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AINDA É CORRECTO FALAR DE DESCOBRIMENTOS?

ISABEL SALEMA
17/01/2016

Novo Dicionário da Expansão Portuguesa foi lançado esta semana


pelo Círculo dos Leitores. Dirigido pelo historiador Francisco Contente
Domingues, não faz do politicamente correcto uma prioridade.

Há dois "Descobrimentos" no artigo assinado por Francisco Contente


Domingues no novo Dicionário da Expansão Portuguesa (1415-1600), a obra
editada pelo Círculo dos Leitores e lançada esta quarta-feira no Centro
Cultural de Belém, em Lisboa. Depois da leitura da entrada dividida em dois
pontos, quase podemos dizer que há os bons e os maus Descobrimentos. O
historiador optou por analisar o termo no singular, “descobrimento”, para nos
obrigar a olhar para o acto em si, porque a “tónica devida” é precisamente a
do seu carácter relativo.
“O ‘descobrimento’ faz sentido em função do património geográfico da
realidade cultural e civilizacional de onde emana o ‘descobridor’.” O próprio
conceito é “civilizacionalmente autocentrado” — escreve Contente Domigues,
que dirige o dicionário — e começou a ser posto em causa sistematicamente
depois do fim da Segunda Guerra Mundial.
Mas, sim, podemos dizer que os nativos norte-americanos foram
descobertos, contrariando os mentores das anti-comemorações das viagens
de Pedro Álvares Cabral ou Cristóvão Colombo, que criticam a bondade das
iniciativas ibéricas e argumentam que a América já tinha populações que lá
estavam há mais de dez mil anos. “Descobertos, sim: os Descobrimentos
deram início a um processo de conhecimento global — de mundialização —
que não teria retrocesso e se iria pelo contrário aprofundando com o correr
dos séculos.”
Devemos ou não falar de Descobrimentos portugueses? — é um das
primeira perguntas que fazemos ao historiador Francisco Contente
Domingues, especialista em história marítima, durante a entrevista no seu
gabinete na Faculdade de Letras de Lisboa. “Absolutamente que sim, deve-
se falar de Descobrimentos.”
Contente Domingues diz que é claro que os povos da América e da
Austrália foram descobertos. “Seja qual for a volta que se der,
nomeadamente por parte dessas culturas por se sentirem afectadas
negativamente pela chegada dos europeus, criou-se uma visão cosmopolita
do mundo que não existia.”
Então por que razão a palavra não consta do título do dicionário como
constava do anterior, também editado pelo Círculo dos Leitores, em
1994 — o Dicionário de História dos Descobrimentos Portugueses, dirigido
por Luís de Albuquerque e de que Contente Domingues foi o braço-direito?
“Porque os Descobrimentos são uma parte da expansão.” O dicionário,
defende, não tinha outro nome possível. “É claramente mais confortável
definir esta época como o período dos Descobrimentos geográficos e do
início da Expansão portuguesa pelo mundo. Há um movimento expansionista,
ainda não há contracção.”
O historiador afirma que não tentou evitar ideologicamente, em nome
de um politicamente correcto, a palavra “Descobrimentos” no título. “A
palavra ‘Expansão’ também provoca esse mal-estar. Mas é perfeitamente
evidente que há pessoas que não gostam de ‘Descobrimentos’. Porque no
fundo reportam-se sempre à chegada ou ao contacto dos povos europeus
com outros povos. No caso da 'Expansão' é pior, porque suporta a ocupação
efectiva dos espaços e o controlo de territórios. Mas é uma descrição da
realidade das coisas.”
O que aprendemos na escola, lembra o professor catedrático, é que
Descobrimentos quer dizer que os portugueses foram os primeiros a chegar
— uma imagem construída debaixo do optimismo civilizacional do século XIX.
“Mas saber quem é o primeiro a chegar é uma falsa questão, porque quando
muito podemos saber quem é o primeiro a chegar que deixou memória disso.
Os viquingues estiveram na América três gerações, é completamente
inquestionável. E porque é que não descobriram a América? Porque, de
facto, não fizemos nada com esse conhecimento. Com Colombo podemos
falar do descobrimento da América porque em consequência dessa viagem
há outras viagens que incorporaram aquela realidade no conhecimento.”
Diferentemente dos outros, “os Descobrimentos geográficos europeus,
logo desde os séculos XV-XVI, foram cartografados e publicitados pela
imprensa”, escreve Contente Domingues na entrada. “Viagens fortuitas de
resultados ingnorados nada contam: mais importante do que chegar é a
capacidade de regressar e a possibilidade da representação gráfica nos
mapas da época.”
Se olharmos para as historiografias estrangeiras, não encontramos
esta presença maciça da palavra “Descobrimentos”. “Portugal é o único país
onde há uma matéria universitária chamada História dos Descobrimentos e
da Expansão.” De facto, à excepção de Cristóvão Colombo e da América, diz
o historiador, antes do século XVII as descobertas importantes são todas
portuguesas. “Os italianos falam em história das explorações e estudam isso
no departamento de Geografia. Os espanhóis só têm o descobrimento, só
valorizam o Colombo, portanto têm cursos e departamentos de História da
América. A maior parte dos países tem História da Expansão e dos impérios
marítimos a partir do século XVII. Os Descobrimentos acabaram, entre
aspas, com a exploração polar, mas pelos vistos isso não interessa nada.”

Tempos de Wiki

Em tempos de Wikipédia, Francisco Contente Domingues construiu


um dicionário diferente daquele que fez com Luís de Albuquerque.
“Sobretudo quanto à filosofia, porque há 20 anos os dicionários históricos
procuravam a exaustividade. Aqui procura-se uma cobertura temática dos
assuntos.”
A entrada dedicada às especiarias, que os portugueses trazem do
Oriente em número de 40, está focada nas cinco realmente relevantes do
ponto de vista económico e político: a pimenta, o cravo, a noz-moscada, o
gengibre e a canela. É escrita por Manuel Lobato e surge entre as entradas
“esfera armilar” e “estado da Índia”.
“Podíamos ter um artigo sobre as 40 que vieram, mas aqui tem-se um
sobre cinco especiarias que fala de todas de uma forma mais abrangente.
Isso permite-nos ter um pano de fundo do que são as especiarias na cultura
da época. Em todos os sentidos, gastronómico, científico, etc.” Uma opção
que permitiu alicerçar o dicionário em cerca de 50 pequenos ensaios no meio
de 390 entradas. Não há artigos sobre o astrolábio, o quadrante ou a
balestilha, mas uma entrada sobre instrumentos de navegação que inclui
todos eles, lê-se na introdução.
“É um dicionário construído com base em entradas de fundo
complementadas com entradas especializadas, porque é da própria natureza
de uma obra destas não faltar a biografia de Vasco da Gama.” Das mil
entradas do dicionário anterior, desceu-se para as 390. “Há menos texto,
globalmente falando, e está construído num sentido mais compreensivo do
que descritivo.”
Na entrada sobre cartografia náutica, António Costa Canas escreve
que a cartografia é “um dos factores de sucesso dos Descobrimentos
portugueses”, mas também que, “na época dos Descobrimentos, os
portugueses não produziram grandes invenções".
Os historiadores da ciência não falam tão facilmente da revolução
geográfica introduzida pelos Descobrimentos como das várias revoluções
epistemológicas na física ao longo dos séculos — e Contente Domingues não
sabe explicar porquê. “Qualquer historiador da ciência dirá com certeza que o
Galileu é um revolucionário, Newton também, mas a revolução geográfica
não é bem a mesma coisa. Não é a mesma coisa porquê? O mundo é
completamente diferente daquilo que as pessoas pensavam que era. Mas do
ponto de vista do discurso historiográfico não está reconhecido que esta
alteração seja tão significativa como aquelas que se deram com a disciplina
da Física nos séculos XVI e XVII.”
A entrada dedicada à “revolução geográfica”, de Angelo Cattaneo, só
consta do segundo volume, que ainda não foi lançado.
Descobre-se, então, o quê? “Que há uma herança clássica que a
Europa conhece que não bate certo. É recorrente nos nossos documentos a
afirmação ‘ao contrário do que diz Plínio’…” Toda uma problemática
explicada pela entrada dedicada à experiência, feita por Onésio Teotónio
Almeida. “Eles vêem com os olhos deles que as coisas são diferentes. Há
uma acumulação brutal de informação, bichos, plantas e estrelas que são
completamente diferentes”, explica Contente Domingues, “mas não se
constroi a partir dessa visão uma explicação totalmente nova do
funcionamento das coisas”. Ou seja, a contribuição fundamental das
navegações não é tanto a construção de um mundo novo mas a
desconstrução do mundo antigo.

Os mitos

O que se pode perguntar também é até que ponto a valorização da


ciência associada aos Descobrimentos que temos visto mais recentemente
não tem também a sua agenda. Como se a ciência fosse o último reduto de
uma certa neutralidade que, de certa maneira, redimiria a empresa dos
Descobrimentos dos seus males.
“A ideia de que o que nos movia era o conhecimento é um dos
grandes mitos da História portuguesa. Isto tem a ver com uma desvalorização
do comércio, considerado uma coisa mesquinha. Estamos também a pagar a
factura de uma valorização social da ciência que vem desde o século XVIII, a
concepção de que a ciência tem de ser útil para o desenvolvimento das
sociedades. Andamos sempre à procura da justificação para isso.”
Em 1994, quando em Portugal se falava muito de Investigação e
Desenvolvimento (I&D), o historiador lembra-se de ouvir o Presidente Mário
Soares na televisão a referir a Escola de Sagres como um exemplo de I&D.
No dia seguinte, no ano em que se comemoravam os 600 anos do
nascimento do Infante D. Henrique, o primeiro-ministro Aníbal Cavaco Silva
repetia a mensagem. “Isto são ideias completamente falsas. Em primeiro
lugar porque a Escola de Sagres não existiu, em segundo lugar ninguém
estava a fazer investigação. A facilidade com que a gente retroprojecta
problemas actuais para o passado é tão grande que se torna às vezes difícil
conseguir responder a questões como essa. A própria ideia que temos de
que a ciência é muito importante é completamente contemporânea.”
A entrada dedicada à escola, escrita também por Sousa Pinto, é
lapidar: “É seguramente o mito mais enraizado e duradouro da expansão
ultramarina portuguesa: a ideia de que o infante D. Henrique teria fundado
em Sagres uma academia dedicada aos estudos náuticos, geográficos e
astronómicos, na qual se teriam alegadamente instalado os maiores sábios
europeus da época e onde as viagens de exploração do Atlântico teriam sido
cientificamente preparadas e validadas.”

Quando falamos da ciência que os Descobrimentos portugueses


trouxeram, do que devemos então falar?

“Devemos falar de conhecimento de novas realidades, de experiência


empírica, nas áreas da geografia, zoologia, botânica ou astronomia. São
raríssimos os casos em que há uma operação teórica sobre esses
conhecimentos. Uma coisa é registar-se determinada ocorrência, outra coisa
é perguntar-se porquê e dar a resposta… Nos descobrimentos estamos no
domínio da contribuição para o conhecimento de novas coisas, não na
reflexão sobre elas. Há um caso, só um, em que se sabe o dia e a hora e em
que podemos dizer que é um procedimento completamente científico: quando
D. João de Castro, a bordo de um navio, faz uma série de experiências para
averiguar a razão pela qual as agulhas perdem o rumo.”
Há 50 anos atrás, por exemplo, qualquer historiador diria que Pedro
Nunes tinha sido fundamental para os descobrimentos marítimos, aponta
Contente Domingues. “Hoje é líquido que não tem nada a ver com as
navegações. Ele tem uma obra de 1537 em que diz logo que os pilotos se
riem muito do que ele diz. E tem toda a razão: matematicamente é
extraordinário, mas do ponto de vista prático não interessa para os pilotos.” O
que talvez se possa afirmar, defende o historiador, que “há uma
desvalorização de um pensamento científico alheio aos Descobrimentos”.
“Porque não há só um Pedro Nunes, há vários outros Pedros Nunes.”
“O que se pode dizer também é que a experiência empírica prepara o
caminho para a aceitação posterior de um novo discurso científico, a ciência
moderna do século XVII” — Galileu ou Kepler.
Francisco Contente Domingues diz que os 37 especialistas que
participam neste dicionário são o "who is who" de quem faz história da
expansão em Portugal. Têm idades que variam entre os 35 e os 75 anos e
vêm de nove países (Portugal, EUA, França, Itália, Reino Unido,
Macau/China, Espanha, Irlanda, Alemanha). “O irlandês é a única pessoa
que até hoje esteve a estudar em Espanha os pilotos portugueses.”
“Isto é muito o trabalho de uma geração formada pelos primeiros
cursos de especialização da expansão, com mestrados e doutoramentos”,
nota o historiador de 56 anos. A característica dessa geração, em termos de
olhar, é que é "muito mais aberta a uma tentativa de compreender as coisas
como elas devem ser vistas e não em função dos quadros imagéticos e
imaginários do passado”. O que se fez nos últimos 20 anos foi cortar com
uma série de temas e problemas que foram persistentes no nosso
pensamento historiográfico.
Um desses mitos é exactamente a existência da Escola de Sagres.
“No final do século XVIII consolida-se o discurso de que esta gente dos
Descobrimentos fez certas coisas e não pode ter sido por acaso. A ideia de
que os Descobrimentos são preparados, que correspondem a um esforço de
interrogação científica, é uma ideia que começa a mudar aí.”
Outro desses mitos é a existência de uma “política de sigilo” imposta
por D. João II e a ideia de que a descoberta do Brasil por Pedro Álvares
Cabral não foi um acaso. É “possível” que antes de Cabral outros
navegadores já tivessem chegado à costa norte do Brasil, escreve Maria
Adelina Amorim, mas a armada que partiu a 9 de Março de 1500 do Tejo com
destino à Índia é a que historicamente teve consequências.
O segundo volume do Dicionário da Expansão Portuguesa deverá
entrar na tipografia proximamente e sairá no início de Março. Começa na
letra "i", de "pedras de Ielala".

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