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VISÕES DA IDADE MÉDIA

O texto a seguir trata da controvérsia em torno do imaginário da Idade Média


que, ao longo do tempo, foi interpretado de diferentes maneiras pela historiografia.

Texto 1

“A imagem tradicional da Idade Média, elaborada pelos humanistas e relançada


pelos iluministas [...], girava em torno do princípio dos ‘séculos obscuros’, caracterizados
por uma profunda regressão da civilização e pelo retorno a condições de vida de tipo
arcaico: uma economia de subsistência, uma sociedade regulada pela dependência e
pela fidelidade a formas de quase escravidão, uma técnica bloqueada, uma elaboração
cultural repetitiva e reduzida, um tipo de relações internacionais rarefeitas e inseguras,
porém marcadas também por migrações de povos, por conflitos de etnias, por explosões
de pauperismo. Certamente existe nessa imagem algo de verdadeiro, mas existe
também um lugar-comum que não resistiu à revisão historiográfica, ativada já a partir
do romantismo.
A Idade Média não é absolutamente a época do meio entre dois momentos altos
de desenvolvimento da civilização: o mundo antigo e o mundo moderno. Foi sobretudo
a época da formação da Europa cristã e da gestação dos pré-requisitos do homem
moderno (formação da consciência individual; do empenho produtivo; da identidade
supranacional etc.), como também um modelo de sociedade orgânica [...], assim como
uma fase histórica que se coagulou em torno dos princípios da religião, caracterizando
de modo particular toda esta longa época: conferindo-lhe conotações de dramaticidade
e de tensão, mas também aberturas proféticas e fragmentos utópicos que nos
apresentam uma imagem mais complexa e mais rica da Idade Média; e também uma
identidade mais próxima de nós e de nossa sensibilidade.”

CAMBI, Franco. História da pedagogia. São Paulo: Editora Unesp, 1999. p. 141-142.

Texto 2

“Faz agora dois séculos, ao menos, que a Idade Média é balançada de um


extremo a outro, sombrio contraponto dos partidários da modernidade, ingênuo refúgio
daqueles a quem o presente moderno horroriza. Existe, de resto, um ponto comum entre
a idealização romântica e os sarcasmos modernistas: sendo a Idade Média o inverso
do mundo moderno (o que é inegável), a visão que se oferece dela é inteiramente
determinada pelo julgamento feito sobre o presente. É assim que uns a exaltam para
melhor criticar sua própria realidade, enquanto outros a denigrem para melhor valorizar
os progressos de seu tempo. [...]
Mas o essencial é escapar da caricatura sinistra tanto quanto da idealização:
‘nem legenda negra, nem legenda rosa’, escreveu Jacques Le Goff. A Idade Média não
é nem o buraco negro da história ocidental nem o paraíso perdido.”
BASCHET, Jérôme. A civilização feudal: do ano mil à colonização da América. São
Paulo: Globo, 2006. p. 23-24.

QUESTÕES

1. Segundo os autores, qual é a visão tradicional que predomina sobre a Idade


Média?
2. Qual é a posição dos autores sobre essa interpretação que se faz da Idade
Média?
3. Avaliar um determinado período histórico como um avanço ou um retrocesso em
relação ao período anterior pode ser considerado um problema? Justifique sua
resposta.
CIVILIZAÇÕES E COSTUMES MEDIEVAIS

[…] A Idade Média deixou-nos grande volume de informações sobre o que era
considerado comportamento socialmente aceitável. Nesse particular, preceitos sobre a
conduta às refeções também tinham importância muito especial. Comer e beber nessa
época ocupavam uma posição muito mais central na vida do que hoje, quando
propiciavam – com frequência, embora nem sempre – o meio e a introdução às
conversas e ao convívio.
Nas casas dos mais ricos, os pratos são em geral tirados de um aparador,
embora, frequentemente, sem nenhuma ordem especial. Todos tiram – ou mandam tirar
– o que lhes agrada no momento. As pessoas se servem em travessas comuns. Os
sólidos (principalmente a carne) são pegados com a mão e os líquidos com conchas ou
colheres. Mas sopas e molhos ainda são frequentemente bebidos levando-se à boca os
pratos ou travessas. Durante muito tempo, além disso, não houve utensílios especiais
para diferentes alimentos. Eram usadas as mesmas facas e colheres. E também os
mesmos copos. Ao final da Idade Média, o garfo surgiu como utensílio para retirar
alimentos da travessa comum. Nada menos que uma dúzia de garfos são encontrados
entre os objetos de valor de Carlos V. Já o inventário de Carlos de Savoia, muito rico
em utensílios opulentos de mesa, menciona um único garfo.
No século XI, um doge de Veneza casou-se com uma princesa grega. No círculo
bizantino da princesa o garfo era evidentemente usado. De qualquer modo, sabemos
que ela levava o alimento à boca usando um pequeno garfo de ouro de dois dentes.
Este fato, porém, provocou um horrível escândalo em Veneza. A novidade foi
considerada um sinal tão exagerado de refinamento que a dogaresa recebeu severas
repreensões dos eclesiásticos, que invocaram para ela a ira divina. Poucos depois, ela
foi acometida de uma doença repulsiva e São Boaventura não hesitou em declarar que
isto foi um castigo de Deus.
Não obstante, a atitude que acabamos de descrever no tocante à inovação do
garfo demonstra algo com especial clareza. As pessoas que comiam juntas na maneira
costumeira na Idade Média, pegando a carne com os dedos na mesma travessa,
bebendo vinho no mesmo cálice, tomando a sopa na mesma sopeira ou prato fundo,
tinham entre si relações diferentes das que hoje vivemos. E isto envolve não só o nível
de consciência, clara, racional, pois sua vida emocional revestia-se também de uma
diferente estrutura e caráter. Suas emoções eram condicionadas a formas de relações
e conduta que, em comparação com os atuais padrões de condicionamento, parecem-
nos embaraçosas ou pelo menos sem atrativos. O que faltava nesse mundo cortês era
a parede invisível de emoções que parece hoje se erguer entre um corpo humano e
outro, repelindo e separando a parede que é frequentemente perceptível à mera
aproximação de alguma coisa que esteve em contato com a boca ou às mãos de outra
pessoa, e que se manifesta como embaraço à mera vista de muitas funções corporais
de outrem, e não raro à sua mera menção, ou como um sentimento de vergonha quando
nossas próprias funções são expostas à vista de outros, e em absoluto apenas nessas
ocasiões”.

ELIAS, N. O processo civilizador. São Paulo: Jorge Zahar, 1995. V.1.p. 73-82

QUESTÕES

1) Como o uso de garfos relaciona-se à mentalidade religiosa do homem medieval?


2) Com base no texto, podemos afirmar que hoje em dia nosso comportamento é
mais individualista? Justifique
3) Logo no início do texto o autor afirma que a civilização que costumamos
considerar como algo pronto é um processo histórico no qual nós também
tomamos parte. Você concorda com tal afirmação? Justifique

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