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O QUE É ANTROPOLOGIA?

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Rafael José dos Santos
Existem momentos di3ceis para os antropólogos, quando estamos entre pessoas que, mesmo com boa
formação escolar, não têm familiaridade com as Ciências Sociais. De repente somos aCngidos pela pergunta:
“Afinal, o que é Antropologia?”. Aliás, esta é a pergunta que muitos estudantes fazem quando descobrem
que a disciplina consta de seus currículos. E, além disso, para que serve? Não há como discordar: a pergunta
é di3cil. Mas quais as razões desta dificuldade? Em primeiro lugar, existem os estereóCpos do antropólogo,
assim como existem as falsas imagens de muitas outras profissões. Muitas pessoas nos imaginam uma
espécie de Indiana Jones, escavando túmulos em busca de arcas perdidas, ou como desajeitados professores,
meCdos em roupas esClo safári, desafiando as florestas africanas para estabelecer contatos com perigosos
selvagens. Essas falsas imagens atrapalham bastante a compreensão do que é a Antropologia.
Um outro caminho frequente é o recurso à eCmologia, ou seja, à origem da palavra: anthropos = homem,
logia = estudo, portanto, o “estudo do Homem”. Mas isso é muito geral e poderia englobar outras tantas
áreas do conhecimento. A palavra e seu senCdo podem ter servido durante um tempo, mas hoje já não
indicam muito acerca do o3cio de antropólogo. Muitos nos confundem com arqueólogos, colegas
pesquisadores que estudam vesYgios históricos ou pré-históricos através de escavações. Também somos
muito confundidos com os paleontólogos, que estudam fósseis animais ou vegetais. Para confundir tudo
ainda mais, há a expressão “antropologia 3sica” para designar o estudo de aspectos biológicos dos seres
humanos. Embora as contribuições da Arqueologia e da Paleontologia sejam importantes, tanto para o
antropólogo, em seu trabalho, como para qualquer outra pessoa interessada em conhecer a espécie
interessante que nós somos, não é com isso que a Antropologia está preocupada.
Em nossa sociedade nos acostumamos a definir as ciências descobrindo quais são seus objetos de estudo,
isto é, aquilo sobre o qual os especialistas de cada área fazem suas pesquisas e elaboram suas explicações.
No caso da Antropologia (e isso é comum a outras ciências) a pergunta não pode ser respondida assim. Basta
olharmos rapidamente algumas palavras-chave de dissertações e teses em Antropologia produzidas no
Brasil: Família, Parentesco, Memória, Cidadania, Ongs, Ecologia, Movimentos Sociais, Igreja, ExtraCvismo,
Masculinidade, Violência Conjugal, Alimentação, Cultos Afro-Brasileiros, Migração, Linguagem, Viagens,
Artesanato; Trabalho, Criança, Infância, Gravidez, Adolescência, Habitação, Televisão, Advogados e Juízes,
PolíCca Indigenista e História Indígena (ABA, 2000). Uma diversidade tão grande de referências significa uma
mulCplicidade de objetos de estudo: das artes à questão indígena, passando pela comunicação, pelo turismo
e pela educação. É bastante complicado definir a Antropologia pelo(s) seu(s) objeto(s) de estudo, porque eles
são tantos quantas são as coisas que fazemos em sociedade.

Entretanto, podemos iniciar pensando a Antropologia como um conjunto de teorias (nem sempre
concordantes) e diferentes métodos e técnicas de pesquisa que buscam explicar, compreender ou interpretar
as mais diversas práCcas dos homens e mulheres em sociedade. Muitas dessas teorias baseiam-se em
pesquisas de campo, nas quais os antropólogos buscam conviver com as populações locais e aprender seus
hábitos, valores, modos de vida, crenças, relações de parentesco e outras dimensões da vida social.

Como surgiu? Um pouco de história

A Antropologia (mais tarde “Social” ou “Cultural”) deu seus primeiros passos aproximadamente na segunda
metade do século XIX, na Europa, da mesma forma que sua “irmã” a Sociologia. Em alguns países, como na
França, não apenas suas histórias se confundem: muitos cienCstas sociais franceses, até hoje, não fazem
disCnção entre as duas, uClizando ora uma, ora outra palavra para referir-se à sua área de trabalho. O fato
de ambas começarem no mesmo momento histórico e na mesma região do mundo não foi uma coincidência,
mas resultado de uma série de mudanças sociais, econômicas e políCcas, ou, para falar como cienCsta social,
de um determinado contexto. Vejamos o caso da Sociologia. Países como a França, Alemanha e,
principalmente, a Inglaterra, consCtuíam o centro nervoso do emergente sistema capitalista industrial do

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Adaptação de SANTOS, R. J. O que é, como surgiu? In.: Antropologia para quem não vai ser antropólogo. Porto Alegre, Tomo Editorial, 2005.
pp.17-22. Material de apoio ao ensino e de uso apenas escolar.
século XIX. Em Londres e Paris as manufaturas eram as principais unidades de produção e essas cidades
viviam os frutos e contradições da chamada modernidade: um veloz desenvolvimento das técnicas
entrelaçado a graves problemas sociais e uma sequência de revoltas operárias.

A Revolução Industrial formou o cenário de transformações que deu origem à sociedade capitalista. Foi um
período de transformações também no âmbito das ideias, com as reflexões vindas da Filosofia PolíCca e da
Filosofia da História. Estas correntes de pensamento, por sua vez, desenvolveram-se juntamente com as
grandes mudanças políCcas dos séculos XVIII e XIX, entre elas a Revolução Francesa em 1789. Podemos então
concluir que a sociologia se formou como consequência de amplas transformações intelectuais, econômicas,
políCcas e culturais que Cveram seu auge no século XIX. Deste ponto de vista, a sociologia pode ser entendida
como uma ciência da sociedade industrial, e ao mesmo tempo expressão que esta sociedade construía acerca
de si mesma.

Agora vamos estabelecer a ligação entre o surgimento do capitalismo e o nascimento da Antropologia como
ciência social. O sistema capitalista não se restringia aos limites da Inglaterra e do conCnente europeu. No
século XIX acelerou-se a expansão colonialista que já ocorria desde o mercanClismo do século XV. Nas
palavras do antropólogo Gérard Leclerc: Nos meados do século XIX, o expansionismo europeu chegado à sua
fase úlCma, começa pressenCr “territórios desconhecidos” como “territórios a conquistar” (...) Numerosas
são as riquezas a explorar, a uClizar e a fazer fruCficar pelo Ocidente (1977, p.13).

A Antropologia tem suas origens históricas, portanto, no processo de expansão do capitalismo, mais
precisamente através do colonialismo e do imperialismo das nações ricas, que estendiam seus domínios a
lugares remotos do mundo. Esse é um dado importante, pois não nos deixa esquecer as relações de força e
poder envolvendo países centrais, como Inglaterra, França e Alemanha, e países e regiões subjugados direta
ou indiretamente pelo sistema, como boa parte das culturas africanas, asiáCcas, indianas e laCno-
americanas. Algo similar acontecia nos Estados Unidos do século XIX, mas lá a expansão capitalista não
acontecia para fora (pelo menos não naquele momento): ela fazia um movimento do leste para o oeste,
provocando o contato dos colonos com diferentes sociedades indígenas naCvas. Esse tema alimentou
bastante o cinema norte-americano, com soldados protegendo os desbravadores brancos que avançavam
sobre os territórios dos “perigosos peles-vermelhas”.

Os primeiros antropólogos, cienCstas que buscavam o conhecimento das sociedades “exóCcas”, não
coletavam seus dados de modo direto. Eles se baseavam em informações enviadas por missionários,
mercadores, militares e funcionários coloniais. Como observou o antropólogo francês François LaplanCne,
naquela época: “uma rede de informações se instala. São os quesConários enviados por pesquisadores das
metrópoles (em especial da Grã-Bretanha) para os quatro cantos do mundo, e cujas respostas consCtuem os
materiais de reflexão das primeiras grandes obras de Antropologia que se sucederão em ritmo regular
durante toda a segunda metade do século XIX” (1988, p. 64-65).

Entre as obras clássicas da Antropologia nesta fase podemos destacar duas, apenas a Ytulo de curiosidade:
A Sociedade Primi6va, do norte-americano Henry Lewis Morgan (1974) e o belo trabalho do inglês James
Frazer, O Ramo Dourado (1956). Existem dois aspectos desta fase inicial da Antropologia que serão úteis para
começarmos a desvendar esta ciência. Aliás, não só desvendá-la, mas inclusive compreender muitas de
nossas próprias ideias sobre sociedades e culturas que não conhecemos.

O primeiro aspecto é a forte influência de correntes de pensamento, como o posi6vismo, o evolucionismo, e


os determinismos geográfico e biológico nas ideias que os primeiros antropólogos Cnham das culturas
distantes. O segundo aspecto diz respeito à ausência do que mais tarde passamos a conhecer por trabalho
de campo (fieldwork), ou seja, da presença in loco do pesquisador na cultura estudada, coletando dados e
fazendo observações diretas.

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