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DEPARTAMENTO DE HISTÓRIA
GRADUAÇÃO EM HISTÓRIA
Niterói/RJ
2015
PÉROLA MARTINS LANNES
Orientadora:
Leitor Crítico:
Além destes, devo agradecimentos à família que escolhi, aos meus poucos e firmes
amigos. A Fabiana Léo, Millena Farias, Mateus Frizzone, Pedro Motta e Antonio
Kerstenetzky pela parceria (não só) intelectual ao longo destes anos na graduação e por terem
me ensinado tanto. A Bia Medeiros, Olívia Gomide, Felipe França e Pedro Ivo Reis por me
provarem que a nossa geração também terá amigos para a vida toda.
Ao fim e ao cabo, não posso deixar de mencionar a dívida que reconheço ter com as
mulheres e os homens que deixaram pedaços de si (materiais ou não) para trás, viabilizando a
tecedura da História e a construção do mundo em que vivemos. Honrar aqueles que vieram
antes de nós nunca pode ser considerado um objetivo menor. Perder de vista que o passado, o
presente e o futuro são construções infinitas da espécie humana, também não.
1
Laboratório de História Oral e Imagem da Universidade Federal Fluminense.
2
Fundação Carlos Chagas Filho de Amparo à Pesquisa do Estado do Rio de Janeiro.
3
Conselho Nacional de Desenvolvimento Científico e Tecnológico.
RESUMO
ABSTRACT
This research aims to analyze the context of production and assemblage of the
manuscript and photographic source called Galeria dos Condenados [Gallery of the Damned]
(c. 1869-1875), known as the first systematic cataloging of Brazilian prisoners that included
photographs. We situate it as one of the adjustment efforts of the penal and prison system into
the social reality of dismantling of the african and afrodescendant slavery and of the criminal
system of the Old Regime, among other traditional institutions, at the Brazilian Second
Empire (1840-1889). In addition, we analyze the composition of the gallery under the racial
perspective, thinking about the criminal distinctions between people of different legal
conditions.
INTRODUÇÃO................................................................................................................ 01
CAPÍTULO 1 - CRIME E PUNIÇÃO NO BRASIL IMPÉRIO: ENTRE TEORIA 03
E PRÁTICA......................................................................................................................
1.1. A HISTORICIDADE DA NOÇÃO DE CRIME E DE SUAS PRÁTICAS 03
SOCIAIS CORRELATAS....................................................................................
1.2. A IDEOLOGIA E PRÁTICA DO SISTEMA PUNITIVO/REPRESSIVO: 06
COMO E POR QUE PUNIR DO ANTIGO REGIME AO SÉCULO XIX......
1.2.1 Criação e vigência do sistema punitivo no Antigo Regime.................................. 07
.
1.2.2 A crítica à punição corporal.................................................................................. 08
.
1.2.3 O projeto da instituição disciplinar a partir do século XIX.................................. 09
.
1.2.4 O embate entre os sistemas penitenciários do século XIX................................... 11
.
1.3. O SISTEMA CRIMINAL NO BRASIL DO SÉCULO XIX.............................. 12
1.4. AS CADEIAS ANACRÔNICAS: A PERMANÊNCIA DAS PRISÕES DO 19
ANTIGO REGIME NA PROVÍNCIA DO RIO DE JANEIRO.........................
1.5. A CASA DE CORREÇÃO DA CORTE.............................................................. 22
CAPÍTULO 2 – A GALERIA DOS CONDENADOS: REGISTRO VISUAL E 24
MANUSCRITO DOS DETENTOS DA CASA DE CORREÇÃO DA CORTE........
2.1. A NATUREZA DA FONTE................................................................................ 24
2.2. A CARACTERIZAÇÃO DO PADRÃO DOCUMENTAL................................. 25
2.3. AS PESSOAS NA FONTE................................................................................... 26
2.4. O SEGUNDO IMPÉRIO E O FAZER-SE FOTOGRAFAR OS PRESOS........ 30
CAPÍTULO 3 – UMA POSSÍVEL DISTINÇÃO RACIAL NA ORGANIZAÇÃO 35
DA GALERIA DOS CONDENADOS?.........................................................................
3.1. METODOLOGIA DE ANÁLISE DO PADRÃO RACIAL................................ 35
3.2. DIFERENÇAS RACIAIS ENTRE OS DOIS VOLUMES................................. 36
3.3. O TRATAMENTO QUALITATIVO DAS FONTES: AS PECULIARIDADES 38
DOS AFRODESCENDENTES............................................................................
3.4. PENSANDO A DESPROPORÇÃO ENTRE NEGROS DETIDOS E SUA 43
REPRESENTAÇÃO NA GALERIA DOS CONDENADOS.............................
BIBLIOGRAFIA.............................................................................................................. 48
1
INTRODUÇÃO
A ideia deste trabalho seria não só observar, descrever e analisar a Galeria dos
Condenados enquanto acervo documental manuscrito e fotográfico, mas também tentar
entender um pouco do contexto de sua produção através de um estudo/ensaio a respeito da
Casa de Correção da Corte, em particular, e do sistema prisional brasileiro do século XIX, em
geral.
Para isso, pretendo partir de uma perspectiva mais ampla, através de um breve
levantamento da produção bibliográfica sobre a categoria histórico-social de crime e punição,
enfatizando algumas obras clássicas e referenciais em História, Filosofia e Criminologia.
Em outras palavras, busco construir um breve relato não só de como deve ter sido a
vida destes prisioneiros que a Galeria retrata, como também do que era, como era, para que e
para quem era a cadeia do século XIX; estas seriam as principais hipóteses do primeiro
capítulo do trabalho.
historiografia que se utilize da fotografia como fonte em si, com estatuto equiparável ao olhar
que tradicionalmente é delegado ao documento escrito.
Mesmo pretendendo fazer um trabalho com outro tipo de foco, no qual o tema do
cárcere é o fio orientador do discurso, não pretendo negligenciar a minha formação, dado que
durante a maior parte da minha graduação fui bolsista de Iniciação Científica do LABHOI-
UFF sob orientação de Ana Mauad. Em outros termos, incluo bibliografia e reflexões a
respeito da importância da escolha e do agenciamento da imagem técnica.
Esta reflexão é uma dentre muitas outras que aqui apresento, mas muitas vezes não
desenvolvo com a magnitude que gostaria, sobretudo pela limitação natural do escopo de um
trabalho de conclusão de curso da graduação. Meu objetivo principal é apresentar questões
que na medida do possível tragam um olhar ligeiramente inovador em relação a este conjunto
documental que está caminhando para se tornar bastante popular dentre os historiadores do
Oitocentos brasileiro.
Ainda que pretenda que estes apontamentos que esboço aqui sejam minimamente
defensáveis, faço o convite para que outros pesquisadores, que eventualmente possuam mais
recursos e/ou uma formação mais sólida que a minha, busquem aprofundar ou refutar as
hipóteses aqui apresentadas5.
5
Supondo que esta quimera de fato se realize, seria um prazer estabelecer uma interlocução sobre os temas aqui
desenvolvidos. Para possibilitar isto, deixo meu e-mail para eventual contato: perola_lannes@hotmail.com.
3
Que o que é criminoso para uma sociedade pode ser tolerável e até mesmo desejável
para outra é senso comum; mas devemos atentar para o fato de que dois atos que em última
instância consistem na mesma coisa podem ser ou não puníveis (e de diferentes formas)
dependendo do autor do mesmo. Esta aliás é praticamente uma constante em termos de
legislação e prática.
Não que isto não seja justificado em alguns casos. Atenuantes como menoridade legal
ou privação da razão plena são obviamente devidos; mas aqui pretendo chamar atenção para a
prática jurídica de dois pesos e duas medidas cujo cerne da distinção entre um criminoso e
outro é a condição socioeconômica, a raça, a disponibilidade de meios com os quais articular
sua defesa, a posição/atuação política, as relações sociais com membros das corporações
repressivas e/ou o estatuto jurídico (no caso Brasil oitocentista, destaca-se a condição de
livre, escravo, liberto, africano livre, etc.).
6
PERROT, Michelle. Os Excluídos da História: operários, mulheres e prisioneiros. Tradução de Denise
Bottmann. 1a ed. Rio de Janeiro: Paz e Terra, 1988., pp. 244-245
4
Cabe aqui recorrermos a uma citação em que o professor Gabriel Ignacio Anitua
adverte seus estudantes do seguinte:
O que pode parecer uma contradição, na verdade é uma distinção que provém, ao
menos na matriz europeia (para não corrermos o risco de recuar demasiadamente no
tempo/espaço), da consolidação dos Estados Nacionais na Época Moderna: a necessidade da
preservação do monopólio da violência como apanágio do Estado.
Segundo esta ótica, o conflito, na medida em que inflige a norma estatal, é então uma
ofensa não só ao que foi diretamente prejudicado, mas a todos e, portanto, a reparação é
7
ANITUA, Gabriel Ignacio. Histórias dos pensamentos criminológicos. Tradução de Sérgio Lamarão. Rio de
Janeiro: Revan e Instituto Carioca de Criminologia, 2008. p. 29.
5
Ao cerne desta ideia se deve o nascimento da concepção de que o poder público teria
o poder de impingir aos seus súditos (posteriormente, aos seus cidadãos, embora o âmago
lógico seja o mesmo) as leis, o julgamento e a punição que considerasse devida.
A pretensão do sistema jurídico penal, ao menos em sua aurora, seria mais o controle
da violência extra estatal do que a abolição ou diminuição do conjunto geral das práticas
violentas na sociedade. O exercício da violência é idealmente restringido a certo número de
atores (não necessariamente membros do Estado) que manteriam a ordem, em lugar de ser
abolido. É assim que:
Tanto quanto os crimes contra a vida (também conhecidos como contra a pessoa
humana), os crimes contra a propriedade são por definição meios de tentar coagir a população
(sobretudo a mais despossuída) a limitar as formas de obtenção de riqueza às regras do jogo
do mundo do capitalismo, ou de qualquer outro modo de produção que pressuponha a
propriedade privada.
8
Aqui, me refiro ao entendimento da prisão como uma forma institucionalizada e estatal de sequestro de
pessoas.
9
ANITUA, Gabriel Ignacio. Histórias dos pensamentos criminológicos. Tradução de Sérgio Lamarão. Rio de
Janeiro: Revan e Instituto Carioca de Criminologia, 2008. p. 20.
6
É assim que Michelle Perrot define o recrudescimento da repressão aos crimes contra
a propriedade no caso francês como em intenso diálogo com o período de acumulação
capitalista, em reflexão que encerra com esta citação: "Assim, bem mais que o assassino, o
ladrão e ainda mais o fraudulento constituem a preocupação desses tempos de acumulação
capitalista."10
10
PERROT, Michelle. Os Excluídos da História: operários, mulheres e prisioneiros. Tradução de Denise
Bottmann. 1a ed. Rio de Janeiro: Paz e Terra, 1988. P. 252
11
PERROT, Michelle. Os Excluídos da História: operários, mulheres e prisioneiros. Tradução de Denise
Bottmann. 1a ed. Rio de Janeiro: Paz e Terra, 1988. p. 262. Grifo no original.
7
Esta citação da célebre obra de Michelle Perrot nos é muito cara na medida em que
contém o essencial da ideia de cadeia como punição por excelência que vai se consolidando
durante o século XIX. Mas como isso se dá?
No geral, podemos caracterizar este regime penal do Antigo Regime como a primazia
das punições sobre o corpo dos condenados. As penas por excelência eram as de mutilação ou
marca corporal, morte ou, para delitos menores, penas pecuniárias.
14
BECCARIA, Cesare. Dos Delitos e das Penas. Trad.: Lúcia Guidicini e Alessandro Berti Contessa. São
Paulo: Martins Fontes, 2000.
9
Uma posição relativamente diferente foi a de Jeremy Bentham, utilitarista, que negou
a ideia de contrato afirmando que a pena é de fato um uso repressivo do Estado que não se
utiliza, em nenhuma instância, do consenso do criminoso. Este pensador também admitiu o
uso de repressão sobre os indivíduos criminosos para desencorajar a propagação da
criminalidade.
Baseada em críticas desta linha, o âmago da ação punitiva vai aos poucos deixar o
sofrimento corpóreo, para se fixar na subjetividade do indivíduo, em sua consciência ou,
como diriam os mais místicos, em sua alma.
Este controle da alma se daria pela construção de cadeias de tipo Panóptico, nas quais
o prisioneiro está sempre no campo de visão do vigilante, mas não o consegue ver. Desta
15
Ou seja, a lógica óptica segundo a qual aquele que é visto necessariamente vê o outro.
16
Me refiro ao primeiro capítulo da Terceira Parte, intitulado "Os Corpos Dóceis", do já citado FOUCAULT,
Michel. Vigiar e Punir: nascimento da prisão. Tradução de Lígia M. Pondé Vassallo. Petrópolis: Vozes, 1977.
280p.
10
maneira, nem a vigilância constante de fato é necessária, basta sua potencialidade aliada à
ignorância de sua materialidade. É assim que o controlado age como se estivesse sempre sob
a mira de seu guardião, em uma versão leiga do controle orgânico totalitário das religiões
monoteístas.
Ou, ao menos, esta é a tese de seu idealizador. Em poucas ocasiões as cadeias de fato
construídas permitiam que este mecanismo fosse 100% eficaz. E, a partir do segundo em que
existe alguma margem de erro, esta lógica perde sua razão de ser, já que o condenado entende
que tem a possibilidade de contar com espaços privativos, longe do olhar vigilante e
disciplinador. A própria Casa de Correção da Corte, imaginada segundo o modelo de
Bentham. sofreu esta crítica: de que foi construída sem o devido cuidado arquitetônico,
ocasionando esses espaços de dúvida.
Não digo com isso que cessaram as práticas coercitivas sobre o corpo como a tortura,
que sabidamente ainda acontece neste ano de 2016 nas prisões brasileiras e em muitas outras,
mas aquelas são uma herança impregne de processos históricos que nos remetem ao Antigo
Regime. A sociedade do século XIX se pensava diferente, se queria "civilizada", longe de
denúncias de truculência draconiana.
É desta maneira que grande parte dos pressupostos que sustentam a ideologia do
suplício persistiram na sociedade do século XIX e mesmo na nossa atual, apesar de terem
sido transplantados para uma realidade jurídica que em tese não os comportaria. Dito de outra
forma, o processo de sucessão destas lógicas foi feito de forma gradual e inconclusiva.
11
Parte essencial do novo modelo de prisão disciplinar que vai surgindo diz respeito à
produção de trabalho no interior da prisão. Conjuntamente, entende-se que o isolamento entre
os detentos é necessário para evitar o "contágio do mal" e para incentivar a reflexão e o
sincero arrependimento.
Daí surgirem nos Estados Unidos - já então uma nação afeita a aprisionar seus
cidadãos - dois modelos de prisão com trabalho que foram paradigmáticos para a instalação
deste novo regime ao redor do mundo.
No Brasil, a recepção destas ideias foi de certa forma crítica, porque muitos
consideraram que a ideia de isolamento (mesmo que trabalhando juntos, os presos eram
17
MAIA, C., SÁ NETO, F., COSTA, M. et. al. (Org.) História das Prisões no Brasil, volume 1. Rio de Janeiro:
Rocco, 2009, p. 80.
18
Praticamente toda a bibliografia listada aqui sobre a questão criminal retoma esta distinção de sistema, sendo,
portanto, injusto, atribuir esta definição a um autor específico, mas é digna de nota a importância de Foucalt,
Anitua e Motta para o esclarecimento destas definições.
12
proibidos de conversar) era mais prejudicial à ressocialização do que positiva pela suposta
inclinação ao arrependimento.
Ainda que com adaptações e uma prática cotidiana questionável, a prisão a qual este
trabalho se refere primordialmente, a Casa de Correção da Corte, optou pelo sistema Auburn,
constituindo diversas oficinas, como veremos mais tarde (ver subitem 1.5). Esta experiência
foi reconhecida como uma das pioneiras na América Latina.
Como vimos, no início do século XIX, a pena de prisão ainda não estava consolidada
como pedra angular do sistema penal. Qual seria, então, este método predileto de punição
oscilava muito de acordo com uma série de variáveis, sobretudo em relação à condição
jurídica, racial e socioeconômica do sujeito que cometeu o crime.
Social e mais distante da ideia de pecado 19), recuperando o delinquente/desviante (em tese, é
inclusive a missão do atual sistema prisional) e dissuadindo, pelo medo da punição, outrem
que estivesse cogitando cometer o mesmo crime (o que contribuiria para a paz social).
Esta inflexão que observamos deriva em última instância da mudança que ocorre na
relação entre Estado e Sociedade em geral com a passagem (gradual e cheia de vicissitudes)
da lógica de Antigo Regime para a racionalidade contemporânea no Mundo Ocidental. A
punição (e o aparato jurídico como um todo) deixa de ser apanágio real e passa a ser
entendida como um recurso que a sociedade tem para se defender dos comportamentos
indesejáveis, conforme a citação abaixo:
Portanto, quando tornamos nosso olhar a uma peça como a Galeria dos Condenados,
em particular, e a uma instituição como a Casa de Correção da Corte, em geral, precisamos
ter em mente os usos e funções deste presídio para alcançar alguma compressão da
necessidade/utilidade do registro fotográfico e das anotações a respeito dos detentos.
Um dos caminhos para pensar a Galeria dos Condenados é entendê-la como uma
providência tomada pela instituição prisional para submeter os corpos dos indivíduos
19
Este é o pressuposto básico da corrente conhecida como jusnaturalismo moderno.
20
MAIA, C., SÁ NETO, F., COSTA, M. et. al. (Org.) História das Prisões no Brasil, volume 1. Rio de Janeiro:
Rocco, 2009, p. 12.
14
Esta legislação foi produzida para ser a devida medida, no campo criminal, da
Constituição de 182421, que previu a necessidade de revisão nas leis deste âmbito. O processo
de redação começou em 1827, decorrendo três anos de discussão do seu texto.
Este Código inaugura, no Brasil, o uso de uma lógica punitiva liberal, afinada com os
princípios acima descritos como em voga na Europa e nos Estados Unidos; ou seja, a
hegemonia da pena de prisão com trabalho, a fim de produzir a regeneração do criminoso
através da disciplina laboriosa, como já vimos anteriormente. Ele determinou o fim do açoite
para os cidadãos livres, da marca a ferro e de demais penas consideradas cruéis.
TITULO II
Das Penas
CAPITULO I
DA QUALIDADE DAS PENAS, E DA MANEIRA COMO SE HÃO DE IMPOR, E
CUMPRIR
Art. 44. A pena de galés sujeitará os réos a andarem com calceta no pé, e corrente de
ferro, juntos ou separados, e a empregarem-se nos trabalhos publicos da provincia,
onde tiver sido commettido o delicto, á disposição do Governo.
1º A's mulheres, as quaes quando tiverem commettido crimes, para que esteja
estabelecida esta pena, serão condemnadas pelo mesmo tempo a prisão em lugar, e
com serviço analogo ao seu sexo.
21
O próprio caráter outorgado desta carta já testemunha contra a legitimidade prática da monarquia
constitucional sob a qual se erigiu o Império do Brasil.
15
Art. 46. A pena de prisão com trabalho, obrigará aos réos a occuparem-se diariamente
no trabalho, que lhes fôr destinado dentro do recinto das prisões, na conformidade das
sentenças, e dos regulamentos policiaes das mesmas prisões.
Art. 47. A pena de prisão simples obrigará aos réos a estarem reclusos nas prisões
publicas pelo tempo marcado nas sentenças.
Art. 48. Estas penas de prisão serão cumpridas nas prisões publicas, que offerecerem
maior commodidade, e segurança, e na maior proximidade, que fôr possivel, dos
lugares dos delictos, devendo ser designadas pelos Juizes nas sentenças.
Quando porém fôr de prisão simples, que não exceda a seis mezes, cumprir-se-ha em
qualquer prisão, que haja no lugar da residencia do réo, ou em algum outro proximo,
devendo fazer-se na sentença a mesma designação.
(...)
Art. 60. Se o réo fôr escravo, e incorrer em pena, que não seja a capital, ou de galés,
será condemnado na de açoutes, e depois de os soffrer, será entregue a seu senhor,
que se obrigará a trazel-o com um ferro, pelo tempo, e maneira que o Juiz designar.
(Revogado pela Lei 3.310, de 3.310, de 1886)
O numero de açoutes será fixado na sentença; e o escravo não poderá levar por dia
mais de cincoenta. (Revogado pela Lei 3.310, de 3.310, de 1886)22
A questão da privação desta última para mulheres 23, menores e idosos é sintomática
do esforço físico necessário para cumprir o tempo de trabalho nas obras públicas. Já a prisão
com trabalho é entendida como uma forma de ressocialização e/ou reabilitação, posto que
também seja entendida como o aprendizado de um ofício que permitirá ao detento gozar de
um provento honesto no caso de liberdade futura.
22
BRASIL. CODIGO CRIMINAL DO IMPERIO DO BRAZIL. Rio de Janeiro, 1830. Disponível em:
<http://www.planalto.gov.br/ccivil_…/…/LIM/LIM-16-12-1830.htm>. Acesso em: 29 de março de 2016.
23
Não é exagero dizer que o caminho para o reconhecimento da igualdade entre os sexos em termos de
capacidade para o trabalho ainda não foi percorrido pelo feminismo contemporâneo, quiçá o teria sido em 1830.
16
Aliás, no nível do discurso, podemos refletir sobre a própria adoção do termo galés,
que remete primariamente a uma realidade muito antiga de punição com trabalho extenuante
e braçal: "ga.lé s.f. 1 antiga embarcação comprida e estreita, movida a velas e remos. galés
s.f.pl. 2 pena dos condenados a remar nessa embarcação25".
A respeito da primeira contradição, a pena de prisão com trabalho foi concebida para
a disciplinarização de uma classe trabalhadora em uma sociedade capitalista. Em um país
escravocrata, não só é considera inapropriada para o contingente escravo (para o qual as
penas corporais sempre mantiveram sua hegemonia) como também forma um tipo de
trabalhador livre que não tem um referente, fora da prisão, em uma classe operária
propriamente dita.
Mas, embora o transplante do gênero punitivo possa então nos parecer inapropriado,
veremos mais adiante que, enquanto a escravidão ainda representou uma instituição de vulto
24
SANT'ANNA, Marilene. "Trabalho e conflitos na Casa de Correção do Rio de Janeiro". In: MAIA, C., SÁ
NETO, F., COSTA, M. et. al. (Org.) História das Prisões no Brasil, volume 1. Rio de Janeiro: Rocco, 2009.
25
HOUAISS, A. Míni Houaiss: Dicionário da Língua Portuguesa. 4 ed. Rio de Janeiro: Objetiva, 2010.
26
Embora o Brasil tenha se transformado em sede do Império Ultramarino em 1808 e sido elevado à condição
de Reino Unido em 1815, aplico o conceito de "colonial" por entender que diversas estruturas provenientes
deste sistema e desta temporalidade permaneceram ativas em grande parte do Império e, mesmo depois de seu
fim, continuaram marcando a sociedade brasileira. É o caso da monocultura de exportação movida a braço
escravo, da monarquia absolutista, do racismo e do sistema legal de Antigo Regime.
17
Durante todo o período imperial, não é exagero dizer que apenas uma pequena parcela
dos encarcerados cumpriam sua pena da forma que o Código previa; até porque o processo de
edificação das Casas de Correção por todo o país foi difuso e demorado, em parte porque o
sistema penitenciário dependia do governo provincial.
Regra da certeza perfeita: É preciso que, à idéia [sic] de cada crime e das
vantagens que se esperam dele, esteja associada a idéia [sic] de um
determinado castigo, com as desvantagens precisas que dele resultam; é
preciso que, de um a outro, o laço seja considerado necessário e nada possa
rompê-lo. Esse elemento geral de certeza que deve dar eficácia ao sistema
punitivo implica num certo número de medidas precisas. (...) Que o monarca
renuncie a seu direito de misericórdia, para que a força que está presente na
idéia [sic] de pena não seja atenuada pela esperança dessa intervenção.
(FOUCAULT, 1977, p. 87)
O segundo obstáculo era o caráter das cadeias que o Sistema Judiciário tinha à sua
disposição: como veremos no tópico a seguir, elas eram representativas do esquema jurídico
do Antigo Regime e totalmente inutilizáveis para aplicação da pena de prisão com trabalho;
além de serem também muito precárias em seus aspectos estruturais mais gerais. A bem da
verdade, quando da promulgação do Código Criminal, ainda levaria vinte anos para a
finalização das obras da Casa de Correção do Rio de Janeiro, pioneira no Brasil e mesmo na
América Latina.
18
O racismo deixa de ser, através deste procedimento discursivo, uma ideologia dos
conservadores do Antigo Regime e passa a ser um dado pretensamente científico do ponto de
vista da sociedade capitalista industrial que está começando a se consolidar na autonomeada
Civilização Ocidental. Esta noção ganha legitimidade e penetra até mesmo nas mentalidades
das classes mais baixas, ciosas de um bode expiatório para seus males e de um apoio a seus
anseios nacionalistas.
Outro ponto que merece destaque é que este pensamento racista entende que a
miscigenação é o maior dos males, porque degrada o melhor que poderia ser retirado de duas
raças. Mesmo considerando-se uma hierarquia entre as raças, até a raça inferior pura é
preferível a um híbrido degenerado. Note-se que a construção deste discurso é muito
providencial para uma ordem que pretende proteger as raças ditas superiores do "contágio"
genético das demais.
27
Cunho este termo porque o método destes auto conclamados cientistas muitas vezes foi reconhecido como
duvidoso em seus aspectos hipotético-dedutivos.
19
Entende-se, portanto, que à época, por exemplo, de D. Pedro II (na qual se situa a
produção da Galeria dos Condenados), a miscigenação era uma mancha e um óbice à
caminhada em direção à civilização que o Brasil deveria fazer a partir da estrutura herdada da
colônia. Compreendem-se, assim, eventuais intentos que buscassem mascarar esta condição
aos olhos internacionais (vide capítulo 3).
28
Vide a Introdução de MAIA, C., SÁ NETO, F., COSTA, M. et. al. (Org.) História das Prisões no Brasil,
volume 1. Rio de Janeiro: Rocco, 2009.
29
Atualmente, esta é a localização do Palácio Tiradentes, no centro da cidade, próximo ao Paço Imperial.
20
Esta realidade da prestação estatal de serviços de tortura aos senhores vai se prolongar
até o fim do Calabouço, na década de 1870, como veremos mais adiante. A realidade do trato
físico da população cativa no Brasil, como se sabe, levava mesmo muitas vezes à morte, o
que também era visto da posição do senhor enquanto prejuízo econômico.
Importante também lembrar que o preso das cadeias coloniais dependia de sua
família, amigos ou caridade púbica para sobreviver, pois o Estado não provinha sequer sua
alimentação. Neste contexto, quando algum senhor calculava que as taxas para manutenção
do escravo no Calabouço seriam superiores a seu valor venal, simplesmente o abandonava à
própria sorte.
Como o Brasil permaneceu até 1830 com o código criminal provido pelas Ordenações
Filipinas de 1603, é por certo que a opinião pública e a intelectualidade de viés liberal já
olhassem para as penas draconianas sobre o corpo influenciadas pela crítica iluminista,
causando um cálculo muito específico no sentido de sua aplicação.
Com a vinda da Corte para o Rio de Janeiro, o prédio do Senado da Câmara precisou
ser desocupado, o que implicou na transferência das cadeias que lá funcionavam para o
Aljube, prisão eclesiástica que ficava localizada ao pé do Morro da Conceição.
30
ARAÚJO, Carlos. Entre dois cativeiros: escravidão urbana e sistema prisional no Rio de Janeiro, 1790-1821.
In.: MAIA, C. et al. História das Prisões no Brasil. Rio de Janeiro: Rocco, 2009, p. 219.
21
Mais tarde, em 1856, esta prisão foi fechada e suas funções foram assumidas pela
Casa de Detenção da Corte, no complexo penitenciário que foi construído na Rua Nova do
Conde, que também incluía a Casa de Correção e o Calabouço.
Mas antes disso, esta obra precisava ser feita, já que a exigência já começou a se
impor quando, no Código Criminal de 1830, a pena para muitos delitos foi instituída como
sendo a prisão com trabalho; para o que nenhuma destas prisões que vimos até então se
encontrava preparada para realizar.
A lenta extinção e a gradual e relativa melhoria das condições de vida desta população
vivendo sob duplo cativeiro pode nos ser indicativa de uma resolução possível, um meio
termo, de certa forma consensual, neste embate.
Como já vimos acima, a Casa de Correção da Corte foi uma prisão construída entre
1833 e 1850, pretendendo instituir o regime disciplinar panóptico com trabalho segundo o
modelo de Auburn. Até hoje, no mesmo lugar, na região do Catumbi, funciona o Complexo
Penitenciário Frei Caneca.
Também podemos pensar que a Casa de Correção foi apenas uma das prisões da
capital, convivendo, inclusive no mesmo endereço, com a Casa de Detenção (que já na
nomenclatura não se mostra tão comprometida com a reabilitação dos presos quanto sua
congênere) e o Calabouço, até 1874. Portanto, a Correção era apenas um ponto em uma
hierarquia dos criminosos (e demais desviantes/indesejáveis) e não a representação do
conjunto da população carcerária da capital.
Este capítulo busca elucidar o que é a Galeria dos Condenados em seus aspectos
básicos e tecer algumas problematizações a respeito do tema, ei-las:
Os dois volumes do álbum ao qual este trabalho se refere estão arquivados na Divisão
de Manuscritos da Biblioteca Nacional, e estão também disponíveis online no site da
Biblioteca Nacional Digital (aconselhável pesquisar expressamente por “Galeria dos
Condenados”, as fichas estão separadas). A digitalização, a exemplo do trabalho que vem
sendo realizado ultimamente pela referida instituição, é de muito boa qualidade, permitindo a
quem acessa o acervo ter uma experiência satisfatória do documento em si.
Isto muito embora a digitalização seja feita arquivando uma ficha por vez, algo típico
da formação dos bibliotecários, mas que talvez não agrade tanto a historiadores e arquivistas,
que provavelmente prefeririam a digitalização por volume.
Podemos pensar que o critério para tal ordem seja preponderantemente a pompa da
encadernação mais sofisticada, carro-chefe da Galeria, já que a ordem de produção foi o
contrário, segundo Koutsoukos31, e por isso mesmo as fotos da edição mais bem acabada são
de melhor qualidade.
31
Em seu breve artigo KOUTSOUKOS, Sandra Sofia Machado. Na "Galeria dos Condenados", o aprendizado
de um photografo. In: Anais do XVII Encontro Regional de História: O lugar da História. AHPUH/SP -
UNICAMP. Campinas, 6 a 10 de setembro de 2004. Cd-rom.
25
Estritamente a respeito dos documentos, pode-se dizer que seguem um modelo bem
pouco variável. Cada página pautada é decorada nas bordas com floreios azuis e possui
decoração também em um espaço oval centralizado no topo, onde se encontra uma fotografia
(obviamente em preto-e-branco, muitas vezes esmaecida) do referido preso, acima de seu
nome em letra manuscrita centralizada ligeiramente maior que o resto do texto.
Trata-se, portanto, de um tipo de documentação que tem duplo apelo: tanto como
fonte iconográfica quanto manuscrita.
que foi um recurso utilizado a fim de mensurar melhor os traços do condenado e garantir a
retratação mais fiel possível.
Uma inquietação que acaba sendo muito relevante no todo da Galeria dos Condenados
é que conhecemos prioritariamente as instituições que a produziram; mas não conhecemos as
pessoas. A autoria das fotos é, salvo engano, ignorada pelas pesquisas até agora levadas a
cabo, e a figuração dos sujeitos é pouco mais específica: alguns dos presos são identificados
apenas pelo primeiro nome e pela indicação de nação (no caso dos escravos).
Provavelmente, se esta fosse uma pesquisa com mais recursos (sobretudo, tempo)
disponíveis, seria possível identificar, ao menos através dos autos judiciais, cada crime e cada
criminoso, o que nos traria luz a respeito da forma de organização do acervo e do processo de
identificação da necessidade/demanda do poder público ao assumir a empresa de catalogar
estes detentos.
O que foi legado destes homens e mulheres 33 para a posteridade foi principalmente
suas faces, suas figuras, suas expressões. Em uma condição na qual o fotografado pouco ou
32
É o caso de duas citações presentes em KOUTSOUKOS, Sandra Sofia Machado. Negros no estúdio do
fotógrafo. Campinas: Editora da Unicamp, 2010. e em THIESEN, Icléia. Informação identificatória, memória
institucional e conhecimento: Isabel Jacintha da Silva, de cativa à prisioneira da Casa de Correção da Corte.
Revista de Ciência da Informação - v. 10 n. 3 jun/09.
27
nada poderia fazer em termos de negociação de sua pose, o olhar e a aparência permanente
(traços físicos, estilo de barba e cabelo, etc.) é a maneira possível na qual o sujeito –
pretensamente privado de sua individualidade por sua condição de interno – se coloca na
foto; dá o seu testemunho, eloquente apesar de breve – de quem ele é e do que ele pensa
sobre a própria vida.
De forma intuitiva, durante o período em que primeiro tive contato com este acervo 34,
me saltou aos olhos a postura mais relaxada ou mais tensa, mais resignada ou mais arrogante,
mais serena ou mais perturbada, que parecia se coadunar surpreendentemente com a
condenação (em termos de delito e de tempo a cumprir) de cada um.
33
São duas mulheres, no âmbito geral do documento.
34
Em 2012, na Iniciação Científica referida na nota no 1.
35
Como já foi referido, esta e as demais fotografias e manuscritos aqui reproduzidos podem ser encontrados no
site da Biblioteca Nacional Digital, seja em conjunto através da pesquisa por Galeria dos Condenados, seja
nominalmente.
28
Muito difícil não pensar em tranquilidade, e despeito ao observar a forma como este
jovem encara a câmera sem hesitação, receio ou sentimento de fuga. A relativa serenidade no
olhar de quem iria ficar apenas dois meses em detenção e, em fim de contas, nem isso
cumpriu, conforme nos informa o manuscrito. Refletindo de outro modo, a tranquilidade
também de quem não é identificado como homicida.
29
Mas o que parece uma inútil nota sobre os bastidores de uma pesquisa de Iniciação
Científica é na verdade muito mais que isso. Desejo uma tentativa de reflexão sobre o poder
do fotográfico enquanto capturador da subjetividade humana.
O olho mecânico que conserva para sempre (ou ao menos por um bom tempo) os
desenhos de cada par de ombros, de sobrancelhas, de cada maxilar e nariz, também conserva
aquilo que há de mais fundamental na existência humana através das eras: a expressão dos
nossos sentimentos.
devemos ter como princípio a advertência que a historiadora Sylvie Lindeperg propõe ao uso
indiscriminado de imagens de arquivo (no caso, especificamente imagens filmadas) pela
indústria cultural.
Apesar de se referir a outro espaço-tempo, a máxima vale também para este trabalho,
qual seja: "Este efeito da presença dá a sensação de algo que retorna do passado; ele pode ser
uma armadilha no sentido de que evita o trabalho necessário de interpretação."36
Assim, não deve ser descartada nenhuma hipótese frente ao desconhecido e incerto da
psique de outra época; inclusive a de que as expressões que utilizamos para a comunicação
entre nossos sentimentos e os músculos de nossa face não sejam exatamente os mesmos dos
homens e mulheres oitocentistas.
36
No original em francês: "Cet effet de présence donne le sentiment que quelque chose de ce qui a passé
revient ; il peut être en ce sens un piège qui court-circuite le nécessaire travail d’interprétation.". Tradução
minha. Trecho retirado de LINDEPERG, S. "Le singulier destin des images d’archives: contribution pour un
débat, si besoin une « querelle »". E-Dossier de l’audiovisuel: L’Extension des usages de l’archive
audiovisuelle. Paris: 2014.
31
Quem foram os agentes responsáveis por deflagrar este empreendimento? Esta parte do
trabalho se dedica indicar um possível caminho para responder a estas indagações.
Uma boa ajuda pode ser o livro Fotografia e Império, de Natalia Brizuela37, através do
qual podemos relacionar a produção e o uso da fotografia no espaço/tempo que analisamos à
forma de visualizar o Império do Brasil, enquanto Estado e enquanto nação.
Muito já se falou sobre o gosto especial que Dom Pedro II tinha pela fotografia, mas
Brizuela vai além: para ela, trata-se do meio utilizado por excelência para se visualizar o
Brasil enquanto Império (incluindo os territórios mais recônditos) e Estado-Nação moderno,
ou seja, criar uma geografia da imaginação do Brasil. Para a autora, o papel que a fotografia
representou neste processo é especificamente acentuado no caso brasileiro - e aí mesmo ela
situa a justificativa do seu recorte no Império do Brasil.
Já os dois últimos capítulos representam, para a autora, mais sobre a ideia de morte
que de gênese, dito de outra forma, mais sobre o desaparecimento e superação de estruturas
sociais que sobre a invenção destas.
Tanto a reflexão sobre a importância que o Estado Imperial dá à fotografia como meio
por excelência de documentação do Brasil enquanto sociedade moderna quanto aquela a
37
BRIZUELA, Natalia. Fotografia e Império. São Paulo: Companhia das Letras e Instituto Moreira Salles,
2012.
32
respeito da figuração do negro enquanto análogo à natureza morta, penso, são interessantes
para nós.
Não só o detento que carrega a marca visível da escravidão africana, mas, em verdade,
todos os prisioneiros são marcados com o estigma da prisão que, enquanto instituição que
pretende docilizar os corpos e eliminar ao máximo as individualidades em nome da
manutenção de um padrão estrito de disciplina, se utiliza dos mais variados dispositivos (no
sentido de Foucault) para empreender este feito.
Não que as instituições disciplinadoras de que o autor citado fala em Vigiar e Punir
tenham tido efetivamente todo este sucesso em suprimir a noção de individualidade e
disciplinar os corpos desviantes; mas o que a história nos relegou dos primeiros séculos desta
tentativa sistemática, no caso das prisões, deixa claro a seriedade deste intento.
Lê-se: "Isabel Jacintha Entrou a 17 de Junho de 1859 para cumprir pena perpetua [sic], por sentença de 29 de
Outubro de 1846."
Voltando à produção do material, o próprio termo "Galeria" nos faz refletir a respeito
das intenções de agenciamento destes volumes por parte de seus idealizadores e produtores.
Para exemplificar mais claramente esta hipótese, vamos observar algumas definições do
termo: "ga.le.ria s.f. 1 corredor largo e comprido com amplas janelas ou teto envidraçado 2
p.ext. local para exposição e venda de obras de arte 3 p.ext. coleção de obras de arte 4 fig.
Coleção de personalidades, ger. célebres [...]"38.
Não se trata de uma relação, de uma inscrição, um fichário, uma lista ou qualquer
outro termo com a função primordial de descrever um documento de uso interno de um ou
38
HOUAISS, A. Míni Houaiss: Dicionário da Língua Portuguesa. 4 ed. Rio de Janeiro: Objetiva, 2010.
34
mais repartições públicas com o fim pragmático de listar e identificar um determinado recorte
do total das pessoas que vivem em um lugar (no nosso caso, os presos, mas o mesmo
procedimento é corriqueiro em diversas áreas do Estado).
Uma "Galeria" é mais que isso. É algo que nos remete a arte, à imagem visual, ou, ao
menos, à faculdade de expor algo às vistas do público. Segundo Koutsoukos, em suas duas
obras aqui relacionadas, um dos agenciamentos que a Galeria teve foi ter sido levada por D.
Pedro II para a Exposição Universal de Paris, o que se coaduna com as reflexões a respeito
deste caráter distinto.
Sob este viés, podemos pensar a empresa de produção da Galeria dos Condenados
como um caso ímpar, uma exceção à regra da concretude das prisões brasileiras da segunda
metade do século XIX; coisa que de todo modo também pode ser dito da Casa de Correção da
Corte, como um todo.
E já que estamos nos ocupando de analisar as escolhas políticas por trás do documento
que temos em mãos, cabe observar que a escolha desta prisão específica 39 para ter seus
detentos fotografados está longe de ser fortuita, muito pelo contrário: não só se trata da
principal cadeia da capital do Império, como também é a prisão mais afinada com os
paradigmas então vigentes no mundo ocidental dentre as que o Brasil possuía à época.
Não podemos deixar escapar que o Império Brasileiro na década de 1870 era um
jovem Estado com ganas de se afirmar definitivamente no panteão das nações civilizadas,
malgrado a permanência de instituições já condenáveis à época, sobretudo a escravidão.
39
Inclusive, somente uma parte do complexo prisional que também incluía a Casa de Detenção e o Calabouço
foi incluída no processo de registro fotográfico e manuscrito.
35
Analisando esta base nos confrontamos com um padrão racial bastante peculiar que
acreditamos que possa ser útil para pensarmos a construção da Galeria dos Condenados e da
própria Casa de Correção. Esta é apenas uma hipótese, na qual pretendo introduzir uma
tentativa, entre tantas outras possíveis, de explicação das contradições presentes neste
sentido.
Mas quando nos deparamos com o mesmo quadro racial aplicado ao Livro 2 (o
primeiro a ser produzido, com qualidade fotográfica radicalmente inferior, servindo de
aprendizado para o fotógrafo40 e, sob a ótica do Estado, de utilização limitada ao controle dos
privados de liberdade), observamos um estado de coisas completamente distinto, como fica
exemplificado no próximo gráfico.
40
Hipótese levanta por Koutsoukos em seus dois trabalhos aqui relacionados. Podemos observar este processo
através da fotografia de Antonio Francisco de Oliveira, aqui reproduzida na página 45, no qual observamos uma
fotografia com pouco contraste e na qual o preso posa de frente encarando a câmera, procedimento de pose
distinto do mais comumente aplicado na Galeria dos Condenados, em particular, e nas fotografias de cadeias
oitocentistas, em geral.
37
Mesmo com os percalços metodológicos que mais à frente serão explorados, existe
materialidade na distinção entre as proporções raciais do Livro 1 ao 2. Para os fins de
exposição às nações "civilizadas" que D. Pedro II agenciou o Livro 1, não era exatamente
importante que socialmente aqueles indivíduos se entendessem como negros/pardos/brancos,
como a obra da Mattos41 nos informa que era bastante complexo e intangível no âmbito de
uma pesquisa de monografia; mais importante era que estes indivíduos não parecessem
negros, ainda que pudessem ser entendidos desta maneira por seu meio social quando em
liberdade.
41
Em MATTOS, H. Das Cores do Silêncio. 3. ed. Campinas: UNICAMP, 2013.
42
Mais sobre o assunto em SCHUWARCZ. Lília Moritz. O Espetáculo das raças: cientistas, instituições e
questão racial no Brasil, 1870-1930. São Paulo: Companhia das Letras, 2007.
38
privados até mesmo de liberdade) pudessem ter um padrão étnico entendido como mais
próximo daquele próprio de uma nação civilizada.
Podemos pensar ainda como esta distinção entre o Livro 1 e o 2 é feita em termos de
escolha da cor dos figurantes em ambos; mas que em termos de catalogação da cor por
escrito, o documento se cala. Esta gradual desracialização do processo documental é um dos
grandes argumentos da obra de Hebe Mattos supracitada e um dado presente também aqui.
Os novos padrões do que é ser negro no contexto de derrocada lenta da estrutura
escravocrata43 aparecem aqui como um silêncio, uma informação velada.
E um dos expedientes que permite que este silêncio seja mantido mesmo em um
projeto que busca a identificação dos criminosos é a fotografia, que entrega ao observador
contemporâneo parte da informação a respeito da etnia do fotografado. Em seu auxílio, surge
a nomeação do preso, que muitas vezes não inclui sobrenome; e, em muitas outras, inclui a
etnia enquanto sobrenome.
No primeiro livro, há apenas três casos de negros identificados desta forma, ao passo
que, no segundo, a porcentagem é muitíssimo maior. Além disso, todos os presos que não
apresentaram sobrenome eram negros ou pardos – sendo “Pardo”, inclusive, uma categoria
aplicada no próprio texto da Galeria dos Condenados, já que era o termo utilizado no fim do
século XIX para os afrodescendentes que conseguiram se dissociar do estigma da
escravidão45–.
45
Segundo MATTOS, 2013, op. cit.
40
Outro fator de estigma deste grupo era muitas das vezes ter omitido em seu registro o
crime motivador da sentença e da prisão.
Talvez uma pista ainda mais valiosa, não apenas o silêncio sobre o crime que levou a
condenação é comum a muitos negros, como também a data em que ingressaram na Casa de
Correção da Corte. Seria este o sinal de uma transferência em massa de presos naquela data
(o possível fechamento de outra cadeia além das que nos constam?); ou o indicativo de uma
espécie de revolta negra ou choque de ordem àquela data? Ou mesmo talvez o descaso do
policial responsável pelo registro do delito, que foi acumulando arquivos para despachá-los
em conjunto, quem sabe?
Esta última hipótese seria, entretanto, menos provável, já que a data de entrada dos
negros com algum acesso à cidadania (sobrenomes, referência aos processos) e todos os
demais prisioneiros possuem datas bastante diversificadas, dando a entender que
correspondem de fato ao ritmo com que chegaram, e não a uma mera construção do escrivão
responsável.
41
Além disso, através destas anotações é possível traçar uma hipótese de perfil
biográfico das pessoas fotografadas nesta Galeria. Há indicações, por exemplo, de que seus
julgamentos tenham sido, em alguns casos, coletivos (como Joaquim Antonio Baptista e
Antonio Joaquim de Oliveira, ambos julgados em 17 de março de 1872 por crime de roubo).
A respeito das fotografias de cadeia, um dos maiores focos desta etapa da pesquisa,
observam-se no fim do século XIX tentativas incipientes de disciplinarização e
uniformização dos corpos dos presidiários, enquanto forma de controle social pelo estado.
Pela primeira vez no Brasil, através da Galeria dos Condenados, os rostos dos indesejáveis se
tornam catalogados e socialmente visíveis.
Neste contexto, a presença negra aparece mais uma vez como secundária, restringindo
os indivíduos portadores do estigma do cativeiro ao segundo volume, menos divulgado e de
menor qualidade.
A hipótese central deste livro é que a ação dos libertos foi decisiva para que a
referência à cor fosse manipulada como uma forma de aproximação ao mundo dos livres.
Esse processo não é um branqueamento (no qual se reconhece uma hierarquia racial rígida e
se quer imprimir superioridade frente ao grupo menos beneficiado), mas sim de um
apagamento da cor (a busca pela irrelevância da cor enquanto obstáculo para o acesso ao
estatuto de livre).
Tal hipótese se tornou uma espécie de referência na área de estudo nos últimos anos
de cativeiro e do imediato pós-abolição desde a época da publicação da obra. Muito da
42
O trabalho de Hebe Mattos também tem uma outra peculiaridade que nos chama a
atenção para a crítica de qualquer trabalho historiográfico. Nos mostra a importância de
entender a ausência como um elemento da pesquisa, não simplesmente enquanto uma lacuna
apresentada pelas fontes. O carro-chefe de sua pesquisa, na verdade, foi a observação
perspicaz da ausência de uma referência nas fontes (ou seja, a cor) e a partir daí buscou-se
seus possíveis significados.
Por fim, e até mesmo para justificar a escolha metodológica de parte deste trabalho, eu
gostaria de salientar que a denotação de cor às pessoas é um tema muito controverso e que a
fonte não o faz por escrito (como muitos documentos do Antigo Regime trazem), mas acho
que se a noção (pós-moderna) de atual autodeclaração e o temor do anacronismo a qual todo
trabalho historiográfico está propenso em incorrer (no nosso caso, seria o anacronismo com a
categoria de cor e raça desde o século XIX) for nos impedir de tratar o assunto, só vamos
acabar incorrendo num apagamento da questão racial; na perda do dado material da
discriminação (em seu sentido mais estrito, de distinção).
aqui segue a mesmo linha. Parto do princípio que, se esta metodologia foi considerada
apropriada então, não há razão para ter deixado de ser.
Esta é uma mudança fundamental de forças que ocorre com o fim do tráfico
transatlântico (processo mais seguramente situado na década de 1850) e a posterior
condenação da escravidão, por inanição, que representa a Lei do Ventre Livre de 1871,
também conhecida como Lei Rio Branco (já que foi aprovada sob o Gabinete conservador do
Visconde de Rio Branco).
Podemos entender que o desmonte legal das bases da escravidão foi lento e gradual,
pretendendo-se realizar uma transição mais tranquila entre a realidade laboral cativa e a livre.
46
HOLLOWAY, Thomas. O Calabouço e o Aljube do Rio de Janeiro no Século XIX. In: MAIA, C. História das
Prisões no Brasil. Rio de Janeiro, Rocco, 2009, p. 278.
47
Literalmente 21 anos, ou seja, a idade na qual o sujeito nascido de Ventre Livre não poderia mais,
juridicamente, permanecer de nenhuma forma sob o jugo do proprietário de sua mãe ou seu herdeiro.
48
Sobre esta lei, ver também a seção 2.4 deste trabalho.
44
Estes escravos que eram levados para lá o eram por sua condição jurídica, como se
viu anteriormente, e não por crimes comuns averiguados em juízo. Eles trabalhavam nas
obras públicas, tendo construído grande parte, por exemplo, das modificações urbanas que
tiveram lugar quando da transferência da Corte para o Rio de Janeiro em 1808. E assim a
instituição permaneceu até 1874, quando a escravidão já respirava por aparelhos; mantendo
os escravos em sua condição de duplo cativeiro49.
Uma das construções que os escravos foram impelidos a tomar parte foi,
curiosamente, aquela na qual eles mais tarde ficariam presos: a do complexo penitenciário da
qual fazia parte a Casa de Correção da Corte, pedra angular, sem dúvida, mas não a única
casa abrigada na construção da Rua Nova do Conde.
Tomamos por base a seguinte pista para deduzir que estes presos destas casas não
foram contabilizados no total, a ficha abaixo 50, intitulada "Antonio Francisco de Oliveira".
Nela, não há o motivo da condenação, lê-se apenas: “Deu entrada a 7 de Outubro de 1869
vindo da Casa de Detenção para continuar a cumprir a pena de galés perpetuas [sic] que
cumpria na Cadeia de Nitherohy [sic] desde Maio de 1862.51”
49
Aqui me aproprio do termo como foi utilizado em ARAÚJO, Carlos. "Entre dois cativeiros: escravidão urbana
e sistema prisional no Rio de Janeiro, 1790-1821". In.: MAIA, C. et al. História das Prisões no Brasil. Rio de
Janeiro: Rocco, 2009.
50
O original da Galeria dos Condenados se encontra na Seção de Manuscritos da Biblioteca Nacional do Rio de
Janeiro. Como o acervo se encontra digitalizado, o acesso ao original está vetado, salvo se o pesquisador
apresentar uma justificativa por que a reprodução digital não comtempla suas necessidades. Esta e todas as fotos
e manuscritos podem ser acessados através do site da Biblioteca Nacional Digital:
http://bndigital.bn.br/acervodigital/. Acesso em 29 mar. 2016.
45
Além da catalogação da base nos indicar explicitamente que os presos faziam parte da
Casa de Correção de acordo com a Biblioteca Nacional, temos certo grau de certeza que esta
não era uma nomenclatura usada enquanto uma metonímia referente ao todo do complexo.
Se existe na ficha deste preso a identificação de que ele veio transferido da Casa de
Detenção, é porque este fato é suficientemente digno de nota. Portanto, este sujeito passa a
ser visível no momento em que é transferido; este é um sinal de que este procedimento foi
uma exclusividade da Casa de Correção.
Será então que a empresa identificatória foi feita mais como um projeto piloto que
como um dispositivo de repressão e vigilância real e efetivo, já que só torna visível (e,
51
Dado que desconheço as condições gráficas de eventual reprodução deste trabalho, optei por incluir a
transcrição paleográfica, embora a letra do fim do século XIX seja relativamente simples. Ainda recomendo,
como já disse antes, que os interessados consultem a digitalização do site da Biblioteca Nacional Digital.
46
Acredito que este dado explique porque existia um número tão grande de não-negros
na Casa de Correção: porque os negros estavam sendo reprimidos no âmbito doméstico ou no
Calabouço (mais tarde transferido para a Casa de Detenção).
Outro indício de que esta base de dados e fotos era mais um instrumento de
publicidade do governo do que um dispositivo de vigilância que de fato foi constantemente
utilizado pelas instâncias repressivas é que a especificação, ao fim da ficha, de quando o
preso saiu, fugiu ou morreu é incerta e ocorre apenas em alguns casos.
Isso nos demonstra que a atualização, portanto, o uso da Galeria dos Condenados não
foi perene no tempo, o que nos informa sobre o provável abandono do projeto. Como em
geral a data máxima que aparece com esses dados é 1875, podemos considerar que esta foi
uma tentativa rápida e transitória de tornar a vigilância e identificação dos criminosos
brasileiros algo mais moderno e eficiente.
47
BIBLIOGRAFIA
BARTHES, Roland. A Câmara Clara: nota sobre a fotografia. Tradução de Júlio Castañon
Guimarães. Rio de Janeiro: Nova Fronteira, 2012.
BECCARIA, Cesare. Dos Delitos e das Penas. Trad.: Lúcia Guidicini e Alessandro Berti
Contessa. São Paulo: Martins Fontes, 2000.
BRIZUELA, Natalia. Fotografia e Império. São Paulo: Companhia das Letras e Instituto
Moreira Salles, 2012.
LINDEPERG, S. "Le singulier destin des images d’archives: contribution pour un débat, si
besoin une « querelle »". E-Dossier de l’audiovisuel: L’Extension des usages de l’archive
audiovisuelle. Paris: 2014.
MAIA, C., SÁ NETO, F., COSTA, M. et. al. (Org.) História das Prisões no Brasil, volume 1.
Rio de Janeiro: Rocco, 2009.
MAUAD, Ana Maria. Poses e Flagrantes: ensaios sobre história e fotografia. Niterói, RJ:
Eduff, 2008, 262 p.
SCHUWARCZ. Lília Moritz. O Espetáculo das raças: cientistas, instituições e questão racial
no Brasil, 1870-1930. São Paulo: Companhia das Letras, 2007.
49