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ORIENTALISMO
André Bueno [org.]
Reitor
Mario Sérgio Alves Carneiro
Chefe de Gabinete
Bruno Redondo
Direção
Pró-reitora de Extensão e Cultura
Cláudia Gonçalves de Lima
Produção
Obra produzida e vinculada pelo Projeto Orientalismo,
Proj. Extens. UERJ Reg. 6078, coordenado pelo Prof.
André Bueno [Dept. História].
Rede
www.orientalismo.net
Rede
https://aladaainternacional.com/aladaa-brasil/
Ficha Catalográfica
Bueno, André [org.]
Oriente 23: Visões do Orientalismo. 1ª Ed. Rio de Janeiro: Proj. Orientalismo/
UERJ, 2023. 72 p.
ISBN: 978-65-00-77514-3
História da Ásia; Orientalismo; Teoria; Diálogos Interculturais.
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Apresentação
Orientalismos e Literatura
Orientalismos: Mídias e Arte
Visões do Orientalismo
Estudos sobre Oriente Médio
Estudos Chineses
Estudos Japoneses
Estudos Coreanos
Estudos Asioindianos
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Sumário
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AOS OLHOS DO CORREIO PAULISTANO: AS
EXPERIÊNCIAS DA IMIGRAÇÃO CHINESA COMO
ARGUMENTO PARA A REALIDADE BRASILEIRA, por
Alisson Eric de Souza Simão Pereira
Introdução
O segundo reinado foi um momento marcado por acontecimentos como a
extinção do tráfico negreiro, a abolição da escravidão, importação de
imigrantes para o país e a manifestação de uma visão que colocava a
escravidão como responsável pelo atraso do Brasil. É preciso deixar claro que
o fim do sistema escravocrata proporcionou modificações econômicas no
Brasil, uma vez que o preço do escravizado aumentou nessa conjuntura, a
nação era extremamente dependente do trabalho escravocrata e a produção
agrícola de café da região Sudeste possuía poucos trabalhadores para suprir
as suas necessidades. Assim, a solução encontrada para suprir as
necessidades da produção cafeeira foi o tráfico interprovincial estabelecido
com a região Nordeste [Oliveira, 2018].
Foi nessa conjuntura que as teorias raciais chegaram ao Brasil e passaram por
uma seleção e adaptação para pensar a realidade brasileira segundo os
interesses da elite intelectual [Schwarcz, 1993]. Os negros neste período eram
descartados como força de trabalho devido a sua “pouca capacidade
intelectual” e a “falta de preparo profissional” [Azevedo, 1987]. Assim as elites
brasileiras começaram a refletir sobre o uso de imigrantes, já que a escravidão
estava chegando ao fim; à adoção de novas formas de trabalho se fazia
necessária e o trabalhador estrangeiro teria o papel de civilizar o país, o que
consequentemente eliminava os negros e os asiáticos do perfil de imigrantes
desejáveis [Lima, 2005]. Com isso, os europeus eram definidos como os
imigrantes ideais devido a sua capacidade de purificação racial e de civilizar o
país [Azevedo, 1987].
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corruptos, fracos, depravados, narcotizados, imorais, subservientes e perigosos
para a família [Peres, 2013].
Dito isso, nota-se que o Brasil do século XIX era um momento marcado pela
necessidade por trabalhadores, por debates raciais e pelo uso de imigrantes
asiáticos em diversos países. Assim, o presente trabalho tem como objetivo
analisar como o jornal Correio Paulistano apresentava as experiências de
outros países com os imigrantes chineses na década de 70 do século XIX. A
pesquisa foi teoricamente embasada no conceito de raça (Almeida, 2018), uma
vez que essa categoria permite uma boa compreensão acerca de que como os
chineses eram interpretados no contexto das teorias racias. Por fim, é preciso
salientar que todas as citações diretas das fontes foram alteradas para o
português atual com o intuito de evitar tornar a leitura mais fluída.
O correio paulistano
Antes de começar a análise das notícias do jornal Correio Paulistano é preciso
fazer uma breve apresentação deste periódico. Fundado na província de São
Paulo no ano de 1831, o Correio Paulistano nasceu como um estabelecimento
voltado para a divulgação das ideias do governo, contudo, é entre os anos de
1855-1858 que o estabelecimento passa por uma fase de declínio ocasionada
por problemas financeiros que só são solucionados no ano de 1858 através da
subvenção do governo [Schwarcz, 1987].
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e ciganos. Desse modo, entende-se que o caráter conservador do Correio
Paulistano não era apenas uma questão de estilo, mas sim algo atrelado a sua
essência [Schwarcz, 1987].
O uso de experiências
A primeira fonte que será analisada é datada do dia 16 de janeiro de 1870. De
acordo com a fonte a força de trabalho chinesa surge como uma possibilidade
para alimentar a agricultura e a construção de uma estrada de ferro na região,
pois enriquecimento de países como Austrália revela a qualidade desses
trabalhadores. Contudo, a fonte aponta que a importação de chineses é um
investimento que não vale apena, pois essa empreitada seria de custo elevado,
levaria muitos meses e talvez o sucesso apresentado nesses outros países não
se repetisse no Brasil [Correio Paulistano, 1870]. Nota-se que os casos dessas
outras localidades são primeiramente apresentados como experiências de
sucesso, mas que provavelmente não iria se repetir na realidade brasileira.
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dos nossos hábitos de indolência e passividade pelos vícios ainda maiores da
misérrima depressão intelectual e moral daquela raça” [Correio Paulistano,
1870, p.01].
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locadores de serviços; feito o serviço e pago o salário, retiram-se eles. Eis tudo.
Que nos importe, pois, que seja um raça degenerada, se são bons
trabalhadores e se merecem seu salário?” [Correio Paulistano, 1870, p.03]. Os
chineses neste contexto eram entendidos como uma força de transição ou seja,
serviriam de substitutos até que o Brasil estivesse preparado para receber os
europeus [Czepula, 2016]. Desse modo, vemos mais uma vez o conceito de
raça surgir, já que o imigrante chinês era pensado como algo temporário,
servindo apenas para alimentar as necessidades de braços dentro daquela
conjuntura. Isso provavelmente está relacionado a hierarquização dos chineses
como uma raça inferior devido ao seu potencial degenerador, seus vícios e
descrença no catolicismo [Czepula, 2016].
Considerações finais
O Brasil do século XIX é um momento marcado pelo declínio da escravidão,
pelos debates imigratórios e pela chegada das teorias raciais no país. Diante
desse cenário, notamos que os dois artigos do jornal Correio Paulistano, fazem
uso das experiências de outras nações como argumento para atacar ou
defender a imigração chinesa. Contudo, mesmo ambas as matérias possuindo
posições distintas acerca do mesmo assunto elas convergem para o perfil
conservador do Correio Paulistano, uma vez que a importação dos filhos da
China era interpretada como uma segunda opção.
Referências
Alisson Eric de Souza Simão Pereira é graduado em História e mestrando em
ciências sociais e humanas [PPGCISH] pela universidade do Estado do Rio
Grande do Norte [UERN].
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DEZEM, Rogério. Matizes do amarelo: a gênese dos discursos sobre os
orientais no Brasil (1878-1908). São Paulo: Associação Editorial Humanitas,
2005.
Fontes
Correio Paulistano, 16/01/1870, p.01.
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PRESSUPOSTO DOMINANTE E O ESTUDO DA
CHINA, por André Bueno
Ao falar sobre como estudamos a China no Brasil, resta uma longa caminhada
a cumprir. Estamos longe de superar a agenda orientalista ultrapassada do
século 19 – repleta de preconceitos e imprecisões - que ainda domina grande
parte das mentes brasileiras, apesar dos esforços persistentes que um
pequeno número de estudiosos tem promovido. Seja por motivos estratégicos,
seja para ampliar nossa visão de humanidade globalizada [e ambas as
motivações são complementares], compreender a civilização chinesa é uma
necessidade, indispensável para a superação de nossas limitações
epistêmicas. A negação disso tem levado os estudiosos brasileiros a
acreditarem na incauta possibilidade de definir o mundo ignorando mais de um
sexto dele [e um terço da humanidade, se expandirmos essa dimensão para
toda a Ásia], se satisfazendo assim com análises superficiais e – porque não
dizer – pouco científicas [Bueno, 2020c].
Contudo, há algo pior: o uso do recurso científico, por meio de seus promotores
[os acadêmicos, cientistas, pesquisadores, intelectuais, professores, etc], como
um instrumento de legitimação da exclusão dos chineses da agenda global
contemporânea. Invertendo a ordem do processo científico, os preconceitos
têm secundado os mais diversos tipos de hipóteses errôneas, que usualmente
buscam reforçar antagonismos e preconceitos.
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fazendo com que as evidências sirvam para comprová-la ou que sejam
descartadas. É uma hipótese inviável de ser comprovada; seus propositores
elencam como elemento de prova aquilo que responde a sua ideia inicial, de
maneira que tudo que possa divergir é excluído.
Esse é um exemplo que quero tomar para voltar a Sinologia, como um campo
de ciência. Muitas das práticas relacionadas ao estudo da China tem se
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mantido assustadoramente ligadas a pressupostos dominantes, formulando –
ou simplesmente admitindo – hipóteses que não são comprováveis; e ainda,
usando as ferramentas disponíveis para afirmações infundadas. O ponto de
partida desse movimento é calcado na quintessência do orientalismo
eurocentrado colonial: a afirmação de que os asiáticos [no geral] eram
‘estranhos’, ‘diferentes’, e que os especialistas que se dedicaram a estudá-los
seriam ‘tão estranhos quanto eles’.
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Podemos dizer que, no caso do Brasil, a situação tornou-se ainda mais
complicada no século 20 [Bueno, 2020a]. Nossos acadêmicos acompanharam
as divisões ideológicas da partição chinesa [continental e Taiwan], e
construíram visões diversas que oscilavam entre ver a China como um modelo
inspirador ou um antimodelo de civilização. Ao cabo desse processo, o
resultado foi que, com as poucas exceções dos especialistas que visitaram o
mundo chinês, o que se sabia sobre a China por aqui era uma mistura dos
preconceitos do século 19 com um conhecimento terceirizado, produzido por
pesquisadores não brasileiros, e cujos interesses culturais e políticos estavam
vinculados a projetos coloniais ocidentalistas.
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alimentares chineses circunscrevem-se ao consumo de animais e vegetais
estranhos [como insetos, partes incomuns de aves e mamíferos, vegetais
desconhecidos, etc.], reforçando estereótipos baseados pura e simplesmente
nesses mesmos preconceitos culturais – afinal, quem define o que é certo
comer ou não? E deliberadamente, esses mesmos materiais esquecem -
bastaria estudar mais sobre história da alimentação – que as práticas culinárias
foram sendo construídas por trânsitos globais. No Brasil, nos transformamos
em grandes consumidores de chá, arroz, laranja, soja, pastel e canja, em uma
lista extensa de produtos, que vieram todos da China. Nos apropriamos delas,
mas queremos romper com essas heranças asiáticas em nossas terras para
garantir a eficácia de uma pretensa ‘ocidentalização’ [como comentado por
Leite, 1999 e Freyre, 2003].
Isso significa que não existe qualquer injunção cognitiva que dificulte a
aprendizagem dos chineses em relação aos novos saberes. A afirmação de
que a escrita logográfica causa atrasos cognitivos beira o surrealismo. O uso
da mesma não impediu as grandes descobertas do passado, e nem impede a
absorção de tecnologias atuais. Esse processo de tradução e apropriação é o
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ajuste pelo qual todas as civilizações passam quando buscam redefinir e
atualizar seu papel no mundo. No mesmo sentido, a imaginação tem sua sede
no córtex pré-frontal, e isso caracteriza o sistema de funcionamento humano.
Portanto, alternativas no processo de desenvolvimento cognitivo podem
ampliar a percepção do espaço e das coisas, não necessariamente
restringindo-as. Pretender uma ‘inferioridade cultural’ em função da linguagem
e da escrita é um dos arcaísmos mais graves no entendimento antropológico
da humanidade – tal como a ideia de que sociedades ágrafas são ‘inferiores ou
primitivas’ por não terem escrita. Invertendo o paradigma, o pressuposto
dominante nunca permite questionar as razões pelas quais a escrita logográfica
chinesa sobreviveu ao tempo, e hoje contribui na estruturação de linguagens
informáticas.
Referências
André Bueno é professor de História Oriental na UERJ, diretor do Projeto
Orientalismo e pesquisador em Sinologia.
Bueno, André. ‘A China pelo olhar de brasileiros, 1880-1990’. In: Bueno, André;
Campos, Carlos Eduardo; Neto, José Maria. (Orgs.). Estudos sobre História e
Cultura do Extremo Oriente. Rio de Janeiro: Sobre Ontens/Projeto
Orientalismo, 2020a, 20-29.
18
Bueno, André. ‘O complexo de Fu Manchu.’ Leituras da História, n.136, 2020b,
11-14.
Garfiled, Jay e Norden, Bryan V. 'Se a Filosofia não quer e não vai se
diversificar, então vamos chamá-la daquilo que ela realmente é'. Coluna Anpof,
08-12-2021. Disponível em: https://www.anpof.org.br/comunicacoes/coluna-
anpof/se-a-filosofia-nao-quer-e-nao-vai-se-diversificar-entao-vamos-chama-la-
daquilo-que-ela-realmente-e
Li, Zhong. ‘Creative thinking in the teaching of Chinese language and literature
in colleges from the perspective of educational psychology’. Front. Psychol., 13
October 2022. Disponível em:
https://www.frontiersin.org/articles/10.3389/fpsyg.2022.1018289/full
Needham, Joseph. The Grand Titration: Science and Society in East and West.
Londres: Routledge, 2013.
19
Said, Edward. Orientalismo – A invenção do Oriente pelo Ocidente. Rio de
Janeiro: Companhia das Letras, 1998.
20
A IDEIA DE GAIATSU NA JAPONOLOGIA DE RUTH BENEDICT,
por Edelson Geraldo Gonçalves
Introdução
O presente texto tem como tema o conceito japonologista de “gaiatsu”, que
passou a fazer parte desse campo de estudos na década de 1980, com foco
em sua influência sobre as relações exteriores do Japão, ou, mais
especificamente, como o seu funcionamento foi antecipado pela antropóloga
Ruth Benedict no livro “O Crisântemo e a Espada”, um trabalho de análise da
cultura japonesa, ou mais propriamente do Japão Imperial [1868-1945],
originalmente publicado em 1946.
Este termo se refere à forma como as pressões exteriores tem efeito sobre a
cultura japonesa, podendo levar essa a admitir mudanças internas, mesmo
radicais, de forma repentina.
Para tratar desse tema, trabalharemos com a abordagem desse conceito nos
trabalhos dos autores Kent E. Calder [1988], Patrick Smith [1997] e Mayumi
Itoh [2000], analisando, ao final, como esta ideia aparece na obra de Ruth
Benedict.
.
A Relação do Japão Moderno com o Mundo
Entre a reabertura do Japão ao mundo, em 1853, e o final do período imperial,
em 1945, com a rendição do país na Segunda Guerra Mundial, o projeto dos
governantes japoneses para a sua sociedade, e a relação deste Estado-Nação
com o restante do mundo tive diferentes fases.
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Uma explicação para essa transição ordeira se encontra no conceito de
gaiatsu, que se somou ao aparato teórico da japonologia a partir da década de
1980, mas cujos efeitos, de uma forma geral, foram percebidos pela
antropóloga Ruth Benedict pelo menos desde 1946.
Gaiatsu
Como nos lembra José D’Assunção Barros [2016, p. 24], “os cientistas nem
sempre criam as palavras, [...] que servirão de termos para os conceitos dos
quais necessitam” e que, por vezes, “é o grande ator coletivo formado pelas
pessoas comuns quem cria o material que servirá de base para os conceitos” e
este material é composto por palavras do cotidiano, “e os cientistas das várias
áreas de estudo só precisam se apropriar dessas palavras para dotá-las de um
sentido mais específico em seus campos de saber”.
Foi isso que ocorreu com o termo “gaiatsu”, que significa literalmente “pressão
externa” [Calder, 1988, p. 537], que adentrou o vocabulário conceitual do
campo da japonologia [estudos japoneses] na década de 1980.
Este conceito, que surgiu originalmente na mídia [Blaker, 2002, p. 27], ganhou
teorização acadêmica em 1988, no artigo “Japanese Foreign Economic Policy
Formation: Explaining the Reactive State”, escrito pelo asianista Kent E. Calder,
voltando a aparecer e ser analisado, alguns anos depois, em livros como “The
Emergence of Japan’s Foreign Aid Power”, de Robert M. Orr [1990], e “The
New Multilateralism in Japan’s Foreign Policy”, de Dennis T. Yasutomo [1995]
[Myiashita, 2001, p. 37-38], sendo posteriormente bem trabalhado nas obras
“Japan: A Reinterpretation” de Patrick Smith [1997] e “Globalization of Japan”
de Mayumi Itoh [2000], tendo se tornado, atualmente, “um termo muito comum
na literatura japonesa de relações internacionais” [Cooney, 2004, p. 136].
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Na primeira conceitualização deste fenômeno, Calder [1988, p. 526-535] leva
em consideração apenas o efeito do gaiatsu nas relações internacionais,
atribuindo suas causas à três razões conjunturais do Japão da década de
1980, mais especificamente, primeiro, o comprometimento prioritário do Estado
com assuntos internos, sobretudo com o crescimento econômico, se deixando
levar principalmente pelos EUA na maioria das questões internacionais, em
segundo, sua posição de dependência em relação aos Estados Unidos no
sistema internacional, notadamente no campo econômico e de defesa, o que
provocaria vulnerabilidade às demandas desse país, e, por fim, um poder
executivo fraco, sob controle de um partido grande, porém, profundamente
faccionalizado [o Partido Liberal Democrata], dificultando a formação de um
centro decisório forte.
Ainda com foco na política externa, segundo Mayumi Itoh [2000], o gaiatsu é
um instrumento comum na promoção da internacionalização [kokusaika] do
Japão, gerando momentos em que o país se adequa a padrões internacionais.
23
Mais especificamente, este conceito se tornou notório em um momento de
pressão externa, principalmente dos EUA, sobre o governo japonês pelo apoio
do país nos assuntos diplomáticos e militares estadunidenses na Guerra Fria, e
se tornou especialmente corrente no contexto das negociações sobre questões
comerciais e de investimento entre o Japão e os Estados Unidos na década de
1980, sobretudo em relação ao protecionismo comercial nipônico, quando se
percebeu que a influência da opinião estrangeira às vezes se mostrava eficaz
para mudar a política japonesa onde os atores políticos domésticos por conta
própria não conseguiam, seja por resistência do Estado, ou da sociedade civil
[Cooney, 2004, p. 134; McCargo, 2004, p. 201; Stockwin, 2005, p.137-138].
Segundo Patrick Smith [1997, p. 37, 193], este é o meio pelo qual muitas
coisas são feitas no Japão, sendo, na verdade, uma característica antiga da
cultura nipônica, que em vários momentos buscou se adequar a padrões
externos.
Esta prática, que se origina de uma inclinação a se ver de fora para dentro, por
valores externos e estrangeiros, é, segundo Smith [1997, p. 193], uma
duradoura tendência iniciada ainda no período Asuka [593-710], quando foi
feita uma reforma da estrutura de Estado à moda chinesa, transformando o
monarca japonês de um primus inter pares em um soberano celeste e divino, e
o império foi também nomeando como "Nippon", a “Terra do Sol Nascente”, o
que se refere ao sol no Japão, visto do ponto de vista chinês. Dessa forma, os
governantes do Japão trouxeram ao seu povo uma sinização que impôs
definitivamente a cultura patriarcal confucionista sobre a provável antiga cultura
matriarcal nativa [Smith, 1997, p. 192-193].
A outra grande reforma neste sentido viria com a Restauração Meiji em 1868 e
seu subsequente programa de modernização e ocidentalização, como resposta
às pressões estrangeiras iniciadas em 1853, com a chegada da armada
liderada por Matthew Perry ao Japão [Smith, 1997, p. 57].
Podemos afirmar, portanto, que para Smith e Itoh, esta é uma característica de
longa duração na cultura japonesa, uma estrutura, nos termos de Braudel
[1992, p. 49-50].
24
etc.] como é normalmente feito no ocidente, cada ambiente “teria o seu código
[de comportamento] especial particularizado, sendo que o homem julga os seus
semelhantes, não lhes atribuindo personalidades integradas” [Benedict, 2006,
p. 167] dessa forma, na vida japonesa, “as contradições [...] acham-se tão
profundamente baseadas na sua visão da existência quanto as nossas
uniformidades na nossa” [Benedict, 2006, p. 167].
Conclusão
Podemos concluir, portanto, que, em seu livro, Ruth Benedict não apenas
percebeu a característica estrutural da cultura japonesa; que décadas mais
tarde seria conceitualizada como “gaiatsu” no campo dos estudos japoneses;
de uma forma semelhante ao entendimento que Patrick Smith e Mayumi Itoh
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teriam posteriormente, como também ligou sua lógica de funcionamento a outro
elemento estrutural, este sim cuidadosamente estudado como conceito em seu
trabalho, a “cultura da vergonha”, constatando que, tanto nas relações pessoais
entre indivíduos, quanto nas relações coletivas entre nações, o comportamento
japonês buscaria a adequação ao ambiente em que se insere, com o objetivo
de alcançar a respeitabilidade. Tal fundamento não teria, portanto, problemas
com mudanças de qualquer tipo, mesmo as mais radicais.
Referências
Edelson Geraldo Gonçalves é Doutor em História Social das Relações Políticas
pela Universidade Federal do Espírito Santo (UFES). Mail:
edelsongeraldo@yahoo.com.br
COONEY, Kevin. Japan’s Foreign Policy Since 1945. Armonk e Londres: M.E
Sharpe, 2007.
26
STOCKWIN, J. A. A. Dictionary of Modern Politics of Japan. Londres e Nova
York: Routledge, 2005.
27
OS MILAGRES NA ESFERA DO DESENVOLVIMENTISMO: UMA
COMPARAÇÃO ENTRE BRASIL E COREIA DO SUL, por
Eduarda Christine Souza Pucci
Usar o conceito de “milagre” para se referir a algum avanço em país foi algo
bastante utilizado em rápidos crescimentos econômicos que ocorreram pelo
mundo – como o caso Japonês e o Alemão. Tal conceito, ganha certo impacto
de cunho messiânico ao se referir aos avanços em projetos político-
econômicos, assim é expresso por Hannah Arendt como “algo de novo
acontece, de maneira inesperada, incalculável e por fim inexplicável em sua
causa, acontece justamente como um milagre [...]” (ARENDT, 1993, p.15).
Diante disso, governos se apropriaram desse termo como estratégia política e
autopromoção, a fim de demonstrar os níveis de crescimento de seus
governos.
Ao utilizar o fator dos fenômenos ditatoriais que ocorreram pelo mundo durante
o século XX, é possível observar como foi adotado tal conceito. Durante o
cenário de mundo bipolarizado – com a ideologia dos dois sistemas
socioeconômicos, o socialismo e o capitalismo – da Guerra Fria, alguns países
insurgem com governos ditatoriais, com conflitos externos que estavam
ocorrendo pelo mundo. A ditadura brasileira e a sul-coreana, oferecem
perspectivas divergentes e convergentes a respeito do tema do
desenvolvimentismo, porém, nos dois países é utilizado o termo milagre para
se referir ao avanço da economia.
Com base nisso, este trabalho tem como fator exploratório, caracterizar de
forma breve os tipos de “milagres” que ocorrem nos processos ditatoriais em
questão. Sendo o processo do Brasil ocorrendo no período de 1967 a 1973 e o
processo da Coreia do Sul, começando em 1961 e indo até 1996. Além de
mostrar as suas diferenças e onde convergem, e também, como foi adotado
pelo período ditatorial de ambas.
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de preços em 1966” ou seja “[...] acelerar crescimento e simultaneamente
reduzir a inflação [...]” (EARP e PRADO, 2003, p.5-6).
Observaram que: "A partir de 1961, e de modo mais claro a partir de 1962,
alarga-se o hiato entre a produção efetiva e potencial, hiato este que chegaria a
um máximo entre 1965 e novamente em 1967. A partir deste último ano até
1972, fazem-se sentir com mais intensidade os efeitos da política econômica
expansionista, permitindo que o crescimento industrial prossiga sem
acréscimos substanciais no estoque de instrumentos de trabalho - ou seja,
baseado na utilização mais intensa do estoque existente." Concluíram que as
taxas médias de 14,5% de crescimento atingidas na indústria de transformação
no período de 1967 a 1972, somente foi possível graças à utilização intensiva
da capacidade instalada, a qual elevou-se de 76% em 1967 para 100% em
1972, perfazendo uma taxa de ocupação média anual de 6%. Isto resultou
numa performance "fácil", na medida em que metade desse crescimento era
devida a utilização da capacidade de produção disponibilizada no período
1963/1967.” (MIRANDA, 1999, p. 51-52)
29
Dessa forma, o início do “milagre”, objetivava um aumento das taxas
percentuais do PIB em crescimento até 1973, e consequentemente a redução
da inflação no período governamental de Médici, a partir de estratégias de
aproveitamentos de oportunidades que o cenário internacional favorecia. Indo
em direção ao governo de Geisel (1974-1979), começa com um nível de
inflação mais baixo e com uma estrutura econômica administrativa organizada,
trazendo novos desafios para a balança econômica brasileira. Porém, com o
avanço econômico que foi sendo desenvolvido no período ditatorial brasileiro,
houve questionamentos também a respeito de todas essas mudanças que
estavam ocorrendo no Brasil, como:
Por mais que uma parte da sociedade brasileira seguia caminhos em direção
ao desenvolvimento econômico, as classes mais baixas não alcançaram os
frutos do “milagre econômico” e sim ganhando o status da desigualdade.
Sendo assim, em pouco tempo a concentração de renda e o PIB aumentaram,
ao passo que outros setores governamentais ficaram defasados.
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tempo, desde o estado de assolamento econômico do período de guerra. Kiely,
demonstra que o subsídio a indústrias e o planejamento nacional de aliança
com os chaebols (grandes conglomerados familiares) como estratégia, foi algo
que ajudou a impulsionar a economia (KIELY, 1998, p.97). Essa aproximação
do estado com os chaebols conseguiu um maior controle e o poder de fornecer
apoio a indústrias que vinham crescendo à época no país, dessa forma:
“No segundo plano cultural, a “Lei da Indústria Cultural” de 1999 fornece uma
base legal para apoio governamental e envolvimento de Chaebol na indústria
cultural [...] A lei redefiniu que a indústria cultural envolve planejamento,
desenvolvimento, produção, fabricação, distribuição e consumo de mercadorias
culturais, bem como serviços relacionados. De acordo com a lei, mercadorias
culturais são filmes, programas de radiodifusão, bens, discos/fitas, jogos,
publicações ou periódicos, incluindo revistas, jornais, personagens, histórias
em quadrinhos e produção multimídia [...]” (PARK, 2015, p.102-104).
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que pudessem dar retorno ao país em produtos que possam ser exportados
mundo afora, e o setor cultural foi um dos que tiveram maior significância e
resultados. Fazendo do país, que era pobre e destruído – como resultado dos
conflitos do século XX – em uma das potências com maior nível de educação,
urbanização e avanço tecnológico. Sendo reconhecido mundialmente por seus
chaebols e pelo mercado da tecnologia da informação.
Considerações finais
Portanto, ao longo desta análise foi possível perceber que o Brasil e a Coreia
do Sul, obtiveram seus processos de desenvolvimento econômico em períodos
ditatoriais, porém com a diferença da política desenvolvimentista sul-coreana
continuando mesmo após a redemocratização. Outro fator convergente se
apresenta no apoio do Estado sul-coreano ao projeto de reurbanização e
melhora da educação, como possíveis retornos para a sua economia, e no
Brasil, a consequência foi a grande desigualdade social e concentração de
renda na elite brasileira.
Referências
Eduarda Christine Souza Pucci é discente do curso de Licenciatura em
História, pela Universidade Federal Rural do Rio de Janeiro – UFRRJ.
32
GONÇALVES, Cátia Andreia da Cruz. O processo de industrialização da
Coreia do Sul: intervenção estatal na construção de uma economia
exportadora. 2022. Tese de Doutorado. Instituto Superior de Economia e
Gestão. Disponível em: https://www.repository.utl.pt/handle/10400.5/24429.
KIM, Sunhyuk. Civil society and democratization in South Korea. In: Korean
Society. Routledge, 2006. Disponível em:
https://core.ac.uk/download/pdf/76462899.pdf.
33
A MIGRAÇÃO COREANA PARA O ESPÍRITO SANTO,
por Gabriela Soares Lima dos Santos
Introdução
O século XX foi um período de muitas movimentações na península coreana.
Ocupação japonesa, Segunda Guerra Mundial, governos despóticos,
revoluções e outros movimentos criaram um contexto de dificuldades para a
população da Coreia. Dessa forma, desde o começo do século, o processo de
emigração se inicia, mesmo que de forma sutil. Nesse contexto, Choi (1996, p.
234-235) divide tal movimento em 5 fases, definidas segundo o fluxo de
imigrantes. A primeira delas, a fase pré migratória (1910-1956), constituiu-se
quando vieram os primeiros coreanos, que possuíam documentos falsos
dizendo serem japoneses. Os registros de entrada foram feitos no ano de 1918
e 1956, ano em que os prisioneiros da Guerra da Coreia (1950-1953)
chegaram ao Brasil. A seguir, o ano de 1962 é entendido como o período
semioficial, no qual um grupo com poucos coreanos desembarcou em terras
nacionais. A terceira fase é tida como a fase oficial da imigração (1963 - 1971).
Seguindo um acordo entre os governos da Coreia do Sul e do Brasil, os
imigrantes coreanos viriam em cinco levas, todas elas direcionadas ao trabalho
agrícola. Porém, diversas complicações surgiram, como questões legais com
as terras e a falta de infraestrutura. Com isso, os coreanos se mudaram para
as cidades, especialmente São Paulo. As levas seguintes foram diretamente
para o meio urbano, onde já estavam fixados os familiares e amigos dos
primeiros imigrantes (SOARES, 2020, p. 49).
34
A imagem de um Brasil industrial, economicamente desenvolvido, juntamente
com o golpe militar de 1961, ocorrido no país sul-coreano, incentivou muitos
coreanos a saírem da terra natal. O Milagre Econômico Brasileiro (1969 - 1973)
foi um fator encorajador para que cada vez mais imigrantes olhassem para o
Brasil. Assim, a quarta fase de imigração coreana aconteceu, sendo esta
conhecida como período clandestino (1972 - 1984), processo pelo qual passou
o entrevistado desta pesquisa, senhor Lee. (CHOI, 1996, p. 235). Por fim, a
última fase da imigração coreana para o Brasil, o período de imigração em
cadeia, se estende do ano de 1980 até os dias de hoje. Esta fase é
caracterizada pelo fato de os coreanos serem convidados por amigos ou
familiares que já moram no Brasil (SOARES, 2020, p. 49, 50).
O projeto migratório foi pensado com base no plano de imigração japonês, que
destinava aqueles que vinham para as fazendas. Assim, devido à infraestrutura
precária do Brasil, os coreanos preferiram seguir para as cidades, uma vez que
as indústrias cresciam durante o Milagre Econômico Brasileiro (SOARES,
2020, p. 57). Além disso, é interessante citar que o projeto inicial visava
estabelecer a população sul-coreana em outros estados além de São Paulo,
como o próprio Espírito Santo que, em 1964, tinha um projeto de receber os
imigrantes na fazenda de Ponta Grossa, nos arredores de Vitória. Mas as
35
condições para o plantio não eram adequadas, e a ausência de investimento
de capital agravava a situação (SOARES, 2020, p. 56).
Já Keum Joa Choi, em seu texto Imigração Coreana na Cidade de São Paulo
(1996, p. 233), comenta acerca da quantidade de coreanos que se mudaram
da península, chegando a cerca de 5.000.000 no ano de 1996. Nas Américas,
o Brasil está em terceiro lugar em termos de recebimento da população
coreana, seguindo os Estados Unidos da América (EUA) e o Canadá.
Também será de importância para essa pesquisa, o artigo escrito por Bárbara
Barreto de Carvalho, de nome Memórias em fluxo: Vivências e perspectivas da
imigração sob o olhar de descendentes coreanos em Brasília (2018), que
descreve a imigração coreana para Brasília, mas que também pontua como a
religião ganhou espaço em tal movimento populacional. As redes criadas pela
Igreja proporcionavam alimentos, moradia – nos primeiros momentos – e
36
oportunidades de trabalho, de modo a consolidar as relações sociais e os
espaços em que os imigrantes poderiam livremente falar sua língua nativa.
Sendo assim, grande parte dos que chegavam já haviam, de alguma forma,
tido contato com a religião (CARVALHO, 2018, p. 4). É importante salientar
como esse processo de rede de apoio, oferecido pela Igreja, esteve presente
na trajetória de imigração da família do entrevistado. Como o mesmo afirma,
devido a essa rede, a mudança para São Paulo não foi tão penosa:
“[...] Quando eu vim aqui no Brasil, como meu pai já era presbítero de longa
data, e como todos os cinco irmãos eram presbíteros, os nossos tios, a igreja
presbiteriana estava sediada em vários países do mundo inteiro. [..] Mediante
dessa função quando ele teve, teve contato com a Igreja Presbiteriana em São
Paulo e através da Igreja Presbiteriana Paraguai - Assunção, tivemos contato,
e isso facilitou bastante a nossa chegada, porque não teve tanta dificuldade”
(LEE, 2022).
“Então quando nós viemos pra cá, primeiramente nós estávamos na casa de
um membro da igreja, lá em São Paulo [...]. Nós estávamos há um mês
naquela casa pra poder achar um local para ficarmos [...]” (LEE, 2022).
Além disso, a obra comenta também acerca de algumas das causas que levam
à escolha de um país de destino para a migração, como as políticas laborais, e
entrevistas que exploram a vida de famílias sul-coreanas que se mudaram para
a região.
37
"[..] Numa fração de segundos, eu perdi a mão do meu pai. [..] E eu olhando e
não conseguindo enxergar quem estava do meu lado. Foi um momento de
pânico [..]” (LEE, 2022).
“[..] Na época que meu tio esteve aqui, o dilema era assim: trabalho um dia,
como sete dias. Um país que estava degradado, pobre, com muito subemprego
e tudo mais [Coreia do Sul], a coisa mais importante para essa pessoa é
comer. Para comida, eles trocam todas as coisas. Então essa áurea, de
trabalhar por um dia e comer durante sete dias, foi um dos fatores [de mudança
para o Brasil]” (LEE, 2022).
Assim, no decorrer dos meses, esse trabalho será desenvolvido mais a fundo.
Dessa forma, a partir da análise da entrevista, juntamente com a bibliografia
reunida, acredita-se que será possível compreender de qual forma o estado do
Espírito Santo se mostrou atraente para a comunidade coreana. Ademais, será
possível testar a hipótese de que a comunidade coreana no estado apresenta
como motivação comum a busca por empregos, ou melhor qualidade de vida,
decorrente de convite de conhecidos que já vivem no local ou a presença de
grandes empresas, que oferecem tais oportunidades.
Referências
Gabriela Soares Lima dos Santos é discente do curso de História, na
Universidade Federal do Espírito Santo - Ufes.
38
CARVALHO, Bárbara Barreto de. Memórias em fluxo: Vivências e perspectivas
da imigração sob o olhar de descendentes coreanos em Brasília. Textos
Graduados, v. 4, ed. 1, Agosto 2018.
Fonte Oral
LEE [59 anos]. [nov. 2022]. Entrevistador (a): Gabriela Soares Lima dos
Santos. Vila Velha, Espírito Santo, 16 nov. 2022.
39
HISTÓRIA PÚBLICA E REPARAÇÃO: A
REPRESENTATIVIDADE ASIÁTICA NA HISTÓRIA DO OSCAR,
por Helena Ragusa e Douglas Tacone Pastrello
40
Alvo de críticas especialmente por parte de grupos historicamente silenciados
na cultura norte-americana – como o movimento “#OscarSoWhite de 2016 - a
presença asiática no Oscar remete a pequenos apontamentos e conquistas ao
longo do século XX que culminam neste amplo reconhecimento por parte do
Ocidente, agora no século XXI em que o impacto de atores e cineastas
asiáticos, e artistas e diretores de ascendência asiática, nunca foi tão grande.
Neste período era elogiável a atuação dos yellowfaces, atores brancos que
utilizando de maquiagem, interpretavam personagens asiáticos, semelhantes
aos criticados blackfaces. Essa situação constrangedora se fez presente em
diversos momentos da História do cinema estadunidense. Em 1937, o filme
The Good Earth - “Terra dos Deuses” - premiou a atriz alemã Luise Reiner pela
personagem asiática O-Lan, enquanto asiáticos como Oberon apenas
conseguiam papeis de destaque se fossem “passáveis” como brancos e não
eram reconhecidos ou premiados.
A primeira artista premiada foi Miyoshi Umeki, em 1957, pelo filme Sayonara. O
filme em questão trabalha com as questões políticas do Japão pós-guerra e
escancara ainda mais os problemas socioculturais do cinema de Hollywood
que concebia o oriente como parte de uma zona de domínio a ser salva ou
conquistada, a exemplo dos “japoneses antiamericanos” e “pró-americanos”.
Ironicamente, a atuação de Umeki não lhe rendeu papéis fidedignos a
realidade asiática e ela teve de escolher entre papeis estereotipados, pouco
realistas, ou “desaparecer” das telas. Quando questionada por seu filho sobre
seu papel, ela respondeu: “Eu não gostava de fazer, mas quando alguém te
paga para um trabalho. Você faz o trabalho e dá seu melhor” (LI, 2018).
Ainda que se diga que estas questões se tornaram apenas uma nota de rodapé
na história do cinema de Hollywood, há casos recentes e dignos de repúdio. O
filme Doctor Strange - “Doutor Estranho” - de 2016, feito pela Marvel Studios
41
produtora de blockbusters de super-herói e distribuído pela Disney, trouxe Tilda
Swinton no papel da “Anciã”, uma personagem asiática portadora de muito
conhecimento, misticismo e sabedoria. A personagem, por si só, já é um
amontado de estereótipos do exotismo asiático e ainda fora interpretada por
uma atriz ocidental.
42
narrativa em torno dos bombardeios atômicos em Hiroshima e Nagasaki
frequentemente relembrados no cinema estadunidense como um “mal
necessário” para pôr fim a Segunda Guerra Mundial, muito embora a
historiografia demonstre que não era. Nestas problemáticas residem parte dos
problemas do cinema, pois mesmo que ele enquadre o campo artístico, não há
como separá-lo de seu caráter de formação histórica. Suas sedutoras lentes
criam uma realidade de ficção histórica, sejam as obras puramente fictícias ou
obras de eventos históricos, convincente que modela uma visão de mundo
condizente com a de seus autores, tais como qualquer outro documento
histórico – fato destacado por Alexandre Valim (2006).
Apesar de contar com quase dez anos, o estudo revela algo preocupante
quando atenta, por exemplo, para a existência de uma distorção demográfica a
qual ignora as mudanças e transformações sociais, políticas e econômicas do
último século onde people live in new environments, physical, social,
economic, cultural and political, and their imagination and sense of identity has
had to adapt, or at least respond, accordingly even if the response often was
and frequently remains a hostile reaction (BLACK, 2014, p. 2).
43
Considera-se, ainda, que seis a cada dez dos que residem nos Estados Unidos
nasceram em outro país e que até a metade do século XXI eles se tornarão o
maior grupo de imigrantes. Logo a pouca ou nenhuma visibilidade, equívocos,
distorções e banalizações recorrentes nos filmes, demonstram uma
inconsistência quando comparados aos números e tampouco contribuem no
sentido de divulgar e apresentar a cultura desses povos aos espectadores.
Não tem muito tempo, a congressista de Nova York Grace Meng apresentou o
projeto de lei Covid-19 Hate Crimes, que foi sancionado pelo presidente Joe
Biden. Meng, que é descendente de Taiwan, representa partes do Queens, o
bairro diversificado da cidade de Nova York que abriga muitos americanos
asiáticos.
44
origem asiática e de como isso se torna 100 times more difficult. If you were to
take 100 scripts, there was a high probability that none of them would feature
any meaningful Asian characters. A lot of the time we were the butt of the
joke.
Como bem observa Ana Maria Mauad (2016), “as culturas históricas e políticas
se consolidam com base na relação que os públicos estabelecem com os
passados possíveis que lhe são apresentados” (MAUAD, 2016, p. 90) e o
cinema é um desses espaços, um dos gêneros onde a narrativa ocorre.
45
As novas demandas por parte desses grupos vem ganhando força e no caso
dos asiáticos, estão cada vez mais ampliando sua participação na sociedade, a
exemplo da influência e responsabilidade na política, setor esse até então sub-
representado pelo grupo em cargos governamentais.
Referências
Dra. Helena Ragusa é Doutora em História pela Universidade Estadual de
Maringá e atualmente pós- doutoranda do curso de pós graduação em História
Publica UNESPAR - Campo mourão. Bolsista CAPES.
46
BUDIMAN, Abby; RUIZ, Neil G. Key facts about Asian Americans, a diverse
and growing population. Washington: Pew Research Center. 2021. Disponível
em meio digital: https://www.pewresearch.org/short-reads/2021/04/29/key-facts-
about-asian-americans/. Acesso em: 18/07/2023.
COCHRAN, Jessica. Two sides of the same coin: Standing at the intersection of
Hollywood and history. Acervo digital. History@Work. març. 2013. Indiana
University-Purdue: University Indianapolis. Disponível em:
https://ncph.org/history-at-work/hollywood_history/. Acesso em: 18/07/2023.
LI, Shirlei. Why did Miyoshi Umeki, the only Asian actress to ever win an Oscar,
destroy her trophy? Enternaiment Weekly(EW). Acervo digital. Feb. 2018.
Disponível em: https://ew.com/oscars/2018/02/22/miyoshi-umeki-sayonara-
oscars-profile/. Acesso em: 18/07/2023.
NORA, Pierre. Entre memória e história: a problemática dos lugares. In. Projeto
História, São Paulo, n.10, dez. 1993, p.7-28 .
SMITH, Stacy L.; CHOUEITI, Marc; PIEPER, Katherine; GILLIG, Traci; LEE
Carmen; DELUCA, Dylan. Inequality in 700 Popular Films: Examining
Portrayals of Gender, Race, & LGBT Status from 2007 to 2014. Califórnia: The
Harnisch Foundation & supporters of MDSC Initiative. Disponível em:
https://www.researchgate.net/publication/312489186_Inequality_in_700_Popula
47
r_Films_Examining_Portrayals_of_Gender_Race_LGBT_Status_from_2007_to
_2014. Acesso: 18/07/2023.
LYNSKEY, Dorian. DIGGINS, Alex. Why Ke Huy Quan and Harrison Ford’s hug
was the most moving moment at the Oscars. THE TELEGRAPH. Reino Unido.
13 de març. 2023. Disponível em: https://www.telegraph.co.uk/films/0/ke-huy-
quan-everything-everywhere-interview-why-quit-hollywood/. Acesso em:
19/07/2023.
ROSENZWEIG, Roy; THELEN, David. The presence of the past? Popular uses
of history in American life. New York: Columbia, 1998.
Referências cinematográficas
48
The Dark Angel(Anjo Sombrio). Direção: Sidney Franklin. Estados Unidos.
Produção: Samuel Goldwyn Productions. Distribuição: United Artists. 1935.
Preto e branco. 110min.
The good Earth.(Terra dos deuses). Direção: Sidney Franklin, Victor Fleming,
Gustav Machatý. Estados Unidos. Produção: Metro-Goldwyn-Mayer.
Distribuição: Loew’s, Inc.. 1937. Preto e Branco. 138min.
49
UM REGIME HISTORIOGRÁFICO DE CIRCULAÇÃO AMPLA? A
HISTORIOGRAFIA SOBRE A IMIGRAÇÃO JAPONESA DE
MARCIA YUMI TAKEUCHI, por Luana Martina Magalhães Ueno
Introdução
A imigração japonesa é um tema consideravelmente pesquisado na academia,
sendo assim, torna-se interdisciplinar e multifacetado. Apesar disso, ainda está
em constante desenvolvimento e disputa por espaço. Os estudos sobre o
processo imigratório pertenciam inicialmente às Ciências Sociais, somente a
partir dos anos 2000 que ocorreu a introdução desse tema em outras áreas.
Caso da História, uma vez que por influência da publicação do livro A
negociação da identidade nacional [2001], do brasilianista Jeffrey Lesser, os
historiadores começaram a se aventurar mais nesse tipo de pesquisa,
contribuindo com novos olhares, métodos, fontes e objetos. Dentre os
historiadores que abordaram a imigração japonesa, destacamos a
pesquisadora Marcia Yumi Takeuchi [1972-2010].
Ademais, foram nesses espaços que ela estabeleceu relações com outros
pares, inclusive com Rogério Dezem, outro historiador importante da
historiografia sobre imigração japonesa. Sendo assim, a historiadora foi
marcada por seus contatos intelectuais, como podemos observar nas escolhas
de seus objetos de pesquisa: o processo imigratório e o discurso antinipônico.
50
possuía interesse na história da comunidade japonesa. Assim sendo,
objetivamos compreender a operação historiográfica de Takeuchi relacionada
com o regime historiográfico de circulação ampla, que ambicionava uma
espécie de democratização do saber.
“[...] Assim, a Tucci sempre deixou claro para nós, orientandos, que
precisaríamos situar os imigrantes no universo da história brasileira
contemporânea, o que se assemelhava ao que ela fez em relação aos judeus.
51
Portanto, tentamos seguir essa metodologia, o que era quase um mantra para
jovens pesquisadores como nós. Também havia muita troca de informações e
documentos entre os pesquisadores no PROIN [...]” [Dezem; Richard, 2023, p.
13].
52
Além disso, para que realmente o objeto se transforme em uma fonte é preciso
que se realize uma redistribuição do espaço, ou seja, o “estabelecimento das
fontes solicita, também, hoje, um gesto fundador, representado, como ontem,
pela combinação de um lugar, de um aparelho e de técnicas [...]” [Certeau,
1982, p. 82]. Assim, não é suficiente apenas “dar voz” as fontes, é preciso que
ela seja transformada por uma ação instauradora e por técnicas. Dessa forma,
as fontes utilizadas por Takeuchi perpassam por técnicas, que entendemos
aqui como o aparato teórico e metodológico. Em suas pesquisas, a historiadora
se valeu de trabalhos sobre a imigração japonesa, que são os estudos
produzidos a partir da década de 1940, autores como Hiroshi Saito, Célia
Sakurai, Giralda Seyferth, Francisca Vieira e Jeffrey Lesser, sobre o governo
de Getúlio Vargas, baseou-se nos trabalhos de Alcir Lenhado e de sua
orientadora Tucci Carneiro, e para compreender os discursos e a lógica de
desconfiança, embasou-se em Michel Foucault e Hannah Arendt. Depois com
acréscimo de outros tipos de fontes, Takeuchi inseriu autores que discutem a
charge e iconografia, como Boris Kossoy e Pierre Francastel. Além de
referenciar os colegas do PROIN, como Rogério Dezem e Priscila Perazzo.
53
presentismo, no qual o presente tornou-se estagnante e o futuro não é mais
visto como uma promessa, mas passa a ser uma ameaça catastrófica [Hartog,
2013]. Ademais, nos regimes de historicidade se estabelecem os regimes
historiográficos, que é considerado as maneiras de escrita e elaboração do
saber histórico. Nicolazzi [2019] argumenta que há mais de um tipo de regime
historiográfico, definindo que há pelo menos três, e que podem dialogar entre
si: acadêmico, escolar e o de circulação ampla. Em cada um deles, a história é
escrita seguindo regras e protocolos distintos. Portanto, percebemos que não
tem como considerar que os historiadores produzem apenas para academia,
mas é possível também que, por meio de outros regimes historiográficos,
direcionem o seu discurso histórico para outros públicos. O que é possível
notar nas produções de Takeuchi, pois há obras que não foram publicadas com
a intenção de alcançar os pares, mas a sociedade em geral.
54
tentando se inserir em outro regime, contudo, ela ainda estava no processo de
adaptar os seus textos, ao invés de escrever uma outra obra seguindo os
procedimentos específicos do regime historiográfico de circulação ampla.
55
budistas] [Takeuchi, 2007]. Dessa maneira, a historiadora procurou explicitar
como os nikkeis contribuíram e se inseriram na cultura e na sociedade
brasileira. O que aproxima a sua escrita dos discursos memorialistas, caso da
literatura nikkei da década de 1980.
Considerações finais
Com este trabalho podemos compreender que Takeuchi era uma historiadora
inserida em dois regimes historiográficos: um acadêmico e outro de circulação
ampla. Entretanto, ela ainda estava muito mais próxima dos protocolos
definidores da operação historiográfica, o que dificultava que sua escrita fosse
para além da adaptação. Por fim, levantamos a hipótese de que a obra
analisada foi a primeira que Takeuchi escreveu sem ser direcionada para os
seus pares e que buscava a legitimação de um público relacionado à
comunidade nikkei. Sendo, portanto, uma historiadora que estava pensando
em expandir o seu espaço de atuação, não se restringindo mais só à
academia.
Referências
Luana Martina Magalhães Ueno é doutoranda em História e Cultura pela
Universidade Estadual Paulista “Júlio de Mesquita Filho” [UNESP]. Membro do
Laboratório sobre Culturas Orientais [LAPECO/UEL] e do MEMENTO - Grupo
de Pesquisa de Memórias, Trajetórias e Biografias.
56
LESSER, Jeffrey. A negociação da identidade nacional: imigrantes, minorias e
luta pela Etnicidade no Brasil. Tradução de Patrícia de Queiroz Carvalho
Zimbres. São Paulo: Editora UNESP, 2001.
57
A INSTITUIÇÃO BRASIL SÔKA GAKKAI INTERNACIONAL E AS
ESTRATÉGIAS DE SOBREVIVÊNCIA DO BUDISMO NO BRASIL
(2016-2021), por Rafael Meira de Oliveira
Vale salientar aqui que estes aspectos valem principalmente para a crise
dentro de um budismo mais tradicional, fechado à mudanças, chamado de
étnico pelo autor acima. Em contraposição, temos um budismo chamado de
conversão, como os neobudismos que aumentam sua influência no ocidente.
Essas escolas: “começaram a buscar formas de expandir-se entre não
descendentes de japoneses como mecanismo de sobrevivência.” (ANDRÉ,
2018, p.1265)
58
pertencimento; ética ou orientações para o cotidiano, e diversos outros
elementos.” (PEREIRA, 2002, p. 272)
59
O conteúdo audiovisual aqui analisado é um produto, onde a gravação foi
posteriormente editada. Elementos como música de fundo, o enquadramento,
cortes de gravação, e até mesmo em muitos casos um roteiro, são planejados,
visando um maior engajamento na plataforma, ou seja, toda uma estratégia
para alcançar visualizações. Neste caso, toda esta produção não está
necessariamente interligada a promoção do budismo e da Brasil Sôka Gakkai
Internacional e sim do próprio canal, sendo um dos seus conteúdos, a prática
budista. O que será enfatizado também neste trabalho é o espaço virtual de
interação criado pelo vídeo, neste campo, o público do vídeo pode interagir
deixando comentários a respeito do tema ou não. Desta forma, será observado
se a instituição se posicionou, seja através do perfil oficial ou um perfil privado
de algum funcionário da associação, para com seus adeptos.
60
A autora do conteúdo audiovisual apresenta seu butsudan e os objetos que o
acompanha, assim como apresenta uma cerimônia onde um novo adepto
recebe seu gohonzon, no caso, o pergaminho com as orações, disponibilizado
pela BSGI. Silva e Soares (2017) afirmam que estes oratórios: “são altares de
culto doméstico, familiar e íntimo, vastamente difundidos aos imigrantes
japoneses” (SILVA; SOARES, 2017, p.180) Desta forma, tinham um papel
identitário dentro do budismo étnico praticado no Brasil. Elemento presente
nesta prática budista é o culto aos antepassados, que fortalecia: “[...]uma forte
ligação com a terra natal, seus ancestrais, os costumes de seus pais, o
sagrado. Esse lugar de memória, para eles, pertence a uma esfera íntima,
particular, pouco mencionada pelos imigrantes em convívio com os brasileiros”
(SILVA; SOARES, 2017, p.182)
61
A análise da produção audiovisual, como também do espaço virtual de
comunicação proporcionado pela publicação do vídeo, dá pistas sobre o
sucesso da instituição mediante uma carência de adeptos não étnicos ao
Budismo de modo geral. Vale ressaltar os limites desta pesquisa, que analisou
somente uma fonte primária, e o cuidado para afirmações tão globalizantes a
respeito do budismo no Brasil, por isso afirma-se que o presente trabalho dá
pistas sobre o atual cenário da BSGI. A partir da fonte primária digital, sendo o
conteúdo audiovisual e o espaço interativo, é estabelecido aqui o diálogo com
Michel de Certeau. Na arte da guerra cotidiana:
Michel de Certeau afirma que: [...]quanto maior um poder, tanto menos pode
permitir-se mobilizar uma parte de seus meios para produzir efeitos de
astúcia[...]” (CERTEAU, 2014, p.101) compreende-se aqui astúcia como a
capacidade do consumidor, no caso desta pesquisa o adepto a BSGI, a partir
do produtos, selecionar fragmentos e compor algo original. Se quanto maior um
poder menor a mobilização dessas originalidades, este cenário não aparenta
atrair novos adeptos que podem ter origens tão diversas. Porém, mesmo que
não realize os sincretismos com outras religiões, como afirma Pereira (2002) há
algo presente na BSGI que a torna atrativa ao público plural, considerando sua
composição de membros. O autor indica diversos aspectos deste sucesso de
aceitação de uma comunidade diversificada, mas alguns são destacados a
partir do documento analisado, como: habilidade no uso de meios de
comunicação de massa e de técnicas de marketing e propaganda, sendo este
aspecto essencial no espaço virtual; ênfase na autoconfiança e pensamento
positivo; prática da fé como possibilitadora de toda sorte de benefícios
materiais e espirituais, aspectos bem abertos e globalizantes; ética ou
orientações para o cotidiano.
62
2014, p.101). Se nas primeiras décadas da imigração japonesa, a presença da
religião budista no Brasil estava ligada ao sentimento de identidade étnica entre
os imigrantes, as transformações históricas provocaram metamorfoses nas
instituições e nos sujeitos históricos, conduzindo as instituições a se
reinventarem.
Referências
Rafael Meira de Oliveira é mestrando no Programa de Pós-graduação em
História Social pela Universidade Estadual de Londrina - UEL
63
ANDRÉ, R. G. O dharma na impermanência da web: difusão e transformações
do zen-budismo na internet (2015-2017). Horizonte, Belo Horizonte, v.16, n.51,
set/dez, 2018, p.1240-1269.
64
MAOÍSMO: UMA FORMA NÃO TÃO BRANDA DE PODER,
por Robson Lins Souza Damásio de Oliveira
Introdução
No começo dos anos 2000, o importante teórico de Relações Internacionais
Joseph Nye publicou um livro, cujo título rapidamente se tornaria um importante
conceito não só no campo das RI’s mas também na imprensa de modo geral.
De fato, o conceito de soft power já havia sido utilizado pelo autor nos anos
1980, mas foi desenvolvido de maneira mais detida com seu livro “Soft Power:
the Means to Success in World Politics” (2021 [2004]).
Nascia assim o conceito de Soft Power traduzido geralmente por poder brando
ou poder de cooptação (JACKSON; SORENSEN, 2013, p.427). Tal forma de
poder estaria ligado à capacidade de um estado influenciar a ação de outros
estados através de meios não violentos. Destarte, a guerra e as sanções
econômicas (entendidas como hard power) ganhariam menos relevância em
benefício de aspectos culturais e ideológicos.
As fontes para tal forma de poder, segundo Nye (2021), adviriam de três fontes:
a cultura, os valores políticos e a política externa. Por cultura o autor entende
“um conjunto de valores e práticas que criam sentido para uma sociedade”
(NYE, 2021, p.11). O autor salienta que países que possuem uma cultura que
inclua valores mais amplos tendem a conformar um soft power mais facilmente
que países que possuam uma cultura muito estrita. Por óbvio, o autor apontaria
como exemplo de cultura ampla os Estados Unidos e de cultura estrita a União
Soviética.
Por fim, a política externa também deve ser considerada. Nye (2021) apresenta
como exemplo as guerras travadas pelos Estados Unidos no Vietnã durante as
65
décadas de 1960/70 e no Iraque em 2003. O autor argumenta que em tais
contextos, o poder dos Estados Unidos em influenciarem os demais países por
meio do poder brando foi duramente afetado.
Nye assevera que diferentemente do chamado hard power, o soft power não
emana totalmente do poder estatal. Isso porque, diferentemente de armas e
recursos econômicos, a capacidade de influenciar os demais estados por meio
da cultura e de valores também está nas mãos da sociedade civil.
66
uma das bases do pensamento revolucionário internacional. Dentre os motivos
possíveis para tal fenômeno, como aponta Lovell (2019), deve-se notar o
próprio fato de a revolução chinesa de 1949 e sua consolidação nas décadas
seguintes se darem de maneira coeva aos levantes anticoloniais na África, na
Ásia e no Oriente Médio.
Nick Knight (2007) acentua que em Mao havia uma constante preocupação
sobre a necessidade de uma revolução permanente. Assim, não obstante a
chegada ao poder em 1949, a revolução ainda não estaria atingindo seu fim,
pois novas contradições surgiriam, demandando uma constante luta
revolucionária. Nesse sentido, Mao advogava a teoria da linha das massas
(mass line). Contrariando as teorias propostas por Lenin de que o Partido
Comunista deveria ser a vanguarda revolucionária, Mao defendia que somente
por meio da ação constante das massas seria possível se evitar o surgimento
do revisionismo e da burocratização do governo.
67
Cultural Chinesa e por outro, pelo avanço dos Estados Unidos sobre o Vietnã.
Dentre os muitos méritos e deméritos do filme, deve-se notar que ele revela
como o pensamento maoísta havia adentrado ao pensamento de esquerda
francês, mesmo antes dos movimentos de maio de 1968.
Lanjun Xu (2016) aponta que tal escritório tinha dentre suas atribuições a
edição de notícias sobre a China em línguas estrangeiras visando alcançar o
público fora do país, da mesma forma foram criados jornais voltados
diretamente ao público estrangeiro. Foi criado também a chamada Livraria
Internacional (International Bookstore), publicando livros para serem vendidos
pelo mundo.
68
Mas o auge da influência do maoísmo em solo francês se daria entre 1966 e
1976, vale dizer, durante o período da Revolução Cultural. Julian Bourg (2016)
nota como em tal contexto o pensamento de Mao começa a atingir setores fora
do Partido Comunista Francês, notadamente setores da juventude radicalizada
que passaram a se identificar com as lutas do chamado “Terceiro Mundo”,
elemento presente nas manifestações de maio de 1968.
Outros dois casos que podem ser destacados são Índia e Peru, cujas
influências do pensamento maoísta foram importantes até os anos 1980, no
caso peruano, ou até a atualidade, no caso indiano. Na Índia, o movimento
Naxalita, fundado em Calcutá em finais dos anos 1960, foi grandemente
inspirado pelo pensamento maoísta. Sreemani Chakrabarti (2014) argumenta
que até a morte de Charu Majumdar, primeiro líder do movimento, em 1972, o
Pequeno Livro Vermelho fora utilizado como único guia da ação revolucionária,
em detrimento de demais obras de autores marxistas.
Julia Lovell (2019) acentua a ação do governo chinês na divulgação das ideias
de Mao na Índia, cuja aproximação ao movimento revolucionário local se deu
pelo uso extensivo da propaganda política, utilizando até helicópteros para
lançarem panfletos traduzidos para o hindi e o bengali nas regiões de fronteira
entre os dois países.
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Conforme argumenta Julia Lovell (2019) no caso peruano havia também uma
participação ativa do governo chinês, para além das convergências possíveis,
notadamente a importância do campesinato nos dois países. Um dos
elementos apontados pela autora foram as visitas que Abimael Guzmán, líder
do movimento peruano, fez à China. Após conhecer o país, Guzmán passou a
utilizar abertamente uma espécie de fusão entre o pensamento de Mao e de
Carlos Mariátegui, importante pensador marxista e ativista político peruano do
começo do século XX.
Conclusão
A teoria de Joseph Nye ganhou corpo desde os anos 1990, passando a ser
bastante presente nos debates acerca da política internacional, tanto em nível
acadêmico quanto na imprensa de modo geral. A crença nos valores de
democracia e liberdade, por exemplo, passaram a ser um importante capital na
política externa estadunidense. Por óbvio, tal processo não se deu somente
pela identificação que pessoas e governos ao redor do mundo poderiam ter
com a história e os valores dos Estados Unidos, mas se deveu também a um
processo de construção de imagem, sendo a indústria cinematográfica um
exemplo notório nesse sentido.
Uma explicação possível para tal fenômeno talvez seja a conjugação entre um
trabalho eficiente de tradução de textos e divulgação de ideias por parte do
Partido Comunista Chinês com o próprio conteúdo deles. Assim, temas como a
luta anticolonial e a crítica ao burocratismo soviético iam ao encontro das
expectativas de parte significativa dos países, não só entre os que travavam
uma luta anticolonial e de formação de um novo governo nacional (Tanzânia,
e.g.), mas também entre países que buscavam fugir da esfera soviética
(Albânia, e.g.), ou mesmo países capitalistas cujos setores de esquerda
buscavam-se distanciar-se ideologicamente da União Soviética (França, e.g.)
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Referências
Robson Lins Souza Damasio de Oliveira - mestrando no Programa de Pós-
Graduação em Antropologia Social (PPGAS-USP).
CHAKRABARTI, Sreemati. “Empty symbol: the Little Red Book in India”. In:
COOK, Alexander (ed.). Mao’s Little Red Book: a global history, 2016.
LEESE, Daniel. Mao Cult: Rethoric and Ritual in China’s Cultural Revolution.
New York: Cambridge University Press, 2011.
LOVELL, Julia. Maoism: a Global History. New York: Alfred A. Knopf, 2019.
NYE, Joseph. Soft Power: the Means to Success in World Politics. New York:
Public Affairs, 2004.
PALMER, David Scott. “The influence of Maoism in Peru”. In: COOK, Alexander
(ed.). Mao’s Little Red Book: a global history, 2016.
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