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Europa católica, América ibérica, África e

Oriente portugueses (séculos XVI-XVIII)


Jacqueline Hermann &
William de Souza Martins
Organizadores

Europa católica, América ibérica, África e


Oriente portugueses (séculos XVI-XVIII)

EDITORA MULTIFOCO
Rio de Janeiro, 2016
Copyright © 2016 Jacqueline Hermann e William de Souza Martins (Organizadores)
Todos os direitos reservados. Nenhuma parte deste livro pode ser utilizada ou reproduzida sob quaisquer meios
existentes sem autorização por escrito dos editores e autores.

EDIÇÃO Thayssa Martins


REVISÃO Jacqueline Hermann e William de Souza Martins
FOTOS DE CAPA Museu do Oratório / Instituto Cultural Flávio Gutierrez por Poliana Reis
CAPA Karina Tenório
DIAGRAMAÇÃO Paula Guimarães, Elisa Paula Cardoso e Caroline da Silva
IMPRESSÃO E ACABAMENTO Gráfica Multifoco

PODERES DO SAGRADO: Europa católica, América Ibérica,


África e Oriente portugueses (séculos XVI-XVII)
HERMANN, Jacqueline. MARTINS, William de Souza

1ª Edição
julho de 2016
ISBN: 978-85-5996-217-8

P742

Poderes do sagrado: Europa católica, América Ibérica, África e


Oriente portugueses (séculos XVI – XVIII) / organizadores
Jacqueline Hermann, William de Souza Martins. – Rio de
Janeiro, RJ. Multifoco, 2016.

462 p.

ISBN 978-85-5996-217-8

1. Religião. 2. Política. 3. História. I. Hermann, Jacqueline,


org. II. Martins, Willian de Souza, org. III. Título

CDD 322.1

Editora Multifoco
Flaneur Edição, Comunicação, Comércio e Produção Cultural LTDA.
Av. Henrique Valadares, 17b - Centro
20231-030 - Rio de Janeiro - RJ
Tel.:(21) 3958-8899
contato@editoramultifoco.com.br
www.editoramultifoco.com.br
AGRADECIMENTOS

Os organizadores agradecem à CAPES e ao


PPGHIS da Universidade Federal do Rio de Janeiro
(UFRJ) a concessão de auxílios para a publicação
desta obra, como também para a realização, em
novembro de 2014, do Colóquio Internacional
Religião e Religiosidades na Época Moderna.
Agradecem também ao Museu do Oratório a
cessão das imagens das capas.
SUMÁRIO

PREFÁCIO
Renovando um tema.................................................................................. 13
Laura de Mello e Souza

PARTE I - PENÍNSULA IBÉRICA

Política e profecia: resistência antonista e a difusão do sebastianismo na


Europa (1578-1598) ................................................................................... 21
Jacqueline Hermann

Um ‘apócrifo’ de Vieira: discursos sebastianistas, leitura de impressos e


circulação de manuscritos (séc. XVII-XVIII)........................................... 53
Luís Filipe Silvério Lima

Os agentes do Santo Oficio português na corte dos Habsburgo .............. 85


Ana Isabel López-Salazar

Conectando vivos e mortos nos territórios da expansão ibérica: religião e


ritual entre os doadores da Misericórdia do Porto (1500-1700) .............. 111
Isabel dos Guimarães Sá

Conventos femininos e religiosidade subvertida: Évora séculos XVII e


XVIII.......................................................................................................... 139
Isabel M. R. Mendes Drumond Braga

PARTE II - ENTRE A EUROPA CATÓLICA E A AMÉRICA IBÉRICA

Ambivalências identitárias no Pernambuco post bellum: os judeus “que se


deixaram ficar” após a expulsão dos holandeses ...................................... 173
Ronaldo Vainfas
Inquisição e Mulheres judaizantes no espaço ibero-americano: resistência e
práticas criptojudaicas na Modernidade lusa ........................................... 191
Angelo Adriano Faria de Assis

“Roubadora das almas dos que a usam”: uma análise preliminar acerca da usura
nas Constituições do Arcebispado da Bahia, início do século XVIII. .............219
Luciana Gandelman

A procissão de Corpus Christi no império português: discursos sobre as


“faltas” e o tempo (século XVIII).............................................................. 247
Beatriz Catão Cruz Santos

Os Franciscanos e Carmelitas e as Ordens Terceiras no mundo Ibero-Atlântico:


entre a hierarquia e a formação espiritual (séculos XVII e XVIII) ............. 271
Célia Maia Borges

Construindo e desconstruindo a santidade: aproximando as “vidas” das


madres Jacinta de São José e Rosa Maria Serio de Santo Antônio ........... 297
William de Souza Martins

As Confrarias de Devoção às Almas na Iberoamérica no Século XVIII: um


ensaio comparativo entre Tamas (La Rioja – Bispado de Córdoba) e Nossa
Senhora da Piedade do Iguaçu (Bispado do Rio de Janeiro).................... 333
Anderson José Machado de Oliveira & Valentina Ayrolo

PARTE III - A ÁFRICA E O ORIENTE PORTUGUESES

Alianças e embates entre religiões: missões católicas em terras centro-


africanas, século XVII ............................................................................... 361
Marina de Mello e Souza
Entre a Cruz e o Islã: escravos e forros diante da Inquisição de Goa (séc. XVI-
XVII) .......................................................................................................... 383
Patricia Souza de Faria

Religião e diplomacia: as missões agostinhas no Irã safávida no limiar do


século XVII (Frei Diogo de Santa Anna) .................................................. 407
Margareth de Almeida Gonçalves

O catolicismo na Índia e o “objeto religioso” para Michel de Certeau .... 437


Andréa Doré

AUTORES.................................................................................................. 453
PREFÁCIO

Renovando um tema

Laura de Mello e Souza


Universidade Paris IV - Sorbonne

A convite do colega e amigo José Pedro Paiva e no âmbito de um ciclo de


seminários por ele organizados na Universidade Católica de Lisboa, apresentei
em finais de 2010 uma reflexão sobre a historiografia dos estudos religiosos no
Brasil.1 Afastada do assunto havia um tempo considerável, tive de voltar a temas
e bibliografia que sempre me foram e continuam a ser caríssimos, apesar de ter
deles me afastado em virtude de incursões por outras searas. Creio datar dessa
época uma certa reaproximação que, aos poucos, realizei no sentido das proble-
máticas próprias a esse campo de estudos. Meu espanto inicial foi considerável,
pois havia um volume de pesquisa e uma renovação que ultrapassava em muito
o que eu podia imaginar.
Num ensaio bibliográfico instigante, Stuart Schwartz percebera, anos atrás,
que a historiografia brasileira do período colonial havia se afastado dos temas
mais globais e econômicos dominantes nas décadas de 1950-1970 para, após
uma incursão por temas de cultura e mentalidades, embarafustar nos meandros
administrativos do império português.2 Implicitamente, havia certo desaponto
na consideração, já que, a contrapelo dessa tendência, ele deixara a contabilidade
dos engenhos baianos e se aventurara pelos mesmos arquivos inquisitoriais que
alguns aficionados haviam posto em quarentena. Quem é do ramo sabe como
foi importante a publicação de Cada um na sua lei (All can be saved, 2008), con-
templado com prêmios nos Estados Unidos e, conforme fotografia que circula
na internet, com leitura do ex-papa Bento XVI...
1 “Cristianismo no Império Português – ensaio bibliográfico” – texto não publicado mas divulgado por via digital pelo site do Seminário de História

Religiosa - Época Moderna da referida instituição.

2 “A historiografia dos primeiros tempos do Brasil Moderno. Tendências e desafios das duas últimas décadas”. In História: Questões & Debates.

Curitiba, n. 50, pp. 175-216, jan/jun 2009.

13
Talvez seja interessante lembrar que, nos anos 80 do século passado, hou-
ve bastante reserva em certos meios historiográficos brasileiros ante os estudos
sobre religiosidade popular, sexualidades e moralidades, dos quais se exagerava
o aspecto frívolo e se negava a relevância para compreender a sociedade luso-a-
mericana. Tratava-se, para alguns, de uma historiografia irracionalista: de que
servia afinal seguir trajetórias de feiticeiras e beatas, sodomitas e blasfemos, pa-
dres solicitadores e índios que acreditavam no fim dos tempos?3.
Essas considerações críticas fizeram certo sentido na medida em que detec-
taram que a assim chamada razão se esgarçava ante o avanço de outras formas
de perceber o mundo e nele orientar a vida: o ainda jovem século XXI tem sido
pródigo nesse sentido, inclusive nas vertentes mais hediondas, as dos terroris-
mos e dos fundamentalismos de vário matiz. Mas a meu ver se enganaram ao
desconsiderar a importância de muitos desses fenômenos como objetos dignos
da atenção dos historiadores profissionais, porque sabe-se já há tempos que, ao
contrário do que pensava Goya, a razão acordada também produz monstros.4
Em suma, e para entrar no que de fato interessa, lembre-se da conhecida formu-
lação de Emile Durkheim n’As formas elementares da vida religiosa: “É inadmis-
sível que sistemas de ideias como as religiões, que tiveram na história um lugar
tão considerável, nos quais os povos, ao longo dos tempos, se abasteceram da
energia que lhes era necessária para viver, não sejam senão tecidos de ilusões”.
Nesse sentido, religiões, religiosidades – aqui entendidas na acepção muito
simples e simplificadora de vivência religiosa – e as instâncias do sagrado são
muito boas para fazer pensar. Um exemplo é o presente Poderes do Sagrado. Eu-
ropa Católica, América ibérica, África e Oriente portugueses (séculos XVI-XVIII),
organizado por Jacqueline Hermann e William de Souza Martins. Além de reu-
nir veteranos com tempo considerável de estrada – como Ronaldo Vainfas, Isa-
bel dos Guimarães Sá e Marina de Mello e Souza – e especialistas com trajetória
já bem consolidada no campo – como os dois organizadores, Luís Filipe Silvério
Lima, Anderson José Machado de Oliveira e Beatriz Catão Cruz Santos – divulga
trabalhos de jovens pesquisadores que vêm se notabilizando pela capacidade de

3 Cf., por exemplo, Ciro Flammarion Cardoso, Ensaios Racionalistas – Filosofia, Ciencias Naturais e História. Rio de Janeiro, Campus, 1987.

4 Para lembrar ao leitor, uma das 80 gravuras publicadas em 1799 por Francisco Goya na série Caprichos, - a de número 43 – tem por título a frase

“El sueño de la razón produce monstruos”, escrita no seu canto inferior esquerdo.

14
renovação da temática, como Ana Isabel Lopez-Salazar, Luciana Gandelman e
Patrícia Souza de Faria. Acompanhando uma tendência presente em colóquios
e coletâneas brasileiras nos últimos quinze ou vinte anos, reúne especialistas do
império português como um todo, diferentemente do que antes se verificava,
quando o foco dirigia-se de modo predominante para a América Lusitana: os
espaços geográficos abarcados por este volume compreendem localidades tão
distintas quanto o Golfo Pérsico, a Índia, Angola e o reino do Congo; cidades
metropolitanas como Évora, Porto e Madrid; locais de destaque no Estado do
Brasil como o Pernambuco dos holandeses e o da “Guerra da Liberdade Divina”;
logradouros menos conhecidos como Nossa Senhora da Piedade do Iguaçu (no
Bispado do Rio de Janeiro) e, na América Hispânica, Tamas, pertencente ao bis-
pado de Córdoba.
Porque o escopo comparativo é um dos elementos inovadores presentes nes-
te livro: contrastam-se vidas e espaços para melhor compreender os fenômenos,
acompanhando tendências que sustentam a importância de “conectar histórias”
para lançar análises numa chave mais ampla e abrangente, tornando mais nítidos
os vastos nexos imperiais. Os trabalhos de Serge Gruzinski, que tanto impacto
vêm tendo sobre a historiografia brasileira, são nesse ponto fonte permanente
de inspiração. Na pesquisa que Isabel dos Guimarães Sá vem realizando sobre
a Misericórdia do Porto evidencia-se o quanto a instituição se beneficiou com
fortunas amealhadas em solo colonial, e como eram fortes os laços que uniam
portugueses na América e na Metrópole.
Em que pese a importância de movimentos mais gerais, cabe ressaltar que o
contexto é sempre levado em conta, e aqui invoco dois grandes mestres já desa-
parecidos: E.P.Thompson, que o considerava um dos mais importantes elemen-
tos distintivos da disciplina histórica, e Jacques Le Goff, para quem era a “prova
dos nove da História”. Por um lado há em Poderes do Sagrado ensaios que bus-
cam nexos comuns e modelos que circulam, embaralhando autorias – como no
caso do ensaio instigante de Luís Filipe Silvério sobre os textos que Vieira teria
ou não teria escrito sobre profetismo e milenarismo – e forjando modelos a se-
rem imitados – matéria da bem-sucedida comparação entre duas religiosas, uma
luso-brasileira e outra italiana, levada a cabo por William Martins. Por outro, há
análises que esmiúçam situações específicas, como bem evidenciado no estudo

15
de Marina de Mello e Souza sobre as formas variáveis com que se vivenciava o
processo de missionação em terras do Congo e de Angola, função de jogos de
interesses contextualmente distintos.
Descendo ao que é ainda mais particular e único, cabe sublinhar o desta-
que dado a trajetórias individuais: não são aqui tomadas aleatoriamente, mas
por ilustrarem questões significativas e auxiliarem na compreensão de fenôme-
nos mais gerais. É o caso da nova investida de Ronaldo Vainfas no mundo dos
cristãos novos e dos judeus novos do Brasil Holandês, que traz, agora, ainda
mais a nu o quanto houve de antissemitismo na “Guerra da Liberdade Divina”
dos proto-patriotas pernambucanos; ou da que faz Jacqueline Hermann sobre o
fascinante Prior do Crato, que ela vem estudando há anos sob viés inspirador e
renovado. É também o que empreende Angelo Adriano Faria de Assis no tocante
ao papel das mulheres judaizantes como transmissoras dos saberes – frequente-
mente alterados e aclimatados – da fé judaica no mundo colonial; Beatriz Catão
quando aborda um caso de disputa por precedência numa das mais importantes
festividades religiosas do mundo lusitano; ou Ana Isabel López-Salazar quando
esmiúça a ação de agentes do Santo Ofício português na corte madrilenha a fim
de mostrar como o tribunal teve o braço comprido e conseguiu se fortalecer sob
a União Dinástica.
Por fim, a atuação de ordens religiosas como a dos carmelitas e a dos agos-
tinhos, até há pouco sub-representadas nas pesquisas feitas no Brasil sobre o
Império português, remetem mais uma vez à vastidão dos espaços abarcados,
avançando na compreensão do protagonismo possível dos missionários em re-
giões tão afastadas quanto o Irã Safávida e pondo em relação crenças religiosas
diferentes. Porque uma das peculiaridades deste volume é abrir espaço às rela-
ções e confrontos dos portugueses católicos com outros universos de crença,
como o eram os do hinduísmo e do Islão. Nos tempos que correm, mais do que
nunca, é importante procurar compreender os nexos e os sentidos das diferentes
religiões.
Em Um mundo em movimento , livro a meu ver marcante e que se publicou
em 1992, o historiador britânico A.J.R. Russell-Wood mostrou como foi estreita
a relação entre o problema das religiões e a constituição do império português.
Abriu espaço para os servidores de Cristo em meio ao exame do fluxo e refluxo

16
de mercadorias, da difusão de espécimes vegetais e animais, do movimento das
palavras e imagens veiculadas nos relatos de viajantes que cruzavam o império
português. Russell-Wood esboçou os nexos de algumas trajetórias episcopais,
prestou atenção na itinerância de regulares e seculares, traçou micro-biografias
de padres inquietos, como Jerônimo Lobo (1595-1678), filho de um governa-
dor de Cabo Verde que ingressou na Companhia em Coimbra, naufragou numa
viagem malsucedida a Moçambique, foi dar no Japão, andou pela Etiópia, pela
Somália, Índia, Caribe, Ceilão, Malaca, para acabar seus dias em Coimbra. “Os
padres seculares e os frades eram parte integrante de qualquer caravela ou car-
raca que partisse de Portugal com destino à África, à Índia ou ao Brasil, ” escre-
veu Russell-Wood. 5 Aproveito para invocar esse grande estudioso do Império
português, tão amigo do Brasil e cogitar que certamente teria gostado de ler este
livro. Várias décadas após a publicação de obras que marcaram época, a exemplo
das suas e das de historiadores brasileiros como Luiz Mott e Anita Novinsky – de
quem Cristãos Novos na Bahia (1972) é lembrado por alguns dos autores aqui
presentes como ponto de inflexão nos estudos sobre as relações entre religião
e sociedade no período colonial – este livro dá muito boa prova do vigor dos
estudos que hoje se realizam sobre o assunto no Brasil.
Termino para deixar que o leitor constate o cuidado com que neste volume
se aliam pesquisa empírica, erudição e capacidade analítica. E para que os vete-
ranos se regozijem com o quanto se caminhou nesta estrada desde aquele tempo
em que nela demos nossos passos.

5 A.J.R. Russell-Wood, Um mundo em movimento – os portugueses na África, Ásia e América (1415-1808. Tradução portuguesa. Lisboa, Difel, s/d,

p. 144.

17
Parte I

PENÍNSULA IBÉRICA
POLÍTICA E PROFECIA:
resistência antonista e a difusão do
sebastianismo na Europa (1578-1598)

Jacqueline Hermann1

Depois de Alcácer Quibir

Com o desaparecimento do rei D. Sebastião na batalha de Alcácer Quibir,


em agosto de 1578, o Cardeal D.Henrique tornou-se rei de Portugal. Último da
dinastia de Avis, o Cardeal enfrentou, no curto reinado de dois anos, os mais
variados tipos de pressão: governar em meio à comoção do desastre, adminis-
trar o resgate de boa parte da nobreza aprisionada no Marrocos e, o mais grave,
mediar a delicada crise sucessória iniciada tão logo os rumores do desastre se
espalharam pela Europa.
O fim iminente da dinastia de Avis estimulou os vários ramos genealógi-
cos da monarquia a postularem a sucessão da Coroa lusitana. Seis candidatos
apresentaram-se: de Portugal, a duquesa de Bragança, D.Catarina e o inusitado
D.Antônio, Prior do Crato, ambos netos de D.Manuel por via paterna; Felipe II,
rei de Espanha e Emanuel Filisberto, duque de Sabóia, filho de Carlos II e da In-
fanta Beatriz, filha de D.Manuel I, também netos do Venturoso, por via materna;
Ranuccio Farnese, filho de Alexandre Farnese, duque de Parma e de Maria de
Portugal, além de Catarina de Médicis, com base em remota ligação com o rei
D.Afonso III, morto em 1279. O número de candidatos e a estatura de alguns de-
les indica a importância assumida por Portugal na conjuntura política da época,
as diversas negociações que motivou e as expectativas geradas pelo aumento do
poder Habsburgo na Europa.
Na disputa iniciada logo depois das primeiras notícias da derrota de Alcá-
cer Quibir, e apesar do número de pretendentes, três foram os mais fortes can-

1 Esta pesquisa conta com apoio do CNPq.

21
didatos: D.Catarina, duquesa de Bragança (1540-1614), neta do Venturoso por
linha paterna, e Felipe II de Espanha (1527-1598), também neto de D.Manuel,
mas por via materna. E e se não bastasse a oposição clara entre uma candidatu-
ra portuguesa e outra espanhola, novo e inesperado candidato apresentou suas
credenciais a partir de outubro de 1578: D.Antônio, Prior do Crato. Como os
demais, D.Antônio era neto do famoso soberano português por via paterna, mas
filho bastardo do Infante D.Luís, Príncipe de grande memória segundo muitos
cronistas, e de uma cristã nova chamada Violante Gomes2. A partir de 1578, e
sobretudo de 1579 e 1580, D.Antônio buscou apoio dentro e fora de Portugal,
atuando primeiro no Vaticano, para superar o principal obstáculo à ilegitimi-
dade de sua candidatura ao trono português – a bastardia –, e depois de 1580
procurou ajuda dos principais inimigos de Espanha – França e Inglaterra – para
o seu projeto de realeza3.
O poderoso Felipe II foi rápido na cooptação da alta nobreza e do alto clero,
depois da notícia do desastre no Norte da África: atuou na negociação de cativos
no Marrocos – possivelmente intercedeu pela libertação do próprio D.Antônio,
primo a quem já ajudara muito nos anos de 1560 –, procurou cuidadosamente
convencer o tio, o rei D.Henrique, de seu direito de herança de Portugal, ao mes-
mo tempo em que ofereceu acordos aos rivais D.Catarina de Bragança e D.An-
tônio, visando abreviar a disputa sucessória. Sem negar os muitos favores que
devia ao Rei Católico, D.Antônio não desistiu da candidatura, apesar da resistên-
cia do Cardeal-rei, tio-avô por quem foi desterrado e expulso de Lisboa depois
de obter a sentença favorável de sua legitimidade em Roma, em maio de 15794.
Obstinado e irreverente, D.Antônio foi o opositor mais determinado de Felipe

2 Para uma análise das discussões acerca do pretenso casamento dos pais de D.Antônio, ver DUQUE DE ALBA. El proceso de ilegitimidad de D.Antonio,

Prior do Crato y su resistencia contra Felipe II. Homenaje ofrecido a Menendez Pidal. Miscelanea de estudos linguísticos, literarios e históricos. Madrid,

1925; HERMANN, Jacqueline. Um rei cristão novo. Judaísmo, bastardia e os obstáculos à candidatura de D.Antônio, prior do Crato, ao trono português

(1578-1580). Georgina Silva dos Santos e Renato Franco. (Orgs.). (In)Tolerância. Religião, raça e política no mundo ibérico do Antigo Regime. Niterói:

Companhia das Índias/Universidade Federal Fluminense, no prelo.

3 Para uma análise preliminar das tratativas de D.Antônio em cortes europeias e os rumores sobre a expansão Habsburgo na península itálica ver

HERMANN, Jacqueline. Politics and diplomacy in the Portuguese crises. The candidacy of D.Antonio, Prior of Crato (1578-1580). Giornale di Storia

(13), 2014. (www.giornaledistoria.net).

4 Sobre as tratativas de D.Antônio em Roma ver CASTRO, José de. O Prior do Crato. Lisboa: União Gráfica, 1942.Para uma análise dos problemas

causados por D.Antônio nas tentativas de liberação dos votos do Cardeal para se casar e dar herdeiro legítimo ao reino ver HERMANN, Jacqueline. Um

papa entre dois casamentos: Gregório XIII e a sucessão de Portugal (1578-1580). Portuguese Studies Review. Vol 22, n.2. Ontario: Baywolf Press, 2016.

22
II, jamais se rendeu às limitações impostas pelo Cardeal D.Henrique e manteve
ativa uma rede de aliados no Vaticano, nas cortes de França e Inglaterra, e tam-
bém junto ao Xarife marroquino vitorioso, além de simpatizantes e desterrados
em Madri, para fazer valer seu direito de acesso ao trono português5.
A investigação que ora apresento é produto do cruzamento em grande parte
inesperado de duas pesquisas que desenvolvo lá se vão muitos anos. Comecei
com o estudo do sebastianismo português e algumas de suas expressões letradas
e populares entre o final do século XVI e o XVII, período de surgimento e con-
solidação da espera messiânica e régia capaz de resgatar Portugal do domínio
castelhano. Por mais vago que possa parecer o surgimento dessa espera, entendo
que se baseou na expectativa concreta da volta de parentes, filhos e maridos do
Norte da África, combinada à expectativa de volta do próprio rei e a elementos
da crença judaica profundamente enraizados no reino havia séculos. Neste úl-
timo caso, a valorização de uns versos atribuídos ao sapateiro Gonçalo Annes
Bandarra fundiu escritos de cariz judaico à espera de um rei católico para redi-
mir a cristandade. Essa inusitada assimilação resultou em processo que termi-
nou por transformar este personagem primeiro em profeta do sebastianismo,
depois profeta do Quinto Império, como fez dele ninguém menos que Antônio
Vieira, já na segunda metade do século XVII. Para esta complexa transição, na
virada do século XVI para o XVII, foi decisiva a participação de um dissidente
da causa de D.Antônio, D.João de Castro, corifeu do sebastianismo, nas palavras
de João Lúcio de Azevedo no clássico A evolução do sebastianismo.
A outra pesquisa a que me refiro concentrou-se na figura do já mencionado
D.Antônio, Prior do Crato. Quando estudei o sebastianismo em Portugal,
D.Antônio aparecia na historiografia portuguesa como um personagem
menor, considerado ora como um risível e impertinente bastardo, ora com
um personagem sem maior importância na disputa sucessória. Ao pesquisar
em arquivos espanhóis, descobri um outro D.Antônio, não apenas bem mais
atuante e valorizado pelos reis de Portugal e Espanha, como o mais determinado
opositor do poderoso Felipe II, tendo contado com aliados junto ao papa e às
cortes francesa e inglesa e chegando a ser proclamado rei de Portugal em junho

5 Cf. ASIN, Jaime Oliver. Vida de Don Felipe de África, Príncipe de Fez y Marruecos (1566-1621). Madrid, Consejo Superior de Investigaciones Científi-

cas, 1955, Cap.2: Muley Xeque en Portugal (1578-1593), p. 63-93.

23
de 1580. O Cardeal D.Henrique morrera, em janeiro deste ano, sem indicar um
herdeiro para Portugal, deixando o reino governado por uma Junta Cinco de
Governadores, 3 dos quais já aderentes ao pleito de Felipe II. Reunindo um grupo
de adeptos numeroso e difícil de ser completamente identificado6 – boa parte
pertencente à baixa nobreza e ao baixo clero – D.Antônio ignorou a inferioridade
militar de seu partido e desafiou em armas o primo e rei de Espanha, apressando
a entrada das tropas castelhanas em Portugal em agosto de 1580. Vale dizer
que desde 1579 as fronteiras de Portugal vinham sendo cercadas, indicando
a iminente invasão castelhana. Esta ameaça provocou acalorados debates e
assombro, pois tratava-se de reino com reconhecidos e grandiosos serviços
prestados à cristandade. Mas apesar de tamanha ousadia, a realeza de D.Antônio
durou pouco mais de dois meses: o prior e seus aderentes foram derrotadas na
Batalha de Alcântara em agosto de 1580. Fugindo pelo norte do país, para o que
parece ter se refugiado em conventos e mosteiros, além de contar com apoio
de frades e padres que pegaram em armas pela defesa de sua causa, D.Antônio
saiu do reino em maio de 1581. Um mês antes Felipe II havia sido jurado rei de
Portugal nas Cortes reunidas em Tomar.
No exílio, primeiro em França, depois em Inglaterra e por fim novamente
França, buscou apoio das rainhas Catarina de Médicis e Elizabeth I, chegou a
contar com corsários das duas monarquias nas aventuras derrotadas nos Açores
(1582) e na tentativa de voltar a Lisboa (1589)7, até morrer solitário e pobre na
França, em 1595. O contato com a correspondência do Prior do Crato e com a
documentação encontrada no Archivo General de Simancas, na Casa de Alba,
ambos na Espanha, e no Arquivo da Torre do Tombo, em Portugal, fizeram-me
vislumbrar uma expressiva rede de aderentes à causa de D.Antônio, vários deles
presos ou emigrados, alguns dos quais envolvidos, anos depois, diretamente nos
casos do falsos D.Sebastião surgidos em Madrigal, em 1594, e em Veneza, em
1598. Estes dois casos embasam em parte a hipótese que defendo neste texto

6 Para uma análise dos acontecimentos que resultaram na “aclamação” de D.Antônio em Santarém em junho de 1580 ver SERRÃO, Joaquim Veríssimo.

O reinado de D.António, Prior do Crato. Vol.I (1580-1582). Coimbra, 1956.

7 Em 1582-3, com apoio francês, D.Antônio tenta instalar-se no arquipélago dos Açores, onde também foi aclamado rei, sendo derrotado pelas forças

castelhanas na Ilha Terceira em 1583. Em 1589, armada inglesa liderada por Francis Drake tentou trazer de volta o Prior do Crato a Portugal, sendo

igualmente derrotada e encerrando a resistência antonista, cf. VAZ, João Pedro. Campanhas do Prior do Crato (1580-1589). Entre reis e corsários pelo

trono de Portugal. Lisboa: Tribuna, 2005.

24
acerca das estreitas e contraditórias relações entre a dissidência antonista e o
surgimento e disseminação de boatos sobre a possível sobrevivência e volta de D.
Sebastião ao trono português. Os aliados de D.Antônio espalhados pela Europa
ajudaram a difundir, fora de Portugal, as notícias de que o rei português pudesse
estar vivo e pronto para voltar. Nesse desvio inesperado dos acontecimentos, a
causa antonista se perderia até mesmo na memória de seus antigos dissidentes,
que passaram a esperar e conspirar a favor de D.Sebastião.

Da resistência antonista aos falsos reis

Os primeiros boatos de que D.Sebastião poderia estar vivo surgiram ainda


nos anos de 1580, talvez sinalizando o lamento pela ausência de um soberano no
reino, depois da partida de Felipe II de Portugal em 1583. Jurado rei português
nas Cortes portuguesas de Tomar, o monarca castelhano permaneceu 2 anos em
Portugal, consolidando os laços com a nobreza e demonstrando deferência espe-
cial ao reino recém conquistado, depois confirmado como herança. O primeiro
dos quatro falsos monarcas apareceu em Penamacor, região de fronteira com Es-
panha, em 1584; o segundo em Ericeira, no ano seguinte8. No caso de Penamacor,
cujo nome do pretendente não sabemos, o candidato a rei teria sido envolvido na
trama por uma viúva de Alcácer Quibir, ainda quando instalado numa ermida
também na fronteira com Espanha. Visitado por várias pessoas, caiu nas graças
da senhora, cuja proteção gerou comentários maledicentes, levando-o a abando-
nar a região. O ermitão teria ganho da protetora roupas, dinheiro e um cavalo,
a comprovar a boa situação da viúva. De origem humilde, nosso personagem
acabou preso e teve que explicar os pertences de que dispunha. Depois de solto,
passou a vagar contando histórias da batalha marroquina e dizendo falar língua
de mouros. Por estranha associação, passaram a divulgar que seria D.Sebastião
em Penamacor, acompanhado de dois antigos “servidores”: Cristóvão de Távora,
um dos preferidos do Desejado, morto em Alcácer Quibir, e o bispo da Guarda,

8 Sobre os quatro candidatos a D.Sebastião, nas décadas de 1580 e 1590 ver o clássico D’ANTAS, Miguel. Os falsos D.Sebastião. 2a.edição revista.

Introdução e notas de Sales Loureiro. Odivelas: Europress, 1988. Para um resumo dos 4 casos, ver HERMANN, Jacqueline. No reino do Desejado. São

Paulo: Companhia das Letras, 1998, cap.4. Os casos surgidos na década de 1590 foram os mais estudados, sobretudo o aparecido em Madrigal, sobre

o qual falarei adiante.

25
um dos poucos bispos partidário da causa de D.Antônio9. Depois de poucos me-
ses, “rei” e sua “corte” foram denunciados e punidos. Fora a menção ao bispo da
Guarda, provavelmente motivada por confusão, não é possível estabelecer uma
relação direta entre este caso e adeptos ou dissidentes de D.Antônio. Condenado
às galés, foi pouco valorizado como ameaça mais concreta pelo então Vice-Rei
de Portugal, o arquiduque Alberto de Áustria10.
Alguns anos depois, em 1588, segundo Miguel D’Antas, autor de um clássi-
co sobre o tema, o caminho deste eremita cruzaria com o de D.Antônio: reman-
do em uma das naus que partiu de Lisboa para a derrota da Invencível Armada,
teria fugido e se juntado a D.Antônio na França. Não é fácil entender porque um
candidato a rei se juntaria à causa de um rival, a não ser pela interpretação mais
recorrente, nem sempre satisfatória, de um sentimento incontrolável de resistên-
cia ao domínio Habsburgo em Portugal, capaz de juntar de forma direta projetos
concorrentes. Com a falta de documentos que comprovem essa transição, fica-
mos com este desdobramento aguardando confirmação.
O segundo caso de candidato a duplo de D.Sebastião, o falso de Ericeira11,
teve maior repercussão e popularidade. Também de origem humilde como o
anterior, Mateus Álvares seria filho de um pedreiro ou talhador de pedra da Ilha
Terceira, onde D.Antônio também foi aclamado rei, sendo derrotado pelas for-
ças castelhanas em 1583. Como o antecessor, tentou e desistiu da vida religiosa,
passou a peregrinar como eremita, até se instalar, em 1585, nos arredores da vila
de Ericeira, localizada cerca de 35 quilometros de Lisboa. Visitado por mora-
dores, foi acolhido por um grande proprietário local e escrivão da alfândega de
Lisboa, Antônio Simões. Ele e a mulher disseram reconhecer no eremita o rei
D.Sebastião. A trama foi ganhando vulto e passou a contar com outro defen-
sor, Pedro Simões, segundo os relatos conhecidos, um adversário declarado de

9 PAIVA, José Pedro Paiva. Bishops and Politics: the portuguese episcopacy during the dynastic crises of 1580 in e-JPH, vol.4, number 2, Winter (2006),

(http://www.brown.edu/Departments/Portuguese_Brazilian_Studies/ejph). Segundo Paiva a adesão do bispo da Guarda a D.Antônio deu-se mais por

desavenças com o Cardeal D.Henrique do que por simpatia à causa do prior do Crato.

10 Sobrinho de Felipe II, foi o primeiro Vice-Rei de Portugal, entre 1583 e 1593.

11 Além de Miguel D’Antas, ver GANDRA, Manuel J. (coord). O Falso D.Sebastião de Ericeira e o Sebastianismo. Mafra: Câmara Municipal de Mafra,

1988. Há ainda o romance de Marcelino Mesquita. O rei de Ericeira de Marcelino Mesquita, publicado em 1998, extraído de Os quatro reis impostores,

do mesmo autor, publicado em Lisboa, 1908.

26
Castela, mas sem qualquer ligação direta, até onde se sabe, com D.Antônio12. A
encenação ganhou ares de fábula e com detalhes interessantes para pensarmos
a percepção popular acerca dos rituais de corte e de atração pela representação
real: Mateus Álvares teria enviado mensagens a diversas partes do reino anun-
ciando sua chegada como D.Sebastião. A principal delas foi dirigida ao Arquidu-
que Alberto, então Vice-rei de Portugal, ordenando que desocupasse o palácio e
voltasse para Castela. “Aclamado” rei em 11 de junho de 1585, chegou a reunir
cerca de 800 “servidores”, casou-se com a filha de outro senhor, Pedro Afonso,
“coroada” como rainha com um diadema retirado da imagem da Virgem de uma
igreja. “Concedeu” o título de marques de Torres Vedras, senhor de Ericeira e
governador de Lisboa ao sogro; assinou decretos e cartas patentes, todos marca-
dos com um simulacro de selo real. Por fim, conclamou os portugueses a pega-
rem em armas contra os “estrangeiros”.
O resultado da ousadia foi o rápido conhecimento da conspiração. Estra-
nhamente, no entanto, e mesmo depois do caso de Penamacor, o Arquiduque
deu mais uma vez pouca importância ao caso, favorecendo o aumento do gru-
po e o plano de tomar Lisboa em 24 de junho. Os rumores de que já contava
com cerca de mil partidários resultou na ordem, vinda diretamente de Castela,
para desmontar a conluio. Caso mais violento e grave depois da “aclamação” de
D.Antônio em Santarém, os rebeldes fizeram reféns e mataram o juiz e o escri-
vão de Torres Vedras, invadiram a quinta de um membro do Conselho Real,
provocaram saques até ficarem entricheirados numa igreja: quase todos foram
mortos, à exceção do “rei” Mateus Álvares, enviado para Lisboa em 12 de junho,
um dia depois de se auto-proclamar Rei de Portugal. Confessou o plano: assim
que tomasse Lisboa, abdicaria, declarando “olhem bem para mim, não sou o
rei D.Sebastião”, mas exortaria o povo a lutar contra os estrangeiros. Exposto
publicamente, acusado de crime de lesa-majestade, foi esquartejado, seu corpo
exposto nas quatro entradas da cidade.
Este foi o evento de maior repercussão em Portugal, tendo acolhimento em
diversas regiões dos arredores de Lisboa e, pelos relatos que se conhece, chegou
a organizar um arremedo de corte com apoio popular. Como todos os demais,
creio ser ainda necessário um estudo mais aprofundado da trama que culminou

12 Não localizei este nome no trabalho mais completo do chamado reinado de D.Antônio, de autoria de SERRÃO, Joaquim Veríssimo Serrão, op.cit..

27
na coroação do falso rei de Ericeria, mas neste caso, as dificuldades são grandes.
A fonte básica para ele é o trabalho de Miguel D’Antas, publicado em Paris no
ano de 1866, e claramente comprometido com a visão anticastelhana dos episó-
dios. Entendo ser ainda necessária a identificação de novas fontes e a releitura
das já utilizadas com vistas a melhor avaliar a repercussão popular sempre men-
cionada, sendo de estranhar que se tenha dissipado completamente depois da
repressão – compreensível até certo ponto pela caráter “didático” e público da
punição. A espera por D.Sebastião manteve-se no interior dos conventos e casas,
do que deram exemplo os processos sofridos pelas visionárias em meados do
século XVII e por mim analisados em outro trabalho13. Mas para o que aqui in-
teressa, vale reiterar que, senão indiretamente, não há registros claros de que os
conluios de Penamacor e Ericeira tenham contado com a ação de partidários de
D.Antônio, ou seja, tenham sido decorrências inesperadas da resistência política
comandada pelo Prior do Crato. Por outro lado, e sobretudo no caso de Ericei-
ra, parecem ter sido os movimentos mais autônomos e populares associados à
volta de D.Sebastião que se conhece, razão pela qual estudos mais aprofundados
poderiam ampliar a análise da difusão embrionária da crença sebastianista em
Portugal ainda em seus primeiros passos.
Os dois outros casos de falsos D.Sebastião surgidos nessa conjuntura, ao
contrário dos anteriores, apresentam clara e inegável conexão com os desdobra-
mentos da causa de D.Antônio, como tentarei demonstrar, a indicar transição
complexa e um tanto inusitada de uma causa explicitamente política a outra de
sentido mais abstrato, difuso e, no limite, sacralizado. Foram ainda os episó-
dios que mais repercussão tiveram fora de Portugal, para o que contaram com a
dispersão dos seguidores do Prior do Crato pela Europa e com a dissidência de
alguns deles da causa antonista, cujo mais expressivo exemplo foi o de D.João de
Castro, personagem ao qual voltaremos. Entre a decepção com a causa derrotada
de D.Antônio, o desalento e abandono em reinos estranhos e a esperança difusa,
pessoal e política, de retorno a Portugal, alimentaram as murmurações sobre
a possibilidade de que D.Sebastião estivesse vivo, participando e organizando
rocambolescas maquinações para retomar o reino “perdido”.
O caso do pasteleiro de Madrigal, Gabriel de Espinosa, comandado por um

13 Cf. HERMANN, Jacqueline. No reino do Desejado, cap.4.

28
ilustre religioso, indica um campo vasto de análise: o envolvimento do clero re-
gular e secular na aventura monárquica do Prior do Crato. Não há, até onde
sei, estudo específico sobre esse aspecto tão particular da resistência antonista,
sendo o historiador João Francisco Marques o principal autor a dedicar-se ao
estudo do clero no contexto do domínio Habsburgo. O trabalho sobre a parené-
tica produzida em Portugal por religiosos de diversas ordens contra a domina-
ção castelhana é um clássico e já demonstrou que, diferentemente do que já se
disse sobre a relação entre o sebastianismo e os jesuítas, o desgosto com Castela
não foi exclusividade de um única ordem religiosa14. Não deixa de intrigar, no
entanto, como o prior obteve tamanha adesão do clero – mencionada em diver-
sos documentos – tendo sido um religioso tão relapso e indisciplinado (apenas
recebeu ordem de diácono, recusando-se a ordenar-se presbítero), do que são
exemplos incontestes os cerca de 10 filhos bastardos que teve. Dentre estes, os
dois mais velhos, D.Manuel e D.Cristóvão, integraram “missões” diplomáticas
em cortes européias e junto ao Xarife vitorioso no Marrocos depois de Alcácer
Quibir, além de participarem da comitiva que foi a Veneza reconhecer o quarto
e último candidato a D.Sebastião15.
Mas para o que aqui nos interessa, o principal trabalho do autor é o alen-
tado texto sobre frei Miguel dos Santos e a aventura do falso rei aparecido em
Madrigal em 1594. Não há dúvida de que frei Miguel foi o grande artífice desse
embuste que, segundo Marques, levou a cabo a “conjura de inspiração sebastia-
nista destinada a colocar D.Antônio, o Prior do Crato, no trono”16, afirmação
no mínimo contraditória. Se tinha o objetivo de, através do falso D.Sebastião,
retirar Felipe II do trono, como justificaria o direito de D.Antônio com o legí-
timo rei vivo? Na verdade, terminou por ajudar a divulgar dentro da própria
Espanha a possibilidade de que D.Sebastião havia sobrevivido, alimentando
expectativas e temores.
Frei Miguel nasceu em família de nobres, entre 1537 ou 1538, avós espa-
nhóis, e entrou cedo para a vida religiosa. No noviciado do convento de Nossa

14 MARQUES, João Francisco. A parenética portuguesa e a dominação filipina. Porto: Instituto Nacional de Investigação Científica. Centro de História

da Universidade do Porto, 1986.

15 Sobre as tentativas de trato com autoridades marroquinas, ver ASIN, Jaime Oliver. Op.cit.

16 MARQUES, João Francisco. Fr. Miguel dos Santos e a luta contra a União Dinástica. O contexto do falso D.Sebastião de Madrigal. Porto: Revista da

Universidade de Letras – História. Série II, vol. XIV, 1997, p. 331-2.

29
Senhora da Graça, em Lisboa, teve o controvertido frei Valentim da Luz como
mestre, queimado pela Inquisição em maio de 1562, por questionar princípios
católicos e defender ideias de teor luterano, crítico dos santos e das imagens17.
Frei Miguel teve rápida ascensão na carreira religiosa: em 1566 foi eleito subprior
do conimbricence Colégio da Graça e, pelo gosto e facilidade, parecia encami-
nhar-se para o ensino universitário de teologia, mas acabou convocado a ir para
Lisboa. Pelo talento demonstrado nos púlpitos, tornou-se pregador e confessor
régio em 1570, privando ainda da intimidade da rainha D.Catarina e do Cardeal
D.Henrique, avó e tio-avô de D.Sebastião. Bem protegido, passou ao largo de
acusações de processados pela Inquisição, denunciado por afirmar que os que
estavam no purgatório tinham a salvação incerta. Posicionou-se contra a ida de
D.Sebastião a África, sem que tenha deixado sermão explícito sobre o assunto. Já
prior do Convento da Graça, depois de preso pelo envolvimento no caso do falso
de Madrigal, confessou que ouvira rumores de que D.Sebastião estaria vivo, che-
gando a comentar a suspeita com o Cardeal D.Henrique, então rei de Portugal.
Na disputa sucessória, aproximou-se de D.Antônio, a quem provavelmente
já conhecia por frequentar o paço, mas não deixa de ser estranha sua opção pelo
prior sendo próximo do Cardeal, que desde meados dos anos de 1560 se desen-
tendera com D.Antônio. O fato é que frei Miguel teria sido o redator da petição
em latim enviada a Roma no tortuoso processo de legitimação de D.Antônio,
outra informação carente de confirmação. Em junho de 1580 correu a notícia da
aclamação de D.Antônio em Santarém, o reino em ebulição, muitas referências
a padres que pegaram em armas pela causa de D.Antônio. Depois da batalha de
Alcântara, quando o prior foi derrotado pelas tropas do duque de Alba, fugiu
pelo norte, contando com apoio do inúmeros religiosos partidários de sua causa.
Frei Miguel teria estado com D.Antônio quando este tentou voltar a Lisboa, en-
volveu-se na luta armada com o prior e, na batalha de Alcântara, conheceu aque-
le que viria a protagonizar o embuste de Madrigal. Soldado das tropas castelha-
nas, Gabriel de Espinosa chefiava um grupo de soldados decididos a incendiar
o convento da Graça de Lisboa, mas atendendendo ao pedido de frei Miguel,
desistiu, por ter com este uma gratidão motivada por razão ainda desconhecida.

17 Sobre o caso é clássico o estudo de DIAS, José Sebastião da Silva. O Erasmismo e a Inquisição em Portugal. O Processo de Fr.Valentim da Luz.

Coimbra: Universidade de Coimbra, 1975.

30
Toda essa rocambolesca narrativa deixa sem resposta várias questões, sendo
para mim a principal a razão da aproximação entre frei Miguel e D.Antônio. Não
sabemos se havia uma relação antiga, se eram próximos, por que um religioso
que se acostumara à vida do paço, confessor de membros da Casa Real se voltou
contra o rei espanhol, se vislumbrava algum outro interesse ou projeto, arriscan-
do-se em empreitada tão perigosa e, mais grave, dentro de Espanha. O viés da
análise de Marques é sempre o da resistência antifilipina e do patriotismo, mas
não creio que esta relação seja a única possível no quadro de incertezas que se
abriu no reino depois de Alcácer Quibir, sem que entremos na discussão acerca
do anacronismo das noções de pátria em fins do século XVI e no século XX
quando o autor escreveu.
Apesar da afronta ao rei espanhol, e mesmo depois da fuga de D.Antônio
do reino, em maio de 1581, Frei Miguel só foi expatriado para Espanha em 1583,
onde cumpriu um ano de reclusão e, estranhamente, depois de atuar junto ao
maior desafeto de Felipe II, foi posto em liberdade, mas proibido de voltar a Por-
tugal sem autorização. Esse ato de magnanimidade ou de descuido do Rei Cató-
lico daria ensejo ao processo de circularidade cultural provocado pelo degredo,
tão bem observado por Laura de Mello e Souza para o Brasil18, permitindo que
o frade continuasse a conspirar, desta vez dentro da “casa” do inimigo. Passados
dez anos de sua libertação, e sobre os quais há pouca informação, frei Miguel
conseguiu ser nomeado vigário do mosteiro das agostinhas de Santa Maria a Real,
em Madrigal. Lá tornou-se confessor de D.Ana de Áustria, sobrinha ilegítima de
Felipe II – filha do irmão natural D.João de Áustria19 –, no mosteiro desde 1590
ou 159120. Para sua nomeação contou com apoios importantes, dentre os quais o
arcebispo de Braga, D.Agostinho de Jesus, seu antigo companheiro, a demonstrar
que o envolvimento em causa política tão grave não comprometia amizades ou
gerava medo de aproximação. Localizado no caminho para Valladolid, o conven-
to ficava em área de grande trânsito e circulação de notícias, o que deve ter tanto
ajudado como complicado a conspiração sebástica arquitetada em Madrigal.

18 SOUZA, Laura de Mello e. O enraizamento: circularidade de culturas e crenças – Brasil, 1543-1618. Inferno Atlântico. Demonologia e colonização,

séculos XVII-XVIII. São Paulo: Companhia das Letras, 1993.

19 João de Áustria (1547-1578), filho bastardo de Carlos V e Barbara Blommberg, foi militar importante na batalha de Lepanto, em 1571, e governador

em Flandres.

20 MARQUES, João Francisco, op.cit., p.361.

31
Frei Miguel tornou-se confessor de D.Ana, reclusa por ordem de Felipe II,
e segundo João Francisco Marques esta seria a razão de sua revolta contra o tio,
pois viu-se obrigada a professar sem vontade ou inclinação para vida na clausura.
Arguto, frei Miguel teria visto no desgosto e fragilidade de D.Ana um caminho
para aliciá-la para seu projeto. Segundo o depoimento da religiosa, frei Miguel
por quatro anos tentou convencê-la de que D.Sebastião estaria vivo, viria recupe-
rar Portugal e libertá-la para casar-se com ela. Talvez guiada por essa esperança,
a sobrinha do rei espanhol abriu as portas do convento aos conspiradores, para
depois dizer que nada sabia, usando sua origem e importância para fazer do
convento um quartel general de grave trama política.
O que se sabe desse caso baseia-se no processo arquivado no Archivo Ge-
neral de Simancas, analisado em vários trabalhos, dentre os quais o do já men-
cionado Miguel D’Antas, havendo trabalhos posteriores que devem ser con-
sultados21. Resumidamente, o caso foi descoberto de modo assemelhado ao de
Mateus Álvares, o falso de Ericeira: Gabriel de Espinosa22, confeiteiro do con-
vento envolvido na trama, foi denunciado por uma mulher em Valladolid, em
outubro de 1594, por ter em seu poder muitas joias, um anel com o retrato de
Felipe II, um relógio de ouro, diamantes e um retrato de mulher, o qual o prisio-
neiro disse ser D.Ana de Áustria, religiosa do convento de Santa Maria a Real de
Madrigal. Também as joias pertenciam a ela, segundo o prisioneiro, estando em
seu poder para serem vendidas, e provavelmente ajudar a financiar os planos de
frei Miguel. Mas o que complicou a vida do pasteleiro, de D.Ana e de frei Miguel
foram as quatro cartas recuperadas pelas autoridades: dirigidas a Gabriel de Es-
pinosa, duas eram de D.Ana e duas de frei Miguel. Naquelas de autoria do frade,
o pasteleiro era tratado de “majestade”, sendo ainda mencionadas uma menina e
D.Ana. Curiosamente, a primeira impressão das autoridades era de que o preso
tentava se passar por D.Antônio – Miguel participara da “aclamação” do Prior do
Crato e talvez por isso o chamasse de “majestade”-, um farsante de rei que jamais
existiu. As cartas de D.Ana traíam uma intimidade incômoda com o preso para
uma freira da casa de Áustria, além de mencionarem uma menina, de origem
21 Tais como BROOKS, Elizabeth. A king for Portugal – The Madrigal conspiracy (1594-95). Winsconsin: The University of Winsconsin Press, 1964 e

o recente MACKAY, Ruth. The baker who pretended to be King of Portugal. Chicago: Chicago University Press, 2012. Este último foi traduzido para o

português em 2013: O padeiro que fingiu ser rei de Portugal. Rio de Janeiro: Rocco.

22 O termo usado em Portugal, pasteleiro, refere-se àquele que faz pastel, doce e não salgado como conhecemos.

32
não revelada. Os termos de D. Ana eram desconcertantes: “[...] sinto cada vez
mais este intolerável tormento de estar privada da presença de vossa majestade.
[…]. Pertenço-vos, senhor, vós o sabéis” Logo essas informações foram passadas
a Felipe II, que ordenou a prisão da sobrinha até que tudo se esclarecesse.
As relações de Gabriel de Espinosa com D.Ana começaram no convento,
mas as de frei Miguel e do pasteleiro vinham de longe, como já dissemos: depois
da batalha de Alcântara, encontraram-se em Madri, quando, parece, as maqui-
nações para a conspiração começavam a se desenhar. O pasteleiro foi “plantado”
no convento pelo frei, estabeleceu relação próxima com D.Ana, sempre ajudada
pelo confessor e confidente. Interrogada, D.Ana disse que jamais imaginou es-
tarem o pasteleiro e o frei mancomunados, tendo sido enganada sobre a trama
e a identidade do preso. Já frei Miguel declarou jamais ter acreditado na morte
de D.Sebastião, tinha visões com ele, até encontrar o pasteleiro e reconhecer nele
o Desejado. Se havia alguém que tinha privado da intimidade de D.Sebastião,
esse era frei Miguel. Foi confessor do rei, tinha acesso livre ao palácio, relação
próxima com a rainha D.Catarina, o Cardeal D.Henrique e, provavelmente, com
D.Antônio. Portanto, podia, de fato, reconhecer o monarca desaparecido. Ale-
gou a semelhança física – que ele dizia capaz de identificar dezesseis anos de-
pois – e o conhecimento de detalhes de Alcácer Quibir que só o rei podia saber.
Envergonhado pelo desastre, D. Sebastião passou-se por morto por um tempo,
depois esteve a vagar pelo mundo sob humilde disfarce, aguardando a hora de
voltar e retomar seu lugar.
É digno de nota que a base da crença na volta de D.Sebastião – que não mor-
rera – e seus principais elementos já aparecem claramente nos depoimentos de
frei Miguel. Ainda não pude confirmar se o termo “sebastianismo” era o usado
para designar essa espera, mas é certo que sua estrutura estava já estabelecida e
a disseminação dessa expectativa encontrava eco em Espanha, gerando, quando
menos, curiosidade e um certo assombro. Essa narrativa agregou um conjun-
to de versões, lendas, rumores acerca do que teria acontecido com D.Sebastião
depois da batalha, como fugira, onde se teria abrigado e passado tanto tempo.
O nome de um médico cristão novo, João Pacheco, envolvido no caso por frei
Miguel, conferia verossimilhança à história: teria atendido um ferido na perna,
mas jamais suspeitado de que se trata-se do rei desaparecido. Há indícios de que

33
tenha atendido também D.Antônio, ferido na batalha de Alcântara, em nova jus-
taposição de tramas entre os dois personagens.
Depois de muitas idas e vindas, tentativas de incriminações mútuas, o paste-
leiro e o frei, torturados, confessaram: Gabriel de Espinosa contou ter conhecido
o frei em Lisboa e o reencontrado em Madrigal, não em Madri. Frei Miguel
contou-lhe o plano de fazê-lo rei de Portugal, do envolvimento de D.Ana e da
importância da aproximação dos dois para sucesso da causa. O pasteleiro foi um
cavalheiro: não disse palavra que pudesse comprometer a freira, centrando acu-
sação contra frei Miguel. Numa das passagens de seus depoimentos, deixa ver
seu fascínio pela possibilidade de encarnar um monarca, ter poderes ilimitados,
casar com a sobrinha do rei espanhol. Nada havia de patriótico nessas ambições,
pois sequer português era. Frei Miguel confessou que seu plano era levar o im-
postor de volta a Portugal, “livrar-se” dele em segredo e trazer de volta D.Antô-
nio. O prior a essa altura, março de 1595, estava já doente em Paris, sem qual-
quer apoio externo para sua “realeza”, além de abandonado por vários de seus
seguidores. D.Ana foi transferida para um mosteiro em Ávila, perdeu as regalias
e os criados, alguns deles também punidos como colaboradores. Frei Miguel foi
levado a Madri, onde foi enforcado na Plaza Mayor em 19 de outubro de 1595.
Meses antes, Gabriel de Espinosa havia sido esquartejado, não sem antes decla-
rar ao padre que o assistia no momento final: “Pensam que nasci num estábulo?
A minha sorte revelará o segredo de minha existência e todo o mistério […]. O
rei durante dez meses em que me manteve aprisionado, poderia ter enviado al-
guém para me reconhecer”. Morreu “convencido” de que era rei, a demonstrar a
complexidade do envolvimento de múltiplos personagens nas tramas dos falsos
D.Sebastião, cujas histórias ajudaram a alimentar e disseminar a crença difusa na
volta do rei das areias do Marrocos. Dentro e fora de Portugal esses pretendentes
e suas histórias mirabolantes mantiveram acesa a chama da espera do rei e de
mudanças políticas e pessoais. No caso de Madrigal, o tortuoso e ingênuo plano
de frei Miguel – que inventou D.Sebastião para aclamar D.Antônio – soa um
tanto inusitado, talvez carente de mais investigação ou documentos. Mas o certo
é que mirou no candidato bastardo e acertou no rei desaparecido, prestando um
serviço ao difuso sebastianismo que se disseminava pela Europa. Mas neste per-
curso, nenhuma outra aventura influenciaria de forma mais direta e definitiva a

34
causa sebástica do que a do último falso, aparecido em Veneza, três anos depois.

Na verdade, os primeiros boatos sobre a possível aparição do rei português


em Veneza começaram a circular desde 1596, prolongando-se até 1598 quando
o conluio em torno do novo pretendente ia já avançado. A trama se beneficiou,
ou foi estimulada, pelos órfãos e dissidentes da causa antonista e chegou a reunir
integrantes dos dois grupos, como veremos, fomentando contatos e rumores,
alargando o alcance da inusitada aventura. Alguns autores chegaram a conjectu-
rar que o candidato fosse o português Fernando Góis Loureiro, moço da câmara
de D.Sebastião que seguiu com ele para a África, tendo sobrevivido à batalha
e voltado a Portugal23. Como tantas outras vertentes dessa trama de enredos,
a conjectura carece de confirmação, mas comprova o quanto a conjuntura era
favorável a murmurações sobre a possível sobrevivência de D.Sebastião depois
da batalha. Foram muitas as versões sobre a fuga do rei das mãos dos infiéis,
encapuzado e protegido por alguns súditos, tendo depois passado a vagar in-
cógnito para purgar a culpa pela derrota até que estivesse pronto para voltar e
reassumir seu lugar. Vimos que nos casos de Penamacor, Ericeira e Madrigal a
base foi sempre a mesma: eremita, penitente ou travestido de humilde pasteleiro,
o rei encoberto teria regressado para consertar seus erros, podendo este conserto
variar bastante de caso para caso.
No evento de Veneza, os estudiosos24 afirmam que se tratou mesmo do ca-
labrês Marco Túlio Catizone, embora seu envolvimento seja tomado como um
dado sem maiores explicações. Pouco sabemos sobre ele e nada sobre como e por
que teria se envolvido em conspiração tão grave e alheia. Em relação aos falsos
anteriores, a história do calabrês foi, sem dúvida, a mais rumorosa e de maior
dimensão política fora de Portugal, sendo difícil ainda avaliar se e como reper-

23 Fernando Góis Loureiro voltou a Portugal, ordenou-se presbítero e foi abade de São Martinho de Soalhães, até seguir para a Itália onde publicou, em

1596, Breve Summa y Relación de las vidas y hechos de los Reyes de Portugal y cosas succedidas en aquel reyno desde su principio hasta el ano de MDXCV.

Editada em Mântua e dedicada ao Príncipe Don Vicencio Gonzaga de Austria, Duque de Mantua e Monserrat. Os autores que defenderam essa hipótese

foram SOVERAL, Luís Augusto Pinto, visconde de Soveral, no texto Apontamentos sobre as antigas relações Portugal e Veneza. Lisboa: Imprensa

Nacional, 1893, e Vincenzo Marchesi, cf. OLIVEIRA, Julieta Teixeira Marques de. Veneza e Portugal no século XVI: subsídios para sua história. Lisboa:

Imprensa Nacional/Casa da Moeda, 2000, p.170.

24 O já citado D’ANTAS, Miguel, op.cit, p. 155 a 247. Este é sem dúvida o trabalho mais documentado, com fontes do Archivo General de Simancas.

Outro trabalho dedicado ao caso de Veneza é o de OLSEN, H.Eric R. The Calabrian Charlatan, 1598-1603. Messianic nationalism in Early Modern

Europe. Nova York: Palgrave Macmillan, 2003.

35
cutiu no reino luso, apesar de algumas afirmações nesse sentido, às quais voltarei
adiante25. Foi ainda a que mais partidários e dissidentes de D.Antônio reuniu, e
a primeira depois da morte do prior. Assim sendo, não há como ligá-la a qual-
quer projeto de retomada antonista, como quis frei Miguel dos Santos no caso
de Madrigal. Ao contrário, parece indicar a complexa relação entre antonismo e
sebastianismo, rivalidade que, se houve, terminou por favorecer a saudade do rei
desaparecido e não o culto à memória do resistente e insubordinado D.Antônio.
Seus seguidores foram se aglutinando em outros partidos, buscando sobreviver
em cortes estrangeiras, e haviam praticamente desaparecido em 1640, pois não
localizei, até o momento, qualquer menção ao eventual direito dos herdeiros do
Prior do Crato – que não foram poucos e há menções de que ainda frequentavam
cortes europeias26 – quando a Casa de Bragança assumiu a liderança da Restau-
ração. Algumas décadas antes, em meados dos anos de 1590, muitos antonistas
vagavam pela Europa, sem senhor nem direção, alguns desalentados com a aven-
tura monárquica fracassada e talvez por essa e tantas razões que talvez nunca
alcancemos, estavam atentos aos rumores que diziam respeito a Portugal.

O ano de 1598 foi decisivo para a aventura veneziana. As notícias de que


D.Sebastião podia estar em Veneza, desde junho, ganharam força em setembro,
mês da morte de Felipe II e da aclamação de Felipe III, pouco tempo depois da
assinatura de tratado de paz entre Espanha e França27. A esperança de que o rei
25 Como afirma OLSEN, H.Eric R, op.cit. p.55, sem apresentar, no entanto, qualquer referência documental.

26 Segundo Antônio Caetano de Sousa, D.Antônio teve 8 filhos, 4 homens e 4 mulheres, duas destas não identificadas. Os filhos homens foram D.Manuel

de Portugal, D.Cristóvão de Portugal, D.Dinis de Portugal e D.João de Portugal; as mulheres identificadas foram D.Filipa de Portugal e D.Luiza de

Portugal, ambas freiras e presas em conventos espanhóis durante a perseguição a D.Antônio. Cf. SOUSA, Antônio Caetano de. História Genealógica da

Casa Real Portugueza. Fernando Bouza Alvarez faz menção a D.Filipa e a sua tentativa de comunicar-se com o pai, “meu rei”, no texto Cartas, traças e

sátiras. Política, cultura e representações no Portugal dos Filipes (1580-1668). ALVAREZ, Fernando Bouza. Portugal no tempo dos Filipes. Política, Cultura,

Representações (1580-1668). Prefácio de Antônio Manuel Hespanha. Lisboa: Edições Cosmos, 2000, p. 21. O filho mais velho, D. Manuel, acompanhou o

pai na expedição de 1589, mas não há menção de que esteve em Veneza. Casou-se com uma filha de Guilherme de Nassau, Príncipe de Orange, e passou

a viver nos Países Baixos, governado a partir de 1596 pelo arquiduque Alberto de Austria. Quando em 1598 o arquiduque casou-se com Isabel Clara

Eugênia, primogênita de Felipe II, o filho de D.Antônio passou a estar sob o governo da filha de Felipe II. Descendente de D. Manuel, neto do Prior do

Crato, D. Luiz Guilherme continuou, no século XVII, a viver da memória do avô, contraiu muitas dívidas e esteve em várias cortes solicitando ajuda em

nome de “D.Antônio I de Portugal”, cf. BRANCO, Camillo Castello. D.Luiz de Portugal. Neto do Prior do Crato (Quadro Histórico) 1601-1660. 2a.edição.

Porto: Livraria Chardron, 1896. A correspondência do Prior do Crato depositada no Arquivo Nacional da Torre do Tombo inclui cartas de D.Luiz, cf.

IANTT. Inventário dos arquivos de D.Antônio e seus descendentes. Arquivos Pessoais Singulares (GF).

27 Paz de Vervins, assinada em maio de 1598, selava a paz entre Felipe II de Espanha e Henrique IV da França depois de anos de guerras de religião. O

tratado adicionava compromissos e retomava cláusulas do acordo de Cateau-Cambrésis firmado em 1559, entre o mesmo Felipe II e o então rei francês

36
francês se envolvesse direta e decisivamente na resistência portuguesa ao domí-
nio de Espanha – interferência almejada desde 1580, quando D.Antônio enviou
emissários ao reino francês em busca de apoio para sua causa – ficava para trás28.
O prior havia morrido, o rei espanhol que consolidou a união das duas Coroas
ibéricas também. Talvez tivesse chegado o momento da volta do rei encoberto.
Em outubro os rumores sobre um indivíduo que dizia ser D.Sebastião haviam se
espalhado em Veneza.
D. João de Castro – fugido de Portugal depois de lutar ao lado de D.Antô-
nio em Alcântara, junho de 1580 – recebeu, em Paris, carta de Veneza enviada
pelo português Antônio de Brito Pimentel, dando notícia dos rumores sobre um
indivíduo que dizia ser D.Sebastião. Castro tentou convencer outro ex-antonis-
ta exilado e que conhecera D.Sebastião, frei Estevão de Sampaio, a ir com ele
a Veneza para reconhecer o monarca desaparecido 20 anos antes. Frei Estevão
pertencia à legião de bastardos que seguira D.Antônio – ele mesmo, D.João de
Castro e este Estevão –, e foi preso por ordem de Felipe II mas conseguiu fugir
para França em 1582, tendo participado da expedição inglesa que tentou voltar a
Lisboa em 1589. Tempos depois, integraria o grupo que apoiou o “rei” de Vene-
za, estimulado por D.João de Castro. Se os boatos estivessem certos e o rei vivo,
D.Sebastião teria 44 anos em 1598, cabendo explicar onde teria estado todo esse
tempo e como chegara a Veneza.
Eric Olsen sugere que o aparecimento do pretenso rei coincidiu com a mor-
te de Felipe II, hipótese que pressupõe uma espécie de preparação articulada
entre os dois eventos, quando vimos que desde 1596 circulavam boatos sobre
a presença do rei em Veneza. Por outro lado, é plausível que o ímpeto para pôr
em marcha plano tão audacioso tenha tido fôlego renovado com a morte do
temido Rei Católico. A união dos dois reinos ibéricos significou a consolidação
de longo projeto espanhol, para o qual contou a visão estratégica de Carlos V e o
ímpeto expansionista do filho, Felipe II, rei de Espanha desde 1556. O juramento
de Tomar – a confirmação da conquista e a legitimação do direito à herança de
Portugal –, selou a supremacia Habsburgo na península ibérica e não havia, ago-

Henrique II. Neste tratado a “aventura italiana”, como disse Emmanuel Le Roy Ladurie, estaria terminada: a França se desfez de Savóia, Córsega e

Piemonte. Cf. LADURIE, Emmanuel Le Roy. O Estado Monárquico. França, 1460-1610. São Paulo: Companhia das Letras p. 323.

28 Ver nota 7.

37
ra legalmente, como suspender esse domínio sem grande e armada resistência,
como tentou, aliás, D.Antônio. Isso ficou claro com as primeiras providências
tomadas por Felipe III, tão logo soube dos boatos: ordenou que seu embaixador
na Itália, D.Iñigo de Mendoza, alertasse as autoridade de Veneza sobre o impos-
tor e impedisse que o caso fosse adiante. Lembrou falsários anteriores, afirmou
que se ficasse provado tratar-se de D.Sebastião, do que duvidava, seria um dever
restituí-lo ao reino, mas caso fosse um embuste, o castigo deveria ser exemplar.
O governo da Sereníssima República vendeu caro cada passo dado contra o
impostor. Procurava aproveitar a oportunidade para testar, veladamente, seu po-
der junto ao novo monarca. Sem enfrentá-lo diretamente, hesitou diante de uma
ação imediata e estabeleceu, dentro do possível, uma negociação dissimulada,
para a qual a ação de seus embaixadores em Madri foi de fundamental impor-
tância. Aqui cabe um parêntese: na verdade, desde os anos de 1570 o governo
da Sereníssima esteve atento às relações entre Portugal e Espanha. Este interes-
se tornou-se ainda maior depois de Alcácer Quibir, quando a correspondência
entre seus embaixadores em Madri e o governo de Veneza acompanhava cada
passo do incerto desfecho da sucessão portuguesa.
Em Veneza e Portugal no século XVI, Julieta Teixeira de Oliveira29 analisa
conjunto expressivo de documentos de representantes do governo da Sereníssi-
ma Senhoria em Portugal, antigo aliado na luta contra o Turco no Mediterrâneo,
no Norte da África ou no Oriente. As relações comerciais pautavam a política
– era grande o poder sobre as rotas marítimas dominadas pelos portugueses –,
razão para o acompanhamento cuidadoso da partida e saída de navios de Lisboa.
Entre 1570 e 1578 foram quatro os encarregados das notícias e negócios com
D.Sebastião, atentos e entusiasmados com a decisão do Desejado fazer guerra
aos mouros. A representação veneziana tinha base em Madri, valendo a estes
embaixadores lugar privilegiado para o acompanhamento das notícias decorren-
tes de Alcácer Quibir e da disputa sucessória subsequente. Veneza era um centro
cosmopolita e independente, diferente de boa parte da península disputada por
“estrangeiros”, razão do envolvimento mais autônomo na causa ibérica. Se era
preciso observar os movimentos dos portugueses, a expansão do poder castelha-
no gerou insegurança no governo de Veneza. As notícias sobre a crise dinástica

29 OLIVEIRA, Julieta Teixeira Marques de Oliveira, op.cit.

38
eram quase cotidianas: a derrota de Alcácer Quibir representou um golpe não
só para Portugal como podia atingir a toda a cristandade, segundo os Dispacci
enviados à Sereníssima. O tema da sucessão portuguesa ocupou as informações
enviadas a Veneza entre 1578 e 1580: sempre cifrada, a correspondência infor-
mava desde a antipatia dos portugueses aos espanhóis como os preparativos de
Castela para a invasão de Portugal, mencionada pelo embaixador Juan Frances-
co Morosini desde de março de 1579. A candidatura de D.Antônio, a intensa
manobra junto a Roma para fazer sua legitimidade como herdeiro de Portugal
– para o que precisava do reconhecimento do casamento de seus pais quarenta
anos antes! – são exemplos da observação atenta ao quadro da tensão crescente
entre os reinos ibéricos.
Mesmo depois confirmação da sucessão Habsburgo, a Sereníssima mante-
ve a atenção voltada para a movimentação de D.Antônio entre França e Ingla-
terra, sobretudo porque, de Madri, inteirava-se das principais preocupações de
Felipe II, segundo o embaixador Morosini: a ameaça turca ao Norte da África
e o destino de D.Antônio. O livro de Julieta Teixeira dá pistas preciosas para o
mapeamento das preocupações venezianas na conjuntura sucessória portugue-
sa, além de publicar numerosa documentação do período, tanto no anexo do
livro já mencionado, como no volume dedicado às Fontes Documentais de Vene-
za referentes a Portugal30. Através desta documentação pode-se identificar, por
exemplo, a presença de oito embaixadores em Madri entre 1578 e 160031, data da
prisão do calabrês Marco Túlio. Os relatos reportavam da carestia em Lisboa ao
ânimo descontente dos portugueses, além de informar sobre o clima de conspi-
ração contra o Rei Católico nos primeiros anos da União Ibérica. Comentavam
ainda a crítica de um enviado do reino de Fez sobre o enfrentamento solitário de
D.Sebastião, “sem a ajuda de Felipe II”, com a qual o resultado poderia ter sido
outro32, lamento que provavelmente manteve a atenção nos passos de D.Antônio
e nas tratativas que tentava manter com os reino de França e Inglaterra.

30 OLIVEIRA, Julieta Teixeira Marques de. Fontes documentais de Veneza referentes a Portugal. Lisboa: Imprensa Nacional/Casa da Moeda, 1997.

Adiante passarei a citar apenas Fontes.

31 Embaixadores de Veneza em Madri entre 1578 e 1600: 1-Zuan Francesco Morosini: 1578-1581; 2-Matteo Zane:1581-1583; 3-Vicenzo Gradenigo:

1583-1586; 4-Hieronimo Lippomano: 1586-1589; 5-Tommaso Contarini:1589-1593; 6- Francesco Vindramin: 1594-1595;7- Agostino Nani: 1595-

1598; 8- Francesco Soranzo: 1598-1600.

32 OLIVEIRA, Julieta Teixeira Marques de. Veneza e Portugal, p.136.

39
O substituto de Morosini, Matteo Zane, informava sobre os boatos acerca
da viagem de D.Antônio com uma armada em direção à ilha Terceira (1582),
apoiada pelo rei francês, confirmados com o desembarque da resistência anto-
nista e sua rápida derrota pelas forças espanholas comandadas pelo Marquês
de Santa Cruz33. O foco da preocupação dos venezianos era a movimentação
do porto de Lisboa, cuja segurança era ameaçada com a crescente presença de
corsários franceses e ingleses no encalço das embarcações castelhanas. Com a
união dos dois reinos os navios portugueses passaram também a ser alvejados
pelos inimigos de Felipe II e não estava claro se os venezianos manteriam a
liberdade que tinham antes de 1580. O embaixador temia que a piora das rela-
ções de Espanha com França e Inglaterra prejudicasse ainda mais a segurança
do comércio marítimo e a circulação das naves venezianas. Essa preocupação
só aparecia, como já indicado, cifrada, pois jamais foi intenção do governo de
Veneza uma oposição aberta e declarada ao Rei Católico. Dois embaixadores
extraordinários, Vicenzo Tron e Girolamo Lippodamo, foram encarregados de
felicitar Felipe II “per l’acquisto che haveva fatto di questo altro regno di Porto-
gallo”34. Ao mesmo tempo, mostravam-se atentos e até simpáticos a D.Antônio,
pois acreditavam ter o prior apoio popular: “alla sicurità de questo regno le
quali un fini pari che dependi da Don António”35.
A ação vigilante e até otimista em relação a D.Antônio manteve-se nos anos
seguintes. A aproximação do prior com a Inglaterra e as notícias sobre a prepara-
ção de uma armada que o levaria de volta a Portugal começaram a circular desde
1586, quando o então embaixador Hieronimo Lippomano reportou a divulgação
de planfetos que conclamavam o povo à insurreição e, animado, acreditava que
“presto haverano un Ré porthoghese”36. Por outro lado, enquanto parecia come-
morar cada possibilidade de revés espanhol, procurava garantir a liberdade de
comércio em portos de todas as cidades portuguesas, autorizada por Felipe II
em setembro de 1587, desde que não transportassem mercadorias inglesas37. A

33 Ver nota 7.

34 OLIVEIRA, Julieta Teixeira Marques de, ibid, idem. Em tradução livre, “pela aquisição que fez feito desse outro reino de Portugal”.

35 Idem, p.137, nota 20. Tradução livre: “a segurança deste reino depende de D.Antônio”.

36 Idem, p.150. Tradução livre: “logo terão um rei português”.

37 Idem, p.151.

40
investida de 1589, quando o prior, acompanhado do famoso “pirata da rainha”,
Francis Drake, tentou chegar a Lisboa, pôs o reino em polvorosa e, segundo
Tommaso Contarini, o novo embaixador veneziano em Madri, havia um verda-
deiro estado de guerra em Portugal com a expectativa de um ataque inglês e do
retorno de D.Antônio.
O relato do veneziano é confuso quanto às datas e, sobretudo, quanto ao
ânimo dos portugueses pela causa do Prior do Crato. Depois de informar sobre a
preparação para a acolhida entusiasmada do rival de Felipe II, relata que D.Antô-
nio não encontrou o apoio esperado: “(...) non vedendo alcun movimento nella
città, et sentendosi che s’andava mancando soccorso per ogni parti s’era rittirato
dale mura (...)38. O informe parecia indicar mais o desejo do mensageiro do que
dos portugueses e encerra o assunto de forma quase lacônica, sem que o leitor
entenda como pôde se enganar tanto, deixando a impressão de que o embaixa-
dor torcia pelo sucesso da malograda investida. O próprio D.Antônio “é stato
cosi infelice”39, nas palavras de Contarini, segundo o qual os nobres sentiam-se
ameaçados de perder prestígio junto ao rei espanhol e os mais ricos pensavam
em deixar o reino, ficando sem resposta por que, afinal, não teriam apoiado o
desembarque do prior.
O episódio de 1589 teria contribuído para o aumento da perseguição aos
seguidores de D.Antônio, sobre o qual as notícias eram sempre controversas. Em
1594 novos boatos afirmavam que ele voltaria, desta vez com armada inglesa po-
derosa, mas mais uma vez o relato veneziano se equivocara. Em julho de 1589
D.Antônio voltou para a França, onde morreu em agosto de 1595. Coincidente-
mente, no mesmo mês o novo embaixador veneziano, Agostino Nani, relata ao
governo da Sereníssima o caso do falso D.Sebastião preso em Madrigal. Dizia que
o frei envolvido, o qual sabemos ser Miguel dos Santos, havia escrito a D.Antônio
e contava com “intelligentia di molti”, vários portugueses, para seduzir “quella
gente bassa” (“molto devoto, et appassionato del loro Ré naturale”)40, sendo to-
dos presos para investigação. O embaixador deixa de informar, no entanto, o
local do ocorrido e que nem mesmo o candidato a rei era português, além da

38 Fontes, p.583. Tradução livre: “não vendo nenhum movimento na cidade, e sentindo que faltava socorro por todos os lados, se retirou da muralha”.

39 Apud OLIVEIRA, Julieta Teixeira Marques de. Veneza e Portugal, p.159. Tradução livre: “ficou tão infeliz”.

40 Tradução livre: “aquela gente baixa” (“muito devota, e apaixonada do seu Rei natural”).

41
morte dos dois principais envolvidos.
Voltemos ao caso de Veneza, agora um pouco mais informados sobre a ação
atenta e ambígua dos representantes da Sereníssima quanto ao destino da suces-
são portuguesa – ao que parece não tomavam como definitivo o poder espanhol
sobre Portugal. Ao mesmo tempo em que congratulavam Felipe II e procuravam
garantir liberdade de comércio, pareciam torcer por D.Antônio, acreditando que
o apoio inglês seria capaz de alterar a situação política na península.
Essa estratégia errática não foi, entretanto, exclusiva de Veneza, mas de toda
a península itálica ainda não submetida ao poder Habsburgo. O historiador
Stefano Andretta afirma que os debates acerca da disputa sucessória em Portu-
gal provocaram uma concentração insólita de diplomatas nas cortes italianas,
atentos à relação entre os dois reinos ibéricos e aos possíveis reflexos da vitória
castelhana na estratégia político-militar Habsburgo na Europa. O processo de
castelhanização da península ibérica preocupava pela rede de filiação e clientela
já estabelecida em várias cortes italianas, das quais dois pretendentes ao trono
português se apresentaram: Ranuccio Farnese, filho de Alexandre Farnese, du-
que de Parma e de Maria de Portugal; e Emanuel Filisberto, duque de Sabóia,
filho de Carlos II e da Infanta Beatriz, filha de D.Manuel I41.
Para Andretta, apesar da diversidade de interesses, não há dúvida de que os
Estados mais estruturados e capazes de garantir uma relação continuada com
Portugal foram o Vaticano e Veneza. Nos dois casos havia relações anteriores
bem estabelecidas: com o Vaticano pelo histórico de serviços prestados à cristan-
dade; com os venezianos o ponto central eram as relações comerciais, sobretudo
com o fim da política expansionista de Veneza desde o início do século XVI.
Além disso, era clara a preocupação com o possível alargamento da castelhani-
zação da península italiana e em particular com a potencial ameaça à “libertá” da
república. O autor ressalta o grande número de dispacci produzidos no período
entre 1578 e o final do século XVI, dos quais vimos alguns exemplos acima, ten-

41 ANDRETTA, Stefano. La diplomazia italiana dalla crisi successoria alla castiglianizzazione fillippina del regno di Portogallo in CARDIM, Pedro;

COSTA, Leonor Freire; CUNHA, Mafalda Soares da. Portugal na Monarquia Hispânica. Dinâmicas de integração e conflito. V Jornadas Internacionais

da Red Columnaria – História das Monarquias Ibéricas. Centro de História de Além-mar, Faculdade de Ciências Sociais e Humanas, Universidade

Nova de Lisboa; Universidade dos Açores, Centro Interdisciplinar de História, Culturas e Sociedades, Universidade de Évora; Instituto Superior de

Economia e Gestão, Universidade Técnica de Lisboa; Red Columnaria – Red Tematica da Investigación sobre las Fronteras de las Monarquías Ibéricas,

2013, p. 333-348.

42
do em vista a obtenção de informações sobre a política portuguesa, a tentativa
velada de resistir a Espanha sem confrontá-la diretamente, e a ação dos embai-
xadores no período.
Nessa perspectiva, a dominação Habsburgo sobre Portugal fez com que o
país recuperasse certo protagonismo na cena europeia, produzindo uma nova
gramática interpretativa acerca de um reino até então observado em Itália funda-
mentalmente por sua dimensão comercial e ultramarina. Para o autor, delineou-
-se um processo ambíguo: a submissão portuguesa e sua inclusão no que chama
de “sistema pan-iberico castigliano” terminou por ampliar o reconhecimento e
interesse pelas peculiaridades políticas, sociais e econômicas portuguesas.
Ao combinarmos os dispacci e relazioni antes mencionados, detalhados e
contínuos, com a análise mais ampla de Andretta sobre o novo olhar europeu
e italiano – sobretudo a partir de Roma e Veneza –, acerca de Portugal na con-
juntura pós-Alcácer Quibir, talvez possamos considerar a hipótese de que a Se-
reníssima manteve a postura ambígua no caso do falso de Veneza, se é que não
esteve envolvida, indireta e, sempre, secretamente42. Como na ajuda extra oficial
a D.Antônio de França e Inglaterra, feita através de corsários, cabe investigar se,
como e quanto as autoridades venezianas se envolveram no enredo de Marco
Túlio Catizone. Como já mencionei, quase nada se sabe dele, nem dos conter-
râneos que seguiram o “rei de Veneza”, sendo aqui nosso fio condutor os portu-
gueses – órfãos e dissidentes – que haviam seguido o prior do Crato. Essa via de
análise, por ora, procura encaminhar outra discussão, a das imprevistas relações
entre a dissidência antonista e o surgimento do sebastianismo na Europa, para o
que, é possível conjecturar, as rivalidades ao poder Habsburgo na Europa pare-
cem ter, querendo ou não, colaborado.
Um dos relatos mais citados acerca das histórias dos quatro falsos preten-
dentes a rei de Portugal é o de Miguel D’Antas, Os falsos D.Sebastião, editado em
Paris em 1866, já aqui várias vezes lembrado. Para o caso de Veneza, no entanto,
deve-se mencionar que uma parte de base documental do autor foi o Discurso
da vida do sempre bem vindo e aparecido Rei D.Sebastião43, de autoria de D.João
42 Para uma discussão sobre o “mito do segredo” em Veneza, ver DE VIVO, Filippo. Information and comunication in Venice. Rethinking Early Modern

Politics. New York: Oxford University Press, 2011.

43 Cf. D’ANTAS, Miguel, op.cit; CASTRO, D.João de. Discurso da vida do Rey Dom Sebastiam. Paris: Martin Verac, 1602. Edição Facsimilada. Introdu-

ção de Aníbal Pinto de Castro. Lisboa: Edições Inapa, 1994.

43
de Castro, publicado em Paris, em 1602, portanto depois dos acontecimentos, e
comprometido com a visão de um participante não menos controverso como foi
Castro. Para as providências espanholas sobre o caso, Dantas baseou-se em do-
cumentação do Archivo General de Simancas. Como já mencionado, pouco se
sabe de Marco Túlio. Calabrês de nascimento, teria morado em Verona, passou
por Ferrara, centro importante de concentração de cristãos novos portugueses,
até chegar a Veneza, onde foi acolhido na casa de um cozinheiro cipriota, Fran-
cesco, localizada em região pobre e mal afamada da cidade. Este intróito apre-
senta claramente a baixa extração social do pretendente, sobre o qual as notícias
teriam se espalhado com mais força desde junho de 1598, anterior portanto da
morte de Felipe II em setembro.
Antes de avançarmos um breve resumo da história do calabrês, mais um co-
mentário sobre a posição de Dantas, tomada a partir do texto de Castro de 1602:
neste, não há dúvida de que se tratava de um embuste e de farsantes desqualifi-
cados socialmente, estando Marco Túlio já preso. Castro, no entanto, teve papel
importante, senão decisivo, na disseminação e busca de apoio entre religiosos,
letrados e autoridades europeias para a causa do “rei de Veneza”, no qual pare-
ce ter acreditado desde o primeiro momento. Tentou como pôde arregimentar
portugueses para a causa e foi ele mesmo a Veneza, onde encontrou antigos de-
safetos, como o filho de D.Antônio, D.Cristóvão. É preciso, portanto, sempre que
possível cotejar os relatos disponíveis e estar atento às origens das várias versões.
Vínhamos aqui seguindo os relatos venezianos e neles a menção ao caso
aparece em outubro de 1598, quando Francesco Soranzo, o novo embaixador
em Madri, informava à República que em Portugal circulava a notícia de que
D.Sebastião havia escapado e estava em Pádua, depois de longa e misterio-
sa viagem. O Senado pedia a expulsão do farsante, o embaixador espanhol,
D.Iñigo de Mendoza, argumentou que se tratava de um embusteiro, pois tanto
Felipe II quanto o xarife marroquino estavam certos da morte de D.Sebas-
tião. A essa altura Espanha já tinha informações sobre o pretendente: em 7 de
novembro afirmava que se tratava de um calabrês: “come può esser egli il Ré
di Portigallo se non sa parlare portoghese” e tinha 22 anos quando foi para o
Norte da África44. Apesar do erro da idade, D.Sebastião tinha 24 anos em 1578,

44 Apud OLIVEIRA, Julieta Teixeira Marques de. Veneza e Portugal, Apêndice documental, p.355-6. Tradução livre: “como pode ser ele o Rei de

44
a informação seria confirmada no julgamento do caso, mas não levou às pro-
vidências que D.Iñigo pretendia.
Poucos dias depois, nova pressão espanhola insistia na necessidade de pri-
são do falsário, desta vez com ameaça velada sobre os prejuízos que a Repú-
blica poderia ter se perdesse a amizade e afeto que recebera do Rei Prudente,
Felipe II, resultando em “alcuna alteratione nella buona volluntà, et ottima
dispositioni d’animo, che teneva S.M.Cat.ca verso questa Ser.ma.Rep.ca”45. O
aviso levou à expulsão do “rei de Veneza”: em 8 dias deveria deixar os terrí-
tórios da República, decisão não cumprida pelo presumido rei, cada vez mais
cercado de potenciais seguidores.
Felipe III reiterou a necessidade de prisão do embusteiro para averiguação,
lembrando os casos anteriores e finalmente, em fins de novembro de 1598, o
calabrês foi detido em Veneza, onde ficou até dezembro de 1600, quando final-
mente recebeu sentença: deveria sair do território da República em três dias,
sob pena de ser condenado às galés. Mais uma vez Felipe III via-se frontalmente
contrariado, pois queria a manutenção da prisão do usurpador e sua transfe-
rência para território sob autoridade de Espanha. Mostrou-se corajoso o gover-
no da Sereníssima: além da morosidade na condução de caso tão grave para
os interesses de Espanha, recebeu e ouviu enviados portugueses que insistiam
em reconhecer o prisioneiro. Frei Estevão de Sampaio, procurado por D.João
de Castro, foi a Veneza e depois a Lisboa, escondido, para inteirar-se dos sinais
corporais capazes de identificar o rei português. Um ultraje a um verdadeiro rei,
cuja exposição física com tal finalidade era inconcebível. Mas o caso não permi-
tia melindres de nenhum tipo, era urgente confirmar a identidade do preso antes
que grave injustiça fosse cometida. Argumentavam ainda que a confirmação de
que não se tratava de D.Sebastião sossegaria o reino, alvoroçado com as notícias
de que o Desejado poderia estar vivo. O frade não teve autorização para estar
com o preso e vários portugueses só tiveram contato com ele depois que foi solto
em 1600, caso de D.João de Castro.
Nesses dois anos em que o “rei” esteve preso, D.João de Castro e outros an-

Portugal se não sabe falar português”.

45 Ibid, Idem, p.358. Tradução livre: “alguma alteração na boa vontade, e uma ótima disposição de ânimo, que tinha Sua Majestade Católica para com

esta Sereníssima República.”

45
tonistas espalhados pela Europa buscaram apoio de nobres e reis, conseguindo
chegar ao rei francês, Henrique IV, em cuja corte fora acolhido o padre José Tei-
xeira, outro exilado do partido do Prior do Crato. A libertação do preso levou a
nova pressão espanhola: Felipe III reivindicava direito sobre o falsário que tentava
usurpar seu poder real, defendendo seu julgamento pelos tribunais espanhóis. O
tortuoso e longo enredo do “rei de Veneza” – cuja hesitação do governo da Sere-
níssima, intencional ou não, contribuiu para que a história ganhasse força – deu
corpo à aventura, produzindo inesperada ressonância política, atiçando rivalida-
des e estimulando os resistentes portugueses. D. João de Castro só o conheceu em
1600, como já mencionado, embora desde a primeira hora tivesse certeza de que
se tratasse de D.Sebastião, mesmo que jamais o tivesse visto – o rei ou seu duplo.
Não bastasse a dificuldade com a língua, o farsante fisicamente pouco se parecia
com o rei desaparecido para os poucos que conheceram D.Sebastião.
Nada disso impediu que, Castro e frei Estevão Sampaio à frente, o grupo tra-
masse levá-lo para França, passando por Pádua e Florença, onde mais uma vez
foi preso, em janeiro de 1601, desta vez por ordem do grão-duque Fernando I de
Médici, “bom amigo do rei de Esapanha”, nas palavras de Miguel D’Antas46. Em
1601 foi entregue às autoridades espanholas, até ser transferido para Nápoles,
local de seu julgamento final. Condenado primeiro às galés perpétuas, em 1602,
foi morto em Sanlucar de Barrameda, território espanhol, em setembro de 1603,
abandonado por quase todos seus defensores, inclusive por seu maior “súdito”,
D.João de Castro. A essa altura, vale dizer, Castro e frei Sampaio já haviam se
desentendido quanto à condução do caso do “rei de Veneza”, tal como acontecera
antes com os partidários de D.Antônio.
O impostor confessou chamar-se Marco Tulio Catizone, ser calabrês e ex-
plicou o envolvimento nessa aventura por ter sido algumas vezes confundido
com D.Sebastião por soldados italianos que lutaram em Alcácer Quibir, cami-
nho semelhante aos de outros falsos, como já vimos. Vale lembrar que poucos
podiam, de fato, conhecer D.Sebastião, sobretudo os mercenários estrangeiros,
muitos, que participaram da batalha. Como soldados italianos seriam capazes
de identificar o rei português é pergunta difícil de responder, mas a relação que
se estabelecia nesses casos provavelmente atendia a ambições, desejos e projetos

46 D’ANTAS, Miguel, op.cit., p.192.

46
que nada ou pouco tinham a ver com a veracidade dos fatos ou ainda com ques-
tões políticas específicas. Que interesse teria um calabrês pelo trono português?
Como surgiu esse enredo em Veneza, quem o apoiou até que tenha chegado aos
ouvidos de portugueses, certamente responsáveis pela ampliação e agravamento
do caso? Estas são perguntas ainda em aberto, que ficam aqui enunciadas, e para
as quais tentarei esboçar algumas respostas a partir da análise do caso através de
fontes venezianas e da comparação com os relatos já disponíveis. Esta análise po-
derá identificar outras fontes de resistência aos Habsburgo na península itálica,
preocupada com a ameaça de expansão do poder dos Áustria na região.

D.João de Castro e a difusão do sebastianismo na Europa

Para voltarmos aos caminhos assumidos pela transição da resistência de


D.Antônio e seus partidários ao sebastianismo, a análise do caso de D.João de
Castro é incontornável. A história da “conversão” de Castro à crença sebástica,
ou ainda à espera por D.Sebastião, merece um comentário especial por indi-
car uma via segura da relação entre esses dois momentos fortes da resistência
à União Ibérica e aos muitos sentidos da crença que essa conjuntura ajudou a
estruturar. Neto de afamado Vice-rei da Índia de quem herdou o nome, D.João
de Castro47, tal como D.Antônio, filho bastardo de um nobre importante, foi
dos primeiros a valorizar por escrito os dons proféticos de Bandarra, depois de
abandonar o partido de D.Antônio, já na França em fins da década de 1580. Não
é fácil entender como e por que se envolveu na aventura do Prior do Crato. Até
onde pude saber não integrava o grupo de servidores da Casa de D.Luís, pai de
D.Antônio, base de minha hipótese inicial acerca da lealdade de alguns de seus

47 D.João de Castro, filho natural de D.Álvaro de Castro e neto de D.João de Castro, o grande vencedor do cerco de Diu na Índia, esteve ao lado de

D.Antônio, prior do Crato, na resistência a Felipe II, quando da assunção do trono português pelo rei espanhol. Castro participou das primeiras aven-

turas de D.Antônio, ainda no reino, quando o prior se autoproclamou rei em Alcântara, e apoiou a resistência fracassada nas Ilhas Terceiras, em 1583.

Depois de se desiludir com o “rei” Antônio, passou a defender por escrito a volta de D.Sebastião. Para um breve resumo sobre a participação de D.João

de Castro junto a D.Antônio ver ALBUQUERQUE, Martim. O valor politológico do sebastianismo. Estudos de Cultura Portuguesa. 2ºvolume. Lisboa:

Imprensa Nacional/Casa da Moeda, 2000, p.291-326. Para a fase de D.João de Castro sebastianista ver HERMANN, Jacqueline. No reino do desejado,

p.189-209. Para uma análise da obra de Castro ver SERAFIM, João Carlos Gonçalves. D.João de Castro, “O sebastianista”. Meandros de vida, e razões de

obra. Dissertação de Doutoramento em Cultura Portuguesa Moderna Faculdade de Letras da Universidade do Porto. Porto, 2004, 2 vols.

47
seguidores, nem frequentava as altas esferas do poder. Recebeu educação religio-
sa, como D.Antônio, mas era bem mais novo, nasceu em 1550, 19 anos depois
do Prior do Crato, portanto a possibilidade de convivência antes de 1578 parece
pequena. De forma ainda um tanto nebulosa, alistou-se ao partido de D.Antônio
desde a primeira hora – sem que saibamos exatamente por que não esteve em
Alcácer Quibir – e chegou a participar da batalha derrotada em Alcântara, sendo
depois perseguido pelas tropas espanholas do duque de Alba. Tal como D.Antô-
nio, fugiu para Paris. Assim como a adesão, não é fácil identificar a razão exata
do conflito com alguns antonistas, até o total desligamento e mesmo oposição
à causa do Prior do Crato. Parece certo que passou a duvidar da capacidade do
Prior do Crato resistir e sustentar uma corte, deixando seus servidores sem rou-
pa ou sapato, como chegou a reclamar.
O fato é que desde 1586-7, quando se afastou dos antonistas, D.João de Cas-
tro começou a se interessar por algumas profecias e revelações, e delas “foi-lhe
reluzindo o caso de D.Sebastião”. João Lúcio de Azevedo, no já citado A evolução
do sebastianismo, identifica a continuidade e o desenvolvimento dessas primei-
ras impressões em texto de 1597, antes portanto da carta que recebeu de Veneza,
quando D.João de Castro mencionou a circulação em Castela e Portugal de umas
profecias de Santo Isidoro de Sevilha, que “prometem quase todas um grande
príncipe e senhor, ao qual não nomeiam senão pelo encoberto”. Estas e outras
considerações sobre a volta de um rei oculto, e as interpretações acerca de quem
seria, constam de um escrito intitulado Da quinta e última monarquia futura
com muitas outras admiráveis dos nossos tempos. Neste, D.João de Castro põe em
primeiro lugar as profecias canônicas da Sagrada Escritura, seguidas da tese das
três Idades do monge calabrês Joaquim de Fiore, e de muitos outros, até chegar
a Portugal e aos plebeus que acreditava terem espírito profético. Entre esses, “o
principal de todos que mais profetizou deixando suas profecias em escrito” esta-
va um “homem de baixa sorte, sapateiro de Trancoso, vila de Portugal…haverá
cinquenta ou sessenta anos pouco mais ou menos deixando grandes mistérios
profetizados a que todos comumente chamam as trovas do Bandarra.” Segundo
Castro, embora não soubesse ler nem escrever, “compôs estas trovas tão bem fei-
tas em seu gênero”, que nenhum outro poeta português a ele se poderia igualar:
“sendo mui fáceis e correntes de mui excelente linguagem (…), ornada de mil

48
figuras de eloquência”, e sendo seu autor de uma das partes mais “impolidas” e
rudes do reino, “só o Espírito que por ele as fez e não outrem as poderá quando
quiser fazer”. Sobre o texto atribuído a Bandarra, afirmou que suas trovas “foram
mui trasladadas e espalhadas de mão por todo Portugal”, embora a maioria en-
tenda “muito pouco delas”48.
O crescente envolvimento de Castro com os textos proféticos coincidiu com
os rumores sobre o aparecimento do rei em Veneza, que jamais duvidou tratar-se
de D.Sebastião. “Convertido” aos dons proféticos de Bandarra, Castro publicou
em 1603, ano da morte do falso de Veneza, aquela que é considerada a primeira
impressão de parte das trovas do sapateiro profeta, Paráfrase e Concordância das
Trovas de Bandarra. No ano anterior havia saído, também em Paris, o Discurso
da Vida do Rei D.Sebastião, livro no qual recontou a história do rei desaparecido
no Marrocos e sua fuga milagrosa, fundindo política e religião para justificar a
espera pela volta do Desejado. Surgia, assim, talvez o primeiro texto a embasar a
longeva crença sebástica. Foi considerado o corifeu do sebastianismo e o primei-
ro letrado a defender os dons proféticos de Bandarra.
São muitas as questões abertas pelo contexto que viu desaparecer o anto-
nismo e surgir, fortalecido por homens letrados que vagavam pela Europa, a
expectativas de que D.Sebastião ainda estivesse vivo. Nesse grupo merece desta-
que Frei José Teixeira, algumas vezes já citado neste texto. Além de sua atuação
em França, onde se exilou depois de seguir D.Antônio, como Castro, Teixeira
publicou Adventure admirable par dessus toutes les autres des siècles passez &
present, par laquelle il appert evidemment, que D. Sebastian vray et legitime Roy
de Portugal... est celuy mesme que les Seigneurs de Venise ont detenu prisonnier49,
no qual, também como João de Castro, relata a fuga e sobrevivência prodigiosa
de D.Sebastião das mãos dos infiéis, o que permitiria que fosse ele o homem
aparecido em Veneza. Sendo seu texto anterior ao de Castro, vale compará-los
para identificar, ou não, a influência deste na obra de Castro e seu peso na con-
formação do sebastianismo letrado que então se estruturava.
No que se refere especificamente ao caso do falso de Veneza, farsa ou fábu-
48 Apud AZEVEDO, João Lúcio de. A Evolução do sebastianismo. Lisboa: Editorial Presença, 1984.

49 TEIXEIRA, Fr.José. Adventure admirable par dessus toutes les autres des siècles passez & present, par laquelle il appert evidemment, que D. Sebastian

vray et legitime Roy de Portugal... est celuy mesme que les Seigneurs de Venise ont detenu prisonnier... / le tout trad. de Castillan (de J. Teixeira) en François

et augmenté... (de pièces de Sampayo, Pessoa de Nieva, G. Capugnano) et de l’admirable nativité dudict Roy. Paris, 1601.

49
la, tratou-se de um caso concreto de possível realização do antigo mito do Rei
Encoberto, Imperador dos Últimos Dias, Messias, segundo as diferentes crenças
e releituras que conheceu. Tempo de guerras de religião, de mudanças políticas,
transição talvez definitiva da noção de Império Universal para o território da
lenda ou das ideias messiânicas. Yves-Marie Bercé estudou três casos de reis de-
saparecidos, e esperados, surgidos na Europa entre fins do século XVI e início
do XVII: o do português D.Sebastião; o do principe russo Dimitri, potencial
herdeiro da Coroa Imperial russa, morto em 1598 e “reaparecido” em 1604 para
retomar seu trono, e por fim a reivindicação de um pretenso filho do rei francês
Carlos IX (morto em 1574) em 159550. Se estes ensaios russo e francês foram in-
fluenciados pelas murmurações disseminadas com os antecedentes portugueses
é difícil dizer por ora, o que se pode afirmar é a presença dessas ideias, espe-
ranças ou conluios na Europa desse momento, a indicar a retomada ou reapro-
priação do antigo mito do Encoberto, nada novo, aliás. O clássico de Norman
Cohn51, por exemplo, indicou como a espera pela volta do Imperador Frederico
II, o Barba Ruiva, manteve-se viva desde que Frederico I pereceu na Terceira
Cruzada, atravessando os séculos e esteve ativa até o século XV. Tal como no
caso de D.Sebastião, falsos ou pseudo-Fredericos apareceram e diziam reencar-
nar o Imperador Dos Últimos Dias que voltaria para terminar a obra inacabada,
libertando o Santo Sepulcro e preparando a Segunda Vinda. Essa variação ca-
tólica teria derivado da tese das Três Idades do calabrês Joaquim de Fiore, que
conheceu vida longa e, para alguns, estaria na base também da crença sebas-
tianista. No caso do rei português, a particularidade seria a sobrevivência, não
a ressurreição. D.Sebastião não morrera na batalha: estava vagando, purgando
suas culpas e preparando o momento da volta para resgatar os portugueses das
mãos de estrangeiros.
Além dessa singularidade, a longevidade do caso sebástico o tornou único, e
a forma como os contextos russo e francês produziram e dissolveram as esperas
régias que conheceram só pode ser analisada a partir de estudos verticais de cada
episódio. No caso da espera por D.Sebastião, observar a transição do antonismo
50 Cf. BERCÉ, Yves-Marie. O Rei Oculto. Salvadores e impostores. Mitos políticos populares na Europa Moderna. Bauru: EDUCS; São Paulo: Imprensa

Oficial do Estado, 2003.

51 COHN, Norman. Na senda do milênio. Milenaristas revolucionários e anarquistas místicos da Idade Média. Lisboa: Editorial Presença, 1980, espe-

cialmente cap.6: O imperador Frederico como Messias.

50
para a conformação da espera por D.Sebastião e ao sebastianismo pode nos
ajudar a compreender a complexa combinação entre política e profecia entre
fins do século XVI e o início do XVII ibérico, período em que o sebastianismo
se teceu, dentro e fora de Portugal, alimentado pelas dissidências ou pelo fim
do projeto antonista. Projeto concreto e audacioso, foi vencido pela quimera
de uma espera melancólica e cada vez mais imprevista, mas tida como certa
e inescapável. Os quatro falsos D.Sebastião surgidos em Portugal entre 1584 e
1603 expressaram formas populares e letradas de expectativas variadas, tanto
pessoais quanto políticas, difíceis de apreender a partir de um sentido único
de resistência aos castelhanos. Muitos portugueses aderiram aos Habsburgo,
vários deles tomaram a Restauração como insubordinação. No caso específico
do falso de Veneza, pode-se deduzir sem muita chance de erro que o interesse
da Sereníssima República de Veneza no caso pouco ou nada teve a ver com a
veracidade do embuste. Talvez em outro momento fosse interessante embarcar
nessa aventura. O duque de Florença, que entregou o farsante aos espanhóis, viu
o caso por outro prisma, e a Felipe III só interessava a eliminação do insolente.
Para Castro a aparição confirmava suas previsões. Marco Tulio Catizone sonhou
ingenuamente ocupar o mais alto cargo de um reino que jamais conheceu,
do qual sequer sabia a língua. Motivações cruzadas, e ora excludentes, ora
complementares, conformaram o último ensaio farsesco que conhecemos. A
partir de então, D.Sebastião passou a vagar pelas brumas de ilhas encantadas, de
onde sairia, em algum momento, para assumir seu legítimo posto. Em muitos
recantos continuou/continua sendo esperado por séculos.

51
UM ‘APÓCRIFO’ DE VIEIRA:
discursos sebastianistas, leitura de impressos e
circulação de manuscritos (séc. XVII-XVIII)1

Luís Filipe Silvério Lima

Um pesquisador que esteja em busca de manuscritos proféticos relativos ao


Império Português, em particular do padre Antônio Vieira, certamente irá se
deparar nos arquivos e bibliotecas com vários documentos atribuídos ao jesuíta,
na maior parte das vezes pelos próprios autores ou copistas dos textos. Esses es-
critos de teor profético e, especialmente, sebástico produzidos entre finais do séc.
XVII e inícios do séc. XVIII, circularam amplamente como sendo de Vieira, até
pelo menos o séc. XIX quando muitos chegaram a ser impressos. Várias cópias
desses textos integram códices de compilações de profecias, comentários sobre
visões, oráculos etc, que podiam também conter, entre outros, relatos da batalha
de Alcácer-Quibir, do reino de Preste João ou da Ilha Escondida – às vezes, orde-
nadas por uma percepção sebástica do futuro português. Outras cópias também
fazem parte de volumes dedicados a coligir textos de Vieira (cartas, sermões, tra-
tados etc.), indicadas, por vezes, como de autoria incerta. Nesses volumes, mui-
tas vezes, constam os textos sebastianistas atribuídos a ele, misturados a escritos
de sua autoria, como “Esperanças de Portugal”, o índice da Clavis prophetarum
etc. Nessas compilações de textos sebásticos e proféticos ou dedicadas a escritos
vieirenses, em geral, estão os apócrifos “sebastianistas” de Vieira.
Talvez se arvorando na autoridade do grande pregador e, mais do que isso,
do formulador de uma proposta de Quinto Império, os autores, compiladores e
copistas seiscentistas e setecentistas atribuíam diálogos, comentários de profecias
e vaticínios, respostas e cartas que demonstravam a volta de D. Sebastião jus-

1 Versões iniciais deste texto foram apresentadas no Seminário Permanente de História do Brasil (CHAM, Universidade Nova de Lisboa), e no Colóquio

Internacional Religião e Religiosidades da Época Moderna (UFF). Agradeço os comentários de Tiago C. P. dos Reis Miranda, Evergton Sales Souza,

Jacqueline Hermann, Ana Isabel López-Salazar, Ana Karicia Machado Dourado e meus orientandos. Este texto é resultado de pesquisas realizadas com

o apoio da Fapesp e do CNPq.

53
tamente a alguém que em vida descrevera a crença sebástica como “muito boa
para rir”2. O interessante é que, em algum grau, tal colagem vingou, seja porque
durante o período pombalino, várias dessas obras foram condenadas como sen-
do de Vieira, seja porque já entrando no séc. XIX foram impressas sob o nome
do jesuíta na primeira tentativa de organizar suas obras completas, editada por
Seabra & Antunes em 18563 – empreitada depois criticada por vieiristas no sé-
culo passado, em grande parte pela inclusão de textos de autoria duvidosa. Em
alguns casos mais desavisados, entretanto, esses textos sofreram reimpressões
ou circularam como sendo de Vieira ao longo do séc. XX, no Brasil, em Portugal
e, hoje, pela rede mundial – sendo hoje inclusive citados em teses acadêmicas.4
Entre esses “apócrifos”, aquele que mais possui testemunhos e que circulou
nos mais diferentes suportes (manuscritos, impresso, digital) foi o que depois ficou
conhecido como “Discurso em que se prova a vinda de D. Sebastião” ou ainda,
em uma versão mais recorrente nos próprios manuscritos, o “Papel [ou Discurso]
… que fez o Padre Antonio Vieira, sobre a Esperança em El Rei D. Sebastião”. Na
quase totalidade das versões compulsadas5, o manuscrito aparece atribuído a Viei-

2 VIEIRA, Antônio. Carta a D. Teodósio de Melo, 10 de agosto de 1665 In: Obra completa. Lisboa: Círculo dos Leitores, 2013, t. 1, v. II, p. 516.

3 VIEIRA, Antônio. Obras Ineditas do Padre Antonio Vieira. Lisboa: Editores, J.M.C. Seabra & T.Q. Antunes, 1856, t. I-II, p. 185-242.

4 Em 1998, num eco atrasado do terceiro centenário da morte de Vieira, o Senado brasileiro publicou um volume chamado Profecia e Inquisição, na

qual constava uma série de textos apócrifos, entre eles aquele que será analisado, todos retirados do exemplar da edição de Seabra e Antunes que existe

na biblioteca do Senado. “Discurso em que se prova a vinda do Senhor Rei D. Sebastião” In: VIEIRA, Antônio. De profecia e inquisição. Brasília: Senado

Federal, 1998, p. 111-172. O livro está disponível para download gratuito na Biblioteca Digital do Senado Federal (http://www2.senado.leg.br/bdsf/

item/id/1021), e seu conteúdo está também reproduzido no portal Biblioteca de Literaturas de Língua Portuguesa do NUPILL, da UFSC (http://www.

literaturabrasileira.ufsc.br/documentos/?action=download&id=30017). A própria edição oitocentista de Seabra & Antunes também está disponível

on-line via GoogleBooks e Internet Archive. O papel apócrifo também saiu impresso em volume de “Escritos políticos” das recentes Obras completas,

de Vieira, pela Círculo dos Livros, sem muito aviso sobre as questões de autoria envolvidas. “Papel em que se prova a vinda de El-Rei Dom Sebastião,

pelo Padre António Vieira da Companhia de Jesus” In: VIEIRA, Antônio. Obra completa, Tomo IV, vol. I: Escritos Políticos. Lisboa: Círculo dos Leitores,

2014, p. 137-192. Uma decorrência inesperada desse amplo acesso via rede é que essas versões com a autoria de Vieira têm sido utilizadas e citadas

em dissertações e teses brasileiras e portuguesas, nas quais se assume o texto como do jesuíta e, em alguns, servem de base inclusive para a análise da

escrita vieirense. Leite, Karine Vasconcelos. “Olhos, espelho e luz”: o imbricamento de discursos e a ironia em Os autos de defesa, de Vieira, como marca

de atualidade contínua do escritor. Tese de Doutorado em Letras e Linguística: Linguística, Faculdade de Letras, Pós Graduação em Letras e Linguística,

Universidade Federal de Alagoas, Maceió, 2012, passim; CONCEIÇÃO, Joaquim Fernandes da. O Imaginário extraterrestre na cultura portuguesa. Do

fim da Modernidade até meados do século XIX. Dissertação de doutoramento em História apresentada à Faculdade de Letras da Universidade do Porto,

Universidade do Porto, Faculdade de Letras, 2004, p. 140-141, 144; ANDRADE, Joel Carlos de Souza. Os Filhos da Lua: Poéticas Sebastianistas na Ilha

dos Lençóis-MA. Dissertação de Mestrado em História Social, UFCE, novembro de 2002, p. 26-27.

5 Compulsei 20 testemunhos, embora tenha identificado mais três que não pude consultar, um na BNE, outro na BNP e mais outro na BGUC. Além

disso consultei um mestrado que transcreve um códice que contém o “Discurso”. Provavelmente são somente alguns de vários existentes em outros

arquivos e bibliotecas públicas e particulares. Arquivo Nacional da Torre do Tombo (ANTT): “Tratado Em que Se Mostra, E Se Confirma A Esperança

54
ra e em sua maioria são cópias do séc. XVIII, com algumas poucas já do séc. XIX
e nenhuma do séc. XVII. A proposta deste texto é justamente fazer uma primeira
aproximação desse manuscrito e pensar as relações entre apocrifia, autoria e pro-
fecia em torno dos escritos e do projeto profético vieirense.
A noção de apocrifia e pseudografia surgiram em contexto específico do
estudo bíblico, como modo de autorizar ou não os textos sagrados que circulavam
e estabelecer um cânone ortodoxo,6 para depois serem apropriadas pela crítica
textual e filológica (especialmente a partir do Renascimento) a fim de definir
quais textos eram de fato dos autores nomeados, separando das atribuições
equívocas e mesmo das tentativas de contrafação. Nesse último sentido, apocrifia
tendeu a ser tratada na maior parte das vezes como sinônimo de falsificação,
inclusive recentemente por estudiosos dedicados à cultura letrada e do impresso
Da Suspirada Vinda Do Serenissimo Rey O Senhor Dom Sebastião Feito Pello Rmo. Padre Anto. Vieira Da Sagrada Companhia de Jezus”, Manuscritos

da Livraria, Códice 1172, s.n. [Depois de 1728]; Biblioteca Nacional do Brasil (BN-Rio): “Papel q’ fez o Rmo. P. Ant.o Vieyra a favor dos q’ esperão por El

Rey D. Sebastião”, I-13,2,6 n. 26, ff. 432-521 [sec. XVIII]; “O Egrégio Encoberto, Descoberto Papel, ou Discurso Organizado sobre esperança e certeza

da vinda do Senhor Rey Dom Sebastião pelo P.e Antonio Vieira” [sec. XVIII] 5,3,7 n. 4, f. 123-141v; Biblioteca do Congresso (LoC): “Papel em q. se prova

a vinda de El Rei D. Sebastião pelo Pe. Ant.o Vieira da Companhia de Jezus” [sec. XVIII] Portuguese Manuscripts, P-212, f. 11-34; Biblioteca Nacional

de Espanha (BNE): “Discurso sobre a esperança da vinda do rei Dom Sebastião”, MSS/6812. [sec. XVIII] Disponível em: <http://bdh-rd.bne.es/viewer.

vm?id=0000074671&page=1>; Biblioteca Nacional de Portugal (BNP) – Seção de Reservados: “Papel do Pe. Antonio Vieira, sobre a Esperança em El Rey

D. Sebastião”, COD. 798 f. 222r.-252v. [após 1729]; “Papel do Pe. Antonio Vieyra, da Compa. De Hs. Fez sobre a Esperança em El Rey D. Sebastião”,

COD 8579, f. 50r-116v. [Sec. XVIII]; “Papel que se prova a vinda d’El Rey D. Sebastiao”, COD 8616, f. 240-259r [Meados do séc. XVIII]; “Papel que fes o

P.e Antonio Vieyra em que prova a esperança da vinda de el-Rey D. Sebastião perdido na batalha de Africa aos 4 de agosto de 1578 annos”, COD 557, f.

85r- 118v [Séc. XVIII]; “Papel que fez o Padre Antonio Vieira sobre a esperanca da vinda de el-Rey D. Sebastião”, COD. 125, f. 158r-216v. [Séc. XVIII];

“Discurso sobre a esperanca da vinda de el-Rey D. Sebastião”, COD. 128, f. 2r-59r [Séc. XVIII]; “Discurso em q’ se prova a vinda de El Rei Dom Sebastião

Pello P.e An.to Vieyra da Companhia de JESV”, COD. 400, f. 245r-281r [após 1754]; “O egregio encoberto, descoberto no papel, ou discurso organizado

sobre a esperança e certeza da vinda do Senhor Rey Dom Sebastião pello P.e Antonio Vieira”, COD. 9228, f. 177r-260v [2a metade do séc. XVIII];

Biblioteca Oliveira Lima, Universidade Católica Americana: “Discurso que fes o Padre Antonio Vieira da Companhia de Jezus sobre a esperança do

serenissimo Senhor Rey. D. Sebastião.” cod. 59, f. 126v-203. [1a. metade do sec. XVIII?]; Biblioteca Rosenthaliana, Universidade de Amsterdã: “O egregio

encuberto. Papel, que fes o Padre Antonio Vieyra, em o qual prova a esperança da vinda do Senhor Rei Dom Sebastião perdido na batalha de Africa aos 4

de agosto do anno de 1578” e “Additamentos que se podem fazer aos fundamentos deste Discurso”, Hs. Ros. 612, 71ff. [inícios do século XVIII]; Instituto

de Estudos Brasileiros, Universidade de São Paulo (IEB): “Papel `q o Pe. Anto. Vra fes sobre a esperanca em El Rey D. Sebastião” [tit. no cat.: “Discurso

do padre Antônio Vieira, defendendo o sebastianismo, usando como fundamentos: razões, profecias, revelações, prodígios e prognósticos.”] Coleção

Lamego, AL-135-002. [sec. XVIII]; “Informação do padre Antônio Vieira, procurando provar que D. Sebastião, rei de Portugal, estava vivo”], Coleção

Lamego, AL-096-008. [após 1808]; John Carter Brown Library, Universidade Brown (JCB): “Tratado da Probabilidade da vinda do Obedientiçimo Filho

da Igreja o Senhor Rej Dom Sebastião o 1 de Portugal Composto pelo insigne Hoste alias Historiador do Futuro O Pe Antonio Vieira” (tit. alt.: “Papel que

fes o Pe Antonio Vieira Princepe dos Oradores sobre a esperança em El Rey D. Sebastião”). JCB Manuscripts, Codex Port 13, p. 1-103 [depois de 1718].

6 Para isso ver, entre muitos: DAVILA, James R. The Old Testament Pseudepigrapha as Backgroundto the New Testament. The Expository Times, v. 117,

n. 2 (2005), DOI: 10.1177/0014524605059872; HAMILTON, Alastair. The Apocryphal Apocalypse: The Reception of the Second Book of Esdras (4 Ezra)

from the Renaissance to the Enlightenment. Oxford: Clarendon Press, 1999; DITOMMASO, Lorenzo. The Book of Daniel and the Apocryphal Daniel

Literature. Leiden: Brill, 2005.

55
na Época Moderna.7 O exemplo mais conhecido é talvez o de Anthony Grafton
que, em seu Forgers and Critics, defende que na tradição ocidental houve de
modo relativamente constante a busca pelo texto original ou, melhor dizendo,
sempre existiu uma noção relativamente estável do que era verdadeiro e do que
era uma falsificação. Se é possível concordar com Grafton que em determinados
momentos da história da cultura letrada a identificação e individuação do
autor de um texto tiveram importância central, é entretanto difícil assumir a
decorrência proposta de modo latente de que por conta da individuação de
autoria a falsificação seria consequentemente um delito de propriedade podendo
se culpabilizar, criminalmente quase, os falsificadores.8 Interessa assim menos
pensar a falsificação a partir dos pressupostos de uma investigação policial (atrás
dos motivos, meios e oportunidade), como propôs Grafton, e mais refletir sobre
o que pode revelar a circulação de tantos apócrifos vieirenses nos séculos XVII
e XVIII. Inclusive no que o estudo desses manuscritos pode ajudar refletir sobre
as diferentes noções modernas de autoria em sua relação com a produção textual
no período, tanto em forma manuscrita como impressa. Nesse sentido, é possível
recolocar, como fizeram Chartier e Hansen, a pergunta de Michel Foucault
sobre o que era o autor na Época Moderna, focando também a materialidade do
manuscrito e a cultura escrita ibérica do período.9
Nessa direção, pretendo neste capítulo localizar as poucas referências a esses

7 MYERS, Robin e HARRIS, Michael (Eds.). Fakes and Frauds. Varieties of Deception in Print and Manuscript. Delaware, EUA: Oak Press, 1989; GRAF-

TON, Anthony. Forgers and Critics: Creativity and Duplicity in Western Scholarship. Princeton: Princeton University Press, 1990.

8 Crítica semelhante a Grafton foi feita por Miriam Eliav-Feldon ao estudar os viajantes, exploradores e profetas que personificavam ou inventavam

identidades, bastante comuns (e largamente cridos e aceitos) no século XVI. ELIAV-FELDON, Miriam. Invented Identities: credulity in the age of

prophecy and exploration. Journal of Early Modern History, 3, 3 (1999), p. 206. Pesquisas sobre a função do anonimato e dos pseudônimos também nos

dão a dimensão de como as noções de autoria e, por consequência, de pseudografia, apocrifia e falsificação operavam de maneiras mais complexas e

muitas vezes o lugar que autorizava o discurso estava fora da “persona” de um autor. HAMMOND, Paul. Anonymity in Restoration Poetry. The Seven-

teenth Century, 8, 1 (Spring 1993); NORTH, Marcy. Ignoto in the Age of Print: The Manipulation of Anonymity in Early Modern England. Studies in

Philology, Vol. 91, No. 4 (Autumn, 1994), pp. 390-416; EZELL, Margaret J.M Reading Pseudonyms in Seventeenth-Century English Coterie Literature.

Essays in Literature, 21, 1, Spring, 1994; GRIFFIN, Robert J. Anonymity and Authorship. New Literary History. Vol. 30, No. 4, Case Studies (Autumn,

1999), p. 877-895.

9 Michel Foucault. O que é um Autor? In: FOUCAULT, Michel. Ditos e Escritos: Estética – literatura e pintura, música e cinema. Rio de Janeiro: Forense

Universitária, 2001. Vol. III, p. 264-298; HANSEN, João Adolfo. Autor In: JOBIM, José Luís (Org.). Palavras da Crítica. Rio de Janeiro: Imago, 1992, p.

11-43; CHARTIER, Roger. História Intelectual do autor e da autoria In: VV.AA. Autoria e história cultural da ciência. Rio de Janeiro: Beco do Azougue,

2012, pp. 37-64. Sobre a cultura manuscrita, ver: BOUZA ALVAREZ, Fernando. Corre manuscrito. Una historia cultural del Siglo de Oro. Madri: Marcial

Pons, 2001, esp. “Introducción”. Como alertou Bouza, na cultura letrada ibérica, não só manuscrito e impresso eram ambos centrais nas dinâmicas

culturais como seria difícil defender o pressuposto da superação do manuscrito pelo impresso, após a introdução da imprensa (p. 16-19).

56
manuscritos existentes na bibliografia; pensá-los no âmbito do projeto do Quin-
to Império e da produção profética moderna, tendo em vista os conceitos da
época de apocrifia e profecia; traçar um panorama do “Discurso”, para discutir a
relação desses manuscritos com outros textos vieirenses, sebastianistas e messiâ-
nicos no Império Português, bem como demonstrar a presença paródica de tex-
tos de Vieira no próprio apócrifo; e, a partir disso, traçar algumas considerações
sobre a questão de autoria nos textos proféticos e no papel de Vieira como autor
“sebastianista”. A hipótese que guiará este texto é que essa fonte deve ser pensada
como uma colagem paródica e intertextual de profecias, visões, bem como de
textos vieirenses e sebastianistas pela qual os argumentos pentamonarquistas de
Vieira foram deslocados para a causa sebastianista; menos do que simplesmente
considerá-la como um apócrifo, uma falsificação e, portanto, sem interesse para
os estudos vieirenses e da cultura religiosa de Portugal moderno.

Apócrifos vieirianos e a questão da autoria

Apesar da profusão de testemunhos manuscritos existentes e da circulação


impressa posterior (e agora, on-line), os apócrifos sebastianistas não merece-
ram muitas referências na bibliografia, exatamente por serem assumidos como
espúrios e ilegítimos. Quando elas ocorreram, eram muitas vezes somente para
ressaltar a falsidade da atribuição e indicar os erros dos editores que os publi-
caram. Mesmo em termos mais gerais, na ampla bibliografia sobre Vieira, para
além da polêmica em torno da autoria de Arte de Furtar10 (e, em menor grau,
de Notícias recônditas), não se debruçou muito sobre as obras que lhe foram
atribuídas apocrifamente.
João Lúcio de Azevedo foi um dos poucos a lançar um olhar mais geral so-
bre isso, mesmo que breve e há bastante tempo, numa nota bibliográfica publica-
da no boletim da Academia de Ciências, em 1914-15. Nela relaciona e comenta
os textos apocrifamente atribuídos a Vieira, e indica que, à altura da escrita da
nota, ainda era verossímil para muitos atribuir a autoria de Vieira em muitas
10 10 A fortuna crítica d’A Arte de Furtar é volumosa no problema de quem era o verdadeiro autor. Entretanto, pouco se refletiu na bibliografia sobre

o que implicava (ou não) assumir esta obra como da lavra do jesuíta. Atribuição que ainda ocorre nos dias de hoje, em edições contemporâneas, tais

como: VIEIRA, Antônio. Arte de furtar. Lisboa: Esfera do Caos, 2003.

57
fontes apócrifas. Segundo Azevedo:

Escrito que encerrasse matéria política, em que fosse ata-


cado o Santo Ofício, ou então quando nele o copista cuida-
va encontrar, já vislumbres de eloquência, já a veia satírica
tanto do modo de Vieira, se o autor lhe era desconhecido,
logo o imputava ao eminente polígrafo. Às vezes era obra de
falsário, e assim produções alheias, e não poucas, umas por
ignorância ou descuido, outras por consciente fraude, tem
passado por suas.11

Obviamente a primeira obra apócrifa a que João Lúcio se referiu foi A Arte
de Furtar. Azevedo passou depois às “Notícias recônditas do modo de proceder
da Inquisição”, impresso em 1722 por um David Neto, cuja autoria e mais ainda
a circulação foram debatidas entre os estudiosos da Inquisição e do Judaísmo –
ainda que à época não tenha saído como sendo de Vieira. Depois Azevedo men-
cionou o caso dos sermões, nomeadamente, das edições espanholas.
Aqui vale abrir um pequeno parêntesis para uma discussão sobre os ser-
mões, pois há interesse para o que será abordado. As edições espanholas –
não-autorizadas – dos sermões de Vieira tornaram-se objeto de estudo de alguns
vieiristas12, e permitem pensar nas questões de atribuição de autoria. Impressas
entre 1662 e 1678, contabilizam cinco volumes, e foram, de fato, a primeira edi-
ção de sermões de Vieira, pois saíram todos antes de 1679, ano de início da
impressão da editio princeps dos Sermões, revisada, reescrita e ordenada pelo
jesuíta. Vieira conhecia pelo menos dois desses volumes castelhanos pois fez
questão de os rechaçar e escrutinar entre os sermões impressos quais eram total-
mente “alheios” e quais reconhecia como seus, “mais pela materia” do que pela
“forma”.13 Os sermões castelhanos apontam duas questões interessantes para o

11 AZEVEDO, João Lúcio de. Alguns escritos apócrifos, inéditos e menos conhecidos do Padre António Vieira. Separata do Boletim de Segunda Classe

da Academia de Ciências de Lisboa. Lisboa, volume IX (1915), p. 3-4.

12 RICARD, Robert. Antonio Vieira y Sor Juana Inés de la Cruz. Revista de Indias, p. 43-44 (1951), p. 61-87; MENDES, Margarida Vieira. A oratória

barroca de Vieira. Lisboa: Caminho, 1989; FOLCH, Luisa Trias Folch. A obra do Padre António Vieira em Espanha. Oceanos, Lisboa, n. 30-31 (abril-

-setembro 1997), p. 82-88.

13 VIEIRA, Antônio. Sermoens do P. Antonio Vieira (…) Primeyra Parte. Em Lisboa: Ioam da Costa, 1679, “Lista dos sermões que andão impressos com

nome do Author em varias línguas, para que se conheça quaes são próprios, & legitimos, & quaes alheyos, & suppostos”, n.p..

58
presente texto. A primeira, os sermões impressos em Madri ilustram possibili-
dades (e a amplitude) da circulação da obra, inclusive, para além do espaço lu-
so-americano.14 A segunda, o fato de Vieira negar essas impressões como válidas
indica uma preocupação com autoria e, ao mesmo tempo, autoridade, que tem
implicações mais amplas, se as pensarmos a partir dos estudos de Roger Char-
tier, para os livros e a leitura no Antigo Regime, e de João Adolfo Hansen, para
as “Letras Coloniais” e, especificamente, para Vieira.
Chartier mostra como no caso de peças, em particular, as de Lope de Vega,
a impressão de obras antes encenadas produzia modulações na compreensão
do texto da “comédia”. Por um lado, alterava a intenção original do texto, feito
para ser performatizado para uma audiência (tal qual o sermão, pode-se pensar);
mas, por outro, permitia a seu autor indicar quais peças eram suas, restaurando,
nos termos de Lope, o texto “original”, e quais circulavam como cópias ou ver-
sões “bárbaras”. O processo de constituição de um corpo autorizado das peças
de um autor também significou uma mudança no entendimento de quem era
responsável pela peça e uma definição de autoria mais colada a quem a escreveu
– e menos de quem a encenou.15 Se isso aponta para uma ideia autoral, por outro,
lembra Chartier, o impresso implicava também um circuito de produção que
diluía, de outra feita, a autoria como individual. No episódio do segundo livro
de Dom Quixote, o cavaleiro de Mancha com seu escudeiro visita uma oficina na
qual se imprimem volumes da novela apócrifa do Quixote, lançada no esteio do
sucesso do primeiro volume. Cervantes ironizou a empreitada por meio de seus
personagens e, aponta Chartier, permite pensar que a autoria estava não só no
escritor mas era partilhada pelo circuito “editorial” (copistas, revisores, impres-
sores etc.).16 Os apócrifos, por essa perspectiva, podem ser entendidos não só
como uma subtração (ou falsificação) da autoria, mas também como inseridos
num circuito maior de produção e divulgação entre impressos e manuscritos17,

14 O exemplo mais marcante é o caso da polêmica iniciada por Sor Juana Inês de La Cruz, que leu no México o “Sermão do Mandato” (não autorizado)

em uma edição espanhola e a partir dessa leitura escreveu a “Carta Atenagórica”. Ver RICARD, Robert. Antonio Vieira y Sor Juana Inés de la Cruz.

Op. cit; FOLCH, Luisa Trias. Novos documentos sobre a controvérsia de Sor Juana Inés de la Cruz e o padre António Vieira. Limite. 5 (2011), p. 75-89.

15 CHARTIER, Roger. Do palco à página, Rio de Janeiro: Casa da Palavra, 2002, p. 73-76

16 CHARTIER, Roger. Inscrever & Apagar. São Paulo: Editora UNESP, 2007, p. 87-92.

17 Ver aqui os trabalhos sobre a cultura manuscrita-oro-visual do Antigo Regime ibérico de BOUZA ALVAREZ, Fernando, em especial Palabra e

Imagem en la Corte: Cultura oral y visual de la nobreza en el siglo de oro. Madri, ABADA, 2004.

59
no qual a imitação faz parte do jogo – o que indica possibilidades para se pensar
o autor e ainda a preocupação desses com a autoria. Um jogo, entretanto, que
os autores-escritores cada vez mais ficavam cientes e tentavam controlar, dan-
do autoridade àquela cópia, seja manuscrita – supostamente, de circulação mais
restrita e cujo processo de cópia poderia ser acompanhada e, por isso, mais con-
trolada pelo autor –, seja impressa – de maior acesso e entregue a um processo
editoral complexo com muitos agentes, mas que indicava que aquela versão era
“autorizada” pois teria a autoridade do autor estampada no frontispício.18
Ao mesmo tempo, essa preocupação com separar o que é “próprio” do que
é “alheio”, ou o “original” do “bárbaro”, era mediada pela noção que um autor
era antes alguém que “imita auctores”, como aponta Hansen.19 Menos do que a
noção de autor romântico, criador e original, e burguês, proprietário e indivi-
dual, no caso de Vieira, segundo Hansen, temos um autor que mimetiza e emula
autores anteriores, considerados como autoridades, que, no limite, por sua vez
são pensados como reflexos, porque partícipes, de uma força criadora, idêntica e
única, a Causa Divina da qual todos são efeitos e, na melhor das hipóteses, causas
segundas da Causa Primeira e Final. A questão é que, mesmo operando por essa
“forma mentis” da oratória, Vieira preocupou-se em dizer o que era seu, próprio
e não “alheio” no momento de impressão20. Mesmo que o fizesse, aparentemente
(ou emulando um afeto), a contragosto, pois teve que organizar sua obra ser-
mônica por ordem de seus superiores. Se pensarmos nos exemplos analisados
por Chartier, e pensarmos que Vieira o fez no fim da sua vida a fim de combater
cópias espúrias e mesmo apócrifas, podemos supor a construção de uma figu-
ra de autoridade (menos do que de autoria, no sentido mais contemporâneo),
operada tanto pelo pregador quanto pela sua Ordem? Vêem-se aqui problemas

18 É o que pretendia Góngora ao não deixar seus poemas serem impressos e organizá-los em um volume manuscrito extremamente bem cuidado que

ofereceu ao Conde-Duque Olivares. Supunha que sua poesia era para os olhos de leitores agudos e discretos (e cortesãos), e não para vulgares e rústicos

que teriam acesso se impressa. Sobre este caso e para a questão do controle autoral entre manuscrito e impresso, ver: CARREIRA, Antonio. El manuscrito

como transmisor de humanidades en la España del Barroco In: Pedro Aullón de Haro (ed.). Barroco, Madri: Verbum, 2004, p. 597-618 (sobre Góngora,

v. p. 609-12). Para uma apreciação crítica às hipóteses de Carreira e mesmo as relações entre manuscrito e impresso, ver: DADSON, Trevor J. La difusión

de la poesía española impresa en el siglo XVII. Bulletin hispanique, 113-1 (2011) [Acessado em 30/9/2015: http://bulletinhispanique.revues.org/1307].

19 HANSEN, João Adolfo. Vieira: forma mentis como categoria histórica. Voz Lusíada, 9 (2o Sem. 1997), p. 17.

20 Ver HUE, Sheila Moura. Em busca do cânone perdido. Manuscritos e impressos quinhentistas: das variantes textuais e das atribuições autorais.

REEL – Revista Eletrônica de Estudos Literários, a. 5, n. 5, 2009.

60
interessantes sobre a figura “literária” de Vieira21, seja no problema da recepção
de sua obra, seja na da construção da autoria de Vieira – ambas, no caso dos
sermões apócrifos ou não-autorizados, inter-relacionadas. Independente das
respostas, os problemas apontam questionamentos mas também passos para se
pensar no caso do manuscrito em questão o uso da “autoridade” de Vieira como
“autor” para emular, com sinal invertido, uma interpretação profética.
Para além dos sermões, João Lúcio de Azevedo, naquelas suas notas, fa-
lava ainda de algumas cartas e escritos políticos. E rapidamente, menciona o
“Discurso em que se prova a vinda de D. Sebastião”. João Lúcio comentou que
aquele não se podia considerar como sendo de Vieira, pois: “contradiz todo o
sebastianismo de Vieira, pois para êle o Encuberto tinha sido primeiramente D.
João IV; depois o personificou em D. Pedro II, no primeiro filho deste, e uma
vez até em D. Afonso VI. D. Sebastião é que nunca foi”.22 Vale reparar que Aze-
vedo diz que não é de Vieira porque o seu “sebastianismo” não identificava em
D. Sebastião o Encoberto. Era um sebastianismo não sebastianista, portanto.
Isso soa contraditório, mas, por outro lado, aponta o que Azevedo entendia e o
que se entende, até hoje, por sebastianismo – menos a crença exclusiva na volta
em D. Sebastião e mais um messianismo lusitano mais geral, sob o qual se pode
abrigar várias vertentes de um profetismo régio ou “nacional”.
O argumento na nota do Boletim da Academia de Ciências seria desenvol-
vido um pouco mais no seu A evolução do Sebastianismo, de 1918. Ali, Azevedo
inseria a produção desses manuscritos no esforço sebastianista do final do séc.
XVII. Insinuava também que a atribuição indevida era posterior à redação do
texto, visto que àquela altura sabia-se que Vieira era anti-sebastianista:

Os sebastianistas, por isso, agitavam-se; mas passou o ano


e, sem que os desenganasse a malograda expectativa de fa-
tos que nunca ocorriam, adiaram para 1670 as esperanças.
Em fins de 1690 tudo lhas anunciava para o ano seguinte.
(…) A este período deve pertencer o escrito, indevida-

21 Tratei da questão da construção da figura “literária” de Vieira, em: LIMA, Luís Filipe Silvério. As partes e gentes da África na obra de Padre Antônio

Vieira: a construção da figura literária e a idéia do Quinto Império. Clio, v. 27-2, 2009, p. 87-116.

22 AZEVEDO, João Lúcio de, p. 542.

61
mente incluído nas obras de Vieira23, ‘Discurso em que se
prova a vinda do senhor rei D. Sebastião’ posterior à morte
de D. João IV, e que, pelo modo de argumentar pedan-
te, reduzindo a questão a silogismo, e discutindo sobre as
categorias do provável, recorda as escolas dos Jesuítas, de
onde plausívelmente saío. Não é todavia daquele a quem
se atribuí, para quem o Encoberto não foi nunca D. Se-
bastião. Os contemporâneos não se enganaram como os
copistas da geração imediata. Sabiam ser António Vieira
propugnador acérrimo do restaurado, e combatiam-no
em escritos vários, invertendo em favor de D. Sebastião as
conclusões tiradas por êle do Bandarra.24

Na mesma senda de Azevedo, mas décadas mais tarde, José Van Den Bes-
selaar mostrou nova leva de produção de textos sebastianistas a partir dos anos
1660, datando desta época o tratado atribuído a Vieira. Besselaar afirmou que:
“Quase todos os manuscritos que transmitem o texto deste tratado [o “Discur-
so”] atribuem-no igualmente ao jesuíta, mas tanto as ideias nele expostas, como
o estilo pouco polido desmentem tal autoria”. Mais do que isso, ao destacar a
ausência em muitos desses cartapácios das Trovas de Bandarra, Besselaar sugere
que essa “omissão se explica pelo abuso que os joanistas, aos olhos dos sebastia-
nistas ortodoxos, faziam das trovas do sapateiro”.25 Também comenta e critica
a inclusão do “Discurso” na edição “mal feita” das obras completas vieirianas
editadas por Seabra & Antunes.26
Para João Lúcio e Besselaar, preocupados em saber o que era do autor Vieira
e separar o que era espúrio e apócrifo, não haveria elementos para achar que
esses textos seriam dele. Pelo contrário. E não só por serem sebastianistas, mas
também pelo seu estilo “pouco polido” e por que seus fundamentos pareciam
muito distantes dos de Vieira – por exemplo, não citar Bandarra nem se basear
diretamente nos sonhos de Daniel e Nabucodonosor, ou mesmo em profecias

23 Refere-se à obra editada por Seabra e Antunes.

24 AZEVEDO, João Lúcio de Azevedo. A evolução do sebastianismo, 1918, p. 121-3.

25 BESSELAR, José Van Den. Sebastianismo – história sumária. Lisboa: ICALP, 1987, p. 98-9 (Biblioteca Breve).

26 VIEIRA, Antônio. Obras Ineditas do Padre Antonio Vieira. Op. cit,

62
bíblicas. Ao arrolar e fazer um inventário da obra de Vieira, Serafim Leite, entre-
tanto, coloca o “Discurso” e outros textos proféticos entre as de autoria duvidosa,
dizendo sobre o “Discurso” que o estilo é de Vieira e que poderia tê-lo como
“instrumento de trabalho”. Baseava-se também no fato de que no inventário após
sua morte arrolava-se uma obra em latim chamada “Fasciculus prophetiarum
quorundam sanctorum, aliorunque Authorum circa futura tempora”, que, aven-
tava, poderia ser uma versão do “Discurso”.27
Essa discussão também se fazia necessária entre vieiristas do século passado
porque a questão de identificar quais manuscritos eram ou não da lavra de Viei-
ra não fora levada em consideração pelos editores oitocentistas. No volume de
Obras inéditas, Seabra e Antunes arrolaram alguns textos apócrifos como sendo
de Vieira, e, na introdução ao volume, os editores agradecem a Bento António
de Oliveira Cardoso, jurista de Guimarães, falecido em 1886, que teria oferecido
os manuscritos então publicados.28 Bento Cardoso era jurista importante, mas
também um bibliófilo famoso na região de Guimarães pela sua vasta biblioteca,29
e era comum no período ter nas coleções diversos códices sobre sebastianismo e
textos proféticos de Vieira, muitos deles reunidos e compilados juntos. A edição
oitocentista de Seabra & Antunes baseou-se assim em um códice provavelmente
muito similar aos que serão tratados aqui, ordenados nos séculos XVII e XVIII
por critérios diversos ao da atribuição de autoria reclamados por Azevedo e Bes-
selaar no séc. XX. Vale notar que o “Discurso” é praticamente o único apócrifo
sebastianista que mereceu atenção dos estudiosos vierenses, talvez exatamente
porque tenha sido incluído naquela edição. A marca dessa edição foi, entretanto,
determinante não só por isso, mas também por estabelecer o título do manus-
crito “Discurso em que se prova a vinda de D. Sebastião”, como devia constar
no códice pertencente a Bento Cardoso, ainda que essa seja a variante menos
encontrada nos diversos testemunhos compulsados.
Independente dos procedimentos editoriais de Seabra e Antunes, e apesar
do apontado por João Lúcio e Besselaar, a percepção de Serafim Leite de um
estilo próximo ao de Vieira talvez faça algum sentido – ainda que não pelas ra-

27 LEITE, Serafim. História da Companhia de Jesus no Brasil. São Paulo: Loyola, 2004, tomo IX, p. 513.

28 VIEIRA, Antônio. Obras Ineditas do Padre Antonio Vieira, “Advertencia”, s.n.

29 SILVA, Innocencio Francisco da. Diccionario bibliographico portuguez. Lisboa: Imprensa Nacional-Casa da Moeda, 1867, v. 8, p. 371-2.

63
zões supostas pelo historiador da Companhia nem pela autenticidade dos có-
dices usados na edição oitocentista. Como buscarei mostrar, o apócrifo não é
tão distante assim dos textos de Vieira, pelo contrário, é baseado diretamente
em escritos do fim de sua vida, na Bahia, e que foram impressos em Lisboa no
volume Palavra de Deus empenhada e desempenhada.30 Com isso, colocam-se os
problemas de “autoria” e “apocrifia” em outra dimensão, pois se aponta não so-
mente para a apropriação do nome autorizado (como auctoritas) de Vieira mas
de seus escritos para objetivos diversos do seu e os quais combatera, i.e., a crença
na volta de D. Sebastião. Algo que indicia um certo contínuo nas propostas de
Quinto Império e suas constantes adaptações.

Quinto Império, textos proféticos e apocrifia

A ideia de Quinto Império, isto é, de que haveria um reino de Cristo na


Terra, não era, por certo, só de Vieira. Fazia parte de uma longa tradição de in-
terpretações a partir dos sonhos de Nabucodonosor e Daniel, no livro bíblico de
Daniel, e dos sonhos de Esdras, no livro não-canônico Esdras IV. Em Portugal,
estava ligada já aos projetos monárquicos da dinastia de Avis e, depois imperiais,
de Manuel I.31 Na virada do séc. XVI para o XVII, foi plasmado com o sebas-
tianismo, por autores como João de Castro e Fr. Serafim de Freitas, do mesmo
modo que, após a Restauração de 1640, na contraface da crença sebástica, foi
veiculado como fundamento teológico-político para a nova dinastia de Bragan-
ça, esforço profético e retórico do qual Vieira fez parte ativa.32 Contudo, para
além do empenho dinástico, com Vieira, a ideia de Quinto Império (que antes
aparecia mais recorrentemente como Quinta Monarquia, em Portugal) ganhou

30 VIEIRA, A. Palavra de Deos empenhada, e desempenhada. Empenhada no Sermam das Exequias da Rainha N.S. Dona Maria Francisca Isabel de

Saboya; Desempenhada no Sermam de Acçam de Graças pelo nascimento do Principe D. João Primogenito de SS. Magestades, que Deos guarde. Prègou

hum, & outro O P. Antonio Vieyra da Companhia de Jesu, Prègador de S. Magestade: O primeiro Na Igreja da Misericordia da Bahia em 11 de setembro,

anno de 1684. O segundo Na Catedral da mesma Cidade, em 16. de dezembro, anno de 1688. Lisboa : Officina de Miguel Deslandes, 1690.

31 THOMAS, Luis Filipe. A ideia imperial manuelina In: Andréa Doré et al. (org.). Facetas do império na História. São Paulo: Hucitec, 2008.

32 Entre outros, ver: AZEVEDO, João Lucio de, Evolução do Sebastianismo. Op. cit; BESSELAAR, José Van Den. Sebastianismo – uma história sumária.

Lisboa: ICLP, 1987; TORGAL, Luis R. Ideologia política e teoria do Estado na Restauração. Coimbra: Biblioteca Geral da Universidade, 1981, v. 1;

HERMANN, Jacqueline. No reino do desejado. São Paulo: Companhia das Letras, 1998.

64
contornos mais amplos ao se pensar os domínios do reino lusitano.33
Na construção das propostas de Quinto Império e mesmo permeando o
milenarismo em termos gerais, havia uma larga prática de uso de textos apócri-
fos como fundamento daquelas expectativas – não só em Portugal, mas em toda
a Europa.34 Os casos mais conhecidos talvez sejam o dos apócrifos em torno de
Daniel35, o das Sibilas, o de Esdras IV ou mesmo do joaquimismo em termos
mais amplos, que, segundo Marjorie Reeves e outros, surgiu menos dos tex-
tos do abade Joaquim de Fiore e mais das obras a ele atribuídas.36 Isso ocorreu,
por exemplo, na leitura de Joaquim de Fiore no Império Português. Até onde
se saiba, nos domínios da monarquia lusitana circularam nem tanto os textos
propriamente do Abade, mas sobretudo os textos do pseudo-Joaquim. D. João
de Castro, Sebastião de Paiva, Vieira entre outros, quando citaram, citavam os
textos joaquimitas (ou compilações deste) e não da própria lavra do Abade Joa-
quim, como o chamava João de Castro. Além dos textos do Pseudo-Joaquim, era
muito comum, entre os séculos XVI e XVIII, no Império Português, a circulação
de manuscritos e mesmo de alguns impressos que compilavam profecias fossem
acompanhadas de comentários ou não37 – a própria fonte em questão não foge
muito disso. Nesses cartapácios, arrolavam-se visões, sonhos e oráculos atribuí-
dos a Isidoro de Sevilha, a Rocacelsa (por sua vez um “apócrifo” ibérico do frade
joaquimita Rocquetaillade), a Metódio, às Sibilas e ao próprio “Abade Joaquim”.
Não havia uma preocupação filológica com esses textos, mesmo no sentido exis-
tente à época, desde por exemplo, a crítica de Valla à “Doação de Constantino”.38
É passível supor, num primeiro momento, que a autoridade viesse menos em re-
ferência à atribuição de autoria ou da verificação de sua autenticidade do que da
suposta verdade revelada como profecia, comprovada nos eventos interpretados,

33 LIMA, Luís Filipe Silvério, Império dos sonhos. Op. cit, cap. 5 e 7.

34 BESSELAAR, José Van Den. A profecia apocalíptica de Pseudo-Metódio. Luzo-Brazilian Review, XXVIII, 1, 1991, p. 5-22.

35 DITOMMASO, Lorenzo. The Book of Daniel and the Apocryphal Daniel Literature. Leiden: Brill, 2005.

36 REEVES, Marjorie. The Influence of Prophecy in the Later Middle Ages: a Study in Joachimism. Notre Dame: University of Notre Dame Press, 1993.

HAMILTON, Alastair. The Apocryphal Apocalypse: The Reception of the Second Book of Esdras (4 Ezra) from the Renaissance to the Enlightenment

(Oxford: Clarendon Press, 1999); DITOMMASO, Lorenzo. The book of Daniel and the apocryphal Daniel literature. Leiden: Brill, 2005.

37 BESSELAAR, José Van Den tem textos e notas sobre isso nos apêndices do volume Antonio Vieira, profecia e polêmica. Rio de Janeiro: EdUerj, 2003.

38 Sobre isso, ver: GRAFTON, Anthony. Forgers and Critics; GINZBURG, Carlo. Lorenzo Valla and the Donation of Constantine In: History, Rhetoric,

and Proof. Hanover, NH: UPNE, 1999, p. 56-8.

65
tautológica e teleologicamente, a partir delas mesmas.
Algo similar ocorria com a recepção de Esdras IV, que mesmo tendo sido
negado, novamente, como canônico em Trento, mas ao permitir sua leitura pela
tradição, era passível de ser aceito como profeticamente verdadeiro na argumen-
tação seiscentista e setecentista. Como pontua o próprio Vieira em uma carta
de 1679: “Assim parece que se tira de Esdras, cujos livros, posto que em alguma
parte sejam ou possam ser apócrifos, não tira que em muitas outras contenham
verdadeiras revelações e profecias”.39 Vieira já havia abordado a questão de modo
mais largo em sua “Representação” apresentada como defesa ao Santo Ofício:

Quanto mais que os livros apócrifos ou de incerta autori-


dade (que isso quer dizer apócrifos) nem por serem tais
deixam de poder ter muitas verdades, como é doutrina re-
cebida e praxi de todos os escritores que os alegam. E entre
todos os livros apócrifos, nenhuns há de tão grande autori-
dade, como os de Esdras: e como tais andaram sempre (ao
menos em muitas Bíblias) insertos com os outros do mes-
mo autor: e ainda depois do Concílio Tridentino não foram
lançados fora do corpo ou tomo da Bíblia; que é o maior
sinal de respeito e veneração que pode ser. E por isso são
os ditos livros alegados de muitos Padres, e a mesma Igreja
tomou deles vários lugares para o canto e rezo eclesiástico:
e o que é mais, S. João Evangelista no seu Apocalipse alude
aos mesmos livros, como nota Cornélio Alápide nos Co-
mentários do mesmo Apocalipse.40

A ver pelos trechos acima, Vieira não se furtava a utilizar textos apócrifos
quando se tratasse de questões proféticas e que revelassem (ou fomentassem) seu
projeto do Quinto Império.41 Mais do que isso, no trecho de sua “Representação”,
Vieira apontava um entendimento de apocrifia – aqui mais restrito à exegese bí-
blica – fundada na ideia de uma “incerta autoridade”, mais do que um problema

39 Carta a Duarte Ribeiro Macedo, 1o de maio de 1679, In: VIEIRA, Antônio. Obras completas. Lisboa: Círculo dos Leitores, 2013, Tomo I, vol. IV, p. 211.

40 VIEIRA, Antônio. Defesa perante o tribunal do Santo Ofício. Ed. Hêrnani Cidade. Salvador: Livraria Progresso Editora, 1957, v. 1, “Representação

Primeira”, § 200 (p. 123, § 201, na edição de Ana Paula Banza).

41 Ver: BESSELAAR, José Van den. Erudição, espírito crítico e acribia na História do futuro de Antônio Vieira. Alfa: revista de linguística, vol. 20/21,

1974/1975, pp. 47-57.

66
de atribuição de autoria. Nesse sentido, o uso de apocalipses e profecias apó-
crifas, como Esdras IV, estava autorizado não só por portarem “verdades”, mas
também pelo fato que outros autores autorizados os tinham utilizado – e, por
consequência, autorizavam sua citação e interpretação. No limite, há quase uma
correlação intricada entre ser autorizado e ter verdades. Na passagem, Esdras
pode trazer verdades pois isso foi mostrado pelos escritores que estabelecessem
a doutrina e a praxe, porém eles só o fizeram porque Esdras, de fato, trazia al-
guma verdade a ser interpretada. A autoridade/autoria do apocalipse apócrifo
vem duplamente de sua matéria, que o confirma como verdadeira profecia a
medida que se interpreta acertadamente a visão revelada pela matéria expos-
ta,42 e das interpretações anteriores que o autorizavam como texto autêntico e
válido na medida em que estabelecessem uma doutrina a ser citada e referen-
ciada pelas próximas interpretações. O interessante é que a profecia sendo uma
mensagem figural vinda de Deus partilharia da autoridade máxima, a do Autor
por excelência, e por isso seria fonte de autorização para as interpretações dos
eventos históricos (eles também figuras, pois efeitos da Criação); mas só poderia
ser assumida como autoritativa se fosse, por sua vez, autorizada pela auctoritas
de escritores humanos que a utilizaram anteriormente. Portanto, para arrolar e
interpretar profecias para confirmar (como autoridade) sua interpretação dos
tempos presentes e futuros era preciso autorizá-las, seja por meio de colocá-las
sob o nome de alguém previamente com autoridade ou mostrar que foram cita-
das por escritores com autoridade.
A estratégia de se valer de atribuir profecias a figuras autorizadas, entretanto,
ganha outros contornos para além da discussão da apocrifia de livros bíblicos.
Se para usar o considerado apócrifo Esdras IV era preciso se valer da “doutrina”
e “praxi” de escritores autorizados, a veiculação de visões sob nomes de pessoas
consideradas santas, por exemplo, emprestava da santidade o fundamento que
demonstrava a veracidade daquela previsão. Ou no caso das Sibilas, a Antiguidade
bem como a auctoritas retirada de poetas como Virgílio permitiam que fossem
lidas como um anúncio pagão no passado de um futuro cristão. De qualquer
modo, é interessante pensar o expediente comum de atribuição de profecias a

42 Esse é o argumento fundante e central nas “Esperanças de Portugal” para a veracidade das profecias de Bandarra, mero sapateiro e profeta, em

princípio, não-autorizado.

67
figuras autorizadas, até mesmo criando personagens, como no caso de Rocacelsa.
Uma outra hipótese – complementar a da autorictas – para essa recorrência
da apocrifia em textos de comentários proféticos, messiânicos e milenaristas
relaciona-se ao fato de que a profecia era algo restrito a poucos e controlada
pela Igreja, especialmente após o quarto concílio de Latrão, 1215, e sobretudo
após Trento.43 O milenarismo ou quiliastismo, por sua vez, estava interdito
desde Agostinho. Em suma, assumir a autoria de textos proféticos e milenaristas
poderia ser um complicador para a vida de qualquer um, e mesmo interpretá-
los, especialmente se propondo um reino mundano de felicidades, poderia ser
motivo para perseguição pela Igreja. Se pensarmos no próprio caso de Vieira, o
foi mesmo. Afinal, ele foi processado, ficando confinado pela Inquisição durante
quase seis anos sob a acusação, entre outras, de defender ideias milenaristas
de um reino de Cristo na Terra. Como, segundo a doutrina da Igreja, somente
pessoas autorizadas ou muito cristãs poderiam ter visões, era estratégia bastante
utilizada dizer que aquela profecia fora tida por um santo ou redigida por uma
pessoa santa. Por decorrência, colocar em um texto estas profecias supostamente
de santos atribuía-lhe também verossimilhança. A recorrência dessas profecias
em tratados tanto impressos como manuscritos aponta a eficácia do expediente,
utilizado numa lógica escolástica de acumulação de lugares de autoridade para
efeito de comprovação. A citação e a repetição de lugares servia como esteio
argumentativo e repertório a recorrer, especialmente no caso da circulação dos
manuscritos. O próprio projeto do Quinto Império vieirense precisa ser pensado
nessa perspectiva.

O “Discurso sobre a Esperança” e os textos vieirenses

Poucos são os impressos pentamonarquistas que saíram das prensas portu-


guesas no século XVII, em especial da lavra de Vieira. Até 1718, com a impressão
póstuma do incompleto “Livro Anteprimeiro da História do Futuro”, sob o título
de História do Futuro, o único impresso de Vieira que tratava diretamente do seu
projeto do Quinto Império era o volume Palavra de Deus Empenhada e Desem-

43 Ver, por exemplo: OROSCO Y COVARRUBIAS, Juan de. Tratado de la verdadera e falsa prophecia. Segovia: of. De Juan de La Costa, 1588.

68
penhada (1690)44, nomeadamente o sermão de “Ação de Graças pelo nascimento
do Príncipe D. João” e o “Discurso Apologético” que lhe seguia e justificava.
Também deve-se notar que o sermão de Ação de Graças era o único sermão no
qual o termo Quinto Império explicitamente aparecia identificando Portugal e
um príncipe de Bragança como cabeça dessa nova e última Monarquia Univer-
sal, ainda que a ideia da eleição da Monarquia Lusitana e referências aos cinco
reinos permeassem muitos outros sermões.
O sermão de Ação de Graças, pregado em Salvador em 1688, afirmava que
o recém-nascido príncipe seria o imperador do Reino de Cristo na Terra, lide-
rando o povo lusitano e cumprindo as promessas feitas em Ourique e em outras
tantas profecias. Entretanto, enquanto as notícias das festas pelo nascimento e da
pregação de Vieira iam de navio para Lisboa, voltavam também novas do reino
de que o infante havia morrido logo depois de seu nascimento. Vieira então se
empenhou em escrever um “Discurso apologético” para a rainha Maria Sofia
de Neuburgo explicando que Deus havia tirado o príncipe, seu primeiro filho,
da terra para que ele fosse imperador já nos Céus, ao mesmo tempo que lhe
reafirmava e assegurava a eleição e o destino de Portugal como Quinto Império,
com mais profecias e vaticínios, argumentos astrológicos e políticos, exemplos
históricos, e mesmo com exemplos dos maometanos, grande inimigo a ser der-
rotado pelo Último Monarca da Terra. O “Discurso apologético” teria sido so-
mente pensado para a rainha, mas, apesar de Vieira ter enviado ordens para que
só se publicassem os sermões, o confessor da rainha, o também jesuíta Leopoldo
Fuess, ao que parece o encaminhou para a prensa com as prédicas. A circulação e
a recepção daquele volume parecem ter causado menor repercussão na corte que
o esperado por Vieira, como demonstra em suas cartas, bem como parece ter
havido algumas censuras à sua matéria e proposição, em especial pelo sermão de
Ação de Graças e o “Discurso apologético”. Compararam-nos, com certa crítica,
às “Esperanças de Portugal” (1659), outra carta explicativa de consolação a uma
outra rainha, Luísa de Gusmão, então viúva e regente, também escrito, segundo
Vieira, somente para os olhos da sua monarca, e que, ao circular, fora peça prin-
cipal do processo inquisitorial contra o jesuíta. Além disso, Isabel Almeida suge-
re que foi nas décadas de 1680 e 1690, após um hiato no seu projeto do Quinto

44 VIEIRA. Antônio, Palavra de Deos empenhada, e desempenhada. Op. cit

69
Império com o desfecho (e condenação) do processo inquisitorial, e depois de
sua volta de Roma, que Vieira retomou seus escritos proféticos, em particular
a Clavis prophetarum. Isso teria ocorrido, em parte, pela pressão de vários de
seus interlocutores, ao que parece até mesmo a pedido da rainha Maria Sofia de
Neuburgo, para que finalizasse e imprimisse o seu “altíssimo palácio”, a Clavis. O
esforço de síntese do seu projeto do Quinto Império presente no sermão de Ação
de Graças e, depois, explicado no “Discurso Apologético”, seriam resultado tanto
dessas demandas quanto da retomada da Clavis.45
Esses detalhes da circulação e recepção do Palavra empenhada e desempe-
nhada interessam na medida em que mostram não só a preocupação do seu autor
na acolhida do seu texto (e nos resultados junto à corte), mas também os circui-
tos de propagação das ideias vieirenses. Primeiro há a recepção em si, relatada
na correspondência de Vieira do período. Segundo, há uma aproximação dos
impressos Sermão de Ação de Graças e “Discurso apologético” do manuscrito
“Esperanças de Portugal”, mostrando relações de leitura e sobreposição ao se
construir uma ideia do que seria o Quinto Império vieirense. Por fim, externa a
essa documentação epistolar, há uma outra camada de apropriação e recepção,
central para o presente capítulo e desenvolvida mais abaixo: partes significativas
do “Discurso apologético” foram copiadas e transmudadas, parodicamente, no
apócrifo “Discurso sobre as Esperanças”. Assim, se as datações de Besselaar e
Azevedo estão certas, e subscrevendo a hipótese de Isabel Almeida, o “Discurso
sobre as Esperanças” foi produzido exatamente na altura que havia uma circu-
lação intensa das ideias vieirenses do Quinto Império por meio das notícias da
Clavis, podendo, portanto, localizar sua composição também num contexto de
veiculação mais ampla das ideias pentamonarquistas vieirenses e de uma reto-
mada no debate sobre o destino profético de Portugal.46
Em grande medida, as interpretações de Vieira sobre o Quinto Império,
para além do “Sermão de Ação de Graças”, do “Discurso Apologético”, circula-
vam no séc. XVII (e mesmo no XVIII) por meio de cópias manuscritas, como as
várias versões da “Clavis Prophetarum” e de seus resumos, dos textos produzidos
como parte de sua “Defesa” no processo do Santo Ofício, da “História do Futu-

45 ALMEIDA, Isabel. O que dizem as ‘licenças’: ecos da fama da Clavis prophetarum. Românica, n. 18 (2009), p. 27-57.

46 Numa outra chave, focando nos sonhos proféticos, percebi essa retomada profética em Império dos sonhos, cap. 6.

70
ro” (de qual somente o Livro Anteprimeiro teria uma impressão, ainda que com
cortes e censuras), e da carta “Esperanças de Portugal”. Nesse sentido, a profusão
de cópias manuscritas de textos sebastianistas atribuídos a Vieira ganha rele-
vância, ao pensarmos a figura autoral (e de autoridade) em termos do discurso
profético. Na BNP, por exemplo, a “Defesa do Livro intitulado Quinto Império”
é o manuscrito com teor profético de Vieira com maior número de cópias (25),
seguido pelos onze testemunhos da “Esperanças de Portugal”. É significativo que
o terceiro texto com mais versões na BNP seja o apócrifo “Discurso em que se
prova a vinda de D. Sebastião”, com dez cópias47.

O Discurso e suas fontes

O texto é organizado da seguinte maneira. Há uma breve apresentação dos


motivos do discurso (provar que Sebastião estava ainda vivo e voltaria), afir-
mando que mostrará os fundamentos e razões para algo que acreditam tantos
(os sebastianistas) mas que tantos contrariam, depois se seguem os oito fun-
damentos ou razões que sustentariam a vinda de D. Sebastião, e por fim, arrola
(como peroração) os 12 sinais principais que provam que D. Sebastião voltará e
será o rei desse novo império português – que seria o Quinto e Último da terra.
Os oito fundamentos ou razões são: 1) “Razões e conjecturas”, que funciona so-
bretudo para justificar ou legitimar o argumento central da obra, ao afirmar que
é baseado em tudo o que se seguirá; 2) “Profecias e vaticínios”, uma compilação
comentada de visões e textos proféticos, entre elas, de Isidoro, Sibilas, Rocacelsa,
Frade Bento, Anchieta; 3) “revelações de santos, e pessoas de conhecida virtude”
no qual extrai episódios da vida de santos e religiosos, sobretudo; 4) “Prodígios”,
entre eles, o aparecimento no Juramento de Afonso Henriques; 5) “Prognósticos
dos mais insignes astrólogos”, em especial, o “nosso lusitano Bocarro”; 6) “Fé
dos históricos”, no qual se baseia em Ourique e na história das vitórias militares
dos reis portugueses contra os mouros e a intenção de retomar a terra santa,
como sendo figura do destino de Portugal como império; 7) “Juízo dos Políticos”,
baseado em Justo Lípsio e na ideia da inconstância dos reinos e a necessidade

47 PAIVA, José Pedro (Coord. Científica). Padre António Vieira, 1608-1697. Bibliografia. Lisboa: Biblioteca Nacional, 1999, pp. 21, 135-137, 183-185.

71
de se acabar com os Turcos para fundar um novo império – o último, portu-
guês; 8) “tradições dos mesmos maometanos”, no qual arrola notícias e visões
que circularam na Europa, indicando o declínio do império otomano; e no fim,
emenda, sem muita distinção para a peroração e a listagem dos doze sinais. Dos
oito fundamentos, o primeiro, o quinto, o sexto, o sétimo e o último, que enca-
minha para a conclusão, apresentam um texto argumentativo, sendo os outros
um arrolar de provas e excertos pertinentes a cada um dos fundamentos, por
vezes, mas nem sempre, entremeados por explicações. Os fundamentos dois, três
e quatro são assim constituídos basicamente por listagem de profecias, sinais,
prodígios, milagres etc., que circulavam desde, pelo menos, inícios do séc. XVII.
A estrutura em fundamentos listados um atrás do outro não era algo incomum
em textos sebastianistas e mesmo em outros apócrifos vieirianos. O documen-
to, com vários testemunhos, conhecido como “Discurso sobre a pessoa do Rei
prometido a Portugal, Ano de 1649” e atribuído a Vieira é estruturado em doze
“sinais”, seguidos por comprovações por meio de vaticínios, que demonstrariam
que D. Sebastião seria o rei encoberto esperado pelos portugueses48. A estrutura
é bastante similar à do “Discurso”, indicando um padrão desses textos.
Como dito, o “Discurso” estava inserido numa produção profética lusitana,
com debates sobre quem seria o verdadeiro Encoberto que lideraria Portugal
como cabeça da Quinta Monarquia. O próprio texto enuncia esse embate logo
nas primeiras linhas quando diz que:

Hé o asumpto desta obra e discurso huma prova, e huma


defensa, o provar a vinda de hum vivo reputado por morto
(…), e defender huma probabilidade reputada por ignorân-
cia (…), provar a vinda do Sereníssimo Rey Dom Sebastião
o qual se conserva vivo, apezar dos que o querem morto (...);
e defender o direito dos Sebastianistas, que sendo poucos, e
tidos em pouca conta, se izentão da conta dos muitos.49

48 Ver, entre outros: “Discurso Politico, que fez o P.e Antonio Vieira da Comp.a de Jesus soubre os vaticinios, e profecias do Rey D. Sebastiam encuberto,

e prometido a Portugal. Foi feito no ano de 1649”, BN-Rio, Manuscritos, I-12, 2, n. 2, p. 1-40 (anexo ao códice).

49 “Papel que fez o Padre Antonio Vieira sobre a esperança da vinda de el-Rey D. Sebastião”, BNP, COD. 125, f. 158r (grifos meus).

72
Para essa prova e defesa, é que foram elencados seus fundamentos e, nesse
esforço, são referidos alguns escritos que pertenciam ao debate, dos dois lados
da contenda, os sebastianistas, que criam na volta de Sebastião, e os brigantinos
ou “joanistas”, que apostavam o Desejado ser um dos Bragança. Entre esses auto-
res, os mais citados são: com três citações, Sebastião de Paiva, cujo “Tratado da
Quinta Monarquia” (c. 1650?)50 permaneceu manuscrito e fora composto como
defesa sebastianista contra os esforços restauracionistas em dizer que João IV
seria o verdadeiro “Encoberto”; com duas, Gregório de Almeida (pseudônimo
usado pelo jesuíta João de Vasconcelos), com o Restauração de Portugal Pro-
digiosa (1643)51, impresso como peça de “propaganda” do novo rei e prova dos
fundamentos proféticos e miraculosos da nova dinastia e da Restauração; tam-
bém com duas, o sebastianista João de Castro, citado somente nominalmente,
sem indicar suas obras; e por fim, com duas, Manuel Bocarro, autor do poema
pentamonarquista e hermético Anacephaleosis (1624)52 do qual o “Discurso”
transcreve várias estrofes. É interessante perceber que são autores que estavam
em campos opostos na disputa político-profética: brigantinos (Bocarro e Almei-
da/Vasconcelos), e sebastianistas (Castro e Paiva). Sebastião de Paiva, inclusive,
escreveu em parte seu tratado para rebater e refutar a Restauração de Portugal
Prodigiosa de Almeida e o esforço “joanista” de substituir o Encoberto. Embora o
“Discurso” cite textos dos dois lados do embate seiscentista sobre o “Encoberto”,
não há nele nenhuma consideração mais larga sobre isso, pelo contrário, usa dos
argumentos dos diversos autores independente de qual fosse sua posição origi-
nal. A defesa, que pressupõe um ataque aos sebastianistas, a minoria entre os
muitos que os tomam em pouca conta, não diferencia a posição das autoridades
que elenca, e as usa todas para sua prova. Procedimento, deve-se frisar, bastante
comum nas práticas discursivas da época.
Nos fundamentos dois, três e quatro, a estrutura do “Discurso” lembra o
“Tratado” de Paiva, e há passagens retiradas de lá e “fundamentos” citados de
segunda mão. Muito provavelmente inclusive as próprias referências a João
de Castro (usado abundantemente por Paiva) e mesmo Almeida/Vasconcelos
(contra quem Paiva compôs seu tratado) foram retiradas do “Tratado” de Paiva.
50 PAIVA, Sebastião de. Tratado da Quinta Monarquia. Lisboa: IN/CM, 2006.

51 ALMEIDA, Gregório de (pseud.) [João de Vasconcelos]. Restauração de Portugal prodigiosa, Em Lisboa: por Antonio Aluarez, 1643-1644, 2 v.

52 FRANCÊS, Manuel Bocarro. Anacephaleoses da monarchia luzitana. Em Lisboa : Por Antonio Aluarez, 1624.

73
Por exemplo, no quarto fundamento, dos “Prodígios”, o primeiro, o segundo e
o terceiro prodígio são uma paráfrase do capítulo XI (“Corrobora-se com o ju-
ramento d’el Rei Dom Afonso Henriques...”) de Paiva53, tanto na sequência de
prodígios, como na sua fundamentação dando os exemplos do Sebastião de Ve-
neza, retirados por Paiva provavelmente do Paraphrase et concordancia de algvas
propheçias de Bandarra de João de Castro54, do milagre da imagem de Afonso
Henriques em Alcobaça, citados por Paiva a partir do Restauração de Portugal
Prodigiosa, e de umas coplas de um frei Marcos de Guadalajara. O “Discurso”
narra o mesmo episódio do Sebastião de Veneza, cita o mesmo capítulo do Res-
tauração (o nono) e transcreve as coplas de Guadalajara, na mesma ordem e
com comentários quase idênticos aos do “Tratado”. Ou seja, o organizador do
“Discurso” não citou de primeira mão os textos de Castro e Almeida/Vasconce-
los, mas os referiu, usando-os como exemplos autorizados, a partir de Paiva, o
qual transcreve. A citação de segunda mão era expediente muito comum, como
mostrou Besselaar inclusive para o caso de Vieira,55 mas aqui vê-se uma colagem
de fontes por meio da cópia de um outro manuscrito sebastianista, este por sua
vez listado e explicitado, entretanto, como uma das autoridades citadas que em-
basariam seus fundamentos.
A grande fonte do papel apócrifo é, entretanto, o “Discurso apologético” do
Palavra empenhada e desempenhada. Do mesmo modo que os segundo, terceiro
e quarto argumentos remetem ao “Tratado da Quinta Monarquia” de Paiva, o
primeiro argumento, em alguma medida, lembra passagens tanto do “Sermão
de Ação de Graças” quanto do início do “Discurso apologético”. Mas mesmo no
Argumento Segundo temos trechos muito similares ao “Discurso apologético” e
a lista de vaticínios remete ao texto enviado à rainha. Por exemplo, o “Vaticínio
que S. Zacarias”, a profecia de Frei Bartolomeu Salutivo ou Salúcio, e o vaticínio
em latim de São Frei Gil Português aparecem juntos, com os mesmos trechos e
quase na mesma sequência no apócrifo e no “Discurso apologético”, com a di-
ferença que no último há uma explanação mais detalhada de seus significados.
A partir, contudo, do quinto argumento, o que há é praticamente uma cópia de
passagens integrais do “Discurso Apologético”. Ou seja, mais de metade do “Dis-
curso sobre a vinda de D. Sebastião” é uma paródia ou mesmo transcrição do
53 PAIVA, Sebastião de. Tratado da Quinta Monarquia. Lisboa: IN/CM, 2006, p. 306-314.

54 CASTRO, João de. Paraphrase et concordancia de algvas propheçias de Bandarra, çapateiro de Trancoso, por Dom Ioam de Castro (Fac-símile da edição

de 1603). Porto: Lopes da Silva, 1942.

55 BESSELAAR, José Van den. Erudição, Espírito crítico e acribia na História do futuro de Antônio Vieira. Op. cit

74
“Discurso Apologético”, obviamente eliminando passagens que apontavam um
Bragança como o Encoberto ou que referissem a 1640 como momento restaura-
dor anunciado em profecias.
Apesar de citar Castro, Paiva e mesmo Almeida, o manuscrito em questão
não menciona nem cita, de fato, em nenhum momento as Trovas de Bandarra,
fundamento tanto para os sebastianistas, quanto para os brigantinos, tanto para
Castro e Paiva, quanto para Almeida e Vieira, como apontando por Besselaar.
Aqui menos do que um sinal da falsa autoria, pode-se pensar ao contrário na
referência mais evidente ao texto vieirino, o “Discurso apologético”. Nele Vieira
não citou Bandarra, talvez por uma razão. As Trovas do sapateiro estavam proi-
bidas pela inquisição, de modo reforçado pelo edital de 1665, e o próprio Vieira,
a esta altura, fora processado por defendê-lo como “verdadeiro profeta”, na carta
“Esperanças de Portugal”. Assim, dificilmente um texto com referências a Ban-
darra sairia impresso sem cortes após passar pelas censuras da Inquisição, do
ordinário ou mesmo da própria ordem. Por exemplo, quando editada postuma-
mente a História do Futuro em 1718, as menções às Trovas e ao sapateiro foram
todas extirpadas do texto do “Livro anteprimeiro”.
A ausência de Bandarra, menos do que um sinal de que aquele
“sebastianismo” não era o de Vieira, como quis Besselaar, era sobretudo uma
evidência dos procedimentos intertextuais de composição do “Discurso”. Ou
seja, em vez de pensarmos em mera apocrifia, poderíamos pensar, em um
procedimento mimético que subverte, algo que ironicamente, o sentido inicial
do texto sem entretanto mexer profundamente na estrutura e na forma do texto.
A isso deveríamos somar os princípios da imitação e da emulação, que regiam as
práticas poético-retóricas da época56 bem como, desde os círculos humanistas,
as de tradução pelos quais o “imitador” e tradutor não fazia mera “cópia servil”
do que imitava mas reescrevia, atualizando, o que havia sido dito – partilhando
assim a autoria da obra “clássica” e “antiga”57. Obviamente, nos testemunhos
do “Discurso” não há identificado ou nomeado um “tradutor” ou “imitador”
que sobe aos ombros, pela atualização da obra, do autor para ver mais longe;
pelo contrário ele se esconde justamente na persona de um autor que contém

56 FERNANDES, Maria da Penha Campos. Uma edição apócrifa da História do futuro do Pe. Antônio Vieira? Notícia do manuscrito O Quinto Império,

na tradução de Francisco Sabino Vieira da obra anônima Le Cinquième Empire (La Haye, 1689). In: Anais do XXIII Congresso Internacional da Associa-

ção Brasileira de Professores de Literatura Portuguesa (ABRAPLIP). São Luís : Associação Brasileira de Professores de Literatura Portuguesa, 2011, p. 716.

57 SALTARELLI, Thiago. Imitação, emulação, modelos e glosas: o paradigma da mímesis na literatura dos séculos XVI, XVII e XVIII. Aletria, v. 19

(jul-dez 2009).

75
autoridade e não tenta se igualar a ele como nos casos de tradução e imitação
praticadas e celebradas pelas artes humanistas. Mas esse procedimento imitativo
é passível de ser suposto na composição dos testemunhos do “Discurso”. Tratava-
se de partilhar a autoridade de Vieira, que, neste caso, se mostrava emulada
também no seu texto.
A discussão sobre a propriedade ou não da autoria, entretanto, não estava
ausente de alguns testemunhos. Por um lado, era a própria atribuição a Vieira
que legitimava os escritos e retirava dele qualquer possível dúvida quanto à sua
pertinência e veracidade. Por exemplo, na dedicatória ao príncipe de uma cópia
que existe na John Carter Brown Library:

Senhor/ Ofereço a V. A este papel q a minha curiozidade


pode descubrir e por seu Autor digno de toda a ueneração
e uerdade pois [riscado] so elle soube dizer e emte aqui ni-
mguem com mais ventages q elle soube alcancar não neces-
sita de prova este meu pensamento por.q bem o justificaõ os
seus Escriptos e quanto estes não fossem tantos bastaria p.a
a incredulidade dos que duuidarem do Papel ver do mesmo
Autor a sua Historia do futuro e o seu Clavis Prophetarum p.a
abrirem os olhos quando menos affetos se mostrem de uer-
dade de tanta indiuiduação que seu Autor expoem apontan-
do os Autores que o mesmo papel trata e por emtender que
V.A. gostara detello me pus com toda a ponderação a copiallo
e com toda a verdade sem diminuição ou acressentamento
algum do Original onde o tirei nele achara V.A. recrejo p.a
o gosto noticia p.a a sciencia e exemplo para a virtude par-
tes taõ nesesarias como uteis pa hum Princepe taõ catholi-
co como V.A. he a quem Deos N Snr conserue a vida pelos
annos que elle pode co leaes subditos e criados de V.A. lhe
pedimos / Beija os Reaes pes de V. A. seu taõ humilde subdito
como fidelicimo criado / D. Jorge de Alm.da Menezes.58

O argumento de autoridade é o que justifica e legitima a matéria do papel


tida, a princípio, para “incredulidade”. E o faz duplamente: por ser digno de
58 “Tratado da Probabilidade da vinda do Obedientiçimo Filho da Igreja o Senhor Rej Dom Sebastião o 1 de Portugal Composto pelo insigne Hoste

alias Historiador do Futuro O Pe Antonio Vieira” (tit. alt.: “Papel que fes o Pe Antonio Vieira Princepe dos Oradores sobre a esperança em El Rey D.

Sebastião”). JCB Manuscripts, Codex Port 13.

76
“veneração e verdade” seu autor, Vieira, por conta de seus outros escritos, Clavis
e História do Futuro; e por esse próprio “Autor” expor seus argumentos baseado
em outros “Autores”. Para o Jorge de Almeida de Menezes, que assina a dedica-
tória, não haveria diferença de matéria entre as propostas da Clavis, da História
do Futuro e daquele manuscrito; pelo contrário, os primeiros corroborariam o
último, desfazendo qualquer incredulidade, não parecendo lhe fazer diferença
que, por exemplo, o História do Futuro fosse contrário aos sebastianistas e o
“Discurso” fosse inteiro sebastianista. O que importava era que havia um in-
teresse do “Principe taõ catholico” por esse tipo de texto e o fato de ser Viei-
ra transformava o manuscrito em digno de cópia e curiosidade. A dedicatória
também apresenta outro aspecto interessante a ser notado. O príncipe referido
possivelmente é o futuro rei D. José I, se o D. Jorge de Almeida de Meneses que
assinou a dedicatória for o cavaleiro da Ordem dos Hospitalários, membro da
corte, que publicara um poema heroico sobre D. João V e sua família em 173459.
O exemplar da JCB é incompleto, pulando vários dos fundamentos, talvez in-
dício que esse seja uma cópia posterior60 do manuscrito encomendado por esse
Jorge de Almeida de Meneses para ser oferecido ao príncipe. Se for esse o caso,
o “Discurso” foi presenteado, talvez lido pelo futuro rei e quem sabe fez parte
de sua biblioteca – o que aponta, para além da discussão sobre a autoria e ve-
racidade presentes na dedicatória, as possibilidades de circulação e leitura do
manuscrito, inclusive em ambientes cortesãos.
Por outro lado, deve se notar que a questão da atribuição a Vieira desses tex-
tos era já problematizada àquela altura. Por exemplo, num códice setecentista da
Torre do Tombo que integra uma versão em vários tomos manuscritos reunindo
a obra de Vieira, o “Discurso” pertence ao dos “Papeis duvidosos”, que trazem in-
clusive outros tantos manuscritos sebastianistas atribuídos a Vieira.61 Em um ou-

59 MENEZES, Jorge de Almeida de. Poema heroyco, a felicissima jornada, de elRey D. Joaõ V. nosso senhor, nas plausivens entregas das sempre augustas, e

serenissimas princezas do Brasil. Lisboa Occidental: Na officina da musica, 1734; SILVA, Innocencio Francisco da. Diccionario bibliographico portuguez.

Lisboa: Imprensa Nacional-Casa da Moeda, 1860, v. 4, p. 160; Catálogo dos folhetos da Coleção Barbosa Machado. Anais da Biblioteca Nacional. Rio

de Janeiro, vol. 92, 4 (1972), p. 226-227.

60 Há um outro texto curto (“Maria do Lado(?) fundadora da Religiao Revellada do Santissimo Sacramento do Louri[c ou v]al se achaõ muitas Reue-

lações a favor deste Reyno”) nos cadernos que indica a cópia ser posterior a 1750, pois provavelmente baseada em textos impressos em 1750 ou depois

(talvez o Historia da fundação do real convento do Louriçal de religiosas Capuchas escravas do Santissimo Sacramento, e vida da veneravel Maria do Lado,

Lisboa, 1750). Observação da ficha catalográfica da JCB.

61 ANTT, Manuscritos da Livraria, Códice 1172.

77
tro exemplo, mais tardio, num códice já do sec. XIX, no qual se copiaram tanto o
“Discurso” quanto uma resposta à carta “Esperanças de Portugal”, o compilador
diz que deixa para o leitor decidir qual é mesmo o de Vieira:

Adevertencia
N.B.
O Papel seguinte he tirado de hum mano escripto antigo de
donde foraõ taobem tirados os que ficaõ referidos.
O que se segue pelo seu titulo he escrevido pelo P. Anto-
nio Vieyra da Companhia, mas como he do mesmo autor
a que fica desde f. 1 ate f. 84 deste tomo, naõ sey que juizo
se deva fazer de hum e de outro. Fielmente copiei aquelle,
e fielmente copiarei este; e o amigo Leitor lhe dará o valor
que bem quizer.
De quantos tenho lido he o mais bem feito .
E no fim:
N.B.
Deste modo finda hum papel que o leitor naõ sabe a quem deva
atribuir; mas (torno a dizer) o leitor fará o juizo que quizer.62

O copista se escusa de atribuir a autoria, deixando o “juízo” para o leitor.


Implicitamente indica que aquilo que valoraria o manuscrito era o fato de ser
(ou não) de Vieira. Era ser de Vieira que aqui interessava, já entrado o séc. XIX,
menos, nesse testemunho, que sua matéria. Não sei aqui, por esse breve trecho,
podemos pensar que já houvera uma mudança no entendimento do que era au-
toria e de como era valorizada, mas vale notar a ênfase dada nesse aspecto.
Em um outro manuscrito, da primeira metade do século XVIII, ser de Viei-
ra também era marcado mas usando um dispositivo que lembrava ao leitor que
aquilo fora produzido pelo jesuíta. Em cada um dos fundamentos o copista intro-
duzia o tópico com “Segue agora o P.e Vieira a relatar” ou “a demonstrar...”, mar-
cando não só a autoria mas também a intertextualidade daquilo ser uma cópia
escrita de um original outro (falado ou escrito).63 Era um expediente recorrente
62 “Papel em que se prova a vinda do Rey D. Sebastiaõ pelo Padre Antonio Vieyra da Companhia de Jezus” In: DELGADO, Dulce Alexandra de Oliveira

Lopes. Transcrição e análise de uma colectânea sebastianista do século XIX. Mestrado em Estudos Portugueses Interdisciplinares, Dissertação orientada

pela Professora Doutora Maria José Ferro Tavares, Universidade Aberta, Lisboa – 2005, p. 107, 157.

63 “Papel do Pe. Antonio Vieira, sobre a Esperança em El Rey D. Sebastião” In: “Miscellaneas curiozas e interessantes em manuscritos”. Tomo 1º”, BNP,

78
em cópias de textos antigos, na qual esse caput servia de didascália e introdução à
matéria que antes fora falada, seguindo as regras da oratória. Talvez vejamos aqui
uma referência à atividade oratória de Vieira, conhecido também – e por vezes
sobretudo – pelos seus sermões, indicando assim que aquilo era uma cópia de um
discurso como se fora as anotações tomadas de um sermão proferido.64
Todas as versões têm pequenas variantes entre si, que, entretanto, não per-
mitiram neste momento identificar matrizes textuais ou pensar as possíveis ár-
vores. Isso interessaria não para buscar um Ur-text, que, no caso, é algo sem
sentido, e não só em termos da discussão filológica atual65, mas também e so-
bretudo porque não existe, neste caso, um original autoral, sendo mais signifi-
cativo pensar o processo de cópia, circulação, atribuição e recepção do texto e
dos usos da autoridade de Vieira. A única grande variante que encontrei de fato
foi entre a transcrição de Seabra & Antunes e os demais testemunhos. O Sétimo
Fundamento (“Do juízo dos políticos”) é sensivelmente mais longo na edição
oitocentista do que nos diversos manuscritos. Estes terminam com a frase “No
Oriente nasceu o primeiro Império e no Ocidente há de parar o último”, retirada
do “Discurso apologético” de Vieira e baseada, por sua vez, em Justo Lípsio. A
versão de Seabra & Antunes continua; entretanto, fá-lo reproduzindo o restante
dos argumentos de Vieira que estão no “Discurso Apologético”. Talvez o manus-
crito do jurista e bibliófilo António de Oliveira Cardoso, no qual os editores se
basearam fosse de outra cepa; nela o copista ou compilador, sabendo da relação
com o texto de Vieira, tenha complementado com passagens adicionais retiradas
do Palavra de Deus empenhada e desempenhada. O fato do título desse testemu-
nho ser diferente da maior parte dos outros pode ser um índice de pertencer a
outra variante. Entretanto, mesmo sendo lição destoante, além de criticada pelos
vieiristas, a edição de Seabra & Antunes, por ter sido impressa e ganhado, assim,
materialmente uma outra autoridade diferente da do Antigo Regime, estabele-
ceu o título e mesmo o texto (ainda que considerado posteriormente apócrifo).

Cod. 798, f. 222r.-252v.

64 Essa prática era muito comum no séc. XVII, inclusive para os sermões de Vieira. Os sermões “espanhóis” provavelmente serviram-se dessa cópias

manuscritas para sua edição. Para isso, ver: Margarida Vieira Mendes, A oratória barroca de Vieira.

65 Ver sobre a discussão filológica o 5o volume da edição do códice Asensio-Cunha dos poemas atribuídos a Gregório de Matos, organizada por João

Adolfo Hansen e Marcelo Moreira. HANSEN, João Adolfo; MOREIRA, Marcello. Para que todos entendais: poesia atribuída a Gregório de Matos e

Guerra: letrados, manuscritura, retórica, autoria, obra e público na Bahia dos séculos XVII e XVIII, volume 5. Belo Horizonte: Autêntica, 2013.

79
Olhar para o título mais recorrente, “Papel” ou “Discurso do Pe. Antonio
Vieira, sobre a Esperança em El Rey D. Sebastião”, pode, entretanto, apontar ou-
tro tipo de autorização e recepção da fonte. A presença do termo “esperança”
indica o que enunciou, por outras vias, o compilador oitocentista do “Discurso”:
a proximidade entre as “Esperanças de Portugal” e o “Papel/Discurso sobre as
esperanças” como estratégia de dar veracidade ao texto ser mesmo da lavra de
Vieira. Remeter às esperanças, ainda, deslocava a expectativa de João IV, objeto
da carta ao bispo do Japão, um rei falecido que ressuscitaria para cumprir seu
destino e o do reino, para Sebastião I, um rei desaparecido que retornaria para
cumprir, ao fim e ao cabo, os mesmos destinos. Essas estratégias de remissão a
obras conhecidas de Vieira, por meio de indicação nos títulos, apareceram tam-
bém em outros manuscritos apócrifos, como o “Diálogo português”, escrito su-
postamente em 1659, ano das “Esperanças de Portugal”,66 e o “Discurso que fes
o muito Reverendo Padre Antonio Vieira sobre a Pessoa do Rey prometido a
Portugal”, dito de 1649,67 início da redação da História do Futuro. Em suma, os
títulos serviam também como elementos para dar um tom verossímil, por ana-
logia, à autoria (e autoridade) de Vieira, ao mesmo tempo em que inseriam, por
remissão, o “Discurso” e os outros apócrifos numa produção mais ampla sobre
as esperanças proféticas.
De certa maneira, a inserção de muitos desses testemunhos em códices dedi-
cados a escritos tanto de Vieira quanto sebastianistas ou proféticos operava o mes-
mo efeito. Seis dos testemunhos compulsados estão em códices dedicados somente
a textos de Vieira68, dos quais alguns fazem parte de compilações maiores de escri-
tos vieirenses, em vários volumes. Cinco aparecem em compilações de profecias e
textos sebastinistas.69 Por fim, um, no IEB, aparece em um códice ligado a textos

66 “Dialogo Portuguez De Anonimo utupiense que trata da philozophia do Enconberto, dedicada, e oferecida ao Ex.mo Sno.r Conde de Castanhede

por seu verdadeiro Autor, o M. R. D. Mo. Antonio Vieyra da Companhia de Jesus, Pregador de sua Magestade, e Vezitador da Provincia do Brazil;

adicionado e notado por hum douto Anonimo seu amigo”. IEB, Coleção Lamego, AL-121.

67 “Discurso que fes o muito Reverendo Padre Antonio Vieira sobre a Pessoa do Rey prometido a Portugal Anno de 1649”, BNP, COD. 1458, f. 68r-85r

(outros testemunhos em COD. 127,COD. 400, COD. 775); “Discurso Politico, que fez o P.e Antonio Vieira da Comp.a de Jesus soubre os vaticinios, e

profecias do Rey D. Sebastiam encuberto, e prometido a Portugal. Foi feito no ano de 1649”, BN-Rio, Manuscritos, I-12, 2, n. 2, p. 1-40 (anexo ao códice)

68 Coleção Lamego, AL-135-002; Oliveira Lima Library, cod. 59, f. 126v-203; BNP, COD 557, f. 85r- 118v; BNP, COD. 10693, p. 74-134; BNP, COD.

2673, p. 323-481; Manuscritos da Livraria, Códice 1172, s.n.

69 BNP, COD 8616, f. 240-259r; BNP, COD. 125, f. 158r-216v.; BNP, COD. 128, f. 2r-59r; BNP, COD. 400, f. 245r-281r; Um manuscrito na BN-Rio

consta num códice de miscelâneas intitulado “Papeis vários. Tom. Quarto”, com diferentes letras, todas do séc. XVII, mas a encadernação é posterior.

80
produzidos contra a invasão francesa, mostrando a re-atualização do tema sebas-
tianista no início do séc. XIX. A organização desses volumes indicava de partida
um tipo de leitura e uma possível recepção dos manuscritos. Foram compilados,
seja pelo próprio copista ou por quem montou o volume, dentro de lógicas espe-
cíficas que direcionavam seu entendimento, seja como texto sebastianista e profé-
tico, ou como parte (mesmo que duvidosa) da obra de Vieira. Portanto, devemos
lê-los também em relação aos próprios códices nos quais circularam.

Autoria, apocrifia, códices manuscritos e gênero profético

Nesse sentido, a questão da atribuição de autoria pode levar ainda a uma ou-
tra reflexão. Hansen e Moreira têm proposto pensar que os códices manuscritos
compilados em torno do nome Gregório de Matos eram organizados não pelo
critério central de autoria, mas de gênero. Tudo que era lírica, e especialmente sá-
tira era classificado como Gregório e adicionado aos seus códices compilações de
poemas. Assim, ao ler um volume de Gregório haveria poemas que eram da lavra
dele ou não, mas todos pensados dentro uma classificação de gênero dada pelo
nome do poeta.70 Como já referido, essa prática era suficientemente comum no
Antigo Regime ibérico para Lope de Vega, em direção oposta, ter se preocupado
em imprimir suas comédias, porque se vira também levantando a sinônimo do
gênero “comédia”, isto é, muitas comédias circulavam sob seu nome.71
Pergunto se seria possível pensar algo similar para os textos “sebastianistas”
atribuídos a Vieira. Em fins do século XVII e até pelo menos fins do XVIII, textos
proféticos eram reunidos “genericamente” sob o nome de Vieira. Como se usar ou

Nele há várias documentos, cartas, poesias de diferentes autores, mas um pedaço considerável do códice é dedicado à Vieira, destacado no “Index”

presente nos primeiros fólios. Há duas partes com textos de Vieira. Uma primeira, dedicada somente a ele, mais política, com uma só letra, com cartas,

“papel politico” e um outro texto apócrifo, o “Discursos politicos ao Conde de Castelo-Melhor Luiz de Vas.cos & Souza: pello P.e Antonio Vieyra”, ff.

203-302v. A segunda, ao fim do códice, com outra letra, mais caprichada, na qual os textos seguem corridos, emendando um ao outro, sem intervalo

de páginas, dedicada a temas proféticos, trazendo textos do processo inquisitorial, bem como trechos das Trovas de Bandarra Juramento de Afonso

Henriques, entre outros. É ai que está o “Papel q. Fes o R.mo P.e An.to Vieiyra a favor dos q. esperão por El Rey D. Sebastião”, BN-Rio, Manuscritos,

I-13,2,6 n. 26, f. 432-521.

70 HANSEN, João Adolfo; MOREIRA, Marcello. Para que todos entendais: op. cit.; HANSEN, João Adolfo. Autoria, obra e público na poesia colonial

luso-brasileira atribuída a Gregório de Matos e Guerra. Ellipsis, 12 (2014), p. 91-117.

71 CHARTIER, Roger. Do palco à página. Op. cit

81
nomear um códice de Vieira dissesse sobre o gênero de especulação profético-po-
lítica72. Isso leva a pensar como estes textos proféticos, que circularam manuscri-
tos, propunham assimilações e modulações – não só de autoria/autoridade mas
de possibilidades de constituir gêneros com amplo espectro político. Não era só
emprestar a autoridade, mas também classificar a especulação profética.
Houve grande eficácia nessa construção, até as raias da ironia, visto que na
Dedução Cronológica-Analítica, Vieira era acusado de ser autor de várias “ma-
quinações” proféticas. Inclusive foi a ele imputada a autoria das Trovas de Ban-
darra,73 algo depois referendado e legitimado na proibição pela Real Mesa Cen-
sória em 1768 à sua “Carta Apologética ao padre Jacome Iquazafigo”, impressa
postumamente em 1756.74 O próprio termo “maquinações” usado na Dedução e
no Edital da Mesa Censória aparece no título de um dos códices nos quais está o
“Discurso sobre a Esperança”.75 Se pensarmos sob essa perspectiva, a atribuição
de autoria às Trovas e a qualquer profetismo “inverossímil” e “fabulozo” como
sendo do jesuíta talvez não seja exclusivamente fruto do anti-jesuítismo do con-
sulado pombalino, mas também reflita, em alguma medida, uma construção
póstuma da figura autoral e de autoridade de Vieira como nome máximo de um
gênero de produção profética que marcou as letras portuguesas do século XVII
a pelo menos meados do XVIII.
Findas as disputas seiscentistas entre sebastianistas e brigantinos em torno
de quem seria o verdadeiro Encoberto e qual a legitimidade profética da nova
dinastia, parecia verossímil ou eficaz recompilar, ajustar, parodiar os textos viei-
rianos em sebastianistas. Esse percurso talvez ajude também a pensar a ques-
tão das denominações que usamos para definir os grupos, movimentos e/ou
crenças proféticas do Império Português. Na historiografia, para se classificar
de modo supostamente preciso são empregados termos como “sebastianismo
72 Sobre os discursos especulativos, ver: MUHANA, Adma Fadul. Recursos retóricos na obra especulativa de Antônio Vieira. Dissertação de Mestrado

em Literatura Brasileira, Universidade de São Paulo, 1989.

73 SILVA, José Seabra da. Deducção Chronologica E Analytica: Na qual se manifestão pela successiva serie de cada hum dos Reynados da Monarquia

Portugueza, que decorrerão desde o governo do Senhor Rey D. João III até o presente, os horrorosos estragos, que a Companhia denominada de Jesus fez

em Portugal, e todos seus Dominiospor hum Plano, e Systema por ella inalteravelmente seguido desde que entrou neste Reyno, até que foi delle proscripta, e

expulsa pela justa, sabia, e providente Ley de 3 de setembro de 1759. Lisboa: Na officina de Miguel Manescal da Costa, 1768, Divisão IX, p.213-214, 222-5.

74 Edital da Real Mesa Censória de 10 de junho de 1768 in: Colleção das leys, decretos y alvarás, que comprehende o feliz reinado Del. Rey Fidelissimo D.

Jozé o I. Lisboa: Na Officina de Antônio Rodrigues Galhardo, 1770, t. II, p. 83-86.

75 “Maquinações de Antonio Vieira”, BNP, COD. 2673.

82
heterodoxo” e “ortodoxo”76, “joanismo”77, “messianismo brigantino”78 ou até um
“sebastianismo de Vieira” que não era sebastianista, retomando a classificação de
João Lúcio de Azevedo. Muitas vezes, essas denominações são cunhadas e uti-
lizadas sem saber ao certo o que nos dizem sobre as práticas profético-políticas
em suas próprias dinâmicas. Talvez menos do que uma precisão taxonômica, o
estudo dessas esperanças sebastianistas “de” Vieira, indique que mais que buscar
a positividade das definições valha prestar atenção na intertextualidade, no cará-
ter negativo das definições (sempre dadas por outros aos seus opositores) e nas
inversões irônicas presentes nos diversos documentos proféticos (sebastianistas
ou não) e, sobretudo, nos circuitos de produção, circulação e recepção deles.
Com isso talvez, consigamos traçar diversos debates, linhas e traços que mon-
taram algo central na cultura política e religiosa que a historiografia definiu, em
largo espectro, como sebastianismo.

76 BESSELAAR, José Van Den Sebastianismo – história sumária. Op. cit, p. 99; MARQUES, João Francisco. A parenética portuguesa e a Restauração.

Porto: INIC, 1989, v. 1, pass.

77 BASSELAAR, Besselaar, José Van Den. Sebastianismo – história sumária. Op. cit, p. 99; TORGAL, Luís R., Ideologia política e teoria do Estado na

Restauração. Op. cit

78 FRANÇA, Eduardo de Oliveira. Portugal na Época da Restauração. São Paulo: Hucitec, 1997, pte. 3, cap. 1; LIMA, Luís Filipe Silvério. Império dos

sonhos. Op. cit,

83
OS AGENTES DO SANTO OFICIO
PORTUGUÊS NA CORTE DOS HABSBURGO 1

Ana Isabel López-Salazar

Novas instituições, novos problemas no Portugal dos Filipes

Em 1581, nas Cortes de Tomar, marco inaugural do Portugal filipino, ficou


estabelecido o estatuto do novo reino no interior da Monarquia Hispânica e o
modo como seria governado. Assim, Portugal conservaria todas as suas institui-
ções e leis próprias e só os portugueses poderiam ser providos nos ofícios, cargos
e benefícios eclesiásticos. Para o governo do reino, criavam-se duas instituições
novas. Por um lado, estabelecia-se o Conselho de Portugal, que ficaria sempre
junto do monarca para despachar com ele todas as questões relativas aos novos
territórios recém-incorporados; por outro, aparecia a instituição do vice-reinado
ou conselho de governadores para representar o rei em Lisboa. Estes vice-reis ou
governadores deveriam ser portugueses ou membros da família real2.
O fato de manter a estrutura institucional do reino herdada do tempo dos
Avis e, ao mesmo tempo, criar o cargo de vice-rei (ou governador) e o Conselho
de Portugal acabou por gerar um problema de comunicação entre a Coroa e
uma das instituições mas relevantes do reino: o Santo Ofício. A integração de

1 Neste trabalho utilizamos a denominação dos reis da casa da Áustria mais habitual na historiografia (D. Filipe II, III e IV). Abreviaturas: AGS

(Archivo General de Simancas), AHN (Archivo Histórico Nacional – Madrid), ANTT (Arquivo Nacional da Torre do Tombo), BA (Biblioteca da

Ajuda – Lisboa), BL (British Library), BNP (Biblioteca Nacional de Portugal), CG (Conselho Geral), FG (Fundo Geral), IL (Inquisição de Lisboa), SP

(Secretarías Provinciales), TSO (Tribunal do Santo Ofício). Trabalho realizado no marco dos projetos: PTDC/HIS-HIS/118227/2010, HAR2012-37583

e HAR2014-52693-P. Agradecemos a Ana Fernandes o auxílio na revisão do texto em português.

2 Patente das merces, graças, e privilegios, de que elRei Dom Philippe nosso senhor fez merce a estes seus Regnos, Lisboa, António Ribeiro, 1583. Sobre a

agregação de Portugal à Monarquia Hispânica e as Cortes de Tomar, vid. BOUZA, Fernando. Portugal en la Monarquía Hispánica (1580-1640): Felipe II,

las cortes de Tomar y la génesis del Portugal católico. Madrid: Universidad Complutense, 1986, e Id. Portugal no tempo dos Filipes: Política, Cultura, Repre-

sentações (1580-1668). Lisboa: Cosmos, 2000. Sobre o Conselho de Portugal, vid. LUXÁN MELÉNDEZ, Santiago de. La revolución de 1640 en Portugal:

Sus fundamentos sociales y sus caracteres nacionales. El Consejo de Portugal: 1580-1640. Madrid: Universidad Complutense, 1988, e Id. Los funcionarios

del Consejo de Portugal: 1580-1640. Cuadernos de Investigación Histórica. Seminario Cisneros, v. 12, p. 197-228, 1989. Uma visão geral dos governadores

e vice-reis do período filipino em OLIVAL, Fernanda. Los virreyes y gobernadores de Lisboa (1583-1640): características generales. In: CARDIM, Pedro;

PALOS, Joan-Lluís (eds.). El mundo de los virreyes en las monarquías de España y Portugal. Madrid: Iberoamericana-Vervuert, 2012, p. 287-316.

85
Portugal na Monarquia Hispânica não alterou, em nenhum caso, a estrutura e o
funcionamento da Inquisição portuguesa, que manteve a sua jurisdição sobre os
territórios da Coroa de Portugal e que continuou a ser governada e integrada por
portugueses. No entanto, isto não impediu o surgimento de novos problemas
que perduraram durante toda a União Dinástica.
É conhecido o zelo e o cuidado com o qual a Inquisição portuguesa ten-
tou manter a sua total separação e independência relativamente ao Santo Ofício
espanhol. O medo da fusão das duas instituições era em grande medida infun-
dado, pois nunca houve uma proposta de anexação de um tribunal ao outro
que fosse realmente debatida na corte. No máximo, chegou-se – em certos mo-
mentos de tensão – a propor que o tribunal português seguisse o procedimento
judicial do espanhol, que alguns inquisidores espanhóis fossem nomeados para
os tribunais de distritos lusos ou que o visitador que fosse inspecionar o bom
funcionamento da Inquisição portuguesa fosse acompanhado de um ministro
da instituição espanhola. No entanto, nenhuma destas propostas teve sucesso,
sendo ainda menos provável a união dos dois tribunais ibéricos. Mas os inquisi-
dores portugueses sempre foram muito sensíveis a qualquer detalhe que pudesse
significar a sua subordinação ou dependência aos seus colegas espanhóis3.
A relação com o Santo Ofício espanhol não foi o único problema institu-
cional que a integração de Portugal na Monarquia Hispânica gerou à Inquisição
lusa. A partir de 1580, a Inquisição lusa não só teve de estabelecer novas relações
com a Coroa, agora na Casa de Habsburgo, mas também aprender a conviver
com as duas instituições criadas nesse momento: o vice-reinado e o Conselho de
Portugal. Agora a comunicação com a Coroa era mediada por estas novas insti-
tuições. E isto era uma situação completamente desconhecida para a Inquisição,
habituada, como estava, a ter como cabeça o cardeal D. Henrique, irmão e tio do
rei, regente do reino e rei ele próprio.
Independentemente de qual fosse o assunto ou problema que, em cada mo-
mento, motivasse a necessidade de comunicação entre a Inquisição e a Coroa,
o fato é que o objetivo do tribunal português foi sempre, ao longo dos sessenta
anos de União Ibérica, conseguir um aceso direto ao monarca, sem interme-

3 LÓPEZ-SALAZAR, Ana Isabel. Inquisición y política: El gobierno del Santo Oficio en el Portugal de los Austrias (1578-1653). Lisboa: CEHR-UCP,

2011, p. 348-352.

86
diários de nenhum tipo. Chegar ao rei para comunicar e despachar com ele
todas as questões relativas ao Santo Oficio sem a intervenção de nenhum outro
Conselho, ministro ou tribunal foi um objetivo e uma aspiração cada vez mais
forte à medida que passavam os anos. Parece-nos que esta pretensão, que mal
se consegue rastrear no tempo de D. Filipe II, foi cada vez mais forte até atingir
a sua máxima expressão na década de 1630, coincidindo com o governo do
conde-duque de Olivares e com o momento de máxima influência na corte dos
banqueiros cristãos-novos.
De fato, muitas eram as questões que motivavam essa necessidade de co-
municação entre o tribunal e o rei. Em primeiro lugar, a Inquisição precisava se
opor às pretensões dos cristãos-novos. São sobejamente conhecidas as constan-
tes petições destes à Coroa para que interviesse na instituição inquisitorial a fim
de modificar o seu procedimento judicial. Do mesmo modo, os cristãos-novos
periodicamente suplicavam outras graças como o perdão geral das culpas de
judaísmo ou, pelo menos, um édito de graça, a liberdade para sair do reino e a
isenção das confiscações pelo delito de judaísmo. A Inquisição necessitava con-
frontar estas pretensões e defender a justiça do seu procedimento e, para isso, era
necessário chegar ao monarca. Mas não só a questão dos cristãos-novos motiva-
va a necessidade de manter uma comunicação constante entre a Inquisição e a
Coroa. O inquisidor-geral devia consultar o rei sobre os nomes dos eclesiásticos
aos quais desejava promover para o cargo de deputado do Conselho Geral. E o
inquisidor-geral e o Conselho pediam constantemente mercês para o próprio
tribunal – quase sempre relativas às suas necessidades financeiras – e para os mi-
nistros e oficiais que o integravam. Aliás, os conflitos de jurisdição, competência
e preeminência entre o tribunal do Santo Ofício e outras instituições e poderes
motivavam, frequentemente, a necessidade de recorrer ao rei. Portanto, a cria-
ção de um canal de comunicação direta entre a Inquisição e a Coroa era uma
questão da máxima importância para o tribunal, cujo êxito nos conflitos com os
cristãos-novos, nas lutas com outros poderes e na procura de mercês dependia,
em grande medida, do acesso direto e sem mediadores ao monarca.
A aparição da figura do vice-rei (ou governadores) e do Conselho de Por-
tugal criou intermediários entre o tribunal e o rei, o que sempre significou um
incômodo para o Santo Ofício. O desagrado da Inquisição era especialmente

87
patente perante a intervenção do Conselho de Portugal nos assuntos que consi-
derava exclusivamente seus. E, no entanto, vice-reis e conselheiros intervieram
constantemente em questões relativas à Inquisição, à sua jurisdição – especial-
mente no caso dos delitos mixti fori –, aos seus ministros e oficiais, às suas fontes
de receitas e, inclusivamente em algum caso, às suas sentenças. Não nos vamos
deter nesta questão pois foi tratada em detalhe noutro lugar4. Sirvam uns exem-
plos como prova do dito.
Os monarcas da casa de Habsburgo serviram-se com frequência dos vice-
reis ou governadores para transmitir as suas ordens à Inquisição portuguesa. Em
1593, quando o cardeal Alberto, inquisidor-geral, se encontrava já em Madri, o
rei pediu à Inquisição uma relação de todas as suas receitas e despesas. O monar-
ca não escreveu diretamente ao Conselho Geral, mas transmitiu a ordem através
dos governadores de Lisboa. O Conselho não questionou esta via de comunica-
ção e entregou a dita relação da sua situação econômica aos representantes do
rei em Lisboa. Anos mais tarde, em 1601, foi o vice-rei D. Cristóvão de Moura o
encarregado de transmitir ao Conselho Geral as ordens reais. D. Filipe III tinha
determinado que ficasse suspendida a celebração dos autos-de-fé até que o novo
inquisidor-geral D. Jorge de Ataíde aceitasse o cargo e fosse residir em Lisboa.
O Conselho Geral, que se opôs à suspensão dos autos, não levantou questões ou
problemas pelo meio utilizado pelo monarca para transmitir as suas ordens à
Inquisição. Daremos um último exemplo, do reinado de D. Filipe IV. Em 1624,
através do governador D. Diogo de Castro, o monarca ordenou ao inquisidor
general D. Fernão Martins Mascarenhas que não nomeasse o bispo de São Tomé
para visitar as regiões de Angola e Cabo Verde, mas que o fizessem os bispos dos
próprios territórios ou que se recorresse a outra pessoa5.
Estes três exemplos – e poderíamos dar outros – demonstram que a Co-
roa se servia dos seus representantes em Lisboa, fossem estes vice-reis fossem
governadores, para transmitir as suas ordens à Inquisição em questões que ti-
nham a ver com o governo quotidiano. O interessante é que o Santo Ofício não
questionou esta via. Unicamente opôs-se – como aliás é lógico – à pretensão dos
4 LÓPEZ-SALAZAR, Ana Isabel. Inquisición y política. Op. cit, p. 190-194, 197-201.

5 ANTT, TSO, CG, liv. 130, fol. 19r-19v: Consulta do Conselho Geral ao arquiduque Alberto (1593, outubro, 29). ANTT, TSO, CG, liv. 88, fol. 1r [ordens

do governo]: Bilhete do Conselho Geral ao vice-rei (1601, dezembro, 20). ANTT, TSO, CG, liv. 88, fol. 42 [portarias]: Bilhete de D. Diogo de Castro ao

inquisidor-geral (1624, março, 11).

88
governadores de igualar o Conselho Geral aos outros tribunais e conselhos por-
tugueses. Esta aspiração dos vice-reis manifestou-se nas suas tentativas de que o
Conselho se apresentasse perante eles em forma de tribunal. No entanto, esta foi
uma questão que ficou quase totalmente resolvida a favor da Inquisição logo no
reinado de D. Filipe II.
Muitos mais receios tinha a Inquisição perante o fato do Conselho de Por-
tugal intervir nos seus assuntos. E, no entanto, o Conselho de Portugal tratou,
regularmente, as mais variadas questões que tinham a ver com a Inquisição:des-
de as pessoas competentes para desempenhar o cargo de inquisidor-geral até
as mercês que o rei poderia conceder aos ministros do Santo Ofício; desde o
modo de proceder com os hereges estrangeiros até o cumprimento das sentenças
inquisitoriais. Assim, por exemplo, o Conselho de Portugal analisou sempre as
pessoas que poderiam desempenhar o cargo de inquisidor-geral e também como
afastar dele D. Fernão Martins Mascarenhas quando se descobriram as suas fal-
tas. Estudou as petições da Inquisição para que todos os deputados do Conselho
Geral tivessem o título de desembargadores do Paço. Examinou a súplica de D.
Pedro de Castilho para que a Coroa anexasse o benefício de abade de Alcobaça
ao cargo de inquisidor-geral. Chegou, inclusivamente, a estudar se era conve-
niente, ou não, que se levantasse a um condenado pelo Santo Ofício a suspensão
de pregar que lhe tinha sido imposta por sentença inquisitorial6.
Finalmente, o Conselho de Estado da Monarquia Hispânica e diversas e
cada vez mais frequentes juntas, formadas por ministros portugueses e estran-
geiros, analisaram e trataram questões relativas à perseguição inquisitorial aos
cristãos-novos, ao procedimento inquisitorial e, até, à própria estrutura e funcio-
namento institucional do Santo Ofício português. Entre estas juntas, destacou-se
pela sua importância aquela que presidiu o confessor real frei António de Soto-
mayor no reinado de D. Filipe IV7.
Como o Santo Ofício assinalou muitas vezes, o fato de tantas instituições e
ministros tratarem os seus assuntos fazia com que se arriscasse o segredo, que

6 AGS, SP, Portugal, lib. 1481, fol. 51r-52r: Consulta do Conselho de Portugal (1611, fevereiro, 28).

7 A junta do padre confessor foi estudada por PULIDO SERRANO, Juan Ignacio. Fray Antonio de Sotomayor, OP: Su intermediación entre la Inquisi-

ción de Portugal y la de España en tiempos de Felipe IV. In: BERNAL PALACIOS, Arturo (Ed.). Praedicatores, inquisitores, II: La Orden Dominicana y

la Inquisicion en el mundo iberico e hispanoamericano. Roma: Istituto Storico Domenicano, 2006, p. 243-275.

89
“he o nervo da Inquisiçam”8. Na realidade, o tribunal sempre manteve uma in-
terpretação muito ampla do que era o segredo inquisitorial. Estava, em princípio,
reservado ao âmbito processual do tribunal, isto é, relacionado com as questões
exclusivamente de fé. Tinha a ver, é sabido, com omitir o nome das testemunhas
e das circunstâncias do delito ao réu. Deste princípio, o Santo Ofício foi amplian-
do o segredo a todas as questões que tinham a ver, não já com a perseguição da
heresia, mas com o seu governo e os seus ministros. Tudo relativo à Inquisição
deveria, segundo ela própria, manter-se em segredo. Evidentemente, era impos-
sível conservar o segredo se as questões que por ventura tocavam ao Santo Ofício
eram tratadas em outros Conselhos e por ministros alheios ao próprio tribunal.
O segundo pilar no qual se sustentava a Inquisição era a estima e honra dos
reis e do povo. E, é claro, esta honra só poderia manter-se se os assuntos inqui-
sitoriais fossem tratados, diretamente, entre o tribunal e a Coroa. O Conselho
Geral explicava-o assim a D. Filipe IV em 1628, após a conhecida carta de março
que estabelecia algumas mudanças no procedimento inquisitorial:

forão os Senhores Reys antecessores de Vossa Magestade


sempre servidos de as tratar [às Inquisições] com tanta esti-
mação que não querião que o que lhes tocava por leves que
fossem as couzas passasem por outros ministros9.

Portanto, temos já explanado o problema. Por um lado, havia uma Inqui-


sição que desejava tratar diretamente com o rei todas as questões – fossem do
teor que fossem – que tivessem a ver com ela. Por outro, encontrava-se uma Co-
roa que, agora situada em Madri, tinha criado instituições novas que obstruíam
– ou, pelo menos, mediavam – a comunicação entre o reino e o rei. O resultado
é óbvio: durante os sessenta anos da União Ibérica o Santo Ofício português
afanou-se em mostrar que os réis sempre tinham despachado diretamente com o
tribunal, sem intermediários, e procurou criar os mecanismos que permitissem

8 ANTT, TSO, CG, liv. 235, fol. 159r-159v: Provisão de D. Filipe IV (1632, novembro, 13).

9 ANTT, TSO, CG, maço 10, n. 21: Consulta do Conselho Geral a D. Filipe IV (1628, março, 31). Sobre a carta régia de março de 1628, vid. AZEVEDO,

João Lúcio de. História dos cristãos-novos portugueses. Lisboa: Clássica Editora, 1989 [1921], p. 187-188. PULIDO SERRANO, Juan Ignacio. Injurias a

Cristo: Religión, política y antijudaísmo en el siglo XVII. Madrid: Instituto Internacional de Estudios Sefardíes y Andalusíes – Universidad de Alcalá,

2002, p. 95-96.

90
manter este acesso privilegiado ao monarca no seio da Monarquia Hispânica.
Três foram os expedientes utilizados pela Inquisição para chegar diretamen-
te ao rei e contornar, na medida do possível, o incômodo Conselho de Portugal:
enviar ministros a Espanha para tratar questões pontuais e concretas, criar o car-
go de agente do tribunal na corte e, finalmente, integrar os validos e secretários
de Estado na própria instituição inquisitorial. Dado que a este último assunto já
foi dedicado um artigo, vamos centrar-nos nos dois primeiros meios e só no final
faremos uma breve síntese do terceiro10.

Os agentes do Santo Ofício português na corte

O problema da comunicação entre a Inquisição e a Coroa não se manifestou


com toda a sua complexidade até agosto de 1595, pois até essa altura residiu em
Madri o cardeal arquiduque Alberto, inquisidor-geral e presidente da chamada
Junta da Noite, organismo supremo criado por D. Filipe II para o ajudar no go-
verno da monarquia. Ora bem, nesse mês o arquiduque deixou a corte do Rei
Católico para ir para a Flandres, pois tinha sido nomeado governador e capitão
geral deste território. O governo da Inquisição não ficou desamparado, pois o
cardeal, que já tinha nomeado presidente do Conselho Geral o bispo de Elvas
em 1593, ampliou os poderes deste até o ponto de constituí-lo inquisidor-geral
de fato. Mais problemas viu o Conselho Geral na relação entre o Santo Ofício e a
Coroa. O Conselho representou logo a D. Filipe II a falta que causaria a ausência
do inquisidor-geral da corte, onde tratava com o rei as questões do tribunal. Ao
mesmo tempo, o Conselho pediu ao arquiduque que nomeasse uma pessoa para
despachar com o rei da parte do Santo Ofício em Madri. Embora o cardeal par-
tisse para os Países Baixos sem nomear ninguém para esta função, esta proposta
do Conselho Geral parece sumamente interessante pois é a primeira vez que o
Santo Ofício pensou em nomear uma pessoa ou agente para tratar com o rei em
seu nome na corte de Madri11.
10 Sobre as comissões dos inquisidores-gerais aos validos e a nomeação dos secretários do Conselho de Portugal como secretários da Inquisição, vid.

LÓPEZ-SALAZAR, Ana Isabel. Between the Inquisition and the King: the Favorites and the Secretaries of State (1580-1736). e-Journal of Portuguese

History, vol. 13-1, p. 1-39, 2015.

11 O Conselho Geral referia “a grande falta que nos ha de fazer a sua assitencia [do arquiduque]: porque ainda que o nam tinhamos presente stavão

91
Até o início do século XVII, o Santo Ofício não se sentiu obrigado a enviar à
corte um dos seus ministros para defender os seus interesses. Isso é assim porque,
embora as pressões dos cristãos-novos para conseguir um perdão geral das cul-
pas de judaísmo tivessem começado já no reinado de D. Filipe II, foi apenas em
1601 que D. Filipe III escreveu para Roma para solicitar um breve de absolvição
geral. O primeiro inquisidor que viajou para Espanha com o intuito de repre-
sentar à Inquisição portuguesa foi Bartolomeu da Fonseca. Este, deputado do
Conselho Geral, mudou-se em março de 1602 para Valhadolid, onde estava o rei,
para se opor à concessão do perdão geral. Desde esse momento até 1640, passa-
ram pela corte, para tratar e defender os negócios do Santo Ofício, um agente ad
hoc, três deputados dos tribunais distritais, três inquisidores, quatro deputados
do Conselho Geral e até um inquisidor-geral. Deles, só um, Gonçalo Carreiro,
teve a nomeação oficial de agente da Inquisição portuguesa na corte. Os outros
foram enviados com comissões específicas dos inquisidores-gerais ou do Conse-
lho. Evidentemente, os deputados do Conselho Geral foram a Castela para tratar
as questões mais importantes, isto é, as que tinham a ver com as petições dos
cristãos-novos, com o procedimento inquisitorial e com a reforma do tribunal.
A criação de uma agência permanente da Inquisição na corte foi idéia do
inquisidor-geral D. Pedro de Castilho. Lembremos que este tinha sido nomeado
para gerir o Santo Ofício em finais de 1603 num momento especialmente com-
plicado para a instituição devido à questão do perdão geral. Quando se soube
da sua eleição para o cargo, Castilho mudou-se para a corte em Valhadolid,
onde já estava o deputado Bartolomeu da Fonseca. Lá participou em duas jun-
tas reunidas para debater a possível reforma do Santo Ofício. Enquanto estava
em Valhadolid, recebeu o breve de perdão geral concedido por Clemente VIII
aos cristãos-novos em agosto de 1604 e em finais desse ano voltou para Lisboa
para executá-lo. Ao que parece, também Bartolomeu da Fonseca regressou a
Portugal. Portanto, não ficou ninguém na corte para tratar e defender os negó-
cios do Santo Ofício.
Não parece estranho que, pouco depois de chegar a Lisboa, D. Pedro

elle sempre nas cousas do Sancto Officio pera as apresentar a Vossa Magestade e pedirlhe as favorecesse e fizesse merces aos ministros delle o que dava

animo a todos para continuarmos com as obrigações de nossos carregos e as cumprirmos com satisfação divida”. ANTT, TSO, CG, liv. 92, fol. 61v-62r:

Carta do Conselho Geral a D. Filipe II (1595, agosto, 26). Cf. ANTT, TSO, CG, liv. 129, fol. 221r-222v: Consulta do Conselho Geral ao arquiduque

Alberto (1595, agosto, 5).

92
de Castilho decidisse nomear uma pessoa para encarregar-se dos negócios
da Inquisição que tinham ficado sem resolução durante a sua estadia em
Valhadolid. O escolhido foi o licenciado Gonçalo Carreiro, cônego na sé de
Coimbra. Em fevereiro de 1605, o inquisidor-geral nomeou-o “agente das cousas
tocantes ao Santo Officio da Inquisição deste Reino em a Corte” e atribuiu-lhe
um ordenado de 120.000 réis anuais. Esta nomeação é realmente excepcional na
história institucional do Santo Ofício português e, tanto quanto se sabe, não se
voltou a repetir. Gonçalo Carreiro não era membro do Santo Ofício, fato que o
distingue dos outros deputados ou inquisidores que, durante a União Dinástica,
foram para Madri para defender os interesses da Inquisição. Um mês antes
de receber a provisão do inquisidor-geral, o próprio secretário do Conselho
escrevia aos inquisidores de Évora para que fizessem a habilitação de Carreiro.
Se este foi escolhido por Castilho para desempenhar uma tarefa tão complicada
como a de defender a Inquisição foi, sem dúvida, porque o inquisidor-geral
confiava na capacidade dele apesar de não ter ocupado previamente nenhum
cargo inquisitorial. Talvez se tenham conhecido em Coimbra ou Lisboa, mas
não dispomos de dados que corroborem esta hipótese. Além disso, ao invés
dos outros enviados pela Inquisição, Carreiro recebeu uma instrução escrita
do inquisidor-geral na qual se detalhavam os assuntos que deveria tratar em
Valhadolid e as pessoas com as quais tinha de despachá-los. Entre essas questões
encontrava-se a defesa dos privilégios da instituição, das rendas do tribunal
e do procedimento inquisitorial frente aos que criticavam a prova de delito
baseada em testemunhos singulares. O inquisidor escreveu também cartas de
recomendação aos conselheiros de Portugal, ao secretário Fernão de Matos e a
D. Pedro Franqueza, um dos mais próximos colaboradores do duque de Lerma,
o ministro-favorito (valido) de D. Filipe III entre 1598 e 161812.
O fato do inquisidor-geral nomear um agente para despachar com o mo-
narca demonstra que desejava ter uma comunicação direta com a Coroa, pois
poucos meses depois o próprio Castilho pedia ao rei “nam passarem as cousas
da Inquisição por maos de pessoas que nam seiam ministros della ou escolhidos

12 ANTT, TSO, CG, liv. 368, fol. 104r: Registo do secretário do Conselho Geral (1605, janeiro, 19). ANTT, TSO, IL, liv. 104, fol. 101v: Provisão de agente

(1605, fevereiro, 6). ANTT, TSO, IL, liv. 128, fol. 76r-76v: Provisão de ordenado (1605, fevereiro, 6). ANTT, TSO, CG, liv. 92, fol. 132r-132v: Instrução.

ANTT, TSO, CG, liv. 92, fol. 130r-131r: Cartas de D. Pedro de Castilho a D. Juan de Borja, o conde de Vilanova, D. Pedro Franqueza, Pedrálvares Pereira

e Fernão de Matos, (1605, fevereiro, 8).

93
para isso particularmente por Vossa Magaestade”13. Por outro lado, se Castilho
pediu aos membros do Conselho de Portugal e a Fernão de Matos, secretário do
mesmo Conselho, que ajudassem Carreiro foi porque sabia que, na realidade,
as questões do Santo Ofício passavam por essa instituição. O inquisidor-geral
escreveu também ao secretário de Estado Franqueza para garantir o apoio de
um dos pilares mais importantes do regime de Lerma. No fundo, Castilho atuava
como fez sempre: com grande pragmatismo.
Como veremos mais adiante, as súplicas do inquisidor-geral tiveram suces-
so e, em abril de 1608, D. Filipe III reservou para si todas as questões relativas ao
Santo Ofício das quais Castilho dar-lhe-ia conta através do duque de Lerma. As
cartas do inquisidor-geral para o rei e para o valido seriam enviadas a Fernão de
Matos que, em abril de 1611, recebeu o cargo de secretário do Santo Ofício em
Madrid14. Evidentemente, esta transformação institucional debilitou o papel de
Carreiro. Tudo parece indicar que o principal interessado no regresso do agente
a Portugal era o próprio Matos que até propôs que aquele fosse nomeado admi-
nistrador da jurisdição eclesiástica de Tomar. Provavelmente, o novo secretário
desejava converter-se no único elo de comunicação entre o inquisidor-geral e o
valido e reforçar, assim, a sua posição. Embora num primeiro momento Castilho
tenha decidido manter o seu agente na corte, poucos meses depois de ter nomea-
do secretário Fernão de Matos, prescindiu de Carreiro15.
Na realidade, o papel do agente do Santo Ofício nunca tinha sido relevante.
D. Pedro de Castilho sempre tinha tratado com o secretário de Estado D. Pedro
Franqueza, até a sua detenção em janeiro de 1607, e com o secretário do Con-
selho de Portugal Fernão de Matos, antes ainda de ser nomeado secretário do
Santo Ofício16. Carreiro poderia ser útil para o envio de documentos, mas não
era uma pessoa com a relevância política e social suficiente para negociar com
os ministros da monarquia, com o valido ou, ainda menos, com o próprio rei.
Talvez o relativo fracasso do cargo de agente e a mais promissora integração do

13 ANTT, TSO, CG, liv. 92, fol. 133r: Carta de D. Pedro de Castilho a D. Filipe III (1605, setembro, 19).

14 LÓPEZ-SALAZAR, Ana Isabel. Between the Inquisition and the King. Op. cit, p. 19-20.

15 BA, cód. 51-VIII-13, fol. 89r-92v: Carta de Fernão de Matos a Castilho (1611, maio, 4). Em fevereiro de 1612, Castilho concedia 200 cruzados (80.000

réis) de mercê a Carreiro para pagar a viagem de volta para Lisboa. ANTT, TSO, IL, maço 6, n. 11: Provisão (1612, fevereiro, 14).

16 LÓPEZ-SALAZAR, Ana Isabel. Between the Inquisition and the King. Op. cit, p. 17-18. Lembremos que Pedro Franqueza, um dos mais estreitos

colaboradores do duque de Lerma e membro da chamda Junta del Desempeño, foi detido em janeiro de 1607, acusado de corrupção.

94
valido e do secretário no aparelho do Santo Ofício fez com que Castilho decidis-
se prescindir do cargo. Depois, nenhum inquisidor-geral quis recuperá-lo.
No entanto, a comissão de D. Pedro de Castilho para o duque de Lerma tra-
tar com o rei em seu nome não evitou que acabasse por ser necessário o envio à
corte de ministros do Santo Ofício quando era preciso defender os interesses do
tribunal. Lembremos que este tinha sido o meio empregado pela Inquisição no
início do século XVII, quando mandou para Valhadolid o deputado do Conse-
lho Bartolomeu da Fonseca. Talvez não seja uma casualidade que o estatuto des-
tes ministros fosse aumentando com a passagem do tempo. Se entre 1614 e 1623
foram enviados deputados dos tribunais de distrito e inquisidores, a partir desse
momento recorreu-se a deputados do próprio Conselho Geral. Provavelmente
esta mudança tinha a ver com o maior perigo – real ou não – que a Inquisição
percebeu que poderia existir devido aos debates que tiveram lugar durante o
reinado de D. Filipe IV.
Entre 1614 e 1623, passaram por Madrid para defender o Santo Ofício Gas-
par Borges de Azevedo, D. Fernando de Castro, Sebastião de Matos de Noronha,
Marcos Teixeira, Simão Barreto de Meneses e Diogo Osório de Castro. Todos
eram deputados dos tribunais distritais ou inquisidores e não receberam a no-
meação de agente que tinha tido Gonçalo Carreiro. Nenhum deles, aliás, teve
de enfrentar um problema especialmente grave que ameaçasse a independência
do tribunal, o seu funcionamento ou o seu procedimento. Quando estes peri-
gos surgiram, já no reinado do último Filipe, o tribunal recorreu a ministros de
maior prestigio para lutar contra as ameaças.
Um dos assuntos que mais controvérsia gerou durante boa parte da existência
do Santo Ofício foi o das confiscações pelos crimes de heresia. Durante o
período filipino, apareceu repetidamente a idéia de retirar à Inquisição a gestão
destes bens ou, pelo menos, a possibilidade de que a Coroa interviesse mais
diretamente nela. Como é lógico, os inquisidores-gerais reagiram sempre contra
estas novidades, alegando a falta de recursos do tribunal e o desprestígio que lhes
traria qualquer alteração na gestão dos bens confiscados. Em 1614, ressurgiu
esta questão, que já tinha sido colocada anteriormente e que voltaria a aparecer
mais tarde. Em maio desse ano, D. Filipe III dispôs que o dinheiro procedente
das confiscações, uma vez pagos os ordenados dos ministros e oficiais, ficasse

95
para a fazenda real. Em agosto, o monarca ordenou que parassem as obras nos
tribunais de Évora e Coimbra que o inquisidor-geral tinha começado. O rei
decidiu que o dinheiro das confiscações se destinasse à compra de juro para o
Santo Ofício, de modo que pudesse reduzir-se a quantia que entregava a Coroa
anualmente ao tribunal para pagamento de ordenados. Embora Fernão de Matos
sugerisse a Castilho que encarregasse Gonçalo Carreiro, ainda em Madri, da
defesa dos interesses do Santo Ofício, o inquisidor-geral não devia ter ficado
muito satisfeito com o trabalho de Carreiro pois preferiu enviar outra pessoa. O
escolhido foi Gaspar Borges de Azevedo, deputado da Inquisição de Coimbra,
que permaneceu em Madrid desde setembro de 1614 até junho de 161617. Fosse
pelos seus bons ofícios, pelo prestígio do inquisidor-geral Castilho ou pela
natural relutância da Coroa a implementar novidades, o fato é que D. Filipe III
não introduziu modificações na administração dos bens confiscados.
Em agosto de 1617, apenas um ano após o regresso de Gaspar Borges de
Azevedo a Portugal, o novo inquisidor-geral D. Fernão Martins Mascarenhas
decidiu enviar para a corte D. Fernando de Castro, deputado do tribunal de Évo-
ra. Desconhecemos que assuntos foi tratar e o tempo que lá esteve, pois as es-
cassas referências a esta viagem surgem da correspondência entre o deputado e
o cabido de Évora, no qual era cônego18. Dois anos depois, em janeiro de 1619,
Sebastião de Matos de Noronha, inquisidor de Coimbra, foi para Madri para
explicar ao monarca as causas do seu conflito com a Relação do Porto. Enquanto
realizava a visita do distrito, Matos de Noronha teve um confronto com o go-
vernador da Relação e dele resultou a prisão de alguns ministros e oficiais desse
tribunal régio19. Não se sabe quanto tempo esteve o inquisidor na corte, mas pro-
vavelmente não foi muito pois em abril D. Filipe III partia para Portugal. Quan-

17 BA, cód. 51-VIII-6, n. 726: Carta de D. Filipe III a D. Pedro de Castilho (1614, maio, 21). BA, cód. 51-VIII-13, fol. 70r-71v: Carta de Fernão de Matos

a D. Pedro de Castilho (1614, junho, 18). ANTT, TSO, CG, liv. 88, fol. 21 [portarias]: Carta de D. Filipe III a D. Pedro de Castilho (1614, agosto, 27). BA,

cód. 51-VIII-17, fol. 135r: Carta de D. Pedro de Castilho a D. Filipe III (1614, outubro, 1).

18 Arquivo do Cabido da Sé de Évora, CD, VI, n.º 10: Carta de D. Fernando de Castro ao cabido de Évora (1617, agosto, 2). Ibidem, nº 12: Carta de D.

Fernando de Castro ao cabido de Évora (1619, novembro, 26). No dia 27 de julho de 1619, o inquisidor-geral fez mercê a D. Fernando de Castro de

80.000 réis pelo trabalho que tinha tido na corte “quando nella esteve em algus negocios do Santo Officio que lhe forão encarregados”. Como vê-se, nem

sequer na provisão da mercê o inquisidor-geral especificou quais foram os tais negócios. ANTT, TSO, IL, liv. 87, fol. 173v.

19 Sobre o confronto entre o inquisidor e Diogo Lopes de Sousa, governador da Relação do Porto, vid. MEA, Elvira Cunha de Azevedo. Conflito de

poderes a propósito da visita inquisitorial ao Porto em 1618. In: III Jornadas de Estudo Norte de Portugal – Aquitânia. Actas. Porto: Universidade do

Porto, 1996, p. 345-355. Cf. LÓPEZ-SALAZAR, Ana Isabel. Inquisición y política. Op. cit, p. 259-264.

96
do Matos de Noronha regressou a Lisboa, Marcos Teixeira ficou encarregado
das questões do Santo Ofício em Madri. Este, que era inquisidor do tribunal de
Évora, tinha ido para lá no fim de 1618 para tratar alguns assuntos respeitantes
à sua nomeação para o bispado de Brasil. Ao que parece, no entanto, o inquisi-
dor-geral D. Fernão Martins Mascarenhas encarregou-o também dos do Santo
Ofício o que lhe permitiu usufruir de ajudas de custa do tribunal.
O início do reinado de D. Filipe IV foi marcado por novos boatos de con-
cessão de um perdão geral e outras graças aos cristãos-novos. Em julho de 1621,
o novo monarca ordenou que se suspendesse a celebração dos autos-de-fé. O
inquisidor-geral D. Fernão Martins Mascarenhas enviou à corte Simão Barreto
de Meneses, inquisidor do tribunal de Coimbra, para tentar que o rei revogasse
essa disposição. Também encarregou de defender o Santo Ofício D. Francisco
de Bragança, antigo deputado do Conselho Geral e membro, nesse momento,
do Conselho de Portugal. Por esse trabalho, Mascarenhas concedeu-lhe 300.000
réis em maio de 1621 e outros 200.000 em novembro desse ano20. Barreto de Me-
neses morreu em Madri e, em 1622, Martins Mascarenhas teve de enviar para lá
Diogo Osório de Castro, então deputado do tribunal de Lisboa. Precisamente, a
estadia deste na corte foi criticada num memorial anônimo que censurava o dis-
pêndio destas viagens e a sua inutilidade, pois D. Francisco de Bragança tinha ao
seu cargo as questões da Inquisição. Se acreditarmos nesse memorial – bastante
malévolo e tendencioso – em finais de 1622 estavam em Madri três ou quatro
deputados do tribunal português21.
Pelo dito resulta que, desde a supressão do cargo de agente na corte, em
1612, até 1623, os inquisidores-gerais enviaram para Madri diferentes ministros
– inquisidores ou deputados dos tribunais distritais – para tratar questões muito
específicas como a defesa da administração dos bens confiscados pelo inquisi-
dor-geral, a justificação do procedimento inquisitorial contra as justiças secu-
lares e a necessidade de celebrar os autos-de-fé. Ora bem, no início do reinado
de D. Filipe IV não se tratava já de defender a autoridade do Santo Ofício numa
parcela concreta da sua atividade, mas de afrontar as duras críticas dos cristãos-
-novos que tinham encontrado ouvidos favoráveis na corte.

20 ANTT, TSO, IL, liv. 87, fol. 165v e 174r.

21 Só temos conseguido identificar a Diogo Osório de Castro. Desconhecemos quais seriam os outros dois ou três deputados da Inquisição que estariam

nesse momento em Madri. BL, Egerton, ms. 1134, fol. 169r e 171r-172r: Memorial anónimo e parecer de frei António de Sotomayor (1622, dezembro, 3).

97
De fato, o ano de 1623 foi especialmente complicado para o Santo Ofício.
Em novembro de 1622, uma junta, presidida pelo confessor real frei António de
Sotomayor, analisou as propostas apresentadas pelos cristãos-novos. Em 1623,
as questões respeitantes ao Santo Ofício português foram estudadas por outra
junta encabeçada pelo presidente do Conselho de Castela e da qual formavam
parte, normalmente, D. Andrés Pacheco, inquisidor-geral de Espanha, frei An-
tónio de Sotomayore os portugueses D. Francisco de Bragança e Mendo da Mota
de Valadares, do Conselho de Portugal. Em julho, a junta propôs ao monarca
que o inquisidor-geral português encarregasse um bispo da tarefa de visitar o
tribunal e rever alguns processos com a ajuda de um inquisidor espanhol. Em
agosto, a junta sugeriu os nomes de D. Afonso Furtado de Mendonça, arcebispo
de Braga, e de D. Martín Carrillo, inquisidor de Valhadolid, para desempenhar
esta tarefa22. Também em agosto, D. Filipe IV encarregou à junta de estudar o
sistema de eleição dos deputados do Conselho Geral. Como se sabe, em Por-
tugal, o inquisidor-geral nomeava um eclesiástico para cada cargo de deputado
do Conselho que estivesse vago e o rei limitava-se a confirmar esta eleição. Em
Espanha, pelo contrário, os inquisidores-gerais apresentavam um trio aos mo-
narcas para estes poderem escolher a pessoa que queriam nomear para o Con-
selho da Suprema. A junta de 1623 aconselhou a D. Filipe IV que ordenasse ao
inquisidor-geral a apresentação de três pessoas para cada lugar de deputado do
Conselho que ficasse vago23. Finalmente, em maio de 1624, o rei encarregou os
dois inquisidores-gerais da elaboração de uma nova concórdia entre os tribunais
ibéricos, o que gerou algumas dúvidas em Portugal devido à confusão entre os
termos “denúncia” e “acusação” que aparecia na carta do monarca24.
Para enfrentar todas estas novidades, D. Fernão Martins Mascarenhas achou
conveniente enviar a Madrid um ministro de maior prestígio e autoridade que
os anteriores. Escolheu, para isso, Sebastião de Matos de Noronha, já deputado
do Conselho Geral que tinha experiência prévia na corte. Matos de Noronha

22 AHN, Estado, lib. 728, n. 11: Consulta da junta do presidente do Conselho de Castela (30 de julho de 1623).

23 PULIDO SERRANO, Juan Ignacio. Os Judeus e a Inquisição no Tempo dos Filipes. Lisboa: Campo da Comunicação, 2007, p. 119-120.

24 O monarca ordenou que os presos fossem julgados no tribunal onde primeiro tivessem sido acusados. Os inquisidores de Évora precisaram que

deviam ser processados no distrito onde tivesse sido decretada a sua prisão, pois a acusação, no procedimento inquisitorial, só tinha lugar com a

apresentação do libelo do promotor, após a prisão do réu. LÓPEZ-SALAZAR, Ana Isabel. La relación entre las Inquisiciones de España y Portugal en los

siglos XVI y XVII: objetivos, estrategias y tensiones. Espacio, Tiempo y Forma, Serie IV, Historia Moderna, vol. 25, p. 236-237, 2012.

98
partiu para Madrid provavelmente em julho de 1624, pois nessa altura falava-se,
na vila de Peniche, no boato de concessão de um perdão geral e modificação do
procedimento inquisitorial “e que a isso acudiam os senhores ymquisidores con
mandarem la ympidir ysso hum ynquizidor por nome Foan de Matos”25.
Como é lógico, com o envio dum deputado do Conselho Geral, o Santo Ofí-
cio desejava contornar o Conselho de Portugal e as juntas e tratar diretamente
com o monarca, o valido e o confessor real “sem ser por meyo do Conselho de
Portugal nem de juntas”, em palavras do próprio deputado26. No entanto, dado
que isto se mostrou uma pretensão impossível de conseguir, Matos de Noronha
não teve outra hipótese que não fosse pressionar para ser admitido na junta do
presidente do Conselho de Castela que era a que, nesta altura, estava a tratar as
questões relativas ao Santo Ofício português. O deputado atingiu este objetivo
mais modesto e integrou-se nesse organismo a partir de agosto de 1624.
Em setembro de 1626, Matos de Noronha fez uma avaliação extremamente
positiva das suas gestões na corte. Na sua opinião, tinha evitado a realização da
visita ao Santo Ofício português e a suspensão dos autos-de-fé que os cristãos-
novos pediam. Achava, aliás, que tinha impedido que se modificasse o modo de
remissão dos presos entre os dois tribunais ibéricos, de nomeação dos deputados
do Conselho Geral, de administração dos bens confiscados e de eleição dos juízes
e tesoureiros do fisco27. No entanto, nem tudo foram sucessos. Desde janeiro
estava a funcionar uma junta, presidida primeiro pelo inquisidor-geral Pacheco
e depois pelo confessor real Sotomayor, encarregada de tratar das pretensões dos
cristãos-novos. Em outubro, a junta concluiu os seus trabalhos e enviou uma
extensíssima consulta ao monarca. Nela, propunha que a Inquisição portuguesa
concedesse um édito de graça aos cristãos-novos. Muito mais complicado para
o tribunal foi outro dos pareceres no qual concordaram a maior parte dos
membros. Sugeriram que o rei ordenasse ao inquisidor-geral Mascarenhas o
envio de vários processos para Madri para serem analisados pelos conselheiros da
Suprema Inquisição de Espanha ou pelos ministros nomeados pelo monarca. Só
os portugueses Mendo da Mota de Valadares e, logicamente, Matos de Noronha

25 ANTT, TSO, IL, proc. 11251, fol.15r-15v.

26 BNP, FG, cód. 1538, fol. 171r-173r: Carta de Sebastião de Matos de Noronha a D. Fernão Martins Mascarenhas (1626, setembro, 10).

27 Ibidem.

99
discordaram neste ponto com o parecer dos outros membros da junta28.
Como é evidente pelo dito, a atuação de Matos de Noronha na corte não
estava a ser tão brilhante como ele pretendia demonstrar. Não tinha conseguido,
como se propunha, tratar com o rei e o valido as questões do Santo Ofício sem
intervenção de juntas ou conselhos. Pelo contrário, durante meses, uma junta,
formada majoritariamente por ministros não portugueses e presidida, durante
um tempo, pelo inquisidor-geral de Espanha, tinha analisado questões tão sen-
síveis para os inquisidores portugueses como a concessão um édito de graça, o
desterro dos reconciliados, o castigo dos dogmatistas, as diferenças no proce-
dimento judicial das inquisições de Espanha e de Portugal e a possibilidade de
ordenar uma visita ao tribunal português. Ninguém, tirando ele próprio, poderia
afirmar que a sua gestão tinha sido um sucesso.
No entanto, Sebastião de Matos de Noronha teve êxito, sim, na sua promo-
ção pessoal. Poucos meses depois da sua chegada a Madri, D. Filipe IV fez-lhe
mercê do bispado de Elvas e, em junho de 1626, foi consagrado pelo cardeal Zac-
cheti, núncio em Espanha. Provavelmente não aguardou muito para abandonar
a corte após a consulta da junta de outubro de 1626 que, como dizemos, foi tão
prejudicial para os interesses do Santo Ofício português, pois, ao que parece, a
princípios de novembro já se encontrava na sua diocese29.
Logo após o regresso a Portugal do bispo de Elvas, D. Fernão Martins Mas-
carenhas enviou para a corte D. Miguel de Castro, também deputado do Conse-
lho Geral. Este tinha a complicada tarefa de tentar impedir a execução das me-
didas propostas pela junta em outubro. De fato, os anos de 1627 e 1628 seriam,
provavelmente, dos mais complicados para o Santo Ofício de todo o reinado de
D. Filipe IV. Em outubro de 1626, um grupo de poderosos banqueiros portugue-
ses cristãos-novos tinha assinado contratos com a Coroa por valor de 400.000
ducados30. Em janeiro, o rei concedeu aos banqueiros portugueses e aos seus
banqueiros participantes a isenção de embargos e confiscos de todas as consig-
nações e juros de resguardo estabelecidos nos assentos. Em junho, o monarca
ordenou um conjunto de medidas relativas aos cristãos-novos que incluíam a

28 LÓPEZ-SALAZAR, Ana Isabel. Inquisición y política. Op. cit, p. 345.

29 SOUSA, Ignacio de Carvalho e. Catalogo dos bispos de Elvas In: Colleção dos Documentos e Memorias da Academia da História Portuguesa. Lisboa, 1721.

30 BOYAJIAN, James C. Portuguese Bankers at the Court of Spain, 1626-1650. New Brunswick-New Jersey: Rutgers University Press, 1983, p. 24.

10 0
concessão de um édito de graça, o desterro dos reconciliados e o envio ao rei,
por parte do Santo Ofício, de amplas informações sobre os condenados por ju-
daísmo31. Aliás, D. Filipe IV dispôs que o édito de graça se aplicasse também a
pessoas que já estivessem presas nos cárceres inquisitoriais, o que claramente ia
contra o procedimento judicial do Santo Ofício32. No mesmo mês, encarregou o
inquisidor-geral que castigasse com rigor as testemunhas falsas e os inquisidores
que não tivessem atuado de forma justificada nos processos33. Em novembro,
decidiu que o tempo de graça fosse prolongado por mais três meses34. E, nesse
mesmo mês, ordenou uma visita geral aos fiscos dos três tribunais do reino que
seria efetuada por três juízes seculares, acompanhados por contadores35. Esta
medida foi especialmente sentida pelo inquisidor-geral quem, segundo o co-
leitor apostólico Lorenzo Tramallo, morreu de desgosto. De fato, Mascarenhas
deixava o mundo em janeiro de 1628, num momento muito complicado para a
instituição à frente da qual tinha estado mais de vinte anos. Como remate de to-
das as medidas dos dois anos anteriores, em março de 1628 D. Filipe IV ordenou
novas disposições relativas aos cristãos-novos, algumas das quais tinham a ver
com o procedimento inquisitorial36.
Não era fácil, portanto, a tarefa de que foi encarregue a D. Miguel de Castro.
Tinha este, no entanto, grande experiência dos assuntos inquisitoriais e o prestí-
gio de ser filho de D. Diogo de Castro, conde de Basto e um dos governadores do
reino. Na corte, D. Miguel de Castro despachou com D. Álvaro de Villegas, um
dos mais estreitos colaboradores de Olivares, com o próprio valido, com o con-
fessor real e até como monarca37. Aliás, D. Miguel de Castro tentou, sem sucesso,
que o rei lhe permitisse fazer parte da nova junta que, presidida pelo inquisi-

31 AZEVEDO, João Lúcio de. História dos cristãos-novos portugueses. Op. cit, p. 186-187. PULIDO SERRANO, Juan Ignacio. Os Judeus e a Inquisição

no Tempo dos Filipes. Op. cit, p. 90-92.

32 Carta de D. Filipe IV a D. Fernão Martins Mascarenhas (1627, junho, 21), publicada em PEREIRA, Isaías da Rosa. A Inquisição em Portugal. Séculos

XVI-XVII – Período Filipino. Lisboa: Vega,1993, p. 154-155.

33 Carta de D. Filipe IV a D. Fernão Martins Mascarenhas (1627, junho, 21), publicada em PEREIRA, Isaías da Rosa, A Inquisição em Portugal. Op. cit, p. 155.

34 Carta de D. Filipe IV a D. Fernão Martins Mascarenhas (1627, novembro, 25), publicada em PEREIRA, Isaías da Rosa. A Inquisição em Portugal.

Op. cit, p. 156-157.

35 ANTT, TSO, CG, maço 2, n. 12: Alvará de D. Filipe IV (1627, novembro, 26).

36 AZEVEDO, João Lúcio de. História dos cristãos-novos portugueses. Op. cit, p. 187-188. PULIDO SERRANO, Juan Ignacio. Os Judeus e a Inquisição

no Tempo dos Filipes. Op. cit, p. 95-96.

37 ANTT, TSO, CG, maço 2, n. 3: Bilhete de D. Miguel de Castro a D. Álvaro de Villegas (1627, março, 8).

101
dor-geral Pacheco, estava a tratar das questões dos cristãos-novos portugueses.
O deputado arguia que desde o reinado de D. Filipe III sempre tinha feito parte
desse tipo de juntas um ministro do Santo Ofício português e que o contrário
seria muito prejudicial para o prestígio tribunal, “porque siendo sobre materias
de las Inquiciciones de Portugal no entrando ministro dellas, quedarian las In-
quiciciones como parte no lo siendo ygoal con los Christianos nuevos, mucho
contra su authoridad y reputacion”38.
Após a publicação das disposições de julho de 1627, o Santo Ofício e o seu
agente na corte centraram-se em conseguir a anulação das duas que achavam
mais prejudiciais: o desterro dos reconciliados e o envio ao rei das listas de li-
nhagens onde o judaísmo tivesse reaparecido após gerações sem nenhum con-
denado39. Quando, em novembro, o rei ordenou a suspensão dos autos-de-fé, o
agente teve de concentrar as suas forças em tentar a revogação desta medida40. E,
em março, após a conhecida carta régia do dia 13, os esforços do Conselho Geral
e de D. Miguel de Castro centraram-se em enfrentar as novas disposições que
continha. A complicada situação que passou o Santo Ofício nesses meses explica
o júbilo do deputado quando, em abril de 1628, D. Filipe IV voltou a permitir a
celebração dos autos-de-fé41. Finalmente, em junho de 1629, o rei nomeou novo
inquisidor-geral na pessoa de D. Francisco de Castro, bispo da Guarda.
Provavelmente, após o regresso de D. Miguel de Castro a Lisboa, Francisco
Pereira Pinto ficou encarregado de tratar das questões do Santo Ofício em Ma-
drid, pois D. Francisco de Bragança tinha voltado para Portugal em meados de
162942. Pereira Pinto era deputado do tribunal de Lisboa e membro da Mesa da
Consciência. Tinha uma grande experiência política, pois tinha sido agente da
Coroa de Portugal em Roma durante o reinado de D. Filipe III. Pelos seus servi-

38 ANTT, TSO, CG, maço 11, n. 6: Memorial de D. Miguel de Castro (1627, dezembro)

39 ANTT, TSO, CG, maço 2, n. 12: Memorial de D. Miguel de Castro (1627). Para os debates sobre a possibilidade de expulsar os cristãos novos de

Portugal, vid. PULIDO SERRANO. Juan Ignacio. La expulsión frustrada. Proyectos para la erradicación de la herejía judaica en la Monarquía Hispánica.

In: ARANDA PÉREZ, Francisco José (coord.). La declinación de la Monarquía Hispánica en el siglo XVII. Cuenca: Universidad de Castilla-La Mancha,

2004, p. 889-902.

40 ANTT, TSO, CG, maço 11, n. 10: Memorial de D. Miguel de Castro (1628, janeiro). ANTT, TSO, CG, maço 11, n. 11: Memorial de D. Miguel de

Castro (1628, fevereiro). ANTT, TSO, CG, maço 11, n. 9: Memorial de D. Miguel d e Castro (1628, fevereiro).

41 ANTT, TSO, CG, maço 24, n. 48: Carta de D. Miguel de Castro ao Conselho Geral (1628, abril, 24).

42 LUXÁN MELÉNDEZ, Santiago de. La revolución de 1640 en Portugal. Op. cit, p. 362.

102
ços em Madri, o inquisidor-geral concedeu-lhe uma ajuda de custo de 200.000
réis em maio de 163243.
Quando D. Filipe IV nomeou D. Francisco de Castro para o cargo de inqui-
sidor-geral, encarregou-o de visitar os três distritos inquisitoriais para averiguar
a veracidade das queixas dos cristãos-novos. O novo inquisidor-geral visitou os
tribunais durante dois anos e, quando terminou, decidiu dar conta ao monarca
dos resultados por meio de D. Miguel de Castro. Portanto, o deputado foi nova-
mente enviado à corte em maio de 163244. Para negociar e defender os interesses
da Inquisição, D. Miguel não só dispunha dos documentos que demonstravam
a falsidade das queixas dos cristãos-novos contra os ministros do Santo Ofício.
Servir-se-ia, também, de grandes somas de dinheiro, embora não sabemos até
que ponto estas quantidades eram destinadas aos seus próprios gastos e em que
medida serviram para pagar serviços e apoios na corte. Assim, em maio de 1632,
o inquisidor-geral concedeu-lhe 2.500 cruzados (1.000000 réis) para a viagem
e atribuiu-lhe outros 120.00 réis mensais para gastos em Madri. Estes foram-
-lhe entregues entre maio desse ano e julho do seguinte, o que faz um total de
1.800.000 réis. Aliás, em julho de 1633, quando o deputado já tinha terminado a
sua missão, o inquisidor-geral ordenou que se lhe enviassem outros 170.640 réis
para pagar “outros gastos” que tinha realizado. Se tivermos em conta que o orde-
nado de deputado do Conselho era de 400.000 réis anuais, podemos avaliar me-
lhor o desembolso que supunham para o Santo Ofício estes negócios na corte45.
A partir deste momento, a época mais complicada para o Santo Ofício tinha
passado. D. Francisco de Castro tinha executado as visitas aos três tribunais, das
quais tinha constado – como é evidente – que os ministros do tribunal proce-
diam justamente. Era a ocasião de o monarca recompensar a tarefa do inquisi-
dor-geral e premiar os seus serviços. Para isso, D. Francisco tentou resolver todas
questões que estavam pendentes e que perturbavam a instituição. Em primeiro
lugar, como veremos, conseguiu que, em novembro de 1632, D. Filipe IV reser-
vasse para si todos os assuntos relativos ao Santo Ofício para serem despachados
apenas através do conde-duque de Olivares, sem intervenção de outro ministro
43 ANTT, TSO, IL, liv. 633, fol. 11r (do caderno das provisões).

44 Carta de D. Francisco de Castro a D. Filipe IV (1632, maio, 24), publicada em BAIÃO, António. D. João IV e a Inquisição. Anais da Academia

Portuguesa da História, vol. IV, p. 9-70, 1942.

45 ANTT, TSO, IL, liv. 633, fol. 1, 6 e 58 (do caderno das provisões).

103
ou tribunal. Era a forma de afastar destas questões não só o Conselho de Portugal
mas também as juntas que, desde o início do reinado do último Áustria, estavam
a analisar as pretensões dos cristãos-novos e, em consequência, o procedimento
inquisitorial. Em segundo lugar, em dezembro, o monarca aprovou os estilos e o
modo de proceder da Inquisição portuguesa46. Em terceiro lugar, já em março de
1633, o rei confirmou o costume de que o inquisidor-geral apresentasse só uma
pessoa para cada cadeira de deputado do Conselho Geral que estivesse vacante47.
Também se revelou vantajosa viagem para o próprio D. Miguel de Castro.
Em fevereiro de 1633 o inquisidor-geral achou que a missão do deputado estava
concluída e concedeu-lhe uma ajuda de 2.000 cruzados para realizar a viagem de
regresso para Portugal48. No entanto, Castro permaneceu em Madrid. Do mes-
mo modo que no caso anterior de Sebastião de Matos de Noronha, tudo parece
indicar que tinha aproveitado a sua assistência em Madri para estreitar os seus
vínculos pessoais e defender os seus interesses. O rei devia estar satisfeito dos
serviços dele: fez-lhe mercê do bispado de Viseu e ordenou-lhe participar no
Conselho de Portugal enquanto chegava a sua bula de nomeação. D. Miguel in-
tegrou-se neste organismo em 28 de julho de 1633 mas quando recebeu as suas
bulas, não viajou para Viseu. O monarca achou mais conveniente a sua estadia
em Madrid e, em abril de 1634, encarregou o agente de Portugal em Roma que
conseguisse do papa uma licença para D. Miguel de Castro continuar no Con-
selho de Portugal durante outros seis meses. Segundo Santiago de Luxán, o in-
teresse da Coroa na permanência do bispo de Viseu na corte devia-se a que era
filho de D. Diogo de Castro, conde de Basto, que exerceu o cargo de vice-rei de
Portugal entre julho de 1633 e novembro de 163449.
A provisão pela qual D. Filipe IV reservava para si todos os assuntos do
Santo Ofício português para despachá-los com o conde-duque de Olivares e a
comissão do inquisidor-geral ao valido para exercer essa função, pareciam pôr
fim à necessidade de enviar para a corte um ministro do tribunal. Todavia, não
foi assim e apenas dois anos mais tarde D. Francisco de Castro teve de enviar

46 ANTT, TSO, CG, liv. 353, fol. 7r-7v: Carta de D. Filipe IV a D. Francisco de Castro (1632, dezembro, 20).

47 MARCOCCI, Giuseppe; PAIVA, José Pedro. História da Inquisição Portuguesa, 1536-1820. Lisboa: A Esfera dos Livros, 2013, p. 157.

48 ANTT, TSO, IL, liv. 633, fol. 36 (do caderno das provisões).

49 LUXÁN MELÉNDEZ, Santiago de, La revolución de 1640 en Portugal. Op. cit, p. 392.

10 4
para Madrid frei João de Vasconcelos, deputado do Conselho Geral. Assim, em
finais de 1635 o dominicano mudou-se para Castela para tentar estabelecer com
a Inquisição espanhola uma concórdia na qual ficasse claramente especificada
a colaboração entre os dois tribunais. A viagem de Vasconcelos era diferente
das anteriores, pois o objetivo não era já tratar com o rei, mas com o tribunal
espanhol50. No entanto, Vasconcelos também teve de resolver outras questões.
Mais uma vez tinha surgido o alvitre de retirar ao inquisidor-geral a adminis-
tração dos bens confiscados. Para defender os interesses da Inquisição, o depu-
tado apresentou vários memoriais e participou numa junta presidida por frei
António de Sotomayor. Do mesmo modo que tinha acontecido anteriormente,
frei João de Vasconcelos provavelmente não só se serviu de documentos, mas
também de dinheiro para defender os interesses do Santo Ofício. Assim parece
deduzir-se das quantidades de dinheiro que o inquisidor-geral lhe foi enviando
a partir de Lisboa e das que ele mesmo tomou, através de letras de câmbio, em
Madri. Embora não disponhamos dos livros de contas do tribunal de todos os
anos que frei João esteve em Madri, é possível apontar alguns dados. Só no ano
de 1637, o dominicano despendeu, pelo menos, 458.000 réis “para o expediente
dos negócios do […] Santo Offício”51. Fosse pelos bons ofícios do deputado, fos-
se pelo dinheiro despendido, fosse pelo próprio prestígio da Inquisição, o fato é
que D. Filipe IV decidiu não alterar o modo de administração e gasto dos bens
procedentes dos confiscos. Pelo contrário, o deputado não conseguiu estabele-
cer um tratado com a Inquisição espanhola que clarificasse os casos nos quais
devia haver remissão de presos de um reino para outro. Por isso, quando voltou
para Portugal, no fim de 1639, deixou encarregues de participar na elaboração
da concórdia Francisco Pereira Pinto e Francisco Leitão. Contudo, o tratado
nunca seria redigido52.

50 LÓPEZ-SALAZAR, Ana Isabel. La relación entre las Inquisiciones de España y Portugal en los siglos XVI y XVII. Op. cit, p. 241-244.

51 ANTT, TSO, IL, liv. 923, fol. 1r (quaderno 3): Provisão de D. Francisco de Castro (18 de setembro de 1637); Ibidem, fol. 4r (quaderno 3): Provisão

de D. Francisco de Castro (13 de janeiro de 1637); Ibidem, fol. 17r (quaderno 3): Provisão de D. Francisco de Castro (14 de abril de 1637). A citação

esta tirada da folha 17.

52 Sobre o doutor Francisco Leitão, vid. SCHAUB, Jean-Frédéric. Le Portugal au temps du comte-duc d’Olivares (1621-1640). Le conflit dejurisdictions

comme exercice de la politique. Madrid: Casa de Velázquez, 2001, pp. 222-226.

105
Inquisição, validos e secretários

O envio à corte de agentes, inquisidores ou deputados do Conselho Geral


tinha um problema, pois não impedia que as questões relativas ao Santo Ofício,
ao seu procedimento, às suas relações com as outras instituições e aos seus mi-
nistros fossem tratadas no Conselho de Portugal ou nas juntas de que tanto gos-
tavam D. Filipe III e D. Filipe IV. Sirva só um exemplo, tirado da primeira estadia
de D. Miguel de Castro em Madri. Em novembro de 1627, D. Filipe IV ordenou
que o édito de graça publicado em setembro fosse prorrogado por três meses e
que, no entretanto, se suspendesse a celebração dos autos-da-fé. D. Miguel de
Castro redigiu um memorial expondo os inconvenientes desta medida e o do-
cumento foi estudado no Conselho de Portugal. Portanto, este organismo não só
continuava a intervir nas questões do tribunal apesar da estadia do deputado em
Madrid mas até analisava os memoriais apresentados por ele ao rei.
Se o objetivo declarado e manifesto da Inquisição era que “em nenhum
concelho, junta ou por algum ministro” se tratassem os negócios da Inquisição,
era preciso criar uma via alternativa que permitisse contornar as juntas e a via
ordinária de despacho que era o Conselho de Portugal53. A própria evolução
política da Monarquia Hispânica permitiu encontrar essa via alternativa. Como
assinalou há mais de 50 anos Jaime Vicens Vives, o nascimento do valido ou
ministro-favorito dever-se-ia à tentativa da monarquia de superar a ineficácia do
sistema polisinodal, colocando esta nova figura acima dos diferentes conselhos54.
Pelo que toca à comunicação entre a Monarquia e a Inquisição portuguesa, o
surgimento do valido teve uma importância fundamental. Demos um salto até
ao último decênio da União Ibérica para ouvir o inquisidor D. Miguel de Castro
reconstruir como tinha sido a via de despacho entre o Santo Ofício e o rei desde
o 1582, ano em que D. Filipe II regressou a Espanha. Segundo Castro, os reis,
para conservar a autoridade do Santo Ofício,

fueron servidos mandar que sus cosas no se viessen ni


passasen por otros tribunales rezervando solo a sus reales

53 AHN, Estado, lib. 728, n. 19: Provisão de D. Filipe III (1608, abril, 24).

54 VICENS VIVES, Jaime. Estructura administrativa estatal en los siglos XVI y XVII. In: VICENS VIVES, Jaime. Coyuntura económica y reformismo

burgués. Barcelona: Ariel, 1968, p. 124.

10 6
personas el conocimiento dellas y quando por auzencia
no podian tratarlas con los mismos inquisidores generales
nombravan el ministro de major confiança para que por su
medio se le diesse cuenta de lo que se offereciesse y con él
despachasse. En esta comformidad nombró el Sr. Rey Don
Phelippe 2º a Don Christoval de Mora marques de Castel
Rodrigo y el Sr. Rey Don Phelippe 3º al Duque de Lerma55.

Interessa-nos assinalar duas coisas deste discurso que manteve os mesmos


elementos desde a segunda década do século XVII até o final da União Dinástica.
Em primeiro lugar, o Santo Ofício soube delinear uma genealogia institucional
da figura do valido, considerado como o “ministro da maior confiança do mo-
narca”56. O que os historiadores têm demorado tanto tempo a perceber – o papel
precursor de Moura – era já evidente para a Inquisição. Em segundo lugar, o
Santo Ofício defendeu sempre que a comunicação com a monarquia ter-se-ia
realizado através desses ministros: Moura, no reinado de D. Filipe II, Lerma e
Uceda, no de D. Filipe III, e Zúñiga e Olivares, com D. Filipe IV.
Frente ao papel pioneiro do valimento de Lerma, a historiografia tem vindo
assinalar nos últimos tempos a relevância de D. Cristóvão de Moura na última
década de D. Filipe II como precursor do modo e práticas de governo que Ler-
ma implementaria logo a partir do início do reinado de D. Filipe III em 159857.
Aliás, existem evidências de que o envio de correspondência e documentos da
Inquisição para D. Filipe II fazia-se através de Moura, do mesmo modo que
depois far-se-ia através de Lerma. A novidade da época de Lerma na relação
entre valimento e Inquisição reside, não tanto na aparição de novas práticas,
quando na consolidação das que já existiam, que agora foram providas de su-
porte institucional. Para isso contribuiu, sem dúvida, o governo de D. Pedro de
Castilho, um inquisidor-geral empenhado em consolidar e reforçar o poder e a
autonomia da instituição. Em 1608, Castilho, que tinha dado provas irrefutáveis

55 ANTT, TSO, CG, liv. 235, fol. 156r-156v: Memorial de D. Miguel de Castro a D. Filipe IV (1632).

56 Sobre a utilização do termo “ministro”, vid. TOMÁS Y VALIENTE, Francisco. Los validos en la monarquía española del siglo XVII: Estudio institu-

cional. Madrid: Siglo XXI, 1982, p. 104-114.

57 FEROS, Antonio. El viejo monarca y los nuevos favoritos: los discursos sobre laprivanza en el reinado de Felipe II. Studia Historica. Historia Moderna,

vol. 17, p. 11-36, 1997. MARTÍNEZ HERNÁNDEZ, Santiago.Ya no hay rey sin privado. Cristóbal de Moura, un modelo de privanza en el siglo de los

validos. Libros de la corte.es, vol. 2, p. 21-37, 2010.

107
de fidelidade e submissão aos desígnios e interesses da Coroa, conseguiu que
D. Filipe III assinasse uma provisão da máxima importância. Em abril desse
ano, o monarca chamou a si todos os negócios e assuntos relacionados com a
Inquisição para que não fossem tratados em nenhum Conselho ou tribunal. O
inquisidor-geral dar-lhe-ia conta de tudo por meio do duque de Lerma. Por
isso, D. Pedro assinou uma comissão para D. Francisco Gómez de Sandoval.
Isto é: o valido recebia uma nomeação oficial do inquisidor-geral para tratar
com o rei as questões do Tribunal da Fé. Anos depois, em 1632, D. Filipe IV
expediria uma provisão semelhante à do seu pai reservando para si os negócios
do Santo Ofício. E, por consequência, D. Francisco de Castro despachou uma
comissão para o conde-duque de Olivares tratar com o rei as questões do Santo
Ofício em nome do próprio inquisidor-geral “para o que sendo necessario lhe
cometto minhas vezes por authoridade appostolica”58. De forma paralela, os se-
cretários do Conselho de Portugal em Madri, Fernão de Matos e Diogo Soares,
foram nomeados secretários do Santo Ofício português. A eles seriam enviados
os despachos para depois os validos os apresentarem aos reis59.
É justo questionar a eficácia deste meio e se a Inquisição conseguiu efeti-
vamente contornar os outros Conselhos e tribunais e tratar diretamente com
os reis através dos sucessivos validos. Parece evidente que não foi assim. Que as
questões relativas ao Santo Ofício não fossem tratadas em nenhum outro con-
selho foi mais uma aspiração da própria Inquisição do que uma realidade. O
único assunto que, de fato, escapou ao controle do Conselho de Portugal foi o
da nomeação dos deputados do Conselho Geral. Os reis tinham de aprovar e
confirmar a pessoa proposta pelo inquisidor-geral para cada ofício de deputado
que estivesse vacante. O Conselho de Portugal nunca examinou as propostas
apresentadas pelos inquisidores-gerais e os monarcas sempre lhes responderam
diretamente sem intervenção dos conselheiros de Portugal. Mas foi a única ques-
tão que, de fato, escapou sistematicamente a este Conselho. Tirando este assunto,
quase toda a correspondência entre os monarcas e os inquisidores-gerais passou
por essa instituição, pois tem a assinatura do chamado “semaneiro” (um dos
conselheiros) ou, a partir de 1616, do presidente do organismo.

58 ANTT, TSO, CG, liv. 136, fol. 142v-143v: Comissão de D. Francisco de Castro ao conde-duque de Olivares (1632, novembro, 13).

59 Todas estas questões foram estudadas pormenorizadamente em LÓPEZ-SALAZAR, Ana Isabel. Between the Inquisition and the King. Op. cit, p.

1-39. Portanto, não repetimos aqui o exposto lá.

10 8
E, em realidade, um tribunal consolidado

De tudo o que foi dito poderia resultar a imagem de uma Inquisição que
esteve constantemente ameaçada pelas tentativas de reforma da Coroa e que
fracassou no seu desejo de despachar exclusivamente com os monarcas, sem
que os seus assuntos fossem examinados em outros conselhos ou juntas. No en-
tanto, se compararmos o tribunal em 1580 e em 1640 comprovaremos que não
saiu em nenhum caso debilitado da União Dinástica. Nenhuma das propostas
de reforma do seu procedimento teve sucesso e a Coroa não retirou aos inquisi-
dores-gerais a administração dos bens confiscados. Houve, sim, transformações
institucionais neste período, mas todas elas incidiram na consolidação do tribu-
nal, não na sua debilitação.
É verdade que o envio de agentes para a corte não impediu que as propostas
dos cristãos-novos ou outras questões fossem estudadas em diversas juntas. No
entanto, o Santo Ofício sempre teve sucesso em conseguir que os seus ministros
participassem em tais organismos. O deputado D. Miguel de Castro assim o afir-
mava em 1627: “sienpre que sobre estas matterias se hizieron juntas en esta corte
asistio en ellas un ministro de las Inquiçiçiones de Portugal”60. De fato, desde
1602 até 1640 nunca passaram mais de dois anos sem que houvesse um ministro
do Santo Ofício português na corte. Provavelmente não houve muitas outras
corporações, instituições ou tribunais portugueses que mantivessem de forma
tão constante um dos seus membros perto da Coroa, dos validos e dos máximos
organismos de decisão política da Monarquia Hispânica61.
Por outro lado, embora o Santo Ofício não conseguisse contornar o Con-
selho de Portugal e as juntas criadas ad hoc, o fato do tribunal integrar na sua
própria estrutura institucional os validos dos monarcas demonstra a capacidade

60 ANTT, TSO, CG, maço 11, n. 5: Bilhete de D. Miguel de Castro a D. Álvaro de Villegas (1627).

61 Sobre os agentes dos duques de Bragança em Madrid, vid. CUNHA, Mafalda Soares da. A Casa de Bragança, 1560-1640: Prácticas senhoriais e redes

clientelares. Lisboa: Editorial Estampa, 2000, p. 286-288. Para o caso dos cabidos da América espanhola, vid. MAZÍN, Óscar. Gestores de la real justicia:

procuradores y agentes de las catedrales hispanas nuevas en la Corte de Madrid. 1. El ciclo de México: 1568-1640. México: El Colegio de México –

Centro de Estudios Históricos, 2007. Sobre os agentes de uma casa da aristocracia espanhola, vid. SALAS, Luis. La agencia en Madrid del VIII duque de

Medina Sidonia, 1615-1636. Hispania, vol. 66, n. 224, p. 909-958, 2006.

109
de adaptação da Inquisição às novas circunstâncias políticas criadas a raiz da
incorporação de Portugal na Monarquia Hispânica. Pelo que se sabe, não houve
outras instituições, nem portuguesas nem de outros territórios da Monarquia
dos Habsburgo, que recorressem a um meio tão original quanto este. Aliás, ape-
sar do relativo fracasso da Inquisição na utilização dos validos para contornar os
Conselhos, as inovações institucionais introduzidas durante a União Dinástica
estariam fadadas a ter uma vida duradoura. Assim, o costume de nomear como
secretário do Santo Ofício o secretário de Estado perdurou após a Restauração e
até a reforma das secretarias de 1736, isto é, desde o tempo do secretário Francis-
co de Lucena até o de Diogo de Mendonça Corte Real. Através deles manteve-se
a comunicação quotidiana entre a Inquisição e a Coroa durante o governo dos
Bragança. Isto vem demonstrar, no caso concreto do Santo Ofício, a sobrevivên-
cia das mudanças institucionais ensaiadas durante o período filipino muito para
além do 1 de dezembro de 1640.

110
C O N E C TA N D O V I VO S E M O RTO S N O S
T E R R I TÓ R I O S DA E X PA N S ÃO I B É R I C A :
religião e ritual entre os doadores
da Misericórdia do Porto (1500-1700)

Isabel dos Guimarães Sá

Dia 18 de abril de 1621, um domingo a seguir à Páscoa. Os pobres apinha-


vam-se no pátio da Misericórdia do Porto à espera das suas esmolas; trovejava,
e eis senão quando um raio caiu no campanário da igreja adjacente iluminando
todos os presentes por uma fração de segundo. Ninguém se feriu, entre os qua-
trocentos homens, mulheres e crianças que lá estavam: “E quis Nosso Senhor
por sua misericórdia que nenhuma pessoa perigasse nem recebesse dano algum
tremendo a igreja e caindo muita caliça das juntas, e alguns pedaços de pedra
caíram no pátio e outros na rua que todos os circunstantes viram”. Menos sorte
teve a vizinha catedral da cidade, onde um raio, entrado não se sabe de onde,
danificou o frontal do altar da capela mor e uma imagem de S. João Baptista
do seu retábulo. A reação dos mesários foi de organizar uma procissão em que
participariam todos os irmãos e os capelães da confraria: “...e logo se ordenou em
mesa se fizesse uma procissão com brevidade e com toda a irmandade e capelães
na forma costumada e que fosse a imagem do Ecce Homo com sua ladainha e
pregação na casa pelas necessidades do tempo ...” 1.
Neste episódio fica clara a capacidade performativa da misericórdia en-
quanto prestadora de serviços rituais. Alguns, como este que começamos por
abordar, de criação própria; outros, a grande maioria, como executora de ri-
tuais encomendados por terceiros, pelos doadores, isto é, dos benfeitores que,
a título póstumo ou em vida, concederam recursos econômicos à misericórdia
em troca de contrapartidas várias. Destinadas a alcançar a salvação eterna, as

1 Arquivo Histórico da Santa Casa da Misericórdia do Porto (AHSCMP). Série D, banco 8, livro 4, “Assento que se fez por memória do raio que deu no

campanário do sino desta casa”, fl. 315.

111
doações ante ou post-mortem preconizavam ações potenciadoras do perdão
de pecados dos seus autores, quer sob a forma de cerimônias litúrgicas, quer
de esmolas aos pobres, que a confraria consignava na prática das sete obras de
misericórdia corporal.
Muito embora a misericórdia do Porto, à semelhança das suas congêneres,
tivesse como leitmotiv a caridade para com os pobres, a verdade é que os re-
cursos da confraria se destinavam maioritariamente a rituais da liturgia católica
relacionados com o culto dos mortos, e que as obras de caridade eram desempe-
nhadas com base nos excedentes destes últimos. Ou seja, os recursos destinados
aos pobres correspondiam ao que sobrava depois de a confraria celebrar todos
os rituais encomendados pelos defuntos nos seus testamentos ou escrituras de
doação. No caso vertente apuramos para a segunda metade do século XVII, mais
concretamente para o ano de 1666, uma renda anual de 5.631.878 reis, dos quais
2.804.266 eram gastos em rituais da liturgia católica relacionados com assistên-
cia aos defuntos, o que corresponde sensivelmente a metade das rendas anuais
(49,8%)2. É importante tê-lo em mente, uma vez que os principais beneficiários
desse capital eram os numerosos padres e capelães da cidade, quer os da miseri-
córdia, quer os padres seculares, ou, sobretudo, os membros das ordens religio-
sas mendicantes. No Porto, ao longo dos séculos XVI e XVII, o grosso das missas
de obrigação esteve a cargo destes últimos, limitando o número de capelães da
misericórdia, que reduzia os seus serviços à execução das vontades dos defuntos,
com todos os encargos administrativos e financeiros que esta comportava, bem
como, em muitos casos, ao acompanhamento do funeral do defunto. Por outro
lado, a distribuição das missas pelas diferentes igrejas das ordens religiosas aju-
dou a alcançar um equilíbrio entre a misericórdia e as instituições religiosas da
cidade, evitando ulteriores fricções entre os intervenientes no negócio da salva-

2 AHSCMP, Série H, banco 6, livro 2, “Livro do Governo da Misericórdia feito por Nuno Barreto Fuseiro em 1666”. Embora não exclusivamente, estes

totais baseiam-se nos dados contidos neste livro, através do qual a confraria pretendeu sistematizar a sua vida económica, fazendo o ponto da situação

relativamente às suas rendas e patrimônio, e às obrigações que detinha. Não foi o primeiro esforço deste género que a Mesa da confraria efetuou,

existindo livros semelhantes pelo menos a partir de 1609, embora com caráter esporádico. A natureza variável de rendas e obrigações fazia com que os

mesários tivessem de efetuar esforços de atualização constantes; não só era dificil rastrear todas as propriedades urbanas e rurais da Misericórdia, como

os ingressos na confraria seriam sensíveis a variações anuais, derivadas de dificuldades de cobrança, mudanças de locatários, etc.. No caso vertente,

seguimos o mais conhecido e mais bem elaborado desses resumos, da autoria do irmão Nuno Barreto Fuseiro, completando-o com informações de

outras proveniências. Os totais apresentados são obviamente aproximativos, e destinam-se a fornecer ordens de grandeza. Estes valores representam

também um ponto de chegada, uma vez que em 1666 a confraria possuía já um acúmulo significativo de doações.

112
ção, que, como se sabe, reagia mal a monopólios3.
A metade que sobrava dos rendimentos da misericórdia destinava-se aos
pobres, mas nem sempre de forma direta. Embora irmãos, mesários e o provedor
assegurassem um sem número de tarefas a título voluntário e pro bono (escritu-
ração, tesouraria, reuniões, presença em cortejos fúnebres, acompanhamento de
defuntos, etc.) havia que administrar os hospitais, pagando a todos os que neles
trabalhavam (enfermeira/os, hospitaleira/os, cirurgiões, sangradores, médicos,
capelães). A confraria contratava ainda serviços jurídicos e procuradorias, para
fazer face a demandas judiciais, ou para tratar de negócios na corte. Ou seja,
a gestão do quotidiano da misericórdia e das instituições que dela dependiam
dava azo à contratação de um número elevado de funcionários pagos. No caso
da misericórdia do Porto, o compromisso de 1646 menciona cirurgiões, médi-
cos, capelães, moços de capela, serventes do azul, solicitadores, e pedidores de
esmola4. Alguns deles, inclusivamente, vestidos e alimentados por ela. E cabe
também frisar que, destes últimos, uma fatia substancial se destinava justamente
ao desempenho de funções rituais (capelães, músicos, moços de capela, etc.).
Foi a partir das doações dos fiéis que a confraria construiu o patrimônio de
onde provinham as rendas para fazer face a todas essas despesas; foram raras as
doações em vida, quando contrapostas aos legados testamentários e heranças. O
capital da misericórdia era constituído por censos em propriedades rurais e urba-
nas, por bens de raiz, que forneciam rendas em espécie e gêneros, bem como por
rendimentos de padrões de juro comprados com dinheiro. Este último provinha
da venda de imóveis – quando os doadores não os vinculavam –, de heranças em
dinheiro líquido, ou ainda da venda em leilão de bens móveis dos defuntos. Pode-
-se dizer que os doadores foram a principal fonte de rendimento da misericórdia
do Porto; temos em curso o seu levantamento para o período compreendido entre
os inícios da confraria e o final do século XVII, num total apurado de 257 casos5.
3 REIS, João José. A Morte é uma Festa. Ritos Fúnebres e Revolta Popular no Brasil do Século XIX. São Paulo: Companhia das Letras, 1991, p. 321. Junta-

mente com o livro de Ana Cristina Araújo, e não obstante focarem períodos cronológicos posteriores ao que tratamos aqui, continuam a ser a obras de

referência sobre a morte no que toca a Portugal ou territórios sob sua influência (ARAÚJO, Ana Cristina. A Morte em Lisboa – Atitudes e Representações

1700-1830. Lisboa: Editorial Notícias, 1997).

4 COMPROMISSO da Misericórdia do Porto [1646]. Coimbra: no Real Colégio das Artes da Companhia de Jesus, 1717, p. 41.

5 A confraria surgiu em 1499, embora tenha absorvido três doações post-mortem anteriores a essa data, que beneficiavam antigos hospitais medievais

que a misericórdia veio a incorporar posteriormente. Conservámo-las na base de dados uma vez que contribuíram para a construção do seu patrimônio.

Em contrapartida, a nossa observação teve como data limite final o ano de 1699.

113
Concentrar-nos-emos sobretudo nos rituais desempenhados pela miseri-
córdia do Porto em relação a estes doadores; cabe precisar que na sua maior
parte diziam respeito a cerimônias litúrgicas católicas relacionadas com o culto
dos mortos. No sentido de Rappaport, que usaremos aqui, a liturgia correspon-
de a uma sequência de rituais que instituem uma ordem6. São sequências de
atos mais ou menos invariáveis, que tem caráter de ordens no sentido literal do
termo, e ordenam o caos; encontram-se já codificadas e estabelecidas no mo-
mento em que o seu performer as desempenha. Quando falamos de liturgias te-
mos alguma dificuldade em decompô-las nas partes que as formam, bem como
em compreender as suas lógicas, a juntar à enorme variabilidade local dos usos
litúrgicos, embora a tendência fosse no sentido de os uniformizar a partir do
Concílio de Trento. Mas, se pensarmos bem, essa complexidade da liturgia é um
dado importante do problema: a transparência não era um objetivo, mas sim a
procura de efeito. O participante de um ritual não tem de o compreender nas
suas partes de forma racional, mas deve entregar-se a ele.
Cabe frisar que existe a ideia entre os historiadores de que a caridade, mes-
mo quando feita diretamente aos pobres, se fazia de forma ritual, na medida
em que era sacralizada7. No caso das misericórdias portuguesas, as esmolas da-
vam-se muitas vezes à porta dos consistórios respectivos, em dias certos ou em
ocasiões festivas, por mão do provedor e dos mesários, como no episódio com
que abrimos este capítulo; as dotadas eram escolhidas através de um sorteio pre-
cedido de uma oração ao Espírito Santo; uma das obrigações para com os presos
consistia em providenciar para que estes assistissem à missa nos domingos e dias
santos; as misericórdias celebravam várias festas e dias santos ao longo do ano; os
defuntos, por mais pobres que fossem, tinham direito a encomendação da alma
e uma missas rezada, etc. Poderíamos multiplicar exemplos, mas a conclusão é
a de que as práticas de caridade da misericórdia tinham uma forte componente
ritual. Todavia, propusemo-nos estudar apenas os rituais encomendados pelos
testadores no que diz respeito a cerimônias do culto católico.
Feitas estas observações iniciais, o meu propósito específico é o de chamar a

6 RAPPAPORT, Roy A. Ritual and Religion in the Making of Humanity. Cambridge: Cambridge University Press, 1999, p. 169.

7 Sobre práticas de caridade analisadas segundo esta perspectiva, FLYNN, Maureen. Sacred Charity: Confraternities and Social Welfare in Spain, 1400-

1700. Ithaca, NY: Cornell University Press, 1989.

114
atenção para a materialidade do ritual. Se o sentido não é materializável, ou seja,
tem efeitos nas emoções de quem nele participa, qualquer ritual apresenta uma
materialidade que lhe é inerente. Não há rituais imateriais. O ritual transforma
os elementos que o compõem. Em primeiro lugar, transforma o tempo, delimi-
tando-o e sacralizando-o, suspendendo-o em relação aos tempos considerados
normais. Em segundo, necessita de espaços próprios, ou transformados para as-
sinalar um tempo fora do tempo através de um espaço que é propositadamente
usado como lugar do ritual. No caso dos rituais que analisaremos, pode existir
um espaço sagrado exclusivo, a capela com lugar de sepultura, que o defunto
recortava no interior das igrejas para si e para a sua família através de uma trans-
ferência de bens de valor elevado. Por último, temos os objetos do culto, que
conhecemos por alfaias litúrgicas, cujo uso é exclusivo do ritual. Os rituais con-
vocam os cinco sentidos de quem neles participa: ouvido (música), visão (luz e
cor), olfato (incenso, cheiro a cera queimada), tato (por sugestão visual a maior
parte das vezes, neste caso refiro-me aos têxteis em particular, as sedas e veludos
das vestes litúrgicas), paladar (comida e bebida). Naturalmente, que alguns sen-
tidos são mais usados nos rituais do baixo corporal, ou seja, nos rituais profanos,
mas, como veremos, eles não estão ausentes dos rituais relacionados com os doa-
dores, que são, por inerência, religiosos8.

O Porto nos séculos XVI e XVII

O Porto dos séculos XVI e XVII pode ser considerado, quando comparado
com as grandes urbes deste período, como Nápoles ou Lisboa, uma cidade de
pequena-média grandeza9. A sua população cifrava-se nos treze mil habitantes
em 1527 e dezesseis mil em 1623; só em finais do século seguinte chegaria às

8 Sobre o baixo corporal e os rituais associados a festas profanas, BAKHTIN, Mikhail. A Cultura Popular na Idade Média e no Renascimento no Contexto

de François Rabelais. São Paulo: Hucitec, 1987, sobretudo o capítulo “O Baixo Material e Corporal em Rabelais”, p. 323-383.

9 Sobre a história da cidade no período moderno, SILVA, Francisco Ribeiro da. Tempos Modernos. In: RAMOS, Luís A. de Oliveira (Org.). História

do Porto, 3a ed. Porto: Porto Editora, 2000, p. 256-375., 256-375; Idem. O Porto e o seu termo (1580-1640): os homens, as instituições e o poder. Porto:

Câmara Municipal-Arquivo Histórico, 1988. 2 v.; BARROS, Amândio Jorge Morais. Porto: a construção de um espaço marítimo nos alvores dos tempos

modernos. 2004. Dissertação de Doutoramento, Faculdade de Letras da Universidade do Porto, Porto; FERREIRA, Joaquim Albino Pinto. Visitas de

saúde às embarcações entradas na barra do Douro nos séculos XVI e XVII. Porto: Câmara Municipal, 1977.

115
cinco dezenas de milhar10. Era uma cidade portuária, de província, periférica em
relação aos maiores centros populacionais da época durante a Idade Moderna,
mas à qual a atividade marítima conferia algum cosmopolitismo, atestado pela
emigração para a Ásia e depois para o Brasil, e pela presença de negociantes
estrangeiros na cidade. Com efeito, dos 257 doadores estudados, 52 evidenciam
uma ligação aos impérios ibéricos, de onde escreveram os seus testamentos, ou
onde permaneceram algum tempo. Outros, embora não tendo saído do Reino,
evidenciam essa ligação através do consumo de bens de consumo exóticos cuja
posse os seus inventários post-mortem documentam (cocos das Maldivas, bezoa-
res, porcelanas chinesas, sedas e catres indianos, etc.), ou escravos de diversas
proveniências (africanos, mas também asiáticos). Temos também dois estrangei-
ros entre estes doadores, um francês e um biscainho.
Faço aqui um breve parêntesis para precisar que a cidade do Porto no perío-
do aqui considerado não é ainda o do vinho proveniente da bacia do rio Douro
que a irá transformar a partir de finais do século XVII e sobretudo ao longo do
século XVIII, ainda que a sua exportação tenha reforçado o seu caráter portuá-
rio, presente desde o início do burgo. Embora o vinho fosse já exportado para
Inglaterra em meados do século XVII, é no século seguinte que conhecerá pleno
desenvolvimento, transformando-se no principal produto transacionado11.

Os doadores da Misericórdia do Porto: uma identificação sumária

Os rituais aqui considerados dizem respeito a todos os doadores da mise-


ricórdia do Porto nos séculos XVI e XVII, um conjunto de 257 pessoas que le-
garam à confraria parte ou a totalidade dos seus bens. Trata-se ainda de um
trabalho em elaboração, uma vez que constantemente são adicionados novos
elementos à base de dados, construída a partir de informações retiradas de mais
de uma centena de livros do Arquivo Histórico da Santa Casa da Misericórdia
do Porto. O fato de a informação se encontrar dispersa em muitos livros faz com
que seja sempre possível rastrear novos dados, que alteram os resultados obtidos.

10 SILVA, Francisco Ribeiro da. Tempos Modernos. Op. cit, p. 265.

11 SILVA, Francisco Ribeiro da. Do Douro ao Porto : o protagonismo do vinho na época moderna. Douro – Estudos & Documentos, Porto, v. I, n. 20,

p. 93–118, 1996.

116
Vou fazer uma caracterização deste grupo em pincelada larga, sempre tendo
o cuidado de tomar os dados apurados como provisórios. Em primeiro lugar,
cabe frisar que temos 91 mulheres e 139 homens, enquanto em 27 casos marido
e mulher testam conjuntamente “de uma só mão”. Ou seja, um terço destes doa-
dores são mulheres que dispuseram dos seus bens de forma autônoma, solteiras
(7), casadas (13) ou viúvas (51). As restantes 16 muito provavelmente eram sol-
teiras também, uma vez que as fontes tendem a referir o estado de viúva ou ca-
sada sempre que ele se verifica. A presença elevada de mulheres confirma o seu
estatuto de proprietárias plenas dos seus bens, uma informação que confirma
outros estudos. Na Misericórdia como noutros lados, as mulheres estavam em
igualdade perante os homens quando se tratava de dispor da sua propriedade,
ou de instituir obrigações de culto. Darlene Abreu-Ferreira observou que a posse
da terra conferia às mulheres portuguesas uma grande autonomia, mesmo no
estado de casadas12. Por outro lado, é um fato que as orações e outras práticas de
culto valiam tanto como as dos homens quando praticadas por mulheres13, e o
mesmo se poderia dizer das missas e outras cerimônias litúrgicas que instituíam
na misericórdia do Porto.
Já entre os homens o clero surge com particular destaque, pelo número eleva-
do de padres que testaram a favor da misericórdia (34). No caso dos eclesiásticos
é patente a divisão entre clero secular e regular, uma vez que à face da lei só os
primeiros podiam testar, embora tenhamos a exceção de um frade que obteve
licença para o fazer, contra as regras que o proibiam14. Este grupo fez-se notar
também por ter concedido mais atenção aos recursos deixados para obras de
caridade para com os pobres do que os leigos, com particular incidência na ins-
tituição de dotes de casamento para raparigas pobres e órfãs, e de resgates para
cativos no Norte de África.
No que respeita à ocupação socioprofissional destes doadores, observemos
o quadro 1, que nos dá uma ideia, ainda que parcelar (e provisória), do tipo de
pessoas que incluíam a misericórdia nos seus testamentos. Ele diz respeito às
ocupações profissionais dos doadores da Misericórdia do Porto, e, uma vez que
12 ABREU-FERREIRA, Darlene. Women, Crime and Forgiveness in Early Modern Portugal. Farnham: Aldershot, 2015, p. 52, 180.

13 LACQUA-O’DONNELL, Simone. Catholic Piety and Community. In: BAMJI, Alexandra; JANSSEN, Geert and LAVEN, Mary (Eds.). The Ashgate

Companion to the Counter-Reformation. Farnham: Ashgate, 2013, p. 293-294.

14 ARAÚJO, Ana Cristina. A Morte em Lisboa. Op. cit, p. 87.

117
as mulheres raramente desempenham uma atividade profissional, optou-se por
considerar as atividades exercidas pelo seu familiar homem mais próximo refe-
renciado: o marido, o pai, ou até um irmão.

Quadro 1: Ocupações profissionais dos doadores da misericórdia do Porto


SECTOR SECUNDÁRIO Artesãos 22
SECTOR TERCIÁRIO Mercador/artesão 2
Mercadores 18
Pequenos comerciantes 4
Militares 5
Mareantes 2
Notários 3
Escrivães/feitores 3
Licenciados/juristas 8
Eclesiásticos 34
Outros serviços 1
TOTAIS 102
Percentagem da amostra sobre o total: 102/257: 39,7%
Fonte: Elaboração própria, a partir dos livros da série H do AHSCMP

Podemos falar de camadas intermédias da população típicas de um centro


provincial de alguma envergadura, mas com reduzidos contatos com o centro
político15. Por outras palavras, o Porto, ao contrário de Évora, Santarém, e Lisboa,
não era uma cidade de corte (ainda que o nosso período abranja os oitenta anos
da União Dinástica, em que nenhuma das cidades apontadas o foi). De qualquer
das formas, antes de 1580 e depois de 1640, a realeza pouco visitou o Porto. Em
1580, inclusive, foi palco de um episódio da luta que opôs o prior do Crato a
Filipe II, tendo as tropas do primeiro estanciado na cidade, com consequências

15 Sobre a estrutura social da cidade neste período, vejam-se BRITO, Pedro de. Patriciado urbano quinhentista: as famílias dominantes do Porto, 1500-

1580. Porto: Câmara Municipal-Arquivo Histórico, 1997 e SILVA, Francisco Ribeiro da. O Porto e seu termo. Op. cit, 1988.

118
nefastas para um ou outro portuense que o tenha apoiado abertamente16.
Em suma, podemos afirmar que os doadores da confraria manifestam uma
composição social diversificada e transversal a todas as camadas da população
urbana que possui alguma coisa de seu. A confirmar o caráter urbano da
instituição, a ausência de lavradores entre os doadores, embora estes possuíssem
e legassem terra: a misericórdia herdou quintas, e também recebia rendas em
gêneros e dinheiro provenientes de censos. Em comum, estes doadores detêm,
na sua grande maioria, domínio sobre a escrita, pelo menos no que aos homens
diz respeito.
Já no que toca ao estatuto social, confirmam o pendor para se posicionarem
entre elites da cidade, formadas por alguns fidalgos, nobres, e um número supe-
rior de cidadãos. A categoria de cidadão dizia respeito a homens que detinham
privilégios de vária ordem (eram presos em casa, não estavam sujeitos à tor-
tura, podiam usar armas, beneficiavam de isenções fiscais entre vários outros),
conferidos ou sancionados pelo rei, que, embora não sendo nobres, tinham um
estatuto aproximado ao da nobreza, e que por vezes se confundia com este17. Fi-
dalgos e nobres podiam ser também cidadãos (e eram-no muitas vezes, embora
alguns doadores, provenientes do setor do comércio ou até do artesanato tam-
bém o fossem). Era nestes grupos que se recrutavam os irmãos da misericórdia,
embora segundo a separação binária habitual nas misericórdias: os de “primeira
qualidade”, correspondiam aos nobres e fidalgos, enquanto os de segunda quali-
dade agregavam as elites das ocupações artesanais e os mercadores, estes últimos
podendo, como dissemos, ostentar o título de cidadãos. Os dados recolhidos
até agora rastrearam 12 fidalgos, 24 cidadãos e 18 irmãos da misericórdia, mas
nenhum detentor de títulos nobiliárquicos, de resto praticamente inexistentes na
cidade para este período; no que toca a pertença às ordens militares, aparecem
apenas quatro cavaleiros da Ordem de Cristo. Entre as 91 mulheres, 21 são refe-
ridas como donas, o que remete para cerca de um quinto do seu total. De onde se
conclui que a presença de pessoas de estatuto social elevado entre os doadores de
ambos os sexos é forte, mas não exclusiva, nem sequer maioritária. Estamos em
presença de elites urbanas, muito embora estas sejam maioritariamente compos-

16 SILVA, Francisco Ribeiro da. O Porto e seu termo. Op. cit, 1987, v. I, p. 488; v. II, p. 783-786.

17 SILVA, Francisco Ribeiro da. Tempos Modernos. Op. cit, 2000, p. 323-327.

119
tas por grupos que, do ponto de vista relativo, quando comparadas com as elites
de centros urbanos de primeira grandeza, próximas da corte, não ultrapassariam
as camadas intermédias da população, com uma ou outra exceção.
Antes de prosseguir, uma ressalva importante se impõe. Embora não o
demonstremos aqui com dados concretos, a maior parte dos doadores corres-
ponde a indivíduos sem herdeiros. Embora todos pudessem testar a favor da
misericórdia, em pequenos legados ou até em terças de alma, o doador prefe-
rido da confraria, porque mais apetecível do ponto de vista patrimonial, era
aquele que não detinha herdeiros forçados à data da morte. A definição legal
destes últimos era clara, correspondendo a parentes próximos que tinham ne-
cessariamente de herdar, e que a lei restringia a ascendentes ou descendentes
direitos, isto é, pais ou filhos. Na sua ausência, as fortunas legadas tendiam
a tornar-se mais apetecíveis, até porque não havia partilhas a fazer com os
parentes do defunto. Em teoria, porque na prática foram raras as grandes for-
tunas que não deram origem a causas de justiça, algumas delas morosas. Em
todo o caso, é importante frisar que, pelo menos no caso do Porto, os doadores
que mais contaram na construção do patrimônio da misericórdia foram aque-
les que puderam dispor livremente do que era seu.

A evolução do patrimônio da confraria e o papel dos


doadores ligados aos territórios de expansão ibérica

Em pincelada igualmente larga, façamos uma breve excurso pela evolução


do patrimônio da misericórdia do Porto até aos inícios do século XVIII. Se a
confraria foi fundada por ordem régia em 1499, é um fato que antes de 1521 pa-
rece ter medrado num limbo, sem que até então as elites da cidade se empenhas-
sem a sério na sua prosperidade18. Em 1521, D. Manuel incorporou na miseri-
córdia alguns dos hospitais medievais da cidade, o que provavelmente significou
uma injeção de capital importante, uma vez que a confraria passou a receber as
rendas das propriedades respectivas, embora essas estas tivessem valores já mui-
18 MACHADO, Maria de Fátima. O Central e o Local. A Vereação do Porto de D. Manuel a D. João III. Porto: Edições Afrontamento, 2003, p. 204; e

IDEM. Os órfãos e os enjeitados da cidade e do termo do Porto (1500-1580). 2010. Tese de doutoramento, Faculdade de Letras da Universidade do Porto,

Porto, p. 18.

120
to depreciados pelo tempo, uma vez que remontavam aos séculos XIII e XIV19 .
Foram as grandes doações da segunda metade do século XVI a fazer a dife-
rença, sobretudo porque aqueles que as fizeram instituíram contra doações que
estruturaram a personalidade assistencial e devocional da Casa20. Entre esses doa-
dores avultam as figuras de D. Manuel de Noronha, bispo de Lamego (m. 1564-
08-31), o primeiro a instituir dotes anuais para casar órfãs pobres na Misericórdia
do Porto, tendo tido o cuidado de elaborar um regimento para a sua atribuição
cuja influência perduraria na atividade dotal da Santa Casa pelos séculos seguin-
tes21. Mas há outros: António Fernandes “o Soldado” (1575-05-24), falecido em
Chaúl; António Monteiro, mercador falecido em Macau (1580-04-12); o capitão
Diogo Ferreira, que constituíra fortuna em Quito mas falecera em Sevilha (1581-
07-27); e finalmente Manuel Fernandes de Calvos, falecido em Ormuz (1582-08-
17)22. Estes cinco casos apresentam várias características comuns: em primeiro
lugar, todos dotavam a casa com uma renda igual ou superior a quarenta mil réis
anuais, quando a média das doações na primeira metade do século XVI andava
abaixo dos mil réis anuais; eram solteiros e não declaravam herdeiros forçados
que pudessem contender as heranças que doavam à misericórdia; quatro deles
tinham feito a sua fortuna nas terras do Império português ou espanhol, ex-
cetuando o caso do bispo de Lamego, D. Manuel de Noronha, por sinal o que
deixou a renda mais baixa, correspondente a 40 mil réis anuais.
Em 1584, dá-se o grande momento de viragem na construção do patrimô-
nio da confraria. D. Lopo de Almeida, fidalgo da alta aristocracia da corte, nas-
cido em Lisboa, radicado em Madri depois de amplamente recompensado por
Filipe II em honras, mas sobretudo rendas, pelo papel desempenhado no proces-
so de unificação das coroas ibéricas, deixou toda a sua fortuna à misericórdia do
Porto. Era uma fortuna gigantesca, multiplicada pelo próprio através do trato co-

19 BASTO, Artur de Magalhães. História da Santa Casa da Misericórdia do Porto, 2a ed. Porto: Santa Casa da Misericórdia, 1997, v. 1, p. 296.

20 O trabalho de referência sobre o dom é MAUSS, Marcel. Ensaio sobre a Dádiva. Lisboa: Edições 70, s.d.

21 MACHADO, Maria de Fátima. O central e o local. Op. cit, p. 283.

22 Datas correspondem à feitura dos testamentos. Vejam-se estes casos, todos em AHSCMP: Manuel de Noronha – série H, banco 6, livro 3, fl. 343, e

livro 36, fl. 194; António Fernandes – série H, banco 6, livro 17, fl. 41, e livro 3 fl. 42; António Monteiro – série H, banco 6, livro 3, fl. 216 e livro 1, fl.

164; capitão Diogo Ferreira – série H, banco 6, livro 17, fl. 33, e livro 3, fl. 56; Manuel Fernandes de Calvos – série H, banco 6, livro 3, fl. 211; livro 17,

fl. 51. Alguns destes doadores foram estudados por FREITAS, Eugénio de Andrea da Cunha e. História da Santa Casa da Misericórdia do Porto, vol. III.

Porto, Santa Casa da Misericórdia, 1995.

121
lonial e do empréstimo de capitais numa atividade que não andava muito longe
da do financeiro23. Sem herdeiros, deixou tudo à misericórdia do Porto que pôde
construir com o seu nome um novo e grande hospital, segundo os novos padrões
do período moderno. Pela sua escala, as rendas de D. Lopo eram inclusivamente
objeto de escrituração própria nos livros da irmandade24.
Com exceção dos dois eclesiásticos, D. Manuel de Noronha, bispo de La-
mego e D. Lopo de Almeida, todos os outros cinco doadores tinham em comum
a constituição das fortunas respectivas em territórios da expansão. Mesmo D.
Lopo constitui um caso singular, uma vez que, apesar de padre e confessor de Fi-
lipe II de Espanha, exerceu um papel ativo como financeiro, e constituiu o grosso
da sua fortuna fora do Reino. Em suma, e para sintetizar este breve excurso pela
história patrimonial da casa até 1584, todas as fortunas que alavancaram o ar-
ranque da confraria não foram constituídas no do Porto e seu termo. As grandes
heranças recebidas pela misericórdia, com algumas exceções, serão, neste perío-
do como até finais do século XVII, constituídas fora do território metropolitano.
As ligações aos territórios da expansão transoceânica consubstanciavam-se
em várias modalidades possíveis:

a) o doador vivia num dos territórios da expansão ibérica, de onde


testou a favor da misericórdia e onde faleceu; era geralmente sol-
teiro, possuindo, em alguns casos, filhos naturais;
b) passou parte da sua vida num destes impérios, de onde voltou;
c) embora residisse no Porto, tinha negócios transoceânicos que en-
volviam as Américas, a África ou a Ásia;
d) a presença do doador ou de um seu familiar não é atestada pelas
fontes disponíveis em qualquer um dos lugares ultramarinos, mas
o seu inventário post-mortem menciona objetos de proveniência
colonial ou escravos.

Duas ressalvas se impõem a este esquema: a primeira é a de que este gru-

23 DESSERT, Daniel. O financeiro. In: VILLARI, Rosario (Dir.). O Homem Barroco. Lisboa: Editorial Presença, 1995, p. 62.

24 Cf. AHSCMP, Série H, banco 6, livro 8, fl. 133. Magalhães Basto dedica a este doador o vol. II da sua História da Santa Casa da Misericórdia do Porto

(BASTO, Artur de Magalhães. História da Santa Casa da Misericórdia do Porto. Op. cit).

122
po, apesar da emigração diferencial masculina para os territórios da expansão
portuguesa, envolve mulheres. No caso, são mulheres de homens dados como
permanecendo ou tendo morrido além mar, ou que herdaram de parentes seus
com ligações coloniais. A segunda é a de que a presença de escravos domésticos
é muito elevada entre os doadores, quer entre os que viviam no Porto, ou, de for-
ma mais óbvia, nos que testaram a partir do Império. Entre os primeiros, regis-
trava-se uma predominância de africanos, enquanto que os segundos, sobretudo
entre os que viviam na Ásia, se encontra documentado um largo espectro de
etnias asiáticas (chinas, japões, siões, malaios, jaos, etc.). Só num caso encontra-
mos um emigrante de retorno que trouxe escravos asiáticos para a metrópole.

Quadro 2 – Os doadores da Misericórdia do Porto e os Impérios Ibéricos (1499-1699)


África (Angola) 2
Brasil 18
Índia 18
Índias de Castela 4
Consumo de bens exóticos 10
Total 52
Fonte: elaboração própria a partir sobretudo de livros da série H do AHSCMP.

Os doadores ligados à expansão transoceânica correspondem a 20,6 % do


total dos doadores, ou seja, a cerca de 1/5. Podemos afirmar portanto que um
em cinco doadores se relacionou direta ou indiretamente com os territórios da
expansão oceânica portuguesa, ou, ainda que em menor grau, com a América
Espanhola. Fizeram sair a confraria do limbo patrimonial em que se encontrou
durante a primeira metade do século, através de uma série de doações muito
substanciais, que contrastam com as pequenas doações que a confraria recebeu
dos seus doadores iniciais. Ou seja, foi em grande parte devido a emigrantes, ou
a portuenses ligadas aos negócios coloniais, que a confraria prosperou, sobretu-
do a partir das décadas de setenta e oitenta do século XVI.

123
A procuradoria dos defuntos

O papel das misericórdias face aos emigrantes portugueses nos territórios


ultramarinos era semioficial, isto é, estas confrarias assumiam o papel de pro-
curadoras de defuntos, sobrepondo-se ao papel dos provedores dos defuntos e
ausentes, ou articulando-se com eles, em relações não isentas de conflitos. Exis-
tindo em praticamente todos os lugares do Império, as misericórdias contacta-
vam entre si, dando origem a uma correspondência entre elas, que Lisboa cen-
tralizava no que respeita a Portugal e Goa quanto à Índia. Tanto uma como outra
eram locais de passagem obrigatória dos processos de herança, distribuindo em
seguida as cartas pelas restantes confrarias. No seu início, a misericórdia do Por-
to, bem como outras misericórdias do reino, chamava a essas cartas as “Cartas
da Índia”, e é de ressaltar que, embora a sucessão de bens fosse o seu principal
assunto das mesmas, as pessoas usavam este dispositivo para comunicarem so-
bre outros assuntos25.
Como funcionava a procuradoria dos defuntos levada a cabo pelas miseri-
córdias? O indivíduo, geralmente um homem, fazia o seu testamento, no qual ti-
nha o cuidado de envolver uma ou mais misericórdias, deixando-lhes pequenos
legados ou heranças inteiras. A misericórdia local tomava conhecimento, e fazia
seguir o testamento para Lisboa. Caso o testador estivesse na Ásia, o processo
passava por Goa obrigatoriamente, embora numa primeira fase essa responsabi-
lidade tenha sido dividida com a misericórdia de Cochim. Em Portugal, a mise-
ricórdia de Lisboa fazia seguir as cartas para as terras de origem dos emigrantes,
procurando rastrear e certificar os herdeiros designados pelo testador, ou aque-
les que dele deviam herdar.
Seguia-se um complexo processo de transferência de capitais, sempre aci-
dentado (porque podia envolver capitais apetecíveis) feito sobretudo através de

25 Sobre a curadoria dos ausentes, cf. MARTINS, José F. Ferreira. História da Misericórdia de Goa. Nova Goa: Imprensa Nacional, 1910-1914, v. 2, p.

425-468. Existem referências, embora esparsas, a doadores provenientes de além-mar noutros estudos sobre misericórdias. Cf. ARAÚJO, Maria Marta

Lobo de. Dar aos pobres e emprestar a Deus: as Misericórdias de Vila Viçosa e Ponte de Lima. Ponte de Lima: Santa Casa da Misericórdia de Vila Viçosa

e de Ponte do Lima, 2000, p. 435-460; LOPES, Maria Antónia. Pobreza, assistência e controlo social (Coimbra 1750-1850). Coimbra: Palimage, 2000, v. 1,

p. 485-87; MAGALHÃES, António. Práticas de caridade na Misericórdia de Viana da Foz do Lima (séculos XVI-XVIII). Viana do Castelo, Santa Casa da

Misericórdia, 2013, p. 318-332. Já o único estudo que foca as cartas da Índia em exclusivo é AMORIM, Inês. Misericórdia de Aveiro e Misericórdias da

Índia no século XVII: procuradoras dos defuntos. In: ACTAS DO I CONGRESSO INTERNACIONAL DO BARROCO. Porto: Reitoria da Universidade

do Porto, 1991. v. 1, p. 113-37.

124
letras de câmbio. Podia demorar anos: à duração longa das viagens, sobretudo
entre Lisboa e a Ásia, adicionavam-se entraves burocráticos e ineficiências ins-
titucionais que o prolongavam, sendo que a tendência ia geralmente no sentido
de reter os bens o maior tempo possível. Daí um vaivém de cartas que atraves-
savam oceanos, de idas do procurador da Casa à misericórdia de Lisboa para
resolver as transferências. Embora as “cartas da Índia” tenham desaparecido para
a maior parte das misericórdias, o papel de procuradoras dos defuntos por elas
desempenhado é relevante para a estruturação do seu patrimônio e para o seu
ordenamento ritual. Esta documentação parece ter desaparecido por inteiro dos
arquivos da Misericórdia de Lisboa, que conserva registros sobretudo a partir
do terramoto de 1755. A riqueza da documentação conservada no Porto, só nos
faz sonhar com o que seria a magnitude desta documentação se ainda existisse
em Lisboa. Entre estes doadores ultramarinos do Porto contam-se algumas das
maiores fortunas legadas à misericórdia. Como é evidente, os portugueses que
testaram a partir do Brasil tomaram o papel de primeiro plano face aos da Índia
depois da primeira metade do século XVII, em tendência decrescente a partir
de 1640 ou até antes. Apenas resta saber se na segunda metade do século XVII
e durante o século XVIII as ordens terceiras tiveram idêntico papel na transfe-
rência de riqueza colonial para a metrópole no que diz respeito aos portugueses
emigrados para o Brasil. Contudo, chegado ao século XVIII, o papel das miseri-
córdias enquanto procuradoras de defuntos esmoreceu até desaparecer, embora
em circunstâncias ainda por precisar.
De notar ainda que Ana Cristina Araújo observou que na literatura esca-
tológica portuguesa eram abundantes as metáforas relacionadas com a viagem
marítima nas quais se projetava a busca da salvação eterna. Naufrágio, cabo da
Boa Esperança, porto de salvação, “golfo seguro no estreito passo da morte”, “go-
vernar o navio”, Cristo equiparado a uma carta de marear, entre outras, eram
topoi recorrentes26. Muitos dos doadores da misericórdia do Porto haveriam de
as compreender bem, confiando na confraria para uma boa viagem de regresso
das suas almas e haveres.

26 ARAÚJO, Ana Cristina. A morte em Lisboa. Op. cit, p. 185-191.

125
Os rituais

Todos os rituais que os doadores da misericórdia encomendavam se rela-


cionavam com a morte. Uma primeira série ocorria no momento do funeral do
defunto, e a segunda, interminável, correspondia aos sufrágios por sua alma que
em teoria se realizariam até ao fim dos tempos. Na verdade, eram todos rituais de
passagem, porque se destinavam a operar o trânsito do finado para o outro mun-
do e depois do Purgatório para o Paraíso. Este último não tinha na verdade data
fixa de término, prolongando-se no tempo sem fim à vista. Misturavam-se duas
componentes, que os crentes confundiam: o resgate da própria alma descontando
os seus tempos no Purgatório, e o momento do Juízo Final. Na prática, ninguém
sabia quantos sufrágios eram necessários para conseguir a passagem do Purgatório
ao Paraíso27. Dessa forma, a distinção acabava por ser irrelevante. O número de
missas e outras cerimônias era estipulada pelo doador e dependia da sua capaci-
dade econômica depois de morto. Em princípio a vontade expressa pelo testador
deveria ser soberana, muito embora nem sempre fosse cumprida, quer no que diz
respeito ao seu funeral, quer no tocante às missas por alma. A verdade é que podia
existir um desfasamento entre o que o testador preconizava e a realidade efetiva.
Questões de justiça com outros herdeiros, rendimentos desvalorizados, falta de
pagamentos por parte dos arrendatários, desproporção entre os serviços preconi-
zados e os rendimentos disponíveis, entre muitos outros obstáculos, faziam com
que muitos testamentos não pudessem ser cumpridos ou só o fossem de forma
incompleta e muito tempo depois. Entre os doadores da misericórdia do Porto, há
vontades testamentárias que só começaram a ser executadas trinta anos depois da
sua morte... A somar a estes obstáculos, por vezes a própria misericórdia tinha di-
ficuldade em rastrear a documentação relativa aos testadores, bem como localizar
os bens que estes lhe deixavam. Certo, a confraria do Porto tentava cumprir à risca
o estipulado nos testamentos, produzindo uma imagem de idoneidade institucio-
nal que era imprescindível para a manutenção do seu capital político e social. Não
era tarefa fácil, sobretudo em períodos em que a própria Coroa precisou de lançar
mão dos rendimentos das misericórdias, como ao longo de boa parte do século
XVII, primeiro com os Filipes e depois com a guerra da Restauração.

27 REIS, João José. A morte é uma festa, op.cit., p. 215.

126
Os testadores faziam da encenação do seu funeral um conteúdo obrigatório
do seu testamento. Estipulavam a forma como devia decorrer o velório, geral-
mente acompanhado por ofícios de nove lições, e por numerosas missas, por
vezes às centenas, até milhares, e o número de padres que as celebraria. O ofício
de nove lições correspondia ao ofício de Matinas, e designa-se deste modo por-
que era composto por nove leituras; rezava-se de madrugada antes do romper
da alva. Com o costume de velar o defunto durante toda a noite começava-se
com esse ofício na véspera do enterramento do testador28. O cortejo fúnebre era
também minuciosamente programado, definindo-se os seus participantes, entre
confrarias, coreiros da Sé, ordens religiosas, e pobres. A participação destas insti-
tuições e pessoas era objeto de uma contra dádiva, expressa segundo uma escala
que ia desde dinheiro em quantias variáveis até distribuição de roupa, comida e
bebida depois do enterro no caso dos pobres. O doador devia deixar explicado o
que pretendia, encarregando os seus testamenteiros de pagar a esses participan-
tes. Não havia tabelas de preços, embora o costume ditasse ordens de grandeza;
em todo o caso, o vocabulário empregue nos testamentos relativamente a estes
“pagamentos” inscrevia-se sempre na economia do dom. Havia doadores que
dobravam os montantes habituais a pagar por missas e acompanhamentos, ou
que escolhiam privilegiar instituições religiosas em detrimento de outras. Em-
bora com a designação de esmola, tratavam-se na verdade de serviços pagos, que
podiam inclusivamente profissionalizar quem os desempenhava, transformando
a presença de mendigos, meninos órfãos ou merceeiras numa atividade que estes
últimos desempenhavam com vista a ganhar as suas vidas. Todavia, eram os clé-
rigos o grupo a sofrer uma evolução mais vincada no sentido de uma profissio-
nalização crescente, separando leigos e eclesiásticos em esferas distintas. Richard
Terpstra interpreta-a como sendo o oposto do que se passava nas devoções pro-
testantes, que encaravam o corpo de cristãos como uma grande família29 .
Embora haja padrões de comportamento estáveis no tocante ao que os doa-

28 Para uma panorâmica dos ofícios divinos cf. SOARES, Franquelim Neiva. A Colegiada de Nossa Senhora da Oliveira. Visitações quinhentistas. In:

FERNANDES, Isabel (coord.). Colegiada de Nossa Senhora da Oliveira: história e patrimônio. Guimarães: Fábrica da Igreja Paroquial de N.S.O, 2011, p.

37; Ver também “matinas” em BLUTEAU, Raphael. Vocabulario portuguez & latino: aulico, anatomico, architectonico ... Coimbra: Collegio das Artes da

Companhia de Jesu, 1712 – 1728, v. 5, p. 365.

29 TERPSTRA, Nicholas. Lay Spirituality. In: BAMJI, Alexandra; JANSSEN, Geert and LAVEN, Mary (Eds.). The Ashgate Companion to the Counter-

-Reformation. Farnham: Ashgate, 2013, p. 276.

127
dores estipulavam para os seus cortejos fúnebres – variava apenas a quantidade
e a sofisticação das celebrações requeridas –, havia margem para o testador ex-
pressar alguma diferença face aos demais, como no caso de Afonso Pires Borreco
(m. 1578), que não quis obradas, para não haver estrondo de mulheres30. Ou
seja, prescindiu de pobres atuando como carpideiras, pagas para atuar no funeral
com gritos e choros.
Após as cerimônias fúnebres tinham lugar outras celebrações litúrgicas, que
se seguiam a intervalos de tempo regulares, e que os doadores e celebrantes en-
tendiam que teriam a duração do mundo: “até ao fim dos tempos”, “enquanto o
mundo durar”, e que se destinavam a zelar pelo bem estar da alma do doador
e eventualmente a dos seus familiares e parentes. Podiam ser de vários tipos:
missas rezadas, cantadas, aniversários, etc. Estes eram geralmente constituídos
por um ofício de nove lições, que podia ser seguido por um responso sobre a se-
pultura, num gradação de preços crescente. Quando se pretendiam responsos as
indicações do testamento sobre a localização das sepulturas tornavam-se muito
precisas: sítio dentro da igreja, letreiros, pedras de armas, outros defuntos aí en-
terrados, tudo era detalhado para que não houvesse possibilidade de engano. A
instituição de uma capela, que tinha por definição a instituição de uma ou mais
missas semanais, constituía o mais caro de todos os serviços contratados, uma
vez que implicava um capelão próprio. A capela era geralmente objeto de um
contrato que o indivíduo celebrava em vida com a instituição religiosa, passando
posteriormente a constar do testamento31. Nem sempre, contudo, a capela de
missas era acompanhada por uma capela no sentido literal do termo, isto é, de
um lugar de sepultura.
Os rituais estavam na primeira linha das preocupações dos doadores: passa-
vam à frente de qualquer outro propósito, como o de ajudar os pobres através da
caridade. Foi muito raro o benfeitor da confraria que não encomendou missas
por alma com caráter perpétuo: cerca de dois terços dos nossos doadores pres-
creveram-nas no seu testamento; vários atribuíram à misericórdia um modesto
censo anual de valor inferior a mil réis para assegurar um número exíguo de
missas por ano. Repetimos: os doadores raramente esqueceram os sufrágios pe-

30 AHSCMP, Série H, banco 4, livro 36, fl. 56v.

31 ARAÚJO, Ana Cristina Araújo. A morte em Lisboa. Op. cit,, p. 404.

128
las suas almas, mas em contrapartida esqueciam muitas vezes de deixar recursos
para os pobres. Era depois de pagar todas as obrigações de culto impostas pelos
doadores que a misericórdia os ajudava com os excedentes das rendas, por vezes
com margens de diferença muito pequenas.
As missas eram geralmente celebradas, por indicação do testador, em mo-
mentos altos do calendário litúrgico, que este escolhia criteriosamente, talvez
por saber que, independentemente das suas afinidades pessoais de culto, haveria
mais gente na igreja a assistir. As constituições sinodais do Porto, bem como
as de outras dioceses, procuravam reservar as igrejas para o culto dos fiéis nos
domingos e dias santos, evitando missas de corpo presente e ofícios32, mas os
doadores não se coibiam de pedir missas para esses dias; outros, mais precavi-
dos, remetiam para os oitavários respectivos, isto é para os oito dias consagrados
à celebração de uma festa solene, ou elegiam os outros dias da semana, com
uma preferência pelos sábados. Os fiéis distinguiam entre os dias dedicados a
Nossa Senhora (Conceição, Natividade, Apresentação, Purificação, Anunciação,
Visitação, Assunção) e as festas de Jesus Cristo (Natal, Circuncisão, Reis, Páscoa,
Ascensão, Espírito Santo, Corpus Christi, Transfiguração). Todavia, os preferi-
dos para a celebração de missas eram inequivocamente os oitavários do Natal e
da Páscoa, seguidos pelos de Todos os Santos e Fiéis Defuntos. Estas ocasiões,
para além de corresponderem a devoções individuais dos doadores, significa-
vam também uma maior afluência às igrejas. Já os responsos sobre a sepultura,
ou os ofícios de nove lições eram rezados no aniversário da morte do doador e
implicavam uma intenção mais explícita de celebração da memória individual.
Além de quererem salvar as suas almas, os doadores queriam perdurar na me-
mória dos vivos. D. Lopo de Almeida, como sabemos o mais marcante doador
da misericórdia para o período que nos ocupa, organizou da seguinte forma as
comemorações do seu aniversário, a realizar todos os anos no dia da sua morte
a 29 de janeiro:

um ofício de nove lições cantado por doze clérigos e dê de


vestir no próprio dia e na véspera a cinco pobres a que tam-

32 Ver CÕSTITUIÇÕES SINODAES DO BISPADO DO PORTO ord[e]nadas pelo muito reuere[n]do e magnifico Sõr dõ Baltasar Li[m]po bispo do dicto

b[is]pado etc. Porto: por Vasquo Diaz Tanquo de Frexenal, 1541, fl. lxxij; CONSTITUIÇÕES SYNODAES DO BISPADO DO PORTO ordenadas pelo

muyto illustre... senhor Dom frey Marcos de Lisboa, bispo do dito bispado &c. Coimbra: António de Mariz, 1585, fl. 75v-77.

129
bém se dê de jantar. Aos quais se dá calções, roupetões, ca-
misas, sapatos, e carapuças e assistam no ofício com cotas,
que para isso lhe manda dar33.

Embora muitos dos rituais fúnebres seguissem formas litúrgicas codifica-


das, como as missas e os ofícios, os doadores, embora mais raramente, prescre-
veram atos de natureza ritual menos banais. André Coutinho, um sacerdote de
missa residente na Vidigueira e aí falecido em 1597, que tinha passado 38 anos
na China como mercador antes de se ordenar, trouxe, entre valiosíssimas alfaias
litúrgicas de manufatura asiática, escravos africanos e asiáticos de várias etnias
na viagem de regresso34. No seu testamento libertava e beneficiava vários, mas
castigava um deles, de seu nome Francisco, alfaiate, mandando que continuasse
ao serviço dos carmelitas de Nossa Senhora dos Remédios da Vidigueira, em
cuja igreja se situava a sua capela, cuja sepultura o escravo deveria varrer para
espiar os seus pecados35. Resta saber quais...
Devemos abrir um parêntesis para frisar que, embora os doadores benefi-
ciassem a misericórdia, não era a ela que muitas vezes encomendavam as missas,
celebradas sobretudo nos conventos da cidade, nos mesmos onde os doadores
queriam ser sepultados, com uma preferência clara pelas ordens mendicantes36.
No que respeita às capelas de missas, que exigiam geralmente um contrato ce-
lebrado em vida, anterior ou contemporâneo da feitura do testamento, essa dis-
tinção impõe-se com maior acuidade, uma vez que a misericórdia raramente foi
contratada para desempenhar obrigações de capela através dos seus capelães,
embora pudesse exercer funções administrativas ou fiscalizadoras. Mais uma
vez, era sobre os conventos mendicantes que recaía a preferência dos doadores.
Existe uma estratégia clara por parte destes últimos de não confiarem as suas

33 AHSCMP, Série H, banco 6, livro 8, fl. 135.

34 Algumas das peças litúrgicas formam o chamado “Tesouro da Vidigueira” que integra as coleções do Museu Nacional de Arte Antiga, tendo o

mesmo sido objeto de uma exposição, acompanhada por uma monografia que integra vários estudos. HENRIQUES, Ana de Castro (Ed.). Voyages. The

Vidigueira Treasure. Lisboa: Museu Nacional de Arte Antiga, 2011.

35 AHSCMP, Série H, banco 2, livro 2, fl. 14v: “para os servir e ter cuidado de varrer a minha capela e igreja e não poderão os padres alienar nem vender

nem mudar para outro convento que nele quero faça penitencia de seus pecados”.

36 A título de exemplo, 28 doadores declararam querer ser sepultados no convento de S. Francisco; 18 no de S. Domingos, e outros tantos na Sé,

enquanto apenas 5 preferiram a Misericórdia.

130
últimas vontades a uma única instituição, de forma a que as várias beneficiárias
do seu testamento se vigiassem mutuamente no cumprimento das suas últimas
vontades. A misericórdia procurava construir a confiança da comunidade urba-
na, através da intenção de cumprir fielmente o que os testamentos prescreviam,
manifesta nos minuciosos registros elaborados, várias vezes copiados e recopia-
dos, e na constante remissão para registros sobre os mesmos assuntos em outros
livros do seu arquivo, cruzando constantemente a informação para a localizar. É
um fato que a escrituração da misericórdia do Porto evidencia um rigor e uma
prolixidade dignas de nota. Embora a confraria reconhecesse falhas, como por
exemplo ao declarar não saber do paradeiro de vários testamentos, ou a impos-
sibilidade de cobrar determinadas rendas, perpassa pela documentação a inten-
ção de cumprir com fidelidade a vontade dos doadores, bem como a de servir
os pobres. Este último é na verdade o leimotiv que atravessa toda a atuação da
confraria, e que a Mesa relembrava constantemente aos seus membros. Não sem
ambiguidades, como um olhar mais detalhado pode constatar, mas deixaremos
esse assunto para outra oportunidade.
Nem sempre os doadores foram os únicos instituidores de rituais litúrgicos
do culto católico; por vezes os confrades instituíram-nos de moto próprio, para
lembrar doadores para com os quais tinham deveres de gratidão. Foi o caso de
Belchior Pais, filho de um antigo provedor da casa, Gomes Pais, com cujo di-
nheiro a misericórdia construiu a sua igreja; tratava-se de um mercador falecido
na Índia, tendo deixado à misericórdia em 1551 metade do patrimônio que lá
constituíra a partir do ano de 1535, quando partira para desempenhar o cargo
de escrivão da fortaleza de Malaca37. Já D. Maria de Castro, mulher de Fernão
Camelo, doou um terreno adjacente a esta, para onde a confraria pôde expan-
dir o seu edificado38. Nesses casos, a misericórdia optou por celebrar ofícios de
nove lições, mesmo não tendo rendas destinadas a eles; o primeiro no dia da
morte do falecimento de Belchior Pais, a 18 de junho, e o segundo a 29 de junho,
coincidindo com o dia em que a irmandade se mudou da capela de Santiago no
claustro velho da Sé para a sua sede na rua das Flores, no ano de 1550. De notar
37 AHSCMP, Série F, banco 1, livro 1, fl. 259.

38 AHSCMP, série H, banco 6, livro 2, fl. 245; Idem, livro 1, fl. 260v. Fernão Camelo esteve também ligado à expansão oceânica portuguesa, uma vez

que foi nomeado como capitão de uma nau para uma viagem à Índia (BRITO. Op. cit, p. 126). Ver genealogia em MORAIS, Cristóvão Alão de. Pedatura

Lusitana. Braga: Carvalhos de Basto, 1997-1998, t. IV, v. 1, p. 297-299.

131
que o preço de cada um destes ofícios, a celebração litúrgica mais cara de entre as
que referimos, orçava os 250 reis, que em 1545 corresponderiam sensivelmente
ao preço de umas botas de boa qualidade39. Nada que arruinasse a misericórdia,
embora à época esta ainda lutasse pela sua sobrevivência, dispondo de escassos
proventos; em todo o caso, estes ofícios, mesmo celebrados a expensas da con-
fraria, constituíam uma oportunidade para potenciar a construção da coesão
dos irmãos em torno de um passado comum, e a mesa não a deixou escapar.

A materialidade dos rituais

Por muitas benesses espirituais que garantissem àqueles que os criavam, o


desempenho de rituais estava dependente de bens materiais. Na misericórdia a
exceção eram os seus próprios irmãos, que recebiam acompanhamento fúne-
bre, missas e um ofício de nove lições no momento da morte. De outro modo
não os celebraria sem receber o pagamento correspondente, exceto em casos
excepcionais (como os dois aniversários por alma de dois doadores “fundacio-
nais”), e na circunstância de serem necessários serviços mínimos, como no caso
da encomendação das almas, missas e enterros dos pobres. Para que conventos e
confrarias celebrassem rituais, os bens materiais eram indispensáveis: terras que
rendessem gêneros e espécie, casas urbanas que pagassem censos e rendas, pa-
drões de juro que garantissem anuidades em dinheiro. Essa a primeira materiali-
dade do ritual. A segunda dizia respeito a todos os objetos sem os quais qualquer
performance não se poderia em regra realizar. A capela com lugar de sepultura,
e portanto aquela a que correspondia um espaço próprio, fixo, apresentava-se
como ideal para encomendar a alma dos defuntos até ao fim dos tempos. No
entanto, possuí-la era privilégio de muito poucos, os que deixavam os bens ne-
cessários à sua aquisição e construção, ou aqueles cujos antepassados já tinham
providenciado no sentido de as instituir. Nos outros casos, quando muito, a con-
servação da memória do defunto dependia da referenciação que o testador fazia
da sua sepultura no testamento respectivo, de forma a que no futuro os padres

39 CRUZ, António. Algumas observações sobre a vida económica e social da cidade do Porto nas vésperas de Alcácer Quibir. Porto: Biblioteca Pública

Municipal, 1967, p. 81.

132
celebrantes o localizassem (como vimos, para o caso dos que instituíam aniver-
sários com responsos).
Noutras situações, certamente menos onerosas, os objetos desempenha-
vam um papel importante. Vejamos em primeiro lugar o mobiliário fúnebre.
Como dissemos, os portuenses preferiam as ordens mendicantes: S. Domingos,
mas principalmente S. Francisco, seguidas por todos os outros conventos da
cidade, e pela Sé, bem como pelas igrejas das paróquias de residência dos de-
funtos. Não podemos falar da igreja da misericórdia como lugar favorito dos
portuenses no que toca às sepulturas, porque muito poucos homens e mulheres
prescindiram dos conventos e igrejas tradicionalmente mais usados. Nem tão
pouco a misericórdia teve o exclusivo das missas por alma dos seus doadores,
que estes confiavam muitas vezes às mesmas instituições onde pretendiam ser
sepultados, segundo uma lógica, que para João José Reis associava o espaço
à eficácia ritual, fazendo coincidir missa e morto no mesmo templo40. Já ser
levado na tumba da misericórdia exercia maior fascínio junto dos doadores,
até porque, a partir de 1593, a Coroa transformou a misericórdia na única de-
tentora de essas fúnebres, que as outras instituições eram obrigadas a alugar41.
Qualquer misericórdia tinha um sortido de várias tumbas, cujo valor decrescia
à medida que se descia na escala social, entre as quais figurava a tumba onde
os irmãos eram transportados à sepultura, a primeira de entre todas. Era uma
honra que o compromisso da confraria estendia gratuitamente às suas mulheres
e viúvas (desde que não voltassem a casar com homem que não fosse irmão) e
filhos cujas idades estivessem compreendidas entre os 18 e os 25 anos, isto é,
nem demasiado jovens para terem expressão social, nem de idade em que, sen-
do solteiros, pudessem ser irmãos42 .
Mas, para lá de capelas, lugares de sepultura e tumbas, a materialidade dos
rituais era também marcada por pequenos objetos. Uma das preocupações re-
lativamente frequentes dos doadores, expressa nos seus testamentos, era a de
doar bens para acender lampadários em determinados altares. Também aqui a
igreja da misericórdia não era forçosamente a única beneficiada, mas também
40 REIS, João José. A morte é uma festa. Op. cit, p. 205.

41 SÁ, Isabel dos Guimarães. Quando o rico se faz pobre: misericórdias, caridade e poder no Império Português, 1500-1800. Lisboa: Comissão Nacional

para as Comemorações dos Descobrimentos Portugueses, 1997, p. 66.

42 COMPROMISSO da Misericórdia do Porto [1646], cit., p. 57.

133
a sé catedral ou outras instituições religiosas da cidade. Por exemplo, André
Fernandes Biscaia, guarda da alfândega, e sua mulher Maria Pais, testando con-
juntamente em 1581, deixaram um foro numas casas, no valor de 1400 reis
anuais, sendo que mil seriam para alumiar uma lâmpada na confraria de Nossa
Senhora das Dores. De notar que nesse ano havia peste na cidade, pelo que o
casal fez testamento conjunto a partir do degredo do lado de lá do rio Douro,
em Valdamores, onde ambos faleceram43. Já Isabel Sanches, em 1581, deixou
um almude de azeite proveniente de um seu olival para alumiar a lâmpada do
altar mor da igreja da misericórdia, embora a confraria reconhecesse que tinha
perdido o testamento da doadora44. António de Couros Carneiro, escrivão em
1645 e provedor da misericórdia em 1650, instituía uma missa diária no hospi-
tal de Nossa Senhora do Amparo, antigo hospital medieval que fazia parte do
grupo dos hospitais incorporado na Misericórdia depois de 1521. O capelão
seria nomeado pela sua filha, Catarina Carneiro, que tinha a particularidade
de não ser filha da sua mulher, D. Joana de Azevedo. Parte do rendimento que
deixava destinava-se a alumiar em permanência a lâmpada do hospital45. Ou-
tra doadora, Catarina Anes, viúva de mercador, mandou no seu testamento de
1544 comprar um cálice que servisse na Casa, em troca dos bons serviços da
misericórdia na execução do seu testamento46.
Alguns dos objetos que os doadores deixavam em testamento manifesta-
vam a vontade de distinguir entre os dias do tempo comum e as cerimônias
solenes, quer as do calendário litúrgico, quer aquelas relacionadas com os ani-
versários do defunto. André Coutinho, o nosso já conhecido sacerdote de missa
regressado da China, por exemplo, deixava para a sua capela, instituída no con-
vento carmelita de Nossa Senhora das Relíquias na Vidigueira, vestimentas para
os dias solenes e para os outros dias, bem como alfaias metálicas diferenciadas.

43 AHSCMP, série H, banco 6, livro 3, fl. 52; série H, banco 6 livro 1 fl. 38; série H, banco 6 livro 2 fl. 86, AHSCMP, série H, banco 6 livro 14, fl. 59;

série H, banco 6 livro 18 fl. 79v; série H, banco 4, livro 36, fl. 154. Valdamores era o local na margem sul do rio Douro onde se faziam as quarentenas de

navios e degredos em tempos de rebate de peste. BARROS, Amândio Jorge Morais. A Morte que vinha do Mar. Saúde e sanidade marítima num Porto

Atlântico (Séculos XV – XVII). Porto: Fronteira do Caos, 2013, p. 110, 115. Para uma cronologia dos rebates de doença na cidade, cf. ID., ib., 156-173.

Sobre o ano de 1581, p. 168.

44 AHSCMP, série H, banco 6, livro 2, fl. 210; livro 3, fl. 332.

45 AHSCMP, série H, banco 6, livro 14, fl. 322; livro 18, fl. 233v.

46 AHSCMP, série H, banco 6, livro 14, fl. 31.

134
Para os segundos, castiçais de arame contrapostos aos de prata dos domingos
e festas; um cálice eucarístico mais pequeno em vez do maior; uma píxide de
prata de uso exclusivo nas festas, bem como uma lâmpada para acender nesses
dias, enquanto outra ficava para os dias comuns, etc. Da mesma forma, o frontal
e vestimenta de tela de ouro, e os sebastos de prata que deixava, destinavam-se
apenas aos dias solenes, enquanto muitos outros, de menor valia, ficavam para
as ocasiões correntes47.
Mesmo quando os doadores não estipulavam rituais em benefício direto da
salvação das suas almas, preferindo contemplar obras de caridade aos pobres,
estas últimas podiam ser convertidas em rituais. Temos disso exemplo no La-
va-Pés da misericórdia do Porto. Era uma cerimônia que muitas misericórdias
praticaram, sempre em modalidades diferentes, e que consistia em lavar os pés
a doze pobres durante a missa de quinta feira maior, antes de sair a procissão
das Endoenças, também organizada pela confraria. Constituía um ritual de in-
versão, uma vez que quem levava a cabo a tarefa eram os mesários da confraria,
suspendendo a ordem social na sua fase liminar, para usar a terminologia de
van Gennep48. No Porto, a misericórdia, criando ex-novo este ritual em 1662,
agregou ao ato de lavar os pés a pobres a dádiva de roupa; fez convergir três lega-
dos testamentários para vestir pobres na cerimônia de Lava-Pés, quando apenas
um deles o mandava fazer nessa data, e sem indicar expressamente que o ato
devia ser integrado no ritual49. A decisão deu lugar a uma cerimônia específica
da misericórdia do Porto, em que os doze pobres tinham os pés lavados pelos
mesários e vestiam roupa nova. Estava previsto que entrassem na igreja da mise-
ricórdia “do mesmo modo que andassem e que assim como o provedor lhe fosse
lavando os pés a cada um o fosse levando um irmão da mesa para debaixo do
sepulcro onde se vestisse e depois de todos vestidos tirasse também a cada um
da igreja, cada irmão da mesa” 50. Também aqui se manifestava a necessidade de

47 AHSCMP, Série H, banco 2, livro 2, fls. 7 e seguintes.

48 Sobre a decomposição em fases dos rituais de passagem, cf. van GENNEP, Arnold. Les rites de passage. Étude systématique des rites, Paris, Picard,

1981, p. 14. Ainda, MUIR, Edward. Ritual in Early Modern Europe. 2ª ed. Cambridge: Cambridge University Press, 2005, p. 22 e 114-115.

49 Jerónimo Preto de Lemos, testamento de 1662, AHSMCP, Série H, Banco 6, Livro 1 fl. 219v; Rui Brandão Sanches, testamento de 1576, AHSMCP,

Série H, Banco 6, Livro 18, fl. 152; AHSMCP, Série H, Banco 6, Livro 2 fl. 292 e 325; AHSMCP, Série H, Banco 6, Livro 17, fl. 71, fl. 130v; Francisco

Pereira de Miranda e sua mulher Guiomar Pereira, testamento de 1584, AHSMCP, Série H, Banco 6, Livro 17, fl 136, 144.

50 AHSMCP, Série H, Banco 6, Livro 2, fl. 219: “Como se há-de fazer o lava-pés”. A decisão da Mesa é de 21 de junho 1662 (AHSMCP, Série D, banco

8, livro 5, fl. 372v)

135
desempenhar o ritual com objetos próprios: as bacias do Lava-Pés, geralmente
em prata, encontram-se ainda hoje nos espólios das santas casas, ainda que os
exemplares que chegaram até nós sejam setecentistas.

Conclusões

Entre a sua fundação e o final do século XVII, a misericórdia do Porto atraiu


doações por parte de 257 doadores, provenientes de todos os extratos sociais,
mulheres e homens, leigos e eclesiásticos, nobres e plebeus. Se grande parte dos
bens deixados à confraria não chegariam para que esta adquirisse um patrimô-
nio significativo, houve casos em que doações singulares representaram uma
alavanca de capital muito significativa. Entre os grandes doadores assumem par-
ticular importância aqueles que estavam ligados aos espaços da expansão tran-
soceânica ibérica, quer porque testavam a partir de terras longínquas benefician-
do a misericórdia, ou porque viviam do trato marítimo. A morte juntava todos
estes homens e mulheres em rituais comuns, que operavam uma comunhão en-
tre mortos e vivos, entre os que tinham partido há muito e voltavam depois de
mortos, numa espécie de regresso fictício.
Improvisados em situações excepcionais (como no caso da procissão a agra-
decer pelo fato de mesários e pobres terem saído incólumes da queda de um
raio), instituídos e patrocinados pelos doadores (como as cerimônias fúnebres,
as missas por alma, os ofícios e responsos), ou desempenhados com regularida-
de pela confraria a partir de um dado momento em que a sua criação foi julgada
oportuna, os rituais eram na verdade uma componente essencial à sobrevivência
e “boa saúde” da instituição.
Necessidades políticas de reforçar a coesão da comunidade, efeitos tranqui-
lizadores sobre as inquietações do quotidiano, atos de propaganda da instituição,
a verdade é que a misericórdia providenciava rituais, e estes se situavam na pri-
meira linha das suas prioridades. Não seria a única instituição da cidade a fazê-
-lo, se comparada com igrejas paroquiais, ordens religiosas, cabido e sé catedral,
vereação camarária, etc. No entanto, o fato de congregar os doadores em torno
da caridade para com os pobres criava uma relação de confiança com a comuni-

136
dade urbana que a confraria procurava exaltar através dos rituais. Por outro lado,
graças a uma rede de correspondência que passava pela misericórdia de Lisboa,
a misericórdia do Porto seria provavelmente uma das poucas instituições da ci-
dade que conseguia fazer a ligação entre a sua população e os seus familiares ou
parentes defuntos que tinham emigrado para o Império.
Não é de estranhar que, em cidades onde o prestígio de instituições e de
grupos sociais tinha de ter expressão imediata através de rituais que todos po-
diam presenciar, a Misericórdia os tivesse também adaptado no seu quotidiano.
A necessidade de produção do ritual revelava-se constante, como forma de apla-
car as ansiedades coletivas e individuais em torno da salvação da alma, e da pró-
pria segurança e sobrevivência da comunidade; como estratégia de consolidação
da própria instituição, através de um diálogo permanente entre vivos e mortos,
travado através do léxico da religião católica. Para os séculos XVI e XVII, os
rituais cumpriam ainda a função de lembrar aos portuenses que existia uma ins-
tituição que juntava todos sob o manto da Misericórdia, que procurava manter
alguma harmonia entre grupos de estatuto desigual, e que, sobretudo, cumpria
devidamente as sagradas vontades dos que a tinham favorecido, acima de que
qualquer outra instância institucional: os seus defuntos, os que Deus tinha. E essa
gratidão tinha de se materializar através de rituais, que funcionavam como uma
componente essencial da criação de uma comunidade que envolvia presentes e
ausentes, vivos e mortos. Esses rituais exigiam, para além de performers, coisas:
lugares ou espaços de representação como igrejas e capelas, tempos especiais
do calendário litúrgico, vestes e alfaias, lâmpadas acesas em altares. Para os de-
sempenhar, era necessário transformar rendas em gêneros e dinheiro, padrões
de juro em bens de natureza espiritual, que por sua vez requeriam as materiali-
dades inerentes aos espaços e objetos próprios dos rituais. Ou seja, operar uma
circulação permanente entre gêneros de valores através conversões do material
para espiritual e deste para o material. Que, no caso vertente, podiam envolver
demoradas viagens transoceânicas de ida e volta, trocando cartas de emigrantes,
testamentos, e sobretudo, riqueza.

137
CONVENTOS FEMININOS E
RELIGIOSIDADE SUBVERTIDA:
Évora séculos XVII e XVIII

Isabel M. R. Mendes Drumond Braga

1.

O encerramento nos espaços conventuais, quando forçado, suscitava cons-


tantes resistências, que podiam assumir aspectos diversificados tais como, e de
entre outros, a continuação dos comportamentos mundanos nas casas de reli-
gião, dando origem a práticas pouco consentâneas com as atitudes esperadas.
Nem sempre a população religiosa que integrava conventos e mosteiros tinha
vocação para se dedicar a uma vida abnegada, de oração e retiro do mundo.
Efetivamente, ingressar num convento ou num mosteiro podia ser o resultado
de pressões familiares e de estratégias patrimoniais, de tal modo que estas ins-
tituições, além de constituírem oportunidades para filhas segundas da nobreza,
a quem não fora possível casar, e de integrarem mulheres de outros grupos so-
ciais de acordo com as exigências de cada estabelecimento, eram, para certas
mulheres de então, locais de educação na juventude, espaços de retiro espiritual
durante o casamento e refúgio temporário ou definitivo na viuvez1, apesar de as
directrizes tridentinas limitarem cada vez mais estas situações2, reguladas pos-
teriormente pelos Papas Gregório XIII, Paulo V e Clemente X, em 1575, 1612
e 1676, respectivamente3. Porém, os problemas mais significativos dentro dos
1 BEAUVALET-BOUTOUYRIE, Scarlet. Être Veuve sous l’Ancien Régime. Paris: Belin, 2001, p. 283 ; LAVEN, Mary. Monache. Vivere in Convento

nell’Età della Controriforma. Trad. de Federico Barbierato. Milan: Il Mulino, 2004; EVANGELISTI, SilviA. Nuns. A History of Convent Live 1450-1700.

Oxford: Oxford University Press, 2007, pp. 25, passim; STROCCHIA, Sharon T. Nuns and Nunneries in Renaissance Florence. Baltimore: The John Ho-

pkins University Press, 2009; MONSON, Craig A. Nuns Behaving Badly. Tales of Music, Magic Art and Arson in the Convents of Italy. Chicago: London:

The University of Chicago Press, 2010.

2 Esta matéria foi discutida na 25.ª sessão do concílio, realizada a 14 de dezembro de 1563. Cf. O Sacrosanto e Ecumenico Concilio de Trento em Latim e

Portuguez. tomo 2, Lisboa, Oficina Patriarcal de Francisco Luís Ameno, 1781, sessão 25, cap. 5, pp. 367-371.

3 Sobre este assunto, cf. GRECO, Gaetano. Monasteri ed Esperienze Religiose Femminili nella Toscana Moderna. Problemi ed Ipotesi di Ricerca. In: No-

139
espaços conventuais eram ocasionados pelas freiras e não pelas mulheres que ali
ficavam apenas temporariamente.
Quer os superiores das Ordens quer os bispos4 procuravam visitar as insti-
tuições, prática a que foi prestada mais atenção após o Concílio de Trento. Em al-
gumas casas o que viam era alarmante: disputas nas eleições para abadessa, lutas
pelas celas das religiosas que faleciam, cobrança de propinas às noviças quando
professavam, violação da clausura, brigas provocadas por ciúmes, insultos e até
agressões físicas, posse de animais dentro do convento, realização de comédias
e autos em ocasiões festivas, descuidos com os hábitos, uso de cosméticos e até
práticas homossexuais, eram bastante mais comuns do que poderíamos pensar5.
Advertências, censuras e excomunhões, ou seja, mecanismos de coerção, nem
sempre eram eficazes, tanto mais que a manutenção dos comportamentos des-
viantes era uma realidade, bem patente nas visitas e devassas levadas a efeito ao
longo da Época Moderna.
Se a prática de visitar as casas religiosas foi anterior ao Concílio de Trento6,
durante o mesmo insistiu-se nas exigências que deveriam ser tidas em conta

bildonne, Monache e Cavaliere dell’Ordine di Santo Stefano: Modelli e Strategia Femminili nella Vita Publica della Toscana Granducale, direcção de Mar-

cella Aglietti. Pisa: Edizione ETS, 2009, pp. 140-142; LISORI, Alessia. I Monasteri Femminili a Roma nell’Età della Controriforma: Insechiamenti Urbani

e Reti di Potere (secc. XVI-XVII). Roma, Dottorato di Ricerca in Società, Politica e Culture del Medioevo all’Età Contemporanea, Università Roma-La

Sapienza, 2010, pp.426-433; CAFFIERO, Marina. Legami Pericolosi. Ebrei e Cristiani tra Eresia, Libri Proibiti e Stregoneria. Turim: Einaudi, 2012, p. 193.

4 Sobre a obrigação de visitar os conventos, cf. O Sacrosanto e Ecumenico Concilio de Trento […], tomo 2, sessão 25, cap. 11, pp. 381-383. Os conventos

de jurisdição papal eram governados e visitados pelos bispos. Cf. ZARRI, Gabriella. Ordine Religiosi e Autorità Episcopali : le Visite Pastorali a Chiese

Esenti e Monasteri. In: Fonti Ecclesiastiche per la Storia Sociale e Religiosa d’Europa: XV-XVII secolo, direcção de Cecilia Nubola e Angelo Turchini.

Bologne: Il Mulino, 1999, pp. 356-364, passim.

5 BRAGA, Isabel M. R. Mendes Drumond. Vaidades nos Conventos Femininos ou das Dificuldades em deixar a Vida Mundana (séculos XVII-XVIII.

Revista de História da Sociedade e da Cultura. Coimbra, vol. 10, tomo 1, 2010, pp. 305-322 (disponível on line em https://www.academia.edu/6555044/).

6 Cf. MEA, Elvira Cunha de Azedo. A Igreja em Reforma In: DIAS, João José Alves (Coord.). Portugal do Renascimento à Crise Dinástica. (Nova História

de Portugal, direcção de Joel Serrão e A. H. de Oliveira Marques, vol. V). Lisboa: Presença, 1998, pp. 413-446. Na concretização das determinações

conciliares, além do cardeal infante, que era igualmente arcebispo de Évora, destacou-se também D. frei Bartolomeu dos Mártires enquanto arcebispo

de Braga. Cf. sobre o primeiro, SILVA, Amélia Maria Polónia da. O Cardeal Infante D. Henrique, Arcebispo de Évora. Um Prelado no Limiar da Viragem

Tridentina. Porto, Provas de Aptidão Pedagógica e Capacidade Científica, 1989; Idem, Recepção do Concílio de Trento em Portugal: as Normas Envia-

das pelo Cardeal D. Henrique aos Bispos do Reino, em 1553. Revista da Faculdade de Letras. História. Porto, 2.ª série, vol. 7, 1990, pp. 133-143; BRAGA,

Isabel M. R. Mendes Drumond. A Visita da Inquisição a Braga, Viana do Castelo e Vila do Conde em 1565. Revista de la Inquisición. Madrid, n.º 3,

1994, pp. 29-67 (disponível on line em https://www.academia.edu/6606245/). Sobre o segundo, cf. CASTRO, José. Venerável Bartolomeu dos Mártires

(Arcebispo e Senhor de Braga). Porto: Oficina Gráfica da Casa Nun’Alvares, 1946; ROLO, Raul de Almeida. O Bispo e a sua Missão Pastoral. Segundo D.

frei Bartolomeu dos Mártires. Porto: Edição do Movimento Bartolomeano, 1964; Frei Bartolomeu dos Mártires (1514-1590). Catálogo Biblio-Iconográfico.

Lisboa: Biblioteca Nacional, 1991; CASTRO, Aníbal Pinto de. Fra Bartolomeo dei Martiri, un Vescovo Tridentino per la Modernità. D. Frei Bartolomeu

dos Mártires, um Bispo Tridentino para a Modernidade. Roma: Coimbra, [s.n.], 1999.

14 0
no momento de admitir as candidatas a freiras, desde a formação intelectual e
doutrinária, o dote, a vocação, passando pela reflexão acerca do ato de profes-
sar7. Por outro lado, ao relembrar aos bispos e superiores das Ordens a neces-
sidade de visitar as casas e ao tornar essa prática rotineira tentou disciplinar-se
o comportamento da população religiosa. Efectivamente, após Trento8, o clero
desempenhou uma ação mais actuante e efetiva no que se refere ao controlo do
comportamento dos fiéis, assunto naturalmente ligado ao discurso de natureza
política9. Neste sentido, as propostas historiográficas dos últimos anos têm tido
em linha de conta os diferentes tipos de controlo moral e social e os seus dife-
rentes agentes, bem como as áreas de cooperação e conflito verificadas entre os
vários intervenientes no processo de disciplinamento social10.
Conduzir as condutas, quer de leigos quer de eclesiásticos, foi uma tarefa
que implicou esforços conjuntos da Coroa e da Igreja, os quais passaram pela
utilização de formas e instrumentos de difusão do discurso religioso, umas de
carácter repressor, tais como visitas pastorais e inquisitoriais e censura de livros
e outras de carácter pedagógico e persuasivo, tais como missões do interior, pre-
gações, ensino da doutrina e confissões, sem esquecer a divulgação de livros de
devoção, catecismos, hagiografias, imagens e até peças de teatro com fins evan-
gelizadores11. O objecto do nosso estudo centra-se nas resistências ao disciplina-
mento no universo conventual feminino a partir de sondagens levadas a efeito na

7 O Sacrosanto e Ecumenico Concilio de Trento […], tomo 2, sessão 25, cap. 18, pp. 395-397, cap. 20, pp. 399-401.

8 Em Portugal os decretos tridentinos foram adoptados como lei durante a regência do cardeal infante D. Henrique na menoridade de D. Sebastião,

reforçando a influência do direito canónico na legislação portuguesa não obstante a oposição de alguns sectores, incluindo de algumas facções do clero.

A bula de Pio V, de 26 de janeiro de 1564, na qual confirmou o concílio, foi solenemente lida e publicada na sé de Lisboa pelo próprio cardeal. Da

iniciativa do regente foi igualmente a publicação dos decretos em latim e em português, ambas as edições de 1564.

9 CARDIM, Pedro. Politics and Power Relations in Portugal (Sixteenth-Eighteenth Centuries). Parliaments. Estates and Representations. London, vol.

13, n.º 2, 1993, pp. 95-108.

10 Efetivamente, se a origem destes conceitos é alemã e se, inicialmente, foram utilizados na história política, depressa o âmbito foi alargado à história

religiosa, tanto mais que as relações entre o político e o religioso foram marcantes ao longo de toda a Época Moderna, pois os fenómenos religiosos só

podem ser compreendidos de forma relacional. Cf. SCHULZE, Winfried. Il Concetto di ‘Disciplinamento Sociale nella prima Età Moderna’ in Gerhard

Oestreich. Annali dell’Istituto Storico Ítalo-Germanico in Trento. Bologna, vol. 18, 1992, pp. 371-411; REINHARD, Wolfgang. Disciplinamento Sociale,

Confessionalizzazione, Modernizzazione. Un Discurso Storiografico. In: PRODI, Paolo; PENUTI, Carla (Coords.). Disciplina dell’Anina, disciplina del

Corpo e Disciplina della Società tra Medioevo ad Età Moderna. Bologna: Società Editrice il Mulino, 1994, pp. 101-123; SCHILLING, Heinz. Chiese Con-

fessionali e Discilinamento Sociale. Un Bilancio Provvisorio della Ricerca Storica. In: PRODI, Paolo; PENUTI, Carla (Coords.). Disciplina dell’anina.

Op. cit, , pp.125-160.

11 Uma síntese desta realidade em Portugal, pode ser vista na obra de PALOMO, Federico. A Contra-Reforma em Portugal 1540-1700. Lisboa: Horizonte, 2005.

141
arquidiocese de Évora, de meados do século XVII a meados da centúria seguinte,
comparando com alguns resultados já obtidos para outros pontos do país.

2.

Independentemente das regras de cada ordem religiosa, publicaram-se


obras com intuitos específicos de disciplinar o comportamento das freiras e de
moldar a espiritualidade de todos os que viviam ou não em espaços conven-
tuais12. Não obstante, os desvios às normas e os desrespeitos das regras eram
uma constante atestada pela repetição das recomendações e das proibições, indí-
cios claros da persistência das infracções. Independentemente da regra seguida,
havia constantes, tais como, e de entre outras, a obrigatoriedade de clausura e
de castidade, a obrigação de usar hábitos de acordo com o prescrito, de manter
contatos cordiais com as restantes freiras e de ocupar honestamente os tempos
livres. Porém, o disciplinamento das comunidades era difícil e as resistências
faziam sentir-se com muita veemência.
Se ingressar numa casa religiosa feminina implicava, naturalmente, o aban-
dono do mundo, violar a clausura13 – que significava, sobretudo, a eliminação de
algumas oportunidades de comportamentos escandalosos – era uma tentação
que teria que ser banida tal como a presença de pessoas estranhas aos conventos,
vivendo entre as freiras. Neste último caso, estipulavam-se condições, nomeada-
mente em relação ao sexo e à idade bem como ao tempo de permanência. Mas,
nem sempre as determinações eram cumpridas e não raro a mundanização foi
objecto de comentários, inclusivamente por parte de estrangeiros14.

12 Cf. CARVALHO, José Adriano (Dir.). Bibliografia Cronológica da Literatura de Espiritualidade em Portugal: 1500-1700. Porto: Instituto de Cultura

Portuguesa, 1988.

13 Sobre esta matéria, cf. ZARRI, Gabriella; MEDIOLI, Francesca; CHIAPPA, Paola Vismara. De Monialibus (secoli XVI-XVII-XVIII). Rivista di Storia

e Letteratura Religiosa. Firenze, vol. 34, 1998, pp. 643-715.

14 Vejam-se as críticas de Joaquin Le Grand, secretário do embaixador de França em Portugal, expressas no final do século XVII, sobre as religiosas de

Odivelas. Cf. BRAGA, Isabel M. R. Mendes Drumond. Impressões de Portugal nas Correspondências de Le Grand et de Rouillé (1694-1700). Archives

du Centre Culturel Portugais. Lisboa-Paris, n.º 32, 1993, p. 586 (disponível on line em https://www.academia.edu/7507773/). Sobre o encerramento das

mulheres seculares, cf. LOPES, Maria Antónia. Mulheres, Espaço e Sociabilidade. A Transformação dos Papéis Femininos em Portugal à luz das Fontes

Literárias (segunda metade do século XVIII). Lisboa: Livros Horizonte, 1989, pp. 46-65. Para outros espaços, designadamente Veneza, cf. LAVEN, Mary,

Monache. Op. cit. Encontra-se resistência à clausura, um pouco por todo o lado. Cf., por exemplo, LORENZO PINAR, Francisco J. Monjas Disidentes.

14 2
O que nos informam as fontes sobre as três casas religiosas do arcebispado
de Évora escolhidas para objecto de estudo – Convento das Servas de Nossa
Senhora, de Borba; Convento do Salvador, de Évora, e Mosteiro de São Bento,
de Cástris, – cuja documentação resultante das visitas chegou até nós15? Eram
os comportamentos destas religiosas afins aos de outras de conventos da mesma
ordem e de conventos de ordens diferentes? As suas condutas constituíam casos
isolados ou eram extremamente frequentes? Quantas freiras e monjas estavam
envolvidas nestes comportamentos de clara resistência à vida retirada do século
e de práticas subvertidas?
Verificaram-se problemas constantes nas três casas religiosas, nomeada-
mente faltas ao coro sem legítimo impedimento, algum barulho no coro, no dor-
mitório e durante a celebração da missa, faltas de obediência à prelada, questões
com a regulação do tempo em que as freiras podiam estar às grades e más rela-
ções entre religiosas e criadas. Estes assuntos repetiram-se nas visitas e estiveram
quase sempre presentes nas chamadas de atenção dos visitadores das diferentes
casas, ao longo dos séculos XVII e XVIII. Alguns exemplos são significativos. Em
1663, frei João Lourenço Botelho, ao visitar São Bento de Cástris, considerou:

ser muito para estranhar que as religiosas se descompo-


nham umas com as outras e não guardam a obediência que
devem às mais ancianas e preladas suas mandamos que de
hoje em diante toda a religiosa que se descompuser em pa-
lavras com outra a madre abadessa a mandara comer pão
e água em terra e lhe tirará as grades por três meses […] e
porque as religiosas vieram à religião para serem verdadei-
ras filhas do nosso padre São Bernardo e não para andarem
com a descomposição de seculares em seus trajes manda-
mos que nenhuma possa trazer decotados, que lhe sejam
estranhados nem mangas largas como soldados do mun-
do, nem possam trazer fitas nas tais mangas nem cousas de

Las Resistencias a la Clausura en Zamora tras el Concilio de Trento. In: MESTRE SANCHÍS, Antonio; GIMÉNEZ LÓPEZ, Enrique (Coords.). Disi-

dencias y Exilios en la España Moderna. Alicante: Caja de Ahorros del Mediterráneo: Universidad de Alicante, 1997, pp. 71-80; María Carmen Gómez

García. Los Conflitos en la Clausura Femenina de la Málaga Moderna. In: MESTRE SANCHÍS, Antonio; GIMÉNEZ LÓPEZ, Enrique (Coords.),

Disidencias y Exilios en la España Moderna. Op. cit, pp. 81-89.

15 A documentação destas casas, no que se refere a visitas, começa em 1663 e prolonga-se pelos séculos seguintes. É visível a continuidade dos proble-

mas sem que as visitas tenham conseguido alterar comportamentos, como se poderá ver no texto.

14 3
seda, nem tufos de mangas lançados para fora16.

Na visitação seguinte, de 1666, levada a cabo por frei João de Seixas, a si-
tuação não conhecera melhorias, uma vez que o visitador verificou: “algumas
religiosas se não tratam com aquele decoro e respeito à gravidade de seu hábito
e pessoas mandamos que a religiosa que falar mal ensinada a outra seja peniten-
ciada com pão e água em terra por três dias e a privarão de grades dois meses”17.
E os problemas continuarão, nas visitas posteriores. No ano seguinte, frei Luís
Coutinho e frei Sebastião de Sottomayor entenderam que às 10 horas todas as
religiosas deveriam estar nos leitos “e aquelas que [a abadessa] achar fora deles
ou recolhidas umas nos leitos das outras donde nasce estarem desinquietando as
religiosas vizinhas toda a noite”18, fossem castigadas. Em 1673, foi a vez de frei
Gabriel da Ave Maria verificar que:

muitas religiosas esquecidas de sua obrigação vão à casa


da portaria e grades sem hábito, mandamos que na casa
da portaria e grades por serem lugares tão públicos e haver
em esta matéria escândalo venham com toda a composição
as religiosas com seus cogulos e às conversas com os seus
mantos e os não poderão tirar em as grades e que pelo mos-
teiro não andem sem toucados por ser indecente ao estado
que professam19.

Novas informações relevantes se encontram em 1677, quando frei Sebas-


tião de Sottomayor relembrou as funções das casas religiosas:

porque a principal razão de se fazerem os mosteiros dos re-


ligiosos e religiosas foi para se louvar a Deus Nosso Senhor
em o coro, mandamos […] façam rezar o ofício divino e
horas de Nossa Senhora com a pausa devida e de nenhu-
ma maneira consintam que neste lugar por ter oficina só a

16 Évora, Biblioteca Pública de Évora (B.P.E.), cod. CXXXI/2-23, fol. 2.

17 Évora, B.P.E., cod. CXXXI/2-23, fol. 4v.

18 Évora, B.P.E., cod. CXXXI/2-23, fol. 7v.

19 Évora, B.P.E., cod. CXXXI/2-23, fol. 16.

14 4
Deus dedicada, se quebre o silêncio nem antes do convento
começar nem depois de acabar de rezar20.

No século XVIII, os problemas mantiveram-se. Por exemplo, frei António


do Quental recordou, em 1716, que “as religiosas se devem tratar com todo o res-
peito e amar como irmãs e ser cousa indecente que as religiosas se desautorizem
umas às outras com palavras afrontosas”21.
No convento das Servas de Nossa Senhora, de Borba, a situação não era
melhor. Em 1751, frei José dos Serafins, lembrou, acerca da necessidade de obe-
diência que esta era o “fundamento de todas as virtudes”22, acrescentando que
a abadessa “lance fora do mosteiro todas aquelas “moças que falarem nas gera-
ções ou vidas das freiras”23. No mesmo convento, em visita levada a efeito em
1754, frei Filipe da Assunção considerou que “as duas grades sejam repartidas
por todas as religiosas dando a cada uma o seu dia de grade vindo porem pais,
mães ou irmãos das religiosas de fora da terra estas sejam logo atendidas e a
religiosa a quem pertencer o dia de grade recompensara em o dia que pertencer
a que a ocupa”24. No ano seguinte, frei José do Menino Jesus, recomendou que:
“rezem, entoem e cantem com aquela devoção e pausas que repetidas vezes lhe
temos recomendado, advertindo que não queremos vagares que só servem de
enfado nem pressas que causam escândalo mas que tudo se faça devota e discre-
tamente”25. O mesmo ordenou ainda que, no dormitório, se guardasse silêncio
“falando se só branda e baixamente o que for preciso”26. Em 1779, frei Aleixo de
Encarnação determinou:

não consinta [a abadessa] de modo algum que as moças de-


satendam e deem más respostas às religiosas nem levantem
vozes e façam gritarias na clausura pois esta deve ser casa
de silêncio e quando é preciso falarem devem ser as vozes

20 Évora, B.P.E., cod. CXXXI/2-23, fol. 25.

21 Évora, B.P.E., Cod. CXXXI/2-23, fol. 108.

22 Évora, B.P.E., Convento das Servas de Nossa Senhora de Borba, liv. 8, fol. 7v.

23 Évora, B.P.E., Convento das Servas de Nossa Senhora de Borba, liv. 8, fol. 9v.

24 Évora, B.P.E., Convento das Servas de Nossa Senhora de Borba, liv. 8, fol. 10.

25 Évora, B.P.E., Convento das Servas de Nossa Senhora de Borba, liv. 8, fol. 11v.

26 Évora, B.P.E., Convento das Servas de Nossa Senhora de Borba, liv. 8, fol. 12.

14 5
comedidas, brandas e sem perturbação da clausura, princi-
palmente na roda onde sabemos as altas gritarias e assoadas
que as moças fazem27.

O mesmo visitador interrogou ainda que “sendo a oração mental o alimento


com que se nutre a alma como poderá viver esta faltando-lhe aquele quotidiano
sustento?” e proibiu as dispensas das orações28. Mais acrescentou que “o silêncio
é a chave da consciência”29. Logo, deveria guardar-se.
Diversos assuntos, igualmente presentes nos dois conventos e no mosteiro,
merecem atenção mais precisa. Comecemos pelo particular da clausura. Recorde-
mos que a mesma havia sido imposta, em 1298, pelo Papa Bonifácio VIII e que o
Concílio de Trento voltou ao assunto, reafirmando a necessidade de cumprimento
desta prerrogativa por parte de todas as ordens religiosas femininas30. Papas como
Pio V e Gregório XIII tornaram mais claras algumas determinações sobre a ma-
téria31. Em São Bento, de Cástris, João Lourenço Botelho estranhou, em 1663, que
as religiosas falassem “das janelas dos seus leitos que dão para a parte de fora nem
aparecerem neles descompostas, nem acenarem delas para pessoa nenhuma pelo
grande escândalo que nisso dão a quem as vê”. Estranhou igualmente que falassem
e acenassem para a igreja e para a grade da sacristia “como é costume”32. Mais tar-
de, em 1680, o visitador Luís Coutinho fez notar o conceito de clausura:

Foi-nos zelado que muitas religiosas moças dormiam e fica-


vam nas casas particulares o que é contra o estilo de todos os
mais conventos e observância da clausura e só permitindo que
às que estão doentes ou são anciãs pelo que mandamos que
daqui em diante nenhuma religiosa de menos de vinte anos
de hábito e profissão possa dormir nem ficar de noite nas tais
casas se não que durmam nos leitos dos dormitórios33.

27 Évora, B.P.E., Convento das Servas de Nossa Senhora de Borba, liv. 8, fol. 26.

28 Évora, B.P.E., Convento das Servas de Nossa Senhora de Borba, liv. 8, fol. 24.

29 Évora, B.P.E., Convento das Servas de Nossa Senhora de Borba, liv. 8, fol. 24.

30 O Sacrosanto e Ecumenico Concilio de Trento […], tomo 2, sessão 25, cap. 5, pp. 367-371.

31 LIROSI, Alessia, Il Monasteri Femminili a Roma nell’Età della Controriforma. Op. cit, pp. 151-165.

32 Évora, B.P.E., cod. CXXXI/2-23, fol. 2v.

33 Évora, B.P.E., cod. CXXXI/2-23, fol. 38.

14 6
Em 1683, os problemas eram outros:

estão umas janelas muito devassadas para fora do mosteiro


sem reparo algum de gelosias e as outras que as têm são cor-
rediças e se podem abrir a toda a hora mandamos às sobre-
ditas madres que dentro em dois meses mandem por rotas
ou gelosias nas ditas janelas e nas que já as têm lhes botem
umas travessas de sorte que não possam correr34.

E no século XVIII, os problemas continuaram. Em 1715, frei Henrique de


Azevedo ordenou que “se não falasse com pessoa alguma das janelas do dormi-
tório que caem para o campo”. As religiosas já antes tinham sido advertidas mas
continuavam com as conversas, de tal modo que causavam “escândalo não só de
toda esta comunidade como mas também de toda a cidade e sua vizinhança”35.
No ano seguinte, foi a vez de frei António do Quental lembrar que as porteiras
estavam impedidas de abrir a porta “para entrar trabalhador algum ou oficial
sem que primeiro chegue a guarda que com eles há-de ir e porque à conta de
alguns presentes entram moços talvez desconhecidos mandamos que levem os
moços do pátio”36. Por seu lado, em 1784, o visitador frei Alexandre de Vascon-
celos não deixou de notar que faltavam rótulas nas janelas que davam para o
pátio e para fora da clausura37. Utilizava-se a arquitectura para facilitar a guarda
da pureza e morigerar a vida conventual38.
Em outros conventos os problemas eram semelhantes. O franciscano José
dos Serafins, por exemplo, durante a visita ao Convento das Servas de Nossa Se-
nhora, de Borba, em 1751, verificou que algumas religiosas tentavam contactar
com pessoas do exterior:

por qualquer pretexto leve se admitem entrar em clausura


homens e mulheres de fora cujo escândalo devemos lamen-
tar. Mandamos que de todo se evitem semelhantes entradas

34 Évora, B.P.E., cod. CXXXI/2-23, fol. 59.

35 Évora, B.P.E., Cod. CXXXI/2-23, fol. 102v.

36 Évora, B.P.E., Cod. CXXXI/2-23, fol. 113.

37 Évora, B.P.E., Cod. CXXXI/2-22, fol. 30.

38 Sobre este assunto, cf. LIROSI, Alessia, Il Monasteri Femminili a Roma nell’Età della Controriforma. Op. cit, pp. 415-426.

147
e só poderão entrar a fazer aquelas coisas que não podem
fazer as criadas ou com aqueles pesos com que as ditas não
podem para cujo efeito será primeiro consultado o reveren-
do padre vigário para permitir a tal licença sendo justa.

O franciscano acrescentou ainda que as porteiras não poderiam permitir


conversas com pessoas “de qualquer estado e qualidade” e que a porta do con-
vento “só se deve abrir para as coisas que não podem entrar pela roda”39. Em vi-
sita posterior, frei José do Menino Jesus, fez notar que as religiosas deveriam ob-
servar a clausura “com aquella prefeição que convém às esposas de Jesus Cristo,
havendo toda a cautela precisa para que os seculares não estranhem antes se edi-
fiquem de que as religiosas vivem separadas do comércio mundano40”. Em 1761,
foi a vez de frei João de Nossa Senhora Mãe dos Homens reparar que “algumas
pessoas que entram na clausura demoram mais tempo do que é necessário”41.
Mais tarde, em 1781, frei Francisco Xavier dos Anjos insistiu para que ninguém
de fora entrasse na clausura “a fazer serviço algum senão o necessário e que as
moças do convento não podem fazer e que quem entrar para o que for preciso
não ande correndo o convento mas só e unicamente vá aqueles lugares onde tiver
o que fazer e trabalhar e nada mais”42. Antes, em 1769, frei Tomé de São Garção
recomendou, para maior perfeição da clausura, que a abadessa mandasse tornar
o ralo do locutório mais discreto43. Era a clausura a repercutir-se na arquitectura.
No convento do Salvador, a situação era semelhante. O arcebispo Joaquim
Xavier Botelho de Lima ordenou a proibição da presença de meninos e de me-
ninas na clausura e determinou que “o moço do forno nunca poderá entrar para
conduzir ou recolher o pão sem que seja dia claro” e que “a nenhum oficial seja
permitido trabalhar no convento em obra que possa fazer fora dele”44. Em outra
visita, de 1787, o arcebispo voltou a insistir em questões afins: “não será lícito às
religiosas dar de comer dentro da clausura debaixo de qualquer pretexto a pes-

39 Évora, B.P.E., Convento das Servas de Nossa Senhora de Borba, liv. 8, fol. 7v.

40 Évora, B.P.E., Convento das Servas de Nossa Senhora de Borba, liv. 8, fol. 12.

41 Évora, B.P.E., Convento das Servas de Nossa Senhora de Borba, liv. 8, fol. 19.

42 Évora, B.P.E., Convento das Servas de Nossa Senhora de Borba, liv. 8, fol. 25v. Sobre este assunto, no arcebispado de Braga, cf. BRAGA, Isabel M. R.

Mendes Drumond, Vaidades nos Conventos Femininos. Op. cit, p. 309.

43 Évora, B.P.E., Convento das Servas de Nossa Senhora de Borba, liv. 8, fol. 23v.

44 Évora, B.P.E., Convento do Salvador de Évora, liv. 17, fols 19-19v.

14 8
soas de fora nem ainda a título de serviços particulares ou por serem familiares
seus, exceptuando o hortelão estando empregado na cultura da horta”45.
Outra preocupação, por vezes ligada à quebra da clausura, referia-se à cas-
tidade. Se a principal preocupação era no sentido de evitar contatos com o sexo
masculino, mesmo entre mulheres a questão nem sempre era totalmente pací-
fica. Não terá sido por acaso que Rouillé, embaixador de França em Portugal,
afirmou ser frequente o amor entre religiosas que se tratavam por manas46 e que
frei Lucas de Santa Catarina tenha referido o mesmo assunto embora com uma
linguagem mais violenta47. Por outro lado, algumas visitas e devassas referiram
ciúmes e insinuaram mesmo práticas homossexuais e suas consequências no
âmbito da vida conventual.
No caso dos conventos em estudo, ao contrário do que aconteceu com al-
guns do arcebispado de Braga, não se encontram provas cabais de homossexua-
lidade feminina. As visitas apenas aludem a algumas irregularidades, aparente-
mente pouco relevantes. Na visitação de 1751, ao Convento das Servas de Nossa
Senhora, de Borba, frei José dos Serafins considerou que:

porque devemos evitar tudo aquilo que pode causar per-


turbação e desassossego à vida religiosa mandamos que as
meninas não sejam ensinadas em os dormitórios nem tão
pouco em o antecoro e coro e só serão ensinadas em lugar
mais acomodado e que não seja impedimento ao sossego e
quietação religiosa48.

Mais tarde, em 1784, frei Francisco Xavier dos Anjos limitou-se a ordenar
que as moças dormissem no seu dormitório, excepto as que tinham as suas reli-
giosas doentes49. E em 1781, frei Alexandre de Vasconcelos recordou às monjas
de Cástris que cada uma deveria dormir na sua cela e não “nas casas e fora das

45 Évora, B.P.E., Convento do Salvador de Évora, liv. 111, fol. 6v.

46 Isabel M. R. Mendes Drumond Braga, Impressões de Portugal nas Correspondências. Op. cit, p. 586.

47 RODRIGUES, Graça Almeida. Literatura e Sociedade na Obra de Frei Lucas de Santa Catarina (1692-1740). Lisboa: Imprensa Nacional Casa da

Moeda, 1983, p. 199.

48 Évora, B.P.E., Convento das Servas de Nossa Senhora de Borba, liv. 8, fol. 8.

49 Évora, B.P.E., Convento das Servas de Nossa Senhora de Borba, liv. 8, fol. 26.

14 9
suas celas”50. Já em 1679, as religiosas haviam sido advertidas relativamente às
dormidas mas os problemas eram distintos: “Por serem os dormitórios lugares
de silêncio […] mandamos que de hoje em diante não cantem nem tanjam viola
nem dancem nos domingos nem na enfermaria e só em caso de alguma religiosa
doente queira ouvir cantar […] poderão tanger e cantar”51.
Mas, a questão das celas assumiu outra vertente, tal como em outros lo-
cais . Algumas religiosas entendiam que poderiam decidir a quem as passa-
52

riam por sua morte, como se lhes fosse possível dispor tal em testamento. Para
contrariar este princípio, em 1781, no convento de Borba, o visitador decidiu
que “as celas que vagarem de hoje em diante as reparta e dê as religiosas a quem
por sua antiguidade competem”53. Poucos anos depois, em 1789, o arcebispo
de Évora lembrou às freiras do Salvador que não poderiam deixar a sua cela a
outrem por suas mortes54.
Independentemente de ciúmes, as freiras nem sempre se tratavam com a
devida correcção. O estatuto que tinham detido no mundo secular era, não ra-
ras vezes, levado para o convento55. Assim, brigas e injúrias fizeram parte do
quotidiano de algumas casas. Em 1751, quando frei José dos Serafins visitou o
convento das Servas de Nossa Senhora, de Borba, ordenou e exortou que

50 Évora, B.P.E., Cod. CXXXI/2-22, fol. 25.

51 Évora, B.P.E., cod. CXXXI/2-23, fol. 33.

52 PALOMBO, Irene. Il Sistema dei Monasteri Femminili in una Terra di Confine. La Diocesi di Sora, Aquino e Pontecorvo. Venecia, Dottorato di Ricerca

in Storia Social Europea dal Medioevo all’Età Contemporanea, Università Ca’Foscari Venezia, 2009, pp. 131-133; LIROSI, Alessia, Il Monasteri Femmi-

nili a Roma nell’Età della Controriforma. Op. cit, pp. 493-501.

53 Évora, B.P.E., Convento das Servas de Nossa Senhora de Borba, liv. 8, fol. 22v.

54 Évora, B.P.E., Convento do Salvador de Évora, liv. 17, fol. 20.

55 Este problema colocou-se desde cedo. Cf. PINTO, Frei Heitor. Imagem da Vida Cristã. Prefácio e notas de Alves Correia. 2.ª edição. Lisboa: Livraria

Sá da Costa, 1952, vol. 1, pp. 121-133. A partir do século XVII, houve mesmo questões resultantes da origem cristã-nova de algumas freiras. Cf. MEA,

Elvira Azevedo Mea. 1621-1634. Coimbra, O Sagrado e o Profano em Choque. Revista de História das Ideias. Coimbra, vol. 9, tomo 2, 1987, pp. 229-248;

REIS, Maria de Fátima Dias dos. Um Conflito de Poderes: A ‘Sedição’ das Freiras do Convento de Santa Clara de Santarém e os Problemas da Aplicação

do Beneplácito Régio em Meados do Século XVIII. Amar, Sentir e Viver a História. Estudos de Homenagem a Joaquim Veríssimo Serrão. Lisboa: Colibri,

1995, vol. 2, pp. 933-935; SANTOS, Georgina Silva dos. Isabel da Trindade: o Criptojudaísmo nos Conventos Portugueses Seiscentistas. In: VAINFAS,

Ronaldo; SANTOS, georgina Silva dos; NEVES, Guilherme Pereira das (Orgs.). Retratos do Império. Trajetórias Individuais no Mundo. Niterói: Eduff,

2006, pp. 333-340; Idem. Entre Jesús y Moisés: el Marranismo en los Conventos Ibéricos durante el siglo XVII. In: Historias Compartidas. Religiosidad

y Reclusión Femenina en España, Portugal y América, silos XV-XIX. León: Universidad de León, 2007, pp. 195-210; Idem. A Face Oculta dos Conventos:

Debates e Controvérsias na Mesa do Santo Ofício. In: VAINFAS, Ronaldo; MONTEIRO, Rodrigo Bentes (Orgs.). Império de Várias Faces. Relações de

Poder no Mundo Ibérico da Época Moderna. São Paulo, Alameda, 2009, pp. 141-150. Em outros espaços europeus aconteciam situações idênticas. Cf.

EVANGELISTI, Silvia, Nuns. A History of Convent Live. Op. cit, p. 30.

150
nenhuma religiosa se atreva a proferir contra outra qual-
quer palavra injuriosa ou dito de que se seguem escândalos
e bulhas tais que se não acham ainda em mulheres seculares
e de menos nota prometendo se pancadas o que é indecoro-
so e de nenhum credito ao estado e vida religiosa56.

Na visita seguinte, de 1753, frei Martinho de São José aludiu escandalizado:

por nos constar da visita a grande perturbação em que as


religiosas deste mosteiro se acham pelos libelos infamató-
rios, ditos, mentiras, aleivosias e juízos temerários de que
resulta faltar a paz que desejamos haja entre todas, a todas
admoestamos que pondo fim a todas as origens das dissen-
sões não fação a vontade ao inimigo de nossas almas mas
sim a de seu esposo que a todas quer unidas em sua graça57.

No entanto, a exortação do visitador não teve efeito. Em 1758, um outro


franciscano, frei António de Santa Coleta, lamentou a situação: “devemos ob-
viar as descomposturas de palavras com que se tratam muitas vezes em público
as pessoas religiosas […] a mordacidade da língua […] não movam discórdias
entre si atendendo a que são espirituais irmãs moderem as línguas por que não
se ofenda o sagrado”58. Pouco depois, frei Aleixo da Encarnação entendeu que:
“quando seja necessário dizerem umas a outras alguma palavra seja com tal mo-
deração modéstia e urbanidade que não pareça repreensão rigorosa senão fra-
ternal aviso”59. Os anos passavam mas os problemas mantinham-se. Frei José da
Estrela Fonseca visitou a casa, em 1784. Advertiu no sentido de que as freiras
deveriam viver em paz, sob rogo ou castigo da abadessa, acrescentando:

não podemos deixar de ser amargamente sensíveis aos ge-


midos de alguns espíritos religiosos que lamentam com a
razão mais justa entre algumas das suas irmãs a paz per-
dida, a fidelidade, o amor e a caridade entre umas e outras

56 Évora, B.P.E., Convento das Servas de Nossa Senhora de Borba, liv. 8, fol. 7v.

57 Évora, B.P.E., Convento das Servas de Nossa Senhora de Borba, liv. 8, fol. 11v.

58 Évora, B.P.E., Convento das Servas de Nossa Senhora de Borba, liv. 8, fol. 15.

59 Évora, B.P.E., Convento das Servas de Nossa Senhora de Borba, liv. 8, fol. 16.

151
enregelada e extinguida não valendo a esta virtude o ser a
maior de todas e a base fundamental da vida cristã e reli-
giosa para que lhe deem o ouvido dócil de que ela se faz
merecedora a estas almas tíbias e carnais dirigimos as nos-
sas vozes rogando-lhe pelas entranhas de Jesus Cristo que
olhem para o exemplo do seu esposo e que se exponham
a perder o fruto de toda e qualquer obra que lhes não será
meritória se não for brotada da raiz da caridade60.

A situação era semelhante à que frei Baltazar de Azevedo e frei Aleixo de


Azevedo encontraram em 1707 e em 171661 e, mais tarde, que frei Francisco de
São Miguel também pôde verificar no mosteiro cisterciense de Cástris, o que o
levou a recomendar: “muito a todas e a cada uma das religiosas se amem mutua-
mente em Deus e por amor de Deus e de tal modo se sofram umas às outras sem
proferir palavra com que ainda mais levemente possam ofender ou escandalizar
que todas se tratem com aquela politica religiosa, respeito e veneração prescrita
não na santa regra”62.
A barafunda atingia outras vertentes. O gosto e a exibição de animais do-
mésticos63 como cães, gatos e aves, eram um fator de destabilização no espaço
conventual: barulho, reboliço e falta de higiene eram as consequências mais
imediatas. Em São Bento, de Cástris, espaço em que se chegaram a patrocinar
touradas64, o problema era frequente desde o final do século XVI65. Na centúria
seguinte, por exemplo, em 1663, o visitador fez saber que

se algumas galinhas se acharem no claustro, ou coro, ou


dormitórios damos licença a toda aquela que as achar as
possa comer sem restituição nenhuma como também as

60 Évora, B.P.E., Convento das Servas de Nossa Senhora de Borba, liv. 8, fol. 29.

61 CONDE, Antónia Fialho. Cister a Sul do Tejo: o Mosteiro de São Bento de Cástris e a Congregação Autónoma de Alcobaça (1567-1776). Lisboa: Colibri,

2009, p. 375-377.

62 Évora, B.P.E., Cod. CXXXI/2-22, fol. 6v.

63 Sobre cães e gatos na vivência dos leigos da Época Moderna, cf., respectivamente, BRAGA, Paulo Drumond. História dos Cães em Portugal. Das

Origens a 1800. Lisboa: Hugin, 2000; MARQUES, A. H. de Oliveira. Introdução à História dos Gatos em Portugal. In: TENGARRINHA, José (Coord.).

A Historiografia Portuguesa Hoje. São Paulo: Hucitec, 1999, pp. 46-59.

64 CONDE, Antónia Fialho. Cister a Sul do Tejo. Op. cit, pp. 411-412.

65 Id. Ibid., pp. 397, 402.

152
possa matar”66, enquanto em 1680, os visados eram os cães:
“pela muita queixa e escândalo que há de haverem religio-
sas que têm cães nesta clausura, sendo aliás proibidos pelos
cânones, mandamos a toda e qualquer religiosa que tiver
cão macho disponha dele e o lance fora dentro em 24 horas
depois desta nossa visita lida o que cumprirá em virtude da
santa obediência e sob pena de excomunhão maior ipso fato
incurrenda67.

Em 1694, frei Jerónimo de Saldanha referia-se à multidão de cães que


deambulavam pela casa dando 48 horas para os mesmos serem expulsos68. No
século XVIII, tudo continuou sem alterações. Em 1763, o visitador frei Caeta-
no de Sampaio, após a visita, ordenou que

por se evitarem andarem as galinhas por alguns lugares


bem impróprios para estas aves, mandamos que a madre
enfermeira mande logo matar toda a galinha e a reparta às
doentes sendo achada em algum lugar que não for o claus-
tro de fora […] por nos constar o indecente de andarem
pelo mosteiro muitos cães que lá de fora fortuitamente en-
tram pela portaria conservando-se talvez no dito mosteiro
por muito tempo mandamos que a Mui Reverenda Madre
Abadessa e o Mui Reverendo Padre confessor mandem logo
com grande diligência matar todos os ditos cães que assim
tiverem entrado na clausura69.

No entanto, o problema não ficou resolvido. Em 1781, o visitador frei Ale-


xandre de Vasconcelos assinalou a necessidade de respeitar as determinações
anteriores e, consequentemente, de enviar as galinhas às freiras doentes e de
impedir a presença de cães no coro:

por ser cousa indigna que o claustro onde se enterram as re-


66 Évora, B.P.E., cod. CXXXI/2-23, fol. 1.

67 Évora, B.P.E., cod. CXXXI/2-23, fol. 37v.

68 Évora, B.P.E., cod. CXXXI/2-23, fol. 64v.

69 Évora, B.P.E., Cod. CXXXI/2-22, fols 3v-4.

153
ligiosas seja tratado com menor decência e se ache cheio de
imundícies desejando nós evitar esta menos atenção àque-
las cujas relíquias e memórias devemos estimar, confirma-
mos a lei muitas vezes posta, que se não deixem entrar ga-
linhas e outras aves naquele claustro e se a Madre Prioresa
as achar dentro as mande matar para as doentes. E também
confirmamos a lei que proíbe os cães tanto nos claustros
como nos dormitórios assim pela limpeza como pelo dano
que podem causar danando-se70.

Outros espaços conventuais femininos alojaram cães, gatos e aves durante


os séculos XVII e XVIII, tais são os casos do Bom Jesus, de Monforte71, de San-
ta Clara, de Beja72, de Santa Clara, de Portalegre73, de Santa Clara, do Porto74,
de Santa Clara, de Santarém75, do Salvador e de Nossa Senhora dos Remédios,
ambos de Braga76.
O gosto pela vida mundana assumiu outros contornos. Referimo-nos aos
divertimentos. Em vários espaços conventuais houve lugar para levar à cena
representações teatrais de carácter profano, as quais eram, naturalmente, proi-
bidas77. Se, desde meados do século XVI, o teatro religioso, nomeadamente as
peças produzidas pelos jesuítas, era considerado uma actividade literária e peda-
gógica de relevo, uma vez que estas obras foram entendidas como instrumentos
de catequese de intenção moralizante e ecos de controvérsias politicas, sociais e
religiosas da época, funcionando como expressão da confessionalização católica

70 Évora, B.P.E., Cod. CXXXI/2-22, fols 25-25v.

71 CAEIRO, Maria Margarida Castro Neves Mascarenhas. Clarissas em Portugal. A Província dos Algarves. Da Fundação à Extinção. Em busca de um

Paradigma Religioso Feminino. Lisboa, Dissertação de Doutoramento em História e Teoria das Ideias apresentada à Faculdade de Ciências Sociais e

Humanas da Universidade Nova de Lisboa, 2006, p. 443.

72 Lisboa, Biblioteca Nacional de Portugal (B.N.P.), Cod. 8398, fols 149v-150.

73 CAEIRO, Maria Margarida Castro Neves Mascarenhas. Clarissas em Portugal. Op. cit, p. 443.

74 FERNANDES, Maria Eugénia Mata. O Mosteiro de Santa Clara do Porto em meados do século XVIII (1730-80). Porto: Arquivo Histórico da Câmara

Municipal do Porto, 1992, p. 205.

75 REIS. Maria de Fátima Dias dos. Um Conflito de Poderes: a ‘Sedição’. Op. cit, , p. 935.

76 BRAGA, Isabel M. R. Mendes Drumond Braga. Vaidades nos Conventos Femininos ou das Dificuldades. Op. cit, pp. 312-313.

77 O uso do teatro com fins recreativos e pedagógicos tão ao gosto dos jesuítas não era aceite pelos visitadores pois, de um modo geral, as freiras estavam

mais interessadas no divertimento e até nos contatos com o sexo masculino do que nas funções catequéticas das representações, apesar de algumas

escreverem peças de teatro. Cf. EVANGELISTI, Silvia. Nuns. A History of Convent Life. Op. cit, pp. 99-112.

154
em controvérsia com as restantes78, o mesmo não acontecia com as peças de
teatro representadas dentro das casas religiosas femininas, em especial se eram
de temática profana79. Não obstante, a representação de peças da autoria das
próprias freiras está documentada desde o século XVI, para a Península Ibérica.
Em Portugal, soror Maria do Céu teve um papel activo no convento de Nossa
Senhora da Esperança, de Lisboa80.
No convento das Servas de Nossa Senhora, de Borba, peças teatrais, bailes
e cantigas ainda eram comuns no século XVIII. Em 1751, o visitador José dos
Serafins fez saber que “algumas [freiras] esquecidas da sua obrigação costumam
bailar nas grades e cantar cantigas profanas que não podem deixar de ser escan-
dalosas”81. Face à indecorosa conduta prescreveu a privação de irem às grades,
durante três meses, caso voltassem a repetir o mundano comportamento. Não
foi ouvido. Na visita seguinte, voltou a ordenar “que se não fação comedias e
bailes”82. Mas, em 1754, a situação mantinha-se. O visitador frei Martinho de São
José foi obrigado a proibir, de novo, tais procedimentos: “Mandamos que nos
coros se não fação representações de comedias, entremezes nem se pratiquem
outras indecências como cantos e bailes profanos”83.
Em 1709, o abade geral dos cistercienses, frei António do Quintal, entendeu
que o espaço sagrado não devia ser profanado por representações teatrais, mes-
mo que estas fossem de carácter espiritual, impedindo, deste modo, esta prática
corrente em São Bento de Cástris84. Porém, estes comportamentos continuaram.
Por exemplo, em 1716, verificou-se que

78 MIRANDA, Maria Margarida Lopes de. Teatro nos Colégios dos Jesuítas. A Tragédia de Acab de Miguel Venegas S.I. e o Início de um Género Dramático

(século XVI). Lisboa: Fundação Calouste Gulbenkian, Fundação para a Ciência e a Tecnologia, 2006.

79 Sobre a posição da Igreja face ao teatro, cf. BERNARDI, Claudi. Il Teatro tra Scena e Ritualità. In: MOZARELLI, Cesare; ZARDIN, Danilo (Dir.). I

Tempi del Concilio. Religione, Cultura e Società nell’Europa Tridentina. Roma: Bulzoni Editore, 1997, pp. 439-460.

80 Sobre o teatro nos conventos, cf.HEGSTROM, Valerie. El Convento como Espacio Escénico y la Monja como Actriz: Montajes Teatrales en tres

Conventos de Valladolid, Madrid y Lisboa. BARANDA LETURIO, Nieves; MARÍN PINA, María Carmen (Dir.). Letras en la Celda. Cultura Escrita de

los Conventos Femeninos de la España Moderna. Madrid: Iberoamericana – Vervuert, 2014, pp. 363-376. Para Roma, cf. LIROSI, Alessia. I Monasteri

Femminili. Op. cit, p. 520.

81 Évora, B.P.E., Convento das Servas de Nossa Senhora de Borba, liv. 8, fol. 2.

82 Évora, B.P.E., Convento das Servas de Nossa Senhora de Borba, liv. 8, fol. 7.

83 Évora, B.P.E., Convento das Servas de Nossa Senhora de Borba, liv. 8, fol. 10.

84 CONDE, Antónia Fialho, Cister a Sul do Tejo. Op. cit, pp. 417-418.

155
nas grades se representam bailes e entremeses e se lança-
vam loas não só de criadas mas ainda por religiosas e edu-
candas”85. Na segunda metade do século XVIII, em 1787,
as religiosas continuavam a dedicar-se a folguedos diversos
e não apenas ao teatro: “atendendo também ao muito que
é indecoroso e indecente às religiosas cantar e dançar em
grades proibimos que nas deste nosso mosteiro se torne a
praticar semelhante abuso não só pelas religiosas mas pelas
mesmas seculares e educandas às quais se não permitirá ir
falar a grades ou portarias mais que a pai, mãe, tios, sobri-
nhos, irmãos e primos filhos de irmãos e o mesmo se prati-
cará com as pupilas86.

Estas práticas foram detectadas em outras casas conventuais. Por exemplo,


no convento do Salvador, de Braga, em 1641, davam continuidade ao passado87
mas, em 1743, já estavam erradicadas pois, o arcebispo D. José de Bragança foi
informado de que “foi costume fazerem-se alguns entremezes e outras represen-
tações em dia de Reis e outras festas fazendo papeis as religiozas que se vestiam
conforme elles pediam porem ja ha tempos não houve função alguma”88. No
século XVII, o mesmo ocorreu em Santa Clara, de Guimarães pois, em 1685,
o arcebispo D. Luís de Sousa proibiu-as sob pena de excomunhão maior, afir-
mando ainda que “he prohibido por muitas leis eclesiásticas que nas igrejas e
adros dellas se representem comedias e se nos propôs que na deste convento se
representou hũa ainda este anno e com mais particulares circunstancias para
estranhar se por nos dizerem que aquella reprezentação se fez de noite”89. Nos
Açores, concretamente no convento da Glória, do Faial, tais práticas foram proi-
bidas logo na primeira visita, em 167590.
As comunidades femininas dedicaram-se frequentemente à doçaria para

85 Évora, B.P.E., Cod. CXXXI/2-23, fol. 108v.

86 Évora, B.P.E., Cod. CXXXI/2-22, fol. 33v.

87 Braga, A.D.B., Visitas e Devassas, liv. 30, fol. 34v.

88 Braga, A.D.B., Visitas e Devassas, liv. 40, fol. 11.

89 Braga, A.D.B., Visitas e Devassas, liv. 68, fol. 34.

90 MATOS, Artur Teodoro de. Virtudes e Pecados das Freiras do Convento da Glória da Ilha do Faial (1675-1812): Uma Devassa à sua Intimidade. In:

O Faial e a Periferia Açoriana nos séculos XV a XX. Faial: Núcleo Cultural da Horta, 1998, p. 159.

156
consumo próprio, oferta e comercialização91. Porém, nem sempre a actividade
esteve isenta de questões, nomeadamente em algumas épocas do calendário li-
túrgico, quando as religiosas esqueciam os louvores a Deus e ocupavam-se da
preparação de doces92. Em termos alimentares, era suposto que as comunidades
se pautassem por um certo ascetismo. Porém, nem sempre assim acontecia. Al-
gumas tinham uma alimentação rica e variada93, de tal modo que o luxo à mesa
chegou a ser manifesto, tal como entre alguns seculares94.
Nas três casas religiosas em estudo encontram-se parcas referências aos
consumos alimentares de freiras e monjas, embora se refira a prática de venda de
doces. Assim, na visita de 1679, ordenou-se “ao feitor que tendo cabedal mande
abrir uma roda nas grades pequenas pelas queixas que as religiosas nos fizeram
dos furtos de seus doces no que padecem seus detrimentos saindo o púcaro de
água que de cortesia oferecem pela portaria”95. Nota-se, contudo, que, na se-
gunda metade do século XVIII, sofriam privações, o que também acontecia em
outros espaços europeus96, apesar de alguns casos se verificarem ainda no século
XVII. Por exemplo, na visitação a São Bento, de Cástris, de 1663, fez notar-se que
era distribuída pouca carne a cada uma das religiosas. Logo, o visitador ordenou
“que de hoje em diante dê toda a necessária para que as rações de vaca sejam de
arrátel todas iguais no peso e as de carneiro de três quartos na mesma forma”97.

91 Cf. ALGRANTI, Leila Mezan. Doces de Ovos, Doces de Freiras: a Doçaria dos Conventos Portugueses no Livro de Receitas da Irmã Maria Leocádia

do Monte do Carmo (1729). Cadernos Pagu. Campinas, n.º 17-18, 2001-2002, pp. 397-408; CASTRO, Inês de Ornellas; BRAGA, Isabel Drumond. Una

Escritura Femenina Diferente: Los Manuscritos Culinarios Conventuales Portugueses de la Edad Moderna. In: BARANDA LETURIO, Nieves; MARÍN

PINA, María Carmen (Dir.). Letras en la Celda. Op. cit, pp. 439-455

92 BRAGA, Isabel M. R. Mendes Drumond. Vaidades nos Conventos Femininos ou das Dificuldades. Op. cit, pp. 315-316.

93 Cf. FERNANDES, Maria Eugénia Mata. O Mosteiro de Santa Clara do Porto. Op. cit, pp. 175-185; GOMES, Eduarda Maria de Sousa, O Convento da

Encarnação do Funchal. Op. cit, pp. 130-143; SOUSA, Cristina Maria André de Pina; GOMES, Saul António. Intimidade e Encanto. O Mosteiro Cister-

ciense de Santa Maria de Cós (Alcobaça). Leiria: Edições Magno, 1998, pp. 134-136; CONDE, Maria Antónia Marques Fialho Costa. Cister a Sul do Tejo.

Op. cit, pp. 392-418; CAEIRO, Maria Margarida Castro Neves Mascarenhas. Clarissas em Portugali. Op. cit, pp. 343-355.

94 Sobre a alimentação dos leigos no século XVIII, cf. BRAGA, Isabel M. R. Mendes Drumond. Alimentação, Etiqueta e Sociabilidade em Portugal no

século XVIII. In: Cultura, Religião e Quotidiano. Portugal (século XVIII). Lisboa: Hugin Editores, 2005, pp. 167-231. Sobre a alimentação das religiosas,

cf. Idem, Vaidades nos Conventos Femininos ou das Dificuldades. Op. cit, p. 316 e a bibliografia aí citada.

95 Évora, B.P.E., Cod. CXXXI/2-23, fol. 32.

96 CINI, Marco. Economia, Muliebre e Religiosa. Note sulle Vicendi Patrimoniali del Monastero di Sant’Anna di Pisa nel XVIII secolo. In: AGLIETTI,

Marcela (Dir.). Nobildonne, Monache e Cavaliere dell’Ordine di Santo Stefano: Modelli e Strategia Femminili nella Vita Publica della Toscana Granducale.

Pisa: Edizione ETS, 2009, pp. 235-266; PALOMBO, Irene. Il Sistema dei Monasteri Femminili. Op. cit, pp. 140-160.

97 Évora, B.P.E., Cod. CXXXI/2-23, fol. 2v.

157
Em 1769, frei José da Estrela notou que as rendas do convento das Servas de
Nossa Senhora, de Borba, não eram suficientes para “todas as comidas das reli-
giosas e para se pagarem os partidos e salários dos oficiais e servos do mostei-
ro”98. Face à situação determinou a diminuição dos pagamentos.
Para São Bento, de Cástris, encontram-se outras informações relevantes.
Assim, em 1663, determinou-se que no forno deveria haver sempre

uma companheira conversa da mestre forneira para que


em tudo lhe desse ajuda […] e na oficina da cozinha haverá
outra conversa que ajude a madre celeireira na forma que
temos dito da oficina do forno […] e na cozinha se fará de
comer com toda a caridade às religiosas que tiverem dis-
to necessidade e as moças que não fizerem esta obrigação
estando na tal oficina ou responderem com ruins palavras
e se descompuserem neste particular com alguma religiosa
ou criada das ditas religiosas a tirarão logo da tal oficina e a
lançarão fora do convento99.

Em 1719, frei Henrique de Azevedo tomou conhecimento de práti-


cas inusitadas:

consta-nos que no claustro regular deste mosteiro cos-


tumam algumas moças fazer fogões assim para cozinhar
como para outros mistérios o que sem duvida redunda em
gravíssimo dano do bem comum confecionando os fumos
assim à clausura das paredes como ao asseio dos altares e
imagens que estão na dita clausura e finalmente servindo de
grave prejuízo a todas as religiosas que moram por cima de
onde se fazem os tais fogões100.

Em 1766, outro visitador ordenou que se evitassem gastos supérfluos, não

98 Évora, B.P.E., Convento das Servas de Nossa Senhora de Borba, liv. 8, fol. 20.

99 Évora, B.P.E., Cod. CXXXI/2-23, fol. 2v-3v.

100 Évora, B.P.E., Cod. CXXXI/2-23, fol. 104v.

158
indicando quais101. No ano seguinte, D. frei Nuno Leitão, considerou que impor-
ta proceder a uma boa administração dos bens alimentares. O padre feitor

acuda sem falta e a tempo as religiosas com tudo o que é de-


vido a sua ração ordinária e pelo que respeita a carne haverá
partir e repartir algumas vezes na sua presença e achando
que há falta na ração que está determinada a suprirá acres-
centando o que julgar necessário e no peixe, ovos, legumes
e mais cousas deste género terá todo o cuidado dar a tempo
de sorte que ao menos se entreguem sempre num dia para
o outro ou antes as antecipe e as dê para mais dias quando
tiver a ocasião e abundância que ao depois lhe possa faltar
compondo sempre as cousas de modo que não grave a co-
munidade nem com a mais leve falta102.

Na mesma visita adiantou ainda que se dessem as quantias das ceias e que
nunca faltasse o quarto de galinha para as doentes103. Na visita de 1777, frei Dio-
go da Silva notou que faltava trigo104. E os problemas continuaram. Em 1790, frei
Francisco Leitão lembrou que

a ração que está determinada para cada uma das religiosas tem
um peso certo e determinado ao qual se não satisfaz em alguns
gêneros, mandamos que daqui em diante tudo o que se der em
ração as ditas religiosas ou seja para o jantar ou para a ceia ou
seja carne ou seja peixe ou arroz tudo se regule pelo peso que

101 Évora, B.P.E., Cod. CXXXI/2-22, fol. 7v.

102 Évora, B.P.E., Cod. CXXXI/2-22, fol. 12v.

103 Évora, B.P.E., Cod. CXXXI/2-22, fol. 13.

104 Évora, B.P.E., Cod. CXXXI/2-22, fol. 18.

159
está determinado pelas leis que o estabeleceram105.

A agravar os problemas, o convento tinha falta de água a qual vinha de uma


fonte que estava arruinada. Assim, determinou-se que o feitor mandasse arranjar
o aqueduto e colocar uma nora no poço106. Finalmente, em 1797, frei Ricardo
de Santa Ana considerou que pouca ou nenhuma utilidade faziam “os legumes
feitos em caldeirão”. Assim:

mandamos que os ditos legumes daqui em diante e o azeite


para eles se deem às religiosas e aos padres em cru, queren-
do-o assim, e na forma seguinte, a cada uma meio alqueire
de grãos, meio alqueire de feijão branco, meio de castanha
seca e alqueire e meio de azeite, porem sempre se farão os
de caldeirão para os criados e criadas e para as religiosas
que assim os quiserem, mas a estas nunca se darão em cru,
para se evitar a desordem e as vontades absolutas de os que-
rerem um dia de uma sorte e outro dia de outra por que
isto fará confusão, perturbara a boa ordem e destruirá a
economia que sempre deve haver e nós queremos por não
ser o nosso ânimo outro mais do que o bem útil das religio-
sas que assim o requereram, depois de uma séria e madura
ponderação como também a respeito da arroba de figos que
até agora se lhe dava, pelo que mandamos que de hoje em
diante se dê a cada religiosa meia arroba de figos a que cha-
mam de comadre, e meia de passa de uvas das melhores107.

As vaidades no convento foram mais longe. Algumas freiras mantiveram os


gostos que tinham no mundo secular no que se refere ao vestuário, aos adornos
e até ao uso de cosméticos, mostrando inclusivamente que estavam a par da
moda108. Ora, se o vestuário era o principal sinal externo de distinção social e de

105 Évora, B.P.E., Cod. CXXXI/2-22, fol. 41.

106 Évora, B.P.E., Cod. CXXXI/2-22, fol. 41v.

107 Évora, B.P.E., Cod. CXXXI/2-22, fols 60-60v.

108 SUCENA, Berta de Moura. Corpo, Moda e Luxo em Portugal no século XVIII. Lisboa, Dissertação de Mestrado em História Moderna apresentada à

Faculdade de Letras da Universidade de Lisboa, 2007. Cf. também, EVANGELISTI, Silvia, Nuns. A History of Convent Lifei. Op. cit, p. 29; TERREMO-

CHA HERNÁNDEZ, Margarita. Consumo de Vanidades: Afeites, Galas y Adornos en la Mujer Española del Seiscentos. XXVIII Encontro da Associação

Portuguesa de História Económica e Social, Guimarães, 2008 in <http://www.neps.ics.uminho.pt/aphes28>, consultado a 9 de abril de 2009.

16 0
pertença a um grupo, o hábito monástico marcava o abandono da vida mundana
e assumia um valor simbólico através da uniformização e da austeridade, isto é, o
hábito evidenciava a pobreza, o anonimato e a castidade, pois era confeccionado
com tecidos pobres, cores mortas e com feitios que escondiam as formas, de tal
modo que camuflava qualquer eventual atrativo feminino. Os principais desvios
passaram pelo uso de jóias, tecidos e sapatos de luxo, peças típicas do século,
cores garridas e exibição dos cabelos e dos pescoços.

No mosteiro cisterciense de Cástries, as monjas excederam-se em matéria


de indumentária. Em 1663, foram advertidas para deixarem os “toucados mais
largos e não tão tapados como convém à modéstia”109 sob pena de ficarem im-
pedidas de ir às grades. Em 1677, eram os cobertores de seda que causavam
escândalo110 a par de vestidos encarnados e com rendas usados pelas criadas111.
Em 1679, foi a vez de os brincos serem visados:

Por ser a composição sinal claro da religião e nos constar que


algumas religiosas excedem no modo com que trazem nas ore-
lhas uns pendentes à mostra, mandanos que de hoje em diante
façam diligência e se componham em forma que não sejam
vistas com os tais pendentes e a que nesta lei incorrer a madre
abadessa a privará de grade e porta por um mês112.

Pouco depois, em 1680, os alvos do visitador voltaram a ser a indumentária


e as jóias:
a pouca modéstia com que vestiam e trajavam algumas reli-
giosas desdizendo muito do seu estado e profissão nas galan-
tarias e enfeites extraordinários os quais totalmente conde-
namos e mandamos que nenhuma religiosa traga fitas nem
toucados em parte onde sejam vistas, que não tragam vas-
quinhas azuis se não por baixo de alguma preta ou branca ou
parda, que não tragam forros de seda nem rendas ou guarni-
ções nas capinhas e que nas arrecadas das orelhas não usem
pérolas, aljôfar, ou pedras se não sejam pequenas e honestas
109 Évora, B.P.E., Cod. CXXXI/2-23, fol. 4v.

110 Évora, B.P.E., Cod. CXXXI/2-23, fol. 17v.

111 Évora, B.P.E., Cod. CXXXI/2-23, fol. 20v.

112 Évora, B.P.E., Cod. CXXXI/2-23, fol. 31.

161
o que tudo lhe mandamos em virtude da santa obediência113.

Em 1691, foram arroladas fitas nos toucados, rendas, chapéus de plumas, sa-
patos de cor, aljôfares, arrecadas, botões de ouro e jóias de ouro, pérolas e diaman-
tes. Perto do final do século, em 1699, o visitador voltou a insistir. Desta feita:

por nos constar que algumas religiosas apareciam em luga-


res públicos de onde podiam ser vistas dos seculares com
menos composição do que pede o seu estado mandamos a
todas as religiosas em virtude da santa obediência não vão à
portaria, grades, mirante, coros nem acompanhem médico
ou outro qualquer oficial sem hábito e toucado e outrossim
por debaixo das mesmas penas lhes mandamos que no inte-
rior do mosteiro não tragam as toalhas pelo meio da cabeça
nem topetes à mostra nem entremeios grandes nas mangas
das camisas, de sorte que em todo o lugar andem com aquela
composição que requere o estado religioso que professam114.

Em 1713 e 1719, foram proibidos gibões à “alemoa” e camisas à francesa,


além do uso de rendas nas mangas115. Em 1715, frei Henrique de Azevedo, fez
saber que:
as religiosas saindo à cerca em algumas ocasiões que se lhe
permite tentadas da vaidade mundana foram algumas sem
toucados e com chapéus de plumas expondo-se a serem vis-
tas de pessoas de fora sem aquela composição e honestidade
no traje que é decente ao seu estado o que sem dúvida ser-
viria de gravíssimo escândalo para que abuso tão desorde-
nado não persevere116.

No ano seguinte, frei Paulo de Brito foi particularmente preciso referindo


não só o traje e os adereços como também a maquilhagem

113 Évora, B.P.E., Cod. CXXXI/2-23, fols 37-37v.

114 Évora, B.P.E., Cod. CXXXI/2-23, fols 71-71v.

115 CONDE, Maria Antónia Marques Fialho Costa. Cister a Sul do Tejo. Op. cit, , 419-423.

116 Évora, B.P.E., Cod. CXXXI/2-22, fol. 105.

162
atendendo nós à gravidade, modéstia e composição com que
deve trajar quem vive em uma clausura religiosa e o grande
dano que nesta parte se segue de qualquer excesso que seja
dissimulado para evitar todo o que há ou pode haver […]
exortamos as religiosas a que no seu vestido se conformem
com o seu estado e lhe proibimos que possam trazer sapatos
com salto de pau ou picados ou de cor que não seja branca ou
preta e assim mesmo camisas à francesa. E porque nas moças
é maior e não menos repreensível o excesso mandamos que
a nenhuma se consinta saia de crespos, gibões ou camisas à
francesa, sinais, polvilhos117, rendas nas mangas da camisa,
capotes que não sejam brancos ou pardos118.

Em 1780, o visitador proibiu que: “nenhuma religiosa faça ou use mais de


mantilha ou capa que não seja branca ou preta e só lhe permitimos as capas que
por ora têm feitas de saragoça até as gastarem ou comodamente se poderem
desfazer delas”119. As criadas também deveriam vestir-se discretamente. Pouco
depois, em 1784, frei Alexandre de Vasconcelos insistiu no mesmo assunto:

117 No mundo ocidental, o uso de cosméticos, entendidos como produtos para limpar, corrigir, proteger, embelezar e retardar o envelhecimento

cutâneo ou conservar e restabelecer a beleza dos dentes e dos cabelos, difundiu-se durante o Renascimento, apesar de se terem verificado diversas resis-

tências. O berço destas práticas, tal como o da estética em geral, foi a península itálica. Mas, um pouco por todo o lado, as críticas aos enfeites luxuosos,

às modas e aos cosméticos marcaram discursos de teólogos e moralistas, tendo também presença no teatro e na literatura dita popular. Efetivamente,

os discursos moralistas interpretavam o luxo, a suntuosidade do vestuário e o uso de cosméticos como uma estratégia de sedução feminina. Por seu

lado, os tratados sobre educação também não fugiram a este tipo de posicionamento. Isto é, neles defendeu-se que as mulheres não deveriam alterar

a cor dos cabelos, apesar da preferência pelos cabelos louros ser uma realidade. As tonalidades cromáticas da maquiagem eram reduzidas. Importava

apenas o branco da pele em geral e o vermelho do rosto. O branco era sinônimo de pureza e a cor da beleza da pele por excelência. Era também sinal de

distinção social, só as mulheres que podiam permanecer em casa se mantinham brancas, as que tinham atividades servis andavam e trabalhavam na rua,

consequentemente, ficavam morenas pela ação do sol. Por seu lado, o encarnado era a cor da saúde, da perfeição, resultante do sangue em movimento.

Para embranquecer a pele usava-se solimão ou alvaiade, este último de origem árabe, muito em voga durante os séculos XVI a XVIII. Para corar a

face recorria-se ao uso de concela ou revol. No século XVIII, fabricavam-se os encarnados com cochinilha, madeira do Brasil e orcaneta da Provença

e do Languedoc, sendo visível a escolha de tons adaptados à expressão dos sentimentos, da sensibilidade e da luz. Sobre estas questões, cf. PITA, João

Rui. Breve História dos Cosméticos. Munda. Coimbra, n.º 32, 1996, pp. 17-28; REBELO, Maria de Lourdes Godinho; PITA, João Rui. Cosméticos:

sua evolução. Medicamento, História e Sociedade. Coimbra, n.º 8, 1988, pp. 23-28; BARATA, Eduardo A. F. Cosméticos. Arte e Ciência. Lisboa, Porto,

Coimbra, 2002. Sobre os outros assuntos cf., respectivemente, BRAGA, Isabel M. R. Mendes Drumond Braga. Beleza e Sedução: à volta dos Cosméticos.

In: Vivências no Feminino. Poder, Violência e Marginalidade nos séculos XV a XIX. Lisboa: Tribuna da História, 2007, pp. 147-180; BUESCO, Ana Isabel.

Imagens do Príncipe. Discurso Normativo e Representações (1525-49). Lisboa: Cosmos, 1996, pp. 229-230; VIGARELLO, Georges. Histoire de la Beauté.

Le Corps et l’Art d’Embellir de la Renaissance à nos Jours. Paris: Seuil, 2004, pp. 116-117.

118 Évora, B.P.E., Cod. CXXXI/2-22, fol. 113v.

119 Évora, B.P.E., Cod. CXXXI/2-22, fol. 11v.

163
“oubemos que neste mosteiro em que tem florido tanta san-
tidade há algumas religiosas que esquecidas do seu estado e
da modéstia com que devem viver nos sagrados claustros,
umas andam com cabelos atados outras com acrescentos de
cabelo postiço querendo emendar e disfarçar a cor que lhe
dá os anos e com eles empoados trazendo a cabeça toucada
com pentes, relógios pendorados nas saias para se lhe verem
enfim ostentando a vaidade do mundo sem se lembrar de que
andam vestidas com a mortalha com que se hão-de enterrar
esquecendo-se de todo daquela cerimônia tão santa como
significante que se pratica quando entram para o noviciado
em que se despojam dos cabelos cortando-lhe neles os lapsos
que costumam prender e levar as almas à perdição120.

O visitador proibiu ainda: “a vaidade de forrar as capas das religiosas com


alguma seda nem ainda em uma pequena ténue banda”121. Nova proibição apare-
cerá, em 1787: “proibimos a todas as religiosas ouro de guarnições nas roupinhas
ou quaisquer vestidos e às seculares, educandas e criadas o uso de pedras precio-
sas e de seda ainda em guarnições ou de outro qualquer modo”122.
Em 1753, frei Martinho de São José, notou, com desagrado, ao visitar o con-
vento das Servas de Nossa Senhora, de Borba, que “muitas religiosas usam de
hábitos divididos em peças de coletes e saias, devendo ser inteiros e também de
pregas nas mangas com demasia”, ordenando que se “reforme o que nesta parte
se achar relaxado”. Acrescentou ainda que “de nenhuma sorte permita machos
nas saias interiores aos hábitos nem que sejam de carro mas sim de camelo e
honestas como convém ao estado religioso”123. Em 1765, os reparos foram para
as leigas que estavam no convento, as quais deveriam andar “honestamente ves-
tidas”124 e igualmente para as religiosas, às quais se ordenou que “se uniformem

120 Évora, B.P.E., Cod. CXXXI/2-22, fol. 25.

121 Évora, B.P.E., Cod. CXXXI/2-22, fol. 30.

122 Évora, B.P.E., Cod. CXXXI/2-22, fol. 33v.

123 Évora, B.P.E., Convento das Servas de Nossa Senhora de Borba, liv. 8, fols 8v-9.

124 Évora, B.P.E., Convento das Servas de Nossa Senhora de Borba, liv. 8, fol. 19v.

16 4
nos hábitos toucados e véus nos autos da comunidade para que da uniformidade
do seu exterior se infira a união com que todas devem viver e amar se em Cris-
to”125. Porém, leigas e religiosas continuavam surdas às ordens dos visitadores.
De tal modo que, em 1769, frei Tomé de São Tomás Garção, determinou que:

todas as seculares que existem na clausura observem as leis


da mesma usando vestidos honestos sem ouro nem sedas
[…] e as moças de servir assim da comunidade como de
particulares que andem com os cabelos curtos e saias baixas
que não sejam de carro ou de melania e de cores incompa-
tíveis com a honestidade religiosa126.

Em 1775, nada tinha mudado. De tal modo que o visitador, ordenou, de


novo, “que as senhoras seculares que acabem a entender que os conventos das
religiosas não são casas de luxos e de invenções do século que se portem nos
vestidos como manda em seus decretos e a Rainha Nossa Senhora e sigam como
devem as leis da clausura na guarda do silêncio e falas das portas”. Por seu lado,
as servas das religiosas e das seculares deveriam apresentar-se “sem os menores
efeitos nem se deixem ver sem toalhas pelo convento”127. Em 1781, frei Alexan-
dre da Encarnação criticou modas específicas, nomeadamente de certos sapa-
tos: “também ouvimos não sem dor do nosso coração que algumas religiosas
esquecidas da criação e costume deste mosteiro usam de sapatos com salto de
pau e suposto que isto seja de pouco momento é contudo princípio de relaxação
a que devem obviar”128.
No convento do Salvador, de Évora os abusos em termos de vestuário tam-
bém foram notados. Em 1787, foi recordado que

a uniformidade da vida comum deve ser acompanhada da


mesma forma e figura de hábitos, de toalhas e de toucados
sem afectação nem vaidade para que as religiosas pelos si-
nais exteriores mostrem a perfeita união e caridade em que

125 Évora, B.P.E., Convento das Servas de Nossa Senhora de Borba, liv. 8, fol. 21.

126 Évora, B.P.E., Convento das Servas de Nossa Senhora de Borba, liv. 8, fol. 22v.

127 Évora, B.P.E., Convento das Servas de Nossa Senhora de Borba, liv. 8, fol. 23.

128 Évora, B.P.E., Convento das Servas de Nossa Senhora de Borba, liv. 8, fol. 24.

165
vivem. O hábito religioso é mortalha em vida para excitar
ao abatimento e desengano, nenhuma o poderá despir para
usar de outro qualquer vestido nem mudar a forma daquele
ainda a título de representações piedosas129.

Anos depois, em 1789, o arcebispo de Évora considerou que as criadas “não


poderão usar de vestidos ou saias de azul claro ou cores semelhantes mas só sim
muito honestas e próprias de um convento em que deve ser geral a reforma o que
logo se porá em prática”130.
Outros espaços conheceram os mesmos problemas. No convento da Glória,
do Faial, foram detectadas freiras que usavam fitas, rendas, luvas, meias de seda
e sapatos de salto alto131. Em Santa Clara, de Portalegre, e no Bom Jesus, de Mon-
forte, a riqueza dos trajes e do calçado e o uso de jóias fez-se notar igualmente
durante o século XVII132, Por seu lado, em Santa Clara, de Guimarães, em 1759, o
visitador Doutor Domingos Martins da Cruz Marques, tomou conhecimento do
uso de espartilhos, sapatos de veludo com fivelas, fitas, rendas e exibição de pes-
coços descompostos133. No convento do Salvador, em Braga, os problemas com o
uso de vestuário e adornos foram visíveis desde a visita de 1620, a primeira cuja
documentação nos chegou. Assim, o visitador proibiu todo o género de seda,
passamanes e outras guarnições nos punhos, nos toucados e nos gibões; anéis de
ouro ou prata e até panos de armar, guadamecis e pinturas profanas para decorar
as celas134. Em 1637, D. Sebastião de Matos de Noronha insistiu nos mesmos
assuntos referindo que só estavam autorizados certos tecidos vulgares nas cores
preta e roxa135. Uma devassa de 1743, à mesma casa, deu conta do uso de brincos
de ouro e prata com pedras, hábitos, gibões, capas e escapulários de seda136.

129 Évora, B.P.E., Convento do Salvador de Évora, liv. 111, fol. 7.

130 Évora, B.P.E., Convento do Salvador de Évora, liv. 17, fol. 19.

131 MATOS, Artur Teodoro de. Virtudes e Pecados das Freiras. Op. cit, pp. 162.

132 CAEIRO, Maria Margarida Castro Neves Mascarenhas. Clarissas em Portugal. Op. cit, pp. 458-459.

133 Braga, A.D.B., Visitas e Devassas, liv. 73, fol. não numerado.

134 Braga, A.D.B., Visitas e Devassas, liv. 30, fol. não numerado.

135 Braga, A.D.B., Visitas e Devassas, liv. 30, fol. 18v.

136 Braga, A.D.B., Visitas e Devassas, liv. 40, fols 8, 11. 16. Em certas casas, o luxo dos têxteis abrangeu também a decoração das celas. Cf. EVANGE-

LISTI, Silvia, Nuns. A History of Convent Life. Op. cit, pp. 29 e 53-54.

16 6
Apesar de, no final do século XVIII, alguns visitadores tecerem elogios à
ação das preladas e ao funcionamento do convento ou mosteiro em geral, antes
de fazerem o elenco do que desejavam ver corrigido, também se nota que a falta
de vocação de algumas religiosas levava, não só aos comportamentos mundanos
que temos vindo a analisar, mas também a faltas no que se refere ao cumprimen-
to de regras básicas de caridade e da prática do catolicismo. Três exemplos foram
significativos. No convento das Servas de Nossa Senhora, de Borba, em 1751,
frei José dos Serafins, fez notar que “porque é justo que as enfermeiras assistam
com caridade as religiosas enfermas mandamos que as que forem nomeadas en-
fermeiras assistam as religiosas”137. Mais tarde, frei Francisco Xavier dos Anjos,
insistiu nas questões assistenciais:

observando nós a falta de misericórdia que se usa com as


moribundas, cujo desamparo nem ainda é praticado por
pagãos, ordenamos à Reverenda Madre Vigária que em se-
melhantes ocasiões faça pautas em que distribua por horas
as criadas para assim se evitar o escândalo de estarem as en-
fermas em desamparo, vigiando igualmente sobre a condu-
ta das mesmas de quem nos consta a facilidade de falarem
pelas janelas com tanto indecoro do claustro religioso138.

No convento do Salvador, de Évora, em 1787, o arcebispo fez notar a neces-


sidade de confissão mensal por parte das freiras, lembrado que “o sacramento
da penitência [era] a segunda tábua que nos salva do naufrágio da culpa e o da
eucaristia o pano que nos sustenta e fortalece contra os insultos que o comum
inimigo nos arma”139.

3.

Apesar das determinações do Concílio de Trento e do empenho de alguns

137 Évora, B.P.E., Convento das Servas de Nossa Senhora de Borba, liv. 8, fol. 2.

138 Évora, B.P.E., Convento das Servas de Nossa Senhora de Borba, liv. 8, fol. 29v.

139 Évora, B.P.E., Convento do Salvador de Évora, liv. 111, fol. 4.

167
prelados, ao longo dos séculos XVII e XVIII, e não obstante muitos exemplos
de elementos do clero cumpridores, continuaram a verificar-se sérios desvios
às normas quer entre elementos do clero secular quer entre os regulares dos
dois sexos140. No caso das freiras, nem a cultura ou a produção intelectual de
algumas evitou excessos por parte de outras141. O disciplinamento não foi fá-
cil, as resistências foram muitas e, apesar de a documentação compulsada ter
resultado de uma sondagem aleatória, pode verificar-se que de Norte a Sul de
Portugal, tal como aconteceu em outros pontos da Europa, as transgressões às
regras fizeram parte do quotidiano levando a algumas situações de exaspero por
parte dos visitadores. Mesmo desconhecendo quantas monjas e freiras estive-
ram envolvidas nestes comportamentos, não podemos deixar de considerar que
os mesmos constituíram uma forma de resistência ao encerramento forçado de
mulheres sem vocação.
Mesmo em arquidioceses como Braga e Évora, cujos arcebispos à época do
Concílio – D. frei Bartolomeu dos Mártires e o cardeal infante D. Henrique, res-
pectivamente – eram particularmente escrupulosos – o de Braga participou in-
clusivamente na terceira parte da reunião de Trento – logo no início de Seiscentos
foram visíveis vários sinais de relaxamento entre a população conventual femini-
na. A pergunta que se coloca é: ainda não chegara o disciplinamento pós triden-
tino ou já se perdera? Efectivamente, se continuarmos o percurso até meados do
século XVIII, o panorama não sofreu alterações. Os mesmos vícios persistiram.
As resistências foram mais fortes que o disciplinamento. Curiosamente, no final
do século XVIII, algumas vozes mais esclarecidas dentro do clero, começavam
a intuir que problemas mais graves chegariam a Portugal. É particularmente in-
teressante o depoimento de frei Ricardo de Santa Ana, ao visitar São Bento, de
Cástris, em 1797, no qual se antevê a extinção das ordens religiosas:

140 BRAGA, Paulo Drumond Braga. Igreja, Igrejas e Culto. In: MENESES, Avelino de Freitas de (Coord.). Portugal da Restauração ao Ouro do Brasil. (Nova

História de Portugal, direcção de Joel Serrão e A. H. de Oliveira Marques, vol. 7). Lisboa: Presença, 2002, pp. 90-129.

141 Cf. HATHERLY, Ana. A Preciosa de Sóror Maria do Céu, edição actualizada do Códice 3773 da Biblioteca Nacional precidada de uma introdução

histórica. Lisboa: Instituto Nacional de Investigação Científica, 1990; BELO, Filomena. Rellação da Vida e Morte da Serva de Deos a Veneravel Madre

Elenna da Crus por Sóror Maria do Céu, transcrição do códice 87 da Biblioteca Nacional precedida de um estudo histórico. Lisboa: Quimera, 1993;

MORUJÃO, Isabel. Contributo para uma Bibliografia Cronológica da Literatura Monástica Feminina Portuguesa do Século XVII e XVIII. Impressos. Lis-

boa:Universidade Católica Portuguesa, 1995; Idem, Por Trás da Grade. Poesia Conventual Feminina em Portugal (Séculos XVII e XVIII). Porto, Disserta-

ção de Doutoramento em Letras, especialidade Literatura Portuguesa, apresentada à Faculdade de Letras da Universidade do Porto, 2005; ALGRANTI,

Leila Mezan. Conventos e Recolhimentos em Portugal e na América Portuguesa: Espaços de Leitura e de Escritas Femininas (Séculos XVII e XVIII). In:

Livros de Devoção, Atos de Censura. Ensaios de História do Livro e da Leitura na América Portuguesa (1750-1821). São Paulo: Hucitec, 2004, pp. 23-74.

16 8
Discorrendo nós um pouco sobre as calamidades do presen-
te século achamos, com bem sentimento nosso, que quase
todas, por nossos pecados, vem sobre o monacato como um
furioso raio para o destruir, aniquilar e de todo desfazer para
evitarmos pois as suas funestas consequências e tirarmos as
forças ao nosso inimigo recomendamos muito a todas as re-
ligiosas e a cada uma em particular a observância regular, a
guarda do silêncio, a perfeição do culto divino, a modéstia e
gravidade do vestido, o decoro e a decência nos cabelos, com
moderação no uso de pós que nunca tenham nem sombras
do luxo e vaidade do século e lhe pedimos pelas chagas de
Jesus Cristo e pelas entranhas de Maria Santíssima ponham
da sua parte todos os meios de emudecer os mal dizentes,
afugentar os perseguidores e adquirir os antigos créditos que
ele nos tem roubado e destruído142.

Ainda se promoveram esforços, que vieram a mostrar-se infrutíferos, ao es-


tabelecer, a 21 de novembro de 1789, a Junta do Exame do Estado Actual e Me-
lhoramento Temporal das Ordens Regulares. A instituição, criada pela Coroa,
visava ajudar a proceder a uma reforma estrutural das ordens religiosas e deveria
ser informada por escrito, por cada uma das casas religiosas, do valor e natureza
das suas rendas, do patrimônio móvel e imóvel e das obrigações e encargos que
as oneravam. Recolhidas estas informações e verificados os problemas, proporia
alterações para racionalizar e, consequentemente, melhorar a situação de cada
casa143. De qualquer modo, a solução encontrada para os problemas, a qual pas-
sou pela ponderação de outras realidades, nomeadamente do peso da população
conventual inactiva, deu-se em 1834, com a extinção das Ordens.

142 Évora, B.P.E., Cod. CXXXI/2-22, fols 56v-57.

143 CORREIA, José Eduardo da Horta. Liberalismo e Catolicismo. O Problema Congreganista (1820-1823). Coimbra: Universidade de Coimbra, 1974;

ABREU, Laurinda. Um Parecer da Junta de Exame do Estado Actual e Melhoramento Temporal das Ordens Regulares nas Vésperas do Decreto de 30

de maio de 1834. In: Estudos em Homenagem a Luís António de Oliveira Ramos. Porto, Faculdade de Letras da Universidade do Porto, 2004, vol. 1, pp.

117-130.
Parte II

ENTRE A EUROPA CATÓLICA


E A AMÉRICA IBÉRICA
AMBIVALÊNCIAS IDENTITÁRIAS NO
PERNAMBUCO POST BELLUM:
os judeus “que se deixaram ficar” após a
expulsão dos holandeses

Ronaldo Vainfas1

A capitulação holandesa e os judeus

Em 28 de janeiro de 1654, o mestre-de campo Francisco Barreto de Menezes


fez sua entrada triunfal no Recife, há quase 25 anos sob o domínio holandês. Os
holandeses entregaram a capital da Nova Holanda sem combate, assim como os
demais territórios que ainda controlavam no Brasil, como as ilhas de Itamaracá e
de Fernando de Noronha. Não havia mais como resistir ao avanço da insurreição
pernambucana, iniciada em junho de 1645. Os acionistas da Companhia das Ín-
dias Ocidentais – West Indische Compagnie (WIC) – não estavam mais dispostos
a defender seus domínios no Brasil, desde 1649, após as derrotas nas batalhas
dos Guararapes e do fracasso diplomático nas tratativas com Portugal. A guerra
marítima entre as Províncias Unidas e a Inglaterra governada por Cromwell,
iniciada em 1652, condenou a resistência do Recife. Nos últimos anos da guerra,
os holandeses se limitaram a rechaçar os cercos, em terra, e a piratear os navios
portugueses, no mar, que partiam da Bahia carregados de açúcar. O último sus-
piro fora em fevereiro de 1649, após acachapante derrota na segunda batalha
dos Guararapes. Mas os insurretos não conseguiram pôr fim à guerra naquela
batalha. O cerco se arrastou por mais seis anos.
Francisco Barreto entrou na cidade a cavalo, à frente dos oficiais da auto-
-proclamada “guerra da liberdade divina” contra o herege flamengo. A maioria
do exército libertador entrou a pé, uns calçados com botas, a maioria descalça.
Hendrik Haecxs, capitão holandês, descreveu a soldadesca como “homens de ter-

1 Sou grato ao CNPq e à FAPERJ pelo financiamento da pesquisa.

173
rificante aspecto”, enquanto outro oficial os viu “tão despidos e andrajosos como
se tivessem sido tirados da forca”2. Os holandeses alarmaram a população do
Recife, até quase o final da guerra, anunciando que, se os rebeldes tomassem a ci-
dade, perpetrariam as maiores atrocidades contra todos. Mas nada disso ocorreu.
Felipe Barreto Menezes cumpriu à risca o acordo assinado no Campo do
Taborda (nome do pescador, Manuel Taborda, onde o tratado foi assinado). A
iniciativa da rendição tinha partido do Conselho Político do Recife, em 22 de
janeiro de 1654, constatada a inutilidade da resistência. Quatro dias depois foi
assinada a capitulação. A disciplina do exército vitorioso foi admirável: nada de
achaques, nem saques; “sem insultos, nem ofensas”.
Os termos firmados na capitulação da Taborda foram muito razoáveis para
os holandeses. Francisco Barreto se dispôs a fornecer navios para levar os ven-
cidos à Holanda, anistiando, inclusive, os que tivesem cometido atrocidades
na guerra. Permitiu que os holandeses conservassem vinte canhões de bronze
e outros de ferro para defender a travessia no Atlântico, embora confiscasse o
grosso da artilharia batava. O coronel von Schkoppe, alemão que comandava
os holandeses, foi mesmo autorizado a levar consigo um carregamento de pau-
-brasil sem qualquer ônus.
O mais importante, porém, foi o prazo de três meses que Francisco Barreto
concedeu aos derrotados para deixar as capitanias restauradas, vendendo os bens
que pudessem transportar. Dispôs-se mesmo a admitir na terra os que assim o
quisessem, desde que se tornassem, dali em diante, súditos do rei de Portugal. Os
holandeses dispostos a ficar, gozariam do mesmo privilégio que benefeciava os
negociantes estrangeiros, seguidores de confissões protestantes com residência
em Portugal. Poderiam manter a sua fé com discrição. O mesmo não se aplicava
aos judeus portugueses, apesar de Francisco Barreto não ter permitido que fos-
sem molestados durante os três meses seguintes à rendição.
No entanto, a sinagoga sefardita do Recife, Kahal Kadosh Zur Israel (Santa
Congregação do Arrecife de Israel), erigida na Joodenstraat (Rua dos Judeus), foi
logo desmantelada e transformada em caserna da soldadesca vitoriosa. A des-
truição da sinagoga foi um rito ao mesmo tempo militar e religioso: consagrou o
fim definitivo da comunidade luso-sefardita em Pernambuco.

2 BOXER, Charles. Os holandeses no Brasil: 1624-1654. São Paulo: Companhia Editora Nacional, 1961, p.341.

174
No tempo da Jerusalém pernambucana

Jerusalém pernambucana ou Jerusalém colonial foi como chamei a comu-


nidade luso-sefardita estabelecida na Nova Holanda com a autorização da WIC3.
Milhares de cristãos-novos portugueses, em geral fugidos da Inquisição, tinham
se instalado nas Províncias Unidas dos Países Baixos – as províncias calvinistas
do norte – desde o início do século XVII. Regressaram, então, ao judaísmo dos
ancestrais, contratando rabinos das comunidades judaicas mediterrânicas para
estruturar o judaísmo na Holanda. Chegaram a organizar três congregações,
unificadas na Talmud Torá, em 1639.
Uma vez consolidada a conquista holandesa das capitanias açucareiras do
nordeste brasileiro, com a destruição do Arraial do Bom Jesus, iniciou-se uma
crescente migração de judeus portugueses da Holanda para Pernambuco. A par-
tir de 1641, as levas migratórias se agigantaram, para os padrões da época, a
ponto de a comunidade judaico-portuguesa alcançar cerca de 1.450 pessoas, em
1645 – cerca de 12% da população livre da capitania pernambucana4.
Os mais ricos, autênticos capi de redes mercantis internacionais, investi-
ram em engenhos de açúcar, arremataram o direito de cobrar impostos devidos
à WIC e se dedicaram ao comércio de grosso trato, em particular à distribuição,
no Brasil holandês, dos escravos da Guiné e de Angola leiloados pelos holan-
deses no Recife. Os mais pobres, em geral jovens solteiros, se dedicaram ao
pequeno comércio, à corretagem de diversas transações, à venda, de casa em
casa, de produtos importados da Europa. Muitos enriqueceram, mercadejando
em postos subalternos de grandes redes sefarditas ou nos próprios negócios.
O aspecto crucial, sem trocadilho, da comunidade sefardita da Holanda, e
depois, do Brasil, residia na ambivalência identitária desses indivíduos, apesar
do rigorismo de suas lideranças em matéria de religião.
3 VAINFAS, Ronaldo. Jerusalém colonial – judeus portugueses no Brasil holandês. Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, 2010.

4 O rescenseamento realizado por ordem do Conselho Político do Recife, entre outubro de 1645 e janeiro de 1646, contabilizou cerca de 3.400 pessoas

residentes no Recife, Cidade Maurícia, Itamaracá, Paraíba e Rio Grande. É verdade que esse censo se restringiu à população livre e civil das cidades,

excluídos os milhares de soldados de várias nacionalidades, os negros e os índios. Há estimativas de que apenas a população da capitania de Pernambuco

possuía cerca de 120 mil pessoas, na década de 1640, ao passo que Recife, no apogeu, chegou a possuir de oito a dez mil moradores. Wiznitzer partiu do

mesmo censo indicou que o número de judeus residentes em todas as capitanias da WIC girava em torno de 1.450 pessoas, em 1644, caindo para 650,

em 1654, ano da rendição holandesa O número de judeus talvez fosse maior, uma vez que muitos começaram a regressar à Holanda em 1644, com a saí-

da de Maurício de Nassau do governo da Nova Holanda. Ver: WIZNITZER, Arnold. Os judeus no Brasil colonial. São Paulo: Pioneira, 1966, pp. 113-115.

175
Em Judíos Nuevos en Amsterdam, o historiador Yosef Kaplan, problemati-
zou, com brilho, os dilemas institucionais, religiosos e identitários dos cristãos-
-novos que regressaram ao judaísmo na Holanda, por eles chamada de “terra de
liberdade”. Os cristãos-novos que fizeram tal escolha – afastada a hipótese de um
“essencialismo judaico” – conheciam mal as tradições sefarditas, ainda que mui-
tos judaizassem em casa quando viviam no mundo ibérico. Com raras exceções,
eles possuíam formação cristã, alguns estudaram nas universidades ibéricas ou
tinham ingressado em ordens religiosas, sem completar os votos solenes. O pou-
co que conheciam do judaísmo provinha de fontes secundárias, quase sempre
católicas e antijudaicas, como a literatura polemista do século XVI, dedicada a
demonstrar os erros da chamada “lei de Moisés”. João de Barros, por exemplo,
escreveu, no início da década de 1540, o Diálogo evangélico sobre os artigos da fé
contra o Talmud dos judeus, defendendo a conversão pacífica dos judeus ao cris-
tianismo no momento exato em que a Inquisição se instalou em Portugal. Neste
panegírico a favor do cristianismo, João de Barros se viu obrigado a discorrer
sobre o judaísmo para justificar os erros da “lei velha”. Assim ocorreu com mui-
tas exortações católicas dirigidas aos cristãos-novos: ensinavam alguma coisa de
judaísmo. O suficiente para que muitos se lembrassem da fé antiga; insuficiente,
porém, para reconstruir o judaísmo tradicional. Em todo caso, a Inquisição proi-
biu a publicação da maioria desses livretes5.
A esmagadora maioria dos criptojudeus que imigraram para Amsterdã no
início do século XVII não lia hebraico e desconhecia os livros da religião judaica,
inclusive a Torá. A primeira tradução da Bíblia para o castelhano só apareceu na
cidade italiana de Ferrara, traduzida do hebraico para o castelhano (ou ladino),
em 1553, por dois cristãos-novos reconvertidos ao judaísmo, restrita ao Antigo
Testamento. Foi esta bíblia que funcionou como suporte para o ensino do judaís-
mo aos judeus. Tendo em vista tais limitações, Kaplan afirma que, para a maioria
dos convertidos, “a primeira comunidade judia que conheceram foi a que eles
mesmos haviam criado”6. O judeu ibérico reconvertido na Holanda não seria,
portanto, um judeu tradicional, senão um judeu novo, um judeu em formação,
5 FEITLER, Feitler. O catolicismo como ideal: produção literária antijudaica no mundo português da Idade Moderna. Novos Estudos CEBRAP. São

Paulo, n. 72, pp. 137-158, 2005.

6 KAPLAN, Yosef. Judíos Nuevos en Amsterdam: estudio sobre la história social e intelectual del judaísmo sefardí en el siglo XVII. Barcelona: Gedisa

Editorial, 1996, p.26

176
um judeu em busca de uma identidade religiosa e cultural que desconhecia. O
judeu novo era também cristão, por formação, ou meio-cristão: não poucos des-
sa primeira geração de reconvertidos, acalentava, no foro íntimo, a dúvida sobre
qual lei garantia a salvação da alma – se a “lei de Moisés” ou a “lei de Cristo”7.
O estabelecimento dos judeus portugueses em Pernambuco resultou em
nova complicação desse quadro. Eles se defrontaram, então, com uma popula-
ção de maioria católica, incluindo os cristãos-novos que, apesar de sua origem
judaica, viviam na chamada “idolatria papista”. Muitos judeus novos vindos da
Holanda rejeitaram os cristãos-novos do Brasil, em especial as lideranças comu-
nitárias com assento no mahamad – o conselho da congregação sefardita. Não
foi o caso do rabino Isaque Aboab da Fonseca, afamado como o primeiro rabino
das Américas, que era tolerante, mas foi o de Moisés Rafael de Aguilar, rabino da
segunda congregação judaico-pernambucana da Nova Holanda, a Kahal Kadosh
Maguen Abraham (Santa Congregação do Escudo de Abraão). Dilemas, incerte-
zas, intolerância: eis o quadro.
Do lado dos cristãos-novos moradores do Brasil, as atitudes variaram des-
de a rejeição absoluta até a reconversão ao judaísmo dos avós. O rabino Isaque
Aboab liderou importante campanha a favor da conversão dos cristãos-novos –
no que alcançou algum êxito. Não obstante, os judeus portugueses da Holanda
sempre viram com desconfiança esses que poderíamos chamar de judeus novís-
simos. Em diversos casos, famílias se romperam porque ora o marido, ora a es-
posa, não concordavam com a adesão do cônjuge ao judaísmo. Em outros casos,
eram os filhos de um casal cristão-novo que desafiavam os pais para ingressar
na comunidade judaica. Ocorreram, ainda, desavenças entre irmãos sobre o in-
gresso na congregação judaica, uns favoráveis, outros contrários. Muitos cris-
tãos-novos se converteram ao judaísmo, mas cedo regressaram ao catolicismo.
Houve até judeus novos, por sinal jovens, que, vivendo em terra católica – e em
diversas circunstâncias – flertaram com o catolicismo até se “reduzirem”, como
então se dizia, à lei de Cristo.
O vai-e-vem entre o catolicismo e o judaísmo não era uma decisão fácil.
Passar ao judaísmo implicava fazer a circuncisão, no caso dos homens, muitos

7 Para a inquetação com a salvação espiritual na época, ver: SCHWARTZ, Stuart. Cada um na sua lei – tolerância religiosa e salvação no mundo atlântico

ibérico. São Paulo: Companhia das Letras/EDUSC, 2009.

177
em idade madura, outros jovens, em todo caso nenhum deles aos oito dias de
idade – um procedimento penoso, do que há muitas descrições em documentos
inquisitoriais da época. Passar ao judaísmo também implicava adotar uma rotina
religiosa de orações diárias, diversas idas à sinagoga, observância da halachá –
compilação de centenas de preceitos da Torá, bem como das prescrições talmú-
dicas. Uma rotina religiosa muito diferente da católica, na qual os fiéis assumiam
atitude mais passiva – eram mais receptores do que sujeitos do serviço religioso.
No caso dos que largavam o judaísmo, arrependidos, regressando ao catolicismo,
o perigo residia em uma possível restauração da Igreja, no caso de derrota ho-
landesa. Perigo maior para os que tinham sido batizados em pia, recém-nascidos
(caso da maioria, nesta época): se pegos pela Inquisição, seriam processados não
só por heresia (afastar-se de parte da religião católica), mas de apostasia (rejeição
in totum do sacramento batismal).
Em todo caso, o fato é que, numa visão de conjunto, a instalação da comuni-
dade judaico-portuguesa nas capitanias açucareiras acicatou dilemas individuais
e, para muitas famílias cristãs-novas, teve efeito deletério. O primeiro baque na
comunidade veio com a saída do conde Maurício de Nassau do governo, ele que
sempre protegeu os judeus, nem tanto por filossemitismo, senão por saber da
importância dos judeus para os negócios da WIC. O retorno de Nassau para a
Holanda, em 1644, provocou a primeira debandada dos judeus portugueses. O
mesmo ocorreu no ano seguinte, quando estourou o levante pernambucano. Em
1654, o ano da capitulação holandesa, a comunidade judaico-portuguesa, confi-
nada no Recife, era menos da metade do que fora dez anos antes.

Judeofobia na insurreição pernambucana

A insurreição levou a que muitos judeus novos voltassem para a Holanda,


temerosos de uma vitória dos católicos, enquanto os judeus novíssimos, recon-
vertidos no Brasil, se apressaram, em grande número, a abjurar do judaísmo;
arrependeram-se da heresia cometida e procuraram confessores sacramentais,
em busca das devidas penitências. Mal sabiam, ou preferiram ignorar, por teme-
rária conveniência, que os confessores não podiam absolver de erros cometidos

178
contra a fé católica – matéria privativa do Santo Ofício. Arrepender-se de peca-
dos no confessionário podia valer absolvição no foro espiritual; arrepender-se
de heresia só era possível na Mesa inquisitorial, porque se tratava de um crime
equiparável ao delito de lesa-majestade, não de um simples pecado.
Mas, pior do que a Inquisição, para os judeus portugueses, novos ou novís-
simos, arrependidos ou não, foram os anos de guerra. Ao longo das batalhas, os
insurretos massacraram os judeus portugueses, ressentidos com a colaboração
que tinham prestado aos holandeses, além de enriquecerem à farta sob a prote-
ção dos flamengos. Pesou, em particular, o papel dos judeus na descoberta da
rebelião. Em 13 de outubro de 1644, oito meses antes do levante, os dirigentes da
congregação Zur Israel deram notícia, ao Conselho Político do Recife, de que se
urdia uma conspiração, no que se baseavam na informação de negociantes que
mascateavam no interior. Alguns judeus fizeram denúncias específicas, como
Moisés da Cunha, que viu João Fernandes Vieira, supremo comandante dos re-
beldes, mandar para a Bahia suas jóias – que não eram poucas – e todo o serviço
de prata que tinha em casa, além de vender escravos e bois. Vários pequenos ne-
gociantes judeus que andavam pela várzea do Capibaribe denunciaram a compra
de armas, enviadas às escondidas da Bahia para Pernambuco.
Foram também sefarditas – quer judeus públicos, quer cristãos-novos – os
que vazaram o plano de João Fernandes: consistia em convidar os principais
dirigentes holandeses para um banquete em sua casa do Recife, no dia 24 de
junho, dia de São João, do qual era devoto; em meio à festança, os inimigos se-
riam eliminados ou capturados e, ato contínuo, os rebeldes tomariam a cidade.
A decisão já estava madura, em maio de 1645, quando o plano vazou. Um dos
conspiradores, Sebastião de Carvalho, contou tudo a Fernão do Vale, senhor de
engenho cristão-novo que, embora não tenha assumido o judaísmo, era aliado
dos holandeses. Este fez chegar uma carta anônima ao governo holandês através
do médico e comerciante judeu Abrão de Mercado. Com o fracasso da conspira-
ção, os rebeldes passaram à insurreição, plano B, cuja palavra-senha era “açúcar”.
O ataque aos judeus começou logo no início da guerra, estimulada por João
Fernandes Vieira, que decretou nulas as dívidas que os apoiantes da causa ti-
vessem contraído com os judeus. Frei Manuel Calado contou que, em 17 de ju-
nho de 1645, quatro dias após o início do levante, dois judeus foram mortos em

179
Ipojuca, enquanto carregavam, junto com flamengos, três barcos com açúcar e
farinha para levar ao Recife. O tumulto começou tão logo chegou a notícia do
levante. Os judeus do Recife pediram pronta retaliação ao Conselho Político,
chegando a oferecer dinheiro para a organização de uma expedição punitiva.
Um famoso memorial da Talmud Torá, datado de 27 de novembro de 1645
– noticiou a execução sumária de treze judeus pelos rebeldes, entre agosto e se-
tembro, sendo um deles queimado vivo, segundo informação da Zur Israel. Em
dezembro do mesmo ano, três judeus que partiram de barco para o Recife, vin-
dos de Itamaracá, foram capturados pelos holandeses na praia de Pau Amarelo.
Segundo informou frei Manuel Calado, um deles era judeu de nascimento, mui-
to jovem, chamado Jacob Rosel. Os demais, Moisés Mendes e Isaque Russon,
eram cristãos-novos convertidos ao judaísmo na Holanda e, por isso, seriam en-
viados ao Santo Ofício de Lisboa, acudados de judaizantes. O Auditor da Guerra,
Domigos Ferraz de Sousa, porém, preferiu condená-los à forca sem delongas8.
Os episódios do início da guerra bastaram, como disse, para que muitos
judeus fugissem para Amsterdã, enquanto os recém convertidos retornavam ao
catolicismo, na esperança, muitas vezes vã, de serem poupados pelos rebeldes.
Alguns preferiram se converter depois de capturados, mas de nada adiantou, a
exemplo de Moisés Mendes e Isaque Russon. Outro movimento importante, en-
tre os judeus que permaneceram no Brasil, foi a fuga para o Recife, considerada
a trincheira mais segura dos holandeses.
Ao longo de 1646, praticamente todos os judeus do Brasil holandês se re-
fugiram no Recife e na Cidade Maurícia. Há registro de que Aarão Navarro,
grande comerciante, solicitou autorização para evacuar a Paraíba, em fins de
1645, levando toda a “gente da nação” para o Recife. Em fevereiro de 1648, os
rebeldes enviaram à Inquisição quatro judeus capturados na guerra. Dois deles
se jogaram, ou foram jogados ao mar, durante a viagem, os demais chegaram ao
destino: Samuel Nehemias e Aarão Noveno9.
O historiador Jonathan Israel resumiu muito bem a situação da comunidade
sefardita no Brasil holandês a partir de 1645, ao destacar a judeofobia – senti-

8 SALVADOR, Manoel Calado do. O Valeroso Lucideno e triunfo da liberdade (original de 1648). 5a. ed. Recife: Companhia Editora de Pernambuco,

2004, v. 2, pp. 92-93.

9 Wiznitzer relata o caso com base nos documentos da WIC de números 3505 e 7017 depositados no Arquivo de Haia.

18 0
mento que os rebeldes não faziam o menor esforço para esconder10.

Judeus expulsos do Brasil

O prazo de três meses que Francisco Barreto concedeu aos derrotados para
vender seus bens e deixar o Brasil foi inexorável. Em abril de 1654, a imensa
maioria dos holandeses e mais europeus a serviço da WIC deixaram o porto
do Recife, retornando a Amsterdã. Assim ocorreu, igualmente, com a maioria
dos 650 judeus portugueses que tinham apostado, até o último momento, na
resistência batava.
Francisco Barreto foi mais tolerante com os judeus, após a rendição ho-
landesa, do que o próprio Conselho Político da WIC. Dois anos da rendição,
os dirigentes da WIC no Recife, estavam dispostos a rifar os judeus, se tal fosse
necessário para salvaguardar os militares, funcionários e colonos batavos.
Em 1652, o governo holandês do Recife enviou comissão de três deputados
à Holanda para pleitear reforços militares, embora soubesse muito bem que a
gerra estava perdida. A comissão foi em busca de instruções para a inevitável
capitulação. Ela era foi composta por dois deputados holandeses – Jacob Ha-
mel e Jaspar van Heussen – e pelo judeu português Abraão de Azevedo, mer-
cador de grosso trato, exportador de açúcar, importador de vinho, negociante
de escravos. Os deputados holandeses viajaram instruídos para garantir, junto
aos Estados Gerais, um tratado favorável aos cristãos holandeses, deixando os
judeus em segundo plano. Os dois exprimiam o ressentimento dos pequenos
negociantes holandeses contra o enriquecimento dos judeus envolvidos com o
comércio a varejo – motivo de várias queixas do sínodo da igreja calvinista do
Recife desde o tempo de Nassau.
A pauta de reivindicações do conselho do Recife, composta de dez pontos,
tratava somente dos interesses flamengos, sem mencionar uma vez sequer os ju-
deus. O delegado da Zur Israel, ao tomar ciência deste golpe dos colegas holande-
ses, protestou com veemência, municiado de uma cópia da Patente Honrosa dos
Estados Gerais (1645), que garantia igual tratamento a holandeses e judeus nos

10 ISRAEL, Jonathan. Diasporas within a diapora: Jews, Crypto-Jews and the World Maritime Empires (1540-1740). Leiden: Brill, 2002. p. 369.

181
acordos de rendição – “nem no menos, nem no mais” – se fosse o caso11. Cópia
da carta dos Estados Gerais enviada ao presidente do Conselho Político, Walter
Shonenburgh, foi remetida à Talmud Torá. Nenhuma garantia de fidelidade po-
deria ser mais explícita do que esta declaração do governo das Províncias Unidas.
Mas a resolução do imbróglio não foi fácil nas bandas do Recife. Abraão de
Azevedo deu notícia da situação à Zur Israel, que logo pressionou o Conselho
Político do Recife, que já estava, é claro, ciente do acordo. Pelo sim, pelo não,
Jacob de Lemos, Jacob Navarro e Benjamim de Pina, figuras de proa do conselho
judaico, se reuniram com os dirigentes holandeses no Recife, em 1653, obtendo
garantias de que a “patente de 1645” seria cumprida. Deve ter custado caro, aos
dirigentes da Zur Israel, garantir que a Patente Honrosa seria mesmo honrada na
capitulação que se avizinhava.
Na rendição da Taborda, os holandeses fizeram a sua parte, incluindo os
judeus entre os súditos do Príncipe de Orange. Francisco Barreto aceitou os ter-
mos do acordo e não perseguiu os judeus. Estes, por sua vez, fizeram o que lhes
foi possível, mobilizando a Talmud Torá em Amsterdã, pressionando os dirigen-
tes da WIC, na Holanda, e o Conselho Político do Recife.
No entanto, se Francisco Barreto acenou com a tolêrancia religiosa para os
holandeses que quisessem ficar no Brasil, mantendo seus investimentos, o mes-
mo não valeu para os judeus. Charles Boxer, no seu grande livro, afirmou: “pa-
rece que aos próprios judeus ortodoxos foi dada a permissão de ficarem”12. Nada
disso: o grande historiador se equivocou neste pormenor. Francisco Barrerto foi
claro: passados os três meses, os judeus que optassem por permanecer no Brasil,
ainda que convertidos ao catolicismo, ficariam à mercê da Inquisição.
Seria realmente difícil que o comandante luso-brasileiro fizesse semelhante
concessão aos judeus portugueses do Recife. Desde os primeiros anos da Res-
tauração, a dinastia de Bragança vinha enfrentando a Inquisição, sob a batuta
de Antônio Vieira, para proteger os cristãos-novos portugueses – financistas da

11 – Tão logo iniciada a insurreição, em junho de 1645, os judeus do Recife informaram a Talmud Torá de suas preocupações, em caso de derrota

holandesa. Esta logo pressionou a câmara de Amsterdã da WIC que, por sua vez, não tardou a remeter o memorial dos judeus para os Estados Gerais.

Em 7 de dezembro, os Estados Gerais enviaram carta ao Conselho Político do Recife, exigindo tratamento igual para cristãos e judeus que serviam à

WIC no Brasil, no caso de capitulação. O diploma foi chamado de Patente Honrosa pelos judeus. Ver: MELLO, José Antônio Gonsalves. Gente da Nação:

cristãos-novos e judeus em Pernambuco, 1542-1654. 2ª. ed. Recife: FUNDAJ-Editora Massangana, 1996, pp. 302-304.

12 BOXER, Charles. Os Holandeses no Brasil, p.340.

182
guerra de restauração contra a Espanha. Chegou ao ponto de, em proposta de
1643, propor que os judeus portugueses exilados na Holanda ou alhures pudes-
sem regressar a Portugal em paz, conservando a sua fé13.
Nesta contenda, o Inquisidor-geral d. Francisco de Castro chegou a ser pre-
so como um dos conspiradores que, em 1641, tentaram derrubar o rei recém
aclamado. Libertado o inquisidor em 1653, o Conselho Geral do Santo Ofício
fez o que pôde para sabotar a política externa de d. João IV junto aos holande-
ses e, sobretudo a política vieiriana de aliança com os sefarditas portugueses do
reino ou do exterior. A Inquisição processou jovens judeus cativados nas guer-
ras pernambucanas, em 1645, apesar de estarem eles abrigados pela imunidade,
conforme o tratado luso-holandês de 1641. Condenou à morte o famoso Isaque
de Castro, judeu novo executado na fogueira, em 1648, apesar de também abri-
gado pelo mesmo tratado – o que provocou ruidosos protestos da Talmud Torá
e dos Estados Gerais, em Amsterdã. Em 1647 a Inquisição mandou prender o
cristão-novo Duarte da Silva, banqueiro que intermediava os recursos sefarditas
para a Coroa. Fez o mesmo com Manuel de Vila Real, agente dos cristãos-novos
portugueses na França – judeu novo condenado a morte, em 165214.
O ápice do conflito veio a propósito do alvará régio de 1649, que retirava do
Santo Ofício o controle dos bens confiscados aos cristãos-novos condenados por
heresia. Isto no mesmo ano e em que foi criada a Companhia de Comércio do
Brasil, com forte investimento dos cristãos-novos portugueses, beneficiados, no
próprio estatuto da empresa, com a imunidade do confisco inquisitorial. Ideias
de Antônio Vieira, empenhado em derrubar a Inquisição portuguesa. Esta reagiu
à altura, apelando ao papa, que desautorizou o alvará de d. João IV, complicando
ainda mais a situação da dinastia brigantina, que a Igreja não reconhecia como
legítima. Apesar das inevitáveis negociações, o Santo Ofício somente recuperou
o controle dos bens confiscados após a morte do rei, em 1656.
Voltando à capitulação do Recife, não havia o menor clima para que Fran-
cisco Barreto tomasse uma decisão tão afrontosa ao Santo Ofício, depois de tan-
tas escaramuças no reino e com Antônio Vieira fora da cena política. O jesuíta

13 Proposta feita a el-rei D.João IV, em que se lhe representava o miserável estado do reino, e a necessidade que tinha de admitir os judeus mercadores

que andavam por diversas partes da Europa. In: VAINFAS, Ronaldo. Antônio Vieira – jesuíta do rei. São Paulo: Companhia das Letras, 2011, p. 105.

14 VAINFAS, Ronaldo. Antônio Vieira. Op. cit, pp. 178-179.

183
tinha sido excluído da corte e enviado ao Maranhão, em 1653, para dirigir a mis-
sionação jesuítica na região – exilado, portanto. Não seria o bravo comandante
Francisco Barreto a ressucitar a política vieiriana nessa altura dos acontecimen-
tos em pleno Recife post bellum.
Os derrotados venderam tudo o que puderam, mas muita coisa foi deixa-
da para trás. Como era raro, entre os portugueses católicos, quem pudesse ou
quisesse comprar casas, terras ou engenhos à vista, holandeses e judeus abando-
naram Pernambuco na condição de credores. O acordo da rendição era o único
diploma legal comprobatório da derrota holandesa. Nenhum tratado luso-ho-
landês, em elevado nível diplomático, foi assinado na ocasião15.
Os cristãos-novos do Brasil que adotaram o judaísmo durante o período ho-
landês apostaram na sorte. Em geral permaneceram na terra, quando naturais de
Pernambuco ou ali residentes havia tempo. A conversão outrora entusismada ao
judaísmo foi rejeitada, em meio às confissões, contritas ou atritas, que muitos fize-
ram na sacramental, na medida em que os rebeldes venciam as batalhas. Os judeus
novos, pelo contrário, na sua grande maioria voltaram à Holanda. Entre a opção
dos judeus novos de sair e a dos judeus novíssimos de ficar, depois de “reduzidos”,
houve alguns poucos judeus novos que se converteram ao catolicismo para ficar
no Brasil. A escolha de ficar em Pernambuco foi, decerto, uma opção temerária.

Um judeu que “se deixou ficar”

Antônio Henriques foi um caso típico de “judeu que se deixou ficar” em


Pernambuco, embora não fosse português, como a esmagadora maioria, mas
espanhol. Tinha 57 anos quando chegou preso a Lisboa, por ordens do Vigário
Geral de Pernambuco, Antônio Velho da Gama, acusado de judaizar no tempo
dos flamengos. Foi dos poucos a cair na teia do Santo Ofício a partir de uma

15 Pelo tratado de 1661, Portugal se comprometeu a indenizar as Províncias Unidas em quatro milhões de cruzados no prazo de 16 anos, inclusive as

dívidas dos credores holandeses e judeus, cuja lista resultaria do exame de uma comissão mista. O tratado só foi ratificado e publicado em 1663. As

dívidas relacionadas aos judeus portugueses perfaziam 68% do total. A liquidação do montante devido pela Coroa aos particulares só ocorreu em 1692,

beneficiando os herdeiros, pois a maioria dos credores já tinha morrido. Os judeus ficaram no final da lista de credores, sendo que vários não receberam

a indenização acordada. Ver: IEMMANUEL, Isaac S. Seventeenth-Century Jewry: a Critical Review. American Jewish Archives. 14 (1962), pp. 51-55.

18 4
visita diocesana realizada em Pernambuco, em 1660. Já se haviam passado mais
de sete anos da rendição holandesa, mas o Santo Ofício ainda rastreava os rema-
nescentes da comunidade sefardita do Recife16.
Antônio era cristão-novo natural de Antequera, na Andaluzia, sul da Espa-
nha, filho do mercador Francisco Vaz de Leão, e de Dona Beatriz Torres, ambos
cristãos-novos. Foi o segundo dos seis filhos do casal, dos quais cinco homens,
nascidos em solo castelhano. Todos foram batizados em pia, mas praticamente
não tiveram nenhuma formação cristã. Antônio Henriques não lembrava, entre
outras coisas, de ter comparecido à qualquer missa “desde que teve uso da razão”.
A família fugiu da Espanha quando Antônio era um menino com apenas
dez anos de idade. Fugiram da Inquisição ou partiram em busca do judaísmo
nas terras de liberdade? O processo é muito lacunoso a esse respeito, Antônio
era muito criança na época da fuga. Ele alegou ter esquecido dos detalhes do
episódio, ou fingiu não se lembrar dele, quando interrogado pelos inquisidores.
Em todo caso, não consta notícia de processo contra o pai ou a mãe de Antônio.
Quem sabe, tiveram notícia de alguma delação contra eles, sendo cripto-judeus
que sequer frequentavam a igreja para receber os sacramentos.
A família fugiu de navio, com d. Beatriz grávida, fixando-se em Saint-Jean-
-de Luz, no sul francês. O sexto filho do casal, também menino, nasceu na Fran-
ça. Um percurso comum entre os que buscavam o exílio apavorados com o Santo
Ofício. Diversas famílias de cristãos-novos em fuga faziam escala no sul da Fran-
ça, do que resultou uma comunidade sefardita algo temporária, em permanente
trânsito. O pai de Antônio logo se declarou “judeu de coração”, ao chegar em
Saint-Jean-de Luz, disposto a assumir a “lei de Moisés”.
A família permaneceu um ano na França, de onde partiu para Amsterdã, a
Jerusalém do Norte, chegando em 1616. Foi abrigada por Abraão Spinosa, cas-
telhano como eles, tio de Baruch Spinosa, o futuro filósofo, excomungado pela
Talmud Torá nos anos 1650. Pouco depois, o pai de Antônio alugou casa na ci-
dade e todos os membros da família assumiram o judaísmo. O pai e os meninos
foram circuncisados provavelmente na Bet Yacov, uma das três congregações
sefarditas de Amsterdã, antes da unificação promovida pela Talmud Torá. Isto é
certo, pois o mohel foi o alemão Aarão Levi, judeu ashkenazi, filho de Uri Levi,

16 IANTT, Inquisição de Lisboa, processo 7820, microfilme 4476.

185
guia espiritual do primeiro grupo de sefarditas na cidade. Francisco Vaz, pai de
Antônio, passou a chamar-se Abraão Israel Henriques, enquanto Antônio ga-
nhou o nome de Isaque Israel Henriques. A família inteira, aliás, passou a usar
o sobrenome Israel Henriques.
A família de Antônio não era rica, o pai pertencia aos escalões inferiores das
redes comerciais sefarditas. Antônio, agora Isaque, viveu como judeu durante
toda a mocidade. Seu nível de conhecimento do judaísmo era grande, em 1661,
quando foi preso, se comparado ao da maioria dos judeus novos convertidos no
Brasil – os novíssimos. Perguntado sobre as orações e ritos judaicos praticados na
sinagoga, Antônio foi dos mais precisos, dentre os casos similares que examinei,
a maioria deles na década de 1640. A favor da consistência do seu relato, vale
lembrar, de um lado, que Antônio era castelhano – o idioma (ladinizado) dos
“catecismos judeus” utilizados para doutrinar os judeus novos. Por outro lado,
seu processo data da década de 1660: os inquisidores já tinham acumulado al-
gum conhecimento do judaísmo sinagogal – o que não ocorria nos anos 1640,
daí os disparates que registravam nos primeiros processos contra judeus novos.
Antônio viveu também em Hamburgo, outro enclave sefardita, onde se ca-
sou com a judia Abigail de Lima, natural de Veneza, filha de pais portugueses.
Diásporas entrelaçadas. O casal teve três filhos, embora Abigail tenha morri-
do jovem, talvez no parto do terceiro filho. Antônio voltou para Amsterdã e,
com cerca de trinta anos, resolveu tentar a sorte no Brasil. Partiu para o Recife
em 1637, integrando, portanto, a primeira onda imigratória de judeus para Per-
nambuco, já sob o governo de Maurício de Nassau. Foi o único da família Israel
Henriques que se dispôs a imigrar. Viveu como pequeno mercador no Recife e se
manteve judeu praticamente até a expulsão dos holandeses.
Depois de preso, Antônio tentou convencer os inquisidores de que fora su-
bitamente tomado, em 1653, pelo desejo de regressar à religião católica na qual
tinha “nascido”, abandonando o judaísmo. No entanto, admitiu que somente
assumiu publicamente o catolicismo em 1654, após a retirada dos holandeses.
Explicou a tardança alegando temer que os judeus do Recife retaliassem a sua
reviravolta, caso descobrissem a sua intenção de regressar ao catolicismo.
Explicações rocambolescas, como a de Antônio, eram comuns quando cris-
tãos-novos reconvertidos ao judaísmo eram presos pelo Santo Ofício. Alguns

18 6
citaram visões celestiais de vários tipos para explicar porque tinham regressado
à “lei de Cristo”, em busca da salvação espiritual. Outros se disseram convenci-
dos pela pregação de sacerdotes católicos, como frei Manuel Calado – que, de
fato, convenceu muitos a abandonar a sinagoga. Também não faltaram os que
alegaram desilusão com o judaísmo, com o rigor dos dirigentes da Zur Israel,
com as multas, com a intolerância dos “judeus da Holanda”. Um deles alegou que
voltou ao catolicismo porque, insolvente, havia perdido o seu engenho para um
judeu prestamista17. É claro que, em um e outro caso, os réus diziam a verdade,
ou grande parte dela, mas os inquisidores, nesses casos, preferiam seguir o prin-
cípio de in dubio contra reo. Além disso, observaram um padrão na trajetória
dos acusados: a maioria deles somente tinha regressado ao catolicismo depois do
levante pernambucano ou após a expulsão dos holandeses.
Antônio Henriques ou Isaque Israel acrescentou, em seus esclarecimentos,
que fizera de tudo para regularizar o seu regresso ao catolicismo junto ao Vigário
Geral de Pernambuco, Domingos Vieira de Lima, mas este tinha se recusado a
reduzí-lo à “lei de Cristo”, sob a alegação de que a apostasia era crime reservado
ao Santo Ofício. Mas, segundo o réu, este vigário agiu com misericórdia, não
obstante se recusar a absolvê-lo da culpa, a ponto de prometer agenciar a sua
viagem à Lisboa para se apresentar à Inquisição. Fora o substituto de Domingos
Vieira na Justiça eclesiástica, Antônio Velho da Gama que, perdendo a paciência
com sua miserável agonia – dele, Isaque Israel, ansioso para voltar a ser Antônio
Henriques – mandou prendê-lo.
Segundo Antônio Henriques, tudo não passava de um grande equívoco pro-
vocado pela impaciência do Vigário da Vara Eclesiástica pernambucana. Apesar
de ter vivido a maior parte da vida como Isaque Israel Henriques, entre Amster-
dã, Hamburgo e Recife, nosso personagem insistiu em que, no fundo, sempre
fora católico desde criança.
Os inquisidores de Lisboa não caíram no conto do vigário – literalmente –
que o réu apresentou em sua defesa. Estavam cientes do que ocorria em Pernam-
buco, inclusive porque o Vigário Antônio da Gama Velho tinha enviado uma
carta ao Santo Ofício alertando que “muitos outros devem se encontrar, ainda,
nesse Estado (Pernambuco)”, reconhecendo, porém, ser difícil saber com certe-

17 IANTT, Inquisição de Lisboa, processo 306, microfilme 6964.

187
za, pois somente os que frequentavam a sinagoga poderiam confirmar18. Estava
certíssimo, o Vigário Geral, na advertência ao tribunal lisboeta.
Os inquisidores de Lisboa também conheciam o caso de Miguel Francês,
cuja trajetória era parecida com a de Antônio Henriques. A família escolheu o
exílio, quando Miguel era menino, como Antônio, passando pela França até che-
gar a Amsterdã. Era o ramo pobre do clã dos Bocarro Francês. Por volta de 1639,
quando tinha 28 anos de idade, foi tentar a sorte no Brasil holandês, isto é, no
Pernambuco nassovioano. Permaneceu alguns meses no Recife, e logo se mudou
para a várzea do Capibaribe, onde fazia pequenos negócios.
Chamei esse rapaz de “o primeiro renegado do judaísmo” no Brasil holandês
porque, muito cedo, apesar da formação judaica na Holanda, ele se reduziu ao
catolicismo. Abandonou o judaísmo no início da década de 1640, apoiado na
autorização recebida por Manuel Calado para “absolver de casos reservados”,
em confissões sacramentais. Miguel regressou a um catolicismo – que desconhe-
cia – em 1641, no máximo em 1642. Não fez como muitos “judeus novíssimos”,
reduzidos ao catolicismo por medo do levante pernambucano. Miguel renegou o
judaísmo antes de ser preso e, depois de preso, deu imensa colaboração aos in-
quisidores: lista de cristãos-novos que tinham regressado ao judaísmo na Europa
e no Brasil; detalhes minuciosos de orações e ritos, episódios da comunidade se-
fardita de Amstardã. Recebeu pena leve da Inquisição, considerado o empenho
que demonstrou como informante19.
Miguel era vinte anos mais novo do que Antônio, quando foi processado
pela Inquisição. Os inquisidores estavam cientes desse imbróglio luso-brasilei-
ro no tempo dos olandeses, desde o caso de Miguel Francês até o de Antônio
Henriques, passando pelos prisioneiros do Forte Maurício, em Penedo, na em-
bocadura do rio São Francisco, e pelo caso-mor de Isaque de Castro, queimado
vivo em Lisboa (1647).

18 Este trecho do processo me escapou na leitura do manuscrito, mas não escapou a FEITLER, Bruno. Inquisition, juifs et nouveaus-chrétiens au Brésil.

Leuven: Leuven University Press, 2003, p.189.

19 IANTT, Inquisição de Lisboa, processo 7276. Apresentei este caso em Jerusalém Colonial..., pp.248-262, e o aprofundei em Identidade judaica em

trânsito: Miguel Francês, primeiro renegado do Brasil. Saeculum. João Pessoa, n. 30, pp. 35-45, 2014.

18 8
Destino do judeu incauto

Antônio Henriques mentiu, descaradamente, na Mesa inquisitorial. Forma-


do no judaísmo luso-sefardita da Holanda, nunca tinha adotado a fé católica,
não timha sequer comparecido às missas dominicais quando criança. Antônio
Henriques era, antes de tudo, o Isaque Israel reconvertido ao judaísmo. Fora
circuncisado aos onze ou doze anos de idade, em Amsterdã – não como recém
nascido de oito dias, como reza a tradição judaica, talmúdica.
Judeu por formação, Isaque Israel somente adotou o catolicismo no último
minuto, quem sabe depois de 27 de abril de 1654 – prazo-limite estabelecido por
Francisco Barreto, reconquistador do Recife, na capitulação da Taborda. Confes-
sadamente, Antônio somente se assumiu como católico depois que os holande-
ses – e seus aliados judeus – deixaram o Recife.
O Santo Ofício não deu grande atenção, porém, às inconsistências do réu,
nem às suas explicações delirantes. Considerou, no parecer final, que a confissão
de Antônio era sincera, além de fornecer informações à Mesa sobre os judaizan-
tes pernambucanos e os de Amsterdã e Hamburgo. Foi condenado a sair em auto
público, realizado em setembro de 1662, abjurar em forma, usar hábito peniten-
cial e a permanecer “encarcerado” em Lisboa ao arbítrio dos inquisidores. Mas
não tardou para que Antônio fosse liberado.
Jamais saberemos a razão de Antônio ter preferido ficar no Brasil, expon-
do-se à Inquisição, ao invés de retornar com os demais judeus para a Holanda,
onde morava sua família. Certamente não ficou por razões financeiras, já que
“não tinha de seu coisa alguma, por haver caído em pobreza”. Antônio declarou,
na sessão de inventário, não ter “os vestidos necessários para se vestir”.
Bruno Feitler, que também estudou o caso, afirmou ser impossível alcançar
as motivações de Antônio, bem como as de outros judeus novos que adotaram
ou regressaram ao catolicismo, escolhendo ficar em Pernambuco. O processo
dele – Antônio ou Isaque – e de outros parecidos – não permite conjecturar
sobre motivações econômicas, sentimentais ou familiares para o vai-e-vem entre
o catolicismo e o judaísmo20. Feitler aponta, ainda, para a reação em cadeia, que
também percebi, nesse processo de conversões e reconversões, tanto a favor do

20 FEITLER, Bruno. Inquisition. Op. cit, p. 213

189
judaísmo, quanto do catolicismo. Na história dos sefarditas no Brasil holandês,
bastava um cristão-novo importante ingressar na sinagoga e vários seguiam o
exemplo. O mesmo valia na contramão: um renegado regressava ao catolicismo,
outros faziam o mesmo.
A única certeza que o caso de Antônio Henriques permite alcançar reside
em um paradoxo desconcertante. Judeu novo típico, com escassa formação cató-
lica, homem que permaneceu judeu até o final do período holandês, ele resolveu
converter-se ao catolicismo para “deixar-se ficar no Brasil”.
Antônio, aliás Isaque, conhecia o catolicismo como os inquisidores conhe-
ciam o judaísmo, ou seja, praticamente nada. Voltou a ser o cristão-novo que
tinha sido na infância. Só não vou chamá-lo de “católico novo”, como deveria,
simétrico ao “judeu novo”, para não inventar mais uma persona nesta miríade de
identidades partidas.

190
INQUISIÇÃO E MULHERES
J U DA I Z A N T E S N O E S PA Ç O
IBERO-AMERICANO:
resistência e práticas criptojudaicas na Modernidade lusa

Angelo Adriano Faria de Assis

Eso sí, estar cada uno lo que es y con quien vengo, vengo; y cuyo soy, soy1.
Francisco Botello, réu da Inquisição mexicana.

Cuando es arrestada, la mujer ingressa en un mundo ordenado y poblado


por hombres; queda sometida a sus leyes, sus castigos e sus juicios. Dondequiera
que dirija la mirada, ve rostros masculinos: inquisidores, abogados, carceleros,
notarios, torturadores, verdugos. Por todas partes hay hombres que la observan.
(...) La mujer o la niña violadas por la mirada masculina.
Mary Giles, Mujeres en la Inquisición. La persecución en España y el Nuevo Mundo.
Barcelona: Martínez Roca, 2000, p. 30.

Introdução

Dos dois lados do Atlântico de matriz portuguesa, por todo canto e espaço
que o luso império abarcava do Bojador aos confins da Ásia, em momentos dis-
tintos da Modernidade, se ouvia a mesma grita, embora com temperos, inten-
sidades e dramaticidades bastante dessemelhantes. Sempre, contudo, o objetivo
era o mesmo – lamentar, temer, reclamar, discordar da ação incômoda do Tri-
bunal do Santo Ofício da Inquisição e de seus representantes, sinal claríssimo de
tempos difíceis pela frente.
1 Em tradução presente na própria obra, “É isso, seja cada um o que é: vou com quem vou, sou de quem sou”. Apud: WACHTEL, Nathan. A fé da

lembrança: labirintos marranos. Lisboa: Editoral Caminho, 2002, pp. 196 e 454.

191
Presente na longa duração, a Inquisição portuguesa atuou entre 1536, quan-
do foi instaurada em tempos do Rei Piedoso, Dom João III, e 1821, durante o rei-
nado de Dom João VI, o Clemente, momento em que acabou extinta no contexto
das revoluções liberais que varreram Portugal e causaram, na outra margem do
Mar Oceano, a independência política do Brasil. Durante os duzentos e oitenta e
cinco anos de funcionamento, teve nos cristãos-novos, suspeitos de judaizarem
secretamente, a justificativa capital para a sua criação e funcionamento, alegan-
do serem estes a principal ameaça que enfrentava o catolicismo luso. Acabaram
os neoconversos, por sequela, como alvo preferencial e principais vítimas, em
números absolutos, nas dezenas de milhares de processos que moveu o Santo
Ofício2. No limite, a Inquisição portuguesa, tal qual sua congênere hispânica,
alimentou, como lembra Vainfas, um certo caráter antissemita3, que encontra-
va nos antigos judeus batizados ao cristianismo e seus descendentes o grande
perigo à retidão do monopólio católico implantado em fins do Quatrocentos,
entendidos, de forma generalizada, como maus cristãos, insistentes em manter,
de acordo com as circunstâncias e no que fosse possível, a religião que lhes fora
oficialmente arrancada.
Em Portugal, a questão judaica – ou, melhor dizendo, criptojudaica, como
veremos à frente – acabou por servir de grande pretexto para a ação inquisitorial,
seja no reino seja em seus domínios. Espalhou-se um estigma de vigilância, pelo
Santo Ofício e seus cooperadores – tanto os funcionários da máquina inquisito-
rial como os apoiantes e colaboradores anônimos da sociedade (e estes, diga-se

2 Cabe salientar que, apesar da Inquisição portuguesa ter funcionado até 1821, cerca de cinquenta anos antes os neoconversos deixaram de existir

oficialmente em Portugal. Em Carta Lei de 25 de maio de 1773, durante a administração pombalina, extinguiram-se as diferenciações entre cristãos

velhos e novos. Diz o texto “Mando que todos os Alvarás, Cartas, Ordens e mais Disposições, maquinadas e introduzidas para separar, desunir e armar

os Estados e Vassalos destes Reinos uns contra os outros em sucessivas e perpétuas discórdias, com o pernicioso fomento da sobredita distinção de

Cristãos Novos e Cristãos Velhos, fiquem desde a publicação desta abolidos e extintos, como se nunca tivessem existido, e que os registros deles sejam

trancados, cancelados e riscados em forma que mais não possam ler-se; para que assim fique inteiramente abolida até a memória deste atentado cometi-

do contra o Espírito e Cânones da Igreja Universal, de todas as Igrejas Particulares e contra as Leis e louváveis costumes destes Meus Reinos, oprimidos

com tantos, tão funestos e tão deploráveis estragos por mais d Século e meio, pelas sobreditas maquinações maliciosas”. Apud: MARTINS, Jorge. A

emancipação dos judeus em Portugal. In: Cadernos de Estudos Sefarditas, número 8. Lisboa, 2008, pp. 75-76. Todavia, a Inquisição já não possuía, então,

a mesma pujança do período anterior. Embora não houvesse mais cristãos-novos oficialmente em Portugal a partir deste decreto, o altíssimo número

de batizados em pé perseguidos durante o tempo em que vigoraram os estatutos de pureza de sangue na Lusitânia foi mais do que suficiente para que

os neoconversos representassem, no conjunto, o principal grupo de réus do Santo Ofício, chegando alguns autores a quantificar em mais de oitenta por

cento dos prisioneiros inquisitoriais indivíduos de origem hebraica.

3 VAINFAS, Ronaldo. Trópico dos Pecados: moral, sexualidade e Inquisição no Brasil. 3ª ed. Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, 2010, p. 248.

192
de passagem, não foram poucos!) – sobre as práticas cotidianas e condutas reli-
giosas, e um medo generalizado de que quaisquer comportamentos, atos, ideias
ou comentários pudessem ser interpretados como desvio da fé e servirem de
combustível para a ação persecutória que se movia em nome da Misericordia et
Justitia, lema que ilustrava os estandartes da instituição4.
E a atmosfera de medo que pairava no ar dava vez e voz a comentários dos
mais variados: “Merda para a Inquisição e para quem a manda e para quem a
traz”, dissera Margarida Avondosa, moradora na região algarvia de Tavira, si-
tuada a meio caminho entre Faro e a fronteira com a Espanha, à época em que o
Santo Ofício iniciava seus trabalhos no reino, a demonstrar sem meias palavras
o que achava daquela pesarosa novidade5.
“Jesus, estávamos quietos”6, pronunciara uma moradora da América portu-
guesa, a cristã velha Isabel Ribeiro, quando soube, em fins do século XVI, da
notícia da prisão por mando do Santo Ofício de uma certa Dona Maria e de seu
marido fugido, passados apenas dois meses da chegada da visita inaugural da
Inquisição à Bahia, imaginando e antecipando o impato que esta causaria por
todo o trópico. Sabia ter motivos reais para se preocupar: era nora de uma das
personagens mais célebres alcançadas pela primeira visitação, a cristã-nova Ana
Rodrigues, figura das mais denunciadas, apontada dezenas de vezes como judai-
zante e transformada, anos mais tarde – triste fama nada desejada –, na primeira
vítima moradora do Brasil condenada à fogueira, embora já estivesse morta, há
mais de uma década, quando do fim de seu processo. Seus ossos, desenterrados
e transformados em pó, pagaram a pena7...
O próprio visitador Heitor Furtado de Mendonça, durante o tempo em que
esteve na Bahia capitaneando os trabalhos da primeira visitação, teve sua resi-
dência duas vezes alvejada por disparos de espingarda, o que considerou “mui
grande afronta e injúria ao Santo Ofício”8. Para azar dos que temiam ser de-

4 Sobre a atmosfera de medo gerada pela presença e atuação do Tribunal do Santo Ofício português, conferir: OLIVEIRA, Halyson Rodrygo Silva de.

“Mundo de Medo: Inquisição e cristãos-novos nos espaços coloniais. Capitanias de Pernambuco, Itamaracá e Paraíba (1593-1595)”. Dissertação de

Mestrado apresentada ao Programa de Pós-Graduação em História da Universidade Federal do Rio Grande do Norte, 2012.

5 Apud BRAGA, Isabel M. R. Mendes Drumond. Viver e morrer nos cárceres do Santo Ofício. Lisboa: A Esfera dos Livros, 2015, pp. 20-21.

6 Primeira Visitação do Santo Officio ás partes do Brasil pelo Licenciado Heitor Furtado de Mendonça capelão fidalgo del Rey nosso senhor e do seu

desembargo, deputado do Santo Officio. Denunciações da Bahia 1591-593. São Paulo: Paulo Prado, 1922-1929, 3 vols, p. 546.

7 ASSIS, Angelo Adriano Faria de. Macabeias da Colônia: Criptojudaísmo feminino na Bahia. São Paulo: Alameda Editorial, 2012, p. 223.

8 FARINHA, Maria do Carmo J. Dias. O Atentado ao Primeiro Visitado do Santo Ofício no Brasil 1592. In: NOVINSKY, Anita W. & KUPERMAN,

193
nunciados mas sorte de Mendonça e da continuidade dos trabalhos pelos quais
estava responsável, não foi atingido por nenhum dos tiros, mas apenas pela in-
dignação e pelo susto. Também no Rio de Janeiro, em 1646, um representante
do tribunal seria apedrejado pelos moradores, indo se refugiar numa igreja da
região para evitar desfecho mais grave que pusesse em risco a sua integridade9.

Um século e meio depois, em Minas Gerais, quando corria o ano da Graça


de 1759, uma querela entre dois moradores que não mantinham boas relações de
convívio, Manoel Carvalho da Rosa e Manoel Fernandes, também deu origem
a ditos pouco prudentes: ao ser ameaçado por Manoel Fernandes de que o iria
denunciar à Inquisição, Manoel da Rosa, em palavras desordenadas, bradou ao
desafeto, “me tome o Santo Ofício no cu”10!
Estes comentários sobre a Inquisição e as tentativas de agressão aos seus re-
presentantes dão mostras da atmosfera de incômodo, desconfiança e medo que
a presença do Santo Ofício causava por toda a parte. Embora os neoconversos
tivessem reais motivos para temer a onipresença da força persecutória inqui-
sitorial, todo indivíduo, independente da origem, poderia cair nas malhas do
tribunal, como suspeitos de qualquer tipo de comportamento que descumprisse
as normas católicas. E assim foi com relação aos mais distintos tipos de práticas
consideradas desviantes: bígamos; acusados de feitiçaria; praticantes de homos-
sexualismo e molícies de toda sorte; blasfêmias; desrespeito aos símbolos, per-
sonagens e dogmas do catolicismo; leituras proibidas; proposições heréticas de
toda sorte; gentilidades; envolvimento com outras crenças, entre muitas outras.
Mas aqui, no espaço deste trabalho, interessa-nos a ação orquestrada pelo
Tribunal do Santo Ofício português sobre os cristãos-novos suspeitos de conti-
nuidade hebraica, bem como as estratégias de resistência e sobrevivência reli-
giosa levadas a cabo por muitos destes neoconversos no intuito de manterem as
aparências, vivendo como cristãos publicamente e ao modo dos judeus nos es-
paços de privacidade. Assim, foi viável que a religião mosaica não desaparecesse

Diane (Orgs.). Ibéria judaica: roteiros de memória. Rio de Janeiro: Expressão e Cultura; São Paulo: EDUSP, 1996, pp. 233-253.

9 MATTOS, Yllan de. ‘Me tome o Santo Oficio no cu’: injúrias populares, críticas e vocábulos da praça pública contra a Inquisição portuguesa (séculos

XVI-XVIII)”. In: ASSIS, Angelo Adriano Faria de; LEVI, Joseph Abraham & MANSO, Maria de Deus Beites (Orgs). A Expansão: quando o mundo foi

português. Da conquista de Ceuta (1415) à atribuição da soberania de Timor Leste (2002). Braga: NICPRI; Viçosa: Centro de Ciências Humanas, Letras

e Artes da Universidade Federal de Viçosa; Washington, 2014, p. 148.

10 Id. Ibid., p. 149.

194
por completo: embora não representasse nem de longe o judaísmo tradicional
conhecido e praticado em espaços de liberdade de crença, conseguiu manter-se,
embora fragilizado, oculto, dissimulado e limitado – o judaísmo que era então
possível, enfim. Destaque especial nesta luta pela sobrevivência para o papel
desempenhado pelas mulheres, das grandes responsáveis pela continuidade da
Antiga Fé junto às novas gerações, verdadeiras matriarcas da crença dos antepas-
sados e que permitiram sua continuidade ao longo do tempo em que monopólio
católico manteve sua vigência no luso mundo.

Ser sem poder ser: O problema cristão-novo no mundo português

“Eu não sou eu”, “Tal estou que não sei quem sou”, “ainda que vivo, vivo
morto”. Os trechos acima, pinçados dentre muitos outros constantes na obra de
António José da Silva, o Judeu11, escritor e dramaturgo nascido no Rio de Janei-
ro, autor de peças de teatro que eram encenadas no Bairro Alto de Lisboa, e que
saiu para ser queimado em auto da fé no ano de 1739 por culpas de judaísmo,
dão-nos a exata noção da dubiedade vivenciada pelos cristãos-novos: impedidos
de seguir na fé em que nasceram, mal aceitos na religião que lhes fora imposta,
desconhecedores de ambas. Eram “homens divididos”, como bem os caracteri-
zou Anita Novinsky em livro clássico lançado em 1972, que colocou os holofotes
sobre a questão da presença dos cristãos-novos e do marranismo no Brasil colo-
nial, influenciando gerações de pesquisadores do tema12.
Mas nem sempre fora assim. Durante séculos, desde a Antiguidade13, os
judeus marcaram presença na Península Ibérica, que denominavam Sepharad,
espaço de convivência entre cristãos, hebreus e mouros14. Os traços deste con-

11 Sobre o processo movido pelo Tribunal do Santo Ofício contra de António José da Silva, conferir DINES, Alberto. Vínculos do fogo: António José da

Silva, o Judeu, e outras histórias da Inquisição em Portugal e no Brasil. 2a. Ed. São Paulo: Companhia das Letras, 1992.

12 NOVINSKY, Anita. Cristãos novos na Bahia: 1624-1654. São Paulo: Perspectiva/EDUSP, 1972.

13 As mais antigas provas materiais da presença judaica em Portugal remontam ao século VI: uma lápide funerária encontrada em Espiche, próximo

à vila de Lagos, na região do Algarve. Já para o caso espanhol, as mais antigas referências à presença judaica remontam ao século III. TAVARES, Maria

José Ferro. Os judeus em Portugal no Século XIV. 2a ed. Lisboa: Guimarães Editores, 2000, p. 11.

14 Embora consciente da importância dos indivíduos de origem mourisca para a formação portuguesa, bem como do papel de exclusão e expulsão de

que foram, assim como os judeus, vítimas, nos limitaremos, no espaço deste artigo, a tratar do caso judaico, foco primeiro de nossa análise.

195
vívio podem ser percebidos ainda hoje na arquitetura, na culinária, nos avanços
científicos, nas artes que formaram a Ibéria das três religiões15.
No lado lusitano, lá chegaram em diferentes levas e épocas, criando laços,
formando comunidades, atuando no comércio, auxiliando na estruturação do
reino, ocupando espaços e deixando marcas na sociedade, nos negócios, na cultu-
ra, a viverem em judiarias ou mesclando-se entre os cristãos em diversas vilas es-
palhadas pela Lusitânia. Possuíam sinagogas e rabinos estabelecidos, tinham seus
direitos e deveres controlados pela legislação, seguiam as interdições alimentares
e respeitavam os feriados religiosos judaicos, mantinham contatos com outras co-
munidades dentro e fora das fronteiras lusas, dentro e fora da Ibéria. Participaram
ativamente na formação do reino, ocuparam espaços na agricultura, na produção
e no comércio, desempenharam papéis fundamentais na economia, foram im-
prescindíveis no desenvolvimento das ciências, dos instrumentos e procedimen-
tos de navegação, integraram seus costumes com costumes locais, incentivando
novos hábitos, novos modos de fazer, novos conhecimentos que se tornaram
comuns a todos, moldando a especificidade daquela comunhão. Uma presença
tão marcante que mereceria reconhecimento de sua sujeição por parte da Coroa,
através de proteção especial, amparo e benefícios próprios, sendo tratados por
alguns monarcas como “meus judeus”16. Muito do Portugal que conhecemos hoje
tem, sem dúvida, origem nesta herança hebraica. No alvorecer da Modernidade,
foram fundamentais, tanto com capitais quanto com experiências e técnicas, nos
processos de expansão que alargaram os horizontes portugueses, alimentaram os
cofres reinóis e a noção de mundo conhecido. Ajudaram, enfim, a permitir que
o reino forjado pela espada de Afonso Henriques ocupasse lugar de destaque no
início da Era Moderna, tornando judeu e português termos sinônimos em várias
partes do mundo por onde passavam ou mantinham negócios e contatos17. Em
Portugal (e também na Espanha, onde comungaram da mesma relativa tran-
quilidade pelo menos até fins do século XIV), vivenciaram relativa harmonia
nas relações do cotidiano, se comparado ao quadro existente em outras regiões

15 Sobre a Ibéria das três religiões ver, dentre outros: BEL BRAVO, María Antonia. Sefarad. Los judios de España. Madri: Sílex, 2001, e BENBASSA,

Esther (dir.). Les Sépharades. Histoire et culture du Moyen Âge à nos jours. Paris: Pups, s/d.

16 ASSIS, Angelo Adriano Faria de. Macabeias da Colônia. Op. cit, p. 35.

17 O mesmo repetir-se-ia, e até com mais frequência, após os decretos de conversão forçada, quando os cristãos-novos de origem portuguesa espalhados

pelo mundo eram identificados como judeus.

196
da Europa, de onde foram seguidamente (em épocas e espaços diferenciados)
expulsos ou perseguidos.
Estima-se que em fins do século XV – fortalecida pelos milhares de judeus
que foram expulsos da Espanha em 1492 e atravessaram a fronteira lusitana em
busca de um novo local para recomeçarem a vida – a comunidade hebraica por-
tuguesa tenha alcançado por volta de cem a cento e cinquenta mil indivíduos, de
um total populacional calculado em torno do milhão de pessoas. Ou seja: de dez
a quinze por cento dos habitantes naquele que seria um dos mais importantes
momentos da história de Portugal – quando se vivia o momento de formação e
expansão do império, com a conquista do Oriente e a chegada à América – eram
de origem hebraica, números muitíssimo significativos não apenas em compa-
ração ao percentual de judeus que habitavam outras regiões, mas que servem
para dar-nos uma dimensão do peso e influência que estes exerciam na vida
portuguesa de então.
Os interesses envolvendo o monarca luso e os Reis Católicos de Espanha,
porém, levariam a uma mudança abrupta neste quadro. Uma das exigências para
que fosse selado o acordo nupcial então em andamento entre D. Manuel, o Ven-
turoso, e a infanta hispânica envolvia a expulsão de judeus e mouros de Portugal,
implementando o monopólio católico, aos moldes do que havia sido feito pou-
cos anos antes nos domínios de Fernando de Aragão e Isabel de Castela, quando
se completou o processo de Reconquista espanhola.
A importância dos judeus para o momento de expansão ultramarina viven-
ciado pelo reino certamente pesou para o modo como foi estruturado o processo
de expulsão. Ciente do peso da presença judaica na sociedade portuguesa, bem
como da irreversível perda de capitais e de mão de obra técnica imprescindível
para os interesses lusitanos que resultariam da saída da população de origem
mosaica, Dom Manuel fixou prazo de dez meses para que estes deixassem Portu-
gal. Ao longo deste tempo, usou de extenso rol de artimanhas e subterfúgios para
tentar convencê-los à conversão cristã, acenando com a possibilidade de perma-
nência em seus domínios, fosse de forma pacífica, oferecendo cargos públicos ou
vantagens econômicas, fosse de forma mais incisiva, com ameaças, sequestros
e castigos. Findo o prazo estabelecido, em outubro de 1497, batizou à força os
que insistiam em partir, transformando-os em cristãos-novos, impondo um fim

197
oficial aos séculos de livre presença mourisca e judaica e de liberdade religiosa,
dando início ao monopólio católico. Ao mesmo tempo, prevendo a necessidade
de adaptação dos cristãos-novos à nova realidade, estipulava prazo que, com
as seguidas renovações, estendeu-se por cerca de quarenta anos, livrando-os de
qualquer inquirição sobre as práticas religiosas que mantinham.
Acabava, assim, em Portugal, a existência oficial de judeus e de tudo o que
cercava o seu universo: proteções legais, judiarias, sinagogas, escolas, posse e
leitura de textos sagrados, rabinos instituídos, orações e fala em língua hebrai-
ca, preparação e consumo de alimentos ao modo judaico, respeito às datas e
festas do calendário mosaico, uso de roupas, distintivos, símbolos ou quaisquer
elementos ou práticas que identificassem a antiga pertença religiosa. Igualados
como cristãos, mas diferenciados dos cristãos tradicionais, de origem pura, lin-
da ou imaculada, livres de qualquer nódoa sanguínea, descendentes de família
cristãs, denominados cristãos velhos, os neoconversos, forçados ou batizados em
pé constituíam uma espécie de cristãos de “segunda categoria”, posto que carre-
gavam nas veias a herança do sangue hebraico.
“O batismo forçado dos judeus”, de acordo com José Pedro Paiva e Giuse-
ppe Marcocci, “transformou repentinamente o reino numa terra com dezenas
de milhares de convertidos sem qualquer instrução na nova fé”18. Esta conversão
forçada e oficial, todavia, se, por um lado, tornava uníssona a pertença religio-
sa dos habitantes do reino à grei católica, não significaria na prática, por outro
lado, uma imediata e real conversão à fé de Cristo. Embora alguns dos antigos
judeus tenham de fato buscado adesão sincera ao catolicismo, abandonando os
preceitos da antiga religião e esforçando-se para serem bons e fiéis católicos, uma
parcela considerável dentre os batizados em pé continuou a manter ocultamen-
te, em intensidades e modelos heterogêneos, as crenças dos antepassados. Cada
cristão-novo, ao seu modo, reagiu de forma particular e de acordo com as pos-
sibilidades ao quadro de intolerância a que foram submetidos: no limite, entre
o indivíduo que aceitou por completo o cristianismo e aquele que insistiu em se
manter fiel à Lei de Moisés, há uma infinidade de configurações e intensidades de
adaptação ou resistência à nova realidade religiosa que viviam. Mesmo entre os
cristãos-novos convictos e os criptojudeus mais agarrados aos seus princípios, as

18 MARCOCCI, Giuseppe & PAIVA, José Pedro. História da Inquisição Portuguesa 1536-1821. Lisboa: A Esfera dos Livros, 2013, p. 49.

198
formas de estar no mundo e de enfrentar o problema religioso se davam dentro
de entendimentos e práticas muito particulares. Não havia, em última instância,
dois neoconversos com os mesmos comportamentos ou formas de entender sua
situação no mundo, ou que mantivessem relação e compreensão idêntica do ju-
daísmo que lhes fora arrancado ou do cristianismo que lhes fora imposto. Tudo
dependia da consciência ou não do problema da conversão, do maior ou menor
distanciamento do período de livre crença, do espaço em que estavam inseridos,
dos seus círculos familiares, sociais e de convívio, das contingências, enfim, de
tudo que os permitiam pesar entre a fé dos antepassados e a fé do reino.
De indivíduo para indivíduo, de geração para geração, a forma de com-
preender e interagir com sua realidade sofreu mudanças de acordo com as es-
pecificidades enfrentadas por cada cristão-novo. Mesmo entre aqueles que op-
taram por insistir na continuidade hebraica, judaizando ocultamente, o fizeram
dentro das possibilidades, das limitações e do conhecimento que tinham. O
criptojudaísmo, deste modo, apresentava elementos, características e interpre-
tações próprias em cada um de seus praticantes, que seguiam a herança judaica
que traziam da memória dos tempos de liberdade religiosa, as informações que
recebiam de familiares e conhecidos, a tradição oral que recebiam e passavam
a difundir, na falta do acesso aos textos sagrados, juntavam os rastros dos ensi-
namentos necessários para a continuidade da fé. Não raro, e ironia das ironias,
aprendiam o que era ser judeu com os próprios representantes da Igreja, que
caracterizavam os judeus e o judaísmo em suas pregações religiosas ou convo-
cações para que os fiéis denunciassem quaisquer comportamentos tidos como
expressão judaica às autoridades.
Entendido o todo pela parte, os neoconversos acabariam herdeiros diretos
dos preconceitos e desconfianças outrora destinados aos judeus. Seriam vistos, de
forma generalizada, como suspeitos de judaizar e de falta de adesão completa e
sincera ao cristianismo. Rapidamente, a sociedade identificaria no processo de
conversão forçada uma forte ameaça à pureza católica no reino, fazendo com
que as desconfianças que pairavam sobre os cristãos-novos fossem das mais
fortes causas para a instauração da Inquisição em 1536, bem como os antigos
judeus batizados ao cristianismo e seus descendentes as suas principais vítimas.
A implantação e estruturação do Santo Ofício no reino teria impato imedia-

199
to sobre o aumento das perseguições e hostilidades contra o grupo neoconverso.
O crescente controle inquisitorial acabaria por alimentar profundas transforma-
ções nas relações sociais, rompendo laços de amizade, compadrio e parentesco,
intensificando uma atmosfera de medo, o clima de desconfianças e as delações
de comportamentos entendidos como desviantes. Como consequência, não fo-
ram poucos os cristãos-novos que enxergaram na migração para outras regiões
do império e mesmo fora dele uma oportunidade para saírem do alcance da
Inquisição.
O Santo Ofício, embora de forma equivocada enxergasse, não raro, um
potencial judaizante em cada indivíduo cristão-novo, tinha razão de sobra em
perceber que o judaísmo continuava bem ativo em Portugal e seus domínios,
mesmo passados cerca de quatro décadas entre os decretos de conversão forçada
e o início dos trabalhos do Tribunal. Longe estamos, que fique certo, de defender
ou justificar a lógica de ação inquisitorial, o clima de suspeitas e medo gene-
ralizados insuflados por seus representantes, ou ainda os abomináveis castigos
impostos aos réus – muitíssimo longe disto! Contudo, é possível constatar pelas
fontes inquisitoriais (denúncias, confissões, processos, regimentos, cadernos do
promotor e outros códices documentais pertencentes aos seus arquivos), que um
considerável número de neoconversos continuou a lutar pela manutenção das
tradições mosaicas.
Guardados os filtros necessários para o trabalho com esta documentação,
como os exageros dos denunciantes, as estratégias maquinadas de confissão por
parte dos réus ou o olhar viciado de representantes do Tribunal, o certo é que
muitos neoconversos continuaram, dentro das possibilidades – fossem confor-
táveis ou ínfimas – a judaizar em segredo, na privacidade do lar, no seio familiar:
não mais um judaísmo livre e cercado por simbolismos e tradições como ocorria
nos tempos de liberdade religiosa, mas o judaísmo possível, limitado em seu sig-
nificado e práticas, restrito às lembranças de tempos idos – uma fé da lembrança,
como tão bem caracterizou Wachtel em obra clássica19 –, muitas vezes equivo-
cado em suas interpretações e simplificações, mas repleto de desejo de resistir às
proibições e sobreviver a cada nova geração.
Nos primeiros momentos pós-conversão forçada e ainda anteriores ao esta-

19 WACHTEL, Nathan. A fé da lembrança. Op. cit

200
belecimento da Inquisição, quando muitos dos neoconversos nascidos judeus e
educados na Antiga Lei, ou então, já nascidos cristãos-novos, mas que convive-
ram com batizados em pé e mesmo rabinos que continuavam vivos e guardavam
a memória do judaísmo tradicional, inclusive com a manutenção de costumes e
o acesso a textos sagrados, o judaísmo sobreviveu mais próximo às origens e foi
repassado aos descendentes. Entretanto, o afastamento temporal do período de
conversão forçada, com as novas gerações nascidas e criadas no monopólio ca-
tólico, sem maiores contatos com os resquícios do tempo de livre crença, muitas
das práticas consideradas mais denunciadoras da continuidade judaica foram
perdendo seu sentido original ou sendo abandonadas em prol de outros com-
portamentos que permitiam, aos criptojudeus, manter a fé sem denunciarem sua
verdadeira entrega. Mas, no geral, a prática judaica ainda era evidente, a ponto
de alguns apelos pela conversão sincera ganharem força, como o Espelho de cris-
tãos-novos convertidos, texto-advertência do teólogo cisterciense Frei Francisco
Machado, publicado em 1541 e voltado aos que relutavam em aceitar a Lei de
Cristo e insistiam em judaizar em segredo – “Deixai a Lei de Moisés!”20
Mas, se o criptojudaísmo insistia em celebrar a crença mosaica e resistir à
pressão cristã, os rituais judaicos, como vimos, sofreriam alterações das mais
diversas com o passar do tempo no intuito de impedir o seu completo desa-
parecimento e ganhar sobrevida em quadro totalmente hostil. Sua proibição
levou à prática oculta, substituindo os textos sagrados pelo repasse oral, as de-
voções públicas pelas celebrações na privacidade das residências, onde poderia
ser vivenciado com (presumidamente) maior segurança. É neste cenário que se
agiganta o papel das mulheres como propagadoras do judaísmo em épocas de
exclusão, permitindo, a partir dos lares, seja na metrópole, seja nos domínios
ultramarinos, sua continuidade, mesmo que adaptado, dissimulado, diminuto e
simplificado. Um judaísmo com restrições, tanto na sua prática quanto em suas
definições religiosas, organizando-se dentro de novas bases, não publicizado,
sem sinagogas, rabinos estabelecidos ou textos sagrados, baseado na divulgação
oral e em vivências particularizadas.
O Santo Ofício, diga-se de passagem, tinha consciência do novo e agiganta-
20 VAINFAS, Ronaldo. ‘Deixai a lei de Moisés!’ Notas sobre o Espelho de cristãos-novos (1541), de frei Francisco Machado. In: GORENSTEIN, Lina e

CARNEIRO, Maria Luiza Tucci (Orgs.). Ensaios sobre a Intolerância. Inquisição, Marranismo e Anti-semitismo. 2ª. ed. São Paulo: Associação Editorial

Humanitas, 2005.

201
do papel desempenhado pelas mulheres na propagação da religiosidade hebrai-
ca. O elevado número de mulheres processadas por culpas de judaísmo dá-nos
a prova disto. À guisa de exemplo, cabe citar o levantamento feito por Anita
Novinsky em seu Prisioneiros do Brasil relativo aos réus oriundos da América
portuguesa: dos 1076 indivíduos identificados pela autora presos pelo Tribunal
que tinham algum tipo de ligação com o Brasil, 778 eram homens, enquanto 298
eram mulheres. Dos homens 41,39% (322 do total de réus) foram processados
por culpas de judaísmo; já entre as mulheres, este número chega a 74,50% (ou
222 prisioneiras)21.
A estruturação da Inquisição portuguesa deu-se, em boa medida, durante o
tempo em que teve como inquisidor-geral o Cardeal Dom Henrique, de 1539 até
o seu falecimento, em 1580, quando também ocupava o trono, em decorrência da
tragédia que acometeu o rei Dom Sebastião nas areias do Marrocos, em 1578. O
inquisidor-geral criou regimentos, ordenou modos de ação, ordenamentos na car-
reira hierárquica dos funcionários, definiu crimes e culpas da alçada do Tribunal,
aumentou seu raio de ação dentro e fora da metrópole. A partir de 1540, verifica-se
o aumento das perseguições aos neoconversos, com a realização dos primeiros au-
tos da fé. Em consequência, muitos cristãos-novos enxergaram na imigração uma
possibilidade de recomeçar a vida longe das perseguições inquisitoriais.
À mesma época em que o Santo Ofício iniciava suas ações em Portugal, a
luso-América vivenciava os primórdios do processo colonizatório, e a produção
de açúcar começava ganhar destaque, tornando-se ponta-de-lança da economia
do império, o que fez do trópico brasílico, onde não havia um tribunal inqui-
sitorial estabelecido, um espaço privilegiado nos interesses de migração destes
neoconversos. Muitos dos neoconversos que deixaram a metrópole, interessados
na menor vigilância religiosa e nas possibilidades de enriquecimento rápido es-
colheram o Brasil como destino. Aqui, escalaram posições sociais e econômicas,
transformaram-se em homens de negócios, desempenharam as mais diversas
21 NOVINSKY, Anita. Inquisição: prisioneiros do Brasil – séculos XVI-XIX. Rio de Janeiro: Expressão e Cultura, 2002, pp. 38-39. Cabe lembrar que

estes números são provisórios, não absolutos, e podem ser modificados conforme avancem as pesquisas e catalogação dos documentos referentes à

Inquisição portuguesa presentes nos Arquivos Nacionais da Torre do Tombo. Também à autora devemos um dos primeiros olhares sobre a importância

feminina no processo de resistência judaica, ensinando aos descendentes, a partir da transmissão da memória, a “Lembrar-se de lembrar” apesar das

perseguições e do clima de medo, em trabalho apresentado em congresso realizado em Portugal sobre as mulheres no processo de expansão portu-

guesa. NOVINSKY, Anita. O papel da mulher no cripto-judaísmo português. In: Anais do Congresso Internacional. O Rosto Feminino da Expansão

Portuguesa, Lisboa, 1995, p. 699-711.

202
funções, fixaram-se e compraram terras, tornando-se destacados senhores de
engenho, alguns riquíssimos e com grande influência e prestígio. Ligaram suas
atividades mercantis com cristãos-novos e até judeus livres de outros espaços
– Cochim, Goa, Macau, Malaca, Japão, Norte da África, Moçambique, Guiné,
Angola, Cabo Verde, São Tomé, Madeira, Açores, México, Caribe, Espanha, Itá-
lia, Holanda –, estruturando redes intercontinentais de comércio e de contato,
negociando produtos e circulando informações que auxiliavam nas estratégias
de proteção do grupo neoconverso das perseguições movidas pela Inquisição22.
Um bom exemplo do bom convívio de que desfrutavam na América é, para
além da presença neoconversa em praticamente todos os espaços da economia
e sociedade, o alto número de casamentos mistos, entre cristãos velhos e novos,
se comparado ao que ocorria em Portugal, o que demonstra uma maior aceita-
ção social destes enlaces e a diluição dos atritos entre os grupos, preocupados
que estavam com perigos mais urgentes e a própria sobrevivência em ambiente
inóspito do que com as questões de fé. As famílias cristãs-novas buscavam, ao
casar seus filhos e filhas com cristãos velhos, não apenas a diminuição da porção
de sangue hebraico nos futuros descendentes, mas ainda dar provas públicas de
sincera devoção cristã, referendada pela família cristã velha a que se unia, sendo
o casamento visto como sinal de bom comportamento religioso.
As longas distâncias existentes na colônia, onde qualquer viagem, pelas pre-
cariedades enfrentadas, poderia durar mais tempo do que o esperado, tornava
frequente a ausência do marido nas residências, e acabaria por influir na prática
da continuidade judaica, intensificando o papel que já no reino havia sido desti-
nado às mães neoconversas, responsáveis pela criação e pelas aprendizagens ini-
ciais de fé aos rebentos. Além das atribuições na organização da casa, realizando
a limpeza, preparando alimentos, por vezes obrigadas à provisão dos mantimen-
tos, cuidavam da saúde e educação dos filhos, da manutenção da ordem e en-
sino das primeiras letras e lições de moral. Aos poucos, conforme as crianças
alcançavam idade e consciência, instruíam os filhos no conhecimento judaico,
relatando os dramas enfrentados pelos judeus e pela família, em particular, en-
sinando orações e dogmas, repassando as formas de ludibriar as desconfianças

22 SOUSA, Lúcio Manuel Rocha de; ASSIS, Angelo. Adriano Faria de. “A Diáspora Sefardita na Ásia e no Brasil e a Interligação das Redes Comerciais

na Modernidade”. Revista de Cultura. Macau, v. 31, 2009, p. 100-117.

203
de terceiros para se protegerem dos perigos da Inquisição e dos olhares atentos
da sociedade. Na falta de sinagogas e da possibilidade de exposição pública da
fé, os lares transformaram-se em células fundamentais da resistência judaica. No
Brasil, mas não só: por todo o mundo luso, coube, em grande parte, ao núcleo
familiar e ao espaço doméstico, tornarem possível esta sobrevivência.

Resistir e repassar: mulheres e criptojudaísmo no mundo português

A documentação do Santo Ofício sobre comportamentos supostamente ju-


daizantes é vastíssima e abrange os mais distintos espaços por onde o alcance
inquisitorial se fez presente. Embora, como já referimos, estas fontes precisem
ser lidas com os cuidados necessários ao trabalho do historiador, fornecem da-
dos riquíssimos sobre o que a sociedade e a Inquisição enxergavam como prática
mosaica, bem como dão uma noção de como os criptojudeus estruturavam suas
possibilidades de resistência.
Foi assim, por exemplo, que em 28 de maio de 1565, a cristã-nova Brites
Fernandes, viúva, natural de Tavira e moradora em Lisboa, compareceria ao San-
to Ofício para “confessar suas culpas e pedir delas perdão e misericórdia”. Brites
possuía, então, sessenta e cinco anos, ou seja, nascera por volta de 1500, poucos
anos após a conversão forçada, filha de pais judeus batizados à força durante os
episódios de 1496-97. Era um destes exemplos da primeira geração de conver-
sos, nascida já em tempos de monopólio católico, mas criada em ambiente ainda
repleto de referências do judaísmo, que aprendeu desde os primeiros passos –
sendo os ensinamentos judaicos a “religião em que mamou”, como diziam alguns
neoconversos à época. Mas, em seu depoimento, tentava diminuir o tamanho de
sua culpa, e dava a entender que se mantivera fiel ao catolicismo por grande par-
te de sua vida, só aderindo à lei mosaica muito tempo depois, quando era mulher
madura, com cerca de cinquenta anos. Informou aos inquisidores que

andava errada na fé de nosso senhor Jesus Cristo de quinze


ou dezesseis anos a esta parte”, parecendo-lhe que se salva-
ria na Lei de Moisés, e que o messias não era vindo nem no
era nosso senhor Jesus Cristo, e que havia de vir outro. E se
tinha por judia em seu coração neste tempo e se encomen-

204
dava a deus dos céus.

Depois de ouvida a confissão e analisado o caso, no Acórdão, os inquisido-


res ordinários e deputados da Santa Inquisição concluíam:

Sendo cristã batizada ela judaizou, apartando-se da nossa


Santa Fé depois do último perdão geral, crendo que ainda
agora se salvaria na lei de Moisés, guardando os sábados na
vontade e obra, pelo melhor modo que podia, por honra da
dita lei. E bem assim jejuou ela ré o Jejum do Quipur em
alguns anos, cada ano uma vez, e assim outro jejum judaico,
sem comer nos tais jejuns todo o dia senão à noite, como
judia. E como tal, não cria que Nosso Senhor Jesus Cristo
era o deus dos céus, nem o Messias, nem se encomendava
a Ele de coração, esperando ainda pelo Messias que os ju-
deus esperam, nem menos cria que Deus estava no sétimo
sacramento do altar, e o recebeu e se confessava somente
por cumprimento do mundo, sem nisso ter crédito, perma-
necendo na crença de seus erros por muitos anos, e os pra-
ticava com outras pessoas de sua nação, isso mesmo erradas
na fé, parecendo-lhe que nisso salvava a sua alma.

Receberia, como sentença, abjuração em forma, penitências espirituais, e o


impedimento de deixar o reino sem prévia autorização dos inquisidores23.
Em 1626, uma certa Ana de Sequeira, meio cristã-nova, filha de pai de san-
gue puro e mãe neoconversa, diria em depoimento ao Santo Ofício de Coimbra
ter aprendido a crença na antiga fé quando era menina de dez anos, pouco mais
ou menos. Estando na casa de seus tios, em Buarcos, teria ouvido o seguinte
conselho, ensinando-a como deveria realizar a guarda do dia sagrado, o respeito
às interdições alimentares e as práticas jejunais ao modo dos judeus:

23 Processo contra Brites Fernandes. Inquisição de Lisboa, processo 1112. Código de referência: PT/TT/TSO-IL/028/01112. Alguns dados sobre os

processos inquisitoriais doravante aqui referenciados podem ser consultados na base de dados do Arquivo Nacional da Torre do Tombo a partir do seu

portal de pesquisa, no endereço http://digitarq.dgarq.gov.pt.

205
se queria salvar sua alma, e ser honrada e digna nesta vida,
havia de crer na lei de Moisés e encomendando-se a Deus
dos céus, crendo nele, com a oração do Padre Nosso, e que
havia de fazer dos sábados domingos, começando a guarda
deles à sexta-feira à tarde, varrendo as casas, consertando
os candeeiros com azeite limpo e torcidas novas, deixan-
do-os acesos até por si se apagarem, e que havia de lan-
çar lençóis lavados nas camas, e vestir camisas lavadas, e
que não havia de comer carne de porco, lebre, coelho, nem
peixe sem escama, e havia de jejuar às segundas e quintas
feiras da semana, sem comer nem beber em todo o dia,
senão à noite, já depois de saída a estrela. E de fato logo
ali se apartou de Nossa Santa Fé Católica e se passou à lei
de Moisés, tendo crença nela e esperando salvar-se, e não
na fé de Cristo, em a qual não cria nem tinha por verda-
deiro Deus e messias prometido na Lei, antes esperava por
ele como os judeus esperam, e logo assim se declaravam,
e deram conta que criam e viviam na lei de Moisés, e nela
esperavam salvar-se, e por sua observância faziam quanto
podiam as ditas cerimônias24.

Helena Luís, cristã-nova ainda moçoila, confessaria pela primeira vez à In-
quisição de Coimbra, em 1664, ter sido iniciada na lei de Moisés pela própria
mãe, quando tinha cerca de oito anos de idade, reafirmando a importância ma-
terna no processo de repasse do judaísmo às novas gerações:

em Carção, em casa de seus pais Luís Lopes e Izabel Lopes,


cristãos-novos, natural do Vimioso e moradora no dito lu-
gar, se achou com ela, e estando ambas sós, disse a dita sua
mãe, que a queria ensinar no que mais consinta para a sua
salvação, era que havia ela de crer na lei de Moisés, que era
só a boa para o dito efeito, e por guarda dela havia de fazer
o jejum do dia grande, que vem no mês de setembro, estan-
do nele sem comer nem beber senão à noite, ceando então

24 A ré Ana de Sequeira sairia em auto da fé em agosto de 1626, condenada a “Confisco de bens, abjuração em forma, hábito penitencial retirado no

auto-de-fé depois de lida a sentença, cárcere a arbítrio dos inquisidores, instrução na fé”. Processo contra Ana de Sequeira. Inquisição de Coimbra,

processo 304. Código de referência: PT/TT/TSO-IC/025/00304.

206
cousas que não fossem de carne, que ela dita sua mãe assim
fazia, e cria na dita lei, e parecendo-o bem a ela confitente
o que a dita sua mãe lhe dizia e como tal lhe ensinava o
melhor e mais seguro para sua salvação, se apartou logo
aí da fé de Cristo Nosso Senhor, em que até então vivia, e
de que tinha bastante instrução, e se passou à lei de Moi-
sés, crendo e esperando salvar-se nela, e assim o declarou à
dita sua mãe, e lhe disse que na dita lei ficava crendo, e por
guarda dela faria os ditos jejuns, como com efeito fez daí
por diante os anos seguintes, e aí não passaram mais, mas
depois disso se ficaram conhecendo e orando por crentes e
observantes da dita lei.

Anos depois, quando contava por volta dos quarenta anos, mulher casada
com um curtidor, também cristão-novo, novamente se envolveria com a Inqui-
sição, uma vez mais por suspeitas de judaísmo. Desta feita, sairia no auto da fé
de 09 de junho de 1686, tendo como sentença “Abjuração em forma, cárcere a
arbítrio dos inquisidores, hábito penitencial que lhe seria tirado depois de fazer
a abjuração, instrução na fé, penas e penitências espirituais” 25.
Em novembro de 1673, Isabel Trindade, freira professa do Convento de San-
ta Clara de Beja, seria entregue à Inquisição de Évora por culpas de judaísmo,
envolvida nas tramas que haviam levado, antes dela, outros de seus parentes a
serem denunciados ao Santo Ofício. Não seria caso único de uma religiosa en-
redada nas tramas inquisitoriais por suspeitas deste tipo. Confessaria que havia
seis anos que passara à Lei de Moisés, informando alguns dos comportamentos
e crenças que mantinha:

Durante os tais seis anos, não fizera jejum, mas sempre se


encomendava a Moisés rezando o Pai-Nosso. À missa só
ia quando obrigada, por ordem superior, para sustentar as
aparências, porque desacreditava nos sacramentos, particu-
larmente no casamento da Igreja. Embora nunca lhes tivesse
feito desacatos, desprezava o Espírito Santo e o mistério da
Santíssima Trindade, pois não lhe parecia ser Jesus o Messias.

25 Processo contra Helena Luís. Inquisição de Coimbra, processo 398. Código de referência: PT/TT/TSO-IC/025/00398.

207
Como punição, seria obrigada a abjurar de seus heréticos erros em auto da
fé celebrado em fevereiro de 1682, na Praça do Giraldo, localizada bem próxima
à sede inquisitorial em Évora. Teria que servir os ofícios humildes da religião no
convento, ficando privada de voz ativa e passiva, mais instruções ordinárias e
penitências espirituais, além de ter que custear os gastos com o processo26.
E na América portuguesa, como se dava esta lógica de resistência feminina
criptojudaica? Como demonstram os dados sobre os réus do Brasil levantados
por Anita Novinsky citados anteriormente, não foram poucas as mulheres dela-
tadas à Inquisição por serem suspeitas de manutenção hebraica. Exemplo disto
são os documentos oriundos da primeira visitação inquisitorial ao Brasil, que
percorreu entre 1591 e 1595 as capitanias da Bahia, Pernambuco, Itamaracá e
Paraíba. Entre confissões, denúncias e processos daí recorrentes, encontramos
vários casos relatados ao visitador Heitor Furtado de Mendonça que nos permi-
tem identificar inúmeros indícios dos comportamentos entendidos como cripto-
judaicos praticados na colônia, onde a acuidade das mulheres como propagado-
ras da memória judaica salta aos olhos. E não foram poucas aquelas fortemente
apontadas à mesa do Santo Ofício, acusadas de celebrar e transmitir a herança
mosaica às novas gerações.
Mas, em linhas gerais, de que tipo de práticas eram estas mulheres acu-
sadas? As denúncias envolviam comportamentos os mais variados, entendidos
como persistência na antiga fé, no limite, indícios explícitos de criptojudaísmo.
Mais comumente, o que vemos na documentação é: realização do Shabat; pre-
paração de alimentos de acordo com os preceitos dietéticos da religião mosaica;
conservação de práticas jejunais; comemorações de festas e datas do calendário
judaico, a exemplo do Iom Kipur, do Jejum de Esther ou de outras celebrações
menos conhecidas que evitassem gerar suspeitas; leitura e posse de textos sagra-
dos; a espera pelo Messias prometido aos judeus; continuidade de costumes e ri-
tos funerários; manutenção de orações, bênçãos e juramentos ao modo judaico;
reuniões em sinagogas clandestinas para a realização de esnoga. De acordo com
Lina Gorenstein,

26 SANTOS, Georgina Silva dos. Isabel de Trindade: o criptojudaísmo nos conventos portugueses seiscentistas. In: VAINFAS, Ronaldo; SANTOS,

Georgina Silva dos; NEVES, Guilherme Pereira das (Orgs.). Retratos do Império – Trajetórias individuais no mundo português nos séculos XVI a XIX.

Niterói: EdUFF, 2006, pp. 333-340.

208
Muchas de las prácticas criptojudaicas que permanecieron
eran de dominio doméstico: prácticas alimenticias, de hi-
giene y purificación, el Shabat y las celebraciones festivas;
todas debían ser efectuadas dentro de las casas, “puertas
adentro”. El criptojudaísmo era practicado dentro de las ca-
sas. Era uma religión secreta y principalmente femenina, en
contraposición com el Judaísmo, practicado principalmen-
te en las Sinagogas y perteneciente a la esfera del dominio
masculino27.

Porém, nem tudo que chegava à mesa da visitação tinha, de fato, conotação
com o judaísmo. Por vezes, as acusações acabavam por identificar qualquer ati-
tude que não encontrava referenciação dentro do universo cristão como sinal
indiscutível de prática hebraica, embora nem sempre o fosse. Cabe lembrar,
por fim, que os comportamentos desviantes da norma católica eram praticados
indiscriminadamente, não se limitando aos indivíduos de origem cristã-nova:
muitos cristãos velhos também foram denunciados por desrespeito e ofensas
aos dogmas e símbolos do catolicismo. O que estas denúncias mostram, como
pano de fundo, é um desconhecimento generalizado de quem era o judaizante,
do que era o judaísmo e de quais eram e como se davam suas práticas, não só
entre os cristãos velhos, mas também entre os próprios neoconversos. Desta
forma, uma denunciante informaria ter certa vez ouvido de uma conhecida so-
bre uma tal Ana Franca, “mulher do mundo”, que “era uma cadela judia, que
cuspira em um crucifixo dentro no mosteiro das convertidas de Lisboa, onde
elas ambas tinham estado”, e que, “quando o fizera, estava a dita Ana Franca
doida, mas que, ao fim, era judia”28.
Várias das denúncias retratam a dubiedade vivida pelas cristãs-novas na
colônia, divididas entre a obrigatoriedade de viver de aparências e a fé praticada
na privacidade do lar. Ora frequentavam igrejas e participavam de festas e cele-
brações do calendário cristão, camuflando a pertença hebraica; ora reuniam-se
para fazer a esnoga em torno dos ensinamentos da Torá, repassados oralmente

27 SILVA, Lina Gorenstein Ferreira da. La Inquisición contra las mujeres (Brasil, siglos XVI-XVIII). In: ESCUDERO, José Antonio (ed.). Intolerancia y

Inquisición. Tomo II. Madrid: Sociedad Estatal de Comemoraciones Culturales, 2005, p. 240.

28 [Maria da Motta, que não sabia assinar] Contra Anna Franca, em 19/08/1591, Denunciações da Bahia. Op. cit, pp. 367-369.

209
geração após geração, frequentemente abandonando algumas práticas e per-
dendo significados outrora fundamentais para a sua resistência – o judaísmo
possível, enfim. Mas esta dubiedade era também vivida internamente, posto que
confundiam muitas vezes a tradição cristã com os ensinamentos da Antiga Lei,
e vice-versa, misturando elementos do catolicismo imposto e do judaísmo que
lhes fora arrancado, desconhecendo ambos, praticando-os de forma igualmen-
te equivocada, ora outro ora um, respeitando as conveniências e necessidades.
Prova disto é a veneração dedicada a Moisés e Esther, cultuados como Santo
Moisés e Santa Esther por muitos neoconversos, embora estes nomes não fizes-
sem parte do céu cristão.
Vejamos, a seguir, alguns destes casos de comportamentos tidos como ju-
daizantes pela população e denunciados à mesa durante a Visitação no Brasil.
Um certo Francisco Soares, acusaria a mãe, Maria Álvares, e a irmã, Guio-
mar Soeiro, de manterem costumes funerários típicos dos judeus, como man-
darem, em caso do falecimento de alguém, “lançar fora a água dos potes que
estavam na cantareira da sala”, tornando a enchê-las de água fresca da fonte29.
Bárbara Castellana denunciaria a madrasta, Branca Mendes, de cortar as
unhas das mãos e dos pés de sua mãe, quando esta morreu, e depois amortalhá-
-la em pano novo para que fosse sepultada ao modo judaico. E Branca Mendes
continuaria o luto de acordo com os costumes dos antepassados:

mandou também lançar fora a água dos cântaros de casa, e


depois dela enterrada, mandou trazer água fresca para casa,
e os primeiros três dias depois que ela morreu, esteve com
outras suas irmãs e seu irmão na mesma câmara onde a ve-
lha morreu, sem dela saírem30.

A cristã velha Catarina de Lemos acusaria ter ouvido da comadre, Catarina


Álvares, que esta não aceitava a Jesus Cristo e se mantinha à espera do verdadei-
ro Messias. Numa conversa com um mancebo, teria dito, talvez esperando vin-

29 Francisco Soares contra sua mãe Maria Álvares e sua irmã Guiomar Soeiro, em 15/12/1593. Primeira Visitação do Santo Ofício às Partes do Brasil –

Denunciações e Confissões de Pernambuco. Recife: Fundarpe, 1984, pp. 373-374.

30 Apud ASSIS, Angelo Adriano Faria de. Macabeias da Colônia. Op. cit, p. 298.

210
gar-se de todas as agruras sofridas por conta da proibição judaica e da conversão
forçada em Portugal: “guai, guai, filho, que inda o Messias não é vindo, e estamos
esperando por ele, e como ele vier, estes cañis (sic) destes cristãos-velhos hão de
ser nossos escravos”31!
As vigilâncias alimentares também ganhariam destaque nos livros da visi-
tação. Gaspar do Casal denunciaria sua mãe, a cristã-nova Gracia Fernandes, já
falecida, de seguir alguns preceitos dietéticos atribuídos ao judaísmo: “havendo
em casa algumas vezes coelho e enguia para comer, e comendo-o os de casa,
nunca a dita sua mãe o comeu, dizendo que coelho e enguia não comia ela”. O
mesmo costume era seguido por sua irmã, Isabel: enquanto solteira, morando
com a mãe, “nunca comia coelho nem enguia quando o havia em casa”32.
Já a cristã-nova Violante Pacheca confessaria preparar as refeições pelo
modo tradicional mosaico. Por vezes, “tirou a lândoa do quarto traseiro à rês
miúda”, o que aprendera com um cunhado cristão velho “para se assar bem a
carne”; “muitas vezes, costuma cozer a panela de carne, quando é magra, com ce-
bola ou alho frito em azeite, e que também isto faz sem ruim tenção”. Informava
ainda que, ao morreram dois de seus filhos, três ou quatro anos antes, doentes de
boubas, “os dias em que os levaram a enterrar, lançou ela fora a água dos potes, e
quebrou os púcaros que estavam nos mesmos potes”33.
Confissão interessante e valiosíssima em detalhes envolveria Antônia d’Oli-
veira, “cristã-nova de todos os costados”, mulher casada, de trinta e oito anos,
moradora em Salvador. Informaria que, no tempo em que morava em Porto
Seguro, havia por volta de quinze anos, quando seu marido viajou para Portugal,
manteve jejuns “às quartas e sextas-feiras e sábados do carnal, os quais dias ela
jejuava encomendando-se a Deus Nosso Senhor e à Virgem Nossa Senhora, e
aos santos do paraíso, encomendando-lhes também ao dito seu marido ausente,
e rezando-lhes pelas contas das orações da Santa Madre Igreja”. Fora ainda acon-
selhada por um primo, Álvaro Pacheco, a realizar o “verdadeiro jejum, e não
comer e fartar-se ao meio-dia, e que este jejum faziam seus antepassados e por
ele se salvaram”. Ensinava como: “há de jejuar às segundas e quintas-feiras sem
31 Catarina de Lemos contra Catharina Alvares, Bárbara Luis e Fuão Cabreira, em 13/01/1594, Denunciações e Confissões de Pernambuco. Op. cit, pp.

142-145.

32 Gaspar do Casal, o Moço, contra sua mãe Gracia Fernandes e sua irmã Isabel do Casal, em 17/01/1594. Idem, pp. 147-148.

33 Confissão de Violante Pacheca, cristã-nova, na graça, em 17/12/1594. Idem, pp. 117-118.

211
comer, nem beber, nem dormir, nem rezar até noite, até sair estrela, então, depois
de sair a estrela, há de cear uma galinha se a tiver bem gorda, assada ou cozida,
e ceará à sua vontade”. Deste modo levaria uma vida “santa” – mais um exemplo
da confusão entre judaísmo e cristianismo destes “homens divididos” –, assim
os seus antepassados:

depois de jejuar, fosse ela à dita sua tia, que lançasse a bên-
ção, dizendo-lhe também que, se a dita sua avó Branca
Rodrigues fora viva, ela lhe ensinava a ela como se havia
de salvar, porque fora muito santa mulher e morrera uma
morte santa, dizendo-lhe mais o dito seu primo, que guar-
dasse os sábados, porque os sábados eram os verdadeiros
domingos, e neles se haviam de vestir as camisas lavadas, e
neles se não havia de trabalhar, e que os domingos nossos,
eram dias de trabalho.

Antônia afirmava que realizou as ditas práticas e jejuns “parecendo-lhe que


neles havia uma grande devoção a Nosso Senhor”, “cuidando serem boas, não
entendendo então que eram judaicas”, “não comendo nem bebendo, nem rezan-
do nem dormindo, até sair a estrela à noite, e depois das estrelas saídas, ceou e
comeu o que achou em casa”. Mas os fizera “duas vezes somente, e lhe parece que
os fez ambos em uma semana”.
Lembraria ainda que fora advertida por um compadre, que era morador
no Espírito Santo: “como reza, e não sabe como se há de salvar”, e que “os seus
antepassados, dela, sabiam como se haviam de salvar, e que todos se salvaram
na glória, e lhe contou a história do bezerro d’ouro, quando os filhos de Israel
idolatraram estando Moisés no monte, e que queriam dizer que, dos que adora-
ram procedem os jejuns daquela nação”, e que se “ela jejuava como se costuma
na Santa Madre Igreja, que seus avós dela” e os avós do seu marido “jejuavam
doutra maneira”34.
Um dos casos mais interessantes da primeira visitação envolve a família de
Mestre Afonso Mendes, antigo cirurgião d’El Rey que viera para o luso trópico

34 Confissão de Antônia d’Oliveira, cristã-nova, em 5 de outubro de 1591. In: VAINFAS, Ronaldo (Org.). Santo Ofício da Inquisição de Lisboa: Confissões

da Bahia. São Paulo: Companhia das Letras, 1997, pp. 162-169.

212
em meados do Quinhentos, acompanhando ao Governador Geral Mem de Sá,
temeroso com o aumento das perseguições aos suspeitos de judaísmo no reino.
No tempo em que viveu na Bahia, Mestre Afonso costumava aconselhar os fami-
liares e os criptojudeus nas questões religiosas e no respeito às tradições. Quando
a Inquisição chegou ao Brasil, Mestre Afonso era já falecido, mas as histórias
envolvendo a família continuavam frequentes no disse me disse das ruas. Seria
acusado de mal cristão, de não frequentar a Igreja por longos períodos, entre
outras heresias. As denúncias contra o clã davam conta de que, após a morte
do antigo cirurgião, a esposa Maria Lopes e os filhos continuariam afeitos aos
costumes judaicos. E foram as mulheres da família as responsáveis pela prática
e sobrevivência do judaísmo oculto no segredo do lar, enquanto tentavam, pu-
blicamente, manter as aparências de boas cristãs. Dizia-se, por exemplo, que era
pública fama na Bahia que “mestre Afonso e sua mulher e filhos açoitavam um
crucifixo nas sextas-feiras”35.
De Maria Lopes, diziam, entre outros feitos, que possuía um crucifixo de-
baixo dos colchões, e que mantinha uma imagem sagrada dentro de uma almo-
fada que usavam suas alunas para sentar na época em que era mestra de lavrar.
Meses antes da chegada do inquisidor, teria sido flagrada lavando a louça no
quintal da casa sobre um crucifixo de pau grande que ali ficava enterrado. Havia
ainda a notícia de que havia apoiado o suicídio de um certo tio, Mestre Roque,
que permaneceu no reino, preso nos cárceres do Santo Ofício, posto “que o
dito mestre Roque não morreria senão morte muito honrada”36. Temerosa das
acusações, a própria mulher de Mestre Afonso compareceria à mesa para se
confessar, contando sua própria versão das culpas que lhe eram atribuídas, como
os cuidados que mantinha na preparação dos alimentos: todos, não resta dúvida,
recorrentes na tradição hebraica:

quando mandava matar alguma galinha, para rechear ou


para mandar de presente, a mandava degolar e pendurar a
escorrer o sangue por ficar mais formosa e enxuta do san-
gue, e que sempre, quando em sua casa se assa quarto tra-
seiro de carneiro ou porco, lhe manda tirar a lândoa, porque

35 [Bastiam Pires, que assinou de cruz] contra Jacome Fernandes, mestre Afonso e família, em 27/08/1591, Denunciações da Bahia. Op. cit, pp. 489-490.

36 [Margarida Carneira, que não sabia assinar] contra Maria Lopes e Maria Gonçalves de alcunha Arde-lhe-o-rabo, em 22/08/1591, Idem, pp. 424-425.

213
se assa melhor e fica mais tenro, e não se ajunta na lândoa o
sangue evacuado, e assim mais, quando a carne de porco é
magra, alguma vez a manda cozinhar lançando-lhe dentro
azeite ou grãos na panela com ela, e isto mesmo mandou
fazer alguma vez à carne de vaca quando era magra.

Confessava, ainda, seguir alguns dos ritos funerários habituais aos judeus,
como lançar fora a água em caso de falecimento, ou a manutenção do trabalho
em dias sagrados de descanso para os cristãos, fato condenado pela Igreja.
Alguns filhos do casal também seriam denunciados à mesa da visitação.
Branca de Leão, também já falecida, seria acusada de desrespeitar o crucifixo,
arremessando sobre este um púcaro de água, e respondendo à irmã, que a re-
preendia: “calai-vos, mana, que isto não é Deus, que é papel, porque Deus está
nos altos céus”. Também diziam que fora vista a fazer descortesias e picar com os
dedos um crucifixo; de beliscar e romper uma carta de Nossa Senhora, enquanto
perguntava: “para que presta isso”? Seu marido, Antônio Lopes Ilhoa, seria de-
nunciado por manter em seu engenho uma esnoga de judeus ao lado da capela,
onde presumivelmente reunia-se com parentes e conhecidos para judaizar.
Mas o grande destaque entre as acusações contra a família, sem dúvida, re-
cairia sobre Ana d’Oliveira, outra das filhas de Mestre Afonso e Dona Maria
Lopes, responsável pelo único documento de que se tem notícia referente à pri-
meira visitação que faz alusão à realização da circuncisão.
De acordo com as denúncias, Ana provavelmente teria herdado do pai algu-
mas de suas práticas, repetindo as tradições judaicas da família com os filhos. É
possível que tenha aprendido com o próprio Mestre Afonso, que fora cirurgião, a
realizar a retirada do prepúcio peniano dos meninos durante a circuncisão. Tal-
vez, ainda, o tenha acompanhado em algumas destas cerimônias, observando ou
até mesmo auxiliando-o na tarefa. De todo modo, caso seja verdade que realizou
as cirurgias de circuncisão, o certo é que contou com o apoio e a confiança da
família e de outros cristãos-novos que permitiram que Ana fizesse este sinal de
aliança em suas crianças.
Este é caso emblemático do papel reservado às mulheres no criptojudaísmo,
assumindo funções que, no judaísmo tradicional, não faziam parte do universo
feminino. Não só isso, a circuncisão foi hábito, até onde se sabe, pouco usual

214
entre os cristãos-novos criptojudaizantes, visto que seu exercício denunciava,
através de marca permanente deixada no corpo, o pertencimento religioso que
assumiram. Quem possuía este sinal carregaria espécie de prova cabal de sua
culpa por envolvimento com a fé de Moisés. Por isso, foi um dos costumes prati-
camente abandonados no universo do judaísmo possível.
À guisa de explicação, na religião judaica a circuncisão ou brit milá faz alu-
são à aliança de Deus com Abraão (Gen. 17:11-12), salvando os circuncidados
de serem castigados após a morte. Significa um pato de iniciação do menino
judeu como plenamente integrado ao povo judaico, assinando com o próprio
sangue um contrato divino, marcado eternamente em sua carne. As notícias so-
bre a realização por Ana de rituais específicos do judaísmo se espalhariam pela
capitania:

haverá dez anos que, nesta cidade, ouviu dizer não lhe lem-
bra a quem que Ana d’Oliveira, filha de mestre Affonso,
cristã-nova, mulher que foi de Belchior da Costa, circun-
cidava as crianças que paria depois que vinham de batizar,
e que uma vez fora vista uma criança sua ensangüentada, e
fora ouvida chorar quando a circuncidava37.

O que torna mais excepcional a realização das circuncisões por Ana d’Oli-
veira é o fato de que, de acordo com a tradição, em nenhum momento as mulhe-
res tomam parte direta na cerimônia, realizada por um grupo de homens, que só
entregam a criança à mãe após o término da intervenção.
Interessante, ainda, que Ana d’Oliveira seria processada pelo próprio visita-
dor, sem que o seu caso fosse enviado para o Tribunal de Lisboa. Porém, o visita-
dor considerou que era nova quando delinquiu, desconhecendo a real gravidade
de seus atos. Por isso, foi sentenciada a abjuração de leve suspeita na fé, feita na
própria mesa, mais admoestação e penitências espirituais. Pena branda, arrisco
dizer, se levarmos em conta o peso e gravidade das acusações que sofreu. Se fosse
enviada para Lisboa, provavelmente teria punição mais severa, correndo, talvez,
até o risco de perder a vida, condenada ao Braço Secular.
Mas um dos casos que julgamos mais emblemáticos na documentação refe-

37 Idem, p. 333.

215
rente à primeira visitação ao Brasil é o que envolve uma das grandes responsáveis
pela continuidade do criptojudaísmo quinhentista na América lusa: Ana Rodri-
gues, matriarca da família Antunes, moradora em Matoim, no Recôncavo baiano.
Ana Rodrigues era mulher de Heitor Antunes, homem de confiança do Go-
vernador Geral Mem de Sá, com quem o casal viera para o Brasil. Heitor e Ana
tiveram oito filhos, casando-os todos (exceto um, que morreu no reino, e outro,
que ficou solteiro) com cristãos velhos, buscando melhorar o status da família e
diminuir as desconfianças sobre suas práticas religiosas. Heitor virou senhor de
engenho e homem de negócios, e se apresentava, orgulhoso, como descendentes
dos Macabeus da Bíblia. Diziam, em voz geral e pública fama, que exercia o papel
de rabino da região, aconselhando aos que o procuravam sobre as questões da
Lei, e que possuía uma sinagoga clandestina em suas terras, a Esnoga de Matoim,
que funcionaria por certa de três décadas. Quando morreu, os negócios da fa-
mília e a continuidade das atividades sinagogais ficariam a cargo da esposa e dos
filhos. Também o epíteto usado pelo marido, seria usado para menosprezar as
mulheres da família, chamadas pejorativamente de Macabeias.
Ana Rodrigues era conhecida pelos impropérios que dizia contra a Igreja e os
seus símbolos, por manter práticas do judaísmo e de repassá-las aos filhos e netos.
Tornara-se uma espécie de “rabi” para a família e para a comunidade de cripto-
judeus que a conheciam. Com a chegada da visitação, seria denunciada dezenas
de vezes por parentes, conhecidos e desconhecidos. Ela própria compareceria à
mesa do visitador para confessar suas culpas, tentando, sem muito sucesso, justi-
ficar seus atos. Acabaria presa e enviada para Lisboa, acusada de vários compor-
tamentos judaizantes, como manter uma sinagoga em suas terras, jurar pela alma
do marido, negar os símbolos cristãos, seguir as leis dietéticas judaicas, ensinar
o judaísmo aos descendentes. De idade avançada, doente e cansada da viagem,
temendo pelo desenrolar do processo, a octogenária senhora não resistiria, ter-
minando por perder a vida nos cárceres dos Estaus, em Lisboa, poucas semanas
após a sua chegada. Mesmo assim, o processo teria sequência, e passada mais de
uma década de sua morte, seria condenada a morrer de novo, tendo os ossos de-
senterrados e feitos em pó, devido à gravidade de seu crime, pois os inquisidores
não a consideravam digna de permanecer enterrada entre cristãos. Ainda amal-
diçoavam-lhe a memória e decretavam sua morte social, através de um retrado

216
encomendado que mandaram pintar, em que apareceria queimando no inferno,
rodeada de demônios – retrato este que cruzou o Atlântico e foi pendurado na
igreja que construíra com o marido em seu engenho. Anos depois, o próprio gen-
ro cristão velho, não suportando mais a humilhação e os comentários, pagou a
terceiros para que dessem um sumiço na tal imagem. Claro exemplo de que os
castigos do Tribunal não terminavam com as punições anunciadas nos autos da
fé, ganhando a longa duração. Ana Rodrigues entrava assim, para a História, com
o horrendo fado de ser a primeira vítima do Brasil processada pela Inquisição
condenada à fogueira. Outros de seus parentes seriam também denunciados, pre-
sos e processados, mas nenhum caso sofreu pena tão grave quanto a Macabeia de
Matoim38.
Passado mais de um século da primeira visitação do Santo Ofício ao Brasil, a
perseguição aos criptojudaizantes continuava intensa, agudizando-se, inclusive,
pela ação mais estruturada do Santo Ofício, com sua rede de agentes e familia-
res espalhados pela luso-América, e continuava a responder por boa parte dos
casos. Assim, foram onze as mulheres processadas por judaísmo no século XVI,
nove no século seguinte, nada menos do que 202 somente na primeira metade
do XVIII39. Lina Gorenstein estudou algumas destas mulheres alcançadas pela
Inquisição, moradoras na capitania do Rio de Janeiro setecentista, acusadas de
judaísmo: ao todo, cento e setenta e cinco mulheres seriam presas e processadas,
muitas de famílias abastadas e tradicionais da região40.
Mas o caso que aqui trazemos para dar mostras desta continuidade perse-
cutória bem como da perseverança religiosa destas mulheres é o de Guiomar
Nunes, cristã-nova, moradora na Paraíba41.
Guiomar nascera em Pernambuco, filha de António Dias Pinheiro e de
Clara Henriques, em fins do século XVII. Casou com Francisco Pereira, la-
toeiro de profissão, e teve vários filhos. Seria denunciada ao Santo Ofício por
suspeitas de criptojudaísmo. Seria presa em 1729, quando tinha pouco mais de
trinta anos de idade, e enviada para Lisboa, onde suas culpas seriam averigua-
das, e processada pela Inquisição.

38 ASSIS, Angelo Adriano Faria de. Macabeias da Colônia. Op. cit

39 Como já foi dito, a distinção entre cristãos-novos e cristãos velhos foi abolida no período pombalino, o que explica, em parte, a não perseguição a

judaizantes na segunda metade do Setecentos.

40 SILVA, Lina Gorenstein Ferreira da. A Inquisição contra as mulheres: Rio de Janeiro, séculos XVII e XVIII. São Paulo: Humanitas/FAPESP, 2005.

41 Processo contra Guiomar Nunes. Inquisição de Lisboa, processo 11772. Código de referência: PT/TT/TSO-IL/028/11772.

217
As denúncias que pesavam sobre Guiomar repetiam modelo bastante co-
mum de acusações e de interrogatório feitos pelos representantes do Santo Ofí-
cio, buscando comportamentos generalizantes que comprovassem a manutenção
judaica dos réus: Guiomar vivia, observava e cria na lei de Moisés para salvação
da alma, realizando jejuns, rezando o Padre Nosso sem dizer Jesus no fim e fa-
zendo orações judaicas, guardando “os sábados de trabalho como dias santos,
vestindo camisa lavada”, ou seja, a prática do Shabat. Acabaria apontada como
herege, apóstata da fé católica, negativa pertinaz, impenitente e encobridora de
hereges, incorrendo em sentença de excomunhão maior e confisco de seus bens
para o Fisco e Câmara Real. Temendo o pior, Guiomar solicitaria aos inquisidores
que interrogassem seus acusadores para que detalhassem e esclarecessem sobre
as denúncias, como a data e o local em que estes teriam ouvido ou presenciado
suas confissões ou culpas, as companhias que estavam presentes, e se poderiam,
de fato, afirmar que realizara jejuns e outros atos considerados judaizantes.
De nada valeria seu esforço. Seria condenada ao relaxamento à Justiça Secu-
lar, o que ocorreria no auto da fé de 17 de junho de 1731, cerca de dois anos após
sua prisão. Foi das poucas mulheres do Brasil colonial levada à fogueira por suas
culpas. Diferente de Ana Rodrigues, que teve os ossos queimados década após o
seu falecimento, Guiomar Nunes teve final ainda mais dramático, queimada viva
nas fogueiras acesas pelos representantes do Estado, mas que ardiam a intolerân-
cia do Santo Ofício.
As mulheres aqui citadas são um pequeno exemplo, dentre tantas outras,
alcançadas ou não pelo Santo Ofício, que conseguiram ou não manter oculto seu
esforço de dissimulação religiosa ao longo dos quase três séculos de funciona-
mento da Inquisição. Muitas mulheres, espalhadas pelo trópico e por todo o im-
pério português, teriam histórias semelhantes, divididas entre a obrigatoriedade
do catolicismo e o judaísmo que lhes fora proibido, praticando ambos, de acordo
com as possibilidades. Foram mártires do judaísmo que insistia em sobreviver,
mesmo que violentado em seu âmago. Sofreram desconfianças, pressões, ofen-
sas, calúnias, ameaças e discriminações, carregaram o peso da discriminação e
do segredo, para manterem viva a fé em que acreditavam e que achavam valer a
pena viver. Mesmo que isto lhes custasse a vida, talvez não passasse de um deta-
lhe na luta pela sobrevivência do que criam. Estavam certas, pois sobreviveram,
através dos documentos, para que agora possamos contar sua história.

218
“ROUBADORA DAS ALMAS
DOS QUE A USAM”:
uma análise preliminar acerca da usura nas Constituições do
Arcebispado da Bahia, início do século XVIII

Luciana Gandelman1

Quando D. Sebastião Monteiro da Vide chegou à cidade de Salvador no


início do século XVIII, o clima provavelmente era de murmuração. No ano de
1698, uma carta contendo queixas da população da cidade contra os procedi-
mentos do arcebispo anterior e de outros membros do clero fora enviada ao rei,
Dom Pedro II2. O documento, escrito em nome do “povo da Bahia”, apresentava
vários males e opressões decorrentes da atuação dos religiosos, entre eles aqueles
oriundos da cobiça, sentimento que parecia mobilizar mais os mesmos religio-
sos do que o desejo de “adquirir almas”, como acusavam seus autores. Dizia a
carta, por exemplo, que “as repetidas Vizitas, parecem mais para grangearia de
lucros, que para emenda de vícios para cujo fim se destinaram aquelles [cône-
gos]”3. Como argumentou Cândido da Costa e Silva sobre o documento, o teor
do escândalo denunciado pode ter tido sua origem mais nas desavenças que seu
redator, Antônio da Silva Pinto, tinha com os religiosos em questão do que numa
avaliação pura e simples de sua atuação. De qualquer forma, o tema da cobiça
ou ganância, tanto de religiosos quanto de leigos, estava vivo em fortes cores nas
polêmicas políticas e religiosas do período4.

1 A pesquisa contou com apoio do FAPESP e do CNPq.

2 SILVA, Cândido da Costa e. A celebração do sínodo arquidiocesano de 1707. In: FEITLER, Bruno e SOUZA, Evergton Sales (Orgs.). A Igreja no

Brasil: normas e práticas durante durante a vigência das Constituições Primeiras do Arcebispado da Bahia. São Paulo: Editora UNIFESP, 2011, p. 142.

3 AHU, Coleção Luísa da Fonseca, cx 35, n. 4131, anexo ao n. 4130, 12/02/1698, n. 29 e n. 38 apud SILVA, Cândido da Costa e. Idem, p. 144.

4 Veja-se por exemplo: VIEIRA, Padre Antonio. Sermam do bom ladram. In: Sermões. Lisboa: Officina de Miguel Deslande, 1683; Arte de furtar, espelho

de enganos, theatro de verdades, mostrador de horas minguadas, gazua geral dos Reynos de Portugal. Offerecida a elRey Nosso Senhor D. Joaõ IV. para

que a emende. Amsterdam: Officina Elvizeriana [?], 1652[?]; GUERRA, Gregório de Matos e. Gregório de Matos: obra poética completa (2 volumes). São

Paulo: Record, 2003.

219
Como chamou a atenção Lana Lage, o tema da reforma dos costumes e com-
portamentos aparece em diversas publicações no reino, no período pós-Concílio
de Trento, abarcando desde peças de legislação, como as constituições do arce-
bispado de Lisboa, até tratados moralistas e manuais religiosos5. Uma das obras
a versar sobre a temática foi o manual intitulado Visita geral que deve fazer um
prelado no seu bispado apontadas as cousas por que deve perguntar e o que devem
os párocos preparar para a visita6. O manual de visitas episcopais, elaborado por
Lucas de Andrade7 e publicado em 1673, continha a reprodução do edital que
deveria ser lido aos paroquianos na véspera da instalação das visitas pastorais,
com o rol de 38 questões a serem inquiridas junto às população locais. O edital
era, na verdade, a reprodução de um texto cuja confecção Andrade atribuiu ao
jesuíta dr. Francisco Soares, ao dr. Bento Gillente, da Universidade de Coimbra
e ao dr. Gaspar do Rego da Fonseca, bispo de Lisboa e do Porto. Lage, ao dis-
cutir a reforma dos comportamentos do clero, afirma que um dos principais
temas tratados no manual foi o da simonia. Isto é, “compra e venda de benefícios
paroquiais e taxação sobre a administração dos sacramentos, entre os quais a
penitência [...]”8. Não podemos esquecer que a simonia era considerada “prima-
-irmã” da usura e igualmente filha da cobiça. Assim como a simonia, o manual
também aponta no item 23 do rol de perguntas das visitas uma inquirição acerca
de práticas usurárias: “se ha alguma pessoa que por emprestar dinheiro, pão,
vinho, azeite ou coisas semelhantes, leve dinheiro, ou outra coisa, além da sorte
principal, ou por outra qualquer via cometa onzena9.”
A temática da cobiça e das práticas usurárias reapareceu igualmente quando
Monteiro Da Vide chegou à Bahia para substituir o arcebispo D. João Franco de
Oliveira – como visto anteriormente, acusado de diversos abusos supostamente
motivados pela ganância – e reuniu o sínodo diocesano que analisou e aprovou

5 LAGE, Lana. As Constituições da Bahia e a reforma tridentina do clero no Brasil. Im: FEITLER, Bruno e Souza, Everyton Sales, A Igreja no

Brasil:normas e práticas.... Op. cit p. 152.

6 ANDRADE, Lucas de. Visita geral que deve fazer um prelado no seu bispado apontadas as cousas por que deve perguntar e o que devem os párocos

preparar para a visita. Lisboa: Oficina de João da Costa, 1673.

7 Na publicação, Lucas de Andrade foi identificado como protonotário apostólico de sua santidade, prior da paroquial de Nossa Senhora dos Anjos de

Vila Verde, beneficiado da Igreja de São Nicolau de Lisboa e capelão de sua magestade.

8 LAGE, Lana. As Constituições da Bahia e a reforma tridentina do clero no Brasil. Op. cit, p. 153.

9 ANDRADE, Lucas de. Visita geral. Op. cit, p.17-18.

220
o texto das Constituições Primeiras na Bahia de 170710.
Segundo José Pedro Paiva, a nomeação de Monteiro Da Vide para o arcebis-
pado da Bahia seguiu uma política comum à prática de nomeações do período
de finais do século XVII e primeiras duas décadas do setecentos, que consistiu
na escolha de “clérigos seculares com formação universitária em cânones, que
anteriormente tinham adquirido experiência na administração de dioceses do
Reino, desempenhando funções de vigários gerais, provisores ou desembarga-
dores dos tribunais eclesiásticos [...]”11. Para Paiva, essa escolha respondia a uma
convicção de que esses religiosos seriam os mais preparados para os desafios de
administração de dioceses no império ultramarino e para os problemas políti-
cos, econômicos e religiosos referentes a esses territórios. Como demonstra Pai-
va ao analisar a trajetória de da Vide, o religioso possuía todas essas caracterís-
ticas, sendo secular, canonista formado em Coimbra, com longa experiência em
diversas funções da justiça e administração diocesanas12. De acordo com o autor,
Monteiro da Vide foi vigário geral de Setúbal por quase dois anos; juiz desem-
bargador da relação eclesiástica do arcebispado de Lisboa e prior das igrejas de
São Mamede de Lisboa e de Santa Marinha; além de chanceler do Arcebispado
e vigário–geral de Lisboa, entre os anos de 1675 e 169713. Na avaliação de Paiva,
da Vide parece ter feito jus às expectativas que sua experiência e trajetória pre-
ludiavam, pois em seus quase vinte anos à frente do arcebispado da Bahia teria
tido grande empenho “em resolver as questões de organização e regulamentação
da vida diocesana”14 na “metrópole do Estado do Brasil”15.
Alguns aspectos da atuação de Monteiro da Vide em seus vinte anos à frente

10 De acordo com José Pedro Paiva: “os sínodos diocesanos [...] eram assembleias que congregavam o clero de um arcebispado, ou bispado, convocadas

pelo respectivo prelado, com o intuito de se avaliar o estado da vida religiosa, a situação clerical e de se proporem medidas de atuação [...]” era ainda

“um meio de transmissão de informações e normas oriundas dos diversos níveis de poder da Igreja [...]”. PAIVA, José Pedro. Sínodos diocesanos. In:

AZEVEDO, Carlos Moreira (dir.). Dicionário de História Religiosa de Portugal. Lisboa: Círculo dos leitores, 2000-2001, vol. 04, p. 240-241. Sobre o

sínodo baiano de início do século XVIII ver: FEITLER, Bruno e SOUZA, Evergton Sales. O sínodo e as Constituições do Arcebispado da Bahia. In:

Constituições Primeiras do Arcebispado da Bahia. São Paulo: Edusp, 2010, pp. 42-53.

11 PAIVA, José Pedro. D. Sebastião Monteiro da Vide e o Episcopado do Brasil em tempos de renovação (1701-1750). In: FEITLER, Bruno e SOUZA,

Evergton Sales, A Igreja no Brasil: normas e práticas…. Op. cit, p. 33.

12 PAIVA, José Pedro. Idem, p. 45.

13 Id. Ibid., pp 46-48.

14 Id. Ibid., p. 52

15 AHU, Livro de Registro de Consultas Mistas do Conselho Ultramarino (1695-1704), cod. 19, fl 205v Apud PAIVA, José Pedro, Id. Ibid., p. 50.

221
do Arcebispado da Bahia parecem, de fato, apontar para uma possível preocupação
concreta e um esforço efetivo em colocar em prática elementos citados no item
de delimitação e condenação das práticas cobiçosas, entre elas aquelas ligadas
à usura, como formuladas nas Constituições. Como Paiva chama a atenção, da
Vide demonstrou uma seletividade grande na nomeação, em 1709, do chanceler
da relação, bem como uma notável preocupação acerca da atuação dos vigários
de vara e sua consequente substituição em caso de prevaricação16. Além disso,
seus esforços para aumentar a rede paroquial com a criação de novas fregue-
sias demonstra seu investimento em mecanismos de doutrinação, bem como
de fiscalização em torno do cotidiano das populações do arcebispado, no que
podemos incluir certamente a vigilância em torno de suas atividades de compra
e venda e nos empréstimos. Sua imediata disposição para a realização de visita-
ções também explicitam tal propensão, uma vez que comumente denúncias de
atividades usurárias surgiam a partir de visitas e devassas diocesanas.
A elaboração da primeira constituição sinodal para os territórios coloniais
atlânticos parece corroborar essa tendência de da Vide a ser um “prelado triden-
tino”, como denominam Bruno Feitler e Evergton Souza, e um homem que se
dedicou ao esforço de doutrinação, reforma e vigilância de costumes e práticas
que seriam contrárias à doutrina católica e aos decretos do Concílio de Trento17.
Segundo Pedro Paiva, as constituições sinodais eram “um instrumento jurídico-
-pastoral formado pelas leis, decretos ou disposições que serviam para regula-
mentar a vida uma de diocese”18. Mais do que isso, elas precisam ser entendidas,
de acordo Paiva, “como o conjunto de disposições de direito, posturas discipli-
nares, orientações litúrgicas e doutrinárias – fundadas no direito canônico, na
tradição da Igreja e em práticas consuetudinárias locais – que eram impostas
pelos prelados sobre eclesiásticos e leigos”19. Será com esse entendimento que
abordaremos a forma como as práticas consideradas usurárias foram abordadas
pelo texto das Constituições Primeiras do Arcebispado da Bahia.

16 PAIVA, José Pedro. Idem, p. 54.

17 FEITLER, Bruno e SOUZA, Evergton Sales. Estudo introdutório. In: Constituições Primeiras do Arcebispado da Bahia. São Paulo: Edusp, 2010, p. 13.

18 PAIVA, José Pedro. Constituições diocesanas. In: AZEVEDO, Carlos Moreira (dir.) Dicionário de História Religiosa de Portugal. Lisboa: Círculo dos

Leitores, 2000-2001, vol. II, p. 9.

19 Id. Ibid.

222
De acordo com Bruno Feitler e Evergton Souza, podemos inserir as Consti-
tuições setecentistas da Bahia na longa tradição de elaboração das constituições
diocesanas portuguesas. Para os autores, Monteiro da Vide “ao organizá-las, não
pretendia inovar nem quanto à forma nem quanto ao conteúdo geral dos seus
textos, mas, sim, colá-las ao máximo às disposições do Concílio Tridentino e à
já então longa tradição do gênero em Portugal”20. Nesse sentido, uma das fontes
mais utilizadas para sua composição, ainda que não tenha sido a única, foi, para
os autores, o texto das Constituições do arcebispado de Lisboa, que se encontrava
em uso na América portuguesa no período anterior à promulgação das da Bahia.
Veremos adiante como essa questão se configura no caso específico da usura.
Algumas informações sobre a estrutura e configuração das Constituições da
Bahia, apresentadas por Feitler e Souza, podem nos ser úteis para pensarmos o
problema da usura em seu texto. Primeiro, é importante ressaltar que Montei-
ro da Vide e seus colaboradores optaram por compor o volume das Constitui-
ções com um considerável rol de material anexo, dentre os quais o Regimento do
Auditório Eclesiástico, peça normativa que é igualmente importante para nossa
reflexão sobre a vigilância e repressão às práticas usurárias, como veremos mais
para frente. Além disso, as Constituições baianas podem ser consideradas fruto,
como afirmam os autores, de uma evolução em termos de estrutura e forma
que aponta de um lado para a sua complexificação funcional e, de outro, para a
necessidade de facilitar sua consulta e aplicação. No que diz respeito a essa com-
plexificação de função, vale ressaltar, como sugere Paiva, que as constituições ha-
viam se transformado de pequenos instrumentos legais voltados principalmen-
te para problemas do âmbito eclesiástico no período medieval para volumosos
compêndios normativos cada vez mais preocupados com os fiéis, “sua formação
doutrinal, frequência dos sacramentos, comportamento nos locais de culto, con-
dutas morais – alargando a noção de pecado público”21.
Em termos de sua estrutura e mecanismos de consulta, o texto das constitui-
ções baianas segue igualmente o percurso de evolução das demais constituições.

20 FEITLER, Bruno e SOUZA, Evergton Sales, Estudo introdutório. Op. cit, p. 57.

21 PAIVA, José Pedro. Constituições diocesanas. Op. cit, vol. II, p. 13. José Pedro Paiva define em obra distinta o problema dos pecados públicos

da seguinte forma: “comportamentos como amancebamento, prostituição, usura, embriaguez, inimizades, ofensas verbais, práticas de jogos ilícitos,

desobediência aos pais (...), etc”. PAIVA, José Pedro. Baluartes da fé e da disciplina: o enlace entre a inquisição e os bispos em Portugal (1536-1750).

Coimbra: Editora da Universidade de Coimbra, 2011, p. 286.

223
Como afirmam Feitler e Souza, no século XVII se fixou uma divisão geral em
cinco livros, “cada uma reagrupando quase sempre os mesmos temas, por vezes
divididos em capítulos também temáticos [...]”22. Essa estrutura parece ter segui-
do o modelo dos Decretais de Gregório IX, divididos em cinco livros: o primeiro
versando sobre a fé; o segundo, sobre matérias judiciais; o terceiro, sobre a vida
de bons costumes dos clérigos; o quarto, sobre matrimônio; e o quinto sobre
delitos e penas23.
Como descrito por Feitler e Souza, as constituições baianas encontram-se
divididas em cinco livros, da maneira a seguir: o primeiro versava sobre a pro-
fissão da fé católica, a obrigação do ensino da doutrina aos fiéis, da denúncia dos
hereges e da observação dos sete sacramentos; o segundo trata das obrigações
relativas às missas e pagamentos de conhecenças; o terceiro aborda elementos
da doutrina, ofícios divinos e obrigações e qualidades para eleições de clérigos;
o quarto trata das imunidades eclesiásticas e dos bens das igrejas; o quinto se
debruça sobre os delitos que estavam sob jurisdição episcopal, “das penas e cen-
suras aplicadas aos que neles incorressem e dos procedimentos básicos do tribu-
nal eclesiástico: acusações, querelas, devassas e inquirições.24” Como observam
Feitler e Souza, essa distribuição das temáticas pelo modelo dos cinco livros não
corresponde, entretanto, ao modelo exato de nenhuma outra constituição ante-
rior. Em termos do tratamento dado às temáticas e seus conteúdos, os autores
afirmam que as constituições baianas seguiram a normativa católica, como era
esperado, mas empreenderam, na medida do possível, adaptações para atender
“às necessidades e problemas do cotidiano religioso vinculados ao contexto so-
cial e geográfico local [...]”25. Essas adaptações podem ser vistas igualmente no
título que trata da questão da usura, como será abordado mais adiante.
A temática da usura aparece no livro quinto das Constituições. Esse livro tra-
ta de uma diversidade de delitos, abarcando desde os graves crimes de heresia até
os de feitiçaria, superstições e sacrilégio; falso juramento, sodomia, bestialidade,
concubinato e alcovitagem; homicídios e furtos, bem como os da simonia e da
22 FEITLER, Bruno e SOUZA, Evergton Sales, Estudo introdutório. Op. cit, p. 59.

23 Id. Ibid., p. 60. Nesse ponto, é digna de nota a observação feita pelos autores de que esse modelo seguia uma proposição aristotélica de construção de

leis universais baseadas nos cinco sentidos do corpo.

24 Id. Ibid., p. 62.

25 Id. Ibid., p. 63.

224
própria usura. O espaço reservado para a usura insere-se no título XIV intitula-
do “da usura: da deformidade deste crime e das penas dele”26. Para entendermos
melhor a configuração desse título e seus significados é interessante observar-
mos como ele aparece subdividido no índice das Constituições. O índice servia
de guia ao leitor ao organizar as temáticas em ordem alfabética, mas também
apresentava a expectativa dos autores em relação aos usos que essa peça jurídi-
ca poderia ter e às respectivas questões que provavelmente surgiriam para seus
usuários em suas funções jurídicas, pastorais ou religiosas. O índice acabava por
reunir e referenciar itens que, ainda que versassem sobre um mesmo problema,
poderiam se encontrar alocados em títulos diferentes ao longo das Constituições.
O tema da usura aparece, portanto, subdividido em 7 entradas no índice, quais
sejam: 1) “Usura, qual a deformidade deste crime”; 2) “Usura, os que deste crime
souberem, como sejam obrigados a denunciar dele”; 3) “Usura, os que forem
compreendidos neste crime, que penas haverão”; 4) “Usuras paliadas, quais se-
jam, e como se cometem, e que penas haverão os que usarem delas; 5) “Usuras
paliadas, os que concorrem para os assinados e escrituras de tais contratos, sa-
bendo da fraude com que se fazem, que penas incorrem”; 6) “Usura, em que caso
o conhecimento dela pertença ao foro eclesiástico”; 7) “Usurários públicos, se
lhes não administre a sagrada Eucaristia, salvo em que caso”27.
Será importante tratarmos esses itens com alguma atenção. Ainda assim,
podemos fazer alguns comentários preliminares para servir de guia a nossa refle-
xão. De uma certa maneira, a subdivisão do tema segue o roteiro esperado para a
regulamentação dos procedimentos em relação a delitos de natureza semelhante.
Isto é, sua definição; a forma como o mesmo se tornaria de conhecimento das
autoridades; e as penas correspondentes. Aparecem aqui, entretanto, algumas
questões que devem ser destacadas. Cabe ressaltar primeiramente a importância
concedida à denúncia do crime e, mais do que isso, a anunciação de que esta era
uma obrigação daqueles que tinham conhecimento dele. Em seguida, sugere-se
uma preocupação com a caracterização e identificação dos artifícios que pos-
sivelmente poderiam ser utilizados na tentativa de encobrir o crime definido
anteriormente. Reconhece-se ainda um papel importante para o problema das

26 VIDE, Sebastião Monteiro da. Constituições primeiras do Arcebispado da Bahia. São Paulo: Editora da Universidade de São Paulo, 2010 [1720], p. 494.

27 Id. Ibid., p. 685.

225
escrituras e escritos que explicitavam, ainda que para tentar encobrir, a usura
paliada, bem como a relevância e culpabilidade daqueles que os elaboravam. Por
fim, ressalta-se a principal punição em relevo nas Constituições e como essas de-
veriam ser aplicadas àqueles que fossem “usurários públicos”. Ou seja, a um tipo
específico de usurário28.
Passemos agora para a análise mais detida dos sete itens acima identificados
a partir do índice do título “da usura”. Como alertado por Guilherme Pereira das
Neves, fazer um trabalho de comparação das constituições sinodais em língua
portuguesa, bem como uma investigação das notas de rodapé das Constituições
Primeiras do Arcebispado da Bahia pode se tornar um trabalho hercúleo, guia-
do por meandros de uma erudição cujos percursos são de difícil recuperação,
mesmo em se tratando de um tema específico29. Nesse sentido, apresentaremos
apenas uma reflexão inicial acerca de temáticas e diálogos pontuais estabelecidos
pelo texto na construção dos sentidos e configurações da usura nas Constituições.
Iniciemos pela definição de usura apresentada pelas Constituições. Há sem
dúvida no texto a intenção de sublinhar a gravidade do crime, anunciada des-
de o seu título como uma deformidade. O termo deformidade foi significa-
tivamente definido, em seu sentido moral, por D. Raphael Bluteau, seguindo
Quintiliano, como “coisa indecente, injuriosa, afrontosa”30. A usura surgia, por
conseguinte, como algo que feria a decência e causava injúria e afronta e deveria
gerar, desta forma, indignação.
No parágrafo que serve de definição de “qual a deformidade deste crime”,
como explicitado no índice, acrescenta-se algo além de seu caráter de atitude in-
juriosa mencionada acima. De saída, a definição que se segue delimita de forma

28 Sobre o problema da usura manifesta e da figura do usurário manifesto ver: TODESCHINI, Giacomo. The Incivility of Judas: “Manifest” Usury as a

Metaphor for the “Infamy of Fact” (infamia facti). In: VITULLO, J. & WOLFTHAL, D. (ed.). Money, Morality and Culture in Late Medieval and Early

Modern Europe. Ashgate: Farnham, 2010, p. 33-52 e TODESCHINI, Giacomo. Theological Roots of the Medieval/Modern Merchants’ Self-Represen-

tation. In: JACOB, Margaret C. e SECRETAN, Catherine (ed.). The Self-Perception of Early Modern “Capitalists”. Nova Iorque: Palgrave-MacMillan,

2008, p. 17-46. O problema da caracterização da usura e dos usurários manifestos também foi discutida por: MCLAUGHLIN, T. P. The teaching of the

canonist on Usury (XII, XIII, and XIV centuires). In: Medieval Studies. vol I, 1939, pp 81-147 e vol II, 1940, pp 1-22 e MOEHLMAN, Conrad Henry. The

Cristianization of interest. Church History, vol. 3, número 1, março, 1934, pp. 3-15.

29 NEVES. Guilherme Pereira das. Perguntas a um livro: As Constituições primeiras de Monsenhor Monteiro da Vide e suas edições. In FEITLER, Bruno

e SOUZA, Evergton Sales. A Igreja no Brasil: normas e práticas…. Op. cit, p. 188.

30 BLUTEAU, Raphael. Vocabulario portuguez & latino: aulico, anatomico, architectonico ... Coimbra: Collegio das Artes da Companhia de Jesu, 1712

– 1728, Vol. 3, p. 38.

226
bastante clara como esse delito será apresentado e tratado: “É a usura um doloso
e injusto lucro, roubo e latrocínio manifesto que redunda em grande prejuízo da
república e prejudica não somente ao bem espiritual da alma, mas também ao
temporal do comércio humano”31. Isso significa que, no texto das Constituições
da Bahia, a usura aparece como algo que é, ao mesmo tempo, do âmbito espi-
ritual e temporal, além de ser crime equiparado ao roubo e latrocínio32. Essa
afirmação implica igualmente que a usura era um crime de foro judicial misto,
civil e eclesiástico.
A equiparação da usura ao roubo, aproximação bastante comum no perío-
do, ajudava a constituir a gravidade da caracterização do crime de usura, como
pode ser melhor esclarecido pelo próprio título das Constituições que trata do
problema: “[furto] é muito grave o crime, proibido por direito natural e divino
e muito prejudicial à república; portanto, o direito canônico e civil manda punir
com graves penas, entre as quais a infâmia”33.
Não por acaso, uma das referências fortes na definição inicial de usura e
seus malefícios nas Constituições aparece em nota duas vezes nesse primeiro pa-
rágrafo de delimitação do crime: trata-se de São Tomas de Aquino (1225-1274)
e sua Suma Teológica (1265–1274)34. Em que pesem as especificidades das inter-
pretações jesuíticas e dominicanas do pensamento tomista, parece certo que o
recurso às reflexões de Aquino predominaram no caso da usura. A citação foi
feita quando da menção dos males espirituais para a alma, citada acima. O pro-
blema da usura em São Tomás de Aquino aparece nas secunda secundae, dentro
de “divisões da justiça”, na questão 78 “o pecado da usura”35. O texto das Consti-
tuições faz referência ao artigo 1 intitulado “É pecado receber interesse por em-
préstimo de dinheiro?”. Segundo Elaine Tan, a escolástica de autores como São

31 VIDE, Sebastião Monteiro da. Constituições primeiras do Arcebispado da Bahia. Op. cit, p. 477

32 Elaine Tan afirma que Anselmo de Canterbury (1033-1109) teria sido o primeiro a afirmar que a usura era um pecado contra a justiça, e seu discípulo,

Anselmo de Lucca, a classificaria como roubo e demandava a obrigação da restituição. Posteriormente, vários concílios e teólogos passaram a tratar a

usura como crime contra a justiça e com a restituição como mandatória. TAN, Elaine S. Origins and Evolution of the Medieval Church´s Usury Laws:

Economic Self-interest or Systematic Theology? The Journal of European Economic History. vol. 34, n. 1, Spring, 2005, pp 263-281.

33 VIDE, Sebastião Monteiro da, Constituições primeiras do Arcebispado da Bahia. Op. cit, p. 503. Sobre o questão do roubo no periodo moderno ver:

PRODI, Paolo. Settimo non rubare: furto e mercato nella storia dell’Occidente. Bologna: Il Milino, 2011.

34 Para uma discussão acerca da trajetória de São Tomás de Aquino e a articulação com suas idéias acerca das relações econômicas ver: LITTLE, Lester

K. Religious Poverty and Profit Economy in Medieval Europe. Ithaca: Cornell Unviersity Press, 1983.

35 AQUINO, Santo Tomás de. Suma de teología – parte II-II. Madrid: Biblioteca de Autores Cristianos, 1990, pp. 600-606.

227
Tomás de Aquino, ao recuperar as proposições de Aristóteles e de outros pen-
sadores clássicos sobre a lei natural, o direito à propriedade, a transferência de
domínio e a esterilidade do dinheiro, estabeleceu as bases para a condenação da
usura não somente do ponto de vista teológico, mas igualmente sob o jurídico36.
Em concordância com a avaliação de Tan, Lester Little resumiu da seguinte ma-
neira o argumento tomista em relação à usura: “quando o credor vende tanto a
substância do dinheiro quanto o seu uso, ele está na verdade vendendo a mesma
coisa duas vezes”37. Nesse sentido, a transação descrita poderia ser considerada
como contrária às leis naturais e, por conseguinte, condenável.
Quando o texto das Constituições fez uso da referência tomista para apre-
sentar os contornos dos danos e malícia da usura, este acionou a um só tempo
um discurso de autoridade que havia se tornado canônico no tratamento das
relações econômicas após sua recuperação a partir da segunda escolástica, bem
como trouxe à baila uma fonte de debates e polêmicas profundamente rica, leva-
da a cabo por autores ligados direta ou indiretamente à chamada “Escola de Sa-
lamanca”38. Os principais nomes da Escola de Salamanca quinhentista, entre os
quais, Francisco de Vitória (1493-1546), Domingo de Soto (1494-1570) e Martin
de Azpilcueta (1492-1586), foram todos lecionadores da obra de Aquino e co-
mentadores da Secunda Segundae. Esses religiosos foram igualmente autores de
tratados morais e manuais de confessores que deixaram marcas nas normativas
civis e religiosas do período que versaram sobre as atividades econômicas, como
comentaremos adiante.
No desdobramento da definição de usura, o texto prossegue afirmando que:
“consiste sua deformidade e malícia em levar ganho por razão do contrato de
empréstimo [...] do dinheiro, ou outra coisa estimável por número, peso e medi-
da, como é farinha, açúcar, tabaco e coisas semelhantes”39. Para configurar essa
delimitação do ganho ilícito, o texto faz uso em nota de uma combinação de refe-

36 TAN, Elaine S., Origins and Evolution of the Medieval Church´s Usury Laws. Op. cit, pp. 263-281.

37 LITTLE, Lester K., Religious Poverty. Op. cit, p. 180.

38 Sobre a Escola de Salamanca ver, entre outros: GRICE-HUTCHINSON, Majorie. The School of Salamanca: Readings in Spanish Monetary

Theory,1544-1605. Oxford: Oxford University Press, 1952; ALVES, André Azevedo e MOREIRA, José Manuel. The Salamanca School. Nova Iorque;

Londres: Continuum, 2010, vol 9; DELGADO, Rogelio Fernández. La ruptura del pensamiento económico castellano en el siglo XVII: Juan de Mariana y

Sancho de Moncada. Madrid: Universidad Complutense de Madrid, 2003 (tese de doutorado).

39 VIDE, Sebastião Monteiro da. Op. cit, p. 477.

228
rências, provavelmente a mais rica do título em questão. Entre elas encontramos,
por exemplo, referências bíblicas ao Evangelho segundo São Lucas, no versículo
35 do livro 6, e sua prescrição de “amai vossos inimigos, fazei o bem e emprestai
sem esperar coisa algum em troca”40.
Além disso, o próprio São Tomás de Aquino e sua questão 78 artigo 1 retor-
na à questão chamando atenção para o problema da iniquidade em trocas onde
havia itens que envolviam quantidades contadas, medidas ou pesadas41. Junta-
mente com a referência a diversos tratadistas surge a primeira menção explicita
à legislação com o recurso em nota às Ordenações Filipinas. As Ordenações são
citadas no livro 4, título 67, onde a definição segue muito próxima ao que vemos
utilizado nas Constituições:

nenhuma pessoa, de qualquer estado e condição que seja,


dê ou receba dinheiro, prata, ouro ou qualquer outra quan-
tidade pesada, medida ou contada a usura, por que possa
haver, ou dar alguma vantagem, assim per via de emprésti-
mo, como de qualquer outro contrato, de qualquer qualida-
de , natureza e condição que seja , e de qualquer nome que
possa ser chamado42.

É interessante notar na definição do tema da usura uma fórmula clássica


que em tratados e outros textos normativos aparece aqui adaptada ao contexto
colonial. Ao especificar que a usura se comete não somente quando há dinhei-
ro envolvido, mas igualmente quando se trata de transações com mercadorias
ou qualquer coisa que pudesse ser “pesada, medida ou contada”, afirmação que
normalmente nos comentários sobre usura é seguida de exemplos como “vinho
e trigo”, no texto das Constituições menciona-se, além da farinha, o açúcar e o ta-
baco. Essa menção é bastante importante, pois revela uma das poucas adaptações
ao contexto da sociedade colonial, em especial ao nordeste açucareiro, neste título
marcado por acionar temas, imagens e discursos de autoridade consagrados. O
caráter de empreitada colonial e a menção aos negócios do açúcar e do tabaco não
40 Bíblia de Jerusalém. Evangelho segundo São Lucas , livro 6, versículo 35, São Paulo: Paulus, 2010, p. 1799.

41 AQUINO, Santo Tomás de. Suma de teología – parte II-II. Madrid: Biblioteca de Autores Cristianos, 1990.

42 Codigo Philippino, ou, Ordenações e leis do Reino de Portugal : recopiladas por mandado d’El-Rey D. Philippe I […]. Rio de Janeiro : Typ. do Instituto

Philomathico, 1870 [1603], livro 4, tit. 67, pp. 871-874.

229
parece furtivo, mas sim fruto da percepção desses homens acerca da situação co-
lonial do comércio e da suspeição que essas atividades causavam nos contempo-
râneos e, em especial, os lucros e cobiças gerados a partir desse comércio colonial.
Essa percepção, que transparece no texto das Constituições, esteve presente ainda
em outros escritos de religiosos, especialmente jesuítas, que escreveram na virada
para o século XVIII e nas próprias tensões que surgem da documentação cama-
rária da época e sua denúncia acerca do emaranhado de dívidas que os senhores
de engenho acumulavam no período. Essa percepção aparece igualmente em es-
critos satíricos e polemistas, como os poemas satíricos atribuídos a Gregório de
Matos e Guerra (1636- 1696) 43. Não podemos deixar de mencionar, por conse-
guinte, a influência que as visões de religiosos e da elite local açucareira tiveram
nos debates no sínodo diocesano e na elaboração das Constituições44.
No âmbito da definição do dolo e malícia do delito da usura, o texto das
Constituições faz referência ao Manual de Confessores e Penitentes de Martin de
Azpilcueta (1492-1586) em menção ao capítulo 17, “do sétimo mandamento:
não furtarás”45 e aos artigos referentes ao delito da usura que estão incluídos nes-
se capítulo. Como chama a atenção Fernando Fonseca, o manual de confessores
de Azpilcueta, bem como seus apêndices, intitulados Comentários Resolutórios
de Onzenas e Comentário Resolutório de câmbios (1556), teve grande repercussão
entre os tratadistas e religiosos que escreveram sobre a matéria e foi frequen-
temente um campeão de recomendações nas constituições dos bispados, não
exclusivamente com relação aos problemas da usura e do câmbio46.
Azpilcueta lecionou em Salamanca e em Coimbra, sendo contemporâneo
de Francisco de Vitória. O manual de Confessores e penitentes foi publicado pela
primeira vez em 1553 em Coimbra e teve inúmeras edições em português, es-

43 Para uma análise sobre o topos da usura e da cobiça nos poemas atribuídos a Gregório de Mattos e Guerra ver: HANSEN, João Adolfo. A sátira e o

engenho: Gregório de Matos e a Bahia do século XVII. São Paulo: Ateliê Editorial; Campinas: Editora da Unicamp, 2004.

44 Sobre essa questão ver: ANDRADE, Francisco Eduardo de. A Invenção das Minas Gerais: empresas, descobrimentos e entradas nos sertões do ouro da

América portuguesa. Belo Horizonte: Autêntica Editora/ Editora PUC Minas, 2008; SANTOS, Bruna Rodrigues dos. Cultura e opulência do Brasil por

suas drogas e minas: a relação entre agricultura e mineração na construção da obra de João Antônio Andreoni (século XVIII). Seropédica: Universidade

Federal Rural do Rio de Janeiro, 2015, dissertação de mestrado.

45 NAVARRO, Martin de Azpilcueta. Manual de confessores e penitentes, que clara e brevemente contem a universal decisão de quasi todas as duvidas que

em as confissões ocorrer dos pecados, absolvições, restituições, censuras e irregularidades. Coimbra: Ioam de Barreyra, Impressor da Universidade, 1560.

46 FONSECA, Fernando Taveira da. Usura: doutrinas e prática: uma síntese. Biblos. Coimbra, Vol. 10, 2012 p. 7.

230
panhol, latim e italiano47. De acordo com Fonseca, Azpilcueta, ao definir no que
constituía a onzena, recorre ao lugar comum dos tratadistas quinhentistas: “o
ganho que se toma do emprestimo cujo senhorio passa naquelle que o recebe
[...]”48. Azpilcueta considera ainda, no mesmo parágrafo citado pelas Consitui-
ções, “o pecado de onzena he, tomar, ou querer tal ganho [...] e que este pecado
de onzena he pecado mortal e dizer ho contraryo he heregia e esta defesa no
testamento velho [....]”49. O Manual de Azpilcueta demora-se detalhadamente
em sua análise e condenação de práticas usurárias, tanto as explícitas quanto as
encobertas, e constituiu uma fonte de referência das mais presentes no texto das
Constituições sobre essa matéria.
Uma vez delimitado e definido o crime, o texto prossegue com o que pode-
mos entender como algo que tem uma dupla caracterização: um suposto diag-
nóstico acerca do crime da usura no arcebispado, a saber: “E porque este vício
tem prevalecido muito nesse arcebispado, e cada dia aumenta mais sua devas-
sidão por razão do comércio[...]”50. De um lado, trata-se de uma retórica que
parece ser comum e recorrente a certos textos normativos e tratados morais do
período pós-Concílio de Trento, a exortação de que os maus costumes ou com-
portamentos encontravam-se alastrados pela região e precisavam ser extirpados
e reformados51. Por outro lado, caso pensemos no perfil e na atuação de Montei-
ro da Vide, como sugeridos por José Pedro Paiva, o primeiro marcado por lon-
ga experiência nos cânones e na administração da justiça no reino e a segunda
marcada pelo esforço de fazer cumprir as determinações tridentinas por meio do
estímulo à realização de visitas, aumento da rede paroquial e vigilância sobre os
vigários na Bahia52, não parece difícil considerar a hipótese de que o arcebispo
tenha de fato recebido notícias desse tipo de vício no arcebispado.

47 ALVES, André Azevedo e MOREIRA, José Manuel. Op. cit, p. 15-16.

48 FONSECA, Fernando Taveira, Usura. Op. cit, p. 20. O trecho de Azpilcueta encontra-se em Martim de Azpilcueta, Comentário resolutório de onzenas,

p. 8 apud FONSECA, Fernando Taveira da. Op. cit, p. 20.

49 NAVARRO, Martin de Azpilcueta,.Manual de confessores. Op. cit, parágrafos 207-208, p. 254-255.

50 VIDE, Sebastião Monteiro da. Constituições primeiras. Op. cit, p. 477.

51 Essa questão é mencionada por exemplo por Bruno Feitler e Lana Lage em seus artigos acerca da bigamia e do controle do clero, respectivamente.

FEITLER, Bruno. Poder episcopal e inquisição no Brasil: o juízo ecclesiastico da Bahia nos tempos de D. Sebastião Monteiro da Vide. In: FEITLER,

Bruno e SOUZA, Evergton Sales. A Igreja no Brasil: normas e práticas…. Op. cit; LAGE, Lana. As Constituições da Bahia e a reforma tridentina do clero

no Brasil. In: FEITLER, Bruno e SOUZA, Evergton Sales, A Igreja no Brasil: normas e práticas…. Op. cit Ver também: PAIVA, José Pedro, Baluartes da

fé e da disciplina…. Op. cit

52 PAIVA, José Pedro,.Baluartes da fé. Op. cit, p. 54.

2 31
Em seguida, como era previsível, as Constituições passam a discorrer sobre
a obrigação de “desterrar do dito nosso arcebispado mal prejudicial a toda re-
pública cristã [...]”53. Nesse ponto, as referências para sensibilizar e, mais do que
isso, exortar os religiosos que deveriam ter a seu cargo a “república cristã”, são
claramente bíblicas. Primeiro, o livro 34 de Ezequiel, versículo 10:

Assim diz o senhor Iahweh: Eis-me contra os pastores. Das


tuas mãos requererei prestação de contas a respeito do re-
banho e os impedirei de apascentar meu rebanho. Deste
modo os pastores não tornarão a apascentar-se a si mesmos.
Livrarei minhas ovelhas da sua boca e não continuarão a
servir-lhes de presa54.

Em seguida, as Epístolas aos Hebreus, livro 13, versículo 17: “Obedecei aos
vossos dirigentes, e sede-lhes dóceis: porque velam pessoalmente sobre as vossas
almas, e disso prestarão contas. Assim poderão fazê-lo com alegria e não gemen-
do, o que não vos seria vantajoso.55” E por fim, o encerramento ameaçador do
salmo 124, versículo 5: “e os que se desviam por trilhas tortuosas, que Iahweh os
expulse com os malfeitores. Paz sobre Israel!56”
O passo seguinte do título foi apresentar os meios para conseguir desterrar
o mencionado vício de clérigos e leigos do arcebispado. O primeiro passo era
propedêutico, pastoral e se dirigia aos pregadores e párocos que deveriam, nos
sermões, nas estações e no foro da penitência, declarar:

[...] ao povo o grande prejuízo que causa este pecado da


usura, destruidora da fazenda dos pobres e ainda de alguns
ricos, e também roubadora das almas dos que a usam, os
quais, porque nunca cabalmente restituem o mal levado,
morrem em pecado, e pela divina justiça são condenados
ao fogo do inferno.57

53 VIDE, Sebastião Monteiro. Op. cit, p. 477.

54 Bíblia de Jerusalém. Ezequiel, livro 34, versículo 10, São Paulo: Paulus, 2010, p. 1530.

55 Bíblia de Jerusalém. Epístolas aos hebreus, livro 13, versículo 17, São Paulo: Paulus, 2010, p. 2101.

56 Bíblia de Jerusalém. Livro de Salmos, salmo 124 versículo 5. São Paulo: Paulus, 2010, p. 1000.

57 VIDE, Sebastião Monteiro da. Op. cit, p. 477.

232
Podemos dizer que esse trecho sugere um conteúdo para sermões de pre-
gadores e admoestações de párocos que contém parte importante da doutrina
da Igreja acerca do problema da usura. Em especial, o problema temporal e es-
piritual da exploração dos mais pobres e de todos aqueles que se encontravam
em momento de necessidade e perigo em relação à manutenção de sua vida e
famílias. É interessante ressaltar que esse ponto mereceu dos autores do texto um
rico manancial de referências em nota que certamente visavam fornecer material
para os mencionados sermões e preleções dos religiosos encarregados da difícil
tarefa que os esperava.
A primeira referência feita segue o livro do Êxodo e sua exortação de uma
ética para as trocas materiais, sua condenação ao roubo e prejuízo de viúvas
e órfãos e também o versículo 24 que pregava: “se emprestares dinheiro a um
compatriota, ao indigente que está em teu meio, não agirás com ele como cre-
dor que impõe juros.58” Em seguida, cita novamente o livro de Ezequiel, no qual
encontramos uma preleção acerca do homem justo e um versículo que precisa-
mente proclama: “não empresta com usura, não aceita juros, abstém-se do mal,
julga com verdade entre homens e homens”59. Em terceiro lugar, recorre a um
trecho dos Salmos e novamente ao livro de São Lucas, no trecho mencionado
anteriormente, além de recorrerem à patrística. Nos Salmos, é feita uma clara
aproximação entre abster-se da usura e aproximar-se da justiça: “não empresta
dinheiro com usura, nem aceita suborno contra o inocente. Quem age deste
modo jamais vacilará”60.
Nesse ponto, surgem ainda como referência os tratados morais. Esse recurso
aos tratados foi bastante intenso em diversos pontos do título. Como era espe-
rado, a maioria dos tratados citados pertencia ao conjunto de reflexões sobre
relações e práticas econômicas de dominicanos e jesuítas ligados direta ou indi-
retamente ao pensamento da Escola de Salamanca e sua repercussão e desdobra-
mentos na Europa católica61. Encontramos referências significativas às obras de

58 Bíblia de Jerusalém. Êxodo, livro 22, versículo 24. São Paulo: Paulus, 2010, p. 134.

59 Bíblia de Jerusalém. Ezequiel livro 18 versículo 8. São Paulo: Paulus, 2010, p. 1503.

60 Bíblia de Jerusalém Salmos, livro 14 versículo 5. São Paulo: Paulus, 2010, p. 875.

61 Para uma análise aprofundada sobre o debate dos tratadistas acerca da usura na Península Ibérica do periodo moderno ver: CLAVERO, Bertolome.

Usura: del uso economico de la religion en la Historia. Madrid: Tecnos, 1984 e do mesmo autor: Antidora: antropologia catolica de la economia moderna.

Milão: Giuffrè Editore, 1991. Ver também: CARDIM, Pedro. O poder dos afectos: ordem amorosa e dinâmica política no Portugal do Antigo Regime. 2000.

233
Diego de Covarrubias y Leyva (1512-1577)62, Juan Azor (1535-1603)63, Martino
Bonacina (1585-1631)64 e Gabriel Pereira de Castro (1571-1632)65, bem como a
do jurista Jerónimo Castillo de Bobadilla (1547-1605), também formado em Sa-
lamanca, e sua importante obra Política para Corregidores y Señores de vasallos[
…]66. Comentar cada uma dessas referências, fazer seu cotejamento e analisar o
uso de cada um deles no texto das Constituições não cabe no espaço do presen-
te artigo, uma vez que apresentam perspectivas potencialmente diversificadas.
Nesse sentido, ainda que as Consituições pareçam seguir os ditames de autores
ligados à Escola de Salamanca, não deixam de fazer referência a autores que alar-
garam as interpretações fundadoras dessa escola de pensamento.
Uma das referências mais recorrentes, sem dúvida, se refere ao jesuíta Luís
de Molina (1535-1600) e sua obra De iustitia et iure. O jesuíta Luís de Molina
estudou em Salamanca e Alcalá e lecionou longos anos nas universidades de
Coimbra e Évora67. Molina, como diversos teólogos contemporâneos, foi um
comentador dedicado, ainda que controverso, da Summa teológica de Santo
Tomás de Aquino68. Segundo Rudolf Schüssler, Molina costuma ser identificado
como um membro de um circuito mais alargado de ligação com a Escola de
Salamanca e suas posições precisam ser avaliadas com cautela69. De acordo com

Lisboa: Universidade Nova de Lisboa, 2000, tese de doutorado e HESPANHA, Antônio Manuel. La economia de la gracia. In: La gracia del derecho.

Madrid: s/ed, 1993.

62 COVARRUBIAS Y LEYVA, Diego de. Opera Omnia… Coloniae Allobrogum, sumptibus Samuelis de Tournes, 1679 (2 vols.) apud FEITLER, Bruno e

SOUZA, Evergton Sales, Compêndio bibliográfico… In: Constituições Primeiras do Arcebispado da Bahia. São Paulo: Edusp, 2010, p. 89

63 AZOR, Juan. Institutionum moralium, in quibis universae questions ad conscientiam recte aut prave fatorum pertinentes breviter tractantur…. Auctore

Joanne Azorio, Brixtie, apud Io. Baptistam Bozzolam 1622 (3 vols.) apud FEITLER, Bruno e SOUZA, Evergton Sales.,Compêndio bibliográfico. Op. cit, p. 86

64 BONACINA, Martino. De restitution et contractibus…. In Opera Omnia…. Venetiis, apud Blasium Maldura, 1698 (3 vols.) apud FEITLER, Bruno e

SOUZA, Evergton Sales. Compêndio bibliográfico. Op. cit, p. 87.

65 CASTRO, Gabreiel Pereira de. De manu regia tractatus in quo omnium Legum Regiarum quibus, Regi Portugalliae in causis ecclesiasticis cogniti est ex

iure (2 tomos). Lisboa: Pedro Craesbeeck, 1622-1625.

66 BOBADILLA, Jerónimo Castillo de. Política para Corregidores y Señores de vasallos, en tiempo de paz y de guerra y para prelados en lo espiritual y

temporal entre legos, juezes de comisión, regidores, abogados y otros oficiales públicos y de las jurisdiciones, preeminencias, residencias y salarios dellos y de

lo tocante a las de órdenes y cavalleros dellas. Madrid: Imprensa Real, 1649 [1597].

67 ALVES, André Azevedo e MOREIRA, José Manuel, The Salamanca School. Op. cit, pp. 19-20.

68 Para uma confrontação dos pensamentos de Luís de Molina e Santo Tomàs de Aquino ver: CESSARIO, Romanus. Molina and Aquinas In KAUF-

FMAN, Matthias; AICHELE, Alexander (ed.). A Companion to Luis de Molina. Leiden; Boston: Brill, 2014, pp. 291-323.

69 SCHÜSSLER, Rudolf. The Economic Thought of Luis de Molina. In: KAUFFMAN, Matthias; AICHELE, Alexander (ed.). A Companion to Luis de

Molina. Leiden; Boston: Brill, 2014, pp. 257-288.

234
o autor, Molina seria o primeiro jesuíta a se dedicar a comentários sistemáticos
sobre o tema da justiça comutativa e seus comentários, ainda que não sejam
propriamente inovadores nesse campo, deixaram marcas profundas em autores,
especialmente jesuíticos, que escreveram depois dele. De acordo com Schüssler,
em De iustitia et iure, Luis de Molina aderiu à uma tradição, iniciada em finais
do século XV e consolidada entre os cânones da teologia católica, de comentar a
Summa Teológica de Aquino e, em especial, a mencionada Secunda Secundae70.
Esses tratados viriam a constituir um verdadeiro gênero da literatura teológica,
iniciado, segundo Schüssler, por Domingo de Sotto, dominicano pertencente à
primeira geração da Escola de Salamanca, de quem Molina se diferenciaria.
No que tange ao tema da usura, o tratado de Molina, se aproxima da visão
católica da usura como o ganho, recebido ou esperado, de algo a mais além do
que foi emprestado. Molina aderiu, portanto, às preocupações acerca dos sen-
timentos do usurário e dos problemas que estes poderiam causar à consciência
desses indivíduos. Para Schüssler, entretanto, Molina inovou ao rejeitar a teoria
da esterilidade do dinheiro e a consequente condenação da usura como uma
afronta à Lei Natural, e ao centrar o debate na determinação da necessidade da
justiça e da equidade nas trocas humanas71. Essa inovação faz com que Molina
aceite determinadas exceções na cobrança de interesse e que avance na avalia-
ção dos contratos que envolviam risco. No texto das Constituições, entretanto, a
referência ao pensamento de Molina aparece no momento de configuração do
dano causado pelas práticas usurárias, bem como nas discussões que envolviam
as práticas usurárias encobertas nas relações de compra e venda, nas penhoras
e nos casos onde frutos eram trocados com patos de os receber de volta em me-
lhores condições72. Situações onde vemos claramente pesar, de forma prioritária,
o mencionado problema da avaliação da equidade nas trocas.
O problema da justiça de foro externo não eliminava no contexto de preo-
cupações das Constituições os problemas gerados no âmbito da consciência e
da salvação da alma do indivíduo. A questão do foro da consciência, da justiça
divina e da proteção e salvação das almas aparece com grande força. Evergton

70 Id. Ibid. p. 260.

71 Id. Ibid. p. 278.

72 VIDE, Sebastião Monteiro da. Op. cit, pp. 480-481.

235
Souza ao comentar acerca da devoção de Monteiro da Vide às almas do purga-
tório nos oferece talvez um meio de compreender a atenção devotada pelo texto
das Constituições ao problema do destino das almas daqueles que praticavam
contratos usurários73. De acordo com Souza, a devoção às almas do purgatório
e a crença na necessidade dos sufrágios dos vivos para livrá-las de seus sofri-
mentos parecem ter sido especialmente sensíveis para da Vide. Elas aparecem
na hagiografia da soror Victória da Encarnação composta por da Vide; nas suas
determinações testamentárias; bem como no próprio texto das Constituições,
ao menos em duas passagens citadas por Souza74. Esta última aparição não é,
para Souza, algo peculiar do texto legal criado na Bahia, pois teria se tornado
referência comum nos textos das constituições dos bispados portugueses a par-
tir de finais do século XVI, além de obedecer a determinações de decreto do
Concílio de Trento75. Nesse sentido, não é estranho que a preocupação com a
alma e seu destino apareça como ponto central do título das Constituições que
versam sobre as práticas usurárias.
Após as determinações da pastoral, chegamos finalmente às prescrições
para apuração e punição dos casos de usura. O trecho se inicia da seguinte for-
ma: “para que no foro externo se possa castigar este crime [...]”76. Esse trecho
mais uma vez nos leva ao duplo posicionamento da usura, que consistia no fato
de que ela possuía uma dimensão interna, relativa à consciência e aos sentimen-
tos de cada indivíduo e sujeita à justiça divina, e uma outra, externa, sujeita à
justiça humana, sendo esta civil ou eclesiástica. A punição do crime de usura
no foro externo, como deixava claro o artigo, pertencia à justiça humana e, por
conseguinte, à regulamentação imposta pelas constituições sinodais, como era
o caso das da Bahia.
Nesse ponto, inicia-se um interessante diálogo com outras constituições
sinodais. Seguindo, como referido em nota, o que indicavam as constituições
sinodais da Guarda e de Lisboa, as Constituições da Bahia urgiam acerca do
crime de usura: “a todos os nossos súditos que, sabendo que algumas pessoas
73 SOUZA, Evergton Sales. O lume da Rosa e de seus espinhos: espiritualidade e piedade em D. Sebastião Monteiro da Vide. In: FEITLER, Bruno e

SOUZA, Evergton Sales. A Igreja no Brasil: normas e práticas…. Op. cit, pp. 77-83.

74 Id. Ibid., pp. 80-81, nota 50.

75 Id. Ibid., p. 81.

76 VIDE, Sebastião Monteiro. Constituições primeiras. Op. cit, p. 477.

236
o cometeram, o denunciem a Nós ou a nosso vigário-geral ou visitadores, aos
quais encomendamos e encarregamos muito procedam contra os culpados com
as penas de direito e destas Constituições”77. Estavam indicados, desta forma, os
caminhos a serem seguidos para a denúncia e o conhecimento daqueles que usa-
vam da usura. Como era o caso de outros pecados públicos, os indivíduos eram
não apenas instigados, mas convocados a denunciarem os pecadores às autori-
dades competentes, como o próprio arcebispo, o vigário-geral ou os visitadores.
Ao analisar os casos de bigamia, com o intuito de discutir a questão da atua-
ção de Monteiro da Vide e sua relação com a inquisição, Bruno Feitler conclui que:

tanto as disposições das Constituições quanto a ação real


do juízo eclesiástico baiano demonstram que Monteiro da
Vide esmerou-se em manter a ordem na sua mitra e a ex-
clusividade da ortodoxia católica, o que explica seu zelo em
coibir todo tipo de delito espiritual ou moral que seu reba-
nho pudesse cometer, de qualquer foro que fosse.”78.

A julgarmos pelo que vemos disposto no presente título relativo à usura, este
crime também não deveria escapar das redes paroquiais e das visitas e devassas
feitas junto à população do arcebispado. Sendo assim, como era de se esperar, o
crime da usura aparece igualmente referenciado no Regimento do Auditório Ecle-
siástico que acompanha a publicação das Constituições. No Regimento do Auditório
Eclesiástico do Arcebispado da Bahia, publicado em 171979, como mostra Bruno
Feitler, encontramos “uma lista dos delitos [que] era lida aos fiéis quando da
instauração de uma devassa, procedimento judicial que fazia parte integrante
do mecanismo pastoral que eram as visitas diocesanas80. Tratava-se do “Edital
e interrogatório da visitação”81. Nele “[...] para que saibam os pecados de que
devem denunciar, lhos mando declarar neste edital pela maneira seguinte”, en-

77 Id. Ibid., pp. 477-478.

78 FEITLER, Bruno, Poder episcopal e inquisição no Brasil. Op. cit, p. 110.

79 Segundo esclarece Feitler em nota, o regimento teria sido publicado em 1719, mas o preâmbulo e a apresentação do Regimento “tem como data o dia

8 de semtembro de 1704, entrando assim em vigor nessa data”. Id. Ibid., p. 96, nota 20.

80 Id. Ibid., p. 87.

81 VIDE, Sebastião Monteiro da. Regimento do Auditório Eclesiástico do Arcebispado da Bahia…. São Paulo: Edusp, 2010 [1718], tit. VIII, parágrafo

398, pp. 836-840.

237
contramos na questão número vinte a indicação do que deveria ser inquirido: 82

Se há alguma pessoa que seja onzeneira83, dando dinheiro,


pão, vinho, azeite ou outras coisas semelhantes empresta-
do para receber mais que a sorte principal; ou vender mer-
cadorias fiadas por mais do que valem com o dinheiro na
mão, no preço rigoroso por razão da espera; ou as comprar
por menos do ínfimo coisa considerável, por dar dinheiro
de antemão, e haja das ditas onzenas fama pública84.

Uma vez identificado o crime e configurada a culpa do acusado, os moldes


da sua punição foram igualmente explicitados pelas Constituições, com o apoio
do que havia sido prescrito anteriormente pelas constituições sinodais de Lisboa,
Braga e Lamego:

Toda a pessoa eclesiástica ou secular que for convencida no


crime de usura ou onzena será condenada pela primeira vez
em cinquenta cruzados e degradada para fora do arcebis-
pado por tempo de um ano; pela segunda, se lhe dobrará a
pena pecuniária e de degredo; pela terceira, será condenada
em mil cruzados e em cincos anos de degredo para um dos
lugares da África.

O dinheiro arrecadado com as penas deveria ser dividido em quatro partes,


sendo três destinadas à fábrica da Sé e uma quarta para quem denunciou o crime.
O encerramento do processo deveria acontecer mediante o registro na sentença de
que os condenados deveriam restituir “o que levaram de ganhos de usura aos pre-
judicados, deixando-se a estes o direito reservado para que possam pedir o que for
seu”85. Aparece, portanto, a questão da necessidade da restituição para que a injus-
tiça em questão fosse reparada e para que o mal causado pela usura fosse anulado.

82 Id. Ibid., p. 837.

83 Segundo o dicionarista Raphael Bluteau, onzena significa: “usura. Na opinião de alguns chamou-se assim porque há onzeneiros que levam onze por

dez […]” e o termo onzeneiro referia-se a: “aquele que faz usuras”. BLUTEAU, Raphael. Vocabulario portuguez & latino: aulico, anatomico, architectonico

... Coimbra: Collegio das Artes da Companhia de Jesu, 1712 – 1728, vol. 6, p. 81.

84 VIDE, Sebastião Monteiro da, Regimento do Auditório Eclesiástico. Op. cit, p. 838.

85 VIDE, Sebastião Monteiro da, Constituições primeiras. Op. cit, pp. 477-478.

238
O problema da restituição aparece como um elemento chave da configura-
ção do pecado e do crime de usura. Sendo considerada um dolo e um roubo a
usura demandava restituição como reparação do dano causado. Manuais e trata-
dos variados insistiam nessa questão86. Frei João Sobrinho, por exemplo, ao es-
crever ainda no século XV, condenava o recebimento de recursos usurários por
conventos e pela Igreja, argumentando que a única solução para esses recursos
era a restituição àqueles que haviam sido lesados87. As Constituições sinalizam
para essa temática em alguns trechos do texto. Como parte da sentença, aqueles
condenados por receberem usura seriam obrigados a restituir a usura aos preju-
dicados e caso não restituíssem ficariam inabilitados, sendo clérigos, e proibidos
de receberem sacramentos e sepultura cristã, tanto clérigos quanto leigos88.
Por fim, além das penas pecuniárias e do degredo, as Constituições previam
para aqueles que fossem considerados “usurários manifestos”, isto é, indivíduos
que tinham na usura o seu modo de vida e eram “tidos e havidos” como tal em
fama pública, no caso de serem clérigos a inabilidade para os benefícios e, tanto
para leigos quanto para clérigos, a negação da sepultura eclesiástica e dos sacra-
mentos, caso não restituíssem em vida ou dessem “caução bastante para se fazer a
restituição”89. A sentença final do processo deveria ser lida na estação da missa pelo
pároco da freguesia onde as usuras tinham sido levadas para que as partes ficassem
informadas de seu direito à restituição e para que o delito fosse tornado público90.
Além do que previa o título XIV “da usura”, sabemos pelo índice das Cons-
tituições que um importante sacramento estava entre aqueles que deveriam ser
negados aos “usurários públicos”: o da eucaristia91. Considerado pelo texto
das Constituições como o “santíssimo e augustíssimo” sacramento, a eucaristia,
como confirmado pelo Concílio de Trento, referido em nota pelo texto, repre-
86 Sobre a questão da restituição ver, entre outros: TAN, Elaine S. Origins and Evolution of the Medieval Church´s Usury Laws. Op. cit, pp 263-281;

REED, Clyde G. e BEKAR, Cliff T. Religious Prohibition against Usury. Explanations in Economic History. 40, 2003, pp. 347-368; PRODI, Paolo. Settimo

non rubare: furto e mercato nella storia dell’Occidente. Bologna: Il Milino, 2011, especialmente o capítulo 5, Dalla condanna dell’avarizia al settimo

comandamento. Sobre o debate escolástico acerca do problema da restituição ver: LITTLE, Lester K.. Op. cit, pp. 212-213.

87 AMZALAK, Moses B. (ed). Frei João Sobrinho e as doutrinas econômicas da Idade Média. Lisboa: s/ed., 1945. Edição bilingue em Latim e Português,

pp. 224-225.

88 VIDE, Sebastião Monteiro da. Constituições primeiras. Op. cit, p. 478.

89 Id. Ibid., p. 478.

90 VIDE, Sebastião Monteiro da. Constituições primeiras. Op. cit, p. 478.

91 Id. Ibid., p. 685.

239
sentava a celebração durante a páscoa da paixão de Cristo, sua morte e ressu-
reição, e deveria durar “enquanto o mundo for mundo”92. Comungar e receber
a comunhão na eucaristia, por meio da hóstia, era um importante momento
de celebração do pertencimento do indivíduo ao grêmio da igreja católica, a
que todo cristão, de idade e entendimento competentes, estava obrigado. Entre
os benefícios causados naqueles que recebiam esse sacramento estavam, como
descrito pelo parágrafo 85 das Constituições, com base nos decretos do Con-
cílio de Trento e passagens bíblicas: “[...] acrescenta a vida espiritual da alma e
a sustenta e conforta; aviva a fé, alenta a esperança, dá novos fervores à carida-
de, reprime os vícios e apetites desordenados, diminui as tentações e, por seu
modo, preserva dos pecados [...]”93.
Todos esses benefícios seriam, dessa forma, negados aos pecadores públi-
cos, ajudando a configurar a gravidade de suas ações e sentimentos. Dessa for-
ma, esse sacramento não deveria ser administrado aos “públicos excomungados,
interditos, feiticeiros, mágicos, blasfemos, usurários e públicas meretrizes, e os
que estão publicamente em ódio, e outros quaisquer públicos pecadores, se não
constar publicamente de sua emenda e arrependimento”94. Como bem observou
Laura de Mello e Souza, ao discutir a questão da feitiçaria nas Constituições, “na
medida em que feria o decoro e servia de exemplo, o pecado público era mais es-
candaloso, oferecia maior perigo [...]”95 e devia ser tratado com gravidade equi-
valente. Ainda assim, “sendo um sacramento público, a ser publicamente admi-
nistrado, a comunhão impunha essa indiferenciação entre os crimes públicos e
os crimes privados: não por acaso, os pecadores públicos poderiam, sem maiores
problemas, receber a extrema-unção, realizada entre quatro paredes.”96 Desde
que estivessem arrependidos, mesmo que apenas secretamente emendados97.
Como um desdobramento do título relativo à usura, o texto das Constituições
abre um outro título para tratar da questão das chamadas “usuras paliadas” e da-

92 Id. Ibid., pp. 162-163.

93 Id. Ibid., p. 163.

94 Id. Ibid., p. 166.

95 SOUZA, Laura de Mello e. A presença da feitiçaria nas Constituições Primeiras do Arcebispado da Bahia – considerações comparativas. In FEITLER,

Bruno e SOUZA, Evergton Sales. A Igreja no Brasil: normas e práticas…. Op. cit, pp. 290-291.

96 Id. Ibid., p. 291.

97 VIDE, Sebastião Monteiro. Constituições primeiras. Op. cit, p. 166.

240
queles que facilitavam ou compactuavam com a sua realização. O título é iniciado
com uma definição do problema: “a malícia humana e demasiada cobiça, mais
com temor das penas temporais que das eternas, descobriu muitos modos de le-
var usura sob a capa de contratos de sua natureza lícitos[...]”98. Eram esses con-
tratos que escondiam a usura e encobriam o lucro ilícito. A usura paliada era, por
conseguinte, uma usura encoberta por meio de contratos aparentemente lícitos.
Essa prática de encobrir a usura era considerada tão grave que o texto das
Constituições prescrevia que:

nenhuma pessoa de qualquer estado e condição que seja


faça contrato paliado, fingido ou fraudulento, em que se
cometa usura, emprestando dinheiro e deixando logo na
sua mão ou de algum terceiro certa quantidade ou outra
coisa equivalente, além da sorte principal [....] ou fazendo
escrituras ou assinados de maior quantia do que na verda-
de empresta [...]99

Caso esse tipo de contratação fosse denunciada e comprovada, o réu rece-


beria, além das penas aplicadas aos usurários, a pena de excomunhão, prevista
igualmente pelas constituições sinodais de Lisboa e Braga, como referenciado
em nota na obra. Não somente os contratantes estavam sujeitos às duras penas
acima declaradas, mas também todos aqueles que, tendo conhecimento da usura
paliada, atuassem como tabeliães, escrivães, notários ou testemunhas na realiza-
ção dos contratos. É interessante notar que, no que concerne à atuação de notá-
rios, tabeliães e testemunhas, encontramos o item no qual se faz o maior número
de referências a constituições sinodais anteriores, entre as quais: Guarda, Lisboa,
Braga e Portoalegre. Além dessas menções, há uma referência às Ordenações do
Reino, em seu título 67, final do parágrafo 8, em que se declara que os mercado-
res dependiam das afirmações dos tabeliães e das testemunhas para garantir que
receberiam pelos contratos firmados100. Todos esses avisos e normativas cons-
tituem provável testemunho da preocupação com a atuação desses grupos no

98 VIDE, Sebastião Monteiro. Constituições primeiras. Op. cit, p. 478.

99 Id. Ibid., p. 479

100 Codigo Philippino. Op. cit, livro 4, tit. 67, parágrafo 8, p. 878.

241
encobrimento das práticas usurárias, um esforço em reforçar a normativa para
coibir semelhantes práticas, mas igualmente um indício de que a demanda por
esses serviços e a sua recorrência eram provavelmente intensas.
Na época de elaboração do texto das Constituições, diversos tipos de contra-
tos já tinham sido identificados como possíveis meios de se encobrir a usura. As
Constituições mencionam explicitamente os seguintes contratos: os câmbios, os
de companhia ou sociedade, os de compra e venda, os penhores e os alugueis.
O título “das usuras paliadas” se encerra apontando para uma questão im-
portante: o foro misto da justiça em relação às práticas usurárias. Como acon-
tecia igualmente com alguns outros “pecados públicos”, o crime de usura podia
ser alvo de devassa e condenação tanto pelo eclesiástico quanto pela justiça civil.
Nesse ponto, as Constituições apresentam uma interessante distinção de atribui-
ções. Caso houvesse dúvida acerca da determinação da natureza de um contrato
como sendo ou não usurário no âmbito do direito, “a causa pertence só ao foro
eclesiástico”101. Isto é, o poder de determinar os tipos de contratos em que se
praticava usura pertenceria ao eclesiástico. Isso significa dizer que ao eclesiástico
caberia, em última análise, a delimitação do campo das relações lícitas ou ilícitas
para as atividades de crédito no período. É importante ressaltar que esse reco-
nhecimento foi mesmo registrado igualmente no texto das Ordenações Filipinas
em seu título 67, “dos contratos usurários”, parágrafo 9, em que se lê:

havendo alguns casos [...], em que se possa haver dúvida, se


são usurários, ou se se pode per direito levar usura, manda-
mos que se guarde sobre isso o que for achado per direito
canônico. Porque, pois é coisa que traz pecado e carrego de
consciência, convém acerca disso seguirmos e guardarmos o
direito canônico e as determinações da Santa madre Igreja102.

Nos casos, entretanto, em que o problema fosse apenas de determinar se de


fato houve ou não cobrança ou intenção de usura em tipos de contratos já co-
bertos pelo direito canônico, as causas, segundo o que determinam as Constitui-
ções, poderiam ser tratadas tanto pelo tribunal eclesiástico quanto pelo tribunal

101 VIDE, Sebastião Monteiro da. Constituições primeiras. Op. cit, p. 481.

102 Codigo Philippino…. Op. cit, livro 4, título 67, paragrafo 9, p. 878.

242
secular. Caso a devassa ou inquérito e processo se iniciasse no tribunal secular,
o vigário-geral ficava impedido de atuar, como determinava o texto em questão.
O problema das atividades usurárias, como apresentadas e delimitadas pelo
texto das Constituições, oferece, por conseguinte, um interessante estudo de caso
acerca das relações e entrecruzamentos entre os poderes civis e eclesiásticos no
período103. O título das Constituições que trata da questão da usura foi, sem dú-
vida, construído em intenso diálogo com a legislação civil, em especial com as
Ordenações Filipinas. Em certos trechos do mencionado título, essa relação é
direta e aparece explicitada para o leitor em referências distribuídas ao longo do
texto. De maneira interessante, encontramos essa referência logo no início do
título, quando da definição do delito da usura e os malefícios que esse causava
à república, bem como às almas. Ela aparece ainda no título acerca das usuras
paliadas, tanto no trecho que trata dos contratos paliados registrados pelos no-
tários e tabeliães, quanto nos momentos em que se discutem contratos paliados
envolvendo compra e venda, estes últimos amplamente discutidos igualmente
pelas Ordenações Filipinas104.
Ao construir os títulos “da usura” e “das usuras paliadas” no interior das
Constituições, Monteiro da Vide e seus colaboradores acionaram uma série de
referências sobre o tema que faziam parte de uma longa tradição de debates e
polêmicas acerca da legitimidade ou não de se receber de retorno mais do que se
havia emprestado. No tema da definição do delito e seus contornos, bem como
na indicação da obrigação de coibir e denunciar tais práticas como perniciosas
no espiritual e no temporal, foram utilizadas citações e anotações de trechos bí-
blicos, extratos clássicos da Suma Teológica de São Tomás de Aquino, tratados de
jesuítas e dominicanos, considerações do famoso Manual de Confessores de Mar-
tim de Azpilcueta, bem como legislação eclesiástica e civil. No âmbito da delimi-
tação processual e das punições recorreu-se prioritariamente ao manancial das
constituições sinodais anteriores, em especial as constituições de Lisboa e La-
mego, havendo também a utilização das de Braga e da Guarda. No que concerne
ao problema dos contratos usurários encobertos, paliados, as fontes foram mais
ricas e variadas, sendo destaque, além das constituições e dos tratados morais

103 Sobre essa questão ver: LAGE, Lana. As Constituições da Bahia e a reforma tridentina do clero no Brasil. Op. cit, em especial p. 151.

104 Codigo Philippino…. Op. cit, livro 4, título 67, p. 871.

243
jesuíticos e dominicanos, os decretos papais105. Além das citações explícitas aqui
mencionadas, vale lembrar que o conjunto de referências utilizadas na elabora-
ção dos mencionados títulos recorreu provavelmente a um diálogo mais amplo e
mais difícil de ser mapeado, seja com as obras que aparecem nas notas, seja com
outros textos que figuram de maneira indireta nesse debate.
Como afirma Avanete Pereira, “as Constituições, uma vez em vigor, passa-
ram a ter reflexos sobre fazeres cotidianos, ligados à vida da cidade e de seus
moradores, em aspectos que extrapolavam a crença e o fervor religioso e atin-
giam a própria reprodução da vida material”106. A proposta de doutrinação e fisca-
lização das relações de troca e, em especial dos contratos de mútuo, constituem
certamente um bom exemplo da incidência dos debates religiosos, em aspectos
morais, sobre o cotidiano de leigos e religiosos.
O problema das práticas consideradas usurárias e da legislação que procu-
rou controlar tais práticas, ou mesmo coibi-las por completo, gerou inúmeros
debates entre economistas, sociólogos e historiadores107. Para Conrad Moehlman,
a condenação à usura nas sociedades cristãs, fossem essas católicas ou protestan-
tes, teria sofrido uma diminuição a partir da segunda metade do século XVII,
sendo a usura, entretanto, uma atividade ainda marcada por sentimentos nega-
tivos mesmo em pleno século XVIII108. Uma das abordagens clássicas da questão,
elaborada por Romand de Roover nos anos 50, advoga que as proibições com
relação aos empréstimos a juros – constituídas na Europa Cristã, de maneira for-
mal a partir das reflexões da escolástica e revitalizadas pela chamada escola de Sa-
lamanca no século XVI – teriam progressivamente ruído igualmente a partir do
século XVII, mas mais especialmente do século seguinte, frente ao número cada
vez maior de exceções que a prática mercantil obrigava os teóricos e canonistas a

105 Entre os decretos incorporados explicitamente ao texto, encontramos o do papa Pio V, que condenava os chamados câmbios secos, nos quais letras

eram emitidas para serem resgatadas em lugares diversos, mas que nunca eram emitidos em seus lugares de destino. VIDE, Sebastião Monteiro da,

Constituições primeiras. Op. cit, p. 479.

106 SOUSA, Avanete Pereira. Poder local e poder ecclesiastico na Bahia setecentista: os matizes de um convivência. In FEITLER, Bruno e SOUZA,

Evergton Sales, A Igreja no Brasil: normas e práticas…. Op. cit, p. 133.

107 Para um debate sobre a historiografia da usura e uma crítica aos seus pressupostos dominantes com relação à legislação contra a usura ver: TODES-

CHINI, Gioacomo. Usury in Christian Middle Ages: a Reconsideration of the Historiographical Tradition (1949-2010). In: AMMANNATI, Francesco.

Religion and religious institutions in the european economy, 1000-18000. Firenze: Firenze University Press, 2012, pp 119-130.

108 MOEHLMAN, Conrad Henry. The Cristianization of interest. Church History. vol. 3, n. 1, March, 1934, pp. 3-15.

244
incorporarem109. Em estudo mais recente, Clyde Reed e Cliff Bekar, buscaram es-
tabelecer uma relação entre oferta de crédito disponível e o recrudescimento ou a
flexibilização da legislação que proibia a usura entre os séculos XII e XIX110. No que
concerne ao período moderno, seu estudo parece apontar para uma crescente,
ainda que gradual, flexibilização a partir dos anos 1600.
Seja como for, a condenação das práticas consideradas usurárias, parece ter
estado presente de maneira significativa no conjunto normativo constituído pe-
las Constituições da Bahia e pelo Regimento do Auditório Eclesiástico, elaborados
e aprovados sob a liderança do arcebispo Monteiro da Vide no início do século
XVIII. Em meio aos apelos do texto normativo em prol da retificação dos com-
portamentos morais de clérigos e leigos, por meio de referências que articulavam
desde o discurso bíblico até a legislação civil, bem como tratadistas e decretos
papais, a usura permanece como a “roubadora das almas”, deformidade e malí-
cia que prejudicava o bem espiritual e temporal dos homens e causava grande
dano à república cristã. Quanto à aplicação desse corpo normativo na América
portuguesa e no Atlântico, ainda seriam necessárias pesquisas mais sistemáticas
nos arquivos eclesiásticos, na documentação de visitas e devassas, para uma ava-
liação mais precisa111. Essa avaliação, entretanto, demandaria inclusive a compara-
ção com períodos anteriores. Não seria impossível encontrar, entretanto, após a
promulgação e divulgação das Constituições baianas, um ânimo reacendido dos
agentes da Igreja no sentido de perscrutar e combater a malícia da usura, entre
outros pecados públicos. Nesse sentido, podemos dizer que não apenas a oferta
de crédito pode ter influenciado o fluxo das tendências de facilitação ou proibi-

109 ROOVER, Raymond de. Scholastic Economics: Survival and Lasting Influence from the Sixteenth Century to Adam Smith. The Quarterly Journal

of Economics. vol. 69, n. 2, May, 1955, pp 161-190.

110 REED, Clyde G. e BEKAR, Cliff T. Religious Prohibition against Usury. Explanations in Economic History. 40, 2003, pp. 347-368. Para os autores,

três momentos de oscilação poderiam ser demarcados: 1) 1350-1500, as proibições com relação à usura foram relaxadas e a instituição dos Monti di

pietà criada e regulamentada; 2) 1500-1600, a Igreja retorna a sua postura tradicional de condenação; 3) 1600-1830, progressiva flexibilização até a Igreja

instruir os confessores a não mais perseguirem aqueles que emprestavam dinheiro a juros (dentro dos limites legais) em 1830.

111 Algumas pesquisas apontam no sentido da abertura de devassas ligadas a atividades usurárias na América portuguesa. Júnia Furtado, por exemplo,

encontrou para a região das Minas Gerais setecentista um percentual de 45% dos comerciantes processados nas devassas ecclesiásticas, acusados de

usura. FURTADO, Júnia Ferreira. Homens de Negócio: a interiorização da metropole e do comercio nas Minas setecentistas. São Paulo: Hucitec, 2006,

p. 129. Para o caso português, alguns trabalhos apontam o problema da usura como um dos focos das visitas e devassas pastorais, ver entre outros:

SOARES, Antonio Franquelim Sampaio Neiva. A Arquidiocese de Braga no século XVII: sociedade e mentalidades pelas visitações pastorais (1550-1700).

Braga: Universidade do Minho e Governo Civil de Braga, 1997; LUÍS, Maria dos Anjos dos Santos Fernandes. Visitas pastoriais ao conselho da Lourinhã

no século XVII. Lusitana Sacra, 2a série, t. 23, p. 185, jan.-jul., 2011.

245
ção da usura no período moderno, como advogam Reed e Bekar, mas também
os contextos de atuação das autoridades religiosas e o seu pendor legislativo e
processual, além do clamor e da murmuração das populações locais.

246
A PROCISSÃO DE CORPUS CHRISTI
NO IMPÉRIO PORTUGUÊS:
discursos sobre as “faltas” e o tempo (século XVIII)

Beatriz Catão Cruz Santos

O caso de Francisco Cordovil de Siqueira e Mello, cavaleiro da Ordem de


Cristo e provedor da Fazenda Real do Rio de Janeiro, que “faltou” na procissão
de Corpus Christi já foi tema de análise em ocasiões anteriores. As faltas refe-
rem-se àquelas ações cometidas, por descumprimento de uma obrigação, que
produzem uma falha. Este sentido coevo, apreendido pelo dicionarista Rafael
Bluteau aproxima-se da culpa e, no caso do ritual que analisamos, aponta para
as ausências na procissão, mas não exclusivamente.1 As faltas, praticadas por
diferentes agentes e grupos sociais, não devem ser consideradas como casos
isolados ou conjunturais, mas dados constitutivos de um evento social que era
regulamentado pela administração central, local e pelos poderes episcopais2.
O caso é retomado em razão não somente do número de registros localizados
em diferentes acervos brasileiros e portugueses, mas particularmente de um
fundo das ordens militares do Arquivo Nacional da Torre do Tombo. Nele, há
uma correspondência entre autoridades religiosas e seculares que circula no
império, na qual é possível identificar uma discussão sobre as questões de pre-
cedência e referências de tempo na procissão. Nessa documentação, o tempo se
apresenta simultaneamente como remissão a tempos passados, coevos e como
ritmo impresso na procissão.

1 “Falta – carência, ou indigência de alguma cousa (...) falta que se comete, não cumprindo com sua obrigação. Peccatum, delictum, i. Neut. Cic. Cometer

uma falta. Culpam comittere. Cic. Noxam admittere. Quintil. Peccare, delinquere. Cic. As faltas, que cometeram na administração da justiça. Monarch.

Lusit. Tom. 4. 163”; Falto – Necessitado. Falto de alguma cousa (...). Defeituoso, Não inteiro. Impefectus, ou mancus (...) BLUTEAU, Raphael. Vocabulario

portuguez e latino. Coimbra: Collegio das Artes da Companhia de Jesu, 1712-1728. Sobre faltas diversas cometidas na procissão de Corpus Christi:

SANTOS, Beatriz Catão Cruz. Corpo e fragmento: o discurso do bispado sobre as faltas no Corpo de Deus (séc. XVIII). In: ANDRADE, Marta Mega;

SEDREZ, Lise Fernanda; MARTINS, William de Souza. (Org.). Corpo: Sujeito e objeto. Rio de Janeiro: Ponteio, 2012, p. 181-202.

2 SANTOS, Beatriz Catão Cruz. Corpo e fragmento: o discurso do bispado sobre as faltas no Corpo de Deus (séc. XVIII). Op. cit

247
Na documentação selecionada, que relaciona as ordens militares à Corpus
Christi, em diferentes cidades do reino e seus domínios – Lisboa, Porto, Évo-
ra, Braga, Rio de Janeiro e Pará – em datas não sequenciais no século XVIII,
há conflitos de precedência diversos, que envolvem o clero (secular e regular),
as câmaras municipais e as ordens militares, mas destacam-se aqueles entre as
ordens militares e o clero.3 Fernanda Olival, referência inescapável sobre as or-
dens militares de Portugal na época moderna,4 foi quem primeiro analisou esta
documentação, destacando o papel dessas instituições (Ordem de Avis, Ordem
de Cristo e Ordem de Santiago de Espada) entre 1641 e 1789 e, ainda, indicando
a recorrência desses conflitos na procissão. Para a autora, as ordens militares
contribuem para a consolidação do Estado Moderno por intermédio da “ideo-
logia de serviço/recompensa, os laços múltiplos de dependência e valias, bem
como o poder da Monarquia sobre amplos recursos, de diversificada natureza”.5
A autora demonstra como o legado medieval dessas instituições é atualizado na
época moderna: o referente militar é atenuado, mas se mantém uma certa tra-
dição cavalheiresca – a do cavaleiro combatente contra o infiel. Segundo Olival,
apesar de algumas medidas efetuadas por D. Manuel (1595-1521) no sentido
de estender as comendas aqueles que exercessem serviços militares em África e
das bulas papais expedidas por Pio V e Gregório III, que reforçavam a extensão
geográfica das concessões e a ideia de serviço, a sua eficácia é relativa. Mas vale
sublinhar, havia uma tradição “reconfigurada”: “a ideia de que o serviço feito à
Monarquia, designadamente o dos campos de batalha, era o meio adequado de
obter hábitos e proventos das Ordens Militares. Ou seja, em última análise, estas
deviam recompensar serviços feitos à Coroa”. No século XVI, o cavaleiro era o
bom servidor da Monarquia. Contudo, nesta época, agregava-se a esse valor de
longa data o critério de pureza de sangue de forma que entre 1570, data da bula
que introduz o preceito, e 1773, “a insígnia de uma Ordem Militar no peito pro-

3 ANTT, Mesa de Consciência e Ordens OM/PD, M˚24. Na sequência da documentação que analiso, entre as fl .1 e 58: 1742, 1743, 1782, 1743, 1739, s.s.

As folhas a que me refiro são as imagens reproduzidas por que a documentação não é numerada originalmente.

4 OLIVAL, Fernanda. As Ordens Militares e o Estado Moderno. Honra, Mercê e Venalidade em Portugal (1641-1789). Lisboa: Estar, 2001. p. 7. A autora

adota como cronologia o período entre 1641 e 1789, tomando como referência a Restauração, como reconfiguração da nobreza e do centro político e,

ao final, a primeira tentativa de reforma das Ordens Militares pela carta de lei mariana.

5 Id. ibid., p.5. A autora indica que as três Ordens Militares (Avis, Cristo e Santiago) foram anexadas pela Monarquia portuguesa em meados do século

XVI e, que seu trabalho privilegia a documentação relativa à Ordem de Cristo. Idem. ibidem. p. 42.

248
curava veicular esse imaginário de servidor destacado do rei, limpo de sangue e
com patrimônio suficiente para não sujar as mãos com trabalho”.6 Considerando
que nossa análise incide sobre os rituais – uma forma de ação simbólica7 – é váli-
do acrescentar mudanças nas práticas dos cavaleiros e comendadores das ordens
militares, assim como mudanças de significado no uso das insígnias durante os
séculos XVII e XVIII. Segundo Olival, a despeito do topos da literatura identifi-
car uma decadência dessas instituições, sua importância é atualizada pelos cava-
leiros e pela Coroa, de forma que elas “tornaram-se em mecanismos de cotação
de personagens” no teatro da Corte.8 Neste sentido, é possível compreender, em
certas conjunturas, a ausência de serviço militar efetivo dos candidatos, mas a
participação em determinadas cerimônias, como Corpus Christi, e a regulamen-
tação de outras, como as cerimônias de entrada nos institutos, a comunhão e
confissão anual, tornadas obrigatórias aos cavaleiros.9

O caso de Francisco Cordovil de Siqueira e Mello

Provedor da Fazenda Real entre 1736 e 1794, com atuação na Freguesia de


Meriti, este cavaleiro da Ordem de Cristo perturbou a cena política no Rio de
Janeiro do início dos anos quarenta, tanto que é possível localizar informações

6 Id. ibid., p. 56. A bula Ad Regie Maiestatis, de Pio V, em 18 de agosto de 1570, é o documento que introduz o critério de pureza de sangue e exclui os

filhos e netos de ofícios mecânicos. 1773 é provavelmente a lei que proscreve a distinção de cristãos-novos e cristãos-velhos, de 25 de maio de 1773.

Colleção da Legislação Portuguesa desde a última compilação das Ordenações, redigida pelo desembargador Antonio delgado da Silva. Lisboa: Tipografia

Maigrense, 1830; Rio de Janeiro: Tipografia Nacional, 1833, v-2 (1763-1774). O estatuto de sangue presente nas sociedades do Antigo Regime e, em

particular, no Império português produzia um estigma baseado na ascendência, de caráter proto-racial, que garantia os privilégios da nobreza formada

por cristãos velhos. O estatuto limitava o acesso à cargos públicos, eclesiásticos e a títulos honoríficos excluindo mouros, judeus, ciganos, indígenas e

descendentes de africanos. Quando foram revogados na época de Pombal, as restrições seriam mantidas para os descendentes de africanos. MATTOS,

Hebe de Castro. Escravidão e cidadania no Brasil monárquico. Rio de Janeiro: Zahar, 2000, p.14-15.

7 Para análise das festas, em particular, da procissão do Corpo de Deus, tenho feito uso de diversos autores da teoria antropológica dos rituais. Para este

texto, em particular: MAUSS, Marcel. Ensaio sobre a dádiva. Forma e razão da troca nas sociedades arcaicas (1924). In: Sociologia e antropologia. São Paulo:

Editora Universidade de São Paulo, 1974; GEERTZ, Clifford. Pessoa, tempo e conduta em Bali In: A interpretação das culturas. Rio de Janeiro: LTC, 2011.

8 OLIVAL, Fernanda. As ordens militares. Op. cit p. 452.

9 Olival identifica os acertos normativos por meio dos quais se mantiveram o apego social às Ordens Militares: no caso das cerimônias de entradas, os

Capítulos Gerais de 1619, que tenderiam a se tornar mais efetivas no século XVIII, e, para a obrigação da confissão e comunhão anual, o Capítulo geral

da Ordem de Cristo por D. Sebastião, em 1573. Id. Ibid., p. 449; 463.

249
sobre ele em diversos arquivos.10 Era filho de Bartolomeu Cordovil de Siqueira
(†1738) e Margarida Pimenta de Melo. Fora batizado na capela da fazenda pater-
na em 1707, sendo padrinho D. Fernando Martins Mascarenhas de Alencastro,
o governador do Rio de Janeiro e Josefa Pimenta de Macedo. Seu pai adquirira
a propriedade do ofício de provedor da Fazenda Real, contador e vedor geral da
gente de guerra da Capitania do Rio de Janeiro em 1716, exercendo-o com uma
interrupção de três anos até a sua morte. Em 1736, o pai solicita, em função da
idade avançada e de achaques, a partilha do ofício com seu filho primogêni-
to. Portanto, Francisco Cordovil, bacharel formado em Leis na Universidade de
Coimbra, torna-se Provedor da Fazenda Real em aprendizagem até 1738, quan-
do da morte de seu pai, que deixa em testamento a vontade de que seu filho
seguisse o ofício. Neste ano, Francisco solicita uma série de documentos para,
provavelmente, ter acesso à herança paterna.11 A carta de propriedade do ofício
de provedor da Fazenda Real seria recebida por Francisco somente em 1743,
precedida pelo alvará de renúncia e sentença de justificação.12
Bartolomeu pagou pela propriedade do ofício de provedor da Fazenda Real
adquirida em 1716 a quantia de 410 reais, em 28 de janeiro do ano seguinte.
Esta pertencera a Francisco Gurgel do Amaral nos três anos antecedentes, que
conseguiu a licença para renunciá-la e colocá-la à venda em outubro de 1716.
Na Carta (ou decreto) régio de 16 de outubro de 1716, ficam evidenciados os
custos enfrentados por Francisco Gurgel do Amaral, as testemunhas envolvidas
e a indicação de que Bartolomeu estava “habilitado e ser capaz”.13 O cargo de

10 Já localizei informações sobre Cordovil nos seguintes arquivos: ANTT, AHU, ACMRJ. A data inicial de exercício no cargo toma como referência a

narrativa dos conflitos entre os comerciantes da praça do Rio de Janeiro e os arrematadores de impostos, que envolviam a provedoria da fazenda nos

anos 20 e 30, quando ocupada por Bartolomeu e seu filho. FRAGOSO, João. Afogando em nomes: temas e experiências em história econômica. Topoi.

Rio de Janeiro, p. 41-70, dezembro 2002. Sobre a querela entre o provedor da Fazenda Real e os vereadores entre as décadas de 30 e 40: BICALHO, Maria

Fernanda. A cidade e o império: o Rio de Janeiro no século XVIII. Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, 2003, p. 231-238.

11 Os dados sobre família, formação e o ofício da provedoria da fazenda real foram extraídos de documentos que consultei no mês de agosto de 2014:

ANTT, Cartório dos Jesuítas, mç. 51, n.º 16; n.º 19; n.º 30; n.º 45; n.º 39; n.º 40; n.º 41; n.º 4; n.º 43; n.º 44; n.º 46. Até o momento, não se sabe a data

de criação da Provedoria da Fazenda da Capitania do Rio de Janeiro. O primeiro provimento de Provedor que encontrado é de 1635. Agradeço estes

dados à Roberta Stumpf.

12 ANTT, Chancelaria D. João V, Liv 104 fl. 155. A data precisa é:14/03/1743. Chancelaria D. João V

Liv 102 f. 37, 10/1/ 1741. Estes como outros documentos da Chancelaria me foram cedidos por Roberta Stumpf. As sentenças de justificação eram

documentos entregues pelo Juízo das Justificações no qual corriam os processos dos que queriam se habilitar aos bens dos falecidos no Ultramar e que

haviam estado ao serviço do rei.

13 ANTT, Cartório dos Jesuítas, mç. 51, n.º 43. A expressão entre aspas também aparece em; ANTT, Chancelaria Régia, Chancelaria D. João V, Liv 44

f. 321, 28 /1/1717.

250
provedor da Fazenda Real era honorável,14 mas nada comparável aos ofícios
da Justiça. Era remunerado, mas o diferencial ocorria com os emolumentos,
pagos por serviços. As funções eram variáveis conforme a região e sua precisão
ainda demanda pesquisa, pois não havia um regimento próprio. Como pude-
mos observar no caso de Bartolomeu, podia ser vendível, mas também eram
providos por nomeação. Era um cargo tendencialmente transmissível, ou seja,
a venda não se dava entre particulares. Tanto é, que a renúncia de Francisco
Gurgel do Amaral, a compra por Bartolomeu Cordovil de Siqueira e a transmis-
são para seu filho dependem da anuência régia. Num primeiro momento, pai e
filho exerceram juntos o cargo, pois Bartolomeu associou as razões de saúde ao
argumento da aprendizagem. Este, a exemplo dos ofícios mecânicos, era comu-
mente utilizado, mas duas pessoas exercendo um único cargo era excepcional.
Enfim, o cargo de provedor da fazenda podia ser temporário ou vitalício. No
século XVIII, a concessão em propriedade de diversos ofícios ainda vigorava,
apesar de uma tendência à provisão temporária no período pombalino. Na épo-
ca, associava-se a propriedade dos ofícios à eficácia dos serviços. A vantagem
estava associada à continuidade da administração, que podia estar relacionada
a uma tradição familiar no serviço ‘público’ ou a virtude dos ‘grandes’.15 Por-
tanto, devemos nos despir das percepções atuais, racionalistas, com relação aos
cargos públicos para compreender os do Antigo Regime.
Bartolomeu era dono de uma fábrica de açúcar na Freguesia de Nossa Se-
nhora da Apresentação (orago de Irajá), onde possuía um oratório com “uso por
faculdade”, ou seja, com permissão para realizar sacramentos.16 A família Cor-
dovil, que daria seu nome ao bairro hoje situado na zona norte da cidade do Rio
de Janeiro, teria tido o comando da Provedoria Real da Fazenda nos cinquenta
anos que seguiram as invasões dos franceses (1710).17 Este dado pode ser am-
14 STUMPF, Roberta Giannubilo. Os provimentos de ofícios: a questão da propriedade no Antigo Regime português. Topoi. Revista de História, Rio de

Janeiro, v. 15, n. 29, p. 612-634, jul./dez. 2014. Disponível em: <www.revistatopoi.org>.

15 Grande parte da reflexão deste parágrafo deve-se à informações fornecidas por Roberta Stumpf, e à consulta a seu artigo. Id. Ibid.

16 ACMRJ, ARAÚJO, José de Souza Pizarro e (monsenhor). Livro de Visitas pastorais, do anos de 1794, já transcritas.

17 As informações sobre o predomínio da família na Provedoria da Fazenda Real, um histórico e função da mesma repartição e sua vigência no Rio de

Janeiro (1566-1798) podem ser encontradas em: PAN, 1:162 e 222, e 5:65 e 211 – RIHGB, 4:259 – Indice Chronologico, 62 e 117. http://www.receita.

fazenda.gov.br/Memoria/administracao/reparticoes/colonia/provedfazreal.asp.Bartolo-meu de Sequeira Cordovil permanece no cargo 17 anos, dois

meses e quatorze dias, de um exercício dado entre 10/07/1717 e 25/5/1719. É preso pelo rei e só retorna em 4/9/1722, permanecendo no cargo até

3/1/1738. “Certidão dos anos que serviu de provedor a contador da Fazenda Real e vedor geral no Rio de Janeiro, Bartolomeu de Sequeira Cordovil”,

251
pliado se levarmos em conta que a família Cordovil se insere na nobreza da terra
fluminense, que teria tido um papel destacado nas transformações da economia
do centro-sul entre fins do século XVII e o século XVIII.18
Mas afinal em que consistiu a falta de Francisco Cordovil? No ano de 1742,
há registro de uma disputa de precedência em dia de Corpus Christi entre os ca-
valeiros das ordens militares e o bispado no Rio de Janeiro, por conta da posição
que aqueles queriam ocupar na Procissão.19 Segundo um dos registros, Manoel
Freire Batalha20, o Vigário-Geral, que governava a procissão teria se dirigido aos
cavaleiros como previa o protocolo:

Vossa mercês querem-nos fazer a honra de acompanhar


esta Procissão? Respondendo alguns deles que para isso vi-
nham por ter sua obrigação, se tornou a dizer o dito minis-
tro que se servissem ir no seu lugar que sua Excelentíssima
Reverendíssima lhes destinava e perguntando-lhe qual era
lhe respondeu, que era entre o clero sem outra distinção,
sem diferença, o que agradeceram os primeiros devendo
ser lugar de muita honra o de irem entre os sacerdotes, e

13/1/1738, data de sua morte. ANTT, Cartório dos Jesuítas, mç. 51, n.º 46. Quando toma posse, uma das testemunhas é seu parente, também provedor

da fazenda. ANTT, Cartório dos Jesuítas, mç. 51, n.º 43 “Certidão da mercê que fez sua majestade a Bartolomeu de Sequeira Cordovil, provedor da Real

Fazenda do Rio de Janeiro”, 15/1/1738. Francisco Cordovil permanece entre 23/2/1736 e 3/1/1738, tendo como mestre seu pai e retornará depois de

1738, mas não temos acesso a carta de mercê ou outro documento que assegure seu pleito. ANTT, Cartório dos Jesuítas, mç. 51, n.º 16 “Certidão dos

anos que serviu de provedor a contador da Fazenda Real e vedor geral no Rio de Janeiro, Bartolomeu de Sequeira Cordovil”, 13/1/1738.

18 FRAGOSO, João, Afogando em nomes. Op. cit especialm. p. 54, 55, 59. Tratei do assunto com mais vagar em: SANTOS, Beatriz Catão Cruz, Corpo

e fragmento. Op. cit, p.183.

19 Há vários casos deste gênero. Olival faz uma súmula destes entre os cavaleiros e o clero. OLIVAL, Fernanda, As ordens militares. Op. cit p. 468-475.

20 Encontramos em Pizarro as informações mais detalhadas sobre Manoel Freire Batalha, que já ocupava as Varas de Vigário-Geral e Juiz dos Resíduos e

dos Casamentos quando foi nomeado Mestre-Escola em 2/7/1742. Governou o bispado no lugar de D. Frei João da Cruz, quando este esteve em Minas.

Foi visitador da Comarca de Rio das Mortes em 1730 e 1746, em dois bispados diferentes. Foi nomeado por D. Antônio do Desterro procurador da

Mitra junto ao rei, exercendo a mesma função pelo Cabido. Garantiu nesta incumbência “o aumento das côngruas dos Cônegos, Beneficiados Capelães

e oficiais da Sé: o vencimentos da côngrua de um ano ao capitular falecido: a nova criação de três capelanias mais para o serviço do coro, e ultimamente

da conezia patriarcal”. Fornece à Catedral ornamentos e alfaias necessários ao culto, além de uma banqueta de prata para o altar-mor e móveis. Por seu

intermédio, a Sé passa a ter as horas canônicas reguladas por um relógio, que se situava em torre defronte à Igreja do Rosário. É nomeado Deão em

21/2/1756, tomando posse em 13/6 do mesmo ano. Foi protonorário apostólico, comissário do Santo Ofício da Inquisição e da Bula da Cruzada. Tendo

falecido em Lisboa, não deixou registro desta circunstancia nos livros da Irmandade de São Pedro, do qual fazia parte, nem no do Cabido. A julgar pelos

relatos de Pizarro, teve especial zelo com o Cabido. ARAÚJO, João de Souza Pizarro. Memórias Histórias do Rio de Janeiro. Tomo IV, p. 105-107. https://

archive.org/stream/memoriashistoric06piza#page/n5/mode/2up Consultado em 10/10/2015. Segundo Rubert, que consulta as Memórias de Pizarro,

Manoel Freire Batalha veio a falecer em Lisboa em 1764.” RUBERT, Arlindo. A Igreja no Brasil: Expansão territorial e absolutismo estatal (1700-1822).

Santa Maria: Editora Pallotti, 1988. p. 296.

252
dando mais alguns passos o referido ministro a perguntar a
outros que não tinham ouvido por se acharem mais longe,
se estavam pelo acordo. Dos primeiros saiu logo o Cavaleiro
Francisco de Sequeira Cordovil Mello, que o seu lugar era
atrás do clero, como se costumava em Lisboa, e que antes se
iria, e largaria o Manto do que ir em outro lugar, e então se
disse o dito R. Dr. Vigário Geral que fizessem o que quises-
sem por que sem ele se podia fazer a procissão, a qual logo
deixaram exceto o cavaleiro João Manoel Salgado que foi
entre os Sacerdotes da freguesia da Sé.21

Como foi possível observar, a partir da análise da documentação do episco-


pado do Rio de Janeiro, sobretudo durante os governos de D. frei João da Cruz
(1740-1745) e de D. Antônio do Desterro (1745-1773), as “faltas”, as “desordens”
em Corpus Christi são cometidas por diferentes agentes – o Cabido eclesiásti-
co, o Senado da Câmara, as confrarias, as irmandades, os religiosos das Ordens
regulares, um bispo e os cavaleiros das ordens militares.22 O caso de Cordovil
se destaca porque é recorrente na documentação do bispado, localizável em di-
ferentes acervos e está associado a outras faltas de um indivíduo, que tem uma
posição especular numa situação pública. Antes de 1742, data do registro que ci-
tamos e que remete às disputas de precedência ocorridas no Rio de Janeiro entre
1742 e 1743, Cordovil já havia tido problemas com o governo da cidade em fun-
ção de uma construção irregular na sua moradia, situada na praça central do Rio
de Janeiro. Em Corpus Christi, especificamente, o cavaleiro fica à janela quando
passa a procissão – um comportamento repreensível em diversas circunscrições
eclesiásticas do Império português, num ritual que supunha acompanhamento
e manifesta devoção. Quando advertido, à diferença de outras pessoas seculares
que o acompanhavam, mantém sua posição, mofa da censura e ainda questiona
a excomunhão ameaçada pelo representante do bispado.23

21 ANTT, Mesa de Consciência e Ordens OM/PD, M˚ 24 fl. 5-6 a data do documento é 24/05/1742. A folha indicada é da imagem, pois a documentação

não é numerada. João Manuel Salgado é cavaleiro da Ordem de Cristo e escrivão da Câmara eclesiástica do bispado do Rio de Janeiro, conforme certidão

que atesta a situação narrada.

22 Para a análise destes casos selecionados entre 1681 e 1809: SANTOS, Beatriz Catão Cruz. Corpo e fragmento: o discurso do bispado sobre as faltas

no Corpo de Deus (séc. XVIII).

23 Para um detalhamento desta situação: Id. ibid. Na documentação principal que utilizo neste texto, encontra-se também o detalhamento desta

253
Nesse momento, quero por em foco a disputa de precedência, reconhecen-
do que as diferentes perturbações causadas por Cordovil foram punidas tanto
pelo representante do bispado, quanto pelo monarca.24 A disputa dizia respeito à
posição a ser ocupada pelos cavaleiros na ordem da procissão, assunto que gerou
diversos papéis na Mesa de Consciência e Ordens. Ordem aponta para múltiplos
sentidos e, como demonstrou Georges Duby, um conceito que se transforma
na longa duração.25 Lembremos pelo menos dois deles para o nosso contexto:
aquele que diz respeito à procissão de Corpus Christi como representação da
sociedade das três ordens, como tradução da Criação de Deus, que é atualizada
na época moderna pelos clérigos e, numa acepção mais restrita de ordo, como
“descrição de um ato litúrgico”.26
Interessante considerar aqueles elementos perceptíveis na citação, a come-
çar pelo caráter polêmico da posição a ser ocupada pelos cavaleiros, pela presen-
ça da noção de honra entre os mesmos, que aparece identificada a irem “entre os
sacerdotes”, pela posição dissonante de Cordovil, que remete à procissão de Cor-
pus Christi de Lisboa como modelo para o Rio de Janeiro, para fazer valer uma
posição “atrás do clero”, senão “largaria o Manto”, ameaçando despojar-se deste
que era um signo de identidade e distinção dos cavaleiros das ordens militares.27

história: ANTT, Mesa de Consciência e Ordens OM/PD, M˚ 24 fl 54-55. Localizei uma denúncia contra Francisco Cordovil à Inquisição. No entanto,

como não podia garantir ser contra o mesmo, preferi não a incluir na análise: ANTT, Tribunal do Santo Ofício, Inquisição de Lisboa, proc. 17358.

24 Assento que Sua Excelência Reverendíssima mandou fazer (...) os Reverendos Ministros e Doutores na junta que Se fes sobre a censura (...) Francisco

Cordovil de Siqueira e Mello [1742], ACMRJ. Cód. E-236, Pastorais e Editais 1742-1838, L.1, Fol.7. Copia da carta e ordem que Sua Magestade escreveo

ao Governador para Reprehender ao Provedor da fazenda e mandar prender pela desattenção que fés ao Senhor Bispo na Procissão de Corpo de Deos

[1747], ACMRJ. Cód. E-278, Ordens régias 1681-1809, L.1, Fol.172V.

25 Para compreender as obras de Gerardo de Cambrai e Aldaberão de Laon, os registros mais antigos da visão trifuncional da sociedade, Georges Duby

faz uma história do termo ordo, escolhido em latim para traduzir o texto das epístolas de São Paulo. Ordo apresentava dois significados: o primeiro

era uma ordenação, uma inscrição que conferia ao indivíduo um estatuto. O segundo era a organização justa e boa do universo. Cícero no seu tratado

Das funções, fala assim da “ordem das coisas” etc, donde, Georges Duby indica uma ordenação anterior que precede as palavras e os homens. A palavra

teria entrado tal-qual na patrística latina e em especial no pensamento de Gregório e Agostinho, em quem Gerardo e Aldaberão dizem ter se inspirado.

DUBY, Georges. As três ordens ou o imaginário do feudalismo. Lisboa: Estampa, 1982, p.93-95.

26 HESPANHA, António Manuel. Imbecillitas. As bem-aventuranças da inferioridade nas sociedades do Antigo Regime. São Paulo, Annablume, 2010.

p.47-67; IOGNA-PRAT, Dominique. Ordens(ns) In: LE GOFF, Jacques & SCHMITT, Jean-Claude. Dicionário Temático do Ocidente Medieval. São

Paulo: Edusc, 2006, p.310. SANTOS, Beatriz Catão Cruz. Os senhores do tempo: a intervenção do bispado na procissão de Corpus Christi no século

XVIII. Tempo. Revista do Departamento de História da UFF. Niterói, v. 16, p. 165-190, 2012.

27 Para uma análise do significado do manto branco entre os cavaleiros das Ordens Militares na Europa Ocidental desde a Idade Média até o século

XVIII: OLIVAL, Fernanda. As ordens militares. Op. cit, p. 462-463. Resumidamente, segundo Olival, era considerado um atributo essencial, que os

identificava publicamente até a sepultura.

254
Neste ponto, pode-se lembrar, que a procissão é um reduto de representação
pública.28 Quando os cavaleiros decidem “largar o manto” ou, em outra versão
do mesmo episódio, “saírem-se da dita procissão, e despirem-se das insígnias
da Ordem, indo-se uns para suas Casas, e outros acompanharem a procissão
fora dela, Como particulares”29 expressavam sua insatisfação, sua desonra. Além
disso, cumpre sublinhar, promoviam um recuo ao privado.30 Lembremos que em
função do seu status cumpria aos cavaleiros um lugar de acompanhamento do
rei e, simultaneamente, de ordem privilegiada.31
O caráter polêmico da posição a ser ocupada pelos cavaleiros também apon-
ta para um procedimento da Mesa de Consciência e das Ordens, pois isto que
chamamos o “caso Cordovil”, entre outras questões de precedência, desencadeia
uma série de consultas sobre a posição dos cavaleiros das ordens militares na
procissão em diversas cidades/dioceses do Império português. Neste sentido, a
história desse tribunal régio é considerada.
A Mesa da Consciência foi criada por D. João III (1532) com o objetivo de
tratar das matérias que tocassem a “consciência” do monarca. Em 1551, os mes-

28 Para a história da representatividade pública da soberania, que antecede uma esfera pública burguesa: HABERMAS, Jürgen. Mudança estrutural da

esfera pública: investigações quanto a uma categoria da sociedade burguesa. Rio de Janeiro: Tempo Brasileiro, 1984, p.13-27. Interessante a lembrança que

o autor faz acerca da mudança do conceito de ‘representação’ sofreu com a concepção cristã da encarnação e do corpo místico. Torna-se presentificação.

p. 291(nota 10). A partir da Eucaristia e de seu entendimento por católicos e protestantes, Gumbrecht estabelece distinções entre celebração/comemo-

ração, “produção de presença”/representação, que fiz uso na análise da festa de Corpus Christi. GUMBRECHT, Hans Ulrich. Epiphany of Form. On the

Beauty of Team Sports. Stanford: Stanford University Press, p. 523. SANTOS, Beatriz Catão Cruz. O Corpo de Deus na América; a procissão de Corpus

Christi nas cidades da América portuguesa – século XVIII. São Paulo: Annablume, 2005. p. 28

29 ANTT, Mesa de Consciência e Ordens OM/PD, M˚ 24 fl. 28

30 De acordo com Habermas, na Idade Média, uma esfera pública separada de uma privada não podia ser comprovada sociologicamente. Só na segunda

metade do século XVI, aparecem os termos “privat”, “private” e “privé”. “Privat” significa estar excluído, privado do aparelho de Estado, pois público

refere-se ao Estado formado com o Absolutismo e que se objetiva perante a pessoa do soberano. HABERMAS, Jürgen, Mudança estrutural. Op. cit p.

24. Para uma versão concordante com a ideia de que só com a emergência da sociedade burguesa haverá a plena separação da sociedade civil, assim

como a separação entre público e privado, mas que tem um visão crítica com relação à emergência de um Estado absolutista a partir do século XVI:

HESPANHA, António Manuel. Poder e Instituições na Europa do Antigo Regime. Lisboa: Calouste Gulbenkian, 1984. p. 11-89. Neste texto, encontra-se

a crítica ao paradigma estadualista ou uma interpretação pautada nos parâmetros liberais democratas. Em termos gerais, Hespanha aponta no Antigo

Regime o pluralismo de poderes, a indistinção entre a sociedade civil e o Estado e uma concepção global de poder, que aponta para uma indistinção

entre poder político e econômico (e religioso).

31 DUBY, Georges. As três ordens. Op. cit, p. 319-328; IOGNA-PRAT, Dominique. Ordens(ns). Op. cit Estes dois autores se concentram na Idade Média,

mas fornecem elementos para pensar a Época Moderna, considerando-se a continuidade da nobreza no topo da escala social. Segundo Iogna-Prat, “das

três funções da sociedade de ordens só a dos guerreiros, constitui-se pouco a pouco em grupo relativamente fechado de especialistas cujo sentimento de

pertencimento (...) não só cimenta uma prática comum da profissão das armas, como também uma minuciosa ética nobiliárquica, um estatuto jurídico

(acima de tudo, a nobreza opõe-se à servidão) e prerrogativas do exercício de poder temporal (...)”. Id. Ibid., p. 303.

255
trados das três ordens militares (Ordem de Avis, Ordem de Cristo e Ordem de
Santiago de Espada) se uniram à Coroa, passando os seus assuntos tanto espiri-
tuais, como temporais a serem tratados na Mesa da Consciência, então denomi-
nada Mesa da Consciência e das Ordens até sua extinção em 1833. Na história
deste tribunal régio, José Subtil aponta o “domínio (particularmente sensível)
dos assuntos que envolviam relações com o poder eclesiástico”, cuja decisão aju-
dava a preparar. Suas competências incluíam desde o foro de consciência do mo-
narca, a jurisdição sobre os privilégios dos freires, cavaleiros e comendadores
das três ordens. Evitarei elencar suas diversas funções, mas é válido mencionar
com relação às ordens militares, que era responsável pela atribuição de hábitos.32
Segundo António Manuel Hespanha, a criação do tribunal dar-se-ia na estei-
ra de um processo ocorrido ao longo dos séculos XVI e XVII de “anemia das
estruturas régias de coordenação” que resultaria em “contínua diminuição do
âmbito de matéria em que o rei decide pessoalmente ou através de seus oficiais
de confiança”.33 Talvez, por esta razão, José Subtil observe que no funcionamento
e tramitação burocrática do órgão, “as opiniões contrárias tinham de ser, obriga-
toriamente, registradas por escrito e fundamentadas, de forma que a decisão do
rei tivesse em linha de conta todos os pareceres”.34
Consequentemente, pode-se supor que as questões de precedência ocorri-
das na procissão do Corpo de Deus desencadearam consultas e pareceres vários,
que antecediam a decisão do monarca, recolhidos no fundo do Arquivo Nacio-
nal da Torre do Tombo.
Em um desses registros, cujo conteúdo se repete, o padre Caetano da Silva
solicita à Cúria “o estilo Observado na Procissão do Corpo de Deus do Lugar
em que vão os Cavalheiros das três ordens militares”35 Nele, há três posições
alternativas para os cavaleiros na ordem da procissão: 1- antes do pálio, depois

32 Estou tomando como referência o texto que se segue, para a história e funções da Mesa de Consciência e das Ordens: SUBTIL, José. Os poderes do

centro. In: MATTOSO, José (org). História de Portugal. Lisboa: Estampa, 1994, v. 4, p. 157-193.

33 HESPANHA, António Manuel. História das instituições. Coimbra: Almedina, 1982. Apud CHAHON, Sergio. Aos pés do altar e do trono: as irman-

dades e o poder régio no Brasil, 1808-1822. Dissertação de Mestrado apresentada à Universidade de São Paulo, 1996, p. 13-15.

34 SUBTIL, José, Os poderes do centro. Op. cit, p.168

35 ANTT, Mesa Consciência Ordens Militares OM/PD, M˚ 24 fl. 18. Este registro não está datado. No entanto, encontramos a reprodução dele em

Braga [12] de outubro de 1742. ANTT, Mesa Consciência Ordens Militares OM/PD, M˚ 24 fl. 20 indicando que o padre Caetano da Silva seria escrivão

da Câmera Eclesiástica naquela ocasião.

256
do Cabido; 2- antes do Cabido e 3- antes do clero das freguesias. A procissão era
crescente em termos de importância social – das bandeiras dos ofícios e irman-
dades até o clero. A sequência, com grandes variações no império português, é,
no Rio de Janeiro, entre os séculos XVIII e XIX: bandeiras dos ofícios, irmanda-
des e ordens terceiras; clero regular e secular, cavaleiros e Cabido.36

O esquema acima foi elaborado a partir da documentação das Ordens Mili-


tares, que cita a correspondência entre os bispados do Império. Ele não mencio-
na os vereadores na procissão. Nos editais e pautas, emitidos pelo bispado do Rio
de Janeiro, para a procissão de Corpus Christi de 1759 a 180937 eles também não
são indicados, quando sabemos que a presença do Senado da Câmara é manda-
tória e que faz parte da organização das festas reais. Quanto aos cavaleiros, nas
pautas consultadas, deveriam estar em décimo lugar na ordem da procissão, en-
tre as comunidades e o clero, que estava em undécimo e último. No caso lisboeta,
temos acesso a detalhadas tabelas do século XVIII exclusivas à participação dos
ofícios pertencentes à Provedoria da Fazenda, contudo sabemos que na Corte a
estrutura dela era mais ampla e complexa do que no Rio de Janeiro, para o qual
não foram até hoje encontrados documentos assemelhados.38
É interessante observar que a consulta do bispado do Rio de Janeiro sobre
o assunto e as respostas de outros bispados do Império, ocorre na época das
disputas de precedência que tiveram como pivô Cordovil. Em 1742, a sondagem
de opiniões visa lidar com a decisão dos cavaleiros que resolveram “preceder [o

36 Para uma discussão mais detalhada dos editais e pautas que regulamentam a procissão: SANTOS, Beatriz Catão Cruz, Os senhores do tempo. Op. cit

37 ACMRJ, E-236 – 1742/1838 – Pastorais e Editais.

38 BNL, Lista dos vedores e conselheyros da Fazenda e mais ministros e officiaes das repartições pertencentes ao Tribunal do Conselho da Fazenda, que o

anno prezente de 1733 devem ir na procissão do Corpo de Deos.

257
clero] na procissão do Corpo de Deus fazendo Corpo acéfalo à parte”. De acordo
com o Vigário Geral, como vimos, Cordovil teria instigado seus pares a abando-
nar a procissão neste ano, negando-se a acompanhá-la entre o clero e desorien-
tando os demais cavaleiros39. Com isso, apenas um entre eles segue a orientação
proposta pelo clero, assentada nas bulas de Clemente VIII, de Gregório XV40 e
nas normas previstas pela Congregação dos Ritos.
Na interpretação de Fernanda Olival é possível ter acesso ao histórico da
participação dos cavaleiros na procissão41 e a dados que apontam para a recor-
rência dos conflitos – tanto no espaço, quanto no tempo42. Segundo ela, após a
procissão de 1719, cuja memória foi eternizada no panegírico de Inácio Barbosa
Machado43, acentuam-se as disputas de precedência no ritual. Em função das
disputas, a Mesa da Consciência e das Ordens expede uma provisão, em 23 de
maio de 1722, que define que os cavaleiros fora de Lisboa integrassem o desfile,
formando um corpo associado ao clero que não fosse da igreja da qual saíra a
procissão, ao qual era dada a precedência.44
Pelo fato de as Ordens Militares serem o seu objeto de estudo, Olival dá ên-
fase a questões relativas à identidade do grupo e a suas clivagens internas. Nesse
39 Lembro os ricos sentidos da palavra acéfalo contemporaneamente, ou seja, sem direção, sem responsável. BLUTEAU, Raphael, Vocabulario portu-

guez e latino. Op. cit

40 Clemente VIII, papa entre 1592 e 1605, ficou marcado por várias ações de importância. Teólogo que interviu nas controvérsias do “De auxiliis” entre

dominicanos e jesuítas, que se posicionavam pela eficácia da graça ou pelo livre arbítrio. Apesar da tendência em condenar a segunda perspectiva, a de-

cisão levou em consideração a influência dos jesuítas e sua atuação nas Missões catequéticas além do continente europeu. Publicou a Vulgata e reeditou

o Index Librorum Prohibitorum. Durante seu pontificado, foram condenados o moleiro Menocchio (1559) e Giordano Bruno (1660), de cujo processo

participou ativamente e que fora acusado também de subverter o dogma da eucaristia. O breve pontificado de Gregório XV (1621-1623) também foi

incisivo. Pode-se citar o estabelecimento da Congregação da propagação da fé (1622) e a canonização de Francisco Xavier, Inácio de Loyola, Felipe Néri

e Teresa de Ávila. Deu suporte ao Sacro Império Romano e à Liga Católica contra os protestantes.

41 A autora indica a participação dos cavaleiros na procissão desde pelo menos os anos 20 do século XVII. Após a Restauração portuguesa, em 1641, o

rei passa a figurar no cortejo e junto a ele os cavaleiros, com destaque para a Ordem de Cristo entre as diversas Ordens Militares. OLIVAL, Fernanda,

As ordens militares. Op. cit

42 Olival elenca várias petições ocorridas depois de 1722 pelos cavaleiros das Ordens Militares que solicitavam ao monarca a definição do lugar que

deviam ocupar na procissão. Mesmo considerando-se desobrigados, viam sua participação como uma honraria, mas estavam desgostosos quanto à

posição atribuída. Seguem as situações de conflito: Olivença, em 1730; Pará, cerca de 1732; Évora, cerca de 1737; Funchal, em 1743; Vila Rica de Ouro

Preto, em 1753, além do Rio de Janeiro, cuja documentação é alvo de nossa análise mais detalhada. Op. cit p. 472

43 MACHADO, Inácio Barbosa. Historia Critico-Chronologica da Instituiçam da Festa, Procissam, e Officio do Corpo Santissimo de Christo no Veneraval

Sacramento da Eucharistia. Lisboa: Off. Patriarcal de Francisco Luiz Ameno, 1759. Para a análise deste panegírico e da procissão de 1719, consultar os

seguintes trabalhos: SANTOS, Beatriz Catão Cruz, O Corpo de Deus na América. Op. cit, p. 23-56; RAGGI, Giuseppina. “A formosa maquina do Ceo

e da terra”: a procissão do Corpus Domini de 1719 e o papel dos arquitetos Filippo Juvarra e João Frederico Ludovice. Cadernos do Arquivo Municipal.

2.ª série, n.º 1, p. 87-109, jan.- jun. 2014.

44 OLIVAL, Fernanda, As ordens militares. Op. cit, p. 469

258
sentido, sua interpretação das disputas sublinha uma noção de comunidade po-
lítica, ao indicar que os cavaleiros das Ordens Militares participavam da procis-
são Lisboeta acompanhando o Rei, perpétuo administrador dos Mestrados. Fora
deste município, os cavaleiros das Ordens Militares não constituíam comunida-
de, donde se desobrigavam desta presença, da subordinação ao mestre.
Ao sublinharmos a análise do ritual do Corpo de Deus, temos que indicar
que a participação dos cavaleiros das ordens militares aponta para um sentido
de comunidade, que transcende a comunidade política, cujo significado é con-
tinuamente atualizado pelos religiosos, como tivemos oportunidade de analisar
nos editais e pautas sobre a procissão divulgados pelo bispado do Rio de Janei-
ro entre 1759 e 1809.45 Refletir sobre o significado político-religioso de Corpus
Christi pode ser o caminho para entender a culpa que incidira sobre Cordovil,
que com sua conduta não apenas arranha a honra dos cavaleiros das Ordens
Militares, incitando-os à desordem, como desacredita a excomunhão.46 Cordovil
ousa desencantar a pena que lhe fora atribuída, por não acompanhar a procissão.
Como sinalizou Marcel Mauss47, a negativa em participar da dádiva equivale a
declarar guerra, é recusar a aliança e a comunhão. No caso da festa que ora ana-
lisamos, que atualiza o mistério da eucaristia, implicava a exclusão do pecador
da comunidade da Igreja.
É possível comparar a ideia de culpa atribuída a Cordovil em função de suas
faltas, numa sociedade de antigo regime, com o lek ou o “terror de palco” na
sociedade balinesa, analisada por Clifford Geertz,48 considerando a valoração,
nas duas sociedades, do cerimonial. Na primeira, à diferença da última, o caráter
público do cerimonial, assim como a punição (pelas autoridades religiosas e se-
culares) corresponderiam a uma interiorização da crença e da disciplina.
A análise das respostas às consultas sobre a posição dos cavaleiros das or-
dens militares na procissão do Corpo de Deus, na época das perturbações ocor-
ridas no Rio de Janeiro, aponta para uma forte tradição local. Em Évora, os ca-
valeiros “iam entre as comunidades de religiosos e clérigos, que os admitiam há
45 SANTOS, Beatriz Catão Cruz, Os senhores do tempo. Op. cit

46 Para uma descrição minuciosa das ações cometidas por Cordovil e o significado da excomunhão nos séculos XVIII e XIX, consultar: SANTOS,

Beatriz Catão Cruz, Corpo e fragmento. Op. cit, p. 188-190.

47 MAUSS, Marcel, Ensaio sobre a dádiva. Forma e razão da troca nas sociedades arcaicas (1924). Op. cit, p. 58.

48 GEERTZ, Clifford, Pessoa, tempo e conduta em Bali. Op. cit.

259
mais de 30 anos”.49 Em Braga, há muitos anos os cavaleiros não acompanhavam
a procissão com seus hábitos e insígnias, mas quando saíam era “atrás do Pálio
com suas tochas na mão fazendo atos de procissão sem [que] entre o dito Pálio e
eles se [metessem] mais pessoas algumas fazendo corpo”.50 Na cidade e Bispado
do Porto,51 tal como em Évora, “Se incorporam de baixo da Cruz de alguma das
comunidades que Costumam ir nela ou debaixo da Cruz do Clero”, mas não
de baixo da cruz do Cabido. Em Funchal (Ilha da Madeira) demonstram “uma
grande desconsolação e pena de não poderem acompanhar a Procissão de Cor-
po de Deus”. Recorrem à Sua Majestade como “Como Seu Soberano, e seu Grão
Mestre lhes faça mercê mandar lhes assignar o Lugar Certo em que devem ir a
imitação do mesmo Lugar” que se faz na corte. Solicitam ainda que “que lhes
sejam guardados naquela Ilha todos os Seus Privilégios, e isenções que lhe são
permitidos tanto pelos estatutos da ordem, como por mercês Concedidas pelos
Senhores Reis”.52 O documento relativo à Funchal é muito rico, pois (re)significa
o caráter religioso da festa de Corpus Christi e, simultaneamente, de dissenções
entre os cavaleiros e o clero. No final, ainda encontra-se anotado que a situação
reportada deve ser anexada ao requerimento do Rio de Janeiro, em 1743.53
No Rio de Janeiro, a julgar pela petição dos cavaleiros, iam de acordo com
o costume, que era entre o clero e o Cabido da catedral.54 O costume, neste caso,
havia sido estabelecido num passado recente, durante o bispado de D. Antônio
de Guadalupe (1725-1740), após discórdias de precedência, que alteraram uma
posição anterior. Segundo o mesmo registro, o Vigário-Geral os teria privado
daquele lugar – entre o clero e o Cabido da catedral obrigando-os que,

49 ANTT, Mesa Consciência Ordens Militares OM/PD, M˚ 24. fl.19

50 ANTT, Mesa Consciência Ordens Militares OM/PD, M˚ 24. fl.21

51 ANTT, Mesa Consciência Ordens Militares OM/PD, M˚ 24. fl.23

52 ANTT, Mesa Consciência Ordens Militares OM/PD, M˚ 24. fl.56

53 ANTT, Mesa Consciência Ordens Militares OM/PD, M˚ 24. fl.56-57

54 ANTT, Mesa Consciência Ordens Militares OM/PD, M˚ 24. fl.28

260
Se metessem dispersos entre o clero, Separando, e dividindo
o Corpo, que os mesmos Cavaleiros faziam em forma de co-
munidade a imitação do mesmo que Se pratica nesta Corte
na presença de Sua Majestade”.55

Por intermédio das respostas à consulta sobre a posição dos cavaleiros foi
possível identificar que a posição dos cavaleiros se apresenta vária, conforme a
cidade e/ou bispado. Neste sentido, a procissão de Corpus Christi atualiza uma
tendência desde a época medieval de se imiscuir com os poderes locais56
É interessante observar que no caso da contenda do Rio de Janeiro entre os
cavaleiros das ordens militares e o clero, o fato do monarca referendar a posição
dos cavaleiros contra o Vigário-Geral não viria a garantir a eficácia da norma.57
Um testemunho a respeito da variedade de posições conforme o governo da ca-
pitania e desmerecimento das orientações dos religiosos é fornecido pelo bispo:

E menos como de posse por ser para este efeito Reprova-


da ainda quando não fosse varia e interrompida e Sujeita a
disputa como tem sido sempre nesta terra a que pretendem
ir os Cavaleiros porque Governando-a Luís Vaía Montei-
ro que o era também foram em hum lugar, estando com o
governo José da Silva Paes, foram muito de propósito em
outro. E depois por Si próprios fazendo parede na Igreja
se preveniam nela com procurar para este mesmo efeito os
primeiros acúbitos de onde facilmente entrassem ao lugar o
lugar que não quisessem ou não quisessem os Sacerdotes.58

55 Idem. ibidem. fl.28

56 RUBIN, Miri. Corpus Christi: the Eucharist in Late Medieval Culture. Cambridge: Cambridge University Press, 1994.

57 ANTT, Mesa Consciência Ordens Militares OM/PD, M˚ 24. fl. 34-35.

58 ANTT, Mesa Consciência Ordens Militares OM/PD, M˚ 24. fl. 38-39. 31/5/1742. Luís Vaía Monteiro, o Onça, foi governador do Rio de Janeiro entre

1725 e 1732 e Gomes Freire de Andrade, o Conde de Bobadela, entre 1733 e 1763. http://www0.rio.rj.gov.br/arquivo/informacao-governantes.html.

Consultado em 11 de fevereiro de 2015. Contudo, José da Silva Paes, aparece como governante do Rio de Janeiro em 1736. “Informação do Governador

José da Silva Paes, sobre representação do Senado da Câmara do Rio de Janeiro, dirigida ao Rei, por ele governador querer nomear as pessoas que devem

pegar nas varas do pálio na procissão do Corpo de Deus”. Rio de Janeiro, 18 de junho de 1736”. AHU, Rio de Janeiro (CA) doc. 9471. Apud. SANTOS,

Beatriz Catão Cruz, O Corpo de Deus na América. Op. cit, p. 144.

261
O testemunho do Bispo Frei João da Cruz assinala uma forte tensão com
os cavaleiros, que, em sua perspectiva, questionavam o poder dos sacerdotes de
controlar o sagrado e suas manifestações.59
A visão dos cavaleiros é perceptível a partir da petição encaminhada em 4
de março de 1743, que contém a assinatura de 33 cavaleiros da Ordem de Cristo,
entre eles Francisco Cordovil de Siqueira e Mello.60 Nesta, o vigário geral Manoel
Freire Batalha é acusado de “perverter a ordem” da procissão obrigando-os a se
deslocar da posição que os cavaleiros ocupavam – entre o clero e o Cabido da
Catedral, como em Lisboa – e se dispersarem entre o clero. Na narrativa detalha-
da, ainda observam que Manoel Freire Batalha “é de ânimo revoltoso, absoluto
nos seus procedimentos, e tenaz Nos seus costumados desacertos”.61
Em termos gerais, estamos sublinhando a superposição, o conflito de juris-
dições que se dá entre o monarca, o bispado e os cavaleiros na ordem da pro-
cissão. Além disso, os cavaleiros se apropriam de um sentido de comunidade
egresso do Direito,62 que eles identificavam na representação do grupo, que se
dava a ver na procissão da cidade de Lisboa.

As noções de tempo

Na análise das respostas às consultas sobre a precedência dos cavaleiros na procis-


são de Corpus Christi na época das disputas de 1742 e 1743 e, posteriormente, identifi-
camos algumas referências de tempo: quantificado em anos, o período de um bispado,
o tempo associado a ritmo, entre outras.
Na citada petição dos cavaleiros há diversas menções ao tempo. Vejamos algumas:

Representam à Vossa Majestade os Cavaleiros professos Na


Ordem de Cristo da Cidade de São Sebastião do Rio de Ja-
neiro, que estando em posse tão Antiga que excede à Me-

59 Estou fazendo referencia ao controle do clero sobre o culto e, em particular, sobre a eucaristia e suas manifestações. Neste sentido, os leigos se

encontram na dependência dos “transformadores” ex professione, os clérigos, IOGNA-PRAT, Dominique, Ordens(ns). Op. cit, p. 211-2.

60 ANTT, Mesa Consciência Ordens Militares OM/PD, M˚ 24. fl.51-52.

61 ANTT, Mesa Consciência Ordens Militares OM/PD, M˚ 24. fl.51-52.

62 HESPANHA, António Manuel, Imbecillitas. Op. cit; SANTOS, Beatriz Catão Cruz, Os senhores do tempo. Op. cit

262
mória dos homens, de acompanharem Com Seus Mantos
à Procissão do Corpo de Deus Na Mesma Cidade em duas
alas, unidos sucessivamente huns à outras, e há bastantes
Anos a esta parte No fim da Clerezia, e antes da Cruz do
Cabido, a exemplo do que Vossa Majestade foi servido man-
dar praticar Nesta Corte, Neste presente ano se intrometeu
o Vigário geral daquele Bispado Manoel Ferreira Batalha a
perverter a Referida Ordem, estando já os Suplicantes No
Costumado lugar, ao tempo, que saia à Procissão da Sé.63

A petição dos cavaleiros oferece uma oportunidade para o historiador atual


de refletir sobre o tempo, no caso, sobre os usos do passado. Como é possível
ler na citação, o tempo se apresenta, na nossa perspectiva, meio impreciso: inal-
cançável pela lembrança e incontável. Mesmo na última referência, a julgar pela
intinerância da catedral durante mais de cem anos (1703-1808)64 imprime um
caráter duvidoso em termos de marcação de tempo.
Quais os sentidos do uso do tempo? Que sentidos podemos identificar no
uso do passado imemorial recorrente na documentação sobre a América por-
tuguesa? Moses Finley analisa o peso da constituição ancestral nos argumentos
políticos, comparando a Atenas do Século V, a Inglaterra do século XVII e os
Estados Unidos do século XX.65 Para além das histórias particulares, identifica
pontos comuns, que poderiam ser localizados em outras conjunturas. Segundo
o historiador, o uso do passado relaciona-se

(...) à própria natureza do homem, que só possui memória


e a presciência da morte inevitável, o que o leva inconscien-
temente a um desejo, a uma necessidade, algo que crie um
sentimento de continuidade e permanência.66

63 ANTT, Mesa Consciência Ordens Militares OM/PD, M˚ 24. fl.51-52 (grifos meus).

64 Neste período, a catedral foi deslocada da igreja de São Sebastião no antigo Morro do Castelo por causa do crescimento da cidade em direção à

várzea. Ficou aquela em templo interino, ou seja, entre 1703 e 1808, quando passaria a ocupar a igreja dos frades carmelitas. SANTOS, Beatriz Catão

Cruz, Os senhores do tempo. Op. cit, p. 173.

65 FINLEY, Moses I. Uso e abuso da história. São Paulo: Martins Fontes, 1989, p. 29-56.

66 Id. ibid., p.43.

263
Nos conflitos políticos analisados, de acordo com Finley, “o apelo à ‘cons-
tituição ancestral’ satisfaz o princípio de que ela deve parecer racional e per-
suasiva”67. Em busca do significado do apelo, ‘o passado sempre foi o criado da
autoridade’. Um bom criado, pois o argumento baseado no passado ancestral,
geralmente ultrapassa os limites de classe, nível educacional ou disposição polí-
tica. Ele é ideologia no sentido clássico.68
Acredito que haja uma boa ironia da parte de Finley quando opõe a histo-
riografia profissional, que caracteriza a nossa perspectiva, à tradição:

Uma pesquisa crítica, a historiografia profissional é portan-


to um perigo potencial para a “sublime e poderosa ausência
de historicidade’ da tradição. Além do mais, essa pesquisa
crítica é terrivelmente complicada; acumulando dados, do-
cumentos, inúmeros eventos, impedindo o que o professor
Barnes chamou alegremente ‘amnésia estrutural’, ofere-
cendo demasiadas explicações parciais (isso quando não
se recusa a explicar), ela pode solapar uma interpretação
comum do passado e, portanto, os limites sociais que são
fortalecidos com uma identificação comum ao passado. Ela
ameaça tornar inútil o passado. Não existe a menor compli-
cação na ideia mesma de um processo histórico. A memória
individual trabalha com ocorrências concretas e, entre es-
tas, uma variedade de associações. O sentido de identidade
e continuidade não requer mais do que isso. Tampouco o
requerem os mitos do passado.69

Finley concluiu sobre as três situações analisadas, que diferentes agentes op-
tam por não abandonar um passado mítico por um não-mítico. Não poderíamos
dizer o mesmo quando os cavaleiros apelam ao passado imemorial? No caso, um
passado que os religa ao reino português e à Monarquia Católica.
No ano de 1782, houve uma queixa movida pelos cavaleiros das ordens mili-
tares contra o bispo em razão do protocolo nas procissões de Corpus Christi e do

67 Id. ibid., p.30 (grifo do autor).

68 Id. Ibid., p. 41. Neste trecho parafraseei o autor. Sobre a citação nele contida: Apud. PLUMB, J. H. The dead of the past. London, 1969, p. 40.

69 Id. Ibid., p. 55.

264
Triunfo, que é dirigida pelos religiosos e Terceiros da Ordem de Nossa Senhora
do Carmo. Temos acesso às discórdias, às dúvidas por intermédio dos registros
de Francisco de Oliveira, um clérigo, e do bispo, na ocasião José Joaquim Justi-
niano Mascarenhas (1773-1805).70
Eles procuram distinguir as duas procissões, indicando que Corpus
Christi era ritual sob a “inspeção” do bispo. O bispo ainda assegurava que
acompanhamento da procissão de Corpus Christi estaria definido em tempos
pretéritos e assentado em Lei, tornando injustificável o pleito dos cavaleiros.
Vejamos nos seus termos:

(...) como será presente à Vossa Majestade das duas cópias,


que envio inclusas das Reais Ordens; que desde o ano de
1743 vieram a fixar as determinações, que já d’antes havia
feito meu Antecessor Sobre esta Matéria, e que até pelo lon-
gíssimo tempo de mais de quarenta anos parece haverem ad-
quirido toda a eficácia, e força de observância: ao menos para
que os Cavaleiros não levassem ao Real Trono requerimento
algum sem expressa menção de todas estas circunstâncias.71

Note-se que, nesta passagem, há uma expressa referência sobre o ano de


1743 – ocasião das discórdias entre os cavaleiros e o clero, que tiveram como
pivô Cordovil. Pode-se supor, a partir do testemunho, que normas foram es-
tabelecidas durante o bispado de Frei João da Cruz, tornando-se persuasivas,
como diria Finley. Além dessa referência às Ordens Régias, o bispo D. José Joa-
quim Justiniano Mascarenhas menciona a decisão do rei D. João V (1706 –
1750), avô da rainha D. Maria (1777 – 1816) contra as pretensões dos cavaleiros
em acompanhar a procissão dos cavaleiros depois do clero na cidade do Rio de
Janeiro. As duas indicações de tempo pretendem assegurar uma continuidade
na ordem da procissão.
A documentação não esclarece se a demanda dos cavaleiros diz respeito à
procissão de Corpus Christi e a do Triunfo, apenas que há um paralelo entre as
70 A informação sobre a organização da procissão do Triunfo é fornecida pelo bispo. Ela responde à queixa encaminhada pelo Senado da Câmara

dos cavaleiros das Ordens Militares. O registro da queixa é de 21/01/1782 e o da resposta do Bispo, de 11/12/1782. ANTT, Mesa Consciência Ordens

Militares OM/PD, M˚ 24. fl. 13 e 44.

71 ANTT, Mesa Consciência Ordens Militares OM/PD, M˚ 24. fl. 47.

265
duas e que a primeira, sobretudo a da cidade de Lisboa funciona como modelo
para a última, o que não constitui novidade na historiografia sobre as cerimô-
nias. No caso, reforça-se a ideia de que só em Lisboa o rei se fazia presente no
cortejo, como grão mestre das ordens militares. O que trazia como decorrência,
o privilégio corporativo dos cavaleiros exclusivo à Corte.
De acordo com o bispo, os cavaleiros se queixavam da obrigação de acom-
panhar a procissão do Triunfo, que se fazia anualmente e

(...) que depois de feitas as paradas se tornassem a ajuntar,


como Cavaleiros, ao seu Corpo; sendo por este principio
obrigados a fazer uma marcha indecorosamente apressada,
e por consequência indecentíssima aquele ato: tudo contra
o estilo, e costume praticado nessa Corte, aonde os Cavalei-
ros das três Ordens Militares dizem são os últimos, e não os
primeiros em seguir a Procissão, com preferência as Irman-
dades, Religiosos, e Clero.72

Os registros evidenciam uma questão de posição dos cavaleiros, que que-


rem preceder o clero, ou seja, vir por último na ordem da procissão e não como
primeiros. Todavia, quero sublinhar que os cavaleiros demandam um ritmo que
se coadunasse com sua posição, estilo e costume praticado na Corte de Lisboa.
Tanto é que a marcha contra a qual reclamam é qualificada como apressada,
indecente, porque imprime um ritmo que não é próprio aos nobres.73 Neste sen-
tido, podemos lembrar da reflexão de Hansen sobre o tipo “discreto” nas mo-
narquias ibéricas do século XVII. Como assinala o autor, a partir de autores da
época e situações em que as convenções hierárquicas são abaladas, a discrição
seiscentista é um saber ou uma técnica da imagem própria à racionalidade de
Corte. Ela inclui agudeza, prudência, dissimulação, aparência e honra. Buscan-
do compor o tipo católico e contrarreformista, afirma que a honra é especular,
ou seja, implica a circularidade do ver e do ser visto. Em suma, ela depende da

72 ANTT, Mesa Consciência Ordens Militares OM/PD, M˚ 24. fl 44.

73 Veja o significado coevo apresentado por Bluteau ao termo e os ricos exemplos extraídos de Cícero e de obras portuguesas: “indecente”: não confor-

me a honestidade, a modéstia, ao respeito, que se deve. (...) Indecente & desonesto movimento do corpos. Motus deformis. Cic. Erros indecentes a sua

nobreza. Mon. Lusitan. Tom. 4.58. col. .2 BLUTEAU, Raphael. Vocabulario portuguez e latino. Op. cit

266
representação pública.74
Como vimos, a resposta do bispo à queixa faz referência ao bispado prece-
dente e procura garantir o ritmo solicitado pelos cavaleiros, solicitando ao mo-
narca a graça da justiça.

O que posso [as]segurar a Vossa Majestade é que as paradas,


e mudas, que se fazem na Procissão, nenhuma indecência
trazem consigo contra o decoro do ato, nem dos Cavaleiros.
A Marcha seria, grave, e pausada, que nela se observa, não
pode obrigar a que eles se apressem nas suas retiradas; nem
a distancia em que eles vão do Pálio é considerável; nem na
extensão do giro da Procissão fazem mais de duas mudas.75

Ainda hoje nos escapa o significado pleno das “paradas”, das “mudas” “na
extensão do giro da procissão” de Corpus Christi. De qualquer forma, a partir da
documentação vê-se que o bispo se contrapõe aos cavaleiros das Ordens Mili-
tares, fazendo referências de tempo e espaço, que assegurassem aos mesmos os
privilégios de sua condição social. Com isso, lembramos que os rituais são siste-
mas elaborados de negociação entre diferentes grupos sociais.76
Na representação movida pelos cavaleiros contra o Vigário Geral, que en-
volvera Cordovil, há ainda uma dimensão do tempo não mencionada até agora:
o futuro. Vejamos nos seus termos:

Não foi menos escandalosa, e Reprovada a dita ação pela


ocasião por Se acharem os mesmos Cavaleiros vestidos
Com os Seus mantos, e insígnias da ordem, em Lugar tão
publico, Como é a Catedral, vendo-se estes obrigados a se
despirem no mesmo lugar a vista de inumerável povo, e

74 HANSEN, João Adolfo. O discreto In: Adauto Novaes (org). Libertinos libertários. São Paulo: Companhia das Letras,1996, p. 77-102. Entre as

situações históricas analisadas em que as representações hierárquicas são abaladas, está um conflito de precedências entre o bispo e os vereadores na

procissão de Corpus Christi da Bahia de 1643. Apesar de haver uma diferença de um século entre a situação analisada por Hansen e o contexto que dis-

cuto, elas se assemelham. Id. Ibid., p.80-81. Segundo Habermas, a evolução da representatividade pública está ligada a atributos da pessoa, ou seja, a um

rígido código de comportamento “nobre” que se cristaliza durante o outono da Idade Média. Para a caracterização e exemplos desse comportamento:

HABERMAS, Jürgen, Mudança estrutural. Op. cit p. 19-21.

75 ANTT, Mesa Consciência Ordens Militares OM/PD, M˚ 24. fl 48.

76 SCHMITT, Jean-Claude. Ritos. In: LE GOFF, Jacques & SCHMITT, Jean-Claude, Dicionário temático. Op. cit p. 415-430.

267
Concurso de pessoas, Ministros e Vossa Majestade de am-
bos os Governos Político, e Militar, e Cederem do Lugar
por evitarem maiores desordens, que podiam Resultar, se
persistissem nele Contra aquela novidade, que Sem duvida
foi premeditada Com Cautela, e Segredo para os descom-
por, e ultrajar. E porque a Vossa Majestade Compete Dar a
providencia necessária Sobre esta matéria para Se obviarem
outras discórdias, e contendas para o futuro.77

Na passagem, pode-se evidenciar o ultraje público a que os cavaleiros se vi-


ram submetidos, obrigados, segundo os mesmos, a se despirem dos seus mantos
e insígnias diante do inumerável povo e das autoridades presentes à cerimônia,
para evitar desordens no futuro. Por intermédio da descrição, vemos a remis-
são ao topos da prudência, que informa sobre a posição desses agentes, assim
como do seu papel político nas festas reais, no caso a procissão de Corpus Christi.
Como nos lembra Hansen, nos autores dos séculos XVI e XVII, a prudência era
uma das primeiras virtudes políticas, porque continha uma “arquitetônica do
futuro”. Ele recupera a observação de Edward Maser, editor contemporâneo da
Iconologia, de Cesare Ripa (c. 1560 – c. 1622), segundo o qual a figura da Pru-
dência tem duas faces “porque o prudente olha à sua frente e para atrás, isto é,
está atento aos fatos do passado relacionados a uma decisão a ser tomada e está
ciente de seus possíveis resultados ou consequências do futuro”78.
A demanda da graça do monarca é uma das vias de garantir “a posse tão
Antiga que excede à Memoria dos homens”79, evitando discórdias no futuro.
Ao longo do texto, procurou-se destacar as dimensões de tempo que pre-
valecem na documentação: tempo como ritmo, tempo associado a “costume”,
mensurado em anos e/ou em bispados, os precedentes. Todavia, faz-se necessá-
rio indicar que há outras referências de tempo que conformam o evento. Corpus
77 ANTT, Mesa Consciência Ordens Militares OM/PD, M˚ 24. fl. 29. Consultar também: fl. 44, 51.

78 MASER, Edward. Cesare Ripas’s Baroque and Rococo. Pictorial Imagery. New York: Dover, 1971. Apud. HANSEN, João Adolfo; PÉCORA, Antônio

Alcir Bernárdez, Glossário de Categorias do século XVII, p.8. A primeira edição de Iconologia é de 1593, dedicada a Anton Maria Salviati, a segunda

é de 1603. Há outras versões posteriores dos séculos XVIII e XIX. O livro de emblemas é extremamente influente nos séculos XVII e XVIII. Servia

como fonte para conceitos como virtudes, vícios, paixões, artes e ciências. MASER, Edward. Baroque and Rococo Pictorial Imagery: the 1758-60. Hertel

Edition of Ripa’s ‘Iconologia’ with 200 Engraved Illustrations. New York: Dover, 1991, p. xiii-xix. A questão da virtude da prudência aplicada a conflito

na procissão de Corpus Christi foi trabalhada com vagar em: SANTOS, Beatriz Catão Cruz, Os senhores do tempo. Op. cit, p. 170-172.

79 ANTT, Mesa Consciência Ordens Militares OM/PD, M˚ 24. fl. 51.

268
Christi é uma festa anual, inserida no calendário católico.
O calendário litúrgico católico compõe-se, além do ciclo semanal centrado
no domingo, de dois ciclos que se superpõem ao longo do ano.80 O ciclo prin-
cipal comemora os mistérios da Encarnação e da Redenção e compreende as
festas ligadas à vida de Jesus e ao plano de Deus para a salvação dos homens; sua
referência maior é a festa da Páscoa. Esta é uma festa móvel, porque derivada
do calendário litúrgico judaico, composto por meses lunares; em função dela
são marcadas as datas de outras festas, inclusive a de Corpus Christi, celebrada
na quinta-feira da segunda semana após a festa de Pentecostes, que por sua vez
ocorre cinquenta dias após a Páscoa. Mas o ciclo principal do ano litúrgico com-
porta também uma grande festa fixa, o Natal, celebrado todo 25 de dezembro
por ser uma comemoração surgida já num contexto histórico em que se usava
o calendário romano, composto por meses referidos ao ciclo solar anual, como
o atual ano civil. Pela mesma razão, são fixas as festas que integram o segundo
ciclo anual de celebrações, chamado de “ciclo santoral” pois nele se faz memória
das vidas dos santos, ao longo de todo o ano, assumindo especial importância as
festas referentes à Virgem Maria.
As festas do Natal e da Páscoa dão origem aos períodos especiais do calen-
dário conhecidos como “tempos litúrgicos”, que preparam cada uma delas (os
quatro domingos do Advento, os quarenta dias da Quaresma) ou lhes conferem
uma extensão de vários dias (o “tempo do Natal”, que dura até a semana da Epi-
fania, e o “tempo da Páscoa”, que termina na de Pentecostes). Os intervalos res-
tantes entre eles constituem o “tempo comum”. É sempre neste último, portanto,
que ocorre a festa de Corpus Christi, o que talvez tenha facilitado associar-se ao
seu significado religioso o caráter de celebração da monarquia portuguesa. Além
disso, cabe lembrar que o ciclo da Páscoa já possuía, no judaísmo antigo, uma
superposição com as estações do ano no hemisfério norte, o que vem situar a
festa de Corpus Christi do continente europeu na estação da primavera.
Corpus Christi ainda atualiza a encarnação cristã, cujas implicações tempo-
rais mereceriam uma discussão alongada.81 Schmitt identifica três consequências
80 Catecismo da Igreja Católica. São Paulo: Edição Típica Vaticana/ Ed. Loyola, 2000. p. 1168-1173. Agradeço as informações sistematizadas sobre o

calendário católico a Marcos Veneu, além de várias sugestões sobre a categoria tempo neste texto.

81 As observações de Schmitt podem constituir um bom ponto de partida para a discussão sobre o tempo na história. SCHMITT, Jean-Claude. Le Corps,

les rites, les êves, le temps. Paris: Gallimard, 2001, p. 23-25.


do que ele define como o “caminho da encarnação”: no cristianismo, à diferença
do judaísmo, há o ingresso definitivo de Deus na História, mas certas parcelas da
eternidade só são acessíveis por meio de correspondências entre o tempo huma-
no e o tempo divino, que podem ser encontradas, por exemplo, na contabilidade
das missas para os mortos que vigoravam no Antigo Regime. Uma segunda im-
plicação do paradigma da encarnação é a legitimação do carnal, do material, do
sensível. Pois, não somente Deus tornou-se homem, corpo, como Deus torna-se
Presente para os católicos todos os dias através da Eucaristia. Por fim, como lem-
bra Schmitt, a Igreja é o “corpo místico do Cristo”. A Igreja torna-se o garante do
dogma e estabelecem-se ao longo da história uma série de compromissos entre
o poder espiritual e temporal.
Este artigo tratou dos conflitos entre os cavaleiros das ordens militares e o
clero na procissão de Corpus Christi no Rio de Janeiro do século XVIII. Isto re-
vela que os compromissos aludidos por Schmitt estão sujeitos a conflitos, ajustes.
Se considerarmos que a liturgia toma como referência a vida de Cristo, a festa
de Corpus Christi comemora a morte do Cristo e a redenção da humanidade,
reforçando formas devocionais carnais.

270
OS FRANCISCANOS E CARMELITAS
E AS ORDENS TERCEIRAS NO MUNDO
IBERO-ATLÂNTICO:
entre a hierarquia e a formação espiritual
(séculos XVII e XVIII)

Célia Maia Borges1

Introdução

É comum nos textos que abordam as associações religiosas deparar com


uma observação que nos aponta a semelhança de funcionamento entre as irman-
dades, confrarias e ordens terceiras, sendo as diferenças antes de mais de caráter
formal e baseadas em fundamentos conceituais do código do direito canônico.
O principal aspecto evidenciado é que eram organizações compostas sobretudo
por homens leigos que se dedicavam à devoção e à caridade, tendo por preocu-
pação principal os sufrágios. Outro fator destacado nos trabalhos acadêmicos é a
ênfase na distinção social como elemento de atração para o ingresso nas ordens
terceiras. Se estas práticas são inegáveis, é certo que outras diferenças mais pro-
fundas existiam para além das que são comumente destacadas.
A minha abordagem vai numa outra direção. Gostaria de salientar outros
aspectos relacionados com a formação espiritual no interior dessas associações.
Ao iniciar o meu trabalho com as beatas em Portugal e ao mergulhar nos proces-
sos inquisitoriais, um fenômeno me chamou desde logo a atenção: percebi que
todas as acusadas eram integrantes de uma ordem terceira, em geral de N.ª Sr.ª
do Carmo ou de São Francisco. Por isso, resolvi estudar mais profundamente a
formação espiritual no interior dessas organizações.
Uma questão interessante a assinalar é a importância do período do novi-
ciado, correspondende ao o período de formação dos ingressantes, cuja duração
1 O presente trabalho integra um projeto maior realizado com o apoio da FAPEMIG (pesquisa no Brasil) e da CAPES /Proc. 3975-13-4/(pesquisa em

Portugal).

271
se estendia por um ano. No século XVII em Portugal as exigências eram muitas e
extremamente rigorosas; os estatutos das ordens terceiras na Metrópole dão uma
ideia das orientações impostas aos neófitos. Sobre esta matéria, irei desenvolver
algumas considerações mais adiante. Outra diferença marcante, pelo menos em
Portugal, era o uso do hábito inteiro por parte de alguns dos seus membros.
Alguns homens e mulheres, por força da sua devoção e exemplar vida religiosa,
pleiteavam o uso do hábito inteiro que lhes era facultado após análise da vida do
postulante e após controle exercido pelo comissário responsável pelas práticas
espirituais dos irmãos. Claro que isto não significa que todas os irmãos se pau-
tassem por uma vida exemplar e se orientassem por práticas virtuosas.
Apesar das diferenças existentes entre as várias ordens terceiras, a dinâmica
no interior das associações exigia toda uma pauta de exercícios oracionais que
normalmente não se observava nas demais agremiações de cunho religioso. Por
isso, pertencer a uma delas e, sobretudo, realizar o noviciado a fim de conseguir
a profissão constituíam desafios, principalmente para homens que exerciam ati-
vidades econômicas, as quais nem sempre eram fáceis de conciliar com a vida
espiritual. De qualquer modo, alcançar a profissão representava a meta aspirada
por todos os que ingressavam na comunidade. Em algumas dessas ordens o ir-
mão professo podia ser, por vezes, alvo de admiração e uma referência para os
noviços, devido justamente ao fato de estes terem passado por toda uma carga
de provações no decurso da sua aprendizagem. Tais organizações com o tempo
transformaram-se em local de atração para pessoas de vários grupos sociais, ao
passo que na América Portuguesa atraíam, não raro, indivíduos pertencentes a
grupos políticos e econômicos proeminentes da Colônia.
Um dos motivos que levava os leigos a ingressar numa Ordem Terceira
prendia-se com os benefícios espirituais proporcionados pelas várias indulgên-
cias a que tinham direito. Contudo, é fundamental que se conheça a formação
espiritual e os requisitos no interior dessas associações, as quais raramente esta-
vam isentas de conflitos, justamente por causa das exigências feitas pelos mem-
bros das Ordens Primeiras, responsáveis pelo cumprimento dos estatutos nas
suas respectivas ordens terceiras. Por esta razão, vale a pena recuar e conhecer
a dinâmica das associações em Portugal e o seu desdobramento na América
Portuguesa2.

2 As ordens terceiras tiveram, como é sabido, origem no período medieval. De todos os modos, na presente comunicação não é minha intenção fazer um

historial dessas associações, mas somente apontar alguns aspectos relacionados com a formação espiritual dos irmãos que chegaram ao Brasil-Colônia.

272
A formação Espiritual entre os irmãos terceiros carmelitas
e franciscanos em Portugal e na América Portuguesa:
as práticas cotidianas entre os irmãos terceiros

Momento chave para se entender a dinâmica das associações em Portugal é


a primeira metade do século XVII, no clima de grande religiosidade instaurado
pela Contra-Reforma. A formação dos irmãos terceiros franciscanos e carmeli-
tas nesse período em Portugal pautava-se por normas de extrema severidade. Ao
analisar os estatutos dos terceiros e das exigências impostas aos novos integran-
tes durante o período do noviciado, conclui-se que para ascender à categoria de
irmão professo o candidato devia passar por rigorosas provações. Exemplo: o es-
tatuto de 1646 da Terceira Ordem da Penitência de São Francisco de Lisboa, sob
a orientação dos frades da Regular Observância3, impunha aos novos integrantes
a obrigação de cumprir um ano de noviciado numa parte do convento destinado
aos terceiros. Depois de ser ali admitido, o irmão permanecia isolado do resto da
comunidade por oito dias de forma a meditar nos seus pecados e realizar as suas
práticas espirituais de renúncia pelas coisas do mundo.

E para se fazer com mais perfeição, tanto que o Noviço to-


mar o habito, será posto no noviciado, do qual não sairá
por espaço de oito dias, mais que a ouvir missa, […], &
das mais cousas será desobrigado, para melhor poder tratar
da sua confissão e o Mestre o poder industriar em algumas
cousas, fazer lhe suas praticas espirituais do desprezo do

3 A história dos franciscanos, como se sabe, é conhecida pelas suas várias ramificações em conformidade com a aplicação das suas regras. Em Portugal,

desde meados do século XIV, que se distinguiam duas tendências: a dos claustrais (ou conventuais) e os da observância. Os primeiros dispunham de

conventos amplos, normalmente em centros urbanos, quando não mantinham escolas nas suas dependências. Os segundos eram defensores da auste-

ridade e da pobreza dos seus edifícios. Além disso, privilegiavam em particular a pregação nas vilas e nos povoados. Em 1517 foi decretada pelo Papa

Leão X a divisão da ordem em duas partes: a dos Frades Menores da Regular Observância e a dos Frades Menores conventuais. Uma terceira Ordem

Franciscana surgiu na Itália em 1525, a dos Capuchinhos, com a proposta de extremo rigor na aplicação da observância. Os Conventuais, a pedido do

cardeal D. Henrique, regente do reino, foram extintos em 1567 e integrados na província observante de Portugal. Os franciscanos observantes passaram

a ser divididos em Regular Observância e Estrita Observância. Este último grupo desde logo adotou um estilo de vida mais austero. O primeiro contava

em solo lusitano com três províncias: Portugal (1517), Algarves (1532-1533) e São João Evangelista (1639-1649). O segundo, da Estrita Observância,

dividia-se em cinco províncias: Piedade (1517-1518), Arrábida (1560), Santo António (1568), Soledade (1673) e Conceição (1705-1706). É importante

realçar que, no tocante às questões administrativas, as províncias dependiam exclusivamente do Governo central da ordem, sem laços jurídicos entre

si. MOREIRA, António Montes. Franciscanos. In: AZEVEDO, Carlos Moreira (Dir.). Dicionário de História Religiosa de Portugal. Lisboa: Círculo de

Leitores, 2000, pp. 273-280.

273
mundo & louvor da vida religiosa, conforme vir que con-
vém os principio do seu estado4.

A lista do “enxoval” prescrita ao postulante é por si suficientemente ilustra-


tiva das práticas então adotadas:

[...] Ordenamos que cada Noviço traga hum habito &


huma túnica, hum cordão, tres bragas & algumas camisas
para quando estiver doente: traga tambem hum colete, &
huãs meias de pano da cor do habito para amparo do frio.
Hua cama inteira, a saber, hum enxergão, hum colchão
duas cobertas, hum cobertor, & para a enfermaria dous
lanções, & hum travesseiro: huma candea, hum Breviario,
duas contas, huas disciplinas, hum silício, & duas toalhas
de mãos. Tambem há de gastar os sapatos de todo aquelle
anno por sua conta5.

Da lista faziam parte, como se pode ver, o hábito, os cilícios, as disciplinas e


o breviário da Ordem, o que tudo junto nos dá uma idéia da formação espiritual
a que obedecia semelhante ritual de passagem. Finalizado o período de novicia-
do, a profissão na Ordem ficava dependente do parecer do mestre de noviços
e do parecer do comissário da Ordem e da Mesa. Dado o grau de severidade e
exigência de reclusão no convento, o Estatuto impunha o preceito de só serem
admitidos irmãs e irmãos solteiros, os quais ficavam automaticamente impos-
sibilitados de sair do convento e confinados no espaço fechado e exclusivo à
formação dos irmãos.

4 Estatutos da Terceira Ordem da Penitencia da Regular Observancia de Nosso Padre S. Francisco neste Reyno de Portugal. Ultimamente confirmados e

Aprovados pello Diffinitorio em o Capitulo Provincial que se celebrou em o Convento de Nossa Senhora de Jesus em Lisboa a 28 de outubro de 1646, p. 7,

grifo meu.

5 Idem, grifo meu.

2 74
A primeira cousa que supõem a Regra neste Capitulo segun-
do, he que os Noviços hão de ter hum anno inteiro de appro-
vação, como dispõem o Sagrado Concílio, porque de outra
maneira a profissão será invalida. E para que este Decreto se
cumpra com mais inteireza, ordenamos q o Noviço depois
de receber o habito continuará o ano de noviciado sem
interrupção alguma. E neste ano não poderá ser man-
dando fora do Convento, senão em comunidade a procis-
sões geraes. E o superior que o contrario fizer, seja privado
de voz activa e passiva por seis anos. E o Noviço que se sair
por razão de enfermidade, ou outra causa, tornando a ser
recebido, perderá o tempo, que teve o habito, e não se lhe
será levado em conta6.

Observa-se assim que o postulante à condição de terceiro tinha que cum-


prir um período de verdadeira provação, durante o qual não faltavam as práticas
ascéticas que faziam parte da sua formação e desprendimento do mundo. Os
Estatutos da Ordem Terceira de São Francisco de Lisboa de 1646 exigiam do ir-
mão terceiro uma vida similar à de um religioso da Ordem Primeira, enquanto a
Regra desta última Ordem, datada de 1660, é mais flexível a já admitia mulheres
e homens casados, além de não mencionar a necessidade de reclusão absoluta no
período do noviciado. Isto, não obstante persistir no interior de seus templos em
sem número de práticas ascéticas e exercícios espirituais.
Cumprida a profissão, a vida dos irmãos continuava a reger-se por peni-
tências, como se pode depreender do capítulo V, «Das Disciplinas», da Regra
dos Irmãos Terceiros da Venerável Ordem Terceira da Penitencia de S. Fran-
cisco de Lisboa.

Todas as sextas feiras do anno e em quaresma, as segundas,


quartas e sextas, e na semana santa todos os dias se ajunta-
rão em o Convento e donde o não houver, em huma igreja
ou em huma herrmida, com licença dos curas & o Padre
Visitador, ou hum irmão sacerdote fará huma breve pratica
ou lerá hum livro de devoção e depois de [h]aver estado

6 Idem, grifo meu.

275
hum pouco em contemplação meditando o q esse há lido
se escondera o lume e terá disciplina, enquanto durar, dizer
de espaço e em tom devoto o Psalmo de Miserere mei Deus
com hum ato de contrição & oração de Nossa Senhora, &
pro peccatis & pelas almas do Purgatorio & todos juntos a
oraçam [sic] do Sudario & acabado isto fará sinal o Sacer-
dote, tiraram do lume e tornar-se-ão a suas casas7.

As mortificações e as práticas espirituais dos irmãos da Ordem Terceira do


Carmo não diferiam muito da de São Francisco. Em 1650 frei Pedro da Cruz Ju-
sarte publicou um livro intitulado Instrução Geral para o Caminho da Perfeição8,
dirigido aos mestres espirituais e irmãos terceiros da Ordem do Carmo, onde do
receituário que fornece se destaca igualmente a exigência rigorosa de reclusão
dos noviços numa parte do convento:

Ordenou Deus com sua divina providencia lugares separa-


dos dentro em sua igreja, onde seus amigos especiaes, tives-
sem couto, & amparo, fugindo aos perigos e desinquietações
do mundo e mais segura sua salvação.& posto que o Senhor
esta em toda parte, como elle confessa pelo próprio profeta
Jeremias. [...] Contudo, nestes lugares que são os conventos
dos Religiosos, tem especial assistência e mostra particu-
lar governo e amparo, como em casa e morada própria9.

Mais à frente, frei Jusarte justificava a reclusão nos seguintes termos:

Neste lugar santo, onde o senhor tem particular assistência


& o noviço fica mais perto pela graça & favores que lhe co-
munica [m], viva com maior cautela e vigia para não cahir e
sempre se conservar em sua amizade e amor10.

7 Regra dos Irmãos Terceiros da Sancta e Veneravel Ordem Terceira da Penitencia que Instituiu o Seraphico P. S. Francisco. Lisboa: Na officina de Antonio

Craesbeck, 1660, pp. 58-59.

8 JUSARTE, P. Frei Pedro da Cruz. Instrucção Geral para o Caminho Da Perfeiçam. Materia Necessaria Para Mestres Espirituaes e gente Pia: & particular

para a direcção da Terceira Ordem da Penitencia de N.ª Sra. do Carmo. Lisboa: Na Officina de Domingos Lopes Rosa, Anno 1650.

9 JUSARTE, P. Frei Pedro da Cruz, Instrucção Geral para o Caminho Da Perfeiçam. Op. cit, p. 127, grifo meu.

10 Id. Ibid., p. 133.

276
De igual modo ele dava orientações aos professos que nas suas casas qui-
sessem viver com «mais perfeição» e aconselhava-os a converter os seus apo-
sentos em “cellas de verdadeiros Religiosos, onde as armações são livros espiri-
tuaes, cilícios, disciplinas, rosários de contas e tudo o mais que nellas há cheira
a pobreza e penitencia”11.
Antes de se incorporar na Ordem Terceira do Carmo o candidato era subme-
tido a uma severa avaliação pelos encarregados dessa função e a sua vida sujeita
ao crivo da investigação para saber se cumpria, na realidade, com os pré-requisi-
tos impostos pela Regra. Ficavam impedidos de entrar todos quanto exercessem
determinadas profissões como os açougueiros, traficantes de escravos e ainda os
judeus, os mouros ou de outra «infecta nação», de acordo com a terminologia
da época. Também se investigava a vida moral do postulante. Como se sabe, tais
exigências eram adotadas não só nas ordens terceiras, mas igualmente nas pri-
meiras e segundas, incluindo algumas irmandades, como a do Santíssimo Sacra-
mento. Somente na segunda metade do século XVIII se registraram mudanças
gradativas nas cláusulas. Segundo o estatuto da Ordem Terceira da Penitência
de Lisboa, datado de 1660, o escrivão da comunidade anotava o dia e a hora em
que o noviço tomava o hábito, o nome do Prelado que o recebia, assim como o
nome pelo qual o noviço se identificava perante o mundo, além da sua filiação
e idade12. Este preceito de lançar no livro o nome profano do ingressante revela
que os noviços podiam adotar um sobrenome religioso, de resto uma prática
comum nas Ordens Primeiras. Assim o fez a irmã Maria, da Terceira Ordem da
Penitência da vila de Ericeira, que para «para trazer a Christo sempre em sua
viva lembrança escolheu o nome de Maria do Senhor»13. Do mesmo modo no
Brasil do século XVIII deparamos com alguns irmãos ou irmãs que adotaram
nomes religiosos para si próprios, dentre os quais se podem destacar Lourenço
de Nossa Senhora, fundador do Caraça, irmão terceiro de São Francisco, ou a
beata Jacinta de São José, ela mesma irmã terceira de São Francisco, fundadora
do convento das Carmelitas Descalças no Rio de Janeiro. Mas, essa não foi a
regra seguida pela maioria.
11 Id. Ibid, p. 140.-141.

12 Regra dos Irmãos Terceiros da Sancta e Venerável Ordem da Penitencia. Op. cit, p. 8.

13 MARIA SANTÍSSIMA, Frei Manoel. História da Fundação do Real Convento e Seminário de Varatojo, tomo. II, Porto: Oficina de Antonio Alvarez

Ribeiro, 1799, pp. 630-631.

277
Apesar das exigências impostas ao longo de um ano, no qual as penitências
ocupavam um lugar central, o noviço podia, mesmo assim, ao final não ser ad-
mitido na associação. Somente após a aprovação é que fazia a profissão na Or-
dem Terceira e, de fato, tornava-se um irmão. No século XVII a regra da Ordem
Terceira da Penitência de São Francisco de Lisboa, de 1660, continuava a exigir a
obediência aos superiores e o voto de castidade.
Os irmãos e irmãs depois que por espaço de hum anno inteiro trouxerem
o habito de aprovação (o qual há de ser de pano vil ao arbítrio do Provincial) se
sua conservação (h)ouver sido louvável em o Convento, onde tomarão o habito
de Noviços, de Conselho do Prelado e dos Discretos do mesmo Convento, serão
admitidos à profissão da dita Ordem: na qual profissão prometeram guardar os
mandamentos do Senhor, e satisfazer pelas transgressões que pello tempo em
diante cometerem contra esta Terceira Regra, tanto que pellos Prelados forem
admoestados, vivendo em obediência, sem próprio, e em castidade14.
Se a vida do irmão terceiro nesse período tendia a aproximar-se das práticas
de alguns religiosos das Ordens Primeiras, com o escoar do tempo é perceptível
nos estatutos um abrandamento das regras como consequência das dificuldades
de conciliar a vida mundana dos leigos com as exigências da vida religiosa. De
qualquer forma, no decorrer do século XVII, em Portugal, quando ainda se vivia o
clima de reforma instaurado pela Igreja católica e se fazia sentir uma atmosfera de
grandes exigências ascéticas sob o impulso de missionários das várias ordens, os
leigos assumiram o papel de grandes protagonistas e as associações terceiras cons-
tituíam um espaço de encontro nesse movimento de grande fermentação religiosa.
Como resultado da ação pastoral, nomeadamente de frades carmelitas des-
calços e de franciscanos – como os capuchos e os capuchinhos –, assistiu-se à
multiplicação de grupos de leigos que se reuniam para tornar efetiva a prática de
exercícios espirituais. Um dos melhores exemplos são os grupos de irmão tercei-
ros que se congregavam sob a direção dos frades do Varatojo para a prática da
oração mental nas igrejas das vilas e também nas casas dos leigos. Frei António
de São Diogo, da província de Portugal, que havia passado pelo Seminário do Va-
ratojo, assumiu a função de pregador, confessor e comissário visitador da Ordem
Terceira da Penitência de Santarém no ano de 1663. A ele se deve a condução dos

14 Regra dos Irmãos Terceiros da Sancta e Veneravel Ordem Terceira da Penitencia. Op. cit, p. 10, grifo meu.

278
irmãos terceiros no caminho das práticas ascéticas. Este frade abriu no convento
franciscano daquela vila uma escola pública de oração mental para os seculares,
«aos quaes exhortava a contemplação das cousas celestiaes e com tao maravilho-
so fructo e gosto dos mesmos que já antes de começar a Oração estava a igreja
cheia do povo»15. Segundo um cronista da Ordem, o frade Diogo acompanhado
pelos terceiros tomava três dias de disciplina. A residência dos irmãos convertia-
-se deste modo em Casa de Oração quando

dirigia almas devotas e santas nos atalhos rectos do espíri-


to, conduzindo-as à união com Deos, e ápices da perfeição
Christã. Succedendo que muitas destas almas justas depois
da Sagrada Comunhão ficavam por muitas horas amoro-
samente transportadas em Deos, gozando de seus favores
com Colloquios interiores16.

Ao publicar no final do século XVIII as memórias do frade Diogo, Frei Ma-


noel Maria Santíssima sabia quais as implicações de conduzir os leigos no ca-
minho da alta espiritualidade. Afinal de contas, várias mulheres já haviam sido
penitenciadas pelo Santo Ofício com a fama de embusteiras e falsa santidade. No
entanto, ao querer promover o trabalho missionário da Ordem, Fr. Maria San-
tíssima não deixou de delinear uma história da espiritualidade divulgada entre
os leigos. Não foi por acaso que muitas pessoas, principalmente terceiros em
Portugal, buscaram nas práticas ascéticas um caminho de descoberta de Cristo.
Na versão dos religiosos franciscanos, a ação de Fr. Diogo teve o poder de atrair
os leigos filiados à ordem terceira para exercícios de penitências, tal como o fez
na ordem terceira da Vila da Figueira:

Elle a fim de adiantar e fazer crescer o edifício, trazia com


suas mãos e a seus hombros pedras e outros materiaes, at-
traindo deste modo com seu exemplo nos Terceiros que fi-
zessem o mesmo. Com effeitos assim sucedeo17.

15 MARIA SANTÍSSIMA, Fr. Manoel. História da Fundação do Real Convento e Seminário de Varatojo, Porto, Of. de Antonio Alvarez Ribeiro, 1800, p. 457

16 MARIA SANTÍSSIMA, Fr. Manoel. História da Fundação do Real Convento e Seminário de Varatojo. Op. cit, p. 458.

17 Idem, 456.

279
Sem esquecer o caráter laudatório das crônicas, estas narrativas mostram
pelo avesso a divulgação dos exercícios espirituais entre os leigos. É o mesmo
Fr. Manoel de Maria Santíssima no tomo dois da sua História da Fundação do
Real Convento que, ao destacar o trabalho dos missionários franciscanos, enu-
merava vários homens e mulheres filiados nas Ordens Terceiras, os quais, sob
a direção de frades varatojanos, adotaram práticas ascéticas e um estilo de vida
pautado por orientações religiosas. Malgrado escrever no final do século XVIII,
Manoel de Maria Santíssima ainda guardava a mesma admiração pelo ideal de
espiritualidade dos frades varatojanos do século anterior, como o caminho para
chegar a Deus. Supliciar o corpo e mortificá-lo fazia parte da jornada espiri-
tual. Muitos outros nomes figuram na lista do cronista, dentre aqueles que se
dedicaram a uma vida de penitências, como D. Maria Joaquina de Lima que
«praticava silencio, usava de vestido humilde, e de cama dura, mortificava o seu
corpo, além de freqüentes jejuns com outras mortificações de pungentes cilícios
e flagelação de disciplinas, quando tinha saúde». D. Maria Joaquina morreu em
1795, já no final do séc. XVIII18.
Fr. Jusarte, no século XVII, havia explicado no seu livro, dedicado aos ir-
mãos terceiros do Carmo, as partes da oração mental que consistiam na «pre-
paração, lição, meditação e contemplação». Ele orientava os irmãos a lerem ou
a ouvirem algum trecho de um livro e a reterem tudo na memória de modo a
poderem meditar e contemplar19; e ensinava, por outro lado, a escolher os pontos
que lhes pudessem servir de maior proveito na meditação. De forma didática
explanava como fazer a oração:

quando se lê a meditação da glória, se acha mais fruto em


considerar a Christo crucificado, e se lhe põem diante esta
meditação com aproveitamento, deixe a consideração da
gloria e lance mão do ponto da Cruz, que de novo se lhe
offerece: à maneira do que vai à caça, e lhe saem muitas le-
bres juntas aquella segue que lhe parece pode matar, não
deixando caça segura pela duvidosa20.

18 Idem, tomo I, p. 605.

19 JUSARTE, P. Frei Pedro da Cruz, Instrucção Geral para o Caminho Da Perfeiçam. Op. cit, p. 329.

20 Id. Ibid., p. 330.

280
Além do mais, procurava dar a conhecer a diferença entre meditação e con-
templação. A meditação, dizia Jusarte, procedia do discurso do entendimento
e a contemplação consistia no conhecimento que a pessoa sente através da luz
interior, um dom de Deus. Todavia, avisava que

A contemplação onde as cousas parecem mais levan-


tadas, mais extraordinárias e milagrosas, como Visões,
Revelações, sentimentos e cousas semelhantes, será mais
alta, mas mais perigosa21.

No seu livro o autor explicava ainda as diferenças entre as formas de visão


e revelação. Fr. Jusarte foi um comissário da Ordem Terceira e quando escreveu
o seu livro teve a intenção ministrar uma boa formação aos seus orientandos
espirituais. Procurou distinguir as várias formas de visão, «seis delas naturais e
ordinárias e outras seis sobrenaturais e extraordinárias». Ele ensinava haver três
formas de conhecimento: a do sentido, a da imaginação e a do entendimento.

O conhecimento do sentido é quando a pessoa vê alguma


imagem pintada em um painel; o da imaginação, quando in-
teriormente se [vê] unida de alguma coisa absente, com hum
Christo crucificado; o conhecimento do entendimento, he
mais inteiro, e espiritual noticias de cousas, ainda que se não
vejam com imagem interior nem exterior, como quando se
está vendo hum crucifixo, ou imaginando em o interior, se
entende a bondade de Deus e o grande amor que padeceu22.

Vários livros se publicaram na Península Ibérica sobre este assunto. Não


só religiosos mas pessoas fora do claustro se interessaram em divulgar o caráter
do exercício oracional. Um livro da autoria de Domingos Velho, editado na pri-
meira metade do século XVII, ensinava estas práticas aos leigos. É curioso notar
uma indicação na folha de rosto com a seguinte menção: «Livraria dos Irmãos
Noviços»23. Provavelmente seria um exemplar de uso entre os irmãos da Ordem
21 Id. Ibid, p. 333.

22 Id. Ibid., p. 343.

23 VELHO, Domingos. Jesus. Princípio de Divino Amor & Considerações de Jesus. Escrito e Copilado por Domingos Velho formado em Canones pela

Universidade de Coimbra. Lisboa: Por Antonio Alvarez, 1625 (o exemplar consultado acha-se depositado na Biblioteca Nacional de Portugal).

2 81
Terceira do Carmo, tanto mais que nele consta a aprovação de Frei Estevão de
Sta. Ana do Carmo de Lisboa, de 1624, além de outras licenças requeridas. Para
motivar os fiéis, o autor apresentava o exemplo de mulheres que se dedicavam
ao uso da oração mental:

Antes deveis tomar o conselho e exemplo de muitas mu-


lheres, recolhidas, que há nesta cidade, umas de dez, outras
de vinte, outras de trinta, e mais anos, que há que se exer-
citam no exercício da consideração e meditação com varias
penitencias e algumas em que Deus obra muitas e grandes
cousas sobrenaturais, tidas e havidas por muito verdadeiras
e bem notórias a muitas pessoas que disto sabem24.

Logo a seguir Domingos Velho citava um frade carmelita e outro mercedá-


rio, ambos responsáveis pela condução de figuras femininas em tais exercícios,
as quais, segundo informa o autor, eram analfabetas:

E perguntem-lhe por onde começaram, para chegar a este


estado e a resposta esta às mãos, que foi pela consideração
e meditação. E fizeram muito serviço a Deus os Varões reli-
giosos, & de grande espírito, que industriaram algumas mu-
lheres nesta cidade, sem saberem elas ler, neste exercício de
consideração e meditação das quais posso dizer, (...)destes
Padres foram o Venerável e tido por Santo o Padre Frei Es-
tevam da Purificação da Ordem do Carmo; e o Padre muito
devoto e espiritual Frei Jorge da Ordem de Nossa Senhora
da Merces de Castela, que aqui residiu alguns tempos25.

Meditar na Paixão de Cristo foi uma ação bastante difundida pelos religio-
sos aos leigos e, sobretudo, aos irmãos terceiros. Não faltaram nestas práticas as
imagens de Cristo com representações da Via Sacra nos nichos das igrejas, em
particular nas igrejas do Carmo26. As esculturas do Senhor chagado serviam de
24 VELHO, Domingos, Jesus. Princípio de Divino Amor. Op. cit, f. 31v.º-32.

25 Id. Ibid., f. 32.

26 BORGES, Célia Maia. A Devoção à Paixão de Cristo entre os Franciscanos e Carmelitas e a influência sobre os Irmãos Terceiros em Portugal e no

Brasil Colônia. In: QUÍRICO, Tamara; ESCANO, Maria Isabel; CESAR, Aldilene. (Coords.) Imagens Cristãs. História, Arte e Práticas Religiosas. Rio de

282
objeto para impulsionar a imaginação e identificação do crente com o sofrimen-
to do Senhor no Calvário. Semelhante pedagogia com base no sofrimento de
Cristo esteve presente em várias localidades da Europa Católica. Louis Châte-
llier, por exemplo, mostra que no século XVII, na região germânica, era a «de-
voção por excelência do cristão católico»27. Perto de Augsburgo (na Baviera),
em 1682, uma mulher de 30 anos, integrante da Ordem Terceira de São Francis-
co, teve não só uma visão da Crucificação, como igualmente ela própria sofreu
as dores da Paixão28. Muitas outras mulheres na Península Ibérica, sobretudo
as ligadas às Ordens Terceiras do Carmo e de São Francisco, experimentaram
árduas práticas ascéticas e conheceram visões e revelações. Não foi por acaso
que algumas receberam duros castigos dos tribunais inquisitoriais, acusadas de
se fazerem passar por santas. A irmã terceira, Joana da Cruz, foi penitenciada
a açoites e degredo para o Brasil, em 1660, por «fingir visões e revelações» e
proferir proposições heréticas»29. Foi o confessor de outra irmã terceira de São
Francisco, Joanna Luiza do Carmelo, que depois ingressaria no convento do Real
Mosteiro de Santa Anna de Lisboa, quem escreveu os exercícios ascéticos de sua
orientanda espiritual:

[…] na Semana Santa, em sua mesma casa visitava com


uma cruz às costas, com huma corda de esparto aos pes-
coço, e com uma coroa de mesmo esparto cravada de alfi-
netes que lhe feriam a cabeça. [...] Porque na sexta feira lhe
era indispensável o Santo exercício da Cruz, que com re-
verentes prostrações e meditações profundas e com outras
santas cerimônias e ásperas penitencias, fazia no decurso
de duas horas e meia, em que vinha a ocupar a maior parte
da noite na contemplação dos Mistérios da Sagrada Paixão
e Morte do Senhor30.

Janeiro: Ed. Nau, 2015 (no prelo).

27 CHÂTELLIER, Louis. A Religião dos Pobres. As Fontes do Cristianismo Moderno. Século XVI-XIX. Lisboa: Editorial Estampa, 1994, p. 145.

28 Id. Ibid., p. 149.

29 AN/TT [Arquivo Nacional da Torre do Tombo, Lisboa]. Conselho Geral do Santo Ofício, Livro 436, fl. 194. «Joana da Cruz, Terceira, filha de Simão

Jorge, lavrador, natural de S.Pedro de Dous Portos, termo da vila de Torres Vedras,»

30 SACRAMENTO, Fr. Antonio do. Vida da Veneravel Madre e Serva do Senhor Soror Joanna Luiza do Carmelo, Religiosa da Ordem Terceira de São

Francisco no Real Mosteiro de Santa Anna de Lisboa. Lisboa: Na Officina dos Herdeiros de Antonio Pedrozo Galrão, Ano de 1751, pp. 47-48.

283
Também Joana Luiza, segundo o mesmo confessor, teria conhecido visões e
revelações. Idêntica situação se verificou com Ignes da Conceição, irmã da Or-
dem Terceira de São Francisco, que foi presa pela Inquisição de Lisboa, acusada
de ser uma embusteira por força das suas visões do plano celeste31. Em1658 a
irmã terceira Maria Antunes, de 50 anos, também recebeu pena de açoites e foi
condenada a seis anos no Brasil por dizer que sabia com quem Deus estava e
quem havia de se salvar32.
É possível identificar alguns livros que serviram de orientação aos leigos.
O livro Devoto Instruído na Vida e na Morte, redigido pelo franciscano Fr. Ma-
noel Maria Santíssima, da segunda metade do século XVIII, ensinava os fieis no
exercício da Via Sacra e o quanto podiam lucrar com as indulgências33. Chamo
a atenção que a edição que consultei, com data de 1787, tem no seu frontispício
esta indicação: «Este livro é de Anna Maria de Margarida de Santa Maria; Maria
do (ilegível) e Carolina da Conceição. Eis como o franciscano Maria Santíssima
fala do exercício da Via Sacra:

Não podemos duvidar que o santo exercício da Via Sacra he


huma das práticas da Piedade de maior agrado para Deos e
de sua Santissima Mae; de maior proveito para as Almas, e de
maior terror para o Inferno. Quem primeiro andou a Via-Sa-
cra foi Christo nos passos da sua Sacro Santa Paixão. Maria
Santíssima foi a primeira depois de seu Filho que a visitou, e a
visitava frequentemente (Mystica cidade). Quem a visita pode
lucrar todas as indulgências concedidas aos Lugares Santos
de Jesusalém, que são imensas e muitas Plenarias. Basta para
lucrar estas indulgências, e Graças, meditar algum espaço de
tempo em cada Cruz na Paixão do Senhor, fazendo no fim
de cada Meditação a cada Crum hum Acto de Contrição e
rezando hum Padre Nossos e Ave Maria. E não he necessário
que de huma a outra Cruz hajo o número de passos, que há
em Jerusalem nos lugares santos34.

31 BNP [Biblioteca Nacional de Portugal]. Reservados. COD. 1426. «Sentença proferida pelo Tribunal da Santa Inquisição de Lisboa contra Ignes da

Conceiçam, Terceira da Ordem de S. Francisco que se lhe leo na sala do mesmo Santo Oficio em 13 de maio de 1647», fls. 77-122v.º

32 AN/TT, Conselho Geral do Santo Ofício, Livro 436, fl. 125.

33 MARIA SANTÍSSIMA, Fr. Manoel de. Devoto Instruído na Vida e na Morte. Lisboa: na Officina de Antonio Gusmão, 1787 (3ª ed.).

34 Id. Ibid., pp. 283-284.

284
As várias meditações na Paixão de Cristo, as penitências e as orações prova-
velmente concorreram para fornecer aos leigos o caminho para se aventurarem
no mundo sagrado. A motivação religiosa, o uso excessivo da imaginação na
vivência da Via Crucis de Jesus no Calvário, tudo isso terá, em suma, contribuí-
do em muito para as experiências sensoriais daquelas pessoas. A fé no conteúdo
bíblico fornecia a chave para a entrada no mundo invisível. A consciência de
reviver a morte e a Paixão permitia a integração no mundo sagrado, pois ingres-
savam no mundo do ato fundador, ou seja, participavam do mito de origem,
como foi formulado por Mircea Eliade35.
Através dos ritos, da rememoração das passagens bíblicas que condensavam
o mito, da aproximação dos símbolos principais da religião, tudo isso propor-
cionava o retorno ao sagrado. Nesse aspecto, fundamental era a força da ima-
ginação. Henry Corbin, estudioso da espiritualidade islâmica e principalmente
do sufismo, enfatizou a imaginação como um elemento essencial para sondar a
experiência sagrada dos autores religiosos do Islã36. É a imaginação dos profetas
que os liga ao outro mundo. Diante deste fenômeno Corbin fala do intermundo,
ou seja da imaginação ativa ou agente que não significa provir do irreal ou da
ficção. É o mundo que se situa entre o mundo intelegível e o mundo sensível que
permite a experiência do fiel. De forma semelhante podemos pensar na força da
imaginação quando alguns dos irmãos e algumas beatas se aventuraram pela en-
trada no mundo sagrado, conduzidos quer pela meditação intensa nos suplícios
de Cristo, quer pelas práticas ascéticas, pois tudo isso induzia a mente a explo-
rar o encontro com os personagens sagrados. Nessa experiência, imaginação e
memória se uniam; uma e outra eram fecundadas pelo substrato moldado pela
cultura cristã que fertilizou as mentes ao longo dos séculos da história da Igreja.
Nesse processo, as imagens do barroco adquirem um papel não negligenciável.
Louis Marin sugere que as imagens permitem reenviar o fiel para outra rea-
lidade. pois tem o poder de tornar presente uma ausência, de enunciar e de sen-
sibilizar37. As imagens do barroco, por carregarem uma mensagem envolta numa
força dramática, possibilitavam conduzir o fiel para outro espaço de significação,

35 ELIADE, Mircea. O Sagrado e O Profano. [Tradução de Rogério Fernandes], São Paulo: Martins Fontes, 1992, pp.57-58.

36 CORBIN, Henry. Cuerpo Espiritual y Tierra Celeste. Del Irãn mazdeísta al Irán Chiíta. Madrid: Siruela, 2006, pp.20-22.

37 MARIN, Louis. Des Pouvoirs de L’Image. Paris: Éditions du Seuil, 1993, p. 11.

285
o ato de origem. Elas compunham o cenário que permitia integrar o mito ou o
acontecimento fundador38.
É justamente nesta perspectiva que se impõe analisar a meditação nas ima-
gens da Paixão no interior das capelas das ordens terceiras e que serviram de
suporte aos seus exercícios oracionais. Tanto na Península Ibérica, como na Co-
lônia, algumas imagens assumiram um papel fundamental como guias de orien-
tação para a meditação dos terceiros. Contudo, não se pode esquecer a impor-
tância de outras imagens de devoção dos terceiros, presentes nas suas igrejas,
entre as quais se destacam a de Nossa Senhora do Carmo, a de St.ª Teresa ( da
Ordem do Carmo), a de São Francisco (a receber as chagas de Cristo) e a de St.ª
Rosa de Viterbo, estas duas últimas na igreja de São Francisco que ofereciam aos
irmãos um suporte para enfrentar as várias adversidades. Não obstante, tratare-
mos da importância das esculturas que representavam a Paixão de Cristo pois
compunham parte das imagens que os conduziam na sua formação espiritual.

Os Irmãos Terceiros na Colônia

Um dos indícios ligados aos cultos da Paixão de Cristo na América Portu-


guesa é a organização dos altares das igrejas com as imagens da Paixão, fato tanto
mais saliente nas Ordens Terceiras do Carmo. As esculturas alojadas nos ni-
chos dos templos obedeciam ao que convencionalmente designamos Via Crucis,
as quais serviam para ajudar nos exercícios oracionais dos irmãos. Com efeito,
como bem assinalou William Martins, em quase todas as capelas dos irmãos
terceiros carmelitas se depara com a mesma matriz39. Tais casos podem ser vistos
nas igrejas dos terceiros do Porto, de São Salvador da Bahia ou mesmo do Rio de
Janeiro, onde a representação da Via Crucis com as figuras de Jesus no Horto, na
prisão, atado à coluna, o Senhor da Cana Verde e o dos Passos, estando ao centro
a imagem de Jesus crucificado40.
A força que irradiava das esculturas concentrada no sofrimento do Senhor
38 ELIADE, Mircea. Origens. Lisboa: Edições 70, p. 97

39 MARTINS, William de Souza. Membros do Corpo Místico. Ordens Terceiras no Rio de Janeiro(1700-1822). Tese de Doutorado em História, Univer-

sidade de São Paulo, 2001, pp. 266-267.

40 SARMENTO, Theresinha de Morais. Breve Relato Sobre a Igreja do Carmo. Anais do Museu Histórico Nacional. Rio de Janeiro, vol. XV, 1965, p. 260.

286
no Calvário crivado de chagas, por certo gerava nos irmãos uma grande como-
ção e exaltação na sua fé religiosa. Talvez por isso não fosse raro eles adquirirem
para si próprios imagens que usavam nas suas casas em rituais de devoção priva-
da. O irmão do Carmo, José Rodrigues Manso, falecido em 1808 no Rio de Janei-
ro, possuía entre seus pertences “um Calvário e cruz de cores, de madeira, com
sua imagem do Santo Cristo”41. Outro irmão, José dos Santos Porto, falecido em
1813, fez para os religiosos do Convento de Santa Teresa a doação testamentária
do “Senhor da Cana Verde e a Imagem do Senhor Crucificado com seu Véu de
Seda Roxa bordado [...]”.42
Interessante foi também o serviço dos chamados intercessores que os ir-
mãos requeriam em apoio das suas almas no além. Alguns exemplos oferecem
indícios do que foi a formação espiritual, certamente ministrada pelos frades aos
irmãos, como o desejo expresso pelo irmão Felipe de Santiago Ferreira, falecido
em 1741, que deixou exarada por escrito a vontade de, após a sua morte, se cele-
brarem missas, a maioria em honra da agonia de Cristo:

Ao Santíssimo Sacramento, seis; às três pessoas da Santíssi-


ma Trindade, três; ao Santo Nome de Jesus, cinco; às Cin-
co Chagas de Cristo Senhor Nosso, cinco; à Sagrada Mor-
te e paixão de Cristo, sete; em memória das três horas que
Cristo esteve na Cruz, três43.

William de Souza Martins analisou alguns testamentos lavrados pelos ir-


mãos e constatou que, no início da segunda metade do XVIII, entre as décadas
de 50 e 60, ainda aparecem algumas cláusulas reguladas por tais características.
Cita o exemplo do irmão Nogueira Silva, falecido em dezembro de 1758:

Declaro que se mandarão dizer por minha Tenção as Missas


seguintes: ao Santíssimo Sacramento, seis; às três Pessoas
Divinas, três; ao Santíssimo Nome de Jesus, cinco; às Cin-
co Chagas de Cristo Senhor Nosso, cinco; à Sagrada Mor-

41 ANRJ [Arquivo Nacional do Rio de Janeiro]. Inventários e Testamentos, maço 466, no 8.903, gal. B. Inventariado: José Rodrigues Manso (1808), f. 9.

42 ANRJ, Inventários e testamentos, maço 474, no 9.072. Inventariado: José dos Santos Porto (1813).

43 AVOTSF [Arquivo da Venerável Ordem Terceira de São Francisco], cód. A-II-1/1, Testamentos, cit., f. 35, apud MARTINS, William de Souza,

Membros do corpo místico. Op. cit, pp. 417-418, grifo meu.

287
te e paixão de Cristo Senhor Nosso, sete; em Memória das
três horas que Cristo esteve na Cruz, três; em Memória dos
Anos que Cristo andou no Mundo, 34; à Nossa Senhora, em
Memória da última Agonia que teve ao pé da Cruz, uma; à
Senhora Santana, três [...]44.

À luz do exposto, pode-se concluir que a difusão da oração mental e a va-


lorização do culto à Humanidade de Cristo estiveram na base de um amplo mo-
vimento que se amparou nos exercícios espirituais e se desenvolveu no seio de
várias ordens, entre as quais a dos carmelitas, carmelitas descalços e frades me-
nores (capuchos e capuchinhos). Herdeiros da devotio moderna, tal corrente,
surgida na Europa ao final da Idade Média, colocou ênfase na forte identificação
com Cristo sofredor45. O trabalho missionário desenvolvido por algumas ordens
religiosas deu relevo especial às práticas devocionais com a finalidade de sensi-
bilizar os fieis para o sofrimento de Jesus. Louis Châtellier chamou a esta forma
de atuação de “religião da cruz”. Foi a partir dessa pastoral que muitos leigos
em Portugal deram entrada em algumas ordens terceiras. Com base nessa pas-
toral que incentivava formas de devoção e de identificação com os sofrimentos
do Senhor, os religiosos propagavam as suas ações no sentido de sensibilizar os
fieis. Além da oração mental, promoveram procissões de penitência, onde não
faltaram os flagelantes que, encapuzados, se martirizavam com açoites em toda
a extensão das vias públicas. Foi o sucedeu em Cernache, Portugal, em 1742, em
cuja procissão «os rapazes, todos vestidos de branco, descalços, coroados de sil-
vas e nas mãos com [imagens de] santos, Cristo, ou caveiras ou contas [...] alguns
se iam açoutando, outros com disciplinas, outros levavam cruzes às costas (...»46.
Nesse mesmo ano a Ordem Terceira da Penitência da Chamusca saiu em cortejo:

Sahio da Santa caza da Mizericordia a cruz da penitencia


da Ordem 3ª acompanhada de alanternas, e em corpo de
communidade a seguia todo o povo em passos graves e bem
compassada. […]. No meio destas alas hião muitas pessoas

44 AVOTSF, cód. A-VII-1/2, Testamentos, cit., f. 63, apud MARTINS, William de Souza, Membros do corpo místico. Op. cit, p. 418.

45 DIAS, José Sebastião da Silva. Correntes de Sentimento Religioso em Portugal, Séculos XVI-XVIII, tomo I, Coimbra: Universidade de Coimbra, 1960,

pp. 11-14.

46 MASSARA, Mônica. Santuário do Bom Jesus do Monte. Fenómeno Tardo Barroco em Portugal. Braga: Confraria do Bom Jesus do Monte, 1988, p. 21.

288
com exemplares penitencias, levando às costas cruzes, ou-
tros com as mãos presas. Seguio-se o clero de sobrepelizes,
levando cada hum a sua alenterna, immediatos ao Santo
Christo de vulto grande, que o levava hum sacerdote des-
calço, com huns grilhões aos pés; ao pé da imagem hião
ajuntadas 4 vozes. No meyo destas alas hião os dous missio-
nários, hum no principio da procissão, outro quazi no fim
com os braços abertos, levando em huma mão o seu santo
Christo, em outra huma caveira. Com este concerto sahio
o campo este esquadrão de Deos para fazer guerra ao Dia-
bo; chegando a primeira rua, dizia hum dos missionários
em altas vozes, que se ouvião pelo silencio da noite mais de
meya legoa: Pecador que estás em pecado, lembra-te que
pode esta noite ser no inferno sepultado (grifo nosso)47.

Em Portugal sobram nos arquivos inúmeras descrições alusivas a tais pro-


cissões, também elas chegadas ao Brasil. Determinadas práticas de mortificação
corporal, habitualmente realizadas nas capelas de exercícios, no período quares-
mal, saltavam as fronteiras dos claustros e acompanhavam a saída dos préstitos
dos terceiros franciscanos e carmelitas, ou mesmo quando alguns resolviam pe-
nitenciar-se diante de todo o povo. Subsistem notícias dessas práticas até à década
de setenta do século XVIII. A 20 de fevereiro de 1773 o bispo D. Fr. Antônio do
Desterro resolveu proibir a presença de «penitentes de açoites» nas procissões.
As práticas ascéticas no interior das associações eram cobradas pelos comis-
sários. As instruções deixadas pelo comissário visitador, Frei José de Jesus Maria
na Ordem Terceira do Carmo de Mariana, em 1761, oferecem alguns indícios
sobre tais exigências:

todas as quartas do ano, depois das Aves Marias, oração


mental, disciplinas no fim do Advento e Quaresma; todas
as segundas, quartas, sextas, porém nas quartas[feiras] da
Quaresma e advento haverá de tarde Via Sacra sem disci-
plina nem oração48.

47 SANTOS, Eugênio dos. «Missões Populares e Festa Barroca: um Aspecto da Sensibilidade Colectiva». In Actas do I Congresso Internacional do

Barroco, vol. II. Porto: Universidade do Porto, 1991, p. 641-4 [especialmente p. 647] (grifo nosso).

48 Mariana, AEAM [Arquivo Eclesiástico da Arquidiocese de Mariana]. Livro Q-32, p. 28.«Registro da Pastoral que o Rm.º P.e Me. visitador e reforma-

dor geral mandou publicar na capela da Ordem em 24 de [maio]1761» (Agradeço a Nívea Maria Mendonça ter-me fornecido uma cópia do documento).

289
Contudo, não sabemos se todos cumpriam estes exercícios Alguns conflitos
dentro das associações vêm provar que nem sempre as relações entre comissários
e mesários se pautaram pela cordialidade e boa convivência. Por motivos vários,
registraram-se momentos de grande tensão entre alguns irmãos e os membros
do clero regular aos quais estavam submetidos. Como salientou William de Sou-
za Martins em sua tese, alguns distúrbios marcaram a vida dessas associações,
como as que ocorreram nos anos de 1701, entre 1716 e 1740, 1757 e 1807 e 1817,
entre os irmãos terceiros franciscanos e a Ordem Primeira49. Ao lembrar esses
conflitos é nossa intenção mostrar que a vida devocional se cruzava muitas vezes
com interesses e disputas na comunidade religiosa, o que nem sempre colhia a
concordância de todos os irmãos.

Dos Exercícios às Punições Exemplares

A inobservância do estatuto, segundo a legislação da associação, acarretava


punições severas e exemplares. O visitador Frei José Jesus Maria registrou em
sua pastoral a pena a ser imposta aos desobedientes da Ordem Terceira do Car-
mo de Mariana:

Se algum irmão professo desobedecer à mesa fará 3 meses


penitencia publica com pedra ao pescoço e senão aceitar
depois de admostado 3 vezes se farão termo mandando o
avisar 3 vezes por irmãos que [sirvão] de testemunhas se
mandará [sentença] de expulsão da Ordem e não pode-
rá trazer habito e se for noviço o que desobedecer a mesa
[seja] logo expulso da Ordem e se for a seu mestre este dará
parte a mesa para ser penitenciado por tempo de 6 meses
beijando os pés aos irmãos com pedra ao pescoço50.

49 MARTINS, William de Souza. Membros do Corpo Místico, op.cit., p. 429. Esse livro faz uma ampla abordagem sobre o assunto.

50 Mariana. AEAM. Livro de registro de cartas patentes – Registro da Pastoral dada em visita na nossa capela de Nossa Senhora do Monte do Carmo da

cidade de Mariana, da visita aos 24 de março de 1761- Frei José de Jesus Maria Comissário visitador geral e reformador.

290
Eram os próprios irmãos da mesa os encarregados de mandar punir os fal-
tosos. O comissário visitador cobrava com rigor a aplicação das normas a que
estavam sujeitos todos os irmãos da Ordem. Por isso, a vistoria dos comissários
visitadores originava sempre grande apreensão51. As punições podiam, no en-
tanto, gerar conflitos como aconteceu no Rio de Janeiro com a Ordem Terceira
da Penitência de São Francisco. Nesse caso, o mal-estar resultou de uma punição
ordenada em 1719 pelo ministro da Mesa em exercício da Ordem. O irmão mi-
nistro Francisco de Seixas da Fonseca, extrapolando a sua competência, resolveu
sentenciar o sacristão Jerônimo de Barros e outros que serviam na mesma fun-
ção à pena de «seis meses de Noviciado», além da demissão do cargo, em virtude
de não terem armado “à sua custa a capela dos exercícios para a Semana Santa”52.
A esta dose punitiva, acrescentou outras severas penas corporais que consistiam
em «se lhe pôr um pão na boca e uma pedra pendurada ao pescoço, [com a qual]
correr[ia] a capela dos exercícios, e depois beijar[ia] os pés de todos os Irmãos
dos primeiros bancos, fora os da Mesa”. Quanto aos demais sacristãos, ficariam
todos isentos do “pão na boca”53.
Quem não concordou com a pena foi precisamente o frade comissário vi-
sitador que, juntamente com o notário apostólico exigiram a revogação da sen-
tença. Não obstante a discordância dos superiores da Ordem Primeira, os irmãos
mesários mantiveram o castigo. O reformador geral da província franciscana da
Imaculada Conceição e o visitador não aceitaram as razões alegadas pelos irmãos.
As situações de conflito, opondo os religiosos a alguns irmãos, não consti-
tuíam novidade na Ordem Terceira da Penitência. Esta Ordem havia atraído um
número considerável de postulantes à fraternidade e nem todos a ela ligados se dis-
punham a acatar os estatutos e muitos menos a prestar obediência aos Primeiros.
Geralmente tratava-se de homens poderosos que assumiam funções na mesa di-

51 Como se sabe, no séc. XVIII, na região mineradora, as Ordens Primeiras foram proibidas de se fixar no local. Por esta razão, os responsáveis pela

formação dos irmãos eram provenientes do clero secular e os frades do Rio de Janeiro faziam visitas periódicas a fim vistoriarem a aplicação das

regras. Sobre as visitas dos comissários aos terceiros em Minas, consultar a tese de EVANGELISTA, Adriana Sampaio. Pela Salvação da Minha Alma:

a Rememoração da Paixão de Cristo pelos Irmãos Terceiros da Capitania de Minas, Séc. XVIII. Doutorado em Ciência da Religião, Universidade Federal

de Juiz de Fora, 2007, pp. 195-196. Ano que diz respeito à restrição da circulação e fixação de sacerdotes regulares na Capitania de Minas, ver o livro de

BOSCHI, Caio César. Os Leigos e o Poder: Irmandades Leigas e Política Colonizadora em Minas Gerais. São Paulo, Ática, 1986, p. 82.

52 AHU [Arquivo Histórico Ultramarino, Lisboa], RJ, CA, n.º 3.842.

53 AVOTSF, Recopilador de Todos os Termos, Acórdãos, Resoluções, Mandados e Regulamentos das Administrações que Têm Presidido a Venerável Ordem

Terceira de São Francisco da Penitência da Corte e Cidade do Rio de Janeiro, Desde o Ano de 1640, fl. 28.

291
retora, sobretudo a de ministro (São Francisco), ou de prior (Carmo), cargos má-
ximos exercidos por leigos, o que desde logo gerava situações de embaraço e, por
vezes, de briga. Em causa estavam disputas de poder que se arrastavam, às vezes,
por anos seguidos. Alguns mesários reivindicavam autonomia, ainda que outros
irmãos considerassem a reclamação contrária aos estatutos e ao direito canônico.
O fato de terem usurpado a jurisdição do comissário e não aceitarem a
suspensão levou à expulsão do ministro Francisco Seixas da Fonseca e demais
mesários, visto terem alienado o dever inerente de apresentar o caso ao Padre
Comissário, para que este emitisse o seu parecer e a sentença final54.
Após a expulsão, o comissário empossou os antigos mesários da Ordem e os
irmãos rebelados passaram a ocupar então o hospício55 por eles construído com
capela própria e continuaram a realizar os seus atos de irmãos terceiros56. O caso
só terminou após a intervenção da Coroa que ordenou aos insubordinados que
voltassem a ocupar a capela do convento e se submetessem à autoridade dos reli-
giosos. No decorrer desta disputa apareceram outros atores; a mesa e os restantes
irmãos que tomaram o partido dos religiosos recusavam-se a receber os antigos
irmãos revoltosos como mesários. Na documentação da Província de Santo An-
tônio de Portugal, disponível no Arquivo Nacional da Torre do Tombo, coligem-
-se detalhes interessantes sobre o conflito, junto com notícias de tentativa de
reconciliação entre irmãos e religiosos mediante a promoção de um banquete 57.
Na mesma documentação pode-se ainda ler que os rebelados procuraram reali-
zar na capela os «exercícios de terceiros», mais os seus cultos.
Como já foi assinalado, este não foi o único caso de rivalidade a opor a co-
munidade fraternal aos seus superiores. Em 1701 o padre provincial fr. Miguel
de S. Francisco, de visita à Ordem Terceira, cobrou dos mesários a escrituração
dos livros, recriminou a ausência de irmãos às reuniões e, em meio a outras

54 AHU [Arquivo Histórico Ultramarino/Lisboa], RJ, CA, n.º 3842.

55 No século XVIII, como se sabe, hospício tinha um significado diferente do atual. Raphael Bluteau define assim a palavra: «Espécie de convento

pequeno de alguma família religiosa, em que se agasalh[am] os hóspedes da mesma religião, quando passam por algum lugar em que não tem convento

em forma» (BLUTEAU, Raphael. Vocabulario Portuguez e Latino, Aulico, Anatomico, Architectonico, Bellico, Botanico, Brasilico, Comico, Critico, Chimico,

Dogmatico, Dialectico, Dendrologico, Ecclesiastico, Etymologico, Economico, Florifero, Forense, Fructifero [...] Autorizado com Exemplos dos Melhores

Escritores Portugueses, e Latinos […], 10 vols. Coimbra: no Collegio das Artes da Companhia de Jesus, 1712-1728).

56 ANTT. O.F.M. Província de Santo Antônio, maço 7, macete 7 (a caixa contém vários documentos avulsos).

57 Idem.

292
repreensões, redigiu uma declaração de vinte e três pontos a lembrar a necessi-
dade de observância da Regra58. A questão dos castigos representava um sério
pomo de discórdia entre as partes. O ministro Manoel da Costa Moura e demais
mesários teimavam em ficar isentos de qualquer punição. O mesmo provincial
examinou a situação e deu o seguinte parecer sobre a matéria:

Concedemos-lhe que nas correções ordinárias, as culpas e


desobediências que cometem os Terceiros súditos toca ao
seu Visitador, com parecer do Ministro e Mesa, castigar com
as circunstâncias que a sua Regra aponta (...); porém, nas
extraordinárias, quais são as que cometeu o mesmo Minis-
tro, ou por si ou incorporado com a sua Mesa, não, porque
eles não podem ser Juízes de si mesmo; toca ao Provincial o
castigar estas, usando das admoestações do Evangelho (...).
E isto não querem os Terceiros admitir, e acham Doutores
da sua borla que lho aprovam, fazendo pôr em questão se o
Provincial é, ou não, o seu Prelado maior, e resolvendo que
não, porquanto o seu Comissário Visitador, segundo a sua
Regra, é só o que tem jurisdição diretiva sobre eles59.

Como se vê, o provincial questionava o poder dos irmãos. Argumentava que


eles não podiam ser juízes de si próprios e só aos superiores cabia puni-los. Outra
questão que suscitou desavenças foi o lançamento de hábitos aos irmãos noviços.
Frei Miguel de São Francisco determinou uma nova data e um novo horário para
o ritual; os irmãos de imediato se sentiram «esbulhados desta posse». Esta foi a
razão suficiente para os irmãos recorrerem ao «juízo da Coroa da cidade do Rio
de Janeiro a 6 de maio» de 170160. Tudo leva a crer ter sido a entrada em 1701
de um homem poderoso para a Ordem, Cláudio Gurgel do Amaral, bem como
sua eleição para o cargo de ministro da Mesa, em 1703, que fomentou mais ain-
da a rebelião contra o provincial61. Cláudio Gurgel era filho de uma das famílias
mais importantes do Rio de Janeiro, havia sido provedor da Fazenda Real, juiz da

58 RÖWER, Fr. Basílio. O Convento de Santo Antônio do Rio de Janeiro. Sua História, Memórias, Tradições. 3a ed. Petrópolis, Vozes, 1945, p. 92.

59 AVOTSF. Códice A-I-04/01, Memórias Históricas (1842), fl. 3.

60 MARTINS, William de Souza. Membros do corpo místico. Op. cit, p. 405.

61 RÖWER, Fr. Basílio. História da Província Franciscana [...], p. 46.

293
Alfândega, tendo ocupado cargos na Câmara62. No posto máximo da organiza-
ção, Cláudio, enquanto ministro, com o apoio de outros mesários que lhe eram
fiéis, contestou o novo estatuto apresentado pelos religiosos. Era prerrogativa dos
membros da Província da Imaculada Conceição do Rio de Janeiro elaborar os
estatutos dos terceiros, como já o haviam feito em 168463. A insubordinação do
irmão ministro deu lugar a que fosse condenado como “conspirador, caluniador
público e perturbador da paz e, por último, privado do Ofício e expulso da Or-
dem, junto com o secretário, mestre de noviços e mais pessoas”64.
Como ficou esclarecido atrás, a Ordem Terceira, longe de ser um espaço ex-
clusivo de devoção, era também um espaço de disputas de poder, restrito antes de
tudo a figuras detentoras de cargos diretivos. É certo que os estatutos das Ordens
Terceiras conferiram aos mesários prerrogativas de poder pelas quais eles podiam
punir os faltosos. Contudo, não é menos certo que alguns irmãos, por serem fi-
lhos das principais famílias do lugar, se sentiam tão fortalecidos no papel que
exerciam na sociedade e nas organizações religiosas, que eles próprios se queriam
furtar às penas da lei da organização. Numa palavra, rompiam, sempre que possí-
vel, os limites da hierarquia a que estavam submetidos em relação ao comissário
visitador, ao prelado provincial e ao sacerdote-geral da religião franciscana.
Outros conflitos pontuaram a vida dessas ordens em todo o decurso do sé-
culo XVIII65. Por exemplo, a luta para ter um sino próprio, ou ainda o direito de
serem amortalhados com seus hábitos de terceiros e não ficarem condicionados
ao hábito vendido pelos religiosos para cobrir os defuntos terceiros na sua últi-
ma morada. A busca de autonomia por parte da Ordem inscrevia-se na pauta de
reivindicação de muitas das mesas diretoras. Tudo indica que muitos irmãos as-
pirassem a ter para si todos os privilégios das Ordens Terceiras sem, no entanto,
aceitarem subordinar-se aos ditames dos membros das Ordens Primeiras.
Outro motivo de mobilização da mesa diretora foi a reivindicação em tor-
no da diminuição do período do noviciado. A Ordem Terceira do Carmo, do
Rio de Janeiro, na segunda década do século XIX, empreendeu grandes esforços
62 MARTINS, William de Souza. Membros do corpo místico. Op. cit, pp. 405-409.

63 Id. Ibid.

64 RÖWER, Fr. Basílio. O Convento de Santo Antônio. Op. cit, p. 92.

65 Sobre o assunto consultar o livro de MARTINS, William de Souza. Membros do corpo místico. Op. cit, pp. 405-444, pois este oferece inúmeros dados

sobre os conflitos nas Ordens Terceiras do Rio de Janeiro.

294
para reduzir, e até mesmo suprimir, o tempo de noviciado. Para tanto apresen-
tou vários requerimentos: a 10 de dezembro de 1816, no consistório da Ordem
Terceira do Carmo, os irmãos elaboraram uma carta ao provincial da Ordem,
frei Inocêncio Antonio das Neves Portugal, a solicitar uma licença para simpli-
ficar a profissão de novos membros66. Em 1817 os mesários conseguiram um
Breve que concedia à Ordem Terceira de N.ª Sr.ª do Monte do Carmo do Rio de
Janeiro «a faculdade de dispensar os candidatos à profissão, de parte do ano de
noviciado, até um máximo de dez meses»67. Mesmo abrangidos pela dispensa de
até dez meses, os irmãos não ficaram satisfeitos. A 5 de junho de 1818 os mesá-
rios encaminharam um novo requerimento, desta vez ao núncio apostólico em
Roma, a pedir a dispensa total do noviciado para os fieis que quisessem ingressar
naquela Ordem em determinados dias festivos, e pediram que lhes fosse conce-
dida a oportunidade de professar no ato da entrada. Alegavam que «se verificava
a impossibilidade por parte dos candidatos, todos negociantes ou artesãos, de
cumprir por dois meses as práticas do noviciado»68.
Ao atingir-se o final do século XVIII as ordens primeiras estavam enfra-
quecidas. O clero regular no decorrer de Setecentos havia sido alvo de uma série
de medidas adotadas pela política regalista portuguesa69. Se os jesuítas foram os
principais atingidos pelas mãos do Marquês de Pombal, o famoso ministro de D.
José, com a expulsão do Império Português, os demais membros do clero regular
também sofreram medidas adicionais, entre as quais a proibição de ingresso de
novos membros nas ordens religiosas e o levantamento de seus bens e rendi-
mentos. A dificuldade de repor novos quadros entre os regulares continuou no
reinado de D. Maria. Através do Decreto de 1789 que criou a Junta do Exame do
Estado Atual e Melhoramento Temporal das Ordens Regulares restringiu-se a en-
trada de noviços na vida dos claustros, o que fragilizou ainda mais a manutenção
do antigo ordenamento70.
É importante ressaltar que as pressões não eram só externas aos conventos.

66 Archivio SegretoVaticano [Roma/Vaticano]. Arch. Nunz.Lisbona. Cx. n.º 26 (3), fls. 202-202v.

67 Idem, fls. 204-205.

68 Idem, fls. 206 a 206v.

69 Sobre o período pombalino, ver FALCON, Francisco José Calazans. A Época Pombalina: Política Econômica e Monarquia Ilustrada, São Paulo, Ática,

1982, pp. 134-5; Também do mesmo autor, O Despotismo Esclarecido. São Paulo, Ática, 1986, p. 24.

70 SILVA, António. Supplemento à Collecção de Legislação Portuguesa: anno de 1763 a 1790. Lisboa: Tipografia Maigrense, 1844, p. 40 e p. 152.

295
No interior das próprias Ordens Primeiras os frades protagonizaram vários con-
flitos que podem ser detectados no convento de Santo Antônio e no convento
do Carmo do Rio de Janeiro, mas que fogem à proposta do presente trabalho71.
Diante deste cenário, os irmãos terceiros na Colônia aos poucos consegui-
ram impor mudanças nas suas regras, como por exemplo a redução do tempo
de noviciado e a obtenção de um sino próprio nas igrejas dos terceiros, situadas
ao lado dos conventos. Como se sabe, no caso particular da Ordem Terceira do
Carmo, a remoção dos frades que ocupavam o convento para nele se acolher a
família real acabou por facilitar a vida dos irmãos que ansiavam pela posse de
um sino nas suas torres.
Para concluir, é preciso frisar que os conflitos que agitaram as relações de
alguns membros das ordens terceiras e das ordens primeiras não significaram a
exclusão da devoção dos irmãos e nem mesmo significou o advento da secula-
rização. Significou sim o desejo de não submissão por parte de alguns irmãos à
autoridade e hierarquia representada pelos membros das Ordens Primeiras.
Contudo, a expressão devocional de alguns irmãos manteve-se independen-
te desses distúrbios. Ao longo do século XVIII comprovam-se grandes manifesta-
ções pessoais de fervor entre os terceiros. Alguns casos de irmãos do Carmo e São
Francisco que abraçaram uma vida ascética e se afastaram do mundo em meados
do século XVIII, são exemplos que merecem uma reflexão. A ação de Jacinta de
São José, mais a sua irmã, juntamente com outras mulheres que se recolheram
na Chácara da Bica e se entregaram a uma vida de intensas práticas ascéticas, são
outros tantos exemplos de irmãos que pautaram a sua vida pela busca intensa
do contato com o sagrado. Madre Jacinta, tal como ficou conhecida, também
teve visões e revelações, lutou de forma obstinada em meados do século XVIII
para criar o convento de Santa Teresa. Estes casos decerto não são únicos, outras
mulheres, outros homens, à sua maneira, se ampararam em práticas oracionais
divulgadas pelos religiosos. Entender esta dinâmica, as suas contradições e o seu
espaço de espiritualidade é, a meu ver, uma pesquisa que deve prosseguir de ma-
neira a chegar-se à compreensão do significado da vida religiosa na Colônia.

71 Relativamente aos conflitos entre os frades franciscanos da Província da Imaculada Conceição, ver o livro de MARTINS, William de Souza, Membros

do corpo místico. Op. cit,. Com respeito aos conflitos no convento de N.ª Sr.ª do Carmo da cidade do Rio de Janeiro, consultar o trabalho acadêmico de

Leandro Ferreira Lima da Silva, Regalismo no Brasil Colonial: A Coroa Portuguesa e a Província de Nossa Senhora do Carmo do Rio de Janeiro (1750-

1808). Dissertação de Mestrado em História Social. Universidade de São Paulo, 2013, pp. 70, 71, 81, 82.

296
C ON ST RU I N D O E DE S C ON ST RU I N D O
A S A N T I DA D E :
aproximando as “vidas” das madres Jacinta de São José
e Rosa Maria Serio de Santo Antônio

William de Souza Martins

1 – Exposição do problema e caracterização das fontes

No âmbito do projeto de pesquisa que se desenvolve há alguns anos sobre a


santidade feminina na América Portuguesa, já foram dedicados dois trabalhos
para analisar a atuação de Jacinta Rodrigues Aires, beata que viveu no Rio de
Janeiro setecentista, tornada mais conhecida como Jacinta de São José, alcunha
que passou a adotar quando se confinou no Recolhimento do Desterro, em 1742.
O primeiro artigo analisou o círculo familiar de Jacinta, bem como a rede ampla
de contatos que estabelecera, dentro e fora do clero, no Rio de Janeiro e na Corte
de Lisboa1. No segundo trabalho, foram abordadas mais diretamente as práticas
e representações religiosas da beata, salientando as tensões que provocaram no
campo religioso do período.2 Nos dois textos, ao analisar as relações mantidas
com os primeiros confessores ou ao abordar as visões celestiais manifestadas à
beata, com particular frequência e intensidade nos anos que permaneceu reco-
lhida na Chácara da Bica do Morro do Desterro, utilizou-se de maneira pon-
tual uma documentação de natureza hagiográfica: o capítulo que Balthazar da
Silva Lisboa inseriu nos Annaes do Rio de Janeiro (1835) e a Vida da serva de
Deus madre Jacinta de São José, publicada cem anos depois pelo frade carmelita
descalço Nicolau de São José.3 Em ambas as obras, nas quais é determinante a

1 MARTINS, William de Souza. Santidade feminina no Rio de Janeiro setecentista: fragmentos da vida e da experiência religiosa de Jacinta de São José

(1715-1768). Rever: Revista de Estudos da Religião (PUC-SP). São Paulo, v. 12, n. 1, jan./jun. 2012, p. 67-100.

2 MARTINS, William de Souza. Práticas do corpo e conhecimentos do além da beata fluminense Jacinta de São José (c. 1744-1754) In: ANDRADE,

Marta Mega de; SEDREZ, Lise; MARTINS, William de Souza. Corpo: sujeito e objeto. Rio de Janeiro: Ponteio, 2012, p. 155-180.

3 LISBOA, Balthazar da Silva. Fundação do Convento de Santa Teresa pela bem-aventurada Jacinta Rodrigues Aires, sobre a proteção do Conde de

Bobadela In: Annaes do Rio de Janeiro. Rio de Janeiro: na Typ. Imp. e Const. de Seignot-Plancher, 1835, tomo VII, p. 378-516. SÃO JOSÉ, Frei Nicolau

297
presença dos elementos da narrativa hagiográfica, foi possível identificar passa-
gens inteiras que remetem aos escritos de Santa Teresa d’Ávila, um dos principais
modelos de santidade que pautou as ações da beata Jacinta de São José.
Tomando como ponto de partida os textos acima citados, a intenção do
presente trabalho é apurar e ampliar a análise das visões de Jacinta contidas nas
obras de seus hagiógrafos. Para tanto, além do relato de Balthazar da Silva Lis-
boa, será também trabalhada a “Vida da Madre Jacintha de S. José”, manuscrito
inédito de 1819 depositado no Arquivo do Convento de Santa Teresa do Rio de
Janeiro.4 Partindo do pressuposto que as narrativas de caráter hagiográfico são,
de um modo geral, padronizadas e estereotipadas, propõe-se aqui a hipótese de
que algumas das visões de Jacinta atualizavam representações celestiais contidas
em diversos modelos de santidade feminina. Na medida em que tais protótipos
tinham recebido a chancela oficial das autoridades eclesiásticas, representavam
um caminho seguro para que outros fiéis modelassem as próprias ações e re-
presentações em função daqueles modelos.5 Além dos escritos de Santa Teresa
d’Ávila, já cotejados em outro lugar, a biblioteca de Jacinta de São José continha
outras narrativas de caráter piedoso e hagiográfico que talvez tenham servido à
beata como fonte de inspiração autorizada para as suas ações.6 De modo análo-
go, tais obras podem ter fornecido aos hagiógrafos e cronistas da trajetória de
Jacinta de São José um vasto repertório de representações e visões padronizadas,
que podiam ser assimilados e adaptados à vida da beata fluminense.
Na lista dos livros antigos pertencentes ao Convento de Santa Teresa do Rio
de Janeiro, do qual Jacinta de São José é considerada fundadora, Leila Mezan Al-
granti identificou nove obras que foram provavelmente do uso pessoal da beata.7

de. Vida da serva de Deus madre Jacinta de São José. Rio de janeiro: Cia. Mendes Jr., 1935.

4 Agradeço a Allan Rodlpho Amaral Vilela de Queiroz a oferta de uma cópia do manuscrito original.

5 JORDÁN ARROYO, María V. Sonhar a História: risco, criatividade e religião nas profecias de Lucrecia de León. Bauru (SP), Edusc, 2011, p. 168: “as

pessoas estavam geralmente familiarizadas com os critérios qualificadores usados pelos teólogos, podendo apropriar-se dos mesmos e utilizá-los para

pintar um quadro que correspondesse ao modelo de santidade projetado pela ortodoxia”.

6 Segundo Leila Mezan Algranti, da lista de 115 livros antigos do Convento de Santa Teresa do Rio de Janeiro, “nove trazem alguma informação

indicativa de que possivelmente pertenceram à Jacinta, ou foram manuseados por ela”. Ver Jacinta de São José: a biblioteca de uma mística na América

Portuguesa In: Livros de devoção, atos de censura. Ensaios de História do livro e da leitura na América Portuguesa (1750-1821). São Paulo: Hucitec:

Fapesp, 2004, p. 84.

7 ALGRANTI, Leila Mezan. Jacinta de São José: a biblioteca de uma mística na América Portuguesa In: Livros de devoção, atos de censura. Ensaios de

História do livro e da leitura na América Portuguesa (1750-1821). São Paulo: Hucitec: Fapesp, 2004, p. 88.

298
Entre as nove, foi selecionada uma, cujo exame prévio se mostrou mais adequa-
do para confirmar as hipóteses esboçadas acima: a Vida da veneravel madre Rosa
Maria Serio de Santo Antonio. A obra em questão, da autoria do padre jesuí-
ta italiano Giuseppe Gentile, fora editada primeiramente em Roma em 1738, e
nesta cidade e na de Veneza foi reimpressa diversas vezes.8 A primeira tradução
para o português, de onde se origina o exemplar de uso pessoal de Jacinta de São
José, realizou-se em 1744. Vários repertórios bibliográficos apontam que a obra
foi bem recebida em Portugal, sendo novamente publicada em 1749 e em 1762
e, talvez, em 1746.9
Antes de efetuar uma comparação mais sistemática entre as duas narra-
tivas que dão conta das vidas das madres Rosa Maria Serio e Jacinta de São
José, cabem ainda alguns esclarecimentos acerca da trajetória da freira italiana.
Devem ser acrescentados também detalhes a respeito da recepção em Portugal
da obra do jesuíta Giuseppe Gentile. Segundo o site oficial da Ordem do Carmo,
as informações apuradas por Daniele Bolognini no site Santi, Beati e Testemoni, e
a própria Vida elaborada pelo jesuíta italiano, Romana Serio nasceu em Ostuni a
6 de agosto de 1674, filha do médico Antonio Serio e de Francesca Spennati. Em
1690, ingressou no Recolhimento de Fasano, juntamente com uma irmã mais

8 No site catalográfico WorldCat (www.worldcat.org) estão identificadas doze diferentes edições da Vitta della venerabile madre Rosa Maria Serio di S.

Antonio Carmelitana della’Antica Osservanza e priora del Monasterio di S. Giuseppe di Fasano, baliaggio della Religione di Malta nella Provincia di Bari del

Regno di Napoli. Scritta da Giuseppe Gentili della Compagnia di Gesu. A primeira edição foi impressa em 1738 em Roma Nella Stamperia del Komarek,

constando do mesmo ano três outras edições pela mesma oficina tipográfica. No site da Sophia University (http://www.sophia.ac.jp/eng/research/

library/search/Database-Search), pode-se identificar uma edição de 1743 impressa também em Roma. Retomando os dados do WorldCat, verifica-se

que a obra do padre jesuíta foi impressa em Veneza por Gio. Battista Recurti em 1741, 1742 (duas edições) e 1747. Por fim, impressas em Roma e Milão

na Stamperia de Pietro Francesco Malatesta, constam quatro edições de 1741.

9 O título completo da primeira edição em português é Vida da venerável madre Rosa Maria Serio de Santo Antonio, Carmelita da antiga Observancia,

e Priora do Mosteiro de S. José de Fazano, Baliado da Religião de Malta, na Provincia de Bari do Reyno de Napoles: escrita pelo padre Jozé Gentil da

Companhia de Jesu, dedicada à Princeza de Portugal N. S. e traduzida de Italiano em Portuguez pelo padre D. Jeronymo Contador de Argote, Clérigo

Regular. Lisboa: na Officina de Francisco da Sylva, Anno 1744. O exemplar aqui utilizado foi o de uso pessoal de Jacinta de São José, cuja consulta foi

facultada por Allann Rodolpho Amaral Vilela de Queiroz. No site da Biblioteca Nacional de Portugal (porbase.bnportugal.pt), consta ainda uma edição

de 1749, impressa em Lisboa na Oficina de Bernardo Antonio, e uma segunda edição de 1762, dada à estampa em Lisboa por Francisco Borges de Sousa.

Ver também SANTOS, Zulmira C. Fontes para o estudo da santidade em Portugal na Época Moderna. Porto: Faculdade de Letras da Universidade do

Porto, 2013, p. 38. MENDES, Paula Almeida. “Vidas”, “Histórias”, “Crônicas”, “Tratados”: sobre a escrita e a edição de hagiografias e biografias devotas

em Portugal (séculos XVI-XVIII). Lusitania Sacra. Lisboa, n. 28, jul.-dez. 2013, p. 206. A segunda edição de 1762 pode também ser consultada na

Biblioteca Nacional do Rio de Janeiro. RODRIGUES, A. A. Gonçalves, também indica uma edição de 1746, impressa por Francisco da Sylva. Ver

A tradução em Portugal. Tentativa de resenha cronológica das traduções impressas em língua portuguesa excluindo o Brasil de 1495 a 1950. Lisboa:

Imprensa Nacional-Casa da Moeda, 1992, vol. 1, p. 128.

299
velha. Anos depois, mais três irmãs de sangue entraram no mesmo Recolhimen-
to feminino onde, após cumprirem o período de noviciado, tomaram o hábito
da Ordem Terceira do Carmo. Por ocasião da profissão religiosa, a superiora do
Recolhimento pôs em Romana o nome de Rosa Maria, que passou a usar desde
então. Em 1698, o Recolhimento foi transformado em Mosteiro com clausura
regular, sob a Regra da antiga observância da Ordem do Carmo, segundo as
Constituições de Santa Maria Madalena de Pazzi. Após um período de prolonga-
da doença, madre Rosa Maria Serio veio a falecer no mesmo mosteiro em 1726,
com fama de santidade.10 Em 1741, alguns anos após a publicação da primeira
edição da Vita de Giuseppe Gentile, foi introduzida a causa de beatificação da
serva de Deus.11 Entretanto, em 1746, a causa foi suspensa pela Sagrada Congre-
gação dos Ritos, devido a uma relação contrária enviada pelo bispo de Ostuni, D.
Luchino del Verme.12 Em decorrência dessa decisão, a obra do jesuíta Giuseppe
Gentile foi colocada no Index dos livros proibidos, ainda que tenha sido editada
em italiano uma vez mais em 1747.13
Em Portugal, o percurso da Vida da veneravel madre Rosa Maria Serio se
mostrou também acidentado. Conforme já foi visto, a tradução do original ita-
liano foi publicada primeiramente 1744. Elaborou-a Jerônimo Contador de Ar-
gote que, nascido em 1676, tinha vestido em 1688 a “roupeta de Clérigo Regular
Teatino em a Casa de Nossa Senhora da Divina Providência” de Lisboa. Mais
tarde foi admitido à Academia Real da História Portuguesa, onde foi designa-
do por D. João V para escrever as memórias históricas do Arcebispado de Bra-
ga, publicadas entre 1732 e 1734. A Vida da veneravel madre Rosa Maria Serio
foi dedicada à Sereníssima Princesa do Brasil D. Mariana Vitória, casada com o
príncipe D. José herdeiro da Coroa.14 Segundo o esclarecimento inicial do clérigo

10 Ver Ocarm.org/it/contente/liturgy/ven-rosemary-maria-serio; GENTIL, Jozé, Vida da veneravel madre Rosa Maria Serio. Op. cit, p. 1-15;

11 Bullarium carmelitanum plures continens summorum pontificum, litteras, et constitutiones ad Ordinem Fratrum Beatissimae, semper que Virginis Dei Ge-

netricis Mariae de Monte Carmelo spectantes (...) Pars Quarta a Clemente XI usque ad Clementem XIII. Romae, 1768, Ex Typographia Hermathena, p. 303.

12 Segundo Ludovico PEPE, quando o bispo de Ostuni encontrava-se doente com perigo de morte, arrependeu-se dos danos injustamente causados

ao processo da madre Rosa Maria Serio, elaborando uma retratação a favor da freira que foi publicada pelo cronista. Ver Memorie Storico-Diplomatiche

della Chiesa Vescovite di Ostuni. Valle di Pompei: Scuola Tipografica Editrice Bartolo Longo, 1891, p. 164-166.

13 BUJANDA, J. M. de. Index Librorum prohibitorum, 1600-1966. Montréal: Médiaspaul; Genève: Droz; Sherbrooke: Centre d’Études de la Renaissance,

2002, p. 377.

14 MACHADO, Diogo Barbosa. Bibliotheca Lusitana Historica, Critica e Cronologica. Na qual se compreende a noticia dos autores portugueses, e das

obras, que compuzerão desde o tempo da promulgação da Ley da Graça até o tempo presente (...). Tomo II. Lisboa: Na Officina de Ignacio Rodrigues,

300
teatino, a iniciativa da tradução da obra se deveu a uma encomenda feita pela
própria Princesa do Brasil.15
Estimada no princípio pela Corte de Lisboa, mais tarde a Vida da venera-
vel madre Rosa Maria Serio foi rejeitada pelo mesmo círculo áulico. Em Por-
tugal, as interdições proclamadas pela Santa Sé aparentemente não represen-
taram um obstáculo para a circulação da obra do jesuíta Giuseppe Gentile,
registrando-se o aparecimento de uma nova impressão da Vida em 1749 e de
uma segunda edição em 1762, conforme já se salientou. No reinado de D. José
I, após a iniciativa de expulsão dos membros da Companhia de Jesus dos terri-
tórios portugueses, uma série de medidas foi adotada pelo gabinete pombalino
para anular a influência cultural ainda exercida pelos jesuítas. A partir de 1759,
ocorreu a proibição de diversos livros de Gramática Latina adotados nos colé-
gios da Companhia. A publicação em 1768 da Dedução cronológica e analítica
que, atribuída ao procurador da Coroa José Seabra da Silva, se tornou a prin-
cipal peça da propaganda anti-jesuítica, assim como a criação da Real Mesa
Censória, ampliaram o leque das proibições. O título X do Regimento do novo
tribunal régio determinava a proibição em geral das obras dos jesuítas, “por se
fundarem sobre a simples autoridade das opiniões, não só como favorecedoras
da ignorância, mas também como perniciosíssimas à Igreja e Monarquia”.16
Em 1771, diversos editais da Real Mesa Censória proclamaram a interdição de
um grande número de obras dos membros da Companhia de Jesus. Segundo a
análise de Payan Martins, havia três graus distintos de interdição: a supressão
pura e simples, em decorrência das “perniciosas e péssimas doutrinas” que
continham; a simples proibição, ficando ao critério da Mesa permitir a even-
tual posse ou leitura dos livros em questão; por fim, as obras cuja “doutrina” ou
“qualidade” requeriam um tratamento diferenciado, “afixando-se uma nota no
princípio de cada um dos volumes em que se dissesse que em tal e tal passagem
se não devia estar pela doutrina e sentimento do autor”.17
No edital datado de 10 de junho de 1771, a Vida da veneravel madre Rosa
Anno de 1747, p. 493-494. SILVA, Maria Beatriz Nizza da. D. João V. Lisboa: Círculo de Leitores: Centro de Estudos dos Povos de Expressão Portuguesa

da Universidade Católica Portuguesa, 2009, p. 48-53.

15 GENTIL, Joze. Vida da veneravel madre Rosa Maria Serio. Op. cit, [f. 1-5].

16 MARTINS, Maria Teresa Esteves Payan. A censura literária em Portugal nos séculos XVII e XVIII. Lisboa: Fundação Calouste Gulbenkian, 2005, p. 520.

17 Id. ibid, p. 538.

301
Maria Serio de Santo Antonio recebeu o grau de proibição mais elevado, ao lado
de cinco outras obras, em que se destacam o Desengano dos pecadores (1765)
do padre jesuíta Alexandre Perier e a Vida do veneravel padre Belchior de Pontes
(1752), de autoria do padre Manoel da Fonseca. O edital determinava “que todos
os exemplares dos sobreditos livros de qualquer edição sejam entregues na Se-
cretaria da Real Mesa Censória no preciso termo de trinta dias para nela serem
suprimidos”.18 Justificou-se a severa proibição com os seguintes argumentos:

Além de conterem respectivamente doutrinas errôneas, ten-


dentes a inspirar o temor propriamente servil e a contaminar
alguns artigos de fé com interpretações sofísticas; neles por
outra parte se manifesta corrompida a piedade com relações
apócrifas, falsos exemplos, sucessos extraordinários, meras
ilusões, afetos indecentes e ditames perigosos, tão alheios do
espírito da Igreja, e da verdadeira mística, como incompa-
tíveis com uma sólida, saudável e bem regulada devoção.19

Uma vez esclarecido minimamente o percurso de uma das fontes que serve
de base à análise comparativa aqui empreendida, falta fornecer detalhes sobre
os registros de caráter narrativo que documentaram as atividades de Jacinta de
São José. Conforme já foi assinalado, o testemunho básico a ser utilizado nesta
parte é a “Vida da Madre Jacintha de São José”, manuscrito com data de 1819 e
elaborado por frei João dos Santos, religioso carmelita descalço. Evidentemente,
seria anacrônico pensar na “Vida da Madre Jacintha” como um texto biográfico
convencional, na medida em que as convenções da narrativa hagiográfica se fa-
zem presentes em diversos pontos da “Vida”. Esta se constitui antes “como uma
narração edificante na qual os mínimos incidentes de sua vida são signos e sinais
sobrenaturais de sua ascensão rumo à virtude e à santidade”.20 O manuscrito, de-
positado no Arquivo do Convento de Santa Teresa do Rio de Janeiro, se estende
por 114 fólios manuscritos, e se encontra agrupado com outros dois documentos

18 Biblioteca Nacional do Rio de Janeiro, Obras Raras, 088, 04, 17, n. 14. Edital da Real Meza Censoria. Lisboa: Regia Officina Typographica, 1771, p. 2.

19 Id. Ibid., p. 2.

20 PAZ, Octavio. Sóror Juana Inés de la Cruz. 2. ed. São Paulo: Mandarim, 1998, p. 97. O comentário do autor foi elaborado tendo em vista a narrativa de ca-

ráter análogo que o jesuíta Diego Calleja publicou sobre a freira Juana Inés de la Cruz; ALGRANTI, Leila, Livros de devoção, atos de censura. Op. cit, p. 62-63.

302
que também dão conta das atividades de Jacinta de São José.21
A atribuição da autoria a frei João dos Santos é também problemática. O
suposto autor reconhece que a narrativa que apresentava tinha pouca diferença
com aquela elaborada pelo padre José Gonçalves, meio-irmão e colaborador di-
reto da beata fluminense.22 Em uma parte chave do manuscrito, onde aparecem
descritos os colóquios e visões espirituais de Jacinta de São José, o frade carme-
lita João dos Santos reconhece ainda ter se apoiado nas informações de outro
confrade, frei Manoel de Jesus, que durante 1744 e 1745 acompanhara de perto
as atividades da beata como diretor espiritual: “até aqui no que toca a revelações
e coisas extraordinárias é do Padre Frei Manoel de Jesus, Religioso carmelita
Descalço que foi confessor da dita Madre Jacinta de São José, o que procurei tirar
fielmente segundo achei escrito de própria letra”.23 E é justamente o trecho que
se supõe baseado nas observações do confessor de Jacinta o que mais se apro-
xima das visões da Vida da venerável Rosa Maria Serio, a cuja primeira edição
portuguesa publicada em 1744 Jacinta teve acesso. Sem querer antecipar o prin-
cipal tema de discussão do artigo, deve-se salientar que a escritura de frei João
dos Santos se parece muito mais com o trabalho de um compilador, articulando
narrativas diversas de confessores que tinham mantido um contato direto com
Jacinta, assim como das recolhidas do Recolhimento do Desterro e das freiras
do Convento de Santa Teresa. De modo análogo, características semelhantes po-
dem ser encontradas nas narrativas de cronistas mais recentes das atividades da
madre Jacinta de São José, como Balthazar da Silva Lisboa e frei Nicolau de São
José, cujas obras se pautaram diretamente no manuscrito de frei João dos Santos.
Com numerosas edições em italiano e publicada em Lisboa em 1744, a Vida
da veneravel madre Rosa Maria Serio de Santo Antonio estava desde então dispo-
nível à própria Jacinta e a todos os confessores e diretores espirituais que regis-
traram as visões da beata: o frade carmelita descalço Manoel de Jesus, o padre
secular José Gonçalves e o frade carmelita descalço João dos Santos. A hipóte-
se mais plausível para explicar o interesse que Jacinta manifestou pela obra do
padre Giuseppe Gentile se encontra na semelhança entre os dois personagens.
21 Uma cópia foi gentilmente cedida por Allann Rodolpho Amaral Vilela de Queiroz. O título completo do manuscrito em análise é “Vida da Madre

Jacinta de São José, Fundadora das Terésias da Cidade do Rio de Janeiro, escrita por Frei João dos Santos, Carmelita Descalço. 1819”.

22 Arquivo do Convento de Santa Teresa do Rio de Janeiro, Vida da Madre Jacinta de São José, f. 2.

23 Id., f. 75.

303
Rosa Maria Serio tinha tomado o hábito de terceira carmelita quando se reco-
lheu em Fasano, na companhia de outras irmãs de sangue. No recolhimento,
visões de Santa Teresa d’Ávila e da Virgem Santíssima levaram-na a buscar o re-
conhecimento pontifício para o referido estabelecimento, elevando-o à condição
de mosteiro da Ordem do Carmo.24 Em 1735, antes de se recolher na Chácara
da Bica, Jacinta Rodrigues Aires professou na Ordem Terceira de São Francisco
do Rio de Janeiro.25 Ingressou no referido Recolhimento em 1742, na companhia
da irmã Francisca Rodrigues Aires, ou Francisca de Jesus Maria, que também
usava o hábito de terceira franciscana. Em setembro de 1745, sob a direção espi-
ritual de frei Manoel de Jesus, Jacinta mantém um diálogo espiritual com Santa
Teresa, que lhe pede para implantar a “Reforma” no Rio de Janeiro, uma alusão
à reforma que a própria santa de Ávila introduziu na Ordem do Carmo, criando
nesta o ramo descalço.26 Além de Rosa Maria Serio e de Jacinta de São José, ou-
tras beatas vinculadas a ordens terceiras manifestaram a intenção de fundarem
estabelecimentos conventuais.27 Em que pese a existência de um padrão geral
mais difundido, a semelhança encontrada entre as visões celestiais de Rosa Ma-
ria Serio e de Jacinta de São José permite propor a hipótese de que a beata do Rio
de Janeiro e seus respectivos hagiógrafos podem ter encontrado na narrativa do
padre Giuseppe Gentile temas que foram mais tarde reapropriados e utilizados.

2 – Algumas referências sobre o papel das imagens


e das visões na experiência das místicas

O último passo a ser percorrido antes de se proceder à comparação das


narrativas de Rosa Maria Serio e de Jacinta de São José é tentar compreender
o caráter das visões e das revelações que aparecem de forma abundante nos
relatos que dão conta das vidas das duas mulheres. As análises que Jean-Claude

24 GENTIL, Pe. Joze. Vida da veneravel madre Rosa Maria Serio de Santo Antonio. Op. cit, p. 41-44.

25 MARTINS, William de Souza. Santidade feminina no Rio de Janeiro setecentista. Op. cit, p. 79.

26 Arquivo do Convento de Santa Teresa do Rio de Janeiro, Vida da madre Jacintha de São José, f. 73-75. LISBOA, Balthazar da Silva. Annaes. Op. cit,

p. 441-443.

27 TAVARES, Pedro Vilas Boas. Beatas inquisidores e teólogos, v. 1. Op. cit, p. 212; MUJICA PINILLA, Ramón. Rosa Limensis: Mística, política e

iconografia em torno a la patrona de América. 2. Ed. México: IFEA: CEMCA: FCE, 2005, p. 216.

304
Schmitt e Hans Belting delinearam a respeito das relações entre as visões das
místicas do final do medievo e a devoção às imagens sagradas podem ser esten-
didas à vivência dos círculos devocionais femininos do período moderno. Essa
afirmativa se sustenta pela continuidade entre os padrões devocionais de ambos
os períodos, nos quais surgem em destaque a devoção ao Cristo sofredor da
Paixão, a veneração à Maria na sua dupla condição de virgem e mãe e a devoção
à infância de Cristo.28 Além disso, místicas medievais como Santa Catarina de
Siena se tornaram importantes modelos hagiográficos para as devotas do pe-
ríodo moderno.29 Assim, se torna interessante a percepção de Schmitt segundo
a qual a imagem religiosa medieval pode ser comparada a uma “aparição”, na
medida em que em vez de representar Cristo, Maria e os santos, tornava-os
efetivamente presentes junto aos fiéis, que prestavam aos mesmos uma devoção
sensível e emocional. Para as místicas de fins da Idade Média, a imagem de
devoção “suscita a visão que, em troca, lhe dá as aparências da vida, a ilusão
do movimento e da linguagem, a efusão das lágrimas e do sangue divinos, dito
de outra forma, os sinais de uma presença real”. E ainda: “entre a imagem e o
devoto, a troca de olhares é desde o primeiro momento determinante: ao fixar a
imagem dos olhos, este último sente-se invadido por uma presença viva, antes
de encontrar em sonho a confirmação de seu poder ativo”.30 No que tange a Bel-
ting, a relação das místicas medievais com imagens de devoção contradizia “a
ideia da imagem estática”, permitindo antes um “diálogo com o contemplador”.
A subjetividade da veneração da imagem produzida pela experiência mística
auxiliava “a imaginação dos contempladores removendo qualquer resistência
ou restrição”. O autor conclui que “as imagens devocionais oferecem a oportu-
nidade de falar com pessoas em uma visão, como também de participar, retros-
pectivamente, da vida de Cristo ou de um santo”.31
28 VAUCHEZ, André. GÉLIS, Jacques. O corpo, a Igreja e o sagrado In: VIGARELLO, Georges. Da Renascença às Luzes (História do Corpo sob a

direção de Jean-Jacques Courtine e Georges Vigarello, vol. 1). 4. ed. Petrópolis: Vozes, 2010, p. 19-130.

29 AHLGREN, Gillian T. W. Ecstasy, Prophecy and Reform: Catherine of Siena as a Model for Holy Women of Sixteenth-Century Spain In: BOENIG,

Robert (Ed.). Essays on Medieval and Early Modern Spiritual Culture in Honor of Mary E. Giles. Ashgate: Ashgate Publishing, 2000, p. 53-65; GRIECO,

Sara F. Matthews. Models of Female Sanctity in Renaissance and Counter-Reformation Italy In: SCARAFFIA, Lucetta; ZARRI, Gabriella (Ed.). Women

and Faith: Catholic Religious Life in Italy from Late Antiquity to the Present. Cambridge (MA): Harvard University Press, 1999, p. 159-175.

30 SCHMITT, Jean-Claude. O corpo das imagens: ensaios sobre a cultura visual na Idade Média. Bauru (SP): Edusc, 2007, p. 18-19. Ver também na

mesma obra as páginas 55-89.

31 BELTING, Hans. Semelhança e presença: a História da imagem antes da era da arte. Rio de Janeiro: Ars Urbe, 2010, p. 529. Agradeço à Maria Beatriz

305
As considerações acima se tornam essenciais para compreender a abundan-
te produção de visões encontrada nas vidas de mulheres veneráveis, algumas das
quais candidatas ao reconhecimento oficial da santidade através da abertura de
processos de beatificação e canonização, como Rosa Maria Serio. Nas práticas
devocionais das místicas medievais e modernas, existem também componentes
próprios de gênero, que dificilmente surgem nos modelos de santidade masculi-
nos. Hans Belting, citando textualmente a obra de Dagobert Frey relativa à mís-
tica Margareth Ebner, assinalou que

Nós nos lembramos das brincadeiras de uma criança com


sua boneca quando Margareth Ebner nos conta como ela
tirava a figura do Menino Jesus do berço porque ele tinha
sido “malcriado” durante a noite, mantendo-a acordada;
como ela o colocava no colo e falava com ele, apertava-o em
seu peito desnudo para amamentá-lo e se surpreendia com
“o toque humano de sua boca”. O jogo passa para o erótico,
e até patológico, quando ela nos diz que leva um modelo de
madeira em tamanho natural do Cristo crucificado para a
sua cama, à noite, e deita-o sobre seu corpo.32

Ao contrário do que propõe Frey, não é possível compreender as visões das


místicas medievais e modernas classificando-as, de modo anacrônico, como
práticas “infantis” ou “patológicas”. Como afirmou Caroline Bynum, ao analisar
as atitudes das místicas do medievo, Cristo e a Virgem eram sentidos em sua
plena materialidade, nas dores e nas chagas que acompanhara o primeiro em
sua Paixão, e nos cuidados e práticas de lactação que Maria dedicava ao seu
divino filho. Rosa Maria Serio, Jacinta de São José e muitas outras místicas do
período moderno reproduziram, em suas visões e êxtases, práticas semelhantes
às mencionadas, que remetem aos usos do corpo feminino: devoção às chagas,
particularmente a do lado de Cristo; devoção sensível e afetuosa a Cristo nos
seus momentos limítrofes, isto é, quando criança e na Paixão; intensa devoção

de Mello e Souza, Professora Associada do Instituto de História da UFRJ, a doação de um exemplar desta obra, cuja edição em português organizou.

32 Id. Ibid., p. 529-530.

306
à Maria, com destaque para a sua maternidade.33 Em princípios do século XVI,
por meio de narrativas de confessores e diretores espirituais que realçavam o
ascetismo extremo, as visões e os supostos milagres das suas dirigidas, as “san-
tas vivas” adquiriram fama junto aos fiéis e ao clero. Tais mulheres, devido às
origens socioeconômicas humildes, e à falta de flexibilidade na vida do claustro,
preferiram antes se agregar a diferentes ordens terceiras sob a jurisdição e orien-
tação devocional dos frades mendicantes. A partir de meados do século XVI,
as pressões da Reforma protestante e os riscos potenciais contidos nas visões e
profecias proclamadas pelas “santas vivas” tornaram o clero, de certo modo, mais
relutante em validar e legitimar de imediato as experiências extraordinárias de
que davam testemunho.34
Para explicar a recepção da literatura hagiográfica por parte de leigos no
período moderno, o historiador português Pedro Vilas Boas Tavares defendeu a
tese do “mimetismo do claustro”. No processo de conversão mais profunda dos
fiéis decorrente da Reforma Católica, o clero regular promoveu junto aos leigos,
por meio de leituras, sermões, difusão de obras impressas e manuscritas, um
determinado padrão de virtude calcado nos rigores da vida do claustro, pou-
co adaptado à condição dos próprios fiéis. Assim, leigos menos familiarizados
com as exigências da vida ascética e mística acabavam praticando uma espécie
de simulacro de santidade, tornando-se alvo da ação inquisitorial.35 Criticável
ao pressupor que a leitura dos leigos acabou “degenerando” um modo de vida
próprio do clero e a literatura de alta espiritualidade, a tese do autor supracita-
do também não leva em conta que o comportamento “mimético” faz parte da
lógica hagiográfica: em busca de legitimação, os que realizam comportamentos
edificantes buscam seguir à risca os modelos devocionais autorizados, tentando
mesclar-se a estes.36 Conforme assinalaram Ginzburg e Chartier, ocorrem aqui
33 BYNUM, Caroline Walker. Fragmentation and Redemption: Essays on Gender and the Human Body in Medieval Religion. New York: Zone Books,

1992, p. 151-238; GÉLIS; MUJICA PINILLA, Ramón, Rosa Limensis. Op. cit, p. 77-132; LAVRIN, Asunción. Brides of Christ: Conventual Life in Colonial

Mexico. Stanford: Stanford University Press, 2008, p. 90-115.

34 ZARRI, Gabriella. Living Saints: A Tipology of Female Sanctity in the Early Sixteeenth Century In: BORNSTEIN, Daniel; RUSCONI, Roberto.

Women and Religion in Medieval and Renaissance Italy. Chicago: The University of Chicago Press, 1996, p. 219-303; ZARRI, Gabriella. Le sante vive:

profezie di corte e devozione femminile tra ‘400 e ‘500. Torino: Rosenberg & Sellier, 2000.

35 TAVARES, Pedro Vilas Boas. Beatas, inquisidores e teólogos: reação portuguesa a Miguel de Molinos. Tese de Doutorado em História – Faculdade

de Letras da Universidade do Porto. Porto, 2002, vol. 1, p. 187-304.

36 GRAZIANO, Frank. Wounds of Love. The Mystical Marriage of saint Rose of Lima. New York: Oxford University Press, 2004, p. 33-66; MUJICA

307
práticas de circulação e de apropriação cultural.37 Não cabe julgar se perma-
neciam “puras” ou “fiéis” em relação aos supostos modelos eruditos. Uma vez
identificadas as práticas, deve-se analisar os deslocamentos e as novas leituras
introduzidas, tendo em vista as estratégias de diferentes sujeitos históricos. Por
sua vez, a legitimação da santidade não se devia apenas à adequação a um mo-
delo reconhecido pela Igreja. Conforme mostrou Jean-Michel Sallmann, fatores
de ordem socioeconômica e política interferiram também neste processo, tor-
nando-o mais seletivo, favorecendo a transformação do capital social em capital
religioso. Apenas um fio muito tênue, e que dependia de circunstâncias muito
complexas, separava a santidade reconhecida da “falsa”.38
Seguindo as abordagens da História Cultural e do Gênero para compreen-
der as visões protagonizadas por diferentes freiras e beatas no período moder-
no, pode-se retomar neste contexto as análises que Schmitt, Belting e Bynum
desenvolveram para o final do medievo. Algumas das sugestões elaboradas pe-
los autores citados foram desdobradas por Adelina Sarrión e Victor Stoichita.
Quanto à primeira autora, contempla a atuação da Inquisição espanhola dirigida
a mulheres acusadas de heterodoxia segundo a perspectiva das relações de gê-
nero. Além disso, ao analisar as confissões de várias mulheres que declararam
ter visões de Cristo da Cruz, do Menino Jesus e de diversos santos, pode-se uma
vez mais identificar a relação estreita entre as referidas aparições e as imagens de
culto. Segundo a ré Ana García “sempre que via a São Pedro e a São Francisco es-
tavam com as barbas como os pintam nos quadros”. Já Ana Gallega, denunciada
em 1621 na localidade de Minaya, declarou que as visões que tinha de Cristo e
do Menino Jesus pareciam “o Cristo crucificado que há na igreja desta vila”.39 A

PINILLA, Ramón. Rosa Limensis. Op. cit, p. 110-129. O próprio TAVARES, citando os trabalhos de Mafalda Maria Ferrin Cunha e do padre jesuíta

Pietro Shiavone, reconhece em outra passagem a lógica de funcionamento da narrativa hagiográfica: “muita da linguagem e dos motivos que constam

das autobiografias que ‘por mandato’ de diretores espirituais escreveram podem encontrar-se noutros textos com ‘vitalidade’ na época: obras hagiográ-

ficas de grande difusão, sermões por ocasião da profissão religiosa (...) o conteúdo de uma revelação pode ser reconstituído com base em elementos

e noções pré-existentes no visionário em relação à visão tida, sendo certo que as legadas ‘palavras do Senhor’ quase sempre provém do seu próprio

sub-consciente”. TAVARES, Pedro Vilas Boas, Beatas, inquisidores e teólogos. Op. cit, v. 1, p. 205.

37 GINZBURG, Carlo. O queijo e os vermes: o cotidiano e as ideias de um moleiro perseguido pela Inquisição. São Paulo: Companhia das Letras, 2006,

p. 12; CHARTIER, Roger. A História Cultural entre práticas e representações. Rio de Janeiro: Bertrand, 1990, p. 13-28.

38 SALMANN, Jean-Michel. Santi baroqui: modelli di santità, pratiche devozionali e comportamenti religiosi nel regno di Napoli dal 1540 al 1750.

Lecce: Argo, 1996, p. 227-237.

39 SARRIÓN MORA, Adelina. Beatas y endemoniadas: mujeres heterodoxas ante la Inquisición siglos XVI a XIX. Madrid: Alianza, 2003, p. 252.

308
autora citada conclui: “estas mulheres descreviam ao detalhe a qualidade dos te-
cidos dos personagens que viam, cores, figuras; as coincidências com pinturas ou
esculturas que elas estavam acostumadas a ver nas igrejas e conventos era mais
do que casual”.40 Com relação a Stoichita, enfatiza a importância das imagens
pictóricas na análise que faz das visões de Teresa d’Ávila e de outros místicos es-
panhóis. A santa castelhana confessou que a aparição da Humanidade de Cristo
a ela durante uma missa no dia de São Paulo se assemelhava ao modo como Jesus
“se costuma pintar ressuscitado”. Mesmo reconhecendo que tal visão não fora
produzida pelos olhos corporais, e sim “com os olhos da alma” – o que a livrara
das suspeitas de baixeza e de tentação demoníaca associadas ao corpo feminino
– Teresa insistiu em comparar a sua visão com uma imagem, ora assimilando-a
ora colocando-a em um plano superior às pinturas.41
Após o Concílio de Trento, durante todo o século XVII e até princípios
do XVIII, as manifestações devocionais de freiras, beatas vinculadas a ordens
terceiras e mulheres leigas em geral foram submetidas a um escrutínio mais ri-
goroso por parte da Igreja. Para esta, as visões e revelações podiam ser também
de influência demoníaca. Daí a elaboração de um conjunto de regras destinadas
ao “discernimento dos espíritos”, com as quais se procurava separar o joio do
trigo. Desde pelo menos o episódio de Maria da Visitação, que chegara a iludir
o grande teólogo Luís de Granada, os embustes e a falsa santidade feminina
tornaram-se delitos crescentemente investigados pela Inquisição. A partir do
reforço de padrões misóginos correntes no período, segundo os quais a fra-
gilidade e a inconstância das mulheres as tornavam mais suscetíveis à ilusão
demoníaca, procurou-se reforçar o controle das manifestações sobrenaturais
femininas por parte dos confessores e diretores de consciência.42 O recato e a
humildade manifestados pelas dirigidas, assim como a conformidade das visões

40 Id., ibid., p. 271.

41 STOICHITA, Victor I. Visionary Experience in the Golden Age of Spanish Art. London: Reaktion Books, 1995, p. 45-77. SANTA TERESA D’ÁVILA.

Livro da vida. São Paulo: Penguin Classics: Cia. das Letras, 2010, p. 251-255 (cap. 28, 3-7). Uma das passagens mais significativas é a seguinte, na p. 254:

“em algumas coisas parecia-me bem que era uma imagem o que eu via, mas em muitas outras não, mas sim que era o próprio Cristo, pela claridade com

que aprouve a Ele mostrar-se a mim. Algumas vezes tão confuso que parecia uma imagem. Não como os desenhos daqui, por mais perfeitos que sejam,

porque já vi muito bons. É um disparate pensar que têm alguma semelhança um com o outro de alguma maneira. Nem mais nem menos do que uma

pessoa viva com seu retrato, que, por melhor que tenha sido feito, não pode ser tão natural, pois – afinal – vê-se que é uma coisa morta”.

42 SARRIÓN MORA, Adelina. Beatas y endemoniadas. Op. cit, p. 215-284; BILINKOFF, Jodi. Related Lives: Confessors and their Female Penitents,

1450-1750. Ithaca: Cornell University Press, 2005, p. 32-45; IMIRIZALDU, Jesus. Monjas y beatas embaucadoras. Madrid: Editora Nacional, 1977.

309
à ortodoxia e às escrituras tornaram-se aspectos importantes na avaliação das
experiências religiosas femininas. A própria beata Jacinta de São José parecia
ter bastante consciência dos perigos existentes nas visões e revelações divul-
gadas por mulheres. As suas cartas e contas, conforme se mostrou em outro
lugar, pautaram-se pela “retórica da feminilidade”, um topos narrativo segundo
o qual o reconhecimento consciente das fragilidades, ignorâncias e limitações
associadas ao gênero feminino constituíam um possível mecanismo de legiti-
mação para as suas experiências místicas.43 Além disso, na biblioteca da visio-
nária fluminense, foi identificada uma edição dos Desengaños mysticos, do fra-
de franciscano Antonio Arbiol.44 Publicada pela primeira vez em Saragoça em
1691, e reeditada sucessivas vezes ao longo do século XVIII, a obra condenava
os excessos de devoção e as exterioridades associadas às beatas, assim como os
que davam crédito às revelações e visões de tais mulheres, muitas vezes proce-
dentes de níveis inferiores da hierarquia social, e que encontravam na experiên-
cia mística uma das poucas vias para obter reconhecimento.45
A defesa do culto aos santos pelo concílio tridentino foi acompanhada pela
centralização e pela aplicação de procedimentos judiciais mais rigorosos para o
reconhecimento da santidade.46 Este quadro de maior rigor foi intensificado pela
atuação combinada da Inquisição e do episcopado contra mulheres suspeitas de
fingir embustes, conforme já assinalado.47 Paralelamente, ao longo dos séculos
XVI, XVII e até meados do século XVIII, ocorreu uma difusão em larga escala
em diversas línguas vernáculas de impressos e manuscritos de caráter hagio-

43 MARTINS, William de Souza. Práticas do corpo e conhecimentos do além da beata fluminense Jacinta de São José (c. 1744-1754) In: ANDRADE,

Marta Mega de; SEDREZ, Lise; MARTINS, William de Souza. Corpo: sujeito e objeto. Rio de Janeiro: Ponteio, 2012, p. 155-180; WEBER, Alison. Teresa

of Avila and the Rethoric of Femininity. Princeton: The Princeton University Press, 1990, p. 17-41.

44 ALGRANTI. Livros de devoção, atos de censura. Op. cit, p. 86.

45 CHRISTIAN JR., William. Apparitions in Late Medieval and Renaissance Spain. Princeton: Princeton University Press, 1981, p. 197; TAVARES,

Pedro Vilas Boas, Beatas, inquisidores e teólogos. Op. cit, p. 214; ARBIOL, Fr. Antonio, OFM. Desengaños mysticos a las almas detenidas, o engañadas en

el camino de la Perfeccion (...). Impression octava (...). Barcelona: En la Imprenta de Carlos Sapera, y Jayme Osset, Mercaderes de Libros. Año de 1758,

especialmente p. 75-81.

46 BURKE, Peter. How to Become a Counter- Reformation Saint In: LUEBKE, David M. The Counter-Reformation: The Essencial Readings. Malden

(MA): Blackwell Publishing, 1999, p. 130-142; PO-CHIA HSIA, R. The World of Catholic Renewal, 1540-1770. Cambridge: Cambridge University Press,

2005, p. 127-158; WOODWARD, Kenneth. A fábrica de santos. São Paulo: Siciliano, 1992, p. 72-84.

47 PAIVA, José Pedro. Baluartes da fé e da disciplina: o enlace entre a Inquisição e os bispos em Portugal (1536-1750). Coimbra: Imprensa da Univer-

sidade de Coimbra, 2011.

310
gráfico, ou de narrativas de vida de homens e mulheres veneráveis em virtude,
oriundos particularmente do claustro e das ordens terceiras.48 Sem sombra de
dúvida, o clero regular se destacou na iniciativa de produção e difusão da re-
ferida literatura devocional, no interior da qual se incluíam as “vidas” de Rosa
Maria Serio e de Jacinta de São José. A tensão entre as crescentes manifestações
de santidade simulada, particularmente por parte das mulheres, e a ampla di-
fusão de literatura devocional aos fiéis esteve presente nas trajetórias das duas
mulheres analisadas: apoiada simultaneamente pelos jesuítas e pelos carmelitas
observantes, Rosa Maria Serio enfrentou problemas com o bispo diocesano. De
modo equivalente, Jacinta de São José sofreu intensa oposição do bispo D. Fr.
Antônio do Desterro, foi investigada pelo Tribunal do Santo Ofício da Inquisição
de Lisboa, mas foi apoiada pelos religiosos carmelitas descalços e por setores do
clero secular.49 Com perfis, trajetórias e tensões semelhantes, a análise compara-
da das visões produzidas pelas duas mulheres espera ampliar a percepção desta
semelhança. Retomando a hipótese principal formulada no início, isto é, de que
a beata Jacinta de São José e seus hagiógrafos teriam se apropriado da narrativa
do padre jesuíta Giuseppe Gentile acerca de Rosa Maria Serio, o método a ser
seguido aqui é o de apresentar primeiramente algumas visões da freira italia-
na, comparando-as depois com aquelas pertencentes à beata do Rio de Janeiro.
Conforme se mostrou acima, a vasta literatura de espiritualidade do período
registrou casos de beatas e de freiras com visões e perfis muito semelhantes aos
das duas mulheres referidas. Porém, os detalhes de determinadas visões celes-
tiais produzidos por Rosa Maria Serio e Jacinta de São José, bem como os luga-
res equivalentes que ocupam nas duas narrativas apontam, no conjunto, para a
impressão de que tenha havido uma influência mais direta da primeira narrativa

48 PALOMO, Federico. A Contra-Reforma em Portugal. Lisboa: Livros Horizonte, 2006, p. 104-110. ANJOS, Fr. Lúis dos. Jardim de Portugal (1626). Ed.,

Introd. e notas de Maria de Lurdes Correia Fernandes. Porto: Campo das Letras, 1999.

49 ALGRANTI, Leila Mezan. Livros de devoção, atos de censura. Op. cit; GONÇALVES, Margareth de Almeida. Império da fé: andarilhas da alma na

era barroca. Rio de Janeiro: Rocco, 2005, p. 131-159. Os manuscritos de Teresa de Ávila, um dos mais importantes modelos de santidade feminina no

período moderno, foram colocados sob suspeita da Inquisição e dos dominicanos, antes de obterem a autorização para a publicação. WEBER, Alison.

La mística feminina In: ORTEGA, Margarita, LAVRIN, Asunción, PERÉZ CANTO, Pilar (Coords.). El mundo moderno (Historia de las mujeres em

España y América Latina, vol. II, Dir. Isabel Morant). Madrid: Cátedra, 2005, p. 107-129. De modo análogo, várias beatas seguidoras de Rosa de Santa

Maria – que em 1671 foi canonizada como santa Rosa de Lima – foram investigadas pelo Tribunal da Inquisição desta cidade. MUJICA PINILLA, Rosa

Limensis. Op. cit, p.79-97; MYERS, Kathleen Ann. “Redeemer of America”: Rosa de Lima (1586-1617), the Dynamics of Identity, and Canonization In:

GREER, Allan; BILINKOFF, Jodi (Eds.). Colonial Saints: Discovering the Holy in the Americas. New York: Routledge, 2003, p. 251-275.

311
hagiográfica sobre a segunda.

3 – Visões celestiais colhidas da Vida de Rosa Maria Serio

A obra do padre jesuíta Giuseppe Gentile traz dezenas de visões recebidas


por Rosa Maria Serio de Santo Antonio, desde a época em que era uma beata
recolhida que vestia o hábito da Ordem Terceira do Carmo (1690) até tornar-
-se freira carmelita professa (1698) e, posteriormente, abadessa do Mosteiro
de Fasano. Em sua quase totalidade, as visões de Cristo – na Paixão, na Cruz e,
particularmente, representado como Menino Jesus – de Maria e de diferentes
santos de devoção tinham lugar nas datas em que os entes celestiais eram fes-
tejados no calendário litúrgico. Nas referidas ocasiões, as aparições celestiais
ocorriam após a contemplação prolongada das imagens correspondentes na
igreja do Recolhimento ou do Mosteiro. De acordo com os relatos das tes-
temunhas coligidos pelo padre jesuíta, as visões de Rosa Maria Serio eram
acompanhadas por diálogos e gestos físicos dirigidos aos entes celestiais. Nos
relatos das visões que aparecem na obra, apareciam em primeiro lugar as pa-
lavras dirigidas pela freira aos entes celestiais, que eram ouvidas por diversas
testemunhas, seguidas pelos significados das visões, as quais eram declaradas
privadamente à madre superiora ou ao confessor. A maior parte das visões
aparece no capítulo XLI da Vida, o mais vasto da obra, intitulado “Dos singu-
lares favores que recebeu a Serva de Deus nas principais festas do ano, e em
outras da sua devoção especial”.50 Não obstante, antes de focar esta passagem
chave da obra, serão analisados alguns trechos secundários nos quais as visões
também foram registradas pelo autor da narrativa. Quando cumpria ainda o
noviciado da Ordem Terceira, Rosa Maria Serio teve a seguinte visão no coro
do Recolhimento no dia da festa dos Reis Magos (Epifania):

50 GENTIL, Pe. Joze. Vida da veneravel madre Rosa Maria Serio de Santo Antonio. Op. cit, p. 246-329. Na primeira edição italiana, de 1738, o capítulo

corresponde às p. 211-275. Ver GENTILE, Giuseppe, Vitta della venerabile madre Rosa Maria Serio di S. Antonio. Op. cit Devido à dificuldade de acesso

à edição portuguesa e, inversamente, a facilidade da consulta ao original em italiano, disponível no Google Books, nas notas que vêm a seguir as duas

edições serão indicadas.

312
Viu banhar-se o coro de claríssimas luzes, e entre elas três
personagens vestidos de reis, com cetro na mão, coroa na
cabeça, e à roda deles uma multidão de anjos, que tocavam
instrumentos músicos, e com eles produziam uma suave
melodia. Divididos logo em dois coros fizeram ala a um ma-
jestoso trono em que, com o Menino Jesus nos braços, esta-
va sentada Maria Santíssima. A um lado do trono se via em
pé São João Evangelista, e ao outro Santa Maria Madalena
de Pazzi. Com esta visão abismada Rosa Maria no conhe-
cimento de que era nada, se lançou com o rosto no chão, e
com fervoroso ardor no coração pediu à Virgem Santíssima
perdão das suas culpas (...). Conveio a Senhora na súpli-
ca e, voltando-se para o Menino, lhe disse: amado filho, eis
aqui Rosa Maria, que deseja desposar-se convosco. Ao que o
Menino respondeu: eu me desposarei com ela, mas primeiro
há de dar ao seu coração mais formosura. Mandou então a
Virgem a São João Evangelista, que arrancasse do peito de
Rosa Maria o coração: o que executado pelo Evangelista,
caiu Rosa Maria no chão como morta.51

Em seguida, ocorrem os episódios da troca de corações e de anéis entre


Cristo e a sua esposa beata, que remetem diretamente às hagiografias de dois
modelos consagrados de santidade feminina: Catarina de Siena e Maria Madale-
na de Pazzi.52 Esta última e outras santas ligadas à Ordem do Carmo, como Tere-
sa d’Ávila, aparecem em outras visões, indício de como as filiações institucionais
informavam as experiências extáticas. Quando se buscava o reconhecimento ca-
nônico do Mosteiro, ao se verificar a impossibilidade de erigi-lo sob o Instituto
de Santa Teresa, que exigia um número máximo de 21 freiras, a santa de Ávila
apareceu a Rosa Maria Serio, dizendo-lhe: “Filha não te aflijais, haveis de vi-
ver debaixo de outras Constituições, e para não mudares o Santo Hábito de nossa
grande Mãe Rainha do Carmo, vos ofereço por mãe a Maria Madalena de Pazzi,

51 GENTIL, Pe. Joze. Vida da veneravel madre Rosa Maria Serio de Santo Antonio. Op. cit, p. 28-29. GENTILE, Giuseppe, Vitta della venerabile madre

Rosa Maria Serio di S. Antonio. Op. cit, p. 25. A grafia do texto foi atualizada. Os grifos estão no original.

52 BOESCH, Sofia. Catalina de Siena In: LEONARDI, Claudio; RICCARDI, Andrea; ZARRI, Gabriella (Dir.) Diccionario de los santos. Madrid: San

Pablo, 2000, vol. 1, p. 458-466; SCATTIGNO, Anna. Maria Magdalena de Pazzi. Op. cit, vol. 2, pp. 1620-1624.

313
porque nós ambas somos uma só coisa”.53
No que diz respeito aos prodígios realizados por Cristo no coração da devota,
a narrativa do padre Giuseppe Gentile contém um capítulo que trata especifica-
mente do tema. A referida passagem contém a seguinte fala de Rosa Maria Serio:

Agradeço-vos meu amor, que me tendes feito obedecer, e vos


dignastes de a fazer só para mim mais dolorosa, maior e visí-
vel, e para mais me lembrar de vós, me recordarei destas três
feridas: da primeira, pelo amor que me tendes tido; da segun-
da, porque tenho sido vossa indigna esposa; e desta terceira
pela ingratidão, que o homem tem usado convosco.54

Em uma ocasião, não pôde participar das solenidades do Natal realizadas


no coro do Mosteiro, como era o seu desejo. Por causa de indisposições que pa-
decia, a abadessa tinha ordenado que Rosa Maria Serio ficasse convalescendo na
cama, na companhia de duas outras religiosas. À meia-noite, estas últimas ouvi-
ram-na repetir várias frases dirigidas a Cristo. Assistiram também ao prodígio
da levitação do corpo de Rosa Maria Serio, “com todos os cobertores”. Avisada
do fato, a madre superiora ordenou que descesse, o que logo se cumpriu. E de-
pois explicou à abadessa o que havia ocorrido:

Se puseram a par de sua cama a Virgem Santíssima e São


José; e que pela meia-noite vira o Menino Jesus nascido,
e a Senhora e São José que o adoravam: e que depois dei-
xando-lho no leito desapareceram. E que então sobreviera
São Miguel Arcanjo com uma multidão de anjos que, ado-
rando o Menino, cantavam as suas glórias com celestial
melodia. Logo o sagrado Arcanjo, pegando com grande
reverência o Menino, o depositara nos seus braços, e que
neste tempo o benigno Senhor lhe dera a conhecer muitas
coisas da sua Divina Encarnação: e que por último viera
Maria Santíssima em uma luzidíssima nuvem, e tornara a

53 GENTIL, Pe. Joze. Vida da veneravel madre Rosa Maria Serio de Santo Antonio. Op. cit, p. 42. Grifos no original; GENTILE, Giuseppe, Vitta della

venerabile madre Rosa Maria Serio di S. Antonio. Op. cit, p. 36.

54 GENTIL, Pe. Joze. Vida da veneravel madre Rosa Maria Serio de Santo Antonio. Op. cit, p. 223-224, grifos no original.

314
tomar o Santo Menino dos seus braços.55

Em outra noite de Natal, quando exercia a ocupação de procuradora do Mos-


teiro, experimentou um êxtase semelhante. Na referida ocasião, as freiras faziam
um baile sagrado “para celebrar com especial e devota alegria o nascimento do
divino Infante”. Deste último, saiu então um raio de luz a iluminar profusamente o
rosto de Rosa Maria Serio, que permanecera imóvel “como uma estátua”. Durante
o baile, a freira carmelita pôs-se a voar, “pois sem tocar no chão, girava à roda do
Menino, como faz uma borboleta ao redor de uma luz”. Após o ocorrido, informou
à superiora que “a Virgem Maria se dignara de lhe entregar nos braços o Menino
Deus e que, arrebatada de tão grande dádiva, ficara incapaz de movimento”.56
No tempo da Quaresma, Rosa Maria Serio entregava-se a jejuns e a ásperos
exercícios de penitência, prática comum aos modelos de santidade que seguia e a
diversas outras narrativas de vida de beatas e freiras daquele contexto. Em meio
a tais descrições, relativamente convencionais, surge um detalhe mais represen-
tativo, que foi retomado depois por Jacinta de São José e pelos correspondentes
hagiógrafos. Na terça sexta-feira de março de 1705,

Lhe apareceu o Senhor com uma pesada cruz ao ombro,


todo triste e dorido, e olhando para ela com olhos de com-
paixão lhe disse: vê filha quanto se tem feito mais pesada
esta cruz, do que a que me foi posta então pelos pecados dos
homens, pois têm crescido a ambição e a soberba, e outros
enormes pecados. Ora vem, ajuda-me a levar este peso. Ofe-
receu-se ela prontamente ao ajudar, e sentiu tal peso sobre o
ombro que caiu no chão.57

Conforme já foi assinalado acima, o padre Giuseppe Gentile reservou para


o capítulo XLI a narrativa mais extensa dos “favores” recebidos por Rosa Maria
Serio, entre os quais muitos eram constituídos por visões e revelações de misté-
55 GENTIL, Pe. Joze. Vida da veneravel madre Rosa Maria Serio de Santo Antonio. Op. cit, p. 70-71; GENTILE, Giuseppe, Vitta della venerabile madre

Rosa Maria Serio di S. Antonio. Op. cit, p. 61.

56 GENTIL, Pe. Joze. Vida da veneravel madre Rosa Maria Serio de Santo Antonio. Op. cit, p. 124; GENTILE, Giuseppe, Vitta della venerabile madre Rosa

Maria Serio di S. Antonio. Op. cit, p. 106-107.

57 GENTIL, Pe. Joze. Vida da veneravel madre Rosa Maria Serio de Santo Antonio. Op. cit, p. 148-149. Grifos no original; GENTILE, Giuseppe, Vitta

della venerabile madre Rosa Maria Serio di S. Antonio. Op. cit, p. 127-128.

315
rios divinos. A exposição que será feita aqui segue a disposição daquele capítulo,
onde as manifestações do sagrado foram apresentadas conforme o calendário li-
túrgico. O surgimento de repetidas visões durante o Natal, a Quaresma, e as festas
de santos conduzem à percepção de que tais ocasiões permitiam aos fiéis, e aos
religiosos regulares em particular, momentos de contemplação mais intensa das
imagens às quais se prestava culto. O caráter “plástico” e expressivo das referidas
visões vem a confirmar igualmente as análises de Schmitt, Belting e Stoichita a
respeito das sensibilidades religiosas construídas pelos fiéis em torno das ima-
gens sagradas. O capítulo principia com as visões recebidas pela serva de Deus
na festa de Natal. De 1704, início do priorado no mosteiro carmelita, até 1716, o
padre Giuseppe Gentile registrou seis êxtases e revelações sucedidos a Rosa Maria
Serio no período do Advento. Em quase todos, a freira extática dirigia-se em voz
alta ao Menino Jesus, à Virgem, a São José e a outros santos, os quais lhe davam
respostas por meio das visões. Os diálogos eram presenciados por diversas irmãs
do Mosteiro e o conteúdo das visões era explicado em particular, ao confessor ou
à madre superiora, que faziam apelo ao voto de obediência da freira. Duas visões
em particular merecem descrição mais detalhada. Na primeira,

Como visse o Menino com ar melancólico e aflito, turbou-


-se, e com lágrimas lhe perguntava o motivo da sua tristeza,
e dizia: que novidade é esta meu Esposo, pois sendo esta noite
de alegria, vós estais triste e melancólico? Calou-se, e com
diligente atenção esteve meia hora, como escutando, sem
fazer o menor movimento, tudo o que lhe revelava o seu
amado Menino.58

Depois de ouvir as revelações dos pecados dos homens, Rosa Maria Serio
dirigiu-se ao presépio, dizendo: “aplacai-vos por amor de vossa Mãe pelo leite que
vos deu, pelos nove meses que vos trouxe no seu ventre”. Outros indícios do caráter
corpóreo e afetuoso da devoção que dirigia ao Menino Jesus e à Virgem apare-
cem na visão ocorrida no Natal de 1714. Na ocasião, experimentou uma espécie
de viagem imaginária:

Se sentiu no interior transportada à Lapa de Belém, e ali lhe


saiu ao encontro uma multidão de anjos, que a convidavam
a honrar o nascimento do divino Infante, e ela chegando-se

58 GENTIL, Pe. Joze. Vida da veneravel madre Rosa Maria Serio de Santo Antonio. Op. cit, p. 247. Grifos no original; GENTILE, Giuseppe, Vitta della

venerabile madre Rosa Maria Serio di S. Antonio. Op. cit, p. 212.

316
viu o Menino Jesus no feno, e diante dele Maria Santíssi-
ma e São José. Com esta vista derramou muitas lágrimas de
ternura, e a Virgem Santíssima se dignou de ensinar-lhe o
amor com que o Verbo eterno tinha amado desde a eterni-
dade o gênero humano. E depois tirando do feno o Meni-
no, lho entregou nos braços, e ao ver-se com o Menino nos
braços concebeu um pensamento tal da sua baixeza, que se
quisera ter aniquilado. Apertou-o muitas vezes no seio, e
pediu-lhe alumiasse os que jaziam nas trevas da culpa.59

A devoção de Rosa Maria Serio à infância de Cristo se estendia à festa da


Epifania, quando a Igreja comemora a visitação dos Reis Magos ao Menino Je-
sus. Nesta ocasião, costumava também renovar anualmente os votos perpétuos
da profissão regular. Em 1715, estando em presença da comunidade conventual
para a referida finalidade, recebeu uma visão, que foi depois explicada da manei-
ra seguinte ao confessor:

Depois da sagrada comunhão fora levada diante de um


trono majestoso e riquíssimo, no qual estava sentada a
Senhora com o seu Filho nos braços, e no plano do dito
trono estavam dez cadeiras com formosa ordem, e à roda.
À direita do trono estavam três veneráveis personagens
(...) que eram os santos Magos, lhe deram ânimo e convi-
daram a contemplar aquelas cadeiras, que se adornavam
pelos anjos. Pelo que levantados os olhos, observou que
algumas apenas estavam começadas, outras no meio do
lavor, e uma só acabada, e enriquecida de pedras precio-
sas, e de tão raros ornatos, que não achava expressões nem
vocábulos aptos para explicar a sua felicidade.60

Na festa da Imaculada Concepção ou Conceição de Maria, venerada no ca-


lendário no dia 8 de dezembro, as práticas que aludem à lactação, constantes nas
místicas medievais, tornam a aparecer. Desta vez, em oposição ao que praticara
59 GENTIL, Pe. Joze. Vida da veneravel madre Rosa Maria Serio de Santo Antonio. Op. cit, p. 253; GENTILE, Giuseppe, Vitta della venerabile madre

Rosa Maria Serio di S. Antonio. Op. cit, p. 217.

60 GENTIL, Pe. Joze. Vida da veneravel madre Rosa Maria Serio de Santo Antonio. Op. cit, p. 264; GENTILE, Giuseppe, Vitta della venerabile madre

Rosa Maria Serio di S. Antonio. Op. cit, p. 227.

317
antes com o Menino Jesus, Rosa Maria Serio se coloca diante de Nossa Senhora
na condição de lactante:

Uma vez recebeu nos braços a celestial Infanta, o que inferi-


ram as freiras de vê-la depois da sagrada comunhão arreba-
tada em um êxtase alegre, de braços abertos e encurvados,
como se tivesse neles uma linda menina, e em forma que a
afagava, dizia: Oh Mater Domini mei, quam pulcra et gratio-
sa es! Esteve deste modo por algum tempo, e com amorosas
expressões se chegou com a boca, como costuma fazer um
menino quando se põe a mamar nos peitos da ama; e como
quem sorve um doce licor, dizia: lactis puritas. Pureza de
leite. Minha querida Mãe, fazei-nos todos participantes. Pon-
do-se logo em silêncio como escutando, continuou: sim vós
o quereis dar, mas eles não querem receber.61

Saindo do tema das visões sucedidas a Rosa Maria Serio por ocasião de
algumas datas mais significativas do calendário litúrgico, cabe ainda, para con-
clusão deste item, abordar as revelações do destino das Almas do Purgatório e
de mistérios divinos, como também as tentações que sofreu por parte do demô-
nio. Várias das práticas mencionadas eram comumente encontradas na literatura
hagiográfica e nas vidas de religiosos e beatas do período moderno.62 Uma vez
mais, argumenta-se que a existência de um padrão geral não invalida a hipótese
de que detalhes específicos aproximam as vidas de Rosa Maria Serio e de Jacinta
de São José. No que diz respeito às Almas do Purgatório, a passagem se encontra
no capítulo XIV, dedicado às visões do Inferno:

61 GENTIL, Pe. Joze. Vida da veneravel madre Rosa Maria Serio de Santo Antonio. Op. cit, p. 279; GENTILE, Giuseppe, Vitta della venerabile madre

Rosa Maria Serio di S. Antonio. Op. cit, p. 240, grifos no original. Na festa da Ascenção ou Assunção da Virgem, tornam a aparecer as referidas imagens

de amamentação, que remetem a usos do corpo próprios das mulheres: “Senhor, eu não sou digna de participar dos peitos em que mamastes. Enfim,

como, como se houvesse aceitado a dádiva, mostrava ter grande gosto, e estar satisfeita, dizendo de quando em quando: Oh doçura! Oh suavidade!” (p.

258 e p. 248, respectivamente).

62 A respeito dos ataques demoníacos, ver SÁNCHEZ LORA, José L. Mujeres, conventos y formas de la religiosidade barroca. Madrid: Fundación

Universitaria Española, 1988, p. 419-426; acerca do conhecimento do destino das almas do Purgatório nas narrativas de vida religiosa feminina da

época, ver SOUZA, Evergton Sales. O lume da Rosa e de seus espinhos: espiritualidade e piedade em D. Sebastião Monteiro da Vide In: FEITLER,

Bruno e SOUZA, Evergton Sales (Orgs.). A Igreja no Brasil: normas e práticas durante a vigência das Constituições Primeiras do Arcebispado da Bahia.

São Paulo: Unifesp, 2011, p. 61-84.

318
O Senhor, depois de lhe mostrar muitas almas, que saíam
do Purgatório para o Céu, no fim lhe mostrara duas almas
de dois condenados cercadas de fogo, e tão horrorosas que
pareciam dois demônios, e que com a tal vista se enchera de
medo, mas que depois animando-se, lhes perguntara quem
eram, e lhe responderam serem almas de dois religiosos, e
que ela lhes replicara: como vos condenastes tendo-vos Deus
chamado à Religião? O primeiro respondeu que o princípio
da sua condenação fora a vanglória: porque sendo no mun-
do um grande teólogo, havia atribuído a si mesmo a glória
da sua ciência (...). O segundo disse que ele se condenara
pela sua Hipocrisia, tendo vivido de aparência, sem jamais
obedecer aos seus superiores.63

As visões acerca do destino das Almas do Purgatório produzidas por Rosa


Maria Serio afetavam diretamente o clero regular, adquirindo assim uma possí-
vel função pedagógica em relação às companheiras do claustro. Esta impressão
fica reforçada a partir do relato contido no final do mesmo capítulo, em que Rosa
Maria revelou à superiora a visão de que uma freira da comunidade conventual
havia sido condenada ao Inferno.
No que diz respeito à revelação de mistérios da fé, durante a festa do Natal
do ano de 1713 a freira italiana foi contemplada com especiais favores. Na oca-
sião, a religiosa encontrava-se rezando com a comunidade no coro do convento.
Rosa Maria Serio se pôs então a falar, diante de todos os que estavam ali presen-
tes: “um, dois, três, ouço-te, esta é semelhança. Trino em Pessoas, um em substân-
cia. Audio. Mas é muito alto este Mistério, e não o percebe o homem ignorante”.
Depois do sucedido, a freira explicou ao seu confessor o significado daquelas
visões e vozes: “o Senhor se dignara de lhe ensinar com especialidade muitos
mistérios de nossa fé, particularmente da Santíssima Trindade, da Encarnação
do Verbo e do seu admirável Nascimento”.64
Por fim, quanto às tentações demoníacas padecidas por Rosa Maria Serio,
63 GENTIL, Pe. Joze. Vida da veneravel madre Rosa Maria Serio de Santo Antonio. Op. cit, p. 59; GENTILE, Giuseppe, Vitta della venerabile madre Rosa

Maria Serio di S. Antonio. Op. cit, p. 50-51, grifos no original.

64 GENTIL, Pe. Joze. Vida da veneravel madre Rosa Maria Serio de Santo Antonio. Op. cit, p. 251-252; GENTILE, Giuseppe, Vitta della venerabile madre

Rosa Maria Serio di S. Antonio. Op. cit, p. 215-216, grifos no original.

319
sem dúvida existe aqui uma característica fortemente associada à escrita hagiográ-
fica. Ao vencer as tentações do mal, a conduta virtuosa do santo se tornava assim
legitimada.65 Na sua mocidade, quando se encontrava em Ostuni preparando-se
pra ingressar no Recolhimento em Fasano, Romana sofreu o seguinte ataque:

O dia antes da sua partida, subindo ao andar alto das suas


casas para aviar algumas coisas, eis que sente no meio da
escada uma invisível mão pegar-lhe de um pé com grande
força, e precipitá-la de alto a baixo (...). O pai, como homem
experto na Medicina, entendeu que tinha fendido o crânio,
e amolgado com outras contusões (...); e assim mandou sus-
pender a jornada, sendo necessário muito tempo para Ro-
mana poder-se pôr a caminho. Não, não se suspenda, respon-
deu a enferma, isto foi obra do inimigo para impedir viagem.66

Quando já se encontrava recolhida em Fasano, Rosa Maria Serio sofreu um


ataque análogo ao primeiro, inclusive no que diz respeito à presença do pai. Nos
dois casos, a autoridade médica paterna se apequenou diante das graças divinas
usufruídas pela filha. Da leitura dos dois episódios, percebe-se um certo padrão
de atuação das forças demoníacas que, como será visto adiante, também se en-
contra presente na narrativa de vida de Jacinta de São José.

Intentaram [os demônios] uma vez mais tirar-lhe a vida,


arrastando-a até a borda de uma escada alta, donde com
empurrões a precipitaram; e ela, como não se podia valer
nem de mãos nem de pés, foi rodando até abaixo. Acudiram
as religiosas ao rumor, e acharam-na toda pisada, e quebra-
do pelo meio o osso de uma perna (...) Reputavam-na mor-
ta, ou ao menos inabilitada para poder-se mover em toda
a sua vida. Mandou a superiora a Ostuni chamar o doutor
Serio seu Pai, para que com a sua experiência visse se acha-
va algum remédio aos achaques complicados da filha. Veio,

65 JORDÁN ARROYO, María V., Sonhar a História. Op. cit, p. 179-180; SÁNCHEZ LORA, Mujeres, conventos y formas de la religiosidade barroca. Op.

cit, p. 403-453.

66 GENTIL, Pe. Joze. Vida da veneravel madre Rosa Maria Serio de Santo Antonio. Op. cit, p. 10-11; GENTILE, Giuseppe, Vitta della venerabile madre

Rosa Maria Serio di S. Antonio. Op. cit, p. 9, grifos no original.

320
e vendo-a em tão deplorável estado, não achou outro medi-
camento mais que o de a chorar por morta.67

À guisa de conclusão, depois da análise das visões, cabe um comentário de con-


junto acerca da obra do padre Giuseppe Gentile, para que se possa melhor compa-
rá-la com a Vida de Jacinta de São José. Segundo comentário do próprio autor no
prólogo, a narrativa acerca de Rosa Maria Serio foi elaborada a partir “dos processos
autênticos, pouco depois de sua morte formados pelo ordinário, e remetidos à Sa-
grada Congregação dos Ritos, em razão da sua beatificação”.68 Outra fonte de in-
formação foram os informes enviados pelo frade carmelita Serafino Maria Potenza,
que atuou como procurador da causa de beatificação da freira italiana. Conforme se
discutiu no início do texto, Rosa Maria Serio foi declarada “serva de Deus” a partir
do momento da abertura do processo de beatificação, em 1741. A Vida de Giuseppe
Gentile se caracteriza pela preocupação em descrever, muitas vezes nominalmente,
as testemunhas das visões e dos milagres atribuídos a Rosa Maria Serio. Este respeito
à origem das informações também transparece no registro das palavras atribuídas à
serva de Deus, que aparecem sempre em itálico na narrativa. Assim, sob o ponto de
vista do método, pode-se talvez aproximar a Vida elaborada por Giuseppe Gentile
dos modelos hagiográficos eruditos.69 Em que pesem tais diferenças, a estrutura da
narrativa das duas vidas segue claramente o padrão hagiográfico: os momentos do
nascimento e da infância, marcados pela predestinação da vocação de santidade; um
período que pode ser descrito como “conversão”, em que a entrada no claustro é an-
tecedida e sucedida por diferentes obstáculos, que põem à prova a santidade heroica;
e a morte gloriosa, sucedida pela descrição de inúmeros milagres.70 A analogia da
estrutura narrativa se reproduz também nas visões relatadas pelas duas mulheres,
conforme será discutido no item a seguir.
67 GENTIL, Pe. Joze. Vida da veneravel madre Rosa Maria Serio de Santo Antonio. Op. cit, p. 65; GENTILE, Giuseppe, Vitta della venerabile madre Rosa

Maria Serio di S. Antonio. Op. cit, p. 56, grifos no original.

68 GENTIL, Pe. Joze. Vida da veneravel madre Rosa Maria Serio de Santo Antonio. Op. cit, p. XVIII-XIX; GENTILE, Giuseppe, Vitta della venerabile

madre Rosa Maria Serio di S. Antonio. Op. cit, p. XIII. Acerca da centralização, na Sagrada Congregação dos Ritos, dos processos de canonização do

período, ver DITCHFIELD, Simon, Tridentine Worship and Cult of Saints In: PO-CHIA HSIA, R. (Ed.). Reform and Expansion, 1500-1660 (The

Cambridge History of Christianity, v. 6). Cambridge: Cambridge University Press, 2007, p. 201-224.

69 SOUZA, Evergton Sales. O lume da Rosa e de seus espinhos. Op. cit

70 VAUCHEZ, André. Santidade In ROMANO, Ruggiero (Dir.). Mythos/logos, sagrado/profano (Enciclopédia Einaudi, v. 12). Lisboa: Imprensa Nacio-

nal: Casa da Moeda, 1987, p.287-300.

321
4 – Visões de Jacinta de São José

As duas principais fontes que coligem as visões celestiais da beata Jacinta de


São José são: a denúncia remetida pelo bispo do Rio de Janeiro ao Santo Ofício,
que já foi alvo de atenção em outro lugar, e a narrativa de vida elaborada em 1819
pelo carmelita descaço fr. João dos Santos.71 As características deste segundo do-
cumento se prestam a uma comparação sistemática com a Vida de Rosa Maria
Serio, cuja exemplar da primeira edição, convém lembrar, era de uso pessoal da
própria Jacinta. A “Vida da madre Jacinta de São José” está estruturada segun-
do as convenções da narrativa hagiográfica: predestinação à santidade ainda na
infância, vocação que é desafiada pelas forças demoníacas e pela resistência da
mãe; aparecimento de visões e de outros prodígios quando a beata ingressa no
Recolhimento do Desterro, por ela mesma fundado, onde permaneceu sob a
direção do carmelita descalço fr. Manoel de Jesus; e por fim, a morte com odor
de santidade, acompanhada por milagres.72 Esta mesma estrutura narrativa foi
reproduzida por hagiógrafos posteriores de Jacinta, como Balthazar da Silva Lis-
boa e o frade carmelita Nicolau de São José.73 Tal sequência discursiva, comum a
dezenas de relatos edificantes de vidas de freiras e beatas produzidos na Europa
católica no século XVIII, não constitui um traço particular das duas fontes ana-
lisadas. A singularidade dos dois relatos encontra-se antes na analogia das visões
celestiais evocadas pelas duas protagonistas.
A descrição das visões de Jacinta de São José ocupa o lugar central do ma-

71 MARTINS, William de Souza. Práticas do corpo e conhecimentos do além da beata fluminense Jacinta de São José (c. 1744-1754) In: ANDRADE,

Marta Mega de; SEDREZ, Lise Fernanda; e MARTINS, William de Souza (Orgs.). Corpo: sujeito e objeto. Rio de Janeiro: Ponteio, 2012, p. 155-180.

72 Arquivo do Convento de Santa Teresa do Rio de Janeiro (doravante ACSTRJ), Vida da Madre Jacinta de São José. Na medida em que esta fonte é

pouco acessível ao público, os leitores serão remetidos também à obra de LISBOA, Balthazar da Silva, “Fundação do Convento de Santa Teresa pela

Bem-aventurada Jacinta Rodrigues Aires, sobre (sic) a proteção do Conde de Bobadela” cujo relato frequentemente parafraseia o manuscrito de frei

João dos Santos. Na verdade, os dois autores declararam seguir a narrativa elaborada pelo padre José Gonçalves, meio-irmão de Jacinta. Ver Annaes do

Rio de Janeiro. Contendo a descoberta e conquista deste paiz, a fundação da cidade com a História civil e eclesiástica até a chegada del rei Dom João VI...

Rio de Janeiro: na Typ. Imp. e Const. de Seignot-Plancher, 1835, tomo VII, p. 378-516.

73 ALGRANTI, Leila Mezan. Mémoire et hagiographie: la (re)construction de la vie d’une religieuse dans le Brésil colonial. Clio. Femmes, Genre,

Histoire, n. 19, p. 2-11, 2004.

322
nuscrito de frei João dos Santos, estendendo-se da f. 33 até a f. 75.74 Este trecho
corresponde ao período de direção espiritual do frade carmelita descalço Manoel
de Jesus, exercida entre 1744 e 1745. O período em questão parece hipertrofiado
diante de outros momentos da trajetória de Jacinta, sobre os quais há pouca ou
nenhuma informação. Por vezes, como será visto, períodos anteriores da vida da
beata fluminense foram recuperados a partir das visões. A narrativa da atividade
visionária segue o ritmo do calendário litúrgico, intensificando nas principais
festas católicas, como o Natal, a Epifania, a Quaresma, etc. Conforme se argu-
mentou no item 2, as datas principais do calendário incentivavam a permanên-
cia e a contemplação dos devotos diante das imagens, com as quais estabeleciam
verdadeiros diálogos. A parte central da narrativa de vida de Jacinta de São José
corresponde em linhas gerais ao capítulo XLI da Vida de Rosa Maria Serio.
A narrativa elaborada por frei João dos Santos principia com a descrição
de diferentes perseguições demoníacas sofridas por Jacinta, quando tinha cer-
ca de cinco anos de idade. No primeiro episódio, Jacinta foi arremessada no ar
até uma lagoa existente nos fundos da igreja do Rosário do Rio de Janeiro. Ato
contínuo, foi levada também pelo demônio ao alto do monte do Convento de
Santo Antônio da cidade, e atirada pela barreira deste. Na segunda perseguição,
foi “arrebatada e levada à barreira de Santa Rita, aonde botando-lhe [sic] muito
barro a enterraram e pisaram”.75 Por fim, aos oito anos de idade, “quando ensi-
nava a doutrina a seus escravos”, Jacinta foi suspensa no ar, e atirada pela escada
abaixo do sobrado familiar.76 As referidas descrições assemelham-se às práticas
de perseguição demoníaca encontradas no relato de Rosa Maria Serio. A maior
diferença reside nos testemunhos que informavam as referidas práticas. Quanto
à freira italiana, as quedas atribuídas às forças do demônio foram presenciadas
por inúmeras testemunhas, destacando-se o apoio prestado pelo próprio pai da
protagonista. No caso de Jacinta de São José, a memória de eventos sucedidos
nos primeiros anos de vida veio à tona quando se encontrava sob a direção espi-
ritual do frade carmelita descalço:

Tudo isto afirmou a mesma Jacinta ao seu confessor, o Padre


Frei Manoel de Jesus, dizendo que tudo isto se tinha passa-
do na realidade e que se fosse preciso o juraria e posto que,

74 Ver LISBOA. Balthazar da Silva, Annaes do Rio de Janeiro. Op. cit, p. 400-441, para o trecho correspondente.

75 ACSTRJ, Vida da Madre Jacinta de São José, f. 4-5; LISBOA, Balthazar da Silva, Annaes do Rio de Janeiro. Op. cit, p. 380.

76 ACSTRJ, Vida da Madre Jacinta de São José, f. 7; LISBOA, Balthazar da Silva, Annaes do Rio de Janeiro. Op. cit, p. 383.

323
como menina então, não fazia caso destas coisas e até estava
como esquecida. O Senhor por via de São João da Cruz, em
uma visão de revelação imaginária, em primeiro de junho de
1744, lhe trouxe à memória estes mesmos benefícios.77

A declaração da beata fluminense apresenta indícios de que a direção espi-


ritual do frade carmelita descalço, auxiliada possivelmente pela meditação em
torno dos modelos de santidade da Ordem do Carmo, entre os quais encontra-
va-se disponível a Vida de Rosa Maria Serio, pode tê-la levado a reconstituir a
memória de eventos ocorridos nos primeiros anos de vida.
Foi vista no item anterior a visão recebida por Rosa Maria Serio na quares-
ma de 1705, que representava Cristo com a cruz às costas. Em duas passagens da
“Vida” de Jacinta de São José, tal visão não somente reaparece, como também se
reproduz o sentido de auxílio na mensagem dita por Cristo. Na primeira passa-
gem, quando tinha entre 8 e 9 anos de idade, “viu por visão imaginária a Jesus
Cristo com a cruz às costas muito carregado, e que tirando a cruz de seus ombros
a punha sobre os de Jacinta”.78 Segundo a narrativa hagiográfica, a condição de
menina impediu Jacinta de conhecer as “intenções divinas” subjacentes à men-
sagem. Este conhecimento surgiu posteriormente, aos quinze anos de idade, isto
é, em torno de 1730, em um “êxtase que lhe durou 48 horas”, quando viu nova-
mente Cristo em uma visão imaginária,

Que na mesma forma tinha visto na idade de oito anos,


como acima se disse, o qual tirando a cruz de seus ombros
a punha sobre os de Jacinta e lhe dizia “Filha, por mim car-
regarás e te será suave”, conheceu então que o Senhor se ali-
viava e ficava descansado, e nisto visto que ela com o Senhor
se achavam lançando o hábito a muitas donzelas, as quais
viu mui pobres e cingidas do mesmo hábito. (...) e tendo
ainda Jacinta sobre os seus ombros a cruz de Cristo, tornou
o Senhor a ela e lhe disse “a minha felicidade é carregar con-
tigo” e tornou a pegar na mesma cruz para carregarem am-

77 ACSTRJ, Vida da Madre Jacinta de São José, f. 7; LISBOA, Balthazar da Silva, Annaes do Rio de Janeiro. Op. cit, p. 383-384.

78 ACSTRJ, Vida da Madre Jacinta de São José, f. 11; LISBOA, Balthazar da Silva, Annaes do Rio de Janeiro. Op. cit, p. 387.

324
bos. Então todas aquelas donzelas correram a pegar todas
na mesma cruz e a punham sobre seus ombros.79

Tal como ocorrido com as visões das quedas provocadas pelo demônio, a
visão da cruz fora declarada ao confessor somente em 1744, muito tempo depois
da cronologia aproximada do evento, o que denota uma vez mais a construção
retrospectiva da santidade. Outro elemento que também se assemelha à narra-
tiva de Rosa Maria Serio é o sonho de fundação de um convento carmelita. En-
contrando-se recolhida desde 1742 na Chácara da Bica do Morro do Desterro,
se for levada em conta apenas a mensagem da visão, o objetivo fundacional pre-
cederia o ingresso de Jacinta no Recolhimento, raciocínio que faz sentido dentro
da lógica hagiográfica. Entretanto, a análise crítica das fontes mostra que é difícil
separar o plano de Jacinta de fundação de um convento carmelita segundo as
regras de Santa Teresa d’Ávila da ação exercida entre 1744 e 1745 pelo confessor
e diretor espiritual frei Manoel de Jesus, religioso carmelita descalço.
Um terceiro ponto de contato entre as “vidas” de Rosa Maria Serio e Jacinta
de São José é constituído pelas alusões e visões do Menino Jesus. Evidentemente,
conforme já se argumentou, a devoção à infância de Cristo encontrava-se há
muito difundida, particularmente no segmento feminino dos fiéis. Não obstante,
chama a atenção a analogia dos usos das imagens do Menino Jesus, que aludem,
em muito casos, a práticas de caráter muito afetivo, como a lactação, o vínculo
especial estabelecido com o coração das duas devotas, etc. Tais usos remetem à
sensibilidade religiosa das místicas medievais, como já foi discutido. Da narra-
tiva de vida de Jacinta de São José, é possível concluir que a devoção ao Menino
Jesus precede a entrada na Chácara da Bica do Morro do Desterro e o contato
com os frades carmelitas descalços. No dia 27 de março de 1742, quando deixou
a residência materna e se recolheu na Chácara, “foi ao seu oratório, tirou dele o
seu Menino Jesus e o meteu no seio”.80 Segundo os cronistas, a provisão do bispo
D. Fr. João da Cruz – também da Ordem do Carmelo Descalço – para “erigir
uma capela por invocação do Menino Jesus” data de 3 de abril, poucos dias de-
pois da chegada de Jacinta.81

79 ACSTRJ, Vida da Madre Jacinta de São José, f. 19-20; LISBOA, Balthazar da Silva, Annaes do Rio de Janeiro. Op. cit, p. 392.

80 ACSTRJ, Vida da Madre Jacinta de São José, f. 24; LISBOA, Balthazar da Silva, Annaes do Rio de Janeiro. Op. cit, p. 395.

81 Notícia histórica do Convento de Santa Teresa pelas carmelitas do Convento de Santa Teresa do Rio de Janeiro. Rio de Janeiro: Edições Cartas Marcos,

1982, p. 42. A primeira missa foi celebrada em 1 de janeiro de 1744 pelo frei Manoel de Jesus, confessor de Jacinta, com assistência do bispo D. Fr. João

da Cruz. ACSTRJ, Vida da Madre Jacinta de São José, f. 28-29.

325
Se a devoção ao Menino Jesus seguia inicialmente um padrão doméstico, as
visões em que o mesmo aparece dialogando com Jacinta remontam ao período
em que esteve sob a direção espiritual dos frades carmelitas descalços. Assim
como foi notado no relato de Rosa Maria Serio, a intensa afetividade que Jacinta
de São José manifestava à representação de Cristo na infância expressou-se em
prodígios realizados no coração da devota. Em 23 de maio de 1744,

Que caiu em véspera do Espírito Santo, lhe apareceu o


Menino Jesus, que muitas vezes lhe tinha aparecido, e tre-
mendo de frio, disse “filha, dai-me agasalho!”. Jacinta, pa-
recendo-lhe que o Senhor falava das celinhas que andava
fazendo na sua casa para se recolher e fechar com sua irmã,
disse “Senhor, escolhei a que quiseres”; disse o Senhor: “esta
é a que tenho escolhido”, se entrou pela ferida do coração,
abrindo-a e rasgando-a muito mais e tanto que nela entrou
se fechou a descansar.82

Alguns dias antes, em 19 de maio, Jacinta teve outra visão, em que


apareceram a ela o Menino Jesus e Teresa d’Ávila. Esta dirigiu à Jacinta as
seguintes palavras:

“Filha amada do teu Senhor, que de amor te consumiu, aqui


o tens” dizendo isto, lhe mostrou nas mãos aquele mes-
mo Menino, que muitas vezes tem visto, e com uma mão
abrindo-lhe o peito, lho meteu no coração, dizendo “não
te queixes que te furtei, se eu sou o que te trago”, aqui se
lembrou de umas queixas que fizera sendo menina, dizendo
que Santa Teresa lhe tinha furtado o seu Menino, então a
santa desapareceu.83

Interessante perceber na passagem acima como atitudes derivadas das vi-


das das místicas de fins da Idade Média combinavam-se com práticas de fa-
miliaridade dos fiéis diante dos santos de devoção, tão correntes na América
Portuguesa.84 Na antevéspera do Natal de 1744, Jacinta foi contemplada com

82 ACSTRJ, Vida da Madre Jacinta de São José, f. 58-59; LISBOA, Balthazar da Silva, Annaes do Rio de Janeiro. Op. cit, p. 427-428.

83 ACSTRJ, Vida da Madre Jacinta de São José, f. 62-63; LISBOA, Balthazar da Silva, Annaes do Rio de Janeiro. Op. cit, p. 431.

84 MOTT, Luiz. Cotidiano e vida religiosa: entre a capela e o calundu In: SOUZA, Laura de Mello e (Org.). Cotidiano e vida privada na América

portuguesa (História da vida privada no Brasil, vol. 1). São Paulo: Cia. das Letras, 1997, p. 155-220.

326
mais uma visão do Menino Jesus, cuja estrutura narrativa se aproxima bastante
daquelas encontradas na Vida de Rosa Maria Serio. Nos dois casos, as visões
fazem referência aos altares e a todo espaço sagrado onde se localizavam as
imagens. A coincidência dos testemunhos pode derivar da “contaminação” dos
relatos hagiográficos mais recentes pelos mais antigos, principal hipótese segui-
da aqui. O que não exclui em absoluto aquela interpretação mais abrangente,
segundo a qual as práticas estabelecidas entre os devotos e as imagens de de-
voção adquiriam uma tal intensidade que os primeiros dirigiam-se às imagens
como se estivessem tratando em pessoa com as entidades celestes. Esta inter-
pretação, derivada das leituras de Jean Claude Schmitt, Hans Belting e Victor
Stoichita, ajuda a compreender também a abundância dos diálogos imaginários
estabelecidos entre as duas devotas e as imagens de devoção, produzidos fre-
quentemente nas datas festivas dos santos, após horas de contemplação diante
dos objetos sagrados que os representavam:

Andando Jacinta a preparar e ornar o trono da capela para


a Festa do Natal, entrou a lembrar-lhe que desde menina
sempre se preparava para esta festa, e levando-se no conhe-
cimento do mistério que era o motivo do seu gozo, então
se foi elevando dele que ficou fora de si, e dali quase duas
horas, tornando em si não de todo, viu por visão imaginária
a mesma imagem do Menino Jesus que está sobre o trono
da capela de que ele é o orago, que a mesma imagem estava
sobre o mesmo degrau do trono (...) e que olhando para ela
rindo lhe disse: “deixa-te filha”, e aqui tirando debaixo do
braço uns maços de papel lhos mostrou, os quais vendo ela
serem todos de sua letra, lhe disse: “louvado sejais de que
os tenhais convosco, e de que vosso seja tudo o que de vós
e por vós escrevo”, e dando o dito menino com isto uma
risada, subiu para o seu lugar, olhando e rindo. Aqui tomou
Jacinta de todo em si e viu que o trono estava já de todo en-
feitado, e julgou que em todo o tempo em que estivera fora
de si o estivera ornando.85

Após o exame dos ataques demoníacos, das representações de Cristo cru-


cificado e das visões do Menino Jesus, cabe analisar outro tema em comum nas
duas narrativas de vida: a revelação de mistérios da fé. Tais revelações ocorriam

85 ACSTRJ, Vida da Madre Jacinta de São José, f. 58-59; LISBOA, Balthazar da Silva, Annaes do Rio de Janeiro. Op. cit, p. 437-438.

327
também durante as visões imaginárias. Já foi visto que Rosa Maria Serio tinha
recebido o alto conhecimento de um dos fundamentos da fé cristã, a trindade.
A este respeito, Jacinta de São José passou por uma experiência muito próxima.
A 10 de janeiro de 1744, após a festa da Epifania, Jacinta experimentou vários
êxtases, num dos quais “teve o conhecimento sobre a igualdade das Pessoas da
Santíssima Trindade, no qual se lhe mostrou por vista clara as três pessoas divinas
tão unidas como distintas e tão distintas como unidas”.86 Cerca de um ano depois,
em janeiro de 1745, sucedeu à Jacinta outra visão bastante semelhante à primeira,
com o acréscimo do conhecimento da criação ou concepção de Nossa Senhora,
por meio do diálogo estabelecido entre a beata e São Tomás de Aquino.87
O quinto elemento suscetível de comparação entre as vidas de Rosa Maria
Serio e Jacinta de São José é constituído pelo conhecimento do destino das almas
no além, isto é a salvação, a condenação ou o padecimento no Purgatório.88 Nos
relatos de ambas, predominam visões que possuem um caráter “corporativo”, isto
é faziam referências a frades e a freiras da Ordem do Carmo. Assim, as visões do
além de Rosa Maria Serio assumiam uma função pedagógica frente às religiosas
de sua própria comunidade conventual, enquanto que as de Jacinta de São José
ecoavam o programa de Reforma assumido pelo Carmelo Descalço em relação
ao ramo Observante. Um aspecto que diferencia os relatos das duas mulheres
relaciona-se às “viagens imaginárias” de Jacinta de São José por diferentes espa-
ços da América portuguesa. Constitui talvez uma variante das viagens ao além
analisadas por um renomado medievalista.89 Entre os dias 14 e 15 de março de
1744, a beata fluminense experimentou uma série de estupores, durante os quais
perdeu parte dos sentidos e ficou acamada. Depois que retomou a consciência,
informou ao confessor que

No mesmo estupor o Senhor a tornara a chamar, e que no


mesmo instante se achou em certa terra do Brasil, aonde fora
levada para livrar do inferno e da morte a um religioso car-

86 ACSTRJ, Vida da Madre Jacinta de São José, f. 32; LISBOA, Balthazar da Silva, Annaes do Rio de Janeiro. Op. cit, p. 402.

87 ACSTRJ, Vida da Madre Jacinta de São José, f. 71; LISBOA, Balthazar da Silva, Annaes do Rio de Janeiro. Op. cit, p. 439-440.

88 Acerca do tema, ver CAMPOS, Adalgisa Arantes. As irmandades de São Miguel e as Almas do Purgatório: culto e iconografia no Setecentos mineiro.

Belo Horizonte: C/Arte, 2013; DEUSEN, Nancy E. van (Translated, Edited and Introduction). The Souls of Purgatory. The Spiritual Diary of a Seven-

teenth-Century Afro-Peruvian Mystic, Ursula de Jesus. Albuquerque: University of New Mexico Press, 2004.

89 LE GOFF, Jacques. O nascimento do Purgatório. Lisboa: Estampa, 1993, p. 132-138.

328
melita observante, que por desesperação estava para se en-
forcar com um cordel fino e já esperando, e que ela lhe cortou
o cordel livrando-o da morte, ao qual exortou a que confiasse
na misericórdia de Deus, e ainda que sua má vida e muitos
pecados (que disto nascia a sua desesperação) tinham provo-
cado a ira de Deus, esse Senhor ainda esperava a sua emenda
(...). Disse mais que estando no mesmo estupor fora levada a
acudir uma religiosa da mesma religião observante, que es-
tava para cair em um pecado desonesto, e que conhecera que
esta religiosa dali a duas horas havia de morrer, repreendeu-a
e exortou-a que se preparasse para a morte.90

Com relação à presença de Jacinta no além purgatorial, na mesma ocasião


do estupor Jacinta revelou que

Santa Teresa a levara ao Purgatório, e tiraram duas almas


[de] religiosas suas, as quais vira subir ao céu, e que tam-
bém sentira força para aplicar tudo o que atualmente pade-
cia pela alma mais desamparada que estava no purgatório,
o que fez, e então o Senhor lhe mostrou a alma de um preti-
nho que por ela subia ao céu, saindo do Purgatório.91

Considerações finais

A partir dos tópicos elencados ao logo do texto, buscaram-se os pontos de


contato encontrados nas narrativas de vida de Rosa Maria Serio e de Jacinta
de São José. Foram deixadas de lado analogias mais óbvias, como a predestina-
ção à santidade já marcada na infância, as práticas ascéticas austeras, as doen-
ças frequentes, a morte gloriosa e milagres ocorridos após a morte, na medida
em que tais elementos se afiguram como lugares-comuns deste tipo de relato.
Concentrando-se nas visões celestiais registradas para as duas protagonistas,

90 ACSTRJ, Vida da Madre Jacinta de São José, f. 46-48; LISBOA, Balthazar da Silva, Annaes do Rio de Janeiro. Op. cit, p. 415-416.

91 ACSTRJ, Vida da Madre Jacinta de São José, f. 48; LISBOA, Balthazar da Silva, Annaes do Rio de Janeiro. Op. cit, p. 416.

329
aquelas foram divididas em cinco temas: ocorrência de quedas durante ataques
demoníacos, aparições de Cristo na Cruz e do Menino Jesus, revelações de mis-
térios da fé e conhecimento do destino das almas no além. Tais temas podem ser
encontrados, isoladamente ou em combinações variadas, em outras dezenas de
narrativas de teor semelhante elaborados no período em pauta. Não obstante, a
existência de tantos paralelismos e a localização, entre os livros de uso pessoal da
beata Jacinta de São José, da Vida da veneravel madre Rosa Maria Serio de Santo
Antonio, levaram à proposição da hipótese de que tais coincidências não resulta-
riam somente da influência de um padrão geral da escrita hagiográfica, mas sim
da projeção mais direta da primeira narrativa sobre a segunda. Conforme se ar-
gumentou, a adoção da Vida de Rosa Maria Serio, como pauta para as visões de
Jacinta e para escrita hagiográfica acerca da mesma, teve início durante a direção
espiritual do frade carmelita Manoel de Jesus. A atividade deste coincidiu com a
publicação em 1744, em língua portuguesa, da Vida de autoria do padre Giuse-
ppe Gentile. Assim, esta obra pode ter fornecido à Jacinta uma pauta de visões
autorizadas – na época, encontrava-se aberto o processo de beatificação de Rosa
Maria Serio – a partir das quais a beata fluminense poderia também legitimar-se
como visionária. A leitura da obra do padre Giuseppe Gentile provavelmente
tornou-a predisposta a perceber visões semelhantes às de Rosa Maria Serio. Tal
influência não anulava a capacidade de imaginação visionária de Jacinta. Atuava
antes como um subtexto, ao lado de outros modelos hagiográficos como o Livro
da Vida de Santa Teresa d’Ávila, que acompanhava Jacinta nos momentos de so-
litária contemplação na Capela do Menino Jesus da Chácara da Bica.
Após 1750, a condenação por Roma da obra do padre jesuíta, a investigação
de Jacinta pelo Tribunal do Santo Ofício, os conflitos em que se envolvera com o
bispo do Rio de Janeiro, e a censura aplicada em 1771 pela Real Mesa Censória
à Vida de Rosa Maria Serio, constituem fatores que provavelmente dificultaram
a circulação de escritos hagiográficos ligados à Rosa Maria Serio e à Jacinta de
São José. Em 1819, em outro contexto, até mesmo a “Vida” elaborada por frei
João dos Santos permaneceu inédita. Apenas em 1835 foi publicado, nos An-
naes de Balthazar da Silva Lisboa, o relato de vida de Jacinta de São José, que se
apropriou em boa parte da narrativa do frade carmelita. Aquele que, algumas
décadas antes, quando atuava como provedor das capelas e resíduos do Rio de

330
Janeiro, fora um ferrenho defensor das prerrogativas da Coroa contra as isenções
das ordens religiosas, ironicamente se tornou um promotor das graças recebidas
por Jacinta de São José.92

92 MARTINS, William de Souza. Membros do corpo místico: ordens terceiras no Rio de Janeiro (c. 1700-1822). São Paulo: Edusp, 2009, p. 495-514.

331
AS CONFRARIAS DE DEVOÇÃO ÀS ALMAS
NA IBEROAMÉRICA NO SÉCULO XVIII:
um ensaio comparativo entre Tamas (La Rioja – Bispado
de Córdoba) e Nossa Senhora da Piedade do Iguaçu
(Bispado do Rio de Janeiro)

Anderson José Machado de Oliveira


Valentina Ayrolo

O crescimento do movimento confraternal no Ocidente, a partir da Baixa


Idade Média, teve como um dos seus pilares o desejo dos fiéis em assegurar a
salvação de suas almas por meio da intercessão do santo de devoção – garantin-
do-se o chamado sepultamento ad sanctus – associado aos sufrágios celebrados
pelos confrades no pós morte. Este movimento ocorreu paralelamente ao pro-
cesso de redefinição da geografia do além com o estabelecimento do purgatório
como um terceiro lugar nesta espacialidade da salvação. Com efeito, fortale-
ceu-se também a devoção às almas do purgatório que poderiam atuar como
importantes aliadas dos vivos em suas agruras cotidianas. Em troca de missas e
outros atos devocionais, aquelas almas em estado de tormento atuariam como
parceiras e prestadoras de favores. Deste modo, a instituição desta devoção po-
pularizou-se não só como um impulso dos leigos, mas também como uma ação
da Igreja no sentido de disciplinar os fiéis através do que Delumeau denomi-
nará de uma “pedagogia do medo”. Tal pedagogia seria formulada assim como
o culto às almas ganharia dimensões mais amplas ao longo da Época Moderna
em meio às ações da Reforma Tridentina, que não só esteve preocupada em
responder aos ataques luteranos, reafirmando a devoção aos santos e aos sím-
bolos católicos, como também procurou desenvolver mecanismos de controle e
disciplina da consciência dos fiéis.
De forma isolada ou associada ao culto do Arcanjo São Miguel, principal-
mente no mundo ibérico, a devoção confrarial às almas espalhou-se no ociden-

333
te católico adquirindo nas Américas um importante lugar na predileção dos
fiéis ao longo dos séculos XVII e XVIII. Geralmente ligada às paróquias, esta
devoção, junto com a do Santíssimo Sacramento, atraiu para suas confrarias,
em geral, elementos representativos das elites políticas e econômicas locais, na
medida em que ambos os cultos demandavam despesas mais significativas para
seu sustento como a cera em grande quantidade bem como a guarda e orna-
mentação pomposa do sacrário.
De qualquer forma, como já advertia Gabriel Le Bras, em artigo publicado
em 1941 e republicado em 1956, o movimento confraternal caracterizou-se pe-
las suas modalidades inumeráveis, respondendo, portanto, a formas múltiplas
de organização.1 Sendo assim, cabe verificar através de análises mais específicas
como a devoção às almas veio a adquirir significados plurais em sua difusão na
Iberoamérica, pois, como adverte Pedro Penteado, mesmo a existência de uma
causa específica devocional não explica por si só a adesão a um determinado
orago.2 Portanto, é preciso indagar-se de forma mais sistemática que outras mo-
tivações poderiam estar associadas a esta causa primeira.
Diante de tais questões, o que propomos neste texto é iniciar, ainda a títu-
lo de ensaio, uma reflexão sobre os possíveis significados da devoção às almas,
comparando duas regiões da Iberoaméria, a saber: a paróquia de Tamas, inserida
na Vigaria Forânea de La Rioja no Bispado de Córdoba e a paróquia de Nossa
Senhora da Piedade de Iguaçu no Bispado do Rio de Janeiro. As áreas escolhidas
tratam-se de duas paróquias rurais e que, portanto, apresentam características
distintas das áreas urbanas e centrais que têm sido privilegiadas para o estudo
das confrarias tanto na Europa quanto nas Américas. Acreditamos que esta seja
uma especificidade a ajudar-nos na ampliação do arco de reflexão sobre as con-
frarias e a devoção às almas na Iberoamérica.
Partiremos de um conjunto de fontes ainda não tão homogêneo, a saber:
um livro de missas da Confraria das Almas do Purgatório de Tamas de 1790,
o compromisso da Irmandade de São Miguel e Almas da Freguesia de Nossa
Senhora da Piedade de Iguaçú de 1764, uma amostra dos registros de óbitos

1 LE BRAS, Gabriel. Etudes de Sociologie Religieuse – Tome Second : De la morphologie à la typologie. Paris: PUF, 1956.

2 PENTEADO, Pedro. Confrarias Portuguesas da Época Moderna: problemas, resultados e tendências da investigação. Lusitania Sacra. 2ª. Série. Lisboa,

n° 7, 1995.

334
desta mesma freguesia que abrange a segunda metade do século XVIII e alguns
testamentos de irmãos da referida irmandade. Como advertimos acima, nossa
intenção é uma primeira aproximação ou mesmo um exercício de reflexão com o
tema e com as fontes, nosso objetivo inicial é bastante circunscrito, ou seja, pen-
sar os possíveis significados desta devoção para os seus organizadores em duas
regiões que se assemelham por suas características rurais e que se distanciam por
estarem inseridas em duas áreas imperiais distintas.

1 – As Almas do Purgatório de Tama, La Rioja

Embora o Concílio de Trento tenha deixado de dar maior ênfase na defini-


ção da localização do purgatório, tal posição não enfraqueceu o ímpeto daquelas
associações que voltavam suas preocupações para os destinos da alma no além.3
A criação da confraria das almas do purgatório, em 2 de novembro de 1784, na
igreja matriz de Tama, curato de Los Llanos – Vigaria Forânea de La Rioja, vinte
e um anos após à fundação da paróquia é uma prova do que se afirmou anterior-
mente.4 Estimulada pelo pároco da localidade, Sebastian Cándido Sotomayor,
esta confraria foi criada mais de um século após o impulso dado àquela devoção
na região de Tucumán e mesmo na Nova Espanha.
Segundo exaustivos estudos para a região de Humahuaca, jurisdição de Ju-
juy – noroeste do atual território da Argentina – ali havia sido fundada uma
confraria em louvor às almas em 1664, na Nova Espanha a primeira confraria
dedicada às almas do purgatório datava do ano de 1675.5 Em Buenos Aires, no
ano de 1750, dois vizinhos haviam solicitado ao Cabido Eclesiástico a autoriza-
ção para criarem uma irmandade que teria como padroeira Nossa Senhora das

3 Isto explicaria o fato de as melhores representações do purgatório terem sido realizadas entre os séculos XV e XVIII. GÓMEZ, Emilio A. Riquielme.

Santos intercessores del purgatorio. Representaciones pictóricas en las cofradías de ánimas murcianas. Simposium. Instituto Escurialense de Investi-

gaciones históricas y artísticas San Lorenzo del Escorial, 16, 2008. Matínez Sanchez ainda afirma que: “Os momentos mais efervescentes e gloriosos

do pugatório, nas palavras de Le Goff, ocorreram entre os séculos XV e XIX.” SANCHEZ, Ana Maria Martínez. Cofradías y obras pías en Córdoba del

Tucumán. Córdoba: EDUCC, 2006.

4 Todas as referências a respeito do funcionamento desta confraria estão no Arquivo do Bispado de La Rioja (AOLR) e no Arquivo do Arcebispado de

Córdoba (AAC): Tama, Livro avulso. A data de sua fundação encontra-se no Anuário Eclesiástico da República Argentina, 1961, p. 463-472.

5 CARETTA, Gabriela & ZACCA, Isabel. Benditos Ancestros. Comunidad, poder y cofradía en Humahuaca en el siglo XVIII. Boletín Americanista,

62, 2011.

335
Dores. Como já havia existido na catedral da cidade uma confraria das almas
benditas, os mesmos devotos propuseram-se refundá-la e reuni-la à nova de-
voção em invocação à Maria.6 Na região rural de Buenos Aires a presença de
confrarias dedicadas às almas do purgatório foi importante. Em 1803, quando
em visita à diocese, o bispo encontrou oito sodalícios sob a invocação das almas
benditas entre as 15 paróquias existentes.7
Voltando-nos para o território de La Rioja sabemos, através da ata de fun-
dação da confraria, que o pároco de Los Llanos havia obtido do Bispo Joseph de
San Alberto a autorização para fundar a instituição. O documento em questão
também nos informa que Sotomayor tinha a “faculdade de erigir e fundar de
forma geral confrarias nas capelas” de seu benefício e explica que a decisão do
pároco partiu da consideração que era boa e necessária a fundação da dita con-
fraria pois tratava-se de obra “louvável, do agrado de Deus e de grande proveito
para os fiéis a devoção às Almas Benditas do Purgatório”.8
Sabe-se também que a principal preocupação das irmandades em louvor
às almas do purgatório não era somente honrar aos defuntos, mas igualmente
purificar as faltas dos confrades vivos. Como assinala Claudio Lomnitz em um
interessante e sugestivo livro sobre a ideia de morte no México

Después de la muerte del cuerpo, el alma sufriente no po-


día hacer nada que ayudara a su propia causa o redujera
su término de penitencia en el purgatorio. No era posible
acumular méritos después de la muerte. Por esa razón, las
almas indefensas del purgatorio eran representadas como
los más pobres de los pobres. Se consideraba que orar por
ellas era una forma de caridad.9

Ainda que chame a atenção o caráter tardio da fundação da confraria de


Tama, pelo que podemos observar, em relação à atuação do pároco, sua cria-
ção poderia expressar uma das preocupações deste, ou seja, a pouca devoção de
6 FOGELMAN, Patricia. Una cofradía mariana urbana y otra rural en Buenos Aires a fines del período colonial, Andes, 11, 2000.

7 BARRAL, María Elena & DI STEFANO, Roberto. La diócesis de Buenos Aires a principios del siglo XIX: estructuras eclesiásticas y política pastoral.

VII Jornadas Interescuelas y Departamentos de Historia, Neuquén, septiembre, 1999.

8 AOLR- AAC: Tama, Livro avulso.

9 LOMNITZ, Claudio. La idea de la muerte en México. México: FCE, 2006, p. 213.

336
seus fregueses. É possível também que a pobreza de sua freguesia tenha levado
Sotomayor a estimular uma confraria como esta que, segundo Lomnitz, tendia
a consolidar o purgatório como um instrumento da comunidade, fortalecendo
ao mesmo tempo a paróquia como unidade social fundamental para a época e
ainda promovendo uma maior integração entre os fiéis.10
A documentação sobre a igreja matriz de Tama também menciona a exis-
tência de uma irmandade dedicada à Nossa Senhora do Rosário. No entanto,
não possuímos os livros que trazem informações sobre a mesma. Por outro lado,
sabemos que em Solca – vice paróquia – havia sido erigida uma confraria em
honra a São José que também era um orago invocado na hora da morte, sobretu-
do quando se redigia o testamento.
Em que pese a existência de mais de uma confraria, resulta curioso que, em
1795, durante uma visita pastoral ao curato de Los Llanos seu pároco não tenha
mencionado a Confraria das Almas. Perguntado, como era de rigor, acerca da pre-
sença de capelanias e obras pias em Los Llanos, o padre cura Sotomayor afirmou:

Que no había en esta parroquia, ni en ninguna otra de las


capillas de su distrito ninguna capellanía, ni pía memoria, y
que solo en esta iglesia parroquial se hallaba instituida una
Cofradía del Santísimo Rosario de la Virgen, que anual-
mente se le hace fiesta, por los mayordomos que voluntaria-
mente se asientan, como todo consta en un libro.11

Não obstante houvesse registro da Confraria das Almas, cujo único livro
que dispomos tem início no ano de sua fundação em 1784 e se estende até 1837,
o seu funcionamento não foi permanente embora a confraria tivesse alcançado
meio século de existência. Na realidade o sodalício somente funcionou em meta-
de deste tempo. Entre 1814 e o fim dos registros há uma interrupção importante
de dez anos. Os dados que dispomos são bastante pobres e somente nos permi-
tem observar algumas questões. Em princípio podemos conhecer o nome dos
mordomos12, a data de celebração da festa das almas, a quantidade e a qualidade

10 Id. Ibid., p. 214-215.

11 IEA, n° 3274. Visita al curato de Los Llanos por Mxo. Miguel del Moral 24 de mayo de 1795.

12 Corresponderiam ao provedor ou juiz na América Portuguesa.

337
da esmola coletada e recebida, a quantidade de missas e rogativas celebradas,
não passando daí as informações. A partir deste panorama e com as limitações
do caso, ensaiaremos algumas respostas acerca dos possíveis significados desta
devoção. Para tanto, incluiremos em nossa análise alguns dados sobre a Con-
fraria de São José, a qual já mencionamos, sediada em Solca – vice paróquia de
Los Llanos. A inclusão desta confraria permitirá que tenhamos um importante
contraponto neste espaço rural, ao passo que se tomássemos somente a Confra-
ria das Almas de Tamas poderíamos chegar a conclusões distorcidas sobre as
respostas devocionais diferenciadas existentes na região. Neste sentido, o con-
traponto dos dados torna-se importante por dois motivos. Primeiro pela escas-
sez de informações que os arquivos revelam sobre as confrarias rurais. Segundo
porque a historiografia argentina tem subestimado a importância das confrarias
na área rural da diocese de Córdoba e dado pouca importância para este tipo de
expressão da religiosidade local.
Segundo a explicação do pároco, entre 1784 e 1790, a confraria teria perma-
necido inativa:

por la poca devoción de los files pasaron algunos años sin que
ninguno quisiese asentarse en la Cofradía de Animas hasta
que movidos por mis repetidas exhortaciones el año de mil
setecientos ochenta y nueve se alistó el Capitán Don Andrés
Bazán para pedir limosna todos los lunes de cada semana.13

Andrés Bazán também foi o primeiro mordomo a ser registrado sem que hou-
vesse registro de outro confrade nos anos seguintes. Os registros só fazem menção
aos mordomos e, eventualmente em alguns anos, a um doador de esmolas.
A leitura dos livros da confraria nos permite deduzir o predomínio da família
Bazán, importância esta que já fora destacada por alguns trabalhos que analisa-
ram o padrão familiar de Los Llanos em 1795. Segundo pesquisas de Farberman e
Boixados, duas famílias predominaram em Tama no período analisado: os Bazán
e os Sánchez. A hierarquia local também pode ser deduzida do fato que estes dois
grupos familiares controlavam terras em outras áreas do curato como Catuna e

13 AOLR- AAC: Tama, Livro avulso. Grifos nossos.

338
Alcazar, onde viviam parte de seus agregados14, mestiços e índios.15
A este respeito, observando a ocupação do cargo de mordomo das almas,
contata-se que a família Sánchez teve três mordomos durante o período de exis-
tência da confraria: Maria em 1795, Eulogio em 1803 e Pedro José em 1809. Por
outro lado, entre 1789 e 1814, sempre ou quase sempre, houve um mordomo ou
mordoma de sobrenome Bazán:

NOME ANO
Andrés 1789
Lucas 1790, 1797, 1798
Bartolomé 1792
Eduardo 1793 e 1808
Germán 1794
Lorenzo 1794 e 1810
Pedro 1801
Estefanía 1809
Domingo 1813
Ramón 1813
Laurencia 1813
Fernando 1814
Cándida 1814
José María 1814
Fonte: AOLR- AAC: Tama, Livro avulso.

14 Os agregados eram indivíduos que viviam em terras que não eram proprietários, onde realizavam trabalhos em troca de alguns benefícios como a

ocupação da terra. “La figura del agregado es recurrente en los contextos rurales latinoamericanos de la colonia tardía y el siglo XIX. Por lo que toca

al virreinato rioplatense, aunque los había en las pampas, mucho más abundaban en el Interior, dadas las mayores dificultades para el asentamiento

campesino autónomo y la menor la difusión de relaciones salariales. Por otra parte, la agregaduría a los pueblos de indios se confunde con una de las

categorías coloniales de forastero”. FARBERMAN, Judith. Las márgenes de los pueblos de indios. Agregados, arrendatarios y soldados en el Tucumán

colonial. Siglos XVIII y XIX. Nuevo Mundo Mundos Nuevos [En ligne], Colloques, mis en ligne le 09 novembre 2009, consulté le 25 juillet 2015. URL :

http://nuevomundo.revues.org/57474 ; DOI : 10.4000/nuevomundo.57474

15 FARBERMAN, Judith; BOIXADOS, Roxana. Clasificaciones mestizas. Una aproximación a la diversidad étnica y social en los Llanos riojanos del

siglo XVIII. IX Jornadas argentinas de Estudios de población. La Huerta, Córdoba, Argentina, mes de octubre, 2007.

339
Outro sobrenome que se repete é o da família Vallejos. Floreano foi
mordomo em 1796, Nicolás em 1796, Miguel em 1801 e Santiago foi o úni-
co que ocupou o cargo em três ocasiões em 1802, 1834 e 1837. No entanto,
por ora, não temos como melhor compreender o grau de consolidação da
família na região.
Em 1800, por motivos que não são esclarecidos, “desde el día veinte y ocho
de mayo hasta el día cinco de noviembre por defecto de no haber mayordomo
que se asentase para la Cofradía de Animas, yo el infrascripto [el cura Soto-
mayor] me hice cargo de pedir limosna”.16 Da leitura da ata de eleição dos mor-
domos para o ano de 1801, nota-se que em 1800 foram dois sobrinhos do pároco
que realizaram a coleta de esmolas: “di las gracias a Dn. Thomas Soto Mayor y a
Dn. Manuel Carrizo mis sobrinos por la eficacia y devoción conque solicitaron la
limosna de Animas en cinco meses y días en todos los lunes de la semana”.17 Este
dado pode nos dizer algo sobre a tibieza devocional dos fregueses, a qual o páro-
co não cansava de denunciar, ou mesmo sobre o próprio interesse do sacerdote
em manter ativa a confraria.
Aparentemente, desde que fora criada, a confraria realizava suas festas
no mês de janeiro. Por isso, em 1792, o padre Sotomayor solicitou que a festa
passasse a ser celebrada no mês de novembro, pois do contrário “se encuentra
mucha tibieza en las gentes”. A partir de então passamos a observar a realiza-
ção da festa das almas nos primeiros dias de novembro com vésperas, missa
cantada, vigília e procissão. Um dia depois costumava-se eleger os mordomos.
O custo de celebração da festa permaneceu estável durante todo o período
analisado não excedendo doze pesos. Somente no ano de 1802 se transcreveu
em detalhes as missas realizadas onde constava o dia da função às almas e a
esmola que custeou a celebração. Graças ao registro feito por Juan Manuel
Carrizo, sobrinho do vigário de Los Llanos, podemos saber que se pagou um
peso18 por cada missa rezada:

16 AOLR- AAC: Tama, Livro avulso.

17 Em 1798, pela primeira vez se registra nas atas que será recolhida durante as segundas-feiras do ano. AOLR- AAC: Tama, Livro avulso.

18 Um peso equivalia a 8 reais.

340
DIA MISSA PAGAMENTO
28 de março venda de uma libra de grãos produzida pela
1 missa rezada
[domingo] esmola recolhida
11 de maio venda de uma libra e meia de grãos e 4 reais
2 missas rezadas
[terça-feira] em ovos
9 de julho
1 missa rezada um peso em grãos em prata e ovos
[sexta-feira]
20 de julho
1 missa rezada em grãos de prata e ovos pelo valor de peso
[terça-feira]
11 de agosto [quar-
1 missa rezada 4 reais em grãos e 4 em ovos
ta-feira]
23 de agosto
1 missa rezada 3 reais em prata e 5 em ovos
[segunda-feira]
20 de setembro 1 peso, a metade em prata e a outra metade
1 missa rezada
[segunda-feira] em ovos
Fonte: AOLR- AAC: Tama, Livro avulso.

Como podemos observar, as missas pelas almas do purgatório não eram


necessariamente realizadas às segundas-feiras como parece ocorrer em outras
irmandades similares como a de Humahuaca.19
A quantidade de missas, além daquelas a que a confraria estava obrigada,
oscilava. Segundo os registros que dispomos, esta variação ficava entre 15 e 5
celebrações dependendo do ano e da esmola arrecadada. Além das missas, em
vários anos assenta-se a realização de orações pelos defuntos.
A forma de pagamento das missas também era variada. Pagava-se em pe-
sos e reais, prata, mas nunca a totalidade do montante. Quase sempre este era
complementado com ovos, frangos, sabão, linho, cochinilla20, algodão, abóbora;
todos produtos que se relacionavam à estrutura produtiva da região e compu-
nham seu comércio.
Em 1809, o pároco Sebastián Cándido Soto Mayor deixou o curato de Los
Llanos e a ata que traz registros sobre este ano é praticamente a última com dados

19 CARETTA, Gabriela & ZACCA, Isabel, Benditos Ancestros. Op. cit, p. 59

20 Inseto originário do México do qual se extrai a substância corante de nome carmim.

341
completos. Em 1810 teve início a revolução associada à guerra de independência,
esta situação pode explicar a diminuição das atividades da confraria. Los Llanos
foi um espaço em que homens e apetrechos foram requeridos para a guerra.
Em 28 de outubro de 1813 encontramos um relato sumário sobre a confraria
no qual dizia-se “habiendo concluído con el aniversario de animas ...” passava-se à
eleição dos novos mordomos: Fernando Bazán, Cándida Bazán e José María Bazán.
A ata que traz este registro foi assinada pelo coadjutor da paróquia Frei Lorenzo de
la Paliza e pelo notário eclesiástico Pedro Joseph Sánchez. Em seguida registra-se
outro brevíssimo relato de 1835 no qual mencionava-se que havia servido como
mordomo, em 1834, Dom Santiago Vallejos e que no ano corrente a função havia
recaído sobre o Coronel Dom Julián Cuenca. Esta ata foi assinada em Tama aos 13
de novembro somente por Pedro Zenteno que não declarou sua função.
O livro termina com uma exposição de Zenteno, em 17 de fevereiro de 1837,
onde se lê:

No habiendo podido hacerse la novena, y fiesta de Animas en


el tiempo consecuente a causa de la ausencia del Mayordo-
mo Dn. Julián Cuenca, se ha verificado ahora y concluido en
el día de esta fecha … queda nombrado de mayordomo por
la función venidera del presente año del mes de noviembre
nuevamente Dn. Santiago Vallejos y yo que conste (…)21

Possivelmente a ausência de Cuenca, a quem se identifica como Coronel,


se devesse aos conflitos sociais pelos quais passava a região naqueles anos. Los
Llanos fora terra de motoneras22 e, neste ano, a região havia declarado guerra
ao Marechal Santa Cruz, presidente da Confederação Peruano-Boliviana. Este
conflito internacional requisitou homens de todo o noroeste do atual território
argentino. Recordamos isto já que o contexto político e social daqueles anos deve
ser considerado ao se estudar, analisar e compreender o funcionamento e a dinâ-
mica comunitária, dentro da qual a confraria tinha um lugar importante ainda
que, por ora, seja difícil precisar sua magnitude.
21 AOLR- AAC: Tama, Livro avulso.

22 As motoneras eram grupos armados que se organizavam para fins políticos. Estes poderiam estar relacionados a promover convulsões em uma região

e obter sucesso para determinadas reivindicações ou mesmo derrubar governos. Ver: AYROLO, Valentina & MÍGUEZ, Eduardo J. Reconstruction

of the Socio-Political Order after Independence in Latin America. A Reconsideration of Caudillo Politics in the River Plate. Jahrbuch für Geschichte

Lateinamerikas, 49, 2012.

342
Havíamos mencionado, ao iniciar esta seção do texto, que era necessário con-
siderar de maneira geral em nossa análise a outra confraria do curato de Los Lla-
nos para a qual também contamos com um livro. Trata-se da confraria dedicada
a São José localizada na vice paróquia de Solca. Esta havia sido erigida em 1785,
no entanto, diferentemente daquela em honra às almas, a proposição para sua
fundação foi do fiel Juan Guadalberto de la Vega. Este personagem estava entre
os sete membros mais abastados do curato. Possuía naquele período 1500 vacas
que de acordo com a avalição do pároco local, dos contemporâneos e dos histo-
riadores era um patrimônio relativamente importante considerando as condições
econômicas e produtivas da região onde o gado representava a maior riqueza que
se poderia controlar. Por outro lado, e como era costume entre os membros mais
poderosos das localidades rio-platenses, de la Vega exercia funções na adminis-
tração da justiça local, provavelmente ocupando o cargo de juiz pedâneo.23
A confraria teve início formal em 1793 ano que se assentou a primeira ata
em um livro que tem como limite final o ano de 1860. A partir das informações
anotadas, podemos observar dois períodos. O primeiro que estende de 1793 a
1813 e o segundo compreendido entre os anos de 1821 e 1860. Aparentemente
como ocorreu com a Confraria das Almas, a de São José esteve sem funcionar
por um período. Neste caso oito anos, entre 1813 e 1821. Interessante constatar
que a explicação que se encontra no livro é igual àquela formulada pelo vigário
Sotomayor para a Irmandade das Almas de Tama: “total indiferencia de la que
resulta la indevoción de los fieles y la poca asistencia a los templos”. Não obstan-
te, sabemos que em 1813 estourou um sério conflito entre María de la Cruz Rol-
dan e Juan Guadalberto de la Vega em torno dos direitos que ambos julgavam
ter sobre a capela de São José e, sobretudo, pelas possessões ligadas a esta.24A
disputa referia-se aos direitos vinculados à capela e indiretamente atinentes à
confraria.25 Embora a presença de Guadalberto de la Vega fosse indiscutível des-
23 Os dados sobre De la Veja encontram-se no recenseamento feito pelo pároco Sotomayor em 1805, AAC, Leg. 20. T. III. Os juízes pedâneos atuavam

em causas judiciais, policiais e criminais dentro das pedanias que eram circunscrições pequenas (aldeias) dentro dos Partidos ou Curatos.

24 AAC, Leg 35, t. VI. Roldán acusou la Vega, dentre outras coisas, de malversação dos fundos pertencentes à Igreja e à Confraria.

25 Em visita às capelas e igrejas do curato de Los Llanos realizada por Miguel del Moral, em 1795, por ordem do Bispo Moscoso, houve denuncia

que a vice paróquia de Solca, por extremo descaso do padroeiro, encontrava-se muito desamparada e com escassos ornamentos. [Visita a Los Llanos,

1795, IEA n° 3274]. Em função das reclamações, o visitador nomeou Juan Guadalberto de la Vega como mordomo em substituição a José Roldán que

administrava até aquele momento. Sobre este assunto, ver: AYROLO, Valentina. Mediadores en “zona de contato” La acción de los seglares en algunas

de las tareas religiosas. XVI Jornadas sobre Alternativas Religiosas en América Latina. Punta del Este, Uruguay, 1 al 4 de noviembre, 2011.

343
de o início do funcionamento da irmandade, o mesmo não ocorria com Roldán.
Ainda que houvesse vários membros da instituição com o mesmo sobrenome,
ela não figurou entre eles em nenhum ano.
No que tange às informações que possuímos sobre a Confraria de São José,
observamos algumas diferenças com relação à irmandade anterior. A estrutura de
funcionamento em São José parecia mais sofisticada. Desde o início contou com
a figura de mordomos maiores e menores, com procuradores maiores e menores,
com um sacristão e um alferes. Mais tarde, durante o segundo período, encontra-
vam-se ajudantes para a diversas funções. A eleições eram realizadas logo após a
festa de São José que raramente coincidiam com o dia do santo em 19 de março.
As votações, desde 1821, escalonavam-se por categoria e por dia.26 Algumas vezes
mencionava-se a quantidade de dinheiro que cada integrante contribuía para a ins-
tituição. No ano de 1845 foram registrados os confrades e suas respectivas doações:
Malechora Barrios com um peso, Gervasio Fatiga com um peso, Celestina Muñoz 2
reais, Orencia Montiveros 2 reais, etc.27 Não há anotações sobre a coleta de esmolas
e nem sobre os pagamentos em espécie como no caso da Confraria das Almas.
Até aqui nos deparamos com uma descrição de uma freguesia rural na his-
panoamérica. Poderíamos realizar um primeiro balanço chamando a atenção
para as dificuldades que encontrou o pároco em avivar a piedade devocional
entre seus fiéis. Sem dúvidas o ensaio da fundação de uma confraria em Tama
pode ser interpretado como uma estratégia pastoral no sentido de despertar a
devoção entre aquelas almas. Vejamos o que ocorria no universo colonial rural
luso na América.

2 – São Miguel e Almas em Piedade do Iguaçu, Rio de Janeiro

Na América Portuguesa foi comum a associação do culto do arcanjo São Miguel


às almas do purgatório, embora estas também pudessem ter sido cultuadas de forma
exclusiva. Assim como na América Espanhola, parece ter sido a partir do século
XVII que uma maior ênfase foi dada na difusão do culto às almas, embora na cidade

26 No primeiro dia era eleito o mordomo maior, no segundo dia o menor, no terceiro o alferes maior e assim sucessivamente.

27 AOLR- AAC: Tama, Livro avulso. Grifos nossos.

344
do Rio de Janeiro se tenha notícias de uma irmandade dedicada a São Miguel e Al-
mas que teria sido criada por volta de 1579 na freguesia da Sé.28 Todavia, foi ao longo
do século XVIII que esta prática devocional ganhou maior consistência conjugando
as ações da hierarquia eclesiástica com o ímpeto devocional dos fiéis leigos.
As Constituições Primeiras do Arcebispado da Bahia29, resultado do sínodo
diocesano reunido pelo Arcebispo D. Sebastião Monteiro da Vide em 1707, tra-
ziam em seu texto um claro apelo aos fiéis no sentido de que:

... sirvam a Deus e honrem a seus santos, Nós, contudo, para


mais os animar, lhes rogamos e encomendamos muito que
tratem desta devoção das confrarias e de servirem e vene-
rarem nelas aos santos, principalmente a do Santíssimo Sa-
cramento, e do nome de Jesus, à de Nossa Senhora e das
almas do purgatório, quanto for possível e a capacidade dos
fregueses o permitir, porque estas confrarias é bem que haja
em todas as igrejas.30

A devoção leiga não ficou indiferente a este apelo eclesiástico na medida


em que no âmbito das freguesias urbanas da cidade do Rio de Janeiro obser-
va-se a organização de pelo menos três confrarias paroquiais com o propósito
do culto às almas, foram elas a Irmandade de São Miguel e Almas da Freguesia
da Candelária (1733), a Irmandade de São Miguel e Almas da Freguesia de San-
ta Rita (1750) e a Irmandade de São Miguel e Almas da Freguesia de São José
(1759).31 Segundo Adalgisa Campos, foi neste mesmo período que este impulso
devocional, associando São Miguel ao culto das almas, tomou a Capitania das
Minas Gerais, tornando esta a terceira maior devoção paroquial do Setecentos.32

28 CAVALCANTI, Nireu. O Rio de Janeiro Setecentista: a vida e a construção da cidade da invasão francesa até a chegada da corte. Rio de Janeiro: Jorge

Zahar, 2004, p. 425.

29 Esta legislação canônica foi editada em 1719 e 1720 e a partir deste ano passou a ser adotado por todas as dioceses sufragâneas do Arcebispado da

Bahia, que correspondiam a todos os bispados da América Portuguesa e o de Angola em África.

30 VIDE, D. Sebastião Monteiro da. Constituições Primeiras do Arcebispado da Bahia. Estudo introdutório e edição de Bruno Feitler e Evergton Sales

Souza. São Paulo: EDUSP, 2010, p. 452. (Grifos nossos)

31 CAVALCANTI, Nireu. O Rio de Janeiro setecentista. Op. cit, p. 425.

32 CAMPOS, Adalgisa Arantes. As Irmandades de São Miguel e Almas do Purgatório: culto e iconografia no setecentos mineiro. Belo Horizonte: C/Arte,

2013, p. 196-197.

345
Ao que tudo indica, a freguesia rural de Nossa Senhora da Piedade de Igua-
çu estava inserida nesta propagação da devoção às almas. Em 1768, a Irmandade
de São Miguel e Almas da localidade teve seu compromisso confirmado pelo rei
após ter sido examinado pela Mesa da Consciência e Ordens. A provisão de con-
firmação dá indícios de que a irmandade já funcionava contando somente com
a autorização do bispo diocesano, o que até então era bastante comum. O rei,
todavia, reconhecia a incompetência do ordinário para tal ato, afirmando que a
ereção de irmandades em terras das conquistas era da competência de sua juris-
dição e de seus tribunais33, notadamente a Mesa da Consciência e Ordens que
administrava os negócios concernentes ao padroado régio. A indignação régia
deve ser compreendida levando-se em consideração o contexto das chamadas
Reformas Pombalinas, quando um conjunto de medidas regalistas procurou es-
tabelecer uma maior interferência da coroa nos assuntos eclesiásticos, afirmando
as prerrogativas da jurisdição régia através do padroado.34
Outro indício do prévio funcionamento da irmandade de Piedade de Iguaçu
pode ser deduzido através da constatação da existência de outras irmandades
promotoras da mesma devoção em freguesias rurais vizinhas, como era o caso
da Irmandade das Almas da freguesia de Santo Antônio de Jacutinga, criada em
1719, e a Irmandade de São Miguel e Almas da freguesia de Nossa Senhora do
Pilar de Iguaçu, criada em 1729.35
Assim como em Tama (La Rioja), a purificação dos defuntos e dos vivos era
parte integrante da preocupação dos confrades. No capítulo 14 do compromisso
aprovado pela já citada provisão régia, assumia-se como obrigação mandar rezar
toda segunda-feira, podendo ser em outro dia, uma capela de missas na freguesia
em intenção de todos os irmãos vivos e defuntos.36 Este zelo devocional, em socie-
dades agrárias e tradicionais, era mais um dos elementos pelos quais estratégias
eram traçadas de forma a melhorar o controle sobre o ambiente social e natural,

33 ANTT (Arquivo Nacional da Torre do Tombo – Lisboa) – Chancelaria da Antiga Ordem de Cristo – Livro 297 – Provisão de Confirmação do

Compromisso da Irmandade de São Miguel e Almas da Freguesia de N. S. da Piedade do Agoasú, 1768, fol. 134v.

34 Com relação ao impato desta postura junto às irmandades e confrarias, ver: OLIVEIRA, Anderson José Machado de. As Irmandades Religiosas

na Época Pombalina: algumas considerações. In: FALCON, Francisco & RODRIGUES, Claudia (organizadores). A “Época Pombalina” no Mundo

Luso-brasileiro. Rio de Janeiro: FGV, 2015.

35 ARAÚJO, José de Souza Azevedo Pizarro e. O Rio de Janeiro nas Visitas Pastorais de Monsenhor Pizarro. Rio de Janeiro: INEPAC, 2008, p. 242 e 260.

36 ANTT – Provisão de Confirmação do Compromisso da Irmandade de São Miguel e Almas da Freguesia de N. S. da Piedade do Agoasú, 1768, fol. 136.

346
como adverte Giovanni Levi.37 A superação de um quadro maior de incertezas
e precariedades poderia dar às confrarias de almas em sociedades rurais perifé-
ricas, como as paróquias de Piedade do Iguaçu e Tama, um paroxismo quando
em comparação com seus papéis em freguesias urbanas. Este talvez seja um dos
significados a serem perseguidos com maior afinco em comparações futuras.
Sob este aspecto, o caráter paroquial da devoção em questão pode nos apon-
tar algumas outras pistas. Da mesma forma que o culto ao Santíssimo Sacra-
mento, a devoção às almas do purgatório assumiu na América Lusa um caráter
profundamente associado às paróquias quer rurais ou urbanas.38 Todavia, quan-
do situações são comparadas, podemos encontrar algumas diferenças quanto ao
registro da presença destas confrarias dentro das matrizes. Ao estudar os regis-
tros de óbitos da freguesia urbana da Sé do Rio de Janeiro entre os anos de 1746
e 1812, Milra Bravo demonstrou que 16,5 % dos fregueses foram sepultados na
matriz, correspondendo a 882 registros de óbitos39, somente em 47 casos foram
mencionados o local de sepultamento sendo todos estes referindo-se ao adro
da Sé sem que nenhuma cova de irmandade fosse mencionada especificamente.
Ressalte-se que a matriz foi o primeiro lugar escolhido para sepultamento sen-
do seguido pelos seguintes templos: a Igreja de N.S. da Conceição e Boa Morte
(12,5%) – que abrigava uma irmandade de homens pardos – a Igreja do Senhor
Bom Jesus do Calvário (11,1%); Igreja da Ordem Terceira de N.S. do Carmo (5,4%)
– uma irmandade da elite –; a Igreja de São Domingos (5 %) – que abrigava uma
irmandade de pretos -; o Convento de Santo Antônio dos franciscanos (4,7%).
Fica evidente que em freguesias urbanas, como a Sé do Rio de Janeiro, as
irmandades assim que puderam buscaram a edificação de templos próprios de
forma a afirmar as identidades de seus confrades.40 O que pode explicar em parte
a não explicitação das covas dos sodalícios no interior da matriz. É bem verdade
que isto precisaria ser avaliado para outras freguesias urbanas, embora a Sé do
Rio fosse uma freguesia central e o padrão da mesma possa ser verificado em

37 LEVI, Giovanni. A herança imaterial: trajetória de um exorcista no Piemonte do século XVII. Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, 2000, p. 99.

38 CAMPOS, Adalgisa Arantes. As Irmandades de São Miguel e Almas do Purgatório. Op. cit, p. 196.

39 A autora trabalhou com uma base de 5.332 registros de óbitos. Ver: BRAVO, Milra Nascimento. Hierarquia na Morte: uma análise dos ritos fúnebres

católicos no Rio de Janeiro (1720-1808). Universidade Federal do Estado do Rio de Janeiro (UNIRIO), Rio de Janeiro: Dissertação de Mestrado, 2014. .

40 OLIVEIRA, Anderson José Machado de. Devoção Negra: santos pretos e catequese no Brasil Colonial. Rio de Janeiro: FAPERJ/Quartet, 2008, p.

302-303.

347
outras paróquias próximas, onde a profusão dos templos de confrarias foi se-
melhante. Um caso que pode ser evidenciado é o da Irmandade do Santíssimo
Sacramento da Freguesia da Candelária, dona do famoso templo que é um dos
pontos turísticos da cidade do Rio de Janeiro, que desde o século XVII foi insti-
tuir-se com igreja própria que abrigava a matriz como inquilina.
Em Piedade de Iguaçu encontraremos algo diferente, ou seja, houve uma ní-
tida preocupação em registrar o local preciso de sepultamento dos confrades das
irmandades que permaneceram no templo, de forma que o registro de óbito aca-
basse funcionando como um elemento de demarcação da identidade dos con-
frades dentro da matriz, diferenciando os grupos e estabelecendo hierarquias.
Tomemos como exemplo dois livros de óbitos existentes para essa freguesia com
relação aos locais de sepultura no interior da Igreja Matriz.

Tabela 1 – Sepultamentos na Matriz de N.S. da Piedade de Iguaçu (1723-1769)*1


LOCAIS DE SEPULTURA N° %
Covas da Matriz 156 67,5
Covas da Irmandade do Santíssimo Sacramento 20 8,7
Covas da Irmandade de N.S. do Rosário dos Pretos 17 7,4
Covas da Irmandade das Almas 16 6,9
Igreja de São Bento 6 2,6
Covas da Irmandade de N.S. da Piedade 4 1,7
Covas de Irmandades sem identificação do orago 4 1,7
Outros*2 8 3,5
Totais 231 100,0
Fonte: ACNI (Arquivo da Cúria de Nova Iguaçu) – Livro de óbitos de livres, forros e escravos da
Freguesia de Nossa Senhora da Piedade de Iguaçu (1723-1769).
*1 – Para o período o livro apresenta o total de 246 registros, dos quais 231 fazem menção ao local
de sepultamento.
*2 – Agrupamos aqui os locais que foram mencionados apenas uma vez.41

Tabela 2 – Sepultamentos na Matriz de N.S. da Piedade de Iguaçu (1777-1798)*1

41 Gostaria de agradecer ao Grupo de Pesquisa Antigo Regime nos Trópicos (ART) pela cessão dos bancos de dados que permitiram a elaboração das

tabelas que serão apresentadas.

348
LOCAIS DE SEPULTURA N° %
Covas da Matriz 419 64,3
Covas da Irmandade do Santíssimo Sacramento 78 12,0
Covas da Irmandade das Almas 66 10,0
Covas da Irmandade de N.S. do Rosário dos Pretos 58 8,9
Covas da Irmandade de N.S. da Conceição dos Homens Pardos 18 2,8
Capela de Dona Luiza Maria de Jesus 2 0,3
Capela de Santo Antônio da Serra 2 0,3
Outros*2 9 1,4
Totais 652 100,0
Fonte: ACNI – Livros de óbitos de livres e forros da Freguesia de Nossa Senhora da Piedade de
Iguaçu (1777-1798).
*1 – Para o período o livro apresenta o total de 679 registros, dos quais 652 fazem menção ao local
de sepultamento.
*2 – Agrupamos aqui os locais que foram mencionados apenas uma vez.

A preferência por sepultura em covas da matriz era um padrão que se repe-


tia nas freguesias urbanas e rurais, tal fato pode ser explicado em razão destas
covas serem mais baratas do que aquelas que pertenciam às irmandades, princi-
palmente para aqueles que não eram irmãos.42 A permanência das irmandades
na matriz, para além daquelas do Santíssimo e das Almas, talvez reproduza nas
freguesias rurais um padrão que se encontrava em áreas como as Minas Gerais,
onde a concentração de fortunas e recursos materiais foi menor quando compa-
rada com áreas como as freguesias centrais do Rio de Janeiro, o que limitava, na
prática, a dispersão de recursos pelos diversos segmentos sociais, influindo in-
clusive na capacidade de arrecadação de esmolas. Deste modo, uma previdência
em relação aos recursos teria guiado esta permanência. Esta situação, no entan-
to, não implicava na ausência de hierarquias entre os grupos e que os mesmos
não tivessem buscado distinguir-se.43

42 RODRIGUES, Claudia. Lugares dos mortos na cidade dos vivos: tradições e transformações fúnebres no Rio de Janeiro. Rio de Janeiro: Secretaria

Municipal de Cultura, 1997, p. 231.

43 OLIVEIRA, Anderson José Machado de. Devoção Negra. Op. cit, p. 305-306.

349
É de se destacar igualmente que, em Piedade de Iguaçu, mesmo a matriz
controlando a maior parte das covas, as irmandades não deixavam de ter um
poder expressivo pois, além de manterem sepulturas de maior valor, em torno
de 30% das mesmas era controlado por elas, o que não deixa de ser um número
significativo. A própria Irmandade de São Miguel e Almas viu este poder crescer
ultrapassando a Irmandade de N.S. do Rosário no controle de sepulturas do pri-
meiro para o segundo período retratado pelas tabelas acima.
É provável que o aumento deste poderio possa ser relacionado com o grau
de elitização que se associava ao culto de São Miguel e Almas, fato que também
se percebe na paróquia de Tama em La Rioja. Assim como as irmandades do
Santíssimo Sacramento que, tradicionalmente, congregaram segmentos da elite
colonial, a devoção às almas também atraiu o concurso dos chamados “homens
bons” das localidades. Os irmãos do Santíssimo viam nos gastos com o sus-
tento da devoção nas paróquias uma forma de aumento do seu prestígio e de
se colocarem num patamar elevado da hierarquia social.44 O sustento do culto
das almas do purgatório, pela importância conferida à salvação a partir da Épo-
ca Moderna, conferia aos membros e suas confrarias importância semelhante,
fazendo com que procurassem garantir lugares de destaque no conjunto das
diferenciações sociais.
Em seu compromisso, no capítulo 2, os irmãos de São Miguel e Almas de
Piedade de Iguaçu determinavam que:

Também com parecer do Juiz, Escrivão e mais irmãos da


Mesa poder-se-á aceitar homem pardo se lhes parecer con-
veniente que o nosso intento não é mais que por zelo das
Almas e Amor das Ditas aumentar a irmandade para que
cresçam os sufrágios que é o fim para que a instituímos com
advertência porém que conste a irmandade se for pardo que
é liberto e de bom procedimento e não terão contudo estes
voto de modo algum em Mesa e nunca poderá aceitar pes-
soa de mais inferior qualidade de que fica dito ou em outra
qualquer de sanguinidade infamada.45

44 CHAHON, Sérgio. Os convidados para a ceia do senhor. As missas e a vivência leiga do catolicismo na cidade do Rio de Janeiro e arredores (1750-1820).

São Paulo: EDUSP, 2008, p. 342-344.

45 ANTT – Provisão de Confirmação do Compromisso da Irmandade de São Miguel e Almas da Freguesia de N. S. da Piedade do Agoasú, 1768, fol.

350
O primeiro aspecto que se pode destacar no estatuto é que a qualidade mais
baixa que se admitia era a de pardo livre. O designativo pardo livre caracterizava,
com suas possíveis variações, um processo de mobilidade social que estabelecia
um distanciamento em relação ao universo do trabalho escravo.46 Marcio Soares
analisa em seu trabalho um caso bastante interessante, o de Ana Maria da Ro-
cha. Residente em Campos dos Goitacazes, esta ignorava sua filiação e carregava
consigo uma ascendência escrava, pois era tida como mulher parda. Em 1761,
Ana contraiu matrimônio com Zeferino José de Faria Gaio, homem branco. Ao
acompanhar a trajetória de ascensão social da família, Soares demonstra como a
ascendência escrava de Ana e dos filhos do casal foi desaparecendo e esta foi se
consolidando como parda ou por vezes como sem cor, e o seu marido, por vezes,
mesmo sendo branco, foi designado como pardo.47 Desta feita, pode-se observar
que, na América Portuguesa, o fenômeno da mestiçagem é perpassado por valo-
res sociais que não necessariamente se relacionam com a pigmentação da pele.
Com isso, evidencia-se que os irmãos de São Miguel e Almas recusavam qual-
quer aproximação com o universo desqualificador do trabalho escravo, além de
estabelecerem uma hierarquia entre os próprios pardos, já que de acordo com os
dados da Tabela 2 havia outra irmandade de pardos no interior da matriz. Uma
questão interessante seria saber quais pardos eram admitidos por ambas irmanda-
des e quais aqueles que eram admitidos somente em São Miguel e Almas. Por ou-
tro lado, mesmo os pardos admitidos não tinham direito a voto nesta irmandade.
Aprofundando seus critérios de diferenciação, estabeleciam também a exclusão
daqueles que tinham a chamada mácula de sangue, o que era um dos critérios de
“nobilitação” em sociedades com traços da cultura do Antigo Regime. É de ressal-
var que à época em que este compromisso foi aprovado, no contexto das Reformas
Pombalinas, tais critérios estavam em discussão, culminando em 1773 com o de-
creto que extinguiu as distinções baseadas na “pureza de sangue”. Todavia, a força
dos costumes ainda faria com que tais estigmas resistissem.

134v – 135.

46 CASTRO, Hebe Maria Mattos de. Das Cores do Silêncio: os significados da liberdade no sudeste escravista – Brasil século XIX. Rio de Janeiro: Arquivo

Nacional, 1995, p. 35; GUEDES, Roberto. Sociedade Escravista e Mudança de Cor. Porto Feliz, São Paulo, Século XIX. In: FRAGOSO, João; FLOREN-

TINO, Manolo; JUCÁ, Antonio Carlos e CAMPOS, Adriana (editores). Nas rotas do Império. Vitória/Lisboa: EDUFES/IICT, 2006, p. 454.

47 SOARES, Marcio de Sousa. A remissão do cativeiro: a dádiva da alforria e o governo dos escravos nos Campos dos Goitacases, c.1750 – c.1830. Rio de

Janeiro: Apicuri, 2009, p. 262-270.

351
Outros signos distinguiam os irmãos, como o privilégio para o estabeleci-
mento do peditório de esmolas que sustentavam as missas destinadas às almas
do purgatório. O compromisso da irmandade determinava que dois irmãos pa-
ramentados com suas opas, varas e bacia seriam designados pelo tesoureiro da
irmandade para recolherem as esmolas sem que pudessem recusar a função. O
acompanhamento dos irmãos defuntos era outro momento em que paramentos
com suas opas verdes e portando tochas, os irmãos saíam à rua em cortejo. É
de se notar que a Irmandade de São Miguel tinha o privilégio de conduzir seus
confrades em esquife próprio.48 Segundo João Reis, a posse do esquife era um
dos elementos da pompa fúnebre que não só atestava a autonomia da irmandade
como acrescia aos cortejos um elemento de distinção.49
O conjunto destes signos distintivos parecia traduzir alguma relação dos
irmãos de São Miguel com segmentos da elite socioeconômica de Piedade do
Iguaçu. A título de uma primeira especulação, conseguimos inicialmente localizar
os testamentos de quatro pessoas que foram sepultadas em covas da irmandade.
José Pereira Pinto, cujo testamento foi aprovado em 1788, era natural da própria
Freguesia de Piedade do Iguaçu e declarou-se irmão da Irmandade das Almas, so-
licitando ser sepultado nas covas de sua irmandade com os sufrágios que tinha di-
reito e amortalhado no hábito de São Francisco. Deixou legado para Nossa Senho-
ra da Conceição da mesma freguesia e declarou ter como bens, que deixava para
seus escravos, uma casa de farinha com todos os seus pertences e ferramentas.50
André Rodrigues, que redigiu seu testamento em 1791, e que era natural do
Termo de Vila Real, em Portugal, também declarou ser irmão das Almas, solici-
tando ser sepultado nas covas de sua irmandade e amortalhado do hábito de São
Francisco. Entre os seus bens listou a posse de dezenove braças de terra e mais
os seus sertões, onde tinha casa de moradia, um engenho de mandioca e mais
os seus pertences, uma roça de mandioca e mais três escravos.51 Dona Anacleta
Maria de Oliveira, também sepultada em cova das Almas, redigiu seu testamento
no mesmo ano de 1791, declarando ser natural da freguesia de Santo Antônio de
48 ANTT – Provisão de Confirmação do Compromisso da Irmandade de São Miguel e Almas da Freguesia de N. S. da Piedade do Agoasú, 1768, fol.

136-137.

49 REIS, João José. A Morte é uma Festa: ritos fúnebres e revolta popular no Brasil do século XIX. São Paulo: Cia. das Letras, 1991, p. 146-147.

50 ACNI – Testamento de José Pinto Pereira, 1788. Gentilmente cedido pelo ART.

51 ACNI – Testamento de André Rodrigues, 1791 – Gentilmente cedido pelo ART.

352
Jacutinga, vizinha à freguesia de Piedade do Iguaçu, e solicitando ser sepultada
na freguesia em que viesse a falecer. Deixou oito mil réis em esmolas para as
obras da Igreja de Nossa Senhora da Piedade do Iguaçu e declarou possuir junto
com seu marido vinte e cinco braças de terras com morada de casas onde vivia,
uma casa de farinha com seus pertences e engenho, outra morada de casas no
centro da freguesia, além de dez escravos.52
E por fim temos ainda o testamento de Joana Maria de Jesus, que era natural
da freguesia de São João de Meriti – outra freguesia rural próxima à Piedade
do Iguaçu – e declarou ser irmã do Santíssimo Sacramento a quem deixava o
escravo Zacarias para que fosse utilizado no intuito de produzir recursos para o
serviço da “lâmpada” que iluminava o Santíssimo. Ordenou que seu corpo fosse
sepultado em covas da Irmandade de Nossa Senhora do Rosário e amortalhado
no hábito de São Francisco. Entre os seus bens listou uma casa de morada, uma
fábrica de farinha e seus pertences, além de doze escravos.53
Algumas dessas informações podem ser relevantes no sentido de visuali-
zarmos, de forma ainda bastante preliminar, as pertenças sociais dos confrades
ou simpatizantes da Irmandade de São Miguel e Almas da freguesia de Pieda-
de do Iguaçu. Três entre os quatro testadores solicitaram serem amortalhados
com o hábito de São Francisco, que entre as mortalhas de santos situavam-se
entre as vestes fúnebres mais caras, denotando uma condição mais privilegiada
dos solicitantes.54
Outro indicador importante da condição social dos testadores é a posse de
escravos. Todos declararam possuir escravos, embora José Pereira Pinto não te-
nha precisado o número destes. Estudos para a região demonstram que entre os
produtores de farinha de mandioca, que parece ser o caso dos quatros testadores,
a concentração de mão de obra cativa estava em torno de 5,7 escravos entre os
senhores mais abastados.55 Notamos que dois entre os testadores excediam esta
média possuindo Dona Anacleta 10 escravos e Joana Maria de Jesus 12 cativos.
Por fim, foi comum, entre os quatro testadores, a posse de fábricas de fa-
52 ACNI – Testamento de Dona Anacleta Maria de Oliveira, 1791 – Gentilmente cedido pelo ART.

53 ACNI – Testamento de Joana Maria de Jesus, 1794 – Gentilmente cedido pelo ART.

54 BRAVO, Milra Nascimento. Hierarquia na Morte. Op. cit, p. 119-120.

55 RODRIGUES, Ana Paula Souza. Famílias, casas e engenhos: a preservação do patrimônio no Rio de Janeiro (Piedade do Iguaçu e Jacutinga, século

XVII-XVIII). Universidade Federal Rural do Rio de Janeiro. Rio de Janeiro: Dissertação de Mestrado, 2013, p. 61.

353
rinha, posse de terras ou roças de mandioca. Convém destacar que a freguesia
de Piedade do Iguaçu, ao longo do século XVIII, converteu-se em área de pro-
dução de alimentos para o mercado interno, destacando-se o fabrico da farinha
de mandioca.56 A explosão demográfica promovida pela descoberta de ouro nas
Minas, a conversão da cidade do Rio de Janeiro no maior porto escravista da
América do sul e a posterior transferência da corte portuguesa para a Améri-
ca em 1808 foram fenômenos que sustentaram o crescente desenvolvimento da
produção de alimentos, favorecendo freguesias como Piedade de Iguaçu. Com
efeito, a consolidação de uma elite agrária na região passou pelo controle de ter-
ras, escravos e equipamentos de beneficiamento da mandioca.
Deste modo, a proximidade com a Irmandade de São Miguel e Almas po-
deria ter como um dos seus significados a construção de uma identidade entre
setores da elite local, afirmando sua distinção em relação aos demais segmentos
sociais, notadamente os setores subalternos.

3 – Considerações Finais

Ao iniciarmos este texto destacamos que nosso propósito era pensar os pos-
síveis significados que a devoção confraternal às almas do purgatório podia assu-
mir em dois universos rurais distintos, um ligado à monarquia hispânica e outro
à lusa. O trabalho em conjunto permitiu-nos identificar algumas questões que
afirmamos na sequência e que poderão nos conduzir a conclusões interessantes
em reflexões futuras.
Em primeiro lugar, parece possível pensar que nestes setores rurais da Ibe-
roamérica os locais de expressão da religiosidade tinham suas peculiaridades em
relação às áreas urbanas. Como pudemos observar, a participação ativa dos pá-
rocos na organização e funcionamento das devoções, sobretudo em relação às
almas, poderia significar duas coisas. Por um lado, a difusão do espírito reforma-
dor pombalino e/ou burbônico aos ditos espaços. Na América Portuguesa, por
exemplo, as medidas de cunho regalista, que visavam estabelecer um maior con-
trole do Estado sobre a Igreja, fomentaram conflitos entre a coroa e a hierarquia

56 Id. Ibid., p. 47-61.

354
eclesiástica possibilitando aos fiéis certa autonomia de ação em espaços como as
confrarias.57 Talvez isto possa explicar o maior protagonismo dos confrades de
Piedade do Iguaçu quando comparados aos de Tama, onde o peso do dirigismo
paroquial se fez sentir com mais força. É possível também que nos espaços rurais,
mais distantes do controle dos bispos, esta maior ligação com a paróquia tenha
favorecido tanto aos párocos quanto aos leigos na gestão dos espaços devocionais.
Diferentemente do que ocorria nas cidades, onde os centros e espaços de socia-
bilidade se multiplicaram fundando novos estabelecimentos que disputavam o
espaço público e de poder mais intensamente, nos espaços rurais as paróquias
continuaram ainda por algumas décadas como os centros mais importantes da
vida comunitária e, recordando Lomnitz, ao consolidar o purgatório como ins-
trumento da comunidade reforçavam ainda mais a paróquia como unidade social
fundamental para o fortalecimento das relações entre os fiéis.58 Esta ideia pode ter
norteado as ações do pároco de Tama tanto no estímulo que deu à fundação da
confraria quanto nos esforços que empreendeu para mantê-la.
Em segundo lugar, isso nos leva a postular que talvez as confrarias nos
espaços rurais, e sobretudo aquelas dedicadas às almas, materializariam os la-
ços entre os fiéis reproduzindo sua lógica de funcionamento.59 Neste mesmo
sentido e reforçando nossa argumentação, a elitização associativa observada
nos casos analisados poderia dar conta de um dos elementos que teriam consti-
tuído as identidades desses setores em suas respectivas localidades justificando
sua própria existência e a distância que os separava dos demais grupos sociais,
notadamente dos setores subalternos. Deste modo, ser mordomo da confraria
das almas implicava numa marca distintiva e inquestionável de pertencimen-
to à elite local. Com efeito, não interessa o tamanho e nem a riqueza no nível
regional desta elite, importa considerar que era o setor privilegiado de sua co-
munidade e, neste sentido, em sua escala precisa funcionava de maneira seme-
lhante ao restante das elites.
Por outro lado, a comparação entre as duas regiões não pode deixar de as-
sinalar que a organização da devoção das almas implicou na explicitação de al-

57 Ver: OLIVEIRA, Anderson José Machado de. As Irmandades Religiosas na Época Pombalina. Op. cit

58 LOMNITZ, Claudio. La idea de la muerte en México. Op. cit, p. 214-215.

59 CARETTA, Gabriela & ZACCA, Isabel. Benditos Ancestros. Op. cit.

355
gumas particularidades, como por exemplo o peso que a escravidão africana
tinha na América Portuguesa. A demarcação do lugar dos grupos privilegiados
em Piedade do Iguaçu implicou necessariamente pensar o distanciamento de
seus confrades em relação ao trabalho escravo, como se vê explicitado no pró-
prio compromisso da associação quando se afirmava que a qualidade mais baixa
das pessoas que poderiam ser admitidas era a dos pardos livres. Em Tama este
assunto era distinto já que mulatos, zambos e negros constituíam 20,8% da po-
pulação segundo recenseamento de 1778, no entanto, os escravos representavam
somente 1,2% dos habitantes da paróquia.60
Ao assinalarmos os elementos de aproximação e particularização entre os
dois universos analisados, acreditamos poder caminhar no sentido de um en-
saio que também procura propor um exercício de pensar e refletir sobre os pro-
cessos e acontecimentos de maneira “conectada”. Definir um enfoque que privi-
legia a conectividade implica, segundo Serge Gruzinski, que as histórias sejam
múltiplas e que estejam relacionadas, ou mais ainda que possam conectar-se
uma com a outra.61 O elemento de conexão neste caso é dado pela vivência
semelhante e particular do catolicismo em áreas sob influência das monarquias
católicas ibéricas.
Por fim, outro aspecto que merece destaque, como já assinalamos, era o fato
que pertencer à confraria das almas do purgatório assumia uma importância sig-
nificativa na medida em que, ao orar pelas almas, a comunidade reconstruía-se
incluindo e aproximando paroquianos vivos e mortos. De certa forma, as missas
dos defuntos, sobretudo durante as festas, acabavam por unir o céu e a terra.

60 LARROUY, Antonio. Documentos del Archivo de Indias para la historia del Tucumán. Toulouse, 1927.

61 GRUZINSKI, Serge. Les mondes mêlés de la Monarchie catholique et autres «connected histories ». Annales. Histoire, Sciences Sociales. Paris, 56e

année, N. 1, 2001. p. 87.

356
Parte III

A ÁFRICA E O
ORIENTE PORTUGUESES

359
ALIANÇAS E EMBATES ENTRE RELIGIÕES:
missões católicas em terras centro-africanas, século XVII.

Marina de Mello e Souza

No curso da exploração da costa africana os portugueses entraram em con-


tato com o Congo em 1482 e em 1491 Nzinga-a-Nkuwu, o mani Congo (mwene
Kongo), soberano de um território que foi a partir de então chamado de reino,
aceitou o batismo católico e o nome de D. João, à semelhança de D. João II,
então rei de Portugal. Mas esse gesto pouco alterou suas crenças e maneira de
viver. Foi um filho seu, Mvemba-a-Nzinga, que recebeu o nome de D. Afonso
ao ser batizado na mesma ocasião que o pai, quem implantou o catolicismo no
Congo e fez dele um importante elemento na sua organização política, desde o
início do século XVI. As formas assumidas por esse catolicismo conguês e suas
transformações ao longo dos séculos foram bastante estudadas, e com variações
de interpretação todos os estudiosos reconhecem sua significativa penetração
no Congo.1 Mas ao lado desta constatação é preciso ter claro que até a segunda
metade do século XIX o Congo manteve sua autonomia.
O mesmo não aconteceu em regiões mais ao sul, que a partir do final do

1 Autores que trataram especificamente do catolicismo no Congo são: THORNTON, John. Early Kongo-Portuguese Relations: a New Interpretation. In:

HENIGE, David (Org.). History in África. A Journal of Method. Massachussetts: Brandeis University, African Studies Association, v. 8, 1981. p.183-204;

The development of an African Catholic Church in the Kigdom of Kongo, 1491-1750. Journal of African History. Cambridge, 25, 1984. p. 147-167; The

Kingdom of Kongo. Civil War and Transition, 1641-1718. Wisconsin: The University of Wisconsin Press, 1992; The Kongolese Saint Anthony. Dona Beatriz

Kimpa Vita and the Anthonian Movement, 1684-1706. Cambridge: Cambridge Univeristy Press, 1998; HEYWWOD, Linda; THORNTON, John. Central

Africans, Atlantic Creoles, and the Foundation of the Americas, 1585-1660. Cambridge: Cambridge Univeristy Press, 2007; HILTON, Anne. The Kingdom

of Kongo. Oxford: Oxford Univeristy Press, 1985; MAcGAFFEY, Wyatt. Religion and Society in Central África. The BaKongo of Lower Zaire. Chicago: The

University of Chicago Press, 1986; The West in Congolese Experience. In: CURTIN, Philip D (Org.). Africa & the West. Madison: University of Wis-

consin Press, 1972, pp. 49-74; Dialogues of the Deaf: Europeans on the Atlantic Coast of Africa. In: SCHWARTZ, Stuart (Ed.). Implicit Understandings.

Observing, Reporting, and Reflecting on the Encounters Between Europeans and Other People in Early Modern Era. Cambridge, Cambridge University

Press: 1994; ALMEIDA, Carlos José Duarte. Uma infelicidade feliz. A imagem da África e dos Africanos na Literatura Missionária sobre o Kongo e a região

mbundu (meados do século XVI – primeiro quartel do século XVIII), Dissertação de doutorado, Faculdade de Ciências Sociais e Humanas, Faculdade

Nova de Lisboa, 2009; FROMONT, Cécile. The Art of Conversion. Christian Visual Culture in the Kingdom of Kongo. Williamsburg, Virginia: 2014, e

outros autores entre os quais me incluo.

361
século XVI foram alvo da conquista militar portuguesa. Ali havia uma multi-
plicidade de chefaturas, sendo a mais importante delas governada pelo Ngola
Kilwanji (Angola Quiluanje) e chamada de Ndongo (Dongo). Os povos que lá
viviam eram os ambundos, falantes de línguas parecidas com as dos congueses
e que com eles mantinham relações, inclusive de subordinação ao mani Congo.
Entretanto, a presença de comerciantes portugueses desde as primeiras décadas
do século XVI, especialmente os sediados em São Tomé, havia contribuído para
a alteração do equilíbrio entre as forças políticas locais. Na segunda metade do
século XVI o angola expandia o território sob seu controle e se libertava da au-
toridade do mani Congo.
Tanto no Congo como mais ao sul, entre os dembos, subordinados ao mani
Congo, e entre os ambundos do Ndongo, o catolicismo foi importante elemento
de aproximação nas estratégias políticas portuguesas. Entretanto, a forma como
o contato se deu no Congo e em Angola foi completamente diferente, sendo por
uns incorporado às suas estruturas de poder e para outros indício de depen-
dência.2 Na segunda metade do século XVII, pessoas inseridas nos circuitos de
poder do Congo, e as ligadas a chefes ambundos, articulados em alianças mais
fluidas, tinham relações bem diferentes com os missionários católicos. É sobre
essas diferentes maneiras de lidar com o catolicismo e com seus propagadores
que tratarei aqui. Para isso utilizarei dois relatos de sacerdotes que atuaram nas
regiões do que era então conhecido como reino do Congo, e no território cha-
mado de Angola, que abrangia várias chefaturas independentes, núcleos de as-
sentamento português e sobados subordinados aos invasores. São eles os relatos
do capuchinho Dionigi Carli e o do jesuíta Manuel Ribeiro.
Dionigi Carli chegou em Luanda em janeiro de 1668, em companhia de Mi-
chelangelo Guattini. Deste sobreviveram cartas enviadas ao pai nas quais relatou
a viagem em detalhes, a passagem por Pernambuco, e como em Luanda foram
recebidos pelos vereadores e por cerca de 300 pessoas. Mas ele mesmo logo se foi
deste mundo, já em terras de missão, para onde partiram os dois sem cumprir
o período de aclimatação que lhes foi recomendado pelos antigos moradores.
Iniciaram juntos a viagem, mas Guattini seguiu direto para Mbanza Mbamba

2 A esse respeito ver, de minha autoria, Catolicismo e comércio na região do Congo e de Angola, séculos XVI e XVII. In: FRAGOSO, João et alli (Org.).

Nas rotas do império. Ilha de Vitória: EDUFES, 2006, pgs. 279-296.

362
(Banza Bamba) enquanto Carli foi parando pelo caminho, atendendo as pessoas
que a ele acorriam, pois a notícia de sua presença levava muita gente às aldeias
por onde passava. Enquanto isso, em Mbanza Mbamba, Guattini achou que o
hospício se localizava em lugar agradável e contratou servidores para fazê-lo
funcionar. Pomar e horta já formados não escaparam do seu registro, mas logo
ele foi levado pelas febres. O texto mais extenso sobre essa missão é o de Carli,
que apesar do pouco tempo passado em solo africano (de janeiro a julho de
1668), deixou um rico relato sobre o que lá viu e viveu.3 Ele servirá para termos
contato com formas como povos do Congo viviam o catolicismo, ali introduzido
no início do século XVI, com o governo de D. Afonso I Mvemba a Nzinga.

3 O texto aqui utilizado é o do livro publicado por Chandeigne, editor francês dedicado à publicação de fontes: La mission au Kongo des pères Michel-

angelo Guattini & Dionigi Carli (1668). Prefácio de John Thornton e tradução de Alix du Cheyron d’Abzac, Paris: Chandeigne, 2006. A tradução foi

feita a partir da edição de 1674, de Joseffo Longhi, que os anotadores da edição (Francesco Surdich, Xavier de Castro e John Thornton) dizem ser mais

completa que as edições de 1671 e 1672.

363
Mapa do livro La Mission au Kongo.... de Carli e Guattini.

364
A Companhia de Jesus era a ordem que estava há mais tempo na região.
Desde meados do século XVI, com mais ou menos constância, seus sacerdotes
frequentaram Mbanza Kongo (Banza Congo), Mpinda (Pinda) e outras sedes
políticas regionais como Mbamba (Bamba), Mbata (Bata) e Nsundi (Sundi).
Com a fundação de Luanda em 1575 a presença de jesuítas aumentou e migrou
para o sul, consolidando-se nas primeiras décadas do século XVII, quando a
conquista portuguesa ganhou algumas regiões do interior de Luanda e Portugal
tornou-se um poder em ascensão no então chamado reino do Angola.
Quando em 1645 os capuchinhos chegaram à África Centro-Ocidental, en-
viados pela Congregação da Propagação da Fé, ou Propaganda Fide, portanto
não subordinados ao padroado português como os jesuítas, as guerras de con-
quista que resultariam na formação de Angola ainda estavam em curso. Já os
chefes do Congo, que haviam incorporado muito do catolicismo em suas prá-
ticas religiosas, mantinham relações amistosas tanto com Portugal como com
Roma. Mas mesmo sendo área de relações relativamente amistosas e na qual
as autoridades locais apoiavam o trabalho dos sacerdotes católicos, as condi-
ções de vida eram extremamente adversas. Doenças contra as quais os euro-
peus não tinham imunidade nem defesas matavam muitos. Acidentes vários no
ambiente desconhecido e hostil da África central, de naufrágios a emboscadas,
de batalhas a encontros com animais ferozes, tornavam a vida bastante árdua.
Vocacionados para a conversão dos gentios em terras distantes, os missioná-
rios capuchinhos, frequentemente jovens ardorosos, sabiam que a missão en-
volveria grandes sacrifícios e nela se jogavam por idealismo e não com vistas
a recompensas econômicas, que Carli e Guatttini em mais de uma passagem
insinuam ser a principal motivação dos jesuítas. Os padres italianos tem a clara
intenção de se distinguirem deles e não perdem oportunidade de dizer que os
jesuítas a serviço da Coroa portuguesa são movidos pelo soldo, assim como de
enumerar suas riquezas e a quantidade de escravos que para eles trabalham.
Nos textos que escreveram, deixam registrada sua diferença na maneira de agir,
frisando serem movidos pela fé e desejo de salvar almas. O fato é que enquanto
os missionários capuchinhos rumavam logo para o interior, ficando no hospício
de Luanda apenas uns poucos sacerdotes e o Prefeito, os jesuítas mantinham-se
nas fímbrias dos centros de poder portugueses, em Luanda, Massangano, Cam-

365
bambe, Ambaca (Mbaka), nos arimos do Bengo, ou seja, nas áreas nas quais a
autoridade portuguesa era a mais reconhecida.
O outro relato sobre o qual me deterei é de um missionário jesuíta, sediado
em Luanda, mas com conhecimento das áreas do interior, do Congo e de regiões
controladas pelos portugueses ou a elas vizinhas: “Carta da missão que fizeram
o P. Manoel Ribeiro e o Irmão Francisco Correa, mandados pelo P. Antonio de
Souza Reitor, que então era, do Colégio de Angola, ano de 1672 para o de 1673”.
A versão aqui utilizada é a que foi publicada por António Brásio na Monumenta
Missionária Africana.4 O padre Manuel Ribeiro tinha alguma familiaridade com
a região, que percorreu por nove meses, e que era reconhecida como parte do
Ndongo até 1671, quando Pungo Andongo (Mpungo a Ndongo) foi ocupada
pelos portugueses, pondo fim às guerras de conquista iniciadas na década de
1590. A derrota do Ndongo e a captura do angola e daqueles que poderiam suce-
dê-lo no poder estabeleceu, portanto, uma nova fase da presença portuguesa na
África Centro-Ocidental. Desde 1624 o Ngola Ari, D. Felipe, mantinha relações
ambíguas com os representantes do governo português, de subordinação mas
também de relativa autonomia, mesmo tendo nos portugueses sua maior base de
sustentação. Eram principalmente os conquistadores lusitanos que reconheciam
o chefe derrotado do Ndongo, D. Felipe II, como herdeiro do poder do Ngola
Kilwanji, com que primeiro tinham se relacionado, e de Ngola Mbandi, que o su-
cedeu. Depois da morte deste em 1624, Njinga assumiu a chefia do Ndongo com
o apoio e reconhecimento de muitos sobas, mas logo passou a ser perseguida pe-
los portugueses, a quem não se subordinou. Estes apoiaram e entronizaram Ngo-
la Ari, o pai daquele que agora era derrotado pelos que antes se diziam aliados.
A queda de Pungo Andongo, local de moradia do angola, junto com a paz
selada com Njinga em 1657, permitiu que o comercio de gente, motivo maior
do interesse português, transcorresse então com uma relativa tranquilidade. Os
sobas deveriam ser feitos aliados e não inimigos, e alguns deles passaram a ser os
fornecedores dos escravizados que moviam a economia lusitana, não mais obti-
dos diretamente por meio das guerras de conquista. A missão do padre Manuel
Ribeiro, portanto, percorreu regiões que pouco antes estiveram envolvidas em

4 Carta do Padre Manuel Ribeiro sobre a missão de 1672-1673. Monumenta Missionária Africana. África Ocidental. Coligida e anotada pelo Padre

António Brásio, Série I, vol. 13, document 114. Versão digital organizada por Miguel Jasmins Rodrigues, editada pelo IICT – CDI, 2011.

366
disputas por controle de mercados e acesso a escravizados, mas aquela situação
tinha mudado, com o comércio sobrepondo-se à guerra. Desde os primeiros
contatos entre portugueses e centro-africanos, o catolicismo esteve associado
ao estabelecimento de relações pacíficas entre as partes, que deveria resultar no
bom desempenho das trocas comerciais e no estabelecimento de acordos políti-
cos, e o peso dessa associação com a paz era ainda maior em um período recém
saído de muitas guerras.5
Se a missão do padre Manuel Ribeiro ocorreu logo após a uma batalha deci-
siva na ocupação do território ambundo pelos portugueses, na qual o Dongo foi
definitivamente eliminado como poder político, quando Carli e Guattini chega-
ram a Luanda, Portugal também havia há pouco tempo imposto uma importante
derrota ao Congo na batalha de Ambuíla (Mbwila), ocorrida em 1665. A batalha
então travada entre forças portuguesas e forças conguesas, havia resultado na
desorganização das estruturas de poder então em vigor no Congo, decorrente
da morte de grande quantidade de chefes, inclusive muitos dos eventuais candi-
datos a mani Congo. No relato de Carli pode-se vislumbrar as tensões então em
curso, com as acusações trocadas entre diferentes chefes a respeito de qual era o
legítimo mani Congo, reconhecido pelo seu povo.
Àquela altura, o catolicismo, ou alguns de seus ritos e de suas práticas, era
componente do exercício do poder no Congo e havia também penetrado em mui-
tas práticas populares. Em território do Congo, a caminho de Mbanza Mbam-
ba, Carli foi recebido com alegria e festa pelos chefes e pela população locais, en-
controu igrejas para rezar missas e mesmo uma elite que falava bem o português,
como o filho do marquês de Mbumbi (Bumbi), um jovem de 25 anos que o acom-
panhou pelo resto da viagem e com ele ficou em Mbamba, servindo de intérprete.
Os missionários que o antecederam haviam desempenhado bem sua função, e não
apenas os capuchinhos, que haviam chegado na região há pouco mais de 20 anos.
Mbamba era uma localidade bastante frequentada pelos comerciantes, estando no
trajeto entre Luanda e Mbanza Kongo, ou São Salvador, sendo o português língua
falada por muitos. Fazia cerca de um século que além de mercadores, padres cató-
licos andavam por ali, fazendo sermões, distribuindo objetos de culto e batismos.

5 Para a relação entre paz e catolicismo nesse contexto ver, de minha autoria, A rainha Jinga de Matamba e o catolicismo – África Central, século XVII.

In: FERREIRA, Jerusa Pires; ARÊAS, Vilma (Orgs.). Marlyse Meyer nos Caminhos do Imaginário. São Paulo: EDUSP, 2009, pp. 153-182.

367
A presença constante de missionários em Mbamba é atestada pelo bom
estado do hospício que Guattini encontrou ao chegar, antes de Carli. E a im-
portância do catolicismo para o poder central, mas também a importância do
apoio deste para o sucesso da missão católica, pela descrição que fazem do en-
contro com o “rei do Congo”, D. Álvaro VIII. Ao ficarem sabendo que o mani
Congo estava em Mpemba (Pemba), a 10 dias de viagem, foram ao seu encontro
e lá se hospedaram no hospício da ordem, no qual estava o padre capuchinho
Antonio de Serravezza. D. Álvaro VIII é descrito como um “jovem mouro” de
cerca de 20 anos, vestido com uma capa escarlate com botões de ouro, tendo à
sua frente 24 jovens, filhos de duques e marqueses, todos vestidos com tecidos
de folhas de palmeira tingidas de preto e uma capa que chegava até o chão, e
descalços. Outros cem dignitários os acompanhavam, além de muita gente. Um
guarda sol de seda vermelho guarnecido de passamanarias douradas e uma ca-
deira de madeira dourada forrada de veludo encarnado integravam as insígnias
de poder do cortejo. O mani Congo externou seu desejo de que fossem a São
Salvador (Mbanza Congo), mas eles disseram ser mais úteis em Mbamba, onde
não havia outros padres, enquanto em São Salvador havia muitos. Conversaram
sobre vários assuntos, sobre a Itália e Portugal, depois ele ordenou que seu se-
cretário, “que era um de seus mulatos” lhes desse cartas de recomendação para
o “grão-duque”, para que ele os assistisse em todas as ocasiões relativas tanto à
missão quanto a eles mesmos.6
O duque de Mbamba era aliado de D. Álvaro VIII nas disputas pelo poder e
em Mbamba a duquesa, cuja residência era próxima ao hospício, queria sempre
ter os missionários ao seu lado. Fica evidente no relato de Carli a estreita liga-
ção entre o poder e o catolicismo, praticado de maneira própria, como religião
de Estado. Estar próximo dos missionários e manter com eles boas relações era
do interesse dos principais chefes, fossem eles de províncias, como o duque de
Mbamba, fosse ele o mani ou rei do Congo.
Como visto, Guattini logo morreu, tendo sido em sua doença assistido por
Carli, que fez com ele o que era a principal prática de cura das febres entre os

6 GUATTINI, Michelangelo; CARLI, Dionigi. La mission au Kongo des Pères Michelangelo Guattini & Dionigi Carli (1668). Op. cit, p. 124. Esse mesmo

marquês de Mpemba que recebia D. Alvaro VIII no início de 1668, matou-o no final do mesmo ano, e em janeiro de 1669 foi eleito mani Congo, com

o nome de D. Pedro III. Id. Ibid., p. 278. De 1665, após a derrota de Ambuíla, até 1709, quando D. Pedro IV reocupou São Salvador e se afirmou como

mani Congo, foram intensas as disputas políticas entre os principais chefes do Congo, com guerra entre congueses e muitas mortes.

368
brancos: sangrou-o muitas vezes, 35 segundo ele mesmo. Foi Carli quem es-
creveu o relato que chegou até nós, publicado junto com as cartas de Guattini
endereçadas a seu pai. Nesse relato são muitos os episódios que permitem que
percebamos como era forte a presença de elementos católicos na vida cotidiana
dos congueses, como a quantidade de gente que acorria levando os filhos para
serem batizados ao saberem da passagem do sacerdote, ou quando fala acerca do
grande apreço pelos rosários. Ao chegarem às aldeias os missionários ofereciam
rosários aos chefes, que os punham no pescoço, e as crianças lhes eram trazidas
para serem batizadas.7 Em um momento de maior necessidade, que não foi o
único, quando a carência de alimentos assim o exigiu, Carli trocou um rosário,
cujas contas ele mesmo enfiou e que alguém mostrou desejo de obter para pre-
sentear seu chefe, por um frango.8
Mas há uma passagem especialmente significativa, por mostrar o grau de in-
tegração de práticas católicas na vida religiosa das pessoas comuns. Conta Carli
que uma madrugada começou a ouvir um canto melancólico que o deixou ater-
rorizado. Ao perguntar para os que estavam com ele do que se tratava, responde-
ram que era gente de uma libata, ou aldeia, com seu “macolonte”, ou chefe, que
estava fazendo a “disciplina” por ser uma sexta-feira de março.

Aquela novidade me admirou: mandei abrir a porta da igre-


ja e acender dois círios, depois pedi a um Mouro para to-
car o sino. Antes de entrar eles pararam na frente da igreja,
ajoelharam-se por um quarto de hora, e cantaram em sua
língua a Salve Regina num coro forte e triste. Ao entrarem
eu dei a todos água benta; devia haver 200 homens, que car-
regavam pesados pedaços de madeira para fazer uma peni-
tência maior. Eu lhes disse duas palavras sobre a utilidade
da penitência e como, se não a praticamos neste mundo,
sem dúvida seremos obrigados a fazê-la no outro. Eles esta-
vam todos ajoelhados e bateram no peito; a seguir fiz apa-
garem as luzes e eles se disciplinaram com cordas feitas de
couro de animais e de casca de árvores, o que durou bem
uma hora. Em seguida recitamos as laudes da Santíssima

7 Id. Ibid., p. 100.

8 Id. Ibid., p. 113.

369
Virgem do Loreto depois eu lhes mandei embora e eles vol-
taram para suas casas, deixando na porta da igreja todos
os pedaços de árvore que haviam trazido e que depois nós
usamos para confeccionar nossa horta.9

Esse episódio, além de contribuir para a feitura da horta, encheu o mis-


sionário de ânimo para prosseguir em sua missão, a despeito das dificuldades
encontradas na vida cotidiana cheia de sacrifícios e riscos, como as feras selva-
gens, sempre mencionadas, e as doenças, que levaram o companheiro de Carli
e também o atacaram, fazendo com que mais adiante tivesse que abandonar a
missão devido ao seu terrível estado de debilidade. O episódio mostra também
a presença de ritos do catolicismo na vida religiosa conguesa. Não se tratava
ali apenas de ritos de poder, de exibição pública da autoridade e do recurso a
símbolos e gestos que a legitimavam. Por certo o grupo era comandado por um
nkuluntu, ou chefe de aldeia, no texto chamado de “macolonte”. Mas os seus
seguidores sabiam bem que gestos fazer e que rezas cantar. A penitência, tantas
vezes feita pelos missionários nos espaços públicos da aldeia a título de exemplo,
e que pregavam ser benéfica, chegou até Carli de forma inesperada, em mais uma
afirmação da forte presença de objetos e práticas do catolicismo na vida cotidia-
na dos congueses do século XVII.
Os processos que levaram à constituição do que foi por alguns chamado
de catolicismo congo, ou então à incorporação de elementos do catolicismo a
práticas religiosas e rituais congueses, foram bastante estudados havendo inter-
pretações divergentes e complementares, mas esse não é o interesse aqui. Ao
explorar os dois relatos escolhidos, minha intenção é mostrar como na mesma
época (apenas quatro anos separam as duas experiências), eram muito diferentes
as formas como os poderes do Congo e os poderes ambundos, do antigo Ndongo
e da região dos dembos (entre os rios Dande e Loje, ao sul do Congo e ao norte

9 GUATTINI, Michelangelo; CARLI, Dionigi. La mission au Kongo. Op. cit, p. 125. No original: “Cette nouvelle m’étona: je fis ouvir la porte de l’église

et allumer deux cierges, puis j’envoyai un Maure sonner la cloche. Avant d’entrer, ils s’arrêtèrent devant l’église, agenouillés pendant un quart d’heure, et

chantèrent dans leur langue le Salve Regina avec un concert de voix fort triste. Quand ils furent entres je leur donnai à tous de l’eau bénit: il devait y avoir

200 hommes, qui portaient des pièces de bois fort pesantes pour faire plus grande pénitence. Je leur dis deux mots de l’utilité de la pénitence et comment,

si on ne la pratique pas en ce monde, on est sans nul doute obligé de la faire dans l’autre. Ils étaient tous agenouillés et se frappaient la poitrine; je fis

ensuite éteindre les lumières et ils se donnèrent la discipline avec des cordes faites de peaux de bête et d’écorces d’arbres, ce qui dura vraiment une heure.

Nous récitâmes ensuite les laudes de la Très Sainte Vierge de Lorette puis j eles congèdiait et ils retournèrent chez eux, laissent devant la porte de l’église

toutes les pièces d’arbres qu’ils avaient portées et que nous employâmes par la suíte pour confectionner notre potager.”

370
de Angola), lidavam com a atuação dos missionários e com as crenças e práticas
que eles ensinavam. Pois o relato do padre Manuel Ribeiro é bastante diferente
do de Carli, e além de expor a grande heterogeneidade com que missionários
e ensinamentos católicos eram recebidos em uma mesma região, mostra como
essas formas geralmente eram, por sua vez, diferentes do que ocorria no Congo.
Em carta datada de 15 de janeiro de 1674, o padre jesuíta Manuel Ribeiro
relata ao reitor do colégio de Angola a missão que por nove meses desenvolveu
no sertão angolano, em companhia do irmão Francisco Correa e de meninos
nativos educados no colégio dos jesuítas. Estes lhes serviam de intérpretes e
auxiliares nas pregações e nos ensinamentos do catecismo, assim como, prova-
velmente, na indicação dos caminhos e no transporte da bagagem, para o que
deviam contar também com outros ajudantes, talvez escravos. Depois de ter ser-
vido no Congo de 1666 até 1669, mesma época em que Carli e Guatini estiveram
em Mbamba, e onde como eles sofreu os efeitos da guerra civil então em curso
desde a batalha de Ambuíla, passou a pregar nas terras de dembos e ambundos.
O relato em questão trata de uma missão específica, feita de setembro de 1672
a maio de 1673, “aonde gastei cerca de nove meses contínuos, padecendo os
incômodos que costumam experimentar os missionários”. Inicialmente tinha o
intuito de chegar até “o reino de Matamba, ao qual comumente chamam de Gin-
ga.”10 Essa aspiração inicial não se realizou, mas é interessante observar que dez
anos após a morte de Njinga, Matamba já era conhecida pelo nome da soberana
que lhe deu destaque na história da região. A notar também que o padre Manuel
Ribeiro, mesmo sediado em Luanda, não se encaixava no estereótipo do jesuíta
envolvido apenas com os negócios e com a política.
A viagem começou com uma parada no colégio do Bengo, localidade pró-
xima e ao norte de Luanda. Era de lá que ia a água potável e os alimentos con-
sumidos na capital colonial, e ali a presença portuguesa já estava enraizada. No
Bengo ficaram apenas três dias, tendo o sacerdote rezado missa, pregado, ouvido
confissões e ministrado a eucaristia, “para gente branca e preta”. Partiram em
direção a Golungo e dali seguiram adiante, visitando arimos e sobados, pregan-
do, catequizando, rezando missas e distribuindo sacramentos: batismos, comu-
nhões, casamentos, sempre seguidos de festas com música e dança a varar noite

10 Carta do Padre Manuel Ribeiro sobre a missão de 1672-1673, Monumenta Missionária Africana. Op. cit, p. 250.

371
adentro. A gente que encontravam pelos caminhos também era alvo da prega-
ção, algumas vezes recebendo o batismo, outras travando disputas verbais, nas
quais o padre dizia-se sempre vencedor.
As estadias nas aldeias podiam ser maiores ou menores, mas continham
pregações diurnas, e à noite se rezava “as orações na língua da terra, a que acodia
muita gente, por entenderem bem aquela sua linguagem”.11 O sacerdote já tinha
estado em alguns dos lugares pelos quais passou, mas nem por isso seus chefes
haviam aderido aos ensinamentos católicos, o que não impedia que o recebes-
sem “como coisa vinda do céu”. Esse foi o caso do mani Carimba, que lhe disse
não estar interessado em receber os sacramentos mas em cuja banza desper-
tou o entusiasmo da assistência, especialmente infantil, ao mostrar livros com
ilustrações e distribuir verônicas (panos com uma face pintada). Quando a pla-
teia acorria, rezas eram ensinadas, cruzes erguidas, ensinamentos de catecismos
conferidos antes da atribuição de batismos. Em quase todas as aldeias era bem
recebido, o que não significava a ausência de tensões, especialmente com os sa-
cerdotes locais e em torno de imagens de cultos que sempre que possível destruía
com a ajuda de seus assistentes.
Ao lado da pregação, das rezas, das missas e dos batismos, o levantamen-
to de cruzes era ato obrigatório na passagem do padre pelas aldeias, sempre
acompanhado da explicação acerca dos seus mistérios. Festejos com música e
danças também eram comuns, principalmente depois dos batismos e dos mais
raros casamentos. Em algumas banzas o missionário era recebido fora de seus
limites pelo soba, acompanhado de seu séquito e músicos, sempre presentes nas
aparições oficiais. Mas também o padre recorria aos ritos de poder, como ao
visitar o soba Caculo Cahenda, que não o recebeu pessoalmente de pronto, ale-
gando estar doente. No dia seguinte da chegada o padre Manuel Ribeiro e seus
auxiliares foram visitá-lo “com sobrepeliz, estola e água benta, e com os nossos
crucifixos ao pescoço; usamos desta cerimônia, para que ao diante nos tivesse
mais veneração e respeito, porque conforme vê este gentio a entrada, assim dão
as boas ou más saídas.”12
Só nesta banza ficaram 52 dias, sinal de que os ritos de poder tinham mesmo

11 Carta do Padre Manuel Ribeiro sobre a missão de 1672-1673, Monumenta Missionária Africana. Op. cit, p. 251.

12 Id. Ibid., p. 257.

372
sua eficácia. Por outro lado, a convivência mais demorada permitiu que tomas-
sem conhecimento das dúvidas que os catecúmenos tinham quanto ao que lhes
era ensinado, expostas primeiro aos “moleques do colégio”, a quem “o principal
capitão do soba” disse que tudo que os missionários ensinavam eram “patranhas
e embustes”, o que fez com que o próprio padre Ribeiro entrasse na disputa. Se-
guiu-se uma discussão acerca de para onde iam as almas dos parentes mortos,
com o padre dizendo ironicamente acerca de seu adversário que “ele se prezava
de bem entendido e de grande letrado entre os seus”. Diz o missionário que ao
final do debate o nativo percebeu o erro da sua filosofia – segundo a qual a alma
dos mortos passava para os parentes vivos e quando isto não acontecia os mortos
apareciam nos sonhos e pediam sacrifícios para que encontrassem um corpo
que pudessem habitar –, convenceu-se de que sua lógica era falível, e aceitou os
argumentos do padre. Este desqualificou os ensinamentos do seu “Gangazumba,
ou médico”, indicando claramente quem entendia ser o seu principal opositor.13
Portanto, além da impressão causada por objetos desconhecidos, como livros e
gravuras, por atos ritualizados e símbolos, como procissões e paramentos, tam-
bém o debate era importante no convencimento dos nativos, que se deixavam
levar pela retórica missionária, decoravam os ensinamentos do catecismo, as re-
zas, faziam corretamente o sinal da cruz, e assim eram considerados aptos para
receber o batismo e o nome cristão que o acompanhava.
As discussões travadas indicam ainda outro aspecto fundamental da cate-
quese católica: o embate entre os sacerdotes católicos e os tradicionais, chamados
por aqueles de feiticeiros e adoradores do diabo. O choque entre os dois sistemas
religiosos: o tradicional e o novo, que os missionários buscavam implantar, está
claramente presente na prática missionária do padre Manuel Ribeiro entre povos
ambundos. Ainda em terras de Caculo Cahenda, logo depois de celebrar o Natal
com missa, dança, música, folias e batismos, o padre ouviu o som de um tambor
e ao indagar acerca do que se tratava lhe explicaram que era uma cerimônia que
chamavam de “Sacalamento, ou invocação do diabo, para dar mezinhas a um
doente, a quem diziam aparecera a alma de um seu parente, com a qual visita
estava fora de si.”14

13 Carta do Padre Manuel Ribeiro sobre a missão de 1672-1673, Monumenta Missionária Africana. Op. cit, p. 258-259.

14 Id. Ibid., p. 259.

373
Assim, o missionário pode conhecer de perto o que já lhe haviam contado
acerca da possibilidade da alma de um parente aparecer em sonho, o que deixou
fora de si a pessoa visitada que deveria ser tratada conforme os conhecimentos
do nganga, referido no diálogo anterior como manipulador de mezinhas curati-
vas.15 Ao mandar dizer ao soba que aquilo ia contra os seus ensinamentos, teve
como resposta “que aquilo era costume da terra que não se desarraigava tão fa-
cilmente, e que ele não se atrevia a remediá-lo por ser coisa da gente do povo”.16
Mas o padre insistiu e avisou por meio de um “fidalgo” que estranhava aquela
cerimônia, o que fez “estes miseráveis fugirem.” Depois disso, poucos aparece-
ram para a missa do ano bom e apesar dos esforços feitos não voltaram “pelo
caminho da salvação, com que fomos obrigados a mudar-nos de terra para ver
se achávamos alguma mais capaz, para se plantar a vinha do Senhor.”17 Portanto,
mais uma vez, após o interesse inicial e a presença nas pregações e rezas, ao ver
suas práticas tradicionais reprimidas pelos missionários, toda gente lhe virava
as costas e continuava na vida de sempre. Ao perceber que o preço para a acei-
tação das novidades que lhes eram apresentadas era o abandono das tradições,
desinteressavam-se da pregação. Mas o sacerdote não desistia de sua missão e lá
ia enfrentar os duros caminhos, incansável, seguro de que tudo valia para salvar
o maior número possível de almas e aumentar o rebanho de Cristo. E assim,
mesmo sem afastar-se demais das áreas subordinadas aos portugueses, exercia a
prática missionária que os capuchinhos acusavam os jesuítas de negligenciarem.
Nas andanças pela região o padre Manuel Ribeiro e seus auxiliares voltaram
a algumas banzas onde já haviam estado em missões anteriores, para aprofundar
os ensinamentos e batizar mais gente, e a outras onde haviam deixado alguns
“moleques do Colégio” para ensinarem a doutrina cristã. O roteiro era sempre o
mesmo: contatos iniciais, cuja natureza determinava em grande parte as relações
que então se estabeleciam, pregação, levantamento da cruz e batismo seguido de
festejos. Parece que à medida que avançavam pelo interior os caminhos ficavam

15 Esse tipo de situação, identificada como calundu em outras fontes, é tema do artigo de MARCUSSI, Alexandre Almeida. Estratégias e mediação

simbólica em um Calundu colonial. Revista de História. Humanitas – FFLCH – USP. São Paulo, 154, 2006, e foi estudada por SWEET, James. Recreating

Africa. Culture, Kinship, and Religion in the African-Portuguese World, 1441-1770. Chapel Hill: The University of North Carolina Press, 2003, em

especial no capítulo 7.

16 Carta do Padre Manuel Ribeiro sobre a missão de 1672-1673, Monumenta Missionária Africana. Op. cit, p. 259-260.

17 Id. Ibid., p. 260.

374
mais difíceis, assim como a recepção que recebiam era menos calorosa. Frequen-
temente chegavam em meio à celebração de uma cerimônia, como um enterro
(tambo), ou festa da colheita, e nesses momentos não eram bem recebidos, pe-
dindo-se mesmo que voltassem depois. Era evidente a preocupação em manter
relações de boa vizinhança com os sacerdotes católicos e com os portugueses,
mas havia um limite para as concessões a serem feitas. E quem deixava mais
claro esse limite geralmente era o sacerdote local. Mesmo em banzas de sobas
considerados bons cristãos, o padre deparava-se com cerimônias que entendia
ser “ridicularias”, endereçadas a “ídolos”, como uma presenciada por ocasião das
primeiras colheitas. Uma árvore foi cortada, com a qual fizeram “uma figura de
homem” e com tinta preta lhe tingiram o rosto, amarraram-lhe um pano na cin-
tura e deram vivas “ao seu novo quiteque, ou ídolo, a quem atribuem o fruto.” 18
Na região que por nove meses percorreu com seu auxiliar e os meninos do
colégio, eram diferentes as situações encontradas. No Bengo, zona de arimos de
portugueses e mestiços, no caminho para o Congo, havia igrejas e a presença de
sacerdotes católicos era relativamente constante. À medida que avançavam para
o interior a relação dos chefes e das populações das aldeias com as pregações,
missas e batismos variava de uma aldeia para outra, sendo frequente vizinhos
receberem de formas completamente diferentes a missão jesuíta. Dom Antonio
Muzeque, era um dembo subordinado ao Congo e que sofria os efeitos da guerra
então em curso entre os chefes que pleiteavam o controle de Mbanza Congo.
Ele havia sido “criado e doutrinado em Massangano, na residência que então
tinham os padres da Companhia de Jesus”, e recebeu bem os missionários, não
tendo, entretanto, condições de alimentá-los devido à penúria em que estavam,
vivendo de frutas “agrestes que colhem dos matos, sem outro gênero, ou espécie
de sustento, mas com isto andam tão fortes e rijos, como se comessem iguarias
preciosas.”19 Diante dessa situação a expedição ficou apenas dois dias naquela
banza, o que nos leva a pensar que talvez a carência de alimentos, mesmo real
diante da situação de desagregação e guerras em curso na região, fosse acentuada
como uma estratégia para abreviar ao máximo a estadia dos missionários, levan-
do-os a crer que a antiga catequização ainda estava em vigor.

18 Carta do Padre Manuel Ribeiro sobre a missão de 1672-1673, Monumenta Missionária Africana. Op. cit, p. 265.

19 Carta do Padre Manuel Ribeiro sobre a missão de 1672-1673, Monumenta Missionária Africana. Op. cit, p. 266.

375
Se ficassem por mais tempo junto a Dom Antonio Muzeque, mesmo este
tendo frequentado o colégio dos jesuítas em Massangano, talvez vivessem em
sua aldeia situação semelhante à ocorrida na aldeia do soba Caculo Caochim,
junto a quem haviam deixado um moleque intérprete a ensinar a doutrina cris-
tã, no que se saiu bastante bem. Ali encontraram muita gente “com as orações
sabidas e em 17 dias, que aqui assistimos se batizou toda a Banza, que foram
entre todos 182.” 20
Portanto, bastava saberem as orações, e talvez a resposta de algumas per-
guntas básicas dos catecismos, para receberem o sacramento do batismo, que
se para a igreja católica salvava suas almas, para a população local era um rito
desejado, cujos significados específicos não sabemos decifrar completamente.
Percebemos que proporcionava uma proteção suplementar, com significados
específicos nos termos das culturas locais, mas também levava a uma aproxi-
mação pacífica dos estrangeiros brancos, que haviam conquistado algumas ter-
ras na vizinhança e já haviam mostrado seu poderio militar. É certo também
que a adoção de um nome cristão, utilizado na relação com os portugueses e
seus emissários e talvez mesmo entre os semelhantes, dava ao seu portador um
diferencial considerado positivo, sem levar ao abandono dos antigos nomes e
títulos, nem das práticas tradicionais.
E foi contra uma destas, em terras do Caculo Caochim, que o padre Ribeiro
se levantou. Quando começava a proceder ao batismo dos adultos da banza, o
padre deu por “acaso com os olhos em um quiteque ou ídolo, a quem todo esse
gentio tinha em grande veneração, por ser obra de seus antepassados, pela qual
razão lhe chamam grande, e pai de todos os mais ídolos.”21 Perguntou, então, se
“abominavam todos os ritos gentílicos”, tendo recebido resposta positiva, que
acreditavam apenas no que lhes havia sido ensinado pelo missionário. Este disse
que não os batizaria enquanto não queimassem “aquele tição do inferno”. O soba,
que acudiu à discussão, pediu que o jogassem no rio, pois se fosse queimado “lho
levariam a mal todos os mais circunvizinhos”. Nisso, “um negro, que era o mais
valido do fidalgo”, provavelmente o nganga, sumiu no mato com a imagem nas
costas, provocando uma reação teatral do padre, que tirou a sobrepeliz dos om-

20 Id. Ibid., p. 267

21 Id. Ibid., p. 267.

376
bros e ameaçou ir embora. Diante das súplicas de uma anciã, que se lançou aos
pés do soba, esfregou terra que pegou do chão no rosto e pediu que fosse feito
o desejo do missionário, pois eles “não são como os negros embusteiros, mas só
tratam do nosso bem espiritual sem interesse seu”, este consentiu que o quiteque
fosse queimado. Depois de vencer as dificuldades para trazer a imagem de volta,
ela foi queimada, enquanto aquele que a havia escondido exclamava que não era
culpado do que faziam a ela, que havia feito o possível para que não fosse quei-
mada, e que se mandasse algum castigo, que caísse sobre os brancos “porque são
os que nos ofendem”, e acrescentava:

já que nos deixais, não vos esqueçais de vossos pretos com


os favores antigos das chuvas para as searas, e do sol para as
abençoar, virando-se para a outra parte, e dizia, já os caçado-
res não terão nos matos caças, nem os doentes mezinhas para
a saúde; já o fidalgo não achará quem lhe adivinhe os bons
sucessos da guerra, nem amigo que o aconselhe; ó desgraça-
da Banza, ó tristes de nós, pois perdemos tão grande bem.22

Vitorioso, o missionário, que introduziu em seu relato e de acordo com seu


linguajar o teor do discurso de seu oponente no embate travado entre as diferen-
tes religiões, fez uma pregação contra a idolatria diante das cinzas do quiteque, o
que levou um grupo de pessoas já batizadas, lideradas pelo irmão do soba, a sair
em busca de todos os “ídolos” da banza,

e trouxeram tão grande quantidade que pondo-se-lhe o


fogo, foi tal a fogueira, que poderia cozer um bom jantar; e
desta sorte ficou limpa a terra de ídolos, e os seus morado-
res em ocasião de idolatrar. E eu continuei com os batismos,
que antes tinha começado.23

22 Carta do Padre Manuel Ribeiro sobre a missão de 1672-1673, Monumenta Missionária Africana. Op. cit, p. 267-268.

23 Id. Ibid., p. 268.

377
Portanto, nessa aldeia e naquele momento pelo menos, Manuel Ribeiro ven-
ceu a batalha sobre o nganga, ou sacerdote local responsável pelos cultos relati-
vos aos quiteques (no Congo chamados de minkisi), introduzindo novos ritos e
objetos de culto após a destruição dos antigos, à frente de um processo de reno-
vação das tradições, no qual os novos ritos e as novas crenças seriam mais efi-
cazes.24 A conversão do chefe era especialmente importante, e Caculo Caochim
aceitou o batismo, o que era então entendido como conversão pelos missioná-
rios. Acreditava-se que a conversão dos chefes faria o mesmo com todo seu povo,
o que era comprovado pela prática. E ali mesmo isso ocorreu, conforme a carta
do padre Ribeiro, que mais do que relatório tinha o papel de peça de propaganda
da missão, na qual diz ter o soba Caculo Caochim mostrado “ser homem pio, e
de grande cristandade; porque todo o seu desvelo, era em que os seus vassalos as-
sistissem à santa doutrina para serem batizados, fazendo que assistissem todos,
sem exceptuar ninguém.”25
Resta saber se o sucesso da missão, mesmo temporário, deveu-se ao missio-
nário ou ao “moleque intérprete” que ficou ali, preparando o terreno de forma
eficaz na medida em que dominava os dois sistemas simbólicos e encontrou os
meios adequados para convencer a população local das vantagens do catolicismo
sobre os cultos tradicionais. Também resta saber quanto durou essa disposição
em abandonar antigos cultos em favor dos católicos. De qualquer forma, alguns
sobas daquela região estavam propensos a receber bem os missionários e seus
ensinamentos, provavelmente por serem aliados dos portugueses, ou assim o de-
sejarem. Entretanto, mais de uma vez os missionários tiveram que sair às pressas
de uma aldeia na qual estavam sendo muito bem sucedidos, com batismos sendo
realizados em grande quantidade, diante da notícia de que para lá se dirigia uma
expedição guerreira de algum vizinho, indicativo da instabilidade das relações
mesmo entre grupos próximos.
Em uma dessas ocasiões a ameaça veio do “rei de Matamba”, que naquela
época ainda fazia ataques aos sobas mais próximos dos portugueses, tal qual no
tempo da resistência posta por Njinga, falecida havia 10 anos, em 1663. É possí-
24 Tomo aqui a ideia contida no artigo de CRAEMER, Willy; VANSINA, Jan; FOX; Renée C. Religious Mouvements in Central Africa: a Theoretical

Study. Comparative Studies in Society and History. v.18, n. 4, p.458-475, oct. 1976, segundo a qual as religiões centro-africanas passam por movimentos

de transformação cíclicos, que as renovam sem alterar suas estruturas fundamentais.

25 Carta do Padre Manuel Ribeiro sobre a missão de 1672-1673, Monumenta Missionária Africana. Op. cit, p. 268-269.

378
vel que os sobas, ou chefes, que não aceitavam a presença dos missionários e sua
pregação estivessem mais próximos de Matamba, ou formassem alianças espe-
cíficas que os distanciavam dos conquistadores e seus emissários. A disposição
de receber ou não o batismo não era definida por uma distribuição geográfica
clara, pois como vemos pelo relato do padre Manuel Ribeiro, em suas andanças
alternaram-se os sobas que o receberam bem e os que não lhe facilitaram a vida,
ou mesmo pediram que fosse embora de suas terras. Este foi o caso de Dom José
Gonguimbo, que apesar do nome cristão não era batizado e na banza de quem já
havia sido erigida uma cruz em visita anterior dessa mesma missão. Ao retornar
para continuar sua pregação e distribuição de batismos, quando achava que ia
ser bem sucedido e batizar o soba, foi surpreendido pelo pedido dos macotas
(makota) e conselheiros para que deixasse o lugar.26 O episódio mostra como
o padre podia errar em sua avaliação, pois ali narra um fracasso diante de uma
vitória daqueles que ali tinham autoridade. E ao expor esse fracasso seu texto
deixou de ser uma peça de propaganda simplória e mostrou a complexidade das
relações então vigentes.
A carta do padre Ribeiro é um relato exemplar para termos uma visão do
que eram as missões naquela época e região. Mas nela havia a intenção, confor-
me a prática jesuítica, de contribuir para que mais missionários embarcassem
para aquela terra inóspita, onde a guerra ainda estava em curso mesmo que lon-
ge das áreas centrais de ocupação lusitana, e as doenças continuavam a ceifar
vidas dos brancos, que não tinham resistência contra elas. Nos mostra ainda um
jesuíta empenhado em levar o evangelho aos povos gentios e com isso salvar
suas almas, e não apenas buscando justificar em termos religiosos e ideológicos
a conquista portuguesa e o comércio de gente, mesmo considerando que esses
fatores também eram importantes e estavam presentes em sua atuação. Se no
período das chamadas guerras angolanas a Companhia de Jesus foi o braço sa-
grado da conquista armada, garantindo que a cruz estivesse sempre apoiando
o poder da Coroa, uma vez estabilizada a conquista abriu-se um espaço para a
missão desvinculada da ação política. Mesmo que em última instância as duas
dimensões se unissem, sendo o catolicismo elemento constitutivo da conquista
portuguesa, nem sempre o batismo dos sobas implicava na sua subjugação ao

26 Id. Ibid., p. 271.

379
poder colonial lusitano, embora esta subordinação sempre requeresse o batismo.
A segunda metade do século XVII viu batalhas que mudaram as feições
da região, como a derrota do Congo em Ambuíla e as guerras pelo poder que o
assolaram até o início do século seguinte, e a destruição do Ndongo com a queda
de Pungo Andongo. Se em Angola o catolicismo esteve a serviço da conquista
territorial e subordinação dos chefes, no Congo foi fator de unidade simbólica
em momento de fragmentação política, após a decapitação do mani Congo D.
Antonio e a morte de toda elite conguesa em 1665. A proximidade com missio-
nários, o controle sobre a atribuição de títulos introduzidos pelos portugueses,
como membro da Ordem de Cristo e títulos nobiliárquicos europeus, legitimou
poderes em momento de grande instabilidade política, de rompimento de anti-
gas alianças, de mudanças nas correlações de forças, em parte devidas também
ao tráfico de escravos, cada vez mais presente. No Congo, o catolicismo era re-
ligião de Estado, servindo às determinações do poder e por isso mesmo estava
disseminado entre grande parte da população.
Mais ao sul, entre os dembos e os ambundos, nas terras percorridas pelo
padre Manuel Ribeiro, não havia um estado com o nível de centralização do
Congo e o catolicismo era principalmente um instrumento de submissão aos
portugueses. Num primeiro momento os sobas aceitaram o batismo e a pre-
gação em suas banzas, pois isso era caminho para encetar relações pacíficas
com os portugueses. Mas à medida que perceberam que a interferência dos
missionários ia bem além do que eles pretendiam ceder, fecharam-se para a
pregação, recusaram o batismo e, no extremo, expulsaram os missionários de
seus territórios. Nisso foram estimulados principalmente pelos sacerdotes lo-
cais, sempre ao lado dos chefes.
No século XVII o embate de religiões dava-se com mais evidência na região
de Angola, pois no Congo as relações estabelecidas entre o catolicismo e o modo
de vida local eram pacíficas e produtivas, como mostra o relato de Dionigi Carli,
resultando em uma aliança entre as crenças e ritos locais e os estrangeiros. No
Congo, que manteve sua autonomia política, o catolicismo foi integrado como
religião de Estado, e algumas práticas incorporadas à vida religiosa das pessoas.
Já junto às populações que gradativamente perdiam sua autonomia política em
decorrência de guerras de conquista, o catolicismo não foi incorporado à manei-

380
ra de viver local. Ali a relação dos chefes, ou sobas, e das pessoas em geral com
os ritos católicos era bastante instrumental, ou seja, aceitavam o que lhes parecia
benéfico, como o batismo, mas não se envolviam com os ensinamentos nem se
comprometiam com o cumprimento de regras que o acompanhavam. A con-
quista armada do território fez do catolicismo um instrumento de paz para as
populações locais, mas também de subordinação, e isto não era buscado espon-
taneamente. Ali, o que dava força aos chefes era a manutenção de suas práticas
religiosas tradicionais, e não a adoção de novas, como em seus vizinhos ao norte.
As diferentes formas como o catolicismo foi vivenciado no século XVII em
regiões próximas e culturalmente semelhantes, corresponde a diferentes contex-
tos nos quais se deram as relações entre estrangeiros e nativos, portugueses e
centro-africanos. Da parte lusitana o interesse primeiro era controlar o comércio
e as relações de poder centro-africanas, e ao mesmo tempo realizar a ação mis-
sionária que, aos olhos dos seus parceiros europeus, lhes dava soberania sobre as
terras tocadas. Mas da parte das sociedades centro-africanas foram várias as for-
mas de lidar com a presença estrangeira, de acordo com interesses que variavam
de um grupo para outro, de um momento para outro. Portanto, ações estrangei-
ras semelhantes resultaram em situações completamente diferentes uma vez que
as determinações locais foram fundamentais na elaboração dos novos contatos.
As diferentes relações que chefes do Congo e chefes ambundos, ou sobas inde-
pendentes, mantiveram com os portugueses e com os missionários é expressão
privilegiada, pela riqueza relativa das fontes existentes, dessa multiplicidade de
situações resultantes da presença portuguesa e do catolicismo na região dos an-
tigos reinos do Congo e de Angola.
ENTRE A CRUZ E O ISLÃ:
escravos e forros diante da Inquisição de Goa (séc. XVI-XVII)

Patricia Souza de Faria1

Louvava Mafamede enquanto vivia entre os mouros, porém, ao se recordar


que era cristão, dirigia suas orações à Nossa Senhora e a São Francisco de Assis.
No entanto, “tornava outra vez aos mesmos erros que antes tinha”2. Foi dessa
forma que o indiano forro Gonçalo Toscano sintetizou as suas recorrentes pas-
sagens pelos mundos islâmico e cristão, durante sua confissão aos inquisidores
de Goa, em 1597. Neste artigo pretendemos investigar as crenças e as práticas
religiosas de escravos indianos convertidos ao catolicismo que transitaram por
sociedades tão diversas, existentes nos mundos banhados pelo Índico. Realizare-
mos dois estudos de caso sobre as crenças e as experiências de vida de Gonçalo
Toscano e do escravo indiano Paulo, que foram sentenciados pela Inquisição de
Goa por culpas de islamismo, nos séculos XVI e XVII.
Inicialmente, apresentaremos algumas considerações gerais sobre o tráfico
de escravos no Índico e, particularmente, no império asiático português. Em
seguida, analisaremos as experiências de vida, as crenças e práticas religiosas do
forro Gonçalo Toscano e do escravo Paulo, sentenciados pela Inquisição de Goa
em 1597 e 1689, respectivamente. Ambos nasceram na Índia, foram escraviza-
dos, convertidos ao catolicismo, cujas trajetórias de vida foram marcadas por
intensas mobilidades geográficas e culturais,3 em conjunturas históricas que re-
presentaram grandes desafios à preservação dos domínios portugueses na Índia.
Este artigo pretende analisar, a partir das fontes da Inquisição, fragmen-
tos das histórias de vida, das crenças e práticas religiosas desses dois escravos

1 Agradeço o apoio à pesquisa do CNPq (Edital Universal) e da FAPERJ (APQ1) para o desenvolvimento desta pesquisa, bem como à Dra. Andrea Doré

pela leitura e crítica da versão inicial deste texto.

2 Arquivo Nacional da Torre do Tombo, Tribunal do Santo Ofício, Inquisição de Lisboa, Processo 4931, fl. 11v-12. Doravante, ANTT, TSO – IL.

3 GREENBLATT, Stephen et al. Cultural Mobility. New York: Cambridge University Press, 2010. Sobre a noção de “mobilidades”, há o sentido literal do

movimento como deslocamento físico, mas há outros que remetem à dimensão cultural resultante do deslocamento de pessoas, bens e ideais.

383
da Índia, que não se destacaram por terem tido vidas excepcionais (como os
escravos que se tornaram líderes militares de sucesso ou as influentes escravas
concubinas)4, mas cujas vidas se entrelaçaram à história das disputas imperiais
nos espaços banhados pelo Índico.
No Índico, mais precisamente no subcontinente indiano, foram frequen-
tes os conflitos entre os agentes do império português e os dos impérios locais
(como os mogóis e os maratas). Adicionam-se os confrontos entre os portu-
gueses e as lideranças que habitavam na porção africana do Índico (como che-
fes africanos e os árabes omanistas lá estabelecidos). Naquele contexto, como
explicou Lisa Voigt, a prática do cativeiro atestava a violência que caracterizou
as relações entre povos de diferentes crenças e culturas, em período de ampla
diversidade religiosa e de ambições imperiais na Europa e nos mundos extra
europeus.5 Por outro lado, as intensas rivalidades que separaram povos, impérios
e confissões religiosas não impediram – de forma definitiva – as contaminações
entre diferentes culturas, as trocas entre elas, em desafio às fronteiras políticas e
culturais que autoridades políticas e religiosas tentavam instituir.
Nesse sentido, pretendemos analisar em que medida as trajetórias de Gon-
çalo Toscano e de Paulo entrelaçaram-se à história das disputas imperiais no Ín-
dico6 e como tais cativos indianos atravessaram os limites territoriais que separa-
vam os domínios portugueses e os reinos controlados por concorrentes asiáticos,
bem como as fronteiras que dividiam idealmente os mundos cristãos e islâmicos.

A escravidão no Índico: as rotas mercantis e os agentes

Antes de analisar os documentos da Inquisição de Goa referentes ao for-


ro Gonçalo Toscano e ao escravo Paulo, cabem algumas considerações sobre a

4 MÉDARD, Henri; DERAT, Marie-Laure et al (Org.). Traites et esclavages en Afrique Orientale et dans l’Océan Indien. Paris: Karthala, 2013, p. 51.

5 VOIGT, Lisa. Writing Captivity in the early modern Atlantic. Chapel Hill: The University of North Carolina Press, 2009, p. 1. Uma importante biblio-

grafia trata da prática de cativeiro no bojo dos impérios coloniais modernos, tangenciando o estatuto do “cativo”, do “escravo”, bem como sua “conversão”

e “apostasia”. Ver a seguinte obra e a bibliografia nela citada: WEISS, Gillian. Captifs et corsaires: l’identité française et l’esclavage en Méditerranée.

Toulousse: Anacharsis, 2014.

6 SUBRAHMANYAM, S. O império Asiático Português. 1500-1700. Lisboa: Difel, 1995, p.15; SOUZA, Teotônio de. Goa medieval. Lisboa: Editorial

Estampa, 1994.

384
escravidão nos territórios banhados pelo Índico e, em particular, nos domínios
portugueses do Oriente.7 Tais considerações são pertinentes a fim de não pro-
jetarmos o “modelo atlântico” para compreender as características do tráfico de
escravos e da escravatura na Ásia.8
Distintos povos e impérios que partilhavam diferentes sistemas de crenças
(como o islamismo e o cristianismo) estiveram envolvidos no tráfico de escra-
vos no Índico. No passado, os estudos sobre a escravidão no Índico tendiam a
fragmentar o fenômeno em áreas geográficas (o comércio árabe-muçulmano,
os interesses suaílis, a atuação dos portugueses na África Oriental e na Ásia, o
papel de mercadores indianos), o que dificultava a compreensão da interação e
dos conflitos entre tais povos e impérios.9 A nossa expectativa é analisar as histó-
rias de vida de Gonçalo Toscano e de Paulo no bojo da presença portuguesa no
Índico, mas também das interações e das disputas entre diferentes agentes que
estiveram envolvidos nas práticas de cativeiro na região. 10
Os portugueses inseriram-se e tentaram tirar proveito das tradicionais rotas
comerciais do Índico, como a do comércio de longa distância de produtos de luxo,
a que o tráfico de escravos se integrou.11 Esse comércio iniciou-se muito antes
da expansão europeia moderna, em função das longas relações entre a África
e a Arábia, via Mar Vermelho e Oceano Índico. Desde a Antiguidade, a África
Oriental foi uma importante fonte de escravos para as civilizações do Próximo
e Médio Oriente.12 Alguns estudiosos ressaltaram o impato da guerra e do cati-
veiro de africanos a partir da expansão do islã na África, com reverberações no
7 Sobre a escravidão na Ásia: CHATTERJ, Indrani. Gender, Slavery and Law in Colonial India. Delhi : Oxford University Press, 1999; MATTOSO, Kátia de

Queirós (dir.). Esclavages: Histoire d’une diversité de l’Océan Indien à l’Atlantique sud. Paris, L’Harmattan: 1997; ALPERS, E.; CAMPBELL, G.; SALMAN, M.

(Org.). Slavery and resistance in Africa and Asia. London/ New York: Routledge, 2005; CAMPBELL (org.). The structure of Slavery in Indian Ocean Africa

and Asia. London: Frank Cass, 2004. Para o universo luso-asiático, ver: PINHEIRO, Cláudio Costa. No governo dos mundos. Escravidão, contextos colo-

niais e administração das populações. Estudos Afro-asiáticos, v. 24, n. 3, 2002, p. 425-457; PINTO, Jeanette. Slavery in Portuguese India. Bombay: Himalaya

Publishing House, 1992; THOMAZ, L. A escravatura em Malaca no século XVI. Studia, 1994, no. 53, p. 253-316; HASSELL, Stephanie. Inquisition Records

from Goa as Sources for the Study of Slavery in the Eastern Domains of the Portuguese Empire. History in Africa, 42, 397-418.

8 CAMPBELL, Gwyn. Introduction: Slavery and other forms of unfree labour in the Indian Ocean World. In: The structure of slavery in Indian Ocean

Africa and Asia. London: Frank Cass, 2004, p. vii.

9 ALPERS, E.; CAMPBELL, G.; SALMAN, M. (Org.), Slavery and resistance in Africa and Asia. Op. cit; CAMPBELL (org.). The structure of Slavery in

Indian Ocean Africa and Asiai. Op. cit; MÉDARD, Henri; DERAT, Marie-Laure et al (Org.), Traites et esclavages. Op. cit, p.31-64.

10 Id. Ibid., p.31-32.

11 Id. Ibid., p.31-32, p. 140-141.

12 ANTUNES, Gina. Os abexins no Decão e no Guzerate no século XVI. Lisboa (Dissertação em História), Universidade Nova de Lisboa, 1997, p. 17.

385
aumento da escravização dos povos locais.13
Desde os tempos medievais, o comércio de escravos liderado (mas não exer-
cido exclusivamente) pelos árabes caracterizou-se pelas ligações entre as regiões
da costa oriental africana, da Abissínia, da Península Arábica e do mundo árabe-
-persa. A Península Arábica funcionava como um espaço intermediário, já que
as populações escravizadas eram destinadas também a outros mercados, como o
persa, o turco e o indiano.
A chegada de escravos de origem africana na Índia poderia ocorrer por
meio da passagem pela Península Arábica ou graças ao comércio direto entre
agentes da África e da Índia.14 Sabe-se que o século XVI foi o período em que o
maior número de escravos africanos da região da Abissínia foi exportado para
a Índia, após terem sido transportados no interior da África em caravanas que
cruzavam desertos e cidades e, em seguida, atravessarem os mares em direção à
Península Arábica ou ao subcontinente indiano. 15
Por exemplo, o escravo de origem africana Malik Ambar (ca.1550-1626)
foi inicialmente vendido várias vezes ao longo do território árabe (em Bagdá,
Iêmen, Mocha) antes de ser levado ao Decão, na Índia,16 local em que se celebri-
zou por: ter se tornado chefe de um exército formado por mil e quinhentos ho-
mens, tentar controlar o sultanato de Ahmadnagar e lutar contra a expansão do
Império Mogol.17 Esse movimento também fez parte da vida de muitos escravos
anônimos que não obtiveram a notoriedade de Malik Ambar, como o escravo
Gabriel (judeu abissínio que se converteu o catolicismo e ao islã), em cuja con-
fissão aos inquisidores de Goa teria dito que “o venderam na cidade de Arábia
situada nas fraldas do mar a um mouro [...] este o vendeu a outro mouro Arábio
sodagar18, o qual o trouxe a Chaul de Cima [Índia] e daí o levou para a cidade de
Ahmadnagar”,19 também situada no Decão.
13 M’BOKOLO, Elikia. África Negra: história e civilizações. Salvador: EDUFBA; São Paulo: Casa das Áfricas, 2011, t. 1, p.211-215.

14 Id. Ibid., p. 237.

15 ANTUNES, Gina. Os abexins no Decão. Op. cit, p.31.

16 M’BOKOLO, Elikia. África Negra. Op. cit, 238.

17 EATON, Richard. A Social History of the Deccan (1300-1761). Cambridge: Cambridge University Press, 2005; ANTUNES, Gina. Os abexins no

Decão. Op. cit, p. 96.

18 Sodagar ou saudagar (do persa saudāgar) significa comerciante, mercador, na Pérsia e na Índia, conforme DALGADO, Sebastião. Glossário Luso-Asiá-

tico, Coimbra: Academia das Sciências, 1919-1921, v. 2, p. 302.

19 ANTT, TSO-IL- 4937; ver artigo de MARCOCCI, G. Tra cristianesimo e Islam: le vite parallele degli schiavi abissini in India (secolo XVI). Società

e storia, 138, 2012, p. 807-822.

386
No Decão, as elites locais enfrentam-se constantemente, dividiam-se em
facções formadas por muçulmanos oriundos do norte da Índia ou da própria
região, além de ser significativa a presença de vários abissínios, árabes, irania-
nos, turcos, em uma região repleta de portos que atraíam mercadores de todas
as regiões, inclusive os portugueses.20 Nas terras instáveis do Decão, Gonçalo
Toscano integrou um exército formado por muçulmanos que lutaram contra os
cristãos pelo menos três vezes, no final do século XVI. Depois das guerras, Gon-
çalo Toscano foi aprisionado pelos líderes muçulmanos em Ahmadnagar, pois
era suspeito de ser um espião dos portugueses.21
No que concerne ao comércio de escravos, havia igualmente o comércio di-
reto entre agentes africanos e indianos, sem intermediários árabes ou europeus,
com destaque para as ligações mantidas com os mercados do Decão, do Guza-
rate e de Bengala.22 É interessante mencionar que o escravo Paulo, antes de ter
sido capturado pelos portugueses, vivia como mercador na região do Guzarate,
até sua partida para Pate e depois para Mombaça, na África. Em Mombaça, em
torno de 1678, Paulo foi capturado junto com outros muçulmanos,23 no contexto
em que o vice-rei do Estado da Índia liderou uma expedição, a fim de atacar os
rivais locais e impor a autoridade portuguesa.24
Os portugueses desejaram atuar como intermediários (substituindo par-
cialmente os árabes) no comércio dos produtos vindos da Índia (tecidos e péro-
las) trocados na África por ouro, marfim e escravos. Logo, os lusitanos tentaram
colocar em xeque o domínio muçulmano na região e podem ser vistos como
mais um dos agentes que atuaram nas antigas rotas mercantis, entre elas, os cir-
cuitos de venda de populações escravizadas. 25
Os lusitanos exploraram o comércio de escravos obtidos na África, que fo-
ram levados para Índia, isto é, para Goa e para demais regiões em que os portu-
gueses se estabeleceram, como em Damão, Baçaim e Diu.26

20 MARKOVITS, C. Histoire de l’Inde Moderne. Paris: Fayard, 1994, p.33-34.

21 ANTT, TSO-IL– 4931, fl.5

22 M’BOKOLO, Elikia, África Negra. Op. cit, p. 241.

23 ANTT, TSO, IL –3672 fl. 8v-9,

24 OGOT, Bethwell A. (Ed.). História Geral da África. Brasília: UNESCO, Secad/MEC, UFSCar, 2010, v. 5, p. 905.

25 Sobre a presença de outros europeus (como holandeses e franceses), no tráfico de escravos efetuado no Índico, ver: M’BOKOLO, Elikia. África

Negra. Op. cit, p.302-303.

26 Cf. Pedro Machado, a média anual deve ter oscilado entre 125 a 250 cativos africanos trazidos pelos portugueses, mas o volume global de africanos

387
Segundo Pedro Machado, a importação de escravos africanos reduziu-se no
século XVII, provavelmente associada ao investimento dos portugueses em bus-
ca de escravos “asiáticos” para traficá-los, os quais eram adquiridos especialmen-
te a sudeste de Bengala e Birmânia, via Malaca e Manila.27 Parte desses escravos
“asiáticos” foi revendida, destinada a mercados situados em colônias espanholas,
como o México. 28 Nas fontes documentais consultadas, encontram-se referên-
cias a escravos de várias regiões da Índia (do norte, do sul do subcontinente, do
golfo de Bengala), do Ceilão, de Malaca, de Java, da China, do Japão (em menor
proporção) que foram de proprietários portugueses.29 Ademais, agentes asiáticos
capturavam e vendiam japoneses, chineses e indianos aos portugueses, como
explicou Jeanette Pinto.30
Sobre o comércio de escravos no Índico, podemos considerar que os por-
tugueses se inseriram e exploraram as rotas preexistentes. No entanto, também
causaram algumas alterações na geografia e sociologia do tráfico, ao produzirem
alguns desvios das rotas em seu favor, como a passagem do comércio das espe-
ciarias e de outros produtos por Goa.31
A cidade de Goa, capital do império asiático português, demandou bas-
tante mão de obra servil para: atender os anseios de distinção social de autori-
dades civis e eclesiásticas portuguesas, desempenhar atividades como venda de

traficados no Índico, segundo Stanziani, deve ter sido em torno de 100.000 no século XVII (elevando-se a 400 mil no século seguinte). MACHADO,

Pedro. An Ocean of Trade: South Asian Merchants, Africa and the Indian Ocean. c. 1750-1850. Cambridge : Cambridge University Press, 2014; STAN-

ZIANI, Alessandro. Sailors, Slaves and Immigrants. Bondage in the Indian Ocean World, 1750-1914. Palgrave, 2014 ; ANTUNES, Gina, Os abexins no

Decão, op.cit., p. 53.

27 Não significa que o tráfico de escravos africanos, em Goa, tenha se extinguido e foi inclusive intensificado no século XVIII, associado também às

demandas do império francês decorrentes da exploração econômica das Ilhas Mascarenhas, conforme Pedro Machado, op.cit..

28 A respeito dos escravos asiáticos transportados para América: KERESEY, Déborah Oropeza. La esclavitud asiática en el virreinato de la Nueva

España. 1565-1673. História Mexica. V. LXI, n.1, 2011, p. 5-57; SEIJAS, Tatiana. Asian Slaves in Colonial Mexico: From Chinos to Indians. Cambridge:

Cambridge University Press, 2014; MANSO, Maria de Deus; SOUSA, Lúcio de. Os portugueses e o comércio de escravos nas Filipinas (1580-1600).

Revista de Cultura/ Review of Culture, Macau, nº 40, outubro de 2011. Sobre a escravidão no Extremo-Oriente: MANSO, Maria de Deus & SEABRA,

Leonor. Escravatura, concubinagem e casamento em Macau: séculos XVI-XVIII. Afro- Ásia, n. 49, 2014; EHALT, Rômulo. As faces da escravidão

colonial e asiática em Macau e Manila (séculos XVI e XVII), Apresentação na ANPUH-RIO, 2014.

29 Biblioteca Nacional de Portugal, Cód. 203. Doravante, BNP.

30 PINTO, Jeanette. Slavery in Portuguese India. Bombay: Himalaya Publishing House, 1992, p. 36.

31 M’BOKOLO, Elikia, África Negra. Op. cit, p. 302. Segundo Lobato, Goa tornava-se o porto obrigatório de partida e chegada da nau do trato de

Moçambique, ainda que existissem esforços para que os tecidos da Índia usados no comércio com a África fossem adquiridos diretamente nas terras

do norte (especialmente no Guzerate). LOBATO, Manoel. Relações comerciais entre a Índia e a costa africana. Mare Liberum, 9 (julho 1995), p. 164.

388
água, alimentos, limpeza, trabalhos domésticos, atuar nas embarcações (içar
velas, transporte de mercadorias) e carregar fidalgos (em palanquins).32 Goa
foi uma região dotada de posição estratégica no comércio marítimo entre o
Atlântico e o Oceano Índico,33 graças à Carreira da Índia (rota que ligava os
portos de Goa e de Lisboa)34 e a rotas do comércio interasiático, o que fez com
que essa cidade se tornasse um importante mercado de escravos oriundos da
África e da Ásia. Tais populações escravizadas atuaram na cidade e em terri-
tórios vizinhos ou foram revendidas para outras. No início do século XVII,
existiam cerca de oitocentos escravos em Goa.35
Além de Goa, os portugueses também escravizaram populações na Pro-
víncia do Norte (isto é, Damão, Baçaim, Diu). Baçaim ocupou uma posição
essencial nos negócios portugueses, por estar situada a cerca de 30 léguas de
Bombaim, região em que os portos locais tinham conexões com o interior do
subcontinente indiano e com os portos do Golfo Pérsico e do Mar Vermelho.
Em Baçaim, na década de 1630, havia cerca de 1800 escravos, em uma popula-
ção que englobava também 400 europeus e 200 cristãos nativos. Tais escravos
trabalhavam especialmente para os proprietários de terra da região, nas hortas
e pomares, além de atuarem nas construções, nas embarcações, em atividades
domésticas, militares e artesanais.36 Tanto Gonçalo Toscano quanto o escravo
Paulo nasceram no norte da Índia.
Os portos do norte da Índia, do Decão e do Guzarate, atraíram populações de
todas as regiões banhadas pelo Índico e, por conseguinte, tornaram-se um espaço
central de trocas de produtos, de escravos, de interação e de conflitos entre diferen-
tes facções nativas e estrangeiras, entre muçulmanos, hindus, abissínios e católicos.
Outro aspecto a ressaltar foi que as autoridades portuguesas instituíram leis
a fim de estimular a cristianização de tais populações escravizadas, o que pode-

32 D’SOUZA, Carmo. Slavery in Goa: Legal and Historical Perspectives. In: FERNANDEZ DIAS, Marie Suzette (Org.). Legacies of Slavery. Cambridge,

2007, p. 62-75.

33 RUSSELL-WOOD, A. J. The Portuguese Empire. Johns Hopkins University Press, 1998, p. 27.

34 LAPA, J. A. Bahia e a Carreira da Índia. São Paulo: Companhia Editora Nacional/ EDUSP, 1968; ANTONY, P. S. The Goa-Bahia intra-colonial

relations. Tellicherry (Kerala): IRISH, 2004.

35 SUBRAHMANYAM, Sanjay, O Império Asiático Português. Op. cit; PEARSON, M. Os portugueses na Índia. Lisboa: Teorema, 1987, p. 109.

36 PINTO, Jeanette. The Decline of Slavery in Portuguese India with Special Reference to the North. Mare Liberum, 1995, p. 235- 236.

389
mos constatar com base na legislação do Arcebispado de Goa.37 A Inquisição de
Goa, por sua vez, tentou impedir a venda de escravos cristãos para proprietários
muçulmanos e hereges.38
No tocante à cristianização de escravos asiáticos nos espaços de influência
portuguesa, há algumas referências à catequização fornecida pelos clérigos nas
embarcações portuguesas,39 nas igrejas40 ou à instrução em escolas jesuíticas.41
Nas fontes inquisitoriais investigadas, há algumas alusões ao contexto em que se
tornaram cativos e em que foram batizados.
Na lista dos sentenciados pela Inquisição de Goa entre 1561 e 162342, iden-
tificamos mais de duzentas referências a escravos43 que foram predominante-
mente “batizados adultos” e filhos de muçulmanos ou gentios, ou seja, repre-
sentavam a “primeira geração” de convertidos.44 Porém, localizamos também
algumas referências a escravos cujos pais eram portadores de nomes cristãos45
e que eram filhos de portugueses, como Bartolomeu da Rocha (a mãe era a es-
crava japonesa Apolônia Fernandes), Domingos (mãe de casta java, escrava de
seu pai) e Francisco de Abreu.
Outro elemento a destacar, a respeito dos escravos cristianizados e senten-
ciados pela Inquisição de Goa, é o predomínio do seguinte delito: retroceder às
práticas e crenças islâmicas. Acerca do intervalo de 1561 a 1623, com base no Re-

37 REGO, A. Silva. Documentação para a história das missões do padroado português do Oriente. Lisboa, 1952 v. 7 e v.10.

38 Biblioteca Nacional do Rio de Janeiro, 25,1,005 n. 017.

39 DHMPPO, v.5, p. 191, carta do padre Gonçalo Rodrigues aos jesuítas de Coimbra.

40 DHMPPO, v.5, p. 274

41 DHMPPO, v.5, p. 274, carta do irmão Gil Barreto, Baçaim, 16 de dezembro de 1552.

42 BNP, Cód.203. Repertório geral de três mil e oitocentos processos despachados pelo Santo Ofício de Goa desde a sua constituição até 1623 de João

Delgado Figueira.

43 BNP, Cód.203. Só foram contabilizadas as referências explícitas a escravos (que na documentação são descritos como “cativos” ou “escravos” e

possuem um proprietário), por isso não computamos “criados”, “amas”, “moços”, “moças” – que não indicam com segurança o estatuto servil. maior

dificuldade é identificar forros, pois nem sempre este estatuto era mencionado pelos inquisidores. Além do manuscrito, pode ser consultada a base de

dados elaborada por B. Feitler: “Uma base de dados dos processos da Inquisição de Goa (1561-1623) <http://d284f45nftegze.cloudfront.net/reportorio/

Feitler%20Uma%20base%20de%20dados%20site.pdf>

44 Uma das exceções consiste na escrava Isabel Bengala, “batizada de pouca idade”. BNP, Cod. 203, m.1,n.12.

45 Como a cingalesa Ana (M.12, n.23), os cativos indianos Agostinho Afonso (m.4, n. 8, fl. 22v), Bartolomeu (M.1,n.17), Cristóvão, Pascoal, o cativo

mulato Joane, Jerônimo, a chinesa Leonor da Fonseca, Manuel de Malaca, além de Belquior (m.1, n.17). Não temos como afirmar se os progenitores

eram cristãos antes de o filho ter sido escravizado (e em que condições), salvo o caso do cativo Miguel, nascido em Tidore (Maluco), por conter a

informação de ter sido “batizado adulto com sua mãe”.

390
pertório, infere-se a profunda correlação entre o estatuto de ser escravo asiático
e a acusação de incorrer em “culpas de islamismo”, cerca de 70% das acusações
imputadas aos escravos referenciados.
Por um lado, podemos considerar que o predomínio do delito de “islamis-
mo” seja decorrente da postura dos inquisidores de Goa, que ajudaram a con-
solidar um estereótipo acerca das populações escravas do Oriente Português, ao
considerá-las como potencialmente propensas a retroceder a crenças e práticas
islâmicas. Por outro lado, a leitura dos processos da Inquisição de Goa movidos
contra Gonçalo Toscano e Paulo pode nos fornecer mais do que os estereótipos
a respeito dessas populações que a Inquisição ajudou a construir.46 Com efeito,
os relatos dos dois indianos permitem vislumbrar a intensa permeabilidade de
culturas, o constante deslocamento desses cativos entre reinos muçulmanos e
povoados cristãos, bem como a manutenção das ligações com os antigos grupos
de parentela muçulmanos mesmo após o batismo cristão.
Assim, esperamos captar elementos relacionados às crenças e às práticas
religiosas de Gonçalo Toscano e de Paulo a partir da análise da documentação
inquisitorial, a fim de deslindar como efetuaram a passagem entre sociedades
que viviam sob a autoridade da Cruz ou do Islã.
Após apresentarmos tais considerações gerais, investigamos as experiên-
cias de vida, as crenças e práticas religiosas de um escravo e de um homem
forro, acusados de serem islamizantes. A confissão de Gonçalo Toscano e o
processo de Paulo consistem em registros documentais que “permitem explo-
rar fragmentos de vidas de homens e de mulheres que viveram socialmente à
margem”47, que não deixaram memórias escritas sobre suas experiências, mas
cujos relatos orais assumiram uma forma escrita no contexto da redação dos
documentos produzidos pela Inquisição.48

Gonçalo Toscano entre os mundos islâmico e o cristão

Gonçalo Toscano nasceu e viveu na Índia, experimentou o cativeiro, rece-


beu o batismo na fé católica e foi sentenciado pela Inquisição de Goa, em 1597,
46 Nesse sentido, a inspiração parte da leitura de Carlo Ginzburg.

47 ANDERSON, Clare.  Subaltern Lives: biographies of colonialism in the Indian Ocean World, 1790-1920. Cambridge: Cambridge University Press, 2012.

48 Ginzburg refletiu sobre a natureza das fontes inquisitoriais, como “registros escritos de testemunhos orais”. GINZBURG, Carlo. O inquisidor como

antropólogo. In: O fio e os rastros. São Paulo, Companhia das Letras, 2007, p. 280.

391
por culpas de islamismo. No Repertório, o réu não foi descrito como “forro”,
mas apenas como casta mouro do Balagate49. No traslado do processo inquisito-
rial (confissão e sentença)50 encontram-se mais detalhes, pois foi caracterizado
como forro, “cristão da terra”, “casta mouro natural do Balagate”, que é uma re-
gião montanhosa da Índia (a nordeste de Goa) situada no Decão. Local em que
eram produzidos os “panos de Balagate”,51 fazenda grossa de algodão, de pouco
valor, mas que era importante no comércio entre a Índia e a África Oriental, em
que se trocavam tecidos, marfins e escravos.
Em 2 de maio de 1597, Gonçalo Toscano, com aproximadamente 23 anos de
idade, apresentou a sua primeira confissão aos inquisidores de Goa, após anos de
uma vida periclitante entre terras islâmicas e regiões da Índia controladas pelos
portugueses. Na sua confissão, há poucas informações sobre a sua infância e as
condições em que se tornou um cativo. Declara que servia a Mateus Carvalho em
Baçaim, região que foi incorporada aos domínios portugueses do norte da Índia.
Gonçalo Toscano disse que cerca de nove anos após ter se batizado na fé
católica (quando tinha aproximadamente 16 anos) fugiu de Baçaim para Galiana
por “certos desgostos que teve com seu amo”,52 mas não especificou a natureza
do trabalho servil que desempenhava. O seu destino, Galiana, foi um importante
centro portuário das terras do norte e local em que morava a mãe de Gonçalo,
quem o teria persuadido a abandonar a fé cristã, ao dizer que ele “andara errado
e fora do caminho de sua salvação porque somente a seita de Mafamede era boa
e verdadeira, e nela se havia de salvar”. O réu disse que parecia que sua mãe “fa-
lava verdade” e, por essa razão, teria adotado “touca e cabaia53 e o seu nome de
mouro, que adquirira antes do batismo cristão. No mês seguinte, foi submetido à
circuncisão “com as cerimônias que os mouros costumam fazer”.54
Primeiramente, lavaram a cabeça dele, “dando-lhe a comer uns pilouros de
bangue,55 [ou anfião], para não sentir a dor da ferida”, durante a circuncisão. Pro-

49 BNP, Cód. 203, fl. 367v.

50 ANTT, TSO, IL – 4931.

51 DALGADO, Sebastião, Glossário Luso-Asiático, v.1, p. 53, verbete: Balagate, Balagateiro; LINSCHOTEN, Jan Huygen van. Itinerário [1595]. Lisboa,

CNCDP, 1997, p. 97, 140-142.

52 ANTT, TSO, IL – 4931, fl.2.

53 Roupão ou túnica.

54 ANTT, TSO, IL – 4931.

55 Bangue corresponde ao “cânhamo, canabis ou marijuana, cujas folhas e partes tenras constituem o haxixe”, conforme o Colóquio 8º de Garcia d’Orta

392
feriu “certas palavras das quais ao presente não é lembrado, e no dito tempo lhe
ensinou a fazer sumbaya”, uma forma de reverência, “e duas orações uma das quais
começa Alá Amodolilar; la; Rabid, Alamim, narahá, mane, neraime, Maleche”,
56
que são versos da Fâtiha, surata que inicia o Corão. Mencionou outra oração,
“Colulalá, hahaad, alau, Vsamad, lamealid, valame, inbal, velama e eul, lan, cufu,
nanhahad”, que na verdade é o Bismillah ir-Rahman ir-Raheem,57 que introduz cada
surata do Corão, inclusive a Fâtiha. O réu disse não saber o significado de todos
esses versos, mas é interessante destacar que ele teria citado, em árabe, toda Fâtiha.
Gonçalo Toscano afirmou que orava no interior de mesquitas, após retirar
os sapatos e fazer o lavatório adotado pelos mouros, bem como fazia o anamás,
o fateá (passar a mão pelo rosto), festejava a lua nova, jejuava no Ramadã, antes
e depois de comer fazia o Bismillah.58
Praticou tais rituais durante dois anos, “não crendo em Cristo nem em coisa
alguma da Igreja”, declarou. Porém, teria se arrependido e resolveu voltar para
Baçaim, para viver com seu amo, que o aconselhou a confessar suas culpas. Gon-
çalo foi encaminhado a um jesuíta confessor e cumpriu as penitências espirituais
prescritas. Em seguida, viveu como cristão durante três anos, até fugir novamen-
te de Baçaim, após ter sido acusado de ser ladrão, um “salteador de caminhos”,59
em uma região que era conhecida pelas incursões de “ladrões formigueiros”, em
função da fragilidade de seu sistema defensivo.60

(Colóquios das drogas e simples da Índia, de 1567), médico português com vasto conhecimento da farmacopeia indiana. Disse que o bangue “embebeda

e faz estar fora de si”, que o anfião “é como se chama na Índia o ópio”. J. Andrade. Garcia d’Orta e Amata Lusitano na ciência de seu tempo. Biblioteca

breve, v. 102, 1985, p. 47 e 48; DALGADO, Sebastião, Glossário Luso-Asiático. Op. cit, v. 1, verbete: anfião.

56 ANTT, TSO, IL – 4931, fl. 3. Gonçalo Toscano citou versos do Corão, mais especificamente os sete versos da primeira Sūrah (surata Al-Fâtiha), que

deve ser entoado no princípio das preces muçulmanas. Tais versos foram transcritos pelo notário do Santo Ofício de Goa, a saber. O primeiro trecho

remete ao segundo verso da surata, Al Hamdulillahi rabbi-l-alamin, que na transcrição do notário aparece como: “Alá Amodolilar; la; Rabid, Alamim”. O

mesmo acerca do terceiro verso Ar-rahaman ar-rahim, transcrito como ‘narahá, mane, neraime”; do quarto verso Maliki yawm ad-din, registrado como

“Maleche, io, medim”; do quinto verso Iyaka na`budu wa iyaka nasta`in, anotado como “Ihacha, nabedu, Vaiaça, Sastaim”; do sexto verso Ihdina as-sirat

al-mustaqim, grafado como “idenaciratal, Musta quima” e do sétimo Sirat al-ladhina an`amta alayhim ghayri al-maghđubi alayhim wa la ad-dalin,

transcrito como “ciratal, Lazma ana, amota, alaim, gaucri, maguzube”. Essa surata simboliza e resume o Corão em sete versos. Ver: KHÂN, Gabriele

Mandel. L’Islam: fondements, pratiques, civilisations. Paris: Hazan, 2007, p. 56-57.

57 Cuja tradução seria “Em nome de Deus, o Misericordioso, o Compassivo”. É a primeira frase que abre cada capítulo do Corão e oração entoado

no início de cada ato importante. Encyclopeadia of islam, 2ª ed. Leiden, 1960, p. 1084; LOPES, Margarida Santos. Dicionário do Islão. Lisboa: Casa das

Letras, p.83. Em árabe: Qul huwa Allahu ahad, Allah hu samad, Lam yalid wa lam yulad, Wa lam yakun lahu kufuwan ahad.

58 ANTT, TSO, IL – 4931, fl.2v-3v.

59 ANTT, TSO, IL – 4931, fl. 4.

60 TEIXEIRA, André. Baçaim e o seu território. Lisboa (Tese), Doutoramento em História, UNL p. 72, 104

393
A fim de escapar da prisão, Gonçalo Toscano viveu escondido por cerca de
seis meses e fugiu para uma povoação de muçulmanos. Lá, recebeu um cavalo e,
junto com os muçulmanos, lutou três vezes contra os cristãos. Apesar de ter sido
recrutado por um bando armado islâmico para lutar contra os cristãos, como
mencionamos, Gonçalo foi levado para o sultanato de Ahmadnagar, onde ficou
preso por um ano, sob suspeita de ser espião dos portugueses.
No período em que foi aprisionado, no último quartel do século XVI, a ins-
tabilidade política na região foi significativa, em função das rivalidades entre os
agentes dos seguintes poderes: de Guzarate, de Ahmadnagar, do império mogol e
do império português. A partir da década de 1580, os mogóis expandiram-se na
região, sob liderança de Akbar; em 1593 e 1594, os portugueses e o sultanato de
Ahmadnagar entraram em guerra. Esse contexto de rivalidades imperiais poderia
oferecer oportunidades, graças à participação de homens livres e de escravos em
bandos armados, para explorar os botins de guerra e mesmo ascender socialmente,
como foi o caso de uma “dinastia” de escravos militares que se destacou na região.61
Por outro lado, as expedições também poderiam levar à captura de inimi-
gos, a serem vendidos como escravos. Naquele contexto, Gonçalo Toscano –
aparentemente sem vínculos, sem demonstrar lealdade irrestrita a algum senhor
e por trajar “vestido de português” – foi visto com suspeita pelos muçulmanos.
Gonçalo Toscano ficou preso por três meses em uma fortaleza, até conseguir
fugir e dissimular sua “identidade”, ao se trajar como iogue. Com as vestimentas
desse tipo de asceta indiano, deambulou por diversos caminhos até chegar a Diu,
local em que buscou o apoio de franciscanos capuchos. Mas após mencionar que
teria combatido nas milícias muçulmanas contra os cristãos, os frades o encami-
nharam ao capitão da fortaleza portuguesa, que por sua vez o aprisionou.
Mais uma vez, Gonçalo Toscano fugiu da prisão e retornou às terras de
mouros, ocasião que andou “sempre vestido com touca e cabaia” e praticou as ce-
rimônias muçulmanas, até conversar com portugueses que lhe disseram que ele
não teria “remédio nestas partes”, apenas em Roma. Gonçalo disse que pensou
em partir para lá, embarcado em uma nau que estava em Surate (norte da Índia)

61 Aproximadamente na mesma época em que Gonçalo Toscano ingressou na cavalaria comandada por muçulmanos, Malik Ambar, escravo abissínio

que mencionamos, reuniu uma cavalaria formada por 1500 homens, colocou-se a serviço de Abhang Khan, a quem auxiliou na proteção de Ahmadna-

gar contra a expansão mogol, entre 1595 e 1596. EATON, Richard. A Social History of the Deccan (1300-1761). Cambridge: Cambridge University Press,

2005; ANTUNES, Gina, Os abexins no Decão. Op. cit, p. 96.

394
e que seguiria para Meca. Porém, ao relatar o que teria vivido a alguns soldados,
estes o remeteram para Baçaim, local em que o arcebispo se encontrava, prelado
que lhe encaminhou preso para Goa.62
Em Goa, Gonçalo Toscano confessou-se aos inquisidores durante sete ses-
sões, de maio a julho de 1597, em que apresentou relatos sobre sua trajetória de
vida controversa (Fig.1).63

Fig. 1

Em 8 de maio de 1597, Gonçalo Toscano citou detalhes sobre a sua vida


como mouro, que permitem associar as suas práticas a correntes islâmicas espe-
cíficas, como o sufismo, pois partiu em romaria com sua mãe e parentes, além
de reverenciar o corpo de “Saed mamade Chesudarás64 que os mouros têm por
santo e entrando” no mausoléu “se deitou ao pé da dita sepultura e lhe ofereceu
fulas65 que ele levava. Em todo tempo [...] per espaço de dez a oito dias”. Alegou

62 ANTT, TSO, IL – 4931, fl. 6-7.

63 Reconstituição aproximada de alguns anos de vida dos réus (nas Figuras 1 e 2). As datas são imprecisas, pois se pautam na confissão do réu e na

percepção da passagem do tempo que possuíam.

64 Ver: DIGBY, Simon. The Sufi Shaikh as a Source of Authority in Medieval India. In: EATON, Richard (ed.). India’s Islamic Traditions, 711-1750.

Oxford: Oxford University Press, 2011, p. 239-254.

65 Fulas significam flores (DALGADO, Sebastião, Glossário Luso-Asiático. Op. cit, v.1, verbete: fulas).

395
que “não rezava oração alguma somente lhe pedia que lhe desse riqueza”. 66 O
homem santo citado por Gonçalo Toscano tratava-se de Sayid Muhammad Gesu
daraz, que falecera em 1422 e se tornou bastante venerado localmente, de modo
que seu túmulo se encontra no templo islâmico mais popular do Decão (até os
dias atuais), importante local de peregrinação. 67
No sufismo, destaca-se a construção da memória em torno dos mestres após o
desaparecimento do corpo no mundo físico, graças à construção de templos sobre
seus túmulos. Considera-se que a influência benéfica do mestre se estende para além
da morte, e, por essa razão, seu túmulo torna-se um lugar de peregrinação. O que
parece evidente no caso da devoção de Gonçalo Toscano e de seus familiares ao cor-
po de Muhammad Gezu Daraz. A “romaria” citada por Gonçalo coaduna-se com a
prática de ziyārat (visita ao túmulo homens piedosos), em busca da santificação.68
O sufismo, uma filosofia mística, enfatiza a santidade pessoal (capaz de pro-
mover milagres), o papel dos ritos de iniciação e liturgias. Conjecturamos que
os rituais narrados por Gonçalo Toscano sugerem eventuais êxtases provocados
pelo uso do anfião, do ópio. Além disso, no sufismo a mãe ocupa grande cen-
tralidade, como uma transição até o desenvolvimento de uma relação amorosa
com o mestre (no tocante à orientação, à guarda e ao amor)69. Na confissão de
Gonçalo Toscano, identifica-se o papel de sua mãe na orientação espiritual, na
introdução aos ritos e na convivência com o grupo religioso.
Além dos prováveis vínculos do réu com comunidades sufistas do norte da
Índia, a confissão de Gonçalo nos permite captar as percepções sobre o que ele
entendia como “religião” e “adesão” a uma comunidade religiosa. Assim, a pas-
sagem para o mundo cristão ou islâmico foi caracterizada, na fala do réu, pela
adoção de sinais exteriores que demarcavam aquela adesão, ou seja: vestes, nome
e ritos praticados em público, a fim de ser reconhecido ora como cristão, ora
como muçulmano. Ou, em determinadas circunstâncias, dissimular qualquer

66 ANTT, TSO, IL – 4931, fl.10 v.

67 EATON, Richard. A Social History of the Deccan (1300-1600). Cambrigde: Cambridge University Press, 2005, p.33-58. Muhammad Gesu Daraz

tornou-se um líder religioso proeminente que, no final do século XIV, abandonou Delhi, junto com discípulos que ajudaram a disseminar a filosofia

dos Chishti shaikhs em outras regiões da Índia.

68 DIGBY, Simon. The Sufi Shaikh as a Source of Authority in Medieval India. Op. cit, p.254; BASHIR, Shahzad. Sufi Bodies. Religion and Society in Me-

dieval Islam. New York: Columbia University Press, 2013; ELIADE, Mircea. Dicionário de religiões. São Paulo: Martins Fontes, 2003 (verbete: islamismo).

69 BASHIR, Shahzad. Sufi Bodies. Op. cit

396
uma das duas identidades, como no momento em que adotou trajes de iogue
para viabilizar a fuga de território muçulmano.
Por um lado, Gonçalo Toscano adotou a mesma retórica presente nas con-
fissões de renegados à Inquisição, pois alegou o arrependimento, justificou a
fuga para terras de mouros para escapar de maus tratos e que foi persuadido a se
converter ao islã (pela mãe). Por outro lado, ele não recorreu exaustivamente à
típica clivagem interior e exterior, alegado pelos renegados diante da Inquisição.
Como explicou Schwartz,70 os cristãos que se convertiam ao islã alegavam que
apenas no exterior eram muçulmanos, pois no interior, mantinham-se católi-
cos. Contrariamente, Gonçalo Toscano afirmou que: “cria no Deus que creem os
Mouros, e se encomendava com as orações que tem confessado por lhe dizer sua
mãe e parentes que [Maomé] era santo, e profeta de Deus”.71
Por vezes, o relato de Gonçalo Toscano o contradizia, pois afirmou que “se
fingiu mouro no exterior”. Sua confissão é repleta de aparentes incoerências,
como na terceira sessão: disse ser cristão de coração, mas também acreditara
na fé de Maomé enquanto viveu entre os mouros. Por isso, quando era cristão
se encomendava à Nossa Senhora e a São Francisco, e quando era mouro enco-
mendava a sua alma a “Mafamede”. Mas quando se recordava que era cristão,
arrependia-se. Na quinta sessão, afirmou que ele “fora sempre mouro em seu co-
ração e vontade”. Em seguida, corrigiu uma afirmação que fizera, ao dizer que, na
terceira vez que fugiu para terras de mouro e arrenegou, sua fuga não teria sido
“por medo de tornar ao tronco como tem dito e que se ele rezava à virgem nossa
senhora era tudo fingindo”. Além de afirmar que, alguns vezes, invocou Nossa
Senhora e São Francisco, mesmo quando adotava a identidade de muçulmano.72
Ao final da confissão, tentou demonstrar que estava realmente arrependido e
“todo o seu coração estava contrito.” No entanto, os inquisidores mostraram-se im-
pacientes com o réu, cujos relatos lhes pareceram inverossímeis no tocante à con-
trição e ao arrependimento alegados. Na sexta sessão, os inquisidores chamaram a
atenção do réu para que “atentasse bem o que dizia e não contrariasse em sua confis-
são fazendo-se mouro e cristão juntamente no mesmo tempo”, pois isso seria repug-

70 SCHWARTZ, Stuart. Cada um na sua lei. São Paulo: Companhia das Letras, 2009.

71 ANTT, TSO, IL – 4931, fl. 8v.

72 ANTT, TSO, IL – 4931, fl. 17.

397
nante, já que os muçulmanos não são devotos de Nossa Senhora. Gonçalo Toscano
asseverou que “em seu coração naquela hora e momento cria na dita Senhora”.73
Por fim, os inquisidores de Goa apresentaram a sentença do réu: foi consi-
derado herege apóstata da fé católica, que incorreu em sentença de excomunhão
maior, com confisco de bens, cárcere e hábito penitencial a arbítrio, abjuração em
forma. Reconciliado, foi absolvido da excomunhão. Sua sentença foi publicada
em 24 de agosto de 1597. No entanto, os inquisidores de Goa consideram que,
em função da “qualidade” do réu e do “perigo” de seu retorno à terra de mouros,
Gonçalo Toscano deveria ser embarcado com destino ao reino de Portugal, para
ser remetido ao Conselho Geral do Santo Ofício, em Lisboa.74
Em primeiro de dezembro de 1597, os inquisidores de Goa escreveram ao
inquisidor geral e mencionaram o envio de Gonçalo Toscano para Portugal, junto
com o processo dele. A justificativa era o “perigo” de reincidência nos seus erros.75
No entanto, em Lisboa, o inquisidor geral, em 27 de novembro de 1598,
considerou que Gonçalo Toscano não deveria ser enviado para o reino, por ter
voluntariamente abandonado as terras de mouros e confessado suas culpas.
Ademais, o envio de Gonçalo para Portugal deixaria “intimidados os arrenega-
dos que estão em terras de infiéis”, que não se sentiriam motivados a retornar à
Igreja. Portanto, os arrenegados – como Gonçalo – deveriam ser recebidos com
“benignidade para que venham salvar suas almas”.76
Em 23 de dezembro de 1599, os inquisidores de Goa enviaram uma corres-
pondência ao inquisidor geral em que mencionavam o envio de um traslado do
processo de Gonçalo Toscano. A primeira cópia do processo teria sido enviada
para Portugal em 1597, junto com o réu, mas foi destruída, pois estava “no maço
que sobejou na nau que se queimou”. Os inquisidores escreveram que: “pareceu
bem mandar-se por ser natural do Balagate, onde três vezes se fez mouro, depois
de ser cristão batizado por não ficar nesta terra com ocasião tão próxima de
tornar quando quisesse, e ver sua mãe e parentes e retroceder outra vez”. Com
efeito, os inquisidores de Goa esperavam que Gonçalo Toscano reincidisse “por

73 ANTT, TSO, IL – 4931, fl. 18.

74 ANTT, TSO, IL – 4931, fl.24, 26.

75 Doc. LIX, p. 259, documentação impressa em: BAIÃO, Antônio. A Inquisição de Goa. Lisboa: Academia das Ciências: 1945, v.2.

76 BNRJ, 025, 01,001, n. 142, fl. 3.

398
ser moço leve e inconstante e pouco firme na fé”.77

O escravo Paulo entre Surate, Mombaça e Goa

Muitas décadas depois de Gonçalo Toscano ter sido sentenciado pela Inqui-
sição de Goa, em outro contexto político do Estado da Índia, o escravo indiano
chamado Paulo teve suas experiências de vida inquiridas pelo Santo Ofício de
Goa, após ter sido preso nos seus cárceres, em 8 de janeiro de 1689, quando tinha
vinte e cinco anos de idade.78
Durante a confissão aos inquisidores de Goa, Paulo declarou que seu nome
islâmico era Sidiassem Vacanadis, que seus familiares eram muçulmanos. Nascido
no norte da Índia, na região de Surate, Paulo vivera como mercador, até a idade
de 15 anos, aproximadamente. Como mercador, partiu da Índia com destino a
territórios da África banhados pelo Índico, como Pate e Mombaça. Em território
africano, foi capturado pelos portugueses. Na segunda sessão, em 15 de janeiro de
1689, Paulo mencionou aos inquisidores o contexto em que teria sido aprisionado:

fora de Surate para Pate no ano de setenta e oito [1678] e daí


passara a Mombaça donde esteve em casa de uns mouros
naturais da mesma terra e depois se botou um bando em
Mombaça que todos os cristão e mouros naturais daquela
terra viessem pegar em armas pera irem pera Pate em com-
panhia da armada do vice-rei.79

77 Doc. LX, p. 270-271, Baião, op.cit.

78 Traslado do processo de Paulo: ANTT, TSO, IL – 3672, fl.6.

79 ANTT, TSO, IL – 3672, fl.8v-9.

399
Paulo alegou que teria sido capturado “per que os mouros em cuja casa estava
fugiram pegaram nele declarante e em quatro cafres mais per cuja causa entende
o cativaram”. O escravo explicou que, em seguida, teria ficado em “poder de um
homem francês que ali estava per piloto da viagem de Goa”, o que demonstra como
diferentes agentes (portugueses, franceses, africanos e indianos, como o próprio
mercador Paulo) tentavam explorar as oportunidades econômicas ligadas ao co-
mércio (de produtos e de escravos) e à navegação no Índico – como provavelmente
foi o caso do piloto francês que manteve Paulo na condição de cativo.
Cabe destacar que, naquele período, a dinastia que se estabeleceu em Omã
(na Península Arábica) lutou para expulsar os portugueses de Mascate (no Golfo
Pérsico). Os omanistas expandiram o conflito com os lusitanos, com investidas
tanto na costa oriental africana quanto no litoral ocidental da Índia (especial-
mente na região em que se situavam os portos do norte), a fim de fragilizar a
presença portuguesa nessas localidades. Desse modo, os lusitanos enfrentavam
os omanistas e as lideranças africanas em Mombaça e em Pate, na porção africa-
na do Índico. No período em Paulo foi capturado, o vice-rei Pedro de Almeida
liderava uma expedição para subjugar as lideranças rebeldes de Pate, em 1678.
No outro lado do Índico, os lusitanos também enfrentavam a concorrência do
império mogol e das companhias de comércio europeias que desejavam explorar
a centralidade de Surate (grande porto e centro da construção naval na Índia),
no litoral ocidental da Índia, no Guzarate.80
Foi naquela conjuntura que o mercador Sidiassem Vacanadis partiu de Surate,
sua terra natal, com destino a regiões da África Oriental que se encontram em dispu-
tas, em meio a guerras, como Mombaça e Pate .81 Após ser capturado, Sidiassem vi-
veu por cinco ou seis meses em Mombaça, local em que foi batizado na igreja matriz
e recebeu o nome de Paulo. Em seguida, viveu alguns meses na casa de um português
chamado Sebastião Gonçalves até ser vendido ao pescador Francisco Fernandes.82
Paulo realizou mais uma vez a travessia do Índico e teve como destino uma
aldeia de Bardez, situada nas proximidades de Goa, capital do império asiático

80 CARREIRA, Ernestina. O Estado Português da Índia. In: MARQUES, A. H. de Oliveira; SERRÃO, Joel (Dir). Nova História da expansão portuguesa.

O império oriental: 1660-1820. Lisboa: Editorial Estampa, 2006, v. 1, p. 27-30; AL-BUSAIDI, Ibrahim Yahya Zahran. Oman e Portugal (1650-1730).

Política e economia. Tese (Doutorado em História). Lisboa, Universidade de Lisboa, Faculdade de Letras, 2010, p. 191-197.

81 OGOT, Bethwell A. (Ed.), História Geral da África. Op. cit, p. 904-905.

82 ANTT, TSO, IL–3672, fl. 9.

400
português. Foi naquele ambiente que Paulo se tornou alvo da investigação do
Tribunal do Santo Ofício de Goa.
Em 7 de dezembro de 1688, Paulo foi denunciado ao inquisidor de Goa por
seu proprietário, Francisco Fernandes, regateiro de peixe, nascido e morador na
freguesia de Nossa Senhora da Penha de França, em Bardez (adjacente à Goa).
O denunciante afirmou que um “cafre”, seu escravo, teria fugido para terra de
muçulmanos, há cinco anos atrás. Após a chegada do embaixador (emissário) do
império mogol, Paulo teria adotado as vestimentas de mouro (touca e cabaia),
casado com mulher moura nas terras de Surate (norte da Índia), que também
pertencia à “casa do dito embaixador” mogol.83
Em seguida, os inquisidores de Goa ouviram três testemunhas, todos pes-
cadores, cristãos naturais e moradores da freguesia de Nossa Senhora da Penha
de França, de Bardez. Em 10 de dezembro de 1688, Pero Fernandes declarou aos
inquisidores de Goa que Paulo teria partido para as terras de infiéis, no contexto
das “guerras do Sambagy”(isto é, o líder marata Sambhaji). Adicionou que há
aproximadamente onze ou doze dias atrás que teria visto novamente o escravo
fugitivo nas terras de Bardez, “em traje de mouro vestido de touca e cabaia”.
Explicou que Paulo teria chegado no “barco do embaixador do Mogol”.84 André
Mesquita também asseverou que Paulo teria fugido para terras de infiéis, na épo-
ca das guerras contra o Sambhajy, além de tê-lo visto em Bardez – há cerca de
sete ou oito dias – em companhia de mouros, vestido com “touca e cabaia sem
contas ao pescoço” e de saber que o réu teria se casado com uma moura e tinha
um filho. Por fim, Bernardo de Sousa também apresentou um relato similar so-
bre Paulo, disse tê-lo visto há cerca de sete ou oito dias em Bardez e há três ou
quatro dias em Pangim, sempre vestido como muçulmano.85
A fuga de Paulo da aldeia cristã de Bardez (controlada pelos portugueses)
para as terras de mouros ocorreu em um contexto – em torno de 1683 – em que o
império mogol e os maratas se expandiam na Índia, o que representou uma gran-
de ameaça aos interesses lusitanos. No final do século XVII, Goa sofreu com a ex-
pansão dos maratas liderados por Shivaji Bhonsle que, em 1667, invadiu Bardez

83 ANTT, TSO, IL–3672, fl. 3-3v.

84 ANTT, TSO, IL – 3672, fl. 4.

85 ANTT, TSO, IL– 3672, fl. 5.

4 01
(terra onde Paulo viveu com seu proprietário). Na década de 1680, Shivaji con-
trolava praticamente todos os territórios, de Damão a Goa, que estavam situados
nas fronteiras dos domínios portugueses. Sambhaji foi o sucessor de Shivaji, líder
dos maratas, coetâneo aos episódios mencionados pelas testemunhas do proces-
so de Paulo. Naquela época, os portugueses optaram por recusar o apoio dos
mogóis na luta contra os maratas e, consequentemente, foram vítimas do cerco
de Sambhaji ao território de Chaul e de Goa, em 1683. Naquele mesmo ano, Bar-
dez também teve seus palmeirais e arrozais, de modo que as perdas apenas não se
perpetuaram graças ao investimento dos maratas nos ataques contra os mogóis.86
Nos relatos das testemunhas é possível captar a percepção desse movimento
de elites locais e de seus emissários que buscaram negociar (o “embaixador do
mogol”) ou travaram guerras (como o Sambhaji, líder dos maratas) com os lu-
sitanos. Tal como no caso de Gonçalo Toscano, a trajetória de vida do escravo
Paulo entrelaçou-se com esse movimento que caracterizou o reordenamento dos
poderes político-militares na Ásia do sul. De forma subalterna, a experiência de
vida do escravo Paulo acompanhou esse movimento, por ter partido junto com
a “embaixada do mogol”, ou seja, por ter explorado as eventuais oportunidades
que as rivalidades imperiais apresentavam aos homens que viviam nas “mar-
gens”, nas franjas dos impérios.
Após ter sido preso pela Inquisição de Goa, Paulo apresentou declarações a
respeito das condições em que foi capturado e vendido como escravo, além de
informações sobre a sua cristianização e de sua fuga no contexto da chegada dos
mogóis em Bardez.
Paulo explicou, inicialmente, que aprendera a doutrina cristã na casa de
seu proprietário e, posteriormente, foi batizado adulto (com quinze ou dezesseis
anos) na igreja da Penha de França de Bardez. Não lembrava dos padrinhos, não
era crismado nem se lembrava de orações cristãs.87 Teria vivido como cristão até
janeiro 1683, quando “veio a esta terra o embaixador do Mogor”, acompanhado
de seu irmão Sidy Salamy, mocadão de um barco, que o persuadiu a voltar a Su-
rate, “para matar as saudades a sua mãe e parentes”.88

86 SUBRAHMANYAM, Sanjay. O Império Asiático Português. Op. cit, p. 274-275; SOUZA. Op. cit, p.41-43.

87 ANTT, TSO, IL–3672, fl. 6v. Posteriormente, ao se confessar aos inquisidores de Lisboa, disse que teria sido batizado na igreja matriz de Mombaça (fl.9).

88 ANTT, TSO, IL–3672, fl. 6v.

402
Alegou que foi convencido por seus parentes a se tornar muçulmano, para
que se cassasse com uma moura, prometida a ela antes de sua viagem a Pate.
Paulo confirmou que teria praticado as cerimônias islâmicas, repetido palavras
como “ila ila ilálá Mamede rezulalá”89, raspado a cabeça, cortado as unhas e usa-
do traje de muçulmano, além de ser reconhecido pelo antigo nome mouro (Si-
diassem Vacanadis). Frequentava mesquitas, fazia “salamas” e “anamás” a Mao-
mé (em quem cria), bem como ao sol e à lua, quando se punha, jejuou durante o
Ramadã, “que é em um mês não comer nada de dia mas que a noite depois de se
per o sol não comia carne de porco não bebia vinho”. 90
Paulo afirmou que “fez tudo de livre vontade”, no entanto, declarou-se arre-
pendido e pediu misericórdia aos inquisidores. Após ser interrogado pela Inqui-
sição de Goa, Paulo foi entregue aos inquisidores de Lisboa, que o ouviram em
2 de outubro de 1689.
No reino de Portugal, os agentes do Santo Ofício indagaram se Paulo tinha
algo a mais a declarar, além do que havia confessado aos inquisidores de Goa.
Em seguida, foram iniciadas as perguntas sobre as crenças de Paulo, que afirmou
ter acreditado “no deus do céu que é o deus dos mouros”, período em que não
acreditava na Santíssima Trindade, em Cristo, nem o tinha por Messias e Deus,
não considerava os sacramentos da Igreja essenciais para a salvação e que “muito
bem sabia e entendia [...] serem as duas leis entre si diversas”, isto é, a lei de Cristo
e a dos mouros. Mas alegou que teria abandonado a fé islâmica quando foi en-
tregue aos inquisidores de Goa e asseverou que “de presente crê firmemente em
Cristo” e na sua lei para salvar a sua alma.
Em 12 de outubro de 1689, os inquisidores de Lisboa consideraram que
Paulo era cristão bem instruído na fé católica, que passou ao islamismo sem ter
sido forçado. Porém, por ter confessado, deveria ser recebido novamente pela
Igreja, com cárcere e hábito penitencial a arbítrio, deveria ouvir sentença em
auto público da fé, abjurar publicamente e seria submetido a penitências espiri-
tuais e instrução necessárias.91

89 Trata-se de la Ilaha illa allah Mohammed rasoul allah, isto é, Shahâdah, que significa testemunhar: não há nenhuma divindade a não ser Allah e

Maomé é o seu Profeta. Essa profissão de fé é um dos cinco pilares do islamismo (ârkân), junto com a oração ritual, o jejum, a esmola legal (zakât) e a

peregrinação. LOPES, Margarida Santos, Dicionário do Islão. Op. cit; KHÂN, Gabriele Mandel, L’Islam. Op. cit, p.146.

90 ANTT, TSO, IL – 3672, fl. 6-7.

91 ANTT, TSO, IL– 3672, fl. 14

403
O processo foi remetido ao Conselho Geral do Santo Ofício, que considerou
que o réu teria sido bem julgado pelos inquisidores de Goa e confirmou a sen-
tença, em 14 de outubro de 1689. Em 20 de outubro do mesmo ano, Paulo ouviu
sua sentença na sala do Santo Ofício perante os inquisidores92. Em seguida, foi
encaminhado para o cárcere da penitência nos Estaus.93
Aqui termina a saga de Paulo que fomos capazes de reconstituir, de forma
fragmentária (Fig. 2). Paulo, nascido em uma família de muçulmanos do nor-
te da Índia (em Surate), foi capturado por portugueses na África (Mombaça),
vendido em Goa a um pescador de uma aldeia cristianizada (precisamente em
Bardez), fugiu, seguiu em companhia dos mogóis, retornou à terra natal (Su-
rate) e depois voltou a Bardez. Foi inquirido pela Inquisição de Goa e, por fim,
enviado para Lisboa. A última informação localizada sobre sua vida consiste na
declaração de seu instrutor nas coisas da fé, a saber. Francisco Pinheiro, em 9 de
novembro de 1689, afirmou que Paulo sabia “muito mais” do que “é obrigado a
saber, porém não sabe ainda os mandamentos da lei de Deus”.94

Fig. 2

92 ANTT, TSO, IL–3672, fl.19v.

93 ANTT, TSO, IL–3672, fl. 22.

94 ANTT, TSO, IL– 3672, fl. 23.

404
Considerações finais

Os poucos processos remanescentes da Inquisição de Goa – como os de


Paulo e de Gonçalo Toscano – podem trazer contributos de caráter qualitativo
(e não quantitativo) para refletir sobre as trajetórias de vida e as mobilidades
(geográficas e culturais) de escravos trânsfugas.
Nem sempre as fontes da inquisição fornecem muitas informações sobre as
condições em que as populações asiáticas foram submetidas ao cativeiro ou so-
bre a natureza das atividades laborais desempenhadas. Com efeito, as perguntas
feitas pelos inquisidores aos réus concentravam-se em questões em torno das
crenças, das práticas religiosas e da moralidade. No caso da confissão de Gon-
çalo Toscano, não há referências ao contexto em que se tornou escravo e nem se
obteve alforria (ou se foi considerado forro simplesmente por ser um escravo fu-
gitivo, cujo dono não teria conseguido recuperá-lo). Ao passo que a confissão do
escravo Paulo apresenta detalhes sobre o contexto em que se tornou cativo (nas
terras da África) e a sua venda ao último proprietário, o pescador que o denun-
ciou ao Santo Ofício de Goa. Ademais, tanto em função do ofício do proprietário
quanto das testemunhas, podemos presumir que Paulo possa ter desempenhado
atividades ligadas à pesca ou ao trabalho em embarcações. Adiciona-se que o
irmão de Paulo era mocadão (chefe de tripulação) de um barco.
A respeito da religiosidade desses cativos, os inquisidores tenderam a con-
siderar que os escravos asiáticos convertidos eram potencialmente propensos a
retroceder ao islamismo. Os inquisidores esperavam que os islamizantes, uma
vez interrogados, declarassem ter acreditado em um conjunto de crenças ou de
ter praticado determinados ritos (circuncisão, jejum do Ramadã, orações espe-
cíficas, casamento com mulheres muçulmanas).
No entanto, além dos estereótipos contidos nos processos inquisitoriais a
respeito dos islamizantes, é possível extrair informações sobre as crenças e a vida
cotidiana dos escravos a partir da confissão prestada pelos réus. Por exemplo, a
confissão de Gonçalo Toscano apresentou informações sobre as práticas religio-
sas locais que os agentes do Santo Ofício provavelmente nada conheciam, como a
devoção a Sayid Muhamammad Gesu daraz, cuja sepultura Gonçalo declarou ter
reverenciado. Adicionam-se os detalhes citados por Gonçalo a respeito das prá-

405
ticas rituais, ao aludir ao emprego de plantas da farmacopeia indiana (para even-
tual alívio da dor) durante a circuncisão. A confissão de Gonçalo Toscano nos
permite refletir sobre o que seriam as crenças e práticas islâmicas adotadas em
uma região específica da Índia, no Decão, no fim do século XVI, ao revelar ele-
mentos das crenças e práticas relacionadas a uma corrente em especial, o sufismo.
Em linhas gerais, a análise dos processos de Gonçalo Toscano e de Paulo,
como dois estudos de caso, favorece a revisão da ideia de rígidas “identidades
confessionais”, pois não foram tão fixas, essencialistas, atávicas na época e no con-
texto estudados. As formas de identificação (como se reconheciam e como eram
reconhecidos) resultavam da experiência desses agentes históricos subalternos,
que se inseriram – da forma possível – nas dinâmicas sociedades do Índico.
Gonçalo Toscano e Paulo demonstraram a ambição em busca de melhores
oportunidades de vida, mas às vezes tentaram apenas sobreviver, ao desafiar os
poderes que os controlavam (os antigos proprietários, os chefes de bandos ar-
mados que os recrutavam ou que os capturaram, os inquisidores). E, em função
disso, desenvolveram habilidades para se adaptar, para se inserir nas sociedades
em que eram adventícios: trajes, nomes e gestos escolhidos para serem reconhe-
cidos ora como muçulmanos ora como cristãos, entre a Cruz e o Islã.

406
RELIGIÃO E DIPLOMACIA:
as missões agostinhas no Irã safávida no limiar do
século XVII (Frei Diogo de Santa Anna)1*

Margareth de Almeida Gonçalves

Na soleira do século XVII, a Congregação da Índia Oriental da Província


de Portugal da ordem dos eremitas de Santo Agostinho fundou um convento
na cidade Isfahan, nova capital do Irã safávida.2 A abertura do “mosteirinho”, de
não mais do que cinco religiosos, deu seguimento à participação de agostinhos
no terreno das relações diplomáticas entre Filipe II de Portugal (r.1598-1621) e
Xá Abbas (r.1587-1629) no quadro das alianças anti-otomanas.3 Por sua vez, a
expansão agostiniana nas regiões ao sul do Cáucaso serviu de êmulo à aproxi-
mação com a Igreja Armênia4 com o fito de sua redução ao rito latino e à obe-
diência ao pontífice romano. O fio condutor deste artigo é o nome do agostinho
frei Diogo de Santa Anna (1571-1644), através de um conjunto de manuscritos,

1 * Agradeço à leitura e aos comentários de Andrea Doré a uma versão anterior do texto apresentada na mesa Catolicismo no Império Oriental Português

durante o Colóquio Internacional Religião e religiosidades na época moderna (novembro 2014). Este artigo integra o projeto “A Congregação da Índia Oriental

dos eremitas de Santo Agostinho: trajetórias, práticas de escrita e gênero (1590-1640)” que foi contemplado com recursos da FAPERJ (APQ1-2014).

2 Segundo Bert Fragner, na reafirmação corrente da historiografia sobre o Irã, o período safávida estendeu-se da coroação de Xá Ismail I na cidade de

Tabriz, em 1502, como imperador do Irã (padshah-e Iran) à conquista afgã de Isfahan em 1722. Um outro aspecto relevante diz respeito à introdução pela

dinastia safávida do xiismo junto a uma população de maioria sunita. Cf. FRAGNER, Bert. The Safavid Empire and the Sixteenth and Seventeenth-Centiry

Political and Strategic Balance of Power within the World System. In: FLOOR, Willem; HERZIG, Edmund. Iran and the World in the Safavid Age. Londres:

I.B. Tauris, 2012, pp. 17-29. O longo reinado de 42 anos de Xá Abbas, neto de Tahmasp, segundo soberano safávida, favoreceu estabilidade, militar, política

e econômica. No entanto, produziu igualmente tensão entre a tradicional elite tribal Qizilbash e os novos corpos militares, formados por caucasianos e ar-

mênios, fricções que os sucessores não contiveram. Veja-se NEWMAN, Andrew J. Safavid Iran. Rebirth of a Persian Empire. Londres: I.B. Tauris, 2006, p. 3.

3 Logo no início de seu reinado, em 1589, Xá Abbas firmou um acordo de paz com os otomanos, em que reconhecia a perda de territórios ocupados. Na

virada para o século XVII, o monarca safávida recuperaria não somente áreas ocupadas pelos uzbeques – Coração oriental, reavendo Mashhad e Herat

(1598-99) – como territórios perdidos para os otomanos – Azerbaijão, retomando Tabriz (1602-03). Idem, p. 130.

4 A denominação de Igreja Armênia corresponde aos núcleos cristianizados pelos apóstolos São Judas Tadeu e Bartolomeu na região do Cáucaso. São

Gregório o Iluminador (c. 257-332) unificou a cristandade armênia e foi o seu primeiro patriarca. A Igreja Armênia integra as igrejas orientais que não

reconheceram o Concílio de Calcedônia de 451. O alfabeto armênio foi criado pelo monge Mesrob Machtots em 406 e a Bíblia foi traduzida, a partir do

grego e do siríaco, para o armênio em 435. Cf. GULBENKIAN, Roberto, Relações religiosas entre os arménios e os agostinhos portugueses na Pérsia no

século XVII. In: Estudos históricos. II. Relações entre Portugal, Irão e Médio-Oriente. Lisboa : Academia Portuguesa da Historia, 1995, p. 213.

407
redigidos em momentos diversos de sua trajetória. Os dois primeiros, equivalem
a duas cartas dirigidas ao papa Paulo V, escritas no ano de 1607, em Isfahan.5 Um
terceiro, encerra um segmento sobre o “reino da Pérsia”, incluído em um relato
extenso, no formato de “Informação” aos superiores da Província de Portugal.
O “papel” foi redigido três décadas distantes dos acontecimentos narrados nas
duas cartas, já com Santa Anna na cidade de Goa, em torno de 66 anos, no ano
de 1637.6 Trata-se de um elenco de manuscritos, já amplamente contemplado
pela historiografia acerca das relações luso-safávidas e da missionação dos agos-
tinhos no Irã durante o período da União Dinástica. Por sua vez, este artigo põe
em foco questões em torno da missionação agostinha em espaços de guerra e da
ação diplomática. Compreendem-se esses lugares por arenas de embate e dispu-
tas de forças, como também de paradigmas de ação social, com forte impulso de
construção simbólica.7

1- Os agostinhos e o Oriente

Em 1572, quando D. Frei Agostinho de Jesus (1537-1609) ocupou a po-


sição de superior da Província de Portugal da ordem dos eremitas de Santo
Agostinho, foi expedida a primeira missão de religiosos ao Estado da Índia, o
começo da Congregação da Índia Oriental. A crônica de frei Simão da Graça,
um século a frente, recuperou, por sua vez, o papel de Agostinho de Jesus nas
missões do Estado da Índia: “o qual inspirado por Deos nosso senhor achou
convinha de estender-se, edificasse nossa sagrada religião pelas partes orien-
tais”. Inicialmente, os agostinhos fixaram-se em Goa, cabeça oriental do im-
pério, e Ormuz, na encruzilhada do próspero comércio do Índico ocidental.
A casa de religiosos agostinhos, em Ormuz, recebeu a aprovação do monarca
5 A transcrição das cartas encontra-se em ALONSO, Carlos. Due lettere riguardanti I primi tempi delle missioni agostiniane in Persia. Analecta Au-

gustiniana 24 (1961) 152-201.

6 SANTA ANNA, Frei Diogo de. Informação dos poucos aprouveitamentos do pe frei Diogo de Santa Anna, servo sem proveito, da ordem dos ere-

mitas do Patriarcha Sto Ago, emissionario daindia oriental. In: Memórias da Congregação do Oriente. 1637, Arquivo Nacional da Torre do Tombo,

manuscritos da livraria 674, folhas 65v-80v. Esta parte do registro, acerca da missionação na Pérsia e do contato com os armênios, foi publicada em

GULBENKIAN, Roberto. De ce qu’avec la grâce de Dieu, le Père “Servo sem Proveito” fit dans le Royaume de Perse”. In: Estudos históricos. II. Relações

entre Portugal, Irão e Médio-Oriente. Lisboa: Academia Portuguesa da Historia, 1995, pp. 131-219.

7 Veja-se TURNER, Victor. Dramas, campos e metáforas. Rio de Janeiro: EdUFF, 2008.

408
D. Sebastião, com o fito de procederem ao “negócio de conversão dos gentios”.
Para tanto, o futuro convento recebeu a designação, comum aos agostinhos
portugueses, de Nossa Senhora da Graça.
Neste momento, nossa reflexão trata de apontar questões relacionadas às
trocas diplomáticas luso-safávidas e à evangelização agostinha no golfo pérsico,
no sentido de ampliar a complexidade do panorama político-religioso do reino
de Portugal e das terras de conquista no século XVI.
Ormuz, a pedra preciosa engastada no anel do mundo, segundo a bela me-
táfora de João de Barros, correspondeu à cidade localizada na ilha de Gărūn,
um bastião no estreito de Oman, uma proteção da paisagem à entrada do golfo
pérsico, conquistada por Afonso de Albuquerque em 1507, e incorporada por
fim como reino vassalo dos domínios de Portugal em 1515, situação mantida até
à derrota portuguesa na ação combinada da monarquia safávida e da Compa-
nhia Inglesa das Índias Orientais, em 1622. Um estado-mercador árabe, “cidade
fronteiriça”, na expressão de Jean Aubin, de múltiplos e flexíveis limites, entre os
mundos iraniano, árabe e indiano, de projeção mercantil, Ormuz ocupou uma
posição estratégica no tabuleiro político das disputas imperiais de oriente a oci-
dente, centradas no jogo de alianças e dissensões das guerras com o império oto-
mano no século XVI.8 Assinale-se nas conjunturas diversas contemporâneas à
expansão dos portugueses pelo Índico, a propagação dos impérios islâmicos tur-
co-otomano, safávida e mogol.9 No quinhentos, a região compôs um caldeirão
complexo de poderes de variadas disputas regionais com efeitos no panorama
do mediterrâneo: península italiana, Veneza e Papado, Espanha, Portugal. Dese-
nhou um mosaico de dissensões, acrescido, no início do século XVII, dos novos
8 Segundo Jean Aubin, se o estado era ligado, do ponto de vista politico e econômico, ao mundo iraniano, a base tradicional do reino de Ormuz era

árabe. O historiador comenta que ao tempo da chegada dos portugueses, Ormuz constituia a cidade de maior população entre as aglomerações vizinhas

no golfo pérsico, com algo em torno de 50.000 habitantes. Cf. AUBIN, Jean. Mare luso-indicum, Tomo II. Genebra: Librairie Droz, 1973, p. 150. A partir

da referência de Aubin, William Floor esclarece que Ormuz foi o nome do reino e Jarun o da ilha, cidade capital, também identificada por Gărūn. Com

o tempo, os topônimos da cidade e ilha foram nomeados pelo termo do reino, Ormuz. FLOOR, William. The Persian Gulf. A Political and Economic

History of Five Port Cities 1500-1730. Washington: Mage Publishers, 2006.

9 Os três impérios eram formações originárias de migrações de tribos turcas nômades do interior asiático. Como salienta Albert Hourani: “(…) a

formação do Estado otomano foi mais um exemplo do processo que ocorrera muitas vezes na história dos povos muçulmanos, o desafio a dinastias

estabelecidas por uma força militar e oriunda de povos em grande parte nômades. Sua origem foi semelhante à dos dois outros grandes estados que

surgiram mais ou menos ao mesmo tempo, o dos safávidas no Irã e dos mogóis na Índia. Todos os três baseavam sua força, no início, em áreas habitadas

por tribos turcas, e todos deviam seu sucesso militar à adoção de armas que usavam a pólvora (…).” HOURANI, Albert. Uma história dos povos árabes.

São Paulo: Companhia das Letras,1994, p. 224.

409
jogadores europeus, os hereges das fontes portuguesas, por meio das empresas
comerciais inglesa (East India Company, EIC, 1600) e holandesa (Vereenigde
Oost-Indische Compagnie, VOC, 1602). Uma configuração de grupos de inte-
resses diversos de oeste a leste.10
Em linhas gerais, o projeto manuelino inicial de Albuquerque de encerrar o
Índico (da costa oriental africana ao estreito de Malaca) à navegação de Portugal
confrontou com a expansão otomana.11 O “fechamento das portas dos estreitos”
incluiu Ormuz, bloqueando a passagem nos golfos de Oman e Pérsico, Malaca,
no controle da península malaia, e Sumatra. Porém, a empresa inicial foi frus-
trada pelos otomanos no estreito de Bab al Mandeb, à entrada do mar vermelho,
com a captura de Aden (1538).12 Para efeitos de simplificação da análise, nos
propósitos deste estudo, ressalte-se que a força da máquina de guerra em terra
firme dos otomanos foi compensada pela supremacia de tecnologia marítima da
talassocracia portuguesa nos espaços do Índico. O quadro de conflitos tendeu a
esgarçar os limites de forças em contextos de equilíbrios instáveis. Ao longo da
centúria, a aproximação com o império safávida forjara a oportunidade de fir-
mar uma barreira à expansão otomana. Nesses termos, a proximidade com o Irã,
na construção de ações de confronto ao Império turco-otomano, foi definida por
caminho estratégico pelos diversos poderes europeus, desde o Papado às monar-

10 O quadro historiográfico é amplo e diversificado. Para os objetivos deste estudo, assinalem-se os trabalhos sobre o golfo pérsico, Ormuz, os safávidas,

Portugal e os agostinhos de FERNÁNDEZ, Luis Gil. El imperio luso-español y la Persia Safávida. Tomo I (1582-1605). Madrid: Fundación Universitaria

Española, 2006; NEWMAN, Andrew J., Safavid Iran, op.cit.; FLOOR, William, The Persian Gulf. Op. cit; FLORES, Jorge e MATTEE, Rudi. Portugal,

the Persian Gulf and Safavid Persia (Acta Iranica). Louvain: Peeters Publishers, 2010. Acerca dos otomanos recorri às obras de COUTO, Dejanirah;

GUNERGIN, Feza; PEDANI, Maria Pia e KITABEVI, Denizler. Studies in Turkish Maritime History – Seapower, Technology and Trade. Istanbul: Piri Reis

University Publications, 2014. Sobre o papado nos contextos político e a diplomacia nos séculos XVI e XVII vejam-se VISCEGLIA, Maria Antonieta

(org.). Papato e política internazionale nella prima età moderna. Roma: Viella, 2013. Na parte referente aos estudos específicos sobre a ordem dos ere-

mitas de Santo Agostinho e o Império Safávida recorro ao estudo de FLANNERY, John. The mission of the portuguese augustinians to Persia and beyond

(1602-1747). Leiden-Boston: Brill, 2013, como também aos trabalhos de GULBENKIAN, Roberto, Estudos históricos. II. Relações entre Portugal, Irão

e Médio-Oriente. Lisboa: Academia Portuguesa da Historia, 1995, às publicações imprescindíveis de pesquisa e recolha documental de Carlos Alonso,

citadas ao longo deste artigo, e à obra de CHICK, H. sobre os carmelinas na Pérsia, A chronicle of the carmelites in Persia. The safavids and the papal

mission of the 17th and 18th centuries. 2 vols. Londres: I.B.Tauris, 2012.

11 A análise seguinte baseia-se em MELIS, Nicola. The importance of Hormuz. In: COUTO, Dejanirah Couto; LOUREIRO, Rui Manuel. Revisiting

Hormuz. Portuguese Interactions in the Persian Gulf Region in the Early Modern Period. Wiesbaden: Harrassowitz Verlag, 2008, pp. 107-120.

12 Registre-se a conquista do Egito (1516-1517) aos mamelucos fechando o controle otomano da rede mercantil através do mediterrrâneo, Síria, Cau-

casso e o mar Árabe. Assinale-se a ocupação de Basra, em 1546, uma base importante incrustada ao norte do golfo pérsico e uma ameaça ao controle

português da região. FLOOR, William, The Persian Gulf. Op. cit, p. XVII.

410
quias ibéricas. 13 A mesma arma dos persas usada contra os otomanos, mutatis
mutandis voltou-se contra os mesmos portugueses na ocupação de Ormuz pela
coligação anglo-safávida, em 1622.
A primeira Chronica da Congregação da Índia Oriental (c. 1606), de frei
Félix de Jesus (†1640), reconheceu os espaços de Goa, Ormuz e Malaca, por
conquistas centrais de Afonso de Albuquerque para o domínio do Império por-
tuguês oriental. No entanto, assinala pari passu o sinal negativo evidente com as
conquistas turco-otomanas do Egito mameluco e da Síria, em 1516-1517, e de
Adem, que interditaram o controle do mediterrâneo e mar vermelho, na conse-
quente quebra da vantagem mercantil de Portugal nos espaços asiáticos.
As aproximações diplomáticas entre o reino de Portugal e a nascente di-
nastia dos Safávidas remonta ao construtor do oriente português, Afonso de
Albuquerque, governador do Estado da Índia (1509-15), que enviou à corte de
Ismail I (r.1501-24), em 1510, a embaixada de Ruy Gomes de Carvalhosa, acres-
cida de um religioso dominicano e um serviçal. Em Ormuz, o embaixador foi
assassinado por envenenamento. Na política manuelina definiu-se por estraté-
gica a aproximação com a monarquia safávida na fixação de uma aliança militar
contra o Império Otomano, um inimigo comum. Em 1513, foi designado um
segundo embaixador para a corte persa, Miguel Ferreira (1513-15). Um tercei-
ro embaixador, Fernão Gomes de Lemos (1515-1516), foi expedido à corte de
Xá Ismail ainda durante o período do reinado de D. Manuel I (r.1495-1521). O
envio de embaixadores à corte safávida previu o processo de reconhecimento
do reino de Ormuz por tributário do monarca português, e não mais da antiga
área de influência iraniana. 14
As embaixadas sucederam-se, com intervalos mais ou menos prolongados
ao longo do século XVI.15 No manejo diplomático e político, no reinado de D.

13 Atente-se à expansão persa por Xá Ismael I (1500-1524), a partir de 1510, sobre a Sublime Porta, na ocupação dos planaltos do Irã, Mesopotânea

e Armênia.

14 Jorge Flores assinala, no projeto político manuelino, identificado na ação de Afonso de Albuquerque no Índico, a estratégia de aproximação com o

novo governante safávida na condução da destruição de Meca, a quebra do império mameluco (ameaça confirmada com a conquista otomana do Egito,

conforme assinalado na nota 11) e a reconquista de Jerusalém. O inimigo otomano selaria os interesses estratégicos na aliança luso-safávida. Veja-se o

artigo sobre Miguel Ferreira: FLORES, Jorge. A ‘man of great credito in those lands’: Miguel Ferreira, the ‘mutineers’of the Coromandel coast and the

Estado da Índia. In: MAPHERSON, Kenneth; SUBRAHMANYAM, Sanjay (orgs.). From Biography to History. Essays in the History of Portuguese Asia

(1500-1800). Nova Dehli: TransBooks.Com, 2005, pp. 55-93.

15 Além das indicações da nota 9, para o panorama da troca de embaixadas entre europeus e os soberanos safávidas consultem-se: MATTHEE, Rudi.

411
João III (r.1521-1557), foi expedida uma embaixada à corte do Xá Ismael condu-
zida por Balthazar Pessoa em 1524. Entre seus membros destacava-se Antonio
Tenreiro, conhecido autor de Itinerário..., um relato no formato de diário de via-
gem da jornada por terra da Índia ao reino de Portugal. Mais de duas décadas
depois, em 1549, foi designado, pelo governador do Estado da Índia, Jorge Ca-
bral, Henrique de Macedo para uma missão diplomática na corte safávida de Xá
Tahmasp (r.1524-1576). No ambiente conflituoso de intrigas da conjuntura de
disputas otomanas no golfo pérsico, como na ocupação de Qatif e das ameaças
sobre Bahrein, a embaixada foi fadada ao insucesso.16
Por sua vez, os jesuítas foram os primeiros missionários a cuidar do pasto
espiritual da nova vinha sediada nas terras inóspitas de Ormuz. Em carta de 1 de
dezembro de 1549, ao geral da Companhia de Jesus, o holandês frei Gaspar Bar-
zeus (1515-1553), que chegara à Armusia, termo latino de Ormuz, no ano ante-
rior, recorreu à expressão “terra destemperada”, referindo-se à “calma”, associada
à “secura da terra, que será debaixo muito dominada de exalações muito secas e
quentes”. Uma ilha “que tem rios quilhados de sal que correm de contínuo, que
tem serras de sal como montes muito grandes. o qual sal é tão forte que não se
pode salgar carne que a não corte”. O cenário salino, inóspito e afugentador da
narrativa de Barzeus, foi tópica recorrente na escrita sobre Ormuz, um espaço
na encruzilhada de trânsitos culturais nas rotas mercantis da ilha empório do
Índico, nas conexões entre redes do comércio intra-asiático e o ocidente.
Após a vitória de Lepanto (1571), na formação da liga católica contra os tur-
cos, D. Sebastião I (r.1557-1578) deu notícias, por cartas ao cardeal Alexandrino
em Roma, à Senhoria de Veneza, ao embaixador de Portugal na França, do envio
de uma embaixada ao xá Tahmasp I, com objetivos de exortação à guerra contra
os turco-otomanos. Por seu turno, em breve de 16 de novembro de 1571, o Papa
Pio V noticiara também o soberano iraniano, da gloriosa vitória naval de Lepan-

The politics of protection. Iberian Missionaries in Safavid Iran under Shāh Abbās I (1587-1629). In: ADANG, Camillae SCHMIDTKE, Sabine (Eds).

Contacts and Controversies between Muslims, Jews and Christians in the Ottoman Empire and Pre-modern Iran. Würzburg: Ergon Verlag Würzburg,

2010, pp. 245-271; HERNÁN, Enrique García. Persia en la acción conjunta del papado y la actuación de la Compañia de Jesus. Hispania Sacra, LXII,

125, enero-junio 2010, pp. 213-241.

16 Roberto Gulbenkian assinala a irritação do Xá Tahmâsp com a acusação de um notável muçulmano de Ormuz acerca da conversão forçada de sua

esposa em Chaul e da extorsão de dinheiro. O monarca persa tendeu a acatar a denúncia e exigiu retração e manteve o embaixador refém, liberado por

fim, após explicações de que a conversão não fora forçada. Cf. GULBENKIAN, Roberto, Estudos históricos, op.cit., p. 20.

412
to, empreendida pela coligação dos príncipes cristãos selada pela “providência
divina” sobre as forças da Sublime Porta do sultão Selim II, o otomano (r.1566-
1574). Exortou o soberano safávida a acionar o combate à “besta fera” otomana
(efferato Ottomano) para a recuperação da Messopotânia e Assíria, ocupadas no
passado por Sulimão I (r.1520-1566).17
Na estratégia de aproximação com o Irã, no enquadramento de uma liga an-
ti-turca, D. Sebastião expediu a embaixada de Miguel d’Abreu de Lima, que saiu
de Goa em março de 1572. A empresa diplomática reverteu em mais um malo-
gro junto à corte persa, o que faz sobressair de novo as incompatibilidades nos
intercursos cultural e político, na má receptividade de presentes, provavelmente
considerados indecorosos de um soberano por Tahmasp I. Ademais, a conjun-
tura da paz entre turcos e safávidas contribuiu ao desfecho negativo. Logo, um
novo confronto turco-safávida eclodiria, com prolongamentos de 1579 a 1590
marcados por perdas sucessivas de territórios iranianos para a Sublime Porta
(Georgia, Erevan e grande parte de territórios armênios)18.Na periodicidade das
composições diplomáticas, a liga anti-turca cristã foi quebrada na paz celebrada
entre a República de Veneza e Império Otomano, em 1573, seguida de uma tré-
gua firmada em segredo por Filipe II de Espanha (r.1580-1598).19
Em grossas linhas, e no que permite este artigo, deve-se assinalar o quadro
do desafio otomano na dinâmica de alianças anti-turcas dos reinos católicos eu-
ropeus, e mais especificamente no painel deste estudo, as tentativas do reino de
Portugal e do Papado de aproximação com o Irã xiita e a atuação missionária
da ordem dos eremitas de Santo Agostinho da Província de Portugal nesse con-
texto. Ormuz foi a rota de passagem de embaixadas de Portugal para o Irã, e, na
segunda metade do século XVI, alinhou os religiosos agostinhos.

2- Congregação da Índia Oriental e o jogo diplomático

A presença de religiosos no Índico ocidental coadunou-se ao projeto de re-

17 CHICK, H. (ed. e transl.) A chronicle of the Carmelites in Persia. London: I.B. Tauris, 2012, vol. 1, pp.19-21; vol. 2 pp. 1272-1273.

18 FERNANDÉZ, Luis Gil. Op. cit, p. 69.

19 Para a embaixada de Miguel d’Abreu de Lima consultem-se FERNANDÉZ. Op. cit, pp. 67-69; FLOOR. Op. cit, pp. 196-197.

413
novação administrativa do Estado da Índia tenteado no reinado D. Sebastião.
O motivo da divisão do Império Oriental, segundo o cronista Diogo do Couto,
fora a dispersão dos espaços portugueses. O plano de partição supôs a criação de
três governos: uma área que se estendia do Mar Arábico até o Ceilão, controlada
pelo vice-rei D. Antonio de Noronha; o governador Francisco Barreto recebeu a
África Oriental e ao governador Antonio Moniz Barreto correspondeu o Índico
oriental.20 Porém, o projeto não progrediu, minara em um reino “desventurado”
pela morte do soberano.21
No capítulo provincial realizado no Convento de Santo Agostinho de Santa-
rém, em 26 de outubro de 1571, conduzido pelo geral Agostinho de Jesus, foram
assentadas as condições de instituição da ordem nas partes da Índia de Portugal.
A primeira missão agostinha concedeu proeminência à atuação no golfo pérsico,
seguindo a orientação do monarca.
Atente-se que, ao longo da década de 1570, a pressão otomana tendeu a
crescer sobre as possessões portuguesas na África oriental, golfo Pérsico e sub-
continente indiano. Intensificou-se, ademais, o conflito turco-persa com o avan-
ço da Sublime Porta sobre territórios da Georgia, Erevan e parte significativa de
povoados armênios, regiões submetidas aos domínios safávidas.
Afinal, em 1572, um convento de religiosos agostinhos, em Ormuz recebera
a aprovação do monarca D. Sebastião, no fito de procederem ao “negócio de
conversão dos gentios”, conforme alvará de 20 de fevereiro ao capitão de Ormuz,
Luís de Mello da Silva: “vejais o sitio, e lugar onde se melhor e mais comodamen-
te possa fazer, e eles para isso pedirem, e convosco parecer”.
A mesma orientação constou do alvará enviado ao vice-rei da Índia, Dom
Antonio de Noronha, em março de 1572:

“que eu vos mando hora fundar na cidade de Ormus um


mosteiro da invocação ade Nossa Senhora da Graça da or-
dem de Santo Agostinho. (…) e porque os ditos Padres não
tem na dita cidade renda de que se ajão de sustentar, vos en-
20 Veja-se COUTO, Diogo de. Da Ásia. Década Nona, Lisboa: Na Regia Officina Typografica, 1786, p. 1. Sanjay Subrahmanyam menciona as reformas

administrativas do reinado de D. Sebastião e assinala a passagem de uma “vocação marítima” de Império para uma progressiva ênfase territorial. Cf. O

Império Asiático Português, 1500-1700. Uma história política e econômica. Lisboa: DIFEL, 1995, p. 172.

21 Essa é uma alusão à expressão “desventurados reinos os dos reis crianças”, de SOUSA, Manuel de Faria, cf. Asia Portuguesa. vol IV, Porto: Livraria

Civilização, 1946, p. 134,

414
comendo, e mando que lhes mandeis dar em cada um ano
o que lhe for necessário para a sua sustentação competente,
e assim para vestido, e tudo o mais que lhe for necessario, o
que assim tudo lhes mandareis dar na dita cidade de Ormus
a custa de minha fazenda, e pelo treslado deste alvará, vos-
sos mandados e conhecimentos dos ditos Prior, e padres,
ou asentos do escrivão da dita feitoria do que se montar das
ditas despesas, mandop que sejam elvado em conta ao feitor
da feitoria da dita cidade o que nisso montar...”22

Segundo memorabilia dos agostinhos, o início da Congregação da Índia


oriental volve ao envio dos 12 primeiros religiosos em 1572. Um número funda-
cional que, no uso comum de outras ordens religiosas, recuperou o peso simbó-
lico dos 12 apóstolos escolhidos por Cristo para espalhar e pregar o evangelho.
Um símbolo numérico enigmático, segundo aludiu o primeiro cronista da or-
dem na Índia oriental: “é misterioso não só nas coisas humanas porque o céu tem
doze signos, e o corpo humano tem doze partes principais de que consta nas di-
vinas, porque em doze tribos dividiu Deus o seu povo, doze exploradores foram
escolhidos para descobrir a terra da promissão aquela cidade que São João (Jeru-
salém Celeste) pinta achamos que os fundamentos eram doze, doze suas portas e
em quadro tinha doze mil stadios”, em citação ao Apocalipse de São João 21, 16.
E, concluiu: “Em fim o mistério seria querer sua Alteza Provincial e definidores
que fossem doze como foram os Apóstolos de Christo para que apostolicamente
pregassem, e doutrinassem naquelas partes a gentilidade...”.23
Na escrita das crônicas e anais da Congregação da Índia Oriental, o nome
de frei Agostinho de Jesus granjeou robustez e projeção como promotor da ação
missionária agostinha em partes de África e Ásia. Deste modo, constam das atas
da província portuguesa realizada por frei Agostinho de Jesus, na congregação
de Santarém em 1571, a designação dos religiosos que passariam às áreas do
Índico, Ormuz e Goa. Na ocasião, uma missão de 12 religiosos deslocou-se do
mesmo modo para a Guiné, na África ocidental.24
Em 20 de março de 1572, os doze religiosos embarcaram na cidade de Lis-
22 Alvarás…. In: REGO. António da Silva. Documentação para a História das Missões do

23 JESUS, Félix de. op.cit.,p. 19

24 ALONSO, Carlos. Nueva documentación inédita sobre las misiones agustinianas en India y Persia (1571-1609). Analecta Augustiniana. 33, 1970, pp.

311-314; Veja-se GONÇALVES, Margareth de Almeida. A edificação da cristandade no oriente português: questões em torno da ordem dos eremitas de

Santo Agostinho no limiar do século XVII. Revista de História (São Paulo), n. 170, p. 107-141, jan.-jun., 2014.

415
boa em duas naus de alcunhas católicas: Reis Magos e São Francisco. Segundo
as mesmas atas da província portuguesa, foi designada a incumbência de erigir
um convento na cidade de Ormuz e escolhido por prior Antonio da Paixão, e por
substituto Simão de Jesus. Por fim, foi frei Simão de Moraes, ou da Concepção,
que recebeu o priorado do convento de Ormuz, e juntamente com o padre João
da Graça, ou de Santa Mônica, seguiram direto para Ormuz, após quinze dias
de escala em Moçambique, onde chegaram por volta de 17 de agosto de 1572.25
A igreja do futuro convento de Ormuz recebeu a pedra de fundação em 15
de agosto de 1573. O convento reteve a designação de Nossa Senhora da Graça,
virgem ícone da ordem e comum às casas agostinhas portuguesas. Entretanto, o
ritmo da construção do convento foi lento, segundo a crônica de Felix de Jesus,
por omissão dos oficiais do rei em seguirem a orientação da carta de D. Sebastião
“sobre lhe darem sítio e fazerem casa, e darem o necessário aos religiosos como
por virtude um Alvará que mostrava del Rey dom Sebastião lhes mandava dar”.26
Um alvará de 18 de fevereiro mais uma vez advertiu:

os padres da ordem de Santo Agostinho devem ficar em


Ormuz sobre o negocio da conversão dos gentios (…) se
lhe dem as embarcações e mantimentos necessarios, assim
para os que ouverem de vir para este Reino, como aos que
forem para outras parte, indo em obediência e mandado de
seus prelados. 27

No início da União Dinástica, em 1582, Simão de Moraes28, fundador e


primeiro prior da casa de Ormuz, em passagem por Goa, foi escolhido pelo vi-
ce-rei Francisco de Mascarenhas (1581-1584), a pedido de Filipe I de Portugal,
para uma missão na Pérsia, portando uma carta do monarca ao Xá Mohammed
Khodabandeh (r.1578-1587). Simão de Moraes inaugurou a atuação dos agos-
tinhos na diplomacia com o império safávida. Frente aos relatos da intenção

25 Cf. ALONSO, Carlos. Nueva documentación inédita sobre las misiones agustinianas en India y Persia (1571-1609). Analecta Augustiniana. 33, 1970,

pp. 312, 314.

26 JESUS, Frei Felix de. Chronica Ordem de Santo Agostinho nas Índias Orientais. In: HARTAMANN, A. The Augustinians in golden Goa: according

to a manuscript by Felix de Jesus, O.S.A.. Analecta Augustiniana, vol. 30, 1967 (pp. 5-174), p. 22.

27 Alvará de 18 de fevereiro de 1576. Documento 887. In: RIVARA, J.H. da Cunha. Archivo Portuguez Oriental. Fascículo 6, Suplementos Primeiro &

Segundo. Nova Deli/Madras: Asian Educational Services, 1992, p. 713.

28 Acerca de Simão de Morais, vejam-se: ALONSO, Carlos. El P. Simón de Moraes, OSA (+1585) pionero en Persia. Analecta Augustiniana. 42, 1979

(pp. 345-372); LOPEZ, Teofilo Aparicio, OSA. La orden de San Agustin en la India (1572-1622). Valadolid: Ed. Monte Casino, 1977, pp. 383-396.

416
de conversão ao catolicismo do Xá Khodabandeh, após a cura de uma doença
associada à intervenção da virgem, disseminados pelo armênio João Baptista,
enviado por embaixador pelo vice-rei de Nápoles (1575-79), D. Iñigo López
Hurtado de Mendoza.29 Uma esposa do Xá era uma cristã da Georgia e o in-
troduzira ao culto da virgem. Mulheres georgianas nos haréns dos soberanos
safávidas foram frequentes e estreitaram a proximidade entre o islamismo xiita
iraniano e o cristianismo não calcedônio. Assim como a Igreja Armênia, a da
Georgia fora alvo da ação papalina de redução à subserviência de Roma, um
dos eixos da futura política eclesiástica conduzida pelo arcebispo de Goa D. Frei
Aleixo de Meneses (1595-1610).30
Segundo Relación, relato atribuído a José Judeu, um morador de Ormuz,
Simão de Moraes, durante o trajeto para a província de Corasan31, onde se en-
contrava o Xá, escrevera cartas ao Papa Gregório XIII e ao monarca ibérico, com
data de 20 de outubro de 1582. José Judeu informou que fora o mensageiro das
missivas e explicitou como o agostinho instruíra o rei católico a prosseguir na
guerra ao soberano turco:

E me disse frey Simão que advertisse V.M. que houvesse de


fazer ao turco por o estreito de Meca, porque eso mismo
faria por o Estado da India por as grandes rendas que o
Turco tem en Meca das naves que van do Aquen, de Cam-
baya e de diferentes partes, e estas naos levan a madeira
com que os Turcos fazen as galeras e passão muito pimen-
ta e drogas, o que comprindo esta guerra tanto ao estado
con ela se satisfará el Sophi.32

Conforme menciona Carlos Alonso, frei Simão de Moraes, na carta em la-


tim ao Papa, pedira ao pontífice que articulasse uma liga antiturca com os prín-
cipes cristãos, frente à disposição favorável do soberano safávida. Uma vez no

29 Cf. ALONSO, Carlos. El P. Simón de Moraes, OSA (†1595) pionero en Persia. Analecta Augustiniana, 47, 1979, (343-372).

30 Sobre o arcebispado de Aleixo de Meneses em Goa, vejam-se os seguintes estudos: PINTO, Carla Alferes. Notas para o estudo do mecenato de D.

Frei Aleixo de Meneses: os recolhimentos da Misericórdia de Goa. Anais de História de Além-Mar. Vol. VII, 2006; GOMES, João M. D. Frei Aleixo

de Meneses. Goa – Braga: Trajecto de uma Missão. Theologica, II série, vol. XLI, fac. 2, 2006, pp. 370-371. GONÇALVES, Margareth de Almeida, A

edificação da Cristandade, op.cit.

31 Refere-se à denominação da antiga província persa, de grafia variada, Coração, Khorasan.

32 “Relación de José Judeo sobre su viaje de Persia a Europa y sobre el viajo del P. Moraes a Persia. Situación política en aquellas regiones.” In: ALONSO,

Carlos. Nueva documentación inédita sobre las misiones agustinianas en India y Persia (1571-1609). Analecta Augustiniana. 33, 1970, pp. 318, 321.

417
Irã, consta que Moraes foi recebido pelo Xá Khodabandeh e o príncipe herdeiro
Hamza Mirza. Na construção de uma memória edificante de virtude e erudição,
a crônica de frei Felix de Jesus assinalou que Simão de Moraes, conhecedor da
língua persa, ministrara aulas de “matemática esphera” ao príncipe, figura de
trágico destino, com seu assassinato nas disputas e guerras, culminando com a
ascensão ao trono de seu irmão, o futuro Abbas I, em 16 de outubro de 1587.33
Frei Simão de Moraes partiu da corte safávida com cartas para Filipe I de
Portugal acompanhado do embaixador do Xá. No caminho ao reino por Goa,
em abril de 1584, recebeu a nomeação de vicário provincial dos agostinhos no
oriente. Em torno do final do ano, partiu com o embaixador persa para Co-
chim, onde embarcou para Lisboa na nau Boaviagem, que naufragou e desapa-
receu no percurso.
De acordo com Carlos Alonso, a proposta de frei Simão de Moraes de uma
aliança euro-persiana de 1583 não obteve ressonância, face à trégua firmada en-
tre o Prudente e a Sublime Porta. Seja como for, cabe atentar no personagem de
frei Simão de Moraes na projeção de uma memória fundante do religioso-em-
baixador na Congregação da Índia Oriental, um intermediário entre ocidente e
oriente, uma posição na corte safávida reivindicada pelos agostinhos em novas
ações na primeira década no século vindouro no reinado de Xá Abbas I. As
ações diplomáticas emergiram por oportunas ao proselitismo católico na ferti-
lização dos campos estéreis de pasto espiritual na conversão de almas perdidas
e na redução da cristandade das igrejas orientais ao papado. Nos anos finais do
quinhentos e primeiros da centúria seguinte, Ispahan transformou-se no eixo
das ações diplomáticas de ocidente a oriente, disputadas entre agentes do im-
pério safávida, papado, Veneza, Espanha, Áustria, Polônia, Moscou, religiosos,
leigos, aventureiros.
Na compulsão da frente contra os otomanos, em 1596, Filipe I de Portugal
instruiu o vice-rei D. Francisco da Gama, conde da Vidigueira, a enviar um em-
baixador ao soberano persa, pessoa de qualidades de “fidalgo”, como fora envia-
do Miguel d`Abreu de Lima, em 1572, por D. Sebastião.

33 Essa informação é repetida ainda na introdução de Scheger à edição do manuscrito do frade capuchinho Raphaël du Mans (1613-1696). SCHEFER,

Ch.. Estat de la Perse en 1660. (notes e appendice par Ch. Scheger). Paris: Ernest Leroux, éditeur, 1890, p. XIII. Mans foi superior da missão capuchinha

de Isfahan. Registre-se que os capuchinhos, enviados pela Congregação da Propaganda Fide de Roma, chegaram a Isfahan em 1628. A edição da obra de

Mans deve ser compreendida no âmbito do orientalismo francês no século XIX – a “École des langues orientales vivantes” foi fundada por um decreto

do governo da convenção, através da iniciativa de Louis Mathieu Langlès, em 1895. Entre as línguas estudadas constou inicialmente o persa.

418
Por seu turno, frei Nicolau de Melo, religioso agostinho, servindo nas Filipi-
nas, no caminho por terra a Roma, em serviço de representação da província da
ordem no Pacífico espanhol, com passagem por Goa, esteve em Isfahan. O frade
agostinho teve por companheiro de viagem Afonso Cordeiro, padre custódio,
que seguia igualmente para a cidade eterna. O agostinho, no encontro com Xá
Abbas, inflou o ânimo do monarca na guerra contra os turcos. Aproveitou o en-
sejo e demonstrou preocupação da ausência de religiosos católicos nos domínios
safávidas, já presentes, advertira, entre os turcos e na corte mogol. Segundo Gul-
benkian, frei Nicolau de Melo dera início à fixação de missionários agostinhos
em Ispahan.34 Foi porém na atuação articulada de D. Frei Agostinho de Jesus,
arcebispo de Braga (1588-1609), e D. Frei Aleixo de Meneses, arcebispo de Goa
(1595-1612), que foram enviados os padres eremitas de Santo Agostinho ao iní-
cio do seiscentos. Ambos os antístites reverteram em êxito o projeto de inscre-
verem os eremitas de Santo Agostinho no tabuleiro diplomático de aproximação
entre Filipe II de Portugal35 e o soberano iraniano.
O período da União Dinástica fomentou o enraizamento da ordem dos ere-
mitas de Santo Agostinho da Província de Portugal nos espaços do Índico. Assi-
nale-se, no exemplo dos agostinhos, as composições políticas do novo soberano
filipino com as hierarquias eclesiásticas e as antigas redes clientelares de nobreza
palaciana na sustentação da legitimidade da sucessão dinástica.36
Ademais, ao final do quinhentos, chegaram a Isfahan os irmãos Anthony e
Robert Sherley, célebres aventureiros e prestadores de serviços no complexo jogo
diplomático safávida-habsburgo.37 Anthony Sherley foi designado por Xá Abbas
para integrar uma embaixada persa com Husein Ali Beg a cortes europeias. A
numerosa delegação de 25 pessoas incluiu, entre os secretários de Husein Ali
Beg, o muçulmano Uruch Beg, o futuro Don Juan de Persia, nome cristão após
o batismo em Valadolid, autor de Relationes – no formato de diário de viagem
com a parte do terceiro livro dedicada ao relato da jornada desde Isfahan às re-

34 GULBENKIAN, Roberto. Estudos históricos, op.cit. p. 25.

35 Daqui parra a frente, passarei a utilizar a denominação portuguesa do monarca, Filipe II, e não a espanhola Filipe III.

36 GONÇALVES, Margareth de Almeida, A edificação da cristandade no oriente português. Op. cit.

37 Vejam-se FERNÁNDEZ, Luis Gil. Op.cit., pp. 79-253;___. El imperio luso-español y la Persia Safávida. Tomo II (1606-1622). Madrid: Fundación

Universitaria Española, 2009, pp. 121-169.

419
giões europeias –, o padre agostinho Nicolau de Melo38 e o franciscano Alfonso
Cordeiro. Em 1599, a embaixada partira munida de cartas para o papa, o impe-
rador Rodolfo II (r.1576-1611), os reis da França, Espanha, Escócia, Polônia, a
rainha da Inglaterra, o segundo conde de Essex – Robert Devereux (1565-1601),
antigo patrono de Anthony Sherley – Senhoria de Veneza e o duque de Florença.
O jovem Sherley, Robert, permaneceu em Isfaham por refém, uma garantia da
fidelidade do irmão ao monarca safávida. Entretanto, também o papa Clemente
VIII (1592-1605) endereçou uma embaixada ao soberano safávida, formada por
um militar de Portugal, Diogo de Miranda, e Francisco da Costa (c. 1563-1609),
nascido em Goa, religioso afastado da Companhia de Jesus.39 Um cenário di-
plomático de trocas copiosas, também assinalado por aventureiros de lealdades
incertas, exibiu competições por alianças entre monarquias de oeste a leste, na
proeminência notável de Xá Abbas.
No início do século XVII, no panorama das articulações políticas envolven-
do Roma e Madri, um novo grupo de agostinhos chegou a Isfahan. Frei Jerônimo
da Cruz, o ancião da tríade, com mais de 60 anos, frei Cristovão do Espírito San-
to40 e frei Antônio de Gouveia, religioso de projeção, nome vinculado à edição
posterior de duas obras influentes na divulgação europeia da missionação agosti-
niana no Índico durante o arcebispado de Aleixo de Meneses, em 1609 e 1611 res-

38 Roberto Gulbenkian acrescenta a denúncia de espionagem sobre o padre Nicolau de Melo, na passagem do grupo por Moscou, atribuída a Roberto

Sherley, ocasionando a prisão do agostinho e, posteriormente, sua morte. GULBENKIAN, Roberto. Estudos históricos. Op. cit, p. 26. Como também, nas

crônicas agostinianas avultam os relatos hagiográficos sobre o martírio do agostinho espanhol.

39 As peripécias e o desentendimento entre a dupla diplomática do pontífice comprometeram os resultados de negociação junto à corte safávida. Veja-se

além de GULBENKIAN, Roberto. Estudos históricos. Op. cit, p. 28; CHICK, H.. Op. cit, vol. I, pp. 90-92.

40 Entre os três religiosos, frei Cristovão do Espírito Santo, de origem no reino de Toledo, foi o primeiro a desembarcar em Goa, em 1595, junto com o

novo arcebispo Aleixo de Meneses, de quem foi confessor. Recebera profissão no Convento da Graça de Lisboa, em 16 de junho de 1591. Foi o primeiro

prior do convento de Isfahan, fundado no decurso dessa embaixada ao soberano safávida. Ocupou posições variadas na Congregação da Índia Oriental e

faleceu em 30 de junho de 1631, durante o percurso de uma segunda viagem à Pérsia. Frei Jerônimo da Cruz, por seu turno, nasceu em Pombal e professou

no convento da Graça de Lisboa em 1 de maio de 1557. Foi prior de diversas casas no reino. Embarcou para a Índia, em 1597, já com uma idade de mais

de 60 anos.. Nas crônicas agostinianas, Frei Jerônimo da Cruz é reconhecido pelas virtudes de observância religiosa, a prática de exercícios espirituais e

oração. Faleceu em Ormuz a 5 de março de 1607. E, por fim, Antônio de Gouveia nasceu em Beja na região do Alentejo, professou no convento da Graça

de Lisboa, em 4 de junho de 1591. Foi bispo de Cirene e visitador apostólico da Pérsia, nomeado pelo breve “Apostolatus officium” de 19 de agosto de 1611

e consagrado no convento de Lisboa em 28 de dezembro de 1612. O grupo partiu de Goa a 15 de fevereiro de 1602 Cf. AVE MARIA, Manuel de. Manual

Eremítico da Congregação da Índia Oriental dos Eremitas de N.P.S. Agostinho de transcrito em REGO, António da Silva. Documentação para a História

das Missões do Padroado Português do Oriente. Índia. Vol. XI. Lisboa, Fundação Oriente/Comissão Nacional para as Comemorações dos Descobrimentos

Portugueses, 1996, pp. 249-250; 253, 254, respectivamente. As datas de profissão religiosas foram consultadas em ALONSO, Carlos. “Las profesiones

religiosas en la Provincia de Portugal durante el período 1513-1631”, en Analecta Augustiniana 48 (331-389), 1985, pp. 339, 355.

420
pectivamente.41 Ambas as publicações incluíram relatos das ações diplomáticas
de Roma e Madri junto ao soberano safávida, como também do movimento dos
agostinhos de Goa nas tentativas de imposição da cristandade latina a popula-
ções no eixo do Índico e do Cáucaso. Em 1602, ano da viagem dos três agosti-
nhos em direção a Isfahan42, sucedeu a captura de Bahrein pelos safávidas 43, um
arquipélago dependente de Ormuz, como ainda de pontos variados da costa da
entrada do golfo pérsico, na circunferência de Ormuz, na ocupação da ilha de
Bandel de Comarão, reservatório de água e suprimentos, que, após a conquista
safávida de 1615, recebeu identificação através do topônimo Bandar Abbas. É de
assinalar a estratégia de Abbas na combinação da expansão territorial de cunho
militar e a atuação diplomática junto aos interlocutores europeus. Um quadro de
jogadores com interesses diversos apresentou complexidades múltiplas em que
o soberano safávida demonstrara habilidade e perspicácia nos usos variados das
fraturas religiosas e políticas dos agentes católicos.
Na capital Isfahan, os agostinhos receberam uma casa no bairro de Ho-
seyniye, localizado do lado oposto ao palácio imperial. Mais tarde, no ano de
1619, os agostinhos receberam autorização de eregir igreja no espaço que pas-
saram a habitar no palácio real.44 Segundo o cronista frei Félix de Jesus, na pri-

41 Jornada do Arcebispo de Goa Dom Frey Aleixo de Meneses Primaz da India Oriental Religioso da Ordem de S. Agostinho. Quando foy as Serras de

Malawar & lugares en que morão os antigos Christãos de S. Thome, & os tirou de muytos erros, & heresias em que estavão, & reduziu a nossa Fe Catholica

& obediencia de Santa Igreja romana da qual passava de mil annos que estavão apartados, recopilada de diversos tratados de pessoas de autoridade que a

tudo foram presentes. Coimbra : officina de Diogo Gomez Loureyro, 1606; e de Relaçam, em que se tratam as guerras e grandes victorias que alcançou o

grãde Rey Xá abbas do grão Turco Mahometto, & e seu filho Amethe: as quais resultarão das Embaixadas, q por mandado da Catholica & Real Magestade

del Rey D. Felippe Segundo de Portugal fizerão algus Religiosos da ordem dos Eremitas de S. Augustinho a Persia. Pedro Crasbeeck, 1611. Sobre Antônio

de Gouveia, consulte-se ALONSO, Carlos. Antonio de Gouvea, O.S.A., diplomático y visitador apostólico en Persia (+1628), Valladolid, Ed. Estudio

Agustiniano, 2000, (229 páginas). A primeira obra recebeu uma tradução em francês no ano de 1609 e a segunda em 1646. Para uma análise de sua

atuação veja-se LOUREIRO, Rui Manuel. The persian ventures of fr. António de Gouveia. In: MATTHEE, Rudi, FLORES, Jorge. Acta Iranica. Portugal,

the persian gulf and safavid Persia. Louvain: Peeters, 2011, pp. 250-264.

42 Os três religiosos chegaram a Isfahan em 10 de novembro de 1602. Cf. GULBENKIAN, Roberto, Estudos históricos. Op. cit, p. 33.

43 Segundo William Floor, a tomada de Bahrein foi uma consequência da incorporação de Lar ao reino safávida em 1601, passando parte do litoral do

Golfo Pérsico ao seu controle: “This new political reality left its impact on relationships in the Persian Gulf littoral and the islands such as Bahrain, which

was now within easy reach”. FLOOR, William. Op. cit, p. 202.

44 Do lançamento da pedra fundacional da igreja no palácio real participaram o bispo armênio e os principais religiosos muçulmanos da corte. A

construção estendeu-se por dois anos – finalizada praticamente no limiar da perda de Ormuz, em 1622 – e recebeu doações de um comerciante de Goa,

de nome Jacome de Couto e a herança do irmão da ordem padre Bernardo de Azevedo, como também fizeram um empréstimo de um comerciante

holandês, integralizando parte significativa dos recursos para sua finalização, o que correspondeu a aproximadamente 40% do valor da obra. GUL-

BENKIAN, Roberto. Estudos históricos. Op. cit, p. 34.

421
meira edificação de 1603 foi erguida uma igreja, dedicada a Nossa Senhora da
Assunção, “não muito grande”, “pobremente ornamentada”, porém com “con-
serto e limpeza”, um local de devoção onde a cruz era publicamente adorada. A
narrativa destaca a beleza da cidade-corte metrópole da Pérsia, do frescor, da
exuberância dos jardins de variedade de bonitas e odoríferas floras. De fato, a
escrita de Félix de Jesus é entusiástica de Xá Abbas nas expectativas no plano po-
lítico – conquista de um virtual aliado de Filipe II, do imperador Rodolfo II e de
Roma nas guerras anti-turcas – e, no programa religioso, de ampliação do pasto
espiritual através do oriente. Nas palavras atribuídas pelo cronista a frei Antonio
de Gouveia, as atuações diplomática e missionária agostinhas almejaram inte-
grar as motivações temporal e espiritual: “o principal intento... era ensinar aos
gentios, e idolatras o conhecimento do verdadeiro Deus e justamente dilatar o
império de seu Rei”. O jogo metafórico da expressão “vencedores do mar e do
tempo” atribuída na escrita aos elogios de Abbas aos portugueses, pressupôs o
heroísmo da longa distância de oeste a leste, da Europa à Ásia.45
No recurso às qualidades físicas de Abbas, Félix de Jesus aliou a potencia
física do vigor à glória das armas:

Era nesse tempo de idade de trinta e dois anos de peque-


na estatura, de alegre rosto robusto nas forças, fácil na
conversação, amável a todos ainda pequenos sobre modo
temido e reverenciado dos grandes, no comer sobejo, no
beber demasiado mas o costume de beber o tem posto em
estado que por mais que beba não perde o sizo o qual ele
tem muito claro. É de poucas palavras, muito amigo da
Justiça suas glórias tem posto nas armas não deseja outra
fama se não a que por elas alcançar.46

No âmbito do universo da crônica, avulta a receptividade do monarca aos


religiosos no ambiente favorável às disputas em torno da doutrina cristã, com de-
monstrações performativas de gestos da devoção à cruz, disseminando a expec-
tativa de conversão do soberano persa. O apoio do soberano safávida à aceitação

45 JESUS, Frei Felix de. Chronica Ordem de Santo Agostinho. Op. cit, p. 90.

46 JESUS, Frei Felix de. Chronica Ordem de Santo Agostinho. Op. cit, p. 89, grifos meus.

422
do proselitismo católico fora disseminado por variados interlocutores europeus,
como entre os desastrados embaixadores do papa Clemente VIII, acima assina-
lados. As discussões filosóficas e teológicas integraram o ambiente intelectual do
reinado de Xá Abbas, como na projeção de uma filosofia com ênfase na gnose e
o misticismo, na vertente desenvolvida por Mir Damad (m. 1632), retomando o
legado de Ibn Sina (ca. 980-1037), Avicene, na recuperação de Aristóteles e do
neoplatonismo. 47 Certamente, um ponto de encontro nas digressões teológicas
dos agostinhos, em que a espiritualidade era atravessada por questões ontológi-
cas da emanação da presença divina.
As preleções teológicas e de doutrina cristãs no palco da corte safávida, na
intensa interlocução com Abbas reatualizara antigas expectativas de conversão
e do alargamento do cristianismo. Os presentes enviados pelo arcebispo de Goa
D. Frei Aleixo de Meneses sedimentavam a perspectiva de um soberano cristão:
um livro “riquisimamente encadernado” da vida de Jesus e alguns retábulos, um
estímulo ao aprendizado das “coisas da cristandade”.48 Porém, batia à consciência
de Antônio de Gouveia o quadro inquietante das tensões políticas, progressiva-
mente agravadas pelo fracasso das missões diplomáticas na definição de ações
conjuntas nos conflitos com o Império Otomano. Por sua vez, crescia o desapon-
tamento de Xá Abbas com a ausência de iniciativa dos monarcas católicos em
investir na guerra com a Sublime Porta.

3- Frei Diogo de Santa Anna: os armênios e “lágrimas de sangue”

Um novo embaixador, Luis Pereira de Lacerda, enviado por Filipe II à corte


de Abbas (1604-5), recebeu o acréscimo de três agostinhos – padres Belchior

47 Veja-se CORBIN, Henry e o que designa por Escola de Filosogia de Isfahan, em torno do renascimento cultural no reinado de Xá Abbas.

48 JESUS, Frei Felix de. Chronica Ordem de Santo Agostinho. Op. cit, p. 90.

423
dos Anjos, Guilherme de Santo Agostinho49 e Diogo de Santa Anna50. Segundo
a crônica de Felix de Jesus, o grupo partiu de Goa a 14 de fevereiro de 1604.51
Entre os objetivos da missão diplomática avultam as orientações de negociação
pela recuperação de Bahrein e o intento de firmar acordos no enfrentamento
da guerra com os otomanos. Assim, como na missão anterior dos agostinhos,
Lacerda foi ao encontro de Xá Abbas no campo de batalha, na distante provín-
cia de Erzurum, na Turquia, uma região de disputa entre os domínios safávidas
e a Sublime Porta, na proximidade de áreas então ocupadas por populações
armênias52, na tenaz guerra safávida-otomana. Recebeu a companhia dos pa-
dres Belchior dos Anjos e Guilherme de Santo Agostinho, uma vez que Diogo
de Santa Anna, como previsto, permaneceu no convento de Isfahan. Embo-
ra Pereira de Lacerda recebesse acolhida com honras de ilustre mensageiro de
missiva de Filipe II, na habitual cerimônia faustosa de legações estrangeiras, Xá
Abbas retirara-se logo em seguida. Os agentes diplomáticos portugueses foram
deslocados a Qazvin, cidade ao norte do atual Irã. Por cinco meses, Lacerda
permaneceu sitiado na cidade, sem uma resposta à embaixada. Numa segunda
tentativa de visita ao monarca safávida, Belchior dos Anjos foi o porta voz, diri-
49 Frei Guilherme de Santo Agostinho professou na Índia, onde chegou como irmão no ano de 1599. Foi pregador e confessor do convento de Isfahan.

Segundo as crônicas agostinhas foi martirizado em Nagungue por ordem de Xá Abbas em 5 de janeiro de 1612. Já frei Belchior dos Anjos, natural de

Lisboa, seguiu para o oriente em 1586, com idade em torno de 25 anos. A partir de 1604, seu nome esteve relacionado à atuação no Irã. Foi nomeado

pregador régio por Filipe IV de Espanha, em 1643. Ver REGO. António da Silva. Documentação para a História das Missões do Padroado Português do

Oriente. Índia. Vol. XI, op.cit., pp. 259, 253, respectivamente.

50 Frei Diogo de Santa Anna atuou e fez carreira nos espaços portugueses da Ásia à época da monarquia dos Áustria. Em seus escritos, indica ter nascido

no ano de 1571, no local de Vila Franca de Lampassas, aldeia ao norte de Portugal, próxima a Bragança, na região de Trás-os-Montes. Estudou no colégio

da Companhia de Jesus de Bragança, frequentou a Faculdade de Cânones da Universidade de Salamanca ao final da década de 1580 e início da seguinte,

embora não tenha concluído. A formação em teologia e doutrina cristã foram realizadas já no Estado da Índia, entre Taná e Goa. Chegou à ribeira de

Goa em 1595 na mesma armada que conduziu o arcebispo de Goa Dom Frei Aleixo de Meneses. Permaneceu na parte oriental do Reino de Portugal até

sua morte, em 6 de outubro de 1644. Teve a projeção de seu nome vinculada à função de administrador do convento de Santa Mônica de Goa, posição

que exerceu por mais de três décadas. Santa Anna acumulou, ainda, cargos em instituições agostinhas. Foi também deputado da Inquisição de Goa

e da mesa de segunda instância de todas as ordens militares no Estado da Índia. Cf. GONÇALVES, Margareth de Almeida. Doutrina cristã, práticas

corporais e freiras na Índia portuguesa: o mosteiro de Santa Mônica de Goa na alta idade moderna. In: MEGA, Marta; SEDREZ, Lise; MARTINS,

William S. (coords.). Corpo: sujeito e objeto. Rio de Janeiro: Ponteio Edições, 2012.

51 JESUS, Frei Felix de. Chronica Ordem de Santo Agostinho. Op. cit, p. 111.

52 Os três agostinhos partiram de Ormuz em direção à Isfahan em 22 de abril de 1604. Na chegada à capital iraniana, Luis Pereira de Lacenda, frei

Belchior dos Anjos e frei Guilherme de Santo Agostinho continuaram em direção ao campo de batalha de Xá Abbas, chegando em 10 de outubro.

Sobre a embaixada vejam-se: GULBENKIAN. Op. cit, pp. 40-48, FLOOR. Op. cit, pp. 207, 208; FERNÁNDEZ, Luis Gil. Op. cit, tomo I, pp. 288-295. Na

atuação dos agostinhos com as populações armênias remeto ao relevante estudo de FLANNERY, John M.. Op. cit, pp. 111-147 (capítulo 6, “Augustinian

contacts with Armenian christianity”).

424
giu-se a Tabriz, onde estava Xá Abbas. Chegou após 11 dias de caminhada, em
21 de maço de 1605. Segundo Luis Gil, Belchior foi o “verdadeiro negociador”
de uma resposta à embaixada.53 Luis Pereira de Lacerda, juntamente com os
religiosos agostinhos Belchior e Guilherme, retornou a Goa em 28 de dezembro
de 1605. Foram acompanhados de Pakize Imán Qoli Beg, mais um embaixador
enviado de Xá Abbas a Felipe II.
A embaixada do antigo capitão de Goa, Luis Pereira de Lacerda, configurou
mais uma ação de fracasso: diminuta delegação e presentes insignificantes à po-
sição do soberano persa, ignorando a dimensão cerimonial da dádiva no Irã. O
contexto tenso das crescentes investidas safávidas na disputa de posições ocupa-
das por Portugal à entrada do golfo pérsico, como no caso de Bahrein, tendiam
a esgarçar a atuação diplomática, agravada, na percepção de Xá Abbas, pelos
interlocutores de proselitismo religioso católico.
A linha de frente da guerra persa-otomana, contemporânea à embaixa-
da de Luis Pereira de Lacerda, ocupou o território de populações armênias.
A estratégia bélica conduzida por Xá Abbas, assentada no deslocamento dos
habitantes, largou para trás cidades saqueadas e incendiadas. As populações ar-
mênias expulsas iniciaram a diáspora a partir de junho de 1604. Nos arredores
de Isfahan foi construída a cidade nova Julfá para abrigar parte da população
armênia transmigrada, incluindo os ricos mercadores da antiga Julfá. Com tin-
tas de maior ou menor intensidade, sobressai nas crônicas agostinhas, o cenário
desolador do êxodo de comunidades inteiras de armênios. Terras arrasadas e
cabeças de combatentes turcos integraram os triunfos de guerra das vitórias
safávidas. No início do livro três de Relaçam, em que se tratam as guerras e
grandes victorias que alcançou o grãde Rey Xá abbas do grão Turco Mahometto,
frei Antônio de Gouveia relata a transmigração dos armênios da região ao sul
do Cáucaso, das cidade de Ierevan e Julfá. No diapasão da narrativa, Gouveia
demonstra comiseração pelo atroz drama armênio:

53 FERNÁNDEZ, Luis Gil. Op. cit, tomo II, p. 223.

425
De propósito deixei para este lugar a relação dos trabalhos
que os Armênios padeceram nesta guerra que o Xá teve
com o Turco, e de sua miserável transmigração; assim por-
que ficando toda a história junta fosse melhor entendida,
como porque me ficasse ocasião de contar mais por extenso
as misérias que esta afligida, e perseguida gente padeceu,
pretendendo com a multidão de seus males mover a com-
paixão alguns dos que os lerem esperando poderem chegar
a algumas mãos de que lhe possa vir remedio, ou ao menos
peçam a deus nosso Senhor com instância o dê a gente tão
necessitada, assim no temporal, como no espiritual (…).54

Na atuação agostiniana no Irã prevaleceram dois motivos: um temporal, vin-


culado à estratégia europeia de aproximação pela aliança safávida na liga anti-tur-
ca, como também na conjuntura das embaixadas de Filipe II de recuperação de
Bahrein. No plano religioso, os agostinhos animaram o sonho de conversão de Xá
Abbas e o seu apoio na condução da latinização da Igreja Armênia. Na percep-
ção dos agostinhos, na primeira década do seiscentos, o desastre fora anunciado.
O renitente clamor, eivado de teimosia civilizadora católica, foi tecido em uma
longa missiva ao Papa Paulo V. A carta foi redigida de Isfahan, em 3 de dezembro
de 1607, por frei Diogo de Santa Anna. Eram passados seis meses da realização
no convento agostinho de Isfahan da cerimônia de submissão do patriarca David
IV (1587-1627), e parte do clero armênio, ao papa em Roma, um momento de
êxito da missão agostinha. Na verdade, a missiva expressou o desalento frente ao
movimento frustrado de acordo com o clero armênio de Isfahan frente a dissi-
dências internas da Igreja Armênia e à ausência de apoio de Xá Abbas.
Entretanto, em carta dirigida a Paulo V, no calor do êxito do ato de submis-
são do patriarca David IV, selado ao término de maio de 1607, frei Diogo de San-
ta Anna relatou o “abandono” e a “pobreza” dos armênios desterrados, de mães,
atravessadas pela fome, consumido os próprios filhos – ud nonnullae matres pro-
pios filios, male suadente fame. Buscavam alívio junto ao convento, acrescenta
frei Diogo. Predisse que os sofrimentos eram castigos de Deus aos armênios por
resistirem “perfidamente” à devida obediência ao Pontífice Romano. Em segui-

54 GOUVEIA (1611). Op. cit, p. 135, grifos meus.

426
da, comentou do êxito do ato submissão dos armênios à chancela romana:

Quanto a isso, começam a confessar-se e reconhecem sua


culpa, pois, no último mês de maio, ano de 1607 de nossa
salvação, o patriarca deles com seis outros bispos e mais de
duzentos sacerdotes e gente importante do povo chegaram
ao nosso convento e aí, diante de todos nós – Frei Jerônimo
da Cruz, Frei Bernardo de Azevedo, Frei Cristóvão do Espí-
rito Santo, Frei André da Mãe de Deus, e de mim próprio e
de outros fiéis de diversas nações, diante de um cisma que se
apressava em acabar com a missa, prometeu, por juramento,
obediência a ti, Santidade, e aos teus sucessores, escreveu a
promessa e assinou o escrito com seu anel, o que os outros
bispos e sacerdotes prometeram da mesma forma.55

Na missiva de 3 de dezembro, frei Diogo relatou ao papa a decisão da viagem


de Isfahan para o norte, rumo à região da cidade de Chamakhi (Shamakhi) –
atualmente no Azerbaijão – onde se encontrava o Xá. Frei Bernardo de Azevedo,
conhecedor da língua persa segundo Santa Anna, integrou a pequena comitiva
dos dois agostinhos, determinada a obter o apoio de Xá Abbas junto aos armê-
nios na condução à obediência ao pontífice romano. Partiram em julho de 1607,
percorreram vilas e regiões na linha de guerras, áreas entre o mar cáspio e o mar
negro, que, na atualidade, fazem parte dos territórios do Irã, Turquia, Armênia
e Azerbaijão. Valendo-se do alvará com poderes de representação concedidos
aos religiosos do convento de Isfahan pelo arcebispo D. Frei Aleixo de Meneses,
Santa Anna comentou da decisão de envio de uma carta-petição ao soberano
safávida em nome do antístite. Rogou, no abuso da narrativa propositalmente
adulativa, três mercês, todas relacionadas à questão dos armênios:

55 [Grifos meus] A tradução do texto em latim foi realizada por Abner Chiquieri. “Quod et fateri incipiunt et culpam suam recognoscunt, nam mense

maio praeterito, anno salutis nostrae 1607, ipsorum patriarca cum sex aliis episcopis et plus quam ducentis sacerdotibus et populi primatibus, nostrum

conventum devenerunt ibique coram omnibus nobis: Fratre Hieronymo de Cruce, Fratre Bernardo de Azevedo, Frate Christoforo de Spiritu sancto,

Frate Andrea Matris Dei, meque ipso missam pro delendo shismate celerante, aliis (que) diversarum nationum fidelibus, obedientiam tibi, Sanctissimo

Patri, et successoribus tuis iureiurando promisit, promissan scripsit, scriptam suo signavit anulo; quam eamdem reliqui episcopi et sacerdotes eodem

ordine promiserunt.” A transcrição da carta em latim encontra-se em ALONSO, Carlos. Cuatro cartas relacionadas con el ato de sumisión del patriarca

armenio David IV al Papa Paulo V (1607). In: Estudos em homenagem a João Francisco Marques. vol. I, (pp. 69-81). Porto: Faculdade de Letras da

Universidade do Porto, 2001, pp. 76-77.

427
Primeiro, que fizesse com que os Mouros, seus Vassalos, li-
bertassem os cristãos Armênios que foram feitos escravos
por eles. – 2º Que seus Vassalos Armênios reconhecessem
Vossa Santidade como seu Chefe e Vicário de Cristo, Nos-
so Senhor, em toda sua Igreja. – 3º Que nos desse um sítio
entre os Armênios de Julfahis para fabricarmos uma Igreja,
mosteiro e colégio, assim como o Arcebispo me escreveu
que queria fazer. Pelo resto foram palavras de bajulação
para induzi-lo a conceder-nos o que desejávamos, confor-
me a nota do Arcebispo.56

A estrutura epistolar circunscreveu-se ao repertório das preceptivas retóricas


na tradição da ars dictaminis. No exórdio atentou às disposições de humildade da
salutatio, em que diferenciou o autor e o destinatário elevado do pontífice. A carta
de 3 de dezembro ressaltou a condição de prelado, embora indigno, na obrigação
de informar acerca da cristandade. Ao final, assinou por súdito do papa. Dividiu
a argumentação em dez partes com os subtítulos com proeminência de questões
em torno dos armênios: do que toca o serviço de Deus acerca dos apóstatas; do
que toca o serviço de Nosso senhor acerca dos armênios; sobre as consideráveis
controvérsias acontecidas com o povo armênio que se encontra na Pérsia; como
fui visitar este rei Xá; sobre a negócio com o rei Xá; como tratei de ir embora com
o patriarca Melchisedech chefe desta gente armênia; dos armênios chamados de
francos; sobre a volta de Tabriz para este convento; dos remédios que pertencem
à parte de Vossa Santidade; das vitórias deste rei Xá Abbas contra o turco.57
A disposição da carta, como os títulos das partes demonstram, desdobrou
argumentos em torno dos obstáculos e resistências das lideranças da Igreja Ar-
mênia ao submetimento a Roma. Na descrição das condições de vida dos armê-

56 Para as traduções em português do texto em italiano desta citação, e das demais abaixo, recebi o auxílio de Myriam de Philippis. [Prima. Che facesse

che li Mori, suoi Vassalli, liberassero li christiani Armeni ch’erano stati fatti schiavi da loro – 2a Che li suoi Vassalli Armeni riconoscessero Vra. Santità

per loro Capo e Vicario di Christo, Nosso Signore, in ttuta la sua Chiesa. – 3a Che ci desse sito tra gl’Armeni di Julfahis per fabricarvi una chiesa,

monastero e collegio, sicome l’Arcivercovo mi havera scritto ch’elgi voleva fare.] ALONSO, 1961. Op. cit, p. 175, grifos meus.

57 [Di quell che tocca al servitio di Dio nelg’Apostati (p. 164); Di quell che tocca al servitio de Nro. Signore nelli Armeni (p. 165); Delle notabili

controversie sucdesse nel popolo Armeno che si trova in Persia (p. 166); Come fui a visitare questo re Xaa (p. 173); Del negotiato col Re Xaa (p. 175);

Como trattai d’andarmene col Patriarca Melchisedech Capo di questa gente Armena (p. 177); Delli Armeni che chiamano franchi (p. 179); Del ritorno

da Tabriz a questo convento (p. 181); Dei rimedi che appartengono per parte di vra. Santità (p. 182); Delle vittorie di questo re Xaa A Bas contra il

Turco ((p. 183)]. Id. Ibid.

428
nios, Santa Anna mencionou a destruição de 60 a 70.000 casas, no “exagero” da
guerra, movida por Xá Abbas aos turcos, dizimando o povo armênio:

calamidade temporal daquele povo e daquela gente, que


por causa da guerra que o Rei Xá moveu contra o turco
pelo lado da Armênia, parece que a ira do senhor desceu
sobre ele, com a maior calamidade que tenha acontecido
nos nossos tempos e talvez no passado sobre um povo que
se define cristão.58

Entre a população armênia foram feitos “escravos infinitos” e mortos


mais de “cem mil almas”, relatou Santa Anna. Na justificativa de nada deixar
ao “turco”, “nem gente nem comida”, interceptando a oportunidade de roubo
e de escravização dos armênios, Xá Abbas ordenou o esvaziamento de cidades.
“Lágrimas de sangue” seriam vertidas da leitura da descrição que fazia, princi-
palmente pelo pontífice, um “pai santo” acrescentou. Recorreu a uma metáfora
performativa de mobilização, uma tópica recorrente, através da polissemia do
termo sangue no imaginário cristão – a cruz e o sangue de Cristo – a narrativa
transborda em sentimento desolador.
A narrativa de dor, sofrimento, miséria e pobreza do povo armênio foi te-
cida por meio de uma cosmologia agostiniana. Noções como as de providência
divina e de soberania do papa sedimentaram uma longa tradição, vicejada no
medievo, no âmbito dos eremitas de Santo Agostinho, provendo formas de per-
cepção de populações nos contextos variados constituídos na alta idade moder-
na no impato da fratura protestante e da mundialização europeia. Ou seja, na
interpretação de Santa Anna, o sofrimento, encapsulado no efeito tropológico
e mobilizador da comovedora tópica “lágrimas de sangue”, esgotou o ensejo de
comiseração, transformando a tragédia armênia em castigo de Deus.
Na estrutura narrativa da missiva, cabe atentar às concepções de monar-
quia cristã universal de fortalecimento do poder papalino. Na época moderna, as
atualizações da via papalina do agostinho Egídio Romano (c.1243-1316), da edi-
ção da obra De ecclesiastica potestate de 1302, desdobraram-se na circulação de
58 [“... calamità temporale di quel popolo e gente, che per causa della guerra che il Re Xaa ha mossa col turco per la parte d’Armenia, pare che l’ira del

Signore sía discesa sopra di lui, con la maggior calamità che sia stata ne i tempi nostri e forse ne i passati in un popolo di nome christiano.”]. Id. Ibid.,

p. 165, grifos meus

429
concepções hierocráticas na ordem dos eremitas de Santo Agostinho. Da mesma
forma, a difusão do legado neoplatônico no renascimento, através da gnose, da
cabala e do misticismo, consistiu em influências disseminadas entre os eremi-
tas por Egídio de Viterbo (1469-1532), provincial geral da ordem (1508-1518),
investido ao cardinalato pelo papa Leão X, em 1517. Assinale-se a reunificação
das igrejas espalhadas da cristandade ao seu horizonte da atuação de Roma.59 A
circulação de acepções hierocráticas na ordem avultou o potencial de fricção na
relação entre os poderes temporal e espiritual, na subordinação da cidade dos
homens à cidade de Deus.60 Uma dimensão política da ordem divina, subor-
dinando o poder temporal, fabricou uma metanarrativa agostinha fortalecida
pelos movimentos de reforma da ordem no século XVI com efeitos irradiadores,
a despeito de singularidades locais, nas diversas províncias. Egídio de Viterbo e
Gerolamo Seripando (1492-1563) foram priores gerais condutores desabridos
da reforma, com medidas de disciplinamento, austeridade e ênfase na ascese, de
irradiação vigorosa nas províncias de Castela e Portugal.61
Por conseguinte, atravessa a escrita de Santa Anna o entendimento do papa por
vicário de Cristo: “Vossa santidade, o único braço sobre a terra, como do verdadeiro
Vigário de Jesus Cristo, que é quem somente pode guiar os outros que se engajam
nesta dificílima empresa”.62 Um sermão de Frei Manoel da Conceição, eremita de
Santo Agostinho e pregador de Filipe II, propagado nas exéquias de D. Frei Aleixo

59 Foi o superior eclesiástico de Lutero no periodo de intensa pressão sobre a ordem dos eremitas de Santo Agostinho. Segundo O’Malley, integrou os

circulos intelectuais de Pádua, Nápoles, Florença e Roma. Foi um discípulo de Marcílio Ficino, tradutor ao latim da obra de Platão. Girolamo Seripando,

visitador da Província de Portugal da ordem no reinado de d. João III e o téólogo agostinho no Concílio de Trento, foi um protegido de Egídio de

Viterbo. Editou estudos de Egídio de Roma. O’MALLEY, John W. Giles of Viterbo: a reformer’s thought on renaissance Rome. Renaissance Quartely,

Vol. 20, n.1, 1967, pp. 1-11. Na proximidade com o papa Júlio II, abriu com um sermão o V Concílio de Latrão (1512-17), antecipador em pontos da

reforma católica retomados por Trento. Nesse discurso, de acordo com Giuseppe Marcocci “apresentou as gestas dos portugueses na Ásia como o sinal

principal do advento da quarta e última idade do ouro sob o pontificado de Júlio II”. MARCOCCI, Giuseppe. A consciência de um império. Portugal e o

seu mundo (sécs. XV-XVII). Coimbra: Imprensa da Universidade de Coimbra, 2012, p. 96.

60 Igualmente atente-se para difusão nos alvores do século XVI de uma metafísica, derivada da estrutura intelectual moldada pelo neo-platonismo e a

cabala, dos significados transcendentes da criação do mundo e da origem divina dos números. As realidades do mundo obtém inteligibilidade através de

protótipos divinos, produzindo uma causalidade divina aos accontecimentos temporais: “Giles interjects the principle that our function, consequently,

is to conform to the divine and not to expect the divine to adjust itself to us.” O’MALLEY. Op. cit,, p. 3.

61 Para uma análise do quadro de reforma da Província de Portugal dos agostinhos e Gerolamo Seripando ver DIAS, José Sebastião da Silva. Correntes

de Sentimento Religioso em Portugal (séculos XVI a XVIII). Vol. I. Coimbra: Universidade de Coimbra, 1960, pp. 120-129; GONÇALVES (2014). Op. cit.

62 [Vra. Santità, il solo braccio della quale sopra la terra, come di vero Vicario di Giesù Christo, è quel che solo può maneggiare gl’altrei che s’impiegano

in questa dificilíssima impresa.] ALONSO, 1961. Op. cit, p. 166.

430
de Meneses no convento de Nossa Senhora da Graça de Lisboa a 6 de junho 1617,
igualmente expressaria a forte tensão entre os poderes temporal e espiritual:

Que mais avia de fazer pois era súdito do sumo pontífice


vigario de Christo N.S. e por outra vassalo de seu rei? Por-
que da fidelidade no serviço de Deus, e zelo de sua honra,
procede à fidelidade e zelo verdadeiro no serviço do Rei: e
assim seguramente digo e afirmo neste lugar, que quem não
guardar fidelidade a Deus, e a sua Lei, não é possível ser fiel
Ministro de um Rei Catholico.63

Na extensa missiva, Santa Anna menciona o cisma da igreja entre David


IV, que concordara e assinara a carta de obediência a Paulo V em 13 de maio de
1607, e Melchisedech, vinculado às três igrejas em Etchmiadzin, como razão da
dissidência entre os armênios nas sucessivas reuniões em Isfahan.64 Uma tradu-
ção em português da carta de obediência em latim e armênio assinada pelo pa-
triarca da Armênia maior e uma carta de David a Paulo V foram publicadas em
edições agostinhas, conforme é exemplo Relaçam... de frei Antonio de Gouveia.65
Os armênios, e da mesma maneira as demais cristandades do oriente, eram
compreendidos através de uma substância humana comum, porém decaída em
virtude dos “erros” acumulados pela distância e ruptura com Roma. A resistên-
cia à submissão ao papa, condenaria esses povos à condição de pecadores e por-
tanto alvos do castigo divino.
Frei Diogo de Santa Anna selecionou três entre os “erros” da compreensão da
doutrina cristã, discutidos de modo exaustivo, conforme sublinhou, com os armê-
nios. Um primeiro, correspondeu a um dos aspectos de uma intensa e espinho-
sa reflexão teológica, subjacente à longa medievalidade, em torno da natureza de
Cristo. Conforme Santa Anna, era clara, de uma “lógica natural”, a dupla natureza,

63 CONCEIÇÃO, Frei Manoel. Sermão Funeral das exéquias do Illustrisssimo, e Reverendíssimo Senhor D. F. Aleyxo de Meneses, Religioso da Ordem (…).

Lisboa: Pedro Crasbeeck, 1717, p. 17.

64 Na diáspora armênia, parte da comunidade seguiu na direção de Isfahan sob a liderança de David IV, que renunciara ao Patriarcado de Etchmiadzine,

em benefício de Melchisedech. Em seguida, durante o desterro, David nomeou-se de novo patriarca supremo dos armênios, com o apoio dos bispos

que o acompanharam, sendo reconhecido por Xá Abbas, configurando a divisão interna da igreja. Melchisedech permaneceu em Etchmiadzine com os

bispos que o acompanharam. Cf. GULBENKIAN, 1995. Op. cit, pp. 220-221.

65 GOUVEIA, 1611, pp. 161-163.

4 31
humana e divina, de Jesus Cristo, um obstáculo na compreensão dos armênios:

Em primeiro, no ponto em que confessamos que Cris-


to, nosso Senhor, est unus et idem, secundum divinitatem,
equalis Aeterno Patri, immortalis, impassibilis. Secundum,
vero, humanitatem, minor Patre, mortalis et possibilis. Nes-
te eu vi todos encabulados, por não conseguirem entender
como Cristo, Senhor nosso, possa ser declarado menor do
que seu eterno Pai. Oh Deus! O quanto me entreteve esta
gente e quanto trabalho me deu para dissolver neles algu-
mas dúvidas evidentes, sendo gente absolutamente despida
de qualquer tipo de ciência, nem conhecendo seus termos,
sendo ofuscados até na lógica natural! Nem suando sangue
e com comparações infinitas, que Deus me sugeria, pude
conseguir que entendessem que Cristo era igual ao Pai, e ao
mesmo tempo, por ser humano, menor que o Pai.”66

E sobre esse ponto, finalizou demonstrando irritação na intransponibilida-


de de divergências doutrinais:

Mas eles, repetindo bir, bir, que quer dizer um, um, fecharam-
-se entre si, deixando-me torcendo os dedos e comendo as
mãos, ao ver sua dureza, ignorância e incapacidade, gastando
meu tempo sem conseguir derramar luz na casa deles.67

O purgatório, uma invenção na geografia do além, introduzida ao final do


século XII, conforme o estudo clássico de Jacques le Goff, motiva um novo ponto
polêmico de dificuldade incontornável. A modulação da escrita de Santa Anna
proporciona o componente jocoso da cena:

66 [Primeiramente, in quello nel quale confessiamo che Christo, Signore nostro, est unus et idem, secundum divinitatem, equalis Aeterno Patri, immor-

talis, impassibilis. Secundum, vero, humanitatem, minor Patre, mortalis et possibilis. In questo li viddi tutti imbarazzati con Christo, Signore nostro, come

habbia da essere dichiarato minore del suo eterno Padre. O Dio! Quanto mi trattenne questa gente e che travaglio mi diede per scioglere loro alcuni

argomenti apparenti, essendo gente del tutto lontana da ogni sorte di scienza, non ne sapendo meno i termini, havendo offuscata fin la logia naturale!

Nè con sudori di sangue e modi e comparationi infinite, che Dio mi suggeriva, potei finire di dar loro ad intendere come Christo era uguale al Padre e,

secondo l’humanità, minore del Padre.] ALONSO, 1961. Op. cit, p. 169, grifos meus.

67 [Mas essi, con dire: bir, bir, che vuol dire: uno, uno, si strinsero da banda, mi fecero torcere i diti e mangiar le mani, in vedere la loro dureza, ignoranza

et incapacità, passandomi il tempo senza poter loro lasciar la luce in casa.] Id., Ibid., grifos meus.

432
Mas tratando-se de pessoas ignorantes, eu me conformei no
momento com pegá-los na palavra sobre algum bom senso
e parei no ponto do Purgatório; e, por mais que eu insistisse
em separá-lo do Inferno, me pareceu que eles se escandali-
zaram conosco acreditando que nós achamos que se possa
sair do Inferno.68

Após seis, sete horas de embate, o terceiro ponto introduz a imposição da


obediência ao papa:

Sobre este ponto não quiseram se deter, a não ser quase que
condicionalmente, dizendo que acreditavam na santa fé, as-
sim como ensina esta Santa Sé Apostólica, e confessaram
que Vossa Santidade era Vicário de Cristo, Nosso Senhor,
na terra, conforme foi proposto para os outros Armênios.
Mas que, em termos de obediência, só o fariam conforme
seus hábitos e costumes. A qual objeção (com nossos há-
bitos), me incomodou tanto que quase eu rompi com eles,
dizendo que com esta condição tão estrita, os Mouros tam-
bém obedeceriam com seus costumes. Esforcei-me em de-
monstrar que a obediência deveria ser absoluta, pois se seus
costumes fossem bons, Vossa Santidade os confirmaria, e se
fossem ruins, não mereceriam de serem confirmados, nem
seria conveniente fazê-lo.69

Da missiva endereçada ao centro em Roma, sobressaem os cristãos das mar-


gens, na cristandade de hábitos e costumes fora da latinidade, sedimentados na
longa duração da diversidade das igrejas orientais. O êxodo projetou os armê-
nios, segundo a carta de Santa Anna, em um espaço de ausência de direito e jus-
tiça, fruto da guerra. A percepção de Santa Anna sobre os armênios os arrojara

68 [gente ignorante, mi contentai, per all’hora, di poter pigliarli in parola in alcun buon senso, e mi fermai nel ponto del Purgatorio; e, per più repliche ch’io

facesse per separarlo dall’Inferno, mi parve che si scandalizassero di noi e che pensassero che noi tenessimo che si poteva uscire dall’Inferno.] Id. ibid., p. 170.

69 [Al quale non si volsero fermare, se non quasi condicionalmente, dicendo che credevano alla santa fede, sicome insegna cotesta Santa Sede Apostoli-

ca, e confessavano che Votra santita era Vicario de Christo Signor nostro, interra, conforme il modo che fu proposto a gl’altri Armeni. Ma che, quanto ad

obedirle, non lo fariano se non con li loro costumi e consuetudini. La quale additione (con i nostri costumi) m’è venuta tanto a noia, ch’è mancato poco

ch’io l’habbia rotta con esso loro, dicendo a essi che, con questa conditione tanto stretta, li Mori âncora ubidiano con i loro costumi fossero stati buoni,

Vra. Santità gl’haveria confermati, e, s’erano cattivi, non meritavano d’esser confermati, nè conveniva di farlo.] Id., Ibid., grifos meus.

433
ao estado de anomia frente ao Deus cristão. As antigas igrejas da cristandade
oriental alentavam sonhos de reunificação, almejado pelo papado e disputado
por ordens religiosas. Na explicação ao fracasso junto aos armênios, Santa Anna
recorre, como móbil de argumentação, às forças demoníacas. Somente o demô-
nio seria artificioso na construção de armadilhas, transformando a caridade da
esmola na falsidade do interesse de ambições pessoais:

E, antes de qualquer outra coisa, há de se falar das armações


do Demônio para anular nossas ações, das quais poderia
resultar muita edificação, e que fez com que a caridade do
Arcebispo fosse considerada como corruptela, meu empe-
nho (fosse considerado) como ambição, nosso trabalho ba-
seado no princípio de realizar a falsa profecia. Digo falsa
porque não posso pensar que venha de Deus, a não ser que
se interprete que a redenção desta gente deve ser espiritual,
e iluminada pela santa doutrina. Pelo qual é admirável que
o preconceito com que o Demônio resiste aos nossos inte-
resses de remediar a esta Igreja destruída, tendo nesses dias
estes fatos novos numa terra onde não se conhece seu nome
e entre corações terrenos que não podem nem suspeitar o
espiritual e o excelente. O Senhor seja abençoado.70

Depois de quatro meses de deslocamentos ao campo de batalha ao norte da


capital iraniana, nos trajetos entre Chamakhi e Tabriz, frei Diogo de Santa Anna
retornou ao convento agostinho, em 5 de outubro, na consciência de uma missão
malsucedida, sem o êxito do apoio do soberano iraniano ao movimento de redu-
ção da Igreja Armênia à obediência ao pontífice romano e sem a promessa de sinos
a repicar na nova Julfá. Por rescaldo da atuação fracassada, o clero armênio de
Isfahan em torno de David tendeu a manter distância do convento dos agostinhos.
Mas, seguindo o traçado da pena de Santa Anna, permanecera o ânimo no embate

70 [Et, innanzi che dica altro, si ha da notare l’inventione del Demonio per far annullare le attioni, dalle quali ne potria risultar non poca edificatione,

che fece stimare la carità dell’Arcivescovo per corrutela, il mio zelo per ambitione, che quel che travagliamo di fare ch’erano principii di far adepire la

falsa profetia. Dico falsa perchè no ho da pensare che venga da Dio, fuor che se s’interpretasse che la redentione di questa gente ha da essere spirituale,

et con la luce della santa dottrina. Onde è ammirabile il pregiuditio con che il Demonio resiste alli nostri interessi di rimediare a questa distrutta Chiesa,

havendo a nostri giorni questi fratti nuovi in terra dove non si sa il suo nome e tra cuori terreni che non posono ne sospettare il spirituale e l’eccellente.

Sia benedetto il Signore.] Id. Ibid., p. 173.

434
com o desafio armênio, como demonstra o recuso mobilizador da aliteração: “em-
bora nos dobramos, não quebramos; embora nos retiramos, não largamos; e se
nos afastamos, não desistimos, mas continuamos com as preces e os sacrifícios...”.71
Ao encerrar o ano de 1607, os carmelitas enviados pelo papa Clemente VIII,
três anos antes, chegaram por fim à Ispahan. Frei Diogo de Santa Anna, após a
partida de Goa de D. Frei Aleixo de Meneses, no fechamento do ano de 1610, as-
sumiu a posição de administrador do mosteiro de Santa Mônica de freiras agos-
tinhas. Porém, permaneceu o silêncio acerca de uma atuação não exitosa junto
ao soberano safávida. Na contramão, as narrativas agostinhas tenderam a exaltar
a cerimônia de obediência de David IV e parte do clero armênio à obediência ao
papa em Roma, na igreja do mosteiro de Isfahan em maio de 1607.
Na escrita de Informação... – uma “narração que pode ser sujeita aos olhos
e juizo de seus superiores” –, citada no início deste artigo, frei Diogo de Santa
Anna em um relato laudatório na terceira pessoa, através do epíteto fático de
humildade de “padre servo sem proveito”, enviou ao provincial em Lisboa, um
instrumento com objetivos de defesa pessoal frente ao quadro de disputas entre
o Senado da Câmara e o mosteiro de Santa Mônica, em Goa, de que era adminis-
trador e confessor geral. A partir de 1632, aumentara a tensão e subira o tom das
acusações dos poderes camarários ao convento de mulheres e frei Diogo de Santa
Anna, acusado de concentrar riqueza, retendo mulheres ricas do Estado da Índia
nos espaços do claustro. O conflito alcançou as instâncias do centro monárquico
em Madri. Para a defesa do “bom nome e fama”, e “dar satisfação aos escândalos”,
Santa Anna reservou 15 das 27 folhas de Informação... à atuação missionária no
planalto iraniano. O Estado da Índia da década de 1630 distanciara-se sobrema-
neira do mundo de frei Diogo de Santa Anna na primeira década do seiscentos
durante a época de proeminência agostinha do arcebispado de Aleixo de Mene-
ses. Como anunciado no pressentimento dos depoimentos agostinianos, Ormuz
fora capturada na ação combinada da monarquia safávida e Companhia das Ín-
dias Orientais inglesa em 1622. No sudeste asiático e no Índico ocidental emer-
gira igualmente a nova potência marítima da Companhia das Índias Orientais
holandesa pressionando as possessões portuguesas. No ano anterior da escrita de

71 [Ancorchè noi pieghiamo, non si rompemo; e, se bene si ritiriamo non allentiamo; e, se soprastiamo, non desistemo, ma continuiamo con le orationi

e sagrifitii...”.] Id. Ibid., p. 181

435
Informação..., o último da governança no Estado da Índia do vice-rei Miguel de
Noronha, conde de Linhares, principiaram igualmente o bloqueio sazonal a Goa.
Após 30 anos da escrita das cartas ao papa Paulo V, em dezembro de 1607,
distante das controvérsias na corte safávida e da causa armênia, o reino da Pérsia
persistira a cumprir um forte argumento de autoridade na escrita encomiástica,
no enaltecimento da relevância de seus serviços à religião e ordem dos eremitas
de Santo Agostinho. Informação..., um relato com uma estrutura distribuída por
pontos, adensou a tinta na descrição de “empresa tão grande” na corte safávida,
mitigando o sentimento de derrota da letra da extensa carta de 3 de dezembro
de 1607 a Paulo V:

E deixão se aqui silêncio, muitas e grandes particulares q


do pe servo sem proveito se podião expecificar (com edi-
ficação de quem as lesse) no tocante a todo o negoçäo da
redução dos Armenios, e no tocante apregação dos Mouros,
e no tocante aconversão dos Apostatas, e no tocante ao que
se ofereceu com os Ingleses, e outros hereges Europeus...72

A fabricação de uma memória conspícua da missionação agostinha no


oriente associou o nome de frei Diogo de Santa Anna ao ato extraordinário da
obediência da Igreja Armênia ao pontífice romano. Foi esta marca de forte sim-
bolismo que, após sua morte, passou a adornar a inscrição em seu túmulo, abai-
xo do Cristo miraculoso da igreja do mosteiro de Santa Mônica de Goa. O painel
de azulejos, na monocromia azul de fundo branco característica do reinado de d.
João V, localizado na sala do capítulo do Convento de Nossa Senhora da Graça
de Lisboa, exibira um religioso, de porte longilíneo em vestes agostinianas, junto
a figuras de representantes da Igreja Armênia na posição de joelhos. A moldura
do painel incluíra na parte inferior uma epígrafe explicativa do ato de obediência
ao Sumo Pontífice pelo Patriarca da Armênia, seis bispos e 106 sacerdotes, e, ao
alto, a notabilidade do nome de Diogo de Santa Anna.73

72 SANTA ANNA, Frei Diogo de. 1637, Informação.... Op. cit, fl. 79.

73 O túmulo de frei Diogo de Santa Anna foi de novo revelado, após os trabalhos recentes de restauração da igreja do mosteiro de Santa Mônica de Goa.

Por sua vez, uma foto do painel na antiga sala do capítulo do velho convento dos gracianos de Lisboa foi publicada em GULBENKIAN, Roberto. Op. cit,

p. 67. Porém, em junho de 2013, quando visitei o espaço, constatei que o amplo painel foi o único retirado da espaçosa sala que, nesse momento, sediava

uma creche. E, na busca de esclarecimentos, constatei que o departamento de patrimônio cultural de Lisboa desconhecia seu destino.

436
O CATOLICISMO NA ÍNDIA E
O “OBJETO RELIGIOSO”
para Michel de Certeau

Andréa Doré

Este texto é o resultado de três ordens de experiências historiográficas. A


primeira advém de meus estudos sobre a presença portuguesa na Índia nos sé-
culos XVI e XVII, iniciadas durante a tese de doutorado, em que analisei a vulne-
rabilidade dessa presença e a constante vivência do cerco, fosse militar, fosse na
rotina dos enclaves portugueses nas margens do Índico. A segunda experiência
foi a oportunidade de participar do Colóquio Internacional Religião e Religiosi-
dades na Época Moderna, realizado na UFRJ em 2014, debatendo com colegas
que pesquisam o mesmo espaço e buscam compreender as diferentes dimensões
da própria dimensão religiosa da Ásia portuguesa. Uma terceira experiência,
por fim, perpassou esses dois momentos e foi o leitura de alguns trabalhos de
Michel de Certeau, historiador e jesuíta francês nascido em 1925 e falecido em
1986, que entrou para a Companhia de Jesus em 1950 com o desejo de atuar na
China.1 Seu artigo, “Estratégias e Táticas”, inserido em A invenção do cotidiano,
ofereceu-me uma compreensão das formas de atuação de instituições e indiví-
duos no império sitiado vivido pelos portugueses na Índia. Frente à ausência de
“um lugar próprio”, homens e mulheres desenvolveram táticas nas brechas das
instituições religiosas ou políticas instaladas nos espaços portugueses.2 Para este
artigo, e visando dialogar com outras pesquisas feitas sobre o catolicismo no

1 Para uma biografia do historiador, ver DOSSE, François. Michel de Certeau. Le marcheur blessé. Paris: La Découverte, 2002.

2 Ver CERTEAU, Michel de. A invenção do cotidiano. 1. Artes de fazer. Nova edição, estabelecida e apresentada por Luce Giard. Tradução de Ephraim

Ferreira Alves. 16º ed. Petrópolis: Vozes, 1994, p. 91-102. Sobre o império sitiado e o uso das táticas pelos portugueses na Índia, ver DORÉ, A. Sitiados.

Os cercos às fortalezas portuguesas na Índia. São Paulo: Alameda, 2010. Adoto as perspectivas de Certeau em outros dois textos: “Antes de existir o Brasil:

os portugueses na Índia entre estratégias da Coroa e táticas individuais”. História. v. 28, 2009, p. 169-189 e “Entre o púlpito e a muralha: missionários

e homens de armas contra a ameaça protestante na Índia e no Brasil no século XVII”. In: XII Seminário Internacional de História Indo-Portuguesa. O

Estado da Índia e os desafios europeus. Lisboa: CHAM/ Universidade Católica Portuguesa, 2010, p. 361-381.

437
império oriental português, remeto a alguns trabalhos de Certeau, entre eles os
artigos publicados entre 1966 e 1983 e reunidos por Luce Giard em La faiblesse
de croire, em 1987, um ano após a morte do autor. Questões centrais abordadas
nesses artigos estão presentes também em seu A Escrita da História, de 1975,
bastante difundido no Brasil.3

A “ruptura instauradora”

A leitura de Michel de Certeau não é tarefa simples. Exige releituras e o


cuidado para o emprego repetido de determinadas palavras ou expressões. Va-
lem também para Certeau as considerações de Georg Otte sobre a obra – e as
traduções – de Walter Benjamin, um autor do qual Certeau muito se aproxima,
apesar das raríssimas referências que faz a seus textos. Segundo Otte, a repeti-
ção de uma palavra “faz com que esta se cristalize na superfície do fluxo verbal,
ganhando um status terminológico, sem chegar ao delineamento nítido de um
conceito. (...) o leitor é obrigado a conquistar o sentido da palavra no decorrer
da leitura”.4 É assim também em muitos momentos da obra de Certeau, há um
glossário particular, cujas definições não são explicitadas mas que vão adquirin-
do sentido e densidade à medida que as leituras se aprofundam.
A repercussão de sua obra e o posicionamento de alguns críticos dão conta
das dificuldades que seus textos apresentam. O adjetivo “indecifrável”, utilizado
por Emmanuel Le Roy Ladurie, é retomado em mais de um artigo como exem-
plo das resistências manifestas não só à sua escrita, mas ao que propunha como
compreensão da atividade dos historiadores. A contextualização da expressão
utilizada por Le Roy Ladurie, no entanto, tornando-a ambígua, contribui para
sua compreensão.5 Luce Giard retoma o texto de Le Roy Ladurie, o que auxilia
3 A fraqueza de crer, ainda não tem tradução no Brasil. Alain Boureau, em um texto intitulado “Croire et croyances”, propõe-se a apresentar “une

anthropologie du croire” a partir de artigos produzidos por Michel de Certeau entre 1969 e 1983, alguns deles reunidos em La faiblesse de croire. Ver

artigo de Boureau em DELACROIX, Chr.; DOSSE, Fr.; GARCIA, P.; TREBITSCHT, M. Michel de Certeau. Les chemins d’histoire. Bruxelles: Editions

Complexe, 2002, p. 125-140. Sobre o percurso do historiador no âmbito das crenças, ver também LE BRUN, Jacques. Michel de Certeau, historien de la

spiritualité. Recherches de Science Religieuse, 2003/4, Tome 91, p. 535-552.

4 OTTE, Georg. Vestígios da experiência e índices da modernidade. Traços de uma distinção oculta em Walter Benjamin. In: Sedlmayer, Sabrina &

Ginzburg, Jaime. Walter Benjamin. Rastro, aura e história. Belo Horizonte: Editora UFMG, 2012, p. 71.

5 Em mais de uma ocasião, registram-se malentendidos entre Michel de Certeau e Le Roy Ladurie e outros historiadores, como Philippe Ariès e George

438
no desenho do caráter multifacetado da obra de Certeau.

Assim Emmanuel Le Roy Ladurie deixa transparecer seu


embaraço e irritação corporativa diante da releitura bri-
lhante (demais?) do caso de Loudun sob Richelieu: “para
Michel de Certeau, teólogo e historiador, o diabo se acha
em toda a parte, salvo no lugar exato onde os caçadores
de bruxas julgaram tê-lo detectado”. Certeau “sabe fazer o
jogo de todas as palavras e assumir sucessivamente todas as
linguagens. Ele é sucessivamente historiador da medicina e
da sociedade, teólogo, psicanalista, quantificador, discípu-
lo de Freud ou Foucault”; “nunca baixa a guarda. Mantém-
-se indecifrável.6

Num processo de deciframento, começo por chamar atenção para uma ex-
pressão que, aliada a propostas metodológicas da obra de Certeau, originárias de
suas pesquisas, permitem refletir sobre as religiosidades que o contato do catoli-
cismo com outras religiões na Ásia provocou. A expressão “tornar possível” (ren-
dre possible) aparece inúmeras vezes em diferentes livros e artigos do autor. Ela
é utilizada como recurso narrativo, visando explicitar relações entre fenômenos,
mas em “La rupture instauratrice”[A ruptura instauradora] ela se associa à ideia
de “permissão” e de “acontecimento”. Esse capítulo de La faiblesse de croire de-
dica-se a pensar o cristianismo na sociedade contemporânea e Certeau remete a
um acontecimento fundador, instaurador: Jesus Cristo. Pela explicação que lhe dá
o autor, porém, a concepção de um acontecimento que funciona como “ruptura
instauradora” não se restringe ao cristianismo: “se o registro da percepção ou da
compreensão se modificou, foi porque o acontecimento tornou possível e, em um
sentido bastante real, permitiu este outro tipo de relação com o mundo”.7 O papel

Duby, como explicam DELACROIX, Chr.; DOSSE, Fr.; GARCIA, P.; TREBITSCHT, M. Porquoi Michel de Certeau aujourd’hui? Michel de Certeau.

Les chemins d’histoire. Op. cit, p. 16-17. Sobre a recepção da obra de Certeau em diferentes áreas, ver MAIGRET, Eric. Les trois héritages de Michel de

Certeau. Un projet éclaté d’analyse de la modernité” Annales, vol. 55, nº3, 2000, p. 511-549.

6 As considerações de Le Roy Ladurie integram sua resenha ao livro La possession de Loudun, publicado por Certeau em 1970. A resenha saiu no Le

Monde, 12/11/1971 e foi inserida na coletânea Le territoire de l’historien. Paris: Gallimard, Bibliothèque des histoires, 1973, p. 404-407. A citação é

retomada em GIARD, Luce. História de uma pesquisa. In: CERTEAU, Michel de, A invenção do cotidiano. Op. cit, p. 10.

7 CERTEAU, Michel de. La rupture instauratrice. In: La faiblesse de croire. Paris: Seuil, 1987, p. 211. O itálico é do autor. O artigo é de 1971.

439
desempenhado pelo acontecimento, pela “ruptura instauradora”, apesar da expres-
são só aparecer nesse artigo de 1971, já movimentava as reflexões de Certeau desde
1968, e está presente em um de seus primeiros trabalhos, quando ainda no calor
das manifestações de maio escreveu La prise de parole (A tomada de palavra).8
Um acontecimento como maio de 68 poderia sugerir uma repetição de uma
história anterior, uma vez que se utilizava de uma linguagem e de personagens
já conhecidos. Certeau ressalta, no entanto, que não há “modelo anterior”, “que
a linguagem é utilizada de forma diversa e que surgem exigências novas”. Como
conclui Zancarini-Fournel, “para além de pensar sobre o acontecimento e a to-
mada de palavra, nasce assim, pela pluma de Michel de Certeau, uma reflexão
sobre os regimes de historicidade e sobre a escrita da história”.9 Desta forma, há
rupturas (inúmeras) que permitem à história acontecer, assim como rupturas
que permitem, tornam possível, a escrita dessa história.
Não há apenas um acontecimento instaurador que possamos eleger para
compreender as relações estabelecidas entre o catolicismo ibérico e as sociedades
asiáticas: a chegada dos portugueses à Índia na frota de Vasco da Gama em 1498
seria, sem dúvida, um marco indiscutível. Muitos outros, porém, podem estar
conectados de forma mais direta a objetos de estudo determinados: a chegada
do missionário Francisco Xavier em 1542; os batismos em massa de 1548; as leis
anti-hindus de 1559; a criação do Tribunal do Santo Ofício de Goa, em 1560; o
Martírio de Cuncolim, em 1583, entre uma infinidade, e ainda, para a trajetória
de cada mulher e cada homem, missionário, batizado, apóstata, denunciado, sen-
tenciado, mártir ou místico, há o seu próprio momento instaurador que caberia
ao historiador localizar, selecionar e interpretar. Mas como o localiza? Como o
interpreta? Como circunscreve os limites de um “acontecimento” religioso? Em
outras palavras, como entender as condições que tornam possível a forma como
hoje estudamos o catolicismo no Oriente? As reflexões que este texto apresenta a
partir das ideias do historiador francês, e que não chegam a se condensar numa
resposta, giram em torno da forma como sociedades não religiosas consideram
como religioso um objeto historiográfico determinado.

8 Publicado em 1968 e retomado em La prise de parole et autres écrits politiques, éd. par Luce Giard. Paris: Seuil, 1994. Não há tradução no Brasil.

9 ZANCARINI-FOURNEL, Michelle. La prise de parole: 1968, l’événement et l’écriture de l’histoire. In: DELACROIX, Chr.; DOSSE, Fr.; GARCIA, P.;

TREBITSCHT, M. Michel de Certeau. Les chemins d’histoire. Op. cit, p. 83. As traduções são minhas.

440
O foco sobre as práticas

Não temos o auxílio de pesquisas diretas de Michel de Certeau sobre a Ásia,


uma vez que não realizou investigações de fundo sobre o catolicismo fora da
Europa. Segundo Luce Giard, no entanto, depois de terminar La fable mystique,
em 1982, recentemente traduzido no Brasil,10 Certeau tencionava dedicar-se à
questão do Novo Mundo, interesse estreitamente relacionado à sua proposta de
constituir uma “ciência do Outro”, uma heterologia. Nesse interesse específico,
voltado para o Novo Mundo, se insere seu artigo sobre o relato do protestante
Jean de Léry em viagem ao Brasil, publicado em A escrita da história.11 Mas, no
pensamento de Michel de Certeau, a concepção de uma ciência do outro deve ser
compreendida de forma mais ampla, como o fundamento das ciências, no plural,
que nascidas nas fronteiras do saber voltam-se para o desvelamento das alterida-
des étnicas, passadas e inconscientes: a etnologia, a história e a psicanálise.12 Os
paralelos possíveis entre as atuações e os resultados dos trabalhos do etnólogo,
do historiador e do analista estão presentes em muitos momentos de sua obra e
representam uma importante contribuição para a epistemologia da história.
O principal objeto de pesquisa de Certeau foi a história religiosa da Fran-
ça do século XVII. Seu trabalho de historiador começou, como se sabe, com o
estudo da vida do jesuíta, companheiro de Inácio de Loyola como fundador da
ordem, o Padre Pierre Favre e, em seguida, seu esforço de erudição e de com-
preensão da escrita da história se realizou com a organização da correspondên-
cia de Jean-Joseph Surin, também jesuíta chamado a exorcizar Jeanne des Anges,
a irmã ursulina protagonista dos casos de possessão de Loudun. No interior da
história religiosa, o misticismo se destacou como a alteridade que lhe atraía. Ao

10 CERTEAU, Michel de. A fábula mística. Séculos XVI e XVII. Tradução de Abner Chiquieri; Revisão técnica de Manoel Barros da Motta. Rio de

Janeiro: Gen: Forense Universitária, 2015, 2 vols.

11 Uma análise da heterologia no artigo de Certeau está em GIARD, Luce. Epilogue: Michel de Certeau’s Heterology and the New World. In. GREEN-

BLATT, Stephen. New World Encounters. University of California Press, 1993, p. 313-322. Artigo também publicado em Representations, nº 33, Special

Issue: The New World (Winter, 1991), p. 212-221. No âmbito da história contemporânea, destacam-se trabalhos de Certeau sobre o Brasil e os Estados

Unidos: Les chrétiens et la dictature militaire au Brésil p. 137-162) e Conscience chrétienne et consience politique aux USA: les Berrigan (p. 163-186),

ambos em La faiblesse de croire. Texte établi et présenté par Luce Giard. Paris: Editions du Seuil, 1987.

12 CERTEAU, Michel de, La rupture instauratrice. Op. cit, p. 206-207. A heterologia, seus fundamentos, estão presents também em CERTEAU, Michel

de. O ausente da história. In: História e psicanálise. Entre ciência e ficção. Trad. Guilherme João de Freitas Teixeira. 2º ed. Belo Horizonte: Autêntica,

2012, p. 181-186.

441
se deparar com as experiências místicas contidas na documentação, Certeau rea-
lizou uma primeira descoberta. Ele afirma que ao buscar os cristãos do século
XVII esperava encontrar cristãos como ele, do século XX. Concluiu então que,
ao acumular e explorar os arquivos, o historiador “só consegue encontrar o outro
(um passado) através de sua imaginação; é um erudito e ainda não um historia-
dor”. Quando percebe que o mundo – cujos vestígios inventaria – lhe escapa,
“desse momento (...) é que data o nascimento do historiador; essa ausência é
que constituiu o discurso histórico”.13 Seu interesse pelos místicos da primeira
modernidade teria sido, segundo Roger Chartier, um percurso “para dar conta
das palavras e dos gestos de uma espiritualidade situada fora da instituição ecle-
siástica e rebelde à apropriação do sagrado somente pelos clérigos”,14 o que não
está desvinculado da própria trajetória de Certeau, seja no âmbito da instituição
acadêmica, seja, e principalmente, no seio da instituição Companhia de Jesus.
O olhar que Certeau dirige aos místicos do século XVII dá ênfase às práticas,
entendidas em um sentido amplo, e não em oposição a doutrinas, mas incluindo
práticas discursivas e o uso que se faz das próprias doutrinas. A atenção dada às
práticas se insere entre as contribuições de diferentes “modelos” de interpretação
da ideologia religiosa identificados por Certeau: o modelo “místico” e o modelo
“folclórico”; o modelo sociológico; e o modelo cultural.15
O primeiro deles divide a atenção dos estudiosos da história religiosa na
França há três séculos. De um lado, a tendência que se detém na análise das
doutrinas; de outro, por influência do Iluminismo, a que coloca a religião sob
o signo das superstições. “Em última análise, teríamos, lá, verdades emergindo
dos textos, e, aqui, “erros” ou um folclore abandonado na rota do progresso.” Na
primeira metade do século XX dois autores se destacaram. Henri Bremond, a
partir da história literária, identificava uma perda de confiança nas doutrinas,
relacionada a um sentido “místico”, oculto. Arnold Van Gennep, observando o
folclore religioso, via o retorno de um imemorial, irracional. Sintetizando, Cer-
teau afirma que “o religioso assume a imagem do marginal e do atemporal, nele,
uma natureza profunda, estranha à história, se combina com aquilo que uma
13 CERTEAU, Michel de. História e estrutura. In: História e psicanálise. Op. cit, p. 164.

14 Apud ZANCARINI-FOURNEL, Michelle. La prise de parole: 1968, l’événement et l’écriture de l’histoire. Op. cit, p. 85.

15 Sobre diferentes abordagens da história das religiões, ver HERMANN, Jacqueline. História das religiões e religiosidades. In: VAINFAS, R. & Cardoso,

C. F. (orgs.) Domínios da História: ensaios de teoria e metodologia. Rio de Janeiro: Campus, 1997, p. 329-352.

442
sociedade rejeita para suas fronteiras”.16 Essa perspectiva, como se verá, continha
elementos bastante promissores para estudo das religiosidades.
O modelo sociológico, por sua vez, valoriza as práticas, que no século XVII
adquire uma função que não se verificou tão fortemente nos séculos anteriores.
“O esboroamento das crenças em sociedades que deixam de ser religiosamente
homogêneas”, como Certeau verificou no contexto francês, “torna ainda mais
necessárias as referências objetivas: o crente se diferencia do incréu – ou o ca-
tólico do protestante – pelas práticas. Tornando-se um elemento social de dife-
renciação religiosa, a prática ganha uma pertinência religiosa nova”. Ele destaca
a influência exercida por Gabriel Le Bras para o estudo da prática religiosa na
França, que desde seu primeiro artigo publicado em 1933, dialogava com a so-
ciologia, a etnologia e o estudo do folclore e reagia contra as tipologias teóricas
de autores como Max Weber. Depois de valorizar as práticas, esse modelo trans-
formaria as próprias crenças em fatos objetivos. Desenvolve-se uma “sociologia
do conhecimento religioso”, buscando o uso que uma sociedade fazia do saber.17
No modelo cultural, verifica-se a trajetória que, partindo de uma história
das ideias chegou à concepção de um “inconsciente coletivo”. Certeau é bastan-
te crítico deste modelo, que apostava na existência de uma unidade, de uma
totalidade (“de estatuto incerto, nem carne nem peixe”, subjacente à realidade
social. “Mais do que ser um instrumento de análise, [o inconsciente coletivo] re-
presenta a necessidade que tem dele o historiador; significa uma necessidade da
operação científica, e não uma realidade apreensível em seu objeto”. O que essa
concepção manifesta, para o autor, “é o inconsciente dos historiadores, ou mais
exatamente, do grupo ao qual pertencem”.18
Em texto anterior ao livro A escrita da história, no entanto, intitulado “Cul-
tures et spiritualités”, publicado inicialmente em 1966 e inserido por Giard em
La faiblesse de croire, Certeau apresentava uma versão mais positiva dessa ver-
tente cultural e inseria um elemento que, ao problematizar a dita “totalidade
mental”, abria novas possibilidades. Certeau explicava seu entendimento do
estudo da espiritualidade a partir de uma perspectiva cultural: a concepção de

16 CERTEAU, Michel de. A escrita da história. 2º ed. Trad. Maria de Lourdes Menezes. Rio de Janeiro: Forense Universitária, 2008, p. 35.

17 CERTEAU, Michel de. A escrita da história. Op. cit, p. 36-38.

18 Id. Ibid., p. 39-40.

443
que múltiplos aspectos da “comunicação” cultural, incluindo as espiritualidades,
representariam registros da utilização de uma linguagem (ele menciona as ideias
conscientes, as estruturas do pensamento, os postulados subjacentes ou as for-
mas da sensibilidade). Esses aspectos, vistos como “‘sincrônicos’”, se refeririam
à “‘coerência’” mental da psyché coletiva (as aspas são do próprio autor). Essa
abordagem, ele ressalta, como faria depois em A escrita da história, tem um ca-
ráter “operatório”, é um instrumento de análise, “nem evidente nem claramente
definido, mas necessário à inteligibilidade da história.” O elemento interessante
é que há ligação entre os “sistemas mentais” e as espiritualidades, porque “antes
de ser uma recusa ou uma adesão, toda reação espiritual é um fato de adaptação”,
ou seja, implicaria justamente algum tipo de movimento que foge à dita coerên-
cia mental. “Em seu “‘desprezo’” ou em seu isolamento, o fiel depende ainda do
que ele combate: as novidades determinam o que, nas formas de ontem, ele vai
manter como imutável e a forma como vai vivê-lo ou afirmá-lo; o presente lhe
fornece as ideias que ele inverte acreditando delas se afastar”.19 E mais à frente:
“Uma espiritualidade responde às questões de um tempo e só as responde nos
próprios termos dessas questões, porque são delas que vivem e falam os homens
de uma sociedade – os cristãos como os outros”.20
Estamos novamente diante de condições, “sistemas mentais” ou “questões
de um tempo”, que tornam possíveis, permitem determinadas reações de indiví-
duos que se manifestam no plano das espiritualidades.
Encontramos elementos desses diferentes modelos nas análises de Cer-
teau, mas destaca-se a ênfase dada ao estudo das práticas. Essa ênfase é bastan-
te explícita em suas pesquisas sobre a sociedade contemporânea. Em A inven-
ção do cotidiano, é por meio da análise das práticas de leitura, práticas de uso
do espaço urbano, formas de uso da memória que Certeau identifica o caráter
tático que as fundamenta.21
O estudo do cristianismo nos espaços asiáticos vem se apoiando nas prá-
ticas, e o tem feito sem a necessidade de se remeter a Certeau. Não se trata,

19 CERTEAU, Michel de. Cultures et spiritualités. In: La faiblesse de croire. Op. cit, p. 43.

20 Id. Ibid., p. 46.

21 Ver CERTEAU, Michel de. A invenção do cotidiano. Op. cit Essa obra é bastante comentada e utilizada em diferentes áres do conhecimento. Para

uma síntese e comentários, ver SCHMIDT, , Benito Bisso. Práticas e táticas: Michel de Certeau (re) inventa o cotidiano. Biblos. Rio Grande, 6, 1994, p.

79-93; BOCHETTI, André. Entre golpes e dispositivos: Foucault, Certeau e a constituição dos sujeitos. História da historiografia. Ouro Preto, nº 18,

agosto, 2015, p. 43-56.

444
seguramente, de adotar as práticas dos cristãos que chegaram à Ásia ou dos con-
vertidos como critério valorativo, ou classificatório – mais próximo ou distante
do “verdadeiro” cristão, atitude que muito serviu ao Tribunal da Inquisição e às
ordens religiosas. Mas utilizar a análise das práticas como forma compreensiva
em um duplo sentido: como procedemos para compreender as escolhas dos cris-
tãos que elegemos como objeto e como esses cristãos compreendiam sua crença
e a viviam por meio das práticas.22

O “pensável” e o religioso

Quando se trata dessa dupla compreensão, a contribuição de Certeau inte-


ressa especialmente e a partir de duas dimensões.
A primeira delas é pela forma como o objeto do historiador se define e que
tratamento ele dá a esse objeto; que caminho ele percorre visando a sua com-
preensão. A historiografia, afirma Certeau, investiga “regiões exteriores à cir-
cunscrição de um presente”; investiga uma alteridade, o passado. Ela o faz vi-
sando atender ao objetivo de “levar o outro para o campo de uma compreensão
presente e, por conseguinte, de eliminar a alteridade que parecia ser o postulado
do empreendimento”. Na conclusão desse processo, porém, nem tudo pode ser
domesticado, elucidado. No produto caracterizado pelo discurso historiográfico,
“a alteridade fica marcada, inclusive no trabalho que a absorve”. O historiador
– aquele que, como se viu, ultrapassa a condição de erudito e mantém a descon-
fiança quanto ao resgate de seu objeto – atua na ambivalência: “exerce a função
de “explicar” a estranheza, sem suprimi-la completamente. (...) ele tem a tarefa
de tornar pensável uma sociedade em sua dimensão de heterogeneidade”.23
A segunda dimensão em que a proposta de Certeau interessa para o estudo
do catolicismo na Ásia diz respeito ao caráter tático de muitas das práticas dos
cristãos. Quando se trata de práticas religiosas, o seu uso “popular”, segundo
Certeau, teria a capacidade de modificar-lhe o funcionamento. “Uma maneira
22 É nesses termos que se coloca, por exemplo, a questão: “Qual o sentido que os franciscanos atribuíram à ação missionária na Ásia?” FARIA, Patrícia

Souza de. A conquista das almas do Oriente. Franciscanos, catolicismo e poder colonial português em Goa (1540-1740). Rio de Janeiro: 7Letras, 2013, p.

161.

23 CERTEAU, Michel de. História e psicanálise. Op. cit, p. 182-184.

445
de falar essa linguagem recebida [a religião] a transforma em um canto de re-
sistência, sem que essa metamorfose interna comprometa a sinceridade com a
qual pode ser acreditada, nem a lucidez com a qual, aliás, se veem as lutas e as
desigualdades que se ocultam sob a ordem estabelecida”. 24 As escolhas dos cris-
tãos seriam, então, em certa medida, fruto da percepção das possibilidades e dos
limites de suas ações.
O cuidado de se preservar a heterogeneidade do que se pretende explicar,
assim como a identificação do caráter tático e reativo de determinadas práticas
religiosas são antecedidos, porém, pela qualificação do objeto de análise como
sendo religioso. A problemática que, segundo Certeau, envolve o estudo do ob-
jeto religioso, suas delimitações, definições e seus métodos, nos leva a perguntar
em que medida estaríamos falando de espiritualidades quando tratamos do ca-
tolicismo oriental? O objeto de estudo é, nesses casos, um objeto religioso? Ou
pela forma como apresenta o autor: “O que é ‘religioso’? O que é apreendido
como tal?” Certeau não responde diretamente às suas próprias questões. Ele cita
o exemplo de uma pesquisa de sociologia religiosa histórica que, mesmo sendo
capaz de fornecer indicações a respeito das práticas cristãs, deixa em aberto a
interpretação que lhe vai ser dada. O historiador poderá se posicionar antes ou
depois do momento religioso que pretende analisar e assim será levado a con-
siderar a prática como um resto do passado cristão ou um verniz de um sistema
religioso não-cristão e florescente. O problema estaria então entre o sentido vivi-
do e o fato observado.25
A forma de circunscrever o próprio fato observado está ligada aos funda-
mentos da sociedade à qual o historiador pertence. Talvez a principal obsessão
de Certeau, o alicerce de toda sua argumentação, é ter a clareza de que o presente
do historiador se debruça sobre o passado. Essa clareza é o resultado do que
Castro Orellana chamou de “pano de fundo das eleições temáticas e dos obje-
tos de análise” de Certeau, sua aspiração e intenção, ou seja, “o questionamen-
to epistemológico com respeito ao modo em que opera o sujeito-historiador”.26
Certeau defende, assim, a historicização da história. Como escreve em diferentes
24 CERTEAU, Michel de. A invenção do cotidiano: Artes de fazer. Op. cit, Capítulo II: Culturas populares, p. 74. Sobre as práticas de fundo tático, âmbito

daqueles que não dispõem de um lugar próprio para planejar e definir sua atuação, ver Id. Ibid., Cap III: Fazer com: usos e táticas.

25 CERTEAU, Michel. A escrita da história. Op. cit, p. 145.

26 CASTRO ORELLANA, Rodrigo. Michel de Certeau: História e Ficção. Princípios Revista de Filosofia. Natal (RN), v. 19, n. 31, janeiro/junho de 2012, p. 10.

446
momentos, há um “não-dito” que mobiliza e dá forma às condutas das ciências
humanas.27 O que se oculta, sobre o que as ciências humanas “se calam” está re-
lacionado às “condições de possibilidade” históricas das ciências.28 Escreve: “há
uma relação essencial entre a universalidade que toda ciência verdadeira reivin-
dica e a particularidade de sua localização sócio-histórica”.29
As indagações e as práticas científicas do presente não se restringem, ob-
viamente, aos fenômenos religiosos, já que qualquer fenômeno só adquire “uma
significação e uma inteligibilidade em relação a regras de interpretação (...).” Po-
rém, se “o objeto ‘religioso’ perde sua especificidade própria e se encontra redis-
tribuído segundo as distintas formalidades da práxis sociológica, econômica ou
psicanalítica, é porque, em uma sociedade que deixou de ser religiosa, a ciência
não pode mais sê-lo”. Neste caso, “é o pensável que é ‘secularizado’”.30 As “condi-
ções de possibilidade” históricas das ciências foram secularizadas, para o autor,
no Ocidente, a partir do século XVII como resultado de um processo iniciado no
século anterior com a Reforma.
A análise sociológica, fruto da secularização, torna “impensável a especi-
ficidade das organizações ideológicas ou religiosas”, porque as transforma em
representações ou reflexos de estruturas sociais.31 Quando o historiador estabe-
lece como tarefa determinar o que um setor definido como “religioso” lhe ensina
de uma sociedade, ele considera o termo “sociedade como o eixo de referência,
o ‘modelo’ evidente de toda inteligibilidade possível, o postulado atual de toda
compreensão histórica”. Segundo esta perspectiva, “compreender os fenômenos
religiosos seria sempre”, segundo Certeau, “perguntar-lhes outra coisa do que
aquilo que eles quiseram dizer; (...) é entender como representação da sociedade
aquilo que, do seu ponto de vista [dos indivíduos do passado], fundou a socieda-
de”.32 Certeau estuda essa secularização em sua arqueologia religiosa de A escrita
da história, ao longo dos séculos XVI e XVII, acompanhando um processo em

27 O subtítulo “O não-dito” em CERTEAU, Michel de. A escrita da história. Op. cit, p. 67-69.

28 CERTEAU, Michel de. La rupture instauratrice. Op. cit, p. 202-203.

29 Id. Ibid., p. 207.

30 Id. Ibid., p. 198-199.

31 CERTEAU, Michel de, A escrita da história. Op. cit, p. 124.

32 Id. Ibid., p. 143.

447
que “a vida religiosa será cada vez mais o objeto e cada vez menos o princípio”.33
O primado do político, que tem seu início no século XVI e se adensa no século
seguinte, provoca a “ruptura instauradora” nas formas de pensar, de conceber, de
compreender, não só os aspectos religiosos, as crenças e as práticas, mas funda-
menta os esforços científicos de forma geral.34
De um lado, essa clareza de que a nossa capacidade de pensar, de atribuir
sentido, de interpretar (o que torna o passado pensável para nós) é produzida
pelo presente e, de outro lado, a especificidade que isto ganha ao se confrontar
com um objeto que tendemos a considerar religioso: o catolicismo oriental. Em
primeiro lugar, caberia relativizá-lo por meio de um plural: foram vários os cato-
licismos na Ásia a partir da chegada dos portugueses em 1498, que encontraram
ainda um cristianismo preexistente, o dos “cristãos de São Tomé”.
Em seguida, considera-se que os indivíduos, homens e mulheres, de al-
guma forma envolvidos nos espaços católicos na Ásia, os responsáveis pelas
instituições – conventos, ordens missionárias, agentes inquisitoriais –, os cató-
licos europeus ou os hindus e muçulmanos convertidos ao catolicismo, e ainda
os cristãos-novos estiveram ligados a uma crença. Em muitos casos, isto era
a única coisa que partilhavam, ao mesmo tempo em que esta não era a única
crença de que dispunham.
No âmbito da ordens religiosas e do Tribunal do Santo Ofício, poderíamos
pensar que o trabalho da historiografia tem resultado na produção de uma histó-
ria institucional da crença.35 Instituição e crença, ou doutrina, mantêm, porém,
segundo Certeau, uma complexa articulação: “A instituição não dá apenas uma
estabilidade social a uma “doutrina”. Ela a torna possível e, sub-repticiamente, a
determina”, por meio de uma correlação e não de uma relação de causa e efeito.36
Mas há uma multiplicidade de combinações que definem diferentes usos
das crenças e que transbordam nas trajetórias de conversos, de apóstatas, de
33 CERTEAU, Michel de. A escrita da história. Op. cit, p. 138.

34 CERTEAU, Michel. La rupture instauratrice. Op. cit, p. 187-226. Ver também, DOSSE. Op. cit, p. 130.

35 Para citar trabalhos da recente e crescente historiografia brasileira sobre o tema, ver TAVARES, Célia Cristina da Silva. Jesuítas e inquisidores em

Goa: a cristandade insular (1540-1682). Lisboa: Editora Roma, 2004; GONÇALVES, Margareth de Almeida. Império da Fé. Andarilhas da alma na era

barroca. Rio de Janeiro: Rocco, 2005, sobre a fundadora do Real Mosteiro das Mônicas em Goa, Filipa da Trindade; e FARIA, Patrícia Souza de. A

conquista das almas do Oriente. Franciscanos, catolicismo e poder colonial português em Goa (1540-1740). Rio de Janeiro: 7 Letras, 2013, principalmente

o capítulo 4: Traduzir a fé crista no Oriente: ideias e práticas missionárias franciscanas.

36 CERTEAU, Michel. A escrita da história. Op. cit, p. 70.

448
trânsfugas e suas identidades instáveis e negociáveis, e nas posturas de missioná-
rios. Duas ordens de abordagem se apresentam. Uma primeira se desenvolve no
interior da sociedade religiosa. Ali, “o saber se torna (...) um meio de se definir”.37
Não é difícil identificar, nesses contextos estudados, o instrumento de coesão
que a educação e a formação religiosa representam. A tradução e a produção de
catecismos, manuais de confissão, relatos de martírio e obras edificantes, aliadas
à educação formal confinada aos ambientes confessionais são alguns aspectos
dessa unidade que se busca pela partilha de um saber definido. No sentido in-
verso, na porosidade dessa coesão, há intransigência, tão bem perseguida pelos
historiadores, exercida por quem dispõe do poder de coerção e que se instaura
frente à ignorância e à indecisão expressa nas práticas dos fieis.
Se no modelo sociológico as práticas tomam o lugar da crença como objeto
religioso – mesmo que depois a própria crença se transforme em objeto, como
já vimos –, os momentos em que a missionação cristã na Ásia se viu forçada a
negociar, como nos casos da querela dos ritos chineses e dos ritos malabares
podem assim ser lidos como raros episódios em que os convertidos se expres-
saram por meio das práticas sem que isso, implicasse, no entanto, risco de pu-
nição. O saber que garantiria a unidade da sociedade religiosa foi, aqui e por
pouco tempo, negociável.
Numa segunda abordagem, importam as relações que a sociedade religiosa
estabelece com seu exterior, e Certeau sugere duas categorias que podem ajudar
a construir propostas de interpretação. Uma das formas de articular a alteridade
não escapa a quem estuda as manifestações do catolicismo na Ásia: “a estrutura
bipolar que constitui sempre como unidade exterior o que não é a Igreja. Este
será, por exemplo, o Infiel, o Ateu, o Herético, ou o ‘mundo’”.38
Uma outra categoria é o oculto. Certeau propõe como um exemplo a forma
como as sociedades religiosas no século XVII – num processo de politização da
Igreja – se relacionaram com a alteridade, fosse ela “pagã”, “ateia”, “natural”. No
período que lhe serve de objeto, o século XVII francês, verifica-se uma “não-vi-
sibilidade do sentido”. Isso que está oculto comandaria a retórica; no caso da pin-
tura e da literatura, o emprego da mitologia ou de representações religiosas teria
a função de enunciar algo ainda camuflado mas que muitos são já capazes de
entender. “Dir-se-ia”, escreve Certeau, “que uma sociedade inteira diz o que está

37 Id. Ibid., p. 133.

38 CERTEAU, Michel de. A escrita da história. Op. cit, p. 141.

449
construindo, com as representações do que está perdendo”.39 Aquilo que perde
a centralidade das explicações, o princípio religioso, ganharia outra roupagem e
acenaria para o que paulatinamente se tornará o “pensável”, o que será a fonte de
sentido. Os estudos sobre os grupos marginais, crescentes no âmbito das ciências
humanas, não desmentem essa conclusão quase profética de Certeau. A riqueza
de elementos que se oferece ao historiador se encontra também na perspectiva
de Jean-Claude Schmitt quando afirma que “uma sociedade se revela por inteiro
no tratamento de suas margens”.40

O objetivo deste breve artigo foi refletir sobre o estudo do catolicismo orien-
tal a partir de alguns elementos oferecidos pelas pesquisas e reflexões metodoló-
gicas de Michel de Certeau. Logo, não se trata de concluir ou esgotar as perspec-
tivas possíveis. Cabe retomar, no entanto, o papel desempenhado pelas rupturas
e pelas práticas, tanto no pensamento de Michel de Certeau quanto nos seus
objetos de análise e as relações que podem ser desenhadas com o catolicismo
ibérico. No século XVII, os portugueses viviam ao mesmo tempo o amadure-
cimento do cristianismo na Índia e o declínio da presença política e assim dos
meios de propagar e manter o catolicismo. Esse período coincide com o processo
de laicização da sociedade francesa, que iria se consolidar no século seguinte,
apontado por Certeau como responsável pela substituição do princípio religioso
pelo princípio político, da moral religiosa pela ética política.41
Certeau identifica que nesse processo, o papel agregador, controlador e cen-
tralizador no interior da sociedade francesa deixa de ser desempenhado pela
Igreja – porque não há só uma, já que uma heresia se fez igreja, como demons-
trou Alphonse Dupront42 – e passa a ser o poder político. A nação torna-se o
meio de unir uma sociedade dividida do ponto de vista religioso. A feitiçaria, o
misticismo e o ceticismo, fenômenos que traduziam a incapacidade das Igrejas

39 Id. Ibid., p. 140.

40 SCHMITT, Jean-Claude. L’histoire de marginaux. In: LE GOFF, Jacques (dir.), La nouvelle histoire. Paris: Editions Complexe, 1988 (1978), p. 285.

41 As análises sobre esse processo estão em “A formalidade das práticas”. CERTEAU, Michel de, A escrita da história. Op. cit, p. 152-208.

42 Retomado por CERTEAU. Michel de, A escrita da história. Op. cit, p. 132-133. Fernando Catroga analisa antecedentes deste processo já no século

XVI. A Igreja, assim como outros mediadores – a República, o Império ou o Monarca sacralizado – perdem força aglutinadora “como consequeência

de se terem aberto janelas à crença de que a ação humana poderia domar a “fortuna” (Maquiavel) e acrescentar à natureza algo de novo”. CATROGA,

Fernando. “Pátria e Nação”. In: Temas Setecentistas.Governos e Populações no Império Português. DORÉ, André; SANTOS, Antonio Cesar de Almeida

(Orgs.). Curitiba: UFPR/SCHLA /Fundação Araucária, 2009, p. 18-19.

450
de dar unidade à vida social surgiam também como ameaças à unidade política.
Essa mudança gerou também uma nova relação entre a prática e a teoria
– a crença, a doutrina, a ideologia – que a fundamenta. No novo contexto, a
ética política (que substitui a religião) define que a prática religiosa precisa
também ser útil.43
Podemos unir Espanha e Portugal nessa análise e afirmar que os países ibé-
ricos viveram a passagem do princípio religioso para o princípio político de for-
ma diferente daquela identificada na França. A laicização da sociedade não se
registrou nesses países obedecendo à mesma cronologia. Seguindo a terminolo-
gia de Certeau, verifica-se que a Igreja católica em Portugal pôde desempenhar
a função agregadora por mais tempo; não foi, assim, necessário que a nação ou
a pátria ocupassem o seu lugar. Mas o que dizer das divisões religiosas vividas
nos espaços coloniais? Do ponto de vista político, podemos visualizar melhor
as diferenças entre um cenário em que se opunham católicos e protestantes e
um outro em que estão em jogo o catolicismo e religiões não cristãs. Mas no
plano das crenças e suas práticas, diferentes manifestações da espiritualidade
registraram cisão social e enfrentamentos que demandam outras análises cujo
foco estaria no “objeto religioso”.
A trajetória de um indivíduo pode indicar caminhos de pesquisa para a
compreensão das práticas religiosas no Estado da Índia, em diálogo com outras
variáveis já citadas: poder político, misticismo, rupturas que incitam à busca de
outras fontes de explicação. Trata-se das experiências místicas do jesuíta portu-
guês, profeta e visionário Pedro de Basto. Conhecemos sua vida e suas inume-
ráveis visões por meio da Historia da Vida do Venerável Irmão Pedro de Basto,
de 1689, uma extensa obra de mais de seiscentas páginas onde as memórias do
biografado se misturam de forma complexa com a pena erudita de seu biógrafo,
o também jesuíta Fernão de Queiroz.44 Basto teria interessado particularmente
a Michel de Certeau.
Patrick Royannais assim sintetiza a forma como o historiador compreen-
dia o misticismo no interior da sociedade francesa: o discurso místico tentava

43 CERTEAU, Michel de. A escrita da história. Op. cit, p. 172.

44 QUEIRÓS, Fernão de. Historia da vida do veneravel irmão Pedro de Basto Coadjutor temporal da Companhia de Jesus... / ordenada pelo Padre Fernão

de Queyros. Em Lisboa: Na Officina de Miguel Deslandes, Impressor de Sua Magestade, 1689.

451
arrancar, da objetividade do discurso da teologia que se tornou científica, uma
possibilidade de falar de Deus de outra forma sem reduzi-lo a um saber.45 Na
origem dessa procura mística estaria a politização da religião. “Surda, a seculari-
zação crava sua bandeira sobre a terra, certa de si, soberana. (...) A mística foi o
luto vivido, o luto, “esse anjo noturno”. 46
A trajetória visionária de Pedro de Basto – ele tinha, segundo o excelente
estudo de Zoltán Biedermann, de duas a três visões por dia – pode ser inserida
nesta busca mística de uma proximidade com Deus, de um “espaço alternativo
(...) para si e suas visões”.47 O biógrafo, Fernão de Queiroz, escreve que ao final
de sua vida Basto “deste tempo em diãte não tratou mays de apontar o que via,
ocupado somente com o que desejava, já em vésperas da morte, & com os olhos
da alma na visão Beatifica, que mays o convidava”.48 Recusa do mundo, proxi-
midade com Deus, sim, mas como compreender suas motivações? Qual o papel
exercido nesse processo pela secularização, considerando-se a sociedade portu-
guesa – e asiática – do século XVII? Vivia Pedro de Basto também o seu luto?
Questões instigantes para futuras pesquisas.

45 ROYANNAIS, Patrick. Michel de Certeau: L’Anthropologie du croire et la théologie de La Faiblesse de Croire. In. Recherches de Science Religieuse,

Tome 91, 2003/4, p. 501.

46 PETITDEMANGE, Guy. Le deuil impossible de la mystique. In: Michel de Certeau. Les chemins d’histoire. Op. cit, p. 42. A expressão “anjo noturno”

é de Certeau.

47 BIEDERMANN, Zoltán. Um outro Vieira? Pedro de Basto, Fernão de Queiroz e a profecia jesuítica na Índia portuguesa. In: CARDIM, P. (ed.) An-

tónio Vieira, Roma e o Universalismo das Monarquias Portuguesa e Espanhola. Centro de Historia de Alem-Mar / Università Degli Studi Roma Tre /

Red Columnaria: Lisbon, p. 171.

48 Vida, p. 415, apud Id. Ibid., p. 172.

452
AUTORES

Ana Isabel López-Salazar


Professora da Universidad Complutense de Madrid e pesquisadora do
CIDEHUS-UE (Centro Interdisciplinar de História, Culturas e Sociedades da
Universidade de Évora). Autora de livros e artigos, dentre os quais Inquisición
y política. El gobierno del Santo Oficio en el Portugal de los Austrias (1578-
1653), Lisboa, CEHR-UCP, 2011; Inquisición portuguesa y Monarquía Hispáni-
ca en tiempos del perdón general de 1605, Lisboa, Edições Colibri – CIDEHUS/
UE, 2010 e “La relación entre las Inquisiciones de España y Portugal en los si-
glos XVI y XVII: objetivos, estrategias y tensiones”, Espacio, Tiempo y Forma.
IV serie: Historia Moderna, 25 (2012), pp. 223-252. No momento trabalha em
livro sobre as relações entre a Inquisição e os cabidos catedrais no Portugal da
Época Moderna.

Anderson José Machado de Oliveira


Professor do Departamento de História da Universidade Federal do Estado
do Rio de Janeiro – UNIRIO e Pesquisador do CNPq. Autor e organizador de
livros e artigos, dentre os quais Devoção Negra: santos pretos e catequese no Bra-
sil Colonial. Rio de Janeiro: Quartet, 2008; com William Martins organizou Di-
mensões do Catolicismo no Império Português (séculos XVI-XIX). Rio de Janeiro:
Garamond, 2014;”Dispensa da cor e clero nativo: poder eclesiástico e sociedade
católica na América Portuguesa. In: OLIVEIRA, Anderson José M. de & “Traje-
tórias de clérigos de cor na América Portuguesa” Dossiê Temas sobre Clero en
espacios ibero-americanos coordenado por AYROLO, Valentina & OLIVEIRA,
Anderson José M. de. Revista ANDES n° 25, 2014; “As Irmandades Religiosas na
Época Pombalina: algumas considerações”. In: FALCON, Francisco e RODRI-
GUES, Claudia. A “Época Pombalina” no mundo Luso-Brasileiro. Rio de Janeiro:
FGV, 2015. Atualmente desenvolve pesquisa sobre ordenação ao clero secular de
descendentes de negros no período colonial brasileiro.

453
Andréa Doré
Professora do Departamento de História da Universidade Federal do Para-
ná. Autora e organizadora de livros e artigos, dentre os quais Sitiados. Os cercos
às fortalezas portuguesas na Índia (1498-1622). São Paulo: Alameda, 2010; com
Luís Filipe Silvério Lima e Luiz Geraldo Silva. Facetas do Império na História:
conceitos e métodos. São Paulo: Hucitec, 2008. Entre os artigos se destacam
“America Peruana e Oceanus Peruvianus: uma outra cartografia para o Novo
Mundo”. Tempo, vol. 20. nº 36,Niterói, 2014, p. 1-22 e “O deslocamento de inte-
resses da Índia para o Brasil durante a União Ibérica: mapas e relatos”. Colonial
Latin American Review, Vol. 23, Issue 02, 2014, p. 172-197. Atualmente realiza
pesquisa sobre a influência das minas de Potosi tanto nas representações da geo-
grafia da América do Sul quanto na formação de expectativas para todo o conti-
nente no início do período moderno.

Angelo Adriano Faria de Assis


Professor do Departamento de História da Universidade Federal de Viçosa.
Autor e organizador de livros e artigos, dentre os quais Macabeias da Colônia:
Criptojudaísmo feminino na Bahia. 1. ed. São Paulo: Alameda Editorial, 2012;
João Nunes, um rabi escatológico na Nova Lusitânia: sociedade colonial e inqui-
sição no nordeste quinhentista. 1. ed. São Paulo: Alameda, 2011, com MATTOS,
Yllan; MUNIZ, Pollyanna Gouveia Mendonça & RODRIGUES, Aldair Carlos
(orgs.). Edificar e transgredir: clero, religiosidade e Inquisição no espaço ibero-a-
mericano (séculos XVI-XIX). Jundiaí: Paco Editorial, 2016; e com MANSO, Ma-
ria de Deus Beites e LEVI, Joseph Abraham. A Expansão: quando o mundo foi
português. Da conquista de Ceuta (1415) à atribuição da soberania de Timor-
-Leste (2002). 1. ed. Évora; Viçosa; Washington:NICPRI;CCH,2014.

Beatriz Catão Cruz Santos


Professora do Instituto de História da Universidade Federal do Rio de Janei-
ro. Publicou os livros O pináculo do temp(l)o; o Sermão do Padre Antônio Vieira
e o Maranhão do século XVII. UnB, 1997; O Corpo de Deus na América; a festa de

454
Corpus Christi nas cidades da América Portuguesa – século XVIII. Annablume,
2005. É autora de diversos artigos sobre ritos político-religiosos no mundo luso-
-brasileiro, como Os senhores do tempo: a intervenção do bispado na procissão
de Corpus Christi no século XVIII. Tempo. Revista do Departamento de Histó-
ria da UFF, v. 16, p. 165-190, 2012; Os ofícios mecânicos e a procissão de Corpus
Christi no Arquivo Municipal de Lisboa – séculos XVII e XVIII. Locus (UFJF),
v. 21, p. 463-493, 2015. Desenvolve a pesquisa “Os artífices e as festas. Corpus
Christi em Lisboa, Porto e Rio de Janeiro no século XVIII”.

Célia Maia Borges


Professora Titular em História da Universidade Federal de Juiz de Fora
(UFJF). É autora, dentre outros trabalhos, de Escravos e Libertos nas Irmandades
do Rosário. Juiz de Fora: Editora da UFJF, 2005; Os Eremitas e o Ideal de Santi-
dade no Imaginário Português. O Deserto dos Carmelitas Descalços. Lusitania
Sacra., 2ª série, Tomo XXIII, (janeiro-junho 2011), Lisboa/Centro de Estudos de
História Religiosa.; Narrativas e Imagens Religiosas: os eremitas no imaginário
coletivo na Península Ibérica. BORGES, Célia Maia (Org.). Narrativas, Imagens.
Juiz de Fora, MG: Editora da UFJF, 2008, pp. 77-94. Desenvolve atualmente pes-
quisa sobre «Eremitas e Beatas na América Portuguesa».

Isabel dos Guimarães Sá


Professora do Departamento de História e Centro de Estudos de Comuni-
cação e Sociedade, ambos na Universidade do Minho. Dentre as publicações,
destacam-se Leonor de Lencastre. De princesa a rainha-velha. Lisboa: Círculo
de Leitores, 2011; Quando o rico se faz pobre: Misericórdias, caridade e poder no
Império Português, 1500-1800 . Lisboa: Comissão Nacional para as Comemora-
ções dos Descobrimentos Portugueses, 1997; “Catholic Charity in Perspective:
The Social Life of Devotion in Portugal and its Empire (1450-1700)” “, e-Journal
of Portuguese History, 4 (2004): 1 – 20. No momento desenvolve pesquisa sobre
os doadores da Santa Casa da Misericórdia do Porto, família, relações sociais e
cultura material.

455
Isabel M. R. Mendes Drumond Braga
Professora da Faculdade de Letras da Universidade de Lisboa e do CI-
DEHUS-UE (Centro Interdisciplinar de História, Culturas e Sociedades da Uni-
versidade de Évora). Autora de diversos livros e artigos, dentre os quais Viver e
Morrer nos Cárceres do Santo Ofício, Lisboa: A Esfera dos Livros, 2015; Sabores e
Segredos. Receituários Conventuais Portugueses da Época Moderna, Coimbra, Im-
prensa da Universidade de Coimbra/Annablume, 2015 e Animais e Companhia
na História de Portugal, coordenação com Paulo Drumond Braga, Lisboa, Círcu-
lo de Leitores, 2015. No momento desenvolve pesquisa sobre Os Primórdios do
Vegetarianismo em Portugal e sobre Gênero e Trabalho no Portugal Moderno.

Jacqueline Hermann
Professora do Instituto de História e do Programa de Pós-graduação em
História Social (PPGHIS) da Universidade Federal do Rio de Janeiro, autora de
livros e artigos, dentre os quais No Reino do Desejado. A construção do sebastia-
nismo em Portugal, séculos XVI-XVII. São Paulo: Companhia das Letras, 1998;
O sonho da salvação: 1580-1600. São Paulo: Companhia das Letras, 2000; orga-
nizadora, com Fernando Catroga e Francisca Lúcia Nogueira de Azevedo, de
Memória, escrita da História e cultura política no mundo luso-brasileiro. Rio de
Janeiro: FGV Editora, 2012; Um papa entre dois casamentos: Gregório XIII e a
sucessão de Portugal. Portuguese Studies Review, 2016; Between Prophecy and
Politics: The Return to Portugal of Dom Antônio, Prior of Crato, and the Early
Years of the Iberian Union. Visions, Prophecies And Divinations: Early Modern
Messianism and Millenarianism in Iberian America, Spaind and Portugal;. Edi-
ted by Luís Filipe Silvério Lima and Ana Paula Torres Megiani. Leiden: Brill,
2016. Coordenadora do Laboratório Sacralidades do IH/UFRJ, Pesquisadora do
CNPq. No momento desenvolve pesquisa sobre a resistência de D.Antônio, Prior
do Crato, ao domínio Habsburgo em Portugal nos arquivos do Vaticano e de
Veneza (1578-1603).

456
Luciana Gandelman
Professora Departamento de História e Relações Internacionais e do Pro-
grama de Pós-graduação em Historia da UFRRJ e Coordenadora do Laboratório
de Mundos Ibéricos da UFRRJ (LAMI). Dentre as publicações recentes, desta-
cam-se, organização com GONÇALVES, Margareth; FARIA, Patricia. Religião e
linguagem nos mundos ibéricos: identidades, vínculos sociais e instituições. Sero-
pédica: EDUR, 2015; A usura na inquisição: o processo de Francisco de Araujo
no tribunal de Évora (1604) e a questão da delimitação da usura em Portugal.
GANDELMAN, Luciana; GONÇALVES, Margareth; FARIA, Patricia (org.) Re-
ligião e linguagem nos mundos ibéricos: identidades, vínculos sociais e instituições.
Seropédica: EDUR, 2015 e O poder dos bens desse mundo: um exercício de
indagação sobre o testamento seiscentista de João de Matos de Aguiar. SÁ, Isabel
dos Guimarães; GARCIA Fernandez, Máximo (orgs.) Portas adentro: comer, ves-
tir , habitar (sécs. XVI-XIX) Coimbra-Valladolid: Imprensa Universidade, 2010.
Presentemente dá prosseguimento a investigação acerca da interseção entre re-
ligião e relações econômicas por meio da análise das cartas de perdão régio no
Portugal do século XVII.

Luís Filipe Silvério Lima


Professor de História Moderna da Universidade Federal de São Paulo (Uni-
fesp). Dentre os vários trabalhos, destacam-se, o livro organizado com Megiani,
Ana Paula Torres (org). Visions, prophecies and divinations. Leiden: Brill, 2016;
Império dos sonhos. São Paulo: Alameda, 2010 e com DORÉ, Andréa e SILVA,
Luiz Geraldo. Facetas do imperio na História. São Paulo: Hucitec, 2008. No mo-
mento desenvolve pesquisa sobre os Apócrifos sebastianistas de Vieira: discur-
sos proféticos, autoria e circulação de manuscritos (séc. XVII-XVIII) Esperanças
da Quinta Monarquia: profetismo, experiência e expectativa. Séc. XVII.

Margareth de Almeida Gonçalves


Professora do Departamento de História e Relações Internacionais e do
Programa de Pós-Graduação em História da Universidade Federal Rural do Rio

457
de Janeiro (PPHR-UFRRJ), autora, dentre outros trabalhos, de A edificação da
cristandade no Oriente português: questões em torno da Ordem dos Eremitas
de santo Agostinho no limiar do Século XVII. Revista de História, São Paulo:
USP, n. 170, p. 107-141, 2014; “Gloria de Deus, ao serviço do Rei e ao bem desta
Republica”: freiras de Santa Mônica de Goa e a cristandade no oriente pela es-
crita do agostinho frei Diogo de Santa Anna na década de 1630.” História, São
Paulo (Online), v. 32, p. 251-280, 2013 e Império da Fé. Andarilhas da Alma na
Época Barroca. Rio de Janeiro: Editora Rocco, 2005. Atualmente, coordena dois
projetos de pesquisa: “Os agostinhos e a fabricação do oriente cristão (séculos
XVI-XVII)” e “A Congregação da Índia Oriental dos eremitas de Santo Agosti-
nho: trajetórias, práticas de escrita e gênero (1590-1640)”.

Marina de Mello e Souza


Professora do Departamento de História da FFLCH – USP, autora de Paraty,
a cidade e as festas; Reis negros no Brasil escravista. História da festa de coroação de
rei congo e África e Brasil africano. Atualmente desenvolve pesquisa sobre a Or-
dem de Cristo no Congo, séculos XVII-XX, com bolsa de produtividade do CNPq.

Patrícia Souza de Faria


Professora do Departamento de História e Relações Internacionais e do
Programa de Pós-Graduação em História da Universidade Federal Rural do Rio
de Janeiro – UFRRJ. Desenvolve pós-doutoramento no Centro de Investigação
em Ciência Política da Universidade de Évora e no Centre des Recherches His-
toriques – École des Hautes Études en Sciences Sociales (EHESS). Autora do
livro A conquista das almas do Oriente: franciscanos, catolicismo e poder colo-
nial português em Goa (1540-1740), Rio de Janeiro: 7Letras, 2013; com GON-
ÇALVES, Margareth; GANDELMAN, Luciana, organizou Religião e linguagem
nos mundos ibéricos: identidades, vínculos sociais e instituições. Seropédica, RJ:
EDUR (Ed. da UFRRJ), 2015; Os concílios provinciais de Goa: reflexões sobre o
impato da Reforma Tridentina’ no centro do império asiático português (1567-
1606). Topoi, v.14, 2013. Desenvolve o projeto de investigação De Goa a Lisboa:

458
religiosidades e vida cotidiana de escravos asiáticos processados pela Inquisição”
(séculos XVI e XVII), com apoio da CAPES (Bolsa de Estágio Pós-doutoral)
e da FAPERJ (Programa Jovem Cientista do Nosso Estado). Integra o projeto
temático “Pensando Goa: uma peculiar biblioteca de língua portuguesa” (FFL-
CH-USP), financiado pela FAPESP.

Ronaldo Vainfas
Professor Titular de História Moderna da UFF (aposentado) e Professor
Visitante da UERJ-FFP. Autor de Trópico dos Pecados. Moral, Sexualidade e In-
quisição no Brasil. 2a.edição. Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, 2010; Here-
sia dos Índios. Catolicismo e rebeldia no Brasil colonial. São Paulo: Companhia
das Letras, 1995; Traição. Um jesuíta a serviço do Brasil holandês processado
pela Inquisição. São Paulo: Companhia das Letras, 2008; Jerusalém Colonial. Ju-
deus portugueses no Brasil holandês. Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, 2010.
No momento desenvolve pesquisa sobre Olinda & Olanda – o Brasil holandês
como situação-limite da colonização, com financiamento do CNPQ (I-A) e da
FAPERJ (Cientista do Estado).

Valentina Ayrolo
Investigadora do CONICET, Professora do Departamento de História da
Universidad Nacional de Mar del Plata – UNMDP, Professora do Programa de
Pós-graduação em História da Universidade Federal de Santa Maria. Autora de
Funcionarios de Dios y de la República: clero y política en la experiência de las au-
tonomías provinciales. Buenos Aires: Biblos, 2007; El mundo clerical riojano en
la vicaría foránea de La Rioja, entre finales del siglo XVIII y principios del XIX,
Dossiê Temas sobre Clero en espacios ibero-americanos, coordenado pela auto-
ra e por OLIVEIRA, Anderson José M. de. Revista ANDES n° 25, 2014; El lugar
de los regulares. Reformas, restauración y nuevo orden en el mundo iberoame-
ricano: Argentina y Brasil en clave comparada. Revista de História Comparada,
Programa de Pós-Graduação em História Comparada-UFRJ, Volume 9 – Nú-
mero 1 – junho/2015; ¿Nuevos integrantes para el clero secular? La inserción

459
del clero secularizado en las estructuras diocesanas de Cuyo entre 1824-1840.
BARRAL, María Elena y SILVEIRA, Marco Antonio (coordenadores). Historia,
poder e instituciones. Diálogos entre Brasil y Argentina. Rosario: Prohistoria/Uni-
versidad Nacional de Rosario, 2015. Atualmente desenvolve pesquisa sobre me-
diação e intermediação política e religiosa no processo de construção do Estado
Nacional Argentino.

William de Souza Martins


Professor Adjunto do Instituto de História e do Programa de Pós-graduação
em História Social (PPGHIS) da Universidade Federal do Rio de Janeiro (UFRJ).
Autor de Membros do corpo místico: ordens terceiras no Rio de Janeiro (c. 1700-
1822). São Paulo: Edusp, 2009; de O casamento espiritual da beata Josefa do Sa-
cramento: análise de um processo inquisitorial do século XVIII. Varia História
(UFMG). Belo Horizonte, v. 31, p. 451-478, 2015; e organizador, em parceria
com Anderson José Machado de Oliveira, de Dimensões do catolicismo no impé-
rio português (séculos XVI-XIX). Rio de Janeiro: Garamond, 2014, além de outros
livros, capítulos e artigos em periódicos. Atualmente, desenvolve pesquisas so-
bre conflitos conjugais no Rio de Janeiro do período joanino e sobre modelos de
santidade na América Portuguesa.

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www.editoramultifoco.com.br
Este livro foi composto em Crimson pela
Editora Multifoco e impresso em papel offset 75 g/m².

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