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A CONSTRUÇÃO DA IMAGEM INDÍGENA NA MODERNIDADE

História em Rede, 13 de setembro de 2019

A questão indígena é ainda hoje um tema delicado no Brasil. Embora


tenham conseguido o reconhecimento de direitos na Constituição de 1988, as
diferentes etnias indígenas continuam a ser encaradas a partir de uma ótica
preconceituosa. Considerados por muitos como um entrave para o progresso
nacional ou como povos distintos em relação à coletividade brasileira, os índios
não raro foram alvos de políticas que buscavam eliminar a alteridade dos
mesmos, incorporando-os à população brasileira a partir da adequação ao
modo de vida e à cultura do Brasil. Vistos como primitivos, como povos na
infância da História, os indígenas são constantemente pressionados a fim de
que se enquadrem na modernidade. Mas, afinal, qual a origem desse discurso?
Para elucidarmos a imagem construída em relação aos indígenas a
partir do advento da modernidade, é fundamental considerar as especificidades
do conceito moderno de História que se formula em meio ao contexto do
Iluminismo na segunda metade do século XVIII. Nesse sentido, as proposições
teóricas de Koselleck são de suma importância. De acordo com este pensador
alemão, ao contrário de épocas anteriores, quando o futuro estava diretamente
relacionado às experiências passadas, na modernidade a experiência não seria
suficiente para a composição do horizonte de expectativa. Ao invés disso, o
futuro, profundamente influenciado pelas idéias de progresso, seria não apenas
diferente, mas melhor do que o passado. Como ele bem destaca, “na era
moderna a diferença entre experiência e expectativa aumenta
progressivamente, ou melhor, só se pode conceber a modernidade como um
tempo novo a partir do momento em que as expectativas passam a distanciar-
se cada vez mais das experiências feitas até então”. Dessa maneira, Koselleck
salienta que a história assume paulatinamente o significado de um processo
temporal no qual passado, presente e futuro compõem uma linha contínua
rumo a uma única direção: o progresso.
Essa nova percepção que advém da modernidade refletiu diretamente
sobre a forma como os povos indígenas passaram a ser apreendidos no
pensamento ocidental. Diante da relevância cada vez maior da ideia de
progresso e da crença de que o que está por vir será sempre melhor do que o
que passou, os povos indígenas passaram a ser situados nas etapas iniciais da
escala evolutiva humana, encarados como povos primitivos e sem história, uma
vez que eram desprovidos de qualquer capacidade de evolução. Como bem
observa José Carlos Reis, “o olhar científico do século XIX significou a
radicalização da confiança no projeto moderno”, de modo que por intermédio
da filosofia da história moderna “o historiador pode diferenciar povos inferiores
e povos superiores, povos mais e menos livres, povos mais avançados e mais
atrasados”. Mais do que isso, a ciência histórica “ao mesmo tempo esconde e
executa um projeto político: os povos mais morais têm o direito ao poder e até
à violência” . Isso justificaria, portanto, as intervenções assimilacionistas
levadas a cabo pelos Estados e pelas autoridades políticas em relação aos
índios: o Ocidente, convicto de que é dotado da verdade histórica, elege-se
como aquele encarregado de levar a civilização e o progresso aos povos não-
europeus.
Em relação ao Brasil, a pertinência dessa imagem que se construiu a
partir da modernidade pode ser sentida ainda no século XVIII. Quando a
analisamos o discurso oficial sobre os índios em meados do referido século,
percebe-se que a visão construída a respeito dos mesmos muito diferia do
ideal indígena relacionado à pureza dos primórdios da colonização. O peso
maior passa a ser dado ao primitivismo destas populações, cabendo a Coroa
portuguesa o papel de interferir no processo evolutivo dos indígenas,
conduzindo-os em direção à civilização e ao progresso.
Nesse sentido, Sebastião José de Carvalho e Melo, o célebre Marquês
de Pombal, muito influenciado pelas explicações científicas e morais típicas do
contexto intelectual de meados do Setecentos, considerava os índios como
inferiores, não tendo atingido o mesmo grau de progresso que os europeus.
Porém, esta visão era acompanhada da convicção de que os indígenas
poderiam ser recuperados por meio da educação e da civilização, o que
justificaria a intervenção da Coroa portuguesa. Esse ponto de vista, longe de
representar unicamente a posição pessoal daquele que viria a ser o Marquês
de Pombal, remetia a um discurso que foi assumido por boa parte das figuras
políticas portuguesas deste período e que, a longo prazo, constituiria a visão a
respeito das populações indígenas até boa parte do século XX. Fica patente,
portanto, que no pensamento moderno que se constrói a partir do século XVIII
os índios, alheios ao progresso, deveriam ser conduzidos à razão.
Essa perspectiva foi expressa exemplarmente no Diretório (1755) —
código legislativo que colocou em prática uma política assimilacionista que
visava integrar os indígenas à sociedade colonial através da civilização. Trata-
se da primeira expressão deste discurso moderno em relação aos indígenas
brasileiros. Esta legislação previa a criação de vilas indígenas onde os seus
moradores, que administravam estes espaços sob a supervisão de um diretor
de origem portuguesa, seriam convertidos em súditos indistintos aos
portugueses, aprendendo a cultura, os costumes e o modo de vida ibérico. O
tema, aliás, despertava notável interesse, sendo recorrente o surgimento de
diversas proposições quanto aos métodos mais eficazes para conduzir os
índios do primitivismo à plena civilidade. Quanto a isso, vale a pena trazer à
tona as considerações do procurador-geral do Senado da Câmara do Rio de
Janeiro – José Joaquim da Cunha de Azeredo Coutinho – em uma carta à
Rainha Maria I em 1791, na qual expunha as suas posições a respeito da
civilização dos índios e dos meios que julgava como os mais eficazes para tal
intento. Nesta correspondência elucidativa, é interessante observar o quanto o
referido tema ainda era permeado de interesse e de discussões, sendo
inquestionável, no entanto, que os índios encontravam-se na infância da
história.
Na correspondência, Coutinho presta-se, antes de tudo, a criticar os
métodos do Diretório adotados até aquele momento. Em sua perspectiva, era
um erro transformar as aldeias em vilas e permitir que os índios governem uns
aos outros, pois fazer isso é “querer principiar por onde as Nações civilizadas
acabam”, de maneira que deveriam seguir etapa por etapa rumo ao progresso.
Para Azeredo Coutinho, o índio vivia em liberdade absoluta e “sem mais
necessidades do que aquelas que ele em poucas horas satisfaz com o seu
braço”, não estando preparado para a arte do “bem governar”, considerada
como “a mais sublime de quantas os homens tem inventado”. Para promover a
civilização dos índios, a educação e o trabalho seriam os meios indispensáveis,
sendo estas destinadas em primeiro lugar aos pais, que, devidamente
educados, pensariam sempre “no bem e na felicidade de seus filhos” e os
fariam “marchar sempre firme e seguro, sem os deixar jamais afrouxar”. Assim,
a atuação proposta levaria os índios a “perderem alguma parte da liberdade
absoluta, para gozar de outras muitas partes de uma maior liberdade relativa”.
O primitivismo era, então, a justificativa básica para as ações e intervenções.
Se no final do século XVIII e no início do século XIX, como acabamos de
perceber, a imagem do índio passou a expressar paulatinamente o primitivismo
e a infância da história humana em virtude da influência dos pressupostos da
modernidade, a partir da segunda década do século XIX, quando se dá a
independência do Brasil e os esforços de construção de um Estado-nação
homogêneo, essa associação cristaliza-se ainda mais. A modernidade,
amplamente marcada pela ideia de progresso, remeteu a um fatalismo
inequívoco em relação aos indígenas, de maneira que o destino desses povos
tidos como primitivos seria a completa eliminação ou a assimilação à
comunidade nacional. Em consonância com os novos ares da modernidade
que influenciavam o Brasil recém-independente, os membros do IHGB
endossaram a perspectiva que situavam os indígenas contemporâneos no
atraso e na distância em relação ao progresso.
Nesse sentido, Varnhagen resume bem o que estamos tratando ao
ressaltar que “de tais povos na infância não há história: há só etnologia” ,
explicitando, então, que a ausência “dos marcos de historicidade reconhecidos
pela cultura histórica oitocentista” corresponderia a um inegável primitivismo
por parte dos indígenas. O futuro dos índios, entretanto, seria inevitável nessa
perspectiva tão orientada pela modernidade: sobre isso, Carl Friedrich Philippe
von Martius anotou, em 1838, que “não há dúvida: o americano está prestes a
desaparecer”, de modo que “outros povos viverão quando aqueles infelizes do
Novo Mundo já dormirem o sono eterno” . Ou seja, em meio ao evolucionismo
e ao ideal de progresso tão caros àquele momento, os indígenas eram tidos
como evidências vivas de uma época pré-histórica. Mesmo que não houvesse
consenso quanto ao estado dos índios, isto é, se eram naturalmente selvagens
ou se poderiam ser civilizados e assimilados à sociedade, ou mesmo quanto ao
passado, havendo os que defendiam que “de modo algum podem ser eles
tomados por nossos guias no presente e no passado em sentimentos de
patriotismo ou em representação da nacionalidade” e os que reservavam um
lugar de destaque aos nativos nesse passado , fato é que não havia lugar para
os índios no futuro. Face à marcha inevitável do progresso, na perspectiva
moderna eles seriam eliminados por resistirem a este avanço ou assimilados
por intermédio do processo civilizador.
A propósito, tal imagem não se limitou a influenciar a historiografia,
tendo sido marcante também na produção intelectual em áreas diversas ao
longo do século XIX e boa parte do século XX. Na antropologia, que tem sua
origem ligada aos registros etnográficos de povos e etnias que estariam
fadadas a desaparecer em virtude do avanço do progresso, isso pode ser visto
de forma emblemática na Exposição Antropológica de 1882, organizada pelo
Museu Nacional e que foi um dos eventos científicos mais importantes da
época no Brasil. Nela, os índios eram expostos em grupos vivos e em cenários
que simulavam o seu cotidiano. Na época, foi editada a Revista da Exposição
Anthropologica Brazileira , de maneira que “os artigos da revista, dirigida por
Mello Moraes Filho e escritos por especialistas brasileiros, sempre se referiam
aos indígenas como representantes dos mais primitivos estágios da evolução
humana em contraposição aos evoluídos homens brancos caucasianos”. O
índio era apresentado, então, como um fóssil vivo e em vias de extinção em
virtude dos avanços da civilização, o que denota, assim, a forte incidência das
idéias de progresso e do evolucionismo advindos da modernidade. Mesmo na
primeira metade do século XX, quando a antropologia já havia passado por
importantes mudanças teóricas e metodológicas, a associação dos indígenas
ao primitivismo, o que os situariam fora da história, pode ser vista nas
proposições teóricas de Claude Levi-Strauss, nas quais diferencia as
“sociedades frias”, consideradas primitivas e quase imóveis temporalmente, e
as “sociedades quentes”, civilizações que se movem dentro da história e com
ênfase no progresso.
Enfim, parece claro, portanto, que as ideias e os pressupostos da
modernidade foram em grande medida responsáveis pela construção de uma
imagem vigorosa que associava os indígenas a dois aspectos básicos: o
primitivismo – seja em virtude da decadência de um passado glorioso ou por
conta de uma natural selvageria – e o inevitável desaparecimento frente ao
progresso. Estes pressupostos, que orientaram a criação do Diretório no
período colonial e a política indigenista no Brasil recém-independente,
continuou a vigorar ao longo de nossa história, seja com a criação do Serviço
de Proteção ao Índio (SPI) na Primeira República, que manteve o princípios
que visavam a incorporação dos indígenas, seja com as ações violentas
perpetradas durante o Regime Militar. E, a julgar pelos rumos da política
indigenista brasileira nos últimos anos, esse discurso continua sendo muito
atual.

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