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Teoria da literatura: a poesia

Marco Antônio Escobar


© 2019 by Universidade de Uberaba

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Reitor
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Pró-Reitor de Educação a Distância


Fernando César Marra e Silva

Coordenação de Graduação a Distância


Sílvia Denise dos Santos Bisinotto

Editoração e Arte
Produção de Materiais Didáticos-Uniube

Revisão textual
Erlane Silva Nunes

Diagramação
Douglas Silva Ribeiro

Projeto da capa
Agência Experimental Portfólio

Edição
Universidade de Uberaba
Av. Nenê Sabino, 1801 – Bairro Universitário

Catalogação elaborada pelo Setor de Referência da Biblioteca Central Uniube

Escobar, Marco Antônio.


E18t Teoria da literatura: a poesia / Marco Antônio Escobar. –
Uberaba: Universidade de Uberaba, 2018.
164 p. : il.

Programa de Educação a Distância – Universidade de Uberaba.


Inclui bibliografia.
ISBN 978-85-7777-885-0

1. Literatura. 2. Poesia. 3. Textos. I. Universidade de Uberaba.


Programa de Educação a Distância. II. Título.

CDD 800
Sobre o autor

Marco Antônio Escobar

Especialista em Teoria Literária pela Faculdade de Filosofia, Ciências e Letras


“Barão de Mauá” de Ribeirão Preto–SP, com aperfeiçoamento em Teoria Lite-
rária pela Universidade Estadual de Campinas (Unicamp) e aperfeiçoamento
em Preparação de RH para educação a distância pela Universidade de Uberaba
(Uniube). Graduado em Letras Português­‑Francês pela Faculdade de Filosofia,
Ciências e Letras “Santo Tomás de Aquino” de Uberaba (Fista). Coordenador
da equipe de Produção de Materiais Didáticos da Uniube.
Sumário

Apresentação.................................................................................................. XI

Capítulo 1 Leitura do texto literário: metodologia da leitura crítica..................1


1.1 Considerações iniciais................................................................................................ 3
1.2 Metodologia da leitura crítica — etapas................................................................... 10
1.3 Compreensão crítica e sensibilidade.........................................................................11
1.4 Fruição diletante/leitura crítica.................................................................................. 14
1.5 A prática da análise — um exemplo......................................................................... 17
1.6 Conclusão................................................................................................................. 22

Capítulo 2 Estrutura e valor...........................................................................25


2.1 Considerações iniciais.............................................................................................. 26
2.2 Definindo o campo de observação........................................................................... 28
2.3 Exemplo de avaliação crítica.................................................................................... 39
2.4 Conclusão................................................................................................................. 56

Capítulo 3 Estudo analítico do poema: procedimentos de poetização


do nível fônico..............................................................................61
3.1 O fenômeno poético — nível fônico e nível semântico............................................... 63
3.2 Elementos estruturais da linguagem poética.............................................................. 63
3.2.1 O metro e o ritmo............................................................................................... 63
3.2.2 Sistemas de metrificação................................................................................... 72
3.2.3 Sistemas de contagem....................................................................................... 74
3.2.4 O verso livre....................................................................................................... 76
3.2.5 Tipos de versos.................................................................................................. 79
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3.2.6 Tipos de estrofes................................................................................................ 80
3.2.7 Tipos de poema.................................................................................................. 91
3.2.8 A rima................................................................................................................. 94
3.2.9 De acordo com a identidade de sons................................................................. 96
3.2.10 Quanto à categoria gramatical......................................................................... 97
3.2.11 Versos brancos................................................................................................. 98
3.2.12 Os sinais de pontuação.................................................................................... 98
3.3 Processos intensificadores da linguagem poética.................................................. 101
3.3.1 Reiteração........................................................................................................ 101
3.3.2 Anáfora............................................................................................................. 101
3.3.3 Aliteração.......................................................................................................... 102
3.3.4 Assonância....................................................................................................... 102
3.3.5 Onomatopeia.................................................................................................... 102
3.3.6 Ilustração sonora.............................................................................................. 103
3.3.7 Simbolismo sonoro........................................................................................... 103
3.3.8 Paralelismo....................................................................................................... 105
3.3.9 Refrão............................................................................................................... 105
3.4 Conclusão............................................................................................................... 105

Capítulo 4 Estudo analítico do poema: procedimentos de poetização


do nível semântico...................................................................... 111
4.1 Linguagem direta e linguagem figurada..................................................................112
4.2 As modalidades de palavras figuradas................................................................... 121
4.2.1 Comparação ou símile..................................................................................... 122
4.2.2 Metáfora........................................................................................................... 124
4.2.3 O mecanismo da metáfora............................................................................... 127
4.2.4 A natureza da metáfora.................................................................................... 135
4.3 Outras figuras......................................................................................................... 140
4.3.1 Metonímia e sinédoque.................................................................................... 140
4.3.2 Excurso: predominância metafórica e predominância metonímica.................. 143
4.3.3 A antítese e o paradoxo. A ironia...................................................................... 144
4.4 O vocabulário, as categorias gramaticais e a organização sintática...................... 149
4.5 Conclusão............................................................................................................... 150
Apresentação

Prezado(a) aluno(a).

Você está recebendo o livro que servirá de texto-base para a disciplina Teoria
da literatura: a poesia. Ele é constituído por quatro capítulos, sendo os dois
primeiros voltados para a teoria da análise lite­rária, o terceiro e o quarto, de-
dicados ao estudo dos procedimentos de poetização.

No primeiro capítulo, “Leitura do texto literário: metodologia da leitura crítica”,


você será introduzido no universo da análise literária, recebendo informações
que lhe permitirão conscientizar‑se da importância e da necessidade da
análise para a compreensão dos textos literários e aparelhar‑se convenien-
temente para poder assumir diante do texto a atitude e a postura adequadas
a um especialista de letras, vale dizer, a atitude e a postura de um leitor
crítico.

No segundo capítulo, você será convidado a perceber a indissociabilidade


entre estrutura e valor, ou seja, que o estudo da estrutura da obra literária
não pode prescindir do trabalho de avaliação estética da mesma. A partir
dessa compreensão entenderá que o estudo da literatura não pode e não
deve ser divorciado da crítica, que é julgamento de valor. Aprenderá a julgar
uma obra literária, reconhecendo quando ela é bem realizada artisticamente.
Para tanto, utilizaremos um caso con­creto, o da incorporação das ideias
numa obra literária, seja romance ou poema.

“Estudo analítico do poema: procedimentos de poetização do nível fônico”


é o nome do terceiro capítulo. Nele, vamos dar início ao estudo dos proce-
dimentos de poeti­zação, a fim de nos prepararmos para o trabalho de aná-
lise textual da poesia. Dois grupos de problemas serão abordados aqui: os
elementos estruturais da linguagem poética e os processos intensificadores
da linguagem poética. No desenvolvimento do conteúdo, procurou‑se evitar
a simples apresentação dos procedimentos, relacionando‑os, sempre que
possível, com a prática da análise literária.
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O quarto capítulo está intimamente associado ao terceiro; nele, são estuda-


dos os procedimentos de poetização do nível semântico, começando pelas
modalidades de palavras figuradas, com destaque para a metáfora. Aos
demais aspectos que interessam à análise do poema, mas que ultrapassam
os limites deste capítulo, tais como o vocabulário, as categorias gramaticais
e a organização sintática, foi dada uma atenção menor, procurando mostrar
de que forma contribuem para a produção de sentido de um texto poético.

Como você deve estar percebendo, na medida em que os capítulos se su-


cedem, é todo um variado e rico campo de estudo que se vai descortinando.
Isso deve ser valorizado por você e certamente contribuirá para aumentar
o seu entusiasmo e gosto pelos estudos literários. De nossa parte, estamos
cada vez mais motivados a colaborar com sua aprendizagem, colocando‑nos
à sua disposição para dirimir quaisquer dúvidas e/ou dificuldades que se
apresentarem.

Bons estudos!
Capítulo Leitura do texto
1 literário: metodologia
da leitura crítica

Introdução
De um modo geral, os cursos de letras ressentem-se da falta de uma
atenção especial para a análise literária. O(a) aluno(a) quase sempre
sai despreparado(a) para o trato com o texto. Recebeu uma enorme
gama de informações, mas não sabe o que fazer com elas, não sabe
como utilizá-las na prática. A finalidade deste capítulo é ajudá-lo(a)
nessa tarefa e descrever para ele algumas formas de examinar uma
obra.

Se o que se pretende é aparelhar o(a) aluno(a) para o exercício da


análise e interpretação de textos literários, é preciso fornecer-lhe os
instrumentos necessários. Ora, como o exercício da análise literária se
concretiza tendo em vista finalidades essencialmente práticas, este
exercício, para além da necessária instrumentação teórica, implica a
execução de operações bem definidas.

Assim, não descuramos o aspecto teórico, mas procuramos orientar


nossa reflexão sempre na direção do trabalho concreto com o texto.

Sempre numa perspectiva propedêutica, introdutória, aos estudos lite-


rários, este capítulo procura, em um primeiro momento, situar os estu-
dos literários entre as formas de conhecimento, explicitando suas
características (objetivos, métodos etc.). Em seguida, colocam-se os
objetivos da leitura crítica e os perigos e/ou riscos a serem evitados.
Procura-se, a partir daí, definir o âmbito de atuação do leitor crítico,
esclarecendo de que forma ele deve proceder para não ulttrapassar os
limites da atividade crítica.
2 UNIUBE

Em um segundo momento, procura­‑se esclarecer em que sentido a


explicação pode ser considerada uma atividade legítima e útil para o
estudo do texto literário. A seguir, você irá identificar as etapas da aná-
lise literária, explicitando as características de cada uma delas. Além
disso, são explicadas as relações existentes entre compreensão crítica
e sensibilidade. Depois, a partir da distinção entre fruição diletante/
leitura crítica, procura­‑se justificar a necessidade da análise literária.

Ao final do capítulo, procuramos exemplificar a metodologia da análise


literária, com uma descrição detalhada dos passos a serem dados.

Objetivos
Após o estudo deste capítulo, esperamos que você seja capaz de:

• situar os estudos literários no contexto das formas de conheci-


mento, explicitando suas características (objetivos, métodos etc.);
• explicar quais os objetivos da leitura crítica e os perigos e/ou
riscos a serem evitados;
• saber definir o âmbito de atuação do leitor crítico, procurando
esclarecer de que forma ele deve proceder para não ultrapassar
os limites da atividade crítica;
• esclarecer em que sentido a explicação pode ser considerada
uma atividade legítima e útil para o estudo do texto literário;
• identificar as etapas da análise literária, explicitando as caracte-
rísticas de cada uma delas;
• explicar as relações existentes entre compreensão crítica e sen‑
sibilidade;
• a partir da distinção entre fruição diletante/leitura crítica, justificar
a especificidade da leitura realizada por um graduando de letras;
• justificar a necessidade da análise literária.

Esquema
1.1 Considerações iniciais
1.2 Metodologia da leitura crítica — etapas
1.3 Compreensão crítica e sensibilidade
1.4 Fruição diletante/leitura crítica
1.5 A prática da análise — um exemplo
1.6 Conclusão
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[é] ... a pedra de toque do estudioso de literatura, sendo a


justificativa da reflexão teórica: a prática da análise, a capacidade
de desmontar e remontar a estrutura da obra, sem a qual não há
professor nem crítico de literatura.

Antonio Candido

1.1 Considerações iniciais


A partir do momento em que — após um longo período de hesitações, ceticismos
e resistências —, finalmente se admitiu que a literatura pode ser “estudada” e
que o estudo da literatura é uma forma de conhecimento, uma primeira e fun-
damental tarefa se impôs: era necessário definir os conceitos e métodos em que
este estudo iria se basear. Em razão do prestígio das ciências naturais à época
em que esta possibilidade se manifestou, a primeira tendência foi a de transpor
para o domínio dos estudos literários os conceitos e métodos das ciências na-
turais, a exemplo do que já vinha ocorrendo com as demais ciências culturais
ou históricas. As várias tentativas nesse sentido, como era de esperar, resulta-
ram em completo fracasso. Em 1883, com Wilhelm Dilthey, iniciou-se um
movimento filosófico e lógico no sentido de buscar um outro fundamento para
as ciências culturais. Segundo ele, as ciências humanas estão baseadas em
um fundamento diferente: não há nelas a observação dos fatos físicos, mas a
compreensão dos atos humanos. As ciências espirituais têm como fundamento
a percepção interna e a compreensão. As ciências espirituais e históricas não
explicam, mas compreendem e interpretam. A partir daí, estabeleceu-se a au-
tonomia da cultura e das ciências culturais em relação à natureza e às ciências
naturais. No ano seguinte, em 1884, Windelband, e depois dele Rickert, com-
pletaram a caracterização das ciências humanas, afirmando que estas se voltam
para a individualidade, para a particularidade. Para eles, enquanto os cientistas
naturais visam ao estabelecimento das leis gerais, os historiadores buscam
apreender o fato único e que não se repete. A tarefa do historiador é a do par-
ticularizador e não a do generalizador. A realidade é natureza quando a consi-
deramos com referência ao universal; é história (cultura) quando a
consideramos com relação ao particular, ao individual.

SAIBA MAIS

Wilhelm Dilthey (1833–1911)

Um dos maiores pensadores dos últimos tempos, considerado o mais vivo e o mais
distinto representante do historicismo — movimento humanista e filosófico que, em
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oposição ao naturalismo, busca na história o fundamento de uma concepção do


mundo. Sua Introdução às ciências do espírito (1883) é a mais importante obra
filosófica dos fins do século XIX e o melhor conjunto de ideias para os estudiosos das
ciências históricas.

Na Figura 1, a seguir, com a qual se pretende ilustrar o que foi dito até aqui,
levou-se em conta a observação de Dilthey (RODRIGUES, 1969), segundo a
qual os estudos humanos não podem ser a continuação de uma hierarquia das
ciências naturais, porque descansam sobre um fundamento diferente. As ciências
naturais e as ciências do espírito desenvolveram-se lado a lado e não há o pri-
mado de umas sobre as outras.

REALIDADE

NATUREZA CULTURA

FATOS QUE SE REPETEM FATOS QUE


(Independentes NÃO SE REPETEM
das circunstâncias (Dependem das circunstâncias
de tempo e espaço) de tempo e espaço)

NÃO SE PODE
LEIS GERAIS ESTABELECER
LEIS GERAIS

OBJETIVIDADE
SUBJETIVIDADE
E PRECISÃO

MÉTODOS MÉTODOS
GENERALIZADORES PARTICULARIZADORES

EXPLICAÇÃO COMPREENSÃO

HUMANIDADES
CIÊNCIAS NATURAIS
(CIÊNCIAS NATURAIS)

Figura 1: Fundamentos para as ciências naturais e culturais.


UNIUBE  5

É, assim, no contexto das ciências culturais, ou humanas, Subjetividade


que se situam os estudos literários. O estudo da literatura
tem a ver, pois, com a compreensão e não com a expli- O fato de se insistir na
cação. Como os fenômenos literários são fenômenos presença da
subjetividade no lado
culturais, históricos, são fatos únicos e que não se repe- das ciências humanas
tem, e, por isso, não podem ser objetos de explicação. não significa que
Podemos apenas buscar compreender o seu significado. estas não tenham
padrões de precisão
Em outras palavras: o estudo da literatura utiliza métodos e objetividade.
particularizadores. Como bem observou Wellek (apud
WELLEK; WARREN, 1962, p. 16­‑17) — um dos primeiros
no âmbito da literatura a se ocuparem desta questão —, em qualquer nível que
se coloque, o estudioso da literatura está preocupado com aquilo que é carac-
terístico, com aquilo que é particular. Tanto o criticismo literário como a história
literária visam caracterizar a individualidade de uma obra, de um autor, de um
período, de uma literatura nacional. Procurando explicar por que razão estuda-
mos Shakespeare, Wellek (apud WELLEK; WARREN, 1962, p. 16-17) diz que

não estamos interessados em saber o que ele tem de comum


com todos os homens, porque nesse caso poderíamos igual-
mente estudar qualquer outro homem; e também, pela mesma
razão, não nos interessa o que de geral possua com todos os
outros ingleses, com todos os homens do Renascimento, com
todos os isabelinos, com todos os poetas, com todos os dra-
maturgos — nem sequer com todos os dramaturgos isabelinos,
porque então poderíamos indiferentemente estudá­‑lo a ele, a
Dekker ou a Heywood. O que nos interessa é descobrir o que
tem Shakespeare de característico, o que é que, por assim
dizer, torna Shakespeare Shakespeare; e isto é, obviamente,
um problema de individualidade e de valor. Até mesmo ao
estudar um período, um movimento ou uma literatura nacional,
o estudioso de literatura interessar­‑se­‑á por essa matéria en-
quanto individualidade.

Outro estudioso que se ocupou dessa diferenciação, no âmbito dos estudos li-
terários, foi T. S. Eliot. Para ele, os estudos literários têm a ver com a compreen-
são e não com a explicação. Em 1956, ao abordar o problema da delimitação
da crítica literária, ou seja, o problema da definição do âmbito de atuação do
crítico literário, ele se colocava as seguintes questões: quais os objetivos da
crítica, qual a finalidade da crítica? Quando a crítica não é crítica literária, mas
algo diferente? Que existe, se é que existe, que deva ser comum a toda a crítica
literária? Para tentar responder a estas questões, escreveu um ensaio denomi-
nado “As fronteiras da crítica” (1972, p. 148­‑167), no qual pretendia defender a
tese segundo a qual “há limites, além dos quais, numa certa diretriz, a crítica
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literária deixa de ser literária e, noutra diretriz, deixa de ser crítica”. Ao final de
sua argumentação, afirma — “com o bom senso que costumam ter os anglo-
-saxões, mesmo quando poetas”, como diria Anatol Rosenfeld (1976, p. 37) —
que a função essencial da crítica literária seria a de “promover a compreensão
e a apreciação da literatura”, definição que ele considerou preferível a uma
outra, “mais pomposa”, formulada em 1923, em que a caracterizara como sendo
“a elucidação das obras de arte e a correção do gosto”.

SAIBA MAIS

O texto em que esta primeira definição aparece é um ensaio intitulado “A função da


crítica”. Êi-la na íntegra: “... a crítica tem sempre que ter um fim em vista, o qual,
grosso modo, parece ser a elucidação das obras de arte e a correção do gosto”.
(ELIOT, 1962, p. 41.)

Em seu ensaio, Eliot tem o cuidado de insistir no caráter pessoal da compreen-


são, traço que a distingue da explicação, na qual este caráter inexiste. Porque,
na verdade, o processo de compreensão é, necessariamente, individual e sub-
jetivo. “Por compreensão não quero dizer explicação” — frisa — deixando claro
que não considera as duas expressões como sinônimas. Assim, enquanto o con-
ceito de explicação tem uma única dimensão, a dimensão intelectual, o conceito
de compreensão teria, por assim dizer, dois componentes, ou duas dimensões,
uma intelectual, outra, emocional. É isso que explica, em última instância, que
o autor acrescente a este conceito o de apreciação, na caracterização do
que considera como sendo a função essencial da crítica literária, ou seja, exa-
tamente por ver, em ambos os conceitos, as mesmas duas dimensões, como
deixa subentendido nesta afirmação: “apreciação e compreensão não são ati-
vidades distintas, uma emocional e a outra intelectual”. Talvez esteja aí a expli-
cação para a reciprocidade — uma espécie de atração mútua — que, segundo
o autor (1972, p. 165), parece existir entre elas:

É certo que nós não conseguimos apreciar plenamente um


poema a menos que o entendamos e que, por outro lado, é
igualmente verdade que não entendemos plenamente um
poema a menos que o apreciemos.

Entende-se que Eliot tenha falado em ênfase na compreensão ou na apreciação,


e no perigo daí decorrente. Mas o que ele está querendo dizer, no fundo, é que
não se pode colocar a ênfase na dimensão intelectual da compreensão nem na
dimensão emocional da apreciação. Seja como for, o importante é a ideia que
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nos quer transmitir: que devemos estar atentos para os perigos que rondam o
trabalho do estudioso da literatura, em cada um dos extremos e para a forma
como este deve proceder para não ultrapassar os limites da crítica literária,
evitando, assim, cair nessas armadilhas. Os perigos a evitar são, de um lado, a
explicação como um fim em si mesma e, de outro, a apreciação meramente
subjetiva. Ou, como também se pode dizer: de um lado, a crítica puramente
explicativa, de outro, o subjetivismo e o impressionismo.

Se na crítica literária colocamos toda ênfase na compreensão,


corremos o risco de resvalar da compreensão para a mera
explicação. Corremos o perigo até de empreender a crítica
como se fora uma ciência, o que jamais poderá ser. Se, por
outro lado, damos excessiva ênfase à apreciação, tendemos
a cair no subjetivismo e no impressionismo, e nossa apreciação
de nada mais nos aproveitará além de mera diversão ou pas-
satempo. (1972, p. 167.)

IMPORTANTE!

Todos sabemos dos perigos de que se reveste a manifestação da subjetividade do


leitor. Em nossa relação com a obra de arte literária corremos constantemente o risco
de cair no subjetivismo e no impressionismo. Foi o que Wellek também observou: “A
intuição ‘pessoal’ pode conduzir a uma ‘apreciação’ meramente emocional, a uma
subjetividade completa”. (apud WELLEK; WARREN, 1962, p. 17.) Um leitor que se
deixe guiar exclusivamente pela subjetividade não pode aspirar senão à enunciação
de suas reações meramente pessoais, de suas meras impressões perante o fenômeno
literário, as quais invariavelmente informam mais sobre o sujeito do que sobre o objeto
do conhecimento.

No primeiro caso, como havia dito no enunciado de sua tese, a crítica deixa de
ser literária, e, no segundo caso, deixa de ser crítica. Para ser crítica e também
literária, ou seja, para permanecermos dentro das fronteiras da crítica literária,
devemos manter os dois aspectos em perfeito equilíbrio: devemos promover a
compreensão e, ao mesmo tempo, a apreciação da literatura. Observe a Figura
2 a seguir.
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CRÍTICA NÃO LITERÁRIA NÃO CRÍTICA

APRECIAÇÃO
EXPLICAÇÃO CRÍTICA LITERÁRIA SUBJETIVA
COMPREENSÃO
E
APRECIAÇÃO

Figura 2: As fronteiras da crítica literária.

Você deve estar pensando: então a explicação não apresenta nenhum interesse
para o estudioso da literatura? Não é bem assim. Na verdade, e o próprio Eliot
(1972, p. 166) reconheceu, se a crítica não almeja a compreensão e a aprecia-
ção, pode, ainda assim, ser uma atividade legítima e útil:

Podemos, portanto, perguntar a respeito de qualquer obra que


nos é oferecida como crítica literária se almeja a compreensão
e a apreciação. Se não almeja, ainda pode ser uma atividade
legítima e útil, mas deverá ser julgada como contribuição à
Psicologia, à Sociologia, à Lógica, à Pedagogia ou a alguma
outra finalidade — e deverá ser julgada por especialistas, não
por homens de letras. [...] Não devemos confundir conheci-
mento — informação factual — sobre o período do poeta,
condição da sociedade em que viveu, ideias correntes do seu
tempo e que estão implícitas em sua obra, estágio da linguagem
do seu período — com a compreensão da poesia. Tal conhe-
cimento, como já disse, pode ser uma preparação necessária
para entender a poesia; além do que tem valor por si só, en-
quanto história. Mas, com relação à apreciação da poesia, só
lhe resta levar até à porta; temos de abrir caminho para entrar.

SAIBA MAIS

Antonio Candido, em seu ensaio “Crítica e Sociologia: tentativa de esclarecimento”


(1976, p. 4), também chamou a atenção para a necessidade de se estabelecer essa
distinção de disciplinas, lembrando que as abordagens da obra literária ligadas à
psicologia, à sociologia, à linguística etc. são perfeitamente legítimas, até porque os
problemas destas são diversos dos da crítica literária. Estas não propõem a questão
do valor da obra. São disciplinas de cunho científico, sem a orientação estética ne-
cessariamente assumida pela crítica literária. Devem ser vistas como complementa-
res e instrumentais para a investigação literária e não como concorrentes ou
substitutivas desta.
UNIUBE 9

Assim, a explicação só é legítima enquanto preparação; é uma atividade com-


plementar, subsidiária, vestibular. Assim, a explicação só é legítima enquanto
preparação; é uma atividade complementar, subsidiária, vestibular. E foi assim
que, como você deve estar lembrado(a), nós a apresentamos no quarto capítulo
do livro Introdução aos Estudos Literários, quando tratamos do equipamento
cultural do estudioso de literatura, ou, em outros termos, o problema da relação
entre a crítica literária e a erudição histórica.

Se a explicação “só leva até à porta”, e temos de abrir caminho para “entrar” no
texto, de que forma isso pode ser feito? Em outras palavras: de que modo po-
demos promover a compreensão e a apreciação do texto literário, apanágio da
leitura crítica? A resposta é: isso é possível através da análise literária, consi-
derando como tal a atividade crítica na sua totalidade, subentendendo-se, ob-
viamente, a interpretação, sem a qual essa atividade não se completa. Tocamos
aqui naquele que constitui o tema central do presente roteiro de estudo, conforme
já anunciado em nossa epígrafe e que é, nas palavras de Antonio Candido, a
pedra de toque do estudioso de literatura, sendo a justificativa da reflexão teórica:
a prática da análise literária, a capacidade de desmontar e remontar a estrutura
da obra, sem a qual não há professor nem crítico de literatura.

SAIBA MAIS

Esta concepção de que haveria algo “dentro” da obra literária tem sido contestada por
alguns estudiosos, como é o caso do crítico Stanley Fish, ligado à tendência do prag-
matismo norte-americano. Este autor insiste que não há nada “dentro” da obra em si
— que toda noção do significado ‘imanente’ à linguagem do texto, à espera de ser li-
berado pela interpretação do leitor, é uma ilusão objetivista. Segundo ele, Wolfgang
Iser deixou-se levar por essa ilusão. Iser, que está ligado à chamada teoria da recepção
ou estética da recepção, pela vertente alemã, acredita que a interpretação de um texto
deve ser logicamente limitada pelo próprio texto. Para ele, há um “texto em si”. Do
contrário, como poderíamos falar de interpretação da “mesma obra”? Para Fish, o
objeto da atenção crítica é a estrutura da experiência do leitor, e não uma estrutura
“objetiva” a ser encontrada na própria obra. (EAGLETON, 1983, p. 91-2.)

Descortinamos, assim, os aspectos que faltavam para completar o trabalho com


o texto. Na verdade, como bem observou Candido (1996), a investigação sobre
a obra literária deve ser vista como uma operação feita em três etapas ou mo-
mentos: comentário, análise e interpretação. Como do primeiro desses
momentos — o comentário ou explicação — já tratamos anteriormente (no ca-
pítulo 4 de seu livro O contexto da obra literária), agora devemos nos ocupar
10 UNIUBE

daquelas que constituem as duas etapas fundamentais do estudo do texto lite-


rário, que são a análise, propriamente dita, e a interpretação.

1.2 Metodologia da leitura crítica — etapas


Ao falarmos de etapas a propósito da análise e da interpretação, pode dar a
impressão de que se trata de momentos bem definidos, claramente separados.
É óbvio que, na prática, essa separação não existe. Embora análise e interpre-
tação devam ser vistas como etapas virtuais, porque intimamente ligadas, real-
mente imbricadas, elas podem ser, teórica e didaticamente, dissociadas. E não
só podem como devem ser distinguidas com clareza, uma vez que se trata de
noções que nem sempre são apresentadas com contornos bem definidos.

Sendo assim, vejamos, em primeiro lugar, o que devemos entender por análise,
em sentido estrito. Com a palavra os especialistas no assunto.

Para Antonio Candido (1996, p. 18), deve­‑se entender por tal

o levantamento analítico de elementos internos do poema,


sobretudo os ligados à sua construção fônica e semântica, e
que tem como resultado uma decomposição do poema em
elementos, chegando ao pormenor das últimas minúcias.

Igualmente elucidativa é a definição formulada por Carlos Reis (1976, p. 39),


conhecido estudioso português:

Análise entende­‑se, antes de mais por uma questão de coe-


rência etimológica, como decomposição de um todo nos seus
elementos constitutivos. Sendo esse todo um texto literário de
variável extensão, a análise conceber­‑se­‑á então como atitude
descritiva que assume individualmente cada uma das suas
partes, tentando descortinar depois as relações que entre
essas distintas partes se estabelecem.

Se bem atentarmos para essas definições de análise, facilmente perceberemos


que esta exige um complemento, pede algo que a complete. A decomposição
de uma totalidade não pode encerrar­‑se em si mesma; deve ser completada
pelo movimento inverso, a recomposição, que restitui ao texto a sua unidade.

Assim, uma vez conhecida a definição de análise, devemos nos voltar para a
definição de interpretação, sem a qual, como vimos, a atividade crítica não se
completa. E isso porque, conforme esclarece Reis (1976, p. 41), o processo de
UNIUBE  11

análise a que se submete o texto literário não é suficiente para a sua avalia-
ção crítica, assim como também não satisfaz as legítimas ambições de uma
leitura crítica minimamente válida. E apresenta as razões que sustentam esta
posição:

Porque pensamos que é necessário completar a abordagem


da obra literária a um nível que supere a restrita enumeração
e descrição das partes em que aquela se decompõe, perfilha-
mos a ideia de que qualquer leitura crítica que se pretenda
satisfatória deve passar da fase analítica a uma outra fase
predominantemente sintética que é a da interpretação.

Até porque a interpretação é, como Reis (1976) reconheceu, essencialmente


hermenêutica e, como tal, procura, em última instância, concretizar uma pene-
tração que se propõe ultrapassar a mera verificação dos elementos constitutivos
do texto literário e revelar o sentido que esses elementos (assim como o sistema
de relações entre eles estabelecidas) sustentam.

Essa necessária ultrapassagem da análise em direção à síntese foi percebida


também por Candido (1996, p. 18), que chegou mesmo a dizer que a interpre-
tação constitui “o alvo superior da exegese literária” e que
a presença dos dois momentos é indispensável para que Exegese
se complete o que ele chama de “círculo hermenêutico”,
Esclarecimento
que consiste em entender o todo pela parte e a parte pelo minucioso de um texto.
todo, a síntese pela análise e a análise pela síntese.

Candido observa ainda que a interpretação parte da análise, começa nela, mas
se distingue dela por ser eminentemente integradora, visando mais à estrutura,
no seu conjunto e aos significados que julgamos poder ligar a esta estrutura.

Estas são, em síntese, as principais características da análise e da interpretação.


Devemos prosseguir, agora, abordando outros aspectos relacionados a essas
etapas que, sem dúvida, nos ajudarão a compor um cenário verossímil da ati-
vidade crítica como um todo, ou seja, um cenário que nos dê uma ideia fiel da
dinâmica real dessa atividade.

1.3 Compreensão crítica e sensibilidade


Há pouco referimo­‑nos ao caráter pessoal da compreensão, e, portanto, à
carga — variável — de subjetividade que a caracteriza, traço que, como foi dito,
a distingue da explicação, na qual este caráter inexiste. Vimos também que isso
a aproxima da noção de apreciação. Até por uma questão de coerência, não
12 UNIUBE

seria de esperar que este caráter pessoal estivesse presente também na carac-
terização das instâncias da análise e da interpretação? É exatamente sobre isso
que vamos falar a seguir.

Embora se trate de etapas diferentes, com características que as tornam incon-


fundíveis, análise e interpretação têm um traço em comum, que se torna visível
sobretudo quando as focalizamos no contexto da crítica viva: ambas pressupõem
a sensibilidade estética, diferenciando­‑se, neste aspecto, da fase do comentário
ou explicação, a qual dispensa o requisito da sensibilidade, como bem reconhe-
ceu Candido (1996, p. 18):

A análise e a interpretação, ao contrário do comentário (fase


inicial da análise), não dispensam a manifestação do gosto, a
penetração simpática no poema. Comenta­‑se qualquer poema;
só se interpretam os poemas que nos dizem algo.

Em vários momentos, Candido refere­‑se ao fato de que o analista deve experi-


mentar previamente todo o encanto do poema, para, em seguida, aplicar­‑lhe os
instrumentos de análise. Depois desta, a interpretação deve surgir como um
reforço daquele encantamento, e não como seu sucedâneo ou diminuição. Não
se pode banir o requisito da sensibilidade; ela faz parte da verdadeira apreensão
da obra literária.

Citando Staiger, Candido (1996, p. 13) diz que este fala do prazer e da emoção
da leitura como condição de conhecimento adequado, sem temer a acusação
de fundar os estudos literários no sentimento subjetivo. O sentimento, neste
caso, é um critério de orientação e de penetração. “O critério da sensibilidade
se torna também critério de conhecimento sistemático”.

É ainda de Staiger a observação de que, uma vez assegurada esta penetração


simpática, o leitor deve apreender o ritmo, o largo compasso do poema sobre o
qual repousa o estilo, sendo o elemento que unifica em um todo os aspectos de
uma obra, de um artista ou de um tempo. Quando apreendemos pela sensibili-
dade o ritmo geral de uma poesia, apreendemos no todo a sua beleza própria.
Esclarecer esta intuição pelo conhecimento é a tarefa da interpretação. (STAI-
GER apud CANDIDO, 1996, p. 19.)

Neste estágio, o estudioso se separa do amador. Para o ama-


dor, basta o sentimento geral e um domínio ainda vago, que
pode esclarecer por meio de leituras atentas. Mas ele não sente
a necessidade de comprovar como tudo se afina no todo e
como o todo se afina pelas partes. A possibilidade de estabe-
lecer esta prova é o fundamento da nossa ciência.
UNIUBE  13

O próprio Candido observa, em outro texto de sua autoria (1973, p. 34), que
toda crítica viva parte de uma impressão para chegar a um juízo. Entre estas
duas pontas se interpõe algo que constitui a seara própria do crítico, dando
validade ao seu esforço e seriedade ao seu propósito:

Em face do texto, surgem no nosso espírito estados de prazer,


tristeza, constatação, serenidade, reprovação, simples interesse.
Estas impressões são preliminares importantes, o crítico tem de
experimentá­‑las e deve manifestá­‑las, pois elas representam a
dose necessária de arbítrio, que define a sua visão pessoal. [...]
Por isso, a crítica viva usa largamente a intuição, aceitando e
procurando exprimir as sugestões trazidas pela leitura. Delas
sairá afinal o juízo, que não é julgamento puro e simples, mas
avaliação — reconhecimento e definição de valor.

Em seguida, chama a atenção para a redução gradual do arbítrio, que deve


ocorrer para dar lugar à objetividade exigida pela atividade crítica, sem que isso
implique eliminação da subjetividade, demandando, apenas, que o crítico saiba
administrá­‑la:

Entre impressão e juízo, o trabalho paciente de elaboração,


como uma espécie de moinho, tritura a impressão, subdivi-
dindo, filiando, analisando, comparando, a fim de que o arbítrio
se reduza em benefício da objetividade, e o juízo resulte acei-
tável pelos leitores. A impressão, como timbre individual, per-
manece essencialmente, transferindo­‑se ao leitor pela
elaboração que lhe deu generalidade; e o orgulho inicial do
crítico, como leitor insubstituível, termina pela humildade de
uma verificação objetiva, a que outros poderiam ter chegado.
(CANDIDO, 1973, p. 34.)

E, desta forma, conclui, dando­‑nos uma visão de todos os elementos envolvidos


na atividade crítica:

A crítica propriamente dita consiste nesse trabalho analítico


intermediário, pois os dois outros momentos são de natureza
estética e ocorrem necessariamente, embora nem sempre
conscientemente, em qualquer leitura. O crítico é feito pelo
esforço de compreender para interpretar [...], mas aquelas
etapas se integram no seu roteiro, que pressupõe, quando
completo, um elemento perceptivo inicial, um elemento inte-
lectual médio, um elemento voluntário final. Perceber, com-
preender, julgar. (CANDIDO,1973, p. 34­‑5.)
14 UNIUBE

A esta altura, parece ser possível concluir que, ao contrário do que se poderia
pensar à primeira vista, a busca da objetividade que caracteriza a atividade
crítica não minimiza, evidentemente, a importância de uma compreensão e de
uma fruição em estado de simpatia, como condições prévias do nosso conhe-
cimento da obra literária. Mas — devemos insistir neste ponto — não passam
de condições prévias. Esse tipo de apreensão sensível da obra de arte é, sem
dúvida, a pressuposição de todo estudo literário frutífero, mas em si mesmo
pode levar apenas ao completo subjetivismo. Por si só não consegue alcançar
a objetividade necessária exigida pela atividade crítica. Afirmar que a obra lite-
rária só pode ser apreciada através de uma fruição simpatética, de cunho pura-
mente subjetivo, equivale a ignorar a possibilidade de constituição de um saber
objetivo da obra literária, ou seja, de um tipo de apreensão da obra literária que
supere o nível da pura sensibilidade. A arte da leitura, ou seja, a leitura entendida
como fruição diletante, não passa de um ideal para uma cultura puramente
pessoal. Como tal, é perfeitamente compreensível e constitui, de fato, a maneira
pela qual a maioria das pessoas se relaciona com a literatura. Não pode, no
entanto, ser considerada como o único tipo de relacionamento que se pode ter
com ela, e, muito menos, como o relacionamento ideal.

1.4 Fruição diletante/leitura crítica


Tocamos aqui numa distinção importante: a que se deve estabelecer entre frui‑
ção diletante e leitura crítica. A leitura crítica de obras literárias supõe a supera-
ção da leitura como mero entretenimento/mera contemplação, atitude ad­missível
em um leitor que não elegeu a literatura como campo privilegiado de atuação.
Ou seja, é preciso reconhecer que há uma diferença entre a leitura realizada
por um leitor não especializado e a leitura realizada por um especialista em le-
tras. Assim, um estudante de letras, pela especificidade de sua formação,
diferencia­‑se de um leitor não especializado. Daí ser preciso que nos aproxime-
mos do texto literário como especialistas e isso só é possível mediante o com-
promisso que estabelecemos com o texto através da atividade crítica.
Parafraseando Aguiar e Silva (1973, p. 590-591): devemos ir ao encontro da
obra armado com um conjunto de conhecimentos especializados sobre a me-
todologia da crítica, de modo a poder analisar a obra com o máximo de rigor,
com uma disciplina e uma lucidez que não estão ao alcance do leitor desprepa-
rado, por mais inteligente e sensível que ele possa ser. É exatamente isso que
distingue o leitor bem preparado do leitor sem qualquer formação especializada
e apenas fiado na sua intuição e na sua capacidade de empatia.

O que nos assegura que a leitura crítica é realmente necessária? Para respon-
der a esta pergunta, vamos tomar como ponto de partida uma interessante
UNIUBE  15

questão que foi proposta no Exame Nacional de Cursos (BRASIL, 1999),


adaptada para servir aos nossos propósitos. Eis a questão:

O que falar diante de um poema, de um conto, de um romance?


Já não bastam as palavras que lá estão? Já não dizem tudo o
que têm a dizer, da melhor forma que é possível dizer?

Tais perguntas chegam com frequência a um professor de


letras e fazem entender que a manifestação do leitor é um
excesso, que a crítica (e, portanto, também a análise) é des-
necessária, que não cabe mais do que a muda e prazerosa
contemplação do texto literário.

Esta afirmação pressupõe que a obra literária se revela por si mesma. Que não
é preciso traduzi­‑la, interpretá­‑la. Seu significado seria algo evidente, visível a olho
nu, por assim dizer. Se assim fosse, bastaria lê­‑la, gozá­‑la, apreciá­‑la; não have-
ria necessidade da análise literária. Não é isso, no entanto, o que verdadeiramente
ocorre. Parece ter razão Staiger (apud CANDIDO, 1996, p. 18), ao afirmar

que o poema não se revela por si mesmo nem para os que


falam a mesma língua. É espantoso o quanto o leitor despre-
venido (ou ingênuo) lê mal e não percebe.

Daí a necessidade da análise, da leitura crítica. É necessário fazer a “análise”


do texto literário porque o texto não fala por si, o significado não é uma evidên-
cia. Somente a análise, ou seja, a desmontagem e a remontagem do texto podem
fazer com que ele se revele. O significado se oculta nas camadas profundas do
texto e somente a análise é capaz de desentranhá­‑lo.

Em uma análise do poema “Meu sonho”, de Álvares de Azevedo, elaborada por


Antonio Candido (2001, p. 38­‑53), há um exemplo excelente que evidencia a
necessidade da análise literária. Numa leitura superficial, o poema é visto como
se fosse um diálogo entre o “Eu” e o “Fantasma”, mas o ar de mistério que o
envolve e que logo se nota, já desde o início da análise, leva a crer que o poema
é mais complexo do que a leitura inicial sugere. E é o que a continuação da
análise só faz confirmar. Observa o autor que a divisão do poema em duas
partes é aparente, em consequência disso, o diálogo entre o “Eu” e o “Fantasma”
é também aparente, ou seja, não seria propriamente um diálogo, mas um mo-
nólogo dilacerado do “Eu” consigo mesmo. Em que elemento Candido teria se
baseado para chegar a esta conclusão? Este elemento é o ritmo, que, segundo
ele, constitui o traço formal mais importante deste poema. O ritmo — assinala —,
além de responsável pela fisionomia geral do poema é também o seu princípio
organizador. Ele pode ser considerado a “razão” profunda da estrutura e do
16 UNIUBE

significado do poema. A força unificadora do anapesto, extremamente eficaz,


supera o desequilíbrio das partes, fundindo “Eu” e “O Fantasma” em um só
movimento. Isso faz pensar que, se há unidade no plano da estrutura, deve
haver também no do significado, ou seja: se a divisão em duas partes é aparente,
por que não seria aparente o diálogo? Por que não seria ele um monólogo dila-
cerado do “Eu” consigo mesmo, representando desdobramento na personali-
dade? O próprio autor esclarece:

Meu sonho

Eu

Cavaleiro das armas escuras,


Onde vais pelas trevas impuras
Com a espada sanguenta na mão?
Por que brilham teus olhos ardentes
E gemidos nos lábios frementes
Vertem fogo do teu coração?

Cavaleiro, quem és? O remorso?


Do corcel te debruças no dorso...
E galopas do vale através...
Oh! da estrada acordando as poeiras
Não escutas gritar as caveiras
E morder­‑te o fantasma nos pés?

Onde vais pelas trevas impuras,


Cavaleiro das armas escuras,
Macilento qual morto na tumba?...
Tu escutas... Na longa montanha
Um tropel teu galope acompanha?
E um clamor de vingança retumba?

Cavaleiro, quem és? — que mistério,


Quem te força da morte no império,
Pela noite assombrada a vagar?

O Fantasma

Sou o sonho de tua esperança,


Tua febre que nunca descansa,
O delírio que te há de matar!...
(AZEVEDO, Álvares de, 1996.)
UNIUBE 17

A leitura que propus consiste essencialmente em reconhecer


significados sucessivos e cada vez mais escondidos, privile-
giando um elemento de fatura, o ritmo, que, ao dar forma tanto
à estrutura aparente quanto à estrutura profunda, pode ser
considerado princípio organizador, graças ao qual Álvares de
Azevedo foi capaz de criar um símbolo poderoso para exprimir
a angústia do adolescente em face do sexo, que vai até o
sentimento da morte. [...] Sob a camada estética, estratificam-
-se os significados, até o que se refugia nas camadas mais
fundas, onde a análise literária procura captá-lo. E nós senti-
mos que a beleza de um poema se localiza na camada apa-
rente, a dos elementos estéticos, onde se enunciam os
significados ostensivos, e que basta para uma leitura satisfa-
tória, embora incompleta. Mas a força real está na camada
oculta, que revela o significado final e constitui a razão dos
outros. (CANDIDO, 2001, p. 53.)

EXPLICANDO MELHOR

Anapesto

É a unidade, ou “pé”, da antiga metrificação grega e latina formada por três sílabas,
duas breves e uma longa, e que corresponde, na métrica silábica, a duas átonas e
uma tônica. O crítico está se referindo ao fato de o poema ser escrito em versos
eneassílabos (cada eneassílabo sendo formado por três anapestos).

1.5 A prática da análise — um exemplo


Vimos as características de cada uma das etapas da análise. Agora, procurare-
mos ilustrar de que modo elas se apresentam na prática. Para tanto, nada
melhor do que lançar mão de uma obra indispensável do ponto de vista didático:
Na sala de aula: caderno de análise literária, do professor Antonio Candido
(2001). Este livro contém seis análises de poemas, que, embora concebidas há
bastante tempo (entre 1958 e 1960, quando lecionava literatura brasileira na
Faculdade de Filosofia de Assis, SP), são ainda modelares.

Escrita para funcionar como instrumento de trabalho, esta obra foi idealizada a
partir de critérios eminentemente práticos, como, aliás, é do feitio do autor. An-
tonio Candido sempre defendeu que, na medida do possível, deve-se trabalhar
de modo mais aderente ao texto, ou seja, deve-se assumir um comportamento
18 UNIUBE

que vise levar o(a) aluno(a) a uma aproximação menos comprometida com te-
orias e mais preocupado(a) com a manipulação das estruturas fundamentais do
texto literário. O exercício da análise literária se concretiza tendo em vista fina-
lidades essencialmente práticas. Daí que a análise literária, para além da ne-
cessária instrumentação teórica, implique a execução de operações bem
definidas. Por isso, deve-se evitar proposições que poderiam conduzir à simples
especulação teórica como um fim em si mesma, orientando, sempre que pos-
sível, o cerne das teorias para a problemática da análise literária.

SAIBA MAIS

Antonio Candido sempre se considerou mais um “crítico literário” do que um “teórico


da literatura”, vendo na teoria um “auxiliar da crítica”, uma espécie de “teoria da aná-
lise”. Isso talvez se deva ao aspecto mais imediatamente aplicado e pragmático da
crítica. Esse pragmatismo é uma preocupação que perpassa toda a sua obra.

As análises procuram sugerir ao professor e ao estudante maneiras possíveis


de trabalhar com o texto, partindo da noção de que cada um requer tratamento
adequado à sua natureza. Este é um aspecto em relação ao qual o autor não
transige; para ele, é ponto de honra, por assim dizer, entender que o texto é que
determina o ritmo da análise, e não o contrário. É isso que explica que as aná-
lises elaboradas pelo autor apresentem diferenças flagrantes no que se refere
ao tratamento. Como cada obra apresenta feições peculiares, não podem for-
mular esquemas rígidos que se apliquem indistintamente a qualquer obra lite-
rária. Há, sem dúvida, pontos em comum, mas isso se deve ao fato de serem
os mesmos os pressupostos em que se baseia. Conforme esclarece, um desses
pressupostos é que os significados são complexos e oscilantes. Outro, que o
texto é uma espécie de fórmula, onde o autor combina consciente e inconscien-
temente elementos de vários tipos.

As análises focalizam os aspectos relevantes de cada poema. Assim, por exem-


plo, pode-se dizer que a análise da “Lira 77”, de Tomás Antônio Gonzaga, foi
escrita para ilustrar a função estrutural dos dados biográficos, pois este é o
aspecto mais relevante deste poema. Ou seja, nesta análise procurou mostrar
que há casos em que não basta o conhecimento da estrutura do poema, mas
que é preciso ir além, buscando o conhecimento do contexto, ou da situação do
poeta (saber, por exemplo, de quem é o poema e as circunstâncias biográficas
em que o mesmo foi composto). Observa o autor (CANDIDO, 2001, p. 34):
UNIUBE  19

Ao contrário do que acontece noutros poemas, o conhecimento


da biografia é importante para a análise deste.

Como, neste caso, as informações biográficas são imprescindíveis para a perfeita


compreensão do significado do texto, diz­‑se que os dados biográficos têm fun‑
ção estrutural. Em outras análises é o ritmo o aspecto mais importante. Está
neste caso, por exemplo, a análise do poema de Álvares de Azevedo, “Meu
sonho”, já mencionada, em que o ritmo constitui o traço formal mais importante
do poema. Já na análise do poema de Alberto de Oliveira, “Fantástica”, o aspecto
mais relevante é, sem dúvida, o vocabulário. A explicação para isso, segundo o
autor, é que “este é um poema dos objetos e a sua análise consiste em boa
parte no trabalho exaustivo sobre o vocabulário”. (CANDIDO, 2001, p. 56.) Em
várias análises, predomina a oposição dos significados.

Como o próprio autor afirma, em todas elas está implícito o conceito básico de
estrutura como correlação sistemática das partes, e é visível o interesse pelas
tensões que a oscilação ou a oposição criam nas palavras, entre as palavras e
na estrutura, frequentemente com estratificação de significados. As análises
constantes do livro atestam a afirmação feita pelo professor Antonio Candido,
no prefácio, de que, no nível profundo, a análise de um poema é frequentemente
a pesquisa das suas tensões, isto é, dos elementos ou significados contraditórios
que se opõem.

Neste particular, Candido não esconde a sua dívida para com o new criticism e,
mais particularmente, em relação a John Crowe Ransom, a Cleanth Brooks e a
Robert Penn Warren. Como se sabe, Ransom preconizava uma crítica ontológica,
isto é, uma crítica centrada sobre a obra literária considerada como um modelo
(pattern) de forças organizadas, como um todo autônomo e autossuficiente em
que cada elemento está organicamente relacionado com os outros e no seio do
qual se geram e se resolvem múltiplas tensões ou resistências (tensão entre
o ritmo do poema e o ritmo da linguagem, entre o particular e o geral, o con-
creto e o abstrato etc.). Cleanth Brooks considerava a obra literária como uma
estrutura cujos princípios integradores e tensionais são o paradoxo e a ironia.

Um aspecto importante a ressaltar nas análises desta obra é que o professor


Antonio Candido teve a preocupação de, ao mesmo tempo em que analisava
um determinado poema, comentar o que estava fazendo, ou seja, suas análises
têm uma dimensão metalinguística evidente, como, aliás, seria previsível numa
obra de cunho nitidamente didático, como esta. Não raro, ao longo do livro,
encontramos trechos do tipo:
20 UNIUBE

Até aqui o texto foi descrito, sucessivamente, em seus dois


níveis; e nessas etapas foi considerado mais ou menos como
um ‘objeto’ que o analista manipula. A partir de agora, será
concebido não como um todo autônomo, mas parcela de um
todo maior. [...] Só encarando­‑o assim teremos elementos
para avaliar o significado da maneira mais completa possível
(que é sempre incompleta, apesar de tudo). (CANDIDO, 2001,
p. 33.)

Alguns comentários têm interesse apenas para a compreensão da metodologia


de análise que o autor está pondo em prática naquela análise específica, como
é o caso deste exemplo; outros comentários, no entanto, têm um interesse mais
amplo: são observações que têm validade para a compreensão da metodologia
da análise literária em geral, como este:

Generalizando em termos de método: o estudo do nível estru-


tural revela o significado, que é mais profundo em relação ao
sentido ostensivo. (CANDIDO, 2001, p. 73.)

Ou este outro:

Fiquemos assim com uma noção que tem bastante valor prático
no trabalho sobre os textos: na análise, que não pode se limitar
às intuições, mas precisa suscitá­‑las ou confirmá­‑las, a estrutura
tem precedência como elemento de compreensão objetiva. Pelo
menos como etapa do método, o significado pode ser conside-
rado como contido nela. (CANDIDO, 2001, p. 77.)

Para efeito de exemplificação da metodologia de análise, vamos fazer uma breve


exposição, que mostra como a análise e a interpretação se completam e como
cada uma delas pode ser melhor compreendida por um caso concreto. Desta-
camos alguns detalhes de uma das análises mais belas realizadas pelo autor,
aquela que aborda o poema “O rondó dos cavalinhos”, de Manuel Bandeira, só
superada, neste livro, pela análise do poema “Meu sonho”, de Álvares de Aze-
vedo. Como se trata de uma síntese ilustrativa, esperamos que nossa exposição
seja um estímulo para que se busque o contato direto com a análise completa
feita pelo professor Antonio Candido, bem como com as outras análises cons-
tantes do livro em apreço.

É óbvio que, antes de iniciar a análise propriamente dita, o autor procedeu à


leitura do texto. Melhor dizendo: às leituras, uma vez que devemos fazer várias
e não apenas uma leitura. Sobre isso, eis a recomendação do autor: “Ler infa-
tigavelmente o texto é a regra de ouro do analista, como sempre preconizou a
UNIUBE  21

velha explication de texte dos franceses. A multiplicação das leituras suscita


intuições, que são o combustível neste ofício”. (CANDIDO, 2001, p. 6.)

Podemos começar identificando, nesta análise, a presença de uma primeira


etapa — comentário ou explicação — em que se faz o levantamento de certos
aspectos externos que podem ajudar a compreender certas alusões presentes
no texto, inclusive informações sobre o gênero do poema.

Em seguida, o autor dá início à etapa da análise propriamente dita, ou seja, ao


processo de desmontagem e remontagem do texto. Reconhecendo a necessi-
dade de desmontagem da estrutura, percebe que, para tanto, convém partir de
verificações elementares. Como, de um modo geral, é aconselhável começar
pela observação ou descrição dos aspectos mais simples, passando, em seguida,
ao estabelecimento de relações entre os diversos aspectos do texto para tentar
interpretá­‑lo, o autor se propõe, inicialmente, a observar aspectos — que ele
chama de elementos materiais, como pontuação, rima, ritmo, categoria gra-
matical, estrofação — que contêm sentidos, mais do que se poderia pensar à
primeira vista. Da sua descrição atomizada passa­‑se à correlação entre eles, a
fim de procurar a fórmula segundo a qual o poema foi construído; e, assim,
chegar ao significado.

O autor se ocupa da descrição de cada um desses elementos, até chegar, no


final, a uma conclusão objetiva sobre o significado do poema, confirmando al-
gumas das intuições que se foram manifestando durante o percurso.

Assim, começa pelo exercício do ouvido, tentando captar o ritmo correto de


leitura, depois passa ao estudo da estrutura gramatical, observando que o ritmo
corresponde à mudança de função do substantivo, impondo uma pontuação
obrigatória. Conclui que o significado se manifesta como função dos elementos
estruturais, desde que sejam percebidos numa perspectiva adequada. Em se-
guida, dedica­‑se ao estudo da estrofação, e termina pelo exame da correlação
entre o vocabulário e o gênero literário, que o leva à constatação da existência
de um choque entre a norma e o seu uso.

Ao longo da análise, o autor passa constantemente de uma atitude meramente


descritiva para uma atitude conclusiva, transitando, assim, da análise para a
interpretação, ilustrando, dessa forma, o que temos afirmado reiteradamente:
que, na prática, a análise e a interpretação estão realmente imbricadas,
manifestando­‑se, muitas vezes, de forma concomitante e não necessariamente
sucessiva, ou seja, a interpretação não é algo que se inicia somente após con-
cluída a análise.
22 UNIUBE

É óbvio que, numa síntese como esta, não há como transmitir a dinâmica real
da análise como a percebemos numa leitura direta do texto original. Como a
análise é predominantemente descritiva, de um modo geral, ela tende a ser
muito vagarosa e minudente — “um trabalho paciente de elaboração, como uma
espécie de moinho, que tritura a impressão”, como, aliás, o próprio Candido
(1973, p. 34) preconiza —, incidindo sobre os múltiplos elementos que constituem
a estrutura do poema, bem como sobre o texto considerado como totalidade.
Quase se poderia dizer que a análise e, consequentemente, a leitura crítica,
conscienciosamente desenvolvida como a pratica o professor Antonio Candido,
adquire a minúcia de um exame microscópico, submetendo o poema a uma
análise que desce às menores unidades, aos mínimos detalhes do texto.

O importante, em um trabalho de análise, é que se saiba dosar convenientemente


o nível de detalhamento e o grau de aprofundamento a que se deve submeter
o texto, para evitar que a análise, de instrumento indispensável na elucidação
da obra literária, passe a ser lugar de exibicionismos para o autor e motivo de
desinteresse por parte do leitor. A este respeito, talvez seja interessante concluir
este comentário com as palavras sempre oportunas e lúcidas com que René
Wellek (apud WELLEK; WARREN, 1962, p. 20) aborda este assunto:

A análise textual tem levado a pedantismos e aberrações, como


todos os outros métodos de conhecimento erudito; mas pode­
‑se com certeza afirmar que todo ramo de conhecimento só
pode avançar e tem realmente avançado com a inspeção
cuidadosa de seus objetos, com colocação das coisas sob o
microscópio, muito embora o leitor comum ou mesmo estudan-
tes e professores possam muitas vezes achar enfadonho esse
processo.

1.6 Conclusão
Com este capítulo quisemos apenas fazer uma introdução à análise literária.
Neste terreno, como em outros de igual complexidade, sempre fica muita coisa
por dizer. Apesar de tudo, ainda assim ousamos esperar que este trabalho tenha
contribuído para familiarizá­‑lo(a) com a prática da análise, fornecendo as infor-
mações necessárias para que você possa se conscientizar não só da importân-
cia, mas, sobretudo, da necessidade da análise para a compreensão dos textos
literários, bem como da necessidade de nos aparelharmos convenientemente
para, gradativamente, podermos assumir diante do texto a atitude e a postura
adequadas a um especialista em letras, vale dizer, a atitude e a postura de um
leitor crítico.
UNIUBE  23

Resumo
Neste capítulo, procuramos situar os estudos literários no contexto das formas
de conhecimento e esclarecemos suas características. Depois, vimos os obje-
tivos da leitura crítica e os perigos e/ou riscos a serem evitados, ou seja, tenta-
mos definir o âmbito de atuação do leitor crítico, com o objetivo de esclarecer
de que forma ele deve proceder para não ultrapassar os limites da atividade
crítica. Em seguida, vimos em que sentido a explicação pode ser considerada
uma atividade legítima e útil para o estudo do texto literário. Identificamos as
etapas da análise literária, explicitando as características de cada uma dessas
etapas. Além disso, explicamos as relações existentes entre compreensão crítica
e sensibilidade e procuramos distinguir entre fruição diletante e leitura crítica,
procurando justificar a necessidade da análise literária. Concluímos o capítulo
com uma exemplificação da metodologia da análise literária.

Referências
AGUIAR E SILVA, Vitor Manuel de. Teoria da literatura. 3 ed. Lisboa: Almedina, 1973.

AZEVEDO, Alvares de. Lira dos vinte anos. São Paulo: Martins Fontes, 1996. Disponível
em: <http://dominiopublico.gov.br/download/texto/bv000021.pdf>. Acesso em: 11 maio 2010.

BRASIL. Ministério da Educação e Cultura. Exame nacional de cursos – 1999. Disponível


em: <http://www.inep.gov.br/download/enc/1999/gabaritos/Padraoletras.pdf>. Acesso em: 23
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UNIUBE 25

Capítulo Estrutura e valor


2

Introdução
No capítulo anterior, tratamos da atividade crítica e vimos o papel
fundamental que a análise literária aí desempenha. Mas tivemos a
oportunidade de chamar a atenção também para o fato de que a ati-
vidade crítica, embora deva se servir da análise, deve ultrapassá-la
em direção ao julgamento da obra literária. Vale dizer: por mais impor-
tante que seja o conhecimento da estrutura, não podemos prescindir
da avaliação estética da obra. Até porque a crítica é, essencialmente,
julgamento de valor. Isso coloca em evidência a indissociabilidade
entre as noções de estrutura e de valor, que é o tema do presente
capítulo.

Objetivos
Após o estudo deste capítulo, esperamos que você seja capaz de:

• mostrar que as noções de estrutura e de valor são indissociáveis,


ou seja, que é impossível compreender e analisar as obras lite-
rárias sem referência aos valores;
• explicar que o estudo da literatura não pode e não deve ser di-
vorciado da crítica, que é julgamento de valor;
• explicar o que significa dizer que uma obra literária é bem-
-sucedida, bem realizada artisticamente;
• explicar como se dá a verdadeira incorporação das ideias numa
obra literária, seja romance ou poema.
26 UNIUBE

Esquema
2.1 Considerações iniciais
2.2 Definindo o campo de observação
2.3 Exemplo de avaliação crítica
2.4 Conclusão

Não existe estrutura fora das normas e dos valores. É­‑nos


impossível compreender e analisar qualquer obra de arte sem
referência aos valores.

René Wellek

2.1 Considerações iniciais


René Wellek demonstrou estar bem consciente desta indissociabilidade entre
as noções de estrutura e de valor. Aliás, ele foi um dos autores que mais se
empenharam para o esclarecimento desta questão, por isso mesmo a recorrên-
cia constante à sua contribuição, no presente capítulo. Para Wellek, uma obra
de arte não é apenas uma estrutura a ser analisada descritivamente. Considera
que mesmo uma análise completa da estrutura de uma obra de arte não esgota
a tarefa do estudo literário, porque é impossível compreender e analisar qualquer
obra de arte sem referência aos valores:

A obra de arte é uma totalidade de valores que não adere


simplesmente à estrutura, mas constitui sua própria essência.
Todas as tentativas de eliminar o valor da literatura têm fracas-
sado e fracassarão, porque sua própria essência é o valor. O
estudo da literatura não pode e não deve ser divorciado da
crítica, que é julgamento de valor. (WELLEK, 1963, p. 68.)

Daí afirmar que o erro da fenomenologia pura reside na presunção de que tal
dissociação é possível, de que os valores estão sobrepostos à estrutura, são
“inerentes” à estrutura.

Este erro de análise vicia o penetrante livro de Roman Ingar-


den, que tenta analisar a obra de arte sem a referir a valores.
(WELLEK; WARREN, 1962, p. 190.)

Mas os fenomenólogos e, em particular, Ingarden, não são um caso isolado. É


decerto verdade que vários autores têm se esforçado para pôr completamente
UNIUBE 27

de lado as questões do valor literário. Em Anatomia da crítica (1963), Northrop


Frye lança um apelo no sentido de as questões axiológicas serem deixadas de
lado na prática da investigação literária. Eis como Wellek (1963, p. 16-7) reagiu
à posição do autor:

A opinião de Frye de que “o estudo da literatura nunca pode


basear-se em julgamentos de valor”, de que a teoria da litera-
tura não está diretamente relacionada com julgamentos de
valor, parece-me completamente equivocada. Ele próprio con-
cede que “o crítico logo descobrirá, e constantemente, que
Milton é um poeta mais compensador e sugestivo para ser
estudado que Blackmore”. Por maior que seja sua impaciência
contra as opiniões literárias arbitrárias ou contra o jogo das
classificações, não posso ver como tal divórcio, como ele pa-
rece advogar, será possível na prática. Não se chegou às
teorias literárias, aos princípios, aos critérios, partindo-se do
nada: cada crítico desenvolveu sua teoria em contato (como
o próprio Frye) com obras de arte concretas que ele teve de
escolher, interpretar, analisar e, finalmente, julgar.

Outro autor que não concorda com essa dissociação é Antonio Candido. Este
autor (1976, p. 4) chegou a colocar o “valor” como o traço distintivo dos estudos
literários e, particularmente, da crítica literária em relação às outras disciplinas
que tomam a obra literária como objeto de estudo. Como já vimos, em seu ensaio
“Crítica e Sociologia: tentativa de esclarecimento”, ele considera que as abor-
dagens da obra literária ligadas à psicologia, à sociologia, à linguística etc. são
perfeitamente legítimas, até porque os problemas destas são diversos dos da
crítica literária. Estas não propõem a questão do valor da obra. São disciplinas
de cunho científico, sem a orientação estética necessariamente assumida pela
crítica literária.

Felizmente, a maior parte dos críticos encontra-se, hoje, Axiológica


consciente das premissas axiológicas subjacentes à
prática da crítica. O presente trabalho pretende ser uma Que concerne à
modesta contribuição para o fortalecimento e a dissemi- questão dos valores.

nação desse ponto de vista.

Mas o que se deve entender realmente por valoração da obra literária?


28 UNIUBE

Segundo Wellek, a valoração da obra literária é a experimentação, a tomada de


consciência, de qualidades esteticamente valiosas e de relações estruturalmente
presentes na obra para qualquer leitor competente.

Em apoio a esta afirmação, cita em seguida, Eliseo Vivas, segundo o qual

a beleza é uma característica de algumas coisas, e presentes


nelas; mas presente nessas coisas apenas para aqueles que
sejam dotados da capacidade e da preparação indispensáveis à
sua percepção. (VIVAS apud WELLEK; WARREN, 1962, p. 312.)

Para, finalmente, concluir que:

os valores existem potencialmente nas estruturas literárias; são


apreendidos e verdadeiramente apreciados ao serem contem-
plados pelos leitores que preencham as condições necessárias.
(WELLEK; WARREN, 1962, p. 312.)

Assim, para que uma obra literária possa ser avaliada positivamente, é neces-
sário que ela seja considerada bem­‑sucedida, bem realizada artisticamente, e
que estejamos preparados para perceber esta qualidade. A questão que se
coloca é: quando uma obra literária deve ser considerada bem­‑sucedida, bem
realizada artisticamente? Vejamos o que diz René Wellek (apud WELLEK; WAR-
REN ,1962, p. 302) a esse respeito:

Numa obra de arte bem realizada, os materiais encontram­‑se


completamente assimilados na forma: o que era “mundo”
converteu­‑se em linguagem. Os materiais de uma obra de arte
literária são, num plano, as palavras; noutro, a experiência do
comportamento humano; noutro ainda, as ideias e as atitudes
humanas. Todos eles, incluindo a linguagem, existem, fora da
obra de arte, de outras maneiras; mas num romance ou poema
bem realizado são atraídos em relações polifônicas pela dinâmica
do propósito estético.

2.2 Definindo o campo de observação


Ora, as ideias abstratas não têm lugar numa obra literária,
onde constituiriam um elemento heterogêneo.

Lucien Goldmann

Para limitar nosso campo de observação e não corrermos o risco de nos desviar
do principal, vamos nos restringir a considerar apenas um desses materiais —
UNIUBE 29

as ideias — e ver de que maneira se dá a sua completa assimilação numa obra


de arte literária, e, obviamente, também o inverso poderá ser observado: quando
as ideias não foram completamente assimiladas, resultando daí uma obra de
arte literária mal realizada. Para tanto, o que nos propomos a examinar é como
se dá a verdadeira incorporação das ideias numa obra literária, seja um romance
ou um poema. Trata-se de pôr em prática uma tarefa há muito preconizada por
René Wellek (apud WELLEK; WARREN, 1962, p. 150), e, certamente, tão opor-
tuna hoje quanto na época em que foi formulada:

O estudioso da literatura deveria consagrar a sua atenção ao


problema concreto, ainda não solucionado ou sequer devida-
mente discutido, que consiste em determinar como é que,
verdadeiramente, as ideias se inserem na literatura. A questão
não concerne, obviamente, à existência de ideias numa obra
literária enquanto essas ideias permanecem apenas meros
elementos não elaborados, simples elementos de informação.
Ela surge, sim, apenas quando e se essas ideias são genui-
namente incorporadas na própria textura da obra de arte,
quando se tornam ‘constitutivas’ — em resumo, quando deixam
de ser ideias no corrente sentido de conceitos e se tornam
símbolos, ou mesmo mitos.

Como se vê, Wellek faz menção aqui aos dois modos pelos quais as ideias
podem ser incorporadas à literatura, mas deixa claro também que só um deles
corresponde ao que se deve entender como uma correta assimilação, a uma
correta incorporação. O próprio autor nos dá uma pista de qual seria esse modo
correto, ao afirmar que, para se tornarem “constitutivas”, as ideias devem deixar
de ser conceitos e se tornarem símbolos ou mitos. Faz referência, assim, à
natureza simbólica da obra literária, anunciando que as ideias, para serem cor-
retamente incorporadas, devem ser apresentadas de maneira indireta, de ma-
neira implícita. Em seguida, o autor menciona exemplos dos dois casos,
distinguindo dois níveis de integração: um, inferior, em que as ideias não são
corretamente incorporadas, outro, superior, em que as ideias são inseridas de
modo correto.

SAIBA MAIS

A arte é uma forma simbólica. Este é o modo de ser da arte. É somente o artista que
vive criando, “fazendo”, na discrepância daquilo que meramente é. É por ser simbó-
lica que a literatura pertence ao sistema da arte. (adaptado de HAMBURGER, 1975,
p. 246-248.)
30 UNIUBE

Temos a grande região da poesia didática, onde as ideias


apenas são afirmadas, equipadas de métrica ou de alguns
embelezamentos de metáfora e alegoria. Temos o romance de
ideias, como os de George Sand ou George Eliot, onde se nos
deparam discussões de ‘problemas sociais, morais ou filosó-
ficos’. Num nível superior de integração, temos um romance
como Moby Dick de Melville, cuja ação total acarreta um certo
significado mítico, ou um poema como o The testament of
beauty de Bridges, que, pelo menos, em intenção, encerra
uma única metáfora filosófica. E temos Dostoievsky, em cujos
romances o drama de ideias se traduz, em termos concretos,
nas personagens e nos acontecimentos. No Os irmãos Kara-
mazov, os quatro irmãos são símbolos representativos de um
debate ideológico que, simultaneamente, é um drama pessoal.
A conclusão ideológica integra as catástrofes pessoais das
principais figuras. (WELLEK; WARREN, 1962, p. 150-151.)

SAIBA MAIS

George Sand: pseudônimo da escritora francesa Amandine Aurore Dupin, baronesa


Dudevant (1804–1976).

George Eliot: pseudônimo da escritora inglesa Mary Ann Evans (1819–1880).

Moby Dick (1851): obra de Herman Melville (1819–1891), escritor norte-americano.

The testament of beauty (1929): obra de Robert Seymour Bridges (1844–1930),


poeta inglês.

Os irmãos Karamazov (1879): romance de Fiódor Dostoiévski (1821–1881), escritor


russo.

SAIBA MAIS

Poesia didática

O poeta latino Lucrécio Caro, em seu De rerum natura (expressão latina que significa
“sobre a natureza das coisas”), esboçou as características da poesia didática, em
geral, e, mais particularmente, de sua poesia didática:
UNIUBE 31

Assim como os curadores, quando pretendem dar a uma


criança um vermífugo amargo, besuntam as bordas do copo
com o doce mel, a fim de que o paciente desprevenido não
recuse levá-lo à boca e beba a droga sem provar-lhe o gosto,
tendo com isso o benefício apesar do engano e assim reco-
brando a saúde e o bem-estar; assim também, visto que minha
filosofia parecerá muitas vezes amarga àqueles que não a
provarem e a maioria das pessoas certamente lhe voltaria as
costas, achei melhor apresentar-vos o meu pensamento na
suave linguagem das Musas, besuntando-o com o doce mel
da poesia na esperança de atrair vossa atenção para os meus
versos e de tal modo comunicar-vos algo sobre a natureza
das coisas e da sua utilidade. (CARO, 1962, p. 123.)

Percebe-se claramente, nesse tipo de poesia, como em qualquer obra em que pre-
valece o procedimento alegórico, que a forma artística se reduz a mero adorno exte-
rior, é um apêndice, que tanto pode existir como faltar.

Wellek observa que o artista será prejudicado por demasiada ideologia se esta
não for assimilada. E prossegue, citando outros exemplos:

Croce sustentou que A divina comé-


A divina comédia
dia consiste em passagens de poesia (1321)
alternadas com passagens de teologia
e pseudociência rimadas. A segunda Obra de Dante
parte do Fausto padece, indubitavel- Alighieri (1265–1321),
mente, de hiperintelectualização, está poeta italiano.
constantemente à beira da aberta ale-
Fausto
goria; e em Dostoiévski sentimos mui-
(Primeira parte — 1808;
tas vezes uma discrepância entre a Segunda parte — 1832)
realização artística e o peso do pensa-
mento. Zossima, porta-voz de Dos- Obra de Johann
toiévski, é uma personagem menos Wolfgang von Goethe
vividamente realizada do que Ivan Ka- (1749–1832), escritor,
cientista e filósofo
ramazov. A montanha mágica de alemão.
Thomas Mann ilustra, a um nível mais
baixo, a mesma contradição: as primei- A montanha mágica
ras partes, com a sua evocação do (1924)
mundo do sanatório, são artistica-
mente superiores às últimas — de tão Romance de Thomas
Mann (1875–1955),
amplas pretensões filosóficas. Por ve-
escritor alemão.
zes, todavia, surgem-nos na história
32 UNIUBE

da literatura casos — raros, é certo — em que as ideias irradiam


luz, em que as figuras e as cenas não se limitam a representar
ideias — incorporam-nas mesmo —, em que parece ocorrer
uma certa integração da filosofia e da arte. A imagem torna-se
conceito; o conceito, imagem. (WELLEK apud WELLEK; WAR-
REN, 1962, p. 151, grifo meu.)

Assim, de acordo com Wellek, haveria um modo correto de incorporação de


ideias na obra literária, que vamos chamar de processo simbólico, e um modo
incorreto de proceder a esta incorporação, que denominamos processo alegórico.

Como se dá cada um desses processos de inserção de ideias na obra literária?

Vejamos, primeiramente, o caso do romance.

Para responder a esta questão, devemos saber que as ideias podem ser inse-
ridas no romance de duas maneiras: através da narração/diálogo ou através da
fábula. O que chamamos “narração” é o diálogo entre o autor e o leitor. O que
denominamos “diálogo” é o diálogo interno à obra, aquele que se estabelece
entre as personagens. A “fábula”, por sua vez, é a história que se conta, ou seja,
são as ações e atitudes, os comportamentos, enfim, das personagens. Estes
dois níveis ou planos podem ser representados da seguinte forma:
narração/diálogo

fábula
Com estas informações, você já tem condições de escolher, entre estas duas
maneiras, aquela que corresponderia ao processo simbólico de inserção de
ideias no romance. Certamente você percebeu que tal inserção se dá através
da fábula, ou seja, através das ações das personagens, porque só assim as
ideias são apresentadas de maneira implícita.

Com efeito, pois, do contrário, ou seja, se as ideias forem apresentadas através


da narração/diálogo, elas serão transmitidas de maneira explícita, permanecendo
como conceitos. Neste caso, o papel principal é atribuído aos diálogos e não à
estrutura romanesca, à fábula. Este é o outro processo o qual denominamos
alegórico, de inserção de ideias no romance, porque, quando as ideias se ma-
nifestam através do diálogo, o papel destinado à fábula, às ações das persona-
gens, à história que se narra, é o papel de pano de fundo, de mero pretexto para
as ideias.
UNIUBE  33

Assim, somente no primeiro caso, podemos dizer que se trata de uma obra bem
realizada, porque houve a perfeita assimilação da matéria numa forma. Já no
segundo caso, trata­‑se de um romance mal realizado, porque, em um romance
desse tipo, as ideias permanecem meros elementos não elaborados, simples
elementos de informação e, por isso, facilmente descolados das obras. O que
é realmente fundamental passa a um plano secundário, numa completa inversão
de valores — os valores filosóficos acabam sobrepujando os valores estéticos.

A propósito desta maneira de inserir ideias no romance, veja o que disse An-
tonio Candido (1987, p. 86) ao comentar a produção romanesca do século
XVII — época rica em ficção alegórica:

De fato, a alegoria é um modo não ficcional de ver o mundo; é


mesmo antificcional apesar das aparências, na medida em que
nela a ficção é um pretexto e um veículo, a ser dissolvido quanto
antes pelos fluidos da noção e da informação (moralmente
condicionados), que devem suplantar a aparência romanesca.
Importantes seriam a ideia abstrata ou o princípio ético...

Um autor que se preocupou particularmente com esta questão da incorporação


de ideias no romance foi Vergílio Ferreira. Este autor escreveu já há algum tempo
um ensaio intitulado “Nota sobre o romance de ‘ideias’”, no qual procura escla-
recer estes dois modos de incorporação de ideias.

Para Vergílio Ferreira, na história do romance de “ideias”, poderíamos apontar


como exemplos extremos um livro de Kafka e um diálogo de Platão. Em Platão,
houve a abolição da estrutura romanesca, ficando apenas
os diálogos. E as “ideias” nos vêm exclusivamente desses O processo (1914;
diálogos. Kafka procedeu de maneira oposta: a “ideia” aqui 1925); O castelo
é um saldo final de toda a narrativa. Essa “ideia”, para ser (1922; 1926)
eficaz, teve de ser expressa através da fábula. A ideia aqui
Romances de Franz
não pode ser reduzida a uma estrita dimensão de “ideia”, Kafka (1883–1924),
não pode ser concretizada, traduzida em um enunciado, escritor checo de
é algo indizível. Após a leitura de O processo e de O língua alemã.
castelo, o que nos sobra é um problema para cada livro Crime e castigo
(um problema de culpabilidade moderna ou de relação (1866)
com as forças que nos superam). Entre estes dois extre-
mos situam­‑se todos os ficcionistas. Dostoiévski teria Romance de Fiódor
Dostoiévski
hesitado entre as duas soluções, a de um Kafka e a de (1821 –1881), escritor
um Platão. Em Crime e castigo, por exemplo, as ideias russo.
nos vêm sobretudo dos diálogos, as ideias vivem por si,
são fundamentalmente ideias e não elas a viverem, a rea­
lizarem uma ação.
34 UNIUBE

SAIBA MAIS

Os diálogos de Platão aparecem aqui apenas para efeito de contraste, o que, de


acordo com o ensaísta, se justifica na medida em que confinam com o romance, pois,
nos diálogos, as figuras se apresentam como figuras humanas e não como, simples-
mente, encarnações de puros “pontos de vista”.

Advogando em favor do processo simbólico de inserção de ideias no romance,


Vergílio Ferreira (1965) argumenta que os romancistas — e, diríamos nós, também
os leitores — não renunciam a uma plausibilidade de romance na vida, de romance
“real”, de história acontecida. Os romances em que as ideias são transmitidas
através do diálogo não atendem a essa exigência de verossimilhança, porque,
neste caso, as personagens não se assemelham à maioria das pessoas, mas são
exceções, são pessoas que têm consciência filosófica e são intelectualizadas,
capazes de reflexão. A maioria das pessoas se comporta segundo uma certa
“filosofia de vida”, mas sem condições de verbalizar ou de explicitar essa “filosofia
de vida”. Assim sendo, estes romances pecam por excessivo intelectualismo, pelo
esvaziamento das personagens, que acabam dominadas pela pretensão concei-
tual do livro. Para que um romance atenda a essa exigência de verossimilhança,
as ideias devem ser inseridas em um romance através da fábula, através das
ações das personagens. Desta forma, as ideias se mani-
festam, mas sem ser necessário que elas tenham atingido Dom Quixote
o nível da consciência e da verbalização, como ocorre com
Personagem principal
a maioria das pessoas. Consta que certo romancista teve da obra homônima
que criar uma personagem filósofo para justificar passagens (1605; 1615) de
filosóficas em sua obra. É o caso de Dom Quixote. Este é autoria de Miguel de
Cervantes y Saavedra
apresentado como um erudito para justificar a intrusão de (1547–1616), escritor
passagens críticas no romance. (GENETTE, 1972.) espanhol.

SAIBA MAIS

O romance, usualmente, trata de personagens da classe média e da vida comum; isto é,


raramente focaliza personagens excepcionais. De modo geral, as personagens de ro-
mance estão empenhadas em atividades comuns e fundamentais, como casar, viajar,
ganhar dinheiro e progredir na sociedade ou na profissão. Mesmo que grande parte do
material seja fruto de invenção, o tratamento que ele recebe caracteristicamente no ro-
mance é realista. As personagens e incidentes são geralmente descritos de modo tal que
pareçam normal e concretamente autênticos. (DANZIGER; JOHNSON, 1974.)
UNIUBE  35

Quando dizemos que, para ser verossímil, o romance deve apresentar as ideias
através das ações das personagens, não estamos suprimindo outras possibilida-
des, equivalentes, mais ao gosto daqueles que preferem ainda e sempre as ideias
em si mesmas. Na verdade, há um expediente que permite que as ideias sejam
apresentadas como tal, sem que isso implique a destruição da autonomia do
mundo ficcional; trata­‑se do recurso denominado discurso indireto livre, em que
as ideias são apresentadas como sendo de responsabilidade exclusiva da perso-
nagem, mas que não são ditas, exteriorizadas, mas apenas pensadas. É claro
que, neste caso também, para serem aceitas como verossímeis — ou seja, se
justifiquem —, o nível intelectual da personagem deve ser compatível com o grau
de complexidade das ideias. Este é um expediente muito usado, sobretudo no
romance realista. Há um exemplo excelente de como este recurso pode ser usado,
entre outros aspectos, para assegurar a objetividade na apresentação da perso-
nagem, ou seja, o distanciamento do autor em relação à mesma, no romance O
crime do padre Amaro, de Eça de Queirós. Trata­‑se de uma passagem, do ca-
pítulo IX, em que Amaro, personagem principal, faz, em
pensamento, uma crítica ao celibato e à Igreja, crítica com O crime do padre
a qual, diga­‑se de passagem, o próprio autor não concorda Amaro (1875)
e até mesmo repudia. Veja o referido trecho a seguir. Romance de José
Maria Eça de Queirós
Mas na sua paixão havia às vezes gran- (1845–1900), escritor
des impaciências. [...] Por que o tinham português. Guerra da
Cal e Óscar Lopes
feito padre? Fora “a velha pega” da
atribuem a Eça de
Marquesa de Alegros! Ele não abdicava Queirós a introdução
voluntariamente a virilidade do seu do discurso indireto
peito! Tinham­‑no impelido para o sacer- livre na literatura
dócio como um boi para o curral! portuguesa e até
peninsular. (CEIA,
2010)
Então, passeando excitado pelo quar­to,
levava as suas acusações mais longe, Accedo (lat.)
contra o celibato e a Igreja; por que
proibia ela aos seus sacer­dotes, ho- Aceito, concordo.
mens vivendo entre homens, a sa­tis­
fação mais natural, que até têm os
animais? Quem imagina que desde que
um velho bispo diz — serás casto — a
um homem novo e forte, o seu sangue
vai subitamente esfriar­‑se? E que uma
palavra latina — accedo — dita a tre-
mer pelo seminarista assustado, será
36 UNIUBE

o bastante para conter para sempre a rebelião formidável do


corpo? E quem inventou isso? Um con-
cílio de bispos decrépitos, vindos do Concílio
fundo dos seus claustros, da paz das
Referência ao Concílio
suas escolas, mirrados como pergami- de Trento, no século
nhos, inúteis como eunucos! Que sa- XVI, quando se
biam eles da Natureza e das suas sancionou
tentações? Que viessem ali duas, três solenemente e de
forma definitiva o
horas para ao pé da Ameliazinha, e celibato clerical. Houve
veriam, sob a sua capa de santidade, duas tentativas
começar a revoltar-se-lhe o desejo! anteriores. No século
Tudo se ilude e se evita, menos o amor! V, cerca de 300 bispos
E se ele é fatal, por que impediram casados participaram
do Concílio de Rímini.
então que o padre o sinta, o realize com A partir dessa época, a
pureza e com dignidade? É melhor tal- lei começou a proibir
vez que o vá procurar pelas vielas obs- que os sacerdotes
cenas! — Porque a carne é fraca! fossem casados. Com
o Concílio de Latrão,
em 1123, a exigência
A carne! Punha-se então a pensar nos passou a valer para
três inimigos da alma — MUNDO, todo o mundo latino.
DIABO E CARNE. E apareciam à sua
imaginação em três figuras vivas: uma mulher muito formosa;
uma figura negra de olho de brasa e pé de cabra; e o mundo,
coisa vaga e maravilhosa (riquezas, cavalos, palacetes) — de
que lhe parecia uma personificação suficiente o senhor Conde
de Ribamar! Mas que mal tinham eles feito à sua alma? O
diabo nunca o vira; a mulher formosa amava-o e era a única
consolação da sua existência; e do mundo, do senhor conde,
só recebera proteção, benevolência, tocantes apertos de mão...
E como poderia ele evitar as influências da Carne e do Mundo?
A não ser que fugisse, como os santos doutrora, para os areais
do deserto e para a companhia das feras! Mas não lhe diziam
os seus mestres no seminário que ele pertencia a uma Igreja
militante? O ascetismo era culpado, sendo a deserção de um
serviço santo. — Não compreendia, não compreendia! (QUEI-
RÓS, 2010, p. 106-107, grifo meu.)

SAIBA MAIS

Danziger e Johnson observam que, quando as ideias são expressas por certas per-
sonagens, dentro de uma obra, “é possível que um ponto de vista obviamente incor-
reto tenha sido introduzido a fim de permitir que as fraquezas de uma personagem
falem por si mesmas, como acontece quando o Ricardo III de Shakespeare revela
seus planos ignóbeis num solilóquio”. (1974, p. 224.)
UNIUBE  37

O crítico Álvaro Lins (1964, p. 101­‑2) discorda daqueles que, baseados nesta
passagem do romance, tentam imputar ao livro a defesa de uma tese contra o
celibato — por este ser contrário à natureza — e contra a Igreja. Trata­‑se de
uma tese, não há dúvida, mas que só aparece uma vez em todo o livro e quem
a exprime é o padre Amaro. Trata­‑se, na verdade, de um padre que não conta
sequer com a simpatia do próprio autor, uma vez que é parte daquilo que cons-
titui — este sim — o verdadeiro objeto de sua crítica: o clero português, deca-
dente. Ao contrário de Antero de Quental, que aponta a Antero de Quental
religião como uma das “causas da decadência dos povos (1842–1891)
peninsulares”, Eça não critica a Igreja nem a religião, uma
Escritor, filósofo e
vez que elas “são de origem eterna”. poeta português.

É ainda desse lúcido Álvaro Lins (1964, p. 101­‑4) a observação seguinte, que,
embora extensa, merece ser citada, porque não só corrobora a perspectiva que
temos assumido neste roteiro, mas contribui com argumentos que podem ajudar
para melhor compreensão da problemática aqui abordada:

Não sinto, de modo nenhum, no Crime do padre Amaro, este


caráter de tese e de doutrina de que anda sempre envolvido.
Pelo menos de uma tese contra a Igreja ou contra o próprio
clero. [...] Foi no Crime do padre Amaro que esteve mais
perto de se perder pela tese e onde também se salvou, com
mais nitidez e com mais força, como romancista. Estará para
sempre, com esta vitória talvez inconsciente, mas definitiva,
fixado o sentido da sua arte: a tese, na sua técnica do romance,
será um acidente, e não a sua finalidade. Verdade e beleza
artística — serão os seus pontos visados. Nunca desprezará
inteiramente o gosto da tese — a fascinação de provar qualquer
coisa — mas nunca este gosto o dominará como escravo. Em
momento nenhum escolherá a posição de um candidato de
concurso. E foi com o Crime do padre Amaro que Eça se
salvou desta posição que pode ser uma beleza para brilhar na
vida, mas que é uma desgraça na arte. [...] Eça não imbecilizou
o seu padre para desonrá­‑lo; desonrou­‑o para salvar em si
mesmo, o seu caráter de romancista. E salvando­‑se como
romancista sacrificava­‑se como doutrinário — o crime do padre
Amaro não atinge a Igreja nem prova a impossibilidade do
celibato. Com este sacrifício, no entanto, Eça não perde nada
como moralista. E será inútil explicar que, em arte, o doutriná-
rio moral é uma coisa e o doutrinário de teses é outra. A simples
leitura dos romances de Eça indicará a profunda diferença
destes processos. Num, a doutrinação é um acidente que se
desenvolve de maneira indireta; no outro, uma finalidade ab-
sorvente.
38 UNIUBE

Como se pode facilmente perceber, o que o autor chama de “doutrinação moral”


equivale ao que denominamos forma simbólica, indireta, ou seja, a forma correta,
de inserir ideias no romance, ao passo que o que ele denomina “doutrinação de
teses” corresponde ao que chamamos de maneira alegórica, direta, vale dizer,
incorreta, de inserir ideias numa obra.

CURIOSIDADE

Antes de darmos prosseguimento, achamos oportuno apresentar a você alguns


exemplos de como esta consciência de que existem dois modos de inserir ideias
numa obra literária e de qual deles é o correto está disseminada entre os estudiosos
da literatura e é de uso corrente em suas análises críticas.

O primeiro exemplo é de Lucien Goldmann (1967, p. 30). O autor de Sociologia do


romance, referindo-se à obra A luta com o anjo, de André Malraux, diz: “A luta com
o anjo será ao mesmo tempo a última e a menos romanesca, a mais intelectual das
obras de ficção de Malraux”.

Desta forma, mostrou-se consciente de que nesta obra as ideias não foram correta-
mente assimiladas.

O segundo exemplo é extraído de um ensaio de Fernando Pessoa, no qual ele de-


monstra estar perfeitamente consciente dos dois modos de inserir ideias numa obra
literária, só que, no caso, aplicados ao drama. Vale a pena conferir!

De resto, no que respeita ao instinto da ação dramática, as influências


culturais mais profundas só operam hoje em um sentido: é quando a
ação envolva uma tese, conclusão ou ‘filosofia’. De per si, a presença
de uma tese não aumenta nem diminui, como arte, o equilíbrio ou relevo
da obra dramática. A tese é extra-artística no drama, como em qualquer
obra não filosófica por natureza; e, como tudo quanto na arte é extra-
-artístico, a tese pode aumentar o valor da obra, se é tratada, e nela in-
tegrada, artisticamente; diminui-o com certeza se o não é, se, por o não
ser, representa, pelo menos, um acréscimo inassimilado no conjunto. [...]
A preocupação artística moderna, de sugerir em vez de exprimir,
obriga-nos a que concebamos o ideal dramático neste ponto como
o de que a tese, conclusão ou filosofia do drama seja sugerida pelo
seu enredo ou conjunto, e não dita por esta ou aquela personagem
(em substituição sem vantagem dos coros do drama antigo), não
distribuída pelas personagens em indicações ou considerações
diretas (como nos monólogos que no drama ante-moderno foram
o seguimento dos mesmos coros). Ou pelo processo simbólico, em
que o drama é, pelo enredo fora, a sombra, passo a passo, de uma
ideia (como nos dramas de Maeterlinck ou de Lord Dunsany, aliás
UNIUBE 39

falhados pela opressão excessiva do símbolo); ou pelo processo


sugestivo, em que a obra no conjunto findo leva a uma conclusão
como, sem falha, no drama a que estas considerações servem de
comentário) — o fato é que a tese só é admissível ao instinto ar-
tístico moderno quando, de uma ou de outra destas duas maneiras,
ela se integra na estrutura da obra e com ela se consubstancia, e
não se lhe extra — ou justapõe. (PESSOA, 1982, p. 278.)

2.3 Exemplo de avaliação crítica


Conscientes destes dois modos de incorporação de ideias no romance, podemos
agora nos voltar para a prática e tentar compreender como
funciona esse tipo de avaliação do romance através de Canaã (1902)
um exemplo concreto. Há um exemplo excelente, que Romance de José
parece sob medida para o que queremos mostrar. Pereira da Graça
Referimo-nos à análise do romance Canaã, de Graça Aranha (1868–1931),
escritor e diplomata
Aranha, da autoria de Roberto Schwarz. brasileiro.

Embora o autor faça uma análise completa do romance,


vamos considerar apenas o que ele diz a respeito do aspecto propriamente
estético da obra.

Após meticuloso exame desta obra, o crítico formulou o seu julgamento, con-
cluindo que se trata de um romance mal realizado. Schwarz (1965) observa que,
nesta obra, as ideias são transmitidas através dos diálogos das personagens e
através da própria fala do narrador-autor, que interrompe várias vezes a narra-
tiva para dizer “verdades” sobre o Brasil e a condição humana. Procura mostrar
assim que a arquitetura do romance

acaba por negar a intenção inicial, de realismo com tinturas


simbolistas, para terminar no polo oposto, em processos ale‑
góricos que anulam o próprio mundo de ficção cujo coroamento
deveriam ser. (SCHWARZ, 1965, p. 19-20.)

Chega, assim, à conclusão de que “a dimensão realista do livro é incompatível


com a sua dimensão explicativa”.

O crítico, em sua análise, pôde perceber nesta obra um itinerário, de quebra


progressiva do realismo e da autonomia da ficção, que compreende os seguin-
tes passos: descontinuidade do universo imaginário, provocada pela presença
40 UNIUBE

teorizante do autor; esvaziamento das personagens, que são dominadas pela


pretensão conceitual do livro; desvalorização da trama ficcional pela sua trans-
formação em pretexto para análises sociopsicológicas do Brasil; o último passo
é de anulação da autonomia do mundo fictício, que é transformado em alegoria.

O crítico procura mostrar como o autor construiu o romance. Observa que este
começa com a paisagem da experiência de Milkau. Em seguida, abandona-se
o universo da experiência da personagem e sente-se claramente a presença do
autor, que intervém para fazer uma reflexão sobre uma determinada ideia. O
universo propriamente ficcional, da experiência da personagem, é rompido pela
intervenção teórica do autor. Após esta ruptura, o autor reenceta a narração,
sobretudo para dar continuidade à voz do narrador (através de inumeráveis
artifícios conectivos) e só secundariamente articulando a sequência do aconte-
cimento. Conclui o crítico:

O livro não se decide entre ser romance e peça de brasiliana,


e não entrevê a possibilidade de ser um através do outro, como
tão bem fez a ficção social brasileira posterior. Os dois focos
de interesse não encontram solução; coexistem com prejuízo
mútuo. (SCHWARZ, 1965, p. 20.)

Eis uma breve síntese de sua avaliação crítica.

EXPLICANDO MELHOR

Canaã é construído sobre dois eixos, um propriamente ficcional, romanesco, que é


a aventura de Milkau secundada pelas de Maria e Lentz, e outro, dado no desejo do
autor de mostrar e discutir o Brasil. Para que a obra fosse bem-sucedida, seria preciso
submeter o segundo eixo ao primeiro, fazer com que as ideias fluíssem da experiên-
cia das personagens. O que se vê, porém, é que, nesta obra, as personagens, esva-
ziadas de toda a vida, passam a ser simples porta-vozes de posições ideológicas. As
ações das personagens e as próprias personagens acabam se reduzindo a mero
pretexto das ideias. As personagens são dominadas pela pretensão conceitual do
livro, ocorre a desvalorização da trama ficcional, da estrutura romanesca, pela sua
transformação em pretexto para análises sociopsicológicas do Brasil; anula-se a
autonomia do mundo ficcional, que é transformado em alegoria. Mesmo a carga
poética de que se reveste a linguagem não consegue fazer dele um bom romance.
Pode-se dizer mesmo que se trata de um bom livro, mas de um péssimo romance.

Tanto é verdade o esvaziamento de toda a vida das personagens que, a partir


de um certo ponto, o autor desiste de fazer o livro avançar pelo diálogo ou pela
UNIUBE 41

narração e, em seis parágrafos sucessivos, as duas personagens têm sua exis-


tência individual cassada, são juntadas em um “Eles” cuja única força, retórica,
vem de ser recorrente ao início de cada parágrafo, para que o autor elabore um
hino de louvor à natureza, em um arroubo de extravasamento lírico, isso sem
falar do descaso literário em relação à personagem Maria, que acaba sendo
“usada” como simples deixa para longas cenas “demonstrativas”, provas de
atitudes reprováveis de autoridades locais.

Schwarz não foi, porém, o único a ter dessa obra uma visão estética depreciativa.
Um outro autor, Xavier Placer (apud COUTINHO, 1969, p. 174), sumariando,
algum tempo depois, as características de Canaã, não foi mais complacente,
limitando-se, praticamente, a repetir as palavras de Schwarz:

Malgrado as boas intenções, Graça Aranha realizou um bom


livro. Não um bom romance, note-se. A crítica tem sido unânime
em considerá-lo um péssimo romance. E não sem motivo, se
se tomar o gênero em sua expressão mais autêntica: recriação
da vida, através de personagens, com todas as relações pos-
síveis no tempo e no espaço. Não; a obra-prima de Graca
Aranha não reveste este sentido, por assim dizer, tradicional,
no romance. [...] Em resumo, teceu uma alegoria.

Até aqui tratamos apenas da inserção de ideias no romance. E na poesia, esta inser-
ção se dá de modo diferente?

Na poesia, de modo semelhante, na medida em que é também uma forma de


arte, as ideias devem ser apresentadas de modo implícito, recorrendo ao pro-
cesso simbólico. Só que aqui a maneira de fazer isso é diferente, uma vez que
nela não há os dois níveis identificados no romance. Na poesia não há ações
nem personagens. Há apenas o eu lírico, o sujeito de enunciação. Estamos aqui
no domínio da expressão direta e tudo se reduz a um único nível. Assim, a di-
ferença se coloca em termos de linguagem, ou, mais especificamente, entre
dois tipos de enunciado, o enunciado lírico (existencial) e o enunciado teórico.
O enunciado lírico é o campo de vivência ou de experiência do sujeito de enuncia-
ção, daí ser chamado também de enunciado existencial. Nesse tipo de enun-
ciado, as ideias são apresentadas como e enquanto experiências, como e
enquanto vivências do eu lírico. Exatamente pelo fato de expressar uma vivên-
cia do eu lírico, é que o poeta utiliza quase sempre elementos do mundo concreto,
daí a preferência pelas imagens em lugar de conceitos.
42 UNIUBE

SAIBA MAIS

O que foi observado sobre o poema e o romance é um sintoma de que devemos


proceder de modo diverso na análise de um poema lírico e na análise de um romance
ou drama. “Verificar-se-á que também na interpretação do significado da obra literá-
ria observam-se inconscientemente as leis que regem o gênero ao qual pertencem
as diversas obras, e que se procede de modo diverso na análise de um poema lírico
e na análise de um romance ou drama”. (HAMBURGER, 1975, p. 246.)

Foi talvez pensando no que foi dito sobre a poesia que Giambatista Vico (apud
CANDIDO, 1996, p. 94) pôde afirmar que os poetas e filósofos excluem-se mu-
tuamente,

pois a razão poética faz com que seja algo impossível alguém
ser poeta e metafísico igualmente sublime, porque a metafísica
abstrai o espírito dos sentidos, e a faculdade poética deve
mergulhar todo o espírito nos sentidos; a metafísica se eleva
até os universais, a faculdade poética deve se aprofundar nos
particulares.

Disso resulta, ainda segundo este autor, que a expressão poética, em sentido
amplo e restrito, fundamenta-se no concreto, no particular. Daí exprimir por meio
da figuração dos sentidos, dando substância animada aos corpos e à própria
ideia.

O próprio Antonio Candido (1996, p. 66) chega à conclusão parecida, a propósito


da poesia:

...o poeta mais eficaz é o que consegue tratar o elemento in-


telectual como se pudesse ser sensorialmente traduzido, e não
abstratamente expresso. Os elementos abstratos são legítimos
quando parecem transpostos para o mundo das formas, ou
quando vêm amparados em imagens e sequências que deno-
tam a força sensorial.

E completa:

Explico-me: mesmo tratando-se de um poeta filosófico, a efi-


cácia poética do pensamento não é devida à coerência interna
deste nem à sua verdade em si, mas à sua tradução em um
sistema adequado de palavras que deem a impressão de ex-
periência, vivida, sentida, palpável, e não de um raciocínio.
UNIUBE 43

SAIBA MAIS

“A poesia de ideias é como a outra poesia; não deve ser apreciada pelo valor dos
materiais que utiliza, mas sim pelo grau da sua integração e intensidade artísticas”.
(WELLEK; WARREN, 1962, p. 152.)

O autor cita, a este propósito, o soneto de Antero de Quental (1991):

Na floresta dos sonhos, dia a dia,


Se interna meu dorido pensamento;
Nas regiões do vago esquecimento
Me conduz, passo a passo, a fantasia.

Atravesso, no escuro, a névoa fria


Dum mundo estranho, que povoa o vento,
E meu queixoso e incerto sentimento
Só das visões da noite se confia.

Que místicos desejos me enlouquecem?


Do Nirvana os abismos aparecem
A meus olhos na muda imensidade!

Nesta viagem pelo ermo espaço


Só busco o teu encontro e o teu abraço.
Morte! Irmã do Amor e da Verdade!
(QUENTAL, Antero de, 2010.)

SAIBA MAIS

Este é o segundo dos seis sonetos da série “Elogio da morte”. Quando foi publicado
a primeira vez, em 1875, no primeiro número da Revista Ocidental, trazia como título
“Nirvana”. Na edição em volume passou a ter apenas o número II. (SÉRGIO, 1943.)

Neste soneto, segundo o autor,

o que ressalta é o ambiente noturno, com uma série de ele-


mentos que reforçam a sua vaguidão, distanciamento e frial-
dade, resultando um alheiamento final das coisas e a aceitação
metafísica da morte como suprema vivência. O princípio filosó-
fico de inspiração hartmaniana e schopenhaueriana, com influ-
44 UNIUBE

xos budistas, é eficaz, porque o poeta o traduziu como se fosse


uma experiência captada e vivida no plano dos sentidos. Há
nele uma espécie de sublimação, em tonalidade abstrata e
remota, duma forte capacidade de vibrar com o corpo, a vista,
o ouvido, o movimento dos membros; uma sensação de ne-
grume, e em geral uma acuidade visual muito intensa. O pen-
samento viveu poeticamente porque se transpôs em
experiência; porque se traduziu em palavras que exprimem uma
forte capacidade de visualizar, ou de ouvir, ou de imaginar, que
objetiva a vida interior, dando­‑lhe realidade palpável pelos ‘olhos
da alma’. E com isso o poeta ‘cria’ um mundo seu, a partir do
uso adequado das palavras. (CANDIDO, 1996, p. 66­‑67.)

Vimos, há pouco, que o poeta precisa traduzir as ideias de tal maneira que deem
a impressão de experiência, vivida, sentida, palpável, e não de um raciocínio.
Mas, mesmo quando conserva a estrutura de um raciocí-
nio ou até, mais especificamente, de um raciocínio silo- Luís Vaz de Camões
gístico, como ocorre em alguns sonetos de Camões, o (1524–1580)
poeta deve ter o cuidado de não fazê­‑lo com a linguagem
conceitual, mas sim com uma linguagem figurada, recor- Poeta português.
rendo a imagens. É o que ocorre no soneto “Amor é fogo
que arde sem se ver”. Ele conceitua o amor, não abstratamente, como faria um
filósofo, mas concretamente, como é próprio de um poeta. Os enunciados teó-
ricos são traduzidos em imagens, em enunciados existenciais. Neste poema, o
poeta nos transmite algumas ideias ou conceitos: tudo o que é contraditório não
causa harmonia entre os homens; o amor é contraditório; não obstante, o amor
causa harmonia nos corações humanos. Mas, para isso, ele utilizou, não esta
linguagem filosófica, mas um processo simbólico, indireto, o processo das ima-
gens que se sucedem em onze versos das três primeiras estrofes: amor é fogo
que arde sem se ver; é ferida que dói e não se sente, e assim por diante. Como
observou Maria Helena Ribeiro da Cunha, em estudo sobre a estrutura silogís-
tica do soneto camoniano (1976, p. 8):

O último terceto denota a perplexidade do eu lírico, que chega


a desconcertante conclusão sobre os efeitos do amor. A inter-
rogativa colocada ao final do verso, além de salientar a per-
plexidade do eu lírico, atribui­‑lhe a força de uma verdade
confirmada pela experiência, na medida em que se desvia da
conclusão esperada e inevitável do raciocínio dedutivo.

Assim, neste poema, as ideias ou conceitos são apresentados de modo implícito.


As ideias não permanecem como elementos não elaborados esteticamente;
deixam de ser ideias, no corrente sentido de conceitos e transformam­‑se em
UNIUBE 45

imagens. As ideias são apenas a matéria-prima, são elementos ou materiais e,


como tais, esteticamente neutros.

Amor é fogo que arde sem se ver;


É ferida que dói e não se sente;
É um contentamento descontente;
É dor que desatina sem doer;

É um não querer mais que bem querer;


É solitário andar por entre a gente;
É nunca contentar-se de contente;
É cuidar que se ganha em se perder;

É querer estar preso por vontade;


É servir a quem vence, o vencedor;
É ter com quem nos mata lealdade.

Mas como causar pode seu favor


Nos corações humanos amizade,
Se tão contrário a si é o mesmo Amor?
(CAMÕES, Luís Vaz de, 2010.)

SAIBA MAIS

Na edição de 1598 há algumas variantes: verso 1: “Amor é um fogo...”; verso 6: “É


um andar solitário...”; verso 8: “É um cuidar...”.

Wolfgang Kayser (1968, p. 27-42), ao analisar o poema “Redenção”, de Antero


de Quental, chega à idêntica conclusão, a respeito da incorporação das ideias
na poesia.
Redenção

Vozes do mar, das árvores, do vento!.


Quando, às vezes, num sonho doloroso,
Me embala o vosso canto poderoso,
Eu julgo igual ao meu vosso tormento...
46 UNIUBE

Verbo crepuscular e íntimo alento


Das cousas mudas; salmo misterioso;
Não serás tu, queixume vaporoso,
O suspiro do mundo e o seu lamento?

Um espírito habita a imensidade:


Uma ânsia cruel de liberdade
Agita e abala as formas fugitivas.

E eu compreendo a vossa língua estranha,


Vozes do mar, da selva, da montanha...
Almas irmãs da minha, almas cativas!

II

Não choreis, ventos, árvores e mares,


Coro antigo de vozes rumorosas,
Das vozes primitivas, dolorosas,
Como um pranto de larvas tumulares...

Da sombra das visões crepusculares


Rompendo, um dia, surgireis radiosas
Desse sonho e essas ânsias afrontosas,
Que exprimem vossas queixas singulares.

Almas no limbo ainda da existência,


Acordareis um dia na Consciência,
E pairando, já puro pensamento,

Vereis as Formas, filhas da Ilusão,


Cair desfeitas, como um sonho vão...
E acabará por fim vosso tormento.
(QUENTAL, Antero de, 2010.)

Conforme observa o autor nesse poema, em muitos dos versos se fala aberta-
mente de pensamentos e pensa­‑se o que fez com que a linguagem seja quase
toda reflexiva. O problema central é o dualismo entre corpo e alma.

Mas este poema não começa por exprimir um pensamento, mas sim por uma
situação concreta, embora um pouco afastada, por causa da expressão “às
vezes”. O poeta escuta as vozes de coisas da natureza, escuta e entende­‑lhes
a linguagem. Embora os significados das palavras pesem neste poema mais do
que numa canção qualquer, não devemos incorrer no erro de tomar as palavras
por termos filosóficos.
UNIUBE  47

E exemplifica com o seguinte verso:

e pairando, já puro pensamento...

“Pairando” impede­‑nos de considerar “pensamento” só num


sentido abstrato e geral. Enquanto paira, é concreto. Como
que flutua diante dos nossos olhos a imagem de uma nuvem
puríssima no azul transparente. (KAYSER, 1968, p. 38.)

Conforme ainda esclarece, este poema não é a solução teórica de um problema


teórico — é a vivência palpitante de queixas angustiosas, é a libertação delas
ao encontrar e proferir a fórmula mágica; é, finalmente, a libertação definitiva
através da profecia. E completa:

Quem puder ler esta obra como poesia, como configuração,


para esse não existirá verdade nem falsidade da essência
ideológica, esse vibra com o mundo de ânsia que existe, e vive
a libertação através do poder mágico de um ‘eu’. (KAYSER,
1968, p. 38.)

Dado este aspecto da obra, o autor observa que o eu portador da mensagem é


um eu existencial — não importando para o nosso propósito que se trate aqui
de um eu especial — e não um eu teórico. A interpretação ideológica que pre-
tendia ver nele o representante de todos os homens, já por isso desvirtua a obra
de arte:

Neste ponto oferecem contraste frisante a interpretação da


essência ideológica e a interpretação artística. Ambas têm
razão na sua esfera: estas esferas, porém, são muito diferen-
tes. A filosofia de um poeta e uma obra de arte são dois fenô-
menos que devem ser separados por princípio. [...] a
investigação das ideias e dos problemas [...] nunca poderá
substituir a tarefa autêntica e específica da ciência da literatura:
a compreensão da obra de arte como tal. Aquele que unica-
mente estuda problemas e ideias, não só põe de lado uma
parte essencial, mas até chega, não raro, a deformar a essên-
cia da obra. (KAYSER, 1968, p. 41­‑2.)

O que estamos comentando aqui sobre a inserção de ideias na poesia foi, por
assim dizer, tematizado por Murilo Mendes em interes- Murilo Mendes
sante poema, com o qual podemos encerrar esta parte de (1901–1975)
nossa reflexão. Trata­‑se do poema “Ideias rosas”, do livro
Poeta da terceira
Poesia liberdade, de 1947 (apud CANDIDO, 2001, p. 90). geração do
Neste poema, conforme bem observou Antonio Candido: modernismo brasileiro.
48 UNIUBE

as flores encarnam as ideias que perderam o cunho abstrato


à força de serem vividas, e se tornaram realidade concreta,
profundamente enraizada no sentimento e na visão.

Ideias rosas

Minhas ideias abstratas


De tanto as tocar, tornaram­‑se concretas:
São rosas familiares
Que o tempo traz ao alcance da mão,
Rosas que assistem à inauguração de eras novas
No meu pensamento,
[...]
Rosas! Rosas!
Quem me dera que houvesse
Rosas abstratas para mim.
(MENDES apud CANDIDO, 2001, 90­‑91.)

Até aqui, vimos como se dá a inserção de ideias no romance e na poesia. Mas,


quando falamos do romance, restringimo­‑nos ao romance na terceira pessoa.
Devemos, agora, abordar o romance em primeira pessoa, que constitui um caso
à parte; um caso intermediário, por assim dizer, em relação àqueles dois outros.
Por sua estrutura diferenciada — que muitos insistem em não reconhecer — o
romance em primeira pessoa deve receber um tratamento igualmente diferen-
ciado.

Para esclarecer esse caso especial, vamos nos basear em um exemplo concreto,
o romance Aparição, de Vergílio Ferreira (1983). Este
Aparição (1959)
romance parece, à primeira vista, contradizer o que vimos
sobre a inserção de ideias no romance e, inclusive, as Romance de Vergílio
próprias afirmações feitas por este autor sobre o assunto. Ferreira (1916–1996),
Mas isso não passa de uma aparência. Por se tratar de escritor português.
narração em primeira pessoa, neste romance, as ideias
não são transmitidas através das ações, mas através do diálogo, não do diálogo
interior à obra, diálogo entre personagens, mas do diálogo entre narrador e
leitor. O fato de as ideias serem transmitidas pelo personagem–narrador através
do diálogo com o leitor não nos deve levar à conclusão de que se trata de um
romance mal realizado. Isso não pode ser interpretado como querendo significar
que, neste romance, as ideias se apresentam de maneira explícita. Na verdade,
nele, as ideias são apresentadas de maneira “implícita”, de maneira indireta.
Trata­‑se de um processo que está mais próximo daquele que é utilizado na
poesia do que daquele que é característico do romance na terceira pessoa. É
certo que, no caso do romance em primeira pessoa, diferentemente do que
UNIUBE 49

ocorre na poesia, há os dois níveis já observados a propósito do romance na


terceira pessoa, mas numa relação hierárquica diferente. No romance em pri-
meira pessoa, a fábula não goza de nenhuma autonomia em relação à narração
e está totalmente subordinada a ela, a qual, na verdade, constitui o estrato
principal. Se se trata de uma narração em primeira pessoa autêntica, as ações
e personagens não são vistas diretamente, mas através do sujeito de enuncia-
ção, pelos olhos do narrador.

Por isso, no caso da narração em primeira pessoa podemos falar também de


enunciados existenciais, como no caso da poesia. Na verdade, em Aparição
temos enunciados existenciais e não enunciados teóricos. O personagem–nar-
rador não elabora um pensamento puramente filosófico, mas reflete sobre uma
situação concreta, vivida, existencial. A verdadeira ação do romance circunscreve-
-se a atitudes e reflexões face à presença do homem no mundo. O narrador
volta-se para o problema do homem que procura a sua verdade mais profunda
e que quer entender o problema da sua relação com os outros e com a vida. O
termo “aparição” significa exatamente a revelação instantânea de si a si próprio.
Assim, o que ele nos transmite é a sua vivência diante das grandes indagações
existenciais. Neste caso, as ideias não são puras ideias, mas são apresentadas
de tal forma que torna verossímil a exposição da sua problemática que é, fun-
damentalmente, uma problemática existencial. Para reforçar ainda mais a ve-
rossimilhança, o autor optou por inserir, no papel de personagem–narrador, um
professor, o que, como já vimos, justifica a introdução de reflexões de caráter
filosófico sobre a experiência vivida. Trata-se de Alberto Soares, ou Doutor Al-
berto Soares, professor no Liceu de Évora, que, no romance, acumula as funções
de protagonista e narrador.

EXEMPLIFICANDO!

Eis um exemplo extraído do romance Aparição, que pode ilustrar o que estamos
dizendo sobre ele:

E todavia, agora que me descubro vivo, agora que me penso, me sinto,


me projeto nesta noite de vento, de estrelas, agora que me sei desde
uma distância infinita, me reconheço não limitado por nada mais pre-
sente a mim próprio como se fosse o próprio mundo que sou eu, agora
nada entendo da minha contingência. Como pensar que ‘eu poderia
não existitr’? Quando digo ‘eu’, já estou vivo. Como entender que esta
iluminação que sou eu, esta evidência axiomática que é a minha pre-
sença a mim próprio, esta fulguração sem princípio que é eu estar
sendo, como entender que pudesse ‘não existir’? Como pensar que
é nada? A minha vida é eterna porque é só a presença dela a si própria,
50 UNIUBE

é a sua evidente necessidade, é ser eu, EU, esta brutal iluminação de


mim e do mundo, puro ato de me ver em mim, este SER que irradia
desde o seu mais longínquo jato de aparição, este SER-SER que me
fascina e às vezes me angustia de terror... E todavia eu sei que ‘isto’
nasceu para o silêncio sem fim...
(FERREIRA, 1983, p. 44, grifos do autor.)

Pode-se talvez dizer que é esta sua característica que o torna um veículo ideal
para a concepção existencialista e que explica, em última instância, que um
escritor existencialista como Vergílio Ferreira tenha optado pela narração em
primeira pessoa ao escrever o romance Aparição. É o que se depreende desta
afirmação do autor ([1965], p. 66):

[...] o chamado “existencialismo” não é um sistema filosófico


mas antes e imediatamente uma problemática humana, é
sobretudo por isso que ele confina com a arte literária. Assim
o “existencialismo” põe em evidência o que separa uma ideia
estritamente filosófica de uma ideia em arte. Uma ideia em arte
— tenho-o dito — é uma ideia com sangue, é um valor emotivo,
é um valor estético.

Certamente, o autor considerava sua opção totalmente justificada: diria que,


neste romance, as ideias se revelam artisticamente, têm um suporte emotivo, e
que é isso fundamentalmente o que para um romance se pode exigir — para
usar aqui as palavras com que encerra o seu ensaio.

SAIBA MAIS

Talvez esteja aí a explicação para a raiz lírica que se considera como integrando a
atividade romanesca deste autor, bem como para o fato de se considerar este romance
como o lugar de cruzamento entre o lirismo e a reflexão filosófica de vertente exis-
tencial.

PARADA PARA REFLEXÃO

Você certamente já ouviu falar do livro O mundo de Sofia, de Jostein Gaarder (1995).
Um exercício interessante será você lê-lo, procurando verificar se o processo utilizado
pelo autor para inserir ideias no romance está mais próximo do processo simbólico
UNIUBE 51

ou do processo alegórico. Se você já o leu, procure lembrar-se de como ele foi cons-
truído. Para facilitar, vamos fazer alguns comentários sobre aspectos da obra que
possam prepará-lo(a) para a atividade que estamos propondo.

O romance desenvolve-se em dois planos distintos, a partir da pergunta no


bilhete e os misteriosos cartões endereçados a Sofia. Um professor de filosofia,
Alberto Knox, encarrega-se de ir apresentando a Sofia, numa linguagem viva
e transparente, os principais capítulos do pensamento ocidental, dos pré-
-socráticos — também chamados filósofos da natureza — aos pós-modernos.

A certa altura, o autor diz a Sofia:

Vou contar para você, em linhas gerais, como as pessoas têm


refletido sobre questões filosóficas desde a Antiguidade até os
dias de hoje. E tudo isto seguindo a ordem dos acontecimen-
tos. (GAARDER, 1995, p. 43)

As ideias centrais desses sistemas filosóficos vão sendo expostas numa série
de lições que Sofia recebe em forma de cartas ou de conversas devidamente
ambientadas.

O autor lança mão, nesse ponto, de todo e qualquer recurso capaz de tornar
mais clara ou saborosa uma tese abstrata. O brinquedo Lego ajuda na exposição
das doutrinas de Demócrito. Uma fita de vídeo leva Sofia (e o leitor) diretamente
à Grécia Antiga, onde Platão, em pessoa, será entrevistado. Formas de bolo
ajudam a compreender a teoria platônica das ideias.

A história que se narra apenas emoldura as lições de filosofia. O próprio autor


não escondeu o propósito do livro: trata-se de um romance da história da filo-
sofia, ou seja, ele criou um novo modo de contar a história da filosofia, é uma
narração da história da filosofia de uma maneira diferente, agradável.

O autor declarou que pretendeu dar ao romance um tratamento pedagógico,


tendo em vista também o público mais jovem, ao explicar de forma simples e
clara algumas das verdades filosóficas. Sua ambição era pedagógica, didática.
Esse tom pedagógico é claramente perceptível no livro. As lições de filosofia
são apresentadas como “lições” mesmo, apenas tratadas de modo mais simples,
pedagogicamente, estabelecendo-se, sempre que possível, a interlocução entre
o autor e o leitor. Eis um exemplo (GAARDER, 1995, p. 28.):
52 UNIUBE

“Mas muito antes de a criança aprender a falar correta­


men­te — ou muito antes de ela aprender a pensar filosofi-
camente —, ela já se habituou com o mundo.

Uma pena, se você quer saber o que eu acho.

O que importa para mim, querida Sofia, é que você não esteja
entre aqueles que consideram o mundo uma evidência. Para
ter certeza disso, vamos fazer dois exercícios de raciocínio
antes de começarmos com nosso curso propriamente dito.

Imagine que você está dando um passeio na floresta. De re-


pente, no meio do caminho, você vê uma pequena nave es-
pacial. Então, um pequeno marciano sai da nave e olha para
você lá de baixo...”

Assim, as ideias são apresentadas de um modo agradável e acessível. Embora


certas partes do livro sejam bastante cansativas — sobretudo quando Alberto
Knox se entrega a grandes monólogos que podem levar alguns leitores a se
sentirem tentados a virar as páginas mais rápido —, de um modo geral, o autor
conseguiu fazer da filosofia algo atraente ao leitor.

• E, então, a que conclusão você chegou? Acha que o autor soube ou não in-
corporar devidamente as ideias?

Certamente, você deve ter percebido que, neste livro, o autor adotou o processo
alegórico de incorporação de ideias e não o processo simbólico. Aliás, em ne-
nhum momento, o autor se propôs a fazer algo diferente. O seu propósito didá-
tico–pedagógico é evidente, como vimos. A sua única preocupação é tornar
acessível o conhecimento da história da filosofia. A história narrada funciona,
apenas, como pano de fundo para as ideias. Utilizou­‑a como um dos recursos
que poderiam tornar a aprendizagem da história da filosofia algo atraente e
agradável.

Caso tenha interesse em conhecer um outro bom exemplo no que diz respeito
à inserção de ideias na obra literária, você poderá ler o conto “Amor”, de Clarice
Lispector, que faz parte do livro Laços de família. O ideal seria que você lesse
o texto completo, embora para a resolução da atividade que formulamos seja
suficiente a leitura do resumo.

A obra de Clarice Lispector é marcada pela presença de um caráter filosófico,


de linhagem existencial. Como observa Benedito Nunes (1969, p. 94), “qualquer
UNIUBE 53

que seja a posição filosófica da escritora, o certo é que a concepção-do-mundo


de Clarice Lispector tem marcantes afinidades com a filosofia da existência”.
Nunes refere-se aqui, sobretudo, à concepção filosófica de Martin Heidegger,
mas também, embora com menor destaque, à de Jean-Paul Sartre. Isso é visí-
vel tanto nos romances como nos contos. O conto “Amor”, que é o segundo
conto de Laços de família (LISPECTOR, 1998), é um excelente exemplo de
incorporação das ideias heideggerianas. Vamos ler um trecho a seguir.

AMPLIANDO O CONHECIMENTO

Resumo

O conto começa com a personagem Ana voltando, de bonde, das compras, refle-
tindo sobre sua vida comum, corriqueira, mas sobre a qual ela tinha perfeito do-
mínio e controle. Era uma vida tranquila, sem novidades e imprevistos. Havia uma
hora perigosa, carregada de ameaças. Em certa hora da tarde ela se inquietava.
Mas sempre conseguia contrapor a esta situação a sua força e a sua energia.
Sentia necessidade de sentir-se segura e manter o controle de tudo. Os afazeres
domésticos a satisfaziam e faziam-na sentir-se em casa. Era uma maneira de
ocupar o tempo e fugir de si mesma. Tudo era familiar e tranquilo, sem surpresas.
Vivia para seu lar, para o marido e filhos. E, principalmente, vivia, senão feliz, ao
menos satisfeita, resignada. A única preocupação era prevenir-se contra a hora
perigosa. Logo, a vida voltaria ao normal e o perigo teria passado. E seguia ali-
mentando anonimamente a vida. “Estava bom assim. Assim ela o quisera e esco-
lhera.” De repente, algo inusitado ocorre. Seus olhos se detiveram num homem
parado no ponto. Era um cego. Um cego mascando chicles. Esse ato maquinal
feito na escuridão, certamente a fizera lembrar-se de sua vida sem sentido. Sen-
tiu uma profunda angústia. Por um momento ela conseguiu distrair -se e não
pensar no que vira. Mas, nem a custo, conseguia desviar a atenção. E ela sentiu
ódio. Nesse instante, o bonde deu uma arrancada brusca, fazendo com que o
saco de ovos e a sacola de tricô caíssem de seu colo. Ana deu um grito que fez
o condutor dar ordem de parada. Logo depois, o bonde deu partida. Tudo em seu
entorno se recompôs, menos ela. Algo havia acontecido e era irreversível. Come-
çou a ter sensações estranhas: a rede de tricô tornara-se áspera, as coisas foram
perdendo o sentido e estar no bonde era um fio partido. Expulsa de seus próprios
dias, parecia-lhe que as pessoas na rua eram periclitantes, que se mantinham por
um mínimo equilíbrio à tona da escuridão — e por um momento a falta de sentido
deixava-as tão livres que elas não sabiam para onde ir. O mundo manifestava-se
estranho, tudo a hostilizava. Houve um mal-estar geral e toda a sua existência se
desfez. Todo o seu empenho em apaziguar a vida ruiu de repente. A crise viera
afinal. Instantaneamente perdera toda a familiaridade com o mundo. Quando
saltou do bonde, no ponto errado, parecia ter saltado no meio da noite. Andando
sem saber para onde, foi dar ao Jardim Botânico. Aos poucos, tudo parecia mover-
54 UNIUBE

-se e ela começou uma viagem estranha ao mais recôndito de si e ela teve náu-
seas. Estava num universo diferente, que ela não reconhecia. Sentia-se ao mesmo
tempo fascinada e enojada, era um misto de prazer e horror. O seu mal-estar físico
foi aumentando num crescendo insuportável. De repente, lembrou-se das crianças
e disparou em desabalada corrida até chegar ao prédio onde morava. Quando
abriu a porta do apartamento, tudo se lhe reconstruiu num átimo. Ela ainda sentiu
uma estranheza, que foi aos poucos se desfazendo até que ruiu numa cadeira.
Tomou consciência de que agora tinha dois mundos e não mais apenas o seu
mundo cotidiano. O novo universo a chamava. Por um instante oscilou entre os
dois mundos. Mas, aos poucos, a vida anterior, cotidiana e doméstica, foi chegando
e trazendo a antiga e gostosa calmaria. A lembrança dos filhos, a presença do
marido, acabam retendo Ana à beira do abismo. Quando o marido a pega pela
mão chamando-a para dormir, afasta-a do perigo de viver. Acabara-se a vertigem
de bondade e Ana volta a se apaziguar.

Neste conto estão presentes alguns dos mais importantes temas (ou aspectos)
da filosofia de Heidegger. Este fala da existência inautêntica, isto é, a vida coti-
diana, com suas características. O homem sente-se jogado no mundo sem que
sua vontade tenha participado disso. Quando o homem se dá conta de que vive
uma existência inautêntica pode despertar-se para a busca do seu eu autêntico
e entregar-se ao estado de angústia ou, então, pode dar-se o caso de preferir
alienar-se novamente na existência cotidiana. Se ele preferir se desviar de seu
projeto essencial, em favor das preocupações cotidianas que o distraem e o
perturbam, confundindo-o com a massa coletiva, ocorre a ruína. Neste caso,
o eu individual é sacrificado ao persistente e opressivo eles. O ser humano em
sua vida cotidiana é reduzido à sua vida com os outros e para os outros,
alienando-se da sua verdadeira vocação, que seria o tornar-se si-mesmo. Ora,
a angústia é o único sentimento e modo de existência humana que pode con-
duzir o homem ao encontro de sua totalidade como ser e fazê-lo juntar os pe-
daços a que é reduzido pela sua imersão na monotonia da vida cotidiana.
Trata-se de um estado de consciência sem qualquer implicação com qualquer
coisa do mundo. Na angústia, todas as coisas do mundo desaparecem brusca-
mente como desprovidas de qualquer importância, tornam-se desprezíveis e
dissolvem-se na nulidade absoluta. A angústia envolve o homem com um sen-
timento de estranheza radical. Manifesta-se aí o desamparo, ou seja, dada a
estranheza radical provocada pela angústia onipresente o homem percebe que
todos os socorros e proteções são ineficazes para debelá-la; o homem sente-se
completamente perdido e desvalido. A angústia, segundo Benedito Nunes, con-
forme definida por Heidegger, em Ser e tempo, é diferente do medo. Tem-se
medo de algo definido, de um ser particular; tem-se angústia sem saber de quê.
UNIUBE  55

É para escapar da angústia que ele se refugia no cotidiano, onde, protegido por
uma crosta de palavras, por interesses fugidios e limitados, que não o satisfazem
completamente e apenas disfarçam o cuidado (Sorge) em que vive, passa a
existir de modo público e impessoal (NUNES, 1969, p. 94­‑95). Diferente do
medo, o mal­‑estar da angústia provém da insegurança de nossa condição, que
é, como possibilidade originária, puro estar­‑aí (Da­‑sein). Abandonado, entregue a
si mesmo, livre, o homem que se angustia vê diluir­‑se a firmeza do mundo. O que
lhe era familiar torna­‑se estranho, inóspito.

Como decorrência da angústia manifesta­‑se a experiência da náusea. Conforme


Benedito Nunes (1969),

A náusea é a forma emocional violenta da angústia, que arre-


bata o corpo, manifestando­‑se por uma reação orgânica defi-
nida. Quando nos sentimos existindo, em confronto solitário
com a nossa própria existência, sem a familiaridade do coti-
diano e a proteção das formas habituais da linguagem, quando
percebemos ainda a irremediável contingência, ameaçada pelo
Nada, dessa existência, é que estamos sob o domínio da an-
gústia. (NUNES, p. 94.)

O episódio de Ana no Jardim Botânico lembra ocorrência semelhante envolvendo


Roquentin, em A náusea, de Jean­‑Paul Sartre. Segundo Benedito Nunes, esta
personagem

sofre o assédio do ser bruto, maciço, que se desembuça, com


a violência de um assalto, no jardim de Bouville. O jardim, como
território humano, lugar de contemplação amena, de repouso
e ócio, é suplantado, de repente, por um formigamento da
existência que, propagado de coisa a coisa, toma conta de
todo o universo. O corpo de Roquentin cede a essa corrente
impetuosa do ser, no meio da qual a sua consciência apenas
consegue flutuar, a princípio impulsionada pelo medo, depois
por um certo mal­‑estar físico, que se transforma na emoção
ambígua, barroca, descrita como “êxtase horrível”, e “deleite
atroz”, confinando com a repugnância e a cólera. (NUNES,
1969, p. 96.)

Agora, após ler o resumo do conto e conhecer as características do pensamento


existencial, tente pensar numa possível resposta sobre se Clarice Lispector
soube incorporar as ideias filosóficas de uma maneira correta, ou seja, utilizando
o processo simbólico, ou se o faz de maneira incorreta, através do processo
alegórico.
56 UNIUBE

Não é difícil perceber que Clarice Lispector consegue incorporar corretamente


as ideias no conto “Amor”. Ela se limita a apresentar as ações, as atitudes, os
comportamentos da personagem Ana. O conto começa com a personagem vi-
vendo sua existência inautêntica; depois, após o início do processo de angústia,
a personagem encontra­‑se diante de duas alternativas, ou aprofundar o senti-
mento da angústia em busca de si mesma ou alienar­‑se novamente na existên-
cia cotidiana. A lembrança dos filhos, a presença do marido, ainda têm forças
para reter Ana à beira do perigo de viver. Ao final, a personagem acaba se dei-
xando absorver novamente pela existência cotidiana.

2.4 Conclusão
Chegamos, assim, ao final deste capítulo. Esperamos que você tenha se
convencido de que, realmente, não há como separar a análise da estrutura
de uma obra literária de sua respectiva avaliação, ou seja, do julgamento de
seu valor estético. Antes, porém, de encerrarmos a presente exposição,
devemos fazer uma reflexão de caráter mais geral sobre a relação entre a
literatura e a filosofia.

O domínio filosófico tem a sua soberania como a tem a arte. Em outras pa-
lavras, cada um tem seu plano, sua autonomia. Para que esta autonomia da
arte seja preservada, as ideias no romance devem ser apresentadas de modo
implícito e não de modo explícito, ou seja, devem ser apresentadas, no caso do
romance, através das ações das personagens e não através do diálogo, e no
caso da poesia, através das imagens ou das vivências do eu lírico, e não atra-
vés de puros conceitos. Pois, do contrário, a arte estaria a serviço da filoso-
fia. Se a arte constitui um domínio autônomo, soberano, para que esta
autonomia e esta soberania sejam preservadas, é necessário que as ideias
se adaptem ao regime da arte, subordinem-se às leis próprias da arte. So-
mente assim a relação entre a arte e a filosofia é posta de maneira correta,
ou seja, como uma relação de coordenação e não de subordinação. Isso
equivale a reconhecer que as ideias não constituem a finalidade (o fim) da
arte, mas apenas o seu objetivo (o meio). A finalidade da arte é uma finalidade
estética. O fim, ou meta da arte, consiste essencialmente em suscitar uma
determinada emoção, a emoção estética. O que sucede é que ela pode,
acidentalmente ou intencionalmente, transmitir ideias ou propor uma deter-
minada visão de mundo, ou seja, a arte pode ter por objetivo a transmissão
de ideias. Interessante observar que, em um romance mal realizado, as
coisas se invertem: as ideias, de objetivo, de meio, transformam­‑se em fina-
lidade da obra e, consequentemente, a arte se transforma em objetivo, em
UNIUBE  57

meio a serviço de outro domínio, no caso, do domínio filosófico. Isso acontece,


por exemplo, com a poesia didática. É o que ocorre, na verdade, com os
processos alegóricos de um modo geral. Contrariamente a isso, o que se
está preconizando aqui é a opção pelo processo simbólico de inserção de
ideias na obra literária. Esta opção pelo processo simbólico tem a ver, ob-
viamente, com a questão da qualidade da obra e, portanto, também, com a
questão da valoração.

Resumo
No presente capítulo, vimos que as noções de estrutura e de valor são indisso-
ciáveis, ou seja, chamamos a atenção para a impossibilidade de compreender
e analisar as obras literárias sem referência aos valores. Em outras palavras:
que o estudo da literatura não pode e não deve ser divorciado da crítica, que é
julgamento de valor. Em seguida, procuramos explicar o que significa dizer que
uma dada obra literária é bem­‑sucedida, bem realizada artisticamente. Para
tanto, definindo nosso campo de observação, utilizamos o caso da incorporação
de ideias numa obra literária, seja romance ou poema. Inserimos um exemplo
de avaliação crítica, para que você pudesse perceber os aspectos que devem
ser observados na análise crítica de uma obra literária. Dois exemplos de ava-
liação de obras literárias completam o capítulo.

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Estudo analítico do
Capítulo
poema: procedimentos
3
de poetização do
nível fônico

Introdução
Vimos, em capítulo anterior de nossa autoria, a necessidade de sub-
meter o texto literário ao processo de análise. Vimos também que a
análise, segundo Candido (1996) — no caso específico do texto poé-
tico — é o levantamento analítico de elementos internos do poema,
sobretudo os ligados à sua construção fônica e semântica, e que tem
como resultado uma decomposição do poema em elementos, chegando
ao pormenor das últimas minúcias.

Neste capítulo, vamos dar início ao estudo dos procedimentos de poe-


tização, a fim de nos prepararmos para esse trabalho de análise textual
da poesia.

Objetivos
Após o estudo deste capítulo, esperamos que você seja capaz de:

• explicar qual dos dois níveis, o fônico ou o semântico, é decisivo


para a produção da poeticidade;
• identificar os elementos estruturais essenciais e os elementos
estruturais subsidiários do verso;
• distinguir metro e ritmo;
• identificar os sistemas de metrificação;
• identificar os sistemas de contagem dos versos;
• fazer a escansão dos versos de um poema;
• identificar os tipos de versos;
62 UNIUBE

• identificar os tipos de estrofes;


• explicar a armadura básica da estrofe;
• identificar os tipos de poemas;
• classificar os vários tipos de rima;
• reconhecer a importância dos sinais de pontuação para a produ-
ção de sentido do texto poético;
• identificar os processos intensificadores da linguagem poética.

Esquema
3.1 O fenômeno poético — nível fônico e nível semântico
3.2 Elementos estruturais da linguagem poética
3.2.1 O metro e o ritmo
3.2.2 Sistemas de metrificação
3.2.3 Sistemas de contagem
3.2.4 O verso livre
3.2.5 Tipos de versos
3.2.6 Tipos de estrofes
3.2.7 Tipos de poema
3.2.8 A rima
3.2.9 De acordo com a identidade de sons
3.2.10  Quanto à categoria gramatical
3.2.11  Versos brancos
3.2.12  Os sinais de pontuação
3.3 Processos intensificadores da linguagem poética
3.3.1 Reiteração
3.3.2 Anáfora
3.3.3 Aliteração
3.3.4 Assonância
3.3.5 Onomatopeia
3.3.6 Ilustração sonora
3.3.7 Simbolismo sonoro
3.3.8 Paralelismo
3.3.9 Refrão
3.4 Conclusão
UNIUBE  63

3.1 O fenômeno poético — nível fônico e nível semântico


O ato de poetização se desenvolve em dois níveis: o fônico e o semântico.
Desses, o nível privilegiado é, sem dúvida, o semântico. A poesia pode pres-
cindir dos recursos sonoros, tais como o metro, a rima e, ainda assim, ser
poesia. Ou seja, esses recursos não são indispensáveis. São, indiscutivel-
mente, procedimentos de poetização e, como tais, não são inúteis e seu papel
não é desprezível, mas não são aspectos decisivos como o são os semânticos.
Isso foi perfeitamente evidenciado por D. Lewis e Y. Peres (apud COELHO,
1980, p. 74):

Um poema pode se elaborar sem a intervenção de um metro


ou de rimas, enquanto não pode nascer sem aquela magia in-
terior que se manifesta sob a forma de imagens ou de metáforas.

Esta consciência não afeta a sequência de nosso estudo: devemos estudar


estes níveis na ordem de sua manifestação, e, por isso, começaremos pelo
nível fônico.

Nesse nível, encontramos procedimentos de poetização de dois tipos: os ele‑


mentos estruturais e os processos intensificadores. Vamos começar pelo estudo
dos elementos estruturais da linguagem poética.

3.2 Elementos estruturais da linguagem poética

3.2.1 O metro e o ritmo

Os elementos estruturais da linguagem poética, basicamente, são o metro e o


ritmo. Antes, porém, devemos nos lembrar de que temos três tipos de unidades
a considerar no estudo do poema: o verso, a estrofe e o poema. O verso é a
menor unidade do poema. A estrofe é a unidade superior ao verso, e, finalmente,
a maior unidade é o poema como um todo.

Assim, o verso é a primeira unidade a ser considerada.


64 UNIUBE

Mas o que é verso?

Verso é cada linha de um poema, e, neste sentido, pode ser definido como
uma unidade sonora (e visual). É uma palavra ou conjunto de palavras com
unidade rítmica. Este dado é importante, como você terá oportunidade de
perceber no decorrer do estudo. O que caracteriza o verso é o fato de ele ser
uma unidade rítmica. Há também os que preferem definir o verso como uma
sílaba ou sucessão de sílabas sujeitas à medida e ao ritmo (andamento e
cadência). Com esta ideia de medida, introduz-se a noção de metro. Metro,
que quer dizer “medida”, consiste no número de sílabas métricas, ou poéticas,
de um verso.

O metro é, de certa forma, exterior ao verso. Ele existe, por assim dizer, inde-
pendentemente da sua concretização pela palavra, ou seja, é um esquema
que existe independentemente de seu preenchimento linguístico. Ou, para
utilizar a imagem de Wolfgang Kayser (1968, p. 146):

O esquema métrico assemelha-se a uma talagarça que, reco-


berta pelo bordado completo, já se não vê, mas influenciou
direção, estrutura e espessura dos fios.

Foi nesse sentido que Paul Valéry referiu-se a ele, a propósito de seu célebre
poema “Le cimetière marin” (O cemitério marinho). O poeta teria declarado que
o ritmo decassílabo desse poema o perseguia antes de o assunto e os elemen-
tos verbais do mesmo terem tomado forma em sua mente (apud AGUIAR E
SILVA, 1973, p. 201):

O meu poema “Le cimetière marin” começou em mim por um


certo ritmo, que é o do verso francês de dez sílabas, cortado
em quatro e seis. Não tinha ainda nenhuma ideia que devesse
encher esta forma. Pouco a pouco, palavras flutuantes fixaram-
-se nela, determinando gradualmente o assunto, e o trabalho
(um longuíssimo trabalho) impôs-se.
UNIUBE 65

Vejamos, agora, a noção de ritmo. O ritmo depende do esquema métrico, ou


seja, do tipo de verso escolhido pelo poeta, mas depende também da realização
linguística. Assim, é o ritmo que confere individualidade ao verso. É neste sen-
tido, e só neste sentido, que Candido (1996, p. 59–60) pôde dizer que a alma
do verso é o ritmo e não o metro. J. Pfeiffer (1966, p. 18) expressou-se nos
seguintes termos a propósito desta distinção entre metro e ritmo:

O metro é o exterior, o ritmo o interior; o metro é a regra abs-


trata, o ritmo a vibração que confere vida; o metro é o Sempre,
o ritmo o Aqui e o Agora; o metro é a medida transferível, o
ritmo a animação intransferível e incomensurável.

SAIBA MAIS

A diferença existente entre o metro e o ritmo é também — conforme observação de


Maria Luiza Ramos (1974, p. 49) — a que, no plano da música, se verifica entre o
ritmo e o compasso, aquele uma qualidade intrínseca, enquanto que este um artifício
de natureza extrínseca e acidental, tanto assim que só começou a ser empregado no
fim do século XII.

Talvez seja melhor distinguir dois tipos de ritmo, e falarmos, por exemplo, de
ritmo exterior e de ritmo interior. O ritmo exterior está relacionado ao metro,
ao esquema métrico adotado; o ritmo interior está relacionado ao preenchimento
linguístico. Wolfgang Kayser (1968, p. 44) ilustra esta distinção com duas estro-
fes, uma de Camões, outra de Sá-Carneiro. As duas estrofes apresentam o
mesmo metro, o mesmo esquema métrico, e, portanto, o ritmo exterior é o
mesmo. Mas quanta diferença no que se refere ao ritmo interior, que é determi-
nado pelas palavras utilizadas. Perceba você mesmo(a) a diferença, lendo as
estrofes em voz alta:

Camões:

Erros meus, má fortuna, amor ardente 10 (3-6-10)


Em minha perdição se conjuraram; 10 (6-10)
Os erros e a fortuna sobejaram, 10 (6-10)
Que para mim bastava o amor somente. 10 (4-8-10)
66 UNIUBE

Sá-Carneiro:

Oh! Regressar a mim profundamente 10 (6-10)


E ser o que já fui no meu delírio... 10 (6-10)
— Vá, que se abra de novo o grande lírio, 10 (6-10
Tombem miosótis em cristal e Oriente! 10 (4-8-10)

SAIBA MAIS

O caráter de esquema indica que se podem repetir os mesmos fenômenos métricos


em muitos poemas: há inúmeros poemas em redondilha menor, em pentâmetros
iâmbicos, em decassílabos heróicos etc. O caráter do esquema indica, simultanea-
mente, que, para a interpretação da respectiva obra individual, muito pouco se diz se
se indica só a métrica. (KAYSER, 1968, v. 1, p. 146.)

Quando lemos um poema, a primeira coisa que percebemos é o ritmo. Este


decorre do arranjo das palavras feito através da sucessão de sons fortes e fra-
cos repetidos com intervalos regulares e variados. Isto foi observado por Candido
(1996, p. 43-4):

quando lemos um poema, e sobretudo um poema completo,


o que nos fere imediatamente a atenção não são as sonorida-
des específicas dos fonemas, que só aparecem quando de
certo modo destruímos o verso pela análise fonética. O que
aparece é o movimento ondulatório que caracteriza o verso e
o distingue de outro: este movimento é o ritmo.

Para ilustrar esse movimento ondulatório, Candido cita o seguinte exemplo, de


Manuel Bandeira:

Escuta este gazal que eu fiz,


Darling, em louvor de Hafiz.

Acompanhemos o seu comentário:

A leitura mostra que cada verso é feito de uma alternância de


sílabas mais acentuadas e de sílabas menos acentuadas.
Algumas se destacam, mais fortes; outras são menos fortes,
e se esbatem ante as primeiras; outras, finalmente, são fracas
e se esbatem ante as primeiras e as segundas. Chamando às
três modalidades A, B e C, respectivamente, teremos um es-
quema do seguinte tipo:
UNIUBE 67

1o verso: C,A,B,C,C,A,B,A

2o verso: A,C,B,B,A,C,A

Nos dois casos — prossegue o autor —, observamos que os três tipos de síla-
bas se alternam. Se traduzirmos estas letras por uma curva, de que cada uma
seria um ponto constitutivo, teríamos, graficamente, espacialmente, representada
a ondulação de que se falava acima. Observe o gráfico a seguir.

Os traçados mostram que as ondulações variam, e que estas ondulações retra-


tam objetivamente as variações de intensidade sonora que compõe o ritmo.
Ritmo é, pois, uma alternância de sonoridades mais fracas e mais fortes, for-
mando uma unidade configurada.

SAIBA MAIS

O gazal é uma forma poética representativa do Oriente Médio; composto por quatro
a catorze versos ligados por rima, trata de assunto idílico e tem no poeta persa Hafiz,
do século XV, seu melhor realizador. Daí a homenagem de Manuel Bandeira.

O ritmo deve merecer, da parte do analista, uma atenção especial. Ele pode
revelar aspectos fundamentais do texto. Staiger (apud CANDIDO, 1996, p. 19)
diz que, antes de iniciar propriamente a análise, uma vez assegurada a pene-
tração simpática, o leitor deve apreender o ritmo, largo compasso do poema
sobre o qual repousa o estilo, sendo o elemento que unifica em um todo os
aspectos de uma obra de um artista. E diz mais:
68 UNIUBE

quando apreendemos pela sensibilidade o ritmo geral de uma


poesia, apreendemos no todo a sua beleza própria. Esclarecer
esta intuição pelo conhecimento é a tarefa da interpretação.

Para que você se dê conta da importância do ritmo para a análise do poema,


vamos mostrar de modo sintético a análise feita por Antonio Candido de um
dístico que, na verdade, funciona como estribilho, no poema “O rondó dos
cavalinhos”, de Manuel Bandeira:

Os cavalinhos correndo,
E nós, cavalões, comendo...

Candido observa que uma leitura meramente silábica não adianta nada para a
compreensão dos mesmos, mas que, se lermos obedecendo rigorosamente
à pontuação, isto é, dando força às pausas determinadas pelas vírgulas, tere-
mos a combinação de um ritmo corredio com um ritmo picado:

Os cavalinhos correndo / /
E nós / / cavalões / / comendo.

Ou:

Segundo Candido (2001, p. 72), é fácil verificar que o segundo verso sugere um
forte movimento de galope, que ficará altamente sugestivo (e mesmo imitativo)
se o acentuarmos intencionalmente de maneira exagerada, extraindo, por assim
dizer, do staccato, a força virtual de um galope, que a nossa leitura obriga a
manifestar­‑se.

Se confrontarmos a variação de ritmo do dístico com o sentido


expresso, notaremos o seguinte: os cavalos de corrida estão
correndo no prado, mas em ritmo deslizado (vistos de longe,
parecem cavalinhos de carrossel); os homens, comparados a
cavalões, estão comendo e participando de uma reunião social,
mas, grotescamente, em ritmo de galope. Portanto, há uma
contradição, levando a crer que haja um juízo de valor implícito
na diferença dos ritmos. Com efeito, é o ritmo que aprofunda
e dá consistência estrutural à comparação do homem ao ca-
valo, dando­‑lhe uma gravidade que não existe no plano do
enunciado, pois o ritmo incorpora visceralmente ao homem um
atributo equino — o galope.
UNIUBE 69

Um outro exemplo interessante de análise do ritmo é o que encontramos no livro


de Maria Luiza Ramos, Fenomenologia da obra literária (1974, p. 45-46).
Nesta obra, ao estudar a contribuição dos elementos fônicos para a estrutura
poemática, a autora afirma que a caracterização do ritmo ocupa sempre lugar
de primordial importância. Para ilustrar, analisa os seguintes versos de Cecília
Meireles:

Leve é o pássaro.
E a sua sombra voante
mais leve.

Numa estrutura de pares pentassilábicos, observa que há, nessa primeira estrofe,
grande diferença entre o primeiro e o segundo versos. Enquanto as sílabas do
primeiro são lentas e espaçadas, verificando-se o hiato com relação às vogais
e, é e o —

le / ve / é / o / pássaro —

o segundo verso abriga nada menos que três ditongos e grupos consonantais
que fazem com que o verso se precipite para o final de maneira que evoca a
ligeireza do voo do pássaro:

e a / sua / som / bra / voante.

O efeito de continuidade é ainda intensificado pela aliteração do s e pela pre-


sença de fonema nasal nas duas tônicas do verso. Desta forma, a autora con-
segue mostrar a relação que existe entre ritmo e significado, ou seja, o que é
dito ao nível do sentido é representado ao nível da forma: que a sombra do
pássaro projetada no chão é ainda mais leve do que o pássaro que voa.

Neste caso, como normalmente se diz, a poesia faz o som ecoar o sentido.

SAIBA MAIS

O ritmo é um fenômeno ligado ao tempo, e apenas metaforicamente pode ser apli-


cado a esferas em que este elemento está ausente. Metaforicamente, podemos
falar do ritmo de um quadro; mas no sentido próprio, só falamos do ritmo de um
movimento. A sucessão de gestos e o encadeamento dos sons possuem ritmo.
Daí que o seu emprego correto nos obrigue a referi-lo apenas às chamadas artes
ligadas ao tempo, como a música, a dança, a poesia. (Adaptado de CANDIDO,
1996, p. 43.)
70 UNIUBE

Metro e ritmo são, assim, os elementos essenciais do verso. Há, além deles,
um elemento subsidiário, que é a rima, da qual falaremos mais adiante.

É pela contagem das sílabas métricas que se determina o tipo de metro. A esta
contagem se dá o nome de escansão. Escandir significa dividir o verso em sílabas
métricas ou poéticas, não sendo o mesmo que metrificar. Para dividir corretamente
as sílabas métricas ou poéticas de um verso, você deve saber que sílaba métrica
ou poética não é o mesmo que sílaba gramatical. Às vezes, duas sílabas gramati-
cais se juntam para formar uma sílaba métrica. Em razão disso, ao fazer a escansão,
você deve ter o cuidado de não adotar o critério gramatical na divisão das sílabas.
As sílabas gramaticais são estáticas, isoladas, enquanto as sílabas métricas ou
poéticas são dinâmicas, ou seja, devem ser vistas como partes de uma totalidade.
Assim, as sílabas métricas não são divididas pelo critério gramatical, mas pelos
tempos de enunciação do verso. A melhor forma de perceber isso é fazendo a leitura
dos versos em voz alta (lembrando-se sempre que o verso deve ser lido como uma
totalidade). Veja o poema, a seguir, do poeta português Miguel Torga.

SAIBA MAIS

A escansão de poesia é complicada, pois, pela evidente irregularidade de muitos versos;


pela necessidade de o leitor ser, por vezes, arbitrário ao designar as sílabas fortes e
fracas (quando muitas não são, de fato, nem muito fortes nem muito fracas); e pela
necessidade de reconhecer as formas métricas, conjuntamente com os ritmos da pro-
núncia convencional e do sentido comum. (DANZIGER; JOHNSON, 1974, p. 78.)

EXEMPLIFICANDO!

Miniatura

Pois eu gosto de crianças! 7(3-7)


Já fui criança também... 7(4-7)
Não me lembro de o ter sido; 7(3-7)
Mas só ver reproduzido 7(3-7)
O que fui, sabe-me bem. 7(3-7)

É como se de repente 7(3-7)


A minha imagem mudasse 7(4-7)
No cristal duma nascente, 7(3-7)
E tudo o que sou voltasse 7(3-7)
À pureza da semente. 7(3-7)
(TORGA, Miguel, apud AZEVEDO FILHO, 1971, p. 16.)
UNIUBE 71

Neste poema, você poderá perceber que, em alguns versos, há a coincidência entre
o número de sílabas gramaticais e o número de sílabas métricas. Mas não passa de
uma coincidência. O verso “Não me lembro de o ter sido”, tem nove sílabas gramati-
cais e apenas sete sílabas métricas. Houve a junção da preposição com o artigo
(de + o = dio), e a última sílaba, como é átona, não é contada. Quanto à primeira
ocorrência, a este processo se chama de acomodação; a outra ocorrência nos remete
aos sistemas de contagem, dos quais falaremos daqui a pouco.

Os processos de acomodação são ocorrências no interior dos versos, que pro-


movem a diminuição ou o aumento do número de sílabas métricas de um verso.
São, literalmente, acomodações, que visam adequar as sílabas ao esquema
métrico adotado e, como tais, só podem ocorrer no único lugar onde as sílabas
apresentam vulnerabilidade quanto aos seus limites, ou seja, quando há encon-
tros vocálicos. Eis alguns processos de acomodação mais frequentes:

a) elisão: supressão de fonema ou fonemas em situação intervocabular.

“Talvez um(a) orquestra.” (Castro Alves)

b) sinalefa: ditongação ou tritongação intervocabular.

“Ouvia-se um triste chorar de arapongas.” (Castro Alves)

c) sinérese: ditongação ou tritongação de hiato intravocabular.

“Vede como primo

Em comer os hiatos”. (Manuel Bandeira)

d) diérese: dissilabação ou hiatização de ditongo intravocabular.

“Que pode dar saudade à saudade.” (Camões);

“Nos elíseos de amor endeusada.” (Bocage).

Há uma questão de ordem prática, na atividade de escansão das sílabas métricas,


para a qual gostaríamos de chamar a sua atenção. Devemos considerar, para
efeito de escansão, apenas o aspecto sonoro, deixando de lado o aspecto se-
mântico do verso. Norma Goldstein (1994, p. 22-23) resumiu bem esta questão:
72 UNIUBE

É preciso deixar fluir a música do verso, sem atentar ao sentido


lógico dele, enquanto se contam as sílabas poéticas. Numa
etapa posterior, as conclusões sobre o ritmo poderão auxiliar
a interpretação do texto. Mas, no momento da escansão, os
demais aspectos deveriam desaparecer, ficando só a cadência
e a alternância entre sílabas fortes e fracas.

Mas isso só se aplica à escansão dos versos. Quando se trata de analisar o


texto, deve-se levar em conta os dois níveis, o fônico e o semântico. É em rela-
ção à interpretação do texto que Wellek (apud WELLEK; WARREN, 1962, p.
191-192) reage ao que considera como uma falsa opinião, a de que o som de-
veria ser analisado em completo divórcio do significado:

Da nossa concepção geral da integridade de qualquer obra de


arte resulta que tal divórcio é falso; e esta conclusão resulta
também da demonstração de que o mero som, em si próprio,
pouco ou nenhum efeito estético produz.

SAIBA MAIS

Embora o ritmo e os efeitos de som possam causar prazer auditivo e ser até intrinse-
camente interessantes, essas questões técnicas de métrica, rima e estrofação
revestem-se de importância, sobretudo, na medida em que são pertinentes ao sentido
global que a peça ou o poema transmite. Examinar o esquema métrico ou de rima de
um soneto de Shakespeare, sem atentar para o que o soneto significa e como reali-
zou a sua intenção significativa, é ficar aquém de uma leitura crítica e não atingir o
principal objetivo da análise. (DANZIGER; JOHNSON, 1974, p. 87.)

3.2.2 Sistemas de metrificação

Existem dois sistemas de metrificação: o quantitativo e o qualitativo, também


chamado silábico-acentual. Pelo sistema quantitativo, que era usado pelos gre-
gos e latinos, considera-se a alternância entre sílabas longas / — / e sílabas
breves / U /. A sílaba breve vale a metade da longa, de tal modo que duas bre-
ves seriam equivalentes à duração de uma sílaba longa. A combinação de síla-
bas breves e longas resulta em determinados segmentos de versos, chamados
pés. A seguir, você tem uma relação dos principais pés métricos:
UNIUBE  73

uma breve e uma longa: / U — / pé jâmbico

uma longa e um breve: / — U / pé trocaico ou troqueu

duas longas: / — — / pé espondeu

uma longa e duas breves: / — U U / pé dátilo

duas breves e uma longa: / U U — / pé anapéstico ou anapesto

Em português, o sistema adotado é o da contagem de sílabas métricas, ou seja,


o sistema silábico­‑acentual. Conta­‑se o número de sílabas dos versos e, em
seguida, verifica­‑se quais as sílabas fortes em cada verso.

Onde vais pelas trevas impuras

On­‑de­‑VAIS / pe­‑las­‑TRE / vas­‑im­‑PU / ras 3+3+3

Veja agora a correspondência com o sistema quantitativo:

On­‑de­‑VAIS / pe­‑las­‑TRE / vas­‑im­‑PU / ras

/U U — /U U — / U U —/

O estudioso deve conhecer os dois sistemas, até porque, não raro, precisa lançar
mão de ambos na análise de poemas, para efeito de comparação. Antonio Can-
dido (2001, p. 43), por exemplo, ao analisar o poema “Meu sonho”, de Álvares
de Azevedo, refere­‑se ao ritmo “anapéstico” do poema, atribuindo­‑lhe o principal
papel na organização do mesmo: “a força unificadora do anapesto, extremamente
eficaz, supera o desequilíbrio das partes, fundindo “Eu” e “O Fantasma” num só
movimento”. O autor está se referindo ao fato de o poema ser escrito em versos
eneassílabos (cada eneassílabo sendo formado por três anapestos). Refere­‑se
também ao fato de os românticos terem usado muito esse tipo de verso martelado
e sonoro, como ocorre, por exemplo, com Gonçalves Dias, particularmente no
“Canto do piaga”, em que é essencial para criar a atmosfera fantasmagórica de
pressentimentos sinistros e opressão moral, sendo possível que tenha inspirado
a opção métrica de “Meu sonho” (CANDIDO, 2001, p. 42).

Com a perda do acento quantitativo do latim clássico no latim vulgar, e, por


extensão, nas línguas românicas, passou­‑se a considerar a alternância entre
sílabas fortes (tônicas) e fracas (átonas). Assim, em vez da duração, ou seja,
da alternância entre longas e breves, passou­‑se a adotar o critério de intensidade,
isto é, a alternância entre sílabas acentuadas e não acentuadas.
74 UNIUBE

3.2.3 Sistemas de contagem

Para escandir versos, existem dois sistemas de contagem das sílabas métricas
e de depreensão de seus esquemas: o primeiro — denominado contagem
francesa —, tomando por base o padrão agudo para fins de versos, não leva
em consideração na contagem as sílabas posteriores à última forte de cada
verso; o segundo — denominado contagem espanhola — baseia-se no padrão
grave, computando sempre uma sílaba além da última forte.

A contagem francesa é usada no provençal, no francês e no português; a con-


tagem espanhola, no italiano e no espanhol. Até há pouco menos de dois sécu-
los, a contagem das sílabas nos versos nas literaturas portuguesa e brasileira
era feita pelo padrão grave, tendo sido substituída, em seguida, pela contagem
francesa. Foi o poeta Miguel Couto Guerreiro quem introduziu a contagem fran-
cesa, mas foi o poeta romântico português Antônio Feliciano de Castilho quem
generalizou o seu uso.

SAIBA MAIS

O privilégio de tal instituição cabe a Couto Guerreiro, pois já em 1784 (77 anos antes
de Castilho), publicara o Tratado de versificação portuguesa, no qual adota a con-
tagem silábica até a última tônica.

Há quem defenda o padrão grave com base no fato de ser esta a terminação
predominante das palavras e, consequentemente, dos versos de língua portu-
guesa. Entre os que defendem a contagem espanhola, estão Manuel da Costa
Honorato, Said Ali e Leodegário de Azevedo Filho. Este último propugna pela
volta ao uso tradicional, sob a alegação de ser este mais conforme à índole da
língua portuguesa (1971, p. 22):

Mais natural seria revitalizar o antigo sistema de contagem


portuguesa, que era idêntico ao do espanhol, língua de ritmo
grave ou trocaico, como a nossa. Realmente, a contagem
francesa [...] contraria o ritmo espontâneo do nosso idioma,
pois é grave o nosso verso básico.

Manuel Bandeira, por seu turno, sempre defendeu a contagem francesa. Seja
como for, o importante é saber que estes são apenas sistemas de contagem e,
como tais, não passam de convenções, que independem, em princípio, da na-
tureza da língua. Veja a seguir as línguas que utilizam cada um desses sistemas.
UNIUBE  75

provençal
Contagem francesa francês
português

italiano
Contagem espanhola
espanhol

Veja, agora, como funcionam os sistemas de contagem. Tomemos como exem-


plo uma estrofe do poeta Tasso da Silveira:

Que temas modula o vento 2­‑5­‑7


Vagando por sobre o mar? 2­‑5­‑7
Vento é simplesmente vento, 2­‑5­‑7
Mar é simplesmente mar... 2­‑5­‑7
(SILVEIRA, Tasso da, apud CHOCIAY, 1974.)

Considerando as três possibilidades de terminação do verso: com palavras


oxítonas, paroxítonas e proparoxítonas:

1 2 3 4 5 6 7 8 9

/ (agudo)

/ (grave)

/ (esdrúxulo)

Pela contagem francesa, teríamos aqui heptassílabos, e pela contagem espa-


nhola, octossílabos.
76 UNIUBE

3.2.4 O verso livre

Quando se fala em “verso livre” é preciso distinguir dois sentidos da expressão:


o de versos heterométricos, ou uso de versos de diferentes medidas no poema,
e o que veio a fixar­‑se a partir do decadentismo e simbolismo francês, no final
do século XIX. Neste segundo sentido, que é o que aqui nos interessa, o verso
não obedece aos padrões regulares, seja no número de sílabas, seja na fixação
dos acentos internos. Rimbaud, Maria Krysinska, Walt Whitman estão na origem
do verso livre. No Brasil, conta, entre seus precursores, o poeta Álvares de
Azevedo. Verso livre consciente surgiria apenas com Alberto Ramos e, depois,
com Adalberto Guerra­‑Duval e Mário Pederneiras. O uso do verso livre se con-
solidou, entre nós, no modernismo e, particularmente, com Manuel Bandeira.
Conforme observou Péricles Eugënio da Silva Ramos (1968, p. 222):

Isoladamente, houve verso livre antes do modernismo, em


pleno domínio dos simbolistas; como expressão coletiva, só
se imporia com o modernismo.

O verso livre resultou de um esforço no sentido da criação de novas medidas e


de ritmos novos, libertando­‑se do rigor da tradição métrica. Isso deve ficar bem
claro, para evitar extremismos, pois, como reconheceu T. S. Eliot (apud
­DUFFRENNE, 1969, p. 57):

Somente um mau poeta poderia aclamar o verso livre como


uma libertação em relação à forma. O verso livre foi uma revolta
contra uma forma morta, e uma preparação para uma nova
forma ou uma renovação da antiga; insistiu­‑se sobre a unidade
interior que é peculiar a cada poema, contra a unidade exterior
que é apenas típica.

O verso livre caracteriza­‑se, essencialmente, pela ausência do metro; não é,


portanto, uma linha medida. No verso livre não há o ritmo exterior ou mecânico,
mas somente o ritmo ideológico.

Segundo Candido (1996), o conceito é a medida do verso livre benfeito. Equipara­


‑se assim o verso livre ao tipo de tonicidade da prosa, que é de base conceitual
e não sonora. Isso faz com que o poeta atenue o efeito sonoro e reforce o sig-
nificado, o que pode efetivamente dar lugar a versos totalmente desfigurados,
que não passam de prosa alinhada em segmento de tamanho variável. Assim,
temos que, de fato, o ritmo do verso livre é esbatido em relação ao verso metri-
ficado; e que ele tem as suas tônicas em parte distribuídas em função da estru-
tura gramatical, que ampara o conceito. Quando isso ocorre, observa Candido,
há outros elementos que devem concorrer para reforçar o seu caráter poético,
UNIUBE  77

tais como imagens ousadas, cortes de sonoridade e de sentido, o choque de


contrários etc. que o distinguem da prosa.

O verso livre costuma ser considerado como mais fácil de ser elaborado do que
o verso regular ou metrificado. Muito se engana quem pensa desta forma. Na
verdade, o verso livre é mais difícil. Vejamos o testemunho de Manuel Bandeira
(apud GOLDSTEIN, 1994, p. 37):

Mas verso livre cem por cento é aquele que não se socorre de
nenhum sinal exterior senão o da volta ao ponto de partida, à
esquerda da folha de papel: verso derivado de vertere, voltar.
À primeira vista, parece mais fácil de fazer do que o verso
metrificado. Mas é engano. Basta dizer que no verso livre o
poeta tem de criar seu ritmo sem auxílio de fora. [...] Sem dú-
vida, não custa nada escrever um trecho de prosa e depois
distribuí­‑lo em linhas irregulares, obedecendo tão­‑somente às
pausas do pensamento. Mas isso nunca foi verso livre. Se
fosse, qualquer um poderia pôr em verso até o último relatório
do Ministro da Fazenda.

Candido (1996, p. 50) observou também que o verso livre coloca dificuldades,
não só para os poetas como também para os estudiosos:

A nossa poesia moderna conquistou o ritmo livre, e isto repre-


senta uma grande dificuldade, — tanto para o poeta, que perde
o apoio dos números regulares, quanto para o estudioso, que
não conta com os códigos da versificação tradicional. Quando
Manuel Bandeira proclamou o seu desejo de criar todos os
ritmos, sobretudo os inumeráveis, estava indicando esta rup-
tura com os números regulares, que exige do poeta uma ex-
traordinária capacidade de usar a liberdade — que em qualquer
setor é sempre uma das coisas mais árduas para o homem.
Não espanta que a falta de ritmo regular dê uma espécie de
vertigem, e os poetas modernistas acabaram voltando parcial-
mente a ele depois das experiências do verso livre.

Que o verso livre apresenta igual ou maior dificuldade que o verso metrificado
e exige do poeta igual ou maior compromisso, foi reconhecido por T. S. Eliot
(1972, p. 58), ao observar que “nenhum verso é livre para o homem que quer
fazer um bom trabalho”.

Há um texto de Adolfo Casais Monteiro que consideramos instrutivo inserir aqui.


Leia­‑o atentamente e veja de que forma ele busca desqualificar os argumentos
que sustentam o mito da “facilidade” do verso livre.
78 UNIUBE

IMPORTANTE!

A poesia moderna ‘permitiu’ a ilusão de ser a poesia fácil. Foi mesmo este um dos
argumentos mais reproduzidos por todos quantos procuravam ‘razões’ contra ela. É,
aliás, um argumento sob o qual se revela profundo pessimismo acerca da inteligência
humana: pois entenderão tais objetores que seja realmente difícil aprender a ‘fazer’
um soneto ou uma ode? Se tal fosse difícil, como havíamos de classificar as coisas
realmente... difíceis?!

Na realidade, afirmar a facilidade em fazer versos ‘sem medida’ nem rima será o
mesmo que fazê-lo... em relação à prosa! De onde se conclui que tal argumento
significa antes de mais nada o seguinte: ignorância de qual seja a dificuldade tanto
de fazer verso como prosa. Valery Larbaud escreveu, falando do verso livre, que ele
‘estabelece limites e restrições (contraintes) muito sutis, e mais difíceis de manter’,
do que o verso chamado ‘regular’. Mas, precisamente, não é isto coisa de aparência,
que salte aos olhos dos profanos — e, entre estes, há que contar todos aqueles que
se dispuseram a fazer versos ‘sem medida’ porque agora era fácil fazer poesia...

Mas, não nos iludamos! Como realmente também não era difícil fazer versos ‘regu-
lares’, a situação não se modificou; somente que, antes de deitar versos no papel, os
não-poetas de antigamente iam aprender nos tratados de versificação aquilo que lá
está — ao alcance de qualquer pessoa com algumas letras. A poesia era, e não dei-
xou de ser, difícil. A dificuldade nunca estivera na técnica de fazer versos, e continuou
a não estar na suposta falta de técnica do fazer versos livres. (MONTEIRO, 1965,
p. 113-114.)

Mas este não é o único mal-entendido que há a respeito do verso livre. Há outro,
ainda mais grave, que se manifesta quando se pretende analisar um poema em
versos livres.

Quando fazemos a análise de poema com versificação tradicional (metrificado


e rimado) temos a tendência de nos apoiar nas características aparentes. Como
bem observou Candido (2001, p. 81-2), tais elementos podem induzir o analista
a não ir mais longe e não tirar deles o que podem realmente “significar”. Os
elementos formais ou “materiais” (metro, rima, ritmo, cesura, divisão em estrofes)
são portadores de sentido que contribuem para o significado final. Mas — é
ainda Candido quem diz — quando se trata de um poema não convencional,
isto é, sem métrica nem rima, sem pausa obrigatória nem lei de gênero, a ca-
mada “aparente” parece não existir, ou não ter importância, e nós somos jogados
diretamente para o nível do significado. E completa:
UNIUBE  79

No entanto seria erro supor que um poema desses não tenha


organização. Mesmo que os recursos convencionais de for-
malização sejam descartados, os códigos continuam a existir.
Na análise de um poema “livre”, o objetivo inicial é a própria
articulação da linguagem poética — fato mais geral e durável
do que as técnicas contingentes que a disciplinam nos vários
momentos da história da poesia.

Foi como o próprio Candido procedeu, ao analisar o poema “O pastor pianista”,


de Murilo Mendes. Como se trata de um poema que não oferece uma superfície
fácil para o levantamento dos recursos usados, analisar este poema, como o
próprio crítico reconhece, é essencialmente tentar a caracterização da sua lin-
guagem, com base no problema das tensões.

3.2.5 Tipos de versos

Os versos regulares, que são aqueles que obedecem às regras tradicionais de


acentuação métrica, são os que apresentam de uma a doze sílabas métricas.
Em língua portuguesa, os versos mais frequentes são os de redondilha menor
(cinco sílabas), de redondilha maior (sete sílabas), o decassílabo (dez sílabas)
e o alexandrino (doze sílabas). Os versos de uma sílaba e os versos de mais
de doze sílabas são raros. Os versos ímpares são nativos na versificação pe-
ninsular porque as línguas de ritmo final ascendente tendem para o verso par,
enquanto as de ritmo final descendente tendem para os versos ímpares. A seguir,
apresentamos os diversos tipos de versos acompanhados do(s) respectivo(s)
esquema(s) rítmico(s).

Verso de uma sílaba (monossílabos): esquema rítmico (ER): 1(1).

Verso de duas sílabas (dissílabos): ER: 2 (2).

Verso de três sílabas (trissílabos): ER: 3 (1­‑3).

Verso de quatro sílabas (tetrassílabos): ER: 4 (1­‑4) e 4 (2­‑4).

Verso de cinco sílabas (pentassílabo ou redondilho menor ): ER: 5 (1­‑5), 5


­(1­‑3­‑5) e 5 (2­‑5).

Verso de seis sílabas (hexassílabo): ER: 6 (1­‑4­‑6), 6 (2­‑4­‑6), 6 (2­‑6) e 6 (3­‑6).

Verso de sete sílabas (heptassílabo ou redondilho maior): ER: 7 (1­‑3­‑5­‑7),


7 (3­‑5­‑7), 7 (3­‑7).
80 UNIUBE

Verso de oito sílabas (octossílabo): ER: 8 (1­‑5­‑8), 8 (2­‑5­‑8), 8 (3­‑5­‑8), 8 (4­‑8).

Verso de nove sílabas (eneassílabo): ER: 9 (3­‑6­‑9), 9 (4­‑9).

Verso de dez sílabas (decassílabo): ER: 10 (6­‑10) (heroico) e 10 (4­‑8­‑10) (sáfico).

Verso de onze sílabas (hendecassílabo ou verso de arte Cesura


maior): ER: 11 (2­‑5­‑8­‑11).
Pausa que divide o
verso em segmentos e
Verso de doze sílabas (dodecassílabo ou alexandrino): que ocorre após um
ER: 12 (6­‑12). Este verso tem normalmente um acento e icto (acento forte no
uma cesura na sexta sílaba, apresentando dois hemis- interior do verso).
tíquios.
Hemistíquio

Metade de verso.
3.2.6 Tipos de estrofes

A noção de verso implica a de estrofe: ao se definir o verso, aludiu­‑se à neces-


sidade de uma continuação correspondente (continuação de movimento, a re-
petição); versus, primitivamente, significava o par de sulcos, o movimento de ir
e vir executado pelo lavrador ao arar o campo.

A estrofe é formada pelo agrupamento dos versos e é definida tomando por base
o número de versos que a integram. Veja o Quadro 1.

Quadro 1: Tipos de estrofes

Denominações no de versos

Dístico ou parelha 2
Terceto 3
Quadra ou quarteto 4
Quinteto ou quintilha 5
Sexteto ou sextilha 6
Sétima ou setilha ou setena ou hepteto 7
Oitava 8
Nona ou novena 9
Décima 10
UNIUBE  81

A disposição gráfica nem sempre condiz com a estrutura estrófica; esta é que
deve ser analisada para verificar­se um agrupamento de versos constitui um
todo orgânico (dísticos que só o são na aparência, e que na verdade são quadras
a que o poeta deu disposição diversa).
Mário Faustino dos
Para ilustrar este aspecto, apresentamos um poema de Santos e Silva
Mário Faustino. À primeira vista, observando apenas a
disposição gráfica, temos a impressão de tratar­‑se de um (Teresina, 22 de
outubro de 1930 —
poema em versos livres, tal a liberdade com que conjuga
Lima, 27 de novembro
versos de tamanhos variados, e no qual há, inclusive, ex- de 1962.) Foi
ploração do estrato óptico. No entanto, se considerarmos jornalista, tradutor,
crítico literário e poeta
a estrutura estrófica, veremos que se trata de um soneto
brasileiro. Morreu com
italiano. Para comprovar, faça a escansão dos versos. Você apenas 32 anos em
verá que o poema se compõe de quatorze versos decassí- um desastre aéreo no
Peru.
labos, distribuídos em dois quartetos e dois tercetos.

Bronze e brasa na treva: diamantes


Pingam
(vibram)
lapidam­‑se
(laceram)
luz sólida sol rijo ressonantes
nas arestas acesas: não vos deram,
calhaus
(calhaus arfantes),
   outro leito
corrente onde roçar­‑vos e suaves
vossas faces tornardes vosso peito
conformar
   (como sino)
  como de aves
em brado rebentado em cachoeira
dois amantes precípites brilhando:
tições em selvoscura: salto!
beira
de sudário ensopado abismo armando
amo r
amo r
amo r a
mo r te
r amo
de ouro fruta amargosa bala!
e gamo.
(FAUSTINO, 2002.)
82 UNIUBE

IMPORTANTE!

Monóstico — designa não propriamente uma estrofe, mas um verso destacado vi-
sualmente de uma estrofe, mas que lhe pertence organicamente.

• Estrofes isométricas: todos os versos componentes possuem o mesmo nú-


mero de sílabas.

10

10

10

10

• Estrofes heterométricas: baseiam-se na combinação de versos de diferente


número de sílabas:

10

10

Para efeito de análise literária: o verso é a primeira unidade do texto, e a estrofe,


a segunda. Mas, como observou Goldstein (1994), a estrofe só pode ser inter-
pretada em função do poema todo, e vice-versa, mas é a partir dela que se pode
começar a analisar um texto poético.

3.2.6.1 Dinâmica da estrofe

O verso é uma unidade métrica e não uma unidade sintática. Desde o início
temos insistido neste aspecto. Isso leva à constatação de que há uma delimita-
ção do verso que não podemos perder de vista.
UNIUBE  83

A consciência dessa delimitação do verso levou Rogério Chociay (1974, p. 161),


ao tratar da dinâmica da estrofe, a indicar os dois aspectos que respondem pela
armadura básica da estrofe:

a) intensidade mais forte localizada na última sílaba tônica de cada verso;

b) pausas delimitadoras: entre versos na estrofe; entre o último verso de uma


estrofe; e o primeiro da seguinte.

A manutenção da pausa de final de verso normalmente representa uma quebra


da unidade sintática, sobretudo porque a pausa de final de verso não corresponde
a uma pausa sintático–semântica equivalente. Não há, a rigor, paralelismo
fono–semântico no poema. Percebemos os finais de versos e de estrofes como
finais de versos e de estrofes, e não como finais de orações e períodos. Há, na
verdade, casos em que as pausas métricas coincidem com as pausas sintáticas,
como mostra o exemplo a seguir.

Pouco importa, formosa Daliana,


Que fugindo de ouvir­‑me, o fuso tomes!
Se quanto mais me afliges, e consomes,
Tanto te adoro mais, bela serrana.
(COSTA, Claudio Manuel da, 2010.)

Mas é preciso observar que o que o poeta faz, em casos como este, como bem
observou Jean Cohen (1974), é apenas reduzir ao mínimo a discordância entre
som e sentido. Este modo de proceder é comum aos poetas clássicos, em razão
do privilégio que concedem ao pensamento, ao aspecto lógico do texto.

Fernando Pessoa, através de seu heterônimo Ricardo Reis, deixou bem clara
esta subordinação do verso e do ritmo ao pensamento, conforme a concepção
clássica. O verso se curva às exigências lógicas, ao privilégio que se concede
ao conteúdo:

Ponho na altiva mente o fixo esforço 


Da altura, e à sorte deixo, 
E as suas leis, o verso; 

Que, quando é alto e régio o pensamento, 


Súdita a frase o busca 
E o ‘scravo ritmo o serve. 

(PESSOA, Fernando, 2010.)


84 UNIUBE

Mas, como assinalou Jean Cohen (1974, p. 55), para garantir uma convergência
total dos dois sistemas, seria necessário um paralelismo exato entre pausa
métrica e pausa semântica, ou seja, que a pausa de final de verso correspon-
desse sempre a certa pausa semântica — final de frase, por exemplo —, garan-
tindo assim a proporcionalidade. Por exemplo:

Pausa métrica Pausa semântica

fim de verso = fim de frase (ou ponto)

fim de hemistíquio = fim de oração (ou vírgula)

fim de medida = fim de núcleo de oração

Ora, considerando os finais de verso do poema apresentado, encontramos


muitas vírgulas terminando os versos, o que é suficiente para romper o parale-
lismo.

Assim, o poema caracteriza­‑se pela ausência de paralelismo fonossemântico,


enquanto a prosa é caracterizada pela presença deste paralelismo. Observe o
esquema a seguir.

Há casos, porém, em que essa quebra da unidade sintático–semântica é mais


ostensiva, levada ao extremo. Veja o exemplo:
UNIUBE 85

E paramos de súbito na estrada


Da vida; longos anos, presa à minha
A tua mão, a vista deslumbrada
Tive da luz que teu olhar continha.
(BILAC, Olavo, 2010.)

Quando lemos esta estrofe, devemos, ou não, fazer a pausa no final dos versos?

Pelo que vimos até aqui, tudo indica que a pausa deve ser mantida, mesmo em
casos como esse.

Veja que, neste exemplo, o sentido de um verso se estende sobre o seguinte:


o primeiro prossegue no segundo, o segundo no terceiro e este no quarto verso.
Quando isso ocorre, temos o fenômeno denominado encadeamento, cavalga-
mento ou, em francês, enjambement (veja que o nome foi dado considerando-se
apenas o aspecto semântico).

Veja este outro exemplo:

Esse negro corcel, cujas passadas


Escuto em sonhos, quando a sombra desce,
E, passando a galope, me aparece
Da noite nas fantásticas estradas,

Donde vem ele? Que regiões sagradas


E terríveis cruzou, que assim parece
Tenebroso e sublime, e lhe estremece
Não sei que horror nas crinas agitadas?
(QUENTAL, Antero de, 2010.)

Os finais de alguns versos destas estrofes rompem o liame sintático intervoca-


bular, ou seja, separam o que sintaticamente é inseparável; colocam em posição
de intensidade forte no verso o que no período prosaico teria intensidade mais
fraca, o que se torna ainda mais perceptível quando comparado com o mesmo
período disposto de maneira prosaica:

Esse negro corcel, cujas passadas escuto em sonhos,


quando a sombra desce, e, passando a galope, me aparece
da noite nas fantásticas estradas, donde vem ele? Que regiões
sagradas e terríveis cruzou, que assim parece tenebroso e
sublime, e lhe estremece não sei que horror nas crinas
agitadas?
86 UNIUBE

Após a fase clássica, este tipo de rompimento intencional da ligação sintática


intervocabular vai se tornando cada vez mais comum, chegando, às vezes, a
assumir, com os poetas modernos, um caráter ainda mais radical, como mostra
o exemplo, a seguir, comentado por Chociay:

Quanta gente que zomba do desgosto


Mudo, da angústia que não molha o rosto.
(ALMEIDA, Guilherme de, apud CHOCIAY, 1974.)

No final do primeiro verso, aparece o substantivo desgosto; no início do segundo,


o adjetivo correspondente mudo; ora, a sintaxe não abona pausa entre o subs-
tantivo e o seu adjetivo; separando­‑se os dois, verso a verso, isso implica em
verdadeiro desequilíbrio: os versos separam o que deveria estar unido.

Ainda neste contexto, vale lembrar as oportunas observações de Maria Luiza


Ramos (1974, p. 49­‑50) sobre a importância de se observar as pausas entre os
versos, ainda quando a sintaxe não as abona, sob pena de falsear­‑se o poema
quando se leem os versos sem se respeitar os silêncios que os individualizam.
E cita como exemplo a seguinte estrofe de Manuel Bandeira:

Santa Clara, clareai 7 (3­‑7)


Estes ares, 3 (1­‑3)
Daí­‑nos ventos regulares, 7 (3­‑7)
De feição. 3 (1­‑3)
Estes mares, estes ares 7 (3­‑7)
Clareai. 3 (1­‑3)

Se o poeta assim dispôs as palavras, foi para obter maior efeito expressivo e
não por simples capricho gráfico. E se as pausas se prendessem a uma intenção
puramente semântica, talvez as palavras melhor se combinassem assim:

Santa Clara, clareai estes ares, 10


Dai­‑nos ventos regulares, de feição 11
Estes ares, estes ares clareai. 11

A diferença entre os dois textos é grande. Basta observar que a palavra clareai
do primeiro verso fica reduzida à sua função verbal logo explicitada no objeto
direto estes ares, enquanto que na disposição dada pelo poeta é nítida a redu-
plicação do nome Clara em variação para clareai.

Além do aspecto rítmico, que intensifica a invocação, o que se acrescentou ao


nome foi um ai rico em conotações exclamativas e suplicantes.
UNIUBE  87

Do mesmo modo, a pausa em ares intensifica a semelhança sonora entre essa


palavra e a precedente — mares — de maneira a confundir os elementos numa
só amplidão.

Isolada no último verso, clareai é expressão multívoca que funciona tanto atra-
vés do conteúdo verbal como através do latente conteúdo nominal e interjetivo.

Mas o problema principal, em relação ao encadeamento, está no seu resultado


em termos de leitura ou declamação. O que acontece à intensidade final? O
que acontece à pausa? Os teóricos, de um modo geral, consideram que se
deve manter a intensidade mais forte na última sílaba acentuada, mesmo
quando ocorre encadeamento e também que se deve manter a pausa no final
do verso. Esta é, por exemplo, a posição de J. Mattoso Câmara Jr. (apud
­CHOCIAY, 1974, p. 163), segundo o qual este “é um processo de que dispõe
o poeta para fazer sentir, mesmo na página escrita, o propósito de uma inten-
sidade de caráter estilístico”. É também a posição de Maurice Grammont (apud
CHOCIAY, 1974, p. 164):

O enjambement, diferente- Ce n’est pas que l’enjambe-


mente do que dizem alguns, ment, comme certains l’on
não suprime a pausa de final dit, supprime la pause de la
de verso, nem suprime ou fin du vers, ni qu’il supprime
mesmo enfraquece o último ou même affaiblisse le der-
acento rítmico do verso; ao nier accent rythmique du
contrário, a pausa de final vers ; loin de là, la pause fi-
do verso onde ocorre o en- nale du vers qui enjambe est
jambement é tão clara e tão aussi nette et aussi longue
longa quanto a dos outros que celle des autres, et son
versos, e seu último acento dernier accent rythmique est
rítmico é igualmente forte. aussi fort.

O testemunho de Rafael de Balbín, também citado por Chociay (1974, p. 164),


apresenta argumento que contribui ainda mais para sublinhar a autonomia da
organização estrófica em relação à sintaxe. Ao estudar o
encadeamento na versificação espanhola, observa: Sinalefa

A pausa rítmica castellana se La pausa rítmica castellana Este recurso já foi


visto neste capítulo
conserva idêntica em sua du- se conserva idéntica en su quando tratamos dos
ração e amplitude — como o duración y amplitud — como procedimentos de
comprova a ausência de si- lo comprueba la ausencia de acomodação, no
nalefa — ao produzir­‑se o sinalefa — al producirse el tópico 1: Elementos
estruturais da
encavalgamento. encabalgamiento
linguagem poética.
88 UNIUBE

A seguir, alguns apontamentos de Fernando Pessoa, nos quais o autor demons-


tra ter consciência de alguns problemas que estamos tratando. Vale a pena
conferir!

Na prosa, que é linguagem falada escrita, estas pausas são


dadas por uma coisa a que se chama a pontuação, e a pon-
tuação é determinada exclusivamente pelo sentido. Da pausa
grande do parágrafo à pausa menor do período, à menor ainda
no subperíodo (dada pelo ponto e vírgula, os dois pontos, ou
o traço) ou à mínima, da vírgula, toda a pausa da prosa se
deriva da significação do que se diz. O mais que nos é permi-
tido variar, por arbítrio nosso, na pontuação, é num estabele-
cimento um pouco carregado de vírgulas, numa abertura de
parágrafos onde poderia havê­‑lo só de períodos, ou em outras
coisas assim. Mas, em todos os casos, essas pontuações não
deverão tender para acentuar o sentido; nunca poderão quebrá­
‑lo ou interrompê­‑lo, porque a prosa, sendo a linguagem falada
escrita, é, por isso mesmo, o reflexo da ideia, para cuja emis-
são a palavra falada existe.

Se, porém, quisermos acentuar o ritmo para além da ordem


lógica, em virtude de em nós a emoção, que produz a entona-
ção (e o canto), predominar sobre a ideia propriamente dita,
abriremos pausas artificiais no discurso; e essas pausas são
artificiais porque a emoção, quanto à ideia, é externa (visto
que não é a ideia), e portanto artificial.

Como estas pausas artificiais não podem ser designadas por


pontuação, pois a pontuação designa as pausas naturais, te-
mos que designá­‑las por qualquer coisa que, marcando­‑as
acentuadamente, todavia as marca como artificiais. Isto faze-
mos dispondo o discurso em linhas separadas, sendo a pausa
indicada pela passagem de linha. A este gênero de discurso
se chama poesia. A pausa de fim de verso é independente do
sentido, e é tão nítida como se ali houvesse pontuação. Erram
pois contra toda a substância da poesia os que lêem ou dizem
versos, correndo­‑os de um para outro quando não há pontua-
ção no fim de uma linha. O discurso poético é exposto em linhas
precisamente para que se faça uma pausa, artificial embora,
onde a linha termina. A poesia é assim a prosa feita música,
ou a prosa cantada; o artifício da música é conjugado com a
naturalidade da palavra.

Nos princípios da poesia, é o próprio ritmo musical que esta-


belece estas pausas; a pausa da voz que canta acentua a
UNIUBE  89

pausa do fim de verso. Mais tarde, por um processo ainda


vagamente musical, que é o quantitativo, dá­‑se a cada verso
um igual valor musical, e a voz conhece por antecipação onde
a linha acaba, sendo­‑lhe dada assim uma guia para a leitura.
Mais tarde, dispensa­‑se essa base musical, mas, para que a
guia não falte, estabelece­‑se um sistema de referências pelo
qual se sabe onde termina o verso, e esse sistema é a rima.
Mais tarde ainda, fixo já o verso em determinadas medidas,
quantitativas pelas sílabas que não pela quantidade, a rima
dispensa­‑se, é o chamado verso branco — o regular. Final-
mente, se chega ao justo critério do verso — de que basta
marcar pela volta de linha que o discurso está escrito em verso
para se dever ler como tal, para efetivamente ser tal.

Assim se chega ao critério moderno do verso, em que não há


exigência de quantidade, de sílabas certas, nem de rima. A
linha isolada é uma unidade rítmica. A qualidade rítmica de-
pende, como aliás, dependeu sempre, do poeta.

Assim, a diferença entre a prosa e o verso, sem desaparecer,


longe até de desaparecer, acentua­‑se tal qual é, sem mais
nada. O verso é a prosa artificial, o discurso disposto musical-
mente. Não é outra a diferença entre as duas formas da pala-
vra escrita. (PESSOA, 1982, p. 273­‑274.)

Fernando Pessoa expressa idêntica concepção de ritmo pela boca de Álvaro de


Campos, em polêmica que este manteve com Ricardo Reis:

A poesia é aquela forma da prosa em que o ritmo é artificial.


Este artifício, que insiste em criar pausas especiais e antina-
turais diversas das que a pontuação define, embora às vezes
coincidentes com elas, é dado pela escrita do texto em linhas
separadas, chamadas versos, preferivelmente começadas por
maiúsculas, para indicar que são como que períodos absurdos,
pronunciados separadamente. Criam­‑se, por este processo,
dois tipos de sugestões que não existem na prosa — uma
sugestão rítmica, de cada verso por si mesmo, como pessoa
independente, e uma sugestão acentual, que incide sobre a
última palavra do verso, onde se pausa artificialmente, ou
sobre a única palavra se há uma só, que assim fica em isola-
mento que não é itálico.

Mas pergunta­‑se: por que há de haver ritmo artificial?


Responde­‑se: porque a emoção intensa não cabe na palavra:
tem que baixar ao grito ou subir ao canto. E como dizer é falar,
90 UNIUBE

e se não pode gritar falando, tem que se cantar falando, e


cantar falando é meter a música na fala; e, como a música é
estranha à fala, mete­‑se a música na fala dispondo as palavras
de modo que contenham uma música que não esteja nelas,
que seja pois artificial em relação a elas. É isto a poesia: can-
tar sem música. Por isso os grandes poetas líricos, no grande
sentido do adjetivo ‘lírico’, não são musicáveis. Como o serão,
se são musicais? (PESSOA, 1982, p. 142).

Em outra parte, escreve Pessoa:

Há ritmo na prosa e há ritmo no verso. No verso, porém, o ritmo


é essencial; na prosa não é, é acessório — uma vantagem,
mas não uma necessidade.1

Em decorrência da necessária manutenção da pausa de final de verso, a leitura


que privilegie o arcabouço sintático–semântico do poema trará irremediáveis
prejuízos para este. Deixar de considerar a pausa no fim do verso significa des-
truir o seu próprio ritmo, confundindo­‑o com o ritmo da prosa. A este respeito,
disse Grammont (apud COHEN, 1974, p. 52):

Quando existe conflito entre o metro e a sintaxe é sempre o


metro que importa, e a frase deve curvar­‑se às suas exigências.
Todo verso, sem exceção possível, é seguido de uma pausa
mais ou menos longa.

Tanto no poema como na prosa há ritmo, a diferença está em que no poema o


ritmo vem em primeiro plano. Por isso, a estrutura sintática permanece acessó-
ria, submetida às ordenações rítmicas, enquanto na prosa é a estrutura sintática
que vem em primeiro plano e o ritmo permanece acessório, submetido à orde-
nação lógica e sintática. Isso foi observado com muita justeza por Karl Vossler
(apud MOISÉS, 1968, p. 29):

na poesia a estrutura sintática permanece acessória, latente,


imanente, submetida às ordenações rítmicas e métricas; en-
quanto que na prosa a estrutura sintática se destaca tanto mais
agudamente, se faz tanto mais importante e eficaz, quanto
mais decididamente se afasta o prosador do estilo poético e
do estado de espírito lírico. Claro que a prosa possui também

1 Apontamento do próprio autor inserto por Eduardo Freitas da Cosa, com o título forjado de
“Poesia e Ritmo”, nas notas aos Poemas Dramáticos. In: PESSOA, Fernando. Obras completas
de Fernando Pessoa. Lisboa: Ática [col. “Poesia”] apud PESSOA, Fernando. Obra poética.
Org., introd. e notas de Maria Aliete Galhoz. Rio de Janeiro: José Aguilar Editora, 1972, p. 731.
UNIUBE  91

seu ritmo, sua melodia etc., como por seu lado a poesia tam-
bém possui composição.

Aqui também se impõe uma diferenciação em relação ao momento da análise.


É claro que para efeito de análise e interpretação, não se vai considerar sim-
plesmente a quebra da unidade sintática, mas muito mais a tensão que se es-
tabelece entre o corte métrico e a sequência sintático–semântica. Como bem
observou Norma Goldstein (1994, p. 63):

Surge, portanto, uma espécie de choque entre o som (com-


pleto), a organização sintática e o sentido (ambos incompletos).
Ou seja: tensão. Geralmente, o encadeamento produz uma
relação bastante complexa entre esses níveis, resultando
uma ambiguidade de sentido.

3.2.7 Tipos de poema

Há poemas cuja estrutura obedece a um determinado esquema de estrofes e


rimas.

3.2.7.1 Soneto

Soneto italiano: são quatorze versos distribuídos em quatro estrofes: dois quar-
tetos e dois tercetos. Foi criado na Itália, no século XIII, por Jácomo da Lentini
e alcançou a sua máxima perfeição com Dante e Petrarca. É o mais cultivado
dos poemas de forma fixa.

Os esquemas de rimas mais usuais são:

ABBA / ABBA; ABAB / ABAB — para os quartetos

CDC / DCD; CDE / CDE; CCD / CCD — para os tercetos


92 UNIUBE

Soneto inglês: compõe­‑se de três quartetos e um dístico final.

Os esquemas de rima são:

ABAB / CDCD / EFEF / GG

ou

ABBA / CDDC/ EFEF / GG

3.2.7.2 Balada

É um poema narrativo de origem popular, contando fatos e aventuras de guerra,


caça, amor e morte, com uso do diálogo, recorrência de versos e palavras,
apresentação de tipo dramático. A balada por excelência, que ficou como para-
digma, foi a elaborada em nível erudito. Exemplo desse tipo de balada é a
“Lenora”, de Burger (1773), muito difundida entre os românticos. Trata­‑se de
uma balada fúnebre que teve grande influência na história da literatura. Tiveram
grande aceitação na Alemanha e foi produzida no pré­‑romantismo por Goethe
e Schiller. De Goethe são as conhecidas “O rei de Thule” e “O rei dos elfos”.
Esta contém elementos macabros e sobrenaturais. Entre nós, começou a ser
produzida por Joaquim Norberto no decênio de 1840. Segundo Candido, “o ritmo
usado nas baladas varia muito, mas em geral busca certa facilidade de cadên-
cia popular, podendo ocorrer o intuito imitativo, como nas abundantes onoma-
topéias de “Lenora” e no próprio “O rei dos elfos”, que por momentos tem uma
batida de galope”. (CANDIDO, 2001, p. 48.)

3.2.7.3 Vilancete

Poema lírico de origem popular galego­‑portuguesa, surgido na época do Can-


cioneiro geral, de Garcia de Resende (1516). Compunha­‑se de uma estrofe
(mote), que funcionava como a matriz do poema, seguida de um número variá-
vel de estrofes (voltas ou glosas), em que se desenvolvia a ideia poética contida
no mote. O mote continha, em geral, três versos, e as voltas podiam ter de cinco
a oito versos, predominantemente de sete sílabas (rendondilho maior).
UNIUBE  93

3.2.7.4 Ode

É um tipo de poema de forma complexa e variável, que teve origem na Grécia


Antiga, onde era cantado com acompanhamento musical. Caracteriza­‑se pelo
tom elevado e sublime com que trata o assunto. Na literatura ocidental moderna,
a ode caracteriza­‑se, do ponto de vista formal, pela existência de três estrofes
que correspondem ao desenvolvimento da ideia do poema: a estrofe, a antístrofe
e o epodo (conclusão). Apresenta uma série de variantes, apresentando uma
grande diversidade de esquemas métricos e rítmicos.

3.2.7.5 Madrigal

Oriundo da Itália, é um grupo de três até cerca de vinte versos, sendo estes de
tamanho diverso e construção variada. Liberdade de rima e pode­‑se usar até
versos sem rima. Em geral, no final, usa­‑se uma parelha.

3.2.7.6 Elegia

Tipo de poema de tom triste. Geralmente, é um lamento pelo falecimento de


uma pessoa. Por extensão, designa toda reflexão poética sobre a morte.

3.2.7.7 Égloga ou écloga

Poema em forma de diálogo ou de solilóquio sobre temas rústicos, cujos intér-


pretes são, em regra, pastores. Inicialmente, a expressão foi aplicada aos poe-
mas bucólicos de Virgílio. Depois, passou a designar as pastorais e idílios
tradicionais. Retomado por Dante, Petrarca e Boccaccio, o gênero tornou­‑se um
dos preferidos dos poetas renascentistas. A écloga clássica apresenta quase
sempre um quadro idílico, o locus amoenus ou lugar aprazível, e desenvolve o
louvor de uma pessoa, por razões sentimentais, ou reflete sobre a condição do
poeta e/ou da poesia, ou se ocupa de detalhes políticos ou religiosos. Outro
tema clássico é o da libertação espiritual, a renúncia aos bens terrenos e sociais
para uma total entrega à natureza e aos mais puros ideais de vida com o obje-
tivo de alcançar a aurea mediocritas.
94 UNIUBE

3.2.7.8 Rondó ou rondel

Formas fixas medievais de origem francesa, restauradas no século XIX com


espírito malabarístico, para exercícios sem maior consequência. Gênero corte-
são, o rondel, cujo maior praticante foi um príncipe, Charles d’Orléans (1391–
1465), pai do rei Luís XII, deve ter número limitado de versos (em princípio,
treze), com um primeiro retorno obrigatório de dois deles, e em seguida só de
um, de maneira a configurar um estribilho, ou refrão. Além disso, não deve ter
mais de duas rimas. (CANDIDO, 2001.)

Na maioria dos casos compõe­‑se de catorze versos, usa só duas rimas e repete
os dois primeiros versos (eventualmente apenas o primeiro) no meio e no fim.

3.2.7.9 Triolé ou trioleto

Compõe­‑se de oito versos. O primeiro verso volta na quarta e na sétima; o se-


gundo, na oitava linha. Só podem usar­‑se duas rimas que se distribuem da
­seguinte maneira: abaaabab.

3.2.7.10 Sextina

Invenção do provençal Arnaut Daniel, compõe­‑se de seis estrofes de seis versos.


Às seis estrofes segue­‑se uma estrofe de três versos.

3.2.8 A rima

Como já tivemos oportunidade de frisar, além dos elementos essenciais do verso,


como o metro e o ritmo, há ainda a considerar os elementos subsidiários, entre
os quais está a rima.

A rima tem, basicamente, uma função métrica, ou seja, assinala a conclusão de


um verso, ou atua como princípio organizador — por vezes, o único — da estrofe.

Segundo Candido (1996), a função principal da rima é criar a recorrência do


som de modo marcante, estabelecendo uma sonoridade contínua e nitidamente
perceptível no poema. Frequentemente, a nossa sensibilidade busca no verso
o apoio da homofonia final.
UNIUBE  95

A poética sempre se ocupou dos tipos de rimas e do modo de combiná­‑las,


distinguindo diversas modalidades. Todas as regras que dizem respeito às rimas
são relativas, e o poeta pode fazer boa poesia, violando muitas delas.

Para efeito de depreensão do esquema de rimas externas de uma estrofe ou


poema, convencionou­‑se designar cada rima por uma letra do alfabeto: A, para
a primeira rima que aparece; B, para a segunda; C, para a terceira; D, para a
quarta rima, e assim por diante.

3.2.8.1 Tipos de rima

As rimas se classificam de acordo com vários critérios.

Quanto à disposição ou combinação, as rimas podem ser emparelhadas, inter-


poladas ou opostas, alternadas e cruzadas.

a) emparelhadas: AABB

Pode em redor de ti tudo se aniquilar


Tudo renascerá cantando ao teu olhar,
Tudo, mares e céus, árvores e montanhas,
Porque a vida perpétua arde em tuas entranhas.
(BILAC, Olavo, 2010.)

b) alternadas ou cruzadas: ABAB

Se fosse dor tudo na vida,


Seria a morte grande bem.
Libertadora apetecida,
A alma dir­‑lhe­‑ia, ansiosa: — Vem!
(BANDEIRA, Manuel, 2004, p. 27.)

c) interpoladas ou opostas: ABBA

Num sonho todo feito de incerteza,


De noturna e indizível ansiedade
É que vi teu olhar de piedade
E, mais que piedade, de tristeza.
(QUENTAL, Antero de, 1974, p. 21.)

Quanto à posição do acento tônico, elas se classificam como:

a) rimas graves ou femininas: entre segmentos paroxítonos.

b) rimas esdrúxulas: entre segmentos proparoxítonos.


96 UNIUBE

c) rimas agudas ou masculinas: entre segmentos oxítonos.

d) esdrúxulas

Vem do encéfalo absconso que a constringe,


Chega em seguida às cordas do laringe,
Tísica, tênue, mínima, raquítica...

Quebra a força centrípeta que a amarra,


Mas, de repente, e quase morta, esbarra
No molambo* da língua paralítica!
(ANJOS, Augusto dos, 2010.)

e) agudas ou masculinas

Quando Ismália enlouqueceu


Pôs­‑se na torre a sonhar...
Viu uma lua no céu,
Viu outra lua no mar.
(GUIMARAENS, Alphonsus, 2010.)

f) graves ou femininas

E de seu negro mármore no trono


O ídolo de gesso está sentado.
Assim um coração repousa em sono...
Assim meu coração vive fechado.
(OLIVEIRA, Alberto de, 2010.)

3.2.9 De acordo com a identidade de sons

Rima perfeita ou soante ou consoante: há correspondência completa de sons


(rimam consoantes e vogais a partir da última vogal tônica).

Naquelas tardes fagueiras


À sombra das bananeiras
(ABREU, Casimiro, 2010.)

Rima imperfeita ou toante ou assonante: a correspondência de sons existe


apenas na sílaba tônica (ou somente rimam as vogais).

Umas que se asfixiam


Por debaixo do pó ó
Outras despercebidas
Em meio a grandes nós; ó
(MELO NETO, João Cabral de, 2010.)
UNIUBE 97

Esta é, para alguns estudiosos, como é o caso de Antonio Candido, a distinção


mais importante que convém reter. A primeira é a rima perfeita, ou rima propria-
mente dita; a segunda é, sobretudo, um exemplo de assonância no fim do verso.
A rima toante foi muito usada na poesia medieval, conservou-se na poesia es-
panhola e voltou a ser cultivada em língua portuguesa no século XX. Mais re-
centemente, alguns poetas modernos têm feito uso desse tipo de rima, como é
o caso de João Cabral de Melo Neto, sem dúvida por influência dos espanhóis,
como bem observou Candido (1996).

3.2.10 Quanto à categoria gramatical

Quanto a este aspecto, as rimas podem ser pobres (quando de mesma catego-
ria gramatical: substantivo com substantivo, adjetivo com adjetivo, verbo com
verbo etc.) ou ricas (quando de categoria gramatical diferente).

SAIBA MAIS

Além de uma função métrica, há uma função semântica da rima: a rima tem signifi-
cado. A rima é sempre uma conexão sonora, mas que implica ou uma conexão se-
mântica ou um contraste semântico: o primeiro caso é aquele em que as palavras
que rimam pertencem à mesma classe gramatical (rima pobre ou gramatical); o se-
gundo caso é aquele em que as palavras que rimam pertencem a esferas semânticas
diferentes, ou seja, a classes gramaticais diferentes (rima rica ou antigramatical).

Um aspecto que não pode ser desprezado no que concerne às rimas foi ressal-
tado por Leodegário de Azevedo Filho (1971): o fato de a rima ser um fenômeno
de natureza essencialmente fonológica, podendo o poeta rimar nus com azuis,
ou espirais com Satanás, seguindo a nossa pronúncia coloquial, como fizeram,
respectivamente, Casimiro de Abreu e Castro Alves, nas duas estrofes seguintes:

Pés descalços, braços nus,


Correndo pelas campinas,
à roda das cachoeiras
atrás das asas ligeiras
das borboletas azuis.
(ABREU, Casimiro de, apud AZEVEDO FILHO, 1971.)
98 UNIUBE

E da roda fantástica a serpente


Faz doidas espirais...
Qual num sonho dantesco as sombras voam!
Gritos, ais, maldições, preces ressoam!
E ri­‑se Satanás.
(ALVES, Castro, apud AZEVEDO FILHO, 1971.)

3.2.11 Versos brancos

São os versos que obedecem às regras métricas, mas não apresentam rimas.

3.2.12 Os sinais de pontuação

Outro recurso importante que também contribui para a estruturação do texto e


que pertence ainda ao nível fônico, são os sinais de pontuação. Os sinais de
pontuação, de um modo geral, ajudam a precisar o sentido lógico do texto.
Exemplo:

Decorrida uma porção de tempo, Mr. Otis foi despertado por


um ruído singular que vinha do corredor, perto do seu quarto.
Dir­‑se­‑ia um tinido de ferros que se entrechocavam, e o ruído
parecia cada vez mais próximo. Levantou­‑se imediatamente,
acendeu um fósforo e viu o relógio. Era uma hora em ponto.
Muito calmo, Mr. Otis tateou o pulso. Não se tratava de febre.
O ruído estranho continuava e, dentro em pouco, Mr. Otis
percebeu distintamente passos. Enfiou os chinelos, tirou do
seu estojo de toalete uma garrafinha oblonga e abriu a porta.
(WILDE, Oscar, 2010.)

Nesse período, cada unidade lógica está delimitada por uma vírgula ou ponto
final. Em um texto em prosa, as pausas são indicadas pelos sinais de pontuação.
Já no poema, as pausas da leitura podem ser marcadas pelos sinais de pon-
tuação, mas também pelos espaços em branco.

Em grande parte da poesia contemporânea — com a libertação do raciona­


lis­mo — desaparecem também os sinais de pontuação.

Na poesia, a pontuação é usada também para a obtenção dos mais diversos


efeitos expressivos e tem importância decisiva na produção de sentido do texto
poético. Daí ser um aspecto que merece atenção especial durante a análise. À
guisa de ilustração, vejamos alguns exemplos significativos. Observe a estrofe,
a seguir.
UNIUBE  99

O céu, a terra, o vento sossegado...


As ondas, que se estendem pela areia...
Os peixes, que no mar o sono enfreia...
O noturno silêncio repousado...
(CAMÕES, Luís de, 2010.)

Neste exemplo de Camões, as reticências querem indicar o caráter de algo ili-


mitado, como a sugerir a extensão infinita do cenário.

Na poesia, mesmo naqueles lugares em que, do ponto de vista lógico, deveria


haver sinais de pontuação, pode ocorrer de o poeta eliminá­‑los para a obtenção
do efeito poético desejado. É o que podemos observar neste poema de Murilo
Mendes:

Muros
O pintor de olho vertical
Olha fixamente para o muro
Descobre pouco a pouco
Uma perna um braço um tronco
A cara de uma mulher
Uma floresta um peixe uma cidade
Uma constelação um navio
Muro, nuvem do pintor.
(MENDES, Murilo, 2010.)

Neste poema de Murilo Mendes, pode­‑se perceber que o autor elimina os sinais
de pontuação no interior do texto. Por que teria procedido desta forma? Seria só
por que se trata de fazer uso de uma liberdade que lhe concede a poesia con-
temporânea, pouco afeita à pontuação lógica? Ou será porque se trata aqui de
um daqueles poemas “surrealistas” do autor, em que a sucessão de imagens
inusitadas pede uma estrutura que não combina com o arcabouço lógico? Nem
uma coisa nem outra. Não obstante a aparência, este é um poema muito simples.
O autor parece ter tido outras razões para agir assim. Senão vejamos.

O poeta está mostrando como o pintor trabalha. Para tanto, faz alusão a uma
experiência que, de alguma forma, todos conhecemos: vez por outra, ao olhar
para o céu, descobrimos imagens familiares em formas vagamente semelhantes
de nuvens. É conhecido também o hábito, muito comum entre os primitivos, de
projetar imagens no firmamento ou reconhecer a forma de um animal numa
constelação. E como não lembrar aqui o famoso método de “acelerar o espírito
de invenção” que Leonardo da Vinci recomendava aos artistas e que, certamente,
o poeta conhecia e que até — quem sabe? — pode ter sido uma de suas fontes
de inspiração? Eis o texto:
100 UNIUBE

Você deve olhar para certas paredes manchadas de umidade


ou para pedras de cor desigual. Se tiver de inventar fundos
de quadro, poderá ver nessas paredes e pedras a semelhança
de paisagens divinas, adornadas com montanhas, ruínas, ro-
chedos, florestas, grandes planícies, colinas e vales da maior
variedade. Poderá ver nelas também batalhas e estranhas
­figuras em ação violenta, expressões de fisionomias, e roupas,
e uma infinidade de outras coisas, que poderá completar e re-
duzir a suas formas próprias. Acontece com as paredes o mesmo
que com o som de sinos: é possível ouvir a cada badalada a
palavra que se imaginar. (apud GOMBRICH, 1986, p. 164.)

Ora, as imagens sugeridas pelas ranhuras e manchas do muro não são imagens
claramente diferenciadas, mas apenas sugeridas, formadas ao acaso nesse
muro — metaforicamente denominado “nuvem de pintor”. Passa­‑se de uma
imagem para outra de modo quase imperceptível. Trata­‑se de um aglomerado
de aspectos que não são claramente discerníveis. Daí que para ser fiel a esta
experiência, o poeta tenha evitado os sinais de pontuação, que criariam limites
onde eles não existem. Você não acha que o poeta foi coerente procedendo
assim? Para efeito de contraste, você poderá observar a funcionalidade do
processo comparando os versos de Murilo Mendes com os de Shakespeare, na
peça Antônio e Cleópatra (Ato IV, Cena XII), em que se apresenta uma situa-
ção parecida, e nos quais o poeta inglês não podia, sobretudo em razão de ser
outro o contexto histórico e cultural em que viveu, sequer cogitar a possibilidade
de eliminar o balizamento lógico e racionalista de seu texto.

Sometimes we see a cloud that’s dragonish;


A vapour sometime like a bear or lion,
A tower’d citadel, a pendent rock,
A forked moutain, or blue promontory
With trees upon’t, that nod unto the world,
And mock our eyes with air: thou hast seen these signs;
They are black vesper’s pageants.
(SHAKESPEARE, William, 2010.)

Às vezes, vemos uma nuvem que parece um dragão;


Às vezes, o vapor toma a forma de um urso ou leão,
De uma cidade com torres, de uma rocha pendente,
De uma montanha bifurcada, ou de um penhasco azulado
Com árvores na superfície, que oscilam sobre o mundo,
E deixa a nossa vista confusa: sinais como esses já tens visto muitos;
São fantasmas das tardes nubladas.
UNIUBE  101

3.3 Processos intensificadores da linguagem poética


Além dos elementos estruturais da linguagem poética, temos os processos in-
tensificadores. Vamos estudar apenas os mais frequentes: a reiteração e a
anáfora, a aliteração e a assonância, a onomatopeia, a ilustração sonora e
o simbolismo sonoro e, por fim, o paralelismo e o refrão.

3.3.1 Reiteração

Recurso estilístico dos mais antigos e essenciais à linguagem poética. É o pro-


cesso intensificador básico. Veja, a seguir, um exemplo de repetição ternária,
que é um traço estilístico característico da poesia de Carlos Drummond de An-
drade e que aparece também no famoso verso da poetiza Gertrude Stein, do
poema Sacred Emily (1913): “Rose is a rose is a rose is a rose” (Rosa é uma
rosa é uma rosa é uma rosa)

[...]
Night town.
Night town a glass.
Color mahogany.
Color mahogany center.
Rose is a rose is a rose is a rose.
Loveliness extreme.
Extra gaiters.
Loveliness extreme.
Sweetest ice­‑cream.
Page ages page ages page ages.
[…]
(STEIN, Gertrude, 2010.)

3.3.2 Anáfora

Consiste na repetição de uma mesma palavra ou grupo de palavras no princípio


de versos sucessivos.

Vi uma estrela tão alta,


Vi uma estrela tão fria!
Vi uma estrela luzindo
Na minha vida vazia.
(BANDEIRA, Manuel, 2004.)
102 UNIUBE

Ao se generalizar o uso do verso livre, a anáfora é largamente utilizada como


recurso ordenador do poema, intensificando o seu sentido, dando unidade ao
pensamento e ordem interior à composição. (COELHO, 1980.)

3.3.3 Aliteração

Repetição da mesma consoante no início, no meio ou no final de palavras su-


cessivas.

Exemplo:

Vozes veladas, veludosas vozes,


Volúpias de violões, vozes veladas,
Vagam nos velhos vórtices velozes
Dos ventos, vivas, vãs, vulcanizadas.
(CRUZ e SOUSA, 2010.)

3.3.4 Assonância

Processo poético que consiste na repetição ordenada dos mesmos sons vocá-
licos para obtenção de efeitos de sonoridade expressiva; desempenha, por
vezes, o papel de rima, pondo em correspondência a última palavra de dois ou
mais versos. Neste caso é designada por rima toante.

Ó Formas alvas, brancas, Formas claras.


De luares, de neves, de neblinas!...
Ó Formas vagas, fluidas, cristalinas...
Incensos dos turíbulos das aras...
(CRUZ e SOUSA, 2010.)

Neste exemplo, a assonância é usada para sugerir o ruído do cricrilar dos grilos.

3.3.5 Onomatopeia

Neste caso, a expressão do signo reproduz os sons que ela designa. Observe
que, no exemplo, a seguir, de Manuel Bandeira, o poeta procura reproduzir o
som dos sinos.
UNIUBE  103

Sino de Belém, pelos que inda vêm!


Sino de Belém, bate bem­‑bem­‑bem.

Sino da Paixão, pelos que lá vão!


Sino da Paixão, bate bão­‑bão­‑bão.
(BANDEIRA, Manuel, 2004.)

3.3.6 Ilustração sonora

São os casos em que as palavras, sem serem onomatopeias, evocam em nós


a impressão auditiva que teríamos do fenômeno descrito.

Neste mesmo exemplo de Manuel Bandeira (2004), ocorre também ilustração


sonora. As palavras, sem serem onomatopeias, pretendem representar o som
dos sinos: Sino de Belém, pelos que inda vêm!/ Sino da Paixão, pelos que lá
vão! Assim, o barulho dos sinos é reproduzido através de dois recursos, o que
reforça ainda mais a impressão sonora que teríamos dos sinos.

3.3.7 Simbolismo sonoro

Todorov (1971, p. 148­‑149) identificou, além da onomatopeia e da ilustração


sonora, um terceiro grupo de fenômenos, que chamou de “simbolismo sonoro”
e que poderíamos designar mais simplesmente como “distribuição fonemática”.
Neste caso, o conteúdo ou a matéria significada, que já no caso da ilustração
sonora se apresenta menos claramente que no primeiro, o da onomatopeia,
torna­‑se aqui quase imperceptível, permitindo interpretações de natureza sub-
jetiva. Há casos, porém, em que o simbolismo sonoro é tão evidente que dificil-
mente alguém colocaria em dúvida a sua presença e eficácia, como no exemplo
que segue.

A cavalgada

A lua banha a solitária estrada...


Silêncio!... Mas além, confuso e brando,
O som longínquo vem­‑se aproximando
Do galopar de estranha cavalgada.

São fidalgos que voltam da caçada;


Vêm alegres, vêm rindo, vêm cantando,
E as trompas a soar vão agitando
O remanso da noite embalsamada...
104 UNIUBE

E o bosque estala, move­‑se, estremece...


Da cavalgada o estrépito que aumenta
Perde­‑se após no centro da montanha...

E o silêncio outra vez soturno desce...


E límpida, sem mácula, alvacenta
A lua a estrada solitária banha...
(CORREIA, Raimundo, apud CAMARA JR., 1972.)

Aqui temos a descrição de um cenário paisagístico que, inicialmente ermo, vem


a ser depois invadido por alegre e barulhenta comitiva, um desfile, que logo
passa e deixa diante do leitor, novamente, o ermo cenário anterior. O texto é,
portanto, como esclarece Mattoso Câmara Jr. (1972, p. 145),

o contraste de um transitório momento de alegria e vida, em


face da quietude permanente da noite enluarada. Impunha­‑se,
assim, no fim da descrição, marcar o retorno ao momento
inicial de quietude, que a passagem da cavalgada veio por um
instante interromper.

O poema começa e termina por uma mesma frase. Estes dois versos apresen-
tam outra peculiaridade: são versos decassílabos sáficos, com esquema rítimico
10 (4­‑8­‑10). Os demais versos são decassílabos heroicos. O idêntico ritmo no
início e no final mostra que o cenário voltou a ser como era antes. Esse ritmo
só se altera nos versos que descrevem a aproximação e a passagem da comi-
tiva. O decassílabo sáfico marca o ritmo do cenário e o decassílabo heroico
marca o ritmo da cavalgada. Há, portanto, uma oposição entre dois ritmos. Mas
há no poema outros aspectos sonoros. Na primeira estrofe, nos versos 3 e 4,
há uma inversão sintática: o som da cavalgada chega antes dela. O verso 3
possui muitas vogais nasais para descrever o som distante. O verso 4 possui
consoantes próprias para descrever o galope. Na medida em que a cavalgada
se aproxima o ruído aumenta. O momento de maior proximidade — o clímax,
por assim dizer —, se dá na 3a estrofe, sobretudo nos dois primeiros versos do
primeiro terceto:

E o bosque estala, move­‑se, estremece...


Da cavalgada o estrépito que aumenta
(CAMARA JR., 1972, p. 143.)

O primeiro desses versos possui vogais abertas e consoantes próprias para


descreverem um ruído forte e próximo. O verso seguinte possui consoantes
próprias para descreverem agudamente o aumento do ruído. A palavra estrépito
é estrepitosa, mais barulhenta que barulho!
UNIUBE  105

O último verso do primeiro terceto apresenta um aspecto interessante: descreve


o afastamento da cavalgada, o início, com vogais abertas, e o final, com vogais
nasais:

Perde­‑se após no centro da montanha...

Com a leitura em voz alta é possível perceber o silêncio, o prenúncio da caval-


gada, o trotar dos cavalos e o retorno da solidão silenciosa.

3.3.8 Paralelismo

Consiste na repetição de uma mesma estrutura sintática. Observe os dois últimos


versos da estrofe, a seguir, de Florbela Espanca, poetisa portuguesa.

A tua linda voz de água corrente


Ensinou­‑me a cantar... e essa canção
Foi ritmo nos meus versos de paixão,
Foi graça no meu peito descrente.
(ESPANCA, Florbela, 2010.)

3.3.9 Refrão

Versos que se repetem ao fim das estrofes de um poema, como ocorre nesta
estrofe de Tomás Antônio Gonzaga:

Eu, Marília, não sou algum vaqueiro,


que viva de guardar alheio gado,
de tosco trato, de expressões grosseiro,
dos frios gelos e dos sóis queimado.
Tenho próprio casal e nele assisto;
dá­‑me vinho, legume, fruta, azeite;
das brancas ovelhinhas tiro o leite
e mais as finas lãs, de que me visto.
Graças, Marília bela,
graças à minha estrela!
(GONZAGA, Tomás A., 2010.)

3.4 Conclusão
Terminamos, assim, nosso estudo dos procedimentos de poetização do nível
fônico. Nele, como você deve ter percebido, procuramos nos ater aos procedi-
mentos mais importantes, além de fornecer um grande número de exemplos para
106 UNIUBE

facilitar sua compreensão. Também procuramos, sempre que possível, comentar


os procedimentos de poetização considerando o contexto da análise literária,
evidenciando a importância do conhecimento dos mesmos para a análise literária
e, mais do que isso, mencionamos inúmeras questões de ordem prática, ou seja,
problemas com os quais podemos nos deparar durante o processo de análise.

Resumo
Neste capítulo, iniciamos com a discussão sobre qual dos dois níveis, o fônico
e o semântico, é mais importante para a produção da poeticidade, e concluímos
que o semântico é o nível decisivo. Estudamos, depois, detalhadamente, os
elementos estruturais essenciais da linguagem poética, tais como o metro e o
ritmo, e os demais aspectos relacionados a eles, como os sistemas de metrifi-
cação, os sistemas de contagem dos versos, os problemas relacionados à es-
cansão dos versos, a tipologia dos versos, das estrofes e dos poemas. Vimos,
em seguida, a questão da rima, que é um dos elementos estruturais subsidiários
do verso. Abordamos também a questão da importância dos sinais de pontuação
para a produção de sentido do texto poético. Depois, voltamos nossa atenção
para os processos intensificadores da linguagem poética, pelo menos os mais
frequentes, como a reiteração, a anáfora, a aliteração, a assonância, a onoma-
topeia, a ilustração sonora, o simbolismo sonoro e, ainda, o paralelismo e o
refrão.

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Estudo analítico do
Capítulo
poema: procedimentos
4
de poetização do
nível semântico

Introdução
Após estudarmos os procedimentos de poetização do nível fônico, tema
de nosso capítulo anterior, devemos nos voltar agora para os procedi-
mentos de poetização do nível semântico. Estudaremos, primeiramente,
as modalidades de palavras figuradas: a comparação, a metáfora, o
símbolo e a alegoria; em seguida, faremos uma breve reflexão sobre a
natureza da metáfora. Depois, focalizaremos dois outros grupos de fi-
guras: no primeiro, estudaremos a metonímia e a sinédoque, no outro
grupo, a antítese, o paradoxo e a ironia. Outros aspectos importantes
que interessam à análise do poema, mas que ultrapassam os limites
do presente capítulo, tais como o vocabulário, as categorias gramaticais
e a organização sintática, foram apenas mencionados, ao final, de forma
a dar algumas breves indicações de como podem contribuir para a
produção de sentido de um texto poético.

Objetivos
Após o estudo deste capítulo, esperamos que você seja capaz de:

• fazer distinção entre linguagem direta e linguagem figurada;


• reconhecer que o que determina se um texto é poético ou não
só pode ser decidido ao nível do texto e não ao nível da palavra
ou expressão;
• identificar as modalidades de palavras figuradas;
• explicar como se efetua a transfiguração da realidade em imagens;
112 UNIUBE

• explicar o mecanismo da metáfora;


• explicar a natureza da metáfora;
• caracterizar a metonímia, a sinédoque; a antítese, o paradoxo e
a ironia.

Esquema
4.1 Linguagem direta e linguagem figurada
4.2. As modalidades de palavras figuradas
4.2.1 Comparação ou símile
4.2.2 Metáfora
4.2.3 O mecanismo da metáfora
4.2.4 A natureza da metáfora
4.3 Outras figuras
4.3.1 Metonímia e sinédoque
4.3.2 Excurso: predominância metafórica e predominân-
cia metonímica
4.3.3 A antítese e o paradoxo; a ironia
4.4 O vocabulário, as categorias gramaticais e a organização
sintática
4.5 Conclusão

4.1 Linguagem direta e linguagem figurada


Vamos iniciar propondo a você um exercício de reflexão. Leia a passagem que
segue (extraída do livro de Danziger e Johnson, de 1974, e adaptada aos nos-
sos propósitos) e, depois, responda ao que se pede.

PARADA PARA REFLEXÃO

A poesia é geralmente associada àquela “dicção poética” especial por meio da qual
os peixes se convertem na “piscosa tribo” e os pássaros em “bando emplumado”, e
em que os ratos não podem ser mencionados a não ser sob o disfarce de “a pestilenta
raça bigoduda”. Nesta mesma linha de raciocínio, Lorde Chesterfield explicou ao seu
UNIUBE 113

filho que, em linguagem corrente, dizemos “a alvorada” ou “o nascer do dia”; mas,


em poesia, diz-se “a Aurora desdobrou seu róseo manto”.

Você deve ter percebido que aí se estabelece uma relação entre linguagem
direta e linguagem corrente, de um lado, e, de outro, entre linguagem figurada
e linguagem poética. Para facilitar, poderíamos representar esta relação da
seguinte forma:

Linguagem direta Linguagem figurada


=
Linguagem corrente Linguagem poética

O que você acha desta relação? Concorda com ela?

Certamente, você deve ter percebido que a relação não pode ser colocada
nestes termos. Trata-se aí de uma grosseira simplificação. Sabemos hoje que
a linguagem direta e a linguagem figurada podem, ambas, manifestar-se tanto
na linguagem corrente como na linguagem poética. A linguagem figurada não
está restrita à linguagem poética nem a linguagem direta está confinada à lin-
guagem corrente. Na poesia, o poeta pode perfeitamente utilizar as expressões
“peixes” e “pássaros” e não, necessariamente, as expressões figuradas que lhe
correspondem. O próprio Lorde Chesterfield, iludido por esta distinção, acaba
colocando em evidência a fragilidade desta: não percebeu que as expressões
“alvorada” e “nascer do dia” são expressões figuradas, tanto quanto “a Aurora
desdobrou seu róseo manto”, e podem ser usadas perfeitamente na poesia.
Como você terá oportunidade de observar, não é a palavra ou a expressão em
si mesma, utilizada na poesia, que determina se o texto é poético ou não; isso
é decidido ao nível do texto como um todo.

Este foi talvez o grande erro de Jean Cohen ao analisar a linguagem poética
(1974). Este autor também entendeu que a linguagem figurada estaria restrita
à poesia. Assim, a poesia se definiria a partir do uso da linguagem figurada: “O
fato poético — diz ele — começa a partir do momento em que o mar é chamado
‘teto’ e os navios ‘pombas’”. (COHEN, 1974, p. 40). Em outro momento, frisa:
“A lua é poética como ‘rainha da noite’ ou como ‘foice de ouro’; é prosaica como
‘o satélite da Terra’”. (COHEN, 1974, p. 36.) Ora, isso excluiria do domínio poé-
114 UNIUBE

tico muito da poesia de todos os tempos e, sobretudo, grande parte da poesia


moderna, porque o emprego da palavra no seu sentido direto é uma tendência
dos poetas modernos. Basta lembrar, por exemplo, um poema de Manuel Ban-
deira — denominado, coincidentemente, “Satélite” —, em que o mesmo busca a
expressão prosaica: refere­‑se à lua, não como “o golfão de cismas”, ou “o astro
dos loucos e dos enamorados”, mas como “tão­‑somente/Satélite”. O que Cohen
não percebeu é que se pode fazer poesia com expressões prosaicas. Como, às
vezes, a palavra já vem revestida das muitas associações que o tempo lhe atribui,
o poeta pode querer desvencilhá­‑la dessas conotações “poéticas” (ou “atribuições
românticas”, como ele próprio diz) em busca de seu sentido próprio. Arrigucci
(1983, p. 106) refere­‑se ao “desejo de despojamento e re-
dução ao essencial”, característico de Bandeira, ao falar de Plúmbeo
seu “estilo humilde” (servo humilis). Segundo o crítico, o
poeta busca “despoetizar a expressão”, no sentido de Cor de chumbo,
cinzento.
“desmetaforizá­‑la”. (ARRIGUCCI, 1983, p. 108.) Leia o
poema e perceba você mesmo(a) de que forma isso se dá, Baça
com mais detalhes.
Opaca.
Satélite
“... golfão de cismas,
O astro dos loucos e
Fim de tarde dos enamorados.”
No céu plúmbeo
A lua baça Colagem de versos do
Paira poema “Plenilúnio”, de
Muito cosmograficamente Raimundo Correia.
Satélite.
Mais­‑valia

Desmetaforizada, Termo de linguagem


Desmitificada, técnica, empregado na
Despojada do velho segredo de melancolia, teoria econômica do
Não é agora o golfão de cismas, marxismo para
O astro dos loucos e dos enamorados. caracterizar a ideia de
lucro dos capitalistas;
Mas tão­‑somente é a diferença entre o
Satélite. valor dos bens
produzidos pelos
Ah Lua deste fim de tarde, operários e os salários
que eles recebem. No
Demissionária de atribuições românticas, contexto, significa que
Sem “show” para as disponibilidades sentimentais! o poeta encontra­‑se
fatigado do que está a
Fatigado de mais­‑valia, mais, ou seja, do que
Gosto de ti assim: excede o objeto
considerado em si
Coisa em si, mesmo, vale dizer, as
— Satélite. conotações atribuídas
(BANDEIRA, Manuel, 2004.) ao significante lua.
UNIUBE  115

Assim, o poeta, de um modo geral, faz uso das palavras em sentido figurado e
em sentido próprio. Ora, como os dois tipos de linguagem — a linguagem direta
e a linguagem figurada — podem ocorrer na poesia, devemos conhecê­‑las me-
lhor. Serviu­‑nos de base, entre outros textos importantes de vários autores,
principalmente o trabalho desenvolvido por Antonio Candido em O estudo ana-
lítico do poema (1996), sob a designação geral do que ele chama “as unidades
expressivas” e que constituem a linguagem poética propriamente dita.

Na linguagem direta, as palavras são usadas no seu sentido próprio, sem que
haja alguma alteração do conceito a transmitir. A linguagem é usada sem nenhum
tipo de distorção de sentido. Quando a palavra é empregada no sentido usual, da
forma como é habitualmente entendida por todos os membros de uma comunidade,
dizemos que ela tem um sentido próprio, também chamado denotativo.

É o que ocorre quando dizemos, por exemplo, que “a investigação está sendo
realizada com extrema rapidez”. Ou quando dizemos “minha irmã é bondosa”.

Mas a palavra pode sugerir ou evocar, por associação, outras ideias. Se afir-
marmos que “a investigação caminha a passos largos”, ou “minha irmã é um
anjo”, neste caso, dizemos que as palavras foram usadas em sentido figurado.
Nesses exemplos ocorreu uma transferência de sentido; os atributos de uma
palavra são transmitidos de uma palavra ou categoria de palavras para outras.
Em suma: criam­‑se metáforas, isto é, transferências de sentido.

Sentido figurado é, assim, aquele que as palavras ou expressões adquirem em


situações particulares de uso. A palavra ou expressão tem sentido figurado
quando seu significado foi de alguma forma alterado em relação ao seu uso
habitual, ou seja, quando ela é usada em sentido diferente daquele que lhe é
próprio. A linguagem figurada envolve algum tipo de distorção de sentido, ou
seja, atribuímos a uma palavra ou expressão um significado ou atributo que, em
princípio, pertence a outra.

Os exemplos citados são extraídos de situações do dia a dia. Deparamo­‑nos


com exemplos semelhantes a todo momento. Na verdade, é comum a utilização
de metáforas na linguagem cotidiana. É praticamente impossível falarmos, na
linguagem corrente, sem recorrer a metáforas. “A própria palavra figura — diz
Ernesto Sábato (apud TREVISAN, 2002, p. 74) —, já é uma figura. É impossível
falar ou escrever sem metáforas, e quando parece que o fazemos é porque se
tornaram tão familiares que são invisíveis”. Já Aristóteles (Retórica, livro III)
observara que “não há ninguém que na conversação corrente não se sirva de
metáforas”. (apud MOISÉS, 1974, p. 327.)
116 UNIUBE

SAIBA MAIS

O termo “metáfora” é usado, por vezes, como sinônimo de “figura”. Isso se explica
porque a metáfora é a principal figura, ou o principal tropo, que serve de base, por
assim dizer, a todos os outros. Tanto o seu nome como a sua definição correspondem
à de tropo. Por isso costuma-se dizer indistintamente figura ou metáfora.

Candido (1996, p. 70) observa que “o povo, como é fácil verificar, sobretudo no
campo, tem inclinação acentuada para a linguagem metafórica, principalmente
sob a forma de comparação”. E cita o famoso dito de Boileau, para quem o ar-
senal mais rico de imagens não era a literatura, mas a fala da plebe de Paris no
Mercado Central “les Halles”. Frisa, depois, que as pessoas cultivadas usam
menos frequentemente a comparação intencional, mas falam, incessantemente
por transferências de sentido, sem perceberem.

Assim, mesmo em situações cotidianas mais formais, em que as pessoas usam


a linguagem de uma forma mais consciente e deliberada, vamos encontrar o
uso de linguagem figurada. Este tipo de linguagem pode ser usado com grande
vantagem em qualquer tipo de texto, inclusive em textos científicos. É o que se
pode observar no texto de Claude Lévi-Strauss a seguir. O antropólogo, ao
assinalar a originalidade da narrativa mítica em relação a todos os outros fatos
linguísticos, e, particularmente, em relação à poesia, expressou-se recorrendo,
ao final, à linguagem figurada (1970, p. 242):

O lugar do mito, na escala dos modos de expressão linguística,


é oposto ao da poesia [...]. A poesia é uma forma de linguagem
sumamente difícil de ser traduzida para uma língua estrangeira,
e qualquer tradução acarreta múltiplas deformações. Ao con-
trário, o valor do mito como mito persiste, a despeito de qual-
quer tradução [...]. O mito é linguagem; mas uma linguagem
que tem lugar em um nível muito elevado, e onde o sentido
chega, se é lícito dizer, a decolar do fundamento linguístico
sobre o qual começou rolando.

Esta mesma metáfora (“decolar”) foi usada por Antonio Candido (1996, p. 73).
Ao referir-se à incapacidade do poeta Mário de Andrade, principalmente em
Losango cáqui, de fazer o sentido geral figurado se desprender do prosaísmo
de cada palavra, o crítico diz: “A poesia em tais casos, não decola, — no sentido
de que um avião não decola”.
UNIUBE  117

Assim, a linguagem figurada não é sempre espontânea. Esta representa apenas


um modo normal da expressão humana. A linguagem figurada pode ser também
intencional, elaborada, construída com intenção definida, visando a um deter-
minado efeito. Na linguagem corrente, não se manifesta apenas a linguagem
figurada espontânea, mas também a linguagem figurada intencional. Já na
poesia, a linguagem figurada manifesta­‑se sempre de forma intencional.

Para nós importa saber que as duas modalidades de expressão se fazem pre-
sentes também na poesia. O poeta faz uso das palavras em sentido próprio e
em sentido figurado. Mas, tanto em um caso como no outro, usa as palavras de
um modo diferente do que ocorre na linguagem corrente. As palavras em sentido
próprio, como observou Candido (1996), são geralmente dirigidas pelo poeta
conforme um intuito que desloca o seu sentido geral; as palavras com sentido
figurado são usadas com um senso de pesquisa expressional, de criação, de
beleza, exploradas sistematicamente, o que lhes confere uma dignidade e um
alcance diversos dos que ocorrem na fala diária.

Assim, mesmo quando faz uso das palavras em sentido próprio, o poeta acaba
produzindo linguagem figurada. O estatuto das palavras se altera. Esta alteração
se dá no âmbito mesmo do poema, ou seja, ela ocorre não ao nível das palavras,
mas ao nível do poema como um todo. A sequência de palavras ou o poema
todo se apresenta como uma superimagem.

Há um poema de Paul Claudel (apud DUFFRENNE, 1969, p. 48­‑49), sua 4a


grande ode, que expressa o que estamos dizendo, de modo muito interessante.

As palavras que emprego,


São as palavras de todos os dias, e no entanto não as mesmas
Nos meus versos não encontrareis rimas ou qualquer sortilégio.
São vossas próprias frases. Dentre vossas frases não há nenhuma
que não saiba retomar!
Estas flores são vossas flores e dizeis que não as reconheceis.
E estes pés são vossos pés, mas eis que caminho
sobre o mar e calco suas águas em triunfo!
(CLAUDEL, Paul, apud DUFFRENNE, 1969.)

Les mots que j’emploie,


Ce sont les mots de tous les jours, et ce ne sont point des mêmes!
Vous ne trouverez point de rimes dans mes vers ni aucun sortilège.
Ce sont vos phrases mêmes. Pas aucune de vos phrases que je ne sache
reprendre!
Ces fleurs sont vos fleurs et vous dites que vous ne les reconnaissez pas.
Et ces pieds son vos pieds, mais voici que je marche
sur la mer et je foule les eaux de la mere en triomphe!
118 UNIUBE

Podemos pensar até mesmo em um caso extremo: pode ocorrer de o poeta não
usar uma só palavra figurada, mas construir de tal modo o texto que as palavras
em sentido próprio tenham seu estatuto alterado, produzindo um todo figurado,
uma outra realidade diferente do que as palavras exprimem em sentido próprio.
Foi o que fez Manuel Bandeira, no poema a seguir, extraído de Candido
(1996, p.72).

O major

O major morreu.
Reformado.
Veterano da guerra do Paraguai.
Herói da ponte de Itororó.

Não quis honras militares.


Não quis discursos.

Apenas
À hora do enterro
O corneteiro de um batalhão de linha
Deu à boca do túmulo
O toque de silêncio.
(BANDEIRA, Manuel, apud CANDIDO, 1996, p. 72.)

Este poema de Manuel Bandeira é um exemplo excelente de como o poeta pode


produzir um texto utilizando somente palavras em seu sentido próprio (salvo a
metáfora comum “boca do túmulo”). Poder­‑se­‑ia dizer que este exemplo situa­‑se
naquele exato limite em que a poesia confina com a prosa, pois mais parece
prosa disposta em linhas, como versos. No entanto, é um poema, como bem
acentuou Candido (1996, p. 73):

Da secura simples das palavras diretas, deste momento fixado


com laconismo, sem um só qualificativo propriamente dito, pois
os adjetivos podem ser tomados como substantivos, — sai
uma emoção de dignidade e de simplicidade heroica. O sentido
geral do poema é figurado, talvez um símbolo, enquanto o
sentido de cada palavra é próprio.

Esse mesmo Manuel Bandeira é autor de um outro exemplo limítrofe entre a


prosa e a poesia, o admirável “Poema tirado de uma notícia de jornal”, um dos
poemas mais fortes e pessoais do poeta, na opinião de Mário de Andrade:

João Gostoso era carregador de feira­‑livre e morava no morro


da Babilônia num barracão sem número
Uma noite ele chegou no Bar Vinte de Novembro
UNIUBE  119

Bebeu
Cantou
Dançou
Depois se atirou na Lagoa Rodrigo de Freitas e morreu afogado.
(ANDRADE, Mario de, apud ARRIGUCCI, 1983, p.116.)

Aliás, esse tipo de poema — exatamente por se situar nesse limite de extraor-
dinária importância, o limite entre a prosa e a poesia — tem sido objeto de grande
interesse por parte dos estudiosos, sobretudo quando estão no encalço da lite‑
rariedade. Quem soube tirar proveito desse tipo de situação foi Jonathan Culler.
Veja o que ele diz (1995, p. 54­‑55):

Se pegarmos num naco de prosa jornalística e o dispusermos


na página em forma de poema, veremos transparecer certas
qualidades que, estando embora no texto, são função das
novas convenções que se lhe aplicam.

E cita, em seguida, para ilustrar, o exemplo que ele encontrou em Genette (1969,
p. 150), mas que, na verdade, foi inventado por Jean Cohen (1966), muito se-
melhante àquele citado há pouco, de Bandeira:

Ontem na Nacional sete


Um automóvel
Que circulava a cem à hora lançou­‑se
Contra um plátano
Nenhum dos quatro ocupantes
Sobreviveu.
(COHEN, 1966, p. 16.)

E conclui:

O fait divers muda de natureza. “Ontem” deixa de se referir a


uma única data e passa a designar todos os ontens, conotando,
por conseguinte, um acontecimento habitual, não extraordiná-
rio. “Lançou­‑se” adquire uma nova intensidade, como se o
automóvel tivesse vontade própria, e tornam­‑se audíveis, em
“plátano”, as ressonâncias do embate. O estilo jornalístico e a
escassez de pormenores podem mesmo indicar uma atitude
de resignação. A um outro nível, poderíamos descortinar na
escolha do tema um comentário sobre o lirismo dos nossos
dias, onde a tragédia assume esta forma banal.
120 UNIUBE

SAIBA MAIS

Fait-divers

É um termo usado no jargão jornalístico para designar notícias diversas, geralmente


com um toque de bizarrice. São aquelas notícias de catástrofes, acidentes, casos de
polícia, enfim, assuntos do cotidiano que despertam nossa curiosidade mórbida, mas
que necessariamente não têm grande importância.

Vejamos, agora, um último exemplo de autoria de Antônio Gedeão, poeta por-


tuguês:

Lição sobre a água

Este líquido é água.


Quando pura
é inodora, insípida e incolor.
Reduzida a vapor,
Ofélia
sob tensão e a alta temperatura,
move os êmbolos das máquinas, que, por isso, Alusão a Ofélia,
se denominam máquinas de vapor. personagem da peça
Hamlet, de
É um bom dissolvente. Shakespeare. Esta
amava Hamlet e,
Embora com exceções mas de um modo geral, desesperada porque o
dissolve tudo bem, ácidos, bases e sais. próprio amado matara
Congela a zero graus centesimais seu pai, morreu
e ferve a 100, quando a pressão normal. afogada.

Foi nesse líquido que numa noite cálida de Verão, Nenúfar


sob um luar gomoso e branco de camélia,
Planta aquática da
apareceu a boiar o cadáver de Ofélia família das ninfáceas.
com um nenúfar na mão.
(GEDEÃO, Antonio, 2010.)

SAIBA MAIS

Antônio Gedeão

Pseudônimo de Rómulo Vasco da Gama de Carvalho (1906–1997). Licenciado em


ciências físico-químicas pela Universidade do Porto, foi professor, pedagogo e histo-
riador da ciência. Contemporâneo dos poetas da Presença, foi apenas em 1956 que
UNIUBE 121

publicou o seu primeiro livro de poemas, Movimento perpétuo. Uniu, de forma exem-
plar, através de sua obra, a ciência e a poesia, como se pôde ver por esta “Lição
sobre a água”. De sua leitura fica a impressão de que é o cientista que fala nas duas
primeiras estrofes, para, na estrofe final, ceder a voz ao poeta.

Este poema é outro bom exemplo de como se pode fazer poesia com palavras
e expressões que, em si mesmas, nada têm de poéticas, mas que acabam
adquirindo uma nova dimensão, graças ao contexto. As duas primeiras estrofes
são escritas numa linguagem que dificilmente esperaríamos encontrar em um
poema. Veja, no entanto, como a leitura da terceira estrofe nos obriga a reler as
duas primeiras de uma forma modificada, assumindo as palavras e expressões
uma dimensão igualmente conotativa ou figurada.

SINTETIZANDO...

O essencial do que vimos até aqui foi bem sintetizado por Ferreira Gullar. (Apud
GESSA, 2007, p. 170-1.) Segundo este crítico, não existem elementos poéticos em
si mesmos, assim como não existem palavras por si mesmas poéticas. Todos os
elementos da língua são e não são poéticos, dependendo da função específica que
exercem dentro de determinado contexto verbal. A poesia é fruto, portanto, de um
processo complexo do qual participam todos os elementos do poema. É o processo
de elaboração da linguagem pelo poeta que transfigura os elementos verbais e faz
com que neles aflore a intensidade da expressão poética. As palavras tornam-se
poéticas em um determinado contexto à medida que estabelecem relações conectivas,
sintáticas, gramaticais, semânticas, sonoras etc.

4.2 As modalidades de palavras figuradas

O que são imagens?


122 UNIUBE

De acordo com Candido (1996), imagem, em sentido amplo, é o nome que


damos a toda figuração de sentido, que faz as palavras dizerem algo diferente
de seu estrito valor semântico.

Os processos imagísticos básicos, que permitem a transfiguração da realidade


em poesia, são: a comparação (ou símile), a metáfora, a alegoria e o símbolo.

Como se efetua a transfiguração da realidade em imagem?

Os processos transfiguradores da realidade jogam sempre com


dois elementos — um termo real e outro ideal. Designamos
o primeiro como um elemento do mundo real que tocou o es-
pírito do poeta; e o segundo, àquele elemento que ele vai
buscar em sua imaginação criadora para expressar a emoção
sentida e comunicá-la em palavras
(COELHO, 1980, p. 75-76, grifo nosso.)

Vamos designar por A o termo real e B o termo ideal.

Com estas informações, podemos iniciar nosso estudo dos processos imagís-
ticos.

4.2.1 Comparação ou símile

A=B

Neste caso, ambos os termos estão unidos por uma partícula comparativa:
“como”, “tal como”, “assim como”, “tal qual” etc.

EXEMPLIFICANDO!

Veja o seguinte exemplo:

(Em certas tardes nós subíamos


ao edifício. A cidade diária, (A)
COMO um jornal que todos liam, (B)
ganhava um pulmão de cimento e vidro).
(MELO NETO João Cabral de, 1994, p. 69-70.)
UNIUBE 123

Termo real = a cidade diária

Termo ideal = um jornal que todos liam

Conectivo = como

Outras expressões podem desempenhar o papel de partícula comparativa: pa‑


recer, semelhava, lembrava, evocava, era igual. Veja dois exemplos, presentes
no poema “O cacto”, de Manuel Bandeira:

Aquele cacto LEMBRAVA os gestos desesperados da estatuária:


Laocoonte constrangido pelas serpentes,
Ugolino e os filhos esfaimados.
EVOCAVA também o seco Nordeste, carnaubais, caatingas...
[...]
(BANDEIRA, Manuel, apud CANDIDO, 1996.)

Como se vê, na comparação, a analogia aparece claramente expressa, ou seja,


a transferência de sentido se dá de modo explícito, é uma operação consciente,
que depende de uma intenção explícita. É forçoso concluir daí que a compara-
ção é um processo primário, pois, como bem observou Maria Luiza Ramos (1974,
p. 109-110), nela não se verifica a abstração de qualquer dos elementos da
estrutura nominal:

Por não se estabelecer a transmutação mágica, e, principalmente,


por estar um termo da relação subordinado ao outro, o processo
comparativo é menos sutil que o metafórico e menos rico em po-
tencial estético.

Foi o que também reconheceu Candido, a esse respeito (1996, p. 78):

no processo comparativo há um controle maior, ou mais aparente,


da lógica; no processo metafórico, é como se a transferência se-
mântica se fizesse espontaneamente, sem a intervenção da minha
vontade, e portanto, é mais ‘poética’, mais ‘visceral’, mais ligada
a uma necessidade profunda de expressão, parecendo ‘criar’ uma
realidade diversa, que se apresenta na sua integridade sem justi-
ficativa, sem desculpas, sem recurso a um elemento discursivo de
prova que nos arraste para o universo prosaico da razão e da
lógica.
124 UNIUBE

4.2.2 Metáfora

Segundo Quintiliano, metáfora é brevior similitudo, ou seja, uma comparação


abreviada, donde ser chamada também de comparação não expressa.

Metáfora quer dizer “transposição”: o significado de uma palavra é usado em


um sentido que não lhe pertence inicialmente. Como diz Kayser (1967, p. 189),
na expressão “o mar da vida”, não devemos pensar no elemento aquoso, sal-
gado. O que se destaca aqui é o movimento, o perigo e a incomensurabilidade,
o tertium comparationis.

SAIBA MAIS

Tertium comparationis

São os traços semânticos que dois termos têm em comum e que tornam possível a
comparação entre eles. É a área ou zona de semelhança ou de interseção existente
entre os termos.

Ou, dito de forma esquemática:

MAR = água, salgada

VIDA = período de existência de um ser, idealmente extenso e que compreende


uma série de acontecimentos e de circunstâncias

Tertium comparationis: movimento, perigo, incomensurabilidade (comum aos


dois)

A metáfora estabelece uma relação de similaridade entre duas ideias ou entre


dois objetos, ou seja, condiciona sempre uma associação de âmbito paradig-
mático, trabalha no eixo das similaridades. De modo semelhante ao que ocorre
na “teoria dos conjuntos”, podemos dizer que os traços semânticos das duas
ideias comparadas entram em interseção na metáfora.

Para a produção da metáfora, os termos podem ser combinados de três manei-


ras: A, B; A é B e B.

A, B ou A é B
UNIUBE  125

Neste caso, o termo real (A) recebe o termo ideal (B) como aposto ou como
predicativo.

Veja um exemplo em que o termo real (A) recebe o termo ideal (B) como aposto:

Muros
O pintor de olho vertical
Olha fixamente para o muro
Descobre pouco a pouco
Uma perna um braço um tronco
A cara de uma mulher
Uma floresta um peixe uma cidade
Uma constelação um navio
Muro, nuvem do pintor.
(MENDES, Murilo, 2010.)

termo real = Muro

termo ideal = nuvem do pintor (que é, sintaticamente, aposto do termo real,


“Muro”)

Às vezes, pode ocorrer de esta estrutura sintática do aposto não estar muito
clara, pelo fato de o termo ideal estar distante do termo real, distância esta não
abonada pela sintaxe. Isso, porém, não implica numa classificação em outra
categoria. Até porque, no caso em questão, a distância se dá em relação ao
núcleo do termo real, “Mar”, sendo possível considerar o termo real de uma
forma ampliada: “Mar, belo mar selvagem/ das nossas praias solitárias”. Eis o
exemplo:

Mar, belo mar selvagem


das nossas praias solitárias! Tigre
a que as brisas da terra o sono embalam,
a que o vento do largo eriça o pelo.
(CARVALHO, Vicente, 2010.)

A nosso ver, este exemplo não é estruturalmente diferente do anterior, em que


os termos aparecem separados por vírgula (A, B). Aqui, a expressão Tigre,
que é o termo ideal, é aposto do termo real Mar, seja este considerado sozinho
ou acompanhado de seu apêndice.
126 UNIUBE

Vejamos agora um exemplo em que o termo real (A) recebe o termo ideal (B)
como predicativo:

Amor é fogo que arde sem se ver;


É ferida que dói e não se sente;
É um contentamento descontente;
É dor que desatina sem doer;
(CAMÕES, Luís Vaz de, 2010.)

termo real = Amor

termos ideais = “fogo”, “ferida”, “contentamento” e “dor” (que, sintaticamente,


são predicativos do termo real, “Amor”)

Observação: estes dois casos (A, B e A é B) são classificados por alguns au-
tores, como é o caso de Nelly Novaes Coelho (1980, p. 76­‑7), como imagem.

Nestes casos, como o poeta trabalha com os dois termos claramente expressos,
a metáfora é interpretada com facilidade. O mesmo acontece naqueles casos
em que está presente um elemento pertencente ao termo real, como nas
­expressões “o sol de teus cabelos” (= o loiro dos cabelos), “as pérolas de sua
boca” (= dentes), “O rio que nos leva para a morte” (= vida), “O veludo de
suas mãos” (= a maciez). Quando alguém diz, ao referir­‑se à claridade do dia
ou à luz do sol, por exemplo, que “a luz inunda todo o vale”, está produzindo
uma metáfora desse tipo, facilmente compreensível: todos entendem que ele
está comparando a torrente de luz com o grande fluxo de águas do dilúvio. ­Antero
de Quental procedeu de forma semelhante ao criar a metáfora do primeiro verso
do poema “Lamento”.

Lamento

Um dilúvio de luz cai da montanha:


Eis o dia! eis o sol! o esposo amado!
Onde há por toda a terra um só cuidado
Que não dissipe a luz que o mundo banha?
(QUENTAL, Antero de, 2010.)

Quando ocorre de não estar presente um elemento pertencente ao termo real,


aparecendo apenas o termo ideal (B), a interpretação fica mais difícil e, às vezes,
até mesmo impossível. Neste caso, como bem frisou Nelly Novaes Coelho
(1980), o poema fica aberto às mais variadas interpretações, sem que se possa
decidir qual é a mais verdadeira (a não ser que o próprio poeta o elucide). Um
UNIUBE  127

exemplo já clássico deste tipo de metáfora é o poema de Carlos Drummond de


Andrade, “No meio do caminho tinha uma pedra”, texto que você certamente já
conhece. Se você já o leu, tente lembrar­‑se de que se trata de um texto em que
o poeta se limita quase exclusivamente a repetir a frase que lhe serve de título,
apenas variando a ordem dos termos.

Qual é o real significado dessa “pedra” e desse “caminho”? — pergunta a autora.


E ela própria responde:

Centenas de interpretações já foram construídas na tentativa


de desvendar o poema. Serão obstáculos à ação do homem?
Será o enigma da existência? Ou o poema registra apenas
signos reais? O caminho seria simplesmente um caminho, por
onde ia o poeta quando deparou com aquela pedra obstruindo­
‑lhe a passagem? Diante da reflexão existencial que caracte-
riza a poesia drummondiana é, no entanto, difícil não sentirmos
naquele “caminho” e naquela “pedra” densos signos metafóri-
cos carregados de significações ocultas. O que importa, afinal,
é que o poema continua vivendo, entregue a cada um de nós,
oferecendo a cada um o que quisermos encontrar nele. (COE­
LHO, 1980, p. 78.)

4.2.3 O mecanismo da metáfora

Assim expressou­‑se Othon M. Garcia (1986, p. 86) para explicitar o mecanismo


da metáfora:

Poderíamos figurar o processo metafórico como dois círculos


secantes de igual diâmetro, superpostos de tal maneira que a
área de um não cubra inteiramente a do outro. O primeiro
círculo representa o plano real, quer dizer a coisa A, a ideia
nova a ser expressa ou definida; o segundo, o plano imaginá-
rio ou poético, isto é, a coisa B, aquela em que a imaginação
do emissor percebeu alguma relação ou semelhança com a
coisa A:

Tomemos o exemplo sugerido por Garcia, um verso de Castro Alves:

A queimada, cachoeira de Paulo Afonso

Incêndio — leão ruivo, ensanguentado.

(ALVES, Castro, apud GARCIA, 1986.)


128 UNIUBE

Plano real: Plano imaginário: Área de semelhança entre


Incêndio (A) leão ensanguentado(B) os dois planos (A e B)

É o autor que explica:

A cor avermelhada das labaredas e a ideia de ímpeto destrui-


dor e mortífero, implícita em incêndio, sugeriram ao poeta,
evocaram-lhe, a imagem de leão (ímpeto destruidor e mortífero)
ruivo (avermelhado) ensanguentado (violência, destruição,
morte). (GARCIA, 1986, p. 87.)

4.2.3.1 A alegoria

A alegoria, segundo o Kleines Literarisches Lexikon — Pequeno Dicionário Li-


terário — (apud CANDIDO, 1996, p. 79), é a representação corporificada de um
conceito abstrato, por meio de um signo, uma descrição, uma pequena sequên-
cia narrativa.

Veja o exemplo a seguir.

Sahara Vitae

Lá vão eles, lá vão!. O céu se arqueia


Como um teto de bronze infindo e quente,
E o sol fuzila e, fuzilando, ardente
Criva de flechas de aço o mar de areia.

Lá vão, com os olhos onde a sede ateia


Um fogo estranho, procurando em frente
Esse óasis de amor que, claramente,
Além, belo e falaz, se delinea.

Mas o simum da morte sopra: a tromba


Convulsa envolve-os, prosta-os; e aplacada
Sobre si mesma roda e exausta tomba...
UNIUBE  129

E o sol de novo no ígneo céu fuzila...


E sobre a geração exterminada
A areia dorme, plácida e tranquila.
(BILAC, Olavo, apud CANDIDO, 1959, p. 18-19.)

Este poema, que foi inspirado em ”La caravane”, do seu mestre Théophile Gau-
tier, é um ótimo exemplo de alegoria. Nele, “a alegoria é clara”, diz Candido, na
análise que fez deste poema (1987, p. 137­‑143). O poema apresenta a vida
como luta do homem contra as adversidades de um mundo indiferente e que
deixa perceber três momentos claramente delineados: nos dois quartetos, uma
caminhada, no primeiro terceto, uma tempestade que tudo destrói, no último
terceto, um cenário, como se apresenta de novo, após a tormenta: tranquilo e
sereno. Não se trata aqui simplesmente da descrição de uma tempestade que
se abateu sobre uma determinada região desértica. Não — e o próprio título
no­‑lo assegura — trata­‑se aqui de uma representação sintética da própria tra-
jetória do homem na vida até a morte, restando, ao final, apenas um cenário
vazio. Outro poema, muito próximo deste pela temática e que pode ser lido como
uma alegoria é o soneto, também parnasiano, “A cavalgada”, de Raimundo
Correia. (ver o capítulo “Estudo analítico do poema: procedimentos de poetiza-
ção do nível fônico”). Mas, nesse poema, o caráter alegórico é menos nítido.
Trata­‑se mais de uma alternativa de leitura do que da natureza alegórica do
próprio texto.

Conforme observa Nelly Novaes Coelho (1980, p. 81),

na transfiguração alegórica já não se trata de um termo real,


mas de um todo real (A) que se oculta sob um todo ideal (B).

Referindo­‑se exatamente ao mesmo exemplo, diz a autora que temos, no plano


literal, a visão de uma caravana que atravessa o deserto e que é exterminada
pelo simum, vento muito quente e avassalador que sopra do centro da África
para o norte. Mas o valor essencial de sua mensagem poética repousa em seu
plano significativo transliteral: a visão da vida humana como uma dura e sofrida
caminhada para a morte.

Assim, na alegoria, o plano literal vale por si, mas só adquire a sua real signifi-
cação quando transposto para o plano figurado. A alegoria é muitas vezes de-
finida como uma metáfora ampliada ou desdobrada, ou, como dizia Quintiliano,
no Institutiones Oratoriae (apud CEIA, 2007), uma “metáfora continuada que
mostra uma coisa pelas palavras e outra pelo sentido”. A metáfora trabalha com
termos isolados; a alegoria, estende­‑se a expressões ou textos inteiros. Cícero
fez idêntico paralelo no De Oratore: a alegoria é vista como um conjunto ou
sequência de metáforas. (apud CEIA, 2007.)
130 UNIUBE

Outro exemplo de alegoria:

— A Dama Branca que eu encontrei,


Há tantos anos,
Na minha vida sem lei nem rei,
Sorriu­‑me em todos os desenganos.
[...]
Essa constância de anos a fio,
Sutil, captara­‑me. Imaginai!
Por uma noite de muito frio,
A Dama Branca levou meu pai.
(BANDEIRA, 2004, p. 56­‑57.)

Por este exemplo, como bem observou Norma Goldstein (1994, p. 65), fica claro
que, na alegoria,

ocorre ocultação de sentido apenas provisoriamente. Ao ter-


minar a leitura do poema, o enigma se desfaz, a alegoria ou
metáfora continuada se esclarece e o leitor percebe qual é a
identidade da “Dama Branca”.

Na alegoria, como frisa Candido (1996, p. 79),

é condição que o conceito visado esteja claramente implícito,


sendo que às vezes é também expresso pelo próprio autor,
como é obrigatório no caso extremo da fábula [...] Quando há
um sentido possível que o poeta não quer deixar claro, ou
quando a representação figurada é breve, sem caráter narra-
tivo, afastando a ideia de fábula, temos o símbolo.

Esquematizando, segundo Candido (1996), podemos dizer que, na alegoria, há:

1. um elemento narrativo embrionário;

2. uma representação descritiva, mais ou menos configurada;

3. uma certa evidência da abstração visada;

4. uma intenção consciente do poeta que se torna clara para o leitor (ocultação
provisória).
UNIUBE 131

SAIBA MAIS

Na prosa, o processo transfigurador alegórico assume formas especiais: o apólogo,


a parábola e a fábula.

4.2.3.2 Símbolo

De um modo geral, o símbolo é uma figura que consiste em atribuir a uma coisa
(ser, objeto) concreta um sentido abstrato. Para Saussure (1959, p. 82),

o símbolo tem como característica não ser jamais completa-


mente arbitrário; ele não está vazio, existe um rudimento de
vínculo natural entre o significante e o significado. O símbolo
da justiça, a balança, não poderia ser substituído por um objeto
qualquer, um carro, por exemplo.

Mas, como observou Garcia (1986), muitos símbolos, entretanto, parecem to-
talmente arbitrários, imotivados, tão sutis e tão distantes são as relações (de
contiguidade, causalidade ou similaridade) entre a coisa e aquilo que ela repre-
senta, dando assim a impressão de resultar de pura e gratuita convenção entre
os membros de uma dada comunidade ou uma dada cultura. É o que acontece,
por exemplo, com as cores, às quais se atribui determinado sentido figurado.

Além disso, há símbolos que são reconhecidos universalmente, outros são


compreendidos dentro de um determinado contexto (religioso, científico, cultu-
ral etc.).

Segundo Wellek e Warren (1962, p. 223 ), “os ‘símbolos’ algébricos e lógicos


são signos convencionais; mas os símbolos religiosos baseiam-se nalguma
relação intrínseca entre o ‘signo’ e a coisa ‘significada’ — relação metonímica
ou metafórica: a Cruz, o Cordeiro, o Bom Pastor”.

Para Nelly Novaes Coelho (1980, p. 81), o símbolo é uma metáfora que se repete
e se universaliza. E cita o seguinte exemplo do corvo, que é símbolo de mau
agouro, do prenúncio da morte, como se pode ver nesta estrofe de Bocage:
132 UNIUBE

Meus olhos, atentai no meu jazigo,


Que o momento da morte está chegando;
Lá soa o corvo, intérprete fado;
Bem o entendo, bem sei, fala comigo.
(BOCAGE, 1984, p. 56.)

O conhecimento dos símbolos é importante, pois pode ocorrer de você estar


analisando um texto em que eles estão presentes. Neste caso deverá estar pre-
parado para interpretá­‑los. Do contrário, deixa de lado aspectos importantes que
não podem ser negligenciados sob pena de comprometer irremediavelmente a
interpretação do texto. Mais uma vez é Antonio Candido quem nos fornece um
exemplo interessante.

Na análise que empreende do poema “Meu sonho”, de Álvares de Azevedo


(apud CANDIDO, 2001, p. 38­‑53), à qual já fizemos referência em nosso capítulo
1 — “Leitura do texto literário: metodologia da leitura crítica” —, foi necessário
que o crítico atentasse para os símbolos presentes no poema, de modo a com-
pletar o percurso analítico. Nota, por exemplo, que o cavalo é símbolo da força
viril na literatura popular e erudita.

O “Eu” que o vê desenfreado, sente remorso (atribuído ao cavaleiro, no verso


7, graças ao desdobramento) porque está desejando praticar, ou efetivamente
praticando, um ato que considera reprovável e merecedor de castigo. Que este
ato seja de sexo, parece claro por causa da conjugação de dois elementos de
valor simbólico em contexto de sonho, isto é, em contexto de mensagem cifrada
cujo código se pode encontrar. Refiro­‑me à “espada sanguenta” (verso 3), órgão
da virilidade, e ao seu correlativo “vale” (verso 9), a que equivaleria de modo
metonímico “trevas impuras” (versos 2 e 13), ambos simbolizando os órgãos
sexuais femininos. De fato, correlacionando estes elementos, é sugestivo que
uma espada ensanguentada, violadora, animada pela força vital do cavalo,
penetre (como numa bainha, em latim vagina) no vale escuro de trevas impuras
(visão depreciativa e pecaminosa da genitália da mulher, a “criança enferma e
doze vezes impura” de um poema de Alfred de Vigny).

Meu sonho

Eu

Cavaleiro das armas escuras,


Onde vais pelas trevas impuras
Com a espada sanguenta na mão?
Por que brilham teus olhos ardentes
E gemidos nos lábios frementes
Vertem fogo do teu coração?
UNIUBE  133

Cavaleiro, quem és? O remorso?


Do corcel te debruças no dorso...
E galopas do vale através...
Oh! da estrada acordando as poeiras
Não escutas gritar as caveiras
E morder­‑te o fantasma nos pés?

Onde vais pelas trevas impuras,


Cavaleiro das armas escuras,
Macilento qual morto na tumba?...
Tu escutas... Na longa montanha
Um tropel teu galope acompanha?
E um clamor de vingança retumba?

Cavaleiro, quem és? — que mistério,


Quem te força da morte no império,
Pela noite assombrada a vagar?

O Fantasma

Sou o sonho de tua esperança,


Tua febre que nunca descansa,
O delírio que te há de matar!...

(AZEVEDO, Alvares de, apud CANDIDO, 2001.)

Cita em apoio à sua opinião o comentário de um psicanalista, (GRODDECK,


apud CANDIDO, 2001, p. 38-53.

A espada é sem dúvida o símbolo mais antigo do atributo viril;


todas as armas o são, mas em particular a espada, como
mostra claramente a sua oposição à bainha, símbolo feminino.

E completa:

À vista de certos traços de autoerotismo na obra de Álvares


de Azevedo, o fato da espada ser representada na mão do
cavaleiro leva a pensar numa fantasia onírica de cunho mas-
turbatório, onde toda a constelação analisada seria projeção
do desejo solitário.
134 UNIUBE

Segundo o autor,

Esta leitura simbólica é confirmada por outros traços que com-


pletam o quadro, porque se ligam ao orgasmo, como “olhos
ardentes” (verso 4), “gemidos nos lábios frementes” (verso 5),
e quem sabe o fogo metafórico, talvez seminal, que arde no
coração e dele transborda (verso 6). O ritmo devido ao ana-
pesto seria, portanto, num plano terceiro e mais fundo, o pró-
prio ritmo do orgasmo — tendo sido galope no primeiro plano,
e ofego de angústia no segundo.

No símbolo, ainda segundo Candido (1996):

1. não há necessariamente elemento narrativo ou descritivo;

2. a abstração é meramente virtual, possível e incerta, nem sempre sendo pos-


sível perceber a intenção do poeta (ocultação permanente);

3. às vezes pode acontecer que esta não exista e o símbolo decorra inconscien-
temente da sua criação.

Candido cita o poema “Canção das duas Índias”, de Manuel Bandeira, como
exemplo de símbolo, em razão de seu mistério, da falta de descrição de qualquer
realidade clara, da ausência de elemento narrativo e onde há uma série de
símbolos parciais de fuga, de alheamento, de devaneio sexual, convergindo
para formar um significado que parece o da utopia amorosa, mas que pode ser
o da impossibilidade de amar realmente:

Entre estas Índias de Leste


E as Índias ocidentais
Meu Deus que distância enorme
Quantos Oceanos Pacíficos
Quantos bancos de corais
Quantas frias latitudes!
Ilhas que a tormenta arrasa
Que os terremotos subvertem
Desoladas Marambaias
Sirtes sereias Medéias
Púbis a não poder mais
Altos como a estrela d’alva
Longínquos como Oceanias
— Brancas, sobrenaturais —
Oh inacessíveis praias!...
(BANDEIRA, Manuel, apud CANDIDO, 1996, p. 80.)
UNIUBE  135

4.2.4 A natureza da metáfora

Antes de iniciarmos a nossa conversa sobre a natureza da metáfora, vamos


fazer uma breve introdução, começando por um fato que aconteceu com o es-
critor e poeta Rubem Alves.

Em As cores do crepúsculo: a estética do envelhecer (2002, p. 25­‑29), este


autor mostra como tomou consciência da velhice. Foi durante um passeio de
bonde, os olhos de uma moça, o seu gesto de gentileza. E foi assim que ele se
descobriu velho, ao ver a sua imagem refletida no espelho dos olhos daquela
moça. Não foi uma experiência agradável. Foi aí que ele começou a procurar
uma metáfora para compreender o envelhecimento. A imagem que lhe veio foi
a do crepúsculo. Esta imagem foi, para ele, uma revelação do que era a velhice.

A velhice é bela como a tarde imóvel. Essa imagem me trouxe


grande alegria. Ela dava conteúdo sensível àquilo que eu
estava sentindo. Agora eu podia falar sobre a velhice sem me
envergonhar. [...] Eu podia então falar sobre a velhice falando
sobre o crepúsculo. (ALVES, 2002, p. 25.)

Concluí: “É isso mesmo. Velhice é crepúsculo”. Por meio dessa


transformação poética ficou fácil para mim falar sobre a velhice:
bastava falar sobre o crepúsculo. Ou falar sobre o outono.
Porque os dois são nomes diferentes para a mesma coisa. [...]
O crepúsculo é o dia chegando ao fim. [...] O outono é o cre-
púsculo do ano. (ALVES, 2002, p. 27.)

Isso ensejou ao escritor uma reflexão sobre o papel da metáfora, com a ajuda
de Fernando Pessoa:

A poesia nasce do desejo de comunicar aos outros uma visão


de beleza. Mas a experiência da beleza é coisa íntima, para
ela não há palavras. ”O que sinto”, dizia Fernando Pessoa, “na
verdadeira substância com que o sinto, é absolutamente inco-
municável; e quanto mais profundamente o sinto, tanto mais
incomunicável é”. Para comunicar o incomunicável o poeta
lança mão então de um artifício: ele diz uma coisa parecida
como o seu sentimento, na esperança de que o outro irá en-
tender. É isso que se chama metáfora: dizer “isso” para comu-
nicar “aquilo”, como na forma litúrgica, essência de toda poesia:
“esse pão é o meu corpo”. (ALVES, 2002, p. 28­‑29.)
136 UNIUBE

Cita depois Gaston Bachelard (apud ALVES, 2002, p. 33-34), a propósito de


uma experiência semelhante. Este, no livro A chama de uma vela, faz uma
meditação sobre a velhice, mas o autor preferiu fazer silêncio. E, em vez de
falar sobre a velhice, falou sobre a chama de uma vela, que é igualmente uma
metáfora.

A vela que se apaga é um sol que morre. A vela morre mais


suavemente que o astro celeste. A chama morre bem: ela morre
adormecendo.

Este o lucro adicional que se obtém com o livro de Rubem Alves: seja relatando
sua própria experiência ou a de outros poetas e pensadores, o autor acaba
compondo um grande elogio à metáfora, destacando a sua importância como
meio de expressão e de comunicação.

CURIOSIDADE

Há pouco tempo, Rubem Alves, em um artigo que aborda novamente o tema da


velhice, “A pior idade” (Folha de S.Paulo, 3 fev. 2009), recusa-se a chamar velhice
de “melhor idade”: “Velhice é quando a gente começa a ser tratado como ‘objeto de
respeito’ e não como ‘objeto de desejo’”, diz. A certa altura de sua argumentação,
saiu-se com essa, e, como não podia deixar de ser, com a ajuda da — indispensá-
vel — metáfora!

“Sugiro um nome diferente para essa idade, que não é ironia, mas poesia: ‘Pessoas
portadoras de crepúsculos no seu olhar”.

Mas vamos adiante.

Você assistiu ao filme O carteiro e o poeta? Nele, há um momento em que, ao


entrar em contato com expressões desse tipo, Mário, o carteiro, dialoga com o
poeta chileno Pablo Neruda:

SAIBA MAIS

Pablo Neruda

Nascido Neftali Ricardo Reyes Basoalto (Parral, 12 de julho de 1904 — Santiago, 23


de setembro de 1973), foi um poeta chileno, um dos mais importantes da língua cas-
UNIUBE 137

telhana do século XX, e cônsul do Chile na Espanha (1934–1938) e no México. Re-


cebeu o Nobel de Literatura, em 1971.

“Mas o que é isso? Metáforas?”, pergunta Mário a Neruda. O poeta lhe responde
que essa palavra difícil de dizer é o que todo mundo faz quando tem que inven-
tar um jeito para falar de algo por intermédio da imagem de uma outra coisa.
Essa figura de linguagem é um veículo e tanto, observa Bernardo Jefferson de
Oliveira (2003, p. 130), lembrando-se do sentido etimológico da palavra, ao
comentar esta passagem do filme. Em grego, meta quer dizer “além” e fora quer
dizer “levar”, “transferir” e “carregar”. É por isso — completa — que no grego
coloquial dos dias de hoje esse é o nome que se dá aos ônibus. Vamos pegar
esta metáfora? — brinca o autor fazendo um trocadilho (que é, por sua vez, uma
modalidade de metáfora).

A metáfora é, de longe, a mais importante e a mais utilizada entre todas as fi-


guras. Isso está relacionado ao fato de ela permitir uma grande liberdade e
caracterizar-se por uma grande amplitude. Esta liberdade e amplitude decorrem,
segundo Candido (1996, p. 88), do caráter subjetivo da relação que ela estabe-
lece entre os objetos:

Ela se baseia na analogia, isto é, na possibilidade de estabe-


lecer uma semelhança mental, e portanto uma relação subje-
tiva, entre objetos diferentes, abstraindo-se os elementos
particulares para salientar o elemento geral, que assegura a
correlação.

Podemos perceber este caráter subjetivo da metáfora com base no poema de


Jorge de Lima, a seguir, do canto I, “Fundação da ilha”, de Invenção de Orfeu
(1952):

A garupa da vaca era palustre e bela,


Uma penugem havia em seu queixo formoso;
E na fronte lunada onde ardia uma estrela
Pairava um pensamento em constante repouso.

Esta a imagem da vaca, a mais pura e singela


Que do fundo do sonho eu às vezes esposo
E confunde-se à noite com a imagem daquela
Que ama me amamentou e jaz no último pouso
138 UNIUBE

Escuto-lhe o mungido — era o meu acalanto,


E seu olhar tão doce inda sinto no meu.
O seio e o ubre natais irrigam-me em seus veios.

Confundo-os nessa ganga informe que é meu canto:


Semblante e leite; a vaca e a mulher que me deu
O leite e a suavidade a manar de dois seios.
(LIMA, Jorge de, 1967, p. 45.)

Neste poema, o poeta propõe uma analogia entre a imagem da vaca e a imagem
da mãe (ou da ama). O poema todo é uma grande metáfora. Trata-se, indiscu-
tivelmente, de uma relação subjetiva. Outras pessoas poderiam objetar a esta
relação, achá-la, se não grosseira, pelo menos de mau gosto, não obstante o
modo carinhoso e cheio de ternura com que o poeta trata a figura da mãe (ou
da ama). Em todo o caso, trata-se aqui de uma relação estabelecida pelo poeta,
e que não está relacionada à natureza dos objetos envolvidos. Poder-se-ia até
mesmo dizer que o poeta usou aqui a figura da vaca como um processo de
singularização, visando a um efeito de estranhamento — no sentido proposto
pelos formalistas russos —, para que nós possamos ver a mãe (ou a ama) por
um novo prisma, até então insuspeitado.

SAIBA MAIS

Singularização

É o processo através do qual se pretende apresentar um objeto como se estivesse


sendo visto pela primeira vez. Viktor Chklovski, formalista russo e autor de um texto
em que trata desse recurso, “A arte como procedimento” (1917), considera este um
dos procedimentos mais importantes da linguagem poética — pois o mesmo produz
“uma sensação do objeto como visão e não como reconhecimento”. (TOLEDO,
1971, p. 45.)

Observa Candido (1996) que outros tropos, como a metonímia, se fundam em


relações objetivas, determinadas pela própria natureza dos objetos. No caso da
metonímia, a relação é objetiva, e não imaginada. No primeiro verso, temos
“garupa”, no segundo verso, “penugem” e “queixo”, e no terceiro, “fronte”. Em
todos estes exemplos há uma relação desse tipo (por sinédoque) entre a parte
e o todo. O “seio” e o “ubre”, no terceiro verso da terceira estrofe, são, também,
partes da mulher e da vaca. Trata-se em todos esses casos de uma relação
objetiva. Já no caso da metáfora há uma relação totalmente arbitrária. Na me-
táfora há uma transferência do sentido de um objeto para outro.
UNIUBE 139

SAIBA MAIS

Antonio Candido (1976, p. 67) percebeu a coexistência da metáfora com a metonímia


nesse poema de Jorge de Lima: “Seria o caso do leite, que para os nuer [povo das
regiões do Alto Nilo] é sinal de atividade econômica e de sobrevivência do grupo, mas
que para nós é geralmente metonímia da maternidade, como num soneto da Invenção
de Orfeu, em que Jorge de Lima assimila oniricamente a sua ama a uma vaca ben-
fazeja, dando um toque quase sobrenatural ao leite que o nutriu”.

Conforme ainda esclarece Candido (1996), esta liberdade e amplitude da me-


táfora são facilitadas pela própria natureza semântica das palavras, que permite
uma certa flutuação de significado. A polissemia cria uma espécie de campo
favorável, e uma espécie de justificativa, ancorada na arbitrariedade do signo
linguístico. Os velhos tratadistas, desde Aristóteles, traçavam limites para a
transposição semântica, a fim de evitar as ousadias e o mau gosto. De um modo
geral, o arbítrio do poeta depende de condições do meio (como a moda literária),
da tradição literária (que lhe oferece exemplos) e, sobretudo, da originalidade
pessoal (que lhe permite juntar novos significados aos significados existentes).
O poema de Jorge de Lima enquadra-se neste terceiro caso.

SAIBA MAIS

“As metáforas não devem ser tomadas de longe, mas de objetos que pertençam a
um gênero próximo ou a uma espécie semelhante, de maneira que se dê um nome
àquilo que até aí não o tinha e veja-se claramente que o objeto designado pertence
ao mesmo gênero.” (Livro III da Retórica apud MOISÉS, 1974, p. 327.)

É por esta razão também que se diz que a metáfora é muito mais radical do que
a comparação, pois suprime-se o termo comparativo. Embora ambas impliquem
numa “mudança de sentido”. Na comparação, observa Candido (1996, p. 89),
a semelhança é estabelecida subjetivamente, mas por meio de um nexo com-
parativo, que preserva a identidade de cada termo. Quando digo “És bela como
a rosa”, temos claramente, de um lado, a ideia de uma mulher, e, de outro, a de
uma rosa, ligados pela expressão comparativa “como”. Mas quando digo “Lírio
do vale oriental, brilhante” (Castro Alves, apud CANDIDO, 1996, p. 89), é como
se a realidade da mulher se transpusesse para uma realidade outra, sem qual-
quer nexo lógico.
140 UNIUBE

O primeiro autor a tratar da metáfora foi Aristóteles. Para ele, a comparação (ele
diz “imagem”) e a metáfora repousavam sobre o mesmo processo mental; mas
já diferençava claramente o seu grau de intensidade num caso e no outro:

A imagem é igualmente uma metáfora; entre elas há apenas


ligeira diferença. Quando Homero diz de Aquiles “que se arre-
messou como um leão” é uma imagem; mas quando diz: “Este
leão se arremessou” é uma metáfora. Como o leão e o herói
são ambos corajosos, Homero qualifica Aquiles de leão por
meio de uma transposição. (Art Rhétorique, p. 325, apud
CANDIDO, 1996, p. 89.)

SAIBA MAIS

Depois de Aristóteles, outro autor da Antiguidade que se ocupou da metáfora foi


Quintiliano. Com eles estavam lançados os fundamentos doutrinários da metáfora,
que permaneceriam praticamente intocados até o século XVIII.

Neste caso, segundo Candido (1996, p. 89-90), poder-se-ia dizer que a metáfora
quebra a barreira entre as palavras comparadas, criando uma espécie de rea-
lidade nova. E completa:

No exemplo de Homero, Aquiles é e não é leão, mas a presença


do conceito deste alterou a sua natureza. O leão, termo meta-
fórico, arrasta Aquiles, termo metaforizado, para o sentido
transcendente de coragem e ardor, e a realidade da sua bra-
vura é como que redefinida, transportada para um universo
poético que amplia as dimensões relativamente limitadas do
universo conceitual, necessariamente mais fixo.

4.3 Outras figuras

4.3.1 Metonímia e sinédoque

Metonímia e sinédoque são outras duas figuras de linguagem. Enquanto a me-


táfora estabelece, como vimos, uma relação de similaridade entre duas ideias
ou entre dois objetos, trabalha com os traços semânticos comuns entre duas
ideias, a metonímia trabalha com uma relação de contiguidade entre elas, ou
seja, as ideias estão relacionadas por proximidade, uma ao lado da outra. Tanto
UNIUBE 141

a metonímia como a sinédoque expressam um elemento através da nomeação


de um outro, mas que a ele está ligado por natureza. Por isso, Candido (1996)
pôde dizer que entre os elementos se estabelece uma relação objetiva, não
imaginada. Da mesma forma, Nelly Novaes Coelho (1980) afirmou que enquanto
a metáfora é um processo que transfigura o real idealmente, a metonímia e a
sinédoque são processos não transfiguradores do real: permanecem no plano
real, concreto, existente. Heinrich Lausberg (apud GARCIA, 1986) disse que
elas se baseiam numa relação real e não mentada, portanto, não comparativa,
como é o caso da metáfora.

SAIBA MAIS

A metonímia, diferentemente da metáfora, é um processo de formação de imagens


de âmbito sintagmático.

A distinção entre metonímia e sinédoque nem sempre é colocada de modo claro.


Por isso, ou talvez por julgar que a diferença entre ambas não seja de todo re-
levante — há quem prefira, como é o caso de Roman Jakobson (1959), adotar
apenas o termo metonímia para designar as duas figuras, raramente referindo-
-se à sinédoque. Há também os que veem na sinédoque apenas um caso es-
pecial de metonímia. Isso não impede que, com propósito didático, sejam
caracterizadas não só pelo que elas têm em comum — a relação de contigui-
dade —, mas pelo que apresentam de específico: na metonímia, tomamos um
nome por um outro, na sinédoque tomamos o mais pelo menos ou o menos pelo
mais.

Metonímia, em sentido restrito, é o emprego do nome de um objeto por outro,


numa relação de ordem: causa pelo efeito, sinal pela coisa significada, possui-
dor pela coisa possuída, continente pelo conteúdo, inventor pela invenção ou
vice-versa.

Observe, a seguir, as diferentes formas de metonímias:

• Causa pelo efeito (ou vice-versa, o efeito pela causa):

“Viver do seu trabalho.” (= do fruto, produto do trabalho)


142 UNIUBE

“Ganhar a vida com o suor do seu rosto.” (suor = consequência do esforço,


do trabalho)

“Os aviões de guerra despejavam a morte.” (bombas mortíferas = morte)

• Sinal pela coisa significada:

“És a minha âncora”. (âncora = segurança)

• Possuidor pela coisa possuída:

“Milhares de fuzis invadiram a cidade.” (fuzis = soldados)

• Continente pelo conteúdo:

“Ele comeu uma caixa de bombons.” (caixa por bombons)

“O mundo inteiro chorou a morte de João XXIII.” (“Os habitantes do mundo...”)

• Autor pela obra:

Quando um crítico escreve ter sido Machado de Assis influenciado por Sterne
quer dizer que Machado de Assis foi influenciado pela leitura da obra de
Sterne e não, diretamente, pelo autor.

• Inventor pela invenção (ou vice­‑versa):

“Vou comprar um ford.” (Ford foi o inventor do carro)

• O lugar pelo produto:

“Todos gostam de um beaujolais”. (o vinho produzido em Beaujolais)

Sinédoque é a figura pela qual fazemos conhecer mais ou menos do que signi-
ficam as palavras em seu sentido próprio, numa relação de compreensão: todo
pela parte; singular pelo plural; espécie pelo gênero; a matéria pelo objeto ou
artefato; abstrato pelo concreto.

Veja, agora, como são formadas as sinédoques:

• O singular pelo plural:

“O brasileiro é patriota.” (“Os brasileiros...” )


UNIUBE  143

• A parte pelo todo:

“O braço de Jesus não seja parte,


Pois que feito Jesus em partes todo
Assiste cada parte em sua parte.”
(MATOS, Gregório de, 2010.)

A uma casa chama­‑se teto. Assim, “sem teto” é aquele que não possui uma casa
para morar.

• A espécie pelo gênero:

“Ganhei o pão com o suor do rosto.” (pão = alimento).

• A matéria pelo objeto ou pelo artefato:

“Já tangem os bronzes.” (bronzes = os sinos)

• O abstrato pelo concreto:

“A velhice transmite ensinamentos.” (“Os velhos...”)

4.3.2 Excurso: predominância metafórica e predominância metonímica

Jakobson (1959) estabeleceu dois grandes mecanismos psicológicos de orga-


nização do discurso: o de tipo predominantemente metafórico e o de tipo pre‑
dominantemente metonímico.

Para Jakobson, o polo metafórico tem sentido lato, englobando não apenas a
metáfora propriamente dita, mas outras figuras que envolvam relações de simi-
laridade. O polo metonímico, por sua vez, engloba não apenas a metonímia
propriamente dita, mas todas as figuras que envolvem relações de contiguidade.
Com esta amplitude, o linguista vislumbrou nesta distinção um princípio de
classificação não só das obras literárias, mas também de outros tipos de lingua-
gem artística.

Assim, por exemplo, no plano da metáfora estariam os cantos líricos russos (e,
por extensão, qualquer texto lírico), as obras do romantismo e do simbolismo,
a pintura surrealista, os filmes de Charles Chaplin e Eisenstein, e os símbolos
freudianos dos sonhos. No plano da metonímia, estariam as epopeias heroicas,
as narrativas da escola realista, a pintura cubista, os filmes de Griffith e os so-
nhos por deslocamento ou condensação. Para ilustrar a importância que assume
144 UNIUBE

o processo metonímico na escola realista, o autor cita alguns exemplos signifi-


cativos: Tólstoi, em Ana Karenina, na cena do suicídio, o autor chama a atenção
sobre a bolsa da heroína; em Guerra e Paz, as sinédoques “cabelos sobre o
lábio inferior” e “ombros nus” são empregadas para indicar mulheres que apre-
sentam estas particularidades.

Na esteira de Jakobson, Haroldo de Campos (1967, p. 87­‑97) realizou estudos


sobre a prosa de Oswald de Andrade, sobretudo na fase das Memórias senti-
mentais de João Miramar, detectando na proposta do linguista russo uma
chave para a prosa desse autor, “num dos seus aspectos mais característicos,
talvez aquele responsável pelo que há nela de mais perturbadoramente original:
a preferência pelo polo metonímico”, que se manifesta através de recursos es-
tilísticos semelhantes aos utilizados na pintura cubista. Conforme observa
Campos, numa pintura cubista, um olho pode ganhar proporções e sobrepujar
todo um rosto; uma perna justapor­‑se sem transição a uma cabeça. A seguir,
um exemplo extraído do romance em questão:

Um cão ladrou à porta barbuda em mangas de camisa e uma


lanterna bicor mostrou os iluminados na entrada da parede.

Na primeira parte, o autor empresta à porta as qualidades do porteiro que a foi


abrir e definindo o todo pela parte (isto é, o porteiro pelas suas barbas e pelas
suas mangas de camisa), em plena operação metonímica, selecionando ele-
mentos fornecidos pela realidade exterior e transformando­‑os em dígitos, para
depois recombiná­‑los livremente e hierarquizá­‑los numa nova ordem, ditada
pelos critérios de sua sensibilidade criativa.

Na segunda parte, dá­‑se o mesmo: o autor está querendo dizer que o porteiro
trazia uma lanterna na mão e à luz dela inspecionou os visitantes.

Eis um outro exemplo extraído do mesmo livro para você exercitar sua capa­
cidade de interpretação:

Beiramávamos em auto pelo espelho de aluguel arborizado


das avenidas marinhas sem sol.
(CAMPOS, Haroldo de, 1967.)

4.3.3 A antítese e o paradoxo; a ironia

A antítese e o paradoxo estão entre as chamadas “figuras de pensamento”. São


também conhecidas como “figuras de oposição”, e sob esta denominação po-
demos englobar também a ironia.
UNIUBE  145

4.3.3.1 Antítese

A antítese consiste na aproximação de ideias contrárias.

Veja o exemplo a seguir.

Alma minha gentil, que te partiste


Tão cedo desta vida descontente,
Repousa lá no céu eternamente,
E viva eu cá na terra sempre triste.
(CAMÕES, Luís Vaz de, 2010.)

Neste exemplo, o trocadilho apresenta uma antítese: “repousa lá no céu” versus


“viva eu cá na terra”.

Outro exemplo de antítese:

O pensamento ferve, e é um turbilhão de lava:


A Forma, fria e espessa, é um sepulcro de neve...
E a Palavra pesada abafa a Ideia leve,
Que, perfume e clarão, refulgia e voava.
(BILAC, Olavo, 2010.)

Neste exemplo, aparecem duas antíteses. A primeira oposição contrapõe o verso


1 ao verso 2: O pensamento ferve, e é um turbilhão de lava: / A Forma, fria e
espessa, é um sepulcro de neve; a segunda oposição se dá entre as expressões
Palavra pesada / Ideia leve, do verso 3.

A antítese é uma das figuras mais frequentes na poesia. Não raro, encontramo­
‑la como elemento mais proeminente de um texto: às vezes, as antíteses apa-
recem como elementos estruturantes de um poema. É o que ocorre, por
exemplo, na “Lira 77” de Tomás Antônio Gonzaga. Ao analisá­‑la, Candido (2001,
p. 30) pôde constatar a presença de vários pares antitéticos, formando tensões:

rusticidade X refinamento
enunciado direto X alegoria
tranquilidade X desgraça
espaço destruído X espaço redimido
passado X futuro
realidade X sonho (devaneio)
146 UNIUBE

4.3.3.2 Paradoxo

O paradoxo ou oxímoro consiste na aproximação de ideias contraditórias.


Distingue-se, assim, da antítese, que consiste na aproximação de ideias con-
trárias. Veja, a seguir, um exemplo de paradoxo:

Ulisses

O mytho é o nada que é tudo.


O mesmo sol que abre os céus
É um mytho brilhante e mudo —
O corpo morto de Deus,
Vivo e desnudo.

Este, que aqui aportou,


Foi por não ser existindo.
Sem existir nos bastou.
Por não ter vindo foi vindo
E nos criou.

Assim a lenda se escorre


A entrar na realidade.
E a fecundá-la decorre.
Em baixo, a vida, metade
De nada, morre.
(PESSOA, Fernando, 2010.)

EXPLICANDO MELHOR

O poema se refere a Ulisses, personagem central da Odisseia, de Homero. Trata-se


de um dos poemas de Mensagem, e nele o poeta procura dar uma explicação mítica
para a origem da nacionalidade portuguesa.

Mais dois exemplos, ainda de Fernando Pessoa, um de Fernando Pessoa “ele


mesmo”, o outro de Ricardo Reis:

Com que ânsia tão raiva


Quero aquele outrora!
E eu era feliz? Não sei:
Fui-o outrora agora.
(PESSOA, Fernando, 2010.)
UNIUBE 147

A Natureza é só uma superfície.


Na sua superfície ela é profunda
O tudo contém muito
Se os olhos bem olharem.
(REIS, Ricardo, 2010.)

Os paradoxos e as qualidades paradoxais fascinaram muitos críticos modernos,


notadamente Cleanth Brooks. Estes chegaram a elevar esta figura à categoria
de característica fundamental da obra literária. Brooks chegou a declarar que
“a linguagem da poesia é a linguagem do paradoxo”. (apud CULLER, 1995,
p. 53.) O paradoxo, tal como Brooks o emprega, significa a expressão de um
sentimento simultâneo de ideias, fatos ou qualidades diferentes, quase opostas,
o qual está implícito, de um modo geral, em todas as grandes obras da literatura.
Como observam Danziger e Johnson (1974, p. 247):

Neste sentido, é paradoxal que Aquiles, na Ilíada, seja reco-


nhecido como sendo, ao mesmo tempo, um condutor de ho-
mens com características de um semideus e uma criança
mimada e insensata; se ele fosse apenas uma coisa ou outra,
a epopeia perderia seu significado e sua grandeza.

SAIBA MAIS

Sobre o papel do paradoxo e da ironia como princípios integradores e tensionais


da estrutura da obra literária, ver capítulo 1, “Leitura do texto literário: metodologia da
leitura crítica”.

4.3.3.3 Ironia

A ironia é o uso de expressões que sugerem o contrário do que parecem expri-


mir, seja pelo contexto, pela entonação, pela contradição de termos. A intenção
pode ser sarcástica ou depreciativa.

A ironia é, ao lado da antítese e do paradoxo, outra figura muito presente na


poesia de um modo geral e, particularmente, na poesia moderna. Não raro, a
ironia é o elemento gerador da contradição, ou seja, da oposição entre os ele-
mentos. É o que acontece, por exemplo, no “Rondó dos cavalinhos”, de Manuel
Bandeira.
148 UNIUBE

Os cavalinhos correndo,
E nós, cavalões, comendo...
Tua beleza, Esmeralda,
Acabou me enlouquecendo.

Os cavalinhos correndo,
E nós, cavalões, comendo...
O sol tão claro lá fora,
E em minh’alma — anoitecendo!

Os cavalinhos correndo,
E nós, cavalões, comendo...
Alfonso Reyes partindo,
E tanta gente ficando...

Os cavalinhos correndo,
E nós, cavalões, comendo...
A Itália falando grosso,
A Europa se avacalhando...

Os cavalinhos correndo,
E nós, cavalões, comendo...
O Brasil politicando,
Nossa! A poesia morrendo...
O sol tão claro lá fora,
O sol tão claro, Esmeralda,
E em minh’alma — anoitecendo!
(BANDEIRA, Manuel, apud CANDIDO, 2001, p. 68­‑69.)

Na análise que fez deste poema (da qual apresentamos uma síntese no capítulo
1 (“Leitura do texto literário: metodologia da leitura crítica”), Candido (2001, p. 77)
chega à constatação de que ele se rege por contradições, de que a sua estrutura
é contraditória, marcada pela recorrência de um dístico irônico — Os cavalinhos
correndo,/ E nós, cavalões, comendo...

Beleza X loucura
Sol claro X alma escura
Um bom que vai X maus que ficam
País prepotente X países submissos
Politiqueiros ativos X poesia perecendo
UNIUBE  149

Além disso, assinala a grande importância da ironia neste poema:

Ela domina de tal modo que não dá muito lugar para as outras
figuras, usualmente mais importantes ou mais frequentes do
que ela, como a metáfora, a metonímia, a sinédoque. Neste
poema, as metáforas são do tipo usual, isto é, desgastadas
pela incorporação à fala corrente: enlouquecer de amor, anoi-
tecer na alma, morrer a poesia. É verdade que a ironia central
se constrói sobre uma metáfora (homem = cavalo); mas de
importância menor em face do seu envolvimento por aquela.
(CANDIDO, 2001, p. 77.)

E conclui:

De fato, a ironia aqui é ampla e misturada, abrangendo uma


nota de patético e de melancolia; e sabemos que se fala em
‘ironia trágica’, ‘ironia do destino’, ‘cruel ironia’ etc. Há uma
ironia de conotação cômica, ou simplesmente alegre, e outra
de conotação trágica, ou simplesmente melancólica. Entre
ambas, a gama é vasta. (CANDIDO, 2001, p. 77.)

4.4 O vocabulário, as categorias gramaticais e a organização


sintática
Neste roteiro, ocupamo­‑nos apenas das chamadas figuras de linguagem, e,
mesmo assim, apenas das mais importantes. Em relação ao trabalho de análise
literária, que em seu percurso completo deve considerar o texto em todos os
seus aspectos, faltaria ainda explorar os demais níveis do poema, tais como a
organização sintática, o vocabulário, o emprego das categorias gramaticais, os
quais, como os aspectos já estudados até aqui, têm indiscutivelmente a ver com
o sentido global do texto. Em razão dos limites do presente roteiro, vamos nos
restringir a dar destes outros níveis apenas uma visão geral dos aspectos en-
volvidos e algumas indicações de como podem influir na produção de sentido
de um texto. Para tanto, vamos nos servir dos esclarecimentos formulados por
Norma Goldstein em duas obras: Versos, sons, ritmos (1994) e Análise do
poema (2006).

Segundo a autora, o primeiro aspecto que deve merecer a atenção do analista


é o lexical, ou seja, o que diz respeito ao vocabulário. Deve­‑se começar pelo
estudo das palavras escolhidas pelo poeta para compor o texto: a que nível
pertencem, ao nível culto ou ao coloquial? Embora o nível coloquial prevaleça
nos poemas modernos, há poemas modernos escritos em linguagem culta,
150 UNIUBE

assim como há poemas tradicionais que apresentam uma linguagem simples.


O vocabulário pode revelar o nível de linguagem do texto e a influência dessa
escolha para o sentido do mesmo.

Terminada esta sondagem no âmbito lexical, o passo seguinte deve ser no


sentido do estudo das categorias gramaticais presentes no texto: Que classes
se fazem presentes? Substantivos? Verbos? Em quais tempos e modos? Estas
são perguntas que orientam o trabalho interpretativo. O predomínio de verbos
de ação, por exemplo, pode indicar dinamismo, assim como o de verbos de
estado pode sugerir estaticidade. Quais os modos verbais utilizados? Indicativo?
Subjuntivo? O indicativo é o modo da realidade, pode indicar certeza, enquanto
o subjuntivo traduz desejo, possibilidade, hipótese. Que tempos verbais estão
presentes? Quais predominam? Como se sabe, os verbos indicam distância ou
proximidade em graus variáveis. Os substantivos abstratos indicam generaliza-
ção, e os concretos, particularização. Em seguida, faz­‑se o levantamento dos
adjetivos, locuções adjetivas e orações adjetivas. Mas, como frisa a autora, mais
importante que o levantamento das categorias gramaticais em jogo, é a verifi-
cação de como o autor as utiliza, ou seja, a pergunta deve incidir sobre a função
das formas linguísticas.

Em relação ao nível sintático, Goldstein observa que se deve começar pela


pontuação, ou seja, pelo levantamento do tipo de períodos do texto, se são
curtos ou longos, se são frases ou orações isoladas. Se ocorre o paralelismo,
vale dizer, uma mesma construção sintática. Se algum termo é omitido e, em
caso positivo, qual. Além disso, deve­‑se observar as interrogações, as reticên-
cias, as inversões sintáticas: estes são aspectos que podem indicar caminhos
interpretativos. O tipo de construção sintática do texto pode ajudar a compreen-
der o seu sentido.

Para mais detalhes e exemplificação dos vários casos envolvidos, sugerimos a


leitura das duas obras referidas. Caso haja interesse de sua parte, poderá am-
pliar seus conhecimentos com a leitura de outras obras que tratam do assunto,
como as de Nelly Novaes Coelho (1980), Wolfgang Kayser (1968), M. Rodrigues
Lapa (1968), que constam das referências.

4.5 Conclusão
Chegamos, assim, ao final deste capítulo sobre os procedimentos de poetização
do nível semântico. Fecha­‑se aqui um ciclo de estudos, iniciado com o primeiro
capítulo deste volume, em que abordamos a questão da metodologia da leitura
crítica. Estes quatro capítulos formam uma unidade, porque há entre eles uma
UNIUBE  151

unidade de propósito: aparelhá­‑lo(a) para a prática da análise literária. São,


ademais, capítulos aos quais se espera que você recorra sempre, como obra
de consulta, para a solução de eventuais problemas que se manifestarem no de-
correr das análises que empreender.

Resumo
Neste capítulo, iniciamos o estudo pela distinção entre linguagem direta e lin-
guagem figurada. Ao fazermos tal distinção, foi possível reconhecer que o que
determina se um texto é poético ou não só pode ser decidido ao nível do texto
e não ao nível da palavra ou expressão. Estudamos, em seguida, as modalida-
des de palavras figuradas, tais como a comparação, a metáfora, o símbolo e a
alegoria. O estudo dessas figuras foi precedido de uma introdução de como se
dá a transfiguração da realidade em imagens. Na oportunidade, refletimos sobre
a natureza da metáfora e estudamos também o mecanismo da metáfora.
­Focalizamos, depois, dois outros grupos de figuras: no primeiro, estudamos a
metonímia e a sinédoque; no outro grupo, vimos a antítese, o paradoxo e a iro-
nia. Concluímos com uma referência breve a outros aspectos importantes, que
também interessam à análise do poema, na medida em que contribuem para a
produção de sentido do texto poético, mas que estão fora dos limites fixados
para o capítulo, tais como o vocabulário, as categorias gramaticais e a organi-
zação sintática.

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