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Universidade de Uberaba
Reitor
Marcelo Palmério
Editoração e Arte
Produção de Materiais Didáticos-Uniube
Revisão textual
Erlane Silva Nunes
Diagramação
Douglas Silva Ribeiro
Projeto da capa
Agência Experimental Portfólio
Edição
Universidade de Uberaba
Av. Nenê Sabino, 1801 – Bairro Universitário
CDD 800
Sobre o autor
Apresentação.................................................................................................. XI
Prezado(a) aluno(a).
Você está recebendo o livro que servirá de texto-base para a disciplina Teoria
da literatura: a poesia. Ele é constituído por quatro capítulos, sendo os dois
primeiros voltados para a teoria da análise literária, o terceiro e o quarto, de-
dicados ao estudo dos procedimentos de poetização.
Bons estudos!
Capítulo Leitura do texto
1 literário: metodologia
da leitura crítica
Introdução
De um modo geral, os cursos de letras ressentem-se da falta de uma
atenção especial para a análise literária. O(a) aluno(a) quase sempre
sai despreparado(a) para o trato com o texto. Recebeu uma enorme
gama de informações, mas não sabe o que fazer com elas, não sabe
como utilizá-las na prática. A finalidade deste capítulo é ajudá-lo(a)
nessa tarefa e descrever para ele algumas formas de examinar uma
obra.
Objetivos
Após o estudo deste capítulo, esperamos que você seja capaz de:
Esquema
1.1 Considerações iniciais
1.2 Metodologia da leitura crítica — etapas
1.3 Compreensão crítica e sensibilidade
1.4 Fruição diletante/leitura crítica
1.5 A prática da análise — um exemplo
1.6 Conclusão
UNIUBE 3
Antonio Candido
SAIBA MAIS
Um dos maiores pensadores dos últimos tempos, considerado o mais vivo e o mais
distinto representante do historicismo — movimento humanista e filosófico que, em
4 UNIUBE
Na Figura 1, a seguir, com a qual se pretende ilustrar o que foi dito até aqui,
levou-se em conta a observação de Dilthey (RODRIGUES, 1969), segundo a
qual os estudos humanos não podem ser a continuação de uma hierarquia das
ciências naturais, porque descansam sobre um fundamento diferente. As ciências
naturais e as ciências do espírito desenvolveram-se lado a lado e não há o pri-
mado de umas sobre as outras.
REALIDADE
NATUREZA CULTURA
NÃO SE PODE
LEIS GERAIS ESTABELECER
LEIS GERAIS
OBJETIVIDADE
SUBJETIVIDADE
E PRECISÃO
MÉTODOS MÉTODOS
GENERALIZADORES PARTICULARIZADORES
EXPLICAÇÃO COMPREENSÃO
HUMANIDADES
CIÊNCIAS NATURAIS
(CIÊNCIAS NATURAIS)
Outro estudioso que se ocupou dessa diferenciação, no âmbito dos estudos li-
terários, foi T. S. Eliot. Para ele, os estudos literários têm a ver com a compreen-
são e não com a explicação. Em 1956, ao abordar o problema da delimitação
da crítica literária, ou seja, o problema da definição do âmbito de atuação do
crítico literário, ele se colocava as seguintes questões: quais os objetivos da
crítica, qual a finalidade da crítica? Quando a crítica não é crítica literária, mas
algo diferente? Que existe, se é que existe, que deva ser comum a toda a crítica
literária? Para tentar responder a estas questões, escreveu um ensaio denomi-
nado “As fronteiras da crítica” (1972, p. 148‑167), no qual pretendia defender a
tese segundo a qual “há limites, além dos quais, numa certa diretriz, a crítica
6 UNIUBE
literária deixa de ser literária e, noutra diretriz, deixa de ser crítica”. Ao final de
sua argumentação, afirma — “com o bom senso que costumam ter os anglo-
-saxões, mesmo quando poetas”, como diria Anatol Rosenfeld (1976, p. 37) —
que a função essencial da crítica literária seria a de “promover a compreensão
e a apreciação da literatura”, definição que ele considerou preferível a uma
outra, “mais pomposa”, formulada em 1923, em que a caracterizara como sendo
“a elucidação das obras de arte e a correção do gosto”.
SAIBA MAIS
nos quer transmitir: que devemos estar atentos para os perigos que rondam o
trabalho do estudioso da literatura, em cada um dos extremos e para a forma
como este deve proceder para não ultrapassar os limites da crítica literária,
evitando, assim, cair nessas armadilhas. Os perigos a evitar são, de um lado, a
explicação como um fim em si mesma e, de outro, a apreciação meramente
subjetiva. Ou, como também se pode dizer: de um lado, a crítica puramente
explicativa, de outro, o subjetivismo e o impressionismo.
IMPORTANTE!
No primeiro caso, como havia dito no enunciado de sua tese, a crítica deixa de
ser literária, e, no segundo caso, deixa de ser crítica. Para ser crítica e também
literária, ou seja, para permanecermos dentro das fronteiras da crítica literária,
devemos manter os dois aspectos em perfeito equilíbrio: devemos promover a
compreensão e, ao mesmo tempo, a apreciação da literatura. Observe a Figura
2 a seguir.
8 UNIUBE
APRECIAÇÃO
EXPLICAÇÃO CRÍTICA LITERÁRIA SUBJETIVA
COMPREENSÃO
E
APRECIAÇÃO
Você deve estar pensando: então a explicação não apresenta nenhum interesse
para o estudioso da literatura? Não é bem assim. Na verdade, e o próprio Eliot
(1972, p. 166) reconheceu, se a crítica não almeja a compreensão e a aprecia-
ção, pode, ainda assim, ser uma atividade legítima e útil:
SAIBA MAIS
Se a explicação “só leva até à porta”, e temos de abrir caminho para “entrar” no
texto, de que forma isso pode ser feito? Em outras palavras: de que modo po-
demos promover a compreensão e a apreciação do texto literário, apanágio da
leitura crítica? A resposta é: isso é possível através da análise literária, consi-
derando como tal a atividade crítica na sua totalidade, subentendendo-se, ob-
viamente, a interpretação, sem a qual essa atividade não se completa. Tocamos
aqui naquele que constitui o tema central do presente roteiro de estudo, conforme
já anunciado em nossa epígrafe e que é, nas palavras de Antonio Candido, a
pedra de toque do estudioso de literatura, sendo a justificativa da reflexão teórica:
a prática da análise literária, a capacidade de desmontar e remontar a estrutura
da obra, sem a qual não há professor nem crítico de literatura.
SAIBA MAIS
Esta concepção de que haveria algo “dentro” da obra literária tem sido contestada por
alguns estudiosos, como é o caso do crítico Stanley Fish, ligado à tendência do prag-
matismo norte-americano. Este autor insiste que não há nada “dentro” da obra em si
— que toda noção do significado ‘imanente’ à linguagem do texto, à espera de ser li-
berado pela interpretação do leitor, é uma ilusão objetivista. Segundo ele, Wolfgang
Iser deixou-se levar por essa ilusão. Iser, que está ligado à chamada teoria da recepção
ou estética da recepção, pela vertente alemã, acredita que a interpretação de um texto
deve ser logicamente limitada pelo próprio texto. Para ele, há um “texto em si”. Do
contrário, como poderíamos falar de interpretação da “mesma obra”? Para Fish, o
objeto da atenção crítica é a estrutura da experiência do leitor, e não uma estrutura
“objetiva” a ser encontrada na própria obra. (EAGLETON, 1983, p. 91-2.)
Sendo assim, vejamos, em primeiro lugar, o que devemos entender por análise,
em sentido estrito. Com a palavra os especialistas no assunto.
Assim, uma vez conhecida a definição de análise, devemos nos voltar para a
definição de interpretação, sem a qual, como vimos, a atividade crítica não se
completa. E isso porque, conforme esclarece Reis (1976, p. 41), o processo de
UNIUBE 11
análise a que se submete o texto literário não é suficiente para a sua avalia-
ção crítica, assim como também não satisfaz as legítimas ambições de uma
leitura crítica minimamente válida. E apresenta as razões que sustentam esta
posição:
Candido observa ainda que a interpretação parte da análise, começa nela, mas
se distingue dela por ser eminentemente integradora, visando mais à estrutura,
no seu conjunto e aos significados que julgamos poder ligar a esta estrutura.
seria de esperar que este caráter pessoal estivesse presente também na carac-
terização das instâncias da análise e da interpretação? É exatamente sobre isso
que vamos falar a seguir.
Citando Staiger, Candido (1996, p. 13) diz que este fala do prazer e da emoção
da leitura como condição de conhecimento adequado, sem temer a acusação
de fundar os estudos literários no sentimento subjetivo. O sentimento, neste
caso, é um critério de orientação e de penetração. “O critério da sensibilidade
se torna também critério de conhecimento sistemático”.
O próprio Candido observa, em outro texto de sua autoria (1973, p. 34), que
toda crítica viva parte de uma impressão para chegar a um juízo. Entre estas
duas pontas se interpõe algo que constitui a seara própria do crítico, dando
validade ao seu esforço e seriedade ao seu propósito:
A esta altura, parece ser possível concluir que, ao contrário do que se poderia
pensar à primeira vista, a busca da objetividade que caracteriza a atividade
crítica não minimiza, evidentemente, a importância de uma compreensão e de
uma fruição em estado de simpatia, como condições prévias do nosso conhe-
cimento da obra literária. Mas — devemos insistir neste ponto — não passam
de condições prévias. Esse tipo de apreensão sensível da obra de arte é, sem
dúvida, a pressuposição de todo estudo literário frutífero, mas em si mesmo
pode levar apenas ao completo subjetivismo. Por si só não consegue alcançar
a objetividade necessária exigida pela atividade crítica. Afirmar que a obra lite-
rária só pode ser apreciada através de uma fruição simpatética, de cunho pura-
mente subjetivo, equivale a ignorar a possibilidade de constituição de um saber
objetivo da obra literária, ou seja, de um tipo de apreensão da obra literária que
supere o nível da pura sensibilidade. A arte da leitura, ou seja, a leitura entendida
como fruição diletante, não passa de um ideal para uma cultura puramente
pessoal. Como tal, é perfeitamente compreensível e constitui, de fato, a maneira
pela qual a maioria das pessoas se relaciona com a literatura. Não pode, no
entanto, ser considerada como o único tipo de relacionamento que se pode ter
com ela, e, muito menos, como o relacionamento ideal.
O que nos assegura que a leitura crítica é realmente necessária? Para respon-
der a esta pergunta, vamos tomar como ponto de partida uma interessante
UNIUBE 15
Esta afirmação pressupõe que a obra literária se revela por si mesma. Que não
é preciso traduzi‑la, interpretá‑la. Seu significado seria algo evidente, visível a olho
nu, por assim dizer. Se assim fosse, bastaria lê‑la, gozá‑la, apreciá‑la; não have-
ria necessidade da análise literária. Não é isso, no entanto, o que verdadeiramente
ocorre. Parece ter razão Staiger (apud CANDIDO, 1996, p. 18), ao afirmar
Meu sonho
Eu
O Fantasma
EXPLICANDO MELHOR
Anapesto
É a unidade, ou “pé”, da antiga metrificação grega e latina formada por três sílabas,
duas breves e uma longa, e que corresponde, na métrica silábica, a duas átonas e
uma tônica. O crítico está se referindo ao fato de o poema ser escrito em versos
eneassílabos (cada eneassílabo sendo formado por três anapestos).
Escrita para funcionar como instrumento de trabalho, esta obra foi idealizada a
partir de critérios eminentemente práticos, como, aliás, é do feitio do autor. An-
tonio Candido sempre defendeu que, na medida do possível, deve-se trabalhar
de modo mais aderente ao texto, ou seja, deve-se assumir um comportamento
18 UNIUBE
que vise levar o(a) aluno(a) a uma aproximação menos comprometida com te-
orias e mais preocupado(a) com a manipulação das estruturas fundamentais do
texto literário. O exercício da análise literária se concretiza tendo em vista fina-
lidades essencialmente práticas. Daí que a análise literária, para além da ne-
cessária instrumentação teórica, implique a execução de operações bem
definidas. Por isso, deve-se evitar proposições que poderiam conduzir à simples
especulação teórica como um fim em si mesma, orientando, sempre que pos-
sível, o cerne das teorias para a problemática da análise literária.
SAIBA MAIS
Como o próprio autor afirma, em todas elas está implícito o conceito básico de
estrutura como correlação sistemática das partes, e é visível o interesse pelas
tensões que a oscilação ou a oposição criam nas palavras, entre as palavras e
na estrutura, frequentemente com estratificação de significados. As análises
constantes do livro atestam a afirmação feita pelo professor Antonio Candido,
no prefácio, de que, no nível profundo, a análise de um poema é frequentemente
a pesquisa das suas tensões, isto é, dos elementos ou significados contraditórios
que se opõem.
Neste particular, Candido não esconde a sua dívida para com o new criticism e,
mais particularmente, em relação a John Crowe Ransom, a Cleanth Brooks e a
Robert Penn Warren. Como se sabe, Ransom preconizava uma crítica ontológica,
isto é, uma crítica centrada sobre a obra literária considerada como um modelo
(pattern) de forças organizadas, como um todo autônomo e autossuficiente em
que cada elemento está organicamente relacionado com os outros e no seio do
qual se geram e se resolvem múltiplas tensões ou resistências (tensão entre
o ritmo do poema e o ritmo da linguagem, entre o particular e o geral, o con-
creto e o abstrato etc.). Cleanth Brooks considerava a obra literária como uma
estrutura cujos princípios integradores e tensionais são o paradoxo e a ironia.
Ou este outro:
Fiquemos assim com uma noção que tem bastante valor prático
no trabalho sobre os textos: na análise, que não pode se limitar
às intuições, mas precisa suscitá‑las ou confirmá‑las, a estrutura
tem precedência como elemento de compreensão objetiva. Pelo
menos como etapa do método, o significado pode ser conside-
rado como contido nela. (CANDIDO, 2001, p. 77.)
É óbvio que, numa síntese como esta, não há como transmitir a dinâmica real
da análise como a percebemos numa leitura direta do texto original. Como a
análise é predominantemente descritiva, de um modo geral, ela tende a ser
muito vagarosa e minudente — “um trabalho paciente de elaboração, como uma
espécie de moinho, que tritura a impressão”, como, aliás, o próprio Candido
(1973, p. 34) preconiza —, incidindo sobre os múltiplos elementos que constituem
a estrutura do poema, bem como sobre o texto considerado como totalidade.
Quase se poderia dizer que a análise e, consequentemente, a leitura crítica,
conscienciosamente desenvolvida como a pratica o professor Antonio Candido,
adquire a minúcia de um exame microscópico, submetendo o poema a uma
análise que desce às menores unidades, aos mínimos detalhes do texto.
1.6 Conclusão
Com este capítulo quisemos apenas fazer uma introdução à análise literária.
Neste terreno, como em outros de igual complexidade, sempre fica muita coisa
por dizer. Apesar de tudo, ainda assim ousamos esperar que este trabalho tenha
contribuído para familiarizá‑lo(a) com a prática da análise, fornecendo as infor-
mações necessárias para que você possa se conscientizar não só da importân-
cia, mas, sobretudo, da necessidade da análise para a compreensão dos textos
literários, bem como da necessidade de nos aparelharmos convenientemente
para, gradativamente, podermos assumir diante do texto a atitude e a postura
adequadas a um especialista em letras, vale dizer, a atitude e a postura de um
leitor crítico.
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Resumo
Neste capítulo, procuramos situar os estudos literários no contexto das formas
de conhecimento e esclarecemos suas características. Depois, vimos os obje-
tivos da leitura crítica e os perigos e/ou riscos a serem evitados, ou seja, tenta-
mos definir o âmbito de atuação do leitor crítico, com o objetivo de esclarecer
de que forma ele deve proceder para não ultrapassar os limites da atividade
crítica. Em seguida, vimos em que sentido a explicação pode ser considerada
uma atividade legítima e útil para o estudo do texto literário. Identificamos as
etapas da análise literária, explicitando as características de cada uma dessas
etapas. Além disso, explicamos as relações existentes entre compreensão crítica
e sensibilidade e procuramos distinguir entre fruição diletante e leitura crítica,
procurando justificar a necessidade da análise literária. Concluímos o capítulo
com uma exemplificação da metodologia da análise literária.
Referências
AGUIAR E SILVA, Vitor Manuel de. Teoria da literatura. 3 ed. Lisboa: Almedina, 1973.
AZEVEDO, Alvares de. Lira dos vinte anos. São Paulo: Martins Fontes, 1996. Disponível
em: <http://dominiopublico.gov.br/download/texto/bv000021.pdf>. Acesso em: 11 maio 2010.
CANDIDO, Antonio. Na sala de aula: caderno de análise literária. São Paulo: Ática, 2001.
EAGLETON, Terry. Introdução: o que é literatura? In: ______. Teoria da literatura: uma
introdução. São Paulo: Martins Fontes, 1983.
ELIOT, T. S. As fronteiras da crítica. In: ______. A essência da poesia. Trad. de Maria Luiza
Nogueira. Rio de Janeiro: Artenova, 1972.
______. A função da crítica. In: _______. Ensaios de doutrina crítica. Trad. com a
colaboração de Fernando de Melo Moser; pref., selec. e notas de J. Monteiro‑Grilo, Lisboa:
Guimarães Editores, 1962.
REIS, Carlos. Análise e interpretação. In: ______. Técnicas de análise textual. Coimbra:
Almedina, 1976.
RODRIGUES, José Honório. Filosofia e história. O conhecimento histórico. In: ______. Teoria
da história do Brasil: introdução metodológica. 3. ed. São Paulo: Companhia Editora
Nacional, 1969.
WELLEK, René; WARREN, Austin. Literatura e estudo da literatura. In: ______. Teoria da
literatura. Lisboa: Publicações Europa‑América, 1962.
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Introdução
No capítulo anterior, tratamos da atividade crítica e vimos o papel
fundamental que a análise literária aí desempenha. Mas tivemos a
oportunidade de chamar a atenção também para o fato de que a ati-
vidade crítica, embora deva se servir da análise, deve ultrapassá-la
em direção ao julgamento da obra literária. Vale dizer: por mais impor-
tante que seja o conhecimento da estrutura, não podemos prescindir
da avaliação estética da obra. Até porque a crítica é, essencialmente,
julgamento de valor. Isso coloca em evidência a indissociabilidade
entre as noções de estrutura e de valor, que é o tema do presente
capítulo.
Objetivos
Após o estudo deste capítulo, esperamos que você seja capaz de:
Esquema
2.1 Considerações iniciais
2.2 Definindo o campo de observação
2.3 Exemplo de avaliação crítica
2.4 Conclusão
René Wellek
Daí afirmar que o erro da fenomenologia pura reside na presunção de que tal
dissociação é possível, de que os valores estão sobrepostos à estrutura, são
“inerentes” à estrutura.
Outro autor que não concorda com essa dissociação é Antonio Candido. Este
autor (1976, p. 4) chegou a colocar o “valor” como o traço distintivo dos estudos
literários e, particularmente, da crítica literária em relação às outras disciplinas
que tomam a obra literária como objeto de estudo. Como já vimos, em seu ensaio
“Crítica e Sociologia: tentativa de esclarecimento”, ele considera que as abor-
dagens da obra literária ligadas à psicologia, à sociologia, à linguística etc. são
perfeitamente legítimas, até porque os problemas destas são diversos dos da
crítica literária. Estas não propõem a questão do valor da obra. São disciplinas
de cunho científico, sem a orientação estética necessariamente assumida pela
crítica literária.
Assim, para que uma obra literária possa ser avaliada positivamente, é neces-
sário que ela seja considerada bem‑sucedida, bem realizada artisticamente, e
que estejamos preparados para perceber esta qualidade. A questão que se
coloca é: quando uma obra literária deve ser considerada bem‑sucedida, bem
realizada artisticamente? Vejamos o que diz René Wellek (apud WELLEK; WAR-
REN ,1962, p. 302) a esse respeito:
Lucien Goldmann
Para limitar nosso campo de observação e não corrermos o risco de nos desviar
do principal, vamos nos restringir a considerar apenas um desses materiais —
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Como se vê, Wellek faz menção aqui aos dois modos pelos quais as ideias
podem ser incorporadas à literatura, mas deixa claro também que só um deles
corresponde ao que se deve entender como uma correta assimilação, a uma
correta incorporação. O próprio autor nos dá uma pista de qual seria esse modo
correto, ao afirmar que, para se tornarem “constitutivas”, as ideias devem deixar
de ser conceitos e se tornarem símbolos ou mitos. Faz referência, assim, à
natureza simbólica da obra literária, anunciando que as ideias, para serem cor-
retamente incorporadas, devem ser apresentadas de maneira indireta, de ma-
neira implícita. Em seguida, o autor menciona exemplos dos dois casos,
distinguindo dois níveis de integração: um, inferior, em que as ideias não são
corretamente incorporadas, outro, superior, em que as ideias são inseridas de
modo correto.
SAIBA MAIS
A arte é uma forma simbólica. Este é o modo de ser da arte. É somente o artista que
vive criando, “fazendo”, na discrepância daquilo que meramente é. É por ser simbó-
lica que a literatura pertence ao sistema da arte. (adaptado de HAMBURGER, 1975,
p. 246-248.)
30 UNIUBE
SAIBA MAIS
SAIBA MAIS
Poesia didática
O poeta latino Lucrécio Caro, em seu De rerum natura (expressão latina que significa
“sobre a natureza das coisas”), esboçou as características da poesia didática, em
geral, e, mais particularmente, de sua poesia didática:
UNIUBE 31
Percebe-se claramente, nesse tipo de poesia, como em qualquer obra em que pre-
valece o procedimento alegórico, que a forma artística se reduz a mero adorno exte-
rior, é um apêndice, que tanto pode existir como faltar.
Wellek observa que o artista será prejudicado por demasiada ideologia se esta
não for assimilada. E prossegue, citando outros exemplos:
Para responder a esta questão, devemos saber que as ideias podem ser inse-
ridas no romance de duas maneiras: através da narração/diálogo ou através da
fábula. O que chamamos “narração” é o diálogo entre o autor e o leitor. O que
denominamos “diálogo” é o diálogo interno à obra, aquele que se estabelece
entre as personagens. A “fábula”, por sua vez, é a história que se conta, ou seja,
são as ações e atitudes, os comportamentos, enfim, das personagens. Estes
dois níveis ou planos podem ser representados da seguinte forma:
narração/diálogo
fábula
Com estas informações, você já tem condições de escolher, entre estas duas
maneiras, aquela que corresponderia ao processo simbólico de inserção de
ideias no romance. Certamente você percebeu que tal inserção se dá através
da fábula, ou seja, através das ações das personagens, porque só assim as
ideias são apresentadas de maneira implícita.
Assim, somente no primeiro caso, podemos dizer que se trata de uma obra bem
realizada, porque houve a perfeita assimilação da matéria numa forma. Já no
segundo caso, trata‑se de um romance mal realizado, porque, em um romance
desse tipo, as ideias permanecem meros elementos não elaborados, simples
elementos de informação e, por isso, facilmente descolados das obras. O que
é realmente fundamental passa a um plano secundário, numa completa inversão
de valores — os valores filosóficos acabam sobrepujando os valores estéticos.
A propósito desta maneira de inserir ideias no romance, veja o que disse An-
tonio Candido (1987, p. 86) ao comentar a produção romanesca do século
XVII — época rica em ficção alegórica:
SAIBA MAIS
SAIBA MAIS
Quando dizemos que, para ser verossímil, o romance deve apresentar as ideias
através das ações das personagens, não estamos suprimindo outras possibilida-
des, equivalentes, mais ao gosto daqueles que preferem ainda e sempre as ideias
em si mesmas. Na verdade, há um expediente que permite que as ideias sejam
apresentadas como tal, sem que isso implique a destruição da autonomia do
mundo ficcional; trata‑se do recurso denominado discurso indireto livre, em que
as ideias são apresentadas como sendo de responsabilidade exclusiva da perso-
nagem, mas que não são ditas, exteriorizadas, mas apenas pensadas. É claro
que, neste caso também, para serem aceitas como verossímeis — ou seja, se
justifiquem —, o nível intelectual da personagem deve ser compatível com o grau
de complexidade das ideias. Este é um expediente muito usado, sobretudo no
romance realista. Há um exemplo excelente de como este recurso pode ser usado,
entre outros aspectos, para assegurar a objetividade na apresentação da perso-
nagem, ou seja, o distanciamento do autor em relação à mesma, no romance O
crime do padre Amaro, de Eça de Queirós. Trata‑se de uma passagem, do ca-
pítulo IX, em que Amaro, personagem principal, faz, em
pensamento, uma crítica ao celibato e à Igreja, crítica com O crime do padre
a qual, diga‑se de passagem, o próprio autor não concorda Amaro (1875)
e até mesmo repudia. Veja o referido trecho a seguir. Romance de José
Maria Eça de Queirós
Mas na sua paixão havia às vezes gran- (1845–1900), escritor
des impaciências. [...] Por que o tinham português. Guerra da
Cal e Óscar Lopes
feito padre? Fora “a velha pega” da
atribuem a Eça de
Marquesa de Alegros! Ele não abdicava Queirós a introdução
voluntariamente a virilidade do seu do discurso indireto
peito! Tinham‑no impelido para o sacer- livre na literatura
dócio como um boi para o curral! portuguesa e até
peninsular. (CEIA,
2010)
Então, passeando excitado pelo quarto,
levava as suas acusações mais longe, Accedo (lat.)
contra o celibato e a Igreja; por que
proibia ela aos seus sacerdotes, ho- Aceito, concordo.
mens vivendo entre homens, a satis
fação mais natural, que até têm os
animais? Quem imagina que desde que
um velho bispo diz — serás casto — a
um homem novo e forte, o seu sangue
vai subitamente esfriar‑se? E que uma
palavra latina — accedo — dita a tre-
mer pelo seminarista assustado, será
36 UNIUBE
SAIBA MAIS
Danziger e Johnson observam que, quando as ideias são expressas por certas per-
sonagens, dentro de uma obra, “é possível que um ponto de vista obviamente incor-
reto tenha sido introduzido a fim de permitir que as fraquezas de uma personagem
falem por si mesmas, como acontece quando o Ricardo III de Shakespeare revela
seus planos ignóbeis num solilóquio”. (1974, p. 224.)
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O crítico Álvaro Lins (1964, p. 101‑2) discorda daqueles que, baseados nesta
passagem do romance, tentam imputar ao livro a defesa de uma tese contra o
celibato — por este ser contrário à natureza — e contra a Igreja. Trata‑se de
uma tese, não há dúvida, mas que só aparece uma vez em todo o livro e quem
a exprime é o padre Amaro. Trata‑se, na verdade, de um padre que não conta
sequer com a simpatia do próprio autor, uma vez que é parte daquilo que cons-
titui — este sim — o verdadeiro objeto de sua crítica: o clero português, deca-
dente. Ao contrário de Antero de Quental, que aponta a Antero de Quental
religião como uma das “causas da decadência dos povos (1842–1891)
peninsulares”, Eça não critica a Igreja nem a religião, uma
Escritor, filósofo e
vez que elas “são de origem eterna”. poeta português.
É ainda desse lúcido Álvaro Lins (1964, p. 101‑4) a observação seguinte, que,
embora extensa, merece ser citada, porque não só corrobora a perspectiva que
temos assumido neste roteiro, mas contribui com argumentos que podem ajudar
para melhor compreensão da problemática aqui abordada:
CURIOSIDADE
Desta forma, mostrou-se consciente de que nesta obra as ideias não foram correta-
mente assimiladas.
Após meticuloso exame desta obra, o crítico formulou o seu julgamento, con-
cluindo que se trata de um romance mal realizado. Schwarz (1965) observa que,
nesta obra, as ideias são transmitidas através dos diálogos das personagens e
através da própria fala do narrador-autor, que interrompe várias vezes a narra-
tiva para dizer “verdades” sobre o Brasil e a condição humana. Procura mostrar
assim que a arquitetura do romance
O crítico procura mostrar como o autor construiu o romance. Observa que este
começa com a paisagem da experiência de Milkau. Em seguida, abandona-se
o universo da experiência da personagem e sente-se claramente a presença do
autor, que intervém para fazer uma reflexão sobre uma determinada ideia. O
universo propriamente ficcional, da experiência da personagem, é rompido pela
intervenção teórica do autor. Após esta ruptura, o autor reenceta a narração,
sobretudo para dar continuidade à voz do narrador (através de inumeráveis
artifícios conectivos) e só secundariamente articulando a sequência do aconte-
cimento. Conclui o crítico:
EXPLICANDO MELHOR
Schwarz não foi, porém, o único a ter dessa obra uma visão estética depreciativa.
Um outro autor, Xavier Placer (apud COUTINHO, 1969, p. 174), sumariando,
algum tempo depois, as características de Canaã, não foi mais complacente,
limitando-se, praticamente, a repetir as palavras de Schwarz:
Até aqui tratamos apenas da inserção de ideias no romance. E na poesia, esta inser-
ção se dá de modo diferente?
SAIBA MAIS
Foi talvez pensando no que foi dito sobre a poesia que Giambatista Vico (apud
CANDIDO, 1996, p. 94) pôde afirmar que os poetas e filósofos excluem-se mu-
tuamente,
pois a razão poética faz com que seja algo impossível alguém
ser poeta e metafísico igualmente sublime, porque a metafísica
abstrai o espírito dos sentidos, e a faculdade poética deve
mergulhar todo o espírito nos sentidos; a metafísica se eleva
até os universais, a faculdade poética deve se aprofundar nos
particulares.
Disso resulta, ainda segundo este autor, que a expressão poética, em sentido
amplo e restrito, fundamenta-se no concreto, no particular. Daí exprimir por meio
da figuração dos sentidos, dando substância animada aos corpos e à própria
ideia.
E completa:
SAIBA MAIS
“A poesia de ideias é como a outra poesia; não deve ser apreciada pelo valor dos
materiais que utiliza, mas sim pelo grau da sua integração e intensidade artísticas”.
(WELLEK; WARREN, 1962, p. 152.)
SAIBA MAIS
Este é o segundo dos seis sonetos da série “Elogio da morte”. Quando foi publicado
a primeira vez, em 1875, no primeiro número da Revista Ocidental, trazia como título
“Nirvana”. Na edição em volume passou a ter apenas o número II. (SÉRGIO, 1943.)
Vimos, há pouco, que o poeta precisa traduzir as ideias de tal maneira que deem
a impressão de experiência, vivida, sentida, palpável, e não de um raciocínio.
Mas, mesmo quando conserva a estrutura de um raciocí-
nio ou até, mais especificamente, de um raciocínio silo- Luís Vaz de Camões
gístico, como ocorre em alguns sonetos de Camões, o (1524–1580)
poeta deve ter o cuidado de não fazê‑lo com a linguagem
conceitual, mas sim com uma linguagem figurada, recor- Poeta português.
rendo a imagens. É o que ocorre no soneto “Amor é fogo
que arde sem se ver”. Ele conceitua o amor, não abstratamente, como faria um
filósofo, mas concretamente, como é próprio de um poeta. Os enunciados teó-
ricos são traduzidos em imagens, em enunciados existenciais. Neste poema, o
poeta nos transmite algumas ideias ou conceitos: tudo o que é contraditório não
causa harmonia entre os homens; o amor é contraditório; não obstante, o amor
causa harmonia nos corações humanos. Mas, para isso, ele utilizou, não esta
linguagem filosófica, mas um processo simbólico, indireto, o processo das ima-
gens que se sucedem em onze versos das três primeiras estrofes: amor é fogo
que arde sem se ver; é ferida que dói e não se sente, e assim por diante. Como
observou Maria Helena Ribeiro da Cunha, em estudo sobre a estrutura silogís-
tica do soneto camoniano (1976, p. 8):
SAIBA MAIS
II
Conforme observa o autor nesse poema, em muitos dos versos se fala aberta-
mente de pensamentos e pensa‑se o que fez com que a linguagem seja quase
toda reflexiva. O problema central é o dualismo entre corpo e alma.
Mas este poema não começa por exprimir um pensamento, mas sim por uma
situação concreta, embora um pouco afastada, por causa da expressão “às
vezes”. O poeta escuta as vozes de coisas da natureza, escuta e entende‑lhes
a linguagem. Embora os significados das palavras pesem neste poema mais do
que numa canção qualquer, não devemos incorrer no erro de tomar as palavras
por termos filosóficos.
UNIUBE 47
O que estamos comentando aqui sobre a inserção de ideias na poesia foi, por
assim dizer, tematizado por Murilo Mendes em interes- Murilo Mendes
sante poema, com o qual podemos encerrar esta parte de (1901–1975)
nossa reflexão. Trata‑se do poema “Ideias rosas”, do livro
Poeta da terceira
Poesia liberdade, de 1947 (apud CANDIDO, 2001, p. 90). geração do
Neste poema, conforme bem observou Antonio Candido: modernismo brasileiro.
48 UNIUBE
Ideias rosas
Para esclarecer esse caso especial, vamos nos basear em um exemplo concreto,
o romance Aparição, de Vergílio Ferreira (1983). Este
Aparição (1959)
romance parece, à primeira vista, contradizer o que vimos
sobre a inserção de ideias no romance e, inclusive, as Romance de Vergílio
próprias afirmações feitas por este autor sobre o assunto. Ferreira (1916–1996),
Mas isso não passa de uma aparência. Por se tratar de escritor português.
narração em primeira pessoa, neste romance, as ideias
não são transmitidas através das ações, mas através do diálogo, não do diálogo
interior à obra, diálogo entre personagens, mas do diálogo entre narrador e
leitor. O fato de as ideias serem transmitidas pelo personagem–narrador através
do diálogo com o leitor não nos deve levar à conclusão de que se trata de um
romance mal realizado. Isso não pode ser interpretado como querendo significar
que, neste romance, as ideias se apresentam de maneira explícita. Na verdade,
nele, as ideias são apresentadas de maneira “implícita”, de maneira indireta.
Trata‑se de um processo que está mais próximo daquele que é utilizado na
poesia do que daquele que é característico do romance na terceira pessoa. É
certo que, no caso do romance em primeira pessoa, diferentemente do que
UNIUBE 49
EXEMPLIFICANDO!
Eis um exemplo extraído do romance Aparição, que pode ilustrar o que estamos
dizendo sobre ele:
Pode-se talvez dizer que é esta sua característica que o torna um veículo ideal
para a concepção existencialista e que explica, em última instância, que um
escritor existencialista como Vergílio Ferreira tenha optado pela narração em
primeira pessoa ao escrever o romance Aparição. É o que se depreende desta
afirmação do autor ([1965], p. 66):
SAIBA MAIS
Talvez esteja aí a explicação para a raiz lírica que se considera como integrando a
atividade romanesca deste autor, bem como para o fato de se considerar este romance
como o lugar de cruzamento entre o lirismo e a reflexão filosófica de vertente exis-
tencial.
Você certamente já ouviu falar do livro O mundo de Sofia, de Jostein Gaarder (1995).
Um exercício interessante será você lê-lo, procurando verificar se o processo utilizado
pelo autor para inserir ideias no romance está mais próximo do processo simbólico
UNIUBE 51
ou do processo alegórico. Se você já o leu, procure lembrar-se de como ele foi cons-
truído. Para facilitar, vamos fazer alguns comentários sobre aspectos da obra que
possam prepará-lo(a) para a atividade que estamos propondo.
As ideias centrais desses sistemas filosóficos vão sendo expostas numa série
de lições que Sofia recebe em forma de cartas ou de conversas devidamente
ambientadas.
O autor lança mão, nesse ponto, de todo e qualquer recurso capaz de tornar
mais clara ou saborosa uma tese abstrata. O brinquedo Lego ajuda na exposição
das doutrinas de Demócrito. Uma fita de vídeo leva Sofia (e o leitor) diretamente
à Grécia Antiga, onde Platão, em pessoa, será entrevistado. Formas de bolo
ajudam a compreender a teoria platônica das ideias.
O que importa para mim, querida Sofia, é que você não esteja
entre aqueles que consideram o mundo uma evidência. Para
ter certeza disso, vamos fazer dois exercícios de raciocínio
antes de começarmos com nosso curso propriamente dito.
• E, então, a que conclusão você chegou? Acha que o autor soube ou não in-
corporar devidamente as ideias?
Certamente, você deve ter percebido que, neste livro, o autor adotou o processo
alegórico de incorporação de ideias e não o processo simbólico. Aliás, em ne-
nhum momento, o autor se propôs a fazer algo diferente. O seu propósito didá-
tico–pedagógico é evidente, como vimos. A sua única preocupação é tornar
acessível o conhecimento da história da filosofia. A história narrada funciona,
apenas, como pano de fundo para as ideias. Utilizou‑a como um dos recursos
que poderiam tornar a aprendizagem da história da filosofia algo atraente e
agradável.
Caso tenha interesse em conhecer um outro bom exemplo no que diz respeito
à inserção de ideias na obra literária, você poderá ler o conto “Amor”, de Clarice
Lispector, que faz parte do livro Laços de família. O ideal seria que você lesse
o texto completo, embora para a resolução da atividade que formulamos seja
suficiente a leitura do resumo.
AMPLIANDO O CONHECIMENTO
Resumo
O conto começa com a personagem Ana voltando, de bonde, das compras, refle-
tindo sobre sua vida comum, corriqueira, mas sobre a qual ela tinha perfeito do-
mínio e controle. Era uma vida tranquila, sem novidades e imprevistos. Havia uma
hora perigosa, carregada de ameaças. Em certa hora da tarde ela se inquietava.
Mas sempre conseguia contrapor a esta situação a sua força e a sua energia.
Sentia necessidade de sentir-se segura e manter o controle de tudo. Os afazeres
domésticos a satisfaziam e faziam-na sentir-se em casa. Era uma maneira de
ocupar o tempo e fugir de si mesma. Tudo era familiar e tranquilo, sem surpresas.
Vivia para seu lar, para o marido e filhos. E, principalmente, vivia, senão feliz, ao
menos satisfeita, resignada. A única preocupação era prevenir-se contra a hora
perigosa. Logo, a vida voltaria ao normal e o perigo teria passado. E seguia ali-
mentando anonimamente a vida. “Estava bom assim. Assim ela o quisera e esco-
lhera.” De repente, algo inusitado ocorre. Seus olhos se detiveram num homem
parado no ponto. Era um cego. Um cego mascando chicles. Esse ato maquinal
feito na escuridão, certamente a fizera lembrar-se de sua vida sem sentido. Sen-
tiu uma profunda angústia. Por um momento ela conseguiu distrair -se e não
pensar no que vira. Mas, nem a custo, conseguia desviar a atenção. E ela sentiu
ódio. Nesse instante, o bonde deu uma arrancada brusca, fazendo com que o
saco de ovos e a sacola de tricô caíssem de seu colo. Ana deu um grito que fez
o condutor dar ordem de parada. Logo depois, o bonde deu partida. Tudo em seu
entorno se recompôs, menos ela. Algo havia acontecido e era irreversível. Come-
çou a ter sensações estranhas: a rede de tricô tornara-se áspera, as coisas foram
perdendo o sentido e estar no bonde era um fio partido. Expulsa de seus próprios
dias, parecia-lhe que as pessoas na rua eram periclitantes, que se mantinham por
um mínimo equilíbrio à tona da escuridão — e por um momento a falta de sentido
deixava-as tão livres que elas não sabiam para onde ir. O mundo manifestava-se
estranho, tudo a hostilizava. Houve um mal-estar geral e toda a sua existência se
desfez. Todo o seu empenho em apaziguar a vida ruiu de repente. A crise viera
afinal. Instantaneamente perdera toda a familiaridade com o mundo. Quando
saltou do bonde, no ponto errado, parecia ter saltado no meio da noite. Andando
sem saber para onde, foi dar ao Jardim Botânico. Aos poucos, tudo parecia mover-
54 UNIUBE
-se e ela começou uma viagem estranha ao mais recôndito de si e ela teve náu-
seas. Estava num universo diferente, que ela não reconhecia. Sentia-se ao mesmo
tempo fascinada e enojada, era um misto de prazer e horror. O seu mal-estar físico
foi aumentando num crescendo insuportável. De repente, lembrou-se das crianças
e disparou em desabalada corrida até chegar ao prédio onde morava. Quando
abriu a porta do apartamento, tudo se lhe reconstruiu num átimo. Ela ainda sentiu
uma estranheza, que foi aos poucos se desfazendo até que ruiu numa cadeira.
Tomou consciência de que agora tinha dois mundos e não mais apenas o seu
mundo cotidiano. O novo universo a chamava. Por um instante oscilou entre os
dois mundos. Mas, aos poucos, a vida anterior, cotidiana e doméstica, foi chegando
e trazendo a antiga e gostosa calmaria. A lembrança dos filhos, a presença do
marido, acabam retendo Ana à beira do abismo. Quando o marido a pega pela
mão chamando-a para dormir, afasta-a do perigo de viver. Acabara-se a vertigem
de bondade e Ana volta a se apaziguar.
Neste conto estão presentes alguns dos mais importantes temas (ou aspectos)
da filosofia de Heidegger. Este fala da existência inautêntica, isto é, a vida coti-
diana, com suas características. O homem sente-se jogado no mundo sem que
sua vontade tenha participado disso. Quando o homem se dá conta de que vive
uma existência inautêntica pode despertar-se para a busca do seu eu autêntico
e entregar-se ao estado de angústia ou, então, pode dar-se o caso de preferir
alienar-se novamente na existência cotidiana. Se ele preferir se desviar de seu
projeto essencial, em favor das preocupações cotidianas que o distraem e o
perturbam, confundindo-o com a massa coletiva, ocorre a ruína. Neste caso,
o eu individual é sacrificado ao persistente e opressivo eles. O ser humano em
sua vida cotidiana é reduzido à sua vida com os outros e para os outros,
alienando-se da sua verdadeira vocação, que seria o tornar-se si-mesmo. Ora,
a angústia é o único sentimento e modo de existência humana que pode con-
duzir o homem ao encontro de sua totalidade como ser e fazê-lo juntar os pe-
daços a que é reduzido pela sua imersão na monotonia da vida cotidiana.
Trata-se de um estado de consciência sem qualquer implicação com qualquer
coisa do mundo. Na angústia, todas as coisas do mundo desaparecem brusca-
mente como desprovidas de qualquer importância, tornam-se desprezíveis e
dissolvem-se na nulidade absoluta. A angústia envolve o homem com um sen-
timento de estranheza radical. Manifesta-se aí o desamparo, ou seja, dada a
estranheza radical provocada pela angústia onipresente o homem percebe que
todos os socorros e proteções são ineficazes para debelá-la; o homem sente-se
completamente perdido e desvalido. A angústia, segundo Benedito Nunes, con-
forme definida por Heidegger, em Ser e tempo, é diferente do medo. Tem-se
medo de algo definido, de um ser particular; tem-se angústia sem saber de quê.
UNIUBE 55
É para escapar da angústia que ele se refugia no cotidiano, onde, protegido por
uma crosta de palavras, por interesses fugidios e limitados, que não o satisfazem
completamente e apenas disfarçam o cuidado (Sorge) em que vive, passa a
existir de modo público e impessoal (NUNES, 1969, p. 94‑95). Diferente do
medo, o mal‑estar da angústia provém da insegurança de nossa condição, que
é, como possibilidade originária, puro estar‑aí (Da‑sein). Abandonado, entregue a
si mesmo, livre, o homem que se angustia vê diluir‑se a firmeza do mundo. O que
lhe era familiar torna‑se estranho, inóspito.
2.4 Conclusão
Chegamos, assim, ao final deste capítulo. Esperamos que você tenha se
convencido de que, realmente, não há como separar a análise da estrutura
de uma obra literária de sua respectiva avaliação, ou seja, do julgamento de
seu valor estético. Antes, porém, de encerrarmos a presente exposição,
devemos fazer uma reflexão de caráter mais geral sobre a relação entre a
literatura e a filosofia.
O domínio filosófico tem a sua soberania como a tem a arte. Em outras pa-
lavras, cada um tem seu plano, sua autonomia. Para que esta autonomia da
arte seja preservada, as ideias no romance devem ser apresentadas de modo
implícito e não de modo explícito, ou seja, devem ser apresentadas, no caso do
romance, através das ações das personagens e não através do diálogo, e no
caso da poesia, através das imagens ou das vivências do eu lírico, e não atra-
vés de puros conceitos. Pois, do contrário, a arte estaria a serviço da filoso-
fia. Se a arte constitui um domínio autônomo, soberano, para que esta
autonomia e esta soberania sejam preservadas, é necessário que as ideias
se adaptem ao regime da arte, subordinem-se às leis próprias da arte. So-
mente assim a relação entre a arte e a filosofia é posta de maneira correta,
ou seja, como uma relação de coordenação e não de subordinação. Isso
equivale a reconhecer que as ideias não constituem a finalidade (o fim) da
arte, mas apenas o seu objetivo (o meio). A finalidade da arte é uma finalidade
estética. O fim, ou meta da arte, consiste essencialmente em suscitar uma
determinada emoção, a emoção estética. O que sucede é que ela pode,
acidentalmente ou intencionalmente, transmitir ideias ou propor uma deter-
minada visão de mundo, ou seja, a arte pode ter por objetivo a transmissão
de ideias. Interessante observar que, em um romance mal realizado, as
coisas se invertem: as ideias, de objetivo, de meio, transformam‑se em fina-
lidade da obra e, consequentemente, a arte se transforma em objetivo, em
UNIUBE 57
Resumo
No presente capítulo, vimos que as noções de estrutura e de valor são indisso-
ciáveis, ou seja, chamamos a atenção para a impossibilidade de compreender
e analisar as obras literárias sem referência aos valores. Em outras palavras:
que o estudo da literatura não pode e não deve ser divorciado da crítica, que é
julgamento de valor. Em seguida, procuramos explicar o que significa dizer que
uma dada obra literária é bem‑sucedida, bem realizada artisticamente. Para
tanto, definindo nosso campo de observação, utilizamos o caso da incorporação
de ideias numa obra literária, seja romance ou poema. Inserimos um exemplo
de avaliação crítica, para que você pudesse perceber os aspectos que devem
ser observados na análise crítica de uma obra literária. Dois exemplos de ava-
liação de obras literárias completam o capítulo.
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Estudo analítico do
Capítulo
poema: procedimentos
3
de poetização do
nível fônico
Introdução
Vimos, em capítulo anterior de nossa autoria, a necessidade de sub-
meter o texto literário ao processo de análise. Vimos também que a
análise, segundo Candido (1996) — no caso específico do texto poé-
tico — é o levantamento analítico de elementos internos do poema,
sobretudo os ligados à sua construção fônica e semântica, e que tem
como resultado uma decomposição do poema em elementos, chegando
ao pormenor das últimas minúcias.
Objetivos
Após o estudo deste capítulo, esperamos que você seja capaz de:
Esquema
3.1 O fenômeno poético — nível fônico e nível semântico
3.2 Elementos estruturais da linguagem poética
3.2.1 O metro e o ritmo
3.2.2 Sistemas de metrificação
3.2.3 Sistemas de contagem
3.2.4 O verso livre
3.2.5 Tipos de versos
3.2.6 Tipos de estrofes
3.2.7 Tipos de poema
3.2.8 A rima
3.2.9 De acordo com a identidade de sons
3.2.10 Quanto à categoria gramatical
3.2.11 Versos brancos
3.2.12 Os sinais de pontuação
3.3 Processos intensificadores da linguagem poética
3.3.1 Reiteração
3.3.2 Anáfora
3.3.3 Aliteração
3.3.4 Assonância
3.3.5 Onomatopeia
3.3.6 Ilustração sonora
3.3.7 Simbolismo sonoro
3.3.8 Paralelismo
3.3.9 Refrão
3.4 Conclusão
UNIUBE 63
Verso é cada linha de um poema, e, neste sentido, pode ser definido como
uma unidade sonora (e visual). É uma palavra ou conjunto de palavras com
unidade rítmica. Este dado é importante, como você terá oportunidade de
perceber no decorrer do estudo. O que caracteriza o verso é o fato de ele ser
uma unidade rítmica. Há também os que preferem definir o verso como uma
sílaba ou sucessão de sílabas sujeitas à medida e ao ritmo (andamento e
cadência). Com esta ideia de medida, introduz-se a noção de metro. Metro,
que quer dizer “medida”, consiste no número de sílabas métricas, ou poéticas,
de um verso.
O metro é, de certa forma, exterior ao verso. Ele existe, por assim dizer, inde-
pendentemente da sua concretização pela palavra, ou seja, é um esquema
que existe independentemente de seu preenchimento linguístico. Ou, para
utilizar a imagem de Wolfgang Kayser (1968, p. 146):
Foi nesse sentido que Paul Valéry referiu-se a ele, a propósito de seu célebre
poema “Le cimetière marin” (O cemitério marinho). O poeta teria declarado que
o ritmo decassílabo desse poema o perseguia antes de o assunto e os elemen-
tos verbais do mesmo terem tomado forma em sua mente (apud AGUIAR E
SILVA, 1973, p. 201):
SAIBA MAIS
Talvez seja melhor distinguir dois tipos de ritmo, e falarmos, por exemplo, de
ritmo exterior e de ritmo interior. O ritmo exterior está relacionado ao metro,
ao esquema métrico adotado; o ritmo interior está relacionado ao preenchimento
linguístico. Wolfgang Kayser (1968, p. 44) ilustra esta distinção com duas estro-
fes, uma de Camões, outra de Sá-Carneiro. As duas estrofes apresentam o
mesmo metro, o mesmo esquema métrico, e, portanto, o ritmo exterior é o
mesmo. Mas quanta diferença no que se refere ao ritmo interior, que é determi-
nado pelas palavras utilizadas. Perceba você mesmo(a) a diferença, lendo as
estrofes em voz alta:
Camões:
Sá-Carneiro:
SAIBA MAIS
1o verso: C,A,B,C,C,A,B,A
2o verso: A,C,B,B,A,C,A
Nos dois casos — prossegue o autor —, observamos que os três tipos de síla-
bas se alternam. Se traduzirmos estas letras por uma curva, de que cada uma
seria um ponto constitutivo, teríamos, graficamente, espacialmente, representada
a ondulação de que se falava acima. Observe o gráfico a seguir.
SAIBA MAIS
O gazal é uma forma poética representativa do Oriente Médio; composto por quatro
a catorze versos ligados por rima, trata de assunto idílico e tem no poeta persa Hafiz,
do século XV, seu melhor realizador. Daí a homenagem de Manuel Bandeira.
O ritmo deve merecer, da parte do analista, uma atenção especial. Ele pode
revelar aspectos fundamentais do texto. Staiger (apud CANDIDO, 1996, p. 19)
diz que, antes de iniciar propriamente a análise, uma vez assegurada a pene-
tração simpática, o leitor deve apreender o ritmo, largo compasso do poema
sobre o qual repousa o estilo, sendo o elemento que unifica em um todo os
aspectos de uma obra de um artista. E diz mais:
68 UNIUBE
Os cavalinhos correndo,
E nós, cavalões, comendo...
Candido observa que uma leitura meramente silábica não adianta nada para a
compreensão dos mesmos, mas que, se lermos obedecendo rigorosamente
à pontuação, isto é, dando força às pausas determinadas pelas vírgulas, tere-
mos a combinação de um ritmo corredio com um ritmo picado:
Os cavalinhos correndo / /
E nós / / cavalões / / comendo.
Ou:
Segundo Candido (2001, p. 72), é fácil verificar que o segundo verso sugere um
forte movimento de galope, que ficará altamente sugestivo (e mesmo imitativo)
se o acentuarmos intencionalmente de maneira exagerada, extraindo, por assim
dizer, do staccato, a força virtual de um galope, que a nossa leitura obriga a
manifestar‑se.
Leve é o pássaro.
E a sua sombra voante
mais leve.
Numa estrutura de pares pentassilábicos, observa que há, nessa primeira estrofe,
grande diferença entre o primeiro e o segundo versos. Enquanto as sílabas do
primeiro são lentas e espaçadas, verificando-se o hiato com relação às vogais
e, é e o —
le / ve / é / o / pássaro —
o segundo verso abriga nada menos que três ditongos e grupos consonantais
que fazem com que o verso se precipite para o final de maneira que evoca a
ligeireza do voo do pássaro:
Neste caso, como normalmente se diz, a poesia faz o som ecoar o sentido.
SAIBA MAIS
Metro e ritmo são, assim, os elementos essenciais do verso. Há, além deles,
um elemento subsidiário, que é a rima, da qual falaremos mais adiante.
É pela contagem das sílabas métricas que se determina o tipo de metro. A esta
contagem se dá o nome de escansão. Escandir significa dividir o verso em sílabas
métricas ou poéticas, não sendo o mesmo que metrificar. Para dividir corretamente
as sílabas métricas ou poéticas de um verso, você deve saber que sílaba métrica
ou poética não é o mesmo que sílaba gramatical. Às vezes, duas sílabas gramati-
cais se juntam para formar uma sílaba métrica. Em razão disso, ao fazer a escansão,
você deve ter o cuidado de não adotar o critério gramatical na divisão das sílabas.
As sílabas gramaticais são estáticas, isoladas, enquanto as sílabas métricas ou
poéticas são dinâmicas, ou seja, devem ser vistas como partes de uma totalidade.
Assim, as sílabas métricas não são divididas pelo critério gramatical, mas pelos
tempos de enunciação do verso. A melhor forma de perceber isso é fazendo a leitura
dos versos em voz alta (lembrando-se sempre que o verso deve ser lido como uma
totalidade). Veja o poema, a seguir, do poeta português Miguel Torga.
SAIBA MAIS
EXEMPLIFICANDO!
Miniatura
Neste poema, você poderá perceber que, em alguns versos, há a coincidência entre
o número de sílabas gramaticais e o número de sílabas métricas. Mas não passa de
uma coincidência. O verso “Não me lembro de o ter sido”, tem nove sílabas gramati-
cais e apenas sete sílabas métricas. Houve a junção da preposição com o artigo
(de + o = dio), e a última sílaba, como é átona, não é contada. Quanto à primeira
ocorrência, a este processo se chama de acomodação; a outra ocorrência nos remete
aos sistemas de contagem, dos quais falaremos daqui a pouco.
SAIBA MAIS
Embora o ritmo e os efeitos de som possam causar prazer auditivo e ser até intrinse-
camente interessantes, essas questões técnicas de métrica, rima e estrofação
revestem-se de importância, sobretudo, na medida em que são pertinentes ao sentido
global que a peça ou o poema transmite. Examinar o esquema métrico ou de rima de
um soneto de Shakespeare, sem atentar para o que o soneto significa e como reali-
zou a sua intenção significativa, é ficar aquém de uma leitura crítica e não atingir o
principal objetivo da análise. (DANZIGER; JOHNSON, 1974, p. 87.)
/U U — /U U — / U U —/
O estudioso deve conhecer os dois sistemas, até porque, não raro, precisa lançar
mão de ambos na análise de poemas, para efeito de comparação. Antonio Can-
dido (2001, p. 43), por exemplo, ao analisar o poema “Meu sonho”, de Álvares
de Azevedo, refere‑se ao ritmo “anapéstico” do poema, atribuindo‑lhe o principal
papel na organização do mesmo: “a força unificadora do anapesto, extremamente
eficaz, supera o desequilíbrio das partes, fundindo “Eu” e “O Fantasma” num só
movimento”. O autor está se referindo ao fato de o poema ser escrito em versos
eneassílabos (cada eneassílabo sendo formado por três anapestos). Refere‑se
também ao fato de os românticos terem usado muito esse tipo de verso martelado
e sonoro, como ocorre, por exemplo, com Gonçalves Dias, particularmente no
“Canto do piaga”, em que é essencial para criar a atmosfera fantasmagórica de
pressentimentos sinistros e opressão moral, sendo possível que tenha inspirado
a opção métrica de “Meu sonho” (CANDIDO, 2001, p. 42).
Para escandir versos, existem dois sistemas de contagem das sílabas métricas
e de depreensão de seus esquemas: o primeiro — denominado contagem
francesa —, tomando por base o padrão agudo para fins de versos, não leva
em consideração na contagem as sílabas posteriores à última forte de cada
verso; o segundo — denominado contagem espanhola — baseia-se no padrão
grave, computando sempre uma sílaba além da última forte.
SAIBA MAIS
O privilégio de tal instituição cabe a Couto Guerreiro, pois já em 1784 (77 anos antes
de Castilho), publicara o Tratado de versificação portuguesa, no qual adota a con-
tagem silábica até a última tônica.
Há quem defenda o padrão grave com base no fato de ser esta a terminação
predominante das palavras e, consequentemente, dos versos de língua portu-
guesa. Entre os que defendem a contagem espanhola, estão Manuel da Costa
Honorato, Said Ali e Leodegário de Azevedo Filho. Este último propugna pela
volta ao uso tradicional, sob a alegação de ser este mais conforme à índole da
língua portuguesa (1971, p. 22):
Manuel Bandeira, por seu turno, sempre defendeu a contagem francesa. Seja
como for, o importante é saber que estes são apenas sistemas de contagem e,
como tais, não passam de convenções, que independem, em princípio, da na-
tureza da língua. Veja a seguir as línguas que utilizam cada um desses sistemas.
UNIUBE 75
provençal
Contagem francesa francês
português
italiano
Contagem espanhola
espanhol
1 2 3 4 5 6 7 8 9
/ (agudo)
/ (grave)
/ (esdrúxulo)
O verso livre costuma ser considerado como mais fácil de ser elaborado do que
o verso regular ou metrificado. Muito se engana quem pensa desta forma. Na
verdade, o verso livre é mais difícil. Vejamos o testemunho de Manuel Bandeira
(apud GOLDSTEIN, 1994, p. 37):
Mas verso livre cem por cento é aquele que não se socorre de
nenhum sinal exterior senão o da volta ao ponto de partida, à
esquerda da folha de papel: verso derivado de vertere, voltar.
À primeira vista, parece mais fácil de fazer do que o verso
metrificado. Mas é engano. Basta dizer que no verso livre o
poeta tem de criar seu ritmo sem auxílio de fora. [...] Sem dú-
vida, não custa nada escrever um trecho de prosa e depois
distribuí‑lo em linhas irregulares, obedecendo tão‑somente às
pausas do pensamento. Mas isso nunca foi verso livre. Se
fosse, qualquer um poderia pôr em verso até o último relatório
do Ministro da Fazenda.
Candido (1996, p. 50) observou também que o verso livre coloca dificuldades,
não só para os poetas como também para os estudiosos:
Que o verso livre apresenta igual ou maior dificuldade que o verso metrificado
e exige do poeta igual ou maior compromisso, foi reconhecido por T. S. Eliot
(1972, p. 58), ao observar que “nenhum verso é livre para o homem que quer
fazer um bom trabalho”.
IMPORTANTE!
A poesia moderna ‘permitiu’ a ilusão de ser a poesia fácil. Foi mesmo este um dos
argumentos mais reproduzidos por todos quantos procuravam ‘razões’ contra ela. É,
aliás, um argumento sob o qual se revela profundo pessimismo acerca da inteligência
humana: pois entenderão tais objetores que seja realmente difícil aprender a ‘fazer’
um soneto ou uma ode? Se tal fosse difícil, como havíamos de classificar as coisas
realmente... difíceis?!
Na realidade, afirmar a facilidade em fazer versos ‘sem medida’ nem rima será o
mesmo que fazê-lo... em relação à prosa! De onde se conclui que tal argumento
significa antes de mais nada o seguinte: ignorância de qual seja a dificuldade tanto
de fazer verso como prosa. Valery Larbaud escreveu, falando do verso livre, que ele
‘estabelece limites e restrições (contraintes) muito sutis, e mais difíceis de manter’,
do que o verso chamado ‘regular’. Mas, precisamente, não é isto coisa de aparência,
que salte aos olhos dos profanos — e, entre estes, há que contar todos aqueles que
se dispuseram a fazer versos ‘sem medida’ porque agora era fácil fazer poesia...
Mas, não nos iludamos! Como realmente também não era difícil fazer versos ‘regu-
lares’, a situação não se modificou; somente que, antes de deitar versos no papel, os
não-poetas de antigamente iam aprender nos tratados de versificação aquilo que lá
está — ao alcance de qualquer pessoa com algumas letras. A poesia era, e não dei-
xou de ser, difícil. A dificuldade nunca estivera na técnica de fazer versos, e continuou
a não estar na suposta falta de técnica do fazer versos livres. (MONTEIRO, 1965,
p. 113-114.)
Mas este não é o único mal-entendido que há a respeito do verso livre. Há outro,
ainda mais grave, que se manifesta quando se pretende analisar um poema em
versos livres.
Metade de verso.
3.2.6 Tipos de estrofes
A estrofe é formada pelo agrupamento dos versos e é definida tomando por base
o número de versos que a integram. Veja o Quadro 1.
Denominações no de versos
Dístico ou parelha 2
Terceto 3
Quadra ou quarteto 4
Quinteto ou quintilha 5
Sexteto ou sextilha 6
Sétima ou setilha ou setena ou hepteto 7
Oitava 8
Nona ou novena 9
Décima 10
UNIUBE 81
A disposição gráfica nem sempre condiz com a estrutura estrófica; esta é que
deve ser analisada para verificarse um agrupamento de versos constitui um
todo orgânico (dísticos que só o são na aparência, e que na verdade são quadras
a que o poeta deu disposição diversa).
Mário Faustino dos
Para ilustrar este aspecto, apresentamos um poema de Santos e Silva
Mário Faustino. À primeira vista, observando apenas a
disposição gráfica, temos a impressão de tratar‑se de um (Teresina, 22 de
outubro de 1930 —
poema em versos livres, tal a liberdade com que conjuga
Lima, 27 de novembro
versos de tamanhos variados, e no qual há, inclusive, ex- de 1962.) Foi
ploração do estrato óptico. No entanto, se considerarmos jornalista, tradutor,
crítico literário e poeta
a estrutura estrófica, veremos que se trata de um soneto
brasileiro. Morreu com
italiano. Para comprovar, faça a escansão dos versos. Você apenas 32 anos em
verá que o poema se compõe de quatorze versos decassí- um desastre aéreo no
Peru.
labos, distribuídos em dois quartetos e dois tercetos.
IMPORTANTE!
Monóstico — designa não propriamente uma estrofe, mas um verso destacado vi-
sualmente de uma estrofe, mas que lhe pertence organicamente.
10
10
10
10
10
10
O verso é uma unidade métrica e não uma unidade sintática. Desde o início
temos insistido neste aspecto. Isso leva à constatação de que há uma delimita-
ção do verso que não podemos perder de vista.
UNIUBE 83
Mas é preciso observar que o que o poeta faz, em casos como este, como bem
observou Jean Cohen (1974), é apenas reduzir ao mínimo a discordância entre
som e sentido. Este modo de proceder é comum aos poetas clássicos, em razão
do privilégio que concedem ao pensamento, ao aspecto lógico do texto.
Fernando Pessoa, através de seu heterônimo Ricardo Reis, deixou bem clara
esta subordinação do verso e do ritmo ao pensamento, conforme a concepção
clássica. O verso se curva às exigências lógicas, ao privilégio que se concede
ao conteúdo:
Mas, como assinalou Jean Cohen (1974, p. 55), para garantir uma convergência
total dos dois sistemas, seria necessário um paralelismo exato entre pausa
métrica e pausa semântica, ou seja, que a pausa de final de verso correspon-
desse sempre a certa pausa semântica — final de frase, por exemplo —, garan-
tindo assim a proporcionalidade. Por exemplo:
Quando lemos esta estrofe, devemos, ou não, fazer a pausa no final dos versos?
Pelo que vimos até aqui, tudo indica que a pausa deve ser mantida, mesmo em
casos como esse.
Se o poeta assim dispôs as palavras, foi para obter maior efeito expressivo e
não por simples capricho gráfico. E se as pausas se prendessem a uma intenção
puramente semântica, talvez as palavras melhor se combinassem assim:
A diferença entre os dois textos é grande. Basta observar que a palavra clareai
do primeiro verso fica reduzida à sua função verbal logo explicitada no objeto
direto estes ares, enquanto que na disposição dada pelo poeta é nítida a redu-
plicação do nome Clara em variação para clareai.
Isolada no último verso, clareai é expressão multívoca que funciona tanto atra-
vés do conteúdo verbal como através do latente conteúdo nominal e interjetivo.
1 Apontamento do próprio autor inserto por Eduardo Freitas da Cosa, com o título forjado de
“Poesia e Ritmo”, nas notas aos Poemas Dramáticos. In: PESSOA, Fernando. Obras completas
de Fernando Pessoa. Lisboa: Ática [col. “Poesia”] apud PESSOA, Fernando. Obra poética.
Org., introd. e notas de Maria Aliete Galhoz. Rio de Janeiro: José Aguilar Editora, 1972, p. 731.
UNIUBE 91
seu ritmo, sua melodia etc., como por seu lado a poesia tam-
bém possui composição.
3.2.7.1 Soneto
Soneto italiano: são quatorze versos distribuídos em quatro estrofes: dois quar-
tetos e dois tercetos. Foi criado na Itália, no século XIII, por Jácomo da Lentini
e alcançou a sua máxima perfeição com Dante e Petrarca. É o mais cultivado
dos poemas de forma fixa.
ou
3.2.7.2 Balada
3.2.7.3 Vilancete
3.2.7.4 Ode
3.2.7.5 Madrigal
Oriundo da Itália, é um grupo de três até cerca de vinte versos, sendo estes de
tamanho diverso e construção variada. Liberdade de rima e pode‑se usar até
versos sem rima. Em geral, no final, usa‑se uma parelha.
3.2.7.6 Elegia
Na maioria dos casos compõe‑se de catorze versos, usa só duas rimas e repete
os dois primeiros versos (eventualmente apenas o primeiro) no meio e no fim.
3.2.7.10 Sextina
3.2.8 A rima
a) emparelhadas: AABB
d) esdrúxulas
e) agudas ou masculinas
f) graves ou femininas
Quanto a este aspecto, as rimas podem ser pobres (quando de mesma catego-
ria gramatical: substantivo com substantivo, adjetivo com adjetivo, verbo com
verbo etc.) ou ricas (quando de categoria gramatical diferente).
SAIBA MAIS
Além de uma função métrica, há uma função semântica da rima: a rima tem signifi-
cado. A rima é sempre uma conexão sonora, mas que implica ou uma conexão se-
mântica ou um contraste semântico: o primeiro caso é aquele em que as palavras
que rimam pertencem à mesma classe gramatical (rima pobre ou gramatical); o se-
gundo caso é aquele em que as palavras que rimam pertencem a esferas semânticas
diferentes, ou seja, a classes gramaticais diferentes (rima rica ou antigramatical).
Um aspecto que não pode ser desprezado no que concerne às rimas foi ressal-
tado por Leodegário de Azevedo Filho (1971): o fato de a rima ser um fenômeno
de natureza essencialmente fonológica, podendo o poeta rimar nus com azuis,
ou espirais com Satanás, seguindo a nossa pronúncia coloquial, como fizeram,
respectivamente, Casimiro de Abreu e Castro Alves, nas duas estrofes seguintes:
São os versos que obedecem às regras métricas, mas não apresentam rimas.
Nesse período, cada unidade lógica está delimitada por uma vírgula ou ponto
final. Em um texto em prosa, as pausas são indicadas pelos sinais de pontuação.
Já no poema, as pausas da leitura podem ser marcadas pelos sinais de pon-
tuação, mas também pelos espaços em branco.
Muros
O pintor de olho vertical
Olha fixamente para o muro
Descobre pouco a pouco
Uma perna um braço um tronco
A cara de uma mulher
Uma floresta um peixe uma cidade
Uma constelação um navio
Muro, nuvem do pintor.
(MENDES, Murilo, 2010.)
Neste poema de Murilo Mendes, pode‑se perceber que o autor elimina os sinais
de pontuação no interior do texto. Por que teria procedido desta forma? Seria só
por que se trata de fazer uso de uma liberdade que lhe concede a poesia con-
temporânea, pouco afeita à pontuação lógica? Ou será porque se trata aqui de
um daqueles poemas “surrealistas” do autor, em que a sucessão de imagens
inusitadas pede uma estrutura que não combina com o arcabouço lógico? Nem
uma coisa nem outra. Não obstante a aparência, este é um poema muito simples.
O autor parece ter tido outras razões para agir assim. Senão vejamos.
O poeta está mostrando como o pintor trabalha. Para tanto, faz alusão a uma
experiência que, de alguma forma, todos conhecemos: vez por outra, ao olhar
para o céu, descobrimos imagens familiares em formas vagamente semelhantes
de nuvens. É conhecido também o hábito, muito comum entre os primitivos, de
projetar imagens no firmamento ou reconhecer a forma de um animal numa
constelação. E como não lembrar aqui o famoso método de “acelerar o espírito
de invenção” que Leonardo da Vinci recomendava aos artistas e que, certamente,
o poeta conhecia e que até — quem sabe? — pode ter sido uma de suas fontes
de inspiração? Eis o texto:
100 UNIUBE
Ora, as imagens sugeridas pelas ranhuras e manchas do muro não são imagens
claramente diferenciadas, mas apenas sugeridas, formadas ao acaso nesse
muro — metaforicamente denominado “nuvem de pintor”. Passa‑se de uma
imagem para outra de modo quase imperceptível. Trata‑se de um aglomerado
de aspectos que não são claramente discerníveis. Daí que para ser fiel a esta
experiência, o poeta tenha evitado os sinais de pontuação, que criariam limites
onde eles não existem. Você não acha que o poeta foi coerente procedendo
assim? Para efeito de contraste, você poderá observar a funcionalidade do
processo comparando os versos de Murilo Mendes com os de Shakespeare, na
peça Antônio e Cleópatra (Ato IV, Cena XII), em que se apresenta uma situa-
ção parecida, e nos quais o poeta inglês não podia, sobretudo em razão de ser
outro o contexto histórico e cultural em que viveu, sequer cogitar a possibilidade
de eliminar o balizamento lógico e racionalista de seu texto.
3.3.1 Reiteração
[...]
Night town.
Night town a glass.
Color mahogany.
Color mahogany center.
Rose is a rose is a rose is a rose.
Loveliness extreme.
Extra gaiters.
Loveliness extreme.
Sweetest ice‑cream.
Page ages page ages page ages.
[…]
(STEIN, Gertrude, 2010.)
3.3.2 Anáfora
3.3.3 Aliteração
Exemplo:
3.3.4 Assonância
Processo poético que consiste na repetição ordenada dos mesmos sons vocá-
licos para obtenção de efeitos de sonoridade expressiva; desempenha, por
vezes, o papel de rima, pondo em correspondência a última palavra de dois ou
mais versos. Neste caso é designada por rima toante.
Neste exemplo, a assonância é usada para sugerir o ruído do cricrilar dos grilos.
3.3.5 Onomatopeia
Neste caso, a expressão do signo reproduz os sons que ela designa. Observe
que, no exemplo, a seguir, de Manuel Bandeira, o poeta procura reproduzir o
som dos sinos.
UNIUBE 103
A cavalgada
O poema começa e termina por uma mesma frase. Estes dois versos apresen-
tam outra peculiaridade: são versos decassílabos sáficos, com esquema rítimico
10 (4‑8‑10). Os demais versos são decassílabos heroicos. O idêntico ritmo no
início e no final mostra que o cenário voltou a ser como era antes. Esse ritmo
só se altera nos versos que descrevem a aproximação e a passagem da comi-
tiva. O decassílabo sáfico marca o ritmo do cenário e o decassílabo heroico
marca o ritmo da cavalgada. Há, portanto, uma oposição entre dois ritmos. Mas
há no poema outros aspectos sonoros. Na primeira estrofe, nos versos 3 e 4,
há uma inversão sintática: o som da cavalgada chega antes dela. O verso 3
possui muitas vogais nasais para descrever o som distante. O verso 4 possui
consoantes próprias para descrever o galope. Na medida em que a cavalgada
se aproxima o ruído aumenta. O momento de maior proximidade — o clímax,
por assim dizer —, se dá na 3a estrofe, sobretudo nos dois primeiros versos do
primeiro terceto:
3.3.8 Paralelismo
3.3.9 Refrão
Versos que se repetem ao fim das estrofes de um poema, como ocorre nesta
estrofe de Tomás Antônio Gonzaga:
3.4 Conclusão
Terminamos, assim, nosso estudo dos procedimentos de poetização do nível
fônico. Nele, como você deve ter percebido, procuramos nos ater aos procedi-
mentos mais importantes, além de fornecer um grande número de exemplos para
106 UNIUBE
Resumo
Neste capítulo, iniciamos com a discussão sobre qual dos dois níveis, o fônico
e o semântico, é mais importante para a produção da poeticidade, e concluímos
que o semântico é o nível decisivo. Estudamos, depois, detalhadamente, os
elementos estruturais essenciais da linguagem poética, tais como o metro e o
ritmo, e os demais aspectos relacionados a eles, como os sistemas de metrifi-
cação, os sistemas de contagem dos versos, os problemas relacionados à es-
cansão dos versos, a tipologia dos versos, das estrofes e dos poemas. Vimos,
em seguida, a questão da rima, que é um dos elementos estruturais subsidiários
do verso. Abordamos também a questão da importância dos sinais de pontuação
para a produção de sentido do texto poético. Depois, voltamos nossa atenção
para os processos intensificadores da linguagem poética, pelo menos os mais
frequentes, como a reiteração, a anáfora, a aliteração, a assonância, a onoma-
topeia, a ilustração sonora, o simbolismo sonoro e, ainda, o paralelismo e o
refrão.
Referências
ABREU, Casimiro de. Disponível em: <http://www.dominiopublico.gov.br/download/texto/
wk000472.pdf>. Acesso em: 12 maio 2010.
AGUIAR E SILVA, Vítor Manuel de. Teoria da literatura. 3. ed. Lisboa: Almedina, 1973.
CAMARA JR., Joaquim Matoso. Dispersos. Rio de Janeiro: Fundação Getúlio Vargas, 1972.
CANDIDO, Antonio. Na sala de aula: caderno de análise literária. 8. ed. 3. imp. São Paulo:
Ática, 2001.
ELIOT, T. S. A essência da poesia: estudos e ensaios. Trad. de Maria Luiza Nogueira. Rio
de Janeiro: Artenova, 1972.
FAUSTINO, Mário. O homem e sua hora e outros poemas. São Paulo: Companhia das
Letras, 2002.
GOLDSTEIN, Norma. Versos, sons, ritmos. 8. ed. São Paulo: Ática. Série Princípios, 1994.
MONTEIRO, Adolfo Casais. A palavra essencial: estudos sobre a poesia. São Paulo:
Companhia Editora Nacional/Editora da Universidade de São Paulo, 1965.
______. Obra poética. Org., introd. e notas de Maria Aliete Galhoz. Rio de Janeiro: José
Aguilar Editora, 1972.
______. Poesia e prosa. Seleção, prefácio e notas de Carlos Felipe Moisés. São Paulo:
Cultrix, 1974.
110 UNIUBE
RAMOS, Maria Luiza. Fenomenologia da obra literária. 3. ed. Rio de Janeiro; Forense
‑Universitária, 1974.
Introdução
Após estudarmos os procedimentos de poetização do nível fônico, tema
de nosso capítulo anterior, devemos nos voltar agora para os procedi-
mentos de poetização do nível semântico. Estudaremos, primeiramente,
as modalidades de palavras figuradas: a comparação, a metáfora, o
símbolo e a alegoria; em seguida, faremos uma breve reflexão sobre a
natureza da metáfora. Depois, focalizaremos dois outros grupos de fi-
guras: no primeiro, estudaremos a metonímia e a sinédoque, no outro
grupo, a antítese, o paradoxo e a ironia. Outros aspectos importantes
que interessam à análise do poema, mas que ultrapassam os limites
do presente capítulo, tais como o vocabulário, as categorias gramaticais
e a organização sintática, foram apenas mencionados, ao final, de forma
a dar algumas breves indicações de como podem contribuir para a
produção de sentido de um texto poético.
Objetivos
Após o estudo deste capítulo, esperamos que você seja capaz de:
Esquema
4.1 Linguagem direta e linguagem figurada
4.2. As modalidades de palavras figuradas
4.2.1 Comparação ou símile
4.2.2 Metáfora
4.2.3 O mecanismo da metáfora
4.2.4 A natureza da metáfora
4.3 Outras figuras
4.3.1 Metonímia e sinédoque
4.3.2 Excurso: predominância metafórica e predominân-
cia metonímica
4.3.3 A antítese e o paradoxo; a ironia
4.4 O vocabulário, as categorias gramaticais e a organização
sintática
4.5 Conclusão
A poesia é geralmente associada àquela “dicção poética” especial por meio da qual
os peixes se convertem na “piscosa tribo” e os pássaros em “bando emplumado”, e
em que os ratos não podem ser mencionados a não ser sob o disfarce de “a pestilenta
raça bigoduda”. Nesta mesma linha de raciocínio, Lorde Chesterfield explicou ao seu
UNIUBE 113
Você deve ter percebido que aí se estabelece uma relação entre linguagem
direta e linguagem corrente, de um lado, e, de outro, entre linguagem figurada
e linguagem poética. Para facilitar, poderíamos representar esta relação da
seguinte forma:
Certamente, você deve ter percebido que a relação não pode ser colocada
nestes termos. Trata-se aí de uma grosseira simplificação. Sabemos hoje que
a linguagem direta e a linguagem figurada podem, ambas, manifestar-se tanto
na linguagem corrente como na linguagem poética. A linguagem figurada não
está restrita à linguagem poética nem a linguagem direta está confinada à lin-
guagem corrente. Na poesia, o poeta pode perfeitamente utilizar as expressões
“peixes” e “pássaros” e não, necessariamente, as expressões figuradas que lhe
correspondem. O próprio Lorde Chesterfield, iludido por esta distinção, acaba
colocando em evidência a fragilidade desta: não percebeu que as expressões
“alvorada” e “nascer do dia” são expressões figuradas, tanto quanto “a Aurora
desdobrou seu róseo manto”, e podem ser usadas perfeitamente na poesia.
Como você terá oportunidade de observar, não é a palavra ou a expressão em
si mesma, utilizada na poesia, que determina se o texto é poético ou não; isso
é decidido ao nível do texto como um todo.
Este foi talvez o grande erro de Jean Cohen ao analisar a linguagem poética
(1974). Este autor também entendeu que a linguagem figurada estaria restrita
à poesia. Assim, a poesia se definiria a partir do uso da linguagem figurada: “O
fato poético — diz ele — começa a partir do momento em que o mar é chamado
‘teto’ e os navios ‘pombas’”. (COHEN, 1974, p. 40). Em outro momento, frisa:
“A lua é poética como ‘rainha da noite’ ou como ‘foice de ouro’; é prosaica como
‘o satélite da Terra’”. (COHEN, 1974, p. 36.) Ora, isso excluiria do domínio poé-
114 UNIUBE
Assim, o poeta, de um modo geral, faz uso das palavras em sentido figurado e
em sentido próprio. Ora, como os dois tipos de linguagem — a linguagem direta
e a linguagem figurada — podem ocorrer na poesia, devemos conhecê‑las me-
lhor. Serviu‑nos de base, entre outros textos importantes de vários autores,
principalmente o trabalho desenvolvido por Antonio Candido em O estudo ana-
lítico do poema (1996), sob a designação geral do que ele chama “as unidades
expressivas” e que constituem a linguagem poética propriamente dita.
Na linguagem direta, as palavras são usadas no seu sentido próprio, sem que
haja alguma alteração do conceito a transmitir. A linguagem é usada sem nenhum
tipo de distorção de sentido. Quando a palavra é empregada no sentido usual, da
forma como é habitualmente entendida por todos os membros de uma comunidade,
dizemos que ela tem um sentido próprio, também chamado denotativo.
É o que ocorre quando dizemos, por exemplo, que “a investigação está sendo
realizada com extrema rapidez”. Ou quando dizemos “minha irmã é bondosa”.
Mas a palavra pode sugerir ou evocar, por associação, outras ideias. Se afir-
marmos que “a investigação caminha a passos largos”, ou “minha irmã é um
anjo”, neste caso, dizemos que as palavras foram usadas em sentido figurado.
Nesses exemplos ocorreu uma transferência de sentido; os atributos de uma
palavra são transmitidos de uma palavra ou categoria de palavras para outras.
Em suma: criam‑se metáforas, isto é, transferências de sentido.
SAIBA MAIS
O termo “metáfora” é usado, por vezes, como sinônimo de “figura”. Isso se explica
porque a metáfora é a principal figura, ou o principal tropo, que serve de base, por
assim dizer, a todos os outros. Tanto o seu nome como a sua definição correspondem
à de tropo. Por isso costuma-se dizer indistintamente figura ou metáfora.
Candido (1996, p. 70) observa que “o povo, como é fácil verificar, sobretudo no
campo, tem inclinação acentuada para a linguagem metafórica, principalmente
sob a forma de comparação”. E cita o famoso dito de Boileau, para quem o ar-
senal mais rico de imagens não era a literatura, mas a fala da plebe de Paris no
Mercado Central “les Halles”. Frisa, depois, que as pessoas cultivadas usam
menos frequentemente a comparação intencional, mas falam, incessantemente
por transferências de sentido, sem perceberem.
Esta mesma metáfora (“decolar”) foi usada por Antonio Candido (1996, p. 73).
Ao referir-se à incapacidade do poeta Mário de Andrade, principalmente em
Losango cáqui, de fazer o sentido geral figurado se desprender do prosaísmo
de cada palavra, o crítico diz: “A poesia em tais casos, não decola, — no sentido
de que um avião não decola”.
UNIUBE 117
Para nós importa saber que as duas modalidades de expressão se fazem pre-
sentes também na poesia. O poeta faz uso das palavras em sentido próprio e
em sentido figurado. Mas, tanto em um caso como no outro, usa as palavras de
um modo diferente do que ocorre na linguagem corrente. As palavras em sentido
próprio, como observou Candido (1996), são geralmente dirigidas pelo poeta
conforme um intuito que desloca o seu sentido geral; as palavras com sentido
figurado são usadas com um senso de pesquisa expressional, de criação, de
beleza, exploradas sistematicamente, o que lhes confere uma dignidade e um
alcance diversos dos que ocorrem na fala diária.
Assim, mesmo quando faz uso das palavras em sentido próprio, o poeta acaba
produzindo linguagem figurada. O estatuto das palavras se altera. Esta alteração
se dá no âmbito mesmo do poema, ou seja, ela ocorre não ao nível das palavras,
mas ao nível do poema como um todo. A sequência de palavras ou o poema
todo se apresenta como uma superimagem.
Podemos pensar até mesmo em um caso extremo: pode ocorrer de o poeta não
usar uma só palavra figurada, mas construir de tal modo o texto que as palavras
em sentido próprio tenham seu estatuto alterado, produzindo um todo figurado,
uma outra realidade diferente do que as palavras exprimem em sentido próprio.
Foi o que fez Manuel Bandeira, no poema a seguir, extraído de Candido
(1996, p.72).
O major
O major morreu.
Reformado.
Veterano da guerra do Paraguai.
Herói da ponte de Itororó.
Apenas
À hora do enterro
O corneteiro de um batalhão de linha
Deu à boca do túmulo
O toque de silêncio.
(BANDEIRA, Manuel, apud CANDIDO, 1996, p. 72.)
Bebeu
Cantou
Dançou
Depois se atirou na Lagoa Rodrigo de Freitas e morreu afogado.
(ANDRADE, Mario de, apud ARRIGUCCI, 1983, p.116.)
Aliás, esse tipo de poema — exatamente por se situar nesse limite de extraor-
dinária importância, o limite entre a prosa e a poesia — tem sido objeto de grande
interesse por parte dos estudiosos, sobretudo quando estão no encalço da lite‑
rariedade. Quem soube tirar proveito desse tipo de situação foi Jonathan Culler.
Veja o que ele diz (1995, p. 54‑55):
E cita, em seguida, para ilustrar, o exemplo que ele encontrou em Genette (1969,
p. 150), mas que, na verdade, foi inventado por Jean Cohen (1966), muito se-
melhante àquele citado há pouco, de Bandeira:
E conclui:
SAIBA MAIS
Fait-divers
SAIBA MAIS
Antônio Gedeão
publicou o seu primeiro livro de poemas, Movimento perpétuo. Uniu, de forma exem-
plar, através de sua obra, a ciência e a poesia, como se pôde ver por esta “Lição
sobre a água”. De sua leitura fica a impressão de que é o cientista que fala nas duas
primeiras estrofes, para, na estrofe final, ceder a voz ao poeta.
Este poema é outro bom exemplo de como se pode fazer poesia com palavras
e expressões que, em si mesmas, nada têm de poéticas, mas que acabam
adquirindo uma nova dimensão, graças ao contexto. As duas primeiras estrofes
são escritas numa linguagem que dificilmente esperaríamos encontrar em um
poema. Veja, no entanto, como a leitura da terceira estrofe nos obriga a reler as
duas primeiras de uma forma modificada, assumindo as palavras e expressões
uma dimensão igualmente conotativa ou figurada.
SINTETIZANDO...
O essencial do que vimos até aqui foi bem sintetizado por Ferreira Gullar. (Apud
GESSA, 2007, p. 170-1.) Segundo este crítico, não existem elementos poéticos em
si mesmos, assim como não existem palavras por si mesmas poéticas. Todos os
elementos da língua são e não são poéticos, dependendo da função específica que
exercem dentro de determinado contexto verbal. A poesia é fruto, portanto, de um
processo complexo do qual participam todos os elementos do poema. É o processo
de elaboração da linguagem pelo poeta que transfigura os elementos verbais e faz
com que neles aflore a intensidade da expressão poética. As palavras tornam-se
poéticas em um determinado contexto à medida que estabelecem relações conectivas,
sintáticas, gramaticais, semânticas, sonoras etc.
Com estas informações, podemos iniciar nosso estudo dos processos imagís-
ticos.
A=B
Neste caso, ambos os termos estão unidos por uma partícula comparativa:
“como”, “tal como”, “assim como”, “tal qual” etc.
EXEMPLIFICANDO!
Conectivo = como
4.2.2 Metáfora
SAIBA MAIS
Tertium comparationis
São os traços semânticos que dois termos têm em comum e que tornam possível a
comparação entre eles. É a área ou zona de semelhança ou de interseção existente
entre os termos.
A, B ou A é B
UNIUBE 125
Neste caso, o termo real (A) recebe o termo ideal (B) como aposto ou como
predicativo.
Veja um exemplo em que o termo real (A) recebe o termo ideal (B) como aposto:
Muros
O pintor de olho vertical
Olha fixamente para o muro
Descobre pouco a pouco
Uma perna um braço um tronco
A cara de uma mulher
Uma floresta um peixe uma cidade
Uma constelação um navio
Muro, nuvem do pintor.
(MENDES, Murilo, 2010.)
Às vezes, pode ocorrer de esta estrutura sintática do aposto não estar muito
clara, pelo fato de o termo ideal estar distante do termo real, distância esta não
abonada pela sintaxe. Isso, porém, não implica numa classificação em outra
categoria. Até porque, no caso em questão, a distância se dá em relação ao
núcleo do termo real, “Mar”, sendo possível considerar o termo real de uma
forma ampliada: “Mar, belo mar selvagem/ das nossas praias solitárias”. Eis o
exemplo:
Vejamos agora um exemplo em que o termo real (A) recebe o termo ideal (B)
como predicativo:
Observação: estes dois casos (A, B e A é B) são classificados por alguns au-
tores, como é o caso de Nelly Novaes Coelho (1980, p. 76‑7), como imagem.
Nestes casos, como o poeta trabalha com os dois termos claramente expressos,
a metáfora é interpretada com facilidade. O mesmo acontece naqueles casos
em que está presente um elemento pertencente ao termo real, como nas
expressões “o sol de teus cabelos” (= o loiro dos cabelos), “as pérolas de sua
boca” (= dentes), “O rio que nos leva para a morte” (= vida), “O veludo de
suas mãos” (= a maciez). Quando alguém diz, ao referir‑se à claridade do dia
ou à luz do sol, por exemplo, que “a luz inunda todo o vale”, está produzindo
uma metáfora desse tipo, facilmente compreensível: todos entendem que ele
está comparando a torrente de luz com o grande fluxo de águas do dilúvio. Antero
de Quental procedeu de forma semelhante ao criar a metáfora do primeiro verso
do poema “Lamento”.
Lamento
4.2.3.1 A alegoria
Sahara Vitae
Este poema, que foi inspirado em ”La caravane”, do seu mestre Théophile Gau-
tier, é um ótimo exemplo de alegoria. Nele, “a alegoria é clara”, diz Candido, na
análise que fez deste poema (1987, p. 137‑143). O poema apresenta a vida
como luta do homem contra as adversidades de um mundo indiferente e que
deixa perceber três momentos claramente delineados: nos dois quartetos, uma
caminhada, no primeiro terceto, uma tempestade que tudo destrói, no último
terceto, um cenário, como se apresenta de novo, após a tormenta: tranquilo e
sereno. Não se trata aqui simplesmente da descrição de uma tempestade que
se abateu sobre uma determinada região desértica. Não — e o próprio título
no‑lo assegura — trata‑se aqui de uma representação sintética da própria tra-
jetória do homem na vida até a morte, restando, ao final, apenas um cenário
vazio. Outro poema, muito próximo deste pela temática e que pode ser lido como
uma alegoria é o soneto, também parnasiano, “A cavalgada”, de Raimundo
Correia. (ver o capítulo “Estudo analítico do poema: procedimentos de poetiza-
ção do nível fônico”). Mas, nesse poema, o caráter alegórico é menos nítido.
Trata‑se mais de uma alternativa de leitura do que da natureza alegórica do
próprio texto.
Assim, na alegoria, o plano literal vale por si, mas só adquire a sua real signifi-
cação quando transposto para o plano figurado. A alegoria é muitas vezes de-
finida como uma metáfora ampliada ou desdobrada, ou, como dizia Quintiliano,
no Institutiones Oratoriae (apud CEIA, 2007), uma “metáfora continuada que
mostra uma coisa pelas palavras e outra pelo sentido”. A metáfora trabalha com
termos isolados; a alegoria, estende‑se a expressões ou textos inteiros. Cícero
fez idêntico paralelo no De Oratore: a alegoria é vista como um conjunto ou
sequência de metáforas. (apud CEIA, 2007.)
130 UNIUBE
Por este exemplo, como bem observou Norma Goldstein (1994, p. 65), fica claro
que, na alegoria,
4. uma intenção consciente do poeta que se torna clara para o leitor (ocultação
provisória).
UNIUBE 131
SAIBA MAIS
4.2.3.2 Símbolo
De um modo geral, o símbolo é uma figura que consiste em atribuir a uma coisa
(ser, objeto) concreta um sentido abstrato. Para Saussure (1959, p. 82),
Mas, como observou Garcia (1986), muitos símbolos, entretanto, parecem to-
talmente arbitrários, imotivados, tão sutis e tão distantes são as relações (de
contiguidade, causalidade ou similaridade) entre a coisa e aquilo que ela repre-
senta, dando assim a impressão de resultar de pura e gratuita convenção entre
os membros de uma dada comunidade ou uma dada cultura. É o que acontece,
por exemplo, com as cores, às quais se atribui determinado sentido figurado.
Para Nelly Novaes Coelho (1980, p. 81), o símbolo é uma metáfora que se repete
e se universaliza. E cita o seguinte exemplo do corvo, que é símbolo de mau
agouro, do prenúncio da morte, como se pode ver nesta estrofe de Bocage:
132 UNIUBE
Meu sonho
Eu
O Fantasma
E completa:
Segundo o autor,
3. às vezes pode acontecer que esta não exista e o símbolo decorra inconscien-
temente da sua criação.
Candido cita o poema “Canção das duas Índias”, de Manuel Bandeira, como
exemplo de símbolo, em razão de seu mistério, da falta de descrição de qualquer
realidade clara, da ausência de elemento narrativo e onde há uma série de
símbolos parciais de fuga, de alheamento, de devaneio sexual, convergindo
para formar um significado que parece o da utopia amorosa, mas que pode ser
o da impossibilidade de amar realmente:
Isso ensejou ao escritor uma reflexão sobre o papel da metáfora, com a ajuda
de Fernando Pessoa:
Este o lucro adicional que se obtém com o livro de Rubem Alves: seja relatando
sua própria experiência ou a de outros poetas e pensadores, o autor acaba
compondo um grande elogio à metáfora, destacando a sua importância como
meio de expressão e de comunicação.
CURIOSIDADE
“Sugiro um nome diferente para essa idade, que não é ironia, mas poesia: ‘Pessoas
portadoras de crepúsculos no seu olhar”.
SAIBA MAIS
Pablo Neruda
“Mas o que é isso? Metáforas?”, pergunta Mário a Neruda. O poeta lhe responde
que essa palavra difícil de dizer é o que todo mundo faz quando tem que inven-
tar um jeito para falar de algo por intermédio da imagem de uma outra coisa.
Essa figura de linguagem é um veículo e tanto, observa Bernardo Jefferson de
Oliveira (2003, p. 130), lembrando-se do sentido etimológico da palavra, ao
comentar esta passagem do filme. Em grego, meta quer dizer “além” e fora quer
dizer “levar”, “transferir” e “carregar”. É por isso — completa — que no grego
coloquial dos dias de hoje esse é o nome que se dá aos ônibus. Vamos pegar
esta metáfora? — brinca o autor fazendo um trocadilho (que é, por sua vez, uma
modalidade de metáfora).
Neste poema, o poeta propõe uma analogia entre a imagem da vaca e a imagem
da mãe (ou da ama). O poema todo é uma grande metáfora. Trata-se, indiscu-
tivelmente, de uma relação subjetiva. Outras pessoas poderiam objetar a esta
relação, achá-la, se não grosseira, pelo menos de mau gosto, não obstante o
modo carinhoso e cheio de ternura com que o poeta trata a figura da mãe (ou
da ama). Em todo o caso, trata-se aqui de uma relação estabelecida pelo poeta,
e que não está relacionada à natureza dos objetos envolvidos. Poder-se-ia até
mesmo dizer que o poeta usou aqui a figura da vaca como um processo de
singularização, visando a um efeito de estranhamento — no sentido proposto
pelos formalistas russos —, para que nós possamos ver a mãe (ou a ama) por
um novo prisma, até então insuspeitado.
SAIBA MAIS
Singularização
SAIBA MAIS
SAIBA MAIS
“As metáforas não devem ser tomadas de longe, mas de objetos que pertençam a
um gênero próximo ou a uma espécie semelhante, de maneira que se dê um nome
àquilo que até aí não o tinha e veja-se claramente que o objeto designado pertence
ao mesmo gênero.” (Livro III da Retórica apud MOISÉS, 1974, p. 327.)
É por esta razão também que se diz que a metáfora é muito mais radical do que
a comparação, pois suprime-se o termo comparativo. Embora ambas impliquem
numa “mudança de sentido”. Na comparação, observa Candido (1996, p. 89),
a semelhança é estabelecida subjetivamente, mas por meio de um nexo com-
parativo, que preserva a identidade de cada termo. Quando digo “És bela como
a rosa”, temos claramente, de um lado, a ideia de uma mulher, e, de outro, a de
uma rosa, ligados pela expressão comparativa “como”. Mas quando digo “Lírio
do vale oriental, brilhante” (Castro Alves, apud CANDIDO, 1996, p. 89), é como
se a realidade da mulher se transpusesse para uma realidade outra, sem qual-
quer nexo lógico.
140 UNIUBE
O primeiro autor a tratar da metáfora foi Aristóteles. Para ele, a comparação (ele
diz “imagem”) e a metáfora repousavam sobre o mesmo processo mental; mas
já diferençava claramente o seu grau de intensidade num caso e no outro:
SAIBA MAIS
Neste caso, segundo Candido (1996, p. 89-90), poder-se-ia dizer que a metáfora
quebra a barreira entre as palavras comparadas, criando uma espécie de rea-
lidade nova. E completa:
SAIBA MAIS
Quando um crítico escreve ter sido Machado de Assis influenciado por Sterne
quer dizer que Machado de Assis foi influenciado pela leitura da obra de
Sterne e não, diretamente, pelo autor.
Sinédoque é a figura pela qual fazemos conhecer mais ou menos do que signi-
ficam as palavras em seu sentido próprio, numa relação de compreensão: todo
pela parte; singular pelo plural; espécie pelo gênero; a matéria pelo objeto ou
artefato; abstrato pelo concreto.
A uma casa chama‑se teto. Assim, “sem teto” é aquele que não possui uma casa
para morar.
Para Jakobson, o polo metafórico tem sentido lato, englobando não apenas a
metáfora propriamente dita, mas outras figuras que envolvam relações de simi-
laridade. O polo metonímico, por sua vez, engloba não apenas a metonímia
propriamente dita, mas todas as figuras que envolvem relações de contiguidade.
Com esta amplitude, o linguista vislumbrou nesta distinção um princípio de
classificação não só das obras literárias, mas também de outros tipos de lingua-
gem artística.
Assim, por exemplo, no plano da metáfora estariam os cantos líricos russos (e,
por extensão, qualquer texto lírico), as obras do romantismo e do simbolismo,
a pintura surrealista, os filmes de Charles Chaplin e Eisenstein, e os símbolos
freudianos dos sonhos. No plano da metonímia, estariam as epopeias heroicas,
as narrativas da escola realista, a pintura cubista, os filmes de Griffith e os so-
nhos por deslocamento ou condensação. Para ilustrar a importância que assume
144 UNIUBE
Na segunda parte, dá‑se o mesmo: o autor está querendo dizer que o porteiro
trazia uma lanterna na mão e à luz dela inspecionou os visitantes.
Eis um outro exemplo extraído do mesmo livro para você exercitar sua capa
cidade de interpretação:
4.3.3.1 Antítese
A antítese é uma das figuras mais frequentes na poesia. Não raro, encontramo
‑la como elemento mais proeminente de um texto: às vezes, as antíteses apa-
recem como elementos estruturantes de um poema. É o que ocorre, por
exemplo, na “Lira 77” de Tomás Antônio Gonzaga. Ao analisá‑la, Candido (2001,
p. 30) pôde constatar a presença de vários pares antitéticos, formando tensões:
rusticidade X refinamento
enunciado direto X alegoria
tranquilidade X desgraça
espaço destruído X espaço redimido
passado X futuro
realidade X sonho (devaneio)
146 UNIUBE
4.3.3.2 Paradoxo
Ulisses
EXPLICANDO MELHOR
SAIBA MAIS
4.3.3.3 Ironia
Os cavalinhos correndo,
E nós, cavalões, comendo...
Tua beleza, Esmeralda,
Acabou me enlouquecendo.
Os cavalinhos correndo,
E nós, cavalões, comendo...
O sol tão claro lá fora,
E em minh’alma — anoitecendo!
Os cavalinhos correndo,
E nós, cavalões, comendo...
Alfonso Reyes partindo,
E tanta gente ficando...
Os cavalinhos correndo,
E nós, cavalões, comendo...
A Itália falando grosso,
A Europa se avacalhando...
Os cavalinhos correndo,
E nós, cavalões, comendo...
O Brasil politicando,
Nossa! A poesia morrendo...
O sol tão claro lá fora,
O sol tão claro, Esmeralda,
E em minh’alma — anoitecendo!
(BANDEIRA, Manuel, apud CANDIDO, 2001, p. 68‑69.)
Na análise que fez deste poema (da qual apresentamos uma síntese no capítulo
1 (“Leitura do texto literário: metodologia da leitura crítica”), Candido (2001, p. 77)
chega à constatação de que ele se rege por contradições, de que a sua estrutura
é contraditória, marcada pela recorrência de um dístico irônico — Os cavalinhos
correndo,/ E nós, cavalões, comendo...
Beleza X loucura
Sol claro X alma escura
Um bom que vai X maus que ficam
País prepotente X países submissos
Politiqueiros ativos X poesia perecendo
UNIUBE 149
Ela domina de tal modo que não dá muito lugar para as outras
figuras, usualmente mais importantes ou mais frequentes do
que ela, como a metáfora, a metonímia, a sinédoque. Neste
poema, as metáforas são do tipo usual, isto é, desgastadas
pela incorporação à fala corrente: enlouquecer de amor, anoi-
tecer na alma, morrer a poesia. É verdade que a ironia central
se constrói sobre uma metáfora (homem = cavalo); mas de
importância menor em face do seu envolvimento por aquela.
(CANDIDO, 2001, p. 77.)
E conclui:
4.5 Conclusão
Chegamos, assim, ao final deste capítulo sobre os procedimentos de poetização
do nível semântico. Fecha‑se aqui um ciclo de estudos, iniciado com o primeiro
capítulo deste volume, em que abordamos a questão da metodologia da leitura
crítica. Estes quatro capítulos formam uma unidade, porque há entre eles uma
UNIUBE 151
Resumo
Neste capítulo, iniciamos o estudo pela distinção entre linguagem direta e lin-
guagem figurada. Ao fazermos tal distinção, foi possível reconhecer que o que
determina se um texto é poético ou não só pode ser decidido ao nível do texto
e não ao nível da palavra ou expressão. Estudamos, em seguida, as modalida-
des de palavras figuradas, tais como a comparação, a metáfora, o símbolo e a
alegoria. O estudo dessas figuras foi precedido de uma introdução de como se
dá a transfiguração da realidade em imagens. Na oportunidade, refletimos sobre
a natureza da metáfora e estudamos também o mecanismo da metáfora.
Focalizamos, depois, dois outros grupos de figuras: no primeiro, estudamos a
metonímia e a sinédoque; no outro grupo, vimos a antítese, o paradoxo e a iro-
nia. Concluímos com uma referência breve a outros aspectos importantes, que
também interessam à análise do poema, na medida em que contribuem para a
produção de sentido do texto poético, mas que estão fora dos limites fixados
para o capítulo, tais como o vocabulário, as categorias gramaticais e a organi-
zação sintática.
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