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2.

0 SECULO XVIII:
a invencdo do conceito de homem

Se durante o Renascimento esbocou-se, com a exploracdo


geografica de continentes desconhecidos, a primeira interroga-
¢40 sobre a existéncia multipla do homem, essa interrogacao
fechou-se muito rapidamente no século seguinte, no quala eyj-
d€ncia do cogito, fundador da ordem do pensamento classico,
exclui da raz4io o louco, a crianca, 0 selvagem, enquanto figuras
da anormalidade.
APRENDER ANTROPOLOGIA 55

Antes do final do século X V I I I , escreve Foucault, o ho-


mem ndo existia. Como também o poder da vida, a fecundidade
do trabalho ou a densidade histérica da linguagem. E uma criatura
muito recente que o demiurgo do saber fabricou com suas préprias
maos, hé menos de duzentos anos (...) Uma coisa em todo caso €
certa, o homem nao é€
0 mais antigo problema, nem o mais cons-~
tante que tenha sido colocado ao saber humano. O homem é uma
inveng¢ao e a arqueologia de nosso pensamento mostra o quanto €
recente. E, acrescenta Foucault no final de As palavras e as coisas,
quao proximo talvez seja o seu fim.

O projeto antropolégico (e naoa realizacao da antropolo-


gia como a entendemos hoje) supde:

1) a construgao de um certo numero de conceitos, come-


cando pelo proprio conceito de homem, nao apenas enquanto
sujeito, mas enquanto objeto do saber; abordagem totalmente
inédita, j4 que consiste em introduzir dualidade caracteristica
das ciéncias exatas (0 sujeito observante e 0 objeto observado)
no coracao do proprio homem;

2) a constituigao de um saber que nao seja apenas de re-


f l e x o , e sim de observagao, isto é, de um novo modo de acesso
ao homem, que passa a ser considerado em sua existéncia con-
creta, envolvida nas determinagées de seu organismo, de suas
relagdes de producao, de sua linguagem, de suas instituigdes,
de seus comportamentos. Assim comega a constituigaéo dessa
positividade de um saber empirico (e nao mais transcendental)
sobre o homem enquanto ser vivo (biologia), que trabalha (eco-
nomia), pensa (psicologia) e fala (linguistica)... Montesquieu,
em O espirito das leis (1748), ao mostrar a rela¢do de interde-
pendéncia que é a dos fenédmenos sociais, abriu o caminho para
Saint-Simon que foi 0 primeiro (no século seguinte) a falar em
uma ?ciéncia da sociedade?. Da mesma forma, antes dessa épo-
ca, a linguagem, quando tomada em consideragao, era objeto de
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filosofia ou exegese. Tornou-se paulatinamente (com de r g


eRousseau) o objeto especifico, de um saber Clentificg (oy i
menos, de voca¢ao cientifica); 0

3) uma problematicaessencial: ad a diferenca Rompe,


do com a convic¢do de uma transparéncia imediata cogit, do

coloca-se pela primeira vez no século X V I I I a questao q 2


lagao ao impensado, bem como a dos Possiveis Processos
reapropria¢do dos nossos condicionamentos fisiolégicos dag
nossas relagdes de produc4o, dos nossos Sistemas de Organiza.
¢ao social. Assim, inicia-se uma ruptura com O pensamentg do.
mesmo, € a constituicdo da ideia de que a linguagem nosPrece.
de, pois somos antes exteriores a ela. Ora, tais reflexdes Sobre
0s limites do saber, assim como sobre as relacées de Sentido e
poder (que anunciam o fim da metafisica) eram inimaginaveig
antes. A sociedade do século X V I I I vive uma crise da identidade
do humanismo e da consciéncia europeia. Parte de suas elites
busca suas teferéncias em um confronto com o distante.

Em 1724, ao publicar Os costumes dos selvagens amerj-


Canos comparados aos costumes dos primeiros tempos, Lafitay
se da por objetivo o de fundar uma ?ciéncia dos costumes e hé-

pertencem o homem da Civilizagao em que nos transportamos e


0 homem da natureza, a crianca-lobo ! Mas foi Rousseay quem
tra¢ou, em seu Discurso sobre a origem e os fundam

tanto no seu campo tematico? quanto na sua abordagem


¢ao de que falaremos agora;
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2. Rousseau estabelece a lista das regides devedoras deViagens ?filoséficas?. 0


mundo inteiro menos a Europa ocidental.
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4) um método de observacdo e andlise: 0 método indutivo.


Os grupos sociais (que comegam a ser comparados a organis-
mos vivos) podem ser considerados como sistemas ?naturais?
que devem ser estudados empiricamente, a partir da observa¢ao
de fatos, a fim de extrair principios gerais, que hoje chamaria-
mos de leis.

Esse naturalismo, que consiste numa emancipacao d e f i n i -


tiva em relacdo ao pensamento teoldgico, impde-se em especial
na Inglaterra,* com A d a m Smith e, antes dele, D a v i d H u m e , que
escreve em 1739 seu Tratado sobre a natureza humana, c u j o
titulo completo ¢ Tratado sobre a natureza h u m a n a : tentativa
de introdugao de um método experimental de r a c i o c i n i o p a r a o
estudo de assuntos de moral. Os fildsofos ingleses c o l o c a m as
premissas de todas as pesquisas que procurarao fundar, no sé-
culo X V I I I , uma ?moral natural?, u m ?direito natural?, ou ainda
uma ?religiao natural?.
* OK OF

Esse projeto de um conhecimento positivo do homem


? isto é, de um estudo de sua existéncia empirica considera-
da por sua vez como objeto do saber ? constitui um evento
consideravel na histéria da humanidade. U m evento que se deu
no Ocidente no século X V I I I , que, evidentemente, nado ocorreu
da noite para o dia, mas que terminou impondo-se, j a que se
tornou definitivamente constitutivo da modernidade na qual, a
partir dessa época, entramos. A fim de avaliar melhor a natureza
dessa verdadeira revolug4o do pensamento ? que instaura uma
ruptura tanto com o ?humanismo? do Renascimento como com
o ?racionalismo? do século classico ? , examinemos de mais
perto o que mudou radicalmente desde o século X V I .

3. A precocidade e preeminéncia, no pensamento inglés, do empirismo em relagao


ao pensamento francés, caracterizado antes pelo racionalismo (e idealismo), po-
dem a meu ver explicar em parte o crescimento rapido (no comeg¢o do século X X )
da antropologia britdnica e o atraso da antropologia francesa.
O SECULO XVIII
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1) Trata-se em primeiro lugar da natureza dos ob ctog


servados. Os relatos dos viajantes dos séculos XVJ
XVI wb e

mais uma busca cosmogrdfica do que uma pesquisaetno m


fica. Afora algumas incursdes timidas para drea das ?iNcling,
¢des? e dos ?costumes?,* 0 objeto de observacdo, nessa Poca
era mais 0 céu, a terra, a faunaea flora, do que o homem em 5
e, quando se tratava deste, era essencialmente 0 h o m e Fisies
que era tomado em consideracdo. Ora, o século XVII] traca 9
primeiro esbo¢o daquilo que se tornard uma antropologia SOCiaq]
é cultural, constituindo-se inclusive, ao mesmo tempo, tomando
como modelo a antropologia fisica, e instaurando uma ruptura
do monopélio desta (especialmente na Franga).

2) Simultaneamente, 0 destaque se desloca pouco a pou-


co do objeto de estudo para a atividade epistemologica, que se
torna cada vez mais organizada. Os viajantes dos séculosX V I
¢ X V I I coletavam ?curiosidades?. Espiritos curiosos reuniam
colegdes que iam formar os famosos ?gabinetes de curiosida-
des?, ancestrais dos nossos museus contemporaneos. No século
X V I I I , a quest4o é: como coletar? E como dominar em Seguida
0 que foi coletado? Com a Historia geral das viagens, do padre
Prévost (1746-1759), passa-se da coleta dos materiais para a co-
l e g o das coletas. Nao basta mais observar, é preciso processar a
observacao. Nao basta mais interpretar o que é observado, é pre-
ciso interpretar interpretagées.> E é desse desdobramento, isto
€, desse discurso, que vai justamente brotar uma atividade de
organiza¢ao e elaboracdo. Em 1789, Chavane, o primeiro, d a r
a essa atividade um nome. Ele a chamaré: a etnologia.

o k

?
4. Cf. em especial L 'Histoire naturelle et morale des indes, de Acosta (1591), o v o
questionario que Beauvilliers envia aos intendentes em 1697 para obter informa-
¢6es sobre o estado das mentalidades populares no reino,
5. Cf. sobre isso G. Leclerc, 1979
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Finalmente, € no século X V I I I que se forma o par do via-


jante ¢ do filosofo: o viajante: Bougainville, Maupertuis, La
Condamine, Cook, La Pérouse..., realizando o que é chamado
na época de ?viagens filosdficas?, precursoras das nossas mis-
sdes cientificas contemporaneas; eo filésofo: Buffon, Voltaire,
Rousseau, Diderot (cf. em especial 0 seu Suplemento a viagem
de Bougainville), ?esclarecendo? com suas reflexdes as obser-
vacoes trazidas pelo viajante.
Mas esse par n o tem realmente nada de idilico. Que pena,
pensa Rousseau, que Os viajantes nao sejam fildsofos! Bougain-
ville retruca (em 1771 em sua Viagem ao redor do mundo): que
pena que 0s filésofos nao sejam viajantes!° Para o primeiro, bem
como para todos os fildsofos naturalistas do Século das Luzes,
se é essencial observar, é preciso ainda que a observacdo seja es-
clarecida. Uma prioridade é portanto conferida ao observador,
sujeito que, para apreender corretamente seu objeto, deve pos-
suir um certo numero de qualidades. E é assim que se constitui,
na passagem do século X V I I I para o século X I X , a Sociedade
dos Observadores do Homem (1799-1805), formada pelos entaéo
chamados ?idedlogos?, que s o moralistas, filésofos, naturalis-
tas e médicos que definem muito claramente o que deve ser o
campo da nova 4rea de saber (0 homem nos seus aspectos fisi-

6. Rousseau: ?Suponhamos um Montesquieu, um Buffon, um Diderot, u m


d?Alembert, um Condillac, ou homens de igual capacidade, viajando para ins-
truir seus compatriotas, observando como sabem fazé-lo a Turquia, o Egito, a
Barbaria... Suponhamos que esses novos Hércules, de volta de suas andangas
memoraveis, fizessem a seguir a historia natural, moral e politica do que teriam
visto, veriamos nascer de seus escritos um mundo novo, € aprenderiamos assim a
conhecer 0 nosso...?.
Bougainville: ?Sou viajante e marinheiro, isto é, um mentiroso e um imbecil aos
olhos dessa classe de escritores preguig¢osos e soberbos que, na sombra de seu
gabinete, filosofam sem f i m sobre o mundo e seus habitantes, e submetem i m -
periosamente a natureza a suas imagina¢oes. Modos bastante singulares e incon-
cebiveis da parte de pessoas que, ndo tendo observado nada por si proprias, sé
escrevem e dogmatizama p a r t i r de observa¢ées tomadas desses mesmos viajantes
aos quais recusam a faculdade de ver e pensar?.
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. . is
d e v e m ser S a
cos, ° p s i q u i c o s , s o c i a i s , c u l t u r a i s ) e q u a i s
e uas sen
cias epistemoldgicas. x

As Consideracées sobre os diversos métodos q Seguiy

observacdo dos povos selvagens, de De cerando 0800), So,


quanto a isso, exemplares. Primeira meto O ren Viagem,
destinada aos pesquisadores de uma missao nas ?Terras Aus.

trais?, esse texto é uma critica da observacdo e e e do Selva.


gem, que procura orientar o olhar do observador.O cientistana-

turalista deve ser ele proprio testemunha ocular do queobserva,


pois a nova ciéncia ? qualificada de ?ciéncia do homem ou
?ciéncia natural? ? 6 uma ?ciéncia de observagdo?, devendo
0 observador participar da prépria existéncia dos STUPOS sOCiais
observados.?

Porém, 0 projeto de De Gerando nao foi aplicado por


aqueles a que se destinava diretamente, e nao sera, por muito
tempo ainda, levado em conta.? Se esse programa, que consiste

POVOS selvagens? em 1800, torna-se ?yjgi


Proprio Gerando, ?observador dos
tra a prontidao de uma

a antropologia Principiante e a » una Certa auséncia d


N o t e m o sf i n a l m e
ditado na Franca e m 1883.
apenas cinco anos
atual Museu do Homem.
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poraga? dos fundamentos de uma ?ciéncia humana?. Nao


ela i " mais longe, € nao poderiamos creditd-Io aquilo que s6
p0 5 ossvel um século depois.
sera
Mais especificamente, 0 obstaculo maior ao advento de
, ,ntropologia cientifica, no sentido no qual a entendemos
noies€ sta ligado, 20 meu ver, a dois motivos essenciais,
1) A distingao entre 0 saber cientifico e 0 saber filosé-
co, mesmo sendo abordada, nao é de forma alguma realiza-
da. Evidentemente, 0 conceito da unidade e universalidade do
homem, que é pela primeira vez claramente afirmado, coloca
as condi¢des de producgao de um novo saber sobre 0 homem.
Mas nao leva ipso facto a constitui¢&o de um saber positivo. No
final do século X V I I I , o homem interroga-se: sobre a natureza,
mas nao ha biologia ainda (sera preciso esperar Cuvier); sobre
a produgao € repartic¢4o das riquezas, mas ainda nao se trata de
economia (Ricardo); sobre seu discurso, mas isso nao basta para
elaborar uma filosofia (Bopp), muito menos uma /inguistica.?

O conceito de homem tal como € utilizado no ?Século das


Luzes? permanece ainda muito abstrato, isto é, rigorosamente
filosdfico. Estamos na impossibilidade de imaginar 0 que con-
sideramos hoje como as préprias condi¢ées epistemoldgicas da
pesquisa antropoldgica. De fato, para esta, o objeto de observa-

9, A antropologia contemporanea me parece, pessoalmente dividida entre uma


homenagema esses pais fundadores que sao os filésofos do século X V I I I (Lévi-
Strauss, por exemplo, considera que o Discours sur l?origine de l?inégalité de
Rousseau € ?o primeiro tratado de Etnologia geral?) e um assassinio ritual consis-
tindo na reatualizagao de uma ruptura com um projeto que permanece filoséfico,
enquanto que a ciéncia exige a constitui¢ao de um saber positivo e especializado.
Mas neste segundo caso, a positividade, nao mais do saber, e sim de saberes que,
muito rapidamente (a partir do século X I X ) , se rompem parcelam, formando
¢€

o que Foucault chama de ?ontologias regionais? constituindo-se em torno dos


territérios da vida (biologia), do trabalho (economia), da linguagem (linguistica),
é evidentemente problematica para o antropdlogo, que nao pode resignar-se a tra-
balhar em uma area setorizada.
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~ nao é 0 ?homem?, e sim individuos que Pertence


ujeito gq que observaa NAO 4 nay ¢
Up
é p eo acuma
a c u l t ue r0 as u, j de ,
alguma o sujeito da antropologia
:
filos6fica,
ra
e sim u
OUtro mM tt
v i d u o que pertence ele p r o p r i o a u m a é p o c a e a y
ma culty
2) O discurso antropolégico do século XVIII éiNseparéy
do discurso historico desse periodo, isto é, de sua Concepes
uma historia natural, liberada da teologia e animando a Match,
das sociedades no caminho de um progresso universal. Reg

um passo consideravel a ser dado para que a antropologia Se


emancipe deste pensamento e conquiste finalmente syaautono.
mia. Paradoxalmente, esse passo sera dado no século XIX em
especial com Morgan)a p a r t i r de uma abordagem igualmente ¢
ate, talvez, mais marcadamente historicista: 0 evolucionismo, §
0 que veremosa seguir.

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