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Contribuições de Gilberto Freyre e Caio Prado Júnior para a

construção do pensamento social brasileiro


ALEX AUGUSTO SOUZA*

Resumo: O presente artigo buscará analisar as contribuições de Gilberto Freyre e Caio Prado
Júnior para a construção do pensamento social brasileiro através das obras Casa-grande e
senzala e Formação do Brasil contemporâneo: colônia. Livro de grande impacto na cultura
brasileira, a obra de Freyre lançada em 1933 revela-se inovadora quanto ao seu estilo,
rompendo tabus e preconceitos presentes na sociedade da época, buscando uma valorização
do negro e analisando a miscigenação como algo positivo. Já a obra de Prado Júnior traz uma
nova forma de interpretação do Brasil que buscará se opor à perspectiva até então dominante,
de cunho idealista. Lançado em 1942, Formação do Brasil contemporâneo: colônia se
estruturará em três partes principais –e “Povoamento”, “Vida Material” e “Vida Social”,
buscando analisar a vida econômica da colônia. Fazer um contraponto entre os dois autores,
suas aproximações e distanciamentos destacando suas contribuições para o pensamento
social brasileiro, também é objetivo deste trabalho.
Palavras-chave: Escravidão; Miscigenação; Economia; Freyre; Prado Júnior.
Contributions by Gilberto Freyre and Caio Prado Júnior for the construction of brazilian
social thinking.
Abstract: The present article will analyze the contributions of Gilberto Freyre and Caio
Prado Júnior for the construction of Brazilian social thought through the Casa-grande e
senzala works and the Formação do Brasil contemporâneo: colônia. Freyre's work, launched
in 1933, is an innovative book on Brazilian culture, breaking the taboos and prejudices
present in the society of the time, seeking a valorization of the Negro and analyzing the
miscegenation as a positive thing. The work of Prado Júnior brings a new form of
interpretation of Brazil that will seek to oppose the perspective that until then was dominant,
idealistic. Launched in 1942, Formação do Brasil contemporâneo: colônia will be structured
in three main parts - "Settlement", "Material Life" and "Social Life", seeking to analyze the
economic life of the colony. To make a counterpoint between the two authors, their
approximations and distances highlighting their contributions to Brazilian social thought, is
also the objective of this work.
Keywords: Slavery;Miscegenation; Economy; Freyre; Prado Júnior.

*
ALEX AUGUSTO SOUZA é mestrando em Ciências Sociais pela Universidade Estadual de
Maringá – UEM. Formado em História pela Universidade Estadual do Norte do Paraná – UENP. Formado
em Ciências Sociais pela Universidade Metropolitana de Santos – UNIMES. Formado em Pedagogia pelo
Instituto alvorada Plus de São Paulo. Pós-Graduado em Artes e Educação e Docência no Ensino Superior
pela Universidade Vale do Ivaí – UNIVALE. Pós-Graduado em Educação Especial Inclusiva pela
Faculdade São Braz.

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Gilberto Freyre e Caio Prado Jr.

Introdução enquadrada a colônia, dentro do contexto


da grande empresa comercial
Falar da contribuição de Gilberto Freyre
e Caio Prado Júnior para a construção do portuguesa. Ainda imbuído de um
pensamento social brasileiro é algo discurso escravista, percebe-se em vários
indispensável para todos aqueles que momentos da obra, o escravo como um
desejam entender a fundo as raízes de peso necessário para a Coroa. Ele
também enfatiza que é a partir da
nossa sociedade. Focando no período
colonial, cada um dos autores a seu modo exploração da monocultura que se tem a
trará importantes contribuições para a base da formação da família patriarcal.
compreensão da nossa cultura. Sendo considerado um dos maiores
intelectuais do século XX, ele estuda o
Quebrando paradigmas e preconceitos Brasil de maneira a ampliar discussões
da sociedade à época de seu lançamento, que à época já vinham consolidadas no
Casa-grande e senzala trouxe uma pensamento social. O contato com
análise inovadora da sociedade colonial; importantes pensadores como o
pois foi o primeiro trabalho com um historiador Fernand Braudel e o
novo olhar sobre a contribuição do negro antropólogo Claude-Lévi-Strauss, por
para as bases que sustentaram a referida exemplo, lhe renderam grande
sociedade, valorizando a mestiçagem contribuição em suas descobertas
como algo positivo, o que nenhum intelectuais. Sua obra Formação do
sociólogo fez na mesma época de Freyre; Brasil contemporâneo: colônia, de 1942,
apesar disso ele peca em alguns pontos, prevalecerá a ótica materialista da
pois a obra parece transparecer-nos uma história da sociedade brasileira,
sociedade de convivência harmônica e buscando através da estrutura econômica
pacífica entre brancos, negros e índios, explicar as raízes que trouxeram à tona a
quando bem sabemos dos verdadeiros realidade de nosso país.
anseios do homem branco. Porém, não
serão essas críticas que tiram o mérito 1. Gilberto Freyre: análise de Casa-
dado a Freyre de ser um “rompedor de grande e senzala
tabus”, que com seu estilo coloquial Lançado em 1933 o livro Casa-grande e
ofendeu muitos leitores e críticos dos senzala quebra paradigmas ao ser
anos 1930. pioneiro em uma nova forma de abordar
Em sua obra, Caio Prado Júnior, buscou a sociedade, apresentando ideias que se
fazer uma análise do processo em que foi contrapunham ao racismo, dominante no

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pensamento social sofre crítica de uma
brasileiro da época, do maneira geral, pois
qual temos um muitos percebem nos
exemplo em Oliveira escritos de Freyre que
Vianna, que ele teria suavizado a
empregava um forte violência que se fazia
tom positivista em presente nas relações
seus estudos, de escravidão,
chegando a ter um contribuindo para
preconceito muito ocultá-la.
grande com as raças Não podemos nos
consideradas esquecer que no
“inferiores”. Diz ele contexto do
que: “Quando os lançamento da obra,
cruzamentos surgem da fusão de raças como já dito, a grande maioria dos
muito distintas, os retornos têm, em pensadores da época tinha uma
geral, um caráter degenerescente: o mentalidade preconceituosa quanto à
elemento inferior é que se reconstrói, de presença do negro na sociedade; porém,
preferência, e absorve os elementos da Freyre tem outro olhar para essa questão,
raça superior.” (VIANNA, 2005, p. 173)
buscando mostrar a contribuição do
Diferente de Vianna, Freyre teve outro negro na formação social. Sobre a
olhar para a sociedade brasileira, questão da suavização da violência nas
buscando preservar a relevância cultural relações entre brancos e negros na
para a compreensão das peculiaridades escravidão entendo que ele quis nos
nacionais, ele deixa clara sua intenção de mostrar algo positivo que foi a
romper com a tradição sociológica miscigenação, a mistura de raças, mas
vigente através da valorização da que jamais estaria fazendo uma defesa de
mestiçagem que para ele se dava através uma relação que poderíamos chamar
do contato entre portugueses brancos, hoje de um estupro, dependendo da
índios e depois negros na formação da maneira como a relação sexual
sociedade brasileira. acontecia. É óbvio que ele peca ao não
tecer uma crítica mais “severa” ao
Jessé Souza (2000), ao falar de Gilberto
branco, senhor e dominador da América
Freyre diz que:
como se estas terras fossem sua
Gilberto Freyre é, talvez, o mais propriedade privada, mas não é isto que
complexo, difícil e contraditório tira a grande contribuição que Freyre traz
entre nossos grandes pensadores. em seu trabalho.
Sua obra tem permanecido um
desafio constante aos comentadores,
e a vitalidade de seu pensamento se Continuando a falar sobre a crítica,
mostra no crescente interesse por
Fernando Henrique Cardoso ao escrever
sua obra. Ele é, talvez, o mais
moderno entre os clássicos do sobre “um livro perene” no lançamento
pensamento social brasileiro e suas da 48ª edição de Casa grande e senzala,
questões ganham ao invés de em 2003, diz que os críticos, nem sempre
perderem em atualidade (SOUZA, foram generosos com Freyre e os que o
2000). foram como Darcy Ribeiro, sempre
Apesar de sua grande contribuição, procuraram mostrar suas tradições e
muitas vezes Casa grande e senzala conservadorismo.

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Analisando os escritos de Darcy Ribeiro, acontecimentos muitas vezes pesados da
Cardoso escreve: colonização, como no domínio do senhor
A etnografia do livro é, no dizer de branco sobre a escrava negra. Como já
Darcy Ribeiro, de boa qualidade. dito neste trabalho, Freyre talvez
Não se trata de obra de algum buscasse algo positivo nestes
preguiçoso genial. O livro se deixa acontecimentos e é aí que ele encontra a
ler preguiçosa, languidamente. Mas mistura de raças, a miscigenação.
isso é outra coisa. É tão bem escrito,
tão embalado na atmosfera oleosa, Para Freyre “a escassez de mulheres
morna, da descrição freqüente brancas criou zonas de confraternização
idílica que o autor faz para entre vencedores e vencidos, entre
caracterizar o Brasil patriarcal, que senhores e escravos” (FREYRE, 2003, p.
leva o leitor no embalo (CARDOSO 33). Ao falar que chegou mesmo a haver
in apud FREYRE, 2003, p. 20). constituição de família entre senhores
Para José Carlos Reis “o que ele brancos e escravas negras parece que
produziu foi uma espécie de auto- Freyre nos remete a uma sociedade
antropologia da cultura na qual nasceu, a cordial, equilibrada, não justa, mas que
nordestino-brasileira” (REIS, 2017, p. convivia harmonicamente, mas também
52). não podemos deixar de frisar que ele
também fala em antagonismo, não
Atribuindo a originalidade de seu ponto apenas em harmonia. Como já dito, seu
de vista aos estudos que ele fizera na erro foi não tecer uma crítica mais
Universidade de Colúmbia, em seu pesada ao homem branco.
Prefácio à 1ª edição faz questão de
agradecer a Franz Boas, que segundo ele Para ele, a miscigenação que foi
contribuiu muito com sua formação. praticada no período colonial corrigiu a
Foi o estudo de antropologia sob a distância que de outra forma se teria
orientação do professor Boas que conservado enorme. A sexualidade no
primeiro me revelou o negro e o período colonial na vida do colonizador
mulato no seu justo valor- separados já tem início no momento em que estes
dos traços de raça os efeitos do aqui chegam, quando as índias os fazem
ambiente ou da experiência cultural. concretizar a imagem da moura-
Aprendi a considerar fundamental a encantada.
diferença entre raça e cultura; a
discriminar entre os efeitos de O europeu saltava em terra
relações puramente genéticas e os de escorregando em índia nua; os
influências sociais, de herança próprios padres da Companhia
cultural e de meio. Neste critério de precisavam descer com cuidado,
diferenciação fundamental entre senão atolavam o pé em carne.
raça e cultura assenta todo o plano Muitos clérigos, dos outros,
deste ensaio. Também no da deixaram-se contaminar pela
diferenciação entre hereditariedade devassidão. As mulheres eram as
de raça e hereditariedade de família. primeiras a se entregarem aos
(FREYRE, 2003, p. 32). brancos, as mais ardentes indo
esfregar-se nas pernas desses que
Buscando trazer certo equilíbrio entre as
supunham deuses. Davam-se ao
misturas de raça no processo de europeu por um pente ou um caco de
miscigenação, ao ver como positivo as espelho (FREYRE, 2003, p. 161).
relações entre os senhores brancos e as
escravas negras, talvez aí Freyre busque Logo depois da índia, a negra também
trazer certo eufemismo, atenuando entra no emaranhado da vida sexual,

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devendo por bom grado ou não servir ao sua obra grandiosa de colonização
seu senhor. tropical” (REIS, 2017, p. 56).
Concordando com Reis, não podemos
Nessa sociedade de clima tropical,
deixar também de lembrar mais uma vez
Freyre também relata de doenças
o pensamento predominante da época
causadas pela má alimentação, muitas
que Freyre escreve, um cenário
vezes constituída de peixe seco, farinha
dominado por visões preconceituosas,
de mandioca e logo depois a carne de
mas é aí que vem a crítica já dita neste
charque.
trabalho, que ele poderia ter tecido um
Servindo de palco de muitos olhar mais “acusador” sobre o homem
acontecimentos a casa grande é o reduto branco europeu.
da história patriarcal de Freyre, pois para
ele “nas casas-grandes foi até hoje onde Dentro desse contexto quem falha então
melhor se exprimiu o caráter brasileiro; a é o índio, que não se adapta ao trabalho
nossa continuidade social” (FREYRE, sedentário e aí a necessidade de
2003, p. 45). transplantar e escravizar o negro, o que
para Freyre foi sim um erro, visto que a
A moral católica é que predominava em escravidão não seria benéfica para esses
território brasileiro, pois era a religião povos, mas que também não havia outra
oficial de Portugal e é com o objetivo de maneira de suprir as necessidades do
firmar essa fé entre os habitantes da colonizador português. Um erro de que,
colônia que vem para cá os jesuítas e porém, Freyre vai tirar o lado positivo: o
outras ordens religiosas. Analisando os processo de miscigenação, pois a partir
fatos pertinentes a essa discussão, Freyre daí “formou-se na América tropical uma
reconhece o desfalque que a cultura sociedade agrária na estrutura,
indígena sofre logo já no início da escravocrata na técnica de exploração
chegada dos europeus e diz que: econômica, híbrida de índio- e mais tarde
A história do contato das raças de negro- na composição” (FREYRE,
chamadas superiores com as 2003, p. 65).
consideradas inferiores é sempre a
mesma. Extermínio ou degradação.
De acordo com Freyre (2003), um dos
Principalmente porque o vencedor problemas da miscigenação foi a sífilis,
entende de impor ao povo submetido tendo em vista que essa doença foi
a sua cultura moral inteira, maciça, trazida pelos primeiros europeus que
sem transigência que suavize a logo se misturaram com os indígenas e a
imposição. O missionário tem sido o eles passaram a transmiti-la. Ela estava
grande destruidor de culturas não tão presente na vida cotidiana colonial
europeias, do século XVI ao atual; que era aceita normalmente pela
sua ação mais dissolvente que a do sociedade.
leigo (FREYRE, 2003, p. 178).
Pelas análises feitas pelo autor de Casa-
Os missionários acabam por afetar as
grande e senzala podemos perceber que
próprias noções tradicionais dos
a vida sexual da colônia foi mesmo
indígenas segundo Freyre. A própria
efervescente, muitas vezes em uma
imposição do vestuário ao índio acaba
circunstância desfavorável a mulher: a
contribuindo para isso.
índia e depois a negra, que ficavam sob
Para Reis, Freyre não julgava mal o o domínio do homem branco, através de
europeu na exploração do índio, pois um sadismo deste e do masoquismo das
“Para ele, é injusto acusar os portugueses mesmas. Afirma ele “Uma espécie de
de terem manchado coma escravidão a sadismo do branco e de masoquismo da

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índia ou da negra terá predominado nas “Evolução Política do Brasil”, o seu
relações sexuais como nas sociais do primeiro livro (LIMA, 2008, p. 117).
europeu com as mulheres das raças Para Lima (2008), quando era militante
submetidas ao seu domínio” (FREYRE, do PCB, Caio Prado exerceu mandado
2003, p. 113). eletivo e alguns cargos de direção
Por fim a miscigenação dará lugar à partidária e “tendo se caracterizado,
constituição da família patriarcal que nesse campo, assim como em todas as
para Freyre seria a unidade produtiva, o demais frentes que atuou, pela coerência
capital que desbrava o solo, instala as e independência de suas posições”
fazendas, compra escravos, bois, (LIMA, 2008, p. 117).
ferramentas, a força social que se Passando à análise de Formação do
desdobra em política. Brasil contemporâneo: colônia, veremos
Enfim, Gilberto Freyre é um inovador que nessa obra Caio Prado busca fazer
que rompe com as tradições de sua época uma análise das estruturas do período
e um profundo conhecedor das Colonial. Já na introdução do livro, a seu
manifestações culturais do povo ver acontece certa ruptura com a
brasileiro principalmente do Nordeste, metrópole a partir da Chegada da Família
quando ele mesmo nos relata suas visitas Real portuguesa no Brasil, em 1808, e
entre as pessoas mais humildes do Recife seria uma nova fase na evolução política
e da Bahia. do país, na qual as instituições que deram
base ao período colonial se completam.
Neste momento detenho aqui a Diz Prado Júnior, ao analisar esse
consideração de Freyre e sua obra, período: “O Brasil começa a se renovar,
retornando a falar brevemente do mesmo e o momento que constitui o nosso ponto
no fechamento deste trabalho. de partida neste trabalho que o leitor terá
2. Caio Prado Júnior: análise de talvez a paciência de acompanhar, é
Formação do Brasil contemporâneo: também o daquela renovação” (PRADO
colônia JÚNIOR, 1961, p. 6).

Passaremos agora a análise de outra Porém, ele afirma que o processo


importante obra para a compreensão da histórico que havia se iniciado no século
formação da sociedade brasileira: XIX, ainda não havia chegado ao fim no
Formação do Brasil contemporâneo: momento em que ele escrevia o livro, daí
colônia; de autoria de Caio Prado Júnior. a necessidade de se ir a fundo nas
instituições formadoras da sociedade
A obra teve sua primeira edição lançada colonial.
em 1942, quando o autor estava exilado
As três grandes partes que irão compor a
do país por ter feito parte do Partido
estrutura da obra que estamos analisando
Comunista do Brasil (PCB) e logo depois
serão “Povoamento”, “Vida Material” e
em 1935 da Aliança Nacional
“Vida Social”.
Libertadora (ANL).
Ao falar do sentindo da colonização,
Caio Prado Júnior nasceu em São
Caio Prado começou por fazer uma
Paulo, em 11 de fevereiro de 1907.
Filho de uma família aristocrática, análise da situação de Portugal e do que
graduou-se em direito pela levou o país luso às navegações porque
Universidade de São Paulo em 1928, “a ocupação e povoamento do território
já despontando como intelectual em que constituiria o Brasil não é senão um
1933, com a publicação de episódio, um pequeno detalhe daquele

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quadro imenso” (PRADO dos estabelecimentos agrícolas
JÚNIOR, 1961, p. 14). do litoral, que sofrem
consideravelmente desta sangria
Para o autor, nosso país está de gente e cabedais. (PRADO
ligado àquela vasta empresa JÚNIOR, 1961, p. 33)
comercial, subordinando a
isto a vida social, política e Passada a febre do ouro,
cultural da colônia. haverá uma diminuição da
corrente de povoamento para
Caio Prado Júnior afirma que o interior, fazendo com que o
o interesse dos europeus na litoral volte a ter seu destaque
América seria apenas e a agricultura recupera sua
comercial e a ideia de força.
povoamento efetivo do
território da colônia surge somente com Analisando a economia, o autor diz que
as necessidades impostas, pois no período colonial ela se pauta na
precisava-se “criar um povoamento exportação de gêneros agrícolas para a
capaz de abastecer e manter as feitorias Europa, prevalecendo à grande
que se fundassem e organizar a produção propriedade monocultora. A economia é
dos gêneros que interessassem o seu o grande eixo de desenvolvimento de
comércio. A ideia de povoar surge daí, e qualquer nação e aqui diz Prado Júnior
só daí” (PRADO JÚNIOR, 1961, p. 18). “os três caracteres apontados: a grande
propriedade, monocultora, trabalho
Esse colono aqui vem como empresário escravo, são formas que se combinam e
de um negócio rendoso, mas jamais completam e derivam diretamente e
como um trabalhador, criando-se um como conseqüência necessária, daqueles
preconceito ao serviço braçal, que uma fatores”. (PRADO JÚNIOR, 1961, p.
vez negado pelo índio ficará a cargo do 114).
escravo negro. Toda essa estrutura, de
acordo com Caio Prado (1961) É lógico que a força motriz da economia
inaugurará uma sociedade inteiramente dessa sociedade é sem dúvida, como já
original nos trópicos. dito, o negro que aqui tem sua força
Analisando a dispersão pelo interior, o empregada na escravidão e percebo nas
autor coloca como ponto chave a falas do próprio Caio Prado uma defesa
descoberta do ouro na região das gerais do trabalho escravo, através de um
num primeiro momento, e logo depois a discurso escravista muito presente na
Cuiabá e Goiás. época; dizia que o escravismo era a seu
ver um mal necessário. Percebemos isso
A dispersão pelo interior, intensa e claramente quando ele diz que: “A
rápida, é da primeira metade do séc. escravidão torna-se assim necessidade: o
XVIII, quando o ouro, descoberto problema e a solução foram idênticos em
sucessivamente em Minas Gerais todas as colônias tropicais e mesmo
(último decênio do século XVII),
subtropicais da América” (PRADO
Cuiabá em 1719, e Goiás seis anos
depois desencadeia o movimento.
JÚNIOR, 1961, p. 116).
Afluem então para o coração do
continente levas sobre levas de Quando passa à análise das questões da
povoadores alguns são colonos vida social e política, Prado ainda se
novos que vêm diretamente da imbui de preconceito ao definir como
Europa, outros, os escravos trazidos semibárbaras as raças de índios e negros,
da África. Muitos, porém acorrem que junto com os brancos europeus

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formaram o aglomerado heterogêneo de Diferente de Freyre, que via muitas
raças que a colonização reuniu. vezes na casa-grande relações
harmônicas e por vezes conflituosas,
Apesar de ver a escravidão como Caio Prado tinha um outro olhar, apesar
necessária, dirá ele que ela em nada de também considerar a importância da
contribuiu para a cultura e qualquer miscigenação, para ele fora da casa-
forma de desenvolvimento do negro, mas grande faltaria o regramento moral e a
“pelo contrário, degradá-lo-á, família e religião pouca ênfase terão
eliminando mesmo nele o conteúdo fazendo com que houvesse na sociedade
cultural que porventura tivesse trazido colonial desagregação e desunião.
do seu estado primitivo” (PRADO
JÚNIOR, 1961, p. 342). Neste contexto surge na colônia uma
sociedade dominada pela inércia. Diz
Ao falar das relações sexuais entre a Prado Júnior “O aspecto do Brasil é de
escrava negra e o senhor branco, ele toca estagnação” (PRADO JÚNIOR, 1961, p.
numa abordagem que foi bastante 348). Criticando o trabalho do negro,
discutida por Freyre, mas a meu ver de Prado conclui que “afora o trabalho
uma maneira bem mais pesada, pois constrangido e mal executado do
como ao contrário do primeiro, Caio escravo, não se vai além do estritamente
Prado não tenta atenuar os necessário para não perecer à míngua”
acontecimentos que envolviam esse (PRADO JÚNIOR, 1961, p.349). O
contexto. negro é tido então como um ser sem
cultura do qual o colonizador explora sua
A outra função do escravo, ou antes
da mulher escrava, instrumento de força de trabalho e servir-se da
satisfação das necessidades sexuais sexualidade das mulheres.
de seus senhores e dominadores, não Por fim, Caio Prado (1961) conclui que:
tem um efeito menos elementar. Não
ultrapassará também o nível A colonização produziu seus frutos
primário e puramente animal do quando reuniu neste território
contato sexual, não se aproximando imenso e quase deserto, em 300 anos
senão muito remotamente da esfera de esforços, uma população catada
propriamente humana do amor, em em três continentes, e com ela
que o ato sexual se envolve de todo formou, bem ou mal, um conjunto
um complexo de emoções e social que se caracteriza e identifica
sentimentos tão amplos que chegam por traços próprios e inconfundíveis.
até a fazer passar para o segundo (PRADO JÚNIOR, 1961, p. 355-
plano aquele ato que afinal lhe deu 356).
origem (PRADO JÚNIOR, 1961, p.
342).
Enfim, a ideia de separação viria
somente com a independência das
Mas, citando Gilberto Freyre, ele destaca colônias da América do Norte em 1776,
a figura boa da ama negra, aquela que o que se idealizará primeiramente na
Freyre relata que traz bondade e ternura Inconfidência Mineira de 1789.
à criança desde que esta ainda está no Destacando um ponto rapidamente para
berço. Nesse contexto ele fala que se faz não ultrapassar os limites deste trabalho,
necessário fazer uma distinção entre o Caio Prado (1961) citará um conjunto de
papel do escravo e do negro. O escravo conflitos que levará a sociedade colonial
será aquele que dominará o cenário e a à ebulição e não deixará de analisar as
partir daí permite ao negro que este tenha contribuições da maçonaria no processo
raras oportunidades de mudanças. de independência. Ele diz que “A

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maçonaria emprestou assim alguma Vai ser no processo de miscigenação,
consciência a uma ação que sem ela, algo visto como positivo e na família
embora continuasse a existir, teria sido patriarcal da casa-grande que Freyre vai
certamente cega e desorientada” se apegar para sua análise do período
(PRADO JÚNIOR, 1961, p. 373). colonial, diferente de Caio Prado Júnior
que publicou Formação do Brasil
Por fim seu livro é de extrema contemporâneo: colônia, em 1942 e que
importância para a compreensão dos dará uma ênfase maior ao processo
principais fatos das relações econômico, tendo sido para ele a grande
colônia/metrópole, principalmente propriedade monocultora que
envolvendo os fatores econômicos. prevalecerá no período colonial, com o
3. Freyre e Prado Júnior: um olhar objetivo principal de abastecer e trazer
sobre os dois autores lucros à metrópole. Em 1945 ele lançaria
História econômica do Brasil, com um
Não há como negar a contribuição de texto interpretativo da nossa economia
Gilberto Freyre e Caio Prado Júnior para até a década de 1930.
a construção da formação social
A contribuição de Gilberto Freyre e Caio
brasileira através de suas obras.
Prado Júnior para a formação intelectual
Tanto Freyre como Prado Júnior tiveram das décadas de 1930 e 1940 é
excelentes formações. Cada um a seu indiscutível, pois mesmo com
modo, vão procurar abordar o mesmo abordagens diferentes ambos nos
período da história do nosso país. Como resgatam acontecimentos que como já
já vimos, “Casa-grande e senzala” é dissemos são imprescindíveis para
considerado um marco pela ruptura que conhecer as raízes de nossa sociedade.
causa nas gerações da época de seu Em análise de Palermo ele ressalta que as
lançamento, 1933. Freyre faz da principais influências intelectuais de
escravidão um ponto fundamental de sua Freyre eram provenientes da
obra, fazendo uma defesa do mestiço e se Antropologia Cultural de Franz Boas,
afastando da tese de “branqueamento” da que, como vimos, exerce influência
nação, algo visto como o mais correto considerável sobre o autor e já Caio
por muitos pensadores da época, como Prado utiliza-se de referencial marxista
afirma Palermo (2014), em concordância para a análise da formação do Brasil,
com Silva e Schwarcz: tendo a economia como pilar principal
É importante ressaltar também que a do sentido da colonização. (PALERMO,
tese do sociólogo em questão 2014, p. 181-182). A obra de Prado
rompeu com o pensamento de Júnior é paradigmática, voltada para a
intelectuais como Paulo Prado, perspectiva da macroestrutura
Oliveira Vianna e Nina Rodrigues, econômica baseada na relação de
que consideravam o dependência e exploração que acaba por
“branqueamento” da sociedade se estabelecer na formação do período
como a solução para os males colonial
brasileiros de sua época. (SILVA,
2000; SCHWARCZ, 1993). Freyre Embora então com perspectivas
defendeu que a miscigenação foi um diferentes e às vezes contraditórias, pois
fenômeno histórico pertencente e, para Caio Prado Júnior considera a
sobretudo, positivo para a formação colonização brasileira como
da sociedade brasileira “exploração” comercial, enquanto
(PALERMO, 2014, p. 169-170).
Gilberto Freyre destaca a constituição de

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um sistema social bem organizado e nos oferece subsídios fundamentais para
permanente. Mas não podemos deixar de a compreensão da nação, pois o
reconhecer que a contribuição de Freyre fundamento da concepção materialista à
e Prado Júnior para a compreensão do qual ele se filia faz com que ele busque
período colonial e da base da formação um reconhecimento das bases materiais
da nossa sociedade é essencial e nos traz da sociedade. Prado Júnior deu então um
ainda hoje, como deve ser, debates outro olhar para a interpretação da
acalorados de nossas raízes e um sociedade, de maneira diferente à Freyre,
enriquecimento teórico metodológico pois enquanto este busca uma análise
capaz de nos abrir o olhar para diferentes volta à cultura, Caio Prado busca na
perspectivas. organização econômica as explicações
para se entender as raízes de nossa
Conclusão formação.
Não podemos negar a grande
Não podemos deixar de destacar que nos
contribuição trazida por Gilberto Freyre
trazendo uma base epistemológica que
e Caio Prado Júnior para a compreensão
nos permite o aprimorar teórico e
da formação de nossa sociedade, cada
metodológico, as obras analisadas neste
um com seus conceitos e abordagens em
trabalho nos são de uma excelente
relação aos principais acontecimentos do
contribuição prática para nossa
período colonial.
construção teórica.
Freyre com sua excelente formação e
intelectualidade vai buscar as raízes de O objetivo deste artigo não foi adotar a
nossa sociedade, muitas vezes sofrendo postura de um ou outro autor e nem tecer
críticas, sendo acusado por alguns de críticas em excesso as obras dos
críticos de analisar de forma muito mesmos que em outras oportunidades
branda, “leve” as relações entre brancos podem ser discutidas, mas sim se buscou
e negros ou seja, dominadores e fazer uma análise e compreensão da
dominados. Não deixamos de dizer que visão dos dois autores, situando as obras
essas considerações são pertinentes, mas em seu tempo histórico para a partir daí
também não derrubam a essência da compreendê-las de maneira crítica e
contribuição dos escritos de Freyre, pois imparcial, deixando de lado qualquer
através de suas raízes conservadoras e subjetividade que de modo geral tiraria a
senhoriais o autor compreende melhor a legitimidade da pesquisa feita e pudesse
realidade sociocultural da região comprometer o trabalho apresentado por
nordeste, o que contribuiu e muito para o estes dois grandes contribuintes para a
sucesso de sua obra que apresenta para à formação do pensamento social
época, uma linguagem ousada e brasileiro. Fazer uma leitura de outras
desafiadora. obras de Freyre, como Sobrados e
Mucambos (1936), Interpretação do
Prado Júnior que também teve uma Brasil (1945), Vida Social no Brasil nos
excelente formação intelectual traz uma Meados do séc. XIX (1964) e também de
grande inovação com a publicação de Prado Júnior, como História econômica
Formação do Brasil Contemporâneo: do Brasil (1945), A Revolução brasileira
colônia, publicado em 1942. Fazendo (1966), entre outras inúmeras obras
todo um apanhado do período colonial, o destes dois pensadores, nos ajudará a
autor também é um renovador. Exilado e formar uma visão mais sistematizada do
perseguido político, ele se destaca mais pensamento de ambos, contribuindo para
uma vez com a publicação da obra, que um julgamento mais coerente da linha de

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pensamento seguida por cada um desses UNB, Revista Brasiliense de Pós-Graduação em
dois grandes nomes do pensamento Ciências Sociais, V.13, n. 2, p. 169-199, 2014.
social brasileiro. PRADO JÚNIOR, Caio. Formação do Brasil
Contemporâneo: colônia. 6ª edição. São Paulo,
Editora Brasiliense, 1961
Referências REIS, José C. Ano 1930: Gilberto Freyre – o
CARDOSO, Fernando H. In: FREYRE, reelogio da colonização portuguesa. In: REIS,
Gilberto. Casa-grande e senzala. 48ª edição. José C.As identidades do Brasil: de
São Paulo, Global Editora, 2003. Varnhagena FHC. Rio de Janeiro, FGV, 2017.

FREYRE, Gilberto. Casa-grande e senzala. 48ª SOUZA, Francisco C S. As contribuições de


edição. São Paulo, Global Editora, 2003. Caio Prado Júnior para a história ambiental
do Brasil. Revista Cronos Natal-RN, v. 10, n. 1,
LIMA, Valéria F. S. de Almada. Formação do p. 97-115, jan./jun. 2009.
Brasil Contemporâneo: colônia – dados
biográficos, fontes de inspiração e contexto SOUZA, Jessé. Gilberto Freyre e a
intelectual. Rev. Políticas. Públicas. São Luis, v. singularidade cultural brasileira. Artigo
12, n. 1, p. 117-124, jan./jun. 2008. Scielo, Tempo Social, v. 12, n. 1, São Paulo,
maio/2000.
PALERMO, Luis C. Gilberto Freyre e Caio
Prado Júnior: uma análise comparativa
centrada no contexto de produção e nas Recebido em 2018-04-05
referências teóricas dos autores. Periódicos Publicado em 2018-05-15

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