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UNIVERSIDADE FEDERAL FLUMINENSE

INSTITUTO DE CIÊNCIAS HUMANAS

DEPARTAMENTO DE HISTÓRIA

GRADUAÇÃO EM HISTÓRIA

PÉROLA MARTINS LANNES

OS OLHOS DA PRISÃO NO BRASIL IMPÉRIO: UM ESTUDO DE CASO SOBRE A


GALERIA DOS CONDENADOS

Niterói/RJ

2016
PÉROLA MARTINS LANNES

OS OLHOS DA PRISÃO NO BRASIL IMPÉRIO: UM ESTUDO DE CASO SOBRE A


GALERIA DOS CONDENADOS

Trabalho de conclusão de curso


apresentado ao curso de Licenciatura e
Bacharelado em História, como requisito
parcial para conclusão do curso. Área de
concentração: Cultura e Mentalidades na
Época Contemporânea.

Orientadora:

Professora Dr.a Ana Maria Mauad de Sousa Andrade Essus

Leitor Crítico:

Professor Dr.Paulo Knauss de Mendonça


[ficha catalográfica]

[56 p de fato (menos capa, folha de rosto e ficha catalográfica)]


À minha maior apoiadora durante a minha universitária,
antes dela e depois: minha mãe.
AGRADECIMENTOS

Sem me importar com o risco de parecer previsível, dentre todos os agradecimentos


necessários, o mais importante, sem dúvida, é devido a minha família: sobretudo a Rosan e
Demian Lannes, meus caríssimos revisores, e a Dalma e Dalva Martins, com as quais
também mantive intensa interlocução durante o processo de escrita do texto que aqui
apresento.

A eles e a meus avós também devo o mérito do incentivo contínuo e constante da


minha curiosidade sobre o mundo. Eles, mesmo que nem sempre adequadamente
escolarizados, me ensinaram que todo tipo de pesquisa sobre o funcionamento daquilo que
nos circunda é valioso e profundamente necessário. Seu amor é o que me torna capaz.

Além destes, devo agradecimentos à família que escolhi, aos meus poucos e firmes
amigos. A Fabiana Léo, Millena Farias, Mateus Frizzone, Pedro Motta e Antonio
Kerstenetzky pela parceria (não só) intelectual ao longo destes anos na graduação e por terem
me ensinado tanto. A Bia Medeiros, Olívia Gomide, Felipe França e Pedro Ivo Reis por me
provarem que a nossa geração também terá amigos para a vida toda.

Também é extremamente necessária a menção aos professores que tive, mas,


sobretudo a duas figuras. Ana Maria Mauad, que me orienta nesta monografia, mas não só.
Mauad será sempre uma pedra basilar da minha formação e na de tantos outros que passaram
pela Universidade Federal Fluminense, porque ela emana energia de uma forma muito
particular.

A outra eterna referência é Adriana Peixoto, minha professora no Ensino Médio,


minha primeira apoiadora na profissão e meu mais sólido exemplo profissional, além de uma
referência ética inconteste. A força e a alegria que ela sempre carregou me estimularam e
continuam me estimulando a ver a urgência e a beleza da prática do magistério.
Também devo agradecimentos às agências de fomento que investiram na minha
formação e na produção de ciência no âmbito do LABHOI-UFF 1: a FAPERJ2 e o CNPq3,
ambas das quais fui Bolsista de Iniciação Científica no período da minha graduação e sem as
quais nada disso teria sido feito.

Falando em instituições, impossível não mencionar o Pré-Vestibular Social da


Fundação Cecierj, no qual leciono desde o início de 2015. Agradecimentos nunca serão
suficientes para a Coordenação de História, que me ensinou muito sobre os propósitos do
magistério na nossa área. Digo o mesmo para os alunos, que lutam bravamente contra as
estatísticas, e para os meus colegas professores, que dão o seu melhor pelo bem da educação
pública brasileira.

Dentre estes colegas, alguns se tornaram grandes amigos e merecem agradecimento


em dobro: Elion Campos, Walassy Rosa, Luana Fernandes e Gabrielle Frade. Laços
formados em momentos como este que passamos juntos são perenes. Vocês são grandes
exemplos para mim.

Ao fim e ao cabo, não posso deixar de mencionar a dívida que reconheço ter com as
mulheres e os homens que deixaram pedaços de si (materiais ou não) para trás, viabilizando a
tecedura da História e a construção do mundo em que vivemos. Honrar aqueles que vieram
antes de nós nunca pode ser considerado um objetivo menor. Perder de vista que o passado, o
presente e o futuro são construções infinitas da espécie humana, também não.

1
Laboratório de História Oral e Imagem da Universidade Federal Fluminense.
2
Fundação Carlos Chagas Filho de Amparo à Pesquisa do Estado do Rio de Janeiro.
3
Conselho Nacional de Desenvolvimento Científico e Tecnológico.
RESUMO

Esta pesquisa pretende analisar o contexto de produção e agenciamento da fonte


manuscrita e fotográfica denominada Galeria dos Condenados (c. 1869-1875), conhecida
como a primeira catalogação sistemática de presidiários brasileiros que incluiu fotografias. O
situamos como um dos esforços de adequação do sistema penal e carcerário à realidade social
de desmonte da escravidão africana e afrodescendente e do sistema criminal de Antigo
Regime, dentre outras instituições tradicionais, no Segundo Império (1840-1889). Além
disso, analisamos a composição da Galeria sob o recorte racial, pensando a respeito das
distinções criminais entre pessoas de diferentes condições jurídicas.

Palavras-chave: Império; História do Brasil; fotografia; prisão; século XIX; raça;


criminologia; sistema penitenciário; Galeria dos Condenados.

ABSTRACT

This research aims to analyze the context of production and assemblage of the
manuscript and photographic source called Galeria dos Condenados [Gallery of the Damned]
(c. 1869-1875), known as the first systematic cataloging of Brazilian prisoners that included
photographs. We situate it as one of the adjustment efforts of the penal and prison system into
the social reality of dismantling of the african and afrodescendant slavery and of the criminal
system of the Old Regime, among other traditional institutions, at the Brazilian Second
Empire (1840-1889). In addition, we analyze the composition of the gallery under the racial
perspective, thinking about the criminal distinctions between people of different legal
conditions.

Keywords: Empire; History of Brazil; photography; prison; XIX th century; race;


criminology; prison system; Gallery of the Damned.
SUMÁRIO

INTRODUÇÃO................................................................................................................ 01
CAPÍTULO 1 - CRIME E PUNIÇÃO NO BRASIL IMPÉRIO: ENTRE TEORIA 03
E PRÁTICA......................................................................................................................
1.1. A HISTORICIDADE DA NOÇÃO DE CRIME E DE SUAS PRÁTICAS 03
SOCIAIS CORRELATAS....................................................................................
1.2. A IDEOLOGIA E PRÁTICA DO SISTEMA PUNITIVO/REPRESSIVO: 06
COMO E POR QUE PUNIR DO ANTIGO REGIME AO SÉCULO XIX......
1.2.1 Criação e vigência do sistema punitivo no Antigo Regime.................................. 07
.
1.2.2 A crítica à punição corporal.................................................................................. 08
.
1.2.3 O projeto da instituição disciplinar a partir do século XIX.................................. 09
.
1.2.4 O embate entre os sistemas penitenciários do século XIX................................... 11
.
1.3. O SISTEMA CRIMINAL NO BRASIL DO SÉCULO XIX.............................. 12
1.4. AS CADEIAS ANACRÔNICAS: A PERMANÊNCIA DAS PRISÕES DO 19
ANTIGO REGIME NA PROVÍNCIA DO RIO DE JANEIRO.........................
1.5. A CASA DE CORREÇÃO DA CORTE.............................................................. 22
CAPÍTULO 2 – A GALERIA DOS CONDENADOS: REGISTRO VISUAL E 24
MANUSCRITO DOS DETENTOS DA CASA DE CORREÇÃO DA CORTE........
2.1. A NATUREZA DA FONTE................................................................................ 24
2.2. A CARACTERIZAÇÃO DO PADRÃO DOCUMENTAL................................. 25
2.3. AS PESSOAS NA FONTE................................................................................... 26
2.4. O SEGUNDO IMPÉRIO E O FAZER-SE FOTOGRAFAR OS PRESOS........ 30
CAPÍTULO 3 – UMA POSSÍVEL DISTINÇÃO RACIAL NA ORGANIZAÇÃO 35
DA GALERIA DOS CONDENADOS?.........................................................................
3.1. METODOLOGIA DE ANÁLISE DO PADRÃO RACIAL................................ 35
3.2. DIFERENÇAS RACIAIS ENTRE OS DOIS VOLUMES................................. 36
3.3. O TRATAMENTO QUALITATIVO DAS FONTES: AS PECULIARIDADES 38
DOS AFRODESCENDENTES............................................................................
3.4. PENSANDO A DESPROPORÇÃO ENTRE NEGROS DETIDOS E SUA 43
REPRESENTAÇÃO NA GALERIA DOS CONDENADOS.............................
BIBLIOGRAFIA.............................................................................................................. 48
1

INTRODUÇÃO

A ideia deste trabalho seria não só observar, descrever e analisar a Galeria dos
Condenados enquanto acervo documental manuscrito e fotográfico, mas também tentar
entender um pouco do contexto de sua produção através de um estudo/ensaio a respeito da
Casa de Correção da Corte, em particular, e do sistema prisional brasileiro do século XIX, em
geral.

Para isso, pretendo partir de uma perspectiva mais ampla, através de um breve
levantamento da produção bibliográfica sobre a categoria histórico-social de crime e punição,
enfatizando algumas obras clássicas e referenciais em História, Filosofia e Criminologia.

Em outras palavras, busco construir um breve relato não só de como deve ter sido a
vida destes prisioneiros que a Galeria retrata, como também do que era, como era, para que e
para quem era a cadeia do século XIX; estas seriam as principais hipóteses do primeiro
capítulo do trabalho.

O segundo capítulo seria um levantamento e algumas conclusões, mais cotejadas com


os trabalhos já feitos sobre o mesmo arcabouço documental e sobre teoria da fotografia
criminal de forma mais ampla, a respeito da Galeria dos Condenados em si. Aqui também
esboçamos reflexões a respeito dos prováveis usos e funções deste documento pelo Estado
contemporâneo a ele,

No terceiro capítulo, estabeleço a hipótese, construída através da observação


sistemática das fotografias que acompanham as fichas manuscritas, de que existiria certa
forma de discriminação racial na organização da composição dos retratados por esta galeria.
Esboço alguns caminhos possíveis para entendermos o porquê de isso ocorrer e que forma
este processo toma. Esta parte do trabalho é partidária da pesquisa que realizamos no âmbito
da Iniciação Científica, em 20134.

Assim, não se trata, em essência, de uma história da fotografia, ou de um estudo


semiótico de seus significados no espaço/tempo apresentado. Mas de esboçar uma
4
O projeto de pesquisa intitulou-se "A Presença Negra em Arquivo Branco - um estudo sobre a representação
visual de afro-brasileiros em coleções fotográficas", vinculado ao Laboratório de História Oral e Imagem da
Universidade Federal Fluminense (LABHOI-UFF) sob orientação da professora doutora Ana Maria Mauad.
Financiado pela FAPERJ, teve vigência entre os anos de 2012 e 2014.
2

historiografia que se utilize da fotografia como fonte em si, com estatuto equiparável ao olhar
que tradicionalmente é delegado ao documento escrito.

Mesmo pretendendo fazer um trabalho com outro tipo de foco, no qual o tema do
cárcere é o fio orientador do discurso, não pretendo negligenciar a minha formação, dado que
durante a maior parte da minha graduação fui bolsista de Iniciação Científica do LABHOI-
UFF sob orientação de Ana Mauad. Em outros termos, incluo bibliografia e reflexões a
respeito da importância da escolha e do agenciamento da imagem técnica.

Esta reflexão é uma dentre muitas outras que aqui apresento, mas muitas vezes não
desenvolvo com a magnitude que gostaria, sobretudo pela limitação natural do escopo de um
trabalho de conclusão de curso da graduação. Meu objetivo principal é apresentar questões
que na medida do possível tragam um olhar ligeiramente inovador em relação a este conjunto
documental que está caminhando para se tornar bastante popular dentre os historiadores do
Oitocentos brasileiro.

Ainda que pretenda que estes apontamentos que esboço aqui sejam minimamente
defensáveis, faço o convite para que outros pesquisadores, que eventualmente possuam mais
recursos e/ou uma formação mais sólida que a minha, busquem aprofundar ou refutar as
hipóteses aqui apresentadas5.

CAPÍTULO 1 - CRIME E PUNIÇÃO NO BRASIL IMPÉRIO: ENTRE


TEORIA E PRÁTICA

5
Supondo que esta quimera de fato se realize, seria um prazer estabelecer uma interlocução sobre os temas aqui
desenvolvidos. Para possibilitar isto, deixo meu e-mail para eventual contato: perola_lannes@hotmail.com.
3

1.1. A HISTORICIDADE DA NOÇÃO DE CRIME E DE SUAS PRÁTICAS SOCIAIS


CORRELATAS

Não existem "fatos criminais" em si mesmos, mas um julgamento que os


funda, designando ao mesmo tempo seus objetos e seus atores; um discurso
criminal que traduz as obsessões de uma sociedade. Toda a questão é saber como
ele funciona e muda, em que medida exprime o real, como aí se operam as diversas
mediações.6

Pode parecer trivial em um trabalho de Ciências Humanas procurar salientar o caráter


social e histórico de categorias como crime e punição; mas é essencial que nos detenhamos
neste ponto antes de articular qualquer reflexão a respeito da complexidade destas
construções.

Que o que é criminoso para uma sociedade pode ser tolerável e até mesmo desejável
para outra é senso comum; mas devemos atentar para o fato de que dois atos que em última
instância consistem na mesma coisa podem ser ou não puníveis (e de diferentes formas)
dependendo do autor do mesmo. Esta aliás é praticamente uma constante em termos de
legislação e prática.

Não que isto não seja justificado em alguns casos. Atenuantes como menoridade legal
ou privação da razão plena são obviamente devidos; mas aqui pretendo chamar atenção para a
prática jurídica de dois pesos e duas medidas cujo cerne da distinção entre um criminoso e
outro é a condição socioeconômica, a raça, a disponibilidade de meios com os quais articular
sua defesa, a posição/atuação política, as relações sociais com membros das corporações
repressivas e/ou o estatuto jurídico (no caso Brasil oitocentista, destaca-se a condição de
livre, escravo, liberto, africano livre, etc.).

6
PERROT, Michelle. Os Excluídos da História: operários, mulheres e prisioneiros. Tradução de Denise
Bottmann. 1a ed. Rio de Janeiro: Paz e Terra, 1988., pp. 244-245
4

Mesmo muito depois da institucionalização ideológica dos princípios de Liberdade,


Igualdade e Fraternidade, fundação, ao menos no âmbito do discurso, do Estado Ocidental
pós-Revolução Francesa, a igualdade jurídica de fato dos cidadãos permaneceu e permanece
uma quimera, uma utopia para a qual muitos de nós pretendemos navegar.

Por exemplo: a responsabilização e criminalização individual do que se convencionou


a chamar crimes contra a vida ocorreu diversas vezes no aparato legal de países cujos
próprios Estados atentaram sistematicamente contra a vida de seus cidadãos ou ao menos
contra a de uma parte dos seus cidadãos, o que é verdadeiro mesmo no tempo presente em
diversas nações e talvez mesmo na nossa.

Cabe aqui recorrermos a uma citação em que o professor Gabriel Ignacio Anitua
adverte seus estudantes do seguinte:

Parece-me fundamental insistir aqui – já que muito


provavelmente o "criminólogo", ou futuro criminólogo, a quem me
dirijo tem ou vai ter uma intervenção "prática" como burocrata do
Estado – que a atividade estatal tem sido a que causou mais mortes ao
longo da história que aqui se conta.7

O que pode parecer uma contradição, na verdade é uma distinção que provém, ao
menos na matriz europeia (para não corrermos o risco de recuar demasiadamente no
tempo/espaço), da consolidação dos Estados Nacionais na Época Moderna: a necessidade da
preservação do monopólio da violência como apanágio do Estado.

A empresa de construção de um aparato legal que fizesse com que o Estado se


apropriasse do conflito entre pessoas físicas e transpusessem a ofensa que um indivíduo a
outro para a alçada pública se coaduna cronologicamente com a consolidação dos Estados
Nacionais europeus.

Segundo esta ótica, o conflito, na medida em que inflige a norma estatal, é então uma
ofensa não só ao que foi diretamente prejudicado, mas a todos e, portanto, a reparação é

7
ANITUA, Gabriel Ignacio. Histórias dos pensamentos criminológicos. Tradução de Sérgio Lamarão. Rio de
Janeiro: Revan e Instituto Carioca de Criminologia, 2008. p. 29.
5

devida ao Estado, não ao particular. E mesmo esta ofensa se transfere posteriormente da


figura do rei para a do soberano representativo republicano.

Ao cerne desta ideia se deve o nascimento da concepção de que o poder público teria
o poder de impingir aos seus súditos (posteriormente, aos seus cidadãos, embora o âmago
lógico seja o mesmo) as leis, o julgamento e a punição que considerasse devida.

O sequestro8 do indivíduo que cometeu o delito e, portanto, lesou o Estado, começa a


ser praticado na Época Moderna como forma de implementar uma exclusão do sujeito
perigoso/danoso socialmente sem a necessidade de exílio de fato. Assim nasce a instituição
legal e estritamente estatal da prisão, que já era uma prática de poderes mais locais desde
tempos imemoriáveis.

A pretensão do sistema jurídico penal, ao menos em sua aurora, seria mais o controle
da violência extra estatal do que a abolição ou diminuição do conjunto geral das práticas
violentas na sociedade. O exercício da violência é idealmente restringido a certo número de
atores (não necessariamente membros do Estado) que manteriam a ordem, em lugar de ser
abolido. É assim que:

Junto com o conceito de lei aparece o de legitimidade, pois se as leis assinalam


alguma coisa, historicamente falando, é a diferença essencial entre a violência que é
legítima e admissível, e a que, pelo contrário, é ilegítima ou inadmissível dentro de
uma determinada ordem social.9

Tanto quanto os crimes contra a vida (também conhecidos como contra a pessoa
humana), os crimes contra a propriedade são por definição meios de tentar coagir a população
(sobretudo a mais despossuída) a limitar as formas de obtenção de riqueza às regras do jogo
do mundo do capitalismo, ou de qualquer outro modo de produção que pressuponha a
propriedade privada.

8
Aqui, me refiro ao entendimento da prisão como uma forma institucionalizada e estatal de sequestro de
pessoas.
9
ANITUA, Gabriel Ignacio. Histórias dos pensamentos criminológicos. Tradução de Sérgio Lamarão. Rio de
Janeiro: Revan e Instituto Carioca de Criminologia, 2008. p. 20.
6

Não devemos perder de vista que a fundação da contemporaneidade a que se pretende


a Revolução Francesa também é consolidada em estreita ligação com a proteção da
propriedade privada.

É assim que Michelle Perrot define o recrudescimento da repressão aos crimes contra
a propriedade no caso francês como em intenso diálogo com o período de acumulação
capitalista, em reflexão que encerra com esta citação: "Assim, bem mais que o assassino, o
ladrão e ainda mais o fraudulento constituem a preocupação desses tempos de acumulação
capitalista."10

Mas aqui já passamos a descrever relances do pensamento criminológico da


contemporaneidade. Antes disso, creio que seja positivo pensarmos o sistema punitivo do
Antigo Regime e quais são as mudanças fundamentais que se operam sobre ele para que se
transforme na realidade apresentada no século XIX.

1.2. A IDEOLOGIA E PRÁTICA DO SISTEMA PUNITIVO/REPRESSIVO: COMO


E POR QUE PUNIR DO ANTIGO REGIME AO SÉCULO XIX

Entre 1780 e 1820, elabora-se um novo modelo da prisão, do qual o Panóptico de


Bentham oferece uma das expressões mais perfeitas. Convertida no centro
irradiador do sistema penitenciário, na própria medida em que a pena privadora de
liberdade constitui o essencial, a prisão assume uma tripla função: punir, defender a
sociedade isolando o malfeitor para evitar o contágio do mal e inspirando o temor
ao seu destino, corrigir o culpado para reintegrá-lo à sociedade, no nível social que
lhe é próprio.11

10
PERROT, Michelle. Os Excluídos da História: operários, mulheres e prisioneiros. Tradução de Denise
Bottmann. 1a ed. Rio de Janeiro: Paz e Terra, 1988. P. 252
11
PERROT, Michelle. Os Excluídos da História: operários, mulheres e prisioneiros. Tradução de Denise
Bottmann. 1a ed. Rio de Janeiro: Paz e Terra, 1988. p. 262. Grifo no original.
7

Esta citação da célebre obra de Michelle Perrot nos é muito cara na medida em que
contém o essencial da ideia de cadeia como punição por excelência que vai se consolidando
durante o século XIX. Mas como isso se dá?

Quanto ao sistema punitivo no Antigo Regime europeu e ao seu declínio e


substituição, a maior parte da bibliografia que temos disponível se coaduna com a leitura que
Michel Foucault sumariza em seu Vigiar e Punir 12. Assim, também nos utilizamos deste
referencial teórico para construir as conclusões apresentadas a seguir, por acreditar que
algumas das reflexões surgidas a partir dele podem ser de muita utilidade.

1.2.1. Criação e vigência do sistema punitivo no Antigo Regime

Com a criação e consolidação dos Estados Nacionais europeus há a usurpação da


jurisdição sobre o conflito entre pessoas pelo Estado. Além disso, a noção processual de
acusação e inquérito tal como conhecemos foi tomando forma, sobretudo sob a agência da
Inquisição, que produziu os primeiros modelos integrados de criminologia, política criminal e
direito processual penal.13

Em meados do século XVII, a Europa, com suas particularidades regionais, vai


entrando no auge do absolutismo monárquico e centralista. Em geral entende-se que a Europa
Central passou para esta nova fase a partir do fim da Guerra dos Trinta Anos (1648). Há,
portanto, um enfraquecimento gradual, mas massivo, do que restava do poder feudal e o
crescimento de uma burguesia comercial.

Em Portugal, onde não existe sequer consenso a respeito da existência ou não de um


período feudal, as Ordenações Filipinas de 1603, criadas por Filipe II de Portugal (e III de
Espanha) durante o período de domínio espanhol conhecido como 1640, vão vigorar no
Brasil até a promulgação do Código Criminal de 1830.
12
A edição usada para a redação deste trabalho foi: FOUCAULT, Michel. Vigiar e Punir: nascimento da prisão.
Tradução de Lígia M. Pondé Vassallo. Petrópolis: Vozes, 1977. 280p.
13
ANITUA, Gabriel Ignacio. Histórias dos pensamentos criminológicos. Tradução de Sérgio Lamarão. Rio de
Janeiro: Revan e Instituto Carioca de Criminologia, 2008. Em especial, o capítulo 2.
8

No geral, podemos caracterizar este regime penal do Antigo Regime como a primazia
das punições sobre o corpo dos condenados. As penas por excelência eram as de mutilação ou
marca corporal, morte ou, para delitos menores, penas pecuniárias.

A confissão por tortura no âmbito privado e a punição corporal em público eram os


pilares deste sistema processual de aplicação calculada da violência sobre o corpo daqueles
que levariam o estigma de sua transgressão do poder régio para o resto da vida, no caso das
penas que não fossem a capital.

A transgressão da lei é aqui entendida como desobediência à vontade do soberano,


sendo discursivamente ligada ao pecado (ou ao menos à violação do sagrado) e, sob certa
escola cristã, derivada da predestinação (ao mal).

A prisão se apresenta, neste conjunto, apenas como um lugar no qual o criminoso


aguarda ou o julgamento ou a aplicação da condenação propriamente dita. O cárcere não é,
portanto, um castigo em si mesmo, mas sim um sequestro preventivo do indivíduo realizado
pelo Estado.

1.2.2. A crítica à punição corporal

Já no contexto intelectual iluminista, novas ideias passaram a surgir a respeito destas


penas, no âmbito de uma nova cosmologia que vai se consolidando alternativamente àquela
do Antigo Regime, pretendendo superá-la.

Contratualistas como Beccaria14 afirmaram que a aplicação da pena não poderia se


justificar pela vingança social, mas sim por sua função de prevenir novos delitos; postura que
deriva de sua inclinação jusnaturalista, ou seja, de separação radical entre moral e direito. É
importante entendermos que da suposição teórica do consenso ao redor do contrato social
resultou que a reparação do mal se devesse ao Estado, não ao indivíduo, inserindo a questão
criminal e penal definitivamente no âmbito dos assuntos de Estado.

14
BECCARIA, Cesare. Dos Delitos e das Penas. Trad.: Lúcia Guidicini e Alessandro Berti Contessa. São
Paulo: Martins Fontes, 2000.
9

Uma posição relativamente diferente foi a de Jeremy Bentham, utilitarista, que negou
a ideia de contrato afirmando que a pena é de fato um uso repressivo do Estado que não se
utiliza, em nenhuma instância, do consenso do criminoso. Este pensador também admitiu o
uso de repressão sobre os indivíduos criminosos para desencorajar a propagação da
criminalidade.

É dele o projeto do Panóptico, organização arquitetônica para prisões e demais


instituições disciplinares que quebra com o regime da visualidade 15; ou seja, o vigilante
consegue observar todos os vigiados, que não conseguem visualizar este primeiro. Esta noção
é um dos principais temas de Vigiar e Punir e se apresenta como modelo para a construção de
prisões no mundo todo, incluindo a Casa de Correção do Rio de Janeiro, como veremos mais
adiante.

Baseada em críticas desta linha, o âmago da ação punitiva vai aos poucos deixar o
sofrimento corpóreo, para se fixar na subjetividade do indivíduo, em sua consciência ou,
como diriam os mais místicos, em sua alma.

1.2.3. O projeto da instituição disciplinar a partir do século XIX

A missão do cárcere mudou radicalmente segundo os pressupostos do novo sistema


punitivo da disciplina: a permanência na prisão passa a ser uma maneira de formar cidadãos
em corpos dóceis, para se aproveitar da expressão de Foucault 16, ou seja, incutir disciplina a
sujeitos transgressores da norma legal. O âmago da punição se afastou teoricamente do corpo
e passou a investir contra a alma (ou coisa que o equivalha); produzindo pessoas privadas de
vários aspectos da cidadania e da individualidade, que são intrusos em sua própria terra.

Este controle da alma se daria pela construção de cadeias de tipo Panóptico, nas quais
o prisioneiro está sempre no campo de visão do vigilante, mas não o consegue ver. Desta
15
Ou seja, a lógica óptica segundo a qual aquele que é visto necessariamente vê o outro.
16
Me refiro ao primeiro capítulo da Terceira Parte, intitulado "Os Corpos Dóceis", do já citado FOUCAULT,
Michel. Vigiar e Punir: nascimento da prisão. Tradução de Lígia M. Pondé Vassallo. Petrópolis: Vozes, 1977.
280p.
10

maneira, nem a vigilância constante de fato é necessária, basta sua potencialidade aliada à
ignorância de sua materialidade. É assim que o controlado age como se estivesse sempre sob
a mira de seu guardião, em uma versão leiga do controle orgânico totalitário das religiões
monoteístas.

Ou, ao menos, esta é a tese de seu idealizador. Em poucas ocasiões as cadeias de fato
construídas permitiam que este mecanismo fosse 100% eficaz. E, a partir do segundo em que
existe alguma margem de erro, esta lógica perde sua razão de ser, já que o condenado entende
que tem a possibilidade de contar com espaços privativos, longe do olhar vigilante e
disciplinador. A própria Casa de Correção da Corte, imaginada segundo o modelo de
Bentham. sofreu esta crítica: de que foi construída sem o devido cuidado arquitetônico,
ocasionando esses espaços de dúvida.

Combina-se a esta nova prisão a criação da polícia basicamente como conhecemos


hoje, que é própria do século XIX. No Brasil, o embrião da nossa atual polícia militar surge
com a vinda da Corte para o Rio de Janeiro em 1808. Passa a existir um corpo de agentes
especializados, estatizados e profissionalizados na vigilância do corpo social e na teórica
garantia da legalidade; eles próprios disciplinados militarmente.

Não digo com isso que cessaram as práticas coercitivas sobre o corpo como a tortura,
que sabidamente ainda acontece neste ano de 2016 nas prisões brasileiras e em muitas outras,
mas aquelas são uma herança impregne de processos históricos que nos remetem ao Antigo
Regime. A sociedade do século XIX se pensava diferente, se queria "civilizada", longe de
denúncias de truculência draconiana.

É importante tomar nota, portanto, de que os discursos e práticas a respeito de


qualquer campo da vida humana não se sucedem de forma perfeitamente linear e/ou sem
inter-relações; qualquer ideologia é formada por continuidades e imbricações de pensamentos
provenientes das mais diversas temporalidades.

É desta maneira que grande parte dos pressupostos que sustentam a ideologia do
suplício persistiram na sociedade do século XIX e mesmo na nossa atual, apesar de terem
sido transplantados para uma realidade jurídica que em tese não os comportaria. Dito de outra
forma, o processo de sucessão destas lógicas foi feito de forma gradual e inconclusiva.
11

A respeito desta noção, Gizlene Neder cunhou a noção de "permanências históricas de


longa duração na formação ideológica e na cultura jurídico-política brasileira" 17; que penso
ser muito apropriada para a análise da construção de um novo sistema criminal e punitivo no
século XIX brasileiro (vide seções 1.3, 1.4 e 1.5).

1.2.4. O embate entre os sistemas penitenciários do século XIX

Parte essencial do novo modelo de prisão disciplinar que vai surgindo diz respeito à
produção de trabalho no interior da prisão. Conjuntamente, entende-se que o isolamento entre
os detentos é necessário para evitar o "contágio do mal" e para incentivar a reflexão e o
sincero arrependimento.

Daí surgirem nos Estados Unidos - já então uma nação afeita a aprisionar seus
cidadãos - dois modelos de prisão com trabalho que foram paradigmáticos para a instalação
deste novo regime ao redor do mundo.

Um dos sistemas é o de Auburn, penitenciária de Nova York, que implementava o


trabalho coletivo, porém silencioso, nas oficinas durante o dia (dez horas por dias, sete dias
por semana) e o isolamento celular à noite.

O da Filadélfia, por sua vez, criado pela comunidade quacker, recomendava o


isolamento silencioso celular o tempo todo, em regime de silêncio absoluto. Esta experiência
da Pensilvânia previa o trabalho diurno na cela e educação religiosa. O intuito da solidão
seria deixar o prisioneiro à mercê de sua consciência, o que deveria levar ao sincero
arrependimento.18

No Brasil, a recepção destas ideias foi de certa forma crítica, porque muitos
consideraram que a ideia de isolamento (mesmo que trabalhando juntos, os presos eram
17
MAIA, C., SÁ NETO, F., COSTA, M. et. al. (Org.) História das Prisões no Brasil, volume 1. Rio de Janeiro:
Rocco, 2009, p. 80.
18
Praticamente toda a bibliografia listada aqui sobre a questão criminal retoma esta distinção de sistema, sendo,
portanto, injusto, atribuir esta definição a um autor específico, mas é digna de nota a importância de Foucalt,
Anitua e Motta para o esclarecimento destas definições.
12

proibidos de conversar) era mais prejudicial à ressocialização do que positiva pela suposta
inclinação ao arrependimento.

Ainda que com adaptações e uma prática cotidiana questionável, a prisão a qual este
trabalho se refere primordialmente, a Casa de Correção da Corte, optou pelo sistema Auburn,
constituindo diversas oficinas, como veremos mais tarde (ver subitem 1.5). Esta experiência
foi reconhecida como uma das pioneiras na América Latina.

Ambas as concepções institucionais apresentadas acima dão grande importância à


noção de reabilitação; mas entenda-se, reabilitação pelo trabalho, construindo a habilidade
disciplinar necessária à adequada proletarização que aguarda o preso no momento de sua
libertação.

1.3. O SISTEMA CRIMINAL NO BRASIL DO SÉCULO XIX

Como vimos, no início do século XIX, a pena de prisão ainda não estava consolidada
como pedra angular do sistema penal. Qual seria, então, este método predileto de punição
oscilava muito de acordo com uma série de variáveis, sobretudo em relação à condição
jurídica, racial e socioeconômica do sujeito que cometeu o crime.

Se mesmo a noção de crime e criminoso é intrinsecamente histórica, dado que


determina a conduta desviante da regra e, para tanto, é essencial que haja uma norma
construída em sociedade; ainda mais particular é a providência que o conjunto dos cidadãos
e/ou a autoridade estatal decide tomar para remediar e/ou inibir a conduta indesejada.

No caso da América Portuguesa e posteriormente do Brasil independente, observamos


uma inflexão na teoria do Direito ao longo dos anos: parte-se da ideia de punição como
expurgação do pecado, típica do Antigo Regime, que prevê que punições como açoites e
execuções públicas seriam apropriadas por seu caráter humilhante e degradante, que
anulariam a luxúria do pecado/crime; até chegarmos a uma concepção donatária do
Penalismo Ilustrado segundo a qual a reparação do crime seria feita devolvendo à sociedade o
dano produzido pelo crime (visto aqui como mais próximo da ideia de quebra de um Contrato
13

Social e mais distante da ideia de pecado 19), recuperando o delinquente/desviante (em tese, é
inclusive a missão do atual sistema prisional) e dissuadindo, pelo medo da punição, outrem
que estivesse cogitando cometer o mesmo crime (o que contribuiria para a paz social).

Esta inflexão que observamos deriva em última instância da mudança que ocorre na
relação entre Estado e Sociedade em geral com a passagem (gradual e cheia de vicissitudes)
da lógica de Antigo Regime para a racionalidade contemporânea no Mundo Ocidental. A
punição (e o aparato jurídico como um todo) deixa de ser apanágio real e passa a ser
entendida como um recurso que a sociedade tem para se defender dos comportamentos
indesejáveis, conforme a citação abaixo:

A partir do século XVII, começam a ocorrer mudanças importantes no sistema


penal, e a prisão seria o elemento-chave dessas mudanças. O ato de punir passa a
ser não mais uma prerrogativa do rei, mas um direito de a sociedade se defender
contra aqueles indivíduos que aparecessem como um risco à propriedade e à vida. A
punição seria agora marcada por uma racionalização da pena de restrição de
liberdade.20

Como este processo de passagem da modernidade à contemporaneidade (aliás, os


processos de mudanças ideológicas em geral) é complexo e possui temporalidades disformes,
é possível observarmos no fim do século XIX no Brasil uma sociedade monárquica que
absorveu noções liberais e, portanto, se propõe a uma maior racionalização do aparato
prisional, o que podemos observar inclusive na empresa de catalogar de forma bastante
uniforme os presidiários da Casa de Correção, com seus nomes, condenações, datas de
entrada e, sobretudos, suas faces.

Portanto, quando tornamos nosso olhar a uma peça como a Galeria dos Condenados,
em particular, e a uma instituição como a Casa de Correção da Corte, em geral, precisamos
ter em mente os usos e funções deste presídio para alcançar alguma compressão da
necessidade/utilidade do registro fotográfico e das anotações a respeito dos detentos.

Um dos caminhos para pensar a Galeria dos Condenados é entendê-la como uma
providência tomada pela instituição prisional para submeter os corpos dos indivíduos
19
Este é o pressuposto básico da corrente conhecida como jusnaturalismo moderno.
20
MAIA, C., SÁ NETO, F., COSTA, M. et. al. (Org.) História das Prisões no Brasil, volume 1. Rio de Janeiro:
Rocco, 2009, p. 12.
14

desviantes à identificação imediata e ao controle do Estado; ou seja, em última instância, da


classe dominante a que todo Estado presta obediência.

Mas este intento modernizante da Galeria dos Condenados em particular e da casa de


Correção da Corte, em geral, só pode ser razoavelmente compreendido uma vez que
perscrutamos a legislação que deu origem à demanda por estas instituições.

O Código Criminal de 1830, promulgado alguns meses antes da abdicação de D.


Pedro I em favor de seu filho, se coaduna com o projeto de monarquia constitucional de ares
civilizados que a breve dinastia brasileira pretendeu. Trata-se do primeiro código criminal
concernente ao Brasil desde as Ordenações Filipinas (1603).

Esta legislação foi produzida para ser a devida medida, no campo criminal, da
Constituição de 182421, que previu a necessidade de revisão nas leis deste âmbito. O processo
de redação começou em 1827, decorrendo três anos de discussão do seu texto.

Este Código inaugura, no Brasil, o uso de uma lógica punitiva liberal, afinada com os
princípios acima descritos como em voga na Europa e nos Estados Unidos; ou seja, a
hegemonia da pena de prisão com trabalho, a fim de produzir a regeneração do criminoso
através da disciplina laboriosa, como já vimos anteriormente. Ele determinou o fim do açoite
para os cidadãos livres, da marca a ferro e de demais penas consideradas cruéis.

Também é importante, para entendermos melhor as múltiplas faces destas novas


normas, entendermos os tipos de prisão que este código previa; além, é claro, de outros tipos
de pena, com destaque para a de morte na forca, degredo e desterro. Nada melhor, para
começar esta reflexão, que recorrer ao próprio.

TITULO II
Das Penas
CAPITULO I
DA QUALIDADE DAS PENAS, E DA MANEIRA COMO SE HÃO DE IMPOR, E
CUMPRIR

Art. 44. A pena de galés sujeitará os réos a andarem com calceta no pé, e corrente de
ferro, juntos ou separados, e a empregarem-se nos trabalhos publicos da provincia,
onde tiver sido commettido o delicto, á disposição do Governo.

Art. 45. A pena de galés nunca será imposta:

1º A's mulheres, as quaes quando tiverem commettido crimes, para que esteja
estabelecida esta pena, serão condemnadas pelo mesmo tempo a prisão em lugar, e
com serviço analogo ao seu sexo.

21
O próprio caráter outorgado desta carta já testemunha contra a legitimidade prática da monarquia
constitucional sob a qual se erigiu o Império do Brasil.
15

2º Aos menores de vinte e um annos, e maiores de sessenta, aos quaes se substituirá


esta pena pela de prisão com trabalho pelo mesmo tempo.

Quando o condemnado á galés, estando no cumprimento da pena, chegar á idade de


sessenta annos, ser-lhe-ha esta substituida pela de prisão com trabalho por outro tanto
tempo, quanto ainda lhe faltar para cumprir.

Art. 46. A pena de prisão com trabalho, obrigará aos réos a occuparem-se diariamente
no trabalho, que lhes fôr destinado dentro do recinto das prisões, na conformidade das
sentenças, e dos regulamentos policiaes das mesmas prisões.

Art. 47. A pena de prisão simples obrigará aos réos a estarem reclusos nas prisões
publicas pelo tempo marcado nas sentenças.

Art. 48. Estas penas de prisão serão cumpridas nas prisões publicas, que offerecerem
maior commodidade, e segurança, e na maior proximidade, que fôr possivel, dos
lugares dos delictos, devendo ser designadas pelos Juizes nas sentenças.

Quando porém fôr de prisão simples, que não exceda a seis mezes, cumprir-se-ha em
qualquer prisão, que haja no lugar da residencia do réo, ou em algum outro proximo,
devendo fazer-se na sentença a mesma designação.

Art. 49. Emquanto se não estabelecerem as prisões com as commodidades, e arranjos


necessarios para o trabalho dos réos, as penas de prisão com trabalho serão
substituidas pela de prisão simples, acrescentando-se em tal caso á esta mais a sexta
parte do tempo, por que aquellas deveriam impôr-se.

(...)

Art. 60. Se o réo fôr escravo, e incorrer em pena, que não seja a capital, ou de galés,
será condemnado na de açoutes, e depois de os soffrer, será entregue a seu senhor,
que se obrigará a trazel-o com um ferro, pelo tempo, e maneira que o Juiz designar.
(Revogado pela Lei 3.310, de 3.310, de 1886)

O numero de açoutes será fixado na sentença; e o escravo não poderá levar por dia
mais de cincoenta. (Revogado pela Lei 3.310, de 3.310, de 1886)22

Algumas considerações a respeito da diferença entre prisão com trabalho (a punição


por excelência para a qual foi criada a Casa de Correção da Corte) e a pena de galés precisam
ser tecidas para que possamos entender a magnitude da novidade deste código.

A questão da privação desta última para mulheres 23, menores e idosos é sintomática
do esforço físico necessário para cumprir o tempo de trabalho nas obras públicas. Já a prisão
com trabalho é entendida como uma forma de ressocialização e/ou reabilitação, posto que
também seja entendida como o aprendizado de um ofício que permitirá ao detento gozar de
um provento honesto no caso de liberdade futura.

22
BRASIL. CODIGO CRIMINAL DO IMPERIO DO BRAZIL. Rio de Janeiro, 1830. Disponível em:
<http://www.planalto.gov.br/ccivil_…/…/LIM/LIM-16-12-1830.htm>. Acesso em: 29 de março de 2016.
23
Não é exagero dizer que o caminho para o reconhecimento da igualdade entre os sexos em termos de
capacidade para o trabalho ainda não foi percorrido pelo feminismo contemporâneo, quiçá o teria sido em 1830.
16

O número e gênero destas oficinas de trabalho variaram muito de acordo com o


tempo, mas era algo como carpintaria, encadernação, alfaiataria e sapataria 24. Ou seja, no
geral, a prisão com trabalho estava mais próxima da profissionalização que do
martírio/suplício das galés.

Aliás, no nível do discurso, podemos refletir sobre a própria adoção do termo galés,
que remete primariamente a uma realidade muito antiga de punição com trabalho extenuante
e braçal: "ga.lé s.f. 1 antiga embarcação comprida e estreita, movida a velas e remos. galés
s.f.pl. 2 pena dos condenados a remar nessa embarcação25".

Observamos, portanto, que, apesar de coexistirem no Código Criminal (que, aliás,


comporta outras penas nada modernas, como as próprias dos escravos), estas penas possuem
objetivos e práticas, ao menos em tese, bastante distintas.

Dois problemas, inter-relacionados, se mostravam sensível a efetiva aplicação deste


esquema que a nova lei apresentava, sobretudo no que concerne a pena de prisão com
trabalho. O primeiro era a contradição entre a persistência da escravidão, da monarquia e de
uma estrutura social com grandes persistências coloniais 26. O segundo era a falta de
infraestrutura carcerária para o cumprimento das penas de prisão com trabalho.

A respeito da primeira contradição, a pena de prisão com trabalho foi concebida para
a disciplinarização de uma classe trabalhadora em uma sociedade capitalista. Em um país
escravocrata, não só é considera inapropriada para o contingente escravo (para o qual as
penas corporais sempre mantiveram sua hegemonia) como também forma um tipo de
trabalhador livre que não tem um referente, fora da prisão, em uma classe operária
propriamente dita.

Mas, embora o transplante do gênero punitivo possa então nos parecer inapropriado,
veremos mais adiante que, enquanto a escravidão ainda representou uma instituição de vulto

24
SANT'ANNA, Marilene. "Trabalho e conflitos na Casa de Correção do Rio de Janeiro". In: MAIA, C., SÁ
NETO, F., COSTA, M. et. al. (Org.) História das Prisões no Brasil, volume 1. Rio de Janeiro: Rocco, 2009.
25
HOUAISS, A. Míni Houaiss: Dicionário da Língua Portuguesa. 4 ed. Rio de Janeiro: Objetiva, 2010.
26
Embora o Brasil tenha se transformado em sede do Império Ultramarino em 1808 e sido elevado à condição
de Reino Unido em 1815, aplico o conceito de "colonial" por entender que diversas estruturas provenientes
deste sistema e desta temporalidade permaneceram ativas em grande parte do Império e, mesmo depois de seu
fim, continuaram marcando a sociedade brasileira. É o caso da monocultura de exportação movida a braço
escravo, da monarquia absolutista, do racismo e do sistema legal de Antigo Regime.
17

na sociedade brasileira, foram feitas adaptações no regime carcerário para comportar os


escravos da forma tradicional.

Durante todo o período imperial, não é exagero dizer que apenas uma pequena parcela
dos encarcerados cumpriam sua pena da forma que o Código previa; até porque o processo de
edificação das Casas de Correção por todo o país foi difuso e demorado, em parte porque o
sistema penitenciário dependia do governo provincial.

Além da escravidão, a monarquia vigente também apresentava suas incongruências


em relação à completa aplicação do sistema disciplinador no Brasil. A ideia de infalibilidade
da pena era essencial para o funcionamento do sistema, coisa que a comutação de penas por
parte dos soberanos tornava discursivamente questionável, como afirma Foucault:

Regra da certeza perfeita: É preciso que, à idéia [sic] de cada crime e das
vantagens que se esperam dele, esteja associada a idéia [sic] de um
determinado castigo, com as desvantagens precisas que dele resultam; é
preciso que, de um a outro, o laço seja considerado necessário e nada possa
rompê-lo. Esse elemento geral de certeza que deve dar eficácia ao sistema
punitivo implica num certo número de medidas precisas. (...) Que o monarca
renuncie a seu direito de misericórdia, para que a força que está presente na
idéia [sic] de pena não seja atenuada pela esperança dessa intervenção.
(FOUCAULT, 1977, p. 87)

Também é conhecida a fama que especialmente D. Pedro II procurou construir para si


de ser um imperador magnânimo e misericordioso, fazendo grandes arautos de seus perdões,
especialmente em datas festivas.

O segundo obstáculo era o caráter das cadeias que o Sistema Judiciário tinha à sua
disposição: como veremos no tópico a seguir, elas eram representativas do esquema jurídico
do Antigo Regime e totalmente inutilizáveis para aplicação da pena de prisão com trabalho;
além de serem também muito precárias em seus aspectos estruturais mais gerais. A bem da
verdade, quando da promulgação do Código Criminal, ainda levaria vinte anos para a
finalização das obras da Casa de Correção do Rio de Janeiro, pioneira no Brasil e mesmo na
América Latina.
18

Além da proposição prática de um novo modelo de prisão, também as explicações


intelectuais para o problema da criminalidade (uma espécie de antecedentes da criminologia),
tomam corpo no século XIX. A fim de justificar a "naturalidade" da ordem burguesa, como
são no geral o papel das ideologias que apoiam o status quo, pseudociências27 como a
frenologia e a antropologia física buscaram explicações para a desigualdade no conceito de
raça.

Assim, conciliava-se a questão da pretensa igualdade entre os cidadãos a que se arroga


o liberalismo mediante a demonstração do caráter intrínseco da inferioridade dos mais
pobres. Nota-se que a divisão racial é estratificada e hierarquizada, contando em tese com
todos os povos do mundo, com os arianos no topo. Não é em vão que a raça que homens
como Gobineau apontaram como a mais propensa ao estado de civilização fosse justamente
aquela a qual pertenciam as elites da Europa do Norte.

O racismo deixa de ser, através deste procedimento discursivo, uma ideologia dos
conservadores do Antigo Regime e passa a ser um dado pretensamente científico do ponto de
vista da sociedade capitalista industrial que está começando a se consolidar na autonomeada
Civilização Ocidental. Esta noção ganha legitimidade e penetra até mesmo nas mentalidades
das classes mais baixas, ciosas de um bode expiatório para seus males e de um apoio a seus
anseios nacionalistas.

Outro ponto que merece destaque é que este pensamento racista entende que a
miscigenação é o maior dos males, porque degrada o melhor que poderia ser retirado de duas
raças. Mesmo considerando-se uma hierarquia entre as raças, até a raça inferior pura é
preferível a um híbrido degenerado. Note-se que a construção deste discurso é muito
providencial para uma ordem que pretende proteger as raças ditas superiores do "contágio"
genético das demais.

Pensando segundo esta estrutura, hegemônica internacionalmente no século XIX, o


Brasil já era, como ainda é e deve continuar sendo até o fim dos tempos, reconhecidamente
um país mestiço. As ideologias nacionalistas que tomam este fator como um ponto positivo
na construção da especificidade nacional do nosso país são datadas, de forma sistemática, do
século XX, principalmente sob o governo de Vargas.

27
Cunho este termo porque o método destes auto conclamados cientistas muitas vezes foi reconhecido como
duvidoso em seus aspectos hipotético-dedutivos.
19

Entende-se, portanto, que à época, por exemplo, de D. Pedro II (na qual se situa a
produção da Galeria dos Condenados), a miscigenação era uma mancha e um óbice à
caminhada em direção à civilização que o Brasil deveria fazer a partir da estrutura herdada da
colônia. Compreendem-se, assim, eventuais intentos que buscassem mascarar esta condição
aos olhos internacionais (vide capítulo 3).

1.4. AS CADEIAS ANACRÔNICAS: A PERMANÊNCIA DAS PRISÕES DO


ANTIGO REGIME NA PROVÍNCIA DO RIO DE JANEIRO

Durante o Império, a organização e manutenção das prisões era responsabilidade


provincial28. Este é o principal motivo pelo qual, nesta análise, vamos nos ater às prisões do
Rio de Janeiro, ou correríamos o risco, por limitação do escopo da pesquisa, de cometer
sérias falhas na construção de um quadro mais geral.

Quando da chegada da Família Real ao Brasil em 1808 (constantemente tido como um


marco no desmonte da relação colonial com Portugal), a província na qual estava a capital
tinha uma série de prisões militares, a maioria em fortalezas ao redor da Baía de Guanabara.
Não me deterei nestas porque é outra a realidade que no momento nos interessa a das prisões
civis no crepúsculo do século XVIII:

Quanto às prisões civis, tínhamos a Cadeia Pública e a Cadeia do Tribunal da


Relação, ambas localizadas no edifício do Senado da Câmara 29, e o
Calabouço, prisão destinada exclusivamente à punição de escravos fugitivos
ou que eram entregues pelos senhores para serem castigados. Esta última
prisão, localizada na fortaleza de Santiago, foi criada em 1767 e ali
permaneceu até 1813.30

28
Vide a Introdução de MAIA, C., SÁ NETO, F., COSTA, M. et. al. (Org.) História das Prisões no Brasil,
volume 1. Rio de Janeiro: Rocco, 2009.
29
Atualmente, esta é a localização do Palácio Tiradentes, no centro da cidade, próximo ao Paço Imperial.
20

Neste contexto, o Estado se utilizava da mão de obra destes escravos recolhidos ao


Calabouço (nome de fato referido à analogia com o poço de um navio) para a realização de
obras públicas. Impunha-se, assim, um embate entre o poder público e o privado dos
senhores. Ao passo que, do ponto de vistas destes mesmos escravos, sua realidade era a
submissão a um duplo cativeiro.

Entende-se que nem todos os escravos detidos se encontravam no Calabouço; eles


eram presença constante também nas demais prisões, quando cometiam crimes comuns pelos
quais foram processados. Parece-me justo dizer que a diferença entre o encaminhamento para
uma ou outra prisão era que se dirigiam ao Calabouço aqueles escravos que tinham sido
presos por conta de sua condição, seja a mando de seus senhores, seja por fuga.

Esta realidade da prestação estatal de serviços de tortura aos senhores vai se prolongar
até o fim do Calabouço, na década de 1870, como veremos mais adiante. A realidade do trato
físico da população cativa no Brasil, como se sabe, levava mesmo muitas vezes à morte, o
que também era visto da posição do senhor enquanto prejuízo econômico.

Importante também lembrar que o preso das cadeias coloniais dependia de sua
família, amigos ou caridade púbica para sobreviver, pois o Estado não provinha sequer sua
alimentação. Neste contexto, quando algum senhor calculava que as taxas para manutenção
do escravo no Calabouço seriam superiores a seu valor venal, simplesmente o abandonava à
própria sorte.

Como o Brasil permaneceu até 1830 com o código criminal provido pelas Ordenações
Filipinas de 1603, é por certo que a opinião pública e a intelectualidade de viés liberal já
olhassem para as penas draconianas sobre o corpo influenciadas pela crítica iluminista,
causando um cálculo muito específico no sentido de sua aplicação.

Quanto mais anacrônica ficava a legislação, mais a justiça se empenhava em aplicá-la


com parcimônia e calma. Na prática, a consequência é que os detentos que deveriam estar na
prisão apenas para aguardar as demais punições acabavam por delongar sua estada nas
mesmas, resultando em uma superpopulação carcerária já em fins do século XVIII.

Com a vinda da Corte para o Rio de Janeiro, o prédio do Senado da Câmara precisou
ser desocupado, o que implicou na transferência das cadeias que lá funcionavam para o
Aljube, prisão eclesiástica que ficava localizada ao pé do Morro da Conceição.
30
ARAÚJO, Carlos. Entre dois cativeiros: escravidão urbana e sistema prisional no Rio de Janeiro, 1790-1821.
In.: MAIA, C. et al. História das Prisões no Brasil. Rio de Janeiro: Rocco, 2009, p. 219.
21

Lá ficaram os presos comuns e os que aguardavam julgamento. Este cárcere era


conhecido por sua superlotação e por suas condições sanitárias desumanas. A umidade ao pé
do morro, sobretudo no verão, o ar infecto, a tubulação sanitária que não descia os dejetos
apropriadamente e a mistura de todo tipo de criminoso na mesma cadeia eram algumas das
principais preocupações das autoridades e comissões que visitaram o presídio de tempos em
tempos.

Mais tarde, em 1856, esta prisão foi fechada e suas funções foram assumidas pela
Casa de Detenção da Corte, no complexo penitenciário que foi construído na Rua Nova do
Conde, que também incluía a Casa de Correção e o Calabouço.

Mas antes disso, esta obra precisava ser feita, já que a exigência já começou a se
impor quando, no Código Criminal de 1830, a pena para muitos delitos foi instituída como
sendo a prisão com trabalho; para o que nenhuma destas prisões que vimos até então se
encontrava preparada para realizar.

Em 1833 começaram as obras e em 1837 o Calabouço mudou-se para o pouco que já


existia do prédio. Os escravos detentos se ocuparam de concluir a construção, para que a
partir de 1850 o complexo pudesse receber a Casa de Correção e em 1856, a Casa de
Detenção.

Com o definhamento da escravidão, as instituições que se ocupavam exclusivamente


de lhe apresentar apoio, como o caso do Calabouço, foram aos poucos, elas também,
desaparecendo. Em 1874, depois de muitas campanhas neste sentido, o Calabouço foi extinto
e suas funções foram assumidas pela Casa de Detenção, também no complexo da Rua Nova
do Conde; o que indica que talvez mesmo o prédio tenha permanecido o mesmo, o que
demandaria uma pesquisa maior para se ter certeza.

É até um questionamento interessante pensarmos porque os escravos foram enviados


para a Casa de Detenção e não para a de Correção. O olhar sobre o escravo não era o da
inclusão pelo trabalho, mas o de outsider natural e perene. Mais se preocupava em deter, tirar
do convívio social e aproveitar-se de sua força de trabalho, do que em corrigir, recuperar,
reabilitar.

Estas últimas décadas da escravidão e especialmente a questão do cativo detento nos


aponta a uma questão fundamental de conciliação entre uma realidade mais tradicional e
outra mais recente: como consolidar o domínio estatal das classes submissas, de acordo com
22

o projeto disciplinar contemporâneo, se a classe trabalhadora do Brasil era propriedade


privada?

A lenta extinção e a gradual e relativa melhoria das condições de vida desta população
vivendo sob duplo cativeiro pode nos ser indicativa de uma resolução possível, um meio
termo, de certa forma consensual, neste embate.

1.5. A CASA DE CORREÇÃO DA CORTE

Como já vimos acima, a Casa de Correção da Corte foi uma prisão construída entre
1833 e 1850, pretendendo instituir o regime disciplinar panóptico com trabalho segundo o
modelo de Auburn. Até hoje, no mesmo lugar, na região do Catumbi, funciona o Complexo
Penitenciário Frei Caneca.

Nesta penitenciária, várias oficinas de ofícios especializados, como marcenaria e


encadernação, tiveram lugar ao longo do século XIX. Este hábito abre inclusive a hipótese de
ter sido um condenado que aprendeu a manusear a câmera fotográfica, já que a pedagogia do
trabalho era comum. Mas, até onde foram as minhas pesquisas e as constantes na bibliografia,
isso é impossível de se verificar.

Ao fim e ao cabo, parece que o projeto de instituir uma casa disciplinar de


regeneração pelo trabalho foi satisfatoriamente exitoso, já que não há relatos sobre a Casa de
Correção denunciativos e revoltosos sobre as condições do cárcere como houve a respeito do
Calabouço e do Aljube; esta ausência é em si um sinal de que as condições de vida relativas
melhoraram.

Certos setores de especialistas tendem a refutar a aplicação de esquemas teóricos


como o que Foucault apresenta para o caso das periferias econômicas do mundo, alegando
que não havia no Brasil, por exemplo, a economia capitalista industrial e a sociedade a que
ela diz respeito; e que a existência destas estruturas determinou o surgimento das instituições
disciplinares modernas, sendo impossível uma coisa sem a outra.
23

Porém, a empresa da construção da Casa de Correção do Rio de Janeiro (que começa,


aliás, com um projeto panóptico, embora na prática a quebra do regime de visualidade não se
dê) é sintomática do ressentimento estatal quanto a esta condição de subdesenvolvimento e
herança colonial; representando o projeto de construção de uma instituição considerada
moderna mesmo sob o crivo das nações ricas.

A relação continua, assim, ambígua: se a cadeia se pretende moderna, capitalista e


liberal, seu Estado é monárquico e o Imperador pode comutar a pena, o que, como vimos
anteriormente, é próprio da lógica punitiva do Antigo Regime. A imagem deste sistema penal
irrefutável e inescapável e aquela do rei magnânimo e misericordioso são, ao menos em tese,
contraditórias, se não irreconciliáveis.

Também podemos pensar que a Casa de Correção foi apenas uma das prisões da
capital, convivendo, inclusive no mesmo endereço, com a Casa de Detenção (que já na
nomenclatura não se mostra tão comprometida com a reabilitação dos presos quanto sua
congênere) e o Calabouço, até 1874. Portanto, a Correção era apenas um ponto em uma
hierarquia dos criminosos (e demais desviantes/indesejáveis) e não a representação do
conjunto da população carcerária da capital.

CAPÍTULO 2 – A GALERIA DOS CONDENADOS: REGISTRO VISUAL E


MANUSCRITO DOS DETENTOS DA CASA DE CORREÇÃO DA CORTE

Este capítulo busca elucidar o que é a Galeria dos Condenados em seus aspectos
básicos e tecer algumas problematizações a respeito do tema, ei-las:

2.1. A NATUREZA DA FONTE


24

Os dois volumes do álbum ao qual este trabalho se refere estão arquivados na Divisão
de Manuscritos da Biblioteca Nacional, e estão também disponíveis online no site da
Biblioteca Nacional Digital (aconselhável pesquisar expressamente por “Galeria dos
Condenados”, as fichas estão separadas). A digitalização, a exemplo do trabalho que vem
sendo realizado ultimamente pela referida instituição, é de muito boa qualidade, permitindo a
quem acessa o acervo ter uma experiência satisfatória do documento em si.

Isto muito embora a digitalização seja feita arquivando uma ficha por vez, algo típico
da formação dos bibliotecários, mas que talvez não agrade tanto a historiadores e arquivistas,
que provavelmente prefeririam a digitalização por volume.

Os únicos aspectos que deixam um pouco a desejar são a ferramenta de pesquisa no


acervo, que não reconhece pontuação nem algarismos, e alguns dados do processo de
catalogação, que repete nomes de prisioneiros, ou não consegue decifrá-los, em termos
paleográficos, o que dificulta o acesso a fichas especificamente pelo nome do presidiário.

O maior destes erros de paleografia é a datação da coleção como 1840-1869. Sabe-se


que a coleção é montada por volta de 1870 até 1874 e suponho que tenha havido confusão
entre os algarismos 7 e 4 durante a catalogação, já que eles são de fato parecidos na letra
cursiva oitocentista dos manuscritos.

A Galeria, parte integrante da Coleção Thereza Christina Maria da Fundação


Biblioteca Nacional é composta por dois volumes, cada qual com cerca de 150 fotografias. O
volume 1 (segunda a catalogação da Biblioteca) tem capa dura, adornada e com o brasão do
Império. O segundo volume é mais simples.

Podemos pensar que o critério para tal ordem seja preponderantemente a pompa da
encadernação mais sofisticada, carro-chefe da Galeria, já que a ordem de produção foi o
contrário, segundo Koutsoukos31, e por isso mesmo as fotos da edição mais bem acabada são
de melhor qualidade.

Esta encadernação mais bonita não é simplesmente um novo documento com as


mesmas informações do antigo, mas produzido com mais cuidado. É a continuação do
processo de produção das fichas criminais da Casa de Correção da Corte, já que se trata de
outros presos, e não uma versão melhorada das mesmas fichas criminais.

31
Em seu breve artigo KOUTSOUKOS, Sandra Sofia Machado. Na "Galeria dos Condenados", o aprendizado
de um photografo. In: Anais do XVII Encontro Regional de História: O lugar da História. AHPUH/SP -
UNICAMP. Campinas, 6 a 10 de setembro de 2004. Cd-rom.
25

A respeito do fotógrafo, sabe-se apenas que, ainda segundo ambas as obras


Koutsoukos citadas, trata-se talvez de um preso a quem foi ensinado o ofício, e não há outras
informações a seu respeito, o que é uma grande lacuna neste trabalho.

2.2. A CARACTERIZAÇÃO DO PADRÃO DOCUMENTAL

Estritamente a respeito dos documentos, pode-se dizer que seguem um modelo bem
pouco variável. Cada página pautada é decorada nas bordas com floreios azuis e possui
decoração também em um espaço oval centralizado no topo, onde se encontra uma fotografia
(obviamente em preto-e-branco, muitas vezes esmaecida) do referido preso, acima de seu
nome em letra manuscrita centralizada ligeiramente maior que o resto do texto.

Passa-se então à descrição cursiva basicamente padronizada de quando o preso entrou


na Casa de Correção, sua pena, a data do julgamento e a acusação (algumas destes itens não
aparecem em algumas fichas, sobretudo no segundo livro). Em alguns casos há informações
extras, como soltura, falecimento ou perdão.

Trata-se, portanto, de um tipo de documentação que tem duplo apelo: tanto como
fonte iconográfica quanto manuscrita.

A respeito das fotografias, elas seguem um modelo também bastante padronizado. Em


geral o fotografado se encontra com um uniforme (há duas versões: o escuro de gola príncipe
branca e o claro), que poderia ser tanto o uniforme da prisão quanto uma veste especial que
todos os homens deveriam ter para posar para o fotógrafo.

A hipótese mais provável é de que se tratasse de uma vestimenta exclusiva do


momento da fotografia, já que em um significativo número de fotografias o uniforme parece
estar pequeno ou grande demais para a pessoa que o veste. Este seria um problema de fácil
resolução caso se apresentasse cotidianamente – o que indica para o uso eventual do capote.

Na postura dos presos, a tridimensionalidade da fotografia é valorizada através de


uma posição de meio-perfil, mais frequentemente virados para a esquerda que para a direita,
26

que foi um recurso utilizado a fim de mensurar melhor os traços do condenado e garantir a
retratação mais fiel possível.

O recurso à profundidade visual (ou perspectiva) permite inclusive o uso deste


material para estudos frenológicos. Podemos ver que mesmo o estabelecimento desta pose foi
obtido ao longo da construção do aprendizado do fotógrafo.

2.3. AS PESSOAS NA FONTE

Uma inquietação que acaba sendo muito relevante no todo da Galeria dos Condenados
é que conhecemos prioritariamente as instituições que a produziram; mas não conhecemos as
pessoas. A autoria das fotos é, salvo engano, ignorada pelas pesquisas até agora levadas a
cabo, e a figuração dos sujeitos é pouco mais específica: alguns dos presos são identificados
apenas pelo primeiro nome e pela indicação de nação (no caso dos escravos).

Além do nome (mesmo que completo) e da intuição de idade aproximada disponível


através da fotografia, a outra pista que os prisioneiros deixaram foi o registro de seu crime e,
geralmente, da data de sua condenação.

Provavelmente, se esta fosse uma pesquisa com mais recursos (sobretudo, tempo)
disponíveis, seria possível identificar, ao menos através dos autos judiciais, cada crime e cada
criminoso, o que nos traria luz a respeito da forma de organização do acervo e do processo de
identificação da necessidade/demanda do poder público ao assumir a empresa de catalogar
estes detentos.

Alguns prisioneiros tiveram pesquisas e comentários tecidos a respeito de suas


identidades32, mas os esforços foram, de forma geral, disformes.

O que foi legado destes homens e mulheres 33 para a posteridade foi principalmente
suas faces, suas figuras, suas expressões. Em uma condição na qual o fotografado pouco ou
32
É o caso de duas citações presentes em KOUTSOUKOS, Sandra Sofia Machado. Negros no estúdio do
fotógrafo. Campinas: Editora da Unicamp, 2010. e em THIESEN, Icléia. Informação identificatória, memória
institucional e conhecimento: Isabel Jacintha da Silva, de cativa à prisioneira da Casa de Correção da Corte.
Revista de Ciência da Informação - v. 10 n. 3 jun/09.
27

nada poderia fazer em termos de negociação de sua pose, o olhar e a aparência permanente
(traços físicos, estilo de barba e cabelo, etc.) é a maneira possível na qual o sujeito –
pretensamente privado de sua individualidade por sua condição de interno – se coloca na
foto; dá o seu testemunho, eloquente apesar de breve – de quem ele é e do que ele pensa
sobre a própria vida.

De forma intuitiva, durante o período em que primeiro tive contato com este acervo 34,
me saltou aos olhos a postura mais relaxada ou mais tensa, mais resignada ou mais arrogante,
mais serena ou mais perturbada, que parecia se coadunar surpreendentemente com a
condenação (em termos de delito e de tempo a cumprir) de cada um.

A título de exemplo, reproduzo abaixo 35 a um extrato da ficha pertencente a João


Monteiro Serrador, do volume 2, na qual se lê: “Entrou a 8 de Outubro de 1873 para cumprir
a pena de doze annos [sic], por sentença de 12 de Setembro do mesmo anno [sic], por crime
de homicidio [sic].” Difícil não notar sua expressão consternada, que pode significar tanta
coisa, inclusive incômodo frente à longa exposição da luz... Ou talvez desalento por seu
destino; nunca teremos certeza.

33
São duas mulheres, no âmbito geral do documento.
34
Em 2012, na Iniciação Científica referida na nota no 1.
35
Como já foi referido, esta e as demais fotografias e manuscritos aqui reproduzidos podem ser encontrados no
site da Biblioteca Nacional Digital, seja em conjunto através da pesquisa por Galeria dos Condenados, seja
nominalmente.
28

Aparentemente, esta posição é radicalmente distinta da atitude de José Maria Pereira


Braga, também do volume 2, cujo detalhe está reproduzido abaixo. No original lê-se: “Entrou
a 11 de Dezembro de 1874 para cumprir a pena de dous mezes [sic], por sentença de 29 de
Novembro do mesmo anno [sic], por crime de uso de instrumentos para roubar. Solto a 30 de
Janeiro de 1874.”

Muito difícil não pensar em tranquilidade, e despeito ao observar a forma como este
jovem encara a câmera sem hesitação, receio ou sentimento de fuga. A relativa serenidade no
olhar de quem iria ficar apenas dois meses em detenção e, em fim de contas, nem isso
cumpriu, conforme nos informa o manuscrito. Refletindo de outro modo, a tranquilidade
também de quem não é identificado como homicida.
29

Logicamente, não tenho a pretensão de observar ou construir hipóteses


cientificamente sobre esta relação, já que para isso este trabalho precisaria se inserir em outro
campo de conhecimento, talvez Psicologia; e eu precisaria ter tido outra formação.

Mas o que parece uma inútil nota sobre os bastidores de uma pesquisa de Iniciação
Científica é na verdade muito mais que isso. Desejo uma tentativa de reflexão sobre o poder
do fotográfico enquanto capturador da subjetividade humana.

O olho mecânico que conserva para sempre (ou ao menos por um bom tempo) os
desenhos de cada par de ombros, de sobrancelhas, de cada maxilar e nariz, também conserva
aquilo que há de mais fundamental na existência humana através das eras: a expressão dos
nossos sentimentos.

A Galeria dos Condenados registrou uma possibilidade de hipótese a respeito do


estado mental de cada uma das figuras que retratou. Mesmo para aqueles contemporâneos
que pretenderam se utilizar da Galeria como fonte de dados aproveitáveis para a identificação
de reincidentes, este dado existe e importa – tanto quanto qualquer característica fenotípica –
para a construção visual e subjetiva do outro.

Entretanto, nunca é demais nos lembrarmos de ter a necessária cautela quando


permitimos que esta referida subjetividade tome nossos sentidos. A exemplo deste cuidado,
30

devemos ter como princípio a advertência que a historiadora Sylvie Lindeperg propõe ao uso
indiscriminado de imagens de arquivo (no caso, especificamente imagens filmadas) pela
indústria cultural.

Apesar de se referir a outro espaço-tempo, a máxima vale também para este trabalho,
qual seja: "Este efeito da presença dá a sensação de algo que retorna do passado; ele pode ser
uma armadilha no sentido de que evita o trabalho necessário de interpretação."36

A relação entre os aspectos psicológicos e as vivências dos presidiários e o que nos


restou desta realidade através da fotografia é altamente complexa e não podemos supor nada
com a devida certeza. Nós, historiadoras e historiadores - é útil não nos esquecermos -,
também somos filhos de nosso tempo e muitas vezes não dimensionamos com precisão toda a
vastidão de rupturas e permanências nas mentalidades que possível em um punhado de
décadas.

Assim, não deve ser descartada nenhuma hipótese frente ao desconhecido e incerto da
psique de outra época; inclusive a de que as expressões que utilizamos para a comunicação
entre nossos sentimentos e os músculos de nossa face não sejam exatamente os mesmos dos
homens e mulheres oitocentistas.

2.4. O SEGUNDO IMPÉRIO E O FAZER-SE FOTOGRAFAR OS PRESOS

Mas antes de nos aprofundarmos na análise da composição da Galeria dos


Condenados, podemos pensar a respeito do circuito social que veio a produzi-la. Por que
gastar recursos financeiros e humanos em uma empresa tão pioneira, ao menos para a
América Latina, como catalogar, com imagens, todos os detentos de uma Casa de Correção?
Que sociedade é essa que valoriza tanto o status do fotográfico enquanto fonte documental?

36
No original em francês: "Cet effet de présence donne le sentiment que quelque chose de ce qui a passé
revient ; il peut être en ce sens un piège qui court-circuite le nécessaire travail d’interprétation.". Tradução
minha. Trecho retirado de LINDEPERG, S. "Le singulier destin des images d’archives: contribution pour un
débat, si besoin une « querelle »". E-Dossier de l’audiovisuel: L’Extension des usages de l’archive
audiovisuelle. Paris: 2014.
31

Quem foram os agentes responsáveis por deflagrar este empreendimento? Esta parte do
trabalho se dedica indicar um possível caminho para responder a estas indagações.

Uma boa ajuda pode ser o livro Fotografia e Império, de Natalia Brizuela37, através do
qual podemos relacionar a produção e o uso da fotografia no espaço/tempo que analisamos à
forma de visualizar o Império do Brasil, enquanto Estado e enquanto nação.

No capítulo dedicado ao Segundo Império em Fotografia e Império, a hipótese


principal levantada pela autora para explicar a relação entre Império (enquanto aparato
estatal) e fotografia é bastante interessante.

Muito já se falou sobre o gosto especial que Dom Pedro II tinha pela fotografia, mas
Brizuela vai além: para ela, trata-se do meio utilizado por excelência para se visualizar o
Brasil enquanto Império (incluindo os territórios mais recônditos) e Estado-Nação moderno,
ou seja, criar uma geografia da imaginação do Brasil. Para a autora, o papel que a fotografia
representou neste processo é especificamente acentuado no caso brasileiro - e aí mesmo ela
situa a justificativa do seu recorte no Império do Brasil.

Já os dois últimos capítulos representam, para a autora, mais sobre a ideia de morte
que de gênese, dito de outra forma, mais sobre o desaparecimento e superação de estruturas
sociais que sobre a invenção destas.

A respeito do terceiro capítulo, que utiliza fotos antropométricas e de "tipos de pretos"


como fontes, a autora afirma que a mercantilização e generalização do corpo priva o retratado
de sua expressão plena, ou seja, ao projetar-se um congelamento da encenação da vida
escrava e/ou de sua etnia em estúdio, assemelha-se o negro à categoria de natureza morta.

Por outro lado, no momento em que há a produção dos carte-de-visite de "tipos de


pretos", vem chegando também o movimento abolicionista, transformando tais fotografias em
um registro e uma lembrança do negro enquanto trabalhador cativo, exclusivamente e por
excelência. Nesse sentido, representa a morte, ao retratar a escravidão que vai perdendo
sentido enquanto instituição através de sua gradual abolição.

Tanto a reflexão sobre a importância que o Estado Imperial dá à fotografia como meio
por excelência de documentação do Brasil enquanto sociedade moderna quanto aquela a

37
BRIZUELA, Natalia. Fotografia e Império. São Paulo: Companhia das Letras e Instituto Moreira Salles,
2012.
32

respeito da figuração do negro enquanto análogo à natureza morta, penso, são interessantes
para nós.

Não só o detento que carrega a marca visível da escravidão africana, mas, em verdade,
todos os prisioneiros são marcados com o estigma da prisão que, enquanto instituição que
pretende docilizar os corpos e eliminar ao máximo as individualidades em nome da
manutenção de um padrão estrito de disciplina, se utiliza dos mais variados dispositivos (no
sentido de Foucault) para empreender este feito.

Não que as instituições disciplinadoras de que o autor citado fala em Vigiar e Punir
tenham tido efetivamente todo este sucesso em suprimir a noção de individualidade e
disciplinar os corpos desviantes; mas o que a história nos relegou dos primeiros séculos desta
tentativa sistemática, no caso das prisões, deixa claro a seriedade deste intento.

Ao mesmo tempo em que a tentativa de uniformização e catalogação segue


sistemática, os espaços de transgressão e negociação da pose nunca estão totalmente ausentes.
A indumentária mesmo é um pouco variável (a exemplo de Isabel Jacintha, que posa com seu
pano da costa na fotografia reproduzida a seguir), mas, sobretudo, o olhar com que se encara
a câmera não raro é desafiador, embora muitas vezes, resignado, como vimos no subitem 2.3.
33

Lê-se: "Isabel Jacintha Entrou a 17 de Junho de 1859 para cumprir pena perpetua [sic], por sentença de 29 de
Outubro de 1846."

Voltando à produção do material, o próprio termo "Galeria" nos faz refletir a respeito
das intenções de agenciamento destes volumes por parte de seus idealizadores e produtores.
Para exemplificar mais claramente esta hipótese, vamos observar algumas definições do
termo: "ga.le.ria s.f. 1 corredor largo e comprido com amplas janelas ou teto envidraçado 2
p.ext. local para exposição e venda de obras de arte 3 p.ext. coleção de obras de arte 4 fig.
Coleção de personalidades, ger. célebres [...]"38.

Portanto, a noção de galeria está intrinsecamente ligada a de tornar algo ou alguém


visível, expor aos olhos de um público, dentre outras coisas, uma coleção de personalidades.
Daí vemos que o objetivo da Galeria dos Condenados, em lugar de ser apenas uma listagem,
é possibilitar a visão como fator diferencial e novo da catalogação dos detentos.

Não se trata de uma relação, de uma inscrição, um fichário, uma lista ou qualquer
outro termo com a função primordial de descrever um documento de uso interno de um ou

38
HOUAISS, A. Míni Houaiss: Dicionário da Língua Portuguesa. 4 ed. Rio de Janeiro: Objetiva, 2010.
34

mais repartições públicas com o fim pragmático de listar e identificar um determinado recorte
do total das pessoas que vivem em um lugar (no nosso caso, os presos, mas o mesmo
procedimento é corriqueiro em diversas áreas do Estado).

Uma "Galeria" é mais que isso. É algo que nos remete a arte, à imagem visual, ou, ao
menos, à faculdade de expor algo às vistas do público. Segundo Koutsoukos, em suas duas
obras aqui relacionadas, um dos agenciamentos que a Galeria teve foi ter sido levada por D.
Pedro II para a Exposição Universal de Paris, o que se coaduna com as reflexões a respeito
deste caráter distinto.

Sob este viés, podemos pensar a empresa de produção da Galeria dos Condenados
como um caso ímpar, uma exceção à regra da concretude das prisões brasileiras da segunda
metade do século XIX; coisa que de todo modo também pode ser dito da Casa de Correção da
Corte, como um todo.

E já que estamos nos ocupando de analisar as escolhas políticas por trás do documento
que temos em mãos, cabe observar que a escolha desta prisão específica 39 para ter seus
detentos fotografados está longe de ser fortuita, muito pelo contrário: não só se trata da
principal cadeia da capital do Império, como também é a prisão mais afinada com os
paradigmas então vigentes no mundo ocidental dentre as que o Brasil possuía à época.

Não podemos deixar escapar que o Império Brasileiro na década de 1870 era um
jovem Estado com ganas de se afirmar definitivamente no panteão das nações civilizadas,
malgrado a permanência de instituições já condenáveis à época, sobretudo a escravidão.

Além disso, seu governo se encontrava em conflitos tão tensos como o


desbaratamento – gradual e seguro, já à época, muito à brasileira – da escravidão com o fim
do tráfico transatlântico e a Lei do Ventre Livre e a resistência aos movimentos republicanos
que já representavam um problema de vulto. Também é um Estado instável em termos
políticos, constantemente às voltas com liberais e conservadores se revezando nos gabinetes
de governo, gerando crises sucessivas e um Império carente de demonstração contínua do
poder de impor a ordem; e da propaganda deste poder.

CAPÍTULO 3 – UMA POSSÍVEL DISTINÇÃO RACIAL NA ORGANIZAÇÃO


DA GALERIA DOS CONDENADOS?

39
Inclusive, somente uma parte do complexo prisional que também incluía a Casa de Detenção e o Calabouço
foi incluída no processo de registro fotográfico e manuscrito.
35

Analisando esta base nos confrontamos com um padrão racial bastante peculiar que
acreditamos que possa ser útil para pensarmos a construção da Galeria dos Condenados e da
própria Casa de Correção. Esta é apenas uma hipótese, na qual pretendo introduzir uma
tentativa, entre tantas outras possíveis, de explicação das contradições presentes neste
sentido.

3.1. METODOLOGIA DE ANÁLISE DO PADRÃO RACIAL

Para o nosso objetivo, é extremamente importante a existência de fotos relacionadas


com as informações apresentadas nas fichas, já que é possível traçar um perfil racial deste
grupo; muito embora a categorização oficial tenha buscado omitir a cor dos presos, fenômeno
que será analisado melhor mais tarde.

Neste sentido, tratamos a documentação dividindo os presos basicamente entre


brancos, negros e mestiços. O critério para esta categorização não compreende a percepção
da época dos envolvidos nos processos. Em outras palavras, não necessariamente um homem
que aqui foi tido como negro o era em seu período de vida, esta identidade foi-lhe atribuída
para os fins da pesquisa, ou seja, para a identificação do caráter da presença afrodescendente
na coleção analisada.

Esta metodologia, no entanto, não exclui nossas preocupações com a categorização


racial contemporânea aos condenados, que também tentaremos buscar, embora esta seja
eventualmente intangível na prática.

3.2. DIFERENÇAS RACIAIS ENTRE OS DOIS VOLUMES


36

A conclusão preliminar mais óbvia quando se observa o primeiro volume da Galeria –


o mais bem acabado, produzido posteriormente e exposto internacionalmente por Pedro II – é
a de que existiam muito mais presos brancos que negros (observe-se o gráfico a seguir). A
hipótese inicial mais factível seria de que os negros escravos recebiam punições em outros
âmbitos, com seus senhores e com o Estado, na forma da prisão específica que era o
Calabouço, mais tarde absorvido pela Casa de Detenção, como vimos no subitem 1.4.

Mas quando nos deparamos com o mesmo quadro racial aplicado ao Livro 2 (o
primeiro a ser produzido, com qualidade fotográfica radicalmente inferior, servindo de
aprendizado para o fotógrafo40 e, sob a ótica do Estado, de utilização limitada ao controle dos
privados de liberdade), observamos um estado de coisas completamente distinto, como fica
exemplificado no próximo gráfico.

40
Hipótese levanta por Koutsoukos em seus dois trabalhos aqui relacionados. Podemos observar este processo
através da fotografia de Antonio Francisco de Oliveira, aqui reproduzida na página 45, no qual observamos uma
fotografia com pouco contraste e na qual o preso posa de frente encarando a câmera, procedimento de pose
distinto do mais comumente aplicado na Galeria dos Condenados, em particular, e nas fotografias de cadeias
oitocentistas, em geral.
37

Por si só, a disparidade de perfil racial já é indicativa de uma preferência pela


divulgação da imagem do preso branco. Lembremos que estamos há muito distantes de
qualquer ideologia significativa de exaltação da mestiçagem ou da herança africana no Brasil,
vide o subitem 1.2.3.

Mesmo com os percalços metodológicos que mais à frente serão explorados, existe
materialidade na distinção entre as proporções raciais do Livro 1 ao 2. Para os fins de
exposição às nações "civilizadas" que D. Pedro II agenciou o Livro 1, não era exatamente
importante que socialmente aqueles indivíduos se entendessem como negros/pardos/brancos,
como a obra da Mattos41 nos informa que era bastante complexo e intangível no âmbito de
uma pesquisa de monografia; mais importante era que estes indivíduos não parecessem
negros, ainda que pudessem ser entendidos desta maneira por seu meio social quando em
liberdade.

Em um momento em que o Estado brasileiro começa a engendrar uma política de


substituição da mão de obra escrava negra pelo colonato europeu sob uma justificativa
pretensamente científica de que o branqueamento da população solucionaria o
subdesenvolvimento do Brasil42, me parece razoável supor que às autoridades imperiais fosse
mais desejável propagandear que até mesmo sua corja de sub cidadãos (os criminosos,

41
Em MATTOS, H. Das Cores do Silêncio. 3. ed. Campinas: UNICAMP, 2013.
42
Mais sobre o assunto em SCHUWARCZ. Lília Moritz. O Espetáculo das raças: cientistas, instituições e
questão racial no Brasil, 1870-1930. São Paulo: Companhia das Letras, 2007.
38

privados até mesmo de liberdade) pudessem ter um padrão étnico entendido como mais
próximo daquele próprio de uma nação civilizada.

Podemos pensar ainda como esta distinção entre o Livro 1 e o 2 é feita em termos de
escolha da cor dos figurantes em ambos; mas que em termos de catalogação da cor por
escrito, o documento se cala. Esta gradual desracialização do processo documental é um dos
grandes argumentos da obra de Hebe Mattos supracitada e um dado presente também aqui.
Os novos padrões do que é ser negro no contexto de derrocada lenta da estrutura
escravocrata43 aparecem aqui como um silêncio, uma informação velada.

E um dos expedientes que permite que este silêncio seja mantido mesmo em um
projeto que busca a identificação dos criminosos é a fotografia, que entrega ao observador
contemporâneo parte da informação a respeito da etnia do fotografado. Em seu auxílio, surge
a nomeação do preso, que muitas vezes não inclui sobrenome; e, em muitas outras, inclui a
etnia enquanto sobrenome.

É de conhecimento geral para os historiadores de hoje e para toda a sociedade de


meados do século XIX que este expediente de uso de etnia como sobrenome 44 é uma marca
social clara de escravos ou mesmo libertos (de qualquer forma, entende-se por isso que a
pessoa carrega o estigma de ter sido escravo).

3.3. O TRATAMENTO QUALITATIVO DAS FONTES: AS PECULIARIDADES


DOS AFRODESCENDENTES

Podemos ir além do visual na conclusão pela preferência do preso branco no Livro 1,


através da análise qualitativa da apresentação e da condenação dos afrodescendentes que nos
são apresentados na Galeria dos Condenados. Dois símbolos são flagrantes a este respeito.
43
Lembremos que durante a década de 1870, quando é produzida a Galeria dos Condenados, a escravidão
brasileira é uma instituição com os dias contados. Vide sobre o assunto o subitem 2.4. O Segundo Império e o
fazer-se fotografar os presos.
44
Lembremos que este sobrenome não raro corresponde a uma identidade étnica totalmente exógena à realidade
nativa do sujeito escravizado. Por exemplo, foi muito comum o uso do léxico que designa o porto de origem do
navio negreiro para designar um grupo de africanos no Brasil, a exemplo de termos como Angola e Benguela.
39

O primeiro, como já comentamos acima, é, no caso dos negros apresentados


principalmente no segundo livro, a ausência significativa de sobrenome e/ou a presença
ostensiva de identificação étnica de matriz africana (ex. Benguela, Angola, etc.) ou
nascimento, afrodescendente, no Brasil (“Crioulo”). Ambos os expedientes são bastante
referidos ao estigma da escravidão, dando-nos forte evidência de que os presos em questão ou
bem eram escravos ou bem libertos.

No primeiro livro, há apenas três casos de negros identificados desta forma, ao passo
que, no segundo, a porcentagem é muitíssimo maior. Além disso, todos os presos que não
apresentaram sobrenome eram negros ou pardos – sendo “Pardo”, inclusive, uma categoria
aplicada no próprio texto da Galeria dos Condenados, já que era o termo utilizado no fim do
século XIX para os afrodescendentes que conseguiram se dissociar do estigma da
escravidão45–.

Além de a ausência de sobrenome nunca ocorrer no caso dos presos aparentemente


brancos, outro importante fator nos aponta para a segregação daqueles que carregavam o
estigma de escravo ou liberto no livro menos celebrado. Trata-se da proporção de
afrodescendentes que se encontram nesta situação no Livro 2, como nos informa o gráfico
abaixo.

45
Segundo MATTOS, 2013, op. cit.
40

Outro fator de estigma deste grupo era muitas das vezes ter omitido em seu registro o
crime motivador da sentença e da prisão.

E o outro ponto relevante no segundo livro é esta porcentagem significativa, formada


principalmente pela população afrodescendente (apenas sete presos brancos sem identificação
de crime), de presos sem identificação do motivo de sua condenação (não há nenhum caso
assim no Livro 1).

Talvez uma pista ainda mais valiosa, não apenas o silêncio sobre o crime que levou a
condenação é comum a muitos negros, como também a data em que ingressaram na Casa de
Correção da Corte. Seria este o sinal de uma transferência em massa de presos naquela data
(o possível fechamento de outra cadeia além das que nos constam?); ou o indicativo de uma
espécie de revolta negra ou choque de ordem àquela data? Ou mesmo talvez o descaso do
policial responsável pelo registro do delito, que foi acumulando arquivos para despachá-los
em conjunto, quem sabe?

Esta última hipótese seria, entretanto, menos provável, já que a data de entrada dos
negros com algum acesso à cidadania (sobrenomes, referência aos processos) e todos os
demais prisioneiros possuem datas bastante diversificadas, dando a entender que
correspondem de fato ao ritmo com que chegaram, e não a uma mera construção do escrivão
responsável.
41

Além disso, através destas anotações é possível traçar uma hipótese de perfil
biográfico das pessoas fotografadas nesta Galeria. Há indicações, por exemplo, de que seus
julgamentos tenham sido, em alguns casos, coletivos (como Joaquim Antonio Baptista e
Antonio Joaquim de Oliveira, ambos julgados em 17 de março de 1872 por crime de roubo).

No caso da proposição de ir mais fundo na história pessoal de cada um aqui, traçando


um perfil sócio biográfico individualizado, temos vários caminhos de onde partir para a
apreciação de fontes judiciais e policiais.

A respeito das fotografias de cadeia, um dos maiores focos desta etapa da pesquisa,
observam-se no fim do século XIX tentativas incipientes de disciplinarização e
uniformização dos corpos dos presidiários, enquanto forma de controle social pelo estado.
Pela primeira vez no Brasil, através da Galeria dos Condenados, os rostos dos indesejáveis se
tornam catalogados e socialmente visíveis.

Neste contexto, a presença negra aparece mais uma vez como secundária, restringindo
os indivíduos portadores do estigma do cativeiro ao segundo volume, menos divulgado e de
menor qualidade.

A fim de problematizar a relação entre cor, descendência e raça no segundo quartel do


século XIX, nos apoiamos no já clássico Das Cores do Silêncio, de Hebe Mattos, cuja obra é
paradigmática do pensamento sobre a relação entre cor, estatuto jurídico e identidade racial
no período de desmonte da instituição da escravidão.

A hipótese central deste livro é que a ação dos libertos foi decisiva para que a
referência à cor fosse manipulada como uma forma de aproximação ao mundo dos livres.
Esse processo não é um branqueamento (no qual se reconhece uma hierarquia racial rígida e
se quer imprimir superioridade frente ao grupo menos beneficiado), mas sim de um
apagamento da cor (a busca pela irrelevância da cor enquanto obstáculo para o acesso ao
estatuto de livre).

Para embasar sua hipótese, Mattos remontar ao arcabouço de processos-crime e à


documentação civil da segunda metade do século XIX. Nestes registros, há uma queda
acentuada na classificação por cor, cada vez mais omitida conforme as décadas vão se
sucedendo.

Tal hipótese se tornou uma espécie de referência na área de estudo nos últimos anos
de cativeiro e do imediato pós-abolição desde a época da publicação da obra. Muito da
42

credibilidade desta ideia veio de estudos posteriores, que encontraram na documentação


oficial de fins do século XIX a mesma omissão da cor que Mattos apontou para o interior do
estado do Rio de Janeiro.

Inclusive na Galeria dos Condenados, coleção que me debruço neste trabalho,


encontramos a instituição da cadeia em um momento (c. 1869) no qual os presos não são
ostensivamente identificados por sua cor. Claro que há outros expedientes para identificar os
afrodescendentes (neste caso, as fotografias) e aqueles em cujos ombros ainda pesa o estigma
da escravidão (notadamente, os presos nos quais há ausência de sobrenome e/ou referência
explícita à origem, como "Crioulo" ou "Cabinda").

O trabalho de Hebe Mattos também tem uma outra peculiaridade que nos chama a
atenção para a crítica de qualquer trabalho historiográfico. Nos mostra a importância de
entender a ausência como um elemento da pesquisa, não simplesmente enquanto uma lacuna
apresentada pelas fontes. O carro-chefe de sua pesquisa, na verdade, foi a observação
perspicaz da ausência de uma referência nas fontes (ou seja, a cor) e a partir daí buscou-se
seus possíveis significados.

Por fim, e até mesmo para justificar a escolha metodológica de parte deste trabalho, eu
gostaria de salientar que a denotação de cor às pessoas é um tema muito controverso e que a
fonte não o faz por escrito (como muitos documentos do Antigo Regime trazem), mas acho
que se a noção (pós-moderna) de atual autodeclaração e o temor do anacronismo a qual todo
trabalho historiográfico está propenso em incorrer (no nosso caso, seria o anacronismo com a
categoria de cor e raça desde o século XIX) for nos impedir de tratar o assunto, só vamos
acabar incorrendo num apagamento da questão racial; na perda do dado material da
discriminação (em seu sentido mais estrito, de distinção).

Existe materialidade na distinção entre proporções raciais do Livro 1 ao 2. Para os fins


de exposição às nações "civilizadas" que D. Pedro II agenciou o Livro 1, não era exatamente
importante que socialmente aqueles indivíduos se entendessem como negros/pardos/brancos,
como a obra de Mattos nos informa que era bastante complexo e intangível no âmbito de uma
pesquisa de monografia. Mais importante era que estes indivíduos não parecessem negros,
ainda que pudessem ser entendidos desta maneira por seu meio social quando em liberdade.

Em termos de fato, trabalhamos durante toda a pesquisa da Iniciação Científica


"Presença Negra em Arquivo Branco" com a identificação fenotípica exógena para tentar
definir o que seria, empiricamente, esta presença negra. A análise de recorte racial proposta
43

aqui segue a mesmo linha. Parto do princípio que, se esta metodologia foi considerada
apropriada então, não há razão para ter deixado de ser.

3.4. PENSANDO A DESPROPORÇÃO ENTRE NEGROS DETIDOS E SUA


REPRESENTAÇÃO NA GALERIA DOS CONDENADOS

Desde o período de auge da escravidão, como vimos acima, o Estado já se dedicava a


punir e reprimir a população escrava enquanto serviço prestado para a classe possuidora de
trabalhadores. Durante o definhamento da instituição escrava, o foco do sistema vai
mudando:

Com a diminuição gradativa do número de escravos na população, após meados do século


XIX, as atitudes e práticas repressivas foram, aos poucos, sendo transferidas para as classes
inferiores não-escravas e aí permaneceram.46

Esta é uma mudança fundamental de forças que ocorre com o fim do tráfico
transatlântico (processo mais seguramente situado na década de 1850) e a posterior
condenação da escravidão, por inanição, que representa a Lei do Ventre Livre de 1871,
também conhecida como Lei Rio Branco (já que foi aprovada sob o Gabinete conservador do
Visconde de Rio Branco).

Esta última lei simultaneamente impede a reprodução natural da escravaria a médio


prazo e institui a legalidade inconteste do pecúlio escravo para a eventual compra de sua
alforria. Ou seja, faz com que a escravidão no Brasil tenha seus dias contados 47 e com ela
padeçam todas as instituições que existem exclusivamente para garantir sua sobrevida48.

Podemos entender que o desmonte legal das bases da escravidão foi lento e gradual,
pretendendo-se realizar uma transição mais tranquila entre a realidade laboral cativa e a livre.
46
HOLLOWAY, Thomas. O Calabouço e o Aljube do Rio de Janeiro no Século XIX. In: MAIA, C. História das
Prisões no Brasil. Rio de Janeiro, Rocco, 2009, p. 278.
47
Literalmente 21 anos, ou seja, a idade na qual o sujeito nascido de Ventre Livre não poderia mais,
juridicamente, permanecer de nenhuma forma sob o jugo do proprietário de sua mãe ou seu herdeiro.
48
Sobre esta lei, ver também a seção 2.4 deste trabalho.
44

Desta forma, as instituições de repressão da população escrava também não desaparecem de


supetão.

Dentre estas instituições, no caso da província do Rio de Janeiro, destaca-se o


Calabouço, locus por excelência do castigo que os senhores impingiam a seus próprios
escravos via Estado e/ou de captura e usufruto por parte deste mesmo Estado dos escravos
encontrados em situação de fuga que não houvessem sido requeridos por nenhum senhor.

Estes escravos que eram levados para lá o eram por sua condição jurídica, como se
viu anteriormente, e não por crimes comuns averiguados em juízo. Eles trabalhavam nas
obras públicas, tendo construído grande parte, por exemplo, das modificações urbanas que
tiveram lugar quando da transferência da Corte para o Rio de Janeiro em 1808. E assim a
instituição permaneceu até 1874, quando a escravidão já respirava por aparelhos; mantendo
os escravos em sua condição de duplo cativeiro49.

Uma das construções que os escravos foram impelidos a tomar parte foi,
curiosamente, aquela na qual eles mais tarde ficariam presos: a do complexo penitenciário da
qual fazia parte a Casa de Correção da Corte, pedra angular, sem dúvida, mas não a única
casa abrigada na construção da Rua Nova do Conde.

Em 1833 começou a construção do edifício e em 1837 o Calabouço foi transferido


para lá. Algum tempo depois, em 28 de maio de 1874, o Calabouço foi oficialmente extinto e
seus presos foram recolhidos à Casa de Detenção, uma das instituições que fazia parte do dito
complexo.

Tomamos por base a seguinte pista para deduzir que estes presos destas casas não
foram contabilizados no total, a ficha abaixo 50, intitulada "Antonio Francisco de Oliveira".
Nela, não há o motivo da condenação, lê-se apenas: “Deu entrada a 7 de Outubro de 1869
vindo da Casa de Detenção para continuar a cumprir a pena de galés perpetuas [sic] que
cumpria na Cadeia de Nitherohy [sic] desde Maio de 1862.51”

49
Aqui me aproprio do termo como foi utilizado em ARAÚJO, Carlos. "Entre dois cativeiros: escravidão urbana
e sistema prisional no Rio de Janeiro, 1790-1821". In.: MAIA, C. et al. História das Prisões no Brasil. Rio de
Janeiro: Rocco, 2009.
50
O original da Galeria dos Condenados se encontra na Seção de Manuscritos da Biblioteca Nacional do Rio de
Janeiro. Como o acervo se encontra digitalizado, o acesso ao original está vetado, salvo se o pesquisador
apresentar uma justificativa por que a reprodução digital não comtempla suas necessidades. Esta e todas as fotos
e manuscritos podem ser acessados através do site da Biblioteca Nacional Digital:
http://bndigital.bn.br/acervodigital/. Acesso em 29 mar. 2016.
45

Pensando a diversidade de condições dos detentos (sobretudo divididas de acordo com


as "casas" nas quais estava dividido o complexo) é interessantes dos atentarmos para a
exclusão da Casa de Detenção e do Calabouço no intento de sistematização dos presos.

Além da catalogação da base nos indicar explicitamente que os presos faziam parte da
Casa de Correção de acordo com a Biblioteca Nacional, temos certo grau de certeza que esta
não era uma nomenclatura usada enquanto uma metonímia referente ao todo do complexo.

Se existe na ficha deste preso a identificação de que ele veio transferido da Casa de
Detenção, é porque este fato é suficientemente digno de nota. Portanto, este sujeito passa a
ser visível no momento em que é transferido; este é um sinal de que este procedimento foi
uma exclusividade da Casa de Correção.

Será então que a empresa identificatória foi feita mais como um projeto piloto que
como um dispositivo de repressão e vigilância real e efetivo, já que só torna visível (e,

51
Dado que desconheço as condições gráficas de eventual reprodução deste trabalho, optei por incluir a
transcrição paleográfica, embora a letra do fim do século XIX seja relativamente simples. Ainda recomendo,
como já disse antes, que os interessados consultem a digitalização do site da Biblioteca Nacional Digital.
46

portanto, eternamente identificável, ao menos em tese) alguns dos presos, aqueles


considerados mais provavelmente recuperáveis e corrigíveis? Seria este um silêncio político
análogo ao silêncio sobre a cor que Hebe Mattos formulou em seu livro?

O Calabouço é privado de visualidade pública. Já vimos anteriormente (sobretudo no


capítulo 1) que, nas décadas que antecederam a produção da Galeria dos Condenados, o
Calabouço era por excelência o lugar no qual os escravos eram detidos. E mesmo assim só o
eram quando parecia próprio ao senhor que estes fossem punidos pelo Estado; ou seja,
representava uma terceirização da punição, enquanto, no mundo dos livres, a punição privada
por excelência era a cadeia.

Acredito que este dado explique porque existia um número tão grande de não-negros
na Casa de Correção: porque os negros estavam sendo reprimidos no âmbito doméstico ou no
Calabouço (mais tarde transferido para a Casa de Detenção).

O que pode parecer, ao observador desaviado, um projeto carcerário mais justo em


termos raciais que o atual é apenas um recorte, feito pela divisão das casas e pelo fazer-se
fotografar os presos de apenas uma delas, de um outro cenário, provavelmente mais cruel.

Outro indício de que esta base de dados e fotos era mais um instrumento de
publicidade do governo do que um dispositivo de vigilância que de fato foi constantemente
utilizado pelas instâncias repressivas é que a especificação, ao fim da ficha, de quando o
preso saiu, fugiu ou morreu é incerta e ocorre apenas em alguns casos.

Isso nos demonstra que a atualização, portanto, o uso da Galeria dos Condenados não
foi perene no tempo, o que nos informa sobre o provável abandono do projeto. Como em
geral a data máxima que aparece com esses dados é 1875, podemos considerar que esta foi
uma tentativa rápida e transitória de tornar a vigilância e identificação dos criminosos
brasileiros algo mais moderno e eficiente.
47

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48

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