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Sesc | Serviço Social do Comércio

Departamento Nacional

22

ISSN 1809-9815
Sinais Sociais | Rio de Janeiro | v.8 n. 22 | p.1-152 | maio-ago. 2013
Sesc | Serviço Social do Comércio
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responsabilidade dos autores. ago. 2006)- . – Rio de Janeiro : Sesc, Departamento
Nacional, 2006 - .
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ISSN 1809-9815
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SUMÁRIO

Apresentação 5

Editorial 6

Dossiê: Velhice, família, Estado e propostas políticas

Organização
Myriam Moraes Lins de Barros 9

Feminismo e velhice
Guita Grin Debert 15

Entre o Estado, as famílias e o mercado


Carlos Eugênio Soares de Lemos 39

Violências especíicas aos idosos


Alda Britto da Motta 63

Vazios culturais versus alternativas da cultura e as estratégias


da poesia de Cacaso
Carlos Augusto Lima 87

Violência e maus-tratos contra as pessoas idosas


Edson Alexandre da Silva
Lucia Helena de Freitas Pinho França 115
APRESENTAÇÃO

A origem do Sesc vincula-se à intenção de contribuir para o desenvolvi-


mento do Brasil a partir de uma profunda compreensão de seu potencial
e dos obstáculos ao seu progresso.

Uma tarefa desaia aqueles que receberam como legado a missão de


realizar no presente os ideais vislumbrados pelos líderes do passado: a
revisão e a ampliação permanente dessa compreensão.

Assim como ao Sesc cabe atuar sobre a realidade social, cabe valorizar e
difundir o entendimento acerca dessa realidade, dos conceitos e ques-
tões fundamentais para o país e das políticas públicas e formas diversas
de promover o bem-estar coletivo.

antonio oliveira santos


Presidente do Conselho Nacional

Ler, estudar, pesquisar. Divergir, argumentar, contrapor. Comparar, deba-


ter, discutir. Criticar, questionar, propor. Fundamentar, elaborar, testar.
Organizar, encadear, remeter. Rever, revisar, publicar. Apresentar, expres-
sar, transmitir.

Com a revista Sinais Sociais, colaboramos para que esses verbos sejam
conjugados em favor de uma sociedade que traduza de forma mais
idedigna a expressiva riqueza cultural e o potencial realizador de seus
cidadãos.

Conhecer para compreender, difundir para mobilizar, agir para transfor-


mar: eis as vertentes que deinem a linha editorial da Sinais Sociais no
ambiente do pensamento e da ação social.

maron emile abi-abib


Diretor-Geral do Departamento Nacional
EDITORIAL

Entre sístoles e diástoles contamos o tempo e traçamos caminhos.


Tic-tac, tic-tac, tic-tac: no tic contrair, reletir, preparar; no tac
estender, agir, publicar. Alcançada uma etapa, retornamos à anterior;
que é a mesma, porém diferente. O paradoxo temporal se reitera
no formato circular dos relógios e no caráter cíclico dos processos
vitais.

A presente edição da Sinais Sociais dá especial enfoque ao envelheci-


mento, nos remetendo ao transcorrer do tempo e às responsabilidades
que temos sobre os que vieram antes, os que nos acompanham na
idade e os jovens que virão receber nosso legado quando a engrena-
gem do tempo assim o quiser.

É fundamental conectar concepção e atitudes frente ao envelheci-


mento ao projeto de sociedade que se quer e à sua sustentabilidade,
contrariando a tendência de conceber este projeto isolado do futuro
e do passado.

Iniciamos neste número a inclusão de dossiês temáticos, que apre-


sentarão diferentes visões acerca de determinado assunto, permitin-
do ao leitor montar de forma mais abrangente um painel conceitual

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a respeito desses temas. Velhice, família, Estado e propostas políticas,
organizado por Myriam Moraes Lins de Barros, inaugura esta for-
mulação, complementada em sua abordagem pelo artigo de Edson
Alexandre da Silva e Lucia Helena de Freitas Pinho França.

O tema do envelhecimento no Brasil está imbricado à ação do Sesc,


via Trabalho Social com Idosos, que em 2013 completa meio século
desde sua origem no Sesc em São Paulo. Sua escolha para o dossiê e
a inclusão de artigo a ele relacionado, no entanto, não contrariam a
pluralidade que é marca da Sinais Sociais, mantida neste e em núme-
ros futuros.

Expressão desta pluralidade é a presença do artigo de Carlos Augusto


Lima, que aborda a obra do poeta Cacaso e de outros autores de
sua época frente à concepção de vazio cultural, relacionando-os
ao momento histórico do período militar posterior à edição do Ato
Institucional nº 5.

O tempo presente nos reserva outros “vazios” distintos daqueles


do início da década de 1970. Resta enfrentá-los com criatividade e
sensibilidade.

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DOSSIÊ

Velhice, família, Estado e


propostas políticas

Organização:
Myriam Moraes Lins de Barros

9
Myriam Moraes Lins de Barros
Doutora em Antropologia Social e professora titular da
Escola de Serviço Social da Universidade Federal do Rio
de Janeiro (UFRJ). Velhice, relações intergeracionais,
juventude e família são os temas centrais de suas pesquisas
e publicações. Além de artigos em revistas e capítulos de
livros, publicou Autoridade e afeto e as coletâneas Velhice ou
terceira idade? e Família e gerações. Participa da comissão
editorial da revista Praia Vermelha: Estudos de Política e
Teoria Social e coordena, com Clarice Peixoto e Maria Luiza
Heilborn, as séries Família, geração e cultura e Análises
sociais contemporâneas.

10
Myriam Moraes Lins de Barros

As ciências sociais no Brasil têm trabalhado as questões relativas à velhi-


ce de forma sistemática desde a década de 1970. Os primeiros trabalhos
traziam indagações sobre os signiicados da velhice na sociedade bra-
sileira e a identidade social do/a velho/a com ênfase nas distinções de
gênero e nas diferenças de classe. As pesquisas sobre o envelhecimento
nas décadas de 1970 e início de 1980 apresentavam questões que pare-
ciam não fazer parte de uma sociedade que construiu uma imagem de
si como um país de crianças e jovens, sintetizada na frase “Brasil, o país
do futuro”. Outra versão dessa imagem positiva da juventude está no
sentido revolucionário atribuído a essa faixa etária. Dessa forma, não há
espaço para a velhice, nem no presente, nem no futuro.

O país mudou sua coniguração demográica e aquela projeção de um


futuro que saudava a juventude precisou ser pensada simbólica e so-
ciologicamente. Hoje, uma diversidade de aspectos relativos à velhice é
explorada nos estudos sociológicos, antropológicos e históricos.

As relações sociais cotidianas na família e nos espaços públicos, os direi-


tos dos mais velhos, o trabalho na velhice, a sexualidade, as diferenças
de classe, a violência, os movimentos sociais e, mais recentemente, a
velhice na área rural compõem um leque de caminhos de pesquisa que
tem essa etapa da vida como objeto de atenção. Esses aspectos da vida
social não são necessariamente próprios do envelhecimento, mas as es-
peciicidades e particularidades da velhice nos dias atuais oferecem um
campo fértil para se pensar a sociedade, as mudanças sociais, o Estado
e os símbolos e signiicados das idades e do curso da vida construídos
pelos indivíduos na vida social.

Este dossiê apresenta três artigos que trazem aspectos fundamentais so-
bre a velhice na atualidade. O primeiro, “Feminismo e velhice”, de Guita
Grin Debert, trabalha na interseção dos temas da velhice e do feminismo.
Dialogando com autores nacionais e internacionais, Guita Grin Debert
retoma as grandes questões presentes em seus trabalhos sobre velhice e

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Dossiê: Velhice, família, Estado e propostas políticas

questiona a ausência das discussões acadêmicas e políticas sobre velhice


na literatura e nos movimentos feministas. Essas indagações são identi-
icadas pela autora na proposta de quebra do silêncio sobre a velhice já
presente na obra clássica de Simone de Beauvoir e, mais recentemente,
na posição assumida por Kathleen Woodward para reverter a marginali-
zação de velhos por uma “uma moratória para a sabedoria”.

Como pensar a velhice em uma sociedade que instituiu a velhice sau-


dável e ativa como padrão para as políticas sociais? Onde está a velhice
doente que exige cuidados? Estará só a cargo da família e das mulheres,
personagens centrais nos cuidados com dependentes? A autora volta-
se para a categoria de análise que elaborou para dar resposta a essas
questões de ordem social e individual: a reprivatização da velhice. O ideal
de um envelhecimento ativo e, consequentemente, saudável, construído
pela gerontologia social passa a marcar as políticas sociais para a popula-
ção idosa. Segundo Guita Grin Debert, pretende-se, por essa lógica, eclip-
sar a velhice que necessita cuidados e realçar, por sua vez, seus ganhos:
a sabedoria própria de um longo curso de vida.

No Brasil, país que só recentemente tomou a velhice como uma questão


social, percebe-se que o projeto de melhoria da qualidade de vida presen-
te nos programas para a terceira idade está sintonizado com interesses de
redução com gastos públicos com a saúde, responsabilizando os velhos
e velhas pelo seu próprio cuidado. O subtexto é que negligência corporal e
psíquica consigo é nefasta para o próprio indivíduo idoso, para a família,
para a sociedade e para o Estado. Guita Grin Debert aponta a relação en-
tre o poder disciplinador e a vigilância sobre si mesmo, que tal ideologia
da terceira idade propõe. Mas no projeto de cuidado de si na velhice há
uma clara distinção de gênero. Mulheres nos centros de convivência e
homens aposentados na luta pelos direitos civis. Nessa divisão por gê-
nero para as melhorias de vida na velhice, as diferenças de classe não
aparecem como importantes.

Apoiada nas interpretações e propostas da feminista Kathleen Woodward,


a autora mostra que o projeto de velhice, sobretudo dirigido às mulheres,
calcado apenas na gratiicação de si e na valorização da sabedoria do
controle das emoções, impede a visibilidade dos dramas do envelheci-
mento e da discriminação de velhos e velhas. Para romper com essa lógi-
ca da ideologia da terceira idade ativa, apresenta-se a proposta de tornar

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Myriam Moraes Lins de Barros

visíveis as histórias de vida de indivíduos e de grupos sociais envelheci-


dos, aproximando essa luta de outras lutas contra diferentes formas de
opressão, como os movimentos feministas. Nessa luta, as emoções são
fundamentais e vão se colocar contra uma forma de “sabedoria” que im-
pede a explosão da indignação.

“Entre o Estado, as famílias e o mercado”, de Carlos Eugênio Soares de


Lemos, traz uma contribuição importante para o debate sobre as práticas
de justiça nos casos em que está em questão a dependência de velhos e
velhas. O autor parte das representações e práticas de família na socie-
dade moderna deinidas por valores e regras com base no princípio da
obrigatoriedade da reciprocidade presente na lógica da oposição grati-
dão/ingratidão. Para o autor há o consenso sobre essas regras não apenas
na experiência familiar, mas nas relações entre o Estado e a família, o
que acaba deinindo o andamento e a conclusão dos processos jurídicos
por ele estudados.

O artigo apresenta alguns resultados da pesquisa realizada com o mate-


rial dos processos jurídicos do Ministério Público Estadual que tratam da
velhice dependente. São relatos sociais de inquéritos civis que apresen-
tam acusações de abandono e negligência de membros da família dos
idosos que seriam, em princípio, responsáveis por eles. O autor elencou
alguns casos para uma análise mais detalhada, tendo como um dos cri-
térios de seleção a situação e condição de classe mais precária dos indi-
víduos envolvidos.

No desenrolar do drama sobre os cuidados e a obrigatoriedade de gra-


tidão, presentes nos textos dos processos, são apresentados os atores
envolvidos e suas respectivas falas, permitindo ao leitor visualizar as
interações familiares, a relação entre a família e o Estado por meio de
depoimentos de alguns proissionais como o promotor, assistentes so-
ciais e psicólogos.

As legislações atuais, como o Estatuto do Idoso, marcam uma nova dire-


triz nas formas de resolução de conlitos familiares quando o personagem
central é o/a idoso/a. A legislação e os termos jurídicos são apropriados e
interpretados pelos indivíduos em disputa pela responsabilização dos cui-
dados com os idosos e surgem, nesse contexto, as acusações de quebra das
regras de reciprocidade entre familiares. No episódio inal, vislumbra-se

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Dossiê: Velhice, família, Estado e propostas políticas

a criminalização da negligência da família que, efetivamente, não tem


condições de arcar sozinha com os cuidados com seus dependentes. O
resultado indica também a reairmação de relações hierárquicas e de de-
sigualdade na sociedade brasileira.

O texto de Alda Britto da Motta “Violências especíicas aos idosos” trata


da invisibilidade das diversas formas de violências praticadas contra os
idosos. Família e Estado aparecem nesse cenário, além do mercado. Vio-
lências intergeracionais no espaço privado, violências das instituições
de acolhimento aos idosos, não cumprimento de direitos básicos pelo
Estado. Não há, entretanto, especializações entre as instituições, mas um
reforço mútuo nas práticas de violência, como uma violência consentida
pela sociedade porque invisibilizada pelo não valor da velhice. A autora
traz um novo cenário de violência praticada contra os idosos: os emprés-
timos consignados fraudulentos. Considerado crime, os idosos e, sobre-
tudo, as idosas são o alvo preferencial desse tipo de ação.

A partir da apresentação de casos que têm como personagens centrais


mulheres idosas e instituições inanceiras, a autora chama atenção tam-
bém para o pano de fundo no qual familiares e o Estado têm sua função.
Alda Britto da Motta dialoga com uma bibliograia sobre velhice reair-
mando a concepção da construção sociocultural das idades e, como Guita
Grin Debert, discute a falta de atenção política e acadêmica sobre vio-
lência de gênero quando quem está em questão são as mulheres idosas.

Os três artigos têm uma proposta comum: reforçar, redimensionar e rea-


tualizar a velhice como questão social, especialmente identiicar a parti-
cularidade da violência praticada contra idosos. Dessa forma, constitui
projeto político e acadêmico dos autores e dos que têm a velhice como
interesse de estudo e investimento proissional reconhecer social, públi-
ca e efetivamente as especiicidades da condição dos velhos em nossa
sociedade, dando ênfase às desigualdades de classe, assimetrias de gê-
nero e outras formas de desigualdades sociais que se fazem presentes
nos diferentes contextos sociais.

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Feminismo e velhice

Guita Grin Debert

15
Guita Grin Debert
Professora titular do Departamento de Antropologia do
Instituto de Filosoia e Ciências Humanas da Universidade
Estadual de Campinas (Unicamp), membro do Conselho
Cientíico do Núcleo de Estudos de Gênero da Unicamp
(Pagu) e pesquisadora do CNPq. É autora do livro
A reinvenção da velhice (Editora da USP) e de vários artigos
sobre discurso político, velhice e envelhecimento e violência
contra a mulher.

16
Feminismo e velhice

Resumo
O argumento central deste artigo é que não se pode explicar
o desinteresse das feministas pela velhice apenas como uma
consequência do medo de envelhecer, pela repulsa ao corpo
envelhecido, própria do sexismo, ou pela gloriicação da juven-
tude que caracteriza a sociedade de consumo. O interesse aqui
é mostrar que as imagens do envelhecimento bem-sucedido
presentes no senso comum e na gerontologia, assim como a
associação convencionalmente feita entre o avanço da idade
e a sabedoria, criam barreiras difíceis de serem transpostas
para que a velhice possa entrar no rol das questões centrais do
pensamento feminista.

Palavras-chave: Velhice. Feminismo. Feministas. Mulheres.


Gerontologia.

Abstract
The central argument of this article is that the lack of interest given
to ageing and old age by feminists cannot be explained only as a
consequence of fear of aging, aversion to the ageing body, sexism, or
as a result of the gloriication of youth that characterizes consumer
society. The interest here is to show that the images of successful
aging present in common sense and in gerontology, as well as the
association conventionally made between ageing and wisdom, create
a gap that excludes old age from the range of main issues of feminist
thought.

Keywords: Old Age. Feminism. Feminist. Women. Gerontology.

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Dossiê: Velhice, família, Estado e propostas políticas

Introdução

Em um artigo sobre sexualidade e velhice, Lagrave (2011) expõe um con-


junto de questões elaboradas por ocasião de um seminário que tinha
como objetivo celebrar os 40 anos do movimento francês de liberação
da mulher, Mouvement de Libération de la Femme (MLF). Nesse seminário,
feministas históricas foram convidadas a participar do evento de modo
a transmitir a memória das lutas então empreendidas para um público
de jovens estudantes.

As exposições feitas na ocasião emocionaram a plateia, mas os sinais


do envelhecimento, impressos na aparência dessas mulheres, levaram
Lagrave a se perguntar como essa etapa está sendo por elas vivida. Por
que a velhice não é um tema das lutas feministas? Essa geração foi ativa
em denunciar formas de discriminação, proclamar “meu corpo me per-
tence”, separar a sexualidade da reprodução, colocar em questão a hege-
monia da heterossexualidade. Seria o feminismo um antídoto à velhice?
Como então explicar o seu silêncio em relação a esse período da vida?
Por que as enormes barreiras criadas para as mulheres mais velhas no
mundo do trabalho, nos padrões de beleza, na vida sexual, entre tantas
outras formas de discriminação, não são objeto de relexão pública e das
militâncias dessas mulheres que foram tão ativas na crítica feminista?

Lawrence Cohen (1994), em um artigo sobre antropologia e o estudo do


envelhecimento, é mais incisivo na exploração dessa falta de reconheci-
mento da velhice pelo feminismo. Ele lembra uma coletânea de artigos
feita por feministas, em que as autoras agradecem a paciência da edito-
ra com a demora das mesmas na entrega dos textos e justiicam o atraso
com a alegação de que elas são uma espécie de geração sanduíche, que
têm que lidar com o peso somado do cuidado dos ilhos adolescentes e
dos pais idosos. Feministas preocupadas com um olhar cuidadoso sobre
as diferenças e sobre as formas de objetivação e sujeição de seres hu-
manos, de maneira totalmente negligente, acabaram por transformar os
velhos em um peso para as mulheres na meia-idade.

De modo a tratar dessas imagens, começamos por apresentar a forma


pela qual a relação entre mulher e velhice tem sido trabalhada nas pes-
quisas sobre o tema. Em seguida, abordamos o modo pelo qual a geron-
tologia cria o envelhecimento bem-sucedido, para depois explorarmos a

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Feminismo e velhice

maneira como os programas para a terceira idade operam uma feminiza-


ção das etapas mais avançadas da vida.

Por im, seguindo Kathleen Woodward (2003), propomos, como uma das
condições necessárias para quebrar a conspiração do silêncio do femi-
nismo em relação à velhice, uma moratória contra a sabedoria. O dever
de um envelhecimento bem-sucedido que tem sido imposto aos velhos
impede que a retórica da indignação ganhe o conteúdo emocional pró-
prio das críticas às formas de opressão.

1 Homens, mulheres, androginia e inversão de papéis sociais

Mulher e velhice não é um tema ausente da relexão nas ciências so-


ciais. Contudo, a questão que organiza boa parte dos estudos é a de
saber quem está melhor nessa etapa da vida, os homens ou as mulhe-
res, e é importante realçar que não há uma unanimidade nas respostas
apresentadas.1

Para alguns autores, as mulheres na velhice experimentariam uma situa-


ção de dupla vulnerabilidade, com o peso somado de dois tipos de discri-
minação, como mulher e como idosa. Sendo a mulher, em quase todas
as sociedades, valorizada exclusivamente por seu papel reprodutivo e
pelo cuidado com as crianças, desprezo e desdém marcariam sua pas-
sagem prematura à velhice. Essa passagem, antes de ser contada pela
referência cronológica, seria marcada por uma série de eventos associa-
dos a perdas, como o abandono dos ilhos adultos, a viuvez ou o conjunto
de transformações físicas trazidas pelo avanço da idade. Nas sociedades
ocidentais contemporâneas, a esse conjunto de perdas deve-se somar o
subemprego, os baixos salários, o isolamento e a dependência que carac-
terizariam a condição das mulheres de mais idade.

Outros autores, no entanto, tendem a olhar com mais otimismo o en-


velhecimento feminino. A velhice feminina seria mais suave do que a
masculina, na medida em que a mulher não experimentaria uma ruptu-
ra em relação ao trabalho tão violenta como a dos homens na aposen-
tadoria. Os vínculos afetivos entre ilhos e mães seriam mais intensos e
por isso os ilhos estariam mais dispostos a cuidar delas do que de seus
pais idosos. Os controles sobre a mulher seriam afrouxados, posto que
ela já não deteria a função de procriação e, mesmo nas sociedades em

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Dossiê: Velhice, família, Estado e propostas políticas

que são elas as transmissoras de herança, o controle sobre a mulher se-


ria sempre maior ao longo de sua vida jovem e adulta do que na velhice
(GOODY, 1976; BROWN, 1982). Habituadas a mudanças drásticas em seu
organismo e capacidade física por causa da procriação, da gravidez, da
lactância e da menstruação, as mulheres teriam mecanismos que lhe
permitiriam enfrentar melhor as transformações que ocorrem com o
avanço da idade.

A hipótese de que a velhice é uma experiência homogênea funda a geron-


tologia, que é a ciência que estuda os velhos. A perspectiva que orientou
os primeiros estudos na área considerava que os problemas enfrentados
pelos idosos eram tão prementes e semelhantes que minimizavam as di-
ferenças em termos de etnicidade, classe, gênero e religião. Em oposição
à noção de que essa etapa corresponderia a um acúmulo de sabedoria, a
velhice era então pensada pela ideia de ausência de papéis sociais –
a sociedade moderna não prevê uma posição especíica ou uma ativi-
dade para os velhos, abandonando-os a uma existência sem signiicado
(BURGUESS, 1960). Os velhos seriam uma minoria desprivilegiada (BARRON,
1961), ou ainda, para Rose (1962), eles comporiam uma subcultura com um
estilo próprio de vida que se sobreporia às outras diferenças como ocu-
pação, sexo, religião ou identidade étnica.

Os anos 1970 assistiram a uma revisão desse pressuposto. As diferenças


de classe social, de etnicidade e de gênero dariam à experiência de enve-
lhecimento, em uma mesma sociedade, conteúdos distintos que mere-
ceriam investigação. A hipótese da diversidade é um convite a uma série
de pesquisas preocupadas com a elaboração de medidores soisticados e
com a deinição de instrumentos capazes de avaliar a qualidade de vida
na velhice. Entretanto, a perspectiva que tem orientado a maioria desses
trabalhos é a de que grupos sociais distintos se adaptam diferencialmen-
te à experiência comum de envelhecimento e a tarefa então passa a ser a
de propor explicações para as diferenças constatadas. No que diz respei-
to a gênero e envelhecimento, a tendência das pesquisas que enfatizam
os fatores psicológicos na velhice é a de considerar que a androginia ca-
racterizaria as etapas mais avançadas da vida.

Papéis sociais, valores e atitudes considerados tipicamente masculinos


ou femininos tenderiam a se misturar na velhice. Ou ainda, o envelheci-
mento envolveria uma masculinização das mulheres e uma feminização

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Feminismo e velhice

dos homens, de forma que as diferenças de gênero se dissolveriam na


“normalidade unissex da idade avançada”. Homens idosos desenvol-
veriam atitudes mais afetivas do que os jovens e as mulheres desen-
volveriam atitudes mais assertivas. A divisão tradicional do trabalho
doméstico em tarefas masculinas e femininas tenderia a diminuir com
a idade e alguns autores explicam essa convergência como produto das
mudanças hormonais.

A inversão de papéis sociais tem chamado a atenção, sobretudo, de auto-


res interessados no tema da sexualidade na velhice.2 É parte dos estudos
sobre a sexualidade, como mostra Luiz Fernando Dias Duarte (2004), a
diiculdade envolvida na tensão entre, por um lado, “uma incitação a fa-
lar sobre o sexo” (FOUCAULT, 1977) e, por outro lado, um movimento que
retrai essa fala ou mesmo a relexão sobre o tema dada a correlação entre
sexualidade, intimidade e privacidade.

Essa tensão acaba por levar a uma separação entre dois níveis da experiên-
cia: o sensual e o sentimental. Um prazer sensorial do sexo (dito sensu-
al) e um prazer afetivo sentimental (correspondente em nossa cultura à
ideologia do amor). É próprio desses estudos estabelecer uma correlação
entre o sensual e o masculino e entre o afetivo e o feminino. Essa cor-
relação tende a ser revista quando se pensa em sexualidade e velhice.
A inversão dos atributos de gênero ganha a seguinte expressão em um
artigo do psicanalista Kernberg (2001):

Pode-se observar um desenvolvimento curioso da relação entre o desejo


erótico e o amor apaixonado ao se estudar as relações amorosas que
se dão mais tarde na vida. Propus, em um trabalho anterior [...], que o
desenvolvimento masculino e feminino da integração entre excitação
sexual e ternura diferem. [...] Para os homens, [...] a liberdade sexual pre-
cede a capacidade de estabelecer uma relação de objeto profundo com
uma mulher e de integrar liberdade sexual no contexto desse relaciona-
mento amoroso. No caso das mulheres, ao contrário, [...] a patologia mais
frequente, nesse sentido, é um certo grau de inibição sexual no contexto
do estabelecimento de uma relação amorosa satisfatória. Concluí, em
trabalho anterior, que no inal, vindos de caminhos de desenvolvimento
contrastantes, homens e mulheres alcançam a mesma capacidade de
síntese entre liberação sexual e uma relação de objeto profunda; na rea-
lidade, o amor apaixonado é precisamente o selo dessa síntese entre o
desejo erótico e o amor terno. Agora, sob a luz da observação das rela-
ções amorosas de casais mais velhos, sugiro que esse desenvolvimento

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Dossiê: Velhice, família, Estado e propostas políticas

prossegue na idade mais avançada, com uma surpreendente reversão de


papéis. Homens apaixonando-se e estabelecendo uma relação amorosa
apaixonada nas etapas mais avançadas de suas vidas frequentemente
têm uma estimulante experiência de que seu intenso amor sexual por
uma mulher transcende, em novas formas, seu desejo erótico [...]. O de-
sejo erótico, em termos simples, pareceria um meio de alcançar o amor,
copiando, poderíamos dizer, as primeiras características de desenvolvi-
mento das mulheres mais jovens. Ao contrário, as mulheres que se apai-
xonam nas etapas mais avançadas de suas vidas podem experimentar
uma liberdade de desejo sexual que torna o amor pelo homem que en-
contraram agora uma ponte na qual o desejo erótico pode ser plenamen-
te satisfeito, e torna-se a maior expressão do amor deles. Um paciente
disse, brincando, para sua nova namorada, “às vezes ico com medo de
que você esteja me tratando como um objeto sexual e que meus sen-
timentos e minha personalidade não tenham importância para você”
(KERNBERG, 2001, p. 183-184).

Pensar a velhice como uma condição em que a mulher é vítima de uma


dupla discriminação, ou como uma ocasião em que ela se encontra em
uma situação privilegiada em relação aos homens, ou ainda, como um
período em que as diferenças de gênero perdem signiicados ou os pa-
péis sociais são invertidos, é pressupor que haveria um substrato co-
mum à velhice que estaria presente em todas as sociedades e em todos
os períodos históricos. Contra esse pressuposto, a contribuição mais
importante da pesquisa histórica e da antropologia é a de mostrar que
o avanço da idade pode ser vivido e compreendido de maneiras muito
distintas.

As pesquisas apontam a importância de perceber as mudanças ocorridas


no curso da vida e no envelhecimento ao longo da história, apresentam
a diversidade nas formas de periodizar a vida em diferentes sociedades,
bem como revelam os signiicados distintos que as etapas da vida têm
para diferentes grupos sociais em uma mesma sociedade. A invenção da
terceira idade e os movimentos dos aposentados são bons exemplos de
mudanças recentes ocorridas na nossa sociedade na relexão sobre a ve-
lhice e na experiência de envelhecimento de homens e mulheres, como
se pode ver a seguir.

22 Sinais Sociais | Rio de Janeiro | v.8 n. 22 | p. 9-86 | maio-ago. 2013


Feminismo e velhice

2 As novas imagens da velhice

Discorrer sobre a velhice é abordar um assunto que até muito recente-


mente era visto como uma questão própria da esfera privada e familiar,
uma questão de previdência individual ou de associações ilantrópicas.
Com a transformação do envelhecimento em uma questão social, um
conjunto de orientações e intervenções, muitas vezes contraditório,
é deinido e implementado pelo aparelho de Estado e outras organiza-
ções privadas. Um campo de saber especíico – a gerontologia – é criado
com proissionais encarregados de compreender e deinir os problemas
que afetam os velhos e promover a formação de outros especialistas
nessa área de estudos. Como consequência desse movimento próprio
da forma como os Estados modernos classiicam e hierarquizam suas
populações, e que Foucault (1977) denomina “biopoder”, tentativas de
homogeneização das representações sobre esse segmento populacio-
nal são acionadas e uma nova categoria cultural é produzida: os idosos,
como um conjunto autônomo e coerente que impõe outro recorte à geo-
graia social, autorizando a colocação em prática de modos especíicos
de gestão do envelhecimento.

A representação do avanço da idade como um processo contínuo de per-


das acompanha o processo de constituição da velhice em uma preocupa-
ção social e política. Essa visão de uma experiência homogênea de perdas
é um elemento de legitimação de direitos sociais que levaram à univer-
salização da aposentadoria, ao conjunto de leis protetivas dos idosos e às
conferências e aos planos de ação internacionais para o envelhecimento.

Contudo, uma nova face dessa etapa da vida emerge a partir dos estudos
mais recentes sobre o tema. Contra a visão de uma situação de perdas,
e de modo a combater os estereótipos negativos, os gerontólogos procu-
ram realçar os ganhos que o envelhecimento traz.

As novas pesquisas realizadas com populações idosas em diferentes paí-


ses indicavam que os velhos projetavam uma imagem muito mais po-
sitiva da sua situação do que aquela que servia de pressuposto à teoria
gerontológica; revelavam não apenas que o conhecimento dos pesqui-
sadores sobre essa realidade era muito vago e carregado de pessimismo,
mas também que a gerontologia alimentava uma série de mitos relacio-
nados com essas imagens negativas.

Sinais Sociais | Rio de Janeiro | v.8 n. 22 | p. 9-86 | maio-ago. 2013 23


Dossiê: Velhice, família, Estado e propostas políticas

Os estereótipos do abandono e da solidão, que caracterizariam a expe-


riência de envelhecimento, são substituídos pela imagem dos idosos
como seres ativos, capazes de oferecer respostas criativas ao conjunto
de mudanças sociais que redeinem a experiência do envelhecimento.
Novas formas de sociabilidade e de lazer marcariam essa etapa da vida,
reciclando identidades anteriores e redeinindo as relações com a família
e parentes.

No Brasil, uma série de pesquisas de cunho qualitativo também apresen-


ta a tendência de mostrar que os mais jovens estariam superestimando
a perspectiva da miséria na velhice. Trabalhos com indivíduos de mais
idade de diferentes camadas sociais, como os de Myriam Moraes Lins de
Barros (1998), Clarice Peixoto (1995), Flávia de Mattos Motta (1998), Alda
Britto da Motta (1997) e os meus (DEBERT, 1998), sugeriam que a repre-
sentação que os idosos faziam de sua situação não era tão trágica como
aquela apresentada pelo discurso gerontológico.

Importa, no entanto, ressaltar que a ideia de um envelhecimento ativo


passa a marcar as políticas sociais voltadas para a população idosa. Des-
sa nova perspectiva, trata-se de estimular um conjunto de práticas diri-
gidas a garantir a continuidade da participação do idoso na vida social
com independência e dignidade. Mais do que o direito ao cuidado, o que
se enfatiza é o direito à igualdade de oportunidades e de tratamento,
como é possível ver no Portal do Envelhecimento do Núcleo de Estudos
e Pesquisa do Envelhecimento (Nepe) da Pontifícia Universidade Católica
de São Paulo (PUC-SP).

O envelhecimento ativo pode ser abordado como uma política de Direitos


Humanos voltada para os idosos, e envolve independência, participação,
dignidade, acesso a cuidados. Muda a visão estratégica baseada nas ne-
cessidades de cuidados para uma baseada nos direitos de igualdade de
oportunidades e de tratamento. Considera a responsabilidade dos idosos
de exercerem suas participações no processo político, social, comunitário
à medida que há manutenção da autonomia (capacidade de tomar deci-
sões pessoais) e independência (realizar funções relativas à vida diária)
(PORTAL DO ENVELHECIMENTO, 2010).

Políticas voltadas para o envelhecimento ativo devem reconhecer a im-


portância do encorajamento e da delegação de responsabilidade ao in-
divíduo pelos seus cuidados, criar ambientes amigáveis e estimular a
solidariedade entre diversas gerações. Isso signiica que cada indivíduo

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Feminismo e velhice

e sua família devem se planejar e se preparar para a velhice e dirigir esfor-


ços para adotar uma postura pessoal positiva voltada para a saúde em to-
das as fases da vida. Ao mesmo tempo, a criação de ambientes adequados
é necessária para transformar as escolhas saudáveis em escolhas fáceis.

É essa visão que orienta as práticas desenvolvidas nos programas da ter-


ceira idade, como são os grupos de convivência e as universidades volta-
das para o segmento mais velho da população.

3 Os programas da terceira idade e o movimento dos aposentados

Os programas para a terceira idade e o movimento dos aposentados in-


dicam que a preocupação recente com a melhoria da qualidade de vida
na sociedade brasileira muda não apenas a sensibilidade investida na
velhice, mas tende a transformar o envelhecimento em uma experiência
radicalmente distinta para homens e mulheres. As diferenças de classe,
que dão conteúdos especíicos a essa etapa da vida, parecem ser minimi-
zadas ante as diferenças de gênero.

A terceira idade é uma expressão que recentemente, e com muita rapi-


dez, se popularizou e é uma forma de tratamento das pessoas de mais
idade que ainda não adquiriu uma conotação depreciativa. Essa expres-
são não indica uma idade claramente delimitada em anos vividos, mas
sinaliza mudanças na percepção da velhice, que passa a ser um momen-
to privilegiado para o lazer e para as atividades livres dos constrangi-
mentos da vida proissional e familiar.

Os programas para a terceira idade – como são os centros de convivência


de idosos, as universidades para a terceira idade, os grupos da melhor
idade – foram criados nos anos 1960, mas proliferaram na última década,
marcando presença mesmo em municípios em que a população idosa é
relativamente pequena. Abertos para pessoas com 50 anos ou mais, as
pesquisas têm mostrado que neles o público mobilizado é, sobretudo,
feminino.3

A participação masculina diicilmente ultrapassa os 10% e o entusias-


mo manifestado pelas mulheres na realização das atividades propostas
contrasta com a atitude de reserva e indiferença dos homens que, em
número muito diminuto, raramente perdem uma oportunidade de olhar
com desconiança o entusiasmo das mulheres.

Sinais Sociais | Rio de Janeiro | v.8 n. 22 | p. 9-86 | maio-ago. 2013 25


Dossiê: Velhice, família, Estado e propostas políticas

Apesar da diversidade de atividades desenvolvidas em cada um desses


programas, das diferenças em termos de recursos disponíveis e das dife-
renças socioeconômicas do público feminino mobilizado, o tom geral é o
de rever os estereótipos com que a velhice é tratada.

Inspirados nas recomendações do Plano de Ação Mundial para a Velhice,


todos eles reiteram a ideia de que o velho é um ser integrado que ne-
cessita uma assistência especializada e que deve reencontrar seu lugar
na sociedade, recuperando a sua autoestima. Centrar a análise nesses
programas é se perguntar o que acontece com os homens mais velhos.
Será que eles não participam de atividades associativas? Olhar para as
associações de aposentados é colocar em outros termos essa questão,
porque aí se veriica a presença de grupos ou redes em que os homens
ganham destaque.

O movimento dos aposentados, organizado por meio de associações,


federações e confederações em diferentes momentos, ocupou o centro
da cena política brasileira nas últimas décadas, galvanizando a opinião
pública em manifestações como a luta pelos 147%. Mais tarde, manifes-
tações foram feitas contra declarações do presidente Fernando Henrique
Cardoso, consideradas ofensivas aos aposentados.

O trabalho de Júlio Assis Simões (2000), Entre o lobby e as ruas: movimento


de aposentados e politização da aposentadoria, traz um retrato muito inte-
ressante dessas associações e dos movimentos de que as associações
participaram. Aqui é importante chamar a atenção para o fato de que
esse movimento mobilizou basicamente um público masculino. É difí-
cil ter dados sobre a participação de mulheres no movimento, mas elas
raramente têm cargo de direção nas associações ou são chamadas para
falar em nome dos aposentados nas manifestações e na imprensa. Nos
discursos políticos proferidos pelas lideranças, é praxe que as interpe-
lações sejam feitas em termos de “os” aposentados e “as” pensionistas.

A comparação entre essas duas formas associativas – a dos grupos de


convivência de terceira idade e a das associações dos aposentados e pen-
sionistas – permite mostrar o caráter distinto das experiências coletivas
nelas vividas. Nos dois casos está envolvida uma luta contra os precon-
ceitos e os estereótipos pelos quais se supõe que a velhice seja tratada no
contexto brasileiro. São, entretanto, formas distintas de empreender essa

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Feminismo e velhice

luta. O movimento dos aposentados pretende estabelecer uma aliança


com outros setores desprivilegiados da sociedade na luta contra o Estado
pela redistribuição da renda e pelos direitos civis.

Nos programas para a terceira idade, a luta é por mudanças culturais, é


uma luta contra os preconceitos e estereótipos que leva a uma celebração
da terceira idade e do processo de envelhecimento como um momento
privilegiado na vida, em que a realização pessoal, a satisfação e o prazer
encontram o seu auge e são vividos entusiasticamente. Daí a expressão
“melhor idade” usada para denominar grupos de convivência de idosos
ou programas para o segmento mais velho da população.

As diferenças nas formas como homens e mulheres, nas associações e


nos programas, representam o que é a velhice e percebem as mudanças
ocorridas no envelhecimento são elementos fundamentais para enten-
der as diferenças no público mobilizado em cada uma dessas manifesta-
ções. As pesquisas feitas com mulheres que participam desses programas
mostram o entusiasmo com que elas avaliam as mudanças em relação à
situação da mulher ocorridas na sociedade brasileira, particularmente no
que diz respeito às mulheres mais velhas.

Diferentemente de suas mães e suas avós, elas já não têm que se ves-
tir de preto e icar em casa à espera da visita de ilhos e netos. Gozam
atualmente de uma liberdade inusitada para as velhas de antigamente
e também para as mulheres mais jovens. A participação nas atividades
dos programas para a terceira idade é uma oportunidade de envolvi-
mento em atividades motivadoras, ampliar seu grupo de amigos e seu
repertório de conhecimentos, explorar novas identidades e novos esti-
los de vida.

Nas associações de aposentados, os homens são menos otimistas em


relação às mudanças sociais. Os jovens já não respeitam mais os velhos
como faziam antigamente. Combater os preconceitos em relação a essa
etapa da vida é mostrar que seus participantes mantêm lucidez e sabem
criticar os governos, os políticos e as interpretações errôneas que a mídia
fazia de todos os diferentes aspectos da vida social brasileira.

Muitos dos participantes das associações e movimentos criticam os


programas da terceira idade, que alguns chamavam de “playground de
velhos”, que desviavam aposentados e pensionistas de seus reais inte-

Sinais Sociais | Rio de Janeiro | v.8 n. 22 | p. 9-86 | maio-ago. 2013 27


Dossiê: Velhice, família, Estado e propostas políticas

resses. Outros – principalmente os que tinham interesse em fazer uma


carreira política – eram mais respeitosos em relação aos programas para
a terceira idade e propunham planos para juntar atividades como pas-
seios, bailes e outras atividades físicas ao trabalho reivindicativo e polí-
tico das associações.

A exploração de novas identidades e a vivência intensa do lazer, própria


da terceira idade, era para eles uma forma de infantilização dos cidadãos,
uma espécie de negação da masculinidade.

Como disse um colega que estuda masculinidade e velhice: “Para os ho-


mens, reprimir as emoções é a condição para poder exercer o papel que
deles é esperado na nossa sociedade: provedor, protetor, criador.” É esse
ethos masculino que os programas da terceira idade parecem negar, na
medida em que consideram que a terceira idade é um momento de re-
pensar a vida, refazer projetos e desenvolver novos relacionamentos.

É, no entanto, importante levar em conta o tipo de controle emocional


envolvido nas propostas para a terceira idade e o investimento que a
celebração do envelhecimento requer. Da mesma forma, vale a pena lem-
brar que é relativamente pequena a participação do segmento mais ve-
lho da população tanto nos programas como nas associações.

4 As jovens idosas e as idosas muito idosas

Comparar a experiência das mulheres nos programas da terceira idade


com a experiência dos homens no movimento de aposentados permite
rever a ideia de que os homens não participam de formas associativas ou
a visão de que o aposentado é um homem que vestiu o pijama e só quer
icar em casa, ou ainda explicar a participação diminuta dos homens por-
que, em média, eles vivem menos do que as mulheres.

Contudo, é preciso reconhecer que a participação nos dois casos é feita


por jovens idosos e idosas, ou seja, por indivíduos que têm a capacidade
funcional para se locomover pela cidade, fazer excursões, ir a bailes ou
a passeatas.

Os programas para a terceira idade, como já dissemos, estão ainados


com a produção mais recente dos gerontólogos que, inspirados na ge-
rontologia internacional, procuram rever a visão da velhice como uma

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Feminismo e velhice

situação de decadência física e perdas de papéis sociais e realçar os ga-


nhos que o envelhecimento potencialmente possibilita.

Neles os participantes são estimulados a reconhecer que o envelhecimen-


to não pode ser entendido como uma etapa de retraimento e abandono
da vida social. Pelo contrário, esse é um momento de novas descobertas
e de novos aprendizados por meio de conferências, grupos de estudos,
teatro, coral, artesanato, passeios turísticos, bailes e outras atividades.
Essas novas imagens que acompanham a construção da categoria tercei-
ra idade estão empenhadas em transformar a velhice em uma experiên-
cia mais gratiicante.

São ainda elementos constitutivos do tratamento dado às etapas mais


avançadas da vida as reportagens produzidas pela mídia impressa e ele-
trônica em que o tema ganha um espaço cada vez maior, além de tam-
bém ocuparem espaço central na venda de produtos e serviços voltados
para esse segmento.4

Uma nova linguagem pública empenhada em alocar o tempo dos mais


velhos faz-se presente na desconstrução das idades cronológicas como
marcadores pertinentes de comportamentos e estilos de vida. Uma pa-
rafernália de receitas envolvendo técnicas de manutenção corporal, co-
midas saudáveis, medicamentos e outras formas de lazer são propostas,
desestabilizando expectativas e imagens tradicionais associadas a ho-
mens e mulheres em estágios mais avançados da vida.

Pode-se dizer que no Brasil existe um know-how na criação desses espa-


ços recreativos para a terceira idade que, com muito sucesso, têm mobi-
lizado o público feminino de jovens idosas e, certamente, transformado
a experiência desse segmento da população em uma experiência mais
gratiicante. Assim como é evidente a habilidade das mídias em compor
um novo retrato celebratório do envelhecimento, até mesmo quando se
trata de vender produtos que combatem as rugas ou outros sinais rela-
cionados à passagem do tempo.

Contudo, esse compromisso com o envelhecimento positivo encobre


os problemas próprios da idade mais avançada. A perda de habilidades
cognitivas e controles físicos e emocionais – habilidades essas que, nas
sociedades democráticas, são fundamentais para que um indivíduo
seja reconhecido como um ser autônomo capaz de um exercício pleno

Sinais Sociais | Rio de Janeiro | v.8 n. 22 | p. 9-86 | maio-ago. 2013 29


Dossiê: Velhice, família, Estado e propostas políticas

dos direitos da cidadania – é percebida como resultado de transgres-


sões cometidas pelos indivíduos contra seus corpos e sua saúde.5 Esse
processo que chamei de reprivatização de uma questão social, em um
país como o Brasil – que combina hierarquias sociais acirradas com
práticas próprias da sociedade de consumo –, transforma a velhice em
um problema de consumidores falhos porque foram incapazes de ado-
tar estilos de vida e disposições psicológicas que poderiam evitar o
envelhecimento.

O idoso como um consumidor que falhou ganha concretude em um


contexto em que vigoram as concepções autopreservacionistas do cor-
po, as quais encorajam os indivíduos a adotarem estratégias instrumen-
tais para combater a deterioração e a decadência. Essas concepções são
aplaudidas pela burocracia estatal, que procura reduzir os custos com a
saúde, educando o público para evitar a negligência corporal.

A percepção do corpo como um veículo do prazer e da autoexpressão im-


põe uma combinação de disciplina e hedonismo, na medida em que suas
qualidades são tidas como plásticas e os indivíduos são convencidos a
assumir a responsabilidade pela sua própria aparência.

A publicidade, os manuais de autoajuda e as receitas dos especialistas


em saúde estão empenhados em mostrar que as imperfeições do corpo
não são naturais nem imutáveis, e que, com esforço e trabalho discipli-
nado, pode-se conquistar a aparência desejada; as rugas ou a lacidez
se transformam em indícios de lassitude moral e devem ser tratadas
com a ajuda dos cosméticos, da ginástica, das vitaminas, da indústria
do lazer.

Os indivíduos são não apenas monitorados para exercer uma vigilância


constante de si, mas são responsabilizados pela sua própria saúde, pela
ideia de que muitas doenças são resultados de abusos como o excesso
de bebida, do fumo e da falta de exercícios. A suposição de que a boa
aparência seja igual ao bem-estar, de que aqueles que conservam seus
corpos por meio de dietas, exercício e outros cuidados viverão mais, de-
manda de cada indivíduo uma boa quantidade de “hedonismo calcula-
do”, exigindo a autovigilância da saúde corporal.

Nesses termos, a velhice, reprivatizada, pode desaparecer do leque das


preocupações sociais e as fases mais avançadas da vida passam a ser um

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Feminismo e velhice

problema das famílias ou dos próprios velhos que não souberam cultivar
o carinho e a solidariedade familiar.

Em outras palavras, a gerontologia brasileira e, em particular, as políti-


cas públicas voltadas para esse segmento da população contemplam os
jovens idosos com programas para a terceira idade e tendem a tornar
invisíveis os dramas que caracterizam os estágios mais avançados do
envelhecimento.

O entusiasmo com as imagens gratiicantes da terceira idade – das jo-


vens idosas autônomas empenhadas em redeinir essa etapa da vida e
usufruir dos novos equipamentos voltados para o lazer, para o aprendi-
zado e para o desenvolvimento de novas habilidades, projetos de vida e
identidades – levantou uma verdadeira cortina de fumaça para as situa-
ções de dependência e perda de autonomia funcional que caracterizam
as etapas mais avançadas do envelhecimento.

São essas as situações em que as políticas públicas adequadas são mais


custosas tanto em termos inanceiros como em relação à necessidade
de pessoal especializado. A velhice avançada passa então a ser um pro-
blema das famílias e sabemos que colocar a responsabilidade na família
é interpelar mais uma vez as mulheres para a tarefa de cuidado. É para
essas novas formas de invisibilidade dessa etapa da vida que é impor-
tante atentar.

5 A conspiração do silêncio, a moratória contra


a sabedoria e o feminismo

Com a expressão “conspiração do silêncio”, Simone de Beauvoir (1970),


em A velhice, realidade incômoda, chamou a atenção para o fato de que a
velhice era uma espécie de segredo vergonhoso do qual era indecente
falar. Obviamente a condição dos velhos mudou muito depois dos anos
1970, e hoje o idoso é um ator que não está mais ausente da vida política
e social brasileira.

Hoje, diicilmente poder-se-ia considerar que os velhos estão entre os es-


tratos mais desfavorecidos da população. Especialmente nos momentos
em que o desemprego ou o subemprego atingem proporções alarmantes,
a universalização das aposentadorias e da pensão na velhice garantiria

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Dossiê: Velhice, família, Estado e propostas políticas

aos idosos direitos sociais dos quais é excluída a população em outras


faixas etárias, sobretudo os jovens.

Nos programas dos partidos políticos, nas campanhas eleitorais, nas po-
líticas públicas e nas ofertas de bens de consumo e serviços, a presença
do idoso é cada vez mais marcante. Contudo, as imagens do envelheci-
mento ativo – das mulheres felizes e entusiasmadas com os programas
para a terceira idade – dão novos conteúdos e atualidade à conspiração
do silêncio, tornando invisíveis os dramas da velhice avançada.

O compromisso social é com um tipo determinado de envelhecimento


positivo. A etapa mais sombria da velhice permanece um segredo e é
responsabilidade das famílias cuidar de seus parentes idosos.6

Apostar que o bem-estar em idades mais avançadas está na família, em


um contexto em que ela tende a assumir formatos tão inesperados, é
adiar inconsequentemente a relexão e as propostas de práticas para
uma experiência de envelhecimento bem-sucedida para homens e para
mulheres.

Às imagens gratiicantes da terceira idade e à conspiração do silêncio


em relação às etapas mais avançadas da vida é preciso agregar a ideia de
sabedoria como mais um dos ingredientes que ajudam a compreender a
barreira levantada entre os feminismos e a luta contra a discriminação
dos velhos e que faz da velhice um “impensado” do feminismo, na ex-
pressão de Lagrave (2011), ao falar sobre o seminário em comemoração
aos 40 anos do Mouvement de Libération de la Femme (MLF), mencionado no
início deste texto.

No artigo “Contra a sabedoria: a política da raiva e a velhice”, Woodward


(2003) sugere que a visão da sabedoria como um ganho que a passagem
dos anos traz torna difícil, se não impossível, a luta contra a discrimi-
nação dos velhos. Ela propõe o que chamará de “uma moratória para a
sabedoria” (WOODWARD, 2003, p. 55), de modo a vitalizar a fúria e a raiva
de ser marginalizado em função da idade.

A ideia de sabedoria articula vários signiicados como o acúmulo de co-


nhecimentos, a capacidade de fazer julgamentos corretos e de emitir re-
lexões e ponderações balanceadas, mas, em todos os casos, comenta a
autora, a referência é ao pensamento e às virtudes associadas ao domí-
nio dos sentimentos e emoções. A autora argumenta, com razão, que as

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Feminismo e velhice

emoções são elementos importantes na produção de signiicados e valo-


res e na deinição e na implantação de políticas sociais.

Como pensar nos movimentos de protesto sem levar em conta o sen-


timento de raiva contra as formas de opressão e injustiças? A indigna-
ção necessária às lutas políticas certamente requer a dose de raiva que
marca e que marcou cada uma das diferentes expressões do movimento
feminista e de outros movimentos libertários.

A energia política e o engajamento envolvem fervor, é o oposto aos sig-


niicados convencionalmente associados à sabedoria. Ou, como diria
Woodward, envolvem uma “raiva sábia” (2003, p. 55) capaz de criar uma
retórica promotora do convencimento.

Em outras palavras, a raiva e a fúria necessárias à luta política icam


barradas quando o distanciamento, a neutralidade, a imparcialidade pró-
prias da sabedoria passam a ser uma característica da boa velhice, por-
que se impede aos velhos galvanizarem essas emoções e sentimentos na
luta por mudanças sociais.

São vários os autores que consideram que a intensidade dos sentimen-


tos e das emoções diminui ao longo do curso da vida e, como mostra
Woodward, é essa diminuição que cria condições para a sabedoria.

Certamente, um dos autores mais citados nessa direção é Erik Erikson


(1998), que considera que o crescimento psicológico ocorre por meio de
estágios e depende da interação da pessoa com o meio que a rodeia. Cada
um dos estágios é atravessado por uma crise entre uma vertente positiva
e outra negativa e, se as duas vertentes são necessárias, o importante é
que a vertente positiva se sobreponha. Os dois estágios mais avançados
da vida são tratados pela oposição “generatividade/estagnação” e “inte-
gridade/desespero”.

O primeiro deles é caracterizado pela necessidade de orientar a geração


mais jovem e investir na sociedade. É uma fase marcada pela airmação
pessoal no mundo do trabalho e da família. Há a possibilidade de o su-
jeito ser criativo e produtivo em várias áreas: produção de ideais, obras
de arte, participação política e cultural, educação e criação dos ilhos. A
vertente negativa leva o indivíduo à estagnação, à falta de relações ex-
teriores, à preocupação exclusiva com o seu bem-estar e com a posse de
bens materiais e ao egoísmo.

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Dossiê: Velhice, família, Estado e propostas políticas

O segundo – de fato o oitavo estágio –, ocorre depois dos 60 anos e envol-


ve a compreensão do passado vivido. É a hora do balanço, da avaliação e
do que se fez na vida. Quando se renega o passado, o indivíduo se sente
fracassado pela falta de poderes físicos, sociais e cognitivos, isso signiica
que esse estágio é mal-ultrapassado.

A integridade é o balanço positivo do curso da vida e esta satisfação pre-


para o indivíduo para aceitar a idade e as suas consequências. O deses-
pero, pelo contrário, é o sentimento nutrido por aqueles que consideram
a sua vida malsucedida, pouco produtiva e realizadora, que lamentam
as oportunidades perdidas e sentem que é tarde para se reconciliarem
consigo mesmo e corrigir os erros anteriores.

A indignação com os preconceitos e com as formas de discriminação vo-


calizada pelos velhos nem sempre é percebida como indicador de deses-
pero. Muitas vezes é vista como uma manifestação da irritabilidade tida
como uma característica do avanço da idade.

Outras vezes, a indignação é tida como uma consequência de uma vida


mal-administrada. Em meio às tão apregoadas vantagens que o enve-
lhecimento traz, a raiva é tratada como um sintoma do consumidor que
falhou porque não soube se envolver em atividades motivadoras, não
soube adotar formas de consumo e estilos de vida adequados e que la-
menta então as oportunidades perdidas.

O mais frequente, no entanto, é desmerecer a crítica social como um si-


nal da depressão e que, portanto, precisa ser combatido com remédios
adequados capazes de restabelecer o equilíbrio que se imagina próprio
da velhice esperada e que pode ser facilmente reconquistado com a
medicalização.

O desinteresse das feministas pela velhice tem sido explicado pelo medo
de envelhecer e pela repulsa ao corpo envelhecido, próprio do sexismo
que marca as sociedades de consumo na sua gloriicação da juventude e
na destituição que se opera do poder dos velhos.

É, no entanto, preciso reconhecer que as imagens descritas nesse artigo,


em seu empenho de transformar, sobretudo a velhice feminina, em uma
experiência gratiicante e prestigiosa, engrossam a distância entre a luta
contra a discriminação por idade e outros movimentos empenhados no

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Feminismo e velhice

combate às formas de opressão, emperrando o que poderia ser uma raiva


sábia, capaz de promover articulações políticas, em particular quando
imbuída da autoridade moral de homens e mulheres mais velhos.

Notas

1 Desenvolvo essas questões no dossiê “Gênero e gerações” publicado nos


Cadernos Pagu (DEBERT, 1999a).

2 Sobre o tratamento dado pela gerontologia e pela sexologia à sexualidade na


velhice, ver Debert e Brigeiro (2012).

3 É uma convenção internacional que nos países em desenvolvimento a velhice


teria início a partir dos 60 anos.

4 Sobre os velhos na propaganda, ver Debert (2003).

5 Desenvolvo esse tema de maneira mais demorada em Debert (1999).

6 Para uma discussão da hipocrisia que tem caracterizado o modo como a


família passa a ser responsabilizada pelos cuidados da velhice e a maneira com
que um consenso entre os gerontólogos é criado, ver Debert e Simões (2006,
2011).

Sinais Sociais | Rio de Janeiro | v.8 n. 22 | p. 9-86 | maio-ago. 2013 35


Dossiê: Velhice, família, Estado e propostas políticas

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Entre o Estado, as famílias e o
mercado

Carlos Eugênio Soares de Lemos

39
Carlos Eugênio Soares de Lemos
Doutor em Ciências Humanas (Sociologia) pelo Instituto
de Filosoia e Ciências Sociais da Universidade Federal
do Rio de Janeiro (IFCS/UFRJ), professor adjunto da
Universidade Federal Fluminense (UFF) e coordenador
do Programa Universidade para Terceira Idade (Uniti), do
Polo Universitário de Campos dos Goytacazes (PUCG),
desenvolve trabalhos que relacionam temas como família,
gerações, memória, discurso e envelhecimento. Os artigos
“A sociologia da vida cotidiana e a universidade para a
terceira idade: uma experiência de campo de estágio para
o ensino de Ciências Sociais”, publicado no livro Dilemas e
perspectivas da sociologia na educação básica, e “Oicina
de educação, memória, esquecimento e jogos lúdicos para
a terceira idade”, na Revista Ciência em Extensão, são suas
publicações recentes.

40
Entre o Estado, as famílias e o mercado

Resumo
Este artigo problematiza as relações entre a solidariedade pública e
privada, de modo a evidenciar que a precariedade das políticas de
assistência ao idoso dependente é minimizada pela centralidade da
ideia de ingratidão familiar, promovida pela criminalização do aban-
dono e da negligência presente no Estatuto do Idoso. A relação entre
as formas da lei e as práticas sociais está colocada em questão, pois,
partindo de um modelo idealizado de família, a legislação desconsidera
a pluralidade das conigurações existentes. Nesses termos, no âmbito
do Ministério Público Estadual, foram analisados doze processos que
tratavam de situações de abandono e negligência envolvendo os idosos
e os seus familiares. Dos casos pesquisados, foram escolhidos quatro
para uma análise qualitativa das soluções encontradas, respondendo
às demandas das famílias em situação de precariedade.

Palavras-chave: Velhice. Negligência. Abandono. Criminalização. Família.

Abstract
This article discusses the relationship between public and private solidarity,
in order to highlight the precariousness of assistance policies to the dependent
elderly, which is minimized by the central idea of ingratitude from family,
caused by the criminalization of abandonment and negligence contained in the
Statute of the Elderly. On the other hand, the relationship between the law and
social practices is also questioned, since, from an idealized model of family, the
legislation ignores the plurality of current conigurations. Under these terms,
in the framework of the Public Prosecutor’s Ofice, twelve cases that dealt with
situations of neglect involving the elderly and their families were analyzed.
Among the cases studied, four were chosen for a qualitative analysis of the
solutions given to answer the demands of families in a precarious situation.

Keywords: Aging, Neglect. Abandonment. Criminalization. Family.

Sinais Sociais | Rio de Janeiro | v.8 n. 22 | p. 9-86 | maio-ago 2013 41


Dossiê: Velhice, família, Estado e propostas políticas

Introdução

A ilha abandonou a mãe no hospital. Nós fomos avisados e a mãe foi


abrigada no asilo, que é a última opção. A gente não ica colocando em
asilo como primeira opção. Ela não tinha pra onde ir, com uma fratura
no fêmur. O que nós izemos? Intimamos a ilha. A ilha não veio. Fomos
atrás da ilha. A idosa começou a entrar num processo de depressão: “O
Ministério Público me prendeu no asilo.” Apesar de a assistente social do
asilo ter explicado. Todo mundo ligando pra cá: “Dona fulana quer ir para
casa, doutor. Faz o quê?”. “Ela não tem casa pra ir, ela não está presa” –
respondo. “Mas ela está falando que o senhor prendeu ela aqui.” O asilo
pode levá-la embora, mas pra onde você vai levar ela? Ela não tem casa.
Aí achamos a ilha, convencemos ela a nos acompanhar. Eu mandei o
carro pra isso, levamos a ilha no asilo pra conversar com a mãe, pra falar
com a mãe que ela ia buscá-la, que a mãe não estava presa. Falamos com
ela, pedimos apenas uma veriicação de onde ela estava morando, se ti-
nha condições da mãe ir morar com ela e deferir lá a reinserção familiar.
Na hora de ir para casa... Cadê a ilha? Sumiu de novo, não estava mais
aonde a gente achou. A mãe está lá deinhando, achando... A ilha que
sumiu, ela acha que a gente a prendeu. Ela não tem pra onde voltar. Como
falar uma realidade dessas para aquela senhora? Aí você ica naquela,
você chega pra ela e diz “sua ilha largou a senhora aqui”. Como você fala
isso? Primeiro, ela pode não acreditar no que você está falando. Segundo,
ela pode entrar numa depressão maior ainda. E ela está deinhando, essa
senhora. O que a gente vai fazer? Eu peço à assistente social pra conver-
sar com ela. O que ela quer não posso dar, porque não tem pra onde levá-
la. Ela ainda não percebeu que a ilha a abandonou e sumiu.1

Na Constituição Federal de 1988, a família é apresentada como a base


fundamental da sociedade e a promotora da dignidade humana de todos
os seus membros. O Estatuto do Idoso de 1992, embora reconheça de
forma genérica o compromisso da sociedade e do poder público, também
indica a família como a primeira grande responsável na transferência de
apoio aos idosos dependentes (BOAS, 2005). Por sua vez, o Código Civil de
2002 possibilita a inferência de que a função da família seja a proteção
dos seus membros, principalmente daqueles socialmente mais frágeis
(ZARIAS, 2010). Enim, nota-se que, nesses registros jurídicos citados, a
ideia da família como segurança parece estar de acordo com certo con-
senso moral que norteia as representações das pessoas sobre o papel
desta instituição, avaliada como mais eicaz do que qualquer outra na
transferência de apoio aos seus membros (SARTI, 2004; ALMEIDA, 2007).

42 Sinais Sociais | Rio de Janeiro | v.8 n. 22 | p. 9-86 | maio-ago. 2013


Entre o Estado, as famílias e o mercado

Neste artigo, a família é abordada como uma relação que busca o funda-
mento de sua existência na lógica da reciprocidade e na narrativa que
produz sobre o seu próprio curso de vida (SARTI, 2004). Assim, a ideia de
“dar, receber e retribuir” está no horizonte “moral” que serve de referên-
cia para as falas dos entrevistados e para a análise dos relatos presen-
tes nos processos do Ministério Público Estadual (CAILLÉ, 2002). Porém, é
bom destacar que a perspectiva da reciprocidade não traz em si apenas
a ideia de equilíbrio, mas também comporta a dimensão conlituosa das
diferenças de poder relacionadas aos mais diversos papeis que o indi-
víduo assume na realidade social e, como não poderia deixar de ser, no
interior da família. Isso signiica dizer que as relações entre pais, ilhos,
irmãos podem ser muito tumultuadas ao longo do curso de vida.

Não há, neste artigo, a intenção de uma abordagem das matrizes expli-
cativas da construção desse “consenso” sobre a ideia de segurança da
família e de condenação da ingratidão. Esse termo é deinido aqui como
a falta de reconhecimento por uma graça, um bem recebido ou um esfor-
ço feito por alguém em favor de outros. A gratidão, por sua vez, pode ser
considerada um sentimento de singular importância para a estabilidade
da vida social, tendo em vista que:

O amor ou a cobiça, a obediência ou o ódio, a sociabilidade ou a ambição


podem surgir a partir de um ato de uma pessoa para outra: o espírito
criativo geralmente não se esgota no ato, mas, de alguma maneira segue
adiante, na situação sociológica criada por eles. A gratidão possui uma
persistência irme no sentido de sobrevivência de um ideal de relação,
mesmo depois de tê-la deixado parada há muito tempo, e o ato de dar e
receber há muito tempo concluído (SIMMEL, 1907, p. 789).

Portanto, tendo como referência a ideia de ingratidão, é importante perce-


ber as tensões por trás dos silêncios que a criminalização da negligência
e do abandono produz. Estas duas categorias foram deinidas conforme
a Política Nacional de Redução da Morbimortalidade por Acidentes e Vio-
lências. Desse modo, o abandono é designado como “a ausência ou de-
serção, por parte do responsável, dos cuidados necessários às vítimas, ao
qual caberia prover custódia física ou cuidado”. E a negligência, por sua
vez, como “a recusa, omissão ou fracasso por parte do responsável no
cuidado com a vítima” (BRASIL, 2001a).

Em tese, a legislação busca assegurar ao idoso o im da situação de de-


samparo, o resgate da dignidade e, certamente, a melhoria de suas con-

Sinais Sociais | Rio de Janeiro | v.8 n. 22 | p. 9-86 | maio-ago. 2013 43


Dossiê: Velhice, família, Estado e propostas políticas

dições de existência. Entretanto, no ato de criminalizar a família, o poder


público desconsidera que uma coniguração social deva ser pensada em
sua interdependência com outras instâncias e condicionada pelo seu
próprio curso de vida. Em geral, o que tem acontecido é o seguinte:

A lógica de atendimento dos serviços, geralmente, está orientada para as


famílias que por falimento ou pobreza falharam na responsabilidade de
cuidado e proteção de seus membros. Nesta perspectiva, os interesses,
tanto de natureza política como sociocultural, recaem sobre as formas
diagnosticadas como marginais ou patológicas, o que justiica a concentra-
ção dos esforços em procedimentos terapêuticos de intervenção (MIOTO,
2004, p. 7).

O que se pretende neste artigo é problematizar a transferência de apoio


por parte do poder público2 às famílias pobres e a seus idosos, de modo a
perceber em que medida a precariedade dessa solidariedade é silenciada
pela sobreposição da ideia de ingratidão que acompanha as denúncias de
negligência e abandono nos processos do Ministério Público Estadual. Ao
mesmo tempo em que garante juridicamente os direitos básicos do idoso,
a legislação aponta para uma concepção privatista do processo de enve-
lhecimento quando, em termos práticos, se aproveita do consenso sobre a
ideia de gratidão como “horizonte moral da humanidade” (SIMMEL, 1907,
p. 788) para colocar sobre a família a responsabilidade de resolver os pro-
blemas que estão além de suas condições de administrá-los sozinha.

1 Os caminhos percorridos

O município de Campos dos Goytacazes, centro produtor de açúcar e pe-


tróleo, situado no norte do Estado do Rio de Janeiro, possui aproximada-
mente 463 mil habitantes e dentre esses cerca de 60 mil são idosos (IBGE,
2010). Trata-se de uma coniguração singular, mas por mais que sejam
assinaladas suas particularidades, não há como negar que nesse territó-
rio estão impressas as marcas das contradições dos conjuntos maiores
dos quais ele faz parte e dos quais também constitui um exemplo. Ele
atrai as demais cidades do entorno devido aos recursos dos royalties do
petróleo,3 a importância política, a oferta de serviços e pelas tradições
históricas que sustenta.

Das instituições que compõem a rede de assistência à terceira idade que


existe nesse município, o Ministério Público Estadual tem se mostrado

44 Sinais Sociais | Rio de Janeiro | v.8 n. 22 | p. 9-86 | maio-ago. 2013


Entre o Estado, as famílias e o mercado

uma das mais abertas para parcerias e uma das mais interessadas na
análise de sua relação com os usuários em uma perspectiva temporal.
Ainal, cabe a ele adotar as medidas administrativas e judiciais na ten-
tativa de protegê-los, conforme prescreve a legislação, a exemplo do que
propõe o Estatuto do Idoso. Para tanto, empreende sindicâncias e faz uso
do inquérito civil e da requisição de inquérito policial (BOAS, 2005). As-
sim, várias outras instâncias, como asilos e hospitais, recorrem ao Minis-
tério Público Estadual quando se encontram diante de uma situação de
violência contra o idoso.

Para o desenvolvimento deste artigo, foram selecionados doze processos


do Ministério Público Estadual, entre os anos 2006 e 2008. A partir deles,
realizou-se a análise de conteúdo dos relatos sociais de inquéritos civis
envolvendo acusações de abandono e negligência nos quais membros da
família dos idosos iguravam como responsáveis. Ao utilizar categorias
predeinidas (denunciante, denunciado, descrição do fato etc.) de acordo
com os objetivos estabelecidos, procurou-se designar um quadro compa-
rativo em que se pudesse ter uma visão geral das conigurações familia-
res em questão e do desdobramento do processo no que diz respeito à
solução do litígio. Para tanto, escolhemos quatro casos a título de ilustra-
ção. Cabe destacar que os nomes dos envolvidos não são citados para a
proteção jurídica dos mesmos.

Dos processos analisados, foram escolhidos aqueles em que os idosos re-


cebem apenas um salário mínimo e a família é caracterizada como pobre.
A deinição de pobreza adotada tem como referência as dimensões de ca-
racterização do Índice de Desenvolvimento da Família (IDF), com base na
Pesquisa Nacional por Amostra de Domicílios (Pnad), realizada pelo Ins-
tituto de Pesquisa Econômica Aplicada (Ipea). Assim, foram levados em
consideração três critérios passíveis de serem observados ou inferidos no
decorrer da análise: a vulnerabilidade, destacada a presença de sujeitos
que concorrem para ampliação das necessidades da família, como nos
exemplos de idosos dependentes e crianças; a disponibilidade de recur-
sos, relacionada à renda per capita de cada grupo doméstico; e condições
habitacionais, destacando o vínculo estreito dessas com as condições de
saúde.4 A maior parte dos indivíduos envolvidos no processo enquadra-se
nas faixas D e E, segundo a Pesquisa Nacional de Amostra por Domicílio
de 2008, do Instituto Brasileiro de Geograia e Estatística (IBGE).

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Dossiê: Velhice, família, Estado e propostas políticas

Depois da análise documental foram realizadas entrevistas informais


e formais semiestruturadas com os funcionários do Ministério Públi-
co Estadual, ou seja, assistentes sociais, psicólogos e o promotor. Nas
entrevistas, os cuidados tiveram que ser redobrados, pois, no primeiro
momento, por ocuparem cargos de coniança ou por segredo de justi-
ça, certos entrevistados não puderam pormenorizar alguns dos casos
relatados. Assim, as diiculdades encontradas não estiveram restritas
às questões subjetivas de como cada proissional encarava a situação
vivenciada, mas também às limitações impostas pelos códigos de ética
das proissões.

Enim, a investigação que deu origem a esse artigo contou com a autoriza-
ção do Ministério Público Estadual, o aceite de participação dos entrevis-
tados e teve a aprovação do Colegiado de Pesquisa do Polo Universitário
de Campos dos Goytacazes e pelo Colegiado da Universidade para a Ter-
ceira Idade, da Universidade Federal Fluminense, sendo autorizada pelo
protocolo 001-2011.5

2 Os casos relatados nos processos

A violência praticada contra o idoso nos centros urbanos é um tema que


vem sendo investigado nos últimos anos (SARAIVA; COUTINHO, 2012;
DESLANDES; SOUZA, 2010; PAIXÃO JUNIOR; REICHENHEIM, 2006; MINAYO,
2003) e tem apresentado certas regularidades em sua tipologia, como nas
que são apontadas pelo Gráico 1, sobre o número de denúncias ocorridas
nos primeiros meses do ano 2010 para a cidade aqui retratada. Deve-se
considerar que as situações discriminadas se apresentam combinadas
e nem sempre é possível distinguir quando começa uma e quando ter-
mina a outra. De qualquer forma, é um indicativo do que chega ao co-
nhecimento do poder público local, tendo em vista que os proissionais
são unânimes em airmar que a maior parte das agressões não chega ao
conhecimento das autoridades. Essa situação ocorre em função de várias
razões, sendo a mais importante o fato de o agressor ser integrante da
família da vítima e, em diversos casos, ambos morarem na mesma casa
ou se visitarem com frequência.

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Entre o Estado, as famílias e o mercado

Gráico 1: Número de registro de casos de violência praticada contra idosos, jan./


março de 2010, em Campos dos Goytacazes

30
25
20
15
10
5
0
no c ia ísic
a ica ro es c ia
do ên f óg ce i ssõ ên
ab
an g lig ção si co l in an
ag
re g lig
to ne co a ia p us of ne
au c ab
lên
v io

Fonte: Núcleo de Violência Contra os Idosos. Centro Dia/2010.


Conselho Municipal do Idoso (LEMOS, 2008)

De modo geral, os casos denunciados de negligência e abandono são re-


solvidos sob a alçada do Ministério Público Estadual. Muito raramente
os processos passam do inquérito administrativo, pois, na audiência em
que os denunciados são reunidos para discutir a situação de desamparo
do idoso, quase sempre se chega a um acordo de como reverter o quadro
em questão. Embora os casos não sejam encaminhados para a justiça
criminal, a ideia de que a negligência e o abandono sejam considerados
um ato criminoso paira sobre o horizonte das representações dos envol-
vidos no litígio.

Nos relatos sociais dos processos analisados, a ideia da reciprocidade


como fundamento da vida familiar servindo de amparo para o idoso
nessa fase da vida é um ponto de acordo entre os litigantes, promotor,
psicólogos e assistentes sociais. Não obstante, na perspectiva dos denun-
ciantes, os inquiridos se encontram ali justamente por não correspon-
derem à expectativa de tal transferência de apoio aos seus pais, tios ou
familiares. Tanto é que a negligência igura como uma das práticas mais
denunciadas nas instituições que prestam algum tipo de assistência ao
idoso semidependente ou dependente.6

Dos quatro inquéritos analisados, pode-se observar que em três deles as


vítimas têm idade acima de setenta anos, os denunciantes e denuncia-
dos são os próprios ilhos, o fato denunciado segue certo padrão em que
os idosos se encontram doentes e apresentam diiculdades para a reali-
zação das atividades da vida diária e reclamam pela ausência de alguns
dos seus ilhos, de acordo com o apontado a seguir:

Sinais Sociais | Rio de Janeiro | v.8 n. 22 | p. 9-86 | maio-ago. 2013 47


Dossiê: Velhice, família, Estado e propostas políticas

Quadro 1: Descrição dos quatro casos analisados

Caso Denunciante Denunciado (s) Vítima (s) Descrição do fato

Sete dos 11 irmãos (duas


Idosa de 81 anos, viúva, Idosa não recebia apoio,
Mulher de 50 anos, filha da mulheres e nove homens,
1 acamada e cega, pensionista vivendo em abandono afetivo
“vítima”. idades não fornecidas); filhos
de um salário mínimo. e material.
naturais.
Idoso de 64 anos, viúvo,
hipertenso e com sequelas de
AVC, sem proventos. Idosos não recebiam apoio
Homem de 46 anos, filho e Três irmãos (duas mulheres e Idosa de 67 anos (irmã do material e afetivo, ficando
2
sobrinho das vítimas. um homem), filhos naturais. idoso), solteira, sem filhos, sozinhos a maior parte do
diabética e com problemas tempo.
psiquiátricos, pensionista de
um salário mínimo.
Idosa de 84 anos, viúva e Idosa é negligenciada e
Homem de 56 anos, filho da
3 Três irmãos (todos homens). solitária, pensionista de um abandonada afetivamente
vítima.
salário mínimo. pelos filhos.
Idosa não recebia apoio
Idosa de 92 anos, saúde
Sete dos oito filhos (três material e afetivo, ficando
4 Anônima. precária e pensionista de um
mulheres e quatro homens). sozinha a maior parte do
salário mínimo.
tempo.

Fonte: Inquéritos do Ministério Público Estadual.7

Os denunciantes partem de um consenso sobre a segurança da família


e por isso acionam a justiça. É uma denúncia que se origina no interior
da rede de convivência, decorrente de um embate entre aqueles que se
conhecem e fazem exigências morais entre si. Assim, um irmão acusa
o outro quando acredita que este tem “condições” de transferir apoio e
simplesmente não o faz. Em três dos casos analisados, os ilhos denun-
ciantes justiicam o teor de sua acusação e os denunciados se defendem
conforme o esquema seguinte:

Quadro 2: Justificativas dos denunciantes e dos denunciados

Caso Justificativa do denunciante Justificativa do (s) denunciado (s)

Sobrecarga financeira e de cuidado da idosa para quatro dos Não tinham como ajudar por terem a sua própria família, falta de
1
11 irmãos. tempo e dinheiro.
Ele, divorciado, pai de dois filhos, cumprindo dupla jornada de Desmentiram o irmão denunciante.
2 trabalho, Aceitavam cuidar do pai, mas não da tia com a qual não se
arcava com todas as despesas da casa. davam bem.
Os irmãos não apareciam para visitar a mãe e não ajudavam Não tinham como ajudar por terem a sua própria família, falta de
3
financeiramente. tempo e dinheiro.

A idosa tinha oito filhos e uma pensão. Apesar disso vivia uma Acusações mútuas e o argumento de que tinham a sua própria
4
vida de abandono e privação. família.

Fonte: Inquéritos do Ministério Público Estadual

Como é possível inferir das justiicativas dos envolvidos, a discussão se dá em


torno da situação de abandono do idoso e de quem deve se responsabilizar pe-

48 Sinais Sociais | Rio de Janeiro | v.8 n. 22 | p. 9-86 | maio-ago. 2013


Entre o Estado, as famílias e o mercado

los cuidados com ele. Em três dos quatro processos, o encargo ica sob a
responsabilidade de uma pessoa apenas. Nota-se que é do conhecimento
de todos os outros que um irmão estava cuidando sozinho do pai/mãe/
tia. Antes da denúncia dos declarantes e da notiicação da promotoria,
conforme os autos dos processos, os irmãos acusados mostravam-se
“despreocupados” em relação às condições vivenciadas pelos pais, visto
que, há tempos, por razões diversas (trabalho, doença, viagem, entre ou-
tras) não faziam visitas aos mesmos.

Na visita social realizada ao domicílio dos idosos pelos assistentes so-


ciais do Ministério Público, veriicou-se que em todos os casos analisa-
dos a denúncia correspondia à realidade encontrada. Contudo, temos a
seguinte análise da proissional que fez a visita:

Acredito que a família seja responsável pelo cuidado de seus membros,


devendo assisti-los, porém, é preciso que tenha condições básicas de in-
serção social e de cidadania para que possa cumprir o papel que lhe é
atribuído social e legalmente. Essa é a parcela da esfera pública. É neces-
sário o investimento em projetos como o Centro Dia,8 hospitais, centros
de convivência, treinamento intensivo de cuidadores de idosos.9

Estar em companhia dos familiares não garante a eles, necessariamente,


o conforto e o apoio para a realização de suas atividades básicas da vida
diária. Em um dos processos, a idosa se encontrava em boas condições de
moradia, em outro em condições razoáveis e em dois dos casos os idosos
estavam em condições impróprias, com fome, em meio à sujeira, com
falta de medicação e sem assistência, conforme o resumo do Quadro 3:

Quadro 3: Resumo das condições dos idosos

Caso Visita social do Ministério Público Estadual

A idosa se encontrava lúcida e as condições em que vivia eram razoáveis. Contudo, dormia na sala em um colchonete e no telhado
tinha casas de marimbondo. Por ter problemas de locomoção e cegueira, fazia suas necessidades em um balde colocado ao lado da
1
cama. Reclamava muito, pois queria voltar para casa e não queria ouvir reclamações dos filhos sobre o trabalho que ela dava. A filha
denunciante administrava a pensão.
A casa estava em péssimas condições de higiene, havia comida destampada, restos pela mesa e pelo chão, as paredes sem reboco
e um forte cheiro de urina que exalava por todo o recinto. O idoso, apesar de não poder se locomover, não era senil, pelo contrário,
2
mostrava-se bastante lúcido. A idosa aparentava ter comprometimento psiquiátrico, falava de maneira compulsiva e incoerente.
O filho denunciante administrava a pensão dos dois.

3 A casa foi encontrada em boas condições de higiene, a idosa bem cuidada e lúcida. O filho denunciante administrava a pensão dela.

A idosa foi encontrada sozinha, em péssimas condições de higiene e sem alimentos em casa. Estava doente e com fome, tendo
apenas uma garrafa de água na geladeira. Havia poucos móveis na casa e a suspeita de que a nora vinha vendendo-os para
4
benefício próprio. O imóvel era antigo, de cinco cômodos, telha de amianto, sem iluminação adequada e com parca ventilação.
A idosa dormia em uma cama de solteiro localizada na sala. Uma das filhas administrava a pensão da idosa.

Fonte: Inquéritos do Ministério Público Estadual.

Sinais Sociais | Rio de Janeiro | v.8 n. 22 | p. 9-86 | maio-ago. 2013 49


Dossiê: Velhice, família, Estado e propostas políticas

Nos depoimentos e discussões dos envolvidos é possível inferir o reco-


nhecimento de uma dívida moral com os pais. Tanto é assim que em
nenhum dos processos é sugerido publicamente a possibilidade de colo-
cá-los em um asilo. Em três dos casos, a solução foi o revezamento dos
cuidados entre os ilhos. Em um deles a contratação de uma cuidadora
e em outro a frequência ao Centro Dia. Em todos os casos, os ilhos se
colocam contrários ao asilamento e em um deles o denunciante sequer
aceita a ideia de uma cuidadora, pois, em sua opinião, os vários ilhos
poderiam cumprir essa função. Donde se pode inferir a pressuposição da
existência de uma rede que, de algum modo, deveria estar funcionando
e no entanto até aquele momento não estava, como apontam os dados
a seguir:

Quadro 4: Soluções encontradas e andamento dos processos

Caso Apoio do poder público Solução encontrada Desdobramentos

Três irmãs se revezariam no cuidado da Retorno do denunciante ao Ministério


mãe ao longo da semana. No final da Público Estadual, pois dois dos
1 Fornecimento de fraldas.
semana teriam uma cuidadora. Todos irmãos deixaram de fazer a visita e de
contribuem com uma quantia mensal. contribuírem com dinheiro.
Ficou estabelecido que durante o dia o pai Retorno do denunciante ao Ministério
frequentaria o Centro Dia e as irmãs se Público Estadual para reclamar da forma
2 Oferta de uma vaga no Centro- Dia. revezariam para cuidarem dele no restante negligente com que duas das irmãs
do tempo. Observação: a tia faleceu no vinham fazendo as tarefas que lhes foram
decorrer do processo. designadas.
Acordo informal malsucedido. Por isso foi
preciso a mediação do Ministério Público Em um primeiro momento, o denunciante
Estadual. Decidiu-se que os irmãos tentou um acordo informal. Como os
3 Nenhum foi registrado. prestariam auxílio financeiro à mãe. No irmãos não se comprometeram, ele
dia em que o denunciante não pudesse retornou ao Ministério Público Estadual
cuidar da mãe, os outros irmãos se para formalizar a denúncia.
encarregariam de fazê-lo.
Contratação de uma cuidadora com
despesas a serem divididas entre os
4 Nenhum foi registrado. irmãos. Esquema de revezamento de Não foi registrado retorno.
cuidado da mãe entre todos nos fins de
semana, principalmente as irmãs.

Fonte: Inquéritos do Ministério Público Estadual.

Nota-se que em nenhum momento os envolvidos fazem alusão ao papel


que caberia ao poder público em lhes fornecer alguma ajuda nos cuida-
dos com os seus idosos dependentes. Nesses termos, é possível perceber
que, tanto antes quanto depois da resolução dos casos, a participação do
poder público só foi signiicante em um dos casos. Nos outros, a solução
encontrada pelos envolvidos foi a transferência de apoio dos familiares
e o uso dos parcos recursos existentes para contratar o serviço de um
cuidador formal no mercado. No que se refere aos desdobramentos, os

50 Sinais Sociais | Rio de Janeiro | v.8 n. 22 | p. 9-86 | maio-ago. 2013


Entre o Estado, as famílias e o mercado

denunciantes icaram encarregados de entrar em contato com o Ministé-


rio Público Estadual para informar sobre o cumprimento do acordo.

No único caso em que o poder público atua diretamente, oferece-se uma


vaga no Centro Dia. Trata-se de um centro geriátrico público que, de acor-
do com o proposto pelo Estatuto do Idoso, busca resgatar os vínculos dos
usuários com os seus familiares, de forma que a situação de abandono
não chegue a ocorrer. Nesse sentido, oferece uma rede de serviços prois-
sionais para recuperar a saúde do idoso e diminuir o seu nível de depen-
dência. Esses serviços são oferecidos em horários diferenciados e cada
idoso tem o tratamento personalizado de acordo com o seu quadro.

O atendimento é temporário, pois assim que o idoso se recupera deve


dar lugar a outros que também precisam. Mesmo assim, o ambulató-
rio geriátrico continua a atender a todos, tanto aos usuários do projeto
quanto aos não usuários. Diante do apelido de “creche dos idosos”, os
proissionais entrevistados percebem a instituição mais como um cen-
tro de reabilitação e resgate da autonomia do que uma mera instituição
de cuidado formal do usuário. A preocupação que parece evidente é a de
não ser identiicada com uma espécie de asilo diurno.

O Centro Dia funciona das 7h às 19h, de segunda a sexta-feira. Não há


funcionamento nos inais de semana e nos feriados, o que casa com a
ideia de que nesses dias os idosos estarão em casa, acompanhados dos
seus familiares. Os usuários do programa têm direito a três refeições, o
café da manhã às 8h, o almoço às 12h e o lanche às 15h30. Os horários
podem ser modiicados de acordo com as recomendações médicas. Um
veículo da prefeitura vai buscá-los em casa pela manhã e, quando chega
à noite, leva-os de volta.

Contudo, dentro de uma cidade em que a população de idosos soma


mais de 40 mil pessoas (IBGE, 2010), o Programa tem espaço para atender
a apenas 26 pessoas. O que torna pertinente perguntar se em uma pers-
pectiva de política social o efeito é tão abrangente quanto é propagado
pelo poder público municipal.

3 Discussão

A importância da família na transferência de apoio aos idosos depen-


dentes é fato incontestável no atual estágio civilizatório. Essa perspectiva

Sinais Sociais | Rio de Janeiro | v.8 n. 22 | p. 9-86 | maio-ago. 2013 51


Dossiê: Velhice, família, Estado e propostas políticas

está em sintonia com os trabalhos que partem da teoria do intercâmbio


social, abordagem que considera que o indivíduo, no decorrer da vida,
assume tanto o papel de provedor quanto o de receptor de apoio, ou seja,
é o fundamento da interação social (SAAD, 1999). Porém, é bom ressaltar
que nem todos os idosos dependentes possuem família e, no caso de
possuírem, nem todas as famílias, ainda que extensas, têm como arcar
sozinhas com eles. Ainda assim,

[...] temos observado que, à medida que o Estado restringe sua partici-
pação na “solução” de questões de determinados segmentos – como, por
exemplo, crianças, adolescentes, idosos, portadores de deiciências e pes-
soas com problemas crônicos de saúde – a família tem sido chamada a
preencher esta lacuna, sem receber dos poderes públicos a devida assis-
tência para tanto (GUEIROS, 2002, p. 102).

As carências dos familiares vão das questões afetivas às materiais, da


falta de tempo por causa das jornadas de trabalho ao desconhecimento
acerca das especiicidades que envolvem o envelhecimento de um ser
humano. Nos casos analisados, os irmãos dividiram entre si as respon-
sabilidades. No entanto, em um futuro próximo, com as transformações
ocorridas no número de ilhos do núcleo familiar, há de se perguntar se
essa rede de proteção poderá funcionar com o mínimo de eicácia.

Nos moldes como se apresenta no Estatuto do Idoso, a criminalização do


abandono soa como um encobrimento que desvia a atenção do aspecto
que deveria ser considerado crucial para a resolução do problema: uma
política consistente e concreta de apoio ao idoso em situação de depen-
dência, marcada pela ação combinada da família e do poder público. Essa
criminalização, quando desvinculada de uma política social sistemática,
mascara a falta de comprometimento efetivo do poder público com a
velhice fragilizada. O que não é uma novidade se for levada em conside-
ração a forma subsidiária com a qual o Estado vem tratando esse assunto
ao longo do século XX (MESTRINER, 2001).

Em boa parte dos inquéritos, veriicou-se que vários são os problemas


colocados pelos acusados para justiicar a não transferência de apoio
aos idosos. O primeiro deles é o de terem constituído a própria família e
esta já demandar muita dedicação. O segundo é de serem assalariados,
desempregados ou com empregos informais (“bicos”), não dispondo de
recursos extras que possam ser transferidos. O terceiro é de estarem com

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Entre o Estado, as famílias e o mercado

problemas de saúde, não possuírem condições físicas e psicológicas de


cuidarem de outra pessoa ou de realizarem visitas. E, por im, em quase
todos os casos, há o argumento de não terem uma boa relação com os
irmãos, principalmente com aqueles que “apanharam” para si a respon-
sabilidade de cuidarem dos pais.

Semana passada, tinha dez ilhos, situação de abandono com dez ilhos.
Alguma coisa está errada aí. Nós izemos essa audiência. Normalmen-
te, eles argumentam uma diiculdade própria, outras vezes que não têm
dinheiro. Às vezes são as diiculdades de trabalho, ou estão sem tempo.
Só que a gente percebe que quando chegam a minha frente, não têm
muito o que dizer... Na verdade pedem desculpa. Então, esse mês já ize-
mos umas três ou quatro audiências, em todas saíram acordos. Ninguém
partiu para brigar. Eu procuro conduzir de uma maneira pra não deixar
espaço pra bate-boca. Entre os irmãos, se você der margem, não sai acor-
do nenhum.10

De modo geral, o ilho que mora com o idoso ou próximo a ele, solteiro
ou separado, e principalmente mulher, se encarrega de cuidar dos pais.
Em todos os casos, ainda que haja a participação masculina, são as ilhas
e noras que se desdobram nos cuidados dos idosos dependentes. Nesses
termos, há uma sobrecarga para as mulheres, tendo em vista que a dedi-
cação aos estudos, ao trabalho e à busca da realização proissional levou
a mulher para o espaço público, restando-lhe pouco tempo para uma
obrigação que antes era considerada atribuição exclusivamente sua.

Se, por um lado, o idoso dependente funciona como uma diiculdade a


mais colocada para a realização do projeto pessoal do ilho, por outro
lado, nos casos em que os idosos gozam de autonomia, eles são um im-
portante apoio para a rotina da família. Há análises que demonstram o
aumento da situação de codependência (BERTUZZI; PASKULIN; MORAIS,
2012; SAAD, 1999), pois a aposentadoria dos pais é uma renda importante
para o orçamento familiar. Eles também exercem o papel de babá dos
netos para que os ilhos possam trabalhar, assim como também ofere-
cem apoio emocional nos momentos de fragilidade de outros membros
da família.

Destacam-se os casos daqueles idosos que mesmo doentes representam


uma fonte de renda para os seus familiares, como foi possível perceber
no acompanhamento de um dos casos analisados no Ministério Público
Estadual, não apresentado no quadro comparativo.

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Dossiê: Velhice, família, Estado e propostas políticas

O que se pode concluir da análise feita é que o idoso não é tão depen-
dente. Pelo contrário, com a crise econômica e o desemprego que têm
afetado sobremaneira a população adulta jovem, o seu papel tem sido
fundamental para o sustento das famílias, sem falar do apoio emocio-
nal que os dados aqui utilizados não permitem mensurar (CAMARANO;
GHAOURI, 1999, p. 304).

O problema do abandono e da negligência encontra-se inscrito justa-


mente na discussão das “obrigações” de reciprocidade que a intimidade
construída no curso de vida acarreta, dentro de um contexto marcado
pela predominância do que Velho (1999) chama de “individualismo ago-
nístico” ou que Singly (2007) aponta como “processo de individualiza-
ção”. Somada a isso, ainda há a diiculdade dos mais jovens entenderem
o envelhecimento por não terem uma base de experiência própria e,
também, pelo fato de que, de maneira geral, “o processo de envelheci-
mento produz uma mudança fundamental na posição de uma pessoa na
sociedade e, portanto, em todas as suas relações com os outros” (ELIAS,
2001, p. 83). Contudo, no que tange às relações de poder no interior da
família, deve-se levar em consideração o curso de vida das conigura-
ções analisadas.

A estrutura familiar não é um determinante da forma como se dá a soli-


citude, ou do modo das pessoas cuidarem de sua relação numa família.
Duas famílias com a mesma composição podem apresentar modos de
relacionamento completamente diferentes. O que conta, nesse caso, são
suas histórias, a classe social de pertencimento, a cultura familiar e sua
organização signiicativa do mundo (SZYMANSKI, 2002, p. 17).

Nos casos vistos nos inquéritos, alguns ilhos se ressentiam de que suas
relações com a família tinham sido tumultuadas ao longo da vida, sendo
que, de acordo com suas opiniões, os pais manifestavam claramente a
preferência por certos ilhos. E aqui reside um ângulo aparentemente
contraditório da questão. Se, por um lado, a desavença entre os irmãos
atrapalhava o funcionamento da rede, por outro lado, também possi-
bilitava a denúncia e o controle das ações entre eles, o que acabava
revertendo em busca de proteção para o idoso, já que a situação ganha-
va visibilidade.

A solidariedade intergeracional geralmente é pensada pelos envolvidos


a partir do curso de vida do idoso e da qualidade da rede que ele ajudou a
construir. Nesse sentido, entende-se o termo rede como “o conjunto

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Entre o Estado, as famílias e o mercado

das pessoas com quem o ato de manter relações de pessoa a pessoa, de


amizade ou de camaradagem, permite conservar e esperar coniança e
idelidade” (CAILLÉ, 2002, p. 65). Porém, essa esperança de coniança e i-
delidade não funciona de acordo com as expectativas alimentadas pelos
idosos que se descobrem em situação de desamparo. Ainda que as suas
falas não sejam o material prioritário deste artigo, nas oportunidades em
que foram registradas, deixaram transparecer uma mistura de profunda
tristeza e de sentimento de culpa pela ausência dos familiares.

Na perspectiva do poder público, quando ocorre o desamparo, indepen-


dente desse curso de vida, os elementos da rede devem ser chamados à
responsabilidade sob a ameaça de serem acusados de um crime. Levando
ao extremo o que propõe o Estatuto do Idoso, se a solidariedade à velhice
fragilizada não ocorre pelos caminhos da reciprocidade de suas intera-
ções, ela ocorrerá sob a batuta do dispositivo legal. Assim, o indivíduo
que se encontra em situação de abandono deve buscar nessa mesma
rede que lhe nega, ou que não pode lhe oferecer solidariedade, o amparo
que o poder público não disponibiliza de forma integral, muito embora
alguns serviços existam e se mostrem eicientes apesar da capacidade
limitada de atendimento, como é o caso do serviço social.

Diante da ausência de políticas de proteção social que deveriam ser im-


plantadas pela esfera pública, deparamos, no nosso cotidiano proissio-
nal, com a pressão para que encontremos junto à família respostas para
graves situações vividas pelos indivíduos que delas fazem parte. [...] Logo
entenderemos que esse núcleo familiar, por si só, não dispõe do básico
para promover a integração social e o desenvolvimento pessoal de seus
membros (GUEIROS, 2002, p. 119).

Existe na cidade aqui estudada um conjunto de instituições que pres-


tam algum tipo de assistência aos idosos semidependentes ou depen-
dentes. Em todas elas, a demanda pelos serviços supera a capacidade de
atendimento, como no exemplo do Centro Dia. Existem dois “asilos” que
não têm condições de atender a mais de 120 pessoas. E esse é um sério
problema que vem crescendo com o envelhecimento da população e as
mudanças nas conigurações familiares.

A maioria dos casos que chegam ao Ministério Público Estadual refere-


se a situações vividas por famílias pobres ou remediadas. A ausência
de uma estrutura pública de apoio torna ainda mais difícil o desaio da

Sinais Sociais | Rio de Janeiro | v.8 n. 22 | p. 9-86 | maio-ago. 2013 55


Dossiê: Velhice, família, Estado e propostas políticas

velhice dependente. Nota-se que os idosos são portadores de doenças


crônicas ou vivenciam algum tipo de situação em que as atividades fun-
cionais do dia a dia icam parcialmente comprometidas. De acordo com a
doença, demandam tratamentos sistemáticos, remédios caros, acompa-
nhamento médico, terapias físicas e cognitivas, entre outros. Esse desaio
pode ter um alto custo físico e emocional para a família. E o que mais
salta aos olhos é que não há quem cuide do cuidador informal de idosos.

A demanda dos idosos não é só de natureza material, a reclamação tam-


bém é por atenção e afeto. Assim, emergem algumas questões. Devem
ser processados os ilhos que abandonam afetivamente os seus pais
idosos dependentes? Caso a resposta seja sim, outro problema pode ser
levantado: em que medida um processo dessa natureza reverterá a situa-
ção de desafeto? Não tenderia a piorá-la?

Olha só que coisa esquisita. Como é que você resolve no Direito o que a
gente chama de “a obrigação de fazer”? A gente entra com uma ação con-
tra o ilho, ixa uma multa se ele não aparecer. O cara vai e diz “eu preiro
pagar a multa.” Isso só enfatiza o drama. A pessoa vai lá obrigada, já pen-
sou? Fica lá e... “Acabou? Então vou embora.” Ou então vai e ica quieta. É
um negócio que, sinceramente, é difícil, uma situação que o Direito não
resolve. Amor e afeto, o Direito não resolve.11

A legislação estabelece que, dentro de suas condições, o ilho é obrigado


a transferir apoio para os pais fragilizados. No entanto, como indica o
promotor, obrigá-lo a estar presente de boa vontade, cuidar do outro, dar
afeto, é algo que foge do controle do campo do Direito. Desse modo, con-
forme sugere Simmel (1907), nas relações que fogem à regulamentação
somente a gratidão pode responder com eicácia.

Mas existem numerosas relações para as quais o estatuto  jurídico não


ocorre, e o equivalente da dedicação não pode ser imputado. Aqui se en-
contra a gratidão para a representação do direito e do circuito, se não
de outras forças, de um grupo de interação: o equilíbrio entre o dar e o
receber entre as pessoas (SIMMEL, 1907, p. 786).

Nos casos analisados, as famílias são relativamente grandes, compostas


de quatro a onze irmãos. As conigurações e modelos de família no Brasil
vêm passando por signiicativa transformação nas últimas décadas. En-
tretanto, a legislação ainda opera com uma concepção de família natural
e universal do passado, principalmente no que diz respeito a sua con-

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Entre o Estado, as famílias e o mercado

iguração e extensão (DEBERT; SIMÕES, 2006). Nesse sentido, para uma


avaliação mais próxima da dinâmica das práticas sociais dos envolvidos
seria necessário que a ordem legal partisse de uma concepção mais plu-
ral de família.

Pensar a família como uma realidade que se constitui pelo discurso so-
bre si própria, internalizado pelos sujeitos, é uma forma de buscar uma
deinição que não se antecipe à realidade da família, mas que nos permi-
ta pensar como a família constrói, ela mesma, sua noção de si, supondo
evidentemente que isso se faz em cultura, dentro, portanto, dos parâme-
tros coletivos do tempo e do espaço em que vivemos, que ordenam as
relações de parentesco (entre irmãos, entre pais e ilhos e entre marido e
mulher (SARTI, 2004, p. 14).

Muito embora, as orientações da Constituição Federal de 1988 e do Esta-


tuto do Idoso permitam forçar a aproximação dos ilhos, sempre icam as
questões: concorreria para a dignidade do idoso a presença de um ilho
que deixa transparecer a sua insatisfação por estar sendo obrigado a visi-
tá-lo? Esse fato não aumentaria ainda mais o drama da rejeição? Deveria
o idoso decidir? O que demonstra que a positividade da lei esbarra na
dinâmica das interações sociais. Assim, existem esferas das interações
que o Direito, por mais que se proponha, não poderá abarcar jamais.

Considerações finais

Os signiicados da negligência e do abandono de idosos são resultados


das experiências de interação vivenciadas pelos indivíduos e das respec-
tivas interpretações que estes fazem dos fatos em função dos seus in-
teresses e dos seus valores. No entanto, tais signiicados também estão
circunscritos pelas dimensões materiais e práticas normativas da vida
social, que procuram deinir previamente quais são os limites e os sen-
tidos do que cada um deve entender quando se pronunciam as palavras
negligência e abandono. Tanto é que, quando confrontadas as interpre-
tações dos agentes sociais envolvidos e as práticas normativas legais do
poder público, percebe-se a diiculdade de se chegar a um acordo sobre
a natureza sociológica e jurídica do abandono e também da forma de se
proceder em relação à situação para resolvê-la.

A Constituição Federal de 1988 estabelece a família como a pedra funda-


mental da sociedade e coloca, como função do poder público, a tarefa de

Sinais Sociais | Rio de Janeiro | v.8 n. 22 | p. 9-86 | maio-ago. 2013 57


Dossiê: Velhice, família, Estado e propostas políticas

protegê-la e de promover o seu bem-estar. Essa proteção e promoção são


asseguradas a cada um dos seus membros individualmente, de forma a
coibir a violência nas interações estabelecidas e contribuir para o desen-
volvimento equilibrado da instituição. Se, por um lado, ao criminalizar a
negligência e o abandono, o objetivo primeiro é o de proteger a dignidade
de um de seus membros, no caso o idoso, por outro lado, quando não se
oferece uma estrutura de apoio para que se possa enfrentar o desaio
da velhice dependente, o próprio poder público promove um abandono
ainda maior: o da família que realmente não tem como lidar com tal
dependência.

A criminalização do abandono é um processo paradoxal para o idoso de-


pendente, quando os dois níveis de garantias estão desvinculados: os
aspectos jurídicos que defendem a dignidade e as políticas sociais efeti-
vas que viabilizam o exercício da mesma. Tendo em vista que, nos casos
das famílias de baixa renda, o cuidado com o idoso dependente não tem
como acontecer eicazmente sem a transferência do apoio público, já
que os custos inanceiros, físicos e emocionais são altos demais para os
cuidadores informais. Assim, aqueles que, teoricamente, seriam os prin-
cipais contemplados com a lei, podem vir a ser os mais penalizados, ou
seja, os próprios idosos. E, ainda por cima, tal situação contribui para que
as famílias, que realmente não disponham de condições para manter os
seus idosos juntos a si, sejam vistas como criminosas.

Notas

1 Entrevista concedida pelo promotor de justiça do Ministério Público Estadual


de Campos dos Goytacazes, Rio de Janeiro, em maio de 2006. O anonimato
foi mantido em todas as entrevistas citadas por medida de segurança dos
entrevistados. Agradecemos o apoio do Ministério Público Estadual e da
Universidade para a Terceira Idade do Polo Campo dos Goytacazes na
elaboração desta pesquisa.

2 Embora o poder público seja constituído pelas três esferas, aqui o foco será o
executivo, seja em nível municipal, estadual ou federal.

3 Os royalties são um pagamento de direito, uma compensação financeira


que as empresas e produtoras de petróleo devem aos estados e municípios

58 Sinais Sociais | Rio de Janeiro | v.8 n. 22 | p. 9-86 | maio-ago. 2013


Entre o Estado, as famílias e o mercado

em cujos territórios o recurso é explorado. O pagamento é feito mensalmente.


Dentre as cidades do estado do Rio de Janeiro que recebem royalties, Campos
dos Goytacazes é a principal beneficiada. Para maiores informações, consultar:
www.royaltiesdopetroleo.ucam-campos.br/.

4 O Índice de Desenvolvimento da Família (IDF) é um indicador produzido


pelo Instituto de Pesquisa Econômica Aplicada (Ipea) e é composto a partir
de seis aspectos: vulnerabilidade; acesso ao conhecimento; acesso ao
trabalho; disponibilidade de recursos; desenvolvimento infantil e condições
habitacionais. Ele permite o acompanhamento detalhado das famílias pobres no
cadastro único do governo federal. Ainda que as famílias retratadas no relatório
do Ministério Público Estadual não se enquadrem no padrão do Programa Bolsa
Família de renda per capita inferior a meio salário mínimo, elas apresentam
dificuldades similares de sobrevivência

5 Após a investigação preliminar dos processos de 2006-2008, a partir de um


acordo de cooperação realizado pela Universidade Federal Fluminense com
o Ministério Público Estadual, a Universidade para a Terceira Idade, do Polo
Universitário de Campos dos Goytacazes, estabeleceu com o Ministério Público
Estadual local uma parceria para uma análise e classificação dos processos
existentes até o ano 2012.

6 Do ponto de vista geriátrico, o conceito de dependência está associado à


ideia de vulnerabilidade aos condicionantes do meio externo. Assim, pode
ser entendida como uma ajuda indispensável para a realização das tarefas
fundamentais da vida (CALDAS, 2003). Contudo, conforme propõem Baltes e
Silverberg (1995), deve-se considerar a dinâmica da dependência-autonomia no
desenvolvimento do curso de vida.

7 Os dados apresentados neste e nos quadros a seguir são resultados de uma


pesquisa realizada por mim no Núcleo de Atendimento ao Idoso em Situação de
Violência, da Secretaria de Saúde e Assistência do município de Campos dos
Goytacazes, Rio de Janeiro, 2010.

8 É um programa de atenção integral às pessoas idosas que por suas carências


familiares e funcionais não podem ser atendidas em seus próprios domicílios
ou por serviços comunitários. Caracteriza-se por ser um espaço para atender
idosos que possuem limitações para a realização das Atividades de Vida Diária
(AVD), que convivem com suas famílias, porém não dispõem de atendimento de
tempo integral no domicílio (BRASIL, 2001b).

9 Entrevista concedida pela assistente social do Ministério Público Estadual de


Campos dos Goytacazes, Rio de Janeiro, em 2006.

10 Entrevista concedida pelo promotor de justiça do Ministério Público Estadual


de Campos dos Goytacazes, em 2006.

11 Entrevista concedida pelo promotor de justiça do Ministério Público Estadual


de Campos dos Goytacazes, em 2006.

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Dossiê: Velhice, família, Estado e propostas políticas

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Sinais Sociais | Rio de Janeiro | v.8 n. 22 | p. 9-86 | maio-ago. 2013 61


Violências específicas
aos idosos

Alda Britto da Motta

63
Alda Britto da Motta
Bacharel e mestre em Ciências Sociais. Doutora em
Educação pela Universidade Federal da Bahia (UFBA).
Professora e pesquisadora dos programas de pós-
graduação em Ciências Sociais e em Mulher, Gênero e
Feminismo, da UFBA, e pesquisadora do CNPq. Seus
trabalhos tratam das relações de gênero e intergeracionais,
com ênfase no processo de envelhecimento. Os artigos
“Mulheres velhas. Elas começam a aparecer”, publicado no
livro História das mulheres no Brasil e “Mulheres: entre o
cuidado dos velhos e a reprodução dos jovens”, publicado
na revista ex aequo, estão entre suas publicações mais
recentes.

64
Violências específicas aos idosos

Resumo
A violência pode ocorrer em todas as idades, com diferentes expressões
ou intensidades, conforme a condição geracional e o gênero de quem é
objeto e os espaços sociais em que repercute. Pode se iniciar na infân-
cia, continuar na vida adulta e assumir formas especíicas na velhice,
quando mostra uma expressão chocante das relações intergeracionais,
já que nesse momento da vida a violência apresenta-se exercida majo-
ritariamente por ilhos, ilhas e netos, como demonstram pesquisas
recentes. Além dos casos de violência doméstica, multiplicam-se outras
formas especíicas de violência pública contra o idoso e a idosa, inclusive
as deinidas na Política Nacional de Redução de Acidentes e Violência
(2001), como o abuso econômico e o uso não consentido de seus recursos
inanceiros e patrimoniais. Embora essas modalidades de abuso ocorram
sobretudo no âmbito familiar, estão crescendo também em outras
instâncias. Um exemplo são os assédios constantes e as transações
fraudulentas praticadas contra idosos como consequência da expansão
do crédito consignado estimulado pelo governo federal. É necessária,
portanto, a discussão dessa questão que afeta principal e dolorosamente
as idosas, sempre vistas em sua real ou suposta fragilidade.

Palavras-chave: Violência. Velhice. Gênero. Política. Crédito consignado.

Abstract
Interpersonal violence occurs at all ages and stages of life, in different forms
and degrees, according to gender and the generational conditions of those
affected and the social spheres in which it may have repercussions. It begins at
childhood and continues throughout adulthood, assuming speciic forms at old
age, when it expresses shocking intergenerational relations, since it is usually
exercised by children and grandchildren, as shown by recent studies. In addition
to domestic violence, other forms of speciic public violence against the elderly,
including those deined by the National Policy for the Reduction of Accidents and
Violence (2001), such as inancial and economic abuse and the non-consented
use of inancial and patrimonial resources. Although these modalities of abuse
take place primarily in a family context, they are growing as well in other
instances, particularly as a result of consigned credit procedures, receiving
Federal Government incentives, which have caused constant harassment and
fraudulent transactions against the aged. Therefore, it is necessary to discuss
this issue that affects especially and painfully elder women, always regarded in
their supposed or real frailty.

Keywords: Violence. Old age. Gender. Politics. Consigned credit.

Sinais Sociais | Rio de Janeiro | v.8 n. 22 | p. 9-86 | maio-ago 2013 65


Dossiê: Velhice, família, Estado e propostas políticas

Introdução

Há problemas que você só tem porque é velho. E não se trata de proble-


mas de saúde “típicos da idade”, nem da difícil ou parca aposentadoria.
São violências especíicas que a sociedade impinge aos idosos porque
são idosos, entre as quais, além das imediatistas e mais personalizadas
(negligência, maus-tratos e agressão física), destacam-se as de ordem
econômica, entre elas, as fraudes de origem institucional.

Uma dessas fraudes, e com caprichosos desdobramentos, se refere às fal-


siicações da assinatura e de documentos pessoais do idoso para vários
ins ilícitos, inclusive, e crescentemente, empréstimos consignados.

Os sofrimentos que disso resultam não têm diretamente a ver com o


estado físico ou mental do idoso, trata-se de algo unicamente social, algo
que é parte das marcas agressivas do tratamento que uma sociedade
dá a sua população de idosos. E que na atual sociedade de consumo se
conigura de forma aparentemente regular e contratual, mas é ao mes-
mo tempo um típico e falso contrato inanceiro, cujas bases são incadas
em uma parceria, estímulo e/ou aparente benesse do Estado: o crédito
consignado.

De repente, a partir do nada, um dinheiro não solicitado e de origem


frequentemente não identiicada aparece na sua conta bancária. Surpre-
sa, dúvidas, fantasias, até. Depois, susto. Surpresa especialmente desa-
gradável se você não é vítima do golpe do empréstimo consignado pela
primeira vez e já sabe o trajeto kafkiano que vai ter que empreender para
livrar-se dele. Primeiro, a busca investigativa para descobrir de onde esse
dinheiro partiu e com que alegação. Em seguida, a organização da defesa:
denúncias (ao Procon, a delegacias especiais). A espera das audiências...
O tempo passando...

Por que tudo isso acontece com você, velho ou velha, e quase nada com
jovens?

A sua longevidade, quase independentemente das suas características


de sexo/gênero, classe social ou raça, produz ou faz ressoar no meio so-
cial representações de fragilidade, inadequação social ou escassa capa-
cidade de autonomia que amedrontam (porque lembram a igura futura
da dissolução e da morte) mas também, ou sobretudo, estimulam ou pro-

66 Sinais Sociais | Rio de Janeiro | v.8 n. 22 | p. 9-86 | maio-ago. 2013


Violências específicas aos idosos

duzem respostas de caráter autoritário, exercício de poder e dominação


sobre você – geração que “já deu o que tinha que dar” – em uma escala
de atitudes violentas que vão da evitação e indiferença à crueldade, e
do desrespeito até a criminalidade. É a atitude “clássica”, ainda vigente.
Mais recentemente, acrescenta-se a exploração econômica/inanceira.

Apesar disso, mas também o que em parte explica essa situação, é que
muitos dos velhos de hoje, depois de toda uma trajetória de vida e trabalho,
já talvez tenham acumulado alguns bens, ou pelo menos têm uma casa
para morar e dispõem de rendimentos regulares de pensões e aposenta-
dorias que, ainda que modestos, são “o nosso certo”, como costumam di-
zer. Vivem agora em uma sociedade cujo desenvolvimento lhes propiciou
ser mais saudáveis e socialmente dinâmicos que no passado, embora ao
mesmo tempo ainda suportando o peso de expectativas e ações sociais
preconceituosas, também delituosas. Ou simplesmente criminosas.

Ter “o nosso certo” é um ponto fulcral da questão. O que já é evidente


pela observação de ações ou comentários em vários âmbitos do cotidia-
no. Recentemente, em uma entrevista ao jornal A Tarde, o superintenden-
te do Procon, Ricardo Maurício Freire Soares, se manifestou a propósito
da entrega, por empresas, de produtos ou serviços sem pedido prévio do
suposto cliente:

O alvo é a melhor idade. O idoso tem uma estabilidade inanceira que


chama a atenção das instituições, o que favorece a disponibilização
frequente de crédito e o estímulo aos gastos. Algumas vezes é o idoso
quem sustenta a família por conta desse poder econômico mais seguro
(SOARES, 2013).

Entretanto, é também parte do quadro atual a relutância das gerações


mais novas em cuidar dos seus idosos em idade mais avançada, como
veremos adiante.

1 A violência como “solução”

Qual o problema de estar na velhice?

Historicamente, as sociedades sempre tenderam a marginalizar seus ve-


lhos, real ou simbolicamente, como se eles, diminuída sua capacidade
produtiva, tivessem perdido também a utilidade social, fossem demasia-
dos para participar de uma economia de bens limitados.

Sinais Sociais | Rio de Janeiro | v.8 n. 22 | p. 9-86 | maio-ago. 2013 67


Dossiê: Velhice, família, Estado e propostas políticas

Procedimentos reais e simbólicos que são magniicamente ilustrados


pelo conhecido ilme de Nagisa Oshima, A balada de Narayama, em que
é demonstrado que a eliminação social pode preceder à perda real da
capacidade de cooperação e trabalho. O que também ilustra a análise
antropológica de Theophilos Rifiotis (1998) sobre a dinâmica dos grupos
etários em sociedades negro-africanas e a pressão que há nelas sobre os
velhos, cuja reincorporação se realizaria apenas individualizadamente.
Uma possível solução intermediária é representada pelos novos papéis
sociais engendrados pelos Suyá, conforme a observação de Seeger (1980):
os velhos são os bufões, os que fazem a comunidade rir e sobrevivem
bem, consumindo alimentos que, pelas suas atribuições simbólicas, não
seriam aproveitados pelos mais jovens.

Na sociedade capitalista contemporânea, os velhos submetem-se (quei-


ram ou não) ao ritual da aposentadoria, que também lhes demarca um
claro lugar social, que também é marginal, mas por outro lado lhes asse-
gura (ou programaticamente asseguraria) as condições de sobrevivência
material.

Apesar dessa “garantia”, a subsistência não é fácil. Vive-se um tempo em


que o direito à aposentadoria é questionado, os modos de atuação da
previdência pública mais ainda, os proventos estão signiicativamente
menores, enquanto a longevidade cresce.

Ao mesmo tempo, a reestruturação produtiva cerceia ou torna precários


os empregos e as oportunidades dos mais jovens. E vai caber aos velhos,
como já está acontecendo, a difícil responsabilidade de apoiar, decisiva-
mente, ou até mesmo de sustentar a família. Para conseguir isso, muitos
retornam ao mercado de trabalho, em uma situação cada vez mais fre-
quente. Ainda assim, direitos humanos e de cidadania à parte, apesar do
fator positivo que deveria representar essa nova responsabilidade fami-
liar e geracional, mantém-se, contraditoriamente, a postura de se consi-
derar os velhos um peso para a família e a velhice um problema social.

Essa posição inanceira dos velhos na família, mesmo nos muitos casos em
que são totalmente provedores, não lhes restitui, contudo, a centralidade
do poder no grupo, que se constitui sempre em determinada ordem gera-
cional, pela qual os jovens vão gradativamente assumindo, ou tentando
assumir, as posições de comando. O problema se acentua com as diferen-

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Violências específicas aos idosos

ças geracionais em torno dos padrões mais recentes e crescentes de con-


sumo. As relações são, não raro, carregadas de ambiguidade ou tensões.

Embora a deinição de velhice seja tão arbitrária quanto a de qualquer


outra idade – ao mesmo tempo em que diferencial, segundo as condi-
ções históricas –, ela contém o agravante particular de que tornar-se ve-
lho tem signiicado, como bem acentuou Lenoir, estar, “[...] velho demais
para exercer determinadas atividades ou ter acesso, de forma legítima,
a certas categorias de bens ou posições sociais” (LENOIR, 1998, p. 68). E
muito da violência contra os idosos deve-se à recusa destes a ocupar o
(não) lugar social ou vital que os mais jovens lhes designam: de abdicar
da posse dos bens – da casa, da pensão, dos proventos de aposentadoria
(MOTTA, 2010) –, mas também dos pequenos prazeres cotidianos que ter
aquele “nosso certo” propicia.

Uma das respostas sociais a estas questões é a violência. Minayo (2003) a


deine com adequada amplitude:

[...] um conceito referente aos processos, às relações sociais interpes-


soais, de grupos, de classes, de gênero, ou objetivadas em instituições,
quando empregam diferentes formas, métodos e meios de aniquilamen-
to de outrem, ou de sua coação direta ou indireta, causando-lhe danos
físicos, mentais e morais (MINAYO, 2003, p. 785).

No caso dos idosos, a violência se desdobra em várias modalidades e


formas, às vezes disfarçadas, ou deliberadamente ocultadas e nada raro
realizadas com alguma concomitância. As principais expressões dessa
violência são: negligência, violência psicológica, (que inclui as “inocen-
tes” pirraças) tratamento preconceituoso, abuso inanceiro, maus-tratos
físicos, abandono, espancamento e morte. Ocorrem tanto no espaço do-
méstico, como no âmbito institucional e na gestão do Estado. Quem as
comete são principalmente os membros da família, ilhos, ilhas e netos;
também noras e genros; mas também cuidadores e instituições da socie-
dade, principalmente asilos e casas de saúde. Mais recentemente, insti-
tuições inanceiras: bancos mancomunados com seguradoras multipli-
cam os empréstimos consignados fraudulentos. Primando pela ausência,
inclusive de iscalização e coibição de tudo isso, e omissão de proteção
social, está o Estado.

Ora, estando fora do centro de interesse social, não chega a surpreen-


der que para idosos não se prevejam ou conservem políticas públicas de

Sinais Sociais | Rio de Janeiro | v.8 n. 22 | p. 9-86 | maio-ago. 2013 69


Dossiê: Velhice, família, Estado e propostas políticas

proteção social, de saúde e qualidade de vida eicazes; inclusive de pre-


venção e coibição da violência. O Estatuto do Idoso é apenas o começo e
foi fruto direto da ação política dos próprios idosos, do movimento dos
aposentados.

A sociedade reage a essas violências com “naturalidade” ou cegueira éti-


ca. Ao mesmo tempo, a família tenta “abafar” os casos que depõem contra
a sua imagem e os asilos tentam se eximir de negligências e maus-tratos.
As instituições inanceiras, quando denunciadas por propaganda enga-
nosa ou por fraudes, tentam, malevolamente, jogar a culpa da falsiicação
sobre uma suposta deiciência cognitiva do idoso. Justiicam-se dizendo
que os aposentados pedem o empréstimo, ou o seguro, assinam e depois
se esquecem, assim argumentam os corretores. E o Estado, mesmo insta-
do pelos movimentos de aposentados, adia processos e intervenções, não
articula os raros e pontuais serviços disponíveis e não tem visão ampla
para um segmento populacional que cresce e tem novas participações so-
ciais; principalmente essa da manutenção de suas famílias e do consumo
continuado dos mais variados serviços.

Em verdade, quando as instituições se voltam para os cidadãos idosos,


nem sempre é para lhes dar a devida proteção social. Um exemplo re-
cente, conforme veremos adiante, foi exatamente o estímulo direto, a
propaganda por parte do governo federal do acesso para os idosos a vá-
rias formas de crédito, principalmente o consignado. Lucro seguro para
os bancos.

Mas como identiicar esses mencionados tipos de violência? A negligên-


cia, forma das mais comuns e fácil de passar despercebida, principal-
mente quando se dá em âmbito doméstico, é exposta por Minayo (2003)
como “[...] a recusa, omissão ou fracasso por parte do responsável pelo
idoso, em aportar-lhe os cuidados de que necessita” (MINAYO, 2003, p.
785). É também daquelas omissões que projetam más consequências
para o futuro: alimentação descuidada, tratamentos médicos interrom-
pidos, quedas ignoradas, resultante sensação de desamparo ou abando-
no para o idoso.

O tratamento preconceituoso é, ainda assim, talvez a forma mais sutil e


cotidiana de violência psicológica contra idosos e idosas, tendo o agra-
vante de ser continuado e bastante generalizado, pois se trata, como já
registrei, de: “Uma relação social entre sujeitos diferentes, no qual um

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Violências específicas aos idosos

desvaloriza ou nega a identidade do outro, a partir do que se institui a


discriminação” (MOTTA, 2007, p. 131). Isso signiica, ao mesmo tempo,
a negação do direito à diferença e, nas palavras de Bandeira e Batista
(2002), “desqualiicação identitária e sofrimento existencial” (BANDEIRA;
BATISTA, 2002, p. 120).

Tratar o idoso como criança, como ignorante ou demente, ignorar a sua


presença ou evitar a interlocução com ele são expressões de preconceito
que desautorizam, existencial e socialmente, o idoso e que se realizam
de forma absurdamente ampla – ainda que por vezes pontual ou pouco
consciente – nos vários espaços sociais: na família, no atendimento em
saúde, até em encontros sociais mais formais.

O abuso ou espoliação inanceira ocorre em todas as instâncias da vida


social, tanto na família como nas instituições antes referidas. São ilhos e
netos que se apossam de documentos e cartões bancários dos seus velhos
e lhes roubam proventos e pensões. Ou os pressionam a ceder ou vender a
casa de morada, a tomar empréstimos bancários difíceis de pagar.

Os empréstimos consignados em folha de pagamento são uma arma de


dois gumes. Programaticamente expostos para socorrer os idosos em
ocasiões especiais, geralmente resultam em um desfavor, pois além de
os idosos estarem cedendo frequentemente à mencionada pressão fami-
liar para que os assumam em proveito dela, há problemas mesmo para
os idosos que espontaneamente os procuram, porque há escasso acesso
à informação idedigna sobre as condições de sua realização, tais como
o percentual real, o total dos juros a serem pagos, a percepção prévia do
que os descontos signiicarão no orçamento doméstico, e até sobre os
prazos possíveis para esse pagamento. É o que veremos nos depoimen-
tos de pessoas entrevistadas durante as pesquisas de Rigo (2007) e de
Azevedo (2010).

A violência com intenção inanceira, que redunda em subtração ao idoso


de parte expressiva ou substancial da sua renda, signiica privação trau-
mática de seus meios de subsistência, com prejuízos à saúde, inclusive
emocional. E compromete a própria subsistência da família. Mas essa
violência não é divulgada.

Maus-tratos diretamente físicos, espancamentos e tentativas de morte


ou assassinato, são os que chegam mais claramente ao conhecimento

Sinais Sociais | Rio de Janeiro | v.8 n. 22 | p. 9-86 | maio-ago. 2013 71


Dossiê: Velhice, família, Estado e propostas políticas

público, para serem combatidos e punidos, ou venderem notícias em pro-


veito da mídia. Ainda assim, é de conhecimento geral que a violência
contra idosos, majoritariamente contra as mulheres, é estatisticamente
subnotiicada.

E como reage a tudo isso o movimento social?

Em realidade, poucos parecem perceber ou se manifestar em relação à


violência contra pessoas idosas; tanto na vida cotidiana, quanto na polí-
tica e na pesquisa acadêmica. O próprio meio cientíico, em suas ramii-
cações acadêmicas e de atuações políticas, inclusive de caráter feminista
(que sabe conciliar muito bem esses dois âmbitos), em maioria, não consi-
dera ou não enxerga a longa sucessão de violências que se abatem, impu-
nes, sobre a mulher que já não é mais jovem. Sobre os homens, também.
Poucos pesquisadores assumem essa análise, a exemplo de Camarano
(2004), Debert (2001), Faleiros (2009) e Minayo (2003).

Como já tive ocasião de discutir (MOTTA, 2009), a produção gerontológi-


ca expõe mais sistematicamente a questão. Entretanto, apresenta escassa
expressão teórica quanto ao contexto e ao tom em que se dão as relações
sociais e, portanto, também essas ações violentas. São trabalhos razoavel-
mente numerosos, conirmadores da existência do fenômeno “violência
contra a pessoa idosa”. Às vezes são literalmente assim enunciados, despi-
dos de conteúdo de gênero. Têm o mérito de apontar para a existência do
problema e de discuti-lo como questão que é, também, de saúde pública.
Mas alguns desses trabalhos nem sempre recorrem à pesquisa, que sig-
niicaria o indispensável contato e a exposição direta da realidade social.

Já a produção sociológica, que segura o fato ainda vivo, quando direcio-


nada à questão da violência, apesar de valiosa produção teórica e nu-
merosas pesquisas empíricas, não se detém na dimensão da violência
contra os idosos, e quase nunca diretamente onde ela mais acontece,
sobre as mulheres. É exemplo disso a consistente proposta teórica de
Tavares dos Santos (1999) sobre “a nova morfologia do social” e suas vá-
rias dimensões: “Além das classes sociais, outras transversalidades [...]
na organização social, tais como as relações de gênero, as relações ra-
ciais, as relações entre grupos culturais e entre regimes disciplinares”
(SANTOS, 1999, p. 18). Ausentes de tão ampla proposta estão as relações
entre as gerações e as violências contra idosos.

72 Sinais Sociais | Rio de Janeiro | v.8 n. 22 | p. 9-86 | maio-ago. 2013


Violências específicas aos idosos

A própria proposta feminista, apesar da consistência política dos seus


estudos a respeito da violência contra a mulher, segue caminho teórico
também incompleto. Concentrou-se na violência como efeito da domi-
nação patriarcal dos homens contra as mulheres jovens. Mais uma vez o
feminismo ignora as mulheres velhas (MOTTA, 1998; 2002; WOODWARD,
1995). Parece não perceber que elas também são alvos de violência, de
diferentes e repetidas formas, e que seus agressores, como vêm demons-
trando as pesquisas mais recentes (FALEIROS, 2007, 2009; MENEZES, 1999;
MINAYO, 2003) e as próprias estatísticas de delegacias do idoso – a exem-
plo da Delegacia Especial de Atendimento ao Idoso de Salvador (Deati)
– apontam que são principalmente os ilhos e ilhas, às vezes os netos,
os agressores. Pessoas de gerações mais jovens, portanto. Sobretudo ho-
mens, mas mulheres também agridem (MOTTA, 2010).

Evidentemente, o enfoque analítico da violência contra os idosos tam-


bém converge para as relações de gênero, centra-se nas mulheres, que
são maioria conhecida no caso da violência doméstica, mas perde eicácia
explicativa ao ixar-se apenas sobre esta dimensão das relações sociais.
Essa violência praticada pelos ilhos (que formam a maioria dos agresso-
res, mas também ilhas e, não raro, netos) contra suas mães ou avós é con-
sequência ou expressão de vivências – rejeições ou conlitos – que se dão,
centralmente, na esfera da convivência e das relações intergeracionais.

A violência, principalmente doméstica, contra idosos será mais eicaz-


mente analisada em princípio como uma ocorrência que se dá em âm-
bito geracional e ganha maior visibilidade por efeito da maior nitidez
social e política das relações de gênero, inclusive porque se exerce em
maioria sobre as mulheres, devido, primordialmente, a uma esperada
“fragilidade” feminina, física, afetiva e social. Mas também porque elas
constituem maioria demográica. Por essa dupla entrada, a situação pode
ser também analisada ao reverso, como uma violência de gênero que se
realiza majoritariamente no âmbito geracional.

Por mais esta diferenciação circunstancial, mantém-se como fundamen-


tal a análise das situações no contexto articulado dessas duas dimensões
fundantes das relações sociais: as de gênero e as de gerações.

Mas é importante lembrar que existem também as violências institucio-


nais ou públicas e que se as violências domésticas contra idosos e ido-

Sinais Sociais | Rio de Janeiro | v.8 n. 22 | p. 9-86 | maio-ago. 2013 73


Dossiê: Velhice, família, Estado e propostas políticas

sas são pouco mencionadas, publicamente subnotiicadas, as violências


públicas ou institucionais são ainda menos conhecidas e denunciadas.

2 Empréstimos consignados: da legalidade à fraude

Além dos casos de violência doméstica, que constituem a maioria em


relação aos idosos, e da crueldade social de assaltos como a “saidinha
bancária”, crescem, cada vez mais intensamente, formas novas e espe-
cíicas de violência pública contra o idoso, algumas das quais são parti-
lhadas com a família, a exemplo daquela que, em 2001, o Ministério da
Saúde deiniu, na Política Nacional de Redução de Acidentes e Violência,
como abuso inanceiro e econômico: “exploração imprópria ou ilegal dos
idosos ou [...] o uso não consentido por eles de seus recursos inanceiros
e patrimoniais” (PEIXOTO, 2009, p. 410).

Embora essa modalidade de violência ou abuso ocorra, reconhecida-


mente, sobretudo no âmbito familiar, como os casos recorrentes de
apropriações de pensões ou aposentadorias e de vendas ou transferên-
cias fraudulentas de casas, em âmbito público essa situação também
ocorre, e é cada vez mais frequente. Sobretudo a partir da instituição dos
programas de crédito consignado e da expansão dos fundos de pensão,
nos assédios e nas transações fraudulentas contra idosos.

Diante desses casos, lembraria que fatos nunca existem fora de um con-
texto social e, no caso das violências, essas nunca são puramente indi-
viduais, pois, como comenta Jaspard (2000), “estão ligadas às regras de
funcionamento das instituições nas quais se apoia a sociedade” (PEIXOTO,
2009). E as redes de comunicações institucionais no Brasil estimulam fre-
quentemente o crédito aos idosos.

Enquanto o Estado realiza cada vez mais intensamente uma gestão de ca-
ráter privatizante, vai reduzindo a proteção social pública e adjudicando
à família e à comunidade a proteção, nem sempre viável, dos seus idosos.
Ao mesmo tempo, nesta fase do capitalismo, o mercado parece ter des-
coberto, ainal, uma função social – e integradora – para os idosos, a de
consumidores de serviços e de “produtos próprios para a terceira idade”.

Ora, consumidores, possíveis ou não, satisfeitos ou não, com proventos


baixos de aposentadoria e ainda com o ônus de sustento da família, acu-
mulam as diiculdades inanceiras, e o recurso a empréstimos parece ser

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Violências específicas aos idosos

a solução. Principalmente o crédito consignado, todo o tempo apregoado


publicamente como fácil e tranquilo, parece uma solução natural e ade-
quada, um porto seguro.

Em um país que vem realizando, seguidamente, insatisfatórios ajustes


e reformas da Previdência Social, e que ainda assim ignora verdadeira-
mente o grau alto de pobreza da população, não surpreende o recurso ou
a recomendação de realização de empréstimos, como se fosse garantida
àqueles que dispõem de algum pecúlio, a possibilidade de, por esse meio,
saldar as dívidas contraídas.

Nesse clima, em 2004, o governo federal apresentou o crédito consignado


como um grande benefício para os trabalhadores aposentados e conti-
nuou, durante bastante tempo, a estimulá-lo.

Mas ainal qual é a questão do crédito consignado? Na clara deinição de


Furlan (2009)

é um contrato de crédito pessoal, de prestações sucessivas, em que o de-


vedor (no caso o servidor público) admite que as prestações sejam descon-
tadas diretamente dos seus subsídios (pelo órgão administrativo pagador
que esteja vinculado) e remetidas diretamente à instituição inanceira cre-
dora (bancos, cooperativas ou inanceiras) (FURLAN, 2009, p. 65).

Isso signiica que os bancos ou instituições inanceiras não sofrem re-


ceio de inadimplência nessa operação, pois têm a garantia da margem
consignável.

Essa margem consignável é de 30% do salário ou pensão do aposentado


e, embora o pagamento seja feito a juros que são apregoados como os
mais baixos do mercado, ele é ainda relativamente alto para as condições
inanceiras dos idosos (RIGO, 2007). Por isso, no cálculo do orçamento do-
méstico de cada pessoa, sente-se sempre um desfalque.

A análise atenta de Rigo (2007) relembra que esse limite máximo de em-
préstimo permitido pela Previdência Social é referente não à renda dis-
ponível para o aposentado, mas à renda maior do rendimento mensal
do aposentado, já comprometida, no entanto, com outros pagamentos. E
conclui: “O mais grave, contudo, é que mesmo entre aqueles que não têm
dívidas, esse grau de comprometimento pode se provar excesso” (RIGO,
2007, p. 104).

Do ponto de vista das instituições inanceiras, essas taxas de juros, lem-


bra Furlan:

Sinais Sociais | Rio de Janeiro | v.8 n. 22 | p. 9-86 | maio-ago. 2013 75


Dossiê: Velhice, família, Estado e propostas políticas

Apesar de mais baixas, não são irrisórias, pois servem ao mesmo tem-
po para remunerar o capital investido e assumir o risco, devidamente
calculado, de ocorrerem situações imprevistas no contrato, tais como:
diminuição da margem consignável, exoneração do servidor, decisões judiciais
suspensivas ou impeditivas do desconto em folha etc. (FURLAN, 2009, p. 65,
grifo do autor).

O governo incentiva o crédito todo o tempo e a publicidade de institui-


ções públicas e privadas entra nos lares via remessa postal, telefonemas
e comerciais na televisão, oferecendo segurança, bem-estar e tranquili-
dade econômica para os mais velhos.

Tornaram-se presentes e insistentes os estímulos a aposentados e pen-


sionistas. Desde 2004, elegantes e conhecidos atores e atrizes na “terceira
idade” sucedem-se, na mídia, principalmente a televisiva, em conselhos
e recomendações “inspiradoras” sobre as vantagens do crédito.

Cartazes e folhetos são distribuídos por bancos, destinados principal-


mente ao idoso “jovem”, à maneira como fez o Banco do Brasil no exem-
plo referido por Palácios (2007, p. 6) na sua análise sobre a estruturação e
fundamentação do discurso publicitário dirigido ao público idoso: “Apo-
sentados e pensionistas do INSS, aproveitem a melhor idade com o BB
Crédito Consignado.” Cito a pertinente deinição de Maingueneau (2001,
p. 85): “um texto não é um conjunto de signos inertes, mas o rastro dei-
xado por um discurso em que a fala é encenada.”

Cartas pessoais eram endereçadas (como continua a acontecer) a servi-


dores públicos por bancos e seguradoras. Em certo momento até o Presi-
dente da República, em conjunto com o então Ministro da Previdência
Social, fez circular, ainda que por pouco tempo, uma convocatória des-
se tipo aos segurados da Previdência; carta publicada e comentada por
Thomas Traumann (2006) na revista Época.

Esses apelos positivos, direcionados a diversos segmentos de classe de


aposentados, contribuem para produzir os resultados esperados, por-
que o recurso a esse crédito torna-se crescente. São notícias nos jornais
e artigos produzidos na área econômico-inanceira e reproduzidos na
imprensa diária. O nível intenso de informação positiva alcança, ainda
hoje, até as camadas populares mais pobres e menos informadas, aten-
didas pelo Benefício de Prestação Continuada (BPC), atingindo-os em seu
sentimento por não terem a condição legal de assalariados para terem

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Violências específicas aos idosos

acesso aos empréstimos, conforme revela a pesquisa de Ferreira de Jesus


et al (2012). Ainda assim, para muitos daqueles que tiveram acesso a esse
recurso, o arrependimento pelas diiculdades e impasses encontrados
também é abundante.

Depoimentos resultantes de trabalho de campo em pesquisas com ido-


sos, aposentados e pensionistas realizadas por Azevedo (2010) e Rigo
(2007) atestam isso; percorrem toda uma trajetória ilustrativa do interes-
se e esperança iniciais dos idosos, passando pelas injunções familiares
para a adesão ao crédito e chegando ao desconforto, à inadimplência e ao
arrependimento tardio, além de já tangenciando a percepção de fraude.

Os depoimentos são numerosos e repetidos. Começam com o encanta-


mento instalado pela publicidade fantasiosa das propostas, mas depois...

[...] foi a maior burrice da minha vida. Tomei empréstimo justamente pra
comprar o terreno para tentar fazer uma casa. Foi burrice, não deu cer-
to. O terreno tá lá em Terra Nova. Comprei no interior por R$ 2.000,00
para pagar R$ 10 mil, praticamente. Eu deveria ter pensado antes. Eu via
aquelas propagandas e, como todo mundo, fui lá. Vi a propaganda e vi
que tudo era maravilhoso na hora de tomar o empréstimo, aí eu disse:
“Ah, meu Deus, é agora que eu vou ter a minha casa!” Eu vi um horizonte
maravilhoso! Peguei R$ 2 mil, comprei o terreno, não deu para comprar
os blocos, eu só adquiri o terreno. Não deu pra fazer a casa. Não deu pra
fazer nada. Me atrapalhei toda. Atrapalhou a minha vida inteira. Agora tá
muito mais difícil porque todo mês desconta na folha e eu... mas agora eu
prometo a mim mesma que eu vou passar longe[...] (ANÁLIA, 2008 apud
AZEVEDO, 2010, p. 166).

Alguns idosos não sabem muito o que fazer, mas os ilhos sabem... Os
corretores, também:

Não sei nada, minha ilha olha essas coisas... só assinei (C.L.M, 73 anos
apud RIGO, 2007, p. 107).

Nunca mais, atrapalha em tudo, só em extremo caso de urgência... para


ajudar meus netos e tal (J.S.M, 69 anos apud RIGO, 2007, p. 107).

O desapontamento chega depressa, assim como a aguda percepção da


extensão do tempo de pagamento:

Tomei mil reais, esse empréstimo piorou minha vida. [...] aconselho a
qualquer pessoa para não tomar esse dinheiro emprestado [...] a pessoa
só toma porque está passando necessidade e acaba se apertando. Não é

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Dossiê: Velhice, família, Estado e propostas políticas

vantagem [...] esse empréstimo não beneicia ninguém... (LEANDRO, 2007


apud AZEVEDO, 2010, p. 165).

Gastei o dinheiro em dois dias e vou levar três anos pra pagar [...] não vale
a pena (F.S., 64 anos apud RIGO, 2007, p. 107).

Demora muito pra passar, aí falta dinheiro pra outras coisas (D.T.S, 71
anos apud RIGO, 2007, p. 111).

Um outro “radicaliza”, com algum humor:

A gente pega, né... e depois pede pra morrer logo para não ter que pagar
por três anos tudo de novo (RIGO, 2007, p. 119).

Começa então a aparecer a fraude:

Queria há muitos anos comprar um fusquinha, tinha um vizinho ven-


dendo baratinho [...] aí resolvi pegar um empréstimo para realizar esse
sonho [...] depois de tudo, vi que o crédito foi negado porque no extrato
da minha aposentadoria já tinha um empréstimo de R$ 4 mil em uma
agência de Brasília para pagar em 36 parcelas R$ 206. [...] Não sabia o
que fazer, liguei para a ouvidoria da Previdência, procurei informação no
Banco Central, liguei para Brasília [...] não conheço a cidade, deveria ao
menos haver uma desconiança do banco. Por que eu pediria para um
empréstimo ser liberado em Brasília se moro aqui? Nem sei como conse-
guiram meus dados (J.A.M, 67 anos apud RIGO, 2007, p. 113).

Pior que tudo e ocorrendo crescentemente, são as fraudes, que assim


explodem: uma quantia “aparece” na conta corrente do idoso e logo é
iniciada a cobrança, durante longos e inumeráveis meses, a juros altos,
de um “empréstimo” ou “seguro” que não foi solicitado. As tentativas de
resolução do problema são difíceis, longas e onerosas.

Antes de apresentar dois casos revelados de fraudes dessa natureza, fa-


ria um comentário sobre os diferenciais de classe desses segurados ido-
sos: são, evidentemente, os mais pobres que, premidos pelas diiculdades
de manter o consumo cotidiano, ou já pelas dívidas, recorrem ao em-
préstimo. E em grande parte se endividam ainda mais. Mas a classe mé-
dia tradicional (“média-média”) também está recorrendo a esse crédito;
guardadas as proporções, pelas mesmas razões que as classes populares.
Entretanto, os segmentos médios parecem os mais atingidos pelas frau-
des, pela lógica econômica... São aqueles que, por exemplo, têm cadastro
em companhias de seguros (de vida, de carros, de imóveis etc.), fontes
privilegiadas de vazamento de dados pessoais.

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Violências específicas aos idosos

Supõe-se ser o caso de Anita (2011) e o de Antônia (2013), que depõem a


seguir.1

3 Experiências de velhas

Algumas dessas formas sorrateiras e particularmente desestruturantes


de violência, ao mesmo tempo pouco conhecidas ou divulgadas, podem
ser exempliicadas com casos como o de Anita, 78 anos, narrado em suas
próprias palavras:

Ao longo desses últimos anos, eu já havia recebido várias investidas te-


lefônicas, em que pessoas demonstrando conhecimento de meus dados
e documentos pessoais de identiicação, residenciais e de minha história
pretérita de trabalho, me informavam sobre o andamento de algum pro-
cesso jurídico referente a essa última área, processo em que eu, ainal,
teria sido vitoriosa e teria vultosa quantia a receber. Porém, antes deveria
depositar um percentual devido ao funcionário que teria se encarregado
do acompanhamento do processo – e isso deveria ser feito de imediato,
porque o prazo para o depósito do “prêmio” esgotava-se naquele dia...

Em todas essas investidas – que não sou ingênua para acreditar em “pro-
cesso encantado”, mas pessoas menos informadas têm caído nesses con-
tos – o que mais me impressionou, para além da crueldade de prejudicar
pessoas em idade avançada, foi o nível de informação que tinham sobre
a minha vida.

Mas o pior ainda viria. Há cerca de três anos, o im do mês estava chegan-
do e o dinheiro da aposentadoria escasseando. Preocupada, ainal tendo
dois ilhos desempregados, procurei me situar, conversando com a geren-
te responsável pela minha conta bancária, que depois de consulta, sorriu:
“Por que se preocupa?! Você está ótima, com esse depósito!”

Surpresa: Que depósito?! E estranheza. Havia um depósito recente, de R$


30.200,00 em minha conta, realizado por um banco desconhecido, de ou-
tro estado da federação. Esse fato iria inaugurar um dos piores períodos
da minha vida, com muitos receios, muito gasto de tempo em tomadas
de providências e, sobretudo, intenso desgaste emocional. O banco de-
positante era o “braço armado” de uma seguradora, que registrara a con-
cessão de empréstimo consignado e seguro de vida em meu nome, como
tendo sido requeridos por mim.

Depois de uma busca cuidadosa, obtive acesso ao documento original


da “solicitação” na instituição representante da seguradora, que registra-
ra a concessão em Salvador. Voltei a surpreender-me com toda a infor-

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Dossiê: Velhice, família, Estado e propostas políticas

mação que estranhos tinham sobre meus dados cadastrais, a ponto de


terem apresentado, naquela ocasião, o meu contracheque mais recente
e ao qual eu própria ainda não tivera acesso! Ainda por cima, a assina-
tura dada como minha era uma imitação grosseira, e o endereço a mim
atribuído – grande cochilo do corretor! – o da rua, em Porto Alegre, onde
se sediava a seguradora. Erros grosseiros que simplesmente não foram
levados em conta nessa transação que passou a atazanar a minha vida
por um longo tempo.

Enquanto investigava e denunciava ao Procon, a uma Delegacia do Con-


sumidor e à própria Polícia, e repetidamente pedia providências, recebi
meus proventos de aposentadoria do órgão federal ao qual sou ligada,
com o desconto de R$1.771,00 – a primeira de sessenta parcelas que de-
veria pagar ao banco pelo “empréstimo”.

Foi intenso o choque! Naturalmente eu deixara os R$ 30.200,00 intocados na


minha conta bancária, e ter quase R$ 2 mil a menos no orçamento domésti-
co causou-me diiculdades e carências. Tentei sustar os descontos na fonte
pagadora da aposentadoria, em vão. A informação do serviço de pessoal da
instituição à qual sou ligada era a de que o desconto pelo “empréstimo” era
feito, de acordo com lei recente, em comunicação direta entre seguradora e
secretaria ministerial em Brasília, e nada havia a fazer-se por aqui. Enquan-
to me movimentava em denúncias, e já começando a participar de audiên-
cias na justiça – a que representantes do banco e da seguradora fraudadores
no início faltavam – veriiquei que o segundo desconto do empréstimo frau-
dulento já se anunciava no contracheque. Foi o golpe maior.

Sentia-me indefesa, invadida, sem qualquer privacidade na minha vida.


Acordava no meio da noite, angustiada: então, qualquer um inventa uma
solicitação, invade sua vida, seus proventos, lhe deixa com diiculdades e
nada pode sustar isso!

Fiz a conta de quanto iriam me roubar: pagando esses R$ 1.700,00 duran-


te sessenta meses, iria saldar aqueles R$ 31 mil do depósito impingido
com R$ 104 mil.

Circulando e falando muito em função da indignação e da tentativa de


defender-me, soube de muitos outros casos semelhantes ao meu, alguns
extremamente dolorosos, envolvendo pessoas menos informadas do que
eu e até de condições inanceiras mais difíceis. Muitas sem saber o que
fazer. Contei com a assessoria de um familiar formado em Direito, rea-
lizei denúncia ao Banco Central, que foi decisiva para a aceleração do
processo e do recuo do banco “inanciador”, mas ainda assim tive que
contratar advogado para atender à exigência legal de me representar nas
audiências – tantas! – e esperar bastante.

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Violências específicas aos idosos

Venci essa batalha, me livrei da “dívida”. Mas até hoje não recebi a totali-
dade da mais que justa indenização por danos morais, pela grande fragi-
lização e sofrimento que vivi, atingida pela desonestidade dos outros. O
banco pagou a parte dele da indenização, mas a seguradora, nunca.

Minha história, entretanto, ainda não acaba aqui. Depois dessa fraude,
outras pessoas, outras instituições, já tentaram outros golpes, alguns de-
les menores, sempre com desconto em folha de pagamento e falsiicação
da minha assinatura e de dados pessoais; principalmente seguros de vida
e planos de previdência privada.

Vigilante, tenho reagido de imediato e conseguido me livrar mais rápido.


Até nisso ter experiência ajuda. Mas temos que estar sempre em guarda,
como se vivêssemos em guerra? Guerra institucional entre gerações? Na
qual os velhos sempre saem perdendo?

Um segundo exemplo, o caso de Antônia, 80 anos, se desenrola há mais


de um ano e continua sem resolução. Sua trajetória é bem similar à de
muitas outras idosas ouvidas: anos de incômodos, assédios para que
faça os mais variados seguros, os mais recentes e intensos para aderir
a programas de previdência privada, cartas e telefonemas também. De
vez em quando, um telefonema com menções muito fundamentadas aos
seus dados, ao mesmo tempo anunciando o ganho de prêmios em sor-
teio ou, principalmente, referida a antigos processos oriundos da área
proissional que teriam corrido na justiça, com signiicativa quantia a re-
ceber agora, dependendo apenas de que: “A senhora deposite ainda hoje
– porque perdemos muito tempo tentando contatá-la – dez por cento
desse valor na conta do advogado responsável pelo caso, em Brasília...”. É
burlesco, mas há quem acredite nessas encenações.

Não muito tempo depois da surpresa de ter sido cobrada pelo seguro de
vida em favor de um neto que nunca teve, Antônia sofreu dois “ataques”
quase simultâneos de dois diferentes bancos privados de grande porte:
empréstimos consignados fraudulentos. Um deles bastante alto.

O percurso de reação a esses depósitos “aparecidos” em contas correntes


já está aqui referido, inclusive na narrativa de Anita: a surpresa, a busca
de informação, as denúncias, o recurso à Justiça... Tudo transitando deva-
gar e nesse caso concreto ainda em grande parte sem resolução, princi-
palmente quanto a novas consequências.

O registro do caso de Antônia, apesar da semelhança de percurso com


o de Anita, vale ser feito para revelar duas situações, talvez menos fre-

Sinais Sociais | Rio de Janeiro | v.8 n. 22 | p. 9-86 | maio-ago. 2013 81


Dossiê: Velhice, família, Estado e propostas políticas

quentes em casos como esse. Primeiro, a coincidência da simultaneidade


de duas fraudes, resultando em diiculdades inanceiras redobradas para
a aposentada. O que, felizmente, durou pouco, por força da obtenção de
uma liminar que sustou as cobranças em folha de pagamento, enquan-
to os processos correm na justiça. A segunda situação “original”, e para
Antônia particularmente chocante, foi revelada quando ela foi convoca-
da pelo banco onde mantém a conta corrente, “para sanar dúvidas quan-
to ao seu cadastro” e propor, logo em seguida, redução do limite do seu
cartão de crédito, ou talvez suspensão dele, porque – pasme-se – um dos
bancos fraudadores, impaciente por não ter conseguido receber, por for-
ça da liminar, o dinheiro que ela não lhe devia, incluiu seu nome no cadastro
de inadimplentes do Serasa. Onde ela ainda permanece.

Não é o último episódio dessa história, que apresenta muitos e variados


“lances”. Registro, para encerrar o relato, mais um desdobramento des-
se caso: na sua busca por soluções, conseguindo ter acesso a cópias dos
falsos contratos de créditos apresentados pelos dois bancos, Antônia
surpreendeu-se – semelhantemente ao relatado aqui também por Anita
e pelo depoente J.A.M. (apud RIGO, 2007) – com o evidente desleixo de
apresentação e preenchimento dos formulários “de solicitação” dos
seus empréstimos, porém não há, realmente, porque surpreenderem-
se, se o registro da consignação é, em qualquer sorte, a garantia para o
banco credor, ainda quando fraudador. Como também argumenta Furlan
(2009).

Por todas essas histórias inacabadas, inalizaria lembrando Lenoir (1998):


um fato social é constituído como questão ou problema quando há atri-
buição ou reconhecimento social dele em sua importância ou prejuízo
para a comunidade, além de vontade social para tratá-lo e ultrapassá-lo,
lembraria. Lamentavelmente, parece que, no caso das violências contra
os idosos, ainda não se desenvolveu de modo suiciente essa vontade
social no país.

Nota

1 Projeto de pesquisa “Tempo geracional: acompanhando centenários e pivôs”


(2011/2013) realizada com apoio do CNPq.

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Routledge, 1995. p. 79-96.

Sinais Sociais | Rio de Janeiro | v.8 n. 22 | p. 9-86 | maio-ago. 2013 85


DOSSIÊ
Vazios culturais versus
alternativas da cultura e as
estratégias da poesia de Cacaso

Carlos Augusto Lima

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Carlos Augusto Lima
Poeta e professor de literatura. Publicou OBJETOS
(Alpharrábio, 2002), vinte e sete de janeiro (Lumme, 2008),
Manual de acrobacias n.1 (Editora da Casa, 2009), O Livro
da espera (Alpharrábio, 2011) e Três poemas do lugar (La
Barca, 2011). É membro fundador da ONG Alpendre (casa de
arte, pesquisa e produção, com sede em Fortaleza-CE), ex-
coordenador do núcleo de literatura do setor de capacitação
do Centro Dragão do Mar de Arte e Cultura de Fortaleza e
mestre em Letras pela Universidade Federal do Ceará (UFC),
onde defendeu dissertação sobre o poeta Antônio Carlos
de Brito (Cacaso). Atualmente é doutorando em Literatura
Comparada pela mesma universidade, onde desenvolve
pesquisa sobre as ideias de fracasso, deriva e silêncio nas
narrativas de Antônio Lobo Antunes e J. M. Coetzee.

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Carlos Augusto Lima

Resumo
A ideia de um “vazio cultural”, de uma perda da potência crítica e cria-
dora da cultura brasileira, seja em face do autoritarismo, seja diante
do poderio do mercado, faz parte da pauta da crítica cultural nacional.
Nos anos 1970, a denúncia de um vazio cultural representou um des-
conforto ante ao sufocamento das personalidades e ações críticas da
cultura brasileira pelo regime militar. Por outro lado, a discussão sobre
o vazio cultural ignorou uma parte signiicativa da produção cultural
dita marginal, que propôs outras formas de politização da cultura. Na
linha de frente das práticas de resistência dessa produção estavam os
poetas. Um nome importante dessa prática de resistência poética,
crítica e política foi Antônio Carlos de Brito, mais conhecido como Ca-
caso, um dos primeiros a ver uma movimentação bastante particular
que se conigurava na poesia brasileira da época, que parecia buscar
novos processos na produção material do livro e, da mesma forma, na
expressão de uma linguagem poética, a seu ver, libertadora em vários
sentidos e dimensões.

Palavras-chave: Vazio cultural. Censura. Contracultura. Década de


1970. Geração marginal. Poesia marginal. Cacaso.

Abstract
The idea of a “cultural void”, a loss of critical power and creativity of Brazilian
culture, whether in the face of authoritarianism or before the power of the
market, is part of the national agenda of cultural criticism. In the 70’s, the
complaint of a cultural void was a discomfort compared to the suffocation
of critical actions and personalities of Brazilian culture during the military
dictatorship. On the other hand, the discussion about the cultural void ignored a
signiicant part of cultural production, said to be marginal, who proposed other
forms of politicization of culture. At the forefront of the resistance practices of
that production were the poets. An important name from this poetry resistance
practice, criticism and politics was Antônio Carlos de Brito, better known as
Cacaso, one of the irst poets who saw a very particular movement coniguring
in Brazilian poetry at that time, which urged for new production processes on
physical books and, likewise, in the expression of poetic language that was, in
his point of view, liberating in many ways and dimensions.

Keywords: Cultural void. Censorship. Counterculture. The 1970’s, marginal


generation. Marginal poetry. Cacaso.

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Vazios culturais versus alternativas da cultura e as estratégias da poesia de Cacaso

A chegada do Ato Institucional nº 5, emenda constitucional aprovada na


noite de 13 de dezembro de 1968, situa-se como um divisor de águas e
um dos eventos mais cruciais e pontuais para se pensar o cenário da
cultura durante o regime militar. O novo papel que é dado ao Estado, de
vigiar e punir, legislar e direcionar o que é certo ou não, o que poderia ser
expresso ou não, colocava toda uma intelectualidade em uma condição
que ora se converteria em medo, ora em estratégias para a mínima sobre-
vivência de uma ideia de cultura livre no país.

Da condição da cultura pós-AI-5, aponto uma discussão forte que fora


colocada pelo jornalista Zuenir Ventura ainda no início dos anos 1970, e
que demonstrou um olhar, uma perspectiva sobre o estado das coisas e
da expectativa sobre a arte de então: o “vazio cultural”.

Dois artigos de Zuenir (GASPARI; HOLLANDA; VENTURA, 2000), publi-


cados na revista Visão, o primeiro, de julho de 1971, e o segundo, de
agosto de 1973, colocaram em discussão uma visão sobre o panorama
da arte e da cultura brasileira dentro de uma determinada disposição
cronológica que abarca os anos de 1969/1971, como sugere o próprio
jornalista. O termo “vazio”, pela extensão da sua dureza, imagem dolo-
rosa, serve de leitura para pensar um tempo. Leitura particularíssima
de Zuenir Ventura, que parece querer provocar, mas, na verdade, expõe
uma perspectiva pessimista que tem suas origens, o vazio, na ação de
dois elementos determinantes e cruciais: o AI-5 e sua cria, a censura.
Esses dois componentes inlamaram negativamente a cultura do país,
se não a devastando por completo, colocando-a em uma condição de
limbo, oco, vazio. Em 1973, no artigo “A falta de ar”, Zuenir Ventura re-
toma a discussão sobre o vazio cultural, situando-o cronologicamente e
apontando o rastro de estragos visíveis no plano cultural, causado pela
ausência de espaços críticos-criativos para a elite intelectual do país e,
ainda por cima, recoloca um novo elemento que fora também combus-
tível nesse processo:

O vazio era mais uma metáfora para descrever com certa exatidão o
quadro cultural dos anos 1969/1971, em que correntes críticas, domi-
nantes entre 1964 e 1968, se tornaram marginais, perdendo em grande
parte a possibilidade de inluir diretamente sobre o público anterior.
Essa inluência não foi apenas diicultada pela censura direta (particu-

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Carlos Augusto Lima

larmente intensa no teatro e no cinema, mais indireta na literatura e


no movimento editorial em geral): atemorizados pela situação vigente,
não apenas os autores mas também os produtores e editores começa-
ram a praticar a autocensura (GASPARI; HOLLANDA; VENTURA, 2000,
p. 59).

Além do temor da censura oicializada, havia o temor íntimo causando a


autocensura. Expurgos, silenciamentos, evasão de mentes, veto à criação
livre, a condição de limbo, oco, vazio. Interessante é que, para Zuenir, in-
teressa comparar, apontar analogias sobre o comportamento da cultura
brasileira antes e pós-AI-5. Para ele, o lado sério e compromissado da
cultura brasileira estava exatamente nas tais “correntes críticas”, que ou-
trora deram pulsão ao movimento político-cultural e que agora se viam
sufocadas. Zuenir vê alto grau de valor em projetos como o do Centro
Brasileiro de Pesquisa (Cebrap), capitaneado pelo então professor e soció-
logo Fernando Henrique Cardoso, como núcleo de pensamento crítico
modelar, lúcido e por demais importante para se reletir sobre o país. No
que diz respeito à cultura, à produção musical, Chico Buarque, Paulinho
da Viola, Caetano Veloso e Gilberto Gil, para apontar alguns, representam
para o jornalista os expoentes-chave das “correntes críticas” de que tra-
tam aqueles que conseguem partilhar uma elaborada sonoridade com a
matéria de criticidade que fora tolhida pelo regime.

O grande pecado das relexões do jornalista Zuenir Ventura, no meu en-


tender, está no pensamento depreciatório que dispensou às articulações
submersas de uma cultura jovem, alternativa. Ao expor a relexão sobre
o “vazio cultural”, automaticamente Zuenir colocou para escanteio uma
série de truques, artimanhas, táticas e estratégias pontuais de sobrevi-
vência cultural que se articulava mesmo sob o jugo do sistema repressor
tacanho e violento da época. A contracultura, que já insulava manifes-
tações artísticas e comportamentais antes mesmo do AI-5, é vista pelo
jornalista como uma tendência cultural frágil conceitualmente, que não
colocou em discussão uma produção artística consistente aos seus olhos,
e realmente crítica. Zuenir acusa as manifestações contraculturais, com
seus projetos de paz e amor, vida comunitária, sexo, drogas e rock’n’roll,
experimentos artísticos, experimentos comportamentais, de se coloca-
rem em uma posição que, para ele, representava uma aceitação passiva
das coisas:

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Vazios culturais versus alternativas da cultura e as estratégias da poesia de Cacaso

Criando uma atmosfera cultural bastante difundida – talvez mais a at-


mosfera do que produtos estéticos singulares –, a contracultura foi outro
dos meios de preencher o vazio cultural, aceitando implicitamente as res-
trições que a situação geral impunha ao debate mais diretamente voltado
para a realidade concreta (GASPARI; HOLLANDA; VENTURA, 2000, p. 64).

Taxativo, Zuenir Ventura volta-se contra uma suposta passividade das


manifestações contraculturais. Aceitação, fuga, alienação são termos
que cabem bem à perspectiva que o jornalista faz uso. Zuenir projeta
uma expectativa de criticidade que as manifestações contraculturais, ou
herdeiras da contracultura, nunca irão lhe dar e que, para ele, só esta-
riam presentes naquelas ditas correntes críticas que, mesmo relegadas a
uma condição de marginalidade por conta da força e da lei, tiveram pa-
pel fundamental no encontro da cultura com as massas e no pensamen-
to sobre a realidade do país, como ele mesmo sustenta. Mas a criticidade
estaria lá, enraizada, entranhada em várias atitudes advindas do explo-
sivo ambiente contracultural, jovem, ou depois, como se dirá, alternativo.
Só que essa dimensão crítica estava conigurada com outros modelos.
Novos, políticos, mas com uma outra cara da ação política.

De um lado, o desapontamento com relação à censura e às ações cul-


turais bancadas pelo governo militar; de um outro, a insatisfação com
os projetos políticos tradicionais das esquerdas, o engajamento parti-
cipante, as ideias de tomada de poder pelo proletariado. Nesse quadro,
uma terceira via se mostrou muito mais atraente aos segmentos de uma
intelectualidade jovem. Um caminho que se encontrava em maior sinto-
nia com os movimentos e questões referentes à chamada contracultura,
que eclodiu durante a década de 1960 e gerou frutos nas atitudes pre-
tendidas e seguidas pela chamada produção alternativa nos anos 1970.
As preocupações deslocavam-se dos embates político-partidários para
uma postura comportamental, muito mais interessada em questionar
valores morais (família, tradição, religião), do que preocupada com a su-
peração do modelo político ou a tão anteriormente sonhada tomada de
poder. Como airma Celso Fernando Favaretto:

A atividade contracultural inscreve-se como espaço de jogo em que o po-


lítico não é ordenado por um trabalho segundo os modelos institucionali-
zados, mas uma prática, ou um conjunto de experiências variadas, ainda
não determinadas, e tidas como não sérias – espaço de jogo para intensi-
dades libidinais, afetivas e para as paixões (FAVARETTO, 1983, p. 33).

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A ideia de ação política passou a ser encarada antes e principalmente


pela superação de amarras comportamentais e existenciais, em uma
extrapolação dos referenciais subjetivos, na retomada da discussão so-
bre o corpo, a sexualidade, do uso de drogas alucinógenas, da música,
principalmente o rock como forma de expressão. No Brasil, a essas dis-
cussões serão acrescidos, ainda, o embate contra as formas de censura
impostas pela ditadura e a crítica aos padrões culturais oiciais coloca-
dos pelo binômio Estado-indústria, por meio de estratégias próprias –
depois veremos que tratam-se mais de táticas do que estratégias –, ora
subterrâneas, ora explosivas. A jornalista e pesquisadora Sonia Virgínia
Moreira comenta que:

Ser alternativo no início da década de 1970 signiicava produzir fora da


zona de inluência direta do Estado ou à margem do aparato industrial
que cercava qualquer produto antes e depois da sua entrada no crescen-
te mercado consumidor. As descobertas de novos caminhos acontecem
simultaneamente, mas sem premeditação e envolvem grupos de poetas,
músicos, atores, diretores de cinema e artistas plásticos, principalmente
(MOREIRA, 1986, p. 30).

Experimentalismo e questionamento sobre o caráter mercantilista das ar-


tes. Esses parecem ser os dois temas que dominaram o cenário das artes
plásticas na década de 1970. As intervenções críticas com certo viés políti-
co e as posturas empregadas pelos produtores de artes visuais nessa déca-
da têm suas origens nas experiências anteriores (ainda nos anos 1960) de
Hélio Oiticica e Lygia Clark, na arte sensorial, conceitual, na incorporação
do corpo como objeto de fruições artísticas e, principalmente, objeto críti-
co. Frederico Moraes comenta sobre o papel de Hélio e Lygia em potencia-
lizar esse corpo crítico:

Em Oiticica como em Lygia Clark, o que se vê é a nostalgia do corpo, em


retorno aos ritmos vitais do homem, a uma arte muscular. Um retorno
àquele “tronco arcaico” (Morin), às “técnicas do corpo”, segundo Marcel
Mauss, aos ritmos do corpo no meio natural, como menciona Friedmann.
Arte como “cosa corporale”. Nos seus parangolés coletivos Oiticica bus-
cou reviver o ritmo primitivo do tam-tam, fundindo cores, sons, dança
e música num único ritual. [...]. Em ambos artistas brasileiros a “obra é
frequentemente o corpo” (“a casa é o corpo”), melhor, o corpo é o motor
da obra. Ou ainda, é a ele que a obra leva. A descoberta do próprio corpo.
O que é de suma importância em uma época em que a máquina e a tec-

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Vazios culturais versus alternativas da cultura e as estratégias da poesia de Cacaso

nologia alienam o homem não só de seus sentidos, mas de seu próprio


corpo (MORAES, 1983, p. 52).

A geração posterior, que iria passear por outras possibilidades literárias-


-poéticas, incorporaria (literalmente), muitas das discussões a respeito
dessa nova “crítica a partir do corpo”. São novos meios, novas estratégias
diante do espaço crítico cerrado pelo ambiente da ditadura. Dessa forma,
a politização das formas artísticas vai se reformulando, se moldando às
pressões de um tempo amedrontado. A estudiosa e crítica de artes Otília
Arantes aponta que

com o AI-5 e o recrudescimento da censura, os artistas foram obrigados a


encontrar formas de expressão em que a referência ao social fosse menos
direta. Indo de encontro à voga internacional do underground, os artistas
nacionais que permaneceram no país vão buscar na marginalidade das
instituições e pela exacerbação da gestualidade uma desestabilização in-
direta dos valores impostos (ARANTES, 1983, p. 14).

Já é clássica a apresentação de Antônio Manuel no Salão Nacional de


Arte Moderna, no início dos anos 1970, no Rio de Janeiro. Seu trabalho
era ele mesmo, o próprio artista, nu, sem retoques, que comparecia para
a inauguração do Salão. Outros, como o artista Cildo Meireles, tomaram
caminhos também marcados pela individualidade, mas não menos polí-
tica, quando, de certa feita, se apropriaria de objetos de consumo, como
a Coca-Cola, e transformaria seus rótulos, subvertendo informações com
o emprego de slogans antiamericanistas, listas de pessoas desaparecidas.
Os recipientes eram devolvidos para a fábrica, depois reenchidos e de
novo utilizados pelo consumidor.

O cinema alternativo, por sua vez, esteve representado por uma pro-
dução que se contrapôs não só à cooptação estatal, via produções i-
nanciadas pela Embrailme, mas também em choque com toda uma
linguagem dita comercial. A experimentação de linguagens também
deu a tônica do chamado cinema “udigrudi”. Produções com baixíssi-
mo custo e carentes de maiores aparatos tecnológicos, mas livres para
criar. Angulações imprevistas, cenários improvisados, narrativas não
lineares, delirantes, a apropriação do mau gosto, do que é escatológi-
co, são alguns dos elementos trabalhados por cineastas como Rogério
Sganzerla, Júlio Bressane, Ivan Cardoso e outros, que estiveram na li-
nha de frente desse chamado cinema marginal. Com produções bara-

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Carlos Augusto Lima

tas e um sistema de distribuição quase inexistente, quando muitas das


projeções eram realizadas na sala de estar dos amigos, para um público
mínimo, o cinema marginal fez valer o anseio de uma liberdade criadora
para uma produção cinematográica nitidamente marcada pelo domínio
ou de uma produção estatal ou das grandes produções cinematográicas
da indústria americana.

Ainda cabe nesse rol da chamada produção alternativa, marginal, ou


mesmo independente, a movimentação em torno de artes como os qua-
drinhos e a música. Sendo muito próximas as práticas, um mesmo es-
pírito moldava as intenções dos produtores de cultura que procuravam
estratégias de sobrevivência diante do sufocamento imposto pelo regime
militar. Resumindo, o fato é que a liberdade de expressão de ideias e a
discussão sobre o mercado são os dois pontos cruciais pelos quais orbi-
taram esses insurgentes produtores de cultura.

Como se viu, “vazio cultural”, só mesmo se o termo izer referência a uma


produção executada dentro dos moldes Estado-indústria, ou se o vazio
apontasse uma determinada expectativa de ação cultural política, nos
moldes do que desejava Zuenir Ventura. Pois, de forma mesmo submer-
sa, pelas margens do grande público do rendoso mercado cultural que
emergia dentro do projeto político da ditadura, no submundo ora silen-
ciado ora estridente, borbulhava uma produção vasta, rica e importante.
Se muitas vezes não muito valiosa esteticamente para analistas como
Zuenir Ventura, fundamental para a manutenção de um pensamento,
uma resistência, uma condição-vontade de sobreviver.

II

No mundo das letras, por debaixo dos panos, nas brechas, assistiría-
mos à grande explosão da imprensa alternativa, ou, como era chamada
na época, imprensa “nanica”. Fugindo do cerco imposto pela censura,
muitos jornalistas e intelectuais partiram para a produção de uma “im-
prensa livre”, marcada pela resistência. Época de atuação de periódicos
como O Pasquim, O Bondinho, e os jornais Movimento e Opinião, entre ou-
tros. Era a tentativa de livre pensamento e livre informação, associados
muitas vezes ao deboche, à informalidade, ao humor. Periódicos de vida
curta, muitos deles, de péssima qualidade editorial, mas importantís-
simos no sentido de dar vazão às relexões incontidas e à manutenção

Sinais Sociais | Rio de Janeiro | v.8 n. 22 | p. 87-113 | maio-ago. 2013 95


Vazios culturais versus alternativas da cultura e as estratégias da poesia de Cacaso

de um pensamento crítico no país, à maneira e desejo daquilo que pro-


punha Zuenir Ventura, talvez. Ao mesmo tempo, vê-se surgir a chama-
da “geração mimeógrafo” na poesia, ou também “geração marginal”. Os
poetas passaram a tomar posse de todas as instâncias da produção de
poesia: de sua elaboração até a distribuição.

Antes de continuar e abordar a produção mais estritamente literária,


gostaria de acionar uma tecla pause nesse nosso trajeto para atentar
e já pensar em um termo muito caro aos agentes da cultura da época:
resistência. Expressão cara e recorrente, principalmente no trabalho de
Heloisa Buarque de Hollanda, mais especiicamente em seus artigos pu-
blicados na imprensa carioca no começo dos anos 1980, já com algum
distanciamento do “calor da hora” da explosão da geração marginal.
Heloisa comenta que “é possível se pensar, no caso literário, a poesia mar-
ginal dos anos 70 em várias direções” (GASPARI; HOLLANDA; VENTURA,
2000, p. 187), mas enfatiza que escolheu e prefere ver essa produção
como “um espaço de resistência cultural, um debate político.” E a palavra
resistência se perpetuará em seus artigos de maneira recorrente, sempre
que se referir àquela produção. A curiosidade me levou então a pensar a
palavra e seus desdobramentos. Vejamos as deinições:

Do latim: Resistere. V.T.I. 1. Oferecer resistência, não ceder; opor-se, fazer


face (a um poder superior) 2. Fazer frente (a um ataque, acusação, etc.),
defender-se. 3. Recusar-se, negar-se, opor-se. 4. Durar; conservar-se; sub-
sistir. 5. Oferecer resistência. 6. Oferecer resistência a, opor-se a (FERREIRA,
1986, p. 1.494).

Dois dos termos listados me foram bastante caros: conservar-se e subsis-


tir. Gostaria de pensar, de forma mais especíica, aqui já tratando de certa
produção literária da época, as ações em torno da poesia e da geração
marginal como uma condição em que as coisas se deram, se passaram,
como um gesto de sobrevivência diante de forças poderosas e condições
existenciais bastante adversas. Um gesto mesmo de conservar-se, man-
ter-se vivo, subsistir. Ou mesmo de re-existir, propondo outras possibili-
dades. Seja diante de um universo maior, o próprio universo político do
país, seja dentro das cadeias de força e dominação da própria cultura.
Manter-se vivo diante da condição maior que é o próprio medo. Aqui, tiro
da manga um poema de Antônio Carlos de Brito (Cacaso), “Logia e mito-
logia”, de seu segundo livro, Grupo escolar:

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Carlos Augusto Lima

Meu coração
de mil novecentos e setenta e dois
já não palpita fagueiro
sabe que há morcegos de pesadas olheiras
que há cabras malignas que há
cardumes de hienas iniltradas
no vão da unha na alma
um porco belicoso de radar
e que sangra e ri
e que sangra e ri
a vida anoitece provisória
centuriões sentinelas
do Oiapoque ao Chuí
(CACASO, 2002, p. 163)

O coração do poeta perdeu toda a tranquilidade e leveza. Agora ele teme,


rodeado por “centuriões sentinelas” e sabe que “cabras malignas” e “car-
dumes de hienas” tramam e se lambuzam com o poder. Para todos os
lados e de todas as formas. Então, como se manter vivo e sóbrio diante
de tanto mal, temor, sufoco? Como conservar-se? Que fazer para ten-
tar subsistir? Daí a condição do alternativo, agindo entre brechas, pelos
lancos da cultura, da própria poesia, que vão se abrindo a foice e facão,
formando também clareiras de respiro nesse ambiente torto e rarefeito.
Então, fez-se necessário criar artimanhas de sobrevivência. Mais táticas,
que estratégias, se é que é possível pensar assim toda essa movimenta-
ção, como veremos a seguir.

Desenvolvendo ampla pesquisa que cruzou as décadas de 1960, 70 e parte


dos anos 80, o historiador e pensador francês Michel de Certeau dedicou-
-se a identiicar as formas e os modos de fazer de determinados grupos
sociais, vivendo sob jugo de forças superiores. As formas de se cozinhar,
de se ler, de trafegar na cidade, de consumir, entre outras, foram objeto e
motivo de suas observações levando-o a pensar que grupos menos privi-
legiados, ou oprimidos – subjugados por forças poderosas, estabelecidas
seja por condições do momento histórico (guerras, ditaduras, imperialis-
mo das nações etc.) seja pela própria formação cultural das sociedades (o
paternalismo, o machismo, o consumo, a leitura, as regras disciplinares
etc.) –, criam suas estratégias e táticas de sobrevivência e estabelecem
(mesmo que inconscientemente, mesmo sabendo-se domadas pelas es-

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Vazios culturais versus alternativas da cultura e as estratégias da poesia de Cacaso

truturas de poder) formas peculiares de reação, modos de ser e estar.


Na verdade, Certeau acabou propondo que os dominados manipulam
e alternam os códigos repassados pelos dominadores. Se Foucault se
interessara por uma “microfísica do poder”, analisando a aparelhagem e
sutileza de dominação a partir do referencial dos dominadores, Certeau
preferiu pontuar suas análises na perspectiva daqueles que consomem,
são consumidos, manipulados, cercados, submetidos a essas mesmas
formas de poder. Um movimento que revela um gesto de generosidade
sobre os mais fracos. Na verdade, os próprios conceitos de fraqueza, sub-
missão, obediência, passam a ser revistos, reavaliados.

Nesse movimento de resistir, conservar-se, os sujeitos dominados criam


suas táticas. E é isso que interessa a Certeau, como ele mesmo pontua:

Meu trabalho [...] consiste em sugerir algumas maneiras de pensar as


práticas cotidianas [...] supondo, no ponto de partida, que são do tipo
tático. Habitar, circular, falar, ler, ir às compras ou cozinhar, todas essas
atividades parecem corresponder às características das astúcias e das
surpresas táticas: gestos hábeis do “fraco” na ordem estabelecida pelo
“forte”, arte de dar golpes no campo do outro, astúcia de caçadores, mobi-
lidades nas manobras, operações polimóricas, achados alegres, poéticos
e bélicos (CERTEAU, 1999, p. 103-104).

As táticas revelam suas formas e modos de fazer, de ser e de estar. Por


elas, os sujeitos criam seus desdobramentos e formas de resistências.
Mas por que não pensar esses movimentos “astuciosos”, também como
estratégias? Certeau trabalha essa dicotomia e elabora uma distinção de
nomenclatura a partir das seguintes ideias. Para ele,

a estratégia seria o cálculo das relações de forças que se torna possível a


partir do momento em que um sujeito de querer e poder é isolável de um
ambiente. Ela postula um lugar capaz de ser circunscrito como um próprio
e portanto capaz de servir de base a uma gestão de suas relações com sua
exterioridade distinta (CERTEAU, 1999, p. 46, grifos do autor).

Ou seja, a estratégia está relacionada com uma tomada de poder, com


uma airmação de um sujeito de querer e poder como uma autonomia,
uma ocupação de espaço sobre um outro. Por sua vez, Certeau deine a
tática como aquela

ação calculada que é determinada pela ausência de um próprio. Então


nenhuma delimitação de fora lhe fornece a condição de autonomia. E por

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Carlos Augusto Lima

isso deve jogar com o terreno que lhe é imposto tal como o organiza a lei
de uma força estranha. Não tem meios para se manter em si mesma, à
distância, numa posição recuada, de previsão e de convocação própria: a
tática é o movimento “dentro do campo de visão do inimigo”, como dizia
Büllow, e no espaço por ele controlado [...]. Ela opera golpe por golpe, lan-
ce por lance. Aproveita as “ocasiões” e delas depende, sem base para esto-
car benefícios, aumentar a propriedade e prever saídas. O que ela ganha
não se conserva. Este não lugar lhe permite sem dúvida mobilidade, mas
numa docilidade aos azares do tempo, para captar no voo as possibilida-
de oferecidas por um instante. Tem que utilizar, vigilante, as falhas que
as conjunturas particulares vão abrindo na vigilância do poder proprietá-
rio. Aí vai caçar. Cria ali surpresas. Consegue estar onde ninguém espera.
É astúcia (CERTEAU, 1999, p. 100-101, grifo do autor).

Se a estratégia se organiza pelo postulado de se chegar ao poder, tática


é ausência de poder. Mas também é artimanha, jogo de tramas e as-
túcias, gestos de sobrevivência, subsistir. E é exatamente dessa forma
que gostaria de pensar as articulações tramadas pela poesia marginal:
como uma tática de sobrevivência. Um gesto político, mas de uma outra
dimensão política, como já dissemos, onde se operam táticas de sobrevi-
vência, onde a necessidade de expressão exige determinadas operações
por dentro de um ambiente politicamente cerceado e artisticamente po-
lido e ordenado (não menos cerceado) também por instâncias originárias
de uma tradição literária, de um mercado excludente, de uma rigidez
acadêmica. Ou seja, é dentro daquele próprio, como sugere Certeau, que
se operam os movimentos táticos, aproveitando as brechas e abrindo
caminhos, lancos, entre as falhas do sistema vigilante e opressor, seja
ele político ou literário. Até porque as astúcias da poesia não se colocam
mais na perspectiva de tomada de poder. Já comentei que as preocupa-
ções político-partidárias haviam se deslocado para os questionamentos
morais, para relexões comportamentais e a ideia da tomada de poder
político se esgarçara. Uma época de desilusão, por exemplo, com os aca-
lourados ideais revolucionários de esquerda. Aliás, sobre esses ideais e
projetos políticos, Sergius Gonzaga é taxativo ao airmar suas fragilida-
des, já que

os anos posteriores a 1968 acentuaram o fracasso de um projeto estético/


político articulado mais a partir de fantasias do que sobre um conheci-
mento das bases concretas da sociedade. Tratava-se de um projeto falso
– não por ter sido derrotado – mas por se erigir em torno de uma ideologia

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Vazios culturais versus alternativas da cultura e as estratégias da poesia de Cacaso

profundamente ilusória. [...] Sob esse ângulo, a desilusão que se abateria


sobre os núcleos pequeno-burgueses, no inal da década de sessenta e
no início da década seguinte, não seria uma desilusão real, quer dizer,
com a grandeza de um fracasso histórico real. Ao contrário, tratava-se de
uma desilusão de segunda ordem, iniltrada por sofrimentos e espantos
muitas vezes decorrentes da alienação ou da mera impotência para o
entendimento da derrocada (GONZAGA, 1981, p. 145).

Se reais ou não as desilusões – não me cabe aqui levar mais adiante essa
discussão –, o fato é que os novos poetas se distanciam dessas proble-
máticas e armam suas táticas com a ideia de criar possibilidades sobre
o próprio viver. Ou sobre o que é possível viver. Nesse possível, toda uma
sistemática de poder é colocada de lado, no que interessa aos jovens poe-
tas. “Agora, os projetos não se fazem mais no sentido de mudar o siste-
ma, de tomar o poder. Cresce, ao contrário, uma desconiança básica na
linhagem do sistema e do poder” (HOLLANDA, 1980, p. 100). Reairmo,
dessa forma, o movimento tático que a geração marginal empreendeu na
época. Não sei airmar se uma nova utopia, ou uma nova ilusão substituí-
ra outra, mas a verdade é que a literatura, ou a negação dela, como co-
mentaremos depois, funcionou como substituta das armas, das palavras
de ordem. O que interessou, nesse jogo tático que assumiram os novos
poetas, foi, na verdade, o registro de outras instâncias da vida.

III

Nas táticas das letras, sobreviver, subsistir, é vontade tamanha e faz par-
te do jogo, das artimanhas. E dentro do “campo de visão do inimigo”, sa-
ber dizer não, outra hora não entrar no jogo, não querer dançar a dança,
é dos movimentos táticos o mais simbólico da geração marginal. Mesmo
que nesse negar se observe um movimento de ir e vir, uma mobilidade ao
sabor do vento e do momento. Uma negação que se contradiz, se desfaz
e, por isso mesmo, é tática.

Primeira negativa. Em oposição aos discursos da técnica, da eiciência e


da tecnologia, fortemente articulados e difundidos pela elite brasileira
e levados à frente pelo regime ditatorial – principalmente entre o inal
dos anos 1960 e início dos 1970 –, o pensamento contracultural, do qual a
geração marginal fora herdeira, projetava a arma aiadíssima da descon-
iança. Consumismo e ufanismo são dois elementos centrais colocados

100 Sinais Sociais | Rio de Janeiro | v.8 n. 22 | p. 87-113 | maio-ago. 2013


Carlos Augusto Lima

pelo “milagre brasileiro”. Eiciência técnica (inclusive da indústria cultu-


ral), avanço tecnológico, alta produtividade, o país caminhando a passos
largos, mesmo que o avanço se projete limitado, naquilo que é distribui-
ção democrática desse crescimento.

A geração marginal disse não ao aparato tecnológico e ao boom da in-


dústria editorial – principalmente em meados da década de 1970. Sua
dimensão do “contra” está na incorporação, por parte do poeta (aquele
que produz), de todos os processos na linha de produção do objeto li-
vro. Pensar o poema, colocá-lo no papel, imprimi-lo, divulgá-lo, vendê-lo.
A relação de intermediação entre a obra/autor e o público não se da-
ria mais com a dependência de uma editora “formal” e seu aparato de
funcionamento, divulgação e distribuição. Esses processos estariam nas
mãos do poeta, reduzidos que fossem a uma amplitude mínima de ação.
A incorporação da ineiciência em oposição à eiciência da indústria cul-
tural passa a fazer parte e dar sentido à chamada geração marginal. A
precariedade é fator positivo, dá força e vida a essa produção.

Na era do designer e do planejamento, quando a tecnologia aplicada ao


acabamento e à difusão do livro tem na sua retaguarda o amparo irme
do cálculo e do interesse econômico, nos deparamos com esses livrinhos
de aspecto precário, cheios de resíduos românticos e artesanais. Um en-
tendido em mercadologia e publicidade que desse de cara numa esquina
com o livro Muito prazer (Chacal) seria capaz de exclamar surpreso: Mas
isso não é uma mercadoria! (CACASO, 1997, p. 18).

Abro de vez o caminho, a partir dessa citação, para o poeta-crítico Antônio


Carlos de Brito, o Cacaso,1 um dos articuladores, pensadores das artima-
nhas táticas e teóricas a respeito dessa geração. Cacaso toma a movimen-
tação em torno da geração marginal para cavar as brechas e transitar
pelos lancos do poder intelectual, institucionalizado pelas publicações,
ora alternativas, ora oiciais e, principalmente, o poder representado pelo
circuito universitário e o próprio cenário literário da época. Ambos (uni-
versidade e cenário literário) esboçaram uma crítica reativa e depreciativa
para com a poesia jovem que surgia, denominada marginal. Ausência de
rigor, descuido, irracionalismo, ingenuidade, egolatria e outro sem-núme-
ro de adjetivos com a marca do incômodo recaíam sobre a produção mar-
ginal. Cacaso (juntamente com Heloisa Buarque de Hollanda) foi a igura
que tomou a frente, comprou briga com as forças de reação daquele pró-
prio, de que fala Certeau. Não para eliminá-lo. Essa nunca fora a questão.

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Vazios culturais versus alternativas da cultura e as estratégias da poesia de Cacaso

Mas para achar um lugar, um modo de ser e estar, dentro desse próprio.
Um lugar que foi o da resistência, da artimanha, do jogo tático. E a tática
estava em movimentar-se pelos contrários, pelas negativas daquilo que
estava institucionalizado: a forma, o conteúdo, o modo de ser e estar da
própria literatura. Cacaso foi um ordenador dessas negativas.

Então voltemos. Na citação de Cacaso, a respeito do livro Muito prazer,


do poeta Chacal, vemos a exaltação do precário. O valor estava ali, tati-
camente, em airmar uma não-mercadoria, algo com desconiado e de-
sacreditado valor de compra e venda. Objeto à margem das negociatas
e negociações. O marketing dessa mercadoria é o bate-papo, o “chegar
junto”, uma troca de intimidade entre o poeta e o leitor. Cacaso aponta a
presença de uma utopia:

A distribuição manual do livro, ainda que a troco de algum dinheiro, ate-


nua muito a presença do mercado, modiicando funcionalmente a rela-
ção entre obra, autor e público e reaproximando e recuperando nexos
qualitativos de convívio que a relação com o mercado havia destruído
(CACASO, 1997, p. 25).

É certo que a utopia perdurou durante a década de 1970 com força e aju-
dou a construir uma aura, uma mística da precariedade marginal, uma
quase pureza. Mas o jogo de forças, de movimentos táticos, exige idas e
vindas, avanços e retrocessos na busca do lugar. A exaltação da precarie-
dade, opondo-se à qualiicação técnica, seria tática durante um período
mais especíico (os anos 1970), no qual o movimento pelos lancos, nos
cochilos do poder (e de suas várias faces: estado, universidade, tradição
literária, crítica), era o único movimento possível. Com a chegada da dé-
cada de 1980, e o processo de abertura política, anistia, reordenação de
forças, muitos dos poetas da geração marginal passariam a ter seus li-
vros publicados por editoras “formais”, contando com signiicativas tira-
gens, eiciente sistema de distribuição e cuidado editorial. Na observação
de Heloisa Buarque de Hollanda:

A retomada do discurso político na imprensa, a organização das enti-


dades sindicais e estudantis, os movimentos de massa, a novidade das
associações de bairro mobilizaram debates e retiram da literatura e da
produção cultural em geral o privilégio de ter sido, por um bom tempo, o
espaço por excelência da discussão sobre a realidade e o momento brasi-
leiro [...]. A poesia volta à literatura e se torna exigente (HOLLANDA, 2000,
p. 188-189).

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Carlos Augusto Lima

Idas e vindas. Táticas da poesia.

Segunda negativa. A desconiança que o olhar contracultural de seus


herdeiros diretos (poetas marginais) lança sobre os projetos políticos de
esquerda se reproduz ao projeto desenvolvimentista, representado pelo
binômio eiciência-produtividade da ditadura militar. Se olharmos bem,
essas discussões sobre técnica, progresso, modernidade e a incorporação
disso tudo como elemento da literatura já são, há tempos, questões que
diziam respeito à tradição da própria literatura e de suas vanguardas.
No entanto, tais discussões já não dirão muito para os poetas marginais,
que se mostrariam avessos a projetos, planos-piloto, manuais, técnicas,
apropriação da tecnologia como, na verdade, um lastro de reacionarismo
assumido pela própria literatura. Recorro mais uma vez ao pensamento
de Heloisa Buarque:

É importante ainda lembrar que o lugar privilegiado que as vanguardas


ocupam por mais de uma década na cultura brasileira vai progressiva-
mente perdendo prestígio na medida em que a ideologia desenvolvi-
mentista vai sendo questionada, a partir do entendimento de seu papel
e de sua integração ao projeto político-econômico pós-64. Assim sendo,
a descrença na signiicação e na linguagem desenvolvimentista coloca
em debate o problema das relações de dependência, acirrado pelo pro-
jeto econômico vigente. E é no aprofundamento dessa questão que se
empenha a crítica realizada pelo tropicalismo e seus desdobramentos
(HOLLANDA, 1980, p. 52).

Onde se lê, “tropicalismo e seus desdobramentos”, leia-se “geração mar-


ginal”. Dessa forma, torna-se tático comprar a briga com as vanguardas,
especialmente com o concretismo, apontando seu “lugar privilegiado”
dentro do cenário literário brasileiro das últimas décadas e, por isso
mesmo, tomando essas mesmas vanguardas como estruturas de poder.
O movimento é o do afastamento, da tentativa da distância, tomar as
possibilidades de experimento (linguagem, estrutura e novos suportes)
como “não sendo resultado exclusivo de idelidade a qualquer programa
ou ‘plano-piloto’” (CACASO, 1997, p. 41).

Aqui retomo Cacaso, que pensou taticamente esse afastamento. Em alguns


de seus artigos, Cacaso é taxativo e aguerrido em expor os preconceitos e
lugares de altivez dos representantes da poesia concreta. O papel das van-
guardas, dos concretos principalmente, é colocado em xeque em uma fala
de dureza, aridez, espicaçando o suposto inimigo. É o que se vê, por exem-

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Vazios culturais versus alternativas da cultura e as estratégias da poesia de Cacaso

plo, no clássico artigo “Meu verso é de pé quebrado”, publicado em parceria


com Heloisa Buarque de Hollanda, na revista Argumento, de janeiro de 1974.
Registrando o fato da Expoesia I, mostra realizada pelo departamento de
Letras e Artes da PUC-RJ, os autores remetem à ausência dos poetas con-
cretos nas conferências e debates do evento:

No entanto, sob a alegação de que na geleia geral brasileira alguém tem


que fazer o papel de medula e osso, os irmãos Campos recusaram-se
a participar daquilo que julgaram que seria um acontecimento do tipo
“eclético-caricativo”, e concluem, dentro de seu velho estilo tautológico,
“que a poesia é ou não é” (CACASO, 1997, p. 56).

Mais à frente, surge uma ressalva sobre o “lugar” das vanguardas presen-
tes na exposição de poesia:

No terceiro andar, o saguão da biblioteca protegia paradoxalmente as


vanguardas processo, práxis, tendência e outras. Esse fato talvez pu-
desse ser explicado pelo alto custo dos materiais usados, onde se via,
por exemplo, o emprego provinciano e abusivo do acrílico, cuja funcio-
nalidade nem sempre pode ser percebida. Se realmente a utilização de
materiais nobres, em certas práticas vanguardistas, implica uma neces-
sidade de “seguro” desse material, então algo resulta estranho. O signi-
icado prático disso volta-se contra essa própria atividade poética que
se revela elitizada, auriicada, defendida do público, quando, contradi-
toriamente, os objetivos propalados por essas escolas parecem sugerir
o contrário. Devemos acreditar no que as vanguardas dizem ou no que
fazem? (CACASO, 1997, p. 57)

O ataque é frontal. O “lugar” (físico e político) das vanguardas é colocado


sub judice e, principalmente, sob implacável desconiança. Tempos depois
a avalanche da poesia marginal (diga-se de passagem, muito mal vista
pelos concretistas) em meio à polêmica travada entre Roberto Schwarz e
Augusto de Campos nas páginas do caderno Folhetim, da Folha de S. Paulo,
entre março e abril de 1986. Cacaso escreveu artigo, publicado na Revista
do Brasil, n. 5, 1986, ainda discutindo o caráter, para ele, autoritário das
vanguardas, dentro do cenário literário brasileiro.

O que parecia uma rixa particular, ou uma defesa juvenil dos mais fracos
ante os mais fortes (quem sabe, era), pode contudo ser lida como um jogo
tático. Cacaso se utilizará do “lugar” da poesia concreta (e das vanguar-
das) para, maliciosamente, afastar a poesia jovem dos anos 1970, a gera-
ção marginal, de quaisquer vínculos com aquela. Na verdade, o jogo não

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Carlos Augusto Lima

é (era) o de propor uma ruptura com a (já) tradição das vanguardas. Pelo
menos no sentido de tomar o lugar dessa tradição. Mais uma vez, a táti-
ca não foi a de tomar o lugar do próprio, mas de propor um desvio, uma
dobra, e conectar-se a um outro próprio. Tanto em seus textos críticos
quanto na sua poesia (como veremos a seguir), Cacaso buscou substituir
os vínculos diretos da tradição que antecede a poesia marginal (geração
de 45, vanguardas) e substituí-la pela tradição e pelos valores estéticos
do modernismo entre 22/30.

Ao tratar dos dois antecedentes citados, Cacaso vê, em uma perspectiva


crítica, desvios e perda de algumas posturas e avanços levados à fren-
te pelo modernismo. O ar de desconiança é predominante, tornando-se
combustível para detonar as pontes que unem a poesia jovem (marginal)
e as tradições da geração de 45 e vanguardas:

Vimos que a vocação cognitiva e crítica delagrada pelo modernismo, seu


projeto de inovação participante, começou a desaparecer de nossa poesia
com a reação beletrista de 45. Logo essa reação é levada a cabo pelo con-
cretismo, onde a hipertroia da forma perde a função de conhecimento, e
paga tributo à nossa ideologia desenvolvimentista e industrializante dos
anos 50 (CACASO, 1997, p. 171).

Antes, e ainda no mesmo artigo publicado em 1978, “Atualidade de Mário


de Andrade”, Cacaso aproveita e retoma a discussão sobre a falência crí-
tica da geração de 45 e, mais, trata de uma crítica que lhe é recorrente em
relação às vanguardas: a perda de uma referência a um sujeito na poesia
e, consequentemente, sua separação da vida e da experiência cotidiana,
exercícios tão caros ao também poeta Cacaso:

Mas difícil é se estabelecer a autoria, como também a gradação de va-


lor, se estamos diante de poemas concretos, movimento programático e
vanguardista, que veio, por assim dizer, depois da reação academicizante
iniciada em 45, completar a liquidação do legado artístico-ideológico mo-
dernista, mas desta vez com um tipo de reação da era moderna, identi-
icada com os circuitos de comunicação da industrialização de massas.
Com 45 o interesse estético especulativo é desconectado do político-
-social, mas ainda se sustenta na pesquisa interior e psicológica. Com o
concretismo, esse último nexo de vida é cortado, e o fazer poético, diante
da liquidação do próprio sujeito, degenera em manipulação de materiais
(CACASO, 1997, p. 163).

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Vazios culturais versus alternativas da cultura e as estratégias da poesia de Cacaso

Em artigo publicado na revista Inimigo Rumor, o poeta, amigo e coetâneo


de Cacaso, Eudoro Augusto, reforça minha observação a respeito da “tá-
tica de afastamento” (ou seria de descarte?) de que Cacaso se utilizou:

[...] Cacaso parece interessado em identiicar e descartar as tendências


ou movimentos que nos separam do Modernismo. Ou seja, a Geração de
45, o Concretismo e a chamada poesia social. Sempre que toca nesses
“assuntos”, deixa clara a sua rejeição e explícitos os seus motivos (AU-
GUSTO, 2000, p. 105).

Com relação à chamada poesia social, ou aos poetas politicamente enga-


jados – pelo menos, se entendermos dentro dos moldes tradicionais de
engajamento de esquerda –, que Eudoro também faz questão de relem-
brar, Cacaso não é menos taxativo, chegou mesmo a airmar que alguém
já dissera “que o povo é duplamente explorado: economicamente, pelos
capitalistas; literariamente, por certos poetas engajados”. Mais à frente,
fez questão de apontar que

o que tais poetas da esquerda oicial ainda não aprenderam é que não
há engajamento possível fora da lição modernista, onde o engajamento
prioritário é o da própria forma literária, onde se desenvolve uma ação
crítica no domínio mesmo da criação (CACASO, 1997, p. 122).

Cacaso relembra que as formas de engajamento não podem se desprover


de um embate dentro da própria linguagem e esta deve ter um compro-
misso com sua própria liberdade, longe do dogma, da regra, da ortodoxia
de partido ou de tendência poética. Aliás, compromisso com o descom-
promisso. É o que ele observa e propõe quando escreve sobre a poesia do
poeta Chacal:

[...] a poesia desrespeitou alguma norma? Está precisando se justiicar?


Necessita dar satisfações a alguém ou algum interesse, além dos seus
próprios? E a poesia de Chacal parece querer responder com sua mera
presença: vivo brincando mas nem por isso sou inútil, pois é nisso mes-
mo, em brincar, em ser amadorista, que reside a minha justiicativa e
mesmo força. É este o fundo de tudo: a poesia de Chacal insinua estar rei-
vindicando a plenitude da gratuidade, e mesmo ancorando nisso sua ra-
zão maior de ser. É a busca de um momento que seja de descompromisso
com tudo, passando pela ordem dos fatos, a eiciência do raciocínio, a res-
peitabilidade do veículo e de seus temas, as justiicativas louváveis, po-
rém exteriores etc. etc. Descompromisso inclusive com a noção comum
de descompromisso, pois pretende ver nisso, no direito à gratuidade e ao
jogo desinteressado do espírito, que encarna e que propõe, uma forma

106 Sinais Sociais | Rio de Janeiro | v.8 n. 22 | p. 87-113 | maio-ago. 2013


Carlos Augusto Lima

especial de engajamento, uma participação a um tempo literária e vital


num incondicional sentimento de liberdade. Sua utopia é vivida no pre-
sente e deinida pela via negativa: a liberdade é para ser encarnada agora
e não para ser uma meta futura, como na poesia missionária de esquer-
da, ou simplesmente sufocada e administrada, como nos autointitulados
grupos de vanguarda (CACASO, 1997, p. 43).

Mais idas e vindas. Foi tático para Cacaso a recorrente e constante ten-
tativa de desassociar a poesia marginal das vanguardas (concretismo,
práxis, processo etc.). No entanto, é preciso deixar claro que essa mesma
poesia marginal, frequentemente, por sua vez, fez uso de determinados
canais em que é nítido o aproveitamento da visualidade e dos recursos
“verbivocovisuais” propostos pelo concretismo e suas crias. Colagens,
graismos, brincadeiras com o espaço em branco da página, novas pos-
sibilidades de suporte para a poesia: o cartão-postal, o saco de pão, o
outdoor, a pichação em muros, o poema estampado na camiseta etc. Sem
contar com as “experiências” de Paulo Bruscky e Daniel Santiago com
seus “poemas classiicados”, publicados nas páginas de anúncios clas-
siicados do jornal Diário de Pernambuco, ou o livro lançado por J. Medei-
ros editado em formato de rolo de papel higiênico. Como lembra Glauco
Mattoso:

Não são autores ou grupos bitolados por esta ou aquela escola de van-
guarda, e sim gente que, mesmo sem ter tomado parte nos movimentos
concreto e processo, assimilou e utilizou livremente todos os recursos
disponíveis (MATTOSO, 1981, p. 37).

A ideia é a utilização livre das contribuições das vanguardas, fazendo uso


de procedimentos experimentais como possibilidade criativa e desague
da própria necessidade de livre expressão dos poetas.

Sobre essa ideia de liberdade dos usos da poesia e do próprio poeta, re-
tomo a citação de Cacaso em seu texto sobre Chacal. Retomo o passo na
construção das ideias, dos nãos, das táticas da poesia da geração mar-
ginal. Cacaso atribui uma força, uma justiicativa e uma qualiicação na
capacidade de brincar que reside na poesia de Chacal. A brincadeira e o
amadorismo são vistos como dados de valoração, pois é no descompro-
misso que emana desse brincar que a poesia se faz; sem estar presa a
valores nobres, dogmas sociais e culturais, amarras comportamentais. E
é exatamente nessa capacidade de desprendimento – que outra hora fora

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Vazios culturais versus alternativas da cultura e as estratégias da poesia de Cacaso

visto como alienação, falta de conteúdo moral e cultural –, que Cacaso


leu, de fato, uma forma tática de resistência, não só no que diz respeito
a um autor especíico mas, acredito, a toda a sua geração. O desprendi-
mento da poesia é sua liberdade. Faço uso aqui de um comentário de
Cacaso, ainda no artigo de bastante fôlego sobre a poesia de Chacal
(“Tudo da minha terra”), no qual pensa essa poética descompromissada,
lúdica, brincalhona, malandra e aparentemente irresponsável, como a
expressão, na verdade, de uma ação tática – com malícia e jogo de cintura
– de sobrevivência. Um movimento para o sujeito conservar-se, subsistir
diante da hostilidade do tempo, dos valores, da lógica, da técnica e da
própria literatura. O brincar e o lazer são artimanhas do poeta dentro do
espaço do próprio:

[...] na poesia de Chacal, quem digniica o homem não é o trabalho mas


o lazer; como a vida não está pra brincadeira vai daí que esse lazer exige
um esforço permanente de resistência, e num duplo sentido: a luta para
não ser absorvido e devorado por uma ordem social da qual desconia na
raiz, autoritária e castradora, e ainda o esforço para sobreviver à margem
dela, nas brechas, transando todas. Uma poesia cujo ideal é recortado
pela negação dos valores mais diletos do reconhecimento burguês: anel
de grau, hipocrisia, paletó e gravata, carreirismo, eiciência, prepotência,
dinheiro no banco etc. (CACASO, 1997, p. 35).

Essa passagem reairma minha intenção de perceber a produção da poe-


sia marginal como um dado de resistência e de como Cacaso é um dos
articuladores e leitores desse movimento. Cacaso conirma a condição de
embate do poeta contra a devoração de uma ordem social opressora, ma-
nifestada não só pela imagem onipresente e castradora do autoritarismo
político, mas, e também, pela opressão de uma moral burguesa da qual o
poeta pretende se desvencilhar.

O poeta move-se pelas brechas, lancos, dentro de sua condição essencial


que é a da marginalidade. Ao que parece, Cacaso vê nessa condição de
marginalidade outro dado de grande valor: a marginalidade como uma
tática de sobrevivência dada pelo espírito do não, exatamente por não se
enquadrar em um modelo de mundo (e, consequentemente, de arte) que
lhe satisfaz. E sua não satisfação não diz respeito apenas aos padrões
modelados pela eiciência inanceira mas, e da mesma forma (e força),
vai de encontro à eiciência acadêmica, do intelectual com “anel de grau”,
“paletó e gravata”, “carreirismo”. Para esse sujeito, o poeta, que vive à

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margem e tem nela seu espaço de sobrevivência, olha com desconiança.


É tático negar o sujeito intelectual, ou o intelectualismo dentro de uma
produção da literatura, pois esse intelectualismo, que está ligado ao teó-
rico (ou técnico) também já não diz muita coisa para os jovens poetas.
Eles propuseram suas preocupações como que deslocadas do âmbito de
uma racionalidade e muito mais aproximadas de uma vivência cotidia-
na, intuitiva, afetiva, ligada não mais a projetos futuros de transformação
social, universalista e revolucionário, mas a uma experiência presentii-
cada no aqui e agora, com todos os surtos e sustos que esse tempo nebu-
loso pudesse lhes proporcionar.

Mais uma negativa? A desconiança, o afastamento e a aversão ao in-


telectualismo, ao academicismo é herança dos movimentos de rebelião
da juventude que despontaram no inal dos anos 1960. Ou seja, uma he-
rança da contracultura, herança de desapontamentos e frustrações, que
resultou na busca de outros caminhos, outras vias, opção por negar como
possibilidade de sobreviver. Messeder Pereira lembra que para esses gru-
pos, representados por uma parcela da juventude,

apostar numa transformação social situada num futuro não muito pró-
ximo, e cuja garantia de que seria atingida era teórica, torna-se uma
possibilidade cada vez mais remota e pouco signiicativa. A ênfase recai,
portanto, no presente. O “retardamento da ação” implicado pela relexão
teórica mostra-se cada vez mais ineicaz e comprometedor, tendo em
vista os objetivos que o grupo se colocava em termos de transformação
social. Neste contexto é que surge a possibilidade de um profundo ques-
tionamento da ciência, enquanto forma por excelência do “pensamento
racional”. Enquadra-se aí tanto a utilização de tóxicos, quanto a volta da
atenção para certas formas de pensamento místico, com a consequen-
te exploração de outros estados de consciência e outras formas de per-
cepção. É, portanto, no contexto desse questionamento do pensamento
racional (especialmente na sua versão cientíica) que se situa o anti-in-
telectualismo, que vai ser uma das marcas do pensamento da contracul-
tura (PEREIRA, 1981, p. 92).

Sintetiza o autor com a seguinte airmação:

Chegamos, assim a três ideias-chave – antiacademicismo, politização do


cotidiano e anti-intelectualismo – em termos de compreensão de uma
parcela signiicativa da produção cultural. [...] É, portanto, no quadro for-
mado por estas ideias que têm que ser compreendidos os diversos aspec-
tos que caracterizam a poesia marginal (PEREIRA, 1981, p. 92).

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Vazios culturais versus alternativas da cultura e as estratégias da poesia de Cacaso

Cacaso percebeu na poesia jovem que despontara na década de 1970 a


disponibilidade para uma escrita despojada de requintes e badulaques
formais, na qual a vida e as experiências cotidianas e existenciais dos
sujeitos são a pedra de toque, o leitmotiv do fazer poético. A contamina-
ção da vida se opõe violentamente à especialização literária. É a poesia
se construindo não com o aparato da leitura, do estudo, do empenho
na pesquisa estética, mas pelo encontro, pelas companhias ou pelos re-
pentes, de que fala, quando observa a escrita de um outro poeta de sua
geração, Charles Peixoto:

O poeta é inconstante, vive de repentes, frequenta lugares e compa-


nhias os mais variados, e a própria poesia encarna a forma de registro
e expressão desses repentes, menos ligados à morosidade e paciência da
elaboração literária do que à captação quase viva do instante, com vo-
cabulário descontraído e tirado diretamente da fala coloquial (CACASO,
1997, p. 210).

Vejo que a literariedade, para Cacaso, está ligada à morosidade, à paciên-


cia, elementos que não dão mais conta da poética que desponta, muito
mais ligada a uma rapidez, a um instantâneo, a uma urgência de viver.
Ou seria sobreviver? E o literário, ao que parece, é uma medida de con-
tenção para esses impulsos vitais que a poesia marginal queria, pois a
necessidade de revelar as dimensões variadas do afeto, de certa forma,
excluíam ou deixavam frouxas as proporções daquilo que é intelecto.
Mas aí é que estava o valor, para Cacaso, dessa nova poesia. Sobre os
poemas de Charles, comenta:

O verso de Charles revela um sentimento do mundo valorado diferente-


mente, onde não há lugar para elementos que possam disfarçar ou con-
ter o registro imediato de um impulso afetivo. O resultado é uma poesia
desprovida de mediações intelectuais, mas que exatamente por isso mani-
festa uma complexidade respeitável, inclusive intelectual. Só que agora
os problemas dessa natureza estão fundidos na experiência vivida, são
partes dela, e o poema pretende ser uma síntese imediatamente captada
de ambas as coisas (CACASO, 1997, p. 220, grifo do autor).

Ao que parece, mais uma vez relembrando, Cacaso pensa em uma escrita
dotada de grande carga de naturalidade, desperta pelo sensível – que não
deixa de excluir o intelecto, de certa forma – e em perfeita sintonia com
um registro utópico de liberdade da poesia e do poeta: sem modelos, sem
partido ou patrões. Poesia de risco, pois, para Cacaso, põe em xeque a

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Carlos Augusto Lima

racionalização, o estudo e, muitas vezes, sua própria condição de litera-


riedade. É poesia? Não é poesia? É exatamente aqui, nessa questão, que
sua forma de pensar a geração é interessante, pois parece querer sempre
propor outros registros e formatos para se entender essa escrita que des-
pontava e se colocava taticamente em um lugar de sobra, à margem do
próprio literário.

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Vazios culturais versus alternativas da cultura e as estratégias da poesia de Cacaso

Nota

1 Antônio Carlos de Brito, conhecido como Cacaso, nasceu em Uberaba,


em 13 de março de 1944 , e morreu no Rio de Janeiro, em 27 de
dezembro de 1987. Foi professor universitário, letrista e poeta. Depois de
viver no interior de São Paulo, mudou-se aos 11 anos para o Rio de Janeiro,
onde estudou Filosofia e, nas décadas de 1960 e 1970, lecionou Teoria da
Literatura e Literatura Brasileira na PUC-RJ. Foi um dos principais teóricos
da chamada “geração mimeógrafo”. Como poeta publicou Grupo escolar
(1974), Segunda classe (em parceria com Luiz Olavo Fontes) e Beijo na boca,
ambos em 1975. Depois, Na corda bamba (1978), Mar de mineiro (1982) e Beijo
na boca e outros poemas (1985), que reunia uma antologia poética da obra
do autor. Como compositor, reuniu parcerias com Edu Lobo, Djavan, Tom
Jobim, Toquinho, Olívia Byington, Sueli Costa, Cláudio Nucci, Novelli, Nelson
Angelo, Joyce, Toninho Horta, Francis Hime, Sivuca, João Donato, Eduardo
Gudin entre outros.

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Carlos Augusto Lima

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Violência e maus-tratos
contra as pessoas idosas

Edson Alexandre da Silva


Lucia Helena de Freitas Pinho França

115
Edson Alexandre da Silva
Advogado criminalista com especialização em Ciências
Penais. Mestrando em Psicologia Social (violência e maus-
tratos em idosos) pela Universidade Salgado de Oliveira
(Universo).

Lucia Helena de Freitas Pinho


França
Professora titular do Programa de Pós-Graduação em
Psicologia da Universidade Salgado de Oliveira (Universo)
e consultora em organizações sobre envelhecimento
e Programas de Preparação para a Aposentadoria
(PPA). Psicóloga com doutorado pela Universidade de
Auckland, Nova Zelândia, mestre em Psicologia Social pela
Universidade Federal do Rio de Janeiro (UFRJ) e especialista
em Gerontologia pelo Instituto Sapientiae (SBGG-SP).
Trabalhou no Sesc-DN, de 1979 a 1995, onde coordenou
o trabalho social com idosos.

116
Edson Alexandre da Silva | Lucia Helena de Freitas Pinho França

Resumo
Este artigo aborda as várias formas de violência contra idosos, bem
como os contextos mais propícios à sua delagração. Dentre as formas
de violência mais conhecidas na literatura estão o abuso físico, o
abuso psicológico, o abuso inanceiro, a negligência, o abuso sexual e o
autoabandono. Alguns fatores podem ser considerados como de risco
à integridade das vítimas, outros podem causar conlitos no âmbito
interpessoal ou social. Considerando a crescente incidência de agres-
sões na família, em que se revela uma subjacência de fatores multifa-
cetários, há uma tendência da vítima em não denunciar os agressores
resultando, assim, no fenômeno da subnotiicação dos casos. Portanto,
é fundamental identiicar os prováveis fatores de risco, bem como esta-
belecer estratégias de prevenção contra os maus-tratos de idosos.

Palavras-chave: Violência. Maus-tratos. Idosos. Fatores de risco.


Prevenção.

Abstract
The article investigates various forms of violence against the elderly, as well
as the most favorable contexts in which these episodes can occur. Amongst the
most known types of violence in literature, there are the physical, psychological,
inancial and sexual abuses, negligence, and self-neglect. Some factors can
be considered a risk to the physical integrity of the victims; others might
cause interpersonal and social conlicts. Considering the increasing number of
incidents in the family, which reveals underlying multifaceted factors, there is
a trend on the part of the victims not to denounce the aggressors, resulting in
an underreporting phenomenon of cases. Therefore, it is crucial to identify the
likely risk factors so as to establish prevention strategies against elder abuse.

Keywords: Violence. Elder abuse. Elderly. Risk factors. Prevention.

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Violência e maus-tratos contra as pessoas idosas

Introdução

A violência é um dos maiores desaios para a sociedade contemporânea.


Todos os dias, fatos cada vez mais violentos e aterrorizantes são noticia-
dos na mídia, exortando as autoridades a buscarem incessantes soluções
para esse problema, seja de forma repressiva, ou mesmo preventiva. De
acordo com a Organização Mundial da Saúde (2002), esse fenômeno é
uma questão de saúde pública e se propaga pelo mundo todo.

No entanto, o foco permanente na violência geral traz, diluída, a cha-


mada “cifra oculta da violência contra vulneráveis”. Ou seja, a violência
contra mulheres, crianças e idosos; estes que se tornam vítimas invisí-
veis aos olhos da sociedade, sendo notados apenas quando há grande
repercussão de algum evento violento (DUARTE et al, 2011).

Considerando o progressivo crescimento da população mundial de ido-


sos, que deverá atingir dois bilhões em 2050 (NAÇÕES UNIDAS, 2003), o
assunto vem ganhando relevância acadêmica e social, sendo abordado
em pesquisas cientíicas e alvo de ações governamentais em todo o mun-
do. A maioria desses idosos deverá viver nos países em desenvolvimento
e o Brasil terá a quinta maior população de idosos: 64 milhões.

A Pesquisa Nacional por Amostra de Domicílios (Pnad) demonstrou que


dos 195,2 milhões de brasileiros em 2011, 12,1% tinha 60 anos ou mais
de idade somando 23,5 milhões de idosos. Ou seja, mais que o dobro
do registrado em 1991, que era de 10,7 milhões de idosos (IBGE, 2012). O
desaio brasileiro em lidar com o envelhecimento será maior do que o
observado pelos habitantes dos países centrais, uma vez que os nossos
índices de qualidade de vida precisam ser melhorados não apenas para
os idosos, mas para toda a população (FRANÇA, 2012). O que acontecerá
num futuro bem próximo – em 2025 – quando os idosos brasileiros irão
representar 18% da população? França (2012) ressalta ainda que será a
primeira vez na história que teremos mais idosos do que jovens com até
14 anos.

Questões relevantes para a qualidade de vida para essa população que


envelhece rapidamente demandam ações urgentes pelas instituições go-
vernamentais e não governamentais. Soluções precisam ser estudadas
pela Psicologia, Medicina, Direito, Engenharia, Serviço Social, Arquitetura

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Edson Alexandre da Silva | Lucia Helena de Freitas Pinho França

e Urbanismo, Nutrição, Educação Física, Ergonomia e Economia Domés-


tica, entre outras disciplinas, para responderem com propostas multidis-
ciplinares a este nosso desaio.

Como argumentado por França (2012), a mídia tem um papel fundamen-


tal na quebra dos preconceitos frente ao envelhecimento – o ageismo. Os
meios de comunicação têm abordado a questão do preconceito contra as
mulheres, os negros, os homossexuais, mas ainda são raras as denúncias
de preconceito contra idosos. Estas talvez possam intervir como detona-
doras no processo de mudança da sociedade com relação ao respeito, à
cidadania, à participação social, à aprendizagem e à violência cometida
contra os idosos.

Maus-tratos, abusos e violência têm sentidos diferentes à luz da litera-


tura, já que cada conceito traz no seu bojo uma ideologia e história pró-
prias. Contudo, abusos e violência são considerados maus-tratos contra
idosos (OLIVEIRA et al, 2012) e podem deixar sequelas não apenas físicas,
mas também psicológicas e morais.

À margem de particularidades literárias, neste artigo abordaremos a


questão da violência e dos maus-tratos contra o idoso como conceitos si-
milares, conjugados, mesclados e agregados com outras formas de agres-
sões: comissivas ou omissivas.

1 Tipos de violência

Alguns estudiosos buscaram desenvolver um modelo ecológico para


analisar a violência na velhice, tendo por base quatro contextos: o indi-
vidual, o relacional, o comunitário e o social (SANDMOE, 2003). De certo
que tal modelo tem alcance bastante abrangente, já que as agressões
podem ocorrer no âmbito familiar e institucional.

Várias deinições são dadas às formas pelas quais os agressores maltra-


tam os idosos, mas quatro tipos de violência são mais condizentes com
os maus-tratos contra essas vítimas vulneráveis perante seus algozes.
O abuso físico é a forma mais notada de violência, que costuma deixar
sequelas e marcas visíveis (hematomas, queimaduras, fraturas e outras),
sendo a ação agressiva e brutal apta a ofender a integridade física da
vítima. O abuso psicológico se coaduna com formas de privação ambien-
tal, social ou verbal: negação a direitos; humilhações, insultos e ofensas;

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Violência e maus-tratos contra as pessoas idosas

preconceitos e exclusão do convívio social; abuso inanceiro, exploração


econômica, apreensão de rendimentos, uso ilegal ou ilegítimo de fundos,
propriedades e outros ativos pertencentes ao idoso (FERNANDES; ASSIS,
1999). Outro tipo é a negligência, que se conigura na permissão de que
o idoso experimente sofrimentos de maneira ativa – quando há delibe-
ração –, ou passiva – quando é resultado de imperícia no conhecimento
das necessidades do idoso, ou provocada pelo estresse do cuidador que
se dedica ao idoso por períodos prolongados (PAGELOW, 1984).

Minayo (2004) destaca três formas de violência contra os idosos: o abuso


sexual – deinido como ato ou jogo sexual por meio de aliciamento, vio-
lência física ou ameaça; o abandono – deinido pela ausência ou deserção
no socorro ao idoso dependente de proteção; e o autoabandono ou auto-
negligência – deinido como a autoameaça à própria saúde e segurança,
em razão de recusa ou insucesso de prover a si próprio.

No mundo do trabalho, uma forma menos divulgada, mas não incomum


de violência contra os idosos é o assédio moral que, em muitos casos,
acaba por antecipar a saída dos trabalhadores pela aposentadoria for-
çada, resultando no aparecimento de doenças, depressão e em alguns
casos, a morte (FRAIMAN, 2009; FRANÇA, 2008). Henretta, Chan e O’Rand
(1992) e Shultz, Morton e Weckerle (1998) apontaram que a aposentadoria
compulsória provoca uma redução nos níveis de saúde e de satisfação
com a vida. Payne, Robbins e Dougherty (1991) também encontraram um
efeito negativo signiicativo na mortalidade pela aposentadoria anteci-
pada forçada ou pela perda de atividade na aposentadoria.

O preconceito contra trabalhadores mais velhos há algum tempo vem


chamando a atenção de governos como Estados Unidos, Austrália, Nova
Zelândia, Canadá, Holanda e Reino Unido. No Reino Unido, por exemplo,
a discriminação no trabalho é crime desde 2006 e apesar do direito à
aposentadoria aos 65 anos, os trabalhadores poderão continuar traba-
lhando, se assim o desejarem. Além disso, há medidas governamentais
de proteção contra a discriminação no recrutamento, treinamento e na
promoção dos trabalhadores mais velhos e nas demissões injustas após
65 anos (LORETTO; WHITE, 2006). No Brasil, a legislação é clara quanto
à proibição da discriminação de idade na contratação de empregados,
embora a aposentadoria compulsória estabelecida pelo governo, aos
70 anos, revele uma contradição. Por certo, ainda há muito a fazer para

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Edson Alexandre da Silva | Lucia Helena de Freitas Pinho França

que a redução do ageismo – preconceito contra idade – possa de fato


acontecer (FRANÇA, 2009).

2 Contexto familiar e violência

A crença comum de que a felicidade dos idosos estaria em residir com


seus familiares nem sempre é compatível com a realidade vivida por eles.
Brant (1995) refere-se à família não apenas como o local onde se exercem
os laços básicos do indivíduo, mas como um palco de numerosas violên-
cias. Debert (2004) aponta que o convívio plurigeracional não é sinônimo
de uma velhice bem-sucedida, nem amistosa, entre as gerações.

A mesma autora ressalta o fato de a família não ser mais o absoluto re-
fúgio em um mundo sem sentimentos. Ao contrário, o ambiente familiar
tornou-se um espaço de opressão, abusos físicos e emocionais, no qual os
direitos individuais são cada vez mais alijados de seus detentores. Con-
sequentemente, já existe uma competição entre a primazia da violência
familiar e a violência geral das grandes cidades (DEBERT; OLIVEIRA, 2007).
Valadares e Souza (2010) corroboram com essa airmação, ressaltando que
a maioria das denúncias de agressões contra idosos são praticadas por
parentes das vítimas – 90% dos casos ocorrem nos lares, sendo que dois
terços dos agressores são os cônjuges, genros e ilhos do sexo masculino.

Nos processos criminais, a ênfase é dada às agressões contra crianças


pelos parentes adultos, não sendo dada a mesma atenção aos casos con-
tra os idosos da família, tornando-se invisível seu caráter violento. Nesse
sentido, a violência contra o idoso tende a ser transformada em violência
familiar comum, resultante da incapacidade dos componentes da famí-
lia em assumir seus papéis sociais nas várias etapas do ciclo familiar
(DEBERT; OLIVEIRA, 2007).

Ainda assim, novas demandas foram agregadas à vida familiar, na qual


os papéis sociais tradicionais e as estruturas que sustentam as formas
de convivência na família foram bastante alteradas pela sociedade con-
temporânea. Um bom exemplo é o papel de cuidadora que a mulher,
anos atrás, podia desempenhar sem acumular tarefas que hoje lhe são
atribuídas (BOUDREAU, 1993).

Oliveira et al (2012) sustentam que há várias razões para explicar essas


modiicações familiares: separações e divórcios, novos tipos de relacio-

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Violência e maus-tratos contra as pessoas idosas

namentos; mercado de trabalho instável que impulsiona o deslocamen-


to de imigrantes nacionais e internacionais em busca de oportunidades
de emprego; aumento da expectativa de vida e da população de viúvas;
idosos cheiando famílias até a evolução da participação da mulher no
mercado de trabalho. Segundo as autoras, todo esse arcabouço de modi-
icações vem gerando conlitos, que podem desencadear atos violentos.

Em que pese a família ser o cenário de grande parte das agressões sofri-
das pelos idosos, é também no seio dela que o idoso, em geral, se sente
mais confortável, não apenas materialmente, mas também emocional e
psicologicamente. A constatação de tal fato está patente no próprio fenô-
meno da subnotiicação, mormente nos casos em que os idosos preferem
sofrer maus-tratos a romperem os laços familiares (CAMMER, 1996).

Nesse sentido, a violência doméstica e os maus-tratos contra idosos não


podem ser tratados como uma questão meramente privada ou fora do con-
texto da violência social e estrutural no qual os sujeitos e as comunidades
estão inseridos. Portanto, é fundamental considerar a maneira como a vio-
lência é percebida nas várias culturas e sociedades. Não faz muito tempo
que algumas sociedades consideravam a harmonia no lar como prepon-
derante nas relações parentais, sendo esse pensamento legitimado por
tradições ilosóicas e políticas públicas, não havendo que se falar em maus-
tratos, nem em denúncias (PASINATO; CAMARANO; MACHADO, 2006).

Ainda é possível associar os laços familiares ao bem-estar dos idosos, na


medida em que a violência em família não é um fato corriqueiro, mas
um problema de todos, inclusive do estado como ente de apoio a esse
conjunto de conviventes intergeracionais. Em corroboração a tal enten-
dimento, Brant (1995) assevera que, atualmente, o ordenamento jurídico
prescreve que o cuidado deve ser de responsabilidade concomitante en-
tre a sociedade e a família, tendo como auxílio e suporte a ação estatal.
De fato, o Estatuto do Idoso (BRASIL, 2003) e a Política do Idoso (BRASIL,
1994) são relexos da nossa Constituição Federal de 1988, traçando políti-
cas e práticas que tornam o idoso objeto de gestão pública, funcionando
como um grande guia das ações estatais e sociais no tratamento com os
idosos, bem como indicam o modo como a velhice deve ser vista e signi-
icada (JUSTO; ROSENDO, 2010).

Assim, o Estatuto do Idoso (BRASIL, 2003) preconiza que:

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Edson Alexandre da Silva | Lucia Helena de Freitas Pinho França

É obrigação da família, da comunidade, da sociedade e do Poder Públi-


co assegurar ao idoso, com absoluta prioridade, a efetivação do direito à
vida, à saúde, à alimentação, à educação, à cultura, ao esporte, ao lazer, ao
trabalho, à cidadania, à liberdade, à dignidade, ao respeito e à convivência
familiar e comunitária (BRASIL, 2003, art. 3º).

Contudo, precisamos não apenas de uma legislação ampla que apoie as


necessidades dos idosos, mas da divulgação e promoção dessas leis e sua
iscalização.

É preponderante ainda considerar a convivência intergeracional relacio-


nada aos ditames sociais contemporâneos, de modo a proporcionar aos
idosos uma qualidade de vida conciliada com o afeto e apoio familiar.
Nesse diapasão, Brant (1995) ressalta que é na família que se desenvol-
vem códigos, sintaxe, normas, ritos e jogos, criando um universo próprio
à formação da identidade do sujeito.

Coleman e Podolskij (2007), em pesquisa com 50 veteranos de guerra


ucranianos e russos acerca da satisfação com a vida, da autoestima e da
generatividade, observaram que, apesar das desastrosas consequências
sociais e psicológicas da ruptura da União Soviética, esses veteranos de-
monstraram um alto senso de generatividade, bem-estar e esperança no
futuro das suas famílias. Apoiadas pelo estudo acima, França, Silva e Bar-
reto (2010) sugerem que pesquisas e projetos intergeracionais poderiam
ser realizados nas comunidades já paciicadas do Rio de Janeiro (UPPs).
As autoras argumentam que os projetos intergeracionais nas comuni-
dades representam uma oportunidade para discutir os preconceitos
existentes entre as faixas etárias, bem como os problemas nacionais e
locais, de forma que as pessoas possam vislumbrar alternativas para o
seu bem-estar coletivo.

3 Contexto sociocultural e violência

Um estudo com tribos africanas demonstrou que o desejo de extermínio


político dos idosos é um verdadeiro rito. Nessas tribos, as funções sociais
são bastante deinidas, em que a velhice torna o idoso sem função social,
logo, um não cidadão. Assim, quando o indivíduo envelhece é levado a
cavernas bem distantes para morrer afastado de seu povoado (RIFFIOTIS,
2000; ESPÍNDOLA; BLAY, 2007).

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Violência e maus-tratos contra as pessoas idosas

O resultado desse estudo parece um fato surreal, que não acontece nas
sociedades contemporâneas, mas tal conclusão é apenas aparente. O es-
tudo conduzido por Lemos (2010) revela alguns detalhes do relato de uma
assistente social em visita a uma casa na qual havia uma senhora de 92
anos abandonada. Uma denúncia anônima relatou que essa senhora en-
contrava-se em condições desumanas, onde não havia água e nem con-
dições de higiene mínimas. A vítima tinha oito ilhos, dos quais apenas
uma ilha, supostamente doente, lhe dava atenção e a visitava; recebia
pensão, mas se ignora quem recebia os valores e como eram utilizados.
Esse caso é, indubitavelmente, apenas um entre muitos que ocorrem nos
dias atuais, bastando uma consulta aos arquivos de denúncias em órgãos
de proteção ao idoso ou nos noticiários da mídia.

Nesse contexto, a assistência aos idosos, especialmente aos mais caren-


tes, ganha especial relevância. O chamado desejo social de morte dos
idosos se conigura de várias formas pela falta de cuidados básicos do
cuidador, pelos maus-tratos familiares e institucionais, pelos conlitos de
gerações, entre outras mazelas às quais estão expostos (MINAYO, 2003).

Outro aspecto que merece destaque é o papel social do idoso na atuali-


dade. Carolino, Cavalcanti e Soares (2010) destacam que o idoso é des-
cartado depois de esgotada sua força de trabalho, dando uma conotação
de inutilidade à velhice. Pasinato, Camarano e Machado (2006) obser-
vam que no capitalismo o idoso é considerado obsoleto e improdutivo.
Dessa forma, há uma exposição do idoso a uma vulnerabilidade social,
muitas vezes decorrente de aspectos ligados a questões sociais, cultu-
rais e econômicas.

Beauvoir (1990) apontou um processo no qual o idoso perde sua qualii-


cação frente à automação e modernização. Esse processo provoca uma
profunda perturbação da relação do idoso com suas atividades. Com
efeito, se o idoso não acompanha a rapidez dessas mudanças pode ser
condenado à obsolescência. Em um contexto em que sua história, seus
feitos e suas crenças são colocados em questão, seus sentimentos podem
ser de exílio.

No mesmo sentido, Faleiros (2007) ressalta que a estrutura adotada no


Brasil é de um capitalismo excludente, em que a grande polarização dos
recursos cria um contexto de desigualdade social e discriminação. Assim,

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Edson Alexandre da Silva | Lucia Helena de Freitas Pinho França

o autor acredita que a imposição de direitos iguais para grupos especíi-


cos (como o de idosos), nessa sociedade desigual, é fundamental para a
articulação da cidadania com a democracia.

Debert (2004) alerta para a “conspiração do silêncio”, forma de tratamen-


to dado aos velhos no nosso país. Tal denúncia se baseia, segundo a an-
tropóloga, em quatro elementos, quais sejam: o aumento de gastos com
idosos, já que a população idosa cresce mais do que a de jovens; a ex-
clusão do velho no capitalismo, já que não se trata mais de mão de obra
ativa; o desprezo da cultura brasileira pelas suas tradições, valorizando o
jovem e desprezando os velhos; e a redução da natalidade em contrapo-
sição ao aumento de benefícios assistenciais aos idosos.

Esses aspectos arrolados acima contribuem para que a imagem do idoso


seja interpretada como um peso para a sociedade, trazendo à tona o que
Durkheim (1893) chamou de “consciência coletiva”, que seria o “tipo psí-
quico da sociedade”. Segundo esse autor, os fatos sociais são absorvidos
inconscientemente pelo cidadão, formando o “tipo psíquico da socieda-
de”. Assim, se a sociedade construiu certo peril para o idoso, esse é ab-
sorvido automaticamente pelos cidadãos.

Pasinato, Camarano e Machado (2006) argumentam que a violência


decorrente das políticas econômicas e sociais é a grande geradora e
multiplicadora de desigualdades, ressaltando que as normas culturais
intrínsecas à sociedade são verdadeiras legitimadoras da violência so-
cial. Asseveram ainda que, nas sociedades capitalistas, a velhice tem
associação com obsolescência e improdutividade, de modo que todo
esse cenário insere a violência em um contexto muito mais amplo do
que parece, de construção da cidadania em um estado democrático de
direito. Assim, quando a Constituição Brasileira (BRASIL, 1988) apresen-
ta no seu artigo primeiro a cidadania como um dos fundamentos da
república, está ressaltando que o cidadão interage com a sociedade no
sentido de contribuir, mas também de receber apoio para que seja sem-
pre preservada sua dignidade.

A violência perpetrada pela sociedade geralmente não é direta, mas es-


tabelecida por meio de atos de negligência que trazem sofrimentos aos
idosos. Segundo Machado, Gomes, Xavier (2001), o conceito de negligên-
cia seria a recusa ou a falta de cumprimento de obrigações inerentes a

Sinais Sociais | Rio de Janeiro | v.8 n. 22 | p. 115-141 | maio-ago. 2013 125


Violência e maus-tratos contra as pessoas idosas

cuidados. A negligência social é a violência difusa, consentida pelo Esta-


do pela omissão quanto às políticas, aos programas de proteção e abrigo
dos idosos.

Seguindo essa linha de pensamento, o preconceito é difundido por meio


de estereótipos que, conforme Aronson, Wilson e Arket (2002), são ob-
servados nas crenças culturais, facilmente reconhecidas pelos membros
de determinado grupo. A inluência social se relete no comportamento
privado e a imagem do idoso estereotipada pode inluenciar o aumento
da violência. Em outras palavras, cria-se um caldo de cultura que carrega
uma inclinação à violência (FONSECA; GONÇALVES, 2003).

Muitas formas de violência social são imperceptíveis, mas algumas são


bem comuns e visíveis pela população como, por exemplo, o problema
dos transportes públicos, que ainda não estão adaptados à população
idosa com problemas de mobilidade. Existe a falta de sensibilidade de
usuários que ocupam lugares prioritários nos coletivos e em alguns ca-
sos se negam a ceder assentos aos mais velhos; o trânsito urbano não
facilita o exercício da liberdade de ir e vir da população idosa nas cidades
(MACHADO; GOMES; XAVIER, 2001). Associado à questão dos transportes
igura o comportamento dos condutores de coletivos, que nem sempre
param para os idosos ou, quando param, deslocam o veículo antes do
embarque se completar, gerando vários acidentes por quedas.

Esse comportamento desrespeitoso dos usuários e proissionais do


transporte relete a falta de educação de um povo e a pouca articulação
entre poder público, empresas de transportes, mídia e demais institui-
ções sociais e educacionais. O governo impôs às empresas de transpor-
te a gratuidade para idosos, mas negligenciou um treinamento mínimo
especíico para que os condutores e cobradores pudessem lidar melhor
com as necessidades e o ritmo diferente dos idosos.

Gonçalves (2006) destaca a violência nos hospitais e lares para idosos,


nos quais os abusos se coniguram como restrições físicas dos pacientes,
desconsideração de sua dignidade e de sua livre escolha de opções diá-
rias, além da escassez de cuidados. Segundo a autora, tais abusos ocor-
rem mais em instituições onde há carência de treinamentos e excesso de
carga horária para os funcionários, bem como quando as políticas dessas
instituições visam interesse próprio.

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Edson Alexandre da Silva | Lucia Helena de Freitas Pinho França

O descaso, a falta de avaliação e de iscalização das instituições reforçam


a violência contra os idosos. Um exemplo disso foi a morte de 156 ido-
sos no período de janeiro a maio de 1996, na Clínica Santa Genoveva, no
Rio de Janeiro. O poder público só constatou as condições homicidas em
que viviam os internos após ampla divulgação pela imprensa sobre essa
tragédia (GUERRA et al, 2000). Aliás, o título do trabalho dos autores, por
si só, já dimensiona a questão: “A morte de idosos na Clínica Santa Geno-
veva, Rio de Janeiro – um excesso de mortalidade que o sistema público
de saúde poderia ter evitado.”

Alguns estudos buscam investigar e discutir fatores que inluenciam as


agressões contra os idosos. De fato, a identiicação desses fatores pode-
riam antecipar essas agressões e direcionar medidas para evitá-las nos
diversos contextos da sociedade.

4 Fatores de risco

Nas ciências da saúde, os fatores de risco são relevantes indicadores que


possibilitam a prevenção de várias patologias, já que a identiicação de
suas características facilita a predição de doenças graves (VERAS, 2003).
A identiicação dos fatores de risco representa sinais de alerta para pos-
síveis maus-tratos sofridos pelos idosos, cuja importante contribuição
técnico-cientíica e social tornará possível programar medidas de mo-
nitoramento da saúde e manutenção de uma relação familiar pacíica
entre idosos e seus familiares (SOUZA et al, 2004).

Gonçalves (2006) relacionou alguns fatores de risco, como: a dependência


e a enfermidade mental ou física de alguns idosos, a cultura da violência,
a falta de condições laborais, a falta de recursos inanceiros e de apoio
comunitário das famílias e as baixas remunerações dos cuidadores. Va-
ladares e Souza (2010) destacaram fatores que podem contribuir para a
vulnerabilidade das vítimas. São eles a coabitação entre vítima e agressor;
as relações de dependência entre ilhos e pais: a carência de comunicação
e afeto no ambiente familiar, vínculos familiares frouxos, família e idosos
isolados socialmente, existência de violência prévia na família em que o
cuidador tenha sido vítima de violência, problemas de doença mental.
Para facilitar o melhor entendimento do leitor quanto aos fatores de risco,
eles serão apresentados, a seguir, sob a ótica interpessoal e social.

Sinais Sociais | Rio de Janeiro | v.8 n. 22 | p. 115-141 | maio-ago. 2013 127


Violência e maus-tratos contra as pessoas idosas

4.1 Fatores de risco interpessoal

Conforme apontado por Souza et al (2004), a dependência pode ser propor-


cional à vulnerabilidade e à fragilidade do idoso, aumentando os encargos
que, em situações adversas, poderão gerar o estresse e a probabilidade
de violência. A violência no âmbito familiar decorre em grande parte dos
conlitos intergeracionais: o idoso experimenta uma falta de adaptação
de convivência com as alterações nas relações familiares, que pode estar
associada às várias rupturas, desde as atividades trabalhistas às mutações
das relações que mudaram seu estilo de vida, tornando-o dependente de
outrem (SOUZA et al, 2004). Os recursos escassos das famílias associados
aos cuidados de um idoso fragilizado no contexto doméstico podem criar
dependências multifacetadas, difíceis de serem administradas.

No mesmo sentido, Meira, Gonçalves e Xavier (2007) argumentam que


o pouco conhecimento dos cuidadores sobre o processo de envelheci-
mento e a técnica de cuidado, bem como a falta de estrutura de amparo
integral à família e ao idoso, podem ensejar o risco de violência, já que a
relação entre cuidador e assistido é permeada por interferência de sen-
timentos negativos.

Em relevante estudo realizado na Universidade do Sul da Austrália,


Sandmoe (2003) destacou outros fatores que podem inluenciar a vio-
lência e os abusos: estresse inerente ao papel de cuidador, alcoolismo ou
consumo de outros estimulantes, episódios de violência pregressa entre
as partes, bem como o fato de o cuidador ser dependente do idoso.

Carneiro e França (2010) investigaram os conlitos de cem cuidadores no


relacionamento com idosos por meio de uma escala que mede conlitos.
Os autores concluíram que os idosos que não tinham parceiros apresen-
taram mais conlitos (aborrecimentos diários e criticismo) com os cuida-
dores do que os idosos que viviam com parceiros. O nível de escolaridade
dos cuidadores não estava relacionado aos conlitos percebidos. A pes-
quisa reforçou a necessidade de treinamento de habilidades de comuni-
cação e de relacionamento interpessoal entre cuidadores e idosos para
reduzir o risco de conlitos entre eles.

O gênero é um aspecto relevante nessa discussão por conta da vulnera-


bilidade das mulheres idosas em situações de violência, mas há contro-

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Edson Alexandre da Silva | Lucia Helena de Freitas Pinho França

vérsias em relação à incidência de casos. Pesquisa realizada na delega-


cia de Polícia de Proteção ao Idoso da cidade de São Paulo, entre 1991 e
1998, mostra que dos 1.559 idosos agredidos naquele período, 57% eram
do sexo feminino (SINHORETTO, 2000). Apesar disso, outros estudos de-
monstram que a proporção de violência é similar tanto com idosos quan-
to com idosas. No Brasil, Gaioli e Rodrigues (2008) consultaram registros
de ocorrências de violência contra idosos em Ribeirão Preto (SP) e cons-
tataram maior proporção de violência em idosos do sexo masculino. Em
uma amostragem com 87 idosos agredidos, 58,6% das vítimas era do sexo
masculino e 41,4% do sexo feminino. O que se percebe é que ainda não
há um consenso de que o gênero se aigura fator de risco para a violência
contra o idoso. Aliás, Souza, Freitas e Queiróz (2007) asseveram que pes-
quisas realizadas no Canadá, nos Países Baixos e nos Estados Unidos não
revelaram diferenças signiicativas de prevalência de abusos por idade
ou sexo.

4.2 Fatores de risco sociais

No que concerne à violência social, seus fatores de risco vêm sendo estu-
dados. Em 1994, Minayo trouxe à tona a ideia de que a violência estrutural
seria aquela que oferece um marco do comportamento violento na me-
dida em que as estruturas organizadas e institucionalizadas dos grupos
familiares, bem como a cultura, a economia e a política carregam em si a
opressão dos indivíduos, grupos, classes e nações que não têm acesso às
conquistas da sociedade, sendo estas mais vulneráveis aos sofrimentos e
à morte. Beauvoir (1990) aponta o estereótipo do idoso caduco e delirante
e vítima das zombarias por parte das crianças. A autora aduz que não
importa a virtude ou a objeção do idoso, este não é encarado como parte
da humanidade, o que legitima um tratamento sem escrúpulos, de modo
a negar-lhe o mínimo necessário à sua existência enquanto homem. Essa
situação, contudo, é ambivalente, haja vista o culto à juventude eterna e
as imagens da mídia mostrando idosos com mais de 80 anos totalmente
independentes e ativos. A imagem do idoso rico e alvo de sedução pelo
comércio contrasta com as reportagens que mostram idosos em comple-
to abandono em asilos.

Segundo Debert (2004), esse cenário pode trazer à tona o lado perverso e
paradoxal da questão, ou seja: considerar problemático e culpado o idoso

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Violência e maus-tratos contra as pessoas idosas

que não se enquadra em um peril de busca por juventude e indepen-


dência. Tal fato, a toda evidência, pode negativar também a imagem da
população idosa, nos direcionando ao que chama atenção Alencar (2005,
p. 71): “A violência contra os grupos mais vulneráveis tem seu correlato
na repulsa social.”

5 Subdiagnóstico e subnotificação

O idoso pode ser vítima de violência sob várias formas e em vários con-
textos, sendo certo que existem diferentes razões que levam ao proble-
ma do subdiagnóstico e da subnotiicação (MELO; CUNHA; FALBO NETO,
2006; BRADLEY, 1996). Dentre algumas causas das diiculdades do diag-
nóstico estão a culpa e a vergonha sentidas pela vítima, bem como o re-
ceio de retaliações e represálias do agressor ou de ser internado em asilo.

Outro fator que indica a importância do subdiagnóstico e da subnotiica-


ção é que os abusos e a violência são perpetrados na maioria dos casos
por membros da família, o que poderia explicar o fato de que as víti-
mas tendem a uma minimização da gravidade das agressões, bem como
mantêm a idelidade ao seu algoz. Muitos se negam a levar os casos às
autoridades e a discutir com terceiros, preferindo conviver com maus-
-tratos a abrir mão de um relacionamento (CAMMER, 1996).

Faleiros (2007) alega que os maiores agressores são os ilhos e ilhas do


idoso, havendo uma porcentagem de 54,7% em relação aos demais agres-
sores. O autor acredita que a não denúncia dos agressores ocorra em
razão da dependência física e/ou inanceira das vítimas, bem como pelo
medo que o idoso tem de ser abandonado pelos familiares.

Oliveira et al (2012) argumentam que tão logo são agredidos, os idosos


podem apresentar reações de medo, vergonha e até culpa pelos conli-
tos entre ele e o agressor. Isso é um indicador da aceitação da violência
como algo natural nas relações entre membros da família. Uma forte jus-
tiicativa para a subnotiicação é o medo, tanto das vítimas quanto das
testemunhas, de que a denúncia possa gerar mais violência por parte dos
agressores contra os denunciantes.

Certamente o subdiagnóstico da violência traz à tona o que Duarte et al


(2011) denominaram “invisibilidade social” das vítimas. Segundo as au-
toras, a cultura ocidental concebe a invisibilidade como inexistência ou

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Edson Alexandre da Silva | Lucia Helena de Freitas Pinho França

insigniicância do ser. De fato, se há uma ausência das estatísticas crimi-


nais nos números oiciais, não há um diagnóstico real da violência. Essa
invisibilidade se aplica às vítimas, mas também aos agressores, já que a
identiicação desses últimos se torna impossível pela falta de notiicação
e apuração dos fatos.

Essa problemática mostra a grande discrepância entre a criminalidade


que consta nas estatísticas oiciais e a criminalidade subjacente, que é
encoberta pela subnotiicação de casos. Mesmo quando o idoso resolve
romper as barreiras da idelidade familiar às avessas e denunciar o ato de
violência contra ele, é preciso que tenha apoio psicológico para tal, além
da punição dos agressores propriamente dita, que nem sempre leva à
eliminação da violência, pois sua causa pode não ter sido efetivamente
combatida.

Jung (1981) toma emprestado o conceito de consciente coletivo de


Durkheim para designar os padrões culturais conscientes (valores, mo-
ralidade, comportamentos), chamado de mundo social (XAVIER, 2008). É
a partir do indivíduo que a comunidade progride moral e espiritualmente
e sua adaptação ao mundo social se dá por meio da persona, ou seja, “o
papel ou papéis típicos (e coletivos) que servem como função de relacio-
namento com os outros e com o mundo” (XAVIER, 2008, p. 26). A persona
é necessária, mas torna-se negativa quando o indivíduo acredita que é
realmente esta máscara, abdicando ou reprimindo violentamente suas
peculiaridades e necessidades individuais em função do coletivo e do
que a sociedade dele espera.

O inconsciente é relativamente autônomo em relação ao ego e tem ina-


lidade (telos), como todo processo psíquico; é criativo e autorregulador e
se expressa em uma linguagem simbólica própria. Xavier (2008) destaca
que, em função de alguns fatores, inclusive econômicos e sociais, o ins-
tinto pode tornar-se violento e primitivo, especialmente quando ocorrer
a perda de sentido pela vida. A busca pelo equilíbrio é um impulso, a
partir do inconsciente, para a conscientização pelo ego dos elementos
de personalidade que são inconscientes. A consciência é um processo
que dura toda a vida e cria um sentido a cada vez que atinge o equilíbrio
com o inconsciente. Assim, a educação e as intervenções psicoeduca-
tivas devem tornar possível a construção da subjetividade singular da
pessoa. Compreender o fenômeno é essencial “para o sujeito ser autor

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Violência e maus-tratos contra as pessoas idosas

e não apenas ator, e assim ser livre e não violento” (XAVIER, 2008, p. 30).
O combate à violência, efetuado por meio do estímulo à dialética, em
diversos setores da sociedade, talvez possa trazer uma evolução da redu-
ção da sua escalada. De acordo com Jung, é necessário que o indivíduo
compreenda o seu valor e a possibilidade de transformação para poder
tomar uma decisão, agir eticamente e reconhecer o seu papel dentro
da sociedade. O que uma nação faz é o resultado do que muitos indiví-
duos izeram e “se não se muda o indivíduo, nada é mudado” (JUNG apud
XAVIER, 2008, p. 27).

Considerações finais

A Organização Mundial da Saúde (OMS) deine a violência contra idosos


como as ações ou omissões cometidas uma ou muitas vezes, de forma a
prejudicar a integridade física e emocional da pessoa idosa, impedindo o
desempenho de seu papel social (VALADARES; SOUZA, 2010). No terreno
da saúde pública, esse tipo de violência é reconhecido como maus-tratos,
sendo seus resultados representados como “causas externas” da classi-
icação internacional de doenças (CID-10), ou seja, fatos não naturais
que provocam lesões, traumas e mortes. A violência contra idosos é um
problema que acompanha a história da humanidade e tem ocorrido em
todas as sociedades e todos os tempos, sendo um fator preponderante
na avaliação do bem-estar dos idosos. Em 2007, no Brasil, 18.946 idosos
foram a óbito e 125.000 idosos foram hospitalizados por causas externas
(VALADARES; SOUZA, 2010).

À margem de conceitos e deinições, todos os tipos de agressões têm


em comum o sofrimento de suas vítimas. No que tange à vítima idosa,
Minayo (2007) a deine como despersonalizada e estereotipada negativa-
mente perante a sociedade, se referindo ao agressor como residente nos
lares e difuso pelo tecido social, de modo que ora é pessoa ora é o próprio
sistema.

O estudo da violência com foco nas suas formas, números, sujeitos, so-
ciedades, fatores de risco, bem como em outras vertentes, é de grande
relevância para se buscar uma forma de prevenir esse problema. De acor-
do com Minayo e Souza (1999), a violência é indissociável da sociedade
que a produziu, alimentando-se da economia, da política e da cultura,

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Edson Alexandre da Silva | Lucia Helena de Freitas Pinho França

construída nas interações entre as pessoas, sendo certo que se trata de


um fenômeno histórico-social construído em sociedade e, portanto, pode
ser descontruído e reformulado dentro da própria sociedade. De acordo
com as autoras, a prevenção da violência é uma medida de promoção da
saúde, eis que se trata de problema de saúde pública. É vista ainda de
forma multifacetária, exigindo esforços de diversos segmentos sociais.

No que toca a legislação, segundo Fonseca e Gonçalves (2003), esta não


conseguiu impedir que os idosos continuem presos em casa, com acesso
escasso aos recursos institucionais aptos a assegurarem seus direitos.
Nesse contexto, eles continuam sob a responsabilidade de seus familia-
res, que, por sua vez, não dispõem dos recursos mínimos necessários
para o cumprimento do que a lei lhes impõe. Acrescentem-se às dii-
culdades postas à família, a exacerbação de tarefas impostas pela vida
urbana e moderna. Isso, segundo os autores, propicia a violência contra
o idoso.

Assim, se há um caldo de cultura inclinado ao preconceito e à violência


contra o idoso (FONSECA; GONÇALVES, 2003), considerados fatos sociais
entranhados na consciência coletiva da sociedade, torna-se imperativa a
desconstrução da violência (MINAYO, 1999) por meio de uma verdadeira
revolução social e de políticas aptas a transformar o tipo psíquico social
vigente (DURKHEIM, 1893; CAROLINO et al, 2010).

A violência não ocorre apenas entre pessoas de idades diferentes, mas


entre os casais idosos ou cuidadores (familiares ou proissionais) da mes-
ma idade. Quando a dependência do idoso em nível psíquico e físico é
elevada ou quando os cuidadores se dedicam por um tempo maior de ho-
ras o risco de abuso é maior. Assim, medidas preventivas são necessárias
para atender às necessidades educativas e de suporte desses cuidadores.

Exemplos de medidas psicoeducativas são o proFamílias e o proLong-


Care, apontadas por Figueiredo et al (2012) como intervenções promis-
soras na redução do burnout e estresse dos cuidadores em Portugal. De
acordo com os autores, as intervenções psicoeducativas são eicazes no
apoio aos familiares que cuidam de idosos com demência em seus pró-
prios domicílios, pois aumentam o sentido de competência para lidar
com a doença e ajudam a desenvolver estratégias de coping entre esses
cuidadores.

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Violência e maus-tratos contra as pessoas idosas

A violência contra os idosos é muitas vezes levada a cabo por outros ido-
sos (como o marido); e muitas vezes não tem a ver com a idade, mas com
a fragilidade, a dependência, as crenças culturais. Se quisermos ter me-
nos violência contra idosos temos de começar a ajudar a ediicar famílias
mais saudáveis e com bons laços afetivos entre seus membros.

Para o combate das formas de preconceito e violência contra o idoso, Ve-


ras (2010) recomenda os programas de educação gerontológica a serem
aplicados às famílias e às comunidades de forma a construir uma socie-
dade mais justa e capaz de valorizar e respeitar o cidadão de terceira ida-
de. A adoção de programas intergeracionais talvez seja a melhor forma
de quebrar os preconceitos contra os idosos (FRANÇA; SILVA; BARRETO,
2010). Tais programas desenvolvem a solidariedade intergeracional e po-
dem ser adotados sistematicamente nas escolas, universidades, empre-
sas e instituições sociais (FRANÇA; SOARES, 1997; FRANÇA et al, 2010).

Antonucci (2007) argumenta que as pessoas que vivenciam aspectos po-


sitivos nas relações de apoio intergeracional sentem-se mais positivas
em relação a si próprias e ao seu mundo, suportando melhor a doença,
o estresse e outras diiculdades. De fato, um programa intergeracional
pode colaborar para o controle da vida pelos idosos e para a sua acei-
tação na comunidade, facilitando o seu empoderamento psicológico e
comunitário, como conceituado por Wallerstein e Bernstein (1994).

Programas intergeracionais podem ser eicazes na prevenção à violên-


cia, devendo sua implantação ser estimulada nas escolas, universidade
e empresas. Foram sugeridos pelo Plano de Ação Internacional para o
Envelhecimento (NAÇOES UNIDAS, 2002), devem estar alinhados com as
sete recomendações do item 7 – Solidariedade Intergeracional –, estabe-
lecidas na II Assembleia Mundial do Envelhecimento em 2002, em Madri,
e visam fortalecer a solidariedade, mediante a equidade e a reciprocidade
entre as gerações. São elas:

a) Promover, por meio da educação pública, a compreensão do envelheci-


mento como questão de interesse de toda a sociedade;

b) Considerar a possibilidade de rever as políticas existentes para garan-


tir que promovam a solidariedade entre as gerações e fomentem desta
forma, a harmonia social;

c) Tomar iniciativas com vistas à promoção de um intercâmbio produtivo


entre as gerações, concentrando-as nas pessoas idosas como um recurso
da sociedade;

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Edson Alexandre da Silva | Lucia Helena de Freitas Pinho França

d) Maximizar as oportunidades de manter e melhorar as relações intergeracio-


nais nas comunidades locais, entre outras coisas, facilitando a realização de reu-
niões para todas as faixas etárias e evitando a segregação geracional;

e) Estudar a necessidade de abordar a situação especíica da geração que precisa


cuidar ao mesmo tempo de seus pais, de seus próprios ilhos e de netos;

f) Promover e fortalecer a solidariedade entre as gerações e o apoio mútuo como


elemento chave do desenvolvimento social;

g) Empreender pesquisas sobre as vantagens e desvantagens dos diversos acor-


dos em relação à moradia de idosos, com inclusão da residência em comum com
os familiares e formas de vida independente, em diferentes culturas e contextos
(NAÇOES UNIDAS, 2002, p. 44).

Por im, para que possamos reduzir a violência com idosos é crucial que, além
da interlocução entre os diversos atores da sociedade, tenhamos uma visão
sustentável por meio da educação, pois só assim poderemos construir uma
sociedade verdadeiramente desenvolvida. Como ressaltado por Kalache (2008)
devemos nos preocupar com as futuras gerações, já que estas serão responsá-
veis pela sobrevivência da humanidade. Nesse sentido, é imprescindível uma
mudança no “tipo psíquico da sociedade” (DURKHEIM, 1893), de modo que as
futuras gerações já nasçam em um contexto de justiça e respeito aos idosos, fa-
zendo com que esses princípios sejam absorvidos naturalmente pela sociedade.

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Violência e maus-tratos contra as pessoas idosas

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Sinais Sociais | Rio de Janeiro | v.8 n. 22 | p. 115-141 | maio-ago. 2013 141


NÚMEROS ANTERIORES
Sinais Sociais | Rio de Janeiro | v.8 n. 22 | p. 1-152 | maio-ago. 2013 143
EDIÇÃO 17

Cidade Maravilhosa: encontros e desencontros nos Projetos de Remodelação


urbana da capital entre 1902 e 1927
José Cláudio Sooma Silva

A captura do gosto como inclusão social negativa: por uma atualização


crítica da ética utilitarista
Marco Schneider

Inovação, tecnologias sociais e a política de ciência e tecnologia do Brasil:


desaio contemporâneo
Marcos Cavalcanti
André Pereira Neto

Recentes dilemas da democracia e do desenvolvimento no Brasil: por que


precisamos de mais mulheres na política?
Marlise Matos

Trabalho infantil no Brasil: rumo à erradicação


Ricardo Paes de Barros e Rosane da Silva Pinto de Mendonça

EDIÇÃO 18

O debate parlamentar sobre o Programa Bolsa Família no governo Lula


Anete B. L. Ivo
José Carlos Exaltação

Educação para a sustentabilidade: estratégia para empresas do


século XXI
Deborah Munhoz

Fagulhas do autoritarismo no futebol: embates sobre o estilo de jogo


brasileiro em tempos de ditadura militar (1966-1970)
Euclides de Freitas Couto

Juventudes, violência e políticas públicas no Brasil: tensões entre o


instituído e o instituinte
Glória Diógenes

A máquina moderna de Joaquim Cardozo


Manoel Ricardo de Lima

144 Sinais Sociais | Rio de Janeiro | v.8 n. 22 | p. 1-152 | maio-ago. 2013


EDIÇÃO 19

Um convite à leitura
Gabriel Cohn

Caio Prado Jr. como intérprete do Brasil


Bernardo Ricupero

As raízes do Brasil e a democracia


Brasilio Sallum Jr.

Gilberto Freyre e seu tempo: contexto intelectual e questões de época


Elide Rugai Bastos

Entre a economia e a política – os conceitos de periferia e democracia no


desenvolvimento de Celso Furtado
Vera Alves Cepêda

EDIÇÃO 20

Interpretações do Brasil e Ciências Sociais, um io de Ariadne


André Botelho

Cotas aumentam a diversidade dos estudantes sem comprometer o


desempenho?
Fábio D. Waltenberg
Márcia de Carvalho

Três críticos: Antonio Candido, Paulo Emílio e Mário Pedrosa


Francisco Alambert

Gonçalo M. Tavares: o ensaio, a dança, o espírito livre


Júlia Studart

Caio Prado Jr. e o intelectual marxista hoje


Marco Aurélio Nogueira

Sinais Sociais | Rio de Janeiro | v.8 n. 22 | p. 1-152 | maio-ago. 2013 145


EDIÇÃO 21

Faces do trágico e do cômico na moderna prosa rodriguiana


Agnes Rissardo

Saber escolar em perspectiva histórica. O ensino religioso: debates de ontem e


hoje na História da Educação
Aline de Morais Limeira

A inocência dos muçulmanos, blasfêmia e liberdade de expressão: problemas de


tradução intercultural
Daniel Silva

O confronto entre a jurisdição penal global e a soberania estatal: tribunal penal


internacional versus razão de estado
Pedro Hermílio Villas Bôas Castelo Branco

Castro Alves: dramaturgo bissexto


Walnice Nogueira Galvão

Caso tenha interesse em receber a revista


Sinais Sociais, entre em contato conosco:
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NORMAS PARA PUBLICAÇÃO

Sinais Sociais | Rio de Janeiro | v.8 n. 22 | p. 1-152 | maio-ago. 2013 147


Política editorial

A revista Sinais Sociais é editada pelo Departamento Nacional do Serviço


Social do Comércio (Sesc) e tem por objetivo contribuir para a difusão
e o desenvolvimento da produção acadêmica e cientíica nas áreas das
ciências humanas e sociais. A publicação oferece a pesquisadores, uni-
versidades, instituições de ensino e pesquisa e organizações sociais um
canal plural para a disseminação do conhecimento e o debate sobre gran-
des questões da realidade social, proporcionando diálogo amplo sobre a
agenda pública brasileira. Tem periodicidade quadrimestral e distribuição
de 5.000 exemplares entre universidades, institutos de pesquisa, órgãos
públicos, principais bibliotecas no Brasil e bibliotecas do Sesc e Senac.

A publicação dos artigos, ensaios, entrevistas e dossiês inéditos está con-


dicionada à avaliação do Conselho Editorial, no que diz respeito à ade-
quação à linha editorial da revista, e por pareceristas ad hoc, no que diz
respeito à qualidade das contribuições, garantido o duplo anonimato no
processo de avaliação. Eventuais sugestões de modiicação na estrutura
ou conteúdo por parte da Editoria são previamente acordadas com os
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balhos para composição.

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O trabalho deve ser apresentado por carta ou e-mail pelos(s) autor(es),


que devem se responsabilizar pelo seu conteúdo e ineditismo. A carta
deve indicar qual ou quais áreas editoriais estão relacionadas ao traba-
lho, para que este possa ser encaminhado para análise editorial especí-
ica. A mensagem deve informar ainda endereço, telefone, e-mail e, em
caso de mais de um autor, indicar o responsável pelos contatos.

Incluir também o currículo (com até cinco páginas) com a formação aca-
dêmica e a atuação proissional, além dos dados pessoais (nome com-
pleto, endereço, telefone para contato) e um minicurrículo (entre 5 e 10
linhas, fonte Times New Roman, tamanho 10), que deverá constar no
mesmo documento do artigo, com os principais dados sobre o autor:
nome, formação, instituição atual e cargo, áreas de interesse de trabalho,
pesquisa, ensino e últimas publicações.

Os textos devem ser encaminhados para publicação ao e-mail:


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148 Sinais Sociais | Rio de Janeiro | v.8 n. 22 | p. 1-152 | maio-ago. 2013


DEPARTAMENTO NACIONAL DO SESC
Gerência de Estudos e Pesquisas (DPD)
Av. Ayrton Senna 5.555, CEP 27775-004 Rio de Janeiro/RJ

O corpo do texto deverá ter no mínimo 35.000 e no máximo 60.000 ca-


racteres, digitado em editor de texto Word for Windows, margens 2,5 cm,
fonte Times New Roman, tamanho 12, espaçamento entrelinhas 1,5. As
páginas devem ser numeradas no canto direito superior da folha.

A estrutura do artigo deve obedecer à seguinte ordem:

a) Título (e subtítulo se houver).


b) Nome(s) do(s) autor(es).
c) Resumo em português (de 100 a 250 palavras, fonte Times New Roman,
tamanho 10, não repetido no corpo do texto).
d) Palavras-chave (no máximo de cinco e separadas por ponto).
e) Resumo em inglês (de 100 a 250 palavras, fonte Times New Roman, ta-
manho 10).
f) Palavras-chave em inglês (no máximo de cinco e separadas por ponto).
g) Corpo do texto.
h) Nota(s) explicativa(s).
i) Referências (elaboração segundo NBR 6023 da ABNT e reunidas em
uma única ordem alfabética).
j) Glossário (opcional).
l) Apêndice(s) (opcional).
m) Anexo(s) (opcional).

Anexos, tabelas, gráicos, fotos e desenhos, com suas respectivas legen-


das, devem indicar as unidades em que se expressam seus valores, assim
como suas fontes. Gráicos e tabelas devem vir acompanhados das pla-
nilhas de origem. Todos esses elementos devem ser apresentados no in-
terior do texto, no local adequado ou em anexos separados do texto com
indicação dos locais nos quais devem ser inseridos. Sempre que possível,
deverão ser confeccionados para sua reprodução direta. As imagens de-
vem ser enviadas em alta deinição (300 dpi, formato TIF ou JPEG).

Recomenda-se que se observem ainda as normas da ABNT referentes


à apresentação de artigos em publicações periódicas (NBR 6022), apre-
sentação de citações em documentos utilizando sistema autor-data
(NBR 10520) e numeração progressiva das seções de um documento (NBR
6024).

Sinais Sociais | Rio de Janeiro | v.8 n. 22 | p. 1-152 | maio-ago. 2013 149


Referências (exemplos):

Artigos de periódicos

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Janeiro, v. 5, n. 15, p.112-137, jan. 2011.

DIAS, Marco Antonio R. Comercialização no ensino superior: é possível


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n. 84, p. 817-838, set. 2003.

Capítulos de livros

CANDIDO, Antonio. O signiicado de Raízes do Brasil. In: HOLANDA Sergio


Buarque de. Raízes do Brasil. 25. ed. Rio de Janeiro: J. Olympio, 1993. p. 39-49.

DELEUZE, Gilles; GUATTARI, Félix. Tratado de nomadologia: a máquina


de guerra. In: DELEUZE, Gilles; GUATTARI, Félix. Mil platôs: capitalismo e
esquizofrenia. Trad. Aurélia Guerra Neto e Celia Pinto Costa. São Paulo:
Ed. 34, 1980. v. 5, p. 14-110.

Documentos eletrônicos

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sintesepnad2002.pdf>. Acesso em: 21 jul. 2013.

SANTOS, José Alcides Figueiredo. Desigualdade racial de saúde e contexto


de classe no Brasil. Dados, Rio de Janeiro, v. 54, n. 1, 2011. Disponível em:
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SANTOS, Nara Rejane Zamberlan; SENNA, Ana Julia Teixeira. Análise


da percepção da sociedade frente à gestão e ao gestor ambiental. IN:
CONGRESSO BRASILEIRO DE GESTÃO AMBIENTAL, 2., 2011, Londrina.
Anais eletrônicos... Bauru: IBEAS, 2012. Disponível em: < http://www.ibeas.
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150 Sinais Sociais | Rio de Janeiro | v.8 n. 22 | p. 1-152 | maio-ago. 2013


Livro

HOLANDA, Sérgio Buarque de. Raízes do Brasil. Rio de Janeiro: J. Olympio,


1936.

Trabalho acadêmico

VILLAS BÔAS, G. A vocação das ciências sociais: (1945/1964): um estudo


da sua produção em livro. 1992. Tese (Doutorado em Sociologia) –
Universidade de São Paulo, São Paulo, 1992.

Sinais Sociais | Rio de Janeiro | v.8 n. 22 | p. 1-152 | maio-ago. 2013 151


Esta revista foi composta na tipologia Caecilia LT Std
e impressa em papel pólen 90g, na Setprint Gráica e Editora.

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