Você está na página 1de 247

CARLOS EDUARDO C. CAMPOS · LUIS FILIPE B.

ASSUMPÇÃO

CAMINHOS DA APRENDIZAGEM
HISTÓRICA: ENSINO DE PRÉ-
HISTÓRIA E ANTIGUIDADE
Reitor:
Prof. Dr. Marcelo Augusto Santos Turine - UFMS
Vice-Reitora:
Profa. Dra. Camila Celeste Brandão Ferreira Ítavo
Pró-Reitoria de Extensão, Cultura e Esporte:
Prof. Dr. Marcelo Fernandes.
Direção da Faculdade de Ciências Humanas: 2
Profa. Dra. Vivina Dias Sol Queiroz
Coordenação do Curso de História:
Prof. Dr. Cleverson Rodrigues

Edições Especiais Sobre Ontens


Comissão Editorial & Científica
Dulceli Tonet Estacheski [UFMS]
Everton Crema [UNESPAR]
André Bueno [UERJ]
Carla Fernanda da Silva [UFPR]
Carlos Eduardo Costa Campos [UFMS]
Gustavo Durão [UFPI]
José Maria Neto [UPE]
Leandro Hecko [UFMS]
Luis Filipe Bantim [UFRJ]
Maria Elizabeth Bueno de Godoy [UEAP]
Maytê R. Vieira [UFPR]
Nathália Junqueira [UFMS]
Rodrigo Otávio dos Santos [UNINTER]
Thiago Zardini [Saberes]
Vanessa Cristina Chucailo [UNIRIO]
Washington Santos Nascimento [UERJ]

Rede:
www.revistasobreontes.site

Coordenador do ATRIVM / UFMS:


Prof. Dr. Carlos Eduardo da Costa Campos

Rede: https://www.atrivmufms.com/

Ficha Catalográfica
Assumpção, Luis Filipe Bantim; Campos, Carlos Eduardo Costa (org.)
Caminhos da Aprendizagem Histórica: Ensino de Pré-História e
Antiguidade. 1ª Ed. Rio de Janeiro: Sobre Ontens/UFMS, 2021. ISBN:
978-65-00-24349-9 
Ensino de História; Pré-História; Antiguidade; Arqueologia
Sumário
CONSIDERAÇÕES SOBRE O ENSINO DE PRÉ-HISTÓRIA E ANTIGUIDADE....................................... 6
CONFERÊNCIAS
3

ENSINO DE PRÉ-HISTÓRIA ATRAVÉS DE MAQUETES


André Luis Ramos Soares .............................................................................................................. 9
A MORTE NO PASSADO E A VIDA NO PRESENTE: CONTRIBUIÇÕES DO ESTUDO DA
VARIABILIDADE DAS PRÁTICAS FUNERÁRIAS
Camila Diogo de Souza ................................................................................................................ 18
ENSINO DE PRÉ-HISTÓRIA E AS AÇÕES DO MUSEU DE ARQUEOLOGIA DA UFMS DURANTE A
PANDEMIA DE COVID 19 – PARTE 1
Carlos Eduardo da Costa Campos ............................................................................................... 31
OUTROS OLHARES SOBRE O ENSINO DE HISTÓRIA ANTIGA NO BRASIL: PERCURSOS E
PERCALÇOS
José Petrúcio de Farias Junior ..................................................................................................... 39
O QUE ENSINAR EM HISTÓRIA ANTIGA?
Leandro Hecko ............................................................................................................................ 45
O ENSINO DE HISTÓRIA ANTIGA E A EDUCAÇÃO DE JOVENS E ADULTOS: PRECISAMOS INICIAR
ESTE DEBATE
Leandro Mendonça Barbosa ....................................................................................................... 51
A BNCC E O ENSINO DE HISTÓRIA ANTIGA NA EDUCAÇÃO BÁSICA – CONSIDERAÇÕES INICIAIS
Luis Filipe Bantim de Assumpção ................................................................................................ 59
LA FILOSOFÍA ANTIGUA EN TIEMPOS DE COVID-19: UNA MIRADA ANTROPOLÓGICA
María Cecilia Colombani e Guido Fernández Parmo................................................................... 68
A HISTÓRIA DA ANTIGUIDADE NO SÉCULO XXI: POTENCIALIDADES, RISCOS E CONQUISTAS
Pedro Vieira da Silva Peixoto....................................................................................................... 80
ENSINO DE PRÉ-HISTÓRIA E ANTIGUIDADE: RELATO DE UMA ATIVIDADE INTERDISCIPLINAR
Cláudia Cristina do Lago Borges e Priscilla Gontijo Leite ............................................................ 90
COMUNICAÇÕES

A PAIDEIA GREGA DIANTE DO HERÓI HOMÉRICO


Aldinéia Cardoso Arantes .......................................................................................................... 101
“MULHERES VIRTUOSAS” À VOLTA DO MEDITERRÂNEO ANTIGO: HEBREIAS, CANANEIAS,
EGÍPCIAS E AS POSSIBILIDADES PARA O ENSINO DE HISTÓRIA ANTIGA
Alessandra Serra Viegas ............................................................................................................ 108
HISTÓRIA ANTIGA E LIVROS DIDÁTICOS: UMA RELAÇÃO EM PERMANENTE CONSTRUÇÃO
Bruno da Silva Ogeda ................................................................................................................ 118
ASPECTOS DO ENSINO DA HISTÓRIA DO EGITO ANTIGO: ANÁLISE DO LIVRO 2 DO 3º ANO DO
ENSINO FUNDAMENTAL DA COLEÇÃO 2015 DA REDE PITÁGORAS
Clivya da Silveira Nobre ............................................................................................................. 126 4

A LISÍSTRATA DE ARISTÓFANES E O PAPEL SOCIAL DA MULHER NA GRÉCIA DO SÉC. V AEC


Dalgomir Fragoso Siqueira ........................................................................................................ 134
SALVE HIPÁTIA! O ENSINO TRANSDISCIPLINAR SOBRE A ANTIGUIDADE A PARTIR DE JOGOS DE
CARTAS
Douglas André Gonçalves Cavalheiro........................................................................................ 140
A DEMOCRACIA ATENIENSE NOS COMPÊNDIOS DO SÉCULO XIX: REFLEXÕES SOBRE A ESCRITA
DA HISTÓRIA ANTIGA ESCOLAR
Gizeli da Conceição Lima e José Petrúcio de Farias Júnior........................................................ 150
O ENSINO DO EGITO ANTIGO NO 6º ANO DO ENSINO FUNDAMENTAL
Jayza Monteiro Almeida ............................................................................................................ 159
EM DIREÇÃO A UMA NOVA PERSPECTIVA PARA O ENSINO DE MESOPOTÂMIA
Leonardo Candido Batista ......................................................................................................... 167
ENSINO DE PRÉ-HISTÓRIA E AS AÇÕES DO MUSEU DE ARQUEOLOGIA DA UFMS DURANTE A
PANDEMIA DE COVID 19 – PARTE 2
Lia Raquel Toledo Brambilla Gasques e Laura Roseli Pael Duarte ............................................ 182
O DECLÍNIO DA FIGURA DO SOLDADO CIDADÃO ROMANO E O AUMENTO DA ATIVIDADE
COMERCIAL COMO UM ESTIMULANTE AO CRESCIMENTO DE ROMA
Luciano Araujo Monteiro .......................................................................................................... 189
ENSINO DE PRÉ-HISTÓRIA: SINGULARIDES E ASPECTOS FUNDAMENTAIS
Luciano Marcos Curi e Ana Carolina Pires das Dôres ................................................................ 196
EDUCAÇÃO HISTÓRICA SOBRE A PRÉ-HISTÓRIA NA EDUCAÇÃO BÁSICA: UMA DEMANDA
URGENTE
Luciano Marcos Curi e Fábia Núbia Moura e Silva .................................................................... 203
PENSAMENTO EGÍPCIO E PENSADOR GREGO: O ENSINO DE HISTÓRIA ANTIGA COMO PRÁTICA
DECOLONIAL
Luiz Henrique Silva Moreira ...................................................................................................... 210
O ÚLTIMO OLHAR: MÁSCARAS FUNERÁRIAS EGÍPCIAS COMO INSTRUMENTO PEDAGÓGICO ......
Maura Regina Petruski e Marco Antonio Stancik ..................................................................... 219
OCUPANDO NOVOS ESPAÇOS: PROPOSTAS DIDÁTICAS DO PROJETO VOCABULÁRIO POLÍTICO
DA ANTIGUIDADE
Laryssa Alves da Silva e Millena Luzia Carvalho do Carmo ....................................................... 225
POSSÍVEIS AÇÕES DE EDUCAÇÃO PATRIMONIAL PARA OS SÍTIOS PRÉ-HISTÓRICOS DE
CORGUINHO E AQUIDAUANA COM BASE NO MODELO DO DISTRITO DE PORTO CAIUÁ – 5
NAVIRAÍ – MS
Pedro Leandro Batista de Souza ............................................................................................... 231
A INSERÇÃO DE DEBATES SOBRE RAÇA E GÊNERO NOS ESTUDOS PALEOANTROPOLÓGICOS E
SEU USO EM SALA DE AULA
Savio Queiroz Lima .................................................................................................................... 238
CONSIDERAÇÕES SOBRE O ENSINO DE PRÉ-
HISTÓRIA E ANTIGUIDADE
Pensar o Ensino e a Pesquisa em História é um ato reflexivo que exige
sensibilidade para alcançarmos resultados no campo universitário e escolar do
6
Brasil. Assim, urge uma postura docente e social que valorize o saber histórico
e os seus profissionais na atualidade. Cabe mencionar que os temas de Pré-
História e Antiguidade intrigam, tensionam e geram conflitos entre os
pesquisadores justamente por sua dinâmica e possibilidades de análises sociais.
O estudo sobre as práticas culturais da Pré-História e da Antiguidade figuram
como um poderoso instrumento de reflexão para os professores e discentes
contemporâneos, por possibilitar o alargamento de visões acerca de aspecto
culturais humanos.

Dessa maneira, a coletânea, intitulada Ensino de Pré-História e Antiguidade,


demonstra a importância da cooperatividade entre pessoas e instituições. Nesse
sentido, o diálogo entre a UERJ, UFMS, UNESPAR e UPE, que sediaram o
evento e a publicação, reafirma o nosso compromisso com o conhecimento
científico em tempos pandêmicos e de obscurantismo social. Ressaltamos que
os textos contidos nessa coletânea são compreendidos como o resultado de um
dedicado processo educativo, cultural e científico, além de uma resistência ao
descaso político-social com a educação brasileira. Ademais, em nossa
concepção, as ações dessa natureza viabilizam a relação entre a Universidade
e a sociedade ao promover a democratização do saber, tornando-o disponível
para todos. Desta feita, compreendemos que o ensino e a pesquisa desse vasto
Mundo Antigo e Pré-Histórico contribuem, de modo ímpar, para a construção de
uma consciência histórica plural e diversificada.

A mesa Ensino de Pré-História e Antiguidade foi organizada em local ideal, a


saber, a rede de internet; garantindo, assim, o longo alcance das discussões.
Ademais, foi possível integrar professores e pesquisadores de áreas como
História, Arqueologia, Educação, Literatura, Filosofia, Artes, que tem como
interesse a Pré-História e a Antiguidade. A partir deste “encontro”, foram criadas
as condições para realização de discussões e debates relativos ao estado atual
das pesquisas e práticas de ensino, além de permitir a difusão de seus
resultados. Com esse intento, reunimos conferências e comunicações com
professores e especialistas nacionais e internacionais, atrelados à temática do
simpósio.

Nesta publicação, reiteramos a necessidade de irmos além das interpretações


historiográficas. Acreditamos na importância de um movimento conjunto entre as
pesquisas e o Ensino da Pré-História e Antiguidade, com a finalidade de
desenvolver ações práticas e direcionadas à comunidade escolar. Assim,
esperamos que as experiências aqui compartilhadas sirvam de inspiração para
a promoção de outras práticas pedagógicas entre os professores do magistério
superior e da rede básica, bem como discentes em formação. Frente a isso, nas
conferências e comunicações enviadas, é possível observar um Ensino de Pré-
História e Antiguidade problematizador e conectado com a nossa realidade. As
experiências aqui agrupadas evidenciam abordagens dinâmicas e criativas que
reafirmam a viabilidade das ações conjuntas entre os grupos de pesquisa nas
IES e às Instituições Escolares, destacando, assim, as contribuições dos
especialistas em Pré-História e Antiguidade tanto para os cursos de licenciatura,
como para o aperfeiçoamento de professores. 7

Vale mencionar que a presente proposta se inspira em outras experiências desse


tipo e que foram desenvolvidas em diversas universidades federais e estaduais
do Brasil. Logo, mencionamos, alguns exemplos, como as reflexões
desenvolvidas sobre Ensino de Antiguidade através dos livros didáticos pelo
Prof. Dr. Pedro Paulo Funari (UNICAMP), bem como as propostas de ensino pelo
cinema que são realizadas pela Profa. Dra. Raquel dos Santos Funari (Pós-
doutoranda do MAE/USP). Ademais, devemos recordar dos projetos da UNESP
– Assis, coordenados pela Profa. Dra. Andréa Rossi e as Oficinas Pedagógicas
em História Antiga. No âmbito da USP, há os projetos educativos em Arqueologia
Clássica que são coordenados pela Profa. Dra. Maria Beatriz Borba Florenzano
e pela Profa. Dra. Maria Isabel Fleming no Museu de Arqueologia e Etnologia.
Na UFRJ, salientamos as atividades promovidas pela Profa. Dra. Regina Maria
da Cunha Bustamante e pelo Prof. Dr. Deivid Valério Gaia sobre Antiguidade
Clássica, Oriental e os usos do passado. Destaca-se os trabalhos do Prof. Dr.
Guilherme Moerbeck e do Prof. Dr. André Bueno, na UERJ, no que tange as
reflexões que envolvem o Ensino de História Antiga. Em Minas Gerais,
ressaltamos os trabalhos no campo do Ensino de História Antiga que são
promovidos pelo Prof. Dr. Ygor Klain Belchior, no LEPHAMA / UEMG.

No Piauí, destacamos os eventos e publicações que são elaborados pelo Prof.


Dr. José Petrúcio de Farias Júnior – UFPI. Na UFRN/CERES, mencionamos os
trabalhos no campo do Ensino de História Antiga que foram promovidos pela
Profa. Dra. Airan Borges. Na UPE / Nazaré da Mata, ressalta-se os esforços do
Prof. Dr. José Maria Neto para promoção do Ensino de História Antiga, em
especial com foco no Teatro Grego.

Na UFPR, os trabalhos da Profa. Dra. Renata Senna Garraffoni para o Ensino


de História Antiga geraram diversos materiais que podem ser consultados pela
internet para uso em sala de aula. Destacamos os trabalhos do Laboratório de
Estudos sobre a Cerâmica Antiga (UFPEL), que é coordenado pela Profa. Dra.
Carolina Kesser Barcellos Dias e o Prof. Dr, Fábio Vergara. Ressaltamos os
trabalhos do GEMAM (UFSM) sob coordenação da Profa. Dra. Semíramis Corsi
Silva e os seus diversos projetos de extensão e ensino, entre eles mencionamos
os podcasts. Outro trabalho inspirador desenvolvido na UFSM é oriundo do
laboratório LASCA sob coordenação do Prof. Dr. André Soares, no âmbito de
cartilhas e maquetes para o Ensino de Pré-História.

Na UFMS, ressalta-se os trabalhos do Prof. Dr. Leandro Hecko – CPTL / UFMS


e o seu projeto de extensão do Museu Itinerante para o Ensino de Antiguidade.
Outra importante ação foi promovida pelo Museu de Arqueologia (MuArq), pois
desde 2008 veio elaborando projetos de educação patrimonial com foco no
Ensino de Pré-História, através dos seus antigos gestores Prof. Dr. Gilson
Rodolfo Martins e Profa. Dra. Emília Kashimoto, assim como por sua nova equipe
Profa. Ma. Lia Raquel Toledo Brambilla Gasques (UFMS), Profa. Ma. Laura
Roseli Pael Duarte (UFMS) e o Prof. Dr. Carlos Eduardo da Costa Campos
(UFMS / FACH). Ainda no cenário científico da UFMS, mencionamos as ações 8
do grupo de pesquisa ATRIVM / UFMS com suas publicações e ações visando
o Ensino de História Antiga. Todas essas experiências, como outras que não
foram listadas pela extensão do texto, revelam como o Ensino de Pré-História e
Antiguidade formam um espaço de reflexão crítica de temas caros ao mundo
contemporâneo, um locus de identificação e problematização de inúmeras
referências culturais – vistas, então, de modo mais amplo. Esta produção
pretende, portanto, unir-se a elas.

A presente obra também reflete ações de projetos desenvolvidos no contexto do


PIBID; dos Estágios Supervisionados; de Projetos de Extensão e Pedagógicos;
bem como reflexões teóricas sobre Pré-História e Antiguidade. Em linhas gerais,
os textos revelam inquietações e são propositivos no que diz respeito a defesa
de novas práticas para o ensino das áreas abordas nessa publicação.

Campo Grande, 16 de maio de 2021.


Prof. Dr. Carlos Eduardo da Costa Campos
Prof. Dr. Luis Filipe Bantim de Assumpção.
ENSINO DE PRÉ-HISTÓRIA ATRAVÉS DE MAQUETES
André Luis Ramos Soares

O Laboratório de Arqueologia, Sociedades e Culturas das Américas- LASCA, foi


9
oficialmente criado em outubro de 2019. Para sua inauguração, apresentamos
uma exposição a Trajetória da Arqueologia no Estado do Rio Grande do Sul. Um
dos elementos didáticos utilizados na exposição são as maquetes que
representam modelos em escala sobre as antigas sociedades que habitaram o
território que hoje é o estado mais meridional do país. Para a exposição, foram
utilizadas cinco maquetes, com o intuito de demonstrar a diversidade dos povos
do passado, sua cultura material e alguns hábitos e costumes que foram
possíveis de serem encenados.

A aplicação das maquetes na área da educação é bastante promissora para


construção e o desenvolvimento do processo do conhecimento, pois tornam
mais dinâmicas as relações entre corpo discente e corpo docente, envolvendo
um grande número de pessoas no âmbito escolar. Evidentemente, esses
instrumentos lúdicos não abrangem toda a complexidade que envolve o
processo educativo, mas podem contribuir para melhorar e facilitar a
aprendizagem, trazendo o ensino para um ramo ou uma área onde o educando
já tem familiaridade (WESTON; WESTON, 2000).

Na construção do conhecimento, as maquetes proporcionam a visualização


concreta das representações dos acontecimentos históricos, tipologias
arquitetônicas, acidentes geográficos, fenômenos climáticos e ambientais, entre
outros. O recurso audiovisual é algo que se por si só possui uma carga de
informações, permitindo às pessoas entender e contextualizar com maior
facilidade o que se está sendo tratado (SOARES et al., 2014). Também, elas
desempenham um papel importante enquanto instrumento de “representação do
espaço”, pois, ao reproduzir tridimensionalmente elementos que os desenhos
bidimensionais não são capazes de explicitar, tornam-se muito eficazes para a
compreensão das proporções e das diversas relações que ocorrem em
determinado local.

Assim, propõe-se a construção de materiais didáticos que contribuam para o


desenvolvimento crítico do educando, fazendo com que ele participe e busque
suas informações nas mais variadas fontes e tenha acesso a diferentes
linguagens relativas aos temas e assuntos trabalhados. (ROCKENBACH et al.
2002).

Entende-se por maquete uma representação tridimensional real, em escala


exata ou aproximada (utilizando-se redução ou ampliação do objeto real), com
funções, objetivos, materiais, acabamentos e características variadas. Uma
maquete completa, em relação ao sítio, deve reproduzir o terreno, área ou região
onde está ou será inserido o projeto, levando-se em consideração que esse local
é formado por elementos como relevo, vegetação, áreas de circulação, acessos,
limites, etc. Em relação à arquitetura, devem reproduzir de forma precisa todos
os detalhes da edificação em questão, com a preocupação de representar suas
fachadas e cobertura (quando se limita a mostrar detalhes externos) ou ainda os
compartimentos e suas funções (quando, além do exterior, mostra os detalhes
internos). Ainda, para uma correta apresentação, há preocupação com
tratamento de superfícies, representação dos tipos de vegetação e de 10
pavimentação.

As maquetes são um recurso bastante conhecido em diversas licenciaturas. Em


se tratando das maquetes do LASCA, procuramos representar situações ou
estruturas que são conhecidas pelos arqueólogos ao tratar dos povos que
habitaram a região anteriormente aos europeus. Alguns elementos devem ser
colocados para a realização destas maquetes: 1º - procuramos recriar um
cotidiano baseado nas informações arqueológicas, históricas, etnográficas, entre
outras, de sociedades que se reproduziram de forma similar em uma “longa
duração” braudeliana; 2º - isto significa que as sociedades retratadas tem
duração de pelo menos, 2º - Em nenhuma maquete se buscou reproduzir um
sítio arqueológico específico, mas reunimos todas as informações sobre as
culturas representadas para uma melhor compreensão; 3º- Utilizamos uma
escala padronizada de 1:50 para podermos dar condições de comparação entre
as sociedades e seus distintos territórios (com exceção de uma que será
explicada mais tarde).

É de suma importância, para a confecção de uma maquete, a utilização de uma


escala apropriada, que é a relação de dimensões entre o objeto real e o objeto
representado, fazendo-se válida a utilização de elementos que auxiliem na sua
percepção, como calungas, automóveis e mobiliário urbano. Os calungas
(personagens que compõem a maquete) são usados para humanizar esses
projetos e ajudam ter uma ideia de proporções ou “escala humana”. Assim,
devido aos temas e a mobilidade no transporte das maquetes, todas têm um
suporte de 50 cm x 50 cm, e alturas variadas, conforme a representação.

O uso de recursos visuais, como vídeos, fotos, filmes, entre outros, tem sido
fartamente utilizado para o ensino de História (e pré-História). Utilizamos as
maquetes como modelos hipotéticos em escala para, a partir do apelo visual,
questionar aos educandos, o que eles observam na maquete. Como as mesmas
são construções com um grande número de informações, permitimos sempre
que as colocações dos educandos venham antes das explicações,
oportunizando assim um diálogo entre a dúvida, que denuncia o espírito
investigativo, e o saber científico sistematizado de acordo com o público alvo do
momento de utilização da maquete. Como as maquetes geralmente são
acompanhadas de réplicas da cultura material de cada uma das sociedades
apresentadas, os educandos podem manipular as reproduções sem risco ao
patrimônio arqueológico. Em contrapartida, somente a cultura material sem uma
percepção espacial do sítio arqueológico, fica um tanto quanto limitada. Isso
porque quando mostramos a paisagem atual as sociedades não aparecem, e
quando olhamos reconstruções em desenhos a percepção espacial também fica
prejudicada. Assim, a maquete, que são construções sobre um suporte de feito
de placa de esferovite (isopor) em dimensões de 50 x 50 cm, tem alturas
variantes de acordo com o espaço retratado.

A construção das maquetes é realizada a partir de uma pesquisa bibliográfica


exaustiva, buscando elementos que possam ser visualizados e/ou 11
materializados em escala e 3 dimensões. Assim, as maquetes não possuem
pássaros, por questão de escala, mas animais de médio ou grande porte podem
ser representados na escala de 1:50. Da mesma forma, como as maquetes se
tratam de um “presente etnográfico” não podemos reproduzir rituais, por
exemplo, mas sim os enterramentos, quando temos estas informações. Os
materiais utilizados são desde sucatas, até materiais orgânicos (galhos de
árvores) ou inorgânicos (espuma de louça, vidro, massa de biscuit).

A primeira maquete construída para o ensino do período denominado de Pré-


História foi chamada “diferenças entre Arqueologia e Paleontologia”. A cidade de
Santa Maria fica na depressão central do estado do Rio Grande do Sul, sobre
um longo trecho sedimentar onde a ocorrência de fósseis de dinossauros são
comuns. O modelo mostra a distância temporal entre os dinossauros e os
primeiros humanos, bem como apresenta a paisagem na região há 120 milhões
de anos (M.A.). Esta maquete, que abre a exposição, busca falar de tempo
histórico e tempo profundo, a diversidade de animais na região durante o
Cretáceo, o surgimento da humanidade há 5 M.A. e o breve intervalo entre o
surgimento da Humanidade e a atualidade em comparação com a distância
temporal entre dinossauros e humanos. Tudo isso é representado por estratos
de cores diferentes que ocupam a maquete. No ‘piso inferior’ os dinossauros,
muito acima deles os primeiros hominídeos e no topo da maquete os dias atuais.
Embora a questão da linha do tempo para as crianças seja sempre assunto
complexo, ao falar de anos, décadas, séculos ou milênios, a abstração de falar
em tempo profundo e milhões de anos requer ainda mais cuidado para diminuir
as dúvidas, e não as ampliar. Assim, tratar do tempo é fundamental para explicar
que paleontólogos trabalham com dinossauros e arqueólogos pesquisam
sociedades humanas, muito distantes no tempo.

Maquete diferença entre Arqueologia e Paleontologia. Fonte: Laboratório de


Arqueologia, Sociedades e Culturas das Américas -LASCA

A segunda maquete representa os caçadores coletores dos Cerritos, grupo que


habitava a pampa sul riograndense, assim como as planícies do Uruguai. Estas
pessoas erguiam montes de terra artificiais, em áreas alagadiças ou não, e
presume-se que utilizavam os montículos para enterrar seus mortos mais
importantes, as lideranças. Nesta maquete discutimos, em primeiro momento, a
classificação de ‘grupos caçadores’, como no livro “Sociedades Tribais”, de
Marshal Sahlins. O senso comum aponta para grupos nômades vivendo sem
organização politica, os bandos. Mas ao nos depararmos com estruturas 12
artificiais, de terra, utilizadas para o enterro de uma liderança, seriam estes
bandos tão desorganizados? Os Cerritos no estado possuem entre 1 metro e 3
metros de altura, sendo os mais altos com 7 metros de altura, no Uruguai. O
diâmetro poderia ser de 10 metros a 30 metros. Isso envolve milhares de metros
cúbicos de terra para a construção deste monte artificial. Estas e outras
questões são levantadas para sugerir a reflexão sobre as sociedades
tradicionais no passado. Então, quando falamos em sociedades caçadoras,
damos a ideia de sociedades tecnologicamente primitivas, ao passo que isso é
um erro, pois estes grupos já construíam estes lugares tão somente para servir
de enterramento. Embora as datações dos cerritos sejam entre 2.000 e 2.600
anos atrás, muitos arqueólogos acreditam que estes povos são os antepassados
dos índios Charrua e Minuano, que habitavam esta região. Sua cultura material,
de pontas de flecha de pedra, eventualmente são complementadas com uma
cerâmica decorada. Outros artefatos como bolas de boleadeira e almofarizes
compõe a cultura material.

Maquete de um cerrito. Fonte: Laboratório de Arqueologia, Sociedades e


Culturas das Américas -LASCA

A próxima maquete representa os povos litorâneos construtores de Sambaquis.


Os sambaquis são montes de conchas, restos de alimentação e solo, que
abrigavam sepultamentos ou mesmo local de moradia temporária. Espalhados
desde o litoral do Rio Grande do Sul até o Rio de Janeiro, os sambaquis marinhos
são os mais conhecidos, mas sabemos também de outros próximos aos rios.
Embora as datações remetam a quase 6.000 anos atrás, os mais recentes
poderiam ter sido abandonados há somente 500 anos. Vivendo de caça, da
pesca e da coleta de animais marinhos, estes grupos enterravam seus mortos
nestes montes de conchas, navegavam em canoas e caçavam até tubarões. Sua
cultura material compreendia trançados vegetais, inclusive redes, anzóis, uso de
ossos para artefatos, e a presença de zoólitos, esculturas em pedra em forma
de animais, peixes ou seres humanos. Presente nos enterramentos nos
sambaquis, seu uso ainda é uma incógnita. Também nos sambaquis
encontramos arte rupestre, com motivos geométricos, nos paredões de basalto
de Santa Catarina, onde também podemos encontrar oficinas líticas onde
produziam artefatos polidos. Não há uma explicação definitiva sobre por que 13
razão construíam os sambaquis, mas uma hipótese seria a demarcação do
território por estes grupos.

Maquete de Sambaqui. Fonte: Laboratório de Arqueologia, Sociedades e


Culturas das Américas -LASCA

Para falar dos povos horticultores, apresentamos a maquete de Casas


Subterrâneas, como são conhecidas as estruturas associadas a Tradição
Arqueológica Taquara. Presentes nas altitudes mais altas do sul do Brasil,
tratam-se de estruturas cavadas no solo, tendo a casa o seu assoalho rebaixado
e o telhado muito provavelmente na altura do solo. Além da adaptação ambiental
ao clima frio das florestas de Araucária, estes povos utilizavam ainda os recursos
de caça, pesca e a horticultura incipiente, inclusive com o plantio do milho, entre
outros. Os artefatos mais recorrentes são os talhadores em pedra, mãos de pilão
em basalto, almofarizes e a cerâmica conhecida pelos arqueólogos como
Tradição Taquara. Trata-se de uma cerâmica de proporções pequenas (as
poucas peças inteiras não ultrapassam 30 cm de altura e 20 cm no diâmetro de
boca) com tratamento de superfície decorado por incisões com unha, marcas de
pente, ou esteiras. As datas mais antigas giram ao redor de 2.500 anos atrás.
Por outro lado, também sabemos que as datas mais recentes são ao redor de
200 anos atrás, e os indígenas Kaingang reivindicam estas construções aos seus
antepassados. Neste sentido, é importante destacar a continuidade entre as
sociedades tradicionais do presente e do passado.
14

Maquete de Casa Subterrânea. Fonte: Laboratório de Arqueologia, Sociedades


e Culturas das Américas –LASCA

As duas últimas maquetes tratam dos povos que a Arqueologia chama de


Tradição Guarani, associada aos grupos históricos que conhecemos como
Guaranis, com suas várias parcialidades, sua extensão territorial desde o
Paraguay até a Argentina, passando pelos estados de São Paulo, Paraná, Santa
Catarina, e também no Uruguai. Dado as dimensões das aldeias Guaranis e para
manter a fidelidade da escala, confeccionamos duas maquetes, uma em escala
1:50 e outra em 1:1000. A escala maior permitiu mostrar o manejo agroflorestal,
a aldeia em toda sua extensão, bem como a inserção desta sociedade no
território. O elemento mais diagnóstico da Arqueologia Guarani são as vasilhas
cerâmicas elaboradas para diversos fins, como panelas, tigelas, pratos, talhas,
tigelas para beber, etc. Através do cruzamento entre dados históricos e
arqueológicos sabemos quais vasilhas cumpriam as funções de cozinhar
alimentos, servir, ou fermentar bebidas. Os artefatos líticos mais conhecidos são
as lâminas de machado polido e o enfeite labial conhecido como tembetá.
Presentes no estado desde o início da era Cristã, é possível acompanhar sua
trajetória pela arqueologia, depois pelos documentos históricos, passando pelas
Reduções jesuíticas até a atualidade. Na representação da maquete,
elaboramos uma pequena aldeia em construção, com detalhes sobre manejo
ambiental, construção das casas, bem como os usos da cerâmica.
15

Maquete de Casa Guarani. Fonte: Laboratório de Arqueologia, Sociedades e


Culturas das Américas –LASCA

O manejo agroflorestal é um detalhe importantíssimo para tratar dos povos


horticultores, porque ainda são tratados como grupos seminômades ou
nômades, que vagueiam por um território. As informações etnoarqueológicas,
antropológicas e históricas apontam que estes grupos manejavam o território,
inserindo plantas para diversos fins, e com uso planejado para consumo
imediato, de curto, médio ou longo prazo. Então, a floresta como conhecemos é
resultado de um manejo agroflorestal que incluíam madeiras para diversos fins
(construção de casas, de canoas, de arcos), árvores frutíferas (que poderiam
demorar entre 3 a 5 anos para dar frutos), ou arbustos e plantas medicinais.
Desta maneira, o que a maquete apresenta é um trabalho de longa elaboração
florestal para consumo entre meses e décadas. Ao invés de grupos nômades,
temos uma circulação em um território manejado culturalmente com vistas a
longo prazo. Na foto abaixo,podemos distinguir as áreas de floresta densa, de
roçado e de reconstrução da floresta, já com plantas de uso futuro.
16

Maquete aldeia Guarani. Fonte: Laboratório de Arqueologia, Sociedades e


Culturas das Américas –LASCA

Quando falamos em sítios arqueológicos, ou arqueologia, ou ensino de


arqueologia ou de pré-história, a remissão mais frequente são povos extintos ou
do passado que não encontram mais representantes na atualidade, somente
como antepassados ou herança cultural. No caso do ensino de pré-história do
Estado do RS, como mormente a pré-história do Brasil, muitos povos do passado
arqueológico permanecem vivos nas aldeias e grupos atuais. Assim, ao tratar
dos povos do passado e nos remeter aos povos do presente, estamos falando
de sociedades tradicionais que ocupam o território desde muito tempo antes da
chegada dos primeiros europeus.

Então, quando nos referimos ao ensino de pré-história através de maquetes,


estamos colaborando para uma visão de diversidade e pluralidade desde os
tempos remotos. Ao mesmo tempo, optar por usar termos como “sociedades
tradicionais” ou “povos originários” para apresentar suas diferenças culturais,
sociais, ambientais, políticas, econômicas, entre outras. Ao apresentarmos as
maquetes e os povos, através de sua cultura material, os modelos em escala
permitem visualizar algo em 3 dimensões, ao mesmo tempo em que permite
utilizar da imaginação quando descrevemos o cotidiano, os rituais, etc.

Acreditamos que as maquetes são um ferramental útil e pouco explorado no


ensino de pré-história no estado do Rio Grande do Sul, e o Laboratório de
Arqueologia, Sociedades e Culturas das Américas, além de proporcionar estes
modelos, ainda possui oficinas ligadas a estes grupos, como oficina de arte
rupestre, oficina de arco e flecha, oficina de confecção de cerâmica, que é
assunto para outro artigo.
Referência biográfica
Dr. André Luis Ramos Soares, professor na Universidade Federal de Santa
Maria – UFSM.

Referências bibliográficas
ROCKENBACH, Denise; MARQUETI, Elza; ALVES, Glória; CUSTÓDIO, 17
Vanderli. Série Link do Espaço. Suplemento do Professor. São Paulo: Moderna,
2002.

SOARES, André Luis Ramos; ROSA, Andrielli Matos da; VEDOIN, Carolina
Bevilacqua; CORREA, Thaise Vanise. Dinamicidade no Ensino Formal: Resgate
Histórico através de Maquetes. História e Diversidade [Recurso eletrônico]
Dossiê: Ensino de História e História da Educação: caminhos de pesquisa (Parte
II) - [2014/II]. Revista do Departamento de História. Cáceres, UNEMAT, vol. 5, nº
2 (2014) Disponível em:
https://periodicos.unemat.br/index.php/historiaediversidade/article/view/223/21,
último acesso 10/11/2019. Pg. 53-69.

WESTON, Mark S. WESTON, Denise Chapman; Aprender Brincando: Atividades


para construir o caráter, a consciência e a inteligência emocional das crianças;
Ed. Paulinas, São Paulo, SP, 2000.
A MORTE NO PASSADO E A VIDA NO PRESENTE:
CONTRIBUIÇÕES DO ESTUDO DA VARIABILIDADE
DAS PRÁTICAS FUNERÁRIAS
Camila Diogo de Souza
18

O TAPHOS (Grupo de Pesquisa em Práticas Mortuárias no Mediterrâneo Antigo)


foi idealizado em 2013 e oficializado em 2014 e corresponde ao primeiro grupo
de estudos sobre as práticas funerárias fundado no quadro acadêmico
universitário brasileiro. Sediado no Museu de Arqueologia e Etnologia da
Universidade de São Paulo (MAE/USP) e cadastrado no CNPq
(dgp.cnpq.br/dgp/espelhogrupo/4265354749556773), o grupo visa a
interdisciplinaridade, a interlocução e a colaboração dos pesquisadores
especialistas brasileiros e internacionais nas mais diversificadas áreas do
conhecimento que contemplam abordagens e perspectivas teórico-
metodológicas variadas de estudos sobre a morte, os mortos e o morrer e sobre
os contextos funerários em sociedades do passado, da Proto-história do
Mediterrâneo e da denominada Antiguidade, como por exemplo, Arqueologia,
História, Filologia, Epigrafia, Bioarqueologia, Antropologia Biológica ou
Bioantropologia, Zooarqueologia, Biologia, Historiadores da Arte, Iconografia,
Antropólogos socioculturais, etc. (BINFORD, 1971; BUIKSTRA & BECK, 2006;
GOWLAND & KNÜSEL, 2006; O’SHEA, 1984; PEARSON, 2002; RIBEIRO,
2007; SILVA, 2014; SOUZA, 2011, 2018, 2019, 2020A, 2020C; UCKO, 1969) O
caráter multifacetado do registro material e textual das práticas funerárias
evidencia a necessidade da interdisciplinaridade na busca de uma compreensão
mais profícua e abrangente das ações humanas em relação à morte.

Antes de discorrer sobre as perspectivas teóricas e abordagens metodológicas,


os objetivos, as atividades e os resultados que o grupo de pesquisa tem
alcançado durante todos esses anos que nos permite refletir sobre a interação
entre a prática acadêmica universitária com a sociedade, algumas questões
primordiais emergem, sobretudo, no contexto mundial atual em que vivemos.

- Qual o sentido e – utilizando a linguagem produtivista atual – quais os produtos


do estudo das sociedades do passado?
- Qual a utilidade em obter recursos materiais, financeiros e humanos para se
realizar pesquisa acadêmica sobre aspectos da denominada Proto-história e
Antiguidade no Brasil?
- O que o estudo das práticas mortuárias das sociedades do passado tem a ver
conosco, com a nossa realidade?
- Por que e para que serve, afinal, “estudar os mortos” de sociedades tão
distantes temporal e espacialmente de nós?

Na tentativa de elucidar tais questões, propomos trazer para discussão um caso


recente postado na mídia e rede social facebook. No dia 25 de setembro de
2020, um grupo denominado “regia anglorum” (http://www.regia.org/) postou
uma atividade que chamou a atenção de um grande público. O grupo se
autodefine como “um grupo de história viva anglo-saxão, viking e normando”
formado por “amigos que se reúnem em fins de semana privados, shows
públicos, filmagens e promoções em todo o Reino Unido, com uma adesão
crescente aos EUA”, e conclui que “o que fazemos e é empolgante, cativante,
educacional, divertido” (https://www.facebook.com/regiaanglorum/. Tradução 19
nossa).

Em uma das atividades promovidas pela comunidade, os membros da


comunidade, homens, mulheres, crianças e até os animais de estimação foram
incentivados e desafiados a postarem fotos que simulassem seus túmulos,
inserindo objetos que fizessem parte do cotidiano e que cada um gostaria de
levar para o “além”
(https://www.facebook.com/regiaanglorum/posts/1434434423428532):

“Quem disse que você não pode levar isso com você?
Muito sobre o que sabemos a respeito da Idade Média vem dos achados das
sepulturas. Quando os mortos foram escondidos na terra, eles foram enterrados
com muitos dos itens que podem ter sido utilizados na sua vida cotidiana.
Enquanto essa tradição morreu após a cristianização, nossos membros se
divertiram imaginando que tipo de coisas do dia a dia eles levariam consigo para
a vida após a morte. Alguns dos nossos animais de estimação precisam de mais
prática para se fingir de mortos” (Tradução nossa).

As fotos postadas, tiradas pelos membros que participaram do desafio, incluem


uma variedade de atitudes dos vivos em relação à morte – neste caso, suas
próprias – que revelam diferentes posições desejadas para o “sepultamento”
como por exemplo, deitado de costas (decúbito dorsal) com os membros
inferiores estendidos e os superiores semiflexionados (Figura 1) ou deitado
sobre o lado (decúbito lateral) direto (Figura 2) ou esquerdo (Figura 3) do “morto”
com os membros superiores e inferiores flexionados e uma variedade enorme
dos objetos que seriam depositados para acompanhar seus corpos, desde arma
de fogo e livros (Figura 1), instrumentos musicais (Figura 2) e referentes à
atividade de tear (Figura 3), até animais de estimação (gato) (Figura 2), ou bichos
de pelúcia (Figura 3).
20

Figura 1. Grupo regia anglorum, foto post no facebook


(https://www.facebook.com/regiaanglorum/photos/pcb.1434434423428532/143
4431293428845).

Figura 2. Grupo regia anglorum, foto post no facebook


(https://www.facebook.com/regiaanglorum/photos/pcb.1434434423428532/143
4467670091874).
21

Figura 3. Grupo regia anglorum, foto post no facebook


(https://www.facebook.com/regiaanglorum/photos/pcb.1434434423428532/143
4431243428850).

Figura 4. Grupo regia anglorum, foto post no facebook


(https://www.facebook.com/regiaanglorum/photos/pcb.1434434423428532/143
4431176762190).

As últimas imagens apresentadas na postagem correspondem a animais


domésticos, cachorros, que teriam simulados seus próprios sepultamentos
(Figura 4), enterrados com seus brinquedos.
Independentemente do grupo referir-se a um recorte histórico distinto daquele
tratado aqui, o que queremos destacar e analisar é o potencial da atividade que
foca no evento da morte, do morrer, para refletir sobre como as pessoas se
relacionam, em última instância, com a vida, com o mundo material, os objetos
que fazem parte do seu cotidiano e que configuram suas identidades pessoais e 22
seus papéis sociais (como por exemplo, de gênero e/ou etário, suas atividades
profissionais e/ou hobbies) e com seus próprios corpos. Além disso, podemos
apontar ainda que as formas de lidar com a morte também se caracterizam pelas
relações com os demais indivíduos e com os animais, criando um mundo
complexo de valores pessoais e culturais que definem e constroem os
parâmetros da dinâmica das interações entre as pessoas com o mundo material
e das pessoas entre si.

Todas as pessoas estão vestidas. Todas elas, a despeito do gênero, da idade


ou dos objetos que acompanham as pessoas, portam algum tipo de cobertura
tanto na parte superior quanto inferior do corpo. Contudo, nas fotos apresentadas
neste breve artigo, um dos “corpos” está com os pés expostos, nus, um com
meia e o outro com meia e sapato. O retriever não apresenta nenhuma
vestimenta e nenhum objeto que possa servir como tal.

Uma constatação, a priori, trivial como essa – o porte generalizado de


vestimentas, roupas – permite-nos levantar hipóteses interpretativas, a
posteriori, que nos revelam sobre um costume cultural universal dos indivíduos
inseridos em uma determinada sociedade e não enquanto um hábito ou vontade
individual.

Não nos cabe – nem há espaço aqui neste texto – esmiuçar todas as
possibilidades de análise que podemos realizar, argumentos e hipóteses
interpretativas que podemos levantar por meio da comparação entre as fotos.
Nosso objetivo é enfatizar que tal atividade possui uma aplicabilidade didática
prática em demonstrar de forma explícita as relações entre os vivos e os mortos
(D’AGOSTINO, 1985; PEARSON, 1993).

A morte constitui um fato biológico, social e cultural (SOUZA, 2011, 2018, 2019,
2020a). Enquanto fato biológico, o encerramento das atividades vitais do
indivíduo gera vestígios físicos que correspondem às transformações e
redefinições do corpo humano com o processo inevitável de decomposição.
Enquanto fato social, há necessariamente uma transformação dos papéis que
os indivíduos possuem na sociedade a partir do momento em que ocorre a morte
biológica. Por exemplo, o morto não irá mais atuar como homem, marido, pai,
filho, tio, professor, coordenador etc. Suas identidades sociais são modificadas
e seus papéis redefinidos enquanto morto. Finalmente, enquanto fato cultural,
os vestígios biológicos da morte (o corpo do morto) e os papéis sociais dos
indivíduos em vida são apropriados e processados culturalmente pelos vivos e
essas apropriações podem-se adquirir formas simbólicas de poder e valores
sociais e podem também constituir vetores de ações rituais que integram um
corpo de crenças formativo da cosmogonia das sociedades (BELL, 2009;
MORRIS, 1987, 1992).

Morrer torna-se, assim, um processo social em que as ações dos participantes


possuem um duplo aspecto; são convencionalizadas e padronizadas e,
simultaneamente, são performáticas e fenomenológicas, isto é, cada execução 23
das práticas mortuárias é única no tempo e no espaço. Além disso, elas são
dotadas de intenção, escolha, tem objetivos e finalidades que são resultados de
um determinado contexto ideológico e histórico (BELL, 1991, 2009; MORRIS,
1992; ROBB, 2013). As práticas sociais e culturais humanas em torno da morte,
possuam ou não carácter ritual, ideológico e/ou até mesmo criminal com a
violência, abandono e ocultação do corpo do morto, resultam em vestígios –
resíduos – materiais, incluindo registros literários e iconográficos das ações dos
vivos, que constituem fontes e objetos de estudo da Arqueologia Funerária
(GOWLAND & KNÜSEL, 2006; RIBEIRO, 2007; SILVA, 2014; SOUZA, 2011).

Tais constatações que, também possuem um caráter óbvio à primeira vista,


revelam uma característica fundamental das relações entre os vivos e os mortos
e dos significados das práticas mortuárias: elas são realizadas pelos vivos. Se
voltarmos no exemplo da postagem do regia anglorum no facebook, verificamos
que o membro canino que “participou” da atividade (Figura 4) não “escolheu” os
objetos que seriam enterrados consigo. Em primeiro lugar, pelo fato de ser um
animal doméstico, um cachorro e, consequentemente, não ser dotado de
vontade própria e nem de habilidades cognitivas racionais que o permitem
simular e imaginar uma situação hipotética sobre sua própria morte. Em
segundo, – fato mais importante – o processo seletivo da estrutura e da
composição dessa situação hipotética é realizado pelos vivos, são seus donos
que escolheram colocar como acompanhamentos do “morto”, os brinquedos que
ele possuiu em vida, independentemente dos desejos, vontades e prioridades do
defunto. Como afirma o arqueólogo clássico Ian Morris, “a morte é tudo, menos
o fim” (MORRIS, 1897, p. 29. Tradução nossa).

Isto significa dizer que, na verdade, os significados dos vestígios materiais das
práticas funerárias são atribuições dos vivos, possuem usos, funções e são
“lidas”, decodificadas por aqueles que visualizam, compartilham e vivenciam os
mesmos códigos culturais em uma sociedade. As práticas funerárias servem,
atuam e interagem com o mundo dos vivos.

Trata-se de um campo fértil para exteriorização de desigualdades de natureza e


caráter diversificados nas sociedades (GOWLAND & KNÜSEL, 2006; SOUZA,
2018, 2019). Debruçarmo-nos sobre a compreensão dessas desigualdades nas
sociedades do passado, contribui para refletir sobre as desigualdades no
presente. O estudo das práticas mortuárias buscando a compreensão da
variabilidade contextual de sociedades do passado que lidaram de forma tão
diversificada com os mortos, a morte e o morrer em relação às atuais, às quais
estamos inseridos e imersos no mundo ocidental, possui, dessa forma, um papel
fundamental no entendimento dos nossos próprios valores, atitudes e valores em
relação à morte e aos mortos e, em última instância, aos valores sociais e
culturais que estruturam nossa sociedade.

Poderíamos dizer, até mesmo, que o estudo das práticas mortuárias possui uma
responsabilidade social maior enquanto campo acadêmico-científico no
processo de conscientização da atuação e integração política dos diversos 24
grupos sociais – tema, aliás, tão importante no cenário histórico atual. Além
disso, o estudo do passado promove a também a conscientização da herança e
do patrimônio histórico vernacular e, consequentemente, da conscientização da
história e da memória de grupos minoritários e marginalizados da sociedade.

Para citar apenas um exemplo que demonstra claramente as conexões entre


passado e presente e explicita a necessidade da interdisciplinaridade no estudo
das práticas mortuárias, expomos sumariamente de um dos relatos mais antigos
sobre epidemia, a denominada Peste ou Praga de Atenas ou Peste do Egito,
ocorrida na Grécia, entre 430 e 427 a.C., em plena Guerra do Peloponeso
(Tucídides, História da Guerra do Peloponeso, 2.48-54).

Tucídides descreve que a epidemia matou cerca de um quarto da população de


Atenas e teria atingido parte do Mediterrâneo oriental (Tucídides, História da
Guerra do Peloponeso, 2.48.1). O próprio escritor e o chefe político ateniense
Péricles também foram vítimas da doença e o alto índice de mortalidade foi
imenso devido ao despreparo e desconhecimento da doença, dos seus
sintomas, profilaxia e grau de contágio (LITTMAN, 2009). Contudo, os efeitos do
surto foram sentidos muito além das questões demográficas, envolvendo
aspectos socioculturais, religiosos, econômicos e políticos (MARTÍNEZ, 2017;
SOURVINOU-INWOOD, 2003). Os mortos eram cremados em grandes piras
funerárias que podiam ser vistas pelos inimigos espartanos que retiraram suas
tropas a fim de evitar o contato com os atenienses enfermos. Quando não eram
cremados nas piras funerárias, os mortos eram empilhados uns sobre os outros,
deixados para apodrecer ou jogados em valas comuns.

As leis tornaram-se mais rígidas, o comportamento e a moral dos cidadãos


mudaram com a iminência da morte certa causada pela epidemia e as práticas
funerárias também sofreram profundas alterações. O medo do contágio fez com
que muitos dos enfermos não recebessem cuidados apropriados, sobretudo os
indivíduos pertencentes às camadas menos abastadas da população ateniense
(Tucídides, História da Guerra do Peloponeso, 2.51). A situação precária de
higiene resultava no aumento do contágio e, consequentemente, das mortes.
Muitos edifícios sagrados, templos, acabaram servindo como local de refúgio e
acomodação para aqueles que não conseguiam obter cuidados médicos e
ficaram cheios de enfermos e mortos. As pessoas se sentiam abandonadas
pelos deuses e parecia não haver mais benefícios em adorá-los (Tucídides,
História da Guerra do Peloponeso, 2.50, 53).

As primeiras evidências arqueológicas sobre o evento histórico narrado por


Tucídides foram identificadas durante 1994 e 1995, quando escavações
conduzidas por Efi Baziotopoulou-Valavani, diretora da Terceira Eforia de
Antiguidades, durante obras de ampliações das estações do metrô realizadas
próximas ao antigo Cemitério do Cerâmico em Atenas, revelaram uma vala
comum contendo os remanescentes ósseos de aproximadamente 90 indivíduos
adultos e 10 crianças (AXARLIS, 1998). Os esqueletos encontravam-se
dispostos de forma completamente desordenada, sem preenchimento de terra 25
entre eles, indicando que teriam sido jogados na vala. Contudo, vários objetos
foram identificados com os corpos, sobretudo, vasos cerâmicos que permitiram
a datação da vala entre 430 e 426 a.C. (AXARLIS, 1998).

O agente patológico causador da epidemia ainda é alvo de um debate caloroso


entre os historiadores e bioarqueólogos, pois os sintomas da epidemia descrito
por Tucídides são comuns às manifestações de diversos agentes patológicos
(LITTMAN, 2009). Utilizando analogias etnográficas, comparando os sintomas
causados pelo vírus Ebola ou vírus de Marburg em surtos na África, alguns
pesquisadores sustentaram a hipótese de que não se tratava de uma bactéria,
mas sim uma doença viral (OLSON et al., 1996). Em 2005, o estudo
paleogenético de amostras das polpas de alguns dentes de indivíduos da vala
comum identificou sequências de DNA semelhantes às da bactéria denominada
Salmonella sorovar Typhimurium ou Salmonella Typhimurium, causadora de um
tipo de febre tifoide (PAPAGRIGORAKIS et al., 2006a, 2006b). Tal estudo foi
contestado pela metodologia utilizada, sustentando que análises de DNA antigo
não são precisas (SHAPIRO et al., 2006).

Este caso de epidemia na Antiguidade evidencia os inúmeros aspectos históricos


em relação às diversas formas como as sociedades, os vivos, lidam com os
impactos e as consequências biológicas e socioculturais causadas por eventos
excepcionais, como epidemias, alterando as práticas mortuárias, seus
significados e funções. Além disso, o caso apresentado também permite refletir
sobre os mais diversos tipos de documentação mortuária produzida e resultante
de eventos singulares como as epidemias.

A paleopatologia constitui uma área de conhecimento que busca identificar as


enfermidades biológicas e entender o impacto das patologias nos grupos
humanos, no comportamento das sociedades em relação a tais doenças e suas
consequências, como as alterações demográficas, nos costumes funerários e na
interação dos seres humanos com o meio ambiente (CAMPILLO, 2011;
ORTNER, 2003; ROBERTS & MANCHESTER, 1995). O estudo das doenças no
passado integra análises osteológicas humanas, documentação iconográfica e
literária. Nas análises ósseas, a “impressão” de determinados agentes
patológicos nos esqueletos humanos é restrita, sobretudo, das doenças
causadas por vírus que apresentam capacidade de mutação do material
genético muito superior em relação às bactérias. Apesar dos grandes avanços
nas análises paleogenéticas, a capacidade de reconstrução fidedigna das
sequencias de DNA antigo por meio dos recursos tecnológicos atuais ainda é
limitada, sobretudo, das sequências genéticas de vírus RNA que possuem alto
grau de mutação genética (SHAPIRO et al., 2006). Muitas doenças virais ou
condições patológicas, como doenças cardíacas, infecções agudas
gastrointestinais ou respiratórias, não ocasionam nenhum tipo de lesão – marca
– óssea e, portanto, não são visíveis neste tipo de registro arqueológico
(ORTNER, 2003).

Todas essas questões levantadas pelo paralelo com a Antiguidade, sobre o 26


comportamento dos vivos em relação aos mortos e às visões de morte e
concepções do morrer, os significados das práticas mortuárias, as mudanças
nos rituais funerários e nas atitudes dos vivos em relação aos mortos e aos
próprios vivos em situações em que a morte torna-se tão presente na vida
cotidiana de maneira brutal, com proporções gigantescas e incontroláveis como
os eventos epidêmicos, elucida inúmeros aspectos socioculturais e biológicos
sobre a situação de pandemia de Covid-19 que estamos vivendo e contribui para
pensarmos sobre as formas de lidar com ela. Trata-se de um diálogo profícuo e
dinâmico entre presente e passado, entre disciplinas e diferentes áreas de
conhecimento e, ainda, entre a pesquisa acadêmica e a sociedade em geral.

Retomando o início desse ensaio, gostaríamos de caminhar para as conclusões


dessas reflexões com alguns apontamentos sobre as atividades TAPHOS e
algumas considerações finais sobre os “produtos” dos estudos da Proto-história
e Antiguidade no Brasil. Desde 2014, o Grupo de pesquisa promove atividades
que visam a difusão para todos os públicos, como a realização de palestras
sobre as mais variadas abordagens do estudo das práticas mortuárias. Além
disso, também realizamos workshops e grupos de estudo para debate, a
capacitação e formação de recursos humanos nos diversos aspectos sobre os
estudos da “morte” para públicos diversos e, sobretudo, para professores da rede
pública de ensino.

Gostaríamos de encerrar este texto com a proposta de um experimento e de um


desafio para os professores de ensino fundamental e médio nesse nosso
contexto atual de adaptação do ensino e das estratégias e técnicas de
aprendizagem à realidade da pandemia da Covid-19. Trata-se de um exercício
semelhante à atividade desenvolvida pelo grupo regia anglorum postada no
facebook.

O professor solicita que os alunos – inclusive pertencentes a diferentes faixas


etárias – tirem fotos dos seus “sepultamentos” com os objetos que eles gostariam
de ser enterrados. No processo de discussão, as perguntas devem ser feitas
para todos os alunos. Elencamos aqui algumas sugestões: Por que você
escolheu tal posição do corpo para ser enterrado? Por que escolheu esses
objetos para serem “enterrados” com você? Por que esses objetos são
importantes? Quais os significados desses objetos? Quem – ou quais pessoas
– você acredita que depositará esses objetos serão com você? O que garantirá
que esses objetos serão “enterrados” com você? Haveria mudanças em relação
aos objetos se estivermos em uma situação de epidemia / pandemia como a que
estamos hoje? Na sua opinião, quais seriam essas mudanças? Como seriam as
sepulturas? Quais seriam os objetos depositados nelas? Etc. – outras perguntas
que o professor pode acrescentar segundo seu próprio público.

A partir de então, o docente pode comparar as respostas evidenciando as


semelhanças e as particularidades. Há diferenças entre as “sepulturas” dos
meninos (sexo masculino) e das meninas (sexo feminino)? Há objetos que são 27
comuns a todas as “sepulturas”? São eles objetos do cotidiano, usados no dia a
dia? Etc.

A comparação dos resultados da atividade com um exemplo do passado à


escolha do professor – como o caso da Peste de Atenas apresentado aqui, por
exemplo –, pode aproximar ainda mais a relação entre o mundo dos mortos e o
dos vivos à realidade cotidiana dos alunos e, também permite expandir o
potencial do exercício efetuado em sala de aula virtual, evidenciando e tornando
tangível aos alunos a importância dos estudos sobre as práticas mortuárias na
Antiguidade por meio de suas diversas abordagens, arqueológica, histórica,
iconográfica etc.

A comparação da variabilidade das atitudes humanas em relação aos mortos e


à morte dos exemplos do passado com os resultados do exercício proposto
efetuado no presente viabiliza a conscientização da diversidade cultural e da
compreensão da pluralidade da nossa própria realidade. Essa conscientização
pode se transformar em instrumentos e recursos para os agentes sociais lidarem
com as situações do presente. Neste sentido, o papel da academia no que diz
respeito aos estudos das práticas mortuárias na Antiguidade é contribuir para
que as diferenças culturais não legitimem as desigualdades sociais. Dessa
forma, tais estudos e sua aplicabilidade didática permitem buscar eliminar a
construção dessas desigualdades e, consequentemente, dos seus
desdobramentos em formas de intolerância e de violência.

Referências biográficas
Camila Diogo de Souza possui bacharelado em História pela Faculdade de
Filosofia, Letras e Ciências Humanas da Universidade de São Paulo
(FFLCH/USP), mestrado, doutorado e pós-doutorado em Arqueologia do
Mediterrâneo Antigo pelo Museu de Arqueologia e Etnologia da Universidade de
São Paulo (MAE–USP), pós-doutorado em Proto-histoire Égéenne na Maison
René Ginouvès (Archéologie et Ethnologie) da Université Paris-Nanterre,
França. Foi Professora Visitante do Centro de Antropologia e Arqueologia
Forense da Universidade Federal de São Paulo (CAAF/UNIFESP) (2017-2019)
e Pesquisadora Visitante com Pós-doutorado Sênior do Instituto de História da
Universidade Federal Fluminense (UFF) (2019-2020). É pesquisadora da École
Française d’Athènes (EfA) e coordenadora do Grupo de Pesquisas em Práticas
Mortuárias no Mediterrâneo Antigo (TAPHOS-CNPq), do Laboratório de Estudos
sobre a Cerâmica Antiga da Universidade Federal de Pelotas (LECA-UFPel) e
do Núcleo de Ensino e Pesquisa em Arqueologia e Antropologia Forense
(NEPAAF) do Laboratório de Estudos Arqueológicos (LEA) da Universidade
Federal de São Paulo (UNIFESP).
Referências bibliográficas
AXARLIS, N. Plague Victims Found: Mass Burial in Athens. Archaeology, online
News, April 15, 1998. Disponível em:
https://archive.archaeology.org/online/news/kerameikos.html
28
BELL, C. Ritual Theory, Ritual Practice. Oxford: Oxford University Press, 1991.

_____. Ritual Perspectives and Dimensions. Oxford: Oxford University Press,


2009.

BINFORD, L.R. Mortuary Practices: their study and their potential. In: Memoirs of
the Society for the American Archaeology. No. 25, Brown, J. Approaches to the
social dimension of mortuary practices. American Antiquity (36), 1971, p. 6-29.

BUIKSTRA, J.E.; BECK, L.A. (Eds.). Bioarchaeology: The Contextual Study of


Human Remains. Burlingtion: Academic Press, 2006.

CAMPILLO, D. Introducción a la paleopatología. Barcelona: Bellaterra, 2001.

D'AGOSTINO, B. Società dei vivi, comunità dei morti: un rapporto difficile. DA,
3(1), 1985, p. 47-58.

GOWLAND, R.; KNÜSEL, C. Social Archaeology of Funerary Remains. Oxford


Books, Alden Press: Oxford, 2006.

LITTMAN, R.J. The plague of Athens: epidemiology and paleopathology. The


Mount Sinai Journal of Medicine, New York. 76 (5), October, 2009, p. 456–467.

MARTÍNEZ, J. Political consequences of the Plague of Athens. Graeco-Latina


Brunensia. 22 (1), 2017, p. 135–146.

MORRIS, I. Burial and Ancient Society. The rise of the Greek city-state.
Cambridge: Cambridge University Press, 1987.

_____. Death-ritual and social structure in classical antiquity. Cambridge:


Cambridge University Press, 1992.

OLSON, P.E.; HAMES, C.S.; BENENSON, A.S.; GENOVESE, E.N. The


Thucydides syndrome: ebola déjà vu? (or ebola reemergent?). Emerging
Infectious Diseases 2, 1996, p. 155–156.

ORTNER, D. Identification of pathological conditions in human skeletal remains.


Academic Press: San Diego, 2003.

O’SHEA, J. M. Mortuary Variability; an Archaeological Investigation. Academic


Press, Orlando, 1984.
PAPAGRIGORAKIS, M.J.; YAPIJAKIS, Ch.; SYNODINOS, Ph.N.;
BAZIOTOPOULOU-VALAVANI, E. DNA examination of ancient dental pulp
incriminates typhoid fever as a probable cause of the Plague of Athens.
International Journal of Infectious Diseases. 10 (3), 2006a, p. 206–214.
29
_____; _____; _____; _____. Insufficient phylogenetic analysis may not exclude
candidacy of typhoid fever as a probable cause of the Plague of Athens (reply to
Shapiro et al.). International Journal of Infectious Diseases. 10 (4), 2006b, p.
335–336.

PEARSON, M.P. The Powerful Death: Archaeological Relationships between the


Living and the Dead. Cambridge Archaeological Journal, 3(2), 1993, p. 203-229.

_____. The Archaeology of Death and Burial. Texas A&M University Press, 3rd
print, 2002.

RIBEIRO, M.S. Arqueologia das Práticas Mortuárias: uma abordagem


historiográfica. São Paulo: Alameda, 2007.

ROBB, J. Creating Death: An Archaeology of Dying. In: STUTZ, L.N.; TARLOW,


S. (eds.). The Oxford Handbook of the Archaeology of Death and Burial. Oxford:
Oxford University Press, 2013.

ROBERTS, C.; MANCHESTER, K. The archaeology of disease. Ithaca, New


York: Cornell University Press, 1995.

SHAPIRO, B. RAMBAUT, A.; GILBERT, M.; THOMAS P.; et al. No proof that
typhoid caused the Plague of Athens (a reply to Papagrigorakis et al.).
International Journal of Infectious Diseases. 10 (4), 2006, p. 334–335.

SILVA, S.F.S.M. Arqueologia Funerária: corpo, cultura e sociedade. Ensaios


sobre a interdisciplinaridade no estudo das práticas mortuárias. Recife:
PROEXT-UFPE & Ed. Universitária da UFPE, 2014.

SOFAER, J.R. The body as material culture: a theoretical osteoarchaeology.


Cambridge: Cambridge University Press, 2006.

SOURVINOU-INWOOD, Chr. Tragedy and Athenian Religion. Lexington Books,


2003.

SOUZA, C.D. de. As Práticas Mortuárias na região da Argólida entre os séculos


XI e VIII a.C. São Paulo: Museu de Arqueologia e Etnologia; Imprensa Oficial,
2011.

_____. Considerations about burials and funerary practices in Geometric Argos,


Greece (from ca. 900 to 700 B.C.E.). In: ROCHA, L.; BUENO‐RAMIRES, P. &
BRANCO, G. (Eds.). Death as Archaeology of Transition: Thoughts and
Materials. Papers from the II International Conference of Transition Archaeology:
Death Archaeology, 29th April – 1st May 2013. BAR International Series 2708.
Oxford: Archaeopress, p. 307-318, 2015.

_____. A morte lhe cai bem. Reconsiderando o significado do mobiliário funerário 30


na construção do prestígio social. In: RODRIGUES, C.; NASCIMENTO, M.R. do
(eds.). Arqueologia Funerária, Performance, Morte e Corpo. REVISTA M. –
Dossiê 6: v. 3, n. 6, jul. /dez. UNIRIO, 2018, p. 263-187.

_____. Aspectos da construção do espaço funerário no mundo Grego do Período


Geométrico (entre 900 e 700 a.C.). / Aspects of the construction of the funerary
space in the Greek world during the Geometric Period (from ca. 900 to 700 B.C.).
In: FLORENZANO, M.B.B. (org.). Khoríon - . Cidade e Território na
Grécia Antiga. São Paulo, FAPESP, Intermeios, p. 261-306, 2019.

_____. Os rituais funerários na Grécia Antiga: construindo a memória (i)material.


In: SOUZA, C.D. & SILVA, M.A.O. (orgs.). Morte e Vida na Grécia Antiga: olhares
interdisciplinares. Teresina: Editora da Universidade Federal do Piauí (EDUFIP),
p. 312-339, 2020a.

_____. “Ser ou não ser grego: morte e identidade na Grécia Antiga”. In: COSTA,
P.F.; BAREL, A.B.D.; COSTA, A.C. (orgs.). Cadernos da Casa-Museu Ema
Klabin. São Paulo: Fundação Ema Klabin, p. 183-195, 2020b.

_____. Aprendendo e ensinando com as ‘coisas’: a Arqueologia e a sala de aula”


In: BUENO, A.; CAMPOS, C.E.C.; ASSUMPÇÃO, L.F.B. (org). Falas na Rede.
Ensino e Pesquisa em História e Educação. Rio de Janeiro: Sobre Ontens Edição
Especial. Ebook 2020/UERJ, p. 23-34, 2020c.

TUCÍDIDES, História da Guerra do Peloponeso, 2.48-54. Tradução/edição


utilizada: THUCYDIDES. History of the Peloponnesian War, Volume I: Books 1-
2. Translated by C. F. Smith. Loeb Classical Library 108. Cambridge, MA:
Harvard University Press, 1919.

UCKO, P. Ethnography and the Archaeological Interpretation of Funerary


Remains. WorldArch 1.2, 1969, p. 262-80.
ENSINO DE PRÉ-HISTÓRIA E AS AÇÕES DO MUSEU
DE ARQUEOLOGIA DA UFMS DURANTE A PANDEMIA
DE COVID 19 – PARTE 1
Carlos Eduardo da Costa Campos
31

Em nosso texto, apresentaremos, em forma de relato de experiências, as ações


de ensino, pesquisa e extensão que foram desenvolvidas em 2020, no contexto
pandêmico, pelo Museu de Arqueologia da UFMS com foco na arqueologia, na
história e no ensino de Pré-História. Assim, cabe ressaltar que o texto foi dividido
em duas exposições, que integram ações da mesma equipe, nesse evento: parte
-1 desenvolvida pelo Prof. Dr. Carlos Eduardo da Costa Campos (UFMS); parte
2- desenvolvida pela Profa. Ma. Lia Raquel Toledo Brambilla Gasques (UFMS)
e a Profa. Ma. Laura Roseli Pael Duarte (UFMS).

Em nossa sociedade, grande parte dos Museus são vistos como ambientes
destinados ao prazer intelectual, os quais as “pessoas comuns” se direcionam
uma ou duas vezes ao ano para satisfazerem as suas curiosidades acerca do
passado. Do mesmo modo, verificamos que a maioria dos sujeitos, provenientes
das classes média e baixa, não geram uma relação de proximidade com os
Museus e tão pouco com os elementos que o compõe. Esta perspectiva acaba
se difundindo entre as gerações, em medida que boa parte da população apenas
vai ao Museu em excursões promovidas pelas escolas, sem que o valor real
deste local seja construído na prática cotidiana e no ensino-aprendizagem.
Questões essas que se tornaram pauta nos debates da museologia, da história,
da pedagogia, bem como da educação museal e patrimonial.

Maria Angélica Zubaran frisa que os Museus não se constituem apenas como
um espaço destinado a visitação ou preservação de memórias oficiais, pois esse
espaço congrega múltiplas faces da sociedade (ZUBARAN, 2013, p. 3). Esta
tendência defendida por Zubaran visa romper com o elitismo e desconexão
social com o qual os Museus foram desenvolvidos no cenário brasileiro, assim
procurando ampliar o seu público. Nota-se, nas últimas décadas, uma
diversificação do próprio acervo e exposições que passaram a valorizar os
grupos sociais, étnicos e culturais que eram, inúmeras vezes, invisibilizados.
Sendo assim, compreendemos os Museus como lugares de construção de
memória e identidade socioculturais, bem como de ações educativas, combate
às desigualdades e de salvaguarda do patrimônio histórico-cultural. Nesse
sentido, o Museu de Arqueologia da UFMS (MuArq) ocupa um espaço importante
no cenário científico e social brasileiro, pois coaduna com as perspectivas
renovadas de Museu. Tanto que o MuArq configura nas publicações
arqueológicas, museais e patrimoniais brasileiras, além das internacionais
(SILVA, GASQUES, CAMPOS, 2020; PROUS, 2019; KASHIMOTO, MARTINS,
2019; VIALOU, 2009).
Vale mencionar que o MuArq é caracterizado como uma unidade de apoio na
UFMS, o qual se vincula ao gabinete da Pró-Reitoria de Extensão, Cultura e
Esporte – PROECE. Atualmente, ele se encontra alojado no Memorial da
Cidadania e Cultura Apolônio de Carvalho, no Centro de Campo Grande, Mato
Grosso do Sul. Destacamos que ele foi fundado em 2008, mediante os esforços
do Prof. Dr. Gilson Rodolfo Martins – UFMS. Após a aposentadoria do referido 32
docente, o museu passou a ser coordenado pela Prof. Dra. Emília Kashimoto –
UFMS, até 2019, momento da aposentadoria da docente citada. Nos dias atuais,
o MuArq é coordenado pela arqueóloga Lia Raquel Toledo Brambilla Gasques
(Técnica Lab. de Arqueologia – UFMS), tendo o setor educativo coordenado
pela antropóloga Laura Roseli Pael Duarte (Técnica Lab. de Arqueologia –
UFMS), assim como o Prof. Dr. Carlos Eduardo da Costa Campos (docente –
UFMS / FACH) atua como responsável pelo setor de pesquisa e extensão.

Desse modo, como integrantes do corpo de pesquisadores da UFMS, é nosso


dever contribuir com o processo de estudo e análise da cultura material
disponível no acervo do MuArq, o qual abarca diversos sítios arqueológicos do
Mato Grosso do Sul, os quais datam até em aproximadamente doze mil anos, na
história da humanidade. Ressalta-se que grande quantidade de material é de
matriz Pré-Histórica. Desse modo, devido às limitações atuais que passamos no
cenário brasileiro, desde março de 2020, tornou-se latente a necessidade de
atividades de extensão e ensino que possibilitem apoiar ao MUARQ, bem como
fornecer um retorno para a sociedade sobre sua historicidade e relevância.
Dessa maneira, seguindo o plano de biossegurança da UFMS (2020.2),
buscamos estabelecer ações que visassem integrar e aprimorar o conhecimento
do corpo discente do curso de História da Cidade Universitária (Campo Grande)
da UFMS. Para tanto, elaboramos o projeto de extensão Catalogação e
Organização de objetos do acervo do Museu de Arqueologia da UFMS:
novos horizontes no processo de formação dos estudantes de História (Ação 1),
Extensão PAEXT 2020. Assim, foi possível obtermos dois bolsistas para o
desenvolvimento das atividades que serão detalhadas a seguir, em consonância
com outros três bolsistas vinculados ao projeto de extensão Arrolamento de
bens arqueológicos coletados no projeto salvamento arqueológico nas
obras de implantação da Usina Hidrelétrica São Domingos e linha de
transmissão UHE São Domingos – Água Clara, MS.

Justificamos a necessidade da valorização e cooperação técnica para estudo de


tal acervo, a partir da Portaria IPHAN n°. 195, de 18 de maio de 2016, a qual
determina a catalogação das peças salvaguardadas nas reservas dos Museus.
Nosso projeto atuou juntamente ao de Arrolamento e buscou trabalhar com parte
dos materiais não-catalogados, os quais formam quase duzentas mil peças, na
reserva técnica, assim fornecendo um retorno social e preparando os nossos
graduandos em técnicas de conservação e preservação de acervo museológico.
A catalogação consiste, segundo o IBRAM (2019c, p.22) “na compilação e à
manutenção de informação essencial, que permite a identificação e a descrição
dos objetos (...). No contexto museológico, a catalogação está associada (...) ao
conhecimento de dados representativos sobre a história dos objetos”. Dessa
forma, a catalogação conta com uma etapa de registro do material, sendo nela
feito a identificação do objeto, reunindo dados e informações para que possa ter
o entendimento da totalidade e contexto do qual o artefato se encontra. Assim,
a partir do ICOM, a catalogação deve ser compreendida: “como a compilação e
a manutenção de informações-chave que identificam e descrevem formalmente
os objetos, podendo incluir informações de procedência, dentre outras utilizadas 33
na gestão da respectiva coleção” (IBRAM 2019c, p.23).

Endossamos tais apontamentos com os escritos de V. Gordon Childe (1964, p.


15) e Pedro Paulo Funari (2010, p. 81 – 110), pois ambos os autores ressaltam
que os estudos científicos precisam de abrangência, bem como de rigores para
depreender indícios que se encontram na cultura material. Todavia, essas
medidas tomadas pelos pesquisadores também se fundamentam com o
incentivo da instituição, pois, dependem de financiamentos de mão de obra
capacitada ou de estagiários, nosso caso, que são treinados para dar conta
dessa produção. Afinal, não devemos esquecer que as competências postas
sobre um tema de estudo também se vinculam com a trajetória e a formação de
cada especialista. Assim, cabe ao pesquisador da cultura material estar atento
aos critérios que envolvem ao tratamento de seu corpora documental, pois ele é
o fundamento para a elaboração das pesquisas e materiais didáticos (JANOTTI,
2010, p. 9 – 21). Logo, operacionalizar a documentação é um ato de leitura,
interpretação, descrição, crítica, sistematização e seleção para o processo de
construção e alternativas de análises históricas.

Apesar do contexto do Covid-19, conseguimos catalogar 5678 peças, da


totalidade de sítios que estamos analisando: Arara ME-01 e Oficina Lítica- SD
(UHE São Domingos); A1, A6, A7, A8, A9, A10, A11, A12, A13, A14, A15, A16,
A17 e A18 (Linha de Transmissão). Vale mencionar que tais materiais passaram
por trabalhos de resgate e curadoria que se realizaram entre os anos de 2011 e
2012, estando o material depositado no Laboratório de Arqueologia da
Universidade Federal da Grande Dourados, sob coordenação do arqueólogo Dr.
Rodrigo Luiz Simas de Aguiar, desde dezembro de 2012 e posteriormente que
houve o salvaguardado no Museu de Arqueologia da UFMS, em julho de 2018.
Dos objetos estudados temos, até o momento, líticos lascados, com a função de
cortar e bater, pertencentes a várias temporalidades: pré-históricas e de culturas
indígenas locais. Cada objeto arqueológico tem sua história e o seu significado,
assim o estudo desses materiais são essenciais para pesquisas e práticas de
educação patrimonial (GASQUES, 2020).
34

Fig. 1 – Explicação sobre o processo de catalogação de evidências


materiais do acervo do MuArq -2020 (Foto do acervo interno do MuArq)

Com isso, produzimos dados sobre tais objetos arqueológicos que permitem
compreender a relação do homem com o seu meio ao longo do tempo, no
território de MS. Assim, ao catalogarmos e descrevermos tais peças do MuArq,
abrimos possibilidade para o conhecimento de evidências materiais do passado
Pré-Histórico, os quais podem ser objeto de estudo na rede básica de educação.
Afinal, a BNCC do Ensino Fundamental apresenta uma reflexão sobre como
devemos fazer uso de diferentes fontes e tipos de documento (escritos,
iconográficos, materiais, imateriais) capazes de facilitar a compreensão da
relação tempo e espaço e das relações sociais que os geraram. Fato esse que
auxilia aos professores na reflexão do patrimônio junto aos conteúdos
(ASSUMPÇÃO, CAMPOS, 2020, p. 30-31). Desse modo, a BNCC enfatiza que
os estudos documentos materiais revelam expressões humanas, o contexto de
produção, consumo e circulação desses objetos. Logo, “(...) o objeto histórico
transforma-se em exercício, em laboratório da memória voltado para a produção
de um saber próprio da história” (BNCC, 2017, p. 398). Assim, colocamos nossos
alunos discentes da UFMS numa postura reflexiva que toma a cultura material
como ponto de partida para a construção do conhecimento, assim valorizando a
própria consciência histórica (ASSUMPÇÃO, CAMPOS, 2020, p.30-31). Dessa
maneira, em nossa visão o projeto desenvolvido no MuArq com emprego da
cultura material proporciona aos licenciados conhecimento sobre temas que
terão de lecionar para a rede básica de ensino, a qual alinhada com a BNCC
prevê o estudo de processos de identificação, comparação, contextualização,
interpretação e análise de um objeto estimulam o pensamento (BNCC, 2017, p.
398). Para conhecer nossos materiais já catalogados e da exposição do MuArq,
acesse: https://muarq.ufms.br/sobre-o-muarq/
Outra medida que tomamos no MuArq foi a elaboração do Momento MuArq, no
Canal MuArq, no Youtube. O Momento MuArq consiste em uma série de vídeos-
explicativos, de curta duração, sobre a trajetória do nosso museu, bem como das
peças na exposição. Logo, possibilitamos o acesso aos nossos materiais de
forma descontraída, online e com uma linguagem que pode ser utilizada para os
discentes da rede básica de ensino. O primeiro vídeo foi lançado em agosto de 35
2020 e faz uma panorâmica sobre os espaços do museu e sua equipe. O
segundo vídeo, Momento MuArq 1, foi lançado no final de agosto de 2020 e conta
com o Prof. Dr. Gilson R. Martins, fundador do MuArq, falando sobre o
desenvolvimento das pesquisas arqueológicas em MS. O terceiro vídeo foi
gravado em 2020 e lançado em março de 2021, assim dando continuidade à
apresentação de Martins e abordando a trajetória do MuArq. Os vídeos
continuam sendo produzidos e podem ser acessados através do endereço
eletrônico: https://www.youtube.com/channel/UC_-w48hQoFJ72oNaAF6-ryQ

Fig. 2 – Vídeo de lançamento do Momento MuArq -2020 (Foto do acervo


interno do MuArq)

Fig. 3 – Capas do Momento MuArq – 2020 / 2021 (Foto do acervo interno


do MuArq)

Por fim, destacamos que nossa participação na 18ª Semana Nacional de Museus
(2020), em parceria com a Fundação de Cultura de Mato Grosso do Sul, resultou
na elaboração de um projeto editorial intitulado: Museus e patrimônio cultural
em Mato Grosso do Sul: pesquisa, cultura, educação e identidade (Vol. 1),
sob coordenação de Douglas Alves da Silva, Lia Raquel Toledo Brambilla
Gasques e Carlos Eduardo da Costa Campos. Além das temáticas abordadas
sobre Pré-História na coletânea, também é possível observar propostas que
versam sobre Arqueologia, Arquitetura, Educação Ambiental e Museologia, 36
Educação patrimonial. O intuito é disponibilizar o estado atual de pesquisas para
a rede básica de ensino e público leigo interessado sobre Museus e Patrimônio.
O ebook foi financiado pela FAPEC e pode ser acessado, gratuitamente, pelo
site: http://www.desalinhopublicacoes.com.br/pd-7fba25-museus-e-patrimonio-
cultural-em-mato-grosso-do-sul.html?ct=&p=1&s=1

Fig. 4 – Capa da coletânea Museus e patrimônio cultural em Mato Grosso


do Sul: pesquisa, cultura, educação e identidade – 2020 (Foto do acervo
interno do MuArq)

Considerações Finais
A definição de Museu do Conselho Internacional de Museus - ICOM (16ª em
1989 e 20ª Assembleia em 2001) interpreta o Museu como uma instituição
permanente, sem fins lucrativos, a serviço da sociedade e de seu
desenvolvimento, aberta ao público e que adquire, preserva, pesquisa e expõe
os testemunhos materiais do homem e de seu meio ambiente, para educação e
entretenimento do público. Desse modo, tal definição do ICOM coaduna-se com
o pilar universitário desenvolvido na UFMS: ensino, pesquisa e extensão. Logo,
através de nossas ações, buscamos contribuir com o processo de ensino-
aprendizagem de Pré-História, bem como de Patrimônio Cultural a partir do
acervo museológico do MuArq, assim visando formar profissionais, na área de
História, que ampliem o seu horizonte de trabalho e compreendam o museu
como um espaço de construção do conhecimento científico, histórico escolar e
de reflexão social. Essa proposta se vincula as premissas da BNCC e impacta
na sala de aula.

Desse modo, objetivamos conectar os participantes das ações promovidas com


as transformações sociais, políticas, econômicas e culturais que levaram os
museólogos e arqueólogos a desenvolverem, por meio de metodologias 37
baseadas na ciência e tecnologia, estratégias para prolongar o uso dos materiais
e analisar os riscos, de modo a manter os bens o mais próximo do seu estado
original. Algumas dessas metodologias acabaram sendo apropriadas no âmbito
da conservação de bens culturais e muito têm contribuído para a preservação do
acervo do MuArq, desde sua fundação, por meio da conservação preventiva e
da gestão de riscos. Desse modo, é essencial aos historiadores e docentes
estarem atentos a esses processos e contribuindo na preservação e ensino da
cultura material Pré-Histórica de Mato Grosso do Sul.

Referência biográfica
Carlos Eduardo da Costa Campos é mestre e doutor em História pela UERJ,
atua como Professor Adjunto de Pré-História e Antiguidade da Faculdade
Ciências Humanas da UFMS. Campos é membro do Museu de Arqueologia da
UFMS e integra sua comissão de pesquisa e extensão. Ademais, Campos é
coordenador do grupo de pesquisa ATRIVM / UFMS, do PIBID – HIST – FACH /
UFMS e docente do Mestrado Profissional em Ensino de História da UEMS.

Referências bibliográficas
BRASIL, MEC. BNCC – Base Nacional Comum Curricular. Brasília: SEE, 2017.
Disponível em: <http://basenacionalcomum.mec.gov.br/download-da-bncc>
Acesso em: 08 abril. 2020.

ASSUMPÇÃO, Luis Filipe Bantim; CAMPOS, Carlos Eduardo da Costa.


Considerações sobre o Ensino de História e Patrimônio Cultural: o caso dos
PCNEM e BNCC. BUENO, André; CAMPOS, Carlos Eduardo da Costa;
GONÇALVES, Dilza Porto (org.). Ensino de História: Teorias e Metodologias. 1ª
Ed. Rio de Janeiro: Sobre Ontens/UFMS, 2020, p. 25-34.

CHILDE, V. Gordon. Teoria da História. Lisboa: Portugalia, 1964.

FUNARI, Pedro P. A. Arqueologia e Patrimônio. Erechim – RS: Editora Habilis,


2007, p.59-70.

_____. Os historiadores e a cultura material. In: PINSKY, Carla Bassanezi (org.).


Fontes históricas. São Paulo: Contexto, 2010, p. 81-110.

GASQUES, Lia Raquel Toledo Brambilla. Relatório final da emissão de endosso


institucional para guarda do material arqueológico oriundo da implantação da
UHE São Domingos e linha de transmissão de conexão. Contrato nº1105170032
entre a ELETROSUL/FAPEC (Processo Iphan nº 01401.000371/2007-16 /
Processo Iphan nº 01401.000259/2010-81). Museu de Arqueologia da UFMS,
Campo Grande, 2020.

IBRAM. Curso de documentação de acervo museológico, módulo 3, 2019


(circulação restrita).
38
JANOTTI, Maria de Lourdes. O Livro – Fontes Históricas Como Fonte. In:
PINSKY, Carla (org.). Fontes Históricas. São Paulo: Editora Contexto. 2010, p.
9-21.

KASHIMOTO, E.; MARTINS; Gilson Rodolfo. Catálogo de artefatos cerâmicos


arqueológicos de Mato Grosso do Sul. Campo Grande: Instituto Histórico e
Geográfico de Mato Grosso do Sul, 2019.

NASCIMENTO, Ana Paula. O necessário diálogo: os territórios da informação


nos museus. In: SEMINÁRIO SERVIÇOS DE INFORMAÇÃO EM MUSEUS, 1.,
2010, São Paulo. Anais. São Paulo: Pinacoteca do Estado de São Paulo, 2011.
p. 143–146.

_____. O projeto piloto do Subgrupo MAM: desafios e atividades realizadas. In:


SEMINÁRIO INTERNACIONAL ARQUIVOS DE MUSEUS E PESQUISA, 2.,
2011, São Paulo. Anais. São Paulo: Grupo de Trabalho Arquivos de Museus e
Pesquisa: tecnologia, informação e acesso, 2013. p. 189–211.

PROUS, André. Arqueologia Brasileira: a pré-história e os verdadeiros


colonizadores. Mato Grosso: Carlini & Caniato, 2019.

SILVA, Douglas Alves da; GASQUES, Lia Raquel Toledo Brambilla; CAMPOS,
Carlos Eduardo da Costa. Museus e patrimônio cultural em Mato Grosso do Sul:
pesquisa, cultura, educação e identidade – 1. ed. – São João de Meriti, RJ:
Desalinho, 2020.

VIALOU, Águeda Vilhena. Tecnologia Lítica no Planalto Brasileiro: Persistência


ou Mudança. Revista de Arqueologia, v.22, 2009.

ZUBARAN, Maria Angélica; MACHADO, Lisandra Maria. O que se expõe e o que


ensina: representações do negro nos museus do Rio Grande do Sul. Momento,
v. 22, nº 1, p. 91-122, jan./jun. 2013.
OUTROS OLHARES SOBRE O ENSINO DE HISTÓRIA
ANTIGA NO BRASIL: PERCURSOS E PERCALÇOS
José Petrúcio de Farias Junior
A escrita da História escolar, presente nos livros didáticos, assim como a história 39
acadêmica, é objeto de disputas e se insere em jogos de poder, uma vez que o
passado é construído a partir de inclinações, predileções ou inquietações de
sujeitos e grupos no presente e isso explica, em certa medida, porque o passado
é tão móvel ou passível de infinitas atualizações.

Para Jörn Rüsen (2002), essa maleabilidade do passado, no tocante à atribuição


de sentidos por diferentes sujeitos, em diferentes recortes espaço-temporais, é
que permite que ele continue a fazer sentido para nós. Então, estudar História
torna-se um exercício indispensável à ampliação de nosso ‘olhar’ sobre o
presente, a partir do momento em que passamos a problematizar valores,
princípios ou crenças da sociedade em que vivemos.

Isso posto, diante do cenário de ataque às humanidades no Brasil, sob a


alegação de os cientistas das humanidades e professores estarem mais
preocupados com a doutrinação ou manipulação de suas audiências, a quem as
aulas de História incomodam tanto?

Primeiro, àqueles que são apegados a narrativas universais, concebidas como’


verdade absoluta’. A aula de história traz à tona a “guerra de narrativas”
(expressão cunhada por Christian Laville (1999) para aludir às tensões entre a
história ensinada e as instâncias de poder, responsáveis pela definição de
currículos e percursos educacionais) de que o passado e o presente são
constituídos, suas dissonâncias ou dissensões e esclarece os jogos de poder
que resultaram na legitimação de certas visões de mundo em detrimento de
outras.

As aulas de História também incomodam quem não está inclinado a indagar suas
próprias crenças/convicções, provavelmente porque tais narrativas beneficiam
os grupos que as alimentam e disseminam.

O apego a narrativas, ideias, valores ou princípios sociais que têm a pretensão


de universalidade abre espaço para negacionismos, para silenciamentos, para o
apagamento da memória de grupos políticos ou culturais que não desfrutaram
do amparo das instâncias de poder para chancelar/autorizar/legitimar os seus
discursos. Quando nos reportamos à abordagem da história dos cristianismos,
no âmbito das aulas de História Antiga, essas questões se tornam mais
evidentes.

Por exemplo, tratar o cristianismo ortodoxo como ‘religião’ e as demais


experiências religiosas antigas (egípcias, mesopotâmias, gregas, romanas, entre
outras como indígenas e afrodescendentes) como ‘mito’, implica assumir que há
experiências religiosas menos legítimas que outras, tendo em vista a conotação
que o termo ‘mito’ incorporou no senso comum. Perpetua-se a ideia de que
existem culturas mais atrasadas ou inferiores. Além disso, essa linha de
raciocínio pode tornar os sujeitos mais intolerantes e opressores, da mesma
maneira que, no processo expansionista europeu do século XVI, houve a
desqualificação de sujeitos que não se ajustavam ao mito europeu cristão. Então, 40
dizer que religião e mito são opostos e que há uma escala valorativa que os
diferenciam, contribui para reproduzir práticas de intolerância e opressão. É
urgente a revisão destes posicionamentos no ensino a fim de que tais práticas
sejam coibidas, principalmente em virtude de sua inadequação ao campo das
ciências humanas.

Ainda no tocante às experiências religiosas cristãs, Chevitarese (2016) lembra-


nos de que, como qualquer experiência religiosa, devemos abordá-las,
considerando seu caráter plural e multiperspectivado, por isso o historiador
”prefere usar o termo ‘cristianismos’, levando em consideração a diversidade dos
grupos religiosos do passado e a historicidade de suas narrativas” (FARIAS
JUNIOR; MOURA, 2020, p. 91).

Por exemplo: com a adoção de políticas pró-cristãs, a partir do imperador romano


Constantino, tornou-se mais evidente uma série de correntes cristãs que
passaram a rivalizar entre si, sobretudo a partir do IV século, nas principais
cidades do Império Romano, a saber: Alexandria, Antioquia, Roma,
Constantinopla e Jerusalém, entre outras.

Tais rivalidades se sustentavam porque não havia um consenso entre os bispos


quanto à interpretação dos livros canônicos e o caráter divino de Jesus e de
Maria, mãe de Jesus. Entre os credos cristãos mais conhecidos pela
historiografia, destacam-se o niceno, o ariano, o sabelianista, o apolinarista, o
monofisita, o pelagiano, o donatista, entre muitos outros.

As dissensões entre as comunidades cristãs resultaram na necessidade de


intervenção imperial e o imperador romano tornou-se, no transcorrer do IV
século, uma figura-chave para imprimir um tom mais homogêneo aos discursos
cristãos, na medida em que contribuiu por chancelar o cristianismo ortodoxo
(aceito e reconhecido pelas instâncias de poder) em detrimento dos heterodoxos
(ilegítimos, desviantes).

O credo ariano e o credo niceno tornam-se mais populares justamente porque


foram as doutrinas cristãs que desfrutaram de reconhecimento político-
institucional entre os imperadores Constantino e Teodósio, as demais correntes
tornaram-se ilegítimas e foram perseguidas por diferentes agentes políticos e
jurisdições.

O credo niceno, reconhecido como ‘ortodoxo’ pelo poder imperial e que, portanto,
tornou-se hegemônico, desde Teodósio, defende que o Filho é consubstancial
ao Pai, ou seja, da mesma substância divina. Dessa forma, os bispos nicenos
apoiavam-se na ideia de consubstancialidade entre Pai, Filho e Espírito Santo,
o que será posteriormente chamado de dogma trinitário por meio do qual se
entende que tais entes divinos compartilham a mesma substância, mas
manifestam-se (hipóstase) de três formas distintas, o que corroborava com a
fórmula ‘um imperador, um deus e uma igreja’, motivo pelo qual, para muitos
historiadores, tenha sido esta a fórmula de fé que mais atraiu a atenção de 41
imperadores como Constantino e Teodósio, preocupados com a manutenção da
unidade político-administrativa do Império (FARIAS JUNIOR, 2020, p. 67).

Nossas pesquisas, no âmbito do ensino de história, voltadas à análise de livros


didáticos e de narrativas docentes, demonstram que a vertente cristã nicena,
chancelada pelo imperador Teodósio e professada pela Igreja Católica, até hoje,
é adotada, por muitos manuais de História, como protótipo do cristianismo,
posicionamento que negligencia e obscurece as demais correntes cristãs em
disputa que circulavam pelo Império Romano.

Tais narrativas provocam nos leitores a falsa percepção de que o passado é


homogêneo, já que opta apenas por apresentar o discurso “vencedor”, isto é,
aquele que é chancelado e autorizado pelas instâncias de poder (FARIAS
JUNIOR, 2020, p. 67). O passado, dado o exposto, passa a ser concebido a
partir de um relato uníssono, causal, linear e teleológico, organizado para
explicar o presente e conectado com intencionalidades e objetivos da cultura
religiosa dominante no Brasil contemporâneo.

Um ensino de História Antiga voltado à exemplaridade do passado para


fundamentar modos de agir e pensar no presente ou à explicação das ‘origens’
de instituições ou experiências político-culturais contemporâneas dificulta e
muitas vezes inviabiliza o desenvolvimento do ‘pensar historicamente’, fim último
das aulas de História.

Por ‘pensar historicamente’, entendemos a adoção de um ’olhar’ crítico e


reflexivo em relação às formas como atribuímos sentido ao passado, a partir das
circunstâncias históricas e do ambiente político-cultural em que estamos
inseridos e nos impacta, porquanto somos sujeitos de nosso tempo.

Trata-se, no limite, de uma postura intelectual que visa à compreensão e à


problematização das ‘imagens’ do passado, construídas pelos sujeitos, e que
estão presentes em nossa cultura histórica, uma vez que cada presente produz
demandas singularidades que nos permite indagar o passado a partir de
inquietações ou predileções que emergem dos campos de experiências político-
culturais dos sujeitos.

Isso quer dizer que as fontes estão encobertas por ‘camadas de interpretação’
que foram depositadas ao longo dos anos por diferentes sujeitos,
intencionalidades e objetivos. Reconhecer que as fontes estão encobertas por
diferentes interpretações que se estabeleceram ao longo do tempo é o primeiro
passo para entender que nosso ‘olhar’ e nossa ‘forma de pensar’ é produto do
tempo em que vivemos. Essa reflexão orienta-nos a pensar sobre a historicidade
dos objetos/ideias/experiências no âmbito da relação espaço-temporal.

A literatura sobre o ensino de História, didática da História e educação histórica


sinaliza a importância de investigar os modos como os alunos atribuem sentido
ao passado para que, a partir desse diagnóstico prévio, o docente possa intervir 42
por meio da construção de situações de aprendizagem que os ensine a ‘pensar
historicamente’. Queremos dizer com isso que o objetivo desta disciplina, nos
currículos escolares brasileiros, não é ensinar ‘acontecimentos históricos’ em si,
tampouco cumprir uma lista de conteúdos prevista por propostas curriculares;
mas, como já dissemos, objetiva ensinar os jovens a ‘pensar historicamente’, o
que implica usar ferramentas de que a história dispõe para se posicionar diante
da análise de ações humanas no tempo.

Dito isso, defendemos que a riqueza do ensino de História consiste justamente


não só em observar os condicionantes que permeiam nossas visões de mundo,
modos de agir e pensar, mas também a ‘guerra de narrativas’ de que tanto o
passado, quanto nosso campo de experiências se constitui. Isso requer que
perscrutemos como e por que determinados discursos, instituições ou religiões
predominaram, sobressaíram-se em detrimento de outros, o que também implica
compreender como e por que narrativas e grupos sociais são silenciados ou
negligenciados das ‘narrativas escolares’; uma discussão, diga-se de passagem,
extremamente relevante para o presente.

Alguns críticos diriam (ou já disseram) que nosso propósito analítico está fadado
ao fracasso, porque os LDs não objetivariam incluir as diferentes vertentes,
movimentos e acontecimentos históricos, como se fosse um grande repositório
de dados históricos. Mas, se considerarmos que o estudo da História, na
Educação Básica, está comprometido com a ampliação de nosso olhar sobre o
presente, com o intuito de formar cidadãos críticos, participativos e atuantes em
diferentes espaços sociais, o estudo do cristianismo (ou da religião) se torna,
convenhamos, um tema central.

André Chevitarese, em suas conferências, adverte-nos que qualquer historiador


que almeje compreender minimamente ações e comportamentos humanos na
contemporaneidade, precisa ler a Bíblia e entender suas recepções, tendo em
vista a influência do discurso religioso cristão na história do Brasil para refletir
sobre comportamentos, pontos de vista e decisões políticas que nos afetam. Se
o ensino de História não nos permitir compreender a historicidade de
experiências religiosas, presentes em nosso ambiente político-cultural, e
desconsiderar a natureza multiperspectivada das experiências humanas no
tempo, ela serve a que propósito?

Não é de todo exagerado o posicionamento de muitos pesquisadores, na


Academia, que dizem que o ensino de História no Brasil está preso, em muitos
aspectos, ao século XIX! A ânsia de muitos professores da Educação Básica
pelo cumprimento dos conteúdos prescritos no currículo ou dos capítulos
previstos no livro didático, em meio a carga horária muito reduzida, torna-os
refém não só de uma concepção de História fatual, descritiva, biográfica,
etapista, linear e marcada por relações reducionistas de causa-efeito, mas
também de uma concepção de Educação meramente instrucional, conteudista e
hierárquica, em que muitas vezes o professor se porta como um fiscal do ensino,
na medida em que controla e mensura, por meio de avaliações, o que o aluno 43
reteve acerca dos conteúdos ministrados.

Em muitos casos, o docente resigna-se à narrativa histórica escolar dos LDs,


reproduzindo-a, situação que retira do professor a autoria de seu próprio trabalho
pedagógico, porque, em vez de construir as aulas em diálogo com os materiais
didáticos, ele se submete à abordagem de tais manuais ou apostilas, os quais,
em geral, perpetuam uma noção de educação/avaliação em que o estudante
deve apresentar a ‘resposta certa’ à pergunta formulada pelo professor.

Isso explica, pelo menos em parte, a dificuldade de muitos alunos que ingressam
no ensino superior, logo após a Educação Básica. Enquanto, na escola, os LDs,
mas sobretudo o professor, é visto como um especialista que fornece
informações ‘verdadeiras’, para que sejam reproduzidas em avaliações; na
universidade, eles encontram tais ‘informações’, no entanto, em vez de
memorizá-las, elas são postas ao debate, o que requer o posicionamento dos
estudantes frente a discussões historiográficas. Neste nível educacional, os
docentes universitários portam-se mais como condutores dos debates do que
como ‘autoridade’ detentora de ‘respostas certas’.

Quando questionados sobre o porquê de manterem essa concepção de História


e de Educação na educação básica, os professores em geral reportam-se à
necessidade de cumprir os conteúdos prescritos nas propostas curriculares em
curto espaço de tempo (uma ou duas aulas semanais no caso do ensino médio
brasileiro).

As consequências dessa metodologia de ensino de História presente de maneira


hegemônica na Educação Básica brasileira se refletem visivelmente no ensino
superior: estudantes dispostos apenas a ouvir o docente e a reproduzir seus
pontos de vista, ou seja, com pouca habilidade em engajar-se criticamente,
construir argumentos consistentes, estruturar uma linha de raciocínio a partir da
sustentação de uma ideia central, enfim, apresentar um posicionamento
independente da perspectiva analítica do professor (GOODMAN, 2017, p. 50). E
pior: com grande dificuldade em conceber experiências humanas no tempo, de
modo descontínuo, multifacetado, constituídas por sujeitos descentrados que
fazem uso de signos sempre móveis, com sentidos que ‘deslizam’ a depender
das práticas discursivas e experiências culturais em se movimentam.

Como já havíamos afirmado, nosso papel em sala de aula hoje consiste em


ensinar o aluno a ‘pensar historicamente’, o que requer o uso de metodologias
de análise documental que indaguem as fontes a partir de sua historicidade.
“Nada pode ser mais prejudicial, para isso, do que uma tábua inflexível de
conteúdos selecionados previamente e fora da relação educativa” (CERRI, 2011,
p. 69), ou seja, do diálogo com nosso campo de experiências político-culturais,
de onde produzimos as indagações que nos motivam ao estudo do passado;
reconhecemos que é mais cômodo ao professor “passar conteúdo” (CERRI,
2011, p. 75) do que interagir com os discentes e desfazer preconceitos ou
questionar os limites de suas representações sobre o passado. Talvez este seja 44
nosso maior desafio em tempos de extremismos!

Referência biográfica
Dr. José Petrúcio de Farias Junior, professor da Universidade Federal do Piauí,
campus de Picos, e colaborador junto ao Programa de Pós-Graduação em
História do Brasil (PPGHB/UFPI).

Referências bibliográficas
CERRI, Luis Fernando. Ensino de história e consciência histórica: implicações
didáticas de uma discussão contemporânea. RJ: Editora FGV, 2011.

CHEVITARESE, André Leonardo. Cristianismos: questões e debates


metodológicos. RJ: Klíne, 2016 (b).

FARIAS JÚNIOR, José Petrúcio de. A teoria da história de Jörn Rüsen: estudos
introdutórios e chaves de leitura. In: NASCIMENTO, Francisco de Assis de
Sousa; SILVA, Jaison Castro; CHAVES, Reginaldo Sousa (Org.). A forja do
tempo: artes e vanguardas diante do contemporâneo. Teresina: EDUFPI, 2016.

_____. História Antiga: trajetórias, abordagens e metodologias de ensino.


Uberlândia: Navegando, 2020.

_____; MOURA, R. G. História dos cristianismos nos livros didáticos:


considerações sobre a narrativa histórica escolar. Perspectivas e Diálogos:
Revista de História Social e Práticas de Ensino, v.2, n.6, p. 88-111, 2020.

GOODMAN, Penelope J. Bridging the gap: teaching and studying Ancient


History and Classical Civilisation from school to university. The Journal of
Classics Teaching, n.18, p.48-53, 2017.

RÜSEN, Jörn. Kann gestern besser werden? Zum Bedenken der Geschichte.
Berlin: Kulturverlag Kadmos, 2002.
O QUE ENSINAR EM HISTÓRIA ANTIGA?
Leandro Hecko

Quando pensamos na ideia geral suscitada pela expressão "História Antiga",


45
uma miríade de desdobramentos toma conta de nossa cabeça! Entre eles, talvez
seja interessante elencar a título de curiosidade e provocação, o seguinte: a
História Antiga, no senso comum, possui uma imagem oriunda de experiências
diversas, como o cinema, séries, a literatura, HQs, desenhos animados e jogos
eletrônicos, que hoje em dia frente à sua grande qualidade gráfica estão
ganhando bastante espaço na imaginação das pessoas. Essa imagem de
História Antiga, a nosso ver, se altera apenas com uma boa e problematizada
formação em História.

Lançadas essas ideias, dou início a questão maior que desejo aqui
problematizar, provocar: se a ideia de "História Antiga" já nos traz inúmeros
desdobramentos, o que dizer então, na posição de professor da Educação
Básica ou do Ensino Superior, sobre a indagação "O que ensinar em História
Antiga?". Partir, para o Ensino com base nas experiências já mapeadas junto
aos educandos, provavelmente se configure em uma boa estratégia. E aqui, o
que desejo é abrir possibilidades de diálogo com professores de todos os níveis
de ensino e professores em formação, para discussão e aprofundamento e
mapeamento de mais ideias.

Para refletir sobre esta questão-problema, percorreremos os seguintes passos:


primeiramente, vamos observar o que alguns pesquisadores têm dito acerca do
Ensino de História Antiga, muito sucintamente; em seguida, evocaremos
algumas questões acerca do ensino de temas de História Antiga na Educação
Básica; por fim, vamos pensar sobre a "História Antiga" ensinada no ensino
superior, tendo em mente um curso de formação de professores/pesquisadores,
mais comum no Brasil, que é o de licenciatura em História.

Observando algumas publicações pouco mais recentes, temos, grosso modo


como vamos observar, um olhar problematizado sobre essa área que, a nosso
ver, muito proficuamente, deve esbarrar em seu ensino como uma forma de
atribuição de sentido ao que se ensina, além, claro, de buscar incentivar o
interesse pela Antiguidade.

Uma primeira questão a ser levantada se refere ao fato de que pelo menos a
perspectiva base para o ensino de História Antiga parece ter mudado e avançado
um pouco para além do tradicional factual. Existe a construção de uma História
Antiga mais problematizada e preocupada em compreender do que
explicar/expor (SILVA, 2007, p.9), tentando sair do factual e compreender o
conhecimento histórico em sua construção a partir de fontes, escrita e
intencionalidades.
Nesta perspectiva de uma História Antiga mais problematizada, talvez seja
importante considerar a questão dos usos do passado (HECKO, 2019, p.7-9),
que põe o professor diante de possibilidades reflexivas acerca do tempo passado
(Antigo) e presente (contemporâneo aos alunos), criando possibilidades
didáticas que dialoguem com temas de interesse dos estudantes.
46
Temos, neste caminho, uma História Antiga, que dialoga com diversas
temporalidades por onde transita o conhecimento histórico sobre as
Antiguidades que possibilita uma forma diferente de ensinar. Não obstante,
claramente, ainda nos são apresentados certos limites a serem considerados.

Em termos de recortes temáticos e áreas mais ensinadas, existe ainda uma


evidência de algumas áreas sobre as outras:

"Podemos verificar que o ensino da História da Antiguidade Clássica ainda


recebe maior valorização do que a Antiguidade Oriental (...) Acreditamos, então,
que este fato advenha, primeiramente, da carga horária que é destinada à
disciplina, da formação dos profissionais da área de História Antiga no Brasil, em
sua maioria com seus mestrados e doutorados na área de estudos clássicos e,
principalmente, na enorme dificuldade em estudar o Oriente ainda presente em
nosso país, por termos pouca documentação escrita sobre estes contextos
traduzidas para as línguas modernas, poucas obras publicadas em português e
pela ainda existente dificuldade de acesso às fontes documentais”.(SILVA, 2010,
p.148-149)

O olhar sobre Grécia e Roma parece tomar mais espaço de interesse,


principalmente no tocante a Educação Básica, onde a passagem por
Mesopotâmia e Egito pode ser, a depender do olhar do professor, mais rápida
(ASSUMPÇÂO; CAMPOS, 2020, p.67).

Seguindo este caminho, quero indagar acerca do que se ensina sobre História
Antiga na Educação Básica. O que dita a forma e os conteúdos a serem
abordados pelos professores? Percorramos o seguinte caminho: o estudante
que entra em um curso de graduação em História, passará por uma formação de
professor com disciplinas específicas sobre o conhecimento histórico, disciplinas
de didática e prática de ensino, terá contato com a Educação Básica por meio
de estágios obrigatórios (onde sofrerá influência daquilo que acontece já no
funcionamento da escola e do ensino) e, formado, estará "apto" a iniciar seu
trabalho como profissional da Educação.

Quando o professor chega na escola, pública ou privada, por sua vez, terá que
lidar com certas situações, rotinas já previstas do funcionamento das instituições
de ensino. Em linhas gerais, o que se encontra? Uma escola funcionando com
uma estrutura hierárquica, com base em políticas educacionais federais,
estaduais ou municipais; uma escola com um Projeto Político-Pedagógico e uma
Proposta Curricular, que por sua vez se ampara nas referidas políticas
educacionais; a escola já terá, provavelmente, materiais didáticos com os quais
basicamente o professor deverá lidar, materiais estes também amparados nas
referidas políticas educacionais que, na sua origem são federais. Portanto,
temos em relação ao professor alguns cerceamentos. Porém, objetivamente
queremos considerar a iniciativa e criatividade do professor em lidar com todos
esses grilhões.
47
Pensando sobre este contexto onde o professor se insere e sobre os grilhões
que encontra, queremos destacar um item, que representa as referidas políticas
educacionais e que gerou polêmica nos últimos anos, desde a sua construção
até a publicação oficial: trata-se da Base Nacional Comum Curricular (BNCC) de
2018. A BNCC chega às escolas e influencia um contexto bastante amplo no que
diz respeito à constituição de manuais didáticos, passando a servir de base para
a escolha dos manuais didáticos que chegarão às escolas públicas do país junto
ao Programa Nacional do Livro de do Material Didático (PNLD). O livro didático,
portanto, em sua construção e antes de chegar à escola, passa por um processo
avaliativo que, resumidamente considera se o material está ou não de acordo
com a BNCC.

Em termos de organização, a BNCC propõe Unidades Temáticas, Objetos de


Conhecimento e Habilidades, como se vê na tabela abaixo. Na tabela, elaborada
a partir do que mostra a BNCC, fizemos o recorte do que se refere à História
Antiga. Observem a tabela.

Unidades Temáticas Objetos de Habilidades


Conhecimento
A invenção do mundo -Povos da Antiguidade (EF06HI07) Identificar
clássico e o contraponto na África (egípcios), no aspectos e formas de
com outras sociedades Oriente Médio registro das sociedades
(mesopotâmicos) e nas antigas na África, no
Américas (pré- Oriente Médio e nas
colombianos) Américas, distinguindo
alguns significados
presentes na cultura
material e na tradição
oral dessas sociedades.
Lógicas de organização -As diferentes formas de (EF06HI13) Conceituar
política organização política na “império” no mundo
África: reinos, impérios, antigo, com vistas à
cidades-estados e análise das diferentes
sociedades linhageiras formas
ou aldeias de equilíbrio e
-O Mediterrâneo como desequilíbrio entre as
espaço de interação partes envolvidas.
entre as sociedades da (EF06HI14) Identificar e
Europa, da África e do analisar diferentes
Oriente Médio formas de contato,
adaptação ou exclusão
entre populações em
diferentes tempos e
espaços.
Trabalho e formas de -Senhores e servos no (EF06HI16) Caracterizar
organização social e mundo antigo e no e comparar as
cultural medieval Escravidão e dinâmicas de 48
trabalho livre em abastecimento e as
diferentes formas de organização
temporalidades e do trabalho e da vida
espaços (Roma Antiga, social em diferentes
Europa medieval e sociedades e períodos,
África) com destaque para as
relações entre senhores
e servos.
(EF06HI17) Diferenciar
escravidão, servidão e
trabalho livre no mundo
antigo.
(EF06HI19) Descrever e
analisar os diferentes
papéis sociais das
mulheres no mundo
antigo e nas sociedades
medievais.
Tabela: Alguns recortes de História Antiga na BNCC (HECKO; PUGA,
2020, p.140)

Pela tabela, e detendo-nos aos Objetos de Conhecimento e Habilidades, aqui


circundados para o 6º ano da Educação Básica, vemos o pouco lugar que
ocupam as sociedades antigas, além da sua inserção genérica na BNCC. Essa
generalidade é a que vai orientar ou não a quantidade de conteúdo e forma como
aparecerá em livros didáticos selecionados que chegarão às escolas. Vemos
também, como citado pouco acima, a menor quantidade de questões
relacionadas ao Antigo Oriente, mais genericamente ainda postas se
confrontadas com temas greco-romanos.

Vemos enfim, que na Educação Básica são muitos os cerceamentos com os


quais o professor deve lidar e, a nosso ver, a forma como o ensino de História
Antiga se desenvolve no âmbito escolar é bastante influenciada por este
panorama. Não obstante, mais uma vez ressaltamos: a formação e a criatividade
do professor podem auxiliar na melhoria do ensino de História Antiga na escola.

Desta forma, chegamos ao Ensino Superior, considerando cursos de História


que formam professores: as licenciaturas. O Ensino Superior também é regido
por documentos, porém estes são mais amplos no sentido de possibilitar
diversas situações, levando a uma certa liberdade sobre o que ensinar. Sempre
gosto de pensar em uma questão: o que deve influenciar no que? A formação do
professor deve considerar o que ele vai encontrar na escola, em termos de
políticas educacionais e possibilidades de ensino ou é a escola que deve se
moldar ao que sai das universidades como professor formado? A resposta, para
mim, é clara: numa dialética algo de novo e bom deve surgir. As universidades
devem considerar os contextos educacionais das escolas, bem como é
importante o diálogo com os cursos de formação de professores que possuem 49
muito a aprender com a escolas e suas realidades educacionais.

Mas o que temos em termos de ensino de História Antiga nas universidades? Os


professores que assumem as áreas são normalmente os responsáveis pelo
estabelecimento das disciplinas e seus nomes, estabelecimento de ementa e
bibliografia básica e compra de livros para as bibliotecas. Desta forma, a primazia
por algumas áreas de interesse pode aparecer, como o interesse mais
acentuado por áreas/textos que correspondam aos seus objetos de pesquisa. A
ideia de propiciar uma formação em História Antiga existe, claro, porém
interesses na construção dos planos de ensino dos cursos de História podem
ocorrer.

Um outro ponto a se considerar, que possui relação com o que se ensina numa
licenciatura em História, é a questão da especialização do
professor/pesquisador. No ensino superior, a realidade é a de professores que
entre a graduação, mestrado, doutorado e pós-doutorado se especializaram em
determinadas áreas a ponto de, embora tenham conhecimento até amplo sobre
a Antiguidade como um todo (mas isso não é a regra) não necessariamente são
capazes ou possuem interesse em ensinar sobre áreas que não tenham domínio
mais aprofundado. Falando em termos gerais, um especialista em algum tema
sobre Grécia antiga terá mais confiança ao tratar temas relacionados ao mundo
grego, numa perspectiva melhor de Antiguidade Clássica do que ensinar sobre
China ou Índia antigas, por exemplo, e vice-versa.

Para finalizar, quero pontuar algumas considerações para concordâncias,


discordâncias, sugestões, complementações e reflexões:

-O ensino de História Antiga possui uma relação direta com aquilo que se
compreende por Antiguidade, que pode afirmar amplitude ou recorte a depender
da percepção do conceito de História Antiga;
-O ensino de História Antiga tem sido problematizado de forma a atualizar a
forma como se entende a História Antiga no tocante a possíveis relações entre
passado e presente, observando-se formas de uso desse passado antigo em
outras temporalidades;
-A forma como o professor na Educação Básica trabalha com a História Antiga
possui diversos fatores de influência, que por vezes fogem ao seu controle,
todavia, a depender de sua formação e criatividade ele pode ensinar História
Antiga de forma a incentivar este conhecimento;
-Entre a Educação Básica e o Ensino Superior deve existir diálogo e pesquisa,
para que seja possível um melhor ensino de História Antiga, que considere
sempre as realidades diversas em que cada professor está inserido;
-A forma como o professor no Ensino Superior ensina a História Antiga também
possui determinantes e estes têm relação com a especialidade do professor que
pode fazer determinadas opções por áreas de interesse ou não.

Para concluir, cabe afirmar que, sobre o Ensino de História Antiga os professores
entre Educação Básica e Superior são os verdadeiros construtores da área, 50
incentivadores ou não do seu desenvolvimento e valorização social. Desta
forma, cabe a quem forma os professores o engajamento para que se construa
uma História Antiga engajada em valorizá-la e fomentar os estudos de temas a
ela relacionados, de forma a fazer crescer em importância esta ampla área e
com temas tão instigantes e relevantes em nosso presente, para a compreensão
do mundo em que vivemos.

Referências biográficas
Dr. Leandro Hecko, professor de História Antiga, da Universidade Federal de
Mato Grosso do Sul, campus de Três Lagoas – MS. E-mail:
leandro.hecko@ufms.br

Referências bibliográficas
ASSUMPÇÂO, Luis Filipe Bantim de; CAMPOS, Carlos Eduardo da Costa. O
livro didático e o Ensino de História Antiga – desafios no presente e problemas
do passado. Perspectivas e Diálogos: Revista de História Social e Práticas de
Ensino, v. 2, n. 6, p. 66-87, jul./dez. 2020.

BRASIL. Ministério da Educação. Base Nacional Comum Curricular - BNCC.


Brasília, DF: Ministério da Educação, 2018.

HECKO, Leandro (org.). Antiguidades e usos do passado. São João de Meriti:


Desalinho, 2019.

HECKO, Leandro; PUGA, Dolores. A História Antiga nos manuais didáticos:


horizontes de expectativas. In: SQUINELO, Ana Paula (org.) Livro Didático e
Paradidático de História em Tempos de Crises e Enfrentamentos: Sujeitos,
Imagens e Leituras. Campo Grande: Life, 2020.

SILVA, Glaydson José da. História Antiga e Usos do Passado: um estudo de


apropriações da Antiguidade sob o regime de Vichy (1940-1944). São Paulo:
AnnaBlume, 2007.

SILVA, Semíramis Corsi. Aspectos do Ensino de História Antiga no Brasil:


algumas observações. Alétheia: Revista de estudos sobre Antiguidade e
Medievo, Volume 1, Janeiro a Julho de 2010.
O ENSINO DE HISTÓRIA ANTIGA E A EDUCAÇÃO DE
JOVENS E ADULTOS: PRECISAMOS INICIAR ESTE
DEBATE
Leandro Mendonça Barbosa
51

Como – e, também indagamos, onde? – estão as epistemes da Educação de


Jovens e Adultos no texto da Base Nacional Comum Curricular – Educação
Infantil e Ensino Fundamental, concluído em 2017? Em um olhar pormenorizado,
o leitor perceberá que nenhuma discussão específica é proposta no que se refere
à EJA, sendo esta modalidade citada poucas vezes e de uma maneira genérica.

A principal menção decorre conjuntamente ao que a BNCC incluiria como “(...)


diferentes modalidades de ensino (Educação Especial, Educação de Jovens e
Adultos, Educação do Campo, Educação Escolar Indígena, Educação Escolar
Quilombola, Educação a Distância) (...)” (BNCC, 2017, p. 17). Se tecermos uma
análise ainda mais minuciosa, a modalidade EJA aparece na BNCC, quando se
trata do Nível Fundamental, apenas em alguns objetivos esparsos em Língua
Portuguesa (p. 96) e Educação Física (p. 213).

A ausência dos referenciais da EJA na atual BNCC, em um contexto de múltiplas


controvérsias que o documento apresenta, é resultado do estereótipo construído
em relação aos sujeitos da modalidade “jovens e adultos” e de como estes são
percebidos em um contexto elitista que se imbrica à sociedade. Pensando nos
educandos que compõem a EJA, faz-se necessária a reflexão de que, quando
se trata de currículo, o ensino-aprendizagem não pode se dissociar de outras
modalidades, como a Educação Profissional, pois estes sujeitos têm no mundo
do trabalho uma prioridade (ARAÚJO; SILVA; SENA, 2020, p. 5). Durante a
construção dos currículos esta singularidade deve, ou deveria, ser considerada,
percebendo esta especificidade, bem como a valorização das histórias de vidas,
dos anseios, do futuro dos indivíduos e o diálogo destas perspectivas com o
conteúdo histórico abordado.

De igual modo, é necessário reflexionar como o currículo é preparado para


cotejar as aspirações dos sujeitos com as relações de trabalho. O aluno
trabalhador é um grande foco da EJA, e este educando, que retorna aos bancos
escolares como adolescente ou adulto para galgar novas oportunidades de
trabalho, deve ser ajuizado com pontos de vista a partir de realidades distintas
daquelas que se encontra no Ensino Fundamental I e II.

A relação entre Educação e mercado de trabalho promove, de pronto, um


incômodo. Deste modo, importante clarear que não se trata da defesa de um
ensino tecnicista, preocupado com a formação de mão-de-obra “rápida e barata”,
mas sim de diligenciar a criticidade e a autonomia dos indivíduos de perfil
trabalhador – em sua maioria oriundos de camadas socioeconômicas
desfavorecidas – para que possam pensar autonomamente, percebendo e
construindo suas consistências enquanto classe trabalhadora.

Aqui, não podemos negligenciar a heterogeneidade presente no cotidiano da


EJA: o/a adolescente que não conseguiu se adaptar em nenhuma escola; o/a
jovem que cumpre medida socioeducativa de internação; o/a trabalhador/a que 52
deseja tirar a carteira de motorista, ou que almeja uma promoção; a mulher que
é vítima de violência doméstica, e têm nos momentos vividos na Escola ou na
Igreja os únicos para se sair daquela realidade; o/a estudante que deseja
ingressar no Ensino Superior; o/a idoso/a que espera conseguir ler e
compreender a Bíblia etc. Inteirar-se da ponderação sobres esta realidade
diversa na construção do saber escolar e do ensino-aprendizagem também é
importante.

Por mais que o Brasil tenha avançado em políticas públicas para a EJA, os
sujeitos que comungam desta modalidade ainda são percebidos pelo poder
público, pela mídia, pelo capital empresarial e por parte da sociedade civil
organizada dentro uma visão elitista, de tendência neoliberal, como indivíduos
que, por possuírem suas especificidades, acabam marginalizados ou veem seu
processo educativo aproximado de um assistencialismo (FÁVERO, 2011, p 34).

Desta forma, a modalidade se construiu historicamente alijada dos debates


centrais, sem se arrazoar em epistemologias e métodos específicos e sem
construir parcerias, sendo vista, até, como um “favor do Estado”, ou como um
“resumão” do Ensino Fundamental I e II ou do Ensino Médio. Como a História, e
fulcralmente no interesse deste trabalho, a História Antiga, auxiliam ou deveriam
auxiliar na construção educacional desses sujeitos?

O próprio ensino da História Antiga nas Escolas demonstrou-se problemático


desde a construção de um currículo: a luta pela permanência da História Antiga,
após a apresentação da primeira versão da BNCC, pautou-se em ângulos por
vezes difíceis, como a justificativa da importância de seu estudo pela “tradição e
legado à Humanidade”, em uma visão dominante e ocidental (GREGORI, 2020,
p. 73).

Mas também pelo que nos alertou Pedro Paulo Funari, para o fato de que as
escolas privadas e da elite não deixariam de estudar História Antiga – e, traçando
um paralelo, o acesso desta elite a museus, viagens e aparatos culturais a
colocaria em contato, de uma forma privilegiada, com o Mundo Antigo –
enquanto as classes menos favorecidas não seriam contempladas com este
repertório múltiplo do ponto de vista étnico, cultural, político e sociorreligioso:
“(...) em um mundo globalizado e em um Brasil multiétnico, estudar as
sociedades antigas é introduzir no sistema educacional do país comparativos de
diversidade e igualdade (FUNARI, 2016, p. 2)”.

Como forma de traçarmos um início de discussão, teremos como objeto o


currículo da Educação de Jovens e Adultos do Município de Campo Grande,
capital do Estado de Mato Grosso do Sul. Nosso documento, além da BNCC,
será o Referencial Curricular Circunstancial de 2021 – EJA, elaborado pela
Secretaria Municipal de Educação. Com o Referencial, alcançaremos como a
EJA de Nível Fundamental se vê na perspectiva dos estudos de História Antiga,
construindo um currículo a partir das recomendações da BNCC, conforme
estabelece a Lei de Diretrizes e Bases da Educação (1996/ s.n.). 53

Como a BNCC ensartou a EJA praticamente ausente, o currículo de História


Antiga – e da História de uma maneira geral – para a modalidade foi retirado dos
Ensinos Fundamentais I e II, suprimindo algumas partes, demonstrando que a
antiga relação da Educação de Jovens e Adultos com a ideia de “resumão” ainda
está longe de ter seu fim.

Nossa intenção é perceber como três pilares que balizam o Ensino de História
na EJA – cultura, tempo e trabalho – além da questão da consciência histórica,
fundamental ao Ensino de História (AYRES; CAINELLI, 2014, p. 3), aparecem
nos estudos da Antiguidade e qual diálogo estabelecem com os sujeitos que
passam por este processo particularizado de aprendizagem.

Concordamos com o método proposto por Ivonir Ayres e Marlene Cainelli porque
entendemos que estes pilares, atrelados à consciência histórica, são essenciais
para emancipar o aluno/trabalhador e colocá-lo dentro de uma sociedade que é
plural, mas que temos de ter consciência que capitalista e desigual.

Não se trata de inserir o educando passivamente nesta realidade, mas fazer com
que ele a compreenda e, a partir do conhecimento histórico, crie alternativas para
enfrentá-la e se emancipar. Na certeza de que a EJA deve agir por estas
epistemologias próprias, e não como uma cópia ou “irmã menor” do Ensino
Fundamental I e II ou do Ensino Médio, o referencial histórico deve ser debatido
dentro da realidade da modalidade, em consonância com as demais, mas nunca
em posição de subjugo:

“Percebe-se (...) uma aproximação com temáticas epistemológicas como a


atitude historiadora, o tempo vivido e presente, bem como a importância do
recurso de pesquisa em diferentes fontes documentais para a construção do
conhecimento histórico.” (ARAÚJO; SILVA; SENA, 2020, p 21.)

Nesta perspectiva, a Antiguidade, no contexto da EJA, tem os estudos encetados


na FASE INICIAL II – correspondente ao 4º e 5º anos do Ensino Fundamental I.
Em uma comparação com Ciências Humanas: Referencial Curricular REME, que
dispõe sobre o Ensino de História no Ensino Fundamental I e II, o conteúdo da
EJA está em consonância com a proposição da BNCC. Destarte, possui como
base, suprimindo conteúdos por uma questão de redução de tempo de estudo
anual, o 5º ano do Ensino Fundamental I.

Das cinco unidades temáticas, três possuem objetivos relacionados à


Antiguidade, bem como a indicação de habilidades a serem trabalhadas com os
alunos nesta etapa do aprendizado, conforme a tabela a seguir. A título de
esclarecimento, a tabela teve como base informações do Referencial Curricular
Circunstancial de 2021 – EJA, entretanto foi organizada pelo autor, como uma
forma de visualizar o panorama do Ensino da Antiguidade na EJA de Nível
Fundamental.
54
FASE INICIAL II
Unidades Objeto do Habilidades indicadas
Temáticas Conhecimento da Fase
Inicial II prioritários
Tempo e espaço: A ação das pessoas, (CG.EJA.FI.II.EF04HI01.s)
fontes e grupos sociais e Reconhecer a história
formas de comunidades no tempo e como resultado da ação do
representação. no espaço: nomadismo, ser humano no tempo e no
agricultura, escrita, espaço, com base na
navegações, indústria, identificação de mudanças
entre outras. e permanências ao longo
O passado e o presente: do tempo.
a noção de permanência
e as lentas
transformações sociais e
culturais.
Poder, Estado e As formas de (CG.EJA.FI.II.EF05HI02.s)
instituições. organização social e Identificar os mecanismos
política: a noção de de organização do poder
Estado. político com vistas à
compreensão da ideia de
Estado e/ou de outras
formas de ordenação
social.
Cidadania, direitosO papel das religiões e (CG.EJA.FI.II.EF05HI05.s)
humanos e da cultura para a Associar o conceito de
movimentos sociais.formação dos povos cidadania à conquista de
antigos. direitos dos povos e das
Cidadania, diversidade sociedades,
cultural e respeito às compreendendo-o como
diferenças sociais, conquista histórica.
culturais e históricas.
Tabela baseada no Referencial Curricular Circunstancial de 2021 – EJA, da
REME-Campo Grande/MS

É perceptível que a Educação de Jovens e Adultos também contempla temas


recomendados pela BNCC. No que trata do Ensino de História Antiga, propicia
reconhecer as múltiplas temporalidades e transformações pelas quais passaram
as distintas comunidades, como indica a habilidade CG.EJA.FI.II.EF04HI01.s.,
apesar de manter uma certa linearidade histórica, problema esse não exclusivo
da EJA.
A questão cultural está explicita nos debates que encaram a própria noção de
tempo, além do papel sociorreligioso como construtor das sociedades antigas, e
da formação da ideia de cidadania, atrelado aos direitos à diversidade e à
alteridade. A partir dos estudos destas diversas comunidades é proposto um
paralelo sobre múltiplas culturas e transdisciplinaridade, por meio da análise de 55
fontes históricas que propiciem a compreensão das transformações como uma
“conquista” da História, entretanto ainda norteado, de certa forma, por uma
mirada deveras evolucionista – habilidades CG.EJA.FI.II.EF05HI02.s e
CG.EJA.FI.II.EF05HI05.s.

Já na FASE INTERMEDIÁRIA – correspondentes aos 6º e 7º ano do Ensino


Fundamental II – a questão do trabalho estará presente nas discussões centrais,
porém não de forma contundente. Nesta fase, também com três Unidades
Temáticas que contemplam o Mundo Antigo, percebemos fortemente as noções
de tempo e de cultura, e apesar de constarem os mundos do trabalho, acabam
restritos a uma unidade.

FASE INTERMEDIÁRIA
Unidades Temáticas Objeto do Habilidades indicadas
Conhecimento da
Fase Inicial II
prioritários
Tempo e espaço: A questão do tempo, (CG.EJA.FINT.EF06HI01.s)
fontes e sincronias e Identificar diferentes
formas de diacronias: reflexões formas de compreensão da
representação. sobre o sentido das noção de tempo e de
cronologias. periodização dos
Formas de registro da processos históricos
história e da produção (continuidades e rupturas).
do conhecimento
histórico.
Cidadania, direitos As formas de (CG.EJA.FINT.EF07HI15.s)
humanos e organização Discutir o conceito de
movimentos sociais. das sociedades escravidão moderna e suas
ameríndias. distinções em relação ao
A escravidão moderna escravismo antigo e à
eo servidão medieval.
tráfico de
escravizados.
A emergência do
capitalismo
Relações de trabalho, Senhores e servos no (CG.EJA.FINT.EF06HI16.s)
produção e circulação. mundo antigo e no Caracterizar e comparar as
medieval dinâmicas de
abastecimento e as formas
de organização do trabalho
e da vida social em
diferentes sociedades e
períodos, com destaque
para as relações entre
senhores e servos.
Tabela baseada no Referencial Curricular Circunstancial de 2021 – EJA, da 56
REME-Campo Grande/MS

A questão do tempo e as formas com as quais o registram, tanto as


continuidades quanto as rupturas pelas quais passaram as múltiplas sociedades,
são recomendadas pela habilidade CG.EJA.FINT.EF06HI01.s, como forma de
se pensar a periodização histórica, bem como perceber os impactos que as
relações culturais causaram ao longo do tempo, culminando no surgimento da
sociedade capitalista, conforme aponta uma dos tópicos que integram as
Recomendações (RCCEJA, 2021, p. 67).

Será nas habilidades posteriores, CG.EJA.FINT.EF07HI15.s e


CG.EJA.FINT.EF06HI16.s, que a relação com o trabalho surgirá de modo mais
claro. A intersecção entre escravidão antiga/servidão medieval com as formas
de escravização a partir da Idade Moderna concede a noção das relações de
mão-de-obra estabelecidas, e de que forma também foram construtoras de
aspectos de sociedades até os dias atuais. O tema dá vasão a discussões como
direitos trabalhistas na contemporaneidade, o dia a dia do trabalho – sobretudo
o braçal – entre os antigos e os modernos – levando a perceber as continuidades
e rupturas – e as formas de escravidão impostas na atualidade.

As maneiras nas quais este trabalho se organiza – apesar do recorrente


problema em conceituar “senhorio” e “servidão” para as sociedades antigas –
levarão os sujeitos que estão nos bancos escolares da EJA a pensarem quais
as implicações dos trabalhos que estabelecem ou pretendem estabelecer em
suas especificidades e múltiplas organizações, contribuindo para uma
pensamento crítico acerca de políticas públicas para o emprego, das formas de
interpelações com o trabalho e da panorâmica dos direitos trabalhistas, no
tocante às conquistas, mas também aos retrocessos.

Retomando o início de nosso texto, buscamos começar o debate acerca do


Ensino de História Antiga na Educação de Jovens e Adultos, tendo consciência
dos paradoxos que esta modalidade de ensino apresenta, bem como a visão
tecida por outrem da forma de ensino e, principalmente, de seus sujeitos.
Estereotipadamente, o ensino para jovens e adultos passa como algo menos
quisto e de menor importância para a construção educacional do país.

Como objeto, utilizamo-nos dos referenciais que norteiam o Ensino de História,


de uma maneira geral, nas Escolas Municipais de Ensino Fundamental – o que
inclui a EJA deste nível – realidade conhecida pelo autor. O intuito foi o de
perceber se as temáticas, sejam elas diretas ou transversais, que dialogam com
o Mundo Antigo, são suficientes para minorar as necessidades dos alunos de
EJA inseridos no conhecimento histórico: a compreensão do tempo, o conceito
e as múltiplas concepções de cultura, e a questão dos mundos do trabalho, tão
cara a estes sujeitos.

Concluímos este nascente debate – sem, de forma alguma, tentar esgotá-lo –


elucubrando que a tentativa da analogia entre Antiguidade e relações de 57
emprego e renda atuais teve seu início, sobretudo, em temas concernentes a
escravidão e organização social, como a especialização do trabalho e as
conexões entre os detentores de poder – seja ele econômico, sociopolítico,
religioso, ou todos estes – e os trabalhadores.

Quais as formas de escravidão no mundo antigo – e suas diferenciações entre


sociedades – no mundo atlântico da expansão ultramarina e no mundo atual? A
partir destes pontos é possível imprimir múltiplos debates e campos de
conhecimento para a reflexão histórica dos indivíduos, como pensar que a
condição rico/pobre não era sine qua non para a escravidão em algumas
sociedades antigas, ou trabalhar a questão étnico-racial no que tange às
diversas experiências escravistas no mundo antigo e no mundo moderno.

Igualmente, é possível a consideração sobre como as formas de se pensar esta


escravidão se configuram como uma parte importante, e no que se pode avançar
na correlação com os mundos do trabalho. Como a organização do trabalho
propiciou o desenvolvimento do Estado, proporcionado, dentre outros fatores,
pelo aumento da produção alimentar, em algumas regiões desde o final do
Neolítico? Como Ásia, África e América podem ser comparadas no que diz
respeito ao trabalho, à centralização do Estado e a organização social de povos
tão geograficamente distantes?

Cabe ao Professor promover, a partir de epistemes e metodologias, o


entendimento entre estas relações de trabalho no Mundo Antigo e as
especificidades do trabalho no contemporâneo, como forma de trazer para a
realidade dos sujeitos que frequentam esta modalidade estas reflexões,
permitindo que, por meio de conhecimentos prévios – que, no caso destes
alunos, são ainda mais consolidados e, por vezes, mais arraigados do que nos
alunos de idade regular de ensino– possam ressignificar e criar novas formas de
se pensar o cotidiano do trabalho e as condições de emprego no mundo, no país
e em sua localidade.

Referências Biográficas:
Dr. Leandro Mendonça Barbosa. Graduado em História pela Universidade
Federal de Mato Grosso do Sul, Mestre em História pela Universidade Federal
de Goiás e Doutor em História Antiga pela Universidade de Lisboa-Portugal. Foi
Docente Temporário da Universidade Federal de Mato Grosso do Sul/CPTL e
Docente da Universidade Católica Dom Bosco. É Docente efetivo da Secretaria
Municipal de Educação de Campo Grande – Setorial Educação de Jovens e
Adultos – e Pós-Doutorando em Estudos Culturais pela Universidade Federal de
Mato Grosso do Sul
Referências Bibliográficas
AYRES, Ivonir R.; CAINELLI, Marlene R. Diálogos Curriculares com o Ensino de
História na EJA. In: Os Desafios da Escola Pública Paranaense na Perspectiva
do Professor, vol. 1, 2014, p. 02-21.
58
ARAÚJO, Gilvan C. C; SILVA, Leda R. B; SENA, Lilian C. P. S. A Educação de
Jovens e Adultos e a BNCC do Ensino Fundamental. Linhas Críticas, nº 26, 2020,
p. 1-25.

BRASIL. Base Nacional Comum Curricular. Educação Infantil e Ensino


Fundamental. Brasília: Ministério da Educação, 2017.

_____. Lei n. 9.394, de 20 de dezembro de 1996. Estabelece as Diretrizes e


Bases da Educação Nacional. Brasília: Presidência da República/Casa Civil,
1996.

FAVERO, Osmar. Políticas públicas de educação de jovens e adultos no Brasil.


In: SOUZA, José dos Santos; SALES, Sandra Regina. Educação de Jovens e
Adultos: políticas e práticas educativas. Rio de Janeiro: Nau Editora/EDUR,
2011.

FUNARI, Pedro Paulo A. Parecer para o MEC sobre a Base Nacional Comum
Curricular: a história em sua integridade, 2016. Disponível em:
<http://basenacionalcomum.mec.gov.br/images/relatorios-
analiticos/Pedro_Paulo_A_Funari.pdf>

GREGORI, Alessandro Mortaio. O Lugar da Antiguidade nos Programas de


História: da dissolução do currículo humanístico aos debates sobre a BNCC. In:
BUENO, André; CAMPOS, Carlos E. C; BORGES, Airan (org.). Ensino de
História Antiga. Rio de Janeiro: Sobre Ontens/UFMS, 2020, p. 67-74.

CAMPO GRANDE/MS. Ciências Humanas: Referencial Curricular REME.


Campo Grande: SEMED, 2019.

_____. Referencial Curricular Circunstancial 2021 – EJA (Educação de Jovens


e Adultos). Campo Grande: SEMED/DED, 2021.
A BNCC E O ENSINO DE HISTÓRIA ANTIGA NA
EDUCAÇÃO BÁSICA – CONSIDERAÇÕES INICIAIS
Luis Filipe Bantim de Assumpção
59
A disciplina de História é fundamental para o processo de ensino-aprendizagem
dos membros de uma sociedade, afinal, o conhecimento do passado favorece a
formação de uma identidade cultural partilhada pelos habitantes de um território.
Com isso, a ideia de nação pressupõe que os sujeitos tenham práticas e valores
sólidos que, ao serem compartilhados, favorece o desenvolvimento da
fraternidade dos cidadãos e assegura que estes lutem pelo bem-estar de seu
grupo e de sua terra. Logo, é interessante que problematizemos o que passou
para entendermos as motivações dos seus usos, visto que os acontecimentos
pretéritos são minuciosamente selecionados para comporem uma narrativa
equilibrada e dotada de sentido, em função dos segmentos envolvidos em sua
escolha, os quais se modificam no tempo e no espaço.

Tal assertiva destaca que a História, seja a disciplina seja a ciência, é uma
construção na qual utilizamos o passado como objeto para elaborarmos um dito
conhecimento histórico. Portanto, a escrita e a pesquisa históricas não são
imparciais, sendo a nossa leitura dos indícios do passado condicionada pela
natureza dos documentos e o nosso contexto social (GUARINELLO, 2003, p.
43). Nesse sentido, somos facilmente levados a refutar a máxima de que “contra
fatos não há argumentos”, visto que os “fatos”/acontecimentos históricos são
interpretações que criamos daquilo que passou (ALBUQUERQUE JR., 2007, p.
72-73). É justamente essa característica, por vezes, fugidia que torna a História
interessante e digna de pesquisa, uma vez que concatenar ideias oriundas de
diferentes documentos se assemelha a uma investigação típica de filmes de
espionagem. Esse tipo de equiparação pode incomodar aos pares, mas
aproxima os estudantes do Ensino Básico do conhecimento histórico.

Contudo, ainda hoje, é muito comum que os jovens mostrem desinteresse pela
História, chegando a questionar a utilidade desta disciplina (SOUSA, 2020, p.
81). Isso ocorre porque o “pseudo-pragmatismo” que vivenciamos no ambiente
escolar, desde a juventude, parece herdeiro do tecnicismo que vigorou no Brasil,
sobretudo, entre as décadas de 1970 e 1990. Assim, existe a tendência entre os
jovens e os adultos, nos mais variados segmentos de Ensino, de se interessarem
por coisas que sejam “úteis” às suas vidas, fazendo com que a História não se
enquadre nessa categoria. No entanto, diante do que comentamos
anteriormente, seria o conhecimento histórico algo sem utilidade?

Esse tipo de situação ocorre porque a História, sobretudo no Ensino Básico,


ainda é tomada como “mestra da vida”, dotada de pretensões oraculares,
embora a sua análise não precise de uma interpretação meticulosa, tal como as
palavras da pitonisa de Delfos. Ao contrário, esse modelo de historiografia exige
apenas que seja aceita como uma realidade, visto que descreve “os fatos como
ocorreram” – premissa que Borja Antela-Bernárdez (2020, p. 62) denomina como
“maldição de Ranke”. Tal postura afasta os estudantes da disciplina histórica,
culminando na perspectiva de que esta é um aglomerado de coisas antigas e
obsoletas. Entretanto, como havíamos destacado anteriormente, a História
detém uma finalidade político-social e, por meio da consciência histórica, permite
que o sujeito encare a sua existência de maneira crítica, estabelecendo o sentido 60
de sua experiência no tempo (CERRI, 2011, p. 30). Portanto, ao almejarmos que
os estudantes do Ensino Básico se tornem futuros cidadãos ativos, aptos a
analisarem as circunstâncias para tomarem as melhores decisões para a sua
comunidade, a História deve ser levada a sério e mais esforços em prol da
consciência histórica devem ser realizados.

Características Gerais do Ensino de História no Brasil


Ao pensarmos as reações de muitos estudantes para com o Ensino de História,
notamos que esta é uma herança de seus familiares, em função da simplificação
da História e da Geografia em benefício dos Estudos Sociais. Como esclareceu
Circe Bittencourt (2018, p. 57-58), esta medida desejava frear os anseios de uma
geração, cujas mudanças em ritmo acelerado poderiam transformar os valores
tradicionais de sua existência. No Brasil, os Estudos Sociais foram
implementados durante o governo cívico-militar, por meio da lei 5.692 de agosto
de 1971. Essa postura deve ser pensada em função do contexto nacional e
mundial, uma vez que o Brasil estava alinhado aos interesses capitalistas norte-
americanos, durante a Guerra Fria.

Logo, toda uma geração foi educada por métodos de ensino-aprendizagem que
reforçavam o civismo, através dos feitos dos grandes homens da pátria. José
Antônio Vasconcelos (2012, p. 48-50) expõe que essa seria uma História
Tradicional, marcada pela influência de Leopold von Ranke, da Escola Metódica
e do pensamento positivista, a qual fomentou uma análise histórica elitista.
Conjeturando Borja Antela-Bernárdez (2020, p. 62-93) e José Antônio
Vasconcelos, verificamos que a implementação dos Estudos Sociais no Brasil,
na década de 1970, reforçou os paradigmas de uma História oficial vista de cima
e desenvolvida pelo poder político hegemônico, não cabendo aos estudantes
pensarem sobre o que passou e aceitarem o que viviam. Com isso, os pais e
responsáveis dos nossos estudantes de hoje em dia, ainda acreditam que o
conteúdo de um livro didático é correto e não pode ser refutado, tornando a
História sinônimo de passado e verdade.

Ao lidarmos com a ideia de uma “verdade histórica”, não há sentido discutirmos


em alternativas interpretativas. Contudo, como professores e pesquisadores,
sabemos que a História é composta por interpretações, afinal, como destacou
Leandro Karnal (2015, p. 7-8) não somos capazes de utilizar, tratar e conhecer
todas as informações e indícios do passado, havendo a necessidade de
selecionarmos, recortarmos, dimensionarmos e narrarmos uma pequena parte
daquilo que passou. Carlos Eduardo Campos e Luis Filipe de Assumpção (2020,
p. 261) endossam Karnal ao destacarem que, em virtude dessa característica da
História, o seu processo de ensino-aprendizagem deve ser pensado e repensado
a todo momento, pois as circunstâncias históricas modificam a interpretação do
passado.

Nesse sentido, a História é um processo constante de (res)significação dos


vestígios do passado, tornando a interpretação um processo fundamental para
a produção do conhecimento histórico. Do mesmo modo, se considerarmos as 61
conquistas historiográficas do século XX, também não conseguimos produzir
uma História que se abstenha de tratar das relações de poder inerentes à
sociedade, reforçando que os grupos se relacionam de variadas maneiras
visando interesses mútuos – o que não se restringe às elites. Dessa forma, a
História Ensinada entre as décadas de 1970 e 1990, já não se adéquam às
necessidades de nossa juventude, marcada pelo aprimoramento tecnológico e a
dinâmica de um mundo informacional globalizado.

A BNCC e o que se espera das Ciências Humanas(?)


Mediante o exposto, a Base Nacional Comum Curricular (BNCC), homologada
em 2017 e publicada em 2018, manifestou o aparente interesse de superar os
estigmas de uma educação voltada para a massificação do conhecimento. Isso
porque, já na sua “Introdução”, temos que o objetivo da BNCC é garantir a
formação humana em sua integralidade, visando uma sociedade mais justa,
democrática e inclusiva – aspecto anteriormente preconizado pelas DCNs
(BRASIL, 2018, p. 7). Tal argumentação foi complementada no decorrer de todo
o documento, onde a criança e o jovem devem ser estimulados a serem criativos
e críticos diante das situações que o mundo lhes apresenta. Ainda que a
abordagem seja distinta para cada segmento de ensino, considerando o
desenvolvimento cognitivo dos sujeitos, em função de sua idade, a noção de
autonomia do conhecimento do estudante é uma máxima.

Como a nossa análise se restringiu ao Ensino de História, observamos que o


professor dessa disciplina foi representado como o responsável por desenvolver
nos estudantes essa percepção crítica do mundo. Todavia, ao analisarmos a
BNCC notamos que existe um distanciamento significativo entre uma postura
crítica e os conteúdos pensados para cada segmento do ensino.

No que concerne ao Ensino Fundamental – Anos Iniciais (Fundamental I), os


autores da BNCC afirmam que o contato das crianças com novas tecnologias de
informação torna-as mais criativas, além de promover o pensamento lógico e
crítico (BRASIL, 2018, p. 58). Aqui o texto da BNCC não havia iniciado a sua
caracterização sobre as atribuições curriculares de cada área do conhecimento,
porém, devemos considerar que o uso de novas tecnologias não torna as
crianças mais criativas e críticas. Como destacou Renata Sousa (2020, p. 82) as
facilidades proporcionadas por essas tecnologias fazem, na sua maioria, com
que as crianças percam habilidades manuais e criativas, além da capacidade
interpretativa. É inegável que as tecnologias de informação e comunicação
(TICs) contribuíram sobremaneira para o ensino, mas, acreditarmos que o seu
uso tornará os estudantes naturalmente mais criativos é um equívoco. No geral,
o fato dos jovens se verem constantemente imersos em aparelhos eletrônicos
dispersa a sua intenção, quando alheios a esses ambientes.

Os autores da BNCC chegam a reconhecer que o excesso de interação dos


jovens com as TICs acarreta o imediatismo e a efemeridade das informações.
Retomando Sousa (2020), a facilidade com a qual os jovens obtêm o resultado 62
de suas pesquisas – “geração Google” – acaba desestimulando a sua busca por
informações, por aprimoramento escolar e intelectual. Portanto, o argumento da
BNCC de que a relação entre tecnologia e ensino acontece de maneira “natural”
é algo que não corrobora as visões acadêmicas sobre o assunto. Dito isso, o
fundamental seria pensarmos o planejamento quanto ao seu uso, em virtude das
características dos estudantes, da escola, do local onde esta se encontra e da
disponibilidade de recursos para a utilização destas tecnologias no processo de
ensino-aprendizagem.

No que concerne às Ciências Humanas, a BNCC destaca que estas contribuem


para o desenvolvimento da cognição e a contextualização da existência, através
das noções de tempo e espaço. Em seguida, os autores reforçam que as
Ciências Humanas favorecem a “[...] crítica sistemática à ação humana, às
relações sociais e de poder e, especialmente, à produção de conhecimentos e
saberes” (BRASIL, 2018, p. 353). Em seguida, ao tratar da passagem do
Fundamental I para os anos finais desta etapa da Ensino Básico, a BNCC pontua
que os estudantes dialoguem com percepções e representações singulares de
mundo, as quais favorecem a comparação para que possamos perceber como
cada sociedade desenvolve a justiça e criam um novo campo republicano de
direitos (BRASIL, 2018, p. 354). Nos interessa perceber que o discurso inerente
à BNCC culmina em um viés que representa esse documento como pleno
conhecedor dos problemas de nossa sociedade. No entanto, se compararmos
os dois excertos citados, vemos um generalismo velado, pois embora o sujeito
seja crítico, ele deve entender os “novos campos republicanos do direito”.

A postura empregada pelos autores deste documento, em conformidade às


demandas político-institucionais brasileiras, se insere naquilo que Evgeny
Morozov (2013) definiu como solucionismo. Ao adaptar esse conceito da
arquitetura, Morozov definiu que o solucionismo seria a ideia de que problemas
profundos podem ser solucionados com atividades, práticas e/ou medidas
(eletrônicas, sobretudo), cuja efetividade e o excesso de informações favorecem
a tomada de consciência sobre os problemas vivenciados em sociedade.
Portanto, se existe um problema de conexão entre pessoas que utilizam serviços
de compras e a distância de suas casas, o solucionismo permite que empresas
de aplicativos liguem os usuários com os fornecedores, lucrando com a
conectividade e os dados fornecidos. Entretanto, ainda que esses meios
assegurem a resolução do problema, ele se exime da responsabilidade do
insucesso de seu uso, visto que apenas conectaram necessidades e não se
responsabilizaram pelo mal uso do serviço prometido (MOROZOV, 2013, p. 1-
5). O problema do solucionismo lida com a definição de problema ao invés da
solução proposta. Nesse sentido, este conceito presume os problemas que está
tentando resolver, ao invés de investiga-los, isto é, ele busca a resposta antes
que as perguntas tenham sido formuladas. Assim, a maneira como os problemas
são compostos, importa da mesma maneira como eles serão desenvolvidos
(MOROZOV, 2013, p. 6).

Se direcionarmos o conceito de solucionismo à maneira como o discurso da 63


BNCC representa a educação no Brasil, com ênfase às Ciências Humanas,
temos que o uso de tecnologias capazes de promover a interação dos
estudantes com linguagens e visões de mundo diversas, garantiria um
posicionamento crítico em suas vidas e permitiria o desenvolvimento de uma
sociedade mais justa e igualitária, apta a minimizar preconceitos e injustiças. No
entanto, o uso de TICs não assegura o aprimoramento do ensino e nem mesmo
garante que os sujeitos se tornarão mais conscientes de seu papel no mundo.
Logo, a relação entre tecnologia, educação e melhoria da sociedade foi tomada
de forma causalista, sem considerar as variáveis inerentes ao processo de
implementação de currículos, os quais se dão em virtude das singularidades de
cada instituição escolar.

A BNCC e o Ensino de História Antiga


Se pararmos para pensar essa premissa ao Ensino de História Antiga na
Educação Básica, verificaremos alguns problemas que merecem ser discutidos.
Os autores da BNCC destacam que no 5º Ano do Ensino Fundamental é que os
estudantes serão colocados a pensar a diferença entre povos, culturas e as suas
formas de organização (BRASIL, 2018, p. 404-405). Em seguida, destaca-se que
a pólis representou o aprimoramento do sujeito “tanto do ponto de vista político
quanto ético”. Tal assertiva se mostra problemática e generalista como se – por
um critério evolucionista – todas as comunidades antigas ocidentais se
organizaram no modelo políade. Outra limitação identificada reside na
apresentação do termo no singular – pólis – uma vez que, na Antiguidade
helênica muitas foram as formas de organização política em função do modelo
políade.

Ao apresentar as Unidades Temáticas do 5º Ano e os seus respectivos objetos


do conhecimento e habilidades, os autores da BNCC comentam sobre a
Antiguidade já no primeiro item, intitulado “Povos e culturas: meu lugar no mundo
e meu grupo social”. Todos os objetos do conhecimento relacionados a esse
tema são generalistas e causalistas, ou seja, vistos como etapas anteriores
aquilo que o Ocidente se tornará, porém, em uma perspectiva de causa e efeito.
Somado a isso, as habilidades propostas para esses objetos são anacrônicas
para pensarmos a Antiguidade, tal como observamos:

“(EF05HI02) Identificar os mecanismos de organização do poder político com


vistas à compreensão da ideia de Estado e/ou de outras formas de ordenação
social.
(EF05HI03) Analisar o papel das culturas e das religiões na composição
identitária dos povos antigos.
(EF05HI04) Associar a noção de cidadania com os princípios de respeito à
diversidade, à pluralidade e aos direitos humanos” (BRASIL, 2018, p.415 – grifo
nosso).

Na primeira habilidade citada, em função da Antiguidade, o conceito de Estado


é tomado de forma generalista. Posto que entre os especialistas de Antiguidade 64
clássica, a noção de Estado – atrelada à centralidade política dos governos
modernos e vinculada à ideia de direito – não se adéqua à organização política
do mundo antigo em função de suas características sociais, culturais e
econômicas. Na segunda habilidade, afirma-se que as comunidades antigas se
organizaram em função de suas culturas e religiões, o que afasta as sociedades
modernas de paradigmas semelhantes. A adjetivação dos povos como antigos
nos permite considerar uma gradação comparativa entre o que era feito e aquilo
que fazemos no presente, estando essa concepção do sagrado alinhada à
secularização. Já na terceira habilidade o problema reside nos direitos humanos,
os quais se associam ao pensamento europeu moderno – partindo de Locke e
culminando na Revolução Francesa. Com isso, conceitos e ideias
contemporâneas foram atribuídas ao mundo antigo sem o devido cuidado, o que
pode acarretar problemas de interpretação em momentos futuros.

Via de exemplo, se afirmamos que na Antiguidade haviam “direitos humanos”,


como justificar a escravidão como base da produção econômica de diversas
regiões mediterrânicas? Do mesmo modo, como afirmar que somente os antigos
organizaram as suas cidades em função do sagrado se, no Brasil do século XXI,
uma das maiores bancadas políticas reside nos grupos religiosos? Ou mesmo,
como falar em Estado na Antiguidade, quando a noção de direito – atrelada a
um código legal – não era percebida nos moldes ocidentais contemporâneos?
Dessa maneira, é possível que esse descuido generalista e causalista tenha se
dado pela falta de especialistas em História Antiga no tratamento dessas
temáticas, junto a BNCC. Afinal, é comum aos especialistas da área o cuidado
em lidar com certos conceitos aplicados ao mundo antigo, e quando necessitam
empregar ideias e valores de outras épocas fazem as devidas ressalvas.

No momento em que se inicia a exposição do conteúdo de História para o


Fundamental – anos finais, os autores destacam que o enfoque residirá nos
acontecimentos históricos importantes para o Ocidente, o que não corrobora à
tentativa de lidar com a diversidade, tal como se expôs no conteúdo do
Fundamental I (anos iniciais). Como a Antiguidade clássica é discutida no 6º Ano,
o seu conteúdo integra as seguintes Unidades Temáticas: “A invenção do mundo
clássico e o contraponto com outras sociedades” e “Lógicas de organização
política”. Em seus respectivos Objetos do Conhecimento, a Grécia é tratada
como uma unidade política e territorial, o que se materializa nas Habilidades
EF06HI10 e EF06HI12, onde temos:

“(EF06HI10) Explicar a formação da Grécia Antiga, com ênfase na formação da


pólis e nas transformações políticas, sociais e culturais.
(EF06HI12) Associar o conceito de cidadania a dinâmicas de inclusão e exclusão
na Grécia e Roma antigas” (BRASIL, 2018, p. 421).

As Habilidades em questão não se preocupam em reforçar que o número de


póleis catalogadas até hoje é superior a mil. Para tanto, se torna evidente que
em uma Grécia/Hélade que carecia de uma unidade político-territorial a 65
probabilidade de que todas as cidades tivessem o mesmo modelo de
organização política é praticamente zero. Do mesmo modo, ainda que tenham
vivenciado transformações em suas estruturas, a singularidade de seus
habitantes e de suas culturas inviabilizava processos idênticos entre as póleis.
Essa leitura pode ser realizada à questão da cidadania, uma vez que cada cidade
detinha critérios próprios para a assegurar a condição de cidadãos aos seus
membros.

Em certa medida, o tratamento dado a esses conceitos pela BNCC pretende


fomentar a consciência dos sujeitos acerca da diferença política e cultural entre
a Antiguidade e a Contemporaneidade. Ainda assim, em função do ideal de
respeito e diminuição das diferenças, parece que estudar sobre outras formas
de organização social, discutindo problemas e situações, tornaria os estudantes
conscientes de seu papel social. Nesse sentido, a BNCC adota uma postura
solucionista pautada em uma lógica de causa e efeito, na qual discutir política
torna o estudante politizado, analisar diferenças quanto à cidadania levaria o
jovem a lutar por direitos sociais etc. Em suma, o generalismo e a simplificação
de processos está propensa a reforçar preconceitos, ao invés de combate-los.
Isso porque o anacronismo nas definições e interpretações de mundo submete
culturas e comunidades separadas de nossa sociedade no tempo e no espaço,
aos pressupostos e exigências do mundo contemporâneo.

No Ensino Médio, em função dos Itinerários Formativos, os eixos temáticos


acabam se tornando mais fluidos, se comparados ao Ensino Fundamental. Por
outro lado, o generalismo se acentua quanto à percepção da política na
Antiguidade e a sua relação com o Ocidente contemporâneo. Ao apresentarem
a categoria Política e Trabalho, os autores afirmam que:

“[...] a política está na origem do pensamento filosófico. Na Grécia Antiga, o


exercício da argumentação e a discussão sobre os destinos das cidades e suas
leis estimularam a retórica e a abstração como práticas necessárias para o
debate em torno do bem comum” (BRASIL, 2018, p. 567 – grifo nosso).

Novamente, a Grécia é tomada como uma unidade, cuja organização política foi
idêntica em todas as póleis, por meio da argumentação e da discussão dos
interesses da maioria dos cidadãos. Essa é uma premissa “atenocêntrica” que
considera a democracia como forma majoritária de governo na Antiguidade
grega/helênica. Tal postura não coaduna os indícios literários antigos, visto que
a democracia foi criticada por diversos pensadores – como o “Velho Oligarca”,
Xenofonte, Platão, Antístenes etc. – e esteve longe de ser hegemônica entre as
póleis.
Por fim, os autores se utilizam de um posicionamento solucionista para endossar
o aprendizado da democracia pelos estudantes do Ensino Médio:

“A política, em sua origem grega, foi o instrumento utilizado para combater os


autoritarismos, as tiranias, os terrores, as violências e as múltiplas formas de 66
destruição da vida pública” (BRASIL, 2018, p. 567).

Nos chama a atenção a ideia de que os estudantes, por discutirem sobre a


política grega – nesse caso, ateniense – seriam capazes de se tornarem
tolerantes para com a opinião do outro, respeitosos para com visões de mundo
diferentes e conscientes de que somente um posicionamento democrático
poderia acabar com as injustiças do mundo. Esse tipo de pensamento é
preconceituoso, ainda que não explicite que a democracia é a forma de política
grega apresentada, posto que nem todas as localidades do mundo
contemporâneo veem a democracia como algo benéfico para as suas culturas e
sociedades. Do mesmo modo, se conhecer sobre a democracia tornasse as
cidades menos autoritárias e violentas, não estaríamos vivendo um caos político-
social e sanitário no Brasil, afinal, por termos sido criados em uma República de
matriz democrática, deveríamos estar à beira do “Nirvana” e não do caos que
temos presenciado.

Considerações parciais
Como as discussões deste texto pretendem iniciar análises, muitas questões
ainda merecem ser discutidas. Ainda assim, o estudo desenvolvido nos ajuda a
perceber que os desafios para com a educação se iniciam na sala de aula, mas
não serão resolvidos unicamente nela. Do mesmo modo, verificamos a
discrepância entre o discurso da BNCC – que pretende fomentar a percepção
crítica da realidade, além do respeito à diversidade e o combate às injustiças –
e a maneira como os seus conteúdos foram sistematizados – ou seja, de modo
generalista, taxativo e Ocidental. Nesse sentido, a tecnologia se tornou uma
“muleta” na qual devemos nos apoiar para fomentar uma educação de qualidade,
porém, esta é um instrumento que está longe de nos fornecer soluções para os
problemas que existem em nosso sistema educacional. Observamos também
que, na maioria dos casos, os autores adotaram posturas solucionistas, as quais
sugerem mecanismos para sanar uma limitação, mas não se preocupam em
resolver o problema em sua essência. Entretanto, devemos recordar que a
BNCC fornece parâmetros para se pensar o currículo, algo que não inviabiliza
uma postura distinta do professor em sala de aula, dotado de um planejamento
contundente, em função das características de suas turmas e escolas.

Referência biográfica
Dr. Luis Filipe Bantim de Assumpção é Professor Adjunto I da Universidade de
Vassouras, campus de Maricá, no curso de Pedagogia, Coordenador de
Doutorado Local em História na Universidade de Vassouras, em parceria com a
UNISINOS e possui Pós-doutorado em Letras Clássicas pelo PPGLC-UFRJ.
Assumpção também é Professor da Educação Básica na rede particular de
ensino no Município do Rio de Janeiro.

Referências bibliográficas
ALBUQUERQUE JR., D. M. de. História – A Arte de Inventar o Passado. Curitiba:
Appris, 2007. 67

ANTELA-BERNÁRDEZ, B. El cómic y la enseñanza de la Historia em la


Pedagogía de la Escuela Viva. In: CAMPOS, C. E. da C.; ASSUMPÇÃO, L. F. B.
de; SOUZA NETO, J. M. G. de. História em Quadrinhos em Perspectiva para o
Ensino de História. São João de Meriti, RJ: Desalinho, 2020, p. 61-80.

BITTENCOURT, C. Ensino de História: fundamentos e métodos. 5ª ed. São


Paulo: Cortez, 2018.

BRASIL. Ministério da Educação. Base Nacional Comum Curricular. Brasília,


2018.

CAMPOS, C. E. da C.; ASSUMPÇÃO, L. F. B. de. Watchmen, a contracultura e


o Ensino de História – desafios e possibilidades em sala de aula. In: _____;
_____; SOUZA NETO, J. M. G. de. História em Quadrinhos em Perspectiva para
o Ensino de História. São João de Meriti, RJ: Desalinho, 2020, p.261-290.

CERRI, L. F. Ensino de história e consciência histórica. Rio de Janeiro: Editora


FGV, 2011.

GUARINELLO, N. L. História Antiga. São Paulo: Contexto, 2013.

KARNAL, L. Introdução. In: _____ (Org.). História na sala de aula: conceitos,


práticas e propostas. São Paulo: Contexto, 2015, p. 7-14.

MOROZOV, E. To Save Everything, click here: The Folly of Technological


Solutionism. New York: Public Affairs, 2013.

SOUSA, R. C. de. Homero em Quadrinhos: os usos da Ilíada e da Odisseia. In:


CAMPOS, C. E. da C.; ASSUMPÇÃO, L. F. B. de; SOUZA NETO, J. M. G. de.
História em Quadrinhos em Perspectiva para o Ensino de História. São João de
Meriti, RJ: Desalinho, 2020, p. 81-122.

VASCONCELOS, J. A. Metodologia do Ensino de História. Curitiba:


InterSaberes, 2012.
LA FILOSOFÍA ANTIGUA EN TIEMPOS DE COVID-19:
UNA MIRADA ANTROPOLÓGICA
María Cecilia Colombani e Guido Fernández Parmo
68
Resumen
El proyecto de la presente comunicación consiste en pensar la práctica docente
como un ejercicio de poder. Tomamos el concepto de positividad del poder de
Michel Foucault (1992), ya que el mismo aparece como productor de efectos,
vehiculizador de saberes, inductor de prácticas. En ese horizonte, nos
proponemos valorar la enseñanza de la filosofía antigua, así como su
instrumentación didáctica, en el marco de la actual coyuntura antropológica,
sobre todo a partir de los procesos de transformación de la subjetividad, propios
de las actuales condiciones materiales de existencia, marcada por la pandemia
de Covid-19 que nos atraviesa como sujetos.

Intentaremos profundizar acerca de la enseñanza de la filosofía antigua desde el


vínculo que se genera entre Antropología y Educación, en la medida en que la
praxis educativa supone al hombre como una unidad problemática. Asimismo,
se privilegiará la relación entre Educación y Política, por cuanto consideramos al
hecho educativo como hecho político, en tanto productor de efectos.

A modo de ejemplo y como reflexión didáctica, la propuesta cruzará el núcleo de


problematización con un texto de carácter introductorio de enseñanza de la
filosofía: “Los orígenes de la filosofía” del pensador alemán Karl Jaspers (1981).

De este modo, utilizaremos un texto de circulación corriente en las aulas a modo


de plataforma de reflexión ético-político-antropológica que puede contribuir con
ese vínculo entre filosofía y enseñanza.

El trabajo recorrerá, pues, dos momentos. En primer lugar, desplegaremos


algunos conceptos antropológicos ya esbozados, para fundamentar la absoluta
solidaridad entre educación y antropología. En segundo lugar, abordaremos el
texto mencionado, a fin de ensayar una lectura problematizadora del mismo.

Nuestro propósito apunta a fortalecer la atención sobre los elementos


insoslayables a considerar a la hora de transformar la enseñanza de la filosofía
antigua en un ámbito propicio de la transformación de la educación, que aparece
como demanda social a la que responder con urgencia. Estamos convencidos
de que es impensable revertir los actuales modelos, sin delinear campos de
preocupación curricular desde una perspectiva político-estratégica.

La enseñanza de la filosofía antigua representa una de esas estrategias que


pone a la educación en clave de praxis resistencial. Parece ser una de las llaves
de la constitución del sujeto ético-político y la herramienta solidaria entre
educación, ética y política. Estamos convencidos de que la educación debe
liderar el proyecto ético-político de sustentar el ejercicio docente como un modelo
de instalación en el mundo.

El texto de Jaspers refleja la posibilidad de problematización al respecto. Opera


como una usina capaz de propiciar el pensamiento, de provocarlo, apta para
interpretar la realidad y transformarla. No solo la realidad en la que el sujeto se 69
halla inmerso, bajo las actuales circunstancias de pandemia, sino la subjetiva de
hombre comprometido con su tiempo histórico, lo cual lo territorializa en un doble
campo: el cuidado de sí y el cuidado del otro. Propiciar un pensamiento de estas
características es favorecer un pensamiento político que produce efectos sobre
sí y sobre los demás. Preparado para producir transformaciones en aras de una
sociedad más justa e inclusiva, quizá sea el desafío de enseñanza de la filosofía
antigua.

El topos antropológico: krisis, kairos, epimileia, therapeuo


El hombre puede tomar distancia de la naturaleza y esa distancia es el acto
transformador por excelencia. Toda poiesis supone un acto de creación que hace
del universo un mundo humano, al tiempo que supone una instalación ética, ya
que es, al mismo tiempo, lo que despliega un ethos, una actitud, una manera de
ser, un modo de vida. Creación e instalación son las claves que hacen del
hombre una unidad problemática cuya existencia gira en torno al puesto que
ocupa en el cosmos. Instalarse en el actual escenario de pandemia de Covid-19
y desarrollar las estrategias de enseñanza que permitan llegar al mayor número
de estudiantes es una forma de re inventarse como sujeto capaz de dar
respuestas a su coyuntura histórica.

Todo campo institucional representa un topos de poder; incluso, los saberes se


configuran en campos de poder, ya que se erigen como posibilidades operativas
sobre lo real (FOUCAULT, 1992). La escuela tiene el desafío histórico de
delinear los saberes que vehiculicen una transformación posible, puntualmente
en los juegos vinculares que atraviesan a sus actores. En el presente trabajo,
orientamos la mirada hacia aquella dimensión de lo humano que, a nuestro
criterio, representa el cimiento mismo de toda construcción ulterior. Se trata de
reinstalar un espacio de convivencia donde puedan insertarse luego los objetos
de conocimiento y allí apostar a la enseñanza de la filosofía antigua como un
desafío. Asimismo, intentamos problematizar el actual imaginario de “lo político”,
y de la enseñanza como espacio “a-político”, para ver en qué medida la
institución educativa no puede permanecer ajena a una concepción de lo político.

El enfoque supone la complejidad e intersección de campos que no son


compartimientos estancos. La educación es esencialmente una experiencia en
diálogo con la política, la ética, la antropología y todo aquello que conciba al
hombre de manera integral. La propuesta es pensar la enseñanza de la filosofía
antigua en tiempos de Covid-19 desde ciertos horizontes de marcado acento
griego: la noción de krisis, de kairos y la de epimeleia, emparentada con el verbo
therapeuo. Se impone un recorrido por ellos para luego elaborarlos políticamente
y ver su impacto en el campo de la enseñanza.
Siguiendo la huella etimológica del término krisis, encontramos una serie de
significados sugerentes, alejados de la usual visibilización del término:
separación, distinción, elección, disentimiento, disputa, decisión, sentencia,
resolución, entre otros. La totalidad del campo semántico es solidario con la
propuesta del presente trabajo, en la medida en que buscamos indagar un 70
proceso de separación, de distinción y elección entre distintos modos de
instalación subjetiva, en el marco de lo que constituye una decisión, una
resolución por parte del sujeto, como forma de instalarse éticamente, reforzando
los lazos de solidaridad que la enseñanza de la filosofía antigua supone como
hecho antropológico-político. La crisis actual distingue y discrimina los lazos
sociales vitales de los antivitales, vínculos que contribuyen con la vida y los que
contribuyen con la muerte. Los distintos modelos puestos en juego por los países
ante el virus ya han dejado en evidencia las consecuencias de políticas que
desprecian la vida humana y, de manera irracional, privilegian la ganancia
económica ante la vida. Nunca los griegos estuvieron más cerca para
enseñarnos, tal como lo decía Aristóteles en Ética a Nicómaco (1096 a 5), que
el género de vida dedicado a los negocios no es, por lejos, un modo de vida
virtuoso, sino, más bien, biaios, violento y forzado. El Covid-19 también desnuda
a los negocios como una actividad forzada, necesaria, compulsiva, pero que nos
aleja del cuidado que debemos tener.

El mismo verbo krino alude a la noción de separar, distinguir, escoger, decidir,


juzgar, condenar. En efecto, se trata de distinguir entre distintas políticas que
definen otros modos de constitución subjetiva, en el marco de lo que constituye
una política de la existencia.

La huella semántica del término epimeleia nos sitúa en el corazón mismo de la


experiencia. Cuidado, atención, solicitud, dirección, administración, estudio,
práctica. La diversidad semántica abre las distintas aristas del fenómeno mismo.
Una vez más, se trata de pensar la relación entre ética y antropología, como
aquello que determinará un modelo de sujeto capaz de tener autoridad, potestad
sobre sí, al tiempo que reconocerá la praxis solidaria que los tiempos de
pandemia exigen como acto de transformación subjetiva. ¿Qué cuidados
tenemos de nuestra propia existencia? ¿En qué sentido un aislamiento social
como el que estamos atravesando puede devenir en una práctica que fortalezca
nuestra existencia? El aislamiento nos separa, entre otras cosas, de las
distracciones que el mundo actual nos ofrece y que desvían la atención de
nuestro cuidado. Encerrados en nuestras casas, departamentos, estamos en un
momento privilegiado para reconocer la necesidad de una atención hacia
nuestros cuerpos a través de prácticas físicas y mentales. El cuidado de sí se
vuelve existencia que se hace, entonces, más consciente de nuestras
debilidades y fortalezas, más exclusiva en nuestros sentires, pasiones y
placeres, porque la atención a uno mismo lleva la discriminación, que habilita la
krisis en el campo socio-político, a nuestra propia existencia, a nuestra
interioridad.
¿En qué medida el verbo therapeuo nos ubica en el tópos que estamos
problematizando y en qué sentido resulta una noción nodular dentro de esta
economía de cuidado de uno mismo? Alude a la acción de estar al servicio de,
cuidar, guardar, atender, tener cuidado de, honrar, curar. Conocerse a sí mismo
implica reconocerse como persona y ese gesto supone honrarse. Honrar la
propia vida, la cual toma, una vez más, un valor estético y político en la medida 71
en que es el modo de estar comprometidos con uno mismo (epimeleia heautou)
y con el otro. Aquí podemos pensar en el sentido político de la salud presente en
el médico del siglo V Alcmeón de Crotona, cuando definía a la salud en tanto
isonomía y a la enfermedad en tanto monarkhía (LLANOS, 1989, p. 159). La
salud es también una cuestión política que se alcanza cuando los y las habitantes
de una ciudad pueden vivir como semejantes, cuando las jerarquías de clase,
raza y género se suspenden ante el bien común.

El punto de partida antropológico es siempre el mismo; se nos impone repensar


la situación que nos atraviesa como primera instalación que habremos
construido como sujetos creadores capaces de responder a las demandas de un
tiempo transido por el dolor.

En ese sentido, la tarea es movilizar el pensamiento, entendiéndolo como una


caja de herramientas capaz de interpretar la realidad y transformarla,
reconociendo que el lógos es lo común, koinos, lo que todos tenemos. No solo
se trata de la realidad en la que el sujeto se halla inmerso, sino su propia realidad
subjetiva, como hombre comprometido con su tiempo histórico, lo cual lo
territorializa en un doble campo: en el del cuidado de sí y el del cuidado del otro.
El camino contrario es el del aislamiento idios, el encierro en uno mismo, en el
egoísmo privado, que hace de los humanos, como decía Heráclito, “necios” que
viven como si estuvieran dormidos. En el fragmento 2, Heráclito afirma que es
preciso “seguir lo que es general [xynou] a todos, es decir, lo común [koinon];
pues lo que es general a todos es lo común. Pero aun siendo el logos general a
todos, los más viven como si tuvieran una inteligencia particular [idios]”
(MONDOLFO, 1971, p. 30-31). Lamentablemente, existen políticas “necias”
guiadas por el egoísmo animal de los negocios que considera al ciudadano como
un átomo hobbseano que solo busca su interés, desconectado de los otros.
Nuestros Estados necesitan de una política heraclítea que entienda que una
nación es un Todo interrelacionado en que la salud de unos depende de la salud
de los otros necesariamente.

Propiciar un pensamiento de estas características supone ponerlo en un registro


político en tanto es capaz de producir efectos, sobre sí y sobre los demás. Un
pensamiento que genera transformaciones en aras de una sociedad más justa y
que, por otra parte, repiense el lugar de los jóvenes al interior de la misma, ya
que ellos constituyen el kairos de toda transformación. El término griego alude a
la idea de momento oportuno, coyuntura favorable, oportunidad, ocasión
propicia. El concepto lo pensamos desde un doble andarivel: en primer lugar, la
enseñanza de la filosofía antigua es ella misma kairos, siempre y cuando asuma
su rol político, y en segundo lugar, los jóvenes representan el kairos de una
nueva construcción moral.

Movilizar el pensamiento crítico en el sentido etimológico aludido es provocar la


acción a partir del maridaje entre la teoría y la acción. Se trata de la gesta
fundacional de repensar el propio lugar de instalación; de entender la acción en 72
tanto resistencia al modelo desubjetivante, individualista y narcotizante que
atraviesa la actual coyuntura antropológica, a partir de la vulnerabilidad del
colectivo. La resistencia debe pasar por ese cuidado de sí que es también
cuidado del otro. El retiro de la palabra y del sentido como núcleo cohesionante
ha determinado ese paisaje de vulnerabilidad, retiro del lógos convertido en
bravuconada, insulto, grito. Nuevamente Heráclito nos ilumina cuando afirma, en
el fragmento 34: “Los necios [axynetoi], aun oyendo, se asemejan a los sordos:
el proverbio, justamente, es testigo de ellos: que ‘hallándose presentes están
ausentes’” (MONDOLFO, 1971, p. 35). Son los que se apartan del pensamiento
común, los que pretenden vivir del interés privado y sin relación (axynetos) los
que fragmentan el cuerpo común de la sociedad y hacen de él un cuerpo
vulnerable. La krisis aparece entonces en tanto alternativa-resistencia y aquello
que genera el topos, territorio, de nuevas construcciones de las identidades y
nuevos mecanismos en los juegos vinculantes entre los sujetos, afectados por la
pandemia en tanto oportunidad para repensar un mundo más solidario y
equitativo, un mundo más común sin los muros idiotizantes de la clase, el género
y la raza.

La tarea pasa por el modelo del reconocimiento. Poder ver al otro, escuchar su
palabra, atender su reclamo, confiar en sus posibilidades poiéticas, que siempre
son posibilidades resistenciales. En un tiempo de aparente visibilidad y
transparencia de los cuerpos, el otro en cuanto persona queda invisibilizado y
silenciado desde su alteridad antropológica. El primer gesto es la propia mirada
de quienes sostenemos el ejercicio docente. Solo quien visibiliza desde su
instalación de enseñanza genera espacios de visibilidad.

Propiciar el pensamiento crítico es repensar el espacio ético en tanto cuidado del


otro, del par antropológico, en tanto co-gestor de un espacio de convivialidad
común. En tiempos de desamparo, el cuidado de sí es proporcional al cuidado
de otro como forma de generar nuevos modelos de instalación en el mundo.

Alentar el pensamiento crítico es apostar a un pensamiento nomádico.


Entendemos por ello una resistencia a toda fijación a-crítica, en tanto forma de
volver sedentaria la mirada y el compromiso. El nomadismo implica un cierto
modo de dirigir esa mirada, de estar atento a pensar aquello que la realidad
devuelve como topos de reflexión, existencia en devenir que se arriesga al
cambio del río. La enseñanza debe poder convertirse en pensamiento nomádico,
creativo, que pone en relación inventando nuevos modos de existencia más
saludables, tanto biológica como socialmente.
El dispositivo narcotizante e individualizante secuestra la energía, nos paraliza
como a un animal asustado en las fronteras del interés privado, conjurando las
posibilidades de movimiento y creación. Eso vuelve vulnerable a los sujetos;
constituye la imposibilidad de instalarse críticamente en la realidad y escoger las
herramientas para sortear un tiempo signado por nuevas formas de violencia. El
poder nos necesita paralizados, congelados de miedo, dormidos como necios 73
desconectados del cuerpo común.

El pensamiento nomádico es también aquel que sabe desterritorializarse del


entorno subjetivo, clausurado y cerrado, para buscar en la intersubjetividad un
espacio de acción común, a partir de la mutua afectación. Todos y cada uno nos
vemos afectados por esta pandemia. De allí que la enseñanza de la filosofía
antigua pueda ser aún en su forma virtual, la apuesta para el reconocimiento del
par que atraviesa la misma vulnerabilidad. La enseñanza siempre es páthos,
incluso antes que lógos o intelecto, porque es preciso afectar al otro, sacudirlo,
para des-entumirlo y sacarlo de su encierro. Incluso la virtualidad es capaz de
transmitir esas vibraciones revitalizantes a través de redes invisibles, el propio
ápeiron de Anaximandro escapaba a lo empírico siendo al mismo tiempo el ser
mismo de todo lo real (CASTORIADIS, 2006, p. 209).

El pensamiento nómade se opone al estático, el que no puede ni desea


movilizarse para reflexionarse sobre nuevos objetos. Se trata de un pensamiento
que moviliza al tiempo que él mismo se mueve deseando problematizar lo real.
Se trata del pensamiento del páthos, de un pensamiento que afecta, y de un
páthos que piensa. Mueve y se mueve y en ese movimiento, modifica tanto al
sujeto como a lo real mismo. Despertarse es agitarse y la enseñanza debe, más
que nunca, realizar esto, sea de la filosofía antigua, la historia de Grecia o su
literatura, pero en todos los casos enseñar y aprender no son otra cosa que
abrirnos a un modo de existencia que pone en juego el cuidado de sí y el cuidado
del otro.

Propiciar el pensamiento crítico desde la enseñanza de la filosofía antigua es


reinstalar la expectativa del pro-yecto, con lo cual se abre la dimensión del futuro,
como tiempo posible de acción. Vivirse como un proyecto es saberse “arrojado
al porvenir”, en la línea de la reflexión sartreana (SARTRE, 1975). La tarea es,
entonces, la reconstrucción del lazo vinculante como forma de consolidar la
posibilidad del proyecto compartido, como aquello que reinstala la noción de bien
común, hacer un paso atrás (Grecia) para transformar un presente (pandemia)
que nos vulnera hacia un futuro nuevo. El pro-yectum opera entonces como el
lugar del sentido, de aquello que vincula en la tarea compartida. Cuando el
proyecto se instala, se reinstala la posibilidad del futuro, conjurando la única
dimensión que el dispositivo narcotizante despliega: el presente.

La reapropiación textual: filosofía y ethos


A la luz del marco precedente donde hemos intentado desplegar el escenario
antropológico desde el cual pensamos la inserción de la enseñanza de la filosofía
antigua y luego de haber definido el proyecto de instalación que supone la praxis
educativa, proponemos algunas reflexiones reapropiándonos del texto escogido.

Recordemos cuáles son los cuatro orígenes que Jaspers postula para ver en qué
medida guardan relación con el escenario precedente, a partir de la apropiación
antropológica que proponemos de los mismos. 74

Asombro
En primer lugar, pensemos en el asombro. Si en el marco textual el asombro
representaba el pathos frente a la vastedad de lo real, ahora retorna en el desafío
de recuperar la capacidad de asombro frente a la actual situación provocada por
el Covid-19. Θαυμάξω significa admirar, mirar hacia, extrañarse, mirar con
sorpresa, preguntarse con admiración o curiosidad. Sabemos que así nació la
filosofía griega, que esa capacidad de asombro ha sido el páthos del
pensamiento griego, y de ella tenemos que aprender. El asombro es fuente de
pensamiento cuando se enfrenta a aquello que, como sostiene Deleuze (2009,
p. 214) nos fuerza a pensar. Para los jónicos fue la multiplicidad y la mutabilidad
de ta panta, de lo real, en tanto experiencia inquietante; para nosotros, la
experiencia de que el cuidado de sí y el cuidado del otro forman parte de una
misma estructura común. El asombro es el encuentro con lo inquietante, como
cuando Platón dice en República (523 b): “entre los objetos sensibles hay unos
que nos animan [παρακαλοῦντα] la inteligencia a examinarlos, porque para su
examen bastan los sentidos, en tanto que otros reclaman ese examen con
urgencia porque los sentidos no consiguen de ellos nada válido”. Según Deleuze
(2009, p. 214), este pasaje distingue entre dos tipos de cosas, “las que dejan el
pensamiento tranquilo, y las que fuerzan a pensar”. El verbo parakaleô define el
páthos del encuentro con aquello que nos fuerza a pensar: convocar, llamar,
excitar, animar. Lo que a Platón le da que pensar es la experiencia de una
sensación que es al mismo tiempo sensación de algo duro y de algo blando, de
algo mayor y algo menor, como cuando miramos nuestros dedos: cada uno en
sí mismo no nos provoca nada, pero cuando los ponemos juntos, un mismo dedo
es mayor y menor, y allí se produce, entonces, el encuentro con una sensación
contraria que nos invita a pensar.

En nuestro caso, el asombro se da no solo ante la pandemia, ante la infinita


capacidad de la naturaleza de cambiar (eso ya lo sabíamos), sino ante la
experiencia existencial en la que el cuidado de sí depende del cuidado del otro,
una experiencia que suscita [parakaleo] “a la vez dos sensaciones contrarias”:
mi cuidado es también el cuidado del otro.

Esta es la clave de la propuesta: romper la familiaridad de lo cotidiano, neutralizar


su estatuto de natural para indagar por qué las cosas son como son, salir de ese
estado de entumecimiento en que nada nos convoca a pensar. Las cosas y las
relaciones humanas se han naturalizado transidas por el horror, la injusticia, la
falta de solidaridad y compromiso, la banalidad, las lecturas a-críticas, el no
reconocimiento de las diferencias, la invisibilización y silenciamiento de
colectivos sociales, las formas de explotación, las formas de sometimiento, la
pérdida de sentidos posibles, el empobrecimiento de los lazos vinculares. El
Covid no inventa nada más allá de sí mismo, pero sí revela las tendencias no
siempre visibles de nuestro mundo, entre las cuales están el deterioro de las
relaciones con uno mismo y con los otros y un modo de instalación existencial
en el que ya nada nos conmueve, inquieta, perturba, asombra, ya nada nos
fuerza a pensar. 75

Solo algunos hitos de un paisaje antropológico que pasa por habitual, natural,
familiar y consensuado desde la mirada y la complicidad. Por supuesto que no
anima al presente análisis la melancolía de un tiempo perdido, óptimo y
fatalmente perecido. Nada de eso; pero sí la mirada de un tiempo histórico de
una profunda conmoción antropológica, que no añora lo pasado, sino que mira
lo por venir con medida expectativa como el lugar donde lo nuevo puede surgir.
La enseñanza de la filosofía antigua es el territorio que es capaz liderar el
protagonismo del asombro en el sentido aludido.

Maravillarse significa mirar de otro modo, direccionar la mirada para romper lo


familiar y extrañarse. Creemos que este es el punto de partida de un nuevo lógos,
de una nueva palabra-instalación sobre aquello que abandona su habitual
configuración de ser para pasar a ser parte del asombro.

Admirarse implica dar cuenta de la relación hombre-mundo, para instalarse en él


desde otro lugar. El asombro invita a pensar, a convertir en lógos aquello que en
principio suspende la palabra. A un primer momento de silenciamiento frente a
la situación que extraña, se inicia un proceso de toma de la palabra, como intento
de nombrar lo nuevo. En esta línea, la genealogía de sesgo nietzscheano-
foucaultiano (FOUCAULT, 1979) representa una herramienta de instalación útil.
La pregunta que acompaña al asombro quizá sea ¿por qué somos lo que
somos?, ¿cómo hemos llegado a ser lo que somos? ¿cómo hemos llegado a
estar tan profundamente anestesiados?, ¿qué condiciones sociales y afectivas
nos han encerrado en nuestras vidas privadas, en nuestros ensueños, al punto
de ya no ser más que necios-axynetoi que no podemos vivir en el encuentro con
el otro? ¿cuáles son las condiciones de posibilidad para que se produzcan
determinadas realidades? Así, el pensamiento deviene “caja de herramientas”
capaz de interpretar la realidad pero, al mismo tiempo, comprensión política que
entraña deseo de transformación. El pensamiento político radica precisamente
en esa trilogía que aúna interpretación-instalación y transformación, como forma
de un nuevo ethos en el que volvamos a encontrarnos en lo común. Asombrarse
es con-mocionarse, moverse en otra dirección. He allí el horizonte del
pensamiento nómade al que aludiéramos; la vieja forma de ver-pensar se
desterritorializa hacia otra forma nueva.

El pensamiento se entrena para instalarse frente al pro-blema. El término es rico


y significativo a la presente propuesta: problema, cuestión, propuesta, pero
también, saliente, promontorio, baluarte, barrera. El problema opera como una
barrera a sortear, un nudo a desanudar y allí radica la dimensión política de todo
pensamiento, el origen problemático del pensar (FOUCAULT, 1979). La tarea
filosófica y la instalación docente es generar el problema, proponer el nudo para
desanudarlo reflexivamente, hacer de la enseñanza un tópos problematizante,
es decir, una experiencia que nos fuerza a pensar. Si no queremos que el poder
utilice al Covid-19 para reforzar sus tendencias antivitales, es preciso salir a su
encuentro en tanto medio de revitalizar al pensamiento. La filosofía antigua no
puede ser simplemente el reconocimiento de viejos sistemas de ideas, un tipo 76
de reconocimiento que no invita nunca al pensar, sino una revitalización de su
potencia que sale al encuentro de nuestro presente.

Duda
En segundo lugar, pensemos en la duda. Si en el texto de Jaspers la duda
representaba el espíritu crítico frente a la totalidad de lo conocido, ahora retorna
en el desafío de recuperar la capacidad de dudar. El intento está directamente
relacionado con el apartado anterior, ya que dudar es poner en clave
interrogativa las certezas que otorgan la habitud de las cosas y las situaciones.
La duda, al generar la pregunta, rompe el tópos sosegante de la certeza y abre
un nuevo espacio a transitar.

La duda desterritorializa el pensamiento clausurado e impermeable a lo nuevo;


es un punto de fuga, una instalación en aquello que la certeza a-crítica
invisibiliza. Es esta función incomodante de la filosofía la que debe animar
cualquier enseñanza de la disciplina.

La duda provoca al pensamiento, como bien lo sabían los griegos, al hacer del
lógos una palabra político-filosófica: el Ágora y la Asamblea como dos caras de
la misma experiencia de un pensamiento despierto, crítico, vital y perturbador.
Filosofía y Democracia crecen en el nervio del Cuestionamiento. Interrogar las
representaciones hegemónicas que quieren anestesiarnos, cuestionar el orden
social que quiere encerrarnos en nuestras intereses privados. Poner en duda es
desnaturalizar y criticar, en el sentido heracliteano, nietzscheano y marxiano de
mostrar las condiciones de producción de los modos de existencia, esto es, el
fondo común y en relación del cual surge la realidad.

La duda nos instala en el lugar de la angustia, ya que al quedar suspendidas las


certezas, el sentimiento que nos invade es el de intemperie, el de ser efectos de
un fondo sin fondo, des-fundado y des-fondado al mismo tiempo pero que, por la
misma razón, es fuente de transformación y de movimiento. Eso también marca
a la filosofía como ethos existencial, sobre todo porque el sentimiento de
intemperie moviliza la capacidad de pensamiento nomádico. De este modo, la
duda se convierte ella misma en kairos, en oportunidad de una nueva
construcción, que tenga el sello de la responsabilidad del sujeto y no de la
recepción pasiva de construcciones ficcionadas por otros. El Covid-19 es
también el kairos en donde es posible generar nuevos lazos sociales, nuevos
pensamientos alejados del poder que nos quiere separados por los muros de la
indiferencia, del egoísmo, de las identidades exclusivas. Como todo
acontecimiento, el Covid-19 nos pone frente a la novedad que siempre es
condición de un futuro distinto. Gobernantes, hábitos, consumos, placeres,
intereses, prácticas, empiezan a mostrarse bajo el tono corroído de todo lo viejo
que tiene que perecer para hacerle lugar a lo nuevo.

Dudar supone la tarea de de-construcción de lo dado y la poiesis de construcción


de lo por venir, convirtiéndose en una fuerza desterritorializante por excelencia
que rompe la permanencia-identidad de la certeza como fuerza territorializada y 77
congelada.

Situaciones límites
En tercer lugar, pensemos en las situaciones límites. Si en el texto de Jaspers
representaban aquellas situaciones de las cuales el hombre no podía evadirse
porque constituían el corazón de su condición humana, ahora el tema retorna en
el desafío de recuperar la capacidad de hacerse cargo de sí para devenir un
sujeto responsable.

Quizá sean las situaciones límites las que impactan más directamente en el
universo antropológico. Si el asombro y la duda parecen estar ligadas al mundo
exterior, más allá de que convoquen a una disponibilidad por parte del sujeto en
una nueva forma de mirar, las situaciones límites impactan sobre el mundo
interno del sujeto. En este punto el sujeto se mira a sí mismo como nudo
problemático.

Tal vez sea el ejercicio docente una buena excusa para introducir a los griegos
desde un horizonte de absoluta vigencia (FOUCAULT, 1996). En ese marco se
imponen dos conceptos: el de epimeleia y el de epistrophe. Ambos términos se
complementan con la expresión eis heautou, la cual da cuenta del “hacia sí
mismo”. Epimeleia, tal como anticipamos, se refiere al cuidado, y el verbo en su
forma media, epimeléomai, significa cuidarse, preocuparse, cuidar de.
Epistrophe, por otra parte, como noción complementaria, es la acción de volverse
o tornarse, solicitud, atención. Suficiente marco para comprender una fuerte
acción del sujeto sobre sí mismo como modo de volver la mirada sobre su propia
finitud. Si con anterioridad habíamos pensado la dirección de la mirada sobre lo
nuevo, lo que asombra y lo que genera duda, ahora el ejercicio de la mirada se
direcciona sobre cada uno como espacio ético-antropológico. El virus también
revela nuestra precariedad ontológica y nos obliga a comprometernos con ella
apartándonos del falso sentimiento de inmortalidad que nos ofrece el
entumecimiento necio [axynetos].

La idea es repensar la propia constitución subjetiva como tarea etho-poiética.


Volverse uno mismo constituye también una situación límite, exactamente en el
punto donde no podemos evadirnos de la gesta. Aparece así el problema de la
subjetividad, de los llamados “modos de subjetivación”, en tanto constitución de
uno mismo como acto estético-político, modos de subjetivación que muestran la
absoluta dependencia de uno mismo con los otros, porque encontrarse con uno
mismo es encontrarse con el otro. Es la filosofía antigua en tanto pensamiento,
es decir, páthos que piensa, la que nos pone en relación con nosotros mismos.
Nuevamente, la enseñanza de la filosofía antigua debe nutrirse de esa reflexión
sobre uno mismo que, paradójicamente, nos conduce al otro.

Pensar la enseñanza de la filosofía como hecho político es pensar la posibilidad


de que el pensamiento se convierta en un agente productor de efectos. El gran
desafío y la mayor recompensa del ejercicio es un alumno capaz de asombrarse, 78
dudar y atenderse, en el marco de las consideraciones antropológicas
precedentes.

Conclusiones
El presente trabajo ha intentado pensar el ejercicio docente desde un juego de
intersecciones posibles. En primer lugar, le dimos al ejercicio un marco
antropológico para solidarizar dos nociones indisolubles: antropología y
educación, maridaje por fuera del cual no concebimos el hecho educativo.

En segundo lugar, propusimos un juego de apropiación textual a modo de


ejercicio de enseñanza filosófica y de plataforma de reflexión. El desplazamiento
efectuado nos condujo del eje del asombro-duda al de la constitución subjetiva
como núcleos de absoluta vigencia. El recorrido estuvo siempre guiado por el
convencimiento de que el pensamiento constituye una caja de herramientas
capaz de operar sobre lo real, incluyendo la propia realidad del sujeto,
convirtiéndose, entonces, en resistencia, en reacción responsable frente a una
acción.

La resistencia es entonces el acto estético de reinventar el mundo y reinventarse


como sujeto; es la apuesta de inventar un nuevo tópos que amplíe las daciones
de sentido. Salirse de sí, de lo aceptado a-críticamente, desposeerse de lo
habitual y seguro para poseer la posibilidad de los múltiples sentidos, perderse
para encontrarse desde otro espacio. Transgredir un espacio para asaltar otra
geografía. El pensamiento como acto ético-estético interrumpe las certezas que
los dispositivos aseguran en su lugar de primacía y el tiempo de la continuidad
que el mismo representa. El acto filosófico interrumpe esa continuidad porque
fractura el discurso que asegura certeza y continuidad para pensar la realidad
desde otro lugar.

Referências Biográficas
Dr.ª María Cecilia Colombani é Professora na Facultad de Filosofía, Ciencias
de la Educación y Humanidades da Universidad de Morón e na Facultad de
Humanidades. Universidad Nacional de Mar del Plata.
mcolombani@unimoron.edu.ar
Dr. Guido Fernández Parmo é Professor na Facultad de Filosofía, Ciencias de
la Educación y Humanidades da Universidad de Morón e no Instituto Superior
de Formación Docente nº 21 “Dr. Ricardo Rojas”
guidofernandezparmo@gmailcom
Referências bibliográficas
ARISTÓTELES. Ética a Nicómaco. Madrid: Centro de Estudios Políticos y
Constitucionales, 1999

CASTORIADIS, C. Lo que hace a Grecia. 1. De Homero a Heráclito. Buenos


Aires: Fondo de Cultura Económica, 2006 79

COLOMBANI, María Cecilia. Utopía, Política y Educación. La dimensión política


de la escuela como topos de reconstrucción ética. In: Actas del 50 Congreso
Internacional de Latinoamericanistas. Chile, 2003.

_____. La escuela como topos de reconstrucción ética. Un desafío para la


resistencia. In: Actas del III Congreso Europeo de Latinoamericanistas.
Amsterdam 3 al 6 de Julio, 2002.

DELEUZE, Gilles. Diferencia y repetición. Buenos Aires: Amorrortu, 2009

DIDIER, Eribon (dir.). El infrecuentable Michel Foucault, Renovación del


pensamiento crítico. Bs, As: Letra Viva y Edelp, 2004.

JASPERS, Karl. La filosofía desde el punto de vista de la existencia. México,


Fondo de Cultura Económica, 1974.

FOUCAULT, Michel. La microfísica del poder. Madrid: Las Ediciones de La


Piqueta, 1979.

_____. La Hermenéutica del sujeto. La Plata: Altamira, 1996.

LLANOS, A. Los presocráticos y sus fragmentos. Buenos Aires: Rescate, 1989

MONDOLFO, R. Heráclito. Textos y problemas de su interpretación. Buenos


Aires, Siglo XXI, 1971.

NIETZSCHE, Friedrich. La genealogía de la moral. Madrid: Alianza Editorial,


1972.

PLATÓN. República. Buenos Aires: EUDEBA, 1993.

SARTRE, Jean Paul. El existencialismo es un humanismo. Buenos Aires: Sur,


1975.
A HISTÓRIA DA ANTIGUIDADE NO SÉCULO XXI:
POTENCIALIDADES, RISCOS E CONQUISTAS
Pedro Vieira da Silva Peixoto
80
Em pleno século XXI, a Antiguidade encontra-se, hoje, mais diversa do que
nunca. Múltiplas temáticas, didáticas e abordagens são formuladas dia após dia,
produzindo visões mais heterogêneas sobre o passado antigo. Essa, aliás, deve
ser encarada como uma constatação animadora, sobretudo, se considerarmos
o lamentável cenário de instabilidade que a disciplina ainda enfrenta no Brasil.
Não me refiro, aqui, apenas ao contexto de cortes orçamentários testemunhados
nos últimos anos, mas, em particular, aos debates específicos quanto à sua
possível exclusão do currículo didático e a infundada, embora recorrente, crença
de que o ensino da Antiguidade seria irrelevante para um país “moderno” como
o nosso.

Apesar disso, antiquistas brasileiros têm atuado no ensino e na pesquisa de


modo ativo e crítico, desconstruindo um aglomerado de falácias que, com muita
frequência, são projetadas no ensino da antiguidade, como, por exemplo, a
noção de que o ensino da área seria apenas de interesse e relevância para
potências europeias atuais, ou, ainda, que seu estudo, no Brasil, seria
invariavelmente elitista. Tais mitos têm sido desconstruídos em múltiplas
vertentes. Os constantes exercícios de tradução empreendidos por colegas
brasileiros e lusófonos de textos clássicos para o português, a contratação de
novos especialistas em universidades sobretudo fora do eixo Rio-São Paulo e,
em especial, no interior do país, a criação de jogos didáticos com temáticas sobre
a Antiguidade, a consolidação de grupos de trabalho e pesquisa são, entre tantos
outros, fatores que vêm democratizando e disseminando o ensino e pesquisa da
Antiguidade em nosso país. Não obstante, muitos dos nossos antiquistas vêm,
igualmente, acusando e traçando importantes alertas sobre recentes
desdobramentos propostos pela BNCC, isto é, a Base Nacional Comum
Curricular e suas implicações diretas no ensino da história antiga e, em última
instância, nos próprios regimes de historicidade construídos sobre o passado
(COELHO & BELCHIOR, 2017; FRANCISCO, 2017; GREGORI, 2020; LEITE,
2017; MORALES, 2017; SANTOS, 2019; SILVA, 2010; SILVA, 2017; TACLA,
2015-17; 2019).

Boa parte da produção brasileira recente tem, ainda, ressaltado a importância do


ensino crítico da antiguidade como uma ferramenta valiosa para o entendimento
de experiências históricas plurais e de enorme relevância para os dias atuais.
Esforços do tipo vêm sendo concretizados, inclusive,níveis identitários nacionais,
examinando uma série de projeções e usos literários, urbanos, educacionais,
políticos e arquitetônicos do passado por nações como o próprio Brasil ao longo
de sua história (cf. CHEVITARESE et al. 2008; GARRAFFONI & FUNARI, 2012;
SILVA et al., 2020) ou, em outros casos, ressaltando os contextos plurais de
diversidade étnica, religiosa, e cultural da Antiguidade (BUSTAMANTE, 2006;
NOBRE et al., 2005; SILVA e SILVA, 2015; SILVA et al. 2019). Como Alexandre
Carvalho (2020, p. 32) coloca “a atualidade do ensino da História Antiga pode
ser alcançada por meio da discussão das fontes da Antiguidade, como
ferramenta de problematização e questionamento do contexto histórico atual,
como, por exemplo, o multiculturalismo e a globalização.”
81
Muitas dessas reflexões têm sido transplantadas também para o ensino. Essa é
uma realidade observável não apenas no aprendizado de nível superior, mas,
também, focado na importância essencial do ensino escolar, como atesta um
conjunto de discussões formuladas nas últimas décadas sobre os materiais
didáticos produzidos no século XXI, buscando ressaltar as visões projetadas e
reproduzidas sobre o mundo antigo em livros escolares, por exemplo
(BARNABÉ, 2014; CAMPOS & ASSUMPÇÃO, 2020; SILVA, 2000; 2001; SILVA
& GONÇALVES, 2001).

Eis que, diante do cenário exposto, podemos retornar ao ponto de partida deste
texto. Apesar de todas as adversidades encontradas, há uma perspectiva
animadora no horizonte. O ensino da antiguidade tem se mostrado dinâmico,
plural, consciente e, mais do que nunca, relevante aos temas, desafios e
questões caras à sociedade brasileira dos dias de hoje. Tem provado, em
especial, que a área possui muito a oferecer não só para o enriquecimento de
nossas compreensões sobre o passado, mas, também, sobre nossa(s) própria(s)
realidade(s), pois, afinal de contas, como já nos alertava o historiador francês
Lucien Febvre, qualquer que seja ela, a história é sempre filha de seu tempo:

“A história se encontra hoje diante de responsabilidades temíveis, mas também


exaltantes. Sem dúvida porque jamais, em seu ser e em suas mudanças, deixou
ela de depender de condições sociais concretas. A história é filha de seu tempo.
Sua inquietação é, pois, a própria inquietação que pesa sobre nossos corações
e nossos espíritos. E se seus métodos, seus programas, suas respostas mais
precisas e mais seguras ontem, se seus conceitos falham todos a um tempo, é
ao peso de nossas reflexões, de nosso trabalho e, mais ainda, de nossas
experiências vividas” (FEBRVE, 1952, p. 257)

Proferidas há mais de setenta anos atrás, em uma lição inaugural do Collège de


France em dezembro de 1950, as palavras de Febvre permanecem atuais. Não
só isso, elas continuam necessárias. Afinal de contas, a atualidade está sendo
marcada por um retrocesso de algumas formas de pensar que incluem, entre
tantas outras, o reavivamento de noções como as de terraplanismo ou mesmo,
no âmbito da história, muito frequentemente deparamo-nos com ideias e atitudes
que desembocam e culminam em perigosos revisionismos e negacionismos
históricos (PINSKY & PINSKY, 2021). Como Jaime Pinsky (2020), coloca “a
impressão que fica é a de que não existem mais fatos, apenas narrativa, ou seja,
versões todas igualmente válidas” e isso, não posso deixar de salientar,
representa um risco enorme para o modo como vivemos em sociedade. Tais
perigos se notam, em especial, quando consideramos o esforço feito por parte
de determinados grupos e camadas da sociedade de ocultar realidades bem
documentadas que dizem respeito, entre tantas outras coisas, a práticas e fatos
documentados durante experiências e regimes políticos ditatoriais, ou ainda
quando observamos um total negacionismo das piores atrocidades humanas já
cometidas.

Hoje, é preciso estarmos atentos e reconhecer que a história faz-se necessária 82


mais do que nunca e, como todo saber científico, ela também precisa ser
defendida. Nesse ponto, a realidade é sentida com mais peso e seu gosto é
muito mais amargo. Seria essa uma perspectiva demasiadamente pessimista?
Não creio. Basta lembrar que para cada um(a) leitor(a) de um texto como este,
há inúmeros tantos outros “artigos” em blogs escritos sem quaisquer
embasamentos, de viés puramente ideológico, cujos textos são compartilhados
entre centenas, milhares e milhões de brasileiros diariamente, à distância de um
clique, em um grupo qualquer de Whatsapp. As fakes news, por exemplo, são
uma realidade e seus riscos são bem reais – não se trata de um pessimismo,
mas uma constatação dos tempos que vivemos e devemos estar atentos aos
seus impactos (LEMOS & OLIVEIRA, 2020). Cabe a nós reconhecermos o
estado das coisas, examinarmos cirurgicamente o cenário, para então, de modo
crítico e consistente, traçarmos ações.

Esforços do tipo, aliás, já começam a ser empreendidos para o ensino. Um


exemplo pode ser encontrado no trabalho desenvolvido por Lima e Mendes
(2020) no ensino escolar da rede pública no interior do Ceará. Lá os docentes
utilizaram-se de textos e charges sobre fake news produzidos na esfera digital
para facilitar o aprendizado da língua inglesa a partir de temas polêmicos,
ensinando, simultaneamente, aos alunos, cuidados essenciais no que diz
respeito à verificação da veracidade de fatos, ao encaminhamento de
mensagens falsas e, ainda, como identificar características típicas de conteúdos
fake (LIMA & MENDES, 2020). Em meio a um cenário trágico, casos como esse
oferecem-nos uma perspectiva esperançosa. É preciso que esforços do tipo se
tornem cada vez mais presentes. A História, enquanto disciplina, tem muito a
oferecer, nesse sentido e publicações recentes como a de Jaime e Carla Pinsky
(2021) já começam a chamar a atenção para tal necessidade.

É importante ressaltar que, mesmo aqui, a história da Antiguidade possui um


enorme potencial para o debate. Basta lembrar que toda sorte de apropriações,
projeções e usos do passado antigo permeiam não só a esfera política, mas
também, as redes sociais de grupos políticos atuantes em nosso país.
Encontramos um caso icônico no movimento de extrema-direita conhecido como
“300 do Brasil”. O grupo ganhou projeção nacional em 2020, ao ser liderado por
Sara Winter, por promover protestos nos quais participavam membros armados,
por pedir o fechamento do Congresso Nacional e a saída de ministros do STF
(Supremo Tribunal Federal), por acampar e promover atos – por vezes,
utilizando-se de recursos como tochas, máscaras ou, mesmo, fogos de artifício
– na Esplanada dos Ministérios em Brasília, além de ser alvo do MPF (Ministério
Público Federal) em inquéritos que apuram a captação de recursos financeiros
para ações que se enquadrariam na Lei de Segurança Nacional. Vemos, no
entanto, um desejo de aproximação do movimento com certa noção particular da
antiguidade associada aos antigos espartanos. Essa característica é observável
a começar pela própria alcunha utilizada pelo grupo, já que em vários momentos,
desde o nome a determinados gritos de guerra, há uma alusão à icônica história
em quadrinhos “300”, criada em 1998 por Frank Miller e colorida por Lynn Varley
e, em especial, ao famoso longa metragem homônimo dirigido por Zack Snyder 83
lançado em 2007.

Encontramos, assim, um exemplo de como a pólis e a sociedade espartana


continuam a inspirar usos, abusos e apropriações distintas: do cinema, ao
quadrinho, passando pelas mídias sociais culminando em atos e demonstrações
políticas em um país sul-americano extremamente polarizado. Há aí um
potencial analítico para ser explorado em sala de aula. Diferentes realidades e
experiências históricas podem, assim, ser interconectadas de modo dinâmico e
familiar aos alunos, permitindo-nos, enquanto docentes, abordar de modo
criativo e crítico temas aparentemente desconexos. Já contamos, inclusive, com
reflexões que forneçam aportes valiosos para a realização de tais empreitadas.
Para nos concentrar, apenas, no caso já mencionado, isto é, relacionado ao
passado espartano, gostaria de ilustrar algumas contribuições recentes que
podem ser combinadas para tal finalidade.

Trabalhos como o do historiador espanhol César Fornis poderiam ser, aqui,


destacados. Isso porque suas investigações nos fornecem um conjunto de bases
analíticas profícuas para refletirmos sobre diferentes apropriações e
instrumentalizações políticas feitas sobre o passado espartano. Por exemplo, em
alguns casos, essas bases incluem discussões críticas sobre as representações
dos espartanos em animações, jogos eletrônicos e histórias em quadrinhos,
ressaltando diferentes formas de se pensar a antiguidade espartana que
circulam entre o grande público, mesmo (ou especialmente) quando elas não
possuem correlações diretas com ideias comumente observadas em círculos
acadêmicos sobre a Esparta antiga (FORNIS, 2020a). Em outros casos, esse
aporte pode ser encontrado em exercícios críticos de balanços bibliográficos.
Contamos, assim, com análises das discussões historiográficas formuladas a
respeito dos antigos espartanos em períodos distintos de produção intelectual.
Isso inclui discussões, portanto, elaboradas desde o século XIX, passando pelo
nazismo alemão, o comunismo soviético, até boa parte da historiografia do
século XX no ocidente europeu e nos Estados Unidos, atentando e mostrando
como, por vezes, os espartanos foram eleitos como “heróis” ou “anti-heróis” por
excelência, conforme as conjunturas políticas de cada momento e as afinidades
e inclinações ideológicas de determinados estudiosos (FORNIS, 2019; FORNIS,
2020b). Paralelos analíticos abundam e podem ser encontrados, em especial,
na literatura produzida em língua inglesa. Pode-se recorrer, nesse sentido, à
célebre obra editada por Ian Morris e Stephen Hodkinson (2012) que permanece,
ainda hoje, como uma importante referência para o entendimento do
pensamento histórico e político criado em torno da pólis espartana ao longo dos
séculos.
Tendo forjado tais bases, nesse caso, a título de exemplificação, ancoradas em
especial nas contribuições trazidas pelo trabalho de Fornis, poderíamos
acrescentar outras tantas, dessa vez, oferecidas pela historiografia brasileira. Eis
um excelente começo. O potencial do uso didático de HQs, como 300 de Miller
para o ensino de história já foi, por exemplo, elaborado em detalhe para o
contexto escolar brasileiro como gostaria de exemplificar, aqui, com o trabalho 84
de Luis Filipe Bantim de Assumpção (2020). A partir da leitura do autor, fica claro
que a utilização de obras como a de Miller para fins didáticos, apesar de seus
desafios, pode extrapolar a esfera do contexto antigo – o que, por si só, já seria
um resultado positivo. Isto é, sua incorporação de modo crítico e consciente por
parte do docente, pode abrir caminhos em duas frentes, facilitando o ensino da
história antiga e contemporânea.

Uma possibilidade de percurso pedagógico nesse sentido pode ser identificada


na interpretação contextualizada de documentos antigos e comparações com a
HQ a partir de temáticas selecionadas. Assumpção (2020) evidencia, por
exemplo, inúmeros paralelos que poderíamos traçar, em sala de aula, entre
representações do antigo e eventos recentes da história, como a Guerra Fria.
Logo, docentes podem se utilizar de tais materiais para pensar diferentes
estratégias de como abordar as aproximações entre o antigo e a
contemporaneidade a partir de recortes temáticos pré-estabelecidos. Um
exemplo que posso apontar é a possibilidade de pensarmos um conjunto de
analogias que o autor traça entre o preparo dos guerreiros espartanos e os
treinamentos dos US Marines, os Fuzileiros Navais dos EUA (ASSUMPÇÃO,
2020, p.53-7) e explorarmos tais conexões ainda à luz de outras temáticas como
construção do corpo e valores de masculinidade: ontem e hoje.

Temos, aqui, portanto, uma base sólida, que combina reflexões produzidas em
contextos internacionais e brasileiros à realidade em sala de aula atual: no caso
do trabalho de Assumpção, aliás, um contexto escolar brasileiro durante a
pandemia de Covid-19 e os desafios do ensino à distância. A essa base
podemos acrescentar outras contribuições historiográficas que possuem uma
coisa em comum: um intuito crítico em sublinhar não apenas o caráter
atenocêntrico de boa parte da documentação textual antiga, mas, ainda, o
objetivo de demonstrar como construções discursivas já estavam sendo criadas
sobre os espartanos na própria Antiguidade, em contextos arcaicos, clássicos,
helenísticos e romanos (ASSUMPÇÃO, 2019; BRUNHARA, 2019; FIGUEIREDO
& CÂNDIDO, 2019; GARRAFFONI, 2019; LESSA & ASSUMPÇÃO, 2017;
SILVA, 2019). Dessa forma, podemos atentar também em sala de aula como
trazer à luz diferentes mecanismos e recursos empregados por autores antigos
para transmitir mensagens particulares a suas audiências, com base em
narrativas criadas sobre qualquer que seja o tema: nesse caso, Esparta.

Em essência, acredito ser esse um exercício frutífero que nos permite questionar
e realçar a historicidade das construções discursivas de certos objetos por
determinados agentes, sejam eles soviéticos, bolsonaristas ou escritores áticos
antigos. Em minhas experiências didáticas venho buscando concretizar tais
esforços, especialmente, a partir do ensino de populações frequentemente ainda
negligenciadas pelo ensino da Antiguidade, como as populações da Idade do
Ferro europeia comumente denominadas como “celtas”. Cito um exemplo
recente.

Durante uma disciplina intitualda “As mulheres celtas na Antiguidade”, que 85


lecionei em 2019 no curso de graduação em História da UFRJ, como parte de
meu pós-doutorado, busquei traçar ao máximo um conjunto de pontes possíveis
com experiências atuais relevantes para lecionar sobre um conjunto de – por que
não dizer, “estranhas”? – construções de gênero observáveis a níveis
arqueológicos em distintas regiões da Europa. Um dos primeiros pontos que
busco reforçar é justamente essa noção de estranheza em relação ao material.
Trata-se de um estranhamento duplo: primeiro por se tratar de um material não
familiar aos alunos, com configurações distintas às tradições greco-romana e
judaico-cristã; em segundo lugar, há uma estranheza projetada na própria
antiguidade sobre essas populações, pensadas sob a ótica da alteridade,
enquanto bárbaras. Explorar esse estranhamento é benéfico: ele permite aos
discentes desenvolver sensibilidades intelectuais de modo a identificar e
contemplar diferentes modelos de existência no mundo, ao longo da história, e
diferentes formas de se interagir em sociedade, indiretamente, convidando-os a
refletir sobre a própria realidade do presente.

Mesmo um tema aparentemente tão remoto, como a história das mulheres ao


longo do primeiro milênio a.C. em regiões do oeste e norte europeu, permite-nos
traçar conexões frutíferas com questões atuais importantes. Em alguns casos,
chamei a atenção para isso dedicando as partes iniciais de certas aulas a
demonstrar como achados arqueológicos específicos, como tumbas
monumentais de mulheres bretãs e gaulesas antigas, como as sepulturas de
Wetwang Village (Inglaterra) ou Vix (França) se tornaram referenciais simbólicos
importantes, inspirando grupos militantes, ou passeatas em contextos britânicos
e europeus variados, particularmente, por parte de grupos feministas e
ambientalistas. Em outros casos, reflexões do tipo foram transportadas para a
realidade brasileira, criando um espaço de debate em sala de aula sobre como
as “mulheres celtas” estavam sendo representadas como um topos particular em
produções brasileiras ficcionais, esotéricas e acadêmicas, contrastando essas
representações modernas com antigas narrativas criadas sobre essas mulheres
por autores de língua grega e latina como César, Tácito, Diodoro Sículo e
Plutarco.

Enquanto professor, meu intuito não é, como ressaltei aos alunos, o de descobrir
uma essência supostamente “celta” nos relatos ou casos abordados. Ao
contrário, o objetivo era construir um espaço em sala de aula para examinar
esses vestígios textuais e materiais do passado, e as visões historiográficas
formuladas a seu respeito, e compará-los de modo a perceber múltiplas formas
de como pensar a construção das mulheres “celtas” como objeto e fenômeno
discursivo: da Antiguidade aos dias atuais. Afinal, entender como determinadas
categorias, temas, e objetos são operacionalizados em múltiplos contextos,
ontem e hoje, é um esforço importante. Aliás, considerando-se os perigos
diversos que observamos na atualidade, poderíamos dizer mesmo: necessário.

Há muitos caminhos ainda a serem percorridos pelo ensino da Antiguidade em


nosso país. Não seria um exagero dizer que os desafios crescem a cada dia. Há
algo mais que também aumenta: as conquistas realizadas até aqui. Conquistas 86
alcançadas em inúmeras frentes, por indivíduos espalhados ao redor do país.
Conquistas manifestadas em um conjunto de contribuições variadas sobre o
mundo antigo que ousam um feito hercúleo no cenário brasileiro de ensino e
pesquisa atual: resistir. É graças a elas e por elas que continuamos. Hoje, mais
do que nunca.

Agradecimento
O autor gostaria de agradecer ao financiamento recebido da CAPES durante seu
período de estadia a nível de Pós-Doutorado no Programa de Pós-Graduação
em História Comparada (PPGHC) da UFRJ, onde desde 2018 vem
desenvolvendo atividades didáticas e de pesquisa.

Referência biográfica
Pedro Vieira da Silva Peixoto é Doutor em História pela Universidade Federal
Fluminense, com “período sanduíche” de um ano em Arqueologia na
Universidade de Manchester (Reino Unido). Atualmente, com o apoio da
CAPES, realiza um Pós-Doutorado no Programa de Pós-Graduação em História
Comparada da Universidade Federal do Rio de Janeiro.

Referências bibliográficas
ASSUMPÇÃO, Luis Filipe Bantim de. A HQ "Os 300 de Esparta" e o Ensino de
História - Considerações, Ideias e Alternativas. In: BUENO, A.; CAMPOS,
C.E.C.; BORGES, A. (Org.). Ensino de História Antiga. Rio de Janeiro: Sobre
Ontens/UFMS, 2020, p. 50-61.

_____; CAMPOS, Carlos Eduardo da Costa. O livro didático e o Ensino de


História Antiga–desafios no presente e problemas do passado. Perspectivas e
Diálogos: Revista de História Social e Práticas de Ensino, v. 2, n. 6, 2020, p.66-
87.

_____. As redes e as conexões políticas de Esparta e Agesilau II no século IV:


um exercício de história cruzada. Tese de doutorado, UFRJ, Instituto de História,
PPGHC, 2019.

BARNABÉ, Luís Ernesto. De olho no presente: História Antiga e livros didáticos


no século XXI. OPSIS, v. 14, n. 2, 2014, p. 114-132.

BRUNHARA, R. A retórica dos filhos de Héracles: apontamentos sobre poesia


e sua ocasião de performance na Esparta Arcaica. In: CERQUEIRA, Fábio
Vergara; SILVA, Maria Aparecida de Oliveira. Estudos sobre Esparta. Pelotas:
EDUFPel, 2019, p.23-40.
BUSTAMANTE, R. M. da C. Práticas culturais no Império Romano: entre a
unidade e a diversidade. In: MENDES, N. M.; SILVA, G. V. da. (Org.).
Repensando o Império Romano: perspectiva socioeconômica, política e cultural.
Rio de Janeiro / Vitória: Mauad / EDUFES, 2006. p.109-136.
87
CARVALHO, A. Diálogos entre a História Antiga e o Ensino de História.
Perspectivas e Diálogos: Revista de História Social e Práticas de Ensino, v. 2, n.
6, jul./dez. 2020, p. 17-34.

CHEVITARESE, André L., CORNELLI, Gabriele., SILVA, Maria A. O. (Orgs.). A


tradição clássica e o Brasil. Brasília: Editora Fortium/Archai, 2008.

COELHO, A. L. S.; BELCHIOR, Y. K. BNCC e a História Antiga: Uma possível


compreensão do presente pelo passado e do passado pelo presente. Mare
Nostrum, v. 8, n. 8, p. 62-78, 2017.

FEBVRE, L. As responsabilidades da História. Revista de História, vol. IV, 10,


1952, p.257-273.

FIGUEIREDO, A.; CÂNDIDO, M. R. A construção do imaginário social de


Esparta no período clássico e helenístico. In: CERQUEIRA, Fábio Vergara;
SILVA, Maria Aparecida de Oliveira. Estudos sobre Esparta. Pelotas: EDUFPel,
2019, p.249-267.

FORNIS, César. El mito de Esparta. Un itinerario por la cultura occidental,


Madrid, Alianza Editorial, 2019.

FORNIS, César. Esparta como paradigma histórico en el cómic. In: CAMPOS,


Carlos Eduardo da Costa; ASSUMPÇÃO, Luis Filipe Bantim de; NETO, José M.
G. S. História em Quadrinhos em Perspectiva para o Ensino de História. São
João de Meriti: Desalinho, 2020a, p. 123-136.

_____. De héroes a antihéroes: los espartanos en la historiografía europea de la


primera mitad del siglo XIX. Cuadernos de Ilustración y Romanticismo, n. 26, p.
211–223, 2020b.

FRANCISCO, G. da S. O Lugar da História Antiga no Brasil. Mare Nostrum, v. 8,


n. 8, p. 30-61, 2017.

GARRAFFONI, R. S. Esparta e os Romanos. In: CERQUEIRA, Fábio Vergara;


SILVA, Maria Aparecida de Oliveira. Estudos sobre Esparta. Pelotas: EDUFPel,
2019, p.313-326.

GARRAFFONI, R. S.; FUNARI, P. P. A. The uses of Roman heritage in Brazil,


Heritage & Society, n. 5, vol. 1, p. 53-76, 2012.
GREGORI, A. M. O lugar da antiguidade nos programas de histórica: da
dissolução do currículo humanístico aos debates sobre a BNCC. In: BUENO, A.;
CAMPOS, C. E.; BORGES, A. (Org.) Ensino de História Antiga. Rio de Janeiro:
Sobre Ontens, 2020, p.67-74

LEITE, P. G. Ensino de História, reformas do ensino e percepções da 88


Antiguidade: apontamentos a partir da atual conjuntura brasileira. Mare Nostrum,
v. 8, n. 8, p. 13-29, 2017.

LEMOS, André; OLIVEIRA, Frederico. Fake news no WhatsApp: um estudo da


percepção dos efeitos em terceiros. Comunicação & Sociedade, v. 42, n. 1, 2020,
p. 193-227.

LESSA, Fábio de S; ASSUMPÇÃO, Luis Filipe B. Discurso e representação


sobre as espartanas no período clássico. Synthesis, v. 24, 2017.

LIMA, Samuel C.; MENDES, Eliziane de Sousa Sampaio. Whatsapp e fake news
no ensino de língua inglesa em uma escola pública do interior do estado do
Ceará. Texto Livre: Linguagem e Tecnologia, v. 13, n. 2, 2020, p. 182-200.

MORALES, Fábio Augusto. Por uma didática da História Antiga no Ensino


Superior. Mare Nostrum, v. 8, n. 8, p. 79-114, 2017.

MORRIS, Ian Macgregor; HODKINSON, Stephen (ed.). Sparta in modern


thought: politics, history and culture. Swansea: The Classical Press of Wales,
2012.

NOBRE, Chimene. K.; VERGARA, Fábio. C;, POZZER, Kátia M. P. (Eds.).


Fronteiras e etnicidade no mundo antigo. Canoas/Pelotas: EdULBRA &
EdUFPEL, 2005.

PINSKY, Jaime. Sobre História e “narrativas”. In: Blog da Editora Contexto, São
Paulo, 2020. Disponível em: http://blog.editoracontexto.com.br/sobre-historia-e-
narrativas-jaime-pinsky-e-carla-bassanezi-pinsky/ (Último acesso, 2 de maio de
2021).

_____; PINSKY, Carla (Orgs.). Novos combates pela história: desafios – ensino.
São Paulo: Contexto, 2021.

SANTOS, Dominique V. C. dos. O ensino de História Antiga no Brasil e o debate


da BNCC. Outros Tempos: Pesquisa em Foco-História, v. 16, n. 28, p. 128-145,
2019.

SILVA, Gilvan V. da. Simplificações e Livro Didático: um estudo a partir dos


conteúdos de História Antiga. Hélade, Rio de Janeiro, v. 2, p. 18-22, 2001.

_____. História Antiga no livro didático: uma parceria nem sempre harmoniosa.
Dimensões – Revista de História da UFES, Vitória, n. 11, p. 231-238, ju./dez.
2000.

_____.; GONÇALVES, Ana Teresa M. Algumas reflexões sobre os


conteúdos de História Antiga nos livros didáticos brasileiros. História & Ensino.
Londrina, v. 7, p. 123-142, 2001. 89

_____; SILVA, Érica Cristhyane Morais da. Fronteiras e identidades no Império


Romano: aspectos sociopolíticos e religiosos. Vitória, ES: GM Editora, 2015.

SILVA, Semíramis C. Aspectos do Ensino de História Antiga no Brasil:


algumas observações. Alétheia: Revista de estudos sobre Antiguidade e
Medievo, v. 1, jan/jul 2010, p. 145-155.

SILVA, Érica C.; SILVA, Gilvan Ventura da; SILVA, Roberta A. (Orgs.) O Império
Romano e sua diversidade religiosa. Vitória: EdUFES, 2019.

SILVA, Glaydson José da; FUNARI, Pedro Paulo; GARRAFFONI, Renata


Senna. Recepções da Antiguidade e usos do passado: estabelecimento dos
campos e sua presença na realidade brasileira. Rev. Bras. Hist., São Paulo, v.
40, n. 84, 2020, p. 43-66.

SILVA, Maria Aparecida de Oliveira. Esparta e a malícia de Heródoto. In:


CERQUEIRA, Fábio Vergara; SILVA, Maria Aparecida de Oliveira. Estudos
sobre Esparta. Pelotas: EDUFPel, 2019, p. 195-218.

SILVA, Uiran Gebara da. Introdução ao Dossiê "História Antiga no Brasil: Ensino
e Pesquisa": Uma Antiguidade Fora do Lugar? Mare Nostrum, 8(8), 1-12, 2017.

TACLA, Adriene B. Base Nacional Comum Curricular em debate. Coletânea de


links, cartas, reportagens e manifestos. Rio de Janeiro, 2015-2017. Disponível
em: http://www.historia.uff.br/depto/bncc.php. Acesso em: 2 abr. 2021

_____. Pesquisa e ensino de história Antiga: Para quê? Diferentes visões da


Antiguidade. Outros Tempos, v. 16, n. 28, 2019, 141-161.
ENSINO DE PRÉ-HISTÓRIA E ANTIGUIDADE:
RELATO DE UMA ATIVIDADE INTERDISCIPLINAR
Cláudia Cristina do Lago Borges e Priscilla Gontijo Leite
90
Introdução
Desde o final de 2019, as licenciaturas de História devem seguir as diretrizes da
BNC-Formação, que regulamenta os currículos nacionais para a formação de
professores (BORGES, LEITE, 2020). Esse documento, entre outras alterações,
ampliou as horas do curso de licenciatura para 3.200 horas. Isso provocou uma
mudança em vários PPCs que se atualizaram para estar de acordo com a nova
legislação. Apesar disso, observa-se que a maioria destes documentos segue a
disposição de suas disciplinas numa ordem cronológica, sendo a oferta de
disciplinas como Pré-História e História Antiga restritas aos primeiros semestres.

Essa temporalidade da História, e que é mantida ainda hoje na maior parte dos
currículos das licenciaturas, tem seu modelo discutido pelos pesquisadores da
área, porém, na prática mantém-se os paradigmas do modelo quatripartície.
Pensando nesse contexto da temporalidade, uma das críticas se dá pela forma
linear como a História acaba sendo discutida, sem aprofundar nas
particularidades históricas e sociais de cada grupo. E neste caso acabamos
tendo uma contradição entre a discussão teórica e a prática. Se no campo
teórico, sabemos que a periodização é apenas é uma ferramenta didática para
organizar o conhecimento histórico, na prática pode reforçar uma posição linear
e progressiva do desenvolvimento humano, no qual o ápice é a atualidade.
Portanto, há o risco dos cursos não preparem de maneira eficaz os novos
docentes para atuarem de acordo com as propostas da BNCC, e até mesmo com
a habilidade de criticá-la nas suas fragilidades.

Pensando sobre as temporalidades e as consequentes periodizações da


História, Jacques Le Goff (2015) afirma que essa é uma questão que deve ser
pensada nas suas continuidades, rupturas e modos de pensar a memória da
História, e a maneira como concebemos a periodização da história da
humanidade - no nosso caso em pauta, da Pré-História a História
Contemporânea - na verdade trata de um processo de subjetividade em definir
quando começa e quando termina cada um.

Assim, levantando algumas questões críticas, por que o período referente ao


início da formação, ou evolução humana é considerado Pré-História? Qual a
importância de se fazer, já no ensino básico, uma discussão sobre a evolução
humana, considerando que a evolução não se restringe exclusivamente ao
biológico, mas envolve os aspectos tecnológicos, sociais, políticos, culturais,
etc? Por que o termo História só começa a ser pensado a partir das sociedades
clássicas, considerando Heródoto o seu pai fundador?
Trazer essas inquietações para a discussão nos cursos de formação docente é
permitir ao aluno da graduação um olhar mais atento às diversidades históricas
e sociais. A configuração tradicional dos cursos possui, sem dúvida, ônus e
bônus. Toda divisão cronológica no campo da História tem suas problemáticas
por ser arbitrária (GUARINELO, 2003; FARIAS JÚNIOR, 2016; SOUZA, 2019),
porém, é preciso analisarmos as continuidades e as rupturas históricas não 91
apenas pelo viés do tempo, mas pela contextualização e conjuntura em que se
dão os processos históricos.

Nesta perspectiva, discutir a formação da Antiguidade, sem demonstrar como


aquelas sociedades antigas chegaram àquele estágio cultural e tecnológico, ou
seja, que antes de se tornarem a representação da civilização ocidental,
sobretudo no caso das sociedades clássicas, é simplesmente fatiar a história da
humanidade em blocos temporais, como se a humanidade tivesse mudado seu
curso em um acender e apagar de luzes. Devemos apresentar aos alunos como
elas passaram pelos estágios de caçadores coletores, construtores de
ferramentas líticas e foram organizados socialmente em grupos, enfocando a
diversidade nesses processos e refletindo sobre o conceito linear de progresso,
uma vez que cada um teve seu processo singular, não restringindo a discussão
num quadro comparativo entre sociedades avançadas e atrasadas.

Assim, pensar o processo evolutivo da humanidade e suas transformações


sociais e culturais deve passar pelo exercício do ensino-aprendizagem, pois isso
repercute diretamente numa determinada forma teleológica de ver a realidade.
Para superarmos uma ideia recorrente de que há povos mais avançados e
atrasados, sendo o capitalismo ocidental considerado uma etapa superior, o
docente deve abordar uma perspectiva de mudanças contínuas, demonstrando
as conexões entre os eventos históricos que levaram diferentes sociedades por
caminhos organizacionais díspares, evitando que os fatos sejam vistos de forma
limitada, como se o simples passar do tempo fosse o único condutor das
rupturas.

No que tange ao ensino de História, essa discussão das temporalidades pode


ser abordada por diversas vertentes: currículos, formação docente, livro didático,
metodologias educacionais, didáticas, etc. Em cada um desses pontos há um
peso sobre o quê e como as pessoas em geral conhecem a história da
humanidade. No entanto, discutiremos aqui a questão a partir de dois aspectos:
a formação docente e o processo ensino-aprendizagem pelo método de
avaliação.

Apresentaremos nesse texto um relato de uma experiência aplicada nas


disciplinas de Pré-História e da Antiguidade Oriental (História Antiga I) no curso
de Licenciatura em História da UFPB, através de processo avaliativo
interdisciplinar, com o uso de metodologias ativas, pode abordar as
transformações históricas. Nesta experiência, levamos em conta que o mais
importante no processo de formação do discente da graduação é que este
adquira o perfil de pesquisador-professor e, por consequência, tenha as
habilidades e as competências para permitir que seus alunos percebam as
continuidades e rupturas da História de forma crítica.

É fato que trabalhar com as disciplinas de Pré-história e História Antiga logo nos
semestres iniciais dos cursos de licenciatura em História aumenta o desafio e a
responsabilidade do docente na graduação. Nesse sentido, nossa preocupação 92
enquanto professor é trabalhar com conteúdos que usualmente não são
próximos dos alunos, visto que, por exemplo, a grande maioria não estudou Pré-
História no Ensino Médio, e os conceitos sobre a Antiguidade são bastante
generalizadas e com altas doses de anacronismos. Deste modo, o que temos
buscado, enquanto docentes, com uma integração interdisciplinar, é um
despertar para a especificidade de cada área de estudo, e como adotar tal
conhecimento na prática docente, incorporando sempre nessa prática a
pesquisa historiográfica.

Pré-História e Antiguidade: do Ensino Básico ao Ensino Superior


Tradicionalmente, a escrita se torna o principal marco entre a Pré-História e a
Antiguidade, com um salto súbito entre as duas fases (GURGEL, 2017; FARIAS
JÚNIOR, 2019). O modo como esses períodos são trabalhados no ensino,
demonstram muito mais um processo de ruptura, do que o processo de uma
evolução dos estágios culturais. De forma mais objetiva, a Pré-História é o lugar
dos povos em atraso, na personificação do "homem das cavernas", dos que não
têm qualquer conhecimento sobre sociedade ou uso de tecnologias. Ao contrário
da Antiguidade, na qual é apresentada como o nascer da civilização, da escrita,
das formas estruturais de organização social, administrativa e política, em que
os povos desenvolveram não somente um rico pensar científico e filosófico, mas
foram capazes de desenvolver grandes monumentos arquitetônicos.

É nessa discrepância entre um período e outro que o ensino de História precisa


ser pensado, e de forma concomitante, entre o ensino básico e o ensino superior.
Na educação básica, a Pré-História é vista de forma muito ampla e uma projeção
de 5 milhões de anos - do surgimento dos primeiros hominídeos - até os
processos de migração dos primeiros humanos nas Américas, há cerca de 50
mil anos encontra-se, na maior parte das vezes, reduzido em um capítulo dos
livros didáticos.

É comum nos livros didáticos, nos capítulos seguintes, ver o desenvolvimento e


as maravilhas das chamadas “grandes civilizações”. Dos povos mesopotâmicos
ao Império Romano, a humanidade já é como nos encontramos, como se nada
mais houvesse antes disso. A importância do neolítico, que foi singular em cada
região, é colocada de maneira genérica em poucas linhas, valorizando,
sobretudo, o início das práticas agrícolas. A própria configuração da Antiguidade
no livro didático também deve ser problematizada, pois sugere uma hierarquia
entre as civilizações, com uma clara valorização dos gregos e romanos
(GUARINELLO, 2013; LEITE 2020). Portanto, o professor, na sua prática
docente deve sempre questionar com seus alunos como esses povos chegaram
até aos estágios do conhecimento cultural, artístico e tecnológico? Como se dava
a integração entre esses povos? Em que medida o intercâmbio entre culturas
pode proporcionar avanços?

Essas provocações atendem ao que a BNCC chama de processos do


pensamento, sendo eles: identificação, comparação, contextualização,
interpretação e análise (BRASIL, 2017, p. 398). Numa exemplificação simples 93
para o nosso tema em debate e baseado nas provocações acima apontadas, a
partir de atividades avaliativas, os alunos poderiam identificar que as
transformações humanas não são abruptas; em seguida seria comparar os
episódios históricos a partir de uma contextualização da evolução cultural; e uma
vez apontados os elementos que permitiram aos homens passarem dos estágios
de caçadores-coletores até chegar às formações urbanas, seriam capazes de
interpretar e analisar como, quando e porque as sociedades se desenvolveram
em diferentes estágios.

A princípio, desenvolver essas etapas para os estudantes do ensino básico, em


específico do Ensino Fundamental, pode parecer complexa, mas é uma das
formas de introduzir as relações para o conhecimento histórico, usando
instrumentos de análises, como os diferentes tipos de fontes documentais, e os
suportes para consulta, começando pelo próprio livro didático e partindo para
textos complementares, fotografias, artigos de jornais, indicação de sites, etc.
Assim, se vislumbra o que diz a BNCC: "o que nos interessa no conhecimento
histórico é perceber a forma como os indivíduos construíram, com diferentes
linguagens, suas narrações sobre o mundo em que viveram e vivem, suas
instituições e organizações sociais" (BRASIL, 2017, p. 397), e demonstrando que
“um dos importantes objetivos de História no Ensino Fundamental é estimular a
autonomia de pensamento e a capacidade de reconhecer que os indivíduos
agem de acordo com a época e o lugar nos quais vivem” (BRASIL, 2017, p. 400).

Na estrutura curricular proposta pela Base, a Pré-História é apresentada aos


alunos do 4o. e 5o. Ano, e entre os objetos das unidades temáticas, estão
questões sobre o surgimento da espécie humana, os processos migratórios e os
primeiros americanos. Apresentar tais conteúdos já nesses respectivos anos
escolares, permite, em tese, um entendimento desse processo de origem,
formação e desenvolvimento biológico e cultural da humanidade (BRASIL, 2017,
p. 413).

A discussão sobre a origem do homem segue para os alunos do 6o. Ano, e aqui
se adentra aos debates sobre "as hipóteses científicas sobre o surgimento da
espécie humana e sua historicidade e analisar os significados dos mitos de
fundação" e em seguida parte para as questões que tratam da "invenção do
mundo clássico e o contraponto com outras sociedades". Neste último, deve-se
introduzir percepções sobre as culturas africanas, orientais e americanas. Mas é
a partir do tema sobre as culturas ocidentais, que se insere o conceito de
Antiguidade Clássica, seu alcance e limite na tradição ocidental, assim como os
impactos sobre outras sociedades e culturas (BRASIL, 2017, p. 421). Essa
abordagem recebeu inúmeras críticas, entre elas, a valorização de uma
perspectiva eurocêntrica, uma vez que África, Oriente e as Américas aparecem
apenas como um contraponto, não destacando o processo de integração entre
as sociedades, nem mesmo o potencial do reconhecimento da alteridade no
ensino de História Antiga (SANTOS, 2019; LEITE, 2020). Dessa maneira, se o
docente não tiver um olhar atento, corre-se o risco de que o ensino de História
Antiga fique restrito a uma visão eurocêntrica e à erudição vazia, distante, assim, 94
da realidade do aluno.

Essa construção do conhecimento sobre o período da Pré-História até a


Antiguidade Clássica trabalhado durante o Ensino Fundamental, acaba sendo
abordado através de um conceito mais global no Ensino Médio. Nesta nova
etapa do ensino, a BNCC afirma que “dada a maior capacidade cognitiva dos
jovens, que lhes permite ampliar seu repertório conceitual e sua capacidade de
articular informações e conhecimentos”, e que por terem maior domínio sobre
diferentes linguagens, assimilam melhor "os processos de simbolização e de
abstração". (BRASIL, 2018, p. 561)

Deste modo, a BNCC propõe que, para essa fase, deve-se trabalhar as ciências
humanas de forma ampliada, defendendo que conceitos de tempo e espaço não
sejam exclusivos da História e da Geografia, respectivamente, mas se
interrelacionam. Assim, o documento afirma que

“[...] os estudantes precisam desenvolver noções de tempo que ultrapassem a


dimensão cronológica, ganhando diferentes dimensões, tanto simbólicas como
abstratas, destacando as noções de tempo em diferentes sociedades. Na
história, o acontecimento, quando narrado, permite-nos ver nele tanto o tempo
transcorrido como o tempo constituído na narrativa sobre o narrado” (BRASIL,
2018, p. 563).

O modelo proposto pela BNCC para o ensino de História na rede básica parece
inovador, e podemos até dizer promissor, se não fosse uma conjuntura maior
que envolve desde a própria formulação da Base Curricular até chegar à
formação docente. Sem adentrar no debate deste documento, o que se percebe
é que sua proposta de estrutura curricular diz muito sobre “o quê fazer”, mas o
“como fazer” fica totalmente a cargo da autonomia dos professores. Portanto,
para a melhor execução dessa tarefa é imprescindível que os cursos de
formação tenham um olhar atento a Base Curricular, bem como garantir espaços
para a formação continuada dos docentes, em particular, aqueles que
possibilitem a construção de suas próprias ferramentas pedagógicas envolvendo
o uso consciente e crítico das tecnologias.

A BNCC foi regulamentada entre os anos de 2017 e 2018. Desde a sua


publicação oficial até o presente momento (2021), os professores que atuam nas
escolas de ensino básico ainda possuem dúvidas em como, de fato, se coloca
em prática tal proposta, e, do mesmo modo, os cursos de formação docente,
ainda não estão totalmente atualizados com este regimento.
Em 2019, o MEC publicou a BNC-Formação, na qual regulamentou as diretrizes
dos cursos de licenciatura, assegurando que esses acompanhem no seu
percurso formativo as diretrizes da BNCC. Além disso, estabelece como
requisitos para as competências e habilidades dos docentes:

“Compreender, utilizar e criar tecnologias digitais de informação e 95


comunicação de forma crítica, significativa, reflexiva e ética nas diversas
práticas docentes, como recurso pedagógico e como ferramenta de formação,
para comunicar, acessar e disseminar informações, produzir conhecimentos,
resolver problemas e potencializar as aprendizagens.” (BRASIL, 2019, p. 17,
grifo nosso)

Nesta perspectiva, podemos apontar dois sérios problemas para as licenciaturas


em História. O primeiro é quanto a compreensão da proposta da BNCC e como
se adequar às suas proposições. Se a BNCC sugere que para o ensino de
História as ações humanas sejam trabalhadas para além dos limites de espaço
e tempo, as licenciaturas precisam se desvencilhar dessa construção tradicional
em formular seus conteúdos curriculares a partir das periodizações, não se
restringindo apenas à crítica sobre a periodização. Mas a questão que realmente
se coloca é: qual proposta seria viável? É possível formar um currículo cujos
conteúdos não sigam a linha temporal?

O segundo problema está nas competências e habilidades. Quando a BNC-


Formação aumenta a carga horária dos cursos, sendo que a boa parte é exigido
de horas práticas (1.600h), as licenciaturas terão que decidir como introduzir
conteúdos que capacitem seus alunos na criação, desenvolvimento e utilização
das tecnologias digitais em suas aulas. Assim, como o docente pode estimular a
criação e o uso de tecnologias na sala de aula, ainda mais num contexto de
rápidas mudanças tecnológicas? Todos os nossos alunos teriam fácil acesso? É
vantajoso estimular o uso das tecnologias sem uma reflexão crítica dos impactos
diretos da tecnologia no nosso cotidiano?

No que concerne ao ensino de Pré-História e Antiguidade, a tecnologia é uma


importante aliada, ainda mais se considerarmos o potencial para o uso das
reconstituições e modelagens 3D na sala de aula. Soma-se a isso as diversas
bases de dados organizados por sítios arqueológicos, museus e grupos de
pesquisa que permitem trabalhar diretamente com a fonte na sala de aula. Além
destes, conta-se ainda com uma variedade de jogos digitais com propósitos
pedagógicos ou desenvolvidos a partir de achados arqueológicos, como por
exemplo, EVOLUCY, SAMBAQUI – Uma História antes do Brasil e VISPACA
Antiga.

Dessa maneira, observa-se que estão à disposição do docente diferentes


produtos tecnológicos que podem ser utilizados na sala de aula. Contudo,
continua o desafio do professor desenvolver sua própria ferramenta didática
pedagógica, um dos objetivos propostos pela BNC-formação. Refletindo sobre
toda a conjuntura aqui exposta, fomos motivados por esse desafio de propormos
a atividade interdisciplinar, para que nossos discentes formulassem suas
próprias ferramentas, utilizando os mais diversos recursos disponíveis,
especialmente na internet.

Pré-História e Antiguidade: relato de uma experiência para o 96


desenvolvimento de metodologias ativas do ensino de História
No primeiro semestre de 2019, as professoras Cláudia Lago e Priscilla Gontijo
ministraram a disciplina de Pré-História e História Antiga I, respectivamente, para
os alunos do primeiro período da Licenciatura em História. Como parte das
avaliações das disciplinas, realizaram uma atividade que buscasse abordar o
conteúdo de maneira transdisciplinar, explorando especialmente o momento da
transição que ocorreu de maneira singular em cada parte do planeta. Para tanto,
decidimos nos concentrar no processo de formação cultural dos povos através
da sedentarização, visto no conteúdo de Pré-História, e da criação das cidades,
focando assim na região do atual Oriente Médio, assunto abordado na História
Antiga I.

O objetivo principal da atividade foi demonstrar, a partir das capacidades


tecnológicas e das organizações sociais e culturais, como se deu o processo de
adaptação dos povos. Com isso, também buscamos que o discente refletisse
sobre o impacto da tecnologia no cotidiano, discutindo numa perspectiva
histórica os conceitos de técnica e tecnologia.

A atividade foi dividida em duas partes. A primeira parte consistiu em uma análise
de um livro didático, por meio de um roteiro de 7 perguntas, a fim de observar
como esse tema é tratado na educação básica. Solicitou-se que os discentes
prestassem atenção ao texto, às imagens, aos documentos e às atividades
propostas. A segunda parte era o desenvolvimento de um material didático que
fizesse uso de uma tecnologia digital e complementasse o livro didático
analisado. Assim, poderia ser criado podcast, videoaula, jogo etc.

Para essa atividade, a sala foi dividida em grupos. Foi unânime a percepção dos
alunos de que a Pré-História e Antiguidade são colocadas de maneiras
completamente distintas e separadas, com uma divisão abrupta entre o atraso
(Pré-História) e o início da civilização (História Antiga). Milhares de anos de
avanço tecnológico são reduzidos a parcas linhas, e há pouca ênfase para a Pré-
História americana, especialmente a brasileira.

A culminância da etapa do livro didático se deu com um debate com as reflexões


e críticas dos alunos sobre o material analisado. Os alunos expuseram quais
haviam sido suas experiências de aprendizado no ensino básico, e como eles
achavam que os conteúdos poderiam e/ou deveriam ser trabalhados em sala de
aula.

Encerrada essa etapa, cabia então planejar e desenvolver o material didático


que demonstrasse as continuidades e evoluções tecnológicas das sociedades
estudadas. Dentre as propostas apresentadas, a plataforma mais utilizada pelos
alunos foi Kahoot (https://kahoot.it/), com a criação de vários jogos de perguntas
e respostas. É muito evidente como os alunos consideram a gameficação um
recurso importante para o estímulo da aprendizagem. O jogo de perguntas e
respostas variam de competições individuais a atividades em grupo para
fomentar a colaboração. Uma parte significativa dos alunos considerou 97
importante também a incorporação do lúdico nas atividades cotidianas dos
professores. Outro aspecto recorrente foi a percepção por parte dos alunos de
que os jogos ajudam a “fixar” melhor o conteúdo. A partir daí podemos trabalhar
com eles as ideias relativas ao ensino-aprendizagem e métodos de avaliação,
refletindo sobre memorização, aprendizagem e demonstrando que conteúdo não
se “fixa”, e que a memorização pode fazer parte de um processo de
aprendizagem, mas que esse processo não é restrito a isso.

Além do jogo de perguntas e respostas, um dos grupos desenvolveu um Quiz na


plataforma Buzzfeed denominado “Qual Hominídeo é Você?”
(https://www.buzzfeed.com/ravxnrose/qual-hominadio-a-voca-bj5rksng8s).
Utilizando um método bem popular na internet de realizar testes a partir de suas
caraterísticas pessoais, o grupo buscou de uma maneira bem criativa e divertida
apresentar os hominídeos através das perguntas como: “Seu tipo de comida
preferido”, “Como você se descreve?”, “Qual país você viajaria?”, “O que você
mais odeia”.

Também foi criado o episódio de um podcast em que os alunos tratavam dos


primórdios da agricultura até o desenvolvimento das formações urbanas,
refletindo sobre as práticas agrícolas atuais e a relação entre o homem e a
natureza. O grupo acentuou os problemas vivenciados pelas primeiras cidades,
demonstrando que a visão sobre a vida dos caçadores e coletores ser
“extremamente difícil” é uma percepção construída ao longo do tempo.

Durante o debate e a apresentação dos trabalhos, os alunos, de uma maneira


geral, relataram dificuldade em encontrar materiais em português sobre a
temática, bem como a complexidade em se criar um material didático usando
tecnologias. Alguns relataram que acreditavam que seriam mais fácil executar
as tarefas propostas, e muitas ideias tiveram que ser abortadas pelas limitação
dos conhecimento técnico dos alunos ou das ferramentas a disposição – como
gravação de vídeos e músicas e a elaboração de jogos eletrônicos em primeira
pessoa.

Assim, a atividade demonstrou para os alunos a importância de um bom


planejamento para aulas, que exige tempo e dedicação, tanto para a pesquisa
quanto para a confecção de um material apropriado. Também os alunos
destacaram a importância da pesquisa no ofício da docência e a necessidade do
professor ter diferentes materiais didáticos a sua disposição.

A atividade avaliativa teve um desdobramento inesperado. O grupo criador do


podcast ficou deveras motivado e interessado no uso dessa feramente no ensino
de História, a ponto de dar continuidade na pesquisa. O resultado foram dois
projetos: um de extensão e um de pesquisa. O de extensão, Podcast: Senta
que lá vem História (https://linktr.ee/sentaquelavempodcast) ao longo de 2020
produziu 13 episódios sobre diversos temas, buscando integrar os pressupostos
do professor-pesquisador com a ponte entre o passado e o presente (LIMA,
FERRARI, LEITE, 2021). 98

Um dos episódios foi “Democracia grega: aproximações e distanciamentos” em


que elementos basilares da democracia grega foram apresentados aos ouvintes.
Nesse episódio, também discutiu a respeito da participação popular,
transparência política, liberdade e igualdade, buscando dar uma explicação para
os movimentos contra a democracia que aconteceram no Brasil no primeiro
semestre de 2020 em plena pandemia. Outro episódio, intitulado “As Queimadas
do Pantanal”, abordou as questões sobre a destruição do meio ambiente, bem
como a relação das culturas tradicionais da região com as práticas e os domínios
da agricultura, desde os chamados períodos pré-históricos até os dias atuais.

O projeto de pesquisa Tecnologias e metodologias ativas no Ensino de


História tem como proposta identificar as dificuldades existentes para a adoção
das metodologias ativas e dos recursos didáticos digitais, e avaliar a
exequibilidade desses recursos como melhoria no processo ensino-
aprendizagem dos alunos.

Considerações Finais
Incorporar atividades relacionadas à prática do ensino nas disciplinas de
conteúdo formativo é uma excelente estratégia para pensar sobre a formação do
professor-pesquisador, bem como incentivar os discentes, futuros professores,
a diversificarem suas práticas.

Essa atividade apesar de não ter resultado diretamente numa pesquisa


específica em Pré-História ou em Antiguidade, gerou um projeto de extensão e
um de pesquisa, que apesar de ser organizado por um grupo de alunos, envolveu
toda turma. Tal aspecto foi importante, especialmente em 2020 com o contexto
da pandemia, pois permitiu uma união dos estudantes, incentivando-os a
continuarem pesquisando sobre as temáticas de seu interesse, mesmo num
cenário tão desafiador como o do ensino remoto.

Essa experiência avaliativa também demonstrou que os resultados das


atividades elaboradas em sala de aula, por vezes, não são como os esperados
pelos docentes. Mas isso não deve ser motivo de frustração, pois os resultados
de uma atividade podem vir meses depois de sua aplicação e de uma maneira
totalmente inesperada, como foi o caso da elaboração do projeto de extensão
Podcast: Senta que lá vem História, e das publicações iniciais resultantes do
Projeto de Pesquisa Tecnologias e metodologias ativas no Ensino de
História.

Referências biográficas
Dra. Cláudia Cristina do Lago Borges é professora do Departamento de História
da Universidade Federal da Paraíba (UFPB). Líder do grupo de pesquisa
Humanizarte.

Dra. Priscilla Gontijo Leite é professora do Departamento de História da


Universidade Federal da Paraíba (UFPB). Vice-líder do grupo de pesquisa 99
Humanizarte.

Referências bibliográficas
BORGES, Cláudia C. do Lago; RODRIGUES, Katharine S. do N. Teoria,
método e produção didático-pedagógica no ensino de pré-história. Anais do
XXVII Simpósio Nacional de História, 2013.

BORGES, Cláudia C. do Lago; LEITE, Priscilla Gontijo. O uso das tecnologias


nas diretrizes da BNCC e da BNC-formação. In: André Bueno; José Maria Neto.
(Org.). Ensino de História: Mídias e Tecnologias. Rio de Janeiro: Sobre
Ontens/UERJ, 2020, p. 99-105.

BRASIL. Base Nacional Comum Curricular. 2017.

BRASIL. Base Nacional Comum Curricular – Ensino Médio. 2018.

BRASIL. Portaria n. 22, de 20 de dezembro de 2019.

GUARINELLO, Noberto. Uma morfologia da História: As formas da História


Antiga. Politeia, v. 3, n. 1, p. 41-61, 2003.

GUARINELLO, Noberto. História Antiga. São Paulo: Ed. Contexto, 2013.

GURGEL, Braga Victor. Reflexões sobre o ensino da Antiguidade Egípcia em


João Pessoa-PB e região metropolitana no ano de 2018. Anais do XVIII Encontro
Estadual de História – ANPUH-PB. v. 18, n. 1, 2018.

LE GOFF, Jacques. A história deve ser dividida em pedaços? São Paulo: Editora
Unesp, 2015.

LEITE, Priscilla Gontijo; BARROS, Juliana da Silva. Ensino de Pré-História:


Experiências A Partir da Monitoria. Revista Labirinto, v.26, 2017, 295-311.

_____. Ensino de História, reformas do ensino e percepções da Antiguidade:


apontamentos a partir da atual conjuntura brasileira. Mare Nostrum, São Paulo,
n. 8, 2017, p. 13-29.

_____. O ensino de História Antiga no Brasil: percepções a partir das propostas


da BNCC. In: SOUZA NETO, José Maria Gomes de; MOERBECK, Guilherme;
BIRRO, Renan M. (Org.). Antigas Leituras. Ensino de História. Recife: EDUPE,
2020, p. 93-114.
LIMA, Gabriela Castro de; FERRARI, José Miguel Holderbaum; LEITE, Priscilla
Gontijo. O Ensino de História através de Podcasts: Uma análise no âmbito da
História Pública a partir de experiências do podcast Senta Que Lá Vem História.
Anais Eletrônicos do XIX Encontro Estadual de História da ANPUH-PB, João
Pessoa: Editora do CCTA, 2021. 100

FARIAS JÚNIOR, José Petrúcio de. As periodizações da História Geral e da


História Antiga nos Manuais de Ensino de História no Brasil: limitações e
proposições. Outros Tempos, vol. 16, n. 28, 2019, p. 106 -127.

SANTOS, Dominique. O ensino de História Antiga no Brasil e o debate da


BNCC. Outros Tempos, vol. 16, n. 28, 2019, p. 128 -145.

_____; KOLV, Graziele; NAZÁRIO,Juliano João . O ENSINO E A PESQUISA


EM HISTÓRIA ANTIGA NO BRASIL: REFLEXÕES A PARTIR DOS DADOS DA
PLATAFORMA LATTES. Mare Nostrum, São Paulo, n. 8, 2017. p. 115-145.

SOUZA, Matheus Varga de. Nativos americanos na BNCC: entre Pré-História e


Antiguidade? Temporalidades, v. 11, n. 2, 2019, p. 666-687.
A PAIDEIA GREGA DIANTE DO HERÓI HOMÉRICO
Aldinéia Cardoso Arantes

As epopeias homéricas surgiram como veículos portadores de um sistema de


101
valores, uma moral heroica cuja influência se perpetuou durante diferentes
épocas. Na literatura, o modelo homérico é, de fato, o maior e mais importante
arquétipo na representação do herói. A Ilíada, não obstante, ser a representação
mítico-artística da luta dos gregos no desejo coletivo de ampliar seus domínios,
ressalta os valores individuais, criando assim personagens com características
peculiares. No transcorrer da narrativa, encontramos uma variedade de tipos e,
em cada um, podemos reconhecer um aspecto ou uma aspiração da vida
humana, refletindo valores caros ao processo de formação do homem grego.
Entende-se que a representação do mundo heroico nas grandes obras refletia o
mundo aristocrático da Grécia primitiva, que era a grande audiência das
narrativas épicas. Esses poemas eram recitados para um auditório de homens
ricos e poderosos, “capazes de ir à guerra armados da cabeça aos pés:
capacete, couraça, grevas” (VIDAL-NAQUET, 2002). Nesse sentido, Aguiar e
Silva corrobora que:

“O conceito de herói está estreitamente ligado aos códigos culturais, éticos e


ideológicos, dominantes numa determinada época histórica e numa determinada
sociedade. Em dados contextos socioculturais, o escritor cria os seus heróis na
aceitação perfeita daqueles códigos: o herói espelha os ideais de uma
comunidade ou de uma classe social, encarnando os padrões morais e
ideológicos que essa comunidade ou classe valorizam.” (AGUIAR E SILVA,
1990, p. 258)

Entende-se, desse modo, que o herói é um elemento criado segundo padrões


concebidos por uma determinada tradição, cujos preceitos são estabelecidos por
uma elite dominante. Assim, não causa estranheza o fato de que, na literatura
antiga, ao homem comum nunca era atribuído o papel de herói; aliás, durante
muito tempo, esse aspecto elitista marcou profundamente a tradição literária. O
fato de os heróis oriundos dos mitos gregos serem semideuses parece uma
forma profícua de legitimar a força, as ações e a superioridade de uma classe
privilegiada. Desse modo, as epopeias homéricas, com suas personagens tão
variadas, contribuíram para formação de um protótipo na representação do herói
na literatura ocidental; a essência do heroísmo, características, ações,
motivações foram imitadas pelos gêneros canônicos à exaustão.

Jaeger (1995, p. 19) ainda elucida que “A história da educação grega coincide
substancialmente com a da literatura”, uma vez que faltam fontes escritas dos
séculos anteriores à idade clássica “além do que nos resta dos seus poemas”.
Os gregos viam neles a base de sua educação e o ponto de partida de todas as
suas reflexões e traziam, além disso, valores culturais, regras transmitidas de
geração a geração. Além do mais, o poeta figurava para os gregos como um
educador do seu povo, numa concepção familiar e de grande importância para
a formação do homem. É preciso certa cautela ao considerar a Ilíada e Odisseia
como testemunho autêntico de um período na história dos gregos, mas, com as
devidas ressalvas, são os poemas homéricos que indicam um caminho para o
conhecimento literário e histórico de uma época. No que concerne ao processo
de formação do homem grego, os estudos realizados se pautam, não poderia
ser diferente, nos registros deixados justamente pelos poemas homéricos. Assim 102
revela o próprio historiador já citado “a história determinou que só isto ficasse da
existência inteira do Homem. Não podemos traçar o processo de formação dos
Gregos daquele tempo senão a partir do ideal de Homem que forjaram”
(JAEGER, 1995).

A educação grega era alicerçada no mais alto modelo de conduta considerado


para a época, pautado em um ideal fixo de um tipo fixo, considerando que todo
herói deva cumprir o papel que a sociedade espera e exige dele. Também Jaeger
(1995, p. 25) destaca: “Homero acentua, com maior nitidez, que toda a educação
tem o seu ponto de partida na formação de um tipo humano nobre, o qual nasce
do cultivo das qualidades próprias dos senhores e dos heróis”. Desse modo, diz
ainda Jaeger, a formação do homem grego realizava-se por meio da “criação de
um tipo ideal intimamente coerente e claramente definido”, processo no qual “a
formação não é possível sem se oferecer ao espírito uma imagem tal como ele
deve ser”. Assim sendo, tem-se em Homero um exemplo modelar daquilo que o
Homem deveria ser, o papel que deveria ocupar segundo as expectativas da
sociedade grega. Por outro lado, também, é importante ressaltar que esse papel
estava intimamente ligado ao acúmulo de riquezas. Como é possível observar,
também a partir de Jaeger, os poemas homéricos privilegiam a representação
de personagens que designam os nobres guerreiros aristocráticos:

“A nobreza é a fonte do processo espiritual pelo qual nasce e se desenvolve a


formação de uma nação. A história da formação grega – o aparecimento da
personalidade nacional helênica, tão importante para o mundo inteiro – começa
no mundo aristocrático da Grécia primitiva com o nascimento de um ideal
definido de homem superior, ao qual aspira o escol da raça.” (JAEGER, 1995,
p.25)

Segundo Mossé (1984), a Ilíada e a Odisseia surgiram como veículos portadores


de um sistema de valores, uma moral heroica cuja influência irá continuar a se
fazer sentir durante diferentes épocas. Na literatura, o modelo homérico é, de
fato, o maior e mais importante arquétipo na representação do herói: o herói
homérico tornou-se o herói de todos os tempos. Assim, Homero legou à literatura
ocidental uma estética heroica, que será imitada à exaustão até o momento em
que o ideal heroico passe a ser desacreditado e as forças criadoras da poesia
épica acabem por se esgotar. Os princípios correspondentes ao espírito épico
são de uma aristocracia guerreira para a qual as virtudes essenciais são aquelas
que possam revelar-se em combate, visto ser aí que o guerreiro pode ganhar a
kléos, a glória que o tornará imortal (MOSSÉ, 1984).
As epopeias homéricas revelam um homem político, com vistas na coletividade.
Assim, é possível entender o processo pelo qual o herói épico, apesar de pautar
sua vida na busca de uma fama imorredoura, trava as suas lutas sempre com
vistas a um resultado que culminará em interesses coletivos, a glória só será
alcançada mediante o reconhecimento da comunidade. O herói coletivo é
notadamente conhecido e reconhecido pelo o que acontece externamente do 103
que por aquilo que se passa no seu mundo interior. Esse herói primordial, forjado
por Homero, contempla o mundo através de um olhar objetivo, pois, embora
almeje uma glória pessoal, sabe que só a alcançará através do reconhecimento
de seus pares, por isso as suas ações devem primar para o bem coletivo;
constitui-se no ideal grego de estrita subordinação do individual à totalidade.
Todavia, como aponta Jaeger, o tema essencial da história da formação grega é
o conceito de arete, “a palavra ‘virtude’, na sua acepção não atenuada pelo uso
puramente moral, e como expressão do mais alto ideal cavaleiresco unido a uma
conduta cortês e distinta e ao heroísmo guerreiro...” (JAEGER, 1995, p. 25).
Convém sublinhar que, sendo atributo próprio da nobreza, ao “homem comum”
não é facultado esse modelo de arete, “senhorio e arete estavam
inseparavelmente unidos”. Nesse sentido, a Ilíada é o testemunho mais
contundente da elevada consciência educadora da nobreza grega primitiva.

“Os heróis da Ilíada, que se revelam no seu gosto pela guerra e na sua aspiração
à honra como autênticos representantes da sua classe, são, todavia, quanto ao
resto da sua conduta, acima de tudo grandes senhores, com todas as suas
excelências, mas também com todas as suas imprescindíveis debilidades. É
impossível imaginá-los vivendo em paz: pertencem ao campo de batalha. Fora
dele só os vemos nas pausas do combate, nas suas refeições, nos seus
sacrifícios, nos seus conselhos.” (JAEGER, 1995, p. 41)

Contudo, manifesta-se, na Odisseia, uma nobreza que primava pela vida


sedentária, pela posse de bens e pela tradição, valores puramente humanos,
sempre relacionados à nobreza. Ulisses não busca mais a glória na guerra, mas
a vida na paz. Isso porque o poema reflete uma época em que as descrições de
combates sangrentos, a luta, a força na guerra não agradavam mais, tratava-se
de uma época mais contemplativa e dada às satisfações da paz. Por outro lado,
há, na Ilíada, guiado pelo espírito heroico da arete, um herói sobre-humano que,
sempre presente no campo de batalha, é um nobre guerreiro a almejar, muitas
vezes, a honra e a glória e sobre cuja vida ou relações familiares pouco se sabe.
Na Odisseia, contempla-se um quadro voltado para o lado humano da vida do
herói e suas relações familiares, pautando sempre numa espécie de elogio ao
estilo de vida da nobreza e primando por suas tradições; os combates são
travados pelos discursos sagazes e pelos caminhos da inteligência estratégica.

É possível afirmar que os heróis homéricos são heróis da alta classe, eles
representam, pois, o ideal de vida alicerçado na nobreza. Os poemas homéricos
tornaram-se por muito tempo um modelo de vida e de conduta para uma
aristocracia. Convém mencionar que, na Grécia primitiva, Homero, por
excelência, era a fonte de transmissão de exemplos de um ideal de conduta
nobre, pois, para os gregos, era inconcebível um ideal de formação eficaz sem
que se oferecesse ao indivíduo um modelo, ou seja, “uma imagem do homem tal
como ele deve ser”, afirma Jaeger. Se na Grécia primitiva, Homero era
considerado modelo para educação e formação do homem grego, na literatura,
o herói por ele forjado representa o primeiro arquétipo na construção de
personagens heroicos, o que resulta em uma tradição literária que apresenta um 104
herói também nascido da elite. Nesse contexto, não causa estranheza que as
primeiras manifestações literárias reflitam heróis forjados por e para os nobres;
a própria história da formação grega começa no mundo aristocrático da Grécia
primitiva. Esse ideal de formação era justamente o que diferenciava o homem
nobre, regido por normas de conduta; do homem comum, alheio a essas normas.
Nesse sentido, a Ilíada é o testemunho da elevada consciência educadora da
nobreza grega primitiva, representando as tradições vivas da aristocracia de seu
tempo.

“A Ilíada fala-nos de um mundo situado num tempo em que domina


exclusivamente o espírito heroico da Arete, e corporifica este ideal em todos os
seus heróis. Junta numa unidade ideal indissolúvel a imagem tradicional dos
antigos heróis, transmitida pelas sagas e incorporada aos cantos, e as tradições
vivas da aristocracia do seu tempo. O valente é sempre o nobre, o homem de
posição.” (JAEGER, 1995, p. 40)

Na Odisseia, contemplam-se também nobres senhores e seus palácios, porém


com anseios distintos da alta estirpe que compõe a Ilíada. A nobreza se distingue
não mais por sua armadura reluzente, sua força e coragem no combate
sangrento ou pela busca desenfreada pela glória imorredoura. A Odisseia expõe
uma estirpe que deseja usufruir a vida na paz dos seus palácios, pois a “vida
sedentária, a posse de bens e a tradição são os pressupostos da cultura da
nobreza”, que prezava, sobretudo, as maneiras e condutas distintas, inerentes
aos nobres, uma vez que “não se pode imaginar uma educação e formação
consciente fora da classe privilegiada” (JAEGER, 1995). Um traço que revela
considerável distinção entre os poemas homéricos reside no fato de que, na
Odisseia, aparecem várias personagens que não pertencem à nobreza, ainda
assim, desempenham um papel importante na trajetória de Odisseu: o porqueiro,
o boieiro, a ama, o cão. O herói, inclusive, faz aliança com o porqueiro e o boieiro
para tomar de volta o seu reino contra os pretendentes de Penélope.

Todos os homens possuem um elemento que os aproxima: a mortalidade,


embora isso não signifique que todos os homens sejam iguais, um abismo social
os separa na história e, consequentemente, na literatura. Vidal-Naquet (2002)
lembra que os gregos, inventores da democracia, conheciam o ideal de
igualdade, mas esta era reservada, “mesmo em Atenas, apenas aos cidadãos
do sexo masculino” pertencentes à nobreza, “isto é, a uma minoria”. Embora, na
Odisseia, seja atribuída certa evidência a personagens do cotidiano, que não
pertencem ao grupo dos aristoi, elas surgem como pretexto para o elogio do
herói, todos os servos de Ulisses não se cansam de contar as façanhas do seu
senhor e mencionar todas as suas qualidades e, ainda, rememorar a vida feliz
do tempo em que Ulisses reinava. Na Odisseia, parece haver, de fato, um
sentimento de humanidade para com as pessoas comuns “e até para com
mendigos”, não se evidencia, pois, “a orgulhosa e aguda separação entre os
nobres e os homens do povo”, como na Ilíada. Existe uma patriarcal proximidade
entre senhores e servos; contudo, o verdadeiro herói só pode ser concebido em
uma classe nobre. 105

Ulisses chega mesmo a declarar que haverá entre eles uma relação familiar, em
virtude do grande auxílio que lhe ofereceram no embate contra seus inimigos:
“Darei a cada um de vós uma mulher, bens e uma boa casa perto da minha; eu
vos tratarei como parentes e irmãos de Telêmaco” (Odisseia, XXI, 214-215). É
importante lembrar que, na Odisseia, as personagens, inclusive o herói,
destacam-se não necessariamente por virtudes heroicas, mas, sobretudo, pelas
virtudes espirituais e sociais. Dispensar um tratamento mais digno para com as
pessoas é o que se esperaria de um herói com qualidades mais humanas. De
fato, é notória a benevolência dele para com aqueles de condição inferior, desde
que demonstrem a devida fidelidade e submissão ao senhorio dos nobres.
Convém lembrar que as servas infiéis, que se haviam deitado com os
pretendentes de Penélope, tiveram um destino funesto, sendo enforcadas no
pátio do palácio sob a supervisão do próprio Telêmaco.

No mundo épico, costuma-se suprimir “tudo quanto é baixo, desprezível e falho


de nobreza”, desse modo, só os elementos que acentuam a excelência dos
heróis são rememorados por Homero, seja pela proeminência dada à genealogia
ou ainda pelo enfático uso de epítetos decorativos, tornando-se parte da
convenção do estilo épico. Como já se expôs, um dos modos de enfatizar a
procedência elitizada do herói é, principalmente, ressaltar a sua ascendência
nobre. Assim, os heróis homéricos possuem uma genealogia que remonta de
forma direta ou indireta a um deus (deusa) – a maioria dos heróis descende mais
ou menos do próprio Zeus – e ainda o coloca na posição de herdeiro de algum
reino na terra. Fazer menção à procedência tornou-se parte da tradição
homérica, como se observou, na Ilíada, em que até mesmo o cetro utilizado pelos
reis tem genealogia particular.

Mas o herói não é reconhecido como tal apenas quando dá ciência de sua
genealogia, ele é herdeiro também de uma nobreza que lhe parece inerente.
Assim, eles são dotados de qualidades excepcionais que reúnem beleza,
inteligência, força, eloquência, coragem; tais atributos os tornam detentores de
um porte inigualável, fazendo com que sejam reconhecidos como nobres mesmo
em meio a uma multidão. Quando Ulisses se depara com seu pai Laertes,
trabalhando em situação deplorável – “ele usava um casaco sujo, vagabundo e
remendado” – comenta “Não há nada em ti que denote um escravo, nem a
estatura nem o aspecto: tens mais o ar de um rei”. Para acentuar a ascendência
nobre do herói, é comum o nome vir acompanhado de um aposto, que indique a
sua procedência paterna, detalhe importantíssimo para o reconhecimento de sua
ilustre genealogia. É importante ressaltar que, mesmo o herói sendo filho de uma
deusa, a predileção é sempre atribuída ao nome do pai mortal: Aquiles, filho de
Peleu ou ainda pélida Aquiles; Agamêmnon, filho de Atreu ou o átrida; Eneias,
filho de Anquises – os heróis de Homero têm a paternidade revelada com
distinção. Somente a Tersites, na Ilíada, não é dado saber o nome do pai, o que
é um sinal característico, revelando que, de fato, não pertencia ao grupo de
guerreiros aristocratas. Para Vidal-Naquet (2002), Tersites “é o eco,
desfavorável, da existência, diante dos áristoi, de classes sociais menos 106
gloriosas”.

As personagens do mundo homérico também não são, simplesmente, citadas,


contudo as acompanha uma série de epítetos decorativos, como, por exemplo,
o grande Heitor do capacete reluzente; o divino Aquiles de pés ligeiros e
semelhante aos deuses; Ulisses das mil astúcias; Agamêmnon, rei dos homens.
O uso de epítetos tornou-se parte dos detalhes de estilo e de estrutura da
epopeia. Sobre tal estilo, Jaeger (1995, p. 69) assim pondera: “Na nossa grande
epopeia, precedida de longa evolução dos cantos heroicos, estes epítetos, com
o uso, perderam a vitalidade, mas são impostos pela convenção do estilo épico”.

Além do emprego dos epítetos, as descrições épicas estão sempre envoltas em


um tom ponderativo, enobrecedor e transfigurante (JAEGER, 1995), tudo o que
diz respeito ao mundo dos heróis deve ser tratado com uma linguagem culta,
rebuscada, cheia de lirismo metafórico. Homero louva e exalta o que no mundo
é digno de elogio e louvor. Existe mesmo uma retórica heroica que preconizava
e distinguia o discurso do herói, por isso, Homero, por vezes, alterna o combate
e o discurso. A linguagem culta é apreciada, dessa forma, mostrando que os
heróis são dotados de grande eloquência, ele é antes de tudo um orador por
excelência. Era um modo de diferenciá-los e deixar claro que pertenciam a uma
classe superior que se distingue não só pela ascendência, mas também pela
fala.

Tal é a solidez do modelo de Homero que até à modernidade suas características


ressoam significativamente, demonstrando que a sua poesia alcançou uma
universalidade humana que tornou a sua essência permanente. Sobre isso,
convém citar as oportunas palavras de Jaeger (1995, p. 65) “O fato de Homero,
o primeiro que entra na história da poesia grega, ter-se tornado o mestre da
humanidade inteira demonstra a capacidade única do povo grego para chegar
ao conhecimento e à formulação daquilo que une e move todos nós”.

Referências biográficas
Aldinéia Cardoso Arantes, doutoranda em História pela Universidade Estadual
de Maringá.

Referências bibliográficas
AGUIAR E SILVA, Vitor Manuel. Teoria e Metodologia Literárias. Lisboa:
Universidade Aberta, 1990.

HOMERO. Odisséia. Tradução de Frederico Lourenço. Lisboa: Cotovia, 2003.


_____. Ilíada. Tradução de Frederico Lourenço. Lisboa: Cotovia, 2005.

JAEGER, Werner. Paidéia: a formação do homem grego. Ed. Martins Fontes,


São Paulo, 1995.

MOSSÉ, Claude. A Grécia Arcaica de Homero a Ésquilo. Lisboa: Edições 70, 107
1984.

VIDAL-NAQUET, Pierre. O mundo de Homero. Tradução Jônatas Batista Neto.


São Paulo: Companhia das Letras, 2002.
“MULHERES VIRTUOSAS” À VOLTA DO
MEDITERRÂNEO ANTIGO: HEBREIAS, CANANEIAS,
EGÍPCIAS E AS POSSIBILIDADES PARA O ENSINO DE
HISTÓRIA ANTIGA
108
Alessandra Serra Viegas

Quem é a mulher virtuosa à volta do Mediterrâneo?


O presente texto é uma proposta de trabalho para levar às aulas de História
Antiga presenciais ou virtuais um estudo para refletirmos com os alunos sobre o
lugar de fala e de ação das mulheres do Antigo Oriente Próximo (AOP) e à volta
do Mediterrâneo a partir de textos seletos do Antigo (ou Primeiro) Testamento.
Esse contato é interessante e importante para que, desde então, os textos sejam
apresentados como objeto de estudo histórico-literário acerca da cultura de um
povo, a fim de desconstruirmos algumas falas do tipo: “a bíblia é opressora e
machista!” ou “as mulheres não tinham valor algum naquela época e por isso
esse comportamento é reproduzido hoje na sociedade!”.

A questão que grita (ou deveria obrigatoriamente gritar) a plenos pulmões na


mente do(a) historiador(a) – especificamente o(a) pesquisador(a) e/ou
professor(a) de História Antiga – é que não podemos cometer anacronismos,
inserindo nos textos da Antiguidade, sejam de que cultura forem: gregos,
sumérios, latinos, judaicos, egípcios, entre outros categorias e ideais de
pensamento e de comportamento da modernidade e da contemporaneidade.
Estamos lidando com outro tempo e com outra cultura e, para tanto, precisamos
entender isso primeiro para depois falar sobre. Estamos distantes. E é preciso
se aproximar a partir da língua e do ethos (o modus vivendi, o conjunto de
maneiras de viver) do(s) povo(s) com que queremos trabalhar em sala junto aos
estudantes.

Comecemos pela importância de: 1) conhecer o contexto social de produção do


texto que vamos pesquisar; 2) saber a língua original do texto; 3) ter o mínimo
para fazer a tradução do texto ou, pelo menos, dos termos mais destacados. Isso
já faz uma enorme diferença. Há um trecho em particular encontrado no Antigo
Testamento, que encerra o livro de Provérbios de Salomão, o qual cita a “mulher
virtuosa”, apontando quem é esta mulher e o que ela faz, isto é, que
características ela precisa possuir e como contribui para o desenvolvimento da
comunidade à sua volta, qual seja, a sociedade hebraica da época tratada – o
período pós-exílico do povo hebreu, séculos V–III a.C. Este é o momento em
que povo de Judá (agora chamados de judeus) retornam do exílio da Babilônia,
sob a ordem de Ciro da Pérsia. Ocorrem, daí, a reconstrução e o repatriamento
do povo, do qual grande parte eram mulheres, fora os estrangeiros que também
vieram. Vamos ao texto.
A “virtuosa” de Provérbios 31, uma mulher sem nome na sociedade
hebraica
A maioria das bíblias em língua portuguesa traduz o texto de Provérbios 31,10
como: “Mulher virtuosa, quem a achará? O seu valor muito excede o de finas
joias”. No entanto, no texto hebraico da TaNaK (o Antigo Testamento) a palavra
para virtuosa é hayil, que significa forte, valente, armada, eficiente, cheia de 109
vigor, viril (ALONSO SCHÖKEL, 1997, p. 217-218). Esse é um dado importante
para uma exegese correta do texto, a partir de seu original. A mulher de
Provérbios 31, que é a representação poética de todas as mulheres de sua
época, é utilizada como paradigmática para nós hoje, mulheres que recebemos
a toda a influência e a educação religiosa da cultura judaico-cristã. Ela é uma
mulher cuja descrição se parece com a mulher do século XXI, que tem jornada
dupla ou tripla e merece ser honrada por isso pelo homem que caminha junto a
ela. Ela é virtuosa, sim, contudo no sentido de forte, batalhadora, senhora de si
e conhecedora de seu valor, influência e importância na sociedade em que está
inserida. Veja, no texto completo, quem é essa mulher cheia de força e vigor e
repare em alguém que corre atrás com todas as forças que possui. Ela trabalha
fora, é empreendedora, é investidora, trata de negócios com os homens. E o seu
marido confia nela e a louva, junto com os filhos, reconhecendo seu valor. Será
que isso é lido com atenção por aqueles que dizem que a bíblia é machista?

“Mulher virtuosa, quem a achará? O seu valor muito excede o de finas


joias.
O coração do seu marido confia nela, e não haverá falta de ganho.
Ela lhe faz bem, e não mal, todos os dias de sua vida.
Busca lã e linho e de bom grado trabalha com as mãos.
É como o navio mercante: de longe traz o seu pão.
É ainda noite, e já se levanta, e dá mantimento à sua casa e tarefa às
suas servas.
Examina uma propriedade e adquire-a; planta uma vinha com as rendas
do seu trabalho.
Cinge os lombos de força e fortalece os braços.
Ela percebe que o seu ganho é bom; a sua lâmpada não se apaga de
noite.
Estende as mãos ao fuso, mãos que pegam na roca.
Abre a mão ao aflito e ainda a estende ao necessitado.
No tocante à sua casa, não teme a neve, pois todos andam vestidos de lã
escarlate.
Faz para si cobertas, veste-se de linho fino e de púrpura.
Seu marido é estimado entre os juízes, quando se assenta com os
anciãos da terra.
Ela faz roupas de linho fino, e vende-as, e dá cintas aos mercadores.
A força e a dignidade são os seus vestidos, e quanto ao dia de amanhã,
não tem preocupações.
Fala com sabedoria, e a instrução da bondade está na sua língua.
Atende ao bom andamento da sua casa, e não come o pão da preguiça.
Levantam-se seus filhos e lhe chamam ditosa; seu marido a louva,
dizendo:
Muitas mulheres procedem virtuosamente, mas tu a todas sobrepujas.
Enganosa é a graça, e vã a formosura, mas a mulher que teme ao Senhor,
essa será louvada.
Dai-lhe do fruto de suas mãos, e de público a louvarão as suas obras” 110
(Provérbios 31,10-31).

O livro de Provérbios é uma compilação de várias seções, sendo uma parte do


livro mais antiga, enquanto o restante é situado na segunda metade do século III
a.C. Por ser parte integrante da literatura sapiencial do povo hebreu, destaca-se
o elemento pedagógico do texto, o seu ensino. Os mais velhos, detentores da
sabedoria prática, que tinham recolhido de sua vida e experiência pessoais e da
observação da vida dos outros, ensinavam aos jovens saudáveis conselhos.
Numa sociedade que lemos como fortemente patriarcal, instiga-nos a construção
poética dessa anônima mulher modelo do capítulo 31:

“Assim como a Sabedoria é melhor do que as joias (Provérbios 8), assim uma
mulher forte vale também mais do que pérolas. (...). Essa mulher forte faz o que
o bom israelita [o homem] deve fazer: reparte generosamente com os pobres e
necessitados. Fala com sabedoria e com bondade. É inteligente, prudente, e
sabe julgar [o julgamento cabe ao universo masculino, quando se assenta às
portas da cidade, ou quando precisa tomar uma decisão para o beneficiamento
de sua família, pois ele é o cabeça], mulher que possui bom senso para os
negócios [lembremos das mulheres egípcias, que vão aos mercados, assim
como veremos essa mulher no trato com os homens, os mercadores], que
merece o respeito não só da família mas também dos oficiais da cidade”
(LAFFEY, 1994, p. 279-280).

Vale destacar que na LXX, na Versão dos Setenta, isto é, na tradução da TaNaK
para o grego koiné do período helenístico, para compor a Biblioteca de
Alexandria, o texto grego conserva o campo semântico do hebraico e utiliza para
a mulher (gynaika) o adjetivo grego andreian, o qual significa valente, corajosa,
forte, viril (BAILLY, 2000, p. 148-149), isto é, elementos pertencentes ao universo
masculino, pois o próprio adjetivo aqui se torna uma espécie de trocadilho grego,
pois andreian deriva do substantivo anér, cujo genitivo é andrós relativo ao
campo semântico do homem, no sentido de macho, varão, aquele que possui
virilidade e força. Não está no campo do ánthropos, o homem no sentido de
humanidade que, como coletivo, também pode servir para a mulher, quando
citada como espécie humana. A mulher “virtuosa” do texto da LXX também é a
mulher viril. No mínimo interessante para iniciar uma discussão e boas reflexões,
não? Vejamos mais duas mulheres do texto bíblico que podem suscitar boas
conversas em sala sobre o respeito à diversidade, ao outro que é diferente de
mim, que está fora das categorias “dentro da caixinha”.

Agar, uma mulher egípcia na sociedade hebraica


O que pensar do que se diria de uma mulher que se torna escrava sexual de um
homem cuja esposa já é idosa e não pode ter filhos? Uma mulher que vai
funcionar como uma “barriga de aluguel”? E tem mais: essa mulher é uma
egípcia no meio dos hebreus... pertence a um povo não muito bem visto por eles.
Pois é, Agar é essa mulher. Mulher que, não de espontânea vontade, vai parar
na cama do patriarca Abraão, para gerar um filho que, pelo plano arquitetado, 111
não seria dela, mas da sua senhora e dona, Sara. Mas o desfecho dessa saga
familiar é totalmente inusitado!

De Abraão e Sara certamente você já ouviu falar. São o patriarca e a matriarca


do povo hebreu. Mas e Agar, já a conhecia? Pois é, o texto prega uma peça para
os leitores e coloca Agar como uma mulher exemplar em seu caráter com uma
experiência única, interessante e profundamente cativante com o Deus dos...
hebreus! O que será que esse texto quer nos dizer com isso? Há o Deus de um
povo que se revela a uma escrava estrangeira? É preciso valorizar o outro a
despeito de quem seja, ou do que tenha a oferecer? Questões para refletir.

De onde surgiu Agar? É uma escrava que provavelmente foi dada a Sara como
na ocasião em que o Faraó a tomou para o seu harém quando Abraão teve medo
de dizer que era marido dela e mentiu. Ou Agar foi dada a Abraão como presente
do Faraó por este ter ficado com Sara no harém (Gênesis 12,10-20). Aqui já
temos uma denúncia de um erro grave e o texto não faz nenhuma questão de
encobrir os fatos que envolveram essa família. E lá está a estrangeira, egípcia,
escrava, que a nada tem direito. Vamos aos textos referentes a Agar (e também
a Abraão) e às surpresas que eles nos revelam.

“Ora Sarai, mulher de Abrão, não lhe dava filhos, e ele tinha uma serva egípcia,
cujo nome era Agar. E disse Sarai a Abrão: Eis que o Senhor me tem impedido
de dar à luz; toma, pois, a minha serva; porventura terei filhos dela. E ouviu
Abrão a voz de Sarai. Assim tomou Sarai, mulher de Abrão, a Agar egípcia, sua
serva, e deu-a por mulher a Abrão seu marido, ao fim de dez anos que Abrão
habitara na terra de Canaã. E ele possuiu a Agar, e ela concebeu; e vendo ela
que concebera, foi sua senhora desprezada aos seus olhos. Então disse Sarai
a Abrão: Meu agravo seja sobre ti; minha serva pus eu em teu regaço; vendo
ela agora que concebeu, sou menosprezada aos seus olhos; o Senhor julgue
entre mim e ti. E disse Abrão a Sarai: Eis que tua serva está na tua mão; faze-
lhe o que bom é aos teus olhos. E afligiu-a Sarai, e ela fugiu de sua face.
E o anjo do Senhor a achou junto a uma fonte de água no deserto, junto à fonte
no caminho de Sur. E disse: Agar, serva de Sarai, donde vens, e para onde
vais? E ela disse: Venho fugida da face de Sarai minha senhora. Então lhe
disse o anjo do SENHOR: Torna-te para tua senhora, e humilha-te debaixo
de suas mãos. Disse-lhe mais o anjo do Senhor: Multiplicarei sobremaneira
a tua descendência, que não será contada, por numerosa que será. Disse-
lhe também o anjo do Senhor: Eis que concebeste, e darás à luz um filho, e
chamarás o seu nome Ismael; porquanto o Senhor ouviu a tua aflição. E
ele será homem feroz, e a sua mão será contra todos, e a mão de todos contra
ele; e habitará diante da face de todos os seus irmãos.
E ela chamou o nome do Senhor, que com ela falava: Tu és Deus que me
vê; porque disse: Não olhei eu também para aquele que me vê? Por isso
se chama aquele poço de Beer-Laai-Rói; eis que está entre Cades e Berede.
E Agar deu à luz um filho a Abrão; e Abrão chamou o nome do seu filho que
Agar tivera, Ismael. E era Abrão da idade de oitenta e seis anos, quando Agar
deu à luz Ismael” (Gênesis 16,1-16): 112

“E o SENHOR visitou a Sara, como tinha dito; e fez o SENHOR a Sara como
tinha prometido. E concebeu Sara, e deu a Abraão um filho na sua velhice, ao
tempo determinado, que Deus lhe tinha falado. E Abraão pôs no filho que lhe
nascera, que Sara lhe dera, o nome de Isaque. E Abraão circuncidou o seu filho
Isaque, quando era da idade de oito dias, como Deus lhe tinha ordenado. E era
Abraão da idade de cem anos, quando lhe nasceu Isaque seu filho. E disse
Sara: Deus me tem feito riso; todo aquele que o ouvir se rirá comigo. Disse
mais: Quem diria a Abraão que Sara daria de mamar a filhos? Pois lhe dei um
filho na sua velhice.
E cresceu o menino, e foi desmamado; então Abraão fez um grande banquete
no dia em que Isaque foi desmamado. E viu Sara que o filho de Agar, a egípcia,
o qual tinha dado a Abraão, zombava.
E disse a Abraão: Ponha fora esta serva e o seu filho; porque o filho desta serva
não herdará com Isaque, meu filho. E pareceu esta palavra muito má aos olhos
de Abraão, por causa de seu filho. Porém Deus disse a Abraão: Não te pareça
mal aos teus olhos acerca do moço e acerca da tua serva; em tudo o que Sara
te diz, ouve a sua voz; porque em Isaque será chamada a tua descendência.
Mas também do filho desta serva farei uma nação, porquanto é tua
descendência.
Então se levantou Abraão pela manhã de madrugada, e tomou pão e um odre
de água e os deu a Agar, pondo-os sobre o seu ombro; também lhe deu o
menino e despediu-a; e ela partiu, andando errante no deserto de Berseba.
E consumida a água do odre, lançou o menino debaixo de uma das árvores. E
foi assentar-se em frente, afastando-se à distância de um tiro de arco; porque
dizia: Que eu não veja morrer o menino. E assentou-se em frente, e levantou a
sua voz, e chorou. E ouviu Deus a voz do menino, e bradou o anjo de Deus
a Agar desde os céus, e disse-lhe: Que tens, Agar? Não temas, porque
Deus ouviu a voz do menino desde o lugar onde está. Ergue-te, levanta o
menino e pega-lhe pela mão, porque dele farei uma grande nação. E abriu-
lhe Deus os olhos, e viu um poço de água; e foi encher o odre de água, e
deu de beber ao menino. E era Deus com o menino, que cresceu; e habitou
no deserto, e foi flecheiro. E habitou no deserto de Parã; e sua mãe tomou-
lhe mulher da terra do Egito” (Gênesis 21,9-21).

O que aconteceu de especial a essa escrava estrangeira? a) Agar ouviu e falou


com o anjo do Senhor por duas vezes (Gênesis 16,8-12; 21,17-18). E obedeceu
à fala do anjo (Gênesis 16,15-16; 21,19); b) Agar recebeu a promessa de
descendência numerosa (Gênesis 16,10; 21,18). A mesmíssima promessa de
bênção dada a Abraão em Gênesis 13,16; 17,2. Seu nome não seria apagado
da memória (Gênesis 21,13 – Abraão fica sabendo que a bênção não é
exclusividade dele. Agar também a recebe!); c) Agar olhou para a divindade que
a viu. E deu um nome à divindade a partir dessa experiência por que passou
(Gênesis 16,13); d) Agar obteve água e sustento no deserto de forma miraculosa
(Gênesis 21,19-20); e) Agar ganhou no deserto a liberdade e foi para a sua terra,
o Egito, não mais sendo escrava, e dando continuidade à sua descendência
(Gênesis 21,21). Ela é a referência, através de Ismael, para o surgimento do 113
povo árabe.

Sim, em Agar estamos falando do mesmo modelo de mulher: forte e batalhadora,


a virtuosa, merecedora de um registro de louvor e exaltação à sua figura na
construção do discurso literário, pela palavra que impregna toda a dinâmica da
sociedade, sim, por essa palavra, que “será sempre o indicador mais sensível de
todas as transformações sociais” (BACCEGA, 1995, p. 64) efetuadas no campo
das relações humanas.

Tamar, uma mulher cananeia na sociedade hebraica


O terceiro e último texto que queremos apresentar é o texto que apresenta outra
estrangeira no meio dos hebreus e que dá um enorme exemplo de piedade. Ela
pode até mesmo ser considerada uma heroína. Tamar é uma cananeia que irá
seduzir o próprio sogro, Judá, tendo um filho dele, isto é, mantendo a
descendência e o não permitindo que o nome da família se encerre. O mais
incrível: este é um relato do primeiro livro do Antigo Testamento, o Gênesis, e
nossa Tamar aparecerá nomeada na genealogia de Jesus, no evangelho de
Mateus, primeiro livro do Novo Testamento. O nome dela e o que fez ficou na
história!

Algumas narrativas do Antigo Testamento distinguem mulheres que são notáveis


pelo jogo de sedução de que se utilizam para conseguirem o que desejam ou
necessitam. Tais fatos, vistos em seu contexto, envolvem e apontam uma
perspectiva de continuidade: a manutenção da vida e da descendência. Assim,
os textos assinalados como aqueles de “mulheres sedutoras”, incluem até
mesmo detalhes do que elas elaboram e efetivamente realizam. Interessa à
tessitura da intriga narrativa o motivo pelo qual seduzem, e os ritos que praticam,
os quais são ratificados e elogiados pelo narrador – o qual aponta para as cenas
íntimas o foco narrativo, como se fosse um holofote. Geralmente, tais textos, a
partir do gênero literário, são classificados como uma novela. No entanto, a
especificidade desses textos permite classificá-los dentro do gênero literário do
jogo de sedução.

Explicando: um gênero literário se constitui a partir da existência de dois ou mais


textos que apresentem características semelhantes entre as quais se possa
estabelecer uma comparação (LIMA, 2014, p. 123, 172). O jogo de sedução, por
ocorrer em vários textos do Antigo Testamento, pode ser considerado, segundo
essa proposição, um gênero literário. As heroínas do Antigo Testamento podem
ser inseridas em três categorias ao tomá-las como objeto de estudo: a Mãe do
herói, a Sedutora, a Mulher estrangeira. De acordo com a narrativa ou texto
poético selecionado, essas características vão sendo percebidas e postas nas
categorias às quais se assemelham (BRENNER, 2001, p. 133-169).

Ainda, os elementos literários do jogo de sedução compreendem: a) Mulheres


estrangeiras; b) A sedução de um parente varão com o propósito de gerar um
herdeiro varão; c) A continuação da linhagem de sangue mediante as relações 114
sexuais ou o casamento com um parente homem; d) A avaliação positiva do
autor ou narrador sobre a iniciativa da mulher; e) Comida e bebida envolvidas na
cena; f) Preparação da mulher para o jogo de sedução; g) Ambiente propício
para que aconteça a sedução – um lugar reservado e h) Momento propício – à
noite, quando há penumbra (BRENNER, 2002, p. 106-107). Vejamos o texto e
percebamos onde se encontram os elementos aqui elencados.

“E aconteceu no mesmo tempo que Judá desceu de entre seus irmãos e entrou
na casa de um homem de Adulão, cujo nome era Hira, E viu Judá ali a filha
de um homem cananeu, cujo nome era Sua; e tomou-a por mulher, e a possuiu.
E ela concebeu e deu à luz um filho, e chamou-lhe Her. E tornou a conceber e
deu à luz um filho, e chamou-lhe Onã. E continuou ainda e deu à luz um filho, e
chamou-lhe Selá; e Judá estava em Quezibe, quando ela o deu à luz.
Judá tomou uma mulher para Her, o seu primogênito, e o seu nome era Tamar.
Her, porém, o primogênito de Judá, era mau aos olhos do SENHOR, por isso o
SENHOR o matou. Então disse Judá a Onã: Toma a mulher do teu irmão, e casa-
te com ela, e suscita descendência a teu irmão. Onã, porém, soube que esta
descendência não havia de ser para ele; e aconteceu que, quando possuía a
mulher de seu irmão, derramava o sêmen na terra, para não dar descendência
a seu irmão. E o que fazia era mau aos olhos do SENHOR, pelo que também o
matou.
Então disse Judá a Tamar sua nora: Fica-te viúva na casa de teu pai, até que
Selá, meu filho, seja grande. Porquanto disse: Para que porventura não morra
também este, como seus irmãos. Assim se foi Tamar e ficou na casa de seu pai.
Passando-se pois muitos dias, morreu a filha de Sua, mulher de Judá; e depois
de consolado, Judá subiu aos tosquiadores das suas ovelhas em Timna, ele
e Hira, seu amigo, o adulamita. E deram aviso a Tamar, dizendo: Eis que o teu
sogro sobe a Timna, a tosquiar as suas ovelhas. Então ela tirou de sobre si os
vestidos da sua viuvez e cobriu-se com o véu, e envolveu-se, e assentou-
se à entrada das duas fontes que estão no caminho de Timna, porque via
que Selá já era grande, e ela não lhe fora dada por mulher. E vendo-a Judá, teve-
a por uma prostituta, porque ela tinha coberto o seu rosto. E dirigiu-se a ela no
caminho, e disse: Vem, peço-te, deixa-me possuir-te. Porquanto não sabia que
era sua nora. E ela disse: Que darás, para que possuas a mim? E ele disse: Eu
te enviarei um cabrito do rebanho. E ela disse: Dar-me-ás penhor até que o
envies? Então ele disse: Que penhor é que te darei? E ela disse: O teu selo, e o
teu cordão, e o cajado que está em tua mão. O que ele lhe deu, e possuiu-a, e
ela concebeu dele.
E ela se levantou, e se foi e tirou de sobre si o seu véu, e vestiu os vestidos da
sua viuvez. E Judá enviou o cabrito por mão do seu amigo, o adulamita, para
tomar o penhor da mão da mulher; porém não a achou. E perguntou aos homens
daquele lugar, dizendo: Onde está a prostituta que estava no caminho junto às
duas fontes? E disseram: Aqui não esteve prostituta alguma. E tornou-se a Judá
e disse: Não a achei; e também disseram os homens daquele lugar: Aqui não
esteve prostituta. Então disse Judá: Deixa-a ficar com o penhor, para que
porventura não caiamos em desprezo; eis que tenho enviado este cabrito; mas
tu não a achaste. 115
E aconteceu que, quase três meses depois, deram aviso a Judá, dizendo: Tamar,
tua nora, adulterou, e eis que está grávida do adultério. Então disse Judá: Tirai-
a fora para que seja queimada. E tirando-a fora, ela mandou dizer a seu sogro:
Do homem de quem são estas coisas eu concebi. E ela disse mais: Conhece,
peço-te, de quem é este selo, e este cordão, e este cajado. E conheceu-os Judá
e disse: Mais justa é ela do que eu, porquanto não a tenho dado a Selá meu
filho. E nunca mais a conheceu [= deitou-se com ela]” (Gênesis 38,1-26).

No relato acerca de Tamar e Judá: a) Tamar é estrangeira (Gênesis 38,1-2.6);


b) seduzirá um parente varão – o sogro – vestindo-se como prostituta (Gênesis
38,15-16); c) Tamar se prepara (tira suas vestes de viuvez) para receber Judá e,
através dele, do sogro, (Gênesis 38,14); d) dar continuidade à linhagem de
sangue que pertence a seu filho, Her, que morrera; (Gênesis 38,14.26); e)
encontram-se em um lugar reservado na entrada de Enaim para terem relações
sexuais. Infira-se ao texto o fato de Judá estar consolado da morte da esposa e
envolvido na viagem com Hira para a tosquia das ovelhas, (Gênesis 38,12-18);
f) momento que continha uma festividade, onde se beberia vinho naturalmente
(Gênesis 38,12), e Judá pode ter bebido antes de estar com Tamar
(CARMICHAEL, 1979, p. 76-78); g) Judá fará, posteriormente, a análise positiva
acerca de Tamar. (Gênesis 38,26)

O texto é bastante claro e nos mostra que Tamar seduz o homem a quem ela
escolhe para dar um herdeiro, sob o rigor da lei do levirato, cumprida pelos
hebreus – rito no qual o irmão (na falta deste um parente próximo) do morto
precisa ter relações com a viúva para suscitar descendência ao nome do morto.
Uma vez que Selá está vivo e não realiza o rito, Tamar permanece presa à família
de Judá pela lei. Por isso, ela age com o objetivo de tornar-se mãe. O que essa
mulher faz é usar as amarras patriarcais em seu próprio favor e ser ancestral
tanto da dinastia do rei David, quanto de Jesus. A originalidade subversiva que
ela demonstra ao enfrentar uma situação de sobrevivência é tanto respeitada
pelos homens que temem ao Deus de Israel, quanto abençoada pelo próprio
Deus (BRENNER, 2002, p. 172) e colocada como modelo de obediência na fala
do homem da cena, Judá (um detalhe: ele é bisneto de Abraão): “Mais justa é
ela do que eu...”. Este é mais um relato que nos desafia para repensarmos como
vemos a Antiguidade e os textos que nela eram produzidos, primeiro como
literatura oral, depois como registro escrito e arcabouço cultural de um povo.

Para não concluir agora: porque essa questão precisa continuar...


Este breve estudo pretendeu apontar as características de textos seletos do
Antigo Testamento, a fim de assinalar algumas “mulheres virtuosas” cuja
construção literária aponta a força de um texto feminino e revolucionário, no qual
tais mulheres são caracterizadas como justas ou heroínas, o que se expõe ainda
mais quando essas mulheres são batalhadoras e/ou estrangeiras, ainda que em
uma cultura patriarcal. O que se pode perceber é que há um embate contra esse
domínio do masculino. Aí está a riqueza do texto bíblico. Ele é compósito. Mas
não deixa de registrar mulheres que não fugiram à luta e que não são sexo frágil.
Mulheres corajosas. Mulheres exemplares. Mulheres de valor. Mulheres que têm 116
vez e voz naquela sociedade, mesmo que hoje alguns “leitores” façam uso dos
mesmos textos e tentem de todos os meios calar a voz e tirar a vez delas.

Vamos encerrar por ora com mais um texto antigo. Platão, na República,
demonstra-nos Sócrates (ou será a própria opinião de Platão?) falando do trato
e do respeito que deve ser dispensado às mulheres pelos homens. O filósofo
utiliza-se de seu argumento dos contrários, comparando tal tratamento aos
dispensados aos animais, colocando estes – machos e fêmeas – em posição de
igualdade, para que Glauco [o interlocutor do diálogo] reflita sobre a posição das
mulheres como seres iguais. Para tanto, indaga-lhe Sócrates:

“ – Está o trabalho dos cães dividido entre os sexos, ou ambos participam


igualmente da caça, do serviço de guarda e dos outros deveres caninos? Ou
será que confiamos exclusivamente aos machos o cuidado do rebanho e
deixamos as fêmeas em casa, na suposição de que os partos e a criação dos
filhotes seja ocupação suficiente para elas?
– Não – disse ele [Glauco] – fazem tudo em comum” (PLATÃO. República, 451d-
e).

Platão, ainda, no mesmo livro, na continuação do diálogo de Sócrates com


Glauco, propõe que a mulher faça parte do quadro de guardiães da cidade,
pondo-a claramente, e não através de figuras, na mesma posição dos homens:

“– Tanto homens quanto mulheres possuem as qualidades que fazem um


guardião, diferindo apenas quanto à força ou fraqueza relativa.
– Assim parece.
– E as mulheres que possuem tais qualidades devem ser escolhidas como
companheiras e colegas dos homens da mesma classe, aos quais se
assemelham pelo caráter e pelas aptidões?
– Evidentemente.
– E não convém dar os mesmos encargos às mesmas naturezas?
– Os mesmos.” (PLATÃO, República, 456a-b)

Se continuarmos procurando, tirando de nós nossas ideias preconcebidas


quanto às relações interpessoais da Antiguidade e o senso comum de que “era
assim mesmo naquela época o patriarcado em todo lugar”, encontraremos uma
série de exemplos que demonstram o respeito e a condição de
igualdade/paridade dada à mulher ao lado do homem. É possível mesmo que a
encontremos em posição de superioridade nas cosmologias e mitologias
sumérias, babilônicas, egípcias, gregas e romanas. Nosso objetivo, no entanto,
no momento, foi apenas aguçar e fazer brotar reflexões sobre o tema no intuito
de iniciar pesquisas mais profundas. Mas para tal, é imprescindível retirarmos os
“óculos” dos discursos construídos ao longo da história, que carregam em seu
bojo preconceitos e desigualdades, e inserirmo-nos nas teias relacionais das
sociedades que queremos pesquisar de modo sério, com total lisura e rigor
acadêmico.
117
Referências biográficas
Dra. Alessandra Serra Viegas professora da Secretaria de Educação do Estado
do Rio de Janeiro e do Seminário Metodista César Dacorso Filho.

Referências bibliográficas
ALONSO SCHÖKEL, L. Dicionário bíblico hebraico-português. Trad.: Ivo
Storniolo, José Bortolini. São Paulo: Paulus, 1997.

BACCEGA, M. A. Palavra e discurso – história e literatura. São Paulo: Ática,


1995. (Série Princípios).

BAILLY, A. Dictionnaire grec-français. Paris: Hachette, 2000.

BIBLIA. Grego. Septuaginta. Stuttgart: Deutsche Bibelgesellschaft, 1979.

BÍBLIA. Hebraico. Biblia Hebraica Stuttgartensia. 4. ed. enend. Stuttgart:


Deutsche Bibelgesellchaft, 1990.

BÍBLIA. Português. Bíblia de Jerusalém. Nova edição, revista e ampliada. São


Paulo: Paulus, 2002.

BRENNER, A. A Mulher Israelita: Papel Social e Modelo Literário na Narrativa


Bíblica. São Paulo: Paulinas, 2001.

BRENNER, A. (org.). Rute a partir de uma leitura de gênero. São Paulo:


Paulinas, 2002,

CARMICHAEL, C. Women, Law and the Genesis: Traditions, Edinburg: Edinburg


University Press, 1979.

LAFFEY, A. Introdução ao Antigo Testamento – perspectiva feminista. São


Paulo: Paulus, 1994.

LIMA, M. L. C. Exegese bíblica: teoria e prática. São Paulo: Paulinas, 2014.

PLATÃO. A República. Tradução de Maria Helena da Rocha Pereira. 9ª. ed.


Lisboa: Fundação Calouste Gulbenkian, 2001.
HISTÓRIA ANTIGA E LIVROS DIDÁTICOS: UMA
RELAÇÃO EM PERMANENTE CONSTRUÇÃO
Bruno da Silva Ogeda
118
O ensino de História Antiga no Brasil tem passado por uma série de mudanças
ao longo dos últimos anos, mesmo que muitas das vezes não sejam tão
facilmente percebidas. Por muito tempo, as antiguidades estiveram ligadas a um
ensino tradicional e linear, reprodutora do status quo e atrelada a uma concepção
de herança cultural única formadora do Ocidente. Tal quadro, começou a se
alterar com o processo de redemocratização da sociedade brasileira (1985) e
com a incorporação de conceitos da História Cultural, possibilitando o
surgimento de uma série de dissertações e teses que contemplavam novos
aspectos, como representação, identidade, estudos de gênero, sexualidade e
cultura material (CARVALHO; FUNARI, 2007; SILVA, 2010).

Evidencia-se que parte das mudanças operadas no ensino escolar da História


Antiga foram resultantes dos novos preceitos advindos da pesquisa acadêmica.
Não se trata aqui de defender uma transposição didática (CHEVALLARD, 2013)
unicamente capaz de “reduzir” os conteúdos acadêmicos adaptando-os para a
realidade da Educação Básica, por mais que nossa sociedade não enxergue a
escola como um local de produção de conhecimento, mas sim, unicamente como
reprodutora de um saber constituído nas universidades (GONÇALVES, 2001).
Devemos compreender que ela tem sua própria dinâmica e contexto (CERRI,
2017), logo tem a sua própria lógica de ensino e seus próprios objetivos.

Outro fator determinante para tais transformações e que não deve ser
negligenciado é a construção da Base Nacional Comum Curricular (BNCC), que
de certa maneira envolveu parte da sociedade brasileira em seus debates. Tal
processo poderia ter sido mais amplamente discutido e contado com uma parte
maior de agentes ligados ao ensino de História, mas ao longo de sua construção
ficou evidenciado um verdadeiro embate entre forças representantes de
diferentes projetos para a educação nacional. Ao final, foi costurado um
documento que reafirmou a presença da História Antiga no currículo da
Educação Básica, mas que tem sido alvo de constantes questionamentos.

A presença dos conteúdos relacionados à Antiguidade na BNCC talvez tenham


sido um dos maiores alvos de indagações. Qual a finalidade ou necessidade de
se estudar a História Antiga em um país como o Brasil? Para o professor Pedro
Paulo Funari, um dos antiquistas mais respeitados do nosso país, em um parecer
emitido ao Ministério da Educação (MEC), a presença dos conteúdos
relacionados à História Antiga na BNCC fazia-se necessária para garantir
igualdade de oportunidades na educação. Segundo ele, retirar estas temáticas
seria privar a maioria da população de conhecer para além da história de nosso
estado nacional (FUNARI, 2016). Além disso, acreditamos que conhecer povos
e culturas tão longínquas no tempo, possibilita um verdadeiro portal de
alteridade, confrontado os estudantes com realidades totalmente diferentes,
contribuindo para uma formação crítica e problematizadora capaz de prevenir o
surgimento de discursos autocentrados culturalmente (MOERBECK, 2018).

Diante desses novos paradigmas de ensino, precisamos voltar nossos olhares


para a maneira como vem se desenvolvendo a História Antiga nas salas de aulas 119
brasileiras. Para tal, vamos nos dedicar mais detidamente aos livros didáticos,
instrumentos pedagógicos de amplo alcance e que sempre estão presentes no
cotidiano de professores e alunos como objeto privilegiado na via de mão dupla
do ensino-aprendizagem. Desta maneira,

“a reflexão sobre o ensino da História Antiga contida nos livros didáticos, ao


contrário do que possa parecer à primeira vista, não representa uma
preocupação menor no contexto do panorama educacional brasileiro, uma vez
que, ao problematizar um assunto dessa natureza, temos a oportunidade de
revelar sérias e graves distorções que se encontram subjacentes à própria
qualidade do ensino de História em nível escolar” (SILVA, 2000, p. 231).

Logo, podemos pensar os livros didáticos como monitores capazes de nos


apresentar diversos aspectos concernentes à realidade do ensino de História no
Brasil.

Antes de mais nada, devemos compreender que didático é o livro escrito, editado
e vendido, tendo em vista a utilização escolar e sistemática (LAJOLO, 1996), um
material que se apresenta de maneira universal e onipresente (CHOPPIN, 2002),
esta definição longe de simplificar as coisas, abre caminho para
compreendermos os materiais didáticos como um instrumento complexo e
multifacetado transpassado por aspectos culturais e mercadológicos.

Uma das principais funções dos livros didáticos, constantemente negligenciado


pelos agentes que o manuseiam diariamente é transmitir às jovens gerações os
saberes e habilidades que são considerados indispensáveis para a sociedade.
Diante disso, avistamos que os livros escolares veiculam um sistema de valores
morais, religiosos, políticos que participam do processo de socialização da
juventude (CHOPPIN, 2002).

Outra variante importante destes materiais é que estes são produtos culturais,
que inseridos em uma sociedade capitalista devem ser compreendidos como
uma mercadoria, mas que diferente das demais não precisa ser colocada no
mercado à espera de consumidores, uma vez que sua produção e distribuição é
em muitos casos reguladas pelo Estado (MUNAKATA, 2012). Logo, devemos
compreender o livro didático como um produto de consumo que se apresenta
como recurso didático, mas que desemprenha um papel importante na
dominação cultural (MATOS, 2012).

Assim, este importante instrumento didático, assume um papel de destaque na


mediação da relação professor-currículo-aluno, porém, na maior parte das salas
de aula, o livro didático tem sido convertido no único recurso teórico-
metodológico e de conteúdos empregados pelos profissionais do saber
(GONÇALVES, 2001). Portanto, os materiais didáticos não são vistos apenas
como instrumentos de trabalho auxiliares, mas sim como autoridade, a última
instância e o padrão de excelência a ser adotado nas aulas (FREITAG, 1989).
120
Diante deste panorama, cabe-nos perguntar que História Antiga tem sido
apresentada pelos livros didáticos nas aulas do Ensino Básico? Estes materiais
tão presentes no cotidiano escolar conseguem entregar conteúdos atualizados
e em sintonia com um ensino de História Antiga crítica, problematizada e capaz
de contribuir para as necessidades dos estudantes?

Desde o início deste século, alguns historiadores brasileiros se dedicaram a


História Antiga disposta em nossos manuais didáticos. Percebemos que em
todos os trabalhos consultados, os autores têm diagnósticos semelhantes e que
as críticas seguem uma mesma linhagem, para eles. Existe uma série de
problemas como as simplificações de conteúdos, a presença de informações
erradas e desatualizadas, o constante uso de anacronismos nas explicações e
a falta de conexão com a realidade do aluno (SILVA, 2000; GONÇALVES, 2001;
SILVA, 2010).

Para Ana Teresa Marques Gonçalves (2001), o problema das informações


erradas ou defasadas, deve-se ao fato de que muitos manuais são produzidos
utilizando coleções mais antigas como referência, devido em parte, pela falta de
especialistas em História Antiga nas equipes de produção didática. Isso implica
na multiplicação das desatualizações e erros que vão sendo repetidas através
dos novos volumes produzidos pelas editoras.

Em muitos casos, conceitos ultrapassados ou revistos pela historiografia voltam


à cena em livros didáticos atuais. Podemos citar como exemplos, a utilização do
termo “decadência” para explicar a crise do Império Romano. Tal conceituação,
já foi posta em xeque desde os anos 1980, sendo substituída pela ideia de
“desagregação”. Complementa esta desatualização, a “consagrada” divisão
entre Alto e Baixo Império, que inevitavelmente reafirma uma contraposição
entre períodos de ascensão e declínio de Roma.

Outro fator que se repete nos livros didáticos e nas salas de aula é a hipótese
causal hidráulica que teria sido responsável pelo desenvolvimento das
civilizações asiáticas. Tal hipótese, já foi superada e mesmo assim permanece
como válida em muitos manuais (GONÇALVES, 2001). Ainda na mesma linha,
podemos citar como exemplo a escravidão no Egito Antigo, erroneamente
associada a construção das pirâmides e outros monumentos, mesmo com
diversas pesquisas apresentando que alguns grupos sociais prestavam
trabalhos forçados para o Estado.

Assim como as desatualizações, muitos livros apresentam anacronismos nas


suas tentativas modernizantes de explicar o passado. Gilvan Ventura da Silva
(2000), demonstrou que em algumas edições didáticas, Atenas e Esparta eram
convertidas em potências imperialistas que se digladiavam pelo controle do
mundo grego, assumindo papéis de “quase dublês” dos Estados Unidos e da
União Soviética nos assustadores dias da Guerra Fria. Ou ainda, pode-se
observar as colônias gregas como fornecedoras de matérias-primas a baixo
preço para a metrópole, ao mesmo tempo em que consumiam produtos 121
“industrializados”, acabando por simular nas páginas dos livros didáticos as
relações do pacto colonial que vigorou na Modernidade.

Ainda sobre o denominado “mundo grego”, devemos nos atentar para o


“atenocentrismo”, ideia que se encontra presente não só em livros, mas também
no senso comum e que coloca a cidade de Atenas como a pólis por excelência,
capaz de representar toda a variedade de cidades-estados helênicas. Esta
interpretação corresponde muito mais a uma justificação dos modelos
democráticos e liberais adotados pelos países ocidentais na atualidade do que
de fato a uma realidade da Antiguidade (BUSTAMANTE, 2017).

Quando se trata de civilizações que realizaram um processo de expansão, como


Grécia e Roma, os manuais didáticos ainda empregam uma perspectiva
historiográfica colonial. Observando o exemplo de Roma, nos deparamos com
livros que apresentam o Império como um bloco cultural monolítico, sem espaço
para interações culturais. Ora, é completamente errôneo pensar que uma
unidade política que abrangia boa parte da população mundial à época não fosse
um grande mosaico marcado por dinâmicas de assimilação, ajustamento,
negociação e conflito que resultaram em uma diversidade de hibridizações e
amálgamas culturais (BEARD, 2017; MENDES, 2007).

Analisando a estrutura dos manuais didáticos, enxergamos que "nas coleções


de História, percebem-se duas tendências principais ao se estruturar o conteúdo
de História Antiga. Ou se tenta abranger de forma panorâmica todas as
civilizações antigas orientais e ocidentais, ou, buscando aproximar o mundo
contemporâneo do passado, remete-se o aluno a uma procura das origens de
certas instituições atuais, ressaltando-se o valor das civilizações grega e
romana, principalmente” (GONÇALVES, 2001, p. 11).

Neste caso, observamos materiais didáticos que apresentam a História Antiga


com maior ênfase à Antiguidade Clássica relegando às sociedades
marginalizadas a poucas páginas ou boxes complementares. É o caso dos
cartagineses que aparecem rapidamente em pequenas áreas dos capítulos
dedicados aos romanos e que tem sua explicação unicamente associada a
participação nas Guerras Púnicas (264 a.C. – 164 a.C.).

Ainda sobre a estrutura dos manuais escolares, observamos que as diversas


sociedades da Antiguidade são tratadas de maneira estanque, ratificando o
apontamento feito por Noberto Luiz Guarinello (2003) de que a História Antiga é
apresentada nos livros didáticos a partir de uma divisão tripartite que contempla
Antigo Oriente Próximo (principalmente Egito e Mesopotâmia), Grécia e Roma
na forma de uma sucessão cronológica, como se a História se apagasse
progressivamente a Leste, para reacender-se a Oeste. Isso impossibilita a
percepção de que muitos dos eventos narrados ocorreram de maneira
simultânea e que as sociedades antigas estavam conectadas através de
importantes redes de trocas comerciais e culturais como o Mediterrâneo.
122
Tais conexões, quando evocadas, são utilizadas apenas para justificar as
guerras ou as relações de dominação entre os povos, trazendo aos estudantes
uma Antiguidade ligada a uma lógica que privilegia uma narrativa bélica e que
acaba por contribuir com a sustentação de uma história que privilegia as grandes
datas e os grandes personagens.

Tomamos estes apontamentos para realizarmos uma análise panorâmica


(devido os limites desta comunicação) em duas obras aprovadas pela última
edição do Programa Nacional do Livro Didático (PNLD-2020). Utilizaremos como
objeto desta amostragem os livros “História.doc” da editora Saraiva e “Vontade
de Saber” da editora FTD, ambos destinados ao 6º ano do Ensino Fundamental.

Iniciando esta breve análise, nos debruçamos sobre a Mesopotâmia e o Egito.


Na coleção “Vontade de Saber”, chama a atenção o fato de o Egito ser
trabalhado em bloco com outras civilizações africanas, uma metodologia que
acreditamos ser interessante para evitar o corrente deslocamento geográfico da
sociedade egípcia. Além disso, o autor destaca a importância do Rio Nilo, mas
não reafirma a clássica narrativa herodotiana de que o “Egito é uma dádiva do
Nilo”. Já no “História.doc”, Heródoto é parafraseado para afirmar a forte conexão
do Egito ao Nilo, o que de certa maneira também é transplantado para justificar
as civilizações mesopotâmicas como “dádivas” do Tigres e do Eufrates. Por fim,
as duas coleções afirmam que os escravos eram minoria na sociedade egípcia,
deixando entendido que estes não poderiam ser responsáveis pela construção
das pirâmides e de outras grandes obras.

Quanto as páginas dedicadas à Grécia Antiga, percebemos nas duas coleções


uma estrutura similar. Existe um grande destaque para Atenas, apresentada
como o grande modelo de pólis e que acaba ocupando a maioria das páginas do
capítulo. Com muitas imagens e pequenos boxes auxiliares, somos levados ao
conhecido problema do “atenocentrismo” que como afirmado anteriormente, está
presente para além dos livros didáticos. Em seguida, os manuais buscam
abordar a Guerra do Peloponeso, enquanto o “Vontade de saber” vai diretamente
ao conflito, o “História.doc” primeiramente apresenta Esparta aos leitores,
criando a dicotomia entre as duas pólis. Em seguida, as duas coleções se
dedicam à Macedônia e ao período helenístico com destaque para a difusão
cultural.

Quando o assunto é Roma, o "Vontade de saber" opta por utilizar a tradicional


divisão entre Alto e Baixo Império que indica um momento de auge e outro de
queda, impedindo, a nosso ver, uma reflexão completa sobre os processos de
transformação relativos à História. Acreditamos que os conceitos de Principado
e Antiguidade Tardia propostos por Peter Brown (1972) permitem uma melhor
compreensão das rupturas, sem deixar de evidenciar as permanências (SILVA,
2010). Em contrapartida, o “História.doc” apresenta os primeiros anos do Império
como “O século de Augusto” em clara evidência ao Imperador responsável pela
pax romana e deixa para apresentar o colapso desta sociedade no capítulo
dedicado à Idade Média. 123

Em relação a cultura, percebemos a permanência da falta de espaço para a


diversidade dentro do Império. As duas coleções apresentam o aspecto cultural
a partir de uma ótica de padronização que corrobora a ideia, já abandonada pela
historiografia, de que havia um processo de “romanização” que através de um
movimento unidirecional impunha a cultura romana sobre as províncias gerando
uma homogeneização cultural de todo o Império.

Por fim, chama nossa atenção a existência de um maior destaque alcançado por
civilizações antes relegadas aos boxes ou leituras complementares e que agora
ocupam capítulos próprios. Porém, apesar deste avanço, os livros didáticos
ainda passam a impressão de estanqueidade, levando ao leitor pouca
compreensão da sincronia existente entre muitos eventos narrados pelos
diversos capítulos.

Ao analisar alguns materiais didáticos atuais, somos levados a concordar que


existe um notório esforço no sentido de minimizar os erros conceituais, os
anacronismos e as simplificações, tais mudanças são frutos do processo de
avaliação levado a cabo pelo Ministério da Educação (MEC) através do PNLD,
alçando o Estado brasileiro ao papel de indutor da melhoria do material didático
(CAIMI, 2017). Porém, apesar dos importantes avanços, ainda é possível
encontrar alguns pontos alarmantes, conceitos questionados pela historiografia,
falta de relação entre os capítulos e adoção de uma historiografia de viés
colonial, para citar apenas alguns, continuam presentes nas páginas dos livros
aprovados na última edição do PNLD.

Acreditamos, que as melhorias necessárias aos livros didáticos sejam também


resultado da melhor formação dos docentes em nosso país. Não adianta termos
livros totalmente atualizados de acordo com o que há de mais avançado em
termos de Ensino de História, se não temos profissionais prontos para utilizá-los
em seu pleno potencial (FAVERSANI, 2001).

Logo, precisamos compreender que a melhoria da qualidade dos conteúdos


relacionados à História Antiga nos livros didáticos é um processo que se
encontra em construção permanente e que os avanços nessa área acontecerão
a partir do fortalecimento do PNLD como ferramenta de avaliação; somada a
melhoria da formação docente nos cursos de licenciatura e na promoção de
oportunidades de requalificação e formação continuada para professores da
Educação Básica.

Referências biográficas
Bruno da Silva Ogeda, aluno do Mestrado Profissional em Ensino de História da
Universidade Federal Rural do Rio de Janeiro (PROFHistória/UFRRJ).

Referências bibliográficas
BEARD, M. SPQR: Uma história da Roma antiga. Tradução de Luís Reyes Gil.
1ª ed. São Paulo: Planeta. 2017. 124

BROWN, P. O fim do mundo clássico. Lisboa: Verbo, 1972.

BUSTAMANTE, R. M. Para além do atenocentrismo: um desafio para a história


ensinada. In: ROCHA, H., REZNIK, L., MAGALHÃES, M. (org.). Livros didáticos
de história: entre políticas e narrativas. Rio de Janeiro: FGV Editora. 2017, p.288.

CAIMI, F. E. O livro didático de história e suas imperfeições: repercussões do


PNLD após 20 anos. In: ROCHA, H., REZNIK, L., MAGALHÃES, M. (org.). Livros
didáticos de história: entre políticas e narrativas. Rio de Janeiro: FGV Editora.
2017, p.288.

CARVALHO, M. M. de; FUNARI, P. P. A. Os avanços da História Antiga no Brasil:


algumas ponderações. História (São Paulo), v. 26, n. 1, p. 14–19, 2007.

CERRI, L. F. Um lugar na História para a Didática da História. História & Ensino,


v. 23, n. 1, p. 11, 31 out. 2017.

CHEVALLARD, Y. Sobre a teoria da transposição didática: algumas


considerações introdutórias. Revista de educação, ciências e matemática, v. 3,
n. 2, p. 1-14, mai/ago. 2013.

CHOPPIN, A. O historiador e o livro escolar. História da educação.


ASPHE/FaE/UFPel, n.11, p. 5-24, abr. 2002.

FAVERSANI, F. Ler e escrever: Livros didáticos. Hélade, Niterói/RJ. Número


especial. vol.2. p. 14-22. 2001.

GONÇALVES, A. T. M. Os conteúdos de História Antiga nos livros didáticos


brasileiros. Hélade. Niterói/RJ. Número especial. vol.2. p. 9-13. 2001.

GUARINELLO, N. L. Uma morfologia da História: as formas da História Antiga.


Politéia. Vitória da Conquista. N.1. Vol.3 p. 41-61. 2003.

LAJOLO, M. ENFOQUE: Qual é a questão? Em Aberto, p. 7, 1996.

MATOS, J. S. Os livros didáticos como produtos para o ensino de História: uma


análise do Plano Nacional do Livro Didático - PNLD. p. 20, 2012.

MENDES, N. M. Império e Romanização: Estratégias, dominação e colapso.


Brathair, Maranhão, v. 7, n. 1, p. 25-48, 2007.
MOERBECK, G. Caminhos possíveis para o ensino de História Antiga na
Educação Básica: discussões preliminares. In: BUENO, A.; CREMA, E.;
ESTACHESKI, D.; NETO, J. [org.] Aprendizagens Históricas: debates e opiniões.
União da Vitória/Rio de Janeiro: LAPHIS/Edições especiais Sobre Ontens, 2018.
ISBN: 978-85-65996-53-2. Disponível em: www.revistasobreontens.site. 125

MUNAKATA, K. O livro didático: alguns temas de pesquisa. Revista Brasileira de


História da Educação, v. 12, n. 3, p. 179–197, 2012.

SILVA, G. V. da. História Antiga e livro didático: uma parceria nem sempre
harmoniosa. Dimensões, Vitória, v.11, jul-dez, p. 231-238, 2000.

SILVA, S. C. Aspectos do Ensino de História Antiga no Brasil: Algumas


Observações. ISSN, v. 1, p. 11, 2010.
ASPECTOS DO ENSINO DA HISTÓRIA DO EGITO
ANTIGO: ANÁLISE DO LIVRO 2 DO 3º ANO DO
ENSINO FUNDAMENTAL DA COLEÇÃO 2015 DA REDE
PITÁGORAS
126
Clivya da Silveira Nobre

Introdução
O ensino de História Antiga, por muito tempo apresentado apenas no Ensino
Fundamental II, foi antecipado pela Editora Educacional da Rede Pitágoras, a
partir de sua coleção de materiais didáticos de 2015, surgindo no livro 2 do 3º
ano do Ensino Fundamental. De forma breve, simples e lúdica, a temática do
Egito Antigo surge em dois momentos: numa breve comparação com outras
sociedades do chamado “Crescente Fértil”, e numa apresentação mais detalhada
da sociedade egípcia antiga, com as principais características de sua cultura.

O livro didático é um material rico de possibilidades para a análise de aspectos


da cultura escolar. Segundo Kazumi Munakata, cultura escolar é um conceito
que se refere tanto às normas, símbolos e princípios que regem o ensino, quanto
às práticas, apropriações e resistências que ocorrem no espaço escolar. E o livro
didático é um produto feito pela e para essa cultura. Ele afirma:

“Cultura material, então, não é algo para ser contemplado nostalgicamente, mas
indício de práticas humanas e suas variações, entre a prescrição e as
apropriações. No caso aqui abordado a cultura material escolar interessa na
medida em que ali estão inscritas as possibilidades de práticas, de usos dos
objetos, com fins educativos, o que permite averiguar os conteúdos disciplinares
ministrados, a metodologia empregada, as atividades realizadas etc.”
(MUNAKATA, 2016, p. 134).

Partindo desse pressuposto, é possível identificar nos elementos de um livro


didático características presentes na cultura escolar. Os materiais didáticos mais
atuais, como produtos da indústria cultural e inseridos na lógica da vendagem,
buscam aproximações com as propostas e indicações nacionais para o Ensino
Básico. No momento da publicação da obra didática em questão, em 2015, os
Parâmetros Curriculares Nacionais (PCN) eram as diretrizes federais mais
recentes. A adequação aos parâmetros foi indicada na capa da obra, como
forma de chamar a atenção de professores e pais de alunos para a sua
qualidade.

Nesse artigo serão analisados aspectos formais, estruturais e gráficos do


material, informações autorais, estrutura, temas, e por fim, os seus conteúdos
historiográficos e pedagógicos, como esses conteúdos são aplicados em
exercícios de aprendizagem e em materiais em anexo que complementam a
obra. A partir dessa análise é possível compreender de que maneira livros
didáticos recentes se apropriaram de diretrizes federais e de novas concepções
sobre o processo de ensino-aprendizagem de História, e que aspectos da cultura
escolar eles podem indicar.

Análise de aspectos formais


O material tem a forma de apostila e tem menos páginas que um livro comum,
pois os conteúdos de um ano completo foram desmembrados em dois volumes, 127
um para cada semestre. O volume em questão é referente ao segundo semestre.
Sua capa é colorida, com ilustrações de prédios históricos, como o Coliseu, o
Partenon, igrejas e mesquitas. Logo nas primeiras páginas são mostradas as
seções do livro, com breves explicações sobre o que se trata em cada uma delas
e com uma pequena ilustração gráfica, um sinal que representa cada uma e que
surge em seu início, como uma forma de ajudar o aluno a manusear a obra em
busca de informações e se localizar no texto.

Destacam-se entre as seções as seguintes: Tempo de Questionar, que inicia o


capítulo e contém questões para identificar conhecimento prévio do aluno sobre
o tema, tendo como símbolo o ponto de interrogação; Ponto de Referência –
Tempo de Conhecer contém um texto explicativo sobre a temática e seu
símbolo é uma criança com o livro aberto; a seção Investigando..., simbolizada
pela lupa, aproxima o aluno do conceito de fonte histórica, com textos de outras
épocas; Marcando o Tempo..., simbolizada pela ampulheta, se dedica às
atividades sobre noções de tempo; Explorando..., simbolizada por uma antena,
envolve o lúdico ao trazer jogos para relacionar os conhecimentos aprendidos.

As atividades estão em duas seções: Síntese – Tempo de Concluir, com


questões discursivas, ou seja, de resposta em texto escrito pelo aluno, e Tempo
de Conferir, com questões de múltipla escolha. No fim do capítulo há a seção
Tempo de Ir Além, com sugestões de livros, sites e filmes para expandir a
pesquisa sobre os temas abordados. Entre as seções, há os boxes Informando...
e Você Sabia?, que destacam informações consideradas mais importantes.

De acordo com o historiador francês Alain Choppin (2000, p. 30) "em um livro
didático, tipografia e composição da página estão estreitamente relacionados
ao discurso didático: desenvolvem um código com coerência, mas um código
próprio dessa ferramenta e exclusiva dela." De fato, o uso de cores, de ícones,
de elementos têm funções específicas que se repetem ao longo da obra.
Principalmente nas obras direcionadas aos estudantes do Ensino Fundamental
I, o conteúdo do manual não tem apenas um texto único e sim uma série de
textos, fotos, esquemas e gráficos, para simplificar a compreensão e torná-la
mais dinâmica.

Durante todo o livro há a presença de um personagem chamado Dudu,


caracterizado por trajes típicos de um arqueólogo, chapéu, mochila e bússola,
que traz informações novas e faz questionamentos durante os capítulos. Estas
questões serão respondidas ao longo do texto. Este personagem apresenta a
imagem mais conhecida de arqueólogo para aproximar dos alunos uma prática
essencial nas pesquisas arqueológica e histórica: a problematização. O
levantamento de perguntas, ou problemas, para posteriormente respondê-las
com pesquisa, é uma das propostas dos PCNs:

“Nesse sentido, é importante que o professor crie situações rotineiras, nas suas
aulas, de atitudes questionadoras diante dos acontecimentos e das ações dos
sujeitos históricos, possibilitando que sejam interpretados e compreendidos a 128
partir das relações (de contradições ou de identidade) que estabelecem com
outros sujeitos e outros acontecimentos do seu próprio tempo e de outros
tempos e outros lugares, isto é, relações que estabelecem por suas
semelhanças, suas diferenças, suas proximidades, suas dependências, suas
continuidades. As explicações dos alunos para os questionamentos devem
considerar, assim, uma multiplicidade de entendimentos, de abrangências, de
confrontamentos e de relações, revelando tramas conflituosas para a história
estudada.” (BRASIL, 1997, p. 54).

As ilustrações são frequentes, a maioria delas é feita pelos ilustradores da equipe


da Editora Educacional. E elas são geralmente associadas a ideias. Nas páginas
referentes ao Egito Antigo, há desenhos de pirâmides e outras obras, dos
deuses, de hieróglifos e até uma grande ilustração em página dupla
representando o cotidiano do Egito Antigo. Há também mapas, que mostram
como as civilizações orientais mais antigas se desenvolveram próximas aos rios,
como por exemplo, o Egito próximo ao Rio Nilo. Há fotos do Egito atual e de
resquícios deixados pela civilização antiga, como sarcófagos e pinturas em
paredes, mas há uma insuficiência ao apresentar as referências dessas
imagens, seu contexto, o local onde estão etc.

O uso das imagens denota uma perspectiva de “janelas para o passado”, ou


seja, utilização de ilustrações para enfatizar o conteúdo do texto escrito, e não
como uma fonte que foi produzida por sujeitos históricos e que precisa ser
problematizada. Algumas seções estão diretamente relacionadas com as
propostas do Ministério da Educação, o MEC, é a Tempo de Ir Além, com
sugestões de livros, filmes e sites para expansão da pesquisa do aluno e
incentivo ao interesse e a curiosidade deste pelo tema de cada capítulo.

"O Guia do livro didático, organizado pelo MEC para auxiliar o professor na
seleção e escolha dos livros a ser adotados, refere-se sempre a esse material
como subsídio, suporte ou instrumento de apoio às aulas [...] um referencial e
não como um texto exclusivo, depositário único do conhecimento escolar"
(BITTENCOURT, 1997, p. 219).

Em outros momentos da obra, esta seção apresenta perguntas que discutem o


ritmo dos processos históricos, comparando diferentes transformações mais
lentas ou mais rápidas que outras. Na proposta do PCN é sugerido que "No
trabalho com tempo histórico, dimensionando-o como duração, escolher temas
de estudos que possibilitem: comparar acontecimentos do presente com outras
épocas e lugares; e identificar e estudar acontecimentos de curta, média e longa
duração." (BRASIL, 1997, p. 60). Outras orientações do PCN apropriadas pela
estrutura do texto didático são as seguintes:

“Nas dinâmicas das atividades, propõe-se que o professor: valorize, inicialmente,


os saberes que os alunos já possuem sobre o tema abordado, criando momentos
de trocas de informações e opiniões; avalie essas informações, identificando
quais poderiam enriquecer seus repertórios e suas reflexões; proponha novos 129
questionamentos, informe sobre dados desconhecidos e organize pesquisas e
investigações.” (BRASIL, 1997, p. 51).

A seção Tempo de Questionar nítidamente segue as indicações do MEC, ao


fazer sondagens dos conhecimentos prévios dos estudantes, ao buscar
despertar curiosidade para a pesquisa e promover a discussão em grupo dos
questionamentos.

Sobre os elaboradores da obra


Na apresentação do livro, as autoras Carla Miller Brant Moraes e Rejane Vieira
Oliva afirmam que propõem uma abordagem das temáticas dos primeiros povos
visando à reflexão, questionamentos, comparações e descobertas a respeito
desses povos. A forma como esta intenção é alcançada pelas autoras, com
comparação de aspectos dos povos, análise de costumes, cotidiano e
apresentação da interação que ocorreu entre diferentes povos contemporâneos
demonstra que a linha historiográfica delas tende a um ecletismo, com
predominância da Nova História Cultural. Infelizmente, a bibliografia consultada
na elaboração da obra não está presente na edição Livro do Aluno do manual.

Carla Moraes é licenciada em História, especialista em Educação, e MBA em


Gestão de Instituições Educacionais. Já Rejane Oliva é licenciada em
Pedagogia, especialista em Psicopedagogia e MBA em Gestão de Instituições
Educacionais. Na elaboração dos livros elas contam com uma equipe de
consultoria e supervisão pedagógica. Ou seja, a coleção é produto de uma
perspectiva mercadológica de material didático, no qual a autoria na prática fica
diluída na escrita de inúmeros sujeitos componentes da equipe editorial, e não é
possivel atribuir cada informação a cada sujeito específico.

Análise de aspectos de conteúdo


Inicialmente são apresentados os temas referentes à História Antiga,
especificamente da região do “Crescente Fértil”, com explicações sobre a
transição de aldeias para cidades, citando como fatores para essa mudança a
divisão de tarefas, o excedente da produção de alimentos que levou ao
desenvolvimento de um comércio entre aldeias, a necessidade de um poder
político que equilibrasse os interesses de todos e conduzisse os trabalhos
coletivos. Estas características são semelhantes àquelas que a arqueologia
utiliza para classificar sociedades simples e complexas.

Em seguida há um quadro com representações dos principais legados das


quatro sociedades destacadas do Oriente Próximo: Mesopotâmicos (com
Jardins Suspensos, tábuas de escrita cuneiforme e estátua de Hamurabi),
Fenícios (com embarcações, moedas, e o alfabeto criado por eles), Hebreus
(com o pastoreio, a estrela de Davi e Moisés com a tábua dos dez mandamentos)
e Egípcios (com a Esfinge, as três pirâmides, o busto de Nefertiti, templos,
hieróglifos e a agricultura).

No box Informando... explica-se o conceito de civilização e há uma preocupação 130


em evitar que se crie ideias de superioridade entre povos considerados
civilizados e não civilizados. Quando se trata da pluralidade étnica, o PCN afirma
que é errado, conceitual e eticamente, sustentar argumentos de ordem
racial/étnica para justificar desigualdades socioeconômicas, dominação, abuso,
exploração de certos grupos humanos, e orienta que escola se posicione
criticamente em relação a esses fatos, mediante informações corretas,
cooperando no esforço histórico de superação do racismo e da discriminação.

Após algumas atividades, o box Você Sabia? articula o texto bíblico como
referência para abordar dois contatos entre povos dessa região: o cativeiro da
Babilônia (2Rs 25.8-12), quando o povo hebreu esteve sob o domínio do Império
Babilônico, fato histórico comprovado por outras fontes; e a escravidão dos
hebreus no Egito (Ex 1. 8-14), que não foi comprovada por demais fontes. Ambas
as temáticas foram tratadas de forma similar na escrita do livro didático, sem que
a informação de que uma delas não apresenta evidências externas à narrativa
bíblica fosse sequer citada.

No subtópico "A Civilização Egípcia" é explicada a localização geográfica do Rio


Nilo, sua importância para a civilização egípcia e a influência de suas cheias
na agricultura local. No outro subtópico, "O Modo de Viver dos Egípcios", se
explica rapidamente a visão que se tinha dos faraós no Egito Antigo. No box
Você Sabia? são apresentados dois exemplos de governantes do Egito Antigo:
Tutancâmon e Nefertiti. Ambos viveram no Novo Império, na XVIII dinastia.
Tutancâmon foi rei entre 1347 a. C. e 1338 a. C. e Nefertiti não há certeza se foi
rainha sozinha alguma vez, mas, no reinado de seu marido Akhenaton, que
durou entre 1364 a. C. e 1347 a. C., ela foi influente e até considerada uma
deusa.

No trecho seguinte, fala-se sobre a mumificação e os sarcófagos. Para explicar


a religião funerária dos egípcios antigos, um texto do site da revista Ciência Hoje
é utilizado. Um jargão típico do estudo do Egito é repetido nele: de que a morte
não era considerada algo triste para essa civilização. Porém, estudos mais
recentes sobre a mentalidade dos povos do Egito Antigo apontam que a crença
numa vida após a morte, na qual se pode levar seus pertences e manter sua
posição social da vida no outro mundo, não significa que não havia sofrimento
em relação a morte de parentes e entes queridos.

Pode-se afirmar que a utilização da citação do site sem uma problematização de


suas informações seja parte da busca por tornar certos conteúdos mais
compreensíveis aos alunos, por meio de simplificações e generalizações.
Diversos aspectos da vida cotidiana do Egito Antigo são explicados de forma
sucinta, como sua arquitetura, as obras de barragem, os cuidados com a higiene,
os produtos químicos desenvolvidos por eles, como tintas e maquiagens, e
informações sobre os hieróglifos. O privilégio de aspectos culturais em
detrimento de dados políticos e econômicos denota a opção pela valorização do
legado cultural como justificativa para se ensinar sobre Antiguidade, o que
dialoga com as diretrizes federais e com a perspectiva historiográfica em maior 131
evidência no período.

Análise de aspectos pedagógicos


Na seção Marcando o Tempo há um exemplo de uma atividade na qual adesivos
com ilustrações que representam etapas da transformação das aldeias em
cidades precisam ser colocados em ordem cronológica. Nessa atividade, o
conteúdo das explicações está representado nas figuras, e por fim o processo da
mudança das aldeias em cidades fica retratado como uma história em
quadrinhos. Isto dialoga com as considerações de Bittencourt, que afirma:

“Uma análise dos conteúdos pedagógicos ou do método de aprendizagem de


um livro didático deve atentar para a averiguação das atividades mediante as
quais os alunos terão oportunidade de fazer comparações, identificar as
semelhanças e diferenças entre os acontecimentos, estabelecer relações entre
situações históricas [...] fornecendo pistas para a realização de pesquisa e outras
fontes de informação.” (BITTENCOURT, 2009, P. 316).

A forte presença de imagens no corpo do texto e nas atividades se relaciona a


uma perspectiva intuitiva do ensino. Ela parte do pressuposto de que a
aprendizagem se torna facilitada quando parte do mais concreto, simples e
próximo para o mais abstrato, complexo e distante. Quanto ao desenvolvimento
dessa teoria por Pestalozzi:

“intuição está relacionada à indução. São os elementos sensíveis, aquilo que se


pode relacionar com os sentidos, que formam o conhecimento. O contato com a
natureza, por meio dos elementos concretos que ela proporciona, é que
construirá o conhecimento nos estudantes, pois é pela observação da natureza,
que se pode compreender o mundo. Nesse sentido, as coisas – os objetos – têm
papel fundamental no método de Pestalozzi. A observação desses objetos e sua
interação com os mesmos é que geram conhecimento” (ADORNO; MIGUEL,
2020, p.3).

Neste caso, o concreto se trataria do uso de imagens, ou seja, do estímulo


sensorial, e de alegorias que comparam o conhecimento histórico a uma viagem,
por exemplo, e o abstrato os conhecimentos históricos sobre o Egito Antigo.
Considerando que o público ao qual a obra se destina sejam crianças entre sete
e oito anos, essa escolha metodológica se mostra adequada. No fim do livro, há
um mapa do Egito, com treze paradas em diferentes pontos das margens do Rio
Nilo. A cada parada, diferentes detalhes da civilização egípcia são explicados.

Cada parada dessa atividade contém um adesivo correspondente, com imagens


que são como fotos tiradas na viagem fictícia. A 1ª parada explica o calendário
egípcio e é uma oportunidade de apresentar ao aluno diferentes possibilidades
de contagem de tempo. A 2ª parada fala sobre o culto ao deus Sol Rá. A 3ª
parada fala sobre as habitações egípcias. As demais paradas falam sobre
instrumentos musicais, utilidades do papiro, medicina, agropastoreio, as grandes
construções, os diques, e principais cidades como Tebas, Mênfis e Heliópolis. 132
Todo o caminho segue ao longo do Rio Nilo até que ele deságue no mar.

Considerações finais
A temática do Egito Antigo foi privilegiada nessa obra, talvez pelas inúmeras
referências a essa sociedade que se tem em filmes e na cultura pop atual. Os
métodos pedagógicos e as concepções historiográficas se mostram em
sintonia com as propostas dos Parâmetros Curriculares Nacionais. A linguagem
utilizada é acessível ao público infantil, mas com algumas poucas
inconsistências na simplificação dos assuntos. As poucas referências do
contexto de produção de algumas imagens pode dificultar um trabalho mais
efetivo com o vestígio. Por sua vez, a forma lúdica, com muitas imagens e
exercício da imaginação ajudam no entendimento dos conteúdos.

O livro selecionado para análise apresenta características muito presentes nos


livros didáticos mais recentes e que podem dar indícios de características da
cultura escolar que permeiam o Ensino Básico de História, ou que deveriam
permear na concepção dos autores. Ensino que parta de concretudo para a
abstração, se aproximando da realidde do aluno, o respeito à diversidade e
valorização do legado cultural de diversas sociedades para a sociedade na qual
o aluno está inserido são alguns desses aspectos.

Referência Biográfica
Clivya da Silveira Nobre é mestranda no Programa de Pós-Graduação em
História da Universidade Federal do Rio Grande do Norte (PPGH-UFRN) e
bolsista remunerada CAPES. É graduada em História (Licenciatura) pela
Universidade Federal do Rio Grande do Norte (UFRN).

Referências Bibliográficas
A BÍBLIA sagrada: edição pastoral. São Paulo: Paulus, 2012.

ADORNO, Thais Lira França; MIGUEL, Maria Elizabeth Blanck. A metodologia


de Pestalozzi e o ideário da Escola Nova. Acta Scientiarum Educação, v. 42,
2020.

BITTENCOURT, C. M. F. Ensino de história: fundamentos e métodos. 3. ed.,


São Paulo: Cortez, 2009.

BRASIL, Secretaria de Educação Fundamental. Parâmetros Curriculares


Nacionais: história, geografia. Brasília: MEC/SEF, 1997.

CHOPPIN, Alain. Los manuales escolares de ayer a hoy: un ejemplo de Francia.


História de la Educación, Madri, nº 19, p 13-37, 2000.

JACQ, C. Akhenaton e Nefertiti: o casal solar. São Paulo: Hemus, 1978.

MORAES, C. M. B. & OLIVA, R. J. História, 3º ano: Ensino Fundamental, livro


2. Belo Horizonte: Editora Educacional (Rede Pitágoras), 2015. 133

MUNAKATA, Kazumi. Livro didático como indício da cultura escolar. Hist. Educ.
(Online), Porto Alegre, v. 20, n. 50, Set./dez., 2016, p. 119-138.
A LISÍSTRATA DE ARISTÓFANES E O PAPEL SOCIAL
DA MULHER NA GRÉCIA DO SÉC. V AEC
Dalgomir Fragoso Siqueira
134
Dadas as distâncias espacial e temporal que separam os alunos dos temas
abordados nas aulas de História, sobretudo de Antiguidade Clássica, faz-se
necessário um empreendimento maior do professor a fim de despertar o
interesse dos educandos pelo assunto. Nesse sentido, devemos atentar para o
fato de que “a construção do conhecimento histórico, bem o sabemos, requer
contextualização (SOUZA NETO, 2014, p. 3)”, o que denota a necessidade de
inserir no universo dos educandos fontes alternativas, para além do material
didático, como obras e expressões culturais que os envolvam e aproximem do
tema estudado. Tendo isso em mente, o teatro grego configura uma valiosa fonte
para o ensino de História Antiga, uma vez que:

“O contato com a peça teatral instiga o educando a inserir a sua própria


identidade pessoal e social numa dimensão histórica, reconhecendo o “papel do
indivíduo nos processos históricos, simultaneamente, como sujeito e como
produto dos mesmos”, posicionando-se diante dos fatos circundantes através do
choque comparativo com as experiências do passado, explorando contradições,
contrastes e coincidências entre as experiências sociais vividas e aprendidas
(SOUZA NETO, 2014, p. 8)”.

Com efeito, ao longo deste texto procurar-se-á demonstrar como poderíamos


abordar o tema do papel social da mulher na Grécia Antiga, mediante a utilização
da obra Lisístrata, do comediógrafo Aristófanes, numa tradução do humorista e
escritor Millôr Fernandes. Isso posto, o presente texto se propõe a gerar
possibilidades metodológicas para o ensino de História Antiga a partir da análise
da peça, contextualizando-a ao período em que foi escrita, a fim de compreender
a representação feminina feita pelo autor. Tal proposta está inserida no que
preceitua à BNCC acerca de habilidades que se espera desenvolver junto dos
alunos no primeiro ano do Ensino Médio, as quais consistem em:
“(EM13CHS102) Identificar, analisar e discutir as circunstâncias históricas,
geográficas, políticas, econômicas, sociais, ambientais e culturais de matrizes
conceituais (etnocentrismo, racismo, evolução, modernidade,
cooperativismo/desenvolvimento etc.), avaliando criticamente seu significado
histórico e comparando-as a narrativas que contemplem outros agentes e
discursos (BRASIL, 2017, p. 572)”.

O Papel Social da Mulher na Grécia Antiga


Havia uma distinção clara e particular entre a vida privada e a vida pública na
Grécia Antiga. As mulheres e as crianças, assim como os escravos e
estrangeiros, não eram considerados cidadãos e, portanto, não faziam parte da
vida pública, a qual compreendia a participação nas assembleias, nos festivais
e no exército. “A actividade feminina restringia-se nesta época praticamente ao
campo doméstico, pois que à mulher não assistiam direitos políticos nem
jurídicos, e a sua participação no quotidiano citadino era muito limitada (SILVA,
1980, p. 98)”. Ou seja, as mulheres não tomavam parte nas decisões políticas e
administrativas da pólis, limitando-se, praticamente, ao espaço privado dos
cuidados e da administração do oikós. Dessa forma, como bem aponta Maria de
Fátima de Souza e Silva: 135

“De um modo geral o dia a dia da mulher ateniense desenrolava-se no interior


de sua casa. Jovem ainda, as horas decorriam para ela num contacto estreito
com a mãe e com as escravas da casa, abrigada nos apartamentos destinados
às mulheres, limitada até no convívio com os elementos masculinos da família
(cf. Lys. 473-475, Th. 414 sqq.), diante dos quais lhe ficava bem manter o silêncio
(SILVA, 1980, p. 99)”.

A missão mais importante que competia à mulher grega era justamente a de mãe
de família. Para os antigos gregos, o casamento não tinha o significado de
sacramento, típico da cultura judaico-cristã em que vivemos, e a principal razão
que justificava o matrimônio para aquela sociedade era o dever de perpetuar a
raça. “Sobre a mulher pesava, com a força de uma ameaça, a obrigação de dar
ao marido descendência, e sobretudo um filho varão, que herdasse o dever de
perpetuar a raça e o patrimônio e manter vivo o culto dos antepassados (SILVA,
1980, p. 102)”. Por esses motivos, era incomum haver sentimentos profundos
entre marido e mulher na Grécia Antiga, o que dentre outros fatores, limitava
consideravelmente as relações conjugais.

O Teatro Grego – A Comédia


Os primeiros concursos de comédia foram organizados durante as Grandes
Dionisíacas que ocorreram em Atenas entre 487-486 AEC, época em que o
gênero foi admitido nos concursos oficiais. Entretanto, segundo Grimal (2002, p.
53), “a comédia existia já nos demos áticos, aproximadamente um século antes
de serem introduzidos nos concursos em Atenas”. Ainda conforme o mesmo
autor, o primeiro dramaturgo a impor sua marca no gênero foi Aristófanes, por
ser um criador original e único, o qual foi para os Antigos, e ainda o é para nós,
o maior autor de comédias de seu tempo.

A Comédia Antiga, isto é, de Atenas do século V AEC, é geralmente definida por


privilegiar a temática política (OLIVEIRA, 1993, p. 75), utilizando-se da sua
capacidade de censura e sátira para tecer uma crítica social, posto que “o
comediógrafo, como cidadão, tinha seu trabalho permeado pelas problemáticas
sociais (MOURA; SILVA, 2016, p. 17)”. A comédia desse período estruturava-se
a partir de várias partes obrigatórias, significativamente diferentes das da
tragédia, as quais, baseando-se essencialmente na descrição de Pierre Grimal
(2002), compreendem:

1) O prólogo - a exposição dos acontecimentos, que poderia vir em forma de


monólogo ou diálogo;
2) O párodos - o primeiro canto do coro);
3) O agón - o debate que se instaurava entre o ator principal, condutor do
jogo, e o coro);
4) A parábase - coro característico, em que os atores se dirigiam aos
espectadores, a propósito da ação da peça ou abordando assuntos com
ela não relacionados imediatamente (MOURA; SILVA, 2016, p. 17);
5) Com a parábase, chegava-se ao fim da parte da comédia em que a 136
estrutura era mais rigorosa, iniciando-se uma sequência de cenas breves,
as quais estavam separadas por cantos do coro — o que nos remete aos
estásimos e episódios da tragédia,
6) Por fim, vinha a saída do coro, tratada muitas vezes como uma cena de
ação, em que o riso é levado aos seus extremos: a poesia cede o lugar
aos eternos métodos da farsa.

A Representação Feminina em Lisístrata, de Aristófanes


Nessa comédia de Aristófanes, datada de 411 AEC, o enredo gira em torno de
uma greve de sexo instaurada pelas mulheres das cidades gregas envolvidas na
Guerra do Peloponeso, lideradas pela ateniense Lisístrata, como forma de
persuadir seus maridos a pararem a guerra e, assim, estabelecer a paz. Porém,
como elucidado por Margarida Maria de Carvalho (1996, p. 28), “apesar de o
poeta grego ter utilizado a mulher como protagonista, sua comédia não deve ser
tratada como um discurso de libertação feminina”. A intenção de Aristófanes,
como enfatiza a autora no mesmo texto, consistia em utilizar a mulher para fazer
uma crítica à sociedade contemporânea a sua época. “Em Lisístrata o poeta
cômico aproveita-se do perfil feminino, considerado inferior ao do masculino,
para enviar suas mensagens políticas” (CARVALHO, 1996, p. 34). Portanto, um
dos principais fatores que dão a peça o valor cômico é representar personagens
femininas em situações que, para os antigos gregos, seriam improváveis.

Bastante edificantes também, são os apontamentos de Ana Maria César


Pompeu, a autora define os diversos paradigmas míticos aos quais Aristófanes
teria recorrido em Lisístrata, uma vez que eles afirmam (na obra) “a competência
das mulheres em aconselhar a cidade com um discurso justo, pois elas repõem
os homens e ainda revigoram a pólis através dos rituais de fertilidade próprios
do sexo feminino” (POMPEU, 2011, p. 91).

Apesar do absurdo enredo de Lisístrata, em que as mulheres provocam uma


greve de sexo e tomam a Acrópole visando acabar com a Guerra do Peloponeso
(visto que, pelo que sabemos sobre a posição da mulher na sociedade ateniense,
tal situação seria extremamente improvável), Aristófanes nos apresenta diversos
fatos sobre o cotidiano feminino, os quais incluem deveres e cuidados
domésticos, tradições e cultos, que poderiam ser devidamente utilizados numa
aula de Antiguidade Clássica. A partir de uma leitura e debate coletivo com os
educandos, poder-se-ia problematizar tanto o papel social da mulher na antiga
Hélade, quanto sua representação em obras teatrais. Como exemplo, há um
trecho da parábase que apresenta a iniciação religiosa das mulheres atenienses,
a qual Florenzano (1996, p. 21-40, Apud POMPEU, 2011, p. 81) nos assegura
que é uma passagem considerada fundamental para o conhecimento da vida
das mulheres na cidade grega:

“CORO DE MULHERES - E agora, todos os que são cidadãos, escutem o que


tenho a dizer. Mulher que sou, fraca embora no conceito geral dos cavalheiros,
venho aqui dar meus conselhos à cidade, que de mim merece tudo, pelo carinho 137
e calor com que me tratou no berço, pelas distinções e pelo luxo com que me
acompanhou até a juventude. Aos sete anos de idade, eu carregava as ânforas
sagradas, aos dez, botava incenso no altar de Atenas; depois, vestindo a túnica
amarela, fui virgem de Afrodite nas festas de Braurônia. E enfim, feita donzela,
alta e formosa, meu corpo já pronto para ser mulher, pedi à Deusa que me
libertasse de meus votos de virgindade e passei a usar um colar de figos secos.
CORIFÉIA - Por tudo isso, vim aqui trazer a Atenas o meu melhor conselho. Não
é um crime ter nascido mulher, e minhas palavras devem ser seguidas se
puderem curar os nossos infortúnios. A minha contribuição ao Estado, eu a dou
em filhos, que alimento e crio. Mas vocês, velhotes miseráveis, não contribuem
com coisa alguma pra comunidade. Pelo contrário, malbarataram todo o tesouro
que nossos antepassados conquistaram com suor e prudência. E, como
compensação, continuam a arriscar a vida de todos os cidadãos e a segurança
do Estado com guerras insensatas. Têm, como defesa, uma palavra que seja?
Pois se têm, não a digam. Será na certa urna mentira que vai me irritar ainda
mais. E ao primeiro que disser mais uma mentira, quebramos o queixo com
nossas sandálias. Para isso calçamos as mais pesadas”. (ARISTÓFANES, 2003,
p. 31-32, Trad.: Millôr Fernandes).

Uma questão presente na obra que pode ser problematizada está relacionada à
sexualidade, visto que não faria sentido uma greve de sexo numa sociedade
onde havia diversas opções alternativas de relações fora do casamento.
Entretanto, através das queixas do personagem Cinésias, percebemos que os
homens perderam suas esposas não só sexualmente, mas também as
perderam, por exemplo, no que tange aos cuidados dos filhos:

“CINÉSIAS - (para sua esposa, Mirrina) Está ouvindo? Não tem pena do pobre
garotinho? Há seis dias que não se lava, nem come direito.
MIRRINA - Claro que tenho pena, pobre filho. Um pai tão negligente.
CINÉSIAS - Desce, querida, vem cuidar dele um pouco.” (ARISTÓFANES, 2003,
p. 38, Trad.: Millôr Fernandes).

Perderam quem cuidasse da administração doméstica:

“CINÉSIAS - (Recuando.) Nossa casa está irreconhecível. Sujeira,


desarrumação, uma tristeza.
MIRRINA - Que me importa?
CINÉSIAS - Não te importa ver teus melhores vestidos arrastados na lama do
quintal? As galinhas fizeram ninho em cima de tua túnica da Trácia.
MIRRINA - Que é que você quer? Que eu chore?” (ARISTÓFANES, 2003, p. 39,
Trad.: Millôr Fernandes).
Além de terem perdido a própria companhia delas:

“CINÉSIAS - ... A vida não tem mais encantos para mim desde que ela
abandonou meu lar. Entro em casa com o rosto em pranto, tudo me parece tão
vazio, até meus alimentos já não têm sabor [...]” (ARISTÓFANES, 2003, p. 38, 138
Trad.: Millôr Fernandes).

Como vemos, a partir da leitura e problematização da obra de Aristófanes, é


possível inferir diversos aspectos do papel da mulher na sociedade ateniense do
século V AEC, e ao mesmo tempo trazer essa questão para o nosso contexto,
ao discutirmos acerca da representatividade e participação feminina nas
decisões políticas e governamentais de nossa sociedade, por exemplo.

Considerações Finais
A utilização de fontes diversas em aulas de história, como elucidado no início
desse trabalho, pode contribuir para uma aproximação dos educandos com o
tema, tornando a experiência da aprendizagem mais interessante para eles.
Cabe ao professor ter o conhecimento sobre como utilizar, da melhor forma
possível, cada tipo de fonte, levando em consideração as especificidades de
seus alunos e do tema abordado. Nesse sentido, usar o teatro grego como fonte
pode requerer um maior esforço do educador, o que implicaria empreender
pesquisas mais aprofundadas sobre as obras. Tal esforço, contudo, tende a
render bons resultados, como quando se busca despertar o interesse dos alunos
pelo papel social feminino na Antiguidade, um dos muitos temas que podem ser
trabalhados a partir da Lisístrata de Aristófanes.

Referências biográficas
Dalgomir Fragoso Siqueira é Graduando em Licenciatura em História pela UPE
– Campus Mata Norte.

Referências bibliográficas
ANDRADE, Marta Méga de. Aristófanes e o Tema da Participação (Política) da
Mulher em Atenas. PHOÎNIX, p. 263-280, 1999.

ARKINS, Brian. Sexualidade em Atenas no Século V. Clássicas UFPR –


Pesquisas, Projetos e Orientações, Trad.: Leonardo Teixeira de Oliveira, p. 1-12,
jun. 2006- mar. 2007.

ARISTÓFANES. A greve do Sexo, Lisístrata. Trad.: Millôr Fernandes. Porto


Alegre: L&PM Pocket, 2003.

BRASIL. Ministério da Educação. Base Nacional Comum Curricular, 2017.


Disponível em: http://basenacionalcomum.mec.gov.br/. Último acesso em:
23/04/2021.
CARVALHO, Margarida Maria. A mulher na comédia antiga: A Lisístrata de
Aristófanes. História Revista, Goiás, p. 27-48, 1996.

GRIMAL, Pierre. O Teatro Antigo. Lisboa: Edições 70, 2002.

MATA, Giselle Moreira da. “Entre risos e lágrimas”: uma análise das 139
personagens femininas atenienses na obra de Aristófanes (séculos VI a IV a.C.).
Dissertação (Mestrado) – Universidade Federal de Goiás, Faculdade de História,
2009.

MOURA, Amanda Jéssica Ferreira; SILVA, Carlos Augusto Viana da. A


Condição Feminina em Lisístrata e em A Fonte Das Mulheres. Revista Eletrônica
Literatura e Autoritarismo, nº 28 – julho a dezembro de 2016.

OLIVEIRA, Francisco de. Teatro E Poder Na Grécia. HVMANITAS – Vol. XLV, p.


69-93, 1993.

_____; SILVA, Maria de Fátima. O Teatro De Aristófanes. Coimbra: Faculdade


de Letras, 1991.

POMPEU, Ana Maria César. A construção do feminino em Lisístrata de


Aristófanes. Revista Letras, Curitiba, N. 83, p. 75- 93, jan./jun. 2011.

_____. Aristófanes e a Guerra dos Sexos em Lisístrata. La Plata: FAHCE-UNLP,


2012.

SILVA, Maria de Fátima de Sousa e. A posição social da mulher na comédia de


Aristófanes. Rev. Humanitas. Vol. 31/32. 1980.

SOUZA NETO, José Maria Gomes de. O teatro ateniense na formação do


Historiador. Boletim escolar, Aracaju, n.4, p. 3-19, jul./ago. 2014.
SALVE HIPÁTIA! O ENSINO TRANSDISCIPLINAR
SOBRE A ANTIGUIDADE A PARTIR DE JOGOS DE
CARTAS
Douglas André Gonçalves Cavalheiro
140

Introdução
Ao longo do ano letivo de 2019, ocorreu a Oficina de Jogos Filosóficos, na Escola
Estadual Desembargador Floriano Cavalcanti (FLOCA), localizada no bairro de
Capim Macio na zona sul de Natal, capital potiguar. O projeto transdisciplinar foi
direcionado aos discentes de todo Ensino Médio e realizado em parceria com o
Programa Institucional de Bolsas de Iniciação à Docência (PIBID) de Filosofia.
Os encontros da Oficina de Jogos Filosóficos ocorreram semanalmente, todas
as quartas-feiras e sextas-feiras, durante o horário do intervalo, com objetivo de
estudar sobre conceitos filosóficos e contexto histórico da mulher na Antiguidade
a partir do jogo Salve Hipátia!, elaborado pelo professor de Filosofia e de História,
Douglas André Gonçalves Cavalheiro.

O jogo de cartas chamado Salve Hipátia! centra-se na concepção


transdisciplinar, que integra as áreas de história e filosofia, para demonstrar o
protagonismo feminino no contexto da antiguidade tardia e auxiliar no processo
de ensino e aprendizagem de conceitos filosóficos para alunos do ensino médio
a partir de 14 anos. Diante da carência nas referências sobre a mulher entre as
produções científicas, principalmente durante o período da antiguidade, a Oficina
de Jogos Filosóficos centrou-se em investigar a história de Hipátia a partir da
produção cinematográfica, “Ágora” (2009) de Alejandro Amenábar, e, tomou
como referência o jogo “Love Letter” produzido em 2012 pelo designer japonês
Seiji Kanai. Após dialogar sobre a temática do filme em sala de aula e estudar
sobre o jogo durante as reuniões da Oficina de Jogos Filosóficos, auxiliado pelos
estagiários da graduação de Filosofia da Universidade Federal do Rio Grande
do Norte (UFRN) que integravam ao Programa Institucional de Bolsas de
Iniciação à Docência (PIBID), os discentes confeccionaram as cartas do jogo
“Salve Hipátia!”, culminando com o campeonato de duelos filosóficos durante o
“ExpoFloca”, feira de ciência da instituição, no ano de 2019.

A escassez de vestígios e fontes históricas sobre a bibliografia e obra de Hipátia


não deve ser um desafio para abordá-la como temática central nas discussões
tanto sobre o período da antiguidade tardia como a filosofia clássica, porque, o
esquecimento do seu legado ocorreu devido a perseguição e intolerância
religiosa. Mesmo que as referências modernas sobre Hipátia utilizem algumas
adaptações com intuito de preencher aspectos não confirmados da sua história,
tal como o filme Ágora (2009) é constatado que existem algumas divergências
no aspecto historiográfico da personagem. Abordar este assunto em sala permite
que o discente compreenda que existiram mulheres cientistas num período
histórico extremamente desafiador. Usualmente, as mulheres são retratadas
como protagonistas sempre a partir de contextos modernos e contemporâneos,
por isso, que demonstrar uma mulher filósofa e conhecedora das ciências na
Antiguidade seja algo ainda mais importante durante a atual formação dos
discentes em etapa colegial.

“Professor, não existe na história filósofa?”: ausência feminina no


currículo 141
Após algumas aulas sobre o contexto histórico da Grécia Arcaica, abordando
sobre os principais pensadores da filosofia naturalista, ou pré-socráticos, uma
aluna realizou um questionamento peculiar: “Professor, não existe [na] história
[uma] filósofa?”. O questionamento da discente provavelmente era decorrente
de uma ampla lista exibida pelo livro didático sobre os locais em que viveram os
principais filósofos do período arcaico e clássico, entre os séculos VII a.C. e V
a.C.

Ao responder a discente foi esclarecido que a carência de participação feminina


nos debates da Antiguidade se devia às imposições preconceituosas impostas
pelo patriarcalismo daquele momento histórico. Porém, a questão da aluna
suscitou um problema que deveria ser refletido nas aulas: “Como seria possível
apresentar a mulher na Antiguidade sem que fosse representada apenas pelo
conceito de maternidade?” Ao seguir por esse questionamento, rememorei que
o protagonismo feminino jamais tinha sido perpassado durante a minha trajetória
de formação intelectual no ensino escolar e superior. Quais seriam as causas
dessa carência?

Ao investigar sobre o processo de silenciamento das mulheres na Base Nacional


Curricular Comum, as pesquisadoras, Carolina Giovannetti, professora de
história do Estado de Minas Gerais e mestre em educação, e Shirlei Sales,
doutora em educação e professora da Universidade Federal de Minas Gerais,
observaram como, ao longo da disciplina de História, as mulheres foram sempre
retratadas como personagens relegadas ao anonimato, presente apenas na
esfera da privada da vida doméstica.

“A ausência das mulheres da História se constitui como uma prática recorrente,


que abrange várias perspectivas do relato histórico, em âmbito acadêmico, na
esfera social e nos currículos escolares. Pesquisadoras feministas têm
demandado que a História se ocupe das histórias das mulheres e que não
estudá-las é uma forma de manter o pensamento patriarcal que omite a
participação social das mulheres.” (GIOVANNETTI; SALES, 2020, p. 256).

As estruturas curriculares sobre a temática da mulher no ensino de História é


uma consequência das representações do corpo feminino associado sempre aos
conceitos de inferioridade e fragilidade. Segundo o doutor em história, Losandro
Tedeschi, a supremacia do corpo masculino era sempre confirmada por meio
das especulações filosóficas que se valiam de supostos pretextos científicos
para validar essa tese. Sempre representado como algo aquém em relação ao
masculino, justificava-se a dominação do patriarcado.
“O “corpo do sexo único”, pensado na Antiguidade, ligou o sexo ao poder. Em
um mundo público predominantemente masculino, o modelo de sexto único
apresentava o que era evidente na cultura mais genérica: o homem é a medida
de todas as coisas, e a mulher não existe como categoria distinta em termos
ontológicos. Nem todos os homens são calmos, potentes, dignos ou poderosos,
e algumas mulheres ultrapassam alguns deles em cada uma dessas categorias. 142
Porém, o padrão do corpo humano e suas representações é o corpo masculino.
Todos esses discursos e saberes acabaram por naturalizar o papel e as funções
do feminino. Este contexto passou a demarcar uma série de atribuições ao
feminino (docilidade, cuidado dos filhos, emotividade etc.), grande parte dessas
características calcada na ideia do papel da maternidade, de uma “boa mãe”.”
(TEDESCHI, 2012, p. 56).

Sem embargo, haviam justificativas filosóficas que afirmavam uma suposta


superioridade masculina na Antiguidade, porém, ao tratar do caso de Hipátia,
percebe-se que houve uma mulher capaz de confrontar todos esses aspectos
impostos pelo patriarcalismo, afirmando-se na posição de uma intelectual. Por
isso, para compreender melhor sobre esse conteúdo tão ausente e silenciado
pelas abordagens curriculares tradicionais, é necessário apresentar uma
proposta de ensino que mude as visões disciplinares tradicionais, pois essa
problemática exige uma mudança paradigmática na área das práticas
curriculares. Portanto, partindo da orientação transdisciplinar, indo além da mera
similaridade interdisciplinar das áreas de Filosofia e História, é que torna-se
necessário a elaboração de um jogo de cartas junto com os discentes –
gamificação do ensino – como um suporte didático para demonstrar sobre uma
nova perspectiva da mulher na Antiguidade.

A abordagem transdisciplinar entre Filosofia e História a partir da


gamificação do ensino
Além de uma abordagem interdisciplinar entre a filosofia e a história, inserir as
reflexões sobre Hipátia nas temáticas curriculares do Ensino Médio permite uma
integração transdisciplinar. Apesar das denominações serem próximas, ao
comparar entre a abordagem interdisciplinar e transdisciplinar observa-se que
há uma sutil distinção entre ambos. Segundo Jayme Paviani:

“A condição epistemológica da transdisciplinaridade, numa primeira definição,


reside na possibilidade de ultrapassar o domínio das disciplinas formalmente
estabelecidas e, numa segunda definição, consiste na possibilidade de
estabelecer uma ponte entre os saberes. Isto é, entre a ciência, a arte, a religião,
a política, etc. Além de transcender as relações internas e externas de duas ou
mais disciplinas, a transdisciplinaridade aponta para a exigência de uma
maturidade intelectual, para uma espécie de sabedoria em que se põem em
contato a ciência com a vida, as manifestações éticas e estéticas, os valores e
as normas sociais.” (PAVIANI, 2008, p. 22).

Inserida nos estudos acadêmicos curriculares, a interdisciplinaridade fortalece


as estruturas disciplinares ao promover um intercâmbio teórico-metodológico
entre diversas áreas do conhecimento com o objetivo de apresentar soluções às
múltiplas problemáticas, tal como os estudos da bioética que mescla conteúdos
da Biologia com a Filosofia para compreender temáticas como o aborto. De
maneira distinta, a visão transdisciplinar propõe uma ruptura de paradigma e
oferece uma perspectiva problemática transversal que desestrutura a formação
disciplinar comum, sendo insolúvel mesmo que haja uma unidade entre distintas 143
áreas disciplinares. Diante desse desafio pedagógico, optou-se pela
reestruturação de ensino a partir de jogos ou a gamificação do ensino.

“A gamificação se constitui na utilização da mecânica dos games em cenários


non games, criando espaços de aprendizagem mediados pelo desafio, pelo
prazer e entretenimento. Compreendemos espaços de aprendizagem como
distintos cenários escolares e não escolares que potencializam o
desenvolvimento de habilidades cognitivas (planejamento, memória, atenção,
entre outros), habilidades sociais (comunicação assertividade, resolução de
conflitos interpessoais, entre outros) e habilidades motoras. (ALVES; MINHO;
DINIZ, 2014. p. 76 – 77)

Portanto, seguindo a possibilidade da gamificação do ensino como metodologia


transdisciplinar para compreensão do protagonismo feminino na Antiguidade foi
criado o jogo de cartas “Salve Hipátia!”. Na premissa histórica do jogo, Hipátia é
representada como uma cientista criadora de um densímetro que poderia salvar
o planeta Terra de uma iminente destruição. Os jogadores, discentes do ensino
médio, deverão entrar numa máquina do tempo para resgatar esse instrumento.
Contudo, como a tecnologia é experimental dois problemas ocorreram, cada
participante caiu em um período temporal diferente da antiguidade, e, apenas
um poderá retornar. A partir disso, cada jogador terá em suas mãos uma carta
ilustrativa que representa suas habilidades filosóficas, conceitos ensinados por
um filósofo que foi encontrado durante sua viagem no tempo, para enfrentar os
seus adversários e poder assim retornar para o seu tempo-presente.

“Salve Hipátia!”: o protagonismo feminino na antiguidade em jogo de


cartas
O jogo de cartas nomeado “Salve Hipátia!” baseou-se em algumas das suas
referências estéticas e contexto histórico da produção cinematográfica nomeada
“Ágora” (Br. Alexandria) um longa-metragem (126 minutos) dirigido pelo diretor
espanhol Alejandro Amenábar. O enredo é centrado entre os anos 355 d.C. e
415 d.C., marcado pelo declínio do politeísmo greco-romano e ascensão do
cristianismo, na cidade egípcia de Alexandria, sendo a protagonista a filósofa,
astrônoma e matemática neoplatônica Hipátia. A filósofa que foi martirizada por
uma multidão de cristãos fanáticos ainda é pouco conhecida no ambiente
escolar. Na exposição do conteúdo sobre a Antiguidade existem poucas
referências históricas sobre a importância dessa filósofa durante esse período.
Em parte, isso deve-se ao fato de que existem poucas fontes primárias, sendo
as principais delas, as sete cartas escritas por seu discípulo Sinésio endereçadas
a Hipátia. Nenhuma carta ou obra escrita de Hipátia foi preservada, essa
carência de informações é causada pelas perseguições religiosas que a vitimou.
Mesmo que o enredo do filme exponha alguns episódios que são passíveis de
discussão sobre o ponto de vista do passado histórico, como a destruição de
papiros da Biblioteca de Alexandria pelos cristãos, apedrejamento de judeus
num anfiteatro e as condenações de bruxaria feitas pelo Bispo Cirilo em relação
a Hipátia e as supostas descobertas sobre o sistema heliocêntrico, a produção
cinematográfica permite uma contemplação estética aos discentes sobre o 144
cotidiano da Antiguidade Tardia.

E, inspirado pela premissa histórica verificável e correta, de que Hipátia foi uma
mulher, filósofa, cientista, inventora do densímetro e vítima de uma perseguição
religiosa na Antiguidade Tardia foi criado o jogo “Salve Hipátia!”. A partir desse
contexto histórico, inserindo a premissa contemporânea dos filmes de ficção
científica sobre viagem no tempo, optou-se por criar o principal objetivo do jogo,
“Salve Hipátia!, que é centrado em uma viagem ao tempo para resgatar o projeto
do densímetro e trazê-lo de volta ao tempo-presente para salvar o planeta terra
da destruição. Porém, a viajem no tempo é falha, pois os participantes acabam
sendo inseridos em diversas temporalidades distintas da Antiguidade e apenas
um único participante poderá retornar ao tempo-presente. Por isso, é necessário
que os jogadores utilizem os conceitos filosóficos de diversos pensadores que
encontraram em sua viagem no tempo, desde os pré-socráticos aos helenistas,
para que possam trazer o densímetro e salvar o mundo. Porém, como apenas
um pode retornar ao tempo-presente, os participantes deverão confrontar-se
num duelo de conceitos filosóficos.

O mecanismo estrutural do jogo “Salve Hipátia!” foi baseado no jogo preexistente


chamado “Love Letter” (2013), que se utiliza de personagens da corte medieval
para que eles levem cartas de amor para uma princesa enlutada devido a morte
da sua mãe. Inspirado nesse modelo, os personagens foram adaptados a partir
de filósofos da Antiguidade e seus conceitos filosóficos. A arte gráfica de cada
carta foi realizada pelo artista potiguar Ranieri Rodrigo Gomes do Nascimento,
o Erre Rodrigo, e o processo de confecção final das cartas foi realizado pelos
próprios alunos na Oficina de Jogos em parceria com alunos do PIBID.

O processo de ensino e aprendizagem de Filosofia foi organizado por meio da


Oficina de Jogos e exposto no estande intitulado “Luderia: a sociedade dos
jogos” durante o ExpoFloca de 2019. A interação realizada por meio dos jogos
permite estabelecer um microcosmo social em que se possibilita a discussão
sobre os conceitos metafísicos da Filosofia. Serão realizados pelos discentes
associações entre os movimentos específicos de cada carta do jogo “Salve
Hipátia” que constam filósofos representando as características especificas de
seus pensamentos. A montagem das cartas é elaborada como primeira parte do
aprendizado dos alunos. Após a montagem, estabelece o torneio de jogadores,
e, por fim, o relatório elaborado por cada aluno, no qual, são registrados os
aprendizados através do jogo. O esboço do roteiro do jogo será apresentado em
etapas: a premissa histórica; modo de jogar e a estrutura das cartas.
A premissa histórica do jogo “Salve Hipátia!”
No ano 3000 d.C. o planeta Terra está numa eminente explosão devido a
irregularidade dos líquidos vulcânicos. Porém, foi descoberto que através de um
densímetro, instrumento capaz de medir os fluidos, também poderia medir o
magma do centro da terra e evitar a catástrofe apocalíptica. Após muitas
investigações, Dr. Futurestein descobriu que havia uma filósofa e cientista que 145
estava prestes a construir esse instrumento entre os séculos IV d.C. e V d.C. Ao
encontrar um manuscrito de uma carta, Sinésio, bispo de Cirene, pede para que
Hipátia construa um densímetro. Dr. Futurestein convocou então alguns jovens
para entrar numa nobre missão: viajar no tempo para resgatar o projeto do
densímetro de Hipátia e assim salvar o mundo. Contudo, a tecnologia de viagem
no tempo ainda está muito simplória, e, cada integrante caiu numa distorção da
temporalidade do período da Idade Antiga. Por isso, para conseguir salvar o
projeto de Hipátia e voltar para o futuro será necessário que o jogador use os
conceitos de filósofos gregos de tempos distintos num duelo marcado por
batalhas conceituais para salvar o destino do mundo.

Modo de Jogar
Nesse jogo são permitidos entre 2 a 4 pessoas. Primeiro, uma carta é distribuída
para cada pessoa e uma é descartada com a face para baixo da rodada
(portanto, o processo de eliminação não pode ser usado para provar quais cartas
restam) e o restante é depositado com a face para baixo em um baralho no meio.
Durante o turno de cada jogador, ele ou ela compra uma carta do baralho e joga
essa carta ou a carta que eles já tinham. Após processar o efeito descrito na
carta descartada, o próximo jogador recebe um turno. Isso é repetido até que o
baralho desapareça; nesse caso, o jogador que tiver a carta mais alta vence a
rodada ou até que todos os jogadores, exceto um, sejam eliminados; nesse caso,
o jogador restante vence a rodada. O baralho (incluindo a carta descartada) é
embaralhado e o jogo começa novamente. O vencedor de quatro turnos vence
o jogo. A duração média é entre 20 a 30 minutos.
146

Estrutura das cartas


O baralho é composto por um total dezoito cartas, na qual, são representados
nelas oito filósofos da antiguidade, são eles: Platão (duas cartas); Sócrates
(cinco cartas); Diógenes (duas cartas); Trasímaco (duas cartas); Parmênides
(duas cartas); Heráclito (duas cartas); Sêneca (uma carta); Pirro (uma carta) e
Hipátia (uma carta). Cada carta possui uma gradação numérica de 0 até 8
conferindo uma hierarquia aos conceitos que entrarem em conflitos nos debate,
e, sempre será vitorioso o que estiver com o maior número. Também há uma
distinção na quantidade de personagens de cada carta, isso possibilita um maior
dinamismo ao jogo que faz com que o jogador mantenha atenção nos tipos de
personagens que já foram jogados.
147

Considerações Finais
Ao refletir sobre as disposições dos conteúdos inseridos nas estruturas
curriculares é perceptível que essa forma de organizar o conhecimento não
soluciona adequadamente os novos questionamentos impostos sobre as
relações de gênero, em especial, sobre a presença feminina sempre
representada apenas como personagens secundários e reservados aos valores
da maternidade. Mesmo com a recente inclusão da história do movimento
feminista ao longo dos estudos das ciências humanas, inserindo também a
colaboração de importantes mulheres nas descobertas científicas, esses
conteúdos encontram-se sempre nos momentos temporais contemporâneos,
algo que ocasiona na consolidação da imagem de que o patriarcalismo era
triunfante nos demais períodos históricos anteriores.

Mais importante do que ensinar sobre uma mulher filósofa, dedicada às


atividades intelectuais e seus pensamentos e possíveis descobertas, é
demonstrar esses aspectos inseridos no período da Antiguidade, apresentando 148
aos discentes que as generalizações interpretativas sobre a Idade Antiga nem
sempre estão completamente corretas, e, que existiram mulheres que desde
esse período resistiram em buscarem novas formas de afirmar sua existência na
sociedade extremamente marcada pelo patriarcalismo.

A escassez de materiais, tanto históricos como didáticos faz necessário uma


metodologia transdisciplinar, algo que rompa os paradigmas clássicos do ensino
curricular sugerindo a formação de uma nova abordagem pedagógica para sala
de aula: a gamificação escolar. Por meio disso, o jogo de cartas “Salve Hipátia!”
busca causar a reflexão nos discentes sobre a temática das relações de gênero
de maneira lúdica e descontraída, fugindo aos panoramas tradicionais de ensino
repetitivo por base da memorização de nomes e acontecimentos históricos do
passado.

Referências biográficas
Douglas André Gonçalves Cavalheiro é professor de Filosofia da Secretaria
Estadual de Educação e Cultura do Rio Grande do Norte (SEEC-RN). Mestre em
Filosofia pela UFRN (2014). Licenciado em História (2018) pela UFRN e
atualmente é mestrando pela mesma universidade.

Referências bibliográficas
ÁGORA. Direção: Alejandro Almenábar. Produção: Fernando Bovaira, Álvaro
Augustin. Elenco: Rachel Weisz, Max Mingnella, Oscar Isaac, Rupert Evans.
Roteiro: Alejandro Almenábar. Focus Features, 2009, 126 minutos.

ALVES, Lynn Rosalina Gama, MINHO, Marcelle Rose da Silva, DINIZ, Marcelo
Vera Cruz. Gamificação: diálogos com a educação. In: BATISTA, Claudia
Regina. et al. (Org.) Gamificação na Educação. São Paulo: Pimenta Cultural,
2014. p. 75 – 97.

GIOVANNETTI, Carolina; SALES, Shirlei Rezende. Histórias das mulheres na


BNCC do Ensino Médio: o silêncio que persiste. Revista Eletrônica História em
Reflexão, Dourados, v. 14, n. 27, p. 251-277, jun. 2020. ISSN 1981-2434.
Disponível em:
<https://ojs.ufgd.edu.br/index.php/historiaemreflexao/article/view/12182/6086>.
Acesso em: 03 maio 2021. doi:https://doi.org/10.30612/rehr.v14i27.12182.

KANAI, Seiji. Love Letter. Kanai Factory Edition: Alderac Entertainment Group,
California, USA. 2013. (cardgame)
PAVIANI, Jayme. Interdisciplinaridade: conceitos e distinções. 2ª ver. Caxias do
Sul, RS: Edcus, 2008.

TEDESCHI, Losandro Antonio. As mulheres e a história: uma introdução teórico


metodológica; Dourados, MS: Ed. UFGD, 2012.
149
A DEMOCRACIA ATENIENSE NOS COMPÊNDIOS DO
SÉCULO XIX: REFLEXÕES SOBRE A ESCRITA DA
HISTÓRIA ANTIGA ESCOLAR
Gizeli da Conceição Lima e José Petrúcio de Farias Júnior
150

A narrativa tem como finalidade apresentar de forma panorâmica os principais


debates historiográficos acerca da democracia ateniense. Isso é necessário para
que possamos compreender, as diferentes interpretações sobre a democracia
ateniense e em que medida elas estão comprometidas com as circunstâncias
históricas e condições político-culturais em que foram produzidas. A partir do
desenvolvimento dessa análise, temos como finalidade principal analisar os
compêndios de História Universal de Justiniano Jose da Rocha (1860), Victor
Duruy (1865) e Pedro Parley (1869), em que investigaremos como a democracia
ateniense é abordada, o que nos levará a refletir sobre a narrativa escolar
proposta para o ensino secundário no período Imperial brasileiro e isso se faz
necessário para podermos compreender o olhar desses pensadores sobre essa
sociedade e os silenciamentos existentes na narrativa escolar sobre a
democracia proposta por esses autores.

Estudar as recepções do passado helênico clássico por esses autores permite-


te nos indagar a memória histórica fabricada, no século XIX, pelos manuais de
ensino em relação aos projetos de poder do Império do Brasil. Partimos do
pressuposto de que a atribuição de sentidos ao passado é uma necessidade
humana, que resulta da carência de orientação temporal, como nos lembra Jörn
Rüsen (2007), já que somos seres simbólicos, e os sentidos que atribuímos ao
passado impacta nossas ações no presente.

De acordo com Guarinello (2014), as sociedades antigas e suas culturas foram


concebidas, até meados do séc. XX, numa narrativa comprometida com a
explicação genealógica dos Estados Modernos europeus, o que estimulava o
estudo das ‘civilizações’ antigas como uma espécie de sucessão, no interior da
qual Grécia e Roma tornaram-se uma espécie de paradigma à constituição da
identidade cultural ocidental, como se tivesse apenas acolhido e aprimorado as
contribuições das sociedades antigas orientais.

Para o autor, além dessa abordagem que influenciou a escrita da história antiga
no século XIX, houve ainda duas outras noções que determinaram e
influenciaram as formas da escrita da História Antiga: as noções de civilização e
de progresso.

Dentro desse debate, a obra de Gustave Glotz (1980), aborda a Grécia antiga,
com destaque para Atenas e Esparta, no interior da qual as experiências político-
culturais espartanas são compreendidas como antimodelo à ateniense.
Notamos, desde o início, uma escolha clara pelo modelo político-cultural
ateniense em oposição ao espartano, o primeiro constituído como o futuro e o
segundo como o passado; um passado que se tornou obsoleto, ultrapassado.
Percebemos, na obra de Glotz, uma simpatia ao modelo democrático pensado
por Aristóteles, visto que o autor corrobora com o argumento de que o povo é
formado por uma maioria que nem sempre sabe o que é melhor para a cidade.
Portanto, a democracia não funcionava, de modo eficiente, como forma de
governo pois defendia a igualdade entre desiguais, o que pressupõe que apenas 151
determinadas categorias sociais estivessem à frente das decisões políticas da
comunidade. Segundo Aristóteles, a participação popular (camponeses,
artesãos, comerciantes) deveria ser desestimulada. Esse modelo de
pensamento foi bastante difundido no século XIX.

É interessante perceber que essa visão hostil sobre a amplitude de participação


política dos atenienses nas instituições democráticas, proposta por Aristóteles e
reiterada por Glotz e por outros autores no século XIX, corroborava com o
posicionamento político almejado pelos governos monárquicos, como o Brasil
oitocentista. Nestes manuais de ensino de História, a autoridade do passado
clássico constituía um importante componente para justificar ou referendar
posicionamentos políticos no presente. Logo, salientamos o estudo ‘interessado’
do passado, já que direcionado à educação das mentes e à adoção de formas
de agir e pensar previsíveis, segundo a ordem social vigente.

De acordo com Pierre Vidal-Naquet (2002), os estudos de história antiga na


França - grande influenciadora da configuração curricular do ensino secundário
brasileiro – incluíram o estudo das línguas latina, grega e hebraica. Ao longo do
século XIX, podemos perceber que, além das disciplinas das línguas grega e
latina, a cadeira da antiguidade é essencialmente demarcada pelo estudo do
mundo greco-romano, ao qual se anexam Egito, Israel e Oriente Próximo. Para
o autor a história antiga, sobretudo grega e romana, era considerada de grande
influência pelo lugar que ocupava naquilo que ele chamou de “quadripartição da
história”.

Douglas de Melo Altoé defende que os antigos ganham destaque para a


constituição da história como ciência e para a compreensão dos problemas do
presente, uma vez que é no século XIX que se configuram as “ciências da
Antiguidade” na Europa. Para o autor, as obras de estudiosos da história
helenística, como George Grote (1794-1871), Victor Duruy (1811-1894), Johann
Gustav Droysen (1808-1884) e Ewald Friedrich Hertzberg (1725-1795) foram
marcadas por discussões relacionadas à atualidade política da literatura
clássica, principalmente no contexto do processo de constituição dos Estados
nacionais e a questão da unidade político-cultural, das relações entre modos de
dominação e suas consequências culturais (ALTOÉ, 2016).

Compreender as ‘leituras’ que os estudiosos do séc. XIX fizeram em relação à


democracia ateniense ajuda-nos a compreender como as influências do
ambiente político-cultural em que estavam inseridos contribuíram para construir
um passado em diálogo com demandas de seu tempo. Trata-se de uma
oportunidade para analisar as formas de ‘domesticação’ do passado pela
historiografia e manuais de ensino.

Ao tratar do desenvolvimento de uma historiografia oitocentista que dialogou


com os autores dos compêndios de História Universal, notamos uma abordagem
interessada em fundamentar o cenário político nacional, especialmente as 152
instituições político-administrativas do Império do Brasil. Isso explica os esforços
do governo imperial em criar órgãos de fiscalização e controle acerca das
produções didáticas nacionais (FARIAS JUNIOR, 2020, p. 45).

Nesse momento, a instrução pública secundária, direcionada para a formação


das elites, buscava inserir a recente nação brasileira no processo civilizacional
idealizado pelas nações europeias, e, por conseguinte, fazer do Brasil uma parte
do mundo civilizado ocidental, constituído pela “herança” da Antiguidade,
sobretudo, grega e romana. No tocante à interpretação da ‘democracia
ateniense’, utilizou-se a linha de raciocínio de Aristóteles, que interessava aos
intelectuais oitocentistas, como uma espécie de ‘verdade histórica’, já que
proferida e sustentada por um autor da Antiguidade, o que dava a impressão de
que o passado era transmitido e ensinado, segundo conceitos e categorias de
pensamento consensuais na Antiguidade Clássica. Fica claro que a literatura
clássica foi revisitada no séc. XIX, conforme objetivos e intencionalidades
particulares dos sujeitos envolvidos, grande parte deles sócios do IHGB e com
grande proximidade com a cultura francesa e anglo-americana (FARIAS JUNIOR
& LIMA, 2019).

Esse modo de interpretar a democracia influenciará a escrita dos compêndios


escolares utilizados nas escolas secundárias do Brasil, como veremos na análise
dos compêndios de História Universal de Justiniano José da Rocha (1860), Victor
Duruy (1865) e Pedro Parley (1869), no interior dos quais investigamos as formas
históricas da democracia ateniense.

Justiniano José da Rocha (1860), por exemplo, aborda superficialmente os


processos históricos que resultaram na democracia ateniense, ele apenas
apresenta no quarto capítulo de seu compêndio, intitulado Athenas, Sólon e
Pisistratidas, as formas de governo, legislação e organização das assembleias
gregas, e, nesse momento, faz menção à democracia de uma forma negativa,
como poderemos ver a seguir:

“O poder é entregue aos archontes. A princípio vitalícios, já decennaes em 754,


os archontes em 684 vêm reduzida a annual a sua authoridade. É que nas
discórdias intestinas, a influência aristocrática vae pouco a pouco cedendo
espaço para a democracia, e esta, vaga em suas afeições, inconstante em
sua confiança repelle antes de tudo a diuturnidade do poder. [...]Solon
organisa o poder de modo a assegurar a preponderancia da democracia
trazendo a tyrannia ou a omnipotência dos demagogos. [...] o grande poder,
todavia conserva-se inteiro nas mãos do povo, e comprehende-se com que
facilidade nessas numerosas assembléas a habilidade de um orador, a
influencia de um rico ambicioso tudo podem determinar, tanto mais quanto
se sabe qual é a inércia dos bons, nos dias de lutas facciosas, quão facilmente
se abstem elles dos encargos publicos. Os Pisistratidas, e melhor do que eles
Pericles fez dessa condição da democracia um meio de absolutismo.”
(ROCHA, 1860, p. 59-61, grifos nosso).
153
Podemos perceber, através do fragmento destacado, a crítica de Justiniano à
democracia, isto é, na concepção do autor a democracia não seria uma forma
confiável de governo por possibilitar a participação popular ampla no processo
de decisões da pólis. O autor segue as diretrizes de Aristóteles no momento em
que defende que apenas um grupo de cidadãos afinados com questões político-
militares teriam condições para se posicionar diante de assuntos complexos da
pólis e que demandaria grande responsabilidade, uma vez que as decisões
afetaria toda a coletividade, por isso Justiniano ataca os demagogos e a
vulnerabilidade de muitos atenienses em relação a indivíduos mal-intencionados
que objetivavam poder e fama em tais assembleias, ao defender causas em
interesse próprio.

O segundo compendio analisado é a obra de Pedro Parley, História Universal


Resumida para uso das escolas comuns dos Estados Unidos da América do
Norte, é traduzida para uso das escolas do Império do Brasil pelo
desembargador Lourenço José Ribeiro e editada pela Laemmert por volta de
1857. A versão brasileira do compêndio de História Universal de Pedro Parley
traz uma proposta inovadora no campo do ensino de História para as escolas
secundárias brasileiras. Os conteúdos históricos são estudados por continente e
numa perspectiva linear e causal que organiza acontecimentos históricos da
Antiguidade à atualidade. Não é difícil perceber que grande parte dos estudos
antigos e medievais são reservados à Europa (FARIAS JUNIOR, 2020, p. 33).

O autor aborda a história da Grécia em pontos que, ora são abordados de forma
semelhante a Justiniano Jose da Rocha e Victor Duruy, ora se diferem, como
poderemos perceber ao longo desse escrito. Em relação à democracia
ateniense, lemos:

“Lysandro entrou na cidade, aboliu a democracia e estabeleceu o governo


de trinta chefes sparthanos, que foram chamados de trinta tyranos de Athenas.
Assim terminou a Guerra do peloponneso e com ella a prosperidade da Grécia,
annos depois de começar 86 annos depois da batalha de Marathona, 404 anos
antes de Jesus Christo. ” (PARLEY, 1869, p. 159, grifos nosso).

Nesse fragmento, o autor narra a entrada de Lisandro na cidade de Atenas, o


fim da democracia e o início do governo dos trinta tiranos - este governo
oligárquico era composto por trinta magistrados e sucedeu a democracia
ateniense ao final da guerra do Peloponeso em 404 a. C. Podemos perceber
que, mais uma vez, negligencia-se o estudo das instituições democráticas
atenienses, suas dinâmicas políticas, a noção de liberdade e suas limitações. O
autor produz uma narrativa que expõe as fragilidades dessa forma de governo e
seu caráter vulnerável em relação às ambições de outras póleis.

Esta é a única referência do autor à democracia ateniense. É perceptível, nesse


sentido, seu emprego estratégico, já que, após mencioná-la, o autor noticia o
processo de enfraquecimento das instituições políticas atenienses após a vitória 154
dos espartanos que ocasionalmente termina com a conquista dos macedônicos,
sob o comando de Alexandre. Além disso, mais uma vez, a tirania aparece como
desdobramento da democracia, o que redunda numa estrutura argumentativa
que pretende mostrar como essa forma de governo está fadada ao fracasso pela
má administração do espaço público. Em outras palavras, pretende-se reforçar
a ideia de que a experiência democrática, marcada por ampla participação
popular, é nociva, porquanto mais fragiliza do que fortalece a comunidade
política atendida. De maneira tendenciosa, as narrativas históricas escolares
desqualificam a democracia para demonstrar a solidez do poder monárquico.

Mais uma vez, sublinhamos a proximidade da abordagem de Pedro Parley com


o posicionamento adotado por Aristóteles em Constituição de Atenas, na qual o
filósofo sustenta que o povo é formado por uma maioria que nem sempre sabe
o que é melhor para a cidade (ARISTÓTELES, A constituição de Atenas, III,
1278b20). Reiteramos a sintonia entre a historiografia do séc. XIX, exemplificada
pela abordagem de Gustave Glotz, com a perspectiva histórica adotada pelos
compêndios de História Universal. No que se refere à narrativa escolar de Duruy,
lemos:

“Em 594 confiarão-lhe o cuidado de reformar as leis e a constituição. Começou


elle o pagamento das dívidas e pondo em liberdade os devedores, mas
recusando a partilha das terras que exigião dos pobres, porque era seu fim abolir
a aristocracia oppressora, sem contudo estabelecer uma democracia pura.
Dividio o povo em quatro classes segundo as riquezas de cada um. [...] O povo
confirmava as leis, nomeava para os cargos, deliberava sobre os negócios do
Estado, e constituía os tribunaes nos julgamentos dos grandes processos. O
areópago, composto de archontes que haviam terminado seu tempo, era o
tribunal supremo para as causas capitaes, velava sobre os costumes, sobre
os magistrados e até podia prejudicar as decisões do povo. Era pois, esta
constituição uma mistura de aristocracia e democracia, em que aos mais
esclarecidos d’entre os cidadãos era reservada a gestão dos negócios
públicos” (DURUY, 1865, p. 40-41, grifos nosso).

Victor Duruy, demostra a afinidade de seu pensamento com a narrativa de


Aristóteles, tal como descrita na Constituição de Atenas, em que a emergência
da experiência democrática ateniense tem início com as reformas de Sólon.
Diante disso, o francês salienta os princípios aristocráticos na constituição desta
forma de governo, em virtude da manutenção do areópago, composto de
arcontes que ainda desenvolviam a missão de velar sobre os costumes e sobre
as decisões do povo. Ao declarar que as reformas de Sólon eram uma espécie
de mistura de aristocracia com democracia, demonstra a sua simpatia por formas
mais ‘elitizadas’ ou centralizadoras de governo, sobretudo quando diz que,
“dessa maneira, era destinado aos mais esclarecidos dentre os cidadãos a
gestão dos negócios públicos”.

De forma distinta de Justiniano José da Rocha (1860), Victor Duruy (1865)


confere a Sólon uma postura combativa em relação à “aristocracia opressora”, o 155
que incita a crítica aos grupos sociais que ocupam os espaços de poder
identificados de tal forma. Além disso, o autor atribui a Sólon a organização da
sociedade ateniense a partir de critérios censitários, por meio dos quais os
cidadãos atenienses definiriam suas formas de participação política. Ambos os
autores apresentam em comum o fato de que, após Sólon, a experiência
democrática ateniense teria se degenerado ou resultado no enfraquecimento das
instituições políticas.

Para além de Duruy, percebemos que os demais tratam a democracia em


contextos de crise político-institucional, dissolução ou enfraquecimento do poder
em oposição a situações de manutenção da unidade político-administrativa. Tal
linha de raciocínio reforça, entre os leitores, a inadequação dessa forma de
governo como paradigma ao presente, argumentação que estava em
consonância com ambições dos literatos no Império do Brasil. (FARIAS JUNIOR
& LIMA, 2019)

Em todo caso, é importante observar o quanto a história antiga, retratada nos


compêndios analisados e ensinada no ensino secundário brasileiro oitocentista,
é dependente da história europeia. Ou seja, a historiografia europeia, sobretudo
francesa dá o tom das narrativas históricas escolares, que busca com insistência
revelar as origens do mundo, do homem, das nações e suas instituições e da
religião para mostrar de que modo o passado clássico culmina no presente
(FARIAS JUNIOR; GUIMARÃES, 2020).

Além disso, devemos atentar ao fato de que, nesses compêndios, a escrita


destes autores, no que se refere à narrativa referente ao conteúdo de História
Antiga, é repassada de forma a perpetuar determinadas condutas aceitas
culturalmente com o objetivo de ‘educar’ os estudantes brasileiros a partir dos
modelos europeus. A escrita da narrativa escolar não é neutra. Ela é uma
interpretação do passado elaborada em função de interesses contemporâneos.
Ressaltamos que as obras analisadas são essenciais para compreendermos a
tessitura da História Antiga Ensinada nas escolas brasileiras do século XIX,
sobretudo, no Imperial Colégio de Pedro II, a principal instituição do ensino
secundário do país no oitocentos.

Devemos levar em conta, ao tratar as marcas de autoria e destinatário de tais


compêndios, as especificidades de tradução desses compêndios no Brasil, a
História como disciplina escolar, que se estabeleceu na instrução pública
secundária a partir de 1838, o que nos leva a perceber que a tradição clássica
no Brasil oitocentista não é um simples produto do passado, obra de outra idade,
ela é uma perspectiva que os homens do presente adotam e desenvolvem para
lidar com que os precedeu. Em outras palavras, os homens extraem do passado
o que lhes parece útil, por isso silenciam vozes, negligenciam grupos sociais e
suas demandas políticas ou ‘cancelam’ sujeitos, para usar um vocábulo de uso
corrente na contemporaneidade.

Referências biográficas 156


FARIAS JÚNIOR, José Petrúcio. Licenciado e bacharel em História pela
Universidade Estadual Paulista (UNESP/Franca - 2003), em Pedagogia pela
Universidade Federal de São João Del Rei (UFSJ - 2012) e Letras-Inglês
(UNIUBE - 2009). Especialista em Educação Empreendedora (UFSJ) e
Planejamento, Implementação e Gestão da Educação a Distância (UFF). Mestre
em História, na linha de pesquisa História e Cultura Política pela UNESP/Franca
(2012), com estágio de pesquisa na Albert Ludwigs Universität Freiburg (2007),
Doutor em História também pela UNESP/Franca, com período sanduíche na
Freie Universität - Berlin (2011-2012). Pós-Doutor em Educação pela
Universidade Federal de Uberlândia (2018), sob a supervisão da Profa. Dra.
Selva Guimarães; atua como Coordenador do Doutorado Interinstitucional em
Educação (DINTER UFU-UFPI), lidera os grupos de pesquisa: Laboratório de
História Antiga e Medieval? (LABHAM/UFPI) e História e Culturas Religiosas
(HCR/UFPI). É membro dos seguintes grupos de pesquisa: Grupo de Estudos e
Pesquisas em Ensino de História e Geografia (UFU), História, Antropologia e
Ensino de História em fronteiras (UNIFAP), Laboratório de História das
Experiências Religiosas (UFRJ), Grupo de Estudos em Residualidade Antigo-
Medieval (GERAM/UVA-CE). É coordenador de projeto de extensão, no âmbito
do PIBEX, intitulado Educação Patrimonial e Ensino de História. É professor
efetivo de História na Universidade Federal do Piauí, campus de Picos (2016),
onde atua como professor de História Antiga e Medieval; além disso, integra o
corpo docente do Programa de Pós-Graduação em História do Brasil (UFPI) e
orienta pesquisas acadêmicas nos seguintes temas: 01. Recepção dos clássicos
na literatura brasileira; 02. Formas históricas do ensino de História Antiga e
Medieval na Educação Básica; 03. Saberes e práticas docentes na educação
básica e no ensino superior; 04. História das religiões monoteístas; 05. A cultura
clássica no Brasil; 06. História Pública e representações contemporâneas da
Antiguidade.

LIMA, Gizeli da Conceição. É doutoranda pelo Programa de Pós-Graduação em


História do Brasil da Universidade Federal do Piauí PPGHB/UFPI e desenvolve
estudos na linha de pesquisa: História, Cidade, Memória e Trabalho. Tendo
como orientador o Professor Dr José Petrúcio de Farias Junior. Sua pesquisa
está ancorada na área de História, História do Brasil, com ênfase em História
Antiga e Ensino de História Antiga, atuando principalmente nos seguintes temas:
Ensino de História antiga no Século XIX, Grécia, Roma, Ensino de História. e
Livros didáticos. É mestre em História pelo Programa de Pós-Graduação em
História do Brasil da Universidade Federal do Piauí – PPGHB/UFPI (2018-2020)
onde foi bolsista pela CAPES. Possuí Graduação em História pela Universidade
federal do Piauí – CSHNB (2013-2017). Participou do Programa Institucional
Brasileiro de Iniciação à Docência – PIBID (2014-2016) e participa atualmente
do Laboratório de História Antiga e Medieval – LABHAM/UFPI (2016-2021).

Referências bibliográficas
ARISTÓTELES. Constituição de Atenas. Tradução de Francisco Murari Pires.
Ed. Bilíngue, São Paulo: Editora Hucitec,1995. 157

ALTOÉ, Douglas de Melo. A escrita da história da Antiguidade no Brasil


oitocentista: um estudo do Compêndio de História Universal (1860), de
Justiniano José da Rocha. Dissertação. Instituto de Ciências Humanas e Sociais
Programa de Pós-Graduação em História. Seropédica, RJ Setembro de 2016.

DURUY, Victor. História Universal. Traduzida pelo Conego Francisco Bernardino


de Souza, professor do Imperial Colégio de Pedro II. 2 Ed. Rio de Janeiro:
Garnier Editora, 1865.

FARIAS JÚNIOR, José Petrúcio de; LIMA, Gizeli da Conceição. O ensino de


História Antiga no século XIX: reflexões sobre os compêndios didáticos de
História oitocentistas como fonte de pesquisa Histórica. In: CERQUEIRA, Maria
Dalva Fontenele; FARIAS JÚNIOR, José Petrúcio de; LIMA, Gizeli da Conceição
(Orgs). História, educação e ensino no Brasil: entrelaçando saberes. Teresina:
EDUFPI, 2019. p. 89-111.
_____. História Antiga: trajetórias, abordagens e metodologias de ensino.
Uberlândia: Navegando, 2020.

_____; GUIMARÃES, Selva. Manuais de ensino de História oitocentistas:


reflexões sobre o cristianismo na história escolar no Império do Brasil. Revista
Cadernos de História da Educação, v. 20, n.03, 2020.

GLOTZ, Gustave. A cidade Grega. Rio de Janeiro: DIFEL difusão editorial S.A.
1980.

GUARINELLO, N. L. Ensaios sobre História Antiga. Tese apresentada para o


concurso de livre-docência na área de História Antiga, Universidade de São
Paulo: Faculdade de Filosofia, Letras e Ciências humanas. 2014.

MORALES, Fábio Augusto. A democracia ateniense pelo avesso: os metecos e


as plíticas dos discursos de Lísias. Dissertação. FFLCH, USP, São Paulo, 2009.

PARLEY. Pedro. História Universal Resumida. Traduzida pelo Desembargador


Lourenço Jose Ribeiro e adaptada para o ensino das escolas públicas da corte
e município do Rio de Janeiro e Muitas Instituições do Império. Rio de Janeiro.
1869.

ROCHA, Justiniano Jose da. Compêndio de história Universal: História Antiga.


v. 01. Rio de Janeiro. 1860.
SANTOS, Evandro dos. Entre antigos e modernos: escrita da história e lições
morais no Brasil do século XIX. Anos 90, Porto Alegre, v. 25, n. 47, p.253-278,
julho 2018.

VIDAL-NAQUET, Pierre. Os gregos, os historiadores, a democracia, o grande


desvio. Tradução de Jônatas Batista Neto. São Paulo: Companhia das Letras, 158
2002.
O ENSINO DO EGITO ANTIGO NO 6º ANO DO ENSINO
FUNDAMENTAL
Jayza Monteiro Almeida
159
O ensino da disciplina História na educação básica, tem sido alvo de estudos e
discussões nos últimos anos desde o seu retorno ao currículo. Conforme
demonstrado por Forquin (1993), a cultura escolar tem uma grande dificuldade
em aceitar as novas pesquisas, discussões e principalmente as novas
metodologias de ensino. Os Parâmetros Curriculares Nacionais ilustram esse
conflito, ao exemplificar as tensões existentes entre a modernidade e a
permanência que permeiam o ambiente escolar: “A escola vive hoje contradições
fundamentais. Seus agentes lutam simultaneamente por mudanças e pela
manutenção de tradições escolares” (BRASIL, 1998, p.29).

No ensino de história, Guimarães (2014) corrobora com esse pensamento ao


demonstrar como o ensino dessa disciplina no ensino fundamental se encontra
muitas vezes pautado no positivismo, priorizando às grandes figuras da história,
tendo uma preocupação excessiva com a memorização dos fatos e uma
abordagem de uso de fontes históricas exclusivamente com os documentos do
governo, dados como fontes oficiais. Ainda que a academia já esteja dando
ênfase ao estudo com diversidade de fontes históricas, intercambiando as
pesquisas com outras áreas de conhecimento e tendo outras abordagens, esse
conhecimento encontra a barreira da cultura escolar e não consegue transpor
facilmente esses muros. Alguns fatores levantados para essa questão são de
acordo com Mizukami (2010) a falta de formação continuada ofertada aos
professores e a dificuldade que o professor da educação básica tem de ser além
professor, também um pesquisador.

“Muitas fontes históricas antigas passaram por um método de análise e a escola


básica muitas vezes não tem muito acesso a essa característica que é riquíssima
dentro das tradições historiográficas. Para melhor adequação ao ensino das
salas de aula do ensino fundamental os autores dos livros didáticos e os
professores completam as interpretações das fontes em imagens” (COSTA,
2020, p.98)

O aluno como abordado por Rocha (2012), Guimarães (2014) e Bittencourt


(2018) tem dificuldade em sentir-se parte integrante da História. A História muitas
vezes apresentada apenas com grandes personagens políticos se torna muito
distante da realidade dos alunos e esse distanciamento com a disciplina faz com
que eles não se enxerguem como sujeitos históricos. Dessa forma, acaba-se
perpetuando a ideia de que a história em nada acrescenta e que não vale a pena
ser estudada (FONSECA, 2009).

Esse distanciamento com a disciplina não é exclusividade do ensino da


Antiguidade na educação básica, ela existe até mesmo quando trabalhamos com
o tempo presente. No entanto, quando tratamos da Antiguidade, torna-se ainda
mais complexo desenvolver essa consciência no aluno como sujeito histórico por
se tratar de uma temporalidade que muitas vezes o 6º ano têm dificuldade de
assimilar. Dessa forma busca-se desenvolver a consciência histórica realizando
conexões entre a História Antiga e a vida cotidiana do aluno, mostrando as
mudanças e permanências de hábitos nas sociedades tornando-se uma 160
importante forma de aproximação com a disciplina.

“A consciência histórica leva o aluno a fazer relações com o tempo em seu


cotidiano, essa atividade é extremamente complexa, por isso é tão importante o
discente transformar o conhecimento histórico em algo didático. A História é uma
disciplina de interpretação, por isso é fundamental o professor inovar e fazer
conexões entre o conhecimento histórico, vida prática e aprendizado”
(GROCHOSKI; STRONA, 2020, p.103)

Dessa maneira, ao trabalharmos o Egito Antigo é essencial o enfoque na vida


cotidiana. Pois como demonstrado por Bittencourt (2018), Guimarães (2014) e
Abud (2007) essa abordagem busca trazer a aproximação necessária para criar
significado na aprendizagem para o educando.

“Muitas reflexões inerentes à pesquisa histórica são significativas para o ensino


na escola fundamental. As abordagens teóricas que problematizam a realidade
social e identificam a participação ativa de pessoas comuns na construção da
História nas suas resistências, divergência de valores e práticas, reelaboração
da cultura instigam, por exemplo, propostas e métodos de ensino que valorizam
os alunos como protagonistas da realidade social e da História e sujeitos ativos
no processo de aprendizagem” (BRASIL, 1998, p.33)

O tempo destinado em sala de aula para trabalhar com o conteúdo do Egito


Antigo foram doze aulas divididas dentro de um mês, acontecendo três vezes na
semana. Durante as três primeiras o objetivo foi a contextualização histórica,
assim a abordagem foi feita em aulas expositivas e dialogadas com o objetivo de
situar e descobrir o conhecimento que os alunos traziam sobre o tema. Nesse
momento, eles trouxeram suas vivências, contando dos filmes que já haviam
assistido, novelas, jogos que já haviam jogado e sua experiência religiosa com
o assunto.

A abordagem utilizada para esse momento foi a educação da pergunta (FREIRE,


2013), estimulando a criatividade e a curiosidade, trazendo dúvidas e
questionamentos sobre o conhecimento prévio que os alunos já possuíam
devido a sua experiência de “ser-estar” no mundo. Buscou-se dessa forma
estabelecer sentido naquele conteúdo que estava sendo trabalhado, como forma
de incentivar o aluno a se enxergar como sujeito histórico.

“A aprendizagem Histórica implica na construção de sentidos, que ocorrem


quando o aluno tem contato com a experiência do tempo e para que isso
aconteça o professor deve fazer essas aproximações através de exemplos e
atividades práticas, criando, deste modo, competências para que o aluno venha
a se perceber também com um sujeito histórico” (GROCHOSKI; STRONA, 2020,
p.106)

Na segunda aula da semana realizou-se um exercício do livro didático que trazia


duas imagens da rainha Cleópatra: uma era a da atriz Elizabeth Taylor no filme 161
Cleópatra e a outra era feita por cientistas de como seria a real face da rainha.
Desse exercício, pontos da lei 10.639/03 puderam ser explanados assim como
o racismo. Através de uma abordagem do tema de uma perspectiva Freiriana, a
professora buscou trazer “consciência-mundo” para os alunos, despertando uma
tomada de consciência política e social ao instigar a reflexão sobre quantas
vezes tinham visto o Egito ser retratado na mídia de maneira eurocêntrica
(FREIRE, 2013). Dessa aula, diversos pontos foram observados e
desmistificados. Os tópicos principais levantados nesse exercício foram: a África
como um continente diverso, a existência de países que tem como idioma a
Língua Portuguesa e o conhecimento de que o Egito fazia parte da África. Essa
dicotomia existente entre a África e Egito no imaginário popular se deve em
“Grande parte das leituras elaboradas sobre o antigo Egito foi fissurada por
disputas narrativas e, principalmente, pela negação da africanidade dessa
civilização, marcadamente a partir do século XVIII” (OLIVA, 2017, p.2). No
imaginário dos alunos, muitos acreditavam que o Egito era uma ilha, outros
achavam que “ficava perto dos países que tinham guerras”, referindo-se ao
Oriente Médio e alguns nunca nem tinham se questionado sobre onde estaria
situado geograficamente o Egito.

Durante a terceira aula da semana foi abordada a questão relacionada ao idioma


falado, pois, alguns alunos acreditavam que era inglês ou português. Uma das
alunas disse que acreditava não ser esses idiomas devido ao filme “A Múmia” de
2017 que trazia a personagem Ahmanet falando com palavras que não soavam
parecidas com nenhum desses dois idiomas. Essa crença de inglês como língua
nativa de todas as civilizações se deve a maioria dos filmes que os alunos têm
contato serem produções hollywoodianas (OLIVA, 2017) ou mais recentemente,
novelas da Record que trazem em suas produções culturais um Egito totalmente
branco e no nosso idioma.

“Uma das escolhas pedagógicas possíveis, nessa linha, é o trabalho


favorecendo a construção, pelo aluno, de noções de diferença, semelhança,
transformação e permanência. Essas são noções que auxiliam na identificação
e na distinção do eu, do outro e do nós no tempo; das práticas e valores
particulares de indivíduos ou grupos e dos valores que são coletivos em uma
época” (BRASIL, 1998, p.34)

Na segunda semana, a professora conseguiu reservar o laboratório de


informática por todas as aulas. Com isto, os alunos foram divididos em grupos
de cinco a seis pessoas para pesquisarem sobre os seguintes temas: Grupo 1 -
aspectos religiosos, vida além-túmulo, tribunal de Osíris; Grupo 2 - aspectos
culturais, roupas, tecidos, maquiagem, adornos, penteados; Grupo 3 - aspectos
culturais, danças, músicas; Grupo 4 - aspectos políticos, faraós e dinastias;
Grupo 5 - aspectos religiosos, Mumificação e Pirâmides; Grupo 6 - Aspectos
econômicos; Grupo 7 - aspectos sociais e vida cotidiana.

É importante salientar que nesse momento muitos grupos fizeram uso das fontes
visuais, anotando as cores que observavam nas imagens, copiando modelos das 162
roupas e observando o formato dos cabelos e acessórios que costumavam
utilizar desenhando nos cadernos o que observavam.

Uma das grandes questões dessa turma era o baixo nível de alfabetização.
Dessa forma, a utilização das imagens, expressões artísticas e vídeos foram
amplamente trabalhados com os alunos no intuito de não ficar preso apenas ao
uso das fontes escritas. Corroboramos com Knauss (2012, p.47) quando afirma
que “No caso da história, ler não implica apenas textos narrativos, mas
igualmente outros tantos testemunhos da época, como mapas, iconografia e
expressões artísticas em geral” e um dos objetivos traçados para esse conteúdo
foi exatamente nesse sentido, de trabalhar com diversas fontes historiográficas
para que o aluno não se restringisse apenas às fontes tradicionais de ensino.

“As pesquisas históricas desenvolvidas a partir de diversidade de documentos


e da multiplicidade de linguagens têm aberto portas para o educador explorar
diferentes fontes de informação como material didático e desenvolver métodos
de ensino que, no tocante ao aluno, favorecem a aprendizagem de
procedimentos de pesquisa, análise, confrontação, interpretação e organização
de conhecimentos históricos escolares. Essas são experiências e vivências
importantes para os estudantes distinguirem o que é realidade e o que é
representação, refletirem sobre a especificidade das formas de representação e
comunicação utilizadas hoje e em outros tempos e aprenderem a extrair
informações de documentos (das suas formas e conteúdos) para o estudo, a
reflexão e a compreensão de realidades sociais e culturais” (BRASIL, 1998, p.
33-34)

Na terceira aula da semana, cada grupo apresentou o que tinha pesquisado para
a turma e uma aluna levantou a questão de Cleópatra não ser preta como a
imagem abordada no exercício da primeira semana. De acordo com a análise
feita pela aluna, com a miscigenação de Cleópatra ela concluiu que a rainha
seria considerada “morena” no nosso tempo. Essa fala da aluna gerou um debate
sobre o que é ser preto, pardo, negro e um reconhecimento e pertencimento nos
próprios alunos da sua etnia.

Continuando a apresentação das pesquisas, o grupo responsável pela


mumificação trouxe várias informações que aguçaram a curiosidade da turma e
sugeriram ensinar seus colegas o passo a passo de como uma pessoa era
mumificada no Egito Antigo. A professora concordou com a ideia e dessa forma
ficou combinado que uma aula da semana seguinte seria feita essa atividade.
A primeira aula da última semana foi a construção dos materiais que seriam
utilizados na Mumificação. Os alunos estavam extremamente empolgados e o
número de material entregue foi tão grande que a professora deixou reservado
o que sobrou para a apresentação da peça. O objetivo da criação dos materiais
utilizados pelos próprios alunos está no sentido de gerar pertencimento com o
que está sendo feito e realizado em sala de aluna “O grande ganho com a prática 163
de produção de materiais didáticos está em criar um elo explicativo dos temas
abordados na disciplina de história.” (LIA; COSTA; MONTEIRO, 2013, p.43)

Os alunos responsáveis pelos vasos canopos trouxeram caixas de sapato e


papel cartão preto para encapar as caixas e colar as imagens em cima,
simulando um vaso. Já outro grupo trouxe lençóis e começaram a cortar em
faixas. Esse momento de construção dos materiais que serviram tanto para a
aula prática na sala quanto para a peça foi de extrema importância para sua
aprendizagem e aproximação do conteúdo uma vez que é “Importante despertar
a afetividade do aluno para com o objeto produzido, este tem significado por ter
passado pela compreensão de um tema estudado e foi confeccionado pelo
estudante, que passa a vê-lo como algo seu, no sentido da produção e da difusão
do conhecimento histórico. O aluno torna-se produtor e difusor de um
determinado aprendizado; possui um artefato cultural construído por ele e sobre
o qual é capaz de historicizar” (LIA; COSTA; MONTEIRO, 2013, p.45).

Na segunda aula da semana, os alunos buscaram na sala de projetos os


materiais feitos anteriormente e o grupo responsável pela condução da
mumificação explicou à turma o que deveriam fazer nos colegas. A organização
levou a maior parte do tempo da aula, pois mais de um aluno queria ser
mumificado e não havia tempo hábil para que todos pudessem participar. Os
alunos resolveram essa querela em um jogo de zerinho ou um. Em seguida,
organizaram as mesas que colocariam os alunos deitados que seriam
mumificados e deram início a atividade “Quanto ao método utilizado este é lúdico
e trabalha com a criatividade dos alunos e estímulo ao aprendizado por meio de
atividade prática, pois os alunos deveriam evitar cometer anacronismo e
representar cenários e/ou classes sociais do antigo Egito, buscando relação
presente e passado com base nas orientações e explicações da historicidade do
Egito em sala de aula” (GROCHOSKI; STRONA, 2020, p.104).

As últimas aulas sobre o tema foram reservadas a trabalhar alguns pontos que
deveriam ser esclarecidos com os alunos. A primeira aula da semana foi
dedicada à vestimenta dos egípcios, alguns alunos tinham desenhado em seus
cadernos como eram as roupas e tinham anotado o tecido que era usado. Como
muitos não conheciam um tecido natural de linho a docente levou uma blusa de
linho e uma de seda para eles visualizarem um tecido totalmente feito com fios
naturais. Ela pediu para os alunos encostarem nos tecidos, que percebessem a
diferença dos dois e que devido ao linho ser um tecido muito caro por ser natural,
as roupas do dia a dia eram confeccionadas em tecidos diferente por serem mais
baratos que o linho, mas lembrou que naquela época eles não tinham essa
opção por ainda não ter sido inventado o poliéster, material sintético que
compunha seus uniformes escolares “Como percebemos a vestimenta também
possibilita o conhecimento histórico, pois os objetos são em muitas culturas uma
extensão do próprio corpo e trazem consigo uma teia de significados e
representações sociais, econômicas, políticas e culturais. Sendo assim, é de
grande relevância o aluno perceber a historicidade presente nos objetos,
cenários e roupas históricas, pois são a representação de sociedades do 164
passado dotadas de sentimentos e significados históricos e isso permite ao aluno
um maior contato com o fato histórico” (GROCHOSKI; STRONA, 2020, p.107)

Na última aula o tema foi relações de trabalho e a construção das pirâmides.


Devido à grande mídia e teorias da conspiração instigarem a ideia da construção
por extraterrestres não só no Egito, mas em diversos povos da antiguidade,
muitos alunos traziam a ideia de que era impossível “gente que não tinha nem
computador” ter erigido esses monumentos. A professora esclareceu alguns
pontos como, por exemplo, que o alinhamento com as estrelas não era um sinal
de localização para os extraterrestres. Explicou também que os egípcios tinham
um grande conhecimento de astronomia e matemática e pensar que apenas o
homem moderno teria capacidade de construir obras complexas era uma forma
de desmerecer o conhecimento que os povos antigos tinham, as técnicas que
desenvolveram e as conquistas que alcançaram.

Conclusão
O trabalho aqui descrito teve o intuito de apresentar como a disciplina de história
trabalhou o tema Egito Antigo em consonância com os PCNs e com as novas
pesquisas referentes ao ensino de História. Apesar de muitos pontos ainda terem
permanecido enevoados e alguns estereótipos terem sido mantidos, muitos
avanços nas discussões referentes à lei 10.639/2003 puderam ser trazidos e
trabalhados em sala de aula. Podemos afirmar que o trabalho em equipe dos
alunos gerou uma aproximação e pertencimento da turma com a disciplina e,
utilizando do conceito de Luckesi (2014), que enxerga a avaliação como uma
parceira para analisar se os objetivos traçados foram alcançados, podemos
perceber resultados satisfatórios. Os alunos que não tiveram um bom
desempenho durante o ano, nesse momento tiveram seus saberes e
competências valorizados validando a importância da diversificação dos
instrumentos avaliativos.

Com a finalização e avaliação dos resultados, surgiu uma interessante situação


que não foi considerada no momento da concepção da proposta: alunos que,
quando avaliados de forma tradicional, apresentavam bons resultados tiveram
dificuldades em dialogar com as ferramentas propostas. O fato de que durante o
mês de aulas eles não tiveram conteúdos conceituais e factuais que exigiam
memorização deixou-os perdidos em sua percepção de ensino e escola. Uma
aluna chegou inclusive a afirmar “que tinha um bom tempo que não tinha aula”.
O fato de a avaliação ter sido feita de maneira contínua, observando o
desenvolvimento dos alunos nas discussões do projeto e não seu resultado em
uma prova provocou ainda mais estranhamento. Essa situação abre um leque
de possibilidades e pesquisas que podem vir a ser discutidas em trabalhos
futuros ou por outros pesquisadores.

Referência biográfica
Jayza Monteiro Almeida é mestra em Ensino na Educação Básica pela
Universidade Federal do Espírito Santo (UFES). Professora EBTT-História do 165
IFPA campus Altamira. Integrante do grupo de pesquisa Tecnologia e Educação
no Xingu e Região da Transamazônica.

Referências bibliográficas
ABUD, Katia Maria. A História nossa de cada dia: Saber escolar e Saber
acadêmico na sala de aula. In: MONTEIRO, Ana Maria; GASPARELLO, Arlette
Medeiros; MAGALHÃES, Marcelo de Souza. (org.). Ensino de História: sujeitos,
saberes e práticas. 1. ed. Rio de Janeiro: Mauad X, 2007. p. 25-72.

BITTENCOURT, Circe Maria Fernandes. Ensino de História: Fundamentos e


Métodos. 5. ed. São Paulo: Cortez, 2018. 328 p.

BRASIL. Lei nº 10.639, de 9 de janeiro de 2003. Brasília: MEC/SEF, 2003.

BRASIL. Parâmetros Curriculares Nacionais: terceiro e quarto ciclos/ História.


Brasília: MEC/SEF, 1998.

COSTA, Carolina Lima. A História Antiga presente no Livro Didático. In: BUENO,
André.; CAMPOS, Carlos Eduardo; BORGES, Airan. (org.). Ensino de História
Antiga. 1. ed. Rio de Janeiro: Sobre Ontens/UFMS, 2020. p. 98-103.

FONSECA, Selva Guimarães. Fazer e Ensinar História: Anos iniciais do ensino


fundamental. Belo Horizonte: Dimensão, 2009. 234 p.

FORQUIN, Jean Claude. Escola e Cultura: As Bases sociais e epistemológicas


do conhecimento. 4. ed. Porto Alegre: Artes Médicas Sul, 1993. 201 p.

FREIRE, Paulo. À sombra desta Mangueira. 11. ed. Rio de Janeiro: Paz e Terra,
2013. 256 p.

GUIMARÃES, Selva. Didática e Prática no Ensino de História. 1. ed. Campinas:


Papirus, 2014. 256 p.

GROCHOSKI, Cibeli; STRONA, Millian Carla. PIBID em prática: Metodologia


para trabalhar a cultura do Egito Antigo no Ensino Fundamental. In: BUENO,
André; CAMPOS, Carlos Eduardo; BORGES, Airan. (org.). Ensino de História
Antiga. 1. ed. Rio de Janeiro: Sobre Ontens/UFMS, 2020. p. 104-110.

KNAUSS, Paulo. Sobre a norma e o óbvio: a sala de aula como lugar de


pesquisa. In: NIKITIUK, Sonia (ORG). Repensando o Ensino de História. 8. ed.
São Paulo: Cortez, 2012. p. 29-50.
LIA, Cristine Fortes; COSTA, Jessica Pereira da.; MONTEIRO, Katani Maria
Nascimento. A produção de material didático para o ensino de História. Revista
Latino-Americana de História. Curitiba, v. 2, n. 6, p. 85-91, ago./2013.

LUCKESI, Cipriano. Avaliação da aprendizagem Escolar: Estudos e 166


Proposições. São Paulo: Cortez, 2014. 272 p.

MIZUKAMI, Maria da Graça Nicoletti. Ensino: As abordagens do processo. 6. ed.


São Paulo: EPU, 2010. 194 p.

OLIVA, Anderson Ribeiro. Desafricanizar o Egito, embranquecer Cleópatra:


silêncios epistêmicos nas leituras eurocêntricas sobre o Egito em manuais
escolares de História no PNLD 2018. Romanitas - Revista de Estudos
Grecolatinos.. Vitória, v. 10, p. 26–63, jan./2017.

ROCHA, Ubiratan. Reconstruindo a História a partir do imaginário do aluno. In:


NIKITIUK, Sonia (ORG). Repensando o Ensino de História. 8. ed. São Paulo:
Cortez, 2012. p. 51-70.
EM DIREÇÃO A UMA NOVA PERSPECTIVA PARA O
ENSINO DE MESOPOTÂMIA
Leonardo Candido Batista
167
O presente artigo não tem como intenção apresentar uma nova metodologia
sobre o ensino em Mesopotâmia, mas sim mostrar um panorama com ideias que
precisam ser repensadas nessa área da Antiguidade. Infelizmente existem
poucas publicações e livros sobre o tema em nosso vernáculo, esses últimos
estão mais para manuais que pouco contextualizam e problematizam a
sociedade mesopotâmica como um todo. Existe uma defasagem conceitual
sobre muitos aspectos desses povos que viveram em torno dos rios Tigre e
Eufrates, fora suas esferas de influência. Essa percepção das “antigas
civilizações” gera confusão e muitas interpretações errôneas e ultrapassadas na
historiografia, criando uma distorção na leitura um pouco presa nas definições
enviesadas do século XIX e início do XX como veremos mais adiante.

Outro problema desse modelo, é que tende para uma linearidade dispersa de
grupos que sucederam outros conquistados: sumérios, acádios, gútios, amoritas
etc. Isso condiciona à estrutura mesopotâmica em um sistema de “ilhas”, onde
existe uma confusa justaposição de civilizações que supostamente tiveram sua
primazia histórica, desempenhando um papel de liderança sobre as derrotadas.
Essa sequência leva a uma contínua sucessão de reinos, que pode muito bem
cimentar à ideia de populações desordenadas em uma temporalidade um tanto
quanto exótica e alheia.

A inabilidade dos livros didáticos e da grande maioria dos manuais em língua


portuguesa carecem de uma abordagem teórica um pouco mais elaborada,
assim o leitor é induzido a pensar essas sociedades em ordem centrífuga,
simplesmente jogadas pelo Antigo Oriente Próximo. Essa carência metodológica
também faz parte de uma certa negligência acadêmica brasileira, às vezes um
pouco refratária, enxergando esse campo como perfumaria e seus
pesquisadores um tanto “excêntricos”. É verdade que nos últimos anos as
pesquisas em Antiguidade Oriental cresceram, entretanto, são insuficientes para
mudarem o quadro atual. Um alinhamento com as mais recentes e prestigiadas
historiografias sobre Mesopotâmia é imprescindível para começarmos a esboçar
alguma proposta, que também seria muito bem-vinda para o ensino de História.

Devemos solenemente frisar que os primeiros estudos sobre o Oriente Próximo


e Egito foram realizados pelas potências imperialistas do século XIX, orbitando
assim os padrões eurocentristas. Essa herança foi uma construção do Ocidente,
que ainda persiste nas mentalidades delineando esse arquétipo do “místico”
nessa área da Antiguidade. Essa perspectiva europeia é muito bem resumida
por John Maier (1995, p. 107) argumentando que no coração dessa fascinação
existe um apelo de um certo tipo de “saber”, que se opõe a característica
definidora do “pensamento moderno”. Até a arqueologia trazer novas
descobertas, essa “sabedoria” do Antigo Oriente Próximo baseava-se
principalmente nos até então não decifrados hieróglifos, reflexões da Bíblia, e
outros textos mágicos. Mesmo durante uma parte do século XX, os estudos
nesse campo eram baseados em símbolos, metáforas e mitos que pareciam
expressar o primitivo, o pré-lógico, o mitopoético, a consciência humana
tradicional ou oral. Com muita frequência a percepção do “outro” era colocada 168
contra a razão, análise, lógica, filosofia e ciência. Enquanto a civilização
“moderna” é caracterizada como urbana, imperialista, masculina, branca, letrada
e eurocêntrica, o Antigo Oriente Próximo aparece como o oposto, irracional, e
não oferecendo uma alternativa “civilizada” (MAIER, 1995, p. 107). Como se não
bastasse, ainda podemos observar resquícios de uma historiografia um tanto
racista, quando objetiva conceitos como “raça dinástica” ou supervalorização da
cultura suméria como projeto civilizatório.

Mesmo atualmente no século XXI, tanto a assiriologia quando a egiptologia,


continuam sendo estudadas no espectro das universidades europeias, norte-
americanas, australianas e em menor escala pela “periferia” ocidental. A
influência do imperialismo nessas regiões que hoje conhecemos como mundo
árabe, fez com que esses países perdessem o interesse no desenvolvimento de
uma narrativa própria de compreensão do seu passado. Efetuou-se assim a
introjeção da concepção do Ocidente, reforçada pelo surgimento de museus, que
serviram como mediação da interpretação europeia de tais sociedades
passadas, naturalizando a apreensão ideológica desse milieu no que hoje é
difundido como as “antigas civilizações”.

A arqueologia que é essencial para suplementarmos nosso conhecimento sobre


o passado, nasceu no âmbito de reforçar o eurocentrismo, com isso,
contextualizar o orientalismo é necessário para entendermos alguns termos
pejorativos que perduram nos estudos sobre Mesopotâmia e afins. Esse ponto
de vista se pauta em um estandarte elaborado de teorias que ao longo do tempo
impôs um considerável investimento material, cimentando nas mentalidades
esse panorama do exótico. Para Edward W. Said (2003, p. 35-36), o que
podemos entender por orientalismo, é um corpo geral das representações
dominantes nas massas. Está impregnado de doutrinas de superioridade
europeia, vários tipos de racismo, imperialismo e coisas semelhantes, visões
dogmáticas do “oriental” como uma espécie de abstração ideal e imutável.

A ação de pensar o ambiente mesopotâmico como um conjunto étnico e cultural,


pode muito bem ajudar a angariar uma maior compreensão sobre sua história,
evitando o que já descrevemos como civilizações ilhas, ou seja, grupos dispersos
e inertes com apenas algumas descrições básicas, com pouca ou quase
nenhuma contextualização à margem das diversas influências. É inevitável
vermos trabalhos com periodizações específicas, sendo quase impossível
escapar de um recorte para uma análise mais minuciosa, como, por exemplo, a
IIIª dinastia de Ur, Império Assírio, Império Neobabilônico, porém essas
abordagens devem ser feitas enfatizando as conexões e mediações que essas
sociedades compartilhavam entre si.
A Influência de Uruk
Assim como um relógio necessita de engrenagens para o seu funcionamento, as
interações e fluxos foram fundamentais para a manutenção das estruturas
vigentes no Antigo Oriente Próximo. Um meio de compreendermos essas
relações é o que Guillermo Algaze (2008, p. 68) defende como “expansão de
Uruk”, que resumidamente podemos entender como uma integração das 169
sociedades da baixa Mesopotâmia por volta da segunda metade do quarto
milênio, na qual a influência dessa região foi difundida por nódulos em
localidades distintas, embora Gonzalo Rubio (2007, p. 20) aponte que essas
redes poderiam ter existido já no quinto milênio no período Ubaid. Apesar dessa
explicação ter muitas controvérsias por se basear na Teoria de sistema-mundo
do sociólogo Immanuel Wallerstein, e pelo fato de muito pouco sabermos da fase
Uruk, ela é um caminho para entendermos essa malha que gerou vários tipos de
entrepostos ao sul, estabelecendo locais estratégicos de suma importância na
periferia mesopotâmica, beneficiadas pela intersecção dos rios e outras rotas
terrestres.

A penetração de Uruk foi um processo de implantação urbana, ao passo que as


formas sociais e culturais mesopotâmicas eram introduzidas em paisagens
essencialmente virgens (ALGAZE, 2008, p. 69). Isso é um ponto de partida para
observarmos que já existiam sofisticadas formas de comércio e contatos com
diversas áreas do Oriente Próximo ainda no quarto milênio. Luciano Milano
(2012, p. 72) complementa que o modelo proposto por Algaze chamou muito a
atenção dos especialistas, mas uma de suas deficiências se encontra no
exemplo da intensa troca comercial de longa distância não ser suficientemente
documentada pela arqueologia. Além do mais, a presença de produtos acabados
de origem sul-mespotâmicas nos arredores parece ter um peso bem limitado.
Em alguns casos, como na metalurgia, a especialização da produção nas regiões
periféricas aparenta certo refino, podendo não ter origem meridional. Um outro
ponto controverso, é o que Algaze chama por “colônias”, que por base dos dados
arqueológicos poderiam não ter sido, tendo em vista que pesquisas recentes
apontam que as áreas além de Uruk tinham uma grande complexibilidade
econômica e social (MILANO, 2012, p. 73).

É um tanto comum atribuir o “início da civilização” na Suméria, como se de


repente o que denominamos como um conjunto de cidades-Estados (na qual
Uruk fazia parte), desabrochasse tal como um milagre, apresentando os mais
elaborados conceitos humanísticos e sendo o berço da humanidade. O termo
“civilização suméria” por si só é uma noção generalizada e vazia, existem várias
discussões sobre a própria nomenclatura e como os especialistas tendem a
identificar essa etapa, todavia é importante esboçar, mesmo que concisamente,
algumas características para evitarmos o senso comum dessa terminologia.
Como explica Luciano Milano (2012, p. 63), o auge de um processo mais
complexo de organização social foi alcançado na segunda metade do quarto
milênio, durante o Uruk Tardio. Esse fenômeno está associado com a formação
de organizações estatais e o nascimento de grandes centros urbanos. O território
por inteiro era dividido em uma rede bem articulada de assentamentos
independentes e hierarquicamente distintos, enquanto a cidade se tornou o
centro do poder político e religioso. Gonzalo Rubio (2007, p. 20) considera que
o reino de Kish, em meados do terceiro milênio, também teve um papel
importante na difusão intelectual. Cobrindo uma ampla região em Ebla no Norte
da Síria (ou mais a oeste) até Kish na Mesopotâmia, e também provavelmente
algumas áreas a leste dessa localidade (Abu Salabih, Diyala, e talvez até à 170
Assíria). Aparentemente isso constituiu um continuum cultural desse distrito,
estendendo-se da Síria setentrional ao Sul mesopotâmico. O termo “Kishita” é
usado com uma cobertura para a continuidade linguística pré-sargonica, e
algumas de suas características sobreviveram no período acádio e nos textos de
sakkanakku em Mari.

Essa interação causada pela propulsão da influência mesopotâmica meridional


deve também ser analisadas no aspecto geográfico (veremos mais à frente um
estudo de caso mais localizado). Para Mario Liverani (1995, p. 38) a geografia
do Oriente Próximo é um dado importante no ponto de vista histórico,
supostamente porque regiões com vocações e recursos seriam interligadas por
um estreito contato. Liverani pontua três abstrações que são essenciais para
analisarmos essas ligações: ponto nodal, fronteira e nicho. Por ponto nodal
podemos entender por duas zonas distintas. Através dela passa, em ambas
direções, experiências, produtos, pessoas e tecnologias, que existam em uma
zona, e na outra não. Em geral, esse acontecimento implica uma mudança nos
códigos expressivos e de valores, com um efeito de fecundação recíproca, de
comparação e ajuste dos resultados, que tanto contribuíram para a evolução das
comunidades humanas desde os tempos mais antigos. O conceito de fronteira é
distinto, sendo que essa é uma zona marginal e terminal de um núcleo
determinado, por outro lado, da qual segundo os membros dessa comunidade
não há nada, ou é geralmente inferior, é um território apetitoso para a exploração
de matérias-primas, mediante a trocas desiguais, até chegar à forma de
conquista militar. O significado de nicho (ecológico e cultural) é o oposto.
Sublinha o valor de certas zonas compactas e coerentemente delimitadas por
pontos nodais mais ou menos próximos, e protegidas pelo meio que as rodeiam
(LIVERANI, 1995, p. 37-38).

Luciano Milano (2012, p. 68) argumenta que na segunda metade do quarto


milênio, além do processo de urbanização e da formação das primeiras
estruturas de tipo estatal, se intensificaram conexões com várias regiões do
Oriente Próximo, particularmente com toda a Mesopotâmia e lugares ainda mais
distantes. Em alguns casos a natureza desses vínculos eram constituídas pelo
trânsito de pessoas do sul para o norte, em busca de novos assentamentos. Ao
mesmo tempo, comunidades locais com longa tradição na interação com grupos
austrais, assimilavam o estilo de vida e o poder sistêmico de Uruk, existindo
assim diversos meios nos quais essa cultura se firmou nas localidades. Leo
Oppenheim (1977, p. 32) destaca que uma característica fundamental desse
fenômeno, parece ter sido a criação de “civilizações satélites” em locais
periféricos dos vales fluviais. Essas que se originaram do contato entre a
sociedade principal ou nuclear, e os novos grupos étnicos com suas próprias
tradições.

171

Figura 1 – Mapa geral do Oriente Próximo: Mesopotâmia e suas áreas de


influência Fonte: (SANMARTÍN; SERRANO, 1998)

Philippe Beaujard (2016, p. 31) reforça essa ideia comentando que esses centros
desenvolveram inovações tecnológicas que junto ao poderia militar e ideológico,
permitiram-lhes construir um setor produtivo e eficiente, com redes de
intercâmbio onde eram globalmente dominantes. A vantagem demográfica
também contribuiu em grande parte para a supremacia dos núcleos, permitindo
importantes inversões na agricultura, na mobilização de tropas e manufaturas.
Trocas assimétricas foram estabelecidas com as semi-periferias e periferias
mediante uma relação de “atração” dos produtos manufaturados (principalmente
têxtil), na qual eram trocados por matérias-primas (ou semi-processadas) e
escravos.

Os produtos da região central ajudaram as elites das cercanias angariar certo


status. A assimetria, portanto, era produto da natureza de bens trocados, da
forma que eram obtidos ou produzidos no contexto comercial. Para estabelecer
dominação, os eixos centrais determinavam diversas estratégias, tais como
tributos, alianças, colônias, casamentos, conversões religiosas e ações militares
(BEAUJARD. 2016, p. 33). Apesar desse quadro da expansão de Uruk ser
baseado em suposições sem fortes ligações com fontes escritas ou de natureza
findada na cultura material, não há porque duvidar que no começo do IV milênio
essas interações começaram a se consolidar em pequena ou maior escala
dentro do vasto mundo mesopotâmico e afora. Tornando-se cada vez mais
intenso ao longo dos rios e rotas terrestres. Repensar esse modelo é uma tarefa
essencial se quisermos expandir e melhorar as condições de ensino, pois esse
é um passo para contextualizarmos um panorama muito maior com
problematizações mais contundentes sobre essas sociedades, não obstante,
essa é somente uma peça para relacionarmos com a condição de aprendizagem.

O Panorama geográfico mesopotâmico


Tentaremos explanar a importância geográfica local. Vimos de maneira mais
ampla como esse aspecto foi primordial para a existência de redes que 172
permitiram contatos pelo menos desde Ubaid por todo o Oriente Próximo. Como
explica Nicholas Postgate (1999, p.15), é necessário compreender a geografia
da Mesopotâmia para entendermos a sua história, pois ela definiu o estilo de
vida da comunidade agrícola e, em consequência, da cidade. Predeterminou a
área dos assentamentos e as rotas que proporcionaram essa união. As grandes
variações na temperatura, assim como as abruptas mudanças na paisagem;
dividem a região em extensões ambientalmente distintas, que poderiam ser
desenhadas em um mapa com muito mais claridade que a maior parte das zonas
temperadas do mundo. As diferentes dimensões favorecem e impõem estilos de
vida diferenciados, que com frequência coincidiram com divisões étnicas e
políticas, tendo consequentemente um impacto direto em sua formação. Em
certas ocasiões, a configuração física atua diretamente sobre os indivíduos, as
cordilheiras são obstáculos na comunicação e as planícies a possibilitam com os
rios canalizando essas relações. As grandes unidades políticas se
desenvolveram em localidades de fácil interlocução, fossem em lugares mais
planos ou montanhosos.

Reforçando essa ideia de demarcações, Michael Roaf (1990, p. 19) ressalta que
o desenvolvimento alimentício é um requerimento básico para a instalação
populacional, dependendo do ambiente e lugar. O Antigo Oriente Próximo era
conhecido como terra dos cinco mares, circulado pelo Mediterrâneo, Negro,
Cáspio, o golfo e o mar Vermelho. As empreitadas marítimas, de certa forma,
tiveram menos importância que as vias terrestres no estabelecimento humano.
As paisagens resumem-se em: pântanos no Sul do Iraque, passando por
desertos de basalto na Jordânia e Síria, até montanhas cobertas de neve no Irã.
Cada ecossistema é distinto por sua diversidade na vegetação, também impondo
métodos de subsistência em seus habitantes. Uma das poucas semelhanças
compartilhadas da área é a falta de chuvas nos meses de verão. A variedade
dos hábitos em proximidade possibilitou diferentes modos de vida coexistindo
em incessantes inter-relações, um fator que pode ter levado a uma mistura de
ideias e estimulado tecnologias, ciência e avanços sociais no Oriente Próximo.
Jean-Claude Margueron (2013, p. 21) comenta que não é fácil delimitar a
precisão da entidade mesopotâmica, pois ali nunca houve limites claramente
definidos. Nossos atuais conceitos de fronteira são demasiados modernos,
portanto, inválidos para tal temporalidade. Assim, a bacia hidrográfica constituiu
um caráter físico essencial, que nos permite explicar a gênesis e a evolução
daquele setor. Foi o que proporcionou o verdadeiro fator de unificação,
viabilizando a instalação de pessoas, sem as quais ali seria apenas um deserto
(MARGUERON, 2013, p. 21).
A ambiência mesopotâmica foi propícia para tais interações, sendo ditada pela
dinâmica dos rios que praticamente facilitavam esses vínculos em todas as
direções. A geografia local ajudou a modelar a própria concepção de realeza,
como explica Joaquín Sanmartín (1998, p. 11), a ideia universal de poder
aparece inerente no meio político mesopotâmico, desde suas primeiras
manifestações conscientemente estatais, quando os monarcas adotaram o título 173
de “reis das quatro regiões”. Jean-Claude Margueron (2003, p. 26) elucida que
o nome “meso potamos” não se aplicou sempre a mesma extensão, e que no
período helenístico, essa terminologia estava relacionada a porção setentrional
da bacia, sendo mais recente o uso que inclui o território babilônico e sumério, e
também outras faixas limítrofes a essa expressão topográfica. Tal modificação
semântica (da designação do todo por uma de suas partes), levou a mascarar
um traço fundamental na realidade geográfica, a divisão regional que os
especialistas classificam como norte e sul, sendo que as condições humanas
nessas localidades variam muito.

Na vida sedentária, Nicholas Postgate (1999, p. 31) classifica que o agricultor


sulista necessitava ser constantemente vigilante para controlar o sistema de
irrigação, porque os campos de cultivo se circunscreviam da necessidade e
manutenção dos canais, separados em muitos casos por pontos de pastoreio no
deserto. Ao norte não era necessário tal cuidado, com o senso comum ditando
o cultivo dos campos que se estendiam de maneira uniforme até trechos
desérticos, seguindo o contorno da linha de diminuição das chuvas. A maior
parte das terras não eram cultivadas nas zonas situadas entre os dois blocos por
serem muito secas. Essas circunstâncias separaram os dois principais centros
mesopotâmicos, restringindo os contatos culturais, políticos e militares entre
norte e sul a duas ou três rotas que ofereciam acesso necessário à água e certa
segurança. Em certas ocasiões, existiram continuidades de ocupação ao longo
das colinas dos Zagros, onde estavam localizados os principais percursos
comerciais.

As bandas aluviais que cortavam os vales, também proporcionavam conexões.


Esses oásis formavam tentáculos da cultura meridional dirigindo-se ao norte:
Mari sobre o Eufrates e Assur sobre o Tigre, eram postos avançados da Suméria
e Acádia. Ambos estavam situados nos pontos em que a bacia se alarga,
existindo bons terrenos para o estabelecimento de assentamentos relevantes,
mas sem dúvida essa possibilidade deriva do controle sobre o tráfico dos rios
(POSTGATE, 1999, p. 32). Esse espaço físico é de suma relevância para
entendermos como fora aplicada a política local, tanto em suas divisões como
na forma em que as mediações alcançam outras bandas, sejam pelas rotas
terrestres ou fluviais. É notável que esse quadro influenciou muito na forma de
seu desenvolvimento histórico, por tornar maleável muito dos elos entre diversas
sociedades.

As constantes culturais mesopotâmicas desafiaram os aspectos naturais,


alcançando regiões muito distintas se sua órbita, mesmo com condições
adversas como desertos, colinas, estreitos, rios, entre outros, agindo como uma
explosão que deixa marcas dentro das suas possibilidades. Essas vias de
comunicação funcionaram como um leque, que segundo Joaquín Sanmartín
(1998, p. 12) remontavam fundamentalmente as bacias hidrográficas, sendo o
Eufrates uma porta para a Síria continental, o Levante e a parte Ocidental de
Anatólia. Já o Tigre e seus afluentes da margem esquerda conduzem até a
Anatólia Central e Oriental, o arco do Cáucaso e o platô iraniano. No oeste, a 174
Síria, em particular o seu litoral, manteve a sua peculiar identidade cultural sob
o manto dos sistemas simbólicos e tecnológicos mesopotâmicos; por outro lado,
as áreas ao norte, sub-caucasianas e elamitas, ficaram diretamente
influenciadas pela Mesopotâmia, vendo sua autonomia cultural resumida, a não
ser por particularidades linguísticas.

As populações do médio e alto Tigre (Assíria), do Cáucaso e do Elam tiveram


que aceitar plenamente no transcurso de sua história, os valores estéticos, os
padrões políticos e a escrita cuneiforme (SANMARTÍN, 1999, p. 12). Esses
componentes geográficos mais localizados, são necessários para
compreendermos as instituições que deram corporeidade à população
mesopotâmica. Dois fatores que podem parecer distintos, mas são
denominadores comuns que faziam parte da realidade dos povos que ali
coabitavam.

Como classificar estruturas políticas no Antigo Oriente Próximo?


Após direcionarmos como os vínculos das trocas culturais e geográficos
ajudaram modelar à esfera de influência mesopotâmica, um outro problema que
necessita passar por um escrutínio são as terminologias modernas que usamos
para a classificação de suas estruturas políticas e sociais. Os grupos que
abrangiam essa temporalidade nunca se denominaram como “mesopotâmicos”
ou qualquer outro epíteto corrente, as rotulamos assim simplesmente porque
atende as necessidades tradicionais construídas no século XIX, quando não
existiam essas preocupações. O mesmo ocorre quando identificamos esse
período histórico como Antigo Oriente Próximo, mas afinal, o que é o Oriente?
Joaquín Sanmartín (1998, p. 9) esclarece que esse termo é uma noção europeia
de origem ilustrada e romântica, que abaixo a esse princípio encontra-se todos
os pensamentos que nos séculos XVII e XVIII ainda escapavam do controle
direto das potências europeias, seguindo por ilustração à Ásia e o Norte da
África. O Oriente não existe como uma entidade geomorfológica, na realidade,
essa denominação designa um conglomerado geograficamente muito
diversificado, no qual se distinguem vários ecossistemas.

É importante lembrar que a disciplina de História tem por função a formação de


um pensamento crítico, portanto, devemos exercitar essa parte tão fundamental
para pesquisadores e professores, conceitualizando certas nomenclaturas.
Formulações como Estado, reino e império são vocábulos vigentes que não eram
conhecidos nessa época. A respeito dessas conceitualizações, Cristina Di
Bernnardis (2014, p. 16-17) se pergunta se é possível falar de “Estados” em
tempos tão longínquos, pois essa caracterização a distintas formas de
centralidade em organizações políticas modernas, acompanham o processo de
acumulação originária do desenvolvimento do capitalismo, com relação ao
surgimento das primeiras monarquias absolutas seguidas pelas democracias.
Assim tendemos a partir do nosso momento pensar em normas políticas
contemporâneas para tentarmos entender sociedades antigas, que não
conheciam uma unidade sistemática que por ordenação surgiram em debates
mais tardios. 175

Todavia, não devemos negligenciar a existência de um controle territorial sólido


em uma data tão remota, e quando trazemos esses princípios atuais, são para
simplificar os seus significados em uma tentativa de compreender a composição
política da época. Claro que esse é um entendimento embasado em nosso
presente. É válido lembrar que o Estado Moderno nasceu de várias discussões
durante os séculos, e variaram das ideias de Maquiavel, Hobbes, Locke,
Rousseau etc. Na antiguidade não existia tal anseio, e talvez uma alternativa
seja pensar por esse lado; os hititas chamavam seu reino de terra de Hatti, onde
o poder era outorgado pelo deus da tempestade ao soberano; no caso do Egito,
o poder fora regulado pelo equilíbrio da Maat e na Mesopotâmia existia uma
percepção muito similar chamada de Kittum. Esses elementos são chaves para
ponderarmos algo que se aproxime da nossa idealização política conceitual
nessa era.

Seria praticamente uma tarefa hercúlea buscar uma nova interpretação dessas
instituições seguindo a cosmovisão das sociedades do Oriente Próximo, não
obstante, procurar enxergar por outra ótica como esses povos entendiam as
suas estruturas organizacionais, pode ser uma maneira de evitarmos um pouco
o pensamento estatal na alçada moderna. Como explica Marcelo Rede (2009, p.
137), a noção de Kittum consegue ser interpretada em um nível abstrato, com
origem em uma raiz que significa “ser/tornar estável”, também podendo ser
traduzido por verdade, justiça, correção e equilíbrio. Isso indica um atributo mais
geral do soberano enquanto responsável pela ordem social, exercendo essas
pujanças pelo zelo contínuo, combatendo todas as manifestações caóticas. Por
motivos de forças maiores, como por tradição historiográfica e por não existir um
empenho acadêmico rigoroso para uma compreensão mais apurada e
conceitualizada, seguimos utilizando as terminologias conhecidas como Antigo
Oriente Próximo e Mesopotâmia, no entanto, é necessário mantermos atenção
para outros tipos de nomeações.

Esse arco populacional é com frequência denominado Crescente Fértil, termo


cunhado pelo arqueólogo estadunidense James Henry Breasted, entre 1914 e
1916. Para Joaquín Sanmartín (1998, p. 12) essa denominação é problemática
e deve ser evitada na história científica por muitos motivos, sobretudo, por
misturar indevidamente culturas heterogêneas e ser alheia aos mapas mentais
autóctones, ou seja, a compreensão que tais culturas teriam os seus respectivos
habitats e suas relações com os vizinhos. Esse panorama seria inconcebível na
mentalidade dos reis babilônicos, que partiam de uma visão cruciforme do
mundo. O que chamamos de Mesopotâmia constituía um sistema geocultural em
equilíbrio relativamente estável entre quatro pontos de tensão, articulados em
dois eixos (SANMARTÍN, 1998, p.12). Eixo norte-sul, com seus polos no terceiro
milênio a.C. na Suméria (ao sul) e Acádia (ao norte). No segundo e primeiro
milênio na Babilônia (sul) e Assíria (norte). Já o eixo leste-oeste, instituídos pelo
Elam (ao leste) e a Síria (oeste).

176

Figura 2- Mapa mental babilônico das quatro regiões (Sanmartín; Serrano,


1998).

É evidente que nos finais do IV milênio começaram a aparecer simultaneamente


centros com características estatais como, por exemplo, na baixa Mesopotâmia,
Egito e Vale do Indo. Roxana Flammini (2012, p.19) comenta que a questão
estatal do mundo antigo é muito mais complexa do que aparenta ser. As mais
recentes aproximações teóricas questionam os enfoques evolucionistas que
entendem o Estado como um laço a mais em uma corrente social evolutiva, à
medida que essa conexão tende, ou deveria tender, a seguir a lógica de grupos,
tribos, líderes, Estados, onde a liderança geralmente é a confirmação da prévia
social. Apesar de todo o debate teórico complexo, essas discussões servem
mais como uma crítica e ressalva à abordagem de um tema tão delicado em um
período tão antigo. Cristina Di Bernnardis (2013, p. 17) acredita que os
historiadores concordem que essas são partes das operações metodológicas
inevitáveis para produzir uma interpretação mais ajustada possível. Mesmo que
sempre parcial, provisória, e também motivada pelos temas do nosso presente.

Essas noções precisam ser repensadas no intuito de evitar certos erros teóricos
que ainda persistem nos livros didáticos, levando a interpretações no mínimo
ultrapassadas sobre a Mesopotâmia. Por muitas vezes essas sociedades são
vilipendiadas, descritas com déspotas que oprimiam seu povo através da força
e com impostos abusivos (uma velha herança de um marxismo ortodoxo
baseado no modo de produção asiático). Pelo despotismo também eram
conquistados outros reinos, esboçando um cenário de total carnificina. A guerra
fora um fator muitas vezes ideológico no Oriente Próximo, mas a questão dos
extremos coopera com uma visão negativa e pessimista sobre o tema. Pode-se
observar uma certa dicotomia nesse aspecto entre a Antiguidade Oriental e a
Clássica, onde esses valores muitas vezes são opostos, sendo a última vista
com bons olhos e berço de todas as nossas tradições culturais.

Essa visão está em cotejo com o que Robin Osborne (2002, p. 9-10) entendeu
como um “ícone” e um “enigma” da cultura clássica grega. Ícone por sua herança
arquitetônica ser referência para o mundo ocidental, colocando a arte figurativa
no centro a exploração e a sensualidade do corpo, os dilemas e as crises que
assediam o indivíduo e a comunidade, desdobrando-se com matizes na tragédia,
na filosofia, no conceito de política como uma soma de ações determinadas
através de uma assembleia popular. Um enigma porque as cidades gregas
cresceram diferentes daquelas do Antigo Oriente; menores, mais ou menos 177
independentes, com falta de recursos básicos, fazendo os gregos se
dispersarem por todo o Egeu e Mediterrâneo, muitas vezes lutando entre si. Com
os eventos das guerras médicas em meados do século V a.C., houve uma união
da Hélade com características suficientes para os próprios gregos encontrarem
similaridades em sua cultura, diferenciando-os dos persas.

Outro problema que podemos nos deparar na historiografia sobre o Oriente


Próximo é a estereotipação, infelizmente ainda presente em certas análises que
levam aos frequentes erros que já apontamos. Thomas Hylland Eriksen (1993,
p. 22) destaca que os estereótipos surgem a priori quando dois indivíduos se
encontram pela primeira vez, enquanto as informações extraídas desse choque
estão ligadas aos componentes étnicos, primeiramente criando uma forma
“grosseira” comportamental perante os demais. Em outras palavras, com o
estabelecimento de um padrão étnico, pode-se saber o tipo de atitude nessa
relação. A premissa da ideia de Eriksen nos ajuda a entender como esses
padrões de etnicidade e alteridade geram distorções quando pessoas ou grupos
fazem um primeiro contato, absorvendo somente conceitos básicos de
determinada cultura. Os membros de cada comunidade têm ideias particulares
dos vícios e virtudes dos outros; quando tais convicções se tornam uma parcela
do “conhecimento cultural” de um coletivo, essas se transformam em uma
espécie de “guia” nas relações, nas quais podemos sublinhar como uma
preconcepção étnica. O estereótipo refere-se à criação e à aplicação consistente
de noções de padronização e de distinção cultural de um grupo, são mantidos
por camadas dominadas assim como dominantes. Espalham-se pelos meios
com grandes diferenças, quase sempre acompanhada de um violento
desequilíbrio de poder entre os grupos étnicos.

É crucial ter ciência de que os estudos e aplicações referentes ao Antigo Egito e


Oriente Próximo foram deturpados por chavões baseados no eurocentrismo,
orientalismo e outras muitas concepções equivocadas persistentes até hoje.
Todas essas contextualizações são necessárias para começarmos a pensar
novas abordagens e propostas que a literatura política atual não tem capacidade
de abranger, ou seja, novas ferramentas teóricas e outros campos humanísticos
precisam se juntar na abordagem dessa temporalidade histórica. A falta de um
rigor metodológico é um dos problemas que nos fazem patinar nesse sentido.
Como aponta Cristina de Bennardis (2013, p.18), uma grande parte das obras
publicadas no século XX não apresentam questões críticas sobre o uso de
conceitos modernos para realidades muito distantes, existindo assim o uso
demasiado de termos como “Estado” ou “império”, sem se sentir obrigada a
produzir perspectivas, nas quais se efetua inevitavelmente um deslizamento
semântico, desde às determinações modernas do sentido até a realidade
estudada. Susan Pollock (1999, p. 22) expõe que a aproximação nos estudos
mesopotâmicos de teorias como ecologia, evolução das culturas e sistema-
mundo estão preocupadas com o abstrato e o generalizável processo de
mudança cultural. Tais perspectivas foram passos importantes para livrar a
disciplina dos “grandes feitos e homens”. Ainda assim, essa ênfase em
formulações abstratas e transculturais tiveram a mesma extensão em tirar a 178
história do seu povo, deixando processos inanimados de interação sem à
benesse dos conscientes envolvimentos. Perspectivas baseadas na política
econômica e no feminismo ajudam a contrapor essas tendências, balanceando
o peso nesse processo de longa escala.

Repensando em um modelo para Mesopotâmia


Todos os pontos acima oferecem ferramentas para se pensar em um modelo
mais unitário, que aponte mais similaridades do que algo esparso e disforme.
Essa conexão que levou a esse continuum de desenvolvimento histórico na
região é crucial se quisermos mudar a percepção de como os nossos livros
abordam o tema sem cair em termos errôneos e estereotipados. Sendo assim,
toda essa problematização deve ser elaborada de acordo com metodologias
mais adequadas e em diálogo com as atuais e mais prestigiadas literaturas, esse
é um dos caminhos para melhorarmos o ensino em Mesopotâmia. Mas como
esse modelo poderia se aproximar de um molde singular com tantas entidades
culturais nesse período? Marc Van de Mieroop (1997, p.6) afirma que o problema
de continuidade e ruptura na história mesopotâmica raramente foi abordado de
forma explícita, assumindo uma realidade do campo de pesquisa com nenhuma
coerência para permitir uma delineação de identidade distinta. Inclusive uma
referência à longa duração de Braudel pode parecer elegante, mas muito
superficial. Problemas precisam ser considerados mais detalhadamente, apesar
de ser caracterizada uma existência de unidade interna nessa sociedade,
baseando-se que os invasores tentaram se integrar com estruturas existentes ao
invés de destruí-las.

É inevitável que esse problema de dispersão exista, até porque essa questão de
tentarmos entender de maneira conjunta é metódica, e mesmo que os
documentos sobre os povos mesopotâmicos sejam abundantes, está separado
por intervalos de tempo em uma grande extensão territorial. Dominique Charpin
(1995, p. 807) comenta que os historiadores que fazem um levantamento
sintético da história dos sumérios e acádios, se deparam com a dificuldade da
divisão periódica. Apesar de existir um certo consenso sobre a organização em
períodos dos três milênios que separam o surgimento da escrita na Suméria com
a chegada de Alexandre Magno. Ainda que válido, esse sistema é questionado
por privilegiar épocas que os recursos textuais são mais abundantes, separando-
as assim da “idade das trevas”, fases essas que não duraram mais que um
século e interromperam o desenvolvimento das “civilizações mais ilustres”.

Marc Van de Mieroop (1997, p. 6-7) argumenta que esse quadro de periodização
levou a história da Mesopotâmia a destacar com mais ênfase eventos políticos
e militares, em razão de serem considerados os acontecimentos mais
importantes. Essas atividades eram apenas duas dimensões da vida
mesopotâmica, e mesmo que de fato as fontes históricas mostrem evidências de
mudanças ao longo da histórica local, elas são exageradas, dado que os livros
descrevem em detalhes sucessões reais e guerras, dentro e fora do escopo
regional. Mieroop segue a ideia de que esse modelo tradicional dos estudos
mesopotâmicos leva a uma história de eventos e factual (histoire 179
événementielle). Assim temos uma longa lista dinástica baseada em tradições
nativas e em classificações modernas. As dinastias que são proeminentes nos
registros textuais receberam seu próprio período (Terceira dinastia de Ur,
Babilônica, Neo-Assíria). Outras menos documentadas foram classificadas
como: Isin-Larsa, Pós-Cassita etc. Quando o centro de poder político muda da
Acádia para Ur, ou dessa para Isin, ou um soberano persa substituiu um rei
caldeu, estabelecemos limites intransponíveis nas relações históricas.
Consequentemente não é investigado se essas transições de controle dinástico
foram de crucial importância. A prática de caracterizar os estudos econômicos,
legais, sociais, literários e religiosos dentro de um quadro temporal da realeza,
aumentou ainda mais a importância dos eventos políticos. Assim a sociedade
acádia, por exemplo, é investigada isoladamente de situações que a sucederam
ou a precederam. O resultado da periodização é falho, ao invés de reconhecer
padrões de continuidade, ele designa instabilidade e mudança. E essa
fragmentação se torna ainda mais errônea quando aspectos da Mesopotâmia
não diretamente dependentes da sorte da Casa Real são estudados.
(MIEROOP, 1997, p. 7).

É um problema recorrente deixar de pontuar os estágios mesopotâmicos, pois


quase sempre acabamos destacando um ou outro tema característico dos povos
que ali coexistiram. O que deve ser evitado é uma justaposição de uma
“civilização” sobre a outra, por uma suposta superioridade cultural, ou avanços
tecnológicos isolados. A ideia é destacar um espaço em constante
transculturação, sofrendo simbioses e adaptando características gerais em focus
culturais particulares. Nas palavras de Gonzalo Rubio (2005, p. 8), a história e
cultura mesopotâmica devem ser entendidas como uma rica tapeçaria, cujas
variáveis fios estendiam-se ao longo de um período de mais de três milênios,
com uma variedade geográfica na qual era pontuada continuamente por
interações com outras áreas. Para Leo Oppenheim (1977, p. 35), as repetidas
fusões das sociedades mesopotâmicas foram construídas em diversas
camadas, nas quais essas situações emprestavam conceituações e
reinterpretações de tradições que foram lançadas em moldes familiares e
ajustadas para se encaixarem em uma gama de expressões consideradas
adequadas, seja no campo da economia, sociedade, vida política, teologia e
literatura. Essas articulações ao longo de sua existência, representam uma
amalgama de diversas tensões.

Observamos assim que todas essas interpretações estão no bojo acadêmico e


muito distantes do processo de ensino-aprendizagem, todavia é necessário que
esses tentáculos teóricos comecem a atingir esse domínio. O ensino de História
deve consultar, se atualizar e ampliar as perspectivas sobre o Antigo Oriente
Próximo e Mesopotâmia. A ideia é nos desvencilharmos dos estereótipos,
misticismos, orientalismo e formulações deturpadas que muitos livros ainda
insistem, devemos tentar abordar em sala de aula que essas sociedades não
eram ilhas fragmentárias em uma linearidade histórica, mas sim uma união
milenar, que envolveu um continuum cultural envolvendo tradições
socioculturais, intelectuais e tecnológicas. 180

Referência biográfica
Leonardo Candido Batista, Mestre em História Social pela UEL.

Referências bibliográficas
ALGAZE, Guillermo. Ancient Mesopotamia at the Dawn of Civilization. The
Evolution of an Urban Landscape. Chicago. The University of Chicago Press,
2008.

BEAUJARD, Philippe. Evoluciones y Delimitaciones Temporales de sistemas-


mundo de la Edad del Broce en Asia Occidental y Mediterráneo. In: FLAMINNI,
R.; MANUEL TEBES, J. (orgs). Interrelaciones y Identidades Culturales en el
Cercano Oriente Antiguo. Buenos Aires: Juan Manuel Tebes – 1a ed – Ciudad
Autónoma de Buenos Aires: IMHICIHU – Instituto Multidisciplinario de Historia y
Ciencias Humanas, Libro Digital, 2016.

BENNARDIS, Cristina Di. La Centralización del Poder Político y el Estado en


las Sociedades antiguo-orientales: reflexiones sobre teorias e interpretaciones.
In: BENNARDIS, Cristina di; RAVENNA, Eleonora; MILEVSKI, Ianir (eds.).
Diversidad de formaciones políticas en Mesopotamia y el Cercano Oriente:
Organización interna y relaciones interregionales en la Edad del Bronce.
Barcelona: Publicacions i Edicions de la Universitat de Barcelona, 2013.

CHARPIN, Dominique. The History of Ancient Mesopotamia: An Overview. In:


SASSON, J. (org). Civilizations of the Ancient Near East, vol 1. New York:
Simon and Schuster Macmillan, 1995.

ERIKSEN, T.H. Ethnicity and Nationalism: Anthropological Perspectives.


London: Pluto
Press, 1993.

LIVERANI, Mario. El Antiguo Oriente: Historia, Sociedad y Economía.


Barcelona: Crítica,
1995.

MAIER, John. The Ancient Near East in Modern Thought. In: SASSON, J.
(org.). Civilizations of the Ancient Near East, vol 1. New York: Simon and
Schuster Macmillan, 1995.

MARGUERON, Jean-Claude. Los Mesopotámicos. 2ª edición. Madrid: Cátedra,


2013.
MIEROOP, M.V. The Ancient Mesopotamian City. New York: Oxford University
Press,
1997.

MILANO, Luciano. Il Vicino Oriente Antico: Dalle Origini ad Alessandro Magno. 181
Milano: Encyclomedia Publishers, 2012.

OPPENHEIM, Leo. Ancient Mesopotamia: Portrait of a Dead Civilization. 2nd


edition.
Chicago: The University of Chicago Press, 1977.

OSBORNE, Robin. La Grecia Clássica 500-323 a.C. Barcelona: Crítica, 2002.

POLLOCK, Susan. Ancient Mesopotamia: The Eden that Never Was.


Cambridge: Cambridge University Press, 1999.

POSTGATE, Nicholas. La Mesopotamia Arcaica: Sociedad y Economía en el


Amanecer de la Historia. Madrid: Akal, 1999.

REDE, Marcelo. O “Rei da Justiça”: Soberania e Ordenamento na Antiga


Mesopotâmia.
PHOÎNIX, v. 15/1, Rio de Janeiro, 2009, p. 135-146.

ROAF, Michael. Cultural Atlas of Mesopotamia and Ancient Near East. New
York: Facts on File, 1990.

RUBIO, Gonzalo. From Sumer to Babylonia: Topics in the History of Southern


Mesopotamia. In: MARK, W. Chavalas (org). Current Issues in the History of
the Ancient Near East. Claremont: Regina Books, 2007.

SAID, Edward. Orientalismo: O Oriente como invenção do Ocidente. São


Paulo: Companhia das Letras, 2003.

SANMARTÍN, Joaquín. El Oriente Próximo Asíatico: Mesopotamia y sus Áreas


de Influencia. In: Joaquín Sanmartín y José Miguel Serrano (orgs). Historia
Antigua del Oriente Próximo: Mesopotamia y Egipto. Madrid: Akal, 1998
ENSINO DE PRÉ-HISTÓRIA E AS AÇÕES DO MUSEU
DE ARQUEOLOGIA DA UFMS DURANTE A PANDEMIA
DE COVID 19 – PARTE 2
Lia Raquel Toledo Brambilla Gasques e Laura Roseli Pael
182
Duarte

Neste ano, 2021, o debate para a definição de museu elaborada pelo ICOM
(Conselho Internacional de Museus) está em revisão. Espelhos e laboratórios do
nosso contexto social, os museus e locais patrimoniais devem estar atentos às
principais características da sociedade do século XXI definidas por Anico (2005,
p. 84) como uma sociedade plural, multivocal, fragmentada, consequência de um
conjunto de fatores que englobam os processos de descolonização, a criação de
blocos supranacionais, o crescimento do turismo e o desenvolvimento de um
sistema econômico à escala global, entre outros, um contexto que proporciona
uma multiplicidade de possibilidades para a sua adaptação, transformação e
imaginação.

Cada desafio encontrado, incita aos profissionais da área de museus a


questionarem o que está sendo feito, assim se aproveita o “fechamento das
instituições” e se revê o que quer passar de informação, se revê a organização
e funcionamento das instituições e a repensa sobre a missão dos museus, que
nem sempre tem resultados óbvios e acompanha o fluxo da sociedade, gerando
tensões entre as referências tradicionais e as mudanças e adaptações da
atualidade.

Falar da relação íntima entre ações culturais e educativas nas instituições


museológicas e a formação de público visitante nunca parece ser demasiado.
Em que pese a existência de farta publicação de artigos resultantes de pesquisas
nessa área, há sempre uma novidade em cada instituição, quer seja em razão
do tipo de acervo, quer seja por imaginação criativa das equipes ou ainda por
associar essa criatividade com maior quantidade de recursos financeiros,
humanos e materiais. O museu, o palco do espetáculo, tem como protagonista
seus artefatos que são instrumentos para a educação patrimonial. Cabral (2002,
p. 23) diz que se o patrimônio é terreno em construção, fruto de eleição, campo
de combate, espaço de relações humanas, é também “meio de comunicação e
campo de educação”, podendo e devendo ser objeto de ações educativas que
contribuam para a mudança social por “ensinar a pensar criticamente,
fornecendo os instrumentos básicos para o exercício da cidadania”. Mas, como
exibi-los/socializá-los se as pessoas não podem chegar até eles?

É notório que o museu tem o papel de informar e educar por meio de exposições
permanentes, atividades recreativas, multimídias, teatro, vídeo e laboratórios. É
o espaço ideal para despertar a curiosidade, estimular a reflexão e o debate,
promover a socialização e os princípios da cidadania, e colaborar para a
sustentabilidade das transformações culturais. Mas, em tempos de pandemia
como cumprir sua função?

Em meados de março, museus de todo o Brasil, e do mundo fecharam suas


portas à medida que a implantação de quarentena avançava pelo planeta. Com
mostras, exposições e projetos programados para o ano todo, esses espaços 183
precisaram implantar planos emergenciais para continuar na ativa mesmo com
as portas fechadas. O imprevisto fez com que o acervo disponível na internet
aumentasse logo na sequência para continuar em funcionamento, mesmo que à
distância. O MuArq – UFMS que atendia diariamente turistas e
escolas/universidades públicas e privadas de Mato Grosso do Sul, também
fechou suas portas e teve que reinventar-se diante da situação. Assim neste
artigo apresentamos as atividades desenvolvidas nestas circunstâncias,
principalmente, com foco no Ensino de Pré-História para os estudantes de nível
superior da UFMS e para a formação continuada dos docentes da Rede Básica
de Ensino de Mato Grosso do Sul.

Breve trajetória do MuArq / UFMS e suas principais realizações no campo


do Ensino de Pré-História em 2020
O MuArq – Museu de Arqueologia da UFMS – é uma UAP ligada ao gabinete da
Pró-Reitoria de Extensão, Cultura e Esporte – PROECE. Possui sua exposição
de Longa Duração, no Memorial da Cidadania e Cultura Apolônio de Carvalho
no 1º andar montada no local desde 19 de maio de 2008. A sua gestão se remete
ao Prof. Dr. Gilson Rodolfo Martins, fundador, depois sendo gerido pela Prof.
Dra. Emília Kashimoto até 2019. Atualmente, o museu é coordenado pela
arqueóloga Lia Raquel Toledo Brambilla Gasques (Técnica Lab. de
Arqueologia – UFMS) e tendo o setor educativo coordenado pela
antropóloga Laura Roseli Pael Duarte (Técnica Lab. de Arqueologia – UFMS)
e pelo Prof. Dr. Carlos Eduardo da Costa Campos (docente – UFMS) como
responsável pelo setor de pesquisa e extensão.

Há também ações de Educação Patrimonial (Arqueologia de MS) e uma reserva


técnica com mais de 250 mil peças de arqueologia, em boa parte Pré-Históricas,
uma biblioteca e duas áreas lúdico pedagógicas, todas encontradas neste
espaço (MARTINS; KASHIMOTO, 2012). Em virtude do contexto pandêmico, no
ano de 2020, surgiram questões sobre como tornar nosso material acessível
para a comunidade. Desse modo apresentaremos nosso relato de experiência
sobre ações que foram desenvolvidas visando assegurar a democratização das
informações para todos.

Nossa primeira ação foi intensificar a coleta de dados para alimentação na Base
de dados Samburá (2020), que foi desenvolvido por Lia Raquel Toledo
Brambilla Gasques e Ricardo Brambilla Gasques e alimentado pelos dados
obtidos pelos projetos de nossa equipe. Afinal, tal suporte de informação pode
ser entendido como o registro de informações em materiais, com as ações,
rotinas e conhecimentos do homem criados desde seus primórdios. Esses
suportes são produzidos com o objetivo de transmitir os pensamentos,
expressões do indivíduo para as futuras gerações. Nesse contexto destaca-se a
função relevante dos vestígios arqueológicos no resgate da memória social e
sua utilização no ensino de Pré-História. Para esse fim, o MuArq criou um
sistema de informação que permite integrar todo o processo de pesquisa
arqueológica, realizada pela equipe do MuArq, obtida no Mato Grosso do Sul e
a disponibilização destes dados para escolas, academia, profissionais liberais e 184
órgãos do governo municipal, estadual e federal auxiliando os trabalhos e
pesquisas destes e no ensino de Pré-História. A Base de dados Samburá
permitirá o registro, armazenamento e exploração de informações
arqueológicas, bem como seu cruzamento, proporcionará uma direta conexão
com a cartografia, a fim de facilitar a posterior interpretação e publicação dos
resultados. A visualização do cenário de ocupação arqueológica em Mato
Grosso do Sul, ficará cada vez mais visível e para que este sistema de
informação seja consistente. Como são muitos dados e mais de 250 mil peças
armazenadas na reserva técnica deste museu, a equipe, contando com
estagiários da Geografia e História, fizeram o tratamento, processamento e
cadastro de parte dos dados arqueológicos de nossa reserva, no ano de 2020.

Fig. 1 – Base de Dados Samburá

Pensando em socializar, treinar e capacitar discentes da UFMS, o MuArq através


do plano do seu plano de biossegurança, selecionou 8 para essa atividade de
produção de dados. Assim, a equipe coordenadora realizou uma capacitação,
em 4 partes, com 2 horas de duração, totalizando 8 horas, sob o tema Introdução
à Arqueologia (julho e agosto de 2020). Nesta formação foram repassados
conhecimentos como definição de arqueologia, metodologias utilizadas, noção
de legislação IPHAN para empreendimentos que exijam serviços arqueológicos
e práticas de salvaguarda.
185

Fig. 2 - Minicurso introdução à Arqueologia – MS (2020)

Uma forma que encontramos para chegarmos na comunidade interessada em


Pré-História e Arqueologia foi o uso das redes sociais e canais de comunicação
/ transmissão. Dessa maneira, a equipe do MuArq elaborou o canal do youtube
denominado de Canal MuArq - Museu de Arqueologia da UFMS. Em tal
plataforma foi possível dialogarmos com nossa comunidade universitária e da
rede básica de MS. Dessa maneira, elaboramos o Conversas Museológicas.
Nesse sentido, o primeiro versou sobre Pré-História e Antiguidade Grega, O que
os mortos revelam sobre os Vivos – arqueologia funerária e o conhecimento das
sociedades do passado com a Profa. Dra. Camila Diogo de Souza (UFF), em
julho de 2020.
Fig. 3 – Banner do Conversas Museológicas com o arqueólogo Zafenathy
Carvalho de Paiva – IPHAN / MS.

Caminhando para a Pré-História de MS, outra ação que desenvolvemos foi o


episódio número dois do Conversas Museológicas, que trouxe como convidado
o Arqueólogo Fiscal do IPHAN - MS Zafenathy de Paiva. Este, além de 186
apresentar a comunidade acadêmica e público em geral a função do IPHAN
(Instituto do Patrimônio Histórico e Artístico Nacional), diante dos licenciamentos
arqueológicos e descobertas do tema, fez um histórico da trajetória do instituto
na região e uma apresentação sobre os principais trabalhos de arqueologia
realizados na região de MS (bacias do Paraguai e Paraná). A apresentação foi
realizada com a ajuda de Power point e ao final, os alunos da UFMS e outras
instituições puderam fazer questionamentos.

Outro projeto que foi realizado entre a SEMED-CG Secretária Municipal de


Educação de Campo Grande - MS e o MuArq, no de 2020 foi a gravação de um
documentário sobre o Museu e sua exposição para os alunos do ensino
fundamental. A equipe gravou tais conteúdos em duas partes de 45 minutos de
duração, assim apresentando: o museu, a Arqueologia Pré-Histórica e de MS,
assim como os conteúdos de Educação Patrimonial que são praticados pela
equipe para os professores e discentes da rede básica de ensino. Tais
documentários serão exibidos a partir de 25 de maio de 2021, às sextas-feiras
no canal da TV REME, canal 4.2, e também disponibilizados no Youtube do
MuArq – UFMS.

Fig.4. Gravação da equipe do MuArq para a TV REME (outubro de 2020)

Ainda que os avanços tecnológicos permitam cada vez mais acesso a recursos
como descrição por áudio, a difusão do Braile revolucionou a vida de quem não
enxerga, pois abriu caminho para a inclusão e a compreensão do mundo. O
MuArq pensando em deixar a exposição mais acessível, buscou elaborar folhas
de explicação das vitrines em Braile, cujas 12 folhas, que foram impressas pela
biblioteca Estadual Isaías Paim e escritas pelo professor do método, João
Tavares, fornecem acessibilidade sobre nossas legendas para pessoas com
deficiência visual. Além deste material, foi criada uma caixa com 5 peças lito-
cerâmicas para que as pessoas possam ter uma experiência tátil, sentindo as
marcas de lascamento e polimento das peças líticas e texturas das cerâmicas
pré-históricas.
187

Fig. 5- Produção de textos em Braile explicando à Exposição – Parceria


com a Biblioteca Estadual Isaias Paim

Em suma, os museus são especialmente desafiados neste momento. Os


museus, e nisto incluímos o MuArq, ainda não desenvolveram o equivalente
virtual ao que fazem no mundo real, que é oferecer espaço para as pessoas se
reunirem na presença de perspectivas profundamente diferentes das suas.
Entretanto, esse desafio vem sendo superado a cada dia. A experiência de
acesso aos museus, segundo o IBRAM, Instituto Brasileiro de Museus, reflete
em suas ações e a bens culturais digitalizados e esta se tornou, mais que em
outros momentos, indispensável em 2020/21 devido ao momento pandêmico.
Trata-se de um processo, que atinge o setor de exposições cujo processo de
assimilação de novas práticas e usos foi intensamente acelerado pela pandemia.
Com o isolamento social, o trabalho dos museus se voltou para o mundo virtual,
mas com as portas fechadas.

Dessa forma, buscamos criar ações que possibilitassem, dentro do plano de


biossegurança da UFMS, levar o conhecimento científico sobre Pré-História para
toda comunidade interessada. Logo, apresentamos uma parcela de nossas
atividades e questões que foram vivenciadas em 2020, assim pautando o Ensino,
Pesquisa e Extensão como partes fundamentais para a democratização do saber
universitário.

Referências biográficas
Lia Raquel Toledo Brambilla Gasques é mestra e doutoranda em Arqueologia
Pré-Histórica pela Universidade de Barcelona – Espanha. Coordenadora e
Técnica lab. de Arqueologia do MuArq / UFMS.

Laura Roseli Pael Duarte é mestra em antropologia pela UFGD e doutoranda no


Programa de Mestrado em Ensino de Ciências - Linha Educação Ambiental, na
UFMS. Responsável pelo setor educativo e Técnica lab. de Arqueologia do
MuArq / UFMS.

Obs.: O texto e as atividades, aqui apresentados, foram realizados pelas autoras


com o Prof. Dr. Carlos Eduardo da Costa Campos, docente da UFMS e membro
do Museu de Arqueologia da UFMS. Dessa forma, devido às limitações de
autores, tais textos foram divididos, porém integram a mesma equipe.
Referências bibliográficas
ANICO, Marta. A pós-modernização da cultura: património e museus na
contemporaneidade. Horiz. antropol., Porto Alegre, v. 11, n. 23, pág. 71-86,
junho de 2005. Disponível em:
<http://www.scielo.br/scielo.php?script=sci_arttext&pid=S010471832005000100 188
005&lng=en&nrm=iso>. acesso em 03 de março de 2021.
https://doi.org/10.1590/S0104-71832005000100005 .

CABRAL, Magaly. Comunicação, educação e patrimônio cultural. Texto


apresentado no Fórum Estadual de Museus do RS. Inédito. Rio Grande, 2002.

MARTINS G. KASHIMOTO E. 12.000 anos: Arqueologia do povoamento


humano no nordeste de Mato Grosso do Sul. Campo Grande: FCMS/Ed. Life,
2012.

ORIÁ, R. Memória e ensino de História. In: BITTENCOURT, Circe. [Org.]. O


saber histórico na sala de aula. São Paulo: Contexto, 2004.

PACHECO, M. L. A. F. et al. ―Concepção de estudantes de 8ª série de


escolas públicas e particulares sobre conceitos e aplicabilidades de
arqueologia na conservação de sítios arqueológicos de Mato Grosso do Sul‖.
In: Anais VII Encontro de História de Mato Grosso do Sul, Universidade
Católica Dom Bosco, n.7, setembro, 2004.
O DECLÍNIO DA FIGURA DO SOLDADO CIDADÃO
ROMANO E O AUMENTO DA ATIVIDADE
COMERCIAL COMO UM ESTIMULANTE AO
CRESCIMENTO DE ROMA
189
Luciano Araujo Monteiro

Introdução
O objetivo deste estudo está em fazer uma análise do desenvolvimento
comercial romano, ao ter por base a visão do jurista Cícero (romano) tendo em
vista que, paralelamente, houve a diminuição de um contingente armado
valorizado por este advogado, conhecido por soldado cidadão, que, embora não
fizesse parte de um exército regular, este personagem atuava em momentos de
crise, com o intuito de defender as fronteiras de Roma, tendo por recompensa o
espólio obtido junto aos povos vencidos. Um fato que tornava esse personagem
mais leal ao seu general que permitiu tal ação do que ao próprio Senado
Romano. Conforme afirma Kenneth Minogue:

“Os romanos pensavam na sua cidade como uma família e no seu fundador
Rômulo como o ancestral comum a todos. [...] Enquanto os gregos foram teóricos
brilhantes, inovadores, os romanos foram agricultores-guerreiros sérios e
prudentes [...]” (MINOGUE, 2008, p. 29-30).

Para tornar este estudo possível também foram utilizadas análises do já falecido
historiador Moses I. Finley, estabelecendo um contraponto com o conhecimento
divulgado na obra didática: “Projeto História Araribá – 5ª série”. Trata-se de uma
obra que compõe um conjunto de quatro livros escolares, produzidos com
utilização de dinheiro público, com intuito de atender as diretrizes do Programa
Nacional do Livro Didático (PNLD: 2008, 2009, 2010), contudo, o material voltado
à quinta série foi o escolhido como fonte de análise por trabalhar a Antiguidade
Clássica no processo de ensino e aprendizagem de História.

Este trabalho tem por objetivo refletir sobre a seguinte inquirição: -Por que
Cícero faz um contraponto entre os lados bom e ruim do comércio?

Também é um objetivo adicional apresentar alguns aspectos que caractezaram


o modelo de escravidão romana.

A questão militar e o avanço comercial


O livro II de: “Da República” é uma obra atribuída a Marco Túlio Cícero,
personagem histórico que viveu entre 106 a.C. e 43 a.C. Dentre suas atribuições,
podemos destacar as funções de: filósofo, orador, escritor, advogado e político.
Cícero viveu no contexto da crise da República Romana (momento em que
existiu forte aversão, por parte dos romanos, das ideias monárquicas), chegando
a acompanhar o período do Primeiro Triunvirato, formado por Júlio César,
Pompeu e Crasso, ou seja, momento em que Roma é governada por três
generais.

O trecho de sua obra, escolhido como objeto de análise, aborda questões


positivas e negativas relacionadas ao comércio marítimo, realizado por Roma.
Seu texto fala das mudanças provocadas pelo comércio marítimo, pois, se por 190
um lado houve a troca de produtos e de linguagem entre diferentes povos, por
outro, existiu a alteração dos costumes locais, conforme mostra a citação:

“São também frequentes, nas cidades marítimas, a mudança e a corrupção dos


costumes, pois os idiomas e comércios estranhos não importam unicamente
mercadorias e palavras, mas também costumes, que tiram estabilidade às
instituições dessas cidades” (CÍCERO, Da República, II, 4).

Este autor faz uma crítica aos negócios marítimos, devido ao desejo de
enriquecimento dos cidadãos romanos, lembrando que estes passaram a deixar
de lado a preocupação de defender a cidade contra qualquer invasão. Desse
modo, a imagem do soldado cidadão passou a perder força, assim como a
necessidade de cultivar os campos. Com base na defesa, realizada por este
político, justificando a importância da existência do soldado cidadão, torna-se
imperativo lembrar que Cícero foi influenciado intelectualmente por Políbio
(historiador grego que viveu entre 203 a.C. - 120 a.C.), sendo que este expôs
em sua obra: “História”, a importância desse comprometimento do homem de
Roma, em tempos de guerra, estabelecendo um contraponto entre as tropas
cartaginesas, compostas por mercenários e as romanas, constituídas por nativos
da cidade. Enquanto estas lutavam com tremenda determinação para expulsar
o inimigo, aquelas se comportavam de forma contrária:

“Quanto às diferenças de detalhes, como, para começar, a conduta na guerra,


os cartagineses são naturalmente muito superiores no mar, seja em eficiência,
seja em equipamento, pois a navegação era de longa data sua ocupação
nacional, e eles se dedicam às atividades náuticas mais que qualquer outro povo;
quanto ao serviço militar em terra, todavia, os romanos são muito mais
experientes, pois eles dedicam realmente todas as suas energias a praticá-lo,
enquanto os cartagineses descuidam-se da infantaria embora deem alguma
atenção à cavalaria. A causa disso é que as tropas empregadas são constituídas
de estrangeiros servindo como mercenários, ao passo que as dos romanos se
compõem de habitantes de seu território e de cidadãos. Sendo assim, também
a esse respeito devemos afirmar que o sistema político dos romanos é superior
ao de Cartago, porquanto os cartagineses dependem sempre de forças
mercenárias para a preservação de sua liberdade, enquanto os romanos contam
com seu próprio valor e com a ajuda de seus aliados. Consequentemente,
mesmo quando de início sofrem um revés os romanos se reabilitam da derrota
com uma vitória final, ao passo que com os cartagineses acontece o contrário.
Os romanos, combatendo por sua pátria e por seus filhos, nunca podem deixar
arrefecer o seu ardor marcial, e lutam continuamente com todo o seu ânimo até
sobrepujar o inimigo. A consequência dessa diferença é que, embora, como eu
já disse, os romanos sejam menos experientes em assuntos navais, eles são
geralmente bem-sucedidos no mar graças à bravura de seus homens, pois
apesar de o preparo nas atividades navais ser importante, e não pouco, é
principalmente a coragem dos marinheiros que faz a balança pender para a
vitória” (POLÍBIO, História, VI, 1996, p. 344).
191
Minogue também aborda em seus estudos o desvirtuamento dos costumes
romanos, à medida que Roma prosperava:

“Naqueles tempos iniciais, predominava o amor pela pátria, mas aos poucos o
sucesso e a riqueza começaram a corromper os romanos, que então caíram sob
o domínio de formas despóticas de ordem que antes achavam repugnantes. A
virtude e a liberdade declinaram juntas. Foi a literatura romana, especialmente a
obra de Cícero, que persuadiu posteriormente os europeus de que a virtude era
a condição da liberdade” (MINOGUE, 2008, p. 34).

Ao pensar no ensino de História, o livro didático analisado nos apresenta, de


forma resumida, que o regimento era composto, em sua maioria, por pequenos
agricultores, sendo que, os postos de comando eram ocupados por membros do
patriciado, ou seja, da elite agrária, assim como menciona: “A obrigação do
serviço militar estendia-se dos 17 aos 46 anos de idade e uma das maiores
recompensas era o espólio obtido nas guerras. Somente em 111 a.C., o exército
passaria por grandes modificações” (PROJETO ARARIBÁ HISTÓRIA, 2006, p.
187). Trata-se de um momento em que Roma começou a criar exércitos
regulares e profissionais, a fim de dar prosseguimento ao seu expansionismo
territorial, sendo que, seus membros passaram a receber uma remuneração fixa.

Marco Túlio Cícero expõe seu descontentamento com a decisão tomada pelo
governo de Roma de extinguir a figura do soldado cidadão, ao mesmo tempo em
que este jurista enfatiza que o comércio levava as pessoas à preguiça, todavia,
Cícero também deixa explícita a ocorrência de certo dinamismo na cidade, por
apresentar a importância da importação e da exportação, utilizando Rômulo
como exemplo, que fundou Roma junto ao rio Tibre. Desse modo, a posição
geográfica da cidade de Roma surge como um forte estimulante às trocas pelo
mar, como podemos constatar na citação abaixo:

“Que pôde fazer, pois, que Rômulo aproveitasse todas as vantagens das cidades
marítimas, evitando ao mesmo tempo seus perigos? Construiu sua cidade nas
margens de um rio cujas águas profundas se esparramam no mar por uma larga
desembocadura, procurando assim uma comunicação fácil no curso do rio Tibre,
não só para proporcionar ao novo povo tudo quanto necessitava, como também
para levar para longe o que tivesse de mais; uma rota natural para tirar do
Oceano todos os objetos necessários ou agradáveis à vista e fazê-los chegar às
regiões mais afastadas” (CÍCERO, Da República, II, 5).

Embora Roma tivesse sido fundada nas proximidades do rio Tibre, era preciso
que houvesse o controle do comércio através do mar Mediterrâneo. Fato que
culminou no conflito bélico entre Roma e Cartago, cidade fundada por Fenícios.
Mesmo este episódio sendo primordial, por marcar a vitória romana e o grande
expansionismo desse Estado, ele é mencionado de forma resumida, ocupando
apenas uma página no livro didático analisado, o que pode diminuir sua
importância perante o aluno menos atento (PROJETO ARARIBÁ HISTÓRIA,
2006, p. 188). 192

A escravização imposta pelos romanos


Salvioli defende a ideia de que o escravo romano foi à primeira mercadoria a ser
comercializada (FINLEY, 1991, p. 46). A obra de Finley também menciona a
existência dos “companheiros de trabalho”, expressão que se refere ao serviço
realizado em conjunto, isto é, entre o proprietário e o cativo, lembrando que
aquele tirava seus rendimentos por meio do próprio trabalho, além de parte do
ganho que seria destinado a seu escravo e que não deixava de ser um
dinamizador da economia romana. Ademais, a escravidão, apesar de ser um
regime que envolvia altos custos, era propiciada pela existência de fontes de
abastecimento. Além disso, na Antiguidade Clássica, não houve o aspecto da
cor, que diferenciava o cativo de seu senhor. Ao contrário da época Moderna, no
contexto da escravidão indígena e africana. Assim, após duas gerações, o
estigma da escravização Antiga desaparecia perante os descendentes de
pessoas que foram submetidos a ela, marca que continuava com os
afrodescendentes (FINLEY, 1991). Todavia, ao voltarmos para a análise da obra
didática escolhida, torna-se notória uma contradição, pois, se por um lado é
transmitida no texto didático a existência de muitos escravos, adquiridos como
prisioneiros de guerra (PROJETO ARARIBÁ HISTÓRIA, 2006, p. 190), por outro
ponto, é apresentada na mesma página uma breve afirmação, destacada num
boxe: “Essa perspectiva tem sido hoje revista. No caso do Império Romano,
estudos recentes têm mostrado que a escravidão foi predominante apenas em
algumas regiões (sobretudo na Península Itálica)” – (PROJETO ARARIBÁ
HISTÓRIA, 2006). Embora essa informação esteja em destaque, não há menção
às referências bibliográficas ou fontes utilizadas para dar embasamento a esta
ideia, dificultando a existência de atividades práticas, como a de leituras
complementares ou maiores problematizações dessa questão em discussões
em sala de aula, lembrando que essa afirmação também não foi trabalhada nos
exercícios propostos.

Ademais, no mesmo livro didático é mencionada a constituição de fazendas


voltadas para a produção de vinho e azeite (PROJETO ARARIBÁ HISTÓRIA,
2006, p. 189), tendo em sua base o trabalho escravo, no processo de expansão
das fronteiras de Roma, sendo estas construções um empreendimento caro.
Contudo, não destaca a existência de regiões de influência, como o Egito, que
era um grande fornecedor de trigo para a cidade de Roma.

Na obra “Projeto Araribá História” há a afirmação: “Os escravos exerciam


diferentes ofícios: trabalhavam nas plantações, nas minas e nas atividades
urbanas” (2006, p. 190). Entretanto, essa simples afirmação apenas faz o leitor
pensar no trabalho braçal, um ponto a se questionar, visto que, dependendo da
condição social que o cativo possuía entre seu povo, este poderia obter posição
de confiança junto à elite romana, como, por exemplo, de professor para filhos
dos governantes de Roma.

A questão da escravidão, analisada pelo historiador Moses I. Finley, existente na


Antiguidade, nos mostra que, diferentemente do que ocorreu na época Moderna, 193
não era definida pela cor da pele, isto é, a figura do branco como pessoa livre e
de negros ou indígenas como cativos. Embora não seja um objetivo fazer uma
análise profunda do regime escravista entre os gregos e romanos não podemos
desconsiderar que esse modelo de produção também foi um estimulante às
práticas comerciais nessas duas sociedades, tanto que, Finley nos afirma que
há historiadores do século XX que atribuem o declínio da Antiguidade ao fim da
escravidão (FINLEY, 1991). Este historiador reforça a figura do cativo como
mercadoria:

“Foi tão somente com o desenvolvimento do capitalismo que o trabalho


assalariado surgiu como a forma característica de trabalho para outrem. A força
de trabalho tornou-se, então, uma das principais mercadorias à venda. No caso
da escravidão, ao contrário, a mercadoria é o próprio trabalhador” (FINLEY,
1991, p. 70-71).

A questão do escravo como mercadoria só seria mudada em caso de concessão


da liberdade, por parte do senhor. Contudo, essa manumissão só era estendida
aos filhos de ex-cativos, nascidos após esse ato de libertação (FINLEY, 1991, p.
77). Todavia, em análise mais recente é exposto o fato de que o cativo romano,
assim como o escravo ateniense, poderia comprar a própria liberdade, embora
houvesse restrições para que o ex-cativo atuasse na esfera pública:

“O Império Romano foi uma das sociedades antigas onde a utilização da mão de
obra escrava teve sua mais significativa importância. Em geral, os escravos
trabalhavam nas propriedades dos patrícios, grupo social romano que detinha o
controle da maior parte das terras cultiváveis do império. Assim como em Atenas,
o escravo romano também poderia exercer diferentes funções ou adquirir a sua
própria liberdade. A única restrição jurídica contra um ex-escravo impedia-o de
exercer qualquer cargo público” (SOUSA, S/D).

Considerações finais
Como um pensador político, é possível perceber que Cícero compreendia muito
bem o papel estratégico ocupado pelas trocas marítimas, contudo, essas
vantagens não poderiam superar as tradições que prendiam o cidadão romano
ao compromisso, tanto de trabalhar no campo quanto na defesa da cidade, pois,
ao ter como referência Políbio, é possível notar o papel estratégico realizado pelo
soldado cidadão, que não agia movido pela ganância, mas pelo desejo de
defender sua família ou seus semelhantes.

Assim como Cícero apresentava os prós e contras nas práticas comerciais,


Moses Finley, com base em suas referências, nos mostra a escravidão romana
como um mecanismo necessário, pois este historiador faz menção ao
posicionamento de Mommsen, por ele considerar a escravidão como essencial
ao desenvolvimento de Roma, contudo, criticava-a moralmente (FINLEY, 1991,
p. 37). Moses Finley nos fala sobre a existência das redes de abastecimento. A
partir disso, é possível pensar que essas redes poderiam ser alcançadas por via
marítima, ou seja, durante o processo de expansão de Roma, tendo como uma 194
importante via de acesso o mar Mediterrâneo, a fim de obter escravos ou
gêneros alimentícios essenciais para a manutenção da vida do povo romano,
como o trigo, proveniente do Egito.

Na obra: “Projeto Araribá História” foi apresentado, de forma resumida, os


principais acontecimentos da história de Roma, ao situar sua transição de
República para Império e algumas consequências do regime escravagista, como
as revoltas de escravos, que não foram alvo de pesquisa dado o escopo da
análise apresentada na introdução deste texto.

Conforme foi dito anteriormente, a escravização romana não era estabelecida


pela cor da pele, porém, estabeleceu-se pela dominação forçada, por meio de
um exército que passou a ser constituído de forma regular e profissional. Desse
modo, expansões territoriais e comerciais caminharam juntas, culminando no
aumento da importância de Roma na Antiguidade como uma potência
escravagista.

Referências biográficas
Luciano Araujo Monteiro é aluno, vinculado ao programa de mestrado
acadêmico, pelo Departamento de História da UNIFESP. Graduado em História,
com certificação em Patrimônio e pós-graduado em Gestão Pública pela mesma
universidade. É autor do livro: “As múltiplas visões de um historiador”. Contatos:
lucianoaraujomonteiro@yahoo.com.br; lucianoaraujomonteiro@gmail.com.

Referências bibliográficas
BRASIL. Projeto Araribá História (5ª série). São Paulo: Editora Moderna, 2006.

CÍCERO, Marco Túlio. Da República. Tradução de: Amador Cisneiros. Ediouro.


5ª Ed. S/D. p. 59-87.

FINLEY, Moses I. Escravidão Antiga Ideologia Moderna. Rio de Janeiro: Ed.


Graal, 1991.

MINOGUE, Kennety. Política: uma brevíssima introdução. Rio de Janeiro:


Zahar, 2008.

POLÍBIO. História. Seleção, tradução, introdução e notas de Mário da Gama


Kury. Brasília: Editora UnB, 2ª Ed. 1996. p. 325-349.
SOUSA, Rainer Gonçalves. Escravidão na Antiguidade Clássica, S/D.
Disponível em: https://mundoeducacao.bol.uol.com.br/historiageral/escravidao-
na-antiguidade-classica.htm (acesso: 10 mai. 2020)

195
ENSINO DE PRÉ-HISTÓRIA: SINGULARIDES E
ASPECTOS FUNDAMENTAIS
Luciano Marcos Curi e Ana Carolina Pires das Dôres
196
Existem algumas características assumidas pela Academia, o mundo
universitário ou Mundo Acadêmico para ser mais exato, que não coadunam com
o que ocorre no Universo Escolar, nas escolas de Educação Básica, como se
refere, a atual Lei de Diretrizes e Bases da Educação Nacional. Academia e
Escola são instituições de formação humana, mas, indiscutivelmente, possuem
histórias, objetivos e mesmo finalidades diferentes, tanto no passado, quanto na
atualidade.

Portanto, todas as formas de transpor para as Escolas, por exemplo, modelos e


práticas do Mundo Acadêmico de maneira rígida e sem reflexões bem planejadas
acabam provocando inúmeras dificuldades em ambas as instituições. É uma
questão que já é debatida há certo tempo, a diferença entre Conhecimento
Acadêmico e Conhecimento Escolar, mas que, infelizmente, muitos educadores,
continuam desconhecendo, o que torna turvo certos debates e mesmo terminam
por esmaecer questões importantes que precisam ser enfrentadas. Acreditamos
que as duas instituições devem dialogar, se entender e colaborar entre si, afinal,
estamos falando de Educação no sentido amplo da palavra, e para que se
cumpra esse fim, todos os esforços são necessários.

Neste texto vamos tratar de um assunto espinhoso para a Escola, a Educação


Básica, e para a Academia, a formação dita Educação Superior. Basicamente
duas áreas centrais gravitam esse debate; a saber: as Ciências Históricas, os
cursos de graduação de Licenciatura e Bacharelado em História, e a
Arqueologia, acompanhada de outras Ciências Humanas e Naturais como a
Antropologia, Ciências Biológicas, Epigrafia, Física, Geografia, Geologia,
Matemática, Numismática, Paleontologia, Química, entre outras. Duas ciências,
duas áreas acadêmicas, que estudam o passado humano, conforme salienta
Jean-François Dortier, ainda que utilizem algumas metodologias diferentes,
outras semelhantes, e dividem a história da Humanidade em dois períodos cujos
nomes se consolidaram, na ciência, e no senso comum, que são: a pré-história
e a história.

Essa divisão entre pré-história e história já foi, e continua sendo, motivos de


grandes debates, e muita controvérsia. A obra clássica do arqueólogo galês Glyn
Daniel, intitulada de The idea of Prehistory (A Ideia de Pré-história), publicada
originalmente na Inglaterra em 1962 é um divisor de águas. O livro foi traduzido
para a língua portuguesa em 1964 e para o espanhol em 1968. Infelizmente a
versão brasileira teve o título de Introdução a Pré-História, que a nosso ver
pois a perder parte da intenção do autor de chamar a atenção sobre a
problemática que envolve a pré-história. Em espanhol a tradução ficou com o
título de “O conceito de pré-história” que expressa com mais exatidão as
intenções do autor. Detalhe que não é preciosismo. O autor tinha uma intenção
clara de ressaltar que nos estudos sobre o período pré-histórico é fundamental
ressaltar e compreender um aspecto decisivo; a saber: embora o período pré-
histórico seja o mais longo, o mais antigo, o primeiro da história humana,
riquíssimo de contribuições para a cultura humana apenas recentemente
tomamos conhecimento de sua existência e começamos a esboçar uma 197
compreensão científica sobre o que nele ocorreu. O primeiro e mais extenso
período da história foi o último a ser conhecido e pesquisado. O que se chama
aqui de primeiro paradoxo da pré-história.

Essa divisão entre pré-história e história surgiu no século XIX, no momento em


que a Arqueologia surgiu e se consolidou como ciência, incialmente, focada nos
estudos sobre a cultura material da Antiguidade, e depois, de períodos mais
remotos e anteriores e, por fim, as origens longínquas da humanidade. Divisão
que surgiu e não mais apagou-se apesar dos embaraços e mesmo
eurocentrismos que marcaram sua concepção. Para o historiador Francois
Hartog trata-se de uma clara divisão eurocêntrica, num momento que a história
da Europa Ocidental, foi tomada como medida de todas as outras histórias e
sociedades do globo, e classificadas pelas diferenças e semelhanças que
apesentavam com relação aos europeus. Assim, aqueles povos nômades, sem
escrita, sem Estado burocratizado, foram taxados de anteriores a história: os pré-
históricos.

Atualmente o termo pré-história recebe críticas e no geral, considera-se que


tornou-se famoso demais para ser abandonado, ou pelo menos ignorado. Tenta-
se buscar outros como soluções, e para isso tem-se empreendido muitas
tentativas; tais como: Época Primitiva, Época Primordial, Primeira História do
Homem ou História Primeva. Nenhum destes obteve o mesmo sucesso e adesão
que pré-história. Diferente porém, é a questão da divisão cientifica, divisão
técnica da pesquisa científica operada entre Arqueologia e História que é muito
menos estudada e criticada, sendo no geral, mais justificada e sancionada, do
que, contestada.

Um exemplo pouquíssimo conhecido no Brasil, mas muito significativo, ilustrativo


e exemplificativo dessa divisão é o que ocorre na Unesco. Esse organismo
internacional tem dois setores dedicados ao estudo da história humana. O
primeiro se chama União Internacional de Ciências Pré-históricas e Proto-
históricas (a sigla em inglês é UISPP) e foi criado em 1931 e pertence ao
Conselho Internacional de Filosofia e Ciências Humanas. Como o próprio nome
diz o UISPP volta-se ao estudo do período pré-histórico. O segundo se chama
Comitê Internacional de Ciências Históricas (em inglês a sigla é ICHS) e
concentra-se na história humana a partir da Antiguidade e foi criado em 1926.
Ou seja, dois setores que reproduzem em âmbito internacional, uma divisão
acadêmica, que seguramente tem seus fundamentos e razão de existirem. Não
estamos aqui dizendo que a Arqueologia e a História sejam o mesmo tipo
científico, apenas que é preciso, resguardar-se também, certos cuidados para
que divisões acadêmicas não prejudiquem o Ensino de História nas Escolas.
Isso, porque a história humana é uma experiência única, marcada por rupturas
e continuidades. A mesma história, a mesma experiência, necessita de ciências
particulares para ser estudada? Trata-se de uma necessidade imposta pelas
particularidades do trabalho investigativo científico? É uma divisão necessária
para a boa condução da pesquisa científica? Não existem estudos assertivos 198
sobre isso, mas dentro do prisma de uma História das Ciências e, talvez mesmo
de uma Filosofia da Ciência, a maioria dos investigadores concorda que sim. São
demandas da especialização científica. Trata-se de uma demanda da Academia.
Mas e a Escola, e a Educação Básica, como irá lidar com essa divisão?

Essa é uma questão que precisa ser conhecida e compreendida. É o que se


chama aqui de segundo paradoxo da pré-história. No Brasil, como em outros
países, a pré-história é pesquisada por arqueólogos e outros cientistas, mas
quem a leciona, predominantemente na Educação Básica, são professores de
História, muitos deles, inclusive, sem receberem uma formação em Arqueologia,
seus métodos, seus conceitos principais e suas práticas de pesquisa. Assim, se
para o Ensino de História da Antiguidade, Medievo, Época Moderna e
Contemporânea a ciência de referência predominante é a Ciência Histórica, no
caso da pré-história prevalece a Arqueologia. Fato cujo desconhecimento pode
ser prejudicial na formação de professores de história e por extensão prejudicial
ao Ensino de pré-história na Educação Básica. Esses dois paradoxos são
singularidades marcantes da pré-história e do Ensino de Pré-história que
merecem detida atenção.

Mas dito isto coloca-se então outra questão fundamental para aqueles que lidam
na Educação Básica, nas Escolas, e precisam, todos os anos, lecionar o
conteúdo referente a Primeira História Humana, a Época Primordial, mais
conhecida como pré-história. Quais são os cuidados, os conceitos e os aspectos
fundamentais que não podem faltar quando este importante período da história
humana é abordado?

Afinal para as crianças, adolescentes, jovens e mesmo adultos e que estão na


Educação Básica, ou na Educação Profissional, por exemplo, o que mais
interessa é saber sobre o passado humano, e não sobre divisões acadêmicas,
especialidades científicas, querelas e rusgas acadêmicas. Crianças do pré-
escolar, da segunda infância e adolescentes querem saber sobre os homens da
caverna, domínio do fogo, domesticação de animais, como o cachorro, primeiras
cidades, invenções de ferramentas e outras questões do gênero. Se quem
oferece as respostas são historiadores ou arqueólogos, para elas, isso é
secundário nesta faixa etária e etapa escolar. Ou seja, nem sempre é pertinente
reproduzir, sem criticidade e adaptações, práticas acadêmicas nas escolas.

Assim, conforme já se abordou noutro estudo (CURI, 2021), para dar início, e
tentar esboçar e já formalizar para os professores de história da Educação
Básica, aspectos fundamentais sobre o Ensino de pré-história, ou seja, achados
científicos já consolidados sobre o período pré-histórico, elencamos alguns deles
que são imprescindíveis para uma abordagem adequada deste importante
período da história humana. Elencamos doze abordagens.

Primeiro, a clássica questão: quando começa e termina a pré-história? Não


existe consenso entre os pesquisadores. O surgimento da cultura, ou das
primeiras ferramentas, são consideradas marcos iniciais. O advento das 199
primeiras civilizações é considerado marco final. A utilização da escrita como
marco final é tema desacreditado. Lembre-se que existem povos pré-históricos
até a atualidade, como os indígenas atuais.

Segundo, na pré-história o homo sapiens sapiens não estava sozinho, mas


terminou como último sobrevivente. Isso já é comprovado. Inúmeros achados
fósseis em várias partes do planeta atestam que existiram outras espécies do
gênero dos hominídeos. Também já existem comprovações que eles coexistiram
com o homo sapiens sapiens durante alguns períodos. O importante a saber é
que o homo sapiens sapiens não existia no início da pré-história, ele surgiu
depois, desenvolveu-se durante esse período e no final foi o único sobrevivente.

Terceiro, a pré-história ocorreu em praticamente todo o planeta só que em


épocas e intensidades diferentes. A chamada história da Conquista da Terra é a
história da pré-história. Contudo os seres humanos espalharam pelo globo de
maneira desigual, chegando em alguns lugares primeiro, noutros muito mais
tarde. A América foi o último continente a ser povoado, portanto a pré-história
americana e brasileira são mais recentes.

Quarto, a África é a Pátria da Humanidade. Tanto o homo sapiens sapiens,


quanto boa parte da família dos hominídeos surgiram na África. Todos os
achados que temos até o momento caminham neste sentido.

Quinto, a pré-história não terminou. Ainda existem povos pré-históricos. Povos


ditos pré-históricos e históricos convivem até hoje. Neste sentido é possível falar
em pré-história do Tempo Presente, inclusive, no Brasil, onde temos inclusive,
indígenas isolados sem contato com a sociedade brasileira.

Sexto, o surgimento da cultua marcou o início da pré-história. Esse tema é


controverso. O período pré-histórico inclui todos os hominídeos, e, portanto, as
invenções como o domínio do fogo são parte deste período. Contudo,
decisivamente, para atuar sobre a natureza e modificá-la foi preciso que o gênero
dos hominídeos tornar-se um ser cultural, que trabalha e produz ferramentas.
Alguns estudiosos colocam as ferramentas e não a cultura como marco inicial,
outros acham que foram as duas, que elas são interdependentes, mas tem
crescido e prevalecido a ideia da cultura, pois, alguns animais lançam pedras,
lascam madeira, o que poderia indicar o indício de um comportamento instintivo
e não cultual.

Sétimo, considera-se o surgimento das primeiras civilizações o fim da pré-


história. Este é outro tema é controverso. A adoção da escrita como marco final
da pré-história é critério muito criticado e desusado. Contudo, ninguém considera
Egito, Suméria, Índia, China como povos pré-históricos, dado que sua
estruturação, ou organização social, já apresentavam certa complexidade e
estabilidade cultural. Daí a possibilidade de demarcar o fim do período pré-
histórico com o advento das primeiras civilizações. Agora cuidado! A pré-história
na região do atual Egito acabou com o surgimento do Império Egípcio, mas 200
noutras partes do mundo continuou existindo povos pré-históricos. Lembremos
que existem povos pré-históricos até a atualidade.

Oitavo, a pré-história é o período mais longo da história humana. Afinal, estamos


tratando de um período quem engloba aproximadamente 10 milhões de anos,
enquanto o período histórico não alcança dez mil anos.

Nono, existiram várias pré-histórias, como a pré-história do Velho Mundo ou pré-


história geral, pré-história americana e pré-história brasileira. A rigor cada lugar
do mundo teve uma ocupação diferenciada o que nos autoriza a falar de diversas
pré-história(s). No Brasil a pré-história também não é única. A povoação do
território pelos indígenas provavelmente iniciou-se pelo Norte, na região
amazônica, e por último o litoral. Nas Américas considera-se, não sem protestos,
a chegados dos europeus, o chamado “Contato” como critério de demarcação
de término da pré-história. Lembrando que a ocupação do continente americano
pelos colonizados não ocorreu de uma única vez, seja em 1492 ou 1500, mas
de forma gradual à medida que a colonização se deslocou para o interior.

Décimo, a pré-história não é sinônimo de atraso. Esse é um ponto que


precisamos estar atentos. No século XIX essa era uma ideia corrente e
plenamente aceita. Hoje trabalha-se com a ideia que estamos falando de povos
diferentes, pré-históricos e históricos, ou pré-históricos e civilizados, mas não
necessariamente um melhor que outro. Não estamos também afirmando que os
povos pré-históricos eram melhores, mais justos, ecologicamente corretos, etc.
A ideia de atraso da pré-história e muito eurocêntrica e é preciso revê-la.

Décima primeira, não deve esquecer do “Contato”. “Contato” ou Encontro é o


nome que se convencionou chamar, principalmente nas Américas, do encontro
entre europeus, ditos civilizados, e os indígenas, ditos pré-históricos. Sempre é
preciso esclarecer que não ocorreu apenas um “Contato” e sim vários à medida
que a colonização nas Américas se interiorizou.

Décimo segundo, lembremos dos legados da pré-história. Urbanização,


agricultura, pecuária, metalurgia, tecelagem, cultura, fogo, religiões, linguagem
todos são legados dos período pré-histórico. Sempre é importante lembrar este
fato para diminuir eventuais preconceitos contra os povos pré-históricos.

Enfim, precisamos compreender a pré-história porque ela é o período mais longo


da história Humana e pelos seus legados. Como compreender a história da
Humanidade ignorando-se 99% de sua duração? Como compreender o Homo
Sapiens Sapiens ignorando a história dos seus antecessores? Compreender a
história dos filhos ignorando-se a história dos pais. Isso é possível? Penso que
não. Precisamos olhar a história humana por inteiro, afinal toda separação entre
pré-história e história é a rigor arbitrária, ainda que costumeira.

Sobre a inclusão do período pré-histórico nos Livros Didáticos de História na


Educação Básica é um tema cujos estudos precisam ser ampliados e 201
aprofundados. Os autores que analisam os livros, historiadores e arqueólogos,
geralmente criticam a qualidade das peças e seus textos. As críticas dirigem-se
tanto as abordagens sobre pré-história geral, americana, brasileira e até local
(Cf. RODRIGUES & MARINOCI, 2005, p. 245 – 255).

Contudo, os estudiosos também reconhecem que muitos professores de história


encontram coma pré-história pela primeira vez já em sala de aula da Educação
Básica, ao lidarem com o livro didático, e muitas vezes advindos de cursos de
graduação em História onde não receberam formação para compreender e
lecionar sobre pré-história. Sabemos também que professores de Biologia e de
Artes também, abordam a pré-história, mas não da forma incisiva, ampla e
contextual como se faz na História, ou pelo, menos se espera.

Como ensinar aquilo que não se aprendeu? Sabemos que nenhum curso de
graduação é capaz de cobrir toda área de atuação de nenhuma profissão. Mas
daí ignorar a pré-história também não seria um exagero? Essa é uma questão
que todos os envolvidos na formação de professores de história e estudiosos do
Ensino de História precisam ajudar a refletir, pesquisar e, é claro,
providenciarmos soluções.

Por fim, se quisermos que o futuro seja realmente diferente e melhor e não
apenas um prolongamento do que já temos no presente temos que rever toda a
experiência humana com zelo, ética e compromisso com dias melhores. Isso
inclui o Ensino de pré-história.

Referências biográficas
Doutor Luciano Marcos Curi, professor do Mestrado Profissional em Educação
Tecnológica do IFTM – Câmpus Uberaba e do Mestrado Profissional em
Educação Tecnológica ofertado em Rede Nacional (PROFEPT) do IFTM-
Câmpus Uberaba Parque Tecnológico.

Ana Carolina Pires das Dôres é licenciada e Bacharelanda em Ciências


Biológicas. Unesp de São José de Rio Preto.

Referências bibliográficas
CURI, L M. Compreender a Pré-história: para quê? Jornal InterAção
(Semanário de Notícias). Ano 18, nº 933, 09/04/2021 p. 02.

DANIEL, Glyn. El concepto de prehistoria. Barcelona: Editorial Labor, 1968.

_____. Introdução à Pré-História. Rio de Janeiro: Jorge Zahar Editores, 1964.


_____. The Idea of Prehistory. Londres: C.A. Watts, 1962.

DORTIER, Jean-Francois. Arqueologia/Pré-história. In: _____. Dicionário de


Ciências Humanas. São Paulo: Martins Fontes, 2010, p. 664-667.
202
HARTOG, François. Evidência da história: o que os historiadores veem. Belo
Horizonte: Autêntica, 2011.

RODRIGUES, Isabel Cristina; MARCIONI, Marcia Cristina. A pré-história do


Brasil nos livros de História para 5ª a 8ª séries do Ensino Fundamental. In:
NETO, José Miguel Arais (Org.). Dez anos de pesquisa em Ensino de História.
Londrina: AtrioArt, 2005, p. 2445 – 255.
EDUCAÇÃO HISTÓRICA SOBRE A PRÉ-HISTÓRIA NA
EDUCAÇÃO BÁSICA: UMA DEMANDA URGENTE
Luciano Marcos Curi e Fábia Núbia Moura e Silva
203
A área do Ensino de História vem passando por notável desenvolvimento nos
últimos anos no Brasil e no mundo. Novos autores, novas perspectivas teóricas,
novos temas têm se apresentado e uma diversidade de novas pesquisas vem
sendo realizadas.

Assim, conceitos como Educação Histórica, Cultura Histórica, Consciência


Histórica, Cognição Histórica e Razão Histórica, ou Epistemologia Histórica, tem
contribuído para afirmar e mesmo permitir novos olhares sobre o Ensino de
História, inclusive, no Brasil e na Educação Básica.

As possibilidades de aperfeiçoamento, ampliação e a implementação de


melhorias no Ensino de História são possibilidades reais, já que a medida que a
compreensão sobre a forma como as pessoas aprendem e apreendem o
passado, a chamada Cognição Histórica, e também como a sociedade lida com
o passado, a chamada Cultura Histórica, com seus usos e abusos dos passado
praticados na atualidade, permitem no presente e no futuro, permitirão mais
ainda, repensarmos o Ensino de História e preparar mais adequadamente
professores e materiais didáticos que atendam as demandas existentes.

Assim, duas mudanças também estão impactando o Ensino de História de modo


geral e de maneira salutar.

A primeira é a formação crítica a que os historiadores estão acostumados a


submeter a sua própria disciplina, ou Ciências Históricas, como prefere André
Burguière; a chamada Epistemologia da História, ou ainda, Teoria da História ou
crítica da Razão Histórica; conforme já abordou Jörn Rüsen. Roger Chartier em
ensaio esclarecedor lembra, por exemplo, o impacto nas Ciências Históricas nas
décadas de 1980 e 1990 de obras de autores como Hayden White, Michel de
Certeau, Paul Veyne e Carlo Ginzburg. Assim, à medida que as características
e particularidades da História, enquanto disciplina científica, são conhecidas,
bem como, suas limitações, a criticidade dos professores sobre sua própria
ciência diminui as chances de discursos infundados, mal alicerçados em
pesquisas sérias serem trabalhados na Educação Básica.

A segunda é a distinção que cada vez fica mais clara para a comunidade dos
historiadores entre Ensino de História na Academia e nas Escolas, ou
Conhecimento Histórico Acadêmico, ou disciplina de referência, e Conhecimento
Histórico Escolar, notadamente, na Educação Básica. Essa é uma questão
chave que o Ensino de História precisa aprofundar e deixar cada vez mais
evidente e translúcido para todos que militam nessa área. A diferença entre
Academia e Escolas, genericamente, entre Ensino Superior e Educação Básica.
Enfim, Academia e Escola, são instituições diferentes, com finalidades diferentes
que lidam e preparam pessoas para vivências diferentes. A Academia forma
profissionais, os historiadores, já as Escolas de Educação Básica, formam
cidadãos para a sociedade. Os dois públicos estudam o passado, mas de
maneira diferente e para finalidades diferentes. Por fim, são faixa etárias, tipos 204
de escolas, formatos didáticos que são díspares. As Escolas não formam
pequenos historiadores, ou mini historiadores, e sim cidadãos, que inclusive,
precisam aprender outros conteúdos e outras ciências além da História.

Sem uma compreensão muito clara dos tipos escolares, etapas escolares,
públicos envolvidos as chances de se construir um Ensino de História que atenda
as demandas das pessoas e lhes permitam utilizar deste conteúdo, deste saber,
para suas vidas pessoais ou profissionais fica difícil imaginar o melhor caminho
metodológico, melhores materiais, melhores abordagens de ensino, entre outros
tantos temas tão importantes.

A comunidade dos historiadores precisa discutir e aprofundar os conhecimentos


e mesmo ferramentas conceituais e práticas para o Ensino de História na
Educação Infantil, no Ensino Fundamental, no Ensino Médio e no Ensino
Técnico, enfim, para toda a Educação Básica. Assim, o conceito de Transposição
Didática, já recebe críticas. A história estudada na Academia, no Ensino
Superior, seria uma disciplina de referência, mas na Educação Básica o Ensino
de História tem outras demandas, lidar com a memória, literatura, memória,
negacionismos correntes na sociedade, preconceitos, entre tantos outros
desafios, conforme a estudiosa Ana Maria Monteiro já pontuou. A disciplina
escolar de História possui características próprias que lhe diferenciam do que
ocorre na Academia.

Mas isso não é tudo. Existem também certos períodos históricos que também
que são menos abordados, ficam menos privilegiados e contemplados, isso,
tanto na Academia quanto nas Escolas, reproduzindo certas limitações das
Ciências Históricas e mesmo reproduzindo certos preconceitos sociais. Um
desses períodos é a chamada Pré-história, esse extenso período inicial da
História Humana, também chamado de Época Primitiva, Época Primordial,
Primeira História do Homem ou História Primeva.

Sobre o procedimento da periodização em História, a divisão da história humana


em “pedaços” o historiador francês Jacques Le Goff, um ano antes de sua morte,
em 2013, publicou uma obra inteira sobre a importância das periodizações nos
estudos dos períodos históricos, e certamente, pré-históricos, podemos
acrescer. Neste livro ele desfaz mitos, críticas fáceis e habituais e pontua
considerações importantes sobre a utilidade do estabelecimento de
periodizações para compreender a história. Ele afirma a importâncias das
periodizações e elenca cuidados com sua utilização que podem agora ser
transpostos para outros períodos. Quando o assunto é pré-história e Ensino de
pré-história o tema da periodização ainda incita muitos debates, tanto na
Academia, quanto nas Escolas. Falta consenso acadêmicos o que acaba
ecoando nas Escolas. Essa é uma realidade que professores precisam conhecer
e saber justificar perante os estuantes. Não foi ensinada uma periodização
incorreta, ocorre que ela é revista pela Academia à medida que novas pesquisa
são realizadas.
205
Infelizmente é forçoso reconhecer que a pré-história é um período geralmente
relegado pelos historiadores tanto na Academia, cursos de graduação de
História, quanto nas Escolas de Educação Básica. Isso se deve a vários motivos
que precisam ainda serem mais e melhor estudados, para que o Ensino de
História possa aperfeiçoa-se neste importante momento da história humana,
gênese de muitos legados existentes até a atualidade, inclusive, a própria
espécie do homo sapiens sapiens.

Noutro estudo já tivemos a oportunidade de evidenciar que o Ensino de Pré-


história é atravessado por dois paradoxos, cujo desconhecimento podem ser
prejudiciais ao adequado ensino deste importante período (CURI, 2021).

Assim, quando se fala de pré-história trata-se do primeiro e mais antigo período


da história da Humanidade, mas que, por diversas razões, foi o último a ser
conhecido, o que denominados aqui de “primeiro paradoxo da pré-história”.
O primeiro a existir, cronologicamente falando e o último e menos conhecido.

Mas existe outro paradoxo. Tanto no Brasil, quanto no estrangeiro, a pré-história


é predominantemente pesquisada por arqueólogos, biólogos, antropólogos,
etnólogos, entre os mais citados, mas na Educação Básica ela é ensinada por
professores de História. Pesquisa por uns, ensinada por outros, isso é aqui
denominado de “segundo paradoxo da pré-história”. Temos que ter atenção
a esses fatos, já que no caso demais períodos históricos a presença de
historiadores é mais significativa e as pesquisas são mais consolidadas e bem
conhecidas. O número de historiadores pesquisando pré-história é menor que
nos outros períodos históricos, inclusive, em muitos lugares da Academia,
geralmente considera-se esse período uma especialidade mais afeita a
Arqueologia, por exemplo, do que a própria História.

Quem ensina e ensinará pré-história(s) no Brasil são professores de História,


muitos formados, sem uma disciplina sequer sobre pré-história geral, americana
ou brasileira, ou mesmo, de Arqueologia ou Antropologia. Essa é uma das
queixas dos arqueólogos por exemplo. Afinal a pré-história é parte da História,
época humana mesmo, da qual não podemos mais contornar e esquecer.

Como a Arqueologia e mesmo a Antropologia infelizmente ainda não possuem


espaço no Ensino Médio, cabe mesmo, a disciplina de História, enfrentar o
desafio de levar a população uma Educação Histórica que inclua o passado
remoto da humanidade e brasileiro. Lembrando como inúmeras autores e
estudiosos, que todo esquecimento é intencional e atende a interesses diversos,
nem sempre justificáveis do ponto de vista ético. Enfim, o Brasil não pode, e não
deve esquecer seu passado e presente pré-histórico. Atualmente inclusive,
temos a lei federal nº 11.65 de 2008, que determina o estudo do passado
indígena, ou pré-história como aborda-se também, na Educação Básica.

Empreender um adequado Ensino de pré-história não é tarefa fácil e ainda há


muito por fazer, esclarecer-se nesta área. Então já sabemos que a nossa 206
espécie, o Homo Sapiens Sapiens, surgiu aproximadamente a uns 300 mil anos
atrás. Sabemos também que a nossa espécie durante boa parte da História
Humana não estava sozinha e solitária no Planeta Terra. O Sapiens faz parte de
uma família maior chamada hominídeos, do qual mais tarde deu origem ao
gênero Homo. Assim, existiram outras espécies de hominídeos conhecidos
através de vários achados fósseis, vestígios ou evidências do passado, que
foram encontrados em vários pontos do planeta. Assim, o Homo Sapiens
Sapiens não surgiu do macaco. O que sabemos que é essas duas espécies
guardam semelhanças físicas e genéticas, o que significa que num passado
distante elas tiveram um ancestral comum (Cf. NEVES, 2015).

Assim, a História da Humanidade não se inicia com o surgimento do Homo


Sapiens Sapiens. Começa antes com o advento do gênero dos hominídeos, tudo
indica na África, a aproximadamente 10 milhões de anos atrás. É o que sabemos
até o momento. Assim todo esse período que vai dos hominídeos até o
surgimento das Primeiras Civilizações (Suméria, Egito, Índia, China, Olmecas,
Maias e Incas) é comumente chamado de Pré-História ou História Primeva da
Humanidade.

Toda a vida no Planeta é histórica, tanto a natural, quanto a cultural ou social.


Somos seres inseridos no tempo. Um exemplo famoso disso está na Biologia (ou
Ciências Biológicas) cujo primeiro nome foi História Natural. Todos os seres
humanos são produtos de uma história, tenham ou não consciência disso.
Somos parte da história de nossa família, de nossos pais, de nossa época, dos
lugares que vivemos, mas, também das escolhas que fazemos, refletidas ou não,
enfim, do tempo, do lugar e das crenças que carregamos. Nenhum ser vivo pode
escapar da história, mesmo que queira. Os sabedores deste fato possuem o que
se convencionou chamar de Consciência Histórica.

Portanto, se somos seres históricos, queiramos ou não, e se temos ferramentas


para conhecer o passado, certas dúvidas levantadas pela sociedade sobre o
passado e sobre as intepretações científicas sobre ele evidenciam, na verdade,
nossa dificuldade em construir uma sociedade nova a partir da revisão do
passado. Ignorar o passado para não resolver problemas atuais. Negar os
problemas, ao invés de enfrentá-los. Estudar o passado humano é uma forma
de entender o que somos e como chegamos até aqui, nosso formato atual, e
quem sabe, com muita honestidade e boa-vontade, construir um futuro
realmente novo e melhor. A pré-história não foi um paraíso perdido, mas também
não foi um momento de selvageria e improdutividade.
Preconceitos e mitos se desfazem quando nos aproximamos melhor do período
pré-histórico. Vemos que foi um período que ainda subsiste de pelo menos duas
maneiras. Primeiros pelos povos pré-históricos contemporâneos e segundo
pelos imensos legados deixados.

A chamada pré-história é, por assim dizer foi planetária, já que o homem sapiens 207
sapiens logrou-se capaz de espalhar-se por todo globo, e ocupar-lhe em
sucessivas levas migratórias; a chamada Conquista da Terra. A Educação
Histórica consistente precisamente em oferecer aos estudantes um quadro, uma
imagem, o mais precisa possível, de acordo com os estudos pré-históricos
acadêmicos mais atualizados, e não sumariamente recortada, de como nossa
espécie chegou ao seu estado atual; cultural, social, geográfico, biológico,
político e econômico e até psicológico.

Enfim, não é um debate fácil, mas seguramente necessário. Compreendermos


a diferença entre Conhecimento Histórico Acadêmico e Conhecimento Histórico
Escolar. Essa diferença já foi abordada por diversos historiadores e estudiosos,
mais com relação ao período pré-histórico, o lembrete é necessário. Artigos
científicos, teses, dissertações e relatórios são formatos inadequados para a
Educação Básica. Neste período os desafios são diferentes que os demais
períodos históricos, já que muitas vezes a ciência de referência e a Arqueologia,
e não a história, ou mesmo outras ciências humanas e até naturais. Enfim, o
Ensino de pré-história precisa ser pensado a partir de suas particularidades.
Inclusive, para o fato de que nossa espécie estava ausente de boa parte desse
momento histórico.

Isso é o que se chama de Educação Histórica. Compreender que somos seres


históricos, individualmente e coletivamente. Todas as sociedades do passado e
as atuais são um momento, uma parte da História da Humanidade. Cadê o Egito
que durou 3 mil anos? Cadê a Mesopotâmia que durou outros tantos mil? Cadê
Roma? Algum homem bilionário sobreviveu mais de mil anos? Todos já ouviam
falar de Jesus Cristo e Aristóteles o que significa que suas realizações, de
alguma forma, pesam sobre nós. Isso é Educação Histórica, compreender que
cada um de nós é um instante na história e lutarmos para que seja um instante
feliz. E se tivermos consciência, Consciência Histórica, aumentam-se nossas
chances de vivermos bem, aproveitando o que é mais valioso na Vida, e
desapegando-se de coisas comprovadamente passageiras e fúteis. Educação
Histórica junto com a ética são ingredientes certos da Sabedoria. Nossa época
vive mais um presenteísmo que uma efetiva Consciência Histórica.

Por tudo isso essa é uma questão-chave. O período pré-histórico é grande


contribuidor da ampliação da mentalidade e pode ser um dos grandes aliados da
renovação do Ensino de História. A compreensão do que ocorreu com a
humanidade nos tempos pré-históricos implode, dinamita, sabota, explode e põe
ao chão qualquer linearidade, continuidade irrefletidas, unidimensionalidade e
teleologismo que se possa ter e pensar sobre toda a história da humanidade,
período pré-histórico e histórico. O historiador alemão Reinhart Koselleck mostra
que a ideia de uma história única e linear rumo ao progresso foi grandemente
influenciada pelo movimento Iluminista.

Portanto, Educação Histórica é uma demanda urgente. Não sobreviveremos


enquanto sociedade ignorando nossos problemas, nem desacreditando quem
amplia nossa compreensão. Passado, presente e futuro se relacionam, 208
querendo ou não, isso já é sabido e comprovado. Educação Histórica para
ampliar nossa compreensão biográfica e social.

Acredito piamente que o Ensino de História, assim como a melhoria da qualidade


da Educação Básica brasileira é dependente de inúmeros fatores, mas um deles,
que não pode ser esquecido e desprezado é a pesquisa científica na área de
Ensino de História, para munirmos os professores de instrumentos, técnicas,
recursos, livros, materiais e tudo o mais que conseguirmos para facilitar a
Educação Histórica. Tudo fundado e calcado em pesquisa científica,
historiográfica, pedagógica, educacional para que o Ensino de História não fique
desguarnecido. Para que o Ensino de pré-história receba também nossa
atenção.

Referências biográficas
Pós-Doutor. Luciano Marcos Curi, professor do Mestrado Profissional em
Educação Tecnológica do IFTM – Câmpus Uberaba e do Mestrado Profissional
em Educação Tecnológica ofertado em Rede Nacional (PROFEPT) do IFTM-
Câmpus Uberaba Parque Tecnológico.

Fábia Núbia Moura e Silva, mestranda em Educação Tecnológica no IFTM –


Câmpus Uberaba.

Referências bibliográficas
BURGUIÈRE, André (Org.). Dicionário das Ciências Históricas. Rio de Janeiro:
Imago,1993.

CHARTIER, Roger. A história ou a leitura do tempo. Belo Horizonte: Autêntica,


2009.

CURI, L. M. Compreender a Pré-história: para quê? Jornal InterAção (Semanário


de Notícias). Ano 18, nº 933, 09/04/2021 p. 02.
KOSELLECK, Reinhart. Futuro Passado: contribuição a semântica dos tempos
históricos. Rio de Janeiro: Editora Contraponto, 2007.

LE GOFF, Jacques. A história deve ser dividida em pedaços? São Paulo: Unesp,
2015.

MONTEIRO, Ana Maria Ferreira da Costa. Professores de história: entre saberes


e práticas. Rio de Janeiro: Mauad X, 2007.
NEVES, Walter Alves; RANGEL JUNIOR, Miguel; MURRIETA, Rui Sérgio
Sereni. Assim caminhou a humanidade. São Paulo: Palas Athena, 2015.

RÜSEN, Jörn. Razão histórica. Teoria da história: os fundamentos da


ciência histórica. Brasília: Editora da UNB, 2001.
209
PENSAMENTO EGÍPCIO E PENSADOR GREGO: O
ENSINO DE HISTÓRIA ANTIGA COMO PRÁTICA
DECOLONIAL
Luiz Henrique Silva Moreira
210

A “História Antiga” como projeto de poder


Apresentaremos aqui encaminhamentos teórico-metodológicos que possibilitem
ao Ensino de História Antiga assumir um caráter decolonial. Partimos do
entendimento que o discurso da modernidade/colonialidade produziu releituras
da antiguidade que corroboraram no projeto de dominação do Sul Global e que
no pensar da Antiguidade à brasileira pode-se promover uma maior percepção
da geopolítica do conhecimento moderno e, ao invés de negar os produtos
culturais gestados na história do ocidente, permite-se a apropriação dos
mesmos. Esta leitura à contrapelo torna possível perceber os artifícios utilizados
na modernidade para modular o discurso acerca da antiguidade em narrativas
eurocentradas, e que estas só foram possíveis graças aos processos de
exploração colonial que permitiram às sociedades europeias criar condições
materiais para a gestação destes mesmos conhecimentos. Para que esta
reflexão possa originar uma práxis iremos nos ater à velha, mas sempre
presente, problemática do nascimento da filosofia, se o seu berço de origem
seria os Balcãs ou as margens do Nilo, Grécia ou Egípcio respectivamente.

De antemão é necessário que entendamos que o que concebemos hoje como


História Antiga é fruto de uma divisão histórica que tinha como ímpeto norteador
dar luz a um projeto de poder, cujo objetivo era apagar a marginalidade da
Europa nos períodos históricos mais longínquos da história do Ocidente. Com
uma simples análise de um mapa do mediterrâneo antigo podemos expandir
para a antiguidade a análise que Chakrabarty (2000) faz da posição periférica da
Europa na modernidade, percebendo assim que a Grécia era diminuta e estava
marginalizada dos grandes processos políticos do mediterrâneo, levados a cabo
pelas Dinastias Persas em um primeiro momento, pela Monarquia Macedônica
e seus Sucessores, assim como por Roma no período do Império. Não seria
errôneo afirmar que a Grécia sempre teve atuação secundária, funcionando
como apêndice, nos processos geopolíticos daquele espaço geográfico. Por
mais que os gregos fundamentassem sua identidade dialeticamente com o outro,
o ser civilizado/grego como o espectro oposto do não ser civilizado/bárbaro, e a
coexistência fosse sempre negociável, o movimento de apagamento de
epistemologias outras não se tornou uma necessidade tão relevante até o
Renascimento Italiano, e de fato nem poderia ser efetuado na posição que a
Grécia se encontrava na antiguidade.

Ocorre que desde o século VII EC o império romano oriental cristão tentara fazer
frente ao mundo árabe muçulmano crescente, contudo ao final do século XII EC
os árabes tomaram o norte da África, enclausurando ainda mais os reinos
cristãos da Europa, visto que também haviam ocupavado todo o território oriental
do mediterrâneo que fazia fronteiras com o Império Bizantino, ou seja, tinham
conquistado o Marrocos, a Mesopotâmia, o Império Mongol do norte da Índia, os
reinos mercantis de Malaka, até a ilha Mindanao nas Filipinas. As cruzadas foram
tentativas, muitas vezes falhas, onde a Europa tentou subverter sua situação de
cultura periférica, secundária e ilhada pelo mar do poder e da cultura muçulmana
(DUSSEL, 1993, p. 43). 211

Após Constantinopla ter perdido sua proeminência política em 1453 EC, restara
aos teóricos do mundo renascentista italiano contar a história de uma maneira
que escondesse a posição periférica da Europa durante a antiguidade e
principalmente durante o medievo, época em que se tornara apêndice do Mundo
Turco e Mundo Muçulmano. Neste sentido a cunhagem do termo Idade das
Trevas para o medievo é a resposta para um período de hegemonia e
desenvolvimento muçulmano, onde toda a cultura e desenvolvimento estava
ligado ao mundo da Ásia e da África, ou seja, o Mundo Árabe (DUSSEL, 2008,
p. 157). Não se trata de um termo que visa fazer frente à religiosidade medieval,
bastaria que se olhasse para os grandes expoentes da arte e cultura
renascentista para perceber o forte viés cristão da cultura renascentista. Tratou-
se de um apagamento epistêmico que visou retirar da história a origem
helenístico-bizantina do mundo muçulmano, onde criou-se a noção de Ocidente
que nortearia a produção de saberes históricos na modernidade, e que em
alguns espaços persiste até hoje.

Segundo Enrique Dussel (1993, p. 42; 44) o esquema de narrativa histórica do


Ocidente (Quadro 1) é transformado em um esquema de narrativa histórica linear
(Quadro 2):

QUADRO 1
“A influência grega não é direta na Europa latino-ocidental (passa por a e b). A
sequência c da Europa moderna não se liga à Grécia, nem tão pouco
diretamente com o mundo bizantino (flecha d), e menos ainda com o mundo
latino romano ocidental cristianizado” (DUSSEL, 1993, p. 42).
212

QUADRO 2

Esta noção de Ocidente, tão cara ao romantismo alemão, foi essencial durante
o período de consolidação da História Antiga como campo da História científica.
Contudo, para tal, seria necessário a adição de dois elementos centrais: o
eurocentrismo morfológico e o internalismo metodológico (MORALES; SILVA,
2000, 126-130). A morfologia eurocêntrica diz respeito ao modo como o grande
contexto da “Idade Antiga” foi reformulado no século XIX em função dos critérios
europeus de civilização, privilegiando períodos e recortes em função de
possíveis contribuições, como uma somatória, em linha reta e sem interferências
externas, como se cada herança do passado fosse transmitida em linha reta. Por
sua vez, o internalismo metodológico diz respeito ao pressuposto teleológico de
análise historiográfica que dá ênfase aos movimentos internos como modulares
da experiência da civilização europeia moderna, onde se busca “as raízes do
Estado”, “as origens das nações”, a história dos impérios, etnias e religiões, de
maneira teleológica que legitimam conexões identitárias entre os europeus e os
habitantes da Europa Antiga, ou, aquilo que se imagina Europa Antiga e seus
habitantes.

Estas intenções pré-definidas no âmbito da História Antiga só foram percebidas


com o colapso dos impérios europeus e o colapso de suas matrizes explicativas
de denominação que aconteceu simultaneamente. Contudo, o campo já estava,
e está, marcado pelas escolhas pregressas, na medida que estas escolhas
implicaram não só em projetos epistêmicos ideológicos que permeiam o campo
historiográfico e parecem imperceptíveis a olho nu, e também implicou na
seleção de fontes e documentos. Esta seleção ocasionou, a partir do século XVI,
um esquecimento arbitrário que selecionou apenas os textos que coadunavam
com uma narrativa retilínea que ligava a Europa Moderna, ao Medievo Europeu
e ao passado Greco-Romano. Assim sendo muitos pesquisadores estiveram
limitados a trabalharem com documentos de um campo previamente delineado
para reafirmar condutas ideológicas.

Neste sentido faz-se necessário que retomemos os textos antigos na fonte e


permitamo-nos fazer leituras à brasileira, ou que ao menos leve em conta como 213
estas epistemologias eurocentradas tanto apagaram atores sociais do passado
quanto invisibilizam o lugar de enunciação do conhecimento através de uma
articulação das ciências com ambições geopolíticas no sistema-mundo
moderno/colonial a partir do século XVI (CASTRO-GÓMEZ, 2005, p. 22). A
seguir refletiremos um pouco sobre a relação Grécia e Egito na Antiguidade, em
busca de um trato das fontes que possibilite um ensino que seja atento ao
protagonismo dos povos do Sul Global e evidencie que sua situação de
“subalternidade” é, antes de tudo, historicamente produzida.

Novos caminhos para um mundo antigo


Desde a emergência dos novos debates historiográficos que enfocam a
epistemologia do Sul Global, como os estudos subalternos, teorias decoloniais e
pós-coloniais, o próprio Sul Global tornou-se foco dos estudiosos do ocidente,
que não é mais compreendido como sinônimo de Europa. Enreda-se então um
projeto que desvele visões eurocentradas da África e consiga não apenas
explicar o processo de marginalização do continente na História Ocidental, como
dê luz à uma História da África que tenha o próprio continente como ponto de
enunciação, questionando os movimentos de apropriação e o epistemícidio
(morte de cadeias epistemológicas) dos múltiplos saberes africanos.

No campo da História esta necessidade de repensar a epistemologia africana


fez-se presente nos mais variados períodos históricos. No que diz respeito à
Antiguidade, contamos com trabalhos mais enérgicos e que afetados pela
perturbação cotidiana de quem o escreve produziram visões anacrônicas e sem
grande embasamento teórico-metodológico, como foi o caso de George G. M.
James que vivendo na pele os períodos de segregação racial norte americana
produziu em Stolen Legacy [Legado roubado] (1954) uma denúncia infundada
de que o motivo da perseguição dos filósofos em Atenas decorria do fato de que
os cidadãos atenienses detinham o entendimento de que os filósofos gregos
“estavam roubando algo que nunca tinham produzido” (JAMES, 2009, p. 8).
Tomando o texto de James, e não sua bela intenção de luta e resistência, somos
levados a arguir que esta hipótese é infundada na medida que uma rápida leitura
do grande rival dos filósofos, Aristófanes (450-385 AEC) e sua peça Nuvens,
esclareceria que o problema dos filósofos, na peça representados pela figura de
Sócrates, dizia respeito ao modo como estes “ensinavam a vencer falando tanto
coisas justas quanto injustas” (ARISTÓFANES, Nuvens, vv. 95) e dessa forma
corrompiam os jovens e consigo os valores tradicionais, ao menos aquilo que
Aristófanes julgou como valores necessários para recuperar Atenas da derrota
na Guerra entre os helenos (Peloponeso/431-386 AEC). Por mais que se trate
do apologeta de Sócrates, Platão também é capaz de esclarecer como a
sociedade via os filósofos em várias de suas obras, contudo a própria Apologia
de Sócrates acaba sendo um texto central para compreender esta questão.

Contudo, também pôde-se contar com trabalhos que se mostram promissores


no que diz respeito ao embasamento teórico-metodológico e cotejo de fontes,
como os três volumes de Black Athena [Atenas Negra] (1987; 1991; 2016) onde 214
o especialista em história política chinesa Martín Bernal debruçou-se sobre a
tarefa de desvendar as raízes afro-asiáticas da civilização clássica, e para isso
recuou vários milênios além da Grécia Clássica em busca de evidências
arqueológicas e linguísticas.

Trabalhos como o de James e Bernal carregam o vício da busca por um “mito


fundador” onde, visando responder a questionamentos contemporâneos como
“quem criou o quê?” ou “a quem pertence o quê?”, que além de operar por
ferramentas epistemológicas que marcaram o pensamento moderno europeu,
acabam deslocando o alijamento do continente africano na historiografia
ocidental moderna para o passado. O que estamos querendo deixar claro é que
as próprias civilizações da antiguidade, tanto egípcios como gregos,
questionaram-se sobre o próprio passado e as relações travadas entres os povos
ancestrais que colonizaram o mediterrâneo e como este passada influenciara as
relações naqueles que hoje denominamos Período Clássico (VI-V AEC) e
Helenístico (IV AEC-II EC).

Podemos momentaneamente lembrar das palavras que Homero coloca nos


lábios de Aquiles na Ilíada, quando este se retira da guerra:

“Nem que me oferecesse dez vezes mais ou vinte vezes mais


do que agora oferece, e que a isso acrescentasse outros dons,
nem que fossem os tesouros de Orcômeno, ou da egípcia
Tebas, onde nas casas jaz a maior quantidade de riqueza;
Tebas com seus cem portões, e de cada um arremetem
duzentos guerreiros equipados com carros e cavalos!” [grifos nossos]
(HOMERO, Ilíada, IX, 379-384)

E também os versos tecidos por Menelau na Odisseia, ao ouvir os elogios que


Telêmaco fizera ao filho de Nestor sobre o palácio:

“Andei perdido por Chipre, pela Fenícia e pelo Egito;


cheguei aos Etíopes, aos Erembos e aos Sidónios;
estive na Líbia, onde os cordeiros nascem já com chifres,
pois lá as ovelhas dão à luz os cordeiros três vezes por ano.
Amo e partos nunca têm falta de queijo,
carne ou doce leite, porque os rebanhos
dão leite para a ordenha durante todo o ano.” (HOMERO, Odisseia, IV, 83-89)
Notemos que em ambas as passagens o Norte da África é destacado por sua
abundância em riqueza e dádivas da natureza, dádivas na medida que as graças
divinas que tornam a terra e seus animais encantados.

Este é o primeiro ponto que queremos ressaltar enquanto uma prática decolonial
do Ensino de História, a necessidade do acesso às fontes para um conhecimento 215
da questão em si, e não “sei por ouvir dizer”. Este acesso possibilita um
movimento de apropriação dos clássicos, assim como de afronta aos mesmos,
rompendo com o eurocentrismo morfológico e o internalismo metodológico.

Antigas respostas para problemas modernos


Também devemos levar em conta que, como foi comentado anteriormente, já na
Antiguidade havia o questionamento acerca de uma origem comum entre gregos
e egípcios, origem esta que não colocava os egípcios em posição de
dependência dos gregos, como poderia se imaginar em um primeiro momento,
mas colocava os egípcios como povos fundadores e os gregos derivando destes.
Esta é a reflexão proposta por Hecateu de Abdera (IV AEC) que aportou no Egito
nos primeiros anos do reinado de Ptolomeu I Lágida (367/6-283/2 AEC) e
provavelmente foi um dos intelectuais que compôs o Museu de Alexandria no
século III AEC.

A obra de Hecateu de Abdera marcou um retorno à etnografia de Hérodoto, que


foi misturada com as doutrinas do filósofo cético Pirro de Élis (365-275 AEC),
reformulando-a nos moldes de uma etnografia-filosófica, como definiu François
Hartog (2014, p. 88-89). Este retorno a Heródoto serviu para resgatar um pan-
egiptismo colonial, onde estes apareceriam como os primeiros a usar a
linguagem articulada e, em consequência, serem pioneiros no ato de nomear
divindades primordiais Ísis e Osíris, propiciando uma difusão da vida em
comunidade e a agricultura de alimentos mais refinados, que por sua vez põe
fim à alelofagia, canibalismo entre semelhantes (DIODORO DA SICILIA,
Biblioteca Histórica, I, 10-12; 20).

Dessa forma, Hecateu esclarece as dúvidas dos escritos de Martín Bernal ao


traçar uma etnografia que reforça a importância que Egito assumira no
mediterrâneo durante a antiguidade. Hecateu, por outro lado, também possibilita
contrapor a visão distorcida de George James e percebermos que já na
antiguidade se tinha o entendimento de que a filosofia derivara de uma corrente
de pensamento egípcia, podendo até ter sido inventada às margens do Nilo:

“A filosofia dos egípcios no tocante aos deuses e à justiça é descrita da maneira


seguinte. Dizem eles que o primeiro princípio seria a matéria, da qual se derivam
então os quatro elementos e surgiram finalmente todos os seres vivos. O sol e a
lua são deuses portadores dos nomes de Osíris e Ísis respectivamente. Os
egípcios usam o escaravelho, o dragão, o falcão e outras criaturas como
símbolos da divindade, de acordo com Maneto em sua Epítome de Doutrinas
Físicas e com Hecateu no primeiro livro de sua obra Da Filosofia Egípcia. Eles
também erigem estátuas e templos aos animais sagrados porque não conhecem
a forma verdadeira da divindade. Para eles o universo foi criado, é perecível e
esférico, as estrelas compõem-se de fogo nelas; os egípcios dizem ainda que a
lua entra em eclipse quando fica na sombra da terra, que a alma sobrevive à
morte e transmigra para os outros corpos, e que a chuva decorre de alterações
na atmosfera; segundo Hecateu e Aristagoras os egípcios dão explicações
naturais para todos os outros fenômenos. Eles também instituíram leis tendo em 216
vista justiça, atribuindo-as a Hermes, e divinizaram os animais úteis aos homens,
além de pretenderem ser os criadores da geometria, da astronomia e da
aritmética. São esses os dados referentes à invenção da filosofia.” (JACOBY,
Frag. 264, 7 = DIOGENES LAÉRCIO, Vidas e doutrinas, I, 10)

Quando afirmamos que obras como a de James e Bernal traziam consigo


questionamentos que, em certa medida, já haviam sido feitos pelos antigos do
entorno mediterrânico, de maneira nenhuma visou-se inviabilizar estes
questionamentos, mas sim rever o modo como foram propostos. Ou seja, buscar
por questionar de maneira mais acertada, objetivo que deve estar presente em
cada proposta pedagógica.

Ao invés de nos questionarmos sobre o quem criou ou quem roubou, perguntas


que em certa medida se alinham ao internalismo metodológico eurocêntrico,
pretendemos nos ater à historicidade inerente ao objeto aqui abordado, visto que
entendemos como objetivo do Ensino de História fazer com que a sociedade
consiga pensar historicamente. Talvez a maneira certa de se questionar a
respeito da filosofia antiga seja perguntarmos: o que egípcios e gregos
entendiam por filosofia? Ou talvez, como os gregos se apropriaram da filosofia
egípcia?

Quando analisamos o fragmento citado de Hecateu de Abdera percebemos que


para os egípcios, como para os gregos, a filosofia se apresenta como uma
narrativa cosmogônica, ou seja, um conjunto de conhecimentos ordenados que
explicam o ordenamento do mundo [cosmos].

Contudo, difere no que diz respeito à doutrina. A filosofia egípcia estava ligada
ao pensamento religioso sacerdotal, fator que talvez possa explicar a ausência
de referência a filósofos egípcios nas fontes gregas, pois estes eram vistos pelos
gregos como sacerdotes. Assim sendo, a inovação grega não é a invenção da
filosofia, mas a invenção do filósofo, indivíduo pensante que ordena uma doutrina
e a transmite.

Percebemos então que ao despirmos a Antiguidade das pretensões modernas


da Europa novos pontos de vistas são possíveis. Um exemplo diz respeito à
velha dicotomia moderna que tende a separar mito e razão que neste novo
cenário do antigo não pode mais se sustentar, visto que mesmo dotadas de
contornos sacerdotais a filosofia egípcia foi capaz de analisar a esfericidade da
terra e explicar diversos fenômenos naturais, descobertas apagadas da História
da Ciência Moderna e que só foram resgatadas quando pronunciadas por
europeus.
Um processo de ensino que tenha por base esta práxis fornece à aluna, ou aluno,
o entendimento de que o conhecimento histórico também é historicamente
produzido, justificando não só o Ensino de História Antiga, mas o Ensino de
História em si. A História deixa de ser vista como um produto encerrado e passa
a ser vista como uma área do conhecimento que necessita de constante 217
atualização.

Por fim, através de uma pedagogia decolonial desloca-se de um movimento


reacionário de mera negação daquilo que foi rotulado como europeu, e passa-
se a rasgar estes rótulos em um processo de apropriação dos produtos culturais
de todo o globo através da “aprendizagem, desaprendizagem e reaprendizagem”
(ARIAS; PREDOZO CONEDO; ORTIZ OCAÑA, 2018, p. 86-87), pois, queiramos
nós ou não, a sucessão de eventos históricos que nos antecedeu fez com que
este passado se tornasse o nosso passado, negá-lo é negar consigo
possibilidades de futuro desprendidas da subjetividade colonial. Neste sentido
apropriar-se da antiguidade é resistir, (re)existir e (re)viver (Idem).

Referências biográficas
Luiz Henrique Silva Moreira, Licenciado em História pela Universidade Estadual
do Paraná (2015-2018) e Mestre em História Antiga pela Universidade Federal
do Paraná (2019-2021), nesta mesma instituição atualmente é aluno do Curso
de Doutorado em História (PPGHIS/UFPR).

Referências bibliográficas
ARIAS, María Isabel; PEDROZO CONEDO, Zaira Esther; ORTIZ OCAÑA,
Alexander. Decolonialidad de la educación: emergencia/urgencia de una
pedagogía decolonial. Santa Marta, Colombia: Editorial Unimagdalena, 2018.

ARISTÓFANES. As Nuvens. Tradução conjunta coordenada por José Baracat


Júnior. Cadernos de Tradução (Porto Alegre), v. 32, 2013. 98 pag.

CASTRO-GÓMEZ, Santiago. La hybris del punto cero: ciencia, raza e ilustración


en la Nueva Granada (1750-1816). Bogotá: Editorial Pontificia Universidad
Javerina, 2005.

CHAKRABARTY, Dipesh. Provincializing Europe: Postcolonial Thought and


Historical Difference. Princeton: Princeton University Press, 2000.

DIODORO DA SICILIA. Biblioteca Histórica: Introducción General Libros I-II.


Tradução coordenada por Jesús Lens Tuero em conjunto de Jesús M. García
González e Javier Campos Daroca. Madrid: Ediciones Clásicas, 1995.

DIOGENES LAÉRTIOS. Vidas e Doutrinas dos Filósofos Ilustres. Tradução do


grego, introdução e notas de Mário da Gama Kury. ed. 2. Brasília: Editora da
Universidade de Brasília, 2008.
DUSSEL, Enrique. Europa, modernidade y eurocentrismo. In: LANDER, Edgardo
(org.). La colonialidad del saber: eurocentrismo y ciencias sociales. Buenos
Aires: CLACSO, 1993.

DUSSEL, Enrique. Meditaciones anti-cartesianas: sobre el origen del anti-


discurso filosófico de la Modernidad. Tabula Rasa, Bogotá – Colombia, n.9, p. 218
153-197, julho-dezembro 2008.

HARTOG, François. Memória de Ulisses: Narrativas sobre a fronteira na Grécia


antiga. Tradução de Jacyntho Lins Brandão. Belo Horizonte: Editora UFMG,
2014.

HOMERO. Ilíada. Tradução e prefácio de Frederico Lourenço, introdução e


apêndices de Peter Jones. São Paulo: Penguin – Companhia das Letras, s/d.

HOMERO. Odisseia. Tradução, notas e comentários de Frederico Lourenço.


Lisboa: Quetzal Editores, 2018.

MORALES, Fabio Augusto; SILVA, Uiran Gebara da. História Antiga e História
Global: afluentes e confluências. Revista Brasileira de História, São Paulo. v.
40, n. 83, p. 125-150, 2000.
O ÚLTIMO OLHAR: MÁSCARAS FUNERÁRIAS
EGÍPCIAS COMO INSTRUMENTO PEDAGÓGICO
Maura Regina Petruski e Marco Antonio Stancik
219
A elaboração de novas metodologias e estratégias para serem aplicadas no
ensino de história se tornaram uma preocupação mais frequente entre
educadores e especialistas da área, visto que lhes é cabido pelas próprias
diretrizes curriculares a tarefa de promover o desenvolvimento de habilidades e
competências dos educandos.

Diga-se de passagem que, executar o que está estabelecido na legislação não


é algo tão fácil quanto parece, principalmente porque as determinações a serem
atingidas se direcionam para âmbitos mais abrangentes tais como nacional ou
estadual, sendo previstas, em sua maioria, sem levar em conta as inúmeras
disparidades que surgem em diferentes frentes nas quais estarão vigentes.

E, justamente devido a abrangência mencionada acima, é que se acredita que


dificuldades para sua implementação transcorrerão, ao mesmo tempo em que
também se crê na capacidade dos professores em vencerem as adversidades
que possivelmente se depararão, bem como em suas habilidades de buscarem
alternativas para fazerem com que o conteúdo que lhes é cabido a ser trabalhado
possa proporcionar aos estudantes a visualização de que a História é uma
disciplina dinâmica, que pode ser trazida para a sala de aula através de
diferentes métodos e formas que vão muito além dos resumos, cópias e
respostas a questionários.

E é diante de novos referenciais, recursos e fontes que estruturam a área de


História que esse texto se enquadra, buscando apresentar uma possibilidade
alternativa para se estudar a sociedade egípcia por meio da utilização das
máscaras mortuárias como instrumento pedagógico, que são artefatos
extremamente significativos da cultura material daquela sociedade milenar.

A respeito do assunto, Ulpiano B. Meneses destaca que,

“os artefatos — parcela relevante da cultura material — se fornecem informação


quanto à sua própria materialidade (matéria prima e seu processamento,
tecnologia, morfologia e funções, etc), fornecem também, em grau sempre
considerável, informação de natureza relacional. Isto é, além dos demais níveis,
sua carga de significação refere-se sempre, em última instância, às formas de
organização da sociedade que os produziu e consumiu” (MENESES, 2003, p.
107-108).

Todavia, no caso em questão, não se tem como objetivo de promover


habilidades artísticas dos educandos nem, tampouco, investigar o processo de
sua fabricação, mas sim de refletir sobre os significados e simbolismos que
esses objetos podem encaminhar, desenvolvendo com os alunos uma técnica
argumentativa mediante a qual se buscará envolvê-los na história vivenciadas
por pessoas que estiveram muito distantes espacial e temporalmente de seu
convívio.

O encaminhamento da atividade terá como ponto de partida a apresentação de 220


elementos imagéticos, que serão abordados como textos carregados de
significados, considerando-se que, se todo discurso remete a imagens mentais,
toda imagem funciona de forma similar à mensagem discursiva, bem como
destacou Sandra Pesavento (2004, p. 86). E, no trabalho com tais mensagens
expressas em linguagem não-verbal, as proposições de Erwin Panofsky, com
sua busca pelos elementos pré-iconográficos, iconográficos e, finalmente, pelos
de natureza iconológica, ganham relevo. A respeito, deve-se ponderar, no
entanto, “que a identificação correta dos objetos representados não basta para
determinar o conteúdo-significado e permite a escolha entre várias
interpretações legítimas; a decisão depende de nossos conhecimentos
históricos” (KLEIN, p. 1998, p. 344), dentre outros fatores. Aspecto este que
ganha especial relevância dada a distância temporal, para além da geográfica e
cultural, que nos separam daqueles artefatos funerários.

Ademais, em relação ao tema indicado a proposta não se encaminha na


perspectiva de incorporar um ítem novo na grade curricular, mas uma outra
alternativa que tem como ponto de reflexão um assunto já estabelecido no
conteúdo programático, ou seja, o Egito Antigo. No entanto, a discussão tem sua
operação pautada por uma metodologia centrada nos conceitos que norteiam a
área de História, procurando mostrar aos alunos que pensar historicamente não
está relacionado simplesmente em apresentar acontecimentos dentro de uma
linha do tempo, mas sim em promover um exercício reflexivo lançando questões
e contribuindo para que os alunos possam olhar além do que está sendo
apresentado visualmente através das imagens.

Outro aspecto a mencionar com a utilização desses artefatos como centrais da


discussão, é esclarecer aos alunos que os egípcios não escreveram sua história
e deixaram sua marca somente através dos hieróglifos, mas também por
intermédio dos seus objetos tais como os papiros, as miniaturas encontradas no
interior das câmaras mortuárias e as pinturas nas colunas dos templos, entre
outros.

É para a eternidade: a máscara


Algo que não se pode negar, é que ao longo da história da humanidade o homem
fez uso de objetos em seu cotidiano para distintos fins. Dentre as incontáveis
peças por eles criadas temos as máscaras que foram utilizadas em inúmeras
sociedades, e que, embora seja um objeto único, dezenas de significados lhes
foram atribuído, como Maristani Polidori Zamperetti mencionou:

“disfarce ou aparência enganadora; artefato que representa um rosto ou parte


dele; algo que se destina a cobrir o rosto ou a disfarçar o rosto de quem o utiliza;
objeto esculpido, modelado ou trançado colocado sobre o rosto ou cabeça;
adereço ou símbolo de identificação; transfiguração; representação de formas
animais, humanas, naturais, sobrenaturais e míticas; presença fundamental nas
religiões animistas; adereço ou símbolo de identificação e passaporte para
mundos imaginários” (ZAMPERETTI, 2010, p.65).
221
Dos itens apontados pela autora, dois deles podem ser apresentados como
indicativos para a explicar sua utilização entre os egípcios, são eles; símbolo de
identificação e a de passaporte para mundos imaginários, os quais se
enquadram como referenciais de elementos que compõem a cultura religiosa,
sendo essa uma marca distintiva de sua crença no pós-morte.

As máscaras exerciam uma função religiosa significativa entre os moradores da


terra dos faraós, compondo o equipamento funerário do indivíduo desde o
Primeiro Período Intermediário, e, acordo com Márcia Severina Vasques, o
intuito de sua utilização como componente externo do corpo mumificado não se
relacionava a apresentar uma aparência modificada do falecido, nem, tampouco,
de procurar esconder o rosto abaixo das bandagens, mas o contrário disso, na
medida em que se tratava de reproduzir imagens idealizadas da face humana
que representassem o indivíduo vivo, como forma de substituir a cabeça do
morto tentando lhe garantir a sobrevivência de elementos que o compunham,
como o ba por exemplo, o uma vez que este necessitaria de uma referência à
sua imagem original para continuar a existir.

Na crença egípcia acreditava-se que havia a possibilidade do indivíduo perder a


cabeça no mundo dos mortos, e caso isso se efetivasse, a máscara era o
instrumento que o identificaria para o retorno a vida. Diante dessa referência,
acredita-se que não é viável propor a justificativa de que a máscara seria uma
peça que pudesse ser classificada como um mero adorno corporal, mas sim que
se constituía num objeto indispensável e dotado de grande carga simbólica de
representação dos humanos, principalmente em seu caráter divino identificado
ao deus Osíris e Rê (VASQUES, 2005).

No entanto, a necessidade de se proceder o registro das características faciais


do morto remonta ao antigo império egípcio, quando os traços que
representavam sua identificação eram pintados sobre o tecido que envolvia a
cabeça da múmia, porém, essa não era a única forma predominante de produção
de mascaramento desenvolvida, sendo a moldagem em gesso outra técnica
utilizada, quando aplicava-se a massa sobre o rosto acima das bandagens para
que a modelagem atingisse o formato da face. Porém, a respeito da realização
do procedimento de sua confecção é necessário enfatizar que nem todos os
egípcios tinham acesso à possibilidade de deixar seus traços para a posteridade,
visto que essa prática estava restrita aos membros da elite.

Os modelos mencionados acima, pintura na bandagem e gesso, foram utilizados


até aproximadamente o ano de 2181 a.C, quando começaram a ser substituídos
pelas máscaras de madeira produzidas através da técnica em forma de molde,
sendo confeccionadas separadamente e depois colocadas sobre o rosto, e sob
elas poderiam ser acrescidas as orelhas e outros acessórios como perucas,
olhos incrustrados e toucados. Além de que, algumas foram adornadas com
plumas imitando pássaros, sendo que as cores prevalentes na estética das
pinturas faciais tinham destaque para o vermelho, o amarelo e o dourado.
222
Porém, as fontes mostram que as máscaras de cartonagem constituíram o
modelo que tendeu a predominar ao longo do tempo, sendo que exemplares
desse material foram encontrados em todo Egito e também em regiões da Núbia,
principalmente durante o médio império. A cartonagem é um termo empregado
pela egiptologia a camada de fibras ou papiros que eram aglutinados e
suficientemente flexíveis para sem modeladas enquanto molhadas sobre a
superfície irregular do corpo.

O metal também foi outra opção para sua produção, mas passou a ser utilizado
durante o novo império, mas isso não quer dizer que os materiais utilizados
anteriormente foram deixados de lado em sua fabricação, pois continuaram se
fazendo presentes. Durante esse período, as explorações arqueológicas
evidenciaram a presença de peças de tamanho infantil, embora
proporcionalmente fossem bem menor em número se comparadas com as
adultas, e juntamente com a incorporação desse novo material veio a adoção e
prevalência da cor dourada como padrão de referência.

A retração na produção das máscaras e consequentemente de seu uso como


componente da indumentária funerária está relacionado paralelamente com a
utilização dos caixões antropomórficos para alojar as múmias, ao mesmo tempo
em que adotou-se como procedimento em estampar na tampa externa desse
receptáculo a idealização não somente das características faciais do indivíduo
mas de seu corpo por inteiro, e, diante dessa nova perspectiva, gradativamente,
as máscaras começaram a cair em desuso. Como reflexo dessa nova forma de
identificação corporal as pinturas em forma de retrato ganharam força, iniciando
uma nova etapa de representação do indivíduo no cenário mortuário, muito
embora o que estava resguardado por detrás da imagem continuasse
relacionado ao campo das crenças dos indivíduos.

Olhando com outros olhos


Um primeiro aspecto a considerar sobre a utilização das máscaras como ponto
de partida para a reflexão sobre a sociedade egípcia se encaminha para
observar a dissociação da interpretação que prevaleceu durante muitos anos nas
salas de aulas de que a disciplina de História deve ser estudada tendo como
premissa seus governantes, apresentados como os ‘verdadeiros’ construtores
da história e identificados como os responsáveis pelos acontecimentos que se
desencadeariam a partir deles ou, ainda, através de sua intercessão.

A respeito do mencionado acima, não se questiona a relevância dos indivíduos


que ocupam cargos na governança, mas o que não se concorda é apresentá-los
como seres personificados, capacitados e detentores de amplos e irrestritos
poderes, veiculando a ideia de que os demais segmentos sociais que integram
a sociedade não tivessem participação no seu conjunto de formação,
desenvolvimento e organização.

Porém, quando se muda o foco da reflexão distanciando-se da figura dos


grandes personagens encaminhando a análise partindo de um objeto como o 223
interlocutor da explanação, demonstra-se uma nova abordagem e percepção de
ensino, bem como do entendimento de que o campo da História pode ser
construído a partir de outros referenciais, e entre eles está a cultura material,
edificada por todos os indivíduos que formam o conjunto dos diferentes grupos
sociais.

Ademais, em relação a utilização das máscaras, entende-se também que é


possível se pautar da materialidade dos objetos para desenvolver uma
metodologia de ensino que não esteja centrada na significância dos elementos
da expressão artística tais como forma, volume, cor e textura, muito embora,
acredita-se que esses dados sejam relevantes e necessários quando o foco se
encaminha para a história da arte, mas que não é o caso da presente proposta,
uma vez que esses elementos referenciais seriam apresentados somente como
categorias catalográficas.

Tendo em conta que, ao se trazer esse objeto para o centro da discussão ele
não seria uma referência meramente ilustrativa e apresentado como algo
confirmatório do que está apontado no livro didático ou na fala do professor, ou
seja, não lhe é concedido uma espécie de carimbo de autenticidade de uma
história que leva a ideia de se colocar um ponto final no que foi enunciado, muito
pelo contrário, é que a partir dele novos questionamentos suscitem e que cada
vez mais se busque conhecer referências que estão em seu entorno.

Acrescenta-se ainda que, quando se toma a imagem das máscaras como ponto
central de análise, constata-se a superação da marginalização do que se
entende por fonte e documento histórico, campos que ampliaram seus domínios
no decorrer do século XX. Exemplificando tal afirmação, é possível de se
perceber por intermédio das máscaras a força da cultura egípcia perante outras
sociedades, fazendo com que povos que até então chegaram a esse território
através de uma política de dominação e impuseram sua autoridade foram
tombados diante de uma cultura milenar, incorporando referenciais das crenças
egípcias adotando alguns dos costumes, entre eles está a utilização das
máscaras funerárias como componente do equipamento funerário.

Por fim, vale dizer que a difusão do saber pode ser construído por diferentes
caminhos, e o que foi apresentado acima é apenas um deles.

Referências biográficas
Dr.ª Maura Regina Petruski, professora da Universidade Estadual de Ponta
Grossa.
Dr. Marco Antonio Stancik, professor da Universidade Estadual de Ponta Grossa.

Referências bibliográficas
KLEIN, Robert. A forma inteligível. São Paulo: EDUSP, 1998.

Maristani Polidori Zamperetti. A arte e o saber de si no uso pedagógico das 224


máscaras: práticas e pesquisa na sala de aula. Revista Contrapontos -
Eletrônica, Vol. 10 - n. 1 - p. 65-73 / jan-abr 2010.

MENESES, Ulpiano T. Bezerra de. Fontes visuais, cultura visual, História visual:
Balanço provisório, propostas cautelares. Revista Brasileira de História, São
Paulo, v.23, n. 45, 2003.

PANOFSKY, Erwin. Significado nas artes visuais. São Paulo: Perspectiva, 1976.

PESAVENTO, Sandra Jatahy. História & História Cultural. 2. ed. Belo Horizonte:
Autêntica, 2004.

VASQUEZ, Márcia Severina. Crenças funerárias e identidade cultural no Egito


Romano: máscaras de múmia. 2005. Tese (Doutorado em Arqueologia) – Museu
de Arqueologia e Etnologia, Universidade de São Paulo, São Paulo.
OCUPANDO NOVOS ESPAÇOS: PROPOSTAS
DIDÁTICAS DO PROJETO VOCABULÁRIO POLÍTICO
DA ANTIGUIDADE
Laryssa Alves da Silva e Millena Luzia Carvalho do Carmo
225

Os desafios no processo de ensino, em todas as áreas de conhecimento,


expressam-se cotidianamente na realidade educacional brasileira. Seja através
da elaboração da estrutura curricular ou da vivência do professor com os seus
alunos, os obstáculos para a concretização de um sistema educacional crítico e
transformador, estão firmes nas bases da sociedade e não poderão ser
ultrapassados sem o trabalho conjunto, não apenas das várias áreas de
conhecimento, mas também dos espaços onde esse conhecimento se
manifesta.

Por esse motivo, compartilhar experiências no campo educacional se faz tão


necessário. É a partir das trocas, das conexões criadas nesses momentos de
interação que podemos romper com práticas pedagógicas ineficazes, criar novas
metodologias de ensino e estruturar propostas didáticas interdisciplinares,
essenciais para o desenvolvimento da capacidade crítica e argumentativa dos
alunos. A educação não pode ser tratada de forma isolada em relação aos outros
espaços sociais, políticos, econômicos etc.

Diante dessas inquietações, buscaremos apresentar nas linhas a seguir a nossa


experiência, enquanto alunas do curso de História – Licenciatura Plena (UFPB),
no projeto PROLICEN Vocabulário Político da Antiguidade: reflexões para o
exercício da cidadania (coordenado pela professora Priscilla Gontijo Leite, do
curso de História da UFPB e pelo professor Lucas Consolin Dezotti, do curso de
Letras clássicas do mesmo campus), nesse processo de pensar e repensar
propostas didáticas para o ensino de História Antiga no Ensino Fundamental e
Ensino Médio.

A partir da integração dos cursos de Letras Clássicas e História, o projeto se


propõe a trabalhar com pesquisa histórica, tradução de textos antigos, produção
e aplicação de materiais didáticos nas escolas, integrando os três pilares que
sustentam a universidade pública: o ensino, a pesquisa e a extensão,
conectando, assim, o ambiente universitário e o escolar.

O projeto busca, também, romper com a ideia de que a História Antiga é um


período atrasado ou superado e provocar no aluno reflexões acerca de conceitos
que estão presentes no seu cotidiano escolar e na sua vida como sujeito social,
a saber: monarquia, democracia, tirania, república etc. Esses conceitos surgiram
no mundo antigo e passaram por muitas transformações até os dias de hoje,
então, analisar esse processo colabora para o reconhecimento da complexidade
histórica da qual também fazemos parte.
Para propor essas reflexões, elaboramos 32 fichas sobre os pensadores da
Antiguidade: Heródoto, Aristóteles e Políbio, seus contextos históricos, e
traduzimos trechos dessas fontes textuais, com uma linguagem que pudesse
facilitar o uso dessas fontes na construção dos planejamentos de aula dos
docentes. A organização de todo esse material gerou um livro em formato e-
book, que foi publicado pela editora do CCTA-UFPB (LEITE, DEZOTTI, 2019); 226
disponível em http://www.ccta.ufpb.
br/editoraccta/contents/titulos/historia/vocabulario-politico-da-antiguidade-
reflexoes-para-o-exercicio-da-cidadania).

A partir do livro, elaboramos planos de aula para serem aplicados nas escolas
de ensino básico. O primeiro plano de aula intitulado: “Heródoto: formas de
governo”, foi aplicado entre os anos de 2018 e 2019, nas escolas da rede pública
de ensino de João Pessoa, nos seguintes níveis: 6º ano do Ensino Fundamental,
9º ano do Ensino Fundamental e 1ª série do Ensino Médio. A aula era composta
pela explicação do contexto histórico do autor; a apresentação das formas de
governo: de um só (monarquia, tirania), de poucos (aristocracia e oligarquia), de
muitos (democracia); leitura de trechos em grego; dinâmica e atividade de
fixação. Foram experiências muito ricas para a nossa formação, nos
incentivando a elaborar novos materiais e buscar um ensino de História Antiga
mais dinâmico e comprometido com reflexões da prática cidadã (CARMO,
SILVA, 2019).

Com o objetivo de expandir o nosso trabalho nas escolas do ensino básico,


elaboramos novos planos de aula para serem aplicados no ano de 2020. Ao todo,
elaboramos 9 planos de aula sobre Heródoto, Aristóteles e Políbio. Eles propõem
aumentar a interdisciplinaridade das áreas de conhecimento, um dos objetivos
principais do nosso projeto. Assim, buscamos dialogar também com as
disciplinas de Letras e Filosofia.

Em virtude da pandemia da COVID-2019, que acometeu o mundo em 2020,


tivemos que pausar o nosso plano de aplicação do material em espaços para
além da universidade. O fechamento das escolas tornou inviável a nossa
intervenção presencial e exigiu de todos os professores novas abordagens de
ensino, agora ocupando o espaço virtual. Esse processo de adaptação e
adequação ainda é bastante desafiador, tendo em vista a falta de preparo do
Governo Federal e do Ministério da Educação para propor capacitações e
auxiliar os discentes e docentes nesse novo cenário.

Com isso, passamos rapidamente a nos questionar: como usar a tecnologia a


nosso favor no processo de aprendizagem? Como o ensino à distância dificulta
o diálogo, a troca, as relações antes feitas na sala de aula? Pensar nessas
questões é, também, pensar o papel da educação e a formação do “ser
professor” (BRANDÃO, 2002). O ensino virtual é capaz de expandir as redes de
troca, conectando as pessoas de diferentes lugares, no entanto, rompe com o
contato direto com outros sujeitos, outras vivências, outros afetos. Outro ponto
fundamental, principalmente para os discentes das escolas públicas, é a falta de
acesso a essa rede que nos conecta (internet, celular, tablet, computador etc.)
para participar de uma aula remota. Isso reforça uma educação hierarquizada,
que evidencia os abismos sociais do nosso país.

Apesar dessas problemáticas, encontramos nesse espaço virtual a possibilidade


de pensar novas estratégias de ensino, especificamente de História Antiga. 227
Então, em junho de 2020 lançamos o site do projeto (disponível em
http://www.cchla.ufpb.br/laborhis/vocabulario-politico/), visando reunir o livro, as
propostas didáticas e os futuros trabalhos do projeto. Ele está vinculado ao site
do Laborhis, que é um espaço de estudo e de produção de conhecimento dos
alunos de História, da UFPB (disponível em http://www.cchla.ufpb.br/laborhis/).

No site do Vocabulário Político da Antiguidade, é possível encontrar a história do


projeto, o nosso contato, o link para o livro, os 9 planos de aula disponíveis para
download (que contam com uma apresentação de slides, um arquivo para
auxiliar o trabalho com o grego, um texto informativo, uma atividade de fixação
e dinâmicas para trabalhar o conteúdo) e, além disso, quizzes sobre essas
propostas didáticas.

Até então são 4 quizzes, com as temáticas: Heródoto: formas de governo;


Aristóteles: formas de governo; Políbio: os seis regimes políticos; Democracia
ateniense: princípios e instituições. Eles estão disponíveis para download em
formato PNG, visando facilitar o compartilhamento desse material nas redes
sociais e proporcionar uma atividade interativa sobre a Antiguidade.

Com objetivo de ampliar ainda mais os canais digitais do projeto e a visibilidade


desses quizzes, criamos um canal interativo no Telegram (disponível em
https://t.me/vocpoitico) para compartilhar as perguntas e gerar automaticamente
as respostas para o jogador. Nesse canal, é possível se inscrever, acompanhar
as novidades do projeto e o lançamento de novas questões.

Todo o compartilhamento dessas propostas está sendo feito internamente, nas


nossas redes sociais e entre espaços de ensino parceiro do projeto nos anos
anteriores. Recentemente lançamos um vídeo pelo canal do YouTube do
Departamento de História – UFPB (disponível em
https://www.youtube.com/watch?v=amuyuVKK5GU&t=11s), em que
sintetizamos todas as atividades desenvolvidas nesses 5 anos de projeto.
Acreditamos que a integração dos espaços de conhecimento e a
horizontalização dos debates sobre metodologias de ensino, podem contribuir
muito com o objetivo de construir uma educação crítica, integrada, questionadora
e emancipadora.

Um outro aspecto que temos trabalhado é em relação ao diálogo com o grego


durante essas aulas. Durante as aplicações do plano de aula de Heródoto nas
turmas, a aluna de Letras Clássicas lia na sala trechos em grego previamente
selecionados. Queremos que o trabalho com essa língua seja possível para
todos que utilizem esse conteúdo, então, além da recomendação do uso da
plataforma Ugarit (disponível em http://www.ugarit.ialigner.com/), que
possibilita o alinhamento entre a tradução e o texto original, sendo possível
identificar cada palavra ao seu respectivo significado, planejamos gravar a leitura
de todos os trechos em grego dos planos de aula e deixar disponível para
download também no site. Esse é um trabalho contínuo, uma vez que o ambiente
virtual é dinâmico e está sempre em transformação, apresentando novas 228
ferramentas possíveis de integração às propostas didáticas.

O trabalho desenvolvido pelo projeto, seja presencialmente ou virtualmente,


busca dialogar com a Antiguidade de forma criativa, que possa ir além do livro
didático e da estrutura curricular estabelecida. Até porque, o ensino de História
Antiga só está previsto na BNCC no 6° ano do Ensino Fundamental, sendo
função do professor articular os conceitos em outros níveis de ensino e em outros
conteúdos.

Além disso, os assuntos obrigatórios reiteram o pensamento linear da História e


expõe a Antiguidade de maneira superficial, cheia de estereótipos que reforçam
a tradição eurocêntrica (LEITE, 2020, p. 103). Pensar a História Antiga de
maneira crítica, permite que o aluno reflita sobre os processos históricos de
maneira integrada, analisando a coexistência de sociedades, culturas, ideias.
Isso evidencia, também, a possibilidade de articulação com o presente, as suas
transformações e os novos papéis sociais que se construíram no decorrer do
tempo e que devem ser sempre questionados.

O uso de tecnologias pode facilitar essa troca durante o ensino-aprendizagem.


Essa é uma questão fundamental para o ensino de História como um todo: é
necessário ocupar novos espaços, dialogar com a realidade dos alunos e pensar
essa vivência na sala de aula igualmente fluida e viva como é o ensino, a
educação. Dessa forma, as propostas do projeto Vocabulário Político da
Antiguidade, buscam projetar o mundo antigo nessas novas possibilidades,
dialogando com temporalidades, sujeitos históricos que precisam reconhecer
sempre a sua cidadania ativa no processo de construção de uma sociedade mais
justa e democrática.

O mundo antigo é rico não apenas por sua herança cultural, mas também pela
capacidade de nos levar a refletir sobre muitos conceitos que fazem parte do
nosso cotidiano e questionar as estruturas vigentes. Colocar o aluno em contato
com a História Antiga é de fundamental importância para criar pontes entre o
passado e o presente, levando-o a pensar a sociedade da qual faz parte.

A elaboração do material didático, partiu da necessidade de pensar o ensino


básico e promover o diálogo entre o conhecimento histórico acadêmico e o
conhecimento histórico escolar, que não deveriam, de forma alguma, estarem
desconectados. O material produzido visa auxiliar os docentes e discentes nesse
processo de aprendizagem integrado, especialmente no que diz respeito à
compreensão do vocabulário político da antiguidade. Além desses conceitos
políticos, como democracia, monarquia, oligarquia, o material traz consigo o
contexto histórico, biografia dos autores estudados e trechos de obras de autores
antigos, possibilitando o contato diretamente com a fonte histórica. Assim, as
fichas e as traduções, que foram compiladas no livro es formato e-book,
fornecem um material completo para o professor, sempre pautado no trabalho
interdisciplinar.
229
A produção e aplicação dos planos de aula, possibilitou uma profícua experiência
e crescimento humano e profissional para nós, alunas da graduação de História.
Vivenciar a realidade da sala de aula, com suas possibilidades e desafios, foi um
incentivo a buscar melhorias para o projeto e reafirmou o nosso compromisso
com a educação. Percebemos o quanto é necessário o diálogo entre a
universidade e a escola, especialmente no que diz respeito ao processo de
elaboração da grade curricular e das propostas didáticas dos conteúdos
estabelecidos.

No cenário da pandemia da COVID-19, precisamos rever os nossos planos de


ação. Novos desafios são colocados não só ao ensino de História, mas à
educação de modo geral. Por isso, o desenvolvimento dos 9 planos de aula e
das atividades em outros canais digitais, foi muito importante para facilitar a
acessibilidade ao nosso material e apresentar para mais pessoas o trabalho que
estamos desenvolvendo. Assim, o site, o canal do Telegram, os quizzes, as
sugestões de outras plataformas, colaboram com essa tentativa de pensar em
novos planos de ação, dialogando sempre com o cenário que estamos inseridos.

O uso de tecnologias possibilita a conexão entre pessoas de diversas realidades,


localidades, visões, e isso é fundamental no ensino de História. Precisamos,
porém, ter em vista as dificuldades e desigualdades do sistema educacional
brasileiro e lutar para que essa educação integrada e conectada, seja possível
para todos, até porque, ela é um direito Constitucional que, infelizmente, vem
sendo negligenciado nos últimos anos. Acreditamos que o estudo da Antiguidade
é essencial para promover uma prática educativa crítica, horizontal e promotora
da cidadania, situando os sujeitos no seu tempo.

Estamos em um processo de contínua transformação e, por isso, precisamos


ocupar novos espaços, pensando em novas experiências na sala de aula, seja
ela virtual ou não, e buscando novas metodologias para o ensino de História.

Referências biográficas
Laryssa Alves da Silva, estudante de História – Licenciatura Plena, pela
Universidade Federal da Paraíba (UFPB).

Millena Luzia Carvalho do Carmo, estudante de História – Licenciatura Plena,


pela Universidade Federal da Paraíba (UFPB).

Referências bibliográficas
BRANDÃO, Carlos Rodrigues. O trabalho de ensinar. In: BRANDÃO, Carlos
Rodrigues. A educação popular na escola cidadã. Petrópolis, Rio de Janeiro:
Vozes, 2002, pp. 185-229.

LEITE, Priscilla Gontijo; DEZOTTI, Lucas Consolin (orgs.) Vocabulário político


da Antiguidade: reflexões para o exercício da cidadania. João Pessoa: Editora 230
do CCTA, 2019.

LEITE, Priscilla Gontijo. O ensino de História Antiga no Brasil: percepções a partir


das propostas da BNCC. In: SOUZA NETO, José Maria Gomes de; MOERBECK,
Guilherme; BIRRO, Renan M. (Org.). Antigas Leituras. Ensino de História.
Recife: EDUPE, 2020, p. 93-114.

SILVA, Laryssa Alves da; CARMO, Millena Luzia Carvalho do. O ensino dos
regimes políticos em História Antiga: uma proposta a partir do projeto Prolicen.
In: ASSUMPÇÃO, Luis F. Bantim de; BUENO, André; CAMPOS, Carlos E.;
CREMA, Everton; NETO, José Maria de Sousa. Aprendendo História:
Experiências. União da Vitória: Sobre Ontens, 2019.
POSSÍVEIS AÇÕES DE EDUCAÇÃO PATRIMONIAL
PARA OS SÍTIOS PRÉ-HISTÓRICOS DE CORGUINHO E
AQUIDAUANA COM BASE NO MODELO DO DISTRITO
DE PORTO CAIUÁ – NAVIRAÍ – MS
231
Pedro Leandro Batista de Souza

O presente trabalho tem como objetivo central a apresentação de modelos de


educação patrimonial para dois abrigos sob rocha, com materiais arqueológicos
e pinturas rupestres, nos municípios de Corguinho e Aquidauana – MS. Estas
descobertas, embora casuais, permitiram a construção desse trabalho e
empreenderam diversas fases de pesquisa como a visita técnica, o contato com
os objetos e pinturas rupestres, análise geográfica dos locais em campo e dos
processos burocráticos necessários para que os materiais e os locais naturais
usados como moradia por grupos caçadores coletores e ceramistas agricultores
se tornem parte do patrimônio cultural de MS, e que estes sejam reconhecidos
e protegidos pela União.

Possíveis ações de educação patrimonial para os sítios Pré-Históricos de


Corguinho e Aquidauana com base no modelo do distrito de Porto Caiuá –
Naviraí – MS
O objetivo desse texto é demonstrar ações de educação patrimonial, com base
em sítios arqueológicos Pré-Históricos, que possam ser aplicadas nos
municípios de Corguinho/Aquidauana. Há no Brasil uma carência significativa no
que tange ao patrimônio e práticas efetivas da conscientização das comunidades
entrono de locais de história. A partir de 1988 o conceito de Patrimônio irá se
ampliar, e mais tarde com o estabelecimento de ferramentas de preservação ao
material e imaterial como também ao que remonta ao processos de inventário e
registros, irão encontrar primeiras normativas como o Decreto 3.552 de 04 de
agosto de 2000, que implementa ações educativas e ressaltam a importância e
a preservação das heranças culturais, essa que projeta aos órgãos então
responsáveis a abarcar o desenvolvimento como o atributo da gestão do
patrimônio cultural.

Com a Lei Federal n°3.924 de 26 de julho de 1961, que já nesse período de voga
do pensamento no que tange a reafirmação dos objetos ligado a cultura nacional
que irão dar ênfase aos monumentos arqueológicos e pré-históricos, e sobre
essa normativa irá regulamentar a guarda e a proteção dos bens. Nessa
conjuntura o estudo arqueológico começa a se projetar em relação ao
patrimônio.

Segundo Magalhães (1981) novas mudanças iriam se iniciar a partir de 1981,


com a Secretária de Cultura que a disporia de duas subsecretarias que tratariam
de assuntos ligados a cultura e a outra ao patrimônio artístico nacional. A
imprensa nesse período já discutia que era necessário criar um Ministério da
Cultura, o que também na visão de Magalhães não era viável a divisão nesse
período, de cultura e educação, era necessária o incentivo para estreitamento
entre as duas.

“Por enquanto, em nosso país, não se pode divorciar cultura e educação, mas
muito ao contrário, é necessário incentivar o estreitamento das relações entre as
duas áreas, em virtude do papel primordial que o processo cultural desempenha 232
no educacional, na medida em que uma educação desprovida do seu contexto
sociocultural não passa de mera técnica sem grande utilidade ou a serviço da
progressiva perda de identidade nacional. Não há desenvolvimento harmonioso
e nem se faz uma nação forte se, na elaboração das políticas econômicas do
país, não são levadas em consideração as variáveis culturais e o papel que aí
desempenha o sistema educacional”. (MAGALHÃES,1981, p.2).

Nessa perspectiva ligar as E.Ps com a educação pode alcançar grandes


patamares, apesar da dificuldade de recursos e investimentos na área de
educação patrimonial, há possibilidades viáveis de inserção em diversas esferas
da comunidade.

Figura 1: Diagrama referente ao uso educacional do Patrimônio Cultural Fonte:


adaptado de Horta et al., (1999)

Então a partir de Horta (1999), verifica-se que essa metodologia incita aos
professores a utilizar os próprios objetos culturais, como “Fonte de informação
sobre a rede de relações sociais e o contexto em que foi produzido”. Logo as
ações a serem desempenhadas nos locais onde se encontraram tais achados
se misturam na amalgama dos objetos culturais nesse caso a arqueologia que
resgata não somente o passado, mas também projeta as problemáticas da
afirmação do patrimônio a aqueles que são também estão inclusos nos contextos
históricos, (comunidades, escolas, municípios, prefeituras).
A cultura patrimonial não está somente para elucidar o objeto e nem somente
sua apresentação. Ela se insere ao público onde esse estão também
aprendendo e adquirindo habilidades relacionadas a salva guarda do patrimônio.
Como conceitua Silva (2007), a Educação Patrimonial não empreende de uma
simples atividade pedagógica e também não se assemelha a uma disciplina no
curriculo escolar. Em sua abrangêcia detém de uma índole interdisciplinar 233
integrada a várias areas de conhecimento. E um dos metódos em que a
educação patrimonial está inerentemente ligada à Arqueologia.

“[...] onde as investigações são feitas em campo, em


contato direto com os objetos dando entendimento acerca
dos homens e suas cultura, seus artefatos culturais, suas
habitações e cercanias, permitindo conhecer o seu passado
numa visão diferenciada, mais democática, humana e
desalienada da história elitizada” (SILVA, 2007, p.41).
É sabido que Arqueologia se projeta em uma área de conhecimento que se utiliza
de vestígios materiais como fonte documental, e através dessa, forja
entendimentos e concepções sobre a vida de diferentes sociedades, tal se
relaciona de modo direto com os ambientes naturais e ecossistemas. Logo o
conhecimento arqueológico compõe-se de óticas interdisciplinares, que
possibilitam nesse caso, o meio escolar para que assim possam ser
desenvolvidas atividades de educação patrimonial, que como discutido, se
voltam para a sensibilização de professores e ou alunos sobre o enfoque da
proteção e valorização do patrimônio cultural no processo educativo.

Dessa perspectiva, em 2016, o Instituto do Patrimônio Histórico e Artístico


Nacional (IPHAN) aprovou a Portaria n°137, que prevê as diretrizes de Educação
Patrimonial no âmbito do IPHAN e de espaços como Casas patrimoniais.

“Art. 3º São diretrizes da Educação Patrimonial:


I - Incentivar a participação social na formulação, implementação e execução das
ações educativas, de modo a estimular o protagonismo dos diferentes grupos
sociais;
II - Integrar as práticas educativas ao cotidiano, associando os bens culturais aos
espaços de vida das pessoas;
III - valorizar o território como espaço educativo, passível de leituras e
interpretações por meio de múltiplas estratégias educacionais;
IV - Favorecer as relações de afetividade e estima inerentes à valorização e
preservação do patrimônio cultural;
V - Considerar que as práticas educativas e as políticas de preservação estão
inseridas num campo de conflito e negociação entre diferentes segmentos,
setores e grupos sociais;
VI - Considerar a intersetorialidade das ações educativas, de modo a promover
articulações das políticas de preservação e valorização do patrimônio cultural
com as de cultura, turismo, meio ambiente, educação, saúde, desenvolvimento
urbano e outras áreas correlatas;
VII - incentivar a associação das políticas de patrimônio cultural às ações de
sustentabilidade local, regional e nacional;
VIII - considerar patrimônio cultural como tema transversal e interdisciplinar”.
234
A partir desse prisma normativo se observa todas a nuances a qual a cultura
patrimonial deve ou possivelmente ocasione aos integrantes a qual se inserem
na prática patrimonial. Os achados arqueológicos devem ser socializados com a
comunidade por meio das E.Ps e que esse gere a sensibilização tão importante
para que se construa a relações do homem social com o patrimônio, ligados
intrinsicamente de forma que visem o Material/Natural como parte da história e
do cotidiano das pessoas.

Esse processo tão esperado, os atores sociais tornar-se-ão multiplicadores da


ideia ao sentirem como parte integrante da ação. É necessário destacar que um
dos problemas enfrentados hoje em relação a educação patrimonial é a visão
ingênua de que ela é a grande salvadora de todos os problemas relacionados à
preservação do patrimônio cultural. A educação patrimonial passa a ser um
mecanismo capaz de solucionar todas as transformações envolvendo a
identidade cultural, a gestão e preservação do patrimônio (SOARES; REMPEL,
2010).

Ao que se presume com esse entendimento, a Educação Patrimonial pode/deve


ser fomentada e apreendida as comunidades próximas aos sítios arqueológicos
descobertos, e assim buscar objetivar nesses locais a sensibilização para como
o passado arqueológico e do patrimônio natural local.

Possíveis práticas patrimoniais aos sítios de Corguinho e Aquidauana/


baseadas no exemplo bem-sucedido no distrito de Porto Caiuá – Naviraí -
MS.
O Museu de Arqueologia da Universidade Federal do Mato Grosso do sul, em
seus doze anos de atividade, produziu diversas ações com êxito de Educação
Patrimonial com foco na Pré-História de Mato Grosso do Sul. Dessa forma,
recorremos ao museu, para avaliarmos alguma ação patrimonial fosse possível
de aplicação aos sítios de Corguinho/Aquidauana, objeto de pesquisa desse
trabalho.

Logo um local foi suscitado, pelas diversas características que se inserem ao


contexto dos achados análogos aos sítios descobertos e pelas ações que foram
desempenhadas por uma equipe multidisciplinar. Desse modo foi escolhido para
exemplificar as ações de cultura patrimonial o trabalho respectivo a: ÁREA
PROJETADA PARA A IMPLANTAÇÃO DO DISTRITO DE PORTO CAIUÁ,
Portaria IPHAN nº 48 de 14/10/2013, que tem como instituição responsável o
MuArq em parceria com a Fundação de Apoio a Pesquisa, ao Ensino e à Cultura
(FAPEC).
Esse trabalho em resumo, foi desenvolvido a uma pesquisa referente ao
desenvolvimento de um trabalho de consultoria técnico-científica em
Arqueologia, atribuído ao instituto do Patrimônio Histórico e Artístico Nacional
(IPHAN). No presente trabalho ocorreram ações de pesquisa para implantação
do Distrito de Porto Caiuá, que no contexto abrange o entorno do Sítio
arqueológico “Rio Ivinhema 1 (VN1), no município de Naviraí/MS. O objetivo do 235
trabalho coordenado pelo então Prof. Dr. Gilson Rodolfo Martins (UFMS),
consistiu em delimitar na parte arqueológica os locais referentes aos vestígios
arqueológicos e seus perímetros, frente a implementação do Distrito proposto
“Porto Caiuá”, e que nesse trabalho tinha como fundamental, proteger o Sítio
então apresentado.

Das diversas etapas desse trabalho, será apresentado aqui as ações de cultura
patrimonial que foram desempenhadas em conjunto a comunidade residente ao
entorno do sítio INVINHEMA 1(VN1), e que poderão também ser aplicados nos
municípios de Corguinho e Aquidauana. As etapas que se sucederam no projeto
do Distrito Porto Caiuá, se observou as ações de aplicação da cultura
patrimonial. A primeira etapa dessas ações, consistiram em pesquisas
preliminares sobre as características dos moradores locais. Foram aplicados
questionários simples de forma informal, como conversas descontraídas sobre a
disposição dos vestígios arqueológicos, como também se observou o cotidiano
da comunidade durante o trâmite do projeto.

Posteriormente foi realizado um Levantamento Quantitativo referente as


características culturais do Porto Caiuá (MARTINS, 2013). Se desenvolveram
entrevistas junto aos moradores, onde foram coletadas diversas informações
quanto escolaridade, sobre como se veem e como é a relação com o convívio
familiar além de incidência de festas e reuniões. O que chamou a atenção do
resultado foi o desconhecimento pela maioria sobre o conceito de sítio
arqueológico e sua definição, como também, sobre o patrimônio cultural. Logo
se repensou às práticas arqueológicas e foi necessário a apresentação da
ciência arqueológica a comunidade.

Em referência aos sítios arqueológicos descobertos em Corguinho/Aquidauana,


em entrevistas com os moradores locais, se nota que eles demonstraram o
desconhecimento sobre as práticas arqueológicas, ademais sobre pintura
rupestre e confecção de cerâmica pelos indígenas que habitaram a região.
Partindo do modelo de Educação Patrimonial empregado no Projeto Caiuá
(MARTINS: 2013), propomos exercícios sobre conceitos como cultura, território,
história e Arqueologia em conjunto com os alunos do ensino fundamental na
comunidade. Nesse sentido, acreditamos ser importante tratar de: Conceitos de
Objeto; Tempo Arqueológico; Evolução da Paisagem; Formação do Sítio
Arqueológico (Estratigrafia); Importância do Registro das Peças In loco;
Necessidade de não intervenção/ Descaracterização dos Sítios (MARTINS,
2013).

Através desses temas os alunos poderão recorrer a dicionários para trabalhar


elementos arqueológicos, patrimoniais e Pré-Históricos. No que tange ao
exercício individual, trabalhão com questões comparativas como o uso de
ferramentas contemporâneas como facas e martelos e depois aos do passado
arqueológico (pedra e cerâmica). No exercício coletivo poderá ser abordado a
importância de cada peça arqueológica, seu entendimento no contexto sua
funcionalidade e sua interpretação arqueológica. 236

Dos recursos para essa atividade poderão ser usadas fotos dos Sítios de
Corguinho / Aquidauana através de um quebra-cabeças, o qual poderá ser
elaborado com o banco de fotografias do projeto de pesquisa. O exercício em
questão objetiva o estímulo e o respeito coletivo, como também das qualidades
de cada aluno.

Em suma, as descobertas arqueológicas devem ser reveladas para a


comunidade por meio da Educação Patrimonial e da sensibilização sobre a
relevância da preservação do Patrimônio Natural/Material como parte da história
e do cotidiano dos cidadãos. Durante este processo, os atores sociais tornar-se-
ão multiplicadores dessa ideia, sendo com que a divulgação da Arqueologia não
terá apenas como produto o enriquecimento cultural dos alunos, mas também a
apropriação de um conhecimento ambiental. Assim, o desfecho da divulgação
da Arqueologia não será apenas como produto a alfabetização cultural, mas
também a alfabetização ambiental.

Referências biográfica
Pedro Leandro Batista de Souza é licenciado em História pela Faculdade de
Ciências Humanas da Universidade Federal de Mato Grosso do Sul.

Referências bibliográficas
BRASIL. Lei Federal n°3.924 de 26 de julho de 1961. disponível em:
https://legis.senado.leg.br/norma/545756. Acessado em 12/11/2019.
BRASIL. Decreto nº 3.552, de 4 de agosto de 2000 - Publicação Original,
disponível em:https://www2.camara.leg.br/legin/fed/decret/2000/decreto-3551-
4-agosto-2000-359378-publicacaooriginal-1-pe.html. Acessado em 12/11/2019.

BRASIL. Portaria nº 137, de 21 de março de 2019. DIÁRIO OFICIAL DA UNIÃO,


Publicado em: 22/03/2019 | Edição: 56 | Seção: 1 | Página: 23 Órgão: Ministério
da Educação/Secretaria de Regulação e Supervisão da Educação Superior.
Disponível
em:http://www.in.gov.br/web/guest/materia//asset_publisher/Kujrw0TZC2Mb/co
ntent/id/68157852/do1-2019-03-22-portaria-n-137-de-21-de-marco-de-2019-
68157794

HORTA, M. de L. P.; GRUNBERG, E.; MONTEIRO, A. Q. Guia Básico de


Educação Patrimonial. Brasília: Instituto do Patrimônio Histórico e Artístico
Nacional/Museu Imperial, 1999.
MAGALHÃES, Aloísio. “As duas vertentes do bem cultural”. Cultura. Ano 10,
n°36, 1981.

MARTINS, G. R. Projeto arqueológico “Área projetada para a implantação do


Distrito de Porto Caiuá”. Trabalho de consultoria científica em Arqueologia.
Campo Grande: FAPEC/UFMS, 2013. (não publicado) 237

REMPEL, Anelise Heidi. Reflexos de Santo Amaro do Sul: educação patrimonial


e interdisciplinaridade. In: Santo Amaro do Sul: Arqueologia e Educação
Patrimonial. Santa Cruz do Sul: Editora da UNISC, 2010.

SILVA, Kátia Cilene Camargo. Educação patrimonial: um convite à leitura do


patrimônio cultural do município de Anápolis-GO. 111 f., 2007. Dissertação
(Mestrado em Gestão do Patrimônio Cultural)- Instituto de Pré-História,
Universidade Católica de Goías. Goiânia, 2007.

SOARES, André Luis Ramos (org.) et al. Educação Patrimonial: relatos e


experiências. Santa Maria: UFSM, 2003.
A INSERÇÃO DE DEBATES SOBRE RAÇA E GÊNERO
NOS ESTUDOS PALEOANTROPOLÓGICOS E SEU USO
EM SALA DE AULA
Savio Queiroz Lima
238

Introdução
Na prática de ensino de História, a depender da carga de assuntos e da etapa
da educação no Brasil, o tempo parece correr em demasia. A professora e/ou o
professor se deparam com um exercício pedagógico exaustivo e denso,
tornando o material didático e suas conexões a própria rede de apoio no seu
exercício de ensino. Confiar neste material é um risco amenizado pelas
constantes vigilâncias dos pares, compartilhando as críticas pertinentes e
qualificando esse ensino. Entretanto, essa dinâmica nem sempre é estabelecida
em tempo hábil, permitindo que alguns temas continuem a existir através de
reduções discursivas que empobrecem a sua utilidade para as novas demandas
educacionais.

O proposto exercício intelectual textual tem por objetivo fazer a criticidade no


ensino de Pré-História no Brasil. Justamente por conta de toda uma dinâmica
trabalhista e de uso do tempo para o profissional de educação, seu encurtamento
e suas exigências, o texto pretende-se afinar a crítica sobre o período
comumente nomeado de “Pré-História” e os pontos pertinentes a serem tratados
sobre tal contexto histórico diante dos avanços mais recentes da
paleoantropologia e paleoarqueologia. São críticas objetivas sobre as questões
que envolvem os debates sobre gênero e raça, e como tal conjunto reflexivo
pode garantir ampliações nos saberes e conectivos inteligíveis com outros
temas.

Este texto sintetiza pesquisa que vem sendo produzida sobre o tema “Pré-
História” e a possibilidade de revisão e atualização. Como fruto de trabalho de
sala de aula ocorrido em 2019, gerou dois artigos que foram publicados em
eventos de História em 2020, que são as bases estruturais do diálogo aqui
proposto. O primeiro dos artigos foi publicado nos anais da ANPUH-BA com o
título “Assim Caminha a Humanidade: A ‘Pré-História’ no Livro Didático e a
Crítica Atualizada sobre Paleo-História e Paleoantropologia”; o segundo foi
publicado nos anais da ANPUH-PR com o título “Paleoarqueologia e Educação
no Brasil: Riscos e Descasos da Atualidade no Ensino da “Pré-História” no
Brasil”. Ambos os artigos, publicados e acessíveis, tratam das muitas temáticas
que perpassam demandas e saberes da contemporaneidade, através do uso das
renovações analíticas e discursivas da área.

Para atender às exigências dos temas transversais, tão pertinentes às questões


de direitos humanos e de avanços sociais, a sua atualização se faz primordial.
Os estudos sobre paleolítico e neolítico se ampliaram com as possibilidades
interdisciplinares, tanto com os campos tecnológicos e técnicos para uma
abordagem mais precisa dos dados físicos, quanto com os campos
investigativos das análises dos vestígios das experiências humanas. Os artigos
mencionados introduzem a crítica construtiva de saberes novos sobre o campo
científico nas relações com os vestígios materiais humanos e as concepções
possíveis pelos avanços dos conhecimentos, unindo tão longínquo passado com
o presente (GOSDEN, 2019, p. 137). 239

Seguindo a premissa das produções supracitadas e adequando para um texto


mais objetivo e prático, o debate se faz em dois pontos já especificados. Primeiro
no que diz respeito aos Estudos de Gênero e o quão pertinentes se fazem diante
de uma realidade social que fora bombardeada de invencionices reacionárias,
promovendo a persistência de sexismos e outras violências, em acordo com as
aplicações dos Temas Transversais. O segundo ponto diz respeito à lei 10.639,
circunstancialmente antirracista e de visibilidade de uma História da África e de
seus descendentes na diáspora do tráfico de escravizados da África ao Brasil.
Tais pontos de extrema importância nos combates ao machismo e ao racismo
no país podem ser iniciados justamente no período chamado “Pré-História”.

Através de análises dos materiais didáticos já previamente trabalhados, o


exercício alvitrado se faz na dinâmica professor-orientador para a fomentação
de um aluno-pesquisador. Se pensar como são construídos os saberes e como
eles são transformados e adequados às novas descobertas, novas questões,
evoluções técnicas e ampliações dos debates, em tudo feito com o intento de
construir uma sociedade mais justa e mais condizente com os direitos humanos
e com a justiça social.

Se viemos da África, qual nossa cor?


Muitos saberes sobre a constituição evolutiva humana remetem aos vestígios
achados na África e as mais recentes teorizações sobre a origem do ser humano.
Durante o exercício pedagógico que propus aos alunos dos cursos de ensino
superior da Universidade Federal da Bahia (UFBA), nas turmas da disciplina
História da Cultura 1, que ministrei em 2019, vimos o quanto que os livros
didáticos perpetuam algumas imprecisões sobre o período chamado ‘Pré-
História”. Se o próprio conceito de “Pré-História” coloca as questões de escrita
dentro das expectativas etnocêntricas de uma arqueologia europeia (LIMA,
2020a, p. 6), quiçá os tantos detalhes que são apresentados sobre esse passado
nos registros arqueológicos e antropológicos desde o século XIX e a sua
persistência nos livros didáticos.

A questão racial por muito tempo ficou agrilhoada ao tráfico de escravizados da


África, causando uma naturalização do corpo negro à realidade da escravidão.
Como se a limitada presença negra estivesse enraizada no processo histórico
da diáspora de mulheres e homens cativos, enviados às Américas. A repetição
de tal ideário visual alimenta a normalização dessa herança, vinculando a
condição de negro à condição de escravizado ou de ex-escravizado. A lei 10.639,
a mais de dez anos de existência, busca equalizar os caminhos da educação no
Brasil, para torná-la um instrumento combativo ao racismo e às discriminações
de seu entorno. Com isso, foi preciso ampliar os saberes sobre as heranças
negras, as culturas, as raízes de elementos estruturantes do Brasil, sanar os
malefícios causados por ideologias racistas que buscavam perpetuar o sistema
escravista e a desigualdade a partir da raça enquanto estrutura sociológica
(MUNANGA, 2005, p. 16).
240
Nos livros didáticos, numa espécie de hereditariedade dos discursos e das
representações, a desconstrução dos limites dessa presença negra se fez a
árduos passos. A comum infelicidade dos primórdios dos escritos didáticos de
História foi de inserção do debate racial na História do Brasil em sua estrutura
temática no período representado durante o processo de tráfico de africanos
escravizados. Noutros momentos é possível, diante de certo avanço analítico e
pedagógico, que a questão racial seja viável na História do Egito Antigo, e até
mesmo de outros países africanos, com certa restringência. Os movimentos
negros perceberam essas limitações e atuaram com constância entre as
décadas de 1970 e 1980. Isso fez com que ocorrências de ilustrações de negras
e negros nos livros didáticos se tornassem uma persistência, sendo “um grande
passo para a construção/reconstrução da identidade étnico-racial e social da
criança negra, bem como para o respeito, reconhecimento e interação com as
outras raças/etnias” (SILVA, 2011, p. 98). Tal presença precisa ser pensada,
também, enquanto epicentro de debate para a efetiva desconstrução do racismo
nos alicerces do conhecimento, usando as estruturas de aprendizado para a
construção de uma cidadania antirracista.

A questão racial na Paleo-História (como chamaremos a “Pré-História” a partir


deste momento em texto) é ampla e sensível. Diante das ameaças constantes
de revisionismos e negacionismos, muitos deles em sincronia com o racismo em
reacionarismos (LIMA, 2020b, p. 3), as camadas de História não-branca são
ameaçadas por ideologias e políticas de seletividade, ou melhor, de
necropolíticas (MBEMBE, 2016, p. 125). As origens africanas, as possibilidades
de leituras dos vestígios de nossos primeiros antepassados, sua expansão no
planeta e até mesmo suas migrações e ocupações nas américas tendem a ser
questionadas ou depreciadas por uma política de aversão às heranças indígenas
e negras no Brasil (LIMA, 2020b). Silenciar tais saberes, a diversidade humana
em tais processos, estimulam uma inferiorização tácita de tais populações na
contemporaneidade. Se a imagem do passado mais remoto é de um
protagonismo isolado e especial de figuras brancas nas páginas dos livros
didáticos, comungamos com os intérpretes racistas do século XIX, pela
cientifização das práticas discriminatórias (CARNEIRO, 2011, p. 16).

Avaliando os livros didáticos em busca dessas permanências e mudanças nas


representações, algumas colocações são pertinentes. Na avaliação mais
criteriosa, é possível criticar a persistência nas ilustrações da figura humana
descrita pelo fenótipo branco, uma “supremacia branca” (LIMA, 2020a, p. 6) que
legitima a hierarquia racial do progresso. A intenção de questionar essas
representações está na lógica de que “renovar os debates e ensinos sobre
Paleo-História permite reaver a visibilidade dos povos nativos e o combate ao
racismo” (LIMA, 2020b, p. 10). Ainda que não possamos afirmar com exatidão
as cores de peles de nossos antepassados, a própria historicidade e eco-
geografia nos sugerem o oposto da representação caucasiana, ou, no mais
basilar dos argumentos, de seu exclusivismo ou hegemonia. Fragilizar a
hierarquia e o essencialismo racial tem por fruto o confronto direto com o racismo
estrutural (ALMEIDA, 2018, p. 30) para responder demandas sociais da 241
realidade brasileira contemporânea e sintonizar com os mais avançados
procedimentos analíticos da paleoarqueologia.

A criticidade sobre o material didático deve ser uma constância da professora e


do professor. Parte de sua orientação deve ser a de inquerir os elementos da
realidade e pensar o quanto que os mesmos sintonizam ou não com as lutas
sociais mais importantes e com os saberes possíveis das áreas afins. Deste
modo, ao analisar a Paleo-História, buscando as representações dos seres
humanos desde a evolução da espécie até as ilustrações dos seus cotidianos,
pensando os lugares raciais que se apresentam em tais imagens, o debate crítico
sobre visibilidade histórica é crucial. Não deve haver, assim, restrição para o
debate sobre racismo em sala ao se construir um saber mais complexo sobre o
passado humano sem a branquitude por padrão hegemônico e sua
representação exclusiva.

A pessoa educadora pode orientar o debate sobre as representações através do


apelo pela diversidade. Demonstrando que toda variedade fenotípica foi a
adequação genômica e fenotípica do corpo humano aos cenários climáticos e
geográficos da própria expansão humana. A revolução comportamental e seu
reflexo na cultura possibilitaram tal diversidade de indivíduos a existir para além
dos limites das forças da natureza. O corpo humano moderno, que nos iguala
enquanto espécie, já estava definido quando ocorreu o “despertar” da cultura,
essa revolução seminal (KLEIN; EDGAR, 2005, p. 224), nos diferenciando
através das exigências dos espaços em que ocupamos antes mesmo que
fundássemos a linguagem para tecer sobre essas diferenças as desigualdades
sociais.

E as Mulheres das Cavernas?


No caso de gênero, os condicionantes perpassam as representações e
interferem até mesmo na linguagem. Jargões científicos do século XIX persistem
até os dias atuais, muitas vezes alimentados por uma apropriação popular de
tais termos e até mesmo pelo seu uso nas produções narrativas ficcionais de
entretenimento. É evidente a herança de uma ciência masculina do século XIX
na persistência do termo “homem” enquanto genérico. A pessoa professora-
orientadora tem a oportunidade de debate sobre uma farta repetição do genérico
naturalizado e essencializado: “Homem das Cavernas”, “Homem de Neandertal”,
“Homem de Cro-Magnon”, “Evolução do Homem”, dentre tantos outros.

A operação promovida pela literatura científica do século XIX não apenas


denuncia seu sexismo, mas também a ideia equivocada de progresso linear na
evolução. A sociedade conservadora patriarcal da Europa e das Américas
demonstrou dada misoginia através das ressignificações da imagem feminina ou
sua ausência nas artes, mas foi na área médica onde essa inferiorização ganhou
adornos de verdade científica. Não apenas na concepção de “buscar o feminino
no patológico” (DOTTIN-ORSINI, 1996, p. 234), mas, o mais importante, de
negar-lhe a participação da existência social suficientemente significativa. Para
homens misóginos do século XIX, os donos das vozes e dos saberes, “a mulher 242
era, realmente, um macaco, pois só tinha capacidade de imitação” (DOTTIN-
ORSINI, 1996, p. 200), logo não poderia figurar por inúmeras razões como
central na nomenclatura ou nas imagens sobre o nascedouro da humanidade.

A imagem padronizada da própria evolução humana é de uma transição de


pequenos macacos a um homem, não uma mulher. A chamada imagem da
“Marcha da Evolução do Homem”, já canonizada e simplificada (LIMA, 2020a, p.
4) enquanto símbolo do processo de evolução física dos seres humanos, existe
de ilustrações explicativas de livros do século XIX a memes viralizados em redes
sociais virtuais do século XXI. A leitura crítica dessa imagem não apenas
possibilita “desconstruir a famigerada marcha do progresso” (LIMA, 2020b, p. 7),
através da mais eficiente leitura da teoria evolutiva dos seres vivos, mas,
também, questionar a normalização dessa imagem ser exclusivamente
apresentada com a supremacia de uma figura masculina e branca.

Fonte (imagem adaptada com destaque): imagem de título March of Progress,


Integrante do livro Early Man, de Francis Clark Howell, de 1965.
A invisibilidade das mulheres na Paleo-História é mais fruto de um apagamento
masculino na arqueologia que nas ausências de vestígios. Se os pétreos ossos
de nossos antepassados podem marcar suas identidades de gênero, temos a
antiquíssima Lucy, nem tão humana, e a quase contemporânea e conterrânea
Luzia, ambas evidenciando a presença oculta das mulheres desses passados. 243
Já bastante presentes em livros didáticos mais recentes, poderiam substituir com
dada facilidade as figuras masculinas nas marchas da evolução se as mesmas
marchas não fossem equívocas ideias lineares e progressistas. De todo modo,
já não podemos tomá-las, as fêmeas, através de invisibilidade ou mesmo
secundarizadas.

Convém esclarecer, dentro dos estudos de gênero, como a subjetividade


humana emprega sobre os sexos as estruturas comportamentais e
socioculturais. Se gênero se reflete em procedimentos de caça nas ilustrações
dos livros didáticos, por exemplo, os vestígios que nos dispomos de instrumentos
manufaturados pelos humanos ou seus “lixos alimentares”, restos animais, nos
guiam a entender as caçadas, mas não definir seus caçadores. Mesmo trabalhos
mais basilares e introdutórios sobre a Paleo-História já confirmam o debate sobre
gênero, pertinente para os temas transversais ao ensino de História no Brasil,
como o de Chris Gosden, ao explicar a relação sexo e gênero a seguir: “afirmar
que todas as pessoas fazem distinções de gênero não significa afirmar que todas
as pessoas fazem as mesmas distinções”, definindo gênero como o “uso cultural
que as pessoas fazem das distinções biológicas de sexo” (GOSDEN, 2019, p.
114).

Se pensarmos as atividades humanas dentro de estudos etnográficos e


antropológicos, veremos uma diversidade evidente. Racionalizando a própria
temporalidade e as transformações por interferências diversas de encontros
entre culturas, os passados paleolítico e neolítico abarcam “uma época de fluidez
social” (GOSDEN, 2019, p. 116) muito maior, logo, menos rígida nas relações
entre os gêneros. Desta maneira, “no passado remoto, não há forma segura de
vislumbrar os gêneros”, entendendo-os como princípios culturais construídos,
“podemos ver, e inferir, machos e fêmeas como entidades biológicas, mas as
funções que desempenharam permanecem em grande medida invisíveis”
(SOFFER; ADOVASIO; PAGE, 2009, p. 37). A concepção prévia de homens
caçando e mulheres domesticadas remete a um imaginário muito mais recente,
dentro de uma demanda interpretativa de patriarcalismo efetivo.

Se muitos homens foram importantes na estruturação da disciplina


paleoarqueologia, hoje podemos assistir a ascensão de pesquisadoras
mulheres. Passamos dos senhores pesquisadores de montículos, no século XIX
(ADOVASIO; PAGE, 2011, p. 36), às inovadoras e aguerridas senhoras de
grandiosidades manifestas (SOFFER; ADOVASIO; PAGE, 2009, p. 285).
Vejamos uma lista: Kathy Schick (KLEIN; EDGAR, 2005, p.110), Olga Soffer
(ADOVASIO; PAGE, 2011, p. 75), Ma´ama Goren Imbar (KLEIN; EDGAR, 2005,
p. 129), Mary Leakey (ADOVASIO; PAGE, 2011, p. 182), Alison Brooks (KLEIN;
EDGAR, 2005, p. 131), Ruth Gruhn (ADOVASIO; PAGE, 2011, p. 254), Rebecca
L. Cann (ADOVASIO; PAGE, 2011, p. 298), dentre outras. Essa miríade feminina
promoveu uma ampliação dos saberes ao inserir novos e importantes
questionamentos.

E no uso didático dessa representatividade e visibilidade, já temos algumas 244


práticas bem-sucedidas. Seja no acréscimo da palavra “mulher” no título de um
subcapítulo em livro didático de 2002 (LIMA, 2020a, p. 6), ou mesmo na
presença ilustre da pesquisadora Niède Guidon em outro material analisado em
investigação anterior (Ibdem, p. 7). A paleoarqueóloga se destaca pela sua
aguerrida postura não apenas no embate teórico dentro do campo científico,
defendendo uma antiguidade ainda maior da presença dos seres humanos nas
Américas, mas, também, na militância política da valorização da
paleoarqueologia no Brasil (LIMA, 2020b, p. 4). Não há como pensar a
descoberta da Luzia, a mais antiga ossatura humana da América do Sul, sem a
paleoarqueóloga Annette Laming-Emperaire. A importância dessas biografias é
latente para a contemplação de uma equidade de gênero, da valorização da
mulher, e atende ao tema transversal de uma História das Mulheres.

Conclusão
Todos os debates possíveis que cruzam os temas transversais aqui eleitos, raça
e gênero, contribuem para a desconstrução das suas específicas opressões,
racismo e machismo. Dentre a miríade de ações afirmativas no ambiente
educacional, da pontualidade seletiva da disciplina de História, ainda podemos
elaborar amplitudes inteligentes nos conectivos entre os temas, ainda que a
convenção histórica escolhida pareça, numa primeira e rápida impressão,
distante de assuntos tão contemporâneos. Como ponto inicial, já deslegitimamos
a naturalização dessas ausências.

Tratar destes temas na Paleo-História é afirmar, categoricamente, baseando-se


em evidências e abordagens atualizadas, que machismo e racismo são
construídos. São frutos de uma longa estrada de construção social que desagua
em silenciamentos e repetições que contribuem para invisibilizações tanto das
representações quanto dos debates. Tratar de importantes temas é combater os
malefícios sociais em cada camada possível de construção do saber, em
objetivos exercícios de prática discursiva amparados aos discursos científicos na
área. A dinâmica proposta neste trabalho argumentativo, para o objetivo auxílio
à professora e ao professor na área de História, sintoniza com a atualização do
conteúdo disciplinar para possibilidade de uso mais eficiente e concomitante com
as expectativas pedagógicas sobre os temas transversais.

É preciso romper com as persistentes e remanescentes ausências conscientes


e inconscientes sobre raça e gênero no debate sobre a Paleo-História. Se muito
já se promoveu para romper com limitações representativas e conceituais
produzidas especialmente pelo euro-ocidente do século XIX, dentro das ciências
humanas ainda existem fragmentos defasados desses imaginários. Dois pontos
que ainda persistem em nossa sociedade dizem respeitos às hierarquias e
opressões que envolvem os lugares de existência de raça e gênero, portanto,
onde convém aplicar a devida atenção. Como vimos, desde o período
comumente chamado de “Pré-História” é possível se fomentar debates que
envolvam as duas categorias socio-analíticas.

Os debates sobre raça e gênero na Paleo-História produzem o mais eficiente 245


conectivo entre o distante passado e a contemporaneidade através do
conhecimento útil. A negação ao racialismo científico afastou o fantasma da
escravidão, mas deixou os vestígios fantasmagóricos do racismo, exigindo um
aguerrido trabalho de desconstrução das hierarquias raciais. As conquistas dos
movimentos negros são indispensáveis, mas é preciso novos avanços para
garantir a solidez das mesmas e alcanças novos patamares. No caso de gênero,
pontualmente das representações femininas e de História das Mulheres, o
procedimento se iguala, e as necessidades se assemelham, e os corpos
constituídos pelo patriarcado com subalternos e inferiores são repensados
através de uma negação coerente da naturalização das desigualdades.

Referências biográficas
Me. Savio Queiroz Lima, pesquisador do Laboratório de Estudos sobre a
Transmissão e História Textual na Antiguidade e no Medievo (LETHAM-UFBA).

Referências bibliográficas
ADOVASIO, James M.; PAGE, Jake. Os Primeiros Americanos – Em Busca do
Maior Mistério da Arqueologia. Rio de Janeiro: Editora Record, 2011.

ALMEIDA, Silvio Luiz de. O que é racismo estrutural?. Belo Horizonte: Editora
Letramento, 2018.

CARNEIRO, Sueli. Racismo, Sexismo e Desigualdade no Brasil. São Paulo:


Editora Selo Negro, 2011.

DOTTIN-ORSINI, Mireille. A Mulher que Eles Chamavam Fatal – Textos e


Imagens da Misoginia Fin-de-Siècle. Rio de Janeiro: Editora Rocco, 1996.

GOSDEN, Chris. Pré-Historia: Uma Breve Introdução. Tradução de Janaína


Marcoantonio. Porto Alegre: Editora L&PM, 2019.

KLEIN, Richard G.; EDGAR, Blake. O Despertar da Cultura: A Polêmica Teoria


sobre a Origem da Criatividade Humana. Rio de Janeiro: Editora Jorge Zahar,
2005.

LIMA, Savio Queiroz. Assim Caminha a Humanidade: A “Pré-História” no Livro


Didático e a Crítica Atualizada sobre Paleo-História e Paleoantropologia. In:
Anais do X Encontro Estadual de História – Anpuh-BA. Uesb-Vitória da
Conquista, 2020a. Disponível em:
https://www.encontro2020.bahia.anpuh.org/resources/anais/19/anpuh-ba-
eeh2020/1603167121_ARQUIVO_67aba994c237ab4cc9229b5996216790.pdf?
fbclid=IwAR2kOhNBT8Xb-BwjT6CgQVHtIlCSnkft8Ai90Jf3Jd3ebKO-G_EMu-
nPoWI.

LIMA, Savio Queiroz. Paleoarqueologia e Educação no Brasil: Riscos e


Descasos da Atualidade no Ensino de “Pré-História” Brasileira. In: Anais do
XVII Encontro Regional de História da ANPUH-PR – II Encontro do 246
ProfHistória/UEM – XXIV Semana de História/DHI-UEM. Maringá, nov. 2020b.
Disponível em:
https://www.encontro2020.pr.anpuh.org/resources/anais/24/anpuh-pr-
erh2020/1611548116_ARQUIVO_7f6f9dbcb9a39275b997e9aca9045091.pdf.

MUNANGA, Kabenguele. Superando o Racismo na Escola. Brasília: Ministério


da
Educação, 2005. Acessado em 23 de janeiro de 2021. Disponível em:
http://portal.mec.gov.br/secad/arquivos/pdf/racismo_escola.pdf.

SILVA, Ana Célia da. A Representação Social do Negro no Livro Didático: O


que Mudou? Por que Mudou?. Salvador: EDUFBA, 2011.

SOFFER, Olga; ADOVASIO, James M.; PAGE, Jake. O Sexo Invisível – O


Verdadeiro Papel da Mulher na Pré-História. Rio de Janeiro: Editora Record,
2009.
247

“The Lovers,” by the Norwegian artist Pobel, in Bryne, Norway.Credit.

RESISTINDO!

Você também pode gostar