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História

Da Casa-grande ao mito da democracia


racial

1o bimestre – Aula 2
Ensino Médio
● Gilberto Freyre e os legados de ● Analisar o “elemento mestiço”
Casa-grande & Senzala; na construção da identidade
● Mito da democracia racial e o brasileira, problematizando a
programa Unesco: contribuições visão de democracia racial e a
de Florestan Fernandes. desafricanização em espaços
“oficiais” a partir de 1930;
● Analisar as contribuições de
Florestan Fernandes para a
desconstrução da ideia de
democracia racial.
TODOS FALAM!
● Você consegue definir qual a “cara” do Brasil? Critérios raciais, ainda hoje, fazem parte
dessa identidade?
● O movimento modernista, do qual Mário de Andrade era expoente, difundiu a ideia de
uma nação mestiça positiva, dentro de uma perspectiva nacionalista, que culmina,
posteriormente, na “democracia racial”. Como o fragmento da obra Macunaíma: o herói
sem nenhum caráter apresenta a raça como essência do Brasil? Discuta!

“Uma feita a Sol cobrira os três manos duma escaminha de suor e Macunaíma se lembrou
de tomar banho. [...] Então Macunaíma enxergou numa lapa bem no meio do rio uma cova
cheia d’água. [...] Mas a água era encantada [...]. Quando o herói saiu do banho estava
branco louro e de olhos azuizinhos, água lavara o pretume dele. E ninguém não seria capaz
mais de indicar nele um filho da tribo retinta dos Tapanhumas.”

Macunaíma: o herói sem nenhum caráter. Mário de Andrade, obra de 1928.


DE SURPRESA!

Em dupla, leia trecho da obra Casa-grande & Senzala, de Gilberto Freyre,


e identifique:

● Elementos que revelam as relações desiguais de poder entre


brancos e negros no Brasil.
Fonte 1. O “cadinho das raças” em Casa-grande & Senzala
“Todo brasileiro, mesmo o alvo, de cabelo louro, traz na alma, quando não na alma e
no corpo [...] a sombra, ou pelo menos a pinta, do indígena ou do negro. [...] Na ternura,
na mímica excessiva, no catolicismo em que se deliciam nossos sentidos, na música, no
andar, na fala, no canto de ninar menino pequeno, em tudo que é expressão sincera de
vida, trazemos quase todos a marca da influência negra. Da escrava ou sinhama que
nos embalou. Que nos deu de mamar. Que nos deu de comer [...]. Da negra velha que
nos contou as primeiras histórias de bicho e de mal-assombrado. Da mulata que nos
tirou o primeiro bicho-de-pé de uma coceira tão boa. [...] Do moleque que foi o nosso
primeiro companheiro de brinquedo.” (FREYRE, 1983, p. 283).
Cadinho: recipiente em material refratário, geralmente de barro, ferro ou platina, utilizado para fusão das
reações químicas em altas temperaturas.
Sinhama: escravizada de mais idade, geralmente encarregada do cuidado das crianças da casa-grande.
Correção
Na descrição de Freyre, as relações de poder assemelham-se a uma “boa escravidão”,
supostamente uma relação “amistosa e paternal” por parte do senhor e “harmoniosa e de
fidelidade” por parte do escravizado. No entanto, é possível identificar, a partir do que
conhecemos sobre nossa história e seu legado racista, como o poder era exercido e,
sobretudo, como eram as formas de violência, expressas nas relações entre brancos e
negros. No “retrato” do autor acerca das mulheres escravizadas, notadamente seu papel
é o de sujeição, de inferioridade, já que são condicionadas a uma função de manutenção
das dinâmicas de poder, como a geração de filhos, legítimos ou bastardos, consentidos ou
frutos de violência. Também as denominadas “amas de leite” (as sinhamas), que
embalavam e amamentavam os filhos de seus senhores, eram cruelmente impedidas de
criar seus próprios filhos. Assim sendo, a harmonia é inexistente, o poder era constituído
pelo homem branco, senhor de terras e de escravizados, sequestrados de seus locais de
origem, que trabalhavam sob cruel violência, no eito ou no espaço doméstico.
A escravidão “edulcorada” e a construção da
“democracia racial”
Nos anos 1930, o livro Casa-grande & Senzala, do antropólogo e sociólogo pernambucano
Gilberto Freyre (1900-1987), promoveu uma interpretação distinta do negro e da
mestiçagem na sociedade brasileira. As raças ditas “inferiores” no século XIX, símbolos
do subdesenvolvimento nacional, na obra, passaram a ser consideradas um dos pilares da
formação da nossa sociedade e da identidade brasileira. Segundo Freyre, diferentemente
da segregação racial mais rígida, ocorrida em outros países, como nos EUA, as relações
entre brancos e negros, no Brasil, teria se dado na proximidade, na intimidade e na
afetividade, ou seja, seria uma escravidão edulcorada, harmoniosa entre as diferentes
raças, resultando na mestiçagem. Essa relação teria viabilizado uma convivência pacífica,
o que, mais tarde, foi transformada na ideia de democracia racial brasileira.
Edulcorar: adoçar
“Era assim que o cruzamento de raças passava a
singularizar a nação nesse processo que leva a
miscigenação a parecer sinônimo de tolerância e
[...] se transformarem em modelos de sociabilidade.
Não que inexistissem relatos violentos na obra de
Freyre, mas o fato é que o antropólogo idealizava
uma nova civilização, cujo modelo era o da Casa-
Grande nordestina.
Uma sociedade da cana, em que inclusão social
casava-se com exclusão; opostos se equilibravam e
a escravidão aparecia de alguma maneira explicada
pelo inóspito da colonização.” (SCHWARCZ, 2012,
Ilustração de Cícero Dias para o livro
pp. 37-38) Casa-grande & Senzala, 1933
Faça agora!

A partir do texto historiográfico, nos slides a seguir, em grupos, analise os


seguintes aspectos:

● Em que medida Casa-grande & Senzala, de Gilberto Freyre, “positivou” a


mestiçagem?
● Dentro do discurso freyreano, o mestiço seria um modelo racial de “boa
convivência” e “entrelaçamento entre diferentes”. Essa questão está
relacionada ao mito da “democracia racial” que ainda sobrevive no Brasil?
● Segundo a autora, a partir da década de 1930, o “elemento mestiço” passa a
ser também observado nas políticas públicas, na cultura e em espaços
“oficiais”. Em que aspectos esses discursos do “mestiço nacional”
influenciaram a ideia de desafricanização? Dê exemplos.
TEXTO I – Gilberto Freyre e o mestiço como ícone da nação
“O livro [Casa-grande & Senzala] oferecia uma interpretação inesperada para
a sociedade multirracial brasileira, invertendo o antigo pessimismo e
introduzindo os elementos culturais enquanto indicadores de análise. O
‘cadinho das raças’ aparecia como uma versão otimista, mais evidente aqui
do que em qualquer outro lugar [...], fazendo da mestiçagem uma questão ao
mesmo tempo nacional e distintiva. Freyre mantinha intocados em sua obra,
porém, os conceitos de superioridade e de inferioridade, assim como não
deixava de descrever a violência presente durante o período escravista.

Continua...
A novidade estava na interpretação que descobria no cruzamento de raças
um fato a singularizar a nação, nesse processo que fazia com que a
miscigenação parecesse, por si só, sinônimo de tolerância. É nesse
ambiente, também, que, para além do debate intelectual, nos espaços mais
oficiais, ‘o mestiço vira nacional’, paralelamente a um processo de
desafricanização de vários elementos culturais, simbolicamente clareados.
A feijoada, por exemplo, até então conhecida como ‘comida de escravos’, a
partir dos anos 1930 se converte em ‘prato nacional’, carregando a
representação simbólica da mestiçagem.

Continua...
O feijão e o arroz remeteriam metaforicamente aos dois grandes segmentos
formadores da população [...]. A capoeira – reprimida pela polícia do final do
século 19 e incluída como crime no Código Penal de 1890 – é oficializada
como modalidade esportiva nacional em 1937. Também o samba sai da
marginalidade e ganha as ruas, enquanto as escolas de samba e seus desfiles
passam, a partir de 1935, a ser oficialmente subvencionados. [...] Da mesma
maneira, a partir de 1938 os atabaques do candomblé passam a ser batidos
sem interferência policial. Até mesmo o futebol, originariamente um esporte
inglês, foi sendo associado a negros, sobretudo a partir de 1933, quando a
profissionalização dos jogadores tendeu a mudar a coloração dos clubes
futebolísticos.” (SCHWARCZ, 2001, pp. 27-28).
Correção
Apesar das críticas de Freyre em relação à violência do sistema escravocrata, sua
abordagem culturalista privilegiou as relações patriarcais do espaço doméstico, ou
seja, o privado, acabando por relativizar a violência aos escravizados da “casa-
grande”, que supostamente eram “parte” da família; a escravidão doméstica seria
“uma boa escravidão”. Além desse aspecto, a valorização do mestiço relegou ao
negro um papel secundário, principalmente, ao não desconstruir a ideia de
hierarquias raciais em sua obra. Segundo a autora, “o branco é sempre o exemplo
civilizatório, acompanhado do indígena, que trouxe seus hábitos higiênicos e
alimentares, e, por fim, o negro, com sua religiosidade “lúbrica”. De certa forma,
Freyre cria uma imagem de que, em nossa sociedade, houve um hibridismo que
“amoleceu” as tensões e constituiu as condições histórico-geográficas de uma
sociedade tolerante e sincrética.
Correção
Por fim, a valorização da mistura de raças desdobrou-se para além do discurso
intelectual, nas políticas públicas, na cultura e em espaços oficiais no contexto
da ascensão de Getúlio Vargas em 1930 e, posteriormente, durante o Estado
Novo, que forjou uma identidade nacional.
Esses “símbolos nacionais”, agora institucionalizados, retiram do negro suas
ancestralidades e contribuições à cultura brasileira, tornando-a uma
especificidade do “nacional”, do mestiço, “clareando” os traços e os elementos
culturais, o que levou a uma desafricanização: na capoeira, no futebol, no
samba e nas religiões de matriz africana.
As falácias da democracia racial – a desconstrução do mito
● Na década de 1950, após duas guerras mundiais, a Unesco (Organização das
Nações Unidas para a Educação, Ciência e Cultura) propôs um estudo – já que,
no imaginário internacional, o Brasil vivia uma democracia racial, um verdadeiro
“paraíso racial”, ainda que com um passado marcado pela escravidão.
● Nesse contexto, ao atuar na proposta da Unesco, o sociólogo Florestan
Fernandes (1920-1995), em suas pesquisas e análises desdobradas em obras,
como A integração do negro na sociedade de classes (1965) e O negro no mundo dos
brancos (1972), desconstruiu a teoria da democracia racial, transformando-a em
um mito, demonstrando que o Brasil não vivia uma experiência harmônica e sem
conflitos, mas era um país racista e profundamente desigual.
● Havia uma interpretação enraizada, na teoria de alguns autores anteriores ao
sociólogo, que se pautava na ideia de que, após a abolição, os negros não tinham se
inserido no mercado de trabalho, porque eram “indolentes, incapazes, não se
adequavam”, e Florestan Fernandes revela que a falta de inserção da população negra
deveu-se pela omissão das elites, que não promoveram uma transição e alternativas
para o trabalho livre e vida digna. Na disputa com brancos por trabalho, tornam-se
explícitos os conflitos raciais.
● Fernandes pontua, com base nas pesquisas encomendadas pela Unesco, que a cor da
pele marcava a posição social no Brasil. Em um sistema de hierarquização social, em
que o prestígio se dava por critérios de classe, no capitalismo (em uma sociedade de
mercado, supostamente democrática), haveria uma “acomodação racial vigente”, do
branco, camuflando o conflito de classes. O racismo dissimulado levou à exclusão
social pela cor da pele, “do negro”, “do preto”, apagando o sentido de classe
subalterna explicitada na estrutura social brasileira.
Virem e conversem!

Leia o fragmento de texto “O negro no mundo dos brancos”,


no slide a seguir, e discuta com seu colega! Registre!

● Qual a reflexão trazida por Florestan Fernandes sobre a


inclusão/exclusão do negro e do “mulato” após a Abolição?
Quais as críticas apresentadas e como se desconstrói a ideia de
“democracia racial”?
TEXTO II – O negro no mundo dos brancos
“[...] a sociedade colonial foi montada para o branco. A nossa história também é uma
história do branco privilegiado para o branco [...]. O negro foi exposto a um mundo
social que se organizou para os segmentos privilegiados da raça dominante. Ele não
foi inerte a esse mundo. Doutro lado, esse mundo também não ficou imune ao negro.
[...] O negro permaneceu sempre condenado a um mundo que não se organizou para
tratá-lo como ser humano e como ‘igual’. Quando se dá a primeira grande revolução
social brasileira [a Abolição da escravatura], na qual esse mundo se desintegra em
suas raízes, [...] nem por isso ele contemplou com equidade as ‘três raças’ e os
‘mestiços’ que nasceram do seu intercruzamento. Ao contrário, para participar desse
mundo, o negro e o mulato se viram compelidos a se identificar com o
branqueamento psicossocial e moral. Tiveram de sair de sua pele, simulando a
condição humana-padrão do ‘mundo dos brancos’. ” (FERNANDES, 2007)
Correção
Os principais pontos apresentados por Florestan Fernandes revelam as
marcas históricas das dinâmicas de modernização de nosso país (mais
especificamente, no estado de São Paulo), que levou ao desajustamento
estrutural do negro. A sociedade patriarcal, organizada para o benefício dos
brancos, legou, após a Abolição, a exclusão e a inferiorização do negro e do
“mulato” no mundo capitalista e competitivo (estereótipos negativos sobre o
trabalhador negro em comparação com o imigrante). Dessa forma, o autor
desconstrói a “democracia racial” e ainda apresenta uma crítica concernente
à “saída” moral e psicossocial branca, dada ao negro e ao mulato, marginais ao
núcleo do sistema capitalista: “Tiveram de sair de sua pele, simulando a
condição humana-padrão do ‘mundo dos brancos’”.
MOSTRE-ME!
Preencha o infográfico abaixo a partir das ideias dos
autores sobre:
DEMOCRACIA RACIAL
Versus
MITO DA DEMOCRACIA RACIAL

Gilberto Freyre QUESTÃO RACIAL NO BRASIL Florestan Fernandes


(1900-1987) (1920-1995)
Correção
DEMOCRACIA RACIAL
Versus
MITO DA DEMOCRACIA RACIAL
Gilberto Freyre QUESTÃO RACIAL NO BRASIL Florestan Fernandes
(1900-1987) (1920-1995)

● Temática racial a partir da desigualdade e discriminação;


● Visão culturalista que harmonizou as
historicamente, existe uma hegemonia da raça branca;
relações raciais, principalmente ao
● Questiona se a ausência de “tensões abertas e conflitos
priorizar o espaço privado (doméstico);
explícitos” seria sinônimo de uma boa organização das
● “Cadinho das raças”: versão otimista
relações raciais;
do mito das três raças. Positivou a
● Após a Abolição, outras barreiras são criadas, de ordem
miscigenação, aspecto singular da
moral e econômica, limitando o acesso à cidadania;
sociedade brasileira;
● Crítico à ideia de que a miscigenação traria ausência de
● Crítica à escravidão, no entanto, com
estratificação social;
viés racial hierárquico e relativização
● Sistema enraizado na hierarquia social – a ideia de raça
da violência no espaço privado.
apaga o conflito do negro como raça subalterna.
● Analisamos o “elemento mestiço” na
construção da identidade brasileira, a partir
do modernismo e da visão culturalista de
Gilberto Freyre, problematizando a visão
de democracia racial e a desafricanização
da cultura negra nos espaços oficiais a
partir de 1930;
● Analisamos as contribuições de Florestan
Fernandes para a desconstrução da ideia de
democracia racial a partir de seus estudos
iniciados com o Programa Unesco.
Slide 3 – ANDRADE, Mário de. Macunaíma: o herói sem nenhum caráter. São Paulo : Penguin Classics
Companhia das Letras, 2016.
Slide 5 – FREYRE, Gilberto. Casa-grande & Senzala. Rio de Janeiro: José Olympio, 1983.
Slide 8 – SCHWARCZ. L. Nem preto nem branco, muito pelo contrário: cor e raça na sociabilidade
brasileira. São Paulo: Claro Enigma, 2012.
Slides 10, 11 e 12 – SCHWARCZ. Lilia Moritz. Racismo no Brasil. Publifolha, 2001.
Slides 15 e 16 – FERNANDES, F. O negro no mundo dos brancos. São Paulo: Global, 2007;
__________. A integração do negro na sociedade de classes. São Paulo: Editora
Contracorrente, 2021.
Slide 18 – FERNANDES, F. O negro no mundo dos brancos. São Paulo: Global, 2007.
LEMOV, Doug. Aula nota 10 3.0: 63 técnicas para melhorar a gestão da sala de aula. Porto Alegre: Penso,
2023.
Lista de imagens e vídeos
Slide 8 – Ilustração de Cícero Dias para o livro Casa-Grande & Senzala. Reprodução: Memorial da
Democracia. Disponível em: https://cutt.ly/AwU3ZUQc. Acesso em: 21 nov. 2023.
Slides 20 e 21 – Gilberto Freyre, escritor, sociólogo e antropólogo brasileiro. Disponível em:
https://cutt.ly/owU3NHl2. Acesso em: 21 nov. 2023; Florestan Fernandes. Disponível em:
https://cutt.ly/NwU3NVwY. Acesso em: 21 nov. 2023.
Gifs e imagens ilustrativas elaboradas especialmente para este material, a partir do Canva. Disponível em:
https://www.canva.com/pt_br/. Acesso em: 21 nov. 2023.

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