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Aproximação ao pensamento de Teixeira

de Pascoaes: ideologia e saudade n'A arte


de ser português

Carlos Jurado Martín


Agosto de 2010

Licenciatura em Filologia Portuguesa. Universidade de Granada


História e Cutura Portuguesa
Prf. Dr. Luisa Trías Folch

1
Um sujeito vê um dia um cão e bate-lhe. O cão foge, desmoralizado pelo
inesperado do ataque. Decorridos dias o nosso homem passa outra vez pelo
cão, sem dar por ele. Ao cão vem-lhe um desejo naturalíssimo de sentir a
carne do agressor comprida entre os seus caninos e... zás! Estão daí vocês a
ver a cena. Que se passara na consciência do animal? Nada de
extraordinário: uma velha lembrança gerando um novo desejo: a Saudade.
ANTÓNIO SÉRGIO, Crítica ao saudosismo

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ÍNDICE

0 INTRODUÇÃO pg. 4
1 CONTEXTUALIZAÇÃO: OS TEMPOS DE PASCOAES pg. 5
O pensar do seu tempo pg. 5
Os factos históricos que motivaram a mudança pg. 8
O papel da literatura pg. 10
2 A IDEOLOGIA pg. 11
A filosofia da saudade: saudosismo e impulso saudoso pg. 16
As identidades espirituais pg. 19
Lei suprema e sacrifício pg. 21
Raça e alma pátria pg. 24
Religião e saudade pg. 27
3 CONCLUSÕES pg. 30
4 BIBLIOGRAFIA pg. 33

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0 INTRODUÇÃO
O simples facto de tentarmos explicar a saudade, na sua total integridade conceptual, e o
pensamento dum dois maiores pensadores da “portuguesidade” num trabalho de grau universitário
é, anunciamos com antecedência, um verdadeiro despropósito que bem poderia ser razão de mofa
em determinados sectores de conhecimento. Ora bem, ao percebermos da magnitude e da
complexidade dos termos que serão tratados neste breve estudo, adiantamos que o nosso objectivo
será, em qualquer caso, efectuarmos sem grandes pormenores mas com bases estáveis uma
aproximação ao esquema ideológico e fundamento cognitivo que derivou numa das maiores
reacções nacionalistas vividas em Portugal, considerando como fazemos uma das obras que fazem
parte do corpus de textos que fundamentaram a evolução de dita reacção.
O nosso autor aqui tratado é, além de poeta, uns dos pensadores e reaccionários mais importantes
da literatura e pensamento portugueses que, ademais, acompanhara activamente a consecução dos
factos dramáticos que aconteceram no devir do fim do século XIX e primeira metade do passado
século XX. Pascoaes, ao ter sido testemunha importante dos sucessos e desastres que mudaram
dramaticamente a face política, psicológica e económica do seu pais; acabou por desenvolver uma
ideologia, uma filosofia e até uma perspectiva religiosa; baseando-se na saudade como entidade
vertebradora da “alma lusitana” e responsável da eventual “renascença” do país face à decadência e
a tragédia.
A arte de ser português é um livro, mas é um livro pequeno. É um ensaio, mas tem uma
construção muito simples. É uma criação, mas bem parece uma compilação. É um bocado tudo, mas
é, na sua totalidade, um tudo fixado que tenta ensinar e doutrinar com uma linguagem simples,
vocativa, descritiva, poucas vezes enunciativa e com fulminantes orações em cursivo a funcionar
como verdadeiras conclusões legislativas -ou legislantes-. Assim, com suma simplicidade, o texto
de Pascoaes tenta chegar longe: tenta ensinar e criar novos portugueses à sua maneira, por ele
próprio julgada única e irrevogável.
No nosso estudo pretendemos, longe de aprofundarmos em grandes debates, isolar e concretizar
os paradigmas de pensamento mais sublinháveis do autor que tratamos, no contexto que diz respeito
ao neo-romantismo e idealismo embrionário português de inícios do século XX, servindo-nos duma
das obras fundamentais para o correcto entendimento de ditas tendências. Para este objectivo, temos
a intenção de, num primeiro momento, contextualizar ao autor no seu tempo histórico e ideológico,
tratar do seu pensar antropológico e finalmente compreender a muitas vezes mencionada saudade,
bem como conceito, bem como fenómeno revolucionário de novas ideias e perspectivas.

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1 CONTEXTUALIZAÇÃO: OS TEMPOS DE PASCOAES
Nascido em 1877 e falecido em 1552, Teixeira de Pascoaes foi um homem; um pensador
testemunha dum período convulsionado na história do mundo contemporâneo. Desde o início da
expansão colonial portuguesa até a guerra de Coreia, Teixeira de Pascoaes acompanhou o devir de
eventos tais como a agitação republicana que antecedeu ao regicídio em Portugal, as duas grandes
guerras mundiais, o emprego da bomba atómica, a implantação da ditadura militar em Portugal, etc.
Muito firme e fiel à sua percepção do mundo1, Pascoaes toma consciência da convulsão e participa
da opinião sobre os eventos que a compõem, sendo, por exemplo, populares alguns dos seus artigos
sobre a primeira grande guerra nas páginas d'A Águia e eventuais participações nas opiniões que se
publicavam no Diário de Lisboa.
Pascoaes foi, segundo isto, um pensador do seu tempo que como já vimos foi complexo em
termos económicos, políticos, sociais e, também, filosóficos. Ao falarmos duma complexidade de
carácter filosófico falamos, como não, da perspectiva prevalecente que se tem perante ao mundo e
assim também perante aos factos que mexem e mudam a sociedade. Assim, o mundo, pelo
individuo contextualizado numa sociedade concreta, é percebido duma maneira particular sendo
susceptível de se manifestar nas diferentes actividades humanas: ora políticas, ora sociais, ora
artísticas... Desta maneira, os tempos de Pascoaes fizeram muito para motivar a mudança do prisma
filosófico, pois como dizíamos, o mundo ia ver como os paradigmas que o regulavam deixavam de
ser válidos e como, com o devir dos acontecimentos, a sociedade ia reclamar e demandar novas
perspectivas capazes de dar sentido ao sentimento social que já se manifestava na mudança de
século.

O pensar do seu tempo


Ao longo do século XIX, os avances científicos tinham mudado radicalmente a face das
sociedades ocidentais no que se percebeu, alguns anos depois, como uma época de avanços “da
cultura e da civilização”2. Estes avanços iam submergir às sociedades num frenesim científico, onde
a ciência acaba por ser divinizada, glorificada e até idolatrada numa espécie de processo
teologizante que ia fazer pensar que a ciência era capaz de responder todas as questões
fundamentais do ser humano. Assim, a obrigatoriedade do ensino primário, a expansão da indústria,
a renovação comercial e agrícola, a criação de de novos laboratórios e bibliotecas; servem-nos
como exemplos do que vai ser uma verdadeira renascença científico-tecnológica. Além disso, ao
longo de dito século experimentar-se-á a um ressurgir das ciências até a data esquecidas como a
1 MOREIRA DE SÁ, MARÍA DAS GRAÇAS: Estética da saudade em Teixeira de Pascoaes, Ed. Instituto de língua
e cultura portuguesa, Ministério da Educação, Lisboa, 1992 (pág 15)
2 Óp. Cit. (pág 16)

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química, e a criação de novas ciências que nunca antes tinham sido estudadas ou tratadas, como a
geologia, a biologia ou as ciências sociais. Este fascínio e mitificação científicos terão, em Portugal,
uma voz literária especial representada pela chamada Geração de 70 que encarnara, com a abertura
do caminho-de-ferro a Paris, a injecção mais relevante de ideias vindas das regiões mais
desenvolvidas no que diz respeito ao cientifismo positivista como perspectiva. Com isto, os autores
de dita geração, entre os quais encontram-se alguns dos nomes mais relevantes da história literária
do país, mantêm entre os seus objectivos a renovação intelectual julgada precisa para acompanhar
uma eventual renovação também tecnológica e ideológica. Se bem que a geração não conseguiu
activar uma intervenção efectiva na política e instituições portuguesas, sim conseguiu, contudo,
plantar por exemplo a semente da inquietação na universidade1 e levar à opinião pública esta
inquietação que inicialmente parecera só responder aos interesses de estudantes e pensadores. Estes
autores, entre os quais destacam Antero de Quental, Eça de Queirós, Oliveira Martins ou Teófilo
Braga, propunham uma renovação do país integrando-o em Europa e no caminho na ciência e no
progresso que esta já iniciara. Tendo sido abandonadas a metafísica e a espiritualidade da literatura,
o naturalismo e o realismo espalhar-se-iam cedo pelas criações literárias da época na tentativa de
poder expor os problemas que tinham de ser resolvidos para que Portugal pudesse abandonar o
atraso ao que se submetia face ao que acontecia em Europa. Surgem assim, desta semente, o
naturalismo e o realismo que “parecem ser, de facto, filhos legítimos de um século positivista e
crente na possibilidade de induzir leis a partir da observação rigorosa da realidade”2.
Contudo, os inícios dos estudos de uma das ciências das que falávamos com anterioridade bem
podia ter tido alguma influência sobre o que tinha de acontecer alguns anos antes do fim do século.
As ciências sociais, e portanto a sociedade como realidade ontológica, espalha-se pela literatura e
aterra em manifestações de grande sucesso. Fiéis aos preceitos positivistas, começa em Portugal a
sair à luz um considerável número de romances que, embora sejam efectivamente romances de
ficção e afectadas pela pragmase governante, servem-se de estratégias e esquemas cognitivas
próprias da exemplificação argumentar, muito vinculadas já ao campo textual das teses, os ensaios e
as crónicas científicas. As grandes obras a seguirem este conceito de escrita não se iam demorar e,
assim, de Eça de Queirós temos, por exemplo, O crime do Padre Amaro (1875) e O primo Basílio

1 “O chamado movimento da geração 70 iniciou-se em Coimbra e começou por revestir o aspecto de um protesto
contra a arcaica disciplina da Universidade. O próprio Teófilo Braga conta que o reitor se tornara muito odioso,
obrigando os jovens a abotoar a batina, a usar meia até acima do joelho, a recolher ao toque do sino (…). A
disciplina clerical da Universidade era, portanto, para eles uma execrável sobrevivência das tiranias pretéritas. Foi
por isso que na cerimónia solene de distribuição dos prémios de 1862, mal o reitor iniciou o discurso com palavras
sacramentais 'mocidade académica', a mocidade académica lhe virou as costas, saiu em bloco da sala e veio para o
Pátio dos Gerais fazer uma algazarra (…) A consciência burguesa sentiu-se inquieta, porque a Universidade e a
ordem que lá devia reinar era uma espécie de garantia futura da ordem estabelecida”. Em SARAIVA, A.J.: História
concisa de Portugal, Ed. Publicações Europa-América, Mem Martins, 2007.
2 MOREIRA DE SÁ (pág 18).

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(1878); sendo estas consideradas como verdadeiros exemplos naturalistas da época.
Consoante os paradigmas cientifistas da época à que nos referimos, o facto social introduz-se na
literatura como reacção à sensação de esgotamento e cansaço que surgiram da inevitável
comparação na altura feita entre Portugal e o resto da Europa além dos Pirineus. Ali, as obras que
vêem a luz causam em Portugal um efeito bastante diferente: o que é em principio um fascínio ou
êxtase pelos avanços científicos, converte-se em Portugal num agravante da consciência de
decadência anacrónica, fazendo da Geração 70 uma geração nomeadamente activa e contundente
no que diz respeito à intervenção social.
Apesar de serem estes primeiros brotares de ideias sociais fruto da máquina ideológica do
cientifismo positivista, muito cedo serão estas ideias, já mais crescidas, o rebentar da estrutura
filosófica do movimento de onde nasceram. O cientifismo teria contribuído inicialmente ao surto
sistemático e massivo de novas teorias que tinham influenciado, directa ou indirectamente os
estudos sociais e antropológicos, entre as quais sublinhamos:
– As teorias sociais de Proudhon Fourier e Saint-Simon.
– As teorias evolucionistas de Darwin, Lamarc, Estuart Mill e Spencer.
– A teoria comunista de Marx e Engels.
– O mecanicismo e o progresso explicado por Hegel.
Desta maneira, o surto das novas ideias não se ia demorar e frente ao positivismo até conseguir
desmitificar o papel da razão, e a atenção humana em demasia na interpretação e dominação da
natureza. Após o desenvolvimento das ciências sociais e humanas no seio do próprio cientifismo
reinante, iam ser as conclusões destas ciências as que, na procura dum eixo causa-efeito,
questionariam a base inicial da nova deusa: a ciência. Começam por surgir valores ditos “humanos”
que não se inserem em ciências específicas, e questões sobre a relação entre o homem e o universo
que não se conseguem definir por meio das áreas de conhecimento que foram trazidas pelo
positivismo. Com esta reacção, repara-se no facto de que o homem, portanto, tinha-se esvaziado de
conteúdo humano, da sua raiz telúrica, das suas mais íntimas aspirações, do seu inconsciente, da
intuição e de certos valores emocionais, morais e espirituais; que teriam agora de ser repostos no
processo que já em Europa iniciara o antipositivismo de Bergson, Nietzche, Freud ou Barrès.
Esta sensação de fartança iniciou já no fim do século XIX a infecção das crenças que tinham
sido inicialmente desenvolvidas pela mencionada Geração 70, que anteriormente fizera em Portugal
apologia do progresso científico como “valor absoluto”. Este estado embrionário da volta aos
valores metafísicos da realidade humana teria tido um testemunho directo, se bem que tardio, nas
palavras de Eça de Queirós numa crónica intitulada “Positivismo e Idealismo” onde evidenciar-se-

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iam já a oposição entre o facto material e o facto ideológico na tentativa de dar resposta ao que “não
pode ser mensurável e explicável pelas leis da fatalidade mecânica, (pois) existe, na alma do
homem, o mistério que está na base de reacções e movimentos espontâneos que ultrapassam a
simples previsão racional e inteligível”1.
No nosso autor, já próprio duma fase posterior à superação do positivismo, lemos n'A Águia um
texto que é capaz de nos ilustrar sobre o cariz que adquire a necessidade de ultrapassar à “deusa
ciência” na procura dos valores essencialmente humanos e patriotas:
(…) Na Itália, nota-se também um movimento literário, embora
orientado por um restrito ideal de progresso, no frio e metálico sentido da
palavra. Refiro-me ao futurismo. “Cantos de motor”, “Aeroplanos”, “Versos
eléctricos”, são títulos de Poemas! Vede até onde leva a obsessão científico-
indústrial! Ó pobre musa futurista, entre nuvens de poeira, no teu férreo
vulto estridente, vestido de reclames comerciais... Oh, que ilusão, que
estúpida ilusão a do homem que tenta matar a divina fome do espírito,
dando-lhe a roer carvão e ferro! (…) Não: a vida, a única matéria-prima da
Beleza, não está nos motores, nos aeroplanos ou na luz eléctrica. Tudo isso é
esqueleto. A Poesia, mesmo quando epitáfio, não desce ao fundo da
sepultura; conserva-se cá fora, sobre o mármore, onde pousam as aves
cantando e onde bate o luar e a luz do sol... (…) O nosso mais íntimo anseio
já não participa da nossa natureza. Ele cria, para além de nós, o
Sobrenatural, o Reino etéreo a que aspiramos. Cansado da palavra espessa,
erudita, racional, o homem espera. (…) Na verdade a palavra progresso tem
um sentido hirto e seco. Ela evoca imediatamente metálicos ruídos de
máquinas, sob um céu torvo de fumo, no meio duma paisagem sem árvores.
E pior ainda, transformou-se numa espécie de divindade egoísta e feroz,
rodeada de intolerantes e rubros sectários – corações encarvoados que
perderam o divino sentido das coisas, almas cegas de fumo tentando reduzir
o universo às trevas em que vivem ou, melhor, em que se deslocam... (…)
PASCOAES, “A Era Lusíada”

Os factos históricos que motivaram a mudança


Junto à falência finissecular das teses positivistas, iam acontecer, em Portugal e no seu contexto
internacional, uma série de eventos que acompanharam à sublevação de valores na viragem de
século por toda Europa. Assim, em Portugal, ao atraso do país na comparação com as potencias
ocidentais juntar-se-iam já outros factores que iam delapidar a credibilidade do sistema e dos
valores mais profundos que dizem respeito do sentimento nacional, da identidade comum e das
teses politico-sociais do momento.
O fôlego principal do que seria a maior desastre de valores nacionais já acontecida em Portugal
veio provavelmente com o Ultimato inglês de 18901, que provocou uma violenta reacção

1 “O Ultimato consistiu num telegrama enviado ao governo português pelas autoridades inglesas, a 11 de Janeiro de
1890. A missiva exigia a retirada imediata das forças militares portuguesas mobilizadas nos territórios entre Angola
e Moçambique. Esses territórios correspondem aos actuais Zimbábue e Malawi. Caso a exigência não fosse

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generalizada entre a população e em diversos campos da manifestação artística, sem esquecermos
da literatura. O ultimato supus o último pingo de água que podia aceitar o copo social português,
pois culminou o que já vinha sendo uma década de tensões em muitos termos. Concretizamos:
– O sector bancário aproximava-se a bancarrota
– Os empréstimos externos viam-se comprometidos com a falência
– A emissão excessiva de moeda originara uma alta de preços inflacionária
– Queda dos salários
– A contracção da já deficiente actividade industrial veio aumentar o desemprego
– Começa uma época de emigração massiva, com a perca considerável de mão de obra
– Grande dependência de tecnológica e financeira que acaba por implantar capitais estrangeiros
em actividades nomeadamente nacionais (construções civis, comunicações, etc.)
Esta brevíssima contextualização da paisagem económica do país explica a grande importância
que iam adquirir os planos para a expansão colonial em África. À semelhança do que já acontecera
no Brasil e na Índia, o Portugal de finais de século vira nos territórios da África a salvação para
resolver o atraso do país com a respectiva criação de novos mercados. Assim, na tentativa de
demonstrar a credibilidade do projecto colonial português, na I Conferência de Berlim (1884 –
1885), a Sociedade Geográfica de Lisboa projectou o estabelecimento de uma zona essencialmente
portuguesa na África de ocupação efectiva que acabou por chocar com as ambições inglesas ao
serem os projectos ingleses contrários à proposição portuguesa.
O Ultimato inglês, para além de ter sido a materialização mais estável da humilhação perante ao
resto da comunidade internacional, foi a porta aberta ao questionamento do sistema social,
económico, financeiro, ideológico e até religioso do estado. Pôs em questão não só a fraqueza do
país no que diz respeito às relações deste com outras nações no mundo, mas as frustrações

acarretada por Portugal, a Inglaterra avançaria com uma intervenção militar. Na segunda metade do século XIX, a
Europa conheceu um elevado crescimento económico. Esta situação exigiria novos mercados e novas fontes de
matéria-prima. Daí o forte expansionismo europeu em África durante este período. A Conferência de Berlim (1884-
85) criara um novo ordenamento jurídico baseado na ocupação efectiva; ou seja, as pretensões portuguesas baseadas
no direito histórico só se tornariam válidas se Portugal se apoiasse numa autoridade que fizesse respeitar os direitos
adquiridos e a liberdade de comércio e trânsito. Para Portugal, as colónias africanas tinham, sob o ponto de vista
económico, um papel quase irrelevante. Porém, Portugal tinha pretensões a criar um novo Brasil, um autêntico
império colonial africano, e esta era a sua última oportunidade para o conseguir. Multiplicam-se então as expedições
científicas ao continente africano e redobram-se os esforços diplomáticos. Assim, em 1886, Portugal dá a conhecer
as suas pretensões coloniais sob a forma do "Mapa cor-de-rosa"; tratava-se de um projecto de ligação da costa
angolana à costa moçambicana. O governo português dá início a várias tentativas de ocupação efectiva, numa
disputa colonial com a Inglaterra, nomeadamente com o plano de Cecil Rhodes, que pretendia ligar o Cabo ao Cairo,
sempre por solo britânico. A uma dessas tentativas a Inglaterra responde com o Ultimato. A notícia do mesmo e o
posterior acatamento por parte das autoridades portuguesas provocariam em todo o reino uma gigantesca onda de
indignação popular. Este sentimento é habilmente explorado pelas hostes republicanas; prova disso é a tentativa de
derrube da monarquia e instauração da república um ano depois, no Porto, na revolta de 31 de Janeiro de 1891”.
Fonte: “Ultimato Inglês”, Em Infopédia (em linha), Ed. Porto Editora, Porto, 2010.

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acumuladas no decurso do século XIX que, agora já, não se veriam isoladas como factos
independentes, mas como uma verdadeira rede de de desventuras e infortúnios que tinham, aos
olhos da sociedade, uma origem comum: a instituição monárquica.
Ao ultimato seguiu uma reacção de patriotismo exacerbada que ecoou pelo pais em favor do
partido republicano, única via plausível de resolução dos males que afectavam e afligiam ao país.
Desta forma, e como exemplo, na revista Anatema, no único número de 1890, Antero de Quental
denuncia um cisma sem precedentes no que diz respeito à percepção nacional em Portugal: o
divórcio entre a nacionalidade e o Estado; o fim da pertença dos sentimentos nacionais aos órgãos
de regulação política, para o que propõe um restabelecimento da unidade moral da nação. Dito
restabelecimento teria por fim a constituição de círculos ou instituições superestatais similares à
conhecida Liga Patriótica do Norte1, que pudessem se impor aos governos para obrigar ao Estado o
cumprimento da missão representativa e interpretadora do sentimento nacional.

O papel da literatura
Inicia-se, por tanto, o caminho para a resolução de dois objectivos aos quais a literatura não seria
alheia: a nacionalização do Estado e a moralização do povo que seriam, em conjunto, a mudança
esperada que tinha como intuito recuperar o país para o dinamizar como uma entidade forte a
ocupar um local de relevância no conjunto das nações ocidentais. A literatura, por tanto, “denuncia e
anuncia a redescoberta de valores nacionais pelos quais valesse a pena lutar” (Moreira de Sá). A
literatura de combate que já se iniciara no seio da Geração 70 começa agora por desenvolver novas
tendências que embora tenham o mesmo objectivo social do início, acabam por se manifestar
gradualmente no novo contexto de patriotismo.
Esta nova onda de sentimento nacional que se espalha pela sociedade vai levar aos autores da
época à análise das possibilidades de mudança que se têm em Portugal. Isto traz consigo uma forte
vontade de superação, de sobrevivência, de “fenixismo” para criar um país novo desde uma base
profundamente ideológica e não só artística. Era preciso desmantelar o que se tinha para criar uma
nova nação capaz de dar abrigo aos valores nacionais, e a república era indubitavelmente a melhor
opção: uma tábua rasa pela qual escritores e pensadores poderiam reagir com o frenesim que traz
consigo a ilusão própria de iniciar um novo projecto desde o mais cru dos seus começos.
Não demoram em aparecer tendências neo-românticas e neo-garrettianas que se enchem da
ilusão à que fazíamos referência; um crescente lirismo sentimental que se separa da ciência e da
técnica para ir procurar nas raízes o verdadeiro sentido nacional; ou até um historicismo de cariz
1 PEREIRA, GASPAR MARTINS: “Da liga patriótica do norte ao 31 de Janeiro: um momento de viragem na história
política portuguesa”, em Revista da Faculdade de Letras da Universidade do Porto – História, III série, Porto, 2000
(pp 113-125) http://ler.letras.up.pt/uploads/ficheiros/2338.pdf

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super-realista que vai afundar os seus objectivos na procura do orgulho pátrio do leitor. A volta aos
valores nacionais “de base” transforma-se num facto; num fim ao que se chega pela meditação e
assimilação dos valores próprios, autóctones, tradicionais e populares; que fazem parte, contudo,
duma nova originalidade de consenso que nunca se ia desprender da necessidade de progresso
social.

2 A IDEOLOGÍA
Com o surto dum novo esquema de valores, e não só de um grupo de ideias novas, os escritores e
pensadores da época de Pascoaes teriam de arranjar a maneira para se estruturarem e divulgarem
correctamente, no que passava por ser já um ideário nacional independente ao Estado, que surgira
perante uma população ansiosa de canalizar e resolver uma inquietude poucas vezes antes
experimentada. Este sentido de “dever” que se instaura na criação escrita da época vai levar aos
textos verdadeiros conteúdos principais e transversais que terão por fim a crítica do sistema em
falência e a exibição dos novos valores, até então julgados precisos para o “renascimento” nacional.
Assim, com o advento da república em 1910, nasce no Porto um movimento que pretende, na sua
base ideológica, a contribuição directa e efectiva na construção da cultura do povo português e a
revelação da alma lusitana no contexto republicano e revolucionário onde se inserira. Este
movimento chamou-se a “Renascença Portuguesa” e tinha como principal meio de manifestação a
revista A Águia onde, embora contribuíssem pensadores de diferente elenco, na sua maior parte
tratavam-se de poetas, pensadores, economistas, historiadores, sociólogos e pedagogos afins à causa
republicana. Assim, já desde Outubro de 1912 e com a publicação dos estatutos na revista A vida
portuguesa, estabelece-se um intenso plano de actividades que tratará nomeadamente sobre os
quatro planos antropológicos fundamentais julgados então “em crise ideológica”: o plano religioso,
o educativo, o social e o económico.
A ideia de regeneração integra-se no grupo como uma verdadeira espinha dorsal que acaba por
se ver envolvida numa atmosfera messiânica -ou até sebastiánica- pela que se espera do devir dos
tempos a chegada de uma força matriz capaz de dar a luz os anseios de superação e ressurgimento
da nação portuguesa. Desta maneira, as premissas que integraram estas ideias são essencialmente
duas, no que diz respeito a nova filosofia que traz consigo a fundação do grupo: 1) A vida está em
constante evolução e movimento e por tanto esta evolução não pode ser detida por nenhum
preconceito. 2) Os preconceitos ou formas de detenção de novos valores tem de se superar pela
crítica razoável dos mesmos.
Desta filosofia, unida ao facto de terem falido todos os valores do positivismo -cientifismo-, a
estética do grupo atenderá à criação neo-romántica, pessoal e intuitiva que vai privilegiar os temas

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históricos, populares, folclóricos etc., com o intuito de levar ao leitor e receptor das novas ideias
uma visão anímica da realidade portuguesa, para além do que anteriormente se considerara
“razoável”.
Para pôr as nossas conclusões palavras do próprio Pascoaes extraímos da revista A Águia o texto
seguinte que pode ajudar à resolução exemplar das questões filosóficas que dão forma ao grupo
onde o nosso autor se insere:
A Renascença Lusitana é uma associação de indivíduos cheios de
esperança e fé na nossa Raça, na sua originalidade profunda, no seu poder
criador de uma nova civilização. Esta fé e esperança não resultam de uma
ilusão patriótica, mas do conhecimento verdadeiro da alma lusitana, a qual
devido a influências estrangeiras de natureza política, artística, literária e
sobre tudo religiosa, se tem adulterado nos últimos séculos da nossa
História, perdendo o seu carácter, a sua fisionomia original e, portanto, as
suas forças criadoras e progressivas. O fim da Renascença Lusitana é
combater as influências contrárias ao nosso carácter étnico, inimigas da
nossa autonomia espiritual e provocar, por todos os meios de que se serve a
inteligência humana, o aparecimento de novas forças morais orientadoras e
educadoras do povo, que sejam essencialmente lusitanas, para que a alma
desta bela Raça ressurja com as qualidades que lhe pertencem por
nascimento, as quais, na Idade Média, lhe revelaram os segredos dos mares,
de novas constelações e novas terras, e, de futuro, lhe deverão desvendar os
mistérios dessa nova vida social mais bela, mais justa e mais perfeita. Logo
que a alma portuguesa se encontre a si própria, reaverá as antigas energias e
realizará a sua civilização (...).
PASCOAES, “O povo português da 'Renascença Lusitana'”

Assim, da conjunção de ideias geradas pela conclusões tiradas até este ponto temos um grupo de
pensadores e ideólogos com um plano de trabalho chamado “Renascença Portuguesa”, um órgão de
expressão público da mesma que é A Águia e, muito finalmente, um doutrinador “chefe” que, de
alguma maneira, vai dirigir o projecto bem como poeta maior bem como principal teórico e
doutrinador: o nosso autor, Teixeira de Pascoaes, que em palavras de Moreira de Sá “elevava a
essência do génio nacional a um conceito transcendente, entre histórico e metafísico, a que chamou
Saudade, fazendo deste sentimento-ideia o principio espiritual da humanidade, a qual mais tarde ou
mais cedo, na sua marcha histórica, haveria de para ele tender”.
Eis aqui, portanto, um “conceito-mãe” que de alguma maneira vai-se manifestar no projecto
renascentista de Pascoaes levando ao colo o conjunto de ideias, valores, morais e processos lógicos
que fariam parte integrante da reconstrução do país: a saudade. A Saudade, se bem que tenha uma
multidão complexíssima de definições diferentes, para Pascoas compõe um corpus ideológico onde
têm cabida todos os planos aos que fazíamos referência ao falarmos sobre o projecto renascentista.
Sentimento, mito, lembrança triste e esperança dinamizadora que, no fim da sua designação,

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acabaria por ser “a chave da alma nacional, a alavanca do sonho do ressurgimento de Portugal”
(Moreira de Sá). Desta maneira, Pascoaes fala duma “herança em conflito”, pois segundo ele, ao
serem os portugueses conhecedores da própria decadência, fazer-se-ia de aqui o inicio plausível do
ressurgir patriótico por meio da prática da saudade: uma mistura daquilo que foi com a vontade de
chegar a ser.
O guarda-chuva da saudade será, portanto, a matriz ao redor da qual desenvolver-se-á o pensar
do nosso autor quem, como já vimos, dirige como doutrinador principal o barco ideológico da
Renascença Portuguesa. Assim, após a emancipação nacional dos preceitos racionalistas -ou/e
positivistas-, com Pascoaes ilustramos a nova linha de pensamento que vai surgir como uma
estratificação continua na formação do novo “pensar” que vai reconstituir, num último intuito, a
“alma portuguesa”. Desta maneira, para iniciar o processo de tamanha empresa, Pascoaes iria
modificar o que é essencial no ser humano: a própria designação da existência do mesmo e a
relação que o Homem estabelece com o universo ao seu redor. O ponto de partida que o nosso autor
propõe para a reconstituição filosófica será, neste caso, o preceituário cartesiano “eu penso, lo
existo”. O nosso autor começa por não reconhecer a afirmação do pensador francês como
verdadeiro método intuitivo para a revelação da existência, estando esta, segundo a opinião do
nosso autor, isenta dum eixo fundamental da realidade humana: o facto poético e emotivo. Dito em
palavras de Manuel Cândido Pimentel, o que Pascoaes pretende com a crítica à razão existencial
cartesiana é “substituir o frio racionalismo da lógica cartesiana, que dificilmente concilia a vida
racional do cogito com as emergências afectivas, por um racionalismo cordial, tão atento à
actividade lógica do cogito quanto atento aos alogismos que o abrem sobre o ser para que o sum
aponta1”. Assim, à pergunta “Para onde aponta o sum?” temos é de responder com a ideia do
infinito: o inatingível pela nossa propriedade de saber e experimentar no que infinitamente é o
processo de pensar e existir. Contudo, em Pascoaes, como já vimos, não é só o pensar aquilo que
nos faz parte integrante daquilo que existe, mas o sentimento que acaba por ser a substância
plausível da própria consciência. A emoção é o próprio cogito que sente, o cogito saudoso feito das
lembranças do ser: lembranças que são ao final “verdades depuradas” a se integrarem nas “verdades
racionais” para fazer da existência humana um binómio genial: SENTIR + PENSAR = EXISTIR.
Desta maneira, o pensador reage aos preceitos cientifistas para se renovar e se refundar num
pensador-poeta que faz do conhecimento um processo que vai além do científico. Como exemplo, e
em palavras de Pimentel, “o conhecimento para Pascoaes toca a fímbria do seu saudosismo e se
guinda ao plano cósmico onde o eu e o universo se dão por transubstanciadora visão, já não da

1 PIMENTEL, MANUEL CÂNDIDO: “O irracional em Teixeira de Pascoaes”, em Revista da Faculdade de Letras -


Universidade do Porto, Série II, Vol. 21, Porto, 2004 (pp 149-158).

13
ordem lógica da razão, mas da ordem analógica do sentimento, com paralelo único com a matéria
glorificada pela acção do espírito”.
O que subjaz por baixo de esta nova cosmovisão é, em boa verdade, um novo prisma; uma nova
lente que traduz para o conhecimento -e portanto para a existência- a realidade que é manifestada.
O que obtemos da natureza por meio desta lente tem de ser interpretado não só pelas ferramentas da
razão já vistas em Descartes, mas pelas potências afectivas que nos revelarão a peça que nos faltava
na conclusão do sentido cósmico do homem: o verdadeiro espírito das coisas. Neste processo pelo
qual se adiciona o ingrediente metafísico ao facto existencial há, como já apontávamos, um guarda-
chuva que o vai cobrir tudo: um catalisador que tem em Portugal por nome “saudade”.
Longe de procurarmos uma definição científica do que é a saudade -o que seria bastante
paradoxal tendo em consideração as conclusões tiradas até este ponto-, retomamos o discurso que
fazíamos sobre esta ao inicio deste ponto quando dizíamos que a Saudade era “uma mistura daquilo
que foi com a vontade de chegar a ser”. Esta dicotomia que bem parece uma contraposição é, de
facto, uma manifestação única de duas peças assim percebidas, sem sermos pormenorizados no que
diz respeito de uma definição sintetizada em poucas palavras. Assim, a Saudade, como conceito
catalisador de um pensar, acaba por ser segundo palavras do próprio Pascoaes “o desejo da coisa ou
criatura amada, tornado dolorido pela ausência”: a activação de uma ideia que funde a lembrança e
a dor com o desejo e a esperança.
Este conceito aparentemente tão implausível deduz da sua percepção uma conexão indubitável
com uma reminiscência platónica fundamental, sendo a ideia a lembrança e a esperança o caminho
que faz ao homem ficar mais perto da sua refundação: da volta à origem que se perdeu. Esta
ligação, além de estabelecer um paralelismo fundamental com os objectivos da Renascença e da
refundação dos valores patrióticos, iniciara a progressão dum conceito abstracto “nacional” à esfera
do universal e cosmológico. Desta maneira, a saudade tem na sua composição a lembrança e esta é,
segundo palavras de António Braz Teixeira, “um estado anterior da espécie humana em que o
Homem era ainda apenas uma possibilidade indistinta contida na primitiva unidade originária do
Espírito divino1”. O desejo, o segundo componente da Saudade, faria parte, portanto, do caminho
estabelecido pela humanidade para o apreensão da verdade original na tentativa de reintegrar o ser
imperfeito na unidade primigénea. Esta percepção transcende ao além e citamos ao próprio
Pascoaes para exemplificarmos:

“É pela Saudade que o homem se lembra do ser espiritual que foi (pois)
ela põe a nossa vida em contacto com as remotas vidas que vivemos outrora
1 TEIXEIRA, ANTÓNIO BRAZ: “Em torno da metafísica da saudade de Teixeira de Pascoaes”, em Revista da
Faculdade de Letras – Universidade do Porto, Série II, Vol. 21, Porto, 2004 (pp 13 – 26).

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e também com as vidas futuras que virão pôr termo à nossa morte”.
PASCOAES, O espírito lusitano ou o saudosismo

Assim, a saudade portuguesa torna-se à resposta ao componente que faltava na percepção do


universo após a crise do cientifismo e, portanto, um novo caminho filosófico e religioso feito em
Portugal e capaz de se estabelecer como processo universal para o alcance da verdade e da origem.
Para Pascoaes, saber o mundo é ser poeta nele e segundo isto, a procura da verdade converte-se
numa poiésis1 criadora no caminho da interpretação da criação universal. O poeta -ou o escritor-
adquire por este meio um valor excepcional pois é aquele que é capaz de traduzir por meio das
palavras parte da complexidade que subjaz trás os objectos plausíveis e a vida física. Em A arte de
ser português lemos o seguinte:
“A sua emoção -do poeta- nasce do contacto de suas almas humanas com
a parte material e espiritual das coisas e dos seres contemplados. E desses
dois contactos resulta uma só impressão que lhes dá vida e actividade ao
génio literário. E digo génio literário porque o escritor português é muito
mais espontâneo e emotivo do que intelectual, o que imprime verdadeiro
encanto às suas obras nascidas directamente da inspiração (…). Elas -as
obras- ganham o que lhes falta em força dialéctica e construtora de
pensamento.”
PASCOAES, A arte de ser português

No mencionado livro que aqui estudamos, as referências que se fazem ao trabalho do poeta
como verdadeiro tradutor contemplador da realidade -e falamos já da realidade entendida desde o
ponto de vista saudoso- são várias e estão espalhadas ao longo do texto que, como já sabemos,
funciona à semelhança de um compêndio de leis e tratados que tentam de facto descrever, doutrinar,
legislar e analisar a essência da alma portuguesa. Julgamos a seguinte como uma das menções mais
surpreendentemente claras e esclarecedoras na totalidade da obra:
“Mas na Poesia aparece a alma de um Povo, no que ela tem de mais
profundo e misterioso. É por intermédio dos poetas que o génio popular se
vai fixando em figura viva cada vez mais perfeita. O poeta é o escultor
espiritual de uma Pátria, o revelador-criador do seu carácter em mármore
eterno de harmonia (...). Se a Ciência é a realidade das coisas fora de nós, a
Poesia é a sua realidade dentro em nós. A Ciência vê; a Poesia visiona,
transcendentaliza o objecto contemplado; eleva o real ao ideal; é criadora, e
as suas criações ficam a viver, a pertencer à Natureza que, nelas, se excede e
acrescenta às suas formas objectivas do domínio Científico, a beleza
espiritual. A poesia converte a matéria em espírito; e por isso intervém na
criação da alma pátria (…).”
PASCOAES, A arte de ser português

1 Para entendermos melhor este conceito que abrange muito amplamente a teoria da que falamos recomendamos a
leitura do primeiro capítulo do trabalho Filosofia de la producción de Enrique Dussel (1984) que embora muito
baseado no estudo das desigualdades sociais serve-nos para ilustrar o papel da criação na percepção do mundo.
Fonte: http://168.96.200.17/ar/libros/dussel/filopro/cap1.pdf

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A filosofia da saudade: o saudosismo e o impulso saudoso
O pensamento filosófico, podemos dizer existencial, do nosso autor tem na originalidade um
factor que não deixa de surpreender a quem aborda a sua obra pela primeira vez. Assim, vista a
mudança ideológica do país e os factores anteriormente estudados, da já mencionada tábua rasa
constroem-se novas teses que vão afectar qualquer âmbito antropológico até o momento conhecido.
O homem, na sua integridade ontológica, submete-se em Portugal a uma intensíssima revisão que
vai afectar os cimentos da percepção dele próprio, bem na sua existência individual, bem na sua
existência em relação com outras identidades. Os teóricos da Renascença, com o seu doutrinador
principal à frente do grupo, vão gerar novos conteúdos filosóficos com a pretensão que estes sejam,
ou tentem ser, a nova base sobre a qual teria de se estabelecer a nova nação, desligada já dos
preconceitos religiosos e monárquicos que, aos olhos dos críticos do início de século, tanto mal
tinham feito à nação portuguesa e à sua “alma” identitária. Agora, tem-se uma base essencialmente
portuguesa, uma filosofia de base platónica feita em Portugal que é universalizável e aplicável às
áreas humanas do conhecimento e da expressão emotiva: à religião, à política, à ética e à estética. O
facto de esta filosofia ter sido originada em Portugal e ter por fim à volta à origem não só dos
portugueses mas da humanidade no seu conjunto, faz aos teóricos deste pensamento sentir o povo
português de alguma maneira como um povo escolhido ou sublinhado no conjunto universal capaz
de ter gerado desde a sua idiossincrasia popular um caminho para a solução da imperfeição humana.
Motivo este mais do que suficiente para iniciar a restauração dos valores nacionais, a revalorização
do orgulho nacional e das teses que hão-de ser aplicadas à nova República Portuguesa.
Assim, transpostos os valores gerados pelo novo catalisador ideológico saudosista, em A arte de
ser português o nosso autor inicia o que podia ser uma espécie de legislação antropológica, baseada
no que seria o “bom homem” e portanto o “bom português”-conectados com a teoria platónica do
bem-, no contexto que se deduz da sua própria existência em concordância com as outras realidades
que compõem a humanidade. Já a linguagem descritiva, de verbos atributivos e frases simples;
como também a disposição da mensagem em parágrafos curtos, deixa bem claro que o senso e o
intuito do livro é basicamente didáctico, doutrinador e legislativo.
Estabelecem-se, portanto, leis da “Portugalidade” que tem sido confeccionadas pelos valores
filosóficos de base já adiantados no ponto anterior, e agrupados no que bem podíamos considerar
uma revisão do platonismo em virtude dum facto em essência português: falamos do saudosismo. O
intuito: revelar aos portugueses a “arte de ser português”. Contudo, após termos percebido que para
Pascoaes o processo artístico é, de facto, uma maneira instrumental de revelar a complexidade total
da alma das coisas; a suma do que se “vê” com a ciência com o que se “visiona” com a poesia; não
resultaria estranho para nós podermos mudar o nome do título do livro para assim esclarecer um

16
bocado mais aquilo que se pretende com o conteúdo do texto: “revelar o verdadeiro espírito
português”.
Não estamos, portanto, perante uma simples delimitação contextual que nos vai dar luz sobre o
que se entende da palavra “português”. Ou pelo menos, se verdadeiramente fosse uma delimitação,
seria em boa verdade quanto menos simples. Numa época de renovação nacional, o termo
“português” encontrava-se contaminado por uma enorme variedade de gérmenes que iam da miséria
social à perca da dignidade nacional perante outras potências estrangeiras. O termo não precisava
bem de ser renovado, mas de ser apagado e construído de novo segundo a prática do saudosismo:
revelar uma lembrança dum passado melhor junto com a esperança dum novo desejo capaz de
mudar o destino nacional.
Desta maneira, o “português” tinha de ser explicado aos portugueses na sua integridade
complexa, seguindo um processo estável e de acordo com a tipologia textual e linguística própria da
escrita filosófica, pedagógica e jurídica. Paradoxalmente, nem o nosso autor nem os seus colectâneo
em conjunto podem renunciar ao método científico já instaurado no século XIX como via pela qual
o que se lê interpreta-se objectivamente quando são forçados a transmitir uma ideia -ou compêndio
de ideias- com um fim concretizável.
Dito isto, o que se vai desfiar no nosso texto é mais do que uma descrição: é quase um manual
para perceber o mundo na sua integridade física e espiritual, segundo, como dizíamos, o
preceituário saudosista. Assim, existe um “físico” e um “espiritual” pertencentes a uma única
realidade que se desfaz em identidades diferentes. Estas identidades, que são as que compõem o
absoluto do universo, organizam-se e hierarquizar-se em relações de interdependência física e
metafísica forjando assim uma rede ascendente que terá por inicio os ditos “seres inferiores” e por
fim a identidade espiritual superior, chamémo-la “Deus”.
Desta maneira, a filosofia da saudade ou saudosismo, como já tínhamos adiantado com
anterioridade, bem pode ser percebida como uma revisão do platonismo de base fixado desta vez à
realidade portuguesa que parte dum conceito forjado no mais profundo do conteúdo idiossincrático
cultural: a saudade. Esta filosofia, porém, vai-se deslindar do platonismo de base para adquirir uma
visão bem diferente: até podíamos dizer dupla. Além do que já temos acrescentado aqui sobre a
procura da realidade complexa das coisas que se contemplam, a saudade tem um componente que
também incorre na procura do consciente por atingir o significado completo das coisas na sua
simbiose física-espiritual: a lembrança. Se bem que já tenhamos visto em Platão a teoria da
reminiscência, pela qual o ser humano ajuda-se duma lembrança da nossa alma para adquirir o
conhecimento das ideias; para a saudade, a lembrança e mais um caminho para atingir o
conhecimento, e não só um sinal do mesmo caminho. Aquilo que se lembra -e se sente- no passado

17
é para o pensar de Pascoaes e para a prática saudosa mais um anseio por uma realidade que já, após
ter passado ao nosso haver interior, foi completada e fornecida do lado espiritual que traduz o
objecto em ideia e, portanto, em realidade.
“A vida desejou conhecer-se, tornando-se consciente, limitando o seu
movimento progressivo, a fim de se poder contemplar nas suas formas
anteriores de morte e nas suas formas futuras de sonhada perfeição. A vida é
sempre ausente no passado e no futuro; e, por isso, o mundo é a expressão
de uma saudade”.
PASCOAES, A arte de ser português

Podemos dizer que a saudade tem, portanto, duas dimensões sendo esta imanente e
transcendente ao mesmo tempo, pois “enquanto a primeira se manifesta no desejo de possuir os
mundos e os seres que o homem vai perdendo nos caminhos da vida, a segunda (...) mostra ao
homem que é um viajante desta vida em busca da verdadeira Pátria de que foi expulso”1. Segundo o
próprio Pascoaes, e para sermos mais resumidos, a saudade e a sua prática completa o platonismo
original sendo uma linha com dois sentidos: aquele de onde se provém e o destino aonde se vai. A
lembrança é, por tanto, o lado da saudade que marca a origem -no sentido mais amplo do termo- de
uma remota perfeição; sendo o desejo, porém, o caminho para uma nova perfeição. Exemplificado
nas suas próprias palavras, “é pela saudade que o homem se lembra do ser espiritual que foi”, pois
“ela põe a nossa vida em contacto com as remotas vidas que vivemos outrora, e também com as
vidas futuras que virão pôr termo à nossa morte”2.
A saudade inicialmente portuguesa vai explicar como o homem universal é nomeadamente
espiritual, e como ele tem por natureza o desconforto com a vida “de facto” ou vida biológica. Entre
duas direcções, o ser humano debate-se entre o desconforto surgido pela dor, o sentimento de perca
manifesto na inacessibilidade das ideias lembradas, e o anseio de dar uma resposta espiritual ao
desejo futuro pela frustração que produz a simplicidade do apreensível. Esta tensão entre ou que se
experimentou e ou que se deseja experimentar vai delimitar, no nosso texto, o significado do
“impulso saudoso” que faz ao homem fazer parte dum caminho de realidades interrelacionadas e
dependentes, no que verdadeiramente é um “retornismo ascendente3”.
“Do sentimento saudoso deriva o nosso idealismo. Ele considera a vida
do espírito como sendo a libertação da matéria. A matéria existe, o espírito
vive, porque viver é ser consciente; ou antes, o espírito existe na matéria e a
matéria vive no espírito Espírito e matéria são a natureza inicial, diabólica, e
a natureza divina e final. Transmutar o demoníaco em divino, eis o nosso
ideal que consiste, no campo patriótico, em elevar o criador animal e

1 TEIXEIRA, ANTÓNIO BRAZ: A filosofia da saudade, Ed. Quidnovi, Lisboa, 2006 (pág 36).
2 PASCOAES, TEIXEIRA DE: O génio português na sua expressão filosófica, poética e religiosa, Ed. Renascença
Portuguesa, Porto, 1913.
3 Conceito fundado por António Braz Teixeira na sua obra A filosofia da saudade, anteriormente citada.

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individual a criatura espiritual: família, pátria; em encontrar a harmonia
entre as duas formas da Realidade, esperança e lembrança no campo
filosófico (...)”
PASCOAES, A arte de ser português

Instintivamente, o homem saudoso luta pela revelação espiritual do desejo não só por satisfazer
as frustrações da vida sem espírito mas para se encarnar numa entidade espiritual maior da que
originalmente se desprendera. É assim como lembrança e desejo são, na verdade, as duas faces da
mesma moeda à que o homem aspira num impulso saudoso instintivo, empurrado pela insatisfação
da vida imperfeita.

As identidades espirituais
No texto que estudamos revela-se portanto, desta realidade filosófica, que o ser humano se insere
numa cadeia de identidades físicas e espirituais às que é ligado por meio de, basicamente, deveres
fundamentais ou o cumprimento da “lei suprema” por meio do “sacrifício”. Esta cadeia ia ordenar
as realidades do mundo desde a mais simples e física; o mineral, até a mais complexa e espiritual;
Deus. Numa cadeia que em boa verdade é uma escada até a mais complexa das realidades1, o
homem bem pode ser, nesta cadeia, a entidade intermédia e, portanto, portadora da importância da
nuclearidade e centralidade -da que se deduz um importante facto antropocêntrico-, como também
da desconformidade do impuro ou misturado. O ser humano insere-se portanto no que seria o
equador das realidades universais, no meio do caminho que o levaria até à máxima revelação
existente. Assim, cada degrau da escada responde a uma entidade com um papel no mundo, com um
dever e uma lei que há-de ser comprida em virtude do dever espiritual ou impulso saudoso que vai
dar resposta não só à correcta existência de dita identidade, mas ao dever de governo ou sacrifício
estabelecido com a identidade anterior e posterior da mencionada escada. As identidades que se
mencionam n'A arte de ser português e que portanto formam parte do compêndio ideológico que
estudamos são as seguintes, exemplificadas num gráfico que atende às relações que se estabelecem
entre os diferentes degraus:

1 Termos substituído neste ponto o emprego da palavra “perfeição” pela locução “mais complexa das realidades”
responde, no entanto, a uma questão lógica que ainda fica por ser desenvolvida no conteúdo do nosso trabalho.
Embora Pascoaes dissesse que “Deus está na origem de tudo” e portanto segundo a bicefalidade da saudade também
no fim de tudo, o nosso autor acreditava que Deus não era a perfeição pois a imperfeição era eterna, ao sê-lo
também o desejo. Além disso, Pascoaes acreditava que a criação tinha sido um “pecado” ou uma “imperfeição” de
um Deus diminuído que sendo a última e mais elevada criatura, subjazia também baixo a primeira e mais simples
das manifestações físicas. A criação é, segundo estas teorias, a queda; a cisão pela qual Deus tornou o mundo
material numa criação imperfeita e errónea. Fonte: TEIXEIRA, ANTÓNIO BRAZ: A filosofia da saudade, Ed.
Quidnovi, Lisboa, 2006 (pp 30 - 42).

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No gráfico como, entre as diferentes entidades que compõem o universo segundo o nosso autor,
o homem, como já tínhamos avançado, é o centro: o equador e na linha que vai separar aquelas
entidades que unicamente fazem parte física do mundo e as identidades que se tornam tijolos
espirituais da realidade complexa universal. Para Pascoas n'A arte de ser português cada uma das
identidades que se encontram na nossa escada é contentora da identidade precedente e portanto
“mais importante” ao serem “seres espirituais cada vez mais complexos” que mantêm uma série de
deveres e razões para eles próprios e, como imaginamos, em relação ao resto das identidades.
Em palavras d'A arte de ser português, a vida “se corporiza ou exterioriza sob formas diferentes,
em graus de diferente qualidade, distanciados talvez pela acção do Tempo sobre o Acaso (…) a
verdade é que nós vemos uma pedra, mais adiante uma árvore, e depois um homem. Percebe-se em
todas estas formas da Natureza uma ordem ascendente que vai da pedra ao homem. O mineral
preparou o advento do vegetal e o vegetal preparou o (do animal e) do homem por um progresso”.
Daqui extraímos que, efectivamente, a ordem da vida é biologicamente ascendente, sendo este
ascenso até o homem, o cume da escada das entidades. Contudo, o que nos diz Pascoaes ao respeito
da ordem natural das coisas vai ainda mais longe considerando que o homem, além do cume já
conhecido pelas relações biológicas até ele constituídas, estabelece o início de mais uma cadeia,
esta vez de identidades complexas, que vão ganhando espiritualidade e importância por cada grau
atingido. Lemos n'A arte de ser português:
“Mas esse esforço findará o homem? Não. Para além dele, a Natureza já
adquiriu uma forma de ser superior a ele: a forma espiritual. Assim como a
árvore preparou o advento do homem, o homem preparou o advento do
espírito. Os nossos sentimentos e as nossas ideias são expressões espirituais
da vida; o seu aspecto mais perfeito e, portanto, mais real”.

Assim, como adiantávamos, o homem acaba por ser, na ordem ascendente da vida e portanto da
natureza, a última peça do material, o físico e o tangível; e a primeira do espiritual. O caminho até a
maior das complexidades espirituais da natureza iniciar-se-ia, como é óbvio, com o homem. Assim,
para Pascoaes, o impulso saudoso, inato no ser humano, será o motor que mexa a correcta

20
integração do homem nas suas entidades superiores, ao ser o homem um ser com pretensões
espirituais; com o instinto de integração preciso para a correcta ascendência em direcção à
complexidade espiritual; ao desejo e à lembrança, que são em instância última, o fim do homem
como ser na terra. Sendo assim a Saudade uma razão ou método para dita ascendência, os
portugueses como povo têm as ferramentas precisas para o emprego de dito método na superação
das imperfeições que até o presente do autor tinham levado o país à crise e a instabilidade.
O caos ao que o país se encontra submetido é, para Pascoaes, produto de uma alteração da ordem
que vimos; uma alteração da lei suprema que integra às identidades, às individualidades 1, em
individualidades superiores dependentes das inferiores. Para o cumprimento da lei universal,
segundo a qual “o superior vive do inferior”, é preciso constituir uma moralidade coordenadora dos
deveres e funções precisas para o bom funcionamento da ordem natural, já que “sem acção moral
pode haver existência, mas não há vida. E a própria acção material, não sendo espiritualmente
orientada, esteriliza-se”.

Lei suprema e sacrifício


Segundo Pascoaes no texto que tratamos, “a lei suprema da vida é a lei do sacrifício. Ela rege a
própria harmonia universal. Se desaparecesse, o mundo voltaria ao Caos. O português, ser
individual e humano, deve sacrificar a sua vida à Pátria Portuguesa: ser espiritual e divino (…) a lei
escrita não pode revogar o que a vida legislou”. Desta maneira, deduz-se que o cumprimento duma
correcta moralidade ia recompor e restabelecer a ordem que em Portugal se perdeu para reiniciar de
novo, por meio da prática saudosa, a ascendência do povo já como individualidade colectiva e como
pátria.
Segundo o nosso autor, a primeira premissa que vai-nos ajudar no completo cumprimento da lei
suprema, a moralidade da ordem natural, é o sacrifício. O sacrifício, para o primeiro grau da escada
espiritual ascendente, o homem, é a estratégia pela qual o individuo renuncia à sua natureza
espiritual e portanto a parte da sua existência pela pertença a uma individualidade superior que vai
gerir e governar às individualidades inferiores das que se compõe. O individuo humano, o cidadão
português, tem na sua complexidade espiritual a obrigação de contribuir à reparação do caos pela
intervenção sacrificada à individualidade colectiva superior que o rege. Assim como “o rio é a
morte de muitas fontes e o mar é a morte de muitos rios”, o ser humano e a sua consciência
espiritual “é também a morte e sacrifício de muitas vidas animais e vegetais inferiores a ele”. Por
1 O emprego da palavra “individualidade” após termos usado ao longo do nosso estudo o termo “identidade” não é
arbitrário. É para nós, de facto, uma evolução contextual que se tem feito com o intuito de adequar a realidade à que
se fazia referência às explicações que se iam dando. Com isto dizemos que uma “identidade” é um ser que excede à
“entidade” como existência simplesmente material, e acaba por ser uma “individualidade” quando temos
consciência da sua independência integral e relação vinculante (e dependente) com outros seres.

21
isso, o facto de o homem se manifestar alheio à causa integradora universal põe-no fora da ordem
natural, fora do sucesso espiritual, da ascendência que mantém vivos os indivíduos superiores,
sendo assim culpado e causante da falência do sistema e do caos provocado. Portanto, como o rio
após morrer no mar “é mar”, e os animais após terem-se sacrificado pelos seres humanos fazem
agora parte deles, o cidadão tem a obrigação de reduzir a sua individualidade à pertença integral
doutra superior: a família, a pátria, e Deus.
“Acreditemos nos seres espirituais, Família, Pátria, Humanidade, as três
pessoas de Deus, traduzindo formas de vida superiores à nossa, e às quais,
portanto, nos devemos sacrificar, amando, lutando e trabalhando. E então
não mentiremos à nossa natureza escrava que quer ser livre e ao nosso
destino de sacrifício e redenção”
PASCOAES, A arte de ser português

Esta premissa serve-nos de base para entender também o estrato imediatamente seguinte ao ser
humano, que é a família. A família e a individualidade prévia à pátria que, na sua prática, forja ao
patriota como um autêntico e funcional tijolo da realidade superior à que faz parte. O individuo tem
de ser, assim, bom homem e bom pai, pois a família em palavras do próprio Pascoaes, “deve
constituir uma pequena Pátria (com) a sua alma, a sua personalidade própria, a sua raça, enfim.
Deveria, como as pátrias, estar ligada indissoluvelmente a um certo território, a um certo país com a
sua capital, a velha casa, entre as velhas árvores, onde o Páter, o Chefe do pequeno Estado, viveria,
sob a sombra tutelar de venerados fantasmas avoengos”.
Ao esclarecermos a estrutura dos indivíduos e os vínculos de relação existente entre eles, só
temos de definir o que para Pascoaes era verdadeiramente cumprir a lei suprema. Sabemos portanto
o que é a lei suprema, mas o seu cumprimento deve-se a que as peças da seguinte individualidade
sejam, efectivamente, “boas peças”. O individuo humano, portanto, tem de ser “bom” para assim
poder-se integrar ditosamente na seguinte individualidade e fazer desta uma representação saudosa
do fim espiritual do homem na sua integração com o último individuo complexo, seguindo o
“retornismo ascendente” ao que no ponto prévio já fazíamos referencia.
Contudo, faltam-nos as qualidades que nos proveriam do conhecimento preciso para saber o que
é de facto “bom” e “mau”. Se bem que não são muito pormenorizadas, algumas pistas são-nos
dadas n'A arte de ser português num episódio intitulado “Como cultivar o sentimento de sacrifício”.
O bom indivíduo é, segundo o nosso autor, “a matéria-prima de todos os seres
espirituais aludidos” e “deve por tanto cultivar a sua vida animal, fortalecê-la e
embelezá-la”. O homem tem primeiro de se preocupar pelo seu aspecto físico -ou
fisiológico-, pelo “culto divino da saúde que é a fonte da alegria e da beleza”, pois o
físico é o substrato inicial de onde surgisse a alma pátria, já que “é o culto divino da

22
saúde que é a fonte da alegria e da beleza, do desejo actuando sobre a herança ou a
lembrança”, porquanto “desta acção resultará o Renascimento”. Pascoaes, no seu
discurso legislativo, lança algumas afirmações que ilustram, em linguagem
extremamente directa e simples, as linhas fundamentais para o bom cumprimento da lei
suprema. Damos aqui alguns exemplos como: “O individuo belo e saudável transmite
beleza, saúde e alegria à (…) pátria (e a) humanidade. O individuo feio como que
anoitece o mundo... tem o quer que é de criminoso”; “O homem que despreza a saúde
não pode ser bom pai nem bom patriota”.
Este amor pelo belo e o saudável é já, para Pascoaes, a semente dum sentimento
espiritual, o passo prévio ao amor paterno no que se fundamenta toda a filiação que
mantém ligados os laços de dependência estabelecidos entre as diferentes
individualidades. Amar à saúde é, portanto, uma original forma de amor que prova e
forja as seguintes formas de amor na escada do retornismo ascendente. Dito assim, é
“amar o futuro, criar a capacidade de trabalho (e) saber, enfim, cumprir a lei do
sacrifício”.
O bom pai é já um constituinte duma identidade espiritual superior que abandona a
sua face material sendo, desse modo, uma aglomeração de indivíduos humanos. Desta
aglomeração, o pai é, para Pascoaes, o aglutinante e a peça em torno da qual se
estratifica a unidade familiar. Um pai é bom para Pascoaes quando fomentasse “a vida
económica e moral da pequena comunidade; educando, trabalhando e fixando a tradição
familiar num sentido progressivo, isto é, combatendo-lhe as más tendências para lhe
despertar as boas”. Um bom pai, segundo esta tese, tem de se ter revelado, em essência,
um bom indivíduo saudável capaz de ter a energia suficiente para gerir o destino do
individuo familiar. Além disso, o pai lidera e encarna, pelo culto ao patriotismo e à
religião, o fim do indivíduo familiar no seu caminho até a integração em indivíduos
superiores: estes são a pátria e, no final, Deus. Em palavras de Pascoaes, o pai “será
uma alma religiosa, adorando a Deus, como suprema perfeição, na Família, na Pátria e
na Humanidade, conforme o poder emotivo do seu espírito, ou sua capacidade amorosa
e representativa do Universo”.
O bom patriota será seguindo a evolução desde o ponto anterior, aquele homem que
excede o seu sacrifício por ele próprio e pela família para, sem destruir os interesses dos
indivíduos anteriores, dar prioridade à existência e bom funcionamento duma
individualidade superior e, portanto, mais gloriosa, que é a pátria. Segundo Pascoaes, “o
bom português deve cultivar em si o patriota, que abrange o indivíduo, o pai e o

23
munícipe, e os excede, criando um novo ser espiritual mais complexo, caracterizado por
uma profunda lembrança étnica e histórica e um profundo desejo concordante, que é a
repercussão sublimada no Futuro da voz secular daquela herança ou lembrança”.
É neste ponto onde vemos mais evidentemente uma sentencia do nosso autor perante
a realidade actual que vive o país, sendo, segundo ele, a falta de subordinação do
indivíduo à pátria o que tem afectado negativamente o estado político e económico do
país. Assim, o facto de terem sido os portugueses almas que “não atingem a vida pátria”
é em A arte de ser português um erro na percepção filosófica da realidade complexa do
homem e da sua integração na entidade maior. Desta maneira, uma pátria doente faz, em
contrapartida, municípios doentes, famílias doentes e indivíduos doentes; pois segundo
ele, Portugal revela-se como “um meio em que as almas, incolores, duvidosas da sua
existência, materializadas1, não atingem a vida da Pátria, rastejando cá em baixo,
entretido em mesquinhas questões individuais e partidárias”.
Deste ponto deduz-se em grande medida o objectivo principal da obra à que nos
referimos, sendo a falta de consciência patriótica, segundo Pascoaes, a principal
responsável pela decadência do ser superior espiritual que acaba por ser, em termos
gerais, a pátria e portanto o próprio país2. Além de conhecer a filosofia saudosa que para
o português e para a humanidade gere o cosmos completo, o bom patriota -e portanto o
bom português- tem de ser responsável pelo conhecimento do compêndio de ideias que
constituem a realidade patriótica, fazendo referência aos conceitos antropológicos
principais dum povo: língua, história, etc., sendo para Pascoaes a agrupação destes
conceitos a herança, a “raça” e, já em termos saudosistas, a lembrança que revela a
verdade complexa da pátria.

Raça e alma pátria


Para quem já se habituara ao estudo dos conteúdos tradicionalmente aceites no conceito da
“raça” pode se ver forçado a assumir alguns preconceitos -ou até algumas ideias estereotipadas- na
avaliação do haver ideológico do nosso autor, e do texto que estudamos. Longe de percebermos o
tratamento da raça como aquilo ao que nos habituáramos, para Pascoaes é uma palavra com a
capacidade de conter uma grande complexidade significadora: um receptáculo de significados que

1 Entendemos aqui “materializado” como um indivíduo que vive na inconsciência do seu eu espiritual e da
necessidade de o integrar em indivíduos complexos superiores capazes de o conter na procura duma integração total
à ordem do universo.
2 Lê-mos n'A arte de ser português uma menção directa ao fim do texto na que o autor expõe que “o fim deste livro é
dar acção moral ao indivíduo, num sentido patriótico, fortalecendo-lhe o carácter português” sendo o carácter “a
expressão total das qualidades conservadas e transmitidas pela tradição que definem uma raça”.

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têm como última finalidade a constituição -ou reconstituição- da alma pátria.
Dito isto, sendo como é a pátria um ser nomeadamente desmaterializado, os portugueses hão-de
ser conscientes de que são eles mesmos os que com o seu sacrifício forjam a integridade do espírito
da pátria -a alma pátria-. Além disso, os portugueses, espíritos-tijolos duma realidade superior e
mais complexa, têm é de saber quais são as ligações que se estabelecem entre eles como peças
integradoras da pátria, que são os porquês que revelam a obrigação de se integrarem entre eles e não
com outros.
À pergunta “O que é ser português?” Pascoaes responde com a afirmação da existência da raça e,
finalmente, da pátria. Pascoaes, com o intuito de levar A arte de ser português ao plano dos manuais
didácticos da mocidade, sintetiza até os mínimos sintetizáveis o que não deixa de ser um termo
extremamente complexo e revela que a raça é “um certo número de qualidades electivas próprias de
um povo, organizado em pátria, isto é, independente, sob o ponto de vista político e moral. Tais
qualidades são de natureza animal e espiritual, resultantes do meio físico e da herança étnica,
histórica, jurídica, literária, artística, religiosa e mesmo económica”.
As conclusões que podemos tirar desta definição não são poucas. Em principio, mencionam-se
termos como “povo” que, no que diz respeito à percepção antropológica do mesmo, fica bastante
pouco esclarecido. Entendendo-o como uma conjunção de indivíduos independentes, custa-nos
elucidar que “povo” está, de facto, conteúdo na ideia de “raça”, pois acaba por ser como esta um
termo de grande complexidade conceptual. Contudo, ao acabarmos de ler a definição tiramos uma
conclusão que vincula à percepção da raça com o que para Pascoaes é a alma da mesma: o
sentimento saudoso. São assim as lembranças, a herança, o que foi e aquilo que por diversas
questões tem sido partilhado, o que acaba por definir os limites do termo. Raça é, portanto, o
significado complexo da pátria em termos saudosistas; a visão saudosa duma realidade complexa
que se revela por meio da lembrança e se projecta até o futuro pelo desejo, igualmente ao que se
passa com o resto das individualidades complexas que fazem parte da escada de seres universais.
No que diz respeito à pátria como um ser complexo, o seu espírito tem um nome, a raça: o cimento
que dá forma e sentido ao muro de espíritos-tijolos que, após terem experimentado o seu
conhecimento e o impulso saudoso, verão preciso e razoável se juntarem uns com outros para assim
completar a integração e tornar Portugal de novo não uma pátria doente de indivíduos doentes, mas
um reflexo da lembrança do que foi, projectado pelo desejo de uma individualidade superior.
Já sabemos, portanto, que a pátria é uma realidade superior de cariz essencialmente espiritual e
que o grupo de peças que compõem o seu espírito chama-se raça. Sabemos que a raça faz a pátria,
mas não sabemos o que resta do termo “pátria” após termos definido a raça. Efectivamente, a pátria
é essencialmente espiritual, mas, além da paisagem e o sangre, tem um reflexo material que se vê e

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que se questiona: o Estado. A máquina plausível da pátria -e responsável pela independência da
mesma- é a face material que resolve a nossa equação: RAÇA + (ESTADO + PAISAGEM +
SANGRE) = PÁTRIA. Se bem que os seres complexos percam gradualmente a sua materialidade
ao se integrarem em individualidades superiores, só Deus será efectivamente um ser sem
materialidade e portanto as entidades inferiores a este serão, em parte, materiais e alvo de sofrerem
a imperfeição e a doença. Deste modo, o nosso autor acrescenta um exemplo ao dizer que uma raça
“pode sobreviver à pátria, na qual se contém a ideia de independência política. A raça polaca
sobreviveu à pátria polaca”. Pascoaes acabará o seu discurso sobre a raça com a afirmação: “uma
raça independente, sob o ponto de vista político, é uma pátria”.
Assim, para educar ao português no seu impulso saudoso que lhe integre nas individualidades
superiores é preciso eliminar aquela face “mesquinha” do ser humano que, n'A arte de ser
português concebe-se natural e inata. Se calhar desde um ponto de vista bastante pessimista, Miguel
Esteves Cardoso escreve na introdução à edição do texto que estudamos umas sublinháveis palavras
que nos levarão até o seguinte ponto:
“(Pascoaes) quando imaginou os portugueses, entregando-lhes as
palavras e as visões que só a ele pertenciam, enganou-se. Os portugueses
não queriam ser quem ele queria. Os portugueses de Pascoaes nem sequer
existiam. Pascoaes nunca percebeu que era tudo menção dele. (…) Pascoaes
queria entrar em Portugal como convidado dos portugueses. (…) Nunca
admitiu que era um estranho. (…) O mundo que Pascoaes quis proteger, e a
quem entregou a vida, era Portugal. Sonhava pertencer-lhe mas nunca lhe
pertenceu. (…) Os portugueses que ele tanto queria perceber não lhe
percebiam. Mas Pascoaes ouviu-os de mais, acreditou de mais neles,
escreveu de mais sobre eles”.

Neste texto reparámos numa visão actual e negativa do pensar do nosso autor, baseada na ideia
de que as questões reveladas por Pascoes não foram, como lemos, percebidas pelos destinatários
dos ensinos d'A arte de ser português. Assim, segundo percebemos da leitura da introdução de
Cardoso, entre Pascoaes e os portugueses houve uma falha. Nós entendemos que a falha bem pode
ter sido a falta de uma resposta a uma pergunta que não foi bem formulada. Sabemos que Pascoaes
se perguntou sobre o que era ser português mas nunca se perguntou a si próprio e aos portugueses
“Porque ser português?”. À pergunta teriam surgido uma serie de questões antropológicas que
provavelmente poder-se-iam revelar numa moralidade capaz de encher a falha que separa aos
portugueses da ideia de serem tijolos não duma pátria mas da pátria portuguesa. Sabem-se, portanto,
os “ques” mas não os “porquês” no que se deduz do verdadeiro sentido de pertença, muito magoado
pelos sucessos que atingiram o devir das vidas dos portugueses contemporâneos ao nosso autor.
Entendemos, pois, que a ligação que faz aos portugueses se sentirem com a vontade de se unir a

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certos tijolos com o intuito de construir certa pátria é mais do que uma raça ou um impulso saudoso
e merecia estabelecer umas “regras do espírito”: uma moralidade... uma religião.

Religião e saudade
Embora Pascoaes admitisse desde o início a essência criadora de Deus e a presença deste na
origem de tudo, a inserção do ser divino na escada de seres que compõem a realidade universal
deixa algumas dúvidas sobre a relação de Deus com a filosofia do saudosismo. Transcende,
portanto, que o saudosismo é uma filosofia que tem ao homem no seu centro de gravidade e que são
as emoções de este as que gerem de alguma maneira a revelação da face complexa das
individualidades da dita escada. O homem que, como a pátria, é susceptível de sofrer a imperfeição,
com o ascenso na integração nas entidades superiores esta susceptibilidade, longe de se esgotar,
perpetua-se no que acaba por ser uma contradição. Deus, segundo este facto, é imperfeito ao
haverem constituintes imperfeitos: indivíduos doentes em pátrias doentes numa humanidade
imperfeita. Assim, se Deus está no fim de tudo, Deus há-de responder à razão de ser constituído
pelos indivíduos que fazem parte dele e tem de, ao se inserir no saudosismo, sofrer a saudade: a
lembrança e o desejo.
Contradiz-se, aos nossos olhos, a existência de um Deus criador que, em termos saudosos, é
periférico e imperfeito. Em palavras de António Braz Teixeira, “Pascoaes pensava que a
imperfeição é eterna, como são a dor e o amor, sendo, por isso, Deus não um absoluto mas tão só
um quase-absoluto apenas esboçado”. Após dita afirmação, não é para nós estranho que Deus, um
quase perfeito imperfeito, seja capaz de sofrer a saudade desde a sua imperfeição, sendo mais uma
peça no caminho ao inatingível e não o que teria de ser atingido. Explicar-se-ia, assim, que o menos
imperfeito dos seres e criador tenha sido capaz de criar a imperfeição e ter saudades do que não
pôde criar. O antropocentrismo da saudade revela, portanto, um Deus que precisa do homem para se
constituir, pois a saudade pertence aos homens e esta, no próprio Deus, desvela-se como “a
memória abissal do seu pecado criador e da omnipotência perdida, é desejo, igualmente, abissal, de
recuperá-la, num regresso que, no entanto, só com a colaboração do homem pode conseguir-se”1.
Deus, portanto, só se entende pela passagem pelo humano; a través da consciência e do instinto
intrínseco que leva ao homem à procura da complexidade: da verdade em termos completos. Assim,
Deus faria parte integrante e indissolúvel das “regiões mais recônditas do ser, sendo uma percepção
antepredicativa e pré-reflexiva que, emergindo pelas categorias do conhecimento, reclamará na vida
interna da consciência a necessidade do sentido que una transcendentemente toda a diversidade”2.
1 TEIXEIRA, ANTÓNIO BRAZ: A filosofia da saudade, Ed. Quidnovi, Lisboa, 2006 (pág 37).
2 NORONHA, MARÍA T. D.: A saudade: Contribuições fenomenológicas, lógicas e ontolótigas, Ed. Impresa
Nacional – Casa da Moeda, Col. Estudos Gerais – Série Universitária, Lisboa, 2007 (pág 195).

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Deus, como identidade individual e complexa, é Deus porquanto o homem quer que o seja, na
sua consciência existente e na necessidade de a prolongar sistematicamente no caminho saudosista
até a catarse vitalista, muito parecida à lida em Aristóteles. Para Pascoas, o destino inatingível, o
grande princípio-final divino é “uma protesta transcendente (que) vive personificada em nós, se
formos ateístas; ou vive em si própria deificada para as pessoas religiosas cujo espírito é irredutível
a puros conceitos racionais”1. Desta maneira, a dependência de Deus para com o homem afasta às
ideias saudosistas de Deus dos paradigmas conceptuais estabelecidos pela Igreja Católica Romana.
O saudosismo, portanto, não é compatível com a ideia tradicional e apostólica do criador, pois para
o mesmo Deus é, como apontávamos, imanente nos seres humanos individuais e complexos como
parte da sua razão para existir, meta catártica na consciência da própria complexidade e o principio-
fim absoluto que se lembra e se deseja num processo profundamente saudosista: a reinserção
ascendente. N'A arte de ser português lemos:
“Adoremos a família e a pátria, os verdadeiros santos do cristianismo
português; e, neles, adoremos, por fim, o supremo ser espiritual, -Deus... a
longínqua e eterna representação do mais sublime anseio da alma, sempre
inquieta e sobressaltada na sua tendência, cada vez mais pura, para uma
justiça mais justa, uma beleza mais bela, uma liberdade mais livre, para um
amor cada vez mais amoroso...”

Dito isto, acrescentamos mais uma tese da Doutora Maria Teresa de Noronha, que julga no seu
estudo, A saudade, contribuições fenomenológicas, lógicas e ontológicas, que a ideia de Deus
constitui, para o saudosismo, uma espécie de humanismo cristológico pelo qual o homem é mais um
enviado de Deus aflito pelo estigma da materialidade que só se poderá resolver pela ressurreição é,
em instância última, a renovação.
O facto de termos associado o fim divino do homem com a punição como presente e a
ressurreição como objectivo cria, para o saudosismo, um paralelo bastante simétrico com a
realidade da nação portuguesa e o seu devir, muito enraizado no discurso dos primeiros teóricos da
saudade. A renovação saudosista da ideia de Deus dava, portanto, um novo rumo à teologia nacional
na procura duma religião autêntica afim à nação autêntica -à república- capaz de reorganizar o
sentimento divino dum povo. Para Pascoaes, a saudade é uma razão poética que faz da procura
pragmática da verdade e do eterno conhecimento, a única e verdadeira religião. Isto é, além dum
pensamento teológico estruturado, a razão que dá valor à renascença portuguesa.
Com isto, é fácil deduzirmos que, embora cristã em certa medida, a perspectiva saudosa de Deus
se afasta daquela derivada da ideologia católico-romana que acabaria sendo profundamente
criticada pelos teóricos da saudade -nomeadamente Pascoaes e Coimbra-. Segundo eles, a saudade,

1 PASCOAES, TEIXEIRA DE: O homem universal e outros escritos, Ed. Assírio & Alvim, Lisboa, 1993 (pág 96).

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intrínseca no ser humano, é a única maneira capaz de desencadear a nova religião, pois o ser
humano, com o desejo de atingir a verdade absoluta, tem, além disso, saudades de si próprio:
lembranças do que se foi que activam o desejo de chegar a ser. O catolicismo, portanto, seria uma
maneira impura e imperfeita; “mergulhada em vícios clericais (e) sedimentada sobre os estatutos da
Igreja Romana” (de Noronha), que em Portugal completar-se-ia com o pagão numa espécie de
laudável mistura de feitos culturais justapostos ao longo da história do pais, e da qual é a saudade
directora e vertebradora.
N'A arte de ser português, evidentemente, na tentativa de doutrinar a renovação do país,
Pascoaes fala sobre a independência da religião portuguesa porquanto esta é saudade e lembra ao
leitor os factores que tem feito da portuguesa uma igreja que obedece só a entidade divina. Lemos:
“A ideia de família e a de pátria ligadas à ideia de Deus, representam
uma hierarquia espiritual e divina que se não deve destruir. Por isso, a
verdadeira igreja cristã é sempre nacional, como ainda hoje a igreja inglesa
e outras. (A igreja nacional) Não reconhece a supremacia romana, e o seu
respeito pelo clero nacional depende das suas boas qualidades morais (…).”
“Da sua reconstituição (igreja nacional) depende também o pátrio
renascimento, concorrendo tal facto para a cultura religiosa do povo que se
tem abastardado (…).”
“O que sobre o nosso esqueleto substitui a sombra pela carne é a
capacidade de sonho transcendente que nos eleva a Deus, à família e à
pátria, e nos obriga a cumprir alegremente a lei do sacrifício”.
“(...) O povo adora a Deus directamente, ou sem intermediários, de cuja
natureza humana desconfia. É o que lhe dá independência religiosa e a alma
saudosa o anima.”

Estas alusões directas à religião essencialmente portuguesa ligada à natureza saudosa do homem
ocupam, n'A arte de ser português, um episódio inteiro que pretende já não só lembrar a
necessidade de Deus na alma do indivíduo “que se tem abastardado”, mas nem menos que a
aspiração da igreja nacional a se proclamar independente da igreja romana, convertendo aos
intermediários espirituais -os padres- em pastores, da mesma maneira ao que se passara em outras
instituições eclesiásticas independentes de Roma; referímo-nos nomeadamente à igreja anglicana.
Tamanha proposição não é para menos, pois segundo Pascoaes, a igreja teria mesmo de se desligar
do material, do físico, do que afasta ao homem de Deus e faz aos autores dos cancioneiros
populares mencionados no nosso texto desconfiar da verdadeira acção divina dos padres da igreja
católica. Portanto, a Portugalidade da igreja nacional, os factores próprios e dignos do pensar e do
sentir português, e a prática saudosa os responsáveis da precisa renovação espiritual; derivarão
também na necessidade de renovar a pátria na sua integridade complexa e superior.

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3 CONCLUSÕES
Ao retomarmos a leitura da introdução ao texto feita pelo pensador e escritor português actual
Miguel Esteves Cardoso, reparamos não só na profunda negatividade com que este avalia o texto de
Pascoaes projectada não contra o autor, mas contra os destinatários d'A arte de ser português. Para
Cardoso, a renascença e a renovação nacional errou não pelos teóricos terem sido ineficientes na
sua escrita, mas por não terem percebido aos portugueses no seu contexto actual.
Muito provavelmente, a ânsia de renovação, os anseios messiânicos de levar aos portugueses a
voz da renovação caíram no buraco da falta de empatia, da falta de consciência própria. Indo mais
longe do que Cardoso na suas palavras, os portugueses que Pascoaes tanto queria perceber, não só
não o percebiam, mas não existiam. Portugal foi, por Pascoaes, certamente “imaginado” ou
“inventado”, e ao ser Portugal assim transmitido, a sua essência não encontrou abrigo no cidadão
sem um pão na mesa. Assim, entendemos, a falência do preceituário da renascença em termos
políticos, religiosos e sociais foi, em boa verdade, um erro mercado-lógico pelo que os responsáveis
de um caríssimo produto ideológico tiveram de pagar. O produto, a saudade, que prometia mudar os
hábitos de consumo emocional dos cidadãos, não foi precedido de um profundo estudo de mercado
capaz de extrair as verdadeira demandas dos futuros consumidores: o verdadeiramente preciso para
a opinião deles. O português que ele achava a base do seu ideário tinha, infelizmente, muito a ver
com “o homem rudimentar” ao que fizera referência. Era um homem que sofria uma situação de
instabilidade económica profunda e que não via no desenvolvimento duma espiritualidade uma
resolução rápida dos problemas mais elementares. Os cidadãos da época, quase em toda Europa,
mal viam chegar o sustento à mesa das suas individualidades colectivas mais imediatas, o que bem
podia ter basificado a atitude dos indivíduos, os quais longe de serem capazes de desenvolver uma
espiritualidade eficiente, não podiam resolver a acção fisiológica primária -e quase animal-: o
alimento.
O mundo de Pascoaes não tinha paciência para escadas ideológicas ou seres espirituais, e
portanto, transformar a selva dos depredadores numa Arcádia de espíritos complexos era um
cometimento ousado de mais para um povo que não percebia exactamente o que se passava. O ser
humano português, não muito diferente dos seres humanos de outros países, não tinha vontade de
sacrifício, nem energias para o executar. Aliás, o ser humano não queria formar parte duma pátria
medonha, sentida culpada dos males que afastavam os pães das casas daquelas famílias que lutavam
em modo sobrevivência por adquirir a mais básica das estabilidades. Além disso estava Deus. O
Deus de Pascoaes eram os humanos e existia pelos humanos, mas os humanos de Pascoaes
contavam-se com os dedos da mão. Os verdadeiros humanos aflitos não queriam um Deus
dependente e imperfeito; queriam um Deus-pai que os cuidasse e os desse abrigo; queriam um Deus

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a quem suplicar e a quem lhe pedir perdão pelos maus feitos. A simples ideia de um Deus fraco,
sem entidade, sem mitologia ou sem autoridade metia medo. Deixava sem verdadeiras esperanças
aos que viam em Deus a única autoridade capaz de dar cabo da situação; um salvador em quem
acreditar e não um Deus fabricável dependente da sua criação.
Esta necessidade antropológica que mexe aos humanos na procura dum ser superior e justiçoso,
se bem que contrária neste ponto ao pensar do nosso autor, nem sempre é estranha à sua ideologia,
pois este “olhar aos céus” na procura de ajuda tem, em instância última, muito a ver com as teses
básicas do messianismo e, portanto, o sebastianismo, promovidas desde A arte de ser português
como mais um motor que empurra a revelação da alma pátria. Lemos:
“Se a nossa grandeza morreu materialmente, foi para ressurgir em
espírito. O sebastianismo, sendo a expressão mítica da nossa dor, é, já, em
sombra nocturna, o futuro sol da Renascença”.

O que se pode perceber da lenda sebastiánica leva-nos até uma contradição, ao repararmos que
aquilo que se espera de Deus não é bem a sua revelação como criador-pai, ideia exportada deste o
ideário romano-católico, encontramo-nos, pelo contrário, com uma pátria que se orgulhece da
paixão pelo advento dum líder messiânico, que faz desta mais um impulso para a renovação da
pátria ao concluir que “este espectro divinizado da nossa grandeza morta, prometendo o seu
regresso, numa encoberta manhã, é o próprio Sebastianismo”. Embora estejam bem marcadas as
diferencias estabelecidas entre Deus e Dom Sebastião, não é para nós fácil delimitar efectivamente
uma atitude precisa e estável que afaste de facto ao português da “vil tristeza” e o doutrine na
criação de um espírito novo. O antropocentrismo teológico saudosista choca, desde o nosso ver,
com a atitude psicológica provocada pelo sebastianismo que dá assas à rendição, à delegação numa
entidade todo-poderosa das forças que, precisa e supostamente, haviam-de ser activadas e
impulsadas. Sendo assim, o leitor e investigador da ideologia da Renascença portuguesa encontra-se
com mais do que uma paradoxa semelhante, começando assim a se aperceber de que, em muitos
casos, o empurre nacional tem sido “de mais” nacional, longe de ser o que num inicio
acreditáramos: um enaltecimento dos valores nacionais sem rejeitar uma paulatina abertura face à
chegada de novos valores e ideias vindos desde Europa. Assim, o ressurgir nacional da Renascença
punha um pé num perigoso ladrilho ao fechar levemente os olhos sobre o que se passara além das
fronteiras. De facto, n'A arte de ser português, Pascoaes fala do “espírito de imitação” ao se referir
ao que vem de fora sem delimitar muito bem os conceitos “imitação” e, por exemplo,
“aproveitamento” ou “influência”. Esta igualação ESTRANGEIRO = IMITAÇÃO = SIMIESCO é
mais do que perigosa no que se refere a evolução do pensamento pascoesiano. Lemos:

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“Quando o carácter adoece e se dilui, é natural que o espírito de iniciativa
dê lugar ao imitativo ou simiesco (…). Mommsen dizia que a Alemanha, nos
seus períodos decadentes, imitava a medíocre civilização francesa (…). É
certo que a decadência de um povo lhe destrói a faculdade inventiva e
iniciadora. Estes defeitos representam, afinal, a queda do espírito de
sacrifício, a quebra da relação entre o indivíduo e o seu destino de chefe de
família e patriota”.

Assim, por diferentes motivos, a saudade prometia ser um produto capacitado para a mudança
ideológica do país mas corrompeu-se e esgotou-se ao ser integrada num ideário bastante mais
básico, irracional e material que já se iniciara com algumas hesitações, pois nem tudo o estrangeiro
era mau, nem tudo o nacional era laudável. A saudade e o seu saudosismo, anos depois, integrar-se-
iam no compêndio de razões que estruturariam, tempos mais tarde, o Integralismo Lusitano e,
posteriormente, o Estado Novo. A saudade, longe de ser uma maquinaria para o isolamento e para a
procura da notoriedade de Portugal no mundo, revelava-se no seu início como um pensar
universalisalizante que tinha a humanidade por encima da pátria, como fim absoluto e precedente ao
indivíduo divino. Pascoaes, aproveitando a ideologia saudosista, aproveitou-se parcialmente da
filosofia deste pensar para dar valor à pátria integrando-a num tudo excepcional, mas só como uma
porção da razão final. O seu pensar no seu tempo, contudo, não foi percebido e na actualidade é
complicado vermos o que verdadeiramente queria dizer sem nos deixarmos levar pelos preconceitos
que se formaram nos anos seguintes à publicação d'A arte de ser português.
A esperança promovida por Pascoaes esgotou-se, mas a saudade persiste. Hoje em dia sobrevive
na cultura lusa na sua integridade: na literatura, na música, nas artes pictográficas, etc. Fazendo-nos
concluir que, se bem que a aplicação desta aos pensares políticos falisse em termos pragmáticos, o
sentir chegou com bastante saúde até os nossos dias e desde muito antigo, sendo esta aproximação
de Teixeira de Pascoaes um bálsamo preciso para a reactivação das funções da saudade nas culturas
de língua portuguesa.

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