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UNIVERSIDADE FEDERAL DO RIO DE JANEIRO

CENTRO DE FILOSOFIA E CIÊNCIAS HUMANAS


INSTITUTO DE FILOSOFIA E CIÊNCIAS SOCIAIS

OS CATIVOS DA FÉ

IGREJA CATÓLICA, RELIGIOSIDADES NEGRAS E


ESCRAVIDÃO NA AMÉRICA PORTUGUESA

LEONARDO CARVALHO BERTOLOSSI

RIO DE JANEIRO
2006
2

LEONARDO CARVALHO BERTOLOSSI

OS CATIVOS DA FÉ

IGREJA CATÓLICA, RELIGIOSIDADES NEGRAS E


ESCRAVIDÃO NA AMÉRICA PORTUGUESA

Monografia apresentada como exigência


parcial para obtenção do título de graduação
em Bacharelado em História pelo Instituto de
Filosofia e Ciências Sociais da Universidade
Federal do Rio de Janeiro sob a orientação da
Professora Drª. Juliana Beatriz Almeida de
Souza.

RIO DE JANEIRO
2006
3

À memória de

‘Magdalena’ (Maria Magda Fernandes) e

‘Neidinha’ (Lucineide Monteiro Alves).


4

Agradecimentos

Gostaria de agradecer primeiramente à minha mãe e ao meu pai pelo estímulo e


apoio sempre presente. Em especial à minha mãe, que sempre foi uma grande
incentivadora, e que sempre se interessou em acompanhar e me auxiliar em minha
trajetória no curso.

Gostaria de agradecer aos meus amigos Tatiana Firmino Tavares, Fábio Mitsuo
Kuriyama, Renato Marques, Ana Paula Mello, e especialmente Luiz Carlos Nunes
Martins, que foram aliados constantes e alicerces importantes frente às dificuldades que
surgiram. Este agradecimento se estende também a vários outros amigos, familiares e
colegas da graduação, como Denize Larche, que direta ou indiretamente sempre
estiveram presentes e que torceram por mim ao longo da graduação.

Gostaria de agradecer à minha orientadora Juliana Beatriz que me ajudou a ‘parir’


este trabalho, e aos professores Flávio Gomes, Celeste Zenha, e Manoel Salgado, dentre
outros, que me deram oportunidades de crescimento e fomentaram ainda mais minha
vontade de ser historiador.

Gostaria de agradecer aos orientadores e companheiros de pesquisas Peter Fry,


Patrícia Farias, Cristiana Facchinetti, Heloísa Ribeiro, e André Pereira Neto, que me
abriram portas para meu crescimento profissional e pessoal.

Gostaria de dedicar um agradecimento especial à Clara de Góes e a Carlos Kessel


por tudo o que fizeram por mim ao longo de minha passagem pelo curso. Suas presenças
fizeram a diferença e são muito estimadas por mim.

À todos vocês, muito obrigado.


5

“E o povo negro entendeu


Que o grande vencedor
Se ergue além da dor
Tudo chegou
Sobrevivente num navio
Quem descobriu o Brasil
Foi o negro que viu
A crueldade bem de frente
E ainda produziu milagres
De fé no Extremo Ocidente”

(Milagres do Povo, Caetano Veloso)


6

Sumário

I –Resumo .................................................................................................. 7
II –Introdução .............................................................................................. 8
1 –A Expansão da Igreja Católica na América Portuguesa ........................ 10
1.1 –A Igreja Católica chega aos trópicos .......................................... 11
1.2 – Expandir o território da fé: O pioneirismo jesuítico, os índios e
os negros .................................................................................................... 14
1.3 – A Igreja entre o Padroado português e as capelas dos
primeiros povoados .................................................................................... 18
2 – As Afro-Religiosidades e o Catolicismo Negro na América Portuguesa
..................................................................................................................... 26
2.1 – Catolicismo e afro-religiosidades populares na América
Portuguesa ................................................................................................. 27
2.2 –Religiosidades afro-católicas públicas e privadas ..................... 30
2.3 –Os calundus e as mandingas negras ......................................... 34
2.4 –O catolicismo negro ................................................................... 39
3 –O Catolicismo das Irmandades Negras na América Portuguesa ........... 45
3.1 –A devoção sagrada e profana das irmandades negras .............. 46
3.2 – Diversidade, identidades e relações de poder nas irmandades
negras ......................................................................................................... 50
3.3 –Solidariedades e resistências nas irmandades negras .............. 55
4 –Conclusão .............................................................................................. 61
5 –Bibliografia ............................................................................................. 63
7

Resumo

O presente trabalho consiste no estudo histórico da presença da Igreja Católica


na América portuguesa e da relação do surgimento do catolicismo colonial a
partir da interação com as religiosidades populares, com ênfase nas de origem
africana; assim como os usos simbólicos e políticos que os negros escravizados
fizeram deste catolicismo. O escopo determinado dá conta dos séculos de
evangelização missionária e catequética, a dizer, entre os quinhentos e os
setecentos, período de estruturação da Igreja Católica, de resistências e
resignificação das existências negras sob a escravidão e a Igreja, e de
desenvolvimento e crescimento econômico e urbano na Colônia. Pretendeu-se
compreender como se verificou a montagem da estrutura eclesiástica colonial
diferente dos moldes do Padroado e de Trento; e da relação desta com os
fatores que permitiram um catolicismo colonial sincrético e dialético com as
religiosidades populares, especialmente as negras africanas, permitindo o
surgimento do catolicismo negro das irmandades. A partir das fontes podemos
constatar os múltiplos significados que a Igreja e o catolicismo colonial
adquiriram ao longo do processo diferentes do projeto original da Metrópole, a
partir da resistência e crítica dos negros à diáspora e à escravidão através da
manipulação negociada e reapropriação dos códigos religiosos dominantes que
lhes foram impostos pela Igreja Católica.

Palavras-chave: Igreja Católica, Escravidão, Irmandades Negras.


8

Introdução

Este trabalho tem por objetivo investigar a atuação dentro da Igreja Católica, dos
negros africanos que foram trazidos através do tráfico de escravos para a América
portuguesa entre os quinhentos e os setecentos.
Pretende-se observar como o catolicismo, com o qual tiveram contato muitas das
vezes de maneira imposta ao longo da escravidão, permitiu que os africanos escravizados
reconstruíssem suas existências, culturas, tradições, ancestralidades, e identidades sociais.
Pretende-se investigar ainda como através do contato com a Igreja, os negros africanos
transformaram os novos códigos culturais, aos quais foram submetidos, a sua maneira,
segundo suas demandas simbólicas e políticas, resistindo e resignificando a experiência
escravista.
Para tanto, no primeiro capítulo, tentarei apontar a entrada da Igreja Católica na
Colônia, como esta se deu, os objetivos originalmente previstos e as relações de poder em
questão, assim como qual fora o desdobramento da atuação dos muitos clérigos, a serviço
da Coroa portuguesa, no território colonial sobre os índios e negros. Discutirei ainda quais
foram os conflitos existentes que alteraram o projeto original de colonização missionária,
que acabou por se efetivar em grande parte, como veremos, através da atuação das ordens
seculares e leigas no catolicismo colonial produzido nas capelas de engenho e
posteriormente nas irmandades religiosas.
Em seguida, no segundo capítulo, procurarei mapear ao longo dos séculos de
evangelização, as várias expressões do catolicismo colonial elaborado em constante
interação com as religiosidades populares formuladas pelos diversos grupos étnicos que
habitavam a Colônia. Plasmando assim ao longo do processo histórico aqui investigado,
uma diversidade de expressões da fé que não estavam previstas no sentido original da Igreja
na América portuguesa esboçado pelo Padroado e sob as decisões da Reforma Católica e do
Concílio de Trento. Estas religiosidades híbridas se tornaram muito difíceis de controlar
num primeiro momento, mas entre negociações e muitos conflitos, muitas delas acabaram
por serem incorporadas à Igreja Católica colonial.
Destas religiosidades populares, muitas delas tidas como ‘perigosas’ e ‘desviantes’,
destacarei os aspectos públicos e privados das crenças católicas e também as de origem
9

africana e negra, algumas destas chamadas ‘calundus’. A partir da análise de relatos de


viajantes, de missionários, de colonos, identificados na historiografia especializada no
tema, procurarei mostrar alguns aspectos destas religiosidades ancestrais que sobreviveram,
como os calundus, que deram origem ao que é hoje a umbanda e o candomblé. Os calundus
e as mandingas negras se tornaram tão populares no período da colonização da América
portuguesa que, como veremos, sob diversos aspectos adentraram a Igreja Católica e
permitiram aos negros elaborarem um catolicismo a parte, um ‘catolicismo negro’, que era
vivenciado nas irmandades leigas de homens pretos.
No terceiro e último capítulo, os ‘cativos da fé’, personagens da trama histórica aqui
investigada, terão destaque na observância dos compromissos e estatutos das irmandades
negras pela historiografia, em que serão identificados e analisados procedimentos, regras,
relações de poder, dentre outras expressões criativas que compuseram a articulação da
vivência simbólica e política de suas identidades culturais dentro das irmandades que,
também, serviram como espaços de resistências e sobrevivência ao sistema escravista que
os oprimia. As diversas facetas do catolicismo negro das irmandades serão aprofundadas
neste capítulo, em especial, a devoção aos santos negros, as festas religiosas, os conflitos
entre as irmandades religiosas e os visitadores eclesiásticos, a hierarquia da morte no
enterro dos membros, e, principalmente, a relação do catolicismo colonial das irmandades
com suas heranças do pensamento mágico medieval ainda fortemente presente na moderna
religiosidade católica européia, trazidas para o Além Mar através dos primeiros
missionários que aqui estiveram.
Este trabalho pretende assim investigar os caminhos traçados pelos ‘cativos da fé’,
negros africanos e crioulos, escravos e libertos, que fizeram do catolicismo um instrumento
de contestação, de resistência e de sobrevivência ao cativeiro da escravidão ao qual estavam
submetidos na América portuguesa.
10

CAPÍTULO 1

A EXPANSÃO DA IGREJA CATÓLICA


NA AMÉRICA PORTUGUESA
11

1.1 –A Igreja Católica chega aos trópicos

Quando da investida de Portugal e Espanha pelo Além Mar a conquistar e converter


povos e terras nunca dantes navegadas, a Igreja católica teve papel fundamental e foi
importante aliada. A aliança da Igreja serviu aos interesses das Coroas ibéricas em seu
rompante de expandir impérios, como ‘ímã’, gentes diversas, a alterar uma diversidade de
culturas, mentalidades e identidades, através da expansão do cristianismo, que interessava a
Igreja da Contra-Reforma.
Império ultramarino português a princípio vasto e desconhecido, exercer tal labor se
tornou missão árdua e ‘purgatória’. Terras estas antes vistas como um paraíso se
converteram num imaginário de brasa e dor, de pecado, culpa e caos, e de expiação,
justificando assim a urgência da ação missionária na salvaguarda e manutenção do
equilíbrio do império de Deus e dos homens.
Protestantes se atomizaram na Europa contra uma frágil e fragmentada Igreja
católica que se rearranjava estrategicamente a fim de fazer sobreviver seu poder público e
privado cada vez mais indeterminados e confusos sobre as monarquias européias e seus
impérios. A lenta e desarmônica montagem de uma estrutura eclesiástica frágil nas
Colônias ultramarinas portuguesas na América, África e Ásia, decorreu desta tentativa de
fincar uma marca de conquista e controle.
Controle brando, ‘frouxo’, e fragmentado nas Colônias ultramarinas portuguesas nas
quais atuaram diversas ordens religiosas, cargos eclesiásticos, complexas hierarquias
clericais regulares, seculares, e leigas, com expectativas de atuação das mais variadas sobre
o corpo e a subjetividade dos gentios da terra, escravos negros e sobre os territórios,
redinamizaram o projeto português da cristandade para o Ultramar. A péssima comunicação
da Igreja colonial com Portugal, aliada aos conflitos e resistências para com a base
simbólica do poder político-religioso que consistia no Padroado também colaboraram para
uma experiência religiosa diferente da prevista e desejada pelos colonizadores.
O Padroado por sua vez também possuidor de muitos conflitos com o Patronato
espanhol, e estes dois com a Santa Sé, fizeram com que a gestão da Igreja na América
portuguesa se efetivasse de maneira autárquica, espontânea, experimental e cotidiana, na
capela de engenho, plasmando assim um catolicismo colonial singular e múltiplo,
12

sincrético, dialético e plástico. O sentido de ‘irmandade universal’ presente no discurso


político das Coroas ibéricas foi por diversos fatores constantemente posto em xeque.
É sobre a tessitura deste “ aprendizado da colonização1” que permitiu a expansão da
Igreja católica na América portuguesa através da montagem de uma frágil estrutura
eclesiástica e do surgimento de um catolicismo colonial híbrido e em constante interação e
integração com os diversos credos e crenças, dentre elas algumas tidas como ‘infiéis’ pelas
Coroas ibéricas presentes na Colônia, assim como as resistências decorrentes destas
expressões religiosas, que se pretende investigar.
Certa vez D. João III afirmou, conforme destacou E. Hoornaert, que o principal
motivo que o “levou a colonizar o Brasil é converter os povos que lá vivem à nossa Santa fé
católica2”. Este foi o argumento principal elaborado pela Coroa portuguesa para a expansão
católica pelos territórios coloniais, embora muitos outros interesses estivessem em jogo. As
‘prioridades espirituais’ afirmadas por este discurso eram a conversão dos índios, cujas
religiões eram vistas como ‘idolatria’, superstição, ou desvio da ‘Santa fé católica’. Era
interesse da Coroa portuguesa a expansão da Igreja e a difusão da ‘verdadeira fé’ aos tidos
‘na escuridão’.
Para os índios, no entanto, a idéia de evangelização que se deu na América
portuguesa por três séculos era vista de maneira bastante diferente, como exploração e
escravidão. Segundo palavras de um velho índio de nome Momboré-Uaçu:

Os portugueses mandaram buscar seus padres, que


chegaram e ergueram cruzes e começaram a ensinar o
nosso povo e a batizá-lo. Mais tarde, os portugueses
disseram que nem eles nem seus padres podiam viver
sem escravos para servi-los e trabalhar para eles3.”
E. Hoonaert pontua que:

“as ordens religiosas dirigiram suas atividades


prioritariamente para a conversão dos índios e, pode-se
1
Cf. ALENCASTRO, Luiz Felipe de. O aprendizado da colonização. In: O trato dos viventes: Formação do
Brasil no atlântico sul. São Paulo: Cia. das Letras, 2000.
2
HOONAERT, E. A evangelização e a cristandade durante o primeiro período colonial In: História da Igreja
no Brasil. Petrópolis: Vozes, 1977. p. 24.
3
D’ABBEVILLE, Claude. Histoire de la mission des pères capucins de i’ile de maragnon et terres
circonvoisines apud. HOONAERT, E. A Igreja Católica no Brasil Colonial in: BETHELL, Leslie (org.).
História da América Latina: América Latina colonial. São Paulo: Fund. Alexandre de Gusmão/Edusp, 1997.
p. 553.
13

dizer, à transformação de seu modo de vida e de


trabalho de modo a se adaptarem às novas prioridades
do Estado colonizador português4.”
Resistências à escravidão indígena, desacordos entre clérigos regulares de distintas
ordens entre si e também com clérigos seculares e leigos, e entre estes todos com os
colonos, configuraram uma Colônia em constante movimento. Junto a outras Colônias
ultramarinas com suas respectivas especificidades e problemáticas, estes conflitos
dificultaram um controle contínuo da Metrópole sobre os negócios eclesiásticos que
balizariam toda a empresa colonial, plasmando assim um catolicismo absolutamente
distinto do projeto da Coroa elaborado pelo Padroado português.
Mas como se desenvolveu ao longo de três séculos de evangelização a dinâmica
eclesiástica em ‘terras brasílicas’? Quais as estratégias encontradas para a confecção de
uma malha de atuação dos ‘soldados de Cristo’ e quais os obstáculos encontrados?
Os missionários que estiveram atuando e atualizando na práxis cotidiana este
projeto compuseram o clero regular. Estavam submetidos às regras teológicas da Igreja
Católica, sob a jurisdição do Padroado Real de Lisboa e de Roma, e estavam divididos nas
seguintes ordens religiosas: jesuítas, franciscanos, carmelitas, beneditinos, capuchinhos e
oratorianos.
Estes missionários considerando-se o controle descontínuo das ações eclesiásticas
nas Colônias americanas, e ainda a negociação cotidiana da vivência religiosa colonial que
permitia a transitoriedade dos cargos que possuíam, eram identificados na seguinte
hierarquia eclesiástica: o alto clero e o baixo clero. O alto clero era financiado com recursos
do Padroado Real português e composto pelo arcebispo, pelos bispos e por outros
dignatários da Coroa. O baixo clero era composto pelos capelães e curas da paróquia que
viviam mais próximos do povo e compartilhavam suas privações.
Ainda na cena eclesiástica existiu um grandioso e considerável número de clérigos
seculares e leigos que montaram sua atuação em torno de paróquias, ordens terceiras e
irmandades religiosas ao longo de três séculos de evangelização, realizando funções como
o exercício dos sacramentos, o controle e assistência cotidiana dos diversos habitantes de
toda a Colônia junto aos aldeamentos indígenas.

4
HOONAERT, E. op. cit., p. 555.
14

A partir do século XVIII, em torno da atuação dos seculares e leigos, com suas
capelas e posteriormente irmandades religiosas, surgiram os primeiros assentamentos
urbanos ao redor das mesmas. Embora tivessem sido marginalizados, muitas das vezes,
pelos clérigos regulares, foram os leigos e os seculares em grande parte responsáveis pela
efetivação do projeto colonizador via assistência social religiosa, tendo sido responsáveis
pela centralização da Colônia em torno de freguesias que configuraram os primeiros
aldeamentos urbanos. Toda esta ‘militância’ cristã esteve evangelizando a faixa litorânea do
Nordeste, os interiores (Maranhão, Pará e Amazonas), Minas Gerais e o Oeste, São Paulo e
o Sul.

1.2 – Expandir o território da fé: O pioneirismo jesuítico, os índios e os


negros

Os jesuítas foram os principais responsáveis por assumir o projeto missionário


catequético na América portuguesa. A ordem religiosa surgiu em 1534, dentro do contexto
da Reforma católica, um pouco antes do Concílio de Trento iniciado em 1545, que
reafirmaria a política de atuação sob os desígnios da fé da Igreja Católica para o restante do
Velho Mundo e Colônias. Teve como patrono Ignácio de Loyola, e foi responsável por
ampliar a cristandade frente ao crescimento da ameaça protestante. Os jesuítas tiveram um
papel pioneiro na montagem da estrutura eclesiástica das Colônias.
Chegaram em Salvador em 1549, menos de uma década da fundação da Companhia
de Jesus, e atuaram através dos colégios jesuítas localizados no litoral próximos a
aldeamentos indígenas, por toda a faixa litorânea do território colonial português nas
Américas. Segundo E. Hoornaert:

“o crescimento da comunidade jesuíta no Brasil foi


rápido, e o número dos jesuítas já nascidos no país
aumentou progressivamente até a repentina expulsão da
Ordem em 17595.”
Nestes colégios jesuíticos os missionários eram preparados para o serviço nas
aldeias. Com o crescimento da mão-de-obra escrava indígena nas plantações de cana-de-

5
ibid., p. 555.
15

açúcar, os jesuítas a fim de protegerem os índios tentaram estabelecer suas missões longe
dos centros de colonização, tendo muitos deles se estabelecido em fronteiras. Entraram no
Amazonas e no sertão do Nordeste. Nas regiões costeiras, os jesuítas e outras ordens
começaram a cuidar especialmente dos brancos e escravos negros.
No entanto, para E. Hoornaert, nunca houve qualquer atividade missionária voltada
especificamente para os negros. Segundo esse autor, “o escravo africano fazia parte por
direito de uma família patriarcal e que era propriedade de um senhor branco6.” Esta postura
frente aos africanos permitiu que muitos jesuítas possuíssem escravos negros em seus
colégios, fazendas e aldeamentos. Aqueles que entre eles ousaram criticar esse estado de
coisas foram rapidamente repatriados. A justificativa ideológica dos jesuítas para a
escravidão africana era a de que estes últimos eram amaldiçoados pela sua herança de Cam.
Hoornaert destaca tal mentalidade citando o jesuíta Antônio Vieira que:

“criou uma justificação teológica para a escravatura,


quando comparou a África ao Inferno, onde o negro era
escravo tanto de corpo quanto de alma, e o Brasil ao
Purgatório, onde a alma dos negros era libertada através
do batismo e pronta a ingressar no Céu depois da morte.
Os jesuítas colocaram em prática essa teoria da
‘transmigração das almas’, quando participaram do
comércio de escravos7.”
O foco da evangelização eram os índios, tidos como ingênuos e passíveis de serem
salvos. Este argumento justificou as chamadas ‘guerras justas’ quando estes índios
resistiram a sua subjugação. Muitos índios se suicidaram frente às tentativas de escravizá-
los. Não suportaram o trabalho agrícola em plantações de cana-de-açúcar, considerando que
tal exercício feria uma lógica de seu papel social e identidade em suas comunidades, já que
o trabalho agrícola era em muitos destes grupos indígenas realizado pelas mulheres.
Quando não ‘coagidos pela cruz’ ou pelas armas eram assaltados pela ‘artilharia’
microbiológica vinda do Velho Mundo contra a qual não possuíam anticorpos. Muitos
foram aniquilados por epidemias e endemias decorrentes de doenças trazidas de Portugal
para o Além-Mar.

6
ibid., p. 556.
7
ibid., p. 566.
16

Entre a cruz e as armas estiveram os índios que, por sua vez, assistiram ao conflito
entre colonos e missionários que num primeiro momento estiveram cooperantes no projeto
de colonização via subjugação indígena e agora disputavam entre si sua tutela.
Segundo E. Hoornaert, por exemplo:

“desde o início os missionários entraram em conflito


com os colonos portugueses que possuíam os escravos
índios, pois o Estado do Maranhão era o mais pobre e
não tinha, portanto, acesso tão fácil à mão-de-obra
escrava africana8.”
Ele afirma ainda que:

“vários períodos de conflito opuseram colonos e jesuítas


no tocante ao uso do trabalho indígena; no Maranhão,
um deles acarretou a expulsão de Antônio Vieira em
16619.”
Frente a constantes conflitos com os colonos e o desprestígio que conquistaram
junto à Coroa, os jesuítas foram perdendo espaço na América portuguesa para outras ordens
regulares e para os clérigos seculares e leigos. Especialmente devido à autonomia político-
religiosa e econômica que conquistaram em sua atuação na Colônia. A ideologia da
Ilustração, o absolutismo da monarquia portuguesa, e os abusos financeiros de que as
missões jesuíticas foram acusadas, fizeram com que durante a política pombalina em
Portugal, fossem expulsos em 1759.

“A coroa gastou vinte e seis vezes mais com os


sacerdotes que cuidavam do bem-estar dos colonos do
que com os missionários. Contudo, os jesuítas
conseguiram, particularmente na Amazônia, entre 1652
e 1759 (quando foram expulsos do Brasil), aproveitar
bem seus próprios recursos financeiros adquiridos com
suas fazendas de gado, suas plantações de cana-de-
açúcar, algodão e cacau e com o controle do comércio
de produtos naturais das florestas. Criaram uma
economia independente do Estado e, ao fazê-lo, feriram
as suscetibilidades daqueles que se ressentiam cada vez
mais no poder temporal das missões tanto no Estado do
Maranhão quanto no Brasil10.”

8
ibid., p. 559.
9
ibid..
10
HOONAERT, E. A evangelização e a cristandade durante o primeiro período colonial., op. cit., p. 36.
17

Deixaram, no entanto, um importante legado para os párocos seculares e leigos que


ocuparam seus aldeamentos após sua expulsão. Muitas foram as conquistas dos jesuítas:

“numa sociedade em que a educação não recebia


qualquer estímulo do Estado, em que a devoção
religiosa tinha prioridade sobre a educação e em que
não havia imprensa, universidade ou livre circulação de
livros, os jesuítas lograram criar uma importante rede
educacional através de seus seminários, suas missões e
aldeias. Os colégios preparavam os candidatos para o
ingresso na Companhia de Jesus, no clero secular e
mesmo nas atividades laicas. (...) Uma segunda
iniciativa dos jesuítas foi a criação de seminários
menores (...) os jesuítas foram responsáveis pela criação
de seus seminários tridentinos, ou diocesanos11.”
Além disto, no intuito de catequizarem os índios de diversas matrizes etno-
lingüísticas, eles criaram métodos de ensino que incluíam vocabulários e gramáticas da
língua tupi. O ensino cristão exercido pelos jesuítas para a população branca da Colônia era
em português e o ensino exercido para os índios era realizado numa língua formulada
também pelos jesuítas que ficou conhecida como ‘língua-geral’, uma adaptação de uma
língua franca do tronco lingüístico tupi. O jesuíta Pedro Dias elaboraria, ainda em 1697,
voltada à evangelização dos africanos, uma “Introdução à Língua de Angola”.
Após dois séculos de um controle ‘frouxo’ das atividades clericais por parte da
Metrópole sobre as Colônias, a política do Padroado Real de Lisboa se modificou. O
controle e o inspecionamento dos regimentos tridentinos passaram a ser observados e a
pressão sobre a autonomia e ‘rebeldia’ jesuítica aumentada, culminando em sua expulsão
da Colônia luso-americana. “ O Estado português temia a independência das ordens
religiosas12”, nos fala E. Hoonaert.
Na segunda metade do século XVIII, 50 mil índios viviam em aldeias do Norte
controladas por jesuítas e franciscanos. Em 1750, os jesuítas foram expulsos da Colônia
pela legislação de Pombal (1755-1758) aplicada no Maranhão e no Pará, e depois em todo o
Brasil. Com a expulsão dos jesuítas em 1759, as atividades eclesiásticas tomaram um novo
direcionamento.

11
ibid. A Igreja Católica no Brasil colonial, op. cit., p. 566 - 567.
12
ibid., p. 560.
18

“As aldeias missionárias foram transformadas em


paróquias, os párocos substituíram os missionários, o
tupi foi trocado pelo português e os próprios
missionários foram restringidos à obra de evangelização
de tribos não-contactadas13.”

1.3 – A Igreja entre o Padroado português e as capelas dos primeiros


povoados

A aliança entre a Cruz e a Coroa se deu no Além-Mar através da instituição do


Padroado. A instituição do Padroado foi concebida pela Santa Sé para as monarquias
ibéricas num momento de bastante turbulência na Península Ibérica, entre os séculos XV e
XVII. Segundo o historiador Charles Boxer:

“ O Padroado Real português pode ser vagamente


definido como uma combinação de direitos, privilégios
e deveres, concedidos pelo Papado à Coroa portuguesa,
como patrono das missões católicas e instituições
eclesiásticas na África, Ásia e Brasil14.”
Os direitos e os deveres do Padroado provinham de uma série de bulas e breves
papais começando pelo breve Dum Diversas de Nicolau V, de 1453, e culminando no breve
Praecelse Devotionis de Leão X, de 1514. O campo de ação do Padroado Real português
no mundo não europeu foi durante muito tempo apenas limitado pelos direitos, privilégios e
deveres paralelos, conferidos ao Patronato Real da Coroa de Castela por outra série de
bulas e breves papais, das quais a mais importante foi a bula Universalis Ecclesiæ de Júlio
II, de 1508.
Boxer destaca sobre as funções do Padroado e sobre os interesses da Igreja de Roma
nesta instituição, que os

“mundanos Bórgias e outros papas da Renascença


estavam, antes de mais, preocupados com o
engrandecimento familiar, a política européia, a ameaça

13
HEMMING, John. História da América Latina: vol. II. cap.10 apud. HOONAERT, E. A Igreja Católica no
Brasil Colonial., op. cit., p. 560.
14
BOXER, Charles. Problemas de organização. In: A Igreja e a expansão ibérica (1440-1770). Lisboa:
Edições 70, 1981. p. 99.
19

turca no Mediterrâneo e nos Bálcãs e (depois de 1517)


com a onda crescente do protestantismo. É evidente que
não estavam particularmente interessados na
evangelização de novas e distantes terras para além dos
limites da cristandade. Os sucessivos vigários de Cristo
não viram qualquer inconveniente em deixar os
monarcas ibéricos com a responsabilidade da
manutenção da Igreja de além-mar em troca do
privilégio de a controlarem15.”
Os direitos concedidos pelo Papado às Coroas ibéricas eram muitos. Mas os deveres
também. Os monarcas ibéricos foram autorizados pelo Papado, segundo o historiador
Charles Boxer, a construírem ou a autorizarem a construção de catedrais, igrejas, mosteiros,
conventos, e eremitérios da esfera dos Patronatos ibéricos, a apresentar à Roma uma curta
lista de candidatos convenientes aos arcebispados, a administrar jurisdições e receitas
eclesiásticas, e a rejeitar as bulas e breves papais que não fossem primeiro aprovadas pela
respectiva chancelaria da Coroa.

“Esses privilégios significavam na prática, que todo o


sacerdote, da mais alta à mais baixa categoria, só
poderia exercer o cargo com a aprovação da respectiva
Coroa e que dependiam dessa Coroa para o apoio
financeiro16.”
O Padroado exercia controle político, mas não ideológico e doutrinário. No entanto,
a partir do século XVIII, existiu uma relativa observância e pressão sobre a expressão da fé
católica colonial no sentido de observá-la se estava sendo experienciada nos moldes
tridentinos e da teologia pós-Reforma católica.

“Claro que havia clérigos mais francos, que não


hesitaram em criticar, ocasionalmente e sem rodeios, os
procedimentos ou ações da Coroa; mas podiam ser
silenciados ou afastados a breve prazo, se a Coroa o
quisesse. (...) a Igreja colonial estava sob o controle
direto e imediato da respectiva Coroa, salvo nos
assuntos referentes ao dogma e à doutrina17.”
Em contrapartida, a indiferença da Igreja de Roma com as missões evangelizadoras
no século XVI permitiu uma certa flexibilização do exercício cotidiano dos direitos e
15
ibid., p. 99 e 100.
16
ibid., p. 100.
17
ibid., p. 100.
20

deveres do Padroado. Esta indiferença era a princípio, segundo Boxer, compartilhada pelo
Concílio de Trento. No século XVIII entretanto, a política mudou. O Papado percebeu seu
descontrole das ações missionárias e passou a ter tensões e conflitos com o Padroado
português e com o Patronato espanhol.

“Já nesta altura o Papado tinha a pesarosa consciência


de que os extensos privilégios tão facilmente
concedidos aos monarcas portugueses e espanhóis eram,
em muitos aspectos, altamente inconvenientes e efetiva
ou potencialmente subversivos da autoridade papal. No
que diz respeito ao império colonial espanhol, os
sucessivos papas quase não conseguiam evitar a sua
dependência do Patronato da Coroa castelhana18.”
Devido à mudança de orientação política do Papado sobre a atuação dos Patronatos
ibéricos, o Papado tenta limitar o Padroado português mantendo ainda assim a aliança com
a Coroa portuguesa numa relação ora cordial, ora conflituosa. Portugal estava cada vez
mais em declínio econômico e militar por ter participado de uma difícil guerra de
independência contra a Espanha que durou 28 anos (1640-1668), por ser contra a União
Ibérica. Havia ainda participado de guerrilhas contra os filipinos, espanhóis, ingleses e
holandeses na Ásia, e de uma prolongada e debilitante luta colonial com os holandeses
(1596-1663), que enfraqueceu seus recursos em homens, dinheiro, e que declinou sua
marinha. Frente à tantos conflitos e obstáculos, as missões do Padroado se viram numa
situação desesperadora.
Neste período de nova estratégia de vigília e controle do Papado sobre o Padroado,
era presente o apoio da Santa Sé aos ingleses, franceses, italianos e espanhóis, em casos de
disputas jurisdicionais com o Padroado português. Ainda assim, mesmo sob conflitos com
o Papado, a instituição do Padroado quase que absolutamente desprestigiada politicamente
na época, sobreviveu no Brasil até as guerras de Independência. Isto porque as disputas de
território dentro do Padroado português foram intensas e em maior número na região da
Ásia e não da América. Mesmo com a presença de invasores franceses e holandeses, muitos
de crença judaica, que montaram por exemplo a primeira sinagoga das Américas, ambas
‘ameaças infiéis’ se retiraram após acordos e resgates dos territórios coloniais. A
sobrevivência do Padroado na América portuguesa, considerando-se sua fragilidade no

18
ibid., p. 101.
21

Ultramar, nos mostra como não houve um controle contínuo e coeso da Coroa em suas
Colônias.
Mesmo sob rivalidades, os missionários portugueses e os missionários espanhóis
quando estavam submetidos a mesma Coroa no período da União Ibérica, por vezes
cooperaram entre si pela internacionalização da investida missionária, como era o propósito
da Companhia de Jesus, e cooperaram também contra as investidas coercitivas do Papado.
Conforme aponta Boxer:

“Embora a rivalidade entre o Padroado Português e o


Patronato Castelhano fosse freqüentemente grande e
outras vezes inflamada pela mútua xenofobia, exemplos
houve de estreita e cordial cooperação entre os
missionários das duas nacionalidades19.”
A instituição do Padroado foi de extrema importância para a expansão do
catolicismo no Brasil. Mesmo após o crescimento e o fortalecimento do clero secular ao
longo do período colonial, a maioria das decisões oficiais e financiamentos de obras e
missões eclesiásticas ainda dependiam do Padroado. Para E. Hoonaert “foi com o Padroado
e os impostos reais (dez por cento sobre tudo o que a terra produzisse) que se financiou a
expansão do catolicismo no Brasil20”. Mas na prática a postura do Padroado quanto à
administração e à jurisdição eclesiástica na Colônia foi muito variada, conforme as
circunstâncias de cada período. As decorrências da flexibilidade e da falta de unidade desta
maneira de administrar plasmaram a experiência católica sincrética da Colônia.
E. Hoonaert conta-nos que o:

“ O governo português contou com outros meios para


controlar a Igreja. A Mesa de Consciência e Ordens, por
exemplo, fazia todas as nomeações eclesiásticas no
império português. Devido à predominância do
Padroado, a influência de Roma no Brasil foi
modesta21.”
Só talvez com a pequena atuação dos missionários capuchinhos que essa influência
da Igreja de Roma se tenha dado. Hoonaert, ao contrário de outros autores, defende que “os

19
ibid., p. 104.
20
HOONAERT, E. A Igreja católica no Brasil colonial., op. cit., p. 36.
21
HOONAERT, E. op. cit., p. 562.
22

decretos do Concílio de Trento somente seriam aplicados no país no século XIX 22” , e uma
legislação eclesiástica única e rígida somente seria aprovada tardiamente e sem grande
eficácia e aplicabilidade no século XVIII.
Para Charles Boxer, as missões funcionaram como instituições de fronteira. Os
missionários do clero regular, em especial os jesuítas, tinham como função, ligados ao
Padroado Real no qual estavam jurisdicionados, expandir a fé e as fronteiras da Colônia.
Deveriam também manter as fronteiras da Colônia através da terra e da fé, a fim de
afastarem as ameaças internas traduzidas em reações indígenas e africanas, e externas,
como, por exemplo, a invasão de holandeses protestantes em Pernambuco. A Igreja
pretendia se constituir como a ‘bandeira-fortaleza’ que protegesse o território colonial de
ameaças ‘infiéis’. Essa pretendia ser uma de suas missões. Podemos dizer ainda que as
‘fronteiras’ a serem ultrapassadas pelos missionários regulares, assim como pelos clérigos
seculares e leigos, unidos, muitas das vezes, nesta causa, foram os obstáculos dos projetos
de evangelização e colonização que ocorreram no processo de montagem e manutenção do
império católico ultramarino português.
Sobre a necessidade da manutenção das fronteiras do império e da fé através da
investida missionária, Boxer nos fala que a Companhia de Jesus preparara o terreno para a
atuação do clero secular:

“ Quando uma região estava totalmente pacificada e os


seus habitantes convertidos e de novo instalados em
aldeias e comunidades agrícolas, então os missionários
entregavam as suas responsabilidades ao clero secular e
avançavam para outro local de ação no interior. (...)
Argumentavam que era mais fácil ganhar a confiança
dos nativos hostis ou não subjugados com missionários
desarmados23.”
Os grupos envolvidos nesta empreitada missionária do Padroado eram de posições
variadas quanto à evangelização. Uns, por exemplo, defendiam uma catequese armada, e
outros pacífica. Haviam jesuítas que defendiam uma catequese armada, como Acosta, por
exemplo. No entanto, mesmo com a existência de várias posições e mentalidades sobre a
evangelização, a incompatibilidade dos jesuítas frente aos colonos perpassava não só as

22
ibid., p. 562.
23
BOXER, Charles. op. cit., p. 93.
23

questões missionárias e catequéticas. Estava aliada ainda a busca da autonomia de seus


projetos e procedimentos, sem negociações e concessões ao ‘outro poder’ representado
pelos militares coloniais.

“Resumindo, a situação variava de acordo com a época,


o lugar e a natureza dos povos envolvidos. Se o
procedimento mais usual era os missionários pioneiros
serem acompanhados por uma pequena escolta, vezes
houve em que os missionários sozinhos conseguiram
êxitos sólidos24.”
Relacionadas aos primeiros dois séculos de missionarização, as antigas prelazias,
dioceses e paróquias de jesuítas, franciscanos e beneditinos, muitas delas localizadas nos
interiores e no sertão colonial, foram em muitos casos absolutamente abandonadas. Com o
crescimento das cidades no século XVIII, ligado ao fortalecimento do poder do clero
secular e leigo, a importância das paróquias para a vivência do catolicismo colonial
decorreu na profusão das irmandades religiosas.
E. Hoonaert sobre este episódio conta que:

“ As dioceses, prelazias e paróquias permaneciam vagas


por longos períodos de tempo. Poucos bispos faziam as
visitas pastorais que o Concílio de Trento recomendara,
em grande parte devido às longas distâncias e aos
perigos da viagem25.”
Na tentativa de manter o controle das ‘questões da fé’ no período da União Ibérica,
a América portuguesa recebeu três visitas inquisitoriais a fim de inspecionar a vivência
religiosa numa Colônia católica repleta de degredados ibéricos, cristãos-novos, ciganos,
santidades indígenas, calundus e acotundás africanos. Ao contrário da Espanha que instalou
tribunais do Santo Ofício na América espanhola, Portugal deixou somente um único
tribunal inquisitorial em Goa, na Ásia.
No entanto, apesar de todos os obstáculos que o projeto missionário enfrentou, para
Boxer, na:

“ausência de guarnições militares substanciais, em


qualquer lugar do mundo colonial ibérico, antes da
segunda metade do século XVIII, era, antes de mais, o

24
ibid., p. 95.
25
HOONAERT, E. op. cit., p. 563.
24

clero da Igreja católica que conseguia manter a lealdade


da população peninsular, crioula, mestiça e indígena às
Coroas de Castela e Portugal, respectivamente26.”
Assim como Boxer apontou a importância da religião católica para a montagem e
consolidação do Império ultramarino português mesmo sob diversos obstáculos, conflitos,
tensões e ambigüidades, Caio Prado Jr. afirma que no cenário da expansão da fé católica
como arma para a conquista de novos territórios, a instituição da Igreja se tornou alicerce
fundamental devido sua entrada em outras esferas do poder colonial:

“ A própria Igreja e seu clero, que constituem a segunda


esfera administrativa da colônia, também estão, em
parte pelo menos, na dependência do grande domínio.
Capela de engenho ou fazenda e seu capelão; igreja da
freguesia próxima e seu pároco, que encontram no
grande domínio a maior parte de sua clientela: não são
elas e eles acessórios e servidores do grande domínio
que congrega quase todos seus fiéis27?”
Frente aos diversos obstáculos encontrados pelo Padroado e pela Coroa portuguesa
dentro de seu território, em suas Colônias no Novo mundo, na África e na Ásia, como
observado, o projeto de evangelização e concepção do poder religioso através da
configuração de uma estrutura eclesiástica na América portuguesa fora adaptado e
resignificado em decorrência dos diversos processos históricos já pontuados. Sobre a
direção que a instituição da Igreja na Colônia e da vivência da fé católica assumiram, E.
Hoonaert considera que:

“ No entanto, as práticas religiosas estavam


intricadamente ligadas à estrutura patriarcal da família
nas grandes plantações de cana-de-açúcar e
centralizavam-se na capela, no oratório privado e na
devoção aos santos28.”
Para Ronaldo Vainfas29 diversos foram os fatores que corroboraram para que a
Igreja sobrevivesse na intimidade cotidiana das capelas e paróquias de engenho. Um clero

26
BOXER, Charles. op. cit., p. 98.
27
PRADO JR., Caio. Organização social In: Formação do Brasil contemporâneo. São Paulo: Brasiliense,
1992. p. 287 e 288.
28
HOONAERT, E. op. cit., p. 555.
29
VAINFAS, Ronaldo. A contra-reforma e o além-mar In: Trópico dos pecados: Moral, sexualidade e
inquisição no Brasil. Rio de Janeiro: Nova Fronteira, 1997.
25

regular subserviente ao privatismo dos senhores que esteve em constante conflito entre si e
entre seculares e leigos por questões políticas, econômicas, culturais e teológicas,
configurou uma Igreja descentralizada. Uma religião circunscrita à esfera das famílias
poderosas, em que a criação das dioceses foi lenta e tardia e que a elaboração de uma
legislação eclesiástica, para todo o território no século XVIII foi atrasada e ineficaz, foram
outros aspectos marcantes do catolicismo colonial.
Ainda sobre o caráter da presença da Igreja na América portuguesa através da
elaboração de um catolicismo com características tipicamente coloniais, Gilberto Freyre,
um dos pioneiros a investigar o papel do catolicismo como o ‘cimento’ da colonização, foi
categórico em afirmar que

“a igreja que age na formação brasileira, articulando-a,


não é a catedral com seu bispo a que se vão queixar os
desenganados da Justiça secular nem a igreja isolada e
só, ou do mosteiro ou abadia (...) (mas) a capela de
engenho30.”
Nesta ‘cultura histórica’ da expansão da Igreja na América portuguesa, aliado aos
diversos fatores que tentei apontar ao longo deste capítulo, se pode ainda acrescentar a
freqüente e prolongada vacância dos bispados que ficaram abandonados e inoperantes, além
de um escasso e desqualificado clero secular frente às demandas religiosas de todo o
território, permitindo assim uma diversidade de vivências religiosas formuladas a partir das
diversas referências culturais, especialmente a negra africana, que na Colônia se
entrecruzaram, como veremos no capítulo a seguir.

30
FREYRE, Gilberto. Casa Grande & Senzala: Formação da família brasileira sob regime de economia
patriarcal. Rio de Janeiro: Livraria José Olympio, 1981. p. 195.
26

CAPÍTULO 2

AS AFRO-RELIGIOSIDADES E O
CATOLICISMO NEGRO NA AMÉRICA PORTUGUESA
27

2.1 –Catolicismo e afro-religiosidades populares na América portuguesa

O catolicismo colonial foi híbrido e plástico, em constante transformação. Em


circunstância dos obstáculos surgidos na tentativa de no projeto original da Coroa
portuguesa, através do Padroado, de se instaurar uma Igreja em concordância com a
Reforma tridentina, que funcionasse no sentido de amalgamar a colonização, a
religiosidade católica foi marcada pela atuação das ordens leigas, e pela ênfase na vivência
religiosa dentro do enorme número de capelas de engenho da Colônia.
O descontrole das práticas eclesiásticas, aliado ao crescimento das ordens seculares
e leigas, e o desconhecimento do projeto teológico concebido pela Reforma Católica pela
maioria dos clérigos coloniais foram fatores preponderantes para o surgimento de uma
religiosidade sincrética singular e, ao mesmo tempo. múltipla. Expressões deste hibridismo
religioso foram perseguidas e condenadas quando radicalmente fora dos eixos do projeto da
Coroa portuguesa. Ao mesmo tempo, outras tantas vezes, permitidas e manipuladas de
maneira a controlar e adestrar corpos e mentes dos populares coloniais, em especial, dos
negros africanos e indígenas.
Para Laura de Mello e Souza, a originalidade das várias expressões do catolicismo
colonial foi a mestiçagem de nossos credos e crentes, gestada na intimidade e afetividade
das ‘familiares’ capelas de engenho, numa Colônia que possuiu um único bispado por cerca
de cem anos, e que só passou a ser visitada por padres à serviço da Coroa, conforme
orientava o Concílio de Trento, tardiamente.
É importante considerar que os sincretismos religiosos que se processaram na
experiência religiosa colonial se deram em larga medida através da influência do
catolicismo pós-Reformas e da cristandade européia também sincretizadas. A cristandade
européia moderna estava repleta de paganismos, medievalismos e demonização da vida
religiosa cotidiana; o que teria corroborado para uma Igreja colonial fragmentada e
sincrética. Laura de Mello e Souza fala que apesar dos esforços das elites religiosas para
quebrar a cultura arcaizante que existia nas massas cristianizadas, o catolicismo dos
teólogos modernos era bastante diferente dos crentes que ainda no século XVIII explicavam
a dinâmica do mundo como um constante conflito entre Deus e o Diabo.
28

Os padres coloniais, por exemplo, não possuíam conhecimento teológico


aprofundando. Só as elites européias possuíam as últimas versões dos saberes científicos e
teológicos, ainda assim com questionamentos e conflitos sobre tais saberes.

“ O cristianismo vivido pelo povo caracterizava-se por


um profundo desconhecimento dos dogmas, pela
participação na liturgia sem a compreensão do sentido
dos sacramentos e da própria missa31.”
O catolicismo popular colonial foi se configurando através das necessidades dos
fiéis e dos condicionamentos sociais que a Igreja impunha em grande parte numa
aprendizagem também pela memorização, através de ritos, medo e êxtase frente ao
desconhecido, numa externalização religiosa barroca. Não só a comunidade colonial de
fiéis, mas muitos clérigos coloniais não conheciam os dogmas.
Sobre a religiosidade católica dos escravos africanos, por exemplo, para alguns
historiadores esta se efetivou num primeiro momento através da memorização, como
propõe Laura de Mello e Souza. Segundo esta abordagem, eles se aproximaram do
catolicismo num primeiro momento não por reconhecimento e identificação com as
crenças, mas, sim, por imposição e controle de seus senhores, que o faziam no entanto, de
maneira pouco sistematizada como apontam os relatos deste período. O jesuíta Antonil, por
exemplo, identifica

“o pouco caso de senhores relapsos como responsável


pelos defeitos do catolicismo dos cativos: trazem-nos
sem batismo, ocupam-nos em trabalhos ao invés de
deixarem ir às missas nos dias santos32.”
Antonil afirmou ainda que o desvio do catolicismo dos negros foi tudo “ por falta de
ensino33”.
Frente ao desconhecimento dos negros das questões fundamentais da crença católica
tais como: quem é o criador, suas leis, o significado de assistir às missas e consagrar a
hóstia; assim como a visão cristã da vida após a morte, os escravos foram submetidos à

31
MUCHEMBLED, Robert. Sorcellerie, culture populaire et christianisme apud. SOUZA, Laura de Mello e.
O Diabo e a Terra de Santa Cruz: feitiçaria e religiosidade popular no Brasil colonial. São Paulo: Companhia
das Letras, 1986. p. 90 - 91.
32
ANTONIL. Cultura e opulência do Brasil por suas drogas e minas (1711) apud. SOUZA, Laura de Mello e,
op. cit., p. 92.
33
ibid., p. 93.
29

religiosidade católica de diversas maneiras. Dentre elas, por exemplo, através do culto aos
santos negros.
O culto aos santos negros, marginalizado durante um largo período pela Igreja
romana, foi apresentado aos africanos como um meio de submeter os escravos e assentá-los
à sua nova realidade social. No entanto, sua relação criativa com todo o novo universo
simbólico religioso que tiveram contato foi decorrência de sua postura ativa de reinterpretar
as crenças de maneira negociada, adequada e transformada, segundo suas necessidades
subjetivas e socializadas cotidianas.
Além de cultivarem santos negros, cujas histórias remetiam a personagens presentes
no seu imaginário social, de uma África já cristianizada, na época anterior à escravidão
colonial, os negros interpretaram e ‘reinventaram’ as crenças católicas relacionando-as às
suas tradições e religiosidades ancestrais, externalizando suas formulações através, por
exemplo, de danças e festas chamadas ‘folguedos’. Laura de Mello e Souza nos fala que se
cultuava “ São Benedito, mas cultuava-se Ogum, e batiam-se atabaques nos calundus da
Colônia34”. Para a historiadora, “nas estruturas sociais que lhes foram impostas, os negros,
através da religião, procuraram ‘nichos’ em que pudessem desenvolver integradamente suas
manifestações religiosas35”.
O sincretismo religioso dos africanos incomodara. Era freqüentemente visto como
uma ameaça, por mais que personagens como o jesuíta Antonil alertassem para a
importância da conivência dos folguedos dos africanos aliados a convivência com o
catolicismo colonial, com a intenção de exercer um controle afetivizado e com pretensões
carismáticas sobre os mesmos. Entre tensões e conflitos decorrentes da seleção dos
elementos católicos, de sua adaptação e de sua transformação continuada devido às
necessidades práticas na vida cotidiana dos escravos, aliando-se ao caldeirão de referências
religiosas ancestrais africanas, a religiosidade popular escrava das diversas etnias que
vieram para a Colônia tornou-se bem diferente daquela vivenciada na África.
A troca contínua de fé, crenças, dogmas, liturgias, símbolos e outros códigos
absorvidos e reapropriados entre portugueses, africanos, populações ameríndias e suas

34
BASTIDE, Roger. Les religions africaines au Brésil: vers une sociologie des interpretations de civilisations
apud. SOUZA, Laura de Mello e, op. cit., p. 94.
35
ibid., p. 94.
30

‘santidades36’ elaboradas nos séculos XVI e XVII a partir do contato com o catolicismo
colonial, e, ainda, cristãos-novos, ciganos, ‘bruxas’ e ‘bruxos’, degredados bígamos,
homossexuais e outros corruptores e viajantes, permitiu não só o afro-sincretismo colonial,
mas toda uma religiosidade popular absolutamente diferente do frágil projeto religioso da
Metrópole.
Uma religiosidade teatral, carnavalizada, repleta de contrastes, contradições e horror
ao vazio espiritual; o que se refletiu em sua estética barroca e que frente ao
desconhecimento dos dogmas reformados, do descontrole das práticas eclesiásticas e do
crescimento do clero secular e do clero leigo na Colônia era também uma ‘religiosidade
superficial’ sob o ponto de vista de uma ‘consciência teológica’ de seus crédulos, mas
intensa e profunda de sentidos e significados simbólicos, políticos e étnicos para os
participantes envolvidos.

2.2 –Religiosidades afro-católicas públicas e privadas

“Primeiro a procissão organizando-se ainda dentro da


Igreja: pendões, bandeiras, dançarinos, apóstolos,
imperadores, diabos, santos, rabis comprimindo-se,
pondo-se em ordem. Pranchadas de soldados para dar
modos aos salientes. À frente, um grupo dançando a
‘judinga’, dança judia. O rabi levando a Toura. Depois
dessa seriedade toda, um palhaço fazendo mungangas.
Uma serpente enorme, de pano pintado, sobre uma
armação de pau, e vários homens por debaixo. Ferreiros.
Carpinteiros. Uma dança de ciganos. Outra de mouros.
São Pedro. Pedreiros trazendo nas mãos castelos
pequenos, como de brinquedo. Regateiras e peixeiras
dançando e cantando. Barqueiros com a imagem de São
Cristóvão. Pastores. Macacos. São João rodeado de
sapateiros. A Tentação representada por uma mulher
dançando, aos requebros. São Jorge protetor do Exército
a cavalo e aclamado em oposição a Santo Iago, protetor
dos espanhóis. Abraão. Judite. Davi. Baco sentado sobre
uma pipa. Uma Vênus seminua, Nossa Senhora num
jumentinho. O menino Deus. São Jorge. São Sebastião
36
Cerimônias indígenas praticadas por diversas tribos no decorrer do litoral da América portuguesa durante os
séculos XVI e XVII. Eram marcadas por bailes, transes e embriaguez fumageira. Os índios eram incitados à
guerra e à migração. Cf. VAINFAS, Ronaldo. A heresia dos índios. São Paulo: Companhia das Letras, 1995.
31

nu cercado de homens malvados fingindo que vão atirar


nele. Frades. Freiras. Cruzes alçadas. Hinos sacros. O
Rei. Fidalgos37.”
Uma diversidade de imagens fragmentadas e contraditórias em movimento, no qual
se agregavam personagens diversas, de maneira espontânea e aleatória, congregando o
profano, o herético, o desviante e o normativo oficial, eis uma das faces exteriorizadas
desta religiosidade colonial. Uma religiosidade pública em alguns aspectos e privada em
outros, que se ‘carnavalizava’ em procissões como esta apresentada acima por Gilberto
Freyre. Procissões que atualizavam e resignificavam um ‘caldeirão’ de referências
simbólicas através do que Carlo Ginzburg conceituou de ‘circularidade cultural38’, mas que,
ao mesmo tempo, no cotidiano possuía regras, limites e controle. Quando o ‘carnaval’ da
procissão acabava, cristãos-velhos, cristãos-novos, mouros, ciganos, mulheres duvidosas,
dentre outras imagens impuras do ‘escárnio insolente do Diabo’ se refugiavam no segredo
secreto dos espaços privados.
A religiosidade oficial era afirmada pela Igreja colonial, e era dentro dela que se
aprendia a ‘verdadeira expressão da fé’ através do ensino da contemplatio, que era o cultivo
a orações pessoais e privadas, e das práticas litúrgicas que ensinavam a maneira adequada e
pública de realizar o culto. Numa Igreja colonial em que a interpretação e externalização
pública dos dogmas religiosos e da vivência das liturgias disciplinares era heterogênea, ou
seja, a ‘verdadeira expressão da fé’ não seguia à risca os moldes tridentinos, e era
determinada por cada comunidade religiosa, era importante para os padres que seu corpo de
fiéis freqüentasse a capela e, posteriormente, a igreja das irmandades para que pudessem ter
um mínimo de controle das crenças e práticas religiosas dos mesmos.
Luiz Mott nos fala da imposição da Igreja no intuito da doutrinação dos fiéis, de
obrigá-los a freqüentarem as missas nos domingos e dias santos, assim como fazê-los crer
na indispensabilidade dos sacramentos, ao longo da vida, como instrumento de inclusão à

37
FREYRE, Gilberto. Casa Grande & Senzala: Formação da família brasileira sob regime de economia
patriarcal apud. SOUZA, Laura de Mello e, op. cit., p. 96.
38
Conceito usado pelo historiador Carlo Ginzburg ao tratar do intercâmbio entre crenças místico-religiosas
pagãs e agrárias populares e as da Igreja católica e inquisição, através da documentação de seu personagem-
caso estudado: Menocchio. GINZBURG, C. O queijo e os vermes: o cotidiano e as idéias de um moleiro
perseguido pela inquisição. São Paulo: Companhia das Letras, 1986.
32

cristandade, proteção, bênção cotidiana e salvação neste e noutro mundo. Segundo o


antropólogo, eram estas

“práticas religiosas amalgamadoras do corpo místico no


Brasil de antanho, um contrapeso socializador
significativo para compensar a dispersão espacial e o
isolamento social dos colonos na imensidão da América
portuguesa39.”
Frente às missas rezadas em latim e à diversidade de expressões da Igreja colonial,
os ornamentos barrocos internos e externos da Igreja aliados aos exercícios litúrgicos
públicos e privados se bem orientados formariam uma ‘verdadeira pedagogia cristã’, que
adestraria corpos e mentalidades religiosas justificando e atualizando assim a ‘santa
missão’ política dos clérigos na Colônia.
No entanto, diversos fatores contribuíram para que a freqüência às igrejas fosse
irregular e bem menor do que esperavam e previam os padres coloniais. A Igreja era
freqüentada pelos senhores e pelos escravos, pela elite colonial e pelos populares, que
estavam juntos, mas divididos dentro do mesmo espaço social. Roger Bastide identificou
uma hierarquia de cores que se configurava na disposição física dos fiéis dentro da Igreja
quando afirmou que à “família do branco se reservavam os bancos da nave, enquanto os
escravos permaneciam fora, assistindo à missa do pórtico através das portas abertas40”. Luiz
Mott conceituou esta ‘arquitetura sociológica’ de “aparthaid religioso41”, que acabou por
fazer com que os aristocratas da América portuguesa ignorassem os templos públicos e
construíssem no recato do lar seus templos e oratórios privados, evitando assim o perigoso
e pernicioso contato com a ‘gentalha de cor’ que ameaçava, por exemplo, a pureza e a
honestidade das mulheres de família brancas, com sua devoção lasciva e erótica.
Com a privatização da vida religiosa dos aristocratas coloniais e com a ambiência
barroca de angústia e medo do pecado, medo da punição divina, e medo dos ‘Outros’
afirmados pela Igreja, dentre eles os de que cristãos-novos que fossem ‘criptojudeus’, os
feiticeiros negros e seus afins, aliado ao medo da possível surpresa de um visitador
39
MOTT, Luiz. Cotidiano e vivência religiosa entre a capela e o calundu. in: SOUZA, Laura de Mello e
(org.). História da vida privada no Brasil: Volume 1 – Cotidiano e vida privada na América portuguesa. São
Paulo: Companhia das Letras, 1997. p. 159.
40
BASTIDE, Roger. As religiões africanas no Brasil: contribuição para uma sociologia das interpenetrações
de civilizações. São Paulo: Livraria Pioneira, 1989. p. 158.
41
MOTT, Luiz. op. cit., p. 161.
33

inquisitorial batendo à porta dos aristocratas coloniais inspecionando suas crenças e


confiscando seus bens, o cuidado com assuntos religiosos foi sendo aos poucos
internalizado nas mentalidades e na intimidade da vivência da crença, no lar. Horas
canônicas para a reza alertadas pelos sinos, decoro de mandamentos e leis de Deus e da
Igreja frente ao medo da punição divina e humana representada pela Inquisição, santos,
cruzes, terços e quadros-oragos de santos dentro das casas coloniais humildes, assim como
‘quartos dos santos’ em casas coloniais abastadas, dentre outros muitos exemplos, nos
mostram como os limites da Igreja se ampliaram para dentro das mentes, corpos e lares,
gerando um verdadeiro rebuliço na vida social e na subjetividade dos colonos.
Muitas soluções criativas e espontâneas foram encontradas pelos colonos frente à
atomização da Igreja colonial e aos obstáculos que se sobrepunham às suas necessidades
espirituais cotidianas. Sobrepujando-se à burocracia eclesiástica e aos altos custos que
prejudicavam e retardavam a ereção de capelas nos interiores das casas-grandes, diz-nos
Luiz Mott, que os oratórios privados, por exemplo, tiveram destaque e mereceram a
invenção e disseminação de uma indústria de oratórios nas Minas Gerais e no Nordeste.
Dentro dos oratórios eram guardados santos de devoção pessoal e objetos religiosos tidos
como relíquias, permitindo uma cosmogonia religiosa múltipla que nem sempre seguia as
normas permitidas pela ortodoxia católica.
No recato do lar, crenças ancestrais e desejos proibidos pela Igreja poderiam ser
exibidos e licenciados. ‘Instrumentalizando’ signos e códigos da crença imposta e
inspecionada através dos visitadores inquisitoriais e dos inimigos delatores, e de crenças
étnicas e ancestrais, os colonos, em especial os degredados da Europa para a Colônia
convertidos ao cristianismo, muitos deles identificados como ‘cristãos-novos’, conseguiram
burlar o controle que se impunha sobre suas abstratas subjetividades religiosas praticando
muitos deles o que Anita Novinsky categorizou como “criptojudaísmo42”, mostrando-nos o
quanto era diversa a relação com o catolicismo colonial. No íntimo de suas expressões
religiosas muitos dos personagens populares coloniais possuíam sua corte celeste própria,

42
Conceito usado pela historiadora Anita Novinsky ao tratar da religiosidade cristã-nova que possuía traços
nitidamente judaicos. Por serem condenadas e perseguidas pela inquisição, estas religiosidades eram
vivenciadas nos espaços privados da colônia. Cf. NOVINSKY, A. Cristãos-novos na Bahia. São Paulo:
Perspectiva, 1972.
34

seus anjos da guarda, santos prediletos e protetores, Nosso Senhor e a Virgem Maria. Ao
mesmo tempo possuíam crenças de origem africana, ameríndia ou judaica, por exemplo.
Toda esta ambigüidade religiosa em acréscimo ao controle e a punição para com os
desviantes, aliados ao ascetismo religioso católico que impunha a maceração dos desejos
terrenos através de exercícios espirituais, promoveu uma religiosidade igualmente oscilante
e dúbia, complexa e paradoxal. A experiência religiosa colonial foi vivenciada num
imaginário social de dor, culpa, medo do pecado, do Diabo e do visitador inquisitorial. Ao
mesmo tempo de prazer, êxtase e gozo com o maravilhoso e sobrenatural encontrado no
espiritual, se configurando numa religiosidade barroca, erótica e fetichista com donzelas
enclausuradas e autoflagelantes, fiéis com intimidades secretas com seus santos padroeiros
e de casa, e colonos que fechavam o seu corpo com amuletos e bolsas de mandinga que
eram muito populares. Colonos que adornavam santos ao mesmo tempo que os castigavam
caso suas preces não fossem atendidas, e que procuravam curandeiros negros e faziam
simpatias domésticas, gerando várias expressões da relação com o catolicismo, que
poderiam ser identificadas e controladas através das confissões no íntimo dos
confessionários.

2.3 –Os calundus e as mandingas negras

Concomitantemente ao contato com o catolicismo ao qual foram submetidos e do


qual se apropriaram e reinventaram conforme suas necessidades políticas e culturais, os
escravos africanos conviveram durante todo o período de sua subjugação com outras
crenças, cultos e com outras religiosidades que eram diferentes da imposta pelos
colonizadores, religiosidades elaboradas por eles próprios e que a Igreja colonial tentou
reprimir.
Estas religiosidades eram vivenciadas em espaços em que o controle do senhor
branco era brando ou inexistente, às vezes, por se fazer vista grossa a elas. Eram
religiosidades que resgatavam e reelaboravam suas raízes, lógicas e desejos e que seus
deuses, crenças e ritos lhes eram mais próximos, ‘verdadeiros’ e funcionais, e que o
catolicismo imposto que tentava coibi-la, por muitas , acabou por absorvê-la. Quando, por
exemplo, os padres buscavam ou mandavam os fiéis procurarem os feiticeiros negros, o que
35

acontecia quando suas investidas espirituais não funcionavam. Ou quando tais feiticeiros se
filiavam ou organizavam irmandades religiosas trazendo novos elementos ao catolicismo
negro.
A essas religiosidades heterogêneas e múltiplas de significados foi dado o nome de
‘calundus’ e os ditos ‘feiticeiros’ que a praticavam eram chamados de ‘calunduzeiros’.
Segundo o historiador Ronaldo Vainfas:

“Calundu é a palavra de origem banto – tronco


lingüístico da África centro-ocidental – que a partir do
século XVII, passou a designar um conjunto muito
variado de práticas religiosas africanas de diversas
procedências, não raro mescladas43.”
Devido ao desconhecimento de tais práticas e crenças a Igreja colonial associou os
ritos dos calundus ao culto fetichista ao Diabo, tendo-os como feitiçarias que passaram
quando descobertas a serem repreendidas pelos visitadores inquisitoriais.
Dentre a série de práticas negras que configuravam os calundus, tais como
adivinhações, possessões, sortilégios, curas e folguedos com batuques, existiram
características comuns a estes rituais religiosos que foram identificadas nos processos
inquisitoriais. A evocação de espíritos de defuntos e a decorrente possessão ritual, as
oferendas de comidas e bebidas aos espíritos evocados, a adivinhação do futuro e o
curandeirismo, a música cantada e marcada por batuques, e o caráter coletivo das
cerimônias, eram elementos recorrentes na maioria dos casos identificados pela Inquisição,
da religiosidade dos calundus.
Os historiadores Ronaldo Vainfas e Juliana Beatriz44 identificaram os calunduzeiros
imersos no cotidiano das fazendas e cidades coloniais, entre senzalas, casas escravas e ruas
das cidades, boa parte deles anônimos na multidão de populares, se considerarmos que não
só africanos cativos ou libertos, em grande parte “gentios da Guiné45”, segundo Luiz Mott,
praticavam os ritos calunduzeiros. Mas, brancos pobres e pardos tomaram parte das crenças
e ritos negros que se diluíram num cotidiano de superstições, amuletos e mandingas que

43
VAINFAS, Ronaldo. Calundu. In: VAINFAS, Ronaldo (org.). Dicionário do Brasil Colonial (1500-1808).
Rio de Janeiro: Objetiva, 2000.
44
SOUZA, Juliana Beatriz de, VAINFAS, Ronaldo. Brasil de todos os santos. Rio de Janeiro: Jorge Zahar,
2000.
45
MOTT, Luiz. op. cit., p. 200.
36

não eram tão facilmente identificadas como provenientes ou decorrentes dos calundus pelas
instâncias repressoras da ambígua Igreja colonial, que não conseguiu definir os limites do
permitido e do condenável em suas práticas piedosas. Eles afirmam que

“se os calundus incomodavam a Igreja, o clero, por


vezes, era indiferente às superstições e pequenas
feitiçarias. Os colonos recorriam aos feiticeiros não só
para a obtenção de favores especiais, mas também, não
raro, para contornar a ineficiência dos remédios de
botica46.”
A convivência e conivência cotidiana aos calundus e toda sorte de calunduzeiros,
que eram associados e confundidos com os benzedeiros, rezadeiros, curandeiros e
adivinhos, permitiu que muitos deles sobrevivessem durante anos na América portuguesa,
sendo exemplos o caso da calunduzeira angolana Luzia Pinta que, segundo o antropólogo
Renato da Silveira, era muito solicitada e bem sucedida na freguesia de Sabará, nas Minas
Gerais, entre 1720 e 1740, misturando tradições africanas, católicas e indígenas em seus
rituais (dando origem ao que se convencionou chamar umbanda). Vale lembrar do caso da
famosa ‘feiticeira-calunduzeira’ Rosa Egipcíaca, prostituta em Minas Gerais e vidente no
Rio de Janeiro do século XVIII, que possuía muitos consulentes; e o calundu da courana
Josefa Maria ou Josefa Courá conhecido por sua ‘dança de Tunda’ ou ‘Acotundá’, que era
realizado no arraial de Paracatu, também nas Minas Gerais, na segunda metade do século
XVIII, em devoção à um deus ‘Kourana’ do golfo da Guiné. Minas Gerais foi sobretudo a
região colonial onde mais se encontraram casos de calundus, assim como curiosamente
onde mais foram erigidas irmandades negras até o final do período colonial.
Ainda sobre o universo dos calundus, Renato da Silveira, noutra abordagem, afirma
que estes eram mais que fragmentos de reminiscências africanas na subjetiva
espiritualidade popular de devoção cotidiana. Eram complexos e organizados com aspectos
estruturais próprios. Para o antropólogo

“os adeptos dos calundus organizavam suas festas


públicas na residência de uma pessoa importante da
comunidade, ou em casas destinadas a outras
ocupações. Não tinham templos propriamente ditos,
mas também não representavam simples cultos

46
SOUZA, Juliana Beatriz de, VAINFAS, Ronaldo. Brasil de todos os santos. Rio de Janeiro: Jorge Zahar,
2000. p. 23.
37

domésticos, uma vez que havia um calendário de festas,


iniciavam vários fiéis em diferentes funções, e eram
freqüentados por um número razoavelmente grande de
pessoas, inclusive brancos de diversos arraiais47.”
Esta abordagem se afasta assim da interpretação assimilacionista de outros autores
que identificaram todas as crenças e folguedos coloniais com características africanas e
negras como calundus. Segundo Silveira, o líder espiritual do calundu possuía condições de
sobreviver com atendimento individual e se tornar financeiramente independente ao
oferecer serviços para a população que o Estado colonial não garantia com eficácia. Além
da assistência religiosa alternativa à oficial, os calunduzeiros eram também curandeiros que
assistiam aos populares com doenças físicas, mentais e espirituais com as “artes do
demônio, antes que das da natureza48”, como recuperou Luiz Mott na crítica da Igreja
colonial através do depoimento do esculápio Simão Pinheiro Morão, em 1672.
A existência de uma medicina calunduzeira questionava o monopólio da cura
atribuído à Igreja e à medicina oficial. Através ainda dos calundus foram estimuladas
fortemente as bolsas de mandinga que teriam propriedades terapêuticas e que foram muito
populares entre diversos personagens coloniais. De origem africana islamizada do reino
muçulmano de Mali, que floresceu no vale do Níger por volta do século XIII, as bolsas de
mandinga, segundo Ronaldo Vainfas e Juliana Beatriz, foram a “forma mais típica de
feitiçaria colonial49” devido sua popularidade e, sobretudo, por sua intercessão de
referências culturais. Os mandingas ou malinkes africanos a usavam no pescoço contendo
papéis com versículos do Alcorão e signos de Salomão. Ao serem difundidas pelos
escravos bantos calunduzeiros na América portuguesa elas foram resignificadas.

“Em geral, eram feitas de pano, quase sempre branco, e


continham obrigatoriamente pedaços ou cacos de pedra
d’ara (o pedaço de mármore do altar em cujo orifício os
padres consagram a hóstia e o vinho) e pequenas tiras
de papel cheias de figuras e letras50.”

47
SILVEIRA, Renato da. Do Calundu ao Candomblé. in: Revista de História da Biblioteca Nacional. ano 1.
nº 6. dezembro de 2005. p. 19.
48
MORÃO, Simão Pinheiro. Queixas repetidas em ecos dos arrecifes de Pernambuco contra os abusos
médicos que nas capitanias se observam tanto em dano das vidas de seus habitadores apud. MOTT, Luiz, op.
cit., p. 193.
49
SOUZA, Juliana Beatriz de, VAINFAS, Ronaldo, op. cit. p. 24.
50
VAINFAS, Ronaldo. Mandinga. In: VAINFAS, Ronaldo, op. cit., 2000.
38

As bolsas de mandinga coloniais possuíam ainda

“pedra de corisco, olho de gato, enxofre, pólvora, balas


de chumbo, vinténs de prata e pedaços de osso de
defunto. Quanto aos papéis, podiam ter as figuras e
letras escritas com sangue de frango branco ou preto e,
ainda, com sangue do próprio portador da bolsa. Não
raro se escrevia a oração de São Marcos51.”
Acreditava-se ter o corpo fechado ao usá-las. Nelas a tradição européia de amuletos
se misturava aos costumes africanos e aos fetichismos ameríndios. Devido a esta
simbologia sincrética, mística e mestiça, foram usadas em larga escala, como destaca Luiz
Mott, “não apenas rústicos vaqueiros e tabaréus do sertão, devotos dos disputados patuás e
bolsas de mandinga, mas também doutos sacerdotes reinóis52”.
As bolsas de mandinga atingiram diversos segmentos da sociedade colonial no
século XVIII. São um exemplo de como transitando entre os calundus e o catolicismo
negro das capelas de engenho e, posteriormente, das irmandades, entre a assistência física e
espiritual dos calunduzeiros dos campos e suas mandingas, e a assistência dos boticários e
barbeiros das cidades, os escravos africanos superaram as dificuldades e rivalidades
impostas no seu cotidiano, deixando marcas profundas na religiosidade e na cultura popular
colonial. Silveira nos dá um exemplo desta dinâmica quando diz que os calunduzeiros de
identidades étnicas distintas superavam suas rivalidades se ‘irmanando’, trocando
informações e se apoiando mutuamente chegando a criar calendários religiosos e liturgias
comuns na tentativa de oficializarem e legalizarem sua existência.
Ao se ‘irmanar’ seja ‘oficiosamente’ nos calundus, seja oficialmente nas irmandades
religiosas, os negros conseguiram exprimir através da Igreja colonial suas demandas,
identidades, críticas e conivência à sua condição; e todo um trânsito múltiplo e fluído de
ambições, contradições e expectativas à sua pertença ou ausência nos quadros sociais
estabelecidos, através da manipulação política de elementos de sua ancestralidade cultural
nos espaços de devoção pública. Fizeram isto mesclando o sagrado e o profano, o africano
e o português, em suas formulações nas procissões, congadas, cocos e maracatus das
irmandades. E ainda em seus vodus, candomblés e umbandas, surgidos a partir da relação

51
ibid.
52
MOTT, Luiz. op. cit., p. 196.
39

dialética e sincrética, ora pública, ora privada, de suas irmandades religiosas e calundus
coloniais.

2.4 –O catolicismo negro

Transladados à força para uma terra distante e estranha com personagens dos mais
diversos, hábitos, papéis e identidades sociais, crenças políticas e religiosas também
distintas das suas raízes, e tendo ocupado o pior lugar da estratificação social de uma
Colônia em trânsito, os negros escravizados trazidos da África ocidental e oriental durante
os quatrocentos anos da colonização da América portuguesa e posteriormente Império do
Brasil, foram obrigados a repensarem suas culturas e identidades, a resistirem e a
reelaborarem sua relação com sua memória e história, com seu passado e sua ancestralidade
a partir da imersão no contato com a diversidade cultural colonial, como já observado
anteriormente.
Assim como os negros, muitos destes já islamizados e cristianizados na África,
vieram habitar a Colônia outras ‘gentes perigosas’ às elites aristocráticas, Igreja e
Metrópole que precisavam de ‘orientação espiritual’, repressão e muito cuidado. Cristãos-
novos, mouros, ciganos, adúlteros, bígamos, homossexuais, bruxos e bruxas; considerando-
se suas diferenças e especificidades, muitos destes degredados da Europa para a Colônia.
Eram estes ‘desviantes’ que deveriam passar pelo rito de inclusão à cristandade no Além
Mar, que precisavam ser ora salvos, perdoados, protegidos e controlados a partir de sua
conversão ao catolicismo, ora condenados e reprimidos.
Conforme observado, o projeto original de instalação de uma estrutura eclesiástica
sólida e uniforme na Colônia submetida à moderna teologia pós Concílio de Trento, frente
aos obstáculos e imprevistos no percurso foi totalmente alterado, e outras instâncias
reguladoras e saneadoras do ‘paganismo tropical’ tiveram de ser acionadas. Os jesuítas e
outras ordens missionárias perderam espaço para os padres seculares que fizeram a
colonização através da fé se sustentar nas capelas de engenho. Mas frente à diversidade de
gentes, línguas, hábitos e de interpretações das informações em circularidade, frente ao
perigo que a ‘hidra do sincretismo’ representava, visitadores inquisitoriais surgidos após a
União Ibérica na Europa entraram em cena, e assim como os cristãos-novos, os negros
40

africanos foram observados, pressionados e até perseguidos, embora muito pouco, com suas
religiosidades ancestrais ‘reinventadas’ na Colônia. Muitos negros e mestiços escravos e
forros, africanos e crioulos, dentre calunduzeiros, entraram na Igreja católica através de sua
filiação como membros de irmandades religiosas católicas de homens pretos que
elaboraram um catolicismo à parte, gestado ainda nas capelas de engenho, afirmado por
Roger Bastide como “catolicismo negro53”.
Muitos negros eram logo que chegavam na América portuguesa rebatizados
culturalmente, sendo batizados e recebendo um nome cristão. Depois de vendidos e sob
controle do seu senhor, possuíam contato com o catolicismo, participando das missas nas
capelas de engenho. Estavam dentro da capela religiosamente unidos aos seus senhores,
mas separados socialmente até em sua disposição dentro das mesmas, estando, segundo
Bastide, ao fundo da igreja. Serafim Leite destaca esta aparente inclusão social quando
destaca o parecer de um visitador inquisitorial que nos fala que:

“ Nas fazendas e engenhos há muitos escravos que


nunca ouvem missa (...) ainda que tenham nela
sacerdotes que as digam, por serem as igrejas pequenas,
e os escravos andam nus; e pelo mau cheiro, não os
deixam os seus senhores e portugueses estarem nem
dentro nem fora das igrejas54.”
A introdução do escravo negro africano na religião de seu senhor era submetida a
certas normas, controles, e era vista pela elite branca que erigia as capelas como uma
benfeitoria aos escravos. Bastide aponta, por exemplo, que:

“ No Brasil, pelo contrário, o negro, mesmo o livre, não


podia pretender entrar nas ordens eclesiásticas. Quando
se via um padre de cor, este provinha ou de Cabo Verde
ou de Angola. Se o mulato, em geral claro, pode isso
conseguir posteriormente, foi porque a mentalidade a
seu respeito era diferente no Brasil55.”
A inclusão dos escravos na cristandade colonial era bastante inferiorizante,
celebrando, por exemplo, o fim da missa de aniversário de seu senhor do lado de fora da
capela onde lhes era proibido entrar, cantando hinos em suas próprias línguas. O contrário

53
BASTIDE, Roger. op. cit., passim.
54
LEITE, Serafim. História da Companhia de Jesus no Brasil apud. BASTIDE, Roger, op. cit., p. 158.
55
BASTIDE, Roger. op. cit., p. 159.
41

se dava quando realizavam seus próprios cultos nos quais eram valorizados como
descendentes de reis, de rainhas, e de forças da natureza divinizadas. Daí ter existido
lateralmente ao catolicismo a que eram submetidos, a convivência conivente dos padres
seculares e leigos com as umbigadas, cocos e congadas, mandingas e calundus de origem
africana. Estas religiosidades afro-católicas, surgidas a partir do sincretismo com crenças
ancestrais ‘reinventadas’ e também ‘inventadas’, acontecia quando os escravos estavam
fora do circuito de inspeção senhorial, nas senzalas e nas casas daqueles poucos
prestigiados que conceberam família e conseguiram junto ao seu senhor terem roças
próprias.
Nas vivências públicas do catolicismo colonial, negros e brancos estavam juntos,
mas separados. Nas festas cristãs como o Natal, a semana santa, e até nas festas da colheita,
por exemplo, Bastide nos fala que ficavam “os brancos dançando entre si, enquanto os
escravos, por outro lado, se divertiam à sua própria maneira56”.
Nas festas agrárias, por exemplo, o engenho era benzido e os escravos se
precipitavam sobre a água benta, pois acreditavam que estariam protegidos. Este exemplo
nos mostra como existiu toda uma microfísica do poder presente na economia religiosa das
crenças coloniais. Tensão, negociação e conflito estiveram presentes na seleção dos
símbolos reinterpretados e adaptados às necessidades escravas. Os escravos se
aproveitaram da religiosidade católica branca na montagem e configuração de sua nova
cosmovisão religiosa na Colônia, entre os calundus e o catolicismo negro das irmandades
dos homens pretos.
Na tentativa de aproximarem os africanos de suas crenças numa ambivalência que
ora condenava o sincretismo, ora o reconhecia e o utilizava politicamente para controlá-los,
os senhores brancos não participaram dos cultos dos africanos aos quais, muitas vezes,
faziam vista grossa, mas acabaram por incentivar sem perceberem o surgimento das tidas
como ‘perigosas’ irmandades, e estimularem a devoção aos santos negros de origem
africana, muitos deles já cultuados por negros cristianizados na África.
Roger Bastide aponta um exemplo de que os senhores brancos estimularam os
negros num culto devocional à Nossa Senhora do Rosário gerando por parte dos fiéis

56
FILHO, Melo Moraes. Festas e tradições apud. BASTIDE, Roger, op. cit., p. 162.
42

africanos toda uma movimentação organizada em prol do culto, numa corporação tal como
uma proto-irmandade:

“Por exemplo, o convento de Olinda, que tinha uma


propriedade de uma centena de escravos, consentia em
deixá-los celebrar sua padroeira Nossa Senhora do
Rosário. Os negros se entendiam para nomear um
comitê, encarregado de fornecer as velas, de preparar os
fogos de artifício; designavam um ecônomo para
controlar as despesas e cotizavam-se a fim de recolher
os fundos necessários. Se um branco aparecia era
somente para vigiar, de medo que tudo terminasse em
disputas e contendas57.”
A elaboração de um ‘catolicismo negro’ se relacionou com o fato deste processo ter
permitido solidariedades étnicas entre os escravos, que além de suas rivalidades ancestrais e
devido às muitas situações limites cotidianas eram incentivados por seus senhores a
possuírem conflitos, dificultando, muita das vezes, o surgimento de ações coletivas numa
crítica radical às suas condições escravas. Isso passou a ser minimizado com sua inserção
no catolicismo das irmandades negras, que com seu crescimento e prestígio nas cidades em
torno da qual formaram e se formaram atraíram olhares hostis dos aristocratas coloniais das
irmandades, da chamada por Bastide, “Igreja branca”, e dos visitadores inquisitoriais.
A religiosidade dos engenhos do século XVII se torna paulatinamente pública e
urbana, em especial nas Minas Gerais do século XVIII, com o aumento dos núcleos
urbanos e o advento das irmandades religiosas. É neste cenário que surge o ‘catolicismo
negro’ que sai do fundo das capelas de engenho das casas-grandes e adentra as igrejas das
irmandades negras. Surge também um ‘verdadeiro’ conflito por prestígio, por fiéis e por
financiamento e esmolas entre os membros das irmandades brancas e das negras. O conflito
religioso entre brancos e negros passou a ser tão freqüente e numeroso que o “aparthaid
social58” das capelas coloniais se agravou neste momento, em que segundo Bastide, “as
pessoas de cor eram, portanto, obrigadas a pertencer a confrarias próprias à sua cor59”. Os
conflitos que surgiam entre estas igrejas era, por vezes, tão radical, pelos direitos de
precedência nas procissões e nos enterros, pelos itinerários dos cortejos e pela ordem

57
BASTIDE, Roger. op. cit., p. 162.
58
MOTT, Luiz. op. cit., p. 161.
59
BASTIDE, Roger. op. cit., p. 165.
43

hierárquica das procissões, que estas apelavam aos tribunais eclesiásticos ou civis, e até
houve casos que chegassem à Roma.
No entanto, as relações entre brancos e negros não era tão rígida como Roger
Bastide nos apresenta. Os reis negros congos que surgiram como expressão religiosa
popular negra de dentro das irmandades eram alforriados pelos brancos anualmente com
uma carta de alforria na festa do santo patrono. Além disto, havia também rivalidades
étnicas entre negros e mulatos, entre escravos e libertos, entre ladinos e crioulos, tendo
como foco da disputa, muita das vezes, não só a pertença à mesa do conselho da irmandade,
mas a escolha do santo de cor, que funcionava como um líder simbólico que representaria a
irmandade. Existiram ainda irmandades negras que propuseram a integração entre as
diversas raças ou cores sugerindo outras consciências étnicas. Muitos conflitos , entretanto,
os limites étnicos e adentravam os sociais, sendo muitos os casos de conflitos entre
irmandades ricas e irmandades pobres dentro da Igreja.
Na disputa pelo controle dos capitais para a sustentação e manutenção do projeto
das irmandades, as insurgências múltiplas oriundas de todos os lados e cores da Igreja se
revelaram também em hierarquias étnicas e sociais nas procissões e festas das irmandades
negras. Estas festas e procissões eram vistas como desperdício de verbas destinadas às
missas e sacramentos para os visitadores inquisitoriais, mas como necessárias à manutenção
do corpo eclesiástico de fiéis mantenedores da irmandade por haverem se tornado um lugar
de resistência, sobrevivência de referências ancestrais, de folga e ‘descanso’ do trabalho
escravo, de trégua dos conflitos e animosidades várias entre irmandades e membros de
diversas cores, nações e etnias, e de uma vivência política e cultural para os escravos
africanos dentro do catolicismo negro.
Sob o olhar de viajantes estrangeiros vindos da Europa que passaram pela Colônia,
o catolicismo negro foi visto como uma mistura de cerimônias burlescas e imoralidades. Ao
contrário da crítica dos viajantes que o viu como ‘desviante’ do catolicismo reinol
português, o catolicismo negro e sua importância política e cultural para os africanos
escravizados, nas palavras de Roger Bastide:
“foi um relicário precioso que a Igreja ofertou, não
obstante ela própria, aos negros, para aí conservar, não
44

como relíquias, mas como realidades vivas, certos


valores mais altos de suas religiões nativas60”.
Sendo assim, tentei demonstrar neste capítulo como as crenças e identidades
religiosas africanas, marginalizadas e reprimidas pela Igreja Católica ao qual foram
submetidos os escravos, na intenção de controlar estas populações, apassivando-as, acabou
por fazer com que diversos aspectos culturais destas ‘crenças profanas’ fossem absorvidas
pela religião oficial. Através da atuação criativa dos negros escravos e livres dentro das
capelas de engenho e posteriormente das irmandades religiosas, as afro-religiosidades dos
calundus, mandingas e santos negros possuíram ainda ampla divulgação e diluição
resignificada por outras gentes da colonização, desde a aristocracia aos diversos
degredados, permitindo a existência de um catolicismo a parte, ‘afro-brasileiro’, produzido
e vivenciado nestas confrarias.
Tentei apontar como que nestas irmandades negras eram realizadas devoções a
santos negros como Nossa Senhora do Rosário, São Benedito e Santa Ifigênia, dentre
outros, mas também congadas e maracatus, ao mesmo tempo em que os negros irmanados
reinventavam suas histórias e identidades ancestrais através do diálogo e trânsito dentro do
‘profano’ dos calundus e suas mandingas. As irmandades negras se tornaram extremamente
numerosas na Colônia a partir do século XVII, aglutinando diversas personagens ao seu
redor, entre conflitos e solidariedades por diversas e complexas questões engendradas,
vitalizando a vida religiosa e cultural e dinamizando a urbanidade das freguesias coloniais,
como veremos no capítulo a seguir.

60
idid., p. 179.
45

CAPÍTULO 3

O CATOLICISMO DAS IRMANDADES NEGRAS


NA AMÉRICA PORTUGUESA
46

3.1 –A devoção sagrada e profana das irmandades negras

“Formaram irmandades
Em grande união
Daí nasceram festejos
Que alimentaram o desejo
De libertação.”
(Sublime pergaminho, Unidos de Lucas, 1968)

As irmandades católicas de homens brancos e de pretos já existiam em Portugal,


desde a segunda metade do século XV. Segundo a historiadora Mariza Soares, a primeira
irmandade portuguesa, a Irmandade de Nossa Senhora do Rosário do Mosteiro de São
Domingos foi criada em Lisboa no ano de 1460, e na leitura de seu compromisso de 1565 já
era possível perceber pretos, mouros, brancos, mulatos e índios nesta irmandade, em que
apenas pretos não-escravos poderiam assumir cargos na hierarquia da mesma.
Na América portuguesa, dentre as instituições em torno das quais os negros se
congregaram de forma mais ou menos independente, segundo o historiador João José Reis,
destacam-se as confrarias ou irmandades religiosas, dedicadas à devoção de santos
católicos.

“Elas funcionavam como sociedades de ajuda mútua.


Seus associados contribuíam com jóias de entrada e
taxas anuais, recebendo em troca assistência quando
doentes, quando presos, quando famintos ou quando
mortos. Quando mortos porque uma das principais
funções das irmandades era proporcionar aos associados
funerais solenes, com acompanhamentos dos irmãos
vivos, sepultamento dentro das capelas e missas
fúnebres. Os dirigentes máximos das irmandades eram
chamados de juízes, provedores ou outros termos que
variavam regionalmente. Os escrivãos e tesoureiros
detinham muito poder61.”
Ainda a respeito da especificidade da experiência das irmandades na América
portuguesa, E. Hoonaert afirma que:

“as irmandades refletiam as características raciais,


sociais e ideológicas das diferentes camadas da
sociedade. Havia irmandades negras (do Rosário, de
61
REIS, João José. Identidade e diversidade étnicas nas irmandades negras no tempo da escravidão Tempo.
Revista do Departamento de História da UFF. vol. 2. nº 3. junho de 1997. p. 11.
47

São Benedito, Santa Ifigênia), mestiças (da Conceição,


do Amparo, do Livramento, do Patrocínio) e brancas
(do Santíssimo Sacramento, São Francisco, do Carmo,
da Santa Casa de Misericórdia). Havia irmandades de
proprietários de terras, de comerciantes, de soldados, de
artesãos e de escravos. Todas elas revelavam suas
próprias personalidades e aspirações particulares
durante suas festas, procissões e através das promessas
que faziam62.”
As irmandades religiosas de negros estiveram presentes nos principais núcleos
econômicos da Colônia, a dizer, no Rio de Janeiro, Minas Gerais e Bahia. Elas funcionaram
como espaços de solidariedade entre negros, espaços de resistência política e cultural,
espaços de reconstrução de identidades, e de negociação e conflito, num sistema opressor
escravista no qual estavam submetidos.
Segundo o historiador Caio Boschi, a todos era facultada a oportunidade de
organizar ou de aderir a uma ou mais irmandades. Pertencer a uma ou mais irmandades era
uma necessidade tanto de vida como de morte para muitos habitantes brancos, mestiços e
negros pobres livres ou escravos da Colônia, que concebiam suas irmandades através de
categorias étnicas e profissionais. Boschi aponta que:

“Sem aderir-se a elas, poder-se-ia dizer que as pessoas


se viam desamparadas. Não apenas diante dos percalços
e das agruras da vida, como também quanto a um
sepultamento condigno e a celebração de missas pela
salvação das suas almas63.”
No entanto, curiosamente, segundo a historiadora Mariza Soares, em muitas
irmandades de homens negros, o cargo de tesoureiro era conferido a um homem branco,
especialmente no caso das irmandades do Rio de Janeiro. No compromisso da Irmandade
de Nossa Senhora do Rosário dos Pretos de São Bartolomeu da vila de Maragogipe, por
exemplo, estava firmada esta determinação. O tesoureiro desta irmandade, segundo o
compromisso, “será branco ou pardo; por não haver na dita povoação pretos que saibam ler
e contar64”.

62
HOONAERT, E. A Igreja Católica no Brasil colonial. in: BETHELL, Leslie (org.). História da América
Latina: Volume 1 – América Latina colonial. São Paulo: Edusp, 1997. p. 564.
63
BOSCHI, Caio. Irmãos na vida e na morte Revista de História da Biblioteca Nacional. ano 1. nº 1. julho de
2005. p. 66.
64
REIS, João José. op. cit., p. 21 e 22.
48

O cargo de tesoureiro era um dos principais cargos da ‘mesa’, como se denominava


o corpo dirigente das irmandades. Os outros membros se encarregavam da organização de
festas e funerais, coleta de esmolas, assistência aos doentes, administração da capela e do
culto divino; atividades que compunham a dinâmica cotidiana das irmandades religiosas
negras.
A partir do século XVIII, o catolicismo experienciado dentro das irmandades
religiosas passou a ser observado pela Coroa portuguesa como importante expressão da
consolidação da fé católica na Colônia, considerando-se a finalidade política que
adquiriram as irmandades religiosas, como ‘vetores da verdadeira fé’, dentro da conflituosa
conjuntura social do mundo cristão moderno. Bastide aponta que a implementação do
catolicismo nas irmandades da América portuguesa foi uma “continuação do catolicismo
português65”.
Daí podemos observar, por exemplo, porque em muitos momentos as irmandades de
homens negros conseguiram na Colônia um relativo apoio da Coroa portuguesa em
períodos turbulentos de sua história, considerando ainda que a política da Metrópole frente
as irmandades variou conforme as conjunturas políticas de cada região e período. Não
houve, portanto, obstáculos ao crescimento do fenômeno social das irmandades. Ao
contrário, houve o estímulo dos soberanos portugueses no sentido da construção das
mesmas devido ao interesse da Coroa portuguesa na ampliação da vigilância da sociedade
colonial. Ao final do período colonial, o total destas agremiações em Minas Gerais
ultrapassava três centenas.
Segundo a historiadora Julita Scarano, as irmandades religiosas da América
portuguesa quanto à questão da composição dos quadros administrativos e diretoriais de
suas mesas, e da escritura de seus compromissos, “davam muito maior importância às
categorias raciais e sociais, não se integrando em qualquer finalidade profissional66”,
embora os historiadores Alisson Eugênio e João José Reis mostrem que em determinadas
irmandades mineiras e baianas os letrados possuíam um maior prestígio junto à direção
destas irmandades.

65
BASTIDE, Roger. As religiões africanas no Brasil: Contribuição a uma sociologia das interpenetrações de
civilizações. São Paulo: Livraria Pioneira, 1989. p. 177.
66
SCARANO, Julita. Devoção e escravidão: A irmandade de Nossa Senhora do Rosário dos Pretos no
Distrito Diamantino no século XVIII. São Paulo: Ed. Nacional, 1978. p. 24.
49

Scarano afirma que “quanto às irmandades religiosas no Brasil, elas aparecem mais
ligadas às confrarias medievais, de finalidade religiosa e caritativa67”, partindo talvez daí a
sedução dos negros escravizados a se aproximarem destes espaços em que poderiam estar
protegidos e respeitados por se aproximarem da cultura religiosa normatizada. Através de
sua inserção nestes espaços, os escravos africanos teriam conseguido, como defende
Alisson Eugênio, dentro destas, um relativo status, um prestígio frente a outros negros tidos
como ‘pagãos’ com seus folguedos e ‘crenças bárbaras’. Houve, porém, na complexa e
fragmentada lógica processual histórica das agremiações de cor, irmandades negras
africanas e crioulas de homens livres que rejeitavam escravos por entenderem que estes não
se adequariam às crenças e normas da irmandade. No compromisso da Irmandade de São
Benedicto Ereta do Convento de São Francisco da cidade da Baya, datado de 1770, conta a
seguinte determinação:

“mas sim em atenção de que os pretos, além de na


verdade serem ignorantes da dita arte, são homens pela
maior parte cativos, e por esta razão incapazes de terem
fé pública68.”
As irmandades religiosas garantiam, segundo Julita Scarano, “tanto a proteção a
seus membros necessitados, como a construção de obras religiosas e mesmo profanas69”,
tais como missas para associados falecidos, a unção dos sacramentos, etc., e ainda
atividades tidas como profanas, como as festividades religiosas, algumas destas chamadas
‘folguedos’. Este paradoxo nos mostra como tais crenças foram sendo reconstruídas e como
a religiosidade afro dialogou com o mundo católico cristão das irmandades, se desdobrando
numa religiosidade sincrética, miscigenada, afetivizada e externa - uma religiosidade
popular num mundo que foi chamado pelos historiadores Ronaldo Vainfas e Juliana Beatriz
de “Brasil de todos os Santos70”.

67
SCARANO, Julita, op. cit., p. 25.
68
apud. REIS, João José, op. cit., p. 23.
69
SCARANO, Julita, op. cit., p. 25.
70
SOUZA, Juliana Beatriz de, VAINFAS, Ronaldo. Brasil de todos os santos. Rio de Janeiro: Jorge Zahar,
2000.
50

3.2 –Diversidade, identidades e relações de poder nas irmandades negras

As irmandades religiosas já em Portugal integraram em muitos dos casos vários


segmentos da população e as chamadas ‘raças exóticas’ - mouros, pretos e índios - que
estivessem presentes no Reino. Julita Scarano aponta que, desde os primórdios, se tentou
sujeitá-los ao catolicismo, sendo para tanto as irmandades um espaço privilegiado.
Muita das vezes, o projeto normativo original de controle do imaginário religioso
dos negros, através da cartilha ideológica vivenciada dentro das irmandades, foi
paulatinamente alterado pelos próprios componentes das mesmas. Embora o dogmatismo
religioso e a ritualística praticada nestes espaços estivesse, na maior parte das vezes, em
consonância com os ideais formulados pela Reforma Católica, como a valorização dos
sacramentos, dos santos e a ênfase no culto mariano; Boschi, por exemplo, nos fala que as
primeiras entidades corporativas mineiras que deram origem para as irmandades, não
estavam atreladas ou subordinadas às congregações religiosas, tendo permitido a seus
membros a partir da inexistência de indução perpetrada por jesuítas e frades dominicanos, a
opção pelos oragos como Nossa Senhora do Rosário, a maior das devoções na Minas
setecentista.
Tais aspectos foram possíveis devido a diversos fatores. Dentre eles, a frágil
estrutura eclesiástica da América Portuguesa e da própria Metrópole que possuía uma
religiosidade heterodoxa e repleta de heranças do pensamento mágico medieval. Devido a
autonomia religiosa da maioria das confrarias mineiras, existiram em larga medida tensões
entre visitadores eclesiásticos e inquisitoriais e irmandades negras mineiras no século XVII,
por exemplo, como revela Alisson Eugênio.
Os visitadores inquisitoriais, muitos destes de origem colonial, em favor da
Metrópole procuraram saber se estas irmandades estavam cumprindo com suas obrigações
firmadas nos compromissos de rezar missas para os associados falecidos, ou se
disponibilizavam a maior parte dos seus recursos para festividades devocionais que
poderiam, inclusive, estarem contaminadas pelos ‘subversivos’ atabaques, jongos e
umbigadas dos negros.
Frei João da Cruz, em 1742, ao visitar uma irmandade nos arredores de Ouro Preto,
reclamava o uso indevido dos recursos da irmandade que, em beneficio das festividades
51

religiosas, não vinha cumprindo com suas outras obrigações firmadas nos compromissos de
rezar missas para os associados falecidos.

“Estando em visita nesta freguesia de Santo Antônio de


Itatiaia, comarca de Ouro Preto, os irmãos da Irmandade
de Nossa Senhora do Rosário e São Benedito nos
apresentou este livro de contas, e vendo o que nele se
acham, havemos por incapaz para se fazerem as festas
com tanta solenidade quando se vê pelas despesas que
são feitas, consumindo nelas o rendimento da
irmandade, ficando os irmãos sem sufrágios anuais, não
sendo ereto para o proveito das almas dos que falecem,
e sim para a ostentação humana, pelo qual só é que
fazem tantos festejos71.”
O visitador Frei João da Cruz, ainda em sua investigação e apuração do uso dos
recursos da irmandade naqueles arredores, teria deixado a seguinte recomendação oficial
sob coordenação da Se do Rio de Janeiro no registro de despesas e receitas da Irmandade de
Nossa Senhora do Rosário, de São Benedito e Santo Elesbão:

“não façam mais festas da irmandade com música,


armação, sermões, nem senhor exposto, e somente
poderão fazer e festejar a Senhora do Rosário com uma
missa cantada, e outra a São Benedito, e com o
rendimento da irmandade satisfaçam os sufrágios e
ofícios pelos irmãos defuntos, evitando as despesas
supérfluas que não servem de utilidade para a
irmandade72.”
Este regulamento interno das irmandades foram chamados de ‘compromissos’, e
como afirma Caio Boschi:

“deviam ser submetidos às autoridades civis ou


eclesiásticas, sendo a aprovação ou confirmação de seus
capítulos a chancela e o reconhecimento oficial da
entidade73.”
Tais livros de compromissos que, nas ordens terceiras se denominavam ‘estatutos’,
determinavam certas obrigações das irmandades, como a realização de uma missa para
membros falecidos, como citado. Deveriam ainda serem regidos sob pena de multas ou
71
apud. EUGÊNIO, Alisson. Tensões entre os visitadores eclesiásticos e as irmandades negras no século
XVIII mineiro. Revista Brasileira de História. vol. 22. nº 43. 2002. p. 34.
72
ibid., p. 36.
73
BOSCHI, Caio, op. cit., p. 65.
52

ainda do cancelamento de festas devocionais à comunidade; festas que por sinal cooptavam
recursos para as irmandades negras. O estatuto dos compromissos estabelecia as normas da
organização, suas obrigações, o perfil de seus associados, e os seus direitos e deveres. Estes
compromissos deveriam ser conhecidos e seguidos por todos os membros que antes de sua
admissão teriam que prestar juramento, principalmente os que compusessem as mesas
diretoriais. Estas mesas congregavam os membros dirigentes que eram eleitos pelo grupo,
membros que possuíam o direito de voto sempre que fosse preciso resolver casos
importantes para a organização. Os membros que não respeitassem as regras estipuladas
nos compromissos poderiam ser punidos e até expulsos das irmandades:

“Falecendo alguma pessoa, que seja irmão, ou irmã


desta Santa Irmandade, logo o procurador o fará saber
ao Juiz, ou oficial maior, que presidir na irmandade, o
qual mandará convocar, a som de campa, todos os
irmãos, para que, fazendo todos corpo de irmandade
debaixo da sua Cruz, vão assistir ao seu
acompanhamento e levar o irmão ou irmã falecida a
sepultura. E todo o irmão, que sem justa causa faltar a
este ato, que é dos principais da nossa irmandade, será
multado em esmola de ouro segundo a sua contumada e
arbítrio da Mesa, todas as vezes que faltar, e não
querendo pagar a multa, em que racionavelmente for
multado, e perseverar no capricho, de não querer
acompanhar os irmãos defuntos, será expulso, e riscado
da irmandade74.”
As irmandades eram capitalizadas pelos associados, auxiliadas eventualmente pela
Coroa portuguesa, e mantidas financeiramente pelos homens e mulheres comuns que
habitavam este universo, patrocinando os cultos, construindo as igrejas, e paramentando-as;
ou seja, possibilitando que as irmandades negras pudessem subsistir.
Julita Scarano afirma que o leigo da comunidade se considerava a própria Igreja,
julgando poder intervir em quase todas as questões eclesiásticas e organizando a vida
católica local. Sobre a atuação dos leigos nas irmandades, Mariza Soares, por exemplo,
revela que nas Irmandades de Santa Ifigênia e Santo Elesbão do Rio de Janeiro no século
XVIII, a maioria dos irmãos doava seus bens para a irmandade ou para membros, inclusive
constam testamenteiros nestas agremiações.

74
apud. ibid., p. 66.
53

Ainda que as irmandades religiosas negras servissem como um espaço de


sociabilidades, solidariedades, divulgação e vivência da fé, instrução, resistência e
sociabilização dos negros, e ainda de reconstrução de suas identidades, elas foram espaços
complexos repletos de volúveis jogos políticos, de conflitos microfísicos que refletiam
questões maiores referentes a formulação do status social individual e coletivo dos negros
frente ao mundo escravista que os oprimia. Segundo Boschi, para “as populações escravas,
as irmandades eram o único espaço de sociabilidade consentido e emulado pelas
autoridades75”.
Foram elas espaços ambíguos em que podemos observar ora a busca de adequação e
aceitação do negro à escravidão, ora a crítica reformista e, às vezes, revolucionária deste
mundo que os subjugava.
Expurgados de sua terra original em que estariam disponibilizados seus referenciais
culturais identitários, os africanos transladados para a América portuguesa tiveram que criar
novas maneiras de se identificarem e de se organizarem para poderem sobreviver, tendo
ainda que veicular este construto juntamente às identidades forjadas que lhes foram
travestidas pelo traficante de escravos e seus novos senhores na Colônia. É neste “drama
social76” que surge o conceito de ‘nação’, tão caro e importante dentro da lógica processual
específica de cada irmandade negra colonial.
As ‘nações’ poderiam ser descritas como uma identidade localizada para além da
origem étnica - lingüística, cultural e racial -, mas também relacionada à origem geográfica,
ou seja, a região de onde o africano foi trazido da África para a América portuguesa. As
‘nações’ se confundiriam com os grupos de procedência africana para além de meras
origens étnicas, nem tão bem assim demarcadas na própria África, como afirma o
historiador Robert Slenes que relaciona o conceito de ‘nação’ com seu conceito de “proto-
etnias77” que, segundo ele, teriam sido elaboradas ainda em território africano pelos negros.

75
ibid., p. 66.
76
“Segundo Victor Turner, através do drama social pode-se algumas vezes ir além da superfície de
regularidades sociais e perceber as contradições e conflitos ocultos no sistema social. Os tipos de mecanismos
corretivos empregados para lidar com o conflito, o padrão de luta faccionalista e as fontes de iniciativa para
acabar com a crise, todos claramente manifestados no drama social, fornecem pistas valiosas sobre o caráter
do sistema social.” Cf. MAGGIE, Yvonne. Guerra de orixá: Um estudo de ritual e conflito. Rio de Janeiro:
Jorge Zahar, 2001. p. 43.
77
SLENES, Robert. Malungo ngoma vem!: África encoberta e descoberta no Brasil. apud. REIS, João José.
op. cit., p. 29.
54

Nesse sentido, indivíduos de determinados grupos étnico-lingüísticos africanos


identificados como ‘ladinos’ ou ‘crioulos’ – termo usado para os nascidos na Colônia -, que
comporiam uma determinada nação, numa específica irmandade negra, num período,
poderiam ser totalmente distintos nesta mesma irmandade num outro período, configurando
o que Mariza Soares categorizou como “conjunto de configurações étnicas em permanente
processo de transformação78.”
É na fluidez das tipologias concebidas para identificar e separar os diversos negros
africanos por eles próprios e seus detratores, que grupos como os congregados religiosos
mina marri puderam pleitear seus intuitos e objetivos com a ‘negociação’ destas várias
identidades em trânsito – ‘negro’, ‘escravo’, ‘cristão’, ‘mina’, ‘marri’ e ‘mina marri’ -, por
exemplo.
As negociações e conflitos, a partir da lógica das identidades étnicas e de nações
caracterizavam alianças e animosidades dentro e fora das irmandades, como apontara o
historiador Paul Lovejoy79, ao analisar as solidariedades resultantes da diáspora africana
entre diferentes grupos étnicos na Colônia.
Nesta ambiência de rivalidades, grupos ladinos, por exemplo, não aceitavam ou
dificultavam as relações de negros crioulos dentro de suas irmandades religiosas. Assim
como o contrário também ocorria, já que grupos crioulos não aceitavam ladinos em suas
irmandades. No compromisso da Irmandade do Senhor Bom Jesus dos Crioulos de São
Gonçalo da Vila de Cachoeira, datado de 1800, por exemplo, podemos observar esta
diversidade de lógicas especificas de cada irmandade:

“Procurarão indagar de qualquer Irmão, que entrar para


a Irmandade se é nacional da terra, e no caso que entrar
algum dizendo que o é, e se vier ao conhecimento que é
Angola, Benguela, ou Costa da Mina, vindo adúltero,
será riscado da Irmandade para nunca mais ser
admitido80.”

78
SOARES, Mariza de Carvalho. O império de santo Elesbão na cidade do Rio de Janeiro, no século XVIII.
in: Topoi. Revista de História do Programa de Pós-Graduação em História Social da UFRJ. Rio de Janeiro: 7
letras. nº 4., p. 60.
79
LOVEJOY, Paul. Enslaved africans in the diaspora In: LOVEJOY, Paul (org.). Identity in the shadow of
slavery. London/New York: Continuum. 2000.
80
apud. REIS, João José, op. cit., p. 17.
55

Já no compromisso da Irmandade do Senhor Bom Jesus dos Martírios, datado de


1765, podemos identificar uma lógica inversa a da irmandade citada anteriormente:

“com declaração de que não se admitirão nesta


Irmandade os homens pretos nacionais desta terra, a que
vulgarmente chamam crioulos, senão dando cada um de
entrada dez mil réis81.”
Vale considerar que no caso das irmandades religiosas que eram motivo de disputas
e conflitos no Rio de Janeiro do século XVIII, eram as principais da cidade, a de Santo
Elesbão e de Santa Ifigênia, irmandades que apareceram com outros nomes na segunda
metade do século XVI e tiveram sua reorganização e divisão ao longo do século XVII.
Estas segmentações político-religiosas dentro das irmandades negras, arquitetaram como
podemos observar a partir do caso do Rio de Janeiro e de suas freguesias, uma verdadeira
‘geografia etno-religiosa’, já que nas irmandades desta cidade, a origem étnica era requisito
fundamental para a inclusão do homem e da mulher de origem africana no quadro de
associados das mesmas que possuíam em seus segmentos sociais um enorme contingente
de escravos e homens livres pobres.

3.3 –Solidariedades e resistências nas irmandades negras

A questão da reconstrução conflituosa das identidades, segundo os historiadores


João José Reis e Alisson Eugênio, pode ser também observada na presença e mobilização
dos negros irmanados para as festividades religiosas em devoção aos seus santos negros.
As festas religiosas estavam presentes no estatuto interno das irmandades negras.
Para além da devoção dos santos destas comunidades, elas serviram para a afirmação
simbólica do poder da religiosidade católica promovida pela irmandade sobre a população
que a contemplava, concebia e participava. Caio Boschi destaca uma das solenidades mais
suntuosas promovida pelas irmandades, o tríduo promovido em 1733, a pretexto da
transladação do Santíssimo Sacramento da igreja de Nossa Senhora do Rosário para a
inauguração da nova matriz de Nossa Senhora do Pilar, em Vila Rica:

“Festa sacra e profana, como costuma acontecer em


uma sociedade praticante de religiosidade sob o signo
81
ibid., p. 15.
56

do exibicionismo exteriorista, consignado nas


orientações do concílio tridentino (1545-1563)82. ”
As ‘folias’ negras serviram também para a conformação e adequação controlada do
negro e do escravo por parte de alguns setores eclesiásticos e leigos, dentro do próprio
corpo heterogêneo que compunha as irmandades e suas relações de poder. Assim como
existiram também aqueles que as incentivavam por tornarem viáveis um outro espaço de
barganha, resistência, solidariedades, e resiginificação do cotidiano de seus associados
negros.
Em 1764, percebendo o potencial estratégico de entrada nos códigos negros e de seu
controle, o bispo do Rio de Janeiro deixou o seguinte parecer que foi anexado aos
documentos de confirmação do compromisso da Irmandade de Santo Elesbão e Santa
Ifigênia:

“ainda que seja mal soante aos ouvidos a palavra


‘Folias’, como esta consiste em terem um Imperador,
Imperatriz, Príncipe e Princesa, Reis e Rainhas do
estado [de folia], para conciliarem por este meio melhor
os ânimos e as esmolas desta gente preta e há observado
entre eles estes costumes nas cidades, e terras mais bem
reguladas talvez para que tenham esta consolação, entre
tantos trabalhos do cativeiro a que o sujeitou a sua
infelicidade, parece-me que se lhes pode conceder o que
pedem83.”
Em contrapartida, poucos anos depois, em 1786, é possível observar a articulação
política dos negros que visavam estabelecer uma comunidade religiosa ativa e coesa a partir
das festividades religiosas na seguinte afirmação:

“o estado de folias (...) serve de muita utilidade, assim


de exercitar os ânimos dos pretos, como para acodirem
de novo muitos de fora, assentarem-se na Congregação
afim de os ir atraindo84.”
A partir do relato dos mina-marri podemos verificar que as festas poderiam ser
vistas como um espaço de atualização da vivência de uma resistência política, de
construção de novas solidariedades e subjetividades frente a condição escrava cotidiana.

82
BOSCHI, Caio, op. cit., p. 65.
83
apud. REIS, João José. ibid., p. 26.
84
ibid., p. 19.
57

Assim como também foram um lugar de estímulo a aproximações e hostilidades entre


negros de várias nações, já que muitos destes grupos produziram suas festas em separado,
devido a animosidades étnicas que eram estimuladas pelos seus senhores.
Para o historiador Carlos Engemann, muitos dos conflitos e resistências dentre
africanos e crioulos da Freguesia de Nossa Senhora do Desterro de Itambi, no Rio de
Janeiro do século XVIII, que estavam filiados a Irmandade de Nossa Senhora do Rosário,
por exemplo, foram decorrentes da busca de prestígio e status dentro da própria
comunidade religiosa ao qual estavam integrados. Esta tensão social se verificava em
pequenas disputas cotidianas, como, por exemplo, pelo local do sepultamento de membros
e parentes da irmandade. A maior demanda era pelo sepultamento dentro da igreja, próximo
do altar ou no interior da nave principal, que eram vistos como territórios santos. A grande
maioria, no entanto, era sepultada no adro da igreja, região que circunda o templo, que era
vista como menos nobre. Engemann observou que esta hierarquia da morte existente dentro
das irmandades negras, assim como da resistência em aceitar e congregar membros de
origens étnicas e ou nacionais diferentes, era devido ao fato de que:

“Sendo homens estranhos entre si por definição, é certo


que tenham gerado algum tipo de tensão social: por
parceiros sexuais, por espaço físico, por status, enfim
pelos mais diversos motivos85.”
Outra finalidade das festividades religiosas era a capitalização de recursos às
irmandades que tinham de subsistir com um patrimônio mínimo fornecido por seus
membros e fiéis. Segundo Alisson Eugênio, o volume de esmolas aumentava
consideravelmente após as festividades.
Os recursos capitalizados pelas irmandades negras, seja através do eventual apoio
da Coroa portuguesa, seja através da associação de seus membros que as mantinham, ou
ainda, dos donativos de fiéis no cotidiano das missas e festas religiosas, circulavam e
‘retornavam’ para a próprio membro da irmandade. A ‘externalização prática’ desta
‘economia da resistência’ das irmandades, que funcionava de maneira autônoma e solidária
junto aos seus associados, se verificava através das missas para membros defuntos, dos
sacramentos, das festas; mas também em muitos casos através do sentido comunitário e
solidário presente em muitas das irmandades negras, como por exemplo, o fato de que
85
ENGEMANN, Carlos. A hierarquia na morte. História e memória. nº 9. novembro/dezembro de 1998. p. 6.
58

membros escravos que precisassem de auxílio financeiro para comprar sua carta de alforria,
se observassem às normas e exigências da irmandade poderiam ser ajudados e beneficiados
neste sentido, como nos mostra em 1786, o estatuto da Congregação dos Pretos Mina
Marri:

“ Os congregados que forem cativos querendo libertar-se


tendo o seu dinheiro e lhe faltar para o ajuste de sua
alforria, fará saber ao regente para este lhe dar
providências fazendo juntar os Congregados
participando-lhes da necessidade que tem o dito do
dinheiro para se libertar, para o que o secretário fará um
termo e assinará o dito pretendente com obrigação de o
parar86.”
Exemplos de solidariedade nas irmandades como o relato dos mina-marri, se
tornaram mais freqüentes a partir do século XVIII, quando as irmandades de homens pretos
adquiriram o direito de resgatar, mediante uma avaliação justa, os escravos que os senhores
se dispusessem a vender. Esta condição começou a ser exercida na Colônia pelas
associações sob a invocação de Nossa Senhora do Rosário, e se consagrou na Irmandade de
Nossa Senhora das Mercês, que era referendada como orago por excelência da redenção
dos cativos.
Vistas como perigosas e subversivas por alguns setores da sociedade que visavam
também ao controle das atividades burocráticas das irmandades negras, como os visitadores
eclesiásticos e inquisitoriais, principalmente nas irmandades das Minas Gerais do século
XVII, como apontara Alisson Eugênio, as festividades das irmandades negras demandavam
uma intensa mobilização e organização dos negros, caracterizando o que João José Reis
conceituou de “ousadia lúdica87”; atraindo todos os tipos de pessoas que simpatizavam com
estes folguedos.
Eram também nas festas que os negros expressavam seu legado cultural religioso
africano, em dialética com a cultura cristã das irmandades, através do que João José Reis
chamou de uma “religiosidade pragmática88”; o que pode ser entendido como uma
economia religiosa experienciada nas festas que ‘acionaria’ uma anterior ancestralidade

86
apud. REIS, João José, op. cit., p. 25.
87
REIS, João José, op. cit., p. 9.
88
ibid., p. 20.
59

mítica, estimulando daí simpatias e identificações, confluindo o ‘profano’ em ‘sagrado’,


assim como o ‘sagrado’ dos cortejos fúnebres negros eram vivenciados ao sabor de danças
e batuques ‘profanos’. O cortejo fúnebre exercido pelas irmandades negras para seus
associados e parentes próximos era transformado também, conforme apresenta João José
Reis, numa festa.
Exemplos como estes, que apontam para a autonomia burocrática e religiosa das
irmandades negras, expressa na diversidade de suas crenças e ritos cotidianos, em certa
medida ora dentro, ora distanciados dos preceitos tridentinos defendidos e valorizados pelos
visitadores e pelo Padroado, em especial nas festas religiosas, foram a justificativa para as
reações dos eclesiásticos contra as festividades das irmandades.
Ao contrário dos negros, os visitadores eclesiásticos e inquisitoriais entendiam que
o trato dos mortos exigia, por exemplo, o cumprimento de missas específicas para os
falecidos irmãos associados das irmandades no intuito de amparar suas almas que estariam
num lugar inventado no século XII pela Igreja, que teria sido revalorizado pela teologia da
Reforma Católica, o Purgatório. No entanto, como mostram os registros levantados por
Alisson Eugênio, o índice de mortalidade era altíssimo na Colônia, e atender a tantas almas
perdidas no Purgatório se tornou um problema. Frente a este obstáculo e ao dispendioso
tempo e custo necessário para a realização de tais missas, algumas irmandades negras
‘deslocaram’ os rituais fúnebres oficiais das igrejas para as festividades, onde o trato dos
mortos era referendado de maneira simbólica, pragmática e alternativa, frente a difícil
realidade da manutenção das irmandades.
Esta política caracterizou uma série de conflitos intra-irmandades nas Minas Gerais
do século XVII, por exemplo, já que as missas serviam, sobretudo, como rito atualizador do
poder da Igreja frente sua comunidade, e sem as missas esta autoridade poderia estar
abalada. A questão do trato dos mortos, assim como de uma maneira geral, a questão da
busca de legitimidade e autonomia de expressão de suas religiosidades esteve presente no
cotidiano dos negros ladinos e crioulos, cativos e forros, que compuseram o corpo social
das irmandades.
Esta diversidade nos revela como as irmandades foram espaços de extrema
alteridade, complexidade e de criatividade de seus integrantes, a observar pelo vasto legado
cultural barroco e rococó produzido dentro das irmandades negras coloniais, com suas
60

pinturas, esculturas, arquitetura e músicas próprias, que agitaram a vida cultural dos
núcleos urbanos que surgiram a partir delas. Boschi, por exemplo, a respeito do
crescimento urbano decorrente da dinâmica comunitária em torno das irmandades, afirma a
respeito das irmandades negras mineiras do século XVIII:

“a partir dos espaços de práticas religiosas, o convívio


social foi se forjando, os núcleos urbanos se erigindo e o
comércio se configurando. Não por acaso, muitas das
benfeitorias e das obras públicas são devidas a
iniciativas e se executaram a expensas das confrarias89.”
Para concluir, como tentei observar, as irmandades religiosas negras foram um lugar
privilegiado para a formulação de novos sentidos criativos e altivos dos negros e mestiços
na América portuguesa sob o jugo da escravidão, permitindo-lhes a gestão de expressões,
conceitos e lógicas próprias. Estas idéias alteraram toda uma prática social da vivência
política e cultural da sociedade escravista, possibilitando a estes personagens que foram
chamados de “devotos da cor90” por Mariza Soares, negociarem sua condição e triunfarem
em muitas de suas estratégias formuladas nas irmandades que lhes permitiram elaborar
novos significantes e significados às suas vidas.

89
BOSCHI, Caio, op. cit., p. 63.
90
SOARES, Mariza. Devotos da cor: Identidade étnica, religiosidade e escravidão no Rio de Janeiro, século
XVIII. Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, 2000.
61

Conclusão

Como tentei verificar neste trabalho, os negros africanos e crioulos foram


personagens fundamentais dentro da história da Igreja Católica e do catolicismo na
América portuguesa, tendo deixado importantes marcas na cultura brasileira a partir do
contato de suas culturas ancestrais com o catolicismo, reelaborado dentro das irmandades
que eles formaram, de onde surgiram os maracatus, jongos, cocos, congadas, umbigadas,
folias de reis, dentre várias outras manifestações culturais brasileiras.
A partir do diálogo com o sincrético e plástico catolicismo colonial com o qual
tiveram contato, transformaram seus calundus e mandingas no que é atualmente chamado
de umbanda, candomblé, voduns, tambor de crioula, dentre várias outras expressões
religiosas nacionais com origem nesta relação ora conflituosa, ora cordial entre as crenças
negras e a Igreja Católica colonial.
Vimos no primeiro capítulo que os conflitos entre jesuítas e colonos, as divergências
entre as ordens missionárias devido às suas diversas concepções de evangelização, o alto
índice de mortalidade indígena por doenças após o contato com os portugueses, aliado ao
descontrole das práticas eclesiásticas que eram heterogêneas e repletas do pensamento
mágico medieval ainda presente na Península Ibérica, colaboraram aliadas aos problemas
que Portugal tivera com outras Colônias e Estados europeus, para que não houvesse um
controle rígido das ‘questões da fé’ na América portuguesa, permitindo uma relativa
autonomia daqueles que eram por ela responsáveis.
No entanto, quando os jesuítas se afastaram do modelo missionário conveniente e
aceito pela Metrópole para a Colônia, foram expulsos. A missionarização acabou por se dar
de maneira diferenciada do projeto originalmente concebido pelo Padroado português sob
as orientações do Concílio de Trento. Através das ordens seculares e leigas que surgiram
dentro da Colônia, a estrutura eclesiástica colonial foi sendo montada de maneira
fragmentada, mas foram os seculares e leigos que fizeram esta Igreja se sustentar através de
sua atuação nas paróquias e capelas de engenho.
No segundo capítulo observamos que dentro das capelas e paróquias sempre
estiveram os negros, embora de maneira secundarizada ao fundo das mesmas, num primeiro
momento. Aos poucos os negros foram se utilizando politicamente deste novo código
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religioso com o qual tiveram contato e foram submetidos, e tomaram a frente das ‘questões
da fé’ criando suas próprias irmandades, oscilando entre os seus calundus e a Igreja
Católica.
As irmandades religiosas negras, como apontado no terceiro capítulo, embora
fossem muitas delas marginalizadas, receberam algumas vezes o apoio da Metrópole
portuguesa e eram vistas com bons olhos por outras ordens e irmandades coloniais por
acreditarem que nas irmandades os negros estariam sob controle, mas também eram mal
vistas, especialmente devido às festividades religiosas que faziam, que eram interpretadas
como ‘perigosas’ e desviantes dos compromissos das irmandades. Dentre vários conflitos
que observamos, a constante querela que as irmandades negras tiveram com os visitadores
eclesiásticos era devido ao grande número de festas religiosas que produziram, já que ao
invés de fazerem missas para os falecidos irmãos irmanados, sua extrema-unção era
simbolicamente deslocada para as festas que atraíam esmolas, carisma da comunidade e
eram menos onerosas que as missas.
Oscilando entre os calundus e a Igreja Católica, entre crenças e ritos pessoais e
subjetivos cultivados dentro de suas casas e senzalas, e daqueles que eram vivenciados
dentro das capelas, paróquias, e irmandades coletivamente e sob ritos determinados, os
negros africanos e crioulos, muita das vezes de maneira conjunta ou em separado devido à
animosidades étnicas, se utilizaram do catolicismo colonial em seu proveito, conforme suas
demandas simbólicas e políticas, como tentei demonstrar a partir da investigação que deu
origem a este trabalho.
Como ‘cativos da fé’, os negros ampliaram e subverteram o cativeiro da escravidão
na América portuguesa, resistindo e reinventando suas crenças, culturas e identidades, de
maneira a alcançarem dentro dos diversos limites cotidianos aos quais estavam submetidos,
um sentido possível de liberdade.
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