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AFORMACAO NACIONAL EM BUARQUE, FREYRE E VIANNA GABRIELA NUNES FERREIRA Os anos 20 e 30 deste século abriram uma fase fecunda no pen- samento social brasileiro, marcada pela produgo de interpretacdes globais, do Brasil onde predominaria, com linhas ¢ estilos variados, a questéo da formacao nacional, aliada 4 da modernizagiio. E neste terreno comum que podemos situar autores como Sérgio Buarque de Holanda, Gilberto Freyre ¢ Oliveira Vianna, Apesar de suas divergéncias — especialmente entre o ultimo e os dois primeiros — apro- xima-os a preocupago em produzir novas interpretagdes da sociedade brasileira, procurando enfatizar a nossa especificidade e tendo como hori- zonte a possibilidade de nossa constituigdo em na¢do. A idéiade formagio da nagdo engloba, com énfasese sentidos dife- rentes para cada autor, processos variados e distintos que se interpenetram: a diferenciagao do piblico em relago ao privado, a integragdo da sociedade, a primazia do “urbano” sobre o “tural”, do “americano” sobre 0 “ibérico”. Sempre presente, a relagao dialética entre tradigdo e modernidade. Os trés autores, em suas interpretagdes do Brasil, procuram no nosso passado a chave da compreensio da nossa realidade social, cultural, politica. E cada um encontra a sua, Cada qual fundamenta sua interpretacao, baseia seus argumentos hist6ricos em um aspecto central: no caso de Olivei- ra Vianna, o elemento explicativo central 6 a formagao eo primado do claru- ral, fato que se origina na forma de colonizag&io empreendida no Brasil. Para Sérgio Buarque, 0 argumento historico gira basicamente em torno da nossa “heranga ibérica”, que se desdobrard no conceito-sintese da nossa heranga colonial, o de “homem cordial”. JA em Gilberto Freyre, a idéia de “plastici- dade” da colonizagao, com os varios aspectos que isto envolve (miscige- nagio, mobilidade social, adaptabilidade ao trépico), idéia associada a de “equilibrio de antagonismos”, parece constituir 0 cerne do seu argumento. 230 LUA NOVA N°37—96 Entre os trés autores, percebe-se um ponto em comum: a énfase dada a in- fluéncia da familia e do patriarcalismo sobre nossa formagao social. Entendendo melhor a “‘chave” explicativa a partir da qual cada autor produz a sua interpretagao do Brasil, pode-se perceber com mais cla- reza a maneira com que cada um trata a relago entre tradigdo e moderni- dade, relagdo que est por tras da idéia de “formagio da nacao”. E esta idéia, e a maneira como os trés autores citados a trataram, que pretendo es- tudar neste trabalho. O QUE SOMOS? Em Populagdes meridionais do Brasil, de 1918, Oliveira Vianna explicitava sua preocupagao em demonstrar a especificidade da formacio social brasileira: “Todo o meu intuito € estabelecer a caracteri- zago social do nosso povo, t4o aproximada da realidade quanto possivel, de modo a ressaltar quanto somos distintos dos outros povos, principal- mente dos grandes povos europeus, pela hist6ria, pela estrutura, pela for- magio particular e original” (p. 13). A volta ao passado, aos primérdios de nossa formagao histérica, social e politica, & passo fundamental para “estabelecer a caracterizagao social do nosso povo”. O ruralismo 6 desde logo apontado como a nossa caracteristica distintiva. O “homem do campo", cujo representante supre- mo € 0 fazendeiro, € 0 tipo “especificamente nacional”. Oliveira Vianna mostra como, historicamente, o grande dominio agricola erigiu-se no fun- damento de todo o poder social, 0 niicleo bésico de nossa organizagio so- cial. © dominio rural exerce, na sociedade colonial, uma “fung&o sim- plificadora”: auto-suficiente, fechado em si mesmo, torna socialmente desnecessdrio o surgimento de uma classe comercial, de uma classe indus- trial, ou ainda de corporagées urbanas importantes. A expresso social do tipo de colonizagaio empreendido no Bra- sil € 0 cld rural: toda a populacdo rural, de alto a baixo, agrupa-se em tor- no dos chefes territoriais. Este agrupamento se deve a fatores menos so- ciais e econdmicos do que politicos: vem da necessidade de defesa contra a chamada “anarquia branca”, expresso da primazia do poder privado dos chefes territoriais sobre o poder piblico, ou, como diz.o autor, fruto da dis- paridade entre a expansao colonizadora e a expansdo do poder public. E para se defender do arbitrio do poder privado que a populagio inferior se vé impelida a nele se refugiar, colocando-se a sua sombra. A solidariedade de cla torna-se a tinica forma de solidariedade realmente sentida e praticada pela populagdo. Faltam os elementos “afeti- A FORMAGAO NACIONAL EM BUARQUE, FREYRE E VIANNA 231 vos ¢ intelectuais” para a formagao de uma “consciéncia local”. O “espfrito de cla”, desde os tempos coloniais, € a marca de nossa vida social e politica. J4 no Império, esse espirito seré o empecilho para a formacao da “consciéncia provincial” e da “consciéncia nacional”. José Murilo de Carvalho observa que h4, em Populagaes, uma guinada na forma com que Oliveira Vianna trata os proprietérios rurais quando se passa das primeiras partes do livro para a terceira, quando ele se dedica A questo da nossa "formacao politica"! De fato, nas primeiras partes do livro, percebe-se uma grande simpatia do autor pela chamada “aristocracia rural”. Suas qualidades so ressaltadas (probidade, respeita- bilidade, independéncia moral, fidelidade & palavra dada...), qualidades que resultam de caracterfsticas da nobreza peninsular, reforgadas pelo am- biente rural, especificamente brasileiro. A famflia fazendeira, centrada no poder do pater-familias, & exaltada como elemento de estabilidade da so- ciedade brasileira: “A familia fazendeira, diz ele, é a mais bela escola de educagdo moral do nosso povo”. A partir da terceira parte, no entanto, os aristocratas rurais pas- sam a ser chamados de “caudilhos territoriais”, inicos verdadeiros empe- cilhos ao avanco do poder piblico, & “construgao da ordem legal”. Toda esta parte do livro & dedicada A descrigao da luta entre o poder privado dos caudilhos 0 poder publico, a partir do terceiro século de coloni- zago, ganhando maior intensidade no quarto século. Esmagado no mu- nicfpio (através do Ato Adicional), o caudilho ressurge com mais forga na provincia; 0 caudilho provincial € o “chefe dos chefes da caudilhagem lo- cal”, Repelido das provincias pela reagdo centralizadora iniciada em 1840, 0 caudilhismo entroniza-se no pr6prio centro: “Todas as agitagdes politicas do Império (...) se resumem numa luta generalizada entre caudi- Thos liberais e caudilhos conservadores; toda a massa de clas do pafs de- pende agora, pelo vinculo partidério, da orientagdo de um chefe central” (Populagées, p. 327). Oliveira Vianna oscila, assim, entre seu aprego aos valores ru- rais e patriarcais e a importdncia por ele atribufda & integrago do pats, por meio da ago vigorosa do Estado, ado necessariamente dirigida contra os chefes territoriais. O tema da organizagao politica nacional é retomado em Insti- tuigées politicas brasileiras, publicado trés décadas depois de Populagdes. Partindo da distingdo entre “pafs legal” e pais real”, ou entre “direito-lei” (claborado pelas elites) e “direito-costume” (direito efetivamente seguido | Carvalho, José Murilo de, "A utopia de Oliveira Vianna”. In Bastos, Elide Rugai e Moraes, Joao Quartim de, O pensantento de Oliveira Vianna. Ed. da Unicamp, 1993. 232 LUA NOVAN°37—96 pelo povo-massa), Oliveira Vianna empreende o que ele chama de “cultu- rologia do Estado”, 0 estudo das instituigdes politicas, com énfase no no direito pablico escrito, mas no direito costumeiro — o “pafs real”. Ora, no estudo do “pais real”, o que aparece como “as unidades bdsicas da nossa vida politica” so os “clas eleitorais”, transposigdes, para o plano politico, das células basicas da nossa organizagdo social, os clas rurais. A clanifi- cago da politica, 0 predominio dos interesses privados e locais sobre in- teresses piblicos na condugdo da vida politica — esta era, segundo 0 au- tor, a realidade. O “idealismo ut6pico” expresso nas Constituiges de 1824 ede 1891 consistia em ignorarem esta realidade, e presumirem uma “cons- ciéneia cfvica” que inexistia no povo-massa. Nao fosse o poder imperial, 0 idealismo ut6pico das nossas elites, com sua teimosia em querer implan- tar entre nés um Estado-Nagdo de base popular e democrética — a moda anglo-saxOnica — teria nos levado ao fracasso. Na Republica, onde falta 0 poder centripeto exercido no Segundo Reinado pela monarca, o perigo da clanificagao da politica se potencializa. A clanificagdo da vida social e politica significa, sobretudo, a vit6ria do localismo sobre a integracio nacional, do espfrito particu- larfstico sobre 0 “sentimento de Estado nacional”. Oliveira Vianna deslo- ca, assim, a sua argumentagdo da dicotomia ptblico/privado para o binémio integragao/desintegracao. O predominio da ordem privada sobre a ordem piblica, sob a forma do caudilhismo (ou da “clanificago”) é uma barreira 8 integracdo do pafs: eis o seu mal maior. Esse enfoque de Olivei- ra Vianna tem repercuss6es, como veremos, sobre a maneira como ele tra- ta a questo da “formacdo da nado”, com énfase no papel do Estado como instrumento de integragao nacional. A interpretagao que Sérgio Buarque de Holanda faz da socie- dade brasileira em Rafzes do Brasil — publicado em 1936 — aproxima- se, em varios pontos, da de Oliveira Vianna: ambos, por exemplo, dio én- fase ao peso do ruralismo, do patriarcalismo, das relages familiares na nossa formacao. Mas 0 argumento de Sérgio Buarque tem como chave, como nticleo central, um elemento que nao se encontra na interpretagiio de Oliveira Vianna: a heranca ibérica. Sérgio Buarque abre seu livro com a seguinte afirmaco: “A tenta- tiva de implantagao da cultura européia em extenso territério, dotado de con- digdes naturais, se ndo adversas, largamente estranhas & sua tradigao milenar, 6, nas origens da sociedade brasileira, o fato dominante e mais rico em conse- quéncias”. Nao se pode, portanto, procurar a especificidade da sociedade brasileira — preocupaco que, sem diivida, est presente em Sérgio Buarque eécomum atoda uma geragao de intelectuais—sem levar em contaeste fato: ode que convivemos com padres legados por nossos colonizadores. A FORMACAO NACIONAL EM BUARQUE, FREYRE E VIANNA 233 E os nossos colonizadores provinham de uma nagio ibérica. O primeiro capitulo do livro € dedicado a uma discussdo sobre os povos ibé- ricos, sobre “as formas de vida social nessa regido indecisa entre a Europa ea Africa”, O “culto a personalidade” € 0 traco principal da cultura ibérica. Traduz-se numa valorizagdo extrema da autonomia individual, na repulsa a qualquer forma de dependéncia. O princfpio de hierarquia, entre os ibéri- cos, € suplantado pelo de competicao individual. A consequéncia mais imediata deste trago € a “tibieza das formas de organizagao”, a fraqueza de todo tipo de associagdo que implique solidariedade e ordenagdo com base em interesses. Os sentimentos, de fato, constituem, para os povos ibéricos, apelos a associacaio muito mais forte do que interesses racionais. A repulsa a toda moral fundada no culto ao trabalho se ajusta bem a esta reduzida ca- pacidade de organizagao e racionalizagao da vida social. Resulta daf uma estrutura social frouxa, que necessita de uma forga exterior para manter um minimo de coeso: “Em terra onde todos séo bardes nao é possfvel acordo coletivo durdvel , a ndo ser por uma forca exterior respeitavel ¢ temida” (Raizes, p. 4). A obediéncia aparece, entéo, como o outro lado desse “culto a personalidade”, e impde-se como a fonte mais vidvel de dis- ciplina e ordenagao. A exaltagdo da personalidade e da autonomia indivi- dual, a tinica alternativa possivel é a reniincia a essa personalidade © a essa autonomia em vista de um bem maior. Foi através da colonizagiio que o Brasil herdou os tragos da cul- tura ibérica. Colonizagao levada adiante antes pelo tipo “aventureiro”, que se caracteriza pela audécia e pela busca de ganho imediato, do que pelo tipo “trabalhador”, que valoriza o trabalho metédico e criterioso em vista de uma compensagio final. A busca de ganho facil foi a marca de nosso proceso de colonizagao; a escolha do modelo de produgao — na forma de latifiindios monocultores, com emprego de trabalho escravo e com a utili- zac&o de técnicas rudimentares e predat6rias — foi uma das manifestacdes desse trago. Ao caracterizar o tipo de colonizagdo empreendida no Brasil, feita de forma quase andrquica, com certo desleixo, falta de planejamento, marcada pelo “gosto da aventura”, Sérgio Buarque poe énfase na plastici- dade do colonizador, qualidade fundamental que faltou, por exemplo, aos holandeses. A mobilidade social e a auséncia de “orgulho de raga” sao apontadas como aspectos dessa plasticidade (os portugueses, diz 0 autor, eram eles mesmos um povo de mesticos) . A fisionomia mercantil da dominagao portuguesa, preocupada menos em plantar alicerces do que em “feitorizar uma riqueza fécil”, ex- prime-se na primazia da vida rural, em detrimento do desenvolvimento da vida urbana. A habitagdo em cidades, lembra o autor, é anti-natural, asso- 234 LUA NOVA N37 —96 cia-se & manifestago da vontade, e portanto nao condiz com o espfrito norteador da atividade colonizadora dos portugueses. Ao lado do binémio aventureiro/trabalhador, Sérgio Buarque nos apresenta mais um par di cotémico — o semeador e o ladrilhador — para caracterizar a dominacao portuguesa, desta vez com o intuito de introduzir uma diferenciagao entre as “nag6es ibéricas”: Espanha e Portugal. Mas a discussao sobre, em primeiro lugar, a cultura ibérica e, em segundo lugar, o tipo de colonizagio e dominagao estabelecido no Bra- sil pelo portugués, s6 se completa quando Sérgio Buarque trata de um as- pecto central em toda a sua anélise: a estrutura social brasileira, resultante do processo de colonizago. E como se caracteriza esta estrutura social? Fundamentalmente, pelo seu trago marcadamente rural e patriarcal. A base da riqueza: o emprego do braco escravo e a exploragaio extensiva de terras de lavoura; as classes sociais: por muito tempo, senhores e escravos. Desde os primeiros tempos coloniais, a familia patriarcal, constitufda a se- melhanga daquelas da antiguidade classica, estreitamente vinculada & es- cravidao, é a base de toda a organizacdo social. A sombra desse quadro fa- miliar absorvente persegue os individuos mesmo fora de casa. O resultado, diz o autor, era predominarem, em toda a vida social, sentimentos pr6prios & comunidade doméstica, particularista e antipolitica, numa invaséo do ptblico pelo privado, do Estado pela familia. O mando e a obediéncia, num quadro de relagGes predominantemente pessoais, eis os fundamentos da estrutura de autoridade que se forma sob o peso da estrutura social lega- da pela colonizagao. Com a ascensio dos centros urbanos, a mentalidade da casa- grande “invade as cidades e conquista todas as profiss6es": na auséncia de uma burguesia urbana independente, uma burguesia urbana é “improvisa- da”, com elementos safdos da massa dos senhores rurais. Em pafs que du- rante boa parte de sua existéncia foi “terra de senhores e escravos”, a or- dem administrativa carece de uma classe média numerosa apta a desempenhar fungées ptiblicas. O conceito de homem cordial consegue sintetizar todo esse processo, articulando os dois elementos centrais da andlise de Sérgio Buarque: cultura e estrutura social. Cultura ibérica marcada pelo “culto a personalidade” e pela baixa capacidade de abstrago e de racionalizagaio da vida; forma de colonizagao e dominag&o portuguesa (0 “aventureiro”, 0 “se- meador”) informada no quadro dessa cultura ibérica; estrutura social, rural e patriarcal, resultante da forma de colonizagao e dominac&o empreendida no Brasil: o homem cordial € 0 resultado disto. Em outras palavras, ele é a per- sonificagao da heranga ibérica, ou seja, da cultura ibérica tal como ela se aco- moda ao meio brasileiro e se concretiza na nossa estrutura social. A FORMAGAO NACIONAL EM BUARQUE, FREYRE E VIANNA 235 Antes de introduzir a idéia de “homem cordial”, Sérgio Buarque faz uma referéncia normativa & natureza do Estado: “O Estado nao é uma ampliagéo do cfrculo familiar e, ainda menos, uma integragao de certos agrupamentos, de certas vontades particularistas, de que a famflia é o me- Ihor exemplo. Nao existe, entre o cfrculo familiar e o Estado, uma gra- dagdo, mas antes uma descontinuidade e até uma oposigao. (...) $6 pela transgressiio da ordem doméstica e familiar é que nasce o Estado e que 0 simples individuo se faz cidadao, eleitor, elegivel, recrutével e respon- sdvel, ante as leis da Cidade" (p.101). © “homem cordial”, tal como definido por Sérgio Buarque, representa a inexisténcia, no Brasil, de uma sociedade civil que possa ser- vir de base ao Estado impessoal. E a expresso da influéncia ativa dos padrdes de convivio informados no meio rural e patriarcal. Esses padres de convivio significam a prevaléncia do concreto sobre 0 abstrato, do emocional sobre 0 racional, do {ntimo sobre 0 impessoal. Sao padrdes que, se ficassem restritos & esfera familiar e privada, ndo seriam em si probleméticos. O problema, justamente, é que o “homem cordial” sai da esfera privada e projeta-se nas esferas social e politica. Ele personifica, as- sim, a invasdo do puiblico pelo privado. Os fundamentos personalistas e oligdrquicos da nossa vida so- cial — e a auséncia de uma verdadeira sociedade civil — fazem da demo- cracia, entre nés, “um lamentvel mal-entendido”. A aristocracia rural im- portou a ideologia impessoal do liberalismo e “tratou de acomodé-la aos seus privilégios”. Sérgio Buarque, no entanto, aponta sinais de progressi- va. liquidaco de nossas raizes ibéricas, abrindo espago para o surgimento de novos padrées de organizagao ¢ relagao social — veremos mais adiante como ele desenvolve este tema da relagao entre o tradicional e o moderno. Assim como Oliveira Vianna e Sérgio Buarque, Gilberto Freyre também, ao fazer sua interpretago da sociedade brasileira, volta aos primérdios da colonizaco empreendida pelos portugueses, como forma de entender, afinal, “o que somos”. Pode-se dizer que 0 retrato que Freyre faz da sociedade colonial se aproxima em varios aspectos daquele esbocado por ambos os outros autores: sociedade agréria e escravocrata, formada por nicleos dispersos e auto-suficientes, dominada pela familia patriarcal. Mas, nessa volta ao passado, a andlise de Gilberto Freyre difere tanto da de Oliveira Vianna - preocupado em procurar as origens dos “clas rurais”— quanto da de Sérgio Buarque — que tem na “heranga ibérica” um elemento central. A partir das idéias de “plasticidade” ¢ de “equilfbrio de antagonismos”, Freyre mergulha na sociedade colonial para entendé-la como o embridio de uma sociedade nova e original, fruto de uma experiéncia de adaptagao ao trépico. 236 LUA NOVA N°37 — 96 Para entender melhor o pensamento de Gilberto Freyre, € preci- so antes atentar para a singularidade c as implicagdes da propria metodolo- gia utilizada por ele na sua andlise da sociedade brasileira, a partir de Casa-grande & Senzala, de 1933: trata-se da chamada “sociologia genéti- ca” ou “histérica”. Elide Rugai assim define esta linha metodolégica: "O (seu) trago fundamental é a compreensdo. Esta proposta funda-se no rom- pimento com a historiografia convencional que usa somente os documen- tos como fontes. Gilberto Freyre inova outra vez ao propor 0 estudo da vi- véncia e da convivéncia cotidianas dos individuos como base para a reconstrugo do passado das sociedades"2, E através da sociologia genética que Gilberto Freyre busca re- conhecer 0 ethos brasileiro, resgatar 0 nosso verdadeiro “modo de ser". O campo de anilise privilegiado para buscar 0 nosso “caréter brasileiro” é a familia brasileira, a casa-grande, completada pela senzala (mais tarde, 0 sobrado urbano, ao lado dos mucambos): “Nas casas-grandes, diz ele, foi até hoje onde melhor se constituiu o nosso cardter social”. Penetrando na intimidade do passado, podemos nos reconhecer nesse mesmo passado. O estudo da “hist6ria intima” da familia é, assim, uma maneira de salientar a continuidade entre passado e presente. Mas a forma escolhida por Gilberto Freyre para interpretar 0 nosso “modo de ser “ nao implica uma visdo de continuidade somente en- tre passado e presente. Também hd continuidade entre familia e Estado, ou privado e piiblico. Nada mais elogtiente sobre essa maneira de conceber a relagdio entre publico e privado do que este trecho de Casa-grande & Sen- zala, em que Gilberto Freyre passa da esfera “intima” das relagdes entre senhor e escravo a esfera politica como se fossem duas faces da mesma moeda: “Mas esse sadismo de senhor e 0 correspondente masoquismo de escravo, excedendo a esfera da vida sexual e doméstica, tém-se feito sentir através da nossa formagdo, em campo mais largo: social e politico. Cre- mos surpreendé-lo em nossa vida politica, onde 0 mandonismo tem sem- pre encontrado vitimas em quem exercer-se com requintes as vezes sddicos (...) A nossa tradigdo revoluciondria, liberal, demagégica, é antes aparente ¢ limitada a focos de fécil profilaxia politica: no fntimo, o que o grosso do que se pode chamar “povo brasileiro” ainda goza é a pressiio so- bre ele de um governo mésculo e corajosamente autocrético” (p.51). Hé aqui uma critica a vida politica republicana, também presente tanto em Oliveira Vianna quanto em Sérgio Buarque, expressa no descom- passo entre “pafs real” e “pafs legal”. Mas 0 que chama mais a atengdo nesse 2 Bastos, Elide Rugai, 1994. “Gilberto Freyre, a diversidade € a extenstio do direitos politicos”. Texto apresentado na. ANPOCS (1994), A FORMACAO NACIONAL EM BUARQUE, FREYRE E VIANNA 237 trecho é a maneira com que Freyre trata a relacdo entre publico e privado. Sérgio Buarque também aponta, em sua andlise, a invasdo do publico pelo privado, do Estado pela familia. Mas ele aponta isto como um problema: a cordialidade, como padrao de convivio, torna-se problematica justamente quando extrapola o mundo privado e invade o das relag6es politicas — dois mundos essencialmente distintos. Gilberto Freyre, ao contrério, nao pro- blematiza a reprodugo das relages domésticas na esfera politica, Prova- velmente por nao conceber a esfera publica como essencialmente distinta da esfera privada, mas antes como um prolongamento dela. Finalmente, cabe mencionar uma terceira implicacao dessa me- todologia utilizada por Freyre: a escolha da “vivéncia e a convivéncia co- tidianas” como objetos privilegiados de estudo, tomando a interagao como palavra-chave para entender as relag6es sociais, favorece a produgdo de uma visio néo-conflituosa destas relagdes. Compondo o quadro metodolégico utilizado por Freyre em suas andlises dos anos 30, destaca-se, ao lado da “sociologia genética”, a “so- ciologia regional” ou “ecologia social”, que privilegia o estudo das relagdes dos homens com o ambiente, em uma chave que recusa qualquer determinismo geografico ou biolégico. Os fatores sécio-culturais, estes ganham importéncia fundamental para entender as relagdes dos homens entre si e com 0 ambiente. A regido, tomada como unidade de anélise - que nao se con- funde com qualquer categoria politica, artificial, como o Estado - € consi- derada uma “realidade organica”, espago no s6 fisico, mas também social ¢ cultural. Espago de integrago, cquilibrio de antagonismos, onde é possivel perceber a continuidade entre passado ¢ presente. De um modo geral, pode-se dizer que toda a metodologia de Gil- berto Freyre se orienta no sentido da conciliagdo e integragdo: entre passado e presente, ptiblico e privado, senhor e escravo, ambiente e cultura. E com esta perspectiva que Freyre vai realizar, em Casa-grande & Senzala, um esforgo de afirmacdo nacional e de valorizacio positiva do ethos brasileiro. Nesse esforgo, dois elementos interligados sao utilizados: primeiro, a énfase na predominancia dos fatores s6cio-culturais em relagdo & raga, como elemento explicativo de nossa formacio social. Era preciso, dizia o autor, “discriminar entre os efeitos de relag6es puramente genéticas e os de influéncias sociais”; o que implicava fazer uma distingZo entre “hereditariedade de raga” e “hereditariedade de famflia”, dando pri- mazia a segunda na compreensdo da sociedade brasileira. A “famflia”, n caso, é a famflia patriarcal, assentada no latiftindio monocultor e no traba- Iho escravo, nticleo bésico da sociedade desde os primeiros tempos colo- niais. Segundo, a valorizagao positiva da miscigenagio, como prova 238 LUA NOVA N°37 ~96 maior da plasticidade do empreendimento colonizador, condigao de adap- tabilidade ao trépico e elemento de integracao da sociedade. A plasticidade da cultura portuguesa € o ponto de partida da andlise de Gilberto Freyre. Assim como Sérgio Buarque, ele mostra a sin- gularidade do povo portugués, “povo étnica e culturalmente indefinido en- tre a Europa e a Africa”. Daf resulta uma cultura complexa, uma cultura marcada por contrastes e antagonismos. Mas, se Sérgio Buarque vai bus- car na cultura ibérica 0 trago principal que nos seria legado, a “cultura da personalidade”, Gilberto Freyre — que nao parte, como Sérgio Buarque, da idéia de “heranga ibérica” — ressalta especificamente a “plasticidade” da cultura portuguesa, e a sua aptidao em conformar um “equilibrio de an- tagonismos”, Sérgio Buarque, € verdade, também levanta a questo da plasticidade do colonizador portugués, . até como forma de valorizar posi- tivamente 0 empreendimento colonizador. Mas a plasticidade, em si, nao é central para Sérgio Buarque como ¢ para Gilberto Freyre, em sua caracte- rizagdo do “ethos brasileiro”. De fato, Freyre valoriza 0 cardter plistico da cultura portuguesa como elemento chave para entender a especificidade da sociedade brasileira: plasticidade significa, antes de mais nada, “na europeismo” — e nisto reside a possibilidade da formagao de uma civili- zagao original. E 0 portugués com sua plasticidade que vem provar definitiva- mente, no Brasil, a sua “aptidao para a vida tropical”, vindo conformar aqui uma sociedade “agréria, escravocrata ¢ hibrida”: “Organizada a socie- dade colonial sobre base mais sélida e em condigées mais estdveis que na {ndia ou nas feitorias africanas, no Brasil é que se realizaria a prova defini- tiva daquela aptidao. A base, a agricultura; as condigées, a estabilidade pa- triarcal da familia, a regularidade do trabalho por meio da escravidao, a unigo do portugués com a mulher fndia, incorporada assim a cultura econdmica ¢ social do invasor” (C-G&S, p.04). Gilberto Freyre enxerga na estrutura sécio-econémica da col6nia, fundada na monocultura latifundidria e escravocrata, a base de uma dominagdo dura e excludente de senhores sobre escravos, de brancos sobre “homens de cor”. Mas, se a organizagao patriarcal est assentada nesta base mercantil e excludente, ela traz em si mesma, na sua base fa- miliar e comunitéria , a possibilidade de “adogar” a dureza da dominagio, diminuir as disténcias sociais e culturais entre os extremos da sociedade, através da miscigenagao de ragas e culturas: “A miscigenagao que larga- mente se praticou aqui corrigiu a disténcia social que doutro modo se teria conservado enorme entre a casa-grande e a senzala e a mata tropical; entre a casa-grande ¢ a senzala. O que a monocultura latifundidria e escravocra- ta realizou no sentido da aristocratizago, extremando a sociedade em A FORMACAO NACIONAL EM BUARQUE, FREYRE E VIANNA, 239 senhores e escravos, com uma rala ¢ insignificante lambujem de gente liv- re sanduichada entre os extremos antag6nicos, foi em grande parte contra- riado pelos efeitos sociais da miscigenagdo” (C-G & S, pp.1). ‘A miscigenagdo — entendida em sentido amplo, como um processo de interpenetracio de etnias — sintoma da plasticidade dessa so- ciedade dominada pela famflia patriarcal, surge ao mesmo tempo como fa- tor de adaptabilidade ao trépico (corrigindo a distdncia entre “casa-grande e “mata tropical”), e como fator de integragao da sociedade, diminuindo as distancias sociais e culturais (entre “casa-grande” ¢ “senzala”). Embora Gilberto Freyre até reconheca que, no processo de mis- cigenaco, a cultura dos “vencedores” acaba por se sobrepor, em grande medida, 4 dos “vencidos”, ele nao se atém a esse fato como um problema: est4 mais preocupado em demonstrar, para além dos antagonismos exis- tentes, a presenga de “zonas de confraternizagao” que permitiram a for- magdo, no Brasil, de uma civilizacdo tropical, original e criativa. ‘A concepgao de Gilberto Freyre da formagao nacional como um “processo de equilibrio de antagonismos” fica bem clara em Sobrados ¢ mucambos, de 1936. Prolongando o estudo da familia patriarcal iniciado em Casa-grande & Senzala, € nesta obra que Freyre analisa, segundo suas proprias palavras, "o decl{nio do patriarcado rural ou o seu prolongamento no patriarcado menos severo dos senhores dos sobrados urbanos e semi- urbanos; o desenvolvimento das cidades; a formagao do Império; famos quase dizendo, a formago do povo brasileiro” (p.13). Se o sistema casa-grande - senzala fora uma “maravilha de aco- modagéo"— entre senhor e escravo, preto e branco, pai e filho, homem e mulher, Oriente e Ocidente —, 0 perfodo seguinte, marcado pela ascensao das cidades, das atividades comerciais e industriais, viria quebrar esta aco- modacio e reavivar os antagonismos presentes na sociedade. Ao “urbani- zar-se”, 0 patriarcalismo perde muito de sua forga original de absorgao e de aglutinagdo, em torno do chefe, dos demais elementos da sociedade. Abre-se uma fase de maior individualismo “da mulher, do filho, do ne- gro”; a “sociedade” querendo sobrepor-se & “comunidade” . Mas essa pas- sagem nao se faz sem o surgimento de contrastes e antagonismos: entre 0 sobrado e a rua, entre cultura européia e cultura africana — ou entre oci- dente e oriente — , ¢ o maior de todos: entre sobrados e mucambos. Os senhores dos sobrados ¢ os negros libertos ou fugidos, moradores dos mu- cambos, tornam-se extremos antagnicos, no sendo mais membros de uma mesma “comunidade” familiar. Mas Gilberto Freyre recupera a idéia de “equilibrio de antago- nismos”, presente em Casa-grande & Senzala e a aplicaa este novo con- texto, de transigo do tradicional ao moderno. Aos poucos, a propria rua, 240 LUA NOVA N° 37 —96 inicialmente inimiga da casa, propicia “espagos sociais de confraterni- zagéio”. Ao mesmo tempo, o patriarcalismo enfraquecido na sua transfe- réncia para o meio urbano favorece a mobilidade social. E, sobretudo, a miscigenacdo, to presente na cidade quanto no meio rural, age no sentido de amolecer os antagonismos. Aparece ento a possibilidade de uma sociedade integrada, j4 no mais em torno dos nticleos familiares patriarcais. O “pai natural ou so- cial”, 0 patriarca, é substitufdo, sem grandes rupturas, pelo “pai politico” de todos, pelo “poder suprapartriarcal” do Rei e depois do Imperador. O TRADICIONAL E O MODERNO Os trés autores estudados nessa trabalho realizam, cada qual ao seu modo, uma interpretagao hist6rica da formagao social brasileira. Cada um, voltando as origens da sociedade brasileira, procura entender “o que somos”. Resta saber como cada autor, a partir desta interpretagéo, labora a idéia de formagio da nagao. O que distingue Oliveira Vianna tanto de Sérgio Buarque quan- to de Gilberto Freyre é 0 caréter de “diagnéstico” que ele imprime a sua interpretagdo sobre o Brasil. Produzir um diagndstico significa identificar a natureza dos males que afligem um determinado organismo; toma-se entio este diagnéstico como um dado objetivo que servird de base para a procura do remédio (extemo ao organismo). Tendo sempre em mente a distingao entre “pais real” ¢ “pais legal”, e propondo-se a aprender a “re alidade” brasileira, Oliveira Vianna acaba justamente tomando esta reali dade, com seus males, como um dado —e, portanto, como algo pouco su- jeito a mudangas endégenas. E impossfvel entender o pensamento de Oliveira Vianna sem perceber sua insergao na corrente de pensamento que se pode chamar de “autoritéria”, e que se consolida nos anos 20 ¢ 30. Bolivar Lamounier de- fine 0 pensamento autoritério como uma corrente que, reagindo contra as instituigdes da Primeira Republica, objetivava dar respostas concretas & questo da organizagao do poder do Estado. Essa corrente compartilhava, segundo ele, uma “ideologia de Estado”, genuinamente autoritéria, orien- tada no sentido de legitimar a autoridade do Estado como princfpio tutelar da sociedade’, 3 Lamounier, Bolivar, "Formagio de um Pensamento Autoritério na Primeira Repiblica. Uma Interpretagio, In: Fausto, Boris (Org.), Histéria Geral da Civilizagao Brasileira, 7.3, Vol.2, Difel, 343-374, A FORMAGAO NACIONAL EM BUARQUE, FREYRE E VIANNA, 241 Admitindo a insergao de Oliveira Vianna nessa corrente de pen- samento, é fécil entender que o seu enfoque, ao pensar na questéo da for- magio da nagGo, é um enfoque com viés marcadamente politico, dificil- mente desvinculado da idéia de Estado nacional. Mas, ao mesmo tempo, vimos que ele parte da andlise da sociedade para fundamentar a sua con- cepgdo de Estado e de seu papel. Desde Populagdes Meridionais, 0 autor elabora o seu diagnéstico sobre o Brasil: acompanhando nossa formagio_hist6rica, politica e social, o quadro que ele monta é o de uma sociedade ganglionar, clanificada social e politicamente em torno dos chefes territoriais. O cla é a unidade basica de toda a nossa organizagao social politica, fonte do nico tipo de solidariedade possfvel: a solidariedade de cla — em detri- mento do surgimento de uma “consciéncia de bem coletivo”, que pudesse servir de base real & integrago da nacdo. Integracdo: esta é uma idéia cara a Oliveira Vianna; em seu diagnéstico, destaca-se a desintegragao da soci- edade, 0 localismo como obstéculo & formagao nacional. A realidade, entdo, o “pafs real” seria essa sociedade ganglionar. Nés serfamos 0 cla rural. Esta seria a nossa esséncia, destinada a so- breviver ao longo da hist6ria, uma vez que tem rafzes profundas — Olivei- ra Vianna, como vimos, vai buscar essas rafzes na estrutura social da colonia. Qual € a safda para superar esta condico? O arcabougo institu- cional democrético-liberal nao é, muito pelo contrério: apenas abre espaco para que os clas rurais estendam sua ago privatista e localista ao campo politico, penetrando, através dos “clas eleitorais”, em todos os nfveis de poder, desde o municipal até o nacional. No Segundo Reinado, diz, Oliveira Vianna, tivemos a sorte de ter no poder pessoal do monarca o contrapeso a esse movimento de clanificagao da politica. Mas a Gnica solugdo mais pro- funda para construir a nacdo , “fundindo moralmente 0 povo na conscién- cia perfeita e clara da sua unidade nacional” € 0 poder do Estado: “Esse alto sentimento e essa clara e perfeita consciéncia s6 serdo realizados pela agdo lenta e contfnua do Estado - um Estado soberano, incontrastével, cen- tralizado, unitério, capaz de impor-se a todo o pafs pelo prestigio fascinante de uma grande missio nacional” ( Populagdes, pp. 387). Em Instituigdes Politicas Brasiletras Oliveira Vianna desen- volve melhor a sua concepgao de Estado e de seu papel. O Estado surge como o promotor da integragao nacional, 0 agente por exceléncia da “for- magao da nagdo”, nico agente capaz de superar o impasse criado pela distdncia entre “pafs real” e “pafs legal”. Na ago transformadora do Esta- do, a “realidade” deve ser tomada como seu pardmetro de agéio. Nenhuma politica serd eficaz se for frontalmente contra a fndole e os costumes do povo; estes acabariam por se impor ¢ deformar o resultado pretendido. 242 LUA NOVA N°37—96 A caracterfstica principal da evolugdo das realidades sociais é a lentidao com que se opera. O Estado, ao intervir nesta evolugao, deve tam- bém agir lentamente, se no quiser comprometer a eficdcia de sua ago. Quais so, entdo, os pressupostos desta eficdcia? Primeiro, que a politica se proceda de maneira lenta e gradual; segundo, que ela tenha apoio nas tra- digdes e costumes do povo-massa; ¢ terceiro...que “contenha um modicum de coagaio”. Negando, de um lado, a “técnica liberal” — ineficaz pois nao emprega a coagiio - e, de outro, a “técnica autoritéria” — que, ao empregar a coagiio, no leva em conta a realidade social —- , Oliveira Vianna escolhe este terceiro método para que o Estado empreenda a transformagio social. Se a interpretago de Oliveira Vianna sobre o Brasil tem o cardter de “diagnéstico”, se as transformagées sociais mais profundas sé so, para ele, possfveis sob a aio de um agente externo a sociedade, Sérgio Buarque, ao contrério, enfatiza em sua andlise o cardter dinamico dos processos sociais. A prépria “metodologia dos contrérios” (como a denomina Ant6nio CAndido) , sobre a qual construfdo 0 Rafzes do Bra- sil, em que 0 autor contrapée conceitos polares em um jogo dialético, su- gere esta dinamicidade. Diz Ant6nio Candido: “Neste processo, Sérgio Buarque de Holanda aproveita o critério tipolégico de Max Weber; mas modificando-o, na medida em que focaliza pares, ndo pluralidades de ti- os, 0 que Ihe permite deixar de lado 0 modo descritivo, para traté-los de maneira dindmica, ressaltando principalmente a sua interagao no processo hist6rico."4 Valeriano Costa também observa que "Sérgio Buarque pre- tende, com sua metodologia dos contrérios, mostrar que os processos que condicionaram nossa formagao social sao histéricos e, portanto, sujeitos a transformagées” 5 O homem cordial é, como vimos, 0 produto de nossa heranga ibérica e colonial. E também o conceito que articula cultura ibérica (a cul- tura da personalidade), e estrutura s6cio-econdmica (marcada pelo ruralis- mo). A estrutura sécio-econémica tem na andlise de Sérgio Buarque uma importancia fundamental: € nela que reside a possibilidade de superagao da “heranga ibérica” e de formagio de uma nova realidade — pode-se di- zer que nela se situa a possibilidade de “formagao da nagéo”. No tiltimo capitulo de Rafzes do Brasil, Sérgio Buarque nos fala de um “lento cataclismo”, abrindo espago para o surgimento de "um novo 4 Candido, Ant6nio, "O Significado de Rafzes do Brasil”, In HOLANDA, Sérgio Buarque de, Raizes do Brasil, 1991, Rio de Janeiro, José Olympio, pp. xxxix - Ti 5 Costa, Valeriano M. F, "Vertentes Democraticas em Gilberto Freyre e Sérgio Buarque”, In: Lua Nova, 26, 1992, pp. 219-248. ‘A FORMACAO NACIONAL EM BUARQUE, FREYRE E VIANNA 243 sistema, com seu centro de gravidade nao j4 nos dom{nios rurais, mas nos centros urbanos” (Rafzes, pp.127). Dois movimentos simultaneos e con- vergentes marcam, segundo, ele nossa evolugdo hist6rica: um tendente a aumentar a influéncia das cidades, e outro que restringe a influéncia dos centros rurais tradicionais. Embora a tensdo entre rural e urbano fosse an- terior 4 Aboli¢ao, Sérgio Buarque situa em 1888 0 momento decisivo do nosso desenvolvimento nacional, pois “a partir desta data tinham deixado de funcionar alguns dos freios tradicionais contra 0 advento de um novo estado de coisas, que s6 entao se faz inevitavel”(Raizes, pp. 127). O desa- parecimento progressivo das formas tradicionais de organizagdo sécio- econémica, que coincide com o declfnio da importéncia da lavoura acucareira e sua substituicao pela do café, j4 fazia parte deste revolugao, uma vez que a fazenda de café se aproximava de um “centro de explo- rago industrial”. O sentido profundo desse “lento cataclismo” é 0 “aniquilamen- to das rafzes ibéricas de nossa cultura para a inauguragdo de um estilo novo, que crismamos talvez ilusoriamente de americano” (p.127). Sérgio Buarque explicita aqui a relacdo entre cultura ibérica e estrutura sécio- econémica tradicional: “No Brasil, e no sé no Brasil, iberismo e agraris- mo confundem-se, apesar do que tém dito em contrério estudiosos emi- nentes, entre outros o Sr. Oliveira Vianna. No dia em que 0 mundo rural se achou desagregado e comegou a ceder rapidamente a invasdo impiedosa do mundo das cidades, entrou também a decair, para um e outro, todo 0 ci- clo das influéncias ultramarinas especificas de que foram portadores os portugueses”(pp.127). ‘Ao vincular iberismo ¢ agrarismo, Sérgio Buarque aponta aqui a safda para a superagio. das formas tradicionais de convivio, identificadas com a heranga ibérica, em beneficio do surgimento de outras formas, diga- mos mais modernas.. Como aponta Avelino Filho, a nossa “cordialidade”, produto hist6rico do iberismo e do agrarismo, nao é concebida pelo autor como caréter nacional, algo destinado a permanecer ao longo da histéria. Neste ponto diverge frontalmente de Oliveira Vianna, que via no ruralis- mo, no cla rural, 0 nosso carter nacional; ele nao admitia a passagem do tradicional ao moderno, e a prépria formagao da nagdo, sem o recurso ao Estado autoritdrio. 6 Avelino filho, G., "Cordialidade ¢ Civilidade em Ratzes do Brasil". Revista Brasileira de Ciéncias Sociais n.12. Ver também, numa perpectiva distinta da que aqui foi adotada, Angela de Castro Gomes, "A dialética da tradiglo". Revista Brasileira de Ciéncias Sociais 12, fever- eiro de 1990, 244 LUA NOVA N*37—96 Mas Sérgio Buarque aponta o declinio do complexo iberismo- agrarismo-cordialidade como um processo aberto e ainda em curso, cujo fim nao é necessariamente a formagao de uma sociedade marcada por for- mas impessoais de convivio, que serviriam de suporte, por exemplo, ao ar- cabougo institucional liberal , ou ao “impessoalismo democratico”. Mais do que isso: se € verdade que agrarismo, iberismo e cordialidade andam na mesma dirego, eles nao andam necessariamente no mesmo passo, dando margem ao surgimento de hiatos entre os diferentes nfveis do referido Proceso. A anélise da cordialidade e de sua crise abre espago para a critica & organizagao politica republicana. Assim como Oliveira Vianna, Sérgio Buarque aponta a distancia entre “Brasil real” e “Brasil legal”, ou entre a politica e a vida social. As transformagées sociais que atingem a base sobre a qual se assenta a cordialidade, destroem ao mesmo tempo as bases materiais do Estado imperial, sem colocar no lugar novas estruturas politicas que tenham ligago efetiva com a nossa vida social. A antitese li- beralismo-caudilhismo, que marca a vida politica republicana, é expressiio do descompasso entre pafs legal € pafs real; mas é também resultado da sobrevivéncia de uma cultura politica ainda marcada por padres persona- listas e oligarquicos. Ambos, 0 liberalismo e 0 caudilhismo, sao “solugdes superficiais e enganosas”: o primeiro porque pressupde a crenga “de que a letra morta pode influir por si 6 e de modo enérgico sobre o destino de um povo; o segundo porque enxerga na “pura e simples substituigao dos detentores do poder piblico”, a possibilidade de operar uansformagdes profundas na sociedade. De que maneira, entdo, podemos dizer que Sérgio Buarque carac- teriza esse processo que chamamos aqui de “formagiio da nacio”? Em pri- meiro lugar, pela liquidagdo progressiva do complexo iberismo — ruralis- mo — cordialidade, em beneficio da ascensdo de formas mais modernas de organizagao social e de convivio — Avelino Filho, no artigo citado, sugere © termo “civilidade” como contraponto & “cordialidade”, Esse processo de mudanga, embora ndo determine, abre espago para o surgimento de uma so- ciedade civil, e para a diferenciagdo do publico em relagdo ao privado. Em segundo lugar, pela superagao da distancia entre pais real e pais legal, de uma forma que escape do “intelectualismo”; quanto a esse ponto, Sérgio Buarque ndo propde um modelo fechado, e termina o livro de forma aberta, ‘com uma n&o-resposta a esse problema: “Se no terreno politico e social os principios do liberalismo tém sido uma indtil e onerosa superfetagao, nao serd pela experiéncia de outras elaboragdes engenhosas que nos encontrare- mos um dia com a nossa realidade. Poderemos ensaiar a organizagio de nossa desordem segundo esquemas sdbios e de virtude provada, mas hd de A FORMAGAO NACIONAL EM BUARQUE, FREYRE E VIANNA 245 estar um mundo de esséncias mais intimas que, esse, permanecer4 sempre intato, irredutivel e desdenhoso das invengSes humanas (...). J4 temos visto que o Estado, criatura espiritual, opde-se @ ordem natural e a transcende. Mas também é verdade que essa oposigao deve resolver-se em um contra- ponto para que o quadro social seja coerente consigo. H4 uma nica econo- mia possfvel e superior aos nossos célculos para compor um todo perfeito de partes to antagénicas. O espirito nao é forga normativa, salvo onde pode servir 4 vida social e onde Ihe corresponde”(p.142). A diferenga com relagio a Oliveira Vianna é clara: ambos de- tectam, especialmente na critica a organizagdo politica republicana, a distancia entre “Brasil real” e "Brasil legal". Mas Sérgio Buarque , a0 enfatizar o cardter dindmico dos processos sociais, situa no proprio “Brasil real” a possibilidade de mudanga, de modernizagao — coisa que Oliveira Vianna nao admitiria. Sérgio Buarque, ao contrério de Oliveira Vianna, vé na “for- magao na na¢do” um processo que dispensa a interven¢ao externa do Esta~ do autoritério. Em uma passagem do ultimo capitulo de Razes do Brasil, ele enfrenta a questdo da “via autoritéria”, chegando a admiti-la como um caminho possivel para consolidar a vitéria do “impessoalismo de- mocratico” sobre o personalismo: “Com a simples cordialidade nao se criam bons princfpios. E necess4rio algum elemento normativo sélido, ina- to na alma do povo, ou mesmo implantado pela tirania, para que possa haver cristalizagao social. A tese de que os expedientes tirdnicos nada rea- lizam de duradouro € apenas uma das muitas ilusdes da mitologia liberal, que a histéria est4 longe de confirmar” Mas, logo em seguida, completa: “E certo que a presenga de tais ilusdes nao constitui em si argumento contra o liberalismo e que exis- tem outros remédios, além da tirania, para a consolidagao e estabilizagao de um conjunto social e nacional” (Ratzes, p.140). autor dialoga com a corrente autoritéria admitindo a via da “tirania”, em tese. Mas o fato € que toda a sua andlise da realidade brasilei- a se dirige no sentido de desqualificar 0 argumento autoritério, apontando as transformagées em curso no seio da propria sociedade. Mais ainda, a sua argumentacdo pragmética procura mostrar que o formalismo liberal, de um lado, e a via autoritéria, de outro, so ambos, na pratica, solugdes abstratas que se ajustam mal A nossa realidade cultural e social. Nao ser- vem para superar 0 abismo entre Estado e sociedade, nado promovem por si sé a composigao de “um todo perfeito de partes antagdnicas”. Tal como Sérgio Buarque, Gilberto Freyre também descarta a necessidade da intervengdo do Estado autoritério em nossa formagao na- cional. Na verdade, o autor nem trata explicitamente esta questo, cen- 246 LUA NOVA N°37—96 trando sua andlise nas relagGes sociais. Mas o fato € que, na sua interpre- tagdo sobre o Brasil, ele situa na prdpria sociedade a nossa potencialidade como naco. Diferentemente de Oliveira Vianna, que vé na sociedade pa- triarcal e clanificada um impasse para a integracao nacional, Gilberto Freyre enxerga no préprio nicleo patriarcal, e na dinamica das relagdes so- ciais internas a ele, a possibilidade da superagao de antagonismos e 0 em- brido de uma nova civilizagao — ou de uma nova nagao. Mas neste ponto a vistio de Gilberto Freyre diverge também da de Sérgio Buarque. Como tentei mostrar, a idéia de Sérgio Buarque do que cha- mei de “formagao da nagao” supde a superagao de uma dada realidade e sua substituigdo progressiva por outra. No caso, este processo envolve a elim nagdo gradual de nossa heranga ibérica, fincada na estrutura social tradicio- nal. Por trds de toda a sua andlise, estd presente a percepgao da esfera priva- dae daesfera ptiblica como dois mundos idealmente distintos. Para Gilberto Freyre, ao contrério, a formagao da nagao nao é um “dever ser”, algo a ser realizado através da superacdio de uma situagdo tradi- cional. A nagdo brasileira jé existe, em esséncia, desde a col6nia, quando se formou uma sociedade plastica e caracterizada pelo “equilfbrio de antagonis- mos”. Quando trata da relagdo entre tradicional e moderno, Freyre procura salientar, sempre, a acomodagdo — e nao a ruptura — entre ume outro, a continuidade entre passado e presente, entre privado e piblico. Nenhuma figura encarna melhor a idéia de “equilibrio de anta- gonismos”, que constitui nossa esséncia, do que a do “mulato”, tal como descrita em Sobrados e Mucambos: filho, muitas vezes, do patriarcado ru- ral, representa ao mesmo tempo a ascensio da nova aristocracia dos sobra- dos; educado segundo valores europeus (ocidentais), vem exercer sua in- fluéncia numa sociedade ainda bastante orientalizada, Mulato, expressa a plasticidade e a mobilidade social que caracterizam a sociedade brasileira. Talvez Gilberto Freyre deva ao fato de privilegiar, em suas anélises, a idéia de conciliago, em detrimento das de conflito e ruptura, a interpretago (nao generalizada) de seu pensamento como “conservador”. ‘Ao extremo otimismo de Gilberto Freyre quanto a possibilidade da constituigdo do Brasil em nado contrapSe-se frontalmente o pessimis- mo de Oliveira Vianna, situando na ago forte do Estado a tinica possibili- dade de superarmos nossa “deformag3o” de origem. Oliveira Vianna levou sua conviccdo intelectual ao terreno da prética politica, como membro da alta burocracia estatal nos anos que precederam e sucederam a instauragdo do Estado Novo. Entre 0 otimismo e 0 pessimismo extremos, poderfamos talvez situar o “realismo” de Sérgio Buarque, com sua clareza do caminho Arduo a ser percorrido por um pafs que, como qualquer outro, deve assu- mir o peso de sua hist6ria. ‘A FORMAGAO NACIONAL EM BUARQUE, FREYRE E VIANNA 247 GABRIELA NUNES FERREIRA é pés-graduanda em Ciéncia Politica na USP e pesquisadora do CEDEC. REFERENCIAS BIBLIOGRAFICAS Avelino Filho, George. (1990). “Cordiatidade ¢ Civilidade em Ratzes do Brasil”, Revista Brasileira de Ciéncias Sociais, n.12. BASTOS, Elide Rugai. (1994). “Gilberto Freyre, a diversidade ¢ a extensio dos direitos politicos”. Mimeo. Texto apresentado no XVIII Encontro Anual da ANPOCS. Candido, Antonio. (1991). “O Significado de Rafzes do Brasil". In: Holanda, Sérgio Buarque de. Raizes do Brasil. 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Texto apresentado no XVIII Encontro anual da ANPOCS. Vianna, Oliveira (1952). Populagdes Meridionais do Brasil. R.J, José Olympio Editora (1987) Instiuicdes politicas brasileiras. Editora ItatiaiwEDUFF/EDUSP. Tam RESUMOS/ABSTRACTS 253 A FORMAGAO NACIONAL EM. BUARQUE, FREYRE E VIANNA GABRIELA NUNES FERREIRA Um tema central do pensamento social brasileiro é examinado na andlise comparativa de trés classicos deste século, mediante um con- fronto entre trés orientagdes bdsicas desses autores em relagdo ao tema, 254 LUA NOVA N°37— 96 nas suas varias dimensdes: o “realismo” (Sérgio Buarque de Holanda) 0 “otimismo” (Gilberto Freyre) e o “pessimismo” (Oliveira Vianna). BRAZIL’S NATIONAL FORMATION IN BUARQUE, FREYRE AND VIANNA A central theme in Brazilian social thought is examined in a comparative analysis of three classic authors, through a comparison be- tween three basic orientations regarding its several dimensions: “real- ism” (Sérgio Buarque de Holanda), “optimism” (Gilberto Freyre) and “pessimism” (Oliveira Vianna).

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