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Para Solange Lucena

Mendes e Vítor Goulart


AGRADECIMENTOS

À Fundação de Amparo à Pesquisa do Estado de São Paulo (FAPESP)


por ter financiado a presente pesquisa, sendo um fundo imprescindível para a
conclusão do trabalho. Também manifesto minha gratidão pela Coordenação de
Aperfeiçoamento de Pessoal de Ensino Superior (CAPES), que proporcionou o
financiamento para minha estadia prolongada na Cidade do México, por meio do
Programa de Doutorado Sanduíche no Exterior (PDSE).
A Leandro Karnal, com grande estima, por ter acreditado no projeto que
originou este trabalho, pela paciente orientação e atenção concedida às minhas
questões, e também pela ética e rigor que tanto me auxiliaram no cumprimento
desta etapa.
A Solange Alberro pela pronta recepção oferecida no Colegio de México,
pelas longas conversas sobre o mundo hispânico e história colonial que me
ajudaram a sanar muitas inseguranças e os questionamentos suscitados com os
arquivos inquisitoriais.
A Maria Elvira Buelna Serrano pelo amparo oferecido com relação aos
manuscritos do século XVI, pelos ensinamentos técnicos em paleografia e pela
generosidade em ceder parte de seu material paleografado.
Sou grato também pelas muitas sugestões dadas pelos professores José
Alves de Freitas Neto, Margareth Rago, Rui Luis Rodrigues, Carlos Alberto de
Moura Ribeiro Zeron e Luis Estevão de Oliveira Fernandes, no decorrer da minha
trajetória e para a conclusão desta tese.
Aos professores, afetuosamente, Paulo Miceli, Silvia H. Lara, Leila M.
Algranti e Sidney Chalhoub pelas distintas e ricas contribuições para a minha
formação. Pela grande receptividade e afetividade que demonstraram desde a
minha entrada na UNICAMP.
A Gabriela De Laurentiis pela amizade nestes anos, pelos diálogos
extensos e prazerosos, além do apoio e preocupação. Obrigado por tudo,
especialmente, por me persuadir quando ninguém mais podia.
A Maria Talib Assad por dividir comigo o encerramento desta etapa, pelo
apoio e cumplicidade, pelas conversas de todos os dias e pelos sorrisos que ela
despertou em mim em meio às agitações do último ano.
Aos amigos que fizeram parte do meu cotidiano nestes últimos anos e
por proporcionarem o apoio e o constante interesse que me alimentaram no
cumprimento do doutorado. Agradeço, em particular, a Maurício Pelegrini, Caio
Pedrosa da Silva, Ricardo Amarante Turatti, Eduardo Ruz Torres, Ana Carlina
Machado, Paula Talib Assad, Mariana Boaventura, Rodrigo Valentim Chiquetto
Flávia França e Luciana Wilm.
Também muito devo a Odette Duthon, Adriana S. Duthon, Marisa A.
Pérez Vela, Andrea Santiago, Raul Santiago, Maria José Pasos, Andrea Loi e
Ernesto Scheinvar, por me acolherem e me mostrarem um México mais profundo,
pelos afetos oferecidos e pela saudade que deixaram em mim.
A todas as pessoas que não tiveram o nome aqui citado, mas que, de
alguma forma, forneceram apoio direto ou indireto aos meus esforços.
RESUMO

Investiga-se o funcionamento do Santo Ofício da Inquisição em torno dos


indígenas do Vale do México e arredores. Trata-se, especialmente, do
relacionamento mantido entre os procedimentos jurídicos implementados e os
primeiros empreendimentos de evangelização, entre os anos de 1521 e 1545.
Busca-se, a partir dos diversos processos inquisitoriais, localizar as conexões que
vincularam as práticas inquisitoriais e os pressupostos dos evangelizadores. A
época abordada abarca o período dos procedimentos levados adiante pelo primeiro
bispo e inquisidor do México, o franciscano frei Juan de Zumárraga. Para tanto,
confrontam-se as tendências que nortearam a conduta da Ordem de São Francisco,
em seu labor evangélico, com as peculiaridades da atuação inquisitorial. A
mediação proporcionada pelo clero franciscano foi fundamental para as
intervenções punitivas, atuando de forma intensa nas etapas que constituíram os
inquéritos do Santo Ofício. As fontes analisadas sustentam uma estreita
dependência entre os processos de Inquisição contra indígenas e a atuação dos
primeiros evangelizadores no México colonial. O enraizamento e os trâmites do
tribunal obedeceram à difusão e atuação dos regulares franciscanos, maioria
preponderante no recorte temporal analisado.

Palavras-Chave: México; Inquisição; Nova Espanha; Juan de Zumárraga;


Indígenas.
ABSTRACT

This work aims to put light in how the Holy Office of the Inquisition
operated around the native Indians of the Mexican Valley and its surroundings. It is,
mainly, about the relation of implemented legal procedures to the first evangelization
projects, from the years 1521 to 1543. It seeks, from various inquisitorial processes,
to spot the connections that tie the inquisitorial practices to the evangelists’
assumptions. The age approached includes the period of procedures taken forward
by Mexican bishop and inquisitor, the Franciscan friar Juan de Zumárraga.
Therefore, the tendencies that guided Saint Francis Order courses in its evangelical
work are confronted with the peculiarities of the inquisitorial actions. The interposition
provided by the Franciscan clergy was primordial to the punitive interventions,
working intensively in the steps that composed the Holly Office inquiry. The sources
examined support a close dependency between the Inquisition processes against
the native Indians and the actions of the first evangelists in colonial Mexico. The
rooting and the legal channels of the court followed the dissemination and the
performance of the Franciscan regular, overwhelming majority in the period in
question.

Key-words: Mexico; Inquisition; New Spain; Juan de Zumárraga; Native


people.
LISTA DE FIGURAS

Figura 1 - Jogador de patolli enforcado por zombar do cristianismo........................81

Figura 2 - Nobre tlaxcalteca enforcado por idolatria................................................82

Figura 3 - Enforcamento e queima de nobres tlaxcaltecas......................................83


LISTA DE QUADROS

Quadro I - Participação dos Evangelizadores como Tradutores e


Consultores...........................................................................................................130

Quadro II - Denunciantes......................................................................................139

Quadro III - Investigadores Comissionados nos Expedientes Contra


Indígenas..............................................................................................................146

Quadro IV - Testemunhas.....................................................................................155

Quadro V - Sentenças Pronunciadas contra indígenas.........................................188


SUMÁRIO

Introdução.............................................................................................................14
1. Inquisição em dois tempos.........................................................................15
2. Arquivo e historiografia...............................................................................20
3. Rumos e aproximações..............................................................................29
4. Heresia e origens da Inquisição.................................................................35
5. Divisão e estrutura do trabalho...................................................................44

Capítulo I: Evangelização e Disciplina Eclesiástica (1521-1536).....................46


1. Privilégios pontifícios..................................................................................47
2. Franciscanos no México.............................................................................49
3. Batizar, desmanchar, (re)educar................................................................54
4. Atribuições e Controvérsia..........................................................................62
5. Índices Punitivos.........................................................................................68

Capítulo II: O Inquisidor e o Tribunal Episcopal................................................85


1. Frei Juan e o imperador..............................................................................86
2. Um suposto “erasmista”..............................................................................90
3. Nova Espanha e primeiras hostilidades......................................................94
4. A chegada do inquisidor..............................................................................99
5. Fundação e autonomia do Tribunal episcopal...........................................102
6. Conformidade processual.........................................................................108
7. A barreira linguística.................................................................................120

Capítulo III: Enraizamento, Tramas e Perseguições........................................126


1. Denúncia...................................................................................................127
2. Recurso Inquisitorial.................................................................................134
3. Testemunhas ...........................................................................................143
4. “Simulacros infernales”.............................................................................148
Capítulo IV: Exemplaridade Punitiva e Efeito Público....................................173
1. Punição e espacialidade ...........................................................................174
2. Uma nova hierarquia.................................................................................181
3. Vozes e contenções .................................................................................188
4. Don Carlos Ometochtzin...........................................................................193
5. Heresia e memória punitiva.......................................................................199
6. O afastamento do bispo inquisidor............................................................206

Conclusão............................................................................................................215

Referências..........................................................................................................216
Fontes Manuscritas......................................................................................223
Fontes Impressas ........................................................................................223
Bibliografia....................................................................................................226

Anexo I.................................................................................................................240

Anexo II................................................................................................................243

Anexo III...............................................................................................................245
14

INTRODUÇÃO
15

1. Inquisição em dois tempos

O alcance e o funcionamento de instâncias inquisitoriais nos domínios


americanos do Império Espanhol dependeram dos níveis de consolidação
institucionais da Coroa. Entre os anos de 1569 e 1610, foram ordenadas as
fundações dos tribunais das Índias. México, Lima e Cartagena de Índias foram os
locais estratégicos selecionados para a instalação das ramificações do Inquisição
espanhola. As três sedes inquisitoriais estiveram sujeitas ao Consejo de la Suprema
y General Inquisición, responsável pela fiscalização e nomeação dos inquisidores.
A criação dos tribunais prescreveu aos anseios da Coroa para a manutenção da
ortodoxia católica nos novos territórios.1 Como disposto na Recopilación de las
Leyes de los Reinos de Indias, a presença dos tribunais deveria conservar “la
pureza y entereza que conviene”.2
Em cumprimento das cédulas reais, foram nomeados os inquisidores
Serván de Cerezuela e Pedro Moya de Contreras, respectivamente, para os
tribunais de Lima (1570) e México (1571). O Santo Ofício de Cartagena de Índias
foi criado anos depois, em 1610, quando Juan de Mañozga e Pedro Mateo foram
designados ao cargo inquisitorial. O tribunal cartaginês encerrou os impulsos de
expansão da rede dos tribunais da Inquisição espanhola. Parte do cotidiano dos
centros coloniais hispano-americanos, o Santo Ofício perdurou com seus altos e
baixos até o início dos processos de independências.
Comparados aos tribunais peninsulares, as instituições americanas do
Santo Ofício nunca receberam a mesma importância, nem contaram com a
complexidade administrativa de Inquisições como as de Toledo, Sevilha e
Valladolid. Disparidade expressa nos salários e nos reduzidos quadros de
funcionários. A inquisição americana foi uma extensão periférica e de difícil paralelo
frente às instâncias peninsulares. Os inquisidores designados para as índias,

1
ALBERRO, Solange. Inquisición y Sociedad en México 1571-1700. México: FCE, 1993, p. 30.
2
Recopilación de las Leyes de los Reinos de las Indias Mandada Imprimir, y Publicar por la
Magestad Catolica de Rey del Rey don Carlos II. Madrid: Andrés Ortega, 1774, vol. I, liv. I, tit. XIX,
lei I-III.
16

normalmente, gozavam de solida formação universitária, mas optavam pelas Índias


na tentativa de iniciarem uma carreira colonial. Arriscar-se nos domínios distantes
do Império era uma tentativa de contornar as dificuldades em ocupar um cargo de
renome na metrópole. Contudo, a conjuntura colonial pouco favoreceu às
esperanças de destaque perante a administração real. A territorialidade de milhares
de quilômetros quadrados ocupados por cada sede inquisitorial impedia as
visitações periféricas. Ademais, o financiamento da Coroa era insuficiente e, por
vezes, comprometia o funcionamento das instituições. 3
No vice-reino da Nova Espanha, don Pedro Moya de Contreras teve sua
entrada anunciada ao público em novembro de 1571. A chegada do inquisidor foi
acompanhada pelo cortejo dos funcionários reais e dos representantes das ordens
religiosas. Apesar de não contar com grandes recepções, foram feitos os
juramentos de fé a autoridade daquele que também ocupou, em 1573, a cadeira de
arcebispo do México. A ocasião demandava o anúncio público e o reconhecimento
do inquisidor. Reunidos na catedral da cidade, tomada pelos curiosos, foi predicado
um sermão e a seguido leitura das provisões emitidas por Felipe II para a criação
do Tribunal de Fé. Anunciou-se o título de inquisidor de Moya de Contreras e foram
feitas as exortações formais aos habitantes do vice-reino. Era implícito às
obrigações dos súditos da Coroa a cooperação com o novo tribunal por meio de
efetivas denúncias às manifestações heréticas. 4
As fatias populacionais abarcadas pela Inquisição incluíam os espanhóis,
metropolitanos ou criollos, os chamados “mestizos”, escravos de origem africana,
mulatos e asiáticos. O foro inquisitorial também integrava qualquer homem ou
mulher, convertidos ao cristianismo, que desembarcassem nos portos novo-
hispanos.5 As instruções elaboradas para orientação dos procedimentos

3
ALBERRO, op. cit., 1993, pp. 30-50.
4
Autos que se leyeron é hicieron al ser jurado y recibido en México el Tribunal del Santo Oficio, en
4 de noviembre de 1571. In: GARCIA, Genaro; PEREYRA, Carlos. Documentos Ineditos ó Muy
Raros Para la Historia de México, vol. V: la Inquisición de México. México: Librería de la Vda. de
Ch. Bouret, 1906, doc. XXVI, pp. 248-283; MEDINA, José Toribio. Historia del Tribunal del Santo
Oficio de la Inquisición en México. México: Cien de México, 2010, pp. 41-54.
5
ALBERRO, op. cit., 1993, p. 26.
17

inquisitoriais foram expedidas pelo cardeal Diego de Espinoza e inquisidor geral do


Santo Ofício, em 1570. Dentre as especificidades burocráticas, o tribunal novo-
hispano deveria se abster de efetuar qualquer inquérito contra a população
indígena:

(...) Por virtud de nuestros poderes no habéis de proceder


contra los indios del dicho vuestro distrito, porque por ahora hasta que otra
cosa se os ordene, es nuestra voluntad que sólo uséis de ellos contra los
cristianos viejos y sus descendentes, y las otras personas contra quien en
estos reinos de España se suele proceder (...)6

Em 1575, a legislação espanhola incorporou as recomendações


prescritas aos inquisidores, deixando a cargo dos bispos de cada região o trato com
a heterodoxia indígena. 7 A exclusão do foro inquisitorial fazia eco às proposições
jurídico-legais que outorgavam aos povos originais uma posição de fragilidade e
inferioridade moral. Caráter que tomou sua forma legal mais clara no
estabelecimento de um sistema colonial de distinção entre dois âmbitos político-
jurídicos, isto é, a “república de españoles” e a “república de indios”. Destinava-se,
assim, um espaço restrito, separando os indígenas dos demais súditos da Coroa. 8
As polêmicas e dúvidas que nortearam os debates em torno da natureza e
tratamento adequado que se deveria tomar frente aos “naturales” tiveram grande
repercussão nas decisões da Coroa. Querelas que encontraram seu exemplo maior
no embate entre o teólogo Juan Gínes de Sepúlveda e o dominicano Bartolomé de

6
Instrucciones del cardenal D. Diego de Espinoza a los inquisidores de México, agosto de 1570. In.:
Libro Primero de Votos de la Inquisición de México (1573-1600). México: Imprenta Universitaria,
1949, p. 297.
7
Recopilación de las Leyes de los Reinos de las Indias Mandada Imprimir, y Publicar por la
Magestad Catolica de Rey del Rey don Carlos II. Madrid: Andrés Ortega, 1774, vol. I, liv. I, tit. XIX,
lei XVII e vol. II, liv. IV, tit. I, lei XXXV.
8
TAVÁREZ BERMUDEZ, David. Las Guerras Invisibles: devociones indígenas, disciplinas y
disidencias en el México Colonial. México: CIESAS, 2012, pp. 122-123.
18

Las Casas. O que estava em jogo eram as capacidades moral e racional dos
indígenas.9
O afastamento das instâncias inquisitoriais encerrava uma dupla visão –
a peculiaridade dos indígenas como neófitos e a atribuição de um caráter individual
vulnerável. Estava implícito um tratamento que gradualmente os reduzia como
menores de idade e, portanto, deveriam ser protegidos pela Coroa. Sob a índole
dos recém-convertidos a população autóctone assumiu uma imagem frágil, instável
e vacilante. Por outro lado, o afastamento do Santo Ofício também pode ser visto
como um dos primeiros capítulos da consolidação de um espaço jurídico exclusivo.
Âmbito que seria reforçado mais tarde, em 1592, com a criação do Juzgado General
de Indios, responsável por prestar assistência jurídica aos indígenas.10
Não obstante, as resoluções do Santo ofício e da Coroa espanhola
também consideraram outros fatores para pautarem suas decisões. Décadas antes
da fundação do tribunal de Inquisição da Nova Espanha e de seu afastamento foral
das populações locais, uma série de procedimentos punitivos de natureza jurídico-
eclesiástica foram administrados pelos evangelizadores. Dentre estes, destacam-
se os regulares franciscanos. A promoção de juízos eclesiásticos na Nova Espanha
acompanhou os rumos da evangelização. Durante os anos de 1524 e 1571, os
evangelizadores e os primeiros bispos designados para as províncias, assumiram
funções extraordinárias. Os membros do clero regular exerceram o cargo de juízes
eclesiásticos ordinários, comissionados por uma autoridade maior, ou portando uma
nomeação específica através de um título de inquisidor.
A responsabilidade dos inquéritos em torno das condutas heterodoxas
ao catolicismo – normalmente, reservada aos tribunais do Santo Ofício ou aos
bispos, na ausência de instâncias inquisitoriais – cedeu lugar a concessões
excepcionais. A nomeação de Moya de Contreras marcou a data do
estabelecimento oficial da Inquisição no México. Apesar disso, o tribunal, fundado

9
HANKE, Lewis. La Humanidad es Una: estudio acerca de la querella que sobre la capacidad
intelectual y religiosa de los indígenas americanos sostuvieron en 1550 Bartolomé de Las Casas y
Juan Ginés de Sepúlveda. México: FCE, 1985.
10
TAVÁREZ BERMÚDEZ, op. cit., 2012, p. 123;
19

em 1571, foi antecedido em quase cinquenta anos pelas práticas jurídico-


eclesiásticas dos primeiros evangelizadores.
Devido às características específicas das empresas de evangelização,
delegadas em sua quase totalidade ao clero regular, os atributos episcopais não se
restringiram a centralidade diocesana. Com o intuito de expandir as possibilidades
de atuação frente às populações indígenas, atribuições especiais foram emitidas
pela Santa Sé afim de amparar os evangelizadores que passassem a América. Em
consequência, os primeiros regulares que pisaram no México tiveram a
possibilidade de exercício das funções jurídico-eclesiástica, amplificando de forma
considerável sua autonomia frente ao avantajado território.
Sem dúvida, o impulso de punir os indígenas convertidos ao cristianismo
encontrou sua forma mais sistemática junto aos inquéritos administrados pelo
franciscano Juan de Zumárraga. Escolhido pelo Imperador Carlos V como primeiro
bispo do México, o clérigo foi posteriormente agraciado com o título de inquisidor
apostólico. Desde sua chegada ao Vale do México, o bispo encabeçou a liderança
junto aos franciscanos que a alguns anos se faziam presentes na região. Ele foi o
grande responsável por impulsionar os interesses e as perspectivas
evangelizadoras dos Frades Menores durante seu período afrente do episcopado.
No decurso dos anos de 1536 e 1543, Zumárraga processou 28 indígenas, por
diversas causas de fé, especialmente pelo crime de idolatria. Os réus pertenciam
as elites indígenas ou estavam vinculados à cargos dos governos autóctones. No
total, as investigações inquisitoriais empreendidas por Zumárraga estão dispostas
em dezessete processos, três “probazas” e uma denúncia, somando um total de 21
expedientes.11
Frei Juan de Zumárraga adequou os trabalhos inquisitoriais à suas
funções como bispo. Apesar de não ter contado com uma estrutura inquisitorial
autônoma ao episcopado, o franciscano não mediu esforços para estruturar os
procedimentos e dar regularidade ao Santo Ofício. Zumárraga contratou

11
Cf. Anexo I.
20

funcionários para auxiliarem nos trabalhos e contou com o amparo do corpo de


evangelizadores franciscanos que cumpriram diversos papeis. Os clérigos apoiaram
o funcionamento inquisitorial na abertura, desenvolvimento e desenrolar dos
inquéritos. Tratava-se de um tribunal propriamente dito, como definido pelo
historiador Richard E. Greenleaf, uma “Inquisição episcopal” 12.
Distinto do tribunal estabelecido em 1571, o Santo Ofício episcopal
organizado pelo bispo contou com uma estrutura tímida. Sua pequena armação
dependeu de um reduzido quadro de funcionários. Seu funcionamento foi
caracterizando-se tanto pela precariedade quanto pelo idealismo das primeiras
décadas da evangelização no México.

2. Arquivo e historiografia

O caso mais conhecido processado pelo inquisidor apostólico frei Juan


de Zumárraga foi o de don Carlos Ometochtzin Chichimecatecotl. 13 Na época, a
grande repercussão do inquérito esteve relacionada a sentença de execução
pronunciada por Zumárraga, ao final de 1539. A notícia da morte de don Carlos na
fogueira soou de forma muito rigorosa aos funcionários da Coroa espanhola. A
morte do indígena se juntou às diversas denúncias de abuso e excesso de rigor
utilizado pelos franciscanos. Anos depois, na década de 1560, frei Diego de Landa
procedeu contra um grupo de indígenas na região de Yucatán, agregando mais
argumentos para o posterior impedimento da administração de juízos inquisitorial
contra indígenas.14

12
GREENLEAF, Richard E. Zumárraga y la Inquisición Mexicana. México: FCE, 1992a.
13
AGN, Inquisición, vol. 2 (part. 2), exp. 10, f. 237-340.
14
CLENDINNEN, Inga. Reading the Inquisitorial Record In Yucatán: fact or fantasy. In.: The
Americas: A Quarterly Review of Inter-American Cultural History, Washington, v. 38, n. 3, p. 327-
345 jan., 1982.
21

O processo contra don Carlos Ometochtzin e os demais expedientes


criados pelos Inquisição episcopal de Zumárraga, atualmente, encontram-se
alojados no Ramo de Inquisición do Archivo General y Público de la Nación, na
Cidade do México. A maior parte destes arquivos foram transcritos e publicados nos
anos de 1910 e 1912 sob a direção e prefácio do historiador mexicano Luis
González Obregón.15 O processo de don Carlos assumiu especial conotação junto
às comemorações do primeiro centenário de independência mexicana. A publicação
do inquérito apresentou um tom nacionalista junto ao prefácio de González
Obregón. O expediente inquisitorial assumiu a forma de um dos grandes exemplos
da crueldade do regime colonial espanhol. E, sob a escrita do prefaciador, a
execução do indígena tomou traços martirizantes:

Fué, por consiguiente, Don Carlos, á modo de redentor de su


raza, pues en lo sucesivo ya los indígenas no cayeron bajo la tremenda
jurisdicción del Santo Oficio, y al exhumar hoy su proceso olvidado, cuando
México conmemora la primera centuria de su emancipación política, no se
puede menos que recordarle con simpatía (…) 16

A publicação constituiu a primeira tiragem da Comisión Reorganizadora


del Archivo Público y General de la Nación. Desde então, os processos referentes
às atividades do Inquisidor Zumárraga ganharam as páginas da historiografia
colonial sobre o México. Grande parte das análises dedicadas aos documentos
publicados, fizeram uso dos processos como fontes para a “etno-história” indígena.
Utilização favorecida pela variedade de informações concernentes às culturas do
Vale do México viabilizadas pelos interrogatórios. A abordagem frutífera dos

15
GONZÁLEZ OBREGÓN, Luis (dir.). Proceso Inquisitorial del Cacique de Tetzcoco. México:
Eusebio Gómez de la Puente, 1910; ________________________. Procesos de Indios Idólatras y
Hechiceros. México: Tip. Guerrero Hnos., 1912.
16
GONZALÉZ OBREGÓN, L. (dir.), op. cit. 1910, p. XIII.
22

inquéritos mediante um viés “etno-histórico” foi impulsionada, a partir de 1978, pelo


artigo catalográfico publicado por Richard Greenleaf. 17
No entanto, um exame conjuntural dos trabalhos levados a cabo pelo
bispo inquisidor ainda é restrito. A utilização massiva dos processos inquisitoriais
como fontes para a etino-história foi ressaltada, desde 1990, pelo historiador
Roberto Moreno de los Arcos. 18 O autor denotou, especialmente, a falta de maiores
estudos sobre a particular instituição que originou os inquéritos. Pouco foi postulado
em torno das especificidades punitivas no trato inquisitorial com os indígenas, dos
vínculos com a evangelização e da inserção em uma perspectiva transatlântica da
Inquisição espanhola.
Uma primeira abordagem do material publicado pelo Archivo General de
la Nación apareceu na obra de José Toribio Medina, em 1914. 19 O bibliografo e
historiador chileno foi responsável por uma série de monografias sobre o Santo
Ofício na América, publicadas desde 1887. Como característica geral da
monumental obra de Medina encontramos volumes descritivos, com grande
carência na sistematização dos documentos e nas referências dos arquivos. Apesar
disso, o autor dedicou boa parte da obra La Primitiva Inquisición Española, a
descrição e comparação dos primeiros anos de perseguição aos indígenas no

17
GREENLEAF, Richard E. The Mexican Inquisition and the Indians: sources for the ethnohistorian.
In.: The Americas: A Quarterly Review of Inter-American Cultural History, Washington, v. 34, n. 3,
pp. 315-344, jan. 1978.
18
MORENO DE LOS ARCOS, Roberto. La inquisición para indios en Nueva España (siglos XVI a
XIX). In.: SARANYANA CLOSA, Josep I. (dir.). Evangelización y Teología en América (siglo XVI).
Pamplona: Universidad de Navarra, 1990, p. 1472; ________________________. New Spain´s
Inquisition for indias from the Sixteenth to the Nineteenth Century. In: PERRY, M. E; CRUZ, A. J.
(dir.) Cultural Encounters: the impact of the Inquisition in Spain and the New World. Los Angeles:
University of California Press, 1991, p. 24.
19
Antes da publicação de Medina (cf. MEDINA, José Toribio. La Primitiva Inquisición Americana
(1493-1569). Santiago de Chile: Imprenta Elzeveriana, 1914), Joaquín García Icazbalceta fez breves
comentários, em 1881, acerca da atuação de Zumárraga como inquisidor e a execução de don
Carlos Ometochtzin (cf. GARCÍA ICAZBALCETA, J. Don Fray Juan de Zumárraga, 4 vols. México:
Ed. Porrúa, 1988.). Zélia Nultall também publicou uma breve averiguação do processo inquisitorial,
de 1539, contra Miguel Puchtecatlaylotlac (cf. AGN, Inquisición, vol. 37, exp. 3, fs. 20-46). A autora
antecedeu a transcrição do inquérito, publicado em 1912 (cf. GONZALÉZ OBREGÓN, L. (dir.), op.
cit. 1912), contribuindo com um dos primeiros comentários acerca das informações que expediente
trazia (cf. NULTAL, Zélia. L’évêque Zumarraga et les idoles du grand temple de Mexico. In: Journal
de la Société des Américanistes. vol. 8, pp. 153-169, 1911).
23

México com uma variedade considerável de documentos. Medina caracteriza os


poderes extraordinários, portados por clérigos como Zumárraga e os primeiros
franciscanos, estabelecendo um panorama da chegada das ordens mendicantes e
a promoção de juízos eclesiásticos.
José Toribio Medina foi o primeiro a delimitar a amplitude das funções
inquisitoriais exercidas por Juan de Zumárraga, demonstrando a diversidade de
processos produzidos. As caracterizações do primeiro bispo do México em suas
funções inquisitoriais tomaram especial importância na obra de Medina frente as
proposições de Joaquín García Icazbalceta. Em 1881, a publicação de Don Fray
Juan de Zumárraga, uma apologética biografia do franciscano feita por Icazbalceta,
amenizava as funções inquisitoriais exercidas pelo franciscano. 20 Ao avaliar o
processo que levou à queima de don Carlos Ometochtzin e a posterior advertência
recebida pelo bispo inquisidor, Icazbalceta procurou justificar a atitude do inquisidor
no pronunciamento da pena. Para o biógrafo de Zumárraga, don Carlos “era digno
de pena capital, si no por la Inquisición en la hoguera, a lo menos por la autoridad
civil en la horca.”21 As explicações de Icazbalceta eram, por sua vez, uma clara
resposta a obra de Willian Prescott que anos antes havia atribuído a Zumárraga um
caráter destrutivo frente às culturas indígenas. 22
A abordagem realizada por José Toribio Medina também fez ressonância
aos ideais liberais de sua época, insistindo na abordagem dos tribunais de fé como
uma demonstração dos terríveis feitos da colonização espanhola.
Mais tarde, o historiador francês Robert Ricard dedicou algumas páginas
a cotejar a resistência que os casos de indígenas processados por Zumárraga
exemplificaram frente a evangelização. A sucinta análise do autor aparece nas
conclusões de sua clássica obra sobre a evangelização do México. 23 Para Ricard
os processos inquisitoriais contra indígenas demonstraram um dos exemplos mais

20
GARCÍA ICAZBALCETA, op. cit., 1988.
21
Ibidem, vol. 1, p. 202-205.
22
PRESCOTT, Willian H. History of the Conquest of Mexico: with a Preliminary View of Ancient
Mexican Civilization, and the life of the Conqueror, Hernando Cortes. New York: Harper and Brothers,
1843.
23
RICARD, Robert. La Conquista Espiritual de México. México: FCE, 1994, p. 387-398.
24

palpáveis da resistência consciente e silenciosa à evangelização. No Vale do


México, ao contrário da violência manifestada contra frades em regiões como o
noroeste mexicano, a constatação de uma persistência oculta e tácita é observável
na velada presença das efígies e na realização soturna dos rituais.
A utilização dos inquéritos como palcos privilegiados para observação
das resistências indígenas foi reafirmada décadas depois por Christian Duverger,
ao final dos anos de 1980. 24 Em obra de caráter revisionista, o historiador procurou
retraçar os aspectos abarcados por Ricard, centrando seu ponto de partida e foco
de análise no texto “Coloquio de los Doce”, escrito pelo evangelizador e cronista
Bernardino de Sahagún. Assim como Ricard, a obra de Duverger traz os casos
processados por Zumárraga como um elemento de arremate ao seu texto,
cotejando a exemplaridade das resistências indígenas contidas nos documentos. 25
Apesar de ocupar uma fração do epílogo do livro de Duverger, as avaliações do
autor alcançam uma abrangência maior com relação ao panorama institucional
organizado pelo bispo Juan de Zumárraga. Um adensamento no trato das fontes
inquisitoriais disposto pelo autor era depositário da publicação de Richard
Greenleaf, que veio à luz no ano de 1962. 26
A obra desse Historiador estadunidense trouxe consigo a primeira
análise e detalhamento dos aspectos conjunturais que envolveram a Inquisição
episcopal. O autor complementou seu primeiro trabalho sobre o Santo Ofício com
uma série de publicações posteriores, constituíndo o ponto de partida fundamental
para as análises das manifestações jurídico-eclesiásticas anteriores ao ano de
1571. Em Zumárraga and the Mexican Inquisition, Greenleaf desenvolveu um
estudo em torno das atividades inquisitoriais do primeiro bispo. O autor procurou
levantar as características dos inquéritos produzidos por Zumárraga quanto à
composição dos processos por idolatria, luteranismo, blasfêmia, dentre outras

24
DUVERGER, Christian. La Conversión de los Indios de Nueva España. México: FCE, 1993.
25
Ibidem, pp. 187-193.
26
GREENLEAF, op. cit., 1992a.
25

categorias sentenciadas pelo inquisidor.27 Desde sua primeira obra, Greenleaf


nunca esteve interessado em um recorte exclusivo em torno dos indígenas
processados. O objetivo central da abordagem – parafraseando o autor – era o
entendimento da Inquisição episcopal de Zumárraga por meio de seu
relacionamento com as demais instituições espanholas e os aspectos intelectuais
que pautaram o início do século XVI.28 De forma mais específica, Greenleaf abarcou
a atuação do bispo inquisidor em meio ao plano de fundo das primeiras intrigas
políticas da Nova Espanha.
Os casos inquisitoriais de indígenas processados por Zumárraga foram
abordados pelo autor de forma descritiva e sem muitas conexões entre os casos. A
análise dos documentos foi elaborada de forma individual, caso a caso, mediante a
linearidade cronológica dos expedientes. A leitura do historiador se mostrou
interessada no conjunto dos processos produzidos pelo bispo inquisidor, com vistas
a traçar a inserção da Inquisição episcopal frente a outras instâncias de poder.
Ainda assim, a narrativa dos casos contra indígenas pouco arriscou em torno dos
pressupostos indígenas evocados na documentação, atendo-se a uma breve
introdução à “religião asteca”. 29 No mesmo sentido, as interpretações descritivas
pouco cotejaram acerca da presença dos evangelizadores e de sua real
funcionalidade para o desempenho do Santo Ofício de Zumárraga. Apesar de
ressaltar os auxílios prestados pelos regulares, as conexões com a evangelização
foram feitas de forma apartada da abordagem dos processos contra indígenas,
apenas com fins introdutórios ao estabelecimento do clero. 30
Richard Greenleaf retratou as primeiras manifestações inquisitoriais em
um turbulento cenário dos primeiros anos da conquista espanhola no México. E,
sem dúvida, estabeleceu um recorte menos restrito ao de José Toribio Medina,
aproveitando o caminho percorrido por Robert Ricard em sua trajetória sobre os

27
Caminho semelhante foi seguido por Bernard Grunberg com o estudo quantitativo publicado em
1998. Cf. GRUMBERG, Bernard. L’inquisition Apostolique au Mexique: histoire d’une institution
et de son impact dans une société coloniale (1521-1571). Paris/Montréal: L´Harmattan, 1998.
28
Ibidem, p. 9.
29
GREENLEAF, op. cit., 1992a, pp. 56-60.
30
Ibidem, pp. 60-93.
26

primeiros evangelizadores do México. Não obstante, Zumárraga and the Mexican


Inquisition se mostrou devoto de um caráter descritivo e pouco processual,
atentando mais ao encadeamento cronológico das fontes institucionais que a uma
“histoire-problème”. Por outro lado, a publicação da obra abriu um horizonte
considerável para o surgimento de estudos de casos que pudessem adensar e
explorar recortes menores.
As décadas de 1970, 1980 e 1990, destacaram-se pela exploração dos
recortes “etno-históricos” que buscavam alcançar informações sobre as culturas
indígenas em meio aos interrogatórios e investigações inquisitoriais. 31 A publicação
de Il formaggio e i vermi do historiador italiano Carlo Ginzburg teve um impacto
especial sobre esses projetos, a partir de 1976.32 As formulações de Ginzburg na
abordagem dos processos de Inquisição contra o moleiro Menochio (Domenico
Scandella) proporcionaram novos ares diante das possibilidades de distinção entre
as “vozes” dispostas nos processos do Santo Ofício. com base na obra do italiano,
era possível atentar para o caráter polifônico das fontes inquisitoriais e buscar as
concepções que excediam as reduções jurídicas. E é importante ressaltar que as
acepções tomaram lugares privilegiados nas obras de Serge Gruzinski.
Em 1985, a publicação de Les hommes-dieux du Mexiqueconsolidou
uma das primeiras etapas da vasta pesquisa de Serge Gruzinski acerca das
modificações culturais provocadas pela conquista do México.33 Interessado nos
processos de “ocidentalização” e seguindo os rumos interdisciplinares postulados
pela escola dos Annales, o trabalho do autor foi desenvolvido a partir da trajetória

31
Aportes interessantes para a “etno-história” podem ser encontrados nos trabalhos de J. J. Klor de
Alva, R. C. Padden e, mais recentemente, na compilação de quatro estudos de caso feitos por
Patricia Lopez Don. (Cf. PADDEN, R. C. Huichilobos and the bishop. In.______________. The
hummingbird and the Hawk: conquest and sovereignty in the Valley of Mexico. New York: Harper
and Torchbooks, 1970, p. 240-275; KLOR DE ALVA, J. J. Martín Ocelotl: clandestine cult leader. In.:
SWEET, David G; NASH, Gary B. (ed.) Struggle and Survival In Colonial America. California:
University of California Press, 1981, pp. 128-141; DON, Patricia Lopes. Bonfires of Culture:
Franciscans, Indigenous Leaders, and Inquisition in Early Mexico, 1524-1540. Oklahoma: University
Oklahoma press, 2010.).
32
GINZBURG, Carlo. O Queijo e os Vermes. São Paulo: Companhia das Letras, 2006.
33
GRUZINSKI, Serge. El Poder Sin Límites: cuatro respuestas indígenas a la dominación española.
México: INAH, 1988.
27

exemplar de alguns indivíduos recortados nos séculos XVI, XVII e XVIII. Gruzinski
analisou, especificamente, as modificações da tradição pré-hispânica dos “homens-
deuses” no decorrer do tempo. Entre os casos abordados na obra aparecem os
nomes de Martín Ocelotl e Andrés Mixcóatl, ambos indígenas processados por
Zumárraga, em 1537.34 Os inquéritos foram privilegiados por Gruzinski para
reescrever as trajetórias de seus protagonistas. O intuito era criar pontes possíveis
entre os indivíduos, suas idiossincrasias e a conjuntura que os permeava.
O historiador Francês cruzou arcabouços metodológicos diversos, tendo
em mãos as reflexões de Carlo Ginzburg, da “etno-psiquiatria” de George
Devereaux e formulações de cunho psicanalítico. Gruzinski seguiu sob um recorte
étnico, histórico e psicologizante, procurando, sobretudo, interpretar as atitudes e
idiossincrasias dos chamados “homens-deuses”. Como afirmado por Solange
Alberro, apesar do louvável esforço do autor, o trabalho passa por um “terreno
resbaloso”, e as interpretações adentram em proposições de aspecto subjetivo
quanto aos indivíduos analisados e de difícil comprovação. 35
O primeiro capítulo e início de uma “viagem de historiador ao México
espanhol”, como definido pelo próprio Gruzinski, foi coroado, em 1990, com o livro
La Guerre des Images.36 As fontes inquisitoriais reaparecem no trabalho do
historiador delimitando a resistências dos indígenas na conservação de suas efígies
sagradas. No segundo capítulo de sua obra, Gruzinski dedicou parte de sua análise
aos processos contra indígenas envolvidos na “dissimulação dos deuses”. 37 O autor
se debruçou, especialmente, sobre os casos de don Carlos Ometochtzin e Miguel
Puchtecatlailotlac, ambos processados por Zumárraga, no ano de 1539. 38 Os
inquéritos demonstram na obra de Gruzinski as movimentações dos indígenas do

34
GRUZINSKI, op. cit., 1988, pp. 45-77.
35
ALBERRO, Solange. Serge Gruzinski. El poder sin límites: cuatro respuestas indígenas a la
dominación española. In.: Historia Mexicana, México, v. 39, n. 3, p. 822-825, mar., 1990.
36
GRUZINSKI, Serge. A Guerra das Imagens: de Cristóvão Colombo a Blade Runner (1492-2019).
São Paulo: Companhia das Letras, 2006.
37
GRUZINSKI, Serge. A Guerra das Imagens: de Cristóvão Colombo a Blade Runner (1492-2019).
São Paulo: Companhia das Letras, 2006, pp. 83-89.
38
AGN, Inquisición, vol. 37, exp. 3, fs. 20-46; AGN, Inquisición, vol. 2 (part. 2), exp. 10, f. 237-340.
28

Vale do México no intuito de protegerem suas efígies sagradas dos invasores


espanhóis. O exame acurado do autor estabeleceu um jogo de dupla perspectiva.
Gruzinski procurou demonstrar os pontos que nortearam as atitudes dos
evangelizadores e conquistadores, ao mesmo tempo em que juntou os diversos
índices das reações autóctones frente às perseguições dos invasores. Tratava-se
para o autor de uma verdadeira guerra, em efetivo, uma concorrência das imagens
cristãs com relação às efígies das divindades indígenas.
Seguindo os estudos de caso, a historiadora mexicana Sonia Corcuera
de Mancera deu prosseguimento ao enfoque micro-histórico com a obra De Pícaros
y Malqueridos, publicada em 2009.39 A construção do trabalho da autora teve como
núcleo de análise dois processos conduzidos por Juan de Zumárraga. Ancorada no
pequeno povoado de Ocuituco, às beiras do Popocatepetl, as discussões giraram
em torno das trajetórias do clérigo Diego Dias e de um casal de indígenas da região,
Cristóbal e Catalina. Sonia Corcuera traz à tona uma complexa trama de relações
e disputas que transpassaram a história por detrás da intervenção inquisitorial. O
ensaio comportou uma intrigante teia analítica, passando pelas reflexões de
Ginzburg e do filósofo alemão Hans-Georg Gadamer, além de fortuitas
interlocuções com as reflexões de Paul Ricoeur. A autora se arriscou em
pressupostos analíticos pouco vistos nas análises sobre o período, contribuindo
para a renovação da aplicabilidade conceitual no tratamento das fontes. De forma
mais específica, o livro trouxe as experiências individuais de um pequeno “pueblo”
e o impacto do Santo Ofício na vida local. Sonia Corcuera chama a atenção para o
âmbito cotidiano e familiar sob influência dos novos imperativos impostos pela
conquista espanhola.
Os estudos das manifestações inquisitoriais em torno dos indígenas do
Vale do México e seus arredores, entre 1536 e 1540, podem ser circunscritos em
três frentes analíticas. Em primeiro lugar, as abordagens procuraram compreender

39
Uma breve reflexão da autora acerca do processo contra don Carlos Ometochtzin também pode
ser encontrada no livro CORCUERA DE MANCERA, Sonia. El Fraile, el Indio y el pulque:
evangelización y embriaguez en la Nueva España (1523-1548). México FCE, 2010, pp. 249-256.
29

a inserção da documentação no panorama do estabelecimento das instituições


espanholas e, mais especificamente, sua figuração dentre outros expedientes
inquisitoriais produzidos pelo tribunal episcopal de Juan de Zumárraga. Richard E.
Greenleaf e José Toribio Medina foram os grandes representantes desses esforços
pioneiros. A conseguinte, pode-se observar uma clara tendência no uso dos
processos contra indígenas como casos exemplares da resistência autóctone à
cristianização; influências claras das obras de Robert Ricard e Christian Duverger.
Tanto o enfoque mais conjuntural, quanto o desenvolvimento de estudos
sobre a evangelização no México criaram um campo propício para uma terceira
frente, mais voltada para as movimentações indígenas em meio aos primeiros anos
da conquista. Em traços gerais, essa última forma de aproximação reafirmou o
interesse na inteligibilidade das formas de resistência indígenas junto aos
deslocamentos da chamada “etno-história”, bem como, no aproveitamento dos
aportes micro-históricos.

3. Rumos e aproximações

A trajetória historiográfica demarcada deixa entrever a diversidade


perspectiva possível no uso de fontes inquisitoriais. O desenvolvimento das
perguntas que pautaram os trabalhos que antecedem a presente pesquisa foi
construído, passo a passo, conforme a sucessão das obras condicionava a
possibilidade de surgimento de novas questões. Tomando os rumos desse
postulado, cabe notar uma certa vacuidade localizável entre os processos contra
indígenas e os empreendimentos evangelizadores, levados adiante nas primeiras
décadas da Nova Espanha. Trata-se aqui de propor um vínculo mais estreito dos
processos protagonizados por indígenas com a atuação dos franciscanos liderados
por frei Juan de Zumárraga. Torna-se importante perguntar: em que sentido e sob
quais auspícios as punições inquisitoriais estiveram inscritas nas dinâmicas da
evangelização?
30

Sob esse olhar, o uso do Santo Ofício não será disposto, simplesmente,
como uma maneira de manter os convertidos em um regime coercitivo. Também
corresponderá atentar ao papel constitutivo da intervenção inquisitorial na criação
de comportamentos desejados pela cristianização. Assim, a hipótese aqui levantada
aponta para os juízos eclesiásticos voltados para indígenas como mecanismos
disciplinadores e auxiliares da evangelização. Sendo assim, pressupõe-se o estudo
da administração de castigos não apenas em seus efeitos repressivos, alcançados
pelas sanções jurídicas, mas, também, pela consideração da série completa dos
efeitos que eles podem produzir. 40
Os sistemas punitivos não devem ser estudados unicamente pela
armadura jurídica de seu funcionamento, faz-se necessário a igual consideração
acerca de seus campos de ação. Ao voltarmos a atenção para os dois enfoques de
problematização, qual seja, a jurisdição e o ambiente do tribunal, torna-se possível
caminhar para além das sanções dos crimes, mostrando que as medidas punitivas
não são simplesmente mecanismos de repressão, supressão, exclusão ou
impedimento. Os regimes de castigos também estão vinculados a uma série de
efeitos criadores que caberiam às medidas punitivas sustentar. 41
O intuito final é devolver a complexa função social que as práticas
punitivas guardam consigo, situando-as em um campo mais geral das relações de
poder. Sendo estas, entendidas a partir da proposição fundamental de Michel
Foucault. Entende-se, portanto, poder como uma “multiplicidade de correlações de
força imanentes ao domínio onde se exercem e constitutivas de sua organização”42.
As relações de poder são o resultado dos jogos, lutas, afrontamentos e, mais
efetivamente, do apoio que as correlações de força encontram umas nas outras –
Interações que se produzem a todo instante, situações estratégicas e complexas
inerentes à organização social. Desse modo, não se trata de uma instituição ou

40
FOUCAULT, Michel. Vigiar e Punir. Petrópolis: Vozes, 2007, pp. 23-24.
41
Ibidem, pp. 24-25.
42
FOUCAULT, Michel. História da Sexualidade: a vontade de saber. São Paulo: Graal, 2009, p.
102
31

estrutura; tampouco, seria uma potência ou uma propriedade individual. O poder se


exerce por inúmeros pontos – em meio a relações desiguais e móveis, intencionais
e subjetivas – sem, no entanto, derivar de escolhas individuais.43
Mediante esses pontos de partida, foi alocada a instituição inquisitorial
no centro da problematização desta pesquisa. Grosso modo, os objetivos
delimitados foram traçados para entender de que forma o Santo Ofício, sob os
auspícios de frei Juan de Zumárraga, operou diante do novo elemento indígena.
Portanto, ao serem consideradas as movimentações punitivas e investigativas do
tribunal episcopal, não serão tomados, em primeira instância, o desmembrar dos
enunciados dispostos nos inquéritos com vistas a identificar a multiplicidade das
vozes indígenas. Tampouco, caberá enveredar-nos de forma minuciosa na vida dos
indivíduos processados, no intuito de reconstruir suas trajetórias. Essas
características foram centrais aos diversos trabalhos que antecedem o presente
trabalho, efetivamente, a partir dos recortes “etno-históricos” e “micro-históricos”.
O enfoque macroscópico – tomando sempre os dados conjuntos da ação
inquisitorial – não se dispõe em oposição às questões fundamentais que pautaram
o cotidiano dos indivíduos processados. Os imperativos conjunturais do mundo
indígena, constituem uma variante fundamental ao tratamento da documentação
inquisitorial proposta. É, justamente, no desencontro entre as instâncias do mundo
ocidental cristão e no universo das práticas autóctones que estava situada a ação
inquisitorial. Sendo assim, a figuração das crenças e comportamentos indígenas
aparecerão em contraponto ao universo jurídico-eclesiástico que pautava a
montagem do aparato punitivo. Cotejar as diversas esferas do mundo indígena pode
proporcionar uma aproximação maior frente aos possíveis impactos alcançados
pela exemplaridade almejada nos castigos. Afinal, os níveis de eficácia da
Inquisição podem ser mensurados ou cogitados conforme são compreendidos os
arcabouços semióticos dos grupos aos quais pertenciam os processados.

43
Ibidem, pp. 102-105. FOUCAULT, op. cit., 2007, pp. 26-27.
32

Optou-se, aqui por não empregar categorizações amplas como “religião”


ou “religião indígena”. Nesse sentido, levam-se em conta as considerações de David
Tavárez Bermúdez com relação à dificuldade de incorporação de termos que
pressupõem uma coerência estrutural. Não existiu uma conformidade inerente ou
um núcleo central de crenças entre os indígenas mesoamericanos. O intercâmbio
simbólico entre as crenças indígenas e seus praticantes pode ser mais bem definido
como devoções. A categoria se mostra mais flexível, abarcando uma ampla
superfície de rituais e observâncias. Essas devoções partiram de um conjunto de
pressupostos fundamentais sobre o cosmos e alheios às tradições ocidentais. Logo,
as devoções indígenas devem ser consideradas, sempre que possível, em seus
próprios termos.44
Embora estivessem pautados em uma grande diversidade de
concepções, os níveis comunal (coletivo) e privado (eletivo) das práticas
devocionais estavam integrados a partir de teorias de grande escala sobre a
organização cosmológica. O caráter íntimo e o público das crenças se orientavam
no sentido de compreender, propiciar e manipular as entidades mais importantes do
cosmos. Acreditava-se que as ações rituais tinham um significado cosmológico que
podia abarcar os âmbitos familiares, comunitários e estatais. Em contradição quanto
às sociedades cristãs, nas comunidades mesoamericanas a filiação dos indivíduos
a um grupo de devotos não estava baseada na aceitação de um dogma, mas em
um núcleo de práticas rituais (corporativas ou estatais) vinculadas à legitimidade
política. Os indivíduos e as famílias participavam na esfera eletiva de maneira
voluntária, com objetivos variados. Neste sentido, os especialistas rituais
estruturavam suas práticas a partir de conhecimentos rituais que estavam em
constante fluxo e mudança.45
A divisão entre eletivo e coletivo dentro do aspecto devocional não era
rígida, muito menos impermeáveis. Um dos exemplos levantados por Tavárez

44
TAVÁREZ BERMUDEZ, David. Las Guerras Invisibles: devociones indígenas, disciplinas y
disidencias en el México Colonial. México: CIESAS, 2012, p. 21.
45
Ibidem, p. 31.
33

Bermúdez trata das distinções entre os especialistas rituais. Os membros


vinculados às elites indígenas mantinham oposição apenas no que corresponde à
estratificação social e legitimidade política. Dessa forma, havia pouca ou nenhuma
distinção epistemológica entre crenças verdadeiras ou falsas. Tal fato, torna a
dicotomia ortodoxia versus heterodoxia uma concepção inexistente nas
comunidades mesoamericanas. Apesar da existência de diferenciações entre os
rituais de elite e os praticados pelos demais membros da sociedade, não existiu
uma interpretação deles como a crença verdadeira em detrimento das demais.46
Tamanha discrepância entre as sociedades indígenas mesoamericanas
e o cristianismo pregado pelos evangelizadores assume grande relevância no
entendimento das ações inquisitoriais. Desde a primeira metade do século XVI, os
especialistas rituais indígenas foram absorvidos dentro de esquemas
classificatórios cristãos, recebendo a designação de “idólatras”, “bruxos”,
“feiticeiros” ou “supersticiosos”. Essas reduções abarcaram tanto os aspectos
privados, quanto as práticas coletivas das devoções indígenas. 47
Em meio à figuração processual da Inquisição episcopal, os rituais
indígenas foram vistos como uma antítese unificada do cristianismo. A procedura
do Santo Ofício adequou categorias heréticas como a de “idolatria” na leitura e
recolhimento dos encargos probatórios. Em outras palavras, a categorização surge
como aporte de construção para o mundo indígena por meio dos fenômenos
reencenados dentro do âmbito processual, apresentação proporcionada por meio
da junção dos enunciados dos acusadores, suspeitos e testemunhas. Assim sendo,
a noção de “idolatria” não pode ser empregada como uma categoria de análise
sistemática para os fenômenos manifestados na exterioridade dos tribunais, ela
sequer correspondeu a uma classificação jurídica estável.48 Em resumo, a chamada
“idolatria colonial” pode ser adjudicada apenas depois da verificação da

46
Ibidem, pp. 31-32.
47
Ibidem, p. 39; BERNAND, Carmen; GRUZINSKI, Serge. De la Idolatría: una arqueología de las
ciencias religiosas. México: FCE, 1992.
48
TAVÁREZ BERMUDEZ, David. Idolatry as an Ontological Question: Native Consciousness and
Juridical Proof in Colonial Mexico. In: Journal of Early Modern History, Minnesota, n. 6, v. 2, pp.
114-139.
34

transposição da barreira epistemológica que dividia o sentido das falas dos


acusados com relação às acusações inquisitoriais. Seu exame pressupõe, então,
uma verificação mais rente aos expedientes que serão analisados. Esse tratamento
dos processos passa por sua acepção como forma de saber.
O inquérito, desde seu surgimento na Idade Média, configurou-se como
uma forma do poder se exercer. Acertadamente, deriva-se de um certo tipo de
relações de poder. De acordo com Foucault, “o inquérito é precisamente uma forma
política, uma forma de gestão, de exercício de poder” que, mediante as instituições
jurídicas, tornou-se um meio de “autentificar a verdade, de adquirir coisas que vão
ser consideradas como verdadeiras e de as transmitir”. 49 A intervenção jurídica foi,
também para os indígenas, um dos meios institucionais de se legitimar o caráter
“idolátrico” e “diabólico” de suas devoções. Pressuposto nessa mecânica de
funcionamento encontram-se imbricados saber e poder, duas instâncias
diretamente implicadas. Ora, os procedimentos inquisitoriais apenas podiam se
legitimar como elementos de subjugação por meio da constituição de uma série de
saberes em seu funcionamento. Afinal, parece-nos inevitável enxergar a instalação
do Santo Ofício sem pressupor os saberes que o legitimaram como uma instância
de poder. Na advertência de Foucault, “não há relação de poder sem constituição
correlata de um campo de saber, nem saber que não suponha e não constitua ao
mesmo tempo relações de poder”. 50
O processo inquisitorial, independente do réu protagonista, é uma forma
de gestão e autenticação de verdades.51 No que concerne à Inquisição episcopal, a
procedura aparece como uma das formas que legitima e autentica a administração
mais estrita de castigos pelos evangelizadores com relação aos indígenas. Ela
constituiu um dos elementos das novas dinâmicas de domínio impostas pela
conquista espanhola. Não obstante, compete dizer que toda a movimentação do
tribunal de Zumárraga também pressupunha, dentro de si, uma longa trajetória

49
FOUCAULT, Michel. A Verdade e as Formas Jurídicas. Rio de Janeiro: Nau Editora, 2003, pp.
77-78.
50
FOUCAULT, op. cit., 2007, p. 27.
51
FOUCAULT, op. cit., 2003, pp. 53-78.
35

jurídica vinculada ao enraizamento social do cristianismo católico e seu combate


histórico às instâncias contrárias.

4. Heresia e origens da Inquisição

O surgimento dos tribunais de Inquisição possui um vínculo direto com


os enfrentamentos entre o cristianismo católico e as manifestações dissidentes,
identificadas pela Santa Sé como heréticas. Entre os séculos XII e XIII, o papado
identificou nos movimentos heterodoxos de grande abrangência um dos grandes
perigos à unidade da fé, especialmente, frente aos chamados cátaros ou
albigenses. A atividade dos bispos estava limitada à territorialidade diocesana, que
alcançava pouco ou nenhum resultado na perseguição às tendências contrárias que
excediam os limites espaciais de cada bispado. Quase duzentos e cinquenta anos
antes da fundação da Inquisição espanhola pelos Reis Católicos, o Santo Ofício foi
o resultado dos combates contra os denominados hereges da Occitânia – região
situada entre o sul da França, norte da Itália e partes da Catalunha. Os primeiros
Tribunais da Fé que mais tarde marcaram a consolidação institucional da Inquisição,
foram, grosso modo, o efeito de uma série de recursos utilizados pela Igreja na luta
da então heresia cátara, na época, disseminada por quase todo o oeste europeu. 52
O termo herege, de origem grega (hairesis) e latina (haeresis), designava
todos os indivíduos que professavam qualquer doutrina contrária ao que havia sido
definido pela igreja. Como ressaltado por Anita Novinsky, herege ou hairetikis, em
língua grega, significa “aquele que escolhe”. Portanto, o termo caracterizava os
indivíduos que isolavam “de uma verdade global uma verdade parcial” e, em

52
ESCUDERO, José, A. Estudios Sobre la Inquisición. Madrid: Marcial Pons, 2005, pp. 17-18;
RUIZ, Teófilo. La Inquisición medieval y la moderna: paralelos y contrastes. In.: ALCALÁ, Ángel; et.
al. Inquisición Española y Mentalidad Inquisitorial: ponencias del Simposio Internacional sobre
Inquisición, Nueva York, abril de 1983. Barcelona: Ariel, 1984, pp.45-66; TURBERVILLE, Arthur
Stanley. La Inquisición Española. México: FCE, 1985, pp. 9-13.
36

seguida, obstinaram-se em sua prática.53 Na história do cristianismo ocidental, o


apontamento de crenças heréticas caminhou lado a lado ao enraizamento da Igreja
Católica, tanto na Europa, quanto na América. Apesar das perseguições, antes e
durante os períodos de estabelecimento dos tribunais de Inquisição, o surgimento
e a renovação de visões contrárias à ortodoxia católica nunca foram completamente
suprimidos. Ortodoxia e heterodoxia aparecem como dois polos inseparáveis e
suscitaram conflitos à medida que essa relação comprometia o funcionamento das
instituições clericais vinculadas, de forma mais estreita, aos governantes
seculares.54
Na Idade Média, o surgimento da Inquisição foi decorrente do processo
de estreitamento no que diz respeito à tolerância perante às heresias. Os anos de
1232 e 1233 marcaram o início do que se transformou, no decorrer dos anos de
prática persecutória, no complexo tribunal do Santo Ofício. A ordem dos
dominicanos foi especialmente designada pela Santa Sé para combater os hereges,
acompanhados pelos franciscanos e atuando de modo intenso no Midi55. As duas
ordens atuaram com total independência dos bispos locais e estiveram sujeitas
apenas aos arbítrios do sumo pontífice. Esses regulares, responsáveis “el asunto
de la fé”, foram autorizados pelo papa Gregório IX a agir e formaram, no decorrer
dos procedimentos dessa “Inquisição delegada”, um corpo de princípios jurídicos
distintos dos procedimentos usuais das sedes episcopais. O papel dos frades
mendicantes foi determinante. Desde 1216, Domingo de Gusmão, fundador da
ordem dos dominicanos, havia criado uma confraria especial para preparar e formar
os combatentes que lutariam pela pureza do catolicismo. 56 Os bispos, anteriormente

53
NOVINSKY, Anita. A Inquisição. São Paulo: Brasiliense, 2012, p. 13.
54
Ibidem, pp. 11-13.
55
Sul da França mediterrânica, que engloba as regiões de Languedoc-Roussillon, Aquitânia, Midi-
Pirinéus, o sul de Poitou-Charentes, Rhône-Alpes e Provença-Alpes-Costa Azul.
56
NOVISKY, op. cit., 2012, pp. 18-20.
37

responsáveis pelo combate das manifestações heterodoxas em seu perímetro


diocesano, passaram a ceder lugar aos inquisidores designados pelo papa. 57
Diante dos procedimentos comuns dos tribunais eclesiásticos ordinários,
baseados no pressuposto de denúncia e acusação (denunciatio, accusatio),
surgiram novos trâmites jurídicos, característicos dos processos inquisitoriais. Para
além do habitual, o Santo Ofício utilizou-se do sigilo, isentando os réus de qualquer
informação acerca dos denunciantes, das testemunhas ou dos motivos pelos quais
estavam encarcerados. Os processos de Inquisição também estavam compostos
por dois princípios consecutivos: a investigação prévia (inquisitio generalis), seguida
pelo juízo da pessoa acusada (inquisitio specialis).58
O direito penal da Inquisição aparece como um produto doutrinal em meio
à literatura jurídica do Antigo Regime. Os tribunais foram concebidos para que de
forma alguma o réu ficasse impune. Era recomendado nos manuais de inquisição o
uso de elementos de coação diversos, tais como ameaças, truques retóricos e a
presença de embusteiros no cárcere para obter mais informações dos suspeitos de
heresia. Na finalização dos processos, somente a comprovação de falsos
testemunhos podia determinar a absolvição do réu. Todos os outros casos
implicavam em condenação ou suspensão da causa movida, podendo ser reaberta
a qualquer momento. 59
Comparada aos tribunais seculares, a Inquisição sempre guardou certas
semelhanças, principalmente, no que dizia respeito a exemplaridade, utilitarismo,
oportunismo e arbitrariedade em sua procedura. As penas guardavam uma função
intimidadora, administradas no intuito de servirem de exemplo e lição social. Essa
característica era evidenciada na plasticidade dos autos-de-fé, nos atavios impostos

57
ALCALÁ, Ángel. Herejía y Jerarquía: la polémica sobre el tribunal como desacato y usurpación de
la jurisdicción episcopal. In.: ESCUDERO, José A. (ed.). Perfiles Jurídicos de la Inquisición
Española. Madrid: Instituto de Historia de la Inquisición, Universidad Complutense de Madrid, 1992,
pp. 61-70.
58
ESCUDERO, op. cit., 2005, p.18.
59
GACTO, Enrique. Aproximación del derecho penal de la Inquisición. In.: ESCUDERO, José A.
(ed.). Perfiles Jurídicos de la Inquisición Española. Madrid: Instituto de Historia de la Inquisición,
Universidad Complutense de Madrid, 1992, pp. 177-179.
38

aos penitentes, na exumação de cadáveres e na queima de efígies. O Santo Ofício


também podia criar compatibilidade das penas com a obtenção de algum proveito,
em compensação ao prejuízo causado. Tal qual nos inquéritos civis, o condenado
poderia ser incumbido da construção de igrejas ou receber penas de trabalhos
forçados, em minas ou nas temidas galeras. As sentenças eram, frequentemente,
graduadas a partir da atenção dada às circunstâncias perseguidas, segundo a
conveniência, mas, alheias à responsabilidade individual do delinquente.
Sobretudo, a Inquisição resguardou a arbitrariedade das instâncias jurídicas de sua
época.60
No entanto, o Tribunal da Fé atuava mediante o caráter de direito
privilegiado, constituído por sanções mais benignas que as do direito penal
ordinário. Enquanto os tribunais seculares puniam o delito de lesa majestade com
pena de morte, de forma inapelável, a Inquisição mantinha uma via de escape ao
delito de lesa majestade divina. Era possível evitar a sanção máxima ante os
tribunais do Santo Ofício, ao menos uma vez, desde que o réu se confessasse e
manifestasse seu arrependimento de forma suficiente aos olhos do Inquisidor. 61
A Inquisição medieval, também conhecida como Inquisição “pontifícia”,
devido ao seu controle pelo papado, atuou de forma mais intensa na Europa
Ocidental. As perseguições alcançaram, principalmente, a Península Itálica, a
Germânia e a França. Nesta última, Gregório IX nomeou, em 1235, um inquisidor
geral e a prática de execução na fogueira já era utilizada contra os condenados. O
mesmo rigor foi administrado na Germânia e na Itália, onde foram decretados,
desde 1238, a entrega dos hereges à fogueira. A boa recepção do tribunal pelos
monarcas Luís IX e Frederico II facilitou a consolidação do novo sistema jurídico-
eclesiástico, garantindo a cooperação das autoridades civis, responsáveis pela
execução das sentenças dos réus. Apesar disso, foi tímida a presença de instâncias
inquisitoriais nas regiões da Hungria, Polônia e Boêmia. Ao que tudo indica, os
tribunais nunca atuaram na região da Escandinávia. Na Inglaterra, os juízos

60
Ibidem, pp. 190-191.
61
Ibidem, p. 175.
39

apareceram apenas nos procedimentos contra os templários, em 1309, quando


comissários especiais enviados pelo papa processaram a ordem que estava
afamada como herética, sem, no entanto, configurar um enraizamento local. 62
Com exceção de Valência e Aragão, a atuação do Santo Ofício na região,
que apenas geograficamente era conhecida como Espanha, teve pouco significado
durante a Idade Média. O próprio Reino de Castela desconhecia as ações
inquisitoriais antes do reinado de Isabel de Castela e Fernando de Aragão. 63 No
Reino de Aragão, a presença do Santo Ofício fez parte da grande perseguição aos
cátaros, funcionando desde as ordenações de Gregório IX (1232) ao arcebispo de
Tarragona. Entre os inquisidores que atuaram na região, destaca-se Nicolás
Eymerich, teólogo catalão famoso pela confecção do célebre Directorium
Inquisitorum64. Apesar do reconhecido declínio da instituição inquisitorial após o
combate ao catarismo, Valência também contou com um tribunal de Inquisição
autônomo, cuja atuação pôde ser verificada tardiamente em relação aos outros
tribunais medievais, no decorrer do século XV.65
A instituição inquisitorial que atuou na baixa Idade Média guardou uma
distância considerável de sua sucessora moderna, ainda que pautada em um
mesmo fim declarado, qual seja, a perseguição das manifestações heterodoxas ao
catolicismo. Esses tribunais foram idealizados e controlados pelo papado, sem,
contudo, manterem relação direta ou de fidelidade com as monarquias que
governavam os territórios de atuação do Santo Ofício.
Em resposta às petições feitas pelos Reis Católicos – Isabel de Castela
e Fernando de Aragão – e, sob a chancela de Sisto IV, no primeiro dia do mês de
dezembro de 1478, foi expedida a bula Exigit Sincerae Devotionis Affectus. O aval

62
As perseguições sofridas pelos cátaros na Inglaterra foram protagonizadas pelo monarca Henrique
II e não estão relacionadas com a Inquisição pontifícia. Cf. ESCUDERO, op. cit., 2005, pp. 17-18.
63
RUIZ, op. cit., 1985, pp. 52-53.
64
Compilação de textos do direito romano e canônico, nos quais era oferecido um guia prático para
a atuação dos inquisidores.
65
GARCÍA CÁRCEL, R. Orígenes de la Inquisición Española: el tribunal de Valencia – 1478-1530.
Barcelona: Ediciones Península, 1985, pp. 37-38.
40

do pontificado católico possibilitou a criação dos tribunais de Inquisição nos


domínios da Coroa de Castela e Aragão. O conteúdo da bula autorizava a
nomeação de três inquisidores em cada província da Coroa, que deveriam ser
recrutados entre os especialistas em teologia ou direito canônico.66
O texto pontifício inaugurou uma proximidade considerável entre a
realeza e os agentes inquisitoriais, desde então, ficou a cargo dos monarcas a
nomeação, demissão ou substituição dos inquisidores. A mudança brusca de
competência na designação dos agentes institucionais aproximou de forma estreita
as jurisdições civil e eclesiástica. A atribuição jurídica dos inquisidores,
normalmente, sobrepunha-se à jurisdição diocesana. No entanto, os tribunais
medievais não mantinham ligações diretas com as realezas locais, ainda que nelas
encontrassem apoio para atuarem em seus respectivos territórios. A escolha dos
inquisidores, antes monopólio do papado, deu lugar à autonomia do gabinete real,
alterando significativamente o repouso da fidelidade dos membros inquisitoriais.67
Em contrapartida às dinâmicas que geraram os tribunais medievais, a
Inquisição espanhola surgiu como culminação de muitos fenômenos sociais que
tiveram palco entre os séculos XIV e XV. As medidas antijudaicas e as guerras de
“Reconquista” abalaram a convivência moderada que vigorou, até o século XIII,
entre cristãos, muçulmanos e judeus até o século XIII, na Península Ibérica. Esses
três grupos que coexistiram com relativa tranquilidade durante séculos, seguindo
seus próprios hábitos e práticas religiosas, passaram a sofrer drásticas mudanças
em seu cotidiano. A preponderância dos reinos de Castela e Aragão deflagrou o fim
da tolerância, especialmente, com relação aos judeus, que eram vistos pelos
clérigos cristãos como uma ameaça à unidade dos reinos católicos. A Inquisição
moderna funcionou como um poderoso instrumento da política real na tentativa de

66
A nomeação dos primeiros agentes inquisitoriais deu-se, por motivos ainda pouco elucidados na
historiografia, dois anos depois da autorização papal. Apenas em 1480, os dominicanos Miguel de
Morillo, Juan de San Martín e Juan Ruiz de Medina foram nomeados para o Santo Ofício.
67
BETHENCOURT, Francisco. História das Inquisições: Portugal, Espanha e Itália – séculos XV-
XIX. São Paulo: Companhia das Letras, 2000, p. 17-18; KAMEN, Henry. A Inquisição na Espanha.
Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, 1966, pp. 47-48; ESCUDERO, op. cit., 2005, pp. 20-21.
41

homogeneização religiosa. À medida que se impunha a supremacia territorial dos


reinos cristãos, as comunidades muçulmana e judia foram sofrendo, gradualmente,
com medidas restritivas dentro desses territórios.68 Os tribunais foram organizados
na Península e em todos os pontos estratégicos de domínio territorial espanhol,
ganhando, consequentemente, os espaços políticos e sociais da monarquia.69
Os primeiros anos de funcionamento da Inquisição espanhola foram
marcados pelos debates em torno da natureza dos privilégios concedidos pelas
bulas papais e por pressões da Coroa para acelerar o funcionamento da instituição.
A interpretação particular dos direitos pontifícios por parte da monarquia marcou as
polêmicas acerca do estabelecimento do novo Santo Ofício. Apesar disso, as
discordâncias junto ao Sumo Pontífice e os clérigos que questionavam as
modificações na hierarquia para nomeação dos inquisidores foram paulatinamente
resolvidas a favor da Coroa, ainda na primeira década de funcionamento dos
tribunais.70
O início das atividades inquisitoriais teve como palco inaugural a cidade
de Sevilha. O fervor antijudaico que pairava sobre a região havia sido anunciado
uma década antes, quando, em 1391, deu-se o massacre de aproximadamente
4.000 judeus. As intolerâncias insufladas pelo clero local se espalharam por
diversas cidades e as “aljamas”71 passaram a sofrer ataques constantes. Para
escapar da morte ou da perda do reconhecimento social que gozavam no passado,
muitos judeus buscaram compulsoriamente o batismo cristão, nas décadas
seguintes. Tais indivíduos ficaram conhecidos pela alcunha de “cristãos-novos” e
acabaram se tornando alvo de suspeita devido às circunstâncias de suas
conversões. A desconfiança em torno dos cristãos-novos terminou marcando os
apelos dos Reis Católicos oerante o papa para criação do Tribunal do Santo Ofício
da Inquisição.

68
NOVINSKY, op. cit., 2012, p. 26.
69
PEYRE, Dominique. La Inquisición o la Política de la Presencia. In.: BENNASSAR, Bartolomé.
Inquisición Española: poder político y control social. Espanha: Editorial Crítica, 1984, p. 46-47;
RUIZ, op. cit., 1984, p.45-66.
70
GARCÍA CÁRCEL, op. cit., 1976, pp. 39-43.
71
As “aljamas” ou “judarias”, no caso de Portugal, eram os bairros judeus da Península Ibérica.
42

A intensa perseguição desencadeada pelo Santo Ofício em Sevilha criou


um clima de pânico entre os cristãos-novos. Logo em seu primeiro mês de atuação,
o Santo Ofício promoveu a detenção de centenas de acusados, entre os quais se
encontravam pessoas de nobre estirpe e de grande influência na vida urbana
sevilhana. Esses primeiros processos desencadearam a fuga de dezenas de
famílias, especialmente para Portugal, Itália e norte da África. O ritmo dos
procedimentos, que tomavam proporções cada vez maiores, demandou uma
estrutura igualmente robusta, gerando, com o passar dos anos, a construção dos
grandes palácios inquisitoriais.72 A monumentalidade institucional não excluiu – ao
menos durante o seu primeiro século de funcionamento – os pequenos tribunais,
estabelecidos em distritos menores, organizados e alocados em conventos ou nas
sedes episcopais.
A execução dos acusados nos primeiros autos de fé gerou indignação e
protestos perante os Reis Católicos e o Papa. A apresentação dos opositores do
tribunal esteve amparada na inconformidade com o caráter arbitrário e parcial dos
inquisidores, o confisco de bens dos culpados e o segredo processual – este
impossibilitava tanto a família quanto os acusados de obterem qualquer informação
sobre os reais motivos do processo. O confisco de bens, que seguia o castigo dos
culpados, abalava de forma contundente seus familiares, excluindo da herança os
filhos e demais herdeiros, cujas consequências foram, por vezes, o empobrecimento
e a condenação de famílias inteiras à miséria. 73
A prática persecutória aos cristãos-novos modelou, em traços gerais, as
características modernas da Inquisição.74 Não obstante, grande parte dos ritos e
procedimentos estavam previstos nos manuais do século XIV, com especial
destaque para os escritos de Bernard Gui e Nicolau Eymerich. O Liber Sententiarum
Inquisitionis e o citado Directorium Inquisitorum, respectivamente escritos por volta
de 1324 e 1376, estabeleceram o cânone dos procedimentos inquisitoriais. O texto

72
BETHENCOURT, op. cit., 2000, pp. 19-20.
73
Ibidem, pp. 20-21.
74
Ibidem, p. 18.
43

de Eymerich alcançou uma enorme difusão, ganhando várias edições desde o ano
de 1503 até o século XVIII. Tal texto estabeleceu uma sequência mais próxima dos
ritos observados pela Inquisição espanhola. As inovações dos novos tribunais
espanhóis estiveram vinculadas à crescente importância cerimonial e à sua
complexificação, sem, no entanto, promover grandes alterações no funcionamento
foral da instituição.75
A refundação dos tribunais de Inquisição demonstrou, durante mais de
três séculos de funcionamento – entre fins do século XV até o início do XIX – uma
enorme capacidade adaptativa com relação às condições de tempo e espaço.76 A
abrangência das funções do Santo Ofício sofreu alterações com os anos e sua
plasticidade demonstrou que a reestruturação em parâmetros momentâneos – qual
seja, a situação dos cristãos-novos nos domínios dos reinos de Castela e Aragão –
não produziu uma configuração rígida e uma jurisdição imaleável. A fixação,
interpretação e adaptação das crenças, dogmas e instâncias discordantes eram
procedimentos atrelados à identidade eclesiástica. Nesse sentido, a continuidade,
absorção e atualização dos manuais diversos e dicionários de heresias
demonstraram ser, ao mesmo tempo, mantenedores da jurisdição inquisitorial e
centro vivo de sua plasticidade.
O caráter de constante adaptação da Inquisição vincula-se de imediato
com sua durabilidade e, apesar disso, alguns elementos permaneceram contínuos
na história institucional. O objetivo de perseguição das heresias, a jurisdição e o
processo penal foram traços de estrutura que permaneceram diante das condições
específicas das localidades em que eram fundados os tribunais.77 A partir do século
XVI, essas características se mostraram pujantes nos domínios coloniais ibéricos.

75
Ibidem, pp. 23-24, 32.
76
DEDIEU, Jean Pierre. Los cuatro tiempos de la Inquisición. In.: BENNASSAR, Bartolomé.
Inquisición Española: poder político y control social. Barcelona: Editorial Crítica, 1984, pp. 15-16.
77
BETHENCOURT, op. cit., 2000, pp. 31-32.
44

5. Divisão e estrutura do trabalho

A estrutura do presente trabalho reflete a periodização proposta e o


recorte analítico explicitado; isto é, foca analisar a confluência entre os esforços
evangelizadores dos franciscanos no México e os processos inquisitoriais contra
indígenas, elaborados por don frei Juan de Zumárraga, entre 1536 e 1543.
A pesquisa tomou forma em quatro recortes fundamentais. Em primeiro
lugar (capítulo I), serão analisados os vestígios de incidências de punições por
juízos eclesiásticos nos primeiros anos que seguiram a chegada dos franciscanos
ao Vale do México e arredores. Trata-se do período, entre 1523 e 1528, que
antecedeu a nomeação de Juan de Zumárraga como primeiro bispo do México e a
posterior criação de um tribunal de Inquisição junto à estrutura episcopal. Ao
investigar os índices que sugerem ocorrência de punições exemplares, também
estará pressuposta a verificação da autoridade que respaldava a promoção de
juízos eclesiásticos, bem como o caráter de tais ocorridos. O intuito é delimitar o
quão cedo iniciaram os usos jurídicos contra a população autóctone por parte do
clero regular. A averiguação pode sustentar uma característica mais generalizada
entre os evangelizadores e não exclusiva ao bispo Zumárraga.
O segundo recorte proposto (capítulo II) será encarregado do
detalhamento das especificidades de fundação e funcionamento do tribunal de
Inquisição criado por frei Juan de Zumárraga, no qual ele esteve à frente dos
trabalhos, entre os anos de 1536 a 1543. Essa proposição exigirá atenção às
características do Inquisidor, tanto nos aspectos biográficos, quanto em seu
relacionamento com os demais membros das instituições espanholas. A
conformidade dos procedimentos do Santo Ofício e os percalços impostos pelo
distanciamento linguístico entre espanhóis e indígenas também surgirão como
elementos constitutivos da análise. A intenção principal se conformará na ambição
de compreender a procedura da Inquisição perante os novos protagonistas
indígenas.
45

O terceiro recorte (capítulo III) será estruturado com vistas a investigar


os recursos utilizados pelo Santo Ofício em direção ao alcance de seu enraizamento
entre os indígenas. Assim, pretende-se aprofundar na forma em que foram captadas
as denúncias e os testemunhos responsáveis por sustentar os inquéritos e,
consequentemente, as ações punitivas perpetradas. Ao mesmo tempo, estará
planificado o enfoque persecutório que figurou nos processos contra a população
autóctone, em sentido mais estrito, quanto ao que se convencionou chamar, durante
o funcionamento do tribunal, de “idolatria” indígena.
Em último plano (capítulo IV), os objetivos estarão voltados para o
entendimento das penitências públicas usadas pelo inquisidor Zumárraga no
cumprimento das sentenças dos condenados indígenas. Caberá, portanto, o exame
da espacialidade delimitada para a cena pública e a incidência dos castigos nos
corpos dos penitenciados, ambos tratados em seus significados e possíveis
consequências sociais. Delimitar-se-ão, entre os penitenciados, o campo de
sentidos almejados pela Inquisição e os aspectos simbólicos, que escapavam a
arquitetura jurídica. Também se pretende dispor as repercussões que tomaram
lugar após a queima do nobre texcoquenho, don Carlos Ometochtzin, seja na
coação de comportamentos indesejados entre os indígenas, ou mesmo, ante as
instâncias reais alarmadas com os rigores inquisitoriais.
46

I
EVANGELIZAÇÃO E DISCIPLINA ECLESIÁSTICA
(1521-1536)

“(...) A esta santa obra, algunos


prin[cipa]les se mostraron duros y
pertinaces, que, con haberse bautizado,
tornaron a reiterar en su gentilidad y
antiguo uso de idolatrar (...)”
(Diego Muñoz Camargo)
47

1. Privilégios pontifícios

Os privilégios pontifícios que favoreceram as ordens mendicantes nos


territórios pouco a pouco conquistados pelo Império Espanhol aparecem sob os
selos de duas bulas pontifícias. A primeira foi promulgada, em 25 de abril de 1521,
pelo papa Leão X à Ordem dos Frades Menores. Intitulada Alias Felices, atendeu
aos pedidos dos frades Juan de Clapión e Francisco de Los Ángeles, ambos
idealizadores do projeto que culminou na formação do grupo dos “Doze”
evangelizadores franciscanos, os quais desembarcaram na costa do México. A bula
autorizava o uso de poderes episcopais por parte dos franciscanos que partiriam
para as Índias. Em seu conteúdo, as restrições estabelecidas limitavam apenas a
ordenação de outros sacerdotes pelos regulares. Pouco tempo depois, conseguinte
à morte de Leão X, em dezembro de 1521, os direitos alcançados pelos
franciscanos foram expandidos às demais ordens mendicantes, que também
planejavam cruzar o Atlântico.
A ampliação das concessões figurou sob a autoridade da bula Exponi
Nobis Fecisti ou Omnímoda, como ficou, posteriormente, conhecida no mundo
hispânico. Expedida por Adriano VI (Adriano de Utrecht), antigo tutor de Carlos V, o
documento fez jus às petições do Imperador. A redação da bula reafirmou, em 9 de
maio de 1522, os privilégios contidos na Alias Felices – “que la dicha autoridad se
extienda á ejercitar todos los actos Episcopales, con tal que no requiera para ello
Orden Episcopal”.78 Não obstante, a Omnímoda distinguia-se de sua antecessora
não apenas na amplitude dos agentes que autorizava, o texto trousse uma maior
contundência quanto ao detalhamento das condições às quais os privilégios
deveriam se sujeitar. Ela limitou os religiosos às zonas sem bispos nomeados ou a
dois dias79 de distância de qualquer liderança diocesana:

78
HERNAEZ. F. J. Colección de Bulas, Breves y Otros Documentos Relativos a la Iglesia de
América y Filipinas. Bruxelas: Emprenta de Alfredo Vromant, 1879, vol. 1, p. 385.
79
Correspondente à unidade de medida “dieta” usada no corpo do texto episcopal, sendo cada
“dieta” equivalente a um dia de distância.
48

[...] En las partes donde no se hubieren señalado Obispos, y


si los hubiere, estando los Obispos ó sus oficiales á distancia de dos dietas,
ó que no se puedan hallar fácilmente, tengan así para sus frailes como
para otros de cualquiera religión [...].80
Os indultos concedidos aos primeiros evangelizadores da América
abriram ao clero regular o campo de ação, normalmente, reservado aos bispos. A
potestade episcopal autorizava a administração dos atos sacramentais e das
funções jurídico-eclesiásticas. Esses benefícios foram determinantes na ação dos
evangelizadores com relação às populações indígenas durante o século XVI. Foi
proporcionada uma ação descentrada aos regulares – diluída em uma espécie de
bispado coletivo – com pouca ou nenhuma dependência das instâncias
peninsulares da Igreja e, por vezes, distante do controle da Coroa espanhola.81
Apesar das limitações pressupostas no texto pontifício, com o passar do
tempo, as demandas advindas das experiências americanas reivindicaram cada vez
mais autonomia. A ampliação da rede diocesana, por meio da designação dos
bispos para as zonas de maior domínio espanhol, não significou a exclusão dos
regulares de suas funções extraordinárias. Desde 1535, as restrições para zonas
com bispos nomeados foram relativizadas e as limitações de distância das dioceses
foram revogadas. A confirmação da Omnímoda pelo papa Paulo III sujeitou as
concessões à autorização dos bispos locais. Em outras palavras, os mendicantes
conservaram os privilégios outorgados e ampliaram a possibilidade de exercê-los
dentro dos limites das dioceses, com o consentimento dos bispos locais. 82
A autonomia proporcionada pelos privilégios não era de todo um fato
inédito na história da Igreja Católica. A autorização para a promoção de casamentos
e agir em causas matrimoniais, além de administrar a eucaristia e a excomunhão

80
HERNAEZ, op. cit.,1985, vol. 1, p. 385.
81
TLASLOSHEROS, Jorge E. Iglesia, Justícia y Sociedad en la Nueva España: la audiencia del
arzobispado de México, 1528-1668. México: Ed. Porrúa/Universidad Iberoamericana, 2004, pp. 13-
15.
82
O conteúdo das bulas, assim como comentários em torno dos indultos podem ser encontrados em
HERNAEZ, op. cit., vol. 1, pp. 377-392. Outra transcrição pode ser verificada em MENDIETA,
Gerónimo de. História Eclesiástica Indiana. México: Ed. Porrúa, 1993, L. III, C. IV-VII, pp. 186-196.
49

remontam a uma longa tradição de reconhecimento dos empreendimentos


evangelizadores do clero regular. Princípio extraordinário nascido da necessidade,
com numerosos precedentes, sobretudo, em benefício dos franciscanos. Privilégios
similares haviam sido outorgados pelos papas Nicolau IV (1431-47), João XXII
(1316-34), Urbano V (1362-70) e Eugênio IV (1431-47).83
Em contrapartida, o cenário americano era inteiramente novo aos olhares
do ocidente cristão. A possibilidade de livre ação proporcionada pelas concessões,
aliada a um território desconhecido, favoreceu as tendências do humanismo
milenarista, que fervilhavam na Península Ibérica entre os séculos XV e XVI; com
especial destaque para os franciscanos, pioneiros da evangelização na Nova
Espanha. Dotados do amparo pontifício, os frades reformados, que enfrentavam
rivalidades, resistências e perseguições na Europa, depararam-se com um
horizonte aberto, sem as tensões do Velho Mundo. O ambiente que os franciscanos
encontraram não lhes impôs grandes limitações institucionais, ao menos com
relação a outros eclesiásticos. A chegada dos dominicanos e agostinianos –
respectivamente, em 1526 e 1533 – impôs um contraponto à conduta dos Frades
Menores. No entanto, a ordem de São Francisco permaneceu em maioria por todo
o século XVI.

2. Franciscanos no México

Os primeiros frades que chegaram ao México eram observantes ou


provenientes de outros conventos de vida austera, em princípio, tanto espanhóis,
quanto estrangeiros; em sua maioria, provenientes de San Gabriel de Estremadura,
província independente que consolidou os esforços do reformista frei Juan de
Guadalupe. De tendência milenarista e joaquimita, San Gabriel foi a base espiritual
do primeiro projeto que vislumbrou a evangelização sistemática das populações

83
TRASLOSHEROS, op. cit., 2004, p. 14; DUVERGER, Christian. La Conversión de los Indios de
Nueva España. México: FCE, 1993, p. 25.
50

autóctones, habitantes das terras recém-conquistadas pelo capitão Hernán Cortés.


Os evangelizadores trilharam os rumos traçados pelo conquistador apenas dois
anos depois da derrota mexica. A princípio, eram não mais que três religiosos
flamencos, provenientes do convento franciscano de Gante. À frente, estava frei
Johan Dekkers (Juan de Tecto), professor de teologia da Universidade de Paris,
seguido por frei Johan van de Aewera (Juan de Aora) e frei Pedro de Gante 84. Os
reforços não tardaram a chegar e os flamencos foram seguidos pelo desembarque
de uma comitiva de franciscanos, em 1524.
A empreitada reuniu o contingente de doze franciscanos, os quais
desembarcaram, no mês de julho, na costa do atual estado de Vera Cruz. O grupo
foi liderado por frei Martín de Valencia, um adepto fervoroso das reformas de frei
Guadalupe. Seguindo o líder do grupo estavam os frades Francisco de Soto, Martín
de Jesús, Juan Suárez, Antonio de Ciudad Rodrigo, Turíbio de Benavente (ou
Motolinía85), García de Cisneros, Luis de Fuensalida, Juan de Ribas, Francisco
Jiménez, Andrés de Córdoba e Juan de Palos. A cifra dos franciscanos ligava
simbolicamente o projeto evangelizador ao número de apóstolos de cristo, assim
como, aos doze discípulos escolhidos por São Francisco de Assis, no dia 24 de
fevereiro de 1209, durante a fundação do primeiro convento dos Frades Menores. 86
Martín de Valencia, o prior da comitiva, ocupava o cargo de primer
provincial da província autônoma de San Gabriel quando foi escolhido para a missão
evangelizadora do México. O franciscano simbolizou, mais do que qualquer outro,
o elo forte que ligava, diretamente, a evangelização dos povos indígenas às
reflexões franciscanas reformadas. 87 A chegada dos frades de São Francisco
marcou, para além dos impulsos evangélicos, a ampliação do campo de ação e a
possibilidade de cumprir de seus ideais. A atmosfera de renovação religiosa que

84
Pieter vem der Moere, conhecido também como Pedro de Gante ou Pedro de Mura.
85
Nome nahuatl assumido por frei Toríbio de Benavente, após a sua chegada ao México, e cujo
significado literal seria “Pobre”.
86
DUVERGER, op. cit., 1993, p. 28.
87
BAUDOT, Georges. La Pugna Franciscana por México. México: Alianza Editorial Mexicana,
1990, pp. 19-21; RUBIAL GARCÍA, Antonio. La Hermana Pobreza. México: UNAM, 2000, pp. 91-
101.
51

antecedeu a comitiva pioneira havia se tornado mais densa, desde fins do século
XV, à medida que as notícias de uma nova terra – inteiramente desconhecida aos
olhos do Velho Mundo – começaram a circular.
As primeiras relações que descreviam o descobrimento e a conquista de
novas posses para o Império Espanhol tiveram um grande impacto na formação das
expectativas sobre o Novo Mundo, em especial, os reportes de Alonso Zuazo e
Hernán Cortés, além dos escritos do próprio Cristóvão Colombo. Os relatos foram
objeto de atentas leituras e estudos detalhados por parte dos frades que se
organizaram em Estremadura para a primeira missão seráfica, com destino ao Valle
do México e seus arredores.88 As notícias sobre uma população que desconhecia o
cristianismo assumiram um caráter especial frente às tendências reformistas.
O advento de um Novo Mundo intensificou os ideais milenaristas,
dotando o evangelismo franciscano de uma carga apocalíptica. Para muitos dos
frades que passaram pela América, o cumprimento das profecias anunciadas nas
escrituras sagradas começou a depender da conversão das populações indígenas.
Afinal, o retorno do messias estava condicionado à difusão do evangelho aos povos
do mundo.89 De acordo com o pensamento católico, era necessário integrar as
populações indígenas em um “mundo total”, que obedecesse aos rumos da História
Sagrada. Como ressaltado por Marcel Bataillon, no pensamento dos frades
evangelizadores, “a humanidade era uma desde Adão. Havia começado e devia
acabar”90 – sobredeterminação proveniente da visão meta-histórica do cristianismo,
concepção retilínea e marcada por acontecimentos únicos e irreversíveis. Tratava-
se de um motor histórico cujo traçado resultante vai da Criação ao Julgamento Final.
Os milhares de povos que, gradualmente, foram entrando em contato com o
cristianismo, impunham de início um desafio cognitivo. Não obstante, de forma

88
BAUDOT, Georges. Utopía e Historia en México: los primeros cronistas de la civilización
mexicana (1520-1569). Madrid: Espasa-Calpe, 1983, pp. 32, 100.
89
BÍBLIA, Mateus, 24:1-14.
90
BATAILLON, Marcel. Novo Mundo e fim do mundo. In.: Revista de História da USP, São Paulo,
v. 8, n. 18 pp. 343-351, 1954, p. 344.
52

sincrônica, sugeriam o término da propagação do evangelho e, por consequência,


o fim dos tempos. 91
A convicção de estarem vivendo os prelúdios do juízo final foi
potencializada de forma mais significativa sobre aqueles que sofriam a influência
dos escritos de autores como Joaquim de Fiore. Muito antes das notícias de um
novo continente, a obra do místico calabrês jogou um importante papel nas
interpretações cristãs, a partir do século XIII. A obra de Fiore circunscreveu a
história da humanidade em uma divisão de três grandes épocas ou idades. A
primeira, delimitada entre a criação de Adão e o nascimento de Jesus Cristo, era a
“idade do Deus pai” e representava a igreja secular. Em sequência, a “idade do
Deus filho”, que compreendia desde o término da primeira época, até o ano de 1260,
correspondente ao período da Igreja sacerdotal. A terceira idade “Deus Espírito
Santo” foi profetizada como o período da Igreja monástica, que vigoraria a partir do
ano 1260 e encerraria a cronologia cristã. Nesse terceiro momento da escatologia
mística de Joaquim de Fiore, vigoraria um reino milenar apocalíptico, onde o
cumprimento dos ideais evangélicos levaria a humanidade a um modo de vida
contemplativo, baseado nos preceitos da pobreza apostólica. A profecia da terceira
idade seria inaugurada por um novo Adão-Cristo, que supostamente fundaria uma
ordem monástica.92
No decorrer do tempo, diversas apropriações foram responsáveis por
associar as profecias de Fiore a São Francisco e ao surgimento da Ordem dos
Frades Menores. E, na Espanha, o misticismo apocalíptico de influência joaquimita
recebeu um novo impulso com as reformas cisterianas entre o clero regular,
manifestando-se de forma mais intensa entre os ramos franciscanos observantes. 93
Em decorrência disso, as interpretações místicas das conquistas de novas terras e
as tendências reformistas dotaram os primeiros evangelizadores de um otimismo

91
Ibídem, pp. 344-346.
92
PHELAN, John L. El reino Milenario de los Franciscanos en el Nuevo Mundo. México: UNAM,
1972, p. 27.
93
Ibidem, pp. 27-28, 71.
53

providencialista, figurando de forma intensa nas primeiras décadas da presença


espanhola no México.
Os indígenas – talvez, ocultos pela vontade divina – deveriam, no
pensamento desses clérigos, ser libertados das garras de satanás. A América
representou a esperança de salvação para a Igreja que se mostrava decadente e
maculada aos olhos dos observantes franciscanos. Nas primeiras décadas do
trabalho evangelizador, o encontro entre os mendicantes e os indígenas fortaleceu
as esperanças de um Novo Mundo, sem os vícios do velho.94 A ideia de decadência
estava diretamente associada à idealização de um período perfeito e áureo. Os
processos místicos e as ideias reformistas que marcaram o século XVI tomaram a
Igreja primitiva (hierosolimitana) como um período edênico – característica
constantemente apresentada na história da Igreja. 95
Os religiosos desembarcaram em um mundo completamente
desconhecido, mas sobrecarregado de idealizações. Eles aspiraram, antes do
enfrentamento de qualquer desafio, a formação de comunidades exemplares,
inspiradas pelas quimeras de um cristianismo apostólico primitivo. Entretanto, a
empreitada atribuída em primeira mão à comitiva regida por frei Martín de Valencia
logo se deparou com a complexa e confusa realidade dos primeiros anos de
conquista. Apesar de estarem impregnados pelas tendências milenaristas, as
utopias dos primeiros evangelizadores se mesclaram ao pragmatismo cotidiano da
evangelização. Como alertado pelo historiador Christian Duverger, é necessário
olhar não apenas para as tendências desembarcadas com os franciscanos, mas
também, ver as inflexões da prática evangelizadora. 96 Apesar disso, uma inegável
euforia marcou as atitudes dos evangelizadores nos primeiros anos de contato com
os indígenas. Essa ambiguidade foi, igualmente, ressaltada por Robert Ricard:
“veces hay em que se dejan dominar por um excesivo optimismo, mientras que em

94
RUBIAL GARCÍA, op. cit., 1996, pp. 124-125; PHELAN, op. cit., 1972, p.76.
95
KARNAL, Leandro. Teatro da Fé: representação religiosa no Brasil e no México do século XVI.
São Paulo: HUCITEC, 1998, p. 44.
96
DUVERGER, op. cit., 1993, p. 27.
54

otras cargan las más negras tintas a su pintura”97. É uma oscilação que recaiu de
forma palpável no tratamento e descrição dos indígenas.
Diante do grande território que se mostrava e na tentativa de fazer
cumprir seus esforços, os franciscanos tomaram decisões práticas e se dividiram
entre as regiões mais populosas dos vales centrais mexicanos. Os núcleos
demográficos correspondiam a quatro grandes territórios indígenas, a saber:
Texcoco, Huejotzingo, Tlaxcala e Mexico-Tenochtitlan.98 Uma vez assentados, os
clérigos nomearam a nova custódia franciscana com o nome de Santo Evangelio,
em uma clara referência à província reformada da qual eram provenientes.
Tomadas as posições estratégicas, cabia focar o que era mais desafiador: o
aprendizado das línguas nativas, a conversão e o batismo integral das populações
regionais.

3. Batizar, desmanchar, (re)educar

Os franciscanos buscaram acelerar o processo de conversão dos


gigantescos contingentes humanos que encontraram. Para tanto, foi comum aos
primeiros anos de trabalho dos evangelizadores, a organização de batismos
coletivos sem prévia catequese, principalmente, no caso dos adultos. As
conversões raramente eram individuais, pois administrava-se o batismo, por vezes,
a povoados inteiros. Sob a pena do cronista Toríbio de Benavente (o Motolinía),
membro da comitiva dos Doze franciscanos, verifica-se com clareza o caráter
desses primeiros batismos de proporções multitudinárias:

[...] Al tiempo del bautismo ponían todos juntos los que se


habían de bautizar, [...] y hacía sobre todo el oficio del bautismo, y sobre

97
RICARD, Robert. La Conquista Espiritual de México. México: FCE, 1994, p. 96.
98
GONZALBO AIZPURU, Pilar. Historia de la Educación en la Época Colonial: el mundo indígena.
México: El Colegio de México, 2008, p. 26.
55

algunos pocos la ceremonia de la cruz, flato, sal, saliva, alba; luego


bautizaban los niños cada uno por si en agua bendita. [...]99

Os batismos em massa foram uma característica marcante e restrita aos


primeiros anos da evangelização, cujo ápice ocorreu entre os anos de 1528 e 1532.
A simplificação e a massificação na administração do rito transmitiam o caráter de
urgência que era depositado no batizado. Motolinía e muitos outros privilegiaram as
ações massivas em detrimento de qualquer instrução prévia. O intuito era claro:
garantir a salvação do maior número de almas possíveis. Uma vez “asegurado lo
principal”, os evangelizadores poderiam dar continuidade, “hacer las ceremonias
acostumbradas” e instruir os neófitos.100 A coletivização dos batismos também
evidenciava o despojamento franciscano frente às outras ordens que seguiram ao
seu estabelecimento. A facilidade dos Frades Menores em suprimir aspectos
litúrgicos expressava um apego mínimo às formalidades da Igreja. Com a urgência
de garantir salvação, os franciscanos resolveram diminuir as liturgias que lhes
pareciam dispensáveis ante os milhares a serem convertidos.
As práticas coletivas planificadas pelos Frades Menores foram
questionadas em sua sacralidade por outros clérigos, dominicanos e agostinianos.
O que parecia aos franciscanos uma medida emergencial e justificável, frente à
eminente condenação dos indígenas ao inferno, para os demais soava como um
pecado grave, uma violação litúrgica que podia significar a própria invalidade do
sacramento. Menos eufóricos, os regulares dominicanos e agostinianos eram mais
cautelosos com relação à administração do batismo. A falta de resolução das
disputas dos regulares levou o debate ao papado. A polêmica acerca da redução
litúrgica dos batizados caiu sobre as mãos de Paulo III, que decidiu a favor dos
franciscanos. Em 1537, a bula Altitudo Divini Consilii validou todos os batismos

99
BENAVENTE, Toribio. Historia de los Indios de Nueva España. México: Ed. Porrúa, 2007, trat.
II, cap. 4, p. 123.
100
BENAVANTE, op. cit., 2007, trat. II, cap. 4, p. 123.
56

desde a chegada das ordens mendicantes e delimitou o ritual simplificado que


deveria ser obedecido.101
Para os primeiros franciscanos, a ênfase dada à ação soterológica
cumpria a contingência de livrar as milhares de almas do inferno. Uma vez cumprida
essa ação, poder-se-ia, então, seguir a ação mistagógica, ou seja, o
aprofundamento dos preceitos cristãos de forma individual. Fato esse, diga-se de
passagem, que nunca ocorreu, seja pela falta de um maior contingente de
catequistas, ou mesmo, pela resistência indígena na incorporação de vários dos
princípios católicos. 102
Os primeiros anos da evangelização do México também foram o palco
para o início das investidas violentas contra as devoções indígenas. O cristianismo
dos evangelizadores e conquistadores – de ambição universalista e intolerante a
qualquer outra forma de crença – arrogava para si as representações do sagrado e
a regência do cotidiano espiritual.103 Seguindo os rumos dos empreendimentos
evangelizadores, as ofensivas contra as práticas devocionais indígenas tomaram
um lugar cada vez mais preponderante no trabalho missionário. Constituíram um
princípio de ação e a tentativa de estabelecer uma ruptura drástica com o passado
não cristão. Diante das novas dinâmicas que se impunham sob o ritmo da
propagação do cristianismo, o mundo autóctone assumiu um caráter demoníaco e
idolátrico. Para os mendicantes, um antecedente pernicioso que deveria vir ao chão
junto dos templos incendiados e das efígies despedaçadas aos olhos de todos.
Segundo denota o cronista Motolinía, a “primera batalla dada al
demonio”104 remonta ao primeiro dia do ano de 1525 e teve como palco a cidade
indígena de Texcoco. Seguramente, não foi a primeira ofensiva, mas a primeira

101
RICARD, op. cit., 1994, pp. 174-176. MENDIETA, op. cit., 1993, liv, III, cap. XXXVII, pp. 269-273.
102
KARNAL, op. cit., 1998, p. 209.
103
GRUZINSKI, Serge. A Guerra das Imagens: de Cristóvão Colombo a Blade Runner (1492-2019).
São Paulo: Companhia das Letras, 2006, p.77.
104
BENAVENTE, op. cit., 2007, trat. I, cap. 3, pp. 28.
57

iniciativa premeditada e ordenada de incêndio dos teocalli105, destruição dos


artefatos devocionais autóctones e expulsão dos sacerdotes106 indígenas. A
ocasião foi enaltecida e registrada de forma bastante expressiva pelo cronista e
evangelizador franciscano:

[...] Estábase la idolatría tan entera como de antes, hasta que


el primero día del año de 1525, que aquel año fue en domingo, en
Tetzcoco, adonde había los más y mayores teocallis o templos del
demonio, y más llenos de ídolos, y muy servidos de papas o ministros, la
dicha noche tres frailes, desde las diez de la noche hasta que amanecía,
espantaron y ahuyentaron todos los que estaban en las casas y salas de
los demonios; y aquel día después de misa se les hizo una plática,
encareciendo mucho los homicidios, y mandándoles de parte de Dios, y
del rey no hiciesen más la tal obra, sino que los castigarían según que Dios
mandaba que los tales fuesen castigados. [...]107

A passagem de Motolinía deixa claro as etapas que a política de


tratamento pressupunha devido às devoções indígenas. Primeiro, a Destruição dos
templos, seguida pela explanação acerca do que era combatido e, finalmente, a
advertência frente às possíveis reincidências. Motolinía transmite a estrutura da
abordagem pedagógica dos primeiros franciscanos no México – um tipo de
estrutura, cujo exemplo maior tomou forma, mais tarde, nos processos inquisitoriais
contra indígenas, nos quais a punição assumiu o papel de uma quarta etapa.
Antes da chegada dos evangelizadores, as atitudes violentas de Hernán
Cortés contra as efígies dos templos compuseram o prelúdio do que foi,
posteriormente, uma prática sistemática. Desde seu desembarque na ilha de
Cozumel, em fevereiro de 1519, o conquistador demarcou sua expedição com a

105
Templo ou espaço devocional demarcado, onde são abrigados e cultuados uma ou mais
divindades (teotl).
106
O termo “sacerdote” será empregado no caso indígena para designar os antigos especialistas
rituais, mas cujo sentido não deve estar necessariamente vinculado ao desempenho de um posto
institucional.
107
BENAVENTE, op. cit., 2007, trat. I, cap. 3, p. 28.
58

eventual destruição de efígies e sua conseguinte substituição pelas imagens


cristãs.108 A intolerância de Cortés dependeu sempre da consolidação dos territórios
que pouco a pouco dominou. A estratégia foi um imperativo nos primeiros anos de
presença espanhola, entretanto, o medo de levantes indígenas não impediu reações
súbitas e enraivecidas dos conquistadores. A intolerância com relação às devoções
indígenas e a ofensa perpetrada pela existência dos “ídolos” deu lugar a reações
impulsivas ou pouco cautelosas.109
Os impulsos de Cortés que, em certa ocasião “Tomó con una barra de
hierro que estaba allí, é comenzó á dar en los ídolos de pedrería”110, deram lugar
às perseguições de caráter organizado, que se intensificaram com o passar dos
anos, e à chegada dos evangelizadores. A queima dos locais sagrados, a destruição
dos objetos rituais e a perseguição dos antigos sacerdotes estruturaram um
processo longo, complexo, com muitos matizes e vinculado de forma intrínseca à
implantação do cristianismo. Nesse processo, é possível incluir todo o recorte do
presente trabalho, isto é, as três primeiras décadas de domínio espanhol.
As investidas premeditadas dos frades ocasionaram a dispersão do
corpo sacerdotal, ameaçados e impedidos de continuar com os ritos.111 Em
consequência, a tutela dos jovens que antes recebiam uma educação formal nos
calmecac e telpochcalli112 foi assumida pelos evangelizadores. Na perspectiva dos
frades, os jovens seriam os menos relutantes em aceitar o cristianismo e abdicar do
passado, abominado pelos novos tutores. Os adultos, por sua vez, seriam mais
apegados às práticas ancestrais e demonstrariam maior dureza e resistência na
recepção do catolicismo.113 As crianças receberam atenção especial, ao contrário

108
GRUZINSKI, op. cit., 2006, pp. 55-60.
109
DÍAZ DEL CASTILLO, Bernal. Historia Verdadera de la Conquista de la Nueva España. México:
Porrúa, 2009, cap. LII, pp. 87-88.
110
Relación Hecha por el Señor Andrés de Tápia sobre la Conquista de México (XVI). In: GARCIA
ICAZBALCETA, J. Colección de Documentos Para la Historia de México. México: Porrúa, 2004,
vol. 2, p. 585.
111
BENAVENTE, op. cit., 2007, trat. I, cap. 3, p. 29.
112
Os calmecac e Telpochcalli eram os templos/escolas reservados para a educação intelectual,
guerreira, técnica e sacerdotal dos jovens indígenas do Planalto Central Mexicano.
113
GONZALBO AIZPURU, op. cit, 2008, pp. 32-38.
59

dos adultos legados aos batismos massivos: “porque fruto se esperaba más cierto
y durable, como se ve, en sus niños por quitar la raíz de tan mala memoria”114.
Os evangelizadores concentraram seus esforços, principalmente,
naqueles que ocupavam uma posição social de maior destaque no mundo nahua.
Foram privilegiados os filhos dos pipiltin115 ou nobres indígenas, em detrimento dos
filhos dos macehualtin116 (não nobres). As autoridades metropolitanas
recomendaram aos evangelizadores a criação de regimes de internato para os filhos
da nobreza indígena, baseando-se nos êxitos alcançados na cidade de Granada,
conquistada a poucas décadas do domínio muçulmano. 117 Tomando as
ordenações, os franciscanos procuraram montar estruturas anexas aos
monastérios, no intuito de abrigar os neófitos. Assim, a educação dos filhos dos
“principales118 y caciques119” demandou o afastamento dos jovens indígenas de
suas famílias; eles deveriam deixar de lado a obediência e o temor aos pais e
anciões de suas respectivas comunidades. O intuito dos evangelizadores era
alcançar um rompimento completo com as devoções e costumes locais, incutindo
uma nova formação:

(…) Para los criar y enseñar la dotrina cristiana é industriarlos


em nuestros manesterios (...) enseñandoles á leer y escribir y cantar el
Oficio eclesiastico, y decir las Horas cantadas y oficiar las misas é
imponerlos en todas las buenas costumbres de la cristiana religión (…) 120

114
Carta de fray Martín de Valencia y otros religiosos al emperador (1533). In: GARCÍA
ICAZBALCETA, J. Nueva Colección de Documentos Para la Historia de México, vol II: Códice
franciscano, siglo XVI. México: Imprenta de Francisco Díaz de León, 1889, p. 163
115
Pilli (sing.).
116
Macehual (sing.). Na grafia espanholizada, é possível encontrar o plural na forma “macehuales”.
117
GONZALBO AIZPURU, op. cit., 2008, p. 32.
118
Principal (sing.) foi a forma espanhola usada para traduzir o termo indígena pilli.
119
A palavra “cacique” (sing.) foi a designação comum usada pelos conquistadores e autoridades
espanholas em substituição do termo nahuatl tlatoani. A palavra é de origem arawaka, adotada pelos
espanhóis nas Antilhas e levada para o México.
120
Carta de fray Martín de Valencia y otros religiosos al emperador (1533). In: GARCÍA
ICAZBALCETA, op. cit., 1889, p. 163.
60

Os grupos foram separados pelos frades de acordo com o sexo, a idade


e a divisão social dos indivíduos. Os franciscanos adaptaram os rigores e as
divisões sociais pré-existentes nas sociedades indígenas. Os filhos dos pipiltin eram
submetidos à catequese nos recintos conventuais e estavam sujeitos a uma
educação intelectualizada, sob rígida disciplina e severos castigos. O rigor aplicado
na educação dos filhos da nobreza equiparava-se aos antigos calmecac. A
educação formal desses recintos era hierarquizada, rígida e carregada de atividades
devocionais e obrigações cotidianas. Por outro lado, os filhos dos macehualtin, em
posição de menor prestígio social, receberam uma educação com ênfase nas
atividades manuais. Depois das missas, eram encaminhados aos átrios das capelas
e igrejas onde recebiam o catecismo básico e decoravam as formas das principais
orações católicas. Características também equiparáveis ao regimento pré-hispânico
dos Telpochcalli, em que os discípulos não estavam sujeitos a um ambiente tão
rígido quanto os calmecac. Ainda que tivessem uma disciplina considerável, nos
telpochcalli, os jovens não mantinham normas de restrição sexual estrita, além de
estarem autorizados a ajudar suas famílias, de tempos em tempos, nas atividades
produtivas.121
As escolhas dos padres estavam baseadas em um critério social prático,
visando à função que cada aluno receberia no futuro e aproveitando as condições
preexistentes que contribuíssem para a edificação do cristianismo. Mas, sobretudo,
as crianças constituíram-se como agentes de penetração familiar na difusão do
cristianismo. Os jovens principales mais versados e que completavam as primeiras
instruções eram enviados de volta aos locais de origem, onde serviriam de
catequistas para os demais: “maestros y predicadores de sus padres y mayores”122.
Eles chegavam preparados para pregar o evangelho, identificar os vestígios de

121
KOBAYASHI, José María. La Educación Como Conquista. México: COLMEX, 2007, pp. 56-70;
RICARD, op. cit., 1994, p. 185; SAHAGÚN, Bernardino. Historia General de las Cosas de Nueva
España. México: Porrúa, 2006, liv. III, apéndices, caps.4-8, pp. 201-206.
122
Carta de fray Martín de Valencia y otros religiosos al emperador (1533). In: GARCÍA
ICAZBALCETA, op. cit., 1889, p. 163.
61

cultos idolátricos e reportar qualquer incidente aos frades. Os jovens neófitos


indígenas formaram um verdadeiro exército de informantes e combatentes dentro
de seus círculos sociais.123
O abismo que separava o mundo indígena do horizonte ocidental pouco
a pouco implantado pelo domínio espanhol tencionava, gradualmente, as relações
sociais. Aliando-se ao avanço dos evangelizadores, a progressão da conquista
militar e a implantação das instituições do Império espanhol causavam uma
fragmentação progressiva dos privilégios e influências políticas das elites locais. Os
pressupostos de extirpação das devoções indígenas, implícitos no trabalho
evangelizador e na reorganização da ordem governamental, criaram, até a metade
do século XVI, um cenário de grande instabilidade. Os agravos aumentavam
conforme eram desarticuladas as instituições indígenas e remanejados ou
renomeados os cargos tradicionais. Formava-se, assim, um cenário tenso,
resistente e instável, cujos quadros se completavam com a grande mortandade
provocada pelas epidemias.
Os especialistas rituais foram obrigados a abandonar os locais sagrados
conforme se intensificavam as perseguições. Em resposta, os mais ousados
ocultavam o que podiam. O trânsito das efígies salvas da destruição tomou a forma
de redes clandestinas, as quais tentavam driblar a vigilância dos padres e de seus
jovens discípulos indígenas que espreitavam os próprios lares. As figuras divinas
eram, por vezes, escondidas debaixo da terra, ao pé das cruzes fixadas pelos
evangelizadores: “ponian en los pies de las cruces, o en aquellas gradas de las
piedras, para alli hacer que adoraban a la cruz y adorar a el demonio, y querian allí
guarnecer la vida a su idolatria”124. Os especialistas rituais, os pipiltin e aqueles
sobre os quais recaia a responsabilidade de cuidar das efígies foram os grandes
responsáveis pela manutenção clandestina das devoções antigas e, até mesmo,
pela preservação de parte dos artefatos rituais.

123
Ibidem; GONZALBO AIZPURU, op. cit., 2008, p. 37; DUVERGER, op. cit., 1993, p. 104.
124
BENAVENTE, op. cit., 2007, trat. I, cap. 4, p. 34.
62

Os ataques aos teocalli e o afugentamento dos sacerdotes indígenas


aparecem de forma clara na documentação da época. Contudo, não se pode fazer
a mesma atribuição de transparência na verificação do uso de juízos eclesiásticos
no curto período entre a chegada dos primeiros franciscanos e o estabelecimento
da Inquisição episcopal de Juan de Zumárraga, no ano de 1536.

4. Atribuições e Controvérsia

Antes do estabelecimento de um tribunal de Inquisição, vinculado à sede


diocesana, pelo primeiro bispo do México, don frei Juan de Zumárraga, os juízos
eclesiásticos foram promovidos de forma autônoma pelo clero regular. Os frades
encarregados da evangelização dos novos súditos da Coroa espanhola exerceram
as funções jurídico-eclesiásticas no papel de juízes ordinários. A promoção desses
primeiros juízos ocorreu de forma pouco sistemática; por vezes, obedecendo os
rigores dos tribunais de Inquisição da Espanha, tanto na confecção de processos,
quanto na administração de penas. Mas, tais juízos também ocorreram de forma
bastante aleatória e informal, com pouca referência aos protocolos burocráticos
previstos. Essa última característica parece ter figurado de forma mais evidente nos
castigos aplicados à população indígena. Em consequência, ao contrário dos
procedimentos protagonizados por conquistadores, a tímida existência de fontes
que tratavam os juízos contra indígenas recém-batizados dificulta conclusões
precisas. A administração de punições públicas de caráter eclesiástico, entre os
anos de 1524 e 1536, chegaram até nós por meio dos relatos de cronistas e outras
fontes alheias aos inquéritos propriamente ditos.
O uso das funções atribuídas ao clero regular no que diz respeito aos
indígenas, em seu caráter de juízes eclesiásticos ordinários ou inquisidores, não é
63

simples de verificar. É comum afirmar – ante a bibliografia sobre o tema125 – que o


primeiro religioso a exercer funções inquisitoriais foi o frei Martín de Valencia, líder
da comitiva dos franciscanos, desembarcados em 1524. As considerações que
favoreceram as suspeitas em torno de Valencia foram amparadas, em grande parte,
na obra de frei Antonio de Remesal. Em sua Historia General de las Indias
Occidentales126, o cronista dominicano afirmou que Martín de Valencia havia
recebido uma comissão inquisitorial das mãos do dominicano frei Pedro de
Córdoba, que residia em Santo Domingo. O evento teria ocorrido na passagem de
Valencia pela ilha, quando seu grupo estava a caminho da costa mexicana:

[...] Cuando el año de 1524 pasó a México el padre fray Martín


de Valencia, con sus religiosos de San Francisco, Aún no era muerto el
padre fray Pedro de Córdova, y así por la autoridad de inquisidor que tenía,
le hizo comisario en toda la Nueva España, con licencia de castigar
delincuentes en ciertos casos, reservando para sí el inquisidor el
conocimiento de algunos más graves [...]127

As faculdades concedidas por Pedro de Córdoba estariam restritas à


chegada dos dominicanos, cujas funções inquisitoriais – atentando ao relato de

125
MEDINA, José Toríbio. La Primitiva Inquisición Americana (1493-1569). Santiago de Chile:
Imprenta Elzeveriana, 1914, caps. 6 e 7; GIBSON, C. Tlaxcala en el Siglo XVI. México: FCE, 1991,
pp. 45-48; GREENLEAF, Richard E. Zumárraga y la Inquisición Mexicana. México: FCE, 1992,
pp.11-22; GREENLEAF, Richard E. La Inquisición en Nueva España Siglo XVI. México: FCE,
1992b pp. 16-21; IBAÑEZ, Yolanda Mariel. El Tribunal de la Inquisición en México. México:
Porrúa, 1984, pp. 61-77; MORENO DE LOS ARCOS, Roberto. La inquisición para indios en Nueva
España (siglos XVI a XIX). In.: SARANYANA CLOSA, Josep I. (dir.). Evangelización y Teología en
América (siglo XVI). Panplona: Universidad de Navarra, 1990, pp. 1471-1484; MORENO DE LOS
ARCOS, Roberto. New Spain’s Inquisition for Indians from the Sixteenth to the Nineteenth Century.
In.: PERRY, M. E; CRUZ, A. J. (dir.) Cultural Encounters: the impact of the Inquisition in Spain and
the New World. Los Angeles: University of California Press, 1991, pp. 23-36; KLOR DE ALVA, J. J.
Colonizing Soul: the Failure of the Indian Inquisition and the Rise of Penitential Discipline. In.:
PERRY, M. E; CRUZ, A. J. (dir.) Cultural Encounters: the impact of the Inquisition in Spain and the
New World. Los Angeles: University of California Press, 1991, pp. 03-22; SOBERANES
FERNANDEZ, José L. La Inquisición en México Durante el Siglo XVI. In: Revista de la Inquisición,
Madrid, n. 7, pp. 283-295, 1998.
126
REMESAL, Antonio. Historia General de las Indias Occidentales y Particular de la
Gobernación de Chiapa y Guatemala. México: Editorial Porrúa, 1988.
127
REMESAL, op. cit., 1988, p. 59.
64

Remesal – eram implícitas: “la comición que el padre fray Pedro de Córdova dió al
padre fray Martín de Valencia, fué no más de hasta que llegasen a México los frailes
dominicos”128. Contudo, as afirmações do cronista não encontram respaldo em
outras fontes e estão em contradição com os relatos de outros cronistas.
Considerando os escritos do também dominicano frei Agustín Dávila
Padilla, pode-se observar que as atribuições mudam seu repouso de autoridade. Na
Historia de la Fundación y Discurso de la Provincia de Santiago de México 129, Dávila
Padilla denota que os poderes jurídico-eclesiásticos atribuídos aos franciscanos
foram portados, temporariamente, mediante a autoridade fornecida pela bula
Omnímoda. Segundo relata, “no había entonces Obispo en esta tierra, y por una
bula de Adriano VI tenia los casos episcopales y comisión apostólica para los casos
de Santo Oficio de la Inquisición el prelado de S. Francisco”130. As informações de
Dávila Padilla corroboram, de antemão, as informações dispostas na obra do
franciscano Gerónimo de Mendieta. Na História Eclesiástica Indiana também foi
encontrada a associação da autoridade episcopal portada pelos franciscanos às
bulas pontifícias:

[...] El padre Fr. Martin de Valencia [...] viendo que en estas


regiones aun no había otros prelados ni jueces eclesiásticos, y que se
comenzaban á ofrecer cosas que pedían remedio, compelido de la
necesidad y harto contra su voluntad, hubo de presentar los breves de
León X y Adriano VI, y fueron luego aceptados y recibidos por los oficiales
reales y cabildo de la ciudad, y él reconocido por prelado y juez
eclesiástico, y así comenzó á usar de su autoridad y jurisdicción [...]131

Retomando as primeiras atribuições inquisitoriais das Índias, verifica-se


que, em 1517, frei Francisco Jiménez de Cisneros delegou faculdades de inquisidor

128
Ibidem, pp. 59-60.
129
DÁVILA PADILLA, A. Historia de la Fundación y Discurso de la Provincia de Santiago de
México de la Orden de Predicadores por las Vidas de sus Varones Insignes y Casos Notables
de Nueva España. Bruxelas: Ivan de Meerbeque, 1625.
130
DÁVILA PADILLA, op. cit., 1625, p. 42.
131
MENDIETA, op. cit., 1993, liv, III, cap. XXXVII, p. 314.
65

aos bispos de Santa Maria, Santo Domingo e Concepción de la Vega. Dois anos
depois, don Alonso Manrique, cardeal de Tolosa, na Espanha, e inquisidor geral,
designou frei Pedro de Córdoba – que na época ocupava o cargo de vice provincial
da ordem dominicana nas Índias – e don Alonso Manso como inquisidores
apostólicos.132 No entanto, não existem traços do uso do cargo inquisitorial por parte
de Pedro de Córdoba. Como ressaltado pelo historiador José Toribio Medina, a
única evidência que auxiliaria as afirmações veiculadas por Antonio de Remesal
seria o documento de outorga do cargo de comissário do Santo Ofício a Martín de
Valencia.133 A referência de uma suposta comissão inquisitorial ostentada por
Valencia consta exclusivamente no relato do cronista dominicano. Ademais, não
existe qualquer comprovação de que Córdoba tenha passado a comissão a
Valencia, nem ao menos se possuía a disponibilidade para outorgar tal cargo. 134 Em
outras palavras, há carência de qualquer documentação oficial que vincule Valencia
à comissão mencionada por Remesal.
O erudito mexicano Joaquim García Icazbalceta comparou as
informações contidas em Dávila Padilla e Remesal em sua Bibliografia Mexicana
del Siglo XVI135. Para o autor, a exclusividade das informações de Remesal não
inspiraram muita confiança. Ainda assim, também parecia improvável a García
Icazbalceta que funções inquisitoriais estivessem baseadas na Omnímoda, uma vez
que não consta no texto da bula o respaldo específico para a promoção de juízos
eclesiásticos. O autor deixa claro que apenas uma comissão especial autorizaria
Martín de Valencia a exercer tamanha função. Mas, ainda que não conste
claramente na Omnímoda, García Icazbalceta denota que parece inevitável pensar
que as ordens franciscana, dominicana e agostiniana interpretavam a bula dessa
forma.136 As faculdades episcopais extraordinárias outorgadas careciam de
detalhamentos, deixando abertas as possibilidades de interpretação da bula.

132
MEDINA, op. cit., 1914, pp. 69-77.
133
Ibidem, p. 77.
134
Ibidem, pp. 96-108.
135
GARCIA ICAZBALCETA, J. Bibliografia Mexicana del Siglo XVI. México: FCE, 1981.
136
GARCIA ICAZBALCETA, op. cit., 1981, pp. 451-455.
66

Uma carta coletiva dos franciscanos, liderados por Martín de Valencia,


parece colocar um ponto final na questão. No dia 18 de janeiro de 1533, os Frades
Menores atribuíram, claramente, a jurisdição eclesiástica portada por eles e pelos
dominicanos às concessões pontifícias. O grupo relatou ao Imperador Carlos V que,

[...] Por virtud de los Breves de León y Adriano sexto, de bien


aventurada memoria que V.M. fué servido de mandar procurar para que
los frailes que residimos en estas partes, entretanto que no había Obispos,
pudiesen tener y ejercer la autoridad é jurisdicción eclesiástica in utroque
foro, como el Papa Adriano lo concedió á petición de V.M. para los frailes
de las ordenes mendicantes, especialmente á los de nuestra Orden de S.
Francisco, é así habíamos tenido y ejercitado la jurisdicción en cinco ó seis
años por virtud de los dichos Breves [...] ausí usadas sin contradicción
alguna por los de nuestra Orden y de la Orden de Sto. Domingo [...]137

Como indicado na correspondência, o uso das funções jurídicas foi


compartilhado nos primeiros anos da presença das ordens mendicantes e, ao que
tudo indica, “sin contradicción alguna”. A carta de Valência faz menção aos quatro
primeiros anos que seguiram a chegada de sua comitiva, em 1524.
O historiador Richard E. Greenleaf, ao investigar os inquéritos da época,
constatou a existência de expedientes processuais feitos entre os anos de 1526 e
1528. Em sua maioria, as inquirições foram feitas contra conquistadores, pelo crime
de blasfêmia, sem constar casos contra indígenas.138 Os documentos investigados
foram assinados pelos dominicanos Domingo de Betanzo e Vicente de Santa María.

137
GARCIA ICAZBALCETA, J. Nueva Colección de Documentos Para la Historia de México, vol
II: Códice franciscano, siglo XVI. México: Imprenta de Francisco Díaz de León, 1889, pp. 177-178.
138
Richard Greenleaf faz referências a um suposto processo contra um indígena identificado como
Marcos de Acolhuacan. O expediente processual estaria localizado no primeiro volume do fundo
Inquisición do Archivo General de la Nación, México (AGN, Inquisición, vol. 1). Contudo, parte
significativa do conjunto documental reunido neste primeiro volume do ramo de inquisición foi
mutilado, não constando mais nenhum vestígio do processo referido. A incompletude dos arquivos
foi mencionada pelo próprio Greenleaf que, por sua vez, baseou-se nas conclusões do trabalho de
José Toribio Medina. Infelizmente, tal fato impede qualquer verificação das informações veiculadas
por Greenleaf. Cf. GREENLEAF, op. cit., 1992a, pp. 20-21; MEDINA, op. cit., 1914, cap. 7, pp. 99-
128.
67

O cargo de inquisidor desempenhado pelos dois dominicanos contou com o auxílio


de Sebastián de Arriaga (no cargo de fiscal) e Rodrigo de Torres que ocupou o papel
de qualificador. A cooperação dos franciscanos aparece mediante as figuras de
Motolinía e Fuensalida.139
Essa “Inquisição Monástica”, como conceituou Greenleaf, culminou na
celebração de um auto de fé, em 1528. Os processos, empreendidos por frei
Domingo de Betanzos e Vicente de Santa María, necessitaram do auxílio dos
franciscanos. O contingente dominicano era reduzido e dependia dos Frades
Menores. O historiador Robert Ricard constatou que o número de doze frades de
Santo Domingo saídos da península havia sido reduzido para três, ao final de
1526.140 Os religiosos Domingo de Betenzos, Gonzalo Lucero e Vicente de las
Casas receberam reforços apenas com a chegada de Vicente de Santa María e
outros seis companheiros enviados, em 1528.141 Santa Maria tomou a frente dos
processos de forma consecutiva à sua chegada, sem, no entanto, deixar de contar
com o amparo dos franciscanos, como expressa o inquérito contra o conquistador
Rodrigo Rengel, cuja sentença foi desferida por Motolinía.142
Esses primeiros juízos geraram graves tensões políticas entre os
partidários de Hernán Cortés e os mendicantes. A breve atuação dos dominicanos
terminaria na queima de dois condenados na fogueira, Gonzalo de Morales e
Hernando de Alonso, acusados como judaizantes e vinculados ao grupo de
conquistadores que acompanhou Cortés em suas vitórias. Os aliados do
conquistador sentiram-se especialmente perseguidos pelos dominicanos. Os
conflitos gerados pelos procedimentos acabaram colocando Vicente de Santa Maria
em uma situação incômoda em meio ao conturbado cenário político. O dominicano
terminou sofrendo a revoga de seu cargo de vigário geral da ordem, após o auto de
fé de 1528.143

139
GREENLEAF, op. cit., 1992a, p. 21
140
RICARD, op. cit., 1994, pp. 85-87.
141
Ibidem, p. 86; DÁVILA PADILLA, op. cit., 1625, liv. I, cap. 15, pp. 48-49.
142
AGN, Inquisición, exp. 1, vol. 10.
143
GREENLEAF, op. cit., 1992a, p. 23.
68

A retirada de Santa Maria da liderança dos dominicanos evidenciou o


descontentamento das autoridades políticas devido às perseguições promovidas. O
afastamento definitivo dos frades de Santo Domingo dos assuntos inquisitoriais veio
em seguida com a chegada do primeiro bispo don frei Juan de Zumárraga. A
nomeação episcopal do franciscano retirou completamente a autoridade inquisitorial
das mãos dos demais mendicantes, tendo em vista os privilégios dispostos pela
bula Omnímoda e seu condicionamento à ausência de um bispo regional. O cargo
de bispo investiu Zumárraga, automaticamente, da autoridade de juiz eclesiástico
ordinário.144

5. Índices Punitivos

Os inquéritos contra indígenas não aparentam ter ocupado a formalidade


dos expedientes inquisitoriais, apesar dos rigores manifestos de forma consecutiva
à presença clerical. Apesar disso, a ausência de processos não significou a isenção
dos indígenas das penitências públicas ou execuções exemplares. Nesse ponto,
cabe ressaltar a distinção evocada por Jorge E. Traslosheros acerca das distintas
naturezas dos juízos empreendidos por eclesiásticos. A administração de punições
por delitos contra a fé não, necessariamente, caracterizava as ações do Santo
Ofício. Os castigos podiam ser promovidos a partir de juízos ordinários, mediante a
autoridade episcopal inerente aos bispos ou sob as investiduras especiais, como
observa-se na Omnímoda. Esses inquéritos eram constituídos de forma mais
simples, não prezavam pelo sigilo e não resguardavam as minúcias investigativas
da Inquisição. Eram os procedimentos judiciais específicos que dotavam de sentido
cada tribunal ou tipo de juízo empreendido. Embora exista a inclusão dos castigos

144
MARIEL DE IBÁÑEZ, op. cit., 1984, pp. 67-68.
69

tanto no Santo Ofício, quanto nas instâncias ordinárias – e, em suas diversas formas
– não eram eles os elementos propriamente distintivos. 145
Os documentos que apontam para punições, promovidas logo nos
primeiros anos da conquista espanhola, chamam a atenção para a região de
Tlaxcala. A cidade indígena, cujo apoio às tropas de Hernán Cortés nas guerras de
conquista foi decisivo no desenrolar dos eventos, também ajudou no assentamento
dos frades e na propagação do cristianismo. Tlaxcala proporcionou um dos
primeiros redutos franciscanos e, consequentemente, o primeiro campo de teste
para as concepções evangélicas da Ordem dos Frades Menores.146
Três cenas de especial relevância podem ser encontradas no códice
pictórico anexo à Descripción de la Ciudad y Provincia de Tlaxcala147, elaborada
pelo cronista mestiço Diego Muñoz Camargo. O sequenciamento completo das
imagens veiculadas pelo autor comporta 156 lâminas, que ressaltam o mundo
tlaxcalteca, a evangelização da região, a chegada de Hernán Cortés e as batalhas
empreendidas pelos conquistadores com o apoio dos guerreiros indígenas de
Tlaxcala. O corpus conta com inscrições nas partes superior e inferior de cada folha,
delimitando o sentido pretendido pelo autor da Descripción. Em meio a essa vasta
sequência imagética, três cenas chamam a atenção para o uso de castigos por
crimes de fé (figuras 1, 2, 3).148
As duas primeiras imagens (figuras 1, 2) encenam a execução de dois
indígenas, segundo as legendas anexas “uno de ellos porque hacía burla de
n[uest]ra s[an]ta fe” e outro “porque había reincidido en ser idólatra”. A terceira
imagem (figura 3) representa uma grande execução pública de nobres tlaxcaltecas.
Na descrição anexa ao quadro, consta a referência do enforcamento de seis nobres
indígenas, entre eles, cinco homens e uma mulher, “porque, de c[rist]ianos, tornaron
a idolatrar”. Outros dois, cujos status sociais não são mencionados, também podem

145
TRASLOSHEROS, Jorge E. El Tribunal Eclesiástico y los Indios en el Arzobispado de México,
Hasta 1630. In.: Historia Mexicana. México, v. 51, n. 3, p. 485-516, mar., 2002, pp. 507-508.
146
GIBSON, C. op. cit., 1991, pp. 45-48.
147
ACUÑA, René (editor). Relaciones Geográficas del Siglo XVI: Tlaxcala. México: UNAM, 1984.
148
ACUÑA, op. cit. 1984, quadros 11,12 e 14, fs. 241r, 241v, 242v.
70

ser vistos, e, apesar de não constarem referências precisas de seus delitos, é


possível deduzir o vínculo com práticas heréticas, devido ao uso da palavra
“pertinaces” que se encontra na descrição do quadro. O termo era comum aos juízos
eclesiásticos no intuito de referenciar àqueles indivíduos que permaneciam sem
arrependimento ou reincidiam nas acusações que lhes eram imputadas.
A obra de Diego Muñoz Camargo foi elaborada sob ordens da
administração espanhola e entregue ao rei Felipe II, entre 1583 e 1585, em uma
expedição da embaixada de Tlaxcala à Espanha. O texto alfabético e as lâminas
anexas ao final da obra não apresentam interdependência. As poucas e breves
menções às imagens no corpo do texto escrito supõem uma relação complementar,
sem criar entre os dois blocos uma relação de pressuposição.149 Como alertado pelo
pesquisador Travis B. Kranz, o códice pictórico não pode, de forma alguma, ser visto
como uma ilustração do manuscrito ao qual foi anexo.150
As imagens remontam à tradição indígena pictórica pré-conquista, que
perdurou mesmo após a introdução da escrita alfabética. Durante o século XVI,
essas e outras representações imagéticas da conquista tiveram um papel
fundamental na reivindicação de privilégios diante da Coroa espanhola. A produção
pictórica em Tlaxcala tinha como intuito garantir a isenção de tributos e outras
concessões nobiliárias. Os nobres indígenas da região reivindicaram –
principalmente a partir da década de 1550 – seus direitos mediante a evocação do
auxílio militar prestado aos espanhóis nas guerras de conquista. Esse palco de
reivindicações marca a composição, tanto do texto escrito, quanto do conjunto
pictórico. O enaltecimento da participação indígena junto aos empreendimentos
espanhóis e, consequentemente, a exclusão ou minimização das resistências
indígenas são características recorrentes nessa composição. Em resumo, para criar

149
MARTÍNEZ, Andrea. Las Pinturas del Manuscrito de Glasgow. In: Estudios de Cultura Náhuatl.
México, n. 20, pp. 141-162, 1990, pp. 143-157.
150
KRANZ, Travis B. Visual Persuasion: Sixteenth-Century Tlaxcalan Pictorials in Response to the
Conquest of Mexico. In.: SCHROEDER, Susan (Edit.). The Conquest All Over Again. Canadá:
Sussex Academic Press, 2011, pp. 53-54.
71

maior ressonância à sua pauta política, os tlaxcaltecas velaram qualquer resistência


ao governo espanhol, ao mesmo tempo em que exaltavam sua adesão ao
cristianismo.151
Os traços político-culturais que deram forma às imagens da Descripción
não foram exclusivos da obra de Muñoz Camargo. Ademais, os quadros possuem
referências em comum com outras imagens tlaxcaltecas, que retrataram a conquista
e a conversão ao cristianismo. O exemplo mais pujante é sua vinculação ao
conjunto imagético conhecido como Lienzo de Tlaxcala – terminologia usada na
historiografia para designar as primeiras pinturas, em papel ou tela, realizadas por
indígenas tlaxcaltecas, na segunda metade do século XVI, para descrever sua
colaboração com Hernán Cortés na conquista de Mexico-Tenochtitlan e outros
territórios.152
Oitenta cenas, das 152 dispostas na Descripción, foram representadas
de forma semelhante ao Lienzo de Tlaxcala. Não se trata, propriamente, de uma
cópia do conjunto original do Lienzo, mas de um vínculo referencial. As imagens da
Descripción evocam parte do arcabouço pictórico consolidado nos repertórios
indígenas sobre a conquista. A inteligibilidade dessas narrativas pictóricas,
verdadeiras “persuasões visuais”, como demonstrou Travis B. Kranz, demanda a
compreensão com relação às suas próprias variações. As cenas repetiam, excluíam
e modificavam suas características representativas, obedecendo aos intuitos
políticos das elites locais. Em outras palavras, as imagens se transformaram
conforme os principales indígenas encontravam argumentos mais efetivos para
reivindicar seus privilégios e status quo, baseando-se nos papéis de partícipes da
conquista.153
A defesa dos objetivos tlaxcaltecas dependia de negociações constantes
com os particulares espanhóis, porém, antes de tudo, deveria garantir um pacto
superior com a autoridade real. A questão fundamental que motivava os nobres

151
KRANZ, op. cit., 2011, p. 54; MARTÍNEZ, op. cit., 1990, pp. 143-144.
152
MARTINEZ, op. cit., 1990, p. 143.
153
KRANZ, op. cit., 2011, p. 59.
72

indígenas era a preservação da autonomia da província indígena de Tlaxcala, isenta


de cabildo espanhol e com controle efetivo de seu território. Essa particularidade
deixa transparecer a ênfase dada ao relato imagético e, consequentemente, seu
aporte político.154
A evangelização da região de Tlaxcala e sua cooperação com a
implantação do cristianismo, tanto na conversão, quanto na erradicação das
“idolatrias”, encontra um destaque especial na Descripción.155 As lâminas da obra
são únicas em sua retratação dos primeiros anos da evangelização, mostrando a
queima de atavios e templos, a imposição de roupas mais pudicas e o castigo para
os que se desviavam do ensino dos regulares franciscanos.156
A primeira cena punitiva (figura 1) destaca o enforcamento de um jogador
de patolli, após proferir algumas ofensas contra o cristianismo. Logo abaixo de seu
corpo pendido, queima o característico tabuleiro do jogo, distinguível pelas divisões
numéricas que respeitam uma antiga forma ritual (4 x [4+9] = 52). Os jogadores
chamaram a atenção dos evangelizadores devido às características rituais
vinculadas ao jogo. Eram comuns a realização de oferendas e a evocação de
divindades na prática do patolli, assim como em outros jogos nahuas. Para o caso
específico do jogo de tabuleiro, eram feitas ofertas de pulque (octli) e enaltecida a
divindade Macuilxochitl, associada, entre outras atribuições, ao jogo. A divisão do
tabuleiro, desenhado em forma de cruz sobre uma esteira de fibra vegetal (petate),
fazia referência às quatro direções cósmicas no pensamento nahua. A
movimentação das pedras, de forma ascendente, descendente e completando o
ciclo das “casas” demarcadas nos quatro lados, insinuava a circulação das forças
sagradas responsáveis pela vida.157

154
Ibidem, p. 65; MARTÍNEZ, op. cit., 1990, p. 159.
155
ACUÑA, op. cit. 1984, fs. 238r-243r.
156
BROTHERSTON, Gordon; GALLEGOS, Ana. El Lienzo de Tlaxcala y el Manuscrito de Glasgow.
In: Estudios de Cultura Náhuatl. México, n. 20, pp. 117-140, 1990, p. 134.
157
ESCALANTE GONZALBO, Pablo. La casa, el cuerpo y las emociones. In: _______________.
(coord.). Historia de la Vida Cotidiana en México I: Mesoamérica y los ámbitos indígenas de la
Nueva España. México: FCE; ECM, 2004, pp. 253-254; BROTHERSTON; GALLEGOS, op. cit., 1990,
p. 134.
73

1. Jogador de patolli enforcado por zombar do cristianismo

“I[n] nican quipilloque patoh” (Aqui [está como] enforcaram o jogador)

“Disipación de los juegos y tahurerías de los jugadores, y fue justiciado uno de ellos porque hacía
burla de n[uest]ra s[an]ta fe, por mandado de Cortés.”
74

2. Nobre tlaxcalteca enforcado por idolatria


“Quipilloque mostlauhqui” (Enforcaram-no na manhã do dia seguinte)

“Justicia que se hizo de un cacique de Tlaxcala porque había reincidido en ser idólatra; habiendo
sido cr[ist]iano, se había ido a unas cuevas a idolatrar.”
75

3. Enforcamento e queima de nobres tlaxcaltecas

“I[n] nican quinpilloque tlahtoque” (Aqui enforcaram os senhores)


“quintlatique” (Queimaram)

“Justícia grande que se hizo de cinco caciques muy prin[cipa]les de taxcala, y una mujer, señora de
aquella tierra, porque, de c[rist]ianos, tornaron a idolatrar, y dos, demás destos, fueron quemados
por pertinaces, por man[da]do de Cortés [y] por consentim[ient]o y beneplacito de los c[uatr]o
s[eñor]es, y, com esto se arraigó la doctrina c[rist]iana.”
76

À esquerda do enforcado, aparece um grupo de nobres indígenas. Trata-


se de uma clara referência aos senhores que governavam a região de Tlaxcala. A
posição social ocupada pelos indivíduos foi evidenciada nas roupas adornadas e de
fino trato.158 A cobertura pélvica (maxtlatl159) e o manto (tilmatli160) portado pelos
personagens trazem adornos usados pela nobreza indígena. As distinções de
indumentárias entre os pipiltin e os macehualtin foram denotadas no mundo nahua
a partir da qualidade dos tecidos usados e não tanto pela diferenciação dos tipos de
vestimenta. As sandálias também podem ser incluídas nos distintivos das elites
indígenas, ainda que não sejam exclusivas desse tipo social, e os macehultin são
frequentemente retratados descalços.161
A presença das autoridades locais indica que a execução foi feita com o
consentimento e aprovação dos líderes. O gestual do nobre mais sobressalente
indica (com a mão esquerda) o enforcamento dos jogados de patolli e a queima do
tabuleiro (com a mão direita).
Ao centro da imagem, encontra-se uma fogueira que incinera as
vestimentas indígenas. A queima das roupas é complementada pelas duplas de
personagens laterais que indicam o corte de cabelo feito após a dissolução do jogo
de patolli. A imposição de cortes de cabelo e roupas ocidentalizadas, mais pudicas
na visão dos espanhóis e conquistadores, fizeram parte da normatização moral que
o processo de conquista trouxe consigo. No topo da cena, a punição do jogador
indígena constitui o elemento de persuasão diante dos envolvidos no jogo de patolli.
Ao mesmo destino foi sujeitado um nobre tlaxcalteca, executado após ser
flagrado prestando ritos sacrificiais em uma caverna (figura 2). A composição da

158
As vestimentas de um pilli e de um macehual eram muito similares; as diferenças estavam
vinculadas à qualidade dos materiais empregados, na sua decoração e no comprimento. Cf.
ESCALANTE GONZALBO, op. cit., 2004, p. 238.
159
Lenço que rodeia o quadril, passando entre as pernas e deixando suas duas extremidades
penduradas à frente e atrás da pélvis. As referências em castelhano podem aparecer como “calzón”,
“braguero” ou “taparrabos”.
160
Tilmatli ou tilma era um manto de tecido cumprido usado com uma amarração entre duas pontas
e envolvendo o restante do corpo. Seu uso mais refinado era a cobertura dos dois ombros e a
passagem de parte do manto por debaixo da axila era vinculada aos macehualtin. O nó que
sustentava o tilmatli sobre o corpo nunca deveria passar pela axila, sinônimo de má educação.
161
ESCALANTE GONZALBO, op. cit., 2004, pp. 238-239.
77

cena está dividida em dois tempos, a retratação da “idolatria” e a execução do


castigo – “na manhã do dia seguinte”. Bem como na execução do jogador de patolli,
a identificação dos agentes sociais representados é detectável por suas
vestimentas. Os nobres indígenas retratados à esquerda do quadro compõem um
sentido semelhante ao anterior (figura 1) de aprovação e consentimento na
execução administrada.
O protagonista, por sua vez, foi evidenciado tanto no ato ritual (à direita
da imagem), quanto em seu enforcamento, no topo da retratação. A cena nos
mostra o nobre indígena depositando seu próprio sangue, anunciado por uma
gotícula sobre o dedão de sua mão esquerda, que, possivelmente, repousaria nos
ramos que porta em sua outra mão. Abaixo, aos pés do indígena, está uma codorna
enjaulada destinada ao sacrifício, geralmente, com fins divinatórios.162
A atitude punida com o enforcamento era uma demonstração de grande
disciplina e devoção de muitos sacerdotes e nobres indígenas. O autossacrifício
tinha um valor especial na constituição do caráter dos indivíduos, prática associada
a Quetzalcóatl, o deus penitente por excelência.163 O autossacrifício não tinha a
transcendência social do sacrifício público de cativos de guerra, todavia, tratava-se
de algo mais frequente e amplamente difundido entre os membros das elites
nahuas. Tal prática estava associada à força criadora, ao mando, à sobriedade e a
outros fatores fundamentais dentro do pensamento nahua, para as atividades de
liderança e governo. O rito fazia do corpo um elemento propiciatório e com ele se
recuperava a energia vital que mantinha a ordem do universo; era um compromisso
humano perante os deuses. Normalmente, era realizado ao amanhecer e, como
posto no quadro destacado, tinha como palco locais mais reservados, como a
caverna (“cueva”), cujas paredes exteriores foram desenhadas envolvendo o
indígena depois executado. 164

162
BROTHERSTON; GALLEGOS, op. cit., 1990, p. 134.
163
LÓPEZ AUSTÍN, Alfredo. Hombre Dios: religión y política en el mundo náhuatl. México: Instituto
de Investigações Históricas, UNAM, 1973, pp. 147-149.
164
ÁVILA SANDOVAL, Santiago. La vida del último tlatoani mexica. In: ESCALANTE GONZALBO,
Pablo. (coord.). Historia de la Vida Cotidiana en México I: Mesoamérica y los ámbitos indígenas
de la Nueva España. México: FCE; ECM, 2004, pp. 290-291.
78

Ainda na figura 2, pode ser observado um frade facilmente distinguível


pelo hábito que porta. A presença do franciscano aparece na parte inferior da cena,
na mesma altura do indígena que havia se recolhido em uma caverna. Em uma das
mãos, o regular sustenta o texto bíblico e com a outra parece denunciar a atitude
do senhor tlaxcalteca, evidenciando a desaprovação do ato que culminaria no
enforcamento. Com a cabeça levemente inclinada para cima, o frade pronuncia seu
olhar em direção à forca. Juntos, o gesto manual e o olhar fazem a ligação entre os
dois tempos da imagem, vinculando o indivíduo na caverna à sua posterior punição.
A presença de evangelizadores também pode ser verificada na terceira cena
punitiva destacada (figura 3).
O quadro em destaque traz a execução de oito indígenas, no que parece
ser o desfecho da promoção pública de um auto de fé. Dois franciscanos são
representados, assim como, um funcionário da Coroa portando a vara de justicia,
insígnia de autoridade e jurisdição que traziam os ministros de justiça e outros
funcionários civis. A figuração demonstra o envolvimento das instâncias civis e
eclesiásticas em um ato cooperativo. Os gestos pronunciados pelas mãos apontam
para dois indígenas que padecem na fogueira e insinuam, bem como na cena
anterior (figuras 2), a instrução das execuções. A fogueira que consome os
indígenas está intrinsecamente associada ao crime de heresia, sobretudo, aos
acusados como reincidentes e impenitentes. Esse caráter condenatório, como
destacado anteriormente, aparece insinuado nas legendas que distinguem os
elementos do quadro: “fueron quemados por pertinaces”.
Na margem superior do quadro, outros seis indígenas são representados
enforcados, cinco homens enfileirados e uma mulher apartada dos demais. Os sete
homens indígenas que figuram na imagem são retratados pendurados com os
tilmatli envoltos na cintura, ao contrário dos quadros anteriores (figuras 1, 2), onde
apenas o maxtlatl aparece. O destaque também pode ser observado nos dois
condenados à fogueira. Trata-se de um detalhe curioso, utilizado pelo autor da cena
para enfatizar o caráter de nobreza dos indivíduos penitenciados. Mais uma vez, os
adornos das vestimentas insinuam o refinamento dos tecidos e o status de seu
79

portador. Ao lado dos enforcados, destaca-se uma figura feminina, apartada dos
demais e distinguível pelo uso do cueitl165 e do huipil166. Os cabelos da mulher
indígena aparecem cumpridos e soltos, pendendo junto à cabeça, sinal que sugere
uma atribuição de indecência. As mulheres indígenas procuravam manter seus
cabelos presos. O uso dos cabelos soltos era amplamente mal visto, como é
possível notar em retratações da deusa Ixnextli, arquétipo da mulher libertina.167
As cenas punitivas incluídas na Descripción de Diego Muñoz Camargo
foram, ocasionalmente, associadas às execuções promovidas por frei Martín de
Valencia.168 Em grande parte, a correlação foi estabelecida devido ao período que
o franciscano esteve a cargo da região de Tlaxcala, entre os anos de 1527 e 1530.169
Apesar de não constar uma menção direta a Valencia, a associação cronológica
parece inevitável. No relato imagético, os três quadros destacados (figuras 1, 2, 3)
ocupam o espaço dos primeiros anos de contato entre evangelizadores e indígenas.
Além disso, qualquer juízo eclesiástico administrado na época deveria passar pela
autoridade de Valencia, uma vez que o franciscano era responsável pela região e
detinha a liderança dos frades de São Francisco.
Outra notação documental que contribui para pensar em juízos
promovidos pelo líder dos franciscanos foi levantada pelo historiador Charles
Gibson. O autor constatou referências às execuções promovidas por Martín de
Valencia nos “Anales de Tlaxcala y Puebla”170. Esse conjunto documental traz uma
breve notícia referente ao ano de 1527, no qual constam os nomes de indígenas
penalizados pelos franciscanos: “en este año mando colgar el padre de Tlaxcala
Fray Martín de Valencia al caballero Tecamaxcuicuiltzin, Acxotecatl, Texopanecatl,

165
Consistia em um lenço envolto na cintura das mulheres que recaia até os tornozelos.
166
O huipil ou huipilli era um camisão usado na parte superior do corpo das mulheres, podendo
chegar a cobrir toda a parte superior do cuéitl.
167
ESCALANTE GONZALBO, op. cit., 2004, pp. 245-247.
168
A correlação entre as imagens e execuções promovidas por Valencia foi especialmente destacada
por MORENO DE LOS ARCOS, op. cit., 1991, pp.23-36 e KLOR DE ALVA, J. J. op. cit., 1991, pp.
03-22.
169
GIBSON, C. op. cit., 1991, p. 45
170
Ramírez, José F. Anales Antiguos de México y sus Contornos. CA, 273, vol. 2, n. 18.
80

Tlaloltzin”171. Os Anales formam apenas um panorama cronológico, notando


acontecimentos em uma lista sucessiva. Segundo Gibson, parece não haver dúvida
da promoção de execuções a mando de Valencia, ainda que as fontes sejam pouco
esclarecedoras quanto aos trâmites específicos empregados nos juízos.172
A breve menção dos Anales parece se aliar facilmente às imagens da
Descripción. Contudo, a documentação que forma os “Anales de Tlaxcala y Puebla”
foi elaborada com uma distância cronológica significativa das execuções que
referencia. Confeccionados entre os séculos XVII e XVIII, os Anales não estão
isentos de imprecisões cronológicas e factuais; ao contrário, parece ser uma de
suas características fundamentais. Sua escrita remete a um círculo fechado de
indígenas, que foram responsáveis pela continuidade do trabalho de escrita e por
copiar as antigas memórias. Os exercícios de mnemônica tradicional e a consulta
dos escritos ancestrais caracterizam a criação desse corpus, o qual pressupõe,
igualmente, um interlocutor bastante distinto do explicitado na Descripción. O
documento estava voltado para o restrito grupo de sua própria criação. Seus intuitos
eram de preservação de uma história/memória particular, repassada, por sua vez,
de geração em geração, sendo recitada e recopiada, época após época, sem o
envolvimento dos agentes espanhóis.173
Os dois conjuntos documentais remetem a eventos ocorridos na região
de Tlaxcala, mais ou menos na mesma época. Porém, apenas os Anales fazem
referência direta a Valencia, fornecendo uma datação específica e os nomes dos
condenados que foram executados. Tampouco, a quantidade de indígenas
executados se assemelha nos dois relatos. Enquanto as lâminas da obra de Muñoz
Camargo trazem três execuções distintas, os Anales reportam apenas uma
execução coletiva, que parece comparável, em última instância, com uma das cenas

171
Idem.
172
GIBSON, op. cit., 1991, pp. 45-48.
173
KRUG, Frances; TOWNSEND, Camilla. The Tlaxcala-Puebla Family of Annals. In: LOCKHART,
J; SOUSA, L; WOOD, S. (eds.). Sources and Methods for the Study of Postconquest
Mesoamerican Ethnohistory, provisional version. Disponível em:
http://whp.uoregon.edu/Lockhart/KrugTownsend.pdf (consultado 14/01/2014).
81

destacadas da Descripción (figura 3). Ainda assim, o número de indígenas


executados varia entre quatro e oito.
Complicando os vínculos entre as duas documentações, as atribuições
que indicam a responsabilidade da promoção dos juízos são distintas nos dois
casos. No caso reportado pelos Anales os castigos foram atribuídos a Valencia. No
texto escrito da crônica de Muñoz Camargo é possível encontrar uma curta
remissão ao códice imagético anexo à Descripción, onde foi explicitado o
ordenamento das execuções aos mandos de Hernán Cortés:

[...] algunos prin[cipa]les se mostraron duros y pertinaces,


que, con haberse bautizado, tornaron a reiterar en su gentilidad y antiguo
uso de idolatrar: y murieron por ello ahorcados, por mandado de Cortés y
por consentimiento de la señoría de Tlaxcala, que fueron los que irán
señalados por dibujo.174

Não obstante, por mais difícil que seja atrelar os dois relatos a um mesmo
evento, a Descripción e os Anales emergem como índices importantes para pensar
na existência e na promoção de juízos eclesiásticos nos primeiros anos da
evangelização do México. É verdade que tanto as cenas destacadas, quanto a
breve menção dos Anales informam mais sobre as características dessas elites
locais (em diferentes épocas) que a respeito de medidas detalhadas da implantação
do cristianismo no mundo indígena.175 Ainda assim, ambas as fontes fazem
referência a eventos específicos, que podem ser tomados como elementos para a
composição de suposições. Tal qual proposto pelo historiador Carlo Ginzburg,

174
ACUÑA, René (editor). Relaciones Geográficas del Siglo XVI: Tlaxcala. México: UNAM, 1984,
p. 264 (212v). Referência semelhante pode ser verificada nas legendas que acompanham as
imagens destacadas (figuras 2, 3).
175
KRANZ, Travis B. Sixteenth-Century Tlaxcalan pictorial documents on the conquest of Mexico. In:
LOCKHART, J; SOUSA, L; WOOD, S. (eds.). Sources and Methods for the Study of
Postconquest Mesoamerican Ethnohistory, provisional version. Disponível em:
http://whp.uoregon.edu/Lockhart/Kranz.pdf (consultado 14/01/2014), p. 19.
82

tomando os rumos de um pensamento indiciário, é possível delimitar certa


aproximação.176
As imagens da Descripción e os Anales chamam a atenção para
plausíveis investidas violentas contra os indivíduos que se recusavam a abdicar de
suas devoções, de forma sincrônica à chegada dos evangelizadores. Nota-se, no
mesmo sentido, que a remissão cronológica ao período em que Martín de Valencia
ocupava o cargo de guardião em Tlaxcala é bastante verossímil. O período coincide
com a presença dos franciscanos e, como já citado, amparados pela bula
Omnímoda, os evangelizadores atribuíram-se plenas faculdades para promover
juízos de fé. Uma possibilidade a ser cogitada em torno da promoção de juízos por
crimes contra a fé, insinuada nas duas fontes destacadas, também pode apontar
para inquéritos levados a cabo pelo governo civil, como destaca o manuscrito de
Muñoz Camargo – “por mandado de Cortés”. Além de autorizar e incentivar a
destruição de templos, estátuas e quaisquer objetos que pudessem fazer remissão
às devoções autóctones, as Leyes de Indias autorizavam a administração de
castigos e penas contra as populações indígenas. Ao contrário do que se pode
pensar, os evangelizadores não conservaram o monopólio jurídico na aplicação de
penas contra a heterodoxia indígena. 177
Apesar das tentativas franciscanas para manterem a exclusividade na
administração jurídica dos neófitos, suas petições foram cedo negadas pelos
funcionários da Coroa espanhola. As restrições impostas pela Coroa podem ser
verificadas nas Actas del Cabildo de la Ciudad de México, em sua referência ao ano
de 1525. Na época, foi registrado um pedido de reconhecimento de atribuições
jurídico-civis aos franciscanos. Martín de Valencia e Toríbio Motolinía, assumiram o
pleito e reivindicaram sua autoridade perante o cabildo, todavia, sem lograr os frutos
desejados com a iniciativa:

176
GINZBURG, Carlo. Sinais: raízes de um paradigma indiciário. ________________. Mitos,
Emblemas e Sinais: morfologia e história. São Paulo: Companhia das Letras, 2009, pp. 143-179.
177
Para uma abordagem concisa das ações do governo civil a respeito da heterodoxia indígena, ver:
TAVÁREZ BERMÚDEZ, David. Las Guerras Invisibles: devociones indígenas, disciplinas y
disidencias en el México Colonial. México: CIESAS, 2012, pp. 68-69.
83

Fray Martin de Valencia fraile del monasterio de Señor San


Francisco e Frey Toribio guardián del dicho monasterio en su nombre
diciéndose Vice-episcopo en esta nueva España no solamente entiende en
las cosas tocantes a los descargos de conciencia mas aun entremete en
usar de jurisdicción civil e criminal [...]178

Os dois franciscanos apresentaram duas cédulas reais no intuito de


proceder ao seu cumprimento, e nos conteúdos eles afirmavam sustentar o direito
de exercerem a jurisdição civil. Contudo, a verificação das cédulas por parte dos
funcionários reais acabou não favorecendo os desejos de Valencia e Motolinía. O
pleito foi negado, alegando que as bulas não resguardavam direitos tocantes às
questões civis – “por ellas [bulas] no consta ni parece que su magestad les de
facultad para husar de jurisdicion ninguna”179. Os franciscanos pareciam
superestimar as atribuições que haviam recebido anos antes.
Mesmo com a separação dos evangelizadores da jurisdição civil, mostra-
se pouco conclusiva uma atribuição mecânica dos possíveis eventos meramente às
instâncias reais. Os momentos representados nas cenas destacadas da
Descripción ressaltam o cumprimento das sentenças. E, apesar da afirmação de
Muñoz Camargo, que remete o mando das execuções a Hernán Cortés, o destaque
do cronista pode estar relacionado com os executores da pena, que respondiam
aos comandos do conquistador, o que explicaria, em grande parte, a presença da
autoridade civil no terceiro quadro destacado (figura 3). Como de costume aos
juízos eclesiásticos, ainda que as investigações e os castigos fossem ditados pelos
clérigos, a administração de penitências físicas e a execução dos condenados
estavam a cargo do governo civil. Grosso modo, não parece improvável que os
autores das legendas dispostas nas imagens possam ter ignorado a natureza dos
procedimentos que ditaram a sentença capital para os indígenas tlaxcaltecas. Do

178
Primer Libro de Actas. In.: Actas de Cabildo de la Ciudad de México. México: Ignacio Bejarano,
1889, p. 49.
179
Primer Libro de Actas, op. cit., 1889, p. 50.
84

contrário, seria demandar uma acuidade de representação jurídica alheia aos fins
da própria Descripción.
É digno considerar – principalmente quando se olha para as três imagens
da Descripción – a referência a vários eventos ocorridos em uma mesma época.
Por um lado, é difícil determinar a atribuição das condenações seja a Cortés ou a
Valencia. Ou mesmo qual seria o teor de ficcionalidade das cenas retratadas. Por
outro lado, soa imprudente ignorar que a documentação, mesmo fragmentada e
imprecisa, configura um índice para pensar sobre possíveis medidas violentas
contra as devoções indígenas. Acima de tudo, os documentos proporcionam um
olhar específico para os primeiros anos da evangelização, focado em um caráter
mais combativo dos frades.
Insinua-se uma dinâmica que anunciava cedo a tendência de castigar os
indígenas convertidos, não apenas com o uso de coerções simples e informais, mas
também, no apelo a coerções jurídicas que culminaram em execuções,
expressando a grande preocupação dos evangelizadores em reprimir os
comportamentos indesejados para a formação dos novos súditos cristianizados da
Coroa espanhola. Compunha-se um prelúdio aos esforços de extirpação herética,
que vigoraram após a chegada do primeiro bispo do México, frei don Juan de
Zumárraga.
85

II
O INQUISIDOR E O TRIBUNAL EPISCOPAL

“(...) Venido a la Nueva España, como


era el santo obispo tan celoso de la
honra de Dios, y viese la tierra muy
disoluta en costumbres, sin temor de la
justicia divina, procuró reformarla con
todo su posible (…)”
(Frei Jeronimo de Mendieta)
86

1. Frei Juan e o imperador

A chegada de don frei Juan de Zumárraga iniciou a consolidação dos


esforços franciscanos em seu estabelecimento. A entrada do bispo ao “al campo y
a la batalla”180, como destacado por frei Martín de Valencia, fortaleceu as demandas
dos regulares de sua ordem e intensificou a perseguição às devoções indígenas.
Diferente de seus antecessores, o bispo exerceu plenas funções de inquisidor,
organizando junto à casa episcopal um tribunal de Inquisição. O franciscano não
poupou forças para a criação de seu episcopado, ao mesmo tempo em que
acomodava uma pequena estrutura para o Santo Ofício, no intuito de manter os
rigores que prezava na Península. Cabiam ao bispo a gerência dos evangelizadores
e a manutenção da ortodoxia dos habitantes das novas posses da Coroa
Espanhola.
Zumárraga completara seu sexagésimo aniversário quando foi
designado, em 1528, para ocupar o cargo de primeiro bispo do México. O
franciscano nasceu na região de Durango, em Vizcaya, e havia passado toda uma
vida junto à Ordem dos Frades Menores. Ao que tudo indica, foi ordenado no
convento de Nossa Senhora de Aránzazu, na região da Cantábria. Antes de seu
primeiro contato com o Novo Mundo, o vizcaíno ocupou por anos o cargo de
guardião do convento de Abrojo, onde teve a oportunidade de conhecer o imperador
Carlos V, no ano de 1527. A ilustre ocasião deu-se na semana santa, quando o
monarca decidiu permanecer recluso com os franciscanos da região. O encontro
com o imperador alterou de forma inesperada o curso da vida de Zumárraga.181

180
Carta de fray Martín de Valencia y otros religiosos al emperador. In.: GARCIA ICAZBALCETA, J.
Nueva Colección de Documentos Para la Historia de México: Códice franciscano, siglo XVI.
México: Editorial Salvador Chávez Hayhoe, 1941, p. 164.
181
As informações biográficas sobre Juan de Zumárraga antes de sua designação para ocupar o
cargo de primeiro bispo do México são escassas. Algumas especulações e associações, quanto a
esse período, foram feitas por seu biógrafo Joaquim García Icazbalceta (GARCÍA ICAZBALCETA,
J. Don Fray Juan de Zumárraga. México: Ed. Porrúa, 1988.), cuja obra permanece como o estudo
mais expressivo sobre a vida do franciscano. Outras informações biográficas podem ser encontradas
em GREENLEAF, Richard E. Zumárraga y la Inquisición Mexicana. México: FCE, 1992a;
MENDIETA, Gerónimo de. História Eclesiástica Indiana. México: Ed. Porrúa, 1993, Libro V, Cap.
87

Para frei Jerónimo de Mendieta, o biógrafo mais antigo de Zumárraga, a


rápida estadia de Carlos V foi suficiente para despertar uma grande admiração no
monarca pela “singular devoción” e o zelo impecável do guardião de Abrojo. O
apreço do monarca favoreceu o convento “con muy larga limosna”. Segundo
Mendieta, a contribuição do imperador foi redistribuída aos pobres por Zumárraga,
sem fazer uso dos benefícios que a visita real proporcionara. A notícia chegou ao
conhecimento de Carlos V, rendendo um maior apreço pela figura do monge
franciscano.182
A firmeza que a imagem do guardião inspirava levou o imperador a lhe
propor uma comissão inquisitorial:

[...] Siendo [Zumárraga] guardián de la religiosa casa del


Abrojo, cerca de Valladolid, tuvo allí una Semana Santa el cristianísimo
Emperador Cárlos V, nuestro rey y señor [...] el cual como viese al siervo
de Dios celebrar los oficios de aquella semana con singular devoción y
gravedad, y contemplase en él toda religión, reposo, santidad y
mortificación en su persona, lo tuvo de allí adelante en mucho precio y
estima, y desde a poco tiempo hizo que le fuese encomendado el oficio de
la santa inquisición [...].183

Tratava-se da outorga de um cargo de confiança. Juan de Zumárraga


deveria investigar os rumores de bruxaria que agitavam a região de Vizcaya e
encontrar uma resolução adequada para o incidente. Após aceitar o cargo, o
franciscano deixou a quietude do convento ao lado de frei Andrés de Olmos, um
antigo companheiro de hábito que, um ano depois, também iria acompanhá-lo rumo
ao Vale do México.

XXVII, pp. 629-638; The Americas: A Quarterly Review of Inter-American Cultural History, Special
Issue Dedicated to the Memory of Don Fray Juan de Zumárraga, First Bishop and Archbishop of
Mexico, Washington, vol. 5, n. 3, pp. 256-345, Jan., 1949; CARREÑO, Alberto M. Don Fray Juan de
Zumárraga: teólogo y editor, humanista e inquisidor. México: Editorial Jus, 1950.
182
MENDIETA, op. cit., 1993, Libro V, Cap. XXVII, p. 629.
183
Idem.
88

Os incidentes de bruxaria foram denunciados em Navarra e chamaram a


atenção das autoridades locais após o relato de duas jovens que afirmaram ter
participado de “rituais satânicos” com outras “bruxas”. Algumas informações acerca
dos rumores foram registradas por frei Prudencio de Sandoval, cronista da vida e
feitos de Carlos V. Segundo o autor, as jovens afirmaram que eram “brujas en
compañía de otras muchas de este ofício”184. Em troca do perdão por haverem
participado dos rituais, as duas meninas ofereceram a delação de outros indivíduos
de igual estirpe. “En presencia de los dichos oidores dijeron, que si las perdonaban
de cierto delito y maleficio que habian hecho, ellas dirian y acusarian muchos y
muchas delincuentes de hechos muy abominables, dignos de castigo.”185 As
condições impostas pelas duas jovens foram aceitas, e o desenrolar dos
acontecimentos demandaram a nomeação de um inquisidor para investigar e
processar os casos que viessem à tona e que parecessem pertinentes. A efetiva
resolução em “castigar y enmendar el abuso de las brujas que en Vizcaya se
levantaban”186 chamou, mais uma vez, a atenção do imperador Carlos V. Zumárraga
foi designado para ocupar o cargo de primeiro bispo do México, logo após o retorno
de sua missão como inquisidor.187
O combate às também chamadas “brujas de Navarra” dependeu da
proximidade do bispo com a região – “pues era vizcaino y sabia la lengua de aquella
tierra”188 –, onde o idioma era considerado particularmente difícil. Entretanto, a
facilidade linguística foi completamente suprimida na passagem do basco ao
cenário novohispano. Apesar de contar com a assistência de outros tantos frades
evangelizadores, a barreira linguística foi um entrave nas atividades do bispo. Ao
contrário de muitos franciscanos, frei Juan de Zumárraga nunca aprendeu línguas

184
SANDOVAL, Prudencio. Historia de la Vida y Hechos del Emperador Carlos V. Amberes:
Geronimo Verdussen, Impressor, 1681, vol. l, lib. XVI, p. 621.
185
Idem.
186
MENDIETA, op. cit., p. 629.
187
[...] por esto y por sus muchos merecimientos lo elegió el Emperador em primero obispo de México
[...]. (MENDIETA, op. cit., p. 629.). Ver também, GARCÍA ICAZBALCETA, op. cit., 1988, vol. 1, pp.
16-17.
188
MENDIETA, op. cit., p. 629.
89

indígenas, percalço que se mostraria significativo na guerra em que o franciscano


empreendeu contra a heterodoxia indígena.189 Situação bastante distinta de seu
companheiro Andrés de Olmos. A erudição em bruxaria e demonologia que
destacavam Olmos foi, anos depois de sua chegada à Nova Espanha,
complementada com seu aprendizado do náhuatl, língua com a qual redigiu seu
Tratado de Hechicerías y Sortilegios (1553).190
Zumárraga era um homem, aproximadamente, vinte anos mais velho que
seu irmão de hábito Andrés de Olmos. Em sua vida dedicada à Ordem dos Frades
Menores, vivenciou toda euforia provocada pelas tendências místicas que
chegaram à Espanha, assim como pelos primeiros textos de Erasmo de Roterdã. O
franciscano, para muitos, foi a personificação dos elementos que nutriam os
primeiros evangelizadores da Nova Espanha. A junção do humanismo “erasmista”
e da tradição joaquimita, além da modificação desses movimentos pelo ascetismo
franciscano observante dotaram frei Zumárraga e outros evangelizadores de um
caráter particular.191 O desembarque do primeiro bispo nos novos domínios da
Coroa espanhola ditou não apenas o início da hierarquização e organização da
Igreja mexicana, mas, de igual maneira, delimitou o caráter da empresa
evangelizadora por décadas, na ocasião, preludiada pelos doze primeiros
franciscanos, desde 1524.
Em companhia dos franciscanos e com o apoio do vice-rei Antonio de
Mendoza, nomeado em 1535, Zumárraga fundou o Colegio de Santa Cruz de
Tlatelolco (1536), especializado na educação e evangelização dos jovens
indígenas, e o Colegio de San Juan de Letrán (1548), destinado à educação dos
niños mestizos. Foi responsável pela criação do Hospital del Amor de Dios (1539)

189
Instrucción dada por Fray Juan de Zumárraga, Obispo de México, a Fray Juan de Osseguera y
Fray Cristóbal de Almazán, como procuradores del Concilio Universal (1537). In: CUEVAS, Mariano
(org.). Documentos Inéditos del Siglo XVI Para la Historia de México. México: Ed. Porrúa, 1975,
Apéndice, p. 488.
190
CORCUERA DE MANCERA, De Pícaros y Malqueridos: huellas de su paso por la Inquisición
de Zumárraga (1539-1547). México: FCE, 2009, pp. 167-169.
191
PHELAN, John L. El reino Milenario de los Franciscanos en el Nuevo Mundo. México: UNAM,
1972, p. 72.
90

e pela promoção da primeira prensa tipográfica da América, almejando a impressão


de textos catequéticos para a população indígena. Assentou, ainda, as bases da
organização institucional que se tornou, mais tarde, a igreja da arquidiocese, com
sede na Cidade do México. 192 Entre 1543 e 1548, fazendo jus à solicitação da
prensa tipográfica e ao otimismo evangelizador dos franciscanos, organizaram-se
as publicações de oito doutrinas para a catequese dos indígenas. Don Juan de
Zumárraga foi autor, editor, compilador e, por vezes, promotor financeiro dessas
doutrinas. Seus escritos foram, não poucas vezes, associados à influência de
autores como Tomas More e Erasmo, cujas obras podiam ser encontradas em
posse do bispo.

2. Um suposto “erasmista”

A influência de Erasmo nos escritos de frei Juan de Zumárraga foi


exaltada para destacar seu caráter reformado e evangelizador. Marcel Bataillon
localizou no primeiro bispo do México uma das mais palpáveis demonstrações da
influência exercida pelas obras de Erasmo na evangelização do México. 193 Nas
palavras do renomado hispanista francês, nas “Doctrinas Cristianas” escritas pelo
bispo e por outros evangelizadores, “la utilización de Erasmo no procede de
capricho o de pereza, sino que corresponde al sentido profundo de la evangelización
tal como la entendían aquellos hombres”.194 Para Bataillon, os evangelizadores
foram a influência mais importante de Erasmo na América, ainda que a menos
visível. O autor não deixa de considerar certo aspecto escatológico que pouco se

192
TLASLOSHEROS, Jorge E. Iglesia, Justicia y Sociedad en la Nueva España: la audiencia del
arzobispado de México, 1528-1668. México: ed. Porrúa/Universidad Iberoamericana, 2004, p. 4.
193
BATAILLON, Marcel. Erasmo y España: estudios sobre la historia espiritual del siglo XVI. México:
FCE, 2007, p. 816 e 825.
194
BATAILLON, op. cit., 2007, p. 821.
91

relaciona às ideias do teólogo, cuja concepção evangélica estava mais relacionada


com um processo paulatino que ao advento repentino do milênio.195
Apesar de nunca referenciar o nome de Erasmo em suas obras,
Zumárraga possuía exemplares do erudito cristão em seu acervo pessoal. No ano
1547, em uma carta ao provincial dos franciscanos em Burgos, frei Francisco del
Castillo, o bispo confirmou a posse de uma série de exemplares que lhe haviam
pertencido. Na ocasião, Zumárraga se desfazia de alguns livros e deixava
encarregado ao provincial o devido encaminhamento das doações. No texto da
carta, foi detalhado a Francisco del Castillo uma lista de obras que o bispo enviava
e os locais aos quais elas deveriam pertencer. Entre os volumes mencionados,
pode-se verificar a menção de Erasmo: “a Vuestra Reverencia tengo enbiadas las
obras de Erasmo y otros com sus títulos para donde pertencerán” 196.
A presença das ideias do erudito na vida do primeiro bispo do México é
verificável, sobretudo, em suas publicações destinadas a auxiliar na catequese dos
indígenas. Sem dúvida, o maior exemplo foi a Doctrina Breve, cujo financiamento e
autorização para impressão partiram, integralmente, de Zumárraga. Publicada entre
1543 e 1544, a doctrina era uma exposição dos sacramentos e da prática diária do
catolicismo para orientação dos evangelizadores na instrução dos neófitos. 197 Como
ressaltado por Bataillon, a composição da obra foi baseada em sua quase totalidade
no Enchiridion e na Paraclesis de Erasmo. Sem remeter, em nenhum momento, à
utilização dos textos, Zumárraga anexou a Paraclesis, com alguns retoques, na
composição da conclusão da doctrina, enquanto o enchiridion foi a fonte
fundamental para a composição dos capítulos dedicados aos “remedios contra los
vicios”. Em muitos trechos, as emendas tiveram o intuito apenas de adaptar as
passagens de Erasmo à conjuntura evangelizadora da Nova Espanha.198 O

195
Ibidem, p. 816.
196
AGI, Justicia, leg. 1011 apud BATAILLON, op. cit., 2007, p. 822.
197
ZUMÁRRAGA, Fr. Juan de. Doctrina breve muy provechosa de las cosas que pertenecen a
la fe católica y a nuestra cristiandad en estilo llano para común inteligencia. México: Juan
Cromberger, 1544.
198
BATAILLON, op. cit., 2007, pp. 540, 823-825.
92

franciscano também procurou abordar temas comuns às tópicas dissertadas por


Erasmo, tais como o paulinismo, a liberdade cristã, a interiorização da religião e o
valor secundário do culto externo. As apresentações dessas tônicas tomaram sua
principal forma pouco depois da Doctrina Breve, na publicação da Regla Cristiana
Breve, de 1547.199
O que interessou a Zumárraga e a outros evangelizadores que se
destinaram ao México foi o caráter evangelista de muitos escritos de Erasmo. A
atualidade das paráfrases do autor acerca das escrituras sagradas resumia
preceitos compartilhados por muitos dos religiosos da época, entusiastas da
cristianização universal. Nesse sentido, é imprescindível notar que a philosophia
christi e o “franciscanismo” são frutos de uma mesma dinâmica histórica. O encontro
entre o pensamento franciscano, que remonta ao século XIII, e as obras de Erasmo,
no século XVI, deu-se sem, no entanto, manter uma relação de necessária
interdependência. Tais pensamentos e obras coexistiram dentro dos círculos
reformadores do pensamento ocidental cristão. Ambos os movimentos
compartilharam o desejo de retorno a um cristianismo originário, idealizado em torno
de seus primeiros propagadores – mais interiorizado, individualizado e menos
vinculado à externalidade cerimonial.200
Os franciscanos mais reformados tomaram de Erasmo os elementos que
mais prescreviam os seus anseios, não sendo raro o rechaço de ideias alheias à
tradição franciscana de pensamento. Zumárraga e outros tantos regulares não eram
propriamente “erasmistas”, antes de tudo, é preciso considerar que o uso das obras
de um renomado erudito como Erasmo se dava no aporte referencial que o grande
escritor oferecia. Porém, de forma alguma, constituía uma filiação direta ou uma
aceitação integral de suas obras.
Diante dos debates em torno do suposto “erasmismo” dos
evangelizadores franciscanos na Nova Espanha, são pertinentes as ponderações

199
ZUMÁRRAGA, Fr. Juan de. Regla Cristiana Breve. México: Ed. JUS, 1951.
200
RUBIAL GARCÍA, Antonio. La Hermana Pobreza. México: UNAM, 1996, pp. 106-108.
93

do historiador mexicano Antonio Rubial García. Segundo o autor, as simpatias pela


Philosophia Christi estiveram limitadas às proposições filosóficas que viabilizavam
as concepções previamente estabelecidas pela ordem de São Francisco. 201
Delimitação semelhante à do historiador Leandro Karnal em seu livro Teatro da Fé,
no qual compreende ser “mais evidente que vejamos neste suposto erasmismo o
simples franciscanismo medieval”. A confusão originar-se-ia, de acordo com o autor,
no fato de que “tanto para os erasmistas como para os primeiros franciscanos, o
cristianismo deveria ser mais despojado, mais cristão e menos católico”. Assim,
seria mais conveniente chamar o suposto “erasmismo” de homens como Zumárraga
de “franciscanismo”, “já que, para o Novo Mundo, convergiram no início os mais
reformados e ardentes membros da ordem seráfica”. 202
Uma classificação mais adequada para os esforços de Zumárraga e de
seus companheiros franciscanos foi proposta por William B. Jones. O intelectual
indica que o termo “evangelismo católico” seria mais cabível às circunstâncias de
ação e aos ideais dos regulares e, portanto, menos taxativo que o referido
“erasmismo” inspirado nas conclusões de Marcel Bataillon. Jones também
considera o vínculo do evangelismo dos franciscanos com a teologia de Santo
Agostinho, diluindo ainda mais os vínculos ao “humanismo erasmista”. 203
Entretanto, apesar do deslocamento conceitual, Juan de Zumárraga
pode ser considerado um dos maiores implementadores das ideias de Erasmo na
Nova Espanha204 – fator inegável frente à propagação das formulações do Teólogo
que o primeiro bispo do México transpunha para suas obras de catequese. Não por
menos, os volumes produzidos pelo bispo foram alvo de suspeitas e vistoriais por
parte do Santo Ofício da Inquisição, entre os anos de 1550 e 1573. 205

201
Ibidem, pp. 85 e 106.
202
KARNAL, Leandro. Teatro da Fé: representação religiosa no Brasil e no México do século XVI.
São Paulo: HUCITEC, 1998, p. 55.
203
JONES, Willian B. Evangelical Catholicism in Early Colonial Mexico: An Analysis of Bishop Juan
de Zumárraga's Doctrina Cristiana. In: The Americas: A Quarterly Review of Inter-American Cultural
History. Washington, vol. 23, n. 4, pp. 423-432, abr., 1967.
204
RUBIAL GARCÍA, op. cit., 1996, p. 106.
205
FERNANDEZ DEL CASTILLO, Francisco. Libros y Libreros en el Siglo XVI. México: Tip.
Guerrero Hnos., 1914, doc. II, pp. 1-3 e doc. X, p. 248.
94

3. Nova Espanha e primeiras hostilidades

Em dezembro de 1528, frei Juan de Zumárraga pisou pela primeira vez


nos domínios conquistados por Hernán Cortés. Na ocasião de sua viagem, as
péssimas relações do Sumo Pontífice com o monarca espanhol impediram a devida
consagração do franciscano como bispo. Desde 1527, o saque de Roma promovido
pelas tropas imperiais rebeladas havia abalado as relações entre Carlos V e
Clemente VII. Em meio à imprevisibilidade do restabelecimento das relações entre
Espanha e Roma, Zumárraga deixou a península portando apenas os documentos
expedidos pelo gabinete real, o título de pretector de los Indios e sua nomeação ao
cargo episcopal como “electo” pelo rei.206 A ausência da documentação com a
chancela papal – que sacralizava e reconhecia a função de bispo – não foi
impedimento para assumir a liderança em meio aos franciscanos que residiam nas
imediações do Vale do México. Entretanto, as debilidades burocráticas da
nomeação de Zumárraga foram rapidamente exploradas nos conflitos
subsequentes à sua chegada. Os primeiros anos que seguiram ao desembarque do
bispo foram, particularmente, marcados pelo seu envolvimento nos conflitos entre
os representantes da Coroa e os “partidarios” do conquistador Hernán Cortés.207
A nomeação da Primera Audiencia208 governadora ocorreu em sincronia
com a designação do cargo episcopal e os ouvidores partiram da Espanha ao lado

206
GARCÍA ICAZBALCETA, op. cit., 1988, vol. 1, pp. 33-34.
207
Para os conflitos entre Zumárraga e a Pirmera Audiencia, ver o trabalho de Jorge E. Traslosheros
(TRASLOSHEROS, op. cit., 2004, pp. 3-13) e a reconstrução narrativa feita por Joaquín García
Icazbalceta (GARCIA ICAZBALCETA, op. cit., 1988, vol. 1, p. 37-91). Os eventos também são
narrados pelo próprio frei Juan de Zumárraga em carta destinada ao rei da Espanha (Ibidem, vol. 2,
docs. 1-16, pp. 165-299).
208
A Primera Audiencia Governadora (1528) foi composta pelo seu presidente Nuño de Guzmán e
pelos ouvidores Alonso de Parada, Francisco Maldonado, Juan Ortiz de Matienzo e Diego Delgadillo.
Poucos dias após a reunião dos membros, faleceram Parada e Maldonado, restando apenas dois
ouvidores.
95

de Zumárraga para o encontro de seu presidente Nuño de Guzmán. 209 Uma vez
organizada e composta de seus respectivos membros, a Audiência Real entrou em
choque com as relações de tributo, governo e jurisdição previamente estabelecidas
– desde a queda de Mexico-Tenochtitlan – por Cortés e seus aliados. Esse reajuste
de forças acabou envolvendo os regulares franciscanos. Desde a chegada dos
Frades Menores, os primeiros sacerdotes estiveram sob a tutela e proteção de
Hernán Cortés e, de antemão, foram privilegiados pelo conquistador em seu
estabelecimento territorial e na autoridade que exerciam sobre os indígenas. Não
foram raras as tentativas de monopólio dos franciscanos no trato com os neófitos,
chegando a pleitear, junto à administração real, exclusividade jurídico-civil sobre os
indígenas.210
Não parece por menos que a Audiência Real tenha visto nos frades de
São Francisco uma ameaça ao seu funcionamento, quando reivindicou sua posição
de governo ante os conquistadores, encomenderos, pobladores211 e a população
autóctone. Ademais, a longa ausência de Cortés criou um cenário propício para as
ações de reorganização almejadas por Nuño de Guzmán, presidente da Primera
Audiencia e um voraz opositor do conquistador. Hernán Cortés havia partido em
expedição às Hibueras212, entre 1524 e 1526. Em seu retorno, não se fez presente
por muito tempo, pois o capitão foi obrigado, em 1528, a retornar à Espanha para
prestar contas de seu governo e dos conflitos com Diego Velázquez. Com seus
ouvidores, Guzmán aproveitou a ausência de Cortés e iniciou a desarticulação e a
restrição daqueles que tinham ficado a cargo do governo.

209
Carta de Don Fray Juan de Zumárraga al Emperador – Valladolid. 1533. In: CUEVAS, op. cit.,
1975, doc. 8, pp. 21, 22, 31, 44. Também é reproduzido em, GARCIA ICAZBALCETA, op. cit., 1988,
vol. 3, doc. 19.
210
Primer Libro de Actas. In.: Actas de Cabildo de la Ciudad de México. México: Ignacio Bejarano,
1889, p. 49.
211
Poblador (sing.) foi termo empregado para os habitantes que passaram as possessões
americanas da Coroa de Castela e que guarda certa semelhança com a expressão “colono”. Cf.
ELLIOTT, John. Imperios del Mundo Atlántico: España y Gran Bretaña en América (1492-1830).
España: Taurus, 2011, pp. 35-36.
212
Hibueras ou Higüeras eram as formas utilizadas na época para referenciar a região de Honduras.
96

Frei Juan de Zumárraga passou às linhas de frente do conflito quando os


ouvidores se recusaram a reconhecer sua autoridade como protector de los Indios,
título concedido ao franciscano por Carlos V. Segundo as reivindicações de
Zumárraga, o título reservava ao portador o monopólio jurídico sobre os indígenas.
A petição do bispo reavivava as solicitações frustradas feitas por Martín de Valencia
e Motolinía, em 1525. 213 A Audiência Real negou a amplitude dos direitos remetidos
ao portador do título e advertiu o franciscano para que não exercesse a função de
Protector, sob ameaça de desterro e retenção de seus bens. Espanhóis e indígenas
foram igualmente advertidos para que não buscassem amparo no cargo outorgado
ao bispo ou fizessem qualquer petição que acudisse ao título de Protector.
Inconformado, Zumárraga assumiu uma contrapartida junto aos frades de sua
ordem. De imediato, ignorando as resoluções dos funcionários da Coroa, o bispo
nomeou frei Toribio Motolinía e frei Alonso Xuárez como juízes defensores dos
índios, promovendo uma clara extensão de sua autoridade. 214
Não satisfeitos, os franciscanos tomaram o púlpito da igreja da Cidade
do México e denunciaram os ouvidores ao público. As hostilidades aumentaram e a
Audiência Real pronunciou o não reconhecimento da autoridade episcopal de
Zumárraga, apontando para a falta de documentação papal que o consagrasse.
Tratava-se, ainda assim, de uma clara desobediência da autoridade real que
respaldava o franciscano. A medida revogava todos os pleitos e nomeações
iniciados pelos Frades Menores, uma vez que expunha a invalidade jurídica da
nomeação de seu líder, que figurava apenas como “electo” pelo rei, mas, ainda não
reconhecido como bispo pelo papado. O último recurso ainda disponível aos Frades
de São Francisco era apelar às concessões extraordinárias outorgadas pelas bulas
papais aos evangelizadores da América. Como dito anteriormente, os decretos
pontifícios – Omnímoda, e seu antecessor Alias Felices – autorizavam aos frades
mendicantes o uso de privilégios episcopais.

213
Primer Libro de Actas. In.: Actas de Cabildo de la Ciudad de México. op. cit., 1889, p. 49.
214
GARCÌA ICAZBALCETA, op. cit., 1988, vol. 2, docs. 1 e 2, pp. 165-167.
97

Zumárraga foi, então, reconhecido pelos franciscanos como juiz


eclesiástico ordinário, como o próprio confirma em carta a Carlos V: “yo procedí
conforme a derecho contra los dichos licenciados como juez apostólico por virtud
de los breves de León X y Adriano VI”.215 O recurso à autoridade papal proporcionou
aos franciscanos a recuperação da autoridade jurídico-eclesiástica. Na ocasião, era
fundamental o apelo a todos os recursos administrativos que estivessem ao
alcance. Independente das desavenças pessoais entre os protagonistas, tratava-se
de um conflito de autoridade e, consequentemente, de respaldo para exercê-la.
O embate com a Audiência Real chegou ao seu ápice quando os frades
franciscanos Cristóbal de Angulo e García de Llerena se pronunciaram
publicamente contra as medidas tomadas pelos funcionários reais em detrimento
da administração de Hernán Cortés. Os religiosos acabaram perseguidos pelos
ouvidores, levando-os a pedirem abrigo no Convento de San Francisco de México,
de onde foram retirados à força, encarcerados e processados pela Audiência.
Ultrajado, Zumárraga acusou os ouvidores de abuso e injustiça. Em carta acusatória
a seus rivais, o franciscano retoma o ocorrido:

“[...] Bien sabéis como vos los dichos oidores y justicia fuisteis
con mano armada con mucha gente al monasterio de Sr. S. Francisco [...]
donde sacasteis a García de Llerena, y Cristóbal de Angulo, los cuales
estaban acogidos al dicho monasterio e iglesia dél, [...] e demás de
sacarlos les maltratasteis sus personas, trayéndolos en camisa, descalzos,
e dándoles muchos golpes [...], llevándolos a la cárcel pública echándoles
graves prisiones [...]”.216

A prisão dos dois frades gerou o alarde coletivo dos franciscanos. O uso
da força por parte dos funcionários reais violava os princípios de asilo e imunidade

215
Carta de Don Fray Juan de Zumárraga al Emperador – Valladolid. 1533. In: CUEVAS, op. cit.,
1975, doc. 8, p. 22.
216
La carta original que Fr. Juan de Zumárraga discernió contra la Audiencia, de entredicho y
cesación a divinis (1530). In: GARCÍA ICAZBALCETA, op. cit., 1988, vol. 2, doc. 6, p. 248.
98

da Igreja perante o poder civil.217 Em resposta, frei Juan de Zumárraga organizou


uma manifestação coletiva dos Frades Menores, demandando a liberação dos
prisioneiros, todavia, seus apelos não surtiram efeito e os religiosos foram julgados
e sentenciados pelos ouvidores da Audiência Real. Frei Cristóbal de Angulo
terminou executado pelas autoridades civis e seu companheiro, frei García de
Llerena, foi supliciado nos pés e açoitado em público. De mãos atadas quanto ao
destino dos irmãos de hábito, Zumárraga decidiu excomungar o presidente e os
membros da Primera Audiencia, além de colocar a Cidade do México em interdito,
privando-a administração dos sacramentos e de qualquer serviço religioso. 218
Os ouvidores levaram a disputa ao Consejo de Indias e denunciaram
Zumárraga por agir contra a autoridade real representada pela Audiência em favor
de Hernán Cortés. O bispo também foi acusado de favorecer o clero regular e
aconselhar a população indígena contra os espanhóis.
Em meio ao bombardeio de informações contraditórias, o Consejo de
Indias dispersou os ouvidores e nomeou uma Segunda Audiencia219 governadora,
em 1530. No mesmo ano, Hernán Cortés retornava à Nova Espanha, exitoso em
sua defesa com relação às intrigas políticas que o obrigaram a prestar contas à
Coroa. Casado com doña Juana de Zuñiga, sobrinha do duque de Bejár, o
conquistador foi agraciado com o título de Marques del Valle de Oaxaca, com o
posto de capitán general, e contava com um senhorio de vinte mil vassalos.220 Ao
final, frei Juan de Zumárraga foi obrigado a prestar explicações ao Consejo de

217
TRASLOSHEROS, op. cit., 2004, p. 6.
218
Carta de Don Fray Juan de Zumárraga al Emperador – Valladolid. 1533. In: CUEVAS, op. cit.,
1975, doc. 8, pp. 17-27.
219
A Segunda Audiencia Governadora (1530) foi composta pelos ouvidores Vasco de Quiroga,
Alonso Maldonado, Francisco de Ceynos e Juan de Salmerón. Sebastián Ramírez de Fuenleal foi
nomeado presidente até a chegada de Antonio de Mendoza que assumiu o posto de vice-rei da Nova
Espanha a partir de 1535.
220
Apesar do retorno prestigioso de Hernán Cortés, o conquistador ficou restrito a se manter a 10
léguas de distância da Cidade do México, enquanto não chegassem os membros da Audiência Real.
(Órden á Hernan Cortés. In: GARCÍA ICAZBALCETA, J. Colección de Documentos Para la
Historia de México. México: Porrúa, 2004, vol. 2, p. 30).
99

Indias, e, posteriormente, foi exigido que comparecesse no gabinete real para


maiores esclarecimentos acerca dos conflitos que esteve envolvido. 221

4. A chegada do inquisidor

Em julho de 1532, mediante exigências dos funcionários reais, o bispo


“electo” empreendeu o longo percurso até a península. Após dois anos afastado da
Nova Espanha, Zumárraga regressou para assumir, sem maiores obstáculos, o
bispado do México. Em sua estadia na capital do reino, o franciscano defendeu-se
das acusações imputadas pela Primera Audiencia, apelando diretamente ao
monarca que o havia escolhido. 222 Não obstante, o título de Protector de los Indios
foi revogado, devido ao caráter conflitante que o cargo poderia manter com as
autoridades reais. De fato, os pressupostos das funções outorgadas pelo título de
protector nunca foram bem delimitados pela Coroa; sua jurisdição era vaga e as
especificidades do cargo a ser exercido eram, igualmente, mal definidas. As
tentativas de exercer as supostas faculdades do cargo deram origem a disputas
frequentes, e os portadores do título foram vistos como figuras inoportunas, um
verdadeiro entrave aos governos regionais. 223
A falta de delimitação que caracterizou a outorga de Protector de los
indios foi sinônimo de dúvidas constantes entre seus titulados. Distante do Vale do
México, outro exemplo pode ser vislumbrado, em 1539, nos questionamentos de
don Francisco Marroquín, primeiro bispo de Santiago de Guatemala. O clérigo
expressou suas inseguranças quando escreveu ao imperador Carlos V no intuito de

221
Parecer del Lic. de la Corte del Consejo de Indias Sobre la Conducta de D. Fray Juan de
Zumárraga en la Desavenencia que Tuvo con la Audiencia de México. In: CUEVAS, op. cit., 1975,
pp. 5-6. Também é reproduzido em, GARCÍA ICAZBALCETA, 1988, vol. 4, doc. 64, p. 69.
222
Carta de don Fray Juan de Zumárraga a un eclesiástico desconocido. – México, 4 de abril de
1537. In: CUEVAS, op. cit., 1975, doc 17.
223
GARCÍA ICAZBALCETA, op. cit., 1988, vol. 1, pp. 50-55.
100

receber instruções mais acertadas sobre o título que portava. Nas palavras de
Marroquín:

[...] Ay neçessidad que V. M. declare o mande declarar, qué


cossa es ser protector y á qué se estiende, y si somos juezes, y si commo
tales podemos nonbrar exsecutores alguaziles para nuestros
mandamientos, y asimismo escriuanos, y si los vissitadores que
enbiamos podrán lleuar varas, pues van como juezes, y si esto compete
solamente á los protectores y no á los gouernadores, pues á ellos solos
es encomendado la protectoría y vissitaçion [...]. Suplico á V. M. que en
cada punto mande proueher claramente, para quitar diferençia entre
nosotros y los gouernadores. [...]224

Ainda na Espanha, Zumárraga foi consagrado com a chancela papal de


Clemente VII. A cerimônia ocorreu na capital do reino, em abril de 1533, conduzida
pelo bispo de Segóvia don Diego de Rivera, no monastério de San Francisco de
Valladolid.225 Não menos importante que o caráter de epíscopo, Zumárraga recebeu
o título de Inquisidor Apostólico. Seguindo os protocolos de investidura previstos na
Inquisição espanhola, o cargo inquisitorial foi outorgado por don Alonso de
Manrique, na época, ocupante do cargo de Inquisidor-geral do Santo Ofício. Nas
Inquisições espanhola e portuguesa, o inquisidor-geral era designado pelo rei e
detinha a nomeação dos inquisidores distritais; ao contrário da Inquisição romana,
cujas nomeações eram obrigatoriamente expedidas pelo papa ou por uma
congregação de cardiais.226
O título recebido pelo bispo Zumárraga autorizava o estabelecimento de
um tribunal de Inquisição, a nomeação de um quadro de funcionários e a

224
Carta del obispo de Guatemala Don Francisco Marroquin al Emperador Don Carlos (...) – Santiago
de Guatemala, 15 de agosto de 1539. In: Cartas de Indias. Madrid: Ediciones Atlas, 1974, p. 427.
225
Testimonio de la consagración. In: GARCÍA ICAZBALCETA, op. cit., 1988, vol. 3, doc. 24, pp. 59-
63.
226
BETHENCOURT, Francisco. História das Inquisições: Portugal, Espanha e Itália – séculos XV-
XIX. São Paulo: Companhia das Letras, 2000, pp. 124-134.
101

estratificação de seus respectivos salários – “vos damos poder y facultad para que
podáis proveer y proveáis los oficiales que fuere menester y sean necesarios para
la buena administración y ejercicio del dicho Sancto Oficio”227. A ampla liberdade
administrativa que o caráter de inquisidor reservava vinha acompanhada de seus
pressupostos jurídicos:

[...] Confiando en la rectitud y letras de vos el M. R. Sr. Fr.


Juan de Zumárraga, Obispo de México, por el tenor de la presente, por la
autoridad Apostólica a nos concedida, de que en esta parte queremos usar
y usamos, vos hacemos, constituimos, creamos y deputamos Inquisidor
apostólico contra la herética provedad y apostasía, en la Ciudad de México
y en todo vuestro obispado, e vos damos poder e facultad para que podáis
inquirir e inquiráis contra toda e cualesquier personas, así hombres como
mujeres, vivos e defunctos, ausentes y presentes, de cualquier estado y
condición, prerrogativa y preeminencia y dignidad que sean, exentos e no
exentos, vecinos y moradores que son o hayan sido en la dicha ciudad de
México y en toda vuestra diócesis, que se hallaren culpantes, sospechosos
e infamados en el dicho delicto e crimen de herejía y apostasía, y contra
todos los fautores, defensores y receptadores de ellos [...]; e que podades
a los dichos culpables encarcelar, penitenciar, punir e castigar, e si de
justicia fuere, relajados al brazo seglar, y faces todas las otras cosas al
dicho oficio de Inquisidor tocante y pertenecientes. [...]228

A sobreposição dos cargos de bispo e inquisidor investiram à figura de


frei don Juan de Zumárraga um status considerável. O franciscano, que em sua
primeira experiência com o Novo Mundo passou por enfrentamentos que colocavam
em questão sua nomeação como bispo e sua posição de liderança entre os frades
de São Francisco, retornava duplamente respaldado ao Vale do México. Além disso,
para prevenir possíveis carências financeiras pelas quais o bispo poderia passar, a
Coroa cedeu uma encomienda nos arredores do pueblo de Ocuituco, localizado aos

227
Título de Inquisidor. In. GARCIA ICAZBALCETA, op.cit.,1988, Vol. 3, doc. 27, p.72.
228
Ibidem, pp. 71-73.
102

pés do vulcão Popocatépetl. Ainda que afastada da zona de atuação do bispo,


Ocuituco e seus pueblos anexos forneceram a Zumárraga, em seu papel de
encomendero, o direito de explorar e se beneficiar dos tributos arrecadados na
localidade.229 A concessão real proporcionou o sustento financeiro de parte dos
empreendimentos, entre os quais se pode incluir o funcionamento de uma pequena
estrutura inquisitorial.

5. Fundação e autonomia do Tribunal episcopal

O retorno do então consagrado primeiro bispo do México marcou o início


de políticas mais coordenadas entre os regulares e, selou, temporariamente, a
sobressalente posição dos franciscanos em meio ao instável cenário político.
Entretanto, uma maior estabilização das relações entre os protagonistas dos
primeiros anos da ocupação espanhola no centro do México veio a partir da
nomeação do primeiro vice-rei da Nova Espanha, don Antonio de Mendoza.
Na América, o vice-rei foi o agente fundamental para a construção do
Estado colonial. Essa resolução tomada pela Coroa apaziguou parcialmente os
conflitos menores na Nova Espanha. A enorme distância que separava o monarca
espanhol de suas novas possessões demandou a formulação de medidas
representativas eficazes. Elas deveriam deixar explícita a presença real entre os
vassalos que se encontravam a milhares de quilômetros de distância. O vice-rei
estava revestido de todos os atributos reais e representava a figura do monarca
espanhol para os habitantes das regiões onde o soberano estava impossibilitado de
se fazer presente. O caráter representativo da figura de don Antonio de Mendoza
não consistia apenas na representação administrativa e burocrática da Coroa

229
Ocuituco foi assimilado de volta à Coroa espanhola em 1544. Cf. Instrucción dada por Fray Juan
de Zumárraga, Obispo de México, a Fray Juan de Osseguera y Fray Cristóbal de Almazán, como
procuradores del Concilio Universal (1537). In: CUEVAS, op. cit., 1975, p. 492; GERHARD, Peter.
Geografía Histórica de la Nueva España, 1519-1821. México: UNAM, 1986, p. 93-94.
103

espanhola, ele era o “perfecto sustituto del monarca”. Os súditos reais deveriam ver
nessa figura advinda da corte peninsular o “rey transfigurado en su persona”.230
Sobre os ombros de Mendoza recaiu a enorme responsabilidade de
reorganizar os novos súditos do rei nas dinâmicas do império espanhol e delimitar
um alcance jurídico aceitável – aos olhos da Corte – para os poderes exercidos por
Hernán Cortés. A Segunda Audiencia que, desde novembro de 1535, passou a ser
presidida por Mendoza, continuou enfrentando os problemas de governo, frutos das
contradições entre os direitos soberanos da Coroa e a significativa influência do
Marques del Valle junto aos habitantes do vice-reino. Apesar da atuação mais
moderada e menos polêmica com relação aos antigos ouvidores, a nova Audiência
Real não evitou que a solidificação do governo assumisse tonalidades
contraditórias. Em meio ao choque de interesses entre os conquistadores e a
administração idealizada pela Coroa, o maior dos conflitos estava, seguramente, na
tributação arrecadada por Cortés – tanto dos encomenderos, quanto dos principales
indígenas. Para a Coroa, os encomenderos e os indígenas eram vassalos do rei e
não de Hernán Cortés, portanto, deviam pagar tributo diretamente aos cofres reais,
sem quaisquer intermediações por parte do Marques.
A chegada do vice-rei e o retorno vitorioso de Zumárraga começaram a
dar traços definitivos à estrutura colonial que, pouco a pouco, se formava.231 A
consolidação das primeiras dioceses232 junto à nomeação dos respectivos bispos e
a presença de Antonio de Mendoza reduziram os desentendimentos gerados nos
primeiros anos da conquista. A posição de Zumárraga diante do aparato institucional
reservou ao bispo um papel fundamental na montagem colonial. Os
empreendimentos do sacerdote franciscano foram norteados por pressupostos de

230
El Poder Transfigurado: el virrey como la “viva imagen del rey” en la Nueva España de los siglos
XVI y XVII. In: MAZÍN, Óscar (ed.). Las Representaciones del Poder en las Sociedades
Hispánicas. México: El Colegio de México, 2012, pp. 301-335.
231
BAUDOT, Georges. Utopía e Historia en México: los primeros cronistas de la civilización
mexicana (1520-1569). Madrid: Espasa-Calpe, 1983, p. 119.
232
Foram designados para as primeiras dioceses da Nova Espanha frei Julian Garcés (Tlaxcala), em
1525, frei Juan de Zumárraga (México), em 1528 e Vasco de Quiroga (Michoacán), em 1536.
104

consolidação do cristianismo nas novas terras. Acima de tudo, o franciscano foi o


funcionário encarregado pela manutenção da ortodoxia e da consolidação das
práticas cristãs entre os indígenas batizados. 233
A grande expressão dos esforços de Zumárraga, em seu zelo pela
ortodoxia, foi a criação de um tribunal de Inquisição junto à estrutura episcopal. No
dia 6 de junho de 1536, o bispo organizou uma solene procissão com música para
marcar o início das atividades do Santo Ofício. O cortejo foi reunido no Hospital de
Jesus, inaugurado anos antes por Hernán Cortés, e seguiu rumo à sede
administrativa do bispado. Na ocasião, dois músicos se recusaram a tocar para a
inauguração dos trabalhos inquisitoriais. Os trompeteiros Antón Moreno e Cristobal
de Barrera acabaram processados pelo Santo Ofício por se indisporem com o bispo
inquisidor, que não queria cumprir com as exigências de pagamento dos músicos.
A recusa dos artistas em doar seus serviços para a inauguração terminou em um
pedido formal de clemência ante o pequeno tribunal e o pagamento de uma multa
de seis libras de cera branca, as quais foram remetidas à catedral do bispado. 234
A Inquisição episcopal de Zumárraga contou com uma ampla autonomia.
Diferente dos tribunais peninsulares, as atividades do tribunal episcopal estiveram
de forma exclusiva nas mãos do bispo, representante da máxima autoridade
eclesiástica. Observa-se aqui uma marcada informalidade. O historiador Francisco
Bethencourt já havia notado nos documentos fundacionais da Inquisição Espanhola
“um enorme campo de manobra” que permaneceu aberto na montagem dos
primeiros tribunais. O intuito, segundo o autor, aponta para a tentativa institucional
de minar qualquer resistência à ação inquisitorial, devido à ausência de regras
estritas que pautassem os limites que deveriam ser obedecidos pelos juízes. 235
Essa característica se estreitava cada vez mais na Península na ocasião da
nomeação de Zumárraga como inquisidor apostólico. Ainda assim, seu cargo
reverbera uma certa despreocupação na sistematicidade e regramento do Santo

233
CORCUERA DE MANCERA, op. cit., 2009, p. 26.
234
GREENLEAF, 1992a, pp. 23, 145-146.
235
BETHENCOURT, op. cit., 2000, p. 18.
105

Ofício. A maior demonstração para esse postulado pode ser situada na criação
totalmente formalizada de um tribunal de Inquisição, em 1571, para a Nova
Espanha. A nomeação do inquisidor don Pedro Moya de Contreras rompeu,
drasticamente, com os antecedentes inquisitoriais e trouxe implícito consigo o
vislumbre da informalidade que o antecedia.
Os tribunais de Inquisição passaram por um progressivo processo de
centralização, em grande parte, resultado das ações do Consejo de la Suprema y
General Inquisición.236 Durante a segunda metade do século XVI e início do XVII, a
inquisição buscou uma ocupação territorial mais eficaz e o reforço da coesão nos
procedimentos com vistas a uma maior eficácia de suas ações. 237 Até a primeira
metade do século XVI, antecedendo as dinâmicas homogeneizadoras do Consejo
de la Suprema, ainda era possível ver tribunais com relativa autonomia, episcopais
e centralizados na figura de um bispo, mediante o acúmulo de cargos. Nas primeiras
décadas que seguiram a criação da Inquisição moderna na Espanha, a partir de
1478 e 1480, os tribunais eram formados onde se julgava necessário. 238 Não foi
diferente no caso da Nova Espanha, quando foram inaugurados os trabalhos do
Santo Ofício por frei Juan de Zumárraga.
Como anteriormente distinguido, o tribunal episcopal estabelecido por frei
Juan de Zumárraga era estruturalmente distinto do Santo Ofício que atuou na Nova
Espanha a partir de 1571. Este último, foi o primeiro tribunal mexicano centralizado
e pertencente a um movimento mais homogêneo da Inquisição espanhola, com seu
funcionamento separado da sede episcopal.
Entretanto, apesar da autonomia do novo tribunal, principalmente, quanto
às instâncias peninsulares, a autoridade do inquisidor estava sujeita às
interferências da Audiência Real. Durante todo o período em que Zumárraga esteve
a cargo do Santo Ofício – em acordo com o Patronato de las Indias – o vice-rei e os

236
KAMEN, Henry. A Inquisição na Espanha. Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, 1966, pp. 180-
181.
237
PEYRE, Dominique. La Inquisición o la Política de la Presencia. In: BENNASSAR, Bartolomé.
Inquisición Española: poder político y control social. Barcelona: Editorial Crítica, 1984, pp. 40-67.
238
KAMEN, op. cit., 1966, p. 181.
106

ouvidores estiveram incumbidos de revisar os expedientes processuais e instruir o


inquisidor nos modos que julgavam mais convenientes para a administração real.
Ao que tudo indica, o intuito da Coroa era regular as atividades do Santo Ofício e
evitar os abusos de poder, assim como, colocar em acordo as instâncias civil e
eclesiástica, evitando possíveis conflitos institucionais. 239
A normatização dos trabalhos inquisitoriais pelo governo do vice-reinado
expressava, igualmente, seu vínculo estatal – uma das características mais
marcantes da Inquisição espanhola.240 A fidelidade dos agentes inquisitoriais
espanhóis nomeados repousava na autoridade real – modificação crucial no que diz
respeito aos antecedentes medievais e legitimada, desde o reinado de Isabel de
Castela e Fernando de Aragão, sob a chancela pontifícia de Sisto IV. 241 No caso
específico do tribunal episcopal de Juan de Zumárraga, seu funcionamento
dependia do bom relacionamento entre o bispado e a Audiência Real. A nova
Inquisição episcopal estava submetida à península, ainda que por meio do
intermédio da Audiencia, e deve ser vista como uma pequena ramificação da
Inquisição espanhola. No entanto, o afastamento geográfico e tímida
institucionalização da Nova Espanha contribuíram para uma atuação mais
autônoma, particularmente, na tipificação dos delitos e nos seus respectivos
castigos para a população indígena.
Mesmo encarregada de supervisionar as atividades inquisitoriais do
bispo, a Audiência Real revisava os processos apenas com vistas a evitar conflitos
de interesse e desentendimentos entre o foro civil e o eclesiástico. Não obstante, a
prestação de contas à qual Zumárraga estava sujeito não era de seu total agrado.
O bispo inquisidor desejava um tribunal cuja autonomia fosse ainda mais
expressiva. A necessidade ocasional de consulta da Audiência ou remeter

239
Nos processos feitos pelo Inquisidor Zumárraga, a conferência e a supervisão da Audiência Real
estão expressas nos expedientes a partir da assinatura do ouvidor real Francisco de Loaysa. Cf.
Anexo II.
240
GREENLEAF, op.cit.,1992a, pp. 32-33; BETHENCOURT, op. cit., 2000, pp. 17-18; KAMEN, op.
cit., 1966, pp. 47-48.
241
BETHENCOURT, op. cit., 2000, p. 18.
107

indivíduos aos inquisidores de Castela, protelava seus esforços inquisitoriais.


Zumárraga não deixou de manifestar suas insatisfações para que fossem levadas
ao Concílio Universal convocado por Paulo III, em 1537. “Es mucho incoveniente
haber de remitir los delincuentes a la Inquisición que está en Castilla”242, clamava o
franciscano. Na sequência, o bispo solicitava ao papado, por meio dos procuradores
que o representariam, a nomeação de um inquisidor geral em terras americanas:
“por ser tan distante, impetren de su Santidad que acá nombre um Inquisior
Mayor”243. A resolução encontrada por Zumárraga era que o ocupante do cargo
idealizado estivesse sujeito apenas ao Sumo Pontífice. Em outras palavras, o papa
deveria nomear um “Inquisidor mayor” independente da Coroa espanhola, que “no
sea sujeto a la Inquisición dallá, sino solamente al papa”.244 Esse pedido, deixava
transparecer de forma sutil o desejo de independência das instâncias reais.
A distância entre o México e Castela demandava uma constante nas
reivindicações eclesiásticas da época, qual seja, uma maior autonomia e segurança
quanto às funções a serem exercidas. As incertezas se manifestaram,
principalmente, no que dizia respeito ao trato com os indígenas. O próprio
Zumárraga não tinha total segurança acerca de quão rigoroso o Santo Ofício deveria
ser com os “naturales”: “Hay duda si converná castigar con todas las penas que el
derecho pone a estos naturales cuando acaeciere delinquir”245. Na época da
redação do manuscrito havia menos de um ano que o bispo processara os primeiros
indígenas. Se as dúvidas passavam pelos modos a serem administrados, não
parece ter havido dubiedade quanto a necessidade da intervenção inquisitorial. Na
ausência de instruções específicas, Zumárraga direcionou a inquisição contra os
indígenas segundo os critérios que dispôs junto aos seus companheiros
franciscanos.

242
Instrucción dada por Fray Juan de Zumárraga, Obispo de México, a Fray Juan de Osseguera y
Fray Cristóbal de Almazán, como procuradores del Concilio Universal (1537). In: CUEVAS, op. cit.,
1975, p. 490.
243
Idem.
244
Idem.
245
Idem.
108

A intensidade das ações da Inquisição episcopal pode ser facilmente


verificada quando se levanta a quantidade de expedientes produzidos no curto
período de tempo, no qual Zumárraga esteve à frente da instituição. Ao focar-se a
documentação produzida, salta aos olhos a quantidade de indivíduos processados
e a variedade de informações levantadas a partir das investigações do bispo e de
seus colaboradores. Considerando a precariedade institucional dos primeiros anos
da colonização espanhola, surpreende que em menos de uma década de
funcionamento tenham sido gerados aproximadamente 157 expedientes. 246 Entre o
volume total da documentação, produzida entre 1536 e 1543, encontram-se 21
casos protagonizados por indígenas.247 A maioria dos processos diz respeito à
perseguição de “pobladores”, conquistadores e encomenderos, espanhóis e
estrangeiros, especialmente pelos crimes de blasfêmia, judaísmo, luteranismo e
feitiçaria. Ainda assim, os casos que envolvem indígenas chamam bastante
atenção, não apenas por sua recente conversão ao cristianismo, mas também por
figurarem como a primeira tentativa sistemática, que se tem notícia, do uso de
mecanismos inquisitoriais contra a população indígena.

6. Conformidade processual

O tribunal episcopal não fugiu muito às formalidades prescritas ao


funcionamento tradicional do Santo Ofício da Inquisição. As modificações na
procedura foram sutis, mesmo perante os novos protagonistas indígenas. Os
processos e mesmo a administração das penitências contaram, muitas vezes, com
simplificações que indicavam mais a respeito da frágil estruturação dos aparatos
institucionais da Colônia do que às opções jurídicas e representativas, demandadas
pela especificidade local.

246
Os expedientes são de diversas índoles e podem variar conforme as considerações
classificatórias entre processos, informações, denúncias e probanzas.
247
Cf. Anexo I.
109

As particularidades podem ser observadas mais no que diz respeito à


confluência das atividades inquisitoriais com as normatizações dos representantes
da Coroa. Tomando as assinaturas dispostas nos processos analisados, é possível
notar que coube de forma exclusiva ao ouvidor Francisco de Loaysa a revisão dos
processos e o comum acordo das sentenças junto ao inquisidor.248 Além disso, o
vice-rei Antonio de Mendoza foi responsável por prescrever as instruções para o
funcionamento do tribunal, especificamente, a maneira de conservação dos
sambenitos249 e o modo de proceder com os arquivos produzidos pelos volumes
processuais.250
As formalidades inquisitoriais pressupuseram, no momento em que
foram iniciadas as atividades do tribunal, a publicação de uma pragmática251 contra
os hereges. O intuito era declarar ao público o que seria combatido pelo tribunal,
dando visibilidade ao que supostamente todos deveriam conhecer. A exortação
pública instruía a maneira adequada para serem realizadas as denúncias e também
eram formuladas instruções para que fossem cumpridas as disposições
redigidas.252 Os informantes e denunciantes eram mantidos em absoluto sigilo e
deviam jurar não estarem movidos pelo ódio, vingança ou qualquer contenda que
não estivesse relacionada ao simples “desencargo de consciência”.
Após o recebimento das denúncias, o Santo Ofício iniciava as
investigações preliminares, responsáveis por creditar ou não as informações
chegadas ao foro inquisitorial. Quando se fortaleciam as suspeitas sobre alguém,
dava-se início ao processo inquisitorial propriamente dito, expediente ao qual as
informações recolhidas deveriam ser anexadas para sua devida composição. Em
seguida a abertura dos expedientes, era feita a ratificação das testemunhas.

248
Cf. Anexo II.
249
O Sambenito (ou saco bendito) era o manto imposto pela Inquisição aos penitenciados, variando
em sua composição de acordo com a pena e a gravidade do delito cometido.
250
GREENLEAF, op. cit., 1992a, pp. 32-33.
251
Lei emanada de uma autoridade competente, publicada com o fim de remediar algum excesso,
abuso ou dano social. Diferia-se dos decretos reais e ordens gerais em seus protocolos de escrita e
formas de publicação.
252
EYMERICH, Nicolau. Directorium Inquisitorum. Rio de Janeiro: Rosa dos Tempos, 1993, pp.
97-116; CORCUERA DE MANCERA, op. cit., 2009, p. 28; GREENLEAF, op.cit., 1992a, pp. 32-33.
110

Encaminhavam-se a partir desse ponto os trâmites processuais para suas linhas


conclusivas. Faziam-se as leituras dos depoimentos recolhidos de forma individual
para cada testemunha do processo, que, por sua vez, deveria confirmar o que
estava escrito ou acrescentar mais informações caso julgasse necessário. Nesse
momento, eram igualmente formalizadas as defesas ou a confissão das acusações.
Ao final de tudo, pronunciava-se a sentença – o modo como iriam proceder com o
reconciliado ou a pena do herege obstinado. O fechamento do expediente
processual e seu arquivamento ocorriam no dia seguinte ao cumprimento das
penas, quando eram feitas as anotações acerca da execução pública da sentença.
Usualmente nos tribunais do Santo Ofício efetuava-se a prisão do
denunciado de forma sincrônica à abertura processual, isentando o réu de qualquer
conhecimento dos motivos de sua detenção. Como de costume aos tribunais
peninsulares, os indígenas processados pela Inquisição episcopal foram mantidos
encarcerados. Os acusados permaneciam presos ao longo de toda a tramitação dos
processos em uma prisão improvisada ao lado da sede do bispado. Favorecido pela
mercê real, Zumárraga organizou a casa episcopal junto à igreja “mayor” da cidade
do México. A propriedade comprada para o estabelecimento da diocese comportava
outras duas casas menores anexas, uma das quais o bispo aproveitou para
conformar o cárcere do tribunal.
A aquisição feita por Juan de Zumárraga pode ser verificada em uma
cédula, de agosto de 1533, onde o gabinete real autorizava o financiamento da
propriedade como patrimônio diocesano:

(…) D. Fr. Juan de Zumárraga, Obispo de México, nos hizo


relación, diciendo que él compró una casa en la dicha ciudad de México,
en que ha vivido e morado, que es junto a la iglesia mayor de la dicha
ciudad, con otras dos casillas más, que la una dellas sirve de cárcel, y en
la otra se han hecho campanas; (…) e porque sea casa obispal, tuvímoslo
por bien; e por la presente aprobamos e confirmamos la compra (…) 253

253
Cédula del Emperador, dada en Monzón a 2 de agosto de 1533. In: GARCÍA ICAZBALCETA, op.
cit., 1988, vol. 3, doc. 28, pp. 74-75.
111

A montagem da prisão inquisitorial junto à casa do bispo exemplifica


claramente o caráter do tribunal em seu vínculo diocesano. Igreja, inquisição,
residência episcopal, cárcere para os delituosos, tudo montado como em uma
junção de elementos fundamentais para plantar o cristianismo. Nos alvores da
colônia, Zumárraga parece cultivar os elementos que depois tomariam proporções
estruturais na vida cotidiana dos habitantes da Nova Espanha. A preocupação com
a organização de um local que retivesse os réus durante os processos não era mera
formalidade; antes, fazia parte de uma arquitetura jurídica do Santo Ofício. A prisão
inquisitorial sempre representou muito mais do que a simples restrição dos
indivíduos e a prevenção da fuga. Tratava-se de uma etapa estratégica, responsável
pelo abalo físico e psicológico do prisioneiro.254
O indivíduo processado ficava em isolamento completo, sem saber dos
encargos imputados ou quem o havia acusado. O sigilo era responsável por impedir
a inibição dos denunciantes, mantendo-os no anonimato, impedia a divulgação
pública das minúcias processuais e deixava o réu completamente a mercê dos
inquisidores.255 Normalmente, o réu era questionado se conhecia os motivos de sua
presença perante a Inquisição, em seguida, era exortado a confessar todos os seus
pecados, erros e possíveis deslizes contra o catolicismo. 256 É possível imaginar a
cena de completo desencontro cultural que os indígenas representavam diante do
inquisidor.
O juízo propriamente dito iniciava após a conclusão da fase
interrogatória, em que os depoimentos testemunhais eram recolhidos e o acusado
inquirido severamente. Era, então, feita a acusação formal cujos trâmites cabiam ao
fiscal do Santo Ofício que, por sua vez, deveria ser replicada pelo acusado em um
prazo máximo de três dias. Uma vez feita essa acusação, o réu poderia confirmar,

254
ALBERRO, Solange. Inquisición y Sociedad en México 1571-1700. México: FCE, 1993, p. 274.
255
PÉREZ MARTÌN, Antonio. La doctrina jurídica y el proceso inquisitorial. In: ESCUDERO, José A.
(ed.). Perfiles Jurídicos de la Inquisición Española. Madrid: Instituto de Historia de la Inquisición,
Universidad Complutense de Madrid, 1992, p. 289.
256
ESCUDERO, José A. Estudios Sobre la Inquisición. Madrid: Marcial Pons, 2005, pp. 28-30.
112

confessando os encargos, ou refutar por meio da representação de um defensor,


isto é, um “abogado de presos” ou “letrado”, como aparece referido na
documentação. A presença do abogado defensor esteve assegurada pelos trâmites
do Santo Ofício espanhol. 257 Todavia, um defensor designado pelo próprio tribunal
e que dependia do apoio do inquisidor não expressava confiança. Afinal, as
proposições contrárias e sustentadas pelo defensor corriam o risco de se
confundirem com as do preso, colocando-o em uma situação delicada, uma vez que
ele poderia se comprometer ao defender de forma mais acirrada os indivíduos que
o inquisidor considerasse hereges.258
A importante concessão de um defensor foi mantida, desde 1484, pela
Inquisição espanhola, mas, cada vez menos expressiva com o passar dos anos. A
atuação dos advogados e a indicação do defensor, nos casos contra indígenas,
ficaram a cargo do próprio inquisidor. Vicencio de Riverol, Alonso Pérez e Alonso
de Vargas aparecem nos trâmites processuais como os defensores nos inquéritos
da Inquisição episcopal259. O “licenciado” Vicencio de Riberol teve especial atuação
em meio aos indígenas processados por Zumárraga, contudo, as restrições
impostas pelo bispo impediram um maior significado das atividades do defensor.
No processo contra don Carlos Ometochtzin260, de Texcoco, a
convocação de testemunhas favoráveis (“testigos de descargo”) foi impedida pelo
inquisidor. Apesar da insistência para inclusão de depoimentos que pudessem
contradizer os acusadores, os esforços de Riberol não surtiram efeitos. O advogado
solicitou a prorrogação da sentença em nome de don Carlos no intuito de selecionar
as testemunhas que pudessem compor a defesa do réu:

Don Carlos, indio preso en la cárcel deste Santo Oficio, digo


que ayer se mandó hacer publicación en mi caso, e porque estando, como
yo estoy, preso, no he podido traer los testigos (...) [y] desta dicha probanza

257
EYMERICH, op. cit., 1993, p. 113-115; ESCUDERO, op. cit., 2005, pp. 29-30.
258
KAMEN, op. cit., 1966, pp. 226-227.
259
Cf. Anexo II
260
Cf. Anexo I, caso 11
113

depende mi defensa y todo mi descargo, según derecho, no se ha de


concluir la causa conmigo sin admitirme la dicha defensa (...) según
derecho, pido prorrogación del dicho término como tengo pedido, y quel
dicho auto se reponga (...)261

O pedido não teve efeito sobre o inquisidor. Zumárraga ordenou o


desenrolar dos procedimentos, afirmando que o atraso da sentença e a
convocatória de outros testemunhos não eram convenientes, pois tratava-se “más
[de] maliçia que defensa, y que no ha lugar”262. A mesma recusa na convocação de
testemunhos de descargo aparece no processo contra Miguel Pochtecatlailotlac.
Acusado de idolatria, Miguel tentou apelar diante da eminente tortura prescrita pelo
inquisidor:

Miguel, indio natural desta tierra, preso por el Santo Oficio,


digo que la sentencia del tormento en que estoy con daño es injusta; (…)
porque contra mí no hay probanza que baste, y en caso que alguna
probanza moviese, no será con testigos bastantes (...) Por tanto, pido y
suplico a vuestra Señoría Reverendísima mande reponer la dicha
sentencia de tormento y me reciba a prueba, de tachas263, pues nunca me
han recibido a prueba dellas (...)264

Pochtecatlailotlac foi torturado pelo Santo Ofício para que revelasse o


paradeiro de diversas efígies que, segundo os testemunhos, foram escondidas após
a chegada dos evangelizadores. Zumárraga recusou a apresentação de qualquer
argumento contrário (“tachas”) que liberasse o réu das averiguações do
procedimento de tortura: “el dicho Señor Inquisidor dijo que no es a lugar la
publicación que pide ni recibirle a prueba de las tachas que pide”265.

261
AGN, Inquisición, vol. 2 (part. 2), exp. 10, f. 338.
262
Ibidem, f. 338v.
263
Motivo legal para desestimular o pleito, testemunhos ou outra comprovação de inocência do réu.
264
AGN, Inquisición, vol. 37, exp. 3, f. 42.
265
Ibidem, f. 42v.
114

Ainda que os esforços de Vicencio de Riberol pudessem ser legítimos,


sua atuação como defensor estava submetida à aprovação do inquisidor. De acordo
com o historiador Henry Kamen, o “advogado dos presos” estava sujeito aos
mandos e desmandos do inquisidor e dependia dele, fundamentalmente, para obter
pagamentos ou quaisquer benefícios financeiros advindos dos processos.266 Apesar
das prescrições emanadas pelo protocolo inquisitorial, a presença do advogado
defensor nos inquéritos contra indígenas foi bastante irregular e pouco significativa,
não sendo rara sua completa ausência do processo de inquisição.
A recusa ou aceitação do defensor parece estar relacionada com o
prejulgamento do inquisidor. A atuação de Riberol foi nivelada mediante as certezas
ou incertezas de Juan de Zumárraga com relação à culpabilidade dos indivíduos
processados. O processo contra Alonso Tlilanci figura como o único caso em que a
defesa joga um papel realmente importante. O juiz aceitou conceder um prazo maior
ao indígena antes da sentença, dando mais chances de atuação a Riberol:

(…) Tlilanci, indio, y en nombre de cristiano se dice Alonso,


dice que en el término probatorio, por ser breve, no ha podido hacer su
probación, pide e suplica a vuestra Señoría Reverendísima le prorrogue
otros quince días de término, y pide justicia (…) 267.

O prolongamento na emissão da sentença altera consideravelmente o


destino do réu. Cumprindo o prazo estipulado, o advogado apresentou três vizinhos
do réu, moradores de Izucar, para falarem em sua defesa. Alonso foi descrito pelos
indígenas de seu povoado como bom cristão: “es público y notorio que el dicho
Tlilanci es cristiano bautizado, y por tal es habido y tenido en el dicho pueblo de
Izucar”268. Acusado por idolatria, o indígena foi interrogado sob tortura, antes que
Zumárraga aceitasse qualquer defesa. Quatro meses depois das sessões de

266
KAMEN, op. cit., 1966, pp. 226-227.
267
AGN, Inquisición, vol. 37, exp. 7, f. 92.
268
Ibidem, f. 94.
115

tormento jurídico, o indígena obteve a liberdade do cárcere inquisitorial. O caso era


formalmente inconclusivo, não existia amparo para a condenação de Tlilanci. A
incerteza do inquisidor ficava manifesta com o uso da tortura – recurso jurídico que
visava à confissão e, consequentemente, ao postulado como prova. 269
Reconhecendo a falta de sustentação dos acusadores e a não confissão
do acusado, mesmo sob tortura, foi pronunciada a inocência de Alonso Tlilanci:

Fallamos que el dicho Fiscal no probó su acusación según y


cómo probar la debía, por tanto, atento lo susodicho y el tormento que fue
dado al dicho Tlilanci, le debemos absolver, y absolvemos de lo que en
contra él sea procedido, y por esta nuestra sentencia definitiva juzgando,
así lo pronunciamos e mandamos en estos escritos e por ellos.270

Apesar da aceitação dos “testigos de descargo”, a concessão nunca


figurou ante o foro inquisitorial como garantia de inocência. O prisioneiro do tribunal
recebia uma cópia de sua acusação para auxiliá-lo a preparar qualquer defesa que
estivesse ao seu alcance. Entretanto, o conhecimento das causas acusatórias não
informava as minúcias dos testemunhos desfavoráveis e eram suprimidas toda e
qualquer referência aos nomes dos acusadores. Mais do que isso, eram retirados
do alcance do acusado qualquer indício que o levasse a estabelecer vínculos entre
a acusação e as testemunhas. Nesse sentido, as informações repassadas eram
vagas e com poucos detalhes. 271 Essa característica do processo inquisitorial
dificultava a defesa e obrigava ao inquirido apelar, apenas, para testemunhas que
comprovassem sua boa fama e caráter, impedindo-o de refutar com precisão as
acusações. Como pode-se observar no caso de Alonso Tlilanci, os vizinhos se
limitaram a abordar sua reputação de cristão batizado: “el dicho Tlilanci va a la

269
FOUCAULT, Michel. Vigiar e Punir. Petrópolis: Vozes, 2007, pp. 35-37.
270
Ibidem, f. 100.
271
KAMEN, op. cit., 1966, p. 227.
116

doctrina cristiana como buen cristiano, y le ha visto en misa y en los sermones, y


tener cargo de hacer llamar la gente para que vengan a oír la doctrina cristiana”272.
Os procedimentos inquisitoriais contra indígenas revelam, sobretudo, o
uso do advogado de presos como um instrumento do próprio Santo Ofício. E, tais
procedimentos efetuavam o que pode ser definido como um cumprimento
burocrático, porém, ao mesmo tempo, como mecanismo de verificação das
acusações em processos mais complexos. Zumárraga recusou o uso de defensores
em grande parte dos testemunhos, impossibilitando-os de recorrerem a recursos
que lhes fossem benéficos. Também, parece verossímil pensar que nem sempre o
pequeno tribunal podia contar com o corpo de funcionários adequados, diminuindo,
por consequência, a indicação de defensores.
Os réus indígenas acabaram se defrontando com uma situação
complexa a enfrentar. As precariedades e informalidades da diminuta maquinaria
do Santo Ofício episcopal deixavam os réus fadados a poucos recursos e à
circunstancialidade. Agravando o quadro, é inevitável pensar que poucos ou
nenhum indígena tivesse conhecimento do funcionamento da Inquisição,
principalmente, com relação às possibilidades de defesa ou medidas a serem
tomadas diante da eminência punitiva. Outra consideração fundamental está
relacionada ao sigilo com o qual eram levados adiante os processos inquisitoriais.
Afinal, uma das estratégias essenciais do Santo ofício foi nunca dar a entender por
completo seus modos de ação, deixando os indivíduos significativamente
fragilizados.
O “secreto” era, sem dúvida, um dos pilares fundamentais do
procedimento inquisitorial. No trato com os indígenas, os rigores do sigilo foram
mantidos na maior parte dos casos processados pelo bispo don Juan de Zumárraga.
No entanto, dois casos figuraram como exceções a essa regra: nos interrogatórios
de Antonio Tlacateccatl e Alonso Tlacochcalcatl273, assim como no processo contra

272
Ibidem, f. 95.
273
Cf. Anexo I, caso 1.
117

Alonso Tlilanci274, as denúncias foram lidas para os acusados: “fuele presentada la


dicha acusación”275. Esse procedimento era inusual por parte do inquisidor e foi
seguido pelos comentários dos acusados, que responderam, diretamente, ao que
lhes haviam imputado. Com exceção desses dois expedientes, as acusações foram
sempre difusas e pouco concretas em sua primeira apresentação aos inquiridos.
É possível pensar que a exceção quanto ao segredo nos casos contra
Antonio e Alonso estivesse relacionada com a falta de intimidade dos indígenas no
que diz respeito aos mecanismos jurídicos ocidentais. Diante do pouco
entendimento dos réus indígenas, Zumárraga não pareceu ter visto outra opção
senão a quebra do segredo nos procedimentos. Não obstante, como poderá ser
visto mais adiante, para evitar grandes exceções na procedura inquisitorial o
inquisidor contou com a participação e o auxílio dos evangelizadores. Eles foram
fundamentais nos procedimentos contra indígenas. Os regulares convocados pelo
bispo formaram um verdadeiro grupo de auxílio, fazendo parte do conjunto dos
partícipes processuais.
Guardadas as pequenas adaptações nos protocolos inquisitoriais, os
réus indígenas foram interrogados mediante as formalidades tradicionais. Antes das
perguntas específicas relacionadas de modo mais estreito às denúncias, eram
realizados questionamentos básicos. O intuito dessas primeiras arguições era
verificar o estado civil e as questões fundamentais da vida dos indivíduos. Os réus
indígenas foram especialmente questionados quanto à frequência nas missas, o
tempo em que se encontrava batizado e os conhecimentos doutrinários que
dominavam.
A título de exemplo, destaca-se um fragmento do interrogatório feito por
Zumárraga, em 1536, contra Martín Ocelotl 276, um sacerdote indígena:

[...] Preguntado qué tanto ha ques cristiano bautizado. Dijo


que ha once años. Preguntado dónde es vecino. Dijo que de Texcoco.

274
Cf. Anexo I, caso 13.
275
AGN, Inquisición, vol. 37, exp. 1, f. 6; AGN, Inquisición, vol. 37, exp. 7, f. 85v.
276
Cf. Anexo I, caso 3
118

Preguntado si, ha oído predicar a los frailes e a otras personas la doctrina


cristiana. Dijo que si, que después que hay frailes en Tezcoco, que ha más
de diez o doce años, ha oído siempre la doctrina cristiana, e predicarla.
[...]277

A abertura convencional dos interrogatórios estava amparada na


necessidade de confirmação do batismo dos indivíduos, frente aos quais pretendia-
se proceder: “si era bautizado y cuánto tiempo ha y quién le bautizó”278. Com relação
aos indígenas, observa-se, igualmente, o interesse em verificar o nível de instrução
catequética recebido: “Preguntado si sabe el Pater Noster y el Credo y el Ave
María"279. Outra adaptação à conjuntura autóctone aparece nas tentativas do
inquisidor em confirmar se os acusados faziam distinção entre certo e errado,
segundo os dogmas católicos. Não raras as vezes, arguia-se o acusado se tinha
noção delituosa de suas atitudes: “si ha oído decir a los padres, predicando, ques
prohibido decir las cosas por venir (...) e que después que cristianos que no han de
hacer sacrificios ni idolatrías, e que quien lo hiciese era herejía, e mal fecho”280.
O cumprimento dos protocolos de abertura dos interrogatórios era
fundamental à procedura inquisitorial. Eles conformavam a validade jurídica do
inquérito que apenas poderia seguir em frente mediante a certeza de batismo do
suspeito. Devido ao pouco tempo de conversão dos indígenas, o Santo Ofício
episcopal também buscou medir a instrução dos indígenas, agindo segundo a
averiguação da oposição entre o cristianismo e as devoções locais.
Esses procedimentos iniciais preludiavam o interrogatório mais intenso,
cuja intenção era acossar o acusado, deixando-o em uma posição de debilidade
que poderia incentivar uma confissão. Organizados a partir do sigilo das causas
imputadas, os interrogatórios induziam o réu a contar, da forma mais abrangente

277
AGN, Inquisición, vol. 38, exp. 4, f. 134.
278
AGN, Inquisición, vol. 30, exp. 10 (antes exp. 9), fs. 156v-157.
279
Ibidem.
280
AGN, Inquisición, vol. 38, exp. 4, f. 134.
119

possível, seus deslizes. O segredo processual forçava o aparecimento de novas


pistas e, até mesmo, outros suspeitos, uma vez que os réus não tinham real ideia
dos tópicos que deveriam abordar. 281

7. A barreira linguística

O funcionamento institucional do Santo Ofício sempre dependeu da


participação de diversos agentes para a consolidação de seus inquéritos. Ao serem
focados os trâmites do Tribunal episcopal do bispo Juan de Zumárraga e os
envolvidos na redação dos processos, é possível instituir, assim como nos tribunais
ibéricos, uma divisão tripartida. A eficácia do Santo Ofício dependia dos funcionários
inquisitoriais, dos declarantes e dos auxiliares.
Responsáveis pelos procedimentos formais e protocolares, assim como
pelas investigações acerca dos acusados, os membros do tribunal estavam
organizados em uma burocracia fixa, formando o corpo dos funcionários do Santo
Ofício.282 As testemunhas, os denunciantes e os réus compunham, por sua vez, o
corpo dos declarantes dentro dos processos. Claramente, os suspeitos inquiridos
estavam submetidos a uma dinâmica mais severa e a um rigor desproporcional em
relação aos demais interrogados. Sujeitos a um questionamento minucioso sobre
suas vidas e feitos, não se pode esquecer de que os acusados eram mantidos em
regime de segredo. Portanto, apresentavam-se ignorantes do porquê de suas
presenças diante do tribunal, sendo admoestados a apelar às suas “consciências”
acerca dos motivos pelos quais estavam sob juízo. Os termos de acusação eram
revelados apenas na finalização do processo; os réus desconheciam seus
denunciantes e acusadores, salvo em casos mais raros, como demonstrado
anteriormente. O terceiro conjunto de participantes estava composto pelos
consultores, intérpretes, qualificadores criminais, investigadores comissionados e

281
ESCUDERO, op. cit., 2005, pp. 28-30.
282
Cf. Anexo II.
120

demais colaboradores responsáveis por prestar auxílios específicos ao Santo


Ofício.
Esse grupo complementar foi em sua maioria formado pelo clero regular,
tanto na América quanto na Espanha. Era feito um apelo especial dos tribunais aos
eclesiásticos de grande erudição, os quais eram escolhidos de forma autônoma pelo
inquisidor de cada localidade.283 Nesse âmbito, cabe voltar a atenção para a
participação dos evangelizadores nos trabalhos da Inquisição episcopal. Afinal, os
responsáveis pela conversão e catequização das populações indígenas
compunham, massivamente, o contingente clerical disponível à consulta do Santo
Ofício.
Os regulares se destacaram, especialmente, como tradutores. Não
apenas em um sentido linguístico estrito, mas também, ao transpor as atitudes dos
réus para o enquadramento delituoso da inquisição. Ainda que a fragmentação de
alguns expedientes documentais impeça a averiguação do conjunto total dos
intérpretes-tradutores, nomes bastante conhecidos na historiografia podem ser
destacados, tais como os franciscanos frei Alonso de Molina, frei Antonio de Ciudad
Rodrigo e frei Bernardino de Sahagún. Sem dúvida, a maior participação nos
inquéritos recai sobre frei Juan Gonzáles, como é possível apreciar no Quadro I. O
vínculo mais estreito com a inquisição era fruto da proximidade mantida por
Gonzalez junto a Juan de Zumárraga. O bispo foi o responsável pela ordenação do
franciscano e orientação religiosa. De acordo com o cronista Jeronimo de Mendieta,
Gonzalez manteve grande amizade com o inquisidor. 284

283
BETHENCOURT, op. cit., 2000, pp. 134-135.
284
Juan González era parente do conquistador Ruy González e foi ordenado por frei Juan de
Zumárraga e frei Julián Garcés, bispo de Tlaxcala. Após receber o hábito, o franciscano passou
algum tempo no povoado de Ocuituco, na encomienda cedida ao bispo do México, onde parece ter
tomado familiaridade com línguas indígenas. Cf. MENDIETA, op. cit., 1993, Libro IV, Cap. III, pp.
369-370.
121

Quadro I - Participação dos Evangelizadores como Tradutores e Consultores

Clérigos AGN, Inquisición


Fr. Bernardino de Sahagún Vol. 42, exp. 17, f. 142-146;
Vol. 2 (part. 2), exp. 10, f. 237-340;
Fr. Antonio de Ciudad Rodrigo Vol. 2 (part. 2), exp. 10, f. 237-340
Fr. Alonso de Molina Vol. 2 (part. 2), exp. 10, f. 237-340
Fr. Juan González Vol. 37, exp. 3, fs. 20-46;
Vol. 2 (part. 2), exp. 10, f. 237-340;
Vol. 30, exp. 10 (antes exp. 9), fs. 148-171;
Vol. 42, exp. 19 (antes exp. 18), fs. 147-152;
Fr. Diego Díaz Vol. 37, exp. 1, fs. 1-10;
Fr. Alonso González Vol. 37, exp. 2, f. 11-17;
Fr. Alonso de Santiago Vol. 42, exp. 17, f. 142-146 e 10;
Vol. 37, exp. 3, fs. 20-46;
Fr. Andrés de Olmos Vol. 40, exp. 33 (antes exp. 8) fs. 174-181;
Pe. Bernardo de Isla Vol. 40, exp. 2, f. 7-13.
Fr. Hernando de Oviedo Vol. 37, exp. 7, fs. 85-102
Pe. Pedro López de Mendoza Vol. 30, exp. 6 (antes 7a), fs. 69-79 (antes 73-83)

Os intérpretes foram peças-chave nos processos contra os indígenas,


sendo responsáveis pelo intermédio entre as línguas nativas e o castelhano. O
auxílio na tradução não foi restrito aos padres evangelizadores. Zumárraga contou
com a presença permanente do espanhol Alonso Mateo, Alguacil285 e intérprete do
tribunal.286 Também figuraram junto aos procedimentos alguns indígenas sem
identificação pessoal, senão pelo vocativo nahuatlato, termo usado para designar
os intérpretes nativos.
A tradução das línguas autóctones, especialmente do náhuatl, foi parte
fundamental dos interrogatórios. As ocorrências de duplas traduções também
podem ser verificadas a partir da documentação processual, assim como ilustra o
processo inquisitorial contra Tlacateccatl e Tlacochcalcatl, no qual foi exigida a
presença de dois auxiliares para possibilitar os interrogatórios. Um dos intérpretes
foi responsável pela tradução do idioma otomíe para o náhuatl, enquanto o segundo

285
Oficial com autoridade jurídica investida pelo inquisidor.
286
Cf. Anexo II.
122

foi, consecutivamente, encarregado de fazer a transposição do náhuatl para o


castelhano.287 Apesar da presença do intérprete Alonso Mateo, ele parece ter se
mostrado insuficiente para o entendimento dos interrogatórios. Os evangelizadores
franciscanos acabaram se destacando por seu contato mais estrito com as
comunidades indígenas.
O aprendizado das línguas indígenas foi uma das primeiras decisões
estratégicas tomadas pelos evangelizadores. O náhuatl ganhou atenção especial
dos regulares, devido a sua vasta difusão na mesoamérica. Outras línguas também
foram alvo de aprendizado, contudo, em menor escala se compararmos ao idioma
falado pelos mexicas. O processo de instrução dos frades nas línguas indígenas foi
longo e variado em seus níveis de domínio. Muitos não tinham mais do que uma
rasa noção, enquanto outros alcançaram um maior desenvolvimento entre as
décadas de 1530 e 1540, quando começaram a surgir os primeiros sermões em
náhuatl.288 Porém, a compreensão mais aprofundada, levando em consideração o
aprofundamento conceitual do mundo nahua, deu-se em uma temporalidade mais
longa. Processo que teve como um de seus marcos as obras de Bernardino de
Sahagún.
A maior parte dos espanhóis não estava familiarizada com as línguas
indígenas. Essa barreira afetava ambos os lados, tanto os indígenas que tentavam
compreender a fala dos espanhóis, quanto os frades evangelizadores e
conquistadores, mais ou menos familiarizados com as línguas autóctones. O
distanciamento, por vezes, levava a situações de completa inadequação dos termos
utilizados no ato de interpretação dos enunciados. Ademais, o efeito muitas vezes
redutor das traduções consistia na ausência de terminologias adequadas, o que era
agravado pela imposição de valores e conceitos oriundos da tradição cristã
ocidental.289

287
AGN, Inquisición, vol. 37, exp. 1, fs. 1-10.
288
RICARD, Robert. La Conquista Espiritual de México. México: FCE, 1994, pp. 89-90;
DUVERGER, Christian. La Conversión de los Indios de Nueva España. México: FCE, 1993, pp.
135-152.
289
CORCUERA DE MANCERA, op. cit., 2009, p. 54.
123

Para o período que abrange a Inquisição episcopal de Zumárraga, as


dificuldades linguísticas eram um imperativo cotidiano. Um grande exemplo foram
as frequentes confusões dos notários que auxiliaram o inquisidor na transcrição dos
nomes indígenas. No momento da identificação dos indivíduos processados, ou
mesmo na nomeação das testemunhas, os cargos meritocráticos indígenas foram
ignorados. Os títulos públicos, vinculados às funções nos estados autóctones, foram
transformados em sobrenomes, assumindo a forma ocidentalizada. Cargos nahuas
como tlacateccatl e Tlacochcalcatl foram transcritos de forma confusa, assumindo
diversas formas de grafia: “tacastecle” e “taustecle”, “tacatle” e “tauxtecle” ou
“tacatecle” e “taustecele”.290 Os títulos designavam os guerreiros que ocupavam
cargos políticos e que foram bem-sucedidos na captura de cativos nas guerras e
disputas indígenas. Outro exemplo aparece no processo contra Miguel
Pochtecatlailotlac, cujo título tlailotlac indica um cargo de governante dentro das
unidades corporativas de parentesco ou calpolli.291
A simples corrupção dos nomes também foi recorrente nos documentos
inquisitoriais contra indígenas, como verifica-se no caso do especialista ritual
Ocelotl, da região de Texcoco. Seu nome foi grafado a partir de diversas corruptelas,
tais como “uçelo”, “uçeli” ou “uzelo”.292 A falta de reconhecimento era fruto da
incompreensão por parte dos membros da instituição inquisitorial diante das esferas
rituais e políticas das comunidades nahuas. 293 O inquisidor, os notários e os
intérpretes espanhóis ignoravam o status social ao qual os títulos faziam referência.
Os réus eram normalmente identificados pelo genérico termo de “principales” que,
no uso espanhol, destacava-os em meio aos demais indígenas (macehualtin).
Definição que incorre em um apagamento das especificidades da atuação social
dos indivíduos processados.

290
AGN, Inquisición, vol. 37, exp. 1, fs. 1-10; AGN, Inquisición, vol. 40, exp. 2, f. 7-13.
291
AGN, Inquisición, vol. 37, exp. 3, fs. 20-46.
292
AGN, Inquisición, vol. 38, exp. 4, fs. 133-142
293
TAVÁREZ BERMUDEZ, David. Las Guerras Invisibles: devociones indígenas, disciplinas y
disidencias en el México Colonial. México: CIESAS, 2012, pp. 76-77.
124

Levando em consideração a existência desse enorme abismo entre a


memória linguística indígena e a castelhana, qual seja, a diferença entre esses dois
universos culturais, é possível pensar no gesto de tradução-interpretação como uma
prática sujeita às dinâmicas de uma “retórica da alteridade”. A construção do outro
por meio da utilização de intérpretes dentro do foro inquisitorial era efetivada a partir
de categorias validadas pela instituição. No caso específico dos processos contra
indígenas, sejam os tradutores autóctones (nahuatlatos) ou espanhóis, a inscrição
do mundo indígena é feita por meio de uma classificação que obedeceu ao mundo
dos conquistadores. Como destacado por François Hartog, o exercício da tradução,
como operação de uma retórica da alteridade, tem por objetivo “transportar o outro
ao mesmo”, ainda que visando à equivalência das terminologias transpostas. Não
obstante, a adequação terminológica é feita por meio da “imposição de uma grade
conceitual” frente ao outro, “através da qual ele é decifrado e, portanto,
construído”.294
Os resultados dessas operações eram quase sempre ambivalentes e,
por consequência, criavam um clima de incompreensão com relação ao que estava
sendo dito. Não se trata, nesse sentido, de considerar um possível caráter arbitrário
da atividade inquisitorial, ainda que essa seja uma questão válida. Cabe considerar,
nesse momento, que, perante o Santo Ofício da Inquisição, as manifestações
devocionais não cristãs eram impugnadas de imediato. Uma vez cogitado o
regresso dos indígenas batizados a suas práticas devocionais, o tradutor “dejaba
de interesarse por trasladar el sentido entre el contexto ajeno y el propio. No se veía
la necesidad de atender a las razones del otro”295, como destacado pela historiadora
mexicana Sonia Corcuera. As respostas estavam pressupostas antes mesmo de
serem formuladas as perguntas. O nome de qualquer divindade ficava reduzido e
generalizado por termos como “demonio” ou “diablo”.

294
HARTOG, François. O Espelho de Heródoto: ensaio sobre a representação do outro. Belo
Horizonte: Editora UFMG, 1999, pp. 268-271.
295
CORCUERA DE MANCERA, op. cit, 2009, pp. 133-134.
125

Exemplo bastante ilustrativo aparece no interrogatório de Andrés


Mixcóatl, processado pelos crimes de idolatria e feitiçaria. É notável no expediente
como as atividades do indígena nos arredores da cidade indígena de Texcoco foram
transcritas a partir de categorias preestabelecidas e consolidadas no universo
jurídico-eclesiástico. Diante dos ouvidos inquisitoriais, Mixcóatl “declara que
haciendo que hacía Aquellas supersticiones, y hechicerías soñaba que el diablo le
hablaba y le decía”296. Caráter semelhante assumiram os testemunhos e denúncias
em que a descrição das atividades rituais foram recriadas mediante um campo
semântico bastante familiar às práticas persecutórias do Santo Ofício. No povoado
de Ocuituco as práticas dos antepassados foram circunscritas a partir de uma chave
de leitura diabólica: “de veinte en veinte días, en los tiempos que los indios en su
infidelidad solían hacer sus fiestas y ofrecimientos a los demonios”297.
Os termos “demonio”, “diablo” ou “idolo” efetivavam a mudança dos
valores, conformando a diversidade dos enunciados em valores alheios ao próprio
relato – transposição do arcabouço linguístico cultural evocado nas falas dos
inquiridos para categorias apreensíveis e menos confusas à lógica inquisitorial.
Dinâmica esta que tornava possível o funcionamento jurídico dos processos
operáveis, exclusivamente, em seus próprios termos. Em resumo, esse jogo na
tradução dos interrogatórios ampliava as deformações do que estava sendo dito
pelos réus e testemunhas, ao mesmo tempo que justificava a ação inquisitorial ao
proporcionar uma leitura herética das manifestações indígenas.
A mediação proporcionada pelos evangelizadores e outros intérpretes foi
o elemento fundamental para as intervenções punitivas. Aspecto que se fez mais
pujante no recolhimento das denúncias e na condução dos indígenas ante a
inquisição. Como será visto adiante, o enraizamento do tribunal episcopal obedeceu
à difusão e atuação dos regulares franciscanos.

296
AGN. Inquisición, vol. 38, exp. 7, fs. 197-197v.
297
AGN, Inquisición, vol. 30, exp. 10 (antes exp. 9), fs. 149v.
126

III
ENRAIZAMENTO, TRAMAS E PERSEGUIÇÕES

“(...) Los frailes tarde ó temprano venian á


saber todo lo que pasaba, porque los ya
convertidos y firmes en la fe los avisaban
(...)”
(Frei Jerónimo de Mendieta)
127

1. Denúncia

A Inquisição episcopal, idealizada por frei Juan de Zumárraga, em seu


trato com os indígenas do centro do México, poucas vezes demandou uma denúncia
formal para iniciar seus procedimentos. O início das investigações e a abertura dos
processos foram realizados, em grande parte dos casos, pelo bispo inquisidor e
seus auxiliares de forma autônoma. Por meio dos pressupostos jurídicos
estabelecidos para o funcionamento do Tribunal da Fé, duas formas eram usuais
para a abertura processual contra um ou mais indivíduos. A primeira concerne à
denúncia, princípio visto como ideal a todo cristão diante de práticas heréticas, ou
mediante a desconfiança de qualquer prejuízo ou atentado contra a fé cristã. A
segunda forma consistia no processo por inquisição, mais usual nos casos
protagonizados por indígenas e não demandava a apresentação de denúncia
prévia.298
Os inquéritos iniciados pelo Santo Ofício sob a forma inquisitiva podiam
ser subdivididos em outros dois princípios de ação do tribunal: a inquisição
informativa ou geral e a inquisição punitiva ou especial. Quando existiam rumores
ou suspeitas de heresia em uma cidade ou povoado, detectados em boa parte dos
casos pelas visitas inquisitoriais, os juízes de fé estavam autorizados a procederem
com investigações sem qualquer denúncia (inquisição informativa). Da mesma
forma, os inquisidores estavam autorizados a processar quaisquer pessoas – vivas
ou mortas – cujo caráter ou fama herética se tornasse público (inquisição
punitiva).299 Em caso de falecimento, tais indivíduos corriam o risco de terem seus
túmulos exumados, os restos mortais condenados à fogueira ou banidos das
delimitações dos cemitérios. A queima em efígie também era comum àqueles

298
PÉREZ MARTÍN, Antonio. La doctrina jurídica y el proceso inquisitorial. In.: ESCUDERO, José A.
(ed.). Perfiles Jurídicos de la Inquisición Española. Madrid: Instituto de Historia de la Inquisición,
Universidad Complutense de Madrid, 1992, pp. 292-295.
299
PÉREZ MARTÍN, loc. cit.
128

condenados que faleciam ou tinham sucesso em fugir do encarceramento. 300


Comparados aos processos ordinários e criminais, a ordem e a forma dos
procedimentos inquisitoriais podiam apresentar diversas exceções. Tratava-se de
uma das características fundamentais do Santo Ofício, pois seus expedientes eram
mais flexíveis e, por vezes, abriam mão de certas formalidades. 301
Tomando o total de casos protagonizados por indígenas, investigados ou
processados pela Inquisição episcopal, entre 1536 e 1543, apenas nove, em um
total de 21 expedientes, possuem denunciantes diretos. 302 Outros 5 casos foram
iniciados de forma autônoma pelo inquisidor, levando em consideração as
informações que chegaram ao seu conhecimento por meio de comentários, rumores
e denúncias informais. 303 Os sete casos restantes não contam com informações
acertadas que possam sugerir com precisão a forma que chamaram a atenção
inquisitorial, estando compostos apenas dos detalhes investigativos e do
recolhimento de testemunhos. 304 A ausência formal da denúncia é concebível
tomando por base o pressuposto de que as informações poderiam chegar ao
tribunal de forma indireta, seja por rumores, cochichos ou informações procedentes
de casos anteriores. Esses inquéritos eram encetados pelo inquisidor, uma vez que
sua autoridade não dependia de denunciantes para formalização dos processos,
levando em conta o caráter significativo das suspeitas.

300
A execução em efígie demonstra a função intimidadora visada a partir da pena, administrada pelo
Santo Ofício para exemplo e lição social – caráter inerente às penas inquisitoriais e, evidenciado,
também, na plasticidade dos autos de fé e nos atavios dos penitentes.
301
PÉREZ MARTÍN, op. cit.,1992, pp. 292-295.
302
Cf. Anexo I, casos 1, 4, 5, 8, 10, 11, 16, 17 e 20.
303
Cf. Anexo I, casos 2, 3, 6, 18 e 19.
304
Cf. Anexo I, casos 7, 9, 12, 13, 14, 15 e 21.
129

Quadro II – Denunciantes

Casos Denunciantes AGN, Inquisición


1 Lorenzo Suárez (Encomendero espanhol) Vol. 37, exp. 1, fs. 1-10
2 Não consta Vol. 40, exp. 5 (bis), fs. 111-112
3 Não consta Vol. 38, exp. 4, fs. 132-142
4 Don Juan, cacique de Xiutepec Vol. 38, exp. 7, fs. 182-202
(acompanhado dos frades Francisco de
Litorne e Francisco Ximénez)
5 Elvira de Herrera (espanhola) “Legajos Sueltos”
6 Não consta Vol. 23, exp. 1, f. 3-9
7 Não consta Vol. 40, exp. 2, f. 7-13
8 Indio Alguacil de Azcapotzalco Vol. 37, exp. 2, f. 11-17
9 Não consta Vol. 42, exp. 17, f. 142-146
10 Mateo de México (tlacuilo), acompanhado de Vol. 37, exp. 3, fs. 20-46
Zumárraga
11 Francisco de Chiconauhtla Vol. 2 (part. 2), exp. 10, f. 237-340
12 Não consta Vol. 30, exp. 10 (antes exp. 9), fs. 148-171
13 Não consta Vol. 37, exp. 7, fs. 85-102
14 Não consta Vol. 36, exp. 7 (antes exp. 6), fs. 224-225
15 Não consta Vol. 42, exp. 19 (antes exp. 18), fs. 147-152.
16 Antonio Xoyocontle (irmão dos acusados); a Vol. 212, exp. 7, fs. 42-94 (antes fs. 29-81).
denúncia foi feita ao padre Cristóbal García,
vicário e sacerdote de Totolapan
17 Cinco indígenas acompanhados por fr. Vol. 1, exp. 6, fs. 6-8 (antes fs. 5-7)
Antonio de Aguilar
18 O processo é iniciado por informações Vol. 37, exp. 2, fs. 18-19
recolhidas a mando de Zumárraga
19 Não consta Vol. 40, exp. 33 (antes exp. 8) fs. 174-181.
20 Domingo; Luan e Ana (esposa de Juan de Vol. 40, exp. 32, fs, 172-173
Iguala)
21 Não consta Vol. 30, exp. 6 (antes 7a), fs. 69-79 (antes
73-83)

As denúncias recebidas pelo inquisidor Juan de Zumárraga foram,


marcadamente, de origem indígena, e a presença de espanhóis figurou em apenas
dois casos investigados. O primeiro caso denunciado por espanhóis foi o processo
contra os irmãos Antonio Tlacateccatl e Alonso Tlacochcalcatl 305, denunciados por
Lorenzo Suárez, um encomendero da região de Tlanocopan 306 (Quadro II, caso I).
Dirigindo-se ao encontro do bispo Zumárraga, Suárez se queixou dos indígenas que

305
Cf. Anexo I, caso 1.
306
Tlanocopan pertencia à região de Teotlalpan, posteriormente conhecida como Valle del Mezquital.
130

faziam pouco caso em comparecer na igreja do povoado. Segundo o relato do


encomendero, a ausência dos irmãos nas doutrinações evangélicas fez com que
ele suspeitasse do paradeiro de Antonio e Alonso. E cabia aos encarregados das
encomiendas a responsabilidade de encaminharem os neófitos para as
doutrinações de suas respectivas áreas.307 Ao buscar os irmãos, Suárez foi
informado por Diego Xuitl, um habitante local, que ambos eram encarregados de
preparar cerimônias às deidades locais e iniciarem jovens indígenas ao
sacerdócio.308
cOutra denúncia levada ao Santo Ofício, desta vez, por uma espanhola
foi o caso de Ana de Xochimilco309, uma “curandeira” indígena, cujas atividades
chegaram aos ouvidos do inquisidor por Elvira de Herrera (quadro II, caso 5) . A
espanhola se deparou com os trabalhos de Ana em sua própria casa, onde a
curandeira havia comparecido para socorrer uma das criadas indígenas que
trabalhavam para Elvira. Para o ritual de cura, Ana fazia uso de copal e atribuía as
enfermidades da criada à influência do deus Tezcatlipoca. A denunciante se
deparou escandalizada com o ritual e decidiu recorrer de imediato a Juan de
Zumárraga no intuito de relatar o que viu em sua casa. No início de abril de 1538,
Diego de Mallorga, na função de notário da Inquisição, registrou o comparecimento
da espanhola:

En este santo oficio de la Inquisición (...) pareció presente


Elvira de Herrera, mujer de Diego Olguín, e dijo que por descargo de su
conciencia viene a decir a este Santo Oficio lo que sabe de una india
curanteca de las que curan, que es de Xochimilco, (...) la cual vino a casa
de esta denunciante a curar otra india suya que estaba mala (...).310

307
GONZALBO AIZPURU, Pilar. Historia de la Educación en la Época Colonial: el mundo
indígena. México: El Colegio de México, 2008, p. 32.
308
AGN, Inquisición, vol. 37, exp. 1, fs. 1v-2v.
309
Cf. Anexo I, caso 5.
310
Proceso del Santo Oficio contra una India. In.: Boletín del Archivo General de la Nación,
México, t. XII, vol. 2, p. 207-214, ano 1941, p. 21.
131

Já os denunciantes indígenas aparecem como figuras substanciais para


a abertura dos processos. O próprio Suárez foi auxiliado por Diego Xuitl na
descoberta acerca dos afazeres nos quais os irmãos Alonso e Antonio estavam
envolvidos. Nesse sentido, ao que tudo indica, apenas o caso de Ana de Xochimilco
esteve desprovido do auxílio de membros da região. Não obstante, os processos
que contam com delatores indígenas não estiveram isentos da presença de pessoas
alheias às suas comunidades. Os denunciantes foram quase sempre assessorados
pelos frades evangelizadores, encarregados da cristianização dos pueblos.
Em julho de 1538, o processo contra o sacerdote Andrés Mixcóatl 311 foi
iniciado após a denúncia de don Juan, cacique de Xiutepec (Quadro II, caso 4). Na
ocasião, o caso foi acompanhado pelos frades Francisco de Litorne e Francisco de
Ximénez, ambos encarregados por Zumárraga para recolherem as provas
necessárias visando à composição do processo.312 Don Juan foi levado pelos dois
franciscanos para que pudesse relatar ao inquisidor o que sabia sobre as atividades
de Mixcóatl. Um ano depois, o próprio bispo Juan de Zumárraga encaminhou um
Tlacuilo313, chamado Mateo, para prestar denúncia ao Santo Ofício (Quadro II, caso
10). O pintor indígena da cidade do México foi uma das testemunhas mexicas da
queda de Mexico-Tenochtilan, em 1521, sob ataque dos espanhóis e de seus
aliados indígenas. Mateo tinha informações especiais sobre o paradeiro dos “ídolos”
do Templo Mayor. Em conversa com Zumárraga, foram revelados alguns detalhes
sobre a dispersão de efígies e os nomes de alguns responsáveis pelo trânsito das
imagens.314 Talvez, com o intuito de ganhar a confiança do bispo franciscano, Mateo
terminou como denunciante no processo contra Miguel Puchtecatlailotlac 315, cujos
trâmites revelaram ao Santo Ofício a existência de uma complexa rede para
resguardo das efígies divinas, após a derrota mexica.

311
Cf. Anexo I, caso 4.
312
AGN. Inquisición, vol. 38, exp. 7, fls. 183v e 196f.
313
Pintor indígena.
314
AGN, Inquisición, vol. 37, exp. 3, fl. 20.
315
Cf. Anexo I, caso 10.
132

Os franciscanos que estavam a cargo do Colégio de Santa Cruz de


Tlatelolco também auxiliaram os trabalhos inquisitoriais ao ampararem um de seus
alunos, Francisco de Chiconautla, em uma desavença familiar (Quadro II, caso 11).
O aluno do Colégio franciscano foi severamente advertido por seu tio don Carlos
Ometochtzin316 devido à sua adesão aos ensinamentos dos evangelizadores. Don
Carlos terminou na fogueira meses depois da denúncia de seu sobrinho e foi
executado como Herege dogmatizador. Don Juan de Zumárraga foi pessoalmente
à igreja de Tlatelolco para receber a denúncia de Francisco. O inquisidor estava
acompanhado do notário Miguel López de Legazpi e amparado pelos intérpretes
que ensinavam no Colégio de Santa Cruz. Assinaram o corpo do processo os frades
Antonio de Ciudad Rodrigo, Alonso de Molina e o jovem Bernardino de Sahagún.
Francisco de Chiconautla não foi o único a se envolver na denúncia de
parentes à Inquisição, Antón Xoyocontle, do povoado de Totolapan, decidiu
denunciar os irmãos ao vicário local (Quadro II, caso 16). Frei Cristóbal García foi o
responsável por repassar ao inquisidor as acusações de idolatria e concubinato
feitas por Antón contra seus irmãos Pedro e Antonio 317. Frei Antonio de Aguilar, da
Ordem de Santo Agostinho, também foi responsável por remeter indígenas à
presença do inquisidor (Quadro II, caso 17). O intuito do agostiniano era que alguns
indígenas do pueblo de Ocuila denunciassem Miguel Tezcacoatl 318, um dos
membros da comunidade, pelo crime de idolatria.
Apenas dois outros casos aparecem com denúncias feitas por indígenas,
mas a documentação não deixa claro se houve ou não o auxílio de terceiros. O
primeiro trata-se da denúncia contra o cacique don Juan de iguala319, entregue ao
trato inquisitorial por sua esposa, doña Ana, e dois nobres indígenas do mesmo
povoado (Quadro II, caso 20). Don Juan foi acusado de estuprar uma mulher na
igreja do povoado de Iguala durante a quaresma e, depois, um jovem, de mais ou
menos dez anos de idade. Foi relatado ainda que o cacique mantinha relações com

316
Cf. Anexo I, caso 11.
317
Cf. Anexo I, caso 16.
318
Cf. Anexo I, caso 17.
319
Cf. Anexo I, caso 20.
133

várias concubinas, maltratava a esposa, era idólatra e promovia sacrifícios. Além


disso, impedia o batismo dos filhos e fazia pouco caso do trabalho dos
evangelizadores. As denúncias foram remetidas por escrito ao inquisidor que se
encontrava distante da região de Iguala. No corpo do documento não constam sinais
que possam fazer referência ao redator da denúncia, no entanto, parece plausível
supor que se trata de alguém de fora do mundo indígena. Não constam assinaturas
ao final do documento, apesar de ter sido escrito em primeira pessoa, isto é, dando
voz aos denunciantes indígenas. A não apresentação de firmas é intrigante e
estranha a indivíduos alfabetizados. Outro detalhe importante aparece quando se
atenta ao ductus caligráfico do escritor. A redação das denúncias sugere que se
tratava de um único escritor, cuja escrita demonstra que estava bastante à vontade
com a prática do castelhano. 320 Não parece inverossímil pensar na redação por
mãos de um redator eclesiástico, bem versado e que soube encaminhar a coleta
dos depoimentos e sua posterior remissão ao inquisidor.
Uma verdadeira exceção, entre os expedientes com denunciantes
indígenas, pode ter lugar no processo contra alguns membros da região de
Azcapotzalco (Quadro II, caso 8), onde o alguacil321 indígena do lugar recorreu de
forma autônoma ao tribunal episcopal:

[...] pareció presente un indio alguacil, vecino De


Azcapotzalco, e trujo ante su señoría ciertos ídolos hechos de bulto y otras
cosas de sus sacrificios e ritos, que dijo haberlos hallado en casa de y
porque sean castigados de sus hierros e delitos e otros entuertos, tomen
castigo y ejemplo, presentó ante su señoría las dichas cosas de ritos e
sacrificios e ídolos, y con ellos a Miguel, indio que en lengua mexicana se
dice Quiao, y a Pedro e Juan, indios naturales del dicho pueblo de
Azcapotzalco, que guardaban los dichos ídolos y les ayunaban y
sacrificaban, e así mismo trujo a Tacuxcalcatl e a Huycinaval e a Tacatecle,

320
AGN. Inquisición, vol. 40, exp. 32, fls. 172-173.
321
Neste caso, trata-se de um alguacil civil, isto é, um oficial inferior de justiça, designado para uma
municipalidade, com faculdade de prender e encaminhar supostos delinquentes a um juiz de
nomeação real.
134

principales del dicho pueblo de Azcapotzalco, por cuyo mandado dicen que
se hacían los dichos sacrificios e ceremonias [...].322

A proximidade do denunciante (cujo nome não aparece referenciado no


expediente inquisitorial) com a administração espanhola pode estar diretamente
relacionada com seu depoimento no Santo Ofício. Afinal, o indígena ocupava o
cargo de alguacil, cujas atribuições incluíam a vigilância e o encaminhamento de
infratores ao poder real. O vice-rei don Antonio de Mendoza já havia encarregado
outros indígenas a cooperarem com os regulares no combate à idolatria, tal qual
aparece em seus primeiros mandamentos para o vice-reino da Nova Espanha.323
O impulso do alguacil de Azcapotzalco figura de forma distinta dos outros
expedientes e, sobretudo, destoava do encaminhamento de denunciantes
indígenas feito pelos evangelizadores à Inquisição. Ao direcionarem e auxiliarem a
delação entre os indivíduos de uma mesma localidade, os clérigos potencializavam,
consideravelmente, o valor dos depoimentos de denúncia. Afinal, ninguém mais que
os próprios integrantes dos grupos indígenas para poderem identificar e presenciar
as cerimônias clandestinas. Apenas com a cooperação autóctone, era possível
saber os detalhes a respeito daqueles que permaneciam cultuando suas divindades,
escondendo efígies e atributos sagrados longe dos olhos dos evangelizadores.

2. Recurso Inquisitorial

A presença marcante dos regulares responsáveis pela evangelização


dos indígenas nos processos inquisitoriais demonstra uma certa indução dos
indígenas à busca do recurso inquisitorial. Para além da importância jurídica dada
à participação de indivíduos dos grupos locais como testemunhas aceitáveis para

322
AGN, Inquisición, vol. 37, exp. 2, fl. 11v.
323
Mandamientos del Virrey D. Antonio de Mendoza (1537-1550). In.: Boletín del Archivo General
de la Nación, México, t. X, vol. 2, p. 213-311, Ano 1939, pp. 235-236.
135

comprovar os delitos, os clérigos também incentivavam um comportamento


fundamental ante os tribunais de fé. Aos olhos dos frades, fomentar a denúncia dos
inimigos da fé cristã significava a formação de uma conduta desejável, que
proporcionava o desencargo de consciência diante dos pecados alheios324 –
comportamento pressuposto naqueles que desembarcavam da península, como
bem exemplifica o citado caso de Elvira Herrera que denunciou Ana, a curandeira
de Xochimilco (quadro II, caso 5).
A presença dos evangelizadores nos inquéritos do Santo Ofício não é
estranha quando se atenta para a falta de familiaridade da população autóctone do
centro do México quanto aos protocolos das instituições espanholas. Também não
é possível descartar a pré-disposição de alguns indivíduos a denunciarem outros.
Os indígenas que estiveram sob maior contato com os espanhóis aprenderam
rapidamente a fazer uso da presença dos frades em benefício próprio. Como notado
pelo historiador Robert Ricard, muitos podem ter falado dos próprios vizinhos aos
padres no intuito de resolverem intrigas que pouco se relacionavam com o
cristianismo.
Os simpatizantes com a causa dos evangelizadores espionavam os
gestos praticados pelos que se recusavam a abdicar de seu passado. Incentivados
a denunciarem os membros de suas próprias comunidades, os indígenas, não raro,
utilizaram desse recurso objetivando se livrarem de algum inimigo ou concorrente
político.325 Em resumo, ao incentivarem as denúncias e auxiliarem na busca do
recurso inquisitorial, os frades introduziam uma conduta ética almejada para a
formação das novas comunidades cristianizadas. Mas, também, criavam condições
para o agravamento das tensões entre os núcleos indígenas, intensificando
rivalidades e possíveis retaliações.
A participação dos frades evangelizadores nos procedimentos
encabeçados por frei Juan de Zumárraga foi fundamental. Em meio ao
funcionamento da Inquisição episcopal, os regulares ocuparam os papéis de

324
PÉREZ MARTÍN, op. cit., 1992, pp. 286-287.
325
RICARD, Robert. La Conquista espiritual de México. México: FCE, 1994, pp. 397-398.
136

intérpretes, consultores e, por vezes, de investigadores e responsáveis por provar


as imputações contra os indígenas. O inquisidor aproveitou, na formação dos
expedientes inquisitoriais, as habilidades dos evangelizadores mais versados nas
línguas indígenas, tais como Bernardino de Sahagún, Antonio de Ciudad Rodrigo,
entre outros (Quadro I), sem, no entanto, excluir o uso de tradutores de origem local
que detinham algum conhecimento do castelhano ou que manejavam vários idiomas
indígenas. Outros clérigos assumiram comissões inquisitoriais e foram
encarregados pelo Santo Ofício de investigarem as denúncias que recebiam de
localidades mais afastadas da cidade do México (Quadro III). E o uso da distribuição
dos frades ampliou a territorialidade de alcance da Inquisição episcopal. Ainda que
a pequena instituição não pudesse lidar com grandes quantidades de materiais
coletados, a extensão de suas possibilidades de ação significava um maior alcance
das medidas punitivas.

Quadro III – Investigadores Comissionados nos Expedientes Contra


Indígenas

Clérigos AGN, Inquisición


Fr. Andrés de Olmos Vol. 40, exp. 33 (antes exp. 8) fs. 174-181
Fr. Bernardo de Isla Vol. 40, exp. 2, f. 7-13
Fr. Juan González Vol. 30, exp. 10 (antes exp. 9), fs. 148-171
Fr. Hernando de Oviedo Vol. 37, exp. 7, fs. 85-102
Fr. Pedro López de Mendoza Vol. 30, exp. 6 (antes 7a), fs. 69-79 (antes 73-83)

A cooperação do clero regular – tanto na condução dos indígenas ao


foro inquisitorial, quanto na participação dos procedimentos jurídicos – expressa
uma ligação estreita entre os procedimentos inquisitoriais e a evangelização do Vale
do México e seus arredores nas primeiras décadas da conquista espanhola. Em
1537, Zumárraga deixou claro nas instruções aos seus representantes para o
137

Concílio Universal convocado por Paulo III que a efetiva conversão dos indígenas
pressupunha mais do que atitudes brandas e de doutrinação catequética. Segundo
o franciscano “así como tienen los naturales necesidad de ser atraídos a nuestra fe
con benignidad y amor, así después que son miembros de la Iglesia han menester
muchas veces algún piadoso castigo”326. Os pressupostos evangélicos do bispo
inquisidor estavam pautados por uma concepção paternalista. Zumárraga prezava
pela tutela e condução dos novos neófitos, sem desconsiderar a repressão punitiva
de pensamentos e comportamentos indesejados. Para Zumárraga, era preciso
“castigar como padre a los indios por los delictos que cometieren después de
baptizados, y compelerlos a venir a la doctrina y a los oficios divinos, las fiestas y a
las otras cosas a que la religión cristiana los obliga”327.
A estrutura inquisitorial montada pelo primeiro bispo do México obteve
por meio dos evangelizadores suas ramificações. Essa correspondência entre o
bispado e os regulares distribuídos nas províncias prescrevia aos desígnios do
próprio Zumárraga. Desde muito cedo, o bispo clamou por uma maior interação
entre os membros da Igreja, principalmente, no intuito de montar uma frente de
combate à heterodoxia dos novos conversos. O bispo exortou os frades das três
ordens – franciscanos, dominicanos e agostinianos – para que se alistassem “en la
milicia de Cristo, e incorporados en sus ejércitos y banderas, ir rescatar las gentes
oprimidas por la tiranía del demonio, y atraerlas a la libertad cristiana”.328 Os usos
de metáforas que associavam o clero regular a soldados ou forças militares
(“milicia”, “ejército”) eram comuns nos discursos religiosos da época e as analogias
não eram exclusivas dos franciscanos ou de frei Juan de Zumárraga, sendo o uso
dessas figuras de linguagem característica os momentos de tensão religiosa, além

326
Instrucción de Don Fray Juan de Zumárraga a sus procuradores ante el Concilio Universal. –
México, febrero de 1537 In.: CUEVAS, Mariano (org.). Documentos Inéditos del Siglo XVI Para la
Historia de México. México: Ed. Porrúa, 1975, doc. XIV, p. 68.
327
Ibidem, p. 69.
328
Pastoral o Exhortación a los Religiosos de las Ordenes Mendicantes, Para que Pasen a la Nueva
España y Ayuden a la Conversión de los Indios (1536?). In.: GARCIA ICAZBALCETA, J. Don Fray
Juan de Zumárraga. México: Editorial Porrúa, 1988, vol. 3, doc. 29, pp. 81.
138

de ser possível verificar a mesma correlação em outras ordens e outras


conjunturas.329
A vitória na guerra contra as forças diabólicas dependia, nas falas do
bispo, da harmonia e do trabalho conjunto dos evangelizadores. A Inquisição
montada junto à estrutura episcopal aparece, nessa conjuntura, como elemento
doutrinador, figurando no combate como uma das armas que dispunham os
religiosos. Frente ao pensamento pronunciado de Zumárraga, o Santo Ofício
emerge como um mecanismo privilegiado para manter os indígenas no caminho
almejado. A presença dos evangelizadores nos procedimentos inquisitoriais
demonstra, da mesma forma, a amplitude da legitimidade alcançada das políticas
eclesiásticas estabelecidas pelo bispo com relação aos demais regulares. Em
consequência, não parece estranho o auxílio dos evangelizadores no cumprimento
dos empreendimentos de combate ao mundo diabólico, no qual assumia-se que os
indígenas estavam inseridos.
No mesmo eixo, é plausível situar a dinâmica das informações que
chegavam ao inquisidor e o motivavam a iniciar as investigações sem a menor
necessidade de denúncia prévia. O trabalho inquisitorial com a população indígena
estava, integralmente, centralizado na figura do bispo. Zumárraga era informado de
maneira constante pelos regulares acerca dos progressos da catequese e das
resistências que eles enfrentavam ao tentarem romper com a continuidade das
devoções de cada região.
Alguns eclesiásticos chegaram a remeter informações de forma
autônoma ao Santo Ofício, sem ao menos serem comissionados para tanto. Com o
auxílio das lideranças indígenas, os indivíduos processados pela Inquisição foram,
por vezes, prontamente investigados e remetidos em direção aos cuidados do

329
A correlação é mais frequente entre os jesuítas, fazendo uma referência explícita ao passado
militar de Inácio de Loyola. Cf. TAVARES, Célia C. da Silva. Jesuítas e inquisidores em Goa: a
cristandade insular (1540-1682). Lisboa: Roma Editora, 2004, p. 98 e MARCOCCI, Giuseppe. A
Consciência de um Império: Portugal e o seu mundo (sécs. XVI-XVII). Coimbra: Imprensa da
Universidade de Coimbra, 2012, p.376.
139

inquisidor. Foi o caso das informações levantadas contra Andrés Mixcóatl, feitas por
frei Francisco de Litorne, também responsável por sua captura com a cooperação
de alguns de seus discípulos indígenas – “lo prendieron unos diçipulos nuestros”330.
Mixcóatl foi entregue ao Santo Ofício, na cidade do México, junto às “probanzas”
feitas por Litorne, o qual aconselhava a administração do castigo no que concerne
ao mau exemplo e prejuízos causados pelo réu à evangelização:

(...) Esa probanza que ay va lo verá, hemos la hecho para que


con más brevedad vea las bellaquerías deste, y para que vuestra Señoría
sepa que si quisiere tomar testigos contra él que los hay a faz. Llévanlo ay
a vuestra Señoría para que lo castigue porque en la verdad ha destruido y
pervertido mucha gente de la comarcana a este pueblo, y vuestra Señoría
en ello hará muy gran servicio a Dios (...)331

Outro caso esclarecedor dos esforços que cooperaram com a Inquisição


episcopal no que se refere aos indígenas foi o processo contra don Juan, cacique
de Matlactlan332. As investigações do expediente contra don Juan foram feitas de
forma integral por frei Andrés de Olmos, em dezembro de 1539, a partir do
recolhimento de informações e sua posterior remissão ao inquisidor. O intuito de
Olmos era levantar as informações necessárias para um procedimento formal: “para
proçeder algo más jurídicamente, hize y ordené el seguiente interrogatorio por
donde los testigos fuesen preguntados”333. O antigo companheiro de Zumárraga em
sua cruzada contra as bruxas de Vizcaya tomou a iniciativa nas investigações contra
don Juan, cuja conduta de “mal cristiano, idólatra y amancebado”334 era perniciosa
aos olhos do franciscano.
A proximidade de Zumárraga e Olmos não estava apenas em suas
origens ao norte da Península Ibérica. Ambos franciscanos compartilhavam a

330
AGN. Inquisición, vol. 38, exp. 7, f. 196.
331
Idem.
332
Cf. Anexo I, caso 19.
333
AGN, Inquisición, vol. 40, exp. 33 (antes exp. 8) f. 176.
334
Ibidem, f. 175f.
140

perspectiva da necessidade de maiores rigores na administração de castigos para


os indígenas batizados e que incutiam em seguidos erros contra o cristianismo. Para
Olmos, o cristianismo já não se tratava de algo novo na vida dos ditos “naturales”:
“no hay que decir que son nuevos, que XX años ha que tienen noticia de Dios
verdadero”335. Os “frutos” do trabalho evangélico necessitavam, segundo Olmos, de
um caráter coercitivo para surgirem: “pues si siempre es mayo y no ay invierno para
que los árboles tornen sobre si, poco o ningún fruto llevará”336. A relação metafórica
com as estações do ano emerge na fala dele estabelecendo um paralelo com as
etapas que o franciscano pressupunha para a evangelização. O castigo “piadoso”
está para os novos convertidos como o inverno está para as árvores frutíferas, e o
cumprimento das etapas (estações) geraria, ao final, os frutos desejados.
As iniciativas dos evangelizadores faziam coro aos clamores de
Zumárraga ao mesmo tempo em que figuravam como pedidos de intervenção e
amparo para práticas impossíveis de conter. A vigilância dos frades e de seus
aliados era facilmente solapada pela população indígena e sua desproporção com
relação à tímida distribuição dos clérigos. Diante dessa realidade, alguns membros
das elites indígenas e os niños catequizados pelos primeiros evangelizadores
tiveram um papel crucial na identificação dos indivíduos que foram tomados de
forma exemplar pela Inquisição. O projeto pedagógico catequético dos frades
formou cedo um contingente de jovens habilidosos e dispostos o suficiente para
apontar vestígios “idolátricos” e denunciar os mais velhos. 337 Não obstante, para
além da juventude dos indígenas doutrinados pelos regulares, estavam aqueles que
almejavam manter suas posições privilegiadas e de prestígio. Existiam, também, os
que desejavam assumir um papel de destaque em meio ao estabelecimento das
instituições da coroa espanhola ou alcançarem o status social que não conseguiram
em tempos pré-hispânicos, como foi o caso de muitos macehualtin.

335
Ibidem, f. 175v.
336
Idem.
337
SAHAGÚN, Bernardino. Historia General de las Cosas de Nueva España. México: Porrúa, 2006,
livro X, Relación del Autor, p. 565; GONZALBO AIZPURU, op. cit., 2008, p. 37.
141

Os líderes indígenas temiam perder a notoriedade e a autoridade que


marcaram seu passado. Normalmente, quando encontravam acômodo, devido aos
remanejamentos promovidos pelos conquistadores e funcionários reais, também se
tornavam fieis aliados dos evangelizadores. 338 Em oposição aos que cooperavam,
os grupos formados pelos líderes que favoreciam uma resistência guerreira aos
espanhóis resistiam, igualmente, à cristianização. A conversão ao cristianismo e a
cooperação com a propagação dos ensinamentos ministrados pelos
evangelizadores estavam intrinsecamente ligadas à adesão das políticas
espanholas. Em grande medida, as resistências estavam mais relacionadas com
rivalidades internas aos vários grupos indígenas, ou mesmo, fruto dos
desentendimentos internos a eles. Assim, não se tratava, ao menos em boa parte
dos casos, como destacado pelo historiador James Lockhart, de atitudes
específicas frente aos invasores. Em outras palavras, quando um grupo se inclinava
para o lado espanhol, os rivais tendiam a ter uma postura contrária, movimentando-
se, segundo suas possibilidades de ação, de forma menos receptiva aos frades
evangelizadores.339
Nas primeiras décadas de ocupação, os espanhóis tenderam a respeitar,
ainda que parcialmente, as relações de liderança internas às sociedades indígenas.
O status social e os valores aristocráticos, assim como as posições de mando e
liderança foram modificados lentamente. Os conflitos desencadeados pela
presença dos conquistadores, desde a década de 1520, geraram novas demandas
governamentais, baseadas em pressupostos distintos. Esse processo contribuiu
para a desagregação gradual dos papéis ocupados pelas elites locais, sem, no
entanto, eliminar por completo a liderança política e a voz de mando dos tlatoque.
O reacomodamento das dinâmicas de poder gerado pela conquista militar manteve,
estrategicamente, os membros das elites indígenas como autoridades

338
DUVERGER, Christian. La Conversión de los Indios de Nueva España. México: FCE, 1993, p.
191.
339
LOCKHART, James. Los Nahuas Después de la Conquista: historia social y cultural de los
indios del México central, del siglo XVI al XVIII. México: FCE, 1999, p.293.
142

intermediárias. As regras de sucessão passaram, a partir de então, a estarem


sujeitas à aprovação dos encomenderos e dos representantes da Coroa. 340
A resistência à modificação e ao reconhecimento dos cargos foi pouco
tolerada pelos conquistadores. Por meio do estabelecimento de uma política de
coação e coerção, os espanhóis foram pouco a pouco reestruturando a ordem
governamental a seu favor. Ainda assim, parte das medidas estratégicas de
dominação dos novos territórios do Império contou com a assistência das lideranças
locais, mediante seu amparo político e a manutenção de seus cargos assegurados.
Esses novos vassalos da Coroa espanhola tiveram, muitas vezes, seus privilégios
favorecidos por títulos nobiliários que garantiram a posse de terras e cargos políticos
administrativos.341
Os membros das sociedades indígenas que foram processados pela
Inquisição episcopal pertenciam à minoria privilegiada, eram bem abastados e com
cargos bem definidos em seus núcleos de interação. Eles estavam vinculados às
famílias de dignitários políticos – pipiltin, governantes (tlatoque/cacique) – ou se
destacavam por terem pertencido ao antigo corpo sacerdotal, afugentado dos
teocalli e demais locais sagrados. Os processos inquisitoriais contra indígenas
demonstram que o Santo Ofício tinha parte de sua atenção voltada para as elites
indígenas e era assessorado na captura, denúncia e testemunho (quadro IV) contra
os acusados por essa mesma elite. O apoio às intervenções inquisitoriais ignorava
mesmo os laços de consanguinidade. Assim, foi encontrado Francisco de
Chicanautla como delator de seu tio, don Carlos Ometochtzin.342 E os irmãos Pedro
e Antonio de Totolapan foram acusados de idolatria e amancebamento por outro
irmão, Antonio Xoyocontle.343 Da mesma forma, Ana de Iguala também aparece no
expediente contra seu marido Juan, cacique da região, como a responsável pela
delação.344

340
GIBSON, Charles. Los Aztecas Bajo el Dominio Español 1519-1810. México: Siglo XXI, 1981,
p. 157.
341
GIBSON, loc. cit.
342
Cf. AGN, Inquisición, vol. 2 (part. 2), exp. 10, fls. 1-84.
343
Cf. AGN, Inquisición, vol. 212, exp. 7, fs. 42-94 (antes fs. 29-81).
344
Cf. AGN. Inquisición, vol. 40, exp. 32, fs, 172-173.
143

Os testemunhos elencados nos processos contra indígenas também


aparecem em confluência com as denúncias. Poucos espanhóis participaram dos
depoimentos que serviram de base para incriminar os réus capturados pelo Santo
Ofício (Quadro IV).

3. Testemunhas

O quadro geral das testemunhas aparece nos inquéritos como elemento


fundamental para o seguimento processual, ao mesmo tempo em que aumenta a
complexidade dos acontecimentos denunciados. Os depoimentos, espontâneos ou
extirpados pelos interrogatórios, complicavam as tramas processuais e levavam a
outras testemunhas, além de poderem insinuar outros delitos ou uma maior
gravidade dos eventos atribuídos ao acusado. Bem como os denunciantes, as
testemunhas foram recolhidas pelo tribunal episcopal mexicano com o apoio dos
evangelizadores que conheciam os pequenos pueblos e tinham a possibilidade de
localizar os acusados. Os depoentes ouvidos pelo inquisidor, por vezes, fizeram
fervilhar as suspeitas em torno de toda uma região; tal qual o depoimento de Pedro
Yxcutecatl, uma das testemunhas que fizeram parte do processo contra don Carlos
de Texcoco. O testemunho de Pedro insinuou a permanência generalizada das
devoções indígenas na cidade de Texcoco e em seus arredores. 345 Alarmado, frei
Juan de Zumárraga reuniu os líderes da região no intuito de advertir sobre as
permanências “idolátricas”. Em tom ameaçador, o inquisidor interrogou
separadamente oito nobres indígenas responsáveis pela administração da região.
Incisivo, ele juntou os “principales del dicho pueblo de Tezcuco” e advertiu a todos:

(...) Si alguna persona tuviese algunos ídolos e cosas de


idolatría en su casa o fuera della, o supiese quién les tenía o dellos, que
supiese en cualquier manera, que lo viniesen a decir e manifestar ante su

345
Cf. AGN, Inquisición, vol. 2 (part. 2), exp. 10, fs. 246-247.
144

Señoría, y a denunciarse de sí mismo, que los recibiría con misericordia, y


que ahora vería la cristiandad que en ellos había, donde no, que lo
contrario haciendo, si se les probase alguna cosa, o si averiguase contra
ellos que encubrían alguna cosa dello, usaría de justicia (...)346

Testemunhos como os de Pedro Yxcutecatl geravam certo alarde dentro


do tribunal, contudo, nesses momentos couberam mais advertências que
procedimentos propriamente ditos. Juan de Zumárraga era obrigado a permanecer
restrito à estrutura institucional que tinha em mãos, não podendo fazer muito mais
do que ameaças. Ao mesmo tempo que os testemunhos insinuavam outras
camadas investigativas, os recursos inquisitoriais eram limitados. Na
impossibilidade de proceder contra todos os casos que surgiam nas intrigas
testemunhais, a exemplaridade dos indivíduos deveria recair sobre os que tivessem
maior representatividade nos povoados indígenas. A infinidade de casos possíveis
de serem processados e a pouca estrutura inquisitorial fizeram com que a atenção
do Santo Ofício se voltasse apenas para os episódios que pudessem ter um caráter
mais edificante para os “oficios divinos”347. Os casos processados por Juan de
Zumárraga guardam uma exemplaridade pontual.
A exclusividade persecutória da inquisição episcopal com relação aos
indivíduos mais destacados terminou dando reverberação aos conflitos locais,
internos às comunidades indígenas. Essas intrigas que pautavam a vida política dos
nobres nahuas contribuíram de forma significativa para a iniciativa das denúncias e
para o teor, muitas vezes, ressentido dos testemunhos. Pode-se afirmar que as
brigas internas dos pipiltin modelaram declarações mais enfáticas, despojando-os
de certo protecionismo de grupo.

346
Ibidem, f. 248f.
Instrucción de Don Frey Juan de Zumárraga a sus procuradores ante el Concilio Universal. –
347

México, febrero de 1537. In.: CUEVAS, op. cit., 1975, doc. XIV, p. 69.
145

Quadro IV – Testemunhas

Casos Espanhóis Indígenas AGN, Inquisición


1 1 5 Vol. 37, exp. 1, fs. 1-10
2 0 4 Vol. 40, exp. 5 (bis), fs. 111-112
3 4 9 Vol. 38, exp. 4, fs. 132-142
4 0 20 Vol. 38, exp. 7, fs. 182-202
5 0 1 “Legajos Sueltos”
6 0 5 Vol. 23, exp. 1, f. 3-9
7 5 4 Vol. 40, exp. 2, f. 7-13
8 0 1 Vol. 37, exp. 2, f. 11-17
9 Fragmentado Vol. 42, exp. 17, f. 142-146
10 0 5 Vol. 37, exp. 3, fs. 20-46
11 1 20 Vol. 2 (part. 2), exp. 10, f. 237-340
12 2 6 Vol. 30, exp. 10 (antes exp. 9), fs. 148-171
13 0 11 Vol. 37, exp. 7, fs. 85-102
14 Fragmentado Vol. 36, exp. 7 (antes exp. 6), fs. 224-225
15 Fragmentado Vol. 42, exp. 19 (antes exp. 18), fs. 147-152
16 3 9 Vol. 212, exp. 7, fs. 42-94 (antes fs. 29-81)
17 1 6 Vol. 1, exp. 6, fs. 6-8 (antes fs. 5-7)
18 0 3 Vol. 37, exp. 2, fs. 18-19
19 0 11 Vol. 40, exp. 33 (antes exp. 8) fs. 174-181.
20 Denúncia Vol. 40, exp. 32, fs, 172-173
21 Fragmentado Vol. 30, exp. 6 (antes 7a), fs. 69-79 (antes 73-83)

Apesar das tensões sociais locais marcarem os expedientes inquisitoriais


contra indígenas, os episódios não podem ser reduzidos a séries de complôs
internos das elites autóctones. Antes, faz-se necessário compreender que se trata
de um campo fértil para a atuação do Santo Ofício. As intrigas indígenas serviam
como porta de entrada para a instituição, ávida em monitorar e controlar os novos
membros da cristandade. Por maior sagacidade que tivessem alguns indivíduos, os
denunciantes ou testemunhas não podiam sustentar suas acusações ante o aparato
inquisitorial sobre o qual mal conheciam o funcionamento. Por mais simples que se
apresentasse o tribunal organizado pelo bispo Juan de Zumárraga, a mecânica
institucional era devota de trâmites que a população autóctone, ou mesmo parte dos
espanhóis, pouco ou nada dominavam. Fazia-se difícil sustentar falsas declarações
sem o próprio comprometimento ou o sustento foral que proporcionava o
enquadramento dos fenômenos vistos como delituosos pela jurisdição eclesiástica.
146

As tensões políticas internas às sociedades indígenas podiam acalorar os


testemunhos e denúncias, mas, de forma alguma, instrumentalizar a Inquisição com
vistas a dar resolução a seus conflitos. Em sentido contrário, seria assumido o pleno
discernimento das instituições jurídicas espanholas por parte dos denunciantes e
testemunhas indígenas. Fato esse que não se mostra verificável, ao menos nos
primeiros trinta anos de domínio espanhol.
Ainda assim, as denúncias são catalizadoras e reveladoras das tensões
sociais, principalmente, quando manifestadas em coletivo348 – pressuposto
mediante o qual o tribunal da Inquisição alcançava sua funcionalidade, refletido com
clareza na quantidade de testemunhas indígenas nos processos (quadro IV). A
presenças destes indivíduos ante o foro inquisitorial contribuia para a invalidação
da soberania dos principales (antes imaculada) em nome de uma autoridade que se
impunha de forma superior, qual seja, a dos representantes da fé cristã. Em
consequência, criava-se um clima de desconfiança e desagregação entre os líderes
indígenas, além da utilização de sua punição como exemplo na coação das fatias
menos abastadas. A ênfase inquisitorial dada à nobreza autóctone aparece em
conformidade com a evangelização levada a cabo pelo clero regular, focado tanto
em privilegiar sua educação, quanto em priorizar seu castigo.
As doctrinas ou paróquias responsáveis pela efetivação dos projetos de
evangelização puniram os recém-convertidos com mais frequência e em maior
quantidade que o Santo Ofício. Nas convocatórias que reuniam os contingentes
locais de indígenas era feita a contagem dos presentes e os ausentes eram
castigados mais tarde, por vezes, açoitados. Os frades contavam com o auxílio de
jovens indígenas catequisados, tanto para a reunião e ensinamento dos grupos,
quanto na administração de castigos.349 O franciscano Bernardino de Sahagún
mencionou a assistência prestada pelos jovens que espionavam os demais e
encaminhavam os frades para encontrar o paradeiro das práticas ocultas:

348
ALBERRO, Solange. Inquisición y Sociedad en México 1571-1700. México: FCE, 1993, p. 145.
349
ESCALANTE GONZALBO, Pablo; RUBIAL GARCÍA, Antonio. Los pueblos, los conventos y la
liturgia. In: ESCALANTE GONZALBO, Pablo (coord.). Historia de la Vida Cotidiana en México:
Mesoamérica y los ámbitos de la Nueva España. México: FCE, 2004, vol. I, p. 375.
147

(...) Estos muchachos sirvieron mucho (…) para destripar los


ritos idolátricos que de noche se hacían, y las borracheras y areitos que
secretamente y de noche hacían a honra de los ídolos, porque de día éstos
espiaban en dónde se había de hacer algo (…) y de noche, a la hora
conveniente iban con un fraile o con dos, (…) y daban secretamente sobre
los que hacían alguna cosa de las arriba dichas, de idolatría, borrachera o
fiesta, y prendíanlos a todos y atábanlos y llevábanlos al monasterio, donde
los castigaban y hacían penitencia (…)350

O historiador estadunidense Charles Gibson analisou os registros da


administração dos castigos em seu âmbito paroquial e constatou que, em grande
parte, não eram os frades que puniam diretamente, mas os próprios alguaciles
indígenas ou os jovens catequisados. 351 Apesar dos vários questionamentos acerca
dos métodos doutrinários usados com os neófitos, os franciscanos justificavam o
rigor de seus atos comparando os indígenas com crianças que deveriam ser
educadas. Discurso semelhante ao que o próprio Zumárraga proferia – “castigar
como padre a los indios” 352. Os castigos eram justificados mediante a crença de
que a mentalidade indígena equivalia “a niños de diez o doce años”353.
A perseguição inquisitorial empreendida contra os indígenas por frei Juan
de Zumárraga incutiu em uma tentativa mais sistemática e marcante de se combater
– as chamadas “idolatrias indígenas”. As preocupações do Santo Ofício giraram em
torno dos guardiões de efígies divinas, de seus devotos e promotores rituais. As
devoções indígenas foram assimiladas dentro da ótica de um fenômeno antigo aos
olhos do cristianismo. Para os evangelizadores, a “idolatria” era um fenômeno
mundialmente difundido; um velho inimigo que pressupunha a atuação das forças

350
SAHAGÚN, op. cit., 2006, livro X, Relación del Autor, p. 565.
351
GIBSON, op. cit, 1981, pp. 119-120.
352
Instrucción de Don Frey Juan de Zumárraga a sus procuradores ante el Concilio Universal. –
México, febrero de 1537. In.: CUEVAS, op. cit., 1975, doc. XIV, p. 68.
353
Ibidem.
148

enganosas do diabo sob os grupos humanos, e, sobretudo, resultado de sua


interferência desviadora. 354

4. “Simulacros infernales”

É sabido que à exceção dos sacrifícios humanos, as devoções indígenas


não sofreram grandes perseguições até o ano de 1525. Fenômeno que pode estar
relacionado à ausência de um contingente eclesiástico significativo, ou mesmo, ao
receio e prudência dos conquistadores, no intuito de evitar conflitos. A população
indígena representou, durante todo o período colonial, a maioria esmagadora da
população e submetê-la a pressões excessivas poderia desencadear revoltas
perigosas contra o domínio espanhol.355 Quase um ano após a chegada da comitiva
de Martín de Valencia ao centro do México, em 1524, “Estabase la idolatría tan
entera como de antes”356. Após essa data e o progressivo estabelecimento das
ordens mendicantes, a população autóctone passou a ocultar o máximo que podia
as imagens de culto e os atributos devocionais. Resguardar as efígies das
divindades foi uma prática cada vez mais recorrente desde os primeiros conflitos
provocados por Hernán Cortés. Não obstante, a realização totalmente clandestina
dos rituais e a dispersão organizada dos deuses ocorreram apenas em resposta ao
aumento da violência e da intolerância perpetrada pelos evangelizadores e pelo
governo civil espanhol.
As imagens tomaram lugares velados; eram escondidas embaixo da
terra, em cavernas e sob os pés das cruzes, que passaram a ser fincadas onde
antes se encontravam pequenos adoratórios. Estratégia que não tardou a ser
notada pelos evangelizadores. 357 As paredes ocas das casas foram transformadas

354
BERNAND, Carmen; GRUZINSKI, Serge. De la Idolatría: una arqueología de las ciencias
religiosas. México: FCE, 1992, p. 46.
355
ALBERRO, op. cit.,1993, p. 26.
356
BENAVENTE, Toribio. Historia de los Indios de Nueva España. México: Ed. Porrúa, 2007, p. 28.
357
Ibidem, p. 34.
149

em repositórios secretos, fornidas de efígies e oferendas, em resguardo a


profanação e aniquilação perpetrada pelos agressores. As imagens seguiram,
também, redes intrincadas, transitando de região em região, sob os cuidados dos
nobres indígenas. Muitas delas passaram despercebidas à vigilância, outras foram
interceptadas e destruídas pela Inquisição e pelos evangelizadores, ou mesmo, por
aqueles indígenas mais adeptos do cristianismo.358
Entre as comunidades nahuas, a perseguição de divindades não era uma
realidade ausente dos conflitos. Tomar e destruir os templos e adoratórios dos que
eram derrotados nas batalhas de tempos pré-hispânicos foram práticas correntes
entre os indígenas. As efígies dos santuários eram mantidas sob a captura dos
vencedores e se tornavam objetos de barganha e reivindicações políticas. Tratava-
se de um verdadeiro sequestro de divindades, e a invasão e profanação dos templos
inimigos efetivavam a vitória de um grupo sobre o outro. Portanto, a organização de
retiradas preventivas para ocultar as divindades era frequente e estava relacionada
a uma movimentação prudente quando, principalmente, diante da insurgência e
aproximação dos adversários. Com o risco de uma derrota que culminaria na
captura das imagens de culto, os grupos indígenas se precaviam e, ainda que
derrotados, se mostrariam menos suscetíveis às vontades uns dos outros. 359
Esse precedente do mundo nahua facilitou, em grande medida, uma
resposta defensiva frente às perseguições que sucederam aos conflitos com os
invasores espanhóis.360 Mas, se por um lado o resguardo das imagens e objetos
sagrados não caracterizou uma inovação tática – antes uma rotina em meio aos
conflitos –, por outro lado a intensidade e os motivos que ampararam as novas
perseguições eram drasticamente distintos das dinâmicas que pautavam os
conflitos antigos.
A violência cometida pela Inquisição episcopal contra as devoções
indígenas – em confluência com os ideais evangelizadores – funcionou mediante o

358
AGN, Inquisición, vol. 37, exp. 3, fs. 20-46; AGN, Inquisición, vol. 2 (part. 2), exp. 10, f. 237-340.
359
GRUZINSKI, Serge. A Guerra das Imagens: de Cristóvão Colombo a Blade Runner (1492-2019).
São Paulo: Companhia das Letras, 2006, p. 83.
360
Ibidem.
150

pressuposto de aniquilação do referente material das deidades e da punição dos


envolvidos em seu resguardo. A busca pelas imagens ocultas foi feita caso a caso,
conforme os guardiões dos “ídolos” eram descobertos. Apesar dos interrogatórios
inquisitoriais incitarem a descoberta de outros ocultadores, o Santo Ofício usou de
pouca sistematicidade no rastreio das redes de dispersão. A Inquisição percebeu
cedo que se tratava de um fenômeno – como ressaltado anteriormente – que
excedia suas possibilidades de combate. Conforme se implementavam os
procedimentos contra a “idolatria”, o pequeno tribunal se deparava com uma
conjunção generalizada. Os processos contra os “indios de Azcapotzalco”361, Miguel
Puchtecatlailotlac362, don Carlos Ometochtzin363, Alonso Tlilanci364 e don Baltasar
de Culhuacan365 deixaram claro ao inquisidor Zumárraga as proporções da
persistência dos indígenas no trato com as antigas deidades. Como revelado por
don Baltasar em seu interrogatório, existiam “ídolos y demonios” escondidos por
todas as partes.366
As estratégias usadas pelo Inquisidor acabaram se limitando ao
recolhimento e destruição do maior número possível de efígies de culto e artefatos
que apresentavam alguma atribuição ritual. As punições aplicadas terminaram
voltando-se mais para os indivíduos envolvidos de forma estrita no abrigo das
imagens. O convencimento de que as crenças nativas giravam em torno das efígies
de culto foi o sustentáculo para uma ação mais direta contra o que foi identificado
amplamente como “ídolo”. Essa grade de leitura empregada por clérigos como Juan
de Zumárraga pressupunha, em consequência, a destruição das imagens como
ação eficaz para o combate e desmantelamento dos cultos “idolátricos” entre os
indígenas.

361
AGN, Inquisición, vol. 37, exp. 2, f. 11-17.
362
AGN, Inquisición, vol. 37, exp. 3, fs. 20-46.
363
AGN, Inquisición, vol. 2 (part. 2), exp. 10, fl. 1-84.
364
AGN, Inquisición, vol. 37, exp. 7, fs. 85-102.
365
AGN, Inquisición, vol. 42, exp. 19 (antes exp. 18), fs. 147-152.
366
Ibidem, f. 147v.
151

Um dos primeiros aspectos da evangelização e colonização do México


foi caracterizado pelo historiador Serge Gruzinski sob o signo de uma grande
“descontaminação”.367 Essa característica é marcadamente presente nas ações do
Santo Ofício, entre as décadas de 1530 e 1540. O clero regular responsável pela
evangelização acreditava que era necessária a aniquilação completa das efígies
indígenas – ação que deveria, sempre que possível, ser perpetrada de forma
espetacular. Em meio ao rompimento das efígies, tentava-se destruir,
simultaneamente, o vínculo material e visual que os indígenas mantinham com suas
divindades.
As concepções que nortearam as repressões inquisitoriais idealizadas
por Zumárraga, em congruência com as atitudes dos evangelizadores, remetiam à
tradição bíblica, na qual as referências de livros como Gênesis e Êxodo associavam
as efígies alheias ao cristianismo com representações de entidades únicas368,
sendo estas identificadas sempre com o “mal” e a “mentira”, sob o olhar redutor do
conceito de ídolo. Essa noção, tão comum aos processos inquisitoriais contra
indígenas, é prefigurada na tradição judaico-cristã a partir de teorias religiosas que
conjugam certas proibições do Antigo Testamento, o aristotelismo, as lições dos
pais da Igreja e o tomismo.369
A leitura das devoções indígenas retomou as premissas da razão natural
presentes no pensamento escolástico. A noção de idolatria pressupunha a
concepção de tendências inerentes a todos os homens em seu impulso primário na
busca de Deus. A razão natural da qual a alma dos homens estaria dotada impeli-
los-iam em direção à saciedade. O caminho percorrido para atender esse impulso
gerava a busca de uma crença, seja ela “verdadeira” ou “falsa”; estando essa última
intrinsecamente vinculada à influência exercida pelo diabo. Mediante esse axioma
fundamental, os credos humanos eram o resultado de um processo localizável e
inteligível, que explicaria tanto o surgimento da idolatria, quanto o seu oposto, a

367
GRUZINSKI, op. cit., 2006, p. 77.
368
TAVÁREZ BERMÚDEZ, David. Las Guerras Invisibles: devociones indígenas, disciplinas y
disidencias en el México Colonial. México: CIESAS, 2012, p. 78.
369
GRUZINSKI, op. cit., 2006, pp. 70-71.
152

latria. Quando a razão encontrava a verdade primeira – isto é, um único e


“verdadeiro Deus” – as potências da alma contribuiriam para a solidificação desse
conhecimento (latria). Em sentido oposto, quando a razão se dirigia a “falsas
transcendências” – por ignorância e corrupção da natureza dos homens – as
potências humanas se desviariam do seu curso ideal (idolatria). Nesse sentido, com
vistas à enunciação de uma necessidade de satisfação da razão natural, contida em
todos os homens e cuja tendência era a busca de seu criador, era possível englobar
as concepções do divino em suas mais diversas formas. 370
Como detalhado por Serge Gruzinski, a confecção de “ídolos” de
madeira, pedra, metal ou outro material foi, na ótica de muitos clérigos, a forma mais
espetacular da “idolatria”. Para o autor, o “ídolo” representava a concretização do
que havia de mais pernicioso e escandaloso ao cristianismo ocidental. Tratava-se
da cristalização material de um culto (visto como falso) em detrimento da
espiritualidade católica. Apesar disso, as ideias de latria e idolatria encontram-se
unidas por uma mesma formulação lógica e sua distinção repousava apenas nas
direções tomadas. Portanto, o erro identificado pelo Santo Ofício e por muitos dos
evangelizadores dizia respeito ao objeto de veneração. As devoções indígenas
eram vistas como “idolátricas” porque eram cultos “falsos” rendidos a “falsos”
deuses e criaturas. Elas foram postas como contraponto à latria, uma negação a
esta, sua degradação e corrupção sob auspícios diabólicos. 371
Tomando a oposição entre latria e idolatria, encontram-se as formulações
em torno da acepção, as quais caracterizaram os “ídolos” em contradição às
imagens cristãs. O desprezo dos evangelizadores e conquistadores pelas efígies
indígenas foi, igualmente, ressaltado por Gruzinski, em oposição ao apego
manifesto pelas imagens cristãs. Elas foram distribuídas progressivamente ao longo
da conquista e ocupação espanholas. 372 A imposição do vocábulo “ídolos” às efígies
indígenas resguardou uma existência marcadamente oposta ao pensamento acerca

370
BERNAND; GRUZINSKI, op. cit., 1992, pp. 39-42.
371
Ibidem, pp. 45-46.
372
GRUZINSKI, op. cit., 2006, p. 59.
153

das imagens cristãs. Afinal, se por um lado, os “ídolos” pressupunham uma mentira,
um engano ou falsificação, por outro há imagens trazidas pelos cristãos como
elementos de edificação, caminhos a um destino presumido como correto. 373
Essa reinscrição do mundo indígena o construía inserido em um universo
de representações idolátricas. Portanto, o “ídolo” figurou como uma falsa imagem,
cujo funcionamento trazia um erro condenável. Era fruto de trapaças que remetiam
ao demônio. E como exemplificado pelo cronista Muñoz Camargo, os “ídolos” não
passavam de “simulacros infernales”.374
A associação entre as devoções indígenas e a ideia de idolatria aparece
de forma evidente nas falas do inquisidor no momento dos interrogatórios. As
perguntas formuladas no âmbito inquisitorial surgiam pressupondo a adequação
das respostas indígenas dentro do vocabulário empregado pela instituição. Dessa
forma, pode-se observar junto ao processo contra Baltasar de Culhuacan a emersão
das palavras “ídolos” e “demônios” como elementos que predeterminam o sentido:
“Preguntado que diga y declare que otros ídolos sabe dónde están o quién los tenga,
o quién haya hecho algunos sacrificios o ceremonias a los ídolos y demonios”375.
Por conseguinte, a réplica é registrada pelo notário do Santo Ofício sob a mesma
ótica da pergunta:

Le dijeron a este confesante que en un patio, que se dice


Púxtlán, está enterrado un ídolo (…), y que en un sitio que se dice
Yluycaititlan está enterrado una figura de otro demonio (…), y que en otro
sitio que se dice Teteumapa, dentro en el agua, están cuatro demonios, y
que otro sitio que se dice Tecinancingo está enterrado otro ídolo (…), y en
Talchico está enterrado la figura de Ochilobos, y la de Quetzalcóatl, y que
oyó decir que el que se dice Uchinaval está un atambor que se dicen que
es de oro y unas trompetas de piedra que son de los demonios (…).376

373
Ibidem, p. 72-76.
374
ACUÑA, René (editor). Relaciones Geográficas del Siglo XVI: Tlaxcala. México: UNAM, 1984,
p. 263 (212v).
375
AGN, Inquisición, vol. 42, exp. 19 (antes exp. 18), f. 147v.
376
Idem.
154

Posto dessa maneira, é possível notar que as referências conceituais


ancoradas nos termos “ídolo” ou “demônio” operam sob um princípio de exclusão
dos nomes das divindades indígenas. Em toda a descrição, apenas os nomes de
“Ochilobos” e “Quetzalcóatl são redigidos pelo notário da Inquisição. O
reconhecimento das deidades parece estar relacionado à popularidade delas entre
os indígenas. Não obstante, frente às descrições menos familiares, os redatores do
Santo Ofício não hesitaram em generalizar. Não fazia tanta diferença ao
funcionamento do Tribunal da Fé, independente dos nomes, no limite, tudo
terminaria como figuração diabólica.
A importância e a preocupação em destruir as imagens indígenas
sobressai nos processos inquisitoriais contra indígenas de forma mais pujante que
a administração de castigos para os envolvidos na manutenção e ocultamento
desses objetos. A presença do pensamento que apontava a centralidade do
referente material como base da persistência da idolatria indígena pode ser,
igualmente, notada nas falas do inquisidor:

(...) Si los dichos ídolos se hallasen sería muy gran servicio de Dios y bien
de los naturales destas partes, y se ve y tiene por cierto que se
desarraigaría y empezaría más verdad a desarraigar su infidelidad e
idolatría, porque teniendo los allí, se presume tener el corazón más allí que
a la verdad de nuestra santa fe y donde deben. (...)377

Convencido de que o aniquilamento das efígies “diabólicas”


enfraqueceria o sustentáculo da “infidelidade” e “idolatria” indígenas, Juan de
Zumárraga se esforçou para capturar o maior número de figuras possíveis. A
atividade dependia das informações fornecidas nos interrogatórios inquisitoriais. No
entanto, os esforços para extrair informações precisas nem alcançaram as
expectativas do bispo. Os registros de uso de tortura pela Inquisição episcopal, no
período em que Zumárraga exerceu a função de inquisidor apostólico, transmitem

377
AGN, Inquisición, vol. 37, exp. 3, f. 21.
155

as tentativas frustradas do franciscano para localizar o paradeiro preciso das efígies


dispersas.
No dia 21 de maio de 1540, Miguel Puchtacatlailotlac foi despido e
torturado no “burro”: “el dicho señor provisor, visto que no confesaba cosa ninguna,
le mandó desnudar y atarle a los brazos y ponerle en el burro y ligarle y ponerle los
garrotes, e así puesto en el dicho burro desnudo”378. Mesmo sob tormento, o réu
reiterou que não sabia de mais nada além do que já havia confessado. A condição
de saúde de Miguel era delicada, “estando enfermo”379, e o rigor da tortura foi
limitado a uma volta dos garrotes que atavam seus membros.380 Alonso Tlilanci teve
o mesmo destino de Miguel, amarrado junto a uma escada, foi-lhe aplicado o
“tormento del agua”: desnudo atado en una escalera, y le mandó dar tormento con
agua.381 Em meio à sensação de afogamento provocada pelos jarros de água
derramados sobre sua face, após a terceira repetição, Alonso forneceu informações
do paradeiro de alguns artefatos rituais. Contudo, a busca nos lugares relatados
pelo réu, em meio ao desespero provocado pela tortura, mostrou-se inútil, pois os
encarregados do Santo Ofício foram aos locais indicados, “donde cavarón dos días”,
sem, no entanto, encontrar coisa alguma. 382
Desde o final do ano de 1538, a Inquisição episcopal começou a se dar
conta da cooperação entre os nobres indígenas para resguardar as efígies. Meses
antes de proceder contra Tlilanci e Puchtecatlailotlac, submetendo-os à tortura,
Zumárraga tomou conhecimento de outros cinco principales responsáveis por
esconderem e cultuarem certas divindades. Tratavam-se de Pedro Atonal, Miguel
Quiao, Martín Tlacochcalcatl, Francisco Huitzinahual e Pedro Tlacateccatl, todos da
região de Azcapotzalco. Segundo consta em seus depoimentos, Pedro Atonal e
Miguel Quiao foram compelidos por seus companheiros a se absterem de comida e
sexo em honra do deus Tezcatlipoca, no intuito de obterem boas colheitas nos

378
Ibidem, f. 46f.
379
Ibidem, f. 45f.
380
Ibidem, f. 46f.
381
AGN, Inquisición, vol. 37, exp. 7, f. 86v.
382
Ibidem, fs. 86v-87f.
156

milharais que cuidavam. As efígies apreendidas com os indígenas chamaram


especial atenção devido à recente fabricação delas, e os funcionários inquisitoriais
perceberam logo que as pequenas estátuas de madeira se tratavam de manufaturas
tenras.
A confecção de novas imagens não tardou a ser notada pelos vários
evangelizadores, os quais sentiam que nunca acabavam de destruir as imagens.
Para o franciscano Motolinía,

(...) En muchos días no los podían acabar de destruir, así por


ser muchos y en diversos lugares, como porque cada día hacían muchos
de nuevo; porque habiendo quebrantado en mucha parte, muchos, cuando
por allí tornaban todos nuevos y tornados a poner; porque como no habían
de buscar canteros que se los hiciesen, ni escoda para los labrar, ni quién
se la amolase, sino que muchos de ellos son maestros, y una piedra labran
con otra, no los podían agotar ni acabar de destruir.”383

O tribunal episcopal amparou os evangelizadores na busca e destruição


das efígies indígenas. Ao instituir um inquérito formal, Zumárraga tinha mais
possibilidades de detectar os escapes encontrados pelas divindades indígenas.
Foram as informações recolhidas pelo tribunal que levaram o inquisidor ao encalço
de Miguel Puchtecatlailotlac e Alonso Tlilanci, que terminaram por revelar uma
pequena parte da complexa trama que envolvia a dispersão das principais efígies
dos templos.
Em junho de 1539, Miguel foi acusado pelo foro inquisitorial como o
último guardião da efígie do deus tutelar Huitzilopochtli, que repousava antes da
conquista nas acomodações do Templo Mayor. Zumárraga chegou a Miguel por
meio das informações repassadas por Mateo, um pintor indígena. Segundo consta
na declaração do denunciante, seu pai, conhecido como Atolatl, esteve encarregado
de guardar o envoltório sagrado que portava a imagem de Huitzilopochtli, desígnio
recebido, supostamente, pelo próprio Monteuczoma. Um registro pictórico em folha

383
BENAVENTE, op. cit., 2007, p. 34.
157

de amate foi entregue ao inquisidor e anexado ao processo como evidência do


trânsito percorrido pela efígie do deus. Após a queda de Mexico-Tenochtitlan, o
envoltório ficou oculto na região de Azcapotzalco, junto ao qual foram depositadas
outras quatro figuras divinas envoltas em petates384. Tratavam-se das divindades
Cihuacóatl, Telpochtli, Tlatlauhqui Tezcatlipoca e Tepehuan. Depois da morte do
pai do tlacuilo Mateo, os envoltórios foram encaminhados para a casa de Miguel
Puchtecatlailotlac.
Apesar de confirmar ao inquisidor Zumárraga o depósito de pacotes em
sua residência, o réu negou saber a respeito do conteúdo que guardava os grandes
objetos envolvidos em fibras vegetais trançadas. Segundo Miguel, os envoltórios
permaneceram dez dias em sua casa na cidade do México e, depois, foram levados
por tamemes385 a mando de Tlacochcalcatl Nanahuatzin, identificado pelo réu como
“senhor de México”386. Miguel negou o conhecimento do destino final das cinco
figuras divinas, mas o inquisidor se mostrou cético com relação às falas do inquirido
e lhe impôs um interrogatório sob tortura.
O processo contra Alonso Tlilanci foi análogo ao de Pochtecatlailotlac.
Em meio aos conflitos entre espanhóis e indígenas, Alonso e seu pai foram
encarregados de resguardar as divindades que jaziam no teocalli principal da região
de Izucar, cuidando da continuidade de seus ritos e mantendo a imagem longe de
perigos. Tanto a preservação do deus Huitzilopochtl do Templo Mayor, quanto os
cuidados que Tlilanci e seu pai deveriam manter frente às efígies escondidas
estavam relacionados com a proteção de divindades centrais (altepetliyollo)
vinculadas aos altepetl387. Os teocalli que abrigavam tais divindades tutelares eram

384
Esteira ou saco de fibra vegetal utilizado para fins envoltórios e receptáculos diversos.
385
Carregador indígena.
386
Como ressaltado por David Tavárez Bermúdez, Tlacochcalcatl Nanahuatzin deve ter ocupado o
cargo entre 1524-1525, uma vez que o cronista Chimalpahin escreve que, depois da execução de
Cuauhtémoc, em 1525, Cortés havia designado como governantes don Juan Velázquez Tlacotzin,
que morreu antes de tomar o cargo e, em seguida, don Andrés de Tapia Motelchiutzin. Cf. TAVÁREZ,
op. cit., 2012, p. 80, n. 90.
387
Delimitação étnico-geográfica constituinte das territorialidades nahuas, distinguiam-se entre si
pela remissão a uma linhagem fundadora e pelo culto de deidades próprias.
158

expressões de glória e identidade política para os altepetl, não sendo por menos
que os líderes se esforçavam para manter vivo o “corazon del pueblo”.388 Quando
Tlilanci foi processado pelo Santo Ofício, seu pai havia falecido, deixando a
responsabilidade das efígies a seu cargo e, como resultado, enfrentar os
interrogatórios inquisitoriais e os tormentos da tortura. Alonso reconheceu que
herdara o sacerdócio de família, mas negou ter incutido em atos heréticos após seu
batismo como cristão. 389
Os esforços de Zumárraga para descobrir o paradeiro dos “ídolos”, além
do início dos procedimentos contra Puchtecatlailotlac e Tlilanci foram seguidos pela
prisão de don Baltasar de Culhuacan, em dezembro de 1539. 390 O processo de don
Baltasar ofereceu novas pistas ao inquisidor sobre as efígies do Templo Mayor. A
trajetória percorrida pelos envoltórios sagrados era maior e mais complexa do que
se podia imaginar. Segundo as informações que restaram no documento
fragmentado, em 1522, as efígies de Huitzilopochtli e de Cihuacoatl, entre outras
divindades, foram transportadas para Culhuacan. Os pacotes transitaram ainda por
Xilotepec e Xaltocan e, ao que tudo indica, elas repousaram ocultas em algum lugar
próximo ao lago de Tepetzinco. Apesar das informações adicionais, os esforços
inquisitoriais não foram capazes de recuperar nenhuma das efígies. Contudo, a
frustração do inquisidor foi parcialmente compensada na região de Texcoco, onde
suas investigações culminaram em uma vultosa apreensão de imagens.
As averiguações inquisitoriais na região de Texcoco ocorreram paralelas
ao processo contra don Carlos Ometochtzin.391 A medida que Juan de Zumárraga
conduzia as investigações contra don Carlos, acusado de se portar contra a
evangelização feita pelos frades, as informações levantadas foram, gradualmente,

388
GRUZINSKI, op. cit., 2006, p. 86; LOCKHART, op. cit., 1999, pp. 341-342.
389
AGN, Inquisición, vol. 37, exp. 7, fs. 85v-86v.
390
Cf. AGN, Inquisición, vol. 42, exp. 19 (antes exp. 18), fs. 147-152.
391
Alguns anexos ao expediente contra don Carlos Ometochtzin abarcaram investigações paralelas
que, apesar de terem se desencadeado devido à atenção inquisitorial sobre o principal de Texcoco,
não se ligaram, ao final do processo, diretamente ao réu. Cf. AGN, Inquisición, vol. 2 (part. 2), exp.
10, fs. 237-340.
159

alarmando o inquisidor acerca da permanência de cultos às divindades indígenas.


Como de costume aos procedimentos da Inquisição, a prisão de don Carlos foi
seguida pelo embargo e contabilização de seus bens. A venda de parte das posses
do nobre texcoquenho foi revertida para custear as despesas de seu processo
perante o Santo Ofício.392 Entretanto, a averiguação das propriedades se revelou
comprometedora aos olhos dos funcionários inquisitoriais. Entre os utensílios
domésticos e artigos privados, foram encontrados um códice pictórico e,
aproximadamente, cinquenta estátuas ocultas e outras expostas aos olhos de quem
adentrasse a propriedade. As efígies estavam divididas em dois altares, onde
também haviam “unos pocos cabellos cortados”393 e escondidos dentro de um pilar
que sustentava uma das paredes da casa, “lo qual se derribo por ver lo que
había”394. Entre as figuras que puderam ser listadas com ajuda de outros indígenas
se encontravam divindades como Quetzalcóatl, Xipe Tótec, Chicomecóatl, Tlaloc e
outras de fundamental importância para as esferas devocionais autóctones.
Segundo o próprio don Carlos, a casa em que foram encontradas as
efígies de culto havia chegado às suas mãos por meio de sua avó materna. E, em
consulta à comunidade local, Zumárraga verificou que “antes que viniesen los
cristiano era aquella casa, casa de oración. Y allí se juntaban a hacer sus fiestas, y
a rogar a sus dioses lo que querían”395. Todavia, as suspeitas de permanecer
prestando culto às antigas divindades foram amenizadas quando o Santo Ofício
descobriu que o lugar não era usado de forma residencial pelo réu e que sua ligação
direta com os “ídolos” fora negada ou posta em dúvida pela maioria das
testemunhas elencadas para o processo. O verdadeiro morador era o tio de don
Carlos, Pedro Yxcutecatl, e, para complicar as conclusões inquisitoriais, antes de

392
O secuestro de bienes era feito após a prisão do suspeito enquanto ele aguardava julgamento. O
patrimônio do suspeito ficava sob administração da Inquisição no momento em que ocorriam as
investigações e, em caso de comprovação de heresia ou crime contra a fé, iniciava-se a confiscación
de bienes, quando efetivamente as propriedades eram entregues ao Santo Ofício. A venta de bienes
era a etapa final na qual eram leiloados os bens do acusado. Os funcionários inquisitoriais e os
familiares do réu estavam proibidos de participar do leilão.
393
AGN, Inquisición, vol. 2 (part. 2), exp. 10, f. 243f.
394
Ibidem, f. 289f.
395
Ibidem, f. 245v.
160

Pedro, outros parentes haviam residido na casa. Diante das complicações


testemunhais, a alternativa prática utilizada pelo inquisidor foi reunir os principais
líderes da região e submetê-los a um rigoroso interrogatório sobre o resguardo de
“ídolos”.
Em três dias de questionamentos impiedosos, os funcionários do Santo
Ofício, juntos do inquisidor que se dirigiu pessoalmente à região, levantaram os
dados cruciais sobre as permanências dos rituais indígenas nos arredores de
Texcoco. Don Lorenzo de Luna, governador da localidade e irmão paterno de don
Carlos, auxiliou nas buscas por mais efígies escondidas. O governador estava
encarregado de cooperar com os evangelizadores e encomenderos no combate às
“idolatrias”. Desde janeiro de 1538, o vice-rei don Antonio de Mendoza havia
encarregado nominalmente Luna para que orientasse e denunciasse os indígenas
resistentes.396
A intervenção do Santo Ofício apressou e intensificou as ordens
recebidas por Luna. As investigações do governador chamaram especial atenção
da Inquisição para a zona de peregrinação do Tlalocatepetl 397, região frequentada
pelos habitantes do Vale do México e de Puebla. O Monte abrigava uma grande
efígie do deus Tlaloc, que estava parcialmente encoberta por pedras e pela
vegetação. Ao redor da imagem foram encontrados copal 398 e papel399, além de
vestígios de “sacrificios con sangre e plumas, e otras cosas que los indios
antiguamente tenían por costumbre en poner en los sacrificios”400. Após tomar
conhecimento da suntuosa imagem de Tlaloc, Zumárraga encarregou o governador

396
Mandamientos del Virrey D. Antonio de Mendoza. op. cit., 1939, pp. 235-236.
397
Tlalocatepetl ou Monte Tlaloc, situado na divisa do Estado do México com Puebla. Pertence a
mesma cadeia montanhosa de picos mais altos como o Iztaccíhuatl e o Popocatépetl.
398
O copal tinha amplo uso nos rituais mesoamericanos. Tratava-se de uma resina vegetal, usada
na forma de incenso e, cuja fumaça branca e aromática era oferecida às divindades e utilizada para
fins curativos diversos. A resina foi associada à fertilidade e a água, vinculando-se ao deus Tláloc,
também conhecido como “señor del copal”.
399
Papel amate era oferecido como alimento aos deuses indígenas, frequentemente, embebido em
sangue sacrificial.
400
AGN, Inquisición, vol. 2 (part. 2), exp. 10, f. 248v.
161

don Lorenzo a fazer exumação, recolhimento e entrega de tudo que fosse


encontrado na região e nos montes ao redor:

(...) El dicho governador don Lorenço de Luna e prinçipales del dicho


pueblo, en cunplimiento de lo que por su Señoría les fue mandado,
truxieron y exibieron ante su Señoría Reberendíssima muchas figuras de
ydolos e pedernales a manera de cuchillos de sacrificar y de coraçones y
muchas pedrezuelas y cuentas de dibersas maneras de copal e ole e otras
cosas de sacrifiçios, y tres o cuatro petates y mantillas, e otra menudençias
que dixieron ser cosas de sacrifiçios de lo que a los ydolos se suele
ofresçer, y que todo ello hera lo que havían sacado y hallado a los pies de
las cruzes, y lo que truxieron de la sierra en tres o quatro vezes, como de
suso tienen declarado (...).401

Auxiliado pelo governador de Texcoco e de outros principales, Juan de


Zumárraga foi acompanhado por outros franciscanos para conduzir a destruição e
posterior queima dos pedaços das efígies e objetos de culto encontrados:

(...) Su Señoría mandó deshacerles las figuras, y quebrarlas, y a las que


no se pudiesen quebrarlas, que les diesen fuego para que después de
quemadas se pudiesen quebrar y deshacer, e por su mandado, los indios
que iban con los principales, las comentaron a quebrarlas y a quitarles las
formas y figuras de las caras, y a uno de los dichos ídolos pusieron fuego
encima para deshacer, y quebrar después de quemado, y su Señoría les
mandó que todo se deshiciesen de manera que no quedase memoria
dellos (...)402

O inquisidor deixava claro, uma vez mais, a necessidade de extinguir


quaisquer que fossem os vínculos materiais com as deidades indígenas. Para tanto,
era preciso suprimir as formas, destruir os contornos que insinuassem alguma
distinção, desfigurar “de manera que no quedase memoria”. A violência das

401
Ibidem, f. 254v.
402
Ibidem, f. 255f.
162

destruições efetuava-se de forma abrupta e, a cada efígie rompida, surgia a


imposição de uma nova lente semiótica, a partir da qual o cristianismo dos
evangelizadores impunha um papel preponderante. No mesmo sentido, operava-se
uma subtração dos valores e costumes pré-hispânicos.
Aliando-se à desconstrução das esferas devocionais indígenas, estava a
gradual desarticulação dos pipiltin governantes, seguida de sua realocação parcial.
O reconhecimento do protagonismo das elites indígenas a partir de seu status de
governantes era feito pelo governo civil espanhol mediante a reformulação dos
cargos tradicionais. A garantia dessa permanência na hierarquia administrativa e a
preponderância ante os macehualtin mantinham a cooperação com as diversas
políticas da Coroa, sejam as iniciativas dos encarregados do governo civil ou frente
às políticas eclesiásticas, como bem exemplifica o caso do governador indígena de
Texcoco don Lorenzo de Luna. Porém, ao contrário da sociedade peninsular, onde
as instâncias civil e eclesiástica encontram uma separação clara – ainda que se
afirmem mutuamente ou, por vezes, neguem a representatividade uma da outra – o
mundo nahua era distinto em sua dinâmica política e devocional.
Os cargos exercidos pelos líderes e sacerdotes antes da conquista
espanhola eram concebidos dentro de uma formulação representativa, em suas
combinações de corpos, objetos e práticas rituais. A autoridade exercida pelos
governantes das sociedades nahuas emanava da concepção de uma força divina
que era inata aos nobres (pipiltin) e recebida das divindades Quetzalcóatl e
Xiuhteuctli. Essa “vocação” ou origem da autoridade constituía o fogo divino
depositado no coração da nobreza indígena, cuja instabilidade demandava os
rigores da penitência, das oferendas, do consumo de cacau e da carne das vítimas
sacrificadas para seu fortalecimento. A disciplina educativa e o contato com os
objetos sagrados – tais como as gemas e essências florais – também contribuíam
163

para potencializar e estabilizar a substância recebida dos deuses. Tais


procedimentos de recepção fortaleciam o tonalli, principal força anímica do corpo. 403
Segundo Serge Gruzinski, toda aquisição de autoridade404 e sua
respectiva perda eram frutos de transformações corporais ritualizadas, cujos pipiltin
estavam frequentemente incumbidos.405 Tratava-se, tanto do reconhecimento de
uma característica inata, quanto de uma obrigação ritual; ambas figuravam como
pilares de distinção entre os nobres indígenas e os demais membros da sociedade.
Ao mesmo tempo, independentemente de qualquer mobilidade social, a distância
entre os indivíduos de nobre estirpe e os demais mantinha-se resguardada pela
predisposição da nobreza em exercer qualquer liderança. 406 A autoridade, como foi
concebida no mundo nahua, aparece como uma dinâmica do fogo divino, que
envolve os indivíduos e é potencializado por práticas específicas de entronização e
divinação e, até mesmo, pela execução de cargos dignitários. Sendo assim, a
existência da autoridade era condicionada e reconhecível mediante o corpo que a
exercia e as práticas que a intensificavam.407
Ainda que possa ser concebida na repressão que exerce, a autoridade
é, primordialmente, a própria figura de quem a exerce. Os adornos corporais, as
palavras rituais, as relíquias, os sacrifícios, as liturgias, entre outros, também
compunham e intensificavam as funções exercidas e o corpo de quem portava a
autoridade. Tanto a linguagem, quanto o exercício da autoridade são seus próprios
constituidores e potencializadores.
A desproporção entre o mundo indígena e a sociedade que se impunha
é evidente. As formas do saber indígena e mesmo os hábitos mais comuns se
fragmentavam com as mudanças sociopolíticas engendradas pelos espanhóis. Os

403
LOPÉZ-AUSTIN, Alfredo. Cuerpo Humano e Ideología: las concepciones de los antiguos
nahuas. México: UNAM, 1980, pp. 210-223.
404
Opta-se por usar o termo “autoridade” ao invés do original “poder” empregado por Serge Gruzinski
no intuito de distinção em relação à concepção de poder empregada no decorrer do trabalho.
405
GRUZINSKI, Serge. El Poder Sin Límites: cuatro respuestas indígenas a la dominación
española. México: INAH, 1988, p. 32.
406
Ibidem, pp. 31-32.
407
Idem.
164

sentimentos de insegurança e incerteza provocados pelo choque cultural da


conquista ecoam nos processos inquisitoriais contra a população indígena. A
formação dos saberes e a transmissão dos valores eram rompidas por formas
radicalmente distintas, principalmente, com a implantação do cristianismo. Com
isso, a perda de cargos políticos por parte da nobreza indígena e,
consequentemente, a reestruturação das relações de poder geraram um constante
descontentamento entre seus membros. Ainda assim, o entendimento das
condições que produziram os processos contra indígenas na inquisição episcopal
não dependia apenas da constatação das novas estratégias de poder que
desembarcaram vindas da Europa. As redefinições das redes de poder estiveram
relacionadas, também, à implantação de novos saberes diretamente contraditórios
aos valores indígenas. É nesse ponto de inflexão no que diz respeito ao passado
indígena e fruto dos múltiplos choques perspectivos que se pode ressaltar um
imbricamento entre as instâncias de saber e poder, tal como foi destacado por
Michel Foucault.
Para além das formas de inteligibilidade do pensamento nahua, faz-se
necessário ressaltar, uma vez mais, que as formações de poder – fazendo
referência estrita às redes de inter-relações sociais408 – não eram uma possessão
portada por membros da uma elite indígena, conquistadores ou evangelizadores.
As implicações entre poder e saber são diretas. E é impossível enxergar a
instalação das instituições espanholas sem pressupor os saberes que as
legitimaram como instâncias de poder.409 A realidade colonial que começava a se
estabelecer colocava em xeque os saberes indígenas, sustentáculo de suas
lideranças, que, por sinal, foram mantidas apenas mediante a sua conveniência
prática.410
Considerando a perda progressiva dos privilégios e da influência política
dos pipiltin, juntamente com as medidas de extirpação das antigas crenças –

408
FOUCAULT, Michel. História da Sexualidade I: a vontade de saber. Rio de janeiro: Graal, 2009,
p. 102.
409
FOUCAULT, op. cit., 2007, p. 27.
410
GIBSON, op. cit., 1981, p. 157.
165

pressuposto da empresa evangelizadora – impunha-se automaticamente um


cenário tenso e resistente que se agravava com o estabelecimento das instituições
espanholas. Em meio a esses enfrentamentos, os especialistas rituais aparecem
nos processos inquisitoriais como figuras incômodas, mantenedores da idolatria e
agentes diabólicos. Os sacerdotes indígenas que personificavam deidades
chamaram, de forma especial, a atenção do inquisidor Zumárraga e dos
evangelizadores do centro do México.
Em novembro de 1536, seis meses após iniciar as funções de seu
tribunal episcopal, o bispo Juan de Zumárraga recebeu notícias acerca de um
indígena que percorria as cercanias do Vale do México e, mesmo depois de
batizado, permanecia fazendo “muchas hechizerías y adivinanças”411. O inquisidor
ordenou maiores averiguações sobre o caso do indígena conhecido entre os
povoados locais como Ocelotl e cujo nome de batismo era Martin: “su Señoría
quiere hacer y haber información de lo susodicho, para que así fecha y habida, siga
lo que fuere justicia”412. Martín Ocelotl foi o terceiro caso protagonizado por um
indígena levado adiante por Zumárraga. Desde as primeiras informações recebidas
pelo bispo, ele se mostrou preocupado a respeito do “gran daño e impedimento de
la conversión de los naturales”, que poderia advir de condutas como as do antigo
sacerdote Martín.
As informações do inquérito contra Ocelotl foram bastante detalhadas,
sendo recolhidas informações sobre sua família e conduta antes e depois de seu
batismo pelos regulares. Sua mãe, conhecida por Eycacli, foi referida no expediente
processual como uma grande “hechicera”, cuja fama, ao que tudo indica, havia sido
ainda maior que a do filho. Ocelotl era um especialista ritual com um histórico
familiar chamativo aos olhos dos evangelizadores. Martín vivia nos arredores de
Texcoco, mesmo local onde havia recebido o batismo pouco tempo após o
estabelecimento dos espanhóis no Vale. Considerado um elemento perturbador
para os evangelizadores e encomenderos, mudou sua moradia várias vezes, no

411
AGN, Inquisición, vol. 38, exp. 4, fls. 132; Cf. Anexo I, caso 3.
412
Idem.
166

intuito de escapar das perseguições que sofria. A repulsa dos novos vizinhos e
frades – que pouco a pouco ocupavam as imediações – contrastava com seu
enorme prestígio frente aos povoados que visitava. Martín era reverenciado pelos
líderes locais e os habitantes guardavam uma mescla de temor e respeito pelo
poderoso sacerdote.
A autoridade da qual gozava Ocelotl tinha grande repercussão nas
comunidades indígenas, pois seus feitos lhe renderam grande fama. Suas façanhas
eram conhecidas desde antes da chegada dos espanhóis. Segundo as testemunhas
ouvidas pela Inquisição, Martín era imortal e havia provado seus poderes ao próprio
Monteuczoma. Os feitos que foram narrados a Zumárraga incluíam até mesmo a
superação da morte. Os indígenas interrogados afirmaram que, no tempo de
Monteuczoma, pouco antes da chegada dos espanhóis, o huey tlatoani mexica
havia convocado as autoridades rituais dos arredores de Mexico-Tenochtitlan para
que falassem do futuro de seus domínios. O jovem Ocelotl, que figurava entre os
convocados, supostamente alertou Monteuczoma a respeito da eminência da queda
de sua liderança e para o fim da supremacia mexica. Consternado, o tlatoani
ordenou a morte do jovem sacerdote que, segundo testemunhos, foi aprisionado,
esquartejado e reduzido a cinzas. Todavia, de nada adiantou o aniquilamento do
corpo de Martín. Para os declarantes indígenas do processo, ele foi capaz de voltar
à vida e demonstrar que nem mesmo o poderoso governante mexica podia pôr fim
na sua existência.
Segundo consta, as habilidades sobrenaturais de Martín Ocelotl incluíam
o domínio metamórfico, pois ele podia assumir formas animais e burlar os efeitos
do tempo, fazendo se passar por jovem ou ancião quando conveniente. O sacerdote
percorria as imediações da cidade indígena de Texcoco alertando os líderes locais
a respeito dos períodos de estiagem e chuva. Ele predizia o futuro de muitas formas
e exercia influência sobre os elementos climáticos. Em troca disso, Martín recebia
grande diversidade de pagamentos em espécie.
A conduta e a fama atribuídas a Ocelotl estão, intrinsecamente,
relacionadas à performance dos chamados “homens-deuses”, tal como
167

caracterizada por Alfredo López Austin413 e, posteriormente, por Sege Gruzinski.414


De acordo com esses autores, aquele que possuía o privilégio de comunicação com
uma divindade tutelar (calpultéotl) era responsável por outorgar proteção à região
que o reverenciava, circunscrita dentro das delimitações de um altepetl. Mito e
história aparecem entrelaçados e estabelecem um vínculo indissociável com aquele
que serve de réplica da divindade. A divindade associada a uma comunidade
específica (teotl) – dinâmica motriz do grupo – penetra em seu “invólucro” (“pele” ou
“casca”). Este último caracteriza o “iixipitla” da divindade e, juntas, as duas
instâncias formam uma totalidade. O conteúdo transfigura seu receptáculo tal como
pode-se atentar frente às efígies das divindades indígenas. De antemão,
pressupunha-se uma lógica cujo significado e o significante eram indissociáveis – o
homem-deus é teotl.415
Ocelotl conservou, para além das especialidades rituais, habilidades
transmitidas por seu pai, um comerciante (pochteca) bem-sucedido do Vale do
México. Martín manteve boas relações com os grupos de negociantes e enriqueceu
por meio do comércio. Antes de seu derradeiro encontro com a Inquisição episcopal,
manteve vínculos estreitos com os comerciantes de Tlatelolco e Azcapotzalco,
regiões cuja fama dos mercados ultrapassou os tempos pré-hispânico. Os
responsáveis pelo intercâmbio de mercadorias pela zona lacustre do Vale foram,
igualmente, seus parceiros em diversas transações. Ocelotl manteve boas relações
comerciais até mesmo com áreas mais distantes, tais como a região tepeaca. As
negociações do sacerdote pochteca proporcionaram um significativo acúmulo de
mercadorias e bens de diversas índoles. O inventário que precedeu ao confisco de
seus bens pelo Santo Ofício indicou a posse de uma verdadeira fortuna composta
por pedras preciosas, madeira, algodão, peles e joias. Martín também possuía
terrenos cultivados e casas nas regiões México, Texcoco, Coatinchan, Chalco,

413
LOPÉZ-AUSTIN, Alfredo. Hombre Dios: religión y política en el mundo náhuatl. México: Instituto
de Investigações Históricas, UNAM, 1973.
414
GRUZINSKI, op. cit.,1988.
415
Ibidem, pp. 32-34; LÓPEZ-AUSTIN, op. cit., pp. 115-142.
168

Otumba, Cuernavaca e Oaxtepec. Esse ostentoso patrimônio era fruto da astuta


junção das atividades rituais e comerciais, levando em conta a origem do volume
de mercadorias negociadas pelo sacerdote, advindas dos pagamentos e presentes
que recebia por sua atuação ritual nos diversos povoados por onde passava. 416
A fama de Martín Ocelotl chegou rápido ao conhecimento de Juan de
Zumárraga, após o início dos trabalhos inquisitoriais. Depois de recolher os diversos
testemunhos, incluindo os depoimentos de insatisfação dos evangelizadores, o
inquisidor desferiu a sentença contra Martín. O réu foi encaminhado ao porto de
Veracruz para que fosse embarcado rumo à Castela. O propósito da sentença era
remeter Ocelotl aos inquisidores da península, para que avaliassem seu caso e
fosse penitenciado com as sanções que o Santo Ofício determinasse. Entretanto,
ao que tudo indica, o destino do sacerdote indígena acabou selado de forma
inesperada. Após deixar a segurança da costa, a embarcação responsável pelo
traslado do prisioneiro se perdeu no mar. 417
Meses após a retirada do poderoso sacerdote de seu campo de atuação,
a Inquisição episcopal recebeu novas denúncias que uma vez mais evocavam o
nome de Martín Ocelotl. Após a prisão dele e o desterro da Nova Espanha, rumores
do seu retorno começaram a circular nas cercanias do Vale do México. Mas, o
reaparecimento do homem-deus se deu pelo protagonismo de outro indígena, cujo
prestígio diante das comunidades tomou proporções semelhantes às de Ocelotl.
Tratava-se de Andrés Mixcóatl, um suposto irmão de Martín. Andrés havia assumido
a identidade do irmão, anunciando o seu regresso e a superação dos percalços
criados por sua condenação ante o foro inquisitorial. 418
Assim como Ocelotl, Mixcóatl era adorado como um deus. Sua chegada
aos povoados fora anunciada com antecedência por um de seus súditos e as
pessoas o recebiam com oferendas, presentes e tributos. Andrés era, normalmente,
agraciado com plumaria, papel de amate, copal, entre outros artigos de grande

416
AGN, Inquisición, vol. 37, exp. 4, fls. 60-83.
417
MENDIETA, Gerónimo de. História Eclesiástica Indiana. México: Ed. Porrúa, 1993, Libro II,
Cap. XIX, p. 109.
418
Cf. AGN. Inquisición, vol. 38, exp. 7, fls. 182-202.
169

estima no cotidiano indígena. Como o irmão, Mixcóatl predizia o futuro a partir do


tlapoualli, prática divinatória por meio do manuseio de grãos de milho. Além de
promover curas rituais, fazia uso de fungos alucinógenos e exercia influência sobre
elementos naturais, como nuvens, chuva, ventos e geadas.
No entanto, não se tratava do mero jogo orquestrado por uma figura que
se aproveitava da notoriedade do irmão ausente. Andrés não apenas afirmava ser
Ocelotl, como também foi reconhecido por um dos antigos súditos do irmão. Trata-
se, antes de tudo, da constituição de um personagem divino que acumula papéis.
Mixcóatl identifica-se com Ocelotl, sem, no entanto, perder o vínculo com seu teotl
específico. Essa mescla, em si, não era contraditória; a justaposição de sentidos e
as combinações eram fatores presentes no mundo devocional nahua. 419 Assim, é
possível observar que Andrés, ao efetuar seu emparelhamento à figura de Ocelotl
– mensageiro do deus Camaxtli –, não deixava de ser Telpochtli Texcatlipoca. Eles
se fundiam no momento em que Mixcóatl afirmava ser Martín, em um mesmo
homem-deus.
Ocelotl e Mixcóatl eram especialistas rituais itinerantes e faziam parte de
um grupo de Homens-deuses.420 As investigações inquisitoriais demonstraram que
Andrés andava, muitas vezes, acompanhado de outros indivíduos, descritos de
forma semelhante. Logo após a prisão de Andrés pelo Santo Ofício, foram citados
outros três suspeitos de serem antigos sacerdotes: Cristóbal Papalotl, Tlaloc e
Mocahuaque.421 Os dois últimos ficaram isentos do processo inquisitorial devido ao
fato de ainda não terem recebido o batismo. O grupo clandestino estava
caracterizado pela autonomia, fator que contrastava muito com as ações do antigo
corpo sacerdotal.422 Antes do domínio espanhol, a vida e as ações desses agentes
estavam diretamente vinculadas às formalidades calendáricas. Esses homens-

419
LOPÉZ-AUSTIN, Alfredo. Tamoachan y Tlalocan. México: Fondo de Cultura Económica, 1994,
p. 25.
420
GRUZINSKI, op. cit., 1988, p. 55.
421
AGN. Inquisición, vol. 38, exp. 7, fs. 182-202.
422
GRUZINSKI, op. cit., 1988, p. 55; TAVÁREZ BERMUDEZ, David. Las Guerras Invisibles:
devociones indígenas, disciplinas y disidencias en el México Colonial. México: CIESAS, 2012, p. 85.
170

deuses itinerantes não seguiam mais as normas antigas, pois estavam à margem
do mundo que passo a passo sofreu os deslocamentos provocados pela conquista,
e eles eram, sobretudo, “hobres-dioses en libertad”423.
O favorecimento popular dos homens-deuses repousava no
entendimento indígena de seu caráter prodigioso. Muito distante do pensamento
dos evangelizadores, os nahuas não se interrogavam a respeito da natureza dos
prodígios manifestos por um ou outro homem-deus. Ao contrário da visão
dicotômica do cristianismo, na qual claramente as habilidades atribuídas aos
sacerdotes são fruto da intervenção diabólica, os indígenas não enxergavam
distinção na natureza de fenômenos manifesto por indivíduos distintos. A autoridade
e a capacidade de intervenção junto ao mundo eram frutos do mesmo vínculo de
forças. E, para deslocar ainda mais o sentido e embargar a comunicação entre as
concepções cristãs e o pensamento indígena, as ações que poderiam ser vistas
pelos frades como intervenções sobrenaturais, no mundo indígena, compunham um
mesmo bloco de sentido. Tratava-se de um esquema cultural cuja separação entre
os mundos natural e sobrenatural era ausente – não havia distinção categórica entre
um e outro.424
O grupo de sacerdotes e especialistas rituais, ao qual esses homens-
deuses pertenciam, persistia de forma clandestina com suas práticas e, em grande
parte, apoiado pelas populações locais. A permanência das devoções indígenas se
aliava à carência ritual que vigorou depois de 1525, quando os sacerdotes
começaram a ser banidos dos templos pelos evangelizadores. Em outras palavras,
nas primeiras décadas da conquista, o cristianismo pregado pelos evangelizadores
pouco oferecia quanto às necessidades que os antigos ritos cotidianos supriam,
principalmente no que dizia respeito aos ritos agrários. Ocelotl e Mixcóatl não
estavam obrigados a satisfazerem as necessidades de nenhuma comunidade em
particular, uma vez que estavam destituídos de suas funções formais. A autoridade
ritual que eles exerciam estava baseada, em grande parte, na liderança carismática,

423
GRUZINSKI, op. cit., 1988. p. 55.
424
Ibidem, p. 66.
171

reforçada, consequentemente, pelos laços estabelecidos entre suas ações e o bem-


estar que usufruíam os indivíduos dos pueblos por onde percorriam e pelas
constantes insinuações de seus status como iixipitla de um deus. Tais instâncias
eram sustentadas por meio exclusivo dos resultados pragmáticos que alcançavam,
uma vez que estavam desvinculados do respaldo das instituições indígenas que
vigoravam antes do cristianismo. 425
Não obstante, os especialistas rituais indígenas perseguidos pela
inquisição nem sempre manifestaram as mesmas características e estratégias. A
itinerância e a independência apresentadas por Martín Ocelotl, Andrés Mixcóatl e
outros, contrastavam com o apego e a formalidade daqueles que lutavam pela
continuidade das práticas, ou mesmo, pela transmissão dos saberes e técnicas
rituais nos moldes das instituições que desmoronavam.
Antonio Tlacateccatl e Alonso Tlacochcalcatl foram os primeiros
indígenas processados pelo franciscano Zumárraga e manifestaram um apego
maior à formalidade dos ritos, principalmente, na formação de aprendizes por meio
da instrução dos jovens. Em julho de 1536, ambos foram denunciados ao inquisidor
e entre as testemunhas do processo estiveram presentes dois jovens indígenas
aprendizes. Os jovens revelaram os detalhes acerca das atividades de Alonso e
Antonio e, segundo consta nos depoimentos, os aprendizes haviam testemunhado,
mais ou menos, dez sacrifícios humanos por extração do coração: “Dijeron que
vieron que de un año a esta parte vieron (...) sacrificar diez personas hombres y
mujeres, y les sacaban el corazón y ofrecían a sus ídolos.”426.
Antonio foi indicado pelas testemunhas como o principal instrutor dos
jovens e os mantinha sob rigorosa disciplina, cujas rotinas de autossacrifício e jejum
marcavam os ensinamentos. Os jovens foram colocados diante do inquisidor e
ainda portavam os ferimentos provenientes da rotina sacrificial. Juan de Zumárraga
indagou acerca das marcas e ferimentos que apresentavam nas pernas e sobre
quem os havia infligido. Os aprendizes indígenas responderam com naturalidade ao

425
Ibidem, p. 65; TAVAREZ, op. cit, 2012, p. 85.
426
AGN, Inquisición, vol. 37, exp. 1, fs. 5f-5v
172

Inquisidor afirmando que os réus em questão “los llevaron a donde sacrificaban, y


les cortaron con una navaja las piernas, y la sangre dellas ofrecían a sus ídolos y
que muchas veces llevaban a estos declarantes al monte y les sacaban sangre de
las orejas y de otras partes”427.
Antonio e Alonso tributavam os indígenas de Tlanocopan assim como
Ocelotl e Mixcóatl faziam com sua clientela. Ao contrário destes últimos, os dois
sacerdotes não se tornaram itinerantes, pois ficaram em sua localidade de origem,
mantendo da forma que era possível os ritos e obrigações pré-hispânicas. A
iniciação dos “muchachos sacrificados”, que terminaram como testemunhas
fundamentais ante o Santo Ofício, indica, no mesmo sentido, uma tentativa
clandestina de passar adiante as práticas e saberes ancestrais, mediante a
manutenção, ainda que parcial, da rotina disciplinar anteriormente empregada.
Após a chegada dos evangelizadores e a subsequente dispersão dos
sacerdotes dos templos, observa-se tanto nos casos de Ocelotl e Mixcóatl, quanto
no caso contra Tlacateccatl e Tlacochcalcatl, a resistência em abdicar dos papéis
ocupados antes da conversão. Uma vez dispersos, ausentes do resguardo dos
templos ou de uma área de atuação mais estrita, essas figuras se tornaram
verdadeiros entraves para a cristianização almejada pelos evangelizadores. A
Inquisição episcopal buscou rastrear e processar os indivíduos em maior evidência,
afastando-os de suas zonas de influência. As ações de Zumárraga obedeceram,
nesse sentido, uma dinâmica de auxílio aos frades, que encontravam nos
sacerdotes indígenas um frequente contraexemplo.

427
Ibidem, fl. 5f.
173

IV
EXEMPLARIDADE PUNITIVA E EFEITO PÚBLICO

(…) De su condición natural


son tan descuidados aún en lo temporal,
cuanto más en lo espiritual, que siempre
han menester espuela, ni quieren venir
muchos a la doctrina ni hacer otras
cosas que la religión cristiana los obliga
si no son a ellos compelidos. [...]
Entrellos todavía hay harta idolatría,
sacrificios y supersticiones, etc. (…)
(Frei Juan de Zumárraga)
174

1. Punição e espacialidade

A montagem exemplar das punições idealizadas por frei Juan de


Zumárraga privilegiou os locais de maior sociabilidade indígena. Os grandes
tianguis ou mercados a céu aberto e as principais ruas foram os palcos escolhidos
para execução das punições e exibição dos indígenas condenados pela Inquisição.
Como de costume à prática inquisitorial, a visibilidade era fundamental para a
produção do efeito coletivo almejado por meio dos castigos. A exposição dos réus,
a declaração de seus delitos e a expiação pública deveriam aparecer a todos. Os
princípios punitivos fundamentais do Santo Ofício almejavam, como resultado final,
mais a “perturbação de consciências” do que o castigo individual. 428 A Inquisição
buscava dar visibilidade acerca do que era combatido, ao mesmo tempo em que
inibia – mediante o sofrimento e escárnio do condenado – comportamentos
semelhantes aos dos castigados.
As penas impostas pelo tribunal episcopal estiveram limitadas a sete
categorias, por vezes acumuladas em uma mesma sentença, segundo o julgamento
do inquisidor. A sobreposição das penas indicava as etapas que o condenado
deveria cumprir. Podem ser constatadas 13 sentenças pronunciadas por frei Juan
de Zumárraga em um total de 17 processos finalizados (Quadro V). O escárnio ou
humilhação pública e os açoites preponderaram na administração dos castigos,
seguidos pelas penas de reclusão penitencial, abjuração, desterro e confisco dos
bens. Como ressaltado anteriormente, apenas um processo foi finalizado com a
execução do condenado. 429
Observa-se, no quadro V, a tradicional humilhação pública imposta pelo
Santo Ofício, a qual tomou lugar em 11 do total de casos sentenciados, ocupando
o primeiro plano na distribuição das penas. Na sequência, de caráter igualmente

428
RICOEUR, Paul. A memória, a História, o Esquecimento. São Paulo: Ed. Unicamp, 2007, p.
339.
429
Em meio aos 15 processos contra indígenas, verifica-se apenas o pronunciamento de 13
sentenças. Os dois casos remanescentes encontram-se mutilados, impedindo a verificação da forma
em que foram concluídos os inquéritos. Cf. Quadro V.
175

expositivo, os açoites atingiram nove das sentenças pronunciadas. A generalização


das duas penalidades evidencia a importância concedida pela Inquisição na
desmoralização dos condenados diante dos expectadores. Como ressaltado por
Michel Foucault, era sobretudo nos corpos dos condenados que incidia a montagem
jurídica do Antigo Regime. Eles foram tomados como o “suporte público” e a “peça
essencial” para o alcance massivo dos mecanismos de justiça. Assim como as
instâncias civis, a Inquisição privilegiou os corpos como o local onde a justiça
deveria se tornar “legível para todos”.430
Seguindo os protocolos inquisitoriais, os indígenas condenados pela
inquisição episcopal foram exibidos como designavam as diretrizes instituídas pela
prática condenatória do Santo Ofício:

(…) Sacados de la cárcel deste Santo Oficio donde están


presos, y caballeros, en sendas bestias de albarda, atados a los pies y las
manos en voz de pregonero que manifiesten sus delitos, desde la dicha
cárcel sean llevados (…), desnudos desde la cintura arriba, y las espaldas,
por el verdugo les sean dados muchos azotes hasta que sean llevados al
tianguis de Tlatelolco de Santiago desta ciudad, y subidos a donde está la
horca, públicamente sean trasquilados (…)431

Tratava-se, como destacado, de uma exposição itinerante do condenado,


desde o cárcere até o local de maior apelo público. O réu era obrigado a percorrer
o caminho despido acima da cintura e montado em uma mula ou animal semelhante
– “bestias de albarda”. Parcialmente despojados de suas vestimentas, os
condenados também tinham seus cabelos raspados, um sinal de vergonha,
penitência e perda da vaidade dentro das concepções do ocidente cristão. Os
cabelos tosados ou “trasquilados”, como aparece nos expedientes, eram
especialmente humilhantes para os indígenas penitenciados. Os castigos

430
FOUCAULT, Michel. Vigiar e Punir. Petrópolis: Vozes, 2007, p. 38.
431
AGN, Inquisición, vol. 37, exp. 1, f.9v.
176

administrados por Zumárraga podiam ter efeitos imprevisíveis nas apreensões


indígenas.
Entre as populações nahuas, cortes abruptos e desmedidos dos cabelos
estavam associados à perda parcial ou completa da vitalidade dos indivíduos. Os
cabelos (tzontli) eram considerados um receptáculo de força e capa protetora da
cabeça. Eles impediam a fuga do tonalli, uma das forças anímicas dos seres
humanos, dentro do pensamento nahua. Apesar de circular por todo o corpo dos
indivíduos, era na cabeça que o tonalli encontrava seu alojamento e nos cabelos
sua principal proteção. 432
O tonalli pode ser traduzido como uma força, fonte de vigor, calor e
crescimento dos jovens. Era o resultado de forças externas e condicionantes da
sorte e da vida de cada pessoa. Apesar da grande variedade de penteados e cortes
usados pelos indígenas, nunca se raspava por completo o cabelo na região
mesoamericana. Mantinha-se um cuidado especial com a parte posterior da cabeça,
onde os cabelos não deveriam sofrer grandes aparos. O corte completo era
aplicado, em tempos pré-hispânicos, apenas com o intuito de desferir uma punição
extrema, normalmente associada a delitos muito graves. O corte abrupto da parte
mais longa do cabelo também era praticado pelos guerreiros que se submetiam
cativos durante as guerras, mantendo as mechas sob seus domínios. Tratava-se de
um rito de guerra, uma forma de reter as forças do guerreiro subjugado e ostentação
de um troféu de captura. 433
Tanto o corte abrupto, quanto a total retirada dos cabelos deixavam os
indivíduos expostos à possibilidade de perda ou enfraquecimento do tonalli. Nas
concepções dos antigos nahuas, o abandono dessa energia vital podia significar o
adoecimento e levar, até mesmo, à morte.

432
LOPÉZ AUSTIN, Alfredo. Cuerpo Humano e Ideología: las concepciones de los antiguos
nahuas. México: UNAM, 1980, pp. 210-225.
433
LOPÉZ AUSTIN, op. cit., 1980, pp. 231-243.
177

Quadro V – Sentenças Pronunciadas contra indígenas

Caso Acusados Desfecho Data AGN, Inquisición


1 Antonio Tlacateccatl; Alonso Tlacochcalcatl e a. humilhação pública; b. reclusão penitencial de um 07/09/1536 Vol. 37, exp. 1, fs. 1-10
Maria (filha de Tlacateccatl) ano em monastério; c. desterro (não especificado)
3 Martín Ocelotl a. confisco total dos bens; b. humilhação pública; c. 09/02/1537 vol. 38, exp. 4, fs. 132-142
desterro perpétuo da Nova Espanha
4 Andrés Mixcóatl; Cristóbal Papalotl a. humilhação pública; b. abjurar em público; c. 12/1537 vol. 38, exp. 7, fs. 182-202
reclusão penitencial de um ano em monastério d.
100 açoites
5 Ana de Xochimilco (curandeira) a. humilhação pública; b. abjurar em público; c. 100 12/04/1538 “Legajos Sueltos”
açoites
6 Francisco de Coyoacán a. humilhação pública; b. 100 açoites; 10/1538 vol. 23, exp. 1, fs. 3-9
c. confisco de metade dos bens
8 Pedro Atonal; Miguel Quiao; Miartín a. humilhação pública; b. 100 açoites; 20/11/1538 vol. 37, exp. 2, fs. 11-17
Tlacochcalcatl; Francisco Huitzinahuatl; c. abjurar em público; d. confisco dos bens
Pedro tlacateccatl.
9 Marcos Hernández Atlahuacatl; Francisco de a. humilhação pública; b. abjurar em público; c. 20/06/1539 vol. 42, exp. 17, fs. 142-146
Tlatelolco desterro; d. reclusão penitencial em hospital
10 Miguel Puchtecatlailotlac reclusão penitencial em monastério 2105/1540 vol. 37, exp. 3, fs. 20-46
11 Don Carlos Ometochtzin a. humilhação pública; b. abjurar em público; c. 20/11/1539 vol. 2 (part. 2), exp. 10, fs. 237-340
execução na fogueira
12 Cristóbal, Catalina e Martín de Ocuituco a. humilhação pública; b. ouvir missa em pé; c. 100 10/10/1539 vol. 30, exp. 10 (antes exp. 9), fs. 148-
açoites; d. desterro (não especificado) 171
13 Alonso Tlilanci Absolvido 18/03/1540 vol. 37, exp. 7, fs. 85-102
14 Martín Xuchimitl de Coyoacán fragmentado não consta vol. 36, exp. 7 (antes exp. 6), fs. 224-225
15 Don Baltasar, cacique de Culhuacan fragmentado não consta vol. 42, exp. 19 (antes exp. 18), fs. 147-
152
16 D. Pedro de Totolapan e Antonio de Pedro: a. humilhação pública; b. 50 açoites; 05/1540 vol. 212, exp. 7, fs. 42-94 (antes fs. 29-
Totolapan desterro de 5 anos; Antonio: a. humilhação pública; 81)
b. 100 açoites; desterro de 10 anos;
18 Gazpar de Tçuytulgacan Receber 100 açoites 1539(?) vol. 37, exp. 2, fs. 18-19
19 Don Juan, cacique de Matlatlán a. humilhação pública; b. 100 açoites; c. frequentar 12/1539 vol. 40, exp. 33 (antes exp. 8) fs. 174-
a escola de “niños” 181.
21 Don Juan, Cacique de Totoltepec Fragmentado não consta vol. 30, exp. 6 (antes 7a), fs. 69-79
(antes 73-83)
O vínculo entre o tonalli e os cabelos era digno de cuidados cotidianos.
Aqueles que precisavam manter o vigor do tonalli, devido às árduas atividades que
desempenhavam, evitavam cortar ou sequer lavar os cabelos durante os períodos
mais laboriosos. Essa prescrição era amplamente utilizada pelos sacerdotes que
necessitavam de toda sua força vital para as especificidades rituais. No mesmo
sentido, os comerciantes (pochteca) mantinham longos cabelos para preservar as
forças intactas e enfrentarem as grandes extensões dos caminhos que percorriam,
além das perigosas travessias que separavam os centros de intercâmbio. Os
enfermos também deveriam manter os cabelos intocados, para auxiliar na vitalidade
e, consequentemente, dar mais chances de combate às doenças que os
acometiam.434
Pode-se, de início, cogitar uma apreensão de extremo rigor dos
indígenas ante a humilhação inquisitorial. A perda dos cabelos criou efeitos que
escapavam aos cálculos punitivos do Santo Ofício e assumiu um significado de
subjugação extrema no mundo indígena. Esse é um aspecto semiótico ausente da
geometria inquisitorial, mas que contribuía para os níveis de eficácia desejados
pelas punições.
O rito de humilhação e desfile público dos condenados não tinha apenas
o objetivo de expor e envergonhar o penitenciado. Antes de tudo, a apresentação
do réu tinha por fim alcançar a maior quantidade de expectadores possíveis. Os
mercados de origem indígena, como o “tianguis de Tlatelolco”, foram os cenários
mais utilizados para encenação da justiça inquisitorial sobre os indígenas.
Constituíram os equivalentes dos espaços utilizados na Península Ibérica para
humilhação pública e exibição dos penitentes. Assim como na Europa, nos
mercados de origem pré-hispânica aglomeravam grandes quantidades de pessoas
em torno das mercadorias comercializadas. O tamanho desses centros de
intercâmbio também insinuava paralelos com o Velho Mundo e, não raras vezes,

434
Ibidem, p. 243.
179

tais centros foram motivo de surpresa e admiração aos olhos dos conquistadores e
evangelizadores.435
Hernán Cortés descreveu de forma hiperbólica a aglomeração de
indígenas e as incontáveis mercadorias que eram oferecidas nos Tianguis. O
conquistador castelhano deixou sua surpresa expressa na segunda Cartas de
Relación, datada de 30 de outubro de 1520, onde enaltece ao monarca espanhol o
tamanho e o alcance dos mercados indígenas:

Tiene esta ciudad muchas plazas, donde hay continuo


mercado y trato de comprar y vender. Tiene otra plaza tan grande como
dos veces la ciudad de Salamanca, toda cercada de portales alrededor,
donde hay cotidianamente arriba de sesenta mil ánimas comprando y
vendiendo; donde hay todos los géneros de mercadurías que en todas las
tierras se hallan (...)436

Como ressaltado por Cortés, os mercados indígenas estavam situados


em locais públicos específicos para a prática do intercâmbio comercial. Esses
centros organizados de troca e negociações diversas eram as principais instituições
econômicas relacionadas à vida diária das populações locais. Eles constituíram o
meio mais efetivo e disponível aos grupos produtores para venderem seus
excedentes agrícolas e se abastecerem dos mantimentos que não produziam. 437
Nos tianguis, também eram comercializados produtos artesanais, confeccionados
por especialistas responsáveis por uma grande diversidade de itens manufaturados.
As relações comerciais funcionavam, principalmente, a partir das trocas entre
produtores diretos.

435
CORTÉS, Hernán. Cartas de Relación. México Porrúa, 2010, pp. 77-78; SAHAGÚN, Bernardino.
Historia General de las Cosas de Nueva España. México: Porrúa, 2006, pp. 467-521.
436
CORTÉS, op. cit., 2010, pp. 77-78.
437
ESCALANTE GONZALBO, Pablo. La ciudad, la gente y las costumbres. In:
_____________________ (coord.). Historia de la Vida Cotidiana en México: Mesoamérica y los
ámbitos de la Nueva España. México: FCE, 2004, vol. I, pp. 201-203; LÓPEZ LUJÁN, L;
MANZANILLA, L. (coods.). Historia Antigua de México, Vol. IV: aspectos fundamentales de la
tradición cultural mesoamericana. México: INAH, UNAM, Miguel Ángel Porrúa, 2014, pp. 108-109.
180

A amplitude dos produtos negociados era variada e as transações


poderiam ser pequenas ou grandes, girando em torno de bens de uso cotidiano ou
itens de luxo. Estes últimos, muitas vezes, trazidos de fora das comunidades onde
estavam estabelecidos os mercados. Mercadorias fundamentais e de menor valor
marcaram as pequenas organizações urbanas. Por outro lado, os grandes centros
de intercâmbio, tais como Tlatelolco, Tenochtitlan, Acolman e Cholula, contrastaram
com os tímidos mercados locais. Essas regiões de grande complexidade urbana
foram marcadas pelo comércio de plumarias, turquesas, esmeraldas (chalchíhuitl),
mantas de algodão, peles de animais, cacau, entre outros. Em resumo, eram artigos
de grande valor e cobiçados, especialmente, pela nobreza indígena. 438
Uma multidão de indígenas dedicava-se às atividades comerciais, em
tempos pré-hispânicos e durante o período colonial; muitos de maneira contínua e
outros de forma esporádica. As múltiplas relações condicionadas pelo ambiente dos
mercados eram um fator que, para além das trocas e negociações materiais,
proporcionava um trânsito imaterial. Os contatos interculturais favoreceram, antes
da conquista espanhola, a circulação de técnicas manufatureiras e o repasse de
informações políticas aos diversos domínios em contato. As redes de intercâmbio,
cujos mercados interligavam-nas, eram verdadeiros veículos para a difusão e
adoção de novas práticas culturais ou medidas políticas frente às notícias chegadas
por intermédio dos negociantes. 439
A espacialidade, o grande fluxo de pessoas e o enraizamento dos
mercados, mostraram-se, portanto, como locais privilegiados dentro da arquitetura
punitiva em funcionamento na Inquisição episcopal. O aproveitamento dos
perímetros dos tianguis para a finalização dos inquéritos abertos pelo inquisidor
Zumárraga contra indígenas estava circunscrito em uma maneira específica de se
exercer o poder. A punição dos indígenas diante do grande público efetivava a
concepção pedagógica e coercitiva do Santo Ofício da Inquisição – uma “pedagogia

438
Ibidem, pp. 87-88; LÓPEZ LUJÁN, L; MANZANILLA, L. (coods.). Historia Antigua de México,
Vol. III: El horizonte posclásico. México: INAH, UNAM, Miguel Ángel Porrúa, 2014, pp. 306-307.
439
SAHAGÙN, op. cit., 2006, pp. 472-474; LÓPEZ LUJÁN, L; MANZANILLA, L. op. cit., 2014, vol. IV,
p. 115.
181

do medo”, como ressaltado pelo historiador Bartolomé Bennassar. É um processo


no qual a prisão, a exposição e o penitenciamento dos acusados geravam temor e
espanto nos espectadores. E, de modo subsequente, criando uma atmosfera de
medo com relação à possibilidade de incorrer nos mesmos atos dos condenados. 440

2. Uma nova hierarquia

Os castigos públicos jogaram com a posição social ocupada pelos


condenados no mundo indígena. A punição pública e a detração subsequente à
finalização dos inquéritos contribuíram para a fragilização da imagem das elites
indígenas com relação às demais parcelas da sociedade.
Na região do Vale do México e em suas imediações, os indivíduos
envolvidos na venda e troca de produtos básicos ou de luxo eram, em sua maioria,
pertencentes a grupos alheios às elites governantes. Diferente da região maia, onde
constata-se um vínculo mais estrito entre a nobreza e as atividades comerciais
diretas.441 Grande parte dos responsáveis pelo funcionamento dos tianguis, no
Centro do México, era macehualtin, ainda que regulamentados e controlados pelos
pipiltin governantes. Mesmo aqueles que alcançavam um status quo elevado – fruto
das bem-sucedidas caravanas comerciais – não se equiparavam aos nobres
indígenas; posição esta intermediária e ocupada por uma parcela significativa dos
comerciantes de longa distância, os chamados pochtecas. Eles eram responsáveis
por percorrer os extensos trechos que compunham as redes de intercâmbio de
mercadoria na mesoamericana; eram negociantes de tempo integral e
proporcionavam o intermédio dos itens de escassa oferta nas regiões das quais
eram provenientes e para aquelas às quais se destinavam. 442

440
BANNASSAR, Bartolomé. La Inquisición o la pedagogía del miedo. In: _________________.
Inquisición Española: poder político y control social. Barcelona: Editorial Crítica, 1984, pp. 94-125.
441
LÓPEZ LUJÁN, L; MANZANILLA, L. op. cit., 2014, vol. IV, p. 111.
442
LÓPEZ LUJÁN, L; MANZANILLA, L. op. cit., 2014, vol. IV, pp. 110-111.
182

Esses especialistas no comércio de longa distância gozaram, muitas


vezes, de notável prestígio. Alguns chegaram a ser mais abastados do que muitos
pipiltin e não hesitavam em demonstrar sua riqueza por meio de ostentosos
banquetes. Frei Bernardino de Sahagún denotou o especial caráter que os eventos
assumiam para o grupo de comerciantes:

Cuando alguno de los mercaderes y tratantes tenía ya caudal


y presumía de ser rico, hacía una fiesta o banquete a todos los mercaderes,
principales y señores, porque tenían por cosa de menos valer morirse sin
hacer algún espléndido gasto para dar lustre a su persona (…) 443

Os pochtecas concorriam e se arriscavam, antes da conquista, no intuito


de alcançarem o prestígio social dos indivíduos nascidos no seio da nobreza
indígena. Não lhes era incomum enfrentar caminhos tortuosos e estar
constantemente expostos às ameaças de regiões hostis.
A exibição de seus êxitos comerciais diante dos nobres ou das parcelas
mais pobres da população, que tudo observava, era arriscado. Os mercadores
enalteciam os nobres, presenteando-os e atentando ao rigor hierárquico que
separava esses indivíduos. O intuito era evitar qualquer tipo de ofensa para os
pipiltin perante os requintes dos banquetes oferecidos, pois tentar fazer
concorrência com a nobreza e abusar dos frutos conquistados podiam incitar graves
retaliações.
Diante dos olhares dos comerciantes abastados e daqueles menos
privilegiados que comercializavam alimentos cotidianos, a Inquisição episcopal
exibiu seus condenados. Sob acusações de difícil inteligibilidade para o público
indígena, o atributo que marcava as punições era, sobretudo, a subjugação dos
nobres, antes imaculados. Por usufruírem de um estatuto de superioridade, a
apresentação dos penitenciados pesava de forma marcadamente vexatória. Os
pipiltin desfrutavam, antes da invasão espanhola, de privilégios inerentes –

443
SAHAGÚN, op. cit., 2006, p. 485.
183

controlavam os regimentos de justiça, governavam e arrecadavam tributos em suas


zonas de direito, além de exercitarem por excelência as funções de guerra e
conquista.444 Em um ambiente onde a presença deles estava associada ao mando,
gerência e consumo de itens valiosos, o uso dos mercados como palcos punitivos
atentava, estreitamente, contra a imagem e a autoridade dos condenados.
O alvo fundamental do procedimento inquisitorial era o público que se
aglomerava nos espaços escolhidos para o cumprimento dos castigos. Os
espectadores eram os personagens centrais da montagem do Santo Ofício e a
ausência deles deixaria a exibição dos condenados desprovida de significado.
Tampouco o mero anúncio dos delitos satisfaria à procedura do Santo Ofício.
Declamar ao público os crimes não era tão eficaz quanto exibir o réu enquanto eram
anunciados seus crimes.445 Fazia-se necessário, dentro da dinâmica inquisitorial,
que todos observassem de perto, com proximidade suficiente para marcar os
pensamentos e, não menos importante, temer por sua própria integridade. Mas, não
bastava a simples humilhação do condenado, era preciso dar algo com vigor
suficiente para imprimir nas mentes através dos olhares.
Ainda que constituísse uma penalidade independente, a pena de
humilhação pública raramente era administrada de forma isolada; não sendo
diferente na atuação de frei Juan de Zumárraga. 446 O caminho percorrido nas
“bestias de albarda” preludiou nos processos contra indígenas os castigos mais
severos. O clímax do ritual punitivo era alcançado por meio de açoites e finalizado
pelas abjurações dos condenados em praça pública ou em meio às celebrações das
missas. Tal destino foi protagonizado por cinco indígenas da região de
Azcapotzalco. Eles foram condenados a receber cada um “cien azotes por los

444
MENEGUS, Margarita. La nobleza indígena em la Nueva España: circunstancias, costumbres y
actitudes. In: ESCALANTE GONZALBO, Pablo. (coord.). Historia de la Vida Cotidiana en México:
Mesoamérica y los ámbitos de la Nueva España. México: FCE, 2004, vol. I, p. 501.
445
FOUCAULT, op. cit., 2007, p. 49.
446
Sobre o caráter da administração da pena de humilhação pública pelo Santo Ofício, conferir:
GARCÍA-MOLINA RIQUELME, Antonio M. El Régimen de Penas y Penitencias en el Tribunal de
la Inquisición en México. México: UNAM, Instituto de Investigaciones Jurídicas, 1999, pp. 511-512.
184

tianguis desta ciudad de México”447. Ademais, deveriam permanecer “en pie a la


misa que se dijere, y les sean predicado y dado a entender sus errores e falsedad
e idolatría, e las abjuren e aborrezcan y detesten públicamente”448.
O inquisidor procurou unir os açoites aos ritos de humilhação pública,
concedendo maior apelo à cena punitiva. Outro exemplo pode ser demonstrado na
condenação de Francisco de Coyoacán por bigamia, em novembro de 1538:

(…) Condenamos, al dicho Francisco, indio, que de la prisión


e cárcel donde está, sea sacado caballero en una bestia de albarda, atados
los pies y las manos, con voz de pregón, y en las espaldas desnudas le
sean dados cien azotes (…)449

Os açoites comportavam um caráter punitivo e penitencial, vinculando-se


às práticas da Igreja em busca da perfeição espiritual (flagelar o corpo e limpar o
espírito do penitente). Ademais, o sofrimento de penas corporais estava vinculado
às concepções penais do Antigo Regime, associado ao castigo dos mais pobres. A
nobreza espanhola estava acostumada a receber penas pecuniárias ou que não
atentassem contra sua reputação (“fama”). Assim como os clérigos, a elite
peninsular raramente era açoitada ou escarnecida em público pela Inquisição
espanhola.450
Claramente, a humilhação afetava mais alguns indivíduos que outros,
devido à imediata detração da imagem pessoal. O escarnecimento de clérigos e
nobres era desvantajoso, ainda que eles fossem considerados culpados. A
Inquisição levou em conta o reconhecimento do prestígio social e buscou evitar a
fragilização de figuras da nobreza espanhola e do clero diante as demais parcelas
da sociedade.451 E, nesse sentido, pode-se falar de uma inversão estratégica no
proceder inquisitorial com relação aos “naturales” convertidos.

447
AGN, Inquisición, vol. 37, exp. 2, f. 16.
448
Ibidem
449
AGN, Inquisición, vol. 23, exp. 1, f. 6v.
450
GARCIA-MOLINA RIQUELME, op. cit., 1999, pp. 435-437.
451
Ibidem, pp. 511-512.
185

Como ressaltado, os indígenas processados pelo bispo Juan de


Zumárraga eram pertencentes às elites locais ou vinculados a elas. A humilhação e
o açoitamento dos nobres indígenas deixavam implícito um duplo caráter de
tratamentos. Por um lado, foi reconhecido o distanciamento entre os macehultin e
os pipiltin, sendo esses últimos destacados como nobreza ou elite governante,
deixando clara a exemplaridade almejada pela Inquisição em sua punição. Por outro
lado, o estatuto de “noble indígena” não foi verdadeiramente reconhecido no âmbito
jurídico do Santo Ofício. E o tratamento punitivo concedido aos réus não
demonstrou qualquer reconhecimento de privilégio nobiliário.
Tal caráter duplo acima citado e reconhecível no tratamento junto aos
condenados alargava o alcance do público, que devia testemunhar e, em certo
sentido, fazer parte da punição em maior quantidade possível. O que estava em
jogo era o alcance edificador aspirado pelos castigos. Punir os condenados e educar
os demais eram os auspícios das sentenças, expressos nas prescrições do próprio
bispo inquisidor: “por las calles acostumbradas en forma, les sean dados (…)
azotes, manifestando su delito porque a ellos sean castigo y a los que vieren y
oyeren ejemplo”452. Resultado que podia ser pretendido apenas mediante a
participação das comunidades locais.
Em meio ao temor de sofrer os mesmos rigores, os espectadores
também figuravam em um novo papel, qual seja, o pertencimento à comunidade
que expurgava o herege indesejado – função implícita na participação e cada vez
mais importante na formação cristã das comunidades indígenas convertidas. Em
resumo, existiu uma pedagogia tripartida expressa na Inquisição de frei Juan de
Zumárraga. Tratava-se de causar temor pelo que padecia o condenado; ao mesmo
tempo, introduzia-se os indígenas nos novos cerimoniais de justiça, e, não menos
importante, criavam-se novos sentimentos de pertencimento social.
As obrigações que recaíam sobre indígenas convertidos não passavam
apenas pelos cumprimentos de uma postura litúrgica. A formação dos novos

452
AGN, Inquisición, vol. 30, exp. 10 (antes exp. 9), f. 169.
186

cristãos demandava a construção de uma ética frente às práticas tidas como


heréticas e abomináveis. Era preciso romper com o passado e cultivar novos
valores. Recaía sobre os neófitos, conjuntamente, o pressuposto de expurgar os
elementos heréticos do interior de suas comunidades.
A queima das efígies divinas e apetrechos rituais confiscados
constituíram um dos lados mais apelativos desse movimento de extirpação, tão
característico nas primeiras décadas da evangelização no México. Tal recurso
incrementou as insígnias da Inquisição episcopal do primeiro bispo do México. Para
além dos castigos impostos, o extermínio das efígies de divindades indígenas
também aparece como um distintivo na cena pública. Lado a lado os condenados
foram incinerados “los idolos que les fueron tomados”453 e qualquer atributo
vinculado aos ritos devocionais indígenas.
Não obstante, apesar da violência que caracterizava o ato, o espetáculo
de destruição das efígies não invalidava a existência das divindades indígenas.
Como ressaltado pelo historiador Serge Gruzinski, as destruições promovidas pelos
primeiros evangelizadores delimitavam um estatuto ambíguo entre as efígies e as
novas imagens cristãs. A queima dos “ídolos” efetivava mais uma concorrência com
as imagens cristãs que, propriamente, uma aniquilação dos deuses. A busca e
eliminação dos “ídolos” sobrepunha a autoridade do cristianismo sem, no entanto,
subentender a inexistência dos deuses autóctones. A destruição deixa subsistir uma
ambiguidade, uma margem de crença. Ora, combatia-se algo que, bem ou mal,
tinha sua existência reafirmada nas próprias perseguições – operação que consistiu
mais em “uma mutilação do que um aniquilamento”, resguardando um certo caráter
apreciável das efígies indígenas. 454
Tal raciocínio encontra ainda maior sustentação ao se cotejar as
concepções formuladas pelo pensamento nahua em sua cosmologia e formulação
dos seres divinos.

453
AGN, Inquisición, vol. 37, exp. 1, f. 9v.
454
GRUZINSKI, Serge. A Guerra das Imagens: de Cristóvão Colombo a Blade Runner (1492-2019).
São Paulo: Companhia das Letras, 2006, pp. 60-64.
187

Segundo Alfredo López-Austin, as complexas formulações dos antigos


nahuas, com relação à substancialidade que compunha as divindades,
pressupunham a existência de quatro características fundamentais: a substância
divina era passível de divisão, reintegração à sua fonte original, separação de seus
múltiplos componentes e, até mesmo, podendo-se agrupar de formas distintas,
formando um novo ser divino. A divisão permitia que a mesma divindade estivesse
em vários lugares de forma simultânea. A título de exemplo, uma divindade podia
habitar o mundo dos deuses e, ao mesmo tempo, ter sua essência presente em
indivíduos mundanos, tal como no caso dos homens-deuses, destacados
anteriormente. O mesmo ocorria com as efígies indígenas, pois as essências das
divindades ocupavam as formas talhadas e modeladas, sem, no entanto, estarem
restritas ao objeto. Uma vez rompidas as efígies divinas, a substância retornava a
sua fonte original.455
Ainda assim, parece verossímil cogitar um certo alarde que pode ter
tomado conta de muitos espectadores indígenas ao verem as destruições
performatizadas pelos evangelizadores e seus apoiadores. 456 Ainda que tomados
por um medo inicial de retaliação por parte dos deuses ofendidos, os indígenas
seriam pouco a pouco – segundo Gruzinski – obrigados a admitir a não reação de
suas divindades. Isso pode ter contribuído para ver na “agressão dos espanhóis” a
consagração da “impotência das divindades locais”.457
Tomando as linhas de pensamento desse historiador francês, é possível
enxergar na punição de membros das elites indígenas juntamente à destruição dos
“ídolos” um jogo de remontagem das linhas hierárquicas. Uma verdadeira
reconstrução das dinâmicas de poder. Não se tratava de uma completa perda de
autoridade por parte das elites autóctones ou das divindades, mas sim, uma ação
reedificadora, e uma nova hierarquia se impunha. O primeiro plano passava a ser
ocupado pelos espanhóis, as imagens cristãs e o Deus cristão; e, em segundo lugar,

455
LÓPEZ-AUSTIN, Alfredo. Tamoachan y Tlalocan. México: Fondo de Cultura Económica, 1994,
pp. 25-28.
456
Ibidem, p. 61.
457
Idem.
188

os nobres e as devoções pré-hispânicas. Em outras palavras, efetivava-se por meio


das ações inquisitoriais contra os indígenas uma sobreposição da autoridade do
cristianismo ao subjugar os pipiltin e as divindades autóctones em praça pública.
Portanto, ocorriam mutilação das divindades, sobreposição da autoridade do
cristianismo e ressignificação do sagrado em seus espaços e fundamentos.

3. Vozes e contenções

A cena pública iniciada pela humilhação dos indígenas encontrava nos


açoites e na queima das efígies seu ápice. Contudo, o destino dos condenados nem
sempre terminava nas detrações e flagelos, pois outras sanções podiam aguardar
os processados. O pronunciamento das penas de abjuração, reclusão penitencial,
desterro e confisco de bens também figuraram nos inquéritos contra indígenas
(Quadro V). Eram encerramentos fundamentais dentro das concepções do castigo
inquisitorial.
As abjurações forneciam ao público a confissão do inquirido e a profissão
de fé católica – pressuposto usado por Zumárraga para a reconciliação dos réus e
antecedido pela ameaça de execução na fogueira em caso de reincidência. O
Inquisidor dava a entender “que, si otra vez lo hace, que será quemado por
relapso”458. O reconhecimento das faltas justificava, mediante a voz do condenado,
a intervenção inquisitorial e atestava o compromisso de não incorrer uma outra vez
nos atos julgados perante as autoridades eclesiásticas. 459
Os modos declaratórios formais administrados pela Inquisição episcopal
no que diz respeito aos indígenas tiveram lugar tanto nos espaços abertos, quanto
em âmbito mais restrito. Os pronunciamentos das abjurações dos réus foram
consecutivos à humilhação e ao açoitamento público ou tomaram o lugar das
missas, visivelmente diante de todos que compareciam. A abjuração em praças,

458
AGN, Inquisición, vol. 37, exp. 2, f.19.
459
GARCIA-MOLINA RIQUELME, op. cit., 1999, pp. 551-555.
189

mercados ou nas principais ruas da cidade finalizava a exposição dos indivíduos


penitenciados, demonstrando sua confissão, arrependimento e alertando aos
presentes acerca dos delitos cometidos, tal como se pode observar no processo
contra Andrés Mixcóatl e Cristóbal Papalotl, de julho de 1537. Consta no expediente
que os réus foram remetidos ao seu local de origem, obrigados a reconhecer seus
erros e abjurar de suas “herejías” para que todos observassem o arrependimento
deles:

(...) Sean llevados por las calles públicas (…) y por los
tiangues, y en las espaldas les sean dados cada cien azotes, e sean
remitidos a los lugares [de] donde son, y donde predicaron y dogmatizaron,
en especial en los lugares más grandes (…) y delante de mucha gente
abjuren las herejías que han predicado, y juren que no tornarán a ellas, so
pena de relapsos (…).460

O plano punitivo exposto traz implícito o verdadeiro alvo do castigo. Os


condenados deveriam ser enviados aos locais específicos “donde predicaron y
dogmatizaron”. O público aparece sempre como o destinatário ao qual se deseja
enviar o recado: “delante de mucha gente abjuren las herejías que han predicado”.
Por outro lado, alguns dos penitenciados podiam compor cenas menos
apelativas. Apresentados no ambiente das igrejas ou capelas, alguns indivíduos
tomavam o lugar de exemplos vivos para os sermões proferidos nas missas. Os
condenados permaneciam prostrados e materializavam um traslado pecaminoso.
Exemplaridade personalizada por Ana de Xochimilco: “sacada con una coroza en la
cabeza, y llevada a la Iglesia Mayor de esta ciudad (…) con una candela en la mano,
ardiendo, esté en misa que dijere en la dicha Iglesia, en pie”461. Da mesma forma,
Marcos Atlahuacatl foi levado à igreja de Santiago de Tlatelolco, onde deveria
comunicar os erros dos quais era acusado:

460
AGN. Inquisición, vol. 38, exp. 7, f. 201.
461
Proceso del Santo Oficio contra una India. In.: Boletín del Archivo General de la Nación,
México, t. XII, vol. 2, p. 207-214, ano 1941, p. 213.
190

(…) A la iglesia de Santiago, y allí el dicho Marcos abjure por


la mejor vía que se le pudiese dar a entender su mala vida y errores, y se
retrate dellos diciendo que, si el los ha dicho, que no estaría en su juicio ni
seso, sino borracho, e que él ha y tiene lo que la Santa Madre Iglesia y en
la doctrina cristiana, y en ello entiende perseverar e morir, e así lo jure
(…)462

As declarações funcionavam dentro dos graus de exemplaridade


desejados e dependiam do nível de exposição do condenado. De uma forma ou de
outra – seja diante de um grande público ou dos expetadores que ocupavam as
capelas e Igrejas – era alcançada a lição edificadora, que consistia na operação de
um modelo coercitivo, amedrontador e doutrinador.
A igreja de Santiago de Tlatelolco, onde Marcos Atlahuacatl foi obrigado
a abjurar, foi a pedra angular das idealizações evangélicas na Nova Espanha.
Não se tratava de um local aleatório, porque, desde cedo, foi reservado
como “doctrina” para catequização dos indígenas convertidos. O dia 6 de janeiro de
1536 marcou o início de um projeto mais ambicioso. Seis meses antes de fundar
um tribunal de Inquisição junto ao episcopado, Juan de Zumárraga e os
evangelizadores franciscanos inauguraram o Colegio de Santo Cruz de Tlatelolco.
A criação do centro de estudos foi endossada pelo vice-rei Antonio de Mendoza e
destinava-se ao ensino dos filhos das elites indígenas. 463 A criação de centros de
instrução para os jovens indígenas havia sido fomentada desde o princípio da
evangelização pelas autoridades civis e eclesiásticas.464 Em meio aos estudantes
do Colégio de Santa Cruz e outros indígenas aos quais eram reservados os
sermões da Igreja de Tlatelolco, o penitenciado figurava como elemento
pedagógico.

462
AGN, Inquisición, vol. 42, exp. 17, f. 145.
463
GONZALBO AIZPURU, Pilar. Historia de la Educación en la Época Colonial: el mundo
indígena. México: El Colegio de México, 2008, p. 112.
464
Memorial sobre asuntos de buen gobierno que um desconocido hizo por orden del emperador
(1526). In: CUEVAS, Mariano (org.). Documentos Inéditos del Siglo XVI Para la Historia de
México. México: Ed. Porrúa, 1975, p. 3; ver também, GONZALBO AIZPURU, op. cit., 2008, p. 111.
191

As abjurações legitimavam a verdade da acusação formalizada no


âmbito dos processos. Elas evidenciavam outro objetivo do Santo Ofício da
Inquisição – a extração da confissão do réu culpabilizado. Tal ideal era alcançado
muitas vezes pela flagelação do corpo e debilitação psicológica dos indivíduos
processados.465 As palavras de arrependimento dos condenados e a invalidação
verbal feita ao final das punições finalizavam a montagem. A confissão proferida
pela boca do condenado aparecia aos expectadores em seu papel de “verdade
viva”, e ninguém era mais adequado do que o próprio penitente para se auto
invalidar suas palavras.466 Diante do público, as palavras forneciam o
reconhecimento da justiça feita por meio do castigo e reforçando, uma vez mais, a
imagem de fragilidade das elites indígenas diante do cristianismo dos espanhóis.
Ainda assim, houve grande preocupação quanto ao retorno dos
indivíduos castigados à suas comunidades de origem, na finalização dos inquéritos.
A influência que os reconciliados podiam exercer sobre os demais indivíduos foi
sempre um objeto das preocupações da Inquisição episcopal. Em decorrência, a
contenção dos réus tomou forma nas sentenças de desterro e nas reclusões
penitenciais que afastavam de imediato os membros condenados de sua localidade.
O distanciamento imposto pelos desterros ou reclusões tinha
consequências graves para o núcleo familiar ao qual o indivíduo condenado
pertencia. Sua ausência podia significar um período de grande instabilidade no seio
das famílias e no cenário político local. A repercussão econômica do desterro ou do
afastamento dos penitentes era sempre negativa, apartando-os das atividades
produtivas.467 Juntamente com a pena de confisco dos bens, a intervenção
inquisitorial podia debilitar, consideravelmente, os núcleos familiares. E esse é um
pressuposto considerado por frei Juan de Zumárraga no momento de desferir as
penas que tinham efeitos econômicos. Apenas no processo contra Martín Océlotl,

465
PÉREZ MARTÍN, Antonio. La doctrina jurídica y el proceso inquisitorial. In: ESCUDERO, José A.
(ed.). Perfiles Jurídicos de la Inquisición Española. Madrid: Instituto de Historia de la Inquisición,
Universidad Complutense de Madrid, 1992, p. 312.
466
FOUCAULT, op. cit., 2007, pp. 34-35.
467
GARCIA-MOLINA RIQUELME, op. cit., 1999, pp. 345-347.
192

foram pronunciadas, em conjunto, as penas de desterro e confisco dos bens


(Quadro V, caso 3). Especificidade inteligível se forem considerados o desterro
perpétuo e a remissão sofrida pelo condenado aos tribunais Espanha. Com a
exceção de Océlotl, o inquisidor Zumárraga evitou o pronunciamento consecutivo
dos dois castigos, visto que poderia fadar os indivíduos a um estado de completa
miséria.
Os desterros poderiam ser temporários ou perpétuos e destinando-se,
sobretudo no caso dos indígenas, a mantê-los ausentes de sua margem de
influência social. As reclusões penitenciais complementavam o afastamento com as
disciplinas catequéticas. Os indivíduos por vezes ficaram reclusos em monastérios,
escolas ou hospitais, onde eram melhor instruídos acerca dos rudimentos do
cristianismo. A função almejada pelo trato inquisitorial, em ambas as situações de
afastamento, era conter o prejuízo, o dano que o penitenciado poderia causar aos
outros convertidos. O que estava em jogo era a própria concepção de “delito” que
trazia consigo um caráter intrinsecamente generalizante. 468 O verdadeiro perigo que
as práticas consideradas heréticas despertavam nas mentes dos religiosos era a
subversão da ordem almejada, o incentivo de outros hereges.
A prática inquisitorial de Zumárraga com os indígenas do Altiplano
Mexicano demonstrou grande apreensão perante os indivíduos que poderiam afetar
o futuro cristão almejado para as comunidades frequentadas pelos evangelizadores.
As inquietudes dos regulares, com especial destaque para os franciscanos,
tomaram sua forma mais palpável no processo inquisitorial contra don Carlos
Ometochtzin. No fim do ano de 1539, o membro da elite texcocana, aparentado com
eminentes líderes indígenas, terminou executado na fogueira.469

468
FOUCAULT, op. cit., 2007, p. 32.
469
AGN, Inquisición, vol. 2 (part. 2), exp. 10, f. 237-340.
193

4. Don Carlos Ometochtzin

A queima de Don Carlos de Texcoco foi antecedida por seis meses de


investigações, para as quais o inquisidor Zumárraga contou com a ajuda de boa
parte dos evangelizadores da região acolhua. O caso é revelador de uma complexa
rede sociopolítica e exemplifica o caos das primeiras décadas da conquista
espanhola no México. As intrigas dispostas no processo envolveram as brigas
sucessórias entre os líderes indígenas de Texcoco, as reorganizações instituídas
pelo domínio espanhol e as tentativas dos franciscanos para conter a permanência
das devoções indígenas.
Apesar das dificuldades informativas com relação à vida de don Carlos,
antes de seu encontro com a Inquisição episcopal, em junho de 1539, sua posição
dentro da nobreza indígena de Texcoco pode ser redigida com relativa segurança.
Carlos Ometochtzin era neto de Netzahualcóyotl, o famoso tlatoani que governou
Texcoco no final do século XV. Seu pai era Nezahualpilli e esteve a cargo da zona
acolhua no momento da irrupção espanhola. Com a paternidade em comum, don
Carlos era irmão de don Fernando Ixtlilxóchtli, fiel aliado de Cortes nas guerras de
conquista. Ele era fruto do relacionamento entre Netzahualpilli e uma concubina
pertencente à elite tepaneca. Suspeita-se que seu nascimento tenha ocorrido entre
os anos de 1504 e 1509. Apesar da imprecisão, é presumível que tivesse mais ou
menos 30 anos na época de sua execução, levando em consideração a idade das
testemunhas que cresceram com Ometochtzin. 470 O processo inquisitorial sugere
que don Carlos tenha recebido o batismo por volta de 1524. Em 1539, o réu afirmou
ser “cristiano bautizado, y que puede haber quince años, poco más o menos, que
se bautizó en el dicho pueblo de Texcoco”471.
Don Carlos se auto designou perante o Inquisidor como
“Chichimecatecotl” (senhor chichimeca), uma titulação ostentada pela elite
governante da região acolhua. Apesar da sugestão do nome, suas tentativas de

470
AGN, Inquisición, vol. 2 (part. 2), exp. 10, fs. 331v-335v.
471
Ibidem, f. 316.
194

ascensão a um posto de liderança careceram do reconhecimento das elites locais.


As constantes atribuições historiográficas ao cargo de “cacique de Texcoco”,
supostamente exercido por don Carlos, foram um erro recorrente na literatura sobre
o caso. Equívoco advindo, em grande parte, das especulações feitas em 1910, com
a publicação paleográfica do processo pelo Archivo General de la Inquisición, no
México.472
Quando don Fernando Ixtlilxóchitl acompanhou o conquistador Hernán
Cortés em sua expedição às hibueras, a liderança aculhuque ficou a cargo de dois
de seus irmãos.473 O primeiro foi don Jorge Yoyotzin (1532-1535) e,
consecutivamente, don Pedro Tetlahuehuequetitzin (1535-1539). Quando don
Pedro faleceu, Carlos tentou ocupar a liderança que o irmão paterno deixava em
aberto. E no momento em que foi processado, don Carlos tentava articular sua
liderança junto aos demais membros da elite indígena, apesar disso, não houve
respaldo das autoridades espanholas. O vice-rei, don Antonio de Mendoza e a
Audiência Real delegaram o cargo de governador a don Lorenzo de Luna. A
nomeação de Luna sobrepunha a hierarquia tradicional de governo, e o cargo
funcionou em paralelo aos tlatoque/caciques, desde 1538. Naturalmente, a
ascensão do governador rompia com a autonomia indígena nas nomeações de suas
lideranças. Afinal, ainda que respeitassem as linhas de parentesco, os espanhóis
fizeram uso dessas relações, privilegiando os indivíduos que lhes pareciam mais
favoráveis.474
A falta de encaixe de don Carlos em meio às turbulências administrativas
provocadas pelas reorganizações espanholas se agregaram, em seu desfavor, ao
pouco reconhecimento por parte da elite local. As claras dissidências aparecem

472
GONZÁLEZ OBREGÓN, Luis (dir.). Proceso Inquisitorial del Cacique de Tetzcoco. México:
Eusebio Gómez de la Puente, 1910.
473
Uma delimitação da linha sucessória de Texcoco pode ser encontrada em, TAVÁREZ
BERMUDEZ, David. Las Guerras Invisibles: devociones indígenas, disciplinas y disidencias en el
México Colonial. México: CIESAS, 2012, pp. 89-94
474
GIBSON, Charles. Los Aztecas Bajo el Dominio Español 1519-1810. México: Siglo XXI, 1981,
pp. 157-170; LOCKHART, James. Los Nahuas Después de la Conquista: historia social y cultural
de los indios del México central, del siglo XVI al XVIII. México: FCE, 1999, pp. 50-53.
195

expressas em seu processo inquisitorial. Os testemunhos dos irmãos e da esposa


de don Carlos relataram ao inquisidor que ele “estaba mal con ella, y también con
sus hermanos”.475 Foi descrito como um homem de caráter instável e pouco querido
pelos parentes; era chamado de “loco” e “apartado de sus hermanos”.476 Os
esforços de don Carlos Ometochtzin para ascender à liderança de Texcoco
acabaram, drasticamente, frustrados pela intervenção Inquisitorial. Poucos meses
após o falecimento do irmão que ele tentava suceder, foi encerrado a mando de
Zumárraga no cárcere do Santo Ofício. Ometochtzin foi processado como herege
dogmatizador e permaneceu preso, por seis meses, saindo apenas para cumprir a
pena capital.
Os mal-entendidos que o réu manteve com muitos dos membros de sua
própria família contribuíram para declarações mais enfáticas nos testemunhos que
compõem seu inquérito. Don Carlos parecia isento de qualquer protecionismo de
grupo e à mercê dos agravos gerados pelas intrigas familiares.
O historiador Robert Ricard, em sua conhecida obra sobre a
evangelização do México, ressaltou a possibilidade de um complô indígena contra
de don Carlos. Para o autor, é notável “ver cómo saben los nativos utilizar con suma
habilidad los medios que les proporciona la justicia europea para saciar sus odios y
satisfacer sus personales venganzas”477. Não obstante, como considerado
anteriormente, por maior que fosse a sagacidade de muitos indígenas no novo
cenário que se impunha, era cedo para tal domínio ante as instituições espanholas
que iniciavam seu enraizamento na Nova Espanha. Os três anos de funcionamento
do tribunal episcopal, que antecederam o processo contra don Carlos, não parecem
suficientes para fornecer tamanha habilidade a seus detratores. As deficiências
diplomáticas do condenado não abarcam a complexidade e, tampouco, explicam a
totalidade dos eventos que culminaram em sua execução.

475
AGN, Inquisición, vol. 2 (part. 2), exp. 10, f. 303.
476
Ibidem.
477
RICARD, Robert. La conquista Espiritual de México. México: FCE, 1994, p. 398.
196

As investigações que serviram de base para a condenação de don Carlos


tiveram seu prelúdio na denúncia de Francisco Maldonado, um de seus sobrinhos
que morava no povoado de Chiconautla. Na época, a conselho do padre provincial,
Francisco e outros jovens indígenas convertidos estavam à frente de uma série de
procissões feitas com o intuito de interceder pela longa estiagem que assolava o
Vale, “y porque moría mucha gente”.478 Don Carlos, em visita à região de
Chiconautla, notou o empenho do sobrinho no auxílio e na iniciativa que mantinha
junto aos evangelizadores na cristianização da província. Francisco e outros
indígenas obedeciam aos rigores ensinados pelos evangelizadores e conservavam
penitências de restrição alimentar – “en aquellos días no comían sino pescado”479.
Perante a autoridade do tio, Francisco foi severamente advertido por sua
cooperação com os regulares e interrogado acerca dos motivos que o levavam a
fazer as tais “rogativas y disciplinas e el pueblo de chiconautla”480.
Segundo o denunciante de seu processo, don Carlos teria dito ao
sobrinho que a doutrina cristã não era nada, reprovando a reverência aos
evangelizadores e enaltecendo os antepassados da região:

(…) ‘pobre de ti, en qué andas con estos indios, (…) piensas
que es algo lo que haces’, dándole a entender que era ignorante y simple,
y que no sabía lo que hacía; ‘quieres tú hacer creer a éstos lo que los
padres predican y dicen, engañado andas, que eso que los frailes hacen
es su oficio (…), pues agote saber que mi padre e mi abuelo fueron grandes
profetas y dijeron muchas cosas pasadas y por venir, y nunca dijeron cosa
ninguna de esto, (…) y eso de la doctrina cristiana no es nada, ni en lo que
los frailes dicen no hay cosa perfecta’ (…).481

478
AGN, Inquisición, vol. 2 (part. 2), exp. 10, f. 238.
479
Ibidem.
480
AGN, Inquisición, vol. 2 (part. 2), exp. 10, f. 240.
481
Ibidem, f. 240-240v.
197

Seguindo o incidente de Chiconautla e após o início das investigações


inquisitoriais, a teia de acusações contra Ometochtzin se tornou cada vez mais
intrincada. Para além das falas incômodas aos ouvidos dos evangelizadores, em
meio às posses do acusado, foi encontrada uma grande variedade de efígies e
outros itens devocionais.482 Nos procedimentos do Santo Ofício, os índices
heréticos delineavam, paulatinamente, a silhueta jurídica de don Carlos. Em adição,
seus laços de parentesco em nada jogavam ao seu favor.
É possível notar que as inimizades de don Carlos não se limitaram aos
desentendimentos com o sobrinho constrangido. Sua conduta dentro do círculo de
parentesco não cumpria aos anseios dos entes próximos e, menos ainda, aos ideais
familiares fomentados pelos evangelizadores. Uma das irmãs de don Carlos, doña
Maria de Texcoco, frisou que o réu era “mal cristiano”, não frequentava as missas e
nunca se confessava.483 A viúva do irmão don Pedro contou ao bispo inquisidor que
o cunhado havia tentado – contra a sua vontade – tomá-la como concubina após a
morte do marido.484 Para o inquisidor Juan de Zumárraga, doña Inés de Iztapalapa,
sobrinha de don Carlos, admitiu ser concubina do réu há anos – relacionamento que
gerou duas filhas:

(…) Dijo que puede haber siete años, poco más o menos, quel
dicho don Carlos hubo a ésta que declara, y que tuvo acceso con ella
carnalmente, y ésta que depone parió dos veces del dicho don Carlos, su
tío, dos hijas, la una de la cuales es muerta, que la otra tiene consigo ésta
declarante, y quel dicho don Carlos la tuvo por manceba tiempo de tres
años, poco más o menos, a ésta que declara, y después la dejó y se apartó
della, e que después que se casó el dicho don Carlos, se ha echado con
ésta que declara solas dos veces e no más. 485

482
Ibidem, f. 242-243v.
483
Ibidem, f. 256v.
484
Ibidem, f. 257-258.
485
Ibidem, f. 247v.
198

Doña Maria também se mostrou insatisfeita com o tratamento que


recebia do marido don Carlos. Segundo o depoimento, “los primeros dos años
fueron bien casados de dos años a esta parte el dicho don Carlos le ha dado mala
vida a ésta que depone, e no sabe la causa por qué”486. O próprio filho de don Carlos
– “de edad de diez o onze años” – terminou interrogado pelo Santo Ofício.
Questionado pelo Inquisidor, “si se ha criado en la casa de dios”, o jovem Antonio
respondeu “que no porque (…) su padre decía e mandaba que no fuese a la
yglesia”.487
No decorrer de todo o processo, as acusações e insatisfações surgiam e
se reafirmavam. Os testemunhos construíram pouco a pouco a imagem de um
homem combativo, insatisfeito e que se opunha de forma veemente aos
evangelizadores. O batismo e o casamento de don Carlos não o impediram de dar
continuidade aos modos indígenas. Ele manteve sua sobrinha como concubina e
exigiu a tutela da viúva de seu irmão como de costume aos hábitos indígenas. 488
Contudo, a persistência poligâmica e o incesto não sofreram grandes
perseguições em meio aos processos contra indígenas. A pouca atenção às faltas
sexuais é facilmente denotada quando a colocado ao lado do combate à
persistência das práticas devocionais e frente aos enunciados que mal diziam ou
demonstravam recusa ante a evangelização. Como postulado por Christian
Duverger, os maldizeres contra o trabalho dos evangelizadores e o cristianismo são
um agravante mais significativo e explicam melhor a execução dele. 489 Afinal,
sentenciado como “herege dogmatizador”, o réu foi acusado explicitamente de fazer
proselitismo de suas heresias.
A compreensão dos agravantes jurídicos dos processos é de
fundamental importância. Ainda assim, a complexidade dos processos de Inquisição

486
Ibidem, f. 260.
487
Ibidem, f. 259-259v.
488
Ibidem, f. 254
489
DUVERGER, Christian. La Conversión de los Indios de Nueva España. México: FCE, 1993, p.
190.
199

impede uma análise dessecativa e limitada à exclusividade do inquérito. Dentro dos


procedimentos jurídicos do Santo Ofício, a combinação de muitos delitos gerava
efeitos contundentes no pronunciamento das sentenças. Ademais, é preciso
considerar que a representação dos fatos no âmbito do processo era efetivada sob
o horizonte do efeito social e futuro das penas instituídas. 490 É inviável desconectar
os elementos da composição do relato processual em seu conjunto, sob o risco de
se deixar esvair as múltiplas preocupações que pesavam na resolução do
inquisidor. Atentando para a sucessão da trama, é possível restituir a pluralidade
semântica que circula o acusado e cria a figura do herege. 491

5. Heresia e memória punitiva

A montagem processual da Inquisição visava constituir o caráter do


indivíduo inquirido mediante o recolhimento testemunhal, tornando-o passível de
condenação ou não. No mesmo sentido, cria-se uma continuidade, muitas vezes
não distinguível, entre falar e fazer. A possibilidade de instituir uma ligação entre a
palavra “herética” e condutas julgadas de mesma índole insinuava, no âmbito foral,
a figura do impenitente. O modo de vida atribuído a don Carlos, em sua inscrição
processual, sugere a obstinação do réu – consciência sobre o erro e insistência
nele. As falas que lhe foram atribuídas rogavam uma recusa com relação aos
ensinamentos cristãos. O nobre de Texcoco desponta, em meio ao conjunto dos
processos contra indígenas, como o herege por excelência, aquele que usa suas
falas para persuadir e envolver outros indivíduos.
Os depoimentos apontam um homem prolixo e contundente:

(…) ninguno ponga su corazón en esta ley de dios e divinidad


(…), digo que eso que se enseña en el colegio, todo es burla (…) y eso que

490
RICOEUR, op. cit., 2007, pp. 334-335.
491
GINZBURG, Carlo. Os Andarilhos do Bem: Feitiçaria e cultos agrários nos séculos XVI e XVII.
São Paulo: Companhia da Letras, 2010, pp. 7-8.
200

tú dices y enseñas de las cartillas y doctrinas, ¿por ventura es verdad eso?


(…) Yo he vivido y andado en todas partes y guardo las palabras de mi padre
y de mi abuelo (…) sólo aquello sigamos, que nuestros abuelos y nuestros
padres tuvieron y dijeron cuando murieron. (…)492

Após o recolhimento das testemunhas, o interrogatório de don Carlos


Ometochtzin encerrou as investigações do processo. Juan de Zumárraga,
cumprindo os protocolos usuais, advertiu o acusado no intuito de fazê-lo confessar
sua culpa: “Fue le dicho y apercibido que, si dijese la verdad, confesando sus culpas
enteramente que se habrían con él benignamente, y se recibiría a misericordia
conforme a derecho”493. A confissão pressupunha, ao menos retoricamente, um
trato mais brando. Apesar disso, os longos questionamentos de Zumárraga foram
sucedidos por respostas curtas e evasivas. Foram direcionadas um total de 33
perguntas ao réu que negou, em todas as instâncias, ter praticado ou incutido em
qualquer tipo de idolatria, ou ter ofendido a Deus com qualquer palavra. 494 Quando
questionado acerca do incidente ocorrido em Chiconautla, don Carlos negou
qualquer exaltação ou sequer menção de seus antepassados: “Dijo que nunca tal
dijo a nadie”. Zumárraga terminou insistindo nos “apercibimientos para que dijese,
e confesase la verdad”, sem muito resultado frente ao interrogado, “el cual dijo que
no sabe otra cosa más de lo que ha dicho y depuesto”.495
O pano de fundo por trás do enredo inquisitorial está dentro das
reacomodações das relações de poder geradas pela presença espanhola. Os
conflitos locais e o trabalho de evangelização criaram condições para o surgimento
da denúncia contra don Carlos e, sem dúvida, pesaram na hora dos depoimentos
feitos para o inquisidor. A presença de uma figura que, aos olhos da elite acolhua,
agravava as disputas pelas novas posições de liderança e dificultava o
relacionamento com os espanhóis podia ser desvantajosa. No entanto, o jogo de

492
AGN, Inquisición, vol. 2 (part. 2), exp. 10, fs. 261-262.
493
Ibidem, f. 316v.
494
Ibidem, fs. 270v-274
495
Ibidem, f. 317v.
201

causalidades estabelecido entre as inimizades regionais e o inquérito contra don


Carlos eram limitados. Por um lado, pode-se afirmar que as tensões locais entre os
indígenas foram decisivas para a construção do caso no foro inquisitorial. Por outro
lado, o mesmo não pode ser dito com relação à sentença pronunciada. Há uma
desproporção marcante quando se compara a pena capital de don Carlos aos outros
casos sentenciados pelo inquisidor Zumárraga.
Antes da execução de Ometochtzin, ao final de 1539, a Inquisição
episcopal havia julgado outros dez casos envolvendo indígenas, desde 1536. As
sentenças administradas pelo inquisidor, detalhadas anteriormente, usufruíram das
penas de açoitamento, humilhação pública, abjuração, reclusão penitencial,
desterro e confisco dos bens. A sentença aplicada no caso de don Carlos diferiu de
todos os pronunciamentos antecedentes. Mas, o mesmo não pode ser dito com
relação à constituição dos delitos nos âmbitos processuais. As imputações
elencadas contra Ometochtzin não excederam o que fora julgado pelo tribunal nos
últimos três anos anteriores ao caso. Afinal, o caráter herético atribuído ao réu
esteve amparado em três atribuições julgadas pela Inquisição e localizáveis nos
processos antecedentes – concubinato incestuoso, idolatria e dogmatismo.
Don Carlos não foi o primeiro a sofrer acusações ou confessar
relacionamentos fora do matrimônio cristão e de caráter incestuoso. Tampouco
foram evocados delitos sexuais nos pronunciamentos das sentenças nos casos
contra indígenas, mesmo quando havia relação de parentesco. Apenas Francisco
de Coyoacán foi processado, exclusivamente, por um delito relacionado ao
matrimônio.496 Fato que se deve à sacralização de dois casamentos, configurando
um crime grave ante os tribunais de fé. A atitude de Francisco, diferente das demais
ocasiões relacionadas à simples transgressão sexual, atentava contra a sacralidade
do matrimônio cristão. Portanto, não era o desvio sexual que mais chamava a
atenção do inquisidor, mas sim, exceder a oficialização com mais de uma esposa.

496
AGN, Inquisición, vol. 23, exp. 1, f. 6.
202

O enfoque do tribunal episcopal estava voltado, em grande parte, para a


permanência das devoções autóctones. Os primeiros indígenas processados pelo
bispo Zumárraga exemplificaram bem o que seria desde o início o enfoque da
Inquisição episcopal. Segundo consta nas averiguações sobre os indígenas Antonio
e Alonso de Tlanocopan, não havia dúvida por parte do inquisidor de que ambos os
réus tinham “adorado a sus dioses y sacrificándoles, según su modo y rito gentílico,
después de ser cristianos”497. Apesar da clareza dos ocorridos e da gravidade dos
delitos perante a jurisdição eclesiástica, Zumárraga evitou a execução dos
indígenas na fogueira. O motivo está indicado nas próprias linhas do inquisidor,
apresentadas como uma fórmula que se repetia nos primeiros inquéritos. Tratava-
se do reconhecimento de que os réus em questão eram recém-convertidos:
“habiendo nos con ellos benignamente, por ser nuevamente convertidos a nuestra
santa fe católica”498.
No mesmo sentido, encontrou-se o inquérito contra alguns nobres da
região de Azcapotzalco. Por meio do reconhecimento da recente conversão –
Habiéndose con ellos benignamente”499 – o desfecho foi idêntico. Os castigos
ministrados, assim como nos casos anteriores, não excederam humilhações
públicas, açoites e desterro.
As atribuições que insinuavam múltiplos delitos também se mostraram
como agravantes em outros casos. Afinal, ainda que nos processos inquisitoriais
algumas categorias de delitos adquiriam um caráter de maior gravidade do que
outras, não se pode ignorar seu acúmulo como um fator agravante. As combinações
de delitos, normalmente, intensificavam o vulto das queixas sobre os réus. Muitas
faltas podiam significar a obstinação do acusado, elaborando junto ao processo uma
silhueta herética menos reconciliável. Nesse momento, foi observado o
desempenho do fiscal, responsável por formular a acusação contra os investigados.
Cabia à figura do fiscal da Inquisição reunir as suspeitas insinuadas pelas

497
AGN, Inquisición, vol. 37, exp. 1, f. 8.
498
Idem.
499
AGN, Inquisición, vol. 37, exp. 2, f. 16v.
203

testemunhas e exigir a condenação do réu pelo inquisidor – estágio privilegiado da


elaboração processual e fundamental ao historiador para avaliar os níveis
definidores da condenação inquisitorial.500
Entre a formulação da acusação e o pronunciamento da sentença, eram
evocadas as informações testemunhais com relevância suficiente para condenar o
acusado. Não eram todas as atribuições feitas pelos testemunhos que se
mostravam dignas da atenção do Santo Ofício, muitas não encontravam
comprovação nas investigações e outras apenas não possuíam valor delitivo
significativo. Portanto, voltar-se para as formulações acusatórias era fundamental
para a compreensão do que foi considerado ou rechaçado nos testemunhos, ainda
que a redação do fiscal não implicasse o sentenciamento de todos os delitos
evocados. Para essa última determinação, o julgamento final cabia única e
exclusivamente ao inquisidor. 501
Os crimes enumerados pelos enunciados acusatórios nem sempre
possuíam comprovação suficiente para atraírem sobre si uma sentença. A avaliação
do inquisidor procurava as composições de maior solidez, o que de fato não impedia
a formação de uma nuvem de suspeitas sobre o acusado, contribuindo com os
rigores finais dos processos inquisitoriais. Exemplo que foi encontrado nos
inquéritos contra os irmãos Martín Océlotl e Andrés Mixcóatl, datados do ano de
1537.502 Semelhantes ao processo de don Carlos, os julgamentos de Océlotl e
Mixcóatl combinaram mais de um crime no pronunciamento das sentenças. Ainda
que não incorram nas mesmas imputações que o caso de Ometochtzin, os três
podem ser emparelhados devido às múltiplas acusações de caráter herético,
insinuando grande resistência no abandono das devoções indígenas.
Os casos contra Ocelotl, Mixcóatl e Ometochtzin fizeram emergir as
preocupações que o procedimento inquisitorial mantinha com os ideais evangélicos.
Um temor implícito aparece nos processos dos três indígenas e aponta diretamente

500
RICOEUR, Paul. A memória, a História, o Esquecimento. São Paulo: Ed. Unicamp, 2007,
pp.333-335.
501
Ibidem, p. 335.
502
AGN, Inquisición, vol. 38, exp. 4, fs. 132-142; AGN. Inquisición, vol. 38, exp. 7, fs. 182-202.
204

para o receio dos evangelizadores acerca de um possível comprometimento dos


demais convertidos. O medo da falha na cristianização dos indígenas aflora nos
expedientes inquisitoriais. Frei Antonio de Ciudad Rodrigo, em depoimento prestado
ao processo contra Océlotl, ressaltou ao inquisidor os perigos da presença de
Martín:

(…) Parece quel dicho Martín no es provechoso, antes dañoso


para esta tierra y naturales della, pero que tiene manera de dogmatizar, y
que sería servicio de Dios que estuviese fuera desta tierra, donde no lo
viesen ni oyesen los dichos naturales (…)503

O incômodo manifesto por Ciudad Rodrigo estava, claramente,


relacionado com a influência que Ocelotl podia exercer. Para a inquisição episcopal
de frei Juan de Zumárraga era fundamental conter e coibir as vozes e posturas
contrárias à empresa evangelizadora. A busca de uma cristianização sem
“contaminações” foi uma das grandes preocupações dos evangelizadores nas
primeiras décadas.504 Selando as inquietações de seus companheiros, Zumárraga
não hesitou, no início de 1537, em retirar da presença dos demais indígenas o
sacerdote Martín Ocelotl:

Fallamos que debemos de condenar, y condenamos, al dicho


Martín Ocelotl a que de la cárcel deste Santo Oficio donde está preso, (…)
sea llevado a la ciudad de la Veracruz, y embarcado en una nao, la primera
que estuviere presta, y sea entregado al maestre de la dicha nao con este
preso sellado y cerrado, y sea llevado a los Reinos de Castilla y entregado
a los Señores inquisidores que residen en la ciudad de Sevilla, para que
allí tenga cárcel perpetua, o se haga del lo que bien visto fuere a los dichos
Señores Inquisidores (…)505

503
AGN, Inquisición, vol. 38, exp. 4, f. 136v.
504
RUBIAL GARCÍA, Antonio. La Hermana Pobreza. México: Facultad de filosofía y letras, UNAM,
1996, p. 102.
505
AGN, Inquisición, vol. 38, exp. 4, f. 141v.
205

Apesar das penas ministradas antes do caso de don Carlos, o Santo


Ofício exigia um desfecho mais dramático, pois era necessário fazer da
exemplaridade dos casos algo amedrontador. E, nesse sentido, apagar a presença
daqueles que incomodavam os evangelizadores não era tão proveitoso quanto
torná-los ferramentas de edificação coletiva. A instabilidade das medidas punitivas
exige que se atente para a pena tal como ressaltado por Michel Foucault – não em
função do crime, mas em vista de sua possível repetição.506 A sentença pronunciada
para don Carlos esteve ajustada não apenas no que corresponderia ao âmbito das
atribuições jurídico-criminais; é preciso de antemão considerar o caráter punitivo
como “arte dos efeitos”.507
O cumprimento das sentenças emitidas nos juízos inquisitoriais fazia de
seus acusados contraexemplos, mostrando condutas que não deveriam ser
seguidas e que estavam sob o risco de punição. As penas não tinham ligação direta
apenas com os crimes imputados e com as suspeitas que rondavam os casos
investigados, elas também estavam relacionadas com os antecedentes criminais
julgados pelo tribunal. O ato punitivo visava a não repetição da heresia seja pelo
indivíduo processado e castigado ou pelos demais que poderiam seguir o mesmo
exemplo. Como salientado por Foucault, as operações dos tribunais do Antigo
Regime eram delimitadas para “fazer de tal modo que o malfeitor não possa ter
vontade de recomeçar, nem possibilidade de ter imitadores”. 508 A conduta herética
perseguida pelo Santo Ofício também encontrava sua formulação punitiva conforme
a possibilidade de generalização que o castigo traria consigo. A frequente
reincidência dos atos processados pela instituição compunha uma memória punitiva
acerca dos crimes ao mesmo tempo em que era reivindicada a cada novo inquérito.
Afinal, “um crime sem dinastia não clama castigo”. 509
Quando don Carlos violava aos olhos da Inquisição os comportamentos
enaltecidos pelos evangelizadores ou incutia em atos abominados por eles, atraía

506
FOUCAULT, op. cit., 2007, p. 78.
507
Idem
508
Idem.
509
Idem.
206

sobre si a memória punitiva constituída por todos os casos anteriores. Quando a


pena de execução na fogueira foi pronunciada contra o nobre indígena de Texcoco,
não foram apenas as sanções dos elementos evocados em seu processo que
pesaram, mas também os três últimos anos de perseguições sistemáticas às
permanências devocionais indígenas.

6. O afastamento do bispo inquisidor

O impacto da execução de don Carlos na fogueira foi mencionado por


Juan Bautista Pomar em sua Relación de Tezcoco510, escrita décadas depois do
auto-de-fé, em 1582. Para o autor, a queima teve um impacto considerável no
mundo indígena. A morte de don Carlos causou um temor massivo entre as
populações locais, ao menos na grande região de Texcoco. Esse detalhe foi,
especialmente, pontuado no início da relación de Pomar. Segundo o cronista, os
indígenas que presenciaram a cena ou souberam a respeito da sentença desferida
por Juan de Zumárraga começaram a se desfazer de quaisquer objetos que
pudessem representar comprometimento na visão do bispo e levá-los ao mesmo
destino do acusado:

(...) Quemaron [los ídolos] de temor de D. Fr. Juan de


Zumárraga (…) porque no los atribuyese á cosas de idolatría, porque en
aquella sazón estaba acusado por idolatra, después de ser bautizado, D.
Carlos Ometochtzin, hijo de Nezahualpiltzintli, con que del todo se
acabaron y consumieron (…).511

510
POMAR, Juan Bautista. Relación de Tezcoco (1582). In: GARCÌA ICAZBALCETA, J. Nueva
Colección Para la Historia de México, Vol III: Pomar y Zurita. México: Imprenta de Francisco Díaz
de León, 1891, 1-69.
511
POMAR, op. cit., 1891, p. 2
207

O intuito de Pomar era ressaltar a escassez de informações sobre os


costumes indígena e sua dificuldade em recolher informações para a Coroa. 512 O
cronista, em poucas palavras, transmitiu o impacto dos primeiros anos de conquista
e evangelização. O passado indígena da região de Texcoco – “sus dioses y ídolos
y ceremonias, antigüedades y costumbres”513 – tinha sido consumido pelas
perseguições dos primeiros evangelizadores e conquistadores. O pouco que
sobreviveu aos primeiros anos de conquista – “que habían quedado em poder de
algunos principales”514 – encontrou, de acordo com Pomar, seu fim derradeiro nas
mãos do primeiro Bispo do México ou foi destruído pelos próprios indígenas por
temor aos castigos que podiam sofrer.515
As notícias acerca dos rigores empregados por Zumárraga em seu labor
inquisitorial, junto aos indígenas convertidos, logo alcançaram os ouvidos do
Consejo de la Suprema y General Inquisición. O órgão não havia manifestado, até
a morte de don Carlos, qualquer preocupação com o título e os trabalhos do bispo
inquisidor. Os castigos administrados por Zumárraga e, mais efetivamente, o
relaxamento de don Carlos ao braço secular, tiveram uma repercussão negativa nas
instâncias peninsulares. Em consequência, ao final de 1540, o inquisidor geral don
Francisco de Nava enviou duas cédulas de advertência pessoal ao bispo. Nava
frisou suas insatisfações ao que lhe pareceu um excesso de rigor por parte de
Zumárraga:

(...) Habemos entendido que en esa ciudad se relajó un indio


que se decía Don Carlos, y fue quemado por la Inquisición y sus bienes se
confiscaron (...) y siendo ansí como nos han informado, nos ha parecido
cosa muy rigurosa tractar de tal manera a persona nuevamente convertida

512
“[…] Si en el discurso no se desmenuza y especifica lo que significaban algunas cosas de sus
dioses y ídolos y ceremonias, antigüedades y costumbres, no se atribuya á descuido y negligencia,
sino a que no ha podido saber más […] (Ibidem, p. 1)
513
Ibidem, p. 1.
514
Ibidem, p. 2
515
Ibidem, p. 1-2.
208

a nuestra santa fe, y que por ventura no estaba tan instruído en las cosas
della como era de menester (…)516

O inquisidor geral julgou precipitada a inclusão dos indígenas ante o foro


inquisitorial: “no es cosa justa”. Zumárraga foi aconselhado, em seguida, a não usar
“de tanto rigor para escarmentar a otros indios”. Segundo Francisco de Nava, uma
postura mais edificante “a los dichos indios” poderia ser encontrada “si se hobiera
procedido contra los españoles (...) que merecían mejor castigo que los mismos
indios”.517
O descontentamento expresso nas cédulas endereçadas a Juan de
Zumárraga acentuou a posição de neófitos ocupada pelos indígenas convertidos,
com pouco tempo de introdução à vida católica, e a necessidade de maiores
instruções com relação aos preceitos fundamentais do cristianismo. Antes que
fossem “tractados ásperamente”, nas palavras de Nava, era necessário que
“primero sean muy bien instruidos e informados en la fe, y que por algund tiempo
tengan uso y hábito dello sin que se proceda contra ellos por la Inquisición”.518
A intervenção do inquisidor geral da Espanha inibiu as ações do bispo do
México em seu desempenho jurídico com os indígenas. Não obstante, as
considerações do inquisidor geral não tomaram a forma de uma advertência formal
ou pública. As ressalvas de Nava se restringiram à pessoalidade das cédulas
enviadas e tampouco prejudicaram as funções exercidas por Zumárraga. O bispo
continuou a cargo do Santo Ofício estabelecido junto ao episcopado, sem, no
entanto, voltar o foco para a população local, limitando-se a encerrar os casos em
aberto. O título de inquisidor ostentado por Zumárraga nunca foi revogado pelas

516
Cédula al Obispo Zumárraga reprobando la ejecución del cacique Don Carlos. In: GARCÍA
ICAZBALCETA, J. Don Fray Juan de Zumárraga. México: Ed. Porrúa, 1988, vol. 3, doc. 19, pp.
172-173.
517
Cédula al Obispo Zumárraga reprobando la ejecución del cacique Don Carlos (1540). In: GARCÍA
ICAZBALCETA, 1988, vol. IV, doc. 19, p. 173.
518
Cédula al Obispo Zumárraga recomendándole que no se apliquen castigos rigurosos a los indios
(1540) In: Ibidem, vol. IV, doc. 18, p. 171.
209

instâncias peninsulares. Os poderes e a autonomia do franciscano foram


minimizados, apenas em 1544, com a chegada de Francisco Tello de Sandoval,
visitador do Consejo de las Indias à Nova Espanha.
Tello de Sandoval ocupava o cargo de Inquisidor de Toledo quando foi
encarregado pela Coroa de visitar o vice-reino da Nova Espanha.519 A principal
missão do visitador e conselheiro do Consejo de Indias era a imposição das Leyes
Nuevas, publicadas em novembro de 1542, na cidade de Barcelona. Seu envio junto
às instâncias coloniais foi uma resposta aos excessos cometidos até a ocasião,
fruto, em grande parte, da implantação do sistema de encomiendas. As visitações
do Consejo de Indias eram, em primeira instância, uma das formas de fiscalização
da Coroa Espanhola.520
O visitador realizou uma longa inspeção em torno das instituições da
administração colonial, privilegiando a fiscalização e a reorganização dos trabalhos
da Audiência e “Cajas Reales”. O laborioso trabalho de Sandoval, que encontrou
nos encomenderos sua principal resistência, também abarcou avaliações de cunho
eclesiástico. Entre as designações que deveria cumprir, estavam estipuladas a
compreensão e a vistoria do processo de evangelização, além do funcionamento
das instâncias eclesiásticas: “como y en que cosas han ejercido, y de que manera
han entendido usado y tratado las cosas del servicio de Dios nuestro señor,
especialmente en lo tocante a la conversión de los naturales”521. Pode-se dizer que
a visita manteve um caráter civil-eclesiástico, o que justifica a escolha da Coroa por
uma figura vinculada aos Santo Ofício da Inquisição. A nomeação de Francisco
Tello de Sandoval não tomou em vão seus antecedentes; a administração central

519
La Provisión de la Visita de la Real Audiencia (1543). In: PUGA, Vasco de. Provisiones, Cedulas,
Instrucciones para el Gobierno de la Nueva España. Madrid: Ediciones Cultura Hispana, 1945
(facsímil de 1563), f. 94.
520
O motivo mais comum para as visitações era as irregularidades denunciadas ante o Consejo de
Indias. No entanto, elas podiam ser, também, motivadas para sanar disputas mais acirradas entre
autoridades superiores. Na maioria dos casos, revelaram a insatisfação do governo central. (Cf.
SÁNCHEZ BELLA, Ismael. Ordenanzas del visitador de la Nueva España, Tello de Sandoval, para
la administración de justicia (1544). In: Revista Historia, Santiago, n. 8, pp. 489-561, 1969, p. 489.)
521
La Provisión de la Visita de la Real Audiencia (1543). In: PUGA, op. cit., 1945, f. 94.
210

tinha o hábito de eleger grandes letrados e, não raro, inquisidores para exercerem
cargos de extrema dificuldade.
A nomeação da Coroa expressava a robustez de caráter e o
reconhecimento intelectual que eram atribuídos aos homens diante do Santo
Ofício.522 Como forma de garantir a autoridade do visitador perante os demais
eclesiásticos, foram outorgados a ele – antes de sua partida rumo às Índias – plenos
poderes de inquisidor:

(...) Confiando de las letras y recta conciencia de vos el muy


reverendo Francisco Tello de Sandoval canónico de la santa Iglesia de
Sevilla, e inquisidor apostólico (…) por la autoridad apostólica a nos
concedida, vos hacemos constituimos creamos e diputamos inquisidor
apostólico en la Nueva España (…)523

Sob os auspícios do Consejo de Indias e da autoridade inquisitorial,


Francisco Tello de Sandoval não deveria apenas reorquestrar o funcionamento da
Audiência Real e do fisco colonial, também ficou implícito que ele deveria assumir
a direção de todas as atividades jurídico-eclesiásticas, assim como, vistoriar o
transcurso e o funcionamento da evangelização dos indígenas. O título de inquisidor
da Nova Espanha dava autoridade não apenas para investigar, mas também,
proceder no tocante aos possíveis abusos dos regulares e atos heréticos dos
conquistadores. Em decorrência das atribuições inquisitoriais e, de imediato à
chegada do visitador, estavam submetidas quaisquer titulações inquisitoriais
anteriormente outorgadas:

(…) Para que podáis tomar e recibir cualquier procesos y


causas pendientes sobre los dichos crímenes, y cualquier dellos ante
cualquier inquisidor o inquisidores, que hayan sido en la dicha Nueva

522
SÁNCHEZ BELLA, op. cit., 1969, p. 490.
523
La Provisión de la Visita de la Real Audiencia (1543). In: PUGA, op. cit., 1945, f. 97.
211

España, en el punto y estado, en que estuviere, y continuar los e hacer e


determinar en ellos lo que fuere injusticia (…)524

Com a chegada de Tello de Sandoval à cidade do México, em maio de


1544, o papel de inquisidor desempenhado por frei Juan de Zumárraga foi posto de
lado mediante o reconhecimento da autoridade maior do visitador. Qualquer
atividade relativa ao Santo Ofício da Inquisição deveria, a partir de então, ser
reconhecida antecipadamente pelo visitador. Fato que não afastou completamente
o bispo dos ofícios inquisitoriais, ainda que, claramente, isso tenha retirado a sua
autonomia como juiz. 525
Uma das incumbências que foram encarregadas ao visitador Tello de
Sandoval – em seu papel de inquisidor apostólico – dizia da necessidade específica
de revisar o expediente que condenou don Carlos Ometochtzin. Devido à péssima
repercussão do caso, o visitador devia dar atenção especial à revisão do processo
e verificar o caráter do confisco dos bens e o destino dos familiares de don Carlos.
Cabia a Sandoval averiguar se o réu foi “bien justiciado y (...) qué bienes dejó y que
se hizo de ellos y si dejó algunos hijos”526. A revisão tinha o objetivo de sanar os
rumores de injustiça que chegaram à Suprema, meses após a execução de don
Carlos. Na ocasião, suspeitava-se de abusos cometidos pelo Santo Ofício Episcopal
no intuito de usufruir dos bens mantidos pelos indígenas processados: “porque
dicen que se ha recibido mucho escándalo por los indios, los cuales piensan que
por la codicia de los bienes, los queman”527.
Apesar da advertência recebida em 1540 e das revisões encarregadas a
Tello de Sandoval, Zumárraga continuou gozando de grande prestígio. O próprio

524
Ibidem.
525
TAVÁREZ BERMUDEZ, op. cit., 2012, p. 97; CUEVAS, Mariano. Historia de la Iglesia en
México. México: Imprenta de Patricio Sanz, 1921., vol. I, p. 379.
526
CUEVAS, op. cit., 1921, p. 378.
527
Cédula al Obispo Zumárraga reprobando la ejecución del cacique Don Carlos (1540). In: GARCÍA
ICAZBALCETA, op. cit., 1988, vol. IV, doc. 19, p. 173.
212

Tello de Sandoval foi recomendado para que não pecasse na postura diante do
bispo:

“tenga [el visitador] aviso de hablar al dicho Obispo


blandamente y presuponiendo la confianza que aquí se tiene de su virtud
y celo e caridad que usa con los indios, porque a la verdad, él es persona
de mucha religión y de gran bondad”.528

As insatisfações manifestas anos antes por Francisco de Nava também


expressavam certa cordialidade e respeito ante as intenções do primeiro bispo do
México: “aquí se tiene por cierto que la intensión de V. S. es muy buena y
enderezada al servicio de nuestro Señor”529.
A atuação inquisitorial fora das mãos do bispo do México foi tímida. Os
embates em torno das encomiendas – cujas Leyes Nuevas tentaram extinguir –
deixaram pouco espaço para Sandoval exercer qualquer outra função senão as
demandadas pelos embates junto aos encomenderos e ao vice-rei Antonio de
Mendoza. A restrita atuação de Tello de Sandoval como inquisidor não significou o
fim dos processos contra indígenas, os quais tomaram um caráter fragmentário e
irresoluto. Parece inevitável considerar que as advertências recebidas por
Zumárraga, anos antes da chegada de Sandoval, tenham inibido um trato mais
rigoroso com os indígenas – receio nem sempre expresso na postura dos
eclesiásticos.
As investigações feitas pelo visitador em torno da conduta dos indígenas
convertidos giraram em torno de quatorze procedimentos por heresia e má conduta.
Grosso modo, as investigações terminaram de forma irresoluta, sem a emissão de
sentenças. Apesar de ter herdado as dúvidas de como proceder com os novos
cristãos, Tello de Sandoval não desfrutou de suficiente segurança para fechar os
processos. Sua grande cautela, claramente, estava vinculada ao desfecho dos

528
CUEVAS, op. cit., 1921, p. 378-379.
529
Cédula al Obispo Zumárraga recomendándole que no se apliquen castigos rigurosos a los indios
(1540) In: GARCÍA ICAZBALCETA, op. cit., doc. 18, p. 170
213

acontecimentos que o antecederam. No que concerne ao Santo Ofício da


Inquisição, os três anos de permanência do visitador foram marcados pela recusa
e insegurança frente aos indígenas. A existência de inquéritos inacabados indica
uma salvaguarda por temor de possíveis reprovações das autoridades reais. 530
Após o período de visitação, encerrado em março de 1547, Tello de
Sandoval repassou a autonomia eclesiástica aos bispos provinciais e às ordens
monásticas.531 Anos depois, em 1555, o dominicano Alonso de Montúfar sucedeu
Zumárraga como segundo bispo e arcebispo do México. Zumárraga falecera em
1548, deixando seu posto vago por quase sete anos. Montúfar, diferente de seu
antecessor, não recebeu titulação inquisitorial, apenas assumindo as funções
jurídico-eclesiásticas como ordinário. Sua atuação deu ênfase ao combate de
possíveis influências luteranas, voltando-se, principalmente, para os corsários
franceses e ingleses.
Como ressaltado pelo historiador Richard Greenleaf, na segunda metade
do XVI, os juízos eclesiásticos começaram a retirar o foco dos problemas
relacionados à heterodoxia indígena e passaram a dar maior atenção aos
pobladores e estrangeiros.532 No entanto, a jurisdição sobre a conduta dos
indígenas continuou confusa e sem um regimento acertado, o que de forma alguma
impediu os evangelizadores de procederem (as punições continuaram sendo
ministradas à população autóctone e, em sua maioria, de forma deliberada por meio
dos poderes concedidos pela bula Ominímoda).
Apesar de estarem encarregados da conduta moral dos colonos e dos
indígenas, os bispos nomeados para as províncias da Nova Espanha se depararam
com a vastidão de um território precariamente institucionalizado. As áreas onde não
havia bispos designados mantinham-se sujeitas aos regulares que conservavam
suas funções jurídico-eclesiásticas. Esse prolongamento dos poderes de tipo
episcopal acabou permitindo que os religiosos conduzissem os juízos a sua

530
GREENLEAF, 1992b, pp. 85-92.
531
Mediante a ausência de um bispo propriamente designado ou a dois dias de distância de qualquer
sede bispal, tal como estabelecido pela bula Omnímoda.
532
GREENLEAF, 1992b, pp. 131-132.
214

maneira. Isso ocorreu lentamente, conforme os espaços eram preenchidos pelos


bispos, e se efetivou uma maior concentração dos poderes episcopais.
215

CONCLUSÃO
216

Durante os primeiros anos de evangelização do México, os batismos


massivos promovidos pelos franciscanos foram responsáveis pela conversão de
milhares de indígenas. Esses ritos de grandes proporções expressaram o
entusiasmo que moveu os primeiros evangelizadores, ávidos pela salvação do
maior número de almas possível. Recrutados na província reformada de San
Gabriel de Extremadura, os franciscanos observantes foram movidos pela
esperança de um renascimento da Igreja no Novo Mundo. Mas, a imagem idílica de
multidões apressando-se em busca do batismo compunha apenas uma parte da
espetacularidade que marcou o nascimento da Nova Espanha. Aliando-se aos
batismos, o combate às devoções autóctones assumiu grande importância na
empresa evangelizadora. A cristandade idealizada demandava a purga dos
elementos identificados como diabólicos. E os evangelizadores não hesitaram,
desde 1525, em derrubar os “ídolos”, destruir os templos indígenas e punir aqueles
que iam de encontro à cristianização.
O favoritismo encontrado pelos franciscanos na figura de Hernán Cortés
foi seguido pelo vice-rei Antonio de Mendoza e reforçado pela nomeação de frei
Juan de Zumárraga como primeiro bispo do México. A chegada do religioso basco
efetivou as condições para os evangelizadores colocarem em prática suas
idealizações. Desde o ano de 1522, os frades que passaram pela América também
haviam encontrado respaldo nas letras papais. As bulas Alias Felices e a Exponi
Nobis Fecisti (Omnímoda) garantiram a autonomia das ordens mendicantes por
meio da concessão extraordinária de privilégios episcopais. A outorga feita pela
Santa Sé garantiu uma ação descentrada, com pouca hierarquização, repercutindo,
em seu aspecto jurídico, no uso das faculdades episcopais para promoção de juízos
ordinários. Além disso, a perseguição e o penitenciamento público de indígenas
recalcitrantes delimitaram, desde o início, medidas coercitivas dentro do projeto
evangélico. A exploração desses recursos constituiu um mecanismo fundamental
nas tentativas de extinção das devoções nativas ao mesmo tempo que as
delimitavam mediante uma leitura cristã e ocidentalizante.
217

A chegada de Juan de Zumárraga reforçou a empreitada franciscana


iniciada desde a chegada dos três frades flamencos, em 1523. O bispo franciscano,
que chamou a atenção do imperador Carlos V, sintetizou a imagem do grupo dos
Frades Menores durante sua vida no Vale do México. Zumárraga esteve, desde o
seu desembarque na costa mexicana, disposto a enfrentar as disputas institucionais
em nome de seus pares, chegando ao conflito aberto com a Primeira Audiência
Governadora. Ele foi o grande responsável pelo zelo da ortodoxia cristã e dos
interesses que moviam os mendicantes nos primeiros anos de evangelização. O
cargo de bispo e a posterior outorga do título de inquisidor foram seus grandes
respaldos para ações independentes das instâncias peninsulares. Suas atividades
como inquisidor estiveram sujeitas, em termos imediatos, apenas ao vice-rei Antonio
de Mendoza, com o qual não conservou grandes atritos ou disputas. Frei Juan de
Zumárraga demonstrou muita liberdade em suas resoluções, com especial
destaque para o trato com os indígenas.
O bispo inquisidor intensificou as dinâmicas prefiguradas pelos seus
companheiros de hábito e dedicou-se, ao máximo, no combate à heterodoxia
indígena. O que estava em jogo era a cristianização que se almejava para os
neófitos, pois eles deviam estar livres de máculas ou qualquer corrupção. A criação
do pequeno tribunal de Inquisição junto à estrutura episcopal, em 1536, permitiu um
ataque sistemático, ainda que pontual, aos indivíduos recalcitrantes. Zumárraga não
contou com grandes estruturas ou mesmo com um grande quadro de funcionários,
sendo as operações contra indígenas, sempre, auxiliadas pelos demais
evangelizadores franciscanos. A dependência do tribunal no que diz respeito ao
auxílio dos frades fez-se presente em todas as etapas do funcionamento do
pequeno tribunal de Inquisição.
Para a constituição dos expedientes processuais, foi necessária a
tradução dos depoimentos das testemunhas e dos réus indígenas. O uso de
intérpretes, em sua maioria eclesiásticos, viabilizava a adequação rápida dos
testemunhos à construção da cena processual, transitando o sentido da fala original
aos protocolos jurídicos do Santo Ofício. A mediação proporcionada pelos
218

evangelizadores foi fundamental para as intervenções punitivas, não se restringindo


ao campo linguístico, pois atuava também de forma intensa em outras etapas no
recolhimento das denúncias e na condução dos indígenas perante a inquisição. Em
algumas ocasiões, os frades chegaram a exercer a função de investigadores
comissionados pelo inquisidor, sendo, portanto, encarregados de provar as
imputações contra os réus denunciados.
A presença dos regulares nos processos apresentou, no mesmo sentido,
o incentivo dos indígenas na busca do recurso inquisitorial. E os evangelizadores
fomentaram a denúncia daqueles que insistiam em suas práticas devocionais. Ao
que tudo indica, essa atuação delimitava a introdução de um comportamento
desejável entre os recém-convertidos e incutia a necessidade de combate ao que
era visto sob o aspecto de culto “idolátrico”.
O trabalho do Santo Ofício em torno dos indígenas esteve centralizado
na figura do bispo que era, constantemente, informado pelos evangelizadores
dispersos nas províncias do Vale do México e seus arredores. As resistências
enfrentadas pelos frades eram repassadas a Juan de Zumárraga, por vezes, em
forma de denúncias prontas a iniciarem um processo ou de clamorosos apelos pela
intervenção inquisitorial do bispo. Os pedidos em uníssono transmitiram as vozes
que almejavam o fim das devoções regionais e, por consequência, o rompimento
completo com o passado indígena.
O enraizamento do tribunal episcopal obedeceu à difusão e atuação dos
regulares franciscanos. A instrumentalização dos evangelizadores proporcionou à
Inquisição episcopal um melhor alcance territorial. Apesar da pequena e limitada
estrutura do tribunal de Zumárraga, a extensão de suas possibilidades de ação
significou um alcance mais abrangente da exemplaridade almejada nas punições.
A cooperação dos regulares na condução dos indígenas e na participação dos
procedimentos jurídicos expressou, sobretudo, a estreita relação mantida entre o
proceder jurídico eclesiástico e a evangelização. De fato, postulou-se, aqui, a
impossibilidade de separação entre as duas instâncias, sendo a atuação jurídica do
primeiro bispo do México parte dos esforços evangélicos, os quais pressupunham
219

a extirpação de qualquer elemento contraditório ao cristianismo. E é importante


ressaltar que a Inquisição episcopal teve, por meio dos evangelizadores, seus
elementos de ramificação.
Outros fatores notáveis da correlação entre o esforço evangélico e a
jurisdição coercitiva podem ser observados nos protagonistas que figuraram nos
processos inquisitoriais. Os membros indígenas inquiridos por Zumárraga
pertenceram a uma minoria privilegiada, bem abastada e com cargos políticos que
garantiam uma atuação destacada nas sociedades locais. Esses indivíduos
estiveram vinculados a famílias de dignitários políticos ou se destacavam por terem
pertencido a antigos grupos de especialistas rituais. A atenção inquisitorial voltada
às elites indígenas estava equiparada à difusão do cristianismo e ao incentivo à
educação nos moldes ocidentais, sempre privilegiando os membros mais
destacados das sociedades indígenas. A perseguição empreendida por Zumárraga
viu na punição dos nobres indígenas a possibilidade de um alcance exemplar mais
marcante, coagindo a relutante “idolatria” indígena. As análises empreendidas
apontaram para o grande apego dos pipiltin frente aos ritos ancestrais e a
consequente oposição deles em abdicar das rotinas cotidianas que tais ritos
demandavam. Essa conclusão tem sua inteligibilidade na constituição e na
legitimidade operadas pelas diversas devoções no que dizia respeito aos cargos de
autoridade dos líderes políticos autóctones.
Portanto, o entendimento das condições que produziram os processos
contra indígenas dependeu da constatação do implante de novas estratégias de
poder, que tomaram lugar conforme foram sendo estabelecidas as instituições
espanholas. Ainda assim, foi imprescindível atentar para a correlação mantida entre
as redefinições das redes de poder e a implantação de novos saberes contraditórios
aos valores indígenas.
A resistência dos nobres locais em abdicar dos papéis ocupados antes
da invasão espanhola constituiu um verdadeiro entrave ao projeto de cristianização
franciscano. O tribunal episcopal procurou, em consequência, processar tais
indivíduos de maior evidência social, afastando-os de suas zonas de influência ou
220

subjugando-os no intuito de invalidar suas posições de prestígio – delimitação cujo


o grande exemplo era observável na montagem exemplar das punições feitas em
meio ao público.
A visibilidade dos castigos – como de costume na prática inquisitorial –
tomou os grandes espaços públicos do mundo indígena. O efeito coletivo a ser
alcançado exigia a ampla exibição dos indígenas condenados, jogando com as
posições sociais ocupadas pelos indivíduos penitenciados. Os castigos, em grande
parte, ocorridos em locais de intercâmbio comercial contribuíram para a fragilização
da imagem dos membros punidos das elites indígenas. O domínio e a detração dos
pipiltin pesavam de forma, marcadamente, vexatória perante as demais parcelas da
sociedade. O alvo era o público, elemento do qual desejava-se obter o efeito
edificador dos castigos. Efetivava-se, por meio dos penitenciados, uma pedagogia
coercitiva geradora de temor ao mesmo tempo em que eram construídos novos
comportamentos desejáveis à cristianização. Afinal, os indígenas do Altiplano
mexicano não foram apenas objeto de punições repressoras; implícita às ações do
Santo ofício da Inquisitorial estava a participação deles visível nas denúncias, nos
testemunhos e nas multidões que observavam o cumprimento das sentenças.
Alguns anos depois de ser iniciado o primeiro processo inquisitorial
contra um indígena, os rigores empregados por Juan de Zumárraga terminaram por
incomodar as instâncias peninsulares. Advertido pelo inquisidor geral da Espanha,
o bispo freou seus empreendimentos jurídicos com os neófitos, limitando-se à
abertura de inquéritos contra indivíduos trasladados ao ainda recente território da
Coroa. Os anos que seguiram as ações de Zumárraga foram marcados pelas
discussões em torno do caráter jurídico que deveria ser atribuído às populações
originárias do Novo Mundo. A morte dele, em 1548, não encerrou os juízos
eclesiásticos contra indígenas, mas a repercussão de suas ações em conjunto com
a de outros evangelizadores obrigou uma maior delimitação do campo de ação dos
clérigos na promoção de penitências públicas. Apesar da isenção dos indígenas do
foro inquisitorial, desde 1569, os bispos regionais foram encarregados de
221

solucionarem, ainda que de forma menos sistemática e violenta às práticas


inquisitoriais, o problema da heterodoxia indígena.
222

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240

ANEXO I
241

Quadro de expedientes inquisitoriais contra indígenas na Nova Espanha (1536 – 1543)

CASO DOC.TIPO ACUSADO PERÍODO REGIÂO DELITO LOCALIZAÇÃO


1 Processo Antonio Tlacateccatl ; 28/07/1536 - Tlanocopan Idolatria AGN, Inquisición, vol. 37, exp. 1, fs. 1-10
Alonso Tlacochcalcatl; filha 18/10/1536
de Tlacateccatl
2 "probanza" Diego, índio nahuatlato 09/09/1536 ▪ ▪ AGN, Inquisición,vol. 40, exp. 5 (bis), fs. 111-112

3 Processo Martín Ocelotl 21/11/1536 - Acolhua Feitiçaria, AGN, Inquisición, vol. 38, exp. 4, fs. 132-142
09/02/1537 “Dogmatizador”
(?)
4 Processo Andrés Mixcóatl; Cristóbal 10/07/1537 Acolhua Feitiçaria AGN. Inquisición, vol. 38, exp. 7, fs. 182-202
Papalotl
5 Processo Ana de Xochimilco 02/04/1538 - México Superstição AGN, Inquisición, “Legajos Sueltos”
(curandeira) 14/04/1538

6 Processo Francisco de Coyoacán 11/10/1538 - Coyoacán Bigamia AGN, Inquisición, vol. 23, exp. 1, f. 3-9
08/11/1538

7 "probanza" don Diego tlacateccatl, 19/10/1538 - Tlapanaloa ▪ AGN, Inquisición, vol. 40, exp. 2, f. 7-13
governador de Tlapanaloa 06/11/1538

8 Processo Pedro Atonal; Miguel 19/11/1538 - Azcapotzalco Idolatria e AGN, Inquisición, vol. 37, exp. 2, f. 11-17
Quiao; Miartín 24/11/1538 ocultar ídolos
Tlacochcalcatl; Francisco
Huitzinahuatl; Pedro
tlacateccatl.
9 Processo Marcos Hernández 30/05/1539 - Tlatelolco Proposições AGN, Inquisición, vol. 42, exp. 17, f. 142-146
(fragmentado) Atlahuacatl; Francisco de 23/06/1539 heréticas
Tlatelolco
242

10 Processo Miguel Puchtecatlailotlac 20/06/1539 - México Idolatria e AGN, Inquisición, vol. 37, exp. 3, fs. 20-46
21/05/1540 ocultar ídolos

11 Processo Don Carlos Ometochtzin 20/06/1539 - Texcoco Herege AGN, Inquisición, vol. 2 (part. 2), exp. 10, f. 237-340
20/11/1539 Dogmatizante

12 Processo Cristóbal, Catalina e Martín 19/08/1539 - Ocuituco Idolatria AGN, Inquisición, vol. 30, exp. 10 (antes exp. 9), fs. 148-
de Ocuituco 10/11/1539 171

13 Processo Alonso Tlilanci 13/09/1539 - Izucar Idolatria e AGN, Inquisición, vol. 37, exp. 7, fs. 85-102
(fragmentado) 18/03/1540 ocultar ídolos

14 Processo Martín Xuchimitl de 18/11/1539 Coyoacán ▪ AGN, Inquisición, vol. 36, exp. 7 (antes exp. 6), fs. 224-
(fragmentado) Coyoacán 225
15 Processo Don Baltasar, cacique de 02/12/1539 Culhuacán Idolatria AGN, Inquisición, vol. 42, exp. 19 (antes exp. 18), fs. 147-
(fragmentado) Culhuacan 152.
16 Processo D. Pedro, cacique de 20/01/1540 - Acolhua Idolatria e AGN, Inquisición, vol. 212, exp. 7, fs. 42-94 (antes fs. 29-
Totolapan e Antonio de 11/1540 amancebamento 81).
Totolapan (irmão)
17 "probanza" Miguel Tezcacoatl 1540 ▪ ▪ AGN, Inquisición, vol. 1, exp. 6, fs. 6-8 (antes fs. 5-7)

18 Processo Gazpar de Tçuytulgacan (?) Acolhua Idolatria AGN, Inquisición, vol. 37, exp. 2, fs. 18-19
19 Processo Don Juan, cacique de (?)/12/1539 Matlatlán Idolatria e AGN, Inquisición, vol. 40, exp. 33 (antes exp. 8) fs. 174-
Matlatlán concubinato 181.
20 Denúncia Don Juan, cacique de Iguala 16/07/1540 Iguala ▪ AGN. Inquisición, vol. 40, exp. 32, fs, 172-173

21 Processo Don Juan, Cacique de Não consta Toltoltepec ▪ AGN, Inquisición, vol. 30, exp. 6 (antes 7a), fs. 69-79
(fragmentado) Totoltepec (antes 73-83)
243

ANEXO II
244

Quadro de Funcionários (1536 – 1543)

Cargo Funcionário
Inquisidor Juan de Zumárraga
Fiscal Rafael de Cervanes
Cristóbal de Canego
Juan Lopes de Zárate
Miguel de Barreda
Sebastián de Arriaga
Secretários Miguel Lopez de Legazpi
Martín de Campos
Diego de Mayorga
Miguel de Barreda
Alonso de Canseco
Hortuño de Ibarra
Tesoureiro Augustín Guerrero
Núncio Cristóbal de Canego
Notário Martín de Campos
Miguel Lopez de Legazpi
Juan Nuñez Gallego
Receptor Martín de Zavala
Alguacil Cristóbal de Canego
Alonso de Vargas
Alonso Mateos
Advogado Vicencio de Riverol
(abogado Alonso Pérez
defensor) Alonso de vargas
245

ANEXO III
246

Assinaturas do inquisidor frei Juan de Zumárraga e do ouvidor da Audiência


Real, Francisco de Loaysa, seguida da firma do Secretário Miguel López de
Legazpi533

533
AGN, Inquisición, Vol. 37, exp. 4 (bis), f. 100.

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