miudezas, fazendas em retalho e molhado compradas á Almeida Brandão e
Companhia”. Ver: APMRC. Seção Judiciária. Série Inventários. ID: João Nunes de Souza. 1854-1856. Cx 82 /
Est 03 / Prat 02 / Mç 160 / Doc 1016 / auto com 91 folhas; Ibid. Ursino de Souza Meira. 1885-1893. Cx 102 / Est
03 / Prat 05 / Mç 197 / Doc 1454 / auto com 146 folhas; Ibid. Antonio Clemente do Bomfim (capitão). 1860-
1870. Cx 85 / Est 03 / Prat 03 / Mç 167 / Doc 1143 / auto com 49 folhas e Ibid. Martiniano José de Oliveira.
1860-1878. Cx 88 / Est 03 / Prat 03 / Mç 172 / Doc 1220 / auto com 45 folhas.
33
Doutor José de Aquino Tanajura, que contraiu uma dívida de Rs. 600$000.41 Dessa forma, ao
se capitalizar, o senhor Francisco criava uma seleta rede de crédito, como isso, contribuiu para
a dinâmica da vida econômica no alto sertão da Bahia.
Nota-se que Costa, além da ocupação de major, desenvolvia outras atividades
paralelas, como a de fazendeiro, usurário e proprietário de terras e escravos, além de estar
envolvido no comércio imobiliário, ao comprar e vender imóveis. Assim, movimentava a
economia sertaneja que, desde o final do século XVIII, vinha enfrentando dificuldades por
causa do declínio da mineração, ocorrido em razão da escassez do ouro.42 Essa situação
agravou-se, no início da década de 1840, com a descoberta de diamantes em Lençóis, Mucugê
e Andaraí, “os novos campos de produção de riquezas [que atraíram] a atenção da sociedade
baiana, e como não poderia deixar de ser, também dos políticos”.43
Cabe ressaltar que, mesmo não sendo o protagonista da economia sertaneja no século
XIX, o ouro e a atividade mineradora continuavam movimentando a vida social e econômica
no sertão, de forma direta e indireta. A pesquisa aos inventários revelou que o cobiçado metal
estava presente entre os bens declarados pelos(as) inventariantes, fazendo parte da riqueza de
várias famílias sertanejas. Por exemplo, o inventário de Ambrosio José de Abreu Sampaio,
residente no Sítio do Ribeirão da Furna, falecido em 1843. O processo foi aberto em 1844, e
na ocasião a viúva, Dona Leocadia Joaquina de Oliveira, declarou que o casal possuía
“cincoenta, e meia oitava de oiro em pó”, as quais foram avaliadas, cada oitava, em “três mil,
e duzentos reis, e todas por sento e cecenta e hum mil” e mais Rs. 147$400 em ouro lavrado,
distribuídos em peças como colares, medalhas, brincos, fivelas, botões, rosários, entre outras,
totalizando de Rs. 309$000.44 Assim como o inventário amigável, realizado em 1847, entre a
esposa e os filhos de Martiniano de Moura Albuquerque, morador da Fazenda da Alagoa,
termo da Villa de Rio de Contas. A viúva inventariante, D. Francisca Joaquina de Carvalho,
alegou ter o casal Rs. 624$400 em ouro lavrado, entre “hum anel de diamantes pr vinte mil
reis” e mais Rs. 372$000 em moedas de ouro.45 E ainda, a herança deixada por Carolina
Amélia de Oliveira Magalhães, residente na fazenda Villa Velha, falecida em 1876, a qual o
41
APMRC. Seção Judiciária. Série Inventários. ID: Francisco Justiniano de Moura Costa. 1866-1866. Cx 88 /
Est 03 / Prat 03 / Mç 172 / Doc 1206 / auto com 04 folhas – Documento incompleto.
42
Ver: Almeida. “Escravos e Libertos...”, p. 46-60.
43
Martins.ARTINS, Rômulo de Oliveira. “‘Vinha na fé de trabalhar em diamantes’. Escravos e libertos em
Lençóis, Chapada Diamantina – BA (1840 – 1888) ”, (Dissertação de Mestrado, Universidade Federal da Bahia,
2013). p. 39, grifos meus.
44
APMRC. Seção Judiciária. Série Inventários. ID: Ambrosio José de Abreu Sampaio. 1844-1845. Cx 74 / Est
03 / Prat 01 / Mç 145 / Doc 838 / auto com 69 folhas. fls. 4v-5. Inventário analisado por Kátia Lorena Novais
Almeida (2012 - A).
45
APMRC. Seção Judiciária. Série Inventários. ID: Martiniano de Moura Albuquerque. 1847-1847. Cx 77 / Est
03 / Prat 01 / Mç 150 / Doc 883/ auto com 37 folhas. Fls. 3-4.
36
viúvo, Zeferino Pereira dos Santos, declarou “duzentas e oito grammas de ouro” avaliadas em
Rs.156$000, Rs.68$000 em peças de ouro e “treze arrobas de pedras ametistas, que se acham
no armazém do Capitão Henriques em São Felix”.46
Em algumas fontes, o ouro em pó ou lavrado também aparece nas declarações das
dívidas ativas e passivas como moeda de crédito, por exemplo, em 1841, Anna Maria
Barbosa, viúva do Capitão João Dantas Barbosa, residente na Villa de Rio de Contas,
declarou que o casal devia ao genro, João Jose Dias, “dose oitava de ouro em pó a preço de
quatro mil por cada huma oitava e todas no valor de quarenta e oito mil reis” e mais um
crédito de Rs. 1:000$000. Entre os bens declarados estavam quatro almocafre de ferro e uma
balança de pesar ouro, o que sugeri a sua participação no comércio do metal, seja na extração
do metal ou na pesagem ao comprá-lo ou para vender a terceiros como atravessador. A dívida
passiva do casal correspondia a Rs. 4:301$134, e, em razão da esposa ter declarado que não
possuía “nada em dinheiro contado”, os herdeiros tiveram que desfazer de alguns bens para o
pagamento delas ou quitaram com a produção e venda da farinha e do algodão, tendo em vista
que foi arrolado no processo “hum pequeno sítio de plantar e criar denominado Sacco de
Baixo”, em Minas do Rio de Contas, e o “Sitio das Duas Barras [...] com rêgo d’agua, com
diversas arvores, engenho de mandioca, dito de escarossar algodão [...] a Fazenda dos
Guaribas [...] de plantar e criar com hum curral de caiçara”, no termo da Villa de Nossa
Senhora Mãe de Deus e dos Homens do Monte Alto, entre outras propriedades e terras. A
soma da riqueza do Capitão Barbosa, distribuída em escravos, propriedades rurais e urbanas,
terras e criações nos termos de Rio de Contas e Monte Alto, ultrapassou o valor de Rs.
13:000$000, o que demonstra que o patriarca investia não apenas nas “bandas” do Rio das
Contas, mas também em outras paragens e em negócios diversificados de acordo com as
características topográficas do local.47
Não foi apenas ao sogro João Dantas que o fazendeiro João Jose Dias utilizou-se do
metal dourado para efetuar suas transações financeiras. Em meio às letras de crédito em
dinheiro com e sem juros, emprestou “desoito oitavas, trez quartos, e hum tustão de ouro” ao
46
APMRC. Seção Judiciária. Série Inventários: ID Carolina Amélia de Oliveira Magalhães. 1876-1876. Cx 95 /
Est 03 / Prat 04 / Mç 184 / Doc 1.343/ auto com 14 fls. fls. 5-v e 12, respectivamente. Infelizmente o documento
está incompleto, o que dificultou maiores análises da vida econômica do casal e sua relação com o comércio em
São Felix, no Recôncavo Baiano. Conquanto, percebemos que possuía uma “venda” onde comercializava
tecidos, secos e molhados e produzia rapadura e cachaça. Dentre os bens discriminados, avaliados em Rs.
32:748$180, constam onze propriedades no valor de Rs. 15:340$000, entre casas, terras e sítios; Rs.7:844$120
de dívidas ativas (crédito); sete escravos(as); no valor de Rs. 5:300$000; Rs.2:951$000 em criações de gado,
cavalos e mulas.
47
APMRC. Seção Judiciária. Série Inventários. ID: João Dantas Barbosa. 1841-1850. Cx 72 / Est 02 / Prat 06 /
Mç 140 / Doc 791 / auto com 43 folhas. fls. 4-38.
37
senhor Roberto Lavigne, casado com a sua filha Maria Bernardina. A análise do inventário de
Dias, aberto em 1869, não atesta a sua participação direta na mineração, no entanto, revela
que comercializava o nobre metal e conservava mais de cento e vinte e sete oitavas de ouro
lavrado, avaliadas em Rs. 386$256, várias peças em ouro, no valor de Rs. 341$000 e Rs.
128$000 em prata lavrada, ou seja, que uma pequena parcela da sua fortuna estava
indiretamente ligada à atividade mineradora.48
Dos 138 inventários analisados para o desenvolvimento desse tópico, encontrei o ouro
lavrado e em peças (com destaque para as peças em ouro) em 100 documentos, o equivalente
a 72,5%, e em 38 documentos não consta o metal dourado. No entanto, não foi possível
identificar alguma ligação direta dos inventariados com a atividade minerada nas Minas do
Rio de Contas no Oitocentos, ou que esse ouro fosse oriundo da região. Todavia, os dados
analisados são bastante sugestivos e apontam que a mineração, embora decadente, foi
relevante para a economia no alto sertão, no século XIX, e que direta e/ou indiretamente
esteve presente na vida socioeconômica dos sertanejos, seja por meio da discreta exploração
ou pelas peças fabricadas pelos habilidosos artesãos existentes na região.
Nesse cenário de declínio da atividade mineradora, os viajantes Spix e Martius, ao
passarem pelo arraial de Villa Velha no início do Oitocentos, perceberam a existência de
fazendas com criação de gado, “ricas plantações de algodão” e um “lindo valle de Villa
Velha”, atual cidade de Livramento de Nossa Senhora, registrado por Martius na imagem 02 a
seguir.49 Essas atividades, articuladas com a policultura, artesanato e o comércio, se tornaram
as principais fontes de renda que, no curso do século XIX, sustentaram a economia regional,
que não se desarticulou da economia provincial. Ao contrário, a região das Minas do Rio de
Contas rearticulou-se e continuou a ser um importante entreposto comercial no alto sertão da
Bahia por meio da cultura de subsistência e da pecuária.
De acordo com as pesquisas de Maria de Fátima Novaes Pires, sobre a economia
sertaneja oitocentista, para enfrentar o declínio da produção aurífera, a região adquiriu uma
nova dinâmica econômica, elevando-se a polo de propagação de negociantes com firmas de
tropeiros articuladas às regiões do rio São Francisco, rio Paraguassú, Recôncavo e Sul da
Bahia, bem como às províncias de Goiás, Minas Gerais e São Paulo, as quais, desde meados
do século XVIII, estavam ligadas aos caminhos do comércio de abastecimento. Isto é,
48
APMRC. Seção Judiciária. Série Inventários. ID: João José Dias. 1869-1869. Cx 89 / Est 03 / Prat 03 / Mç 176
/ Doc 1257 / auto com 96 folhas. fls. 8-19.
49
SPIX, Johann Baptiste Von, e MARTIUS, Carl Friedrich Phillipp Von. Através da Bahia. Excertos da obra
Viagem pelo Brasil (1817-1820). Salvador: Imprensa Official do Estado, 1916, p. 10,18 e 11 respectivamente.
38
“adaptou às condições de mercado, seja internamente, seja para com Salvador ou outras
Províncias”.50
Fonte: Carl Friedrich Phillip Von Martius - Villa Velha, 1823. Disponível em:
http://www.ims.com.br/ims/artista/colecao/von-martius/obra/4373 Acessado em: 05/08/2015.
Essa nova dinâmica estava ligada às singularidades da região, que não “estacionou ou
decaiu com o esgotamento das minas” como sugeriu o engenheiro Theodoro Sampaio, em
1879, na visita em que fez à Vila das Minas do Rio de Contas, em que não observou as suas
especificidades, comparando-a a outros “lugares que tiveram origem na mineração”.51 Em
contrapartida à visão reducionista de Sampaio, constatei, com base na análise de variadas
fontes impressas, a existência de “fazendas em grande número e [...] um gado numeroso e de
bom aspecto”,52 “terrenos bastante apropriados à cultura do café e da erva-mate, que nasce
espontaneamente na serra”, terras que produzem “bem os cereais, e, por sua baixa
50
Pires. O crime na..., p. 36-49.
51
SAMPAIO, Theodoro. O rio São Francisco e a Chapada Diamantina. 2. Ed. Salvador: Progresso, 1955, p.199
e 198 respectivamente.
52
D’ORBIGNY, Alcide. Viagem pitoresca através do Brasil, 1802-1857. Belo Horizonte/ São Paulo:
Itatiaia/EDUSP, 1976, p.111.
39
temperatura, também a uva, o trigo, o centeio, a cavada, o marmelo, o pêssego etc”, e ainda,
plantações de “arroz, cana e fruta”,53 entre outras culturas e atividades peculiares da vida
sertaneja.
Os dados apresentados nas fontes impressas foram ratificados na análise dos
inventários dos anos de 1840 à 1888. Veja: O capitão Rodrigo de Souza Meira Sertão,
residente na Vila de Nossa Senhora do Livramento, declarou, em 1842, possuir 1.500 cabeças
de gado vagum e 144 cabeças de gado cavalar, o equivalente a Rs. 16:698$000;54 o seu
sobrinho e genro, Antônio de Souza Meira, em 1865, assegurou ter Rs. 15:500$000 em
criações, existentes nas terras do Pão de Olho, no Arraial de Villa Velha, distribuídas entre
500 cabeças de gado vagum e 67 cavalar;55 e, no mesmo ano, outro genro do Capitão
Rodrigo, o Tenente Coronel José de Vasconcellos Bittencourt, alegou possuir Rs. 13:350$000
em gado e Rs. 5:385$000 em cavalos, burros, mulas e jumentos, o que corresponde a Rs.
18:735$000 em criação.56
Como se vê, os sertanejos se adaptaram ao novo perfil econômico das Minas de Rio
Contas, no Oitocentos. As atividades comerciais ocorreram paralelamente à extração do ouro
(pelo menos até a década de 1820), à lavoura e, em especial, à pecuária. Lycurgo Santos
Filho, estudando os registros dos “Livros de Razão” da fazenda Brejo do Campo Seco, pôde
perceber as movimentações financeiras dessa fazenda, dívidas ativas e passivas, os negócios
desenvolvidos pelos donos, o cotidiano dos sujeitos, enfim, a dinâmica econômica e
sociocultural da região. Embasado nessas anotações, Santos Filho identificou que, para além
da extração do ouro e da lavoura, os proprietários daquela fazenda estavam envolvidos
também com o comércio de gado e que o mercado bovino dos sertões baianos estava ligado
ao comércio e ao consumo do gado em Salvador e no entorno. Além de suprir as necessidades
locais e regionais, o mercado de bovinos do alto sertão da Bahia dinamizou o comércio
agroexportador na Província baiana:
Desde fins do século XVIII e pelos anos seguintes, até 1821, o proprietário
do Brejo do Campo Sêco realizou o comércio de gado, em grande e em
pequena escala, segundo se verifica nos livros manuscritos, comprando e
53
Aguiar. Descrições práticas da..., p. 153.
54
APMRC. Seção Judiciária. Série Inventários. ID: Maria Carlota de Castro Meira. 1842-1850. Cx 70 / Est 02 /
Prat 06 / Mç 137 / Doc 770 / auto com 65 folhas. fls. 10-11v. Na abertura do inventário, em 1842, o capitão
declarou 2.100 cabeças de gado vagum e 152 de gado cavalar, porém no decorrer do processo, com a seca que
atingiu a região, no ano de 1844, morreram 600 cabeças de gado e oito poldros existentes na Fazenda Vazante,
ver: fl. 40-f/v.
55
APMRC. Seção Judiciária. Série Inventários. ID: Donatila de Castro Meira. 1865-1867. Cx 87 / Est 03 / Prat
03 / Mç 171 / Doc 1201 / auto com 19 folhas. fl. 5.
56
APMRC. Seção Judiciária. Série Inventários. ID: Rodriga de Vasconcellos Meira. 1865-1866. Cx 87 / Est 03 /
Prat 03 / Mç 171 / Doc 1199 / auto com 16 folhas. fl. 7-8.
40
Os viajantes naturalistas Spix e Martius, ainda de passagem pela região do alto sertão,
no início do Oitocentos, observaram a dinâmica socioeconômica de uma fazenda com mais de
160 escravos, os quais, em dias livres, trabalhavam em roças próprias, na lavoura do milho e
que, provavelmente, possuíam certa autonomia para o plantio e comercialização de sua
produção agrícola:
57
Santos Filho. Uma Comunidade Rural..., p. 225.
58
Spix e Martuis. Através da Bahia..., p. 14.
59
NOGUEIRA, Gabriela Amorim. “‘Viver por si’...” p. 154.
60
Almeida. Alforrias em Rio ..., p. 51.
41
Francisca Maria da Silva, declarou que o casal possuía Rs. 2:961$000 em dinheiro, duas casas
e diversas partes e terras compradas nas fazendas Jureminha, do Gado e Lagoinha no termo de
Santa Isabel, no total de Rs. 2:635$000. Em Minas do Rio de Contas, o casal também investiu
em propriedades e terras em variadas regiões do termo, por exemplo, comprou terras nos
Arraiais da Furna, Vila Velha, Morro do Fogo, Senhor Bom Jesus e na fazenda Gravatá, entre
outras localidades, assim os bens de raiz, arrolados no processo, ultrapassaram o valor de Rs.
12:000$000. No Sítio das Bananeiras, além da casa de morada, Soares possuía uma casa de
oficina, para fazer farinha, casa para dispensa, para o engenho, uma pequena para o paiol,
“uma casa de taipa e barro para deposito de arreios da tropa” e mais uma casa pequena de
taipa e barro, “sendo que todas essas casas são dependência da casa do Sitio”. Nota-se no
documento a existência de casa de farinha, de dispensa e de engenho, isso porque, paralelo às
atividades mencionadas, Salvador investia ainda em pequenas roças de mandiocas e cana-de-
açúcar, que produziam, além da farinha, a cachaça e a rapadura para o consumo interno e
comercialização, na ocasião do seu inventário foram declaradas quinze cargas de cachaça,
avaliadas em Rs. 90$000 e sete de rapadura, no valor de Rs. 28$000.
Para o desenvolvimento da atividade de tropeiro, Soares contou com dezessete burros
e dez mulas, avaliados em Rs. 1:081$000, e ainda possuía mais de 300 cabeças e gado vagum,
cavalos e éguas. Decerto, muitos desses bens foram provenientes do lucro adquirido no
transporte das cargas, pois essa atividade, desde o século XVIII, já proporcionava rentáveis
lucros aos donos de tropas. 61 No entanto, o bem de maior valor no seu espólio foram os
escravos. Ele possuía cinquenta cativos, todos brasileiros, a priori, no valor de Rs.
23:335$000. Em sua posse escrava havia certo equilíbrio entre os gêneros, com vinte e oito
escravos e vinte e duas escravas, com idade de três a sessenta e um anos e em quase a metade
foi possível identificar vínculos familiares, como cativos casados que tiveram, no mínimo,
quatro filhos, cativas solteiras que tiveram filhos mediante relações consensuais e depois se
casaram e ainda cativa casada com “homem livre”.62 Esses dados foram ratificados ao cruzar
os registros de batismo com o inventário do senhor Soares e sugerem a utilização da
reprodução natural como manutenção e ampliação da posse escrava, por outro lado indica
laços familiares extensos e certa autonomia escrava, que favoreceu a compra da alforria e a
mobilidade espacial desses sujeitos que, até mesmo, circulavam em outros termos, fossem
devido às suas atividades ou aos momentos de entretenimentos propícios para a formação de
61
Ver: PAES, Jurema Mascarenhas. “Tropas e tropeiros na primeira metade do século XIX no Alto Sertão
Baiano”. (Dissertação de Mestrado, Universidade Federal da Bahia, 2001) e Pires. O crime na..., p. 38-42.
62
APMRC. Seção Judiciária. Série Inventários. ID: Salvador da Luz Soares. 1873-1882. Cx 92 / Est 03 / Prat 04
/ Mç 179 / Doc 1304 / auto com 127 folhas.
42
nexos de sociabilidade e relações íntimas, como pode ter sido o caso de Fructuosa, preta, de
quarenta e cinco anos de idade, que se casou com “homem livre”.63
Buscando conhecer um pouco mais sobre o perfil da posse escrava em Minas do Rio
de Contas, nos anos de 1840 a 1888, ampliei a quantidade de inventários analisados para 734,
no entanto, nestes, a pesquisa se deteve apenas aos dados dos escravos. Dos 734 sertanejos
que tiveram seus bens inventariados, 132 não possuíam escravos, o equivalente a 18%, por
exemplo, o senhor Custodio Ferreira da Silva, morador do Arraial da Villa Velha, que vivia
das criações gado vagum e cavalar e ovelhas e da atividade de usurário, com espólio, em
1870, de quase Rs. 8:000$000 e Antonio Jose de Oliveira, residente no Sitio de Nossa
Senhora do Livramento, que, ao falecer, deixou para os herdeiros Rs. 245$500, distribuídos
em algumas peças de ouro e as criações.64 Isto é, muitos sertanejos possuíam, pelo menos, um
escravo. Consoante, com os estudos de Kátia Lorena Almeida, sobre a distribuição da posse
escrava em Rio de Contas, no século XIX, atestam:
63
Ibid, fl. 10-v.
64
APMRC. Seção Judiciária. Série Inventários. ID: Custodio Ferreira da Silva. 1870-1871. Cx 90 / Est 03 / Prat
03 / Mç 177 / Doc 1273 / auto com 80 folhas e Ibid, Antonio Jose de Oliveira. 1854-1857. Cx 82 / Est 03 / Prat
02 / Mç 160 / Doc 1017 / auto com 13 folhas.
65
Almeida. Alforrias em Rio..., p. 53.
66
Pires. O crime na... e ______. Fios da Vida...
43
Outro dado observado nos inventários foi a forte presença de escravos naturais da
freguesia do Santíssimo Sacramento da Villa de Nossa Senhora do Livramento do Rio de
Contas, os chamados “Crias de Casa”, assim como a presença e participação da família
escrava na manutenção das propriedades sertanejas e ainda a estabilidade dessas famílias que
se mantiveram unidas por gerações. Isto será demonstrado no tópico seguinte.
67
APMRC. Processo-crime de 05/07/1848, documentação não catalogada, grifos meus. Depoimento de Anna,
escrava, pertencente a Joaquim Manoel da Silva, natural e residente em Minas do Rio de Contas, 1848. Anna, a
ré, foi acusada e condenada por matar seus dois filhos, Lucinda e Ludgero, com cinco e um ano e meio de idade,
respectivamente, afogados em uma cisterna no quintal da casa do senhor, onde residiam. Na ocasião, o esposo
Manoel, escravo, pertencente ao mesmo Joaquim, estava “trabalhando por fora” “em São José a quinse dias”.
Documento analisado pela historiadora Maria de Fátima Novaes Pires, ver: Pires. O crime na...
68
WISSENBACH, Maria Cristina Cortez. Sonhos africanos, vivências ladinas. Escravos e forros no município
de São Paulo, 1850 – 1880. São Paulo: Hucitec, 1998, p.110.
44
como casar e ter filhos. Consta no documento supracitado o depoimento de Anna, escrava,
pertencente a Joaquim Manoel da Silva, em que é possível perceber a formação de sólidos
laços familiares constituídos por, no mínimo, três gerações em uma mesma propriedade, isto
é, a depoente filha, presumivelmente, legítima de Manuel e Adriana, casada com Manoel e
mãe de Lucinda e Ludgero, todos escravos do mesmo senhor, sendo a cativa Anna e os filhos
oriundos das Minas do Rio de Contas.
A pesquisa realizada nos inventários da antiga comarca de Minas do Rio de Contas,
dos anos de 1840 a 1888, revela que as “crias de casa”, como foram denominados, na
matrícula de 1872, os escravos nascidos dentro da propriedade senhorial, foram fundamentais
para a manutenção e ampliação da riqueza no alto sertão da Bahia, no século XIX. Em outras
palavras, muitos senhores sertanejos contaram com o trabalho familiar de seus cativos em
suas fazendas, sítios e casas, fosse na manutenção das lavouras, das roças, no cuidado com as
criações, ou nos mais variados serviços nos quais eram encarregados. Esses segmentos
permaneceram juntos à família senhorial por gerações, alguns casaram, outros preferiram
permanecer solteiros, tiveram filhos, netos, sobrinhos, formaram laços consanguíneos
extensos e compartilharam variados momentos da vida no “meio dos seus”, como foi o caso
de Leandra, escrava, pertencente a Caetano Antunes Pereira.
Em 1840, foi aberto o processo de inventário do senhor Caetano Antunes Pereira,
morador no Arraial do Senhor Bom Jesus, atual cidade de Piatã. Entre as poucas terras e
propriedades, uma vaca parida e algumas peças em ouro e prata declaradas, estavam a maior
riqueza da família Pereira, nove escravos: um africano, nomeado Bernardo, com mais de
oitenta anos de idade, para o serviço de roça, que conquistou a alforria “não só pelo merecimto
do dito Escravo, como pr elle [ter apresentado] o seu valor de Rs. 30$000”,69 e os demais
brasileiros – Anna e Leandra, cabras, adultas, para o serviço de casa e filiação desconhecida;
Candida, cega de um olho, e João, crianças, pardas, filhos naturais de Leandra; Joaquim, com
mais de cinquenta anos de idade, e Miguel, com vinte e cinco, crioulos, e Luiz, pardo, adulto.
Anos depois da morte do esposo, a viúva Joaquina Vicência de Sant’Anna faleceu e os
bens do casal, em especial os escravos, foram declarados novamente e reavaliados por mais
duas vezes no mesmo processo, que postergou até o ano de 1883. No arrolamento de 1874, a
escrava Leandra, que na ocasião se encontrava doente, com sessenta anos de idade, foi
avaliada por Rs. 20$000, ainda prestava serviços para a família Pereira e contribuiu para a
manutenção e o aumento da posse escrava nessa propriedade. Ela teve, no mínimo, mais
69
APMRC. Seção Judiciária. Série Inventários. ID: Caetano Antunes Pereira. 1840-1883. Cx 71 / Est 02 / Prat
06 / Mç 138 / Doc 774 / auto com 150 folhas, fl. 14, grifos meus.
45
quatro filhas (Joanna, com trinta e dois anos de idade; Candida, com trinta; Francisca, com
vinte e oito e Maria, com vinte e seis, todas de serviço doméstico e pardas) e quatro netas
(Hermelina, com quatro anos de idade, filha natural de Maria e três filhas naturais de
Francisca: Herculina, escrava, com quatro anos de idade e Isabel e Joaquina, ingênuas,
nascidas “livres pela Lei” e matriculadas no “livro da matrícula de filhos livres de mulher
escrava”).70 Essa família matrifocal continuou crescendo unida. Em 1883, Francisca, solteira,
com trinta e sete anos de idade, foi declarada com mais três filhos ingênuos (Maria, com
quatro anos de idade; Silvina, com seis e Miguel, com oito) e Maria (irmã de Francisca),
também solteira, com trinta e cinco anos, com mais quatro filhos ingênuos (Senhorinha, com
oito anos de idade; Serafina, com seis; Argemiro, com dois e Laurindo com sete meses). Isso
demonstra que esses sujeitos mantinham relações conjugais estáveis e duradouras, embora
não sacramentadas pela Igreja Católica. Como pode ser observado no histograma 01 (a
seguir), a matriarca Leandra e as filhas Francisca e Maria tiveram filhos em um intervalo
médio de dois anos, contribuindo, de forma indireta, para o aumento da riqueza senhorial.
No intervalo de uma avaliação para outra, a posse escrava da família Antunes Pereira
ampliou e suas condições financeiras melhoraram. Em comparação com a primeira avaliação
dos bens em 1840, o número de cativo aumentou, seguido da quantidade de alforrias, por
exemplo, consta nas declarações que a viúva, em vida, libertou a escrava Sebastiana por Rs.
1:700$000, “cuja quantia recebeu apenas quatro centos mil reis, e o restante consta de uma
letra incobrável, passada pelo Capitão Manoel Jose de Carvalho Bastos”.71 Infelizmente, não
foi possível averiguar qual tipo de relação existia entre o Capitão e a escrava Sebastiana,
presumo que, ao menos, mantiveram uma relação de mútua confiança. Com a família
senhorial o Capitão Bastos nutria estreitas relações financeiras e prováveis trocas de favores,
posto que o valor da carta de alforria que seria de Rs. 1:700$000 foi amortizado em Rs.
400$000 e ainda o casal era credor de uma dívida ativa de Rs. 860$000 do senhor Manoel
Jose.72 Outrossim, os cativos Candido, Antonio e Julia, que também foram acrescentados no
segundo momento do inventário, conquistaram a liberdade, compraram suas alforrias por Rs.
200$000 cada.73 Consta também que o “herdeiro Antonio Caetano conduzio para as Lavras do
70
Nas certidões de matrículas de escravos presentes em alguns inventários analisados nesta pesquisa, consta que
os “filhos livres pela Lei”, ou seja, nascido após o ano de 1871, foram matriculados em livros específicos. Ver,
dentre outros: APMRC. Seção Judiciária. Série Inventários. ID: Clotildes de Magalhães Vianna. 1879-1879. Cx
98 / Est 03 / Prat 05 / Mç 188 / Doc 1382 / auto com 28 folhas, fl. 22 –v. Cabe relatar que não foi localizado no
Arquivo de Rio de Contas o referido livro, o que não significa dizer que ele não existe, visto que ainda há
documentos para serem catalogados e organizados na instituição e algumas buscas foram dadas superficialmente.
71
Ibid, fl. 24.
72
Ibid, fls. 24 e 102.
73
Ibid, fl. 24 f-v
46
Gentio, e vendêra os escravos Francisco Joaquim e Miguel”, ambos avaliados em 1840, por
Rs. 850$000.74 Além das vendas e alforrias dois cativos faleceram, “Joaquim em companhia
do referido herdeiro Antonio Caetano, e a escrava Candida n’esta Villa”, conquanto o
aumento na posse escrava foi superior às “perdas”.75
Histograma 01: Família de Leandra, escrava pertencente a Caetano Antunes Pereira, 1840 –
1883.76
Destarte, a soma bruta dos bens do casal, no primeiro momento do processo, estava
próximo a Rs. 3:000$000 e, apesar de ter ocorrido uma desvalorização das propriedades, no
final do inventário o valor do monte mor ultrapassou Rs. 6:000$000.77 Esse crescimento de
mais de 50% se deu em consequência do aumento do número de cativos, mediante a
74
Ibid, fls. 25, 8 e 15-v respectivamente.
75
Ibid, fl. 25.
76
Ibid.
77
Ibid, fl. 107-v.
47
78
Ibid, fl. 46.
79
Ibid, fls. 93, 65, 99 e 110 respectivamente. Em relação à lei de 28 de setembro de 1871, o artigo 4º legaliza e
regulariza o acúmulo de pecúlio por parte do escravo e o parágrafo 2º deste artigo garante ao cativo o direito à
alforria mediante indenização de seu valor ao seu proprietário. Ver: Lei nº 2.040 de 28 de setembro de 1871 – Lei
do Ventre Livre. Disponível em: http://www2.senado.leg.br/bdsf/item/id/496715 Acessado em 02/02/2014.
48
80
APMRC. Seção Judiciária. Série Inventários. ID: Emerenciana Garcia Vieira. 1875-1875. Cx 94 / Est 03 / Prat
04 / Mç 183 / Doc 1331 / auto com 12 folhas.
81
APMRC. Seção Judiciária. Série Inventários. ID: Anna Tereza de Jesus. 1874-1877. Cx 94 / Est 03 / Prat 04 /
Mç 182 / Doc 1324 / auto com 21 folhas.
82
APMRC. Seção Judiciária. Série Inventários. ID: Caetana Luiza de Castro. 1880-1880. Cx 98 / Est 03 / Prat 05
/ Mç 189 / Doc 1389 / auto com 24 folhas, fls. 4-6 e 13.
49
Histograma 02: Vínculos familiares dos escravos de Caetana Luiza de Castro, matriculados em
1872.83
83
Ibid, fl. 13.
50
Tabela 02: nacionalidade dos escravos nos inventários de Minas do Rio de Contas, 1840-1888.
Década / Gênero
Nacionalidade 1840 1850 1860 1870 1880
Total
M F M F M F M F M F
Africanos 133 50 77 30 21 24 14 02 04 02 372
Angola 02 03 - 02 - 01 - - - - 08
Mina 01 01 01 - - - - - - - 03
Congo 01 - 02 01 - - - - - - 04
Nagô 03 01 01 - 01 01 - - - - 07
Benguela 01 - - - - - - - - - 01
Cassange - - 01 - - - - - - - 01
Cabinda - - - 01 - - - - - - 01
Jeje - - - - - 01 - - - - 01
S/I* 125 45 72 35 29 18 14 02 04 02 346
Brasileiros 562 532 591 624 356 393 465 470 218 251 4473
Total 695 582 668 663 386 414 479 472 222 253 4845
*Sem Identificação / M – Masculino / F – Feminino
Fonte: APMRC. Seção Judiciária. Série Inventários. 1840-1888
Muitos desses sujeitos eram oriundos do sertão baiano, como atestam as certidões de
matrículas existentes em alguns inventários e os documentos paroquiais analisados. Veja a
posse escrava de Clotildes Vianna de Magalhães Abreu, que não necessitou de recursos
financeiros para possuir seis escravos. Quando seu pai Theophilo de Magalhães Vianna
faleceu, em 1864, deixou de herança para ela, entre outros pertences, três escravos: Custodia,
parda, de quatorze anos de idade; Eustaquio, cabra, de dezesseis e; Toquarto, crioulo, de dois
anos.84 Depois de efetuada a partilha dos bens, Custodia e Eustaquio se casam. Com o
falecimento de Clotitildes Vianna, em 1879 (na época, casada com o primo, José Castor de
Abreu) é feito o levantamento do patrimônio do casal e o arrolamento dos bens, lá estavam os
escravos Eustaquio, pardo com trinta e dois anos, e Custodia, com vinte e nove, casados,
lavradores, acompanhados dos seis filhos legítimos: Iria, de treze anos de idade; Delfina, de
doze; Manoel, de onze, todos pardos, e os filhos ingênuos; Hortencio, Ludovina e Germano.
Havia ainda o escravo Toquarto (adquirido também por herança paterna) de dezesseis anos,
preto, filho legítimo de João, africano, liberto, e Eva.85 Além dos cativos o casal possuía uma
casa mobilhada no Arraial da Furna, onde residiam, terras em Rio de Contas e na fazenda do
84
APMRC. Seção Judiciária. Série Inventários. ID: Teófilo de Magalhães Viana. 1864-1882. Cx 87 / Est 03 /
Prat 03 / Mç 171 / Doc 1196 / auto com 105 folhas, fl. 24, grifos meus. Nota-se que a classificação de “cor” dos
escravos Toquarto e Eustaquio está em destaque, isto porque, como se verá no decorrer do texto, a mesma é
alterada com o tempo e tipo de fonte. Assim, a temática “cor” será problematizada no tópico seguinte.
85
APMRC. Seção Judiciária. Série Inventários. ID: Clotildes de Magalhães Viana. 1879-1879. Cx 98 / Est 03 /
Prat 05 / Mç 188 / Doc 1382 / auto com 28 folhas, fls. 8-11, grifos meus.
51
86
Acervo da Paróquia do Santíssimo Sacramento de Rio de Contas. Diocese de Livramento de Nossa Senhora –
BA. Livro de registros de batizados realizados nas Capelas e filiais da Matriz desta Freguesia do Santíssimo
Sacramento da Vila de Nossa Senhora do Livramento do Rio de Contas. 1856 a 1863. fl. 190, grifos meus.
87
Acervo da Paróquia do Santíssimo Sacramento de Rio de Contas. Diocese de Livramento de Nossa Senhora –
BA. Livro de registros de batizados realizados nas Capelas e filiais da Matriz desta Freguesia do Santíssimo
Sacramento da Vila de Nossa Senhora do Livramento do Rio de Contas. 1856 a 1863. fls. 56-v, 148, 165-v, 189
e 178. Sobre o compadrio de escravos, ver o capítulo 2, em especial, o segundo tópico.
88
APMRC. Seção Judiciária. Série Inventários. ID: Teófilo de Magalhães Viana. 1864-1882. Cx 87 / Est 03 /
Prat 03 / Mç 171 / Doc 1196 / auto com 105 folhas, fls. 6v-7v.
52
desses segmentos, os quais permaneceram juntos aos seus, inclusive depois da partilha dos
bens.
É interessante ressaltar que, embora utilizando-se da reprodução natural para a
manutenção e ampliação da posse escrava, os proprietários sertanejos recorreram ao tráfico
Atlântico de cativos, fosse através do porto de Salvador ou do de Ilhéus, pelo menos, até o
final do ano de 1849. Consta no livro de registro de batismo da Matriz do Santíssimo
Sacramento o batizado de dez escravos africanos (um sujeito batizado no ano de 1848 e nove
cativos receberam o sacramento em 1849). Entre eles, oito eram jovens em fase adulta (de
doze a vinte anos) e duas crianças de quatro e cinco anos de idade.89
Embora com pouca expressividade numérica nos inventários, o equivalente a 7,7% dos
cativos de Minas do Rio de Contas, no século XIX, os escravos de origens africanas também
constituíram sólidos laços familiares, que foram essenciais para a ampliação da posse escrava
na região, pois foi possível apontar sertanejos que possuíam, a priori, um casal de africanos ou
de brasileiro com africano e com os descendentes desses casais tiveram a quantidade de
cativos em suas propriedades ampliada, como se verá abaixo.
Dos 372 escravos africanos encontrados nos inventario post mortem, foi possível
identificar, mediante o cruzamento com os registros paroquiais, trinta e dois sujeitos com
vínculos familiares, o que corresponde a 8,6%. Desses, alguns escolheram se casar com
parceiros oriundos do mesmo continente, como o casal Manoel Bahia e Catharina, africanos,
escravos pertencentes à Anna Maria de Carvalho.90 Outros, uniram-se em matrimônio com
sujeitos naturais da região, por exemplo, Luzia, “procedente” da Costa da África, filiação
desconhecida, que se casou com Manoel, natural da Paróquia de Villa Velha, distrito de
Minas do Rio de Contas, filho natural de Anna (escrava de outrem), ambos pertencentes ao
capitão Antonio de Souza Meira.91
Veja como a família formada pelo casal Manoel, africano, e Senhorinha, foi
fundamental na ampliação da posse escrava e do patrimônio de João da Cunha Ramaldes.
Morador da fazenda Itapicurú, no distrito de Villa Velha, o senhor Ramaldes e a esposa
Simplicia Maria do Espirito Santo não tiveram filhos. Ao longo de suas vidas conseguiram
acumular considerada riqueza, o equivalente a mais de Rs. 12:000$000. Desse total, 95,8%
89
Acervo da Paróquia do Santíssimo Sacramento de Rio de Contas. Diocese de Livramento de Nossa Senhora –
BA. Assentos dos batismos que foram feitos fora da Matriz do Santíssimo Sacramento da Vila do Rio de Contas
/ 1838 – 1859, fls. 88v a 103.
90
APMRC. Seção Judiciária. Série Inventários. ID: Anna Maria de Carvalho. 1846-1847. Cx 76 / Est 03 / Prat
01 / Mç 148 / Doc 870 / auto com 42 folhas.
91
APMRC. Seção Judiciária. Série Inventários. ID: Antônio de Sousa Meira. 1885-1888. Cx 102 / Est 03 / Prat
05 / Mç 195 / Doc 1453 / auto com 108 folhas.
53
eram representados pelos cativos e o restante distribuído entre algumas cabeças de gado
vagum e cavalar, um tacho de cobre, um carro e terras nas fazendas da Barra, Fazendinha e
Itapicurú. O casal possuía quinze escravos, todos com laços familiares oriundos de dois
núcleos parentais, ou seja, 100% dos escravos presentes em seu inventário, aberto no ano de
1880, foram classificados como “crias de casa”. Os libertos, Senhorinha – preta, filha natural
de Joaquina liberta, natural da Freguesia de Rio de Contas – e Manoel – africano –, tiveram,
no mínimo, onze filhos legítimos: Benedicto, com vinte quatro anos de idade; Francisco, com
vinte e três; Marcellino, com vinte um; Jose, com vinte; Camillo, com dezenove; Rufino,
com dezessete; Justino, com doze; Josepha, com vinte e dois; Zeferina, com dezoito; Maria,
com onze e; Joaquina, com dez; todos pretos e, com exceção de Benedicto, que era vaqueiro,
os filhos eram lavradores e as filhas fiadeiras (mais de 73% dos cativos pertencentes àquele
senhor eram filhos de Senhorinha e Manoel). O outro casal, também de libertos, formado
pelos conjugues Manoel e Benta, tiveram quatro filhos legítimos, pelo menos: Modesto de
trinta e três anos, casado com Bernardina; Raymundo de vinte e oito; Benedicto de vinte e um
– todos lavradores – e; Liberata, de trinta anos, costureira; todos pardos.92 Essas famílias
permaneceram unidas por três décadas, no mínimo, o que sugere estabilidade familiar desses
sujeitos conquistada em suas vivências diária, cuja, possivelmente, favoreceu a compra das
alforrias de Manoel e Senhorinha e Manoel e Benta.
Antes de falecer, João da Cunha deixou explícito em seu testamento a importância das
“crias de casa” em suas propriedades, indicando certa proximidade entre eles, constituída por
meio de barganhas, o que possibilitou aos cativos a liberdade e terras para plantar e criar, isso
após o falecimento de sua esposa.93 Para isso, deixou para a viúva, única herdeira, todos os
escravos da sua meiação:
92
APMRC. Seção Judiciária. Série Inventários. ID: João da Cunha Ramaldes. 1880-1881. Cx 98 / Est 03 / Prat
05 / Mç 189 / Doc 1395 / auto com 35 folhas, fl. 11. Mapa da matrícula, grifos meus. Documento analisado pela
historiadora Maria de Fatima Pires. Sobre a procedência de Manoel ver: Livro de registros de batizados
realizados nas Capelas e filiais da Matriz desta Freguesia do Santíssimo Sacramento da Vila de Nossa Senhora
do Livramento do Rio de Contas. 1856 a 1863. fls. 171 e 188.
93
Sobre as alforrias em Rio de Contas e as estratégias utilizadas pelos escravos para conquistá-las, inclusive,
como um projeto coletivo e familiar ver: Almeida. Alforrias em Rio...; ______. “Escravos e libertos...” e Pires.
Fios da Vida..., p. 66-96.
54
Nota-se que João Ramaldes não se esqueceu dos libertos que foram seus escravos.
Presumivelmente, esses segmentos moravam em torno das propriedades senhorial, numa
ambígua condição de liberdade e cativeiro, evidente na “fala” do senhor: “meus escravos, e
que de presente se achão libertos”, com isso sugere que mesmo “libertos” eles não
desvincularam “dos seus”, pois continuaram perto dos seus filhos e netos.95
É interessante destacar que esses sujeitos, por meio da família consanguínea e
espiritual, (re)construíram suas vidas desbaratadas pelo tráfico Atlântico e puderam cultivar
suas raízes culturais no sertão baiano. Analisando a vida social dos africanos (escravos e
forros) no sertão de cima do São Francisco, no Setecentos, Gabriela Nogueira ratifica a
importância dos laços de família constituídos na nova terra, os quais se formaram tendo como
base as “[...] trajetórias pessoais vividas do outro lado do atlântico e também na diáspora”. Os
africanos traficados, diante dessa nova realidade de sujeitos escravizados no novo continente
“[...] recriaram suas práticas através de trocas entre as suas heranças culturais e elementos de
outras culturas ali encontradas (indígena, europeia) ”. Dessa forma, os africanos reelaboraram
seu modus vivendi e “[...] encontraram na família um lugar essencial para a transmissão e
recriação das suas heranças culturais”.96
É notório na tabela 02 supracitada a presença de “nações africanas”, entendida aqui
como categorias que agrupam a população africana escrava e forra no Brasil. Dos 372
africanos identificados nos inventários de 1840 a 1888, vinte e seis foram classificados pelos
“grupos de procedências”:97 onze sujeitos vindo da África Ocidental – sete nagôs; três minas;
94
APMRC. Seção Judiciária. Série Inventários. ID: João da Cunha Ramaldes. 1880-1881. Cx 98 / Est 03 / Prat
05 / Mç 189 / Doc 1395 / auto com 35 folhas, fl 13-14, grifos meus.
95
Sobre o viver na fronteira entre a escravidão e a liberdade, ver: Reis. “A família negra...”, especialmente o
capitulo V.
96
Nogueira, “‘Viver por si’...”, p. 65-79.
97
Os conceitos de nação e grupos de procedência desenvolvidos nesse trabalho se baseiam nos estudos de
Mariza de Carvalho Soares. De acordo com a autora, o termo nação não corresponde “[...] necessariamente, a um
grupo étnico, podendo ser resultado da reunião de vários grupos étnicos embarcados num mesmo porto”.
(SOARES, Mariza de Carvalho. Devotos da Cor. Identidade étnica, religiosidade e escravidão no Rio de Janeiro,
século XVIII. Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, 2000, p. 104). Considerando as possibilidades de os
africanos reorganizarem suas vidas na nova terra, sob a condição de cativeiro e não mais aquelas previamente
desenvolvidas em suas sociedades tribais, Soares propõe a noção de “grupo de procedência”: “Esta noção,
embora não elimine a importância da organização social e das culturas das populações escravizadas no ponto
inicial do deslocamento, privilegia sua reorganização no ponto de chegada. [...] O que me leva a alterar o
enfoque da análise de deslocamentos de escravos da África para o Brasil é que as formas de organização dos
55
um jeje – e quinze da África Centro Ocidental – oito angolas; quatro congos; um benguela;
um cassange; um cabinda. Isso não significa que esses segmentos necessariamente pertenciam
a estas “nações” no continente africano, pois muitos adquiriram esses termos depois de serem
capturados e embarcados para o Brasil, conforme vem demonstrando a historiografia a
respeito do tema.98
A historiadora Mariza de Carvalho Soares, ao estudar as nações e os grupos de
procedências dos africanos no Rio de Janeiro, no século XVIII, alerta para a complexidade e
imprecisão do termo “nações africanas”, visto que é cunhado fora da África pelos agentes
encarregados da identificação dos escravos traficados (comerciantes, padres e autoridades), ao
passo que permite aos africanos reunidos em torno de uma determinada nação utilizá-lo como
uma ferramenta de organização de grupo. Consoante:
O termo ‘nações africanas’ é cunhado fora da África para dar aos escravos
transmigrados uma unidade que nunca lhes foi própria e que nem sempre
existiu aqui tampouco. Ao longo de toda a vigência do tráfico atlântico
nações corresponderam ao modo de classificar a procedência dos escravos
traficados e distinguiam angolas de minas, moçambiques, caboverdes e
outros. [...] sobre a variedade de nações encontradas no Brasil, assim como
em outras partes das Américas, é importante esclarecer que essas nações
devem ser entendidas como categorias que agrupam a população escrava
africana e que, nesse sentido, não correspondem a grupos étnicos. Por outro
lado, são constituídos tendo como referência alguns critérios, entre os quais
os grupos étnicos, lugares, e outras variáveis que compõem os referentes de
uma determinada rota, fazendo, portanto, de algum modo, parte da
experiência dos traficados. Entretanto a problemática da escravidão, se
beneficiando de falarem duas ou mais línguas, reelaborando antigas formas
de convivência e conflito com seus vizinhos, os escravos submetidos ao
tráfico atlântico têm diante de si a possibilidade de redefinir suas identidades
e as fronteiras que os separam. Desse longo e drástico processo, surgem
novas formas de organização que ficaram conhecidas como nações.99
pretos africanos têm tanto ou mais a ver com as condições do cativeiro do que com o seu passado tribal. Os
critérios de filiação a este ou aquele grupo são definidos aqui, e não na África” (Ibid, p. 116). Outro estudo que
contribuiu para a compreensão do conceito de nação foi o trabalho de Maria Inês Cortes de Oliveira. Ver:
OLIVEIRA, Maria Inês Cortes Oliveira. “Quem eram os “Negros da Guiné”? A origem dos africanos na Bahia.”
In: Afro-Ásia, n. 29/30, p. 37-73, 1997.
98
Soares. Devotos da Cor....; OLIVEIRA, Maria Inês Cortes de. “Viver e Morrer no meio dos seus: nações e
comunidades africanas na Bahia do século XIX”. In: Revista USP, n.28, p. 174-193. Dentre outros
99
SOARES, Mariza Carvalho. “Introdução”. In: ______ (Org.). Rotas atlânticas da diáspora africana: Da Baía
do Benin ao Rio de Janeiro. Niterói, EdUFF, 2011 [2007], p. 23-24.
56
vivenciadas nas fazendas, sítios, arraiais e vila, nas relações amorosas, de amizades e de
vizinhanças, que muitas vezes foram formalizadas em casamentos e batizados. Para tanto, a
herança cultural africana também foi transmitida através dos laços de família de pais para
filhos, netos e sobrinhos. Consoante, Jonis Freire explicita:
Analisando a população escrava por faixa etária, constatei que 49,9% dos cativos
presentes nos inventários da antiga comarca das Minas do Rio de Contas, no século XIX,
possuíam entre treze e quarenta e cinco anos de idade, ou seja, 2.420 sujeitos estavam em fase
adulta e, biologicamente, em idade de reprodução, o que, de certo modo, justifica a forte
presença de crianças de zero a doze anos nas propriedades sertanejas, o equivalente a 30,2%
do total. Em números significativos encontrei os cativos acima dos quarenta e cinco anos, os
quais corresponderam a 12,2%, como se é observado na tabela 03. Isso demonstra que muitos
escravos que constituíram laços de famílias conseguiram preservá-los ao longo do tempo,
mantendo-se unidos por gerações, como a escrava Leandra (citada acima), que aos sessenta e
nove anos de idade conquistou a liberdade com suas filhas e netas.
Faixa etária
Acima
Décadas 0-12 % 13-45 % % S / I* % Total
de 45
1840 416 32,3% 594 46,1% 167 13,0% 111 8,6% 1288
1850 474 35,6% 610 45,8% 139 10,4% 108 8,1% 1331
1860 281 35,1% 382 47,8% 86 10,8% 51 6,4% 800
1870 272 28,6% 499 52,5% 110 11,6% 70 7,4% 951
1880 18 3,8% 335 70,5% 89 18,7% 33 6,9% 475
Total 1461 30,2% 2420 49,9% 591 12,2% 373 7,7% 4845
*Sem Informação
Fonte: APMRC. Seção Judiciária. Série Inventários. 1840-1888
100
Freire. “Escravidão e Família...”, p. 152.
57
101
Ver: Pires. Fios da Vida..., p. 117-127.
58
Isso não significa que as mulheres escravas deixaram de constituir laços de família e
de terem filhos nas duas últimas décadas da escravidão. O que ocorreu foi a mudança no
estatuto jurídico desses sujeitos, a partir de 1871, com a promulgação da Lei nº 2,040 de 28 de
setembro, conhecida como Lei do Ventre Livre, que determinava em seu Art. 1º: “Os filhos
da mulher escrava que nascerem no Império desde a data desta lei, serão considerados de
condição livre”.102 Na prática, o que mudou foi o estatuto jurídico da criança de escravo para
ingênuo, pois os filhos das mulheres cativas continuaram sob a tutela dos proprietários
vivenciando o cativeiro e sendo acrescentado na riqueza senhorial, como fez o tenente coronel
Manoel Alves de Castro Coelho ao inventariar os bens deixados pelo filho Joaquim Pereira de
Castro Coelho, que na época já se encontrava viúvo.103
Residente no Sitio do Cafundó, distrito da Boa Sentença, termo da Villa de Minas do
Rio de Contas, Joaquim Coelho vivia de suas lavouras – entre elas, cultivava cana-de-açúcar e
mandioca para a produção de cachaça, farinha e outros derivados – e da criação de gado
vagum e cavalar, mulas e ovelhas. Em 1884, ano da abertura do seu inventário, Coelho
possuía quatorze escravos, sete do gênero masculino e sete do feminino, todos adultos e
interligados por laços familiares. Desses, seis cativos foram adquiridos em causa dote, dois
por doação, dois por compra e os demais eram “crias de casa”. Junto às declarações das
escravas estavam os filhos ingênuos, devidamente matriculados, dos quais os “serviços foram
avaliados”. Veja: Joanna, parda, casada com José, com trinta e oito anos de idade, avaliada
em Rs. 300$000, acompanhada dos cinco filhos ingênuos, legítimos – Josepha, preta, nascida
em 1875, “cujos serviços foram avaliados por vinte mil reis”; Justiniano, preto, nascido em
1877, “serviços avaliados por trinta mil reis”; Angela, preta, nascida em 1879, “serviços
avaliados por quinze mil reis”; Callixto, preto, nascido em 1880, “serviços avaliados por dez
mil reis” e Sabina, preta, nascida em 1883, “ainda por matricular-se”, decerto não teve os
serviços avaliados por ter somente cinco meses de idade – Anna, preta, casada com Miguel,
com trinta e quatro anos, avaliada por Rs.200$000, acompanhada do filho ingênuo, legítimo,
de nome Constancio, nascido em 1876, “serviços avaliados por trinta mil reis”; Carolina,
parda, de vinte e cinco anos, avaliada por Rs.350$000, acompanhadas das filhas ingênuas,
presumivelmente naturais, Balbina e Afra, de quatro e dois anos de idade, respectivamente;
Angelica, parda, de vinte e um anos, avaliada em Rs.380$000, acompanhada da filha ingênua,
presumivelmente natural, Petronilla, parda, nascida no ano de 1882, “serviços avaliados por
102
Disponível em: http://www2.senado.leg.br/bdsf/item/id/496715 Acessado em 02/02/2014.
103
Sobre as crianças filhas de escravas nascidas após a Lei do Ventre Livre ver: MATTOSO, Katia de Queiros.
“O filho da escrava (em torna da Lei do Ventre Livre) ”. In. Revista Brasileira de História, V 8, n. 16, p 37-55,
1988.
59
cinco mil reis”. O inventariante, o tenente coronel Manoel Alves, não se esqueceu de declarar
e avaliar os serviços dos filhos ingênuos, legítimos, da liberta Damiana, casada com Paulo,
que certamente estavam sob sua tutela: Antero, nascido em 1873, “serviços avaliados em
quarenta mil reis”, e Martinho, nascido no ano de 1874, “serviços avaliados em trinta mil
reis”.104 Cabe destacar aqui a luta da família de Damiana para conquistar a liberdade e poder
viver com mais dignidade sem as tensões e medos vivenciados no cativeiro.
Após dar à luz os filhos Prudencio, cativo, nascido em 1871, Antero e Martinho,
ingênuos, Damiana conquistou a alforria, possivelmente após 1875, um ano depois do
nascimento do caçula do casal. Depois de adquirida a liberdade, Damiana buscou meios de
acumular dinheiro para comprar a alforria do esposo Paulo e do filho Prudencio, agora liberta,
poderia trabalhar na Vila ou em outra fazenda vizinha e até mesmo com seu antigo senhor e
guardar o dinheiro dos seus onerários para o projeto familiar de liberdade.105 O pai das
crianças, Paulo, preto, de quarenta e um anos, avaliado em 1884, em Rs. 500$000, percebendo
a possibilidade de continuar em cativeiro, devido ao alto valor que lhe foi atribuído e, assim,
frustrar o projeto familiar da manumissão, solicitou ao Juiz Municipal nova avaliação:
[...] que tendo se lhe dado o valor de 500$000 reis no respectivo inventario
sem attenção a idade maior de 40 annos do Suppe, e a se achar elle já
classificado com quota para a sua alforria por conta do fundo de
emancipação, contestando vem requerer nova avaliação de sua pessôa, visto
que aquella por excessiva não pode subsistir sem injustiça, á vista do Aviso
do Ministério da Agricultura de 30 de Junho de 1883, que em tais casos
autorisa contestação sobre a avaliação”.106
Uma nova avaliação foi realizada e o valor de Rs. 500$000 foi mantido, mas isso não
impediu Paulo de conquistar a liberdade. Sabendo das parcas possibilidades de ser atendido a
104
APMRC. Seção Judiciária. Série Inventários. ID: Maria da Gloria Pereira Castro Coelho e Joaquim Pereira de
Castro Coelho. 1884-1903. Cx 101 / Est 03 / Prat 05 / Mç 195 / Doc 1443 / auto com 108 folhas, fl. 8-10.
105
Nas últimas décadas a historiografia brasileira sobre família oitocentista tem revelado trabalhos que apontam
a alforria como um projeto familiar, ver: Almeida. Alforrias em Rio...; Pires. Fio da Vida..., p. 66-96; Fraga
Filho. Encruzilhadas da liberdade...; Gonçalves. “Escravos e senhores...”; NASCIMENTO, Flaviane Ribeiro.
“Viver por si: histórias de liberdade no agreste baiano oitocentista, Feira de Santana, 1850-1888”. (Dissertação
de Mestrado, Universidade Federal da Bahia, 2012); Ferreira. “Entre vazantes, caatingas...”, capítulo 6; SOUSA,
Jorge Prata de & ANDRADE, Rômulo Garcia de (orgs). Zona da Mata mineira: escravos, família e liberdade.
Rio de Janeiro: Apicuri, 2012; PINTO, Natália Garcia. “A Benção Compadre: Experiências de parentescos
escravidão e liberdade em Pelotas, 1830/1850”. (Dissertação de Mestrado, Universidade do Vale do Rio dos
Sinos - RS, 2012), capítulo 3; PRADO JUNIOR, Manoel Batista do. “Entre senhores escravos e homens livres
pobres: família, liberdade e relações sociais no cotidiano da diferença - Mangaratiba, 1831-1888. (Dissertação de
Mestrado, Universidade Federal Fluminense, 2011); ROCHA, Solange Pereira da. Gente negra na Paraíba
oitocentista. São Paulo: Ed. UNESP, 2009, capítulo 5; ENGEMANN, Carlos. De laços e de nós. Rio de Janeiro:
Apicuri, 2008; dentre outros. Como trabalho de síntese, ver: LUNA, Francisco Vidal e KLEIN, Herbert.
Escravismo no Brasil. São Paulo: EDUSP, 2010.
106
APMRC. Seção Judiciária. Série Inventários. ID: Maria da Gloria Pereira Castro Coelho e Joaquim Pereira de
Castro Coelho. 1884-1903. Cx 101 / Est 03 / Prat 05 / Mç 195 / Doc 1443 / auto com 108 folhas, fl. 29.
60
sua solicitação, Paulo pode ter utilizado esse pedido para ganhar tempo e poder acumular o
restante do valor para a sua liberdade e do filho Prudencio, tendo em vista que a resposta do
Juiz demorou mais de um mês.107 Enfim, a família de Damiana, após anos de luta, conquistou
a tão esperada alforria. Essas ações reforçam a importância da família para a vida escrava,
como também sugerem que Paulo e Damiana estavam cientes dos “direitos” adquiridos nos
anos finais da escravidão e dispostos a lutarem, dentro do possível, por eles. Não foi por acaso
que a categoria de liberta da matriarca foi substituída por “mulher livre” na nova avaliação de
Paulo.108
No auto da partilha, as famílias que não conquistaram a liberdade foram preservadas.
Ou seja, os herdeiros ficaram com um casal ou a mãe e seus respectivos filhos ingênuos,
porém as avaliações dos serviços desses ingênuos, embora acrescidas ao monte mor, não
foram adicionadas no pagamento da herança.109
No histograma 03 abaixo pode-se observar a participação dos ingênuos na posse
escrava de Joaquim Coelho, os quais corresponderam a mais de 78% do total de vinte e cinco
sujeitos, entre escravos e “livres”, inventariados em 1884. Evidencia ainda que a reprodução
natural foi uma estratégia senhorial adotada para a manutenção e para a ampliação da posse
escrava em sua propriedade, visto que, esse senhor se dispôs somente de dois cativos adultos,
um do gênero masculino e um feminino, adquiridos por compra no tráfico interno. Por outro
lado, realça a importância da família para a vida escrava, pois por meio dela conseguiram
vivenciar e manter vivas suas heranças e tradições, preservando suas identidades e culturas
através da comunidade constituída mediante as redes de parentescos tecidas cotidianamente.
107
Ibid, fls. 29-32.
108
Ibid, fls. 31v.
109
Ibid, fls. 39v a 56. É necessário ressaltar que, em relação aos ingênuos, destaca-se neste trabalho apenas a sua
participação nas propriedades sertanejas e que ainda há muito a ser estudo sobre esses segmentos no alto sertão
da Bahia, posto que até o momento não existe trabalho específico sobre as crianças “livres” que viviam no
cativeiro. No entanto, algumas pesquisas vêm despontando na historiografia brasileira, em especial, na região
sudeste sobre o tema. Ver: TEIXEIRA. Heloísa Maria. “A não infância: Crianças como mão-de-obra em
Mariana, 1850-1888”. (Tese de Doutorado, Universidade de São Paulo, 2007); ZERO, Arethuza Helena. “O
preço da liberdade: caminhos da infância tutelada – Rio Claro, 1871-1888”. (Dissertação de Mestrado,
Universidade Estadual de Campinas, 2004); MOTTA, Flávio José e VALENTI, Agnaldo. “Dinamismo
econômico e batismo de ingênuos: A libertação do ventre da escrava em Casa Branca e Iguape, Província de São
Paulo (1871-1885) ”. In: Estudos Econômicos, v. 38, n. 2, p. 211-234; dentre outros.
61
Histograma 03: Laços da família de Jose e Joanna, escravos pertencentes a Joaquim Pereira de
Castro Coelho.110
110
APMRC. Seção Judiciária. Série Inventários. ID: Maria da Gloria Pereira Castro Coelho e Joaquim Pereira de
Castro Coelho. 1884-1903. Cx 101 / Est 03 / Prat 05 / Mç 195 / Doc 1443 / auto com 108 folhas.
62
momento em que sua mãe se distanciou (por óbito ou venda), decidiu manter viva a memória
e os ensinamentos recebidos. Isso, tendo em vista que mesmo sendo Angela “escrava de
outrem”, não deixou de vivenciar a família e compartilhar no meio dos seus suas “lembranças
e recordações”, visto que seu proprietário era o sogro de Joaquim Coelho que morava também
no Cafundó, por isso não é demasiado pensar que avós, pais, filhos e netos conviveram juntos
por, no mínimo, quatro gerações. Pode-se pensar ainda na formação de uma comunidade
constituída pelos escravos da família Castro Coelho, em que esses puderam vivenciar e
transmitir suas heranças culturais.
A pesquisa minuciosa aos inventários permitiu perceber outras nuances da população
escrava do alto sertão. Os dados apresentados na tabela 04 e nos gráficos 02 e 03 abaixo,
revelam que o equilíbrio entre os cativos dos gêneros masculino e feminino, em fase adulta
(treze a quarenta e cinco anos de idade), prevaleceu em todo período estudado (1840-1888).
Tabela 04: população cativa de Minas do Rio de Contas, distribuída por década, faixa etária e gênero – 1840-
1888.
Gráfico 02: Percentual da população cativa, na faixa etária de 13 a 45 anos, por década.
63
111
Ver: Pires. Fios da Vida... e NEVES, Erivaldo Fagundes. “Sampauleiros Tranficantes: Comércio de escravos
do Sertão para o oeste cafeeiro Paulista”. In: Afro-Ásia, n. 24, p. 97-128, 2000.
112
Ver: Decreto nº 1.695, de 15 de Setembro de 1869.
64
comércio de cativos, como fez o Capitão e comerciante Ursino de Sousa Meira que vendeu
“[...] vários escravos d’este Municipio, para fóra da Província” por meio de procuração
particular “[...] para insertar-se do pagamento de imposto de exportação e multa de
infracção”.113
Algumas pesquisas sobre a população escrava no interior da Bahia, no século XIX,
também revelam a utilização da reprodução natural como meio de assegurar a posse escrava
nas propriedades interioranas e, consequentemente, o maior número de cativos brasileiros, por
outro lado, apontam a estabilidade das famílias escravas e a importância dos laços de família
para a vida escrava. Estes trabalhos têm corroborado com a análise social da escravidão,
assim como para o desenvolvimento dessa pesquisa.
Em seu estudo sobre a escravidão e liberdade em Rio de Contas, no século XIX, a
pesquisadora Kátia Lorena Novais Almeida revela que o padrão da demografia escrava na
região, para a primeira metade desse século, era de 70% de cativos nascidos no Brasil. Ao
calcular a razão de masculinidade e os preços, a autora aponta que o escravo do gênero
masculino, na faixa etária de treze a quarenta e cinco anos de idade, era mais valorizado em
comparação com o valor da escrava na mesma condição. Com isso, os sertanejos foram
direcionados a adquirir cativos do gênero feminino, o que fez elevar a quantidade de escravas
em suas propriedades, influenciando o “processo de crioulização” no alto sertão. Para tanto,
utilizando o conceito de “crioulização demográfica, isto é, ‘o crescimento da população
crioula (crioulo aqui entendido como indivíduo negro de ascendência africana nascido no
Brasil)’” explorado por Luís Nicolau Parés. Almeida analisa a taxa geral de fecundidade ou a
razão de criança/mulher e demonstra que, embora em “proporções consideradas baixas”, a
taxa de sobrevivência da população cativa facultou a “reprodução natural da mão de obra
escrava, o que se confirma no alto índice de escravos nascidos no Brasil”.114
A historiadora Maria de Fátima Novaes Pires, analisando a vida socioeconômica no
alto sertão da Bahia oitocentista, explica que o perfil da população cativa na região está
relacionado às dificuldades econômicas que a região enfrentou no curso do Oitocentos e
“aliadas à desconfiança quanto ao fim do cativeiro”. Conforme explicita:
Em pesquisa recente sobre a família negra em Caetité, nos anos 1830 a 1860, Ivanice
Teixeira Silva Ortiz, ao aferir os registros de batismos, constata que a relação do número de
escravas com o de crianças encontrados na documentação paroquial viabilizou o crescimento
vegetativo da população cativa na região. A autora afirma que “a reprodução natural foi uma
realidade em Caetité”, no entanto, explica que não “havia um ‘criatório’, mas sim
possibilidades reais de formação de casais estáveis e legítimos”.116
Outro trabalho recente que analisa a vida social do escravo no século XIX, porém,
numa região portuária, é o de Victor Santos Gonçalves. Ao examinar o perfil populacional de
escravos e forros, em São Jorge dos Ilhéus, mediante o cruzamento das cartas de alforrias,
inventários post mortem e do censo de 1872, o autor demonstra que o equilíbrio entre os
gêneros existente na primeira metade do Oitocentos, também prevaleceu no período posterior.
Dos 1.051 escravos matriculados em Ilhéus, em 1872, 47% corresponde ao gênero masculino
e 53% ao feminino, o que “[...] possibilitou a formação de famílias cativas estáveis, fossem
estas matrifocais ou nucleares”. Segundo Gonçalves:
Esses dados tendem a indicar que a reprodução natural foi uma alternativa
utilizada por alguns senhores de Ilhéus, especialmente os dos grandes
plantéis. E que a formação de famílias escravas com relativa estabilidade
talvez tenha sido viável, tendo em vista que os senhores permitiam que seus
escravos constituíssem uniões consensuais fora de suas unidades, mesmo
que uniões entre cativos de diferentes senhores implicassem residências
distintas.117
crescimento da população escrava no sertão, por outro lado demonstra que a decisão de
constituir famílias e ter filhos, ou não, está relacionada com as escolhas pessoais dos escravos,
pois a família para eles “significou [...] o locus onde homens e mulheres escravizados
puderam elaborar formas de resistências cotidianas e lutar pelas suas sobrevivências”, caso
contrário “[...] seriam anuladas as ações conscientes de tantos homens e mulheres que, sob a
escravidão, lutaram pela liberdade e sobrevivência pessoal e familiar”.119
Alguns trabalhos sobre reprodução natural e estabilidade familiar escrava em outras
regiões do Brasil com o perfil econômico semelhante ao do alto sertão, isso é, com uma
economia voltada para o mercado interno, também têm revelado a importância do vínculo
familiar nos arranjos cotidianos sob o cativeiro.120 Entre esses, o historiador Tarcísio
Rodrigues Botelho, ao analisar a família escrava nas fazendas pecuárias do norte de Minas
Gerais, no século XIX, explica que a reprodução natural foi necessária para a manutenção e
para a ampliação da posse escrava na medida em que favorecia a estabilidade familiar
escrava, ou seja, os laços familiares mantidos por gerações dentro de uma mesma propriedade
e, por meio destes, esses sujeitos puderam preservar seus valores, heranças culturais e sociais
e lutarem por melhores condições de vida.121 Conforme explicita:
A nosso ver, fica claro que, do ponto de vista senhorial, a reprodução natural
é um componente que entra positivamente em seus cálculos econômicos.
Muitos adotam como estratégia única de manutenção e ampliação do plantel.
Outros, mesmo lançando mão de mercado, não desprezaram sua
importância. A reprodução natural parece significar também a manutenção
da família escrava. Constantemente preservada, vemos casos de gerações
que se sucedem dentro de um mesmo plantel, trazendo à vida dos cativos
nela integrados um grande fator de estabilidade.122
Desse modo, a análise dos inventários permitiu conhecer alguns aspectos da população
escrava de Minas do Rio de Contas, no século XIX. Os dados computados revelaram
predomínio de cativos brasileiros nas propriedades sertanejas, sendo que a maioria era natural
do alto sertão, e a formação de laços de famílias estáveis, o que justifica a naturalidade desses
sujeitos. Se por um lado, as “crias de casa” foram fundamentais para a manutenção de
119
Santana. “Família e Microeconomia...”, p. 48-9.
120
Ver: Teixeira. “A não infância...”; ______. Reprodução e famílias escravas em Mariana, 1850-1888.
(Dissertação de Mestrado, Universidade de São Paulo, 2001); VASCONCELLOS, Marcia Cristina Roma de.
“Famílias escravas em Angra dos Reis, 1801-1888”. (Tese de Doutorado, Universidade de São Paulo, 2006);
BOTELHO, Tarcísio Rodrigues. “Famílias e escravarias: demografia e família escrava no norte de Minas Gerais
no século XIX”. (Dissertação de Mestrado, Universidade de São Paulo, 1994); MOTTA, Flávio José e
VALENTIM, Agnaldo. “A estabilidade das famílias em um plantel de escravos de e Apiaí-SP”. In: Afro-Ásia,
n.27. 2002, p. 161-192; dentre outros.
121
Botelho. “Famílias e escravarias...” p. 84-170.
122
Ibid, p. 122.
67
123
APMRC. Seção Judiciária. Série Inventários. ID: Constancia Joaquina da Silva Dourado. 1864-1864. Cx 87 /
Est 03 / Prat 03 / Mç 171 / Doc 1186/ auto com 197 folhas, fls. 11-v e 12 do documento anexo, grifos meus.
68
Quadro 01: Escravos pertencentes a Constancia Joaquina das Neves Dourado, Sítio do
Bebedouro, Morro do Fogo – 1864.124
124
Ibid.
69
125
Nos últimos anos vários pesquisadores têm se dedicado ao estudo da mestiçagem no Brasil, cujo tema tem
ganhado destaque nos centros acadêmicos, suscitando novos problemas e reinterpretações de problemas já
apresentados na historiografia brasileira. Vários historiadores debruçaram-se sobre novas fontes, abordagens e
temáticas como racialização, cidadania, identidade étnica, cor e classificação social, para tentar compreender
questões bastante pertinentes na história do “negro” no Brasil, principalmente, quando analisada com base no
processo de formação das identidades raciais negras no país. Essas pesquisas têm demonstrado que a construção
das identidades raciais negras “não se fez como contrapartida direta da violência intrínseca ao processo de
diáspora africana provocado pelo tráfico atlântico de escravos”, e sim, “como fruto mais direto do surgimento do
racismo moderno e dos processos de racialização dele decorrentes” (MATTOS. Hebe Maria. “Prefácio”. In:
GRINBERG, Keila. O fiador dos brasileiros: cidadania, escravidão e direito civil no tempo de Antônio Pereira
Rebouças. Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, 2002, p. 12). Assim, tem sido difundido que as categorias
classificatórias expressas na cor são uma construção histórica, logo, podem ser modificadas no tempo e no
espaço e serem compreendidas como lugar social. Ver: MATTOS, Hebe Maria. Das Cores do Silencio: O
significado da liberdade no sudeste escravista – Brasil, século XIX. Campinas – SP: Editora da UNICAMP, 2013
[1995]; _____. Escravidão e Cidadania no Brasil Monárquico. Rio de Janeiro: Zahar, 2000; REIS, João José.
“Cor, Classe, Ocupação etc: o perfil social (às vezes pessoal) dos rebeldes baianos, 1823-33”. In: REIS, João
José e AZEVEDO, Elciene (org.). Escravidão e suas sombras. Salvador: EDUFBA, 2012; ______. “De olho no
canto: trabalho de rua na Bahia na véspera da abolição”. In: Afro-Ásia, n.24, 2000, p. 199-242; DANTAS,
Carolina Vianna. O Brasil café com leite: Mestiçagem e Identidade Nacional. Rio de Janeiro: Casa Rui Barbosa,
2010; LIBBY, Douglas Cole. “A Empiria e as Cores: Representações Identitárias nas Minas Gerais dos séculos
70
XVIII e XIX”. In: PAIVA, Eduardo França; IVO, Isnara Pereira e MARTINS, Ilton Cesar (Orgs.). Escravidão,
mestiçagem, populações e identidades culturais. São Paulo: Annablume, 2010; ALBUQUERQUE, Wlamyra
Ribeiro de. O jogo da dissimulação: Abolição e cidadania negra no Brasil. São Paulo: Cia das. Letras, 2009;
GUEDES, Roberto. Egressos do Cativeiro – Trabalho, família, aliança e mobilidade social (Porto Feliz, São
Paulo, c.1798 - c.1850). Rio de Janeiro: Mauad X: FAPERJ, 2008; LARA, Silvia Hunold. Fragmentos
Setecentistas: Escravidão, cultura e poder na América Portuguesa. São Paulo: Cia das Letras, 2007; VIANA,
Larissa Moreira. O Idioma da Mestiçagem – As Irmandades de Pardos nas Américas Portuguesas. Campinas –
SP: Ed. UNICAMP, 2007; SANTOS, Jocelio Teles. “De pardos disfarçados a brancos pouco claros:
Classificações raciais nos Brasil dos séculos XVIII-XIX”. In: Afro-Ásia, n.32, 2005, p 115-137; Grinberg. O
fiador dos...; SPITZER, Leo. Vida de entremeio: assimilação e marginalização na Áustria, no Brasil e na África
Ocidental, 1780 -1945. Rio de Janeiro: Ed. UERJ, 2001; GRAHAM, Richard. “Cor e cidadania no Brasil
escravista”. In: Revista Maracanan, ano 1, nº 1, 1999/2000; entre outros.
126
Mattos. Escravidão e Cidadania..., p. 16-18.
71
As tabelas 05 e 06, a seguir, revelam que a categoria cor foi bastante utilizada pelas
autoridades locais para classificar ou, quiçá, qualificar o escravo do sertão. Foram poucos os
casos em que houve a omissão da cor desses sujeitos, tanto nos inventários quanto nos
registros eclesiásticos. Normalmente, quando não havia a classificação da cor nos processos
de inventários era porque se tratava da declaração de um escravo que foi doado em causa
dote, ou seja, que não estava presente no momento da abertura do mesmo e foi avaliado com
os demais bens doados. Situação que diferencia dos estudos de Hebe Mattos, sobre “a cor
inexistente” no antigo Sudeste escravista, em meados do século XIX. A autora analisa
inventários, testamentos, escrituras públicas e processos criminais e civis e constata o sumiço
da cor dos sujeitos, em especial a dos “homens de cor” e sugere que “[...] quando a cor era
mencionada por obrigatoriedade (como no caso dos censos e, depois, dos registros civis), isso
ainda se fazia majoritariamente como referência à condição cativa”.127
Acredito que o sumiço da cor nas fontes tem a ver com a conjuntura socioeconômica
do local e com quem as produziram. Em relação à classificação, ou não, da cor nos assentos
de batismo cabem algumas considerações. Primeiro, em 1851, o governo imperial institui o
registro civil, assim, transferiu das paróquias para as instituições civis a obrigação de registrar
o nascimento, casamento e óbito, fato que, possivelmente, para algumas regiões do país, pode
ter influenciado no desaparecimento/omissão da cor nesses registros.128 Segundo, pode-se
pensar nas condições adversas em que se elaboravam os registros paroquiais: a) o padre
realizava o sacramento e depois o anotava em uma folha de papel avulsa, nesse processo,
dependendo da quantidade de batismos realizados, não seria difícil o religioso esquecer-se de
registrar alguma informação, recebida ou identificada, e copiar o dado já registrado, como a
cor da mãe para os filhos; b) em muitos casos (na grande maioria) não era o pároco que havia
realizado o sacramento, quem o registrava nos livros, pois nas igrejas existiam o coadjutor,
eram os coroinhas ou outras pessoas responsáveis para elaborar o assento, pois, na maioria
das atas, registrava-se no final: “Do que, para constar, mandei fazer este assento, em que me
assigno”.129 Entretanto, vale destacar que “era o registro de batismo que oficialmente definia
se cada criança nascida no Brasil era livre, e cidadã brasileira, ou escrava”.130
127
Mattos. Das cores do..., p. 106. Para maiores detalhes ver o capítulo 5.
128
MATTOS, Hebe Maria. “Raça e cidadania no crepúsculo da modernidade escravista no Brasil”. In:
GRINBERG, Keila e SALLES, Ricardo (org.). O Brasil Imperial, volume III: 1870-1889. Rio de Janeiro:
Civilização Brasileira, 2009, p. 20.
129
Acervo da Paróquia do Santíssimo Sacramento de Rio de Contas. Diocese de Livramento de Nossa Senhora –
BA. Livros de Registros de batismo, casamento e óbitos do século XIX.
130
Mattos. “Raça e cidadania...”, p. 21.
72
Aos quatro de Maio de mil oito centos e cincoenta e seis annos na Fazenda
do Umbuzeiro em caza de Rodrigo de Sousa Meira, continente do Arraial da
Villa Velha Filial desta Matriz do Santissimo Sacramento da Villa e Minas
do Rio de Contas baptisou e poz os Sanctos Oleos o Padre Lucrecio Dantas
Barbosa, a Bento parvulo cabra, nascido a vinte e nove de Novembro do
anno findo, filho legitimo de Francisco, e Francisca criolos, escravos de
Rodrigo de Sousa Meira. Forão Padrinhos Luduvico Vieira e sua mulher
Maria Jose, todos moradores do mesmo continente, e Parochianos da
referida Matriz. Do que para constar mandei fazer este lançamento em que
me assigno. O Jeronymo Dantas Barbosa 131
No assento acima a categoria cor é utilizada, não apenas para Bento, que é identificado
como cabra, mas também para seus pais, Francisco e Francisca, ambos identificados como
crioulos. Percebe-se que a cor utilizada é diferente para pais e filho, o que nos permite pensar
em categorias raciais, ou seja, no porquê da diferença de classificação da cor, já que Bento é
filho legítimo dos crioulos Francisco e Francisca e é um párvulo de apenas cinco meses, idade
em que os pigmentos da pele dos indivíduos não estão visivelmente definidos, podendo haver
dúvida em relação à sua cor.
Essa possibilidade de dúvida é abordada por Jocélio Teles dos Santos nos seus estudos
sobre classificações raciais no Brasil dos séculos XVIII – XIX. Santos, analisa os registros de
crianças expostas na Santa Casa da Misericórdia e constata que não era fácil registar a cor
daquelas crianças “[...] mesmo havendo um limitado repertório de cores, havia a possibilidade
da dúvida classificatória”. Também nos chama a atenção para perceber que essa imprecisão
também poderia existir quando a cor da criança não se enquadrava em “[...] cores socialmente
construídas com base em polaridade – preto ou branco –”, entretanto afirma que havia uma
131
Acervo da Paróquia do Santíssimo Sacramento de Rio de Contas. Diocese de Livramento de Nossa Senhora –
BA. Livro de batizados realizados na Matriz desta Freguesia do Santíssimo Sacramento da Villa de Nossa
Senhora do Livramento do Rio de Contas - 1856 a 1863, fl. 6. Grifos meus
73
“terminologia oficial no Brasil colonial”, que nos permite pensar na representação identitária
de escravos e libertos e na construção social da cor desses sujeitos.132
Silvia Hunold Lara, analisando a multidão de pretos e mulatos na América portuguesa
setecentista, corrobora com essa assertiva e ressalta o significado da cor associado à condição
social dos sujeitos e que, embora houvesse incertezas, a cor empregada aos indivíduos é
bastante reveladora. Conforme a autora:
Elas indicam que, geralmente, a cor da pele estava associada à condição que
separava a liberdade da escravidão. (...) ela era lida, no Reino e na América
portuguesa, como uma dentre as muitas marcas simbólicas de distinção
social. Incorporada à linguagem que trazia visualmente as hierarquias
sociais, a cor branca podia funcionar como sinal de distinção e liberdade,
enquanto a tez mais escura indicava uma associação direta ou indireta com a
escravidão. Ainda que não se pudesse afirmar que todos os negros, pardos e
mulatos fossem ou tivessem sido escravos, a cor era um importante elemento
de identificação e classificação social.133
132
Santos. “De pardos disfarçados...”, p. 122-125.
133
Lara, “Fragmentos setecentista”, p. 143-44.
134
Idem, p. 119.
135
Ver nota 62.
136
Ver: Reis. “De olho no....” e Libby. “A Empiria e....”.
74
“[...] entre pardo e mulato, por exemplo, ou entre fula e cabra. Muitas vezes a diferença estava
no cabelo”. Sobretudo, ressalta a categoria cor entendida com “classificação racial é em
grande medida situacional, depende do contexto, da posição social de quem classifica e de
quem é classificado”. Sobre o significado da cor, Reis atesta que o termo crioulo desapareceu
do livro de matrícula, no entanto, significava o “negro nascido no Brasil, para diferenciá-lo do
africano”. O termo preto era utilizado para “descrever o negro brasileiro ou africano. O que
acredito ser mais um indício de que a sociedade se adaptava para conviver com apenas um
tipo de negro: aquele nascido no Brasil”. O Fula era “o negro cuja pele não é de um preto
denso, seguro, mas característico dos africanos da nação fulani”. O cabra, “entendia-se
alguém com a pele entre parda e preta; caboclo, alguém com as características mais próximas
do indígena brasileiro”.137
Os estudos de Douglas Libby, sobre as representações identitárias nas Minas Gerais
dos séculos XVIII e XIX, não se distanciam dos significados das cores sugeridos por Reis, ao
que parece ser um complemento, mesmo se tratando de período, região e tipologia de fontes
diferentes. Segundo Libby, a terminologia crioula “constituía, sobretudo, uma referência à
ascendência africana/escrava e, ao que tudo indica, perpassou várias gerações ao longo dos
períodos Sete e Oitocentistas”; a cabra também poderia se referir à ascendência africana,
desde que fosse filho de “pais de origens mistas: um pardo (ou, talvez mais precisamente, a
um mulato) e o outro crioulo ou africano”; a parda “poderia abrigar múltiplas tonalidades de
pele, mas sempre se referia a algum grau de miscigenação (e, portanto, quase sempre a algum
vínculo ancestral ao cativeiro)”.138
Os dados apresentados na tabela 05 evidenciam que apenas 7,8% dos escravos
inventariados não tiveram a classificação de cor explicitada no documento, por outro lado,
apontam o predomínio do termo crioulo, empregado na população escrava no alto sertão da
Bahia oitocentista, seguidos de pardo, cabra e preto. Dos 4.473 cativos brasileiros
inventariados, 1.579 foram classificados de crioulos, o equivalente a 35,3%, 974 identificados
de pardos (21,8%), 909 agrupados em cabras e 524 em pretos, os quais corresponderam a
20,3% e 11,7%, respectivamente.
137
Reis. “De olho no....”, p. 233-234.
138
Libby. “A empiria e....”, p. 48-50.
75
Tabela 05: classificação da cor dos escravos inventariados – Minas do Rio de Contas, 1840-1880.
Década / Gênero
Cor 1840 1850 1860 1870 1880
Total
M F M F M F M F M F
Crioulo1 268 227 281 295 167 164 79 88 04 02 1579
Cabra 139 129 161 142 98 130 45 50 08 07 909
Pardo 104 121 67 100 36 60 163 162 70 91 974
Preto - - - - - - 128 130 128 138 524
Negra - 02 - - - - - - - - 02
Mulato 12 11 20 21 15 17 - 01 - - 97
Mestiço 03 04 01 02 - - - - - - 10
Fula - - - - 01 - - - - - 01
S/I*2 36 38 61 64 39 22 50 39 08 13 377
Total 562 532 591 624 356 393 465 470 218 251 4473
* Sem Informação / M – Masculino / F – Feminino
1 – Foram acrescentados 04 cativos crioulos, arrolados na década de 1840, sem identificação de gênero.
2 – Foram acrescentados 07 cativos sem classificação de cor e gênero, arrolados na década de 1840.
Nota-se que a cor preta foi adicionada ao rol de cores dos escravos inventariados a
partir da década de 1870, especificamente a partir do ano de 1873, e se manteve em números
constates, ou seja, para a década de 1870 foram identificados 258 sujeitos de cor preta, 128 do
gênero masculino e 130 do feminino, na década de 1880, praticamente não houve alteração, se
comparada com a anterior, pois foram classificados 128 escravos e 138 escravas, o que
corresponde a 266 cativos de cor preta. Ao passo que as autoridades sertanejas começaram a
empregar a cor preta nos escravos inventariados, houve uma diminuição significativa no uso
dos termos crioulo e cabra. Teria a cor preta substituída os termos crioulo e cabra na
classificação da cor desses sujeitos, em Minas do Rio de Contas, nas últimas décadas da
escravidão? Qual o porquê e o significado dessa mudança na sociedade da época?
Em alguns casos foi possível identificar, mediante o cruzamento com o batismo, que a
classificação de preto foi utilizada em substituição aos termos crioulo e cabra. Algumas
crianças foram classificadas de crioulas e cabras nos registros paroquiais e, posteriormente,
nos inventários foram identificadas de pretas. A terminologia preta também foi usada em
substituição do termo africano. Por exemplo, Joaquim, africano, casado com Carlota, cabra,
escravos pertencentes ao capitão Antonio Calisto de Oliveira, morador na Fazenda dos
Lenções, no lugar denominado Barra do mulato. O casal teve, ao menos, três filhos legítimos:
Benedicto, Severa e Appollinaria, todos cabras, escravos pertencentes ao mesmo senhor e
76
batizados logo no primeiro mês de vida, nos anos de 1857, 1860 e 1862, respectivamente.139
Tempos depois, o capitão Calisto falece e é feito o inventário de seu patrimônio, em 1887. Na
declaração dos semoventes, Joaquim e Carlota foram classificados de pretos, o que pode ter
sido utilizada para suprimir a naturalidade africana de Joaquim e a ascendência africana de
sua esposa Carlota, já que o termo cabra fazia referência aos descendentes diretos dos
africanos, conforme sugere Douglas Libby (supracitado). As filhas, Severa e Apollinaria, não
foram arroladas entre os bens do Capitão, podem ter sido vendidas no tráfico interno ou terem
falecido. Benedicto continuou trabalhando ao lado dos pais, foi matriculado em 1872, na
época com vinte e sete anos de idade e de cor parda, mas no momento da avaliação dos bens
se encontrava fugido.140
Nos casos em que houve a mudança de cor dos genitores, normalmente a dos filhos
também era alterada. Em outros, percebe-se que a cor preta foi utilizada pelos avaliadores de
forma genérica, como sinônimo da condição de ser escravo. Por exemplo, no inventário da
senhora Custodia de Souza Spínola, moradora na fazenda Alagoa, aberto em 1881, o neto
inventariante, o tenente Gaudêncio de Vasconcelos Mendonça, ao descrever os semoventes,
todos os escravos foram classificados de cor preta pelos avaliadores, inclusive os cativos que
estavam em poder de seu tio Faustino Fogaça de Souza, que foram acrescentados nas
declarações, entre eles estavam Pacifico e Julia. Faustino é taxativo ao responder a declaração
do sobrinho: “quanto aos escravos, Raymundo, prêto, Pacifico, pardo, e não prêto como foi
declarado, e Josepha, prêta, foram na verdade vendidos [...] a escrava Julia foi doada por
escritura particular” ao seu irmão Thimotheo de Souza Spínola Fogaça. No documento de
escritura, elaborado em 1865 e anexado ao processo, a inventariada declara Julia de cor
cabra de dose anos de idade, adquirida por herança do filho Domingos Antonio de Souza.141
O que significa que os escravos não estavam presentes no momento da avaliação e, quiçá, há
bom tempo entre os cativos da senhora Custodia. O cruzamento dos inventários da senhora
Spínola com o do filho Domingos Antonio, aberto no ano de 1853, corrobora com essa
assertiva. Domingos possuía dezoito escravos, dentre esses, os cativos que ficaram de herança
para a mãe: Patricio, Raymunda, Josepha e Florencia, crioulos; Julia, cabra e Pacifico,
139
Acervo da Paróquia do Santíssimo Sacramento de Rio de Contas. Diocese de Livramento de Nossa Senhora –
BA. Livro de registros de batizados realizados nas Capelas e filiais da Matriz desta Freguesia do Santíssimo
Sacramento da Vila de Nossa Senhora do Livramento do Rio de Contas. 1856 a 1863. fls. 67-v, 134 e 187.
140
APMRC. Seção Judiciária. Série Inventários. ID: Antonio Calisto de Oliveira (capitão). 1887-1888. Cx 103 /
Est 03 / Prat 06 / Mç 199 / Doc 1476 / auto com 89 folhas, fls. 8-10 e 20-v.
141
APMRC. Seção Judiciária. Série Inventários. ID: Custodia de Souza Spínola. 1881-1881. Cx 99 / Est 03 / Prat
05 / Mç 190 / Doc 1406 / auto com 50 folhas, fls. 10 -11, 17 e 35, grifos meus.
77
mulato.142 Nota-se que o avaliador dos bens de Domingos utilizou categorias de cor variadas
para classificar a cor desses segmentos.
Outro dado a ser observado na tabela 05 acima é que, com o aparecimento da cor preta
na classificação dos escravos inventariados, a quantidade de pardos aumenta, visto que vinha
de uma queda significativa na década de 1860. Isso faculta pensar que os termos crioulo e
cabra não mais abarcariam os descendentes de africanos de primeira e segunda geração, esses
segmentos seriam classificados de pardos ou pretos.
Sobre esse aspecto, pode-se pensar no perfil da posse escrava em Minas do Rio de
Contas, no século XIX. Como já demonstrado, grande parte dos escravos inventariados eram
“crias de casa”, sujeitos que permaneceram com suas famílias por gerações, outros eram
naturais da freguesia e, a partir da década de 1870, os cativos oriundos do continente africano
quase não aparecem na documentação analisada, correspondendo a 1,6% dos escravos
inventariados nas duas últimas décadas (ver tabela 02). Isso sugere que o uso dos termos
cabra e, em especial, do crioulo como indicativo de escravos brasileiros não corresponderia
mais à realidade local da época.
Já os registos de batismos, incluindo aí seis assentos de crianças forras na pia batismal
e uma liberta, atestam que cabras e crioulos foram os mais classificados nessa fonte, pois
houve uma diferença de mais de 4% na classificação de cabra, comparada com a de crioulo.
Do total de 740 registros de batismo, 279 crianças foram identificadas como cabras,
correspondendo a 37,7%, 248 foram registradas como crioulas, o que corresponde a 33,5%,
181 como pardas, o equivalente a 24,5%, três crianças foram classificadas individualmente de
branca, mulata e tapuia (0,40%) e dois identificadas de mestiças, ou seja, em 0,3% do total. A
tabela 06 (a seguir) aponta a classificação da cor de escravos e libertos e corrobora com esta
assertiva.
O interessante em contrastar os dados dos inventários com os do batismo, entre outros
aspectos, é perceber a mudança de cor desses segmentos, na documentação eclesiástica houve
predomínio da classificação crioula, ao passo que nos registros eclesiásticos os cabras se
destacaram. Verissimo, escravo, pertencente a Antonio Querino da Silva Rego, filho natural
de Francisca, crioula, escrava pertencente ao mesmo senhor, foi identificado, em 1856, no
registro paroquial como crioulo, pouco mais de um ano após ter sido batizado foi classificado
142
APMRC. Seção Judiciária. Série Inventários. ID: Domingos Antonio de Souza. 1853-1853. Cx 81 / Est 03 /
Prat 02 / Mç 159 / Doc 993 / auto com 9 folhas, fls. 3v-4.
78
Cor Quantidade %
Cabra 279 37,7
Crioulo 248 33,5
Pardo 181 24,5
Mestiço 02 0,3
Mulato 01 0,1
Tapuia 01 0,1
Branco 01 0,1
Sem identificação 27 3,7
Total 740* 100
Fonte: Livros de registros de batizados do século XIX. Assentos dos batismos que foram feitos fora da Matriz do
Santíssimo Sacramento da Vila do Rio de Contas / 1838 – 1859 e 1856 – 1863. Acervo da Paróquia do
Santíssimo Sacramento de Rio de Contas. Diocese de Livramento de Nossa Senhora – BA.
*Deste total foram excluídos 10 assentos de africanos registrados no ano de 1849.
143
Acervo da Paróquia do Santíssimo Sacramento de Rio de Contas. Diocese de Livramento de Nossa Senhora –
BA. Livro de registros de batizados realizados nas Capelas e filiais da Matriz desta Freguesia do Santíssimo
Sacramento da Vila de Nossa Senhora do Livramento do Rio de Contas. 1856 a 1863. fl. 45 e APMRC. Seção
Judiciária. Série Inventários. ID: Antonio Quirino da Silva Rego. 1858-1858. Cx 84 / Est 03 / Prat 02 / Mç 165 /
Doc 1092 / auto com 14 folhas, fl s/n, grifos meus.
144
Ibid, fls 50, 169 e 199-v e Ibid, ID: Joaquim Nunes Dourado. 1870-1870. Cx 90 / Est 03 / Prat 03 / Mç 176 /
Doc 1264/ auto com 31 folhas, fls. 7 e 11, grifos meus.
145
Acervo da Paróquia do Santíssimo Sacramento de Rio de Contas. Diocese de Livramento de Nossa Senhora –
BA. Livro de registros de batizados realizados nas Capelas e filiais da Matriz desta Freguesia do Santíssimo
Sacramento da Vila de Nossa Senhora do Livramento do Rio de Contas. 1856 a 1863. fls.131-v, grifos meus.
146
APMRC. Seção Judiciária. Série Inventários. ID: Ana Zeferina de Castro Coelho. 1863-1874. Cx 87 / Est 03 /
Prat 03 / Mç 170 / Doc 1183 / auto com 23 folhas, fl 5, grifos meus.
79
poderia depender da fonte, de quem a produziu e da ocasião, bem como das relações sociais
tecidas pelos sujeitos. Se eram “conhecidos” das autoridades civis e eclesiásticas sertanejas,
por que houve variações nas classificações da cor desses segmentos, a depender da fonte?
A pesquisa de Roberto Guedes, sobre mudança de cor dos escravos de Porto Feliz, nas
primeiras décadas do século XIX, fornece pistas que contribuem para a discussão. Guedes
analisa as listas nominativas, mapas da população e o censo e constata que “nem sempre há
consonância entre os termos utilizados por autoridades”, o que o faculta pensar em dois
critérios utilizados por elas, ao registrar a cor dos cativos: “um critério pontual e outro
genérico”, ou seja, “as cores aludem, nos mapas, a uma coletividade abstrata, mas nas listas,
trata-se de uma observação pontual dirigida”.147 Mesmo tratando de diferentes tempos,
espaços e fontes, presumo que esses critérios poderiam ter sido aplicados pelas autoridades
sertanejas ao classificar a cor dos sujeitos. Como já demonstrado, em algumas ocasiões, o
escravo não estava presente no momento da avaliação dos bens e mesmo assim era realizada à
revelia, penso que nesses casos os avaliadores empregaram o “critério genérico”. Considero
que no assento de batismo o vigário utilizou-se do “critério pontual”, por se tratar de um
sacramento que para ser realizado necessitaria, no mínimo, do batizando e ao realizá-lo o
padre estaria frente-a-frente com o escravo.
Em suma, as questões levantadas aqui, permitem atentar para as variações do
significado das terminologias empregadas ao longo do tempo e do espaço, e assim
compreender que essas categorias de cor não se sustentaram sozinhas, que foram
representações constituídas e associadas às condições de vida de cada indivíduo e que esses
termos estavam associados ao estatuto jurídico de livre, escravo ou forro/liberto. Portanto, não
são classificações fixas, fincadas nos sujeitos, de modo que não permitem alterações. Pelo
contrário, as fontes indicam que as categorias de cor oscilaram de acordo com a conjuntura
socioeconômica e política, no momento em que se produzia o documento, das autoridades ao
classificar os sujeitos e, ainda, mediante as relações sociais tecidas cotidianamente pelos
“homens de cor” de forma vertical, fossem por meio dos nexos de sociabilidade com vizinhos,
amigos e, até mesmo, com pessoas livres que dividiam com eles as labutas diárias, ou por
meio de relações mais intimas entre “brancos” e “não brancos”.
147
Guedes. Egressos do Cativeiro..., p. 99.
80
O romancista Lindolfo Rocha, ao escrever sobre a vida social dos sertanejos, na região
da Chapada Diamantina, na Bahia, na segunda metade do século XIX, demonstra a
importância da família para a vida desses sujeitos e para a preservação dos costumes, os quais
foram vivenciados no ambiente familiar. Com muita sensibilidade e perspicácia, Rocha
aponta não apenas a importância da família, mas, sobretudo, os laços constituídos entre
indivíduos de diferentes estatutos jurídicos e sociais. Assim, ao ampliar o sentido do termo
família, ultrapassa os limites estabelecidos pela Igreja Católica, de união legítima,
possibilitando que se agreguem outros elementos da vida social dos sujeitos, como
cumplicidade, amizade, sociabilidade e solidariedade.
Vivências sociais como as apresentadas acima, em algumas ocasiões, foram
documentadas pelos párocos das Igrejas Católicas e, até mesmo, pelos padres das freguesias
espalhadas no município de Minas do Rio de Contas. Esses registros marcaram os eventos de
máxima relevância dos católicos, como o casamento, o batizado e o óbito.
Inicialmente, será útil tecer breves comentários sobre os registros eclesiásticos, que,
criados como instrumentos de controle e distinção da comunidade cristã católica, foram
regulamentados no Concílio de Trento (1545-1563), que encarregou a cúria de cada paróquia
a registrar em livros e atas (separados) os batismos e casamentos ali realizados. Em 1614, os
registros de óbitos também passaram a ser obrigação das paróquias que, oficialmente, ficaram
responsáveis pelos registros individuais do princípio ao fim (batismo, casamento e óbito) da
vida da população católica.149 Na ocasião, o Concílio de Trento estabeleceu normas para as
informações que deveriam conter nos registros eclesiásticos, as quais, em 1720, foram
reiteradas no Brasil por meio das Constituições Primeiras do Arcebispado da Bahia.
148
Rocha. Maria Dusá..., p. 39.
149
Cabe lembrar que, a prática de registrar os batismos, casamentos e óbitos não era novidade na Europa, pois,
algumas dioceses da Itália e da França já registravam esses sacramentos desde o final da Idade Média. Ver:
MARCILIO, Maria Luiza. “Os registros paroquiais e a História do Brasil”. Varia História, n. 31, 2004, pp. 13-
20.
81
Certamente, esse dia foi de alegria para os familiares e para o casal, principalmente,
para a noiva Cecilia Maria, visto o estado de viuvez que, na ocasião, se achava e a decisão de
experimentar novamente os votos do matrimônio. Observa-se, neste registro, que os nubentes
tinham o conhecimento de que, para se casarem, era necessário informar a decisão ao pároco e
providenciar os banhos do casamento, “antes de se celebrar o matrimônio de presente, para os
denunciar, o qual, antes que faça as denunciações, se informará se há entre os contraentes
algum impedimento”.151 Logo, solicitaram junto ao Vigário Geral e ao padre missionário
150
Acervo da Paróquia do Santíssimo Sacramento de Rio de Contas. Diocese de Livramento de Nossa Senhora –
BA. Livro de registro de casamento freguesia de Nossa Senhora do Livramento da Vila do Rio de Contas. 1873 –
1914, fl. 2v, grifos meus.
151
DA VIDE, D. Sebastião Monteiro. Constituições Primeiras do Arcebispado da Bahia. Estudo Introdutório e
edição de Bruno Feitler e Evergton Sales Souza. São Paulo: EdUSP, 2010, p. 118. Os banhos do casamento
referem-se aos proclamas. “O banho é o ato de anunciar o casamento, por três vezes, com o fim de ver se alguém
denuncia algum impedimento. A expressão comum é ‘correr os banhos’”. (LOTT, Mirian Moura. “Fontes
82
do Livramento do Arraial de Villa Velha / 1839 – 1861 e Livro de Óbitos da Matriz e suas filiais: N. S. Santana e
N.S. do Rosário e do Cemitério Paroquial / 1874 – 1915.
155
Acervo da Paróquia do SS. Sacramento de Rio de Contas. Diocese de Livramento de Nossa Senhora – BA.
Livro de registro de casamento. Freguesia de Nossa Senhora do Livramento da Vila do Rio de Contas. 1873 –
1914, fl. 42f. Livro de registro batismos da paróquia do Santíssimo Sacramento da cidade de Minas do Rio de
Contas – 1887 a 1905, fl. 4f.
156
O termo ingênuo corresponde às crianças que nasceram após a Lei 2.040 de 28 de setembro de 1871 (Lei do
Ventre Livre), a qual determinava no seu artigo 1º, §1 que os filhos das escravas que nascessem após 1871,
seriam considerados de condição livre, mas ficariam em “poder e sob a autoridade dos senhores de suas mães, os
quais terão obrigação de criá-los e tratá-los até a idade de oito anos completos. Chegando o filho da escrava a
esta idade, o senhor da mãe terá a opção, ou de receber do Estado a indenização de 600$000, ou de utilizar-se
dos serviços do menor até a idade de 21 anos completos”.
84
“Heliodoro”, preto, ingênuo, de um ano e quatro meses de idade, para receber os santos óleos
do batismo. Novamente, escolheu pessoas livres para estreitar suas relações de amizades e
sociabilidade e alargar os laços familiares, sendo padrinho do pequeno Heliodoro, Fernando
Jose de Sousa e madrinha, D. Etelina Albina de Sousa. (Ver histograma 04 abaixo)
Histograma 04: Laços familiares de Henrique Dias Coelho e Tiburcia Alves Coelho, escravos
pertencentes a Manoel Alves Coelho Sobrinho157
157
Acervo da Paróquia do SS. Sacramento de Rio de Contas. Diocese de Livramento de Nossa Senhora – BA.
Livro de registro de casamento. Freguesia de Nossa Senhora do Livramento da Vila do Rio de Contas. 1873 –
1914, fl. 42f. Livro de registro batismos da paróquia do Santíssimo Sacramento da cidade de Minas do Rio de
Contas – 1887 a 1905, fl. 4f.
85
158
No tópico seguinte, serão discutidos os estatutos jurídicos dos padrinhos e madrinhas de escravos e libertos
em Minas do Rio de Contas, no século XIX. A maioria dos compadres e comadres foram pessoas livres e muitos
deles eram pessoas que desfrutavam posições estratégicas na sociedade local, como funcionários do governo e da
justiça, padres e fazendeiros.
159
Brügger. Minas Patriarcal..., p. 120.
160
Infelizmente, não foi encontrado no Arquivo Municipal de Rio de Contas – AMRC o inventário de Manoel
Alves Coelho Sobrinho, por isso não se tem maiores informações sobre a sua posse escrava. Conquanto,
pesquisei os inventários da família Alves Coelho com monte mor acima de Rs. 5:000$000, e poucos foram os
escravos que, ainda sob o cativeiro, utilizam-se do sobrenome da família senhorial. No tópico seguinte, discuto
alguns desses inventários, sobretudo o do Comandante Superior Coronel Miguel Alves Coelho, bisavô do dito
Manoel Sobrinho. Com isso, foi possível identificar que vários membros dessa família senhorial, ocuparam
variados cargos públicos, como o de major, tenente, coronel, entre outros. O valor do monte mor encontrado nos
inventários, na sua maioria, foi acima de 10:000$000, portanto, tratava-se de uma família rica e de muito
prestígio na sociedade riocontense da época. Para maiores detalhes, ver o tópico 2.2 deste capítulo.
86
Com base nas trajetórias dos casais Rodrigo, escravo, pertencente a José de Souza
Soares, e Cecilia Maria de Jesus, livre, e de Henrique Dias Coelho e Tiburcia Alves Coelho,
escravos, pertencentes a Manoel Alves Coelho Sobrinho, entende-se a importância dos laços
familiares, consanguíneos e espirituais para a vida escrava, até mesmo como instrumento de
ampliação e coesão do grupo familiar.
A formação de laços familiares foi recorrente na vida dos escravos e libertos. O livro
de casamentos da freguesia de Nossa Senhora do Livramento da Vila do Rio de Contas
documentou vestígios da vida cotidiana desses segmentos a partir dos matrimônios. A
pesquisa realizada nos assentos deste livro revela que 61 casais formalizaram suas relações
afetivas entre o período de 1873 a 1888. Deste total, 16 foram registrados em 1887, ano que
apresenta o maior número de uniões envolvendo escravos e libertos. Para o ano de 1875, não
foi encontrado nenhum registro de casamento, o que não significa dizer que, nesse ano, não
existiram uniões desses segmentos, pois os laços de famílias não se formaram apenas por
meio da instituição religiosa católica, mas também mediante uniões consensuais.161
Os resultados encontrados no livro de casamento demonstraram a formação de
famílias constituídas por indivíduos com estatutos jurídicos diferentes, ou seja, uniões
formadas entre escravos, libertos e livres pobres. Das 61 uniões, 25 foram de cativos com
livres pobres (41,0%), 13 entre escravos, o que equivale a 21,3% dos matrimônios, 10 de
libertos e livres pobres, correspondendo a 16,4%, nove de escravos com libertos (14,8%) e
quatro entres libertos (6,5%). (Ver tabela 07, abaixo). Cabe ressaltar que foi possível
identificar a cor/etnia dos nubentes somente em 11 registros (oito africanos e três crioulos de
primeira geração) e da filiação em apenas três assentos, todos africanos (dois filhos legítimos
e um natural). Assim, o termo escravo pode-se referir ao africano, crioulo, cabra, pardo e/ou
preto.
161
Esse não é o número total de casamentos encontrados no presente trabalho. Optou-se por evidenciar os 61
matrimônios em virtude de terem sidos registrados no livro de casamento, possuírem mais informações sobre o
cotidiano da vida escrava, como, por exemplo, a ocupação e registrar uma quantidade expressiva de uniões
mistas, principalmente, entre escravos e livres pobres. O quantitativo total de relações legitimadas pela Igreja
Católica e identificadas nas atas de batismos e casamentos é de 309 uniões legítimas e 601 consensuais. No
decorrer do capítulo esses dados serão discutidos.
87
Casamentos Quantidade %
Escravos com livres 25 41,0
Entre escravos do mesmo senhor 07 11,5
Entre escravos de senhores diferentes 06 9,8
Libertos com livres 10 16,4
Escravos com libertos 9 14,8
Entre Libertos 04 6,5
Total 61 100 %
Fonte: Livro de registros de casamentos da freguesia de Nossa Senhora do Livramento da Vila
do Rio de Contas. 1873 a 1914. Acervo da Paróquia do Santíssimo Sacramento de Rio de
Contas. Diocese de Livramento de Nossa Senhora – BA
ocupação, após a descoberta de diamantes em 1844, mudou o seu antigo panorama de “[...]
pouco fascínio sobre indivíduos de outras regiões [...] [e] não demorou muito para que aquela
população, sedenta por fabulosas riquezas, colonizasse as múltiplas serras que circundam a
Chapada”.163 Entretanto, Martins salienta:
As uniões entre escravos e livres pobres (41,0%) demonstram que, decerto, as relações
afetivas tecidas pelos escravos extrapolaram o convívio com a sua família e os companheiros
de cativeiro. Suas vivências estenderam-se aos livres pobres, numa relação de reciprocidade,
amizade, confiança, afetividade, sem descartar, é claro, as possíveis inimizades e os
momentos de tensões. Se por um lado, esses laços familiares proporcionaram às vidas desses
segmentos um viver na “fronteira” entre o cativeiro e a liberdade, por outro, havia a
possibilidade de conquistar espaços de autonomia, de mobilidade espacial e, quiçá, a compra
da alforria. Consoante as pesquisas de Kátia Lorena N. Almeida sobre manumissões em Rio
de Contas, no século XIX:
163
Martins. “‘Vinha na fé...’”, p. 21.
164
Ibid, p. 29.
165
Almeida. Alforrias em Rio..., p. 148.
89
Para o século XIX, na Bahia, a pesquisa de Isabel Cristina Reis, sobre família negra e
legitimidade, revela baixos índices de casamentos entre a população negra em geral. A autora,
ressalta que houve uma “forte tendência endogâmica” entre os casais que se uniram em
matrimônio na Freguesia da Sé, os quais preferiram companheiros(as) do mesmo grupo, isto
é, “as uniões matrimoniais foram realizadas sobretudo entre nubentes da mesma origem, cor e
estatuto jurídico”.168
Os estudos de Robert W. Slenes sobre escravidão e famílias escravas em Campinas, no
século XIX, demonstraram que nas grandes e médias propriedades os cativos se casavam
entre si, já nas pequenas, prevaleciam as uniões consensuais. Slenes analisa os padrões de
casamento e a estabilidade familiar relacionando-os com o tamanho da posse escrava e a
razão de masculinidade/feminilidade e demonstra, por meio do cruzamento da lista de
matrícula de 1872 com os registros eclesiásticos, que “os senhores de Campinas praticamente
proibiam o casamento formal entre escravos de donos diferentes ou entre cativos e pessoas
livres”.169 Consoante o autor,
166
Ver: SAMARA, Eni de Mesquita. “A família negra no Brasil: escravos e libertos”. In: VI Encontro Nacional
de Estudos Populacionais, Anais, Olinda: ABEP, 1988; SLENES, Robert W. “Escravidão e família: padrões de
casamento e estabilidade familiar numa comunidade escrava. Campinas, século XIX”. In: Estudos Econômicos,
nº 17(2), 1987; ______. Na Senzala uma...; COSTA, Iraci Del Nero, SLENES, Robert W. e STUART, B.
Schwartz. “Família escrava em Lorena (1801) ”. In: LUNA, Francisco Vidal; COSTA, Iraci del Nero da. &
KLEIN, Herbert S. (Orgs.). Escravismo em São Paulo e Minas Gerais. São Paulo: Edusp, 2009; Reis. “A família
negra...”; Nogueira. “‘Viver por si’...”; dentre outros.
167
Nogueira. “‘Viver por si’...”, p. 112.
168
Reis. “A família negra...”, p. 108-109.
169
Slenes. Na Senzala uma..., p. 83.
90
[...] a escolha do cônjuge era circunscrita, em grande parte, pelo limite legal
do plantel. De fato, com exceção de algumas poucas pessoas que eram
casadas com libertos, todos os escravos casados na amostra tinham cônjuges
que pertenciam ao mesmo senhor. Os assentos de casamento de escravos nos
arquivos da Igreja confirmam este quadro; era raro em Campinas um escravo
se casar com uma mulher de outro plantel, não só nos anos 1870, mas
durante todo o século XIX. [...], o índice de casamento nos plantéis pequenos
era muito baixo entre ambos os sexos; nestes casos, a dificuldade de se casar
pela Igreja com uma pessoa de outro dono tornava a escolha de um cônjuge
extremamente limitada.170
Em uma análise mais atenta desses registros de casamentos foi possível identificar que
das 122 pessoas envolvidas no matrimônio, 60 eram escravas (38 homens e 22 mulheres), 35
livres pobres (08 homens e 27 mulheres) e 27 libertas (15 homens e 12 mulheres). Desse
modo, ao examinar a formação dos pares por estatuto jurídico e sexo, os dados demonstram
um número maior de homens cativos casando em relação às mulheres cativas, assim como os
libertos casaram-se mais do que as libertas. Nesse sentido, a pesquisa revela uma quantidade
significativa de mulheres livres pobres unindo-se em matrimônio, dessas 27 mulheres, 20
casaram-se com escravos e sete com libertos, conforme evidencia a tabela 08.
Tabela 08: formação dos casais por estatuto jurídico e sexo – Minas do Rio de Contas,
1873-1888
Uniões Matrimoniais
Estatuto Jurídico Social HOMENS
Total
/ Sexo ESCRAVOS LIBERTOS LIVRES
MULHERES
ESCRAVAS 13 04 05 22
LIBERTAS 05 04 03 12
LIVRES 20 07 - 27
Total 38 15 08 122
Fonte: Livro de registros de casamentos da freguesia de Nossa Senhora do Livramento da Vila do Rio
de Contas. 1873 a 1914. Acervo da Paróquia do Santíssimo Sacramento de Rio de Contas. Diocese de
Livramento de Nossa Senhora – BA
Por outro lado, a tabela 08 atesta a tênue participação das mulheres cativas nos
matrimônios: 13 casamentos com escravos, cinco, com livres e quatro, com libertos. Mas, por
que as mulheres cativas tiveram pouca participação nos casamentos, principalmente, nas
uniões com livres? Será que havia resistência dos senhores de Minas do Rio de Contas
170
Slenes. “Escravidão e família...” p.2120-21, grifos do autor.
91
oitocentista, para autorizar as uniões dessas escravas com livres? Ou houve alguma
interferência da conjuntura socioeconômica da época em sua vida familiar?
Considerando as mudanças jurídicas e políticas da escravidão brasileira e o contexto
emancipacionista da segunda metade do século XIX, a exemplo da promulgação da Lei do
Ventre Livre e da interrupção do tráfico transatlântico de escravos (1850), acredito que não
seria exagero pensar que a emergência do tráfico interprovincial de cativos pode ter
influenciado a vida conjugal desses sujeitos.
Ao estudar o comércio de escravos em Rio de Contas e Caetité, na segunda metade do
século XIX, Maria de Fátima Pires afirma que muitos proprietários, especialmente a partir de
1860, venderam seus escravos para as “Províncias do Sul”. Para a autora, essas vendas
estavam relacionadas às mudanças na conjuntura econômica que ocorreram no país a partir de
1850, às quais sufocaram a economia sertaneja. Conforme explicita:
Conforme Pires, os traficantes de escravos interessavam-se por cativos “[...] com vigor
físico e aptos aos desafios dos longos percursos da migração compulsória”. Atesta ainda que
os comerciantes que atuaram no alto sertão optaram pelas mulheres cativas, correspondendo a
quase 40% do total de escravos traficados. A esse fato, Pires sugere que a diferença dos
preços entre os cativos pode ter influenciado na hora da negociação, visto que as escravas
eram comercializadas com preço menor do que os escravos. Esses dados podem ser
observados na tabela 09 elaborada pela autora, mediante rigorosa análise nos livros de notas
do tabelionado de Rio de Contas, 1860-1880.172
171
Pires. Fios da Vida..., p. 39.
172
Ibid, p. 40.
92
Escravo Valor Médio Escrava Valor Médio Crianças (12 Valor Médio
PERÍODO
(Adulto) (Rs.) (Adulta) (Rs.) anos abaixo) (Rs.)
1860-64 10 925$000 29 957$000 22 526$000
1865-69 13 1:006$000 23 954$000 24 541$000
1870-74 17 952$000 27 627$000 26 357$000
1875-79 65 1:150$000 53 640$000 36 620$000
1880-84 13 690$000 16 500$000 - -
1885-89 07 910$000 04 470$000 - -
Total 125 - 152 - 108 -
Fonte: Pires. Fios da Vida..., p. 41.
Desse modo, para além das mudanças ocorridas na sociedade brasileira, sobretudo, na
segunda metade do século XIX, e do aumento da população no alto sertão da Bahia, o tráfico
interprovincial influenciou a formação de laços familiares, embora ainda não formalizados.
Isso pode ser atestado por meio da análise do percentual das uniões mistas encontradas em
Minas do Rio de Contas (72,1%), exatamente no período em que se tem o maior número de
mulheres escravas sendo traficadas. Esses dados refletem, principalmente, nos casamentos de
escravos com livres pobres (41,0%), posto que 80% dessas uniões correspondem ao
matrimônio de escravos com mulheres livres e apenas 20% de escravas com livres.
Dentre os casamentos analisados neste trabalho, as relações afetivas estabelecidas por
José, escravo, pertencente ao Capitão Antonio Sempronio Alves, chama a atenção, pois
contraiu matrimônio por duas vezes com mulheres livres. 173 O tráfico interno de cativos teria
influxo nas experiências conjugais desse sujeito? Pergunta difícil de responder, no entanto, o
elevado número de escravas traficadas entre 1860-80, como apontado por Maria de Fátima
Pires e, com isso, o desbaratamento de suas vidas, como o baixo índice de mulheres cativas
em relação às livres pobres nos casamentos mistos, induz a presumir que sim. Veja,
brevemente, a trajetória de José.
No ano de 1881, José aos cinquenta e quatro anos de idade, dirigiu-se à Igreja Matriz
do Santíssimo Sacramento da Vila de Minas do Rio de Contas para unir-se em matrimônio,
perante Deus e testemunhas, com a jovem Francisca Maria de Jesus, na época com vinte e
quatro anos. Escolheu como padrinhos Platão Dantas Barbosa, liberto, e Antônio Manoel de
173
Acervo da Paróquia do SS. Sacramento de Rio de Contas. Diocese de Livramento de Nossa Senhora – BA.
Livro de registros de casamentos. Freguesia de Nossa Senhora do Livramento da Vila do Rio de Contas. 1873 a
1914, fl. 23v.
93
Oliveira, livre, com os quais mantinha laços de consideração e amizade. José, naquela data
viúvo de Hedivirges Maria dos Santos, tinha preferência por companheiras com estatutos
jurídicos diferentes do seu, visto que sua primeira esposa também era livre. Na ocasião, os
pais dos noivos já haviam falecido: Nicolão Pires de Monção e Damasia Maria de Jesus (da
noiva) e Francisco Alves da Conceição e Rosa (do noivo), como pode ser observado no
histograma 05 abaixo.
As vivências do escravo José não se limitaram à Vila de Minas do Rio de Contas. Ele
transitava por outras paragens, estendendo os laços de amizade e afetividade, pois sua noiva
residia na Vila de Água Quente, onde foi batizada na Paróquia de Nossa Senhora do Carmo,
há, aproximadamente, oito léguas de Minas do Rio de Contas. Dessarte, entre o ir e vir à vila,
ele foi ampliando o espaço de convivência social e conquistas, como a realização da segunda
núpcia e a dispensa dos “proclamas de ambas as Parochias, por Despacho de Rm.º Senr.º
Conego, Vigario Geral”, etapa essencial do matrimônio católico, principalmente, porque o
noivo era viúvo e a noiva pertencia a outra paróquia. Essa mobilidade espacial desfrutada por
José, pode ter ocorrido como acompanhante do Capitão Antonio que, no ofício de escrivão,
saia percorrendo as freguesias pertencentes a comarca de Minas do Rio de Contas a fim de
exercer suas obrigações.
O cruzamento dos registros eclesiásticos com os inventários possibilitou conhecer um
pouco mais da vida de José. A análise identificou que era crioulo de primeira geração e filho
legítimo de pais africanos. O pai, Francisco Alves da Conceição, africano, escravo,
pertencente ao Alferes Firmiano Alves da Conceição, faleceu de inchação e foi amortalhado
em hábito branco e sepultado no dia 20 de outubro de 1851, dentro da Capela de Nossa
Senhora do Rosário, na Vila de Minas do Rio de Contas. Antes de falecer, recebeu os
sacramentos da confissão e extrema unção.174 Com a abertura do inventário de Firmiano
Alves, em 1863, pelo inventariante e herdeiro Antonio Sempronio Alves, entre os bens
declarados (dinheiro, prata, animal, meios dotes), estava José, na época com trinta e quatro
anos, foi avaliado em Rs. 800$000 e sua mãe, Rosa, africana, com sessenta anos, avaliada em
Rs. 30$000. Outros companheiros de cativeiro também foram arrolados: Rita, com quarenta e
cinco anos, e Mauricio, com oito meses, possivelmente, mãe e filho, avaliados em Rs. 50$000
e Rs. 25$000, respectivamente, valores referentes apenas à parte de Firmino Alves. O valor
total do monte mor foi de Rs.1:908$883. Com a partilha dos bens, José e a mãe ficaram no
174
Acervo da Paróquia do SS. Sacramento de Rio de Contas. Diocese de Livramento de Nossa Senhora – BA.
Livro de Registro de Óbitos da Matriz e suas filias: Nossa Senhora Santana, Nossa Senhora do Rosário e do
Cemitério Paroquial. 1825 a 1874, p. 69f.
94
quinhão de Antonio Sempronio Alves.175 Tempos depois, Rosa conquista a liberdade, visto
que, em seu registro de óbito, consta que é liberta. Faleceu de moléstia interna, com mais de
setenta anos de idade e foi sepultada no cemitério da Igreja Matriz, em 1875.176
Histograma 05: Laços familiares de José, escravo, pertencente ao Capitão Antônio Sempronio
Alves.177
175
AMRC. Seção Judiciário. Série Inventários. ID: Fimiano Alves da Conceição. Cx 86 / Est 03 / Prat 03 / Mç
169 / Doc 1.166 / auto com 9 folhas.
176
Acervo da Paróquia do SS. Sacramento de Rio de Contas. Diocese de Livramento de Nossa Senhora – BA
Livro de Registro de Óbitos da Matriz e suas filias: Nossa Senhora Santana, Nossa Senhora do Rosário e do
Cemitério Paroquial. 1874 a 1915, p. 2f.
177
Livro de Registro de casamento da freguesia de Nossa Senhora do Livramento da Vila do Rio de Contas.
1873 a 1914, fl. 23v. Acervo da Paróquia do Santíssimo Sacramento de Rio de Contas. Diocese de Livramento
de Nossa Senhora – BA.
95
trajetórias conjuntas ou muito próximas” e que “[...] a vivência conjunta [desses segmentos]
ampliava as possibilidades de barganha e expressões de vidas partilhadas nos meios mais
pobres”. 178
Alguns estudos sobre família escrava no Brasil, o século XIX, têm demonstrado o
quanto esses sujeitos lutaram a fim de manter os laços de família.179 Vale ressaltar alguns
aspectos dessas pesquisas para se tentar compreender o “imaginário” de escravos frente à
possibilidade de desbaratamento de suas famílias, embora sejam experiências de vida
diferentes, mas vivenciadas por sujeitos numa mesma condição jurídica, a escrava.
A pesquisa de Isabel Cristina Reis sobre o comércio interprovincial de cativos em
Salvador, na segunda metade do século XIX, evidencia o drama do escravo Alexandre ao
saber que sua senhora o havia vendido para outra Província. Em ato de desespero, o escravo
atenta contra a vida da sua senhora e, não conseguindo, atentou contra a própria vida.
Conforme Reis:
Alexandre disse que não pretendia matar a sua senhora, e que nunca passara
por sua cabeça ofender a seus senhores: ‘se praticou o acto da noite do dia
vinte e trez de Abril sempre com a intenção de obter de sua senhora o não
vender fora da terra como já tinha feito a irmãos seus e lhe havia prometido’.
Desta forma, apesar de Alexandre agir tomado pelo desespero, antes da
violência ele vislumbrou a possibilidade de algum acordo com a sua
proprietária, ‘que não o vendesse para fora da terra, ou que mesmo esperasse
mais algum tempo a ver se elle arranjava o dinheiro para dar por sua
liberdade’.180
O drama vivenciado pelo escravo Alexandre não foi o único na dura e cruel luta dos
cativos “baianos” contra o tráfico interno. Nesse mesmo período, na década de 1870, porém
no Sertão do São Francisco, Noberta e seus filhos, Maria e Francisco, enfrentaram uma ação
na justiça de anulação das cartas de alforria concebidas pela senhora D. Maria Joaquina. A
ação foi movida pelo capitão José Marinho Cavalcante, o traficante de escravos, pois a
“liberdade” dessa família impedia o seu comércio no profícuo mercado interno de cativos.
Napoliana Santana, ao analisar a triste história da “liberta” Noberta, na investigação feita
sobre a vida escrava no alto sertão da Bahia, entre 1840-1860, demonstra a fragilidade da vida
178
Pires. O crime na..., p.72 e ______. Fios da vida..., 101 e 26, respectivamente.
179
Sobre a influência do tráfico interprovincial na vida afetiva e social dos escravos e as estratégias utilizadas
por esses sujeitos, ver: Santana. “Família e microeconomia...”; Pires. Fios da Vida...; Reis. “A família negra...”;
MATTOS, Hebe Maria. “Laços de família e direitos no final da escravidão”. In: ALENCASTRO, Luiz Felipe de
(Org.). História da Vida Privada no Brasil: Império. São Paulo: Companhia da Letras, 2004 [1997]; Neves.
“Sampauleiros traficantes...”; CHALHOUB, Sidney. Visões da liberdade: uma história das últimas décadas da
escravidão na corte. São Paulo: Companhia das Letras, 1990; dentre outros.
180
Reis. “A família negra...”p. 40.
96
desses sujeitos perante o desmande do tráfico interprovincial, até mesmo a vida daqueles que
desfrutavam do apoio e da ajuda de pessoas influentes, ao menos, na sociedade local, como o
caso de Noberta. Conforme explicita a autora “muitos senhores desrespeitaram a condição de
liberto, utilizando, muitas vezes, da força e coerção para restabelecer ou manter a condição
cativa do negro”. 181
A historiadora Hebe Mattos, utilizando-se dos processos-crimes da Corte de Apelação,
os quais envolviam escravos da região centro sul do país (Rio de Janeiro, Minas Gerais e São
Paulo), na segunda metade do século XIX, identificou que muitos cativos desta região
também passaram a conviver com o “fantasma” do tráfico interprovincial e a ameaça do
desbaratamento de suas vidas. Ao analisar as vivências da escrava Justina, que em ato de
loucura e desespero matou os três filhos menores e depois tentou, sem sucesso, o suicídio,
demonstra que o motivo que levara a cometer os crimes foi “[...] porque ela estava convencida
de que seria vendida pelo seu senhor na viagem que fariam para o sertão do Morro do
Coco”.182 Justina, os filhos e outros escravos moravam na casa do pequeno senhor rural,
Antônio Pais da Silva, na freguesia de São Sebastião, município de Campos – RJ. Seus filhos
“[...] formavam uma terceira geração de cativos juntos à família Pais, argumento usado por
Antônio Pais para tentar demovê-la da ideia de que seria vendida”.183 Tudo indica que Justina
não acreditara no discurso do seu senhor, pois a incerteza de que sua família seria conservada
a levou a cometer tamanho ato de desatino, matar os filhos menores, provavelmente, livres
ingênuos, pois o fato aconteceu em 1878, após a Lei do Ventre Livre de 1871 (embora, a
autora não discorre sobre o estatuto jurídico das crianças).
Embora o desmanche das trajetórias vivenciadas por Alexandre, Noberta e Justina ter
sido favorável aos abusos do tráfico interno e, consequentemente, ao desmantelo dos laços
familiares constituídos nas suas comunidades, esses sujeitos souberam negociar mediante
situações bastante conflituosas em que estavam em voga os lucros monetários proporcionados
pelo mercado importador de escravos. Noutras palavras, nem sempre o poder de barganha dos
escravos e as lutas de resistências forjadas cotidianamente por eles os possibilitaram
ultrapassar a sua cruel condição de mercadoria frente ao lucrativo comércio de cativos,
proporcionado pelo tráfico interprovincial de escravos, especialmente, para os pequenos
proprietários que enfrentavam dificuldades econômicas.
181
Santana. “Família e microeconomia...” p. 84.
182
Mattos. “Laços de Família...”p. 349.
183
Ibid.
97
Outro dado examinado nos assentos de casamentos é a idade dos nubentes. Na análise
da faixa etária, foi possível perceber que muitos dos laços matrimoniais realizados na Matriz
da Vila de Minas do Rio de Contas foram constituídos por indivíduos com mais de vinte anos.
Dos 122 nubentes (homens e mulheres), apenas 12 mulheres tinham idades entre quatorze a
dezenove anos, o que corresponde a 9,8% dos envolvidos. A tabela 10 corrobora com essa
assertiva.
Tabela 10: Faixa etária dos nubentes por gênero - Minas do Rio de Contas, 1873-1888
Como pode ser observado na tabela 10, a maioria dos homens se casou com idade
entre trinta e trinta e noves anos e a maioria das mulheres, com idade entre vinte e vinte e
nove anos, o que corresponde respectivamente, a 29,5% e 36,1% do total dos nubentes
envolvidos nos laços do matrimônio. Com a distribuição dos noivos por idade, percebe-se que
a formalização das relações afetivos se deu, principalmente, entre sujeitos jovens na faixa
etária de quatorze a trinta e nove anos (32 do gênero masculino e 45 do feminino), o
equivalente a 63,11% do total. Esses dados revelam que as mulheres riocontenses se casaram
mais jovens do que os homens, com idades entre quatorze e vinte e nove anos e,
presumivelmente, em pleno vigor físico para gerar filhos, claro que dentro de suas condições
de vida.
Jonis Freire, analisando os escravos casados ou viúvos das pequenas, médias e grandes
posses do distrito de Santo Antônio do Juiz de Fora, na primeira metade do século XIX,
identificou-se que a maioria dos cativos pertencia à faixa etária de quinze a quarenta anos e
que havia certo equilíbrio entre os sexos (76 mulheres e 70 homens). Aponta, ainda, que as
“mulheres tiveram maiores oportunidades de contrair aquele sacramento católico. Em todas as
98
faixas, foram elas que percentualmente mais se casaram”.184 Os dados apresentados por
Freire, são similares aos apontados por esta pesquisa, porém, ao cruzar a faixa etária dos
nubentes com o gênero, percebe-se que não houve o equilíbrio dessas variáveis entre noivos e
noivas que estavam aos pés do altar da Matriz do Santíssimo Sacramento, entre 1873 – 1888.
Os dados apresentados na tabela 10 apontam também a presença de idosos, pessoas
acima de quarenta anos, contraindo matrimônio nos anos finas da escravidão. Dos 61 registros
de casamentos em, ao menos, 13 pode-se identificar a presença do cônjuge com idade entre
quarenta a sessenta e nove anos.
Os libertos Manoel Cândido de Novaes, lavrador, e Felicidade Ribeiro de Novaes
Costa, costureira, africana, quando casaram no dia 27 de novembro de 1886, estavam com
sessenta e dois e sessenta anos de idade, respetivamente. Nesse dia os pais dos cônjuges não
estavam presentes, pois, no registro, não consta a filiação da noiva e, na época, Maria
Domingas de Jesus, a mãe de Manoel, já havia falecido. O casal escolheu pessoas livres e de
prestígio social e econômico para apadrinhar a união. Tiveram como padrinhos o Tenente
Coronel Francisco de Oliveira Guimarães, Miguel Caires dos Santos e Juvêncio de Oliveira
Santos. Infelizmente, não se pôde verificar a que posse escrava eles pertenciam, pois não foi
encontrado os registros de batismos dos nubentes. Conquanto, analisando o sobrenome dos
noivos, Novaes, presume-se que pertenciam à mesma posse escrava, tendo em vista que
muitos escravos, ao conquistarem a liberdade, adquiriam o sobrenome do proprietário. Isso
sugere que, provavelmente, o casal iniciou a vida conjugal antes do casamento, quando ainda
escravos, e com a liberdade formalizaram essa união.185
No mesmo ano de 1886, o casal Estanislão, com cinquenta e cinco anos, escravo,
pertencente ao Tenente Coronel Francisco de Oliveira Guimarães, e Benedicta Clara de Jesus,
com cinquenta e seis anos, livre, costureira, também se casaram. Ambos eram filhos naturais,
respectivamente, de Maria Lizarda, escrava do mesmo Tenente Coronel, e Clara de Jesus,
falecida. A noiva era “natural e baptizada na parochia de N. Senhora do Carmo do Morro do
Fôgo” e residente em Minas do Rio de Contas. Os padrinhos do casamento foram Victorio de
Oliveira Rocha, D. Maria da Conceição Oliveira e Januario Xavier da Cruz pessoas que
desfrutavam de prestígio social naquela localidade, pois Victorio e Januario apadrinharam, ao
184
Freire. “Escravidão e família...”, p. 175
185
Acervo da Paróquia do Santíssimo Sacramento de Rio de Contas. Diocese de Livramento de Nossa Senhora
– BA. Livro de registros de casamentos da freguesia de Nossa Senhora do Livramento da Vila do Rio de Contas.
1873 a 1914, fl. 48v.
99
menos, mais três casais e o título de “dona” de Maria da Conceição, indica que fazia parte de
alguma família importante, muito embora não apareça em outros registros de casamentos.186
A análise dos registros de casamento de escravos, libertos e livre pobres permite,
ainda, compreender a formação dos casais por faixa etária. Os dados encontrados
demonstraram que a maioria dos pares foi formada por sujeitos com idade de vinte e vinte e
nove anos, isto é, foram encontrados sete casais se casando nesta faixa etária e todos mistos,
ratificando os dados já apresentados no texto: sete escravos (três do gênero masculino e
quatro, feminino), cinco livres pobres (três masculinos e dois femininos), e dois libertos (um
masculino e um liberto). Em seguida, os pares com idade de trinta a trinta e nove anos com
quatro casais, os quais foram quatro escravos e quatro escravas (dois livres pobres e duas
libertas).
Os cônjuges Raphael (pedreiro, escravo, pertencente a Adalberto de Oliveira Rocha) e
Laureana (costureira, liberta) casaram-se com trinta e dois e trinta e nove anos de idade,
respectivamente. Ambos eram filhos naturais: o noivo filho de Lizarda, falecida, e a noiva
filha de Maria de Jesus Vieira. Chama atenção, nessa cerimônia, o fato dos noivos
convidarem dois casais de padrinhos/madrinhas: Tenente Elpidio de Oliveira Martins e sua
mulher D. Isabel Rufina de Oliveira Martins e o Tenente Fulgencio Antonio da Silva e sua
mulher D. Emilia Fausta da Silva, pessoas livres e de prestígio social.187 Foram poucos os
registros de casamento com a presença da madrinha e apenas dois assentos com a presença de
duas madrinhas.
As Constituições Primeiras do Arcebispado da Bahia, no Livro Primeiro, Título
LXVIII, determinavam que “[...] para valer o matrimônio se requer [...] duas ou três
testemunhas. E as pessoas que em outra forma se quiserem casar são pelo mesmo concílio
havidas por inábeis para assim contraírem, e os tais contratos julgados e declarados por nulos,
e de nenhum vigor”.188 Certamente, Raphael e Laureana gozavam de certo prestígio naquela
sociedade, pois, embora burlando as normas da Igreja Católica e correndo o risco de ter o
casamento anulado, no dia 4 de março de 1886, contraíram o matrimônio na presença, ao
menos, de dois padres, quatro testemunhas/padrinhos, familiares e amigos. E, no final do
registro, o pároco Procópio José Rufino declarou “[...] ter sido o casamento feito, em minha
186
Ibid, fl. 44f.
187
Ibid, fl. 44 f/v.
188
Da Vide. As Constituições Primeiras..., p. 129.
100
presença, por commissão especial, pelo Rev. P.e o padre Antonio Joaquim de Góes”.189
Talvez, as ocupações de pedreiro e de costureira tenham favorecido as relações sociais
estabelecidas pelo casal.
Embora houvesse certa “concentração” da formação dos casais entre os
jovens/adultos, não identificou-se, para o período estudado, um padrão de casamentos de
escravos e libertos. A tabela 11 corrobora essa assertiva, ao mesmo tempo em que permite
visualizar outros casamentos entre indivíduos com idades variadas e, assim, compreender
algumas nuances da escravidão em Minas do Rio de Contas.
Tabela 11: formação dos pares de cônjuges por faixa etária, 1873 – 1888
CASAMENTOS
MULHER Total
Faixa Etária
14 – 19 20 – 29 30 – 39 40 – 49 50 – 59 60 – 69 N/C
14 – 19 - - - - - - - -
20 – 29 6 7 1 - - - - 15
HOMEM
30 – 39 5 8 4 - 1 - - 17
40 – 49 1 2 2 2 - - - 7
50 – 59 - 4 2 1 1 - - 8
60 – 69 - - 2 - 1 1 1 5
N/C - 1 - - - - 8 9
Total 12 22 11 3 3 1 9 122
Fonte: Livro de registros de casamento da freguesia de Nossa Senhora do Livramento da Vila do Rio de Contas.
1873 a 1914. Acervo da Paróquia do Santíssimo Sacramento de Rio de Contas. Diocese de Livramento de Nossa
Senhora – BA
189
Acervo da Paróquia do Santíssimo Sacramento de Rio de Contas. Diocese de Livramento de Nossa Senhora
– BA. Livro de registros de casamentos da freguesia de Nossa Senhora do Livramento da Vila do Rio de Contas.
1873 a 1914, fl.44 f/v.
101
que uniam essas famílias, cuja “liberdade” acarretaria na perda de, no mínimo, dois
trabalhadores na propriedade escrava.
3.2. Batismo e compadrio: laços espirituais que unem a família numa comunidade
190
MELLO, Elomar Figueira de. Da Catingueira. In: ______ Auto da Catingueira (1984). Disponível em
http://www.vagalume.com.br/elomar-figueira-de-melo/da-catingueira.html acessado em 07 de setembro de 2013.
102
191
Marcilio. “OS registros paroquiais...” p. 15. Sobre as normas para a realização do sacramento do batismo, ver:
Da Vide. As Constituições primeiras..., p. 15-31.
192
DEMETRIO, Denise Vieira. “Assentos de batismo de escravos: crítica às fontes e metodologia”. Primeiros
Escritos, v. 13, 2008, pp. 1-12, p. 6.
103
Aos vinte quatro de Janeiro de mil oito centos e trinta e nove no Oratorio do
Retiro baptizou e poz os Santos Oleos o Rev. Manoel da Silva Leite. Sub.
Conditione a Maria parvula criola por ter sido Baptizada pelo seo Senhor
João Nunes de Souza in articulo mortis, a qual mandou que fosse baptizada
por forra, com oito dias de idade filha legitima de José, e Joanna escravos
do dito Nunes, e assistio esse Sacramento Silverio pardo liberto, e o dito
Rev. Manoel da Silva Leite que se for necessário jura aos Santos
Evangelhos. Parochianos desta Matriz. Do que para constar este mandei
fazer no qual me assigno. O P. Jeronymo Dantas Barbosa.193
Nota-se que o batizado da pequena Maria foi realizado pelo Reverendo Manoel da
Silva Leite “Sub. Condittione” (sob condição), por ela já ter sido batizada por João Nunes,
pois estava in articulo mortis (perigo de morte). Na presença de Silverio, pardo, liberto, o
senhor Nunes “mandou que fosse baptizada por forra”, sendo testemunha também o padre
Manoel. Cruzando os registros de batismo, óbitos e os inventários de João Nunes e da esposa
Joanna Maria de Jesus, abertos em 1854 e 1852, respectivamente, não foi localizada outras
informações sobre a família de Jose e Joanna. Não seria demasiado imaginar que Maria tenha
vindo a falecer e o sepultamento não ter sido registrado nos livros de óbitos, o que não seria
uma exceção, visto que esse tipo de omissão foi recorrente no alto sertão da Bahia, como se
verá no próximo capítulo. Por outro lado, a falta de dados sobre Jose e Joanna nos processos
de inventários, faculta pensar na conquista de suas alforrias, pois, antes de falecer, o senhor
João Nunes, em testamento, libertou todos os seus escravos.194
Seja como for, o batismo era utilizado como um instrumento de purificação e inserção
do pagão na comunidade cristã e foi o primeiro sacramento religioso católico concebido aos
africanos e crioulos escravizados no Brasil. Para esses sujeitos, o sacramento do batismo
ultrapassou os significados estabelecidos pela Igreja Católica e os limites do cativeiro,
especialmente, por possibilitar fortalecer laços sociais, relações de amizade, solidariedade e
reciprocidade. Consoante, Carlos Engemann, ao estudar os assentos de batismos da fazenda
Santa Cruz, no século XIX, atesta:
193
Acervo da Paróquia do Santíssimo Sacramento de Rio de Contas. Diocese de Livramento de Nossa Senhora –
BA. Assentos dos batismos que foram feitos fora da Matriz do Santíssimo Sacramento da Vila do Rio de Contas
/ 1838 – 1859, s/n, grifos meus. Documento analisado por Katia Lorena Novais Almeida.
194
APMRC. Seção Judiciária. Série Inventários. ID: Joana Maria de Jesus. 1852-1853. Cx 80 / Est 03 / Prat 02 /
Mç 157 / Doc 975 / auto com 44 folhas e Ibid. ID: Joao Nunes de Souza. 1854-1856. . Cx 80 / Est 03 / Prat 02 /
Mç 160 / Doc 1016 / auto com 91 folhas.
104
O historiador Stuart Schwartz, nos estudos sobre compadrio e família escrava na Bahia
e em Curitiba, aponta que, “no início do século XIX, o batismo de escravos tornara-se
costumeiro e tanto os senhores quanto outros escravos exerciam pressão social para a prática
do ato”.196 Portanto, a prática do batismo foi muito utilizada nas igrejas das vilas e cidades,
como também em atos de desobrigas realizadas por padres e freis missionários, nas capelas e
oratórios espalhados por diversos distritos, povoados, fazendas e roças, pertencentes às
paróquias e freguesias.
Os livros de razão dos proprietários da fazendo Brejo do Campo Sêco, no alto sertão
da Bahia, atestam a realização de desobrigas pelos padres de Minas do Rio de Contas. Essas
fontes foram analisadas por Lycurgo Santos Filho, que destaca alguns aspectos da vida
religiosa dos sertanejos, nos séculos XVIII e XIX. Aponta, ainda, que os proprietários dessa
fazenda contribuíram para a realização das desobrigas. Segundo o autor, “realizava-se a
desobriga de tempos em tempos, quando o vigário da freguesia comparecia e ministrava os
sacramentos, confessando, dando a comunhão, batizando, casando, pondo, em suma, as
pessoas em dia com os sacramentos”.197
De fato, as desobrigas ocorreram no alto sertão da Bahia e com certa frequência, dos
771 batismos de escravos e libertos analisados nesse trabalho, apenas quatro foram realizados
na Matriz do Santíssimo Sacramento da Villa do Rio de Contas, entre 1838 e1888, ou seja,
767 batizados ocorreram nos arraias, fazendas, sítios e povoados espalhados pela zona rural
desse termo e a grande maioria, em atos de desobrigas. Como foi possível atestar,
frequentemente, a vida cotidiana dos sertanejos era movimentada pelos constantes atos de
desobrigas para as realizações dos batizados.
O casal Januario, escravo, pertencente a José Thomas de Novaes, e Felismina Ribeiro
da Conceição, livre, aguardou o período da desobriga para batizar a filha Maria, cabra, livre,
com cinco meses de idade. O batizado foi realizado na Capella de Senhor do Bomfim da Boa
Sentença, continente de Casa de Telha, em 18 de janeiro de 1857. Tudo indica que o casal,
ainda, não havia formalizado a união, pois, Maria não foi declarada pelo padre como filha
legítima. Na época, Januario e Felismina escolheram Caetano Ribeiro Guimaraes e Carlota
Candida de Jesus, livres, para apadrinharem a filha, possivelmente os avós da pequena Maria,
195
Engemann. De laços e..., p. 107.
196
SCHWARTZ, Stuart B. Escravos, roceiros e rebeldes. São Paulo: Edusc, 2001, p. 269.
197
Santos Filho. Uma Comunidade Rural..., p. 187.
105
198
Acervo da Paróquia do Santíssimo Sacramento de Rio de Contas. Diocese de Livramento de Nossa Senhora –
BA. Livros de registros de batizados realizados nas Capelas e filiais da Matriz desta Freguesia do Santíssimo
Sacramento da Vila de Nossa Senhora do Livramento do Rio de Contas. 1856 a 1863, fl. 51f/v..
199
Ibid. fl. 53f.
200
FLORENTINO, Manolo e GÓES, Roberto. A paz das senzalas: famílias escravas e tráfico atlântico, Rio de
Janeiro, 1790-1850. Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, 1997, p. 92.
201
Schwartz. Escravos e roceiros..., p. 266.
106
202
Brügger. Minas Patriarcal..., p. 325.
203
Ibid.
204
Mattos. Das Cores do..., p. 145.
205
Engemann. De laços e..., p. 144.
107
206
Ver: Freire. Escravidão e Família...; Gonçalves. “Escravos e senhores...”; Santana. “Família e
microeconomia...”; Nogueira. “‘Viver por si’...”; Slenes. Na Senzala uma...; ______. “Escravidão e família...”;
Engemann. De laços e....; ______. “Da comunidade escrava e suas possibilidades, séculos XVII-XIX”. In:
FLORENTINO, Manolo. Tráfico, cativeiro e liberdade: Rio de Janeiro, séculos XVII-XIX. Rio de Janeiro,
Civilização Brasileira, 2005; Florentino e Góes. A paz das...; FARIA, Sheila de Castro. “Identidade e
Comunidade escrava: um ensaio”. In: Revista Tempo, nº 22. P.122-146, 2006; MACHADO, Cacilda. “As muitas
faces do compadrio de escravos: o caso da Freguesia de São José dos Pinhais (PR), na passagem do século XVIII
para o XIX”, In: Revista Brasileira de História, vol.26, nº52, p. 49-77, Jul – dez, 2006; dentre outros.
207
Presume-se que o coronel Miguel Alves Coelho recebeu o título de Comandante Superior entre o final de
1858 e início de 1859, pois, nos registros de batismos, esta titulação é acrescentada ao nome do Coronel no
batizado do pequeno Zeferino, filho legítimo de João e Rita, escravos do referido senhor, no dia 23/01/1859.
108
mesma posse escrava, Roberto e Constância.208 Nesse mesmo dia, outros escravos do referido
proprietário estavam presentes na cerimônia. Sebastião e Constância, casados, escolheram
Marcos e Vicência, escravos pertencestes a D. Caetana Luiza de Castro Coelho, cunhada do
dito Coronel, para apadrinharem a filha Concordia, parda, com dois meses de idade.209 No ano
seguinte, 1858, o casal Custodio e Modesta, batizou o filho legítimo, Amaro, crioulo, com
quinze dias de nascido e escolheu como padrinhos Martinho e Clemencia, todos escravo do
Coronel.210 Em 1861, esse casal estava novamente na Capela de Nossa Senhora do
Livramento para batizar mais um filho. Com poucos dias de nascida, Perpetua, cabra, recebeu
os santos óleos nos braços dos padrinhos Francisco, escravo, pertencente ao Coronel Miguel
Alves, e Constantina, escrava, porém na ata de batismo não consta a sua posse, mas ao cruzar
os registros de batizados dos cativos da família Alves Coelho, identifiquei Constantina,
escrava pertencente ao tenente coronel Manoel Alves Coelho, filho do coronel Miguel.211 Já o
casal Isidro e Honorata, no dia 9 de maio de 1858, escolheu Camilo Alves Coelho, livre
(possivelmente, membro da referida família) e Vicência, escrava, pertencente a D. Caetana
Luiza, para apadrinhar a filha legítima, Marcolina, cabra, com quinze dias de nascida.212
Zeferino, filho legítimo de João e Rita, foi batizado no dia 23 de janeiro de 1859 e teve como
padrinhos João e Bárbara, escravos, pertencentes, respectivamente, ao Coronel Miguel e sua
cunhada, D. Caetana Luiza.213 Por último, o casal Bernardo e Catarina, batizou dois filhos:
Ladislau e Maria. Para apadrinhar Ladislau, escolheu como padrinho Tibúrcio de Araújo
Maciel e, para madrinha, D. Lisarda Antunes Pereira, livres, e, certamente, de influência e
prestígio na sociedade riocontense da época, pois Tibúrcio Maciel apadrinhou, entre 1857 a
1862, pelo menos, seis crianças de diferentes posses escravas. Talvez pelo fato de, ainda, não
ter formalizado a união, o casal tenha optado por constituir os laços de compadrio com
pessoas livres. Porquanto, dois anos depois do nascimento de Ladislau, Bernardo e Catarina,
agora casados, batizaram a filha legítima, Maria, cabra, com quase cinco meses de idade. Na
ocasião, escolheram Nicolau, escravo da mesma posse, e Mariana, escrava, pertencente ao
Major Rodrigo Alves Coelho, sobrinho e genro do Coronel.214 (Histograma 06, abaixo).
208
Acervo da Paróquia do Santíssimo Sacramento de Rio de Contas. Diocese de Livramento de Nossa Senhora –
BA. Livro de registro de batizados realizados nas Capelas e filiais da Matriz desta Freguesia do Santíssimo
Sacramento da Villa de Nossa Senhora do Livramento do Rio de Contas. 1856 a 1863, fl. 71.
209
Ibid.
210
Ibid, fl. 125v.
211
Ibid, fl. 170.
212
Ibid, fl. 125v 126.
213
Ibid, fl. 128.
214
Ibid, fls. 49v e 128.
109
215
Ibid, fl. 122v.
216
Ibid, fl. 67.
217
Ibid, fl. 163.
218
Ibid, fl. 131v.
110
Histograma 06: Vivências comunitárias: formação de laços familiares dos escravos do Coronel
Miguel Alves Coelho219
219
Ibid, fls. 49v, 71, 125v, 126, 128, 170.
111
Na posse escrava de Miguel Alves Coelho, não foi somente Maria que foi recorrente
nos registros de batismos. O escravo Roberto, crioulo, aparece novamente, dessa vez,
estreitando as relações de amizade, confiança e sociabilidade com Justina, escrava,
pertencente ao Major Rodrigo Alves, genro do Coronel. Ele e Anna, escrava, pertencente a D.
Caetana Luiza, foram os padrinhos de “Rufo”, filho natural, pardo, um mês de idade. A
cerimônia foi realizada na Capela de Nossa Senhora do Livremente, distrito de Vila Velha, no
dia 2 de novembro de 1857.220 Todavia, o escravo Nicolau foi o mais recorrente, apadrinhou
seis crianças: Antonio, crioulo, filho legítimo de José e Zeferina; Maria, cabra, filha legítima
de Bernardo e Catarina; Appollinaria, cabra, filha natural de Maria; Nicolau e Mariano,
cabras, filhos legítimos de Vicente e Claudina; e, por último, João, cabra, filho legítimo de
Cassio e Maria, todos escravos pertencentes à família Alves Coelho. Ver abaixo o histograma
07, com os laços de compadrio do escravo Nicolau constituídos dentro da sua comunidade.
Os assentos concernentes ao escravo Nicolau apontam os laços familiares
estabelecidos no âmbito da sua comunidade e demonstram o respeito e afeição que os
companheiros de cativeiro tinham para com ele e, sobretudo, constituem elementos que
favorecem a ideia de hierarquias internas na estrutura social dentro da comunidade. Talvez, os
“varios officios” de Nicolau tenham possibilitado esse lugar de destaque entre os seus, o qual,
possivelmente, pôde ter causado tensões e conflitos. Conforme Engemann (supracitado), a
estrutura comunal em grandes propriedades, forneceria “ampla desigualdade interna ao
cativeiro [...]. A desigualdade, em verdade, era o que podia prover um acréscimo de
autoestima àqueles que lograram ascender na exígua escala social do cativeiro”.221
As experiências dos escravos do Coronel Miguel Alves Coelho, perscrutadas nas atas
de batismo, indicam o fortalecimento do espaço social, criado e recriado por esses sujeitos,
dentro da comunidade, na qual os laços de famílias ali estabelecidos formaram os pilares da
vida comunitária. Embora não tenha como certificar o local de moradia desses segmentos,
visto que os batizados foram celebrados em atos de desobriga, o dito coronel possuía
“cenzálas” espalhadas por suas propriedades, com isso, suas vivências não se limitaram a um
só lugar.222 Eles circulavam entre as fazendas, sítios, arraiais e a Vila de Minas do Rio de
Contas, no ir e vir entre as propriedades do referido Coronel.
220
Ibid, fl. 71.
221
Engemann. De laços e…, p. 142.
222
AMRC. Seção Judiciário. Série Inventários. ID: Miguel Alves Coelho. Cx 86 / Est 03 / Prat 03 / Mç 168 /
Doc 1.155 / auto com 26 folhas. fls. 4v-7. Inventário analisado por Maria de Fátima Novaes Pires e Kátia Lorena
Novais Almeida.
112
Histograma 07: Laços de compadrio do escravo Nicolau, cabra, “official de varios officios”,
pertencente ao Coronel Miguel Alves Coelho 223
223
Acervo da Paróquia do Santíssimo Sacramento de Rio de Contas. Diocese de Livramento de Nossa Senhora –
BA. Livro de registro de batizados realizados nas Capelas e filiais da Matriz desta Freguesia do Santíssimo
Sacramento da Villa de Nossa Senhora do Livramento do Rio de Contas. 1856 a 1863, fls.. 88f, 128f, 151v, 161
e 187v.
113
relações parentais consanguíneas entre esses sujeitos, assim como a utilização da reprodução
natural como estratégia senhorial para manter e ampliar a sua posse escrava.224
Esses sujeitos estavam envolvidos em atividades variadas, espalhadas entre a “casa
grande” e as fazendas, sítios e terras da família Alves Coelho. O valor elevado do monte mor,
Rs.186:382$160, permite constatar o elevado grau de riqueza do Coronel.225 Na delação dos
bens, a esposa Manoela Sofia de Castro, declarou que o Coronel possuía “engenho d’agoa”,
“moinho”, “fabrica de farinha”, “mil e trezentas cabeças de gado vagum em diversas fazendas
sujeitas ao agisamentos”, “quarenta bois”, “vinte burros encangalhados”, “oitenta animais
cavalares”, entre outros, os quais possibilitaram que as ocupações dos escravos variassem
entre “serviços domésticos”, vaqueiro, alambiqueiro, lavradores e “varios officios”.226
A pesquisadora Sandra Graham, com base nos estudos sobre a luta da escrava Caetana
para anulação do casamento com o escravo Custódio, imposto por seu proprietário, em Rio
Claro, no século XIX, suscita um aspecto interessante para se compreender possíveis
significados das escolhas dos cativos, em constituir laços familiares no meio dos seus:
224
Ibid, fls. 7f-10f.
225
Fátima Pires, analisando as grandes propriedades de alto sertão da Bahia, no século XIX, identificou outros
fazendeiros abastados na região, como o Barão de Caetité, José Antônio Gomes Neto, com bens avaliados em
Rs. 160:049$103 e João Severino da Luz Lisboa, com monte mor orçado em Rs. 104:211$764. Ver: Pires. Fio da
Vida..., p. 158-172.
226
AMRC. Seção Judiciário. Série Inventários. ID: Miguel Alves Coelho. Cx 86 / Est 03 / Prat 03 / Mç 168 /
Doc 1.155 / auto com 26 folhas. fls. 3v-11v.
114
Como se viu, os laços familiares foram essenciais para a vida escrava em Minas do
Rio de Contas, no século XIX. A análise das vivências desses sujeitos demonstra de que
modo, cotidianamente, eles criavam e recriavam redes de convívio, trocavam experiências,
buscavam fortalecer as relações entre si e com os demais segmentos sociais, enfim, foram
sujeitos ativos de suas próprias histórias, os quais constituíram famílias, ora legítimas, ora
consensuais.
As fontes eclesiásticas estudadas, nesse trabalho, revelaram que as uniões consensuais
foram corriqueiras entre os escravos e libertos da região, o que não significa dizer que eles
não vivenciaram as experiências do matrimônio e/ou que não tivessem uma vida conjugal
estável. Isso pode ser observado na análise da família de Clara, escrava, pertencente a
227
Mattos. Das cores do..., p. 145.
228
Ibid, p. 79.
115
Sebastião José do Bomfim, residente no Engenho Novo, povoado de Minas do Rio de Contas.
Ela teve, no mínimo, cinco filhos: Eva, Zeferino, Ricardo, Manoel e Francisca.
Em 1856, no batizado da filha natural, Eva, crioula, de um mês de idade, a sua mãe,
Clara, foi identificada pelo padre Manoel da Silva Leite como solteira. Para compadre e
comadre, Clara escolheu Silverio, escravo pertencente ao mesmo senhor, e Ignez
(indeterminada), “todos moradores do mesmo continente”. Em 1862, quase seis anos depois
do batizado da pequena Eva, Clara, agora casada com Francisco, escravo do já mencionado
Sebastião, batizou, no Oratório do Retiro, continente de Casa de Telha, o filho legítimo
Zeferino, cabra, com dois meses de idade, que teve como padrinhos Joaquim Antonio da Silva
e Anna Rita Canabarro, livres.229 Possivelmente, desde o ano de 1857, Clara e Francisco já
vivenciavam uma vida conjugal. Nesse período, o casal apadrinhou a pequena Honorata, filha
natural de Maria de Carmo, escrava, pertencente a Joaquim Antonio da Silva, compadre de
Clara e Francisco.230 Os filhos Ricardo, Manoel e Francisca nasceram em 1876, 1877 e 1874,
respectivamente, depois da Lei 2.040 de 28 de setembro de 1871 (Lei do Ventre Livre),
portanto, foram considerados de condição livre. Embora os filhos fossem “livres”,
infelizmente, o casal não pôde acompanhar o crescimento deles, pois faleceram
precocemente: Ricardo com dois meses de idade, Manoel com oito dias de nascido, faleceu de
moléstia interna e Francisca com quase oito anos, acometida de febre.231 Percebe-se que,
embora marcada por fortes tragédias, a vida conjugal de Clara e Francisco foi estável e
bastante expressiva. O casal conviveu por volta de vinte e quatro anos juntos, formalizou a
união e as relações sociais e afetivas mediante os laços de compadrio, constituídos dentro e
fora do cativeiro. O histograma 08, abaixo, possibilita visualizar as redes sociais e familiares
tecidas pela escrava Clara.
229
Acervo da Paróquia do Santíssimo Sacramento de Rio de Contas. Diocese de Livramento de Nossa Senhora –
BA. Livro de registro de batizados realizados nas Capelas e filiais da Matriz desta Freguesia do Santíssimo
Sacramento da Vila de Nossa Senhora do Livramento do Rio de Contas. 1856 a 1863, fls. 20 e 191v. Na ata de
batismo da pequena Eva, não consta maiores informações sobre Silvério e Ignez, porém no cruzamento das
fontes identifiquei Silverio como escravo do senhor Sebastião. Ver no próximo tópico a discussão sobre os
estatutos jurídicos dos compadres e comadres dos escravos e libertos.
230
Ibid, fl. 73.
231
Livro de óbitos da Matriz e suas filiais: N. S. Santana e N.S. do Rosário e do Cemitério Paroquial. 1874-1915,
fls. 7f, 14f e 30v. Acervo da Paróquia do Santíssimo Sacramento de Rio de Contas. Diocese de Livramento de
Nossa Senhora – BA.
Infelizmente, não foi possível localizar os registros de batismos de Ricardo, Manoel e Francisca, pois os livros
de batismos da paroquia do Santíssimo Sacramente de Rio de Contas não comtemplam todo o século XIX. No
acervo há uma lacuna de mais de 20 anos entre os livros, referente ao período de 1864 a 1886.
116
Histograma 08: Laços familiares de Clara, escrava pertencente a Sebastião Jose do Bomfim232
232
Acervo da Paróquia do Santíssimo Sacramento de Rio de Contas. Diocese de Livramento de Nossa Senhora –
BA. Livro de registro de batizados realizados nas Capelas e filiais da Matriz desta Freguesia do Santíssimo
Sacramento da Villa de Nossa Senhora do Livramento do Rio de Contas.1856 a 1863, pp. 20, 191v e 73. Livro
de Óbitos da Matriz e suas filiais: N. S. Santana e N.S. do Rosário e do Cemitério Paroquial. 1874-1915, pp. 7,
14 e 30v.
233
No texto que ora apresento, considero uniões consensuais os filhos de escravos e libertos identificados como
naturais e presumivelmente naturais. Essa é uma presunção baseada nas fontes eclesiásticas e na bibliografia
pertinente ao tema da família escrava. Nessa classificação também estão incluídos os 10 registros de
africanos(as), pois considerei que essas classificações foram baseadas em concepções católicas e, baseando
nesses registros, pouco, ou quase nada, se sabe sobre a procedência desses africanos.
117
estudadas. Os párvulos considerados legítimos totalizaram 210 filiações, isto é, os filhos que
foram frutos de uniões conjugais legitimadas pela Igreja Católica, que corresponde a 22,4 %.
E somente 5 % das crianças batizadas nesse período foram identificadas como
presumivelmente legítimas, isto é, os 38 filhos que tiveram em suas atas de batismo, o nome
do pai e da mãe, porém, não foram identificados pelo pároco como filhos legítimos.
Os dados encontrados e apresentados na tabela 12 demonstram alta incidência de
filhos naturais, com predominância de uniões consensuais entre os escravos e libertos da
região, no período de 1838 a 1888.
Tabela 12: Legitimidade nos batizados que “forao feitos fora da Matriz do SS Sacramento da
Villa do Rio de Contas”, 1838 – 1888
De acordo com os dados perscrutados nas atas batismais, o índice de casamentos entre
escravos(as) e libertos(as) foi relativamente baixo, comparando com a quantidade de
batizados realizados no período. Cerca de 22 % dos filhos foram classificados como legítimos
e 5 % com filiação presumivelmente legítima. Juntando esses percentuais, identifiquei cerca
de 27% dos filhos sendo criados pelo pai e pela mãe. Em outras palavras, os assentos de
batismo de escravos e libertos apontaram predominância das uniões consensuais (69,2 %)
entre as relações amorosas e/ou sexuais das escravas e libertas. Isso indica que muitas famílias
escravas foram constituídas por mães solteiras e seus filhos, o que não implica que elas não
tivessem companheiros estáveis e que seus filhos fossem criados sem a presença paterna.
As famílias de Marcelina e Catarina, escravas, pertencentes a Joaquim Nunes
Dourado, estão entre as 533 uniões consensuais encontradas nos registros de batismo
utilizados nesse trabalho. Marcelina, em 1843, levou a filha Valentina, cabra, com três meses
de idade, para ser batizada na Capela de Nossa Senhora do Livramento, “districto de Villa
118
Velha”.234 Já Catarina, batizou, ao menos, três filhos: Antônia, de três meses de idade,
Joaquina, de três meses e Antônio, com um mês de nascido. Esta matriarca escolheu Valentim
José da Rocha e Aguida Maria de Jesus, livres, para batizar a pequena Antônia, cabra, no dia
15 de agosto de 1857. Os escravos Francisco e Maria apadrinharam a filha do “meio”,
Joaquina, cabra, no dia 01 de novembro de 1860. E no dia 16 de agosto de 1863, lá estava
Catarina, novamente, na Capela de Nossa Senhora do Livramento, batizando mais um filho,
desta vez foi o “caçula”, Antônio, cabra, que recebeu os santos óleos nos braços dos
padrinhos Jose Felipe dos Reis, livre, e Valentina, escrava, pertencente a Jose de Carvalho.235
Os dados abordados acima podem sugerir uma possível interferência senhorial na
formação dos laços familiares desses sujeitos, ao menos, na formalização de suas uniões
afetivas, visto que, para a realização do matrimônio, o escravo necessitava da autorização do
proprietário para que sucedesse a cerimônia. Além da autorização, tudo indica que quem
ficava com os encargos do casamento religioso era o senhor do escravo.
Santos Filho, analisando as despesas dos herdeiros de Miguel Lourenço de Almeida,
grande proprietário de terras, gados e escravos, no alto sertão da Bahia, demostra que o genro
Antônio Pinheiro Pinto, em especial, além das despesas com os batizados e casamentos de
seus escravos, gastou também com as festas. Conforme o autor:
234
Livro de registro de batizados século XIX. Assentos dos Batismos que foram feitos fora da Matriz do
Santíssimo Sacramento da Vila do Rio de Contas / 1838 – 1859, fl. 40f. Acervo da Paróquia do Santíssimo
Sacramento de Rio de Contas. Diocese de Livramento de Nossa Senhora – BA.
Não foi possível identificar os nomes dos padrinhos na ata do batismo da pequena Valentina.
235
Livro de registro de batizados realizados nas Capelas e filiais da Matriz desta freguesia do Santíssimo
Sacramento da Vila de Nossa Senhora do Livramento do Rio de Contas. 1856 a 1863, fls. 50f, 169f e 199v
(respectivamente). Acervo da Paróquia do Santíssimo Sacramento de Rio de Contas. Diocese de Livramento de
Nossa Senhora – BA.
236
Santos Filho. Uma Comunidade Rural..., p. 128-129, grifos meus.
119
Além dos ônus que o proprietário teve com o matrimônio, pode-se pensar, ainda, que,
talvez, ao assumir a postura de não fomentar o casamento de seus escravos, estava buscando,
estrategicamente, enfraquecer a família escrava (mãe e filho), a qual, por não ser legitimada
pela Igreja Católica e com isso não dispor de “proteção” do padre, poderia ser mais facilmente
desbaratada sem a interferência do pároco, numa eventual venda da mãe ou do filho no tráfico
interno de cativos.
Os estudos da historiadora Márcia Cristina Vasconcellos sobre relações conjugais de
escravos em Angra do Reis, no século XIX, corroboram essa assertiva. Ao analisar as famílias
escravas, Vasconcellos constata um elevado índice de famílias chefiadas por mulheres cativas
solteiras. Conforme a autora, esse índice aumenta quando são analisados no período posterior
ao fim do tráfico transatlântico, isto é, para a primeira metade do século XIX, encontrou 97
(67,8 %) famílias matrifocais, já na segunda metade, a porcentagem chega a cerca de 60 %
(156) a mais em relação ao quartel anterior. Para a autora, a ilegitimidade dessas famílias
concerne ao “desinteresse senhorial na oficialização da união de seus cativos”:
Outro estudo sobre família escrava na região sudeste, que também relata baixas taxas
de legitimidade, é o da historiadora Heloisa Maria Teixeira. A autora, ao analisar a vida
escrava em Mariana – MG, entre os anos de 1850-1888, revela que as famílias matrifocais
foram a maioria, correspondendo a 57,2 % de um total de 407 famílias escravas analisadas.
O reduzido número de uniões conjugais de escravos que eram legitimadas perante a
Igreja Católica, ao longo do século XIX, não foi peculiar da região sudeste do Brasil. As
elevadas taxas de uniões consensuais também foram encontradas na Bahia, no século XIX.
Isabel Reis, ao examinar os assentos de casamentos da Freguesia da Sé, localizada na
região urbana de Salvador, entre 1801-1888, verifica baixos índices de casamentos legítimos
entre os africanos e afrodescendentes (escravos, libertos e livres). Os dados contabilizados
pela autora demonstram que “[...] foram celebrados cerca de 3.139 casamentos na Paróquia da
120
Sé, sendo que 874 (27,84 %) entre africanos, afrodescendentes e alguns poucos brancos”.237
Examinando os números por décadas, constata significativo aumento nas uniões legítimas a
partir da década de 1840 (83,5% dos casamentos foram realizados na segunda metade do
século XIX). Para a autora, esse aumento significou mudanças na postura senhorial:
237
Reis. “A família negra...”, p.92.
238
Ibid, p. 92-3.
239
Santana. “Família e microeconomia...”, p. 63.
121
realidade escrava e da capacidade dos cativos de criar e manter laços de afeição, associação e
sangue que tivessem um significado real e permanente em suas vidas. ”240
Além disso, o fato de batizar o filho como solteira não significava que essa mãe
ficasse impossibilitada de contrair o matrimônio posteriormente. Isso foi o que aconteceu com
Ramona, escrava, pertencente ao Capitão Antônio Calisto de Oliveira, que, após batizar os
filhos Joaquina e Roque, casou-se com o escravo Eugênio, da mesma propriedade, e
concebeu, ao menos, mais um filho, Dorothea. O batizado da “primogênita”, Joaquina, cabra,
de dois meses de idade, ocorreu na “Fazendinha, continente de Villa Velha”, no dia 24 de
abril de 1857. Três anos depois, Ramona levou à Capela de Nossa Senhora do Livramento, no
arraial da Villa Velha, o filho Roque, pardo, com um mês de idade, para ser batizado. E, em
1863, agora casada com o escravo Eugenio, batizou a filha Dorothea, cabra, com apenas oito
dias de nascida. 241
Conforme o histograma 09 (abaixo), todos os compadres e comadres de Ramona
foram pessoas livres, influentes na sociedade riocontense da época e de posses. O Tenente
Rodrigo Antônio dos Santos e a esposa D. Anna Athanasia do Bomfim batizaram a pequena
Joaquina, e Manoel Alves de Oliveira e Anna Maria de Jesus apadrinharam o filho do meio,
Roque. Os livres José Honório da Silva e Maria Alves de Oliveira batizaram a filha “caçula”,
Dorothea. Infelizmente, não foi possível verificar se este casal de padrinhos eram pessoas de
prestígio naquela sociedade, no entanto, presume-se que fossem livres pobres, visto que os
nomes não precedem de titulação e não foi encontrado, para o século XIX, outra fonte que
pudesse auferir mais detalhes sobre eles. Talvez, ao batizar os filhos naturais, Ramona
buscasse fortalecer os laços de amizade e sociabilidade com pessoas influentes, a fim de
manter a sua família unida e “protegida” contra possíveis desbaratamento por meio do
comércio de escravos. “Proteção” que, possivelmente, foi alcançada pela filha Dorothea na
legitimidade da união da mãe com o escravo Eugenio, pois a Igreja Católica proibia a venda
separada e, consequentemente, o desmantelo das famílias escravas legítimas.242
240
Schwartz. Segredos internos..., p. 311.
241
Acervo da Paróquia do Santíssimo Sacramento de Rio de Contas. Diocese de Livramento de Nossa Senhora –
BA. Livro de registros de batizados realizados nas Capelas e filiais da Matriz desta Freguesia do Santíssimo
Sacramento da Vila de Nossa Senhora do Livramento do Rio de Contas. 1856 a 1863, fls. 56v, 153v e 194v,
respectivamente.
242
Sobre a legislação da Igreja Católica para o casamento e manutenção da família escrava ver nota 14.
122
O casamento de algumas escravas após o batizado dos filhos não foi um privilégio das
cativas em Minas do Rio de Contas, no período estudado. A historiografia brasileira sobre
família escrava tem revelado que muitas mães escravas e libertas identificadas como solteiras
nos registros de batismos e, consequentemente, os filhos como naturais mantiverem relações
estáveis com parceiros e se casaram após o batizado de dois ou três filhos.244
A historiadora Cristiany Miranda Rocha, analisando o casamento e a ilegitimidade
entre os escravos de um grande proprietário de Campinas, no decorrer do século XIX,
243
Acervo da Paróquia do Santíssimo Sacramento de Rio de Contas. Diocese de Livramento de Nossa Senhora –
BA. Livro de registros de batizados realizados nas Capelas e filiais da Matriz desta Freguesia do Santíssimo
Sacramento da Vila de Nossa Senhora do Livramento do Rio de Contas. 1856 a 1863, fls. 56v, 153v e 194v,
respectivamente.
244
Ver: Santana. “Família e Microeconomia...”; Luna, Costa e Klien (Orgs.). Escravismo em São Paulo...;
Slenes. “Escravidão e família...”; ______. Na Senzala uma...; ROCHA, Cristiany Miranda. Histórias de
Famílias Escravas. São Paulo: editora da Unicamp, 2004; Motta e Valentim. “A estabilidade das...”; TEIXEIRA,
Maria Heloísa. “Reprodução e famílias escravas em Mariana (1850-1888) ”. (Dissertação de Mestrado,
Universidade de São Paulo, 2001); dentre outros.
123
identifica diversos casamentos de escravas após o batizado de mais de dois filhos, como, por
exemplo, as cativas Eugenia, que batizou cinco filhos entre 1840-1866 e casou-se com Diogo,
em 1868, e Rosa, que contraiu matrimônio com Amaro em 1868, depois do batizado dos
filhos Aleixo (1866) e Elidia (1868). Após o cruzamento e análise criteriosa de fontes
variadas, a autora conclui que:
[...] o cálculo das taxas de ilegitimidade das crianças escravas baseado nos
assentos de batismos nos diz muito pouco acerca da realidade vivida pelas
famílias. Taís índices revelariam uma ilegitimidade formal, ou seja, do ponto
de vista legal, que poderia estar muito distante da prática. Mesmo levando
em conta que não é possível saber ao certo se todas as crianças tidas antes do
casamento eram filhas do mesmo homem que se casa com a mãe delas,
acreditamos que o mais importante é a presença desse pai ou padrasto na
socialização dessas crianças.245
245
Rocha. Histórias de Família..., p. 101.
124
de Asevedo, ambos solteiros e livres.246 Dois anos depois, batizaram o filho Agostino, com
dois meses de idade, se apadrinhando com José Joaquim Cordeiro, casado, e a solteira Maria
Lisarda de Jesus, ambos livres.247 O casal festejou os batismos dos filhos ao lado de amigos,
vizinhos escravizados e livres e, também, do proprietário Jeronymo de Sousa Gomes, que teve
aumento em sua posse escrava com o nascimento de Vicente e Agostino. Com o passar do
tempo, quase seis anos depois, Raimundo e Maria tiveram novos motivos para comemorar:
em 1852, batizaram a filha Francisca, de um mês e meio de idade. Na ocasião, escolheram,
para padrinho da filha, Gonçallo Garcia de Moraes e, para madrinha, Anna Sofia de Azevedo,
livres. 248 (Ver histograma 10).
Esses dados reforçam, mais uma vez, a intensa relação dos escravos Raimundo e
Maria com a família Azevedo e uma forte relação com pessoas de estatutos jurídicos e sociais
diferentes do seus, visto que todos os compadres e comadres do casal foram pessoas livres.
Ainda pode indicar a quantidade de escravos(as) pertencentes a Jeronymo Gomes, a qual, a
priori, sugere que o proprietário possuía poucos escravos(as), com parcas opções de escolhas
para padrinhos e madrinhas. Numa perspectiva senhorial, esses dados apontam que o
proprietário optou pela manutenção da posse escrava via reprodução natural, com prováveis
“incentivos” à formação de famílias.249
Robert Slenes, ao estudar “senhores e subalternos no oeste paulista”, nos chama a
atenção para as duas “faces” da família escrava, visto que, por um lado “transformava os
cativos em ‘reféns’, tanto de seus próprios anseios quanto do proprietário [...] além disso,
estava associada ao sistema de incentivos senhoriais: daí um de seus atrativos para os
escravos”;250 por outro, as escolhas pessoais por companheiros(as) livres ou cativos(as) de
outras fazendas permitem entrever nos arranjos cotidianos desses sujeitos pela sobrevivência,
nos quais “[...] as tramas senhorias iam ao encontro de certas estratégias dos cativos para lidar
com um mundo inseguro em extremo”.251
246
Livro de registro de batizados século XIX. Assentos dos Batismos que foram feitos fora da Matriz do
Santíssimo Sacramento da Vila do Rio de Contas / 1838 – 1859, fl. 77f. Acervo da Paróquia do Santíssimo
Sacramento de Rio de Contas. Diocese de Livramento de Nossa Senhora – BA.
247
Ibid, fl. 79.
248
Ibid, fls. soltas, sem numeração.
249
Infelizmente, não foi localizado no Arquivo Municipal de Rio de Contas o inventário de Jeronimo de Souza
Gomes, por isso, não se teve como aprofundar a discussão sobre a vida escrava na posse do referido senhor.
Conquanto, sobre reprodução natural e posse escrava ver o capitulo 1.
250
SLENES, Robert W. “Senhores e Subalternos no Oeste Paulista”. In. NOVAIS, Fernando A. (Cord.);
ALENCASTRO, Luiz Felipe de (org). História da Vida Privada no Brasil: cotidiano e vida privada na América
portuguesa. São Paulo: companhia das Letras, vol.2, 1997, pp. 233-290, p. 276.
251
Ibid. p. 268.
125
Histograma 10: Redes de convívio: laços familiares e sociais do casal Raimundo e Maria,
escravos de Jeronymo de Sousa Gomes, 1844-1852252
252
Acervo da Paróquia do Santíssimo Sacramento de Rio de Contas. Diocese de Livramento de Nossa Senhora –
BA. Livro de registros de batizados século XIX. Assentos dos Batismos que foram feitos fora da Matriz do
Santíssimo Sacramento da Vila do Rio de Contas / 1838 – 1859, fls 77, 79 e fls. soltas, sem numeração.
253
Ver discussão no tópico 2.1 Uniões ao pé do altar.
126
foi de escravos homens casando-se com mulheres livres pobres, os quais ratificam os dados
apresentados nas atas de casamentos.
O escravo Ricardo, pertencente a D. Anna Rosa, e a esposa Ignes Maria de Jesus,
livre, batizaram, ao menos, dois filhos: Emília, crioula, e João, pardo, “livres”. Emília foi
batizada com um mês e idade, no dia 02 de fevereiro de 1860 e teve como padrinhos Tiburcio
Araujo Maciel e Francisca Rosa de Victoria. O batizado de João ocorreu no povoado Olho
d’Agua do meio, continente de Villa Velha, no dia 15 de junho de 1862, na época em que
tinha três meses de idade e os padrinhos foram Juvencio de Araujo Bransiliense e Felippa
Maria da Silva, todos livres.254 Outro casal misto que batizou, no mínimo, dois filhos foi
Pedro, escravo, pertencente a José Rodrigues da Mata, e Maria da Conceição, livre. As filhas
Gracinda e Benedicta, pardas, foram batizadas na Capela de Nossa Senhora da Conceição, na
Fazenda dos Cristaes, continente de Vila Velha. O casal consolidou os laços de compadrio
com os livres Benedicto de Sant’Anna e Florentina Maria do Sacramento padrinhos da
pequena Gracinda, em 1861, e dois anos depois com Benedicto Antonio da Silva e Camila
Maria da Conceição, também livres, os padrinhos da caçula Benedicta.255 Por fim, o escravo
Januario, pertencente ao Major José Thomas de Novaes, e Felismina Ribeiro da Conceição,
livre, que batizaram a filha Maria, no dia 18 de janeiro de 1857, na “Capela do Senhor do
Bomfim da Boa Sentença, continente de Casa de Telha”. Na ocasião, a pequena Maria estava
com cinco meses de idade e recebeu os santos óleos nos braços dos padrinhos Caetano
Ribeiro Guimaraes e Carlota Candida de Jesus, livres.256
As vivências entre esses sujeitos, certamente, fizeram nascer sentimentos de
afetividade, amizade e solidariedade, que resultaram em casamentos e apadrinhamentos dos
filhos, tecendo, assim, as suas redes de convívio e sociabilidade. Fragmentos da vivência
conjunta entre escravos, libertos e livres (pobres e ricos), podem ser observadas nas redes
sociais tecidas pelo casal Jose de Borba Galo, liberto, e Luduvina, escrava, pertencente ao
senhor Vencesllão Jose da Silva.
Tudo indica que Jose, liberto, e Luduvina, escrava, casaram-se no final da década de
1830 e tiveram uma vida conjugal duradoura. Em 1837, nasceu o filho legítimo, o
254
Acervo da Paróquia do Santíssimo Sacramento de Rio de Contas. Diocese de Livramento de Nossa Senhora –
BA. Livro de registros de batizados realizados nas Capelas e filiais da Matriz desta Freguesia do Santíssimo
Sacramento da Vila de Nossa Senhora do Livramento do Rio de Contas.1856 a 1863, fls. 167 e 182,
respectivamente.
255
Ibid. fls. 174v e 198v, respectivamente.
256
Ibid. fl. 51f/v.
127
257
Manoel faleceu no dia 18 de novembro de 1882, com 45 anos, escravo, pertencente a Joaquim Jose de Abreu
e seus pais, na ocasião, já haviam falecidos. Acervo da Paróquia do Santíssimo Sacramento de Rio de Contas.
Diocese de Livramento de Nossa Senhora – BA. Livro de registro de óbitos da Matriz e suas filias: Nossa
Senhora Santana, Nossa Senhora do Rosário e do Cemitério Paroquial. 1874 a 1915, fl. 43f.
258
Não foi localizado no AMRC o inventário do padrinho Sebastião do Bomfim, porém, ele aparece como
inventariante e herdeiro, pelo menos, em dois inventários: No de Maria Angélica da Conceição, aberto em 1867,
com monte mor alçado em Rs.8:752$930, cujos bens declarados foram escravos, propriedades, gados, cavalos,
entre outros, e no de Virginia Maria de Jesus, aberto em 1884, monte mor somando Rs. 3:291$000. Além disso, a
pesquisa nos registros eclesiásticos atesta que Sebastião possuía, no mínimo, 20 escravos. A madrinha D. Anna
Rita era esposa de Venceslau Jose da Silva e teve os bens avaliados em 1885, com monte mor de cerca de 2
contos. Cabe ressaltar que a posse escrava do casal, perscrutada nos registros paroquiais, foi de 23 escravos.
AMRC. Seção Judiciário. Série Inventários. ID: Maria Angelica da Conceição. Cx 89 / Est 03 / Prat 03 / Mç
1174 / Doc 1.228 / auto com 27 folhas. ID: Virgínia Maria de Jesus. Cx 101 / Est 03 / Prat 05 / Mç 194 / Doc
1.430 / auto com 23 folhas. ID: Ana Rita de Jesus. Cx 102 / Est 03 / Prat 05 / Mç 197 / Doc 1.457 / auto com 28
folhas.
259
Acervo da Paróquia do Santíssimo Sacramento de Rio de Contas. Diocese de Livramento de Nossa Senhora –
BA. Livro de registro de batizados século XIX. Assentos dos Baptismos que foram feitos fora da Matriz do SS
Sacramento da Villa do Rio de Contas / 1838-1859, p. 53 e 81, respectivamente.
128
Histograma 11: Redes de convívio: laços familiares e sociais do liberto Jose Borba Galo e da
esposa Luduvina, escrava, 1843-1849260
Desse modo, esses espaços de autonomia experimentados pelo casal “[...] podia
significar, no mínimo, uma melhor sobrevivência ao cativeiro, quando não a liberdade”.261
Conforme Chalhoub, “a liberdade pode ter representado para os escravos, em primeiro lugar,
o espaço de autonomia de movimento e de maior segurança na constituição das relações
afetivas”.262
A pesquisa aos registros de batismos identificou que muitas famílias escravas em
Minas do Rio de Contas, nos períodos de 1838-1863 e 1887-1888, foram constituídas por
mães solteiras e seus filhos naturais, as quais encabeçaram a maioria dos fogos familiares,
criaram os filhos dentro dos limites da vida sob o jugo do cativeiro e buscaram ampliar e
260
Livro de registros de batizados século XIX. Assentos dos Batismos que foram feitos fora da Matriz do
Santíssimo Sacramento da Vila do Rio de Contas / 1838-1859, fls. 53 e 81 e Livro de registros de óbitos da
Matriz e suas filias: Nossa Senhora Santana, Nossa Senhora do Rosário e do Cemitério Paroquial. 1874 a 1915,
fl. 43f. Acervo da Paróquia do Santíssimo Sacramento de Rio de Contas. Diocese de Livramento de Nossa
Senhora – BA.
261
SILVA. Ricardo Tadeu Caires. “Os escravos vão à Justiça: a resistência escrava através das ações de
liberdade. Bahia, século XIX”. (Dissertação de Mestrado. Universidade Federal da Bahia, 2000), p. 64.
262
Chalhoub. Visões da Liberdade..., p.98.
129
proteger sua parentela.263 Por outro lado, demonstrou famílias legítimas nucleares (pai, mãe,
filho) convivendo juntas, envolvidas por intensas relações consanguíneas e espirituais
(compadrio). Logo, os laços familiares construídos por esses sujeitos ocasionaram a formação
de comunidades escravas e o fortalecimento do convívio familiar.
Vale salientar que, embora o perfil das famílias escravas, em Minas de Rio de Contas
oitocentista, possa ser considerado como, predominantemente, de uniões consensuais, o
diálogo com os autores supracitados e o cruzamento do conjunto documental pesquisado
demonstram o quanto eram múltiplas as relações afetivas desses segmentos, assim como suas
experiências, as quais estavam atreladas às especificidades do tempo e do espaço, ou seja, ao
“chão social” em que eles “pisavam”.
Desse modo, percebe o quanto foram fluidas as relações sociais, quiçá, as afetivas de
escravos e libertos. Por isso, ainda que os registros de batismos possam oferecer um perfil das
famílias escravas, as relações conjugais desses sujeitos foram muito mais complexas do que a
distinção entre famílias legítimas e consensuais.
Os registros de batismo que “forão feitos fora da Matriz do SS. Sacramentos da Villa e
Minas do Rio de Contas” evidenciaram laços consanguíneos e espirituais de famílias escravas,
que teceram redes de amizades e conseguiram ampliar suas relações de sociabilidade,
estabelecendo relações verticais de compadrio com pessoas de diferentes estatutos jurídicos e
sociais e horizontais, escolhendo compadres/comadres no meio dos seus. Essas fontes, além
de revelar possíveis significados, que excedem a dimensão religiosa cristã do batismo,
suscitam possibilidades de acompanhar os arranjos de sobrevivências e a trajetória de vida de
escravos e libertos, a partir de suas próprias escolhas. Nesse sentido, viabilizam perceber os
“papéis informais que escapam aos papéis prescritos, às normas, às institucionalizações,
situados num espaço intermediário entre a norma e ação dos agentes históricos”.264
263
O termo “fogos” utilizado no texto significa domicílios. Para maiores detalhes, ver: Slenes. Na Senzala
uma...; CUNHA, Maísa Faleiros da. “Fogos e escravos da Franca do Imperador no século XIX”. (Dissertação de
Mestrado. Universidade Estadual de Campinas, 2005); dentre outros.
264
Dias. “Teoria e Métodos...”, p. 50.
130
Cabe retomar, brevemente, as vivências das escravas Valentina e Ilaria presentes nos
assentos de batismos dos filhos, citadas anteriormente. No ano de 1843, Valentina, mãe
solteira, escrava, pertencente a Domingos Fernandes de Sousa, levou o filho Roberto, de um
mês de idade, para ser batizado na casa do fazendeiro Domingos Fernandes da Costa, no
Brejo, povoado da Vila e Minas do Rio de Contas. Na ocasião, escolheu, para padrinho,
Bento, escravo de D. Anna Maria de Jesus, e, para madrinha, Prissianna, também escrava,
pertencente a Joaquim Pires. No mesmo dia, a escrava Ilaria também batizou o filho natural,
Antonio, cabra, com um mês de idade. Diferente da companheira de cativeiro, a escrava Ilaria
optou por compadres livres e de uma mesma família: para padrinho, Agostinho Correia de Sá
e Maria Custodia de Jesus, sua irmã, para madrinha. Os batismos dos pequenos Roberto e
Antonio foram realizados pelo reverendo Manoel da Silva Leite, em atos de desobriga no dia
primeiro de maio. 265
Na análise da formação do casal de padrinhos, foi possível perceber que a escrava
Valentina optou por constituir e formalizar os laços de compadrio no meio dos seus, não se
limitando aos companheiros de cativeiro. Escolheu, para padrinho do filho Roberto, o escravo
Bento, pertencente a D. Anna Maria de Jesus, e Prissianna, escrava de Joaquim Pires, para
madrinha. As escolhas de Valentina facultam inferir que suas relações de amizade e
sociabilidade estenderam-se a outras posses escravas. Certamente, transitava entre os arraiais,
fazendas, povoados e vila da região, dividindo entre os seus as alegrias e os anseios da difícil
vida no cativeiro. Dada a sua mobilidade espacial, infere-se certo grau de autonomia.
Possivelmente, fortalecer as relações de vizinhança e solidariedade entre os(as) escravos(as)
poderia garantir a Valentina algum prestígio dentro da comunidade escrava e ampliar a
força/resistência da sua família contra prováveis contratempo dentro ou fora do cativeiro.
Já a escrava Ilaria fez escolhas diferentes: seus compadres foram pessoas livres, de
posses, com certo prestígio na sociedade riocontense da época e membros de uma mesma
família. A escolha dos irmãos Agostinho Correia de Sá e Maria Custodia de Jesus como
compadres poderia assegurar-lhe certa proteção e estabilidade familiar, principalmente, caso
houvesse o risco de desbaratamento da sua família por meio da venda de algum dos membros
para outra região ou província.266
265
Acervo da Paróquia do Santíssimo Sacramento de Rio de Contas. Diocese de Livramento de Nossa Senhora –
BA. Livro de registros de batizados século XIX. Assentos dos batismos que foram feitos fora da Matriz do
Santíssimo Sacramento da Vila do Rio de Contas / 1838 – 1859. fl. 54v.
266
AMRC. Seção Judiciário. Série Inventários. ID: Agostinho Correia de Sá. Cx 86 / Est 03 / Prat 03 / Mç 169 /
Doc 1.169 / auto com 25 folhas.
131
Tabela 13: Estatutos jurídicos dos compadres e comadres dos escravos da Freguesia do
Santíssimo Sacramento do Rio de Contas, 1838-1859
Padrinhos Madrinhas
Estatutos jurídicos
Quantidades % Quantidades % Total %
Livres 510 66,2 459 59,3 969 62,7
Escravos(as) 175 22,7 193 24,9 368 23,8
Indeterminados(as) 69 8,9 81 10,5 150 9,7
Libertos(as) 6 0,8 6 0,8 12 0,8
Não consta 11 1,4 20 2,6 31 2,0
Santo(a) Católico - - 10 1,3 10 0,6
Não Teve - - 5 0,6 5 0,4
TOTAL 771* 100 774* 100 1545 100
Fonte: Livros de registros de batizados século XIX. Assentos dos Batismos que foram feitos fora da Matriz do
Santíssimo Sacramento da Vila do Rio de Contas / 1838 – 1859, 1856 – 1863 e 1887 – 1905. Acervo da Paróquia
do Santíssimo Sacramento de Rio de Contas. Diocese de Livramento de Nossa Senhora – BA
Talvez essa tenha sido a situação vivenciada pelo casal Joaquim, africano, e Carlota,
cabra, escravos, pertencentes ao Capitão Antônio Calisto de Oliveira, ao escolher os
compadres e comadres no batizado dos filhos Benedicto, Severa e Appollinaria, nos anos de
1857, 1860 e 1862, respectivamente. Vale relatar as experiências dessa família ao estabelecer
alianças sociais dentro e fora do cativeiro, mediante os laços de compadrio.268
A escrava Carlota, natural de Minas do Rio de Contas, concebeu o “primogênito” do
casal aos vinte e quatro anos de idade, na época, o esposo Joaquim, mais novo que ela quatro
anos, estava em pleno vigor físico. O nascimento do filho Benedicto, cabra, foi a consumação
dos votos do matrimônio e a esperança do africano Joaquim de (re)constituir sua vida no
âmbito familiar, visto que havia vivenciado o desmantelo dos seus laços familiares
constituídos na África ao ser traficado, não se sabe com quantos anos, como escravo para o
Brasil. Pode-se atestar que o casal teve uma vida conjugal intensa que durou, no mínimo,
trinta anos e gerou, ao menos, três filhos. Com o nascimento do filho, em 1857, os laços
familiares de Joaquim e Carlota foram ampliados, os quais se estenderam a Joaquim Dias da
Silva e Honoria Maria de Jesus, livres, ao batizarem o pequeno Benedicto, com um mês de
idade. O batizado foi realizado na Fazenda Jatobá, continente do Arraial da Villa Velha, pelo
padre Jeronymo Dantas Barbosa. Quase três anos depois, em 17 de agosto de 1860, o casal
estava, novamente, constituindo os laços de compadrio. Dessa vez optou por estreitar as
relações com Domingos, escravo, pertencente a Francisco Xavier, e Joaquina de Lima, livre,
moradores no continente de Villa Velha. Na ocasião, a filha do “meio”, Severa, cabra, estava
com dez dias de nascida e recebeu o sacramento do batismo pelo referido padre na Fazenda
Lenções, localizada, também, no continente de Villa Velha. Em 1862, o casal estreitou suas
relações de amizade e sociabilidade com os compadres Raimundo Alves Pereira e sua esposa
Maria Bernardina de Jesus, livres, formalizadas no batizado da filha Appollinaria, cabra, de
um mês de idade, realizado no Sitio Fazendinha, no mesmo continente.269 As escolhas dos
267
Slenes. “Senhores e Subalternos...”, p. 271.
268
Acervo da Paróquia do Santíssimo Sacramento de Rio de Contas. Diocese de Livramento de Nossa Senhora –
BA. Livro de registros de batizados realizados nas Capelas e filiais da Matriz desta Freguesia do Santíssimo
Sacramento da Villa de Nossa Senhora do Livramento do Rio de Contas. 1856 a 1863, fls. 67v, 134 e 187,
respectivamente.
269
Ibid.
133
270
Acervo da Paróquia do Santíssimo Sacramento de Rio de Contas. Diocese de Livramento de Nossa Senhora –
BA. Livro de registros de batizados realizados nas Capelas e filiais da Matriz desta Freguesia do Santíssimo
Sacramento da Vila de Nossa Senhora do Livramento do Rio de Contas. 1856 a 1863, fls. 67v, 134 e 187,
respectivamente.
271
AMRC. Seção Judiciário. Série Inventários. ID: Antonio Calisto de Oliveira. Cx 103 / Est 03 / Prat 06 / Mç
199 / Doc 1.476 / auto com 89 folhas. fl. 12.
134
Severa e Appollinaria não foram mencionadas no dito inventário e o filho Benedicto, na época
com vinte e sete anos, encontrava-se fugido. Na ocasião, Joaquim foi avaliado pela quantia de
Rs. 50$000, “o qual apresentou n’este dito a quantia de dôze mil trezentos e quarenta reis para
sua liberdade; e pelo herdeiro Victor Alves Pereira foi dito que tomara o restante em seu
quinhão, afim de desde já ser considerado livre este escravo”.272 A esposa Carlota, foi
avaliada em Rs. 120$000 e teve que aguardar mais quatro dias, depois de findo o inventário
para desfrutar da liberdade ao lodo do esposo.273
As escolhas desse casal permitem compreender a dinâmica das suas ações. Mesmo
transitando por outras paragens, constituindo e formalizando laços com pessoas livres e de
influências socioeconômicas em Minas do Rio de Contas, Joaquim e Carlota não se
desvincularam dos seus, convidando Domingos, escravo, como compadre. Ainda foi possível
perceber que, sempre que possível, eles utilizaram das experiências para fortalecer suas
alianças, conquistar espaços de autonomia, melhores condições de sobrevivência e a
liberdade. Logo, identifiquei que os laços familiares foram essências para vida cotidiana
desses sujeitos, os quais lhes possibilitaram arranjos sociais e, quiçá, ganhos econômicos,
permitindo-os constituir redes de sociabilidade e solidariedade.
Pode-se apontar, então, que a escolha por compadres e comadres livres em Minas do
Rio de Contas demonstra possíveis estratégias de escravos e libertos em de busca de proteção
social, quiçá, econômica, para suas famílias, pois, na medida em que ampliavam suas redes
sociais com pessoas livres, principalmente, com indivíduos de algum prestígio econômico,
poderiam “criar laços morais com pessoas de recursos, para proteger-se a si e aos seus
filhos”.274 Observei que, em alguns casos, os compadres e comadres eram pessoas que
mantiveram relações de vizinhança, amizade e que, possivelmente, dividiam as mesmas
angústias e labutas nos trabalhos diários nas roças, fazendas ou na vila. Noutras palavras,
esses padrinhos e madrinhas, provavelmente, não viviam distantes socialmente de seus
compadres, comadres e afilhados. Segundo Fátima Pires, os escravos e forros consolidaram
aproximações com livres pobres nas labutas cotidianas, as quais intensificaram com o ir e vir
entre as vilas e roças:
272
Ibid, fl. 8f/v.
273
Ibid, fl. 9v.
274
Slenes. “Senhores e Subalternos...”, p. 271.
135
Os resultados apontados nesse trabalho não diferenciam muito dos demais encontrados
para outras regiões da Bahia. Taiane Dantas Martins, na análise das relações de compadrio em
Xique-Xique, na Bahia, na segunda metade do século XIX, encontra elevada taxa de
padrinhos e madrinhas livres, 86 % e 82,5 % respectivamente. A autora sinaliza que “os
cativos foram progressivamente preferindo os livres para apadrinharem seus filhos que, a
partir de 1871, já não eram mais considerados escravos, sendo que o percentual de padrinhos
escravizados caiu de 24,5 para apenas 5,5 em pouco mais de uma década”.276 Gabriela
Nogueira, aponta que 65,8% dos padrinhos e 50,6 % das madrinhas dos escravos dos Guedes
de Brito, no sertão do São Francisco, no século XVIII, eram livres.277 Napoliana Santana,
pesquisando a mesma região, no século XIX, revela que houve um aumento na participação
dos livres nos apadrinhamentos de escravos, em relação ao século anterior, ou seja, 86 % e
75,3 % dos padrinhos e madrinhas, respectivamente, eram livres e 12,8 % padrinhos escravos
e 16,8 % madrinhas escravas. Esses dados podem ser compreendidos pelo aumento da
população livre pobre na região do São Francisco, visto que a maioria dos livres analisados
por Santana eram pardos e “[...] muitos deles viviam como agregados nas fazendas
pecuaristas e conviviam dia a dia com escravos, compartilhando dificuldades e arranjos de
sobrevivência”.278
A preferência de escravos por compadres e comadres livres foi observada fora da
Província da Bahia. Sílvia Maria J. Brügger, no estudo sobre apadrinhamento de cativos,
aponta resultados semelhantes aos apresentados por este estudo, para São João del Rei, entre
os anos de 1730-1850. Ao encontrar, em média, 62 % e 79 % de padrinhos e madrinhas livres,
respectivamente, a autora afirma que esse dado “[...] indica a intenção dos cativos de
estabelecer, através do compadrio, alianças ‘para cima’”.279 É interessante, também, na
pesquisa de Brügger, o índice elevado de madrinhas livres, sendo superior ao número de
padrinhos livres. Todavia, a autora não levanta uma análise minuciosa sobre essa diferença.
Esse dado, em especial, diferencia dos resultados encontrados para Minas do Rio de Contas
275
Pires. O crime na..., p. 72.
276
MARTINS, Taiana Dantas. “Da Enxada ao Clavinote: Experiências, Liberdade e Relações Familiares de
Escravizados no Sertão baiano, Xique-Xique (1850-1888) ”. (Dissertação de Mestrado, Universidade do Estado
da Bahia, 2010), p. 106.
277
Nogueira, “‘Viver por si’...”, p. 135.
278
Santana. “Família e microeconomia...”, p.67.
279
BRÜGGER, Silvia Maria Jardim. “Compadrio e Escravidão: uma análise do apadrinhamento de cativos em
São João del Rei, 1730-1850”. In: Anais do XIV Encontro Nacional de Estudos Populacionais. Caxambú: ABEP,
2004, p. 6.
136
280
Ibid, p. 4. Não foi possível conhecer este estudo de Ana Rios (“Família e Transição: Famílias Negras em
Paraíba do Sul, 1872-1920”, Dissertação de Mestrado, Universidade Federal Fluminense, 1990), porém,
considero pertinentes as colocações levantadas pela historiadora Silvia Brügger.
281
Ver discussão sobre a posse escrava em Minas do Rio de Contas oitocentista, no capítulo 1.
137
Antônia, escrava de José Joaquim Correia.282 Embora em quantidade menor que os livres
(62,7 %), os escravos padrinhos (22,7 %) e escravas madrinhas (24,9 %) estavam presentes no
sacramento religioso do batismo apadrinhando 368 crianças, ou seja, 23,8 % dos laços
familiares constituídos mediante o compadrio foram entre compadres e comadres cativas.
Marcia Vasconcellos, a partir da análise do compadrio em Angra dos Reis – RJ, no
século XIX, sinaliza que os momentos de mudanças econômicas e sociais, possivelmente,
interferiram nas escolhas por compadres e comadres cativos, sendo preciso levar em
consideração a “[...] diminuição da propriedade escravista e, talvez, também, a maior
mobilidade dos escravos na freguesia facilitando o conhecimento e as amizades entre
indivíduos separados pelos ‘muros’ das propriedades”.283
Em alguns casos, percebe que esses arranjos foram construídos de fora para dentro da
comunidade escrava, ou seja, foi a mãe livre, possivelmente, pobre, solteira, quem buscou
formalizar e reforçar os laços de compadrio com os escravos, como pode ser observado no
assento de batismo da pequena Maria, no ano de 1848:
No mesmo dia [03/02/1848] baptisou o dito Rev. á Maria parvula parda com
idade de oito dias filha natural de Francisca Maria de Jesus. Padrinhos José,
preto escravo de Francisco Jose dos Santos, e Messias escrava de Maria
Rosa de Faria, todos deste continente. Do que para constar, este mandei
faser, no qual me assigno. O P. Jeronymo Dantas Barbosa. 284
Ao que tudo indica, Francisca Maria de Jesus, livre pobre, tinha estreita relação de
amizade, confiança e vizinhança com o preto José, possivelmente, africano, escravo de
Francisco José dos Santos e com a escrava Messias, pertencente a Maria Rosa de Faria, pois
os escolheram para padrinho e madrinha da pequena Maria, filha natural, de apenas oito dias
de idade.
De acordo com a análise do conjunto documental utilizado nesse trabalho, foi comum
a proximidade entre escravos e livres (pobres e ricos) em Minas do Rio de Contas, no
Oitocentos, visto que muitos cativos os escolheram para tecer laços familiares, sejam
conjugais ou espirituais (padrinho ou madrinha). Portanto, o batismo da pequena Maria
(citado acima) reforça essa assertiva e demonstra que a hierarquia sociojurídica entre escravo
e livre é relativizada em um jogo de estratégias e arranjos de sociabilidade estabelecidos em
282
Arquivo da Paróquia do Santíssimo Sacramento de Rio de Contas. Diocese de Livramento de Nossa Senhora-
BA. Livro de registros de batizados século XIX. Assentos dos Batismos que foram feitos fora da Matriz do
Santíssimo Sacramento da Vila do Rio de Contas / 1838 – 1859, folhas soltas.
283
Vasconcellos. “Famílias escravas em...”, p. 167.
284
Ibid, fl. 102, grifos meus.
138
prol do apoio mútuo. Assim, as redes verticais de solidariedade, constituídas entres esses
segmentos, não excluem os laços de relações horizontais. Desse modo, pode-se pensar na
possibilidade de os escravos José e Messias terem condições socioeconômicas mais elevadas
ou correspondentes ao de Francisca Maria de Jesus e no prestígio desses sujeitos dentro e fora
da comunidade escrava.
A formação dos pares de padrinhos das crianças batizadas “fora da Matriz do SS
Sacramento” é um aspecto importante a ser considerado nas análises sobre compadrio em
Minas do Rio de Contas. Como já apontado na tabela 13 os cativos e os libertos tinham
preferência por pessoas livres para apadrinhar seus filhos. Essa tendência foi observada
também na análise da formação dos casais de compadres e comadres, conforme a tabela 14.
Tabela 14: formação dos padres de padrinhos e madrinhas dos escravos e libertos – Minas do
Rio de Contas, 1838-1888
MADRINHA
Livre Escrava Indet. Liberta S/C1 N/C2 N/T3 Total
Livre 434 36 17 2 6 11 4 510
Escravo 14 150 3 2 - 5 1 175
PADRINHO
Indeterminado 7 2 59 - - 1 - 69
Liberto - 3 - 2 - - - 5
Santo Católico - - - - - - - -
Não consta 4 4 2 - - 3 - 11
Não teve - - - - - - - -
Total 459 195 81 6 6 20 5 1540
Fonte: Livros de registros de batizados século XIX. Assentos dos Batismos que foram feitos fora da Matriz do
Santíssimo Sacramento da Vila do Rio de Contas / 1838-1859, 1856-1863 e 1887-1905. Acervo da Paróquia do
Santíssimo Sacramento de Rio de Contas. Diocese de Livramento de Nossa Senhora – BA
1: Santo Católico 2: Não consta 3: Não Teve
285
Acervo da Paróquia do Santíssimo Sacramento de Rio de Contas. Diocese de Livramento de Nossa Senhora –
BA. Livro de registros de batizados século XIX. Assentos dos batismos que foram feitos fora da Matriz do
Santíssimo Sacramento da Vila do Rio de Contas / 1838-1859, fl. 57.
286
Ibid, fl. 77v.
140
287
Machado. “As muitas faces...”, p. 75.
141
4.1. Alguns aspectos das condições de vida e saúde: As doenças e as causas das mortes de
escravos, ingênuos e libertos no alto sertão.
288
Santana. “Família e microeconomia...”, p. 34.
142
289
Pires. O crime na..., p. 64.
290
KARASCH, Mary C. A vida dos escravos no Rio de Janeiro (1808-1850). São Paulo: Companhia das Letras,
2000, p. 184.
291
Ibid, p. 207.
143
Quadro 02: Causas das mortes de escravos, ingênuos e libertos nos registros de óbitos,
1840-1888.
Causa dos óbitos Quant. Causa dos óbitos Quant. Causa dos óbitos Quant.
1 12
Desastres 05 Engasgamento 01 Moléstia interior 41
Achada morta2 05 Esquinência 01 Mordedura de cobra 02
Afogamento3 03 Estupor 15 Não Consta 108
Alienação mental 02 Execução14 01 Naturalmente 02
Amarelão 01 Febre 27 Pancadas 01
Angina 02 Febres – variadas9 11 Paralisia 01
Apoplexia 07 Feridas10 06 Parto ou consequência 12
Apostema4 02 Fome 04 Peito arrebentado 01
Athsma 01 Gastro-interiles 01 Peste da bexiga 20
Bronchite 01 Hemorragia 03 Phtysica13 15
Catarrão 13 Hidropesia 17 Pleuris 05
Congestão5 03 Indeterminada 31 Pneumonia 03
Constipação 05 Indigestão 04 Pobreza 01
Contusões 02 Inflamação 18 Queimaduras 13
Convulsões 01 Inflamações – variadas11 18 Repentinamente 07
Coqueluxe 06 Intrevação 01 Retenção urinaria 02
Coração6 02 Inxação 14 Rheumatismo 01
Cranco7 02 Lepra 01 Sarampo 09
Defluxo 04 Logo após o nascimento 07 Sarnas 03
Dentição 10 Lombrigas 01 Syphilis 02
Diabetes 01 Mal da gota 01 Tetano 01
Diarreia 04 Mal de sete dias 02 Tosse 14
Doente do vento 01 Mal do umbigo 07 Tumor na cabeça 01
Dores8 06 Maligna 09 Velhice 14
TOTAL 569
Fonte: Livros de registros dos óbitos da Freguesia de Nossa Senhora do Livramento da Vila do Rio de Contas
e das Filias da Freguesia do Santíssimo Sacramento da Vila de Minas do Rio de Contas. 1825-1914 e 1836-
1861.
1
Decorrente de alguma desavença: Morte por facada 03; por tiro, 01 – 2 Supõe por afogamento 01; por
vertigem 01; Deitada na rede 01; Deitada de sangue 01 – 3 Com aleitamento materno 01 – 4 Nos rins 01 –
5
Cerebral 01 – 6 Por ossificação 01; por hypertrophia 01 – 7 No nariz 01 – 8 Na barriga 03; no coração 01;
aguda 01 – 9 Maligana 05; Intermitente 01; Typhica 03; Puerperal 01; Podre 01 – 10 Nas pernas 02; na
goelas 01; Gallicas 01 – 11 Internas 06; No estmago 03; No intestino 03; No útero 02; Nos bofes e tripas 02;
No fígado 01 – 12 Desconhecidas 06; No coração 02; No cerebro 02; Interior 02; No estomago 01; Galliscas
01; Do tempo 01; Repentina 01; No peito 01; Na barriga 01 – 13 Pulmonar 04; Laryngea 01 – 14 Executado
em praça pública na forca, por ter sido condenado por crime de morte.
As causas mortis de escravos, ingênuos e libertos no alto sertão evidenciam uam dieta
alimentar e carência de assistência medica básica. As más condições de trabalho, de vida e de
moradia a que esses segmentos estavam submetidos poderiam transmitir doenças e se
contaminar facilmente. A consequência da dura e degradante vida escrava pode ser percebida
nas mortes ocasionadas por doenças disseminadas entre escravos da mesma posse, em
especial, na diminuição do tempo de vida das crianças cativas e ingênuas, como mostra o
quadro 03 abaixo.
144
292
CASTRO, Manoel Candido de Oliveira. Castro: ‘Tesouro de família’ – histórias, estórias e genealogias da
família Castro. Olímpia: S.C. de O. Castro, 2002, p. 247.
293
Ibid.
294
Acervo da Paróquia do Santíssimo Sacramento de Rio de Contas. Diocese de Livramento de Nossa Senhora –
BA. Livro de registros de óbitos da Freguesia de Nossa Senhora do Livramento da Vila do Rio de Contas. 1825 a
1874, fl. 92-v.
146
passaram pelo hospital. Foram examinadas e medicadas pelo Dr. José de Aquino e tudo indica
que não tiveram o mesmo fim que o escravo Manoel, haja vista que, nos livros analisados,
não constam os respectivos registros de óbitos, pelo menos até o ano de 1888.
Dona Maria Victoria também se favoreceu dos serviços prestados pelo médico
Tanajura, tratou de uma séria “inflammação dos intestinos”, da qual padecia a quase seis
meses, falecendo em onze de junho de 1858.295 Ela seguia piamente o tratamento prescrito
pelo Doutor, o qual realizava visitas periódicas em sua residência, no Sítio d’Outra Banda, a
fim de examiná-la, prescrever e vender alguns remédios. Os outros medicamentos
complementares, a enferma mandava buscar na Vila das Minas do Rio de Contas, onde eram
vendidos na botica do major Jose Joaquim de Oliveira Rocha.296 De acordo aos dados
analisados em seu inventário, os gastos que tivera com a sua saúde e de alguns dos seus
escravos correspondem a mais de 57% da dívida passiva do casal, sendo que as maiores
despesas foram com o seu tratamento.297 Veja a conta apresentada pelo médico, cujos valores
foram pagos com o dinheiro da alforria da escrava Justina, costureira:298
Cabe destacar aqui o cuidado que a senhora Gomes teve com a saúde de seus escravos,
ou, pelo menos, com a de Manoel e das três escravas, pois, a priori, não os deixou padecer
sem um tratamento médico. Tal atitude pode ser explicada pelo auto preço dos seus cativos,
que variou entre Rs. 2:000$000, referente ao escravo Eduardo, pardo, de vinte e cinco anos de
idade, arrieiro, e Rs. 200$000, concernente a caçulinha, Joanna, cabra, com três meses de
295
Ibid. Livro de registros de óbitos das filiais da freguesia do Santíssimo Sacramento da Vila de Minas do Rio
de Contas. 1839 a 1861, folha sem numeração.
296
APMRC. Seção Judiciária. Série Inventários. ID: Maria Victoria de Souza Gomes. 1858-1864. Cx 84 / Est 03
/ Prat 02 / Mç 165 / Doc 1105 / auto com 42 folhas, fl. 18.
297
Ibid, fl. 11.
298
Ibid, fl. 23.
299
Ibid, fl. 19.
147
idade, filha presumivelmente natural da costureira Justina. A fazendeira possuía vinte dois
cativos, sendo sete mulheres e quinze homens, avaliados em Rs. 26:700$000, correspondendo
a 53,35% do seu patrimônio.300
Os estudos de Maria de Fátima Pires, sobre o preço dos escravos no alto sertão da
Bahia, no século XIX, corroboram com esta análise. Dos 200 sujeitos encontrados nos
inventários de Rio de Contas, 31 apresentavam algum tipo de doença e/ou deformidade física
e, segundo a historiadora, “essas enfermidades influenciavam os ‘preços dos cativos’”.301
A pesquisadora Napoliana Santana demostra que, no Sertão do São Francisco, no
século XIX, o preço do cativo estava relacionado a alguns aspectos da vida escrava, como
funções desenvolvidas, gênero, idade e demanda de mercado, inclusive, ao seu estado de
saúde. A autora, ao analisa os inventários da antiga comarca do Santo Antonio do Urubu de
Cima, demonstra como o estado de saúde do escravo influenciou em sua avaliação no
momento em que o inventariante declara a riqueza da família e identifica alguns proprietários
sertanejos que buscaram tratamentos médicos e/ou alternativos para a cura das moléstias de
seus cativos, a fim de assegurarem o seu valioso “bem”. Contudo, Santana explicita que nem
todos os escravos enfermos e idosos tiveram o cuidado de seus senhores, muitos sujeitos “[...]
após anos de dedicação aos seus proprietários, tinham que conviver com o desprezo por não
ter mais condições físicas para se submeter aos ritmos intensos de trabalho”, além de
conviverem com o fantasma do desbaratamento dos laços de família constituídos após anos de
luta.302 Em alguns casos esta separação foi efetivada com a justificativa senhorial de preservar
o seu patrimônio, o que, decerto, causou novas dificuldades para a vida escrava.
Os registros de óbitos da freguesia de Nossa Senhora do Livramento e das filias da
freguesia do Santíssimo Sacramento da Vila de Minas do Rio de Contas, do ano de 1840-
1888, apresentaram um número de 569 escravos, libertos e ingênuos que faleceram nesse
período e tiveram seus corpos encomendados pelos párocos, alguns recebendo os santos
sacramentos, outros não.303 Desse total, 363 são referentes aos assentos dos escravos, o
equivalente a 63,8%, 77 dos libertos, correspondendo a 13,5% e 129 registros de filhos de
cativas que nasceram livres, após setembro de 1871, o que equivale a 22,7%, consoante os
dados abordados nas tabelas 15 abaixo.
300
Ibid, fl. 6-v a 8. O termo presumivelmente natural significa que, a partir da análise deste documento, não
identifiquei o nome do pai, tendo apenas especificado o da mãe, sugerindo que mãe fosse solteira e a criança
filha natural, por isso a utilização do presumível. Conferir no capítulo seguinte a discussão sobre a legitimidade
dos filhos de escravas, casamentos e uniões consensuais, no alto sertão, no período em estudo.
301
Pires. O crime na..., p. 62.
302
Santana. “Família e microeconomia...”, p. 36.
303
O termo ingênuo refere-se somente aos filhos de mães escravas nascidos após a Lei de nº 2.040 de 28 de
setembro de 1871 (Lei do Ventre Livre).
148
Tabela 15: Quantidade de óbitos assentados nos livros de registros da freguesia de Nossa Senhora do
Livramento e das filias da freguesia do Santíssimo Sacramento da Vila do Rio de Contas, 1840-
1888.
304
APEB: Seção Colonial e Provincial. Fundo: Governo da Província. Série: Juízes de Minas do Rio de Contas
(1827-1859). Maço: 2483 (não classificado), 1849, página sem numeração. Correspondência do Vigário
Jeronymo Dantas Barbosa ao Dr. Juiz de Direito da Comarca, Felis Ribeiro Rocha, 22 de fevereiro de 1849.
305
Ibid, 20 de fevereiro de 1849.
306
Ibid, correspondência do Conego Vigário José de Souza Barbosa ao Juiz Municipal Provedor das Capellas,
Major José Joaquim de Oliveira Rocha, 12 de outubro de 1845.
149
juiz de direito interino da comarca, Ermano Domingues, argumentava que a imprecisão dos
números ocorre também pela falta de interesse dos “subdelegados e Juizes de Paz deste
Termo” ao cumprirem seus deveres.307
Para além dos dados quantitativos, a leitura dos registros de óbitos permite analisar
alguns aspectos do cotidiano da população sertaneja, com ênfase nos escravos, libertos,
ingênuos e livres pobres, sujeitos mais vulneráveis a contrair doenças devido às suas precárias
condições de vida e que, muitas vezes, ao compartilhamento das labutas pela sobrevivência.
As décadas de 1840 a 1860 foram marcadas, sobretudo, pelas fortes estiagens que
ocorreram na Bahia, inclusive no alto sertão causando fome, pobreza, morte e a migração de
muitos sertanejos, fosse livre, escravo ou liberto.308 Nesse período, Felix da Costa, de mais de
trinta anos de idade, escravo, pertencente ao casal de finado José Thimoteo; João, cabra, de
trinta anos de idade, escravo, pertencente a Joaquim de Almeida Pina e José, crioulo, “escravo
do Baptista do Districto do Morro do Fogo, prezo nas Cadeias desta Villa por ter morto o seu
senhor”, morreram de fome. Tal fim também ocorreu como o liberto Crispiniano de Tal,
pardo, de mais de setenta anos de idade e os livres Marcellino Ferreira da Cruz, “criolo,
cazado, prezo nas Cadeias desta Villa por furto, morador da Fazendinha, de sessenta annos de
idade”; Manuel Ignácio Pinto, “criolo, cazado, Official de justiça, morador desta Villa” e
Maria “parvula, parda, filha de Joaquim Antônio Cordeiro, de idade de sete annos”; entre
outros.309 Conforme anotações do pároco nas margens dos assentos, esses sujeitos receberam
os sacramentos por caridade e/ou gratuitamente; uns foram enterrados no adro da Matriz do
Santíssimo Sacramento e outros na Igreja do Rosário.
A falta de alimentos causou a morte de muitos sertanejos no alto sertão da Bahia e
interferiu diretamente na vida cotidiana dos sobreviventes, demarcando lugares,
reestruturando e restabelecendo diversas relações, inclusive políticas, como as intervenções
dos párocos e de alguns sujeitos da elite local em prol dos necessitados, diante ao presidente
307
APEB: Seção Colonial e Provincial. Fundo: Governo da Província. Série: Justiça – Rio de Contas (1847-
1851). Maço: 2559 (não classificado), 1847, página sem numeração. Correspondência do Juiz de Direito
Interino, Ermano Domingues, ao Presidente da Província, 21 de Maio de 1847.
308
Sobre as secas que atingiram o alto sertão da Bahia, no Oitocentos ver: RIBEIRO, Marcos Profeta. Mulheres
e poder no alto sertão da Bahia: A escrita epistolar de Celsina Teixeira Ladeia (1901 a 1927). São Paulo:
Alameda, 2012, p. 51-52; Santana. “Família e microeconomia...”, capítulos 3 e 4; Neves. Uma comunidade
sertaneja..., p. 206-217; Ferreira. “Entre vazantes, caatingas...”, p. 170-180; GONÇALVES, Graciela Rodrigues.
“As secas na Bahia do século XIX – Sociedade e Politica”. (Dissertação de Mestrado. Universidade Federal da
Bahia. 2000); dentre outros. Ver ainda algumas obras da literatura regional que também retrataram as estiagens
ocorridas na região: ROCHA, Lindolfo. Maria Dusá. São Paulo, Ática, 2001; FREITAS, M.M. de. Estradas e
Cardos (descrição histórica dos sertões baianos). Rio de Janeiro: Ministério da Guerra e Laemmert, 1947; dentre
outras.
309
Acervo da Paróquia do Santíssimo Sacramento de Rio de Contas. Diocese de Livramento de Nossa Senhora –
BA. Livro de registro de óbitos da Freguesia de Nossa Senhora do Livramento da Vila do Rio de Contas. 1825 a
1874, fls. 97, 102, 100, 54 e 100, respectivamente.
150
310
APEB: Seção Colonial e Provincial. Fundo: Presidente da Província - Governo. Série: Seca (1845-1860).
Maço: 1607 (não classificado), 1860, página sem numeração. Correspondência do Conego Vigário José de Souza
Barbosa ao presidente da Província, 18 de novembro de 1860.
311
Neves. Uma comunidade sertaneja..., p. 210.
312
DAVID, Onildo Reis. “O inimigo invisível: a epidemia do cólera na Bahia em 1855-56”. (Dissertação de
Mestrado. Universidade Federal da Bahia. 1993), p. 28-9, grifos meus.
151
313
SOUZA, Christiane Maria Cruz de. “Constituição de uma rede de assistência à saúde na Bahia, Brasil,
voltada para o combate das epidemias”. In: Revista Dynamis, n.31, V.1, 2011, p. 90.
314
APEB: Seção Colonial e Provincial. Fundo: Governo da Província. Série: Juízes de Minas do Rio de Contas
(1827-1859). Maço: 2483 (não classificado), 1859, página sem numeração. Correspondência do Juiz de Direito,
Estevão Vaz Ferreira, ao presidente da Província, 17 de janeiro de 1859, grifos meus.
315
Acervo da Paróquia do Santíssimo Sacramento de Rio de Contas. Diocese de Livramento de Nossa Senhora –
BA. Livro de registro de óbitos da Freguesia de Nossa Senhora do Livramento da Vila do Rio de Contas. 1825 a
1874, fl. 49v.
316
Ibid, fl. 50v.
152
Passaram-se doze dias e o vigário Barbosa registra o óbito de Manoel, crioulo, com quinze
dias de nascido, filho legítimo do casal de africanos, Maria e Matheos, também ocasionado
pela peste da bexiga.317
A peste das bexigas não escolheu qual segmento molestar, vitimou pessoas livres
(pobres e ricas), escravos e libertos. Por ser a varíola uma doença infectocontagiosa de fácil
contagio em ambientes insalubres, com pouca ventilação e com muitas pessoas, não foi difícil
a sua disseminação entre os sertanejos, visto que a transmissão desta doença ocorria,
principalmente, pela via aérea. Decerto, foi pelo contato direto entre a senhora Dona Ritta de
Moura Costa e seus cativos Catharina, Martha e Antonio que contraíram a peste e, em menos
de um mês, faleceram. Possivelmente, a primeira morte ocorrida nas dependências do Capitão
Francisco Justiniano de Moura Costa, esposo de Dona Ritta, morador na Villa, na Praça da
Matriz, foi da escrava Catharina, parda, solteira, de trinta anos de idade, que faleceu de
“bexigas da peste”, no dia dez de setembro de 1844. Sem sacramento, o seu corpo foi
enterrado ao “pé do cruzeiro no adro da Capella do Rosario desta Villa”.318 Três dias depois, a
varíola leva a óbito a senhora Ritta Moura, que padecia com a doença, sendo sepultada no dia
treze de setembro dentro da Capela do Rosário, sendo “involto seu corpo em habito preto, e
caixão”.319 No dia dezessete, o padre Jeronymo Dantas encomendou o corpo de Martha,
mulata, casada, também vitimada pela varíola, e o enterrou no adro da Igreja Matriz do
Santíssimo Sacramento da Villa do Rio de Contas.320 E, findando o mês de setembro, o
vigário registou mais um óbito ocasionado pela peste entre os cativos do Capitão. Dessa vez
foi o falecimento de Antonio, africano, de cinquenta anos de idade, que faleceu sem
sacramento, como ressaltou o padre, “por me não chamarem”. O seu corpo foi envolto em
pano branco e enterrado no adro da Capela do Rosário.321
Na década de 1870, já era conhecida por varíola, a peste das bexigas voltou a aparecer
no alto sertão da Bahia. Novamente o Juiz de Direito da comarca das Minas do Rio de Contas,
atento aos danos causados pela doença e temendo a sua propagação, solicitou, junto ao
presidente da Província, a vacina para ser aplicada gratuitamente pelo Dr. José de Aquino
Tanajura, em especial, nos moradores do “districto de Vª Velha d’este Termo”, pois por lá
“estão dando alguns casos de varíola, e que provavelm.e ella se propagará”. No oficio enviado
no dia treze de fevereiro de 1872, o Dr. Estevão Vaz Ferreira explicita o trabalho de
317
Ibid, fl. 51v.
318
Ibid, fl. 49v.
319
Ibid, fl. 50.
320
Ibid, fl. 50v.
321
Ibid, fl. 51.
153
322
APEB: Seção Colonial e Provincial. Fundo: Governo da Província. Série: Juízes de Minas do Rio de Contas
(1860-1875). Maço: 2484 (não classificado), 1872, página sem numeração. Correspondência do Juiz de Direito,
Estevão Vaz Ferreira, ao presidente da Província, 13 de fevereiro de 1872.
323
Ver: Livros de registros dos óbitos da Freguesia de Nossa Senhora do Livramento da Vila do Rio de Contas e
das Filias da Freguesia do Santíssimo Sacramento da Vila de Minas do Rio de Contas. 1825-1914 e 1836-1861.
324
APEB: Seção Colonial e Provincial. Fundo: Governo da Província. Série: Juízes de Minas do Rio de Contas
(1876-1889). Maço: 2485 (não classificado), 1879, página sem numeração. Correspondência do Juiz Municipal
dos Orphaos, Maximino Jose da Silva, ao presidente da Província, 19 de dezembro de 1879, grifos meus.
325
Ibid, 1882, página sem numeração. Correspondência do Juiz de Direito, Octaviano [sic] Cotrim, ao presidente
da Província, 28 de março de 1882.
326
Karasch. A vida dos..., p. 213 e 211 respectivamente.
154
década de 1840, cinco na de 1850, uma na de 1860 e a maioria nas décadas de 1870 e 1880,
como informou o Juiz Municipal ao presidente da Província nos ofícios mencionados acima.
Outro dado observado nesses óbitos é que suas características correspondem com as
sugeridas por Mary Karasch. Dos vinte e nove registros, quinze correspondem aos
sepultamentos de escravas do gênero feminino na faixa etária de quatorze a quarenta anos de
idade, ou seja, da puberdade à fase adulta. Entre os registros, estão: Joanna, de vinte e dois
anos, escrava pertencente ao tenente Demetrio Antonio d’Araujo, faleceu de “etica” e foi
enterrada dentro da Capela de Nossa Senhora do Livramento do Arraial de Vila Velha, no dia
vinte e sete de dezembro de 1855; dentre outros sepultamentos;327 Virginia, cabra, de vinte
anos de idade mais ou menos, escrava pertencente à D. Senhorinha Eulalia das Dores, falecida
de “tysica”, teve o seu corpo foi envolto em habito branco e enterrado no dia trinta e um de
agosto de 1869, com todos os sacramentos, dentro de Capela de Nossa Senhora do Rosário;328
Valentina, crioula, de quarenta anos de idade, também foi sepultada dentro da Capela do
Rosário, no dia dezesseis de maio de mil 1874, por ter contraído a “moléstia do peito”;329
Delmira, preta, honesta (como foi classificada na fonte), de quatorze anos, filha natural de
Geralda, e Luisa, cabra, de vinte e oito anos, solteira, filha natural de Victoria, falecida,
escravas pertencentes ao tenente Chrystovão de Novais Aguiar, natural de Santa Isabel do
Paraguaçu, mas residente na Rua do Meio desta Vila, as quais faleceram de “febre thyphica” e
“phthysica”, respectivamente. Entre os sepultamentos, Delmira recebeu todos os sacramentos
e o seu corpo foi enterrado no cemitério da Matriz da Vila Nova de Minas do Rio de Contas,
no dia doze de março de 1879; Luisa, sem sacramentos, foi sepultada também no cemitério da
Vila no dia vinte e um de setembro do ano seguinte.330
Essa situação não foi específica do alto sertão. A Província da Bahia, no século XIX,
padecia de variados surtos epidemiológicos, doenças contagiosas e muitas delas
desconhecidas dos médicos brasileiros. Conforme as pesquisas de Onildo Reis David sobre a
epidemia da cólera na Bahia, na década de 1850, uma série de fatores socioeconômicos e
somáticos, como a falta de um sistema de esgotamento sanitário, a insalubridade da água
consumida pelos baianos, o acúmulo de lixo nas vias públicas, entre outros, levou a
327
Acervo da Paróquia do Santíssimo Sacramento de Rio de Contas. Diocese de Livramento de Nossa Senhora –
BA. Livro de registro de óbitos da Filial da Freguesia de Nossa Senhora do Livramento da Vila do Rio de
Contas. 1839 a 1861, fl. 52v.
328
Acervo da Paróquia do Santíssimo Sacramento de Rio de Contas. Diocese de Livramento de Nossa Senhora –
BA. Livro de registro de óbitos da Freguesia de Nossa Senhora do Livramento da Vila do Rio de Contas. 1825 a
1874, fl. 129v.
329
Ibid, fl. 139v.
330
Ibid, 1874 a 1915, fls. 21v e 27 respectivamente.
155
Não somente a “fome”, a “peste das bexigas” e a tuberculose afetaram a saúde dos
escravos, ingênuos e libertos, no alto sertão da Bahia, no século XIX. As fontes analisadas
nesta pesquisa revelam que vários infortúnios atingiram a vida cotidiana desses sujeitos,
causando muitas mortes: secas ocorridas no curso do Oitocentos, tensões e conflitos gerados
no dia a dia, precariedade da saúde sertaneja. Por outro lado, demonstram que muitos deles,
apesar das adversidades, conseguiram sobreviver até a “velhice”. Muitos passaram dos setenta
anos de idade, conquistaram a alforria, constituíram famílias naturais, legítimas e espirituais,
isto é, as alianças constituídas nas irmandades em que eram irmãos/filiados.
Cabe relatar que, embora analisado todos os livros de registros de óbitos disponíveis
para a pesquisa, eles não abrangem todo o termo de Minas do Rio de Contas, ou seja, referem-
se apenas às freguesias de Nossa Senhora do Livramento e do Santíssimo Sacramento. Logo,
ainda há muito para se compreender sobre a vida cotidiana e a saúde desses sujeitos no alto
sertão da Bahia, no século XIX, mas, acredito que, na medida em que são abertos os arquivos
paroquiais essas as lacunas serão preenchidas.
331
David. “O inimigo invisível...”, p. 31.
332
Ibid, p. 30.
156
Aos dôze de Junho de mil oito centos e oitenta, às seis horas da tarde, no
Cemiterio da Capella do Senhor do Bomfim da Casa de Têlha, filial á Matriz
d’esta Villa de Minas do Rio de Contas, sepultou-se o cadáver de Maria,
parda, livre, filha natural de Simiana, [...] escrava de José Ambrosio de
Abreu. Faleceu hontem, as duas horas da trade, de moléstia incognita. Do
que, para constar mandei fazer este assento, em que me assigno.
O Parocho, Conego, Procopio José Rufuno.334
333
Acervo da Paróquia do Santíssimo Sacramento de Rio de Contas. Diocese de Livramento de Nossa Senhora –
BA. Livro de registro de óbitos da Freguesia de Nossa Senhora do Livramento da Vila do Rio de Contas. 1874 a
1915, fl. 21v, grifos meus.
334
Ibid, p. 26v, grifos meus.
335
Ibid.
157
com apenas um dia de nascida, recebeu os sacramentos do batismo e foi sepultada no dia vinte
um de fevereiro de 1879, no cemitério da Capela do Senhor do Bomfim da Casa de Telha; a
outra, possivelmente, com menos de um ano de idade, faleceu de “moléstia incógnita” e foi
enterrada no mesmo local da irmã, em 1880. No mesmo ano, Simiana, decorrente de
“queimaduras” no corpo, falece com trinta anos de idade.
Os registros de óbitos de Simiana e das filhas Marias permitem analisar alguns
aspectos de sua vida familiar. É possível presumir que Simiana possuía um parceiro com o
qual matinha relações consensuais, visto que engravidou duas vezes no intervalo de dois anos
e, ainda, que contou com o aconchego da família nos momentos de alegria, o nascimento das
filhas, dor e sofrimento, na perda das crianças e quando se viu acamada por causa das
queimaduras. Em especial, pode-se pensar no apoio de seu pai Jose, por ser este sujeito livre e
poder transitar livremente pela região, possivelmente, atendendo, mais rápido, os pedidos de
consolo da filha, haja vista que José e Maria residiam na Vila, e Simiana, por certo, vivia no
Sítio do Engenho, Povoado de Boa Sentença, Distrito da Furna, onde morava seu senhor.336
Assim como Simiana, Horminia, filha natural de Sara, escrava pertencente ao Major
José Joaquim de Oliveira Rocha, pôde contar com os vínculos de família no leito da morte.
Com a morte do Major, em 1871, mãe e filha foram separadas: Sara ficou na meação da
viúva, Dona Lina Rosa de Oliveira Rocha; a filha, na época com sete anos de idade, avaliada
em Rs. 700$000, foi repartida entre duas herdeiras do casal, residentes na Vila das Minas do
Rio de Contas. Mesmo separadas juridicamente, permaneceram unidas, convivendo no
mesmo lugar, compartilhando as labutas do cotidiano do cativeiro e fortalecendo os laços
familiares.337 Com o passar dos anos, Horminia conquistou a liberdade, possivelmente, passa
a residir na casa da avó, localizada na Rua do Meio, na Vila, e associa-se à irmandade de
Nossa Senhora do Rosário. Com a saúde frágil, por estar acamada com “phtysica pulmonar”
(tuberculose), faleceu nova, aos vinte e quatro anos de idade, na casa da avó, no ano de 1886,
e foi sepultada “com todos os sacramentos e absolvição plenária do SS. P.e Bento 14º”. A
honesta Horminia (como foi classificada no registro de óbito) “foi amortalhada de branco,
ecommendada na Matriz e accompanhada até o último jazigo pela Irmandade de Nossa
Senhora do Rozario” e sepultada no cemitério.338
336
APMRC. Seção Judiciária. Série Inventários. ID: José Ambrósio de Abreu. 1886-1900. Cx 103 / Est 03 / Prat
06 / Mç 197 / Doc 1465 / auto com 98 folhas. Ibid. Raimundo Pereira e Silva. 1885-1885. Cx 101 / Est 03 / Prat
05 / Mç 195 / Doc 1497 / auto com 49 folhas.
337
APMRC. Seção Judiciária. Série Inventários. ID: José Joaquim de Oliveira Rocha. 1871-1872. Cx 90 / Est 03
/ Prat 03 / Mç 177 / Doc 1280 / auto com 21 folhas. fls. 7 a 17 v.
338
Acervo da Paróquia do Santíssimo Sacramento de Rio de Contas. Diocese de Livramento de Nossa Senhora –
BA. Livro de registro de óbitos da Freguesia de Nossa Senhora do Livramento da Vila do Rio de Contas. 1875 a
158
Tabela 16: Óbitos de escravos, libertos e ingênuos, distribuídos por década, faixa etária e gênero, Minas do
Rio de Contas, 1840-1888.
0 – 12 23 19 07 49 15 06 11 32 11 08 01 20 53 41 - 94 14 28 - 42 237
13 – 45 23 24 - 47 15 13 - 28 06 07 - 13 18 34 - 52 08 17 - 25 165
46
27 16 - 43 12 15 - 27 06 09 - 15 16 14 - 30 09 17 - 26 141
acima
S/I* 06 07 - 13 01 05 - 06 01 02 - 03 01 03 - 04 - - - - 26
1914, fl. 49 v. Ver no tópico seguinte algumas notas sobre os laços espirituais da família: As irmandades em
Minas do Rio de Contas no Oitocentos.
159
Maria Jacú, africana, liberta, procurou dar novos significados para sua vida. Casou-se
três vezes e, sem dúvida, a cada união, buscou fazer renascer a “‘flor’, aquela nascida do
encontro da cultura africana e afro-brasileira dos escravos com sua experiência no
cativeiro”.341 Ela viveu mais de oitenta anos e faleceu de “velhice”, em 1851.342 Um dos
339
Slenes. Na Senzala uma..., p. 124.
340
Martins. “‘Vinha na fé... ’”, p. 122.
341
Slenes. Na Senzala um..., p. 141.
342
Acervo da Paróquia do Santíssimo Sacramento de Rio de Contas. Diocese de Livramento de Nossa Senhora –
BA. Livro de registro de óbitos da Freguesia de Nossa Senhora do Livramento da Vila do Rio de Contas. 1825 a
1874, fl. 69.
160
esposos de Maria foi Manoel, africano, escravo pertencente ao professor Antonio Placido
Dantas Barbosa, que foi sepultado no dia dezesseis de setembro de 1842, com todos os
sacramentos, envolto em hábito branco, dentro da Capela do Rosário. Ele morreu com mais de
oitenta anos de idade, de “catarrão”, certamente, alguma doença respiratória.343
Isabel Luciana de Souza, preta, liberta, moradora no Povoado de Riacho das Pedras,
filha legítima de José Joaquim Pereira e Florencia Pereira, seguiu os passos dos pais, optou
por legitimar sua união com Antonio Matheus, possivelmente livre. Ela também teve uma
vida longa, morreu com setenta e dois anos de idade de “alienação mental”, na época já era
viúva e o seu corpo, encomendado de cruz e estola, foi sepultado no cemitério da Matriz da
Vila das Minas do Rio de Contas, no ano de 1880.344
E, ainda, no mesmo ano, foi registrado o óbito de Rosa de Moura Costa, parda, liberta,
filha natural de Anna Maria, viúva de Thomaz (escravo, pertencente ao Major Francisco
Justiniano de Moura Costa). Rosa faleceu com mais de oitenta anos e seu corpo, por caridade,
foi sepultado também no cemitério da Matriz. Ela morreu de “estupor”, doença que afeta o
sistema nervoso, com sintomas neuropsiquiátricos.345 O sobrenome de Rosa, Moura Costa,
sugere que pertencera, antes de conquistar a liberdade, ao Major Francisco e que dividia as
angústias, tensões e alegrias com o esposo Thomaz desde a época do cativeiro, ou seja, que a
convivência com o companheiro pode ter estreitado as relações afetivas e fortalecido os laços
do casal. Outro dado que reforça a importância dos laços de família também na hora da morte
é que, como liberta e viúva, Rosa poderia ter buscado outras paragens a fim de se distanciar
das tristes lembranças da vida em cativeiro e pleitear melhores condições de vida, no entanto,
escolheu permanecer na região, ao lado “dos seus” até os últimos dias de vida.
Seguindo trajetórias de escravos e libertos na Bahia, no final do século XIX e início do
XX, o historiador Walter Fraga, minuciosamente, explicita alguns motivos que contribuíram
para a permanência de libertos nas localidades em que vivenciaram a dolorosa experiência da
escravidão. Entre eles destaca que os laços familiares foram essenciais e estratégicos para os
libertos.
343
Ibid, fl. 39v.
344
Ibid, 1875-1914, fl. 25v.
345
Ibid. Sobre a doença ver: Karasch. A vida dos..., p. 244 e 499.
346
Fraga Filho. Encruzilhadas da liberdade..., p. 250, grifos meus.
161
Dos 569 registros de óbitos analisados nesta pesquisa, em 309 atas, está explícito o
convívio familiar desses segmentos, o equivalente a 54,3%. Ao examinar apenas os dados dos
sepultamentos dos adultos (de doze a quarenta e cinco anos de idade) e dos idosos (de
quarenta e seis anos acima), foi possível identificar o estado civil desses sujeitos, como pode
ser observado na tabela 17 abaixo.
Tabela 17: Estado civil dos escravos e libertos acima de 10 anos, registrados nos livros de óbitos
de Minas do Rio de Contas, nos anos de 1840 a 1888.
Estado Civil
Gênero Viúvo (a) Casado (a) Solteiro (a) Não Consta Total
Feminino 15 13 45 62 135
Masculino 04 29 32 64 129
Total 18 41 110 171 264*
Fonte: Livros de registros dos óbitos da Freguesia de Nossa Senhora do Livramento da Vila do Rio de Contas e das Filias da
Freguesia do Santíssimo Sacramento da Vila de Minas do Rio de Contas. 1825-1914 e 1836-1861.
* Deste total foram excluídos 52 registros (15 do gênero masculino e 37 do gênero feminino) de adultos e idosos em que não
constava o estado civil, mas que possuíam a filiação, algumas identificadas como legítimas e outras, como naturais.
ainda do “resultado da paridura de gemeos”. Outro fator que pode ter contribuído para a
mortalidade feminina é o fato de as mulheres cativas e libertas serem as mais afetadas pelas
doenças epidêmicas que atingiu o alto sertão da Bahia, no curso do século XIX, a exemplo da
“peste da bexiga”, como já demonstrado no presente texto.
Se, por um lado, a análise dos registros de óbitos permitiu entender um pouco mais os
laços de famílias dos escravos e libertos; por outro, em alguns casos, foi possível identificar a
mortalidade desses sujeitos como a responsável pela instabilidade familiar. Veja como,
certamente, a morte de cinco filhos de Romana, escrava pertencente ao Major Bernardo
Teixeira da Silva, moradora na Praça da Matriz na Vila de Minas do Rio de Contas,
desestabilizou seus vínculos familiares.
Nos últimos anos de 1840, dois filhos de Romana falecem: a primeira com o nome de
Maria, crioula, de três meses de idade, que morreu de “coqueluche” e foi enterrada no adro da
Matriz do Santíssimo Sacramento; a segunda, registrada como “uma cria”, sem nome,
identificação de gênero, idade e a causa do óbito, possivelmente, faleceu ainda recém-nascida
e foi sepultada no adro da Capela do Rosário.347 Na década de 1850, mais dois filhos de
Romana morrem: Benedicto e Agostinho, cabras, com um e dois anos de idade,
respectivamente. O primeiro faleceu de “sarnas”; o segundo foi encontrado “morto na rede
inesperadamente”; e ambos foram enterrados dentro da Matriz do Santíssimo Sacramento.348
Passaram-se alguns anos e a dor da perda se fez presente novamente na família de Romana,
agora, foi a vez da filha, Sebastiana, preta, de vinte e oito anos, lavradora. Ela faleceu de
“moléstias internas”, e seu corpo, “encomendado de cruz e estola”, com mortalha preta, foi
enterrado no dia dezoito de dezembro de 1879, sem sacramentos, no cemitério da Matriz da
Vila de Minas do Rio de Contas.349
Infelizmente não foi localizado, até o ano de 1888, no Arquivo Público de Rio de
Contas, o inventário do Major Bernardo Teixeira ou outra fonte que possibilitasse conhecer
um pouco mais da vida social de Romana, com isso, os dados encontrados sobre seus laços
familiares limitaram-se apenas aos registros de óbitos. No entanto, é possível presumir que
Romana matinha uma vida conjugal duradoura de, pelo menos, três décadas e, ainda, que
optou por não legitimar a sua união perante a Igreja Católica, visto que seus filhos foram
classificados como naturais.
347
Acervo da Paróquia do Santíssimo Sacramento de Rio de Contas. Diocese de Livramento de Nossa Senhora –
BA. Livro de registro de óbitos da Freguesia de Nossa Senhora do Livramento da Vila do Rio de Contas. 1825 a
1874, fl. 59v e 62, respectivamente.
348
Ibid, fl. 66 e 87, respectivamente.
349
Ibid, 1874-1914, fl. 27.
163
Outra família desestruturada pelas frequentes mortalidades no meio dos seus foi a do
casal Manoel e Valentina, escravos pertencentes ao Major Jose Joaquim de Oliveira Rocha,
morador na Vila de Minas do Rio de Contas. O primeiro registro de óbito referente a essa
família foi o do filho Juvencio, crioulo, párvulo, que faleceu “não sei de que” (conforme
anotou o pároco) e foi sepultado no dia dezessete de julho de 1843, de hábito branco, dentro
da Capela do Rosário.351 Tudo indica que o casal ainda não tinha legitimado a união perante a
Igreja Católica, posto que Juvencio não foi classificado como filho legítimo, e passar pelo
ritual do casamento era indispensável para legitimar a filiação, mesmo quando o casal tinha
uma relação conjugal estável. Ainda na década de 1840, o filho legítimo Zacharias, crioulo,
párvulo, também falece devido à doença do “mal do sete dias”, muito comum entre os recém-
nascidos no alto sertão, no século XIX, e é enterrado com “cambrainha cor de rosa” dentro da
Matriz.352
Parece que a família de Manoel e Valentina conseguiu se estabilizar por alguns anos,
pois, no início da década de 1850, o casal teve mais uma filha de nome Raymunda, que
350
BACELLAR, Carlos de Almeida Prado. “Os compadres e as comadres de escravos: um balanço da produção
historiográfica brasileira”. In: Anais do XXVI Simpósio Nacional de História – ANPUH, São Paulo, 2011, p.8.
351
Acervo da Paróquia do Santíssimo Sacramento de Rio de Contas. Diocese de Livramento de Nossa Senhora –
BA. Livro de registro de óbitos da Freguesia de Nossa Senhora do Livramento da Vila do Rio de Contas. 1825 a
1874, fl. 42v.
352
Ibid, fl. 59v.
164
conseguiu viver por seis anos, falecendo no ano de 1856, de “maligna”, sendo sepultada
também com “cambrainha cor de rosa” dentro da Matriz.353
Passados alguns anos, o patriarca Manoel falece aos quarenta e cinco anos de idade, de
hydropesia, ou seja, “[...] inchação ou tumor preternatural do ventre, ou das pernas, ou do
corpo todo, causada de uma agoa intercutanea, quando não há boa sanguinação no fígado”.354
Antes de falecer, recebeu os sacramentos da confissão e foi ungido, depois foi enterrado no
adro da Matriz com mortalha de pano branco, no dia seis de fevereiro de 1861.355
Certamente, depois da morte do esposo, Valentina se envolveu em outro
relacionamento, teve mais um filho e o batizou de Manoel, o qual veio a óbito,
prematuramente com sete dias de nascido, por ter contraído a doença do “mal do sete dias”.356
Por fim, a matriarca Valentina, que veio a óbito decorrente de “moléstia do peito”,
(tuberculose) com quarenta anos de idade, foi sepultada dentro da Capela de Nossa Senhora
do Rosário, em maio de 1874. 357 Percebe-se que a mortalidade escrava não somente
desestruturou os laços familiares de Manoel e Valentina, mas, aos poucos, a família desse
casal deixou de existir.
Embora a morte precoce de algum familiar tenha fragmentado ou, até mesmo, acabado
com os vínculos familiares, através da análise dos registros de óbitos, foi possível constatar a
importância da família para a vida escrava e liberta. Essas fontes revelam que muitos desses
sujeitos foram reconhecidos no leito da morte a partir dos laços de família e assim foi possível
identificar a presença do esposo (a), do pai, da mãe, de irmãos consanguíneos e, em alguns
casos, dos avós, na luta cotidiana para a sobrevivência do grupo familiar.
Veja como foi importante a convivência familiar para Romana, escrava pertencente ao
Tenente Manoel Ignacio Alves da Silva, e os sete filhos. Archangela, escrava pertencente ao
mesmo Manoel, filha de Romana, perdeu o seu único filho, batizado de Manoel, nascido livre,
decorrente do “mal do umbigo”, o qual veio a óbito com apenas três dias de idade, sendo
sepultado no cemitério da Capela de Casa de Telha, no dia quinze de outubro de 1878. Nesse
momento, ela pôde dividir a dor com os seis irmãos e a mãe, no entanto, os cuidados e carinho
353
Ibid, fl. 86. Não foi possível identificar o significado da doença “maligna”. Em alguns registros ela esta
associada à febre, classificada como “febre maligna”.
354
BURTON, Richard. Viagem de canoa de Sabará ao oceano Atlântico. Itatiaia Editora, 1977, p. 263.
355
Acervo da Paróquia do Santíssimo Sacramento de Rio de Contas. Diocese de Livramento de Nossa Senhora –
BA. Livro de registro de óbitos da Freguesia de Nossa Senhora do Livramento da Vila do Rio de Contas. 1825-
1874, fl. 101.
356
Ibid, fl. 106.
357
Ibid, fl. 139v.
165
da família não puderam assegurar a saúde e a vida à Archangela, que veio a óbito oito dias
após o falecimento do filho, decorrente de complicações no parto.358
Cabe aqui tecer a trajetória da família de Romana. Cruzando as fontes eclesiásticas –
batismo, casamentos e óbitos – com os livros de registros de notas do tabelionado e os
inventários da Comarca das Minas do Rio de Contas oitocentista, foi possível conhecer um
pouco mais da trajetória da família de Romana, suas relações e como estava amparada no
meio dos seus. Filha legítima de Manoel e Joaquina, pretos, naturais da Costa da África,
Romana nasceu no ano de 1826, em Minas do Rio de Contas. Na época, escravos,
pertencentes a Manoel José do Bomfim, fazendeiro, residente na Fazenda do Barreiro, distrito
de Boa Sentença. Juntamente com os pais e a companheira de cativeiro Maria, preta, foi
doada em causa dote à filha de José, Maria Bernardina do Bomfim, em virtude do casamento
da “senhorinha” com o tenente Manoel Ignacio Alves da Silva.359 Não se sabe ao certo em
que ano passou a pertencer à família Alves da Silva, mas, sem dúvida, foi ainda criança, antes
de 1833, ano em que os africanos Manoel e Joaquina aumentaram a família com o nascimento
do filho Cypriano, preto, que, juntamente com os irmãos – Julia, parda, nascida em 1836; e
Benedicto, pardo, em 1838 – foram identificados no inventário do Tenente Manoel como
“crias da casa”, ou seja, quando os irmãos de Romana nasceram, elas já estavam alojadas na
nova residência.360
Outro indício de que Manoel, Joaquina, Romana e Maria foram doados no final da
década de 1820 e início da de 1830 é que, no início do ano de 1847, o sogro de Manoel
Ignacio, Manoel José do Bomfim, falece e é feito o inventário amigável do patrimônio do
casal, cujo espólio foi de Rs. 11:749$790. Entre os bens declarados – móveis, prata, criações,
terras e propriedades – estão quatorzes escravos, sendo sete homens e sete mulheres,
avaliados em Rs. 4:400$000.361 Romana, os pais e a companheira de cativeiro Maria não
foram arrolados ou mencionados entre os semoventes, todavia, consta na declaração de dote
que “cazando seo finado marido a sua filha Maria Bernardina do Bomfim com Manoel
Ignacio Alves da Silva, dera em causa dote a quantia de um conto oito mil, e oito sentos reis”,
decerto, o valor referente aos quatro escravos e mais alguns bens concedidos à Maria
Bernardina na época do seu casamento.362 E, talvez, em função de alguns anos após a oferta
358
Ibid, 1874-1915, fl. 20v.
359
APMRC. Seção Judiciária. Série Inventários. ID: Manoel Ignacio Alves da Silva. 1884-1885. Cx 101 / Est 03
/ Prat 05 / Mç 194 / Doc 1432 / auto com 31 folhas. fl. 28-v.
360
Sobre os Crias da casa, ver o primeiro capítulo deste trabalho.
361
APMRC. Seção Judiciária. Série Inventários. ID: Manoel José do Bomfim. 1847-1847. Cx 77 / Est 03 / Prat
01 / Mç 150 / Doc 885 / auto com 18 folhas. fls. 2-v a 9.
362
Ibid, fl. 7-v.
166
do dote e das transações de doações já estarem lavradas em cartório, a viúva, Dona Maria
Angélica da Conceição, e os demais herdeiros acharam desnecessário disponibilizar detalhes
do presente.
Passados alguns anos depois de instalados nas dependências do Tenente Manoel
Ignacio, na Fazenda Pilões, Romana e os pais, Manoel e Joaquina, iniciam uma nova fase, a
maternidade, e a partir dela, na medida do possível, estruturaram suas vidas, constituindo
extensa rede de relações afetivas e sociais ancoradas nos laços de família e firmadas com o
tempo. Seus vínculos excederam a formação primitiva do núcleo familiar consanguíneo (pai,
mãe e filhos), os elos abarcaram avós, tios(as), sobrinhos(as), primos(as), isto é, parentes de
segundo e terceiro grau, além dos laços espirituais de compadrio estabelecidos com
padrinhos, madrinhas e testemunhas dos batizados e casamentos dos filhos, como será
demonstrado no histograma 13 a seguir.
Aos vinte e quatro anos de idade, Romana dava à luz sua primeira filha e, doze anos
depois, aos trinta e seis anos, teve o filho caçula. Seguiu os caminhos dos pais, os quais
tiveram, no mínimo, quatro filhos legítimos (Romana, Cypriano, Julia e Benedicto), e
concebeu sete filhos naturais. Por outro lado, optou por não estabelecer união conjugal
legítima, todavia, manteve relações consensuais estáveis que perduraram, pelo menos, mais de
uma década, tendo em vista que, nesse período, em intervalo médio de dois anos, ela gerou os
filhos: Victoria, nascida em 1849; Archangela, em 1851; Genoveva, em 1853; Antonio, em
1855; Augusto, em 1857; Valdomiro, em 1859; e, por fim, Cassiano, em 1862.363 E como
observado acima, em 1871, a filha Archangela, deu a ela um neto batizado de Manoel (nome
do bisavô).
A primogênita do casal de africanos viveu longos anos ao lado dos pais, irmãos, filhos,
sobrinhos e amigos, sujeitos livres e cativos, e constituiu uma família consanguínea extensa.
Assim como Romana, a irmã Júlia também vivenciou a experiência da maternidade com
Estevão, escravo, pertencente ao mesmo proprietário – o Tenente Manoel Ignacio – e tiveram
seis filhos legítimos: Antônia, nascida em 1857; Prudencia, em 1861;364 Luciano, em 1862;
Theodozia, em 1864; Caetana, em 1866; e Sara, nascida em 1868.365
363
APMRC. Seção Judiciária. Série Inventários. ID: Manoel Ignacio Alves da Silva. 1884-1885. Cx 101 / Est 03
/ Prat 05 / Mç 194 / Doc 1432 / auto com 31 folhas. fl. 28.
364
Acervo da Paróquia do Santíssimo Sacramento de Rio de Contas. Diocese de Livramento de Nossa Senhora –
BA. Livros de registros de batizados realizados nas Capelas e filiais da Matriz desta Freguesia do Santíssimo
Sacramento da Vila de Nossa Senhora do Livramento do Rio de Contas. 1853-1863. Fls. 79 e 190 v.
365
APMRC. Seção Judiciária. Série Inventários. ID: Manoel Ignacio Alves da Silva. 1884-1885. Cx 101 / Est 03
/ Prat 05 / Mç 194 / Doc 1432 / auto com 31 folhas. fl. 28.
167
366
Freire. “Escravidão e família...”, p.188.
367
Acervo da Paróquia do Santíssimo Sacramento de Rio de Contas. Diocese de Livramento de Nossa Senhora –
BA. Livros de registros de batizados realizados nas Capelas e filiais da Matriz desta Freguesia do Santíssimo
Sacramento da Vila de Nossa Senhora do Livramento do Rio de Contas. 1853-1863. fl. 79.
368
Ibid, fl. 163v.
168
Ribeiro, livres; e, em dezembro, foi a vez do caçula de Romana, Cassiano, pardo, de dois
meses, que foi batizado por Alexandre Nunes e Anna, escrava pertencente à D. Maria
Angelica da Conceição.369
Como se vê, entre os anos de 1849 a 1868, nasceram na Fazenda dos Pilões em Minas
do Rio de Contas, ao menos, oito netas e cinco netos do casal de africanos Manoel e Joaquina,
todos escravos pertencentes ao Tenente Manoel Ignacio Alves da Silva. Esses dados permitem
pensar como a família escrava e, consequentemente, a reprodução natural foi importante para
garantir a riqueza dos sertanejos no alto sertão da Bahia, como demonstrado no primeiro
capítulo. Por outro, deve ter sido gratificante para os avós participar da criação direta dos
netos e transmitir suas experiências de vida para filhos, genros, netos e amigos, assim como
para estes saberem que poderiam contar com a sabedoria e os ensinamentos dos mais velhos.
Vivências que muitas vezes foram constituídas em terrenos movediços e incertos a partir das
lutas diárias para fortalecimento do grupo familiar, mas que conseguiram ultrapassar algumas
fronteiras da escravidão, como, por exemplo, vivenciar a maternidade, acompanhar as fases
dos filhos e transmiti-lhes suas heranças culturais.
Ao estudar sobre ser mãe e as estratégias de resistência das escravas contra seus
senhores, a partir da literatura dos viajantes, no século XIX, Maria Lucia de Barros Morr
relata sobre os conhecimentos que eram transmitidos para as crianças cativas e as
atividades/funções desempenhadas por elas:
369
Ibid, fl. 192.
370
MORR. Maria Lucia de Barros. “Ser mãe: a escrava em face do aborto e do infanticídio”. In: Revista
História, São Paulo. 120. p. 85-96, jan/jul.1989, p.89.
169
Fazenda Pilões e na Lagoa da Carahibas, sita no Capão da Volta, todas adquiridas por
compra. O trato com o gado exigia grande esforço dos vaqueiros e, geralmente, era
desenvolvido por pessoas de confiança. Para essa atividade, Manoel Ignacio contou com os
cuidados dos irmãos e cunhado de Romana: Cypriano, Benedicto e Estevão.
Proprietário de engenho com água e tachos de cobre no Sítio Barreiro, o senhor contou
com o casal, Manoel e Joaquina, Augusto e Cassiano (pais e filhos de Romana), dedicados ao
serviço de lavoura, para desenvolver as atividades no campo e na “officina de farinha”,
composta por “roda e mais pertences, e com forno de cobre” que possuía na Fazenda Pilões e
no Sítio Retiro. Decerto, o serviço da lavoura foi ensinado e compartilhado pelos pais de
Romana aos outros companheiros e netos, em especial, à netinha Theodozia, de sete anos,
que, no período da matrícula (1872), foi classificada pelo Tenente como “servente”, isto é,
sem especialidade no trabalho, mas que, desde muito nova, teve que aprender uma profissão.
Os serviços domésticos eram divididos entre Romana, as filhas e a irmã, as quais
reversavam entre a casa onde os senhores residiam na Fazenda Pilões e a casa que possuíam
no Sítio Barreiro. O cuidado com a alimentação era da responsabilidade da cozinheira Júlia e
as demais atividades da casa eram partilhadas entre as costureiras, Romana e as filhas. A
riqueza de Manoel Ignacio estava divida entre ouro, prata, dinheiro, terras e propriedades,
escravos e criações, visto que se concentravam nos dezenove cativos avaliados em Rs.
4:350$000 e nos animais, calculados em Rs.7:372$000. Assim, seu patrimônio inventariado,
em 1884, alçava o valor de Rs. 15:490$800.371
A dinâmica econômica do inventário do Tenente Manoel Ignacio atesta as
possibilidades de mobilidade espacial da família de Romana, como também dos demais
companheiros de labuta, proporcionada pela vida econômica do fazendeiro. Isso não significa
dizer que esses sujeitos transitavam pela região apenas para desenvolver as atividades do dia a
dia que lhes cabiam, tendo em vista os batizados e as relações de compadrio demonstradas
acima. Essas movimentações viabilizaram o contato, a preservação e o fortalecimento das
relações sociais tecidas por esses sujeitos dentro e fora do cativeiro. Com exceção da irmã e
do cunhado, que batizaram o pequeno Valdomiro – talvez, “pr [ele] ser idiota”, Romana optou
por preservar o filho e fortificar os laços entre os parentes de sangue – 372 nota-se que os
compadres e comadres foram pessoas livres, de posses e prestígios e que residiam uns na vila,
outros nas fazendas e sítios circunvizinhos, a exemplo da madrinha D. Bernardina Maria de
371
APMRC. Seção Judiciária. Série Inventários. ID: Manoel Ignacio Alves da Silva. 1884-1885. Cx 101 / Est 03
/ Prat 05 / Mç 194 / Doc 1432 / auto com 31 folhas.
372
Ibid, fl. 4v-7, grifo meu.
170
Souza, mãe do Tenente, que morava na Fazenda da Alagoa e cujo patrimônio aproximava-se
aos Rs. 3:000,000, e o padrinho Justiniano de Oliveira Bastos, descendente de família rica e
renomada na região e residente na Fazenda Pires, no atual município de Rio do Pires.373
Passados alguns anos, após o falecimento da filha Archangela e do neto Manoel
(1878), a morte marcava novamente a família de Romana. Dessa vez, certamente, por
favorecer uma explosão de sentimentos paradoxos, mudava o curso da vida dela e dos filhos.
Aguardaram longos anos, imaginaram e lutaram diariamente por esse dia que, decerto, jamais
o esqueceram. No dia “oito de dezembro de mil oito centos e oitenta e três, no Cemiterio da
Capella filial do Senhor do Bomfim da Casa de Telha, sepultou-se o cadáver de Manoel
Ignacio Alves da Silva” 374 e iniciou-se uma nova fase na vida de Romana e dos filhos
Victoria, Genoveva, Antonio, Augusto, Valdomiro e Cassiano, visto que seu senhor antes de
falecer, em 1864, havia lhes prometido a manumissão depois da sua morte. O óbito do
Tenente (1883) garantiu-lhes a tão esperada alforria, a qual lhes foi concedida há quase vinte
anos atrás, mas registrada e válida apenas após a morte do senhor. Assim, três dias depois do
sepultamento de Manoel Ignacio, Romana, juntamente com os filhos, foi ao cartório registrar
a carta de liberdade conquistada “pelos bons serviços que a dita escrava e seus filhos”
prestaram ao fazendeiro.375
Logo no florescer do ano de 1880, a família de Romana conquistou a liberdade
mediante lutas e barganhas vivenciadas diariamente e, antes de findar essa década, tiveram
sua família aumentada com o ingresso de noras e genros. Os assentos das uniões matrimoniais
registrados no livro de casamento da Freguesia de Nossa Senhora do Livramento da Vila do
Rio de Contas evidenciaram que outros núcleos familiares foram constituídos a partir do casal
de africanos, Manoel e Joaquina. Dessa vez, as relações conjugais instituídas envolveram
sujeitos livres, libertos e escravos de outrem, ou seja, uniões que se evadiram para além das
fronteiras do cativeiro.376
Luciano da Silva, lavrador, filho legítimo de Julia (irmã de Romana) e Estevão, em
1886, casou-se “às nove horas da manhã, na Matriz do SS. Sacramento” com Manoella
373
APMRC. Seção Judiciária. Série Inventários. ID: Bernardina Maria de Souza. 1860-1868. Cx 85 / Est 03 /
Prat 03 / Mç 167 / Doc 1142 / auto com 33; Ibid, ID: Claudio Manoel de Oliveira. 1849-1863. Cx 78 / Est. 03/
Prat 01 / Mç. 153 / Doc. 934 / auto com 75 folhas e Ibid, ID: Jose da Rocha Bastos. 1846-1848. Cx 76 / Est
03 / Prat 01 / Mç 148 / Doc 872 / auto com 86 folhas.
374
Acervo da Paróquia do Santíssimo Sacramento de Rio de Contas. Diocese de Livramento de Nossa Senhora –
BA. Livro de registro de óbitos da Freguesia de Nossa Senhora do Livramento da Vila do Rio de Contas. 1874-
1915, fl. 44v.
375
APMRC. Seção Judiciário. Livro de Notas do Tabelionato n. 51 (1882-1885). Série cartas de liberdade. Cx 11
(não classificado) 1883, fl. 47. Sobre os trabalhos acerca da alforria, no século XIX, ver notas 93 e 104.
376
Para maiores detalhes sobre as relações conjugais de escravos e libertos, ver o segundo capítulo deste
trabalho.
171
Seraphina de Jesus, costureira, livre, filha legítima de Zephyrino Rodrigues Alves (falecido) e
Brigida Maria de Jesus, natural e residente na “parochia de N. Senhora do Allivio da Villa do
Brejo Grande”, atual município de Ituaçu. Na época, o nubente, escravo, pertencente a José
Alves da Silva (filho do Tenente), residia na Cidade de Minas do Rio de Contas. No ano
seguinte, em 1887, Romana Alves da Silva, agora liberta, fez o casamento de quatros filhos
também libertos: Genoveva Alves da Silva, costureira, com Januario, filho natural de Paula
Maria Thereza, escravos, pertencentes a Venceslau José da Silva; Victoria Alves da Silva,
costureira, com Elias, escravo, pertencente também a Venceslau e irmão de Januario;
Cassiano Alves da Silva, lavrador, com Leocadia Roza da Silva, costureira, “escrava de
outrem”, filha natural de Anna Eva e Augusto Alves da Silva, lavrador, com D. Sylvina Maria
de Jesus, costureira, livre, filha legítima de Manoel Ignacio Moreira (falecido) e D. Maria
Angelica do Espirito Santo.377
Observa-se que depois de conquistar a liberdade, Romana e os filhos adquiriram o
sobrenome da antiga família senhorial, Alves da Silva, carregando no nome a marca da
escravidão até a morte. Ao seguir os vestígios de vida dessa extensa família, certifiquei o
quanto esses sujeitos lutaram para manter a coesão do grupo familiar, fosse através dos “bons
serviços prestados” ou pelas alianças forjadas nas brechas da sociedade escravista da época
mediante os batizados, apadrinhamentos, festividades e a participação nas Irmandades. Atestei
foi que esses sujeitos souberam interpretar as experiências vivenciadas e buscaram imprimir
novos significados para suas vidas dentro e fora do cativeiro.378
Os registros de óbitos aqui perscrutados, cruzados com outras fontes, possibilitaram a
análise de experiências vivenciadas dentro e fora do cativeiro e nortearam a compreensão do
quanto à família, não somente a consanguínea como também as de cunho espiritual,
constituídos nas Irmandades, se tornou o fio condutor das trajetórias de vida de escravos e
libertos no alto sertão da Bahia oitocentista e é sobre os laços espirituais da família diante da
morte que irei dissertar no próximo tópico.
377
Acervo da Paróquia do SS. Sacramento de Rio de Contas. Diocese de Livramento de Nossa Senhora – BA.
Livro de registros de casamentos. Freguesia de Nossa Senhora do Livramento da Vila do Rio de Contas. 1873 a
1914, fls. 44, 48v, 49v, 54v e 55, respectivamente.
378
Slenes. Na Senzala uma..., p. 142.
172
Ainda na Bahia do século XVIII, mas no sertão do rio São Francisco, os estudos de
Gabriela Amorim Nogueira acerca das experiências familiares e comunitárias de escravos e
forros revelam a participação de africanos, crioulos, escravos e forros na irmandade de Nossa
Senhora do Rosário dos Pretos assim como nos festejos e novenas dedicadas à santa. Para
Nogueira, essas confrarias “[...] constituíram-se em locus da expressividade das manifestações
religiosas e sociais [...]. Esses espaços tornavam-se lugares de sociabilidade entre africanos,
crioulos, indígenas e europeus recriando práticas sociais e conservando outras tradições”.381
A historiadora Silvia Hunold Lara, ao estudar as irmandades na América portuguesa
setecentista, aponta que as pesquisas sobre este tema na historiografia brasileira estão
oscilando entre duas vertentes: de um lado, as irmandades serviram como mecanismo de
acomodação para escravos e libertos; por outro, como meio de resistência. Consoante a esses
estudos, Lara evidencia que as festa e atividades das confrarias religiosas encerravam uma
ambivalência, por constituir “[...] um corpo político e social que expressava valores e
379
REIS, João José. “Identidade e Diversidade Étnicas nas Irmandades Negras no Tempo da Escravidão”. In:
Tempo, Rio de Janeiro, vol. 2, n. 3, 1996, p. 7-33. p. 4, grifos meus.
380
REGINALDO, Lucilene. “Os Rosários dos Angolas: irmandades negras, experiências escravas e identidade
africanas na Bahia Setecentista”. (Tese de Doutorado. Universidade Estadual de Campinas. 2005), p. 71.
381
Nogueira. “‘Viver por si’...”, p. 77.
175
382
Lara. Fragmentos Setecentista..., p. 210 e 211.
383
Ibid, p. 212.
176
como o próprio nome da irmandade – Rosário dos Pretos – sugere, decerto, predominavam
nesta confraria os “homens de cor”. Segundo Almeida:
Aos vinte e quatrodo mesmo mez [de fevereiro de mil oito centos e
cinquenta e quatro] na Capella do Rosario encomendei o corpo de Bento
criolo de idade de vinte nove annos escravo do Capitão Francisco Justiniano
de Moura Costa, sendo confessado, e ungido o qual morreu de inflamação
interna, que já a muito soffria foi conduzido em esquife, e sepultado dentro
como irmão da Irmandade, sendo acompanhado por ella. Do que, para
constar mandei fazer este assento, em que me assigno.
O P.e Jeronymo Dantas Barbosa.385
Nota-se que, há tempos, Bento padecia de “inflamação interna”, e, por ser “irmão da
Irmandade”, certamente, contou com a ajuda da mesma no tratamento de sua enfermidade,
tendo em vista que, segundo os autores supracitados, um dos compromissos das confrarias
384
Almeida. “Escravos e Libertos...”, p. 45-46.
385
Acervo da Paróquia do Santíssimo Sacramento de Rio de Contas. Diocese de Livramento de Nossa Senhora –
BA. Livro de registro de óbitos da Freguesia de Nossa Senhora do Livramento da Vila do Rio de Contas. 1825 a
1874, fl. 78, grifos meus.
177
religiosas era o de dar assistência aos irmãos e irmãs doentes. Segundo Reginaldo “[...] a ala
feminina da irmandade tinha participação ativa e imprescindível” nessa função.386 Mesmo
com tais cuidados, Bento veio a óbito no dia vinte e quatro de fevereiro de 1854, com vinte e
nove anos de idade, recebendo os sacramentos da confissão e unção. Seu corpo foi conduzido
em esquife e sepultado dentro da capela do Rosário, sendo o seu enterro acompanhado pelos
confrades.
Assim como Bento outros companheiros de cativeiro também se associaram à
irmandade de Nossa Senhora do Rosário. Esse foi o caso de Andressa, crioula, escrava
pertencente ao professor Francisco de Assis e casada com Protacio. O casal possuía, ao
menos, um filho, Benedicto, crioulo, que faleceu com dois anos de idade, de “catarrão”, cujo
corpo foi amortalhado em habito vermelho e sepultado dentro da Matriz do Santíssimo
Sacramento, no dia dezenove de julho de 1842, quiçá, assistido e acompanhado pela
irmandade da mãe. Dois anos depois do óbito do filho, Andressa contraiu a “peste da bexiga”
e morreu com mais ou menos trinta anos. Por ser associada à irmandade do Rosário, foi
enterrada “dentro da Capella de Senhora Sant’Anna”. Seu sepultamento foi gratuitamente
como os demais sujeitos que também faleceram desta “peste”.387
Anna, africana, escrava, pertencente a Victotino José de Miranda, faleceu com mais de
cinquenta e cinco anos de idade e a causa mortis não foi revelada pelo padre Jeronymo José
das Neves, mas, antes de falecer, recebeu o sacramento da confissão e unção. Foi sepultada
dentro da “Capella do Rozario de que era Irmãm” no dia dezoito de novembro de 1862.388
O liberto Conrado de Tal, que, desde os tempos em que era escravo, pertencente a
João Jose Dias, já era associado à irmandade do Rosário e contribuía com a taxa anual de Rs.
$300 (trezentos réis), assim como as irmãs, companheiros da mesma posse de João Dias:
Francisca, Lizarda e Maria. Consta no livro de receitas e despesas da irmandade de Nossa
Senhora do Rosário que desde o ano de 1843 esses sujeitos vinham contribuído com a
anuidade da confraria, porém não foi possível certificar o ano preciso em que eles se
filiaram.389
Percebe-se que os sepultamentos de Andressa e Benedicto foram realizados em
capelas diferentes à da confraria do Rosário, isto porque, nesse período, segundo alguns
386
Reginaldo. “Os Rosários dos...”, p. 203.
387
Acervo da Paróquia do Santíssimo Sacramento de Rio de Contas. Diocese de Livramento de Nossa Senhora –
BA. Livro de registro de óbitos da Freguesia de Nossa Senhora do Livramento da Vila do Rio de Contas. 1825 a
1874, fls. 39v e 48v, respectivamente.
388
Ibid, fl. 104v.
389
APMRC. Seção Eclesiástica. Série Registro de Irmandade. Livro da Irmandade de Nossa Senhora do
Rosário. 1823-1853. Cx 01 / Est. 01/ Mç. 04 / Doc. 07 / Documento com 131 folhas, incompleto, fls. 100 a 106v.
178
indícios encontrados no arquivo municipal de Rio de Contas, desde o ano de 1839, a capela de
Nossa Senhora do Rosário estava sendo reformada. Quase dez anos depois, o tesoureiro da
irmandade declara que, entre escravos com oficio de pedreiro e os que trabalhavam por jornal,
gastou quase Rs. 400$000 com os reparos na Igreja do Rosário.390
Os assentos de óbitos de Guilherme, pardo, e de Anna Maria, crioula, escravos,
pertencentes ao major Jose Joaquim de Oliveira Rocha e Marciano Vieira Celio,
respectivamente, residentes na Villa de Minas do Rio de Contas, não informa se eles
pertenciam a alguma irmandade, no entanto, ele foi enterrado “na sepultura de número trinta e
sete da parte da irmandade”, ela, “na parte da Irmandade número doze” e ambos dentro da
Matriz do Santíssimo Sacramento. Guilherme faleceu de “moléstia no cérebro” com dez anos
de idade, seu corpo foi “involto em cambrainha preta” e enterrado no dia sete de setembro de
1854. Anna Maria, com mais de quarenta anos, morreu devido a “molestias interiores talvez
gálicas”, recebeu os sacramentos e foi sepultada com habito branco no dia dezoito de
novembro de 1855.391
Os dados apresentados nessas atas facultam a pensar que, antes de falecer, eles
solicitaram e pagaram os serviços prestados pela confraria, nesses casos, não necessariamente
aos da irmandade de Nossa Senhora do Rosário, posto que, como já mencionado, na região
existiram outras instituições religiosas que, certamente, também prestavam esses tipos de
serviços. É possível presumir que esses sujeitos desfrutavam de certo prestígio
socioeconômico, tendo em vista que foram sepultados dentro da Matriz e não no adro ou nas
demais capelas da Vila, como, geralmente, ocorria com seus companheiros de cativeiro.
O caso do cativo Guilherme é bastante instigante por ainda ser criança e, decerto, não
possuir alguma ocupação que lhe garantisse alguma renda para arcar com os serviços da
irmandade. Conquanto o seu registo de batismo forneça alguns indícios que permite supor que
seus pais, Venancio de Tal e Joanna de Tal, sujeitos forros, tinham condições de assumir tais
despesas, vez que, desde a época do batizado do filho (1843) já haviam conquistado a alforria
e, por certo, usufruíam de algum recurso financeiro, fosse trabalhando como agradados e/ou
meeiros nas propriedades sertanejas ou em alguma outra ocupação na Vila.392
390
Ibid, fl. 108.
391
Acervo da Paróquia do Santíssimo Sacramento de Rio de Contas. Diocese de Livramento de Nossa Senhora –
BA. Livro de registro de óbitos da Freguesia de Nossa Senhora do Livramento da Vila do Rio de Contas. 1825 a
1874, fls. 78v e 82, respectivamente.
392
Acervo da Paróquia do Santíssimo Sacramento de Rio de Contas. Diocese de Livramento de Nossa Senhora –
BA. Assentos dos batismos que foram feitos fora da Matriz do Santíssimo Sacramento da Vila do Rio de Contas.
1838-1859, fl. 70.
179
393
Reginaldo. “Os Rosários dos...”, p. 121.
394
Acervo da Paróquia do Santíssimo Sacramento de Rio de Contas. Diocese de Livramento de Nossa Senhora –
BA. Livro de registro de óbitos da Freguesia de Nossa Senhora do Livramento da Vila do Rio de Contas. 1825 a
1874, fls. 136v e 140, respectivamente. Sobre o significado da doença, ver nota 67.
395
Ibid. 1875 a 1914, fl. 2. APMRC. Seção Eclesiástica. Série Registro de Irmandade. Livro da Irmandade de
Nossa Senhora do Rosário. 1823-1853. Cx 01 / Est. 01/ Mç. 04 / Doc. 07 / Documento com 131 folhas,
incompleto, fls. 101v.
396
Reginaldo. “Os Rosários dos...”, p. 121.
180
397
REIS, João José. Morte é uma festa. Ritos fúnebres e revolta popular no Brasil do século XIX, São Paulo,
Companhia das Letras, 1991, p. 144 e 100, respectivamente.
398
FURTADO, Júnia Ferreira. “Transitoriedade da vida, eternidade da morte: ritos fúnebres de forros e livres
nas Minas setecentistas”. In: JANCSÓ, István e KANTOR, IrisFesta: Cultura e sociabilidade na América
Portuguesa. v. 1. São Paulo: Hucitec, Edusp, 2001, p.6.
181
mensais e outros anualmente. Nesse mesmo período, o tesoureiro, José Joaquim da Silva, ao
fazer o levantamento das despesas, declara que gatou com a provisão do vigário geral para a
exposição do santíssimo Sacramento na festa, com a música, fogos de artifício, ceras, rosários
incensos, com a missa no primeiro domingo, na forma do costume, e com a celebração da
missa da posse dos novos oficiais da irmandade, entre outros gastos.
Os dados perscrutados no livro de receita e despesas indicam como a irmandade do
Rosário de Minas do Rio de Contas oitocentista era dinâmica e como, constantemente, criava
e recriava os espaços de sociabilidade entre os sujeitos, presumivelmente, independente da
cor, mas, claro, com hierarquias internas sociais e raciais, haja vista que, “as irmandades eram
associações corporativas, no interior das quais se teciam solidariedades fundadas nas
hierarquias sociais”.399 Com eleições anuais, celebrações na festa da padroeira, missas para
receber os novos irmãos, além da missa mensal a cada primeiro domingo do mês e das missas
para a alma do irmão falecido, dentre outros eventos promovidos, ela proporcionava a
formação e renovação dos laços de família espirituais, na medida em que facultava a criação
de “redes de proteção e identificação social mais amplas que aquelas criadas pelo parentesco
ou pela vizinhança”.400
Os livros de óbitos e o livro da irmandade de Nossa Senhora do Rosário, aqui
perscrutados, facultaram, mesmo que brevemente, aproximações de experiências de escravos
e libertos, confrades ou não, e conduziram a compreensões da importância dos laços
espirituais de família nos arranjos cotidianos pela sobrevivência no meio do seus. Além disso,
é possível atestar que os vínculos de convivências constituídos nas festividades e/ou
celebrações promovidas pela irmandade não se restringiram aos compromissos e deveres da
mesma, eles, decerto, resultaram em duradouras relações de respeito, cumplicidade e amizade.
399
Reis. A morte é..., p.51.
400
Vianna. O idioma da..., p. 140.
182
5. CONSIDERAÇÕE FINAIS
6. FONTES E BIBLIOGRAFIAS
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Livro de Registro de Óbitos da Matriz e suas filias: Nossa Senhora Santana, Nossa
Senhora do Rosário e do Cemitério Paroquial – 1825 a 1874.
Livro de Registro de Óbitos da Matriz e suas filias: Nossa Senhora Santana, Nossa
Senhora do Rosário e do Cemitério Paroquial – 1874 a 1915.
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Gavião,1983. 2 discos sonoros, 33 1/3 rpm, estéreo, 12 pol.
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