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Literatura Brasileira

Alexandre Bonafim Felizardo

Helena Borges Ferreira

Maria Aura Marques Aidar

Vânia Maria Resende

Susana Ramos Ventura


© 2017 by Universidade de Uberaba

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reproduzida ou transmitida de qualquer modo ou por qualquer outro meio, eletrônico
ou mecânico, incluindo fotocópia, gravação ou qualquer outro tipo de sistema de
armazenamento e transmissão de informação, sem prévia autorização, por escrito,
da Universidade de Uberaba.

Universidade de Uberaba

Reitor
Marcelo Palmério

Pró-Reitor de Educação a Distância


Fernando César Marra e Silva

Coordenação de Graduação a Distância


Sílvia Denise dos Santos Bisinotto

Editoração e Arte
Produção de Materiais Didáticos-Uniube

Projeto da capa
Agência Experimental Portfólio

Edição
Universidade de Uberaba
Av. Nenê Sabino, 1801 – Bairro Universitário

Catalogação elaborada pelo Setor de Referência da Biblioteca Central UNIUBE

L712 Literatura brasileira / Alexandre Bonafim Felizardo ... [et al.]. –


Uberaba : Universidade de Uberaba, 2016.

208 p.

Programa de Educação a Distância – Universidade de Uberaba.


ISBN 978-85-7777-601-6

1. Literatura brasileira. 2. Escritores brasileiros. I. Felizardo,


Alexandre Bonafim. II. Universidade de Uberaba. Programa de
Educação a Distância.

CDD B869
Sobre os autores
Alexandre Bonafim Felizardo

Mestre em Estudos Literários pela Universidade Estadual Paulista Júlio


de Mesquita Filho – UNESP. Especialista em Fundamentos Críticos da
Literatura pela Universidade Estadual Paulista Júlio de Mesquita Filho
– UNESP. Graduado em Letras pelo Centro Universitário Claretiano
de Batatais – CEUCLAR. Tem experiência na área de Letras, com
ênfase em Literatura Brasileira e Portuguesa. Professor de literatura da
Universidade Estadual de Goiás – UEG.

Helena Borges Ferreira

Mestre em Educação pela Universidade de Uberaba-Uniube. Especialista


em Linguística Aplicada pela Universidade Federal de Uberlândia.
Graduada em Letras Português-Inglês pela Universidade de Uberaba.
Professora nos cursos de Comunicação Social e Pedagogia e atua,
também, como Professora Referência do curso de Letras a distância
na Universidade de Uberaba-Uniube.

Maria Aura Marques Aidar

Doutora e Mestre em História Social pela Universidade Federal de


Uberlândia (UFU). Especialista em Docência Universitária e em Educação
a Distância pela Universidade de Uberaba (Uniube). Licenciada em
História pela Universidade de Uberaba (Uniube). Gestora e professora
do curso de História da Universidade de Uberaba (Uniube). Professora
do curso de Pedagogia da Universidade de Uberaba (Uniube).

Vânia Maria Resende

Doutora em Letras pela Universidade de São Paulo – USP. Especialista


em Literatura Brasileira pela Pontifícia Universidade Católica de Minas
Gerais– PUC-MG. Licenciada em Letras Português-Inglês pelas
Faculdades Integradas São Tomás de Aquino, de Uberaba – FISTA.
Pesquisadora na área didática e de crítica literária. Autora de livros
sobre literatura infantil e juvenil.

Susana Ramos Ventura

Mestre e Doutora em Letras pela Universidade de São Paulo na área de


Estudos Comparados de Literaturas de Língua Portuguesa. Especialista
na área de Literaturas de Língua Portuguesa, é pesquisadora e professora
atuante junto à Universidade Federal de São Paulo (UNIFESP). Trabalha
com literaturas contemporâneas produzidas no Brasil, em Portugal, Cabo
Verde, Angola e Moçambique. Tem experiência na área de Letras, com
ênfase em Estudos Comparados de Literaturas de Língua Portuguesa,
atuando principalmente nos seguintes temas: relações entre literatura
e história, estudos comparados de literaturas de língua portuguesa,
literatura infantil e juvenil nos países de Língua Portuguesa, romance do
século XX, literatura portuguesa, literatura brasileira, literaturas africanas
de língua portuguesa, relações entre literatura e música. Trabalha com
projetos de incentivo à leitura junto a diversos órgãos, como Serviço
Social do Comércio de São Paulo (SESC ‑SP) e São Paulo – um Estado
de Leitores (SPEL). Realizou curadorias para projetos da Biblioteca Mário
de Andrade (2008), do SESC ‑SP (2008/2009) e do Museu da Língua
Portuguesa (2010).
Sumário
Apresentação ......................................................................................VII

Capítulo 1 Machado de Assis................................................................. 1


1.1 Machado Contista......................................................................................................2
1.1.1 Três tesouros perdidos ....................................................................................3
1.1.2 Um apólogo .....................................................................................................6
1.2 Um homem urbano..................................................................................................10
1.3 Machado romancista...............................................................................................15
1.3.1 Linguagem .....................................................................................................20
1.3.2 Leituras contemporâneas .............................................................................22
1.4 Mais um pouco sobre Machado..............................................................................23
1.4.1 O alienista .....................................................................................................24
1.5 Conclusão................................................................................................................27

Capítulo 2 A poesia de Carlos Drummond de Andrade....................... 31


2.1 Considerações iniciais ............................................................................................32
2.2 Drummond e o modernismo ...................................................................................33
2.3 Características gerais da poesia de Drummond ....................................................37
2.3.1 O indivíduo, um eu todo retorcido: inquietações existenciais em
Drummond .....................................................................................................38
2.3.2 A terra natal: uma província ..........................................................................40
2.3.3 A família que me dei ......................................................................................41
2.3.4 Cantar de amigos ..........................................................................................42
2.3.5 O choque social ............................................................................................44
2.3.6 O conhecimento amoroso: amar-amaro .......................................................46
2.4 Análise de alguns poemas de Carlos Drummond de Andrade ..............................47
2.5 Poema de sete faces: a expressão de um eu tímido, torcido ................................48
2.6 Confissão de um coração partido ...........................................................................57
2.7 Uma flor nauseante ................................................................................................62
2.8 Conclusão .............................................................................................................. 67

Capítulo 3 A travessia literária genial de Guimarães Rosa.................. 71


3.1 Considerações iniciais.............................................................................................72
3.2 Obras.......................................................................................................................73
3.3 Características do discurso rosiano........................................................................74
3.4 Conclusão................................................................................................................87
Capítulo 4 A obra de Mário de Andrade: prosa e poesia..................... 91
4.1 Macunaíma: a saga de um herói sem caráter.........................................................92
4.1.1 Breve itinerário da história de Macunaíma....................................................94
4.1.2 Algumas características de Macunaíma......................................................100
4.1.3 Leitura de alguns fragmentos de Macunaíma.............................................103
4.2 Introdução à poesia de Mário de Andrade............................................................109
4.2.1 Aspectos gerais da poesia de Mário de Andrade........................................110
4.2.2 Uma poética do olhar...................................................................................117
4.3 Introdução: algumas informações sobre o gênero conto......................................120
4.3.1 Mário de Andrade e os Contos novos..........................................................124
4.3.2 Aspectos do modernismo em Contos novos...............................................125
4.3.3 Aspectos temáticos......................................................................................126
4.3.4 Vestida de preto e o estertor de desejo platônico.......................................129
4.3.5 Frederico Paciência.....................................................................................135

Capítulo 5 Uma viagem pelos confins de Mário Palmério................. 143


5.1 A obra – situando os Confins................................................................................145
5.2 Submetendo os Confins às teses sobre regionalismo: é possível
confirmá-lo ............................................................................................................155
5.3 A trama e seus personagens.................................................................................164
5.4 Conclusão..............................................................................................................191
Apresentação
Prezado(a) aluno(a).

Você está recebendo seu livro da disciplina Literatura Brasileira. Ele


se compõe de cinco capítulos, cada um deles dedicado ao estudo da
obra de um destacado autor de nossa literatura: Machado de Assis,
Carlos Drummond de Andrade, Mário de Andrade, Guimarães Rosa e
Mário Palmério. Como se vê, para compô-lo, foi preciso fazer algumas
escolhas, o que, sem dúvida, reduz o campo de observação, mas sem
que isto implicasse em dar uma visão empobrecida da literatura brasileira.
São autores que viveram em momentos diferentes da história de nossa
literatura e cultivaram, quase todos eles, gêneros literários diferentes,
mantendo sempre o mesmo nível de excelência. Estudando-os terá a
oportunidade de conhecer alguns dos pontos mais altos já alcançados
por nossa literatura.

No capítulo sobre Machado de Assis, primeiro você conhecerá um


pouco da vida e da obra desse importante escritor brasileiro. Será
despertado(a), também, para a diversidade de sua produção literária,
uma vez que se dedicou ao romance, à crônica, ao conto, à poesia, ao
ensaio e à crítica literária. Dessas várias facetas, daremos mais atenção
ao contista e ao romancista. Será convidado(a) a perceber como, dentro
desses gêneros, Machado de Assis foi profundamente original e soube
imprimir uma marca própria. Uma atenção especial será dedicada aos
temas mais explorados e à linguagem do escritor.

Já no segundo capítulo, sobre Carlos Drummond de Andrade, você


conhecerá um poeta cuja poesia se volta para o cotidiano e a temática
existencial e social, mas que, ao mesmo tempo, se preocupa com o
fenômeno da linguagem e da poesia. Para a organização do capítulo,
o autor teve a feliz ideia de dividi‑lo em áreas temáticas definidas com
base naquilo que o próprio poeta designa como “ponto de partida” ou
“matéria de poesia”: o indivíduo, a terra natal, a família; os amigos, o
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choque social; o conheci­mento amoroso; a própria poesia. Cada um dos


tópicos corresponde a uma dessas áreas temáticas. Assim, começa pelo
estudo do tema do “eu todo retorcido”; trata‑se de uma poesia de um
ser em conflito, angustiado, em permanente desacerto consigo e com
o mundo que o cerca, é a poesia da fragmentação do eu e do próprio
discurso. Prossegue abordando a poesia que se volta para a terra natal,
que se alimenta das lembranças da Itabira de sua infância, mas que
é, ao mesmo tempo, uma visão crítica e irônica da vida provinciana.
Depois, é a vez da família, e de novo a relação está longe de ser simples,
ainda aqui a relação é de afeto e mágoa. Vem, em seguida, o cantar de
amigos, a poesia que resultou do contato do poeta com inúmeros amigos
intelectuais e escritores. Chega a vez da poesia de cunho social e de
participação política: poesia de aguda consciência crítica em relação ao
capitalismo alienante e ao consumismo que nos torna cada vez mais
insensíveis. Finalmente, a temática amorosa: inclusive a poesia do
amar‑amaro: o amor que empolga e decepciona. Encerra o capítulo a
análise de alguns poemas mais significativos de Drummond.

No terceiro capítulo, você entrará em contato com as obras de Mário


de Andrade. Primeiramente, serão estudados aspectos temáticos e
formais da obra Macunaíma. Através da análise de excertos do capítulo
“Macumba”, serão vistos alguns processos estilísticos utilizados pelo
autor. Em seguida, passar-se-á ao estudo da poesia de Mário de
Andrade, buscando evidenciar suas inovações formais. Para terminar,
você irá proceder à leitura orientada de alguns contos do autor.

O quarto capítulo procura situar Guimarães Rosa e sua obra na história da


literatura brasileira, chamando a atenção para as inovações introduzidas
pelo autor, principalmente as que dizem respeito ao experimentalismo da
linguagem. É abordada também a temática trabalhada pelo autor. Conclui
o capítulo um estudo sobre a presença do menino na literatura brasileira,
particularmente na obra de Guimarães Rosa.

A inclusão de Mário Palmério entre os autores estudados em nosso


curso de letras justifica-se por uma razão óbvia: ele é autor de obras
de reconhecido mérito literário e tem seu lugar assegurado entre os
melhores escritores brasileiros, principalmente os autores da boa
cepa regionalista. Mas, há também uma razão de ordem afetiva. Mário
Palmério foi o fundador, em 1947, da escola superior que, posteriormente,
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se transformaria na Universidade de Uberaba, instituição que dirigiu até


praticamente sua morte, em 1996.

Mário Palmério filia-se à mesma escola de Guimarães Rosa, a quem


sucedeu na Academia Brasileira de Letras – o regionalismo. No capítulo
a ele dedicado, você terá oportunidade de conhecê-lo melhor, bem como
seus dois romances: Vila dos Confins e Chapadão do Bugre, com
ênfase no primeiro. Você irá defrontar-se ainda com algumas questões
que têm sido colocadas a propósito da obra de Palmério, como, por
exemplo, o debate que em torno dela se estabeleceu sobre se se trata ou
não, rigorosamente falando, de obra regionalista. Outro aspecto discutido
é o das diferenças existentes entre a obra de Palmério e a de Guimarães
Rosa no que se refere ao modo como é focalizado o sertão.

Esperamos que este livro vá ao en­contro de suas expectativas. É


importante que você se sinta motivado(a) para que a assimilação do
conteúdo se processe e a aprendizagem ocorra. A sua interação com o
material é fundamental para o alcance dos objetivos propostos a cada
passo. Por isso, não temos economizado esforços no sentido de tornar
o estudo interessante e agradável, certos de que você está tendo o
aproveitamento que dele se espera. Em contrapartida, fazemos votos
para que você continue a dedicar‑se com o mesmo entusiasmo aos
estudos, na busca constante e obsti­nada de sua realização pessoal e
profissional.

Bons estudos!
Capítulo Machado de Assis
1

Susana Ramos Ventura

Introdução
Caros estudantes, vamos começar agora um passeio pela obra de
um dos maiores autores da virada do século XIX para o XX, não
apenas no Brasil, mas em termos de literatura ocidental: Machado
de Assis.

Para o estudo deste capítulo, você acompanhará conosco a leitura


de alguns fragmentos de contos do autor. Sugerimos que os leia
na íntegra, uma vez que podem ser acessados nos endereços
eletrônicos que constam como fontes das leituras sugeridas. Além
disso, você deve ler, também, o romance Dom Casmurro, que é
um dos mais discutidos da obra machadiana. Com estas leituras,
comporemos nosso estudo da obra deste autor tão singular.

PARADA PARA REFLEXÃO

Todos temos uma imagem deste que é considerado um dos maiores,


senão o maior, escritor brasileiro de todos os tempos Então, vamos
lá, gostaria que você buscasse, em sua memória, o que lembra
a respeito de Machado de Assis (valem as suas Impressões”,
‘lembranças” etc).

Depois de nosso passeio, você deverá discutir com o seu (sua)


preceptor(a) sobre a sua ideia prévia da obra machadiana e o que
mudou (se algo mudou) após o percurso que propomos agora,
certo?
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Objetivos
Após o estudo deste capítulo, esperamos que você seja capaz de:

- conhecer a vida e a obra de Machado de Assis;


- detectar os principais temas de algumas de suas obras;
- perceber como, dentro dos gêneros mais praticados pelo autor
(conto e romance), Machado de Assis foi original e soube imprimir
uma marca própria.

Esquema
1.1 Machado contista
1.1.1 Três tesouros perdidos
1.1.2 Um apólogo
1.2 Um homem urbano
1.3 Machado romancista
1.3.1 Linguagem
1.3.2 Leituras contemporâneas
1.4 Mais um pouco sobre Machado
1.4.1 O alienista
1.5 Conclusão

1.1 Machado contista

Já que você tem uma opinião sobre Machado de Assis, vamos agora
apenas lembrar que ele publicava em jornais desde a adolescência,
começando por poemas (imagine que era mais fácil encontrar espaço
num jornal para este tipo de produção – qualquer canto poderia comportar
algo pequeno e era uma ex­celente maneira de começar a se mostrar
socialmente, caminho escolhido por Machado). Já aos dezenove anos,
passa a publicar contos – um dos gêneros em que mais se destacou,
ponto alto de sua obra e do conto em língua portu­guesa – igualmente na
imprensa, em jornais e revistas.
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1.1.1 Três tesouros perdidos

Vamos ler juntos, em sua integralidade, um desses contos que publicou


ainda muito jovem, aos dezenove anos mesmo, em 1858. Trata ‑se de
Três tesouros perdidos, publicado no jornal A marmota, que Machado
de Assis nunca repu­blicou em vida.

INDICAÇÃO DE LEITURA

Uma tarde, eram quatro horas, o Senhor X... voltava


à sua casa para jantar. O apetite que levava não o
fez reparar em um cabriolé que estava parado à sua
porta. Entrou, subiu a escada, penetra na sala e... dá
com os olhos em um homem que passeava a largos
passos como agitado por uma interna aflição.
Cumprimentou-o polidamente; mas o homem
lançou-se sobre ele e com uma voz alterada, diz-lhe:
— Senhor, eu sou F... marido da senhora dona E...
— Estimo muito conhecê-lo, responde o Sr.X... mas
não tenho a honra de conhecer a senhora dona E...
— Não a conhece! Não a conhece! Quer juntar a
zombaria à infámia?
— Senhor!... E o Senhor X... deu um passo para
ele. —Alto lá! O Sr. F..., tirando do bolso uma pistola,
continuou:
—Ou o senhor há de deixar esta corte, ou vai morrer
como um cão!
— Mas senhor, disse o Sr. X... a quem a eloquência
do Sr. F... tinha produzido um certo efeito, que
motivo tem o senhor?
— Que motivo! É boa! Pois não é um motivo andar o
senhor fazendo a corte à minha mulher?
— Fazendo a corte à sua mulher! Não compreendo.
— Não compreende! Oh! não me faça perder a
estribeira.
—Creio que se engana...
— Enganar-me! É boa! Mas eu o vi... sair duas
vezes de minha casa...
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— Sua casal
— No Andaral... por uma porta secreta. Vamos! ou...
— Mas, senhor; há de ser outro, que se pareça
comigo...
— Não, não, é o senhor mesmo... como escapar-
me este ar de tolo que ressalta de toda a sua cara?
Vamos, ou deixar a cidade, ou morrer. Escolhal
Era um dilema. O Senhor X... compreendeu que
estava metido entre um cavalo e uma pistola. Pois
toda a sua paixão era ir a Minas, escolheu o cavalo.
Surgiu, porém, uma objeção.
— Mas senhor, disse ele, os meus recursos.
— Os seus recursos! Ah, tudo previ... descanse...
eu sou um mando previdente. E tirando da algibeira
da casaca uma linda carteira de couro da Rússia,
diz-lhe.
—Aqui tem dois contos de réis para os gastos de
viagem, vamos, parta! Parta imediatamente! Para
onde vai?
— Para Minas.
— Oh, a pátria do Tiradentes! Deus o leve a
salvamento. Perdoo-lhe, mas não volte a esta
corte. Boa viagem] Dizendo isso, o Sr. F... desceu
precipitadamente a escada e entrou no cabriolé, que
desapareceu em uma nuvem de poeira.
O Sr. X... ficou por alguns instantes pensativo. Não
podia acreditar nos seus olhos e ouvidos; pensava
sonhar. Um engano trazia-lhe dois contos de réis,
e a realização de um dos seus mais caros sonhos.
Jantou tranquilamente, e dal a uma hora partia para
a terra de Gonzaga, deixando em sua casa apenas
um moleque encarregado de instruir, pelo espaço de
oito dias, aos seus amigos sobre o seu destino.
No dia seguinte, pelas onze horas da manhã,
voltava o senhor F... para sua casa de Andara!, pois
tinha passado a noite fora. Entrou, penetrou na sala,
e indo deixar o chapéu sobre uma mesa, viu ali o
seguinte bilhete:
“Meu caro esposo! Parto no paquete em companhia
do teu amigo P... Vou para a Europa. Desculpa a má
companhia, pois melhor não podia ser. Tua E...”
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Desesperado, fora de si, o Sr. F... lança-se a um


jornal que perto estava o paquete tinha partido às
oito horas.
— Era P... que eu acreditava meu amigo!... Ah,
maldição!
Ao menos não percamos os dois contos! Tornou a
meter-se no cabriolé e dirigiu-se á casa do Sr X...
subiu, apareceu o moleque.
— Teu senhor?
— Partiu para Minas.
O Sr. F... desmaiou.
Quando deu acordo de si estava louco... louco
varrido!
Hoje, quando alguém a visita, diz ele com um tom
lastimoso:
— Perdi três tesouros a um tempo: uma mulher sem
igual, um amigo a toda prova, e uma linda carteira
cheia de encantadoras notas...que bem podiam
aquecer-me as algibeiras!...
Neste último ponto, o doido tem razão, e parece ser
um doido com juízo (ASSIS, 1858).

IMPORTANTE!

Note algumas das características da escrita do jovem Machado:

• muitos diálogos;
• personagens identificadas apenas com a primeira letra do nome;
• menção a um bairro do Rio de Janeiro;
• o tema do adultério, que será tantas vezes retomado por ele.

Na prosa desse jovem, Machado de Assis, vemos várias características


que estarão presentes na maturidade do escritor.

Uma delas é de natureza temática: o adultério será um tema constante na


obra machadiana, quer aquele abertamente constatado – por exemplo,
a relação entre Virgília e Brás Cubas em Memórias póstumas de Brás
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Cubas – quer a suspeita de adultério – tema central de Dom Casmurro,


em que o protagonista narra, na velhice, sua história de vida marcada
pela suspeita da traição que teria sido perpetrada por dois de seus seres
amados: sua esposa Capitu e seu amigo e sócio Escobar.

A outra é a localização do conflito na cidade do Rio de Janeiro – palco de


quase todos os enredos machadianos em sua abundante obra.

Nos contos da maturidade, no entanto, as personagens ganham um


nome – o que reforça sua identidade – e a quantidade de diálogos em
via de regra se reduz, dando margem aos comentários do narrador,
abundantes e de grande importância na estrutura da obra de Machado
de Assis. Mesmo assim, Machado permanece um mestre dos diálogos
durante toda a vida.

1.1.2 Um apólogo

Agora, para completar a nossa visão sobre esse


Apólogo
aspecto, saltaremos para quase vinte anos depois
Sinônimo de fábula, daquele primeiro conto e encontraremos o escritor
em que aos objetos
inanimados ou aos
já consagrado, que publica no jornal A gazeta de
animais é concedida notícias uma pequena obra-prima, o conto Um
voz numa narrativa
que aponta para
apólogo, que muitos conhecem com o título A
uma verdade agulha e a linha. Vamos a ele:
ou para uma
moralidade.

INDICAÇÃO DE LEITURA

Era uma vez uma agulha, que disse a um novelo de linha:


— Por que está você com esse ar, toda cheia de si, toda
enrolada, para fingir que vale alguma cousa neste mundo?
— Deixe-me, senhora.
— Que a deixe? Que a deixe, por quê? Porque lhe digo
que está com um ar insuportável? Repito que sim, e falarei
sempre que me der na cabeça.
—Que cabeça, senhora? A senhora não é alfinete, é
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agulha. Agulha não tem cabeça. Que lhe importa o meu


ar? Cada qual tem o ar que Deus lhe deu. Importe-se com
a sua vida e deixe a dos outros.
— Mas você é orgulhosa.
— Decerto que sou.
— Mas por quê?
—É boa! Porque coso. Então os vestidos e enfeites de
nossa ama, quem é que os cose, senão eu?
— Você? Esta agora é melhor. Você é que os cose? Você
ignora que quem os cose sou eu e muito eu? —Você fura
o pano, nada mais; eu é que coso, prendo um pedaço ao
outro, dou feição aos babados...
— Sim, mas que vale isso? Eu é que furo o pano, vou
adiante, puxando por você, que vem atrás obedecendo ao
que eu faço e mando...
— Também os batedores vão adiante do imperador
— Você é imperador?
— Não digo isso. Mas a verdade é que você faz um papel
subalterno, indo adiante; vai só mostrando o caminho, vai
fazendo o trabalho obscuro e ínfimo. Eu é que prendo,
ligo, ajunto... Estavam nisto, quando a costureira chegou
à casa da baronesa. Não sei se disse que isto se passava
em casa de uma baronesa, que tinha a modista ao pé
de si, para não andar atrás dela. Chegou a costureira,
pegou do pano, pegou da agulha, pegou da linha, enfiou
a linha na agulha, e entrou a coser Uma e outra iam
andando orgulhosas, pelo pano adiante, que era a melhor
das sedas, entre os dedos da costureira, ágeis como os
galgos de Diana – para dar a isto uma cor poética. E dizia
a agulha:
— Então, senhora linha, ainda teima no que dizia há
pouco? Não repara que está distinta costureira só se
importa comigo; eu é que vou aqui entre os dedos dela,
unidinha a eles, furando abaixo e acima...
A linha não respondia; ia andando. Buraco aberto pela
agulha era logo enchido por ela, silenciosa e ativa, como
quem sabe o que faz, e não está para ouvir palavras
loucas. A agulha, vendo que ela não lhe dava resposta,
calou-se também, e foi andando. E era tudo silêncio na
saleta de costura; não se ouvia mais que o plic-plic-plic-
plic da agulha no pano. Caindo o sol, a costureira dobrou
a costura, para o dia seguinte. Continuou ainda nessa e no
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outro, até que no quarto acabou a obra, e ficou esperando


o baile.
Veio a noite do baile, e a baronesa vestiu-se. A costureira,
que a ajudou a vestir-se, levava a agulha espetada no
corpinho, para dar algum ponto necessário. E enquanto
compunha o vestido da bela dama, e puxava de um lado
ou outro, arregaçava daqui ou dali, alisando, abotoando,
acolchetando, a linha para mofar da agulha, perguntou-lhe:
— Ora, agora, diga-me, quem é que vai ao baile, no corpo
da baronesa, fazendo parte do vestido e da elegância?
Quem é que vai dançar com ministros e diplomatas,
enquanto você volta para a caixinha da costureira, antes
de ir para o balaio das mucamas? Vamos, diga lá.
Parece que a agulha não disse nada; mas um alfinete,
de cabeça grande e não menor experiência, murmurou à
pobre agulha:
—Anda, aprende, tola. Cansas-te em abrir caminho para
ela e ela é que vai gozar da vida, enquanto ai ficas na
caixinha de costura. Faze como eu, que não abro caminho
para ninguém. Onde me espetam, fico.
Contei esta história a um professor de melancolia, que me
disse, abanando a cabeça:
— Também eu tenho servido de agulha a muita linha
ordinária! (ASSIS, 1878)

IMPORTANTE!

Note algumas características da escrita de Machado de Assis maduro:

• muitos diálogos;
• intermediação constante do narrador;
• a amargura revestida pela ironia;
• a discreta menção ás diferenças sociais: a costureira e a baronesa.
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Este conto é uma pequena joia de simplicidade e maestria verbal.


Servindo ‑se de duas personagens alegóricas
(a agulha e a linha), o narrador fala sobre a vida Alegoria
e a posição que nela ocupam as pessoas em Significa
diversas situações. O trecho que finaliza o conto literalmente,
“dizermo outro”.
é exemplar disso: o narrador afirma ter contado Lembre-se de
a história a “um professor de melanco­lia”, e este, “carromalegórico”
– que durante o
novo personagem que parece surgida somente carnaval, com
para criar uma ligação com a realidade, profere a elementos de
fantasia, representa
frase final, em que o paralelo com a realidade se algo real.
torna claro.

Perceba como os diálogos são mais elaborados do que no primeiro


conto. Primam pela graça, pela perspicácia e pela adequação a cada
uma das perso­nagens que fala.

A ironia machadiana, que você pode notar com facilidade, apresenta


‑se com muita intensidade. Já a amargura, marca do Machado da
maturidade, reveste ‑se da mesma ironia para dar algo como um meio
sorriso ao leitor.

A referência às classes sociais e suas diferenças é aqui muito discreta –


a cos­tureira e a baronesa aparecem apagadas e de longe, uma vez que
o primeiro plano é ocupado pela agulha e pela linha. No entanto, elas
estão ali... E, responda você: quem é que vai ao baile? A costureira ou
a baronesa? A baronesa, não é? Assim sendo, o trabalho de bastidores
realizado pela costureira fica, neste caso, esquecido.

A relação entre a costureira e a baronesa espelha a relação da agulha


e a da linha, ou seja, existe uma relação hierárquica e de escala social
que coloca cada personagem em uma posição diferente tanto no aspecto
existencial quanto no social.

Você reparou no ambiente doméstico em que se desenrola o


conto? Sabe por que essa escolha do autor? Converse com
seus colegas e com seu (sua) preceptor(a) sobre isso. Troque
ideias!
10 UNIUBE

Os contos de Machado foram publicados, em sua maioria, em jornais


e revis­tas, e tinham um público leitor marcadamente feminino, que
precisava se sentir agradado do que lia. Assim, os temas deveriam ser
adequados às senhoras e versar sobre a vida em casa, em sociedade,
namoros, noivados, casamentos...

O ambiente do Apólogo, de 1855, é doméstico, urbano de uma classe


privile­giada. Machado escrevia, então, histórias que pudessem ser lidas
e apreciadas pelas leitoras dos jornais e revistas para os quais escrevia.

Você leu dois contos espaçados no tempo de escrita em quase vinte anos.
Considere que Machado escreveu contos por muitos e muitos anos – dos
de­zenove aos sessenta e oito anos! Ao que parece, com eles, o autor
conquistou um público fiel. Durante todo este período de produção de
contos, escreveu cerca de duzentos contos, uma quantidade realmente
notável. Achamos que é tempo para uma breve incursão pela biografia
de Machado de Assis, um homem de seu tempo e especialmente ligado
à vida de sua cidade, o Rio de Janeiro.

1.2 Um homem urbano

Joaquim Maria Machado de Assis nasceu no Morro do Livramento,


cidade do Rio de Janeiro, em 1839. Era filho de uma portuguesa oriunda
do arquipélago dos Açores e que exercia a função de lavadeira e de
um brasileiro mulato que era pintor de casas. À origem humilde, juntou-
‑se a orfandade precoce – o pai e a mãe morreram antes que ele
completasse dez anos – e uma saúde precária – Machado de Assis
era gago e epilético. Não teve educação formal, trabalhou desde cedo
vendendo doces e, depois, em pequenos trabalhos até ir parar numa
tipografia como auxiliar. Trabalhou como jornalista, mas realmente o que
trouxe estabilidade a ele foram um emprego público e o casamento – já
tardio para os parâmetros da época (com mais de trinta anos) – com a
portuguesa Carolina Novaes, sua companheira de toda a vida.

Aos trinta anos, em 1869 – quatorze anos depois da publicação de Um


apólogo – Machado de Assis era um escritor e cidadão respeitado. A
partir de 1870, se consolida como o escritor que conhecemos hoje. Nesta
época, ele está estável no emprego público junto ao Ministério da Agricultura,
UNIUBE 11

casado com Carolina e considerado como cronista e contista de sucesso,


preparando‑se para a pu­blicação do primeiro romance – “Ressurreição”,
de 1872. Entre 1870 e 1880, ele vai escrever oitenta contos. Oitenta
contos em dez anos! É realmente uma média impressionante. O vestido
preparado no conto Um apólogo é para que sua dona brilhe num baile
e, nestes bailes, em sua maioria festas domésticas, a polca começa a
fazer um tremendo sucesso. Em 1878, Machado de Assis escreve uma
crônica que sai em O Cruzeiro; vejamos um trechinho:
“Se eu pedir você me dá?” é o título de uma polca
distribuída há algumas semanas. Não ficou sem
resposta; saiu agora outra polca denominada Peça
só, e você verá. Esse sistema telefônico, aplicado à
composição musical não é novo, data de alguns anos.
Mas até onde irá é que ninguém pode prever... (ASSIS,
1938, p. 213)

Prever não se podia, realmente, mas, um século depois, o professor


e pesqui­sador Carlos Sandroni encontrou, nos arquivos da Biblioteca
Nacional no Rio de Janeiro, as seguintes séries de polcas, cujos títulos
remetem uns aos outros:

“Que é da chave?”
“Que é da tranca?”
“Não sei da chave”
“Achou ‑se a chave”

E também outra série, politicamente incorreta, talvez, mas, de qualquer


modo, lá vai:
“Gago não faz discurso”
“Vesgo não namora”
“Dentuço não fecha a boca”
“Barrigudo não dança”
“Careca não vai à missa”

E, para finalizar, a incrível dupla de polcas:

“Moro longe”
“Mude ‑se para perto”
12 UNIUBE

Voltando às polcas e à obra de Machado de Assis, o conto que mais se


aproxima desse universo urbano e popular é Um homem célebre, de
1888 – Machado de Assis está, então, com 49 anos. Neste conto, temos
um personagem com­positor, o Pestana (já apontado pela crítica como o
espelho do músico Ernesto Nazareth). Machado está em seu auge como
escritor e como contista. Vamos a dois pequenos trechos deste que é
um de seus mais bem realizados contos. No primeiro deles, vemos o
personagem principal, o compositor Pestana, ao ser abordado numa festa
como aquela de Um apólogo, por uma jovem fã, a Sinhazinha Mota.

INDICAÇÃO DE LEITURA

— Ah! o senhor é que é o Pestana? Perguntou Sinhazinha Mota,


fazendo um largo gesto admirativo. E logo depois, corrigindo a
familiaridade: – Desculpe meu modo, mas... é mesmo o senhor?
Vexado, aborrecido, Pestana respondeu que sim, que era ele.
Vinha do piano, enxugando a testa com o lenço, e ia a chegar
à janela, quando a moça o fez parar. Não era baile; apenas um
sarau íntimo, pouca gente, vinte pessoas ao todo, que tinham
ido jantar com a viúva Camargo, Rua do Areal, naquele dia
dos anos dela, cinco de novembro de 1875... Boa e patusca
viúva! Amava o riso e a folga, apesar dos sessenta anos em
que entrava, e foi a última vez que folgou e riu, pois faleceu
nos primeiros dias de 1876. Boa e patusca viúva! Com que
alma e diligência arranjou ali umas danças, logo depois do
jantar, pedindo ao Pestana que tocasse uma quadrilha! Nem
foi preciso acabar o pedido; Pestana curvou-se gentilmente, e
correu ao piano. Finda a quadrilha, mal teriam descansado uns
dez minutos, a viúva correu novamente ao Pestana para um
obséquio mui particular.
— Diga, minha senhora.
— É que nos toque agora aquela sua polca Não Bula Comigo,
Nhonhô.
Pestana fez uma careta, mas dissimulou depressa, inclinou-
se calado, sem gentileza, e foi para o piano, sem entusiasmo.
Ouvidos os primeiros compassos, derramou-se pela sala uma
alegria nova, os cavalheiros correram às damas, e os pares
entraram a saracotear a polca da moda. Da moda, tinha sido
publicada vinte dias antes, e já não havia recanto da cidade
em que não fosse conhecida. la chegando à consagração do
assobio e da cantarola noturna. Sinhazinha Mota estava longe
de supor que aquele Pestana que ela vira à mesa de jantar e
UNIUBE 13

depois ao piano, metido numa sobrecasaca cor de rapé, cabelo


negro, longo e cacheado, olhos cuidadosos, queixo rapado,
era o mesmo Pestana compositor; foi uma amiga que lho disse
quando o viu vir do piano, acabada a polca. Dal a pergunta
admirativa. Vimos que ele respondeu aborrecido e vexado. Nem
assim as duas moças lhe pouparam finezas, tais e tantas, que a
mais modesta vaidade se contentaria de as ouvir; ele recebeu-
as cada vez mais enfadado, até que, alegando dor de cabeça,
pediu licença para sair. Nem elas, nem a dona da casa, ninguém
logrou retê-lo. Ofereceram-lhe remédios caseiros, algum
repouso, não aceitou nada, teimou em sair e saiu. (ASSIS, 1888)

PARADA PARA REFLEXÃO

Mas, o que exatamente aconteceu com o Pestana? Sem conhecer o conto,


o que você acha? Como você acha que ele, o equivalente a uma na época,
se relaciona com o sucesso? Quer arriscar um palpite?

Vejamos como o conto continua, e se você estava na pista certa!

INDICAÇÃO DE LEITURA

Rua fora, caminhou depressa, com medo de que ainda o


chamassem; só afrouxou depois que dobrou a esquina da
Rua Formosa. Mas aí mesmo esperava-o a sua grande polca
festiva. De uma casa modesta, à direita, a poucos metros de
distância, safam as notas da composição do dia, sopradas
em clarineta. Dançava-se. Pestana parou alguns instantes,
pensou em arrepiar caminho, mas dispôs-se a andar, estugou
o passo, atravessou a rua, e seguiu pelo lado oposto ao da
casa do baile. As notas foram-se perdendo, ao longe, e o
nosso homem entrou na Rua do Aterrado, onde morava.
Já perto de casa, viu vir dois homens: um deles, passando
rentezinho com o Pestana, começou a assobiar a mesma
polca, rijamente, com brio, e o outro pegou a tempo na música,
e aí foram os dois abaixo, ruidosos e alegres, enquanto o autor
da peça, desesperado, corria a meter-se em casa. (ASSIS, 1888).
14 UNIUBE

Acontece que Pestana – compositor das polcas mais buliçosas do


Rio de Janeiro – gostaria mesmo era de ser compositor clássico. Só
conseguia gostar de suas composições – alegres, festivas, gingadas –
por alguns poucos dias. Tão logo elas caíam no gosto de todos e eram
repetidas pelos pianos das mocinhas do Rio de Janeiro, ele enjoava da
composição e se angustiava desejando ser um compositor erudito. Na
sequência da narrativa, após meter‑se em casa, Pestana foi ao piano e,
olhando para os retratos dos grandes clássicos como Bach e Beethoven,
buscou inspiração. Mas, conta o narrador, nada acontecia. Pestana
costumeiramente estudava e tentava até alta madrugada compor à
maneira clássica, até entregar os pontos e dormir extenuado. Assim foi
naquela noite em que deixou o baile da boa e patusca viúva, e, na manhã
seguinte:

INDICAÇÃO DE LEITURA

Correu à sala dos retratos, abriu o piano, sentou-se e


espalmou as mãos no teclado. Começou a tocar alguma
cousa própria, uma inspiração real e pronta, uma polca, uma
polca buliçosa, como dizem os anúncios. Nenhuma repulsa
da parte do compositor, os dedos iam arrancando as notas,
ligando-as, meneando-as; dir-se-ia que a musa compunha
e bailava a um tempo. Pestana esquecera as discípulas,
esquecera o preto, que o esperava com a bengala e o guarda-
chuva, esquecera até os retratos que pendiam gravemente da
parede. Compunha só, teclando ou escrevendo, sem os vãos
esforços da véspera, sem exasperação, sem nada pedir ao
céu, sem interrogar os olhos de Mozart. Nenhum tédio. Vida,
graça, novidade, escorriam-lhe da alma como de uma fonte
perene. Em pouco tempo estava a polca feita. Corrigiu ainda
alguns pontos, quando voltou para jantar mas já a cantarolava,
andando, na rua. Gostou dela; na composição recente e
inédita circulava o sangue da paternidade e da vocação. Dois
dias depois, foi levá-la ao editor das outras polcas suas, que
andariam já por umas trinta. O editor achou-a linda.
— Vai fazer grande efeito. Veio a questão do título. Pestana,
quando compôs a primeira polca, em 1871, quis dar-lhe um
título poético, escolheu este: Pingos de Sol. O editor abanou
a cabeça, e disse-lhe que os títulos deviam ser, já de si,
destinados à popularidade, ou por alusão a algum sucesso do
dia, – ou pela graça das palavras; indicou-lhe dois. ‘A Lei de 28
de Setembro”, ou “Candongas Não Fazem Festa”.
UNIUBE 15

— Mas que quer dizer “Candongas Não Fazem Festa?”


perguntou o autor.
— Não quer dizer nada, mas populariza-se logo.
Pestana, ainda donzel inédito, recusou qualquer das
denominações e guardou a polca, mas não tardou que
compusesse outra, e a comichão da publicidade levou-o a
imprimir as duas, com os títulos que ao editor parecessem
mais atraentes ou apropriados. Assim se regulou pelo tempo
adiante. Agora, quando Pestana entregou a nova polca, e
passaram ao título, o editor acudiu que trazia um, desde
muitos dias, para a primeira obra que ele lhe apresentasse,
título de espavento, longo e meneado. Era este: -Senhora
Dona, Guarde o Seu Balaio”. (ASSIS, 1888).

E, então, você tinha acertado o seu palpite? Achava que Pestana era um
incon­formado com a fama, que preferia ser alguém diferente do que era?

Pois bem, esta era a realidade do Pestana – angustiado por ser um


artista po­pular, triste porque famoso por composições que considerava
menores...

Novamente, e de maneira sutil, Machado de Assis coloca o conflito – no


caso do conto sobre a agulha e a linha estava subjacente a posição que
cada um ocupa na vida: nobre ou plebeu, abrindo caminho ou fazendo
parte do contexto e aproveitando o baile etc. Aqui o conflito entre popular
e erudito, entre alta e baixa cultura, entre ser compositor num país
europeu e num jovem país americano...

Perceba como a crônica publicada 10 anos antes e da qual destacamos


um tre­cho mostra como esse tema – o das polcas e seus títulos – estava
já na cabeça de Machado de Assis anos antes da publicação de Um
homem célebre. Além disso, como a questão da celebridade ocupava
Machado de Assis há bem mais de cem anos...

1.3 Machado romancista

Apesar de ser um exímio contista, Machado de Assis destacou ‑se


mesmo no universo literário por sua produção de romances, que conta
com os seguintes títulos:
16 UNIUBE

• Ressurreição, 1872.
• A mão e a luva, 1874.
• Helena, 1876.
• Iaiá Garcia, 1878.
• Memórias póstumas de Brás Cubas, 1881.
• Quincas Borba, 1891.
• Dom Casmurro, 1899.
• Esaú e Jacó, 1904.
• Memorial de Aires, 1908.

Os quatro primeiros, dos quais pelo menos um você já leu (Helena,


lembra‑se?), pertencem, ainda, à chamada fase romântica do autor.
Vale lembrar que Machado de Assis foi muito próximo, amigo mesmo,
de José de Alencar, o grande nome do nosso Romantismo. Foi sob
os auspícios de Alencar que Machado iniciou­‑se na literatura; assim,
não é de estranhar que suas primeiras obras tenham um pendor mais
romântico. Contudo, alguns críticos, como Alfredo Bosi, negam que essas
primeiras obras sejam românticas. Bosi prefere denominar esta fase de
convencional.

De fato, se observarmos bem, as heroínas românticas possuem traços


idealiza­dos que permanecem inalterados ao longo das narrativas. Como
você viu, não é o que ocorre, por exemplo, com Helena, cujo perfil vai
crescendo em intensidade. Ao contrário das românticas, as personagens
femininas de Machado, já nessas obras iniciais, são capazes de conduzir
as ações, tarefa que, nos romances românticos, cabe ao herói. O fato,
porém, de que Helena, ao final da narrativa, tenha na morte a melhor
solução para o dilema moral em que se colocara (movida pelo desejo de
ascensão social, ocupa indevidamente o lugar de filha junto à família do
Conselheiro Vale e acaba por apaixonar‑se pelo suposto irmão) pode,
contudo, ser considerado um traço de herança romântica.

Não causa espécie que o maior de nossos escritores realistas se tenha


formado à luz do Romantismo. Como você sabe, a criação literária resulta
sempre de um processo de maturação do autor; geralmente os escritos
iniciais são como “ensaios” para a obra da maturidade artística. Isso
acontece com todos os grandes autores.
UNIUBE 17

Machado começou seus escritos pelo jornalismo, passando depois – e


conjun­tamente – para o teatro, no qual estreou com a obra Desencantos,
em 1861, e, depois dela, escreveu muitas outras. Machado enveredou
também pela poesia. Sim, você não sabia? Há um Machado de Assis
poeta, que publicou três títulos: Crisálidas, de 1864, Falenas, de 1870,
e Americanas, de 1875. De 1901, te­mos suas Poesias completas.
Com isso, iniciou‑se Machado na arte da escrita; o teatro deu a ele tanto
a acuidade no tratamento dos diálogos como o olhar indagativo sobre a
sociedade em que viveu.

É esse o olhar que preponderará na obra madura de Machado de Assis,


que tem seu marco inicial na publicação de Memórias póstumas de
Brás Cubas, em 1881. Trata‑se de um livro inovador, não apenas pela
perspectiva do narrador, um defunto escritor, como pelo traço mordaz da
escrita de Machado ao narrar a vida desocupada e boêmia de Brás. O
traço irônico aparece já na dedicatória da obra: “Ao verme que primeiro
roeu as frias carnes do meu cadáver dedico com saudosa lembrança
estas memórias póstumas.” Em seguida, o narrador confessa ter escrito
suas memórias “com a pena da galhofa [zombaria, escárnio] e a tinta da
melancolia”. Imagine você, se não leu ainda a obra, o que o espera numa
próxima leitura desse clássico machadiano.

Passando além da herança romântica que recebeu, Machado de Assis


desen­volverá, em sua vasta obra, traços que ajudarão a configurar o
Realismo no Brasil, tais como:

• objetividade na condução das narrativas;


• valorização da razão em detrimento da emoção;
• personagens retratadas como tipos concretos, vivos, da época,
compostos a partir da observação do autor;
• linguagem apurada, direta, sem grandes rebuscamentos;
• personagens psicologicamente mais densos e conflituosos;
• relações marcadas por cinismo e interesses pessoais; a matéria
preponde­rando sobre os valores do espírito.

Com essa bagagem é que partimos, agora, para 1899, o ano seguinte ao
da publicação de Um homem célebre; e, na forma da escrita, mudando
18 UNIUBE

do Ma­chado de Assis contista para o romancista, que, naquele momento,


publica um de seus mais consagrados romances, Dom Casmurro.

É bem possível que, em suas lembranças sobre a obra de Machado de


Assis no início desta nossa conversa, figure este romance, pois é um
clássico sempre muito estudado no Ensino Médio.

AMPLIANDO O CONHECIMENTO

Ítalo Calvino costumava dizer que um clássico é um livro que não terminou
de dizer o que tinha a dizer. Acho uma boa definição, você não? Uma obra
que não envelhece porque sempre está dizendo algo para o leitor, que se
aproxima dela em tempos diferentes (CALVINO, 1993, p. 18).

Agora, então, será a hora de voltarmos a Dom Casmurro e se por acaso


você não o leu ainda, faça isso, para que possamos continuar a nossa
conversa sobre a obra de Machado de Assis.

Quando Dom Casmurro é publicado, Machado de Assis está com


cinquenta anos e essa obra será considerada, posteriormente, como
um dos melhores romances da literatura brasileira. Na produção de
Machado, Dom Casmurro sucede outros dois romances: Memórias
póstumas de Brás Cubas e Quin­cas Borba e com esses dois forma o
que a crítica tem chamado de segunda fase machadiana, considerada
como sua plena maturidade artística dentro da estética do realismo.

Vale lembrar que, para o Realismo, a realidade era um dado fixo e


passível de representação completa e objetiva. Havia, então, a ideia
da possibilidade de uma “transposição direta da realidade”, sendo que
os escritores teriam o papel social de transpor a realidade para o papel,
fazendo com que os leitores e leitoras refletissem sobre ela. O crítico
Antonio Candido, no ensaio De cortiço a cortiço (incluído no livro O
discurso e a cidade), vai falar sobre a percepção, durante o Realismo,
do escritor como “puro sujeito em face do objeto puro” (2004, p. 105).

Machado de Assis fizera a transição entre a estética romântica – à qual


perten­ceriam seus primeiros romances, notadamente Ressurreição, A
mão e a luva e Helena – e a realista, sendo Iaiá Garcia a obra que f az a
UNIUBE 19

ponte para a chamada segunda fase, de que os três romances citados


– Memórias póstumas de Brás Cubas, Quincas Borba e Dom
Casmurro – são grandemente representativos.

Vamos, então, a Dom Casmurro, que você teve a oportunidade de ler


ou reler para essa nossa proposta de percurso pela obra machadiana.
Lembremos do núcleo central de personagens: Bento Santiago –
Bentinho – o narrador que, em primeira pessoa, narra, já idoso, sua vida;
Maria Capitolina – Capitu – a vizinha de Bento, sua amiga de infância e
depois esposa; Ezequiel de Souza Escobar – o Escobar – companheiro
de seminário de Bento na infância, que depois se tornará seu sócio.

Paremos, por enquanto, por aqui, pois já temos o trio central de


personagens de Dom Casmurro.

E a palavra “trio” lembra?... Adivinhe! Vamos a uma pista, volte lá ao


primeiro conto de nosso capítulo, Três tesouros perdidos...

Se você se lembrou de triângulo amoroso, acertou em cheio! Vamos


pros­seguir, então.

Como é de se prever, o trio central de personagens constituirá – sob a


ótica do narrador, Bentinho – um triângulo amoroso.

Vamos olhar para a estrutura do romance. São cento e quarenta e oito


capítulos, a maior parte dos quais bastante curtos, compondo um painel
da vida de Bento Santiago, o narrador. A ação do romance começa
“in medias res” – Bento, na velhice, começa a rememoração de sua
vida, desde a mais tenra infância até alcançar novamente o momento
“presente” da efabulação, ou seja, a velhice de Bento.

AMPLIANDO O CONHECIMENTO

A narrativa que começa “in medias res” utiliza um recurso narrativo que
nos é bastante conhecido devido ao seu uso pelo cinema. É a narrativa
que começa “no meio das coisas”, literalmente (que é a tradução de “in
medias res”). Vemos um personagem ou grupo já em ação, sem que
20 UNIUBE

compreendamos perfeitamente o contexto ou conheçamos as personagens.


Então, a narrativa se volta para o passado — no cinema muitas vezes
fazendo uso do flashback - e começamos a ver a história desde o seu
início, ali temos a oportunidade de conhecer personagens e enredo. Em
algum ponto da narrativa — normalmente próximo ao seu final — o tempo
“passado” encosta naquele com o qual a narrativa se iniciou. Você já viu
muitos filmes com essa estrutura, não?

1.3.1 Linguagem

No que diz respeito à linguagem, a prosa de Dom Casmurro é ágil – o


que se reforça pela adoção dos capítulos curtos, que dão ao leitor a
impressão de movimento. O discurso é pleno de ironia, que, como você
já notou, é uma das características da escrita de Machado.

EXEMPLIFICANDO!

No capitulo 4 — “Um dever amaríssimo!”, diz o narrador:

“José Dias amava os superlativos. Era um modo de dar feição monumental


às ideias; não as havendo, servir a prolongar as frases.”

No capitulo 10 — “Aceito a teoria”, Bento comenta a teoria do teor Marcolini,


exposta no capítulo 9:

“Que é demasiada metafísica para um só tenor, não há dúvida; mas a


perda da voz explica tudo, e há filósofos que são, em resumo, tenores
desempregados”.

Ainda no que diz respeito à forma, há no romance – como em muito


da prosa machadiana – grande quantidade de “digressões”, aqueles
comentários do narrador que não fazem a narrativa “caminhar”, mas
nos fazem conhecer me­lhor o narrador, algum personagem ou alguma
questão que interessa direta ou indiretamente à narrativa.
UNIUBE 21

EXEMPLIFICANDO!

Todo o mencionado capítulo 10 — “Aceito a teoria’. Note que somente ao


final dele Bento faz a narrativa caminhar, dizendo: “ Vamos à primeira tarde,
em que eu vim a saber que já cantava, porque a denúncia de José Dias, meu
caro leitor, foi dada principalmente a mim. A mim é que ele me denunciou.”

Por falar em denúncia, Dom Casmurro é o romance em que o narrador,


Bento Santiago, conta ao mundo a suposta dupla traição de que se
imagina vítima: afirma em seu relato que Capitu e Escobar, esposa e
melhor amigo, seriam amantes e que o filho, Ezequiel – fruto da união
de Bento e Capitu – deve ser, em realidade, filho de Escobar.

PARADA PARA REFLEXÃO

E você, o que achou, lendo o romance? Qual a sua opinião sobre a relação
entre Bento, Capitu e Escobar — você acha que Capitu e Escobar realmente
tiveram um envolvimento amoroso, traindo Bento? E Ezequiel, você acha que
ele é filho de Bento ou seria o “filho da traição”? Reflita sobre isso e converse
com seus colegas e com seu (sua) preceptor(a) sobre isso. Troque ideias!

Dom Casmurro teve várias leituras críticas ao longo do século que se


seguiu à sua publicação. Leituras como a sua, leituras que diferem da
sua. Vamos a elas?

De sua publicação, em 1899, até a década de 1960, quase toda a crítica


con­siderava Dom Casmurro como a história de uma dupla traição
narrada pelo marido traído, Bentinho.

Mas, a partir da década de 1960, a coisa começou a mudar. Foi a partir


do tra­balho de uma estrangeira, a professora e pesquisadora norte
‑americana Helen Caldwell, que estudou o romance e publicou um
trabalho sobre ele no qual afirmava que Bento seria um Otelo brasileiro,
que iniciou‑se outra vertente que passou a considerar Dom Casmurro
como o romance de uma suspeita, a de Bentinho, que pensa ter sido
traído.
22 UNIUBE

AMPLIANDO O CONHECIMENTO

Otelo, o mouro de Veneza é uma peça teatral de William Shakespeare,


encenada em 1603. O tema central é o do ciúme, sentimento que toma
conta do personagem título, Otelo, a ponto de corroer sua relação com a
esposa, Desdêmona, e levá-lo a assassiná-la pela suspeita infundada de
estar sendo traído.

Na contemporaneidade, várias leituras, notadamente as dos professores


bra­sileiros Roberto Schwarz e Luiz Roncari, apontam Bento Santiago
como um narrador não confiável e veem Dom Casmurro como um
romance que seria uma peça de acusação.

Gostamos particularmente da leitura crítica, bastante equilibrada, do


também professor brasileiro Alfredo Bosi, que vê de maneira menos
radical que a de Roberto Schwarz e Luiz Roncari o relato de Bento
Santiago.

1.3.2 Leituras contemporâneas

Dom Casmurro é uma das obras machadianas que mais recebeu


releituras contemporâneas, e Capitu é das personagens mais discutidas
da literatura brasileira. A descrição dos “olhos de cigana, oblíqua e
dissimulada” é lembrada pela maioria das pessoas que leram o romance,
mesmo passados anos após a leitura...

Existiu um site dedicado à literatura – hoje desativado, mas cujo domínio


se encontra à venda (prova de seu valor econômico) – que tem o registro
<http:// www.capitu.com> e há uma canção contemporânea, Capitu, do
paulista Luiz Tatit, que brinca com o personagem Capitu e suas várias
retomadas sociais, inclusive na era da Internet. Entre no site e conheça
a letra da música.
UNIUBE 23

TROCANDO IDEIAS!

Outra leitura contemporânea de Capitu foi realizada em uma telenovela,


Laços de família, de autoria de Manoel Carlos (2000); teve um personagem
chamado Capitu, você se lembra dela? Que tal pesquisar um pouco?
Converse com seus colegas e com seu(sua) preceptor(a) sobre isso. Troque
ideias!

E, para completar nosso percurso por algumas das releituras da obra,


vamos ao cinema e, novamente, à televisão: o filme Dom, de Moacyr
Góes (2003), é uma leitura contemporânea da história narrada por
Bento Santiago, e a minissérie Capitu, de Luiz Fernando Carvalho
(2008), usou recursos contemporâneos para contar a mesma história
em temporalidades que se sobrepõem.

1.4 Mais um pouco sobre Machado

Machado de Assis parece ter vivido uma existência sem sobressaltos,


pacífica e feliz ao lado de sua esposa Carolina. Sua fama e prestígio
como escritor e intelectual só cresceram na maturidade e o emprego
público garantiu uma vida de estabilidade, simples e com algum conforto.
Machado idealizou a Academia Brasileira de Letras e conseguiu levar seu
projeto adiante nos primeiros anos do século XX.

É inegável, porém, que Machado enfrentara, em seu tempo, muitos


precon­ceitos. O primeiro consistia em ser ele mulato e ter vivido grande
parte da sua existência numa sociedade escravocrata. Além disso,
Machado era epilético e essa doença, como você já deve ter ouvido
falar, foi durante muito tempo crivada de preconceitos; muitos pensavam,
antigamente, que o epilético, durante suas crises, era acometido de um
acesso de loucura, ou então ficava sob a influência de maus espíritos.
Lembre‑se de que, à época de Machado, a saúde contava com poucos
refinamentos em termos de medicamentos.

Sua situação se agrava quando, em 1904, ele fica viúvo. A partir daí,
Machado experimenta um declínio em sua qualidade de vida e em sua
saúde. A saudade da companheira, com quem viveu trinta e cinco anos,
24 UNIUBE

é somada à ausência dos cuidados que ela tinha para com ele: em suas
crises, frequentes, era Carolina quem muito o ajudava. Com o passar dos
anos, Machado teve uma ulceração na língua (frequentemente mordida
por aqueles que sofrem ataques epiléticos) que degenerou num câncer
que acabou por causar a morte do escritor, em 1908.

Pouco tempo antes, em 1907, Machado teve a satisfação de inaugurar e


ser eleito, por aclamação, Presidente da Academia Brasileira de Letras.

PESQUISANDO NA WEB

Caso queira saber mais sobre a fundação da Academia Brasileira de Letras,


visite o site: <http://vwomacademia.org.br>.

Lá você encontrará esta e outras informações sobre a instituição, sobre seus


membros e, também, sobre a língua portuguesa.

1.4.1 O alienista

Antes de deixar você e a obra de Machado de Assis para o que,


esperamos, será uma convivência longa e feliz, faremos uma parada
importante. Vamos dar uma olhada numa obra importante, o longo conto
O alienista – que também pode ser considerado uma novela – publicado
em Papéis avulsos, livro de contos de 1882 (e, antes, publicado em A
estação, entre outubro de 1881 e março de 1882).

AMPLIANDO O CONHECIMENTO

No final do século XIX, falava-se em “alienação da mente. Assim, “alienado”


seria sinônimo de “louco”, e “alienista” aquele que se dedicava ao tratamento
dos doentes mentais.

Nessa obra, pequena em número de páginas, com a escrita plena da


graça machadiana, uma das investigações humanas do escritor (aquela
“visita aos abismos” de que falávamos há pouco) está bastante bem
representada: o ques­tionamento da sanidade e de seus limites.
UNIUBE 25

Vamos, juntos, ler o trecho de abertura de O alienista.

INDICAÇÃO DE LEITURA

As crônicas da vila de Itaguaí dizem que em tempos


remotos vivera ali um certo médico, o Dr. Simão Bacamarte,
filho da nobreza da terra e o maior dos médicos do Brasil, de
Portugal e das Espanhas. Estudara em Coimbra e Pádua.
Aos trinta e quatro anos regressou ao Brasil, não podendo
el-rei alcançar dele que ficasse em Coimbra, regendo a
universidade, ou em Lisboa, expedindo os negócios da
monarquia. —A ciência, disse ele a Sua Majestade, é o
meu emprego único; Itaguaí é o meu universo. Dito isso,
meteu-se em Itaguaí, e entregou-se de corpo e alma ao
estudo da ciência, alternando as curas com as leituras, e
demonstrando os teoremas com cataplasmas. Aos quarenta
anos casou com D. Evarista da Costa e Mascarenhas,
senhora de vinte e cinco anos, viúva de um juiz-de-fora,
e não bonita nem simpática. Um dos tios dele, caçador
de pacas perante o Eterno, e não menos franco, admirou-
se de semelhante escolha e disse-lho. Simão Bacamarte
explicou-lhe que D. Evarista reunia condições fisiológicas
e anatômicas de primeira ordem, digeria com facilidade,
dormia regularmente, tinha bom pulso, e excelente vista;
estava assim apta para dar-lhe filhos robustos, sãos e
inteligentes. Se além dessas prendas, – únicas dignas da
preocupação de um sábio, D. Evarista era mal composta de
feições, longe de lastimá-lo, agradecia-o a Deus, porquanto
não corria o risco de preterir os interesses da ciência na
contemplação exclusiva, miúda e vulgar da consorte. D.
Evarista mentiu às esperanças do Dr. Bacamarte, não lhe
deu filhos robustos nem mofinos. A índole natural da ciência
é a longanimidade; o nosso médico esperou três anos,
depois quatro, depois cinco. Ao cabo desse tempo fez um
estudo profundo da matéria, releu todos os escritores árabes
e outros, que trouxera para Itaguaí, enviou consultas às
universidades italianas e alemãs, e acabou por aconselhar
à mulher um regímen alimentício especial. A ilustre dama,
26 UNIUBE

nutrida exclusivamente com a bela carne de porco de


Itaguaí, não atendeu às admoestações do esposo; e à sua
resistência, - explicável, mas inqualificável, -devemos a total
extinção da dinastia dos Bacamartes. Mas a ciência tem o
inefável dom de curar todas as mágoas; o nosso médico
mergulhou inteiramente no estudo e na prática da medicina
(RINARÉ, 2008).

Estamos devidamente apresentados ao doutor Simão Bacamarte, que


sabemos que viveu “em tempos remotos” e estudou em Portugal, fazendo
‑se conhecido do rei português da época. Vamos pensar nessa questão
do tempo: o ano de publicação da obra é 1881 e o narrador nos diz que
o doutor Simão viveu em tempos remotos; podemos pensar que remoto
para a época poderia ser, pelo menos, cem anos antes, portanto, final do
século XVIII. O recurso de localizar a ação num passado remoto costuma
servir aos escritores para poderem, livre­mente, fazer associações com o
presente sem que isso fique tão evidente, ou, pelo menos, sem que isso
seja “cobrado”. Assim, temos o narrador livre para refletir sobre a “loucura
humana”. Pensando em se dedicar completamente à ciência (no caso,
a medicina), Simão escolhe se casar com uma mulher feia pela qual
nada sentia, para com isso evitar o enamoramento humano trazido pela
contemplação do belo que o afastaria do estudo. Como únicos requisitos,
ele tomava as “condições fisiológicas e anatômicas de primeira ordem”
da candidata a noiva, o que a habilitaria a ter filhos, única função que o
médico reconhecia como adequada no casamento.

PARADA PARA REFLEXÃO

Vê-se de pronto que errou o “diagnóstico”, pois D. Evarista não gerou filhos,
e quanto à tentativa de evitar o amor... Será que isso seria uma atitude
sensata?

Converse com seus colegas e com seu(sua) professor(a) tutor(a) sobre isso.
Troque ideias!
UNIUBE 27

Agora, esperamos que você continue a leitura de O alienista e propomos,


para finalizar o nosso passeio conjunto pela obra de Machado de Assis,
que você tenha contato com uma releitura feita em forma de literatura de
cordel. Trata ‑se da obra do cordelista Rouxinol do Rinaré, que em 2008
publicou sua adaptação do conto.

1.5 Conclusão

Machado de Assis pode ser uma de suas leituras pelos próximos anos.
Com uma prosa que não oferece dificuldades aparentes – temos a
impressão de algo bastante plano – o escritor explora com perspicácia
e domínio de linguagem, os abismos da condição humana. Como diria
o narrador de Memórias póstumas de Brás Cubas – o defunto Brás
– com a pena da galhofa, a tinta da melancolia e – acrescentamos nós
– uma fina ironia e um conhecimento da natureza humana atilado por
leituras de filosofia e literatura, Machado de Assis legou uma das grandes
obras literárias da transição do século XIX para o XX, não apenas para
a literatura brasileira, como já dissemos, mas para a literatura ocidental.
Machado de Assis não é mais conhecido e estudado porque escreveu em
português e contou com poucas traduções para as línguas consideradas
de prestígio em termos de literatura (inglês, francês, alemão). Porém, o
interesse por sua obra vem crescendo nos últimos anos, em especial nos
Estados Unidos, onde é cada vez mais estudado.

A obra de Machado está toda disponível na Internet, no Portal de Domínio


Pú­blico, e por ocasião do centenário de sua morte, em 2008, foi preparada
por uma parceria entre o Portal Domínio Público – a biblioteca digital do
MEC – e o Núcleo de Pesquisa em Informática, Literatura e Linguística
(NUPILL) da Univer­sidade Federal de Santa Catarina, uma Coleção
Digital Machado de Assis, um excelente material que gostaríamos que
você consultasse (e que está acrescido de um vídeo preparado pela TV
Escola):

PESQUISANDO NA WEB

Sugerimos que confira no site: <http://machado.mec.gov.br>


28 UNIUBE

PARADA OBRIGATÓRIA

Esperamos que a leitura da obra de Machado de Assis e a de sua adaptação


possam — além do prazer que por certo irão propiciar — deixar em você a
semente da dúvida: afinal, o que queria mesmo dizer Machado de Assis? E,
voltando lá para o início do nosso percurso — mudou alguma coisa na sua
ideia sobre o autor e sua obra?

Converse com seus colegas e com seu (sua) professor(a) tudor(a) sobre
isso Troque ideias!

É hora de nos despedirmos. Deixamos você na sempre boa companhia


de Ma­chado. Vale lembrar que no site Domínio Público, a biblioteca virtual
mantida pelo MEC (http://www.dominiopublico.gov.br), você encontra,
disponíveis para download, todas as obras de Machado de Assis: sempre
uma boa leitura, ao alcance do seu mouse!

Resumo

Machado de Assis é considerado o maior escritor do Realismo no Brasil.


Sua obra é vasta e compreende o jornalismo, o teatro, a crítica e a
literatura. Nesta, produziu grande número de peças teatrais e de contos,
e nove romances.

A leitura das obras machadianas aponta para uma profusão de diálogos,


apuro formal, linguagem objetiva e apurada. Machado de Assis prima
pelo uso da iro­nia nos textos; esta indica nele um observador contumaz
de seu tempo e das pessoas que compunham a sociedade do Rio de
Janeiro no século XIX.

Machado de Assis não nasceu como um homem genial. Sua fama se


deve ao trabalho e à dedicação que soube empregar em todos os setores
da vida: no trabalho, na família e na literatura.

A obra machadiana revela nele um homem do seu tempo, afeito


aos ideais realistas que viriam para derrubar o Romantismo literário:
condução objetiva da narrativa; valorização da razão; apuro formal, sem
UNIUBE 29

exageros; personagens psicologicamente mais densos e conflituosos;


olhar agudo para o cinismo e para as mazelas que se escondiam, nas
ações humanas, sob o véu da honestidade.

Ao longo do tempo, a obra de Machado de Assis ganhou projeção


internacional, com um sem número de traduções. Além disso, algumas
de suas personagens, como Capitu, tornaram‑se “patrimônio cultural” do
Brasil e ganharam releituras em diferentes épocas e linguagens artísticas.

INDICAÇÃO DE LEITURA

ASSIS, Machado de. Dom Casmurro. Disponível em: http://www.


dominiopublico.gov. br/pesguisa/DetalheObraForm.do?select_action=&co_
obra=1888.

Referências

ASSIS, Machado de. O alienista. In: ______. Papéis avulsos. 1882. Disponível
em: <http://www.dominiopublico.gov.br/download/texto/bv000230.pdf>.
Acesso em: 9 fev. 2010.
______. Contos: uma antologia. Seleção, introdução e notas de John Gledson.
São Paulo: Companhia das Letras, 1998. v 2.

______. Dom Casmurro. São Paulo: Círculo do Livro, 1978. ______. Obra
Completa. Rio de Janeiro: W. M. Jackson, 1938. v. 24.

______. Um homem célebre. 1888. Disponível em: <http://machado.mec.


gov.br/arquivos/pdf/ contos/macn005.pdf>. Acesso em: 21 dez. 2009.

______. Um apólogo. 1878. Disponível em: <http://machado.mec.gov.


br/arquivos/pdf/contos/ macn005.pdf>. Acesso em: 21 dez. 2009.

______. Três tesouros perdidos. 1858. Disponível em: <http://machado.mec.gov.


br/ arquivos/pdf/contos/macn008.pdf>. Acesso em: 21 dez. 2009. BOSI, Alfredo.
Machado de Assis: o enigma do olhar. São Paulo: Martins Fontes, 2007.

______. Folha explica Machado de Assis. São Paulo: Publifolha, 2002.


30 UNIUBE

______. História concisa da literatura brasileira. São Paulo: Cultrix, 1994. p. 188.

CALDWELL, Helen. O Otelo brasileiro de Machado de Assis.


São Paulo: Ateliê Editorial, 2002.

CALVINO, ítalo. Por que ler os clássicos. São Paulo: Companhia das Letras, 1993.

CANDIDO, Antonio. O discurso e a cidade. Rio de Janeiro: Ouro sobre Azul, 2004.

COURI, Celina Ramos. Machado de Assis: o enigma do olhar, de Alfredo Bosi.


(Resenha) Disponível em: <http://www.scielo.br/scielo.php?script=sci_arttex
t&pid=S0103‑65642001000100012&lang=pt>. Acesso em: 20 jan. 2010.

MISKOLCI, Richard. O vértice do triângulo: “Dom Casmurro” e as


relações de gênero e sexualidade no “fin ‑de ‑siècle” brasileiro. Disponível
em: <http://www.scielo.br/scielo. php?script=sci_arttext&pid=S0104
‑026X2009000200014&lang=pt>. Acesso em: 2 fev. 2010.

RABELLO, Ivone Daré. Machado de Assis: um homem genial? Disponível


em: <http://www. scielo.br/scielo.php?script=sci_arttext&pid=S1676
‑26492008000400009&lang=pt>. Acesso em: 20 jan. 2010.

RINARÉ, Rouxinol do. O alienista em cordel. São Paulo: Nova Alexandria, 2008.

RONCARI, Luiz. Machado de Assis: o aprendizado do escritor e o esclarecimento


de Mariana. Disponível em: <http://www.scielo.br/scielo.php?script=sci_
arttext&pid=S0102­‑01882005000200010&lang=pt>. Acesso em: 09 fev. 2010.

SCHWARZ, Roberto. Um mestre na periferia do capitalismo. São


Paulo: Duas cidades/ Editora 34, 1990.

TATIT, Luiz. Capitu. Disponível em: <http://www.capitu.com>. Acesso em:


12 dez. 2010.
Capítulo A poesia de Carlos
2 Drummond de Andrade

Alexandre Bonafim Felizardo

Introdução
Pretendemos estudar, neste capítulo, a poesia de um grande poeta
brasileiro, Carlos Drummond de Andrade. Drummond, ao longo de
extensa produção, elaborou uma obra poética pautada pelo rigor e
pela variedade de temas. Dessa forma, o poeta escreveu poemas
tanto em versos livres como metrificados. Suas preocupações
filosóficas nortearam sua produção, em um leque amplo de
pensamentos. Temos, assim, em sua poesia, preocupações
existências, sociais e éticas, numa extensa coletânea de poemas
a constituir verdadeira riqueza para a literatura mundial.

Objetivos
Ao final deste capítulo você deverá:
• explicar os recursos poéticos da linguagem, bem como os
temas abordados pelo poeta;
• identificar o contexto social e cultural do poeta;
• analisar os significados profundos dos poemas;
• identificar as principais características da obra de
Drummond
Esquema
2.1 Considerações iniciais
2.2 Drummond e o modernismo
2.3 Características gerais da poesia de Drummond
32 UNIUBE

2.3.1 O indivíduo, um eu todo retorcido: inquietações


existenciais em Drummond
2.3.2 A terra natal: uma província
2.3.3 A família que me dei
2.3.4 Cantar de amigos
2.3.5 O choque social
2.3.6 O conhecimento amoroso: amar‑amaro
2.4 Análise de alguns poemas de Carlos Drummond de Andrade
2.5 Poema de sete faces: a expressão de um eu tímido, torcido
2.6 Confissão de um coração partido
2.7 Uma flor nauseante
2.8 Conclusão

2.1 Considerações iniciais

Iniciaremos, a partir de agora, um passeio pela obra daquele que foi


considerado, por muitos críticos e leitores, o maior poeta brasileiro do
século XX: Carlos Drummond de Andrade.

Mineiro de Itabira, Drummond fez de Minas Gerais um dos grandes


motivos temáticos de sua poesia. Podemos reconhecer, em sua escrita,
aquele “jeitinho mineiro” desconfiado, tímido, a tornar a sua escrita rara
e singular no contexto da literatura brasileira.

O poeta viveu muito tempo, de 1902 a 1987. Foram 85 anos de uma vida
a vislumbrar inúmeros acontecimentos políticos e sociais: a Segunda
Guerra Mundial, a ditadura de Getúlio Vargas e, posteriormente, a
Ditadura Militar, a Guerra Fria, a revolução feminista, o advento de uma
era de desenvolvimento tecnológico e industrial no Brasil.

Participante, o escritor de Itabira sempre esteve atento ao que se passava


ao seu redor, exercendo no campo de sua escrita uma crítica voraz ao
mundo, às explorações sociais e às injustiças em geral. É essa postura,
inclusive, que motivou o poeta a escrever um verso belíssimo como esse:
“O tempo é a minha matéria, o tempo presente, os homens presentes, a
vida presente”. (ANDRADE, 1992, p. 68.)
UNIUBE 33

Então, não é fascinante mergulhar na obra desse autor e poder aprender


um pouquinho de nossa história, de nossa cultura?

RELEMBRANDO

Agora gostaria que você se lembrasse de um dado ligado às escolas literárias


anteriores ao tempo do Drummond. No pamasianismo e no simbolismo,
estéticas que antecederam o modernismo, os poetas se exilavam em suas
torres de marfim, não se preocupando com o que acontecia no contexto
social em que participavam. Tais artistas viviam com a cabeça na lua, nas
nuvens. Nos poemas desses autores, não encontramos preocupações
sociais e políticas. Tudo no texto deles se limitava ao espaço íntimo de suas
vivências. Com o advento do modernismo, escola literária iniciada em 1922,
o poeta torna-se participante do mundo, fazendo de sua arte uma forma de
crítica social e política. Drummond irá postular tal preceito como uma das
linhas de força de sua lírica.

SAIBA MAIS

A expressão “torre de marfim”, usada no trecho apresentado, é uma metáfora


utilizada para referir-se ao isolamento do poeta.

Vamos compreender, a partir de agora, em que sentido o modernismo


influiu na obra do nosso grande poeta de Minas Gerais?

2.2 Drummond e o modernismo

Drummond, nascido na pequena cidade de Itabira, vai paulatinamente


se mu­dando para cidades maiores. Primeiramente, irá morar na capital
mineira e, em seguida, no Rio de Janeiro, onde viverá até a morte.

Essa fuga do interior rumo às metrópoles fará com que Drummond reflita
em sua poesia uma permanente tensão entre a “vida besta”, atrasada, da
cidadezinha e o alvoroço, a confusão da cidade grande, onde o homem
vai se tornando cada vez mais só e dependente das máquinas.
34 UNIUBE

Esse choque entre as culturas interio­ranas e metropolitanas será uma


permanente inquietação na escrita do poeta mineiro. Mais adiante, iremos
exemplificar tal conflito nos poemas do autor.

Essa trajetória, portanto, irá acarretar profundas marcas na poesia do


escritor itabirano. O poeta vai tendo acesso a um universo cultural cada
vez mais amplo, tomando contato com novas estéticas e com intelectuais
de grande importância.

Em Belo Horizonte, por exemplo, ele irá conhecer os jovens modernistas


minei­ros: Pedro Nava, Abgar Renault, Emílio Moura, João Alphonsus,
Aníbal Machado, Henriqueta Lisboa, entre outros.
Metafísico

Significa tudo
Todos esses escritores, empolgados com a
aquilo que se liga revolução estética do modernismo de São Paulo,
a uma dimensão
maior da vida,
irão aclimatar, adaptar as inovações estéticas da
incompreensível nova escola literária ao jeitinho dos mineiros. Os
para nós, como a
questão da morte,
jovens de Minas, muito desconfiados, irão dar uma
da eternidade e de dimensão existencial e metafísica às inovações da
Deus
vanguarda modernista.

IMPORTANTE!

O aprofundamento filosófico do modernismo será também efetuado pelos


cariocas (Dante Milano e Vinicius de Moraes) e pelos nordestinos, tanto
poetas como romancistas (Jorge do Lima. Rachel do Queiroz. Graciliano
Ramos, entre outros). Esse amadurecimento das propostas modernistas
ficará conhecido na história da literatura brasileira, como a “segunda fase
do modernismo”, na qual se insere a obra drummondiana

O que significa tudo isso Primeiramente, precisamos


Vanguarda entender o que é uma vanguarda.
Conjunto de
inovações estéticas Nesse sentido, o modernismo inicial surge em
produzidas por um
determinado grupo. São Paulo, com muitas inovações.
UNIUBE 35

Para os primeiros modernistas, representados pelos escritores Oswald e


Mário de Andrade, uma das questões importantes para eles era retratar,
na literatura, temas considerados até então menores, assuntos ligados ao
cotidiano, à banalidade do dia a dia. Eles não queriam mais os assuntos
elevados do simbolismo e do parnasianismo, tais como a morte, a
eternidade ou Deus.

Interessavam aos escritores do modernismo nascente o prosaico, o que


era de nossa vida mais concreta, tal como os fatos tirados de uma notícia
de jornal, um bichinho a se esconder debaixo de um fogão (lembremos
do “Porquinho da Índia”, de Bandeira), a vida pacata de uma cidadezinha,
os objetos sem nenhum valor espiritual (os sabonetes de Araxá, de
Bandeira, por exemplo).

Todos esses assuntos e temas eram ainda trabalhados por uma


linguagem coloquial, sem palavras raras e pouco usuais, ou seja, por
um vocabulário ex­traído da vida nossa de todo dia.

Os modernistas de Minas irão aproveitar tudo isso, mas darão um


enfoque di­ferente, centrado em uma preocupação com a existência
profunda do homem, com a sua morte, com a fragilidade da vida.

E quem nunca se viu diante desses problemas? Perceba que o poeta


apenas reformula, transforma em texto nossas dificuldades, nossos
conflitos com a exis­tência.

Drummond, seguindo esse processo de maturação dos ideais do


modernismo, terá inúmeros poemas de tema prosaico, mas com profunda
preocupação filo­sófica e existencial.

IMPORTANTE!

Um exemplo dessa reformulação da estética modernista, encontramos no


famoso poema “No meio do caminho”, no qual o eu lírico se depara com uma
pedra a lhe cortar a passagem. Tal pedra representa todas as dificuldades da
vida, tais corno a morto ou a angústia. Além de ser um elemento ligado aos
dilemas da existência. Trata-se também do um acontecimento extremamente
banal corriqueiro. Aliás aposto que vote até já tropeçou em alguma pedra!
36 UNIUBE

Vamos ler esse poema?

PESQUISANDO NA WEB

Sugerimos que confira no site: <http:/hwav.revista.agulha.nom.brrdiummOg.


html>.

SAIBA MAIS

Você já deve, inclusive, ter usado essa expressão: “esse problema é uma
pedra no meu caminho”. O poema tornou-se tão famoso que acabou virando
expressão usada no nosso dia a dia.

Observem: pelo exemplo, podemos perceber algo do cotidiano (uma


pedra no caminho) ligado a questões de nossa vida mais profunda (a
morte, a dor, os problemas inerentes à condição humana).

Vamos recapitular?

Nessa segunda fase do modernismo, portanto, as propostas inovadoras


das vanguardas são aprofundadas por uma vivência humana mais
intensa, mais questionadora, mais sensível a temas de ordem moral e
metafísica. O professor da Universidade de São Paulo e grande crítico
da obra drummondiana, Francisco Achcar, fala‑nos dessa maturação do
modernismo. Vamos ver o que ele tem a nos esclarecer? Eis o que ele
afirma:
Nessa segunda etapa do movimento modernista — que
vai, grosso modo, de 1930 a 1945 —, desenvolvem ‑se
na poesia algumas das características mais marcantes
de seu primeiro tempo (inovações rítmicas, humor,
paródia, temas cotidianos, linguagem coloquial, elipses
e associações surpreendentes), ao mesmo tempo que
se amplia a temática e se diversificam os recursos e
as tendências estilísticas. Esboça ‑se, portanto, o perfil
contemporâneo da literatura brasileira, que, como a
literatura internacional, testemunha a emergência de
três sis­temas explicativos do homem e da sociedade: o
existencia­lismo, a psicanálise e o marxismo. (ACHCAR,
2000, p.11 ‑12.)
UNIUBE 37

Vamos verificar, agora com mais detalhes, para que você tenha uma visão
mais ampla, algumas dessas inovações propostas pelos modernistas da
segunda fase:
1) generalização e aprofundamento da mistura de estilos: o banal e o
elevado se misturam (é o caso da pedra drummondiana); temas sérios
e problemáticos são tratados com linguagem vulgar (lembremos, por
exemplo, o texto “Poema tirado de uma notícia de jornal”, de Manuel
Bandeira, em que um suicídio é tratado com a linguagem límpida
utilizada pelos jornalistas);

2) aproveitamento de temáticas existenciais como o tempo, o amor e a


morte;

3) elaboração de imagens surpreendentes, com associações inesperadas


(Drum­mond, por exemplo, ligará termos distantes como podemos
notar no seguinte verso: “A vida secreta das chaves”, do poema
“Dentaduras duplas”, em que uma palavra inerente a seres animados
— vida — é transposto para um objeto — chaves);

4) envolvimento do escritor em questões sociais (o livro de Drummond A


rosa do povo — 2010 — estará repleto de poemas ligados a questões
humanitá­rias e sociais);

5) reflexão da poesia pela própria poesia, ou seja, metalinguagem


(lembremos os seguintes versos do poeta de Itabira: “Lutar com
palavras/ é a luta mais vã”).

Foi, portanto, a partir de todas essas inovações que a poesia de


Drummond foi gestada, ganhando, lentamente, maturidade e coerência
estética.

Agora que já conhecemos um pouquinho do modernismo da segunda


fase, vamos verificar como tudo isso acontece na poesia de Drummond?

2.3 Características gerais da poesia de Drummond

Na obra de Drummond, podemos encontrar algumas temáticas de


relevância, núcleos em torno dos quais o poeta empreende inúmeras reflexões,
38 UNIUBE

fundando sua maneira típica de estar no mundo e de se relacionar com


o outro.

Vamos elencar essas temáticas como subcapítulos.

Você está pronto para empreender mais esse passeio pela obra do nosso
grande poeta?

2.3.1 O indivíduo, um eu todo retorcido: inquietações existenciais


em Drummond

Na obra de Drummond, encontramos um eu em um constante dilema


consigo mesmo, com a vida e com os outros.

Arrigucci Júnior, professor da Universidade de São Paulo e grande


crítico lite­rário, irá afirmar que, na obra de Drummond, “tudo acontece
por conflito”. (AR­RIGUCCI JÚNIOR, 2002, p. 15.)

Nesse sentido, tudo é dramático e tenso para o poeta, que se gasta em


uma árdua indagação ante o mistério da vida. Esse permanente estado
pensativo, meditativo, é a marca filosófica da obra de Drummond.

Imaginem vocês uma pessoa que vive com a “cuca quente”, perguntando
sobre o sentido da vida e da morte, indagando o porquê dos fracassos
amorosos, das relações de ódio, da calamidade social e moral do homem
corrompido pelo consumo e pelas máquinas?

Pois bem, nosso grande poeta era assim: um homem muito lúcido, muito
vivo, um poeta a gastar exaustivamente sua capacidade de análise e
reflexão do mundo. Arrigucci Júnior nos afirma que o pensamento, para
o poeta mineiro, “define a atitude básica do sujeito lírico, interferindo na
relação que este mantém com o mundo exterior, ao mesmo tempo que
cava mais fundo na própria subje­tividade”. (2002, p.16.)
UNIUBE 39

EXPLICANDO MELHOR

Vamos entender um pouquinho mais sobre isso que Arrigucci Júnior nos
afirma? Para o crítico, o poeta pensa tanto, mas tanto, que fica brigando,
pelejando, com o mundo fora do eu e consigo mesmo.

Essa briga com o próprio eu nasce de uma profunda timidez, de uma falta
de jeito para lidar com as coisas práticas do mundo e, consequentemente,
uma não aceitação de si. Conforme um poema do autor, as palavras
querem explodir no íntimo do espírito. Daí nasce a sensação de angústia,
de abafamento das emoções.

EXEMPLIFICANDO!

Vejamos um exemplo de como isso acontece. No longo poema “Nosso


tempo”, de A rosa do povo, as palavras trafegam na intimidade do eu, em
um permanente ato de reflexão. Leia a parte I do poema no site <http://www.
scribd.com/dod6919536/ CarlosDrummond-de-Andrade-Rosa-do-povo>.
Essa situação, apesar de angustiante, é corriqueira. Quem nunca sentiu as
palavras represadas no coração, uma vontade doida de gritar e, entretanto,
não poder? Creio que você já passou por isso.

No caso de Drummond, essa tensão das palavras, quase explosivas,


dá‑se pelo constante exercício do pensamento.

Por isso, o eu de Drummond é todo retorcido. Ele vive em desacordo


consigo e com o mundo.

Esse jeito condoído advém do provincianismo do escritor. Tal


provincianismo leva o poeta a enfrentar, com dificuldades, o tumulto da
vida moderna nas me­trópoles.

Vamos agora observar outras características da poesia de Drummond?

Vamos lá conhecer essa outra faceta da obra do nosso escritor?


40 UNIUBE

2.3.2 A terra natal: uma província

Muita gente já deve ter sentido raiva por morar em algum lugar. Como
sabemos, várias pessoas vivem em desacordo com o espaço onde
vivem. Outros não, amam habitar onde estão. Drummond concentra
esses dois sentimentos.

O poeta, em inúmeros poemas, irá cantar, sempre de forma dramática e


melan­cólica, as suas origens. Nesse sentido, apesar do escritor ter vivido
a maior parte da existência nas metrópoles, ele sempre irá cultivar um
jeito de interiorano, tipicamente mineiro, em face do mundo moderno da
grande cidade.

Como isso é representado em sua poesia? Na busca de suas raízes


familiares, de sua cidade natal. Itabira surgirá como região do afeto, do
amor dos pais, dos brinquedos da infância, do tempo ingênuo de menino.

Entretanto, tal feito não se dá de forma simples. Lembrar de Itabira é


também perceber um mundo para sempre perdido, jamais conquistado.

Talvez somente a poesia, pelo seu registro textual, possa conter essa
plenitude perdida. Daí a constante presença da cidadezinha em sua obra.

Em outros momentos, o poeta recorda desse mundo com desdém, com


iro­nia, realçando a banalidade da vida nas pequenas cidades. É desse
senti­mento que nasce o famoso verso: “Êta vida besta, meu Deus”.

PESQUISANDO NA WEB

Vamos ler o poema “Cidadezinha qualquer” no sito <http://~v.fabiorocha.


com.br/ drummond.htm>?

Quem nunca sentiu monotonia em cidade pequena? O tédio ante a falta


de lu­gares para se divertir, a necessidade de um mundo maior e mais
expressivo (teatros, cinemas, universidades), a sensação de tempo
morto, movido pelo marasmo, tudo isso pode acometer o coração
daquele que vive numa cidade­zinha demasiadamente pequena. Claro
que também há pessoas que amam esse mundo. Enfim, tudo isso
depende da subjetividade da pessoa que vive em tais lugares.
UNIUBE 41

Como já vimos, o nosso poeta era muito filosofante. Como conciliar essa
natu­reza questionadora, sempre em busca de novos horizontes, de novas
possibi­lidades, com um mundo tão restrito? Eis porque o poeta reserva
um olhar irônico para esse universo.

Mas não é na cidade que também está perdido o mundo dos afetos,
dos amores familiares? Ao tema da cidadezinha liga‑se o próximo, o da
família.

Vamos continuar? Vamos observar como a memória influi na vida e na


obra do poeta?

2.3.3 A família que me dei

Se a cidadezinha é um céu e um inferno na memória do escritor, esse


ser sem­pre interiorano a viver no mundo banal e frenético da metrópole,
a sua relação com a família também não é simples.

E poderia ser diferente? Afinal, trata‑se de um poeta de eu retorcido,


dilemático. Então, podemos ter certeza de uma coisa. O poeta adora dar
atenção aos pro­blemas do mundo. E por quê? Porque a vida, o outro, o
amor, a morte são suas preocupações constantes. Estamos diante de
um poeta de lucidez muito aguda, intensa.

Nesse sentido, a relação com a família será também de afeto e mágoa.

Vamos ver um exemplo?

EXEMPLIFICANDO!

Em um belíssimo poema, intitulado “Viagem na família”, o poeta narra-nos


um dramático reencontro com o fantasma do pai morto. O eu lírico,
distanciado no tempo, já adulto, em visitação a Itabira, dá a mão ao pai
que o leva, pela cidade, a visitar outros mortos. Vejamos o poema no
site <http://www.gugalyrics.com/CARLOS-DRUMMOND-DE--ANDRADE-
CARLOS-DRUMMOND-DE-ANDRADE—VIAGEM-NA-FAM%C331ADLIA-
-LYRICS/168991/>.
42 UNIUBE

Parece filme de assombração, não é?

Tal texto dá‑nos um friozinho na barriga, entretanto, nesse poema, o autor


faz um regaste do amor paterno. Na infância, o menino antigo, o eu lírico
ainda pequeno, não teve uma relação de harmonia com o pai. Agora,
nesse momento fantástico, a criança faz as pazes com esse ente querido.
Isso acontece na penúltima estrofe, em que o eu lírico enfim apazigua
sua consciência ante esse súbito entendimento com o pai.

IMPORTANTE!

A família, dessa forma, vai constituindo um nó de contradições.

Quem nunca brigou com um irmão, com um pai? Às vezes, a raiva toma
nosso coração e, sem percebermos, ferimos e somos feridos.

EXPLICANDO MELHOR

Drummond exprime, nos poemas dedicado à família, justamente esse


intricado nó de sentimentos, em que amor e ódio se mesclam, revelando
mais uma vez a dramaticidade da poesia do escritor mineiro.

Outra faceta do poeta será a sua relação com os amigos.

Vamos ver o que Drummond tem a nos dizer das pessoas com as quais
privou o laço de fraternidade?

2.3.4 Cantar de amigos

Drummond conviveu com inúmeros intelectuais e grandes escritores.


Dessa relação fecunda, nasceram poemas que servem como verdadeiros
retratos dos amigos e da obra deles.

Nesse sentido, como um verdadeiro leitor de poesia, o escritor itabirano,


ao formular seus textos sobre os escritores amigos, delineia, muitas
vezes, uma poética, um roteiro de leitura.
UNIUBE 43

É pela relação social, no trato diário com o outro, que o poeta vai também
deli­neando sua personalidade e enriquecendo a sua obra.

Não podemos nos esquecer que o escritor de Minas era um grande


humanista.

O que significaria isso?

Ao chamá‑lo de humanista, nós realçamos no poeta a sua constante


vigília pelo outro, em gestos políticos de solidariedade. Nesse sentido, as
relações de ami­zade se enquadram nessa perspectiva solidária.

EXEMPLIFICANDO!

Vejamos um poema, dedicado ao amigo Mário de Andrade, em que podemos


vislumbrar esse gesto de confraternização.

O poema “Mário de Andrade desce aos infernos” poderá ser lido por você no
site <httpd://www.scribdc.om/doc/6919536/Carlos-Drummond-de-Andrade-
Rosa-do-povo>.

Podemos fazer uma leitura desse texto, visualizando


em suas palavras, uma metapoética. Metapoética

É quando, no
Em um primeiro momento, Drummond nos narra poema, o autor
discute questões
a falta, a É quando, no poema, perda do amigo ligadas à própria
falecido. Todavia, ao esboçar as imagens, o autor poesia.

discuteele nos dá uma direção sobre a própria


poesia da modernidade.

A poesia hoje em dia é um canto rouco, rápido, apressado. Por quê?


Isso acon­tece por causa da velocidade da vida moderna. Imagina a vida
de um poeta na cidade grande? Ter que enfrentar o trânsito, correr sem
parar o dia todo para garantir o seu sustento. O poema tem de nascer
nesse tumulto, nos breves minutos em que o escritor está sentado no
ônibus, no trem, ou durante um in­tervalo rápido para o almoço. Imaginem
se Camões fosse escrever aquela sua obra monumental, Os Lusíadas,
44 UNIUBE

na correria de São Paulo? Seria muito difícil conseguir esse intento. Daí
a indignação de Drummond frente às “vozes em febre”, adoecidas, dos
poetas da modernidade.

Drummond, ao cantar os amigos, apreendia deles a sabedoria e o afeto.


E não é bom termos amigos? Eles nos ajudam em nossos problemas,
em nos­sas dificuldades com a vida.

Vejamos agora a próxima característica da poesia do escritor mineiro.

Trata‑se de suas preocupações políticas. Um homem com tantos amigos


tende a ser amigo também da humanidade.

Vamos verificar isso?

2.3.5 O choque social

Conforme vimos anteriormente, Drummond fez da poesia um cenário


de deba­tes sobre o destino social da humanidade. Sempre com uma
linguagem simbó­lica, lírica, de alta qualidade, ele penetrou no mundo
das lutas de classe e vislumbrou um olhar de compaixão pelos
desafortunados, pelos desvalidos do mundo.

Nesse sentido, foi um crítico ferrenho do capitalismo, do processo


alienante do consumo desenfreado, do dinheiro a substituir os afetos e
os valores humanos.

EXEMPLIFICANDO!

Um exemplo de crítica a essa perda dos valores humanos e prol do consumo


podemos ver o poema “Eu, etiqueta”. Que tal lê-lo no site <http://www.
pensador.info/frase/MjAyODM0/>?

Mais à frente vem a terrível afirmação: “É doce estar na moda, ainda


que a moda/ seja negar minha identidade”. (ANDRADE, 1992, p.1019.)
E nos últimos versos a sentença fatal e mordaz: “Já não me convém o
título de homem./ Meu nome novo é coisa./ Eu sou a coisa coisamente”.
(ANDRADE, 1992, p.1020.)
UNIUBE 45

Esse poema de Drummond revela sua autoconsciência crítica, sua


análise sarcástica de um mundo em ruínas,
onde passamos a ser regidos pela moda, pelos Reificação
produtos do mercado — sapatos, roupas, alimentos
Ocorre quando
industrializados. o homem perde
sua humanidade,
quando ele se
Um grande filósofo, Theodor W. Adorno, chamará transforma em
esse processo de reificação. coisa.

SAIBA MAIS

Theodor W. Adorno

Foi um filósofo alemão, da chamada Escola de Frankfurt. Essa escola foi


constituída por filósofos muito atentos à modernidade e à transformação
da vida pelo capitalismo. Portanto, foram não apenas críticos do processo
desumanizador de nosso atual sistema econômico, como também teóricos
da arte e da estética.

Observe o quanto a reificação é um fenômeno terrível. Muita gente é coisa


e nem sabe. Há muito humanos sendo manipulados pela propaganda,
pela mídia e pela moda, tornando‑se seres vazios de sentido. O sentido
maior da vida não são as roupas, os carros novos, os objetos fúteis, mas
a alegria, o amor, a co­munhão com o outro!

Agora você conseguiu entender um pouco mais sobre reificação?

O poema de Drummond desvela‑nos um importante dado da realidade:


estamos perdendo a sensibilidade para conosco e para com o outro.
Disso resulta a imensa orfandade do homem moderno, carente de amor
e de sacralidade.

Como você pôde perceber, somos vítimas e culpados pelo consumismo e


pela perda daqueles valores importantes. Entretanto, ao lermos poemas
como esse, ficamos mais conscientes de tal fato, possibilitando‑nos uma
reação frente a essa época de indigência e violência.
46 UNIUBE

É superinteressante podermos fazer essas reflexões, você não acha?


Nós nos engrandecemos como seres humanos.

Passemos agora para a próxima caracterização da poesia de Drummond,


o amor como forma de conhecimento da vida.

2.3.6 O conhecimento amoroso: amar-amaro

O amor em Drummond não poderia ser tranquilo. Como já vimos, um


poeta tão lúcido não poderia ficar indiferente às dores e alegrias do amor.

Em muitos poemas, o poeta celebra o amor com empolgação e com muita


fé. Ele expressa a necessidade de nos doarmos ao outro. Todavia, em
outros mo­mentos, uma profunda decepção revela‑nos um pessimismo
e um sarcasmo pelas relações de afeto.

E também nós, não oscilamos entre essas duas situações de existência?


Quan­tas vezes o outro amado nos fere e, em seguida, nos dá alegria?

PESQUISANDO NA WEB

Vejamos um famoso poema, em que a necessidade de amar se torna


fundamental para o crescimento humano. O poema se chama “Amar”, e
você poderá lê-lo no site: <http://www.carlosdrummonddeandrade.com.br/
poemas.php?poema=11>.

Belo poema, não?

Nesse texto, o amor torna ‑se o sentimento fundamental de conhecimento


do mundo. É amando que o eu cresce, compreendendo que a razão de
sua exis­tência é justamente o abrir‑se para o outro. Nesse intricado jogo
de relações, o eu se deixa arrebatar completamente pelo sentimento
amoroso, metaforizado pela dança e pelo rodopiar da terra.

PARADA PARA REFLEXÃO

Hora de praticar: Agora que você conhece um pouquinho da obra de


Drummond, qual é a característica da poesia dele mais lhe agradou? Por
quê? Reflita sobre isso...
UNIUBE 47

Agora que já vimos algumas diretrizes da poesia de Drummond, façamos


a leitura esquemática de alguns importantes poemas do autor.

2.4 Análise de alguns poemas de Carlos Drummond de Andrade

Vamos, nesse momento, fazer a análise de alguns textos fundamentais


na lírica do poeta itabirano.

Você está preparado para essa nova aventura?

IMPORTANTE!

Não nos esqueçamos que, ao fazermos a análise de um poema, deparamo-


nos com um enigma, uma charada. O que seria isso? Por ser constituído
de linguagem metafórica e simbólica, o poema não é expresso pela função
referencial, corrente, usada em nossa fala do dia a dia, mas por um tipo de
expressão a encobrir um sentido submerso, latente.

SAIBA MAIS

Função referencial

De acordo com o linguista Roman Jakobson (2005), ao falar sobre as


funções da linguagem, a função referencial é aquela usada necessariamente
para informar. Para tanto, ela é expressa por linguagem denotativa, ou seja,
as palavras possuem o seu sentido original de dicionário.

RELEMBRANDO

Vamos recordar um pouquinho o que seria uma linguagem metafórica e


simbólica? A poesia é um discurso metafórico, feito de metáforas. Metáfora
ocorre quando uma palavra perde seu sentido de dicionário e passa a
significar outra coisa, totalmente diferente. Vamos pegar um exemplo banal.
Quando dizemos que uma pessoa tem “cabelos de ouro” claro está que o
cabelo dela não é feito do metal precioso. Nesse exemplo, a palavra ouro
48 UNIUBE

não possui seu significado original; ela designa a cor de um cabelo, no caso,
loiro. A cor de ouro foi usada no lugar da cor do cabelo. É preciso salientar
que, em poesia de qualidade, o poeta usará metáforas raras, de grande
força criativa. Já o símbolo seria uma metáfora usual em uma determinada
cultura. É o caso do cálice sagrado. O cálice representa o Cristo salvador.

Difícil? Vamos usar uma imagem para facilitar? O poema, como todo
texto lite­rário, é como um fruto. As imagens, as palavras superficiais,
seriam como a casca. No íntimo desse fruto estaria a polpa, ou seja, o
sentido referencial, de­notativo, a mensagem que o poeta “deseja” passar.
Para compreender um poema é necessário traduzir suas imagens, suas
metá­foras e transpô‑las para a linguagem corrente, denotativa.

Nesse tipo de leitura, portanto, precisamos ser caçador de tesouros.


Por debaixo das imagens do texto lírico, de suas palavras concretas,
chamadas de figuras, há outra mensagem, expressa por linguagem não
poética, que precisa ser res­gatada.

O leitor de poesia precisa fazer essa garimpagem e apreender o


significado profundo do texto, verdadeiro ouro escondido.

Vamos lá? Vamos começar a fazer essa leitura detalhada de um texto do


nosso poeta de Itabira?

2.5 Poema de sete faces: a expressão de um eu tímido, torcido

E ai, tudo bem até aqui? Você está pronto para embarcar nessa nova
empreitada de nosso estudo?

Vamos ler o “Poema de sete faces”, de Drummond, e verificar numa


leitura mais apurada, a partir de sua estrutura linguística, da disposição e
organização de suas imagens, como o eu todo retorcido drummondiano
se dá a ver ao mundo, no texto.

Lembremos que uma leitura não basta para conseguirmos esclarecer


um poema. Precisamos sempre voltar ao texto, confrontar suas partes,
para extrairmos significados sutis, não visíveis em uma leitura superficial.
 
UNIUBE 49

Vamos começar então?

PESQUISANDO NA WEB

Começaremos pelo “Poema de sete faces” e você encontrará o poema


no site <http:///www.carlosdrummonddeandrade.com.br/poemas.
php?poema=8>.

Nossa análise do poema de Drummond será


pautada nas leituras que dele fizeram os críticos Prosopopeia

Alcides Villaça e David Arrigucci Júnior. É a figura de


linguagem pela
qual transferimos
Na obra de Drummond, esse texto é inaugural. O atributos de seres
que significaria isso? Ele é o primeiro poema do vivos ou humanos a
coisas inanimadas,
primeiro livro do poeta. inumanas. Nesse
caso, a palavra
“poema” passa
Comecemos a tentar compreender o título. O que a ter um atributo
seria um poema de sete faces? Há nesse título humano, uma face,
ou melhor, sete
uma construção que nos causa estranheza. Pode faces.
um poema ter faces?
Metonímia

Como sabemos, a face pertence ao ser humano. Essa é uma


figura importante
Estamos diante de uma figura de linguagem, uma para a poesia.
prosopopeia. A metonímia,
como a metáfora,
funciona pela
Além de uma prosopopeia, temos também uma substituição de uma
palavra por outra.
metonímia. Diferentemente
da metáfora, a
metonímia possui
Vamos dar alguns exemplos para facilitar? uma relação de
contiguidade entre
os termos em
permuta.

EXEMPLIFICANDO!

Se eu digo “as lindas pernas foram embora no seu vestido esvoaçante”,


eu estou usando uma metonímia. Como sabemos, não existem pernas
isoladas, caminhantes, despidas de um ser completo. Seria sobrenatural
50 UNIUBE

se isso acontecesse. Ao afirmar pernas em vez da pessoa, estou usando a


parte pelo todo (relação de contiguidade).

Se eu digo “as cadeiras do ônibus assustaram-se com o acidente”. Cadeiras


substituem os homens que nelas estavam sentadas (outra relação de
contiguidade).

Agora ficou mais fácil?

Pois bem, no título do texto, a palavra “Poema” substitui o lugar de uma


pessoa. Não apenas o poema tem sete faces, mas alguém, retratado no
texto, também possui esse monte de rostos.

Quem seria essa pessoa?

Se lermos o verso de número três: “Vai! Carlos! ser gauche na vida”,


percebe­remos que esse fulano de tantas faces é o Carlos.

Mas Carlos também não é o nome do autor?

Se o nome a designar a personagem textual faz referência ao nome


do próprio escritor como homem, podemos então pensar que, nessa
personagem do texto, podemos vislumbrar uma representação da própria
imagem do autor.

Como iremos ver, há íntima relação entre o eu lírico


Arquétipo e a imagem arquetípica do poeta.
É modelo
cristalizado Um eu lírico, Carlos, representante da pessoa do
culturalmente. Qual
seria o arquétipo da escritor, Carlos Drummond, é um ser que gosta
mulher brasileira? de se esconder, de usar inúmeras máscaras,
Há vários: a dona
de casa, a mulher inúmeros disfarces. Tal desejo de ocultamento
sensual, a executiva nasce justamente do jeito tipicamente tímido do
etc.
humano retratado no discurso.

Por outro lado, se verificarmos que o poema tem realmente sete estrofes,
em que cada uma delas torna‑se uma face, podemos pensar que esse
Carlos, em cada segmento, ganha um rosto diferente.
UNIUBE 51

Vamos ver cada uma dessas máscaras do Carlos?

Na estrofe de abertura, um anjo estranho, “torto”, faz um prenúncio


para a vida do eu lírico, no caso, o Carlos, nome idêntico ao do autor. A
identificação entre eu lírico e autor se faz por inúmeras características.
Podemos vislumbrar certos aspectos biográficos do poeta no texto, como o
seu jeito tímido, sua configura­ção física (expressa na quarta estrofe), bem
como o descobrimento de uma cidade grande (como vimos, Drummond
nasceu em Itabira, mas viveu em Belo Horizonte e Rio de Janeiro).

Esse anjo já não é um anjo sublime, iluminado. Ele é torto, defeituoso. E,


em vez de proteger, exercer seu papel de “anjo da guarda”, ele manda
o Carlos ser “gauche”.

O quer significaria tal palavra? Ela é francesa e tem dois significados:


pode in­dicar o sentido esquerdo de uma direção (por exemplo, “vire
à esquerda”) ou pode ter o sentido de manco, de alguém que anda
mancando. O anjo manda seu pupilo mancar, ser desastroso na vida,
estar sempre à esquerda, à margem da sociedade.

Estranho tudo isso não é mesmo? Vamos tentar entender melhor? Aqui
nós temos uma releitura da figura do poeta maldito.

SAIBA MAIS

O poeta francês Charles Baudelaire foi quem inseriu, na poesia da


modernidade, a figura do poeta maldito. Em um importante poema, “O
albatroz”, Baudelaire retrata o poeta como um pássaro grande e desajeitado,
preso e amarrado no convés de um barco. O poeta já não estaria no reino
dos céus, como um pássaro a voar, mas no mundo aprisionante onde os
homens se confiam à violência e ao dinheiro.

Com o advento da modernidade, da era técnica e industrial, o poeta


passou a ser deixado de lado na sociedade. Ele perde sua aura de vate,
de cantor lírico de um povo, para ser enjeitado, tornando‑se estranho,
menosprezado pela so­ciedade.
52 UNIUBE

Se pensarmos, por exemplo, o quanto a leitura de poesia tem se tornado


rara e o quanto ela não tem valor de mercado (poesia não rende dinheiro,
não gera lucro), poderemos entender que o poeta tornou‑se um esquisito,
um ser manco, “gauche”, para usar a expressão drummondiana.

Alcides Villaça nos faz a seguinte afirmação sobre essa situação do poeta
no mundo: “o gauche se mostra sobretudo na insuficiência psicológica
para a ação dentro de um mundo de movimentos rápidos e de excessivos
convites”. (2006, p. 22.)

O anjo torto, prosaico, é referido pelo pronome “desses”, efeito que o


torna um ser próximo, familiar e banalizado. Tal anjo aponta um destino
sem glória para a personagem do poema, ou seja, ele pede para o Carlos
ser “gauche” “na vida”, nessa vida monótona das mil pernas, do bonde,
da correria da grande cidade.

Vejam, não temos nada de sacralidade, de sublime no texto. Isso se


sintoniza com a estética modernista, que preconizava a busca da vida
cotidiana, prosaica, despida de uma aura romântica e ingênua.

Como iremos perceber, o Carlos “gauche” do poema está numa cidade


grande e, ante o tumulto dela, ele se sente intimidado, acuado, revelando
sua postura tímida.

Acreditamos que tal situação se repete continuamente nas grandes


cidades. Você não concorda? Inúmeras pessoas do interior do Brasil, por
exemplo, quando vão para São Paulo sentem‑se intimidadas, violentadas
por aquele universo estranho. Pois bem, esse também não seria a
situação do nosso Carlos do poema?

Vamos continuar nossa análise?

Ser “gauche” pode parecer uma situação muito desconfortável para o


poeta. Todavia, a gente não pode esquecer que Drummond foi um autor
esmeradamente irônico.
UNIUBE 53

Nesse sentido, temos de ler o termo “gauche” pelo


viés da ironia. Ironia

É a figura de
E qual seria esse sentido irônico no texto? linguagem que
consiste em afirmar
algo com um
Em uma sociedade banalizada, desumana, não sentido oposto à
afirmação. Se eu
ser igual a todo mundo pode representar um ato digo, “Como você
de coragem, de valorização da pessoa, do ser, em está bonitinho”,
ante alguém
vez do dinheiro, da vida alienada e esquecida de com as roupas
valores importantes como a so­lidariedade e arte. em desalinho ou
desarrumadas,
eu estarei sendo
Pois bem, ser “gauche” não é tão negativo assim. irônico. Na ironia, há
sempre um tom de
Pode indicar uma forte vontade de salvar o próprio desdém, às vezes
eu dessa desumanização do cotidiano. de sarcasmo, em
que muitas vezes
certa situação,
Vamos continuar nossa análise? grupo social ou
pessoa, podem
ser ridicularizados.
Na segunda estrofe, a presença desse tímido se Como vimos, o
tom de piada do
torna mais acentuada. Vejam que nesse fragmento, modernismo visava
“as casas espiam os homem”, ou estamos diante ao desprestígio das
escolas literárias,
de uma metonímia. O lugar onde se encontra o ditas sérias.
observador substitui o eu que vê. Eis, portanto,
outra face do eu lírico, de um eu que se esconde atrás da janela para
observar, para se tornar “voyeur”.

Vejam que o Carlos não se permite participar da correria das pernas, ele
fica à margem, timidamente observando o mundo.

Se lembrarmos de Freud, o pai da psicanálise, podemos ter uma pista


sobre o sentido dessa estrofe. O importante teórico afirma que a libido,
o desejo, impul­siona o homem para o ato criativo, para o movimento.

Pois bem, nesse texto é justamente o desejo que faz as pernas correrem,
se movimentarem, em um verdadeiro jogo de ciranda. Se formos mais
além, po­demos notar que há um fundo erótico a impulsionar a balbúrdia
dos movimentos da capital, da cidade grande.
54 UNIUBE

Por isso o mundo não é azul (cor que serve como


Hipérbole símbolo da idealidade, da pureza), porque está
É a figura de nublado pelo desejo. temos aqui uma hipérbole
linguagem do
exagero. Vamos
ver um exemplo? No poema, os desejos são tão fortes, tão intensos,
Quando a pessoa que eles nublam o céu azul. Poderíamos pensar
usa a expressão
“Morri de rir”, que, nesse aspecto, o olhar daquele que deseja
logicamente ela está tão obstinado pelas pernas que não percebe
não irá morrer.
Nesse caso, o verbo o céu. Vê o mundo nublado, porque vê apenas
apenas intensifica a pernas.
força desse riso.

Mas que força tem esse desejo, não é mesmo?


Isso fica ainda mais evidenciado na terceira estrofe. Aqui um monte de
pernas perambula pela cidade, pelo bonde.

Diante desse tumulto, dessa confusão, o Carlos do poema se sente


intimidado, sem jeito.

O tímido se desvela por duas metonímias: coração e olhos. Uma do


íntimo do ser, dos sentimentos (coração), e outra da exterioridade (olhos).

Há uma contradição entre olhos (impassíveis, calmos) e o coração


(opresso, angustiado). A contenção do tímido não lhe permite explanar,
explicitar seu desassossego. Eis outra máscara, outra face: aquela que
esconde, pela timidez, os sentimentos.

Talvez esse tímido também deseje, mas prefere ficar contemplando.

Agora o poema parece ficar mais claro, não é mesmo? Mas precisamos
seguir viagem. Há outras faces a serem analisadas.

Na quarta estrofe temos a presença de uma pessoa estranha, até agora,


no poema: um homem de bigode, sério, forte. Quem seria? Trata‑se de
outra más­cara do sujeito poético, Carlos. O notável nessa passagem
é a extrema seme­lhança do sujeito lírico e a imagem do próprio poeta.
Estamos, conforme genial interpretação de Alcides Villaça, diante de um
autorretrato do Drummond. Veja­mos o que esse importante crítico tem a
nos dizer sobre essa estrofe:
UNIUBE 55

A quarta estrofe se singulariza bastante entre as sete:


talvez seja a “face” mais intrigante. Isto virá do uso
exclusivo da ter­ceira pessoa gramatical, por meio da
qual se retrata “o homem”. [...] O homem surge em ótica
exteriorizante, e a perspectiva confidencial do sujeito
parece esgotada, dando lugar aos traços frios de uma
identificação de foto 3x4 [...].
Parece nada ter a ver com o Carlos gauche da primeira
estrofe, dom o voyeur pasmo da segunda, com o
atormentado espec­tador de pernas da terceira. [...] é
pelo espelho do olhar alheio que o sujeito se mostra
agora. [...]
a caricatura compõe‑se de traços de respeitabilidade e
ceri­mônia [...]. A figura corresponde ao jovem Drummond
da década de 20, tal como se pode ver nas fotos da
época [...]. (VILLAÇA, 2006, p. 27‑28.)

Bem, estamos percebendo, então, que o Carlos do


poema Persona é como um camaleão. Em cada Persona
estrofe ele adquire uma face nova. Esse pluralismo
Utilizamos, aqui
de feições corresponde à cisão Utilizamos, aqui, o o termo persona,
do eu em várias personas, em vários outros eus. conforme a teoria do
psicólogo Jung. De
acordo com esse
Isso é comum na lírica da modernidade. Perde‑se, autor, o ser humano
tem mais de uma
na literatura moderna, a confiança na integridade personalidade.
de um eu. Temos várias personalidades guardadas Cada uma delas é
uma persona.
em nossa alma,e o poeta, corajosamente, assume
tal versatilidade. O caso mais famoso dessa
divisão do eu em vários outros é o do poeta português Fernando Pessoa

Bem, vamos continuar?

Da impessoalidade dessa estrofe, marchamos rumo à próxima, a mais


lírica, a mais repleta de marcas de sentimento e subjetividade. É o instante
em que Carlos, sofredor, ferido ante a balbúrdia do mundo frenético, se
identifica com Cristo ao pronunciar as palavras ditas pelo salvador no
momento da crucificação: “Meu Deus porque me abandonaste...”.

Nesse fragmento, podemos perceber a intensa humanidade desse


Carlos, ho­mem frágil e sofredor.
56 UNIUBE

Da fragilidade, entretanto, nasce a força da poesia. O mundo vasto é


menor que o coração do poeta: “Mundo mundo vasto mundo/ mais vasto
é o meu coração”.

Todos nós temos a sensação de guardar um universo íntimo imenso.


Tal imen­sidade íntima molda nossa configuração de seres no mundo,
nossa subjetividade, enfim. Tudo o que percebemos no universo nasce
de nosso eu enraizado nas coisas percebidas.

Por outro lado, o poeta não confia nos artifícios da poesia. Para tanto ele
cita um exemplo de recurso poético incapaz de salvá‑lo. Dessa forma, a
possibilidade de ele se chamar Raimundo, palavra a rimar com mundo,
não lhe traria consolo.

Exímio poeta, senhor de uma vasta gama de procedimentos linguísticos


e téc­nicos, o poeta desdenha do poder da poesia como recurso capaz
de salvar o homem. A poesia não resolve a vida, os problemas, ela serve
apenas como um momento de beleza.

Essa desconfiança do poder da poesia nasce também com a modernidade,


em que a linguagem é posta em cheque, numa desconfiança perante os
seus limites.

Para encerrar essa brevíssima análise, vamos partir agora para a sétima
e última face.

Nela, o poeta usa uma desculpa para o sentimentalismo de sua voz:


é o álcool que o deixa comovido, retraído, tímido, emocionado. Como
Drummond é avesso ao pieguismo de uma poesia romântica, ingênua, a
ironia surge aqui, novamente, como uma forma de se desculpar, perante
o leitor, pelos seus excessos senti­mentais.

A lua encerra o ciclo desse texto, como aparição diáfana no centro da


metrópole, verdadeira esperança, a esperança da poesia.

Como toda leitura de texto literário pode ser múltipla, essa é apenas uma
delas. Há muitos outros detalhes a serem analisados e discutidos. Por
isso aconselha­mos a você, como forma de enriquecimento, a leitura da
bibliografia, principal­mente os livros de Alcides Villaça e Arrigucci Júnior.
UNIUBE 57

Vamos para o próximo poema?

2.6 Confissão de um coração partido

“Confidência do Itabirano” é um dos pontos altos da lírica de Drummond.


Nesse texto podemos encontrar vários traços típicos da poesia do autor.

PESQUISANDO NA WEB

Vamos ler o poema?

Você o encontrará no site <http://www.fabiorocha.com.br/drummond.htm>.

E ai, o que você achou do texto?

Nele, o poeta revela toda a sua dor perante o tempo perdido.

O eu lírico, distanciado do cenário do passado, faz uma análise de sua


vida perdida no tempo. Presume‑se que essa personagem poética
esteja em um lugar distante de Itabira. Daí o uso dos verbos no passado
perfeito: “vivi”, “nasci”. Esse tempo verbal indica‑nos a atual condição
de existência do eu poético. Trata‑se de alguém que, pelo viés da
melancolia, revisita o passado, numa pesquisa de si mesmo e do que
perdeu.

Todos nós, em algum momento, já devemos ter vivido uma experiência


como essa, não é verdade? Quem não recorda da infância, das cidades
e dos lugares onde viveu, com emoção e sentimento? Pois bem, o nosso
poeta simplesmente transforma tal vivência em poesia.

Vamos prosseguir em nossa leitura?

A versificação é livre. Alguns versos possuem uma grande extensão,


como é o caso do sexto e do oitavo versos. Essa oscilação da métrica
revela as incertezas da memória, sua desenvoltura acidental e
descontínua.
58 UNIUBE

Salta aos olhos a relação dessa subjetividade com Itabira: por ter nascido
nesse pequeno burgo, a personagem lírica se faz triste, de ferro.

O espaço delineia o jeito de ser do eu poético, submetendo‑o a uma


linhagem, a uma casta, formada por pessoas melancólicas, orgulhosas:
os que nascem na cidadezinha de Minas.

Você já deve ter ouvido muita gente falar que mineiro é custoso, um
“come quieto”, sempre em silêncio. Esse jeitinho é poetizado por
Drummond, tornando­‑se um dos grandes temas de sua poesia. Essa
psicologia orgulhosa, metafori­zada pelo ferro, revela justamente essa
idiossincrasia do mineiro.

EXPLICANDO MELHOR

Idiossincrasia

Significa um jeito de ser, uma mania, uma forma de se comportar. Ás vezes,


uma esquisitice comportamental torna-se idiossincrasia. Vamos ver um
exemplo? O jeito tímido do Drummond é uma idiossincrasia. Conversar
gesticulando, pode ser outra. Falar alto, mais uma. Fácil não? Enfim, aos
pouquinhos vocês vão aprendendo palavras novas, enriquecendo, assim,
o vocabulário.

Os versos de número quatro e cinco formam um perfeito paralelismo


sintático: “Noventa por cento de ferro nas calçadas. / Oitenta por cento
de ferro nas almas”.

EXPLICANDO MELHOR

Um paralelismo sintático ocorre quando determinadas orações são


compostas pelas mesmas partículas sintáticas. Elas são idênticas na forma,
mas diferentes no conteúdo. Vamos ver um exemplo? “Eu como bolo. Eu
bebo água”. Nesse exemplo banal, temos a seguinte segmentação: sujeito
– verbo – objeto direto. Portanto, são orações paralelísticas. Entretanto,
possuem significados distintos. Na poesia, é preciso confrontar tais orações,
para ver que significados elas têm no conjunto.
UNIUBE 59

A linguagem do campo semântico do comércio e da matemática (estamos


nos referindo aos termos ligados à porcentagem) desvela-nos a fonte
econômica da cidade: a extração de minérios, principalemnte o fero. Esse
minério, por sua vez, ganha um viés metafórico: o ferro da alma pode
representar o orgulho, a melancolia desse ser saudosista.

SAIBA MAIS

Quando as palavras são do mesmo campo semântico, elas possuem


significados aproximativos. Citaremos um exemplo. Quais são as palavras
do campo semântico da dor? Podemos enumerar várias: sofrimento, lágrima,
angústia, pranto etc.

Toda a psicologia do eu lírico e por extensão do poeta (também nesse


texto observamos inúmeros traços biográficos do autor) é delineada
pelo espaço, pela configuração física do ferro, do minério. Ser de ferro e
ser triste são condições existenciais demarcadas pela pequena cidade.
O paralelismo entre “ruas” e “alma” acentua justamente esse elo íntimo,
de grande proximidade, entre sujeito e cidade.

Interessante isso, não acha? Quem não se sentiu, em algum momento,


moldado pela sua cultura, pelo lugar onde nasce? São os jeitos de ser
de um povo, de uma cidade, de um estado.

O alheamento, jeito distraído de ser, aqui também é herança de Itabira.

Esse verbo, “alhear‑se”, tem grande significação no texto. Vamos tentar


buscar tal sentido?

Tal verbo significa distanciar‑se da realidade. Olha, temos novamente


aqui o jeitinho tímido do poeta. Afastar‑se da praticidade do mundo e
centrar‑se em si mesmo é da natureza dos que vivem na reflexão ou no
devaneio, ações típicas de um poeta que, ao colocar‑se em um plano de
distância, capta o mundo com maior intensidade.

Mas isso não seria viver no mundo da lua? No caso do poeta não, porque
o seu ócio, a sua imobilidade, são estados em alerta, pelos quais o
escritor analisa o real, para, em seguida, transformá‑lo em poesia.
60 UNIUBE

As próximas estrofes, por sua vez, também são reveladoras da


personalidade do eu poético.

O provincianismo dessa personagem, ligado a um universo ainda


não inteira­mente conspurcado pela modernidade e, de certa forma,
resguardado do poder corrosivo do capitalismo, faz com que a “vontade
de amar” e o “hábito de sofrer” paralisem os gestos práticos, às vezes
vazios, impostos pelo trabalho alienante e pela vida sem sentido.

Veja que, em Itabira, as noites são claras, brancas e luarentas. Lá não se


tem mulher nem horizonte. Isso denota que, ao mesmo tempo em que a
cidadezinha imprime sua marca, para sempre, na alma do eu lírico, este,
por sua vez, não perde o senso crítico e irônico, ao nuançar a monotonia
vigente nesse espaço sem perspectivas, sem futuro (o que podemos
denotar pela expressão “sem horizonte”, metáfora para o abafamento
espiritual de tal lugar).

Tal monotonia fica expressa textualmente pela extensão do verso.


Trata‑se de um verso longo, de ritmo lento e caudaloso, numa síntese
do tempo morto e parado da cidadezinha.

Na estrofe central, a cortar o poema ao meio, encontramos a expressão


de um sentimento típico em Drummond: a mistura de sofrimento
com diversão, pela qual se juntam dois traços frequentes no poeta, a
melancolia e o espírito irônico.

A quarta estrofe funciona como uma espécie de inventário, em que


inúmeros objetos são elencados e ofertados para um tu indeterminado.

Enumeração Essa segunda pessoa poderia ser o leitor ou o


É a figura que próprio eu lírico, reportando a si como um tu.
consiste De qualquer forma, tal interlocutor serviria como
no agrupamento
sequencial de uma espécie de companheiro, para quem o
elementos Itabirano confessa suas magoas. A inserção do
correspondentes
entre diálogo potencializa a dramaticidade da memória,
si. Vamos ver um convertendo‑a em desabafo das emoções.
exemplo? Maria
comprou muitas
coisas: arroz, feijão, Nesse inventário, temos uma enumeração Os
um caderno objetos ligados ao passado de Itabira funcionam
sentimental de
poemas... como um museu particular, onde a memória se fixa
e se intensifica.
UNIUBE 61

No último verso dessa estrofe, a enumeração sofre uma quebra do seu


paralelismo semântico. Ocorre a inserção de elementos do nível dos
sentimentos: “orgulho” e “cabeça baixa”. Como veremos, o ser cabisbaixo
pode denotar uma postura de humildade ou de submissão. Portanto, tal
gesto, apesar de concreto, também se insere, simbolicamente, no nível
das emoções.

A enumeração, assim, vai dos objetos ao sentimento: “São Benedito”,


“pedra de ferro”, “couro de anta”, “orgulho” e “cabeça baixa”. O elemento
que fecha o ciclo revela, por sua vez, a sensação de impotência, de perda
de um tempo jamais reconstituído.

Daí vem a ironia final, mordaz, pela qual o sujeito lírico faz o balanço final
de sua vida e de suas perdas: “Tive ouro, tive gado, tive fazendas/ Hoje
sou fun­cionário público”.

O poeta, portanto, empreende uma reflexão sobre a força voraz do tempo,


força esta a consumir a vida impiedosamente.

Outro viés semântico inserido nesses versos é a mudança de estilo de


vida: de um mundo ligado às riquezas da terra (ouro das fazendas) e a
vida banal, bu­rocrática, servil, do funcionário público.

A melancolia que transpassa o poema advém desse inventário de perdas,


desse verdadeiro testamento de pequenas e terríveis destruições.

Tal corrosão atinge um ápice no tom elevado, agônico, do último verso,


instante em que o eu lírico se revela inteiramente, com intensidade: “Mas
como dói!”. A frase exclamativa só faz nuançar esse sofrimento, esse tom
de cumplicidade estabelecido entre eu lírico e leitor.

Mas que coisa! Eta poeta lúcido, não é mesmo? Ele nunca se autoengana,
sempre se reserva a verdade nua e crua. Muita gente não tem essa
coragem. Prefere se esconder, se enganar, pensando que a vida é
cor‑de‑rosa ou eterna­mente bela.

Mas saber a verdade da existência em sua crueza, em seu sofrimento sem


re­missão, pode nos tornar mais fortes ante as penas da vida. Fugir não
seria uma boa saída. Dói ver o tempo passar, a consumir tudo, mas negar
ver isso pode ser muito mais doloroso ainda.
62 UNIUBE

Enfim, você talvez se assuste com a sinceridade do Drummond. Porém,


não se esqueça, a poesia nos insere no real mais denso, no real sem
véus ou artifícios de proteção. Com isso, nos tornamos mais humanos
e mais fortes.

Vamos ler outro poema?

2.7 Uma flor nauseante

O poema “A flor e a náusea” ganha destaque na obra do autor, como um


impor­tante poema do livro A rosa do povo.

PESQUISANDO NA WEB

Vamos mergulhar em mais uma aventura? O poema pode ser lido no site
<http://www.fabiorocha.com.br/drummond.htm>.

Esse poema tem imagens fortes, não acha? Talvez justamente ai


esteja a força dele. Outra característica importante reside nos aspectos
grotescos. Não temos aquela beleza romântica, ingênua, mas a presença
de realidades estranhas e até mesmo bizarras, com a flor a nascer do
asfalto.

Vamos nos compenetrar em mais essa empreitada?

“A flor e a náusea” tem sido um dos textos mais lidos de Drummond e


ganha, em sua obra, destaque, tanto pela qualidade como pela temática,
numa corrosiva análise dos tempos modernos.

O título por si já carrega elementos díspares, em


Antítese oposição. Temos uma antítese.
É a figura de
linguagem em que Nessa antítese, temos dois elementos contraditórios:
elementos em
oposição semântica a flor, ligada, a princípio, à pureza, às coisas belas e
são agrupados. singelas da existência, e a náusea, termo associado
à angústia existencial.
UNIUBE 63

Em versos livres, o poeta vai, a cada estrofe, modulando esse estado de


espírito: a náusea.

No período em que foi publicado o poema, em 1945, começava a


vicejar, na Europa, em decorrência do pós‑guerra, uma filosofia de tom
pessimista, angus­tiada, que apregoava a náusea como sentimento
típico da existência humana. Essa linha filosófica ficou conhecida como
existencialismo. Para os existencia­listas, como Sartre e Cammus, a morte
surgia como um liame a separar a vida do nada. Ante o vácuo dessa
perspectiva, caberia ao homem transformar sua angústia, inerente à sua
condição, em uma ação ética, voltada para a transfor­mação do mundo.

Drummond, como grande intelectual que era, não ficou ileso às


influências do existencialismo, tal como podemos perceber no poema
“A flor e a náusea”.

Na primeira estrofe, a palavra que principia o texto é de grande expressão


se­mântica: “Preso”. O uso do particípio incrementa o sentido desse verbo,
em uma cristalização do tempo, tal como o aprisionamento do eu lírico.

Assim, tal situação leva a voz poética, nessa primeira estrofe, a explicitar
a contingência da qual ela não pode se furtar: a total dependência do
homem moderno em relação ao consumo.

Isso fica explicitado quando a palavra “mercadorias” é enunciada no


terceiro verso. Esse signo insere, no contexto do poema, o capitalismo
como sistema econômico a brutalizar a vida do homem.

Entretanto, se mercadoria pertence ao campo


semântico do comércio, ela, por outro lado, vem Paranomásia

ligada em perfeita paranomásia à palavra melancolia, É a figura de


formando com esse signo um elo tanto sonoro como linguagem na qual
dois signos muito
semântico. semelhantes, porém
com significados
distintos, são
Pela lógica do capital, o ato de comprar deveria associados no
trazer satisfação. Entretanto, no poema, a melancolia discurso. Exemplo:
carro‑barro,
subverte estranhamente essa lógica. moto‑foto etc.
64 UNIUBE

O sentimento melancólico, portanto, funciona como um reparador das


situações alienantes do cotidiano burguês, salvaguardando a voz lírica
de uma total alie­nação da realidade.

Já imaginou uma pessoa triste ao comprar um carro novo? Pois bem, a


tristeza, em Drummond, funcionaria como um freio ante a busca de um
consumo desen­freado.

Em vez das certezas e seguranças da vida comezinha, o eu poético


prefere as dúvidas, tal como podemos vislumbrar nos versos quinto e
sexto: “Devo seguir até o enjoo?/ Posso, sem armas, revoltar‑me?”.

Sobretudo, no quinto verso, a dúvida se desvela como um ápice, numa


possi­bilidade de transformar a melancolia em asco, enjoo.

Nessa estrofe, portanto, temos a deflagração de um sujeito frágil,


impotente frente ao mundo, mas capaz de salvaguardar‑se da reificação,
pela angústia e pela dúvida, numa negação das certezas e seguranças
burguesas.

Tudo isso nos traz uma figura não contaminada ou que pelo menos
evita sujar­‑se na cinzenta brutalidade do comércio. Daí advém a grande
expressividade imagética do segundo verso, em que a roupa branca se
antepõe à sujeira da rua, numa antítese entre pureza e imundice.

Outro fator ainda chama a atenção nessa estrofe. O eu poético humaniza


as “mercadorias” e as “melancolias”, transpondo para o mundo dos
objetos a sua angústia. Tal efeito poderia estar ligado ainda ao desejo de
não se conspurcar em um mundo banalizado e corrompido. Não é o eu
que deseja e olha a mer­cadoria; mas o contrário, numa inversão repleta
de uma negação desse universo prático do consumo.

Bem, até aqui tudo certo? Podemos continuar? Vamos prosseguir nossa
análise.

A segunda estrofe inicia‑se com a constatação desse tempo de sombras


a tolher a vida do homem.
UNIUBE 65

Podemos perceber, nessa estrofe, a negatividade dos qualificadores.


Os adje­tivos e locuções adjetivas expressam essa negatividade: “sujos”
(olhos), “de fezes” (tempo), “maus” (poemas), “pobre” (poeta e tempo).

Tudo isso para qualificar um tempo de indigência e alienação, em que a


pobreza tanto física como espiritual do homem surge em um tempo de
violência.

Na estrofe seguinte, novos elementos vêm se juntar a toda essa


dissonância.

Trata‑se de um tempo de surdez, de ignorância, expressa pela


prosopopeia “Muros surdos”, verdadeira imagem para o homem
massificado, despido de um sentido profundo da vida.

As palavras, matéria da poesia e do afeto, tornam‑se elementos a


instaurarem discursos vazios: códigos, cifras.

Daí a total falta de motivação lírica, numa clave de antirromantismo total,


em que as coisas se dão sem ênfase, sem paixão, sem ardor: “As coisas.
Que tris­tes as coisas, consideradas sem ênfase”.

O tédio surge com volúpia: “Vomitar esse tédio...”. No mundo moderno,


perdeu­‑se a noção da vida como aventura. Tudo se torna banal e sem
motivação. Desse feito, nasce a burocratização do cotidiano, repleto
de problemas nunca resolvi­dos (“Quarenta anos e nenhum problema/
resolvido...”) e a solidão dos homens que, paradoxalmente, buscam o
outro pela distância fria dos anúncios do jornal.

Como um veneno antimonotonia, remédio contra a banalidade dessa vida


sem grandes sobressaltos, a ironia drummondiana, já então clássica,
irrompe com ferocidade. Daí nasce o poeta como um criminoso e o
poema como delito (“...foram publicados”), uma “ração diária de erro”.
O texto lírico irrompe como uma dissonância, uma fuga dos caminhos
considerados corretos pelo burguês.

No final dessa estrofe, temos dois versos paralelísticos admiráveis pela


completa associação de palavras estranhas: “Os ferozes padeiros do
mal./ Os ferozes lei­teiros do mal/”. O que poderiam sugerir tais versos?
66 UNIUBE

Eles denunciam a violência do homem, sua agressividade perante a


vida. Seriam esses padeiros aqueles que fermentam o pão da maldade
e os leiteiros os que distribuem o leite da discórdia. Pelo viés metafórico,
a mão‑de‑obra desses trabalhadores, em sentido irônico, em vez de
trazerem alimento para o homem, traz a crueldade, a discórdia. Essa
metáfora inventiva, estranha, é típica das inovações propostas pelo
modernismo.

Na sexta estrofe, podemos perceber um recurso frequente na poesia


do autor mineiro. Trata‑se da vontade de autodestruição, típica de uma
lírica a habitar um mundo em ruínas. O fogo, elemento purificador, pode
indicar uma neces­sidade de transformação, de negação tanto do eu lírico
como do planeta violento e reificado onde vive. Daí o sentido de guerra
proposto pelo ódio, sentimento a ganhar configurações de combate, de
recusa ao mundo.

Você deve ficar perplexo com a atitude do poeta. Entretanto, é preciso


lembrar que, no texto, a questão da autodestruição não é algo negativo.
Temos de ler isso pelo viés simbólico, ou seja, como uma forma de
purificação, de busca de uma vida maior e melhor. Nós mesmos, ao longo
da vida, mudamos, crescemos. Em cada uma dessas transformações,
morremos e renascemos. Quando o poeta usa a imagem do fogo, como
uma forma de autoaniquilação, ele, na ver­dade, expressa esse desejo
de transformação.

Nas três últimas estrofes, o poeta irá detalhar o nascimento de uma rosa
estra­nha, de uma rosa sem cor, feia. Como se sabe, a rosa é símbolo da
poesia e, nesse caso, se configura como uma forma de resistência da
poesia ante as adversidades do mundo.

PARADA PARA REFLEXÃO

Vamos parar um minutinho, para fazermos uma reflexão sobre isso que
acabamos de expressar. Um importante teórico da poesia, Alfredo Bosi, em
seu livro O ser e o tempo da poesia, alega-nos que o poeta da modernidade,
ante o mundo desumano em que vivemos, empreende, a poesia, um ato
de crítica, de negação desse mesmo mundo. Nesse sentido, a poesia, por
UNIUBE 67

mais negativa que pareça, ela quase sempre guarda uma atitude utópica,
humanizadora.

Quando Drummond, no seu poema, insere a rosa como um símbolo da


poesia, flor a rasgar o asfalto (elemento ligado à ausência de vida das
cidades e, consequentemente, metáfora para os nossos tempos cinzentos),
o poeta está fazendo uma crítica ao mundo despido de encanto, de
humanidade, onde vivemos hoje.

Você percebeu? O poeta é também um sonhador, um homem repleto de


esperança, artista a usar a palavra em prol do ser humano, a serviço da vida.

Em um universo tão antipoético, essa flor estranha pode simbolizar a


esperança utópica de um mundo diferente, em que a poesia, a arte e os
valores humanos possam reinar um dia.

Talvez por isso tal flor é motivo de escândalo: ela anuncia a poesia como
discurso a imperar em nosso mundo, a despeito da máquina, do asfalto e
das guerras.

2.8 Conclusão

Bem, é isso!. Espero que você tenha gostado de conhecer um pouquinho


da obra desse nosso grande poeta.

É importante notar que este breve estudo não consegue dar conta da
vastíssima obra do poeta. Portanto, fica um convite. Vamos ler mais esse
poeta e aprender mais sobre sua poesia?

Resumo

Você verificou, ao longo deste capítulo, a variedade tanto formal como


temática da poesia de Drummond. Sua obra germinou na segunda fase
do modernismo e recebeu desse movimento influências importantes.
Todavia, o poeta soube impri­mir, na sua escrita, sua marca peculiar, sua
fecunda preocupação existencial. Vimos que sua poesia possui ampla
68 UNIUBE

gama de temas: o amor, a família, as origens, os amigos. Por fim,


verificamos, através da análise de três poemas, o quanto se articulam
tais temáticas de forma coesa, em versos bem construídos e elaborados.

Referências
ACHCAR, Franciso. Carlos Drummond de Andrade. São Paulo: Publifolha, 2000.

ANDRADE, Carlos Drummond de. No meio do caminho. Disponível em: <http://


www.revista. agulha.nom.br/drumm09.html>. Acesso em: 28 maio 2010.

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________. Viagem na Família. Disponível em: <http://www.gugalyrics.com/


CARLOSDRUMMOND‑DE‑ANDRADE‑CARLOS‑DRUMMOND‑DE‑ANDRADE‑‑
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________. Mário de Andrade desce aos infernos. Disponível


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________. Poesia e prosa. Rio de Janeiro: Aguilar, 1992.

ARRIGUCCI JÚNIOR, David. Coração partido: uma análise da poesia


reflexiva de Drummond. São Paulo: Cosac & Naify, 2002.

BOSI, Alfredo. O ser e o tempo da poesia. São Paulo: Companhia das Letras, 2001.
UNIUBE 69

CANDIDO, Antonio. Vários escritos. São Paulo: Duas Cidades


e Ouro sobre Azul, 2004.

JAKOBSON, Roman. Linguística e comunicação. São Paulo: Cultrix, 2005.

VILLAÇA, Alcides. Passos de Drummond. São Paulo: Cosac & Naify, 2006.
Capítulo A travessia literária genial
3 de Guimarães Rosa

Vânia Maria Resende

Introdução
Neste capítulo, em que se procura de maneira didática, fazer
uma introdução ao universo literário de João Guimarães Rosa,
você encontrará, em primeiro lugar, alguns dados indispensáveis
da vida do escritor; em seguida, irá entrar em contato com um
breve histórico das obras, para, por fim, deparar-se com o mais
importante, os traços que fazem do discurso rosiano uma das
produções mais singulares da literatura brasileira.

O que se espera é que você consiga, ao longo desse percurso,


reconhecer a grande revolução que o autor introduz em nossa
literatura e saber situá-la, enquanto obra inovadora, no contexto
histórico da produção literária nacional.

Objetivos
Após o estudo deste capítulo, você deverá ser capaz de:

• situar o autor e a obra na historiografia da literatura brasileira,


constatando a revolução inovadora que eles representam;
• reconhecer peculiaridades de cosmovisão, concepção estéti-
ca e experimentalismo da linguagem na criação rosiana;
• identificar a reincidência temática e abordagem, próprias do
escritor;
• conferir o valor simbólico do menino, em obras específicas,
analisando-o na perspectiva mítica da obra de Guimarães Rosa.
72 UNIUBE

Esquema
3.1 Considerações iniciais
3.2 Obras
3.3 Características do discurso rosiano
3.4 Conclusão

3.1 Considerações iniciais

João Guimarães Rosa (1908-1967) é mineiro de Cordisburgo, viveu


parte da vida em Belo Horizonte (para onde se mudou ainda criança),
no Rio de Janeiro e fora do Brasil, em funções diplomáticas. Inclui-se
entre os grandes escritores, capazes de revolucionar pelo grau de
inventividade da obra. À sua capacidade de mestre criador atribuímos
algumas decorrências, sendo a mais relevante a universalidade. O
valor intrínseco de obra genial, como a dele, é que faz com que ela
permaneça, já que repousa na complexidade do seu tecido, de laboriosa
feitura, a latência de possibilidades inesgotáveis de significações,
ou, em uma só palavra, a significância, usando o termo de Julia
Kristeva, mencionado em estudo de Leyla Perrone-Moisés. Obras deste
porte atravessam tempos, lugares, culturas; renovam-se nas leituras,
propícias a renascimentos e descobertas passadas, presentes e por vir.

Na sua obra, Texto, crítica, escritura (1993), Leyla Perrone-Moisés utiliza


o termo significância de Julia Kristeva, aplicado no aprofundamento do
sentido de escritura e produção textual. Ela alude à escritura como um
processo não concluso, sempre aberto, implicando sentidos infinitos
para o texto literário. É certo que quanto mais rica a escritura literária,
e inovadora, como é a de Guimarães Rosa, mais produtivo é o tecido
dos sentidos, de construção infindável, assumida pelos leitores, que
reescrevem novo texto a cada nova leitura, ocupando, então, a condição
de escritor, na cocriação. Quanto ao escritor, por sua vez, é também um
leitor de outros textos, autores, códigos, tudo evocado e transformado,
de maneira simultânea, no processo criador. A expressão escritura-
leitura tem, assim, um valor elástico, implicando, na produção textual,
escritor e leitor na dupla função.
UNIUBE 73

A crítica brasileira encontra na teoria (da semanálise) de Julia


Kristeva a passagem do conceito de significação não dinâmico para
o de significância, vista nestes termos: “uma infinidade diferenciada
cuja combinatória ilimitada nunca encontra termo” (KRISTEVA, apud
PERRONE-MOISÉS, op. cit. , p. 49). Ainda considerando o pensamento
da intelectual francesa, a crítica brasileira cita-a, fazendo referência à
literatura: “Todo texto é absorção e transformação de uma multiplicidade
de outros textos”, diz Kristeva, na esteira de Bakhtin. Entende-se por
intertextualidade este trabalho constante de cada texto com relação aos
outros, esse imenso e incessante diálogo entre obras que constituem
a literatura. Cada obra surge como uma nova voz (ou um novo
conjunto de vozes) que fará soar diferentemente as vozes anteriores,
arrancando-lhes novas entonações.” (op. cit ., p. 63).

3.2 Obras

Desde que Guimarães Rosa lançou seu primeiro livro, de contos, o


Sagarana, em 1946 (1ª e 2ª edições da editora Universal; 3ª edição da
Livraria José Olympio Editora), até os dois póstumos, Estas estórias
(1969) e Ave palavra (1970), tem sido contemplado com inúmeras
leituras críticas (de âmbito nacional e internacional), pesquisas
acadêmicas, adaptações para outras linguagens artísticas, traduções
para diversas línguas, prêmios e edições ininterruptas (com venda
mensal de livros entre 10 e 15 mil, de acordo com informação divulgada
pela sua editora em 2008, ano do centenário do seu nascimento).
Para estudantes e profissionais da área de Letras, é um autor de leitura
indispensável, como também para os leitores brasileiros de um modo
geral, já que ele ocupa lugar ímpar na evolução da literatura nacional,
sendo um dos seus maiores representantes no âmbito internacional.

Embora faça parte da produção rosiana, o livro de poemas Magma


(premiado pela Academia Brasileira de Letras, em 1936, e só publicado
seis décadas depois), é no período de 1946-1970 que se localiza a
publicação da obra em prosa com que Guimarães Rosa se notabilizou e
se tornou conhecido, composta por contos, novelas e o romance Grande
sertão: veredas (1956), editada atualmente pela editora Nova Fronteira
(de cujo catálogo faz parte também o livro Magma e os demais do
autor). Além do seu único romance (fabuloso, por sinal), do primeiro livro
74 UNIUBE

e dos dois póstumos já mencionados, o conjunto da obra completa-se


com as novelas, inicialmente reunidas em um mesmo livro Corpo de
baile (1956) – depois desmembrado em três volumes Manuelzão
e Miguilim; No Urubuquaquá, no Pinhém; Noites do sertão – e os
outros contos: de Primeiras estórias, de 1962, e Tutaméia (Terceiras
estórias), de 1967. O direito à pesquisa estética e o experimentalismo
são assumidos de maneira madura pelo escritor, coerentes com os
tempos em que ele se insere no Modernismo brasileiro de teor
construtivo consolidado. Sem deixar de levar em consideração este
fator histórico-estético, a luz diferenciadora de Guimarães Rosa procede
da competência criadora e do talento excepcionais que lhe são próprios,
transbordando na obra brilhante, que se projeta no cenário cultural do
país, e cavando o reconhecimento nacional e internacional. Franklin de
Oliveira (1970, p. 406 e 409), um dos destacados estudiosos do autor,
aponta o seguinte, ao garantir o lugar inconfundível ocupado por ele na
Literatura Brasileira:

[...] João Guimarães Rosa pensou e escreveu a sua


Sub specie obra sub specie perfectionis. [...] a grande revolução
perfectionis foi criar sub specie perfectionis – projetar no espírito
humano a imagem da vida possível de ser vivida
Traduzindo para o segundo as leis da alegria e da beleza, sob o império
português, significa
“sob a imagem da da poesia incorporada à existência humana, e não
perfeição”. como realidade externa ao homem, alienada de seus
destinos. [Grifo nosso].

3.3 Características do discurso rosiano

Os esclarecimentos que fizemos ao definir, anteriormente, a palavra


significância, nos fundamentam na percepção da abrangência
hiper-textual do discurso rosiano. Ressaltamos que esta valência,
inerente à maestria com que ele realizou obras-primas, deve-se tanto
ao grau elevado de inventividade, que redunda na densidade de
sentidos virtuais, quanto à categoria temática de natureza simbólica,
universal, podendo-se estabelecer uma interface entre os dois pontos
assinalados. Acrescente-se, ainda, que, para o desenvolvimento
temático, determinadas personagens têm participação fundamental,
amalgamando a unidade simbólica que perpassa a obra rosiana,
mantendo-lhe a coerência. Estas personagens, cujos perfis são configurados
UNIUBE 75

em simbiose com o espaço, geralmente o sertão, encarnam grandes


questões que atravessam as estórias de Guimarães Rosa; seus
comportamentos, modos de pensar o mundo e de senti-lo, suas
perplexidades e conhecimento intuitivo que forja muitas vezes, mais
do que o conhecimento, uma aprendizagem de sabedoria, envolvem-
se em aspectos metafísicos, que subjazem nos extratos ficcionais,
simbolicamente urdidos. Desta galeria de seres, podemos pinçar
alguns, a título apenas de ilustração inicial, já que no todo da obra as
personagens rosianas se irmanam na recorrência simbólica. Citemos Rio-
baldo do romance; Miguilim e Dito (“Campo geral”), Grivo (“Cara-de-
Bronze”), Rosalina (“Lélio e Lina”) das novelas; o Burrinho Pedrês, o
Menino, entre vários outros dos contos.

Na evolução da trajetória de aprendizagem humana, o movimento interior


pressupõe conflitos, contradições, interrogações das personagens. Este
movimento, em que oposições se esbarram e não se excluem, fazendo
parte da luta interna, o valor de heroicidade se explica menos pela
superação de acontecimentos e aventuras externas, já que o que pesa
na trajetória simbólica é o como a consciência humana reconhece, reage,
reflete e responde a valores concretamente assimilados nas relações
sociais, na interação com a natureza, representada sobretudo pela vasta
matéria que o sertão oferece, ao atravessá-lo em andanças e vivências.
A aventura de validade subjetiva corresponde na obra rosiana a travessia
humana; nela, os embates são provas na realização da passagem
existencial, durante a qual se dá, internamente, a aprendizagem, no
desenrolar da própria vida, encenada no espaço literário. Riobaldo, o
jagunço protagonista de Grande sertão: veredas, por ter se aventurado
muito, sabe o que afirma para o seu interlocutor imaginário (ROSA, 1972,
p. 443): “O senhor escute meu coração, pegue no meu pulso. O senhor
avista meus cabelos brancos... Viver – não é? – é muito perigoso. Porque
ainda não se sabe. Porque aprender-a-viver é que é o viver, mesmo.”

Ele conta oralmente todas as suas experiências passadas, quando


percorreu epicamente o sertão, em lutas e mais lutas entre jagunços,
tempo em que, inclusive, teve oportunidade de assumir a função de chefe
de um dos grupos; diante do suposto ouvinte, não se realiza, na verdade,
o diálogo, já que a narração se assemelha a um longo monólogo, em
que se tece a rememoração da vida para quem a viveu. O desenrolar
da memória que se funde à narratividade faculta ao narrador Riobaldo
76 UNIUBE

recontar a sua vida; reconstituí-la consiste em passar a limpo o que


guardava para si, e, neste ato de verbalização, formula um sentido,
organiza o caos represado no seu solo mais íntimo, faz a elaboração/
avaliação das perplexidades e perquirições pessoais, de alcance
universal. A complexidade da cosmovisão de Rosa, o seu estilo laborioso,
não combinam, neste rememorar, com um arranjo narrativo linearmente
ordenado, além do que a ordem concerne a um tipo de validação, ou
catarse libertadora da ebulição íntima, em que o sujeito foi capaz de
passar todo o vivido em revisão, fazendo a transferência para o traçado
da escritura. A forma que ele dá à expressão da memória é coerente
com esta percepção revelada ao interlocutor fictício (ROSA, 1972, p.
109 e p. 112): “O senhor por ora mal me entende, se é que no fim me
entenderá. Mas a vida não é entendível”, “Esta vida é de cabeça-para-
baixo, ninguém pode medir suas perdas e colheitas. Mas conto. Conto
para mim, conto para o senhor.” A estas passagens se acrescenta o que
ele já havia confessado neste trecho da narração (ROSA, 1972, p. 77-8):

[...] o que vale, são outras coisas. A lembrança da vida


da gente se guarda em trechos diversos, cada um com
seu signo e sentimento, uns com os outros acho que
nem não misturam. Contar seguido, alinhavado, só
mesmo sendo as coisas de rasa importância. De cada
vivimento que eu real tive, de alegria forte ou pesar,
cada vez daquela hoje vejo que eu era como se fosse
diferente pessoa. Sucedido desgovernado. Assim eu
acho, assim é que eu conto. O senhor é bondoso de
me ouvir. Tem horas antigas que ficaram muito mais
perto da gente do que outras, de recente data. O senhor
mesmo sabe.

Assim, ganhando o estatuto de estória escrita, o valor épico da vida de


Riobaldo reflete no universo das reminiscências metaforizadas, perigos,
adversidades, mistérios, que dizem respeito ao que há de universal na
condição de todo homem na sua travessia, à consciência humana
em conflito, em busca, em meio a oposições entre o bem e o mal, Deus
e o demônio, a alegria e a tristeza, a bondade e a maldade, o amor
e o ódio, a vida e a morte. Na estória de Riobaldo, tais opostos são
experimentados e admitidos com a compreensão de que coexistem, de
que existem dentro do homem, e oscilam, ora pesa mais um lado, ora
outro, porque, nas últimas linhas de Grande sertão: veredas, a síntese
se formula nesta única certeza (ROSA, 1972, p. 460): “Existe é homem
UNIUBE 77

humano. Travessia.” É preciso coragem para fazer a travessia, como


afirma muitas vezes Riobaldo, mas a dinâmica da vida e do movimento
humano interior, Guimarães Rosa concebe como alegria e beleza. A vida
é cada dia, e nada é previsível; as pessoas se modificam, como se vê
nas palavras da personagem romanesca (ROSA, 1972, respectivamente,
p. 20-1, p. 30 e p. 31):

[...] o senhor... Mire veja: o mais importante e bonito, do


mundo, é isto: que as pessoas não estão sempre iguais,
ainda não foram terminadas – mas que elas vão sempre
mudando. Afinam ou desafinam. Verdade maior. É o
que a vida me ensinou. Isso que me alegra, montão.
Eu atravesso as coisas – e no meio da travessia não
vejo!
– só estava era entretido na ideia dos lugares de saída e
de chegada. Assaz o senhor sabe: a gente quer passar
um rio a nado, e passa; mas vai dar na outra banda
é num ponto muito mais em baixo, bem diverso do
em que primeiro se pensou. Viver nem não é muito
perigoso?” [...] Cada dia é um dia. E o tempo estava
alisado. Triste é a vida do jagunço – dirá o senhor. Ah,
fico me rindo. O senhor nem não diga nada. “Vida” é
noção que a gente completa seguida assim, mas só por
lei duma ideia falsa. Cada dia é um dia.

PARADA PARA REFLEXÃO

Neste ponto da nossa exposição, lançamos a você uma pergunta,


supondo uma pausa para reflexão, sobre o seguinte: a travessia e quem a
faz, no caso, o ser humano, constitui dois polos na obra de Guimarães Rosa,
ou seja, a vida é objeto da busca independente do homem, sujeito? E,
respaldados em críticos inesquecíveis da obra rosiana, confirmamos o que já
deu para vocês, talvez, terem concluído, a partir das três citações anteriores
de Grande sertão: veredas. A opinião abalizada de Benedito Nunes (1969,
p. 179) afirma que:

[...] para Guimarães Rosa, não há, de um lado,


o mundo, e, de outro, o homem que o atravessa.
Além de viajante, o homem é a viagem – objeto
78 UNIUBE

e sujeito da travessia, em cujo processo o mundo


Poièsis
se faz. Ele atravessa a realidade conhecendo-a, e
Termo de origem conhece-a mediante a ação da poièsis originária,
grega, contém o dessa atividade criadora, que nunca é tão profunda
sentido de “fazer”, e soberana como no ato de nomeação das coisas,
“fabricar”. A a partir do qual se opera a fundação do ser pela pa-
associação entre
fonte etimológica lavra [...]
e a referência de
Benedito Nunes à
atividade criadora,
remete-nos ao Tomamos Riobaldo, personagem fundadora das
sentido filosófico do
estar no mundo, do
duas dimensões de poièsis. Ele faz a travessia e a
estar vivendo, ação rememora fazendo uso original da palavra criadora.
que subentende
No universo do qual participa, o contar é duplo:
fazer, agir e produzir
conhecimento e sua voz se dirige ao outro, como faz o contador
sabedoria. O sujeito
nasce e renasce
de histórias oral, o que está se desenvolvendo
em cada novo na forma escrita. Esta personagem-narradora
instante em que
age no mundo, em
protagonista segue discursivamente o périplo
termos interativos, heróico e poético, avaliando suas andanças, que
recebendo também
influências. Na
transbordam do valor individual para o coletivo,
atividade criadora, margeando a grandiosidade da epopeia. As
que é o viver, o
sujeito se descobre
grandes lutas travadas nos caminhos percorridos
e descobre a no sertão, que “é do tamanho do mundo”, como
realidade. Já ato
de nomeação das
o ex-jagunço afirma, têm semelhanças com as
coisas significa de outros heróis (cavaleiros andantes da Idade
a atividade do
fazer poesia, ou
Média; outras personagens: Dom Quixote de
a arte poética, no La Mancha, de Cervantes), conforme leituras
sentido amplo que
equivale à criação
críticas de Benedito Nunes e Franklin de Oliveira
pela palavra, a acusam. Porém, a obra de Guimarães Rosa
linguagem literária.
transforma, de maneira singular, produzindo a
marca rosiana inconfundível, a substância local,
nacional, já por si peculiar. Esta é fonte preciosa que abriga arcaísmos,
conteúdos folclóricos, tradições populares, rica oralidade, incorporados,
e, principalmente recolocados, em novo contexto, originalmente. A
maturidade estética do autor efetua a transfiguração poética, com
liberdade de invenção, uso de neologismos (muitas vezes, em um só
procedimento ele converte o arcaico em neológico).

Neste sentido, é evidente a singularidade do escritor brasileiro, sendo


um dos aspectos mais relevantes dessa singularidade a fusão de prosa/
poesia, pela consubstanciação das dimensões épica e lírica. “Cara-de-Bronze”
UNIUBE 79

recebeu, nas duas primeiras edições, a denominação de poema; na 3ª


edição, figura como conto, mas faz parte dos textos englobados no ciclo de
novelas. Ficando além de classificações, e independendo mesmo de rótulos
que aprisionem o texto por categorias de gênero, a concepção rosiana de
estória é o que verdadeiramente importa compreender. No primeiro dos
quatro prefácios da obra Tutaméia, intitulado a sua concepção estética,
conciliada a fundamentos filosóficos, conceituando a estória, associada ao
humor, ao não-senso, ao que excede a margem da razão, ao “mecanismo
dos mitos – sua formulação sensificadora e concretrizante, de malhas para
captar o incognoscível” (ROSA, 1976, p. 3):

[...] a estória não quer ser história. A estória, em


rigor, deve ser contra a História. A estória, às vezes,
quer-se um pouco parecida à anedota.
A anedota, pela etimologia e para a finalidade, requer
fechado ineditismo. Uma anedota é como um fósforo:
riscado, deflagrada, foi-se a serventia. Mas sirva
talvez ainda a outro emprego a já usada, qual mão
de indução ou por exemplo instrumento de análise,
nos tratos da poesia e da transcendência. Nem será
sem razão que a palavra “graça” guarde os sentidos
de gracejo, de dom sobrenatural, e de atrativo.
No terreno do humour , imenso em confins vários,
pressentem-se mui hábeis pontos e caminhos. E que,
na prática de arte, comicidade e humorismo atuem
como catalisadores ou sensibilizantes ao alegórico
espiritual e ao não-prosaico, é verdade que se confere
de modo grande. Risada e meia? Acerte-se nisso em
Chaplin e em Cervantes. Não é o chiste rasa coisa
ordinária; tanto seja porque escancha os planos da
lógica, propondo-nos reali- dade superior e dimensões
para mágicos novos sistemas de pensamento. [Grifos
nossos].

SAIBA MAIS

Arcaísmo e neologismo

O sentido destas duas palavras habitualmente se opõe. A primeira significa


palavra antiga ou de uso antigo, ou em desuso, que muitas vezes é
recorrente na língua popular, como, por exemplo, alembrar (o padrão dito
culto dispensa o “a”), estúrdio, entre tantas outras, usadas por Guimarães
Rosa, colhidas na fala do povo, do sertanejo. Observe-se que ele
80 UNIUBE

acompanhou, durante 10 dias de maio de 1952, um


Formatividade
grupo de vaqueiros na condução de uma boiada, com
Este termo, aplicado o objetivo de fazer anotações na cadernetinha, que
ao fazer artístico
e à composição levava ao pescoço. Esta experiência de observação
construída, forjada da realidade do interior mineiro, em contato direto com
esteticamente,
encontra-se na o linguajar sertanejo lhe serviu no aproveitamento
teoria de Luigi revitalizado em obras posteriores a Sagarana. Neste
Pareyson, na obra
Os problemas da procedimento recriador, muitas vezes o arcaísmo
estética, 3. Ed. reaparece como palavra nova, usada ao jeito de Rosa.
São Paulo, Martins
Fontes, 1997. O Neologismo é a criação de palavras novas, que os
esteta observa que escritores se permitem, promovendo experimentos,
“a realização não
é somente ‘facere’, transgredindo normas e convenções gramaticais.
mas propriamente
um ‘perficere’, isto
é, um acabar, um
levar a cumprimento Não apenas na narração de Riobaldo ao imagi-
e inteireza, de
modo que é uma nário viajante-interlocutor, homem dito instruído,
obra absolutamente passante em sua propriedade, manifesta-se a
original e irrepetível.
Mas estas são as natureza poética da atividade criadora, do fazer e
características do criar com significação de vida e arte, em que o
da forma, que é,
precisamente, próprio discurso literário se volta sobre si mesmo.
exemplar na Em Guimarães Rosa, muitos elementos somados
sua perfeição e
singularíssima na respondem pelo pensamento crítico do escritor e
sua originalidade. pelo seu projeto literário instaurador de uma ra-
De modo que,
pode dizer-se dical revolução renovadora; lembremos os quatro
que a atividade prefácios da obra Tutaméia, onde o leitor encontra
artística consiste
propriamente no os fundamentos do pensamento-filosófico e estético,
‘formar’ isto é, substratos da cosmovisão de Rosa, do seu estilo, do
exatamente num
executar, produzir seu compromisso estético, dos alicerces básicos da
e realizar, que é, formatividade de toda a sua obra. Ele manifestou
ao mesmo tempo,
inventar, figurar, preferência pela temática da viagem, e com certeza
descobrir. Os foi também experimentado viajante (inclusive, a
conceitos de forma
e de formatividade trabalho, morou vários anos fora do país), conhecedor
parecem, portanto, de línguas.
os mais adequados
para qualificar,
respectivamente a A metalinguagem é muito presente nas estórias;
arte e a atividade
artística” (op; cit. P. não raro a linguagem rosiana veicula teor autoex-
26). plicativo, refletindo sobre o fazer artístico enquanto
UNIUBE 81

se faz; viagens se fazem dentro do sentido metafórico da viagem


maior; colagens de poemas, cantigas populares, quadrinhas, e de
outras fontes de poesia oral refletem as afinidades do pensamento
e da ação criadora do escritor. É notável o seu compromisso com o
fazer poético, que lhe exigiu meticulosa exploração sensorial, sonora,
plástica, rítmica das palavras, uma constante da sua linguagem.
Para atingir o grau de artesanato operado em todos os planos
expressionais da língua, entregou-se a uma rígida disciplina, como
também se submeteu a necessárias depurações. O procedimento de
refazer, reescrever do escritor, é implícito ao propósito de aprimorar o
texto.

Episódio curioso que envolve Graciliano Ramos e Guimarães Rosa


atesta a busca do aprimoramento de Rosa. Conforme relato do primeiro,
Sagarana sofreu redução de muitas páginas, após ser eliminado no
Concurso Humberto de Campos, da Livraria José Olympio Editora,
em 1938, do qual o autor nordestino foi jurado. Ocultos identidade e
verdadeiro nome de Guimarães Rosa no pseudônimo Viator, conforme
relembra Graciliano, que confessater vacilado no julgamento, ao eliminar
aquele desconhecido; sentindo um “vago remorso”, pensa nele, em
onde teria se escondido. Compara o original que lera e a obra com
modificações, constantes da primeira edição onde se insere o seu relato
(RAMOS apud ROSA, 1972, p. XVI):

[...] vejo, agora, relendo Sagarana (Editora Universal,


Rio, 1946), que o volume de quinhentas páginas
emagreceu bastante e muita consistência ganhou
em longa e paciente depuração. Eliminaram-se três
histórias, capinaram-se diversas cousas nocivas. As
partes boas se aperfeiçoaram [...]

Lembramos que este primeiro livro do autor traz, já na 5ª edição, a


informação “retocada” (forma definitiva), dado que nos faz pensar
na obsessão de Guimarães, no seu cuidado de reescrever, ajustar,
buscando atingir o melhor do texto. Servimo-nos do depoimento de
Graciliano Ramos, que relata a postura estética do escritor mineiro
traduzida por empenho de enxugar, cortar excessos de Sagarana,
o que ele persegue, avançando em nível de formatividade madura
nas obras seguintes. Há evolução experimental de Sagarana para
o romance, as novelas e os contos de obras posteriores, embora a
linha poética, a simbólica metafísica, os indícios de singularidade já se
82 UNIUBE

manifestem nos contos inicialmente publicados. Crescerá o apuro, a


precisão, tanto centrada no potencial da palavra em si mesma, como
nas estruturas maiores; o discurso ganhará uma definição compacta, a
definitiva originalidade, alçada à concretude sensorial como a da poesia.
Mas o ponto de partida deste estilo já se anunciara em Sagarana. No
seu relato, Graciliano aponta passagens de construção essencialmente
poética nesse livro, citando passagens como a caminhada dos bois, da
boiada em viagem pelo sertão, em “O burrinho Pedrês”. Vamos à página
onde se localiza o primoroso ritmo de poema (ROSA, 1972, p. 23-4):

[...] galhudos, gaiolos, estrelos, espácios, combucos,


cubetos, lobunos, lompardos, caldeiros, cambraias,
chamurros, churriados, corombos, cornetos, bocalvos,
borralhos, chumbados, chitados, vareiros, silveiros...
E os tocos da testa do mocho macheado, e as armas
antigas do boi cornalão...
[...]
— Eh, boi lá!... Ehêêeh, boi!... Tou! Tou! Tou...
As ancas balançam, e as vagas de dorsos, das vacas
e touros, batendo com as caudas, mugindo no meio,
na massa embolada, com atritos de couros, estralos de
guampas, estrondos e baques, e o berro queixoso do
gado junqueira, de chifres imensos, com muita tristeza,

saudade dos campos, querência dos pastos de lá do


sertão...
“Um boi preto, um boi pintado,
cada um tem sua cor.
Cada coração um jeito
de mostrar o seu amor.”
Boi bem bravo, bate baixo, bota baba, boi berrando...
Dansa doido, dá de duro, dá de dentro, dá direito... Vai,
vem, volta, vem na vara, vai não volta, vai varando...
“Todo passarinh’ do mato
Tem seu pio diferente. Cantiga de amor
doído Não carece ter rompante...”

O lirismo é ponto alto e recorrente na obra de Guimarães Rosa,


aglutinando-se, na linguagem de expressão do sensível, visão e ritmo
poéticos, conse- guidos pela exploração de recursos como aliteração,
UNIUBE 83

rimas, onomatopeias, enumerações (todos eles presentes na citação),


entre outros, que criam os efeitos sonoros característicos do poema. Na
citação anterior, é palpável o que Roman Jakobson assegura quanto à
definição da linguagem poética (1970, p. 1501): “Numa sequência em que
a similaridade se superpõe à contiguidade, duas sequências fonêmicas
semelhantes, próximas uma da outra, tendem a assumir função
paronomásica. Palavras de som semelhante se aproximam quanto ao
seu significado.” Destacamos na próxima citação, de Grande sertão:
veredas (ROSA, 1972, p. 39), outro exemplo da sonoridade poética,
sublinhando o neologismo “leque-lequêia”. Assim como a passagem
literária do conto, é nítida, no trecho do romance, a fusão de prosa e
poesia, pertinente a toda a obra. Quanto ao verbo que o escritor cria,
origina-se da palavra leque: objeto, a cujos usos se aliam um sentido de
elegância, atributo também do buriti, tão admirado por Rosa e decantado
na sua obra. Usado para agitar o ar, a imagem visual deste objeto
assemelha-se à folha da palmeira; a sonoridade emitida pela repetição,
pela duplicação da palavra originária, concretiza o movimento das folhas,
a agitação dos pássaros pousados nelas, provocando o balanço, o vai
e vai no ar:
[...] de repente, com a gente se afastando, os pássaros
todos voltavam do céu, que desciam para seus
lugares, em ponto, nas frescas beiras da lagoa – ah, a
papeagem no buritizal, que leque-lequêia. A ver, e o sol,
em pulo de avanço, longe na banda de trás, por cima de
matos, rebentava, aquela grandidade. Dia desdobrado.
[Grifo nosso].

A sensibilidade de Riobaldo guardou na sua memória afetiva detalhes,


que voltam na narrativa, porque delas ele não se esqueceu e sente sau-
dades. Recordemos com ele (ROSA, p. 92): Aí mês de maio, falei, com
a estrelad’alva. O orvalho pripingando, baciadas. E os grilos no chirilim.
[...] A gente se encostava no frio, escutava o orvalho, o mato cheio de
cheiro- so, estalinho de estrelas, o deduzir dos grilos e a cavalhada a
peso. Dava o raiar, entreluz da aurora, quando o céu branquece. Ao
o ar indo ficando cinzento, o formar daqueles cavaleiros, escorrido,
se divisava. E o senhor me desculpe, de estar retrasando em tantas
minudências. Mas até hoje eu represento em meus olhos aquela hora,
tudo tão bom; e, o que é, é saudade. Nada melhor do que as próprias
palavras de Guimarães Rosa para aquilatar o trabalho do escritor que
84 UNIUBE

opera artisticamente com palavras. Unidas as possibilidades lúdicas,


criadoras, do material e de quem o manuseia, as palavras fazem da
literatura o campo de “contínua experimentação”. Expressão esta do
próprio Guimarães, em reflexão sobre o dinamismo criador da língua
e, particularmente, a língua operacionalizada na esfera literária. As
suas palavras assinalam a perspectiva lúcida e a consciência pertinaz
que orientam a sua arte, desempenhada como legítimo ofício (apud
PEREIRA JÚNIOR, 2004, p. 69-75):

[...] o quanto ninguém imagina, é uma língua in opere,


fabulosamente em movimento, fabril, incoagulável,
velozmente evolutiva, toda possibilidade, como se
estivesse sempre em estado nascente, apta avante,
revoltosa. Sem desfigurar-se, como um prestante e
moderno mecanismo, todo tratável, ela aceita quaisquer
aperfeiçoamentos estruturais e instrumentais,
que, nas exaltadas arremetidas criadoras de uma
experimentação contínua, os escritores lhe infligem,
segundo as mais sutis ou volumosas intenções.
Suas partes obedecem à arte. Deste ponto-de-vista,
nenhuma outra haverá tão plástica e colaborante,
sem inércia. Por sua própria natureza original, permite
todas as caprichosas e ousadas manipulações da
gênese inventiva individual. Praticamente ilimitada é
a criação de neologismos, o verbum confingere. [...] A
seiva arcaica se redestila. Absorvem-se os ruralismos.
Recapturam-se as esquivas florações da gíria. Entre
si, as palavras armam um fecundo comércio. Molgável,
moldável, digerente assim – e não me refiro em
espécie só à língua literária – ela mesma se ultrapassa;
como a arte deve ser, como é o espírito humano: faz
e refaz suas formas. Sem cessar, dia-a-dia, cedendo
à constante pressão da vida e da cultura, vai-se
desenrolando, se destorce, se enforja e forja, malêiase,
faz mó do monótono, vira dinâmica, vira agente, foge
à esclerose torpe dos lugares-comuns, escapa à
viscosidade, à sonolência, à indigência; não se estatela.
Seus escritores não deixam.

Relacionemos a visão da grandidade à exuberância da linguagem em


Guimarães Rosa. Voltando ao trecho que citamos há pouco (ROSA, 1972,
p. 39), reencontramos esta palavra, dentro da passagem que nos mostra a
atenção do narrador dirigida às minúcias. O envolvimento lírico de quem
vê com a coisa vista permite o dizer poético, que retém o movimento,
UNIUBE 85

o barulho, a imagem dos seres da natureza em ritmo de vida. Neste


sentido, o texto rosiano não está preocupado, como já afirmamos,
em amarrar fatos, com valor objetivo, com conflitos e consequências
desvinculados do movimento interno do ser, dos reflexos interiores. O
olhar filtra a beleza, o encantamento, a magia do universo em estado
bruto, que é o sertão, e que é o viver dentro e fora do ser. Entrar no sertão,
conviver com ele, confundir-se com ele (não diz Guimarães, na epígrafe
do nosso texto, “o sertão é dentro da gente”?) equivale a captar, penetrar,
testemunhar e comungar toda a riqueza, o mistério, o imprevisível, a
vastidão, o que é virgem, inaugural. Assim, o sertão é espaço privilegiado,
porque o embrenhar-se nele, ou atravessá-lo – sendo, ao mesmo tempo,
o viajante e a viagem – é encontrar-se em estado propício ao vasto,
complexo e interminável conhecimento. As fontes cíclicas da natureza
são inspiradoras também da contemplação face à grandidade; daí, a
sua expressão lírica extravasar-se numa linguagem exuberante, que dá
a medida do encantamento, do reconhecimento admirativo da beleza.

Nesta mesma perspectiva mítica – de retorno ao pré-lógico, ao anterior


à ordem e ao estado e visão racionais, que é a da estória segundo a
concepção rosiana – coloca-se a Infância. Aproximamos, então, três
instâncias: a) sertão; b) Menino/Infância (símbolo do começo, do
despertar, do nascimento, das potencialidades geradoras de vida, de
volta ao princípio, de abertura ao inexplorado; a criança tem o olhar de
encantamento diante do que o seu olhar inaugura, ao ver pela primeira
vez; c) estado nascente da língua (termo com que Rosa define a
língua): a palavra é atividade que faz nascer o novo, ela nomeia; a
expressão lúdica da poesia, cultivada por Rosa, é a forma que melhor
se presta ao dizer inaugural, livre de liames gramaticais, ordenações
aparentes, priorizados na discursividade de ênfase prosaica. Os três
pontos convergem para a poièsis , terreno da linguagem revolucionária
rosiana, que sustenta nova visão do ser e do mundo, que produz o
espaço ilimitado, a intemporalidade, personagens cósmicas. Por isto, é
um terreno mítico, onde tudo se renova e principia; a fantasia é a fonte
de simbolização do real ou dos reais das estórias.
O Menino, de valor simbólico, está em Grande sertão: veredas, na
figura de Diadorim menino (após a morte da personagem, já adulta,
declara-se a sua identidade feminina). Foi Diadorim que apontou
caminhos de beleza, coragem, sabedoria para Riobaldo, desde os
primeiros contatos que tiveram no Rio São Francisco, e estreitados,
86 UNIUBE

depois, na forma de amor muito especial (secreto, impossível, cheio


de insinuações eróticas), durante a travessia, enquanto jagunços, no
sertão. Assim, Benedito Nunes (1969, p. 160) retrata Diadorim criança:
“Menino diferente, tem a estatura de um ser mítico, fabuloso, que parecia
igualar-se ao próprio Rio em sua força e em seus segredos.” A simbologia
reincide em Miguilim (novela “Campo geral”), numa composição
complementar com o irmão mais novo; este, de nome Dito, menino sábio,
morre, deixando em Miguilim ensinamentos fundamentais sobre o viver.
Em vários contos, o Menino protagoniza estórias poéticas, podendo-se
citar: “Nenhum, nenhuma”, “Tresaventura”, “A menina de lá”, “Partida do
audaz navegante”, “As margens da alegria”, “Os cimos” (chamado de
poema, nas análises de Benedito Nunes), entre outros.

Afinal, a criança faculta o olhar de ver de maneira admirativa, porque ela


é um ser deslumbrado face ao novo (como o Menino perplexo diante da
beleza do peru em “As margens da alegria”). A visão imaginária do mundo
infantil se concilia ao poder da palavra criadora. O universo da criança
fornece a Rosa, como o do sertanejo, a força de dizer original, sem
submissões gramaticais; servindo às estórias do autor, estes universos
contribuem com o trabalho artístico, que cria o real de conformação
poética. Guimarães Rosa sabia muito bem que em arte não há soluções
experimentais, inauguradoras de novas visões, fora da potência original
da palavra; coerência assim formulada pela crítica Leyla Perrone-Moisés
(1998, p. 889):

[...] o texto não é uma representação do contexto [...] ou


uma vestimenta da mensagem (positiva ou negativa,
progressista ou alienada), mas o lugar onde se
experimentam novas formas de dizer, de ver, sugestivas
de novas formas de ser. E que só no encontro dessas
formas a literatura alcança sua função mais plena e sua
ação mais efetiva.

O aproveitamento/burilamento das fontes pesquisadas, dos temas


e dos recursos expressionais coube ao seu talento, sensibilidade,
conhecimento, técnica, trabalho, postos a serviço da criação lapidar,
plenamente cônscio, o escritor, do que Irene Gilberto Simões sintetiza, em
estudo sobre ele (s.d., p. 95): “a palavra possui sua força mágica, capaz
de atrair o homem mais ainda do que o fato real.” Ao que acrescentamos
palavras de Franklin de Oliveira, definindo as estórias rosianas como “contos de
UNIUBE 87

fadas adultos”, justificando que: “Com esta afirmativa, direi de sua intensa
maturidade, ao mesmo tempo em que salienta seu apelo ao encantatório
e ao maravilhoso, ao imaginário, ao mítico e ao feérico sem esquecer
as vinculações que têm com a terra e o povo.” Em outro ponto de seu
estudo (1970, p. 425; p. 449), Oliveira reitera a “solução poético-feérica
para o problema do destino” em Grande sertão: veredas, concluindo,
em seguida: “Contra o esquematismo da inteligência e do racional a
vitória do psiquismo ‘noturno’, porque nele predomina mágica, lúdica,
onipotente, a Imaginação.”

Observemos que as histórias folclóricas, de fonte popular, que


atravessaram tempos e lugares, nas narrações orais, foram repertório
buscado para adaptações em livros para o público infantil, por clássicos
como Charles Perrault, os irmãos Grimm e Hans Christian Andersen
inicialmente, e depois deles por tantos outros, em recontos, estilizações,
e até paródias, mais modernamente. Guimarães Rosa escreveu o conto
“Fita verde no cabelo (Nova Velha estória)”, incluído na obra póstuma
Ave, palavra, intertextualizando o clássico “Chapeuzinho Vermelho”,
além de todo o manancial folclórico incorporado ao todo da sua obra.
Queremos lembrar um enunciado significativo do conto “Desenredo”,
do livro Tutaméia, assumido pelo narrador, quando diz (ROSA, 1976,
p. 38): “Todo abismo é navegável a barquinhos de papel.” As estórias
de Rosa são para serem navegadas assim, com mergulhos feitos pela
imaginação, que leva a campos profundos, inimagináveis com o senso
lógico; são planos inconcebíveis por rumos lineares, concretos. Mundos
da fantasia, sim, que revolucionam o lugar comum, levando o leitor ao
contato com o ainda não concebido até a leitura; o incognoscível das
estórias de Rosa, que fazem ver não o lado de fora, mas o avesso, o
ângulo de dentro que converge para o belo, o poético, o profundo que se
encontram nos novos planos que ele inaugura.

3.4 Conclusão

Não é fácil a tarefa de escrever didaticamente sobre Guimarães Rosa,


como fizemos e como fazem professores e professoras, procedendo ao
estudo do autor com os estudantes. Buscamos cumprir tal tarefa com o
intuito de iluminarmos alguns aspectos peculiares à sua obra, certos de
que sempre seremos iniciantes no desvendamento da riqueza, da beleza
88 UNIUBE

e da grandiosidade da expressão estética de Rosa. Isto porque, ao


falarmos sobre ele, estamos vendo-o por uma ínfima parcela, deixando
de alcançar tudo o mais que permanece oculto. Mas não podemos deixar
de pensar também que o autor estaria feliz, sabendo que, sendo lido, sua
literatura estaria cumprindo o infinito diálogo com o leitor. Tanto já se disse
e se escreveu sobre Guimarães Rosa, e tanto ainda continua por ser dito,
enredado nas reservas mágicas do texto, disponíveis às descobertas de
infindáveis recepções. Acreditamos que os procedimentos explicativos,
como os didáticos, e críticos, seguidos por nós, são mediadores e
motivadores da relação com o texto, elucidando pontos importantes,
preparando e instigando a sensibilidade de vocês, para apreciarem, como
leitoras e leitores críticos, o texto de Guimarães Rosa. O encantamento
emanado da sua linguagem poética só pode ser usufruído mesmo
pela experiência indispensável da leitura, o que propomos ser feito na
continuidade do nosso roteiro. Encerramos a conversa alinhavada aqui,
com alguns versos de Carlos Drummond de Andrade, do poema “Um
chamado João”, dedicado ao poeta mágico, o João Guimarães Rosa
(1977, p. 539):

[...] projetava na gravatinha


a quinta face das coisas,
inenarrável narrada?
Um estranho chamado João
para disfarçar, para farçar
o que não ousamos compreender?
[...]
seu fado era saber
para contar sem desnudar
o que não deve ser desnudado
e por isso se veste de véus novos?

Referências

ANDRADE, Carlos Drummond de. Poesia completa e prosa. Rio de Janeiro:


Nova Aguilar, 1977.
UNIUBE 89

JAKOBSON, Roman. Linguística e comunicação. 3. ed. Trad. de Isidoro


Blikstein e José Paulo Paes. São Paulo: Cultrix, 1970.

NUNES, BENEDITO. Guimarães Rosa. In: _____. O dorso do tigre.


São Paulo: Perspectiva, 1969.

VEIRA, Franklin. Estudo sobre Guimarães Rosa. In: A literatura no Brasil –


Modernismo – Volume 5. 2.ed. Rio de Janeiro: Editorial Sul Americana, 1970.

PAREYSON, Luigi. Os problemas da estética. 3. ed. São Paulo: Martins


Fontes, 1997.

PEREIRA JÚNIOR, Jerônimo. Primeiras estórias: dos contos aos filmes.


Cadernos de Pós-graduação em Letras, São Paulo, v. 3, 2004, n. 1, p. 6975.

PERRONE-MOISÉS, Leyla. Texto, crítica, escritura. São Paulo: Ática, 1993.

. Flores da escrivaninha. 1ª reimp. São Paulo: Companhia das


Letras, 1998.

RAMOS, Graciliano. Conversa de bastidores. In: ROSA, João Guimarães.


ed. Sagarana. Rio de Janeiro: Livraria José Olympio Editora, 1972.

RESENDE, Vânia Maria. A trajetória do menino nas estórias de Guimarães Rosa.


In: ____ O menino na literatura brasileira. São Paulo: Perspectiva, 1988.

ROSA, Guimarães. As margens da alegria; Os cimos. In: ____ Primeiras


estórias, São Paulo: Nova Fronteira, 1972.

SIMÕES, Irene Gilberto. A matéria regional e folclórica: um caminho para


o mito. In: Guimarães Rosa: as paragens mágicas. São Paulo: Perspectiva, s.d.
Capítulo A obra de Mário de
4 Andrade: prosa e poesia

Alexandre Bonafim Felizardo

Introdução
Neste capítulo, você conhecerá importantes obras de Mário de
Andrade. Inicialmente, iremos verificar aspectos temáticos e
formais da obra Macunaíma. Assim, a partir de determinados
excertos do capítulo “Macumba”, iremos mergulhar nos intricados
processos estilísticos dessa obra tão importante de nossa
literatura.

Em seguida, você irá conhecer o lirismo de Mário de Andrade e


descobrir o quanto esse artista inovou nossa poesia, trazendo-nos
obras de grande novidade estilística e formal.

Para finalizar, empreenderemos uma leitura de alguns dos


principais contos de Mário de Andrade, pertencentes à obra
Contos Novos.

Objetivos
Ao final deste capítulo, você deverá ser capaz de:
• Identificar os aspectos temáticos e estilísticos obra
Macuinaíma;
• Conhecer as inovações formais da poesia modernista de
Mário de Andrade;
• Apreender as características formais, estilísticas e líricas
dos textos de Contos Novos;
• Conhecer as inovações da estética modernista.
92 UNIUBE

Esquema
4.1 Macunaíma: a saga de um herói sem caráter
4.2 Introdução à poesia de Mário de Andrade
4.3 Introdução: algumas informações sobre o gênero

4.1 Macunaíma: a saga de um herói sem caráter

Olá, estamos prestes a iniciar um passeio por uma das obras mais
inusitadas e inovadoras de nosso modernismo: o Macunaíma, de Mário
de Andrade.

Feérico
Nessa obra, vamos lidar com um mundo feérico,
universo lendário e mágico, pátria dos sonhos,
Mágico, absurdo, onde o que importa não é a lógica, a razão,
termo ligado aos
contos de fada, mas a força dos devaneios. Por isso, temos
em que a fantasia de ler esse livro com um olhar lúdico, despido
molda o real.
de preconceitos. É preciso brincar, ser criança
Lúdico novamente, para podermos mergulhar nessa
Relativo às verdadeira saga não de um herói apenas, o
brincadeiras de Macunaíma, mas de toda a cultura brasileira.
criança, gesto ou
ação de brincar, de
jogar, de se divertir.Nesse sentido, é importante salientar um aspecto
fundamental da obra: o seu caráter folclórico,
ligado aos mitos indígenas e afro-americanos. Mário, afinado ao espírito
modernista e um dos mentores desse movimento, tinha um amplo e
profundo interesse por tudo o que se relacionava ao Brasil. Assim, ao
longo da vida, ele foi um incansável pesquisador do folclore nacional, dos
mitos indígenas e afro-brasileiros, foi, enfim, um dos grandes folcloristas
de nosso país.

Você já deve ter lido ou estudado no colégio algumas lendas ligadas ao


nosso folclore. Pois bem, Mário foi um dos responsáveis pela divulgação
desse legado cultural. Por isso, o autor de Macunaíma não foi somente
um grande escritor, mas também um homem de humanidades, um
importante pesquisador de nossa cultura.
UNIUBE 93

Macunaíma é um livro que desconcerta o leitor


comum, acostumado às narrativas tradicionais. É interessante notar
que, mesmo ao
Isso se dá porque o autor, atento às inovações viver na metrópole,
no caso São Paulo,
das Vanguardas europeias, executou uma série de Macunaíma nunca
revoluções estilísticas até então inéditas no Brasil. deixará de exprimir
seu fecundo elo
Mais à frente, iremos detalhar esses recursos com a natureza.
A São Paulo, do
inovadores. Por hora, vamos nos atentar ao título herói de Mário
da obra e tentar reconhecer sentidos de relevância está amplamente
emoldurada por
para a nossa leitura. um viés selvagem,
primitivo, como se
fosse, na verdade,
O título Macunaíma: o herói sem nenhum uma imensa
floresta. Por isso,
caráter causa, a princípio, certo desconcerto. Você mesmo vivendo
na grande cidade,
deve se perguntar, como é possível um herói não Macunaíma nunca
ter os atributos típicos de tal condição, ou seja, deixará de caçar,
de pescar, de estar
as características ligadas a uma postura moral próximo de árvores,
de conviver com os
elevada. Veja, ao lermos Macunaíma, temos de bichos.
nos libertar daquela imagem do Super-homem Etnocentrismo
dos filmes e desenhos animados; temos de
Tendência a fazer
ver na personagem de Mário um ser “humano, da própria cultura,
demasiadamente humano”, repleto, portanto, de das normas de
comportamento e
imperfeições e fragilidades. dos valores de uma
sociedade, uma
regra universal,
Conforme aponta o professor da Universidade válida para outras
culturas. Ex.: os
de São Paulo, José Miguel Wisnik, Macunaíma jesuítas queriam
não é um herói de mau caráter, mas um herói fazer dos índios
cristãos, ou seja, os
“sem” caráter. Isso faz toda a diferença, porque padres desejavam
não podemos vislumbrar na nossa personagem transformar, pela
violência, a cultura
os moldes e os preceitos de um comportamento dos índios. O
etnocentrismo
éticocristão, de uma moral rígida, mas a vida está ligado aos
livre do homem em contato com a natureza, preconceitos e à
violência contra
por isso mais próximo dos instintos humanos a liberdade
essenciais, como a preguiça, por exemplo. Para de expressão
cultural. Assim, por
lermos Macunaíma, temos de vestir um olhar exemplo, quando
antropológico, despido de todo etnocentrismo e alguém manifesta
alguma sátira às
preconceito. Só assim poderemos vislumbrar não religiões africanas
apenas a riqueza psicológica da personagem, mas ou a padrões de
comportamento,
também toda a gama de características de nossa como, por
exemplo, a
cultura encarnadas por ela. Conforme aponta homossexualidade,
Noemi Jaffe, temos de confrontar Macunaíma com essa pessoa está
sendo etnocêntrica.
um olhar despido da lógica racionalista:
94 UNIUBE

[...] não há como agarrá-lo nem esgotá-lo pela lógica;


não é essa a linguagem do herói nem tampouco
da narrativa de Mário de Andrade. A sua é outra
lógica, sem causa ou efeito planejados: a lógica do
homem comum contemporâneo (...). Macunaíma é
principalmente um preguiçoso, que tem preguiça até de
ter caráter. “Ai que preguiça” é o mote que percorre o
livro [...]. (JAFFE, 2001, p.13).

Dessa forma, para nos aproximarmos do romance, temos de aceitar a


sua ilogicidade, ou melhor, a sua narratividade desvairada, para usarmos
um adjetivo ao gosto de Mário. Macunaíma, a personagem, encarna um
feixe de amplas contradições: é índio, branco e negro, percorre o tempo
e o espaço de forma lúdica e completamente onírica, vive além do bem
e do mal:
[...] adulto com cara de piá, que não quer crescer,
preferindo permanecer como o cajueiro-do-campo:
pequeno, com a copa pouco desenvolvida, apesar das
grandes raízes; simultaneamente índio, negro e branco;
libertino mas sempre fiel a Ci, mãe do mato; obstinado
em reconquistar seu amuleto perdido (a muiraquitã)
de um gigante comerciante ítalo-peruano, mas com
preguiça de assumir qualquer responsabilidade; herói
que deixa a consciência na ilha de Marapatá, mas que
também chora de melancolia; fujão “desgeograficado”,
que atravessa tempo e espaço, assim como fica além
(ou aquém) do bem e do mal – este é o herói de nossa
gente, sem caráter. (JAFFER, 2001, p. 14).

Antes de começarmos nossa análise, façamos uma breve incursão


pela história. Para tanto, de maneira sucinta, iremos desvelar o traço
da narração, seus movimentos principais. Dessa forma, você poderá se
situar ao longo da análise. De qualquer maneira, é aconselhável, sempre,
a leitura da obra. Portanto, quando possível, corra a uma biblioteca e leia
o livro na íntegra. Como estudantes de Letras, a leitura é com certeza a
nossa maior aventura.

4.1.1 Breve itinerário da história de Macunaíma

Macunaíma nasce feio, num instante de imenso silêncio, às margens do


rio Uraricoeira. Ele é descendente de indígenas da tribo Tapanhumas.
UNIUBE 95

Nasce de uma mãe virgem, o que nos suscita, inevitavelmente, uma


comparação com a Virgem Maria. A criança, ao nascer, exclama: “Ai
que preguiça”, mote que serve como emblema da personagem, como
uma frase feita capaz de nos inserir no âmbito de sua personalidade.
À maneira de um Don Juan libertino, o herói de Mário tem um grande
apetite sexual. Ao longo da narrativa, o eufemismo “brincar” servirá como
metáfora do ato erótico. Dessa forma, Macunaíma irá “brincar” ao longo
de toda a história, com diversas personagens femininas.

Logo nesse primeiro capítulo, já aparecem as formigas. Tais insetos irão


trespassar toda a saga do herói. Elas representariam, conforme Telê
Porto Ancona Lopez, o trabalho, o negócio. Dessa forma, as formigas
compõem uma antítese em relação à preguiça do protagonista.

Vejamos a breve exposição que Jaffer faz do capítulo “Maioridade”.

No capítulo “Maioridade”, Macunaíma trapaceia com os


irmãos, fingindo saber onde tem timbó, para não dividir
com eles a comida que escondeu. Engana também a
mãe, que fica com raiva do filho e o leva para o Cafundó
dos Judas, onde o condena a não crescer mais,
condenação que se cumpre, pois Macunaíma nunca
mais deixará de ser uma grande criança. Macunaíma,
perdido, com medo, toma coragem e sai caminhando.
Encontra o curupira, que, querendo comê-lo, lhe ensina
o caminho errado de volta para casa. O curupira,
significativamente, chama o herói de “menino-home”.
Macunaíma, por pura preguiça, não segue o caminho
errado e assim escapa do inimigo, na primeira de muitas
vezes em que se livra de seus problemas como que
por acaso e não por coragem decidida. Em seguida,
encontra uma cotia, que lhe besunta o corpo; ele
cresce, fica do tamanho de um homem taludo, mas
para sempre com cabeça e “carinha de piá”. Depois
de conseguir voltar para casa, o herói transforma-se
em formiga, em pé de urucum, e logo “brinca” com
Iriqui, a nova companheira de Jiguiê (seu irmão). Na
sequência, querendo caçar uma veada, flecha a própria
mãe, matando-a. Os irmãos jejuam enlutados e saem
pelo mundo, dando início à jornada dos três pelo Brasil.
(FAFFE, 2001, p. 20-21).
96 UNIUBE

No capítulo “Ci, Mãe do mato”, Macunaíma encontra a única mulher


que verdadeiramente irá amar: a personagem cujo nome dá título ao
capítulo em questão. Com ela, o herói terá um filho que, entretanto,
logo morrerá envenenado. A criança, depois de morta, transforma-se na
planta do guaraná. Por conseguinte, Ci, inconformada, dá a Macunaíma
a muiraquitã (pedra com poderes mágicos, capaz de dar sorte) e, de
tristeza, sobe para o céu, tornando-se a estrela Beta Centauro.

Você deve estar achando tudo maluco, não é mesmo?

Entretanto, se fizermos um aprofundamento na leitura, iremos observar


o quanto tudo isso está carregado de significados simbólicos. Por
exemplo, a morte, aqui, tem um sentido sacrificial, ritualístico, como as
que ponteiam os mitos indígenas: do ruim, “a morte do filho e da mãe,
nasce o bom e o belo, uma planta e uma estrela” (JAFFE, 2001, p.23).

Em “Boi-luna”, o herói irá travar uma luta com o terrível monstro Capei.
Após driblá-lo, Macunaíma corta a cabeça da fera. Entretanto, tal gesto
não é capaz de refrear a perseguição, pois o monstro, reduzido a
uma cabeça apenas, torna-se escravo de Macunaíma, continuando a
perseguir o seu mais novo amo. Logo desenganado, Capei sobe para
o céu, transformando-se em lua. Enfim, deparamos, aqui, com mais
uma metamorfose, recurso típico ao longo de toda a trama, em que
personagens se transformam em astros. Nesse ínterim, Macunaíma
perde a muiraquitã no rio. O amuleto, engolido por um tracajá, espécie
de réptil, é resgatado por um pescador e vendido para o grande vilão da
história, o gigante Venceslau Pietro Pietra.

Principia, a partir de agora, a busca pela muiraquitã. Com efeito,


Macunaíma e seus dois irmãos rumam para São Paulo, a fim de
reaverem o amuleto mágico. No caminho, o herói, ao banhar-se em águas
encantadas, torna-se branco. Seus irmãos, na avidez de conseguirem o
mesmo, mergulham também nas águas. Entretanto, eles não conseguem
sucesso, pois o líquido já estava turvado pela pigmentação da pele
de Macunaíma. Com isso, Jiguê fica pardo, marrom, como os índios,
Maanape consegue descorar apenas as solas dos pés e as palmas
das mãos, permanecendo negro. Temos representados, pela união dos
irmãos, as três raças matrizes, formadoras do povo brasileiro. É emblemático
UNIUBE 97

o fato de Macunaíma tornar-se branco. Como ele deseja riquezas em São


Paulo, a sua cor encarnaria a ambição do homem branco, colonizador.

Ao chegarem a São Paulo, as personagens se deslumbram com aquele


universo tomado por máquinas e construções. A respeito desse contato
com o mundo dito “civilizado”, Jaffer faz importante análise:

[...] em São Paulo, os irmãos se dão conta de que


tudo é máquina, “essa deusa forçuda” que perturba a
inteligência do herói e, ao mesmo tempo, o enche de
inveja. Mas a máquina, segundo percebe Macunaíma,
“não era deusa não” e tampouco feminina, como a Sol.
Com ela o herói descobre que não se pode brincar; “é
feita pelos homens. Eles mandam nela mas é ela que
os mata, a máquina sem mistérios”, por oposição a
todos os mistérios da mata (...). E, de tanto “maquinar”,
o herói chega a uma conclusão a que muitos filósofos
também chegaram: “os homens é que eram máquinas
e as máquinas é que eram homens”. Fórmula que
pode nos levar, entre outros, ao pensamento de Walter
Benjamin, interpretando a civilização moderna como
naturalização do artifício e artificialização da natureza.
Os homens naturais sendo coisificados e banalizados,
transformados em mercadoria. E as máquinas,
artificiais, usadas com tanta naturalidade que mais
parecem obras dadas da natureza do que construções
humanas. (JAFFER, 2001, p. 24-25).

Com efeito, Mário irá destrinçar essa contradição, imprimindo na obra


contradições marcantes entre o primitivo e o moderno.

Macunaíma procura Venceslau Pietro Pietra, a fim de resgatar a muiraquitã.


Venceslau é um gigante, comedor de gente. Ele mata o herói que, todavia,
ressuscita. O feito de morrer e renascer irá acontecer diversas vezes com
Macunaíma, sublinhando, novamente, o caráter sacrificial da morte e a
sua função mítica. Nesse sentido, não podemos deixar de pensar no mito
cristão em que o Cordeiro divino ressuscita. Há forte lastro dessa tradição
nas sucessivas mortes do protagonista de Mário.

Numa das tentativas de reaver o amuleto, Macunaíma veste-se de francesa


e vai ao encontro de Venceslau. Esse deseja “brincar” com o herói traves-
tido. Assustado, Macunaíma foge, numa das diversas incursões pelo Brasil
afora. Neste passeio, o protagonista vai para o Paraná e para a ilha de Marajó.
98 UNIUBE

Essas travessias, como nos desenhos animados modernos, dão-se de


maneira mágica. Num átimo, as personagens cortam o Brasil inteiro a pé,
em desabalada correria. Esses efeitos geram uma verdadeira pesquisa
do Brasil como um todo, demonstrando a importância da nacionalidade
geográfica.

Há dois capítulos, a seguir, míticos e mágicos, em que o sagrado


se desvela: em um, o herói “brinca” com a filha da Sol, astro que,
furioso com a traição de Macunaíma (esse resolve trair sua filha com
uma portuguesinha), passa a perseguir nosso herói, e outro, em que
Macunaíma vai para um terreiro de macumba, no Rio de Janeiro, a fim
de fazer um feitiço contra Venceslau.

Esses capítulos ressaltam o caráter não apenas lúdico da trama, mas


também todo o lastro sacro e mítico, em que o universo dos deuses, dos
seres encantados, da natureza humanizada, é ressaltado na construção
de uma verdadeira lenda, em que o feérico e o absurdo servem como
padrões de leitura.

Você já deve ter, na infância, ouvido inúmeras histórias mágicas, de


seres encantados, fantasmagóricos, típicos da tradição popular. Pois
bem, Mário está justamente aproveitando esse legado cultural, para
transformá-lo em literatura, em arte. Com isso, podemos observar, na
obra, um pouco de nossa história lendária e da cultura de nosso povo.

Há, no romance, um capítulo de suma importância e que destoa dos


demais, efetuando um corte na trama. Tal capítulo é independente e,
portanto, aparentemente deslocado, solto. Vejamos o que Jaffer delineia
nessa passagem da obra:

[...] invertendo as cartas dos cronistas coloniais, que es-


creviam à cidade para contar sobre os índios, a “Carta
pras Icamiabas” (...) é endereçada às índias, súditas do
Imperador Macunaíma, para contar-lhes sobre a cidade.
Trata-se, na verdade, como faziam muitos imigrantes,
de um pretexto para pedir dinheiro a elas. A carta
satiriza de uma só vez os beletristas parnasianos (...), os
academicismos e pedantismos da língua escrita (...). Faz
uma descrição da vida na cidade, dizendo que há tantas
ruas que “mal cabem as gentes”, que os paulistas
UNIUBE 99

são afeitos ao combate, porque vivem em guerra (...),


critica a polícia e os políticos, monstros que têm pouco
de humano. (JAFFER, 2001, p. 29).

Conforme podemos notar, essa passagem é uma sátira aos discursos


empolados, cultistas, muitas vezes artificiosos e sem conteúdo. A carta
é acompanhada, no plano expressivo da narrativa, de um acontecimento
de grande relevância e de importância capital para o Modernismo:
Macunaíma decide estudar, afundando-se em leituras e pesquisas. Com
efeito, temos revelada mais uma contradição de nosso herói, a de se
exprimir entre a fala coloquial, regionalista e a norma culta. Esse também
foi o feito de todos os modernistas, artistas que mesclaram o universo
popular ao erudito.

No romance, há ainda dois outros acontecimentos de grandeza e que me


recem ser ressaltados. A luta final com Venceslau e o regresso à terra
de origem.

Em passagem cômica, lúdica, Macunaíma enceta a derradeira luta contra


o grande comedor de gente, Venceslau Pietro Pietra. Numa sacada de
malandro, o herói ludibria o inimigo, fazendo-o sentar-se em cipó feito
balanço, verdadeira armadilha a prender o terrível monstro. Uma vez
preso, Macunaíma movimenta a rede, ferindo o gigante contra espinhos.
O sangue do vilão cai sobre uma grande bacia de macarrão, erguida por
sua esposa.

Num último golpe, Venceslau cai no imenso recipiente, tornando-se


comida. A oscilação entre humor e violência lembra muitos filmes de
Almodovar, em que a ferida mais encarniçada é tratada com humor
negro.

Ao regressar para sua terra natal, Macunaíma enceta as derradeiras


disputas com seus irmãos. Jiguê, irritado com as trapaças do herói,
nega-se a caçar alimento. Num ato de vingança, Macunaíma envenena
um anzol de pesca, com qual intenta ferir Jiguê. Movido pela fome,
o irmão do protagonista vai pescar e utiliza o anzol envenenado. Ao
tocar no objeto mortífero, se fere e morre de lepra, tornando-se uma
sombra. Não menos trágico é o fim de Maanape, o irmão mais velho de
Macunaíma. A sombra de Jiguê, movida pela fome, engole o primogênito.
100 UNIUBE

A solução dessa tragédia é exemplar e, com efeito, retoma os modelos


míticos dos indígenas. Os dois irmãos transformaram-se na segunda
cabeça do urubu-ruxama.

A morte do herói não poderia destoar do contexto mítico. Cansado,


abatido, tomado pela melancolia, Macunaíma sobe para o céu,
transformando-se na constelação da Ursa maior.

Essa breve passagem pelos pontos centrais da trama serve-nos apenas


como uma forma de contextualizar a obra, a fim de que possamos fazer
a análise de alguns fragmentos. Espero que você tenha, pelo menos,
definido uma linha panorâmica dos principais fatos.

Agora, vejamos as características estruturais básicas da obra, pela


análise de algumas passagens de relevância.

Vamos mergulhar nessa nova aventura?

4.1.2 Algumas características de Macunaíma

Macunaíma, conforme já pudemos notar, trata-se de uma obra a


tangenciar a lenda, o mito, as crendices populares. Podemos antever na
trama de Mário dois níveis ontológicos: um humano, de ordem profana,
e outro divino, de natureza transcendente.
Ontológico

Referente ao ser,
No plano humano, encontramos os incidentes
à essência mais relacionados à precariedade da vida: a mentira,
íntima da natureza a trapaça, a ira, a vingança. Ao longo de toda a
humana de um
indivíduo. história, podemos vislumbrar uma exaltação das
Perfídia
paixões. Nesse aspecto, por ser uma narrativa
de fundo mítico, ela se assemelha às tragédias
Deslealdade, gregas, aos mitos em geral, nos quais os jogos
traição.
de interesse e perfídia são preponderantes na
constituição do drama humano.

No plano divino, mágico, encontramos a subversão dos parâmetros


da realidade e da condição humana. Com efeito, ao longo da trama,
proliferam seres encantados (curupira, objetos e animais humanizados,
UNIUBE 101

gigantes, monstros e etc.); metamorfoses mágicas (árvores que se


transformam em seres humanos, seres humanos que se transmutam
em astros celestes e etc.); ressurreições; quebra de limites geográficos
e temporais.

Esses dois níveis são intercambiáveis graças a um procedimento


estilístico amplamente explorado pelo autor. Trata-se da colagem
surrealista, processo de bricolagem em que
realidades díspares, distantes, são amalgamadas, Bricolagem
formando um todo coeso (ex.: homem que
Ato ou efeito de
se transforma em estrela – homem e estrela colar, juntar coisas
constituem naturezas totalmente alheias e distintas.
longínquas). O resultado disso é o surgimento Verossimilança
do insólito, do absurdo, do fantástico, em que
Ato ou efeito de
fatos impossíveis, ilógicos, são percebidos como tornar crível, capaz
naturais e comuns. Assim, o surpreendente de persuadir e
convencer.
torna-se a grande regra da verossimilhança do texto.

No âmbito espacial, a narrativa se organiza entre dois espaços: o Brasil,


como um todo, e São Paulo. Como se sabe, a capital paulista tornou-se
centro econômico e tecnológico do país, num acelerado desenvolvimento
de seu polo industrial. Assim, a São Paulo de Macunaíma representa a
modernidade, o desenvolvimento técnico, o avanço da ciência, ao passo
que o interior do Brasil ainda guarda lastros arcaicos, ligados às fontes
primitivas dos mitos indígenas, a pureza de uma natureza ainda selvagem.

Entretanto, mesmo a São Paulo futurista de Mário é amplamente mitificada,


tornando-se arcaica. As personagens perambulam pela metrópole como
se estivesse em uma grande tribo. Com efeito, elas empreendem caçadas
no centro da cidade, alimentam-se dos frutos das árvores de avenidas
movimentadas, pescam nos rios, numa proximidade com a natureza ainda
possível.

Para fazer a travessia entre a capital e o restante do país, as personagens


empreendem movimentos vertiginosos, de velocidade impossível para
a realidade concreta. Assim, ao ser perseguido por seus inimigos,
Macunaíma corta, a pé, em desarvorada correria, todo o Brasil, num lapso
de tempo muito curto.
102 UNIUBE

À quebra das barreiras espaciais, segue-se o apagamento das


marcas temporais. Sabemos que a São Paulo do livro data, muito
provavelmente, do início do século XX, em decorrência dos registros
históricos, tais como a referência às máquinas e ao avanço tecnológico.
Todavia, o tempo da narrativa é impreciso, não sabemos ano, mês, nem
sequer dia. Tudo acontece num agora atemporal, tempo circular, em
que determinados acontecimentos se repetem periodicamente. Essa
temporalidade, de ordem mítica, é típica das narrativas maravilhosas,
em que a historicidade é usada apenas para reforçar o caráter feérico
de um tempo eterno, sacro.

O raciocínio das personagens funciona pelo ludismo


Claude Lévi-
Strauss do pensamento selvagem, tal como promulgado
pelo antropólogo Claude Lévi-Strauss. Vejamos
Antropólogo
estruturalista o que a esse respeito Jaffer nos aponta: “A lógica
francês. concreta do pensamento selvagem, de que fala
Lévi-Strauss, é a lógica das personagens de
Macunaíma, já que (...) elas não têm aprofundamento psicológico, mas
vivem em função da história, das ações propriamente” (JAFFER, 2001,
p. 42). Assim, os fenômenos são explicados por uma lógica do afeto, do
coração: o sol é uma mulher que aquece os homens, a lua é um ser que
se cansou de viver na terra e etc. A explicação do mundo se dá não pela
razão, pela imaginação, pela concretude do pensamento mito-poético.

Você pode comparar tal pensamento concreto ao das crianças. Quando


uma criança afirma que a chuva foi feita por seres encantados, ela está
se apropriando do poder criador de mitos: explica o mundo pela sua
imaginação. Essa forma de pensar é a mesma utilizada pelos “selvagens”
e também pelos artistas. Creio que agora ficou mais fácil compreender
o que é o mito e o pensamento mítico: são explicações lógicas, pois
têm sentido, mas movidas pela imaginação, pelo delírio das paixões.
Estamos tão limitados pelo pensamento técnico-científico, que nos
esquecemos de outras vertentes de nossa alma, também fundamentais
para a sobrevivência de nossa vida. Com efeito, não sobreviveríamos se
tivéssemos apenas a razão e a realidade nua e crua. O homem também
precisa se alimentar de sonhos. É o sonho que torna delicado o mundo
e suaviza nossas dores existenciais.
UNIUBE 103

No plano linguístico, observamos o uso da norma culta, do linguajar


popular, coloquial, bem como expressões regionalistas. Temos também o
uso abundante de termos do léxico da mitologia indígena, bem como de
palavras específicas da fauna e da flora tipicamente brasileiras.

O uso constante de numerações sem vírgulas, em muitas passagens,


imprime um jogo sonoro semelhante às ladainhas e às cantigas populares
(“e eram muitos mosquitos piuns maruins ururus tatuquiras muriçocas
meruanhas mariguis borrachudos varejas, toda essa mosquitada”). Tais
passagens funcionam como verdadeiras fórmulas rituais, pelas quais o
narrador enquadra o fato maravilhoso, numa verdadeira evocação mágica.

Você deve estar impressionado com a criatividade de Mário de Andrade,


não é mesmo? Entretanto, só podemos alcançar a força do seu gênio no
próprio texto. Vamos fazer a leitura analítica de alguns fragmentos? Vamos
prosseguir nossa viagem.

4.1.3 Leitura de alguns fragmentos de Macunaíma

Vamos centrar nossa leitura em importante capítulo da obra, intitulado


“Macumba”. Escolhemos essa passagem, pois a consideramos, além de
altamente significativa, estruturalmente representativa da obra em geral.

Em Macumba, o herói sem nenhum caráter, revoltado com sua impotência


ante à força do gigante Venceslau, decide fazer um feitiço. Para tanto,
viaja ao Rio de Janeiro, a fim de visitar o terreiro de mãe Ciata. Temos,
nesse capítulo, uma verdadeira obra-prima, na qual Mário adensa suas
forças líricas, num texto de um realismo pungente, salpicado por um
humor refinado, pelo qual podemos antever todo o gestual sacro de nossa
cultura. O sentido solene, fecundo da sacralidade, é mesclado ao tom
jocoso e brincalhão de Mário. Nesse capítulo, o autor delineia o fecundo
misticismo do povo brasileiro, ressaltando o caráter arcaico, mítico, da
religião africana. Vejamos como é descrita a cena em que Macunaíma
trava contato com esse universo místico:
104 UNIUBE

[...] era junho e o tempo estava inteiramente frio. A


Zungu macumba se rezava lá no Mangue no zungu da tia
Ciata, feiticeira como não tinha outra, mãe-de-
Cortiço. 2. santo famada e cantadeira ao violão. Às vinte horas
Confusão, bagunça,
desordem.
Macunaíma chegou na biboca levando debaixo do
braço o garrafão de pinga obrigatório. Já tinha muita
Milonga gente lá, gente direita, gente pobre, advogados garçons
pedreiros meias-colheres deputados gatunos, todas
Dança típica da essas gentes e a função ia principiando. Macunaíma
Argentina. 2. Música
dolente, cantada ao
tirou os sapatos e as meias como os outros e enfiou no
som do violão. 3. Na pescoço a milonga feita de cera de vespa tatucaba e
macumba, feitiço, raiz seca de assacu. Entrou na sala cheia e afastando
sortilégio, magia. a mosquitada foi de quatro saudar a candomblezeira
imóvel sentada na tripeça, não falando um isto.
Tatucaba
Tia Ciata era uma negra velha com um século no
Espécie de tatu da sofrimento, javevó e galguincha com a cabeleira
Amazônia. esparramada feito luz em torno da cabeça pequetita.
Ninguém mais não enxergava olhos nela, era só ossos
Assacu duma compridez já sonolenta pendependendo pro chão
Uma espécie de
planta.
de terra. (ANDRADE, 1985, p. 45-46).

Javevó
Nesse fragmento, com argúcia e perícia técnica,
Pessoa de aspecto o autor ressalta aspectos contraditórios do terreiro
desagradável.
de Dona Ciata. A fina lâmina da ironia de Mário,
Galguincha de grande expressividade humorística, já se
Pessoa
desfibra no fragmento em que o herói carrega um
muitomagra. litro de pinga debaixo do braço. Esse garrafão era
“obrigatório”, portanto de extrema necessidade.
Agora, resta saber a que tipo de necessidade a pinga iria satisfazer.
Aqui, com efeito, podemos desvelar uma ambiguidade, recurso que gera
a ironia e o humor. Levava-se a pinga para o santo, num gesto sacro,
mas também para se embriagar, para saciar o próprio gozo. Sagrado e
profano se entrecruzam, transformando a festa em acontecimento ritual,
em que gozo e sacrifício, dor e prazer, êxtase e embriaguez, espírito e
corpo, mesclam-se de forma uníssona. Dessa forma, o humor nasce
dessa descrição deformadora, que transforma o crente, o religioso, em
pinguço, figura arquetípica do desvairado, do malandro. Temos, portanto,
um ritual dionisíaco, em que gozo carnal é feito êxtase espiritual.

Prosélito A ironia persiste na descrição dos prosélitos.


Macunaíma satiriza os políticos, ao perfilá-los ao
Seguidor de uma
seita ou religião. lado de gatunos, de vilões.
UNIUBE 105

De tudo, o que nos chama a atenção nesse fragmento é a descrição


da velha Ciata. Para nuançar, num hiper-realismo, a velhice secular
da mãe de santo, Mário aproveitar-se-á da técnica deformadora da
descrição expressionista. O expressionismo, uma das vanguardas
europeias, tinha como um de seus preceitos estéticos, a técnica da
descrição pelo exagero, pela exaltação de minúcias, destacando
aspectos grotescos da vida, num realismo hiperbólico. Nesse fragmento,
Mário vai pontilhando a miséria física da velha, tornando-a um ser que,
por sua densa realidade, por sua concretude maciça, torna-se espectral,
fantasmática.

Com vívida coloração de movimentos, numa profusão de gestos


encantados, a macumba principia-se pela fina descrição de Mário:

[...] então a macumba principiou de deveras se fazendo


um sairé pra saudar os santos. E era assim: Na
ponta vinha o ogã tocador de atabaque, um negrão
filho de Ogum, bexiguento e fadista de profissão, se
chamando Olelê Rui Barbosa. Tabaque mexemexia
acertado num ritmo que manejou toda a procissão. E
as velas jogaram nas paredes de papel com florzinhas,
sombras tremendo vagarentas feito assombração. Atrás
do ogã vinha tia Ciata quase sem mexer, só beiços
puxando a reza monótona. E então seguiam advogados
taifeiros curandeiros poetas o herói, gatunos, portugas,
senadores, todas essas gentes dançando e cantando a
resposta da reza. E era assim
- Vamos sa-ra-vá!... (ANDRADE, 1985, p. 46).

Nesse fragmento, Mário continua afiando sua ironia e humor. Ressalta,


nesse excerto, a presença de uma figura insigne de nossas letras: Rui
Barbosa. Ao colocar o famoso escritor, de estilo acadêmico, erudito, no
meio de um terreiro de macumba, Mário enfatizou, numa leitura tipicamente
modernista, o quanto o discurso defendido por tal escritor estava distante
da cultura brasileira popular, com sua força, suas crendices, sua imensa
vivacidade.

Mário também ridiculariza os poetas, ao inserir um representante dessa no-


bre casta no séquito de dona Ciata. Com efeito, podemos vislumbrar, nes-
se episódio, um significado de imensa importância para os modernistas: a
necessidade da arte estar no rés do chão da existência prática e cotidiana,
num confronto com a vida no que ela tem de mais palpável e prosaico.
106 UNIUBE

Ressaltam os jogos sonoros, como aliterações e onomatopeias: Olelê,


mexemexia, ogã, Ogum e etc. Essas palavras aliterantes reboam ao
longo de todo o capítulo, num paralelo com a dança e o canto perpetrados
pelos personagens.

As enumerações, conforme já notamos, são abundantes e também


imitam os ritmos da dança e do canto da macumba. Vejamos mais um
exemplo:
[...] era assim. Saudaram todos os santos da pajelança,
o Boto Branco que dá os amores, Xangô, Omulu, Iroco,
Oxosse, a Boiúna Mãe Feroz, Obatalá que dá força pra
brincar muito, todos esses santos e o sairé se acabou.
Tia Ciata sentou na tripeça num canto e toda aquela
gente suando, médicos padeiros engenheiros rábulas
polícias criadas focas assassinos Macunaíma, todos
vieram botar as velas no chão redeando a tripeça. As
velas jogaram no teto a sombra da mãe-de-santo imóvel.
(...) Então veio a vez de beber. E foi lá que Macunaíma
provou pela primeira vez o cachiri temível cujo nome é
cachaça. Provou estalando com a língua feliz e deu uma
grande gargalhada. (ANDRADE, 1985, p. 47).

Novamente podemos notar, nesse excerto, o jogo de sonoridades


entre palavras do léxico da religião africana. Os nomes dos orixás são
elencados, formando uma cadeia sonora de grande expressividade.
Como o ribombar de um atabaque, como o grito ritualizado da
macumba, as palavras exprimem essa energia inerente à gira, à
dança, ao entrançamento de corpos no momento do êxtase religioso.
Podemos vislumbrar, de novo, a ironia em tom bem-humorado, pela qual
desvelamos o ato de beber a cachaça. A cachaça serve não apenas
como meio de se unir às divindades, mas também como gozo, explosão
de prazer, numa religião tipicamente sensualista e hipnótica.

O ritual lembra os ritos dionisíacos gregos, reli-


gião também primitiva, ligada às forças telúricas
Telúrico
da vida, à natureza, às formas elementares de se
Referente à terra, relacionar com o cosmos. Na religião dionisíaca,
ligado ao chão, à
natureza. o corpo, a embriaguez do vinho, os estados alte-
rados de consciência, o êxtase religioso de forte
pulsão erótica, os ritos, funcionam como formas de expressão de uma
religiosidade energética,
UNIUBE 107

impulsionada pelos movimentos, uníssonos, dos Uníssono


gestos e do cosmos. Tal mística, de forte carga
irracional, está ligada a estados de abismal in- 1. que soa ao
mesmo tempo. 2.
consciência. Tudo isso podemos também vislum- Acontecimentos
brar nesse capítulo do romance modernista, des- concomitantes.

crito com a maestria técnica de Mário. Com efeito, No fundo, toda


tal passagem é uma das mais bem elaboradas do religiosidade tem
esse êxtase, físico,
livro. Nela, a expressão literária atinge seus fins corpóreo, como
com exatidão e primor. força de expressão.
Também as religiões
cristãs estão
O ritual africano vai paulatinamente se aquecendo até pautadas em ritos,
no qual o corpo do
atingir o estertor místico. Vejamos uma passagem em divino materializa-
que podemos vislumbrar o arrebatamento da dança -se no corpo
físico, prosaico, do
enquanto elemento dionisíaco da religiosidade: homem.

[...] nem bem reza começou se viu pular no meio da


saleta uma fêmea obrigando todos a silêncio com o
gemido meio choro e puxar canto novo. Foi um tremor
em todos e as velas jogaram a sombra da cunha que
nem monstro retorcido por canto do teto, era Exu! Ogã
pelejava batendo tabaque pra perceber os ritmos doidos
do canto novo, canto livre, de notas afobadas cheio de
saltos difíceis, êxtase maluco baixinho tremendo de
fúria. E a polaca muito pintada na cara, com as alças
da combinação arrebentadas estremecia no centro da
saleta, já com as gorduras quase inteiramente nuas.
Os peitos dela balangavam batendo nos ombros na
cara e depois na barriga, jugue! com estrondo. E a
ruiva cantando cantando. Afinal a espuminha rolou dos
beiços desmanchados, ela deu um grito que diminuiu
o tamanhão da noite mais, caiu no santo e ficou dura.
(ANDRADE, 1985, p. 48).

Esse fragmento, de um descritivismo preciso, possui um realismo tão


impactante, de tanta força plástica e escultórica, que novamente nos
faz lembrar as descrições expressionistas. O gestual dessa possessa
do romance modernista lembra aquele da tela “O grito”, do pintor
expressionista Edvard Munch. Podemos vislumbrar no livro de Mário o
mesmo hiper-realismo trágico do artista europeu.
108 UNIUBE

A personagem, enfim, encarna uma divindade: Exu, orixá responsável pela


ligação entre homens e deuses. Infelizmente, muitos confundem tal orixá
com as entidades maléficas; todavia esse deus africano não é a expressão
do mal, mas uma força cósmica, um mensageiro, aquele que cuida dos de-
sígnios da sorte. Uma vez tomada pelo deus, a mulher preenche-se de um
estertor, de uma febre, num ríctus de loucura, de debilidade das faculdades
racionais. Ela toda é sensação, sentimento, fulgor da fé cega, irracional.
No plano da expressão, o ritmo da linguagem se adensa, torna-se também
altamente ritmado, numa perfeita sincronia com a dança da personagem.
Com efeito, o som do atabaque é expresso pelas assonâncias nasaladas:
sombra, cunhã, nem monstro, canto, Ogã, batendo e etc. As aliterações
explosivas fazem contraponto a esse ritmo fluido das nasaladas, realçando
a sonoridade das batidas do tambor: canto, todos, sombra, monstro,
retorcido, tremor, teto, batendo, tabaque e etc.

Há também certa comicidade, quando Mário ressalta, hiperbolicamente,


os imensos seios da possessa, a balangarem da barriga até os ombros,
em flácida dança.

O capítulo termina com Macunaíma descobrindo-se filho de Exu e


com a saída de importantes macumbeiros pela madrugada afora. Tais
prosélitos são expressos por nomes de pessoas reais, todas ligadas
ao modernismo, numa abertura do texto ao real fenomênico, em chave
irônica e de alto humor. Com efeito, macumbeiros são Manuel Bandeira,
o poeta francês Blaise Cendrars, Ascenso Ferreira, Raul Bopp e o
lendário músico Jaime Ovalle. Ao participarem do culto fictício de
Macunaíma, esses homens do modernismo são caracterizados pela
forte expressão da brasilidade, representada pela religião africana.

Bem, por esse nosso passeio pelo livro Macunaíma, você passou a
conhecer um pouco mais do estilo de Mário de Andrade. Com toda a
certeza, ao ler o livro, você se sentirá mais íntimo do texto e poderá
compreendê-lo de forma mais efetiva.

Entretanto, o nosso modernista tem faces múltiplas. Vamos conhecer as


outras vertentes artísticas do nosso escritor paulista? Vejamos, agora, o
Mário de Andrade poeta.

Vamos mergulhar nessa nova aventura?


UNIUBE 109

4.2 Introdução à poesia de Mário de Andrade

A produção lírica de Mário de Andrade, pela sua


Paradigma
inovação, constitui-se uma virada de paradigma
na literatura brasileira. Até então, a poesia de nos- Modelo, padrão.
so país encontrava-se atrasada em relação às
revoluções estéticas da Europa. As artes e as literaturas do Velho Mundo
estavam passando por um processo de mutação vertiginosa, impelida
pelas Vanguardas Europeias.

As Vanguardas foram movimentos revolucionários que propunham uma


radical inovação dos padrões e preceitos artísticos. As principais foram:
Surrealismo, Expressionismo, Dadaísmo, Cubismo e Abstracionismo.

PESQUISANDO

Você já ouviu falar desses movimentos? Vamos fazer uma pesquisa?


Verifique em livros e em sites as propostas de cada um desses movimentos.
Você irá descobrir, com toda a certeza, um universo instigante e inovador.

Mário, assim, ao lançar seu primeiro livro de poesia, Pauliceia


desvairada, causou espanto e admiração entre seus leitores. Muitos
deles, acostumados com os sonetos parnasianos, com as baladas
musicais dos simbolistas, ficaram estarrecidos com o texto modernista,
eivado de tom coloquial, estrangeirismos e passagens totalmente
prosaicas.

Críticos de importância, como João Luiz Lafetá, irão apontar justamente


esse caráter difuso, híbrido, da poesia de estreia de Mário, repleta de
dissonâncias formais, em que o lirismo, de tom altamente subjetivo,
mescla-se a um vislumbre atento do reino dos objetos.

E você? Já leu alguma vez um poema modernista? Vamos


mergulhar nesse novo universo?

Vejamos, agora, as linhas de força da lírica de Mário, suas características


fundamentais.
110 UNIUBE

4.2.1 Aspectos gerais da poesia de Mário de Andrade

Iremos pautar nossa abordagem pelos ensaios teóricos de dois


importantes críticos: Alfredo Bosi e Gilda de Mello e Souza. Vamos,
nessa parte de nosso estudo, elencar os procedimentos usuais da lírica
mario-andradiana. Vamos lá?

a) Verso livre

De acordo com Gilda de Mello e Souza, Mário foi um dos primeiros


poetas a inserir uma inovação de grande importância na lírica brasileira:
o verso livre.

RELEMBRANDO

Você, com toda a certeza, já deve saber a diferença entre verso livre e fixo. O
que distingue as duas modalidades é a questão da regularidade das sílabas
poéticas. Por exemplo, um soneto alexandrino é fixo, porque em todo verso
há exatamente doze sílabas poéticas. Isso não acontece nos poemas de
versificação livre, em que a contagem silábica oscila de um verso a outro.

Os leitores do início do século XX estavam acostumados com os sonetos


parnasianos, clássicos, em sua maioria alexandrinos. Tais sonetos tinham
versos finais capazes de gerar surpresa. A tal efeito convencionou-se
chamar de “Chave de ouro”. Pois bem, Mário trouxe-nos uma poesia
convulsiva, aberta a ritmos distintos, variados. Diante do Brasil urbanizado
que despontava, o verso livre, de movimento largo e móvel, adequava-se
perfeitamente ao novo mundo urbanizado, repleto
Prosódia de máquinas e inovações tecnológicas, universo
tão caótico como a prosódia do verso livre. Isso,
Entoação musical
da voz. inclusive, não foi fácil para o próprio Mário que,
a despeito de sua liberdade expressiva, afirmava
a dificuldade de se libertar de padrões estéticos tão arraigados como o
ritmo metrificado.

Vamos observar um exemplo de verso livre em Mário?


UNIUBE 111

EXEMPLIFICANDO!

Aquele homem fugiu.


a imitação fugiu
Clareiras do Brasil, praças agretes!
paz. (ANDRADE, 203, p. 55).

Você já deve ter percebido, num primeiro olhar, a distinção de tamanho


da versificação desse excerto. Há uma diferença grande de extensão
entre eles. Vejamos os dois últimos versos do
fragmento. O penúltimo tem dez e o derradeiro Excerto
apenas um. Esse procedimento, libérrimo, foi uma Fragmento.
grande inovação para a literatura e permitiu amplas
pesquisas formais, numa busca cada vez mais ampla de um prosaísmo
melódico. Mas não nos enganemos. Nem tudo é falta de harmonia no
verso livre. O poeta utilizará outros recursos fônicos para musicar essa
nova face do verso: rimas internas, aliterações e assonâncias, servirão
como notas melódicas dessa nova forma expressiva da lírica moderna.

Vamos conhecer outra face dessa poesia?

b) Enumeração caótica

Mário, seguindo um preceito caro à lírica moderna,


Onirismo
irá modular sua poesia não pelos nexos lógicos,
mas pela força do onirismo. Como num pesadelo Relativo ao mundo
fantasmal dos
sem sentido, em que o absurdo dá o tom dos sonhos.
acontecimentos, a poesia de Mário interliga
palavras não pelo encadeamento racional da linguagem, mas pela força
alusiva de cada vocábulo, unindo, assim, palavras de significado muitas
vezes distantes. Esse efeito acontece muito através de um procedi-
mento poético chamado de enumeração.
112 UNIUBE

IMPORTANTE!

A enumeração é uma sequência de palavras cuja combinação, por mais


estranha que possa parecer, guarda um nexo significativo. Isso, inclusive,
acontece com a poesia de Mário que, apesar de apelar para sequências
disparatadas, reserva, para além do caos, um sentido a ser descoberto
pelo leitor.

Vamos ver um exemplo?

EXEMPLIFICANDO!

Arroubos... Lutas... Setas... Cantigas... Povoar,


(ANDRADE apoud BOSI, 1994, p.349)

Nesse fragmento, a sequência de palavras desvela-nos uma dissonância.


Observamos a mistura de dois campos semânticos: o da guerra e o
do canto festivo. Caberá, portanto, ao leitor, desvendar, pelo contexto
do poema, a conjunção semântica dessa relação.
Semântico No caso, Mário mapeia, por essa enumeração, “a
Referente ao plano
odisseia dos bandeirantes ao longo do rio que corta
do significado. a cidade de São Paulo. Uma odisseia em que se
misturam mortes, lutas, as "monções da ambição",
as "gigânteas vitórias" e as cantigas de povoamento. Todo um capítulo da
história brasileira o poeta pretendeu condensar em versos harmônicos”
(Disponível em: <http://www.tvcultura.com.br/aloescola/literatura/ poesias/
mariodeandrade-ocortejo.htm>. Acesso em: 05 maio 2010).

Vejamos agora outro fator importante na lírica de Mário, as associações


lexicais insólitas.

c) Associações lexicais insólitas

A junção insólita e estranha dos vocábulos não se dá apenas pela


enumeração, mas também em versos cursivos, de sintaxe fluente.
UNIUBE 113

Fruto do Surrealismo, tais efeitos têm como intuito


gerar estranheza e desautomatizar nosso olhar, Desautomatizar

tão viciado pelos clichês visuais do cotidiano. Deixar de ser


A união de dois ou mais termos distantes gera automático tomar-se
de espanto pelo
consequentemente um novo olhar, capaz de mundo.
desvelar aspectos pouco notáveis da vida.

EXEMPLIFICANDO!

Nesse largo do Arouche


Posso abrir meu guarda-chuva paradoxal.
(ANDRADE, 2003, p. 21)

Veja que, no fragmento a seguir, Mário associa um adjetivo


completamente estranho ao guarda-chuva. Tal imagem, por seu viés
insólito, permanece hermético. O que seria um
guarda-chuva paradoxal? Poderíamos pensar Hermético
numa metáfora, em que um objeto feito para 1. Fechado – 2. De
proteger, paradoxalmente, não executa tal tarefa. difícil compreensão.
O guarda-chuva, ao invés de preservar o eu Intempérie
lírico da intempérie, joga-o na chuva, ou seja,
Tempestade.
na realidade nua e crua das ruas.

Vamos prosseguir nosso passeio?

d) Neologismo

Com o intuito de criar uma nova linguagem, afeita às inovações da


vida moderna da metrópole, Mário utiliza, em muitos poemas, palavras
de invenção, os neologismos. Eis vários exemplos: sonambulando,
bocejal, luscofuscolares.

Pelos neologismos, sua dicção ganha em expressividade, em


inventividade, desvelando-nos um discurso aberto ao novo, ao
surpreendente.

Você deve estar surpreso com a quantidade de inovações propostas


pelo nosso poeta, não é mesmo? Entretanto, temos longa caminhada.
114 UNIUBE

Vamos prosseguir? Por hora, não se esqueça: o que torna essa poesia
fascinante é justamente a sua estranheza.

e) A pesquisa folclórica

Principalmente em Clã do Jabuti e Remate de males, obras posteriores


à Pauliceia desvairada, Mário utilizar-se-á, com grande criatividade, de
uma fecunda temática extraída do folclore brasileiro. Nesse aspecto,
sua poesia irá apelar para um primitivismo, de caráter mítico. Sobre esse
aspecto, vejamos o que nos afirma Bosi:

[...] clã do jabuti e Remate de males (...) já incorporam


à poesia de Mário de Andrade a dimensão da pesquisa
folclórica, uma das opções mais fecundas de toda a
cultura brasileira nesse período. A revivescência,
em registro moderno dos mitos indígenas, africanos
e sertanejos em geral é um dado inarredável para
entender alguns pontos altos da pintura, da música, e
das letras que se fizeram nos últimos quarenta anos
(BOSI, 1994, p. 351).

Vamos ver um exemplo? Nesse verso, temos a exploração dos aspectos


míticos, arcaicos de nossa cultura: a presença do índio.

EXEMPLIFICANDO!

Sou um tupi tangendo o alaúde!


(ANDRADE apud LAFETÁ, 2003, p. 67).

Veja que, aqui, o primitivismo indígena é mesclado por elemento do


mundo dito “civilizado”. O alaúde seria um símbolo da poesia pregressa,
parnasiana, o que denota, aqui, a fina ironia de Mário.

Vamos ver a próxima inovação lírica de nosso autor?

f) Notações líricas e meditações

Como já afirmamos antes, a poesia de Mário, principalmente a de


Pauliceia, será marcada pela fusão do tom prosaico e do lirismo puro,
UNIUBE 115

ainda marcado por um viés simbolista. Nesse aspecto, o eu lírico


de seus poemas vive perdido entre a contemplação e o exercício do
pensamento, entre as “notações líricas” e as “meditações”. Veja o que
nos afirma Gilda de Mello e Souza:

SAIBA MAIS

Veja que, a despeito das inovações, Mário também acatava determinados


preceitos da tradição. O que confirma a dificuldade de fazer algo novo,
despido de todo o passado.

[...] os seus poemas já introduzem modalidades que


Errático Mário de Andrade nunca mais abandonou: as notações
líricas, suscitadas pelas sensações físicas, ideias,
Andar sem cessar e momentos da vida, e as meditações, composições
sem rumo
longas e elaboradas, onde discute o seu próprio destino
Elucubração ou o destino incerto da pátria. Em ambos os casos nos
defrontamos com uma poesia dinâmica, de ar livre,
Ato de refletir, que, feita ao sabor da caminhada, vai recolhendo os
pensamento repleto sinais que circundam incessantemente entre a realidade
de indagações
exterior e o ser profundo do poeta. (SOUZA apud
Cerebrino ANDRADE, 2003, p. 8).

Referente ao
cérebro
Por esses métodos expressivos, Mário exerce um
tipo de literatura ambulante, inquieta, errática. O
Espasmo
movimento da caminhada é acompanhado por um
Movimento exercício do espírito. Por conseguinte, a agitação
involuntário
do pensamento dá-se por um processo inquieto
Trôpego de elucubrações e de movimentos cerebrinos,
De respiração
ampliados e expandidos pelo agito corporal. Tudo
entrecortada, é inquietação, ansiedade, espasmo, nessa escrita
cansada.
sem fôlego, trôpega, a girar em signos moventes,
Caleidoscópico em estado alterado, em ritmo caleidoscópico.
Referente a
caleidoscópio, Vamos ver um exemplo? Primeiramente, iremos
objeto que incide
luzes difusas, a
notar o processo de “notação lírica” em seguida de
girar. “meditação”:
116 UNIUBE

EXEMPLIFICANDO!

É noite. E tudo é noite. Debaixo do arco admirável


Da Ponte das Bandeiras o rio
Murmura num banzeiro de água pesada e oliosa.
É noite e tudo é noite. Uma ronda de sombras,
Soturnas sombras, enchem de noite de tão vasta O
peito do rio, que é como si a noite fosse água,
Água noturna, noite líquida, afogando de apreensões
As altas torres do meu coração exausto. (...) (ANDRADE, 2003, p. 69)

Nesse fragmento, a “notação lírica” dá-se pela contemplação do rio e da


noite. Com efeito, os apelos sensíveis, principalmente ligados ao olhar,
plasmam um universo fantasmal, em que a subjetividade se mescla ao
reino dos objetos.

Vejamos, agora, a “meditação”:

EXEMPLIFICANDO!

Monotonias das minhas retinas...


Serpentinas de entes frementes a se desenrolar...
Todos os sempres das minhas visões! “Bon Giorno, caro.” (...)
Estes homens de São Paulo, todos iguais e desiguais,
quando vivem dentro dos meus olhos tão ricos, parecem-me uns macacos,
uns macacos. (ANDRADE apud BOSI, 2003, p. 66)

Aqui, podemos perceber um exemplo típico de meditação. O poeta faz


uma reflexão sobre a natureza do paulistano, tão disperso, igual e
desigual ao seu semelhante. A estranheza desse homem desumanizado
pela metrópole é explicitada pela metáfora expressionista do macaco.

Além de todos esses processos, poderíamos arrolar, ainda, como


inovações na poesia de Mário, o uso de expressões estrangeiras,
tipicamente usadas pelos imigrantes; a expressividade do co-
loquialismo da linguagem, numa aproximação da fala oral; o apelo a
UNIUBE 117

gírias, a frases feitas e expressões regionalistas. Todos esses efeitos


têm como intuito trazer, ao palco do poema, a ampla gama de
variantes linguísticas de seu tempo. Nesse sentido, vejamos o que
Gilda de Mello e Souza tem a nos dizer a respeito do nacionalismo e da
linguagem de Mário:
[...] uma das referências do seu código poético é o
Brasil, que ele procura apreender em vários níveis,
nas variações semânticas e sintáticas da língua, nos
processos tradicionais da poética erudita e popular, nas
imagens e metáforas que tira da realidade exterior: a
cidade natal onde viveu, o mundo muito mais amplo da
geografia, da história, da cultura complexa do país. E
como a outra referência do código é o eu atormentado
do artista, a poesia resulta numa realidade ao mesmo
tempo selvagem e requintada, primitiva e racional,
coletiva e secreta, que não se furta ao exame, mas
está sempre disfarçada por trás da multiplicidade de
máscaras. (SOUZA apud ANDRADE, 2003, p. 11).

Bem, agora que já contemplamos, de um plano genérico e mais amplo,


algumas das inovações da poesia de Mário, vamos fazer a análise
de um poema? Temos a alegria de convidá-lo para mais essa aventura.
Vamos lá?

4.2.2 Uma poética do olhar

Iremos ler nessa fase de nosso estudo o poema “Paisagem nº 1”.


Para tanto, vamos pautar nossa análise na interpretação feita por João
Luiz Lafetá, no livro Leitura de poesia. Vamos mergulhar nessa nova
aventura?

Leia o poema no seguinte site: <http://www.portalsaofrancisco.com.br/


alfa/mario-de-andrade/paisagem-n-1.php>. Acesso em: 05 maio de 2010.

Em “Paisagem nº 1”, podemos observar o passeio de um eu errático, difu-


so, a se perder pelas ruas da cidade invernal. De início, nessa primeira
estrofe, esse eu está oculto, não se autoenuncia. Entretanto, é ele quem
modula cada vocábulo, expressando o mundo pelo seu olhar. Tal efeito
118 UNIUBE

gera um amálgama entre os olhos desse


Amálgama observador silencioso, não diretamente expresso
Perfeita pela enunciação em primeira pessoa, e os do leitor.
identificação, Vemos o mundo pela visão do eu lírico secreto.
união indiscernível,
inseparável.
Nesse aspecto, podemos vislumbrar um arquétipo
Arquétipo
da literatura moderna: a presença do estrangeiro.
Modelo, perfil, A figura do estrangeiro nasce do desejo de
molde.
desautomatizar o olhar, de transformar o mundo
velho, batido, em algo inolvidável e feérico. Daí
Inolvidável
o nexo metafórico entre São Paulo e Londres. A
Inesquecível. Pauliceia desvairada é transplantada para solo
totalmente estranho, distanciado no espaço.
Podemos vislumbrar, na paisagem tropical, o clima londrino com seu frio
e neblina cortantes.

Você em algum momento já se sentiu um ser estranho no


mundo?

Pois bem, Mário dá voz a essa vivência, transmutando-a em


experiência lírica. Portanto, o poeta expressa a necessidade de
rebelarmos contra os costumes arraigados, os olhares cansados do
cotidiano, os hábitos e vícios de nossas vidas, situações de existência
que servem como uma neblina (expressa metaforicamente no poema)
a nos apartar do mundo e de uma vivência mais fecunda da condição
humana.

Veja que, já de início, nos deparamos com um paradoxo a acentuar


esseclima de estranheza: é inverno, mas também é pleno verão.

Como poderíamos interpretar tal contradição?

Primeiramente, pela fusão de um solo tropical a outro europeu e, em


seguida, pela disposição anímica do eu lírico: faz frio, mas no íntimo desse
observador há uma inquietação funda, ansiosa, em estado de fervura,
semelhante a um verão quente. Podemos também vislumbrar um
tempo intermitente, entre solar e nebuloso, afinal, o eu lírico afirma que
faz sol.
UNIUBE 119

Em seguida, cenas da cidade são esboçadas, formando um retrato do


mundo objetivo, irrigado pelo calor do olhar: as rosas, as costureirinhas,
o barbeiro espanhol, vão formando, à maneira de um mosaico, de um
caleidoscópio, uma verdadeira colcha de retalhos, pela qual todo um
contexto ganha forma e expressão. São Paulo é descrita, portanto,
pelos pormenores, por metonímias a comporem uma geografia ampla e
abundante. Vejamos o que João Luiz Lafetá tem a nos expressar sobre
essa primeira estrofe:

A primeira estrofe desencadeia uma série de imagens


que servem para compor a pretendida paisagem. Na
aparência, o sujeito está ausente e só vemos surgir um
quadro onde sol e neblina se confundem. Na verdade,
ele se esconde por detrás de cada notação, de cada
imagem, vestindo a roupa arlequinal da cidade. É um
processo sensível, concreto, quase epidérmico de
descrever: as neblinas opacas, os perfumes que se
transformam em neve, o frio, o vento como uma navalha
cortante – tudo é sentido na pele, como se a cidade
revestisse o homem.
(...)
Nesse momento do poema o lirismo encontra-se
plenamente realizado, sem prejuízo para a objetividade.
Mas a passagem para as estrofes seguintes, a
tensão vai diminuindo, a linguagem afrouxa e perde a
qualidade compacta dos primeiros versos. (LAFETÁ,
2003, p. 71-72).

A partir da segunda estrofe, podemos notar uma mudança de tom.


João Luiz Lafetá irá nuançar a quebra da poeticidade da primeira
fase do poema e a inserção de notações prosaicas a partir dessa
segunda estrofe. A interpretação de Lafetá, mestre da leitura de poesia,
é a de que a inserção do tema prosaico do homem bobo é uma ironia
às estéticas ultrapassadas do Parnasianismo. Esse bobo seria uma
alegoria da “loucura” modernista, desvairada, surtada, a propor tantas e
elétricas transformações à literatura nacional. Por outro lado, a guarda
cívica representaria a normatização excessiva, o discurso empolado e
afetado do Parnasianismo, com sua dicção ainda centrada no século
XIX. Portanto, conforme aponta ainda Lafetá, o poema é uma paródia,
um jogo irônico, em que o passado da literatura é revisto pelo viés crítico.
O tralalá representaria, pela onomatopeia, o discurso difuso, dissonante
da poesia modernista, cuja sonoridade assemelha-se ao falatório de vozes
120 UNIUBE

exaltadas, em confusão, como a algaravia de


Algaravia conversas esparsas, perdidas por todos os
Linguagem confusa, meandros da metrópole.
ininteligível.

João Luiz Lafetá chega a identificar, no texto, um


fecho com “chave de ouro”, bem ao gosto parnasiano, numa perfeita
estocada irônica perpetrada pelo jovem Mário de Andrade à estética
ultrapassada:
[...] a prisão parnasiana, mesmo combatida, vai
acabar por impor algo das suas limitações ao poeta.
A estrofe final (“E sigo. E vou sentindo,/ A inquieta
alcacridade da invernia/ com um gosto de lágrimas na
boca...”) constitui um verdadeiro fecho-de-ouro bem
ao gosto parnasiano, seja pela forma decassilábica,
seja facilidade sentimental da imagem, seja pelo fato
de buscar resumir lapidarmente as tensões todas a
atravessarem o poema. (LAFETÁ, 2003, p. 73).

Além de toda essa leitura, de viés crítico, da tradição parnasiana, a


metonímia do coração, tão ao gosto dos poetas Românticos, surge
também pelo olhar desmantelador desse eu lírico sentimental e altamente
cerebrino.

Bem, espero que você tenha apreciado um pouco dessa aventura.


A obra poética de Mário é vasta. Nesse aspecto, essa nossa análise
serve como um convite de leitura, de apreciação da poesia do nosso
escritor liricamente desvairado. Espero que daqui em diante, você possa
pesquisar mais e mergulhar, com mais afinco, na poesia de Mario de
Andrade.

Agora, vamos analisar os contos de nosso autor? Daremos ênfase para a


obra Contos novos, considerada um marco na carreira literária de Mário
e um dos pontos altos de sua produção literária. Vamos prosseguir?

4.3 Introdução: algumas informações sobre o gênero conto

Dando prosseguimento ao nosso estudo da obra de Mário de Andrade,


iremos analisar, nesse momento, os contos desse emblemático artista
do Modernismo.

Você, por acaso, gosta da leitura de contos?


UNIUBE 121

Acreditamos que muitos leitores, hoje em dia, sintam certa empatia por
esse gênero. Como vivemos em uma era de permanentes mudanças,
em que a correria do cotidiano quase nos impossibilita de ler um
romance de grande fôlego, o conto surge como um texto de leitura
mais condensada, uma oportunidade de usufruirmos grandes aventuras
em um breve período de tempo. Podemos ler um conto no caminho
do trabalho, no nosso horário de almoço ou até mesmo durante um
intervalo de nossas tarefas do dia a dia.

O conto, conforme aponta Alfredo Bosi, caracteriza-se como um gênero


multiforme (BOSI, [s.d], p. 7). Com efeito, essa tipologia textual caracteriza-
se por uma dicção híbrida. O que seria isso?
Trata-se de uma categoria de texto aberta a Híbrido
várias técnicas criativas, agremiando uma ampla
De caráter
possibilidade delinguagens, de expressões formais. indefinido,
Assim, o conto pode ter um tom realista, próximo impreciso, mescla
de características
do discurso jornalístico, de viés documental, ou sentidos
como também ganhar potencialidade lírica, numa distintos.
linguagem altamente metafórica e onírica.

No primeiro caso, poderíamos pensar, por exemplo, nos contos


de Machado de Assis, em que a sociedade carioca, através de uma
linguagem descritivista, é desvelada em diversas nuanças e perspectivas.
Temos, nesse exemplo, um verdadeiro documento de época. Se
pensarmos, ao contrário, em um escritor como o gaúcho Caio Fernando
Abreu, o conto se abre para experiências mágicas, oníricas, como, por
exemplo, a humanização de dragões, seres feéricos a metaforizarem o
outro amado, com sua carga de doçura e violência.

Vejamos o que a esse respeito nos afirma Alfredo Bosi:


O conto cumpre a seu modo o destino da ficção contem-
porânea. Posto entre as exigências da narração realista,
os apelos da fantasia e as seduções do jogo verbal, ele
tem assumido formas de surpreendente variedade. Ora
é o quase-documento folclórico, ora a quase-crônica da
vida urbana, ora o quase-drama do cotidiano burguês,
ora o quase-poema do imaginário às soltas, ora,
enfim, grafia brilhante e preciosa voltada às festas da
linguagem. (BOSI, [s.d.], p. 7).
122 UNIUBE

Apesar de tal colocação se referir ao conto pós-moderno, podemos usar


tal intervenção crítica como um verdadeiro emblema para tal gênero
em geral. O uso anafórico da palavra “quase”, ao
Meandros longo desse excerto da crítica do Bosi, desvela-
Sinuosidades, nos os meandros, a compleição desse gênero. O
curvas, volteios. conto é um “quase” porque se trata de um gênero
“democrático”, para usarmos uma metáfora de
efeito; um texto aberto às diversas linhas discursivas como o lirismo, a
descrição, a dissertação filosófica, além de abarcar recursos estilísticos
vários, tais como a prosa expressionista, impressionista, abstrata, bem
como o estilo jornalístico e digressivo.

SAIBA MAIS

Compleição são características físicas

O expressionismo na literatura acontece quando o autor exagera na


descrição, deformando os traços do mundo e dos seres. Nesse sentido, o
escritor expressionista apela com frequência para a prosopopeia (figura de
linguagem que consiste na humanização de coisas e animais) e também
quando ele desumaniza o homem. Por exemplo, o romance Vida secas, de
Graciliano Ramos, é expressionista, porque ele humaniza, nessa obra, a sua
famosa personagem, a Cachorra Baleia. Além do mais, Graciliano também
animaliza os seres humanos de sua história. Já o impressionismo ocorre
quando o escritor imprime certa intimidade ao texto; quando o eu, a voz
que enuncia, narra, toma os acontecimentos pelo seu anglo de vista. Dom
Casmurro é exemplo típico de prosa impressionista. Nessa obra, o narrador
Bentinho transfigura a realidade ao seu redor, guiando a narrativa pelo seu
ponto de vista apenas. Por fim, a prosa abstrata é aquela em que não temos,
de forma precisa, certos recursos da prosa: personagens, espaço e tempo.
Água viva, de Clarice Lispector, é um importante exemplo de prosa abstrata.
Tal livro é tão difuso, tão móvel, que não conseguimos, inclusive, defini-lo em
termos de gênero: é romance, é novela, é poema em prosa?

Aqui, precisamos fazer uma importante reflexão. Tal caráter difuso,


híbrido, não é privilégio apenas do conto. Na pós-modernidade, os
escritores, em praticamente todos os gêneros de expressão artística,
têm apelado cada vez mais para a quebra de regras, de parâmetros e,
UNIUBE 123

conseguintemente, dos gêneros. Temos prosa na poesia, no romance;


narratividade no poema; lirismo na crônica. A liberdade formal tornou-se
o apanágio da literatura pós-moderna. Com isso,
Apanágio ganhamos na amplificação estilística das obras,
Atributo. que cada vez mais se tornam inovadoras e, por
isso, instigantes.

Afirmamos o caráter difuso, híbrido do conto, acompanhando assim


o percurso crítico de Bosi, por considerarmos tal característica como
um efeito germinal, uma tendência disseminada na própria raiz dessa
tipologia textual desde seu surgimento. Talvez, inclusive, tal amplitude do
conto tenha contagiado os demais gêneros, possibilitando essa abertura
pós-moderna à liberdade expressiva e formal.

A partir de agora, ao ler um conto, fique atento para esses aspectos


formais. Verifique quando o texto é mais poético, mais realista, mais
filosófico; isso o ajudará, aos poucos, a perceber essas gradações
discursivas, importantes para a compreensão do texto.

Conforme aponta Bosi ([s.d.], p. 7), o conto, numa dimensão exígua,


abraça “a temática toda do romance”, num “texto sintético” e conciso. Em
poucas páginas, podemos fisgar o drama de toda uma vida, o sofrimento
de todo um grupo social. Nesse sentido, o contista é um “pescador de
momentos singulares cheios de significação” (BOSI, [s.d.], p. 8), um
caçador de instantes iluminadores, de grande fecundidade espiritual,
em que o ser humano se depara com as suas verdades mais íntimas e
com o grande mistério do mundo.

Durante a história da literatura brasileira, esse gênero atinge sua


maturidade pelas mãos de um grande autor: Machado de Assis. Machado
irá desvelar a tragédia humana, suas mesquinharias e belezas, numa
linguagem sóbria, temperada pelo seu famoso tom irônico. Sempre
atento ao drama da existência, o escritor carioca não poupa o homem
de sua época, despindo-o de qualquer traço romântico. Com efeito, o
autor de Dom Casmurro desmascara a loucura, o egoísmo, a vaidade
e o orgulho do homem, criando personagens a dramatizarem, muitas
vezes, interesses econômicos divergentes, pelos quais podemos antever
as injustiças sociais.
124 UNIUBE

Com o advento do modernismo, o conto se abre a novas possibilidades


discursivas. Como os escritores modernistas desejavam se aproximar
da cultura nacional, eles irão explorar a linguagem coloquial, o tempero
brasileiro das variantes regionalistas do nosso português, bem como
as inovações formais das Vanguardas europeias. Temos, assim, a
proliferação de inúmeros gênios criadores dedicados a aprofundar os
aspectos estilísticos do conto: Aníbal Machado, João Alphonsus, Antônio
de Alcântara Machado e, claro, Mário de Andrade.

Vamos, agora, mais de perto, pontuar as características gerais dos


contos de Mário de Andrade. Você está pronto para esse novo mergulho
na obra de Mário? Vamos em frente!

4.3.1 Mário de Andrade e os Contos novos

Mário de Andrade, enquanto contista, escreveu três livros: Primeiro


andar, Contos de Belazarte e Contos novos. Os críticos, entretanto,
tendem a valorizar o último, por considerá-lo de melhor feitio, livro
de linguagem mais madura, mais decantada em termos estilísticos.
Nesse aspecto, o escritor aprofundou os atributos psicológicos de suas
personagens, num verdadeiro mergulho nos dilemas existenciais do ser
humano. Com efeito, Contos novos é ponto alto na escrita de Mário e
um dos livros importantes do gênero em nossa literatura.

Ao fim de cada conto, o autor especifica o seu tempo de elaboração.


Por esse dado, podemos perceber o quanto Mário pesou cada palavra
de sua escrita, numa incansável busca de aperfeiçoamento formal. Por
exemplo, o conto “Frederico Paciência” chegou a demorar dezoito anos
para ser concluído. Muito tempo, você não acha? Pois bem, Contos
novos é um livro feito com esmero e muito cuidado, uma obra de arte
pacientemente arquitetada.

Maria Célia de Almeida Paulillo, em estudo sobre a referida obra, revela-


nos as novidades que os Contos novos apresentavam em relação
aos livros anteriores:

[...] os Contos novos atestam um avanço em direção


a um realismo mais denso e crítico. E a chave artística
desse evoluir parece ser a contenção: estilo, entrecho,
UNIUBE 125

paisagem, tudo agora é mais contido, mais acabado; o


resultado é um profundo mergulho na realidade social
e psíquica do homem brasileiro. (PAULILLO apud
ANDRA- DE, 1993, p. 9).

Com efeito, o livro de Mário trazia grande inovação: o aprofundamento psi-


cológico de suas personagens. Assim, nos Contos novos, a tônica é a di-
mensão psíquica e afetiva da relação indivíduo/mundo. As nove narrativas
do livro, apesar da diversidade de registro e técnicas empregadas, são atra-
vessadas pelo mesmo gosto da análise introspectiva” (PAULILLO apud
ANDRADE, 1993, p. 10).

Bem, é instigante depararmos com personagens a nos desvelar seus an-


seios sexuais (ex.: Atrás da catedral de Ruão), a memória afetiva na busca
dos momentos de plenitude do passado (ex.: Vestida de preto), o desmando
autoritário do poder e do egoísmo (ex.: O poço), bem como os amores não
confessos de dois adolescentes (ex.: Frederico paciência). Tudo isso você
poderá encontrar ao longo das nove narrativas do livro.

Vejamos, agora, o que o livro Contos novos herdou da estética modernista.

Vamos em frente?

4.3.2 Aspectos do modernismo em Contos novos

Contos novos, livro gestado após o furor entusiasta do primeiro Modernis-


mo, ainda tem um parentesco muito próximo em relação à estética dessa
escola literária. Vejamos em que sentido podemos perceber a influência do
Modernismo no livro. Para tanto, continuaremos a nos pautar nas análises
da crítica Maria Célia de Almeida Paulillo.

Em Contos novos, podemos vislumbrar um vocabulário e uma sintaxe


muito próximos da fala coloquial, do nosso linguajar cotidiano. Além
de expressões corriqueiras, gírias, frases feitas, o autor lança mão de
um importante recurso para captar a vivacidade da expressão oral: a
pontuação de ordem emotiva. Ponto de interrogação, de exclamação e
reticências são largamente usados, numa vibração fônica semelhante à da
fala oral. Ex.: “as estrelas me salvavam, davam nela, machucavam muito
ela, isto é...” (do conto “Tempo de camisolinha”), “Fui heróico, antes: fui
artista!” (do conto “Frederico paciência”).
126 UNIUBE

Outro recurso da oralidade é a pontuação de ritmo quebrado. Mário,


principalmente nos contos em primeira pessoa, busca uma pontuação
entrecortada, pela qual o narrador se interpela em dúvidas. Ex.: “Parece
que o parto foi desastroso, não sei direito... Sei que mamãe ficara quase
dois meses de cama” (do conto “Tempo da camisolinha”).

Da musicalidade da fala, temos também o uso sistemático de interjeições


e palavras de apelo. Ex.: “Bom, principiou-se a comer em silêncio (“Peru
de natal”), “Ora, em mim sucede que a inveja não consegue resolver o
ódio” (“Frederico paciência”).

Mário, fiel à constante busca de inovação, caráter eminentemente moder-


nista, usa o polêmico pronome oblíquo no início de período. Ao quebrar
a regra gramatical, o escritor intenta se aproximar do linguajar oral. Ex.:
“Me introduziram na saletinha da esquerda” (“Vestida de preto”).

Mário também irá usar vocábulos e frases-feitas extraídos da fala


brasileira.

Ex.: “assuntar”, “macota”, “campear” e etc.

Todos esses recursos imprimiram grande agilidade aos contos,


permitindo-nos captar o cotidiano de personagens encarnadas na nossa
realidade, num feito de grande contundência e verossimilhança.

Vejamos, agora, no plano temático, as questões filosóficas, existenciais


e éticas abordadas por Mário. Vamos prosseguir?

4.3.3 Aspectos temáticos

Os textos de Contos novos funcionam por um processo de


condensação das experiências humanas. As histórias, assim,
atingem determinados pontos culminantes, de plenitude, em que as
personagens se deparam com momentos de verdadeira epifania. Você
já ouviu falar desse termo antes? Epifania seria o momento de graça, de
êxtase, em que uma verdade da vida se desvela com toda a sua força.
UNIUBE 127

Olga de Sá, ao discorrer sobre a epifania em Clarice Lispector,


alude-nos para o caráter fulminante de tal estado. Resgatando as
palavras de Massaud Moisés, Olga demonstra-nos esse sentimento
arrebatador do estado epifânico: “momento de lucidez plena, em que o
ser descortina a realidade íntima das coisas e de si” (MOISÉS apud Sá,
1993, p. 165). De acordo com essa autora, a epifania é transformada
“em técnica literária, contribuindo, dessa forma, para matizar os
acontecimentos cotidianos e transfigurá-los em efetiva descoberta do
real” (SÁ, 1993, p. 1993).

Benedito Nunes, por sua vez, descreverá com exímia sensibilidade o


caráter epifânico da literatura. Na epifania, a realidade é descortinada
por um encadeamento metafórico de termos da religiosidade, tais como
graça, harmonia, perfeição e beleza. Assim, tais “são os principais
significantes dispersos que convergem, remontando ao significado
fugidio de uma epifania, na palavra glória” (NUNES apud SÁ, 1993, 123).
Epifania, portanto, é o tempo glorioso, brevíssimo e contundente, de
fecundo mergulho no âmago da condição humana.

Podemos antever esses momentos de plenitude, por exemplo, no conto


“Vestida de preto”. Ao rememorar a sua infância, o protagonista Juca
resgata uma passagem de grande comoção: o seu primeiro beijo. Tal
experiência transfiguradora, de grande abalo espiritual, torna-se uma
vivência intraduzível, êxtase a cortar todo o seu ser, num abalo emocional
de grande força. Também podemos antever, no conto “Frederico
paciência”, um momento de agudo arroubo epifânico. O narrador ao fitar
toda a beleza de Frederico, sente-se transportado para um instante de
harmonia total, de grandeza infinita, em que a paixão se desvela com
todo o seu furor, com toda a sua febre estertorante. Tais estados de
plenitude seriam, portanto, verdadeiras epifanias.

Você já deve ter experimentado diversos momentos epifânicos em sua


vida. Nesse sentido, basta lembrar os instantes vibrantes, de grande
comoção, em que algo misterioso tomou forma, arrebatando sua vida
por completo. Pois bem, nessa hora, as verdades escondidas de nosso
ser, nosso inconsciente com todas as suas armadilhas, suas sutilezas,
tomam forma, se revelam com intensidade aos nossos olhos. Esses são
momentos de epifania.
128 UNIUBE

O próprio Mário, em carta a Alphonsus de Guimarães Filho, definiu com


precisão o estado epifânico: “as narrativas do livro convergem para a con-
figuração de momentos muito especiais vividos por suas personagens
com intensidade e paixão” (PAULILLO apud ANDRADE, 1993, p. 12).

Esses momentos agudos fazem contraponto a verdadeiros estados


antiepifânicos. São os momentos de vazio, de angústia, de solidão
intensa, em que as personagens vagueiam esquecidas do mundo e de
si. No conto “Primeiro de maio”, o protagonista vagueia pelas ruas, num
momento agônico, em que ele percebe a grande invalidade de tudo o
que existe.

Paulillo afirma que o livro de Mário oscila entre “dois tipos de existência
ou temas, à primeira vista antagônicos, mas na verdade duas faces de
uma única medalha: o primeiro fala de uma experiência de plenitude, em
que o homem vive em vibrante harmonia, consigo mesmo e o mundo;
o outro trata de uma realidade irremediavelmente prosaica e solitária”.
Tais momentos se encadeiam num jogo de interdependência, num
emaranhado de significações indestrinçáveis, em que êxtase e angústia,
plenitude e vazio, se interpenetram, como realidades fatais e inexoráveis
da condição humana.

Além dessa oscilação entre momentos de agudeza e de vácuo, Mário


também se dedica ao tema da solidariedade. Em oposição a esse
sentimento pródigo, há o egoísmo, como manifestação de interesses
mesquinhos e sórdidos. Com efeito, o maior exemplo dessa situação
está no conto “O poço”. Nesse texto, a personagem Joaquim Prestes,
homem rico, exerce o desmando do poder autoritário e desumano. Ele
chega a impelir seus funcionários a situações de gritante humilhação. É o
que acontece com Albino, jovem de frágil compleição, obrigado a descer
a um poço enlameado, numa tarde de frio cortante. Esse rapaz arrisca a
vida apenas para procurar a caneta tinteiro do patrão, perdida no fundo
daquele abismo de lama.

Outro aspecto relevante nos Contos novos é a reconstituição memorialista


do passado. Nesse aspecto, a infância das personagens é resgata com
comoção. Podemos notar isso nos contos “Vestida de preto”, “Tempo da
camisolinha” e “Frederico paciência”. Em “Vestida de preto”, conforme no-
tamos, o narrador rememora seu instante de júbilo, quando, ainda criança,
UNIUBE 129

teve a ousadia de beijar o pescoço da prima. Em “Frederico paciência”,


os folguedos, as brincadeiras da adolescência são retratados com grande
expressividade lírica, num registro poético de tom emotivo e vibrante.

Essas foram algumas linhas temáticas de relevância na construção dos


contos de Mário. Vamos agora empreender a análise de alguns textos do
livro. Você está pronto para continuar essa aventura? Esperamos que você
possa se inebriar com algumas passagens desses contos selecionados
por nós.

4.3.4 Vestida de preto e o estertor de desejo platônico

“Vestida de preto” é o conto de abertura do livro. Nessa narrativa, temos


a história de Juca e Maria. Desde crianças, os dois nutrem um pelo
outro grande amor, porém tal sentimento se desenvolve apenas enquanto
idílio, enquanto possibilidade nunca realizada. Com efeito, já no primeiro
parágrafo, podemos notar alguns efeitos estilísticos deflagradores do
estilo irônico de Mário. Vamos ler esse fragmento? Ei-lo:
[...] tanto andam agora preocupados em definir o conto
que não sei bem se o que vou contar é conto ou não,
sei que é verdade. Minha impressão é que tenho amado
sempre. Depois do amor grande por mim que brotou aos
três anos e durou até os cinco mais ou menos, logo o
meu amor se dirigiu para uma espécie de prima longín-
qua que frequentava a nossa casa. Como se vê, jamais
sofri do complexo de Édipo, graças a Deus. Toda a minha
vida, mamãe e eu fomos muito bons amigos, sem nada
de amores perigosos. (ANDRADE, 1993, p. 23).

Conforme podemos notar, Mário já principia o texto polemizando o próprio


gênero conto. Ele não sabe identificar se o conto é verdadeiramente
um conto. Sabe apenas da veracidade de sua história. Por esse efeito
de estilo, o escritor modernista lança sua ironia aos críticos literários
preocupados muito mais com questões formais da literatura, do que
com a própria vida humana a palpitar no cerne do texto. O verbo andar,
no plural, nos remete a esse crítico preso às formalidades textuais,
praticando uma leitura reducionista do texto literário.

Outra ironia, tipicamente marioandradiana, é a alusão ao complexo de


Édipo. Conforme sabemos, tal complexo é o desejo erótico, natural, do
filho ainda criança pela mãe. Com efeito, a genitora é o primeiro emblema,
130 UNIUBE

modelo sexual do filho. A eroticidade humana nasce desse primeiro


convívio com os pais (no caso da mulher, temos o complexo de Eléctra,
semelhante ao de Édipo). A personagem de Mário desdenha a teoria de
Freud, num tom jocoso e lúdico.

Prosseguindo nossa leitura, o narrador intenta definir, descrever, os arrou-


bos de sua primeira experiência amorosa: “Maria foi meu primeiro amor”.
Assim, cenas da infância, com suas brincadeiras, com a sua cor viva,
são descritas pelo autor, em páginas de grande agilidade e beleza lírica.

O arroubo do amor infantil inaugura a aproximação fatalizante de dois


seres, num encontro marcado pela indiferença e paixão. Com efeito,
em poucas páginas, Mário traduz o itinerário dessa paixão ao longo
dos anos, condensando na exiguidade do conto a amplitude da
existência inteira de suas personagens.

O que ressalta na narrativa é o amor platônico. Tal arroubo, tal paixão,


nunca se concretiza, fica sempre em aberto, numa possibilidade apenas
sugerida, como podemos notar nessa passagem da infância do narrador:
“(...) eu, com Maria, não fazia nada. Eu adorava principalmente era ficar
sozinho com ela, sabendo várias safadezas já mas sem tentar nenhuma.
Havia, não havia não, mas sempre como que havia um perigo iminente
que ajuntava o seu crime à intimidade daquela solidão” (ANDRADE,
1993, p. 23).

O único instante detonador de uma proximidade acontece no momento


epifânico do beijo. Numa brincadeira de crianças, os protagonistas se
isolam e se escondem num quarto de dispensas. É nesse ambiente de
penumbra que o gesto amoroso, terno, de grande delicadeza e inocência,
acontece: os lábios de Juca resvalam pelo pescoço de Maria, numa
carícia repleta de ingenuidade. Deitada no chão, sobre uma toalha,
fingindo-se esposa de Juca, Maria deita-se na espera do abraço do
suposto marido. A brincadeira, cheia de um tom malicioso de grande
pureza, serve como pretexto, como jogo preparatório para o clímax
afetivo, ou seja, o beijo. Ao ver a amada de costas, com a cabeleira
espargida pelo travesseiro, Juca entra numa espécie de arrebatamento,
de fulguração, em que o desejo, o amor, o medo e a inocência tramam
um sobressalto no espírito. Vejamos essa passagem:
UNIUBE 131

[...] fui afundando o rosto naquela cabeleira e veio a


noite, senão os cabelos (mas juro que eram cabelos
macios) me machucavam os olhos. Depois que não
vi nada, ficou fácil continuar enterrando a cara, a cara
toda, a alma, a vida, naqueles cabelos, que maravilha!
até que o meu nariz tocou num pescocinho roliço. Então
fui empurrando os meus lábios, tinha uns bonitos lábios
grossos, nem eram lábios, era beiço, minha boca foi
ficando encanudada até que encontrou o pescocinho
roliço. Será que ela dorme de verdade?... Me ajeitei
muito sem-cerimônia, mulherzinha! e então beijei.
Quem falou que este mundo é ruim! só recordar...
Beijei Maria, rapazes! eu nem sabia beijar, está claro,
só beijava mamãe, boca fazendo bulha, contato sem
nenhum calor sensual. (ANDRADE, 1993, p. 25).

A bela metáfora da cabeleira como uma noite a envolver o narrador


mostra-nos a incerteza, o medo, a vacilação desse gesto subversivo.
É tanta a intensidade dessa experiência, que Juca afunda não apenas
o rosto, mas a sua vida inteira nessa cabeleira desbastada. Daí nasce
a constatação do grande e vertiginoso prazer de existir. Pelo beijo o
narrador sente-se gratificado pela sua existência. Desse fato nasce o
momento epifânico, de plenitude, de fecundidade existencial:

[...] Maria estava comigo em nosso amor. Nada mais


houve. Não, nada mais houve. Durasse aquilo uma
noite grande, nada mais haveria porque é engraçado
como a perfeição fixa a gente. O beijo me deixara
completamente puro, sem minhas curiosidades
nem desejos de mais nada, adeus pecado e adeus
escuridão! Se fizera em meu cérebro uma enorme luz
branca, meu ombro bem que doía no chão, mas a luz
era violentamente branca, proibindo pensar, imaginar,
agir. Beijando. (ANDRADE, 1993, p. 25).

Instante de plenitude, Mário esboça, nesse excerto, um verdadeiro rito


de passagem.

Você já conhecia tal expressão: “rito de passagem”?

A palavra rito vem dos cerimoniais religiosos. Por ele, a gente executa
uma ação simbólica capaz de nos ligar a Deus. O gesto litúrgico da comunhão,
132 UNIUBE

por exemplo, é um rito. Porém, aqui, estamos diante de um termo


metafórico. O rito funcionaria, no conto, como gesto fundador da epifania,
ou seja, do momento de plenitude. O adjetivo “passagem”, ligado ao
substantivo “rito”, indica justamente essa travessia, em que nosso ser
experimenta uma morte simbólica, para renascer, após o gesto ritual,
mais pleno, mais vivo e revigorado. Pois bem, o beijo funcionaria, no
conto, como gesto simbólico, um rito de passagem.

O ato de beijar, assim, purifica o narrador, deixando-o num estado de


natureza primitiva, edênica. Nesse sentido, pela brevíssima fulguração
de um átimo, o narrador se vê liberto de todo o peso de sua condição
humana. Ele acessa o tempo poético, sacro, instante do eterno
enclausurado na limitação do instante. Um importante historiador das
religiões, Mircea Eliade, afirma que o homem vive dois tempos: o do
sagrado e o do profano. O tempo sacro, mítico, é de ordem superior e
caracteriza-se como um acesso ao tempo dos primórdios, do nascimento
do mundo, instante do eterno. Pois bem, o narrador, pela metáfora da
luz, liberta-se do peso da carne, da dor, da morte, ao sentir o êxtase do
amor vivo, pulsante.

Prosseguindo nossa análise, logo que o narrador experimenta as graças


desse paraíso, vem o contraponto antiepifânico: uma tia, chamada
de Tia Velha, nome a sugerir as intervenções sociais, mumificadas,
envelhecidas, pela moral caduca e pela hipocrisia, adentra o recinto
e reprime a expansão amorosa das crianças. Em seguida, como que
afetada pelo gesto da tia, Maria esboça um profundo desprezo por
Juca. Fica-nos a ambiguidade desse gesto, pois o narrador, em uma
passagem, deixa subtendido que tal recusa, tal indiferença, seria ainda
uma expansão do amor reprimido.

O tempo passa e esse abismo entre eles é alargado pela distância e


o desprezo. É importante notar que, além dessa indiferença de Maria,
outro deta- lhe tem grande importância, revelando-nos questões de
ordem econômica e social. Há entre os amantes um desnível: Juca é
pobre ao passo que a prima é abastada. Movido por esse fato, o então
já rapaz sente-se rebaixado perante a moça. Essa por sua vez, apura
sua indiferença, perdendo-se em inúmeros relacionamentos amorosos.
UNIUBE 133

Há uma passagem delicada do conto, de grande contundência e efeito


poético. Quando o texto se aproxima do final, o leitor descobre, pela
informação do narrador, que os amantes efetuam uma verdadeira troca
de personalidade. Juca que sempre fora o desajustado, aquele que
não se dava bem com as regras, foi se adequando às normas sociais,
estudando, tornando-se poeta, ao passo que Maria acaba descambando
pelos desatinos amorosos, contrariando, assim, os preceitos de uma
conduta moralmente ilibada. Eis o fragmento em que podemos notar tal
amálgama de personalidades e posturas:

[...] percebi ela doidejando, noivando com um, casando


com outro, se atordoando com dinheiro e brilho. Percebi
que eu fora uma besta, sim agora que principiava
sendo alguém, estudando por mim fora dos ginásios,
vibrando em versos que muita gente já considerava.
E percebi horrorizado, que Rose! nem Violeta, nem
nada! era Maria que eu amava como louco! Maria é
que amara sempre, como louco: ôh como eu vinha
sofrendo a vida inteira, desgraçadíssimo, aprendendo
a vencer só de raiva, me impondo ao mundo por
despique, me superiorizando em mim só por vingança
de desesperado. Como é que eu pudera me imaginar
feliz, pior: ser feliz, sofrendo daquele jeito! Eu? eu
não! era Maria, era exclusivamente Maria toda aquela
superioridade que estava aparecendo em mim... E tudo
aquilo era uma desgraça muito cachorra mesma. Pois
não andavam falando muito de Maria? Contavam que
pintava o sete, ficara célebre com as extravagâncias e
aventuras.
Estivera pouco antes às portas do divórcio, com um
caso escandaloso por demais, com um pintor de
nomeada que só pintava efeitos de luz. Maria falada,
Maria bêbeda, Maria passada de mão em mão, Maria
pintada nua [...] Se dera como que uma transposição
de destinos [...] E tive um pensamento que ao menos
me salvou no instante: se o que tinha de útil agora em
mim era Maria, se ela estava se transformando no Juca
imperfeitíssimo que eu fora, se eu era apenas uma
projeção dela, como ela agora apenas uma projeção
de mim, se nos trocáramos por um estúpido engano
de amor: mas ao menos que eu ficasse bem ruim, mas
bem ruim mesmo outra vez pra me igualar a ela de
novo. (ANDRADE, 1993, p. 28).
134 UNIUBE

O que podemos notar nesse fragmento é esse efeito sugestivo da troca


de personalidade. Por ela, o platonismo atinge seu apogeu. Tanto amam
reciprocamente, que se transformam um no outro: vidas em uníssono, em
amálgama, num indestrinçável truncamento de destinos, em que “eu é um
outro”, para lembrar o famoso verso de Rimbaud. Os amantes agem pela
sombra um do outro; são a sombra um do outro. Tanto é assim que cada
gesto repercute e vibra o do outro amado. Por um efeito de antíteses, ver-
dadeiro jogo de sombras, as personagens oscilam de temperamento, num
perfeito espelhismo por contrastes.

O conto se encerra, platonicamente, como um encontro que não se


transforma em promessa de um relacionamento. Fica em Juca apenas
a perfeição do sonho, do que não aconteceu de fato, das possibilidades
apenas entrevistas. Para o protagonista, o que não ocorreu é perfeito,
porque paira acima dos desacertos, da miserabilidade da condição
humana. Aliás, Mário tem um pendor pelas histórias de amor platônico.
Em suas narrativas, os amores deixam de ser reais por um triz. Aliás, tudo
nesse conto é sempre por um triz (para lembrar a belíssima canção de
Chico Buarque): o beijo é no pescoço, não na boca; o amor é ideal, não
real; a felicidade é suprema apenas em um ápice, não pela vida inteira...
Resta apenas a epifania final, a aparição da musa vestida de preto:

[...] Maria estava na porta, olhando pra mim, se rindo,


toda vestida de preto. Olhem: eu sei que a gente
exagera em amor, não insisto. Mas se eu já tive a
sensação da vontade de Deus, foi ver Maria assim, toda
de preto vestida, fantasticamente mulher. Meu corpo
soluçou todinho e tornei a ficar estarrecido. (ANDRADE,
1993, p. 29).

Vejam a bela imagem criada por Mário e de tom altamente platônico: a


vontade é de Deus, não do homem, ou seja, é idílica e apenas imaginada.
Nesse aspecto, cabe ressaltar a importância da cor preta do vestido.
Simbolicamente, o preto liga-se a luto (o provável luto de um amor que
morreu sem nunca ter sido concreto?). Entretanto, uma possibilidade
de leitura seria verificar a força expressiva dessa cor ao formar um
contraponto com a pele de Maria. Ao invés de indicar o sentimento
lutuoso, o preto teria como imperativo realçar os contornos do corpo da
amada, potencializando, ad infinitum, as forças eróticas da sedução.
Nesse aspecto, Maria encarnaria o arquétipo da mulher fatal, bacante,
UNIUBE 135

tal como o foram as Deusas gregas, as personagens femininas da


literatura universal, como a Ana Kariênina, do Tolstói; a Bovary, do
Flaubert; a Capitu, de Machado; a Gabriela, de Jorge Amado.

Espero que você tenha se envolvido por essa trama de amor.

PESQUISANDO NA WEB

Fazemos-lhe o convite para a leitura do texto integral no seguinte site:


<http://www.releituras.com/marioandrade_vestida.asp> Boa leitura!

Agora, vamos fazer a análise de outro conto. Novamente uma história de


amor: “Frederico paciência”.

4.3.5 Frederico Paciência

“Frederico paciência” é a história de dois jovens que vivem, no ardor da


juventude, uma história de amor que não ousa dizer seu nome. Trata-se
de um amor devastado pelo preconceito, pelo estigma da moral: um amor
homoafetivo.

O conto principia-se pela descrição feita pelo seu amigo Juca. Esse último
é o narrador. Vejamos como Mário delineia os aspectos físicos de sua per-
sonagem: “Frederico Paciência era aquela solaridade escandalosa. Trazia
nos olhos grandes bem pretos, na boca larga, na musculatura quadrada
da peitaria, em principal nas mãos enormes, uma franqueza, uma saúde,
uma ausência rija de segundas intenções” (ANDRADE, 1993, p. 80). Pela
descrição, podemos ver, antes de tudo, o portento físico de Frederico.
Além da extrema beleza, ele também é robusto, vigoroso, encarnando
as pulsões de uma masculinidade viril, forte. Do físico, podemos extrair
antecedentes de sua personalidade. Como iremos notar, Frederico também
tinha o espírito robusto, moralmente correto, honestíssimo.

Portanto, a presença de Frederico é solar, abençoada, luminosidade ca-


paz de fulgurar por onde quer que esteja, espargindo no ar a sua graça,
a leveza suave de sua perfeição tanto física quanto espiritual. A luz dessa
personagem dá-se pelas metáforas solares. Ele esbate as sombras, a
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noite, a solidão. Diante de Frederico todo coração se preenche de


plenitude, de grandeza, de virtude. Daí a frase definitiva com que Mário
define o encanto dele: “Não era beleza, era vitória” (p. 80). Como um
Cristo, ele adoça o coração das feras, abranda a fúria dos sicários, dos
algozes: “Ficava impossível a gente não querer bem ele, não concordar
com o que ele falava” (p. 80).

Tal bondade, entretanto, contagia Juca até certo limite. O gérmen de


perversão de seu coração fica impassível diante da solaridade do outro.
Com efeito, o narrador guarda a natureza oposta de Frederico: é lunar,
invejoso e sádico. Portanto, em contrapartida, iremos notar que Juca
é feio e, além do mais, perverso. Em diversas passagens do conto,
percebemos tal personagem supliciar seu amado, por um gesto vão, de
mero orgulho, de maldade gratuita.

Como podemos perceber, assim como em “Vestida de preto”, também


aqui os protagonistas se espelham pelos contrastes, formando um
verdadeiro mosaico de luz e sombra.

Num misto de inveja e admiração, Juca intenta imitar Frederico, ser


como ele: “Tive ânsias de imitar Frederico Paciência. Quis ser ele, ser
dele, me confundir naquele esplendor, e ficamos amigos” (p.80). Pela
delicadíssima alusão da entrega, Mário já delineia, sutilmente, o amor
febril, agudo, que os ligará ao longo de toda a narrativa. Entretanto, tal
afeto ficará abafado pela aparente amizade despropositada, permanecerá
oculto como um cerne secreto envolto por verdadeira carapaça. Assim, o
sentimento erótico, de paixão, fica contido pelas amarras sociais, pelos
preconceitos, levando os personagens a um teatro falso, a uma amizade
aparentemente pura, mas no fundo eivada pelo desejo ardente. A solução
de Mário para esse impasse será o uso de velho recurso conhecido
e muito de seu agrado: o amor platônico. Dessa forma, a convulsão
do desejo, do princípio erótico da vida, é sublimada, esgarçada pelas
convenções sociais.

A amizade dos dois jovens se acirra, ganha vulto, quando Juca intimida
Frederico, dizendo a este que ele era seu único amigo. A passagem, um
solilóquio repleto de sentimentos em tumulto, serve como ato inaugural
do amor em silêncio, sorrateiro, entre os dois jovens:
UNIUBE 137

[...] depois da aula, naquela pequena parte do caminho


que fazíamos juntos até o largo da Sé, puxando o
assunto para os colegas, afinal acabei, bastante
atrapalhado lhe confessando que ele era o meu “único”
amigo. Frederico Paciência entreparou num espanto
mudo, me olhando muito. [...] Chegara a esquina em
que nos separávamos, paramos. Frederico Paciência
estava maravilhoso, sujo do futebol, suado, corado,
derramando vida. Me olhou com uma ternura sorridente.
Talvez houvesse, havia um pouco de piedade. Me
estendeu a mão a que mal pude corresponder, e aquela
despedida de costume, sem palavra me derrotou por
completo. (ANDRADE, 1993, p. 81).

Desse primeiro susto, desse arroubo vivo, advindo de uma alegria em


estado nascente, de encanto ainda virginal, irrompe a grande amizade
calcada no fecundo êxtase amoroso. Já aqui podemos notar o viés erótico,
desejo subliminar, verdadeiro influxo de atração a enervar a relação dos
jovens. Isso fica explícito principalmente na maneira como Juca descreve
Frederico: como um Deus verdadeiramente grego, para usar um clichê
bem conhecido. Desse primeiro contato nasce a amplitude de uma
intimidade fecunda, de um verdadeiro amálgama, em que um passa a
viver na existência do outro, para o ser do outro: “E a vida de Frederico
Paciência se mudou para dentro da minha vida” (ANDRADE, 1993, p.82).

O cotidiano que se segue é o de dois jovens amigos, sempre juntos, um


apoiando o outro nos diversos folguedos, momentos de lazer, e também
nas coisas sérias, como os estudos. De início, Juca vai assimilando certo
gosto pelo estudo, pela ordem, movido pelo interesse do universo do ami-
go. Porém, tal mudança de conduta não prospera e logo ele recai na antiga
preguiça e malemolência.

Entretanto, é notável que Juca guarda, ante a perfeição daquela amizade,


inúmeras reservas. Essas defesas, nascidas de uma consciência culpada,
aguilhoada pela repressão e não aceitação daquele amor, fazem com que
Juca aguce o seu sadismo. Inicialmente, ele prega uma peça em Frederico,
testa-o. Ele mostra ao amigo um livro proibido, intitulado “História da prosti-
tuição na antiguidade”. Tal livro intimida a castidade do amigo, sempre
muito reto e honesto. Porém, Frederico sente-se inevitavelmente atraído
pelo livro, fato que desperta, por sua vez, os ciúmes de Juca. Com efeito,
a passagem em que o colega pede o livro emprestado ao narrador é de
138 UNIUBE

grande sutileza e Mário, mais uma vez, demonstra maestria técnica na


construção de sua trama:
[...] tive um desejo horrível de lhe pedir que não pedis-
se o livro, que não lesse aquilo, de jurar que era
infame. Mas estava por dentro que era um caos. Me
atravessava o convulsionamento interior a ideia cínica
de que durante todo o dia pressentira o pedido e tomara
cuidado em não me prevenir contra ele. (ANDRADE,
1993, p. 83).

A complexidade dos sentimentos do narrador, a ambiguidade de suas


intenções, tornam sua feição poliédrica, multifacetada. Nas atitudes de
Juca, fica clara a necessidade de chamar a atenção de Frederico, para se
sentir superior e, portanto, mascarar o seu complexo de inferioridade.
Por outro lado, nesse gesto estaria também uma prova de fogo. Juca
deseja sondar os interesses de seu colega, verificar fidelidade dele ao
pacto que há entre eles. O resultado disso é um gesto que nasce de certo
masoquismo, a necessidade de se sentir traído pelo amigo, de verificar o
outro dando atenção a algo fora da relação deles. Digamos que, ao pedir
o livro emprestado, Frederico trai a amizade tacitamente compactuada.

Daí, segue o primeiro abalo e o tormento do narrador a se perder em


um vórtice de indagações e incertezas. Entretanto, cabe ao herói solar,
de índole moral superior, irradiar o seu sol para além de toda pequeneza
de alma:
[...] no dia seguinte Frederico Paciência chegou tarde,
já principiadas as aulas. Sentou como de costume junto
a mim. Me falou um bom-dia simples mas que imaginei
tristonho, preocupado. Mal respondi, com uma vontade
assustada de chorar. Como que havia entre nós dois
um sol que não permitia mais nos vermos mutuamente.
Eu, quando queria segredar algum coisa, era com outro
cole- gas mais próximos. Ele fazia o mesmo, do lado
dele. Mas ainda foi ele quem venceu o sol. No recreio,
de repente, eu bem que só tinha olhos para ele, largou
o grupo em que conversava, se dirigiu reto pra mim.
Pra ninguém desconfiar, também me apartei do meu
grupo e fui, com que por acaso, me encontrar com ele.
Paramos frente a frente. Ele abaixou os olhos, mas logo
os ergueu com esforço. Meu Deus! pro que não fala!
O olho, o procuro nos olhos, lhe devorando os olhos
internados, mas o olho com tal ansiedade, com toda a
UNIUBE 139

perfeição do ser, implorando me tornar sincero,


verdadeiro, digníssimo, que Frederico Pa ciência é que
pecou. Baixou os olhos outra vez, tirando de nós dois
qualquer exatidão. Murmurou outra coisa:
- Pus o livro na sua mala, Juca. Acho bom não ler mais
essas coisas.
Percebi que eu não perdera nada, fiquei numa alegria
doida. (ANDRADE, 1993, p. 84).

Frederico, com sua pureza de espírito, consegue enfim contornar o fato,


restabelecendo a relação de confiança.

Há, sobretudo, uma passagem em que a violência e o preconceito são


taxativamente postos em primeiro plano. Esse preconceito, por sua vez,
nasce não apenas dos demais garotos da escola, mas do íntimo dos
próprios protagonistas. Eles mesmos se revelam perplexos ao serem
taxados de “diferentes”. Quando interpelados por um colega que os
ridiculariza, Frederico se infla e convoca o adversário à briga. Dessa
refrega, Paciência sai vitorioso, resguardando assim a sua virilidade.

Esses jogos cênicos fazem com que nos acerquemos de um drama silen-
cioso, de um sofrimento calado: o amor que se amordaça, que não toma
corpo, não ganha estatuto físico e concreto. Frederico, ao brigar com
seu caluniador, luta contra o medo, contra sua própria sombra. Afinal,
não havia mesmo um fato concreto a temer. Se os demais colegas
insinuavam um possível namoro entre os dois jovens, tal feito, todavia,
nunca existiu de fato, materialmente.

Mário, ao aventurar-se por tal temática, lidou com toda certeza,


com terreno minado. No início do século vinte e até os nossos dias,
a homoafetividade constitui-se alvo de vexames e de preconceitos
acirrados. No tempo de Mário, com toda certeza, isso ainda era mais
efetivo. Aqui nos cabe importante reflexão: a literatura de grande nome,
por mais que esbarre em seu período histórico, tem sempre de elevar a
condição humana, promovendo a liberdade. Mário, com seu texto, apesar
de ainda não modular uma relação homoafetiva de fato concreta, abriu
passagem para que pudesse surgir, na literatura brasileira, autores como
Caio Fernando Abreu e João Silvério Trevisan.
140 UNIUBE

Nesse sentido, a noção de epifania, nesse conto, torna-se ainda mais


crucial. É a febre do momento mágico, do instante de plenitude, capaz
de levar a frustração dos amantes a um estertor de ordem simbólica,
transcendente. Nesse aspecto, a sublimação torna o afeto tolhido dos
dois personagens simbolicamente possível. No instante agudo, febril
da epifania, os personagens se libertam enfim das amarras do tempo
histórico, dos muros dos preconceitos e da violência.

A epifania do conto não acontece no momento de maior proximidade


corporal entre as personagens, como em “Vestida de preto”, mas num
instante de circunspecção, em que Juca simplesmente fita o rosto do
amigo. No único beijo dos protagonistas, gesto altamente ingênuo,
temos ainda a expressão do preconceito que as personagens sentem
ainda por si mesmas. Após o beijo, ambos se retraem e um deles, voz
que o narrador não sabe identificar, afirma a necessidade de tomarem
mais cuidado. Esse momento ainda está minado, bombardeado pelo
preconceito.

Em outro sentido, o momento epifânico do texto dá-se quando os heróis


se isolam no quarto de Frederico, após a morte do pai deste. Nessa hora
de grande prodigalidade existencial, Juca fita o querido amigo com toda
a emoção do seu ser, num gesto de amor ilimitado, de fecunda vivência,
em que os amantes se reconhecem como tal e se sentem plenos por
estarem simplesmente face a face. Vejamos:

[...] ele deitou, exagerando a fadiga, sentindo gosto


em obedecer. Sentei na borda da cama, como que
pra tomar conta dele, e olhei o meu amigo. Ele tinha o
rosto iluminado por frincha da janela vespertina. Estava
tão lindo que o contemplei embevecido. Ele principiou
lento, meio menino, reafirmando projetos. Iriam logo
para o Rio, queria se matricular na Faculdade. O Rio...
(...) Eu olhava só. Frederico Paciência percebeu,
pára de falar de repente, me olhando muito também.
Percebi o mutismo dele, entendi por que era, mas
não podia, custei a retirar os olhos daquela boca tão
linda. E quando os nossos olhos se encontraram,
quase assustei porque Frederico paciência me olhava,
também como eu estava, com olhos de desespero,
inteiramente confessado. Foi um segundo trágico, de
tão exclusivamente infeliz. (ANDRADE, 1993, p. 91).
UNIUBE 141

O momento de arroubo, de intensidade, é nublado, a seguir, pela tristeza,


confirmando aquela oscilação entre plenitude e vazio, tão típico nos
contos do livro. Todavia, mesmo cercado por todos os preconceitos, pela
limitação dos medos, das amarras sociais, esse momento extasiante do
olhar mútuo, fulguração epifânica de um momento de aguda efemeridade,
amplia os corações das personagens, torna fecunda a existência,
ao ponto do não dito, do não feito, do não concreto, ser perdoado,
numa compreensão clarividente da condição humana e da limitação
sócio-histórica. Num paradoxo de efeito, seria a vitória dos fracassados,
o grito de liberdade dos amordaçados.

O conto termina em tom menor. Frederico vai enfim estudar no Rio e os


amigos se distanciam definitivamente, restando na memória do narrador
essa amizade instigante, repleta de perdas e humildes vitórias, como
essa do olhar de ardente compreensão.

Bem, como você pôde notar, a obra de Mário é riquíssima. Fica o convite
à leitura de seus livros.

Esperamos que você tenha encontrado, ao longo desse nosso estudo,


pontos capazes de iluminar sua vida, acendendo, assim, uma vontade de
ler cada vez mais. Essa é a verdadeira paixão da literatura: ler, ler e ler...

Resumo

Mário de Andrade, ao escrever Macunaíma, revolucionou a prosa


brasileira. Utilizando-se dos mitos indígenas, da cultura nacional, o
escritor modernista, numa linguagem culta e coloquial, elaborou, através
do seu herói sem nenhum caráter, um retrato de todo o povo brasileiro.

Mário não foi apenas prosador, sua poesia também foi altamente
revolucionária, propondo, no cenário da lírica brasileira, as inovações das
Vanguardas Europeias. Poesia ao mesmo tempo arrebatada e prosaica,
de linguagem mista, num amálgama entre o prosaico e altamente lírico, a
poesia de Mário é um registro poético da São Paulo do início do século XX.
142 UNIUBE

Gênio múltiplo, o escritor modernista foi também um exímio contista. Seu


livro Contos novos é obra-prima. Nele, Mário adensa sua linguagem,
compondo personagens complexos, de almas fecundas, nas quais
fervilham os dramas humanos universais.

Referências

ANDRADE, Mário. Contos novos. Belo Horizonte: Itatiaia, 1993.

ANDRADE, Mário. Macunaíma: O herói sem nenhum caráter. Belo Horizonte:


Itatiaia, 1985.

ANDRADE, Mário. Melhores poemas de Mário de Andrade. São Paulo:


Global, 2003.

BOSI, Alfredo. História concisa da literatura brasileira. São Paulo: Cultrix, 1994.

BOSI, Alfredo. O conto brasileiro contemporâneo. São Paulo: Cultrix, [s.d.].

CAMPOS, Haroldo. Morfologia de Macunaíma. São Paulo: Perspectiva, 1973.

JAFFE, Nemi. Macunaíma (Folha explica). São Paulo: Publifolha, 2001.

LAFETÁ, João Luiz. In: BOSI, Alfredo (org.). Leitura de poesia. São Paulo:
Ática, 2003.

RABELLO, Ivone Daré. A caminho do encontro: uma leitura de Contos novos.


Cotia: Ateliê, 1999.

SÁ, Olga de. A escritura de Clarice Lispector. Petrópolis: Vozes, 1993.


Capítulo Uma viagem pelos confins
5 de Mário Palmério

Helena Borges Ferreira


Maria Aura Marques Aidar

Introdução
Neste capítulo, faremos um passeio pela Vila dos Confins, lugar ro-
deado de causos mineiros e disputas políticas. Vocês já estudaram
que a narrativa literária, a ficção, o romance permitem ao autor da
obra uma grande liberdade criativa. Apesar de toda obra literária
ser calcada na visão de mundo do escritor, encontramos, muitas
vezes, obras em que a representação do real e ficção estão
imbricadas de tal forma, que se torna difícil ao leitor distinguir as
duas situações.

Ao lermos o livro, os fatos narrados em ficção poderiam ser e


eram, em alguns casos, vivenciados pelo público leitor na época
da publicação do livro (1956). Regina Zilberman (2000, p. 122)
nos aponta que:
(...) a história é uma narrativa com fundo,
o espelho em que verifica a sua existência, a
refletir a própria imagem como verdade. À
ficção é recusado esse fundo, o espelho que
ela reflete é a vida que se desenrola fora dela,
a sociedade a que pertencemos ou o indivíduo
que somos e que reencontramos na ficção,
mas que, ali, tem uma existência puramente
imaginária. Filha de Mnemósine, a memória,
Clio, a musa da história, tece os fios da narrativa
que impede o esquecimento. Sua teia, contudo
é o documento, marca de um pedaço de tempo
transportado do passado para o presente.

Apesar de testemunha, Palmério optou pela narrativa literária


144 UNIUBE

ficcional. Foi um narrador onisciente neutro, inseriu capítulos com


relatos sobre a vida no sertão, apresentando as peculiaridades
locais. Ignorou a formação tradicional do romance que apresenta
as características psicológicas das personagens. Não mostrou
personagens complexos, apresentou, ao contrário, figuras
simples, que boa parte da população urbana, recém imigrada
do campo conhecia bem. A natureza, a fauna e a flora descritas
despertavam a memória afetiva de muitos brasileiros. As
questões políticas levantadas faziam parte de um cotidiano que
o Brasil do período desenvolvimentista
Desenvolvimentismo e que se queria moderno, precisava
superar. As memórias de Mário Palmério
Política econômica trouxeram à luz acontecimentos que,
que busca o
crescimento a partir segundo ele, foram vividos, mas não
da produção industrial necessariamente como foram relatados
e da infraestrutura,
tendo o Estado como em seu livro. Vila dos Confins foi um
principal incentivador. lugar de memória, teve um caráter de
Havendo o denúncia. Foi consenso entre a crítica
crescimento
econômico, que a narrativa de Palmério estaria
aumentam as vagas muito próxima do real, visto ser possível
de emprego
e consequentemente identificar no Brasil contemporâneo
o consumo. situações políticas como as apresentadas
no livro. Vila dos Confins não relata
situações que seu autor teria vivenciado como observador, mas
como ator. Todavia, como nos fala Ligia Chiappini (1999, p. 805):

(...) Os ficcionistas não precisam de álibi. E


quem trabalha com textos literários tampouco.
Podemos valorizar um texto por ser este pleno
de possibilidades de sentido, porque reinventa
a língua a cada linha, porque nos arrepia com
seu ritmo ou nos comove com seu pathos,
mesmo que contrarie as verdades investigadas
pelo historiador. Por isso não cabe dizer que
um ficcionista finge ou mente, embora caiba
perguntar, sim, que verdade ele nos traz pelas
suas meias verdades.

Falaremos mais sobre o assunto no decorrer de nosso estudo!


UNIUBE 145

Objetivos
Ao final deste capítulo, esperamos que você esteja apto a:

• discorrer um pouco sobre Mário Palmério;


• reconhecer a importância do autor e do livro Vila dos
Confins para a literatura brasileira;
• comparar as teorias sobre o regionalismo dentro de Vila
dos Confins;
• analisar trama e personagens de Vila dos Confins;
• analisar e interpretar a obra Chapadão do Bugre, também
de Mário Palmério.

Esquema
5.1 A obra – situando os Confins
5.2 Submetendo os Confins às teses sobre regionalismo: é
possível confirmá-lo?
5.3 A trama e seus personagens
5.4 Conclusão

5.1 A obra – situando os Confins

Como foi dito anteriormente, a representação do real e a ficção, dentro


da literatura, muitas vezes se mesclam. É justamente por esse prisma
que faremos a análise do livro Vila dos Confins, de Mário Palmério,
neste capítulo.

PARADA PARA REFLEXÃO

Você já ouviu falar sobre um lugar chamado Vila dos Confins? E Mário
Palmério, você sabe quem foi? Qual a contribuição da obra e do autor para
a nossa literatura?
146 UNIUBE

Antes de continuarmos nossos estudos, que tal fazermos uma parada para
pesquisarmos sobre autor e obra. Visite sites, livros de literatura e faça um
rápido registro, em seu caderno, das informações obtidas. Estas anotações
poderão ser muito úteis no decorrer de nosso estudo.

À minha despedida, permiti-me manifestar a orgulhosa


satisfação de minha cidade, em antes sertaneja como
o era a cidadezinha serrana de João Guimarães
Rosa: Monte Carmelo, minha terra, que, aqui, veio
alinhar-se ao lado de Cordisburgo, ao lado da gaúcha
Cachoeira, de João Neves da Fontoura, ao lado
também da maranhense Caxias, de Coelho Netto. É o
Parte final Brasil interiorano — genuíno de nascença e vibração
do discurso — a ocupar, sem quebra de continuidade, a cadeira de
pronunciado por Álvares de Azevedo, tradição que esta Casa houve por
Mário Palmério, no
dia da posse na
bem manter.
Academia Brasileira São Paulo é quem virá saudar, por procuração desta
de Letras, 21
nov.1968.
Academia, o quarto ocupante da cadeira cujo patrono
é também um paulista. Nós, os mineiros do Triângulo,
gratamente cultivamos as boas relações de vizinhança
e convivência com São Paulo, filhos de quem já fomos,
no passado. Cândido Mota Filho, amigo muito querido,
falar-me-á ao coração de forma especialíssima. Das
mãos de Múcio Leão — prestigiosas mãos que tanto me
ajudaram a chegar até a esta Casa — receberei o Colar
Acadêmico, o que, também, sobremaneira, me comove.

Essas são palavras do discurso do escritor Mário Palmério quando


assumiu, “mineiramente com aquele jeito de contar histórias das gentes
das gerais, a cadeira número dois da Academia
Brasileira de Letras, sucedendo ao também mineiro
Mineirão Mário
Palmério tomou Guimarães Rosa”.
posse na
Academia.
Vila dos Confins e Chapadão do Bugre foram
O Jornal, Rio as obras que possibilitaram o ingresso do escritor
de Janeiro 23
nov.1968, recorte na Academia Brasileira de Letras. Vila dos Confins
sem indicação de foi lançado em 1956, ano em que foram coloca-
autoria, página
ou caderno, dos no mercado mais três romances de escritores
acervo Memorial igualmente mineiros: Grande Sertão: Veredas, de
Mário Palmério –
Universidade de Guimarães Rosa; Montanha, de Ciro dos Anjos e
Uberaba. Encontro Marcado, de Fernando Sabino.
UNIUBE 147

Com o primeiro, há uma similaridade do cenário do sertão, da fartura de


material regional e vocabulário. O segundo trata também de uma eleição
mineira. O terceiro apresenta o encontro, pelas ruas de Belo Horizonte,
de jovens da década de 1940. Romances de costumes. Lançamentos
de “peso”, fortes concorrentes para o público que o romance de Palmério
alcançaria.

O que se vê de diferente entre os romances, Grande Sertão, Montanha e


Vila dos Confins, é que, no de Guimarães Rosa, o que atrai é o mágico,
o religioso, o folclórico; o de Palmério traz práticas culturais cotidianas,
jogos explícitos do poder — o sertão virou corrutela do interior. Em Vila
dos Confins, a eleição tem importância primordial e vem entremeada de
“causos” e interferências de outros personagens que dão leveza ao texto,
não se fixando somente na fraude eleitoral. Em Montanha, as intrigas
são de gabinete, a eleição e a caricatura política são essenciais. O livro
de Mário Palmério foi lançado depois de Grande Sertão: Veredas, o
que poderia parecer uma temeridade, pois Guimarães, conhecido por
sua competência literária, já havia publicado Sagarana. No entanto, Vila
dos Confins foi sucesso de vendas, festejado por críticos de todo o País.

SAIBA MAIS

Caso queira saber mais, sugerimos que visite os sites:

<http://www.releituras.com/cyroanjos_menu.asp>.

<http://www.releituras.com/guimarosa_menu.asp>.

<http://www.releituras.com/fsabino_menu.asp>.

Rachel de Queiroz, que prefaciou Vila dos Confins, diz que quando o
telefone tocou em sua casa, estranhou que um deputado que não era de
“sua bancada” quisesse falar com ela. Respondeu-lhe que o receberia
com muito prazer. A hora era de crise política, mas não era o deputado
que vinha lhe procurar, era o escritor. Trazia debaixo do braço um original
datilografado que queria que ela lesse. Palmério, como todo candidato a
estreante, apresentou-se tímido, tratou-a como “medalhona”, usou as
148 UNIUBE

cortesias de estilo, e logo a camaradagem se instalou ao conversarem


sobre política. Deixou o livro e partiu. Segundo Queiroz:

(...) A primeira qualidade que me impressionou no


escritor Mário Palmério foi este cheiro de terra, que o
seu livro traz, tão autêntico. A gente tem a impressão
de que ele nos entrega para ver, na sua integridade
primitiva aquele rio, aquela mata, aqueles bichos,
aqueles caboclos, aquelas histórias de caçada e
pescaria, que parecem história de mentiroso, de tão
saborosas. Essa poesia de florestas e rio, tão difíceis de
captar, sem cair na ênfase.

AMPLIANDO O CONHECIMENTO

Desde a primeira edição até a mais recente, Vila dos Confins apresenta o
prefácio de Raquel de Queiroz.

No prefácio da primeira edição de Vila dos Confins, da editora José


Olympio, Raquel de Queiroz faz a seguinte análise:

(...) Seu estilo saboroso, espontâneo, colorido, cheio


de vida e flexibilidade, é sem dúvida uma das mais
importantes contribuições para a fixação de um futuro
“estilo brasileiro” para a boa solução desse problema
que nos vem desde o Romantismo. Por todos esses
motivos, não haverá exagero em afirmar que a estreia
do romancista mineiro é a mais importante do ano, e
que seu livro representará um novo passo num revival
da ficção contemporânea.

SAIBA MAIS

Caso queira saber mais, sugerimos que visite o site:

<http://www.releituras.com/racheldequeiroz_bio.asp>

Já que Raquel de Queiroz fala do cheiro de terra, do caboclo, do rio,


da mata, dos bichos etc, vem-nos o seguinte questionamento: Então,
UNIUBE 149

podemos classificar Vila dos Confins como um romance regionalista?


Apresentaremos, a seguir, opiniões de alguns críticos sobre o assunto.

Ao caracterizarmos a obra como regionalista, iniciaremos pela busca do


conceito. O termo regional parece encontrar seu antagonismo no que se
denomina universal. Para alguns estudiosos do assunto, o regional está
contido no universal. Para Almeida (1999), a universalidade da criação
artística não se constitui à custa de seu caráter regional: com frequência,
torna-se um desdobramento harmonioso deste. Isso porque, atrás do ho-
mem de determinada região, com sua problemática específica, encontra-
se uma essência que é comum a todos os homens. Compete ao criador
saber revelá-la, não confundindo regionalismo com exotismo pitoresco,
este sim grandemente imitado.

O regionalismo no Brasil surge no bojo do modernismo e o seu ponto


de partida é demarcado no Manifesto Regionalista de 1926, lançado
pelo Centro Regionalista do Nordeste, com sede em Recife. Também
se considera como precursor desse gênero o romance A Bagaceira, de
José Américo, publicado em 1928, cujo valor se expressa pela temática
regional e pelo caráter social, mais do que pela sua estética.

SAIBA MAIS

Caso queira saber mais, sugerimos que visite o site:

<http://www.arq.ufsc.br/arq5625/modulo2modernidade/manifestos/manifesto-
regionalista.htm>

Na conferência “Tendências do romance brasileiro”, pronunciada em


1943, José Lins do Rego (1968) dá as pistas do que caracterizaria o
romance regionalista brasileiro:

(...) Nós, no Brasil, queremos acima de tudo, nos encon-


trar com o povo, que andava perdido. E podemos dizer
que encontramos esse povo fabuloso, espalhado nos
mais distantes recantos de nossa terra. O romance de
nossos dias está todo batido nesta massa, está todo
composto com a carne e o sangue de nossa gente. (...)
o povo é herói de nossos livros. Isto equivale a dizer que
temos uma literatura.
150 UNIUBE

Entre os escritores referenciados pela crítica literária destacam-se José


Lins do Rego, Raquel de Queiroz, Jorge Amado, Graciliano Ramos, Érico
Veríssimo, especialmente por suas obras, que tinham como fio condutor
a denúncia social – verdadeiro documento da realidade brasileira – em
que as relações “eu / mundo” atingiam elevado grau de tensão. A partir
de 1945, o regionalismo adquire uma nova dimensão e o seu ápice com
Guimarães Rosa e João Cabral de Melo Neto (BOSI, 2003).

Vila dos Confins foi classificado por Alfredo Bosi, junto com outras
obras, como “um regionalismo menor” (BOSI, 2003), amante do típico,
do exótico e vazado numa linguagem, que por seu apego a antigas
convenções narrativas, não poderia ser chamada de moderna. Contudo,
para esse crítico, no contexto mineiro/goiano pode ser considerado um
romance de boa fatura. O regionalismo de Mário Palmério é situado pela
crítica literária como um caso de permanência e transformação desse
gênero, e, segundo Bosi, contrapondo-se aos elementos tensos e críticos
anteriores.

Em matéria do jornal O Estado de São Paulo, escrita por Wilson Martins,


na qual o crítico avalia que as diversas análises já publicadas em
jornais nacionais que consideraram Vila dos Confins um romance do
regionalismo mineiro estariam equivocadas, pois, segundo ele, a obra
não é romance regionalista e ainda menos regionalismo mineiro. Vila dos
Confins na análise de Martins (1957) é:
(...) A transcrição universal de uma realidade local –
mas, neste Brasil tão cioso de suas diversidades
regionais, há uma coisa que é igual em toda parte: a
vida política, ou antes, a vida eleitoral, em que a
primeira se absorve quase toda. É sob este aspecto que
Vila dos Confins extravasa de seus limites municipais e
alcança a condição romanesca geral e irreprochável.

AMPLIANDO O CONHECIMENTO

Considerado por muitos como o último crítico brasileiro por excelência, derra-
deiro representante de uma geração de críticos de literatura conhecidos
como “militantes”, Wilson Martins tem uma trajetória de mais de cinquenta
anos analisando, discutindo, polemizando, exaltando, rebaixando, em
UNIUBE 151

suma, criticando. “Professor em diversas universidades europeias e


norte-americanas, Wilson Martins, diferente da maioria de seus pares,
sempre esteve acima das academias e das questões ideológicas que
dominaram este século, e é um dos exemplos mais notáveis daquilo que
exemplarmente chamamos de humanista.” (Affonso Romano de Sant’Anna,
orelha de MARTINS, Wilson. A Palavra Escrita: história do livro, da
imprensa e da biblioteca. São Paulo: Ed.Ática, 1996

Disponível em: <http://virtualbooks.terra.com.br/osmelhoresautores/biografias/


Wilson_Martins.htm>. Acesso em: 03 jan. 2007.

Se Bosi considerou o livro no contexto de uma safra do regionalismo


menor, Martins entendeu que a obra não se define como regionalismo
e, ainda menos, regionalismo mineiro. Antonio Houaiss, em um artigo
intitulado Sobre a linguagem de Vila dos Confins, analisa que as questões
de relevo, fauna, flora e costumes são capazes de identificar essa região
do Brasil cujas fronteiras físicas abrigam imigrantes de diversas regiões
do interior do país. Tais aspectos, sintetizados no livro, caracterizam-no
como literatura regional.

(...) Estamos entre triangulinos, esses mineiros que são


de origem, goianos, de provável cepa paulisto-nordesti-
na, que continuam a receber de algumas décadas a
esta parte forte influxo imigrantista de nordestinos e de
uns quantos paulistas, não raro alçados a dirigentes –
como o Neca Lourenço. Ademais entre eles, uma longa
influência mato-grossense, via gadaria do pantanal,
vale eventualmente dizer, influência gaúcha e fronteiriça
se exerce. É uma extensa área de algumas centenas
de milhares de quilômetros quadrados, em que se
desenrola o fio da meada dessas vidas transfundidas
em Vila dos Confins. [...] Goiano-mineiro-nordestino-
paulisto-mato-grossense-gaúcho-bahiano-carioca, é
o ambiente verbal de Vila dos Confins brasileiro, pois,
com efeito, pouco há de Brasil que não se inclua
naquela síntese, por via direta ou por via indireta.
(HOUAISS, 1958, p. 121 -153).

A introdução do livro apresenta uma descrição da localidade de Vila dos


Confins. Geografia mineira e do Triângulo Mineiro que vai do noroeste de
Minas a Goiás e Mato Grosso. Na década de 1950, quando foi escrito o livro,
152 UNIUBE

o Triângulo ainda não era o plantador de soja e milho que é hoje e nem
tampouco a referência nacional em gado zebu:

– O Sertão dos Confins é um mundo de chão arenoso e


branco, que principia na Serra dos Ferreiros e acaba no
Ribeirão das Palmas (...)
–Terra boa mesmo, coisa escassa: mancha ou outra de
massapé roxo (...) e a mataria das vertentes da serra do
Fundão. E afora as baixadas de terra preta do pessoal
dos Correias (...) o restinho de cultura são apenas as
estreitas tiras de capoeirão que beiradeiam as águas.
– Pouco mato e, por isso mesmo, madeira pouca. Nos
confins – claro que à exceção das zonas de cultura de
primeira – o pau de lei é vasqueiro.
– Lavoura, lavoura mesmo, por ora nada: meia quarta
de arroz aqui, litrinho ali de feijão comum; milho, cana
e mandioca; e lá uma vez na vida, um canteirinho de
algodão.
– Gado há, e bastante. Quase tudo ainda gado de
antigamente, o ordinaríssímo pé-duro. Progridem,
todavia, algumas zonas, resultado da cruza do zebu.
O gir, o nelore e o guzerá melhoram: o pé-duro e o
curraleiro viram mestiço, mestiço vira meio-sangue,
meio-sangue vai virando aos poucos gadão de muita
caixa e peso, zebu inteirado, de cupim, barbela
e gavião. É só não desanimar, que o cruzamento
compensa. (PALMÉRIO, 2003, p. 21-22).

Ainda na introdução do livro, Palmério apresenta a fauna da região.


O autor fala de jacus, jaós, patos, codornas, nhambus, sucuris de
59 palmos, emas, queixadas, capivaras, veados, onças, jacarés de
papo-amarelo, peixes de vários tipos, tais como: dourados, matrinxãs,
surubins, pacus, taguaras, piaus, jaús, piras, corvinas... “povo aquático
de todas as categorias e tama- nhos” (PALMÉRIO. 2003, p. 3-8 ).

Bosi (2003) dividiu o romance brasileiro em pelo menos quatro


tendências: romances de tensão mínima; romances de tensão crítica;
romances de tensão interiorizada e romances de tensão transfigurada.
Com base nesta divisão, percebemos que Vila dos Confins se enquadra
na categoria romance de tensão mínima – em que há conflito, mas este
se configura em termos de oposição verbal, sentimental. As personagens
não se destacam visceralmente na estrutura e paisagem
UNIUBE 153

que as condicionam, e nas quais, segundo ele, enquadra-se muito do


“novo” regionalismo, em que há um aberto apelo a questões espaciais e
históricas. Mário Palmério pesa a mão nas cores locais, tendo bastante
cuidado com o verossímil que o leva ao realismo inclusive da linguagem
coloquial que mistura com a literária.

Para Ricoeur (1994, p. 85):

(...) O mundo exibido por qualquer obra narrativa é


sempre um mundo temporal. O tempo torna-se tempo
humano na medida em que está articulado de modo
narrativo; em compensação, a narrativa é significativa
na medida em que esboça os traços da experiência
temporal.

Ao longo do tempo, com o desenvolvimento do romance, as histórias


narradas pelos homens foram se revestindo de complexidade e, de
acordo com Chiappini, o narrador foi progressivamente se ocultando, ou
por detrás de outros narradores ou por detrás dos fatos narrados, que
parecem, cada vez mais, narrarem-se a si próprios. Assim para ela:

(...) Mais recentemente, atrás de uma voz que nos fala,


velando e desvelando, ao mesmo tempo, narrador
e personagem, numa fusão que, se os apresenta
diretamente ao leitor, também os distancia, enquanto
os dilui. Quem narra, narra o que viu, o que viveu, o
que testemunhou, mas também o que imaginou, o que
sonhou, o que desejou. Por isso, narração e ficção
praticamente nascem juntas (CHIAPPINI , 1993, p. 5).

Ainda, de acordo com a autora citada, Norman Friedman em seu trabalho


de levantar as principais questões para que se entenda o narrador,
observa:
(...) Quem conta a história? Trata-se de um narrador
em primeira pessoa? De uma personagem em primeira
pessoa? Não há ninguém narrando? De que posição
ou ângulo em relação à história o narrador conta? Que
canais de informação o narrador usa para comunicar a
história ao leitor, a que distância ele coloca o leitor da
história? (CHIAPPINI , 1993, p. 25).

Colocadas as questões, Friedman fornece subsídios para a análise da


narrativa de Vila dos Confins. Propõe para a compreensão do narrador
154 UNIUBE

uma divisão em categorias que são compostas de: autor onisciente


intruso; narrador testemunha; narrador protagonista; onisciência seletiva
múltipla, onisciência seletiva, modo dramático e, por fim, câmera e
narrador onisciente neutro. Esta seria a categoria a se enquadrar Mário
Palmério em Vila dos Confins. O narrador fala em terceira pessoa e
tende ao sumário narrativo, que é um relato generalizado ou a exposição
de uma série de eventos abrangendo certo período de tempo e uma
variedade de locais. A cena imediata emerge assim que os detalhes
específicos, sucessivos e contínuos de tempo, lugar, ação, personagem
e diálogo começam a aparecer. A caracterização das personagens é feita
pelo narrador que as descreve e as explica para o leitor.
Lá vem ele. É ganjento, pilantra: roupinha de brim
amarela, vincada a ferro; chapéu tombado de banda,
lenço e caneta no bolsinho do jaquetão abotoado;
relógio-de-pulso, pegador de monograma na gravata
chumbadinha de vermelho.
Fazenda nenhuma lhe cobra pouso; e merece comer
na cozinha, com a dona da casa e as moças solteiras. É
que em todo o Sertão dos Confins — e olhem que é um
mundão largado de não acabar mais — não há mesmo
quem não o conheça e não lhe queira muitíssimo bem.
Passinho miúdo, apressado. Botina chienta na areia
que ringe também. Lá vem ele!
Quem viaja sozinho e a pé por essas largas das
estradas boiadeiras cultiva distrações. O chão é muito,
dilatadas são as horas. O andarilho inventa modas
para poder matar o tempo e a distância: bota a cabeça
a funcionar, imaginativa, e assim consegue vencer a
canseira e a semgraceza da pernada.
Xixi Piriá tinha lá também as suas manias: a predileta
era brincar com a própria sombra, vigiar o espicha-
encolhe provocado pelo sol a subir e a descer. Divertido
a gente se ver crescendo, crescendo, até acabar
num caboclão apaideguado, dono de toda a largura e
comprideza da estrada! (PALMÉRIO, 2003, p. 9-10).

O autor tudo sabe, tudo vê, no entanto, diferentemente do autor onisciente


intruso, não dá instruções, não faz comentários sobre o comportamento
das personagens, embora sua presença entre o leitor e a história seja
sempre clara.
UNIUBE 155

Em entrevista ao jornal Suplemento Literário, Palmério (1972) comentou


que “ninguém escreve sem ter vivido, se bem que em geral a gente
aproveite coisas diferentes para enriquecer a história, (...) só se pode
captar aquilo que realmente nos toca,” e ressaltou que à medida que ia
compondo o texto, vinha à lembrança uma série de fatos e de pessoas,
as quais sempre achava um jeito de encaixar.

De acordo com Benjamin (1994), o narrador é uma pessoa com


experiência, que tanto pode ser representada por uma pessoa que muito
viaja, quanto por aquele que conhece as tradições e histórias de sua gente.

Pela análise dos críticos, a literatura, além de representar o real, pode


subverter o real, escancarar certas práticas adotadas em redutos sociais,
colocar em discussão os preconceitos, as regras, as condutas, uma vez
que lançada a obra, o autor não tem mais domínio sobre a maneira como
ela será recebida e reelaborada por seus leitores ou espectadores.

Segundo Alvarez (2006, p. 18):

(...) Quando você lê um romance, uma voz está lhe


contando uma história, quando lê um poema, ele
geralmente fala sobre o que o dono dessa voz está
sentindo; mas nem o meio nem a mensagem são o
principal aqui. O principal é que essa voz é diferente
de qualquer outra que já se tenha escutado e ela está
falando diretamente com você que lê, comungando
com você em particular, bem no seu ouvido e no seu
jeito todo peculiar (...) É um pacto de mão dupla:
o escritor se faz ouvir e o leitor lhe dá ouvidos – ou,
mais precisamente, o escritor trabalha para criar ou
encontrar uma voz que irá alcançar o leitor, fazendo-o
apurar os ouvidos e prestar atenção. (...) Mas encontrar
uma voz implica que haja leitores por aí que saberão
como escutar, e escutar é uma habilidade quase tão
caprichosa quanto escrever.

5.2 Submetendo os Confins às teses sobre regionalismo: é


possível confirma-lo

Ligia Chiappini, professora titular de Teoria Literária e Literatura Comparada,


na Universidade de São Paulo (USP), por intermédio de suas teses sobre o
156 UNIUBE

regionalismo na literatura, das quais algumas permitem a análise de Vila


dos Confins, é quem vai nos fornecer subsídios para examinarmos a
questão do regionalismo na literatura de Mário Palmério.

O regionalismo, segundo Chiappini (1995), continua atual, inclusive como


tema de pesquisas. Fenômeno universal como tendência literária, desde
que tenha por ambiente, tema e tipos de certa região rural, em oposição
aos costumes, valores e gosto dos citadinos. Verifica-se que o mal-estar
em relação ao regionalismo se daria em virtude da divisão ocorrida nessa
tenência literária, divisão entre as boas obras e aquelas que se mostram
superficiais, estereotipadas e pitorescas. A questão a ser superada é a
da própria dificuldade do projeto regionalista. As obras que conseguem
superá-la “ganham estatuto de obras-primas tão ou mais significativas
esteticamente do que qualquer romance ou conto urbano com pretensão
cosmopolita” (p. 153-159).

Vila dos Confins parece ter superado o projeto regionalista do pitoresco e


da superficialidade. Conseguiu uma linguagem que supriu com verossimi-
lhança a assimetria radical entre o escritor e o leitor citadino em relação
ao homem rural (CANDIDO, 1972).

De acordo com Martins (1957):


(...) Mário Palmério venceu o ‘test’ supremo do romance
que é o de transformar o leitor em personagem da
história. Ou melhor: que é fazê-lo perder a sua condição
de leitor. A partir de um certo grau de perfeição,
o romance anula, por assim dizer, a pessoa e a
personalidade do leitor, desintegra-o da sua existência
comum para integrá-lo na história imaginária. Enquanto
nos ‘sentirmos’ leitores, podemos ter a certeza de que
não estamos em face de um grande romance: a arte
literária só conquista a sua verdadeira natureza pela
superação de si mesma e o romance não é apenas
a transposição do real para a pauta romanesca, mas
também a transposição do leitor para um mundo fictício.

Alvarez (2006) entende que quando lemos um romance, uma voz está
nos contando uma história e essa voz é diferente de qualquer outra
que se tenha escutado e ela está falando diretamente com quem lê,
comungando com essa pessoa em particular, bem em seu ouvido e no
UNIUBE 157

seu jeito todo peculiar. Pode falar com você a partir de séculos atrás,
ou como se estivesse ali, do outro lado da sala. Os escritores criam um
momento da vida em si, se fazem ouvir e os leitores lhes dão ouvidos,
trabalham para criar ou encontrar uma voz que irá alcançar os leitores,
fazendo-os apurar os ouvidos e apurar a atenção.

Chiappini (1995) evoca George Sand, que em seu prefácio do romance


“François le Champi”, em meados do século XIX, alerta-nos que a
dificuldade para o autor é “a de fazer o narrador ou um personagem
falar como se à sua direita estivessem um parisiense e à sua esquerda
um camponês”, ou seja, “que o único modo de não distanciar
preconceituosamente o leitor do homem do campo que essa ficção quer
retratar é estabelecer pela arte uma ponte amorosa que lhe permita sair
dos seus guetos citadinos, comunicando-se e aprendendo sobre outros
tantos becos deste mundo” (p.154).

Uma boa parte da crítica especializada acreditava que Vila dos Confins
alcançara o que Chiappini definiu como uma ponte que permite aos
leitores sair dos seus guetos citadinos, comunicando-se e aprendendo
sobre tantos outros becos do mundo. Mário
Palmério conseguiu que os leitores do meio urbano Newton Belleza
não se distanciassem preconceituosamente do Escritor, dramaturgo
homem do campo. Em sua análise, feita em O e crítico literário.
Jornal, Newton Belleza assim se manifestou:

(...) Muito de bom se tem reconhecido e algumas coisas


têm sido negadas no escritor Mário Palmério da Vila
dos Confins, cujas edições se sucedem, afirmando-se
um dos mais constantes best-sellers destes últimos
tempos. De qualquer forma, consegue Mário Palmério
a difícil conjugação dos aplausos da crítica com o
invulgar acolhimento dos leitores brasileiros de literatura
(...) através de uma linguagem pitoresca, desenvolta,
nascente e adequada às situações, realiza o autor a
mais profunda e mais difícil de todas as integrações
numa obra de arte escrita ou falada, aquela que lhe dá o
verdadeiro sentido da criação, uma vez que só pelo uso
dinâmico e criador da palavra se pode realmente criar
em literatura. (BELLEZA, 1957).

Para Chiappini, obra literária regionalista tem sido definida como


qualquer livro que intencionalmente ou não, traduza peculiaridades locais
158 UNIUBE

e vincule-as a uma área do país, regiões rurais e nelas situem ações e


personagens, procurando expressar suas particularidades linguísticas.

Vila dos Confins é ambientado conforme a introdução do livro: “no sertão


dos confins”, lugar esquecido da geografia e dos governos, lugar de pouca
lavoura, muito gado e muita pesca. Lugar onde se caça e se proseia.
Cidade de política disputada sem escrúpulos. Lugar que parece ser no
Triângulo Mineiro, mas pode ser na região de Paracatu, ou mesmo em
Goiás, ou quem sabe em Mato Grosso?

O trecho a seguir, de Vila dos Confins, exemplifica a tese de Chiappini:

(...) Tantos diamantes famosos, tantas histórias que se


contam! Horas a gente passa – principalmente em noites
de chuva escutando bonitos casos e mais casos desses.
O corpo se acomoda logo aos paus roliços do jirau, e
a canequinha de cachaça bem que ajuda a espantar a
friagem do tempo. E, se o fumo é bom – cachoeirinha ou
goiano de Bela Vista – noite melhor só inventando.
Claro que a noite de chuva, a pinga velha e o cheiroso e
bom fuminho, tudo isso é sete de copas e espadilha, só.
Zapete no pé, dono mesmo do truco, esse é contador de
história. E se o cujo se chamar Raimundão, for mineiro de
Fortaleza e mulato de nascença, a chuva emenda, vira
inverno. A cachaça acaba, o fumo acaba, acaba o fogo
também – mas as histórias do Raimundão não acabam
nunca, que o tal é garimpeiro vivido e viajado, e memória
boa assim pode ser que haja outra...(PALMÉRIO, 2003, p.129).

Aqui a geografia do lugar fica explícita, especialmente pelos sujeitos sociais


que a compõem. Sabemos que é uma região diamantífera, que apresenta
um tempo chuvoso e não existem muitas distrações. Deduz-se que é o in-
terior do país. As pessoas se reúnem em torno de um bom narrador e com
as coisas simples como o sabor de uma cachaça, de um cigarro de palha
e das histórias contadas, fazem da noite e das relações estabelecidas, me-
mórias inesquecíveis. Não importa exatamente o local, importa a nostalgia
de um tempo que tem muito mais a ver com o rural do que com o urbano.
Como diz Benjamin (1994), o narrador é de um tempo anterior ao romance,
que inaugura um tempo do individualismo e da modernidade. Por isso,
paradoxalmente, as experiências de um tempo perdido são inventariadas
pelo romance que identifica uma época, um lugar.
UNIUBE 159

Há quem vincule o regionalismo literário à tradição greco-latina do idílio


e da pastoral. Em meados do século XIX, essa tradição é retomada e o
romance regionalista começa a viver da tensão entre o idílio romântico e a
representação realista, tentando progressivamente dar espaço ao homem
pobre do campo, cuja voz se torna audível pela narrativa. Daí a possibilidade
do seu reconhecimento pelo leitor da cidade, do diálogo entre realidades
diferentes. À tensão entre idílio e realismo correspondem outras constitutivas
do regionalismo: entre nação e região, oralidade e letra, campo e cidade,
história romanesca e romance; entre a visão nostálgica do passado e a
denúncia das misérias do presente.

Em algumas passagens de Vila dos Confins, a trama que enreda as


personagens perde lugar para uma narrativa idílica da natureza que, tal
como uma tela do realismo, a descreve minuciosamente.

É assim que o idílico aparece em várias passagens do livro, tais como:

O Rio Urucanã rolava sem pressa – calado, emburradão.


Tão de manso, tão de manso rolava, que parecia dormir
que nem o povoado nascido e crescido no barranco.
Corrutela de lugar, a Vila: a igreja, um punhado de casas
de adobo e de telhas, e uma porção de ranchos de taipa
e folha de buriti. Rua mesmo, uma só: começando na
igreja e acabando no cemitério, tal e qual a vidinha do
povo que mora lá. (PALMÉRIO, 2003, p. 30).

Todavia, a tensão entre o idílio romântico e a representação realista,


que tenta progressivamente dar espaço ao homem pobre do campo,
também aparece em Vila dos Confins por meio das relações sociais
em que a luta pela vida, o trabalho pesado e a expropriação do patrão
culminam com as eleições. É nessa época que o pobre vira objeto
de cobiça do sistema, é nessa época, denuncia Palmério, que o pobre
vira pessoa:
(...) João Soares estava com a razão: política só
se ganha com muito dinheiro. A começar pelo
alistamento, que é trabalhoso e caro: tem-se de ir
atrás de eleitor por eleitor, convencê-los a se alistarem,
e ensinar tudo, até a copiar requerimento. Cabo de
enxada engrossa as mãos – e o sedenho das rédeas,
160 UNIUBE

o laço de couro cru, machado e foice também. Caneta e


lápis são ferramentas muito delicadas.
A lida é outra: labuta pesada, de sol a sol, nos campos e
nos currais. É marcar bezerro, é curar bicheira, é rachar
pau de cerca, é esticar arame farpado; roçar invernada,
arar chão, capinar, colher... E quem perdeu tempo com
leitura e escrita, em menino, acaba logo esquecendo-se
do pouco que aprendeu. Ler o quê? Escrever o quê?
Mas agora é preciso: a eleição vem aí, e o título de
eleitor rende a estima do patrão, a gente vira pessoa
(...).(PALMÉRIO, 2003, p. 75).

Palmério em entrevista a Ary Quintella, jornalista do Jornal do Commércio


do Rio de Janeiro, reproduzida no livro Seleta de Mário Palmério (1974),
comenta que Vila dos Confins é uma reportagem sobre sua experiência
eleitoral, sintetizada numa pequena cidadezinha que dá nome ao livro
e onde se passam acontecimentos reais de umas dez cidades. As
personagens são as mesmas, sempre há um Dr. Paulo, um mascate,
um dono de venda e um coronel. No entanto, tudo ali é pura ficção, visto
que ganhou a eleição e, no romance, Dr. Paulo perdeu...

O livro apresenta trechos muito interessantes, que confirmam as teses


so-bre o regionalismo, aqui apresentadas:

(...) Era longe, do aeroporto à cidade. Mas a viagem de


automóvel não enjoava mais. Ar, sol, chão firme – aquilo
sim. O Osmírio é que continuava:
- Não lhe falei coronel? Isso passa. Incomoda, eu
sei, mas vale a pena. Se a gente tivesse vindo de
automóvel, eram dois dias. De avião, o senhor viu: três
horas e tico...
Mas para Chico Belo bastava a experiência. Ia voltar de
trem ou de jardineira. No tal avião, por dinheiro nenhum
deste mundo!
(...) Chico Belo gostava de ficar parado assim, à porta
do hotel, olhando o movimento. Bonito o pisca-pisca dos
anúncios luminosos – verde, vermelho, azul, amarelo
- arco-íris a tremeluzir nas poças. Apesar da chuvinha
miúda, insistente, o mesmo correcorre cruzando-se no
largo passeio da avenida.
Quanta mulher! Sozinhas, a uma hora daquelas, a tran-
çar pernas pelas ruas da cidade grande. Mulher – coisa
boa! Elas faziam a gente sentir vontades engraçadas (...) Tudo
UNIUBE 161

nelas assentava: aqueles chapéus de soldado que a


gente fazia nos tempos de menino(...) Na chuva viravam
também bichinhos de tempo de chuva: aquela mocinha
magra, alta de capa verde-clara – tal e qual louva-a-deus;
a outra mais magra ainda e de óculos – gafanhotinha
ner- vosa, pula-pula(...)
Dr. Osmírio lia os jornais no saguão do hotel, enquanto
esperava pelo Almeidinha. O Braulino, esse já subira
para o quarto, havia que tempo! Chico Belo continuava
olhando a chuva e o movimento. Automóvel, automóvel,
gente, gente. Louva-a-deus, gafanhotas, joaninhas,
Mulher, mulher, mulher...
Vida boa, a vida de cidade grande! (PALMÉRIO, 2003, p. 174).

A cidade, a tecnologia, o avião, os luminosos, a aceleração dos


movimentos e das pessoas, os novos hábitos femininos causam
estranhamento para aqueles que vêm do mundo rural. A vontade
primeira é a volta para o aconchego e de preferência com os pés no
chão. Enquanto não fosse possível, melhor era buscar nesse outro,
tão diferente, alguma semelhança ou referências com o que tivesse
significado expresso num imaginário do interior, do sertão. Vale lembrar
que, na época do romance, o Brasil se moderniza, e para tal, as fronteiras
entre o campo e a metrópole terão que ser rompidas e o jeito caipira de
viver se vê ameaçado de desaparecer.

O regionalismo, por ser uma tendência temática e formal que se afirma


marginalmente à “grande literatura”, é confundido frequentemente com
a etnologia, a pedagogia e o folclore. Para Chiappini (1995), certos
autores de textos de reconhecida qualidade estética não tinham a
intenção de ir além do testemunho, do registro de contos e lendas orais,
ou quando muito, de fazer história, visto que essas obras atravessam
e são atravessadas por acontecimentos reais. O argumento da crítica
seria de que a qualidade literária das obras regionalistas as elevaria do
regional ao universal. No entanto, essa mesma crítica se esquece que é
“o espaço histórico geográfico entranhado e vivenciado pela consciência
das personagens, que permite concretizar o universal” (p.157). Ainda
segundo a autora, o regionalismo como tendência literária evoluiu. Lê-lo
como algo fechado em si mesmo é empobrecedor.

Afrânio Coutinho (1968) reforça a tese de que ser regional não


corresponde a ser antiuniversal, ou seja, o artista é universal na medida
162 UNIUBE

em que também é regional. Quanto mais integrado a seu meio, mais


solidez e autenticidade apresenta. “Graças a isso torna-se-lhe possível
oferecer ao público uma qualidade de personagens, uma estrutura
de fatos, uma constelação de imagens e um estilo, que o fizeram
reconhecível como uma genuína voz da tribo”. Em Vila dos Confins,
o autor aborda problemas regionais e adota o linguajar regional, porém
sem os exageros tão comumente destacados pela literatura popular.
Utiliza metáforas, figuras de linguagem, ironia, repetição, para enfatizar
a força da fala.

Chiapini define que em qualquer situação:


(...) O grande escritor regionalista é aquele que sabe
no- mear; que sabe o nome exato das árvores, flores,
pássaros, rios e montanhas. Mas a região descrita ou
aludida não é apenas um lugar fisicamente localizável
no mapa do país, supõe muito mais um compromisso
entre refe- rência geográfica e geografia ficcional.
(CHIAPPINI, 1995, p. 158).

Vejamos estes elementos de referência em Vila dos Confins:


(...) Pouco mato e, por isso mesmo, madeira pouca. Nos
Confins – claro que à exceção das zonas de cultura de
primeira – o pau de lei é vasqueiro. Um isto que mal-mal
dá para o gasto: canela, ipê (primos-irmãos, os dois:
o ipê roxo e o ipê amarelo), a sucupira, o cedro. E a
aroeira, que, apesar do madeirão respeitado que é,
não padroniza, a rigor, cultura de primeira qualidade.
Tirante essas bondades, terra pobre: cerrado de
um pêlo, de dois, cerrado de três pêlos; campos de
flechão, membeca, mimoso, capim-sapê. Ah, e
a caatinga! (PALMÉRIO, 2003, p.21) (...) E mais:
tabaranas – especialistas em ataques de superfície, e
bicho de paladar delicado: comida só se for piabinhas,
e os lambaris-do-rabo-amarelo, lambaris-do-rabo-
verde, lambaris-do-rabo-vermelho, lambaris-do-ra-
bo-maravilha...
E mais,: pacuaçus, piaus-de-três-pintas, matrinxãs...
E no fundo? Ah, no fundo! Lá estão eles, os peixes de
couro, grandalhões e bigodudos: mandijubas e cascu-
dões; picamãos, feiosos e sempre taciturnos; surubins,
abotoados, jaús. (PALMÉRIO, 2003, p. 254).
UNIUBE 163

Para além do compromisso entre a geografia e a ficção há que se


salientar a sensibilidade que não apenas olha, mas, antes, vê, observa,
nomeia, descreve, explica, e tal é a composição e profusão da fauna e da
flora que tanto para os que habitam o lugar como para o forasteiro é como
se o visitasse pela primeira vez. E a sensação para o leitor talvez seja:
“como eu não percebi isso!” – “quantos detalhes compõem este espaço!”
E mais do que isso, ao demonstrar tais aspectos, a ficção permite uma
identidade, um saber de si mesmo, do lugar onde as raízes se fincaram.

Palmério informava em entrevistas concedidas a jornais e revistas


que nasceu com a paixão pelo sertão, sempre caçou e pescou
muito, procurando conhecer as zonas e regiões por onde passava,
sem predileção especial por nada, mais pelo contato homem-animal,
homem-mata, homem-sertão. As passagens sobre a vida no sertão
foram muito festejadas pela crítica, que destacava que alguns capítulos
pareciam contos que separados do livro fariam sucesso por si mesmos:
A pesca do surubim; O padre e a onça preta; Vida de garimpeiro; O
boi cego e a sucuri; Negócio de caboclo; Perfil de urubu roceiro e Uma
lição de pesca. Nesses capítulos, o autor utiliza metáforas, clímax,
elipses e estilo de contador de “causos”, do tipo que o faz à beira do
fogo, inclusive tal como em O padre e a onça preta: “ (...) todo mundo
ouvia a história com atenção (...) nem um pio.” Como que estimulando o
clima de contador de histórias do padre Sommer, relata: (...) “tinha estilo,
falava com calma – demorando-se em minúcias que sabia transformar
em aventuras novas” (PALMÉRIO, 2003, p. 85 - 102). Nesse capítulo, a
onça foi caracterizada com uma esperteza e calculismo quase humanos.
Em O boi cego e a sucuri, o autor detalha o fatalismo da morte do boi.
No final da narrativa, ao demonstrar a dignidade do animal, que mesmo
cego de um olho lutou até a morte, funde a fala tal como a do sertanejo
com o pensamento do boi:

(...) Esmoído de canseira, um bagaço, o curraleiro


arria as cargas, repuxa, arrocha, dessarrocha. Adianta
mesmo mais não. Então é que o pobre boi de carro
perde o respeito. Chora. Buezão desta grossura, choro
triste, a coisa mais triste mesmo, de todas as desgraças
deste mundo. (PALMÉRIO, 2003, p.122).

Em “O perfil de urubu roceiro”, o autor personifica o urubu como o diabo


em forma de animal e o “veste” de preto, casaca e cartola, e lembra que:
164 UNIUBE

(...) Não há bicho mais velhaco de que urubu roceiro,


morador em zona de criação, mal acostumado pelo
daninho vício de comer umbigo de bezerro recém-parido.
Lá está o peste de plantão. Refestelado que só ele, no
galho alto do pé de angico esquecido no meio do pasto
(...) A gente dobra o corpo, deita mão em pedra. O urubu
raciocina: mede o mal-inclinado do passante, calcula o
tamanho e o peso da pedra, adivinha até aonde pode
chegar aquele meio quilo de maldade. Pensa e repensa
ligeiro, e continua pousado do mesmíssimo jeito. (...)
Urubu tem cabeça boa e faz conta melhor do que gente.
(...) Pode ser hones- to um bicho dessa categoria? É
criação do capeta ou não é? (PALMÉRIO, 2003, p.192).

Segundo Fontes (2000, p.126) “a natureza é protagonista de Vila


dos Confins e uma das razões do próprio livro. Se tudo é ficção ou
ficcionado, a geografia, entretanto, é verdadeira, descrita com detalhes
por um grande conhecedor”. O pesquisador descreve o estilo de Palmério
como forte, marcante, apresentando riqueza de imagens e descrições
precisas, “fazendo com que o leitor veja claramente os quadros que
descreve”. Na avaliação de Fontes, Palmério é profundo conhecedor
do falar do povo, de sua região, “utilizando com precisão e elegância as
expressões regionais, o que lhe confere originalidade”.

Afrânio Coutinho (1976) entende que toda obra de arte é regional quando
tem por pano de fundo alguma região particular ou parece germinar desse
fundo, retirando sua substância do clima, da topografia, da flora, da fau-
na como elementos que afetam a vida humana na região, bem como das
maneiras peculiares da sociedade estabelecida naquela localidade e que
a fizeram distinta de outras. A Literatura Brasileira, segundo Coutinho, é
parte de uma cultura regionalmente diferenciada e inter-regionalmente
relacionada de grande importância para a crítica e história literárias.

5.3 A trama e seus personagens

No livro, o fio condutor da narrativa, ao longo dos trinta e um capítulos, é


a eleição para prefeito de localidades que, pela indicação geográfica do
autor, se situam entre o Triângulo Mineiro, Mato Grosso, Goiás e Norte
e Noroeste de Minas Gerais.
UNIUBE 165

À história da eleição vão se juntando narrativas sobre o dia a dia do povo


do interior. Cotidiano entremeado de pescarias, caçadas, lida de fazenda.

As personagens da trama de Vila dos Confins desfilam compondo não


só tipos físicos, mas profissões, interesses, preferências, envolvimentos,
expectativas de futuro:
(...) Sol já meio de esguelha, sol das três horas. A areia,
um borralho de quente. A caatinga, um mundo perdido.
Tudo, tudo parado: parado e morto. Mas alguém cruza
aquelas lonjuras com a mala nas costas. Quem será?
(PALMÉRIO, 2003, p. 25).

Assim, o autor introduz a personagem Xixi Piriá – mascate que andava


pelas bandas dos Confins levando ao povo das fazendas um pouco da
cidade. Trazia de tudo: tesouras, relógios, perfume, sabonetes, corte de
tecido, artigos de armarinho, baralhos, apito. Xixi Piriá era muito querido,
fazenda nenhuma lhe cobrava pouso. Dava notícia de tudo e de todos,
servia a muitos. Palmério refere-se à personagem de modo a causar-nos
simpatia, pois ele mesmo demonstra satisfação ao relatar:
(...) Lá vem ele. Ganjento, pilantra, roupinha de brim
amarelo, vincado a ferro, chapéu tombado de banda,
lenço e caneta no bolsinho do jaquetão abotoado (...)
passinho miúdo, apressado. Botina chienta na areia que
ringe também. Lá vem ele! (...) Xixi Piriá tinha lá suas
manias: a predileta era brincar com a própria sombra,
vigiar o espicha-encolhe provocado pelo sol a subir e
descer. (PALMÉRIO, 2003, p. 25).

Xixi Piriá terá um papel muito importante no final da trama, será o


vingador involuntário que todos ao lerem o livro esperam encontrar.

O capítulo dois retoma a descrição da paisagem numa passagem idílica: “o


rio Urucanã rolava sem pressa – calado, emburradão. Tão de manso rolava
que parecia dormir que nem o povoado nascido e crescido no barranco”.
A descrição é tão detalhada que se fecharmos os olhos e fizermos um
exercício de imaginação, poderemos até sentir o cheiro do rio.

Nesse capítulo, é introduzida a personagem do Deputado Paulo Santos,


político ligado à região, que vem para o interior com a incumbência de
166 UNIUBE

articular a eleição para prefeito. João Soares é candidato pela União


Cívica em oposição a Chico Belo, candidato da situação. Santos é a
personagem que permite ao autor entremear política com costumes,
pescarias e caçadas, que tanto encantaram o público. Em alguns trechos
do livro, Santos, demonstrando cansaço com a corte que os políticos
precisam fazer aos eleitores, escapole e vai se distrair com o que mais
gosta de fazer, que é pescar. A pescaria é descrita de forma didática,
inserindo o leitor nos mistérios da atividade.

(...) Hora e tanto já, e nada de peixe. Mas o gostoso era


ficar assim na canoa, pensando na vida, imaginando
coisas. Passada aquela eleição, ia sossegar. A política
ma- tava, acabava com a pessoa. Depois que se metera
nela, nunca mais pudera ter uma semana de descanso.
Escravo dos outros, do partido, do eleitorado. E os
adversários não dormiam, os concorrentes vigiavam.
Todos os dias noticia má, nomeações que não saiam,
chefes do interior que ameaçavam romper por causa
de pedidos impossíveis...E ter de mentir, de prometer...
(PALMÉRIO, 2003, p. 31).

Jorge Turco, sírio, solteirão, dono de uma venda na Vila, era quem
“hospedava” o deputado, e era em seu estabelecimento que ocorriam
as reuniões com os companheiros de diretório, correligionários: João
Soares, Antero, Tinoco, Jeová, Jerominho... As ausências também eram
anotadas e revelavam como andava o apoio. Não vieram o Alcindo
da coletoria, o Juvêncio, o Juiz de Paz. Intendente e delegado não
compareciam mesmo. Agora que Paulo fundara o diretório da União
Cívica, o Coronel Chico Belo não perdoaria aqueles que estavam
apoiando a candidatura de João Soares. Ainda não era prefeito e Chico
Belo mandava e desmandava. Grileiro de terras, chefe de uma tropa de
jagunços, controlava tudo pela força, pela violência.

Entre relatos sobre o mal de Chagas, explicações sobre o perigo do


barbeiro e a técnica a ser utilizada por um homem alto como o deputado
para um banho de chuveiro feito de lata de querosene e bico de regador,
o cotidiano da política é desenrolado.

Com a aproximação das eleições nos municípios recém-emancipados


– Vila dos Confins, Ipê Guaçu e São Benevenuto – a política estadual
se agitava. Os chefes políticos do interior exigiam prestígio do governo.
UNIUBE 167

O governador tem compromisso comigo, João Soares.


Comigo e com o partido.
– Sei não deputado. Eleição se ganha, mas é com
dinheiro e polícia (...)
Não. Tinham que reagir, ganhar aquela eleição. A turma
era boa, disposta (...). Depois, o voto era secreto!
Um trabalho de qualificação bem feito, o esclarecimento
de porta em porta de eleitor em eleitor, bons cabos para
ensinar aos novatos, entregar marmitas já preparadas
ao eleitorado, fornecer condução à vontade, quartel com
fartura de churrasco e um bom pagode, um comício no
largo da igreja (...) sem dinheiro é perder na certa – com
menos de duzentos contos a gente não toca a política
de Vila dos Confins.
– Pois olhem: o jeito é ganhar a eleição de qualquer ma-
neira, do contrário o Chico Belo acaba com a vida de
vocês (...) em política vale quem vale, só é respeitado
quem ganha. (PALMÉRIO, 2003, Capítulo dezessete).

Continuando a apresentação das personagens, vamos encontrar


Gerôncio, amigo e compadre de Paulo Santos, companheiro de
pescarias, de goles de cachaça, dono da balsa que fazia a travessia do
Urucanã e que foi descrita por Mário Palmério da seguinte forma:

(...) – Nada burro o sujeito que inventou a balsa – prose-


ava o Aurélio – Dois canoões, tabuado por cima, cabo
de aço e boa carretilha...
Engraçado – começou Paulo, até hoje não entendi di-
reito como é que isto funciona. Sei que é só pela força
da água.
Mas o resto...
Pois é uma simplicidade, Paulo, - aproveitou o tio.
Tudo por causa deste jeito meio torto das canoas: a
correnteza vem, esbarra nelas, e força a balsa a andar
de lado que nem caranguejo...O cabo de aço e a
carretilha fazem o resto...
E para voltar?
A mesma coisa: vira-se a posição das canoas, o cabres-
to agora do outro lado. A correnteza em vez de bater do
lado de cá, passa a fazer força do outro. O empuxo da
água é o mesmo; só o entortado da balsa é que muda...
(PALMÉRIO, 2003, p. 54).
168 UNIUBE

Companheiro de estrada, Aurélio, tio de Paulo Santos, peão pantaneiro


por profissão, era amizade antiga desde que o deputado era menino, e
faz parte das reminiscências da juventude de Santos, acompanhando
o deputado em suas andanças políticas. Bom de prosa e com muita
experiência na região. Foi a conversa de Aurélio que salvou o encontro
de Paulo com as pessoas de Carrapato, pois a malária achou de
retornar para derrubar o deputado assim que chegaram na localidade.
Cidadezinha que lembrava miséria e abandono, tristeza, falta de vida.
Vejamos tal fato que a ilustração tem por missão recriar:

O sol caía de ponta, brutal. Entorpecia e queimava


tudo. A areia parecia polvilho de espelho socado no
pilão. O ar, a gente podia vê-lo mover-se – lesma
amarela, quente, pegajosa, a arrastar-se por sobre as
ruas e telhados (...) dois anus agourentos, trepados
na caveira de boi fincada no moirão alto da porteira.
A caveira estava ali para espantar o mau olhado;
mas aquelas duas assombrações – pretos os olhos,
preto o bico, a cabeça, asas, pés, tudo, tudo preto
inutilizavam o exorcismo. Fiasco de caveira: piavam
agora os dois agourentos, como que chamando pela
morte, perdidos de saudades dela. Não, anum não era
passarinho: assombração mesmo, como morcegos.
Encostados à cerca, os bois de carro cumpriam castigo,
atrelados dois a dois, muda fila imóvel em frente
ao cargueiro de sal; babavam, babavam... – quem
sabe se a baba apagava o fogo que lhes subia pelas
pernas, vindo do braseiro do chão! (PALMÉRIO, 2003, p. 64).

A malária derrubou o deputado, que com febre alta, desmaiou frente aos
correligionários. Maneiroso, o tio Aurélio esquentou a conversa com os
pobres, buscando saber se entre ele e os hospedeiros não havia algum
ramo familiar em comum, afinal viviam na mesma região. Não seriam
primos distantes?

Entre os visitantes encontrava-se Pé-de-Meia, cabo eleitoral, alistador de


gente, pago por cabeça. “João Soares tinha razão, política só se ganha
com muito dinheiro”. É por intermédio de Pé-de-Meia que o autor nos
presenteia com – a meu ver – a passagem mais bonita do livro. O trecho,
descrito com poesia e sensibilidade, é um relato sobre o alistamento
eleitoral e apresenta a dificuldade encontrada por um trabalhador rural,
acostumado com as atividades da fazenda em escrever seu próprio nome
com uma ferramenta tão singela quanto uma caneta tinteiro:
UNIUBE 169

(...) Tem-se de ir atrás de eleitor por eleitor, convencê-


los a se alistarem, e ensinar tudo, até a copiar
requerimento. Cabo de enxada engrossa as mãos (...)
caneta e lápis são ferramentas muito delicadas. A lida é
outra coisa: labuta pesada, de sol a sol, nos campos e
currais. É marcar bezerro, é curar bicheira (...) E quem
perdeu tempo com leitura e escrita em menino, acaba
logo esquecendo-se do pouco que aprendeu. Ler o
quê? Escrever o quê? Mas agora é preciso: a eleição
vem aí, e o título rende a estima do patrão, a gente vira
pessoa (...)
- Minha vista anda que é uma barbaridade. E de tempos
para cá, apanhei uma tremedeira que a mão não para
mais quieta (...)
O novato sua, desiste: Vai não Pé-de-Meia. Mas o
cabo é jeitoso, não força, não insiste – espera. Tempo
só de passar a gastura que a caneta sempre dá no
principiante. (...) Depois do jantar, já menos afadigado,
João Francisco tenta de novo. A mulher está perto, os
filhos também. O roceiro lavou as mãos, a lamparina
queima claridade dobrada, de bom pavio novo. “Sai
da frente da luz menino! Me dá um copo de água ô
Cota. Qual... minha vista não presta mesmo mais não.
Besteira teimar.”
Pé-de-Meia não deixa afrouxar o embalo: “Me dá
licença, seu João” E pega no mãozão cascudo, pesado
tal um caminhão de tora. Vai choferando a bicha, para
cima e para baixo, caminhando com ela sobre o papel.
O rasto fica: primeiro, a foice espigada do jota, depois
a laçada bamba do ó; em seguida, mais duas voltas
grandes, repassadas e atreladas umas à outra. Mas
ainda falta o remate: o urubuzinho do til que Pé-de-Meia
fez João Francisco desenhar, bem saliente, por cima
do primeiro trecho da tremida assinatura. “Já varamos
um bom eito. Vamos descansar um pouco: falta ainda o
Francisco, falta o de Oliveira… Não é fácil, não senhor,
leva tempo. Mas aos poucos João Francisco aprende
a relaxar a mão, descobre que não carece de fazer
tanta força, já não molha de suor o papel (...) A pena
ringe alto, mas risca bem grosso, bonito... Pelo meio
do caminho, já dono de si, João Francisco acha até de
conversar para mostrar desembaraço: “Este é o tal de
gê? Gostei dele, uma simpatia de letra! (PALMÉRIO,
2003, p. 74-75).
170 UNIUBE

A beleza desta passagem reside em evocar o sofrimento e a humilhação


de brasileiros pobres, de mão calejada, na ânsia de se sentirem cidadãos
pelo voto. A aparência e a simples assinatura não lhes renderiam a
possibilidade de mudar o seu destino, mas, no mínimo, o respeito entre
seus amigos na comunidade em que viviam.

As mulheres pouco aparecem no livro. Ritinha, afilhada do deputado


Paulo Santos, a esposa de um correligionário, a cozinheira do Jorge
Turco e as moças que trabalham na eleição são apenas citadas e Maria
da Penha é a única que tem algum envolvimento com a trama.

O autor tentou introduzir um ar de romance no livro, porém parece ter de-


sistido. Maria da Penha, viúva, filha do seu Sebastião, dono da fazenda
Boi Solto, resolve levar o deputado para se recuperar da malária em sua
casa, fazenda pertinho de Carrapato, lugar tranquilo, fresco, com muita
fruta, espaço e gente para cuidar dele. Xixi Piriá era quem sabia da
história da viúva. Moça nova, bonita, tinha uma paixão na juventude, no
entanto casou-se com o dr. Luisinho, parente próximo, muito mais velho
que ela por arrumação de seu pai, o Sebastião. O casamento acabou
não dando certo, contava-se pela Vila que ela teve vários casos: o chofer
de praça, um médico da casa de saúde, o rapaz do banco... “Dona Maria
da Penha caíra mesmo na boca do povo”. (PALMÉRIO, 2003, p. 117).

O marido, em menos de um ano de casamento, suicidara-se com um tiro


de carabina. Durante todo o período que Paulo Santos esteve hospedado
na fazenda, Maria da Penha insinuou-se para o deputado. Ele quase ce-
deu. Moça bonita, não há homem que resista: “Vou deixar a porta do meu
quarto encostada; à noite, depois que os outros se deitarem, você vem...”
O encontro só não aconteceu em virtude de uma sucuri que atacou um
boi da boiada de Nequinha capador e o pobre animal berrou tanto que
acordou todo mundo na fazenda.

Após o susto do deputado, o autor aproveita para passar uma mensagem


moralista, comentando a insensatez de Maria da Penha, através do
pensamento de Paulo Santos:

(...) Louca e perigosa, forçar o encontro no próprio


quarto, dentro de casa, com a fazenda cheia de gente(...)
coitado de seu Sebastião! Tão bom homem, tão serviçal (...)
UNIUBE 171

uma indignidade, abusar da hospitalidade dele,


aproveitar-se da falta de juízo da filha(...) uma sorte
o boi curraleiro achar de ir beber água na lagoa, justo
na hora em que ele iria entrar(...) e se o boi esperasse
mais alguns minutos, todo pessoal da fazenda ia saber
e com que cara os dois iam voltar? Ela de camisola,
ainda por cima...Não, nem era bom pensar numa
tragédia daquelas! (...) o certo era fugir de Maria da
Penha, da tentação (...) não ficaria nem mais uma noite
na fazenda. Era hora de visitar o garimpo. (PALMÉRIO,
2003, p.127-128).

Nos capítulos que tratam do garimpo, Palmério traça a lida do garimpeiro,


como se fosse um profissional do ramo:

Gentes olhem quem está aqui! Dr. Paulo em pessoa!


Vai correndo soltar um foguete de rabo, ô Dito – meu
garimpo bamburrou!
Garimpo de monchão. Ilhas de cascalho espalhadas
pelo terreno, umas aflorando à superfície, outras
enterradas no solo.
À falta de coisa melhor, chapéu de garimpeiro serve
também de bateia – e, depois de lavado e bateado,
o cascalho contou a raça: safira e pedro-da-costa, e
pingo-d’água e marumbé!
Raimundão voltou com a turma. Roçou capoeira e
fincou a rancharia. E soltou a tatuzama – um zaré!
O tal cascalho, mal cheios dúzia e pouco de carumbés,
soltou de saída duas unhas-secas, e uma delas de grão
e pico: e salceda, ainda mais! E lavada e peneirada
a pururuca, deu cria a mais três irmãzinhas gêmeas,
todas meio grão para cima.

No fundo do buraco, os alavanqueiros e enxadeiros,


assis- tidos pelos chupeteiros que bombavam a água
para fora. Nos barrancos as duas filas de ida e volta:
a que subia os corumbés cheios de cascalho e a que
os devolvia vazios. E ninguém mamparreava, que de
tempo em tempo as duas filas se destrocavam.
Assim, assim, seu doutor. Muita grisosta e fundo
lascado. E Santana, lá uma vez... (PALMÉRIO, 2003,
p.129-131).
172 UNIUBE

Palmério dedicou dois capítulos do livro à


Bacuri personagem Neca Lourenço, fazendeiro que
Tipo de palmeira veio de São Paulo para trabalhar na região.
encontrada em terras Ecologista por instinto, Neca torna-se opositor
muito férteis, servindo de
padrão para classificá- ferrenho dos caboclos, que, segundo ele, são
las como terras de responsáveis pelo desmatamento e derrubada
primeira qualidade.
de bacuri e guariroba. Em suas terras,
Guariroba
caboclo preguiçoso e derrubador de palmeira
Palmeira de até 20 é tocado da fazenda à bala. O deputado Paulo
m com cerca de 15 a
20 folhas, dispostas Santos chega até sua fazenda para convidá-
em espiral, nativa do lo a candidatar-se como vereador pela União
Paraguai e do Brasil
(BA ao PR, MS, GO) e Cívica. Caso o amigo aceitasse seria uma ajuda
muito cultivada como de grande valia, pois Neca Lourenço era inimigo
ornamental, pelos frutos
verde-amarelados, declarado dos Belo, família do Coronel candidato
comestíveis, e pelo a prefeito pela oposição. Ante a negativa inicial:
palmito amargo, com
propriedades medicinais “não dou para isso, não, de jeito nenhum. Sou
e muito usada na
culinária das regiões em homem acostumado, mas é a fazer cerca de
que é originária. arame, rachar aroeira, curar frieira de gado –
Folia de reis homem da roça, cavouqueiro, sem ins- trução”,
Tradição no folclore
doutor Paulo sai com essa:
sertanejo, vinculada
ao meio rural, onde os (...) O senhor pode até achar graça. Pode até pensar
foliões se organizavam que estou querendo apenas ser-lhe agradável.
para comemorar fartura, Mas vou-lhe dizer a verdade: sou tão roceiro, tão
chuvas etc., e saíam
pelos caminhos das sertanejo, tão fazendeiro quanto o senhor. Só que
fazendas o senhor conseguiu fazer tudo isso, fincou toda
e sítios cantando versos essa madeira, realizou seu sonho. Eu ainda ando
religiosos, narrando
a vida de Jesus e da como o senhor andava nos seus tempos de peão
jornada dos Reis Magos de boiadeiro...Mas o diabo é que me botaram
e pedindo esmolas. nas mãos, quando eu era menino, caderno e livro
Carregada de simbologia
e significados, na folia em vez de uma boa vara de ferrão. Sentaram-
de reis predomina gente me em banco de escola em vez de me montarem
simples, humilde, que se em pêlo num poldro sem costeio. Meteram-
reúne em grupos de 8 a
12 pessoas, que durante me um freio de água-choca nos queixos e me
o período de vinte e puxaram de rastro para um caminho que não era o
quatro de dezembro meu... (PALMÉRIO, 2003, p.163).
até seis de janeiro,
percorrem caminhos
previamente combinados Os capítulos de Neca Lourenço tratam também
levando instrumentos do caboclo e de manifestações culturais como a
musicais e um
estandarte, a “bandeira” folia de reis, “pedras no sapato” do fazendeiro
que traz a imagem de
Santos Reis visitando que tinha verdadeira implicância com os
a Sagrada Família (Cf. caboclos e suas atividades. Palmério declarava-
Caderno
de Folclore número 4/ se fã de Monteiro Lobato, que leu já adulto, e
fevereiro de 2002 pode tê-lo influenciado na descrição e análise do
– Arquivo Público de
Uberaba). caboclo em seu livro. (PROENÇA, 1974).
UNIUBE 173

Lobato, decepcionado com as experiências de administrador de fazenda,


e indignado com as práticas agrícolas dos caboclos de sua propriedade,
começa por colocar suas preocupações com o progresso e com os
problemas brasileiros, inicialmente por suas publicações em jornais e
depois em livros como A velha praga e Urupês. Segundo Aleixo (2005),
a imagem do Jeca Tatu, criada por Monteiro Lobato, passou a povoar
o imaginário social brasileiro, tornando-se uma figura emble- mática,
caricaturizada dos caboclos como feios, analfabetos, pobres, preguiçosos,
sujos, inadaptáveis à civilização e aos tempos modernos. E, de certa
forma, Jeca Tatu é a representação literária utilizada para pensar o homem
nacional na primeira metade do século XX. Assim, como antítese do
progresso, da nação de trabalhadores que se quer construir, “percebe-se
que o caboclo pode ser caracterizado como um ser errante, um trabalhador
em movimento, vivia a ser empurrado de um sertão que conquistou (...) até
ser expulso através da força física usada pelos coronéis”.Várias passagens
de Vila dos Confins permitem identificar o leitor lobatiano, o homem
que cresceu na primeira metade do século XX, na qual, segundo Aleixo,
os intelectuais ansiavam por (re)descobrir o país, seus problemas, sua
realidade e o potencial econômico e cultural.

Vejamos algumas dessas passagens:

(...) - Você viu aquela caboclada lá na venda, João Soa-


res? Toda vez que me encontro com essa gente, chego
a sentir até tristeza. Povinho difícil! Quando a gente
pensa que já acabou a raça, sempre dá de aparecer um
ou outro para dizer que não!. Praga mesmo!
- Já lá envem você com a tal mania – resmungou
Aurélio – Falta até de caridade... Deixe os pobres em
paz!
- Pobres? Você não viu o modo deles? A gente chegou,
conversou, bebeu café. E nada... preguiça até de
ter curiosidade. Se nem levantam a cabeça, o corpo
então...
(...) o senhor vai combinar com o Neca; ninguém implica
mais com o caboclo que ele.
Boiadeiro antigo ainda se lembra de uma raça de ca-
chorro sertanejo que sempre aparecia nas comitivas.
Eram gazetas – tipo ressabiado e sem serventia, e tão
magro, e tão feio, e tão sem qualidade nenhuma, que de
cachorro só tinha mesmo o jeito.
174 UNIUBE

(...) Assim também acontece com a raça do caboclo. É


baixo: não sabe viver no meio de gente honesta. Perdão
de Deus, até na amigação desrespeita a irmandade.
Donde a parecença da filharada: tudo de carinha
chupada, cabelinho ruim de milho encruado, orelha já
em forquilha para enganchar o toco de cigarro de palha.
E cuspindo de lado, de esguicho, que nem mijada de
sapo. Cambada!
E guardando dia santo. Folhinha não traz, todo dia, o
nome do padroeiro? Caboclo é fervoroso. Tanto que se
ofende se alguém lhe pede adjutório – que seja manei-
ro, a toinha, o serviço: o santo não perdoa, fica afronta-
do, castiga. E ainda há quem insista, quem abuse
dele, quem persiga povo tão piedoso assim! Quem
abuse de sua crença e pouca saúde, que caboclo
nasce sofrendo da dor do encontro, desgraçado mal
que não larga o de- sinfeliz.
Caboclo, então, faz de nada? Exagero, implicância: tra-
balha, sim senhor. Faz filho – conta certa, de dois em
dois anos: três crias de sete meses. E negocia, trama,
biscateia. A velhacada o caboclo começa a tecê-la de
manhã, na hora do quenta-sol, capricha-a à fresca dum
pau sombroso e a arremata à tardinha, passado o forte
do calor. (...) Minha fama corre mesmo. Mas caboclo
não leva vantagem comigo, não senhor (...) um dia
me trouxeram a notícia, bacuri pelado e telhado novo
no rancho de um tal de Fiúco (...) arreei a mula, botei
o pinheiro-machado por debaixo da camisa e toquei
para o rancho do desaforado(...) eu mesmo destelhei o
rancho, quarenta e sete folhas, quarenta e sete contos.
E daí?
- Seu Fiúco, mulher, meninada, cachorrinho, papagaio,
a tralha toda do seu Fiúco se exalou. Ficou ninguém
para contar a história. (PALMÉRIO, 2003, Capítulo
treze).

No capítulo dezessete, o autor dá uma guinada em sua narrativa e não


mais alterna “causos” com a política, a partir daí trata da eleição e de
tudo que a cerca.

Neste capítulo, as lidas da política, que até então eram coadjuvantes da


fauna, da flora, da geografia e dos ofícios, passam para o centro da cena
e retomam o seu papel principal no livro.
UNIUBE 175

Segundo Albertina Vicentini (2007, p. 188):

A linguagem da região, a fauna, a flora, os ofícios, os


espaços, os comportamentos, as roupas, as situações,
os climas, o jeito de ser, o nível mental, os problemas
regionais, as crenças, o universo ideológico são
matéria pronta recolhida e apresentada para expressar
identidade regional na literatura regionalista que se
preocupa com as questões da verossimilhança do seu
mundo represen- tado.

As personagens, deputado Paulo Santos e o Coronel Chico Belo são os


protagonistas de maior destaque no enredo, dividindo o palco da peleja
eleitoral. Esse capítulo dá início à história da eleição que vinha sendo
anunciada ao longo do livro, e começa com a narrativa da viagem do
Coronel Chico Belo de Vila dos Confins à capital para entendimentos
com os representantes da política estadual.

O coronel Chico Belo de Vila dos Confins depois de uma desastrosa


viagem de avião, para a qual seu estômago não havia se preparado,
põe-se a pensar:
(...) Uns boas vidas, os chefes liberais! Na hora da
eleição eram os telegramas, recados, os portadores
trazendo recomendação da executiva, ordens para
descarregar toda votação em fulano e beltrano.
Deputados que o povo não conhecia e que, depois,
nem respondiam às cartas dos eleitores! E votação
de graça: o peso da campanha, as despesas todas
com a eleição, tudo ficava nas costas do pessoal do
diretório, principalmente nas do chefe municipal. Os
empregos, as facilidades, as honras – eram para a
política de Santa Rita, o Rocha velho, o Osmírio... Esse,
em todo caso, ajudava: prontificara-se a vir com ele, a
resolver com o governo os assuntos da Vila. Mas, ago-
ra, a cantiga era outra: Vila dos Confins emancipara-se,
virara município; e o chefe, o presidente do diretório era
ele. E o prefeito, também ia ser ele, coronel Francisco
de Oliveira Belo. Os entendimentos com o governador
e com os secretários, os pedidos de nomeações,
os casos, enfim, da política da Vila, nada mais seria
resolvido sem a presença dele, ou sem a assinatura
dele nas cartas ou telegramas. Já não estava gostando
do acordo com o Azambuja. A nomeação do delegado
176 UNIUBE

militar não saía, nem o contrato das professoras. E


as eleições estavam perto, o pessoal reclamando...
(PALMÉRIO, 2003, p.165).

Na sequência do livro, Palmério descreve as atitudes de Dr. Osmírio,


candidato a deputado estadual e Chico Belo candidato à prefeitura de
Vila dos Confins, adversários de Paulo Santos da União Cívica, que vão
procurar auxílio com o alto escalão do governo na capital.

O deputado Cordovil de Azambuja foi o cicerone que se encarregou de


levar os companheiros de partido para uma audiência na Secretaria dos
Negócios do Interior. A intenção era solicitar maior presença do governo
nas eleições de Vila dos Confins, por intermédio de nomeações para
intendente e delegado militar.

(...) - Mas é claro! Perfeitamente! E a oposição, vale


alguma coisa?
- Vai ficar falando sozinha, doutor... Meia dúzia de gente
despeitada...
Não é tanto assim, dr.Carvalho. Otimismo do coronel...
Está acostumado a ver tudo com olhos de ganhar... Os
adversários são fortes, estão trabalhando...
(...) Nosso problema, sr. secretário é um reforço final de
prestígio (...)
Claro, claro! Perfeito!
Tão fácil! O Osmírio continuava:
Agradecemos muito, dr. Carvalho. A oposição, só com a
notícia, vai se degringolar. O deputado Paulo Santos...
- Que há com o Santos? Anda por lá também?
- Se anda! Fundou a União Cívica na Vila do Ipê Guaçu,
São Benevenuto... Lançou candidatos a prefeito em
todos os municípios novos dos Confins. Mas não tem a
menor brecha, se o governo nos der o apoio decisivo...
(...) – Ah! De fato, de fato... Isso mesmo – recebi
relatório a respeito. É o diabo! Ele é coligado nosso,
o Santos – precisamos agir com certa calma, não
podemos criar casos com ele. Temos que dar um jeito;
delegado militar sem pretexto sério...(PALMÉRIO, 2003,
p. 171-172).
UNIUBE 177

Com a ponderação do secretário, o deputado Cordovil se aborrece e num


repente de irritação sugere que caso não veja atendidas suas pretensões
nos Confins deixará de comparecer na Assembleia onde deveria fazer
um pronunciamento para defender uma reestruturação proposta pelo
governo. Ao sair da reunião propõe: “vamos todos para a Assembleia.
Mudei de ideia. Vou é modificar o meu discurso, solto umas indiretas. Sou
capaz até de dar uma forcinha à oposição...” (PALMÉRIO, 2003, p. 173).
Porém, o secretário, político ardiloso não se abala e baixinho, no ouvido
do Coronel, convida-o a ir até sua casa à noite, e pede que não conte aos
outros – vai mandar um carro para buscá-lo. Segundo Raimundo Faoro
(1975), o coronel se integra no poder estadual em que o governador é
a espinha dorsal da vida política e representa uma forma peculiar de
delegação de poder público no campo privado.

Na capital, Chico Belo hospedou-se em um hotel, que segundo ele, era


um luxo!
Apartamento com rádio, telefone, barbeiro no quarto
– era só pedir à telefonista – com massagens,
cremes, toalhas quentes. Manicura também: moça
conversadeira, velhaca. (...) não tivesse aquele
encontro marcado com o Dr Carvalhinho, e iria convidá-
la para um cinema. Mas tinha tempo – telefonava
depois. (PALMÉRIO, 2003, p. 174) .

Carvalho de Menezes, o secretário de Negócios


do Interior, era, segundo Chico Belo, um caboclo Caboclo
simpático, maneiroso, delicado, mas homem duro, Aqui utilizando
que à investida do deputado Cordovil “só deu um regionalismo,
dando ao vocábulo
aquele andado de banda, sem tirar a risada e o “caboclo” o sentido
charuto da boca. Maciota contra brabeza – e ainda de homem, pessoa. 
prometeu telefonar!” (PALMÉRIO, 2003, p. 174).

Chico Belo, demonstrando sua admiração pelo secretário, continua: “En-


quanto o Dr Osmírio falava difícil e o deputado bufava, ele, Chico Belo,
e o secretário olhavam um para o outro, se afinavam. (...) No ouvido de
quem o doutor falou na saída?”

A essência da obrigação assumida entre os coronéis, donos dos votos,


e o poder estatal derivava, na maioria das vezes, da dificuldade que os
178 UNIUBE

municípios encontravam de que suas necessidades fossem atendidas


pelo governo estadual. Também havia a dificuldade encontrada por esse
mesmo poder, de comunicar-se diretamente com as comunidades rurais
de seu estado. Desta forma, verifica-se que havia uma interdependência
na prática política exercida entre os representantes do interior e os
políticos da capital.

(...) Que falta fazia o estudo! Ele e o dr. Carvalho,


o mesmo tipo de pessoa. O outro tivera mais sorte,
frequentara boas escolas, alisara o pêlo, virara doutor...
Ele precisava mas era de viajar, conviver com os chefes
da capital, desembaraçar-se mais. O Paiva, de Nova
Esmeralda, não fizera, quando prefeito, quarenta e
oito viagens à capital, e tudo à custa do município?
Falavam dele, mas a verdade é que prefeito nenhum
tinha mais prestígio com o pessoal do governo que
o Paiva. Colocou os filhos todos, até gerência da
Caixa Econômica arrumou para o genro... Hoje, era
o boiadeiro mais forte da zona, com os bancos do
governo escorando nos negócios dele... (PALMÉRIO,
2003, p. 175).

O convite do Secretário era para que Chico Belo comparecesse à sua


residência a fim de terem uma conversa mais em particular acerca dos
compromissos que Vila dos Confins tinha com o deputado Cordovil
de Azambuja – tudo no mais absoluto sigilo e com o conhecimento do
governador. Deixando bem claro para Osmírio (candidato pelo Partido
Liberal para a zona dos Confins) que estava emancipando o coronel
Chico Belo da tutela política de Santa Rita, acenando com o apoio direto
sem a interferência dos Rocha. Para aumentar a “saia justa” em que
colocou Osmírio, o Secretário ainda lhe propõe um acordo com um dos
líderes de oposição da região.

(...)- Não haveria possibilidade de um acordo com o


dr. Bernardino de Sousa? Ele já não deixou os
democratas?
- O dr. Bernardino? – o Osmírio não escondia a
estupefação
– o dr. Bernardino de Sousa? Só se o governador
estiver louco! O homem é o maior inimigo que o governo
já teve!
UNIUBE 179

- O senhor é novo ainda, dr. Osmírio. Se a política


municipal é cheia de surpresas, mais ainda o é a
estadual... E estamos caminhando para uma solução
de âmbito nacional, meu caro doutor. O governador é
a chave, hoje, do problema sucessório. Pode ser que
venha até a surgir como candidato à presidência...(...)
(PALMÉRIO, 2003, p. 177).

A narrativa em literatura se define por um desenvolvimento de ações com


o fim de tornar crível o desenrolar da trama, buscando uma conexão de
relações entre os dados fornecidos pelo passado e o contexto que lhes
quer dar o narrador. Essa organização imaginada, é que faz com que
a obra – fictícia – apresente verossimilhança e exprima ser possível o
imaginado pelo autor.

De acordo com Ria Lemaire (2000):

(...) A construção de “mundos reais”, de realidades


possíveis, a sua plausibilidade, depende, também do
contexto histórico real no qual eles são produzidos e
reproduzidos aos leitores.(...) A literatura permite que
o imaginário levante vôo mais livre e amplamente, que
ele fuja, numa certa medida, aos condicionamentos
impostos pela exigência da verificação das fontes. A
literatura tenta incitar, antes de mais nada, à empatia,
à identificação; ela visa criar uma proximidade entre o
leitor e o passado.

Ao mesmo tempo em que Palmério discute, em plenário, a necessidade


da mudança do Código Eleitoral, devido às fraudes e falcatruas políticas,
reproduz em seu livro, hábitos políticos iniciados com a República, em deca-
dência em muitas partes do país, mas muito presentes ainda no sertão bra-
sileiro na época da escritura do livro. Em Confins, ele revela: “O governador
precisa saber efetivamente quem está com ele. Só por um acontecimento
absolutamente imprevisível deixará ele de ser o candidato das forças nacio-
nais à Presidência da República.” (PALMÉRIO, 2003, p.178).

Foi firmado acordo entre o Secretário, Coronel Chico Belo e Osmírio, pelo
qual o governo se comprometia a baixar os atos de nomeação do Capitão
Otávio, do auxiliar da Coletoria, os três contratos das professoras e cinquen-
ta contos adiantados para a Campanha eleitoral que seriam descontados
na base de setenta e cinco mil réis por cabeça, mais mil votos para Osmírio
180 UNIUBE

como deputado estadual na região e Vila dos Confins estaria com o Secre-
tário que era candidato a deputado federal.

Depois da conversa, o Coronel foi convidado a ficar na casa do Secretário


para uma rodada de pif-paf – jogado a dinheiro graúdo por um grupo de
políticos e pessoas da sociedade. Palmério descreve a noitada e a roda
de jogo como se estivesse ali participando, enriquecendo a narrativa com
detalhes sobre os convidados e sobre a forma de jogar. Tudo regado a
uísque e política.

E não demorou para que o governo “desse as caras” em Confins. A


agitação começou pouco depois da volta de Chico Belo. Chegou de
Santa Rita uma patrola “amarelo tratorão de esteira”, revirando o pasto
do cemitério que seria improvisado como pista de pouso para o teco-teco
vermelho que traria o dr. Carvalhinho:

(...) Bicha valente! Lobeiras, pés de mangaba e de ara-


ticum, cupins, valetas, tudo isso a máquina derrubava
e arrastava e nivelava, um homem só no volante!
Ninguém deixava de, à tardinha, ir apreciar as façanhas
do tratorista. Chico Belo determinava o serviço e não se
esquecia da propaganda: “isto é só por enquanto! No
dia em que eu for prefeito...” (PALMÉRIO, 2003, p. 195).

Palmério relata a típica festa cívica que acontece no interior do Brasil


sempre que algum figurão do governo ali comparece. Banda de música,
bandeirinhas verdes e amarelas, o batalhão local perfilado, as crianças
do colégio, foguetes e um bando de gente para luxar o representante
ilustre que veio demonstrar que “o governo estava presente agora na Vila
dos Confins para manter a ordem e defender o Regime!” (PALMÉRIO,
2003, p. 195).

O capítulo vinte e dois de Vila dos Confins inicia-se com Paulo Santos
com água pelos joelhos, em virtude das chuvas que provocaram uma
enchente e o atolamento do carro no lamaçal resultante. Quase duas
semanas ausente tentando arrebanhar colaboradores e reerguer o
moral dos correligionários e agora a estrada daquele jeito! Uma dúvida
martelava-lhe o pensamento: teria sido realmente uma tocaia a pororoca
cortada e derrubada no meio da estrada? “A batida de foice no mato, o
amassado dos ramos onde o jagunço se amoitara, atrás do pé de ipê?
UNIUBE 181

Tocaia mesmo” (PALMÉRIO, 2003, p. 198). Paulo conjectura ter de voltar


a Santa Rita para falar com o Juiz Braga, ameaçá-lo com telegrama para
o Tribunal, armar um escândalo. No entanto, provavelmente nada disso
adiantaria, pois não tinha provas e a denúncia acabaria voltando depois
da eleição acabada.
(...) Mas Paulo sabia que era verdade! (...) Num sertão
daqueles, lugar de criminoso fugido e gente ruim, o
caso não era o primeiro. Botar a culpa em quem?
Como responsabilizar os bandidos dos chefes liberais?
A polícia, comandada pelo capitão Otávio, nomeado
delegado militar pelo Chico Belo e, ainda por cima,
irmão do Alcindo da Coletoria... O cínico do Carvalhinho
montado na Secretaria dos Negócios do Interior,
manobrando a justiça, comandando a força pública,
fazendo e desfazendo... (PALMÉRIO, 2003, p. 199).

A política regional apresentava um lado autoritário e violento quando não


conseguia impedir o aparecimento de oposições locais. Tratavam de
diminuir essas forças pela violência oficial, por crimes encomendados a
capangas e fraudes eleitorais escancaradas.

(...) O Chico Belo, por mais burro que seja, não ia


ao ponto de cometer uma besteira dessas. Vocês já
pensaram no barulhão que isso ia dar? Sou um
deputado federal – que diabo! – e não se mata a gente
assim sem mais nem menos...

Pois eu continuo achando que é serviço dos Rochas, o


senhor não conhece os Rochas. Precisava ver o ódio
do Osmírio depois que fizemos o acordo com o dr.
Bernardino, o tal trato de trocar a votação com ele para
deputado estadual nas próximas...
Provável mesmo! O Osmírio era candidato e andava
em plena campanha, já que as eleições gerais seriam
dentro de seis meses. (...) O outro era filho também de
Santa Rita, médico estimado, e conhecia aquele sertão
a palmo (...) O Osmírio desesperava-se: com a eleição
do Bernardino, o prestígio dos Rocha cairia, o governo
teria de mudar de orientação nos Confins, a música
seria outra... (PALMÉRIO, 2003, p. 198).
182 UNIUBE

A personagem Paulo Santos teve uma ideia de repente! “Plano maluco,


um escândalo dos diabos, mas os liberais sairiam desmoralizados. E
João Soares ganharia a eleição! Agora, era pôr de parte os escrúpulos,
combinar tudo com o Aurélio – o tio toparia, se toparia!” (PALMÉRIO,
2003, p. 205)

E executar a coisa com rapidez era imprescindível. O deputado havia


recebido de alguns de seus correligionários a informação de que haviam
sido vítimas de uma tocaia que, provavelmente, teria sido armada para
pegá-lo, visto que todos sabiam que ele retornaria de sua viagem nesse
dia. A informação foi suficiente para provocar na Vila uma demonstração
de força por parte da polícia militar que estava “do lado da situação” e,
por sua vez, de Chico Belo. Homens armados de ambos os lados, a
praça cheia de gente, provocações de toda a sorte:
O senhor é o dr. Paulo Santos?
Sim senhor.Que deseja?
- O capitão Otávio mandou dizer para o senhor dar uma
chegadinha até a delegacia...
Num átimo, Paulo percebeu o desacato. À porta da
Coletoria, o pessoal do Chico Belo espiava; gente
nas janelas, o povo parado na rua olhando também
para a cena. Incrível, aquilo! Ele, um deputado federal,
protegido por tantas imunidades e prerrogativas –
impossível ignorá-las o mais atrasado oficial de justiça
– receber uma intimação daquelas, pública, a rua
cheia de gente! E por quem? Pelo sargento acabritado,
petulante...
(...) Paulo estava armado, sem paletó e camisa, o
revólver aparecia na cintura, à vista de todo o mundo.
João Soares e Antero, esses chegavam da viagem,
armados também, com toda certeza. Aurélio, Jeová,
Jorge turco...o pessoal da venda...
Sargento e cabo esperavam pela resposta. Paulo deu-a
disposto a tudo:
Olhe aqui, sargento; diga lá ao seu capitão que não se
meta a besta comigo. Não sou empregado dele e nem
recebo ordens de polícia. E vão dando meia volta os
dois, depressa que eu estou de pouca prosa hoje. Ande!
Cambada! Venha aquele cachorro aqui se for homem!O
que vocês sabem fazer é armar tocaia à noite! (PALMÉ-
RIO, 2003, p. 205).
UNIUBE 183

A história da política brasileira apresenta alguns casos de simulação de


atentados, cartas falsas, documentos forjados, Vila dos Confins não po-
deria deixar de ter o seu. O deputado fingiu que sofreu um atentado. Com
ajuda de Aurélio, meteu-se na mata, calçou botinas novas de tamanho
maior que o seu, derrubou uma árvore, jogando-a na estrada, a fim de
impedir o caminho, estacionou a caminhonete, atirou várias vezes de
carabina contra o vidro e a lataria. Os tiros foram tão bem dados, que
seu tio comentou: “Puxa! Por um tiquinho que não pegam a gente!”
(PALMÉRIO, 2003, p.214). A ideia era essa, fazer de conta que haviam
sido alvejados, porém sem que o jagunço os tivesse acertado. Preparada
a cena, foi para Santa Rita, e chegando ao posto de gasolina da cidade,
tratou de fazer um estardalhaço, para que todos por ali ficassem sabendo
da tocaia que haviam lhe preparado. “O promotor de justiça fez questão
de acompanhar pessoalmente o deputado à casa do radiotelegrafista do
estado, pois ia também se comunicar com o chefe de polícia, dando-lhe
ciência do ocorrido” (PALMÉRIO, 2003, p. 221).

Santa Rita inteira ficou sabendo do ocorrido e deplorou o atentado. Os


Rocha caíram no conceito público por apadrinhar bandidos da marca
de Chico Belo. Paulo Santos virou o herói do dia. Depois de prestar
depoimento relatando detalhes do “atentado”, Paulo e o tio se recolheram
à casa do Dr Bernardino:

(...) Pelos meus cálculos, Paulo, amanhã a força federal


chega de avião...Deve vir um mundo de gente da
capital: jornalistas, repórteres, fotógrafos. (...) A coisa
ficou uma perfeição de bem feita (...) perigo pode haver
se a polícia técnica cismar de conferir a bala enterrada
na tábua da carroceria com o cano da nossa carabina.
Se descobrirem que a arma é a mesma... (PALMÉRIO,
2003, p. 221).

E confirmando a pouca confiança da população em relação à solução


de casos pela polícia, Paulo afastou as dúvidas de Aurélio:

(...) Confere não tio. Isso é coisa de romance policial, de


fita de cinema. Polícia técnica só existe em propaganda
americana. Depois a coisa foi clara demais: o farelo de
rapadura, as cápsulas vazias da quarenta-e-quatro,
os tocos de cigarro, o malhadouro do jagunço atrás do
jatobá, os passos do sujeito marcados no fundo da lama
184 UNIUBE

da estrada – pés de sujeitão graúdo...o precedente


testemunhado pelo Clodoaldo e pelo Mingote...Tem
perigo não, tio. Foi um crime perfeito! (PALMÉRIO,
2003, p. 214).

E como seria de esperar, a semana foi um alvoroço, visitas de todos os


lados, telegramas aos montes. Primeira página em vários jornais da
capital, deputados discursando indignados na tribuna da Câmara e, no
Senado, líderes da União Cívica e da Aliança Democrática, governistas
solidarizavam-se com as vítimas e sugeriam se o motivo não poderia
ter sido outro que não a política, e a mesma solidariedade prudente
dos demais oradores do partido liberal. Na sexta-feira, antevéspera do
pleito, o trabalho foi imenso:

(...) Eram muitas as providências: contratar caminhões


para a condução e recondução do eleitorado; distribuir
cabos para acompanhar as viagens; fornecer gasolina
e óleo; nomear fiscais para as seções eleitorais;
designar cabos especializados em trabalho de rua (no
dia é que se ganham eleições!); organizar o quartel...
(...) À medida que passava o tempo, mais e mais
providências, mais e mais preocupações. E a falta de
prática dos companhei- ros? Antero Ferreira de todos,
o mais sabido e experiente perdia-se em afobações e
nervosias, atrapalhando em vez de ajudar (PALMÉRIO,
2003, p. 225).

O pessoal do partido Liberal estava acabrunhado, suportando calado


as provocações e o fato de o governo ter-se voltado contra eles – os
unionistas afixaram o telegrama recebido do Governador do Estado
na porta da venda do Jorge Turco, e, em seguida, estouraram vários
foguetes de três tiros. Do telegrama do governador constava o seguinte:

Já ordenei viagem chefe polícia avião especial acompa-


nhado melhores auxiliares serviço investigações pt
designei, outrossim, oficial idôneo a fim de substituir
imediatamente delegado de Vila dos Confins
(PALMÉRIO, 2003, p. 225).

Chico Belo foi até a frente da venda do Jorge Turco e leu o telegrama, não
dando o braço a torcer: “Eu bem sabia! Conheço muito esse oficial... Fui
apresentado a ele no palacete do dr. Carvalhinho: homem de confiança
do secretário. A troca foi pró-forma. Ora quem havia de ser – o Idôneo!
Meu companheiro de pif-paf...” (PALMÉRIO, 2003, p. 225).
UNIUBE 185

A vibração no dia da eleição tinha um sentido de ser, especialmente


para os eleitores da zona rural. Para eles era feriado, portanto aquele
dia não trabalhariam; muitos, pela primeira vez, andavam num veículo
motorizado, vestiam suas melhores roupas, levavam a família inteira
para a cidade. Mais do que isso era a vez de serem paparicados, alvos
de atenção, ganhavam comida, peças de vestuário e distração. Contudo,
para os organizadores do evento, muitos eram os afazeres. Tendo em
vista a inexperiência do pessoal da Vila em eleições, tudo dependia da
aprovação do deputado. A ele expunham todos os problemas que não
tardaram a ocorrer, já com a chegada do primeiro caminhão do Brejal:

- Vieram trinta e dois, doutor. Mas só vinte e três


com título; o resto é mulher* e menino. Deixei outro
caminhão na venda do Fiico, esperando mais um lote
de gente. Fora o caminhão do seu Nelson...
Paulo interrompeu o retireiro:
Mas só vinte e três? Quantos você acha que ainda vêm
nos caminhões?
- Vai haver quebra, doutor. Me disseram que o Juquinha
do seu Chico Belo andou por lá, de tarde, comprando
título. Estava pagando a quinhentos...
O deputado explodiu:
Quinhentos mil-réis? Não é possível. Que eu sabia que
eles iam tentar esse golpe baixo, sabia. Mas a quinhen-
tos! Será que compraram muitos? Você soube de
algum? (PALMÉRIO, 2003, p. 226).

AMPLIANDO O CONHECIMENTO

* Segundo o código eleitoral de 1950, as mulheres que não exercessem


profissão lucrativa, não tinham o alistamento e votos obrigatórios.

Para Carvalho (2006), o voto tinha um sentido diferente para o eleitor


do que para o legislador. Não se tratava de autogoverno, do direito de
participar da vida política do país:

O votante não agia como parte de uma sociedade políti-


ca, de um partido político, mas como dependente de um
chefe local, ao qual obedecia com maior ou menor fideli-
dade. O voto era um ato de lealdade e de gratidão. À
186 UNIUBE

medida que o votante se dava conta da importância do


voto para os chefes políticos, ele começava a barganhar
mais, a vendê-lo mais caro. Nas cidades, onde a
dependência social do votante era menor, o preço do
voto subia mais rápido (CARVALHO, 2006, p. 35).

Ainda segundo Carvalho (2006), “o pagamento podia ser feito de


várias formas, em dinheiro, roupa, alimentos, animais” (p.35). Havia a
necessidade da eterna vigilância, de preocupações adicionais para que
o político não fosse enganado, desta forma ele “mantinha seus votantes
reunidos e vigiados em barracões, ou currais, onde lhes dava farta
comida e bebida, até a hora de votar”.

Tinoco esvaziara o paiol e levantara o ranchão de folha


de coqueirinho-indaiá – praga no campo vermelho –
junto ao telheiro do carro de boi. O conjunto – paiol,
telheiro e rancho – dava para abrigar um mundo de
Canzil gente. (...) O pagode não morrera apesar da hora.
Pouca gente chegara de véspera (a boa técnica
Cada um dos mandava trazer os eleitores da roça no dia mesmo
dois paus da eleição, pois assim se evitaria o trabalho insidioso
existentes na dos cabos adversários). Mas a dança se formara com
canga, entre os
quais é coloca- o pessoal do povoado. Homem com Homem. Dança
do o pescoço de canzil. (...) Requebravam-se, soltando risadas,
do boi. divertindo-se uns à custa dos outros. (PALMÉRIO,
2003, p. 227).

Para manter os votantes coesos em torno de uma candidatura, usava-se


a estratégia da organização do pagode caipira, onde se dançavam
diversos gêneros musicais, entre eles a dança que se realizava dentro do
espaço do curral eleitoral numa estrutura de festa, com comida e bebida.

O doutor Bernardino convocara o Pereirinha, chicanista eleitoral da


região, rábula que havia trabalhado para os Rocha na época do bico-de-
pena, das atas falsas, do tranquilo reinado dos coronéis. “Braço direito
do velho Rocha e responsável por todo o seu longo domínio nas urnas
de Santa Rita, verdadeiro artífice da oligarquia rochista, firmemente
consolidada e ainda no poder, apesar da revolução e do voto secreto”
(PALMÉRIO, 2003, p. 229). A ideia era que ele desse uma “demão” no
pleito municipal de Vila dos Confins.
UNIUBE 187

Todas as seções em ordem dr. Pereirinha?


Perfeitas. Em cada seção pus um homem de confiança
Paulo lembrava das possíveis chicanas:
E os fósforos? Soube que o Osmírio é especialista...

Os fósforos eram parte da fraude eleitoral. Eram


Os fósforos eram
pessoas que se faziam passar pelos eleitores que parte da fraude
haviam morrido, mudado de cidade, votando vá- eleitoral
rias vezes. Segundo Carvalho (2006, p. 24): “Se o A denominação
alistado não podia comparecer, aparecia o fósforo provavelmente foi
dada a esse tipo de
e se fazia passar pelo verdadeiro votante. Bem fa- falcatrua, pensando
lante, tendo ensaiado seu papel, o fósforo tentava na caixa de
palitos idênticos
convencer a mesa eleitoral de que era o votante revestidos de
legítimo. Podia acontecer de aparecerem dois fós- combinados
químicos, que
foros para o mesmo votante. Vencia o mais hábil”. produzem fogo ao
serem atritados com
a parte de fora da
No capítulo vinte e cinco de Vila dos Confins, caixa.
Palmério demonstra com muito mais ênfase a
questão da fraude eleitoral, bem como sua preocupação com a mudança
da lei, por intermédio de sua conversa com Pereirinha:

E os títulos de gente que já morreu?


- Por via das dúvidas tirei certidão dos óbitos registrados
no município. O Juiz mandou me dar. Impugnam-se na
hora.
- Quer dizer então que eles não podem cometer
nenhuma fraude?
- Dessas comuns, não senhor. Meu medo é o dinheiro.
Soube que o Chico Belo pôs gente a correr o município,
a ordem é pagar até quinhentos por cabeça...
(...) Esta lei eleitoral é uma beleza: quem pode comprar
títulos inutiliza os que não podem. O sigilo também não
existe. Aposto como o Osmírio mandou distribuir marmi-
tas preparadas para o pessoal dele.
(...) Preparadas, como? Qualquer sinal, qualquer marca
inutiliza as cédulas...
- (...) Ovo de Colombo, deputado! A coisa mais fácil do
mundo. Por exemplo: o senhor quer descobrir em quem
votou fulano, empregado seu, pessoa que lhe deve obediência.
188 UNIUBE

Basta entregar-lhe a marmita com a cédula de um


deputado qualquer, nome desconhecido. Na apuração,
aparece o envelope com aquele voto; se não aparecer...
Ou senão, nestas eleições municipais, onde não se
vai votar em deputados, o senhor prepara a marmita,
colocando, por exemplo, duas cédulas iguais para
prefeito, três iguais para vice, quatro iguais para juiz
de paz...O senhor pode fazer tantas combinações
quantos forem os eleitores cujos votos há interesse
em descobrir. Na apuração aparece o truque. E não se
perde um voto, que cédulas iguais não o inutilizam...
Sigilo! Voto secreto!...Bobagens dr. Paulo, bobagens...
- E na qualificação, será que falsificaram muitos requeri-
mentos?
- (...) Então seu Pereirinha, olho vivo, olho vivo! A fraude
na qualificação é a mais perfeita de todas. Facílimo, se
o cartório faz vista grossa. Um perigo!
Pereirinha tinha razão. Sem radical reforma da lei eleito-
ral, as eleições continuariam sendo uma farsa. Bastava
a conivência do escrivão eleitoral para se inundarem as
seções de eleitores fantasmas(...) Nas cidades onde
as seções eram muitas, avalie-se o estrago: um sujeito
só a votar como Antonio, como Francisco, como José,
como Venefredo... (PALMÉRIO, 2003, Capítulo vinte e
cinco).

Prosseguindo com a eleição, Palmério descreve a situação diferenciada


que viveu Vila dos Confins, em virtude da tocaia feita ao deputado federal.
Foram proibidas de funcionar mesas de votação fora do povoado, faixas
de propagandas foram retiradas dos postes, muros foram caiados às
pressas. O Juiz determinou somente quatro seções eleitorais, duas para
homens e duas para mulheres: - “O município vive dias anormais; não
fui eu o culpado, seu dr. Osmírio... A nação está de olhos fitos em nós(...)
Os tempos mudaram” (PALMÉRIO, 2003, p.233).

O dia vai passando com a preparação das marmitas, o transporte dos


eleitores, quase mil e cem! O deputado dando instruções aos eleitores:

Coisa simples seu João, não se afobe, não me vá botar


este envelope dentro do outro, pelo amor de Deus, se
não a gente perde seu voto... Depois de votar, pode
fazer as suas visitas, as suas compras, passear na Vila à
vontade, na hora que quiser voltar para a chácara, passe
por aqui, que há condução. (PALMÉRIO, 2003, p. 238).
UNIUBE 189

O autor segue relatando mais casos de fraude, troca e venda de votos,


os “fósforos”, os votos tirados de João Soares e... Maria da Penha. Paulo
saiu de seu posto e foi visitar os pontos de votação, especificamente a
seção onde votavam as mulheres cujos nomes começavam com a letra
M. “Chegou quando, Dona Penha? E seu pai? (...) Não posso nem falar
com você hoje... Amanhã ou depois... Vou ficar na Vila mais dois ou três
dias... Estou na casa da tia Isaura... Vá tomar um café com a gente...”.
(PALMÉRIO, 2003, p. 246).

Final do dia, urnas lacradas e sob proteção policial, Paulo vai descansar
depois de dois dias e duas noites sem dormir. Na segunda feira, o
deputado retoma as pescarias e ali, vigiando o caniço, rememora os
acontecimentos e as pessoas da Vila com quem conviveu nesse período
de campanha. Padre Sommer, companheiro na pescaria, desconfiado da
falsa tocaia armada por Paulo, passa-lhe um sermão. A apuração das
urnas começaria no dia seguinte ao meio dia. Eleição apertada essa de
Vila dos Confins! Dos mil e cem alistados, somente oitocentos e setenta
e nove compareceram.

Após as eleições, Palmério vai acalmando o leitor e depois de tanta lida


política, volta a falar de peixe, de rio, de caçada, a vida retoma seu ritmo
lento em Vila dos Confins.

(...) Dia comprido o dia de quem madruga. Eito rendoso


de serviço para o povo da roça, acostumado a dormir
com as galinhas. Depois vinha o hábito – todo mundo
fora de casa e ainda com escurinho da madrugada,
a zanzar pelas ruas do povoado, a esperar que as
vendas se abrissem: as mesmas rodinhas ao quenta-
sol, a prosinha preguiçosa ao cigarrar cheiroso do fumo
capoeira. Diz-que-diz-que, futricas, novidades... As
cidades cresciam, mas o costume ficava. (PALMÉRIO,
2003, p. 273).

O crítico Luis Delgado (1957) reputou que Palmério colocou o romance


de volta nas monótonas estradas do sertão com extrema maestria. “A
eleição tem que passar. E quando passa, o livro ganha, nos dois últimos
capítulos, outro espaço, outro ar – o ar das largas tragédias humanas”.

O deputado foi para o barranco do Rio Urucanã, aguardar a hora de


encontrar-se com Maria da Penha e, ao mesmo tempo, ver o Nequinha
190 UNIUBE

Capador que estava com uma boiada de zebu das boas para atravessar
para a outra margem. Esta era a última viagem, que custo! Padre
Sommer e Aurélio iam também, Gerôncio já havia feito vinte e duas
travessias com o gado e a correnteza estava aumentando, a chuva tinha
sido forte à noite. Paulo falou com o padre: “Meu primeiro serviço no Rio
vai ser a verba para a ponte aqui no rio Urucanã (...) Na força da cheia, a
água espremida nestes barrancos arrebenta com qualquer cabo de aço.
Um perigo, este porto!” (PALMÉRIO, 2003, p.279). Só ficaram o deputado
e Xixi Piriá no barranco, Ritinha, com seu vestido vermelho de chita, ia
visitar dona Iaiá, na Vila.

Lá se ia a balsa do Gerôncio, atopetada de gente e


de gado, (...) a correnteza aumentava mesmo, o rio
cantava grosso. Perigosa, aquela travessia. E se o
cabo arrebentasse? O padre, o tio Aurélio, a Ritinha...
O bezerro zebu do Nequinha (...) A balsa chegava ao
barranco da Vila – trinta, quarenta metros, quando
muito. (PALMÉRIO, 2003, p. 280).

Com o barulho, a confusão, um dos bois que estava na balsa, o azulego,


precipitou-se no rio levando Ritinha em seu vestido vermelho presa nos
seus chifres. As reses atiravam-se no rio, levando consigo a improvisada
cerca. E cada foguete que espocava mais alucinação provocava na “ze-
buama em pânico.” O touro com a menina nos chifres rolava arrastado na
espuma afogando-se a sacudir o vestido como uma capinha de toureiro.
As piranhas não tardaram a aparecer, velozes como flechas, atraídas
pelo cheiro de sangue que encharcava a cabeça do zebu.

Os foguetes não cessavam, estavam anunciando a derrota de João


Soares por uma diferença de oito votos, graças ao Pé-de-meia que se
bandeara para o lado do coronel, por conta de vinte contos de réis. Notas
cortadas ao meio e só resgatadas se a política dos Belo fosse vitoriosa.

Palmério encerra o livro com a mesma personagem com que começou:


Xixi-Piriá. Xixi vinha acabrunhado pelo caminho por conta de ter perdido
a eleição. Parou na venda do seu Fiíco e teve o azar de que Filipão,
jagunço dos Belo, chegasse na mesma hora, ainda vestido com a roupa
usada na tocaia a Paulo Santos. O capanga, demonstrando violência e
cantando vitória da eleição, obrigou Xixi-Piriá a tomar, contra a vontade,
uma talagada de pinga.
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- O senhor, seu Xixi está me desfeitando?


É que eu não posso beber seu Filipão. Nunca nem pude
com o cheiro, tenha paciência... sou fraco do fígado.
Tu é fraco mas é de tudo seu porqueira. Apanha o copo
e beba logo...
Agora cachorrada! Viva o coronel Chico Belo!
Vão bebendo! A festa vai ser no Boi Solto seu Xixi
Piriá! Vou dar uma sova no velho e dormir gostoso
com a cadelinha da tua Maria da Penha...Sei que tu
é apaixonado por ela, mas ela não te liga não seu
bostinha de cachorro. Fogo vivo queimou a boca
quando engoliu a primeira golada. Fogo misterioso, que
explodiu dentro dele e lhe em- baralhou a vista. Maria
da Penha! Força esquisita aquela a sacudir-lhe a mão.
O copo voou – cheio, pesado transbordando de pinga
para se espatifar na testa do Filipão. E inteiramente
atuado pelo capeta que tomara conta de seu corpinho
magricela (...) o mascate saltou, uma das mãos no
pescoço do bandido, a outra agarrada ao punhal de
prata presente do seu doutor (...) Eduardão e Osorinho,
a custo conseguiram despregar um do outro os dois
corpos enlameados de sangue. (PALMÉRIO, 2003, p.
286-287).

Xixi Piriá encaminhou-se para a porta da venda, as botas chiando de


sangue. “Pelos lados da serra, derradeiro aceno vermelho sangue do
sol que acabava de descer o cupim achatado do morro da Bruaca. Xixi
Piriá. Lá vai ele... E grande, corpulento – beleza mesmo de caboclão!”
(PALMÉRIO, 2003, p. 290).

5.4 Conclusão

Ao estudarmos o livro Vila dos Confins, buscamos entender as condições


em que foi escrito, o contexto histórico em que se inseria, qual foi a recepção
ao livro de um deputado, que tratava de política de forma ficcional. Percebe-
mos que a matéria que Palmério nos mostrava era historicamente formada
e registrou de algum modo o processo social de sua existência. O processo
literário de Vila dos Confins foi abordado em dois momentos, o da escrita
e o da leitura. O primeiro em relação ao momento da criação, que recebeu
influências do contexto da época e da sociedade em que vivia Mário Palmé-
rio; o segundo em relação à recepção e à vitalidade da obra, o processo de
leitura e interpretação de seus leitores e críticos.
192 UNIUBE

Na época da publicação de Vila dos Confins, havia um clima


desenvolvimentista. O Brasil aos poucos deixava de ser rural, para
vestir-se do urbano e, desse modo, muita coisa no País precisava ser
repensada. A política era uma delas. Os debates no Congresso Nacional
pela mudança na lei eleitoral eram intensos. O novo prevalecia sobre
o antigo. Produções literárias, arquitetônicas, tecnológicas e artísticas
encontravam terreno fértil para se reproduzir. Política e cultura eram
vivenciadas de forma ativa. O livro transitou pelo regional e o político,
ambos os discursos se fundiram com o discurso de valorização da cultura
do sertão. Palmério apresentava essa cultura, a fauna e a flora da região
com orgulho e distinção. O país estava se modificando, as pessoas
mudavam do campo para a cidade e, embora estivessem com os olhos
voltados para o futuro, seu passado no campo suscitava a nostalgia, a
identificação com o narrado no livro, as questões políticas presentes
na narrativa eram a “realidade” política do Brasil, em que influências e
favores políticos ainda prevaleciam.

Palmério escreveu um livro de seu tempo, considerado por alguns críticos


literários como um livro testemunho. Coerente com seu lugar social expôs,
em forma de ficção, a política como os brasileiros conheciam. Escancarou
a beleza da vida simples do interior para um Brasil que se achava em
desenvolvimento, mas que possuía suas raízes e memória no campo.
No entanto, apesar de a política ter sido tratada com verossimilhança,
não houve envolvimento, não foi apresentada ideologia.

Os leitores e críticos literários deram o sentido, atribuíram significados


ao sistema de signos depois de decifrá-los. Leram o Brasil à sua volta e
vislumbraram o que eram e onde estavam.

Provavelmente, Vila dos Confins teve mais de trezentos mil exemplares


vendidos, as estatísticas são imprecisas. O ano de lançamento do livro foi
o ano da profissionalização da crítica literária em jornais e revistas e isso
ajudou, a nosso ver, a grande vendagem do livro, foi grande a divulgação
indireta. A presença das análises críticas nos jornais, o advento dos
suplementos literários foi altamente benéfico para a literatura como um
todo nesse final de década.

Em relação à materialidade do livro, Vila dos Confins se apresentou em


relação às suas inúmeras edições, em diferentes formatos, adaptados
UNIUBE 193

de acordo com os diferentes momentos em que foi editado. Suas


primeiras edições eram grandes e pesadas, na década de 1960 seu
tamanho foi reduzido a quase um livro de bolso, foi editado em brochura
e capa dura, as ilustrações de Percy Lau não acompanharam todas
Edições, foi editado por quatro editoras diferentes. Além das críticas
literárias encontradas no acervo de Mário Palmério, pudemos constatar
a vendagem do livro para todo o Brasil, por sitio na internet, que agrega
mais de mil sebos de todo o País, e, nele, encontramos exemplares de
Vila dos Confins de segunda mão para vender em lojas de norte a sul
em quase todos os estados da federação.

Desde 1958, eram anunciados dois outros livros. Apesar de todo o


sucesso, Mário Palmério não foi além de seu segundo livro Chapadão do
Bugre. Confissões de um assassino perfeito ficou incompleto. As análises
críticas cobravam dele e de sua criação literária padrões estéticos e de
estilo que não lhe eram possíveis adotar, e de certa forma, tolheram
sua criatividade. A profissão de escritor não foi sua atividade principal,
Palmério ocupou outros lugares sociais no Brasil.

Para finalizarmos este capítulo, utilizamos as palavras de Benjamin: “um


acontecimento vivido é finito, ou pelo menos encerrado na esfera do
vivido, ao passo que o acontecimento lembrado é sem limites, porque
é apenas uma chave para tudo o que veio antes e depois” (BENJAMIN,
1994, p.37).

SAIBA MAIS

Caso queira saber mais, sugerimos que conheça:

Chapadão do Bugre, Mário Palmério


<http://www.uniube.br/mariopalmerio/memorial/memorial.php>.

Resumo

Neste capítulo, conhecemos um pouco sobre a obra Vila dos Confins


e sobre Mário Palmério. Buscamos mostrar a importância do autor e do
livro para a literatura brasileira, principalmente a importância linguística
194 UNIUBE

com que tão expressivamente está representada a travessia do povo


brasileiro. Travessia de uma cultura agrária - em que a visão de mundo
colhe na natureza seus costumes, sua linguagem e sua ética - para uma
cultura urbana. Vila dos Confins representa o momento em que essa
ética, esse modo de viver agrário é afetado pela malícia e milícia da
cultura urbana. Mas é mais que isso: é a representação estética de uma
relação de troca entre essas culturas, entre esses mundos. Nisso a obra
é atemporal, ou seja, ultrapassa as barreiras do tempo e continua sempre
atual. Ainda hoje, sua leitura causa a impressão de que essa história é
de homens e de fatos dos confins do Brasil contemporâneo.

Apresentamos também teorias sobre o regionalismo dentro de Vila dos


Confins, em que alguns críticos a consideram como uma obra menor,
dentro do panorama regionalista. E analisamos a trama textual e suas
personagens, na riqueza de detalhes que Palmério nos apresenta.

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Anotações
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