Você está na página 1de 16

Sociodiversidade,

Responsabilidade e
Comprometimento Social
Sociodiversidade e Formação
Cultural dos Povos
Sumário
Desenvolvimento do material Sociodiversidade e Formação Cultural dos Povos
Rosane Cristina
Para Início de Conversa .................................................................................... 3
Objetivo .......................................................................................................... 3
1ª Edição 1. Pluralismo Étnico: Credo e Etnia ............................................................. 4
Copyright © 2021, Afya.
2. Diversidade de Gênero e Sexualidade ................................................... 8
Nenhuma parte deste material poderá ser reproduzida,
transmitida e gravada, por qualquer meio eletrônico, 3. Cidadania .......................................................................................................... 11
mecânico, por fotocópia e outros, sem a prévia
autorização, por escrito, da Afya. Referências .......................................................................................................... 15
Para Início de Conversa Objetivo
Neste primeiro capítulo, nosso principal objetivo é refletir sobre questões Compreender o conceito de Sociodiversidade inerente à formação da
fundamentais para as relações sociais e o cotidiano. Essas questões identidade cultural dos povos, respeitando e convivendo com as
dizem respeito à discussão sobre o conceito de sociodiversidade e os diversidades culturais e comportamentais – etnias, religiosidade, gênero
aspectos que envolvem a formação cultural dos povos. e orientação sexual.

A diversidade sob a qual a sociedade está alicerçada baseia-se no estudo


das várias etnias que compõem os territórios, a pluralidade religiosa, as
relações de gênero e a sexualidade, tanto do ponto de vista em respeito
às escolhas individuais e à manutenção dos direitos, como ao exercício
pleno da cidadania. Essas temáticas são fundamentais para a construção
de uma conduta profissional consolidada nos princípios da dignidade
humana, da ética e do respeito mútuo.

Sociodiversidade, Responsabilidade e Comprometimento Social 3


1. Pluralismo Étnico: Credo e Etnia A chegada do colonizador português no território brasileiro, no início
do século XVI, inaugurou um processo que marcou profundamente a
A conceituação de sociodiversidade diz respeito às diferentes formação do povo brasileiro. Darcy Ribeiro, no livro O povo brasileiro
manifestações culturais, modos de vida, relação do – a formação e o sentido do Brasil, apresentou uma reflexão sobre a
homem com a natureza e o multiculturalismo. Os formação do povo brasileiro a partir do período colonial, apontando
estudos sobre as questões étnico-raciais fazem os aspectos que permearam a construção da América Portuguesa. A
parte da multiplicidade de temas inseridos implantação do regime escravocrata representou, de acordo com Ribeiro
nas discussões acerca da sociodiversidade. (1995), dois momentos cruciais: o primeiro momento, com a tentativa
(frustrada) de tornar a população indígena cativa e escravizada; e
No Brasil, as investigações sobre
o segundo momento, com a inserção do negro escravizado para a
as questões raciais e indígenas são
fundamentais para o desenvolvimento de realização das atividades agrícolas.
olhares mais críticos acerca dos caminhos Ao longo dos séculos XVI, XVII, XVIII e meados do XIX, a base do sistema
sociais, políticos e econômicos sob os colonial era: terra, escravidão e Igreja. Portanto, a economia agrária,
quais a sociedade brasileira alicerça seus baseada na mão de obra escrava, com o aval da Igreja Católica, compôs as
valores. Em geral, podemos verificar, nos características de sociabilidade na colônia portuguesa. Nesse contexto,
meios midiáticos, uma série de medidas, políticas
os negros escravizados eram tratados como mercadorias, ou seja, não
públicas e conflitos em torno da população negra e
exerciam ou possuíam direitos. Essa situação perdurou até a segunda
indígena. Esses conflitos referem-se aos inúmeros casos de
metade do século XIX, quando ocorreu a inserção do imigrante europeu
racismo e ao descumprimento de uma série de prerrogativas e
em substituição gradual do trabalho escravo pelo trabalho assalariado.
de garantias de direitos destinados a essas populações.

Nesse sentido, como surge a questão racial no Brasil? Quais são as Em 1888, no ato da assinatura da Lei Áurea decretando o fim da
bases históricas? Qual é a importância da compreensão das relações escravidão no Brasil, a sociedade enfrentava um novo dilema: por um
étnico-raciais em nosso país? Para responder a essas indagações, é lado, a necessidade do trabalho assalariado para responder às diretrizes
importante fazermos uma contextualização. impostas, especialmente, pela Inglaterra; por outro lado, a ausência de

Sociodiversidade, Responsabilidade e Comprometimento Social 4


suporte por parte do Estado em relação à massa de ex-escravizados. de evolução das espécies e, entre outras coisas, atribuiu à espécie
A maior parte da população negra deixou o meio rural em busca de humana etapas de desenvolvimento até chegar ao estágio em que se
oportunidades nos centros urbanos, mas a precariedade estrutural encontrava: o homo erectus. O intelectual do século XIX Herbert Spencer
urbana, política e social acirrou ainda mais as desigualdades sociais. (1820-1903), ao tentar aplicar essa teoria à dinâmica da sociedade,
Em condições precárias de trabalho e de sobrevivência, o negro liberto segmentando entre sociedades primitivas e civilizadas, contribuiu para
continuou enfrentando uma situação de miserabilidade, racismo e com o chamado darwinismo social, que gerou inúmeros casos de conflitos
pouco ou nenhum acesso aos bancos escolares. sociais, entre os quais podemos destacar o imperialismo na África,
iniciado em meados do século XIX, que, além dos problemas de ordem
É importante ressaltar que o etnocentrismo europeu foi o principal
econômica e política, gerou o Apartheid.
alicerce da estrutura implantada nas respectivas colônias. O
etnocentrismo é o ato de julgar outras culturas, tendo como base a
própria cultura; dessa forma, as sociedades que estejam fora dos padrões
assimilados são tratadas como inferiores. Nesse sentido, o etnocentrismo O Apartheid foi um regime de segregação racial, implantado nos
é o principal condutor de comportamentos preconceituosos, intolerantes países do continente africano entre os anos de 1948 e 1990, sendo o
e que, por vezes, acirram a violência em decorrência do racismo responsável por uma série de assassinatos e perseguições políticas, entre
(MICHALISZYN, 2014). os quais a prisão de Nelson Mandela teve grande repercussão. A respeito
desse tema, fica como indicação o filme Um grito de liberdade, de 1987,
Para o colonizador europeu, o continente africano e as américas eram dirigido por Richard Attenborough.
considerados lugares atrasados, com uma população que vivia de
modo primitivo. Até o fim do século XIX, as teorias que determinavam
a supremacia europeia na condição de civilizados, em detrimento das No século XX, especificamente a partir dos anos 1940 e 1950, a teoria
sociedades africanas e indígenas como “primitivas”, foram fundamentais antropológica conhecida como relativismo cultural criticou duramente
para o acirramento das desigualdades entre os povos. Entre as teorias o etnocentrismo, argumentando que não existem sociedades civilizadas
mais eficazes, destacou-se o Darwinismo Social, no século XIX. Charles em detrimento das chamadas primitivas ou culturas mais desenvolvidas
Darwin, biólogo do século XIX, constatou cientificamente o processo do que outra. O relativismo cultural defende a existência de culturas

Sociodiversidade, Responsabilidade e Comprometimento Social 5


no plural, ou seja, não há uma cultura melhor do que a outra, pois a Nas últimas décadas, os casos de intolerância
cultura está presente em todas as sociedades. religiosa, mais especificamente os que
são direcionados às religiões de matrizes
É inegável o papel do negro e indígenas na sociedade brasileira, africanas, ganharam repercussão. Em
especialmente nas dimensões culturais, linguísticas e religiosas. geral, os conflitos que se configuraram
Temos inúmeras manifestações originárias de matrizes africanas, tiveram como motivação a dificuldade em
como na música, na culinária e na religiosidade. Na música popular lidar com as diferenças, especialmente no
brasileira, entre as quais destacam-se o maracatu e o contexto dos estados multiculturais, ou seja,
samba, e, também, na dança (a capoeira é um territórios que abrigam várias manifestações de
bom exemplo), pode-se observar as raízes culturas (na mesma cidade, região ou país). Assim,
na africanidade. Na religiosidade, a os comportamentos que fundamentam preconceitos,
principal manifestação é o Candomblé, estigmas, e consequentemente, induzem a atos violentos tornaram-
cuja origem está no sincretismo entre se objetos de inúmeras pesquisas. Com os grupos estigmatizados,
os cultos africanos e a necessidade que têm ressaltadas características, consideradas negativas por outros
de se adequar ao catolicismo, uma grupos que compõem a sociedade, bem como o preconceito baseado
na incompreensão ou desconhecimento de determinada manifestação
vez que os rituais típicos das regiões
étnica e cultural, são os principais alvos da intolerância (OLIVEIRA, 2007).
de onde os negros escravizados
eram originários não eram aceitos Nesse sentido, o reconhecimento e a liberdade religiosa fazem parte dos
no Brasil. Assim, é comum observar processos culturais de formação da sociedade; não se trata de somente
a correspondência entre os santos “tolerar” as manifestações religiosas, uma vez que tal atitude significaria
católicos e os orixás, como é o caso de o ato de “suportar” apesar de não concordar. No caso das religiões de
São Sebastião - Oxossi, Santa Bárbara - Iansã, matrizes africanas, a “tolerância” necessariamente não constitui respeito
São Jorge - Ogun, Nossa Senhora da Conceição - aos ritos e características dessas religiões. Assim, a inclusão do tema
Oxum, entre outros. relações étnico-raciais nos currículos escolares, discutindo a história e a

Sociodiversidade, Responsabilidade e Comprometimento Social 6


cultura afrobrasileira e indígena, tem como objetivo refletir sobre a elementos culturais, bem como a questão da demarcação injusta de
diversidade cultural e identitária dos povos. O resultado, espera-se, é territórios indígenas; além disso, são de difícil adequação e entendimento
construir uma sociedade mais justa e respeitosa. entre as lideranças indígenas e o poder estatal brasileiro. Estima-
se que no período de chegada do colonizador português, no início do
Na linguagem, a influência do africano na construção da língua
século XVI, mais de 4 milhões de indígenas viviam no Brasil. Ao longo
portuguesa é visível no uso dos diminutivos, como no prefixo ca-, que
do tempo, inúmeras etnias indígenas foram extintas ou diminuíram
significa pequeno); como exemplo podemos citar as palavras
consideravelmente sua população, por meio da proliferação
“camundongo” e “cachimbo”. Um estudo interessante
de doenças (especialmente com o contato com o “homem
sobre a língua portuguesa e o papel dos indígenas
branco”) e massacres promovidos pelo colonizador.
e africanos nesse processo foi elaborado por
Outro fator são os conflitos travados com o Estado e
Guerreiro (2015), chamando a atenção para os
produtores rurais.
elementos históricos e as mudanças sofridas na
língua a partir da inserção do negro africano De acordo com os dados do último censo do IBGE
na sociedade brasileira. Nesse estudo, a autora (Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística),
também aborda a importância das línguas e atualmente, existem apenas aproximadamente
culturas indígenas para a sociedade brasileira, 900 mil indígenas no Brasil, compostos por 305
destacando o folclore e as lendas mais etnias e com 274 idiomas diferentes, e 57% vivem
conhecidas, como o Saci-Pererê e o Curupira em terras demarcadas. Muitos vivem em situação de
(nomes originários do Tupi-Guarani). pobreza ou em constantes conflitos pelo direito às
terras demarcadas.
Entretanto, além dos aspectos culturais, linguísticos
e religiosos que fazem parte do processo de formação Um importante passo sobre a sociodiversidade indígena
do povo brasileiro, na atualidade, as questões que envolvem e a legislação em torno dessa questão é a Lei 11.645/2008, que
o preconceito racial, a luta por equidade e justiça social estão assegura o acesso, nos currículos escolares, ao ensino de História e
em voga. As populações indígenas têm dificuldade para manter seus Cultura Afro-Brasileiras e Indígenas.

Sociodiversidade, Responsabilidade e Comprometimento Social 7


No Brasil, uma parcela expressiva da população negra não está A violência é um fator importante para ser debatido. De acordo com o
devidamente contemplada no mercado de trabalho, os índices de violência Atlas da Violência (2017), a cada 100 pessoas vítimas de homicídios no
motivados por preconceito são visíveis. De acordo com a Organização Brasil, 71 são negras, sendo os jovens as maiores vítimas. Ao analisar os
Mundial das Nações Unidas, a população negra é a que mais sofre com a dados de violência, com base no gênero e na etnia, os resultados também
desigualdade social e a violência. No mercado de trabalho, a dificuldade das são alarmantes. O número de mulheres negras vítimas de feminicídio
pessoas negras ou pardas terem progressão de cargos e salários está mais (homicídio cuja motivação é o fato da vítima ser do gênero feminino) é
acentuada. De acordo com estudo intitulado Perfil Social, Racial e de Gênero maior do que o das mulheres não negras. Aproximadamente, 65% das
das 500 maiores empresas do Brasil e suas ações afirmativas, realizado mulheres vítimas de assassinato no Brasil, durante o ano de 2016, eram
pelo Instituto Ethos em 2016, apenas 6,3% de pessoas negras estão em negras, configurando a problemática que envolve a desigualdade de
cargos de gerência, somente 4,7% ocupam cargos executivos. As mulheres gênero e a questão racial.
negras estão em condições ainda mais desfavoráveis se comparadas aos
Nesse sentido, os estudos sobre as relações de gênero e sexualidade
homens, pois apenas 1,6% exercem cargos de gerência, e 0,4% estão nos
são, também, de suma importância para compreendermos a diversidade
quadros executivos. Mas, quando os cargos são correspondentes ao início
que permeia a sociedade do ponto de vista das identidades de gênero.
da carreira, são 57,5% para aprendizes, e 58,2% para trainees.
Também é importante refletirmos sobre os conflitos oriundos de
interpretações equivocadas sobre essas temáticas, os problemas
enfrentados no mercado de trabalho e a importância das políticas
públicas voltadas para as questões de gênero e sexualidade.

2. Diversidade de Gênero e Sexualidade


Além dos estudos sobre as questões étnico-racial e indígena, as relações
de gênero e sexualidade também fazem parte da sociodiversidade. Os
primeiros estudos sobre gênero, em geral, partiam das discussões sobre
as mulheres, desde as análises acerca das lutas políticas inauguradas

Sociodiversidade, Responsabilidade e Comprometimento Social 8


com o movimento feminista no século XIX e início do século XX, até as mulher, torna-se”, Beauvoir promove uma
novas configurações em relação a gênero e sexualidade. reflexão pautada não somente no aspecto
da determinação biológica do sexo que
No século XIX, os movimentos de mulheres deram suporte à construção inscreve-se no ato do nascimento
do feminismo. Uma das conquistas advindas desses movimentos, no (homem e mulher / macho e fêmea),
início do século XX, foi o direito ao voto. O termo “feminismo” diz respeito mas, sim, no caráter identitário e
à dimensão política – cuja a principal característica é a defesa por cultural que moldam a socialização e
igualdade entre os sexos –, bem como na ideia radical de que as mulheres educação dos sujeitos a partir do seu
são pessoas, e, portanto, devem ser vistas com direitos como todos os sexo. Por exemplo: ao nascer, aparece
membros da sociedade. O feminismo não está pautado na dicotomia ou determinado o que é de “menino”
oposição em relação ao masculino, conforme observa-se no senso e o que é de “menina”, configurando
comum. É importante ressaltar que o feminismo não diz respeito ao uso categoricamente qual o tipo de
do termo “mulher”, conforme demonstrou Judith Butler, no livro Problemas comportamento que deve ser assimilado
de Gênero, uma vez que a sociedade tende a determinar o que é ser pelos indivíduos para que respondam às
mulher nos âmbitos cultural, histórico e psicológico, produzindo, assim, expectativas e imposições sociais. Nesse sentido, a
inúmeros olhares sobre o feminino e o que é ser “mulher”. Esses olhares, supremacia masculina, em detrimento da fragilidade feminina, seria
construídos a partir da ideia e naturalização da cultura machista, tende a um elemento a ser discutido pelas intelectuais feministas.
alocar as mulheres na subalternidade em relação ao masculino. Um dos
Dos anos 1940 até as décadas de 1970 e 1980, a maioria dos trabalhos
resultados é a violência contra mulheres ou qualquer pessoa que se
que tinham como foco a questão do gênero chamava a atenção para os
considere feminina (como as mulheres trans).
problemas em torno da formação histórica baseada no patriarcalismo (no
Um dos estudos que marcaram as análises sobre feminismo, gênero poder político-social exercido especialmente por homens), que gerava
e sexualidade foi o Segundo Sexo, de autoria de Simone de Beauvoir, inúmeros conflitos e violência contra as mulheres. O resultado dessas
nos anos 1940. Nesse livro, a autora abordou como a sociedade reflexões foram a criação de políticas públicas de proteção às mulheres,
construiu seus pressupostos de desigualdade entre os gêneros, bem como a Delegacia de Atendimento à Mulher (DEAMs), criada nos anos
como a subalternização da mulher. Ao afirmar que “ninguém nasce 1980, a Lei Maria da Penha, em 2006 e a Lei do Feminicídio, em 2015.

Sociodiversidade, Responsabilidade e Comprometimento Social 9


Entretanto, do final dos anos 1980 em diante, as pesquisas sobre biológico com que nasceram e, por esse motivo, decidem pela mudança
gênero incluíram outras temáticas de igual importância, chamadas de de sexo, por meio de cirurgias e acompanhamento psicológico durante
identidades de gênero. Os estudos sobre identidades de gênero estão o processo. Já a pessoa travesti é aquela que também não se identifica
para além das análises baseadas na “heteronormatividade”, ou seja, a com o corpo biológico que nasceu, usa roupas e possui comportamentos
ideia preconceituosa de que somente a heterosexualidade seria a de pessoas do sexo oposto, mas não fazem a cirurgia de mudança de
única a ser aceita pela sociedade e, portanto, qualquer outra orientação sexo. Em geral, os indivíduos de orientação sexual Trans estão mais
sexual estaria na marginalidade e sujeita a críticas, discriminação e vulneráveis, pois a não aceitação de sua condição por parte dos familiares,
repúdio. Essa concepção de orientação sexual, ao ignorar as demais o preconceito exacerbado nos espaços escolares e a dificuldade em se
orientações advindas da diversidade sexual, é um dos motivadores de inserir no mercado de trabalho são os principais fatores que colocam
conflitos e violências sofridas por sujeitos que não se enquadram no essa população em risco.
comportamento heteronormativo.
As pessoas Intersex são aquelas que, ao nascer, constatam a existência
Os dados divulgados anualmente pela dos dois sexos, chamadas de “hermafroditas”; o Intersex pode nascer
ONG GGB (Grupo Gay da Bahia) com aparência biologicamente feminina, mas possuir predominância
revelam o crescimento da violência anatômica masculina e vice-versa. A percepção de que a pessoa é
e dos assassinatos sofridos pela Intersex nem sempre é de fácil constatação e, em alguns casos, por
população LGBTTI (Lésbicas, exemplo, a descoberta pode vir em decorrência de alguma cirurgia ou
Gays, Bissexuais, Transgêneros, na infertilidade, pois, ao fazer os procedimentos e exames médicos para
Travestis e Interssexuais): descobrir os motivos da impossibilidade de engravidar, pode-se verificar
uma das constatações é a que, internamente, os órgãos correspondem ao sexo masculino.
de que a maior parte das
vítimas de homicídios são O gênero não é definido somente nos elementos biológicos do indivíduo,
pessoas Trans (Transgênero mas também pelas dimensões sociais, culturais e pela orientação
e Travestis). As pessoas sexual. Assim, a identidade de gênero é um composto de construções
transgênero são aquelas que sociais, culturais e escolhas individuais com as quais o sujeito se
não se identificam com o sexo identifica. Por esse motivo, embora o sujeito pertença biologicamente

Sociodiversidade, Responsabilidade e Comprometimento Social 10


ao sexo masculino ou feminino, ao não se sentir confortável com essa Ultimamente, é comum ouvirmos a expressão “ideologia de gênero”
“determinação”, pode assumir identitariamente outra configuração. para caracterizar negativamente as questões de gênero, argumentando
Nesse ponto, é importante salientar que a escolha do indivíduo por que tal “ideologia” é nociva em relação ao processo de socialização da
outra orientação sexual diferente do seu sexo biológico não configura criança. Entretanto, a “ideologia de gênero”, conceitualmente, não existe,
nenhum tipo de problema de ordem mental ou comportamento uma vez que os sujeitos não têm uma “ideia” sobre seu gênero, mas,
desviante e pervertido, mas somente como identificam seus corpos a sim, uma identidade de gênero. Em geral, a “ideologia de gênero” é uma
partir da dimensão psicológica. expressão utilizada superficialmente, de acordo com dogmas religiosos
As múltiplas construções sobre gênero podem ser observadas nos e contrários a qualquer manifestação de orientação sexual que não se
movimentos LGBTTI. Em geral, esses movimentos têm, na pauta, a enquadre na heteronormatividade.
institucionalização de políticas públicas, o reconhecimento do ponto de
A compreensão em torno das relações étnico-raciais, de gênero e
vista do exercício pleno da cidadania, o reconhecimento de direitos, entre
outros. O Ministério Público lançou, em 2017, a Cartilha LGBT, apresentando sexualidade, além de chamar a atenção para a importância em
os conceitos, os direitos LGBT, a legislação e os órgãos de defesa e direitos relação às condutas e práticas éticas na sociedade, também são
dessa população. Nesse documento, a sociedade tem acesso aos principais questões que perpassam pela necessidade de pensar o exercício
pontos da legislação, às políticas públicas e à defesa dos direitos. pleno da cidadania e a busca e preservação dos direitos individuais,
conforme veremos a seguir.

A Cartilha LGBT é um documento importante enquanto referencial sobre


a questão LGBT no Brasil. Nessa publicação, a sociedade tem pleno acesso 3. Cidadania
às determinações legais, bem como o direcionamento que a justiça
institucionalizou sobre a inclusão, respeito e exercício de liberdade por O termo “cidadania” é amplamente utilizado no cotidiano da sociedade.
parte desses grupos. Entretanto, do ponto de vista conceitual, pode-se dizer que cidadania
http://www.mpf.mp.br/atuacao-tematica/pfdc/midiateca/nossas- significa condições para o exercício de direitos por parte do cidadão,
publicacoes/o-ministerio-publico-e-os-direitos-de-lgbt-2017) ou seja, a garantia do direito do cidadão remete, diretamente, ao ato
do exercício de cidadania. Em relação à concepção jurídica do uso

Sociodiversidade, Responsabilidade e Comprometimento Social 11


do termo, está vinculado ao fato de que o cidadão exerce cidadania em 17 artigos, dentre eles: a liberdade individual e a igualdade de
quando usufrui de seus direitos políticos. Para a sociologia, o uso direitos; o direito à propriedade, a segurança e o combate à opressão;
do termo é mais abrangente, pois não basta ter direitos políticos o respeito aos direitos de cada homem; o direito ao exercício da
assegurados; é fundamental que o sujeito tenha garantias de seus opinião e liberdade religiosa etc.
direitos civis e sociais. No Brasil, um dos entraves para que o cidadão
Pouco mais de 100 anos depois, já no século XX, em 1948, foi
exerça plenamente sua cidadania está no desconhecimento dos
idealizada a Declaração Universal dos Direitos Humanos. Nela, estão
direitos sociais e civis que estão garantidos na Constituição de 1988,
também conhecida como “constituição cidadã”. reafirmados os direitos civis, salientando a importância da liberdade,
justiça e paz. No artigo 2, chamamos a atenção para a redação que, de
maneira simples, salienta a importância da preservação dos direitos:

Todos os seres humanos podem invocar os direitos e as liberdades


proclamados na presente Declaração, sem distinção alguma,
nomeadamente de raça, de cor, de sexo, de língua, de religião, de
opinião política ou outra, de fortuna, de nascimento ou de qualquer
outra situação. Além disso, não será feita nenhuma distinção fundada
no estatuto político, jurídico ou internacional do país ou do território
da naturalidade da pessoa, seja esse país ou território independente,
sob tutela, autônomo ou sujeito a alguma limitação de soberania.

Ambas as declarações apontam para a questão da manutenção


Historicamente, a cidadania como garantia de direitos foi instituída de direitos fundamentais. Assim, ressalta-se que os processos
no final do século XVII, no contexto da Revolução Francesa; em 1789, discriminatórios frequentemente sofridos por sujeitos ou grupos em
foram declarados, na França, os direitos do homem e do cidadão. relação à etnia, orientação sexual ou religiosa representam uma grave
Nesse documento, as noções de cidadania que conhecemos aparecem violação aos Direitos Humanos.

Sociodiversidade, Responsabilidade e Comprometimento Social 12


Nos estudos da área de Direito, uma das dimensões amplamente (um direito político) não significa que o direito à saúde, educação ou
discutidas é o “direito à diferença”, especialmente no chamado “novo emprego está, da mesma forma, assegurado.
direito privado brasileiro”. Atualmente, a pluralidade de ideias, de valores,
De acordo com Carvalho (2005), os problemas em torno do exercício
de sujeitos e de grupos é o principal elemento que promove a proteção
pleno da cidadania, ou de um determinado direito é que, no caso do
da diversidade. Esse pluralismo é percebido com base nas noções de
Brasil, os direitos civis foram limitados, especialmente no período entre
tolerância e concepção moral e jurídica, que asseguram o direito à
a abolição da escravidão, em 1888; a proclamação da República, em
diferença. Nesse sentido, o direito privado passa a conviver igualmente
1889; e a ascensão de Getúlio Vargas ao poder, em 1930. Para o autor,
com outras legitimidades e outros valores (FERRAZ; LEITE, 2015). nesse período, a participação popular na política nacional, limitada na
Entretanto, a pluralidade ou diversidade típica da sociedade atual ação de pequenos grupos oligárquicos e detentores de poder econômico,
também é um elemento de vulnerabilidade, ou seja, é necessário pensar excluiu as massas das decisões políticas e, consequentemente, atrasou a
a diversidade e, ao mesmo tempo, observar a vulnerabilidade em torno aquisição e manutenção de direitos civis e sociais.
das populações chamadas de minorias. Negros, indígenas e LGBTTI, por Após 1930, o cenário político brasileiro também não se mostrou
exemplo, estão constantemente no cenário político e social, na busca favorável ao exercício pleno de direitos e cidadania. Durante o governo
por direitos e proteção, uma vez que fazem parte de grupos que sofrem
de Getúlio Vargas, entre 1930 e 1945, o fechamento do Congresso
violências motivadas pelo preconceito racial e de gênero.
Nacional e a instauração do Estado Novo promoveram um período
A cidadania, historicamente, pode ser observada em três momentos: ditatorial e de silenciamento de grupos opositores ao regime implantado
os direitos civis (baseados no direito à liberdade, propriedade privada por Vargas, provocando, ainda mais, o enfraquecimento de qualquer
e igualdade assegurada pela lei), direitos políticos (especialmente no elemento democrático. Em 1942, a consolidação das leis trabalhistas
direito ao voto e demais formas de participação do cidadão nas questões - a CLT -, significou um avanço nos direitos sociais, mas não garantiu,
governamentais) e direitos sociais (moradia, educação, emprego, saúde e de fato, os demais direitos (civis e políticos). Menos de duas décadas
seguridade social). No Brasil, esses direitos aparecem difusos, e, mesmo depois, o Golpe de 1964 e a institucionalização dos militares no poder
no contexto democrático, a manutenção de um direito não garante a de novamente promoveram o retrocesso dos direitos civis e políticos, pois
outro. O fato de o Brasil ser uma democracia e ter o voto direto e irrestrito uma das primeiras medidas foi o fechamento do Congresso, o governo

Sociodiversidade, Responsabilidade e Comprometimento Social 13


por Atos Institucionais (decretos produzidos pelo poder executivo) e o Sobre a questão étnico-racial, chamou-se a atenção para o processo
voto indireto (ausência da sociedade civil na escolha de presidente e de colonização e escravização dos negros africanos, abordando a
demais membros do poder executivo e legislativo). Nesse sentido, ao cultura trazida por eles e o seu papel fundamental para a formação
longo de quase 30 anos, a sociedade brasileira manteve-se distante do do povo brasileiro.
exercício do direito político.
As relações de gênero e sexualidade foram tratadas conceitualmente,
No início dos anos 1980, o processo de redemocratização foi lento e destacando as políticas voltadas para os grupos LGBTs. É
de difícil retomada da democracia. O regime militar extinguiu-se em importante ressaltar o papel das empresas e de organizações não
1985, e alguns direitos civis foram retomados, tais como a liberdade governamentais para a inclusão das pessoas LGBTs.
de expressão individual e da imprensa. Entretanto, não significou a Apresentamos, também, a situação de violência à qual estão
possibilidade de exercício da cidadania, pois os direitos políticos e expostas a comunidade LGBTs e a população negra, em decorrência
sociais ainda não estavam devidamente acessíveis à população em geral. do racismo e do preconceito de gênero.
Para Carvalho (2005), o exercício da cidadania está atrelado à Por fim, discutiu-se a questão da cidadania,
manutenção dos direitos civis, políticos e sociais. No Brasil, a facilidade destacando a importância dos direitos
com a qual a conquista desses direitos são postas em cheque ao sociais, políticos e civis no processo
longo da história (o processo de escravidão no período colonial, a de construção e exercício pleno
instauração complexa do regime republicano, as ditaduras civil e da cidadania.
militar) é responsável por uma parcela significativa das desigualdades
sociais. Os problemas sociais no Brasil, como a pobreza e o sistema de
assistência social precários ainda não foram resolvidos, mesmo com a
manutenção da democracia.

Neste capítulo, foram apresentadas as discussões em torno das


relações étnico-raciais, de gênero e sexualidade e de cidadania.

Sociodiversidade, Responsabilidade e Comprometimento Social 14


Referências GUERREIRO, Márcia Bernadete Neisnek. Influências indígenas e africanas
no léxico do português do Brasil. Dissertação de Mestrado. Faculdade
BEAVOIR, Simone de. O segundo sexo. v. 2. São Paulo: Nova Fronteira, de Ciências Sociais e Humanas da Universidade Nova de Lisboa.
2016. 2015. Disponível em: https://run.unl.pt/bitstream/10362/18278/1/
Disserta%C3%A7%C3%A3o_de_Mestrado_M%C3%A1rcia_Guerreiro.pdf.
BRASIL. Lei nº 11.645, de 10 março de 2008. Altera a Lei nº 9.394, de 20 Acesso em: 23 jan. 2018
de dezembro de 1996, modificada pela Lei nº 10.639, de 9 de janeiro
INSTITUTO ETHOS. Compromisso das empresas com dos direitos humanos
de 2003, que estabelece as diretrizes e bases da educação nacional,
LGBT. Disponível em: https://www.youtube.com/watch?v=V9zITBf7KmU.
para incluir no currículo oficial da rede de ensino a obrigatoriedade da Acesso em: 23 jan. 2018.
temática “História e Cultura Afro-Brasileira e Indígena”. Disponível em:
www.planalto.gov.br/ccivil_03/_ato2007-2010/2008/lei/l11645.htm. IPEA. Atlas da violência. 2017. Disponível em: www.ipea.gov.br/
Acesso em: 23 jan. 2018. atlasviolencia/download/2/2017. Acesso em: 23 jan. 2018.

______. Ministério Público Federal. O Ministério Público e os direitos de MICHALISZYN, Mario Sergio. Relações étnico-raciais para o ensino da
LGBT: conceitos e legislação. Brasília: MPF, 2017. Disponível em: www. identidade e da diversidade cultural brasileira. Curitiba: Intersaberes, 2014.
mpf.mp.br/atuacao-tematica/pfdc/midiateca/nossas-publicacoes/o- OHCHR. Declaração Universal dos Direitos Humanos. 1948. Disponível
ministerio-publico-e-os-direitos-de-lgbt-2017. Acesso em: 23 jan. 2018. em: http://www.ohchr.org/EN/UDHR/Documents/UDHR_Translations/por.
pdf. Acesso em: 23 jan. 2018.
BUTLER, Judith. Problemas de gênero. Rio de Janeiro: Civilização
Brasileira, 2005. OLIVEIRA, Aurenéa Maria de. Preconceito, estigma e intolerância
religiosa: a prática da tolerância em sociedades plurais e em Estados
CARVALHO, José Murilo. Cidadania no Brasil: um longo caminho. Rio de multiculturais. Estudos de Sociologia, Rev. do Progr. de Pós-Graduação
Janeiro: Civilização Brasileira, 2005. em Sociologia da UFPE, v. 13, n. I, 2007, p.239-264. Disponível em: http://
www.revista.ufpe.br/revsocio/index.php/revista/article/view/215/175.
FERRAZ, Carolina Valença; LEITE, Glauber Salomão (coords.). Direito à
Acesso em: 23 jan. 2018.
diversidade. São Paulo: Atlas, 2015.
Sociodiversidade, Responsabilidade e Comprometimento Social 15
PROCURADORIA FEDERAL DOS DIREITOS DO CIDADÃO. Declaração dos
direitos do homem e do cidadão, de 1789. Disponível em: http://pfdc.pgr.
mpf.mp.br/atuacao-e-conteudos-de-apoio/legislacao/direitos-humanos/
declar_dir_homem_cidadao.pdf. Acesso em: 23 jan. 2018.

RIBEIRO, Darcy. O povo brasileiro. São Paulo: Companhia das Letras, 1995.

Sociodiversidade, Responsabilidade e Comprometimento Social 16

Você também pode gostar