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MANUAL DE ANTROPOLOGIA SOCIOCULTURAL

2016

ADELINO ESTEVES TOMÁS

Manual de Antropologia Sociocultural, 2016. 1


Adelino Esteves Tomás, Ph.D.
Objectivos Gerais

a. Analisar as principais áreas fundamentais de teorização da Antropologia;


b. Conhecer os saberes e os fazeres antropológicos actuais;
c. Compreender as abordagens da noção de cultura;
d. Dominar as temáticas mais importantes da Antropologia;
e. Conhecer as linhas de força da reflexão antropológica;
f. Identificar as trajectórias do pensamento antropológico desde a emergência da
disciplina à actualidade;
g. Adquirir conhecimentos sócio-antropológicos sobre Moçambique.
h. Aplicar os conceitos e os conhecimentos adquiridos na análise das dinâmicas e
factos socioculturais dos diferentes contextos moçambicanos;

INTRODUÇÃO

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Adelino Esteves Tomás, Ph.D.
Fundamentos das Ciências Sociais e Humanas
1.1- A Antropologia entre as Ciências Sociais e as Ciências Humanas

As ciências sociais são o conjunto de disciplinas que estudam o Homem através das
suas relações com a sociedade e a cultura.
Historicamente, o surgimento das ciências sociais esteve associado a um conjunto
de factores que constituem suas premissas basilares, como:
A expansão europeia (século XV), que suscitou o espírito de aventura e propiciou a
recolha de material etnográfico de povos, até então, exóticos e desconhecidos, o que
ajudou a reforçar os estudos histórico-comparativos na linguística, na religião, na
folclorística, e, em geral, nos costumes. A expansão europeia ampliou o horizonte que o
Homem tinha de si, podendo compreender mais profundamente os fenómenos sociais.
Outro facto histórico que terá contribuído para a emergência das ciências sociais foi
a reforma protestante (século XVI). Esta, embora tivesse tido um cariz
exclusivamente religioso, alastrou-se para a vida política, jurídica, cultural, etc. A
Europa que apresentava uma unidade espiritual católica foi desintegrada em Estados
nacionais, que reivindicavam para si a autonomia do poder temporal relativamente ao
poder espiritual, este último sob a égide do clero. Do ponto de vista jurídico, a reforma
acarretou a liberdade de consciência, o livre-arbítrio, entre outras questões.
A revolução industrial (século XVIII), também, terá sido decisiva no surgimento
das ciências sociais. Com efeito, a invenção da máquina a vapor (James Watt)
revolucionou a actividade das fábricas. Estas, necessitadas de mão-de-obra, terão
recrutado as populações rurais, que se aglutinaram junto daquelas, originando, por um
lado, o êxodo massivo do campo e, por outro lado, a aglomeração populacional nas
cidades, tendo despertado a consciência para o ordenamento territorial e o saneamento
do meio urbano. A este fenómeno se deve o surgimento da mendicidade, da
delinquência, do agravamento das desigualdades sociais e de outros fenómenos sociais.
A revolução francesa (século XVIII), por sua vez, foi outro facto histórico
determinante para a emergência das ciências sociais. De facto, em 1789 chegou ao auge
o conflito entre a nascente burguesia capitalista e a aristocracia feudal francesas, que
teve como desfecho a destituição e a morte do Rei Luís XVI, a abolição da Monarquia e
a proclamação da República Francesa com os valores de igualdade, fraternidade e
solidariedade, como pilares da nascente burguesia.

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A revolução francesa serviu de modelo para a democratização dos outros Estados
europeus e, do ponto de vista das ciências sociais, ela contribui para uma melhor
compreensão dos problemas actuais como a democracia, a relação Estado-Cidadão,
Estado-Partido Político, insuficiências do capitalismo, etc.
Em suma, estes factos históricos permitiram alargar o horizonte que as ciências
sociais tinham, melhorar os seus métodos e técnicas de pesquisa, podendo assim dar
respostas mais precisas aos problemas resultantes das contradições da vida em
sociedade, e justificando-os com bases científicas, através da busca de causas que os
determinam.
Nesse contexto, é a partir do século XVIII que as questões relativas à vida em
sociedade começam a merecer a atenção dos cientistas e a revestir um carácter
científico. Datam dessa época as primeiras pesquisas sobre a acção do Homem no seio
da sociedade, bem como sobre as suas relações com os seus semelhantes.
É, contudo, na aurora do século XIX que aparece a maior parte das disciplinas do
domínio das ciências sociais, como é o caso da Antropologia, da Sociologia e da
Ciência política. Estas disciplinas foram marcadamente influenciadas pelas teorias sobre
a sociedade de filósofos como Augusto Comte (1798-1857), Karl Marx (1818-1883) e
Herbert Spencer (1820-1903).
No século XX, as ciências sociais conheceram um amplo desenvolvimento,
deixando de se circunscrever apenas a trabalhos de grande envergadura científica, para
se democratizarem e descerem às instituições universitárias, passando a ser objecto de
investigação dos estudantes.
O leque de disciplinas pertencentes às ciências sociais também se alargou, passando
a incorporar, para além das supracitadas, as Ciências da Comunicação, a Etnologia, a
Demografia, a História, a Filosofia, entre outras.
Hoje, a acelerada evolução tecnológica veio dar um incremento ao avanço das
ciências sociais, surgindo daí verdadeiras teorias científicas sobre o comportamento do
Homem enquanto actor social.
E as ciências humanas, o que são?
Ora, não existe uma definição única, universalmente reconhecida, das ciências
humanas. Digamos que se distinguem das ciências naturais pelo facto de estudarem os
seres humanos1.

1
A biologia e a medicina também estudam os seres humanos, mas diferem das ciências humanas na
medida em que fazem uma abordagem na perspectiva da natureza do Homem.
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As ciências humanas, à semelhança das ciências sociais, estudam os seres humanos
sob o ângulo da sua vida em sociedade. Exemplo de ciências humanas: a Ciência
política, a Sociologia, a Antropologia, as Ciências religiosas, etc. Nesse contexto, as
ciências políticas estudam as normas de organização política da sociedade, as relações
de poder, as relações sociais de produção que incidem nas decisões políticas, os
sindicatos, os grupos de pressão, os partidos políticos, etc. A Sociologia estudaria as
relações interpessoais, os padrões de comportamento colectivo, as formas de
organização social, os papéis sociais, o funcionamento das instituições sociais, etc. As
Ciências religiosas são a aplicação do saber proveniente das várias ciências humanas e
em particular da Antropologia e da Sociologia, a um campo específico do social e do
humano: a religião. A religião é um fenómeno muito importante na vida individual e
colectiva do Homem e da sua cultura. Hoje em dia, as ciências religiosas multiplicam os
seus objectos de pesquisa, versando sobre questões como os mitos em sociedades
modernas, a origem e evolução das seitas religiosas, o papel dos totens e dos tabus na
coesão das confissões religiosas, a reprodução da vida e da morte, o papel das religiões
face aos poderes políticos, etc. A Antropologia interessar-se-ia nas culturas, buscando
compreender a sua evolução ao longo do tempo e a sua relação com outras culturas.
Convém referir que a Antropologia é designada por vários nomes, a saber Etnologia (na
França), Antropologia social (na Grã-Bretanha) e Antropologia cultural (na América do
Norte).
Outras ciências humanas são: a Pedagogia, a História, a Psicologia, a Linguística, a
Psicanálise, a Economia política, a Etnografia, etc.
Em conclusão, não há diferenças temáticas nem metodológicas entre as Ciências
sociais e as Ciências humanas, porém, há sim uma diferença terminológica já que nos
países de tradição anglo-saxónica é mais recorrente a terminologia ciências sociais do
que a terminologia ciências humanas, que tende a ser mais comum nos demais países.

Bibliografia
MAIA, Rui Leandro: dicionário de Sociologia, Porto editora, 2002.

Trabalho independente
1-Debata no seu grupo sobre o objecto da de estudo da Sociologia, da Antropologia
e da Ciência política.

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2-Fundamente o seguinte argumento “…entre as Ciências sociais e humanas não há
fronteiras bem demarcadas”

1.2- A interdisciplinaridade, pluralidade e/ou diversidade das Ciências Sociais

Para melhor compreendermos a estreita relação existente entre as inúmeras ciências


que se ocupam do domínio do social, observemos alguns casos em que as várias
ciências sociais se mostram interdependentes na explicação do social.

Texo-1

O sociólogo não pode ignorar o carácter social dos fenómenos demográficos

As relações sociais não são factos isolados da taxa de natalidade, de mortalidade


e/ou do envelhecimento da população. Elas não têm significado em si mesmas, pois que
adquirem relevância quando coordenadas no quadro institucional ou comunal em que
se produzem.
Os dados biológicos que parecem escapar do poder de controlo humano estão,
deveras, sob sua dependência. Há circunstâncias sociais que podem modificar a
proporção entre os sexos na participação da vida pública e/ou privada de um povo,
pais ou região: basta olhar para as fábricas em Inglaterra, na Alemanha, etc., que
durante a Segunda Guerra Mundial se viram na contingência de contratar mais força
de trabalho feminina do que masculina. Também, em Moçambique a emigração
masculina à África do Sul tem tendido a tal evidência.
(…) A vida e a morte ou a natalidade e a mortalidade não se comportam de igual
modo em todas as latitudes e épocas. O casamento, por exemplo, não obedece apenas
ao processo de maturação sexual, mas também, aos imperativos sociais, económicos e
culturais, pois certas normas culturais elevam ou baixam a idade de frequência dos
casamentos (…)
Para além de serem fenómenos biológicos, a vida e a morte resultam de hábitos
sociais latentes nas circunstâncias exteriores ligadas ao tipo de cultura.
Assim, a mortalidade, a migração, a taxa de fecundidade ou o envelhecimento da
população, etc., são fenómenos demográficos determinados com impacto sociológico

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determinante nos processos de socialização, nos conflitos e nos demais factores das
dinâmicas sociais.
Os fenómenos demográficos acham-se, antes de tudo, sob a dependência dos
processos sociais, por exemplo, o número de filhos que um casal deseja ter é resultante
da sua decisão individual, mas, ao mesmo tempo, é uma decisão influenciada pelas
normas, valores e ideais comuns aos membros da sociedade à que o casal pertence.

Adaptado: Alain Girald, A demografia.

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Texto-2
A Psicologia e a Sociologia. Disciplinas antagónicas ou interdependentes no
estudo do social?

A sociedade e o indivíduo não são entes claramente distintos. Cada um comporta o


outro. O indivíduo não existe independentemente da sociedade, mas esta última resulta
da soma de agregados individuais.
As abordagens distintas entre psicólogos e sociólogos têm amiúde levado a
interpretações distorcidas do comportamento humano. O psicólogo, na sua “obsessão”
pelo indivíduo, tem perdido de vista a influência das relações e normas sociais que se
imprimem sobre o indivíduo. O sociólogo, por seu turno, insistindo no efeito coercivo
da cultura, dos valores e das normas sociais sobre o indivíduo, tem “esquecido” que
este indivíduo é um ser autónomo.
Portanto, nenhuma dessas perspectivas possibilita uma abordagem adequada e
completa do comportamento humano. O sociólogo explica, por exemplo, a ocorrência
do índice da violência doméstica num grupo social determinado, enquanto o psicólogo
tenta levar a peito como o fenómeno da violência doméstica se manifesta numa pessoa
singular.
No entanto, este problema exige o emprego de diferentes categorias e teorias, pois
não é possível diagnosticar alguma forma de comportamento culturalmente
padronizada ou a organização de papéis sociais tomando como premissas as
características de um indivíduo singular. Tampouco é possível explicar a natureza do

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comportamento individual exclusivamente como o resultado de padrões culturais da
sociedade.
A complexa realidade exige interdependência das perspectivas psicológicas e
sociológicas. A existência de uma disciplina intitulada psicologia social responde à
necessidade de explicação interdisciplinar, plena e sistemática dos problemas do
domínio social.
Tanto a Psicologia como a Sociologia dependem uma da outra e devem, com
frequência, utilizar conceitos e teorias desenvolvidas pela outra.

Adaptado, Ely Chinoy, A perspectiva sociológica.

Depois de uma leitura meticulosa dos textos (1 e 2) devemos ser capazes de


constatar a interdependência entre as várias ciências sociais, para uma melhor
compreensão dos problemas sociais.
No texto-1 é referida a interdependência e interdisciplinaridade entre a Demografia
e a Sociologia. Com efeito, por detrás de uma taxa de mortalidade estão latentes
condicionantes sociais como religião, sexualidade e outros modelos sociais vigentes.
No texto-2 evidencia-se a relação imprescindível entre a abordagem psicológica e a
sociológica para uma compreensão abrangente do comportamento humano.

O que é a interdisciplinaridade?

A complexidade do social exige, no seu estudo, o recurso à acção conjunta entre as


várias ciências sociais. A riqueza e a densidade das relações interpessoais é de tamanha
complexidade que temos necessariamente que recorrer à interdisciplinaridade das
ciências, sob pena de corremos o risco de obter informações desligadas da realidade
social, caso insistamos em abordar as questões numa óptica científica.
Portanto, por interdisciplinaridade, entende-se a atitude metodológica que tem em
vista a integração dos contributos das várias disciplinas no sentido de encontrar uma
explicação mais profunda e exaustiva da realidade social que hoje se pretende mais
complexa.
A maior parte dos pensadores do século XIX – excepto Augusto Comte e Karl Marx
– defendia a ideia da investigação por cada disciplina de um campo determinado da

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realidade. Em conformidade com isso, a Economia só estudaria os fenómenos
económicos; a História, só os factos históricos; etc.
Em honra à verdade, a realidade social estudada pelas várias disciplinas é só o
comportamento humano e os diferentes fenómenos sociais: religião, política, arte,
costumes, etc., não podem estar desligados totalmente um dos outros.

Meio Meio familiar


Escolar
Meio político

Meio Comportamento
geográfico humano

Meio
recreativo

Meio Meio
religioso profissional
Outros

Portanto, constatámos que os fenómenos da realidade social podem moldar o


comportamento humano tendo implicações a vários níveis, designadamente
histórico, jurídico, institucional, cultural, etc., e podendo ser objecto de estudo de
todas as ciências sociais numa perspectiva integrada.

Por exemplo: o fenómeno social da imigração ilegal.

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- Sobre ele, a Economia nos diria os factores económicos que o estimulam no país
de chegada como acesso ao emprego pelo imigrante, possibilidade de envio de mesadas
ao país de origem, etc.
- A Ciência política ajudar-nos-ia a compreender o papel do Estado na sua relação
com os imigrantes, as condições sociopolíticas que o favorecem, acção da sociedade
civil na luta contra a imigração ilegal, o grau de liberdades concedidas aos imigrantes,
etc.
- O Direito poderia esclarecer, por exemplo, sobre o estatuto do imigrante,
enfatizando nas leis existentes sobre a protecção da integridade física dos imigrantes
ou contra a imigração ilegal.
- A História ser-nos-ia útil na explicação da origem do fenómeno social da
imigração, esclarecendo a sua evolução ao longo do tempo.
- A Antropologia permitiria conhecer os costumes, as tradições e as culturas dos
imigrantes. Estes conhecimentos poderiam auxiliar no relacionamento entre as
populações locais e os imigrantes, evitando conflitos de valores, e podendo integrar as
práticas culturais dos imigrastes na vida da comunidade, ou podendo rejeitá-las, etc.

Como vemos no exemplo acima, a realidade sociocultural pode ser objecto de todas
as ciências sociais. Na verdade, a realidade sociocultural é só uma e única. Contudo, ela
admite diferentes perspectivas de investigação consoante as motivações do investigador.

Trabalho independente

1- A emigração moçambicana para a África do Sul tem acelerado a feminização da


população e o despovoamento rural. Na década 1980-1990 devido a razões de guerra
civil, calamidades naturais, desemprego, etc., o flagelo atingiu cifras sem precedentes
históricos. No entanto, o estudo deste flagelo remete-nos ao recurso à pluralidade das
ciências.
a) Faça uma composição elucidando as ciências sociais que recorreria para estudar o
flagelo em alusão.
b) Debata no seu grupo sobre a pertinência da interdisciplinaridade das ciências
sociais na solução dos problemas que podem afligir o seu bairro,
2- Sistematize os seguintes conceitos: interdisciplinaridade, feminização,
comportamento humano.
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1.3- A ruptura com o senso comum: objectividade nas ciências sociais

Ao longo dos séculos, vários pensadores debruçaram-se sobre inúmeros problemas


que apoquentam a humanidade, sobre as causas do suicídio, sobre o problema das
dinâmicas culturais, sobre os conflitos sociais, etc. No entanto, ao abordarem sobre
estas temáticas os pensadores limitaram-se a formular apreciações de carácter ético-
valorativo, doutrinário ou ideológico. Com efeito, há duas vertentes do pensamento
perante uma realidade social:

 Reflexão baseada nos princípios normativos


 Recurso às etapas do processo de indagação científica

No primeiro caso, o pensador cria doutrinas ou ideologias, que tendem a ter o seu
fundamento no senso comum, e no segundo, temos a ciência. Em tal caso, a ciência
distingue-se do senso comum pois que, a primeira estuda a realidade de forma objectiva,
procurando conhecer ou estabelecer leis e relações entre os factos, é metódica, sendo o
seu principal método é a experimentação, que se baseia em provas e factos. Enquanto o
senso comum é superficial, não se baseia em métodos concretos e depende de opiniões
não confirmadas, assim como de pronunciamentos de juízos de valor mais ou menos
preconceituosos e estereotipados em relação aos factos.
O estudo de determinados grupos raciais diferentes ou de escasso relacionamento
tem levado à formulação de estereótipos e preconceitos. Nesse contexto, a objectividade
ajudaria na busca de explicações de um fenómeno no próprio fenómeno, evitando
interpretações distorcidas decorrentes de motivações levianas de carácter individual
e/ou colectivo.
Doravante, a objectividade será o princípio fundamental para superar este problema
que decorre de estereótipo2 e noções do senso comum. Exemplo de alguns estereótipos:

1) Nas famílias pobres ocorrem com mais frequência actos de violência doméstica
dos que nas famílias ricas.

2
Representações mais ou menos preconceituosas e desligadas da realidade objectiva que levam a que
se interpretem factos de forma errada.

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2) As mulheres permanecem com maridos violentos porque gostam de levar
bofetada.
3) Os negros são excepcionalmente talentosos na música e no desporto, mas
intelectualmente inferiores aos brancos.
4) As mulheres têm menos capacidade intelectual que os homens.

Criar metodologias de observação


Adoptar o relativismo cultural
Rejeitar estereótipos e preconceitos
OBJECTIVIDADE Separar os factos das opiniões
Evitar noções do senso comum
Rejeitar ideologias e juízos de valor
Ser crítico (questionar os factos)
Ser antidogmático

As atitudes supracitadas são erróneas e decorrem de ideologias, estereótipos e


preconceitos. O combate contra tais atitudes sugere o distanciamento do observador em
relação à realidade observada; o isolamento da realidade observada da influência de
outras realidades semelhantes, mas não essenciais e que ocultem a essência daquela,
para observá-la de forma pura, bem como o afastamento das noções do senso comum e
de interpretações subjectivas da realidade.

Bibliografia
TOMÁS, Adelino Esteves. Ensaio experimental de Sociologia, pp. 19-20

Trabalho independente

1- Sobre a realidade sociocultural é possível assumir-se uma atitude


científica e/ou do senso comum. Indique o tipo de atitude subjacente às
seguintes afirmações:
a) A morte é uma maldição divina.
b) A morte está relacionada com os ciclos biológicos do Homem.
c) A proliferação das drogas deve-se a razões de índole económica, social e
política.
d) A droga é censurável.
e) O lucro é um roubo.
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f) O lucro resulta da actividade económica capitalista.
2- Disserte sobre as seguintes asserções:
a) Nenhuma ciência pode afirmar-se como tal, enquanto estiver coroada de
fundamentos estereotípicos e do senso comum.
b) As ciências são neutras, os cientistas não o são.
3- Com base nos dicionários de Sociologia e/ou de Filosofia consolide os
seguintes conceitos: estereótipo, objectividade, senso comum, ideologia,
relativismo cultural.

1.4- A Antropologia cultural no domínio das Ciências Sociais

O Homem sempre se questionou sobre si mesmo. Desde as primeiras sociedades


humanas existiram homens que observaram e se indagaram sobre si e os seus
semelhantes. A reflexão sobre a origem, o presente e o destino humano e do seu grupo
social, assim como a elaboração de um saber a esse propósito são tão antigos como o
próprio Homem e deram-se em todos os continentes. Todavia, a ideia de conceber uma
ciência sobre o Homem, isto é, a Antropologia, é bastante recente.
Foi impulsionado pela expansão europeia (século XV) que se começam as primeiras
tentativas de instituir um saber mais ou menos coerente sobre o que hoje se designa
Antropologia. No século XVIII, com o progresso social resultante da Revolução
Industrial intensificam-se expedições marítimas pelo mundo e descobrem-se povos
“exóticos” que suscitaram a necessidade de estudos científicos, sendo que o objecto de
estudo da nascente ciência (a Antropologia) seriam as sociedades “primitivas”, ou seja,
sociedades com uma civilização alheia à europeia e à norte-americana.
Com o crescente relacionamento entre povos e culturas (século XX), a Antropologia
percebe que o objecto que tinha seleccionado estava a desaparecer; vendo-se
confrontada com uma crise de identidade, pois o Homem selvagem de hábitos
primitivos deixara de ser o único objecto de interesse da Antropologia, já que
teoricamente as pesquisas da Antropologia não mais estariam ligadas aos espaços
geográficos, culturais ou históricos restritos, mas aos enfoques que consistiriam no
estudo do Homem em todas as sociedades, sob todas as latitudes, em todos os seus
estágios de desenvolvimento socioculturais, ou seja, só se consideraria Antropologia
propriamente dita, uma abordagem abrangente e global que tivesse em consideração as
múltiplas dimensões do ser humano em sociedade.
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Vejamos algumas perspectivas a que certos autores nos remetem a respeito do
objecto de estudo da Antropologia: Evans-Prichard in (Antropologia social, p. 14)
considera que o objecto da Antropologia é o estudo das culturas das sociedades
humanas e das suas instituições enquanto parte dos sistemas sociais; Francisco Lerma
Martinez considera que a Antropologia cultural tem um objecto material (o Homem) e
um objecto formal (o conjunto de comportamentos que dizem respeito a esse Homem
como um todo); e Titiev, in (Introdução à Antropologia cultural, p. 5) refere que o
objecto da antropologia é o agregado de pessoas que geralmente ocupa uma única
região e partilha maneiras de viver comuns.
A multiplicidade de análises está relacionada com a complexidade das próprias
ciências sociais e em particular, da Antropologia, de definir com precisão o seu objecto
tal como já o fizeram as ciências naturais (Física, Biologia, Astronomia Química, etc.)
Importa referir que a própria Antropologia em vários contextos e países é designada
por diferentes nomes, por exemplo, em França é conhecida como Enologia, em
Inglaterra é denominada Antropologia social, enquanto na América do Norte ela é
identificada como Antropologia cultural.

Conceitos-chave

Etnografia: ciência que estuda comportamentos de homens, designadamente a


origem das religiões, dos costumes, dos hábitos, das línguas dos povos, etc., faz o
estudo pormenorizado das civilizações dos diversos povos ou etnias. É a teoria geral das
culturas e procura descrever detalhadamente todos os aspectos da cultura material e
imaterial dos povos.
Etnologia: estuda os povos e as suas raças, no tocante aos seus caracteres psíquicos,
físicos e culturais, às suas diferenças e afinidades, às suas origens e relações de
parentesco. Também estuda e classifica etnias em função das suas características raciais
e culturais, procurando explicar a distribuição e as particularidades do parentesco ao
longo do tempo. No entanto, hoje em dia, tanto a Etnografia como a Etnologia são
disciplinas afins e os especialistas usam um ou o outro conceito para designar o mesmo
objecto.
Antropologia: é uma palavra de origem grega anthropos = Homem / logos =
ciência ou tratado de ou sobre (…); tratado sobre o Homem, suas actividades e
comportamentos. A Antropologia leva em conta todos os aspectos da existência
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humana, passados, presentes, combinando esses aspectos numa abordagem integrada.
Assim, podemos considerar a Antropologia como uma disciplina especializada, na
medida em que trata apenas de assuntos relacionados com o Homem enquanto ser
portador de experiências culturais, e, por outro lado, generalizada, porquanto considera
uma variedade de aspectos da realidade humana que envolvem temas relativos aos
diversos campos científicos como a Biologia, a Sociologia, a Psicologia a História e
outros campos do saber humano.
Cultura: conjunto complexo que compreende os conhecimentos, as crenças, os
valores, a arte, o direito, os costumes, a moral e todos os aspectos e hábitos do Homem.
(Edward Tylor)

1.5- Princípios dos métodos antropológicos

O principal método da Antropologia é a observação participante. Mas o que é a


observação? Em que se distingue este método dos outros métodos?
Ora bem, a observação é o método mais afim ao senso comum, pois dela podemos
obter experiências tecnicamente vulgares e espontâneas do quotidiano. No entanto, a
observação científica é qualitativamente diferente da do senso comum, pois ela
caracteriza-se por seguir procedimentos mais ou menos rigorosos.
A observação científica é consciente, metódica, crítica, sistemática, objectiva e
orientada a um fim determinado.
A observação foi historicamente o primeiro método científico e a sua pertinência
repousa em que permite obter informações sobre o alvo da investigação de forma
directa e imediata, impulsiona questões que podem ter interesse científico e provoca o
levantamento de problemas e das respectivas hipóteses.
No entanto, há uma espécie de observação que se designa observação participante,
por meio da qual o observador participa nas tarefas e haveres dos grupos, cujo
comportamento pretende observar. Como já aduzimos, a observação participante é o
mais importante método da Antropologia, sendo que os antropólogos e etnólogos para
realizarem as suas pesquisas, amiúde, mudam-se para as comunidades-alvo. As
vantagens disso consistem nas potencialidades de aprofundar as características
observadas. Entretanto, este método exige:

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 Uma boa capacidade de estabelecer relações interpessoais por parte do
observador.
 A posse de um mínimo de conhecimentos da linguística da comunidade-alvo.
 A capacidade de manter em todo o momento o papel de investigador (pois que à
medida em que o investigador se integra na comunidade-alvo, pode esquecer-se
do papel de investigador e dos seus objectivos).

Martinez (1999:30-31) fala-nos de quatro princípios que regem os métodos


antropológicos, designadamente:

a) O princípio holístico: (do grego Holismo = global, total, abrangente,


completo); por meio deste princípio, a Antropologia examina qualquer
temática na perspectiva da globalidade humana, olhando para a
humanidade como um todo. Nesse sentido, a Antropologia é a ciência
coordenadora do ser humano, já que contrariamente às outras ciências
que estudam o Homem numa perspectiva particular, esta disciplina
procura compreender a complexidade do Homem, estudando-o como um
todo, isto é, cada uma das características do Homem, os elementos
comuns e diferentes entre os seres humanos, os seres humanos de todos
os tempos e lugares, a sua religiosidade, os seus aspectos físicos, a sua
história, a sua cultura, etc., integrando as diversas visões científicas do
que o ser humano significa.
b) O princípio histórico: visto que as culturas não são estáticas, elas têm
um carácter mutável e dinâmico, daí a pertinência de estudar as culturas
e a história dos povos para permitir ao máximo a colecta de informações
sobre os contactos entre povos, compreendendo melhor a sua evolução
ao longo do tempo. Este princípio ajuda no conhecimento dos processos
e instituições das civilizações do passado, buscando explicar as origens
da vida e dos comportamentos actuais.
c) O princípio comparativo: não se pode compreender bem um fenómeno
ou facto senão por comparação com outros fenómenos ou factos. Os
sistemas culturais são tão variados que exigem para a sua compreensão
uma análise comparativa que forneça elementos precisos para o estudo
da sua variação no tempo e no espaço. Há autores que consideram que
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este é o único método verdadeiramente antropológico, pois apenas por
comparações é possível apurar e esclarecer conceitos fundamentais de
uma cultura. A comparação fornece uma análise mais pormenorizada
sobre os traços culturais comparados, podendo-se compreender as
diferenças e as semelhanças entre as culturas comparadas; ajuda a
verificar a evolução de um aspecto da cultura em relação ao outro; assim
como, permite conhecer os significados que cada povo atribui à sua
própria cultura.
d) O princípio da interdisciplinaridade: o método antropológico é
interdisciplinar na medida em que se serve das técnicas de pesquisa
fornecidas por outras disciplinas (Veja a pág. 8).

1.6- Os ramos da Antropologia, o estudo do Homem na sua diversidade e as


dificuldades de percurso da Antropologia

Designa-se Antropológica, só e só, uma abordagem holística ou global que


perspective considerar as múltiplas dimensões do ser humano em sociedade. A vocação
da Antropologia consiste em não parcelar o Homem, mas em tratar de o relacionar e
comparar com os outros indivíduos da sua espécie. Nesse contexto, existem cinco ramos
principais da Antropologia que embora metodologicamente separados, todos dizem
respeito ao Homem inteiro.

a) Antropologia biológica: centra-se no estudo dos caracteres biológicos do Homem


no espaço e no tempo; problematiza sobre a relação entre o património genético e o
meio (geográfico, ecológico, social); analisa as particularidades morfológicas e
fisiológicas ligadas ao meio ambiente, bem como a evolução destas particularidades
ao longo do tempo. Por exemplo, procura explicar porque o Homem africano tem
uma pele preta e o Homem europeu a tem branca, ou porque os chineses são na
generalidade baixos e os alemães, altos, etc. A antropologia biológica, entre outros
aspectos, procura compreender no Homem o que é congénito e o que é adquirido.
b) Antropologia pré-histórica (Arqueologia): estuda o Homem através dos seus
vestígios materiais enterrados no solo (crânios, dentição ou outros ossos humanos e
quaisquer marcas da actividade humana); o seu projecto visa reconstituir as
Manual de Antropologia Sociocultural, 2016. 17
Adelino Esteves Tomás, Ph.D.
sociedades desaparecidas, tanto em técnicas de organizações sociais, como em
produções artísticas, literárias e culturais. O antropólogo pré-histórico (arqueólogo)
recolhe pessoalmente objectos do solo, para a reconstituição do passado com base
em fontes orais ou no conhecimento da história.
c) Antropologia linguística: a linguagem é parte do património cultural de um povo.
É por meio dela que os indivíduos que compõem uma sociedade expressam os seus
valores, seus pensamentos, suas aflições e suas preocupações. O conhecimento das
línguas permite perceber como os povos pensam o que vivem e o que sentem; como
esses povos expressam o seu universo social (relacionamentos, tradições, costumes,
crenças, etc.); como eles interpretam o seu saber e o seu saber-fazer. Portanto, nisto
tudo radica a pertinência da Antropologia linguística. Hoje em dia, esta disciplina
não diz respeito apenas ao estudo dos dialectos (dialectologia), mas também se
interessa pelas áreas novas abertas à comunicação social, designadamente os meios
de comunicação audiovisuais e as tecnologias de informação e comunicação.
d) Antropologia psicológica: estuda os processos do funcionamento do psiquismo
humano. Ora, o antropólogo é confrontado com comportamentos individuais, cuja
totalidade permite apreender e compreender os seres humanos, ou seja, os
conhecimentos dos comportamentos individuais levam-no a conhecer os
comportamentos da totalidade dos grupos sem os quais não há Antropologia.
e) Antropologia sociocultural ou etnologia: concerne a tudo o que incorpora a
sociedade, a saber os seus modos de produção, as suas técnicas de organização
sociopolítica, suas leis, seus sistemas de parentesco, sua moral, sua religião, arte,
conhecimentos, filosofia, linguística, educação, etc. No entanto, a Antropologia
sociocultural não se preocupa com a abordagem sistemática e meticulosa dos
aspectos acima levantados, mas pelo contrário procura mostrar o modo como estão
relacionados entre si no contexto de uma sociedade em específico.

****

Como já vimos antes, o objecto de que a Antropologia se ocupara nos seus


primórdios são os povos de culturas não-europeias. No entanto, esta Antropologia
revelou-se estereotípica e preconceituosa face às abordagens sobre essas culturas, pois
tinham sido consideradas culturas selvagens, exóticas, esquisitas e animalescas.

Manual de Antropologia Sociocultural, 2016. 18


Adelino Esteves Tomás, Ph.D.
A verdadeira ciência antropológica é isenta e objectiva, estudando neutralmente
todas as culturas da humanidade como um todo nas suas diversidades históricas e
geográficas. De facto, esta Antropologia rompe frontalmente com a ideia da existência
de «um centro do mundo», ou de «culturas superiores e inferiores» e considera a
diversidade como sendo o traço mais marcante nas relações interculturais, ou seja,
considera que aquilo que os seres humanos têm em comum é capacidade de se
diferenciar uns dos outros e de elaborar costumes, normas, valores, línguas, instituições,
conhecimentos variados e culturalmente diversificados.
A Antropologia privilegiará o estudo científico destas diversidades e variedades
culturais. Todavia, ela enfrentará um sem-número de dificuldades quer de carácter
metodológico, quer de carácter conceptual, quer ainda resultantes da falta de consensos
entre os autores sobre como abordar esta ou aquela temática. Trataremos aqui de
enunciar algumas dessas dificuldades.

 A primeira dificuldade é de âmbito terminológico e resulta da dicotomia


(Etnologia-Antropologia): o primeiro termo da dicotomia é (Etnologia) e
corresponde à tradição francesa que considera a pluralidade das etnias como sendo o
objecto desta disciplina. O segundo termo (Antropologia) diz respeito ao uso mais
frequente em países anglo-saxónicos que insistem na unidade do ser humano como
sendo o objecto da disciplina; optando-se por Antropologia Social em Inglaterra,
cujo objecto é o estudo das instituições, e por Antropologia Cultural na América
do Norte que se centra no estudo de comportamentos dos pequenos grupos.
 A segunda dificuldade é o facto de a Antropologia ter como objecto, o estudo do
Homem: ora, o Homem pode estudar o Homem? Ou seja, o Homem pode ser
objecto de si próprio, agindo simultaneamente como sujeito e objecto do seu
conhecimento? O facto de os primeiros antropólogos terem escolhido como objecto
da sua investigação os povos primitivos explica-se, em parte, pela dificuldade de
estes assentarem as suas investigações nas suas próprias sociedades, facto que
degenerou em preconceitos a respeito desses povos.
 A terceira dificuldade consiste na (dificuldade) de conciliar as pesquisas
antropológicas com a vida prática: há pensadores que afirmam que a pesquisa
antropológica não tem qualquer valor se os seus resultados não forem utilizados
para melhorar a vida dos povos. Nesse contexto, propõem aquilo a que denominam
«Antropologia Aplicada», isto é, uma Antropologia que não resida apenas no nível
Manual de Antropologia Sociocultural, 2016. 19
Adelino Esteves Tomás, Ph.D.
epistemológico, mas forneça ferramentas para a operação de mudanças
socioculturais desejáveis. Contrariamente, outro grupo de pensadores considera que
a Antropologia deve ser neutra, imparcial, sendo o seu papel estudar desapaixonada
e desinteressadamente as culturas dos povos, sem, no entanto, procurar intervir nos
problemas relativos a esses povos e suas culturas.
 A quarta dificuldade está relacionada com a vastidão do campo de acção da
Antropologia: ora, apesar de a Antropologia ser uma disciplina relativamente
recente (surgiu no século XIX) especializou-se num campo bastante vasto,
designadamente o estudo do Homem em todas as suas dimensões, o que dá origem
aos vários ramos da própria Antropologia, cujos domínios exigem do antropólogo a
especialização numa área específica.
Bibliografia
LAPLATINE, François. Aprender antropologia, pp. 13-33.

Trabalho independente

1-A Antropologia cultural actualmente ocupa um lugar de destaque em muitos


cursos formativos da sociedade moderna e concretamente no curriculum de formação de
futuros sacerdotes da igreja (MARTINEZ, 1994:5).
a)Dê a noção de cultura.
b)Quais os princípios do método antropológico?
c) Comente sobre a pertinência da leccionação da disciplina de Antropologia no seu
curso.

1.7- Periodização do pensamento antropológico

Parece-nos arbitrária qualquer divisão da história da Antropologia, no entanto, a


pertinência da periodização histórica desta disciplina repousa na necessidade de
obtermos um mínimo de rigor e sistematização metodológicos que permitam a
caracterização teórica das abordagens dos vários pensadores. Segundo T.K. Penniman, o
pensamento antropológico obedece a quatro períodos, a saber:

Período de formação: (… à 1835)

Manual de Antropologia Sociocultural, 2016. 20


Adelino Esteves Tomás, Ph.D.
Começa com a história da própria humanidade e diz respeito a toda a reflexão do
Homem sobre si e sobre o universo que o rodeia. Neste período, esteve presente a
preocupação com a origem, a realidade e o destino do Homem, procurando explicar
sobre o seu passado, sua história e sua relação com o mundo do além. Neste contexto,
podemos dizer que todas as manifestações culturais do Homem ao longo do tempo,
desde as mais longínquas, contribuíram para a efectiva formação da Antropologia,
nomeadamente as pirâmides do Egipto, as pinturas rupestres encontradas em várias
regiões do mundo, o sistema de parentesco, os sistemas sociais da antiguidade, os
fósseis, sistemas religiosos, etc.
Este período corresponde ainda à época de grandes descobertas e expansões dos
europeus pelo mundo, que permitiu colectar dados etnográficos para compreender a
complexidade das manifestações culturais, o que mais tarde iria incidir na separação da
Antropologia em vários ramos (arqueológica, linguística, biológica, etc.), mercê da
acumulação de conhecimentos vastos que por si exigiam uma especialização dos
estudiosos.

Período de convergência (1835 – 1869)

Este período é assim designado porque existiu nele uma unidade em torno do
conceito de “evolução”. Este conceito, neste período, anima as pesquisas e reflexões nos
domínios da Biologia, Filosofia, Sociologia e da própria Antropologia. O período é
ainda marcado por debates ardentes, surgimento de várias revistas e numerosas
associações científicas e humanitárias como:

a)- Sociedade de Etnografia (1839) e sociedade de Antropologia (1843) ambas


em Paris
b)- Sociedade de Etnologia de Londres (1843)

Estas sociedades eram tidas como humanitárias porque o motivo que deu a sua
origem estava ligado a um sentimento humanista em relação aos povos “primitivos”
face às depredações coloniais. As sociedades em si eram tidas como amigas dos povos
primitivos.

Período de construção (1869 – 1900)


Manual de Antropologia Sociocultural, 2016. 21
Adelino Esteves Tomás, Ph.D.
Este período é uma simples consolidação do anterior, em que o número de
associações e sociedades cresceu vertiginosamente por toda a Europa e pelos E.U.A. O
período de convergência distingue-se do de construção pelo facto de neste último, o
evolucionismo ter alcançado o seu apogeu com a teoria de Charles Darwin (1859) sobre
a origem das espécies.
Ainda neste período, a Antropologia moderniza-se com o surgimento de grandes
publicações de Edward Tylor como “ A Cultura Primitiva” (1871), onde através do
método comparativo o autor tenta explicar a evolução pela qual passou a religião ao
longo dos tempos. Outra obra marcante é a de Lewis Morgan “ Sociedade Primitiva”
(1877), que procurou estabelecer o caminho seguido pela instituição familiar através de
vários estádios do desenvolvimento.

Período crítico (1900 à …)

Este período vai até aos nossos dias, tendo-se caracterizado pelos avanços em vários
domínios do saber, progresso dos meios de comunicação, democratização da educação e
institucionalização da Antropologia como uma disciplina universitária. Estes factores
permitiram a publicação de escritos que puseram a ciência antropológica ao serviço não
só do colonialismo, como também das universidades.
Os povos outrora objectos de estudo de antropólogos europeus e norte-americanos
começaram a cultivar também estudos de Antropologia. A realidade sociocultural
tomou novos rumos e passou a ser analisada por olhares diversos.
Alguns antropólogos também começaram a dedicar-se aos estudos na área da
psicologia, da linguística, de folclorística e dos efeitos de perversos do urbanismo.

Bibliografia.
DE MELLO, Luiz Gonzaga, Antropologia cultural, pp. 180-197

1.8- As correntes do pensamento antropológico.

A Antropologia evoluiu à luz de várias correntes ou escolas de pensamento,


designadamente a escola evolucionista, a difusionista, a funcionalista e a estruturalista.

Manual de Antropologia Sociocultural, 2016. 22


Adelino Esteves Tomás, Ph.D.
O evolucionismo

Esta corrente parte do princípio enunciado por Charles Darwin de que o mundo vivo
é o resultado de uma longa acumulação de mutações e evoluções de espécies. Tendo
sido trazida esta ideia à Antropologia, acreditava-se que assim como as espécies
animais, as culturas também evoluem com o tempo. As culturas evoluem através de
mutações, interagindo ou não com o meio exterior.
O evolucionismo oficial é associado a académicos como Edward Burnett Tylor,
Lewis Henry Morgan e Herbert Spencer e representou uma tentativa de formalizar o
pensamento antropológico com linhas científicas modeladas conforme a teoria biológica
da evolução, ou seja, se os organismos podem desenvolver-se com o passar do tempo de
acordo com leis compreensíveis e deterministas, parece então razoável que as
sociedades também o possam.
Por conseguinte, as principais características do evolucionismo são:

 Vastidão do objecto: o objecto do evolucionismo é tão vasto que se confunde


com o da Antropologia no geral, pois abrange a cultura como um todo ligado à
espécie humana. O evolucionismo não trata sobre manifestações culturais de um
povo particular, mas diz respeito à cultura como um património comum a toda a
humanidade, procurando explicar os aspectos culturais comuns aos povos.
 Factor tempo: o evolucionismo levou em consideração o factor cronológico,
tendo criado uma temporização nova designada «tempo cultural» por meio do
qual são caracterizados os estádios de cultura vividos pelos povos, daí resulta a
utilização do conceito “paralelismo cultural” que assenta no pressuposto de que
tanto os povos primitivos como os civilizados têm uma origem cultural
simultânea, diferindo no facto de os povos primitivos se terem retardado na
evolução cultural devido ao facto de se terem apegado aos valores e tradições do
passado.
 Uso do método comparativo: o evolucionismo faz interpretações das
instituições do passado através da reconstrução do próprio passado, por
intermédio do método comparativo, explicando o desconhecido por aquilo que
se conhece.
 Introdução de novos temas e conceitos: os principais temas abordados pelo
evolucionismo são a religião e a família e em qualquer destes temas a
Manual de Antropologia Sociocultural, 2016. 23
Adelino Esteves Tomás, Ph.D.
preocupação é explicar que a cultura obedece a uma evolução universal, isto é,
que a cultura surgiu simultaneamente em todas as partes.

O evolucionismo teve o mérito de trazer para a Antropologia uma série de


neologismos que enriqueceram o quadro conceptual desta disciplina e que até
hoje se mantêm actualizados, por exemplo; o conceito de cultura, religião,
patriarcado, magia, clã, tribo, incesto, totem, matriarcado, parentesco, evolução
cultural, etc.

O difusionismo

Também conhecido por historicismo, o difusionismo engloba várias tendências da


Antropologia. Surge como um movimento de reacção à orientação evolucionista tanto
nos seus postulados teóricos como nos metodológicos; pretende dar uma explicação
histórica às semelhanças existentes entre as culturas particulares. Sustenta que as
inovações são iniciadas numa cultura específica, para só então serem difundidas de
várias maneiras a partir desse ponto inicial.
De acordo com o difusionismo, uma inovação maior (como por exemplo, a invenção
da roda) terá sido criada num tempo e local particular para então ser passada para
populações vizinhas através da imitação, de negociações, de conquistas militares ou
outras maneiras. Dessa forma, a inovação irradia lentamente do seu ponto de partida. A
teoria pode ser aplicada a temas artísticos, crenças religiosas, engenharias e
arquitecturas e/ou qualquer outro aspecto da cultura humana.
O método difusionista tem sido usado para investigar inovações, traçando rotas até
presumíveis pontos de partida, localizando assim a sua origem em culturas distintas e
mapeando a história da sua difusão.
Há historicamente três linhas de pensamento difusionista a que chamaremos escolas:

a) O difusionismo inglês ou a escola inglesa: defende a difusão como sendo a


única causa da expansão e dinâmica cultural, nega a teoria do paralelismo
cultural exposta pelo evolucionismo e considera a existência apenas de um
centro cultural (difusão geocêntrica), desde o qual todos os traços culturais
foram difundidos. Este centro cultural era o Egipto Antigo. Os principais
proponentes dessa teoria foram Grafton Elliot Smith (1871-1937) e William
Manual de Antropologia Sociocultural, 2016. 24
Adelino Esteves Tomás, Ph.D.
James Perry (1887-1949), ambos estudaram o Egipto Antigo intensamente,
resultando na sua crença que o Egipto era o único centro cultural. As teorias
destes pensadores passaram a ser designadas de pan-egiptismo.
b) O difusionismo alemão ou escola alemã: os seus fundadores são Father
Wilhelm Schmidt e Fritz Graebner, os quais defenderam a teoria dos círculos
culturais de difusão que surgiram em determinados espaços e épocas e daí se
difundiram. Estes teóricos acreditavam que o progresso da difusão seria a via
mais eficiente para o avanço da civilização e advogavam a necessidade de
fortalecer os contactos dos povos menos civilizados com os círculos culturais, o
que em certo modo procurava legitimar a exploração colonial da Europa pelo
mundo. O conceito de difusão explica como alguns traços culturais são
adquiridos e difundidos.
c) O difusionismo americano ou escola americana: considerou as culturas
particulares como sendo o principal campo de estudo da Antropologia. Segundo
Franz Boas, a cultura é tão complexa que não permite um levantamento histórico
de carácter universal. A Antropologia deve centrar os seus estudos em pequenas
comunidades culturais, nomeadamente clãs, tribos, castas e outras formas
primitivas de organização social. Acrescenta Boas que a difusão não é um
processo linear e mecânico, mas pressupõe uma elaboração complexa por parte
do (s) povo (s) que apreende (m) certos traços culturais. Considera que para a
compreensão das culturas é importante o seu levantamento histórico, pois o
facto de determinados traços culturais terem origens diversas condiciona a
compreensão da cultura, ou seja, precisa-se conhecer a história de uma dada
cultura para compreender a cultura em si.

Em síntese, o difusionismo ajuda a explicar a aculturação, mas não é capaz de


explicar todos os aspectos culturais como os primeiros difusionistas acreditavam.
Existem exemplos de culturas em contactos próximos, mas que não partilham
muitos traços. Por isso, o difusionismo aparece como uma corrente problemática por
várias razões. Primeiro, é difícil demonstrar que uma inovação teve um ponto de
partida único. Segundo, muitas invenções e ideias culturais podem ter sido
descobertas ou ter evoluído isoladamente. Terceiro, as adaptações às necessidades
humanas e sociais podem facilmente ter tomado formas similares em diversas
culturas, caso tenham sido as melhores soluções possíveis para problemas similares.
Manual de Antropologia Sociocultural, 2016. 25
Adelino Esteves Tomás, Ph.D.
Por exemplo, o aparecimento de pirâmides no Egipto e na América Central sem que,
até hoje, nada tenha provado que a técnica de edificação de pirâmides se tenha
difundido do Egipto à América Central, o mesmo pode afirmar-se em relação ao
fogo que já era utilizado pelos índios americanos e pelos africanos sem que estes
povos tenham tido contacto algum no passado.

Trabalho independente
1- Indique os factores que originam as mudanças culturais.
2- Qual o impacto das ideias difusionistas quando assimiladas pelos povos
colonizados?
3- O aparecimento das culturas justifica-se mais pelo paralelismo cultural ou pela
teoria dos círculos culturais? Argumente a sua resposta.

Bibliografia: MELLO, Luís Gonzaga. Antropologia Cultural, pp. 220-277.

O funcionalismo

a) O funcionalismo de Bronisław Malinowski

O funcionalismo é uma corrente da Antropologia segundo a qual, o sentido de um


facto cultural só aparece quando se examina a sua função no conjunto dessa cultura, isto
é, a necessidade que tal facto cultural satisfaz no contexto da cultura em que está
inserido (todo o facto cultural cumpre uma função).
O funcionalismo surge com os trabalhos do polaco Bronisław Malinowski (1884-
1942) e do britânico Radcliffe-Brown, procurando explicar o funcionamento de uma
cultura num dado momento.
Malinowski, nos seus estudos, distinguiu o conceito “natureza humana” do de
“cultura”. Para ele, a natureza humana está relacionada com o facto de todos os homens
terem que comer, beber, respirar, dormir, procriar, etc., onde quer que vivam e qualquer
que seja o seu tipo de civilização. Ou seja, a natureza humana exprime-se pelo
determinismo biológico, que impõe a todas as civilizações a realização de funções
corporais.

Manual de Antropologia Sociocultural, 2016. 26


Adelino Esteves Tomás, Ph.D.
Quanto à cultura, o autor considera-a como um sistema de objectivos, actividades e
atitudes que os homens realizam como reacção tanto aos estímulos biológicos como aos
imperativos impostos pela natureza. Esses objectivos e actividades são organizados em
torno de tarefas importantes e vitais por instituições como a família, o clã, a tribo, a
comunidade local e se transformam em cultura, sendo esta cultura acomodada a vários
aspectos tais como a educação, a economia, a religião, o casamento, os funerais, a arte,
a diversão, a moral, etc.
À diferença do evolucionismo que estudava a cultura como um todo, o
funcionalismo de Malinowski elegeu a “instituição” como a unidade básica da sua
análise. Para o autor, há um conjunto de elementos que caracterizam a instituição, a
saber:

O pessoal: pois toda a instituição funciona graças aos indivíduos que a compõem,
cada um dos quais realizando uma função determinada.
O estatuto: é para o autor a posição que cada indivíduo ocupara na instituição e em
função da qual espera um certo reconhecimento por parte dos outros integrantes da
instituição.
A função: é justamente o papel que cada indivíduo irá desempenhar na instituição,
isto é, o conjunto de expectativas que os membros da instituição têm para com cada um
dos seus membros.
As normas e sanções: Malinowski observa que qualquer instituição só cumpre os
propósitos para os quais foi criada se cada membro do grupo cumprir as suas funções,
isto é, se obedecer às normas da instituição. Observa ainda que para fazer cumprir essas
funções, o grupo institui um conjunto de sanções ou de recompensas que orientam as
actuações dos seus membros.
A satisfação de necessidades: qualquer instituição, afirma Malinowski, só existe
para resolver ou satisfazer alguma necessidade do grupo. Por exemplo, funda-se a
família para satisfazer a necessidade social de procriação, a igreja para satisfazer as
necessidades espirituais do povo, a escola para satisfazer os problemas educacionais da
sociedade, etc.

***
Malinowski vê uma relação necessária entre a instituição e cada um dos elementos
que a caracterizam, isto é, toda a instituição é concebida para realizar uma função,
Manual de Antropologia Sociocultural, 2016. 27
Adelino Esteves Tomás, Ph.D.
satisfazendo uma necessidade, implicando normas e sanções e atribuindo algum estatuto
social ao pessoal que a corporiza.

O funcionalismo com a sua teoria da “função” estimulou várias ciências sociais,


como é o caso da Sociologia de Robert King Merton (1910-2003), que introduz as
noções de função manifesta, função latente e disfunção.

Função manifesta: é o que se espera que aconteça, o que é previsível em relação a


uma prática social e cultural. Por exemplo, quem ingere álcool, embriaga-se. Portanto, a
embriaguez é o que se espera que se verifique em função da prática de ingestão de
álcool.
Função latente: é ou são os efeitos benéficos ou perversos que embora não
esperados, podem ocorrer na sequência de determinadas contingências sociais e
culturais. Por exemplo, a comemoração de uma data festiva tem como função manifesta,
a diversão e o lazer, mas, como função latente, pode constituir uma ocasião para o
levantamento de escaramuças, pancadarias e ofensas corporais entre os participantes.
Por outro lado, o lovolo tem como função manifesta a felicidade dos nubentes, mas
pode ter como função latente o exercício de violência do homem sobre a sua mulher.
Disfunção: é uma contribuição negativa de um elemento sociocultural (religião,
costume, práticas, ritos, etc.) ao sistema social ou cultural ao qual o elemento pertence,
podendo pôr em perigo um outro elemento do mesmo sistema. Por exemplo, a prática
da poliginia ou mesmo do kutchinga constitui-se uma disfunção social, na medida em
que põe em risco a protecção da saúde sexual e reprodutiva dos indivíduos envolvidos.

b) O funcionalismo de Radcliffe-Brown

Alfred Reginald Radcliffe-Brown (1881-1955) foi discípulo de Malinowski, os seus


estudos centram-se nos conceitos de “estrutura” e “função” em que apela para a
analogia com os organismos vivos.
A estrutura deve ser entendida como uma série de relações entre entidades. Assim
como a estrutura da célula realiza um sem-número de relações entre moléculas
complexas, a estrutura da sociedade também o faz em relação às várias partes que a
compõem, cada uma das quais cumprindo uma função específica.

Manual de Antropologia Sociocultural, 2016. 28


Adelino Esteves Tomás, Ph.D.
Para Radcliffe-Brown, a função é a contribuição que faz parte da manutenção da
estrutura. Por exemplo, a realização de funerais, a implementação das leis, a prática de
rituais, etc., são funções que fundamentam e dão sentido a uma dada estrutura
sociocultural. A função implica uma estrutura constituída de uma série de relações e
entidades, sendo mantida a continuidade da estrutura por um processo vital constituídos
por actividades integradas.

Educação
Parentesco
Funerais e demais rituais
ESTRUTURA Tabus
SOCIOCULTURAL Mitos
Religião
Casamento
etc.

Radcliffe-Brown criticou severamente aquilo a que denominou de "a história


conjectural" dos evolucionistas, cujo método era o da abordagem dos costumes dos
povos baseando-se simplesmente em conjecturas ou suposições sobre o passado e não
em observações directas no presente. Dizia que esse método evolucionista não podia dar
resultados significativos para a compreensão da vida e da cultura humana, já que os
arranjos contemporâneos existiam porque eram funcionais no presente e não como
"sobreviventes" de épocas passadas. Tanto para esse antropólogo como para
Malinowski, interessava o estudo do presente, do tempo sincrónico, e não havia espaço
para especulações sobre “sociedades primitivas” vistas sob o prisma do tempo
diacrónico.
Radcliffe-Brown fundou uma abordagem teórico-antropológica conhecida como
estruturo-funcionalismo. Cada sociedade estudada era considerada como uma
‘totalidade’, como um organismo cujas partes eram integradas e funcionavam de um
modo mecânico para manter a estabilidade social. Como estruturo-funcionalista, as
preocupações de Radcliffe-Brown estavam ligadas à descoberta de princípios comuns
entre as diversas estruturas sociais, o significado dos rituais, dos tabus e mitos e suas
funções exercidas na manutenção da sociedade.
Radcliffe-Brown introduz dois conceitos básicos na literatura antropológica:
significado e função social. Segundo o autor, para compreender um determinado ritual é
necessário, inicialmente, encontrar o seu significado, isto é, os sentimentos que ele

Manual de Antropologia Sociocultural, 2016. 29


Adelino Esteves Tomás, Ph.D.
expressa e as razões que os nativos apontam, para de seguida identificar a sua função
social naquilo que é importante para assegurar a coesão social necessária para a
subsistência do grupo.
Para Radcliffe-Brown, os sistemas de sentimentos regulam a actuação dos
indivíduos de acordo com as necessidades da sociedade, porém, tais sentimentos não
são espontâneos mas antes são desenvolvidos e expressos pelos indivíduos graças à
acção da sociedade sobre eles. A sociedade mantém-se coesa por força de uma estrutura
de normas morais e regras civis reguladoras do comportamento. Estas normas e regras
actuam então como uma espécie de “consciência colectiva”. Desse modo, os indivíduos
submetem-se aos desígnios da sociedade, tornando-se meras expressões da estrutura
social.
O sistema de parentesco foi um dos elementos fundamentais da sua análise.
Considerava-o, mesmo, como elemento fundamental para a compreensão da
organização social em sociedades de pequena escala, já que expressava um sistema
jurídico de normas e regras que impõem direitos e deveres.
Ao lado do sistema de parentesco, o totemismo tomou parte importante nos seus
estudos, e foi objecto de pesquisas na sociedade dos aborígenes, durante trabalhos de
campo na Austrália, entre 1910 e 1914. O autor concebia o totemismo como sendo
"uma relação mágico-religiosa específica e permanente entre uma pessoa ou um grupo
social e uma espécie ou certo número de espécies de objectos naturais ou animais"
(Melatti, p.16).
Em conclusão, a busca de princípios comuns, comparando as diferentes sociedades,
tornou-se o principal objecto de preocupação de Radcliffe-Brown.

O estruturalismo

O termo estruturalismo procede do substantivo «estrutura», e entende-se por


estrutura a maneira pela qual as partes de um todo estão dispostas entre si, oferecendo
um carácter de sistema em que a modificação de um dos elementos que a compõe
acarreta a modificação do todo. A estrutura é um sistema de transformações que têm leis
próprias pelo facto de ser um sistema.
O estruturalismo como corrente antropológica foi fundado por Claude Lévi-Strauss
(1908-2009) para quem, o próprio estruturalismo deve analisar a cultura como um todo,
sem a preocupação com os seus fundamentos individuais, pois é na sociedade e não no
Manual de Antropologia Sociocultural, 2016. 30
Adelino Esteves Tomás, Ph.D.
indivíduo que se hão-de encontrar as posições essenciais aos indivíduos, aos grupos e às
instituições, que são os elementos que perfazem a cultura3.
Para Lévi-Strauss, as estruturas mentais inconscientes são universais e estão por
detrás de todas as culturas, sendo elas as responsáveis pelas diferenças entre culturas
particulares. Lévi-Strauss chama à atenção para existência de «culturas frias» e
«culturas quentes». As culturas frias estão estagnadas na história, com uma sabedoria
particular que as incita desesperadamente a resistir a qualquer mudança na sua
estrutura, preservando o seu ser. São frias porque o seu interior está próximo do zero
de temperatura histórica, funcionam mecanicamente e são pouco tolerantes às
mudanças e alterações da sua estrutura. Vivem de dogmas, tabus, interdições e
tradições sagradas e arcaicas, estabelecidos de uma vez para sempre. Podem ser
consideradas culturas frias, as culturas de povos africanos, índios, melanésios, árabes,
hindus, etc. As culturas quentes são contingentes, isto é, mudam historicamente,
apresentando uma estrutura sucessivamente alterável em função das necessidades e
exigências da sociedade. As culturas quentes estão mais distantes do zero do
termómetro histórico e incluem as dos povos da Europa ocidental, da América do Norte
e de outras latitudes.
Segundo Lévi-Strauss, a cultura corrompe as estruturas elementares da mente
humana, sobretudo por parte das sociedades complexas com culturas quentes, onde as
mudanças constantes dos hábitos, dos valores e das tradições sujeitam as estruturas
mentais inconscientes dos indivíduos à racionalização das suas actuações, provocando
uma corrupção das suas estruturas mentais.

Algumas semelhanças entre o funcionalismo e o estruturalismo

1. Tanto o funcionalismo com o estruturalismo centram os seus estudos em


aspectos da cultura não-material (tabus, mitos, rituais, crenças, preceitos, etc.).
2. Ambos defendem a ideia de que a sociedade e a cultura formam uma totalidade
por meio da qual se podem explicar as suas partes componentes (indivíduos,
instituições, grupos, costumes, etc.).
3. Ambos advogam a possibilidade de explicações da cultura e da sociedade sem
recurso à história.

3
Reflexão face ao estruturalismo: Pode analisar-se a cultura ou a sociedade à margem dos
indivíduos que a compõem?
Manual de Antropologia Sociocultural, 2016. 31
Adelino Esteves Tomás, Ph.D.
1.9- Perspectivas mais recentes da Antropologia

O objecto de estudo da Antropologia clássica tradicional foi sempre a cultura dos


povos iletrados, também conhecidos como primitivos. Esta Antropologia esteve desde o
seu primórdio ao serviço de potências coloniais.
O quase desaparecimento de culturas iletradas tem exigido que a Antropologia
reveja o seu objecto, ajustando-o às sociedades complexas, aos meios urbanos e a outras
formas de organização sociocultural. Outro factor que está na origem da necessidade de
reformulação do objecto da Antropologia é o permanente contacto entre povos e nações
portadores de culturas diferentes que interagem, provocando mudanças nos padrões
culturais de cada qual. Por exemplo, o comércio de escravos interveio em contactos
intensos entre africanos e europeus, alterando valores e culturas desses povos.
Assim, a Antropologia tradicional pode ser classificada como um agente de
etnocídio,4 na medida em que esteve ao lado de «agentes civilizadores», colonialistas e
imperialistas. Consequentemente, várias culturas foram sacrificadas; línguas e dialectos
foram desaparecendo; povos inteiros abandonaram os seus padrões de cultura;
morreram experiências milenárias, enquanto outras foram aparecendo; etc.
Mais recentemente têm emergido teorias da Antropologia que são marcadas por
abordagens formais designadas por «Nova Etnografia», as quais têm centrado as suas
abordagens na etnociência, etnossemântica, na análise comportamental, na linguagem,
etc. A Nova Etnografia tem a pretensão de fornecer à Antropologia modelos de análise
que garantam objectividade e fiabilidade nos resultados das pesquisas, pois os trabalhos
de campo dos primeiros antropólogos eram manchados pela tendenciosidade e por
estereótipos. Por outro lado, a Nova Etnografia inspira-se na linguística, nas ciências da
comunicação, e na cibernética como meio de superação desses estereótipos nos estudos
etnográficos, através do uso de métodos matemáticos e estatísticos nesses estudos.
Segundo Goodenough, a Nova Etnografia procura descobrir o pensamento e a
maneira de ser do nativo. Este autor propõe as abordagens «Emic» e «Etic».
A abordagem Emic descreve as culturas baseando-se nos conceitos e categorias dos
povos nativos, representa aquilo que explica a cultura de um povo em si mesmo e é
quase que incompreensível pelos outros povos ou culturas, por exemplo, o facto da

4
Genocídio cultural ou eliminação das culturas, combate contra a subsistência de uma dada cultura.
Manual de Antropologia Sociocultural, 2016. 32
Adelino Esteves Tomás, Ph.D.
proibição de saldar dívidas no período nocturno entre os thongas, ou a interdição do uso
da mesma casa de banho entre sogro e nora, etc.
A abordagem Etic designa os conceitos técnicos do etnólogo, expressa categorias
universais da cultura e permite que o antropólogo se comunique com outros
antropólogos, ou com o público em geral. Nesse contexto, as categorias e conceitos dos
povos nativos (Emic) só se tornam compreensíveis aos outros povos quando o
antropólogo os “eticiza”, ou seja, quando os adapta a conceitos inteligíveis, seguindo
um certo rigor científico.
Em conclusão, refere Goodenough, que a abordagem Emic corresponde à
Antropologia tradicional que faz uma pura descrição dos factos, enquanto a abordagem
Etic diz respeito à Nova Etnografia, isto é, à Antropologia com fundamentos teóricos
que recorrem a uma perspectiva científica.

Leituras complementares

A Nova Etnografia, a etnociência ou a etnossemântica

Nos Estados Unidos surgiu, na década de 1960-1970, uma nova problemática


teórica que recebeu a designação de etnociência, apesar de ser igualmente conhecida
por etnossemântica ou mesmo Nova Etnografia, cujos trabalhos mais representativos
são os de Berlin, Kay, Conklin, Frake, Goodenough, Metzger, Romney e Tyler.
A etnociência considera a cultura como um sistema de cognições partilhadas
intersubjectivamente ou, simplesmente, como um sistema de conhecimentos e de
crenças. A criação da cultura não é atribuída aos factores biológicos ou ambientais,
mas ao intelecto humano. As emoções, as acções, o meio e outros elementos não são
mais do que elementos materiais organizados pelo intelecto humano. Goodenough
(1957) concebe cada cultura concreta como «um sistema de perceber e organizar os
fenómenos naturais, as coisas, os acontecimentos, o comportamento e as emoções».
Daqui resulta que o objecto de estudo da etnociência «não são os fenómenos materiais
como tais, mas o modo como estes se organizam na cabeça das pessoas. As culturas
não são fenómenos materiais, mas organizações (mentais) de fenómenos materiais»
(Tyler, 1969).
Na perspectiva da etnociência, o intelecto humano gera a cultura através de um
determinado número de regras finitas ou por meio da lógica inconsciente. O seu
Manual de Antropologia Sociocultural, 2016. 33
Adelino Esteves Tomás, Ph.D.
objectivo é determinar quais são essas regras. Ora, esta ideia de que, por debaixo da
diversidade da cultura existe um «conjunto de regras para a construção e interpretação
socialmente adequadas das distintas mensagens» (Frake, 1964) retoma o programa da
gramática transformacional, elaborado por Chomsky (1975), que procura descobrir as
estruturas mentais apriorísticas e universais subjacentes à linguagem, bem como o
programa estruturalista desenvolvido por Claude Lévi-Strauss (1975). Enquanto o
estruturalismo se interessava pela formulação das regras gramaticais que governam a
totalidade das trocas sociais e que são válidas para todas as culturas, a etnociência
interessa-se directamente pela formulação das regras gramaticais que regem cada
cultura concreta.
Entendemos a gramática de uma língua quando podemos enunciar uma proposição
gramaticalmente correcta, ou seja, uma proposição que seja considerada correcta por
todos os falantes nativos dessa língua. De modo semelhante, argumenta a etnociência,
entendemos uma cultura quando conhecemos as regras que nos permitem enunciar as
formas de comportamento que os nativos consideram adequadas a cada circunstância.
Apesar de não podermos predizer o que cada falante dirá ou fará unicamente com o
conhecimento da gramática, a etnociência considera que isso seria possível se, além
das regras gramaticais, conhecêssemos o conteúdo informacional necessário para
poder falar ou tomar decisões.
Devido à ênfase dada aos problemas cognitivos, o estudo da gramática de cada
cultura consiste em estudar «a forma das coisas que os indivíduos têm nas suas cabeças
e os seus modelos de percepção, para os relacionar entre si e, se for possível, poder
integrá-los» (Goodenough, 1957). Daí que a tarefa fundamental da etnociência seja a
de descobrir as formas de percepção dos membros de cada cultura concreta e o modo
como eles descrevem o seu mundo. Esta perspectiva tem sido chamada descrição emic
ou «interna» de uma cultura, por oposição ao ponto de vista «externo» ou descrição
etic, que consiste em descrever cada cultura concreta utilizando as categorias de que o
investigador dispõe.
Deste modo, a etnociência tende a centrar a sua atenção naqueles aspectos de uma
cultura que se reflectem na concepção que os nativos têm do seu meio, da natureza
humana e da sociedade, dando por pressuposto que as expressões linguísticas e o
discurso em geral expressam, de maneira directa, os princípios que organizam o
intelecto humano. Daí a sua dedicação ao estudo dos sistemas terminológicos ou dos
sistemas de nomes que os membros de uma cultura usam para descrever as plantas
Manual de Antropologia Sociocultural, 2016. 34
Adelino Esteves Tomás, Ph.D.
(etnobotânica), as cores e os animais (etnozoologia) do seu meio (etnoecologia), bem
como aos termos do seu sistema de parentesco. Estes sistemas de termos estão
organizados de maneira sistemática, através de um conjunto fixo de princípios
organizativos. Supondo a existência de um número fixo e limitado de princípios que são
os que todas as culturas empregam para gerar e construir os seus próprios sistemas, a
etnociência espera poder determinar os princípios usados para gerar cada um destes
sistemas terminológicos.

Bibliografia
1- Melatti, Júlio Cezar. ‘Introdução’, In Radcliffe-Brown: Antropologia. Orgs. J.C
2-Melatti & F. Fernandes. Colecção Grandes Cientistas Sociais, São Paulo, Ática,
1978. Pp.7-35
3-Eriksen, Thomas H. & Nielsen, Finn S. História da Antropologia. Petrópolis, RJ,
Ed. Vozes, 2007.

Trabalho independente

1-A Antropologia trata do Homem e do seu comportamento como um todo; leva em


conta todos os aspectos da existência humana biológica e cultural, passado e presente,
combinando esses aspectos numa abordagem integrada.

a) Quais os ramos da Antropologia?


b) Que semelhanças se podem estabelecer entre os postulados da corrente
funcionalista e os da estruturalista?
c) Disserte sobre as particularidades relativas às perspectivas da Nova Etnografia.

1.10- O conceito antropológico de cultura

Os seres humanos têm vivido em grupo. O primeiro contacto entre si tornou-os seres
sociais e tal facto tornou-se o primeiro fenómeno cultual. Com efeito, as diferentes
Manual de Antropologia Sociocultural, 2016. 35
Adelino Esteves Tomás, Ph.D.
formas de estruturação da sociedade dão origem a complexas e diversificadas culturas, o
que nos leva a afirmar que: todo o comportamento humano tem um significado cultural.
O vocábulo “cultura” procede do verbo latino “colere” que significa cultivar a terra.
Thomas Hobbes (1588-1679) designava a cultura como o trabalho de educação do
espírito. Já no século XIX, o antropólogo Edward Tylor entendia que a “ cultura é um
conjunto complexo que compreende conhecimentos, crenças, hábitos, moral, leis, artes
do Homem, enquanto membro de uma sociedade”5
Noutro âmbito, a cultura pode ser entendida como um legado colectivo que o
indivíduo adquire do seu grupo; modo de vida global de um povo; um mecanismo para
a regulamentação normativa do comportamento, conjunto de significados e valores
partilhados e aceites por uma comunidade; etc.
Em todos os espaços e tempos, a vida humana tem acarretado crenças, criado
normas, idealizado valores, inventado instrumentos, desenvolvido aptidões, produzido
obras de arte, etc., que a caracterizam e lhe conferem autenticidade ou identidade
própria. Isto é, cada grupo humano realiza-se através de uma cultura e esta apresenta-se
como a expressão material e/ou espiritual da vida social, concretizando-se no que é
socialmente aprendido e partilhado pelos membros do grupo.
A cultura é, então, um domínio vastíssimo que abrange todas as actividades da vida
humana. Dito por palavras breves: a vida humana é um estado de cultura. Por
conseguinte, no conceito de cultura as palavras-chave são aprendizagem e partilha.
Estas palavras ajudam-nos a distinguir a herança biológica da cultural. Por exemplo, as
necessidades de sono, de respiração e de alimentação são parte da herança biológica e
acontecem com/em todos os seres humanos. Porém, os modos com satisfazer essas
necessidades, os traços peculiares de um estilo de vida, etc., são legados culturais
aprendidos e partilhados não hereditária mas, socialmente.
Ora, a cultura, enquanto uma aprendizagem social compreende traços de índole
espiritual ou imaterial e material. Os traços imateriais (espirituais) da cultura são ideais,
crenças, costumes, dogmas, hábitos, preceitos, religiões, tabus, rituais, etc., de uma
sociedade. Outrossim, os valores revestem-se como traços imateriais da cultura de
capital importância, porquanto as vivências colectivas assentam neles. Assim, as ideias
do altruísmo/egoísmo, bem/mal, escravidão/liberdade, justiça/injustiça apreço/desprezo,

5
TYLOR, Edward. Primitive Culture, London, 1871, p.1
Manual de Antropologia Sociocultural, 2016. 36
Adelino Esteves Tomás, Ph.D.
etc., condicionam e moldam efectivamente o comportamento dos homens e das
mulheres pela aprendizagem social.
Por seu turno, os traços materiais da cultura abarcam obras de arte, meios de
comunicação, literatura, técnicas, instrumentos de trabalho, etc. Os traços materiais da
cultura reflectem a luta do Homem pela sobrevivência e neles encontra-se o sentido da
evolução que se constata graças à reacção do Homem sobre a natureza.
Naturalmente, como partes integrantes da cultura, os traços materiais e imateriais
(espirituais) não existem uns independentemente dos outros, mas interagem produzindo
a identidade cultural. Com efeito, a inovação tecnológica, ao promover maior domínio
da natureza trouxe uma alteração dos valores, dos costumes e das tradições da
sociedade. Assim aconteceu com os valores políticos, económicos e morais da Idade
Média que se alteraram radicalmente em consequência da ascensão política e económica
da burguesia liberal. O mesmo acontece hoje em dia com os meios de comunicação
(Rádio, Internet, Televisão, Telemóvel, etc.) que têm posto em contacto directo povos
portadores de culturas diferentes, criando espaços transculturais com novas formas de
estar, novos hábitos e valores.
Hoje, os meios de comunicação (traços materiais da cultura) ilustram uma
interacção dialéctica que se estabelece entre as diferentes culturas. Por consequência, a
comunicação em tempo real, a globalização da economia, a abolição das fronteiras
nacionais, etc., são factores que permitem pensar numa “Aldeia Global” e exprimem a
alteração colossal dos traços imateriais da cultura, ou seja, dos costumes, das crenças,
dos comportamentos e dos valores dos povos que interagem no sentido de mudança
cultural.

Características da cultura

Para além das características mencionadas mais acima, Martinez (2009) consideram
fundamentais as seguintes características:
A cultura é simbólica: porque é o conjunto de significados e valores transmitidos
através de símbolos e sinais.
A cultura é social: Por causa do seu carácter simbólico, ela é transmitida e
comunicada socialmente por meio de hábitos, costumes e preceitos que padronizam os
comportamentos dos indivíduos. Ela pertence ao grupo humano e não é individual

Manual de Antropologia Sociocultural, 2016. 37


Adelino Esteves Tomás, Ph.D.
sendo que o indivíduo recebe socialmente a cultura que lhe é transmitida pela sociedade
no seu conjunto.
A cultura é selectiva: Ela é um permanente processo que implica reformulações.
Este processo acentua-se na sucessão das gerações, onde alguns valores são relegados
ao esquecimento enquanto outros são incorporados, ditando, deste modo novos padrões.
A cultura é dinâmica e estável: É estável porquanto se submete à tradição, à
identidade e à institucionalização de padrões de comportamento. É dinâmica porque é
susceptível às mudanças.
A cultura é universal e regional: é universal na medida em que é um fenómeno
que acontece em todas as sociedades, pois não há povo desprovido de cultura. É
regional não porque seja diferente do fenómeno geral ou da cultura universal, mas pelo
facto de cada povo alimentar os seus interesses dentro do conjunto cultural próprio,
conforme às situações e necessidades particulares.
A cultura é determinante e determinada: é determinante quando se impõe aos
indivíduos e eles não podem agir de uma forma diferente daquela imposta pela própria
cultura, isto é, quando o Homem se torna produto da cultura. É determinada quando se
transforma ao longo do tempo através de factores que possam ditar as suas mudanças,
ou seja, quando o Homem se torna produtor da cultura.

Bibliografia
MARTINEZ, Lerma Francisco, Antropologia cultural, Paulinas. Editorial, pp.49-60.

1.11- Valores, normas e comportamentos socioculturais

A vida em grupo pressupõe uma certa ordem. Tal ordem resulta do facto de a vida
social colocar um sem-número de indivíduos detentores de comportamentos próprios e
diferentes uns dos outros, cada um dos quais agindo no sentido de satisfazer as
respectivas necessidades.
Ora, se cada indivíduo agir somente em função dos seus arbítrios, das suas
motivações e interesses, seguir-se-á a «guerra de todos contra todos6», dificultando a
vida social. Deste modo, no seu papel de socialização, o grupo (a sociedade) exige que

6
Expressão originalmente usado por Thomas Hobbes para designar o Estado Natural da sociedade no
qual primava a ausência da legalidade impondo-se a lei dos mais fortes.
Manual de Antropologia Sociocultural, 2016. 38
Adelino Esteves Tomás, Ph.D.
cada um dos seus membros reconheça que o seu comportamento deve obedecer a um
conjunto de normas que defendem e garantem a ordem social, preservando a
subsistência do grupo em si. Nesse sentido, as atitudes de cada indivíduo devem
obedecer ao padrão vigente e aceite como válido.
Ora, cada grupo social tem os seus padrões que representam comportamentos
esperados dos seus membros e que variam de sociedade para sociedade. Por exemplo, o
reconhecimento da liberdade religiosa constitui-se num padrão que se espera de uma
sociedade dada, porém, pode não ter sentido em sociedades onde se preza o extremismo
religioso.
Portanto, a vida sociocultural tem-se manifestado elaborado regras e normas
exteriores ao indivíduo, independentes da sua consciência, mas que a ele se impõe,
dando-lhe a conhecer qual deve ser o seu comportamento, de tal modo a ser reconhecido
como membro dessa sociedade. Cada indivíduo é, portanto, convencido a comportar-se
de acordo com as normas social e culturalmente vigentes e consubstanciadas nos valores
aceites pelo grupo.
Doravante, o valor será o modo de ser ou de agir que um indivíduo ou uma
colectividade reconhecem como ideal e que fazem com que os comportamentos aos
quais são atribuídos sejam desejáveis (TOMÁS, 2007:52)
Exemplo de valores: altruísmo, equidade, solidariedade, liberdade, caridade,
humildade, honestidade, temperança, justiça, bondade, modéstia, etc.
Exemplo de contra-valores ou valores negativos: egoísmo, arrogância, avareza,
avidez, incontinência, desonestidade, corrupção, vingança, vaidade, luxúria,
hostilidade, hedonismo, etc.
A vida em sociedade decorre dos valores que, como já dissemos, são independentes
da vontade e da consciência do indivíduo, tudo o qual nos permite elaborar a seguinte
síntese (MAIA; 2002:398):

 Todas as mudanças importantes (migrações, guerras, alterações sociopolíticas,


etc.) são acompanhadas por mudanças de valores.

 Os conflitos de gerações e os conflitos étnicos são, até certo ponto, conflitos de


valores.

 A coesão de um povo passa necessariamente pela esfera valorativa.

Manual de Antropologia Sociocultural, 2016. 39


Adelino Esteves Tomás, Ph.D.
 As ideologias que intervêm na transformação histórica das sociedades têm nos
valores a sua causa mais importante.

Neste caso, podemos afirmar com justeza que o comportamento humano é


significativo e condicionado pelos valores do grupo. Logo, o que haverá de comum no
comportamento dos membros de um grupo social será esse relativo conformismo com
os modelos de comportamento impostos pela prática sociocultural.

Leituras complementares

Necessidade de formação e transmissão de valores

O ser humano orienta o seu comportamento em função dos valores que a sociedade
preza ou privilegia. Por tal razão, e, a fim de fazermos uma aproximação ao
comportamento desejável, propusemo-nos a tarefa de fazer uma análise axiológica que
permita compreender a importância metodológico-prática da transmissão de valores
que, por sua essência, podem contribuir para o desenvolvimento de condições menos
propensas ao desvio de normas culturais.
A sinceridade: este valor implica simplicidade, veracidade e exclui o fingimento, a
hipocrisia e a dissimulação. A sinceridade pode estender-se a duas vertentes:
 Sinceridade para consigo próprio.

 Sinceridade para com os outros.

A primeira é importante para gozar-se de óptima saúde mental pois que, quando um
indivíduo não é sincero sente-se mal consigo próprio, pelo que não pode encontrar
sossego.

A sinceridade para com os outros é crucial para estabelecer relações interpessoais


em qualquer sistema (família, escola, empresa, sociedade em geral). A falta de
sinceridade pode causar frustrações no receptor e tal, pode ser, em certa proporção,
objecto de desconfianças, inimizades e hostilidades. Porém, quando o emissor é sincero
para com o seu receptor, produz-se um feedback7 que possibilita o estabelecimento de
fortes laços com ele. O requisito de garantia da sinceridade é a aceitação de cada

7
Palavra de origem anglo-saxónica que se pode traduzir como retroacção.
Manual de Antropologia Sociocultural, 2016. 40
Adelino Esteves Tomás, Ph.D.
situação tal como é, pois isso evita que as coisas se disfarcem camuflando a falsidade
numa verdade fictícia.
O diálogo: o valor do diálogo acarreta conversações entre duas ou mais pessoas.
Um diálogo pleno permite encontrar acções favoráveis à cooperação social e aos
interesses comuns a todos.
Um bom diálogo requer que a pessoa se abra à outra, a respeite, a escute, usando
uma linguagem acessível e deixando de lado o medo, a prudência excessiva e o
tratamento sarcástico. Quando um destes elementos falha, engendra-se a desconfiança
e a discórdia. O diálogo é o valor pelo qual se reduzem as diferenças ideológicas,
religiosas, étnica, políticas, culturais, etc. Ironicamente, os Acordos Gerais de Paz de
04 de Outubro de 1992 resultaram do diálogo, o que alerta para a importância deste
valor.
Assim, para um diálogo adequado recomendamos a selecção discreta de palavras,
pois uma palavra qualquer pode causar conflitos; uma palavra cruel pode destruir a
vida; uma palavra amarga pode romper com todas as vivências e sentimentos que se
geram ao longo da infância e da adolescência como etapas mais importantes na
formação da personalidade e na aquisição da auto-estima.
A auto-estima: tem a ver com a opinião ou a impressão que cada qual tem de si
próprio. Quando a partir da infância a criança é ajudada a descobrir o melhor da sua
personalidade e quanto mais amor, carinho e atenção receber, melhor conceito terá de
si própria.
A pessoa com alta auto-estima caracteriza-se pelo optimismo e por enfrentar com
coragem e valentia qualquer meta que se propuser. Pelo contrário, a baixa auto-estima
implica o pessimismo, o fracasso, a timidez, a ausência de confiança em si mesma, a
falta de comunicação, etc.
A estimulação de jogos e de brincadeiras na infância e na adolescência pode ajudar
a elevar a auto-estima por meio de valorações positivas relativamente ao adolescente.
A auto-estima é um valor muito importante na formação e consolidação da
personalidade do indivíduo, mas, o seu excesso pode impulsionar e gerar a arrogância,
a imodéstia, o menosprezo pelos outros, etc.
A paz: a paz é um valor sem cuja prática é inútil falar de entendimento entre
pessoas, de cooperação altruísta na sociedade, de aceitação das diferenças individuais
(raça, etnia, aptidão física, etc.).

Manual de Antropologia Sociocultural, 2016. 41


Adelino Esteves Tomás, Ph.D.
Moçambique, ao ser um país de orientações político-ideológicas diversas e de
composição étnica múltipla, a consolidação da unidade nacional só pode ser possível
num clima de paz e por meio do diálogo. Através da paz e apenas, diante de uma
situação pacífica é que se pode erguer um ambiente de entendimento, de solidariedade,
de aceitação das diferenças políticas, etc.
Ao trabalharmos o valor da paz, pretendemos que as pessoas tenham
conhecimentos sobre o seu significado e discriminem os seus antónimos mais próximos
como: guerra, inimizade, hostilidade, intolerância, discórdia, etc. Também,
pretendemos que as pessoas vivam uma atitude pacífica, ou sejam capazes de distinguir
uma situação hostil daquela que tem um alto conteúdo de paz.
A justiça: é a atitude de excelência moral ou a vontade decidida de entregar a cada
quem o que por direito é seu. Conhecer este valor é fundamental porque é a base de
outros valores e, também, a base de toda a ordem social. Sem justiça é falsa a
pretensão de paz, de tolerância, de reconciliação, etc.
A injustiça pressupõe deficiência moral naquele que a pratica e pode convergir na
violência social e no descontentamento.
Em linhas gerais, estas são as distinções que a respeito de certos valores, quisemos
discriminar para fazer prevalecer o seu conteúdo e significado na moldagem, guia e
orientação dos membros da sociedade.

Bibliografia
1-MAIA, Leandro Rui. Dicionário de Sociologia, Porto Editora, Porto, 2002.
4- TOMÁS, Adelino Esteves. Ensaio Experimental de Sociologia, UniSaF, 2007.

1.12- Padrões de cultura: Etnocentrismo versus Relativismo cultural

Dado que cada sociedade gera a sua cultura, é natural que possua os seus padrões de
cultura, ou seja, tipos formais de comportamento individual ou colectivo que
condicionam e explicam as atitudes do grupo.
Assim, a compreensão dos comportamentos humanos exige conhecimento dos seus
padrões de cultura. Tal conhecimento permite entender certos comportamentos que, de
outro modo, pareceriam um contra-senso, uma aberração ou uma irracionalidade.
Manual de Antropologia Sociocultural, 2016. 42
Adelino Esteves Tomás, Ph.D.
Os padrões de cultura são um código que torna inteligível o fenómeno cultural que
acontece nos diferentes grupos e o modo de reacção que cada grupo apresenta face a um
determinado estímulo. Ora, dos múltiplos modos de reacção aos diferentes estímulos
infere-se a multiplicidade de padrões de cultura.
A cultura, por seu turno, aparece como sendo algo relativo, pois não há culturas
inferiores nem culturas superiores, mas culturas diferentes (relativismo cultural).
O relativismo cultural, em oposição ao etnocentrismo, debate-se com a necessidade
de superação de discursos estereotípicos e preconceituosos face às práticas culturais. A
ignorância do relativismo cultural tem impedido que alguns grupos étnicos aceitem os
outros e tem levado à exaltação e ao reconhecimento do seu grupo como o melhor, o
mais perfeito e único digno de respeito (etnocentrismo).
O etnocentrismo tem justificado o surgimento de um sem-número de
comportamentos preconceituosos, designadamente o da superioridade e da pureza
racial. Por conseguinte, o etnocentrismo é um padrão de cultura que refere ao facto de
cada povo ou etnia pressupor a superioridade da sua própria cultura. Assim, por
exemplo, quando a civilização ocidental pretende que os diferentes povos adoptem os
seus costumes religiosos, artísticos, políticos, económicos, arquitectónicos,
pedagógicos, etc., está a tomar uma postura etnocêntrica.
Outras formas de manifestação do etnocentrismo são a xenofobia, o racismo, o
tribalismo, o apartheid, o chauvinismo, etc.

Vantagens Desvantagens
Etnocentrismo  Protege a cultura da invasão de  Gera sentimento de ódio, preconceito e
outras culturas. desrespeito pelas culturas exógenas.
 Permite valorizar os aspectos do  Dificulta o desenvolvimento do diálogo
interior de uma cultura. intercultural.
 Abre espaço para conflitos étnicos,
religiosos e raciais entre os povos.

Manual de Antropologia Sociocultural, 2016. 43


Adelino Esteves Tomás, Ph.D.
Relativismo cultural  Promove a comunicação e o  Concorre para o enfraquecimento das
diálogo intercultural. tradições locais e da identidade cultural
 Favorece a convivência entre de um povo.
pessoas portadoras de culturas  Contribui para a extinção dos traços
diferentes. culturais típicos de um povo.
 Promove a tolerância da
diversidade das culturas e dos
comportamentos.

Leituras complementares.

A cultura é uma referência da sociedade

A noção de cultura está associada a todas as sociedades. O indivíduo, seja qual for
o seu estatuto, é um ser não apenas social mas, sobretudo, cultural. Pela constituição
do seu espírito, ele organiza o seu mundo mental, o seu sistema de relações e, até
mesmo, um grande número de dados fisiológicos, segundo regras estabelecidas no seu
contexto sociocultural. Daí decorre que os indivíduos que nascem numa dada
sociedade adoptem os comportamentos ditados pela sociedade onde vivem.
O modo de comportamento baseado na cultura estabelecida numa sociedade é
adquirido espontânea e quase inconscientemente por cada um dos seus membros.
Constitui-se como um sistema de referência que molda os comportamentos e
hierarquiza os valores em função dos padrões de cultura nela privilegiados.

Adaptado: Augusto Mesquita et al., Introdução à Antropologia.

O texto acima ilustra-nos a importância da cultura como factor de expressão e de


acção dos membros de um grupo. Portanto, dele devemos extrair as seguintes ideias:

 A cultura não é só um amontoado de normas, crenças, técnicas, valores e


tradições. Mas antes, corresponde a um sistema organizado de
comportamentos.
 Os indivíduos não são apenas seres sociais, mas, também, culturais.

Manual de Antropologia Sociocultural, 2016. 44


Adelino Esteves Tomás, Ph.D.
 Cada indivíduo adquire espontânea e quase involuntariamente a cultura do
grupo de que faz parte e age em conformidade com ela.
 Não há culturas inferiores nem culturas superiores, mas, diferentes.

Trabalho independente
1- Tendo em conta a asserção “ Não há culturas superiores nem culturas
inferiores.”
a) Diga duas vantagens e duas desvantagens do etnocentrismo.
b) Comente a importância dos valores como garantes da coesão social.
c) Porque se pode afirmar que “todo o comportamento humano tem um significado
cultural”?
d) Quais os traços imateriais da cultura?
e) Explique a relação entre os traços materiais e imateriais da cultura?

1.13- O dinamismo e a mudança cultural: processos de endoculturação,


desculturação, aculturação, transculturação a subcultura e contracultura

A dinâmica cultural explica-se pelo facto de as estruturas culturais não serem


estáticas e estarem permanentemente em transformação e tais transformações ocorrem
essencialmente por dois processos: as descobertas no interior dos próprios grupos e os
contactos dos grupos com outros grupos portadores de culturas diferentes. O primeiro
processo dá origem à endoculturação e o segundo origina as restantes formas que
corporizam a dinâmica das culturas.

A endoculturação
A criança ao nascer é apenas um ser que responde aos estímulos biológicos
(respiração, sono, alimentação, satisfação de necessidade metabólicas, etc.). Porém,
desde cedo ela vai incorporar formas de ser, designadamente a forma de se alimentar, o
local onde satisfazer necessidades metabólicas, utensílios para servir os alimentos, etc.,
isto é, ela vai ajustar as suas reacções individuais aos padrões de cultura da sociedade de
que faz parte.
A endoculturação é o processo pelo qual cada grupo adapta a organização biológica
dos seus neo-natos (recém-nascidos) a um conjunto de dogmas culturais pré-existentes.
Manual de Antropologia Sociocultural, 2016. 45
Adelino Esteves Tomás, Ph.D.
A endoculturação permite que a criança assuma uma orientação do seu
comportamento, tenha consciência de si e dos outros, adquirindo uma personalidade
própria. Quer dizer, a endoculturação diz respeito à dinâmica interna de uma cultura
particular. Trata-se de um processo condicionado consciente ou inconscientemente
pelos limites impostos pelos padrões culturais e resume-se à:
 Adaptação da vida individual aos hábitos, valores e tradições socialmente
aceites.
 Aprendizagem de comportamentos e hábitos do grupo.
 Moldagem da personalidade dos indivíduos.
 Duração do processo, começando com o nascimento do indivíduo e estendendo-
se até à morte.

A desculturação

O termo remete-nos à perda de cultura e designa um aspecto negativo da dinâmica


cultural. Ora, durante os contactos culturais há traços mais ou menos importantes da
cultura que se vão perdendo como resultado do crescimento da própria cultura ou
devido a situações históricas que se vão verificando, o que, de antemão, provoca uma
subtracção ou destruição do património cultural.

Outras causas da desculturação podem ser:


 Crises originadas pelo contacto de culturas, provocando reformulações no
interior das culturas, o que pode implicar a selecção de alguns traços da cultura
própria.
 Perda natural da energia dos traços de uma cultura em resultado das alterações
económicas, políticas, ecológicas, etc., que se vão constatando na sociedade.

A aculturação
Este processo é referente às relações estabelecidas entre povos portadores de
culturas diferentes e à possibilidade de um deles apreender parte da cultura do outro,
isto é, um acto que permite que um povo assimile total ou parcialmente uma cultura
exógenas.

Manual de Antropologia Sociocultural, 2016. 46


Adelino Esteves Tomás, Ph.D.
Ora, a aculturação nem sempre ocorre pacificamente, pois do contacto entre povos
nem sempre resultam relações afáveis ou amigáveis. Por conseguinte, podemos falar de
dois tipos de aculturação:

 A aculturação que se verifica quando povos estabelecem contactos sem nenhum


deles exercer qualquer poder coercivo sobre o outro. Por exemplo, o fenómeno da
globalização por meio do qual toda a humanidade tende a uma única cultura.
 A aculturação que resulta do controlo das culturas em consequência de uma
conquista militar ou de uma dominação política. Neste caso, a cultura do povo
conquistador sobrepõe-se à do conquistado. Por exemplo, a ocupação militar de
Moçambique por Portugal que sobrepôs a cultura deste último país à do povo
moçambicano.

Leituras complementares

A aculturação

(…) Os vencidos querem sempre imitar o seu vencedor nos seus aspectos
característicos, copiando o vestuário, os actos, os hábitos e todos os outros aspectos. A
razão disso é que alma vê sempre perfeição nos traços daquele que é o «senhor» e de
quem ela é escrava. A alma do inferior julga o superior perfeito, quer porque o comove,
quer porque ela considera erradamente que a sua própria escravidão é devida, não à
sua derrota, mas à perfeição do seu vencedor.
Ora, quando este erro de interpretação se instala na alma do vencido transforma-se
numa sólida crença. A alma adapta-se, então, às maneiras de ser do vencedor e
acomoda-se a ele. Eis, pois, a aculturação.
Adaptado: Ibn Khaldum

O texto de Ibn Khaldum, historiador afro-árabe do século XIV relata uma situação
em que o fenómeno sociocultural de aculturação está patente, pelo que da sua leitura
devemos extrair as seguintes ideias:
 A dinâmica e a mudança cultural são inevitáveis e resultam das sucessivas
alterações das estruturas da sociedade.

Manual de Antropologia Sociocultural, 2016. 47


Adelino Esteves Tomás, Ph.D.
 A aculturação é um dos efeitos da dinâmica cultural.

A transculturação

Trata-se de um processo da dinâmica cultural que permite que um povo legue os


seus traços cultuais a um outro, em troca de outros que ele recebe daquele. A
transculturação é resultante de intercâmbios comerciais, artísticos e científicos que
possibilitam que as partes envolvidas assimilem reciprocamente a cultura ou os traços
culturais da contraparte. Por exemplo, no Brasil o contacto entre afro-descendentes,
euro-descendentes e ameríndios originou um quadro transcultural que propiciou na
cultura resultante aspectos diferentes das culturas originais.

A subcultura e a contracultura

Os indivíduos interagem gerando comportamentos e atitudes. Quer se enquadrem


nos padrões de cultura, quer os questionem, os indivíduos fazem no seu quotidiano, o
tecido sociocultural.
Ao colocar em contacto comunidades de indivíduos de culturas diferentes poderão
ocorrer alterações de comportamentos de uns e de outros que se concretizem em futuros
processos de mudança sociocultural.
A generalidade da sociedade é confrontada com grupos de indivíduos que raramente
se enquadram de forma eficaz, na sociedade global. Com efeito, os emigrantes, apesar
de assimilarem parte da cultura da comunidade que os acolhe, privilegiam
comportamentos e atitudes originais, surgindo, desta maneira, as subculturas.
A subcultura é a expressão do estilo de vida desenvolvido por grupos que se
encontram em posição estrutural subordinada numa dada sociedade e que surge como
contestação ao estilo de vida predominante.
Por conseguinte, não é de estranhar que se encontrem nas grandes cidades sul-
africanas bairros de malawianos, moçambicanos, etíopes, etc., ou no nosso país se fale
de comunidade nigeriana, comunidade angolana, etc.
Outras manifestações subculturais encontram-se nos modelos comportamentais,
linguísticos e de indumentária juvenis que, remotas vezes se enquadram nos padrões
culturais da sociedade global. Por isso, falar de conflitos de gerações é, até certo ponto,
Manual de Antropologia Sociocultural, 2016. 48
Adelino Esteves Tomás, Ph.D.
reconhecer a existência da subcultura, pois há, nesse contexto, uma cultura oficial e
predominantemente conservadora, a das gerações mais velhas, que é contestada por
outra, a da geração miúda, geralmente liberal.
Contudo, a subcultura não se afasta significativamente da cultura predominante, mas
antes, ela colhe e apreende um sem-número de traços, ao mesmo tempo que contribui
para a sua evolução. A subcultura é um factor da dinâmica sociocultural.
***

Em relação à contracultura, os indivíduos afastam-se dos padrões social e


culturalmente aceites, repudiando-os, contestando-os radical e grosseiramente e
apresentando uma alternativa cultural diferente da predominante.
Por meio da contracultura, os indivíduos afastam-se das normas, assumindo
comportamentos desviantes. São exemplos de contracultura o movimento gay da década
1960-1970 que pretendia legitimar a homossexualidade em oposição ao modelo
heterossexual vigente, o fundamentalismo religioso, que nos países fortemente
islamizados se tem contraposto aos modelos culturais do Ocidente, exigindo a reposição
da cultura original, a reforma protestante, que ao longo dos últimos séculos se afirmou,
repudiando o legado cultual católico e instituindo práticas religiosas desviadas do
padrão religioso até então prevalecente.

Leituras complementares

A contracultura
Paralelamente à cultura oficial legada pela família, pela escola, pela igreja, pelos
meios de comunicação, pelo Estado, etc., vemos aparecer, assim, uma contracultura.
A contracultura não se define linearmente como a negação da cultura oficial. A
negação da cultura dominante pressupõe que aquele que a nega se situe em função
daquilo que é negado. Quer dizer, deve-se ser suficientemente culto e possuir-se meios
intelectuais fornecidos pela cultura oficial para que a sua herança cultural se possa
repudiar. Por isso é que as classes excluídas do saber raramente podem revoltar-se

Manual de Antropologia Sociocultural, 2016. 49


Adelino Esteves Tomás, Ph.D.
contra o saber, pois não o possuem. É nesse contexto que a burguesia, conhecendo as
entranhas da aristocracia feudal foi capaz de combatê-la.
A contracultura é, então, um esforço por remediar as insuficiências da cultura
oficial.
Adaptado: Lapassade e Loureau, Conhecimento de Sociologia.
O texto acima proporciona preciosos contributos para a caracterização do
fenómeno contracultural. Decerto, a contracultura, caracterizando certo
posicionamento face à cultura dominante, exige o seu perfeito conhecimento e, por
conseguinte, podemos inferir outras ideias a este propósito, a saber:
 A cultura dominante age sempre no sentido de impedir o desenvolvimento da
contracultura.
 A contracultura não significa uma negação pura e exclusiva da cultura
dominante, mas antes, compreende um projecto cultural alternativo.
 A contracultura surge como reconhecimento da hegemonia que a cultura
dominante exerce sobre outras culturas, consequentemente, a contracultura
tem-se evidenciado em momentos de crise institucional da sociedade.
 A contracultura é um dos efeitos da dinâmica cultural.

Bibliografia
1-TITIEV, Mischa. Introdução à Antropologia Cultural, 9ª edição, pp. 272/288.
2-BERNARDI, Bernardo. Introdução aos estudos etno-antropológicos, pp. 95/137.

Trabalho independente.
1- O que pode acontecer com um sujeito que não aceita agir ou comportar-se em
função dos valores da sua sociedade?
2- Apresente argumentos que fundamentam a ideia da dinâmica cultural?

1.14- Antropologia de Moçambique: as origens da cultura moçambicana

Os povos, que os portugueses encontraram no território hoje designado por


Moçambique, tinham as suas culturas típicas que os distinguiam de outros povos do
mundo. Tinham os seus modos de vida, uma visão concreta do mundo e manifestações
Manual de Antropologia Sociocultural, 2016. 50
Adelino Esteves Tomás, Ph.D.
religiosas ou crenças. Portanto, quando os portugueses chegaram a esta região
encontraram povos a quem usurparam as suas terras, trazendo opressão e fazendo do
território sua colónia.
No entanto, antes da chegada dos portugueses, sabe-se que teriam passado por cá
árabes, persas, hindus, chineses e outros povos que nos permitem dizer que houve desde
cedo uma fusão ou mescla de povos e de culturas. Ora, cada cultura desloca-se e entra
em contacto com outras formas de cultura através de relações individuais dos seus
membros ou por vias colectivas como é o caso, por exemplo, das migrações de povos.
Essas mesclas resultantes dos contactos entre povos, as transformações e os efeitos daí
decorrentes denominam-se transculturação.
Por conseguinte, ao falarmos da cultura moçambicana é necessário que observemos
todos esses aspectos, ou seja, o actualmente conhecido por povo moçambicano tem a
raiz basilar no povo Bantu, porém, com o decurso do tempo, esse povo foi-se mesclando
tanto com outros povos de tal modo que hoje podemos dizer que a cultura moçambicana
é a simbiose ou a fusão entre as culturas das populações africanas dos diversos grupos
éticos deste país e as de origem europeia e asiática, isto é, as culturas portuguesa, árabe,
hindu, persa, etc., cujos povos por aqui passaram, viveram e/ou vivem.
Os contactos entre as culturas existem e resultam objectivamente das alterações
sucessivas das estruturas da sociedade. No caso vertente da cultura moçambicana, a
presença de comerciantes vindos de outras latitudes, as acções de missionários e de
agentes do colonialismo constituem os factores impulsores do processo de aculturação,
ou mesmo, de transculturação do país. Assim, na sua condição de homens de negócio e
de comércio, os árabes vieram para estas terras e se tornaram grandes propagadores do
islamismo, sendo esta religião, das que mais seguidores tem no nosso país.
A actividade missionária não escapa, porquanto não consistiu apenas na expansão
do cristianismo, como também actuou sobre as culturas locais, procurando inculcar
novos valores e costumes sobre as instituições africanas, moldando a mentalidade e a
consciência do africano.
Para além de ter sido um veículo de conquista política, a função da colonização
consistiu num meio de contactos culturais entre os moçambicanos e os europeus. Por
exemplo, o povo português em si tem uma certa mescla com a nossa cultura. Há
portugueses cujos antepassados são moçambicanos, mas que neste caso são, no
verdadeiro sentido, portugueses na essência, e vice-versa. Consequentemente, o povo
moçambicano e a sua cultura compartilham essa fusão de origens entre os povos Bantu
Manual de Antropologia Sociocultural, 2016. 51
Adelino Esteves Tomás, Ph.D.
e os das origens asiáticas e europeias; o que faz com que seja incorrecta a ideia de que
os negros são os donos absolutos desta terra, pois a história dá-nos conta da
congregação de outras raças que se mesclaram com os negros para conceber uma
moçambicanidade heterogénea que incorpora vários padrões de origens.
Os factos ora supramencionados concorreram para a aculturação do povo
moçambicano. Todavia, relativamente ao colonialismo português, a aculturação teve
alguns efeitos perversos sobre as populações e as culturas locais. Por exemplo, a
escravatura foi um dos mais cruéis e sinuosos actos que a humanidade já conheceu. Ela
destruiu as estruturas culturais existentes nas aldeias dos africanos, desumanizou o
Homem africano, obrigando-o a fugir das suas zonas para outras, deportando-o e
bestializando-o.
Com esta prática de subjugação, o colonialismo legou uma herança cultural negativa
ao povo moçambicano, isto é, o analfabetismo. Não era do interesse colonialista educar
científica, afectiva, ética, intelectual e somaticamente ao povo indígena. Como resultado
disso, aquando da data da proclamação da Independência Nacional (1975) existiam em
Moçambique cerca de 93% de analfabetos.8
Portanto, três grupos etno-culturais prevaleceram no território moçambicano durante
o período de subjugação colonial:

a) A cultura das populações negras africanas representadas pelos vários grupos


étnicos existentes em Moçambique: esta aparece como o conjunto de tradições e
modos de vida típicos desses grupos étnicos, estendendo-se em todas as regiões
rurais e sendo culturas da maioria. Essas culturas tinham/têm as suas práticas
bastante diversificadas, segundo os costumes e estilos de vida de cada grupo étnico
e possuíam/possuem em comum, no entanto, a raiz que é o povo Bantu.
b) A cultura colonial: instalou-se nas cidades, nas vilas e em zonas de interesse
económico e turístico, representando os valores e as ideologias do aparelho
administrativo português e preocupando-se com/pelo reforço do sistema de
opressão através da transformação das populações indígenas para a sua integração
na sociedade e cultura portuguesas.
c) A cultura das minorias: ora, por aqui passaram, moraram que deixaram vestígios
culturais que hoje perfazem a cultura moçambicana, um conjunto de povos,

8
SILIYA, Carlos Jorge: Ensaio sobre a Cultura em Moçambique, p. 52
Manual de Antropologia Sociocultural, 2016. 52
Adelino Esteves Tomás, Ph.D.
designadamente hindus, persas, árabes, chineses, etc. Esses povos, embora
ostentassem outro estatuto, partilharam com a população indígena as vicissitudes do
colonialismo, e hoje não se pode aludir à riqueza da nossa cultura sem considerar
esta parte da nossa moçambicanidade.

Pese embora prevalecesse a estratificação cultural acima referida, a cultura colonial


sempre procurou formas de se sobrepor aos restantes estratos culturais, utilizando para
além de dispositivos repressivos, meios ideológicos para dissociar e desintegrar a
população indígena das suas origens e da sua cultura. Por exemplo, a designação da
população africana por nomes pejorativos como “macacos, selvagens, primitivos,
pretos, etc.”, por um lado, e a política de assimilação praticada pelas autoridades
coloniais, por outro lado, tinham a finalidade não só de legitimar a dominação e a
imposição da cultura colonial mas também de ridiculizar ou inferiorizar a cultura dos
dominados, levando os dominados a se conformarem com a dominação.
Na sua obra «Lutar por Moçambique», Mondlane 9 refere que para ascender ao
estatuto de assimilado os africanos deveriam:

1. Saber ler, escrever e falar português correctamente.


2. Ter meios suficientes para sustentar a família.
3. Ter bom comportamento.
4. Ter a necessária educação, hábitos individuais e sociais de modo a poder viver
sob lei pública e privada de Portugal.
5. Requerer à autoridade administrativa da área, que o levará ao governador do
distrito para ser aprovado.

Na verdade, a assimilação denotou grotescos complexos de inferioridade que os


africanos foram tendo diante da comunidade portuguesa, isto é, identificar-se com a
africanidade ou com a moçambicanidade e orgulhar-se por isso não era coisa de gente
socialmente aceitável. Em poucas palavras, para ascender à assimilação, os africanos
deviam negar a sua africanidade, as tradições da sua terra para serem admitidos como
cidadãos portugueses de direitos e deveres iguais aos brancos.

9
MONDLANE, Eduardo Chivambo: Lutar por Moçambique, pag. 46.
Manual de Antropologia Sociocultural, 2016. 53
Adelino Esteves Tomás, Ph.D.
Em conclusão, há uma cultura moçambicana que decorre da fusão dos vários povos
que habitaram esta parte oriental da África, porém, as tradições dos povos originais têm
sido marginalizadas ao longo da história, por vezes, designadas misteriosas e atrasadas,
e outras vezes, manipuladas como instrumentos de atracção turística.

1.15- Parentesco, família e casamento em Moçambique: Classificação dos tipos de


parentesco e dos tipos de família

O estudo das relações de parentesco dentro da Antropologia ocupa um lugar


privilegiado. Nesta epígrafe, pretendemos introduzir um conjunto de terminologias
técnicas muito frequentemente usadas no estudo do parentesco, ei-las:
Parentesco: no sentido restrito refere-se aos laços de sangue, mas num sentido mais
amplo, também aplica-se aos laços de afinidade ou de casamento. (parentesco por
consanguinidade e parentesco por afinidade ou por casamento)
Laços de parentesco: são a relação que decorre da posição ocupada pelo sujeito no
sistema de parentesco. Pode-se falar de três tipos de laços de parentesco:
 Laço de sangue (descendência).
 Laço de afinidade (matrimónio ou casamento).
 Laço fictício (adopção).

Descendência: relação do sujeito com os seus parentes de sangue. Embora o critério


de descendência seja biológico, em Moçambique, a descendência obedece a critérios
culturais (de descendência unilateral). Por exemplo, um indivíduo é sempre filho de
uma mãe e um pai, mas na zona norte de Moçambique leva-se em consideração a
descendência matrilinear, enquanto no sul considera-se a descendência patrilinear. Nas
sociedades europeias a descendência é dos dois progenitores (descendência bilateral).
A descendência matrilinear é também conhecida como descendência uterina, a
patrilinear tem também a designação de descendência agnática, enquanto a
descendência bilateral (de ambos os progenitores) é denominada cognática.
Descendência unilateral dupla: acontece em sociedades que não consideram como
preponderante a linhagem matrilinear nem a patrilinear, porém, orientam-se pela
linhagem patrilinear para uns propósitos (ex: realização de funerais, delegação da
herança, etc.), e orientam-se pela linhagem matrilinear para outros propósitos (ex: o
cuidado de crianças, a atribuição de apelidos, etc.)
Manual de Antropologia Sociocultural, 2016. 54
Adelino Esteves Tomás, Ph.D.
Nomenclatura de parentesco ou terminologia de parentesco: é o sistema de
denominações das posições relativas aos laços de sangue e de afinidade. Exemplos de
nomenclaturas de parentesco: pai, mãe, marido, avô, tio, irmão, primo, esposa,
cunhado, sogra, enteado, filho, neto, sobrinha, etc. Importa significar que a
nomenclatura de parentesco pode ser descritiva e classificatória.
A nomenclatura de parentesco descritiva é aquela em que se usa um termo diferente
para designar a cada um dos parentes. Exemplo: papá (pai biológico), mamã (mãe
biológica), mana (irmã biológica mais velha), etc.
A nomenclatura de parentesco classificatória é aquela em que se emprega
indistintamente o mesmo termo para designar a um grupo de pessoas com quem se tem
um laço de parentesco. Por exemplo, quando se aplica o termo “mamã” para designar à
mãe biológica, à irmã da mãe, ou à madrasta. Também estamos perante a nomenclatura
de parentesco classificatória quando se trata como irmão, ao próprio irmão biológico, ao
primo ou ao filho de uma madrasta.
Clã: grupo de pessoas dotado de nome e de descendência unilateral, isto é, que
deriva de um ancestral comum e que segue regras de descendência matrilinear/uterina
ou patrilinear/agnática e jamais de ambas simultaneamente.
Os clãs do sul de Moçambique, que seguem a descendência agnática ou patrilinear
são designados patriclãs, enquanto os do norte do país, que se orientam pela
descendência uterina ou matrilinear denominam-se matriclãs.
Família: no sentido mais restrito é o conjunto de pessoas que vivem sob o mesmo
tecto. Mas no sentido lato, a família é o conjunto das sucessivas gerações descendentes
de antepassados comuns; já na linguagem do senso comum costuma dizer-se que a
família é a célula básica da sociedade. Por família, também, se pode entender como o
conjunto de parentes por consanguinidade ou por aliança ou afinidade.
No entanto, existe um tipo de classificação da família que se vale dos seguintes
critérios: regras de residência, número de cônjuges, relação de poder e parentesco.

Quanto às regras de residência


A família pode ser:

Patrilocal: a família patrilocal é aquela que estabelece uma residência conjunta


entre um casal e os pais do homem. Geralmente nas sociedades meridionais de

Manual de Antropologia Sociocultural, 2016. 55


Adelino Esteves Tomás, Ph.D.
Moçambique há uma tendência de as famílias estabelecerem residências patrilocais
devido à estrutura e natureza do poder que se centra nas mãos dos homens.
Matrilocal: aquela que estabelece residência conjunta entre o casal e os pais da
mulher. Com frequência, acontece nas sociedades setentrionais de Moçambique, onde
há uma tendência de as famílias estabelecerem residências matrilocais.

Neolocal: é a família cujo casal tem uma residência independente da dos pais de
ambos os cônjuges. Este tipo de residência é mais frequente em sociedades urbanizadas,
onde o estilo de vida exige uma autonomia das famílias.

Quanto ao número de cônjuges


Assim, segundo este critério a família pode ser:

Monogâmica: quando a união é de um só homem com uma só mulher.


Poligâmica: é a união de um só marido com várias esposas ou de uma só mulher
com vários maridos.
Poligínica: é a família em que o homem é quem pratica a poligamia, isto é, a união
de um marido com várias esposas.
Poliândrica: é a família em que a mulher é quem pratica a poligamia, ou seja, a
união de uma mulher com vários esposos.

Quanto às relações de poder


A família pode classificar-se em:

Patriarcal: é a família cujo poder é exercido pelo marido. As famílias patriarcais


abundam no sul de Moçambique, sendo que o patriarcado como uma relação de poder
incide também no casamento, na sucessão, na herança e na estrutura social das famílias.
Matriarcal: é a família cujo poder é exercido pela mulher. As famílias matriarcais
abundam no norte de Moçambique, sendo que a mulher exerce o poder indirectamente
através do seu irmão do sexo masculino. É este a quem cabe zelar pela orientação da
vida dos filhos da irmã, cuidar pela iniciação desses filhos e legar-lhes a sua herança em
caso de morte. O papel do pai biológico é quase que passivo, pelo que quando o filho se
porta mal ou comete uma infracção, o pai remete a solução dessa situação ao tio
materno do filho, isto é, ao irmão da mãe do filho.
Manual de Antropologia Sociocultural, 2016. 56
Adelino Esteves Tomás, Ph.D.
Quanto ao parentesco
A família pode adquirir as seguintes classificações:

Nuclear: é a família constituída pelo marido, esposa e os filhos resultantes dessa


união, todos morando juntos numa residência neolocal. A família nuclear pode ser de
orientação, aquela da qual cada um de nós proveio, e família nuclear de procriação,
que é a que cada um de nós funda ou estabelece.
Alargada ou extensa: este tipo de família constitui-se por um casal, os filhos e os
familiares colaterais (sobrinhos, netos, primos, irmãos, etc.), todos vivendo numa
mesma residência patrilocal ou matrilocal.
Reconstituída: composta por um homem divorciado ou viúvo com os filhos e uma
mulher (a madrasta), ou por uma mulher divorciada ou viúva com os filhos e um
homem (o padrasto), ou ainda, por um homem e uma mulher ambos divorciados ou
viúvos vivendo juntos com os respectivos filhos.
Monoparental: aquela composta só pelo pai solteiro ou viúvo e os filhos, ou só pela
mãe solteira ou viúva e os filhos.

Bibliografia
1-DE MELO, Luíz Gonzaga. Antropologia cultural, pp. 316/339
2-BERNARDI, Bernardo. Introdução aos estudos etno-antropológicos, pp. 289/294.

1.16- O Lovolo em Moçambique: “Desafios de novas vivências conjugais”

O lovolo é uma prática cultural por meio da qual se unem duas pessoas (homem e
mulher) pelo casamento condicionado ao pagamento real ou simbólico de um dote. Este
dote pode ser uma enxada, uma cabeça ou várias de vaca, dinheiro em numerário ou
outros bens de natureza material ou pecuniária.
O jovem que tenciona contrair o casamento informa aos seus tutores (pais ou
padrinhos) sobre a sua intenção e estes marcam uma agenda de visita à família da
pretendida noiva com a finalidade de participar-lhes a pretensão do seu filho/afilhado.
Uma vez recebidos os hóspedes estabelecem-se garantias, designadamente uma lista
contendo a descrição dos itens que serão objectos do próprio lovolo. A lista pode incluir

Manual de Antropologia Sociocultural, 2016. 57


Adelino Esteves Tomás, Ph.D.
prendas para os pais da noiva, catanas, enxadas, dinheiro para os encargos do cortejo
nupcial, bem como a menção da data em que o próprio lovolo será pago.
Chegado ao dia marcado, a família da noiva prepara-se para a cerimónia de maneira
especial, pois cumpre-lhe garantir a hospitalidade ao noivo e aos seus acompanhantes. À
hora do pagamento do lovolo, as prendas e todos os objectos descritos na lista são
dispostos no meio de uma praça visível. Logo, as duas famílias (a da noiva e a do noivo)
reúnem-se para verificar se o número dos objectos está certo, indicando uns aos outros
se estão ou não completos. É extremamente importante que haja numerosas testemunhas
de modo que se o casamento for mal-sucedido não haja dificuldades de o homem reaver
os objectos do lovolo.
Ultrapassada esta parte, segue-se o acto religioso, logo, o cortejo nupcial, e, de
seguida, os festejos com abundância de comidas e bebidas alcoólicas. Todos estes actos
solenes selam para sempre a união dos dois nubentes. No entanto, dois grandes factores
podem ser preponderantes para a dissolução do casamento: o adultério e a esterilidade
da mulher.
Ora, embora a sociedade moçambicana consinta a poliginia (poligamia masculina),
não tolera que a mulher possa estabelecer relações extra-conjugais ou adultérios, sendo
estes actos suficientemente justificativos para o homem exigir a dissolução do
casamento.
A esterilidade feminina é um outro aspecto que legitima a dissolução do casamento.
Ora, visto que entre os africanos a finalidade procriativa do casamento prima sobre as
outras finalidades (prazer, partilha, afecto, etc.), a dificuldade de procriação da mulher é
tida como um impedimento à manutenção do casamento, pelo que se declara o divórcio.
Por conseguinte, o divórcio por adultério ou por esterilidade da mulher dá direito ao
marido de exigir de volta os objectos do lovolo.

Significação histórica da prática do lovolo

O lovolo como símbolo de união matrimonial permite que uma das famílias
envolvidas adquira um novo membro, e a outra, o perca. Deste modo, a mulher
adquirida, ainda que conserve o seu apelido (o nome do seu clã) torna-se propriedade do
novo grupo familiar, pertencem a este grupo tanto ela como os filhos que gerar. Não é
uma escrava, nem é propriedade individual do marido, mas uma propriedade colectiva
do grupo.
Manual de Antropologia Sociocultural, 2016. 58
Adelino Esteves Tomás, Ph.D.
Junod (1996: 257) faz as seguintes considerações a respeito dos efeitos do lovolo:

 Toda a família do homem toma parte nas cerimónias do casamento, sobretudo


no dia em que o lovolo é levado pelo noivo. Os membros masculinos do grupo
têm o direito de opinar sobre os bois ou a soma entregue.
 Os irmãos estão sempre prontos a ajudar um dos seus, mais pobre, ao lovolo.
Trabalham assim para o grupo.
 A mulher adquirida desta maneira é esposa aparente deles, embora lhes não seja
permitido ter relações sexuais com ela. Recebê-la-ão em herança quando o
marido morrer (o kutchinga).
 Os filhos pertencem ao pai, vivem com ele, usam o seu apelido (o nome do clã)
e devem-lhe obediência: os filhos masculinos fortificam o grupo e os femininos
são vendidos em casamento para o benefício desse grupo.

Algumas vantagens e desvantagens do costume do lovolo para as famílias


moçambicanas.
O lovolo como uma prática costumeira de alguns segmentos da sociedade
moçambicana tem algumas vantagens, a saber:

 Ajuda a fortificar a família, a patriarcal, o direito do pai.


 Marca diferenças entre casamentos legítimos e casamentos ilegítimos e, neste
caso, substitui o registo oficial do casamento.
 Dificulta a dissolução do casamento, pois a mulher não pode abandonar o
marido sem que a este lhe seja restituído o lovolo.
 Obriga os nubentes a terem atenção, um para com o outro.

No entanto, o lovolo acarreta também algumas desvantagens. Ei-las:

 A mulher é reduzida a uma situação de inferioridade pelo facto de ter sido paga.
a) A rapariga casada fica a mercê da família do marido. Em caso da morte do
marido ela pode ser entregue a um velho asqueroso por quem ela não sente
qualquer atracção, por causa de uma velha dívida de lovolo; b) a mulher
trabalha para o marido e para os parentes dele, que lhe dão muito pouco em

Manual de Antropologia Sociocultural, 2016. 59


Adelino Esteves Tomás, Ph.D.
troca; c) no que toca aos filhos, mesmo que ela sinta amor por eles, não lhe
pertencem, são propriedades do marido ou do seu grupo familiar.
 O lovolo atribui quase que todos os direitos ao marido sobre a mulher, incluindo
os de ofendê-la, e a mulher perde até mesmo o direito de protestar.
 No caso de o lovolo e a soma do dinheiro envolvidos não tiverem sido
totalmente pagos, podem levantar-se tensões e irritações que muitas vezes criam
sofrimentos para o casal e para as respectivas famílias.

Por tudo o acima descrito, conclui-se que seja falso dizer que o lovolo é um
contrato entre duas famílias com a finalidade de garantir que a mulher seja tratada
decentemente pelo marido e vice-versa. Parece-nos que em vez de esta prática obrigar
os nubentes a prestarem cuidados recíprocos, serve para legitimar comportamentos
androcêntricos e machistas de índole patriarcal.

Bibliografia
JUNOD, Henri Alexandre. Usos e costumes bantu, Editor Arquivo Hist. de Moç.,
Tomo I Maputo, 1996.

Trabalho independente
1- Os povos que os portugueses encontraram no território hoje designado por
Moçambique tinham as suas culturas típicas que os distinguiam de outros povos
do mundo. Tinham os seus modos de vida, uma visão concreta do mundo e
manifestações religiosas ou crenças (Manual, 2016: 24).
a) O que entende por identidade cultural moçambicana?
b) Por que se pode afirmar que a política de assimilação, assumida pelos portugueses,
era uma forma de subvalorização da cultura dos moçambicanos?
c) Justifique as razões por que se pode afirmar que, quanto ao estudo das culturas, a
Nova Etnografia forneceu uma abordagem qualitativamente mais rica do que a
Antropologia tradicional.
d) Comente a seguinte frase: “A vida em sociedade é um estado de cultura”.

2- Chongola, marido da dona Amélia pereceu na África do Sul de uma prolongada


doença. No entanto, a família reuniu-se e decidiu que Chivangue, irmão de
Manual de Antropologia Sociocultural, 2016. 60
Adelino Esteves Tomás, Ph.D.
Chongola deveria “kutchingar” a Amélia para purificá-la dos maus espíritos do
finado irmão. (Adaptado pelo professor).

a) Faça um comentário sobre a pertinência desta prática costumeira para a coesão


cultural daquela comunidade familiar.
b) Justifique a importância da interdisciplinaridade das ciências sociais no estudo
deste facto cultural.

1.17- Ritos, rituais e ritos de passagem

As primeiras elaborações conceptuais sobre os ritos e os rituais datam da época de


Arnold Von Gennep e de Emile Durkheim quando escreviam as suas obras
respectivamente «Os ritos de passagem (1909)» e «As formas elementares da vida
religiosa (1912)». Desde então, o estudo dos ritos e dos mitos esteve ligado à
investigação das práticas religiosas, isto é, os ritos e os rituais foram/são associados ao
sagrado e, por isso, se tornaram parte importantíssima entre os temas da Antropologia.
Para Durkheim citado por Segalen (2000:14), a religião é um sistema de crenças
que envolve ritos e rituais. Deste modo, as crenças religiosas são representações que
exprimem a natureza das coisas sagradas e as relações que elas mantêm umas com as
outras ou, mesmo, com as coisas profanas. Os ritos são regras de comportamento que
prescrevem como o Homem deve comportar-se com as coisas sagradas.
Radcliffe-Brown (1989: 244) parafraseia Durkheim nos seguintes termos, os ritos
religiosos são uma expressão de unidade da sociedade, cuja função é recriar a
sociedade ou a ordem social, reafirmando e reforçando os sentimentos dos quais
dependem a solidariedade e a coesa social.
Portanto, é através dos ritos, dos rituais e das cerimónias religiosas que os
sentimentos sociais e morais são fortalecidos e renovados. Disto segue-se que, a função
dos ritos é reafirmar permanentemente os grupos sociais.
Outros autores consideram que os ritos, rituais, tabus e interdições são derivados da
atitude de respeito pelo sagrado, o qual tem como função primordial manter a
solidariedade, a coesão, a ordem e o controlo social (Hamilton, 1999). O rito ou ritual
é um conjunto de actos formalizados, expressivos, detentores de uma dimensão
simbólica (Segalen; 2000:23). Os ritos têm a finalidade de ligar o presente ao passado,
o indivíduo à comunidade (Gennep, 1960)
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Por conseguinte, para Gennep, o rito tem uma dimensão colectiva, marca rupturas,
descontinuidades e momentos críticos, individuais e sociais que dão sentido ao
incompreensível, fornecem meios para dominar o mal, o tempo e as relações sociais.
Os ritos de passagem

Os ritos de passagem, segundo Arnold von Gennep, apresentam uma estrutura


universal, e, por conseguinte, presentes em todas as sociedades humanas. Dizem
respeito aos rituais dos ciclos da vida onde ocorrem mudanças de estatuto que marcam a
vida de uma pessoa ou de um grupo. Os ritos de passagem estão ligados principalmente
ao nascimento, à puberdade (ritos de iniciação), ao casamento e à morte. No entanto,
existem outros ritos de passagem que variam de um grupo social para o outro, por
exemplo, entre os cristãos o baptismo, o crisma/confirmação, a ordenação de um
sacerdote, etc., são exemplos de ritos de passagem. Nas organizações sociais de carácter
secular, a cerimónia de graduação, a comemoração da data do aniversário, etc., são
outros exemplos de ritos de passagem.
Segundo Gennep, existem três tipos de ritos de passagem:
Ritos de separação: aqueles valorizados durante se cerimónias fúnebres e têm a ver
com todos rituais daí resultantes, por exemplo, o velório, o uso de trajes pretos por um
certo tempo, a purificação (kutchinga), etc.
Ritos de liminaridade ou de transição: aqueles por meio dos quais uma pessoa
passa de um estatuto social para o outro. Por exemplo, os ritos de iniciação que como tal
permitem passar da vida infantil à uma vida viril ou adulta.
Ritos de integração ou de agregação: aqui são valorizados cerimónias relativas ao
nascimento, ao baptismo ou ao casamento, permitem que a pessoa seja incorporada num
dado grupo social, com a celebração de rituais próprios.

Leituras complementares

Os ritos de passagem da puberdade nas sociedades moçambicanas

Em todos os grupos étnicos moçambicanos de língua bantu, as mudanças de


estados, de lugar, de condição social e de idade eram /são acompanhados por rituais
festivos e sempre impregnados de profunda significação social, mágica e religiosa.
Todos os ritos de passagem tinham /têm por finalidade integrar ao iniciado no novo
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estatuto social do qual também a morte faz parte. Destas mudanças destacam-se os
rituais relativos ao nascimento de um novo membro da família ou da sociedade, à
puberdade de adolescentes de ambos os sexos, ao casamento com cerimónias próprias
para os nubentes e respectivas famílias, e à morte cujos ritos de purificação e de luto se
destinam tanto aos vivos como aos defuntos.
Para além destes ritos que abrangem a todos os membros da comunidade, outros há
para certos adultos que assimilam modificações específicas do estatuto político,
mágico, religioso ou mesmo produtivo. É o caso da entronização de um régulo, do
reconhecimento público de um curandeiro e de modo geral, de todos os indivíduos que
mudam de idade, fazem viagens prolongadas, inauguram uma infra-estrutura pública
ou privada, abraçam uma profissão nova, etc.
Segundo Jonod (1974:76-102), entre os tsongas as “escolas” de iniciação ainda
eram frequentadas no início de século XX. Elas eram preenchidas por todos os rapazes
dos dez (10) aos dezasseis (16) anos de idade. Também a puberdade feminina era
acompanhada por ritos próprios.10 Nos chopes de Inhambane, a circuncisão tinha lugar
no tempo fresco e seco. A reclusão dos iniciados prolongava-se por três meses, findos
os quais queimavam-se os abrigos que se tinham construído na floresta, os rapazes
purificavam-se na água da lagoa, vestiam roupas novas e entravam triunfalmente na
aldeia onde eram recebidos em festas e ovações pela comunidade que manifestava a
sua alegria de modo explosivo. Com estes ritos, os iniciados se libertavam da
imaturidade infantil e ascendiam ao estatuto de adultos.
Entre os senas de Tete (Mutarara) as cerimónias iniciáticas específicas à
puberdade não tinham um carácter formal. Neste povo, os ritos de passagem da
puberdade eram muito simplificados; para as raparigas apenas se assinalava a
primeira menstruação através de uma cerimónia chamada xinamwali. 11 Entre os
maraves do norte de Tete não havia iniciação masculina, porém, quando o adolescente
tinha a sua primeira ejaculação, o seu avô materno providenciava um ancião para que
lhe ministrasse ensinamentos relativos à vida sexual e às regras sociais. De igual modo,
passava a cumprir alguns tabus alimentares sob risco de ficar sexualmente impotente.
Para os chuabos da margem Norte do rio Zambeze era frequente a circuncisão

10
JUNOD, Henri Alexandre. Usos e costumes bantu, Editor Arquivo Hist. de Moç., Tomo I Maputo,
1996.
11
ANTÓNIO, Rita-Ferreira. Povos de Moçambique: história e Cultura. Porto, Afrontamentos, 1975,
p.10.
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masculina e a puberdade feminina tinha uma celebração apropriada e geralmente
impregnada de misticismos e reservada apenas às senhoras adultas e anciãs da
comunidade.
Entre todos os ritos de passagem, a cerimónia de iniciação de meninas e de
meninos eram, irrefutavelmente, a que maior importância revestia para as
comunidades matrilineares macuas. A iniciação masculina servia para atribuir ao
jovem, o estatuto de adulto e implicava entre outras coisas a morte da criancice e o
abandono do nome que se ostentava antes da iniciação. Os iniciados eram/são
submetidos a duras provas de coragem, de resistência à fome e de submissão. A
iniciação decorre na floresta entre trinta (30) e quarenta e cinco (45) dias em que os
iniciados são instruídos para a humildade, o respeito e culto aos antepassados. Findo o
tempo de quarentena, os jovens voltam a aldeia onde lhes são reconhecidos os direitos
de participar em funerais, de contrair matrimónio e de procriar. A iniciação feminina é
mais simplificada, cingindo-se em instruções relativas aos cuidados com a
maternidade, à obediência ao futuro marido, e algumas restrições alimentares nos
períodos menstruais. 12 Entre os macondes do planalto de Mueda, os rituais da
puberdade tanto masculinos como femininos envolviam indivíduos de várias aldeias
vizinhas, estabelecendo laços de convívios e de amizade entre pessoas que, de outro
modo, seriam estranhas. As cerimónias da puberdade masculinas e femininas,
diferentes em rituais, têm como elemento convergente a presença de máscaras e de
dança do Mapiko, que se tornou um símbolo desta celebração. Para os ajauas do
Niassa também matrilineares como os macondes e os macuas, mas muito islamizados, a
iniciação dos rapazes limitava-se à circuncisão com um ou outro ritual de culto aos
espíritos. Após a conversão ao islamismo, os sheike (sacerdote muçulmano) aprovava a
sua circuncisão. Os candidatos eram apresentados pública e solenemente pelos chefes
locais das linhagens. Daí, dirigiam-se ao acampamento acompanhados por mestres,
anciãos e padrinhos. Ali permaneciam até a cicatrização das feridas, recebendo, no
entanto, vários ensinamentos.
Portanto, nas sociedades Moçambicanas de origem bantu, os ritos de passagem da
adolescência à vida adulta foram muito valorizados no passado, continuando nalgumas
comunidades rurais a sê-lo nos nossos dias, embora bastante simplificados. Contudo, é
de realçar que a prática da circuncisão não foi um uso generalizado em todas as etnias

12
MEDEIROS, Eduardo. Os Senhores da floresta: ritos de iniciação dos rapazes Macuas e Lómuès.
CAMPOS DAS LETRAS-Editores. S.A., 2007.
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de Moçambique. Por exemplo, nalgumas etnias do Sul do país, ela fora praticada num
passado remoto, mas foi caindo em desuso, tal como aconteceu com os tsongas.
Noutras etnias, a circuncisão não era conhecida, mas passou a ser praticada por
influência de povos vizinhos, em particular dos islamizados. Em qualquer dos casos, os
ritos da puberdade estavam relacionados, em todas as etnias, com a passagem para a
idade viril nos rapazes e com a primeira menstruação nas meninas, eles precediam o
casamento e serviam como meio de preparação para a vida conjugal.

1.18- A religião como um fenómeno sociocultural

Durkheim (1996), embora se tenha baseado em estudos antropológicos de


sociedades primitivas, considerava a religião como um fenómeno universal; daí o facto
de ter estudado o sistema religioso em diferentes contextos s históricos, sociais e
culturais, tentando entender a essência comum e as funções que a religião desempenha
nas diferentes sociedades e o que explica a sua origem.
Segundo este autor, não há sociedade sem religião e muito menos existe sociedade,
por mais primitiva que seja, que não apresente um sistema de representações colectivas
relacionadas à alma, à sua origem e ao seu destino. Para o autor, a realidade simbólica
da religião é o núcleo da consciência colectiva e como acto social, a religião transcende
o indivíduo e é a condição primordial da integração e da manutenção da ordem social.
Durkheim refere ainda que a religião é um sistema solidário de crenças e de práticas
relativas a coisas sagradas, ou seja, separadas, proibidas, crenças e práticas que reúnem
numa mesma comunidade moral todos aqueles que a ela aderem.
Portanto, por detrás de toda a manifestação religiosa (ritos, cultos, crenças
adorações, etc.) está a sociedade, pois foi ela que criou a sua concepção religiosa. Deus,
por exemplo, que é a concepção mais forte dentro do sagrado, é uma forma de
mitificação de meras leis, usos costumes, valores e tradições de um grupo social. O
culto a Deus é no fundo um culto à própria sociedade e a religião é apenas uma forma
suprema de consolidar o social, perpetuar a cultura e reafirmar e actualizar
simbolicamente os valores colectivos.
A religião impõe respeito e é uma das formas de sanção social, pois trata-se de um
conjunto de normas super-humanas que controlam o social das tendências
constrangedoras da ordem social.

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Edward Tylor (1871) afirmava que para o Homem primevo, tudo é dotado de alma,
e esta crença fundamental e universal não só explica o culto aos mortos e aos
antepassados, mas também o nascimento de deuses.
Para Radcliffe-Brown (1999) a religião estabelece normas consuetudinárias
(sanções legais), normas morais (sanção da opinião pública) e normas sobrenaturais
(sanção da consciência), são estas três maneiras de controlar o comportamento humano.
Max Weber (1997) considera que a religião tem desempenhado um importante papel
de controlo social. Para ele, a religião é universalmente uma reacção a medo,
proporciona ao Homem explicações para os problemas angustiante com o mal, a
injustiça e a morte.
À semelhança de Radcliffe-Brown, para Talcott Parsons, a religião tem uma função
crucial que consiste em resolver três graves problemas da humanidade: as incertezas
cognitivo-emocionais, a escassez de recursos materiais e o desajustamento social.
Portanto, a religião pode ser entendida como a crença sobrenatural que a sociedade
humana admite e celebra, sem provas ou evidências empíricas sobre a sua existência, e
envolve doutrinas, sentimentos e ritos socialmente institucionalizados. (RAMOS, 1992).
Assim, a religião como um subsistema sociocultural é composta por dogmas
(conjunto de verdades inquestionáveis); moral (normas de comportamento) e liturgia (o
ritual relativo ao culto).
Resumindo, a religião identifica o indivíduo com o seu grupo, apoia-o perante as
suas incertezas, consola-o nas decepções, liga-o aos objectivos da sociedade, amplia as
suas esperanças de um futuro promissor, e dá-lhe elementos de identidade. Portanto, a
religião é acima de tudo um agente de unidade e de estabilidade social.

Características da religião

 Existência de entidades sobrenaturais que criaram e controlam o mundo natural


e ordem social.
 Em qualquer tempo (passado, presente e futuro) há uma efectiva intervenção
sobrenatural nos assuntos do mundo, ou seja, as entidades sobrenaturais
comandam o destino da humanidade.
 Procedimentos de reverências e de súplica por meio dos quais o grupo solicita
protecção de forças sobrenaturais. O grupo acredita que a vida e morte e os

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acontecimentos depois da morte dependem da relação estabelecida entre o grupo
e as suas entidades sobrenaturais.
 Crenças, rituais, acções e comportamentos individuais ou colectivos, regras
sociais ou morais são prescritos e legitimados pela tradição religiosa ou pela
revelação divina.
 Em expressão de obediência gratidão e devoção frequentemente na presença de
representações simbólicas de entidades sobrenaturais.
 Linguagem, objectos símbolos etc. são elementos particularmente identificados
com o sobrenatural e podem, eles próprios, tornarem-se objectos de
reverência/sagrada.
 Celebração romarias e eventos que marcam e comemoram episódios
importantes: nascimento ou morte de divindades, de profetas ou ídolos. Nestas
ocasiões há reprodução de ensinamento, sentimentos de comunidades e
reconciliação entre os devotos.

Funções Sociais da Religião

 Ajuda a superar incertezas quanto ao desconhecido, à impotência face às forças


da natureza, à vida, à morte e ao futuro.
 Serve para legitimar as desigualdades sociais, a divisão do trabalho, a
dominação e a subordinação.
 Ao dar respostas à interrogações e preocupações sobre o sentido da vida, o
sofrimento, as incertezas, as injustiças sociais e outros males do mundo, a
religião contribui para o equilíbrio psico-emocional do Homem e estimula-o
para uma acentuada participação na sociedade, visando uma maior coesão social.
 Gera um conforto afectivo-espiritual, isto é, proporciona consolo, alívio e
estabilidade emocional nos momentos críticos e dolorosos da vida.
 Em períodos de grandes comoções sociais, crises políticas, fome, instabilidades
financeiras, etc., a religião funciona como um importante factor de união, de
identidade cultural e religiosa.

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Bibliografia

1- JUNOD, Henri Alexandre. Usos e costumes bantu, Editor Arquivo Hist. de Moç.,
Tomo I Maputo, 1996.
2- MEDEIROS, Eduardo. Os Senhores da floresta: ritos de iniciação dos rapazes
Macuas e Lómuès, pp. 16-24.
3- RODRIGUES, Donizete. Sociologia da religião: uma introdução. Edições
Afrontamento, Porto, 2007.

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