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PEDRO PAULO A.

FUNARI

ARQUEOLOGIA E PATRIMÔNIO

Erechim RS
2007
Todos os direitos reservados pela Habilis Editora.
Proibida a reprodução total ou parcial, de qualquer
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inclusive através de fotocópias e de gravações,
sem a expressa permissão do autor.

Editoração: Darcy Rudimar Varella


Capa:

L699 Lições : tributo a Paulo Reis Franklin da Silva / organizado


por Giana Lisa Zanardo Sartori, José Francisco Spinelli,
Karen Franklin. – Erechim, RS: EdiFapes, 2006.
212 p. (Série Personalidades Acadêmicas; 1)

1. Direito 2. Silva, Paulo Reis Franklin da 3. Biografia


I. Sartori, Giana Lisa Zanardo II. Spinelli, José Francisco
III. Franklin, Karen
CDU: 34
929

Catalogação na fonte: bibliotecária Sandra Milbrath CRB 10/1278

www.habiliseditora.com.br

IMPRESSO NO BRASIL
PRINTED IN BRAZIL
APRESENTAÇÃO

A Arqueologia mundial passou por transformações profun-


das, nas últimas décadas. Surgida no século XIX, no bojo da ex-
pansão imperialista, a disciplina caracterizou-se, por muitas dé-
cadas, por abordagens elitistas e por um distanciamento da socie-
dade. Ancorada nas certezas da pesquisa de campo empírica e
descritiva, em laboratório, parecia imune às transformações soci-
ais e científicas. A emergência dos movimentos e conflitos sociais
veio a alterar esse quadro. As Ciências Humanas e Sociais distan-
ciaram-se do positivismo de matriz oitocentista e procuraram ex-
plicar a sociedade em suas contradições e contrastes. A Arqueolo-
gia experimentou essas circunstâncias de maneira particularmen-
te sentida. Na América Latina, a Arqueologia Social Latino-Ame-
ricana testemunhou o despertar de uma preocupação tanto
epistemológica, como política, de forma precoce e premonitória
do que ocorreria alhures. No mundo, a Arqueologia iria se envol-
ver com os grupos sociais, o que resultaria, em 1986, na criação
do Congresso Mundial de Arqueologia (World Archaeological
Congress).
Nestas circunstâncias, pode entender-se esta coletânea. Aqui,
recolhem-se artigos ou capítulos de livros publicados nos últimos
anos sobre diversos temas, unidos pela preocupação a um só tem-
po teórica, ou epistemológica, e política. Foram publicados, em
sua forma original, em revistas especializadas ou em livros es-
trangeiros, muitos deles redigidos em inglês e traduzidos ao ver-
náculo. A sua junção neste volume permite, portanto, que atinjam
um público mais amplo e que possam ser lidos de forma mais
fácil e articulada. Foram divulgados, originalmente, nas seguin-
tes publicações:
FUNARI, P. P. A. . Lingüística e Arqueologia. DELTA, Revista de
Estudos de Lingüística Teórica e Aplicada, São Paulo, v. 15, n. 1, p.
161-176, 1999.
FUNARI, P. P. A. . Historical archaeology from a world perspective.
In: P.P.A. Funari, M. Hall, S. Jones. (Org.). Historical archaeology,
Back from the edge. Londres: Routledge, 1999, v. , p. 37-66.

FUNARI, P. P. A. . A Arqueologia Histórica em uma perspectiva


mundial. Revista de História Regional, Ponta Grossa, v. 6, n. 2, p.
35-41, 2003.

FUNARI, P. P. A. ; I. Podgorny ; NEVES, E. G. . Introdução. In:


Primeira Reunião Internacional de Teoria Arqueológica na América
do Sul, 2000, Vitória. Anais da Primeira Reunião de Teoria Arqueo-
lógica na América do Sul. São Paulo : MAE-USP, 1998. p. 1-12.

FUNARI, P. P. A. . Mixed Features Of Archaeological Theory In


Brazil. THEORY IN ARCHAEOLOGY, A WORLD PERSPECTIVE.
LONDRES: ROUTLEDGE, 1994, v. , p. 236-250.

FUNARI, P. P. A. . A importância da teoria arqueológica na América


do Sul. In: Primeira Reunião de Teoria Arqueológica na América do
Sul, 2000, Vitória. Anais da I Reunião de Teoria Arqueológica na
América do Sul. São Paulo : MAE-USP, 1998. p. 213-220.

FUNARI, P. P. A. . Destruction and conservation of cultural property


in Brazil: academic and practical challenges. In: R.Layton; P.G. Stone;
J. Thomas. (Org.). Destruction and conservation of cultural property.
1 ed. Londres e Nova Iorque: Routledge, 2000, v. 1, p. 93-101.

FUNARI, P. P. A. . Os desafios da destruição e conservação do patri-


mónio cultural no Brasil. Trabalhos de Antropologia e Etnologia,
Lisboa, v. 41, n. 1/2, p. 23-32, 2001.

FUNARI, P. P. A. . MAE-USP amphora collection: vessels and


inscriptions. Revista do Museu de Arqueologia e Etnologia da USP,
São Paulo, v. 11, p. 275-282, 2001.

FUNARI, P. P. A. ; DOMINGUEZ, L. ; MENEZES, L. . Patrimônio


e Cultura Material. Campinas: IFCH/UNICAMP, 2006. 74 p.

FUNARI, P. P. A. . Considerações sobre o profissional de museu e


sua formação. nethistoria, 2005.

FUNARI, P. P. A. . Desaparecimento e emergência de grupos subor-


dinados na Arqueologia brasileira. Horizontes Antropológicos, n. 18,
2003.
FUNARI, P. P. A. . A ‘Republica de Palmares’ e A Arqueologia da
Serra da Barriga. REVISTA USP, v. 28, p. 6-13, 1996.

FUNARI, P. P. A. . Tornar-se arqueólogo no Brasil. Trabalhos de


Antropologia e Etnologia, Lisboa, v. 40, n. 3/4, p. 117-131, 2000.

FUNARI, P. P. A. . Como se tornar arqueólogo no Brasil. Revista


USP, São Paulo, v. 44, p. 74-85, 2000.

Agradeço ao Everson Paulo Fologari, por incentivar a publi-


cação deste livro, assim como devo mencionar o apoio institucional
do Núcleo de Estudos Estratégicos (NEE/Unicamp), CNPq,
CAPES, FAPESP e FAEPEX/Unicamp. A responsabilidade pelas
idéias restringe-se ao autor.
SUMÁRIO

Lingüística e Arqueologia .......................................................... 9


Referências Bibliográficas ....................................................... 23
A Arqueologia Histórica em uma perspectiva mundial ........... 27
A primeira Reunião Internacional de Teoria Arqueológica
na América do Sul: um marco na história da arqueologia
brasileira .................................................................................. 35
A importância da Teoria Arqueológica Internacional para a
arqueologia Sul-americana: o caso brasileiro .......................... 43
Os desafios da destruição e conservação do Património
Cultural no Brasil ..................................................................... 59
Contradições e esquecimentos nas imagens do passado .......... 71
Teoria e métodos na Arqueologia contemporânea:
o contexto da Arqueologia Histórica ....................................... 79
A coleção de ânforas do MAE-USP:
vasos e inscrições ..................................................................... 87
Considerações sobre o profissional de museu e
sua formação ............................................................................ 97
Desaparecimento e emergência dos grupos subordinados na
Arqueologia brasileira ........................................................... 107
A “República de Palmares” e a arqueologia da
Serra da Barriga ..................................................................... 131
Como se tornar arqueólogo no Brasil .................................... 143
LINGÜÍSTICA E ARQUEOLOGIA

INTRODUÇÃO
A Arqueologia é uma disciplina cuja multiplicidade de
enfoques e especializações dificulta que se possam tecer gene-
ralizações a seu respeito. Uma primeira grande questão refere-
se à sua posição em relação às outras ciências, pois alguns a
consideram uma técnica, enquanto outros preferem considerá-
la uma ciência. Alguns consideram-na uma disciplina auxiliar
de uma ciência interpretativa maior, como a Antropologia ou a
História, outros rejeitam essa dicotomia. Um grande número
considera que ela estuda o passado, embora outros admitam que
pode tratar, também, do presente. Todos têm como ponto em
comum, no entanto, o fato de a Arqueologia construir seu co-
nhecimento, principalmente, a partir da cultura material (cf.
Funari, 1998: 9-16).
Este preâmbulo fazia-se necessário para que se pudesse
introduzir a discussão sobre a relação entre a Lingüística e a
Arqueologia de forma adequada. De fato, a Arqueologia englo-
ba uma série de disciplinas, mais específicas, cujos pontos de
contato podem não ser numerosos, como a Pré-História e a Ar-
queologia Histórica, a paleografia e a paleobiologia, a Arqueo-
logia Clássica e a os estudos líticos, para mencionar apenas uma
fração das especializações correntes. Neste contexto, meus ob-
jetivos neste ensaio não pretendem abarcar, diretamente, as re-
lações entre a Lingüistica e a Arqueologia em todos os campos
desta última e em todas as variedades teórico-metodológicas,
mas, de maneira mais modesta, destacar as relações históricas e
estruturais entre ambas. Na medida em que se estará buscando
as origens dessas ligações, far-se-á uso do aporte da Filologia e,
no que se refere ao século XX, a Lingüistica será tomada em
sentido igualmente amplo.
10 PEDRO PAULO A. FUNARI

A LÍNGÜÍSTICA ROMÂNTICA E O NASCIMENTO DA ARQUEOLOGIA

A língua, para os românticos, era uma preocupação central,


e as línguas estariam ligadas a determinados locais, paisagens e
clima, expressões individuais de povos específicos, a serem guar-
dados ciosamente. Isto levou ao desenvolvimento da Filologia
histórica com seus dois modelos principais, tronco e famílias lin-
güísticas. Na Lingüística histórica, os pressupostos de origens sim-
ples, seguidos de ramificações e divergências, identificáveis a
posteriori, tornaram-se ubíquos na disciplina. Os modelos de tron-
co e família lingüísticas não favoreciam a concepção de misturas
ou convergências, reforçando o axioma inicial de que cada língua
teria uma essência cujos contatos históricos não alterariam nun-
ca. Neste contexto, no final do século XVIII, o interesse pela Ín-
dia, em geral, e pelo sânscrito, em particular, levou à constatação
de que a afinidade, tanto de raízes verbais, como de formas gra-
maticais, entre o sânscrito e as línguas européias devia explicar-
se por uma origem comum. Tais povos e línguas originais foram
logo designados como indo-europeus, por franceses e ingleses, e
Indogermanisch pelos cientistas de língua alemã. Uma raça, aria-
na, seria a portadora dessa língua e esse povo foi logo considera-
do superior por fatores lingüísticos. Assim, foram distinguidos
dois tipos de língua, as línguas nobres, flexionadas, de origem
espiritual, que permitiam o desenvolvimento da inteligência e o
pensamento abstrato e universal, como as línguas indo-européias,
e as línguas não-flexionadas, de tipo animalesco, como todas as
outras.
É notável como os principais lingüístas, em particular na
Alemanha, como Humboldt, estabeleceram as bases tanto das
modernas ciências humanas como do novo sistema universitário
(Reill, 1994: 365). Humboldt estabeleceu a superioridade cultu-
ral dos gregos, resultado de sua análise da perfeição lingüística do
grego antigo, resultado, como o próprio alemão, da sua autentici-
dade e pureza, não contaminadas por elementos estrangeiros. Os
lingüistas, ao relacionarem o grego ao sânscrito e ao criarem a
noção de indo-europeus, elevaram, paralelamente, a Philologie
ARQUEOLOGIA E PATRIMÔNIO 11

ao estatudo de ciência exata (Wissenschaft), acima da necessida-


de de evidências históricas externas que validassem seus esque-
mas interpretativos, fundados na migração de povos portadores
de línguas. A origem lingüística da vida social pode ser avaliada
por uma passagem de Ernst Curtius, datada de meados do século
passado:
“O povo que soube, de uma maneira tão peculiar, desenvolver o
tesouro comum da língua indo-germânica foi o heleno. O primei-
ro feito histórico foi o desenvolvimento desta língua, feito já ar-
tístico. Entre suas irmãs, o grego deve ser considerado uma obra
de arte, a tal ponto que, se dos helenos só nos restasse sua gramá-
tica, seria já um testemunho integral e válido dos dotes extraordi-
nários e naturais deste povo. A língua toda parece o corpo de um
atleta treinado, no qual cada músculo e cada tendão desenvolve-
se, plenamente, sem materia inerte, tudo é poder e vida” (Curtius,
citado em Bernal, 1991: 334-5).

Estabelecida a equação entre língua e raça, no contexto


evolucionista do século passado, logo buscou-se no difusionismo
a explicação para o desenvolvimento da civilização nos diferen-
tes rincões (sobre a continuidade do uso do conceito de
difusionismo, consulte-se Ruiz, 1996). Flinders Petrie, embora
viesse de uma área técnica, com sua base na engenharia, pode ser
considerado, a justo título, um dos fundadores da moderna Ar-
queologia, ainda que seja conhecido, em geral, como egiptólogo.
Petrie dirigiu-se ao Egito, em 1880, para verificar se o que diziam
sobre as pirâmides era verdade, tendo comprovado os diversos
avanços técnicos dos egípcios e desenvolvido um método de clas-
sificação tipológica para ordenar os diferentes estilos da cerâmica
local. Essa tipologia, uma das bases fundamentais de toda a Ar-
queologia, fundava-se em uma analogia com a classificação lin-
güística, que se utilizava de termos como “troncos e famílias”
lingüísticas, substituindo-se, apenas, a língua pela forma dos arte-
fatos. Sir Flinders Petrie inventou a chamada “datação por se-
qüência” (sequence dating), no início deste século, ao classificar
uma série de tumbas egípcias, de acordo com uma seqüência cro-
nológica. Sua classificação partiu da cerâmica encontrada nas tum-
bas, que foram colocadas em uma ordem, de maneira que as dife-
12 PEDRO PAULO A. FUNARI

renças eram vistas como o resultado de uma série lógica de mu-


danças. Por exemplo, as alças de um pote tornavam-se progressi-
vamente menores, até serem reduzidas a uma simples linha pinta-
da na lateral do vaso, na posição antes ocupada pela alça saliente.
Classificando os potes de acordo com a progressiva diminuição
do tamanho da alça obtém-se uma datação relativa da série de
artefatos. A inspiração lingüística desta classificação é clara: assim
como a lingüistica histórica pode reconstruir a seqüência est (la-
tim), *es, é (português), também o arqueólogo propôs classificar
os artefatos (Deetz, 1967: 32). Os desdobramentos desta analogia
lingüística seriam múltiplos e pode dizer-se que toda a Arqueolo-
gia do século XX fundou-se, como veremos adiante, nesta matriz.
A relação entre língua, raça e cultura material seria outro
passo decisivo na constituição da Arqueologia. Esta equação sur-
giu, de maneira sintomática, na obra de um filólogo e pré-histori-
ador alemão, Gustav Kossina (1911), cuja preocupação era deter-
minar elementos da cultura material que correspondessem a um
povo conhecido e definido por sua língua, os germanos (Jones,
1997). Partia-se do axioma que em todos os períodos, áreas cul-
turais arqueológicas coincidem com povos ou tribos reconhecí-
veis, com a ocupação de um dado território e com uma língua, ou
dialeto, próprios. Procurava-se distinguir, assim, os grande gru-
pos língüísticos, e portanto étnicos, dos germanos, eslavos e celtas,
na Pré-História, bem como culturas individuais, que correspon-
deriam a dialetos lingüisticos, como é o caso dos vândalos ou dos
lombardos (Trigger, 1989: 165). Teríamos o seguinte esquema
lógico:

Línguas Germânicas Célticas Eslavas


Povos Germânicos Celtas Eslavos
Territórios Germânicos Celtas Eslavos
Cultura material Germânica Celta Eslava

Na Pré-História, caberia ao arqueólogo fazer o caminho in-


verso à lógica formal, que parte da existência da língua, identifi-
ARQUEOLOGIA E PATRIMÔNIO 13

cando um conjunto de artefatos, que se distribuem por um territó-


rio e que corresponde, necessariamente, a um povo e a uma lín-
gua, ainda que não tenhamos acesso direto a esta última. O gran-
de divulgador desta teoria, que viria a ser conhecida como “histó-
rico-cultural”, foi Gordon Childe, cuja advertência de que “a cul-
tura, entretanto, se não representa necessariamente um grupo
lingüístico, representa geralmente um grupo local que ocupa uma
área geográfica contínua” (Childe,1960: 17-18), não deixa dúvi-
da quanto ao paradigma língüístico de sua concepção de cultura:
“Sendo a linguagem um veículo tão importante na formação e
transmissão da tradição social, o grupo assinalado pela posse de
uma ‘cultura’ distinta provavelmente falará também uma lingua-
gem distinta...cada língua é produto de uma tradição social e age
sobre outras formas tradicionais de comportamento e pensamen-
to. Menos familiar é o processo pelo qual as divergências de tra-
dição atingem até a cultura material.... ‘next Friday’, na Inglater-
ra, transforma-se em ‘Friday first’ na Escócia...Na Irlanda e no
País de Gales os trabalhadores rurais usam pás de cabos longos,
ao passo que na Inglaterra e na Escócia os cabos são muito mais
curtos. O trabalho realizado é, em cada caso, o mesmo, embora o
manuseio do instrumento seja, evidentemente, diverso. As diver-
gências são puramente convencionais...As divergências lingüísti-
cas devem ser tão velhas quanto as divergências culturais
identificáveis no registro arqueológico” (Childe, 1960: 15-17).

A influência da Lingüística de Saussure (1955) aparece na


adaptação à cultura material de conceitos desenvolvidos para a
língua. Assim, a regularidade absoluta das modificações fonéti-
cas transforma-se em mudanças regulares na forma dos artefatos,
a Lingüística geográfica, que procura explicar a dispersão das lín-
guas e sua possível concomitância em um mesmo lugar fornece à
Arqueologia um modelo de causalidade das extensões geográfi-
cas das chamadas “culturas” arqueológicas. No entanto, a leitura
arqueológica de Saussure poderia ser definida como seletiva, ins-
trumental, como se o modelo estrutural da Lingüística fosse antes
um fato do que uma interpretação. Desta forma, as considerações
prudentes de Saussure sobre a questão da relação entre língua,
raça e mentalidade foram deixadas de lado, o que acarretaria uma
separação muito nítida entre a Língüística e a Arqueologia. Assim,
14 PEDRO PAULO A. FUNARI

Saussurre alertava que língua e raça não coincidem e que a cultu-


ra, o modo de pensar, chamado de “mentalidade”, não deriva da
língua utilizada e, de forma explícita, negava a existência de uma
mentalidade semita e outra indoeuropéia (Saussurre, 1995: 311).
Em outros termos, o caráter radicalmente arbitrário da língua, res-
saltado por Saussure, foi negligenciado, a favor de uma leitura
culturalista e racial.
Childe derivava, pois, o conceito de cultura, usado na Ar-
queologia, daquele formulado pela Lingüística e sua leitura dos
axiomas correntes na Lingüística histórica (Harris, 1994), preva-
lecente até o pós-guerra, fazia com que também propusesse a exis-
tência de línguas e, portanto, povos e culturas, superiores, sempre
a partir do critério língüístico, como transparece, de forma mais
notável, no seu livro sobre “Os arianos”, publicado em 1926: “as
línguas indo-européias e sua pressuposta língua de origem foram,
sempre, excepcionalmente, instrumentos delicados e flexíveis do
pensamento...pelo que se pode supor que os arianos foram dota-
dos de dotes mentais excepcionais, senão do usufruto de uma alta
cultura material” (Childe, 1926: 4).
O período posterior à Segunda Guerra Mundial viria a des-
valorizar os aspectos mais claramente racistas destas teorias, como
reação explícita à manipulação nazista desta identificação entre
raça, língua e um ethos imutável. No entanto, não caiu totalmente
em desuso algo que havia sido popularizado pela Arqueologia no
meio século anterior: a confecção de mapas das migrações de
povos, falantes de certas línguas e portadores de uma cultura ma-
terial específica. Assim, um mapa de supostas expansões territoriais
de povos de língua germânica, feito por um arqueólogo nazista,
Hans Reinerth, continuou a ser contraposto a mapas de outras
expansões, como a migração de povos de fala eslava, feito por um
polonês, Konrad Jazdzewski, sendo, talvez, o exemplo mais re-
cente e elaborado aquele proposto por Colin Renfrew (1987a);
uma crítica consistente encontra-se em Kohl, 1992, 169-173). Em
outros termos, a busca dos indo-europeus, por parte da Arqueolo-
gia (cf. Dolukhanov, 1995; Häusler, 1995; crítica em Funari, 1996),
e a aceitação de uma relação direta entre língua, povo e evidência
ARQUEOLOGIA E PATRIMÔNIO 15

material continua sendo atual (cf. crítica em Jones e Graves-Brown,


1995: 7) e suas ligações com a lingüística histórica são diretas.
Na América do Sul (Brochado, 1984), a Pre-História também tem
buscado identificar línguas, povos e artefatos, sempre a partir dos
esquemas de filiação lingüística, como no caso das línguas tupis,
e procurando identificar migrações de povos, com suas línguas e
artefatos, estes últimos os únicos preservados arqueologicamen-
te. A dispersão lingüística continua a servir de modelo para a di-
fusão de formas de objetos, como no caso dos vasos da tradição
Pedra do Caboclo (cf. discussão de um caso recente, em Neves,
1998). Pode concluir-se que grande parte da Arqueologia con-
temporânea continua a usar os modelos da língüística de pré-guer-
ra, sendo, provavelmente, o exemplo mais elaborado o livro de
Colin Renfrew sobre “Arquelogia e Língua” (Renfrew, 1987b; cf.
crítica em Huld, 1993).

LINGÜÍSTICA ESTRUTURAL, ANÁLISE DE DISCURSO E


ARQUEOLOGIA

O período do pós-guerra testemunhou o surgimento de ou-


tras influências de desenvolvimentos da Lingüística nas demais
ciências, que se somaram às anteriores, em particular na Arqueo-
logia. A Lingüística estrutural viria a ter um impacto muito forte
na Arqueologia, em particular a partir da década de 1960. Contu-
do, isto não significa que se tenha abandonado a analogia com a
Lingüística histórica, pelo contrário, esta continou a servir de
modelo, em especial no que se refere à classificação e seriação
tipológica dos artefatos. Aceitando-se a noção de que a língua
passa por um nascimento, crescimento, apogeu, declinío e substi-
tuição por outra, aplicou-se o mesmo aos artefatos:

LATIM ARCAICO ESTILO INICIAL


LATIM PRÉ-CLÁSSICO ESTILO EM CRESCIMENTO
LATIM CLÁSSICO ÁPICE
LATIM PÓS-CLÁSSICO DECLÍNIO DO ESTILO
LÍNGUA ROMÂNICA NOVO ESTILO
16 PEDRO PAULO A. FUNARI

Este método, chamado de seriação, parte do pressuposto de


que os artefatos passam por um ciclo analógico àquele de uma
língua e caberia, assim, ao arqueólogo que encontra um artefato,
colocá-lo na correta posição, relacionando uma suposta regra uni-
versal que afetaria línguas, artefatos e povos. Embora o esquema
de nascimento, crescimento, apogeu, declínio e fim seja, de ma-
neira direta, emprestado à vida, não à língua, sua adoção como
método com estatuto de discurso científico derivou da segurança
científica da análise lingüística histórica. No entanto, a seriação
em Arqueologia levou a uma prática tautológica, pois a colocação
dos elementos em uma ordem deriva deste ciclo a priori, não de
datações externas independentes que mostrassem, ao arqueólogo,
que o esquema proposto estava, sempre, correto. No entanto, a
generalização do uso da seriação, ainda que esta se baseie em
axiomas não verificáveis, explica-se, em grande parte, pelo cará-
ter científico da análise lingüística que estava na base do método
arqueológico.
Depois disso, na década de 1960, com o desenvolvimento da
chamada Arqueologia Processual, a Lingüística estruturalista exer-
ceu uma influência determinante na formulação de uma
metodologia arqueológica estritamente “lingüística”. Segundo
essa perspectiva, os artefatos, como as palavras, seriam os produ-
tos da atividade motora humana, por meio da ação dos músculos
e sob uma orientação mental. A forma resultante de qualquer arte-
fato consistiria de uma combinação de unidades estruturais — os
atributos — que, com determinada combinação, produz um obje-
to com função específica na cultura que o produziu. Se mudarmos
qualquer atributo, sua significação funcional mudará, se a mu-
dança for suficiente para alterar sua significação. Em outras pala-
vras, haveria unidades estruturais, nos artefatos, correspondentes
aos fonemas e morfemas na linguagem, o que demonstraria, mui-
to mais do que uma simples analogia, uma identidade de estrutura
essencial entre a língua e os objetos. Um exemplo, apresentado
por James Deetz (1967: 83-101), permite avaliar o grau de ade-
quação do modelo lingüístico para a análise arqueológica. Ao clas-
sificarmos pontas de flecha provenientes de um determinado sí-
tio, encontramos três tipos. Um tipo tem base e laterais retas, com
ARQUEOLOGIA E PATRIMÔNIO 17

uma chanfradura perto da base; outro é semelhante, mas tem base


denteada; o terceiro tem lados e base retos e não tem chanfradura.
Esta classificação funda-se em três atributos — chanfradura na
lateral, na base e na forma dos lados.
Se aceitarmos que as chafraduras nas laterais ou na base têm
algum sentido funcional, pontas de flecha idênticas, exceto pela
presença ou ausência de chanfraduras nas laterais, formariam um
par mínimo, distingüíveis com base em um único elemento estru-
tural, assim como as palavras mata e bata formam um par
lingüístico mínimo. Igualmente, as pontas de flecha que são idên-
ticas, exceto pela presença ou ausência de chanfraduras na base,
formariam, também, um par mínimo, se servissem a diferentes
propósitos. Esta chanfradura é, normalmente, um fator na coloca-
ção de um cabo, a maneira como a ponta da flecha era ligada à
flecha, pelo que é razoável supor a existência de uma diferença
funcional. Chanfradura das laterais poderia ser, portanto, consi-
derada como equivalente a um fonema, tendo Deetz proposto o
uso do neologismo factema para se referir a isso. A definição de
factema seria, então, a classe mínima de atributos que afeta a sig-
nificação funcional do artefato. As chanfraduras poderiam variar
consideravelmente de forma, contanto que a significação funcio-
nal da ponta de flecha não fosse alterada por essa variação, sendo
estas variantes do factema consideradas como alofatos. A origem
deste raciocínio na Lingüística estrutural é clara, pois a variação
alofônica deriva, em parte, das imperfeições ou variações no apa-
relho produtor da fala e algumas variações nos factemas são o
resultado de expressões imperfeitas do mundo mental para aquele
material.
Os morfemas da Língüística foram renomeados, chamados
de formemas da cultura material, a classe mínima de objetos que
tem significação funcional. Neste contexto, as pontas de flecha
formam morfemas, que combinam com outros morfemas para
produzir outros artefatos. Continuando no exemplo da flecha,
poderíamos dizer que se constitui de cinco formemas: haste, ca-
beça, penas, cimento de encaixe e pintura ou desenho na haste.
Cada um desses formemas pode aparecer em outros contextos,
18 PEDRO PAULO A. FUNARI

mas juntos formam algo específico. O estruturalismo lingüístico,


levado, talvez, a suas últimas conseqüências por Deetz, seria ado-
tado, de forma mais genérica e menos literal pela Arqueologia
daquele período, em geral (cf. Carandini, 1979). Em alguns ca-
sos, como no estudo de petroglifos, alguns arqueólogos utiliza-
ram o modelo da evolução lingüística para interpretar a transfor-
mação estilística, como no exemplo de uma evolução a partir de
uma linha reta coroada com um ponto, ou a partir de um ângulo
ou de um círculo (Porras, 1992). De uma forma ou de outra, as-
sim, este modelo, inspirado no estruturalismo lingüístico, conti-
nua a ser um dos mais fortes referenciais para a interpretação ar-
queológica.
Já na década de 1970 podia afirmar-se que “a preocupação
central das ciências do homem é a linguagem” (Vogt, 1989: 62).
A Lingüística, no entanto, passou a incorporar outras abordagens,
em particular introduzindo uma noção sócio-histórica de discur-
so, de maneira que se entende que as condições sociais determi-
nam mesmo as propriedades do discurso (Fairclough, 1990: 17;
155). A introdução das classes sociais e dos contextos históricos
específicos (Kress e Hodge, 1979) e a valorização do exosemiótico,
para usar um termo de Lagopoulos (1986: 234), representou uma
nova onda de influência lingüística, a partir de autores como Rossi-
Landi (1975; 1986). Para a Arqueologia Pós-Processual, iniciada
na década de 1980, a cultura material poderia ser considerada como
um sistema de sinais em código que constitui sua própria língua
material, ligada à produção e ao consumo. Esta linguagem, entre-
tanto, não reflete, de forma direta, as estruturas significativas de
uma língua em outra forma, como se, a cada passo, a analogia
entre sistema de linguagem verbal e material devessem corres-
ponder rigorosamente. Como a língua, a cultura material é uma
prática, práxis simbólica com produto de significado determina-
do e específico, que precisa ser situado e compreendido em rela-
ção à estrutura global do social (Shanks e Tilley, 1987: 101).
Se, para Saussurre, a relação entre significante e significado
era inteiramente arbitrária então, e seguindo os passos de Derrida
(1976; 1978), Barthes (1977) e Foucault (1981), as oposições e
diferenças poderiam ser estendidas indefinidamente. Na medida
ARQUEOLOGIA E PATRIMÔNIO 19

em que o significado é dado pela diferença, mais do que pela iden-


tidade, a linguagem não pode ser um sistema fechado. Os senti-
dos dos sinais são sempre ambíguos, pois se um sinal é constituí-
do pelo que não é, pela diferença, com relação aos outros, não
pode haver uma relação fixa entre um significante e um significa-
do, já que o significado é, imediatamente, o significante de um
outro significado. O sentido, portanto, é o resultado de um jogo
sem fim de significantes. Na esteira destas preocupações, pode
considerar-se a cultura material como um discurso material
estruturado e silencioso, ligado às práticas sociais e às estratégias
de poder, interesse e ideologia. Se a própria Lingüística é uma
empreitada que não dispensa a pluralidade de pontos-de-vista
(Barthes, 1966:84), uma ideologia (Rajagopalan, 1996), a mesma
subjetividade passou a ser elemento central da Lingüística apro-
priada pelas outras ciências humanas (Iggers, 1995: 560). Os fun-
damentos semióticos das ciências (Grzybek, 1994) implicavam
em considerar a própria textualidade do discurso acadêmico.
Na Arqueologia, há dois discursos a serem analisados: aque-
le da cultura material e sua representação, em forma de texto,
sobre a cultura material. A discursividade da cultura material,
objeto de atenção básica da Arqueologia, tem merecido particular
consideração. A cultura material pode ser concebida como consti-
tuída por uma série de signos metacríticos, signos cujo sentido
mantém-se radicalmente disperso por uma cadeia aberta de sig-
nificantes-significados. O sentido do registro arqueológico, nesta
perspectiva, não se reduz aos seus elementos constitutivos mas o
que se busca são as estruturas, e os princípios que compõem essas
estruturas, subjacentes à tangibilidade visível da cultura material.
A análise visa, assim, descobrir o que está oculto nas presenças
observáveis, levar em conta as ausências, as co-presenças e co-
ausências, as semelhanças e diferenças que constituem o padrão
da cultura material em uma contexto espacial e temporal específi-
co. Os princípios que regem a forma, natureza e conteúdo deste
padrão encontram-se tanto em termos de micro-relações (como
um conjunto de desenhos em um vaso cerâmico) quanto de macro-
relações (como o conjunto de relações entre assentamentos e
enterramentos), estando sempre inextricavelmente ligados.
20 PEDRO PAULO A. FUNARI

Segundo estas abordagens, a cultura material não significa


tanto uma relação entre as pessoas e a natureza, como relações
entre grupos, relações de poder, portanto. A forma das relações
sociais fornece uma rede na qual a força sígnica da cultura mate-
rial permite definir, redefinir, organizar e transformar essa mesma
red (grid). As próprias relações sociais articulam-se em um cam-
po de significado parcialmente estruturado pelo pensamento e pela
linguagem, sendo capaz de reforçar os sentidos reificados e ins-
critos na cultura material. A cultura material como constituída
por cadeias de significantes-significados não deve ser tratada de
forma simplista, como se representasse algo em particular, como,
por exemplo, se o uso do vermelho estivesse sempre a indicar o
sangue ou se vasos de certa forma fossem considerados de uso
feminino, e outros de uso masculino. A força sígnica da cultura
material depende da estrutura das suas inter-relações e o sentido
de qualquer artefato específico está sempre interseccionado pelo
sentido de outros artefatos. Os artefatos, assim, formam elos em
uma cadeia de objetos, em um campo aberto de signos. De acordo
com estas leituras da Lingüística aplicadas à Arqueologia, seria
falso considerar que a cultura material expressa exatamente o que
se exprime na língua, com uma simples mudança de forma (da
voz para a matéria). A importância da cultura material como força
sígnica consiste na sua diferença em relação à linguagem, ainda
que esteja envolvida na comunicação de sentidos. Os sentidos
podem ser comunicados por meio de ações, falas e artefatos, mas
o meio altera a natureza e a efetividade da mensagem (Shanks e
Tilley, 1987: 102-117).
A cultura material revela sua estrutura e princípios subja-
centes por meio da repetição. Como um discurso comunicativo,
ela solidifica, codifica e reifica as relações sociais nas quais ela
viceja e das quais deriva, a um só tempo. A ação social é o produ-
to do discurso e deste surgem tanto a ação como a cultura materi-
al, que menos significam as relações sociais do que as estabele-
cem e fixam. Pode afirmar-se, em conseqüência, que os artefatos
constituem um código de signos que se trocam. A produção, utili-
zação e consumo de cultura material, por parte do indivíduo, pode
ser considerada como um ato de bricolagem. A partir desta pers-
ARQUEOLOGIA E PATRIMÔNIO 21

pectiva, uma série de estudos têm sido feitos, marcando, prova-


velmente, uma inflexão o livro de Ian Hodder (1982), significati-
vamente intitulado “Símbolos em ação”. Pode comparar-se a
abordagem proposta, a partir dos anos 1980, com aquelas que es-
tudamos nas páginas precedentes deste ensaio, a partir do exem-
plo da análise da cerâmica Dangwara, da Índia (Miller, 1985).
Miller representa o quadro simbólico formal que sumariza a vari-
abilidade da cerâmica na sociedade dangwara, estabelecida ao
relacionar as formas dos potes, as cores e os usos às categorias
culturais e aos códigos, como comidas, gênero e casta. As dife-
rentes classificações das categorias cerâmicas, de acordo com a
cor, rótulo semântico e função, foram relacionando o código
cerâmico a outros códigos ou sistemas de classificação.
Esta Arqueologia “intérprete” parte do pressuposto que o
mundo social é polissêmico (Shanks e Hodder, 1995: 8) e que,
como qualquer outra disciplina, a Arqueologia constrói seu obje-
to por meio de um discurso e possui, portanto, um caráter narrati-
vo (Munslow, 1997: 5). Caracterizado o arqueólogo como um
storyteller (Shanks e McGuire, 1996: 82), um segundo nível
discursivo passou a ser objeto de atenção: o próprio discurso da
Arqueologia. Um clássico desta nova inflexão pode ser conside-
rado o estudo de Christopher Tilley (1989) sobre “Discurso de
poder: o gênero da conferência inaugural de Cambridge”. Desde
que a cátedra de Arqueologia foi fundada por John Disney, em
1851, em Cambridge, sucederam-se dez catedráticos, sendo que
os últimos quatro discursos de posse da cátedra, por Dorothy
Garrod (1938), Grahame Clarck (1952), Glyn Daniel (1974) e
Colin Renfrew (1981), foram analisados como um gênero literá-
rio dotado de uma retórica própria. A aula inaugural, encarada
como um rito de passagem, possui alguns princípios típicos desse
gênero literário: referência aos catedráticos anteriores, citações
das conferências inaugurais anteriores, a importância de
Cambridge, seu internacionalismo, um estilo erudito, com refe-
rências abundantes e em línguas estrangeiras. Uma linha de in-
vestigação importante da Arqueologia da ultima década, portan-
to, passou a ser o estudo do discurso dos próprios arqueólogos,
não apenas, nem principalmente, em escritos programáticos, como
22 PEDRO PAULO A. FUNARI

as conferências inaugurais, mas em sua produção quotidiana so-


bre os mais variados temas. Assim, a identificação de grupos étni-
cos, no registro arqueológico, passou a ser investigada, justamen-
te, como uma construção textual que constitui tradições discursivas
arqueológicas sobre o tema (Jones, 1997). Não se trata mais de
tentar “descobrir” os vestígios dos “germanos”, mas de entender
como se constrói um discurso sobre grupos étnicos a partir da
cultura material.
Os exemplos poderiam ser multiplicados e não se imagine
que essas preocupações discursivas restrinjam-se a um grupo re-
duzido de estudiosos, pois a própria produção de divulgação da
Arqueologia para o grande público, a seu modo, incorporou essas
novas abordagens. Assim, o manual de Rahtz (1986: 109-110),
um best seller já traduzido para o português, incorpora, de forma
jocosa, esse caráter inevitavelmente discursivo do escrito arqueo-
lógico, por mais objetivo, empírico e factual que se pretenda.
Apresenta um engraçado guia para a leitura e decifração dos ári-
dos relatos de escavação que merece ser citado: quando se lê “é
razoável sugerir que...”, leia-se “não é razoável, mas seria ótimo
se fosse assim...”; ou então, “não pode haver dúvida que...” deve
ser entendido como “qualquer um que não concorde se sentirá um
tolo...”. Em outros termos, as certezas empíricas das décadas pas-
sadas foram substituídas por um saudável alerta que, também o
arqueólogo, está a produzir um texto a ser analisado enquanto tal.
Pode concluir-se que a Arqueologia, umbelicalmente ligada
à Lingüística, continua a receber seus influxos e, em certo senti-
do, a construir-se como ciência tendo a Lingüística como refe-
rencial maior. A História da própria disciplina vincula-se à Lin-
güística e, nos últimos anos, tem-se, com mais e mais freqüência,
voltado para uma introspecção que inclui a análise metalingüística
do próprio discurso arqueológico (Tilley, 1989: 62). A Arqueolo-
gia, como disciplina crítica e criativa, continuará a dialogar, de
forma muito intensa, com a Lingüística, em suas mais variadas
manifestações.
ARQUEOLOGIA E PATRIMÔNIO 23

AGRADECIMENTOS

Agradeço a Rajangapolan Kanavilil o convite para que escrevesse


este ensaio e aos seguintes colegas, que me ajudaram de diferentes ma-
neiras: Martin Bernal, Siân Jones, Philip L. Kohl, Alexandros-Phaidon
Lagopoulos, Randall McGuire, Eduardo Goes Neves, Michael Shanks,
Bruce G. Trigger. Os comentários de dois referees anônimos ao manus-
crito permitiu-me diminuir suas deficiências, mas aquelas que perma-
necem são de minha responsabilidade.

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A ARQUEOLOGIA HISTÓRICA EM UMA PERSPECTIVA
MUNDIAL

A Arqueologia Histórica tem se desenvolvido, nos últimos


anos, de forma cada vez mais intensa e dinâmica. Nesta ocasião,
retomarei reflexões tecidas há algum tempo, em fóruns no exteri-
or e no Brasil e que resultaram na organização do volume, co-
editado com Martin Hall e Siân Jones, Historical Archaeology,
Back from the edge (Londres, Routledge, 1999). Em parte, mi-
nhas considerações retomam questões discutidas no capítulo
“Introduction: archaeology in history”, escrito a seis mãos, com
Siân Jones e Martin Hall, mas incorpora, também, aspectos que
tenho tratado em outras publicações, elencadas ao final deste paper.
Por isso mesmo, não apresentarei referências bibliográficas, en-
contradas nos trabalhos publicados e referidos ao final. Minha
releitura da disciplina parte, portanto, da experiência compartida
não apenas com os dois colegas, como com uma pletora de estu-
diosos que se têm questionado sobre a Arqueologia Histórica.
A Arqueologia das sociedades com escrita tem uma grande
tradição na disciplina, em particular no estudo das grandes civili-
zações fundadoras do “Ocidente”, como as Arqueologias Clássi-
ca, Bíblica, Egípcia e Médio Oriental. Contudo, o termo “Arque-
ologia Histórica” tem sido usado, em particular na América do
Norte, para referir-se ao estudo de um período histórico específi-
co, o moderno (sensu anglico, i.e. do século XV em diante), em
geral nas Américas. O termo Arqueologia Histórica, com tal defi-
nição, não é usado na Europa e na Ásia, já que se entende por
históricas diversas arqueologias, como a Clássica e a Egípcia, para
mencionar apenas duas delas.
A Arqueologia Histórica como o estudo das sociedades com
escrita incorpora, assim, tanto a disciplina homônima norte-ame-
ricana, como as diversas disciplinas que lidam com sociedades
28 PEDRO PAULO A. FUNARI

com documentação escrita. Tem-se buscado mostrar que ela não


é uma simples ancilla, serva ou auxiliar da documentação escrita
e da ciência da História, pois a cultura material pode não só com-
plementar as informações textuais, como fornecer informações
de outra forma não disponíveis e até mesmo confrontar-se às fon-
tes escritas. Nas últimas duas décadas, preocupados com a análi-
se da sociedade, os arqueólogos históricos têm, cada vez mais,
focalizado sua atenção nos mecanismos de dominação e resistên-
cia e, em particular, nas características materiais do capitalismo.
A Arqueologia Histórica liga-se, de forma umbilical, às no-
ções de identidade, tratando de sociedades, de uma forma ou de
outra, relacionadas ao arqueólogo. Na Europa, a Arqueologia é
encarada como o estudo de nossa própria civilização, sejam elas
as grandes civilizações que formariam o legado ocidental, sejam
as anteriores à escrita, mas ainda assim históricas, porque inseridas
numa narrativa das fontes escritas, como é o caso, por exemplo,
da Arqueologia dos celtas (ou de Hallstadt e La Tene). Nos Esta-
dos Unidos, a disjunção com a Pré-História estabelece, à sua ma-
neira, essa ligação da Arqueologia Histórica com a sociedade
americana, às expensas dos indígenas, encarados como o “outro”,
o selvagem contraposto à “civilização”, como ressaltou Thomas
Patterson.
As dinjunções entre letrado/iletrado, mito/história, primiti-
vo/civilizado têm sido, de forma crescente, criticadas por separa-
rem elementos discursivos interligados, de forma a evitar, por
exemplo, que sítios indígenas não sejam objeto da Arqueologia
Histórica, mesmo se contemporâneos àqueles europeus. Outra
dicotomia criticada tem sido aquela que divide o mundo moder-
no, dominado pelo capitalismo, dos períodos anteriores. Em pri-
meiro lugar, porque grande parte das estruturas mentais e materi-
ais modernas derivam e mantém, ainda que de forma alterada,
características de outras épocas e civilizações. O capitalismo
moderno funda-se no feudalismo, até mesmo naquilo que tem de
contrastivo, as estruturas sociais modernas construíram-se a par-
tir de contextos medievais e antigos, tanto derivados do chamado
ocidente, como do chamado oriente. Em segundo lugar, mesmo
ARQUEOLOGIA E PATRIMÔNIO 29

quando não haja ligações genéticas entre realidades modernas e


as outras, a comparação entre situações pode fornecer elementos
úteis para o conhecimento tanto da cultura material antiga, como
moderna, tanto do Oriente, como do Ocidente, de qualquer ma-
neira, criações discursivas, antes que realidades efetivamente se-
paradas, como alerta Said.
Neste contexto, tem se propugnado que a Arqueologia His-
tórica abranja seja o estudo do mundo moderno, seja de todas as
sociedades com escrita. Seria o caso de manter uma Arqueologia
Histórica específica e, neste caso, qual sua especificidade diante
da Arqueologia pré-histórica? Ainda que o contato com os estu-
dos da cultura material de sociedades sem escrita seja importante,
em termos do estudo da cultura material em seus aspectos mais
amplos, parece-nos que se deve reconhecer as particularidades
metodológicas do estudo de sociedades com escrita e com docu-
mentos, examinando os papéis históricos e singulares que a escri-
ta possui na comunicação, representação e na própria construção
discursiva da disciplina Arqueologia. A presença de documentos
caracteriza e define as sociedades em que diferentes sistemas de
escrita são utilizados.
Em seguida e talvez ainda mais importante, a História como
narrativa escrita sobre o passado, a Historie dos alemães, o gêne-
ro literário histórico, assim como as decorrentes tendências
historiográficas, acabam por fornecer os quadros discursivos sobre
o passado e que conformam, de uma ou outra maneira, a própria
definição do contexto histórico usado pelo arqueólogo no estudo
das sociedades históricas. Conceitos como Arqueologia romana
ou colonial assumem periodizações e definições derivadas da tra-
dição historiográfica e só nesse contexto adquirem sentido. A Ar-
queologia, contudo, pode transcender os quadros estritos da
historiografia assentada nas fontes escritas, cujo viés de classe
constitui sua própria essência e a cultura material pode tratar de
temas simplesmente ausentes ou ignorados pela documentação,
como no caso das grandes maiorias, da vida rural e do quotidiano.
Os discursos verbal e artefatual entrecruzam-se, de diferentes
modos, nas sociedades históricas e o desenvolvimento de técni-
30 PEDRO PAULO A. FUNARI

cas para tratar de tais inter-relacionamentos permanece uma ques-


tão fundamental no seio da disciplina.
Entre as questões contemporâneas mais recorrentes na dis-
ciplina, devem mencionar-se os estudos sobre relações de poder,
expressas na dominação e resistência, na desigualdade, em colo-
nizadores e colonizados, dentre outros temas abordados na última
década. O estudo da cultura material histórica permite, assim, co-
nhecer as tensões sociais e a variedade de situações sociais viven-
ciadas. De forma crescente, contata-se uma insatisfação com os
modelos normativos de cultura, cujos pressupostos de homo-
geneidade social não parecem encontrar respaldo nem nos estu-
dos da cultura material, nem na teoria social contemporânea. Neste
contexto, o capitalismo mesmo não consegue uniformizar a cul-
tura material e as mentes e conceitos derivados da noção de
“aculturação” têm sido postos em dúvida, pela homogeneidade
que está a implicar. A europeização, primeiro, e a americaniza-
ção, depois, do mundo, foram também chamadas de globalização,
um conceito normativo e homogeneizador, e, por isso, passaram a
ser vistas como apenas um lado da medalha, pois a diversidade
social não se conforma a seus ditames. A fortiori passam a ser
questionados os conceitos modernos, derivados do imperialismo,
aplicado a sociedades do passado assimiladas discursivamente ao
Ocidente, como no caso da “romanização” ou da “helenização”.
De forma cada vez mais acentuada, portanto, tem-se estuda-
do o próprio campo discursivo da disciplina e da formação de
conceitos modernos que moldam, de maneira invisível, os discur-
sos possíveis. Multiplicam-se os estudos sobre a invenção de qua-
dros interpretativos, com ênfase na História das Arqueologias,
como procedimento heurístico indispensável para a crítica das
práticas discursivas, no interior da disciplina. Um exemplo mere-
ce ser citado, por paradigmático: a Arqueologia da Mesopotâmia,
também conhecida como Assiriologia. O Oriente, surgido como
invenção contraposta ao Ocidente, fundou uma Arqueologia em
busca da “civilização”, passada como uma tocha para gregos, ro-
manos e, ao final, para os modernos imperialistas. O caráter im-
perialista, militar mesmo, dessa Arqueologia imprimiu feições à
ARQUEOLOGIA E PATRIMÔNIO 31

disciplina que, para serem descontruídos, exigem uma exegese da


própria ciência. Da mesma forma e pelos mesmos motivos, todas
as Arqueologias Históricas só adquirem pleno sentido a partir desse
olhar histórico disciplinar.
No início deste artigo, ressaltei que se tratava de colocar a
Arqueologia Histórica em um contexto mundial e este é o último,
essencial, aspecto a discutir. Por muito tempo, as tradições disci-
plinares levaram ao isolamento das Arqueologias Históricas e esse
ensimesmamento em muito contribuiu para as dificuldades en-
frentadas pelos estudiosos, em particular de contextos periféricos
como na América do Sul, mas não só aí. A Arqueologia Bíblica,
por exemplo, um projeto tão claramente ideológico, tão compro-
metido com o ideário conservador religioso, manteve-se como
um campo científico, em grande parte, devido a seu isolamento
do restante da Arqueologia. Nos últimos anos, contudo, os conta-
tos entre os estudiosos de diferentes países e horizontes culturais
mostraram a importância do diálogo com a ciência mundial, com
outros pontos de vista, com a diversidade. Uma Arqueologia mun-
dial significa uma variedade de interesses e sujeitos em confron-
to, com a introdução de agentes sociais, como as mulheres e os
grupos étnicos e sociais, de diferentes ideologias, de uma
heterogeneidade que está no presente e leva à busca dessa mesma
diversidade no passado. Em última instância, essa, talvez, a mai-
or mensagem das pesquisas, em termos mundiais, na Arqueologia
Histórica, pois a pluralidade e a conseqüente convivência da vari-
edade passou a constituir aspecto central da disciplina, em um
mundo também ele caracterizado pelas diferenças.
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32 PEDRO PAULO A. FUNARI

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9. 1995 The Archaeology of Palmares and its Contribution to the
Understanding of the History of African-American Culture, Historical
Archaeology in Latin America, 7, 1-41.
10. 1995 A cultura material e a construção da mitologia bandeirante: proble-
mas da identidade nacional brasileira, Idéias, 2,1, 29-48.
11. 1995 Memória histórica e cultura material, Revista de Ciências Históri-
cas, Porto, 10, 327-339.
12. 1996 A cultura material de Palmares: o estudo das relações sociais de
um quilombo pela Arqueologia, Idéias, São Paulo, FDE, 27, 37-42.
13. 1996 Resenha de Andrés Zarankin, “Arqueologia Histórica Urbana en
Santa fe la Vieja”, Varia Historia, Belo Horizonte (UFMG), 15, 199.
14. 1996 Archaeological Theory in Brazil: Ethnicity and Politics at Stake,
Historical Archaeology in Latin America, 12, February, 1-13.
15. 1996 A Arqueologia e a cultura africana nas Américas, in Francisca L.
Nogueira de Azevedo & John Manuel Monteiro (coords), Raízes da Amé-
rica Latina, São Paulo, Expressão e Cultura/Edusp, 535-546.
16. 1996 Novas perspectivas abertas pela Arqueologia na Serra da Barriga,
in Lilia Moritz Schwarcz & Letícia Vidor de Sousa Reis (orgs), Negras
Imagens, Edusp/Estação Ciência, 139-151;228-230.
ARQUEOLOGIA E PATRIMÔNIO 33

17. 1996 A Arqueologia de Palmares e sua contribuição para o conhecimen-


to da História da cultura afro-americana, in João José Reis & Flávio dos
Santos Gomes (orgs), Liberdade por um fio. História dos quilombos no
Brasil. São Paulo, Cia das Letras, 26-51.
18. 1996 Historical Archaeology in Brazil, Uruguay and Argentina, World
Archaeological Bulletin, 7, 51-62.
19. 1996 Resenha de Zarankin, A., Arqueología urbana en Santa Fe la Vieja:
el final del principio, História, São Paulo, 15, 309-310.
20. 1997 El mito bandeirante: élite brasileña , cultura material e identidad,
Boletín de Antropología Americana, 24, deciembre de 1991 (publicado
em 1997, 110-122.
21. 1997 European archaeology and two Brazilian offspring: classical
archaeology and art history, Journal of European Archaeology, 5, 2: 137-
148.
22. 1997 Archaeology, History, and Historical Archaeology in South Améri-
ca, International Journal of Historical Archaeology, 1,3: 189-206.
23. 1997 Resenha de Matthew Johnson, An Archaeology of Capitalism,
Oxford, Blackwell, 1996, Revista da SBPH, 13, 101-103.
24. 1997 Contribuições da Arqueologia para a interpretação do quilombo de
Palmares, Anais do IX Congresso da Sociedade de Arqueologia Brasi-
leira, Rio de Janeiro, 22 a 26 de setembro de 1997.
25. 1998 A Arqueologia de Palmares. Sua contribuição para o conhecimen-
to da História da cultura afro-americana, Studia Africana,Barcelona, 9,
175-188.
26. 1998 Arqueologia, História e Arqueologia Histórica no contexto sul-
americano, in P.P.A. Funari (org.), Cultura Material e Arqueologia His-
tórica, Campinas, IFCH-UNICAMP, 7-34.
27. 1999 P.P.A. Funari, S. Jones & M. Hall, Preface, in P.P.A Funari, M. Hall
& S. Jones (eds), Historical Archaeology, Back from the edge, Londres,
Routledge, xix-xx.
28. 1999 P.P.A. Funari, S. Jones & M. Hall, Introduction: archaeology in
history, in P.P.A Funari, M. Hall & S. Jones (eds), Historical Archaeology,
Back from the edge, Londres, Routledge, 1-20.
29. 1999 Historical archaeology from a world perspective, in P.P.A Funari,
M. Hall & S. Jones (eds), Historical Archaeology, Back from the edge,
Londres, Routledge, 37-66.
30. 1999 Maroon, race and gender: Palmares material culture and social
relations in a runaway settlement, In P.P.A Funari, M. Hall & S. Jones
34 PEDRO PAULO A. FUNARI

(eds), Historical Archaeology, Back from the edge, Londres, Routledge,


308-327.
31. 1999 Algumas contribuições do estudo da cultura material para a discus-
são da História da colonização da América do Sul, Tempos Históricos,
Cascavel, 1, 11-44.
32. 1999 Lingüística e Arqueologia, DELTA (Revista de Estudos de
Lingüistica Teórica e Aplicada), 15, 1, 161-176.
33. 1999 Etnicidad, identidad y cultura material: un estudio del Cimarrón
Palmares, Brasil, siglo XVII, in A. Zarankin & F.A. Acuto (eds), Sed non
satiata, Teoría Social en la Arqueología Latinoamericana Conteporánea,
Buenos Aires, Ediciones del Tridente, 77-96.
34. 1999 Etnicidad, identidad y cultura material: un estudio del Cimarrón
Palmares, Brasil, siglo XVII, in A. Zarankin & F.A. Acuto (eds), Sed non
satiata, Teoría Social en la Arqueología Latinoamericana Conteporánea,
Buenos Aires, Ediciones del Tridente, 77-96.
35. 1999 Brazilian archaeology, a reappraisal, in G. Politis & Benjamin Alberti
(eds), Archaeology in Latin America, London & New York, Routledge,
17-37.
36. 2000 Achaeology, education and Brazilian identity, Antiquity, 74: 182-5.
37. 2000 Review of “Race and affluence: na archaeology of African-American
and consumer culture”, by Paul R. Mullins, Historical Archaeology 34(2),
2000, 111-112.
38. Contribuições da Arqueologia para a interpretação do Quilombo dos
Palmares, Fronteiras, Revista de História, UFMS, 3(6), 1999, 79-90
(publicado em 2001).
A PRIMEIRA REUNIÃO INTERNACIONAL DE TEORIA
ARQUEOLÓGICA NA AMÉRICA DO SUL: UM MARCO NA
HISTÓRIA DA ARQUEOLOGIA BRASILEIRA

A partir da década de sessenta, a Arqueologia internacional


passou a incorporar uma preocupação reflexiva com os proble-
mas relativos à teoria e ao método no desenvolvimento da disci-
plina. Nos últimos anos, em diferentes contextos, surgiram fóruns
dedicados à reflexão crítica sobre a Arqueologia, como o
Theoretical Archaeology Group (TAG), na Grã-Bretanha e, em
termos mundiais, a fundação do World Archaeological Congress,
em 1986 representou uma tomada de posição, por parte de muitos
arqueólogos, quanto à epistemologia e à ética da práxis arqueoló-
gica. Neste contexto, a América do Sul, em geral, e o Brasil, em
particular, testemunharam um grande desenvolvimento da refle-
xão crítica, nestes últimos anos, após duas décadas de obscu-
rantismo, resultante de regimes ditatoriais. Assim, o World
Archaeological Congress e a Associação de Antropologia Brasi-
leira uniram-se na iniciativa de propor, no quadro da 21ª Reunião
da ABA, em Vitória (ES, Brasil), de 6 a 9 de abril de 1998, a
realização de uma Primeira Reunião Internacional de Teoria Ar-
queológica na América do Sul. A proposta começou a tomar for-
ma em 1996, por iniciativa de Alejandro Haber1 e Pedro Paulo
Abreu Funari2, quando se encontravam ambos em solo britânico
para o trabalhos arqueológicos em Cambridge e Southampton,
respectivamente, tendo recebido o incentivo de Ian Hodder e Peter
Ucko. A partir destes primeiros entendimentos, e já com o apoio
institucional do World Archaeological Congress, manifestado pelo
secretário Julian Thomas, marcou-se para outubro de 1996 um
encontro, na Argentina, para organizar uma proposta acadêmica
1
Professor da Escuela de Arqueología, Universidad Nacional de Catamarca, Argentina.
2
Estada financiada pelo World Archaeological Congress, em Janeiro de 1996.
36 PEDRO PAULO A. FUNARI

mais detalhada. Em outubro, reuniões preparatórias foram reali-


zadas em Catamarca3, quando se definiu um programa inicial e
uma comissão executiva4 e uma comissão científica de apoio5.
A organização do evento exigiu diversas outras reuniões ini-
ciais6, tendo-se apliado o apoio institucional7 ao evento e a com-
posição das comissões executivas8 e científicas9. A Reunião con-
tou com o aporte financeiro de diversas instituições científicas e
de fomento à pesquisa10, tendo contado com duas conferências e
vinte e cinco papers, agrupados em quatro grandes temas. As con-
ferências, a cargo de Julian Thomas, sobre “A História e a política
do WAC”, e de Randall McGuire, sobre “Uma Arqueologia dos
trabalhadores americanos”, abriram o primeiro e o último dia do
evento, respectivamente. A apresentação de Thomas permitiu que
o público presente tomasse contato com a História do WAC, cujas
políticas de reflexão crítica sobre o papel social e acadêmico do
arqueólogo permitiram enquadrar todo o encontro. No primeiro
dia, a discussão girou em torno de “Teoria e Método”, com a apre-
sentação de sete papers:
Julian Thomas11, University of Southampton, Recontextualizing
materiality and the social;
3
Funari contou com um auxílio-viagem da FAPESP para participar das II Jornadas de
Etnolingüística y Antropología, em Rosário, Argentina e a Universidad de Catamarca forne-
ceu subsídios para que se pudesse efetuar reuniões de organização do evento.
4
A primeira comissão executiva contava com Alejandro Haber, P.P.A Funari (representante
sênior da América do Sul no Conselho Executivo do Congresso Mundial de Arquelogia),
Irina Podgorny (representante júnior perante o mesmo Conselho) e Norberto Luiz Guarinello
(Departamento de História, FFLCH-USP, Brasil).
5
A primeira comissão científica era composta, além dos membros executivos, do Presidente
do WAC, Bassey Andah, do Secretário, Julian Thomas, e Peter Ucko.
6
Em particular, em Londres e Southampton, em fevereiro de 1997, com apoio do CNPq,
quando se consolidaram os entendimentos com a direção do WAC e em maio do mesmo
ano, quando, com apoio dos Departamentos de História da UNICAMP e da USP, a Profa.
Podgorny participou de reuniões com Funari e Guarinello.
7
A Sociedade de Arqueologia Brasileira, na gestão de Paulo Tadeu de Albuquerque e Sheila
Mendonça, apoiou e divulgou o evento; a Associação de Antropologia Brasileira propôs a
realização encontro no quadro da reunião regular da ABA; o Fórum Interdisciplinar para o
Avanço da Arqueologia, na gestão de Eduardo Goes Neves, associou-se à proposta e a divul-
gou.
8
Eduardo Goes Neves passou a integrar a comissão executiva.
9
A Comissão Científica passou a contar, também, com a Presidente da ABA, Mariza Correa e
com Haiganuch Sarian (MAE-USP, Brasil).
10
World Archaeological Congress, CAPES, FAPESP, IFCH-UNICAMP e MAE-USP.
11
Com apoio financeiro do WAC.
ARQUEOLOGIA E PATRIMÔNIO 37

Michael J. Heckenberger, Museu Nacional (UFRJ), Hierarquia


e economia política na Amazônia: a construção da diferença e
da desigualdade em sociedades ameríndias;
Gustavo Politis, Universidad de La Plata, Cultura Material e
crianças entre os Nukaks;
José Luis Lanata, Universidad de La Plata, The Archaeology
of Hunters and Gatherers in South America: recent history;
Erika Marion Robrhan-Gonzáles12, MAE-USP, A cerâmica em
estudos de interação e mudança cultural na região centro-oes-
te brasileira; e
Benjamin Alberti 13, University of Southampton, Gender
Archaeology: a case study.

As apresentações e as discussões que se seguiram, em três


línguas, inglês, português e espanhol, contaram com tradução si-
multânea trilíngüe. Confrontaram-se, nas discussões, as aborda-
gens contextuais, ou pós-processuais, de Thomas e Alberti, que
enfatizaram o caráter de construção discursiva da lide arqueoló-
gica, e enfoques mais ou menos informados no processualismo,
de uma forma ou de outra representados pelos outros panelistas.
Lanata e Heckenberger referiram-se, em suas palestras, a mode-
los genéricos explicativos, assim como Prous esboçou um análise
crítica dos estudos sobre as pinturas rupestres. Politis gerou gran-
de interesse e admiração pela pesquisa etno-arqueológica de campo
e suas ilações sobre o papel das crianças foi particularmente
instigante. Robrahn-Gonzáles relacionou o estudo da cerâmica
com a dinâmica social no Brasil Central, tendo levado a troca de
idéias com diversos colegas, em particular com Irmhild Wüst. A
mediação de Irina Podgorny organizou o debate, que se prolon-
gou pelo início da noite.
O segundo dia centrou-se no tema “Arqueologia e Etnici-
dade”, mediado por Eduardo Goes Neves, tendo contado com seis
apresentações:

12
Com apoio financeiro da FAPESP.
13
Com apoio financeiro do WAC.
38 PEDRO PAULO A. FUNARI

Francisco Noelli, Universidade Estadual de Maringá, Repen-


sando os rótulos sobre os Jê do sul do Brasil: pelo compassa-
mento entre algumas noções básica da Arqueologia e da
Etnologia;
Scott Allen, Universidade Federal de Alagoas/Brown Univer-
sity, Etnicidade e Arqueologia Histórica do Quilombo dos
Palmares;
Stephen Shennan14, Insitute of Archaeology, Londres, Concepts
of ethnicity in the past and present;
Carlos Magno Guimarães, FAFICH-UFMG, Arqueologia e gru-
pos étnicos: os quilombos;
María Ximena Senatore, Universidad de Buenos Aires,
Arqueología del contacto europeo-americano. Discusión teó-
rica y modelos de análisis en áreas marginales; e
Irmhild Wüst, Universidade Federal do Goiás, Continuidades
e descontinuidades: Arqueologia e Etnoarqueologia no cora-
ção do território Bororo oriental, Mato Grosso.

A etnicidade foi tratada, pelos diversos expositores, a partir


de diferentes ângulos, gerando debates entre os panelistas e entre
estes e os outros participantes. Noelli desenvolveu uma crítica
dos modelos vigentes na Arqueologia Brasileira em geral, e quan-
to ao sul do Brasil, em particular, propondo, em seu lugar, uma
análise que tente integrar os dados arqueológicos àqueles históri-
cos, etnográficos e lingüísticos. Os problemas de tal pretensão
foram aventados por Funari, em particular no contexto das dis-
cussões mais recentes sobre Arqueologia e Etnicidade. Estas for-
maram o cerne do paper de Wüst, cujo endosso das literatura mais
atualizada (e.g. Siân Jones) acabou gerando discussões diversas.
Shennan somou-se, em sua apresentação, a Wüst ao demonstrar
como a Etnicidade é antes construção complexa que busca de tra-
ços de origem. Allen e Senatore, com estudos de casos específi-
cos, juntaram-se àqueles que propugnam pela complexidade das
relações étnicas e pelos decorrentes desafios de seu estudo a par-

14
Com apoio financeiro do WAC.
ARQUEOLOGIA E PATRIMÔNIO 39

tir da cultura material. Talvez a apresentação mais controversa


tenha sido a de Guimarães, sobre a identificação arqueológica de
quilombos para fins de demarcação de terras. Diversos antropólo-
gos presentes divergiram das propostas de Guimarães sobre a cha-
mada “ressemantização” do conceito de quilombo, tal como pro-
posto por um grupo de trabalho da ABA.
O terceiro dia foi organizado, por Funari, em torno da dis-
cussão da “Paisagem, cultura material e patrimônio”, tendo con-
tado com seis apresentações:
Andrés Zarankin, Universidad de Buenos Aires/UNICAMP15,
Arqueología de la Arquitectura: un modelo teórico
metodológico para su abordaje;
Cristina Bruno16, MAE-USP, A importância dos processos
museológicos para a preservação do patrimônio;
Elizabete Tamanini17, Museu Arqueológico de Sambaqui de
Joinville/UNICAMP, Arqueologia e Educação: teoria e prática;
Eduardo Goes Neves18, MAE-USP, Mito, História e Arqueolo-
gia na Bacia do Alto Rio Negro, Amazônia;
Marisa Lazzari, Universidad de Buenos Aires, Objetos viajeros
e imágines espaciales: relaciones de intercambio y la
producción del espacio social; e
Felix Acuto, Universidad de Buenos Aires, Paisages cambian-
tes: la ocupación inka en el Valle del Caclhaqui Norte, Argen-
tina.

As discussões centraram-se, por um lado, nas apropriações


da cultura material, objeto de estudo do arqueólogo, por parte da
sociedade em geral. Bruno e Tamanini apresentaram reflexões
sobre como o trabalho arqueológico envolve, necessariamente,
considerações sobre a transformação destes artefatos em patri-
mônio, acadêmico e extra-acadêmico. Houve grande discussão a
este respeito, pois muitos arqueólogos dissociam seu trabalho,
15
Doutorando da UNICAMP, contou com apoio financeiro do CONICET (Argentina).
16
Com apoio financeiro da FAPESP.
17
Doutoranda da UNICAMP, contou com apoio financeiro da CAPES.
18
Com apoio financeiro da FAPESP.
40 PEDRO PAULO A. FUNARI

propriamente arqueológico, da patrimonização da cultura materi-


al. Por outro lado, Zarankin, Neves, Lazzari e Acuto utilizaram-se
de estudos de caso para apresentar propostas de uso da teoria ar-
queológica. Zarankin discutiu a relação entre os modelos
arquitetônicos e a Arqueologia, enquanto, ainda no campo
interdisciplinar, Neves relacionou História, Mito e Arqueologia.
A paisagem foi tratada de forma original por Lazzari e Acuto,
destacando-se a preocupação daquela com os movimentos dos
objetos e deste último com a diacronia no assentamento humano.
O quarto dia começou com uma conferência de McGuire,
uma muito oportuna introdução à mesa que se seguiria. Em sua
apresentação McGuire tratou dos excluídos da História dos Esta-
dos Unidos, os trabalhadores, e mostrou um projeto de pesquisa
arqueológica dos vestígios de um grupo de trabalhadores em gre-
ve, no início do século. Destacou, ainda, a transformação dessas
evidências em patrimônio e demonstrou, de forma clara, seu pro-
pósito de engajar a Arqueologia na luta pela liberdade e na rejei-
ção de uma Arqueologia que, ao se querer neutra e ahistórica,
mostra-se conservadora e pouco capaz de explicar sua própria
prática e teoria. A mesa-redonda que se seguiu, sobre Arqueolo-
gia latino-americana: teoria e História, mediada por Goes, mos-
trou-se particularmente fértil em suscitar debates e compôs-se de
seis papers:
Bernd Fahmel Beyer, Instituto de Investigaciones Arqueológi-
cas, UNAM, México, Academy and culture in Mesoamerica:
two realities?;
Cristiana Barreto19, University of Pittsburg, A Arqueologia no
Brasil e na América Latina;
Haiganuch Sarian20, MAE-USP, Arqueologia Clássica no Bra-
sil: fronteiras e horizontes;
Irina Podgorny, Universidad de La Plata, The reception of New
Archaeology in Argentina: boundaries, contexts and power;
Pedro Paulo A Funari21, UNICAMP, A importância da teoria
19
Com apoio financeiro da FAPESP.
20
Com apoio financeiro da FAPESP.
21
Com apoio financeiro da FAPESP.
ARQUEOLOGIA E PATRIMÔNIO 41

arqueológica internacional para a Arqueologia Brasileira; e


Randall MacGuire, Binghamton University, Radical theory in
Anglo-American and Hispanic archaeology.

Todos os papers trataram da História da Arquelogia, a partir


de estudos de caso e pontos de vistas diferentes. Beyer, Podgorny
e Funari ressaltaram, ao estudar a América Central, a Argentina e
o Brasil, respectivamente, as relações entre o contexto histórico e
as práticas e teorias arqueológicas. Barreto procurou contrapor-se
a tais contextualizações, tratando dos avanços da Arqueologia no
Brasil como desenvolvimentos no interior da ciência. Sarian,
embora tenha tratado da Arqueologia Clássica, apenas um dos
campos de investigação no Brasil, ressaltou os efeitos cientifica-
mente destacáveis dessa área. McGuire forneceu uma visão am-
pla, contrapondo a Arqueologia americana à hispano-americana,
com destaque para a Arqueologia Social Latino-Americana. As
discussões centraram-se no grau de autonomia da ciência arqueo-
lógica e nas suas relações com a sociedade abrangente.
Ao final, Goes e Funari mediaram uma plenária sobre o
evento. Diversos participantes ressaltaram a importância e inova-
ção de um encontro deste tipo, baseado na troca de idéias. Ressal-
tou-se que, em um contexto ainda marcado pelos conflitos, até
mesmo de caráter pessoal, a apresentação de papers e sua discus-
são marcou uma nova etapa, em reuniões arqueológicas na Amé-
rica do Sul. Em seguida, foi enfatizada a importância da inserção
da Arqueologia sul-americana na Arqueologia Mundial. Surgiu a
proposta de realizar-se o segundo encontro, tendo sido formada
uma comissão provisória22 para encaminhar o evento, que está
planejada para outubro ou novembro de 1999. A publicação dos
papers foi sugerida e solicitou-se o envio dos textos, até fins de
julho de 1998, para que sejam publicados. Neves apresentou à
Comissão de Publicações do MAE-USP o projeto de publicar um
volume com as atas, em português, e Funari e Podgorny, em reu-
nião do executivo do WAC, em maio de 1998, na Croácia23, apre-
22
Composta por Irina Podgorny, Gustavo Politis, Andrés Zarankin, Felix Acuto, Marisa Lazzari,
Ximena Senatore, Eduardo Goes Neves, Cristiana Barreto, Bernd Beyer.
23
Com apoio financeiro do WAC e Fundación Antorchas
42 PEDRO PAULO A. FUNARI

sentaram o projeto de publicar um World Archaeological Bulletin,


em inglês, para divulgação internacional, tendo obtido o apoio
formal do executivo.
O público, além dos panelistas, compreendeu arqueólogos,
antropólogos e outros interessados de diferentes instituições, em
particular MAE-USP, UNICAMP, UFES, UFMG, MASJ, Univer-
sidade Estácio de Sá (RJ), UFRJ, Universidade Estadual de
Blumenau e Museu Nacional. Tomaram parte estudiosos do Bra-
sil, Argentina, Estados Unidos, Grã-Bretanha e França. Os inte-
lectuais envolvidos, os papers apresentados, as discussões de alto
nível, a proposta de continuidade com um segundo encontro e as
propostas, já encaminhadas, de publicação, no Brasil e no exteri-
or, dos textos apresentados, estão a demonstrar a importância do
evento para a Arqueologia Latino-Americana e pode-se estar se-
guro que se abrem novas perspectivas para a História da Arqueo-
logia no continente.

AGRADECIMENTOS

Agradeço a todos os colegas mencionados do decorrer do texto, pois


sua colaboração foi imprescindível para o êxito do evento. Devo mencionar,
ainda, o apoio da FAPESP (processo 97/13975-5), IFCH-UNICAMP, Se-
cretaria da ABA, Cynthia de Ávila, Celso Perota e os demais organizadores
locais, em Vitória.

.
A IMPORTÂNCIA DA TEORIA ARQUEOLÓGICA
INTERNACIONAL PARA A ARQUEOLOGIA SUL-AMERICANA:
O CASO BRASILEIRO

Existe teoria arqueológica no Brasil? A resposta a esta ques-


tão depende, é claro, da definição do termo “teoria”. Embree (1989:
37) considera que “a Arqueologia histórica, em sentido amplo,
inclui a meta-Arqueologia e como a pesquisa substantiva inclui
metodologias de coleta de dados e, também, a análise da teorização
dos modelos explicativos”. A ausência, no Brasil, de postos ex-
plicitamente voltados para a metodologia ou a teoria arqueológi-
cas (Faria 1989:35) estaria a indicar que há uma falta de teoria na
Arqueologia Brasileira, como acontece em outros países (Kotsakis
1991:69; Thomas 1995). Além disso, é ainda muito comum des-
prezar artigos interpretativos como sendo “muito teóricos”
(MacDonald 1991:830; cf. Cooney 1995). A teoria é considerada,
às vezes, como “esotérica, subversiva, anárquica – algo que deve-
ria ser evitado por uma questão de higiene intelectual” (Harlan
1989:583).
É possível, no entanto, qualquer trabalho de campo sem teo-
ria? É possível separar ação (poesis) e teoria (praxis) (Croce, s.d.:
41)? Não é difícil concluir que não há meio de praticar uma disci-
plina acadêmica, como a Arqueologia, sem quadros analíticos. A
teoria nada mais é do que “visão, contemplação”, theoria signifi-
cando, em primeiro lugar, a observação visual (thea) e, com con-
seqüência, “especulação”, um “conjunto de idéias”. Se conside-
rarmos que “a História não é um grupo de fatos sobre o passado
mas, ao contrário, um conjunto de idéias sobre o passado, no pre-
sente” (Wright & Mazel 1991: 59), então torna-se claro que não
há prática arqueológica sem fundo teórico. É precisamente nestes
termos que podemos dizer que há teoria arqueológica no Brasil,
não como um quadro aberto e explícito de assertivas sobre a
44 PEDRO PAULO A. FUNARI

ontologia do conhecimento arqueológico, mas como uma herme-


nêutica subjacente que informa tanto atividades de campo e seus
relatos, como artigos em geral. Desentranhar esta perspectiva te-
órica das atividades e discursos arqueológicos é, entretanto, uma
tarefa ingrata, considerando as múltiplas mediações que ligam as
atividades empíricas aos seus suportes conceituais. Além disso,
generalizações sobre disciplinas acadêmicas exigem alguma ou-
sadia, pois novos materiais ou descobertas, ainda que de campos
específicos, podem invalidá-las e, assim, a melhor maneira de
evitar incompreensões, consiste em explicitar os critérios usados
para estudar o tema. Desta maneira, é possível entender os liames
propostos, neste trabalho, entre o explícito e o implícito na
Arqueologia brasileira.
O conhecimento, como uma relação social entre pessoas e
entre pessoas e coisas (Tilley 1992: 176), é um processo histórico
e político de interpretação e ação no mundo. A Arqueologia, como
disciplina acadêmica, não está livre de elos sociais e políticos
(Champion 1991: 144) e os arqueólogos estão, sempre, trabalhando
sob a pressão das questões levantadas por suas próprias épocas e
sociedades (Burguière 1982: 437). “Qualquer tentativa de com-
preender a presente configuração da disciplina deve, portanto, ser
fundada em uma análise sistemática e empírica de sua História e
de sua prática” (Pinsky 1989: 91) e, neste processo, o arqueólogo
necessita reconhecer, em detalhe, a extensão das circunstâncias e
padrões, sempre em mudança, em diferentes contextos históricos
(Burckhardt 1958: xi). Todas os modos de prática e escrita arque-
ológicas entram em contato com diversos grupos sociais, em épo-
cas diferentes e em constante mutação (La Capra 1992: 439). Isto
significa que se tem que estudar, por um lado, a História da soci-
edade brasileira como um todo (e, em particular, sua História in-
telectual) e, por outro, o contexto internacional interagente com a
sociedade brasileira. Não se pretende, aqui, apresentar um relato
exaustivo, a respeito da Arqueologia Brasileira mas, ao contrário,
partem-se de dois critérios explícitos: mencionam-se, apenas e
tão somente, aqueles trabalhos que tenham alguma preocupação
teórico-metodológico, cujo impacto possa ser avaliado por publi-
cações. Por isso mesmo, a simples introdução de autores estran-
ARQUEOLOGIA E PATRIMÔNIO 45

geiros em cursos, ainda que possa ter sido importante para a aber-
tura de horizontes para diversos pesquisadores, não representa
produção própria. Nesta ocasião, não tratarei da período pré-
formativo, pré-disciplinar da Arqueologia no Brasil, até a década
de 1950 (tratado em Funari 1995a), focalizando os desenvolvi-
mentos teóricos desde sua introdução como disciplina acadêmi-
ca, nos últimos quarenta anos.
A Arqueologia, desde o século passado, havia sido explora-
da por estudiosos, em geral ligados aos Museu Nacional do Rio
de Janeiro, Museu Histórico Nacional e Museu Paulista. Enquanto
trabalhos empíricos eram levados adiante por diretores de mu-
seus sob os auspícios de um sistema de patrocínio de elite, o
humanista Paulo Duarte estava no exílio por sua oposição ao Es-
tado Novo e, ao retornar, introduziu a Arqueologia como discipli-
na acadêmica (De Blasis & Piedade 1991: 167) e seu papel como
defensor do patrimônio arqueológico estava em claro contraste
com o padrão tradicional predominante. Seu humanismo basea-
va-se em uma abordagem ética, para com a sociedade e, por isso,
pôde propor duas medidas revolucionárias: o desenvolvimento de
instituições arqueológicas acadêmicas e a proteção do patrimônio.
Os diretores de museus e os arqueólogos tradicionais, ligados aos
sistema de compadrio dominante no país, nunca iriam propor tais
medidas, que, inevitavelmente, desafiavam o nepotismo e as rela-
ções de clientela, infensos ao mérito e aos direitos igualitários
(Da Matta 1991b: 399). A democracia propugnada por Duarte,
baseado no mérito, era, pois, estranha à sociedade hierarquizada
nacional; seu humanismo, de estilo francês, era o suficiente para
romper com práticas patronais arbitrárias de longa tradição (Funari
1992a: 8).
A intervenção militar de abril de 1964 (Cammack 1991: 35)
marcou um período não apenas de repressão generalizada, como
de reforço do clientelismo e do compadrio, agora organizado por
um regime de força. Logo após o golpe, um acordo foi firmado
entre a United States Agency for Inter-American Development e o
Ministério da Educação e Cultura do Brasil (Funari 1996e), que
gerou a reorganização de todo o sistema universitário nacional
46 PEDRO PAULO A. FUNARI

(Sebe 1984: 72), sob a égide da ideologia de “segurança nacio-


nal” (Ortiz 1985: 85). A ação dos Estados Unidos era o resultado
do fato que “por toda a comunidade acadêmica norte-americana,
esforços foram envidados para mobilizar o Ocidente, em uma luta
ideológica global, enquanto, ao mesmo tempo, esposava-se uma
objetividade desinteressada, como um dos valores e instituições
característicos deste mesmo Ocidente” (Novick 1988: 16;
Klappenber 1989: 1014). Esta abordagem positivista estava por
detrás das atividades de alguns arqueólogos americanos ligados
ao establishment americano (Roosevelt 1991: 106) e aos milita-
res sul-americanos.
Logo depois do golpe, aqui estiveram Clifford Evans e Betty
Meggers e, já em outubro de 1964, organizaram o que chamaram
“um seminário intensivo para ensinar teoria e metodologia arque-
ológicas, classificicação e interpretação cerâmica” para pupilos
brasileiros (Evans 1967: 7). Imediatamente após o seminário,
Evans e Meggers usaram o mês de novembro de 1964 para viajar
por onze Estados brasileiros, visitando reitores e diretores de
museus, agora afinados com o novo regime de força. Um
positivismo ingênuo estava no centro da sua abordagem arqueo-
lógica. Meggers (1979: 13) ensinou e treinou uma geração de pra-
ticantes brasileiros sob a bandeira da objetividade em busca dos
fatos: “espero que as pessoas entenderão que a verdade é mais
interessante do que a ficção”.
A Arqueologia, como ciência experimental (Miller 1975: 7),
foi interpretada como estranha às questões históricas, em claro
contraste com as Humanidades. Este tipo de empirismo contrapu-
nha-se à abordagem humanista proposta por Paulo Duarte, acusa-
da, pelos empiristas, de ser algo alheio à cultura nacional. Este
empirismo anti-histórico, importado dos Estados Unidos, foi in-
troduzido em uma sociedade completamente diversa da america-
na, na qual o empirismo, a competição, os direitos individuais e o
capitalismo, dentro e fora da academia, constituem um quadro
cultural consistente. O empirismo, no Brasil, serviria a outros pro-
pósitos. O sistema social brasileiro baseia-se em princípios não-
capitalistas (Faoro 1976: 736), como a hierarquia (Da Matta 1980:
16), o compadrio (Leal 1949: 23; Telarolli 1977: 16), o nepotismo
ARQUEOLOGIA E PATRIMÔNIO 47

(Da Matta 1991a: 14), o amigismo, o familismo e o favor (S.


Schwartz 1988: 237). Desde o período colonial, amizades (Pastore
1991: 12), clientelas, ideologia corporativa e paternalismo têm
sido elementos centrais da vida social brasileira (Lara 1988: 110):
“o favor é nossa mediação quase universal” (Schwartz 1988: 76).
Vianna (1987: 13) estava propenso a definir este sistema como
feudal. “No Brasil, graças a raízes históricas profundas, pessoas
indicadas são os governantes: as pessoas no poder indicam paren-
tes e amigos. Educação, competência e qualidade são critérios
estranhos à nossa cultura de privilégio” (Castro 1991: 2). Há, pois,
um claro desequilíbrio entre os princípios capitalistas, individua-
listas, por detrás do positivismo, nos Estados Unidos, e a mesma
abordagem, quando aplicada em um contexto social baseado em
valores não-igualitários e clientelísticos. Isto fica evidente nas
Arqueologias dos dois países. O principal objetivo do trabalho de
campo empírico consiste em coletar artefatos e classificá-los. Esta
abordagem considera os depósitos dos museus como contas ban-
cárias: devem ser preenchidas com dados (dinheiro) recolhidos
pelo estudioso (ou capitalista). A evidência coletada pelos arque-
ólogos deveria ser classificada e transformada em fatos e núme-
ros (cf. Shor 1986: 422). Isto é o que almejam os empiristas, nos
Estados Unidos, e podem ser muito bem sucedidos, em seus pró-
prios termos. Contudo, este não é o caso do Brasil. O objetivo de
espalhar trabalhadores de campo por todo o país, coletando arte-
fatos em grande quantidade, armazenando-os em museus, consti-
tuindo corpora que seriam, ao final, classificados como matéria
prima, não foi completado. Porquê?
Desde a década de 1960, os brasileiros foram treinados, pe-
los empiristas americanos, como trabalhadores de campo, sob a
égide de um determinismo ecológico não-histórico.
“Seus métodos de escavação e análise misturava materiais de
períodos diferentes, artificialmente comprimindo a seqüência ar-
queológica. Esta abordagem norte-americana, entretanto, influ-
enciou, de maneira decisiva, os estudiosos brasileiros, graças aos
acordos entre instituições brasileiras e americanas e ao estabele-
cimento de uma rede de colegas e alunos” (Roosevelt 1991: 107;
ênfase acrescentada).
48 PEDRO PAULO A. FUNARI

Este grupo de praticantes não se desenvolveu, como seria o


caso em outros lugares, como um simples “feudo acadêmico”
(Levine 1992: 218) mas, em uma sociedade clientelística, como a
brasileira, e sob direto comando autocrático da ditadura, este gru-
po tornou-se o único legítimo. Passaram a perseguir ou impedir
as atividades daqueles que não concordavam com a abordagem
empirista ecológica e com sua organização e ponto de vista poli-
ticamente despótico (Chaui 1992: 6). Duarte e outros foram ex-
pulsos da vida universitária, o projeto humanista foi eliminado no
nascedouro e o establishment arqueológico, que estava sendo cri-
ado, foi dominado por um grupo de empiristas autoritários. A pró-
pria cassação de Paulo Duarte, pela ditadura, não deixou de re-
presentar um episódio paradigmático, pois o duro golpe ao proje-
to acadêmico foi acompanhado da tentativa de destruição do Ins-
tituto de Pré-História, por Duarte fundado, pois “o conceito de
Pré-História é inaplicável ao caso americano”, segundo um dos
beneficiários daquele período de exceção, Ulpiano Toledo Bezer-
ra de Meneses (Duarte 1994: 176). À inexistência da Pré-Histó-
ria, propunha-se que “a Arqueologia, por sua natureza de ciência
auxiliar da História, está longe, bem longe, de ser um fim em si
mesmo”, nas palavras do mesmo autor (Meneses 1965: 22), o que
inviabilizaria qualquer desenvolvimento, seja da Pré-História, seja
da Arqueologia.
Este grupo formou uma confraria (Meggers 1992) que pas-
saria a controlar escavações, financiamentos, publicações, postos
arqueológicos e em museus, e, não menos importante, a limitar a
difusão de perspectivas diversas. Mesmo estudiosos americanos,
que tivessem posições interpretativas diferentes, históricas, foram
sistematicamente impedidos de trabalhar. Como ressaltou Anna
Roosevelt:
“Ainda que muitos estudiosos tivessem encontrado evidências <em
oposição à abordagem ecológica>, as pessoas da escola determi-
nista, com freqüência, não permitiam a publicação de descober-
tas dissonantes, como “datações muito antigas” ou assentamento
pré-históricos complexos” (Roosevelt 1991: 107).
ARQUEOLOGIA E PATRIMÔNIO 49

A constituição de um grupo que tentava tudo controlar ex-


plica porque o empirismo, no Brasil, não conseguiu atingir seus
próprios objetivos de coletar dados, estabelecer corpora e, final-
mente, classificar o material em larga escala. Como é comum em
sistemas autoritários, não era possível desenvolver discursos e
práticas alternativas e não havia, pois, qualquer necessidade, para
aqueles que controlavam o establishment, de serem competentes
em seus próprios termos epistemológicos. Graças à ditadura, foi
possível reestabelecer práticas clientelísticas por meio do poder
arbitrário, usando o empirismo, antes de mais nada, como uma
justificativa de poder. Este período foi descrito, por um de seus
ativos participantes, Tânia Andrade Lima (1998: 25) como “uma
fase muito dinâmica, com muito trabalho de campo”, o que está a
sugerir que o isolamento não fazia os perceber que o fim do mo-
nopólio discursivo já chegara.
De fato, Walter Neves (1988: 245), logo depois da restaura-
ção do regime civil, reconhecia que “no Brasil, salvo raras
excepções, continuamos a fazer levantamentos oportunísticos e
escavações injustificáveis e as instituições de ensino, lamentavel-
mente, perpetuam o modelo epistemológico, ainda vigente na
Arqueologia no Brasil”. A maioria das atividades e publicações
arqueológicas continuavam a ser meramente descritivas
(Scatamacchia 1984: 198). No entanto, a abertura política torna-
ria possível a emergência de uma pluralidade de abordagens. Ape-
sar da cassação, o legado de Paulo Duarte pode ser identificado
na influência francesa (Laming Emperaire, Emperaire, Prous,
Vialou, Guidon, entre outros), cuja importância, como alternativa
ao modelo dominante, naqueles anos difíceis, não pode ser subes-
timada. Papel particularmente relevante foi exercido pela Arque-
ologia Clássica (Funari 1997), ao inserir a Arqueologia brasileira
no contexto internacional. Pela primeira vez, arqueólogos brasi-
leiros publicavam livros no exterior (e.g. Funari 1992b; 1996b;
Carreras & Funari 1998), estabeleciam contatos e intercâmbios,
livravam a Arqueologia dos esquemas clientelísticos, formavam
pesquisadores independentes e ao corrente da Arqueologia Mun-
dial. Livros atualizados de Arqueologia, produzidos no Brasil,
chegaram às escolas, com autores como Maria Beatriz Florenzano
50 PEDRO PAULO A. FUNARI

(1997). Assim, destaque-se a publicação do primeiro manual para


escolas primárias sobre a Pré-História brasileira, escrito pelo ar-
queólogo clássico Norberto Luiz Guarinello (1994), cuja exce-
lência levou a que fosse adotado pelo Ministério de Educação do
Brasil, sendo distribuído aos milhares e constituindo-se no livro
mais vendido sobre Arqueologia Pré-Histórica, em toda a Histó-
ria (cf. Funari 1996 ; Faversani 1997). Outros arqueólogos, traba-
lhando com temas pré-históricos, como Eduardo Góes Neves e
Walter Alves Neves, e históricos (cf. Funari, Jones & Hall 1998 a
e b), passaram a inserir-se na ciência internacional, afastando-se
do provincianismo e do compadrio local. Diversas dissertações e
teses de Arqueologia foram desenvolvidas em São Paulo (USP e
UNICAMP), Rio Grande do Sul (UFRGS e PUCRS), Pernambuco
(UFPE) e Rio de Janeiro (UFRJ), assim como no exterior, ainda
que muito ainda esteja inédito e que poucos trabalhos se aventu-
rem a questionamentos teóricos mais amplos.
Mais recentemente, tem havido um interesse crescente na
teoria arqueológica, no Brasil, principalmente por parte das no-
vas gerações. A Arqueologia crítica, apresentada como uma críti-
ca da ideologia dominante no presente, que aparece como
normativa e ahistórica (Handsman & Leone 1989: 119), junta-
mente com a consciência pós-processual ou contextual da subje-
tividade da disciplina (Thomas 1990: 67), constituem temas em
discussão. Artigos, por exemplo, sobre o efeito do colonialismo e
do nacionalismo na Arqueologia africana (Rodrigues 1991), de-
monstram um interesse crescente pela Arqueologia mundial e pela
teoria arqueológica. Tal interesse reflete, também, uma maior aten-
ção prestada àqueles que têm formulado a teoria arqueológica in-
ternacional, sendo lidos, em particular, Binford, Courbin, Deetz,
Gardin, Hodder, Orser, Shanks, Tilley, Trigger, entre outros. Se-
guindo as idéias de Stephen (1989: 267) e Hodder (1991: 10),
mais atenção tem sido dada aos grupos subordinados (Trigger
1998: 16), por oposição ao culto às elites, como ainda propugnado
entre nós (e.g. Lima 1994) como os escravos (e.g. Guimarães 1992;
Funari 1996d), e esforços têm sido envidados para apoiá-los em
sua luta contra a marginalização. Isto explica o estudo dos índios
que viviam em Missões (Kern 1989: 112), a “História da resistên-
ARQUEOLOGIA E PATRIMÔNIO 51

cia à dominação” (Leone 1986: 431), da antigüidade (Guarinello


1989) ao período colonial (Funari 1991).
Também artigos têm sido publicados sobre a teoria arqueo-
lógica stricto sensu (e.g. Funari 1989; Kern 1991; Serra 1994;
Funari 1995a; 1995b; 1996 a; 1996f ; 1998a; 1998b). Multipli-
cam-se as publicações de fundo teórico, tratando de temas como
“Hipóteses sobre a origem e expansão dos tupis”, que mereceu
um dossiê na Revista de Antropologia da USP, a partir de um
texto de Francisco Noelli (1996), cujas hipóteses encontram suas
origens em trabalhos inéditos de José P. Brochado. Também o
dossiê sobre “Surgimento do homem na América”, com textos
interpretativos de Marta Lahr, Walter Neves, André Prous, entre
outros, demonstra as preocupações teórico-metodológicas em
curso. Ainda no estudo da Pré-História, as discussões sobre a
ocupação da Amazônia têm contado come estudos informados na
teoria arqueológica, como é o caso da obra de Eduardo Góes Ne-
ves e a inserção da Arqueologia brasileira no contexto internacio-
nal amplia-se, em especial com a participação de brasileiros nos
conselhos de revistas como Latin American Antiquity (Irmhild
Wüst), International Journal of Historical Archaeology e Materi-
al Culture (P.P. A Funari). No campo da Arqueologia Histórica, os
próprios rumos da disciplina têm sido debatidos, com decisiva
participação brasileira, com a organização de uma sesssão em WAC
3 e de um volume de One World Archaeology (Funari, Jones &
Hall 1998 a e b) em um contexto mundial (Funari 1996c; 1998 a;
Funari, Jones & Hall 1998 a e b), superando, assim, o
provincianismo e o culto às elites, prevalecente em produções
paroquiais. Também a realização do Simpósio Internacional so-
bre Teoria e Método em Arqueologia, no Museu de Arqueologia e
Etnologia da USP, em agosto de 1995, mostra a crescente atenção
prestada à epistemologia arqueológica.
Pode concluir-se que o desenvolvimento da teoria arqueoló-
gica, importante como pode ser na Europa e na América do Norte,
é algo absolutamente fundamental para o futuro da Arqueologia
no Brasil. No contexto de uma Arqueologia ainda dominada por
relações de compadrio, muitas vezes infensa, até mesmo, ao
52 PEDRO PAULO A. FUNARI

empirismo que busca seguir padrões internacionais de qualidade,


a teoria tem um papel crucial em impulsionar os arqueólogos ao
pensamento crítico, à interpretação e análise e, não menos impor-
tante, a desafiar as idéias e práticas estabelecidas. A despeito da
reação daqueles que usufruem de um poder burocrático, sem fun-
damentação em prestígio científico reconhecido fora da provín-
cia, sua tentativa de suprimir as vozes discordantes está fadada ao
fracasso, em uma sociedade pluralista. Por meio da leitura da te-
oria arqueológica, alguns arqueólogos brasileiros têm sido capa-
zes de confrontar dificuldades que, de outra forma, seriam insu-
peráveis. A teoria arqueológica, assim, ajuda a transformar a Ar-
queologia brasileira de uma maneira vital e, ainda que refletir so-
bre ela não seja suficiente, é algo, entretanto, indispensável para
mudá-la.

AGRADECIMENTOS

Este texto representa uma reelaboração de palestra, apresentada em


Southampton, em 1992, no encontro anual da Theoretical Archaeology Group
(EuroTAG), em sessão organizada por Peter Ucko e publicada em Theory in
Archaeoloy, A world perspective, Londres, Routledge, 1995, 236-250. Agra-
deço aos seguintes colegas, que forneceram artigos (alguns inéditos) e me
ajudaram de diversam maneira: Fábio Faversani, Martin Hall, Siân Jones,
Carlos Magno Guimarães, Arno Álvarez Kern, Mark P. Leone, Eduardo
Góes Neves, Walter Alves Neves, Francisco Noelli, Charles E. Orser, Jr.,
Anna C. Roosevelt, Bruce G. Trigger, Peter Ucko. Este trabalho contou com
o apoio do World Archaeological Congress , FAPESP e CAPES

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OS DESAFIOS DA DESTRUIÇÃO E CONSERVAÇÃO DO
PATRIMÓNIO CULTURAL NO BRASIL

Os desafios da destruição e conservação do património cul-


tural no Brasil são, provavelmente, pouco conhecidos do público
académico português e este artigo visa apresentar alguns aspectos
dessas questões aos estudiosos lusitanos. Antes de discutir a ex-
periência brasileira, cabe explorar os diferentes sentidos ligados
ao conceito mesmo de “património cultural”. As línguas români-
cas usam termos derivadas do latim patrimonium para se referir à
“propriedade herdada do pai ou dos antepassados, uma herança”.
Os alemães usam Denkmalpflege, “o cuidado dos monumentos,
daquilo que nos faz pensar”, enquanto o inglês adotou heritage,
na origem restrito “àquilo que foi ou pode ser herdado” mas que,
pelo mesmo processo de generalização que afectou as línguas ro-
mânicas e seu uso dos derivados de patrimonium, também passou
a ser usado como uma referência aos monumentos herdados das
gerações anteriores. Em todas estas expressões, há sempre uma
referência à lembrança, moneo (em latim, “levar a pensar”, pre-
sente tanto em patrimonium como em monumentum), Denkmal
(em alemão, denken significa “pensar’) e aos antepassados, im-
plícitos na “herança”. Ao lado destes termos subjectivos e afec-
tivos, que ligam as pessoas aos seus reais ou supostos precurso-
res, há, também, uma definição mais económica e jurídica, “pro-
priedade cultural”, comum nas línguas românicas (cf. em italia-
no, beni culturali), o que implica um liame menos pessoal entre o
monumento e a sociedade, de tal forma que pode ser considerada
uma “propriedade”. Como a própria definição de “propriedade” é
política, “a propriedade cultural é sempre uma questão política,
não teórica”, ressaltava Carandini (1979: 234).
Há não muito tempo, Joachim Hermann (1989: 36) sugeriu
que “uma consciência histórica é estreitamente relacionada com
os monumentos arqueológicos e arquitectónicos e que tais monu-
60 PEDRO PAULO A. FUNARI

mentos constituem importantes marcos na transmissão do conhe-


cimento, da compreensão e da consciência históricos”. Não há
identidade sem memória, como diz uma canção catalã: “aqueles
que perdem suas origens, perdem sua identidade também”(Ballart
1997: 43). Os monumentos históricos e os restos arqueológicos
são importantes portadores de mensagens e, por sua própria natu-
reza como cultura material, são usados pelos actores sociais para
produzir significado, em especial ao materializar conceitos como
identidade nacional e diferença étnica. Deveríamos, entretanto,
procurar encarar estes artefactos como socialmente construídos e
contestados, em termos culturais, antes que como portadores de
significados inerentes e ahistóricos, inspiradores, pois, de refle-
xões, mais do que de admiração (Potter s.d.). Uma abordagem
antropológica do próprio património cultural ajuda a desmascarar
a manipulação do passado (Haas 1996). A experiência brasileira,
a esse respeito, é muito clara: a manipulação oficial do passado,
incluindo-se o gerenciamento do património, é, de forma cons-
tante, reinterpretada pelo povo. Como resumiu António Augusto
Arantes (1990: 4): “o património brasileiro preservado oficial-
mente mostra um país distante e estrangeiro, apenas acessível por
um lado, não fosse o fato de que os grupos sociais o reelaboram
de maneira simbólica”. Esses estratos são os excluídos do poder
e, assim, da preservação do património.
No Brasil, houve, sempre, uma falta de interesse, por parte
dos arqueólogos, em interagir com a sociedade em geral – como é
o caso, na verdade, alhures na América Latina, como nota Gnecco
(1995: 19) – e o património foi deixado para “escritores, arquitectos
e artistas, os verdadeiros descobridores do património cultural no
Brasil, não historiadores ou arqueólogos” (Munari 1995). A pre-
servação dos edifícios de igrejas coloniais poderia ser considera-
do, no Brasil e no resto da América Latina (García 1995: 42),
como o mais antigo manejo patrimonial. É interessante notar que
a importância da Igreja Católica na colonização ibérica do Novo
Mundo explica a escolha estratégica de se preservar esses edifíci-
os, sejam templos construídos sobre os restos de estruturas indí-
genas (cf. o exemplo maia, em Alfonso & García s.d.: 5), sejam as
igrejas nas colinas que dominavam a paisagem, como foi o caso
ARQUEOLOGIA E PATRIMÔNIO 61

na América portuguesa. Contudo, nem mesmo as igrejas foram


bem preservadas no Brasil, com importantes excepções, e isto
pode ser explicado pelo anseio das elites, nos últimos cem anos,
de “progresso”, não por acaso um dos dois termos na bandeira
nacional surgida da Proclamação da República, em 1889, “ordem
e progresso”. Desde então, o país tem buscado a modernidade e
qualquer edifício moderno é considerado melhor do que um anti-
go. Houve muitas razões para mudar-se a capital do Rio de Janei-
ro para uma cidade criada ex nouo, Brasília, em 1961, mas, quais-
quer que tenham sido os motivos económicos, sociais ou
geopolíticos, apenas foi possível porque havia um estado d’alma
favorável à modernidade. A melhor imagem da sociedade brasi-
leira não deveria ser os edifícios históricos do Rio de Janeiro, mas
uma cidade moderníssima e mesmo os mais humildes sertanejos
deveriam preterir seu património, em benefício de uma cidade
sem passado (Funari, a sair).
Talvez o exemplo mais claro dessa luta contra a lembrança
materializada seja São Paulo, essa megalópolis, cujo crescimento
não encontra paralelos. Ainda que fundada em 1554, continuou a
ser uma cidadezinha até fins dos século XIX, até tornar-se, nestes
últimos cem anos, a maior cidade do hemisfério sul. Nesse pro-
cesso, restos antigos sofreram constantes degradações ideológi-
cas e físicas, sendo construídos novos edifícios para criar uma
cidade completamente nova. Os edifícios históricos, se assim se
pode falar, são a Catedral e o Parque Modernista do Ibirapuera,
planejado por Niemeyer, ambos inaugurados em 1954 para come-
morar os quatrocentos anos da cidade. Os principais prédios pú-
blicos, como o Palácio dos Bandeirantes, sede do governo do Es-
tado de São Paulo ou o Palácio Nove de Julho, que abriga a As-
sembléia Legislativa do Estado, são, também, muito recentes e a
mais importante avenida, a Paulista, fundada em fins do século
XIX como um bastião de mansões aristocráticas, foi totalmente
remodelada na década de 1970. Mesmo em cidades coloniais, al-
gumas delas bem conhecidas no exterior, como Ouro Preto, de-
clarada Património da Humanidade, a modernidade está sempre
presente, por desejo de seus habitantes. Guiomar de Grammont
(1998: 3) descreve esta situação com palavras fortes:
62 PEDRO PAULO A. FUNARI

“A distância entre as autoridades e o povo é a mesma daquela


entre a sociedade civil e o passado, devido à falta de informação,
ainda que os habitantes das cidades coloniais dependam do turis-
mo para sua própria sobrevivência. Quem são os maiores inimi-
gos da preservação dessas cidades coloniais? Em primeiro lugar,
a própria administração municipal, não afectada pelos problemas
sociais e ignorante das questões culturais em geral mas, às vezes,
os moradores também, inconscientes da importância dos monu-
mentos, contribuem para a deformação do quadro urbano. Novas
janelas, antenas parabólicas, garagens, telhados e casas inteiras
bastam para transformar uma cidade colonial em uma cidade
moderna, uma mera sombra de uma antiga cidade colonial, como
é o caso de tantas delas”.

É fácil entender que as pessoas estejam interessadas em ter


acesso à infraestrutura moderna mas, como notam os europeus
quando visitam as cidades coloniais, se os edifícios medievais
podem ser completamente reaparelhados, sem danificar os prédi-
os, não haveria porque não fazê-lo no Brasil. Outra ameaça ao
património arqueológico das cidades coloniais é o roubo, já que
os ladrões são muito atuantes, havendo mais de quinhentas igre-
jas e museus locais coloniais (Rocha 1997; cf. um caso semelhan-
te na República Tcheca, Calabresi 1998). Um problema mais pro-
saico é a deterioração dos monumentos devido à falta de manu-
tenção e abrigo, mesmo no interior de edifícios (Lira 1997; Se-
bastião 1998). Estes três perigos para a manutenção dos bens cul-
turais, aparentemente não relacionados, revelam uma causa
subjacente comum: a alienação da população, o divórcio entre o
povo e as autoridades, a distância que separa as preocupações
corriqueiras e o ethos e políticas oficiais. Houve uma “política de
património que preservou a casa-grande, as igrejas barrocas, os
fortes militares, as câmaras e cadeias como as referências para a
construção de nossa identidade histórica e cultural e que relegou
ao esquecimento as senzalas, as favelas e os bairros operários”
(Fernandes 1993: 275).
Para o povo, há, pois, um sentimento de alienação, como se
sua própria cultura não fosse, de modo algum, relevante ou digna
de atenção. Tradicionalmente, havia dois tipos de casa no Brasil:
ARQUEOLOGIA E PATRIMÔNIO 63

as moradas de dois ou mais andares, chamados de “sobrados”,


onde vivia a elite, e todas as outras formas de habitação, como as
“casas” e “casebres”, “mocambos” (derivado do quimbundo,
mukambu, “fileira”), “senzalas” (locais da escravaria), “favelas”
(tugúrios) (Reis Filho 1978: 28). O resultado de uma sociedade
baseada na escravidão, desde o início houve sempre dois grupos
de pessoas no país, os poderosos, com sua cultura material
esplendorosa, cuja memória e monumentos são dignos de reve-
rência e preservação e os vestígios esquálidos dos subalternos,
dignos de desdém e desprezo. Como enfatizou o grande sociólo-
go brasileiro, Octávio Ianni (1988: 83), o que se considera patri-
mónio é a Arquitetura, a música, os quadros, a pintura e tudo o
mais associado às famílias aristocráticas e à camada superior em
geral. A Catedral, frequentada pela “gente de bem”, deve ser pre-
servada, enquanto a Igreja de São Benedito, dos “pretos da terra”,
não é protegida e é, com frequência, abandonada. Os monumen-
tos considerados como património pelas instituições oficiais, de
acordo com Eunice Durham (1984: 33), são aqueles relacionados
à “história das classes dominantes, os monumentos preservados
são aqueles associados aos feitos e à produção cultural dessas
classes dominantes. A História dos dominados é raramente pre-
servada”.
Devemos concordar com Byrne (1991: 275) quando afirma
que é comum que os grupos dominantes usem seu poder para
promover seu próprio património, minimizando ou mesmo ne-
gando a importância dos grupos subordinados, ao forjar uma iden-
tidade nacional à sua própria imagem, mas o grau de separação
entre os setores superiores e inferiores da sociedade não é, em
geral, tão marcado quanto no Brasil. Neste contexto, não é de
surpreender que o povo não preste muita atenção à protecção cul-
tural, sentida como se fora estrangeira, não relacionada à sua rea-
lidade. Há uma expressão no português do Brasil que demonstra,
com clareza, esta alienação das classes: “eles, que são brancos,
que se entendam”. Note-se que esta frase é usada também por
brancos para se referirem às autoridades em geral. A mesma dis-
tância afecta o património, pois os edifícios coloniais são consi-
derados como “problema deles, não nosso”. Poderíamos dizer,
64 PEDRO PAULO A. FUNARI

assim, que a busca da modernidade, mesmo sem levar em conta a


destruição dos bens culturais, poderia bem ser interpretada como
um tipo de luta não apenas por melhores condições de vida, mas
contra a própria lembrança do sofrimento secular dos subalter-
nos.
O património arqueológico stricto sensu poderia deixar de
ser afectado por esta falta de interesse na preservação da cultura
material da elite, na medida em que a Arqueologia produz evi-
dência de indígenas e dos humildes em geral (cf. Trigger 1998:
16). Entretanto, há muitos factores que inibem um engajamento
activo da gente comum na protecção patrimonial. Em primeiro
lugar, há falta de informação e de educação formal sobre o tema.
Indígenas, africanos e pobres são raramente mencionados nas li-
ções de História e, na maioria das vezes, as poucas referências
são negativas, ao serem representados como preguiçosos, uma
massa de servos atrasados incapazes de alcançar a civilização. Os
índios eram considerados ferozes inimigos, dominados por sécu-
los e isso pleno iure. Em famoso debate, no início do século XX,
Von Ihering, então diretor do Museu Paulista, propôs o extermí-
nio dos índios Kaingangs que, segundo ele, estavam a atravancar
o progresso do país (Schwarcz 1989: 59) e, mesmo que tenha sido
desafiado por outros intelectuais, principalmente do Museu Nacio-
nal do Rio de Janeiro, sua atitude era e ainda é muito sintomática
da baixa estima dos indígenas, mesmo na academia. Basta lem-
brar que o material indígena proveniente do oeste do Estado de
São Paulo, coletado há oitenta anos, à época de Von Ihering, apenas
agora está sendo exposto, graças a um projecto inovador da Uni-
versidade de São Paulo (Cruz 1997): antes tarde do que nunca!
Os negros, por sua parte, foram considerados como bárbaros
ameaçadores ou, como disse, há pouco, um eminente e renomado
historiador brasileiro, Evaldo Cabral de Mello (Leite 1996): “Não
é possível negar o que era o Quilombo dos Palmares: era uma
república negra, foi destruída e eu prefiro, para ser franco, que
assim tenha sido. Por uma razão muito simples. Se Palmares ti-
vesse sobrevivido, teríamos no Brasil um Bantustão, um Estado
independente e sem sentido”. Assim, um importante historiador
ARQUEOLOGIA E PATRIMÔNIO 65

ainda se sente ameaçado pelos negros e parece mirar-se em Catão:


delenda Palmares! Ser capaz de dizer tais disparates ex cathedra
revela muito sobre a doutrinação, cheia de preconceitos que, de
uma outra ou de outra maneira, acaba por atingir o próprio povo
(Funari 1996a: 150 et passim).
Por fim, mas não menos importante, há uma falta de comu-
nicação entre o mundo académico, em particular a comunidade
arqueológica, e o povo. Os arqueólogos deveriam agir com a co-
munidade, não para ela (Rússio 1984: 60), dando ao povo uma
melhor compreensão do passado e do mundo (Hudson 1994: 55).
Para atingir esses objectivos, pesquisas de largo fôlego não deve-
riam levar à diversão (Durrans 1992: 13), mas à integração de
processos, como é o resgate de edifícios históricos e a escavação
de sítios arqueológicos, e produtos, como a publicização do tra-
balho científico por meio de diferentes media (Merriman 1996:
382). Um bom exemplo é o destino de um sítio arqueológico par-
ticularmente importante no Brasil: o quilombo do século XVII,
conhecido como Palmares. Desde a década de 1970, começou-se
a suspeitar que o famoso quilombo, que resistiu por quase um
século ao sistema escravista, se localizava no interior do Estado
de Alagoas, na Serra da Barriga. Ativistas negros encontraram
restos de superfície na colina e conseguiram, depois de uma cam-
panha sem precedentes, fazer com que as autoridades declaras-
sem a área património nacional, em 1985. Contudo, devido ao
pouco caso do establishment arqueológico, controlado por forças
conservadoras ligados ao regime militar (Funari 1995b: 238-245),
o sítio ficou nas mãos das autoridades locais. O resultado foi o
uso de tractores para nivelar uma parte importante do sítio, o que
permitiu que as autoridades promovessem festas e, desta forma,
conseguissem o apoio eleitoral.
No início da década de 1990, quando o trabalho arqueológi-
co começou na Serra, um dos principais objectivos foi actuar com
a comunidade local e com os activistas negros, de modo que se
pudesse compreender o sítio e sua importância e se pudesse alme-
jar, para o lugar, mais do que o destino de local de festas. O poder
obtido por aqueles que estão, normalmente, excluídos dos pro-
66 PEDRO PAULO A. FUNARI

cessos de decisão (Jones 1993: 203) seria apenas possível por meio
da divulgação científica e na mídia da pesquisa arqueológica. Nos
últimos anos, os arqueólogos encarregados do estudo do sítio,
Charles E. Orser, Jr. (1992;1993;1994;1996) e este autor (Funari
1991;1994a;1995a;1995c;1996a;1996b;1996c;1996e;1996f; Orser
e Funari 1992) publicaram três livros, integral ou parcialmente,
dedicados a Palmares, mais de dez artigos científicos em revistas
académicas brasileiras e estrangeiras, assim como Scott Allen
(1997; 1999) produziu um mestrado e um doutorado sobre o sítio,
além de estudo de Michael Rowlands (1999), a partir do mesmo
sítio. Além disso, diversos artigos em revistas e jornais, tanto no
Brasil como no exterior, foram publicados. É provável que isto
não seja suficiente para mudar, de forma radical, a atitude
subjectiva dos brasileiros comuns para com essas evidências hu-
mildes de um quilombo, pois o contexto mais amplo no Brasil
não seria alterado por uma actividade académica isolada, mas,
mesmo assim, muito mais gente, agora, sabe da existência do sí-
tio e de sua possível importância.
De facto, quinze anos atrás, no final do regime militar,
Olympio Serra (1984:108) propôs uma interpretação ousada de
Palmares, como um possível modelo de sociedade não-autoritá-
ria: “deveria ser possível recriar a experiência de uma sociedade
pluralista, como era a República de Palmares. E se você olha esta
mais atraente fase da História do Brasil, vai ver que, em Palmares,
não havia apenas negros, mas também índios, judeus, em outras
palavras, todos os discriminados pela ordem colonial, todos que
eram diferentes”. Alguns anos depois, o trabalho arqueológico na
Serra da Barriga produziu evidência material que pode substanciar
esta abordagem humanista. Palmares deve seu crescimento, so-
brevivência e destruição ao papel que teve no comércio entre a
costa e o interior, pois os interesses mercantis e Palmares se opu-
nham àqueles da nobreza e dos latifundiários, que triunfaram, ao
fim, devido à força dos grupos nobiliárquicos, em Portugal e na
colónia. A destruição desta tendência pluralista explica a persis-
tência de um discurso racista e elitista, já mencionado, e o traba-
lho arqueológico de resgate da cultura material do quilombo, as-
sim como sua preservação como património cultural, passa a ter
ARQUEOLOGIA E PATRIMÔNIO 67

um papel não desprezável na promoção de uma consciência críti-


ca, dentro e fora do mundo académico.
No Brasil, o cuidado do património sempre esteve a cargo
da elite, cujas prioridades têm sido tanto míopes como ineficazes.
Edifícios de alto estilo arquitectónico, protegidos por lei, são dei-
xados nas mãos do mercado e o comércio ilegal de obras de arte é
amplamente tolerado. Recentemente, Christie’s vendeu uma obra-
prima de Aleijadinho (Blanco 1998a; 1998b). A imprensa está sem-
pre a noticiar a respeito, sem que se faça algo a respeito (cf. Leal
1998; Verzignasse 1998; Werneck 1998). Arqueólogos de boa cepa
não escondem sua ligação com antiquários (e.g. Lima 1995). A
gente comum sente-se alienada tanto em relação ao património
erudito quanto aos humildes vestígios arqueológicos, já que são
ensinados a desprezar índios, negros, mestiços, pobres, em outras
palavras, a si próprios e a seus antepassados. Neste contexto, a
tarefa académica a confrontar os arqueólogos e aqueles encarre-
gados do património, no Brasil, é particularmente complexa e
contraditória. Devemos lutar para preservar tanto o património
erudito, como popular, a fim de democratizar a informação e a
educação, em geral. Acima de tudo, devemos lutar para que o
povo assuma seu destino, para que tenha acesso ao conhecimen-
to, para que possamos trabalhar, como académicos e como cida-
dãos, com o povo e em seu interesse. Como cientistas, em primei-
ro lugar, deveríamos buscar o conhecimento crítico sobre nosso
património comum. E isto não é uma tarefa fácil.

AGRADECIMENTOS

Agradeço a diversos colegas, que contribuíram de diferentes manei-


ras, para que este artigo fosse escrito: Scott Allen, Jopep Ballart, Brian
Durrans, Juan Manuel García, Siân Jones, Vítor Oliveira Jorge, Robert
Layton, Charles E. Orser, Jr., Parker Potter, Michael Rowlands, Bruce G.
Trigger, Peter Ucko. A responsabilidade pelas idéias restringe-se ao autor.
Devo mencionar, ainda, os apoios institucionais do Congresso Mundial de
Arqueologia, Instituto de Arqueologia (Londres), CNPq, Universidade de
Barcelona e Universidade Estadual de Campinas.
68 PEDRO PAULO A. FUNARI

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CONTRADIÇÕES E ESQUECIMENTOS NAS IMAGENS DO
PASSADO1

Gostaria de começar agradecendo aos organizadores do


CEDEM da UNESP, em especial à Professora Anna Maria
Martínez Corrêa, o convite de participar, hoje, deste debate, em
torno do livro da Professora Marly Rodrigues, estudiosa que há
muito admiro e que tanto nos tem ensinado sobre o patrimônio
em nosso país. Começarei por citar algumas passagens do capítu-
lo conclusivo do volume e que servem como reflexões surgidas
ao cabo de um percurso, como se olhasse para a História do cui-
dado com o patrimônio com o devido distanciamento, já a enxer-
gar não mais as pedrinhas, mas o mosaico resultante dos docu-
mentos compulsados e criados pela autora, na forma de entrevis-
tas com os próceres administrativos. Assim, Marly Rodrigues des-
creve o primeiro período da instituição estadual de patrimônio, de
1969 a 1982, em pleno arbítrio de um regime de força:
“Em um período de ascensão do conservadorismo, como os treze
primeiros anos de atuação do Condephaat, a evocação do bandei-
rante e do grande cafeicultor atenderia quer à distinção de seg-
mentos paulistas, quer às abordagens comemorativas e cívicas da
cultura e da educação...Consagradores de um tempo passado,
entendido como um tempo sem contradições, as representações
bandeiristas, cafesistas e da colonização remetiam à nostalgia da
vida rural” (pp. 148-9, grifo acrescentado).

De fato, a autora remonta a Taunay as origens dessas ima-


gens idealizadas do passado e demonstra sua força no período de

1
Participação em Mesa-Redonda no CEDEM- UNESP, DOCUMENTAÇÃO E
MEMÓRIA,TESES EM DEBATE, “IMAGENS DO PASSADO, A INSTITUIÇÃO DO
PATRIMÔNIO EM SÃO PAULO, 1969/1987”, Marly Rodrigues, Condephaat e Faap, ex-
positora. Pedro Paulo Funari, UNICAMP, Walter Pires, SMC/SP, Debatedores. Célia R.
Camargo, UNESP. Moderadora. Dia 11 de setembro de 2001, às 18:00h. Praça da Sé, 108,
1º andar, tel 252 05 10. Discussão sobre o livro de Marly Rodrigues.
72 PEDRO PAULO A. FUNARI

ápice da ditadura, mas sua força ideológica consiste, como bem


ressalta Marly Rodrigues, na ênfase na ausência de contradições,
na visão idílica de um passado em que todos seríamos bandeiran-
tes. Tal concepção continua, quase vinte anos depois, a dominar
as representações materiais do nosso passado, como atesta, de
forma exuberante e indecente, o Museu Paulista, in primis, mas
não apenas, pois o inventário dos bens tombados continua a privi-
legiar essas imagines maiorum.
A restauração das liberdades formais viria a permitir a emer-
gência, no seio da sociedade, de múltiplas vozes e interesses o
que, em parte, se refletiu, na ampliação do universo cultural re-
presentado no patrimônio (Meneguello 2001). No entanto, Marly
Rodrigues conclui seu balanço de forma muito clara, ao enfatizar
as permanências seculares do discurso da exclusão. Segundo a
autora:
“Do conjunto de bens tombados no Estado de São Paulo, fazem
parte poucas memórias de negros, de imigrantes e de trabalhado-
res. Os remanescentes de sedes de fazenda e ricas mansões urba-
nas sombreiam os de senzala, dos cortiços e dos bairros operári-
os. Desse modo, o patrimônio paulista se apresenta não apenas
como perpetuador da memória, mas também do esquecimento
oficial. A exclusão atinge não apenas os excluídos, mas remete
toda sociedade à idealização do passado como um tempo des-
provido de contradições e diferenças. Além disso, não permite a
reflexão sobre as relações hoje vigentes na sociedade, dessa for-
ma reafirmando igualdades idealizadas e camuflando conflitos, o
que subtrai dos homens a idéia de possibilidade de transforma-
ção, razão mesma da memória, da retenção e socialização da ex-
periência vivida” (p. 151, grifo acrescentado).

Não se trata de particularidades, de idiossincrasias das polí-


ticas patrimoniais paulistas, mas de características intrínsecas do
preservacionismo nacional, inserido, portanto, em uma sociedade
secularmente patriarcal, hierarquizada, fundada na obediência,
infensa à liberdade e à cidadania ativas (cf. obras de Funari, nas
referências). Como enfatizou o grande sociólogo, Octávio Ianni
(1988: 83), o que se considera patrimônio é a Arquitetura, a músi-
ca, os quadros, a pintura e tudo o mais associado às famílias aris-
ARQUEOLOGIA E PATRIMÔNIO 73

tocráticas e à camada superior em geral. A Catedral, frequentada


pela “gente de bem”, deve ser preservada, enquanto a Igreja de
São Benedito, dos “pretos da terra”, não é protegida e é, com
frequência, abandonada. Os monumentos considerados como
patrimônio pelas instituições oficiais, de acordo com Eunice
Durham (1984: 33), são aqueles relacionados à “história das clas-
ses dominantes, os monumentos preservados são aqueles associa-
dos aos feitos e à produção cultural dessas classes dominantes. A
História dos dominados é raramente preservada”.
Marly Rodrigues nota que não se trata, apenas, de excluir as
maiorias e as minorias, mas de construir um passado homogêneo,
isento de tensões, contradições e variedade. A sociedade é vista
como um conjunto harmônico de pessoas, uma koinonia, no sen-
tido já proposto por Aristóteles (Politica 1252a7), a viver segundo
normas sociais compartilhadas e aceitas. Neste modelo normativo,
a dissensão, a variedade e a diferença aparecem como desvios da
norma, exceções que confirmariam a regra. Essa concepção de
sociedade cria o conceito de identidade partilhada, de caracterís-
ticas iguais (de onde se origina a própria palavra identidade, de
idem, “o mesmo”, em latim), como se todos, portanto, perten-
cêssemos à confraria. Este o conceito normativo de pertença,
belonging, tão caro aos modelos de sociedade sem conflitos, sem
diversidade.
Epur, como lembra Marly Rodrigues, a ausência de confli-
tos e diferenças não passa de idealização do passado, uma visão
idílica dos donos do poder, daqueles que controlam a preservação
da cultura material, acostumados com o exercício do mando e
com a expectativa de obediência por parte daqueles que devem
fazê-lo e que são, segundo sua ótica, simples néscios. Contudo,
Marly Rodrigues menciona contradições e diferenças que não se
sujeitam à lógica do discurso da homogeneização opressiva, pois
a resistência consiste em desconstruir, no sentido literal e figura-
do, essas memórias materiais repressoras. A alienação da popula-
ção e o divórcio entre o povo e as autoridades distanciam e sepa-
ram as preocupações corriqueiras das pessoas comuns e o ethos e
políticas oficiais. Houve uma “política de patrimônio que preser-
74 PEDRO PAULO A. FUNARI

vou a casa-grande, as igrejas barrocas, os fortes militares, as câ-


maras e cadeias como as referências para a construção de nossa
identidade histórica e cultural e que relegou ao esquecimento as
senzalas, as favelas e os bairros operários” (Fernandes 1993: 275).
Para o povo, há, pois, um sentimento de alienação, como se
sua própria cultura não fosse, de modo algum, relevante ou digna
de atenção. Tradicionalmente, havia dois tipos de casa no Brasil:
as moradas de dois ou mais andares, chamados de “sobrados”,
onde vivia a elite, e todas as outras formas de habitação, como as
“casas” e “casebres”, “mocambos” (derivado do quimbundo,
mukambu, “fileira”), “senzalas” (locais da escravaria), “favelas”
(tugúrios) (Reis Filho 1978: 28). O resultado de uma sociedade
baseada na escravidão, desde o início houve sempre dois grupos
de pessoas no país, os poderosos, com sua cultura material
esplendorosa, cuja memória e monumentos são dignos de reve-
rência e preservação e os vestígios esquálidos dos subalternos,
dignos de desdém e desprezo.
Marly Rodrigues considera que essa invenção de um passa-
do homogêneo e harmônico inibe a reflexão sobre as relações so-
ciais odiernas e tende a subtrair dos homens seu potencial de trans-
formação social. A preservação patrimonial insere-se, neste con-
texto, em uma luta pela preservação do status quo e das iniqüida-
des vigentes. Essas tentativas de imobilização dos agentes soci-
ais, entretanto, sempre encontram seus limites na própria práxis
social, que escapa aos ditames dos administradores da sociedade
e da gestão patrimonial. Marly Rodrigues conclui sua obra com
palavras fortes sobre a deotologia do preservacionismo, sobre sua
tarefa:
“A busca desse sentido (sc. de democratização das práticas pú-
blicas de proteção da memória social) implicaria o interesse em
favorecer a emergência de uma consciência política que absor-
vesse o presente como um tempo historicamente constituído, no
qual o passado é projetado como reflexão sobre a diferença, o
outro, o conflito e a resistência, elementos constituintes da
ininterrupta luta pelos direitos sociais” (p. 152).
ARQUEOLOGIA E PATRIMÔNIO 75

O preservacionista sempre tem uma pergunta em mente: pre-


servar para quê? Há alguns anos, quando de uma homenagem
póstuma ao obstinado defensor do patrimônio e humanista Paulo
Duarte – personagem do capítulo de Marly Rodrigues “Passado,
reflexo do presente”-, Maria Cristina Bruno (1991) evocava uma
bela imagem sobre a preservação:
“Patrimônio, para Paulo Duarte, era visto com muita abrangência.
Sinônimo de qualidade de vida, pesquisa e ensino, erudito e po-
pular, antigo e moderno e, acima de tudo, preservação para a in-
formação”.

Informação, criação de consciência, ação no mundo, trans-


formação, eis as metas da preservação (Funari 1992/3:18-19).
Seria, até mesmo, o caso de propor que se deva preservar para
transformar a sociedade, pois o conhecimento não é apanágio de
classe ou grupo e qualquer ação preservacionista pode levar à re-
flexão crítica. Abrir a cabeça, talvez a meta maior da preservação
(Hudson 1994: 55). A começar por uma política que se contrapo-
nha à alienação da moda e à descontextualização derivada da
mercantilização generalizada dos objetos e dos edifícios em nos-
sa sociedade pós-moderna (Durrans 1992: 14), que contribua para
a autonomia do público (aquilo que os ingleses tão bem definem
como empowerment, cf. Giroux & McLaren 1986: 238). O passa-
do, em forma de patrimônio material, serve ao presente (Luc 1986:
118).
A luta por direitos sociais, propugnada por Marly Rodrigues,
consiste em batalhar por um preservacionismo que dê conta das
contradições, dos conflitos, da heterogeneidade (cf. Rodrigues
2001: 17). Tal luta não se pode restringir à esfera dos órgãos de
patrimônio, pois são as forças sociais a permitir, em última ins-
tância, a contestação das exclusões já consolidadas. A ação con-
junta com os agentes constitui, pois, o meio privilegiado de ação
por uma preservação libertadora. O belo livro de Marly Rodrigues,
de forma muito sintomática, conclui-se com uma convocação à
ação, com um brado por uma política pluralista que contribua para
transformar nossa sociedade. Cabe a todos nós contribuirmos para
isso.
76 PEDRO PAULO A. FUNARI

AGRADECIMENTOS

Agradeço a Cristina Bruno, Brian Durrans, Octavio Ianni, Robert


Layton, Cristina Meneguello e Marly Rodrigues. Devo, ainda, mencionar o
apoio institucional do World Archaeological Congress. A responsabilidade
pelas idéais restringe-se ao autor.

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TEORIA E MÉTODOS NA ARQUEOLOGIA
CONTEMPORÂNEA: O CONTEXTO DA ARQUEOLOGIA
HISTÓRICA1

A Arqueologia possui diversas correntes teóricas, cujos


paradigmas epistemológicos não são, às vezes, bem conhecidos.
Neste contexto, procuro apresentar um quadro geral das posturas
mais recorrentes e relaciono essas abordagens à prática contem-
porânea da Arqueologia Histórica (Funari, Hall e Jones 1999, com
bibliografia sobre o tema).
A Arqueologia só pode ser entendida em seu contexto histó-
rico e social, como alertava Michael Shanks há algum tempo.
Desde seu surgimento, diversas teorias desenvolveram-se e, de
certa forma, todas elas continuam até hoje sendo utilizadas. Her-
deira do nacionalismo do século XIX, a Arqueologia tem no mo-
delo histórico-cultural sua teoria mais difundida. A partir da no-
ção de que cada nação seria composta de um povo (grupo étnico,
definido biologicamente), um território delimitado e um cultura
(entendida como língua e tradições sociais), formou-se o concei-
to de cultura arqueológica. Esta seria um conjunto de artefatos
semelhantes, de determinada época, e que representaria, portan-
to, um povo, com uma cultura definida e que ocupava um territó-
rio demarcado. Este modelo está calcado em suas origens
filológicas e históricas e surgiu no contexto da busca das origens
pré-históricas dos povos europeus, tendo surgido na Alemanha,
com Gustav Kossina, e se generalizado graças à genialidade de
Vere Gordon Childe. Childe retirou os pressupostos racistas do
modelo original e desenvolveu o conceito de cultura arqueológica,
acoplando-o ao evolucionismo materialista de origem marxista.

1
Considerações apresentadas em eventos acadêmicos sobre os campos conceituais na Arque-
ologia das sociedades históricas.
80 PEDRO PAULO A. FUNARI

O modelo histórico-cultural parte do pressuposto que a cul-


tura seja homogênea e que as tradições passem de geração a gera-
ção. Desta forma, seria possível tentar determinar os antepassa-
dos dos germanos ou dos guaranis. Este modelo, ainda que tenha
sofrido muitas críticas, como veremos, continuar a ser o mais uti-
lizado em Arqueologia, em suas múltiplas variantes e formas.
O primeiro assalto consistente a esse paradigma viria da-
queles que não praticavam a Arqueologia de cunho filológico e
histórico, à maneira européia. No contexto da Arqueologia antro-
pológica norte-americana, surgiu um movimento, na década de
1960, que se auto-denominava de New Archaeology ou Arqueolo-
gia Processual, capitaneada por Lewis Binford. Começou-se com
o grito de guerra de que “a Arqueologia é Antropologia ou não é
nada”, em claro desafio ao caráter histórico da Arqueologia histó-
rico-cultural. A História estaria em busca dos eventos e das cultu-
ras singulares, enquanto a Antropologia americana ressaltava que
haveria regularidades no comportamento humano. Buscavam-se,
pois, leis transculturais de comportamento. Partia-se do pressu-
posto que os homens maximizam os resultados e minimizam os
custos, em qualquer época e lugar. Assim, estudar o assentamento
humano há dez mil anos na Mesopotâmia ou na China deveria
partir dos mesmos pressupostos e pouco importavam as caracte-
rísticas históricas específicas. A Arqueologia processual refletia
bem uma visão capitalista do passado humano, privilegiando uma
interpretação materialista pouco preocupada com as diversidades
culturais. Surgida no contexto da Guerra Fria e tendo atingido seu
ápice na década de 1970, ela continua bastante difundida, ainda
que nunca tenha conseguido suplantar, em popularidade acadê-
mica, o modelo histórico-cultural.
A partir da década de 1980, começaram a surgir críticas mais
contundentes ao processualismo. Nas Ciências Humanas, em ge-
ral, difundia-se o pós-modernismo e as críticas à idéia de verdade
científica. A partir da noção de que as ciências são construções
discursivas, inseridas em contextos sociais, desmontou-se a lógica
do processualismo: os homens não foram sempre e em toda parte
capitalistas! Alguns, como Ian Hodder, começaram a ressaltar que
ARQUEOLOGIA E PATRIMÔNIO 81

havia uma dimensão simbólica na cultura que não podia ser dei-
xada de lado, já no início da década de 1980, mas foi a publicação
de Re-Constructing Archaeology, por Michael Shanks e
Christopher Tilley, em 1987, que marcou o processo de recons-
trução da Arqueologia. Os autores uniram as vertentes filológicas,
históricas e filosóficas da crítica social às reflexões da Antropolo-
gia contextual, em um ataque devastador aos pressupostos histó-
rico-culturais e processuais, caracterizados como discursos a ser-
viço das potências imperialistas e da exploração. Já antes disso,
Bruce G. Trigger constatava que a New Archaeology era uma for-
ma de Arqueologia imperialista. A Arqueologia pós-processual
ou contextual introduziu, de forma explícita, a dimensão política
da disciplina, sua importância na luta dos povos pelo seu próprio
passado e por seus direitos.
Foi neste contexto que surgiu o World Archaeological Congress
(Congresso Mundial de Arqueologia), em 1986, congregando ar-
queólogos e outros estudiosos, assim como indígenas, preocupa-
dos com as dimensões sociais da Arqueologia. Shanks e Tilley
constataram que o próprio nome da disciplina pode ser interpre-
tado como o “conhecimento do poder”, retomando um dos senti-
dos da palavra arque, em grego. A partir da década de 1990, esse
engajamento levou a um crescente dinamismo da chamada Ar-
queologia Pública (public archaeology), entendida como toda a
pletora de implicações públicas da disciplina, do cuidado pelo
patrimônio aos direitos humanos.

A partir do final da década de 1990, há um crescente pluralismo


interpretativo na Arqueologia. Os modelos fundados no históri-
co-culturalismo continuam muito difundidos, tanto por serem os
que mais cedo surgiram e terem continuado a desenvolver-se,
como por responderem a inquietações históricas concretas, como
é o caso da busca das origens pré-históricas de povos como os
tupis ou os guaranis. A partir da década de 1960, uma vertente
histórico-cultural importante em certos países latino-americanos
foi a Arqueologia Social Latino-Americana, teoria fundada em
Childe e que se aplicou bem à reconstrução das grandes civiliza-
ções pré-colombianas, como a maia, inca e asteca, que estariam
na base das modernas nacionalidades de países com forte presen-
ça indígena, como o México e o Peru.
82 PEDRO PAULO A. FUNARI

O processualismo, por sua parte, continua importante, em parti-


cular por fornecer esquemas interpretativos aplicáveis a qualquer
contexto histórico. Assim, o estudo da captação de recursos e dos
padrões de assentamento tem se beneficiado das ferramentas
interpretativas da New Archaeology, sendo seus métodos mais
usados em certos países, como na Europa Oriental ou na Argenti-
na, ou em determinadas instituições de pesquisa. A Arqueologia
contextual, em suas mais variadas manifestações, tornou-se co-
nhecida em toda parte e assumiu a vanguarda em países como a
Inglaterra e em diversas instituições pelo mundo afora, em pri-
meiro lugar no mundo anglo-saxão, mas também alhures. A con-
vivência de diferentes e, às vezes, contraditórias teorias em Ar-
queologia constitui uma salutar característica da disciplina na atua-
lidade.

Neste contexto, pode afirmar-se que a Arqueologia Históri-


ca é uma disciplina ainda muito jovem, tendo se institucionalizado
há apenas quarenta anos, nos Estados Unidos. No Brasil, sua prá-
tica tem-se ampliado, principalmente, a partir da década de 1980,
em parte como resultado da restauração paulatina das liberdades
públicas e do declínio do arbítrio, primeiro com a anistia (1979),
o relaxamento da censura e, ao cabo, com a passagem a um regi-
me civil em 1985.
A primeira questão epistemológica a ser abordada refere-se
àquela mais central e que se encontra no cerne de todo engenho
da disciplina: seu estatuto ontológico. A Arqueologia, surgida em
solo europeu herdeira da tradição ocidental renascentista, teve
algumas de suas bases assentadas na História da Arte, na Arquite-
tura acadêmica, no mundo das formas. Este período pré-histórico
da Arqueologia marcou profundamente a disciplina, em busca das
grandes estátuas gregas, da aisthesis, da percepção das etéreas
linhas da beleza marcadas no mármore e noutros materiais no-
bres. Quando o século XVIII testemunhou o avanço das Luzes e
uma nova universidade tomou forma, a Filologia passou a erigir-
se como fundamento último da humanidade e o próprio estudo
das formas, já multissecular, passou a ser apresentado à seme-
lhança das línguas. A nascente Filologia já se havia inspirado na
Biologia para decompor as línguas em troncos e filiações, assim
ARQUEOLOGIA E PATRIMÔNIO 83

como para apresentá-las, à maneira dos seres vivos, com nasci-


mento, crescimento, ápice, declínio e desaparecimento e tais me-
táforas foram passadas, mutatis mutandis, para a cultura material.
Neste contexto, a Arqueologia não podia deixar de ser filológica
e, portanto, histórica.
Muito diversa a Arqueologia surgida do outro lado do Atlân-
tico, nos Estados Unidos. Ao lado de uma Arqueologia européia
logo implantada nas universidades e museus americanos, tão bem
representada pelas Arqueologia Clássica, Bíblica, do Egito e da
Mesopotâmia, surgia outra, a Arqueologia pré-histórica. As Ar-
queologias surgidas no Velho Mundo estudavam a civilização
européia e suas origens, voltavam-se para as próprias sociedades
em que se inseriam. Nos Estados Unidos, surgia uma disciplina
voltada para aqueles que não faziam parte da civilização ociden-
tal, a Antropologia interessada no substrato humano dos diversos
povos. Para tanto, era necessário conhecer as línguas indígenas
(Lingüística), as tribos existentes (Etnologia) e aquelas extintas
(conhecidas pela cultura material e estudadas pela Arqueologia
pré-histórica).
O estudo da cultura material recente das sociedades ociden-
tais demorou, portanto, a surgir e quando o fez encontrou-se na
encruzilhada de diversas origens e abordagens. Na Europa, o es-
tudo arqueológico destes últimos séculos, por vezes chamada de
Arqueologia Pós-Medieval, continua a ser prática minoritária, mas
sempre vinculada à lógica narrativa das origens históricas e, com
freqüência, na esteira de um discurso das formas eruditas e das
elites. Nos Estados Unidos, onde a disciplina se desenvolveu com
grande êxito, as raízes antropológicas da Arqueologia Histórica
permitiram que se criassem narrativas críticas, ainda que prevale-
ça a lógica das nobres origens da nação. As tensões epistemológicas
no interior da Arqueologia Histórica, nos Estados Unidos, refle-
tem sua dupla face: por um lado, a suntuosidade material da civi-
lização euro-americana forma a base de uma narrativa dominante
conservadora e que justifica o domínio do mundo. Por outro lado,
ao poder voltar-se sobre si mesma como se estudasse uma outra
humanidade, à maneira da Antropologia, podem surgir os confli-
84 PEDRO PAULO A. FUNARI

tos, as maiorias silenciadas, a materialidade da opressão e da re-


sistência.
Neste contexto mais amplo, a Arqueologia Histórica brasi-
leira não deixa de compartilhar das aporias e contradições ineren-
tes a este campo de pesquisa. Na origem da Arqueologia Históri-
ca no Brasil, está o patrimônio, bem material de alto valor mone-
tário e eo ipso símbolo da vitória da apropriação do trabalho alheio.
Patrimônio é aquilo que poucos têm, é o cabedal a ser passado de
pai para filho, de proprietário a proprietário, apanágio de poucos.
Deste sentido jurídico de patrimônio deriva o uso cultural do ter-
mo. Trata-se, pois, de bens que demonstram a proprietários e não
proprietários seu devido lugar na ordem social. Também em nos-
so meio, pois, a disciplina surge como reforço material de narrati-
vas hegemônicas, ainda que os discursos dominantes sejam di-
versos daqueles prevalecentes nos Estados Unidos ou na Europa.
Para uns o individualismo capitalista da América, para outros a
tradição aristocrática européia, enquanto no Brasil as narrativas
dominantes fundam-se no patriarcalismo escravista. Nos Estados
Unidos, a Arqueologia constrói ou desconstrói um individualis-
mo capitalista, na cultura material quotidiana de capitalistas ou
de trabalhadores, à porcelana de aparato se opõe a cerâmica dos
operários, a grande arquitetura erudita à construção vernacular.
Uns falam da grandeza dos antepassados, outros ressaltam as lu-
tas dos humildes trabalhadores. Na Europa, ao culto à tradição
aristocrática, opõe-se o quotidiano de camponeses e trabalhado-
res. No Brasil, não há individualismo capitalista nem tradição aris-
tocrática que resistam à escravidão e à exclusão social de amplas
maiorias, ademais heterogêneas ao extremo: de negros a indíge-
nas, de pobres imigrantes a judeus errantes, de sertanejos a serin-
gueiros.
As conseqüências epistemológicas dessas particularidades
brasileiras não podem ser subestimadas. A ciência periférica ca-
racteriza-se pela importação de discursos dos centros hegemônicos
e, neste caso, como encontrar o individualismo burguês ou a tra-
dição aristocrática, os camponeses ou os operários, tais como apa-
recem nos estudos da Inglaterra e da Nova Inglaterra? Os discur-
ARQUEOLOGIA E PATRIMÔNIO 85

so dominante de elogio da tradição ou do individualismo burguês


adapta-se mal aos trópicos, artificial quando aplicado a sociedade
tão pouco burguesa ou aristocrática sensu stricto. O contra-dis-
curso, por sua parte, não pode inventar, senão de forma caricata, a
resistência pelo consumo capitalista, como se faz nos Estados
Unidos, nem propugnar a criação de uma consciência de classe
no quotidiano das lutas fabris e camponesas, como no Velho Mun-
do. Os sujeitos sociais fragmentados da Arqueologia Histórica no
Brasil são mais ambivalentes e contraditórios, a começar de uma
elite patriarcal predatória e truculenta, pouco instruída, infensa a
qualquer liberdade: pouco aristocrática e em nada burguesa, a
despeito do uso de porcelana e perfumes que, alhures seriam sinal
de uma coisa ou de outra. Do outro lado, os sujeitos são heterogê-
neos por definição: indígenas, negros, mulatos, libertos, pobres,
caboclos, sertanejos, num elencar sem fim de lutadores que não
eram tampouco indivíduos como seus congêneres dos centros
hegemônicos americanos e europeus. Não é por acaso que a Ar-
queologia Histórica engajada e pública volta-se, precisamente, para
resgatar as vozes, os vestígios e os direitos de nativos, negros e de
todos os outros excluídos das narrativas dominantes. Essas ten-
dências, cada vez mais importantes no contexto mundial, tornam-
se, da mesma forma, mais e mais conhecidas e praticadas no Brasil,
inserindo nossa Arqueologia nas práticas internacionais.

REFERÊNCIA
Funari, P.P.A., Hall, M., Jones, S. (eds). 1999 Historical Archaeology, Back
from the edge. Londres, Routledge, 1999.
A COLEÇÃO DE ÂNFORAS DO MAE-USP:
VASOS E INSCRIÇÕES1

Ânforas eram uma importante forma de comércio no mundo


antigo. Eram usadas para o transporte de líquidos, normalmente
vinho, azeite e salações. Eram usadas, em primeiro lugar, como
recipientes de abastecimento e comércio a longa distância. As
ânforas fornecem-nos evidência direta da movimentação de ali-
mentos, algo importante tanto por razões econômicas e culturais.
O estudo desses vasos torna-se mais fácil, também, pela existên-
cia de um grupo substancial de informação epigráfica, pois mui-
tas ânforas possuíam inscrições incisas nas ânforas antes da coc-
ção e/ou inscrições pintadas depois do cozimento (Peacock e
Williams 1986: 2). Ânfora, em grego “um vaso para transporte
com duas alças” (Funari 1987), foi usado, pela primeira vez, na
Palestina, no século XV a.C. O vaso cananeu foi exportado para
fora da região, logo alcançando a Grécia. A forma bicônica do
vaso cananeu foi usado nos períodos minóico e micênico, mas a
Grécia não adotaria a forma típica da ânfora até o século VII a.C.
Ânforas de diferentes cidades desenvolveram formas próprias, o
que permitia sua fácil identificação (cf. Funari 1985a).
As alças das ânforas gregas eram, com freqüência, estam-
pilhadas, referindo-se a fazendas produtoras, nomes de éforos e
meses, sendo certificados de capacidade, garantia de peso dos
conteúdos para cobrança de impostos e para informação ao con-
sumidor (Grace 1949). A evidência dos selos indica que as ânforas
de Rodes e Cnidos foram exportadas desde essas cidades até co-
lônias e assentamentos no Mediterrâneo. Cidades e comércio dos
gregos na sul da Itália e na Sicília levaram ao desenvolvimento,

1
Artigo publicado em inglês, MAE-USP amphora collecton: vessels and incriptions, Revista
do Museu de Arqueologia e Etnologia, 11, 2001, 275-282. Traduzido do original em inglês
por Pedro Paulo A. Funari.
88 PEDRO PAULO A. FUNARI

em meados do IV século a.C., das chamadas ânforas greco-itálicas


(Will 1982). A pasta da maioria das ânforas costuma ser simples,
com inclusões de minerais e pedras. Vasos grandes eram, em ge-
ral, construídos em partes, mas os pequenos eram feitos de uma
só vez. Todas as ânforas precisavam ter suas bocas fechadas, sen-
do usuais os tampões vegetais ou de argila.
Os estudos anfóricos desenvolveram-se desde o século XIX
mas, em grande escala, a partir da década de 1970 (Funari 1985b).
As principais áreas de especialização são a classificação e tipologia,
petrografia e epigrafia, de tipos específicos de ânforas. O estudo
das ânforas tem sido importante para a interpretação econômica e
social do mundo antigo, na medida em que as ânforas fornecem
uma pletora de dados sobre a economia, sociedade, hábitos e cul-
tura antigos. As ânforas dão informações únicas sobre temas como
a movimentação de mercadorias e os hábitos culturais, relacio-
nando-se à identidade cultural. Os estudos anfóricos contribuí-
ram para um melhor conhecimento da economia do mundo anti-
go (Garlan 1986: 7), em particular, graças aos catálogos de olari-
as (Empereur e Picon 1986), de inscrições (Empereur 1982;
Empereur e Guimier-Sorbets 1986; cf. Funari 1997: 85-86) e a
outros esforços para publicar e estudar corpora (Funari 1994).
Desta maneira, é possível tecer análises bem fundamentadas da
sociedade antiga (Wellskopp 1998: 182).
O objetivo deste artigo consiste em fornecer um catálogo de
ânforas e selos anfóricos no acervo do Museu de Arqueologia e
Etnologia da USP. O Museu guarda duas ânforas greco-itálicas,
uma ânfora grega e cinco selos anfóricos, quatro de Rodes e um
de Cnidos.

SELOS DE RODE SE CNIDOS

O vinho era uma importante mercadoria durante o período


helenístico (Grace 1961: 14) e os vinhos de Rodes e Cnidos eram
exportados em quantidade, por serem baratos. Esses vinhos eram
importados em muitos mercados, sendo de Cnidos 65% das mais
de 40 mil selos de ânforas encontrados em Atenase ródias mais de
ARQUEOLOGIA E PATRIMÔNIO 89

85% dos selos anfóricos de Alexandria. Em Delos, selos de Cnidos


eram muito comuns (mais de 60%) e os de Rodes não eram pou-
cos (mais de 20%). Alcançavam também os mercados da penín-
sula itálica em quantidade. A maioria das ânforas não era
estampilhada e é difícil saber a proporção de estampilhadas para
não estampilhadas. Em geral, selos ródios e de Cnidos apresen-
tam dois nomes, um que se refere ao proprietário e outro a um
magistrado epônimo, datando a ânfora e o vinho. As ródias costu-
mavam possuir dois selos, no topo de cada alça, com os seguintes
dados: uma data dada pelo nome do magistrado epônimo
(epi+nome no genitivo), nome do mês ródio (depois de 275 a.C.),
outro nome no genitivo, que se refere, com probabilidade, ao pro-
dutor autorizado. O selo é circular, com o símbolo da cidade, uma
rosa, com outras imagens também possíveis (Grace 1961: 12;
Grace e Savvatiano-Petropoulakou 1970: 279, 293; Van der Werff
1977: 34; Debidour 1979: 271). Selos de Cnidos levam o nome de
um magistrado e de um produtor autorizado (Grace 1961: 12).
Estampilhas de ambas as cidades mudam após 146 a.C., quando
os romanos introduziram os nomes de dois funcionários
controladores (Grace 1961: 20).

CATÁLOGO DE SELOS
1. e....a
daliou
Tamanho do selo: 5,0 x 1.8 cm.
Forma: retangular
Pasta: marron.
Data: depois de 275 a.C.
Número de tombo: MAE-USP 64/11.18, doado pelo governo
italiano.
Área de produção: Rodes.
Local de achado: Itália.
Descrição do fragmento: alça de ânfora ródia. O diâmetro do
lábio é de cerca 12,8 cm e o ângulo do selo em relação ao pesco-
ço é de 21 graus.
90 PEDRO PAULO A. FUNARI

A referência ao mês ródio dalios, no genitivo, indica que o


selo foi produzido depois de 275 a.C., quando os meses foram
introduzidos nas ânforas ródias.

2. [a]ris[to]klaeus
Segunda marca: P (1 x 1 cm)
Tamanho: 3,2 cm.
Forma: circular.
Pasta: cinza.
Data: início do segundo século a.C.
Número de tombo: MAE-USP 64/11.32, doado pelo governo
italiano.
Área de produção: Rodes.
Local de achado: Itália.
Descrição do fragmento: alça de ânfora ródia. O diâmetro do
lábio era de cerca 11,6 cm. E o ângulo em relação ao colo de 21
graus.
O selo refere-se ao produtor ródio Arístocles, ativo nos últi-
mos cinqüenta anos anos do domínio romano, o que permite
datar o selo na primeira metade do século II a.C.

3. [s]o[kr]ateus
Tamanho: 3,4 cm.
Forma: circular.
Pasta: cinza, com superfície esbranquiçada, avermelhado no
centro.
Data: entre 275-180 a.C.
Número de tombo: MAE-USP 75/1.41, doado por U.T.B.
Meneses.
Área de produção: Rodes.
Local de achado: Delos.
Descrição do fragmento: alça ródia. O diâmetro do lábio era de
cerca 13,4 cm. e o ângulo da alça em relação ao colo é de 15
graus.
ARQUEOLOGIA E PATRIMÔNIO 91

Conhecemos dois produtores ródios chamados Sócrates, um


ativo entre 275 e 180 e outro entre 146 e fins do século primei-
ro. Considerando o ângulo da alça, propõe-se uma data mais
antiga (Grace 1952: 530; Grace e Savvatianou-Patropoulakou
1970: 302).

4. Epitpatrophan
Panamou
Tamanho: 3,9 x 1,9 cm.
Forma: retangular.
Pasta: cinza, esbranquiçado na superfície, avermelhado ao centro.
Data: entre 220 e 180 a.C.
Número de tombo: MAE-USP 75/1.42, doado por U.T.B.
Meneses.
Área de produção: Rodes.
Local de achado: Delos.
Descrição do fragmento: alça ródia, ângulo da alça em relação
colo de 11 graus.
Um produtor ródio de nome Pratophanes é bem conhecido
entre 220-180 a.C. (Grace 1952: 529; Grace e Savvatianou-
Petropoulakou 1970: 294).

5. Agathinou
Knidin
Ânfora
Tamanho: 5,6 x 1,6 cm.
Forma: retangular, com um desenho de ânfora de Cnidos.
Pasta: avermelhada.
Data: meados do século II a.C.
Número de tombo: MAE-USP 75/1.43, doado por U.T.B.
Meneses.
Área de produção: Cnidos.
Local de achado: Delos.
92 PEDRO PAULO A. FUNARI

Descrição do fragmento: alça de ânfora de Cnidos. O ângulo da


alça em relação ao colo é de 10 graus.
O produtor Agathinos estava ativo antes e depois da inter-
venção romana de 146 a.C. (Grace 1952: 530; Grace e
Savvatianou-Patropoulakou 1970: 294).

CATÁLOGO DE ÂNFORAS VINÁRIAS

1. Ânfora greco-itálica
Tamanho: altura, 40 cm; diâmetro, 14 cm.; colo, 7 cm., diâme-
tro de 8,5 cm.; largura do corpo, 21 cm.
Forma do vaso: piriforme.
Pasta: cinza.
Data: 350-250 a.C.
Número de tombo: MAE-USP 64/9.5, doado pelo governo itali-
ano.
Área de produção: Itália.
Local de achado: Castiglioncello (Livorno, Itália).
Descrição do vaso: lábio triangular, colo cilíndrico e ombro mar-
cado, alças ovóides ligadas abaixo do lábio e no alto da pança,
corpo piriforme, com ponta curta e maciça.

2. Ânfora greco-itálica
Tamanho: altura, 48 cm.; diâmetro, 12 cm.; alça, 12 cm., diâ-
metro, 8,4 cm., largura do corpo, 19,8 cm.
Forma do vaso: piriforme.
Pasta: marron.
Data: 350-250 a.C.
Número de tombo: MAE-USP 64/9.6, doado pelo governo itali-
ano.
Área de produção: Itália.
Local de achado: Toscanella, tumba dos Velinii (Itália).
ARQUEOLOGIA E PATRIMÔNIO 93

Descrição do vaso: lábio triangular, colo cilíndrico, ombro mar-


cado, alças ovóides ligadas abaixo do lábio e ao alto da pança,
corpo piriforme com ponta curta e maciça.

3. Ânfora grega (fragmento)


Tamanho: altura, 69,5 cm; diâmetro do colo, 12 cm; altura da
ponta, 10,5 cm.
Forma do vaso: corpo cilíndrico.
Pasta: avermelhada.
Data: séculos V-IV a.C.
Número de tombo: MAE-USP 64/11.3, doado pelo governo ita-
liano.
Área de produção: Grécia.
Local de achado: Palermo, necrópole púnica (Itália).
Descrição do vaso: corpo cilíndrico com ombro arredondado e
alças compridas, ponta curta.

As ânforas greco-itálicas também são conhecidas como


Republicaine 1, Lamboglia 4 e Peacock e Williams classe 2
(Peacock e Williams 1986: 84-85; crítica do termo ‘greco-itálica’
em Manacorda 1986). As ânforas greco-itálicas são, a um só tem-
po, greco-helenísticas e romanas e são o resultado do encontro
dos mundos romano e helenístico e da expansão dos mercados de
produtos de consumo de massa. Os objetos comercializados tor-
naram-se estandardizados e as ânforas vinárias foram produzidas
em várias partes do Mediterrâneo no período entre o fim do quar-
to século a.C. e meados do segundo século a.C. (Will 1982). As
duas ânforas greco-itálicas do MAE-USP representam dois pa-
drões diversos, ambos incluídos entre os recipientes menores des-
se tipo de ânfora.

CONCLUSÕES

As poucas ânforas e estapilhas armazenadas no MAE-USP


constituem uma pequena amostra do artefato arqueológico mais
94 PEDRO PAULO A. FUNARI

encontrado no Mediterrâneo. Os selos provêm de cidades gregas


e são uma clara indicação da importância, durante o período
helenístico tardio, do controle municipal da produção e comércio
de vinho. Revelam a importância das instituições políades até a
intervenção romana em 146 a.C. A ânfora de estilo grego em con-
texto púnico é uma indicação de que, a despeito das rivalidades, o
comércio de vinho era, desde tempos antigos, fator de contatos
culturais. As ânforas pan-mediterrâneas de tipo greco-itálico re-
presentam uma nova fase no desenvolvimento do comércio e da
manufatura, produzidas em muitas áreas no Mediterrâneo, com
volumes estandardizados. Testemunham as mudanças econômi-
cas, sociais e culturais no Mediterrâneo e, com sua materialidade,
essas ânforas são evidências únicas da vida social no mundo antigo.

AGRADECIMENTOS

Agradeço aos seguintes colegas: Jean-Yves Empereur, Haiganuch


Sarian, J.A. Van der Werff, Elizabeth Lyding-Will, David Williams e Célia
Marai Cristina de Martini. As idéias são minhas e sou o único responsável.

REFERÊNCIAS
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96 PEDRO PAULO A. FUNARI

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WILL, E.L.
1982 Greco-Italic amphoras. Hesperia 52: 338-356.
CONSIDERAÇÕES SOBRE O PROFISSIONAL DE MUSEU E
SUA FORMAÇÃO

A multiplicidade de situações dos museus pode parecer, à


primeira vista, um empecilho a qualquer generalização sobre a
formação do profissional de museu. De fato, há museus científi-
cos, como os há de pequenas localidades, há museus de arte, como
os há de rua. Nesta variedade de situações, multiplicam-se os pro-
fissionais de museus, de curadores a restauradores, de educadores
a biólogos. E pur, há algumas questões genéricas que se referem
ao cerne da atividade em museus, aquilo que diz respeito à essên-
cia da ação patrimonial. No umbral do terceiro milênio, os desafi-
os dos profissionais de museus podem ser resumidos a cinco gran-
des temas, interrelacionados:
- O PLURALISMO;
- A RELAÇÃO COM A COMUNIDADE NA CRIAÇÃO DE
CONHECIMENTO DE INTERESSE SOCIAL;
- A RELAÇÃO NECESSÁRIA ENTRE O PROFISSIONAL DE
MUSEU E AS CIÊNCIAS;
- A LUTA PELO SABER CONTRA AS HIERARQUIAS BU-
ROCRÁTICAS.
Os museus representam o mundo como parte da ordem soci-
al (Fyfe 1998: 326), sua taxonomia refletindo, de forma mediada,
a táksis da própria sociedade. Não é casual que uma palavra-cha-
ve na organização dos museus seja, precisamente, taxonomia,
“ordenação segundo uma regra”1, pois tudo no museu é classifi-
cado e ordenado. Os setores, da reserva técnica à exposição, cada
um subdividido e classificado. Esta concepção acompanha os
1
Cf. Platão, Leis, 925b, katà tèn táksin tõu nómou, “segundo a ordenação de uma regra”.
Taxonomia deriva de táksis, “arranjo”, do verbo tássein, “arranjar”, originalmente, os solda-
dos para uma batalha; cf. Heródoto, 8, 86: katà táksin, “ordem de batalha”.
98 PEDRO PAULO A. FUNARI

museus ab origine, desde sua própria fundação, refletindo a pró-


pria hierarquia social na qual surgiu. No entanto, no umbral do
terceiro milênio, mais do que uma única ordenação e taxonomia,
o mundo pós-moderno caracteriza-se pelo mais radical pluralismo2,
programa explícito da proposta do Aktives Museum. O tema cen-
tral do trabalho didático do Museu Ativo consiste em transformar
os consumidores de conhecimento em produtores. As visitas gui-
adas deveriam, sempre que possível, serem dissolvidas em parti-
cipação ativa, um meio para que a confrontação com o mundo
material gere o sentimento inesperado, a indignação e a curiosi-
dade (e.g. Fahmel-Beyer 1993). Em uma sociedade aberta, há uma
pluralidade de opiniões e deveria, pois, haver diferentes relatos
do mundo material exposto no museu (Baker 1991: 58-59). Este
pluralismo implica em subverter o discurso da autoridade que pre-
valece na exposição de uma única versão, a verdade dos que con-
trolam o poder (Potter n.d.:3-7).
O pluralismo não se restringe à exposição e à ploliferação de
narrativas3, mas estende-se às proprias divisões do saber no inte-
rior do museu. A segmentação dos setores reproduz uma separa-
ção artificial entre os profissionais do museu, como se fosse pos-
sível dissociar exposição e reserva, programa educativo e pesqui-
sa de campo, reflexão pedagógica e científica, reproduzindo
dicotomias estranhas à prática crítica. Não se trata de adorar o
acervo, mas pensar sobre ele (Potter n.d.: 39)4. Não se trata de
isolar especialistas, cujo conhecimento hermético deveria ser pre-
servado, mas é no confronto de perspectivas que se produz conhe-
cimento (Funari 1997, com bibliografia anterior). Assim, no inte-
rior da instituição museu, nada justifica a falta de diálogo entre os
diversos profissionais, senão a acomodação. A produção de co-

2
Cf. Lorenz (1998: 619): Postmodernismus ist deshalb immer eine radikale Version des
Pluralismus (ênfase no original).
3
Keine Ausstellung ohne Erzählungen, como se propõe na concepção do Museu Ativo (“não
há exposição sem narrativas).
4
Cf. Potter (n.d.: 39): If we can encourage ourselves (sc. museum professionals) and our
visitors to see the objects in our museums as ‘fragile’ – as culturally constructed and a
culturally contested rather than as self-evidently important and in possession of inherent
meanings – then perhaps we all will begin to treat those objects better, thinking about them
rather than worshiping them.
ARQUEOLOGIA E PATRIMÔNIO 99

nhecimento5 implica na disposição a aprender com os outros, se-


jam os profissionais colegas de instituição, seja o público em ge-
ral. Ainda “é tempo de fazer museu com a comunidade e não para
a comunidade”, como dizia, há quinze anos Waldísia Rússio (1984:
60). A busca de um museu gerido com a comunidade é uma tarefa
que implica romper as barreiras disciplinares e as formalidades
das compartimentações acadêmicas (Oliveira 1999), bem como
superar o modelo do museu desligado da sociedade, mera “Torre
de Observação”, como propõe uma abordagem elitista (Meneses
1993: 218). Para produzir conhecimento impõe-se interagir com
o educando (Giroux & McLaren 1986: 234) e o público está mui-
to mais aberto a essa interação do que, normalmente, se supõe
(McKee & Thomas 1998: 7).
A comunidade não é, por sua parte, uma unidade, um con-
junto homogêneo. Este modelo normativo de cultura já tem sido
bastante criticado e não se pode idealizar a comunidade (Jones
1997, com literatura a respeito), composta de heterogêneos inte-
resses. No entanto, pode afirmar-se que, de maneira sistemática,
são excluídos dos processos de decisão, na sociedade e, por con-
seqüência, nos museus, todos os que não estão no poder, de
favelados a judeus, de negros a nordestinos (Jones 1993: 203-15).
Esses diversos públicos compõem uma comunidade também ela
plural e pouco afeita a generalizações que possam dar conta de
sua heterogeneidade. Os profissionais de museu não podem igno-
rar essa diversidade, nem deixar de reconhecer no museu um ins-
trumento a serviço dos que estão fora do poder (Vargas & Sanoja
1990: 53), sob a pena de continuarem a ser servos desse mesmo
poder (Funari 1996: 18). Para que o profissional de museu consi-
ga atingir esse público e com ele interagir, “é necessário tomar o
seu universo cultural como ponto de partida, permitindo que ele
se reconheça como possuidor de uma identidade cultural especí-
fica e importante”, nas palavras de Paulo Freire (em entrevista a
McLaren 1988: 224). Nessa diversidade da comunidade, desta-
5
Cf. Haiganuch Sarian (1999:34): “Produção e reprodução do saber se expressariam nos
Museus Universitários, por meio de responsabilidades inerentes à natureza de um Museu,
de tal modo que os Professores destas instituições fossem igualmente Curadores – Curator-
Professors -, para lembrar a designação americana”.
100 PEDRO PAULO A. FUNARI

que-se o público infantil, tanto por se tratar dos futuros cidadãos,


como pela necessidade de tomar-se em conta o caráter lúdico a
ser adotado pelo museu (Oliveira 1999).
O profissional de museu sempre tem uma pergunta em men-
te: preservar para quê? Há alguns anos, quando de uma homena-
gem póstuma ao obstinado defensor do patrimônio e humanista
Paulo Duarte, Maria Cristina Bruno (1991) evocava uma bela
imagem sobre a preservação:
“Patrimônio, para Paulo Duarte, era visto com muita abrangência.
Sinônimo de qualidade de vida, pesquisa e ensino, erudito e po-
pular, antigo e moderno e, acima de tudo, preservação para a in-
formação”.

Informação, criação de consciência, ação no mundo, trans-


formação, eis as metas da preservação (Funari 1992/3:18-19).
Seria, até mesmo, o caso de propor que se deve preservar para
transformar a sociedade, pois o conhecimento não é apanágio de
classe ou grupo e qualquer museu pode levar à reflexão crítica.
Abrir a cabeça, talvez a meta maior de um museu (Hudson 1994:
55). A começar por uma exposição que se contraponha à aliena-
ção da moda e à descontextualização derivada da mercantilização
generalizada dos objetos em nossa sociedade pós-moderna
(Durrans 1992: 14), que contribua para a autonomia do público
(aquilo que os ingleses tão bem definem como empowerment, cf.
Giroux & McLaren 1986: 238). O passado, conservado no Museu
em forma de patrimônio, serve ao presente (Luc 1986: 118). Mas
não é apenas na exposição, que se busca transformar, nem só na
superação das barreiras entre os setores do museu: há que se in-
surgir contra a separação entre o museu e as ciências, divisão
oitocentista artificial e pouco afeita à atual busca de integração
das disciplinas6.
As Wissenschaften surgidas na criação da moderna Univer-
sidade, em fins do oitocentos, acostumaram-se a relacionar-se com
o museu e seus profissionais de forma instrumental e analógica à

6
Ainda que alguns dos grandes museus brasileiros, voltados para as Ciências Naturais, no
século XIX, tenham atuado na pesquisa científica (cf. Lopes 1997).
ARQUEOLOGIA E PATRIMÔNIO 101

taxonomia social. Assim como há os que pensam e os que traba-


lham, os que mandam e os que obedecem, assim, também, o cien-
tista se relaciona com o museu. Como se o museu fosse um local
a serviço dos verdadeiros cientistas, como se os profissionais de
museu fossem servos, à maneira dos gregos, definidos como ins-
trumentos a serviço dos cientistas. No entanto, os cientistas que
trabalham em museus são, também, profissionais de museus! A
dicotomia, de toda forma, tende a permanecer, sob o manto diáfano
da clivagem entre os pesquisadores científicos e os outros profis-
sionais. Nem todos os museus possuem cientistas em seus qua-
dros, ainda que todos tenham, por definição, profissionais de
museus. Em qualquer dos casos, a clivagem existe, seja interna,
seja externa, ao corpo funcional do museu. Esta dicotomia separa
dois aspectos indissociáveis do conhecimento: teoria e prática,
mundo das idéias e prática quotidiana. O conhecimento científico
é essencial, em especial naquilo que tem de propriamente cientí-
fico, que é o desafio às idéias recebidas e ao senso-comum, para
vivificar o museu. Por outro lado, não se pode esquecer que o
museu pode fornecer um manancial de desafios práticos que ape-
nas podem servir para o avanço do conhecimento acadêmico (cf.
Haas 1996: S1-S11; Jones 1993: 203).
Neste contexto mais amplo, como se pode situar a formação
do profissional de museu e qual museu será por ele criado? Em
primeiro lugar, há que se superar concepções estreitas e rígidas
do que seja e, principalmente, do que deva ser o museu. A forma-
ção do profissional de museu não pode prescindir de um amplo e
variado contato com as ciências, em geral, e do homem, em parti-
cular. Um conhecimento crítico da História dos museus pode ser
o ponto de partida para a reflexão sobre os fundamentos pedagó-
gicos que devem estar subjacentes a uma educação patrimonial
(Tamanini 1998). A formação deste profissional não se pode fur-
tar ao internacionalismo e ao cosmopolitismo, pois há uma imen-
sa experiência estrangeira , que vai dos eco-museus aos museus
de rua, cujo conhecimento é imprescindível.
A formação do profissional inclui um conhecimento, de pri-
meira mão, das diversas ciências envolvidas com o patrimônio e
102 PEDRO PAULO A. FUNARI

os museus, tão numerosas que, provavelmente, apenas uma amos-


tra poderá ser estudada pelo futuro profissional de museu7. Estas
disciplinas seriam melhor agrupadas por grandes eixos, deixan-
do, ainda, que o estudante pudesse escolher áreas de maior inte-
resse e vocação. Tendo em vista a disparidade de situações, im-
portante atenção deve ser dada à variedade de museus e ao seu
gerenciamento igualmente variado. O estágio torna-se, neste senti-
do, uma experiência prática que permite ao estudante tomar contato
com uma gama de instituições, de diferentes tipos, do grande mu-
seu universitário ao simples museu local. O relacionamento com
a comunidade e as formas de interação com os grupos sociais
também devem ser objeto de atenção. A patrimonialização dos
bens individuais e coletivos das comunidades insere-se na dinâ-
mica de integração do museu na coletividade e, para tanto, são
necessários estudos específicos, incluindo aspectos técnicos (como
o registro de relatos orais e a preservação de fotografias) e teóri-
cos (como tudo que se refere à criação de memórias populares).
A legislação de proteção do patrimônio e tudo que diz res-
peito aos aspectos jurídicos da preservação incluem-se no neces-
sário cabedal do profissional de museu. Este aspecto da sua for-
mação conduz ao grande âmbito das implicações sociais do mu-
seu. Em qual museu atuará o profissional? Este museu será o re-
sultado da ação do próprio profissional. No presente, os museus,
como a própria academia, encontra-se eivada de relações de po-
der, de estruturas burocráticas cuja finalidade, muitas vezes, pou-
co tem a ver com o conhecimento e a sociedade8. Esta é uma
situação que resulta de séculos de uma estrutura social hierárqui-
ca, patriarcal, autoritária e voltada para a conservação do status
quo (cf. Funari 1996, com literatura). Naturalmente, os museus,
como órgãos burocráticos do Estado, em sua maioria, reprodu-
zem estas relações iníquas e inibem tanto a reflexão como a ação

7
Museologia, História, História da Arte, Arqueologia, Antropologia, Etnologia, Biologia, Ge-
ografia, Etnologia, Estudos da Cultura Material, Folclore, Geologia, Botânica, História Oral,
Iconografia, Semiótica, entre outras.
8
Cf. M.C. Bruno, C. Rizzi e M.X. Cury (1999: 46): “apesar do grande esforço, muitos museus
estão longe da consciência do equilíbrio entre o cuidado com os acervos e a atenção com as
expectativas das sociedades”.
ARQUEOLOGIA E PATRIMÔNIO 103

crítica. Os profissionais de museus, como também os cientistas,


aliás, são incentivados ao conformismo, à aceitação das verdades
correntes, tão pouco verdades, mas tão correntes. As estruturas
burocráticas dos museus, ainda mais do que aquelas acadêmicas
stricto sensu, são infensas ao mérito e à dedicação ao conheci-
mento e à sua socialização. Isto se explica pela importância polí-
tica, no sentido pequeno da palavra, associada aos cargos, a come-
çar da direção das grandes instituições de Estado. Há até, como se
sabe, museus criados para indivíduos dirigirem! Além deste cará-
ter político da direção, e como decorrência, seguem-se cargos,
chefias e eminências pardas que vicejam nos museus, naquilo que
se chama de atividades de corredor e de bastidores. Não é de es-
tranhar que, ainda mais que na academia, nos museus a convivên-
cia pessoal seja tão pouco profissional.
Neste contexto, o profissional de museu deve, necessaria-
mente, lutar pela transformação do próprio museu, à luz do que se
faz e discute no mundo, a este respeito, mas, também, na interação
com a comunidade que deve dar vida ao museu. Não se trata de
tarefa fácil, nem a luta se mostra ligeira. No entanto, cabe ao pró-
prio profissional de museu, já em atividade e, a fortiori, em for-
mação, buscar a profissionalização da atuação no museu. Isto
implica atuar para que o mérito suplante o compadrio, a busca do
conhecimento supere a inércia burocrática que pode, senão matar
o museu, inviabilizar sua efetiva função científica e crítica. Para
isto, impõe-se a instituição de um plano de carreira, baseado na
titulação, com hierarquias fracas e coletivos acadêmicos fortes,
sempre a partir de critérios científicos. Para o profissional de museu
em formação, este é um aspecto essencial: a deontologia associa-
da à prática em museus. A dura realidade dos museus pode indu-
zir ao desânimo e ao conformismo, se não houver, na formação
do profissional, um projeto crítico e acadêmico que permita a trans-
formação da própria instituição. Neste sentido, a situação do futu-
ro profissional de museu assemelha-se muito àquela do futuro
professor, pois, em ambos os casos, apenas uma luta pela trans-
formação da estrutura burocrática e de seus objetivos permite
antever um futuro criativo.
104 PEDRO PAULO A. FUNARI

A formação do profissional de museu, portanto, não se res-


tringe ao saber técnico, nem, menos ainda, ao domínio das arti-
manhas do micro-poder. O desafio que se impõe é formar profis-
sionais que sejam autônomos, críticos, infensos à inercia, propen-
sos à luta pela transformação. Aparente paradoxo, que se busque
a transformação, em uma profissão voltada para a preservação.
No entanto, para que se possa, efetivamente, preservar, é necessá-
rio transformar uma realidade que contribui para destruir o
patrimônio. O primeiro e decisivo passo é formar profissionais
autônomos, independentes e transformadores do mundo.

AGRADECIMENTOS

Agradeço à Professora Maria Cristina Bruno, cujo convite para parti-


cipar deste encontro sobre “O Profissional de Museu no umbral do Terceiro
Milênio” incentivou-me a escrever este texto. Devo mencionar ainda os se-
guintes colegas: Dione Bandeira, Brian Durrans, Bernd Fahmel-Beyer, Siân
Jones, Parker B. Potter, Jr., Nanci Vieira Oliveira, Brian W. Thomas,
Elizabete Tamanini. As idéias apresentadas são, naturalmente, de responsa-
bilidade exclusiva do autor.

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DESAPARECIMENTO E EMERGÊNCIA DOS GRUPOS
SUBORDINADOS NA ARQUEOLOGIA BRASILEIRA

A Arqueologia tem uma longa tradição no Brasil, tendo ini-


ciado como uma prática acadêmica logo após a independência,
em 1822, sob a tutela financeira da Corte Imperial. A transferên-
cia da Corte Portuguesa para o Rio de Janeiro, em 1808, como
uma estratégia diante das conquistas napoleônicas, acabou resul-
tando na implantação, em terras tropicais, de uma elite típica do
Antigo Regime europeu, que impôs um discurso imperial a res-
peito das origens nobres do poder colonial. Indivíduos subordina-
dos, como a maioria da população escrava, estiveram fora deste
discurso sobre a origem (Ursprung) e as raízes civilizadas dos
“bravos” conquistadores portugueses. Depois da Independência,
esta mesma elite dominante portuguesa continuou mantendo sob
seu controle os arcanos do poder imperial e aditou ao seu discur-
so uma imagem idealizada dos nativos sul-americanos, começan-
do desta forma, em um certo sentido, a Arqueologia Pré-histórica
brasileira. Os africanos continuaram ausentes no discurso arque-
ológico, enquanto que os indígenas desempenharam um papel
subordinado. Apenas a partir da década de 1890, e com o fim da
escravidão e da monarquia, é que o discurso imperial passou pau-
latinamente a veicular discursos menos homogeneizantes a res-
peito do passado. Mesmo assim, levaram ainda algumas décadas
para que a Arqueologia se tornasse uma disciplina acadêmica.
Estudos sobre os “nativos” ou sobre a pré-história apenas ganha-
ram proeminência depois da Segunda Guerra Mundial, quando
uma Arqueologia de traço humanista buscou enfatizar a impor-
tância de se ver os indígenas como seres humanos, possuidores de
culturas dignas de serem estudadas e preservadas. Tal abordagem
foi silenciada pelo longo governo ditatorial (1964-1985), e mais
uma vez os indivíduos subordinados foram suprimidos do discur-
so arqueológico. Nas últimas duas décadas, entretanto, tem havi-
108 PEDRO PAULO A. FUNARI

do um incremento nas atividades arqueológicas e, pela primeira


vez, os grupos subordinados, tanto os de descendência africana
ou miscigenada como os de extração social mais pobre, têm apa-
recido nos discursos arqueológicos. É com relação a este contex-
to que se delineia o objetivo principal do presente artigo: investi-
gar como tem se apresentado a questão da subordinação na inter-
pretação arqueológica brasileira – tanto no discurso da Arqueolo-
gia pré-histórica como no da histórica – avaliando, então, de que
maneira os desenvolvimentos mais recentes, e menos excludentes,
desta disciplina, no Brasil, tem contribuído para mudar este pano-
rama.

UM DISCURSO IMPERIAL NAS ORIGENS DA CIVILIZAÇÃO

O Brasil foi governado por Portugal, nos moldes de um Es-


tado Absolutista, desde o século dezesseis até a independência
(Handelmann 1987:826). A base do sistema social era, então,
escravista e senhorial, com uma enorme influência dominadora
das antigas linhagens patriarcais dos proprietários de terra (Velho
1986). Tal estado de coisas foi mais marcado no início da coloni-
zação, quando se formou, então, um sistema social altamente
hierarquizado (Da Matta 1991: 399), dominado, principalmente,
pelos grupos senhoriais. Os grandes proprietários de terra gover-
navam como verdadeiros senhores despóticos, cada qual como
um pater famílias em seus “domínios feudais” particulares e agin-
do, conjuntamente, como uma elite autocrática (Arraes 1972: 23-
26). A independência, em 1822, entretanto, não provocou mudan-
ças significativas na estrutura social em geral, e a Família Real
Portuguesa continuou a governar o Brasil até 1889. Embora fosse
um recém fundado Estado nacional independente, o Brasil man-
teve a mesma elite dirigente autoritária de seu passado colonial, o
que se refletiu no próprio Estado: definido não como uma Repú-
blica, mas como um Império. Desta forma, enquanto outros Esta-
dos nacionais modernos eram construídos como novas nações, as
elites brasileiras buscavam inspiração em organizações políticas
pré-modernas, como o velho Império português e os Impérios
Britânico e dos Habsbugo. Distintamente dos outros novos países
ARQUEOLOGIA E PATRIMÔNIO 109

independentes, como nas repúblicas fundadas sobre o princípio


da igualdade de direitos entre todos os cidadãos (tendo em conta,
entretanto, que tal princípio excluísse os não-cidadãos, como as
mulheres e os escravos), no Brasil, foram preservadas as distin-
ções, obedecendo a uma hierarquia fundada na posição social ou
na titulação nobiliárquica dos indivíduos.
O discurso imperial, entretanto, é inaugurado mesmo antes
da independência, quando a Corte portuguesa (tendo vindo para o
Rio de Janeiro para fugir do perigo representado pelo avanço de
Napoleão) estabeleceu um Museu Real na então capital do Impé-
rio, em 1818. O Rio se tornara, dessa forma, por abrigar a elite
dirigente portuguesa, a capital do Império Luso, que se estendia
desde sua porção americana até a África e a Ásia. O Museu Real,
por sua parte, buscava, de uma forma similar ao Museu Britânico,
ser um museu do poder colonial, reunindo material dos territórios
portugueses na Europa, na América, na África e na Ásia. Tal pre-
ocupação foi explicitada em um documento, publicado logo após
o estabelecimento do museu: “Instruções para os viajantes e os
funcionários civis nas colônias a respeito dos procedimentos para
o recolhimento, conservação e remessa de objetos da História
Natural”, que instruía os governadores de cada província brasilei-
ra a organizar coleções de todos os produtos de seus territórios e
enviá-los para o Rio de Janeiro. Estas instruções eram igualmente
válidas para todos os governadores das possessões portuguesas,
inclusive os do próprio território português na Europa. O Museu
também estabeleceu contatos oficiais com seus parceiros nas prin-
cipais capitais coloniais, principalmente Paris e Londres (Lopes
1997: 25-71).
A independência não alterou o caráter imperial tanto do dis-
curso oficial quanto do Museu em si, apesar de seu nome ter sido
mudado para Museu Nacional. Em 1838, foi publicado o primei-
ro catálogo completo do museu, a Lista de objetos reunidos no
Museu Nacional desta Corte. É digna de nota a maneira como o
material foi dividido em seções: zoológica, botânica, mineral, de
Belas Artes, e de Objetos relacionados às artes, hábitos e costu-
mes de diversos povos. Na seção de Belas Artes estavam incluí-
110 PEDRO PAULO A. FUNARI

dos moedas, medalhões, esculturas, pinturas, mas também instru-


mentos de Física e máquinas. A categoria “Objetos relacionados
com diversos povos” incluía antiguidades egípcias e européias,
assim como aquelas relacionadas com os “povos ignorantes”: na-
tivos da África, Ásia, Nova Zelândia, Ilhas Sandwich e Brasil.
Como Lopes (1997: 70) tem afirmado, embora os estudiosos fi-
quem atormentados com a presença de múmias egípcias no Mu-
seu, a organização global do material foi inspirada pelos museus
imperiais europeus, e conseqüentemente os materiais egípcios e
europeus eram incluídos como uma lembrança das origens no-
bres das elites. A coleção de material “selvagem”, de diversas ori-
gens, por outro lado, era uma maneira de reafirmar que não era
mera coincidência o fato dos africanos serem escravizados e os
nativos massacrados no Brasil, pois este povos eram considera-
dos como animais a serem domados. As coleções de História Na-
tural eram também um meio de enfatizar o poder da elite
governante, por meio da acumulação e assimilação do conheci-
mento. O Museu Nacional como um todo era, desta forma, um
imenso discurso material a respeito da exclusão de grupos subor-
dinados – africanos, nativos, pessoas comuns – e uma exaltação
do poder discricionário da nobreza e das velhas classes senhoriais
em geral.
O estabelecimento do Instituto Histórico e Geográfico Bra-
sileiro, em 1838, deu à Arqueologia uma nova presença oficial
institucionalizada. As reuniões do Instituto tinham lugar no Mu-
seu Nacional, e as duas instituições compartilhavam das mesmas
preocupações. O ano seguinte à fundação do Instituto assistiu a
publicação do primeiro volume de seu periódico, a Revista do
Instituto Histórico e Geográfico Brasileiro. Também em 1839
houve uma “investigação arqueológica” na Pedra da Gávea, no
Rio de Janeiro, em busca de uma suposta inscrição “fenícia”. As
investigações foram cuidadosamente registradas, e a expedição
concluiu que tais inscrições eram tão importantes quanto os
hieróglifos egípcios ou as inscrições cuneiformes mesopotâmicas
(Langer 2000: 68). Como Ferreira observou (1999: 18), o Insti-
tuto buscou também produzir seu próprio Champolion ou
Schliemann, ao enviar um padre, o cônego Benigno José de
ARQUEOLOGIA E PATRIMÔNIO 111

Carvalho, com a missão de descobrir cidades perdidas e inscri-


ções. Ao mesmo tempo, os nativos brasileiros foram gradualmen-
te idealizados de acordo com a teoria do bon sauvage – como
fossem heróis nacionais distantes, que, na visão do Instituto, esta-
vam já extintos. Desta forma, a Etnografia e a Arqueologia foram
introduzidas como disciplinas mutuamente implicadas, como parte
do mesmo esforço na busca desta espécie idealizada de nativo. Os
estudiosos brasileiros estavam em estreito contato com as teorias
arqueológicas então desenvolvidas na Europa, principalmente na
França e na Dinamarca, e, por várias décadas, a explicação mais
recorrente para a ocupação da América era que os nativos descen-
diam de povos bíblicos que, como o passar dos anos, degenera-
ram no Novo Mundo.
A Arqueologia praticada no Instituto tem sido apropriada-
mente rotulada como “nobiliária”, dadas suas umbilicais ligações
com a elite brasileira, que usou o passado indígena, pré-histórico,
em seu favor, reclamando para si o legado cujos verdadeiros her-
deiros eram, de direito, os povos de descendência nativa (Ferreira
1999: 28). De maneira mais específica, uma mistura entre a teoria
dos cataclismas de Cuvier e o Criacionismo buscava então expli-
car o desaparecimento das antigas gerações de possíveis coloni-
zadores mediterrâneos que, pensavam os estudiosos do Instituto,
teriam originalmente trazido a civilização para os trópicos. Pro-
váveis cataclismas é que teriam posto um fim a estas migrações
transcontinentais, conduzindo a uma degeneração das sociedades
nativas, como podia ser provado por meio das evidências mate-
riais dos restos humanos e fósseis colecionados pelo Museu.
Os estudiosos do Império estavam, também, em estreito con-
tato como os mais importantes teóricos sociais do período, tais
como Gobineau e Renan, e estavam afinados com o tom cada vez
mais racista das idéias do período. Cuvier, por sua parte, inspirou
os intelectuais brasileiros com sua tese da suposta inferioridade
dos povos africanos:
“a raça negra, é marcada pela cor escura, cabelo duro ou en-
rolado, crânio comprimido e nariz achatado. A projeção das par-
tes inferiores da face dos indivíduos desta raça, assim como seus
112 PEDRO PAULO A. FUNARI

lábios grossos, aproximam-nos às tribos dos macacos: que tem


sempre permanecido no mais completo estado de barbarismo”
(Cuvier 1831:53).

Os asiáticos não eram avaliados de maneira muito mais po-


sitiva. Os semitas, por exemplo, eram descritos por Renan como
incapazes de desenvolverem habilidades intelectuais: “o pensa-
mento abstrato é desconhecido entre eles, e o metafísico, impossí-
vel. Em tudo neles há uma completa falta de complexidade, suti-
leza ou sensibilidade” (1885: 13). Já para John Stuart Mill o Ori-
ente era o reino do despotismo e da estagnação: “lá o costume é a
palavra final, em todos os assuntos; a justiça e o direito estão à
mercê dele; ninguém, a não ser um tirano intoxicado com o po-
der, cogita resistir ao argumento do costume” (Mill [1895] 1985:
136).
A maneira como a elite compreendia sua própria superiori-
dade racial resultou em uma infinidade de diferentes classifica-
ções, como ocorreu nos Estados Unidos, onde os protestantes
anglo-saxões sustentaram sua superioridade com relação a todos
os outros grupos, principalmente no que diz respeito aos africa-
nos, mas também no que concerne aos mexicanos e aos católicos
irlandeses (Patterson 1997: 112). Em outras palavras, a Etnografia
contribuiu para retratar o colonizado como um selvagem, cuja
cultura deveria ser esquecida e ao qual deveria ser ministrada a
educação européia. Foi de acordo com estes termos que tanto a
Arqueologia do período quanto suas práticas correlatas fornece-
ram uma maneira apropriada de mapear o passado das terras co-
lonizadas (Bahraini 1998: 168). Mesmo os críticos do capitalis-
mo, como Karl Marx (e.g. 1978: 434), aceitaram esta pintura ge-
ral da civilização ocidental, tomando-a em contraste com o su-
posto atraso do resto do mundo (cf. Funari 1999a).
Neste contexto geral, a Arqueologia brasileira não foi muito
mais excludente do que a prática acadêmica geralmente levada a
termo na Europa. A estrutura social brasileira, por outro lado,
marcada pelo modelo do Antigo Regime europeu, contribuiu so-
bremaneira para caracterizar de uma maneira singular este dis-
curso de exclusão, mas promovendo, em contrapartida, a detração
ARQUEOLOGIA E PATRIMÔNIO 113

da grande maioria dos habitantes do país. Em outros lugares, os


bretões, franceses e alemães eram considerados superiores aos
bárbaros estrangeiros, fossem eles semitas, chineses, indianos ou
africanos. No Brasil, entretanto, não havia cidadãos brasileiros,
apenas nobres, antigas linhagens familiares, e uma imensa maio-
ria da população dependente e subordinada, formada por vários
povos indígenas e pelo numeroso grupo dos descendentes de afri-
canos.

O ESGOTAMENTO DA ARQUEOLOGIA IMPERIAL E O INÍCIO DO


SÉCULO XX

As duas últimas décadas do Império (os anos 1870 e 1880)


testemunharam o ápice das instituições acadêmicas ligadas à Corte
Imperial, tais como o Museu Nacional e o Instituto Histórico e
Geográfico. Durante este período, a Arqueologia desempenhou
um papel central na formação da ideologia da Corte: fundada em
uma imagem ideal e enobrecida dos nativos, que, nas palavras do
Diretor do Museu Nacional, Ladislau Neto, estava “na iminência
de desaparecer” (1889: 26). Durante o mesmo período, dois ou-
tros museus foram estabelecidos nas províncias – o Museu
Paraense (1866), em Belém do Pará, e o Museu Paranaense (1876),
em Curitiba. Ambos se voltavam para a coleção de artigos da His-
tória Natural, assim como artefatos arqueológicos e etnográficos.
O fim do regime levou a um declínio abrupto na abordagem im-
perial para com o passado, tendo então ocorrido uma mudança do
cenário de poder do Rio de Janeiro para São Paulo. O Antigo Re-
gime era uma coalizão de aristocratas das províncias, na sua mai-
oria proprietários de grandes plantações de base escrava, cujos
interesses eram defendidos pela Corte, na cidade do Rio de Janei-
ro, então capital do Império. A emancipação dos escravos em 1888
foi logo seguida pelo golpe republicano de 1889. Os militares fo-
ram influenciados pelo Positivismo e o novo centro econômico
do país trasladou-se para o Estado de São Paulo, ao Sul do Rio de
Janeiro, que já vinha empregando, há algum tempo, o trabalho
assalariado nas plantações de café.
114 PEDRO PAULO A. FUNARI

O então novo movimento republicano tem sido caracteriza-


do como um regime oligárquico, pois o país continuou a ser go-
vernado por uma ínfima minoria, que continuou a empregar os
métodos tradicionais do patronato, do favorecimento e da autori-
tária repressão das pessoas comuns. Ideologicamente, entretanto,
as novas elites não tinham interesse em manter o aspecto tanto do
mundo da Corte quanto de suas representações do passado. En-
quanto que as elites imperiais preferiam retratar-se como uma
mistura das antigas linhagens de proprietários de escravos com as
raízes nativas míticas, celebradas pela sua nobreza idealizada, os
novos proprietários capitalistas, por sua parte, não tinham esse
mesmo interesse pela nobreza, fosse ela européia ou indígena. As
novas elites rejeitaram as mais estimadas imagens criadas pelas
velhas elites, para o espanto da ainda orgulhosa elite da capital no
Rio de Janeiro. Carlos Gomes, o renomado compositor de óperas
de Campinas, em São Paulo, foi um dos melhores representantes
da abordagem de Corte nos anos finais do Império. Ele compôs
várias óperas em italiano, sendo Il Guarany a mais importante na
popularização do mito do “nobre índio”. Embora Gomes fosse de
São Paulo, o novo regime ignorou seu trabalho e substituiu a ide-
ologia (Anschauung) do Estado Imperial (Ortiz 1985) por novas
formas de cultura material que pudessem simbolizar sua posição
social e a dos grupos subalternos.
Nos últimos anos do Império, a Corte decidiu construir um
monumento em São Paulo, às margens de um regato, o Ipiranga,
onde Pedro I teria proclamado a Independência do Brasil, em 1822.
Depois do colapso da monarquia, em 1889, as novas elites paulistas
decidiram transformar tal monumento em um museu, o Museu
Paulista, que deveria ser, como posto em seus estatutos de 1894,
“um museu sul-americano, voltado ao estudo do reino animal, da
Zoologia, da História Natural e da História Cultural do homem”
(Regulamento 1894: 4). O estudioso alemão Herman von Ihering
foi o Diretor principal do Museu de 1894 a 1915. Tendo chegado
ao Brasil em 1880, este estudioso trabalhou, antes de se tornar
diretor do Museu Paulista, como um explorador naturalista para o
Museu Nacional. Ele organizou o Museu Paulista principalmente
como uma instituição de História Natural, mas também com se-
ARQUEOLOGIA E PATRIMÔNIO 115

ções dedicadas aos artefatos históricos e às “coleções etnográficas


e arqueológicas relacionadas aos indígenas brasileiros” (1894: 5).
Von Ihering estudou em Göttingen, onde obteve seu PhD em
Medicina, em 1873, e, em 1876, outro em Filosofia. Tornou-se,
então, Privatdozent em Zoologia da Universidade de Leipzig, em
1878, antes de partir para os trópicos, em 1880, onde adquiriu a
cidadania brasileira, em 1882 (Losano 1992). Von Ihering estava
bem informado sobre o discurso acadêmico de seu tempo, espe-
cialmente no que diz respeito às teorias científicas de fundo racis-
ta, como as especulações acerca do caráter racialmente hereditá-
rio da inteligência, sobre o caráter também hereditário do com-
portamento, e sobre as teorias eugênicas. Estas então chamadas
novas abordagens científicas da vida social estavam em sintonia
com as novas preocupações da elite em classificar as pessoas não
pela posição social, como era o caso durante o período imperial,
mas por supostos critérios científicos. Desta forma, o direito da
elite em governar não era mais justificado em termos de privilé-
gios de nascimento, mas por distinções “científicas” e “acadêmi-
cas” ente os que estão de acordo com as normas e os que não
estão, entre as pessoas que governam e as que são governadas (ou
oprimidas). O mítico e idealizado índio guarani, cultuado pelo
discurso imperial, foi deixado de lado, sendo substituído por uma
forma de abordagem mais racional, simpática aos proprietários
capitalistas e “de acordo com a propriedade privada”. Von Ihering
publicou, em 1908, uma impetuosa justificação da política de
exterminação dos nativos, em um famoso artigo publicado no
Jornal do Museu Paulista, intitulado “A questão dos indígenas no
Brasil”. Seu argumento provocou considerável oposição de vári-
os intelectuais do Rio de Janeiro, surpresos pela inversão de papeis
que se promovia. Os indígenas brasileiros, que tinham sido esti-
mados como fossem nobres ancestrais (mesmo se de acordo com
uma origem distante e mítica), eram agora retratados como um
obstáculo ao avanço dos proprietários de terra capitalistas, que
deviam extermina-los. Havia uma lógica de ferro por detrás da
abordagem acadêmica de Von Ihering: era de importância capital
garantir a propriedade privada da terra e o desenvolvimento das
atividades de extração dos recursos naturais, tarefas que seriam
impossibilitadas caso os indígenas não fossem eliminados; a co-
116 PEDRO PAULO A. FUNARI

leta de material arqueológico e etnográfico dos grupos indígenas


era, então, apenas uma maneira de se tomar posse da cultura ma-
terial de um povo na iminência da extinção. O Museu Paulista e
seu diretor ganharam o Grande Prêmio da Exposição Nacional,
no Rio de Janeiro, em 1908, pela apresentação de artefatos indí-
genas. Na época, tal coleção de cultura material indígena era iné-
dita, e foi decerto mais abrangente que o conjunto de todas as
coleções levadas a termo durante o regime Imperial.
De diversas formas, o trabalho de Von Ihering expressava o
novo ponto de vista científico e a abordagem capitalista para com
as populações indígenas brasileiras – que deveriam ser preserva-
das apenas na forma de suas relíquias materiais. Este estudioso
também exerceu uma influência significativa sobre o desenvolvi-
mento da Arqueologia no país, de forma que ao adotarem sua abor-
dagem, muitos estudiosos começaram a assumir que seu conheci-
mento especializado e cientificamente objetivo a respeito da cul-
tura indígena autorizava-os a lidar com os nativos e com seus
vestígios materiais da forma que melhor lhes aprouvesse. No fi-
nal das contas, a destruição das culturas nativas foi considerada
como fato inevitável – para alguns, praticamente uma necessida-
de. Nativos, negros e imigrantes das chamadas “raças inferiores”
(inclusos aí os judeus, árabes, italianos, espanhóis e portugueses),
em suma, todos que estavam chegando em números cada vez
maiores ao país, foram representados pela nova elite capitalista
como não civilizados, graças a intelectuais como Von Ihering. Iro-
nicamente, Von Ihering teve um destino inglório, pois foi demiti-
do do Museu Paulista em 1916 e retornou à Alemanha em 1920.
Vários comentadores relacionam sua desgraça ao fato do Brasil
estar em guerra com a Alemanha, e sugerem que alguma espécie
de sentimento anti-germânico tenha contribuído para sua queda.
Entretanto, a razão oficial para sua demissão foi uma acusação de
uso indevido de dinheiro público. Algumas versões chegam a afir-
mar que ele tenha dirigido o Museu como fosse seu “domínio
feudal” particular (como era comum, e ainda o é, no Brasil), ten-
do empregado seu próprio filho, Rodolfo, como diretor-associa-
do. Qualquer que tenha sido o caso, com a demissão de Von Ihering,
seu discurso científico, fundado sobre a justificação arqueológica
ARQUEOLOGIA E PATRIMÔNIO 117

da exterminação dos indígenas, foi substituído por um outro dis-


curso a respeito dos grupos subordinados.
O sucessor de Von Ihering, Affonso d’E. Taunay, foi um dos
principais proponentes de uma nova forma de inventar o passado
no Brasil. São Paulo tinha estado na linha de frente do poder eco-
nômico e político desde a queda da monarquia, com os proprietá-
rios das plantações de café fornecendo os sustentáculos para o
novo regime. Estes plantadores, entretanto, também começaram
a investir seus capitais na cidade de São Paulo e na sua industria-
lização, que, em contrapartida, estimulou um significativo influ-
xo de migrações transoceânicas. A maioria destas migrações era
de italianos: em 1901, 90% de todos os trabalhadores de São Pau-
lo eram italianos, e mesmo em 1920 o número destes indivíduos
chegava próximo aos 40%. Outros vinham de lugares mais dis-
tantes, incluindo o Japão, e de outras regiões às margens do Me-
diterrâneo. Muitos lojistas e varejistas, por exemplo, eram pesso-
as de origem judaica ou árabe provenientes do Império Otomano,
conhecidos simplificadamente como “turcos”. Em reação a estas
mudanças sociais, o discurso da elite mudou, a ponto do termo
“selvagem” ser utilizado não apenas para os indígenas das terras
ainda não exploradas, mas também para os trabalhadores nas plan-
tações e para o proletariado urbano. A indicação de Taunay para o
Museu Paulista coincide com este período de mudança social, e
suas atividades na reformulação do Museu foram instrumentais
na criação de uma nova imagem material do passado.
Especificamente, Taunay foi encarregado de remontar a exi-
bição do Museu, preparando-o para a comemoração do centési-
mo aniversário da Independência, que ocorreria em 1922. Taunay
dispensou a exibição acadêmica desenhada por Von Ihering e subs-
tituiu todo o material original por um grupo completamente novo,
glorificando uma recém criada figura histórica, o pioneiro ban-
deirante. Taunay e outros intelectuais da elite forjaram o termo
como uma maneira de distinguir as antigas famílias paulistas dos
outros habitantes do Estado.
Os bandeirantes foram imaginados nos moldes daqueles
heróicos caçadores de escravos que lutaram pela expansão das
118 PEDRO PAULO A. FUNARI

fronteiras do oeste brasileiro, combatendo indiferentemente indí-


genas, africanos e espanhóis, e tornando-se, desta forma, os res-
ponsáveis por multiplicação do território português na América
do Sul (Love 1982; Abud 1986). Taunay descreveu-os nos moldes
dos antigos fundadores de Roma, como fossem eles patres patriae
(“os pais da nação”) ou ditadores romanos (Taunay 1929: 107,
115). A elite bandeirante de São Paulo deveria guiar o país, e não
ser guiada, como no dito latino non ducor, duco, adotado pela
cidade de São Paulo na onda de comemorações do centenário da
Independência, em 1822. Parafraseando Cícero, poderíamos di-
zer que as elites consideravam que “bandeirante seruire fas non
est, quem dii immortales omnibus gentibus imperare uoluerunt”
(“não é permitido aos bandeirantes serem governados, pois as di-
vindades imortais destinaram-nos a governar sobre todas as ou-
tras pessoas”). A invenção do próprio nome bandeirante esta na
dependência da invenção de um objeto, da recorrência a um ele-
mento da cultura material (cf. McGuire e Walker 1999: 162), de
uma bandeira – como uma insígnia militar que representasse a
tradição dos bandeirantes. Não é uma referência distante buscar a
origem deste mito nas leituras da mesma literatura latina que ins-
pirara Taunay, e no seu uso do uexillum (estandarte) como uma
referência tanto à bandeira militar quanto às tropas pertencentes a
uma unidade (cf. César, De bello gallico 2, 20 e Tácito, Historiae
1, 70).
Os bandeirantes foram inventados por intelectuais como Ellis
(1926) e Alcântara Machado (1926), mas foi Taunay quem os
materializou na exposição do Museu Paulista (Rodrigues 1999:
147). Na antecâmara do Museu, as imensas estátuas dos bandei-
rantes de Taunay saudavam os visitantes. Cada região do país era
representada como se tivesse sido conquistada pelos bandeiran-
tes, também com o recurso de esculturas, pinturas e outros itens
materiais que eram usados para guiar o público. A fundação da
primeira cidade na colônia portuguesa (“A Fundação de São
Vicente, em São Paulo”) foi retratada com os primeiros coloniza-
dores representados como os bravos descobridores, com bandei-
ras nas mãos, como se estivessem na iminência de conquistar o
continente. O simbolismo implicava que estes colonizadores não
ARQUEOLOGIA E PATRIMÔNIO 119

eram mais portugueses, mas, ao contrário, já pertenciam ao inte-


rior do novo mundo e olhavam na direção das fronteiras do oeste
como se a imaginar um futuro glorioso. Uma outra pintura (“A
partida dos exploradores do rio”), mostra uma expedição bandei-
rante partindo para conquistar as terras longínquas. Nestas pintu-
ras, grupos subalternos são retratados apenas como servos obedi-
entes. Eles também estão ausentes da maioria das outras galerias
que, mesmo oitenta anos mais tarde, estão hoje ocupadas com
doses maciças de cultura material da elite. Estão, por exemplo,
entre este material, as liteiras usadas pela elite. Curiosamente,
como em tantos outros casos análogos, os grupos subalternos que
as carregavam, os escravos, adquirem, nestes contextos, uma sur-
preendente invisibilidade. Não existe referência a eles, eles não
pertencem ao mundo material que povoa a maioria dos principais
museus brasileiros (Funari 1994; 1995).

ARQUEOLOGIA ACADÊMICA DA DÉCADA DE 1940

A primeira universidade brasileira foi fundada em São Paulo


na década de 1930, mas a Arqueologia como uma atividade aca-
dêmica foi introduzida apenas depois da Segunda Guerra Mun-
dial, principalmente devido à pioneira condução política e inte-
lectual de Paulo Duarte, amigo de vários eminentes arqueólogos
franceses. Duarte foi um humanista sem igual e um defensor dos
grupos subalternos, ainda mais se tivermos em conta que ele mes-
mo fez parte da antiga elite liberal paulista – um verdadeiro “ban-
deirante”. Duarte, entretanto, no início de sua carreira, foi um
defensor aguerrido do patrimônio, como ele mesmo tornou claro
em um discurso que proferiu na Assembléia Legislativa de São
Paulo, quando propôs a criação de um Departamento Estadual do
Patrimônio, apenas alguns dias antes do golpe fascista de 1937
(Duarte 1937). Duarte combateu o governo ditatorial que se ins-
talara (1937-1945) e foi para o exílio na França. Lá se interessou
pelos estudos que os franceses vinham fazendo a respeito do en-
genho humano (vista como uma capacidade de toda a humanida-
de), assim como pelos estudos de pré-história, levados a termo
em uma perspectiva dilatada: desde os primeiros hominídeos até
120 PEDRO PAULO A. FUNARI

o presente, e em todas as partes do mundo. O conceito chave era


“l’homme”, o ser humano e sua capacidade de criar, um conceito
diretamente associado com a luta pelos direitos humanos (les droits
de l’homme), em uma Europa pós Segunda Guerra Mundial que
colocava o nazismo no esquecimento.
Devido à sua amizade com Paul Rivet, então diretor do Musée
de l’Homme em Paris, Duarte criou a Comissão de Pré-história da
Universidade de São Paulo, em 1952; trouxe arqueólogos profis-
sionais franceses, J. Emperaire e A. Laming (Emperaire & Laming
1956; 1958) para trabalhar nesta instituição; e começou a treinar
brasileiros na área (López Mazz 1999). Pela primeira vez na his-
tória brasileira, material pré-histórico foi considerado um
patrimônio humano, digno de ser preservado e estudado. Preocu-
pado com “l’homme américain” (“o homem nativo da América”),
Duarte defendeu a idéia de se instituir uma proteção legal para o
patrimônio pré-histórico brasileiro (Duarte 1958). Como um re-
sultado de seus esforços, o Congresso brasileiro promulgou uma
lei federal (Lei No. 3942) em 1961, protegendo os vestígios ar-
queológicos – que permanece ainda hoje como o único item da
legislação nacional a respeito do assunto (Morais 2001). Duarte
(1952; 1955; 1968; 1969) estudou e lutou em favor da proteção
dos sambaquis, amplamente usados pelas empresas construtoras
para pavimentar estradas e rodovias. Como uma conseqüência,
restos humanos até então tomados como de pouca importância –
resultado da ação milenar do homem em determinados contextos
– foram pela primeira vez considerados dignos de atenção (Bruno
1991; Funari 1999b). Os “nativos”, por muito tempo subordina-
dos, foram introduzidos não apenas nas discussões acadêmicas
mas na sociedade de uma maneira geral.
Estes esforços humanistas sofreram um severo revés em 1964,
quando ocorreu um golpe militar que colocou o país sob um go-
verno autoritário nos vinte e um anos seguintes. Logo depois do
golpe, o Instituto Smithsonian e as autoridades militares começa-
ram um plano arqueológico, que duraria cinco anos, para
reformular a ainda incipiente Arqueologia brasileira. Cliffor Evans
e Betty Meggers, do Smithsonian, organizaram o Projeto Nacio-
ARQUEOLOGIA E PATRIMÔNIO 121

nal de Pesquisa Arqueológica, mais conhecido pela sigla


PRONAPA. Como este chamado programa nacional (sic) fosse
controlado por Washington, a Arqueologia humanista foi inicial-
mente desestimulada e, mais tarde, ativamente perseguida. Duarte
e seus colegas pesquisadores, interessados nos nativos, sofreram
restrições de verbas. Como um ato final, Duarte foi expulso da
vida universitária pelas autoridades, ajudadas por alguns oportu-
nistas, como ele mesmo recordou em um documento publicado
depois de sua morte (1994). Sua última publicação foi “Fontes
para a pesquisa pré-histórica” (1970), que nunca foi distribuída,
pois foi censurada por aqueles que, primeiro, o perseguiram e,
mais tarde, sucederam-no no comando do Instituto de Pré-histó-
ria (Caldarelli 2000). Neste artigo em questão, Duarte refere-se
ao regime de governo que conduziu sua expulsão como ditatorial,
ressalta que os indígenas, em particular, estavam experimentando
a destruição de seu patrimônio, e critica abertamente os novos
“invasores bandeirantes do século XX” (Duarte 1970: 371, 379 e
381).
Passou a ser impossível tomar os grupos subordinados como
objeto de estudo arqueológico, assim como de qualquer outra disci-
plina acadêmica. Gradualmente, a partir da década de 1970, o
regime militar permitiu algumas liberdades, mas a Arqueologia
não foi logo beneficiada, pois estava ainda sob o controle dos
partidários dos militares. Apenas em 1985, com a saída de cena
do governo ditatorial, é que os arqueólogos se viram mais uma
vez livres para comprometer-se com os grupos subalternos. Mais
uma vez uma abordagem humanista foi, também, possível, mais
uma vez “l’homme américain” foi trazido para o centro das dis-
cussões por vários arqueólogos. Por todo o país, vários estados e
municípios introduziram artigos em suas legislações, buscando
proteger os vestígios arqueológicos. Pela primeira vez, também, a
Arqueologia começou a ser usada para estudar os grupos de des-
cendência africana, como é o caso da Arqueologia dos grupos “mu-
latos” (Orser e Funari 1992; 2001; Funari 1999c, com referências
anteriores; Allen 1999). Da mesma maneira, a Arqueologia foi
usada para se lidar com vestígios de “desaparecidos”, daqueles
que assassinados e enterrados em valas comuns pelo governo
122 PEDRO PAULO A. FUNARI

ditatorial (Oliveira, com.pess.). O estudo dos sitos relacionados


com os povos de origem e descendência africana é uma maneira
de compreender o racismo e as formas de resistência desenvolvi-
das contra ele (Paynter 1990: 60), assim como o estudo da opres-
são foi e é uma maneira de fazer oposição ao governo autoritário.
Talvez o mais importante ganho da Arqueologia, no últimos
anos, tenha sido o engajamento dos seus profissionais com o pú-
blico (cf. Funari 2000b). Vários arqueólogos continuam perpetu-
ando a longa tradição de se estudar o passado a partir do ponto de
vista das classes altas, celebrando abertamente as finas louças
usadas pelas elites, defendendo que certas peças arqueológicas
possam ser vendidas em lojas de Antigüidade (e.g. Lima 1995;
criticism in Trigger 1998: 16) e mesmo promovendo a expulsão
dos índios, dos “negros” e das pessoas comuns em geral das áreas
ocupadas pelas elites (veja exemplos em Funari 2001b). Tal pos-
tura não é surpreendente se considerarmos a natureza da estrutura
social brasileira e a tumultuada história da disciplina arqueológi-
ca durante o recente passado ditatorial. É sempre difícil ouvir a
voz dos grupos subordinados (Spivak 1988), mas a Arqueologia
pode desempenhar um papel central na tarefa de torná-la mais
fácil de ser ouvida (Hall 1999). O ato de examinar a evidência
material dos grupos subordinados oferece uma oportunidade de
se ter um acesso mais abrangente a comunidades que tradicional-
mente não são representadas (cf. Guimarães 1990), tanto no pas-
sado histórico quanto no pré-histórico (Saitta 1995: 385; McGuire
1999: 830).
Se a sociedade é caracterizada por contradições sociais, lu-
tas e conflitos de interesse, então os membros dos grupos subal-
ternos e dos grupos dominantes estarão sempre em oposição, e
cada arqueólogo terá de decidir do lado de qual se colocará. Neste
contexto, o engajamento com a sociedade é um aspecto definidor
do trabalho do arqueólogo, principalmente daquele que busca
manter uma posição crítica no que concerne às condições sociais
do país onde trabalha (Trigger 1990: 785; McGuire 1999: 828).
Em 1999, os 10% que representam a camada mais rica da popula-
ção do Brasil detinham 52% da riqueza do país, enquanto que os
ARQUEOLOGIA E PATRIMÔNIO 123

50%, que representam a cada mais pobre, detinham apenas 10%


da riqueza do país (Marin 2001). As pessoas de descendência afri-
cana representam 45% da população, mas apenas 2% destes são
estudantes universitários (Beting 2001), e existem mais de 40
milhões de brasileiros com alguma ascendência indígena. Arque-
ólogos em sociedades deste tipo são necessariamente parte da eli-
te, e a Arqueologia pode ser usada ideologicamente para reforçar
o discurso de exclusão por meio da manipulação da cultura mate-
rial (Rodrigues 1999: 151; Skidmore 2000: 572). Provavelmente
a melhor maneira de combater esta tendência é o engajamento
com a sociedade; já que, na sua grande maioria, os indivíduos de
uma sociedade são claramente aquilo que Walter Benjamin (1974:
352) denominou de geknechteten, “subalternos” – termo que en-
globa todos aqueles destinados a servir os outros (cf. Funari 1998:
109; Felman 1999: 12-14). Tal caminho abre a oportunidade para
os arqueólogos confrontarem suas evidências de uma perspectiva
crítica, observando as contradições tanto no passado quanto no
presente (Tilley 1982: 37; Spriggs 1983: 3; Leone 1986). As críti-
cas mais agudas feitas a respeito da Arqueologia da dita camada
superior provém, atualmente, dos arqueólogos do terceiro e do
quarto mundo, assim como das mulheres e das minorias étnicas
no ocidente (Durrans 1989: 73). A Arqueologia dos grupos subal-
ternos é, desta forma, uma maneira de escrutinar os contextos –
tanto do passado quanto do presente – em que os discursos arque-
ológicos a respeito do passado são produzidos e reproduzidos. A
Arqueologia fornece acesso , indiferentemente, à dominação e á
resistência a ela, às elites e aos subordinados (Paynter e McGuire
1991: 13; Frazer 1999: 5). A Arqueologia do gênero (Cavicchioli
2002; Freitas 1999), o resgate dos direitos das comunidades indí-
genas (Baeta 2000; Noelli 1998; 2000; Nunes 2002; Oliveira 1996),
a luta por museus mais democráticos (Gomes 2001; Rodrigues
2001; Tamanini 1999), a política patrimonial (Juliani 1995;
Caldarelli 1999; Cali 2001), e o crescimento da análise crítica da
disciplina (Neves 1988; Reis 2002) são todos passos importantes
da Arqueologia brasileira em suas novas preocupações com os
grupos subalternos. A Arqueologia brasileira tem, hoje, uma opor-
tunidade sem igual de se engajar na recuperação dos grupos su-
balternos, e de lutar por liberdade.
124 PEDRO PAULO A. FUNARI

AGRADECIMENTOS

Este artigo foi, originalmente, escrito em inglês e traduzido para o


português por Fábio Adriano Hering, a quem agradeço. O artigo em inglês
será publicado em livro em breve. Agradeço, ainda, aos seguintes colegas:
Scott Joseph Allen, Dione Bandeira, Cristina Bruno, Solange Caldarelli,
Marina Regis Cavicchioli, Brian Durrans, Lúcia Juliani, Leandro Karnal,
Luciana Freitas, Johnni Langer, Mark P. Leone, Maria Margaret Lopes, José
Maria López Mazz, Randall McGuire, José Luiz de Morais, Walter Alves
Neves, Francisco Silva Noelli, Solange Nunes, Nanci Vieira Oliveira, Charles
E. Orser, Renato Ortiz, Ana Piñon, Jr., Jaime Pinsky, Marly Rodrigues,
Thomas C. Patterson, Maria Isaura Pereira de Queiroz, Dean J. Saitta,
Thomas Skidmore, Elizabete Tamanini, Bruce G. Trigger. Devo mencionar,
ainda, o apoio institucional do Núcleo de Estudos Estratégicos da UNICAMP,
FAPESP e CNPq. A responsabilidade pelas idéias restringe-se ao autor.

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A “REPÚBLICA DE PALMARES” E A ARQUEOLOGIA DA
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A idéia de desenvolver um projeto de pesquisa arqueológica


sobre a República de Palmares (1) amadureceu quando da visita
do Professor Charles E. Orser Jr., da Illinois State University,
em 1991, ao Brasil. Orser, pesquisador norte-americano renomado,
especialista no estudo da cultura material afro-americana (2), es-
tava interessado em aplicar as modernas técnicas do trabalho ar-
queológico ao estudo da cultura africana em liberdade, nos
quilombos, e conjuntamente pudemos propor uma Projeto de Pes-
quisa para o estudo de Palmares. Contando, ainda, com a ajuda do
africanista britânico Michael Rowlands (University College
London), submetemos nosso projeto de prospecção arqueológica
da área a instituições científicas internacionais, tendo obtido fi-
nanciamento para duas etapas de campo, em 1992 e 1993 (3).
O objetivo mais amplo do Projeto Arqueológico Palmares,
como foi denominado, consiste em adquirir informação sobre a
vida quotidiana em Palmares, principalmente por meio dos vestí-
gios materiais. Quase tudo que se sabe sobre Palmares deriva de
documentos escritos por aqueles que, de uma forma ou de outra,
combatiam o quilombo, o que acaba por gerar uma visão distorcida
daquela sociedade. Até aquele momento, não havia sido efetuada
nenhuma pesquisa arqueológica na área do antigo quilombo. Nada
se sabia sobre a cultura material de Palmares e o Projeto Arqueo-
lógico Palmares procura, em primeiro lugar, obter informações
detalhadas, e de primeira mão, sobre os tipos de arfefatos feitos e
usados em Palmares. A partir desses dados concretos, pode-se al-
mejar obter informações a respeito da organização ideológica,
social, econômica e política. De início, planejamos realizar duas
etapas de campo de caráter prospectivo, visando localizar sítios
arqueológicos em superfície e realizar algumas trincheiras e/ou
132 PEDRO PAULO A. FUNARI

quadrículas, apenas na Serra da Barriga, único local seguramente


identificado como parte do antigo quilombo (4).
A República de Palmares compunha-se de diversos mocam-
bos, cujos nomes, transmitidos pelos documentos da época, pos-
suem etimologia africana, tupi e portuguesa (5). A capital, conhe-
cida, na época, como Cerca Real do Macaco ou Serra da Barriga,
localiza-se no município de União dos Palmares (5). A metodologia
da etapa de campo consistiu, basicamente, em um levantamento
ou prospecção pedestre, visando localizar vestígios materiais ar-
queológicos superficiais. Tendo identificado artefatos na superfí-
cie, planejamos realizar alguns testes com pás, a fim de determi-
nar a profundidade e grau de preservação do material. Esse proce-
dimentos básicos permitiram mapear os sítios arqueológicos e
avaliar as possibilidades de trabalhos arqueológicos futuros mais
extensos e demorados.
Antes de iniciarmos os trabalhos de campo, partimos dos
documentos escritos para entendermos como os colonizadores
compreenderam e combateram esse estado rebelde (6). Já em 1612,
há referências a uma comunidade de escravos fugidos na Zona da
Mata e em 1640 os holandeses consideram-na um sério perigo
(7). Baro comandou um ataque holandês em 1644 que teria viti-
mado cem pessoas e capturado 31 quilombolas, de um total de
seis mil que viviam no principal acampamento (8). A rivalidade
entre portugueses e holandeses seguramente contribuiu para o cres-
cimento de Palmares e, com a retirada desse últimos, os ataques
aos assentamentos, que já eram nove, intensificaram-se no perío-
do entre 1654 e 1667. A partir de 1670 ofensivas quase anuais
visavam destruir o Estado rebelde, governado por Ganga Zumba,
entre 1670 e 1687 (9). Acusado de colaboracionismo, Ganga Zum-
ba foi morto e sucedido por seu sobrinho Zumbi, rei entre 1687 e
1694, iniciando um período de guerras mais intensas, que culmiram
com a expedição comandada pelo paulista Domingos Jorge Velho
(10). Em fevereiro de 1694, após um sítio de 42 dias, Macaco foi
tomada e Domingos Jorge Velho reivindicou o botim, tendo viti-
mado 200 quilombolas e aprisionado 500, a serem vendidos fora
da capitania (11). Duzentos teriam fugido, entre os quais Zumbi,
capturado e morto em 20 de novembro de 1695.
ARQUEOLOGIA E PATRIMÔNIO 133

Nas duas campanhas de prospecção, em 1992 e 1993, foi


possível identificar 14 sítios arqueológicos na Serra da Barriga,
apenas um deles posterior ao quilombo dos Palmares (12). Os
outros sítios puderam ser datados pela presença de majólica ou
cerâmica vidrada, caracterizada por um brilho opaco que contém
óxido de estanho. A localização dos sítios não parece ser fortuita
pois, à exceção do sítio 11, datado do século XIX, os sítios restan-
tes situam-se na parte superior ou na face sul, com um possível
alinhamento de sítios de observação nos costados a sudeste. Os
sítios 10, 13, 8, 6, 9, 7 e 5 formam uma linha leste/oeste, ao sul da
Serra, defronte ao rio Mundaú. Ainda que seja prematuro aventar
hipóteses sobre a funcionalidade dos sítios, cuja densidade de
ocupação ainda não é possível determinar, os futuros trabalhos
poderão melhor relacionar esse alinhamento e a estrutura geral do
assentamento quilombola.
A cerâmica vidrada encontrada no sítio pode ser enquadrada
no amplo espectro denominado de majólica. A majólica foi, pro-
vavelmente, introduzida na Península Ibérica pelos mouros, tor-
nando-se popular apenas com a Reconquista, a partir do século
XIII (13). Cerâmicas relacionadas são as faianças francesas, ho-
landesas e inglesas (delft). Os fragmentos provenientes da Serra
da Barriga não podem ser considerados comparáveis à majólica
fina da época, devendo ser encarada como um material utilitário e
derivado (14). Um dos fragmentos apresenta duas faixas parale-
las avermelhadas, com fundo verde amarelado, enquanto outras
peças, de diferentes formas, possuem um vidrado que varia do
amarelado ao esverdeado. Este tipo cerâmico, associado à cerâ-
mica comum encontrada na Serra da Barriga, confirma a ocupa-
ção da área no século XVII (15).
De um total de 2.448 artefatos coletados, mais de noventa
por cento são objetos de cerâmica (16). Um grande vaso, encon-
trado enterrado há 15 centímetros de profundidade, merece al-
guns comentários. Havíamos traçado dois transeptos, ou linhas
norte/sul e leste/oeste, e testávamos, a cada dez metros, com uma
pá, a área imediatamente à frente dos monumento a Zumbi, quan-
do encontramos, no teste de 40 metros norte, um grande vaso en-
134 PEDRO PAULO A. FUNARI

terrado em época colonial (17). No topo do vaso, em sua parte


exterior, encontramos dois machados líticos com seus fios para
baixo, apoiados nas bordas do vaso. Ambos encontravam-se in
situ e não apresentavam sinais de uso, o que sugere um caráter
ritual ou apotropaico. Na parte superior interna do vaso, encon-
tramos um segundo vasilhame, fragmentado mas completo, escu-
ro, de paredes finas (0,54 cm), com diâmetro, na boca, de 36 cm.
No fundo do grande vaso encontramos 31 fragmentos diminutos
de cerâmica.
A interpretação desse achado não é simples. Uma primeira
hipótese poderia relacionar o vaso aqueles de tipologia tupinambá
(18). Poderia tratar-se, seguindo uma tradição de cemitérios indí-
genas pré-cabralinos, de uma urna funerária, na medida em que
toda a área circundante apresenta abundantes vestígios superfici-
ais de vasos desse tipo. Entretanto, a presença dos machados, do
vaso no topo e dos fragmentos cerâmicos no fundo sugerem ou-
tras possibilidades. Poderia tratar-se de um depósito de grãos ou
outros materiais, o que explicaria o vaso no topo e os fragmentos
ao fundo (19). Os machados serviriam, nesse caso, para proteger
o vaso e seu conteúdo. A própria forma do vaso pode ser relacio-
nada à África, pois os Mbundu, em Angola, utilizam recipientes
muito semelhantes (20). Talvez fosse possível aventar a hipótese
de que as índias tivessem produzido esses vasos, usados no assen-
tamento quilombola, segundo sua técnica tradicional tupinambá,
mas cuja forma não era estranha aos africanos e cujo uso poderia
ser mais próximo dos costumes bântus do que ameríndios (21).
De qualquer forma, a presença de cerâmica indígena em assenta-
mentos coloniais não devia ser excepcional e o caso da cidade
espanhola de Santa Fé La Vieja, no nordeste da Argentina, ocupa-
da de 1573 a 1660 parece indicar que uso de cerâmica local não-
hispânica, de tipo tupi-guarani, era bastante difundida. Não se
estranharia tendência semelhante no quilombo de Palmares (22).
Os resultados preliminares das prospecções arqueológicas
na Serra da Barriga indicam que o tema crucial para a compreen-
são do quilombo relaciona-se com a etnicidade dessa comunida-
de. Stuart Schwartz talvez tenha sido o historiador que melhor
ARQUEOLOGIA E PATRIMÔNIO 135

tenha desenvolvido a tese de que Palmares era uma sociedade


muito claramente africana:
“As tradições de Angola claramente predominaram. Os resi-
dentes referiam-se a Palmares como angola janga (pequena
Angola)...O ki-lombo, uma sociedade a qual qualquer homem
podia pertencer por meio do treinamento e iniciação, servia àque-
le propósito. Encontra-se, pois, uma instituição designada para a
guerra, a qual podia incorporar grande número de estranhos des-
providos de ancestrais comuns a um poderoso culto guerreiro...
Uma figura fundamental no ki-lombo era o nganga a zumba, um
sacerdote cuja responsabilidade era tratar com o espírito dos mor-
tos. O ganga zumba de Palmares era provavelmente o detentor
desse cargo....Devemos considerar os aspectos africanos de
Palmares não como “sobreviventes” desincorporados de seu meio
cultural original, mas como um uso muito mais dinâmico e talvez
intencional de uma instituição africana na forma especificamente
designada para criar uma comunhão entre povos de orígens
díspares e fornecer uma organização militar eficiente. Certamen-
te os escravos fugidos do Brasil adequam-se a essa descrição”(23).
Essa interpretação segue uma tradição de associar-se os costu-
mes de Palmares com aqueles de Angola (24). Contudo, a assimi-
lação do ki-lombo angolano com o quilombo de Palmares pare-
ce, à luz dos estudos de africanistas, insustentável. De fato, o ter-
mo quilombo só foi usado no Brasil em 1691, segundo Schwartz,
estando ausente dos documentos anteriores que se referem a
Palmares. O ki-lombo angolano, por sua parte, foi um movimen-
to guerreiro muito específico e efêmero, datado do segundo quar-
tel do século XVII (25), posterior, portanto, ao início de Palmares.
Por outro lado, John Thornton tem ressaltado que os contatos cul-
turais, na própria África, entre europeus e africanos era muito mais
intensos do que se costuma admitir (26) e sugere que, nas Améri-
cas, “os escravos não eram militantes culturamente nacionalistas,
que procuravam preservar tudo que fosse africano mas, ao contrá-
rio, mostravam grande flexibilidade para adotar e mudar sua cul-
tura” (27). Em geral, portanto, pode afirmar-se que os africanos,
na América, passavam a forjar culturas especificamente america-
nas, diversas das africanas (28).
136 PEDRO PAULO A. FUNARI

Nesse contexto, não é de se estranhar as referências ao cato-


licismo em Palmares, nem à presença de mouros, brancos e índi-
os no quilombo, presenças cuja inserção no ki-lombo imbangala
seria impensável. Segundo diversos estudiosos, as perseguições
coloniais fariam com que Palmares pudesse atrair uma pletora de
grupos marginalizados pela ordem vigente (29). O trabalho ar-
queológico em Palmares, embora ainda muito inicial, já demons-
tra que, apenas a partir da cerâmica, pode supor-se que ali convi-
viam pessoas de diversas origens étnicas e culturais. Este caráter
multiétnico deriva, em parte, da situação histórica e estratégica
de Palmares. Os quilombos estabeleceram-se em uma região cir-
cundada por nativos, a oeste, por moradores e fazendeiros, na costa
e, entre 1630 e 1654, os holandeses a nordeste. Os mocambos
sobreviveram não apenas em confronto com esses grupos como,
necessariamente, em interação. Na verdade, faziam parte de um
contexto internacional ainda mais amplo, pois a própria escravi-
dão colonial era o resultado do capitalismo mercantil europeu (30).
A continuidade do trabalho arqueológico na Serra da Barri-
ga, prevista para os próximos anos, permitirá passar das
proscpeções, efetuadas nas duas primeiras etapas de campo, para
escavações. Os primeiros resultados indicam que há ainda muito
a fazer, mas as perspectivas são, também, bastante amplas. O in-
teresse por Palmares, tanto no Brasil como no exterior, tem sido
acentuado, em parte graças às prospecções arqueológicas (31).
Seu prosseguimento deverá trazer dados inéditos que permitam
repensar esse grande Estado rebelde (32).

NOTAS
1. O nome “república”, utilizado nos documentos do século XVII é uma
tradução, ao vernáculo, do termo latino então corrente, res publica, usa-
do para designar qualquer Estado; cf. Édison Carneiro, O Quilombo de
Palmares, São Paulo, 1988, p.33. Termos de origem africana, como
mocambo e quilombo, foram introduzidos posteriormente, em geral com
conotações pejorativas. Nos documentos que se referem a Palmares, o
assentamento rebelde é chamado de mocambo, “esconderijo”, segundo
ARQUEOLOGIA E PATRIMÔNIO 137

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2. Ver o volume organizado por Orser, Historical Archaeology on Southern
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3. Obtivemos fundos da Illinois State University, National Geographic
Society, National Science Foundation, Joint Committe on Latin
American Studies of the Social Science Research Council, American
Council of Learned Societies, National Endowment for the
Humanities, Ford Foundation e apoio institucional do Núcleo de Es-
tudos Afro-Brasileiros da Universidade Federal de Alagoas, Museu Théo
Brandão (Maceió), da prefeitura de União dos Palmares e do Estado de
Alagoas; a participação, na etapa de campo, de Michael Rowlands foi
financiada pelo British Research Council.
4. A localização dos outros mocambos ou aldeias não é segura, como fica
claro ao compararmos os mapas apresentados por Décio Freitas,
Palmares: A Guerra dos Escravos, Porto Alegre, 1984 e por Zezito de
Araújo, Serra da Barriga: Exposição de Motivos para o Tombamen-
to, Maceió, 1985.
5. Kent, op.cit., pp.180-1 relaciona os nomes Aqualtene, Dombrabanga,
Zumbi, Andalaquituche a idiomas bântus; Subupira e Tabocas são
topônimos tupis, segundo Teodoro Sampaio, em seu dicionário O Tupi
na Geografia Nacional, São Paulo, 1987; a capital, Macaco, conhecida
nos documentos da época como Oiteiro da Barriga (hoje, Serra da Barri-
ga), pode ser português ou uma má interpretação do termo bântu mococo;
Amaro é de origem portuguesa.
5. A Serra da Barriga localiza-se, aproximadamente, a 9 graus 10’00" Sul e
36 graus 05’00" Oeste, medindo cerca de 4.000 metros de leste a oeste e
500 a 1.000 metros de norte a sul. A altitude varia de 150 a 560 metros
acima do nível do mar; cf. Charles E. Orser Jr., In Search of Zumbi:
Preliminary Archaeological Research at the Serra da Barriga, State
of Alagoas, Brazil, Normal, Illinois State University, 1992, pp.14-15 et
passim.
6. Sempre levando em conta que “toda sociedade deixa registros que procu-
ram apresentar suas próprias visões e respostas que se ajustem a um
ambiente político específico”, segundo John Thornton, “The
Correspondence of the Kongo Kings, 1614-35, Problems of Internal
Written Evidence on a Central African Kingdom”, Paideuma, 33, 1987,
p.420.
138 PEDRO PAULO A. FUNARI

7. Gaspar Barleus, em seu História dos feitos recentemente practicados


durante oito anos no Brasil, Belo Horizonte, 1974 (originalmente pu-
blicado em 1647), p.253, refere-se a que “certo Bartolomeu Lintz vivera
entre eles para que, depois de ficar-lhes conhecendo os lugares e o modo
de vida, atraiçoasse os antigos companheiros”.
8. É difícil avaliar a veracidade desses números, que poderiam estar infla-
dos. De qualquer forma, dos 31 quilombolas capturados, sete eram índi-
os e alguns crianças mulatas.
9. Há muitas evidências da religiosidade associada ao poder, tanto na África
como em Palmares. O título nganga era usado para designar “sacerdo-
te”, tanto nas religiões tradicionais bântus como no catolicismo africa-
no, segundo Jean Nsondé, “Christianisme et religion traditionelle au pays
Koongo aux XVII-XVIIIe. siècles”, Cahiers d’Études Africainnes, 128,
23, 4, pp.705-711. A importância da ligação entre o exercício do poder e
o controle do sagrado na África bântu tem sido ressaltada por Michael
Rowlands, “From Tribe to State in West Central Africa”, Symposium at
Cascais on Critical Approaches in Archaeology: Natural Life,
Meaning, and Power, manuscrito inédito, p.29 e Michael Rowlands e
Jean Pierre Warnier, “Sorcery, Power, and the Modern State in
Cameroon”, Man (NS), 23, 1992, pp.118-132. Sobre o título nzumbi,
ver Tulu Kia Mpansu Buakasa, “Croyances et connaissances”, em
Théophile Obenga e Simão Souindoula (orgs), Racines Bantu, Libreville,
1991, p.179.
10. O termo nzumbi possui conotações militares e religiosas a um só tempo.
11. Segundo o preceito romano reconhecido à época: iuste possidet, qui
auctore praetore possidet.
12. Sítio número 11, com majólica, creamware, pearlware, whiteware,
stoneware, material datado entre fins do século XVIII e início do XIX;
cf. Charles E. Orser Jr., In Search of Zumbi, The 1993 Season, Nor-
mal, 1993, pp.3-6 e Pedro Paulo A. Funari, “The Archaeolgy of Palmares
and its Contribution to the Understanding of the History of African-
American Culture”, Historical Archaeology in Latin America, 7, 1994,
p.30.
13. Cf. Florence C. Lister e Robert H. Lister, A Descriptive Dictionary of
500 Years of Spanish-Tradition Ceramics: 13th through 18th
Centuries, California, 1976, pp.1-2.
14. Os fragmentos podem associar-se à majólica portuguesa ou, talvez mais
provavelmente, àquela holandesa, pois a semelhança da coloração com
o material daquela proveniência, encontrado na América do Norte, pode
ARQUEOLOGIA E PATRIMÔNIO 139

ser observada; cf. Charlotte Wilcoxen, Dutch Trade and Ceramics in


America in the Seventeenth Century, Nova Iorque, 1987, prancha 5 et
passim). Compare-se com a majólica contemporânea em África, em
James Kirkman, Fort Jesus: A Portuguese Fortress on the East African
Coast, Oxford, 1974, pp.119-121.
15. Pré-historiadores, tanto no Brasil como no exterior, têm dificuldade em
admitir a presença concomitante, em sítios históricos, de cerâmicas de
tipo indígena misturadas com cerâmica colonial. Há quem proponha tra-
tar-se de duas ocupações sucessivas, pré-histórica e colonial. Essas hi-
póteses revelam, contudo, desconhecimento das características dos síti-
os coloniais, cuja cultura material apresenta elementos europeus, indíge-
nas e mesclas, associados. Desconhecem, também, os documentos his-
tóricos que se referem aos sítios coloniais e que, se lidos, permitem cons-
tatar que artefatos “pré-históricos” eram usados nos assentamentos
colonais. Estas considerações surgiram de conversas com Susan Alcock
e Carla Sinopoli a respeito da reação de alguns pré-historiadores quando
de uma palestra sobre os trabalhos na Serra da Barriga, em agosto de
1995, em Simpósio organizado pelo Museu de Arqueologia e Etnologia
da Universidade de São Paulo. Infelizmente, as características da Arque-
ologia História ainda são largamente desconhecidas pelos pré-historia-
dores, induzindo a erros crassos de julgamento.
16. 91% cerâmica comum, 4,5% cerâmica trabalhada, 1,3% líticos, 0,6%
vidro, 0,1% metal e 1,9% outros materiais variados.
17. O objetivo desses transeptos era averiguar os danos arqueológicos cau-
sados pelo uso de um trator, por alguns anos sucessivos, a fim de “lim-
par” a área, tornando-a um local mais aprazível para os festejos do dia
da consciência negra, 20 de novembro. Como era esperado, toda a área
(sítio 1) diante do monumento foi muito afetada pela remoção dos vestí-
gios.
18. Cf. José Joaquim Justiniano Proenza Brochado, An Ecologial Model of
the Spread of Pottery and Agriculture into Eastern South America,
Urbana, Tese de Doutoramento inédita, figura 16 et passim.
19. Merran McCulloch refere-se a tais vasos entre os Mbundu (Ovimbundu),
em Angola, em seu The Ovimbundu of Angola, Londres, 1952, p.15.
20. Wilfred D. Hambly, The Ovimbundu of Angola, Chicago, 1934, p.368
e prancha XIV.
21. Assim, um vaso de tipo indígena poderia ser reapropriado pela popula-
ção mestiça do quilombo como um recipiente de armazenamento.
140 PEDRO PAULO A. FUNARI

22. Andrés Zarankin, “Arqueologia Histórica urbana en Santa Fe La Vieja:


el final del principio”, Historical Archaeology in Latin America, 10,
1995, p.56, figuras 13 e 14; cf. p.94: el sistema español implantado en
America Latina, a diferencia del Británico en América del Norte,
fue relativamente flexible en lo que repecta a la integración de dife-
rentes grupos étnicos a la sociedad colonial. Ello se refleja en que,
desde los primeros tiempos, el colonizador Hispánico acostumbró
tomar como servientes, concubinas, o esposas a integrantes de la
población indígena local.
23. “Mocambos, Quilombos e Palmares: a resistência escrava no Brasil co-
lonial”, Estudos Econômicos, 17, 1987, pp.84-86.
24. E.g. Charles Ralph Boxer, The Dutch in Brazil, 1624-1654, Oxford,
1973, p.140.
25. Joseph C. Miller apresenta, em seu Kings and Kinsmen, Early Mbundu
States in Angola, Oxford, 1976, pp.160-260 et passim, um estudo deta-
lhado das origens, características e transformações do ki-lombo. Sua
inserção no contexto local impossibilitaria sua “exportação” para a rea-
lidade do mundo colonial americano, dominado pela escravidão coloni-
al e pelos ameríndios, inexistentes em África.
26. A respeito do Kongo, ver John Thornton, “Early Kongo-Portuguese
Relations: a New Interpretation”, History in Africa, 8, 1981, 183-202.
27. John Thornton, Africa and Africans in the Making of the Atlantic
World, 1400-1680, Cambridge, 1992, p.206.
28. Cf. Jonathon Glassman, “The Bondsman’s New Clothes: the
Contradictory Consciousness of Slave Resistance on the Swahili Coast”,
Journal of African History, 32, 1991, p.278 et passim.
29. Por exemplo, José Flávio Sombra Saraiva, “Silencio y ambivalencia: el
mundo de los negros en Brasil”, América Negra, 6, 1993, p.46; Eugene
D. Genovese, From Rebellion to Revolution. Afro-American Slave
Revolts in the Making of the Modern World, Baton Rouge, 1981,
p.62.
30. Cf. Fernando A. Novais, “Brazil and the Old Colonial System”, in R.
Graham (org), Brazil and the World System, Austin, 1991, pp.11-56.
31. No exterior, a mídia tem dado grande destaque ao trabalho; cf. David
Keys, “South America’s lost African Kingdom”, The Independent,
Oct.19th, 1993, p.23; Brian Fagan, “Brazil’s Little Angola”, Archaeology,
July/August, 46, 1993, pp.14-19; Anver Versi, “The Lost Kingdom”, Nes
African Life, December 1993, p.9; Entrevista de P.P.A. Funari à British
Broadcast Corporatiom, 24/10/1993. No Brasil, diversos órgão de im-
ARQUEOLOGIA E PATRIMÔNIO 141

prensa tem publicado artigos, entre os quais, Ricardo Bonalume Neto,


“O Pequeno Brasil de Palmares”, Folha de São Paulo, 4/6/95, 5-16;
Pablo Pereira, “Arqueologia tenta desvendar vida em Palmares”, O Es-
tado de São Paulo, 25/6/95, A28.
32. Devo agradecer a diversos colegas que, de diferentes modos, ajudaram
na elaboração desse artigo, embora a responsabilidade pelas idéais seja
somente minha: Zezito de Araújo, José Proença Brochado, Jonathon
Glassman, Joseph Miller, Charles E. Orser Jr., Michael Rowlands e John
Thornton.
COMO SE TORNAR ARQUEÓLOGO NO BRASIL

INTRODUÇÃO

Para que se possa tratar da formação do arqueólogo, é neces-


sário, antes, definir a identidade do arqueólogo. Em um contexto
mais amplo, pode afirmar-se que o estudo da Arqueologia varia
muito, em diferentes tradições universitárias. Nos Estados Uni-
dos, a maioria dos arqueólogos é constituída de antropólogos, já
que a Antropologia, normalmente, ali incorpora áreas como a Lin-
güística e a Arqueologia. Isto significa uma formação básica em
Antropologia, voltada para o estudo do outro, os antropólogos
estudando os índios vivos e os arqueólogos os mortos. Nos pró-
prios Estados Unidos, contudo, há também arqueólogos com ou-
tras formações, como é o caso dos arqueólogos clássicos, que es-
tudam as civilizações grega e romana, cujo estudo liga-se às le-
tras clássicas, à História e à História da Arte, em medidas varia-
das, segundo a tradição de cada instituição. Há, ainda, os arqueó-
logos oriundos da orientalística (egiptólogos, assiriólogos), dos
estudos bíblicos (a chamada “Arqueologia Bíblica”) ou das mais
variadas disciplinas, como a Biologia ou a Geologia (cf. Taylor
1948: 11). A outra grande vertente produtora de arqueólogos, a
escola européia, é ainda mais multifacetada. Em termos gerais, os
arqueólogos europeus, pré-historiadores, classicistas ou medie-
valistas formam-se na tradição histórico-filológica de origem ale-
mã. Em alguns centros, a Arqueologia é parte da História da Arte,
em outras relaciona-se à História ou às línguas, raramente fazem
parte da Antropologia. Os britânicos foram os que levaram mais
adiante a independência epistemológica da disciplina, criando
diversos cursos de graduação em Arqueologia, exceção tanto mais
notável quanto, tanto na Europa como nos Estados Unidos, costu-
ma-se reservar-se à formação em Arqueologia o caráter de uma
especialização, após uma educação universitária mais genérica.
144 PEDRO PAULO A. FUNARI

A formação do arqueólogo no Brasil insere-se, pois, no con-


texto mais amplo esboçado. Não há uma única tradição acadêmi-
ca universal e tampouco, no Brasil, haveria que buscar uma uni-
dade que alhures inexiste. Não se pode, entretanto, fazer um ba-
lanço da formação do arqueólogo no país sem analisar, ainda que
brevemente, a História da disciplina em nosso meio e o ambiente
acadêmico no qual ela se desenvolve (Funari 1997). A Arqueolo-
gia acadêmica brasileira é recentíssima, o número de arqueólogos
profissionais reduzidíssimo e os centros de formação pouco nu-
merosos. Além de descrever as vicissitudes da formação de ar-
queólogos no Brasil, hoje, pretende-se contribuir para a discussão
do seu aprimoramento, visando inserir a Arqueologia brasileira
no âmbito mais amplo da Arqueologia mundial.

A ARQUEOLOGIA NO QUADRO DA ACADEMIA BRASILEIRA

A sociedade brasileira, patriarcal, dominada por uma estru-


tura social hierárquica secular, produziu muito tardiamente a uni-
versidade, séculos depois das primeiras congêneres hispano-ame-
ricanas. A universidade brasileira, desenvolvendo-se a partir da
década de 1930, viria a ter algumas características estruturais,
derivadas do próprio caráter restritivo à liberdade intelectual da
sociedade nacional, ainda presentes entre nós. Florestan Fernandes,
um dos nossos primeiros acadêmicos, advertia, antes do golpe
militar de 1964, que “o intelectual se torna, literalmente, um es-
cravo do poder. Se ele tentar o contrário, corre o risco de sofrer
pressões muito violentas e de ser eliminado da arena intelectual”
(Fernades1975: 85). Segundo outro decano da ciência nacional,
Milton Santos, “buscar o novo é perigoso”, resultado da falta de
valorização do mérito intelectual propriamente dito:
“Eu acho que o meio intelectual no Brasil é, até certo ponto, opaco,
no sentido de que a vida acadêmica não se caracteriza pela exis-
tência de um mercado acadêmico. As pessoas nascem, crescem,
evoluem e morrem no mesmo universo. Então, a idéia de compe-
tição se compromete e o sistema de referências é igualmente do-
méstico. É muito autocentrado e funciona, com freqüência, em
detrimento de uma emulação mais ampla” (Santos 1998: 6).
ARQUEOLOGIA E PATRIMÔNIO 145

O compadrio, generalizado, chega aos editoriais dos jornais


(Folha de São Paulo 1997a), levando a que as pesquisas confir-
mem o discurso do poder, tanto das autoridades políticas como
acadêmicas, perpetuando, de forma acrítica, aquilo que Pierre
Bourdieu (1988: 777) chama da senso comum acadêmico. Predo-
mina um sistema universitário dominado por um mandarinato
autocrático e medíocre, a busca desenfreada pelo micropoder dos
cargos por parte daqueles que nada sabem, como se expressava
Theo Santiago (1990). A palavra corporação aparece em quase
todas as análises críticas da academia brasileira (e.g. Comparato
1993; Miceli 1995: 3) e criam-se neologismos para descrever essa
realidade: “os buroprofessores, quer dizer, aqueles indivíduos que,
sai um, entra outro, mas é o mesmo grupo, que são pessoas inúteis
porque esses pró-reitores, quase todos, são pessoas inúteis, um
estorvo à produção intelectual” (Milton Santos 1999: 25). A
dissociação entre progressão na carreira e a competência, que in-
clui titulação, mas não se limita a ela (Goldemberg 1992), com-
põe um quadro pouco alentador de uma época “hostil à crítica e
ao dissenso” (Barros e Silva 1997). Neste contexto, quando mais
da metade das bolsas concedidas pelo CNPq não resultam em
defesas de tese, não há surpresa (Folha de São Paulo 1997b).
A academia brasileira padece, portanto, de deficiências es-
truturais, de origem histórica clara. Um sistema universitário sur-
gido no seio de uma sociedade tão hierarquizadora e infensa à
liberdade de oportunidades não poderia deixar de refletir essas
características dominantes (Funari 1997a, com literatura). Durante
o período de jugo militar, em particular, os aspectos mais deleté-
rios de uma academia servil ao poder produziram resultados que
ainda nos atormentam. O compadrio, associado a um poder dis-
cricionário, pôde levar o controle discursivo ao paroxismo, insti-
tuindo, em algumas áreas, uma limitação severa ao desenvolvi-
mento da ciência. Com a abertura e, em especial, com o
restabelecimento dos civis ao poder, a liberdade acadêmica
rediviva logo começou a produzir reflexões críticas e menos aco-
modadas (Batista 1997).
Este pano de fundo permite, agora, refletir sobre o desenvol-
vimento da Arqueologia, em nosso meio. A Arqueologia pré-aca-
146 PEDRO PAULO A. FUNARI

dêmica tem longa trajetória no Brasil, desde seus primórdios no


Instituto Histórico e Geográfico Brasileiro, no século passado.
Contudo, apenas no pós-Segunda Guerra ensaia-se o início da
Arqueologia acadêmica, graças às iniciativas de Paulo Duarte,
fundador da Universidade de São Paulo, político, intelectual e
humanista, sob cuja égide surge a Comissão de Pré-História que
se transformaria no Instituto de Pré-História, à imitação do IPH
de Paris. Assim, ab initio, a Arqueologia começa a penetrar o es-
paço universitário como atividade de pós-graduação, ao menos
no sentido de que se trataria de atividade a ser desenvolvida pelo
pesquisador após sua formação universitária, em área, de algum
modo, ligada à Arqueologia. Nesse primeiro momento, com a
chegada dos franceses, com Madame Emperaire à frente,
enfatizavam-se as técnicas de campo e laboratório, como se a
Arqueologia fosse pouco mais do que uma tekhné, à maneira fran-
cesa, muito distante, pois, das Wissenschaften que compunham o
saber (Wissen) acadêmico. Um primeira conseqüência dessa for-
mação inicial foi a dissociação entre pesquisa empírica e inter-
pretação. Assim, ainda que bem intencionada, a Arqueologia
humanista ressentia-se da falta de ambições epistemológicas que
lhe dessem espessura acadêmica no interior tanto da universidade
brasileira como, principalmente, internacional.
Estes primeiros arqueólogos acadêmicos formados no Bra-
sil foram logo acompanhados por uma nova leva, resultado da
incursão, pós-golpe militar de 1964, de Betty Meggers e Clifford
Evans e a constituição de um programa nacional de pesquisas ar-
queológicas (PRONAPA). Não seria o caso, nesta ocasião, de re-
tomar as discussões sobre o imbricamento do esquema pronapiano
com o regime de força (cf. Funari 1995; Funari 1998), mas de
ressaltar o tipo de formação arqueológica que estava sendo intro-
duzido no país1. Os clássicos da literatura arqueológica norte-
americana não eram conhecidos, assim como os desenvolvimen-
tos mais recentes. Walter W. Taylor (1948: 44) e sua busca da
autonomia da Arqueologia havia sido ignorado, como tinha sido
o apelo, então recente, de Binford (1962), em direção a uma Ar-
queologia processual. Prevalecia, na formação desses arqueólo-
gos, a constatação devastadora de Binford (1984: 15) de que o
ARQUEOLOGIA E PATRIMÔNIO 147

“arqueólogo de campo escavador fica a discutir o teor alcoólico


da pinga nos bares das redondezas” (cf. Funari 1987), o que foi
interpretado pelos seus epígonos como treinamento orgânico,
fomentador de centros de pesquisa, um período de ouro da Arque-
ologia nacional (e.g. Schmitz 1989: 47; Dias 1995: 35; Lima 1998:
25)2. A formação intelectual propugnada pela equipe de Meggers
não bebia do imenso manancial americano3, que poderia ter aber-
to os horizontes daqueles que seriam considerados, às expensas
dos arqueólogos formados pelos franceses, os fundadores da Ar-
queologia universitária nacional. Os resultados dessa formação
foram muitos, da falta de autocrítica (Prous 1994:11) à despreo-
cupação com publicações (Neves 1998: 628)4, da ausência de
corpora (cf. Wheeler 1956: 211)5 à execução de levantamentos
oportunísticos e escavações injustificadas, sem planejamento (Ne-
ves 1988: 204).
Uma terceira vertente arqueológica surgia, àquela época. A
Arqueologia clássica, surgida por iniciativa do Professor Eurípides
Simões de Paula (Duarte 1994: 163-4), diretor da Faculdade de
Filosofia, Ciências e Letras da Universidade de São Paulo, no
quadro de um plano mais amplo de expansão da Faculdade, em
geral, e das línguas clássicas em particular. De início encarada
como mera “ciência auxiliar da História, longe, bem longe de ser
um fim um si mesmo”, parte da História da Arte (Meneses 1965:
22), a Arqueologia Clássica assumiu uma importância insuspeitada
de início. A inserção da Arqueologia Clássica brasileira na ciên-
cia universal significou uma formação intelectual abrangente. A
formação de quadros nesse campo da Arqueologia permitiu que,
pela primeira vez, arqueólogos brasileiros dirigissem projetos de
pesquisa internacionais, publicassem livros e artigos no exterior,
dando uma visibilidade internacional à Arqueologia brasileira (cf.
Funari 1997). A formação menos restrita desses arqueólogos aca-
bou por resultar em que a própria Arqueologia de temas america-
nos fosse desenvolvida por arqueólogos de formação clássica, cujo
melhor exemplo, ao menos em termos de divulgação científica da
Arqueologia, talvez seja o volume de Norberto Luiz Guarinello
(1994), o livro mais vendido sobre Arqueologia Pré-Histórica, em
toda a História (cf. Funari 1996; Faversani 1997).
148 PEDRO PAULO A. FUNARI

Após essa fase inicial, que abrange o período dos anos 1950
e 1960, a Arqueologia brasileira insere-se na reforma universitá-
ria implantada pelos militares. A pós-graduação brasileira passou
a seguir o sistema americano, com mestrados e doutorados e a
formação em Arqueologia continuou a ser um especialização pos-
terior à graduação, com a exceção do curso, nunca reconhecido
pelo MEC, na Estácio de Sá, no Rio de Janeiro. Os arqueólogos
que surgiram nas três vertentes apontadas, acrescidos de alguns
estudiosos estrangeiros, como André Prous e Gabriela Martín,
constituíram os quadros que estabeleceriam a formação em Ar-
queologia nas décadas de 1970 e 1980. Enquanto nas Ciências
Humanas, em geral, buscava-se uma formação intelectual menos
descritiva e mais crítico-analítica (Janotti & Mesgravis 1980: 9),
a Arqueologia empirista, único discurso associado ao poder, im-
punha, por mecanismos hierárquicos comuns às sociedades patri-
arcais (cf. Collis 1997: 11), mas aqui levados ao paroxismo pelo
regime de arbítrio, uma formação infensa a leituras interpretativas.
Sempre houve quem lesse, quem buscasse sair desse marasmo,
mas só podia fazê-lo por sua conta e risco (Noelli 1999). Não se
pode subestimar o sufocamento das vocações, pois as hierarquias
permitiam que se expulsassem da universidade aqueles que não
se conformassem, como ocorreu com o notável caso de Walter
Neves e Solange Caldarelli (reportado em Prous 1994: 12; e em
Funari 1999), nem a institucionalização de uma hierarquia infensa
ao mérito facilitou a formação de novos arqueólogos6. Na maioria
dos casos, bastava algo muito mais insidioso, a internalização da
submissão, pois se sabia que “à volta de um grande e frondoso
carvalho, nada cresce”, nas palavras de Norberto Luiz Guarinello
(1999), a respeito de um dos mandarins da Arqueologia. Não se
buscou criar massa crítica, formando novos estudiosos, o que ex-
plica, em parte, que muitos dos pais fundadores pronapianos te-
nham tido tão poucos alunos, sendo que, ainda hoje, “na maioria
das instituições brasileiras há um processo de sufocamento de
novas vocações”, nas palavras de Francisco Noelli (1999)7.
As duas últimas décadas testemunharam transformações ra-
dicais em um quadro que parecia pouco promissor para a Arque-
ologia brasileira. Warwick Bray (1994: 6), quando discursou ao
ARQUEOLOGIA E PATRIMÔNIO 149

assumir a cátedra de Arqueologia Americana no Instituto de Ar-


queologia de Londres, ressaltou que os melhores resultados aca-
dêmicos derivam do incentivo à variedade de linhas de pesquisa e
à não aceitação do discurso da autoridade do intelectual sem obra
e, no caso brasileiro, a multiplicidade resultante da democracia só
teve resultados positivos (Lafer 1996: 9)8. Os centros de forma-
ção de arqueólogos multiplicaram-se pelo país, entendendo-se
formação em seu sentido pleno, como Bildung. De fato, o empi-
rismo que esteve subjacente à primeira leva de arqueólogos aca-
dêmicos fez com que se igualasse Arqueologia e escavação. En-
tenda-se escavação no sentido de trabalho de campo, não todo o
processo que começa com um problema, que se desenvolve em
um projeto de intervenção no campo, que gera artefatos a serem
estudados, que implica em publicações, que, enfim, produz co-
nhecimento. Este sentido de escavação, como parte de um pro-
cesso de conhecimento (Welterkentniss), não pode prescindir de
aspirações interpretativas. Por outro lado, como ressaltaram, re-
centemente, dois grandes arqueólogos da atualidade, Michael
Shanks e Randal McGuire (1996: 79), Gordon Willey e V. Gordon
Childe, dois dos mais influentes arqueólogos de todos os tempos,
rarissimamente escavaram, o que está a demonstrar que a forma-
ção do arqueólogo não pode descuidar da reflexão.
Já se disse que os arqueólogos são pouco numerosos no Bra-
sil, talvez trezentos, para uma país de dimensões continentais, de
população elevada, com centenas de milhares de estudantes uni-
versitários. Isto se explica, em parte, pelo fato de a Arqueologia
não ser um curso oferecido na graduação, com uma única exce-
ção. O graduação em Arqueologia oferece as vantagens de uma
especialização precoce mas pode ser uma armadilha, caso o curso
não esteja bem articulado a áreas de conhecimento afins, em par-
ticular a História, a Antropologia, mas também a Geografia, a
Biologia ou, até mesmo, a Literatura, a Fotografia (e.g. Olivier
1999a), o Jornalismo (e.g. Cotter 1999: 8), para mencionar ape-
nas algumas. Os bons cursos de graduação em Arqueologia no
exterior não deixam de inserir-se nas ciências afins e o mesmo
princípio é válido para o Brasil. Em geral, no entanto, a formação
do arqueólogo dá-se na pós-graduação. Neste caso, há duas gran-
des vertentes, a majoritária inclui a Arqueologia em um curso de
150 PEDRO PAULO A. FUNARI

História, de Antropologia ou de outra ciência. Na tradição euro-


péia, predomina a ligação com a História, em direta ligação com
a herança de Childe (cf. Trigger 1984: 295; Funari 1997c)9. Desta
forma, o arqueólogo, seguindo a tradição dominante, tanto na
Europa como nos Estados Unidos, toma contato com uma pletora
de áreas, já que a própria Arqueologia é multidisciplinar (Ucko
1994: xiv). A outra vertente, minoritária, forma arqueólogos em
programa de pós-graduação próprio.
Os programas de pós-graduação majoritários, que acolhem
a formação em Arqueologia, permitem que os arqueólogos to-
mem contato direto com a epistemologia de uma outra ciência, o
que pode revelar-se muito produtivo. Há, naturalmente, duas de-
ficiências estruturais: uma tendência a incorporar a Arqueologia
como ciência auxiliar de outra, o que lhe tira a especificidade, e a
falta de um estudo mais direcionado para a variedade de áreas
com as quais a Arqueologia se relaciona (Funari 1998). Assim,
corre-se o risco de termos arqueólogos que nunca deixaram de
serem geólogos ou historiadores, risco tanto maior quanto, às
vezes, as únicas leituras e práticas do educando se restringiram,
desde a graduação, àquela área de estudo. Perde-se, assim, a ne-
cessária consciência de que a Arqueologia é, em sua essência,
multidisciplinar (Silva e Noelli 1996). A pós-graduação em Ar-
queologia, por sua parte, possui a virtude de apresentar um pro-
grama coerente de disciplinas voltadas para essa área. No entan-
to, uma deficiência estrutural consiste na falta de ênfase no cará-
ter multidisciplinar da Arqueologia, pois esse seu aspecto deveria
implicar em um currículo que enfatizasse o conhecimento, em
primeira mão, das grandes teorias sobre o funcionamento e a trans-
formação das sociedades, das formas de expressão, mas também
do mundo físico e biológico. Na verdade, a própria comparti-
mentação do conhecimento divide, de forma burocrática, unida-
des de conhecimento (McGuire 1992: 4) e poder-se-ia propugnar,
como se tem feito, que o estudo da cultura material – outro nome
para a Arqueologia - seja, eo ipso, multidisciplinar (Miller e Tilley
1996; e.g. Noelli 1996a; 1996b).
Os educandos não são vasos vazios a serem preenchidos com
dados, mas como pensadores e agentes sociais (Shor 1986: 422)
ARQUEOLOGIA E PATRIMÔNIO 151

devem ser capazes de decifrar o mundo à sua volta (Tragtemberg


1985: 43) e, a fortiori, na Universidade deve-se, mais do estudar,
estudar para aprender a estudar, nas palavras de Antonio Gramsci
(1979: 154). Como disse, recentemente, o veterano arqueólogo
norte-americano, John L Cotter (1999: 39), “os fatos qualquer um
pode adquirir e aprendi que as pessoas podem ter acesso aos fatos
elas mesmas, caso se interessarem o suficiente. O que se deveria
fazer é tentar ajudá-las a organizar sua própria conceituação dos
dados e o que farão com suas próprias vidas e carreiras, bem como
abrir novas vias de pensamento”. Há pouco, Michael Shanks
(1997: 395) propunha sete objetivos para a formação dos estudio-
sos da Arqueologia e vale a pena transcrevê-los na íntegra:
“a) enfatizar a importância das ligações interdisciplinares; b)
construção e debate teóricos, acompanhados de um compromis-
so com a prática arqueológica; c) um interesse no caráter peculiar
das fontes arqueológicas; d) um interesse em algumas questões
mais amplas da teoria social; e) pragmatismo e ecletismo mais
valorizado do que uma suposta pureza teórica e ideológica; f) um
aceitação do pluralismo; g) um forte senso de criatividade da ati-
vidade arqueológica”.

As implicações de cada um desses itens para os nossos cur-


sos de pós-graduação são claras e diretas. Os cursos devem incen-
tivar a interdisciplinaridade, oferecendo um currículo que abran-
ja disciplinas ligadas às diversas disciplinas formais. Os créditos
obtidos no interior do curso devem ser complementados com boa
porcentagem de créditos externos. Não se pode dissociar a prática
arqueológica da formação teórica, pelo que a prática de campo ou
de laboratório nunca deveria preceder a formação mais abrangente.
Os debates teóricos abrangem tanto as correntes da Arqueologia,
do antiquarianismo ao pós-processualismo, passando pelos mo-
delos histórico-culturiais e processual, esquemas de interpretação
sempre ligados a momentos históricos específicos10. No que se
refere à Arqueologia, a História da disciplina (Funari e Podgorny
1998: 420), no mundo e no Brasil, assim como das correntes
interpretativas, deve estar no centro da preocupação (cf. Trigger
1990: 4 et passim). A especificidade das fontes materiais está a
exigir um estudo próprio que, no entanto, não pode deixar de lado
152 PEDRO PAULO A. FUNARI

as reflexões de diversas ciências sobre o mundo material, da


Semiótica11 à Física (cf. Funari 1999b). A teoria social12, entendi-
da como o imenso universo de reflexões da Sociologia, Antropo-
logia, História, Filosofia e Lingüística, encontra-se no âmago
mesmo da Arqueologia, ciência que estuda, afinal, a sociedade.
Não se chega a compreender que estudiosos da sociedade nunca
tenham lido Levi Strauss, Weber, Durkheim, Braudel, Foucault
ou Saussure, para citar alguns pensadores apenas.
Pragmatismo e ecletismo, palavras tão temidas entre aque-
les que encaram a ciência como profissão de fé e formação de
séquitos de cartilhas, constam, com destaque, na lista de Shanks.
A ciência não se confunde com a religião, nem, menos ainda, com
o partido político e, por isso mesmo, os cursos e suas linhas de
pesquisa mais do que homogêneos, “coerentes” e uniformes, de-
vem abranger um grande espectro de concepções (Funari 1999c).
No caso da Arqueologia, pragmatismo e ecletismo implicam, tam-
bém, adotar terminologias vigentes, já que estão em uso, sem
reificá-las, como se refletissem alguma realidade inefável, reco-
nhecendo as críticas e limites dos rótulos classificatórios. Pureza
ideológica não condiz com ciência. O pluralismo parte da aceita-
ção da diversidade de práticas e teorias (cf. Neves 1991; Funari
1992), de campos de investigação e especialização, de vocações
(Funari 1996b). A criatividade do educando expressa-se, assim,
em sua capacidade de criar sua própria trajetória intelectual, pelo
que a formação não é um aprendizado ou adestramento
(Unterrichtung), mas uma verdadeira educação (Erziehung), de-
senvolvimento de uma capacidade interior de reflexão e ação crí-
ticas (cf. Funari 1996). Esse abrangente programa, proposto por
Shanks, insere-se na sua constatação anterior de que a Arqueolo-
gia , além do estudo do antigo (este o sentido primevo da pala-
vra), deve ser, também, o estudo do poder, recuperando o sentido
original da palavra arkhé, em grego (Shanks e Tilley 1987; cf.
Funari 1990).
Tornar-se arqueólogo no Brasil possui, no entanto, particu-
laridades que não foram mencionadas nos sete pontos tratados
por Shanks. As especificidades da vida universitária em nosso
ARQUEOLOGIA E PATRIMÔNIO 153

meio, já acenadas, bem como a conturbada História recente do


país e da Arqueologia, em especial, fazem com que haja aspectos
ainda a serem discutidos. Talvez tudo se possa resumir à
constatação de Ovídio (Heroid. 2, 85), que exitus acta probat,
transformado na quintessência do mundo anglo-saxão: the proof
of the pudding is in the eating13. Aqui, cabe uma digressão. Em
um mundo social e acadêmico tão caracterizado pelas relações
hierárquicas e tão infenso ao mérito, como é o nosso, todo tipo de
distorção é possível. Já se mencionou, alhures, que o poder buro-
crático se concentra nas mãos dos que menos publicam (cf. San-
tos 1999b, em nota), que, em nossa universidade, é possível obter
títulos acadêmicos “por decreto”, em triste herança dos tempos
da cátedra. Neste contexto, torna-se compreensível a referência à
prova dos fatos. Tornar-se arqueólogo, neste artigo, significa tor-
nar-se arqueólogo de verdade, no sentido forte da palavra, acadê-
mico, não poderoso, brilhante, admirado e temido, por falar (e
pouco publicar) ex auctoritate. Em outras palavras, tornar-se um
acadêmico requer desligar-se do poder paroquial e inserir-se na
ciência universal. Para tanto, o primeiro requisito é instrumen-
talizar-se lingüisticamente, em particular dominando a língua fran-
ca hodierna, o inglês14. Alguns propugnariam que, devido aos ví-
cios, ao compadrio e ao paroquialismo local, melhor seria enviar
os interessados a estudar no exterior e apresentam como argu-
mento exemplos de jovens PhDs cuja obra científica notabilizou-
se desde cedo. De fato, não faltam exemplos de arqueólogos nesta
situação, mas há que se considerar, em primeiro lugar, que nem
todos aqueles que obtiveram título no exterior se notabilizaram
por publicarem e formarem pesquisadores, quando voltaram ao
Brasil, quando mais não fosse porque o sistema burocrático não
incentivava que o fizessem (cf. exemplos em Funari 1997b). Não
se trata, pois, de obter um título no exterior, algo não tão difícil,
mas ser capaz de produzir e interagir com a ciência universal e
isto poucos que foram ao exterior o fizeram.
Em segundo lugar, titular-se no Brasil não exclui a preocu-
pação em atuar na ciência internacional, como diversos exemplos
em nosso meio arqueológico estão a demonstrar. Ademais, a solu-
ção dos títulos obtidos no exterior, estratégia ainda adotada em
154 PEDRO PAULO A. FUNARI

diversos países, que mandam seus melhores arqueólogos para


cursarem a pós fora do país, não pode abranger um grande núme-
ro de estudiosos, o que dificulta a formação de massa crítica, in-
dispensável para que a ciência, de nível internacional, possa ser
produzida em nosso próprio meio. Como quer que seja, objetivo
primeiro dos cursos de pós-gradudação que formarão arqueólo-
gos só pode ser inserir seus quadros profissionais e seus alunos na
ciência universal, utilizando-se, entre outros recursos, das cha-
madas bolsas sanduíche (estágios de alguns meses no exterior),
dos convênios de cooperação internacional, do patrocínio da vin-
da de professores estrangeiros. Neste sentido, a Arqueologia na-
cional avançou de forma significativa, pois não poucos arqueólo-
gos estrangeiros têm estado em nosso país, ensinando graças ao
apoio de órgãos brasileiros, como o CNPq e a FAPESP15 e órgãos
internacionais. Muitos jovens arqueólogos têm tido a oportunida-
de de estagiar no exterior e a inserção da Arqueologia brasileira
no contexto internacional, em poucos anos, aumentou significati-
vamente16.
Após esta longa digressão, pode voltar-se à quintessência
anglo-saxônica: the proof of the pudding is in the eating. Tornar-
se arqueólogo, como, de resto, tornar-se um verdadeiro intelectu-
al, em geral, depende da consciência de que nada substitui o co-
nhecimento e que este não se confunde com poder burocrático.
Os cursos de formação de arqueólogos, cada vez mais, têm tido
que se adequar aos critérios de mérito, universais, como é o caso
da publicação das pesquisas, seu debate nas revistas arbitradas
estrangeiras. Exemplos na Arqueologia brasileira não faltam. Tor-
nar-se arqueólogo também implica reconhecer que esta ciência
tem sido reacionária, cultuando explicitamente as elites, explo-
rando, muitas vezes, as maiorias e minorias oprimidas em benefí-
cio nada científico e puramente monetário, como é o caso, em
muitas ocasiões, de bem pagas atividades de campo financiadas
por grandes empresas17. Contudo, não há pesquisa, nem mesmo
pré-histórica, que esteja fora dos interesses da sociedade (Veit
1989: 50) e a Arqueologia pode ser profundamente humanista
(Heckenberger, Neves e Peterson 1998: 83), particularmente re-
levante para uma sociedade multicultural (Giuliani 1995: 91),
sempre que atue com o povo (McGuire 1994: 830). O engajamento
ARQUEOLOGIA E PATRIMÔNIO 155

do intelectual não lhe subtrai qualquer conhecimento, como aler-


ta Pierre Bourdieu (1989: 59; cf. Meyer 1990: 135-6), ao contrá-
rio, pois “conhecer” é “saber com” os outros18. Tornar-se arqueó-
logo inclui, assim, saber que não há trabalho arqueológico que
não implique em patrimônio e em socialização do patrimônio e
do conhecimento (Tamanini 1998). Tornar-se arqueólogo consis-
te em saber que qualquer escavação deve tornar-se uma publica-
ção, acessível à comunidade científica. Significa saber que os ar-
tefatos não podem ficar abarrotando os depósitos, inéditos. Para
tanto, em diversos países, há regulamentos públicos que apenas
permitem que os arqueólogos desenvolvam novos projetos se pu-
blicarem, tanto o relato da escavação, quanto o material arqueo-
lógico recolhido. Tornar-se arqueólogo implica em considerar que
a patrimonialização dos objetos faz parte integrante do ofício ar-
queológico19. Neste sentido, a formação do arqueólogo, em nosso
meio, ainda é muito deficitária, pois pouca atenção se tem dado,
em termos estruturais, a esses aspectos, considerados, às vezes,
estranhos à própria disciplina, enquanto, mundo afora, a Arqueo-
logia pública se encontra em expansão e a Arqueologia e a Educa-
ção não são mais dissociáveis (cf. Funari 1994; Funari 1996, am-
bos com extensa literatura).
Tornar-se arqueólogo no Brasil hoje, portanto, apresenta di-
versos caminhos possíveis (QUADRO). Para o jovem iniciante,
as perspectivas são muito variadas, de acordo com as escolhas
que venha a efetuar. Tornar-se arqueólogo acadêmico, objeto pri-
meiro deste artigo, não promete uma remuneração fabulosa, mas
oferece oportunidades excepcionais para refletir sobre a socieda-
de, para agir com a comunidade em prol tanto da preservação do
passado como para a transformação do presente (e.g. Tomazela
1999). Permite que se intervenha na Educação, fazendo com que
milhões de brasileiros tenham um contato mais profundo e menos
parcial com sua própria História. Incentiva os futuros arqueólo-
gos a integrarem-se à ciência mundial, tornando seus contatos com
o exterior uma experiência dinâmica. Assim, apesar dos percal-
ços e das dificuldades, pode concluir-se que, em aceitando os seus
desafios, tornar-se arqueólogo acadêmico, no Brasil, abre hori-
zontes e oferece oportunidades únicas.
156 PEDRO PAULO A. FUNARI

Quadro
COMO TORNAR-SE ARQUEÓLOGO PROFISSIONAL NO
BRASIL EM 1999
I. PRÉ-UNIVERSITÁRIO:
1.VOLUNTARIADO EM PROJETOS DE PESQUISA
2. VOLUNTARIADO EM MUSEUS E OUTRAS INSTITUI-
ÇÕES
- VANTAGENS E DESVANTAGENS: DESPERTAR O
GOSTO PELO ESTUDO DA CULTURA MATERIAL,
MAS POSSIBILIDADE DE SE DECEPCIONAR POR
DEFICIÊNCIA NA FORMAÇÃO ACADÊMICA

II. UNIVERSITÁRIO:
1. GRADUAÇÃO:
A. EM ARQUEOLOGIA (CURSO NÃO RECONHECIDO
PELO MEC)
- VANTAGENS E DESVANTAGENS: ESPECIALIZA-
ÇÃO PRECOCE, POUCO CONTATO COM ÁREAS
AFINS
B. EM DISCIPLINA UNIVERSITÁRIA RELACIONADA
(HISTÓRIA, ANTROPOLOGIA, BIOLOGIA, SOCIO-
LOGIA, GEOGRAFIA, LETRAS, ENTRE OUTRAS)
- VANTAGENS E DESVANTAGENS: CONTATO COM
ÁREAS RELEVANTES DA CIÊNCIA, ESPECIALI-
ZAÇÃO MAIS TARDIA
2. PÓS-GRADUAÇÃO:
A. EM ARQUEOLOGIA
- VANTAGENS E DESVANTAGENS: ESPECIALIZA-
ÇÃO, MENOR ÊNFASE NAS CIÊNCIAS AFINS
B. EM PROGRAMA DE ÁREA RELACIONADA
- VANTAGENS E DESVANTAGENS: CONTATO COM
ÁREAS RELEVANTES DA CIÊNCIA, ESPECIALI-
ZAÇÃO MAIS TARDIA
ARQUEOLOGIA E PATRIMÔNIO 157

III. PERSPECTIVAS PROFISSIONAIS:


1. NA ACADEMIA
- VANTAGENS E DESVANTAGENS: PRODUÇÃO DE
CONHECIMENTO, POSSIBILIDADE DE DESENVOL-
VIMENTO DE PROJETOS DE ÂMBITO INTERNACI-
ONAL, MAS OS SALÁRIOS NÃO SÃO ELEVADOS
2. EM MUSEUS, INSTITUIÇÕES PATRIMÔNIO E OUTRAS
- VANTAGENS E DESVANTAGENS: IMPORTÂNCIA
SOCIAL DA ATIVIDADE DO ARQUEÓLOGO, MAS
POUCO INCENTIVO À PRODUÇÃO DE CONHECI-
MENTO E BAIXOS SALÁRIOS
3. NA CONSULTORIA (ARQUEOLOGIA DE CONTRATO)
- VANTAGENS E DESVANTAGENS: RENDA ELEVA-
DA, MAS POUCO INCENTIVO À PRODUÇÃO DE
CONHECIMENTO E RESTRIÇÕES À CRÍTICA SO-
CIAL

AGRADECIMENTOS

Agradeço aos seguintes colegas: Warwick Bray, Adriana Schimdt Dias,


Fábio Faversani, Norberto Luiz Guarinello, Siân Jones, Alexandros-Phaidon
Lagopoulos, Randall McGuire, Daniel Miller, Walter Alves Neves, Fran-
cisco Noelli, Nanci Vieira Oliveira, Laurent Olivier, André Prous, Michael
Shanks, Elizabete Tamanini, Cristopher Tilley, Bruce G. Trigger. A respon-
sabilidade pelas idéias, naturalmente, restringe-se ao autor.

NOTAS
1
Recentemente, Cristiana Barreto (1999) considerou “falsa qualquer tenta-
tiva de caracterizar uma politização da disciplina para este período como
o faz Funari (1992b)”. A cassação de Paulo Duarte e seu afastamento da
direção do Instituto de Pré-História, em 1969, as sucessivas reuniões de
Betty Meggers e Clifford Evans e as autoridades políticas, não só acadê-
micas, impostos pela ditadura, o apoio oficial de órgãos do Estado, como
o CNPq, a ascenção acadêmica, com destaque na Arqueologia, de perso-
nagens cuja vinculação com altos hierarcas do regime militar era explíci-
158 PEDRO PAULO A. FUNARI

ta, até mesmo por laços matrimoniais, monstram que não houve politização
da disciplina, mas uma explícita relação, em nada científica, entre arque-
ólogos e o poder político discricionário. Neste sentido, não se pode en-
tender o uso de um adjetivo como “falsa” senão como uma tentativa de
impor, apenas com recursos discursivos apodíticos, um ponto de vista
que serve para “livrar a cara” daqueles que estiveram profundamente
envolvidos com o arbítrio. Sobre o poder do esprit de corps de intelectu-
ais que participaram de regimes de força, veja-se o caso de Vichy, estuda-
do por Sonia Combe (1996), em diversos aspectos similar à situação bra-
sileira. Suas palavras conclusivas merecem ser citadas, referindo-se aos
intelectuais: unless they are careful, run the risk of letting themselves be
guided by ‘functional imperatives serving both the production of consensus
and social integration’. This was Jürgen Habermas’ warning warning to
German historians. He was a non-historian, as his opponents never stopped
emphasizing, whose vigilance had launched the Historikerstreit and who,
on that occasion, was surprised to discover among scientists the attitudes
of ‘political men engaged in conflict’ (Habermas 1988: 57).
2
Cf. Schmitz (1989: 47): “Faz pouco mais de vinte anos que a Arqueologia
brasileira começou a receber verbas públicas e a desenvolver ambiciosos
programas exploratórios, acompanhados de um treinamento mais orgâni-
co do pessoal”; Dias (1995: 35): “A implantação do Programa represen-
tou um salto quantitativo e qualitativo para a Arqueologia Brasileira. Sua
implementação possibilitou que, em apenas cinco anos, fossem levanta-
dos mais de 1500 novos sítios arqueológicos, enquadrados em um mode-
lo cronológico e espacial de que carecia a Pré-História brasileira... O
Pronapa também foi responsável por fomentar a multiplicação de centros
de pesquisa arqueológica no país, que passaram a formar um número
cada vez maior de pesquisadores qualificados”; compare-se com Lewgoy
(1997: 248), Noelli (1999), neste artigo. Diversos arqueólogos engajaram-
se no discurso do poder, saudando o regime militar e seu
desenvolvimentismo; cf. (Meneses 1968: 43) “a importância que se vem
atribuindo (sc. nos anos imediatamente anteriores a 1968) à Universida-
de como fator de desenvolvimento”.
3
Cf. Lewgoy (1997: 248): “Pelos depoimentos de nossos informantes, per-
cebemos que os ensinamentos passados pelos representantes do
Smithsonian resumiram-se a técnicas de coleta e interpretação de dados,
tendo sido desprezados deste intercâmbio a oferta global de orientações
teórico-metodológicas, bem como o espectro de problemáticas de pes-
quisa disponíveis nos Estados Unidos à época”.
4
Neves (1998: 628): no excavation profiles, or the actual artefact composition
of each leve are presented. One has to wait the full publication of the
ARQUEOLOGIA E PATRIMÔNIO 159

Pronapaba reports“. Note-se que as pesquisas na Amazônia, referidas por


Neves, estão completando trinta anos!
5
A importância da compilação de corpora era já bastante conhecida na Ar-
queologia européia, como ressalta Wheeler (1956: 211): The advantages
of a scholarly corpus or yardstick need no further emphasis and the
extension of the corpus-system is certainly no less urgent now than it was
in Petrie’s day. Haiganuch Sarian, há anos, tem propugnado a necessida-
de de se publicarem corpora também para o material arqueológico pré-
histórico brasileiro (sobre o papel de Sarian na formação de arqueólogos
brasileiros, cf. Funari 1997b).
6
Prous (1994: 20) descreve a Sociedade de Arqueologia Brasileira com
palavras fortes: SAB, dont la structure hiérarchisée a permis de contrôler
les destinées de l’archéologie du pays. Um tal domínio não se entenderei
fora do contexto de uma sociedade hierarquizada, sob jugo de uma dita-
dura; cf. Pereira (1998: 64).
7
Cf. Neves (1988: 209): “É evidente que, nesse caso, os centros de forma-
ção domésticos acabam funcionando justamente ao contrário, ou seja,
acabam funcionando como um instrumento vil de perpetuação do mode-
lo epistemológico hoje vigente na Arqueologia brasileira”; sobre os limi-
tes da liberdade acadêmica no Brasil, em geral, consulte-se Funari (1999a;
1999b); cf. Funari 1988c.
8
Cf. Milton Santos (1999): “A institucionalização crescente da vida univer-
sitária acaba por forjar uma teia, cada dia mais sólida e visível, em que o
trabalho rasteiro é deixado a alguns assessores, que recrutam subserviên-
cias no baixo e médio clero, editando medidas ditas saneadoras da admi-
nistração e das finanças, cujo resultado final é a limitação à liberdade do
pensar e do dizer, enquanto, espertamente, autoridades superiores, cada
vez mais comprometidas com os meios e mais descompromissadas com
as finalidades da educação, inundam o mercado com discursos eloqüen-
tes, mas vazios”.
9
Cf. Wolfram (1986: 9): Der Begriff ‘historierende’ Archäologie zur
Beziechnung der Archäologue jener Jarhzehnte (1920 bis 1968) wurde
gewählte, da V. G. Childe unde seine Generation die Ansicht vertraten,
die Archäologie sei Teil der Geschichtswissenschaften um Ihr Ziel die
Interpretation bzw. Rekonstruktion einzelner Ereignisse in der
Vergangenheit.
10
Cf. Erich Fromm (1969: 15): Ideas have their roots in the real life of
society.
11
Um exemplo bastará: a Arqueologia espacial, iniciada, com este nome, na
década de 1960 e hoje travestida de Arqueologia da paisagem muito tem
a interagir com a Semiótica do espaço (cf. Lagopoulos 1998).
160 PEDRO PAULO A. FUNARI

12
Entenda-se teoria, à maneira dos gregos, em seu sentido amplo, engloban-
do tanto grandes quadros interpretativos, como mais prosaicas explica-
ções, como as middle range theories; cf. crítica a estas últimas, em Wehler
(1979a:17): Jedermann wird vermutlich der Meinung beipflichten können,
dass das Wort ‘Theorie’ in den letzten Jahren eine inflationäre Aufblähung
erlebt hat. Nicht selten ist es an die Stelle von ‘plausibler Interpretation’
getreten, hat manchmal sogar nur ‘These’ gemeint oder genau das
bezeichnet, was bei Droysen eine mehr oder minder gute ‘Fragestellung’
geheissen hätte.
13
Cf. Wehler (1979b: 60): Das in der historischen Erzählung wenigstens
zum Teil miteingebaute Erklärungsangebot finde ich im Vergleich mit
expliziter, diskussionsfähiger historischer Theoriebildung wit unterlegen.
In der Tat: the proof of the pie is in the eating.
14
Cf. Olivier (1999a): En ce qui me concerne, j’utilize l’Anglais comme
‘lingua franca’ qu’elle est désormais; o jornal da ADUSP, em seu número
de julho de 1998, p. 56, reproduziu uma sintomática notícia da Nature (9/
4/98), que seria bastante pertinente ao caso brasileiro e que, por isso,
merece ser transcrita: “Novo sistema de avaliação reduz o poder dos ‘ba-
rões da ciência’ na Itália. O novo sistema intituído na Itália tem privilegiado
a qualidade dos projetos e reduziu bastante a pulverização de recursos
que gerava uma distribuição ampla e, conseqüentemente, escassa de re-
cursos por grupo de pesquisa. Alguns nomes bem conhecidos não conse-
guiram, pela primeira vez, renovar seus auxílios por falta de mérito cien-
tífico. Os pedidos de auxílio devem ser apresentados tanto em inglês como
em italiano, de maneira a permitir a participação de consultores exter-
nos” (grifo acrescentado).
15
Um bom exemplo, recente e entre outros, refere-se à vinda de Siân Jones,
com apoio da FAPESP e da British Academy, tendo ensinado na pós-
graduação da UNICAMP, cujos alunos puderam tomar contato com obras
suas inéditas, como seu livro, publicado em 1997, ano em que esteve
aqui. Desta forma, pôde discutir-se uma obra cujas qualidades fariam
com que fosse, em menos de dois anos, resenhada nas principais revistas
internacionais e brasileiras.
16
Em 1991, terminava artigo constatando que três passos se faziam neces-
sários: 1. To know, debate, exchange ideas and integrate archaeology with
other social sciences; 2. To integrate Brazilian archaeology with
archaeology as practised everywhere else in the world; 3. To adopt a Code
of Ethics...to prevent archaeology being used against indigenous minorities
and other oppressed people, and to prevent the return of political
persecution within or outside academic life (Funari 1991: 128; cf. em
castelhano, Funari 1992: 64-65).
ARQUEOLOGIA E PATRIMÔNIO 161
17
Trata-se de algo universal, como assinalaram McGuire e Walker (1999),
mas cujos contornos, em uma sociedade tão desigual como a brasileira,
tornam-se dramáticos. Recentemente, Noelli (e.g. 1994;1995;1996c) tem
produzido diversos estudos contundentes a respeito. Em um artigo sobre
a formação do arqueólogo no Brasil, não caberia desenvolver este tema,
que merece uma reflexão específica. Registre-se, no entanto, que o único
critério universalmente aceito para a chamada Arqueologia de Contrato
consiste na produção científica que deve resultar de qualquer atividade
contratada por uma empresa, o que nem sempre ocorre no Brasil. A for-
mação de iniciantes na Arqueologia nesse ambiente pode ser, portanto,
bastante inadequada, pois o que se tem que aprender é a produzir ciência,
o que nem sempre é o caso na Arqueologia de Contrato.
18
Conscientia, “saber com”, implica na interação social.
19
Um dos motivos de se desconsiderar o aspecto patrimonial da Arqueolo-
gia advém da noção estreita, defendida por alguns, de que “a Arqueolo-
gia não é o estudo de objetos, de coisas” (Meneses 1980: 6), o que
descaracteriza a inevitável ligação entre a Arqueologia e a apropriação
dos artefatos pela sociedade.

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