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"O Afropessimismo e a antinegritude do mundo"

Article  in  Afro-Ásia · February 2023


DOI: 10.9771/aa.v0i66.52097

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Marcos Natali
University of São Paulo
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O AFROPESSIMISMO
E A ANTINEGRITUDE DO MUNDO

WILDERSON III, Frank B. Afropessimismo. São Paulo: Todavia, 2021. 400 p.

Entre os aspectos extraordinários hipóteses críticas relacionadas ao


do livro Afropessimismo – e são termo “Afropessimismo”. Reunindo
muitos – está o modo particular como algumas dessas intuições, esse
o texto, desobedecendo fronteiras volume, publicado em inglês em
genéricas e disciplinares, combina 2020, no ano seguinte em português
memorialismo, teoria, filosofia, em cuidadosa tradução de Rogerio W.
poesia e análise cinematográfica. Galindo e Rosiane Correia de
Conhecido por suas contribuições ao Freitas,1 deu nova forma e maior
pensamento crítico negro nas obras ambição às propostas teóricas, que
Incognegro: A Memoir of Exile and aqui vão sendo apresentadas, capí-
Apartheid (2008) e Red, White & tulo a capítulo, em meio a reflexões
Black: Cinema and the Structure of sobre episódios variados de sua vida,
US Antagonisms (2010), ao longo incluindo a infância num bairro quase
da última década, o autor, Frank B. exclusivamente branco da cidade de
Wilderson III, professor de Estudos
Afro-Americanos na Universidade 1 É possível conjeturar que a publicação do
livro em português apenas um ano após seu
da California em Irvine, já vinha lançamento em inglês, juntando-se a outras
elaborando, em diálogo com pensa- traduções recentes de obras importantes
(de W. E. B. Du Bois, Octavia Butler,
dores negros estadunidenses como Saidiya Hartman etc.) antes indisponíveis
Jared Sexton, Saidiya Hartman, no Brasil, se deve em parte a mudanças nos
cursos e na composição das universidades
David Marriott, Patrice Douglass públicas brasileiras na última década,
realçando a importância da continuidade
e Zakkiyah Imam Jackson, desse processo de transformação.

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Minneapolis, a relação conturbada do livro, essa dificuldade narrativa
com os pais durante essa etapa de será associada, num movimento
formação, o período de cinco anos recorrente de ampliação do escopo,
de atuação política na África do Sul, à história da escravidão, em parti-
no final do regime do apartheid, cular à figura do Escravo (grafado
quando, além de dar aulas, foi eleito em maiúscula, sinalizando que se
para o Congresso Nacional Africano e trata de uma ideia ou fantasmagoria):
participou de atividades clandestinas só pode enlouquecer quem um dia
de resistência ao regime, e as crises soube o que era estar são, e o “tempo
de diferentes tipos vividas como estu- da sanidade não é uma temporalidade
dante de pós-graduação em retórica e que o [Escravo] tenha conhecido um
cinema na Universidade da California dia” (p. 351). No capítulo intitulado
em Berkeley na virada do século. “O problema com os humanos”,
Ainda que seja possível traçar num dos muitos trechos que ecoam
um resumo cronológico como esse, Orlando Patterson e seu conceito de
o problema formal que atravessa o morte social, a dificuldade é colocada
texto é justamente a dificuldade de em outros termos:
elaborar uma narrativa que reconstrua
Enquanto a relação humana com
a sequência de acontecimentos: a violência é sempre contingente,
primeiro isso, depois aquilo e, como disparada por suas transgressões
contra as proibições regulatórias
resultado desses episódios, agora
da ordem simbólica ou por
estou aqui. As primeiras páginas do mudanças macroeconômicas em
livro descrevem um colapso psíquico seu contexto social, a relação do
vivido por Wilderson em Berkeley Escravo [the Slave´s relationship]
com a violência não tem data para
em 2000, sem que exista qualquer acabar, é gratuita, não tem razão
excepcionalidade que o explique: nem limitador, é disparada por
“você sabe que não pode chamar catalisadores pré-lógicos que não
dependem de suas transgressões
aquilo de loucura, porque a loucura e não responde a mudanças histó-
presume uma mudança de clima, ricas. Em resumo, a violência
uma temporada de sanidade” – e isso infligida ao povo negro não é
resultado de transgressões simbó-
não é possível dizer que houvera,
licas (p. 246, tradução modificada).
antes da crise (p. 11). Nos capítulos

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Apesar desses obstáculos, existe argumentos principais do livro,
uma extensa tradição de relatos pode ser instrutivo permanecer por
autobiográficos de intelectuais negros alguns momentos nesse riso bem-
norte-americanos – tanto Frederick -humorado do autor, que entrecorta
Douglass quanto W. E. B. Du Bois com frequência suas entrevistas sobre
escreveriam não uma, mas três o livro. “Está bem, eu respondo,
autobiografias –, como há também nos mas você estará presente no meu
Estados Unidos um rico arquivo de julgamento por sedição?”, brinca
narrativas escritas por ex-escravizados ao ser indagado sobre o que o teria
e ex-escravizadas. Muitos desses motivado a escrever o livro.3 A outra
textos são comentados por Wilderson entrevistadora, desta vez uma mulher
no livro, que alude ainda à impor- negra (Jocelyn Burrell), reage à
tância decisiva da escrita híbrida mesma interrogação com a indagação
de Frantz Fanon, disparadora de “E hoje, conversando aqui, só entre
tantas obras posteriores. Contudo, nós, você quer respostas honestas,
em entrevista após a publicação deste não é? Não respostas da minha
Afropessimismo, Wilderson dirá que agência de relações públicas?”4
seu esforço por convencer a editora Burrell, entendendo o que estava
W. W. Norton a publicar seu livro em jogo, responde que ele está em
foi auxiliado pela existência prévia boas mãos, mantendo em destaque a
do livro Argonautas, de Maggie cena de interlocução ressaltada por
Nelson, ao qual pôde se referir na Wilderson. Nesse caso como no livro,
negociação para indicar que o gênero a aposta de Wilderson parece ser
de “autoteoria” já existia – e já havia que, em determinadas circunstâncias,
sido praticado, complementa dando para certo público, falar abertamente
risada, por uma mulher branca, o que sobre questões difíceis relacionadas
dava legitimidade e familiaridade
ao seu projeto.2 Antes de entrar nos
3 Frank B. Wilderson III, “Afropessimism”,
entrevistado por Susan Liebell, New Books
2 Frank B. Wilderson III, “To Address Network, 3 de jun. de 2020 .
Black Suffering is to Destroy the World”, 4 Frank B. Wilderson III, “Frank Wilderson
entrevistado por Siddhant Issar e James on Afropessimism”, entrevistado por
Padilioni, Always Already Podcast, Jocelyn Burrell, UCI Illuminations,
episódio 28, maio 2020 . 8 fev. 2021 .

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ao sofrimento gerado pela antine- céticos em relação a teorias tradi-
gritude pode trazer alívio e distensão, cionais de emancipação e desconfiem
se essa fala não tiver que diminuir a de macrorrelatos de progresso social
ira e a indignação provocadas pela (daí uma das fontes do pessimismo),
experiência de viver sob o signo da e embora sejam comuns no livro de
violência. Algo é desbloqueado com Wilderson as referências à neces-
a enunciação pública da raiva, algo sidade de acabar com o mundo, sendo
que o riso sinaliza e, a depender do indissociáveis e interdependentes
ouvinte, poderá também amenizar. mundo e antinegritude, o autor
As perguntas devolvidas às entre- insiste que não tem qualquer interesse
vistadoras nesses exemplos também especial em simplesmente criticar
chamam a atenção para a preocu- os movimentos sociais, inclusive
pação constante, presente no livro de os reformistas, pois neles ocorrem
diferentes maneiras, com as condições cálculos de outra ordem, cálculos
de possibilidade de suas propostas que são sempre difíceis de avaliar e
teórico-políticas. A consideração, equacionar, como quando se trata,
em público, de formas radicais de por exemplo, de organizar uma
transformação social, depende da mobilização pelo direito à moradia.
existência de um público concreto Por outro lado, e até para ser
disposto a pelo menos escutar a coerente com o reconhecimento
especulação. Wilderson apontará da especificidade de seu lugar de
várias vezes que sua reflexão surge de enunciação como professor, teórico e
uma abertura criada pelo movimento escritor, Wilderson se recusa a aceitar
Black Lives Matter, que definira como como limite para o pensamento aquilo
foco de sua atuação a denúncia da que se apresenta como senso comum,
relação persistente entre antinegritude exigindo de antemão a renúncia da
e morte. Ainda que as demandas feitas ousadia imaginativa e definindo como
pelo movimento não sejam idênticas ponto de partida aquilo que poderia
às encontradas na especulação teórica ser o ponto final de um exercício de
do livro, esta não existiria sem aquela, análise e negociação, inclusive após
sustenta Wilderson. Assim, embora considerações de ordem prática e
textos afropessimistas se mostrem política. Recusando a naturalização

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da conciliação, da moderação e do para si, como tarefa essencial,
gradualismo, sobretudo no caso da o fim da antinegritude (estão
especulação filosófica, reivindica que incluídos aí humanismo, marxismo,
a alusão à práxis e à concretude da feminismo...). Pois a sugestão não é,
política nas ruas não deve servir para afinal, que o racismo é uma realidade
circunscrever a ousadia do pensa- sublime, uma essência inamovível
mento e interromper gestos críticos que atravessa todos os tempos.
arriscados antes mesmo que eles A ideia é que ele é o fundamento
terminem de ser elaborados. de um paradigma histórico que não
Nesse sentido, por mais que se sustenta sem ele. Nesse sentido,
a referência ao “pessimismo” seja Afropessimismo não é o contrário de
incontornável, estando presente já no otimismo, nem seriam excludentes
nome que identifica a teoria, aquilo Afropessimismo e Afrofuturismo.5
que o Afropessimismo busca pensar Outro gênero que poderia ser
é extraordinariamente ambicioso, acrescentado aos já mencionados
uma interrogação crítica que só se para descrever a estrutura do livro
tornou possível após um esforço de é o do relato de uma conversão,
imaginação coletiva, envolvendo a que ocorre com a descoberta do
um grupo de pensadoras e pensa- Afropessimismo, essa lente cuja
dores em diálogo com diferentes diferença o livro tratará de delinear.
vertentes do pensamento crítico Num dos episódios referidos,
negro e com o ativismo político. uma conversa com um amigo
Em comum, entre essas correntes, palestino revela que para ele não
havia o desafio de pensar um mundo havia humilhação mais profunda do
sem a antinegritude, um mundo que que ser revistado por um soldado
não dependesse do racismo como israelense que fosse um judeu etíope.
elemento estruturante. Ao exigir Segundo Wilderson, nesse instante a
nada menos que uma mudança de
paradigma, o Afropessimismo define 5 Movimento estético que imagina, através
como insuficientemente exigentes, da ficção científica, da música, do cinema
etc., a sobrevivência de povos e culturas
imaginativas e críticas todas as da diáspora africana no futuro e rejeita a
associação entre negritude e arcaísmo e
correntes que se abstém de colocar sua projeção ao passado.

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terra cede, como se naquele momento metateoria que “interroga a lógica
se abrisse um abismo sob seus pés: tácita e presumida do marxismo,
do pós-colonialismo, da psicanálise
Eu me vi diante da descoberta
de que, no inconsciente coletivo, e do feminismo”, e o faz “num nível
os insurgentes palestinos têm mais mais alto de abstração” (pp. 23-24).
em comum com o Estado e com
A recusa da analogia entre o
a sociedade civil israelenses do
que com os negros. O que eles racismo antinegro e outras formas de
compartilham é um consenso, opressão – a misoginia, a exploração
em grande medida subconsciente, do trabalho, a heteronormatividade,
de que a negritude é um locus de
abjeção (p. 21). o racismo contra não negros,
a discriminação de imigrantes –
Antes disso, antes de ter se é apontada em várias leituras do
tornado afropessimista, Wilderson livro Afropessimismo como sua parte
acreditara que seu sofrimento era mais desoladora. A distinção parece
análogo ao dos palestinos. importante, no entanto, por permitir
Se antes Wilderson se via como destacar o custo das comparações,
“um humano degradado”, conclui alianças sociais e coalizões políticas,
depois que na verdade como a diluição das demandas especí-
ficas dos movimentos sociais negros e
era a contraparte da Humanidade.
A Humanidade olhava para mim a dificuldade de abordar a dimensão
quando estava insegura de si. do horror da violência antinegra.
Eu permitia que a Humanidade
Em movimento contrário, Wilderson
dissesse, com um suspiro de alívio
existencial: “Pelo menos não procurará estudar as diferenças entre
somos ele” (p. 22). as gramáticas dos sofrimentos de
diferentes grupos oprimidos e as
Por isso, por ocupar esse lugar particularidades das retóricas utili-
dentro e fora da humanidade, zadas para justificar cada forma de
como necessária, por contraste, violência. Não são idênticas, sugere
para a existência da humanidade, o autor, as ansiedades fóbicas da
a negritude se torna, mais do que antinegritude e as do antissemitismo,
uma aporia, uma meta-aporia, e da LGBTfobia, da misoginia e do
o Afropessimismo elabora uma colonialismo, e essas diferenças são

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importantes política e epistemo- cada dia quanto terá que produzir,
logicamente. Na relação colonial, preocupado com questões relacio-
por exemplo, é relevante que a nadas à exploração de seu trabalho,
motivação do conflito seja a disputa “o escravizado acorda de manhã
por um território, o que permite que pensando, O que estes humanos vão
se imagine a superação desse estado fazer com a minha carne?” (p. 340).
de coisas, numa inversão em que os É, escreve Wilderson, “uma dinâmica
colonizados não deixariam de ser de ansiedade [a hydraulics of anxiety]
fundamentalmente aquilo que já eram muito diferente da exploração e da
(palestinos, indianos, vietnamitas alienação”, levando a uma forma de
etc.). Não é o caso da escravidão, terror mais profunda do que aquela
cujo fim precisa ser a destruição da vivida pelo proletariado (p. 340).
categoria do Escravo. Nesse sentido, O questionamento da analo-
a escravidão é um passado traumático gização será crucial também para
que não tem como ser ressignificado; o passo seguinte, que é a elabo-
é uma dinâmica sem relação que ração da hipótese de que o conflito
não tem como levar à síntese entre fundamental da modernidade não
escravizado/a e escravizador/a. é a diferença sexual ou o confronto
Seria obsceno argumentar que algo entre as classes, em críticas diretas
do polo do escravizador deveria ao feminismo e ao marxismo, mas a
ser preservado numa superação tensão entre o Humano e o Escravo.
(dialética) da escravidão. É essa oposição que sustenta a palavra
Já no caso específico da oposição Humano, de modo que a humanidade
entre trabalhador e capitalista, só se torna legível por meio da
a  humanidade do primeiro não é distinção irreconciliável entre ela e a
negada durante o confronto. Já com negritude. Mais do que entrar numa
a escravização o que se perde não é “Olimpíada de opressões”, expressão
a posse da mais-valia, algo que uma sarcástica que costuma aparecer
transformação da sociedade poderia nesses debates e que é comentada
recuperar, mas uma ontologia, ou seja, por Wilderson, interessa entender a
a própria possibilidade de ser. Assim, diferença que faz pensar uma ou outra
enquanto o proletário se pergunta a situação como exemplar, e, portanto,

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como o paradigma a ser utilizado para lado haveria uma existência humana
a análise da sociedade toda. (Num plena. Significa, para Wilderson, algo
segundo momento, seria importante mais catastrófico, mas também poten-
refletir sobre a ausência da escravidão cialmente mais renovador: que não
como questão fundamental para boa haverá existência humana, porque já
parte do pensamento crítico europeu, não haverá humanos. (E, com tudo
esse arquivo que é a base de algumas o que já foi dito, resta claro que esse
de nossas tradições disciplinares.) fim do humano não seria algo a ser
Há consequências em cascata para lamentado.) Em outras palavras,
essas operações mentais que o livro recuperando uma construção sintática
realiza. Elas significam, por exemplo, que demonstra tanto a assombrosa
que já não é possível dizer algo como capacidade de síntese de Wilderson
“Um dia todos seremos considerados quanto sua ousadia intelectual,
humanos, sem distinção de raça, no imaginário da antinegritude,
gênero, classe ou sexualidade”; nem é o contrário de negro não é branco,
plausível postular como horizonte, mas humano (p. 272).6 Conclui-se,
reformista ou revolucionário, com isso, que, enquanto a destruição
o Humano, uma vez que nessa ideia de outras formas de opressão levaria à
já está presente, como contraponto, destruição de partes do mundo, o fim
o Escravo. A metateoria, aquilo que a da antinegritude seria a destruição de
teoria afropessimista diz a respeito do todo o mundo.
todo – em suma, que o mundo depende Na análise de Wilderson, outro
da violência racista –, leva necessa- elemento necessário para entender
riamente à interrogação do discurso a antinegritude é seu pertencimento
do melhoramento progressivo, à esfera do desejo e do prazer.
que encara como dispensável e Recuperando mais uma vez Orlando
acidental  e, portanto, como sacrifi- Patterson, além da obra do historiador
cável, um aspecto da sociedade que é David Eltis, o livro descreve uma
na verdade essencial e indispensável “economia libidinal” na qual não
(a antinegritude). Essa esperança existem formas de violência que sejam
é ilusória, pois se livrar da morte
6 Cf. também Wilderson, “To Address
social não significaria que do outro Black Suffering is to Destroy the World”.

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consideradas cruéis demais e não exclusivamente na economia, na qual
há explicações que dariam “sentido a escravidão seria um capítulo na
político ou econômico à violência história do capitalismo.
que posiciona e pune a negritude”
O que os marxistas fazem com
(p. 246). Não é que a violência e o a escravidão é tentar mostrar
racismo não possam trazer benesses como a violência está conectada à
produção, e isso significa que eles
(ganho financeiro etc.), mas que
não pensam de fato na violência da
violência e racismo continuam escravidão de forma abrangente.
mesmo quando já não interessam A violência da morte social (escra-
economicamente. A hipótese nesse vidão) é, na verdade, subtendida
à produção da saúde psíquica de
caso é que a economia política, todos aqueles que não são escravos,
entendida como um conjunto de algo que não pode ser literalmente
interesses materiais, não explica o que mercantilizado ou ponderado em
uma balança real (p. 254).
é próprio da violência antinegro, que,
além de uma tecnologia de controle
construída para garantir a supremacia O caráter excessivo da violência
política e econômica dos brancos, antinegra irá abalar até a lógica causal
é também uma fantasia. A violência da narração, interditando a possibi-
não se esgota em algum objetivo lidade de explicar a violência como
específico, como se fosse apenas um consequência de uma ação prévia,
meio para atingir uma meta; o gozo resposta a um ato (tirar um pente
está na própria violência. (Aqui é do bolso, falar alto demais, ficar em
mais difícil, a meu ver, sustentar que silêncio: qualquer coisa pode disparar
se trata de algo inteiramente distinto a violência).
das violências da misoginia e da Como se pode notar, boa parte das
heteronormatividade, que também inquietações de Wilderson poderia ser
não conhecem limites e também se pensada em diálogo com alguns dos
baseiam numa fantasia fóbica.) principais debates dentro da tradição
Retomando o fio de sua leitura do pensamento crítico negro, não só
crítica do marxismo, Wilderson nos Estados Unidos, mas também no
insistirá que a antinegritude revela Caribe e no Brasil. E entre estudiosos
as limitações de uma análise focada brasileiros já se veem avaliações das

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propostas do Afropessimismo, como da experiência norte-americana nas
em intervenções recentes de Osmundo descrições da negritude e da antine-
Pinho, Denise Ferreira da Silva, gritude, tratando-as como normativas
João Costa Vargas, Jaime Alves, e desconsiderando diferenças impor-
Alan Kardec Pereira, Kênia Freitas, tantes entre as histórias de povos da
José Messias e Jota Mombaça. diáspora africana; 4. a denúncia da
Eu chamaria a atenção, em particular, ausência de uma proposta política
para o livro Cativeiro: Antinegritude concreta. Quanto a esse último ponto,
e ancestralidade, no qual, em diálogo em debates, em textos críticos e em
com a bibliografia afropessimista, discussões em sala de aula sobre
Osmundo Pinho, concentrando-se o Afropessimismo, é comum que
na figura do ancestral e no espaço e apareça alguma versão da pergunta:
conceito de quilombo, argumenta que Mas o que você quer?
existem outras formas de negação da Como se viu, uma das respostas é:
escravidão que não envolvem uma pensar a escravidão em outro nível de
projeção ao futuro.7 No quilombo, abstração, elevando a antinegritude
afinal, o fim do mundo da escravidão ao lugar de paradigma. É a plantation,
já aconteceu. e não a fábrica, o cenário que deve
Além disso, é comum encontrar, ser visto como paradigmático para a
em resposta a textos ligados ao compreensão da modernidade. Além
Afropessimismo, quatro objeções disso, demanda-se um tempo maior
principais: 1. a alegação de que não para o reconhecimento da dor e do
dão ênfase suficiente aos modos de sofrimento daqueles tocados pelas
resistência e resiliência demons- histórias da escravidão, em vez da
trados por aqueles que combateram passagem imediata para a afirmação
e sobreviveram à escravidão; e a resolução. E, finalmente, diante da
2. a crítica à falta de atenção ao insistência – mas, afinal, qual é a sua
período pré-escravidão, em particular proposta? –, Wilderson responde que,
à história africana; 3.  a  centralidade se querem uma proposta, resumida
em poucas palavras, seria esta: o que
7 Osmundo Pinho, Cativeiro: Antinegritude queremos é o fim do mundo; o que
e ancestralidade, Salvador: Ed. Segundo
Selo, 2021.
é preciso é acabar com o mundo tal

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como ele existe. Assim, Wilderson começarem a queimar também as
poderá responder a uma pergunta plantations da América do Norte.
sobre a brutalidade policial contra Nesses momentos, é comum que
pessoas negras dizendo que não surja como réplica a observação
deseja a diminuição da violência de que aí seria ir longe demais.
policial; deseja o fim da polícia. Entretanto, se for assim, o problema
Ou, contrapondo-se a Henry Louis não está no Afropessimismo, mas no
Gates Jr., que dissera que o erro dos desejo de conservar o mundo como
revolucionários haitianos havia sido ele é, e nesse caso quem teria algo
terem queimado as plantações da a explicar seria quem não deseja
ilha, afirmará que, se  os haitianos criar outro mundo – um mundo que
cometeram algum erro, foi não não dependa do racismo e não esteja
terem dado um salto à Florida, para fundamentado na antinegritude.

Marcos Natali
Universidade de São Paulo

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