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UNIVERSIDADE DO ESTADO DO RIO DE JANEIRO

IFCH- Instituto de Filosofia e Ciências Humanas


Departamento de História
Prof. Dra. Renata Figueiredo Moraes – Seminário Especial em Ensino de
História II

André Luis da Silva Pereira Carneiro

Resenha do artigo “Negro Midiático: construção e desconstrução do


afro-brasileiro na mídia impressa” de Ricardo Alexino Ferreira (2006)

Rio de Janeiro

2020
Ricardo Alexino Ferreira é professor da Escola de Comunicações e Artes da
Universidade de São Paulo (USP). Doutor em Ciências da Comunicação pela USP
com a pesquisa ‘Olhares negros: Estudo da percepção crítica de
afro-descendentes sobre a imprensa e outros meios de comunicação’, 2001.
Possui título de Mestre em Ciências da Comunicação com a pesquisa “A
representação do negro em jornais no centenário da abolição da escravatura no
Brasi”l,1993. Graduou-se em Comunicação Social e foi professor efetivo da
Universidade Estadual Paulista (Unesp). Transferiu-se para a USP e foi diretor da
Rádio Universitária Unesp (Rádio Unesp-FM), onde abriu espaço para a
divulgação e democratização do conhecimento científico. As duas pesquisas
citadas resultaram no artigo “Negro Midiático: construção e desconstrução do
afro-brasileiro na mídia impressa” públicado na Revista USP no ano de 2006.
Neste artigo o autor argumenta que com o colapso da URSS e o consequente fim
da Guerra Fria, questões étnicas e de gênero ganharam centralidade nas
discussões. Afrodescendentes, homossexuais, idosos, crianças, adolescentes e
outras segmentações demográficas entraram na pauta das discussões públicas e
forçaram “os profissionais de imprensa a uma mudança de postura” (p. 81). Em
primeiro lugar levantaram-se questões acerca do conteúdo dessas notícias;
especialmente as que envolviam conflitos geopolíticos como a Guerra dos Balcãs,
o Conflito Israel-Palestina e mais recentemente os levantes no norte da África e a
Guerra Cívil na Síria. Ferreira ressalta que muitas vezes essas notícias “passam
pelo filtro das agências de notícias, que muitas vezes estão sediadas em países
que até patrocinam tais conflitos. Também nota que conflitos europeus ganham
por parte da imprensa uma vasta contextualização histórica; ao passo que o
mesmo não acontecia com conflitos em outros continentes. Nesse caso limitam-se
a simplificação em adjetivos como ‘radicais’, ‘violentos’ e até mesmo ‘tribais’
(p.82). Não ocorre ao autor que esse não é exatamente uma ruptura com a Guerra
Fria, já que tais manipulações da opinião pública sempre ocorreram com exemplos
notáveis como a Revolução Cubana, a Guerra do Vietnã e outros que persistem
até hoje como as notícias falsas que constantemente vilipendiam a imagem da
República Popular da Coréia.

Em todo caso houve uma transformação na imprensa brasileira, reflexo do


processo de democratização. O ano de 1988 marca não só a promulgação da
nova Constituição Nacional mas também o centenário da Lei Áurea. Segundo o
autor essa intersecção histórica provocou uma grande “dança dos termos” nos
manuais de redação da imprensa brasileira (p.83). Era a aurora do ‘politicamente
correto’. Em um campo notadamente idealista (por muitas vezes ideológico) como
o jornalismo, Ricardo Ferreira relata que esses manuais eram muitas vezes
criticados “por se assemelharem a camisa-de-força”. O autor lista uma série de
orientações que para ser bem sincero, não passam de normas que fazem da
imprensa uma mídia um pouco menos tóxica. No entanto sua incorporação gerou
um debate na sociedade ao longo dos anos 1990 e com o tempo formou-se uma
antítese que o autor resume em 3 críticas expostas no trabalho do sociólogo Luiz
Eduardo Soares. A primeira seria a percepção de que se tratava do histerismo
estadunidense “que castra o humor, mata a espontaneidade. O segundo de que
seria uma “manifestação de intolerância puritana; nota-se que o texto de 1997 esta
inserido no contexto da ascensão evangélica no Brasil. E o terceiro, que persistiu
por mais tempo, entendia que o politicamente correto tratava-se de “uma
pretensão equivocada e perigosa, no limite totalitária, de definir uma gramática
unívoca” (p. 84).

Essa terceira é justamente a percepção dos signatários da “Carta Sobre Justiça e


Debate Aberto” (A Letter on Justice and Open Debate) publicada na Harper's
Magazine em julho de 2020. Esse documento nasce na esteira do movimento ‘Me
too’ e da ascensão de protestos contra a violência policial estadunidenses sob o
slogan ‘Black Lives Matter’. Seu conteúdo pode ser grosseiramente resumido
como um “manifesto contra a cultura do cancelamento”. Entre seus signatários o
notório desacertado Francis Fukuyama, a notória transfóbica J. K Rowling e
ninguém menos que Noam Chomsky. Em seu famoso trabalho ‘Fabricação do
Consenso’ (1992), Chomsky nota que propriedade privada dos meios de
comunicação, financiamento publicitário, falsificação institucional da opinião
técnica, invenção de inimigos públicos e destruição da reputação alheia
constituem os 5 filtros pelos quais os conglomerados de mídia manipulam a
opinião pública na direção dos seus interesses próprios. Talvez esse último filtro
teria motivado Chomsky à assinar a carta. No entanto o anarquista estadunidense
e youtuber baseado no Vietnã, Hemerican Johnson1 notou que ao contrário da
mídia que Chomsky criticava em 1992, a “cultura do cancelamento” não é a ação
de uma instituição mas a manifestação de inúmeros indivíduos minimamente
organizados pela Internet. Na visão de Johnson essa seria uma brecha
encontrada nas contradições dos novos meios de comunicação e explorada por
pessoas que colocam-se na contracorrente da hegemonia conservadora.

Voltando ao Brasil, vimos recentemente o “cancelamento” de Lilia Schwarcz.


Diante de uma ponderação extremamente pertinente da Lília, historiadora e
antropóloga, a repercussão negativa fez com que a Lília, dona da editora
Companhia das Letras, se desculpasse em público. Por um lado pode-se enxergar
uma juventude organizada sob a bandeira do combate ao racismo recuando a
posição de um figurão acadêmico. Por outro, podemos ver fãs de uma empresária
multimilionária estadunidense submeteram a opinião de uma
empresária/intelectual latinoamericana. Talvez o caso não seria tão complexo não
fosse o tipo de intelectual que é Lilia Schwarcz. Não se trata de uma figura
descompromissada com a realidade brasileira, muito pelo contrário. Seu trabalho é

1
https://www.youtube.com/watch?v=OK2HNvh6zEI&t=2s&ab_channel=NonCompete
especialmente caro para a compreensão dessa realidade, especialmente a
escravidão, o racismo e suas consequências. Não obstante, tais táticas tendem a
funcionar contra aliados de causa por conta do alto teor moral das acusações. E
por esse mesmo motivo é totalmente inofensiva contra figuras que buscam
destaque na sociedade justamente por manifestarem seus preconceitos. Se em
2006 Ricardo Ferreira via na incompreensão e má vontade das elites o grande
inimigo da qualificação da linguagem (politicamente correta) e no descompasso
com a linguagem coloquial do povo brasileiro seu grande desafio (p. 84, p.85 e
p.87), hoje podemos afirmar que há um presidente que entre outros fatores
utilizou-se da imagem de ‘politicamente incorreto’ para garantir empatia popular e
alçar-se ao poder.

Ferreira sugeriu a inserção “nos currículos dos cursos de Comunicação as


disciplinas que especializem os alunos em temas que tratem dos grupos
minoritários” (p.91). Passados 14 anos podemos dizer que o conselho do autor foi
acatado – se não pelas instituições de ensino – pelo esforço engajado de diversos
indivíduos e do combate militante de movimentos sociais. O produto desse esforço
já se reflete no jornalismo, especialmente no segmento esportivo, onde nos
últimos anos alguns paradigmas foram superados no que se refere a
representatividade das minorias sociais. No entanto esse processo se estende por
toda a sociedade, o que significa que por todo o espectro político gestos de apelo
à questão representativa tem sido manifestados. Isso implica em candidatos
conservadores buscando a chancela de indivíduos inscritos em alguma minoria
social enquanto comprometem-se com agendas escandalosamente reacionárias.
Ou ainda esses próprios indivíduos, alçados à cargos públicos, com a agenda
explicitamente contrária aos interesses da minoria social a qual pertencem; como
por exemplo Sérgio Camargo, presidente da Fundação Palmares. A questão
fundamental que preocupa o autor – a linguagem – por mais carregada que esteja
de crenças, valores, modelos comportamentais, não é nada além de um reflexo
superestrutural. A forma, a técnica, pode ser apropriada por qualquer estrutura
social e instrumentalizada para qualquer fim. Como as ideias dominantes de um
tempo são as ideias da classe dominante, estas podem facilmente revestir-se da
forma que melhor atenda seus interesses pontuais. Por isso a Globo do Rio de
Janeiro defende uma agenda econômica que arranca do orçamento da União os
juros para pagar as dívidas de seus anunciantes no Jornal Nacional mas sem
nenhum pudor comove-se com o sofrimento popular nas portas dos hospitais
públicos em seu jornal local. Por isso, também, não é de se espantar que diante
do povo da cidade de São Paulo, os únicos vereadores negros chancelados pelo
voto sejam do Patriota e do Republicanos e não do PT ou do PSOL. Por isso
talvez, mais do que a correção da linguagem, a melhor ação política agora seja
reencontrar na luta o que separa o joio do trigo, demagogia da honestidade, direita
da esquerda, exploradores dos explorados.

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