Você está na página 1de 3

“Civilização e barbárie” formam o arcabouço do

Facundo e de Os Sertões. O pensamento do autor


não foge a esse modelo, se constitui pela abordagem
O significado de Raízes do Brasil, por Antônio dialética de conceitos polares, não como se eles
Candido fossem mutuamente excludentes. A visão de um
Em meados do século XX, três livros levaram uma determinado aspecto da realidade histórica é obtida
geração a refletir e se interessar pelo Brasil, obras pelo enfoque simultâneo dos dois; um suscita o
que pareciam exprimir a mentalidade ligada ao outro. Sérgio Buarque aproveita o critério tipológico
“sopro” de radicalismo intelectual e análise social de Max Weber ao focar pares de tipos ao invés de
impulsionado após a Revolução de 1930. pluralidades de tipos, para tratá-los de maneira
dinâmica e ressaltar a interação dentro do processo
A anticonvencional composição extremamente livre histórico. Com este instrumento, o autor analisa os
e franca de Casa Grande e Senzala, como no fundamentos do nosso destino histórico e suas
tratamento dado à vida sexual do patriarcalismo, e a diversas manifestações: trabalho e aventura, método
importância decisiva atribuída ao escravo na e capricho, rural e urbano, burocracia e caudilhismo,
formação do modo de ser do brasileiro causou forte norma impessoal e impulso afetivo – são pares
impacto na época. Informações e dados que destacados na estrutura social e política pelos quais é
ensejavam noções e pontos de vistas inovadores no possível analisar e compreender o Brasil e os
Brasil de então. Entretanto, a preocupação do autor brasileiros.
com problemas de fundo biológico (raça, aspectos
sexuais da vida familiar, equilíbrio ecológico
alimentação) dialogava com o naturalismo dos
velhos intérpretes da nossa sociedade, como Sílvio
Romero, Euclides da Cunha e Oliveira Vianna.
Três anos depois aparecia Raízes do Brasil. Livro
curto, de poucas citações, mas que, entre outras
influências, fornecia indicações importantes para
compreenderem o sentido de certas posições
políticas daquele momento, em que se se buscava
soluções novas, fosse à direita, no integralismo,
fosse à esquerda, no socialismo e no comunismo.
Seis anos depois do livro de Sérgio Buarque de Em “Fronteiras da Europa”, o primeiro capítulo,
Holanda, Caio Prado Jr. lançava Formação do Brasil Espanha e Portugal são o ponto de partida para
Contemporâneo. Interpretação do passado em função tratar, por exemplo, das diversas formas de
das realidades básicas da produção, da distribuição e colonização da América, e de pontos que serão
do consumo. Nele, o autor afasta-se do ensaísmo desenvolvidos ao longo da obra, como o tradicional
(marcante nos outros dois livros), prioriza dados e personalismo e a consequente frouxidão das
argumentos em detrimento de categorias qualitativas instituições e baixa coesão social.
como “feudalismo” ou “família patriarcal”. O A ausência do princípio de hierarquia e a exaltação
materialismo histórico aparecia como forma de do prestígio pessoal que implica em privilégio seria
captação e ordenação do real, desligado do outra característica ibérica de grande impacto na
compromisso partidário ou desígnio prático colônia. Isso fez com que a nobreza permanecesse
imediatista. aberta ao mérito e ao êxito, o que favoreceu a mania
No pensamento latino-americano, a reflexão sobre a de fidalguia, ou seja, a repulsa ao trabalho regular e
realidade social foi marcada pelo senso dos às atividades utilitárias, de que decorre a falta de
contrastes e mesmo dos contrários – apresentados organização. O ibérico não renuncia às veleidades
como condições antagônicas em função das quais se em benefício do grupo ou dos princípios. Aos
ordena a história dos homens e das instituições. preteridos de tal privilégio, cabe a obediência cega:
“A vontade de mandar e a disposição para cumprir social rápida que coíbe a formação de uma
ordens são-lhes igualmente peculiares [aos ibéricos]” mentalidade específica, como em outros países.
(p. 39). A escravidão matou de uma vez a O capítulo “Homem cordial” apresenta
necessidade no homem livre de cooperar e organizar- características do brasileiro resultantes do que foi
se. tratado anteriormente. As “relações de simpatia”
No capítulo seguinte, “Trabalho & aventura”, está a reinam, ou seja, as relações impessoais,
tipologia básica do livro, a distinção entre o características do Estado, são suscetíveis de serem
trabalhador e o aventureiro e suas éticas opostas: a levadas para o padrão pessoal e afetivo. Isso impede
que busca novas experiências, acomoda-se no a formação de uma sociedade urbana moderna. O
provisório e prefere descobrir a consolidar; e a que “homem cordial” pressupõe, de fato, o predomínio
estima a segurança, o esforço e a compensação a do comportamento de aparência afetiva, não
longo prazo. O continente americano foi colonizado necessariamente sincera.
por homens mais próximos do primeiro tipo, o que O capítulo 6, “Novos tempos”, analisa o choque nos
foi positivo para o Brasil, pois o português velhos padrões coloniais causado pela vinda da
manifestou uma adaptabilidade excepcional, ainda família real.
que “com desleixo e certo abandono”. Dada a A sociabilidade é aparente, uma vez que não se
diversidade reinante, o espírito de aventura foi o impõe ao indivíduo, tampouco contribui para a
“elemento orquestrador por excelência” (p. 46). estruturação de uma ordem coletiva. Encontra séria
Assim, a lavoura de cana foi mais um barreira na individualidade que emerge na relutância
aproveitamento de espaço do que ação de uma perante a lei que o contraria. A isso também está
civilização agrícola. ligada a satisfação no saber aparente, cujo fim está
“Herança rural” é o próximo capítulo que analisa o em si mesmo e, por isso, deixa de ser aplicado em
impacto da vida rural na sociedade brasileira, e suas um objetivo concreto. A mudança de atividade torna-
diferenças em relação à mentalidade urbana. se constante, por buscar a satisfação pessoal. As
A agricultura acompanhou a escravidão em seu profissões liberais se aproximam dessas
declínio, promovido por políticos e intelectuais de características, tanto por permitirem a manifestação
família fazendeira. O capital ocioso migrou para as individual quanto por prestarem-se ao saber de
cidades, promovendo progresso social e fachada. É a opção dos membros da classe
investimento técnico. Isso não refletiu em um dominante em função da crise das velhas instituições
desenvolvimento coeso em função da “radical agrárias, por prescindirem do trabalho direto sobre as
incompatibilidade entre as formas de vida copiadas coisas, que lembra a condição servil.
de ações socialmente mais avançadas, de um lado e o A força adquirida pelo positivismo também pode
patriarcalismo e personalismo fixados entre nós por estar relacionada a esse contexto. Uma confiança
uma tradição de origens seculares” (p. 79). consistente às ideias, mesmo quando inaplicáveis,
“O semeador e o ladrilhador” é o quarto capítulo. A ajuda a entender o liberalismo que, no Brasil, se
cidade é entendida como instrumento de dominação constituía como uma oposição à autoridade
já a partir de sua concepção. Ladrilhador refere-se ao incômoda. Da mesma forma, tratou-se de importar a
espanhol, que vê a cidade como empresa da razão, democracia e acomodá-la aos privilégios
como as que fundou aqui, planejadas rigorosamente aristocráticos, sendo que, em outros países, elas eram
e contrárias à ordem natural; como se conflitantes.
correspondessem a um prolongamento da metrópole. O capítulo 7, “Nossa revolução”, mais compacto,
Os portugueses, agarrados ao litoral, foram sugere que a dissolução da ordem tradicional
“semeadores” de uma cidade irregular, cuja “silhueta ocasiona contradições não resolvidas na estrutura
se enlaça na linha da paisagem” (p. 110). O aparente social, que surtirão efeitos nas instituições e ideias
desleixo corresponde a uma prudência condicionada políticas. A passagem do rural para o urbano
por um realismo não imaginativo ou regido por representa a passagem da tradição ibérica, baseada
regra, fruto de um desejo pela fortuna e ascensão em instituições agrárias, para um modo vida próprio,
americano. Está ligada a esse momento a passagem
da exploração da cana de açúcar, como produto
principal de exportação, para o café. Os modelos
políticos do passado se adaptam aos novos tempos.
Isso é possível através da combinação não
harmoniosa entre leis formalmente perfeitas e uma
organização administrativa ideal com o mais
extremo personalismo. A Abolição tornou inviável a
velha sociedade agrária, o que foi o início da “nossa
revolução”. Trata-se de superar o passado, adotar o
ritmo urbano e propiciar, ao mesmo tempo, a ruptura
do predomínio das oligarquias e a emergência das
camadas oprimidas da população, únicas com
capacidade para revitalizar a sociedade, tornando
viável uma vida democrática no Brasil. Contra essa
tendência, poderia surgir uma resistência saudosa do
antigo modelo, que, de acordo com a intensidade de
sua força, poderia se traduzir em formas que
comprometam as esperanças de qualquer
transformação profunda. O caudilhismo, expressão
maior do personalismo que intervém no processo
democrático, é um exemplo dessa resistência. A
repulsa pela hierarquia e a relativa ausência dos
preconceitos de raça e cor são elementos que
permitem a convergência rumo à democracia.
Raízes do Brasil escapa ao dogmatismo e abre o
campo para a meditação dialética. O autor baseou
sua análise na psicologia e na história social, com
um senso agudo de estruturas, vinculando dessa
forma o conhecimento do passado aos problemas
atuais. Propôs que a liquidação das raízes era um
imperativo para o desenvolvimento histórico. Perder
as características ibéricas era o caminho para a
evolução moderna brasileira, cuja trajetória não
incluiu um louvor ao autoritarismo, como solução
para sua organização. Sérgio Buarque afirmou, em
1936, estar na fase aguda da decomposição da
sociedade tradicional. Em 1937 veio o golpe de
Estado e o advento da fórmula rígida e conciliatória,
que encaminhou a transformação das estruturas
econômicas pela industrialização. Era o primeiro
passo para a modernização.
Bibliografia:

CANDIDO, Antonio. O significado de Raízes do


Brasil. In: HOLANDA, Sérgio Buarque. Raízes do
Brasil. 26ª ed. São Paulo: Companhia das Letras,
1995.

Você também pode gostar