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Anderson

SOCIOLOGIA BRASILEIRA a nação se formou, quais seriam as bases dessa


formação social, em que medida o passado colonial e
Desde sua consolidação, nos anos 1930, até os escravista teria influenciado essa formação, quais seriam
dias de hoje, a Sociologia feita no Brasil sofreu as características centrais da identidade social brasileira.
influência de teses e teorias desenvolvidas em outros Em 1920, o historiador e sociólogo Oliveira
países. Vianna publicou Populações meridionais do Brasil, livro que
A sociedade brasileira foi analisada a partir das destaca as diferenças entre o povo brasileiro e os
relações sociais, políticas, econômicas e ideológicas demais. Motivado por sua tese de que o Brasil teria sido
estabelecidas com outras sociedades, em especial com formado por brancos, apesar da presença de índios,
as sociedades capitalistas do mundo ocidental. mestiços e negros, Oliveira Vianna prevê uma nação
Em cinco séculos de história, a sociedade embranquecida, em razão da forte imigração europeia e
brasileira ganhou feições muito particulares, o que da suposta maior fecundidade dos brancos em relação
exigiu de seus intérpretes a análise das singularidades às outras “raças”.
que lhe conferem uma cultura própria, distinta das Mais tarde, entre as décadas de 1950 e 1960,
demais sociedades capitalistas. essas questões se ampliaram e diversificaram, com
Primeiramente apresentaremos uma visão temas sobre qual seria o papel econômico e político do
panorâmica das interpretações do Brasil do final do Brasil diante da divisão internacional do trabalho e
século XIX e começo do século XX. No segundo, como se dava a relação de dependência com os países
vamos analisar o conjunto de intérpretes mais de economia mais avançada.
significativos do Brasil dos anos 1930 e sua importância Nos dias de hoje, uma questão central é como o
no processo de consolidação da sociologia brasileira. Brasil reproduz seu passado de desigualdades sociais,
No terceiro item passamos ao tema da questão racial, seja por consequência da escravidão, seja em razão do
entendido a partir do legado da escravidão. Por fim, no papel subalterno diante de países economicamente mais
item quatro será dedicado ao debate em torno das ricos como Estados Unidos, Alemanha, França,
questões do subdesenvolvimento e da dependência Inglaterra e, mais recentemente, a China.
econômica.
2. A geração de 1930
1. Interpretações do Brasil
Na década de 1930, Gilberto Freyre, Caio
A influência das discussões sociológicas, por Prado Júnior e Sérgio Buarque de Holanda deram
vezes trazida na bagagem de brasileiros que iam estudar forma científica à sociologia brasileira. Amparados,
em países europeus ou nos Estados Unidos, refletia a respectivamente, nas obras de Franz Boas, Karl Marx e
contradição entre o que a sociedade brasileira era de Max Weber, formalizaram a Sociologia como ciência no
fato e aquilo que poderia ou deveria ser. Brasil. A importância desses autores foi decisiva quanto
Muitas dessas interpretações viam o Brasil com aos rumos da Sociologia a partir desse momento.
os olhos de outras sociedades. O resultado foram Em 1933 Gilberto
interpretações que problematizaram as particularidades Freyre (1900 – 1987)
do Brasil na medida em que as contrapunham a outras publicou Casa-grande &
dinâmicas sociais. senzala, livro que o sociólogo
Durante os períodos colonial e imperial, o e crítico Antônio Candido
Brasil foi marcado pela produção agrícola escravista e (1918-) considera ser uma
formas de organização social predominantemente ponte entre o naturalismo
rurais e nucleadas na esfera familiar. que marcou antigas
Após a proclamação da República (1889), o interpretações (como as de
país passou a experimentar o trabalho assalariado e a Silvio Romero e Euclides da
vida urbana, o que gerou novas contradições e Cunha) e a contribuição
problemas no âmbito da formação social, sobretudo no sociológica que se
ambiente universitário que se estruturava. Nesse tempo, desenvolveu a partir dos anos 1940.
a questão central passou a ser a definição dos aspectos Natural de Recife, ele foi um dos pioneiros das
centrais da formação da sociedade brasileira. Assim, a Ciências Sociais no Brasil. O sociólogo foi estudioso,
importância do passado colonial esteve presente na professor universitário no Brasil e em universidades da
maioria dos livros que discutiram a formação social do América Latina, Estados Unidos e da Europa. Publicou
país. mais de 30 livros e alguns foram traduzidos para mais
Dessa maneira, no final do século XIX e início de 15 idiomas.
do XX, tomou forma um conjunto de análises sobre as Dedicou-se a estudar e a compreender o Brasil
particularidades do Brasil que buscava investigar como em seus aspectos sociológico, antropológico e
histórico, e para tanto, tratou do processo civilizador do
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Brasil, tendo feito uma abordagem culturalista, na qual desmitificação do negro como ser “selvagem” é um
estabeleceu uma distinção entre raça e cultura, tema central.
rejeitando as ideias racistas. Ele criou um novo conceito para a sociedade
Defendeu que a miscigenação e os mestiços no brasileira, pensou o “ser brasileiro” e definiu a formação
Brasil são uma herança cultural (mistura de povos) da sociedade brasileira a partir de três raças: índio,
positiva porque, segundo ele, a miscigenação é o africano e português.
elemento de formação da identidade nacional brasileira O índio e o negro, retratados em Casa-grande &
e, também, uma proteção contra os conflitos étnicos e senzala, não foram colocados ao lado da sociedade
raciais. brasileira, mas foram inseridos nela através da influência
Freyre desenvolve o argumento de que a cultural do nosso povo desde a comida, a dança, a
miscigenação seria o traço cultural central da sociedade música, o hábito de tomar banho, dormir na rede e
brasileira. Mas ao contrário de interpretações anteriores, tantas outras características que estão enraizadas na
não vê a mestiçagem de forma negativa e enfatiza a cultura do Brasil.
necessidade de substituir o conceito de “raça”, Gilberto Freyre dedicou-se a entender o Brasil
largamente difundido no Brasil, pelo conceito de e, para isso, não desprezou as raças, mas a partir da
cultura. Segundo ele, a família patriarcal foi a base sobre miscigenação procurou encontrar a identidade nacional.
a qual a mestiçagem se desenvolveu no Brasil. O autor valorizou os diferentes grupos étnicos e
Localizada sobretudo no meio rural, particularmente no ressaltou a contribuição que eles deram para a formação
latifúndio monocultor do Nordeste brasileiro, a família da sociedade brasileira.
patriarcal constituiu, assim, a forma social ideal para que Apesar de ter sido um dos fundadores da
a “raça” branca, colonizadora, se relacionasse com as sociologia brasileira, de ter tido relevância internacional,
demais “raças”. Freyre foi bastante criticado principalmente aqui no
A abordagem culturalista de Freyre sugere que Brasil. Vários setores da sociedade e intelectuais
a proximidade entre as culturas explicaria o caráter conservadores não aceitaram a ideia da mestiçagem e da
sincrético de nossa formação social, algo oposta às herança cultural negra. Nesta fase, em 1930, o país
culturas puras (como a Grega, por exemplo). A passava pela ideia da defesa da eugenia e do
proximidade seria resultado da influência cristã herdada “branqueamento” da raça.
dos portugueses, contrário ao elemento despótico Para aqueles que defendiam a superioridade da
oriental herdado dos mouros. Neste sentido, podemos raça branca, se verem confrontados com um
afirmar que a ideia de trópico em Freyre seria pensamento que não só defendia, mas também atribuía
responsável pela ponte entre cultura e geografia, bem importância à mestiçagem foi algo conflitivo. Neste
como pela sustentação das contradições em equilíbrio. contexto, Gilberto Freyre enfrentou muitas críticas,
É importante a noção de “neolamarkianismo” para mas através de três obras importantes, Casa-grande &
entendermos sua metodologia. senzala (1933), Sobrados e Mucambos (1936) e Ordem e
O povo brasileiro é considerado não como Progresso (1959) ele compôs a trilogia teórica cujo foco
simples soma de três “raças”, mas como resultado de passa pelo período colonial, império e transição do
um encontro mais complexo, que remete à formação da império para a república.
cultura brasileira. A partir dessa trilogia ele construiu um
Em Casa-grande & senzala, sua principal obra, panorama da sociedade brasileira, demonstrando o
Freyre tratou muito bem da questão da miscigenação e estudo de todas as transformações econômicas pelas
deixou claro que se trata da “mistura de cores” que quais o Brasil passou, desde o ciclo da cana-de-açucar
possibilitou a construção de uma “democracia racial”. até o início da industrialização no século XX.
Ele defende sua tese central sobre a democracia racial, Diferentemente de
sempre observando o predomínio dos aspectos Freyre, o historiador e
culturais em relação aos “raciais”. Nesses termos, a economista Caio Prado Júnior
mestiçagem é entendida como uma vantagem e a (1907-1990), nos livros Evolução
política do Brasil (1933) e Formação
do Brasil contemporâneo (1942)
interpreta o passado colonial
baseando-se na produção,
distribuição e consumo de
mercadorias.
Em Formação do Brasil contemporâneo, a história
brasileira é contada do ponto de vista da produção,
distribuição e consumo da riqueza. O Brasil é analisado
como parte do processo da expansão mercantil
europeia.
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Caio Prado Júnior tem como objetivo essa transformação como um processo histórico de
caracterizar em que medida a formação do Brasil está longa duração.
atrelada ao contexto de expansão do mercado europeu. A análise que Caio Prado faz do século XIX
Para ele, a formação do Brasil se deu de fora mostra-se importante sobretudo por dois motivos.
para dentro, tendo o país se estruturado como Primeiro porque faz um “balanço final” de três séculos
fornecedor de produtos tropicais, a exemplo da cana- de colonização, depois porque se configura como
de-açúcar. Segundo esse autor, a história do Brasil deve “chave insubstituível” para compreender a sociedade
ser entendida num âmbito mais amplo, que tem relação brasileira que se constitui posteriormente.
direta com as formas de expansão do comércio europeu Essa análise nos informa quão importante é
na América do Sul. analisar o passado colonial e o período imperial para
As massas de escravos, semiescravos, pobres, entender o Brasil contemporâneo e a presença de
explorados e empobrecidos são examinadas e ganham resquícios coloniais que contribuem decisivamente para
importância na sua obra. O autor aponta também para que esse autor considere a formação do país ainda
a especificidade que se manifesta desde a colônia, incompleta.
diferenciando a sociedade brasileira da portuguesa. Essa incompletude se deve, na visão de Caio
Segundo ele, desde a época colonial os brasileiros Prado, à permanência do Brasil em uma relação de
teriam adquirido forma própria, diferente da forma subordinação e dependência em relação a outras
indígena e da portuguesa. E consequentemente, nós, sociedades.
brasileiros, teríamos começado a desenvolver uma
mentalidade coletiva singular.
A análise que desenvolve no livro Formação do
Brasil contemporâneo (1942) parte da metodologia
marxista, sobretudo no que diz respeito à compreensão
do que estaria oculto no processo de colonização da
sociedade brasileira. Sua análise busca identificar os
elementos estruturais que compuseram o Brasil
colonial.
Para esse autor, a colonização do Brasil e suas
consequências históricas devem ser pensadas a partir da Segundo ele, o passado colonial ainda está
ideia que o Brasil se integrou a uma dinâmica maior, presente na sociedade brasileira quando ele observa
diretamente relacionada à expansão marítima e que o trabalho livre não se organizou em todo o país,
comercial europeia. conservando traços do trabalho escravo. O mesmo
O empreendimento comercial baseado na raciocínio valeria para a produção extensiva destinada a
produção de gêneros tropicais para o mercado externo atender os mercados no exterior e a ausência de um
fundamenta o raciocínio de Caio Prado Júnior, uma vez mercado interno desenvolvido, que reproduz, assim, a
que a colonização europeia assume a forma de subordinação do Brasil em relação a economias de
exploração e não de povoamento no Brasil. A formação outros países.
da sociedade brasileira, no período colonial, se Cabe-nos contextualizar o pensamento de Caio
estruturou economicamente na produção de açúcar, Prado, que se alinhava aos estudos historiográficos de
tabaco, e mais tarde na extração de ouro e diamantes, seu tempo. Nas últimas décadas, estudos históricos têm
em seguida na produção de algodão e de café, destacado a dinâmica econômica colonial, a diversidade
atendendo o mercado europeu. Para o autor, a grande de atividades econômicas voltadas para o mercado
propriedade (o latifúndio), a monocultura e o trabalho interno e a importância dos pequenos produtores para
escravo se apresentam, portanto, como as três o desenvolvimento social e econômico do território
características centrais da formação social do Brasil nos durante o período colonial.
séculos XVI, XVII e XVIII. Outro autor
A produção agrária, que tinha como centro importante desse período foi
geopolítico o engenho e a fazenda, integrou-se aos Sérgio Buarque de Holanda
objetivos comerciais europeus. A figura que (1902-1982), que publicou em
predominou nesse período não foi a do pequeno 1936, três anos depois de
produtor rural, mas sim a do empresário explorador, o Casa-grande & senzala e com
empresário de um grande negócio. escrita completamente diversa
Esse quadro histórico, essa herança, é destacada da de Freyre, o livro Raízes do
por Caio Prado quando se propõe analisar a passagem Brasil.
da colônia para a nação. Para ele, é necessário De estilo mais
entender a nação a partir da colônia, observando conciso, a obra aborda o sentido político da descrença

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no liberalismo tradicional e busca possíveis soluções. como hostil e as relações pessoais são ativadas na
Tem como condicionantes teóricos a história social tentativa de frear esse processo.
francesa, a sociologia da cultura alemã, sobretudo a A cordialidade marca, para Sérgio Buarque, um
influência de Max Weber, e a teoria sociológica e conjunto de relações que configuram um grupo social
etnológica. particular. Ela sintetiza uma forma de conduta social,
Com Raízes do Brasil, Sérgio Buarque objetiva nem sempre consciente, que procura frear a
conhecer o passado com vistas para o futuro, modernização da sociedade brasileira e conservar as
preocupando-se com a transformação social. Assim, o relações sociais de favorecimento pessoal. A
movimento geral da obra consiste em apresentar as evolução da sociedade brasileira, para esse autor, deve
características da nação brasileira, os marcos principais superar essas características e se pautar na busca de uma
de mudança e os caminhos para a transformação futura. sociedade civilizada, uma sociedade urbana e
As questões centrais de sua análise giram em cosmopolita que deixe para trás o mundo rural.
torno da oposição entre o mundo rural e o mundo A Sociologia de Sérgio Buarque examina, com
urbano e entre a esfera privada e a esfera pública. Na base na análise da sociedade brasileira, a ligação estreita
concepção de Sérgio Buarque de Holanda, é preciso entre o que é público e o que é privado e seus limites.
superar essas raízes, para que nossa sociedade seja A ausência de delimitações entre essas duas esferas da
modificada. Com esse objetivo em vista, o autor traça vida social pode ser observada ainda hoje. O
um panorama histórico do Brasil que se inicia no favorecimento teve, assim, uma dinâmica que
período colonial, passa pelo Império e pela República, transcendeu os anos 1930 e se pulverizou juntamente
até os anos 1930. com a modernização da sociedade brasileira, sobretudo
Sérgio Buarque adota o referencial weberiano no que se refere à burocracia estatal.
para analisar o Brasil do período colonial. Sua inserção
no debate se dá pela denúncia dos fundamentos
agrários e patriarcais presentes na sociedade brasileira.
Mostra-se também contrário às teorias racistas e,
aproximando-se de Gilberto Freyre, entende que a
mestiçagem teve papel central na construção da
identidade nacional. Não obstante, essa aproximação
não pode ser percebida com relação à herança rural.
Enquanto Gilberto Freyre faz uma
interpretação positiva do passado rural, como algo
próprio de nossa cultura e que não deveria ser
transformado, Sérgio Buarque enfatiza a necessidade da
transformação social, da constituição de um conjunto
de regras e normas destinadas a superar um passado de
favorecimentos pessoais originários das oligarquias Vemos casos de desvio de verbas e má
rurais. administração de dinheiro público, nepotismo e
Alicerçando seu raciocínio nos tipos ideais corrupção, ao longo de todo o século XX e começo do
weberianos, Sérgio Buarque constitui um etos nacional, século XXI. Nesse sentido, a obra de Sérgio Buarque de
isto é, um conjunto de características que se sintetizam Holanda se situa como leitura fundamental para
em uma cultura específica, na medida em que explicita entender o processo histórico-social brasileiro.
os traços marcantes da sociedade brasileira da época.
Esse etos nacional tem um sentido histórico e se
fundamenta em uma relação dialética própria da
sociedade brasileira.
De um lado, Sérgio Buarque assinala a
modernização da sociedade brasileira, de outro, o
conservadorismo que tenta bloquear essa
modernização.
Para ele, o tipo ideal que explicita esse processo
contraditório é o homem cordial. Ele seria a chave
analítica para compreender como certos setores da
sociedade brasileira resistem ao processo de
modernização. Segundo ele, a modernização representa
a construção de uma nova sociabilidade, que coloca em
risco o universo das relações de favorecimento. Nesse
sentido, o Estado moderno e não centralizador é visto
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3. A escravidão e a questão racial ideia é refutada pelos historiadores, que defendem a


existência de atividades econômicas voltadas para o
A herança escravista e a questão racial, temas abastecimento interno e não uma economia
abordados por vários sociólogos durante o século XX, exportadora e “de ciclos”).
permanecem extremamente relevantes no século XXI. Em semelhança com a abordagem de Caio
Autores como o historiador Fernando Novais (1933-), Prado Júnior, Florestan Fernandes entende que o Brasil
os sociólogos Octavio Ianni e Fernando Henrique colônia se estruturou como uma economia exportadora
Cardoso (1931-) e mais recentemente os historiadores de produtos tropicais e que essa organização foi
Sidney Chalhoub (1957-), Silvia Hunold Lara (1955-), imposta pela metrópole portuguesa. A economia
Célia Maria Marinho de Azevedo (1951-), os sociólogos colonial foi marcada pela especialização em
Antonio Sérgio Guimarães (1952-) e Sérgio Costa determinados ramos produtivos, especialização que se
(1962-), o antropólogo Kabengele Munanga (1942-), manteve após a emancipação da colônia com a vinda da
entre tantos outros, procuram entender o peso, a família imperial portuguesa para o Brasil, em 1808.
influência e a importância desses temas para a sociedade Florestan Fernandes observa que as estruturas
brasileira. de dominação social do período colonial são
A referência clássica desses autores, ainda que preservadas no processo de modernização capitalista no
com críticas e avanços, está na obra de Florestan Brasil na medida em que, já no século XX, a
Fernandes, autor e professor responsável pela formação dependência em relação à metrópole é transferida, de
de um conjunto de pesquisadores que desenvolveram o forma mais ampla, para o mercado capitalista europeu.
seu trabalho na sociologia brasileira, particularmente A escravidão projeta-se, assim, como um
Octavio Ianni e Fernando Henrique Cardoso. Além das fenômeno social que tem ressonância na organização
discussões acerca da escravidão e da questão racial, a social da sociedade brasileira até nossos dias.
obra desse autor aborda temas como a metodologia A desigualdade social, por exemplo, tem relação
sociológica, o subdesenvolvimento, as classes sociais e direta com a escravidão e mais particularmente com o
a questão indígena, tornando-se, assim, uma das modo como os negros foram incorporados a uma
referências centrais para a sociologia contemporânea. sociedade de classes, depois da abolição, em 1888. Ou
Florestan Fernandes seja, mesmo considerando o fim da escravidão como
nasceu em São Paulo, em 1920. um marco histórico importante, é fundamental
Filho de uma imigrante questionar em que medida as desigualdades sociais
portuguesa que o criou baseadas em diferenças de cor se reproduzem e se
trabalhando como empregada manifestam após a abolição. Um dos temas centrais
doméstica, começou a trabalhar para entender esse processo tem relação com o mito da
com 6 anos de idade, primeiro democracia racial.
como engraxate, depois em Em seu livro, A integração do negro na sociedade de
vários outros ofícios. Precisou classes (1978), Florestan Fernandes observa que a
abandonar o curso primário para democracia racial, na verdade, serviu para difundir a
ganhar dinheiro. Depois de se formar no curso de ideia de que não existem distinções sociais entre negros
madureza (supletivo), ingressou na Faculdade de e brancos e afirmar uma suposta convivência pacífica e
Filosofia, Letras e Ciências Humanas da Universidade harmônica entre brancos e não brancos. Essas ideias
de São Paulo em 1947, formando-se em Ciências levariam a supor que as oportunidades econômicas,
Sociais. Doutorou-se em 1951 e foi assistente sociais e políticas estariam abertas a todos os brasileiros
catedrático, livre docente e professor titular na cadeira de forma igualitária.
de Sociologia.
Depois do golpe militar de 1964, protestou
contra o tratamento dado a seus colegas presos e
também foi preso. Cassado em 1969 pelo AI-5, deixou
o Brasil e lecionou nas universidades de Toronto
(Canadá), Columbia e Yale (Estados Unidos).
De volta ao Brasil em 1972, passou a lecionar
na PUC-SP. Ligado ao Partido dos Trabalhadores (PT)
desde sua fundação, elegeu-se deputado federal em
1986 e 1990. Morreu em 1995, deixando uma obra
fundamental.
Para Fernandes, a escravidão no Brasil toma Segundo esse autor, essa ideologia propaga até
formas distintas e se conecta direta e indiretamente com hoje no Brasil o racismo, preconceitos e discriminações.
os ciclos econômicos que teriam demarcado a história Exemplos disso são afirmações do senso comum que
do Brasil durante o período colonial (atualmente, esta garantem que o negro não tem problema de integração
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social, que a “índole brasileira” não permite distinções 4. Subdesenvolvimento e dependência econômica
raciais, que as oportunidades sociais, de toda natureza,
estão abertas a todos os brasileiros de forma igualitária, No Brasil dos anos 1930, o Estado moderno
que o negro está satisfeito com sua condição social e substituiu o Estado oligárquico e a indústria nacional
seu estilo de vida. começou a ser desenvolvida. Esse período da história
brasileira é central, pois foi em consequência desse
momento que a questão do subdesenvolvimento e da
dependência econômica do país começou a ser
discutida nos anos 1950 e 1960.
Esse debate, além de ser atual, tem relação
direta com o posicionamento do Brasil diante de outras
economias do mundo. O lugar do Brasil pode ser
pensando com base na divisão internacional do
trabalho, isto é, em como foi e ainda é construída a
economia nacional, que produtos e ramos da indústria
foram desenvolvidos na produção nacional, se são
produtos estratégicos ou matérias-primas e como essa
produção insere o país na economia mundial.
Como já vimos, a tradição econômica do Brasil,
mesmo depois da Independência em 1822, foi a de um
país produtor de mercadorias com baixo valor
agregado, que abastecia as demandas de outros países,
sobretudo da Europa e dos Estados Unidos.
A partir de meados do século XX, a economia
brasileira se desenvolveu como uma economia
periférica e complementar a outras que se estruturavam
Para Florestan Fernandes, de um lado o mito da de maneira mais sólida e tinham como base de sua
democracia racial acabou por consolidar, por exemplo, produção bens manufaturados pela indústria,
a crença de que a situação do negro se deve a sua sobretudo a automotiva.
própria incapacidade de superar dificuldades sociais, A questão do subdesenvolvimento aparece,
tais como o desemprego e a pobreza. Por outro lado, o assim, como um problema a ser enfrentado pela
mito desresponsabiliza o branco e o isenta (sobretudo Sociologia e também pela sociedade brasileira. Um dos
os brancos da classe dominante) dos efeitos da abolição principais teóricos do subdesenvolvimento é o
e da degradação da situação da comunidade negra no economista Celso Furtado (1920-2004), autor de
Brasil. Formação econômica do Brasil, publicado em 1959. Assim
Fernandes sugere, entretanto, que o mito da como Caio Prado Júnior, Furtado se preocupa com a
democracia racial pode ser usado como ponto de economia do passado colonial e chama atenção para a
partida para a melhoria da condição do negro na ligação, presente desde a colônia, entre a economia
sociedade de classes, desde que o pressuposto brasileira e a economia mundial.
democrático seja realmente alcançado. Salienta, assim, Segundo Furtado, o
que a luta em torno dessa questão deve ser levada a cabo subdesenvolvimento é
por negros e mulatos. Nos últimos anos, entretanto, uma forma de
essa questão vem sendo trabalhada por outro ângulo. organização social no
O mito da democracia racial não seria interior do sistema
simplesmente um mecanismo de acobertamento das capitalista e não uma
desigualdades e discriminações, mas também etapa que antecederia a
reproduziria a ideologia da identidade nacional que etapa seguinte. Segundo
impede a construção da igualdade entre os brasileiros. esse autor, os países
A questão da democracia racial foi discutida subdesenvolvidos tiveram
também por Gilberto Freyre em seu Casa-grande & um processo de
senzala, que considera como característica específica da desenvolvimento indireto,
cultura brasileira o encontro racial entre negros em função do desenvolvimento dos países
africanos, brancos europeus e indígenas brasileiros. industrializados.
Freyre via esse encontro com bons olhos, na medida em Assim, o Brasil se tornou dependente de países
que o convívio entre as “raças” teria se tornado desenvolvidos, condição quase impossível de ser
democrático e salutar para a sociedade como um todo. superada, a não ser por meio de uma forte intervenção
do Estado no setor industrial.
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A análise de Furtado destaca a grande industriais e na instalação de filiais de multinacionais no


concentração da renda no nível mundial durante o país.
século XX até a década de 1950, que ampliou a A política de substituição de importações, que
separação entre países ricos e pobres, desenvolvidos e teve como elemento central a industrialização e a
subdesenvolvidos. urbanização da sociedade brasileira, não tinha nenhum
A definição de subdesenvolvimento, portanto, tipo de restrição quanto à entrada de capital estrangeiro.
se insere em um quadro de relações de dominação e Ao contrário: a chegada desse capital, financiador da
dependência entre países, relações estas que tendem a industrialização automotiva, era vista pelo Estado
se perpetuar. brasileiro como a única alternativa para garantir a
Para sair da condição de país subdesenvolvido industrialização. Como desdobramento desses
seria necessário que em meados do século XX o Brasil investimentos externos, ocorreu uma dinamização do
tivesse estabelecido novas prioridades com o objetivo mercado interno. Entretanto, esse processo fortaleceu
de atingir uma nova concepção de desenvolvimento. O a concentração de renda e, exceto quanto aos
subdesenvolvimento deveria ser neutralizado a partir de trabalhadores integrados no processo, aprofundou a
uma ação política que em lugar de reproduzir os desigualdade econômica.
padrões de consumo de minorias abastadas passasse a
privilegiar a satisfação de necessidades fundamentais da
população como um todo, tais como a educação
pública. Entretanto, essa ação política sugerida por
Celso Furtado não foi implementada pelo Estado
brasileiro. Assim, ainda hoje o país se encontra em
situação de dependência em relação a países de
economia mais forte e as desigualdades sociais
permanecem.
Como vimos, durante a década de 1950 se inicia
o processo de implantação de multinacionais no Brasil.
São indústrias de bens de consumo e de veículos que
buscam firmar o país como produtor de bens típicos
das sociedades de consumo.
Segundo Fernando Henrique Cardoso, esse
processo não foi específico da sociedade brasileira:
pode ser observado em vários países latino-americanos
e estabeleceu uma reformulação entre as economias
mais ricas e mais pobres.
Durante as décadas de 1960 e 1970, o processo
se aprofundou, colocando os países pobres em uma
nova fase de dependência. Entre nós, essa fase foi
marcada pelo interesse dos países centrais em
desenvolver no Brasil a indústria e o mercado interno.
Segundo Cardoso, essa fase da divisão internacional do
trabalho reproduz a dependência industrial e financeira,
somada naquele momento à dependência tecnológica.
Forma-se, com isso, toda uma discussão sobre
a dependência que acaba por constituir uma nova
teoria, a teoria da dependência, que tem como
principais expoentes, além do já citado Fernando
Henrique Cardoso, o economista e sociólogo Ruy
Mauro Marini (1932-1997) e o economista Theotonio
dos Santos (1936-).
Essa nova forma de dependência difere da velha
dependência que prevaleceu no Brasil do século XIX
até aproximadamente os anos 1930. A nova
dependência, configurada entre 1950 e 1970, tem como
eixo central a transferência de capital estrangeiro para o
processo de industrialização. Essa transferência se deu
com base no financiamento de novos segmentos

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e com o neoliberalismo do fim dos anos 1970, com


TEMAS CONTEMPORÂNEOS DA Margareth Thatcher; e do início dos anos 1980, com
SOCIOLOGIA Ronald Reagan. Esses processos históricos se
estenderam por todo o mundo nos anos seguintes,
Agora veremos as principais teorias que gerando muitas questões sociológicas, constituindo
marcaram as três últimas décadas do século XX e o uma gama de problemas de pesquisa, de novos objetos
início do XXI. Estudaremos temas bem próximos de de análise e de questões sociais.
nós, que buscam responder a antigos problemas ou que
a Sociologia clássica não aprofundou e também a novas
questões características do atual contexto histórico.
Dentre essas últimas, podemos citar o
desenvolvimento da produção de mercadorias, o
neoliberalismo, o processo de financeirização da
economia e o surgimento de ações políticas coletivas
distintas daquelas do início do século XX até meados
dos anos 1960 e 1970.

1. Tempos de mudança

Nos últimos anos, as sociedades capitalistas


passaram por fortes mudanças sociais. A produção As teorias e teses que buscam explicar esse
industrial foi reestruturada pela microeletrônica e pela período estão imersas na contradição social que
robótica, alterando a relação do trabalhador com o indicamos acima. São tentativas de elaborar análises
tempo de produção, isto é, com a intensidade do sociais num momento em que tudo parece se
trabalho. As formas de governo também se transformar, mas, no qual, contraditoriamente, a
reestruturaram. estrutura social capitalista não se altera de fato e, na
Observou-se o fim gradativo do Estado de realidade, acaba por se fortalecer. Muitos estudos
Bem-Estar Social e a constituição de políticas elaborados nesse período procuraram descrever o que
neoliberais. Somaram-se às ações coletivas dos há de novo, o que permanece do velho e quais seriam
trabalhadores da indústria novos tipos de ação política, os pilares que condicionam socialmente o capitalismo
não diretamente ligadas ao universo do trabalho. Ou
do final do século XX e início do século XXI.
seja, aos sindicatos e partidos da classe trabalhadora, A seguir, vamos analisar algumas das principais
juntaram-se novas formas de organização política teorias dessa virada de século para compreender as
baseadas, por exemplo, em questões étnicas, raciais, questões que influenciaram e constituíram a Sociologia
religiosas e de gênero. nesse período.
O fim do século XX e o início do século XXI
foram marcados por um conjunto de transformações
2. A revolução informacional
econômicas, políticas e ideológicas que pareciam
apontar para a construção de uma nova sociedade, O desenvolvimento científico e tecnológico
regida por princípios distintos daqueles que haviam sido inspirou vários autores desde a Revolução Industrial.
hegemônicos até as décadas de 1960 e 1970. Entretanto, Novos sujeitos sociais, modos de produção, novas
essas mesmas transformações acabaram por reproduzir práticas políticas, novos tipos de sociedade, de
a velha forma da estrutura social capitalista: o novo organização da produção, de formas de ação política
ainda estava impregnado do velho. coletiva foram estudados com base no avanço, no
A velha sociedade capitalista se reinventou, mas progresso ou no desenvolvimento científico e
continuou reproduzindo suas características mais tecnológico.
centrais de divisão em classes sociais, de exploração e Essas análises foram particularmente
dominação do trabalho, de produção do lucro e de sua influenciadas por uma leitura de Marx sobre a relação
apropriação privada. A sociedade capitalista se entre forças produtivas e relações de produção. Para
reconfigurou internamente para manter seus objetivos
esse autor, as forças produtivas, isto é, aquilo que se
de sociedade baseada na produção e no consumo de apresenta como elemento da transformação social, são
mercadorias. Aparentemente tudo teria se limitadas pelas relações de produção capitalistas. Dessa
transformado, mas, de fato, pouco mudou. forma, as relações sociais capitalistas impedem que as
Como vimos, essas transformações podem ser forças produtivas (por exemplo, a ciência e a tecnologia)
sintetizadas com a reestruturação produtiva dos anos avancem, já que esse avanço não condiz com os
1960 e 1970 nos Estados Unidos e na Europa Ocidental
interesses sociais do capitalismo. Assim, para Marx, a

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transformação da sociedade se identifica com as forças do indivíduo de certas amarras do trabalho taylorista e
produtivas enquanto a conservação social se identifica fordista.
com as relações de produção. Haveria ainda exploração do trabalho, mas essa
Existem no capitalismo forças produtivas exploração seria de um grupo e não da forma
capazes de produzir o necessário para toda a população fragmentária que o trabalho no taylor-fordismo
do planeta. No entanto, esse desenvolvimento não imprimia. Nestes novos termos, o trabalho seria mais
interessa às relações de produção, que preferem manter qualificado, exigindo mais responsabilidade do
o desenvolvimento limitado aos interesses do capital, trabalhador e, sobretudo, seria um trabalho mais
restringindo o acesso e a socialização dos produtos. intelectualizado se comparado ao da fábrica fordista.
Com a reestruturação produtiva dos anos 1960 Expressões como “satisfação no trabalho” e
e 1970, esse tema volta ao centro da discussão “participação ativa do trabalhador” são consideradas
sociológica. As novas tecnologias da informação, como um índice que estabelece uma relação distinta do
distintas das tecnologias anteriores, pareciam dar outro trabalhador com seu trabalho. Resumindo, o
sentido às sociedades contemporâneas, na medida em trabalhador teria se libertado de algumas limitações
que abriam novas formas de participação social e impostas pelas atividades tradicionalmente fabris.
política aos indivíduos. Falou-se de uma Revolução
Informacional, que teria transformado a base produtiva
do capitalismo.
Diferente da Revolução Industrial, que se
caracterizou como uma revolução da indústria e teve
seu foco no trabalho realizado nas máquinas, a
Revolução Informacional teria como base de produção
não mais a matéria física, mas a informação. Enquanto
a Revolução Industrial se caracteriza pela
transformação de um produto com base no trabalho
manual, na Revolução Informacional o trabalho
intelectual predomina e não se limita à indústria, mas
está presente em todos os setores da economia.
Em seu livro A Revolução Informacional (São Apesar da criação de novas qualificações
Paulo: Cortez, 1999), o sociólogo francês Jean Lojkine profissionais, inclusive algumas que retomam a
(1939-) entende que esse tipo de produção não é fruto capacidade intelectual do trabalhador, o que deve ser
apenas de uma transformação tecnológica. Para esse ressaltado é o grau em que esses trabalhos podem ou
autor, não se trata da simples utilização da informática não fazer parte de escolhas e estruturas gerenciais
em atividades de formação, comunicação e gestão, mas alheias à intervenção do trabalhador. Nesse sentido, a
sim de uma mudança na utilização humana da pergunta central seria: a Revolução Informacional é de
informação. fato um processo de libertação do trabalhador em
A questão central para entender o trabalho relação a atividades penosas e enfadonhas ou não passa
informacional na produção ou nos serviços tem relação de um processo de intensificação do trabalho, que agora
com as formas de liberação do trabalhador. Para também controla as formas de produção intelectual?
Lojkine, muitas foram as tentativas de controlar esse Deve-se levar em conta que toda transformação
tipo de atividade de forma taylorista, isto é, retirando os tecnológica não tem fundamentação neutra, mas
saberes dos trabalhadores e os transferindo para a obedece aos interesses da sociedade. Nesse sentido, a
gerência. Mas essas tentativas não tiveram êxito, já que produção informacional parece estar longe de libertar
as atividades criadas pela Revolução Informacional se os trabalhadores dos atuais padrões de exploração e
apoiam na produção e troca de informações por meio dominação social.
das tecnologias da informação.
Ocorreu uma diferença significativa na 3. Valorização e financeirização do capital
utilização das tecnologias da informação, pois,
diferentemente das tecnologias tradicionais, as NTICs Nas últimas décadas, as sociedades capitalistas
(novas tecnologias da informação e comunicação) não se estruturaram com base em um processo de
se caracterizam como um processo de substituição de financeirização do capital. A valorização do capital
trabalhadores por máquinas. Segundo Lojkine, essas baseada na extração de mais-valia e na exploração da
tecnologias são diferentes na medida em que força de trabalho foi avolumada por um processo que
demandam uma interatividade do trabalhador com a já se observava desde o final do século XIX e que nas
máquina, tendo a invenção humana um papel central últimas décadas tornou-se economicamente
nesse processo. Projeta-se, assim, uma relação entre a hegemônico: o acúmulo de riquezas desenvolvido por
utilização das tecnologias da informação e a libertação mecanismos e canais financeiros e não apenas por meio

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das atividades produtivas (na indústria, no comércio e o lucro ou perda e não o aumento ou redução da
na agricultura). lucratividade da empresa.
Formaram-se no século XIX os bancos e a Determinadas ações aumentam de valor sem
figura do capitalista que comercializa dinheiro, isto é, o que haja um aumento proporcional da produção real. O
capitalista financeiro. Tomar dinheiro emprestado de economista francês François Chesnais (1934-)
um banco é uma forma estrutural de valorizar o capital. convencionou chamar o período de avanço da finança
O capitalista industrial faz isso a fim de investir na de mundialização do capital. Um processo que se define
produção com o objetivo de lucrar por meio da pela liberalização de capitais pelo mundo, ou seja, pela
exploração do trabalho. Com esse lucro, o capitalista possibilidade de captação de recursos financeiros em
industrial paga os juros para o capitalista financeiro. diferentes mercados.
Mas tanto o lucro quanto o juro são frutos da mais-valia Em seu livro A mundialização do capital, Chesnais
produzida. analisa o capitalismo de hoje para demonstrar o caráter
Na prática, o capitalista financeiro potencializa destrutivo das forças econômicas atuantes a partir da
o lucro do capitalista industrial quando dá a ele um década de 1980. Essa liberdade de investimento
crédito. O problema é que além de potencializar a capitalista permitiu uma movimentação de capitais pelo
acumulação capitalista, esse crédito que o banco mundo, o que fez desenvolver amplamente a
concede dá origem ao capital fictício. valorização do capital fictício, sobretudo nos países
Como Marx define o capital fictício? mais ricos. Entretanto, essa valorização é interrompida
De um lado, o empréstimo é aplicado no quando ocorre queda de salários e de investimentos, e
processo de produção para gerar mais-valia, isto é, o nos anos 1990 e na primeira década do século XXI as
dinheiro emprestado é considerado produtor de juros. crises se multiplicaram.
No entanto, nem todo empréstimo é aplicado à Para a economista brasileira Maria de Lourdes
produção. Essa forma de dinheiro emprestado que não Mollo (1951-), estamos vivendo um período em que o
entra no processo de geração de mais-valia é processo de financeirização das economias parece ter
considerada por Marx como uma forma fictícia de chegado ao seu limite. De qualquer forma, é importante
capital. considerar a intrínseca relação entre capital industrial e
O desenvolvimento da financeirização nas capital financeiro. Desde sua origem, o
últimas décadas faz com que a finança prevaleça em desenvolvimento capitalista teve sua base estruturada
relação à produção de mercadorias. Isto é, os valores nessa relação, que se aprofundou com a liberalização
negociados no mercado de ações são superiores àqueles dos fluxos de capital nas últimas décadas.
gerados pelas atividades produtivas. Para observar esse A contenção ou o desenvolvimento de um
fenômeno, basta considerar o produto interno bruto desses polos (capital industrial e capital financeiro),
(PIB) de determinados países e compará-los aos valores intrinsecamente complementares da economia
negociados em suas bolsas de valores. capitalista, depende da participação decisiva do Estado.
Do final da década de 1970 até meados da Exemplos disso são os empréstimos públicos dos
primeira década do século XXI, os valores negociados Estados Unidos para salvar determinados bancos da
nas bolsas foram muito superiores ao valor dos PIBs de falência.
todos os países de economia capitalista desenvolvida.
Há, portanto, uma diferença entre a produção real e o
que se negocia na forma de títulos e ações; isto é, entre
a valorização real e o capital fictício.

4. modernidade e pós-modernidade
Assim, a valorização das ações de uma empresa
não está relacionada diretamente a seu lucro ou perda
Como categoria de uma época, modernidade
em um período específico, mas sim à avaliação na Bolsa
designa o período chamado iluminista, que se inicia no
de Valores. O que importa é a avaliação da bolsa sobre
século XVIII e está relacionado a um projeto intelectual

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que tem como base o desenvolvimento científico Nascido em Londres,


objetivo e autônomo. Em termos mais gerais, o Inglaterra, em 1938, Giddens é
objetivo iluminista foi estabelecer formas de atualmente professor emérito da
conhecimento científico que permitissem estruturar a London School of Economics
emancipação da humanidade. and Political Science. Conhecido
O esforço científico representava, assim, uma por seu trabalho de renovação
forma de ultrapassar as limitações impostas pela da Social-democracia, tem como
natureza. Além de superar a escassez e as necessidades temas centrais de pesquisa as
físicas, o projeto iluminista pretendia ir além das formas questões relacionadas à
de explicação religiosas, míticas e supersticiosas, globalização e à modernidade.
estabelecendo a ciência e a razão como princípios Com objetivo de reformular a teoria social,
norteadores do conhecimento humano. Giddens desenvolveu a Teoria da estruturação. Em linhas
Em nossos dias, é fácil reconhecer esse gerais, essa teoria pretende, com base na releitura de
conjunto de ideias. A vida em sociedade está permeada diversas correntes e tradições teóricas, transcender o
pelos princípios da modernidade. Podemos observá-los quadro clássico de divisão disciplinar, mostrando a
na economia, no direito, nas formas de organização necessidade de incorporar a História e a Geografia à
burocrática e nas atividades profissionais. O que análise sociológica. Nesse sentido, Giddens explicita as
determina essas esferas da vida social como diferenças entre a ciência social e a ciência natural,
representativas da modernidade é a crença de que o evidenciando como a primeira se funda e se especifica
desenvolvimento do progresso e da capacidade na ação humana.
científica podem resolver todos os problemas da Além disso, Giddens entende que a
humanidade. especificidade das Ciências Sociais não se concentra na
Assim, a modernidade pode ser entendida ação individual (como para Weber) nem nas totalidades
como expressão de uma época histórica marcada por sociais (como para Durkheim), mas sim nas práticas
um discurso que privilegia as formas de conhecimento sociais ordenadas no espaço e no tempo.
científico universais e totalizantes, ou seja, produtoras Para Giddens, vivemos em uma época em que
de interpretações teóricas abrangentes e as consequências da modernidade se radicalizaram e
homogeneizantes que procuram dar conta da história não numa época pós-moderna. Ele aponta para um
da humanidade como um todo. mundo fora de controle: as pretensões iluministas de
O pós-modernismo, por outro lado, privilegia domínio da natureza e da sociedade pela via do
a diferença, a diversidade, a fragmentação, a conhecimento e do progresso científico não se
indeterminação, e nesse sentido se insurge contra os concretizaram.
discursos universalizantes e totalizantes da A modernidade se funda em uma duplicidade
modernidade. Procura reconhecer as diferentes sombria. Ao mesmo tempo em que cria uma estrutura
subjetividades, dando maior visibilidade a questões de possibilidades e de oportunidades, fruto do
como gênero, raça, etnia, ambiente, sexo, questões desenvolvimento científico, promove também
territoriais, entre outras. consequências degradantes como a exploração do
Para muitos autores, a questão é se de fato trabalho, o autoritarismo na utilização do poder político
superamos a época moderna, ou seja, podemos dizer e as guerras. Com relação à pós-modernidade, Giddens
que as indagações das sociedades contemporâneas são indica uma de suas características centrais: a ausência de
expressão de uma época pós-moderna? Ou apenas certezas no processo de conhecimento.
teriam surgido novas condições sociais que negam os Na perspectiva de
princípios da modernidade? Ou ainda, será que estamos David Harvey, o pós-moderno
presenciando uma radicalização da modernidade e aparece como um reflexo das
equivocadamente identificando-a com uma época pós- formas de produção e
moderna? acumulação flexível típicas da era
Entre os autores interessados nesse tema, estão toyotista e de uma nova
os britânicos Anthony Giddens, sociólogo, e David compreensão da relação espaço-
Harvey (1935-), geógrafo, e o polonês Zygmunt tempo no capitalismo. No
Bauman. entanto, ao observar mais de
Anthony Giddens é considerado um dos perto as transformações sociais, Harvey nota uma
autores que mais se destacam na sociologia reprodução das relações sociais fundadoras do
contemporânea, tanto do ponto de vista de sua análise capitalismo, isto é, não observa uma mudança estrutural
fundada na teoria da estruturação social quanto em sua que projetaria uma nova sociedade, seja ela pós-
reinterpretação crítica dos autores clássicos da capitalista, seja pós-industrial.
Sociologia. Segundo Harvey, as teses que defendem que
vivemos numa época pós-moderna incorrem em alguns
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equívocos. O primeiro deles é a crítica a toda e qualquer A modernidade


argumentação universal e totalizante (crítica dos pós-
modernos ao conceito de cultura), que levam à No final do século XIX, as sociedades
impossibilidade de legitimar e validar cientificamente começaram a se fundir ao redor dos centros urbanos, e
seu próprio discurso. a Europa Ocidental entrou numa fase conhecida como
Nesse sentido, as teorias pós-modernas que modernidade, caracterizada pela industrialização e pelo
reivindicam a celebração da fragmentação, do efêmero,
capitalismo.
da simulação, aceitando as identidades dos grupos
locais, acabam por não construir uma análise ampla das De acordo com Bauman, as sociedades se
sociedades em que esses grupos estão presentes. afastaram da primeira fase da modernidade (que ele
Um segundo ponto levantado por Harvey se chamou de “modernidade sólida”) e agora se
refere à questão do reconhecimento da alteridade e da encontram num período da história chamado de
autenticidade de grupos locais como expressões do pós- “modernidade líquida”.
moderno. Ao mesmo tempo em que se reconhece a Esse novo período é, para ele, marcado pela
identidade de um grupo local, a alteridade e inevitável incerteza e pela mudança, que afetam a
autenticidade desse grupo permanecem circunscritas sociedade em nível global, sistêmico, além do nível das
apenas a seu espaço social, negando, com isso, a experiências individuais.
influência desses grupos em realidades mais amplas. O uso por Bauman do termo “líquido” é uma
Assim, Harvey entende que o resultado do poderosa metáfora da vida contemporânea: ela é móvel,
discurso pós-moderno se caracteriza por um silêncio fluida, maleável, amorfa, sem um centro de gravidade e
diante de questões relativas à economia política e às
difícil de conter e predizer.
estruturas de poder global. Ele entende que há, na
prática, uma radicalização da modernidade e não uma Em essência, a modernidade líquida é uma
época pós-moderna propriamente dita. forma de vida que existe no contínuo e incessante
Essa radicalização pode ser observada na remodelar do mundo moderno de maneiras
aceleração dos processos de produção e reprodução imprevisíveis, incertas e bombardeadas por crescentes
sociais nas sociedades capitalistas, sobretudo se níveis de risco.
analisamos a intensificação do trabalho para a geração A modernidade liquida, para Bauman, é o atual
de lucros. Harvey argumenta que o lado fragmentário, estágio da ampla evolução da sociedade ocidental – bem
efêmero e caótico de nossas sociedades estruturou-se como de todo o mundo. Assim como Karl Marx,
ao lado do progresso técnico e científico, o que Bauman acredita que a sociedade humana progride de
caracterizaria muito mais uma crise da modernidade que um modo que implica que cada “novo” estágio se
a constituição de sociedades pós-modernas. desenvolve a partir do estágio anterior. Assim, é
necessário definir a modernidade sólida antes de
4.1 Zygmunt Bauman
podermos entender a modernidade líquida.
Nascido em 1925, Zygmunt Bauman é um
sociólogo polonês de uma família judia que foi forçada Modernidade sólida
a se mudar para a União Soviética em 1939, após a
invasão nazista. Em 1971, estabeleceu-se na Inglaterra, Bauman vê a modernidade sólida como
onde foi professor emérito de sociologia na ordenada, racional, previsível e relativamente estável.
Universidade de Leeds até 1990. Morreu em 2017. Sua característica dominante é a organização das
atividades e das instituições humanas em paralelo às
linhas burocráticas, nas quais se pode usar o raciocínio
prático para resolver problemas e criar soluções
técnicas.
A burocracia continua porque é a forma mais
eficiente de organizar e ordenar as ações e interações de
grandes volumes de pessoas. Se por um lado a
burocracia tem aspectos claramente negativos(por
exemplo, a vida humana pode se desumanizar,
esvaziada de espontaneidade e criatividade), por outro
ela é altamente efetiva em cumprir as tarefas orientadas
por metas.

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Outra característica-chave da modernidade descreve como uma “reinvenção compulsiva, obsessiva


sólida, de acordo com Bauman, é um elevado nível de e viciante do mundo”.
equilíbrio nas estruturas sociais, significando que as Ele identifica cinco desenvolvimentos distintos,
pessoas vivem segundo uma série de normas, tradições porém interligados, que produziram a transição da
e instituições estáveis. Com isso, ele não está sugerindo modernidade sólida para a líquida.
que as mudanças sociais, políticas e econômicas não Primeiro, os estados-nações não são mais as
ocorrem na modernidade sólida, mas que as mudanças “estruturas de carga” da sociedade; os governos
se dão de maneira relativamente ordenada e previsível. nacionais, hoje, têm um poder consideravelmente
A economia é um bom exemplo: na menor para determinar eventos tanto local quanto
modernidade sólida a maioria das pessoas (dos internacionalmente.
membros da classe trabalhadora aos profissionais da Em segundo lugar, houve a ascensão do
classe média) desfruta de segurança relativa no capitalismo global e a proliferações de corporações
emprego. Como consequência elas tendem a ficar na transnacionais, resultando num estado de autoridade
mesma área geográfica, a crescer na mesma vizinhança descentralizada.
e a frequentar as mesmas escolas de seus pais e outros Em terceiro lugar, as tecnologias eletrônicas e a
parentes. internet agora garantem fluxos de comunicação quase
Bauman considera a modernidade sólida como instantâneos, supranacionais.
unidirecional e progressiva – uma percepção da visão Em quarto, as sociedades se tornaram cada vez
iluminista de que a razão leva à emancipação da mais preocupadas com os riscos – mergulhadas nas
humanidade. Conforme o conhecimento científico inseguranças e danos potenciais.
avança, o mesmo se dá com o entendimento e o E em quinto, tem havido um enorme
controle da sociedade dos mundos natural e social. crescimento das migrações humanas pelo mundo.
No modernismo sólido, de acordo com
Bauman, essa fé suprema no raciocínio científico estava Modernidade líquida
corporificada nas instituições sociais e políticas que
cuidavam, primordialmente, de problemas e questões Conforme o próprio Bauman observa,
nacionais. Os valores do iluminismo estavam tentativas de definir a modernidade líquida são quase
institucionalmente entrincheirados na figura do Estado um paradoxo porque o termo se refere a uma condição
– o ponto primordial de referência a partir do qual global caracterizada pela implacável mudança e por
emergiam os ideais de desenvolvimento social, político fluxos e incertezas. Porém, tendo identificado os traços
e econômico. da modernidade sólida, ele alega que é possível definir
Quanto ao indivíduo, alega Bauman, a os aspectos mais importante da modernidade líquida.
modernidade sólida produziu um repertório estável de No nível ideológico, a modernidade líquida
identidades pessoais e possíveis alternativas de ser. Os mina o ideal iluminista, que diz que o conhecimento
indivíduos da modernidade sólida têm um senso científico poderia melhorar os problemas naturais e
unificado, racional e estável porque ela é moldada por sócias. Na modernidade líquida, a ciência, os
um número de categorias estáveis como ocupação, especialistas, os acadêmicos e as autoridades políticas –
religião, nacionalidade, gênero, etnia, busca do prazer, antes as figuras supremas de autoridade na
estilo de vida, entre outros. modernidade sólida – ocupam um status
A vida social sob as condições da modernidade demasiadamente ambíguo como guardiões da verdade.
sólida – assim como os indivíduos que a criaram – era Os cientistas são vistos cada vez mais tanto
autogarantida, racional, burocraticamente organizada e como a causa dos problemas ambientais e
relativamente previsível e estável. sociopolíticos como a solução. Isso leva
inevitavelmente, ao ceticismo e à apatia generalizada
A transição por parte do grande público.
A modernidade líquida minou as certezas dos
A transição da modernidade sólida para a indivíduos quanto ao emprego, à educação e ao bem-
líquida, de acordo com Bauman, ocorreu como fruto de estar. Hoje muitos trabalhadores precisam ser
uma confluência de mudanças econômicas, políticas e retreinados ou até trocar de ocupação, às vezes
sociais, profundas e conectadas. O resultado é uma repetidamente – a noção de “emprego para a vida
ordem global impulsionada por aquilo que Bauman toda”, típica da era da modernidade sólida, tornou-se
irrealista e inalcançável.

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A prática da “reengenharia”, ou o downsizing das Consumo e identidade


firmas – um termo que Bauman tomou emprestado do
sociólogo americano Richard Sennett -, tornou-se cada A importância central do consumo na
vez mais comum, já que capacita as empresas a construção da identidade própria do indivíduo vai além
continuar financeiramente competitivas no mercado da aquisição de bens de consumo. Sem as fontes
global ao fazer uma redução significativa no custo da perenes de identidade proporcionadas pela
mão de obra. modernidade sólida, os indivíduos no mundo moderno
Como parte desse processo, o trabalho estável buscam orientação, estabilidade e direção pessoal em
e permanente – que caracterizava a modernidade sólida fontes alternativas cada vez mais díspares, como
– tem sido substituído por contratos empregatícios consultores de estilo de vida, psicanalistas, terapeutas
temporários, usados sobre uma força de trabalho cada sexuais, especialistas holísticos, gurus de saúde, etc..
vez mais móvel. Intimamente relacionados a essa A identidade própria se tornou problemática
instabilidade ocupacional estão o inconstante papel e a para os indivíduos de uma forma sem precedentes na
natureza da educação. história, e a consequência é um ciclo sem fim de
Espera-se agora que os indivíduos continuem autoquestionamento e introspecção que serve apenas
sua educação (quase sempre à própria custa) por toda para confundir ainda mais as pessoas. No fim das
sua carreira, de modo a se manterem atualizados com contas, o resultado é que nossa experiência de nós
os desenvolvimentos de suas profissões, ou como mesmo e da vida cotidiana é, cada vez mais,
forma de garantir que continuem “no mercado” caso representado tendo como pano de fundo uma
sejam demitidos. ansiedade constante, uma fadiga e um desconforto
Paralelo a essas mudanças nos padrões de sobre quem somos, nosso lugar no mundo e a rapidez
emprego está o recuo do Estado de bem-estar. Outrora das mudanças que acontecem no nosso redor.
considerada, historicamente, há uma “rede de A modernidade líquida, portanto, se refere
segurança” confiável contra tragédias pessoais como principalmente à uma sociedade global que é infestada
doenças e desemprego, a provisão do Estado de bem- por incerteza e instabilidade. Mas tais forças
estar social está cada vez menor, especialmente em áreas desestabilizadoras não estão igualmente distribuídas
como habitação, educação superior gratuita e pela sociedade global. Bauman identifica e explica a
assistência médica. importância das variáveis da mobilidade, do tempo e do
espaço para o nosso entendimento. Para ele, a
Identidades fluidas capacidade de nos mantermos móveis é um atributo
extremamente valioso na modernidade líquida, porque
Se a modernidade sólida estava baseada na ele facilita a busca bem-sucedida de riqueza e satisfação
produção industrial de bens de consumo em fábricas e pessoal.
instalações industriais, a modernidade líquida está
baseada no consumo rápido e implacável de bens de Turistas e vagabundos
consumo e serviços.
Essa transição da produção para o consumo, diz Bauman distingue entre os vencedores e os
Bauman, é resultado da dissolução das estruturas perdedores na modernidade líquida. As pessoas que
sociais, como o emprego e a nacionalidade, nas quais se mais se beneficiam da fluidez da modernidade líquida
ancorava a identidade da modernidade sólida. Mas, na são os indivíduos privilegiados socialmente, capazes de
modernidade líquida, o senso do eu não é tão fixo: é flutuar sem empecilhos pelo mundo a fora. Essas
fragmentado, instável, quase sempre incoerente pessoas, as quais Bauman se referre como “turistas”,
internamente, sendo, com frequência, não mais que a existem mais no tempo que no espaço. Com isso ele
soma das escolhas de consumo a partir da qual é tanto quer dizer que, através do seu fácil acesso às tecnologias
constituído quanto representado. da internet ou aos voos transnacionais, os turistas são
Na modernidade líquida, o limite entre o eu capazes (virtualmente ou de fato) de rodar o mundo
autêntico e a representação do eu através das escolhas todo e agir nos locais onde as condições econômicas
de consumo se rompe: somos – de acordo com Bauman são as mais favoráveis e os padrões de vida, os mais
– o que compramos, não mais que isso. Os conceitos altos.
de fundo e raso se fundiram, e é impossível separá-los. No outro extremo, os “vagabundos”, como ele
os chama, são pessoas imóveis ou sujeitas à mobilidade
forçada, e excluídas da cultura de consumo. Eles estão

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ligados a locais onde o desemprego é alto e o padrão de


vida muito baixo, e frequentemente são forçados a
deixar o seu país de origem como refugiados políticos,
ou econômicos, em busca de emprego, ou em resposta
à ameaça de guerra ou perseguição. Qualquer lugar
onde estejam por muito tempo se torna inóspito.
Para Bauman, a migração em massa e os fluxos
transacionais de pessoas ao redor do mundo estão entre
as marcas da modernidade líquida e são fatores que
contribuem para a natureza imprevisível e em constante
mudança da vida cotidiana. As categoriais sociais de
turistas e vagabundos de Bauman ocupam os dois
extremos desse fenômeno.

Aplicando a teoria de Bauman

Zygmund Bauman é considerado um dos


sociólogos mais influentes e eminentes da era moderna.
Ele prefere não se encaixar em nenhuma tradição
intelectual específica. Seus escritos são relevantes para
um vasto leque de disciplinas, da ética, mídia e estudos
culturais, à teoria política e à filosofia.
Dentro da sociologia sua obra sobre a
modernidade líquida é considerada pela grande maioria
dos pensadores uma contribuição única ao campo.
O sociólogo irlandês Donncha Marron aplicou
o conceito de Bauman de modernidade líquida para
consumo nos EUA. Seguindo a sugestão de Bauman de
que os bens de consumo e as marcas são uma
característica única de como os indivíduos constroem a
sua identidade pessoal, Marron nota que o cartão de
crédito é uma ferramenta importante nesse processo,
porque se encaixa perfeitamente na capacitação das
pessoas em se adaptar à forma de vida flúida que
Bauman apresenta.
O cartão de crédito pode, por exemplo, ser
usado para pagar compras que satisfaçam o desejo de
consumo. Ele faz com que pagar as coisas fique mais
simples, rápido e mais fácil de gerenciar.
O cartão de crédito também cumpre o papel, é
claro, de servir à função, diz Marron, de pagamento de
contas e despesas diárias, conforme as pessoas trocam
de emprego ou têm mudanças de carreira significativas.
E o próprio cartão pode, com frequência, ter a bandeira
ligada à coisas que seu dono tem interesse, como times
de futebol, instituições de caridade ou lojas.
Esses cartões de fidelidade representam uma
forma pequena, mas significativa, de uma pessoa ser
capaz de escolher e mostrar o que pensa de si mesma
ao mundo exterior.

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