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jornal.usp.br/artigos/impasses-da-cultura-moderna-no-brasil/
12 de setembro de 2022
Para Godard, “a cultura é a regra, a arte é exceção”. São complementares, a arte não
existe sem a cultura e a exceção não prospera sem a norma. São antagônicos: a cultura
é conservadora e a arte, transgressiva. A arte engloba as linguagens – a literatura, a
música, o cinema etc. – e também a arte da vida.
“A regra quer a morte da exceção”, assim como a cultura quer a morte da arte de viver. A
cultura está na raiz da intolerância, na base do conflito ideológico, na origem da guerra.
A guerra dos Balcãs foi uma guerra cultural militar.
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A recente pandemia atingiu o campo da cultura e das artes em plena recessão política e
econômica, ocasionada pela disruptura promovida pelo governo federal. O isolamento
compulsório impossibilitou a realização de espetáculos, exposições, shows, bem como a
abertura de museus, bibliotecas e centros culturais. Os artistas e as instituições viram-se
impedidos de atuar. Diante desse trauma, o imperativo é sobreviver. O retorno à
normalidade, cumpridos os protocolos do convívio social seguro, no entanto, não poderá
buscar referência no passado, que já não correspondia às necessidades e nem oferecia
perspectivas de um futuro propício.
O momento atual ainda está determinado por um trauma, cujos contornos sociais podem
ser emprestados da psicanálise. Para Winnicott, “um trauma é aquilo contra o que um
indivíduo não possui defesa organizada, de maneira que um estado de confusão
sobrevém, seguido talvez por uma reorganização de defesas, defesas de um tipo mais
primitivo do que as que eram suficientemente boas antes da ocorrência do trauma”.
Advertência precisa: superado o trauma, a regressão é inevitável.
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suas iniciativas como forma de compensação à demanda desassistida. Instâncias locais
regionais do poder público foram igualmente convocadas a agir tempestivamente
atropelando burocracias defensivas.
O trauma de Collor ensejou uma pressão da sociedade pelo retorno dos mecanismos de
renúncia fiscal, criados sem o rigor necessário pelo governo Sarney. Sérgio Rouanet,
secretário de Cultura de Collor, concebeu o retorno dos incentivos como uma parceria
público/privada, evitando a liberalidade excessiva da legislação anterior chancelada por
Celso Furtado. A Lei Rouanet surgiu valorizando o interesse público do bem cultural,
mas foi desfigurada no governo de Fernando Henrique Cardoso, quando quase todas as
atividades foram beneficiadas com renúncia fiscal a 100%. Isso significou dispensar o
esforço da sociedade na parceria e o estímulo à dependência exclusiva dos recursos
públicos. O mal maior da política de cultura é, portanto, anterior à pandemia e à
mesquinharia do governo Bolsonaro.
Raras vozes discordantes desafinaram o coro dos contentes: Cacá Rosset, Fernanda
Montenegro e Antônio Fagundes denunciaram a armadilha do incentivo fiscal que tolhia
a liberdade do artista e o confinava numa janela muito estreita de acesso ao público.
Fagundes foi além: criou uma companhia teatral própria sem benefícios fiscais e provou
que é possível – e desejável – desvencilhar-se da tutela do Estado na cultura.
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esgotamento veio acompanhado de premiações internacionais, o que embaralhou a
percepção da crise. Surgiu a ilusão de que os prêmios decorriam de uma boa prática,
mas quem está afeito ao tema sabe perfeitamente que essas políticas não estruturaram
o setor audiovisual, assim como o campo cultural como um todo, não colaboraram para a
sua sustentabilidade, nem que fosse parcial. Ao contrário, sempre caminharam no
sentido de aumentar a dependência do poder público, fragilizando a autonomia da
prática cultural e a liberdade de expressão artística. Com a chegada do novo governo,
visivelmente disruptivo, e com acentuado viés ideológico, essa dependência excessiva
dos recursos públicos ficou escancarada e sobreveio a paralisia. Arte sempre se fez na
sociedade, com independência do governo e frequentemente contra ele.
Com os recursos públicos privatizados via leis de incentivo, os investimentos diretos nos
órgãos públicos minguaram. Orçamentos modestos, aquém do mínimo necessário, e a
prática perversa do contingenciamento horizontal tornaram os órgãos públicos – museus,
bibliotecas, centros culturais – párias em um sistema que os expele para a administração
terceirizada, a das Organizações Sociais. Esta apresenta vantagens sobretudo ao
contornar a rigidez do regime público, mas eleva o risco institucional, ao torná-lo
dependente de contratos nem sempre cumpridos pelas partes.
Nada mais eloquente da falência do sistema cultural brasileiro que o incêndio do Museu
Nacional. Ele não foi fruto de um acidente infausto; foi consequência de omissão e
indiferença generalizadas durante decênios. No rescaldo das cinzas, as autoridades
acusavam-se. Ninguém era responsável, pois decerto somos todos responsáveis.
Uma chave para a compreensão da indiferença que atinge a memória cultural está na
reflexão de Paulo Emílio Sales Gomes (1916-1977), crítico e professor de cinema,
principal articulador da criação da Cinemateca Brasileira:
“O Brasil se interessa pouco pelo próprio passado. Essa atitude saudável exprime a
vontade de escapar a uma maldição de atraso e miséria. O descaso pelo que existiu
explica não só o abandono em que se encontram os arquivos nacionais, mas até a
impossibilidade de se criar uma cinemateca” (1969).
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A experiência de Mário de Andrade à frente do Departamento de Cultura e Recreação da
Prefeitura de São Paulo entre 1935 e 1938 merece uma breve menção. O projeto do
DCR era transversal, incluindo, além da Cultura e das Artes, a Assistência Social,
Esportes, Lazer, Turismo, Planejamento urbano e Meio ambiente. O DCR era um dos
seis departamentos da administração, estava no coração do governo, dispunha de 10%
do orçamento da cidade e contava com o apoio político do grupo no poder. Essa
concepção, se atualizada, retiraria a Cultura do seu nicho especializado e a levaria a
atuar simultaneamente na preservação do patrimônio, no fomento às artes, na
qualificação do espaço público, com intervenções na arquitetura e no urbanismo das
cidades, na complementaridade da formação educacional pela cultura, em que a
educação da criança e do jovem pudesse ser “culturalizada”, enfim, a atuar numa
perspectiva abrangente cujo objetivo maior fosse o bem-estar da população. Nas
palavras do próprio Mário: “dar ao far-niente uma orientação cultural”.
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Independentemente da pandemia ou da crise política, nosso tempo é o do desfrute
individual atrelado aos celulares. Se, por um lado, é formidável constatar o acesso de
milhões a um microcomputador que conecta o indivíduo ao mundo, isso não o torna um
cidadão planetário. Ao acentuar o individualismo, o apelo ao compartilhamento da
experiência social fica ainda mais atraente. Em São Paulo, a conquista das ruas, na
Virada Cultural e mais tarde no Carnaval, foi a resposta ao confinamento virtual.
(Algumas ideias expostas neste texto já o foram no artigo “Na cultura, o novo normal não
pode olhar para trás”, publicado na Revista Observatório, ed. 28, dez. 2020/jun. 2021.
São Paulo: Itaú Cultural, pp. 169-173.)
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