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VISÕES DO

ORIENTALISMO
André Bueno [org.]
Reitor
Mario Sérgio Alves Carneiro

Chefe de Gabinete
Bruno Redondo

Direção
Pró-reitora de Extensão e Cultura
Cláudia Gonçalves de Lima

Produção
Obra produzida e vinculada pelo Projeto Orientalismo,
Proj. Extens. UERJ Reg. 6078, coordenado pelo Prof.
André Bueno [Dept. História].

Rede
www.orientalismo.net

Rede
https://aladaainternacional.com/aladaa-brasil/

Ficha Catalográfica
Bueno, André [org.]
Oriente 23: Visões do Orientalismo. 1ª Ed. Rio de Janeiro: Proj. Orientalismo/
UERJ, 2023. 72 p.
ISBN: 978-65-00-77514-3
História da Ásia; Orientalismo; Teoria; Diálogos Interculturais.

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Apresentação

Oriente 23 é uma coleção de livros dedicada aos estudos orientais


no Brasil. Construída a partir dos debates realizados no 7º Simpósio
internacional de Estudos Orientais, organizado pelo Projeto
Orientalismo da UERJ, Oriente 23 é formada de maneira
interdisciplinar e transversal, conjugando as mais diversas
experiências no campo dos estudos das civilizações do oriente
próximo e do extremo oriente. Fazendo uma abordagem
multitemporal e intercultural, a coleção emprega estratégias
decoloniais no estudo do orientalismo, das civilizações asiáticas e
dos trânsitos culturais entre os muitos orientes possíveis,
procurando compreender suas características originais e sua
recepção no imaginário e na intelectualidade ocidental. Nesse
sentido, a coleção Oriente 23 é formada por uma série de volumes
que compreendem cada uma dessas dimensões espaço-
geográficas e culturais, buscando transmitir ao público uma nova
perspectiva de conhecimento, capaz de ampliar os horizontes
intelectuais, acadêmicos e educacionais do contexto cultural
brasileiro. Estão aqui presentes estudos dos mais diversos campos,
que tentam apreender a variedade das expressões das culturas
asiáticas, de moda torná-las inteligíveis ao público brasileiro. Seja
bem-vindo a nossa coleção!

Volumes de Oriente 23:

 Orientalismos e Literatura
 Orientalismos: Mídias e Arte
 Visões do Orientalismo
 Estudos sobre Oriente Médio
 Estudos Chineses
 Estudos Japoneses
 Estudos Coreanos
 Estudos Asioindianos

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Sumário

AOS OLHOS DO CORREIO PAULISTANO: AS EXPERIÊNCIAS DA IMIGRAÇÃO CHINESA COMO


ARGUMENTO PARA A REALIDADE BRASILEIRA, por Alisson Eric de Souza Simão Pereira ............ 7
PRESSUPOSTO DOMINANTE E O ESTUDO DA CHINA, por André Bueno .................................... 13
A IDEIA DE GAIATSU NA JAPONOLOGIA DE RUTH BENEDICT, por Edelson Geraldo Gonçalves . 21
OS MILAGRES NA ESFERA DO DESENVOLVIMENTISMO: UMA COMPARAÇÃO ENTRE BRASIL E
COREIA DO SUL, por Eduarda Christine Souza Pucci ................................................................... 28
A MIGRAÇÃO COREANA PARA O ESPÍRITO SANTO , por Gabriela Soares Lima dos Santos........ 34
HISTÓRIA PÚBLICA E REPARAÇÃO: A REPRESENTATIVIDADE ASIÁTICA NA HISTÓRIA DO OSCAR,
por Helena Ragusa e Douglas Tacone Pastrello .......................................................................... 40
UM REGIME HISTORIOGRÁFICO DE CIRCULAÇÃO AMPLA? A HISTORIOGRAFIA SOBRE A
IMIGRAÇÃO JAPONESA DE MARCIA YUMI TAKEUCHI, por Luana Martina Magalhães Ueno ..... 50
A INSTITUIÇÃO BRASIL SÔKA GAKKAI INTERNACIONAL E AS ESTRATÉGIAS DE SOBREVIVÊNCIA
DO BUDISMO NO BRASIL (2016-2021), por Rafael Meira de Oliveira ........................................ 58
MAOÍSMO: UMA FORMA NÃO TÃO BRANDA DE PODER, por Robson Lins Souza Damásio de
Oliveira ........................................................................................................................................ 65

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AOS OLHOS DO CORREIO PAULISTANO: AS
EXPERIÊNCIAS DA IMIGRAÇÃO CHINESA COMO
ARGUMENTO PARA A REALIDADE BRASILEIRA, por
Alisson Eric de Souza Simão Pereira

Introdução
O segundo reinado foi um momento marcado por acontecimentos como a
extinção do tráfico negreiro, a abolição da escravidão, importação de
imigrantes para o país e a manifestação de uma visão que colocava a
escravidão como responsável pelo atraso do Brasil. É preciso deixar claro que
o fim do sistema escravocrata proporcionou modificações econômicas no
Brasil, uma vez que o preço do escravizado aumentou nessa conjuntura, a
nação era extremamente dependente do trabalho escravocrata e a produção
agrícola de café da região Sudeste possuía poucos trabalhadores para suprir
as suas necessidades. Assim, a solução encontrada para suprir as
necessidades da produção cafeeira foi o tráfico interprovincial estabelecido
com a região Nordeste [Oliveira, 2018].

Foi nessa conjuntura que as teorias raciais chegaram ao Brasil e passaram por
uma seleção e adaptação para pensar a realidade brasileira segundo os
interesses da elite intelectual [Schwarcz, 1993]. Os negros neste período eram
descartados como força de trabalho devido a sua “pouca capacidade
intelectual” e a “falta de preparo profissional” [Azevedo, 1987]. Assim as elites
brasileiras começaram a refletir sobre o uso de imigrantes, já que a escravidão
estava chegando ao fim; à adoção de novas formas de trabalho se fazia
necessária e o trabalhador estrangeiro teria o papel de civilizar o país, o que
consequentemente eliminava os negros e os asiáticos do perfil de imigrantes
desejáveis [Lima, 2005]. Com isso, os europeus eram definidos como os
imigrantes ideais devido a sua capacidade de purificação racial e de civilizar o
país [Azevedo, 1987].

Contudo, o imigrante chinês começa a surgir como uma possibilidade de


trabalho em substituição ao trabalhador europeu [Czepula, 2020]. Essa
possibilidade de uso dos chineses pode ser explicada pela dificuldade na
obtenção de trabalhadores europeus aliada com a falta de escravizados [Lima,
2005]. Os chineses geralmente eram descritos agentes pacientes, industriosos,
excelentes operários, de baixo custo, sóbrios, bons agricultores etc [Peres,
2013]. Por outro lado, existia também uma visão que colocava os trabalhadores
da China como seres de atraso, de uma raça inferior e que não servia para a
composição racial brasileira [Dezem, 2005]. Assim, os opositores a importação
dos filhos da China costumavam descrever esses indivíduos como indolentes,

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corruptos, fracos, depravados, narcotizados, imorais, subservientes e perigosos
para a família [Peres, 2013].

A partir disso, é interessante destacar que as experiências com a adoção dos


filhos do império celeste em países como Cuba, Peru e Estados Unidos foram
usadas como argumentos pouco aprofundados para defender a imigração
chinesa. Assim, no caso de Cuba, essa nação foi tomada como um exemplo a
ser seguido devido as suas semelhanças com o Brasil [Czepula, 2020]. Pelo
que se sabe da experiência cubana, o uso dos chineses serviu como uma
substituição aos escravizados e proporcionou o desenvolvimento dos produtos
cubanos [Peres, 2013]. Contudo, essas mesmas experiências também era
usadas para atacar a importação asiática, um exemplo disso é que para o
médico Nicolau Moreira o sucesso de Cuba com os chineses foi devido a
exploração que os trabalhadores sofreram, e não do trabalho livre [Czepula,
2020].

Dito isso, nota-se que o Brasil do século XIX era um momento marcado pela
necessidade por trabalhadores, por debates raciais e pelo uso de imigrantes
asiáticos em diversos países. Assim, o presente trabalho tem como objetivo
analisar como o jornal Correio Paulistano apresentava as experiências de
outros países com os imigrantes chineses na década de 70 do século XIX. A
pesquisa foi teoricamente embasada no conceito de raça (Almeida, 2018), uma
vez que essa categoria permite uma boa compreensão acerca de que como os
chineses eram interpretados no contexto das teorias racias. Por fim, é preciso
salientar que todas as citações diretas das fontes foram alteradas para o
português atual com o intuito de evitar tornar a leitura mais fluída.

O correio paulistano
Antes de começar a análise das notícias do jornal Correio Paulistano é preciso
fazer uma breve apresentação deste periódico. Fundado na província de São
Paulo no ano de 1831, o Correio Paulistano nasceu como um estabelecimento
voltado para a divulgação das ideias do governo, contudo, é entre os anos de
1855-1858 que o estabelecimento passa por uma fase de declínio ocasionada
por problemas financeiros que só são solucionados no ano de 1858 através da
subvenção do governo [Schwarcz, 1987].

Sobre a atuação do jornal na década de 70, sabe-se que o estabelecimento


passou por diversas oscilações nos seus posicionamentos políticos, pois entre
o curto período de 1872-1874 o jornal foi republicano, neutro e conservador.
Assim, o Correio Paulistano só consegue alcançar a sua estabilidade a partir
do ano de 1882, quando é comprado por Antônio da Silva Prado que era
prefeito de São Paulo e líder da União Conservadora. [Schwarcz, 1987].

No que diz respeito as suas publicações, elas geralmente representavam os


interesses da elite rural do país, pois sempre que necessário o jornal aliava-se
a classe dominante. Um exemplo disso é que o correio discretamente apoiava
a escravidão, possuía uma percepção pessimista acerca da questão racial
brasileira e geralmente atacava determinados grupos, que no caso eram judeus

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e ciganos. Desse modo, entende-se que o caráter conservador do Correio
Paulistano não era apenas uma questão de estilo, mas sim algo atrelado a sua
essência [Schwarcz, 1987].

O uso de experiências
A primeira fonte que será analisada é datada do dia 16 de janeiro de 1870. De
acordo com a fonte a força de trabalho chinesa surge como uma possibilidade
para alimentar a agricultura e a construção de uma estrada de ferro na região,
pois enriquecimento de países como Austrália revela a qualidade desses
trabalhadores. Contudo, a fonte aponta que a importação de chineses é um
investimento que não vale apena, pois essa empreitada seria de custo elevado,
levaria muitos meses e talvez o sucesso apresentado nesses outros países não
se repetisse no Brasil [Correio Paulistano, 1870]. Nota-se que os casos dessas
outras localidades são primeiramente apresentados como experiências de
sucesso, mas que provavelmente não iria se repetir na realidade brasileira.

Explorando melhor esse argumento acerca do sucesso de outras nações é dito


o seguinte: “A razão é simples. Aquelas e outras tantas maravilhas citadas,
particularmente em relação aos chins da Califórnia e Austrália, são devidas não
ao misero pária da Ásia, mas as instituições livres, aos hábitos e enérgica
vitalidade daqueles países” [Correio Paulistano, 1870, p.01]. Essas palavras
revelam uma visão de inferioridade em relação aos chins, pois o sucesso
obtido na Austrália e Califórnia foi atribuído as condições dos próprios países e
não aos esforços dos imigrantes. Essa afirmação é complementada com as
seguintes palavras: “A civilização Americana, que já em boa parte influi sobre a
Austrália, é um grande cadinho social aonde todos os metais derretem-se e
confundem-se para construir o preciosíssimo bronze de que se forma o cidadão
livre, altivo e empreendedor da grande confederação” [Correio Paulistano,
1870, p.01]. Essas afirmações vão de encontro com as teorias raciais
presentes no período, uma vez que essas ideias foram selecionadas e
adaptadas de acordo com os interesses da elite intelectual brasileira. Nesse
sentido, restrições à entrada de grupos considerados racialmente inferiores
eram estabelecidas, dentre eles temos o caso dos chineses [Schwarcz, 1993].

No restante da matéria é concluído que as condições do país são mais


importantes que o imigrante, pois: “Muito pouco importa a países tais que seu
material de população venha da Irlanda, da Alemanha, da Itália, da Rússia ou
das Costas do Hindustão. A refinação da matéria prima é imediata e enérgica;
Chin ou alemão, o imigrante que pisa o solo da grande república sente-se
arrebatado pela mesma corrente, transformado pela mesma força e de tal arte
identificado em curto prazo a grande colmeia à que associam-se [Correio
Paulistano, 1870, p.01]”. Assim, de acordo com a fonte a importação de
chineses dentro das condições do Brasil de nada iria valer, pois: “O que temos
como condições orgânicas de nosso viver social, combinado com o que é
peculiar à natureza das raças asiáticas, trará resultado oposto ao que visamos.
O chin entre nós continuará a ser chin e mais nada. Meio escravo, meio
máquina, que utilidade colheremos de tais operários?” [Correio Paulistano,
1870, p.01]. Desse modo, “Um só resultado, parece-nos: o retemperamento

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dos nossos hábitos de indolência e passividade pelos vícios ainda maiores da
misérrima depressão intelectual e moral daquela raça” [Correio Paulistano,
1870, p.01].

A partir disso, percebe-se que o caso da Austrália e de outras nações foram


usados como uma forma de desmotivar a vinda de chineses para o Brasil,
tendo em vista a falta de condições necessárias para o sucesso da imigração,
ou seja, foi uma forma de reforçar ainda a ideia de inferioridade racial do povo
da China. Esse debate vai de encontro com o conceito de raça, já que essa
categoria consiste em um conceito historicamente construído, instável, que
cumpre objetivos políticos/econômicos e que serve para classificar os
diferentes tipos humanos dentro de uma hierarquia racial. A essa percepção de
raça nasceu primeiramente com o contato com a América proporcionado pela
expansão do mercantilismo, refletiu sobre o ser humano a partir do iluminismo
e tomou um caráter científico a partir do século XIX [Almeida, 2019]. Assim,
entende-se que segundo as teorias raciais o chinês não serve para o projeto
racial embranquecer e civilizar o país.

Analisando a segunda matéria, o texto é datado do dia 30 de janeiro de 1870.


Em linhas gerais o artigo apresenta uma resposta ao texto apresentado mais
acima e reflete acerca do uso de trabalhadores chineses na construção de uma
estrada de ferro e na produção agrícola do país. De acordo com a fonte “Mas a
verdade é, que não é só na América que o chin faz maravilhas. Eles têm
trabalhado na Austrália, Cuba, em Maurício, em Reunião; e todos estes países
não só de instituições diferentes das americanas – como mesmo de raças
diversas, tem tirado grande proveito da indústria e serviços desses homens”
[Correio Paulistano, 1870, p.03]. Assim como na fonte anterior, o texto que está
sendo analisado também faz uso das experiências de sucesso de outros
países para fundamentar sua argumentação. Na perspectiva do autor, locais
como Austrália, Cuba e Maurício não possuem instituições semelhantes, mas
mesmo assim a imigração chinesa foi um sucesso.

A partir disso, eles conseguiram triplicar a produção de açúcar em Maurício,


compensaram a abolição de escravatura em Reunião, competiram com os
escravizados em Cuba e na América do Norte “[...] praticam eles o ato mias
extraordinário de que fazem menção os anais de trabalho: Chegaram a colocar
em um só dia 17 km de trilhos de ferro, vencendo por este feito os próprios
Yankes - os reis do trabalho ” [Correio Paulistano, 1870, p.03]. Com isso, é
afirmado que o sucesso da imigração chinesa não ocorre apenas na América e
que os chineses não modificam os costumes de outros povos. Essa defesa em
relação aos chineses aparentemente está voltada para interesses financeiros,
pois nesse período até o Ministro Sinimbu apoiava a imigração chinesa devido
às dificuldades na aquisição de europeus e os bons resultados obtidos
[Czepula, 2016].

Essa perspectiva é reforçada com as seguintes declarações: Não se trata, nem


pessoa alguma deseja mistura entre a nossa raça e a asiática. Nem nós a
queremos, nem eles a quereriam. Nós o queremos exclusivamente como

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locadores de serviços; feito o serviço e pago o salário, retiram-se eles. Eis tudo.
Que nos importe, pois, que seja um raça degenerada, se são bons
trabalhadores e se merecem seu salário?” [Correio Paulistano, 1870, p.03]. Os
chineses neste contexto eram entendidos como uma força de transição ou seja,
serviriam de substitutos até que o Brasil estivesse preparado para receber os
europeus [Czepula, 2016]. Desse modo, vemos mais uma vez o conceito de
raça surgir, já que o imigrante chinês era pensado como algo temporário,
servindo apenas para alimentar as necessidades de braços dentro daquela
conjuntura. Isso provavelmente está relacionado a hierarquização dos chineses
como uma raça inferior devido ao seu potencial degenerador, seus vícios e
descrença no catolicismo [Czepula, 2016].

Logo, nota-se que em ambas as notícias os exemplos de adoção dos


imigrantes chineses em outros países serviram tanto como um argumento de
defesa como de ataque. Os casos geralmente apresentavam a realidade de
localidades como Cuba, Estados Unidos e Austrália como uma maneira de
tornar a importação chinesa mais atrativa ou com menos credibilidade.
Entretanto, ambas concordam que o povo da China não serve como um
trabalhador fixo, mas apenas como uma transição.

Considerações finais
O Brasil do século XIX é um momento marcado pelo declínio da escravidão,
pelos debates imigratórios e pela chegada das teorias raciais no país. Diante
desse cenário, notamos que os dois artigos do jornal Correio Paulistano, fazem
uso das experiências de outras nações como argumento para atacar ou
defender a imigração chinesa. Contudo, mesmo ambas as matérias possuindo
posições distintas acerca do mesmo assunto elas convergem para o perfil
conservador do Correio Paulistano, uma vez que a importação dos filhos da
China era interpretada como uma segunda opção.

Referências
Alisson Eric de Souza Simão Pereira é graduado em História e mestrando em
ciências sociais e humanas [PPGCISH] pela universidade do Estado do Rio
Grande do Norte [UERN].

ALMEIDA, Silvio. Racismos estrutural. São Paulo: Pólen, 2019.

AZEVEDO, Célia Maria Marinho. Onda negra, medo branco: O negro no


imaginário das elites século XIX. Rio de Janeiro: Paz e terra, 1987.

CZEPULA, Kamila Rosa. A questão dos trabalhadores “chins”: salvação ou


degeneração do Brasil? (1860-1877). Anuario Colombiano de Historia Social y
de la Cultura, v. 47, n. 1, p. 303–325, 2020.

CZEPULA, Kamila. “OS INDESEJÁVEIS CHINS”: A IMIGRAÇÃO CHINESA


NAS PÁGINAS DO JORNAL GAZETA DE NOTÍCIAS (1879). In: ANPUH-SP
XXIII encontro de História, história por quê e para quem? São Paulo: [s.n.],
2016, p. 01–13.

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DEZEM, Rogério. Matizes do amarelo: a gênese dos discursos sobre os
orientais no Brasil (1878-1908). São Paulo: Associação Editorial Humanitas,
2005.

LIMA, Silvio Cezar de Souza. Determinismo biológico e imigração chinesa em


Nicolau Moreira (1870-1890). Dissertação, Fundação Oswaldo Cruz., Rio de
Janeiro, 2005.

OLIVEIRA, Maysa Silva. Paralelo Brasil-Cuba: um estudo sobre a imigração


chinesa 1840-1890. Dissertação, Universidade Estadual Paulista “Júlio de
Mesquita Filho”, Assis, 2018.

PERES, Victor Hugo Luna. Os “Chins” nas sociedades tropicais de plantação:


estudo das propostas de importação de trabalhadores chineses sob contrato e
suas experiências de trabalho e vida no Brasil (1814-1878). Dissertação,
Universidade Federal de Pernambuco, Recife, 2013.

SCHWARCZ, Lilia Moritz. O espetáculo das raças: cientistas, instituições e


questão racial no Brasil 1870-1930. São Paulo: Companhia das Letras, 1993.

SCHWARCZ, Lilia. Retrato branco e negro: Jornais, escravos e cidadãos em


São Paulo no final do século XIX. São Paulo: Companhia das letras, 1987.

Fontes
Correio Paulistano, 16/01/1870, p.01.

Correio Paulistano, 30/01/1870, p.03.

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PRESSUPOSTO DOMINANTE E O ESTUDO DA
CHINA, por André Bueno

Ao falar sobre como estudamos a China no Brasil, resta uma longa caminhada
a cumprir. Estamos longe de superar a agenda orientalista ultrapassada do
século 19 – repleta de preconceitos e imprecisões - que ainda domina grande
parte das mentes brasileiras, apesar dos esforços persistentes que um
pequeno número de estudiosos tem promovido. Seja por motivos estratégicos,
seja para ampliar nossa visão de humanidade globalizada [e ambas as
motivações são complementares], compreender a civilização chinesa é uma
necessidade, indispensável para a superação de nossas limitações
epistêmicas. A negação disso tem levado os estudiosos brasileiros a
acreditarem na incauta possibilidade de definir o mundo ignorando mais de um
sexto dele [e um terço da humanidade, se expandirmos essa dimensão para
toda a Ásia], se satisfazendo assim com análises superficiais e – porque não
dizer – pouco científicas [Bueno, 2020c].

Esse ‘critério científico’, a propósito, é o tema desse nosso pequeno ensaio.


Quando alguém se pronuncia a partir do senso comum, compartilhando
fragmentos de ‘conhecimentos científicos’ advindos de fontes midiáticas ou não
especializadas, incorpora naturalmente uma série de preconceitos culturais que
sobrevivem no imaginário brasileiro há pelo menos dois séculos. Isso não é
aceitável, mas esperado dentro de um contexto educacional limitado,
insuficiente, excludente e preconceituoso – basta ver que não há qualquer lei
que obrigue escolas e universidades a trabalharem conteúdos asiáticos e
braso-asiáticos -, como foi feito com as leis 10.639/2008 e 11.645/2008 que
sabiamente trouxeram a história e a cultura indígena e africana para as salas
de aula.

Contudo, há algo pior: o uso do recurso científico, por meio de seus promotores
[os acadêmicos, cientistas, pesquisadores, intelectuais, professores, etc], como
um instrumento de legitimação da exclusão dos chineses da agenda global
contemporânea. Invertendo a ordem do processo científico, os preconceitos
têm secundado os mais diversos tipos de hipóteses errôneas, que usualmente
buscam reforçar antagonismos e preconceitos.

Nesse sentido, gostaríamos de iniciar o texto desenvolvendo o conceito de


pressuposto dominante, que nos serve de orientação para esse ensaio. Por
definição, o pressuposto dominante é uma condição hipotética, baseada numa
afirmação não comprovada, que guia o processo de ‘investigação’ por parte de
alguns especialistas. Ou seja; ao invés de uma hipótese ser formulada a partir
das evidências e de proposições constatáveis pela experiência, uma afirmação
axiomática serve de hipótese a priori e guia a interpretação do problema,

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fazendo com que as evidências sirvam para comprová-la ou que sejam
descartadas. É uma hipótese inviável de ser comprovada; seus propositores
elencam como elemento de prova aquilo que responde a sua ideia inicial, de
maneira que tudo que possa divergir é excluído.

Nesse sentido, um excelente texto de James Rachels nos serve de orientação


para esse ensaio. Nele, a filósofa define o que seria o pressuposto dominante,
uma condição hipotética, baseada numa afirmação não comprovada, que guia
o processo de ‘investigação’ por parte de alguns especialistas. Selecionai aqui
um trecho, editado, que usaremos em nossa discussão:

“Há alguns anos, os membros de um grupo de investigadores liderados pelo


Dr. David Rosenhan, professor de psicologia e direito na Universidade de
Stanford, conseguiram introduzir-se em vários hospitais psiquiátricos fazendo-
se passar por doentes. Os funcionários dos hospitais ignoravam que eles eram
especiais; pensavam que os investigadores eram doentes como os outros. Os
investigadores eram perfeitamente normais, seja qual for o significado do
termo, mas a sua simples presença nos hospitais criou o pressuposto de que
estavam mentalmente perturbados. Apesar de se comportarem com
normalidade — nada fizeram para se fingir doentes — descobriram
rapidamente que tudo quanto faziam era interpretado pelos médicos como sinal
de seja qual for o problema mental que tinham inscrito nos formulários de
admissão. [...] Do pessoal dos hospitais, ninguém deu pelo logro. Os
verdadeiros pacientes, no entanto, perceberam tudo. Um deles disse a um
investigador, "Você não é louco. Está a investigar o hospital". E de fato estava.
Por que razão os médicos não perceberam? A experiência revelou algo sobre o
poder de um pressuposto dominante: uma vez aceite uma hipótese, tudo pode
ser interpretado para a apoiar. Quando a ideia de que os pacientes falsos
tinham perturbações mentais foi admitida como pressuposto dominante, o seu
comportamento não importava. Fizessem o que fizessem isso seria
interpretado de modo a adaptar-se ao pressuposto. Mas o "sucesso" desta
técnica não provou que a hipótese estivesse correta. Era sinal, isso sim, de que
algo correu mal. A hipótese de que os pacientes falsos sofriam de perturbações
mentais era defeituosa porque era insuscetível de ser testada. [...] Mas os
médicos não estavam a agir desta forma. Para eles, nada podia ser admitido
contra a hipótese de que os "pacientes" estavam doentes.”

O mais fascinante nessa história é que James Rachels a publicou na primeira


edição do seu livro “Elementos de Filosofia Moral” [2004]; mas na segunda
edição [ver versão em pt, 2013], o trecho foi retirado. O trabalho da jornalista
Susannah Cahalan [2021; ver também BBC, 2020] revelara que Rosehan havia
alterado e omitido parte dos resultados negativos de suas pesquisas, o que
provava que ele também fora guiado por um pressuposto dominante... e
mesmo assim, atualmente o trabalho de Rosehan ainda é considerado uma
revolução nos meios psiquiátricos.

Esse é um exemplo que quero tomar para voltar a Sinologia, como um campo
de ciência. Muitas das práticas relacionadas ao estudo da China tem se

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mantido assustadoramente ligadas a pressupostos dominantes, formulando –
ou simplesmente admitindo – hipóteses que não são comprováveis; e ainda,
usando as ferramentas disponíveis para afirmações infundadas. O ponto de
partida desse movimento é calcado na quintessência do orientalismo
eurocentrado colonial: a afirmação de que os asiáticos [no geral] eram
‘estranhos’, ‘diferentes’, e que os especialistas que se dedicaram a estudá-los
seriam ‘tão estranhos quanto eles’.

No caso do estudo da China, o pressuposto dominante continua a ser


determinado pelas teorias racialistas e imperiais do orientalismo oitocentista.
Daniel Vukovich [2019] mostrou como, na análise de eventos históricos
chineses, o pressuposto dominante é de que os chineses não tem voz,
consciência ou capacidade crítica para expressarem suas próprias opiniões
sobre a história de seu país. No debate sobre qualquer episódio do passado,
os especialistas ocidentais tendem a enxergar toda e qualquer movimentação
como uma resposta ás suas próprias demandas teóricas e ideológicas. Quando
autores chineses respondem a essas críticas de forma positiva, eles são
considerados como ‘corretos’; mas quando propõe visões contrárias, eivadas
de suas experiências e do seu acesso privilegiado às fontes [tanto em função
do domínio da linguagem como pelo trânsito em arquivos e por suas redes
associadas de pesquisa], são automaticamente taxados como ‘errados’,
‘manipulados’, ‘ingênuos’, ‘acríticos’, entre outros. Não se trata de reconhecer
que os chineses podem eventualmente produzir materiais com problemas, mas
de afirmar que toda e qualquer visão chinesa que discorde dos especialistas
ocidentais está essencialmente errada.

No Brasil, muitas das práticas relacionadas ao estudo da China tem se mantido


assustadoramente ligadas a esse tipo de pressuposto dominante, formulando –
ou simplesmente admitindo – hipóteses que não são comprováveis; e ainda,
usando as ferramentas disponíveis para referendar afirmações infundadas. O
ponto de partida desse movimento é calcado na quintessência do orientalismo
eurocentrado colonial: a afirmação de que os asiáticos [no geral] eram
‘estranhos’, ‘diferentes’, e que os especialistas que se dedicaram a estudá-los
seriam ‘tão estranhos quanto eles’ [e para isso, ver o clássico livro de Said,
1998].

A busca por compreender a cultura chinesa em profundidade, a partir de suas


próprias raízes, tornou-se um exercício de alguns poucos, vistos como
‘excêntricos’, ‘diletantes’ ou ‘esotéricos’. Não se justificava, epistemicamente, a
análise de uma sociedade hierarquicamente ‘inferior’ no imaginário cultural do
Ocidente – ou seja, o pressuposto dominante que dominava as relações e os
estudos sobre a Ásia. As exceções a essa visão preconceituosa seriam
aqueles estudiosos cujos trabalhos, focados em fins estratégicos, serviam
antes de tudo ao cumprimento do projeto de dominação imperial. Suas análises
pretendiam apresentar as ‘limitações culturais e intelectuais’ dessas
sociedades, e explorar oportunidades econômicas e políticas.

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Podemos dizer que, no caso do Brasil, a situação tornou-se ainda mais
complicada no século 20 [Bueno, 2020a]. Nossos acadêmicos acompanharam
as divisões ideológicas da partição chinesa [continental e Taiwan], e
construíram visões diversas que oscilavam entre ver a China como um modelo
inspirador ou um antimodelo de civilização. Ao cabo desse processo, o
resultado foi que, com as poucas exceções dos especialistas que visitaram o
mundo chinês, o que se sabia sobre a China por aqui era uma mistura dos
preconceitos do século 19 com um conhecimento terceirizado, produzido por
pesquisadores não brasileiros, e cujos interesses culturais e políticos estavam
vinculados a projetos coloniais ocidentalistas.

Gradualmente isso ajudou a formar um panorama complexo e difícil de ser


desconstruído, no qual o pressuposto dominante sobre a China é de que ela
seguiria sendo ‘estranha’ e de certa forma ‘inferior’ ao Brasil. No entanto, a
constatação inevitável das transformações chinesas – principalmente a partir
dos anos 1990 e 2000 – criou uma distonia cognitiva no imaginário brasileiro.
Afinal, como uma civilização propagandeada como ‘atrasada’ ou ‘estranha’
conseguira alcançar tamanho sucesso econômico, tecnológico e político, após
as terríveis crises vividas em um passado recente? [Bueno, 2020b] Como
conceber que a vida material brasileira foi transformada pelo influxo de
produtos chineses, antes chacoteados como baratos e ruins, e hoje, saudados
como soluções tecnológicas de custo mais acessível? Como um país
considerado pobre e atrasado alcançou a bomba atômica, o domínio militar e
contrabalançou as hegemonias globais, instaurando uma nova ordem mundial?
As tentativas de responder a essas perguntas, feitas usualmente por
especialistas [mas não especialistas em estudos chineses], redundam em
verdadeiros desastres epistemológicos que buscam debilmente manter
preconceitos com a ajuda da ciência. Podemos dar alguns exemplos claros de
como o pressuposto dominante segue gerenciando hipóteses sobre a China.
No campo das interações culturais, os preconceitos grassam como cogumelos
após a chuva. ‘Chineses são materialistas’, ‘chineses compram o Brasil’,
chineses tem hábitos estranhos’, ‘chineses querem dominar o mundo’ são
afirmações sem qualquer fundamento real que, no entanto, busca-se justificar
com os malabares mais hábeis possíveis. Qualquer avanço no campo
econômico da parte chinesa é entendida como um movimento de domínio
global [como se alguns países não tivessem direito a crescer, e devessem
permanecer em posição de subalternidade], assim como a ‘estranhezas
culturais’ passam a ser uma norma na grade de leitura sobre a China.
Sabemos o efeito claro disso: a invocação de uma vaga ideia de ‘perigo
amarelo’ e a disseminação rápida do racismo e da xenofobia no período
pandêmico revelaram a temerária profundidade dessa ignorância. Uma leitura
do ótimo sítio ‘Outra Coluna – resistência asiática e solidariedade antirrascista’
pode proporcionar uma leitura consciente sobre essas questões, alertando-nos
sobre os vivos e presentes problemas do racismo antiasiático no Brasil.

No mesmo sentido, a propagandeada afirmação da ‘excentricidade


gastronômica’ serve para secundar o pressuposto dominante que acabamos de
comentar: os documentários televisivos usualmente ‘provam’ que os hábitos

16
alimentares chineses circunscrevem-se ao consumo de animais e vegetais
estranhos [como insetos, partes incomuns de aves e mamíferos, vegetais
desconhecidos, etc.], reforçando estereótipos baseados pura e simplesmente
nesses mesmos preconceitos culturais – afinal, quem define o que é certo
comer ou não? E deliberadamente, esses mesmos materiais esquecem -
bastaria estudar mais sobre história da alimentação – que as práticas culinárias
foram sendo construídas por trânsitos globais. No Brasil, nos transformamos
em grandes consumidores de chá, arroz, laranja, soja, pastel e canja, em uma
lista extensa de produtos, que vieram todos da China. Nos apropriamos delas,
mas queremos romper com essas heranças asiáticas em nossas terras para
garantir a eficácia de uma pretensa ‘ocidentalização’ [como comentado por
Leite, 1999 e Freyre, 2003].

Outra afirmação, a do ‘atraso intelectual’ é quase tão fértil em procedimentos


teóricos e metodológicos equivocados. A história das ciências na China revelou
como essa civilização foi capaz de inventar inúmeros aparelhos que
revolucionaram a humanidade - papel, bússola, pólvora, leme, magnetismo,
moinhos d’água, entre outros, são apenas as mais evidentes de uma longa
lista. Joseph Needham [1900-1995], o destacado pesquisador britânico que
dedicou sua vida a descobrir e apresentar as descobertas científicas chinesas,
mostrou que o período histórico de decadência da China no século 19 foi muito
mais contextual do que propriamente cultural [2013]. As hegemonias vão e
vem; já houve império romano, abássidas, império português, império britânico,
União Soviética... A China também já foi grande, e hoje retoma um papel
histórico no cenário global.

E o que isso significa quanto ao pressuposto dominante? Afirmações, por


exemplo, de que os chineses ‘apenas copiam e nada inventam’ são
equivocadas. Afinal, eles muito inventaram no passado; e qualquer país em
busca de novas tecnologias aprende com o que já está feito antes de produzir
suas próprias invenções. É simplesmente o que os chineses fizeram para
superar o delay tecnológico no século 20. O famoso termo ‘Shanzhai’ é um
adágio polissêmico que significa algo como copiar para aprender, reproduzir e
depois criar, inovar, mantendo uma atitude de rebeldia ante o dominador. De
certa forma, a cultura ‘Shanzhai’ guarda uma atitude antihierárquica,
contraopressiva e libertária, enfraquecendo e subvertendo a dominação
capitalista por seus próprios meios. Como afirmou Byung-Chul Han: ‘são na
verdade tudo, menos falsificações grosseiras. Em termos de design e função,
dificilmente são inferiores ao original. As modificações tecnológicas ou
estéticas conferem-lhes uma identidade própria. [...] O shanzhai explora
totalmente o potencial da situação. Por esta razão, representa um fenômeno
genuinamente chinês’ [2017, 72].

Isso significa que não existe qualquer injunção cognitiva que dificulte a
aprendizagem dos chineses em relação aos novos saberes. A afirmação de
que a escrita logográfica causa atrasos cognitivos beira o surrealismo. O uso
da mesma não impediu as grandes descobertas do passado, e nem impede a
absorção de tecnologias atuais. Esse processo de tradução e apropriação é o

17
ajuste pelo qual todas as civilizações passam quando buscam redefinir e
atualizar seu papel no mundo. No mesmo sentido, a imaginação tem sua sede
no córtex pré-frontal, e isso caracteriza o sistema de funcionamento humano.
Portanto, alternativas no processo de desenvolvimento cognitivo podem
ampliar a percepção do espaço e das coisas, não necessariamente
restringindo-as. Pretender uma ‘inferioridade cultural’ em função da linguagem
e da escrita é um dos arcaísmos mais graves no entendimento antropológico
da humanidade – tal como a ideia de que sociedades ágrafas são ‘inferiores ou
primitivas’ por não terem escrita. Invertendo o paradigma, o pressuposto
dominante nunca permite questionar as razões pelas quais a escrita logográfica
chinesa sobreviveu ao tempo, e hoje contribui na estruturação de linguagens
informáticas.

A dificuldade em aceitar a China como um centro de produção de saberes fez


ainda com que os filósofos se mexessem contra sua ascensão no panorama
intelectual, requentando a absurda teoria de que somente os ocidentais
‘filosofam’ enquanto os outros povos apenas ‘pensam’. Uma grande quantidade
de ignorância e má-fé precisa ser utilizada diariamente para a manutenção
desse preconceito epistêmico, herdado de Hegel, que limita a capacidade dos
próprios ‘ocidentais’ em escapar de sua gaiola logocêntrica e abraçar uma
perspectiva mais global. Quem afirma que os chineses têm uma ‘outra lógica’,
por exemplo, leia o ótimo texto de Julio Sameiro sobre ‘Tocar a campainha aqui
e na China’ [2015], que mostra que os chineses não apenas pensam como nós
em muitas ocasiões, como afirmar que eles possuem uma ‘outra lógica’ é
desconhecer as próprias teorias da lógica. Por outro lado, as construções
teóricas chinesas proporcionam alternativas ao entendimento humano que
podem expandir nossas percepções sobre os mais diversos campos do saber
[Jullien, 2010]. Por qual razão perder de vista esse conhecimento? A
persistência nessa postura tem tornando a Filosofia um campo e uma profissão
essencialmente eurocêntrica, contrariando seus postulados fundadores de
tentar conhecer e explicar o mundo, e transformando-a numa reducionista
racionalização de sentidos e objetivos limitados [Norden, 2021].

Referências
André Bueno é professor de História Oriental na UERJ, diretor do Projeto
Orientalismo e pesquisador em Sinologia.

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18
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anpof/se-a-filosofia-nao-quer-e-nao-vai-se-diversificar-entao-vamos-chama-la-
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Tradução de F. J. Azevedo Gonçalves

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19
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1989'. Revista Ópera, 26-06-2019. Disponível em:
https://revistaopera.com.br/2019/06/26/sociedade-incivil-orientalismo-e-a-praca-
tiananmen-em-1989/

20
A IDEIA DE GAIATSU NA JAPONOLOGIA DE RUTH BENEDICT,
por Edelson Geraldo Gonçalves

Introdução
O presente texto tem como tema o conceito japonologista de “gaiatsu”, que
passou a fazer parte desse campo de estudos na década de 1980, com foco
em sua influência sobre as relações exteriores do Japão, ou, mais
especificamente, como o seu funcionamento foi antecipado pela antropóloga
Ruth Benedict no livro “O Crisântemo e a Espada”, um trabalho de análise da
cultura japonesa, ou mais propriamente do Japão Imperial [1868-1945],
originalmente publicado em 1946.

Este termo se refere à forma como as pressões exteriores tem efeito sobre a
cultura japonesa, podendo levar essa a admitir mudanças internas, mesmo
radicais, de forma repentina.

Para tratar desse tema, trabalharemos com a abordagem desse conceito nos
trabalhos dos autores Kent E. Calder [1988], Patrick Smith [1997] e Mayumi
Itoh [2000], analisando, ao final, como esta ideia aparece na obra de Ruth
Benedict.
.
A Relação do Japão Moderno com o Mundo
Entre a reabertura do Japão ao mundo, em 1853, e o final do período imperial,
em 1945, com a rendição do país na Segunda Guerra Mundial, o projeto dos
governantes japoneses para a sua sociedade, e a relação deste Estado-Nação
com o restante do mundo tive diferentes fases.

Internamente, sobretudo após a Restauração Meiji em 1868, o país adotou


primeiro um projeto de modernização ocidentalizante, que na década de 1890
foi substituído por uma linha nacionalista e de valorização das tradições pátrias,
modelo este, que, após se enfraquecer na década de 1920, voltou a ganhar
força na década de 1930, com o abraço a uma política francamente imperialista
na Ásia e o alinhamento com a Itália fascista e a Alemanha nazista no cenário
político mundial [Beasley, 1987].

Com a derrota na Segunda Guerra Mundial, um novo projeto nacional se


iniciou, inicialmente sob a tutela das forças de ocupação dos EUA, que
dirigiram o país para a desconstrução do aparato ideológico nacionalista e
militarista do passado recente, buscando promover valores ocidentais de
relacionamento social, individualismo, direito, justiça e outras características
como valores universais [Sakurai, 2008, p. 202], tendo o Japão se adaptado
sem grandes conflitos a esta mudança brusca [Benedict, 2006, p. 255].

21
Uma explicação para essa transição ordeira se encontra no conceito de
gaiatsu, que se somou ao aparato teórico da japonologia a partir da década de
1980, mas cujos efeitos, de uma forma geral, foram percebidos pela
antropóloga Ruth Benedict pelo menos desde 1946.

Gaiatsu
Como nos lembra José D’Assunção Barros [2016, p. 24], “os cientistas nem
sempre criam as palavras, [...] que servirão de termos para os conceitos dos
quais necessitam” e que, por vezes, “é o grande ator coletivo formado pelas
pessoas comuns quem cria o material que servirá de base para os conceitos” e
este material é composto por palavras do cotidiano, “e os cientistas das várias
áreas de estudo só precisam se apropriar dessas palavras para dotá-las de um
sentido mais específico em seus campos de saber”.

Foi isso que ocorreu com o termo “gaiatsu”, que significa literalmente “pressão
externa” [Calder, 1988, p. 537], que adentrou o vocabulário conceitual do
campo da japonologia [estudos japoneses] na década de 1980.

Esta é uma palavra que se tornou comum em textos e comentários sobre as


relações exteriores do Japão a partir da década de 1970, e com uma presença
especialmente notável nos jornais na década de 1980, e que nesta mesma
década se converteria em um conceito acadêmico, mais propriamente no
campo do estudo das relações exteriores do Japão.

Gaiatsu, de forma mais precisa, significa uma mudança, em geral,


internamente indesejada, feita, relutantemente, por concessão a uma pressão
externa, para se adequar a um padrão ideal ditado de fora. Assim, mesmo que
o governo, ou outros agentes responsáveis por uma mudança polêmica,
movida por esse impulso, possam ser criticados, estes se livram da
responsabilidade atribuindo-a à necessidade de atender às demandas
exteriores por adequação, se tornando assim um instrumento nas escolhas
japonesas nas relações exteriores, que também geram transformações
internas, e um escudo para as decisões impopulares [Cooney, 2004, p. 134,
137; Itoh, 2000, p. 6].

Este conceito, que surgiu originalmente na mídia [Blaker, 2002, p. 27], ganhou
teorização acadêmica em 1988, no artigo “Japanese Foreign Economic Policy
Formation: Explaining the Reactive State”, escrito pelo asianista Kent E. Calder,
voltando a aparecer e ser analisado, alguns anos depois, em livros como “The
Emergence of Japan’s Foreign Aid Power”, de Robert M. Orr [1990], e “The
New Multilateralism in Japan’s Foreign Policy”, de Dennis T. Yasutomo [1995]
[Myiashita, 2001, p. 37-38], sendo posteriormente bem trabalhado nas obras
“Japan: A Reinterpretation” de Patrick Smith [1997] e “Globalization of Japan”
de Mayumi Itoh [2000], tendo se tornado, atualmente, “um termo muito comum
na literatura japonesa de relações internacionais” [Cooney, 2004, p. 136].

22
Na primeira conceitualização deste fenômeno, Calder [1988, p. 526-535] leva
em consideração apenas o efeito do gaiatsu nas relações internacionais,
atribuindo suas causas à três razões conjunturais do Japão da década de
1980, mais especificamente, primeiro, o comprometimento prioritário do Estado
com assuntos internos, sobretudo com o crescimento econômico, se deixando
levar principalmente pelos EUA na maioria das questões internacionais, em
segundo, sua posição de dependência em relação aos Estados Unidos no
sistema internacional, notadamente no campo econômico e de defesa, o que
provocaria vulnerabilidade às demandas desse país, e, por fim, um poder
executivo fraco, sob controle de um partido grande, porém, profundamente
faccionalizado [o Partido Liberal Democrata], dificultando a formação de um
centro decisório forte.

Segundo Calder [1988, p. 537] estas características teriam convertido o Japão


da época em um “Estado Reativo” com dificuldade para tomar iniciativas, e,
portanto, suscetível a pressões externas.

Ainda com foco na política externa, segundo Mayumi Itoh [2000], o gaiatsu é
um instrumento comum na promoção da internacionalização [kokusaika] do
Japão, gerando momentos em que o país se adequa a padrões internacionais.

Para a autora, isso ocorre em um cenário de frequentes confrontos entre


pressão pela internacionalização e a “mentalidade sakoku”, ou “mentalidade de
nação fechada”, um traço estrutural da cultura japonesa, que se formou a partir
da política de país fechado promovida pelo xogunato Tokugawa entre os
séculos XVII e XIX, que habituou os japoneses a práticas que não levam em
conta a realidade do mundo exterior [Itoh, 2000, p. 13].

Essa “mentalidade sakoku”, como traço cultural, se manifestaria principalmente


nos momentos de grande orgulho e confiança nacional entre os nipônicos,
sendo um dos principais motores para o nacionalismo japonês [Itoh, 2000, p.
12-13].

Por outro lado, em momentos de abalos no orgulho nacional, principalmente


quando surge o sentimento de inferioridade frente às nações estrangeiras, o
gaiatsu tende a se manifestar, e o Japão começa a ceder às pressões externas
por mudanças internas [Cooney, 2004, p.141]. Dessa forma, nas palavras de
Patrick Smith [1997, p. 194], para o Japão muitas vezes o que “está por trás
dos empréstimos culturais é a tragédia de se sentir inferior”.

E o gaiatsu se tornou uma característica evidente na cultura japonesa, a ponto


de ser publicamente notada e academicamente estudada, justamente a partir
de um momento de revés na confiança nacional [Itoh, 2000, p. 11-13], após o
“Milagre Japonês” do pós-guerra ter sofrido abalos, como o Choque Nixon
[1971] e a Crise do Petróleo [1973], que levaram ao encolhimento dos índices
de crescimento da economia do país.

23
Mais especificamente, este conceito se tornou notório em um momento de
pressão externa, principalmente dos EUA, sobre o governo japonês pelo apoio
do país nos assuntos diplomáticos e militares estadunidenses na Guerra Fria, e
se tornou especialmente corrente no contexto das negociações sobre questões
comerciais e de investimento entre o Japão e os Estados Unidos na década de
1980, sobretudo em relação ao protecionismo comercial nipônico, quando se
percebeu que a influência da opinião estrangeira às vezes se mostrava eficaz
para mudar a política japonesa onde os atores políticos domésticos por conta
própria não conseguiam, seja por resistência do Estado, ou da sociedade civil
[Cooney, 2004, p. 134; McCargo, 2004, p. 201; Stockwin, 2005, p.137-138].

Segundo Patrick Smith [1997, p. 37, 193], este é o meio pelo qual muitas
coisas são feitas no Japão, sendo, na verdade, uma característica antiga da
cultura nipônica, que em vários momentos buscou se adequar a padrões
externos.

Esta prática, que se origina de uma inclinação a se ver de fora para dentro, por
valores externos e estrangeiros, é, segundo Smith [1997, p. 193], uma
duradoura tendência iniciada ainda no período Asuka [593-710], quando foi
feita uma reforma da estrutura de Estado à moda chinesa, transformando o
monarca japonês de um primus inter pares em um soberano celeste e divino, e
o império foi também nomeando como "Nippon", a “Terra do Sol Nascente”, o
que se refere ao sol no Japão, visto do ponto de vista chinês. Dessa forma, os
governantes do Japão trouxeram ao seu povo uma sinização que impôs
definitivamente a cultura patriarcal confucionista sobre a provável antiga cultura
matriarcal nativa [Smith, 1997, p. 192-193].

A outra grande reforma neste sentido viria com a Restauração Meiji em 1868 e
seu subsequente programa de modernização e ocidentalização, como resposta
às pressões estrangeiras iniciadas em 1853, com a chegada da armada
liderada por Matthew Perry ao Japão [Smith, 1997, p. 57].

Podemos afirmar, portanto, que para Smith e Itoh, esta é uma característica de
longa duração na cultura japonesa, uma estrutura, nos termos de Braudel
[1992, p. 49-50].

O Gaiatsu na Obra de Ruth Benedict


Em seu livro “O Crisântemo e a Espada”, publicado em 1946, tendo como base
estudos feitos para a inteligência militar dos EUA, durante a Segunda Guerra
Mundial, Ruth Benedict caracteriza o Japão Imperial como uma “cultura da
vergonha”, ou seja, uma cultura na qual os indivíduos orientam seu
comportamento em uma perspectiva de fora para dentro, sendo que cada
ambiente específico, ou “círculo”, exigiria um comportamento específico,
mesmo que completamente contraditório ao de outros círculos que um mesmo
sujeito venha a frequentar" [Benedict, 2006, p. 167].

Assim, ao invés do comportamento ideal de uma pessoa seguir uma essência


ou padrão [entendendo os indivíduos como bons, maus, piedosos ou ímpios,

24
etc.] como é normalmente feito no ocidente, cada ambiente “teria o seu código
[de comportamento] especial particularizado, sendo que o homem julga os seus
semelhantes, não lhes atribuindo personalidades integradas” [Benedict, 2006,
p. 167] dessa forma, na vida japonesa, “as contradições [...] acham-se tão
profundamente baseadas na sua visão da existência quanto as nossas
uniformidades na nossa” [Benedict, 2006, p. 167].

Assim, se espera que o comportamento de cada indivíduo se adéque as


regras do meio em que está, e, nas palavras da autora, nesse tipo de cultura
“se destacaria o julgamento externo dos indivíduos pelos membros de seu meio
social, ou seja, seriam culturas nas quais a imagem da pessoa diante dos
outros, a sua honra, seria o mais importante" [Benedict, 2006, p. 188-190].

Usando estas considerações como base, em sua análise do comportamento do


Japão como Estado-Nação no campo das relações internacionais, entre o
período imperial [1868-1945] e o início do pós-guerra, Benedict argumenta que
entre o fim do século XIX e a primeira metade do século XX, a orientação
militarista e imperialista da política externa do país se deu porque este era visto
como um comportamento aceitável no “círculo” das grandes potências, meio ao
qual os japoneses julgavam pertencer [Benedict, 2006, p. 255-256].

O Japão não seria, portanto, um país pacífico ou militarista, mas um Estado


que busca se adaptar ao comportamento mais adequado e respeitável no
“círculo” de seu pertencimento. Em outras palavras, a mesma lógica que guia
as relações interpessoais internas, também o guiaria em sua interação com
países estrangeiros. A prática dos indivíduos também se mostraria
coletivamente, ao nível nacional.

Segundo Benedict [2006, p. 255], esse comportamento “condicionou [os


japoneses] para possíveis mudanças [bruscas] de direção” possibilitando com
que um país militarista e imperialista se adaptasse rapidamente, e sem grandes
traumas internos, ao papel que a ele foi designado no pós-guerra, destituído de
suas colônias e zonas de influência, pacífico e desmilitarizado.

Assim, podemos notar, que na análise de Benedict fica subtendida a ideia de


gaiatsu, embora a autora não tenha chegado a identificar o fenômeno como
conceito, subordinando seu funcionamento à lógica da “cultura da vergonha”,
descrevendo um Estado-Nação atento ao comportamento das grandes
potências, o seu “círculo”, e que usa essa informação para guiar seu próprio
comportamento, inclusive cedendo às pressões externas, como por exemplo,
ocorreu no imediato pós-guerra, configurando um comportamento que
possibilita inclusive mudanças radicais na política nacional.

Conclusão
Podemos concluir, portanto, que, em seu livro, Ruth Benedict não apenas
percebeu a característica estrutural da cultura japonesa; que décadas mais
tarde seria conceitualizada como “gaiatsu” no campo dos estudos japoneses;
de uma forma semelhante ao entendimento que Patrick Smith e Mayumi Itoh

25
teriam posteriormente, como também ligou sua lógica de funcionamento a outro
elemento estrutural, este sim cuidadosamente estudado como conceito em seu
trabalho, a “cultura da vergonha”, constatando que, tanto nas relações pessoais
entre indivíduos, quanto nas relações coletivas entre nações, o comportamento
japonês buscaria a adequação ao ambiente em que se insere, com o objetivo
de alcançar a respeitabilidade. Tal fundamento não teria, portanto, problemas
com mudanças de qualquer tipo, mesmo as mais radicais.

Referências
Edelson Geraldo Gonçalves é Doutor em História Social das Relações Políticas
pela Universidade Federal do Espírito Santo (UFES). Mail:
edelsongeraldo@yahoo.com.br

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BRAUDEL, Fernand. Escritos sobre a História. São Paulo: Perspectiva, 1992.

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26
STOCKWIN, J. A. A. Dictionary of Modern Politics of Japan. Londres e Nova
York: Routledge, 2005.

27
OS MILAGRES NA ESFERA DO DESENVOLVIMENTISMO: UMA
COMPARAÇÃO ENTRE BRASIL E COREIA DO SUL, por
Eduarda Christine Souza Pucci

Usar o conceito de “milagre” para se referir a algum avanço em país foi algo
bastante utilizado em rápidos crescimentos econômicos que ocorreram pelo
mundo – como o caso Japonês e o Alemão. Tal conceito, ganha certo impacto
de cunho messiânico ao se referir aos avanços em projetos político-
econômicos, assim é expresso por Hannah Arendt como “algo de novo
acontece, de maneira inesperada, incalculável e por fim inexplicável em sua
causa, acontece justamente como um milagre [...]” (ARENDT, 1993, p.15).
Diante disso, governos se apropriaram desse termo como estratégia política e
autopromoção, a fim de demonstrar os níveis de crescimento de seus
governos.

Ao utilizar o fator dos fenômenos ditatoriais que ocorreram pelo mundo durante
o século XX, é possível observar como foi adotado tal conceito. Durante o
cenário de mundo bipolarizado – com a ideologia dos dois sistemas
socioeconômicos, o socialismo e o capitalismo – da Guerra Fria, alguns países
insurgem com governos ditatoriais, com conflitos externos que estavam
ocorrendo pelo mundo. A ditadura brasileira e a sul-coreana, oferecem
perspectivas divergentes e convergentes a respeito do tema do
desenvolvimentismo, porém, nos dois países é utilizado o termo milagre para
se referir ao avanço da economia.

Com base nisso, este trabalho tem como fator exploratório, caracterizar de
forma breve os tipos de “milagres” que ocorrem nos processos ditatoriais em
questão. Sendo o processo do Brasil ocorrendo no período de 1967 a 1973 e o
processo da Coreia do Sul, começando em 1961 e indo até 1996. Além de
mostrar as suas diferenças e onde convergem, e também, como foi adotado
pelo período ditatorial de ambas.

O caminho para o “milagre brasileiro” e suas estratégias


Após a institucionalização do ato n°1 o General Humberto de Alencar Castelo
Branco (1964-1967) assume o poder, como Presidente da República, a partir
de um golpe de estado. Nesse período é criado o PAEG (Programa de Ação
Econômica do Governo), sendo um plano que tinha previsão de ser anti-
inflacionário e institucional, garantindo várias reformas e criando novos
impostos, a fim de trazer novos direcionamentos e melhora na economia
brasileira. Segundo Earp e Prado o PAEG tinha por “objetivo para o biênio
1965-66 acelerar o ritmo de desenvolvimento econômico do País e conter
progressivamente o processo inflacionário para alcançar um razoável equilíbrio

28
de preços em 1966” ou seja “[...] acelerar crescimento e simultaneamente
reduzir a inflação [...]” (EARP e PRADO, 2003, p.5-6).

De fato, é possível destacar que um dos norteadores do crescimento


econômico que mais tarde ia ser conhecido como “milagre”, teve suas raízes
nas diretrizes do PAEG – sendo implementado no governo de Castello Branco.
Tais práticas de manutenção da estrutura econômica do país, vinham sendo
estruturadas nos governos seguintes, assim como expressa Miranda:

Observaram que: "A partir de 1961, e de modo mais claro a partir de 1962,
alarga-se o hiato entre a produção efetiva e potencial, hiato este que chegaria a
um máximo entre 1965 e novamente em 1967. A partir deste último ano até
1972, fazem-se sentir com mais intensidade os efeitos da política econômica
expansionista, permitindo que o crescimento industrial prossiga sem
acréscimos substanciais no estoque de instrumentos de trabalho - ou seja,
baseado na utilização mais intensa do estoque existente." Concluíram que as
taxas médias de 14,5% de crescimento atingidas na indústria de transformação
no período de 1967 a 1972, somente foi possível graças à utilização intensiva
da capacidade instalada, a qual elevou-se de 76% em 1967 para 100% em
1972, perfazendo uma taxa de ocupação média anual de 6%. Isto resultou
numa performance "fácil", na medida em que metade desse crescimento era
devida a utilização da capacidade de produção disponibilizada no período
1963/1967.” (MIRANDA, 1999, p. 51-52)

A citação acima, tende a mostrar em níveis percentuais de como esse boom na


economia foi se desenvolvendo no primeiro governo da ditadura civil-militar,
porém no controle inflacionário ficou em déficit. Nos próximos governos, esses
índices econômicos, irão servir de fator de mudança para que ocorra o
“milagre”. É nos períodos governamentais de Arthur da Costa e Silva (1967-
1969) e Emílio Garrastazu Médici (1969-1973) que ocorrem os estímulos
viáveis para a facilitação do milagre econômico. No começo de seu mandato
Costa e Silva, nomeia novos nomes para o novo Ministério do Planejamento,
fruto de demandas do governo anterior, com medidas voltadas para o aumento
da participação do setor privado e a redução do papel do setor público (EARP e
PRADO, 2003, p.11). E assim, também houve a criação de mais um plano que
irá se fazer presente nesse momento de crescimento, o Plano Econômico de
Desenvolvimento (PED).

Após a nomeação de nomes, como Delfim Netto para o setor econômico


brasileiro – tanto no Ministério do Planejamento, quanto no Ministério da
Fazenda mais pra frente – irá ganhar novas manobras e atividades e garantir a
Delfim uma popularidade de seu trabalhado, sendo atribuído como um dos
responsáveis pelo milagre. Assim como reformas e fundos que foram criados
para a conversão do status inflacionário e melhora do PIB Brasileiro, que
conforme Hermann o crescimento do produto interno bruto no final do governo
de Costa e Silva, se eleva a 11% ao ano, sendo liderado pelo setor industrial
de bens de consumo duráveis e em menor escala, por bens de capital
(HERMANN, 2005, p.82).

29
Dessa forma, o início do “milagre”, objetivava um aumento das taxas
percentuais do PIB em crescimento até 1973, e consequentemente a redução
da inflação no período governamental de Médici, a partir de estratégias de
aproveitamentos de oportunidades que o cenário internacional favorecia. Indo
em direção ao governo de Geisel (1974-1979), começa com um nível de
inflação mais baixo e com uma estrutura econômica administrativa organizada,
trazendo novos desafios para a balança econômica brasileira. Porém, com o
avanço econômico que foi sendo desenvolvido no período ditatorial brasileiro,
houve questionamentos também a respeito de todas essas mudanças que
estavam ocorrendo no Brasil, como:

“A questão social foi um dos grandes questionamentos do milagre – o que se


dizia era que “a economia ia bem, mas o povo ia mal”. O intenso crescimento
durante o milagre trouxe grandes benefícios para as classes de maior renda,
incluindo-se aí a parte da classe média assalariada que fornecia os quadros
técnicos necessários à gestão da economia, como engenheiros, economistas,
administradores, analistas de sistemas, etc. A renda concentrou-se ainda mais
em consequência da diminuição do valor real do salário mínimo. A apropriação
da renda pelos 50% mais pobres passou de 17% em 1960 para 15% em 1970,
enquanto para os 10% mais ricos, evoluiu de cerca de 40% para cerca de 48%
no mesmo período.” (BARRETO, 2012, p.24)

Por mais que uma parte da sociedade brasileira seguia caminhos em direção
ao desenvolvimento econômico, as classes mais baixas não alcançaram os
frutos do “milagre econômico” e sim ganhando o status da desigualdade.
Sendo assim, em pouco tempo a concentração de renda e o PIB aumentaram,
ao passo que outros setores governamentais ficaram defasados.

O milagre do rio Han e o avanço da Coreia do sul no seu meio urbano-


social
Após o período da Guerra das Coreias (1950-1953) e de sua divisão
peninsular, foi instaurada uma ditadura a partir do golpe do General Park
Chung-hee na década de 60. Foi neste período que ocorreu o início do
processo desenvolvimentista sul-coreano, juntamente com a entrada para os
Tigres Asiáticos, obtendo um elevado nível de crescimento que ficou conhecido
como Milagre do Rio Han ou 한강의 기적 que foi episódio que ocorreu na
capital da Coreia do Sul, em Seul. Pois, o Rio Han é o rio que corta a capital
por inteiro, lugar este que presenciou em maiores proporções o rápido
crescimento econômico da Coreia do Sul. Conforme Honda “um dos principais
elementos para a ascensão coreana foi a educação, que atuou como motor do
desenvolvimento do país [...]” (HONDA, 2022, p.312), se transformando em
uma característica principal de atuação social do país.

Com a introdução do modelo dos Planos Quinquenais de Desenvolvimento


econômico (PQDE), promovendo de forma intensa o modo EOI
(Industrialização Orientada para Exportação) de industrialização, a partir de
1961 que fez com que a economia do país fosse restituída com o passar do

30
tempo, desde o estado de assolamento econômico do período de guerra. Kiely,
demonstra que o subsídio a indústrias e o planejamento nacional de aliança
com os chaebols (grandes conglomerados familiares) como estratégia, foi algo
que ajudou a impulsionar a economia (KIELY, 1998, p.97). Essa aproximação
do estado com os chaebols conseguiu um maior controle e o poder de fornecer
apoio a indústrias que vinham crescendo à época no país, dessa forma:

“Entre 1972 e 1979, o número médio de empresas pertencentes aos dez


maiores chaebols cresceu de 7,5 para 25,4. No mesmo período, os dez
maiores chaebols atingiram 47,7% taxa média anual de crescimento em termos
de ativos, enquanto a taxa média de crescimento do PIB foi de 10,2% [...] na
década de 1970 o desemprego era baixo, mas o trabalho era rigidamente
controlado pelo estado e práticas ditatoriais de gestão dentro das fábricas.”
(KIELY, 1998, p.98)

Porém, o contexto ditatorial em que a Coreia do Sul estava inserida, favoreceu


um controle mais rígido da forma de tratamento dos trabalhadores coreanos,
fazendo surgir as greves e reivindicações para melhores condições de trabalho
nas fábricas. Chegando assim, no ano de 1980, ano de grandes
transformações nos cenários político e econômico. Nesse ano ocorre a troca de
presidentes – ainda por meio indireto – Chun Doo-hwan assume a presidência
após o assassinato de Park Chung-hee, e a taxa de crescimento apresenta
uma queda, pois a forma de tratamento do projeto desenvolvimentista se
expressava com mais repressão governamental ao movimento dos
trabalhadores e estudantes.

Ao longo da década de 80 e 90, mesmo com a queda brusca na economia sul-


coreana, o país não deixou de promover práticas para o desenvolvimento
pudesse alcançar altos índices, com a continuação dos planos quinquenais.
Em seu processo de redemocratização, dos 90 até o milênio – com o
Presidente Kim Young-sam (1993-1998) –, um novo ramo da indústria irá ser o
foco do país para os próximos anos. Conforme Kim, “Imediatamente após sua
posse e particularmente nos primeiros dois anos de seu mandato, Kim projetou
e realizou uma série de mudanças políticas e reformas socioeconômicas [...]”
(2006, p.59) com a realização de planos culturais para apoiar o
desenvolvimento coreano, dessa forma:

“No segundo plano cultural, a “Lei da Indústria Cultural” de 1999 fornece uma
base legal para apoio governamental e envolvimento de Chaebol na indústria
cultural [...] A lei redefiniu que a indústria cultural envolve planejamento,
desenvolvimento, produção, fabricação, distribuição e consumo de mercadorias
culturais, bem como serviços relacionados. De acordo com a lei, mercadorias
culturais são filmes, programas de radiodifusão, bens, discos/fitas, jogos,
publicações ou periódicos, incluindo revistas, jornais, personagens, histórias
em quadrinhos e produção multimídia [...]” (PARK, 2015, p.102-104).

Esses projetos em consonância com a política de desenvolvimento econômico,


fez com que a Coreia do Sul, oferecesse incentivos a projetos educacionais

31
que pudessem dar retorno ao país em produtos que possam ser exportados
mundo afora, e o setor cultural foi um dos que tiveram maior significância e
resultados. Fazendo do país, que era pobre e destruído – como resultado dos
conflitos do século XX – em uma das potências com maior nível de educação,
urbanização e avanço tecnológico. Sendo reconhecido mundialmente por seus
chaebols e pelo mercado da tecnologia da informação.

Considerações finais
Portanto, ao longo desta análise foi possível perceber que o Brasil e a Coreia
do Sul, obtiveram seus processos de desenvolvimento econômico em períodos
ditatoriais, porém com a diferença da política desenvolvimentista sul-coreana
continuando mesmo após a redemocratização. Outro fator convergente se
apresenta no apoio do Estado sul-coreano ao projeto de reurbanização e
melhora da educação, como possíveis retornos para a sua economia, e no
Brasil, a consequência foi a grande desigualdade social e concentração de
renda na elite brasileira.

Um ponto que pode servir de comparação, foi a implementação de projetos e


planos econômicos para que pudesse haver um crescimento de ambos os
países, porém com características e passos diferentes. Ao longo do trabalho foi
exposto como o Brasil conseguiu se reerguer economicamente, mesmo em um
período de repressão governamental. Deixando nomes importantes para a
economia brasileira e se inserindo no mercado industrial mais uma vez, após o
legado desenvolvimentista de Juscelino Kubitscheck. EA Coreia do Sul, ao
entrar pro mundo das industrializações, seguindo principalmente o caminho
exportador, fez com que o país se inserisse no mercado internacional
atendendo as tendência que o mercado necessitava, garantindo lugar entre os
países mais globalizados e uma das maiores economias mundiais.

Referências
Eduarda Christine Souza Pucci é discente do curso de Licenciatura em
História, pela Universidade Federal Rural do Rio de Janeiro – UFRRJ.

ARENDT, Hannah. O que é política. Rio de Janeiro: Bertrand Brasil, v. 1997,


1993. Disponível em: https://skat.ihmc.us/rid=1PYFMTQP9-22F8RWK-
2JWC/ARENDT,%20Hannah.%20O%20que%20%C3%A9%20pol%C3%ADtica
.pdf.

BARRETO, Silvio Jose Magalhaes. Crescimento x desenvolvimento


econômico: um estudo comparativo entre o período do Milagre Econômico e o
Governo Lula. 2012. Disponível em:
https://repositorio.ufc.br/handle/riufc/32367.

EARP, Fábio Sá; PRADO, Luiz Carlos. O ‘milagre’ brasileiro: crescimento


acelerado, integração internacional e distribuição de renda (1967-1973). O
Brasil Republicano, v. 4, 2003.

32
GONÇALVES, Cátia Andreia da Cruz. O processo de industrialização da
Coreia do Sul: intervenção estatal na construção de uma economia
exportadora. 2022. Tese de Doutorado. Instituto Superior de Economia e
Gestão. Disponível em: https://www.repository.utl.pt/handle/10400.5/24429.

HONDA, Débora Hisae. A febre educacional sul coreana, passado e presente:


o paradoxo entre a tradição e o desenvolvimento. Humanidades & Inovação, v.
9, n. 16, p. 311-322, 2022.

HERMANN, Jennifer. Reformas, endividamento externo e o “milagre”


econômico. Economia brasileira contemporânea. Rio de Janeiro: Elsevier,
Editora Campus, 2005. Disponível em:
https://home.ufam.edu.br/salomao/Economia%20Brasileira/Texto%203a.pdf.

KIELY, Ray. Industrialization and development: A comparative analysis. UK:


UCL Press, 1998.

KIM, Sunhyuk. Civil society and democratization in South Korea. In: Korean
Society. Routledge, 2006. Disponível em:
https://core.ac.uk/download/pdf/76462899.pdf.

MIRANDA, Paulo Roberto Moura de. De JK ao 'milagre': o financiamento do


crescimento econômico brasileiro em dois tempos. 1999. Tese de Doutorado.
PARK, Mi Sook. South Korea Cultural History Between 1960s and 2012.
International Journal of Korean Humanities and Social Sciences, [S. l.], v. 1, p.
71–118, 2014. Disponível em:
https://pressto.amu.edu.pl/index.php/kr/article/view/6509.

33
A MIGRAÇÃO COREANA PARA O ESPÍRITO SANTO,
por Gabriela Soares Lima dos Santos

O presente trabalho é fruto de uma monografia que ainda está em processo de


desenvolvimento. Tal pesquisa tem como objetivo descobrir e entender as
razões pelas quais os coreanos escolheram o Espírito Santo para um
recomeço. Dessa forma, diante da lacuna existente na historiografia acerca do
assunto, este trabalho será desenvolvido através do método oral e teórico.
Assim, por meio de uma entrevista, foi possível observar a história do senhor
Lee, homem coreano que imigrou para o Brasil, São Paulo, no ano de 1973,
juntamente com a família. Em 1993, em busca de um recomeço, se mudou
para o Espírito Santo, aos 29 anos de idade. Diante disso, ao observar a
história do senhor Lee e demais coreanos habitantes do Espírito Santo,
presume-se que apresentam, como motivação comum, a busca por vagas de
emprego, uma vez que a presença de portos e grandes empresas ofereciam
oportunidades, além de melhor qualidade de vida. Ainda há aqueles que
migraram por convite de amigos que, por sua vez, se mudaram anteriormente
também em busca de trabalho.

Introdução
O século XX foi um período de muitas movimentações na península coreana.
Ocupação japonesa, Segunda Guerra Mundial, governos despóticos,
revoluções e outros movimentos criaram um contexto de dificuldades para a
população da Coreia. Dessa forma, desde o começo do século, o processo de
emigração se inicia, mesmo que de forma sutil. Nesse contexto, Choi (1996, p.
234-235) divide tal movimento em 5 fases, definidas segundo o fluxo de
imigrantes. A primeira delas, a fase pré migratória (1910-1956), constituiu-se
quando vieram os primeiros coreanos, que possuíam documentos falsos
dizendo serem japoneses. Os registros de entrada foram feitos no ano de 1918
e 1956, ano em que os prisioneiros da Guerra da Coreia (1950-1953)
chegaram ao Brasil. A seguir, o ano de 1962 é entendido como o período
semioficial, no qual um grupo com poucos coreanos desembarcou em terras
nacionais. A terceira fase é tida como a fase oficial da imigração (1963 - 1971).
Seguindo um acordo entre os governos da Coreia do Sul e do Brasil, os
imigrantes coreanos viriam em cinco levas, todas elas direcionadas ao trabalho
agrícola. Porém, diversas complicações surgiram, como questões legais com
as terras e a falta de infraestrutura. Com isso, os coreanos se mudaram para
as cidades, especialmente São Paulo. As levas seguintes foram diretamente
para o meio urbano, onde já estavam fixados os familiares e amigos dos
primeiros imigrantes (SOARES, 2020, p. 49).

34
A imagem de um Brasil industrial, economicamente desenvolvido, juntamente
com o golpe militar de 1961, ocorrido no país sul-coreano, incentivou muitos
coreanos a saírem da terra natal. O Milagre Econômico Brasileiro (1969 - 1973)
foi um fator encorajador para que cada vez mais imigrantes olhassem para o
Brasil. Assim, a quarta fase de imigração coreana aconteceu, sendo esta
conhecida como período clandestino (1972 - 1984), processo pelo qual passou
o entrevistado desta pesquisa, senhor Lee. (CHOI, 1996, p. 235). Por fim, a
última fase da imigração coreana para o Brasil, o período de imigração em
cadeia, se estende do ano de 1980 até os dias de hoje. Esta fase é
caracterizada pelo fato de os coreanos serem convidados por amigos ou
familiares que já moram no Brasil (SOARES, 2020, p. 49, 50).

Podemos dizer que o imaginário de esperança e idealização em relação ao


território brasileiro, cultivado pela população da Coreia, resultam de um
contexto social e político avassalador neste país, somado ao fato de que
população vivia sob a constante ameaça de uma nova guerra (SOARES, 2020,
p. 53). Os coreanos, dessa forma, encontraram no Brasil uma oportunidade de
enviar recursos para os parentes que ficaram para trás, resultado do Milagre
Econômico (1969 - 1973) que o país vivia (SOARES, 2020, p. 51). Ademais,
nas décadas que se seguiram, o Brasil continuou sendo atrativo para a
população sul-coreana, o que incluía o Espírito Santo.

Existe hoje uma lacuna na historiografia para entender porque o estado se


tornou atrativo para a comunidade coreana aqui existente. Dessa forma, este
trabalho tem como objetivo entender tais razões, por meio dos métodos
provenientes da História Oral. Assim, será possível analisar a trajetória de vida
do senhor Lee, um imigrante coreano que se fixou, juntamente com sua família,
em solo capixaba. Por meio de seus relatos, será possível contribuir para a
compreensão de como se deu o fluxo migratório coreano para o Brasil e, em
especial, para o Espírito Santo.

Literatura sobre o tema


No tocante à historiografia, serão utilizados diversos textos para analisar o
fenômeno da imigração coreana. Todavia, é dado destaque à dissertação de
mestrado de Flávio Moisés Soares, intitulada 50 anos de Coreia e Brasil:
Histórias, Imigração e Relações em São Paulo (1963 – 2013), publicada em
2020, pela Universidade Estadual Paulista, a UNESP. Em sua pesquisa,
Soares aborda o processo migratório, bem como a fixação e as interações da
comunidade coreana em relação ao Brasil. (SOARES, 2020, p. 53).

O projeto migratório foi pensado com base no plano de imigração japonês, que
destinava aqueles que vinham para as fazendas. Assim, devido à infraestrutura
precária do Brasil, os coreanos preferiram seguir para as cidades, uma vez que
as indústrias cresciam durante o Milagre Econômico Brasileiro (SOARES,
2020, p. 57). Além disso, é interessante citar que o projeto inicial visava
estabelecer a população sul-coreana em outros estados além de São Paulo,
como o próprio Espírito Santo que, em 1964, tinha um projeto de receber os
imigrantes na fazenda de Ponta Grossa, nos arredores de Vitória. Mas as

35
condições para o plantio não eram adequadas, e a ausência de investimento
de capital agravava a situação (SOARES, 2020, p. 56).

Já Keum Joa Choi, em seu texto Imigração Coreana na Cidade de São Paulo
(1996, p. 233), comenta acerca da quantidade de coreanos que se mudaram
da península, chegando a cerca de 5.000.000 no ano de 1996. Nas Américas,
o Brasil está em terceiro lugar em termos de recebimento da população
coreana, seguindo os Estados Unidos da América (EUA) e o Canadá.

Também de Keum Joa Choi, a dissertação de mestrado intitulada Além do Arco


Íris: a imigração coreana no Brasil (1991), será utilizada no trabalho. A obra faz
a divisão do processo migratório coreano para o Brasil em 5 fases, pré
migratória (1910-1956), imigração semi-oficial (1962), imigração oficial (1963-
1971), fase clandestina (1972-1980) e a imigração em cadeia (1980 em diante),
respectivamente. Todas as fases já comentadas no presente trabalho. Além
disso, também são abordadas algumas questões acerca da fixação coreana no
Brasil e os motivos pelos quais levaram a população da península a escolher o
país como destino migratório.

Para o aprofundamento relacionado à história coreana, o livro A Korean History


for International Readers, da Associação de Professores da História Coreana,
será empregado. Nele, é possível encontrar comentários acerca do golpe
militar de 1961, na Coreia do Sul. O fim da década de 1950 foi marcado por
uma série de protestos, devido a um governo autoritário e violento. Em 1960,
como consequência, o Estado opressor foi deposto e a Segunda República se
instala. Um ano depois, entretanto, em 1961, Park Chung-hee instaura um
golpe militar no país, o qual pregava o anticomunismo e o desenvolvimento
econômico, em um contexto em que a população sentia que uma nova guerra
poderia surgir a qualquer momento (THE ASSOCIATION OF KOREAN
HISTORY TEACHERS, 2021, p. 300). Dessa forma, o Estado coreano buscou
por capital estrangeiro, especialmente estadunidense e japonês. Tais recursos
foram direcionados a setores industriais específicos, pré-selecionados por um
plano governamental de desenvolvimento. Nas décadas seguintes, a economia
do país cresceu de forma exponencial. A indústria de eletrônicos, construção
de navios, ferro, maquinaria, e outros, obtiveram um grande crescimento, o que
representava o chamado Milagre do Rio Han. Tal progresso econômico,
contudo, não era democrático e teve consequências. Dentre os problemas
enfrentados, haviam os operários que trabalhavam em condições precárias e
pequenos negócios que encerraram as atividades por não possuir incentivos
governamentais (THE ASSOCIATION OF KOREAN HISTORY TEACHERS,
2021, p. 303).

Também será de importância para essa pesquisa, o artigo escrito por Bárbara
Barreto de Carvalho, de nome Memórias em fluxo: Vivências e perspectivas da
imigração sob o olhar de descendentes coreanos em Brasília (2018), que
descreve a imigração coreana para Brasília, mas que também pontua como a
religião ganhou espaço em tal movimento populacional. As redes criadas pela
Igreja proporcionavam alimentos, moradia – nos primeiros momentos – e

36
oportunidades de trabalho, de modo a consolidar as relações sociais e os
espaços em que os imigrantes poderiam livremente falar sua língua nativa.
Sendo assim, grande parte dos que chegavam já haviam, de alguma forma,
tido contato com a religião (CARVALHO, 2018, p. 4). É importante salientar
como esse processo de rede de apoio, oferecido pela Igreja, esteve presente
na trajetória de imigração da família do entrevistado. Como o mesmo afirma,
devido a essa rede, a mudança para São Paulo não foi tão penosa:

“[...] Quando eu vim aqui no Brasil, como meu pai já era presbítero de longa
data, e como todos os cinco irmãos eram presbíteros, os nossos tios, a igreja
presbiteriana estava sediada em vários países do mundo inteiro. [..] Mediante
dessa função quando ele teve, teve contato com a Igreja Presbiteriana em São
Paulo e através da Igreja Presbiteriana Paraguai - Assunção, tivemos contato,
e isso facilitou bastante a nossa chegada, porque não teve tanta dificuldade”
(LEE, 2022).

“Então quando nós viemos pra cá, primeiramente nós estávamos na casa de
um membro da igreja, lá em São Paulo [...]. Nós estávamos há um mês
naquela casa pra poder achar um local para ficarmos [...]” (LEE, 2022).

Além disso, a obra comenta também acerca de algumas das causas que levam
à escolha de um país de destino para a migração, como as políticas laborais, e
entrevistas que exploram a vida de famílias sul-coreanas que se mudaram para
a região.

Para a compreensão do contexto histórico de industrialização e


desenvolvimento do Espírito Santo, será empregada a obra História Geral e
econômica do Espírito Santo: do engenho colonial ao complexo fabril-portuário
(2006), de Gabriel Bittencourt. Nela, o autor desenvolve um panorama geral
acerca do desenvolvimento econômico do estado, dividindo-o em “ciclos
econômicos”. Assim, entende-se que a década de 1990 e o início do século
XXI compreenderam um contexto econômico no estado no qual havia
expectativas para o protagonismo no cenário nacional. Tais mudanças foram
geradas pelas possibilidades que as atividades de petróleo, siderurgia e
portuária introduziram no Espírito Santo (BITTENCOURT, 2006, p. 473). Dessa
forma, compreende-se como o crescimento econômico capixaba foi atrativo
para que a população coreana buscasse por novas oportunidades de emprego
no estado.

Por fim, no tocante à História Oral, serão utilizadas as obras Matéria e


Memória: ensaio sobre a relação do corpo com o espírito (1999), por Henri
Bergson, e A memória coletiva (2013), de Maurice Halbwachs. Ambos
trabalhos abordam como o tipo de memória que o entrevistado possui
influencia na análise da entrevista. Dessa forma, Bergson comenta acerca da
memória individual, que se apresenta quando o entrevistado seleciona
lembranças que se tornam interessantes para o presente e descarta aquelas
que perderam sentido (BERGSON, 1999). É interessante ressaltar que esse foi
o tipo de memória predominante durante a entrevista, como observado nos
trechos a seguir:

37
"[..] Numa fração de segundos, eu perdi a mão do meu pai. [..] E eu olhando e
não conseguindo enxergar quem estava do meu lado. Foi um momento de
pânico [..]” (LEE, 2022).

“Quando coreanos chegavam, saíam com a turma deles, aqui também é a


mesma coisa. Mas eu não, eu gosto de ficar muito só. Por insegurança de não
saber a lei e tudo mais, eles andavam em bando naqueles lugares que sempre
iam. Eu, pela surdez que sempre atrapalhou… ajudou, sempre quis ficar fora,
porque não entendia o que estavam falando exatamente e também não queria
ouvir, então ficava saindo sozinho” (LEE, 2022).

Apesar de apresentar uma memória predominantemente individual, ainda é


possível observar traços Halbwachianos. Maurice Halbwachs fala sobre a
memória coletiva, ou seja, quando do ideal de um grupo é carregado na
entrevista, e que está presente, principalmente, nos estereótipos acerca do
outro, que reproduzem a interpretação do coletivo (HALBWACHS, 2013).
Dessa forma, é possível entender que a família Lee, inicialmente, acreditava
que o Brasil era um país rico pois, supostamente, nunca havia passado por um
acontecimento semelhante à guerra. Assim, acreditavam também que o país
teria comida em abundância, como observado no trecho a seguir:

“[..] Na época que meu tio esteve aqui, o dilema era assim: trabalho um dia,
como sete dias. Um país que estava degradado, pobre, com muito subemprego
e tudo mais [Coreia do Sul], a coisa mais importante para essa pessoa é
comer. Para comida, eles trocam todas as coisas. Então essa áurea, de
trabalhar por um dia e comer durante sete dias, foi um dos fatores [de mudança
para o Brasil]” (LEE, 2022).

Assim, no decorrer dos meses, esse trabalho será desenvolvido mais a fundo.
Dessa forma, a partir da análise da entrevista, juntamente com a bibliografia
reunida, acredita-se que será possível compreender de qual forma o estado do
Espírito Santo se mostrou atraente para a comunidade coreana. Ademais, será
possível testar a hipótese de que a comunidade coreana no estado apresenta
como motivação comum a busca por empregos, ou melhor qualidade de vida,
decorrente de convite de conhecidos que já vivem no local ou a presença de
grandes empresas, que oferecem tais oportunidades.

Referências
Gabriela Soares Lima dos Santos é discente do curso de História, na
Universidade Federal do Espírito Santo - Ufes.

BERGSON, H. Matéria e Memória: ensaio sobre a relação do corpo com o


espírito. Tradução de Paulo Neves. 2. ed. São Paulo: Martins Fontes, 1999.

BITTENCOURT, Gabriel Augusto de Mello. História Geral e Econômica do


Espírito Santo: do engenho colonial ao complexo fabril-portuário. Vitória:
Multiplicidade, 2006.

38
CARVALHO, Bárbara Barreto de. Memórias em fluxo: Vivências e perspectivas
da imigração sob o olhar de descendentes coreanos em Brasília. Textos
Graduados, v. 4, ed. 1, Agosto 2018.

CHOI, K. J. Além do arco-íris: a imigração coreana no Brasil. 1991.244f.


Dissertação (Mestrado em História) – Faculdade de Filosofia, Letras e Ciências
Humanas, Universidade de São Paulo, São Paulo, 1991.

CHOI, K. J. Imigração coreana na cidade de São Paulo. Revista do Instituto de


Estudos Brasileiros, n. 40, 31 jan. 1996, p. 233-238.

HALBWACHS, M. A memória coletiva. Tradução de Beatriz Sidou. 2ª ed. São


Paulo: Centauro, 2013.

SOARES, F. M. 50 anos de Coreia e Brasil: Histórias, Imigração e Relações.


2019. 101 f. Dissertação (Mestrado Acadêmico em História) – Universidade
Estadual Paulista (UNESP), Faculdade de Ciências e Letras, Assis, 2020.

THE ASSOCIATION OF KOREAN HISTORY TEACHERS. A Korean History for


International Readers. South Korea: Humanist Publishing Group Inc., 2021.

Fonte Oral

LEE [59 anos]. [nov. 2022]. Entrevistador (a): Gabriela Soares Lima dos
Santos. Vila Velha, Espírito Santo, 16 nov. 2022.

39
HISTÓRIA PÚBLICA E REPARAÇÃO: A
REPRESENTATIVIDADE ASIÁTICA NA HISTÓRIA DO OSCAR,
por Helena Ragusa e Douglas Tacone Pastrello

O objetivo desse texto é discutir a virada cinematográfica da representatividade


asiática em Hollywood marcada até muito recentemente pela escassez de
espaço para “não brancos” nos anos que seguem o pós Segunda Guerra e
pelos preconceitos, estereótipos e clichês pautados por exemplo, no caso dos
papeis dado as mulheres nas figuras de “bonecas”, submissas, tímidas,
vingativas ou atreladas a prostituição, e, no caso dos homens, em geral
relacionados a papeis de lutas - a moda Bruce Lee ou Jackie Chan - ou
atrelados a figuras de gurus espirituais, taxistas ou bandidos. Pensando numa
História Pública edificante, nos ateremos aqui à narrativa cinematográfica,
pública, atual de modo a perceber como esta vem dialogando com a narrativa
historiográfica.

capaz de reparar a memória pública norte americana fortemente ancorada em


tais representações, nos ateremos aqui à narrativa cinematográfica, pública,
atual de modo a perceber como vem dialogando com a narrativa historiográfica,
uma vez que parece atenta as novas demandas oriundas dos fenômenos
políticos e sociais que dentre outras, tem corroborado para versões mais
próximas e menos deformadas em torno da cultura oriental.

A recente premiação da atriz malaia-chinesa, Michelle Yeoh Choo-Kheng, no


Oscar 2023 por sua atuação no filme Everything Everywhere All at Once -
“Tudo em todo lugar ao mesmo tempo” - dos diretores Daniel Kwan e Daniel
Scheinert, reacendeu o debate sobre a presença asiática na premiação da
Academia americana de Cinema. A cerimônia, ainda, premiou o filme em
diversas de suas categorias, demonstrando o reconhecimento artístico que
tanto foi ignorado em se tratando das obras contendo ou feitas por asiáticos de
maneira geral. Para um incauto consumidor, pode parecer algo natural ao
considerarmos que em 2019 o filme Gisaengchung - “Parasita” - do diretor sul-
coreano Bong Joon-Ho, também já havia ganhado na categoria de “Melhor
filme” e que a atriz Yuh Jung Youn levou a estatueta de melhor atriz
coadjuvante por “Minari” (2020).

Entretanto, há de se elencar que esses sucessos recentes não escondem um


passado recheado de preconceitos, clichês e estereótipos por parte da
indústria cinematográfica hollywoodiana, essa que também é espaço de
produção de conhecimento, uma das dimensões da história pública e porque
não, uma das formas mais relevantes de divulgação da história, ou seja, a
audiovisual.

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Alvo de críticas especialmente por parte de grupos historicamente silenciados
na cultura norte-americana – como o movimento “#OscarSoWhite de 2016 - a
presença asiática no Oscar remete a pequenos apontamentos e conquistas ao
longo do século XX que culminam neste amplo reconhecimento por parte do
Ocidente, agora no século XXI em que o impacto de atores e cineastas
asiáticos, e artistas e diretores de ascendência asiática, nunca foi tão grande.

Ainda que críticos da indústria de cinema e cultura afirmem que o Oscar é


apenas um das variadas e prestigiadas premiações de cinema que existem,
tais como o Leão de Ouro ou o Globo de Ouro, por exemplo, é inegável que a
cerimônia de Hollywood seja a maior da indústria, deste modo influenciando
padrões e estéticas na indústria.

A primeira grande menção ao cinema asiático veio com o filme Rashomon -


Rashomon - Às Portas do Inferno - de 1952 de Akira Kurosawa. Na cerimônia,
o filme de Kurosawa foi prestigiado com uma “estatueta honorária” – uma vez
que ainda não existia a categoria de “Melhor filme estrangeiro”. Esta estatueta
era decidida sempre às vésperas da cerimônia e apenas com os vencedores
nomeados. Por conta da ausência de tempo hábil, os vencedores não
compareciam a cerimônia e raramente coletavam algum prêmio físico.
Anteriormente, em 1936, Merle Oberon foi indicada a melhor atriz por sua
participação em “Dark Angel”(Anjo Sombrio) (1935), entretanto a atriz indiana
não só não promovia sua própria herança cultural asiática, como se passava
por “branca” nas películas em que participava, interpretando papeis justamente
por esconder sua origem (WAXMAN, 2023).

Neste período era elogiável a atuação dos yellowfaces, atores brancos que
utilizando de maquiagem, interpretavam personagens asiáticos, semelhantes
aos criticados blackfaces. Essa situação constrangedora se fez presente em
diversos momentos da História do cinema estadunidense. Em 1937, o filme
The Good Earth - “Terra dos Deuses” - premiou a atriz alemã Luise Reiner pela
personagem asiática O-Lan, enquanto asiáticos como Oberon apenas
conseguiam papeis de destaque se fossem “passáveis” como brancos e não
eram reconhecidos ou premiados.

A primeira artista premiada foi Miyoshi Umeki, em 1957, pelo filme Sayonara. O
filme em questão trabalha com as questões políticas do Japão pós-guerra e
escancara ainda mais os problemas socioculturais do cinema de Hollywood
que concebia o oriente como parte de uma zona de domínio a ser salva ou
conquistada, a exemplo dos “japoneses antiamericanos” e “pró-americanos”.
Ironicamente, a atuação de Umeki não lhe rendeu papéis fidedignos a
realidade asiática e ela teve de escolher entre papeis estereotipados, pouco
realistas, ou “desaparecer” das telas. Quando questionada por seu filho sobre
seu papel, ela respondeu: “Eu não gostava de fazer, mas quando alguém te
paga para um trabalho. Você faz o trabalho e dá seu melhor” (LI, 2018).

Ainda que se diga que estas questões se tornaram apenas uma nota de rodapé
na história do cinema de Hollywood, há casos recentes e dignos de repúdio. O
filme Doctor Strange - “Doutor Estranho” - de 2016, feito pela Marvel Studios

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produtora de blockbusters de super-herói e distribuído pela Disney, trouxe Tilda
Swinton no papel da “Anciã”, uma personagem asiática portadora de muito
conhecimento, misticismo e sabedoria. A personagem, por si só, já é um
amontado de estereótipos do exotismo asiático e ainda fora interpretada por
uma atriz ocidental.

Logo, nota-se, que apesar da recente ascensão dos asiáticos na mais


prestigiada premiação de cinema do mundo, nem sempre foi assim, ao
contrário, ainda persiste. Há um recorrente problema quanto a
representatividade e espaço destinado para atores e personagens asiáticos no
histórico de Hollywood. Aquém destes problemas, a forma em que se
representam os personagens influencia diretamente na percepção popular e da
cultura pop destes povos. Exotismo, sabedoria tribal, misticismo e ocultismo
penetram no imaginário popular, tornando estes filmes “lugares de memória” da
cultura asiática no ocidente, sejam estes intencionais ou não. Estes lugares
seguem remodelando a identidade de milhares de descendentes asiáticos que
vivem no ocidente e, assim como Oberon, renegam suas tradições e origens
em prol de estereótipos “aceitáveis”.

São comportamentos que criam um padrão esperado enquadrado no conceito


do “lugar de memória” de Pierre Nora (1993). Para o autor, o “lugar de
memória” carrega uma aura simbólica intrínseca que reafirma narrativas
culturais e identidades através de uma bagagem prévia do interlocutor. Para
melhor elucidar, o feriado do 7º de setembro brasileiro, por exemplo, reacende
a narrativa do mítico grito do Ipiranga por D. Pedro I, imortalizada no quadro
“Independência ou morte” (1888) de Pedro Américo. Para o interlocutor
brasileiro, o feriado nacional com seus grandes desfiles e símbolos reafirma
essa narrativa “pronta” que continua a existir, a despeito de toda uma
historiografia contemporânea que contesta diversos de seus detalhes, mas que
ainda não chega para esse público. Logo, de fato semelhante ocorre a partir
dos filmes, premiações e estereótipos: a criação de uma visão fictícia real
sobre a comunidade asiática e oriental. Simultaneamente se formaliza um
comportamento irreal do que é ser asiático e se molda preconceitos que
perduram há décadas.

Dentro dessa perspectiva a geografia do sino-americano Yi-Fu Tuan(1974),


pode servir como aparato teórico para compreender essa distinção
representativa nas obras. Dentro de seus escritos Tuan elabora como cada
cultura é centralizada em si mesma, pontuando que à medida que a distância
física entre duas culturas aumenta. a visão que um indivíduo da primeira tem
sobre outra cultura vai se tornando mais bizarra e excêntrica. Nesse sentido, a
representação da Ásia em filmes estadunidenses e ocidentais segue essa
premissa de sempre caminhar em direção ao bizarro, excêntrico, místico - não
necessariamente como um preconceito intencional - mas sim como parte de
uma leitura cultural praticamente já enraizada que perdura uma representação
retroalimentada.

Logo, o cinema enquanto lugar de memória produz identidades e reafirma


eventos históricos, que podem ser fictícios. Dentro deste tópico, pode-se citar a

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narrativa em torno dos bombardeios atômicos em Hiroshima e Nagasaki
frequentemente relembrados no cinema estadunidense como um “mal
necessário” para pôr fim a Segunda Guerra Mundial, muito embora a
historiografia demonstre que não era. Nestas problemáticas residem parte dos
problemas do cinema, pois mesmo que ele enquadre o campo artístico, não há
como separá-lo de seu caráter de formação histórica. Suas sedutoras lentes
criam uma realidade de ficção histórica, sejam as obras puramente fictícias ou
obras de eventos históricos, convincente que modela uma visão de mundo
condizente com a de seus autores, tais como qualquer outro documento
histórico – fato destacado por Alexandre Valim (2006).

Mesmo que, novamente, o OSCAR seja apenas uma de inúmeras premiações


existentes e que o cinema asiático não se resuma apenas ao indicado e/ou
premiado nele, é impossível negar que a cerimônia não tenha um enorme peso
cultural e molde tendências duradouras na sétima arte, essa que “fascina e
inquieta” ao mesmo tempo em que possui um “efeito corrosivo e que, mesmo
controlado, um filme testemunha” (FERRO, 1992, p. 85).

Neste sentido se enquadra a importância da História Pública em atualizar,


mediar e corrigir estereótipos/narrativas preconceituosas forjadas pelo cinema,
pela “abordagem sócio-histórica que autoriza” (FERRO, 1992, p. 87) e que
reforçam o estranhamento diante dessa presença na própria sociedade norte
americana, tendo em vista os diferentes espaços que ocupa.

Com base em pesquisa feita pela University of Southern California ao examinar


as representações de gênero, raça e status LGBT de 2007 a 2014, uma
discrepância nos 700 filmes populares lançados no período tratado foi
constatada e divulgada a de que apenas 5,3% dos personagens eram asiáticos
e nunca como protagonistas, sempre “subrepresentados”. Além disso, apenas
19 diretores asiáticos trabalharam nos 700 filmes de maior bilheteria e de
acordo com a Universidade, “apenas um diretor asiático foi mulher nos filmes
analisados e foi listado como co-produtor” .

Apesar de contar com quase dez anos, o estudo revela algo preocupante
quando atenta, por exemplo, para a existência de uma distorção demográfica a
qual ignora as mudanças e transformações sociais, políticas e econômicas do
último século onde people live in new environments, physical, social,
economic, cultural and political, and their imagination and sense of identity has
had to adapt, or at least respond, accordingly even if the response often was
and frequently remains a hostile reaction (BLACK, 2014, p. 2).

A forte presença da comunidade asiática nos EUA remonta ao século XIX,


intensificando-se principalmente após a Segunda Guerra Mundial. Atualmente
dados apontam que a estimativa seja de aproximadamente 22 milhões de
estadunidenses que traçam sua linhagem para alguma nação asiática
(BUDIMAN; RUIZ. 2021). Os sino-americanos formam o maior grupo de origem
asiática nos EUA, seguidos pelos indianos, filipinos, coreanos, japoneses e
outras com menor expressão numérica. Os mesmos dados apontam que mais
de 40% vivem no Oeste e quase um terço somente na Califórnia.

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Considera-se, ainda, que seis a cada dez dos que residem nos Estados Unidos
nasceram em outro país e que até a metade do século XXI eles se tornarão o
maior grupo de imigrantes. Logo a pouca ou nenhuma visibilidade, equívocos,
distorções e banalizações recorrentes nos filmes, demonstram uma
inconsistência quando comparados aos números e tampouco contribuem no
sentido de divulgar e apresentar a cultura desses povos aos espectadores.

Não tem muito tempo, a congressista de Nova York Grace Meng apresentou o
projeto de lei Covid-19 Hate Crimes, que foi sancionado pelo presidente Joe
Biden. Meng, que é descendente de Taiwan, representa partes do Queens, o
bairro diversificado da cidade de Nova York que abriga muitos americanos
asiáticos.

No ano seguinte um centro criado especialmente para registrar incidentes de


ódio, violência, assédio, discriminação e intimidação infantil contra os asiáticos
que vivem nos EUA, o Stop AAPI Hate, fez um registro em março de 2021
preocupante, de que:

“Crianças e jovens de até 17 anos são as mais assediadas e agredidas


(12,6%), seguidos por idosos acima dos 60 anos (6,2%), e os chineses são
aqueles que mais sofrem: 42,2% das ofensas são dirigidas a eles, seguidas por
14,8% a coreanos, 8,5% a vietnamitas e 7,9% a filipinos.

Os asiáticos são maltratados principalmente em lojas e locais de serviço


(35,4%), e nas ruas (25,3%), até mesmo mais do que online (10,8%).

A maioria das agressões são xingamentos e humilhações verbais, que


respondem por 68,1% das denúncias, seguidas pelo comportamento em que
os asiáticos são deliberadamente ignorados, com 20,5%.

Em terceiro lugar aparecem as agressões físicas, com 11,1%. Também é


grande o número de reclamações por direitos civis recusados – discriminações
em locais de trabalho, pessoas que se recusam a atendê-los, fornecer algum
serviço ou transportá-los, por exemplo – com 8,5%.”

Nossa discussão vai na direção de como se deve confrontar o passado


compartilhado e de como podemos desfazer os “defeitos da memória”. O
historiador Christopher McKnight Nichols (2020) responde essa questão da
seguinte forma: By deploying lenses of analysis — gender, race, sexuality,
class, power, and much more — public historians and public-history institutions
can seek to illuminate the past in more complete ways”.

Esse é o movimento que pudemos conferir nas últimas produções e que


promovem uma história pública “edificante” capaz de evocar o excluído,
tornando-o presente. A premiação de Ke Huy Quan como melhor ator
coadjuvante, o primeiro vietnamita da história do cinema norte-americano a
levar um Oscar, é um exemplo claro desse movimento de reparação que vai de
encontro a fala emocionada em um de seus discursos quando explica a
dificuldade em obter papeis na indústria cinematográfica sendo alguém de

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origem asiática e de como isso se torna 100 times more difficult. If you were to
take 100 scripts, there was a high probability that none of them would feature
any meaningful Asian characters. A lot of the time we were the butt of the
joke.

Como bem observa Ana Maria Mauad (2016), “as culturas históricas e políticas
se consolidam com base na relação que os públicos estabelecem com os
passados possíveis que lhe são apresentados” (MAUAD, 2016, p. 90) e o
cinema é um desses espaços, um dos gêneros onde a narrativa ocorre.

E qual seria então o papel dos historiadores públicos diante de tamanho


desafio? Jessica Cochran (2013), responde a essa questão lembrando a
importância de nosso envolvimento com esse tipo de história, essa que circula
fora dos muros da academia, feita muitas vezes para o público e no caso dos
norte-americanos como já comprovado em outros estudos, possui forte atração
pelo passado histórico. Ao analisar dois exemplos de grande bilheteria
lançados pela indústria hollywoodiana no ano de 2013, a historiadora voltada
ao campo da História Pública explica a natureza de tal interesse

“Directors create an emotional experience for their audience, and encourage


viewers to relate to someone from the past (fictional or not). In the process,
audience members forge an intangible connection to a story in which they
played no direct role, or to a person completely unlike themselves. This
phenomenon should sound familiar – this is the goal of public history. The
similarity between movies and the work of public historians is testament to the
inherent potential historical films possess for enriching interpretive frameworks
in historical institutions” (COCHRAN, 2013).

No Brasil, as questões em torno do cinema na História Pública vem sendo


discutidas mais fortemente de 2011 para cá. Rodrigo de Almeida Ferreira
(2016), faz um balanço importante no intuito de mostrar como o cinema se
relaciona com esse campo da história. A ideia segundo ele é “reconhecer as
produções ligadas à História que produzem significado histórico, ainda que
não operada exclusivamente por um historiador” e nessa operação, “considerar
como imperativo o compromisso com a problematização do conhecimento
histórico” ( FERREIRA, 2016, p. 134).

E é exatamente isso que aqui buscamos fazer ao discutirmos sobre as


potencialidades do cinema, levando-se em conta o entendimento trazido por
Mauad e a forma como o compreende, qual seja, a partir da premissa de que
“toda arte é histórica e, portanto, toda imagem possui uma historicidade
fundamentada numa prática cultural e social” (MAUAD, 2016, p. 91).

Chegando a aproximadamente 7% da população dos EUA, os asiáticos-


americanos tem o apoio de outras comunidades, chamadas “novas minorias”
que seriam aquelas formadas por latinos, cidadãos multirraciais e os afro-
americanos, grupos esses que vem transformando o perfil demográfico dos
Estados Unidos, marcado pela predominância branca, anglo-saxã e
protestante.

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As novas demandas por parte desses grupos vem ganhando força e no caso
dos asiáticos, estão cada vez mais ampliando sua participação na sociedade, a
exemplo da influência e responsabilidade na política, setor esse até então sub-
representado pelo grupo em cargos governamentais.

Mas o que o vencendor Everything Everywhere All at Once traz a público é


uma onda de otimismo quanto a presença asiática entre os maiores nomes do
cinema. Os prêmios obtidos por Michelle Yeoh e Ke Huy Quan ilustram que
artistas asiáticos ou de ascendência asiática podem produzir, promover e
participar de obras cinematográficas que não necessariamente envolvam a
problematização do “ser asiático” ou papéis estereotipados.

Esta possível naturalização do asiático no cinema é um dos maiores trunfos


que pode ser alcançado pela comunidade de cinema asiática. A possibilidade
dos diretores asiáticos de dirigir filmes que tratem de cinema, de modo geral, e
não de um “cinema de nicho asiático”, tal como Parasita, do diretor Boong
Joon-ho, faz ao retratar uma dramédia suburbana que apesar de se passar na
Coréia do Sul não utiliza seus aspectos asiáticos como pauta e sim como plano
de fundo, sua trama complexa não envolve problematizações diretas ao ser
asiático, buscando retratar uma crítica social a realidade sul-coreana de modo
natural. Ou personagens como a Evelyn Quan Wang de Yeoh que é uma
personagem asiática interpretada por uma asiática e suas questões culturais
não estão no centro da trama ou de sua persona, apesar de serem
consideradas aspectos relevantes dentro do personagem. Logo, esta
valorização deve continuar a existir mas ser o núcleo definidor da presença
asiática no cinema.

Isto é, um tratamento semelhante ao que ocorre aos personagens


brancos/caucassianos, no cinema: se enfatiza o personagem e seu
background, buscando atores que condizem com que se quer representar na
tela. Entretanto, isso não deve ser visto como uma exclusão ou crítica do
“cinema cultural” que trabalha e problematiza as questões vividas e
vivenciadas pelos asiáticos. Apesar de tudo isso, há ainda um grande trajeto
até a equiparação de atores não brancos e resta saber se essa tendência
normalizará a participação asiática no cinema estadunidense ou se é apenas
um efêmero fenômeno de passagem.

Referências
Dra. Helena Ragusa é Doutora em História pela Universidade Estadual de
Maringá e atualmente pós- doutoranda do curso de pós graduação em História
Publica UNESPAR - Campo mourão. Bolsista CAPES.

Ms. Douglas Tacone Pastrello é mestre em História política e atualmente


doutorando em História Política na Universidade Estadual de Maringá.

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Londres, 2014.

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Produção: Kevin Feige. Distribuição: Marvel Studios & Walt Disney Studios
motion pictures. 2016. Colorido. 115min.

Everything everywhere all at Once(Tudo em todo lugar ao mesmo tempo).


Diretor: Daniel Kwan, Daniel Scheinert. Estados Unidos; Distribuição: A24.
Produtora: IAC Films. 2022. Colorido. 139min.

Gisaengchung(Parasita). Diretor: Bong Joong-Ho. Coréia do Sul; Distribuição:


CJ Entertainment. Produtora: Barunson E&A Corp. 2019. colorido. 132min.

Minari. Direção: Lee Isaac Chung. Estados Unidos. Produção: Plan B


Entertainment. Distribuição: A24. 2020. Colorido. 115min.

Rashomon. Diretor: Akira Kurosawa. Japão. Produção e distribuição: Daiei


Film. 1951. Preto e branco.. 88min.

Sayonara, Diretor: Joshua Logan. Estados Unidos. Produção: William Goetz.


Distribuição: Warner Bros. Pictures, Inc.. 1957. Colorido. 147min.

48
The Dark Angel(Anjo Sombrio). Direção: Sidney Franklin. Estados Unidos.
Produção: Samuel Goldwyn Productions. Distribuição: United Artists. 1935.
Preto e branco. 110min.

The good Earth.(Terra dos deuses). Direção: Sidney Franklin, Victor Fleming,
Gustav Machatý. Estados Unidos. Produção: Metro-Goldwyn-Mayer.
Distribuição: Loew’s, Inc.. 1937. Preto e Branco. 138min.

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UM REGIME HISTORIOGRÁFICO DE CIRCULAÇÃO AMPLA? A
HISTORIOGRAFIA SOBRE A IMIGRAÇÃO JAPONESA DE
MARCIA YUMI TAKEUCHI, por Luana Martina Magalhães Ueno

Introdução
A imigração japonesa é um tema consideravelmente pesquisado na academia,
sendo assim, torna-se interdisciplinar e multifacetado. Apesar disso, ainda está
em constante desenvolvimento e disputa por espaço. Os estudos sobre o
processo imigratório pertenciam inicialmente às Ciências Sociais, somente a
partir dos anos 2000 que ocorreu a introdução desse tema em outras áreas.
Caso da História, uma vez que por influência da publicação do livro A
negociação da identidade nacional [2001], do brasilianista Jeffrey Lesser, os
historiadores começaram a se aventurar mais nesse tipo de pesquisa,
contribuindo com novos olhares, métodos, fontes e objetos. Dentre os
historiadores que abordaram a imigração japonesa, destacamos a
pesquisadora Marcia Yumi Takeuchi [1972-2010].

Takeuchi formou-se em História pela Universidade de São Paulo, durante o


período de 1995-1998, e foi onde realizou seu mestrado [2004] e doutorado
[2009] em História Social, sob orientação de Maria Luiza Tucci Carneiro. Em
2010, iniciou o seu pós-doutorado denominado Os imigrantes japoneses: entre
a terra da liberdade e o paraíso tropical (1907-1924) na mesma instituição e
supervisionada por Sedi Hirano, entretanto, não foi finalizado devido ao seu
prematuro falecimento em 1 de junho de 2010 [Carneiro, 2016]. Durante a sua
formação, participou do Projeto Integrado: arquivo do Estado e da Universidade
de São Paulo [PROIN/USP], do Laboratório de Estudos sobre Etnicidade,
Racismo e Discriminação [LEER] e do Laboratório de Estudo sobre Intolerância
[LEI]. Foram nesses lugares sociais que Takeuchi construiu a sua autoria, pois
auxiliou com a publicações das coleções Inventário DEOPS, História da
Repressão e Resistência, Histórias da Intolerância, História da Imigração e
Série Luzuli Imigrantes no Brasil, sendo que publicou em todas elas.

Ademais, foram nesses espaços que ela estabeleceu relações com outros
pares, inclusive com Rogério Dezem, outro historiador importante da
historiografia sobre imigração japonesa. Sendo assim, a historiadora foi
marcada por seus contatos intelectuais, como podemos observar nas escolhas
de seus objetos de pesquisa: o processo imigratório e o discurso antinipônico.

Neste artigo, analisaremos a obra Japoneses: a saga do povo do sol nascente,


publicada em 2007 pelas Companhia Editora Nacional e Lazuli Editora, e é
pertencente a Série Luzuli Imigrantes no Brasil. É uma publicação que visava
homenagear os imigrantes japoneses e destinada ao público jovem que

50
possuía interesse na história da comunidade japonesa. Assim sendo,
objetivamos compreender a operação historiográfica de Takeuchi relacionada
com o regime historiográfico de circulação ampla, que ambicionava uma
espécie de democratização do saber.

A operação historiográfica de Takeuchi


Como exposto, por Takeuchi participar de determinados grupos e laboratórios,
possibilitou que ela publicasse alguns livros focando em sua pesquisa
acadêmica. Contudo, a autora não permaneceu apenas produzindo para os
seus pares, isto é, os acadêmicos e a banca, mas buscou trazer as suas
análises para o público em geral que possuía interesse na história da
imigração.

Para compreender o que estamos denominando de regime historiográfico de


circulação ampla, é preciso entender a operação historiográfica da autora.
Conforme Michel de Certeau [1982], a operação historiográfica se refere à
combinação de um lugar social, de práticas “científicas”, que seriam os
procedimentos de análise, e de uma escrita, ou seja, a construção de um texto.

Sendo assim, entendemos que Takeuchi estava inserida em uma instituição de


extrema importância para o seu fazer história: Universidade de São Paulo
[USP]. Além de ser marcada pelos grupos e laboratórios os quais participou.
Portanto, a historiadora seguiu as regras, os métodos, os documentos e as
questões propostas por esses lugares [Certeau, 1982]. É perceptível essa
influência tanto na prática quanto na escrita de Takeuchi, uma vez que ela se
utiliza dos métodos apreendidos com a sua orientadora em conjunto com os
colegas. Segundo Rogério Akiti Dezem [2023], foi Tucci Carneiro, por meio do
projeto PROIN, que oportunizou a eles a pesquisa sobre os imigrantes
japoneses. Ademais, a partir de uma reorganização desse grupo, surgiram os
módulos de pesquisa:

“[...] Quando o grupo se estruturou e se consolidaram os módulos de pesquisa,


como os dos japoneses [Márcia e eu], dos alemães [três pesquisadoras] e os
outros, começamos a discutir nas reuniões bibliografias afins, só que em
perspectivas diferentes, pensando no contexto de cada grupo estudado. Desse
modo, aprendíamos mais entre nós, orientandos, e a Tucci organizava e
direcionava todo esse processo. Posteriormente, o PROIN cresceu,
amadureceu como projeto e produtor de pesquisa acadêmica sobre a Era
Vargas. Isso levou, naturalmente, à efetivação de uma certa hierarquização
dentro no grupo [...]” [Dezem; Richard, 2023, p. 11].

Outrossim, Tucci Carneiro objetivava que seus orientandos fizessem a


catalogação e a análise dos documentos do Departamento de Ordem Política e
Social [DEOPS/SP] e que realizassem conexões com a história do Brasil:

“[...] Assim, a Tucci sempre deixou claro para nós, orientandos, que
precisaríamos situar os imigrantes no universo da história brasileira
contemporânea, o que se assemelhava ao que ela fez em relação aos judeus.

51
Portanto, tentamos seguir essa metodologia, o que era quase um mantra para
jovens pesquisadores como nós. Também havia muita troca de informações e
documentos entre os pesquisadores no PROIN [...]” [Dezem; Richard, 2023, p.
13].

Desse modo é possível compreender como os lugares socias, em específico o


grupo PROIN, definiram e modelaram a prática e escrita da história.

Em relação a prática “científica”, percebemos que Takeuchi optou inicialmente


pela análise de fontes oficiais, caso do dossiê do DEOPS/SP, buscando
compreender o discurso antinipônico durante as décadas de 1930 a 1940,
focando em como esse discurso se tornou repressivo e serviu de legitimação
para o governo Vargas durante o Estado Novo [Takeuchi, 2002].
Posteriormente, no mestrado e doutorado, o seu arcabouço de fontes e a
temporalização foram ampliados, em que analisou as revistas ilustradas
durante o período de 1897 a 1945, entendendo como o discurso antinipônico
foi construído antes mesmo da chegada dos primeiros imigrantes japoneses,
por intermédio das discussões políticas que foram traduzidas por meio do
discurso textual e iconográfico. Assim, a autora defendeu que a iconografia
funcionou como um instrumento de difusão do preconceito e dos estereótipos
em relação ao amarelo e que era presente no imaginário político brasileiro
[Takeuchi, 2016]. Portanto, a historiadora se utilizou de fontes oficiais, que
inicialmente possuíam outros objetivos, e os transformou em história. Como
dito por de Certeau [1982, p. 79]:

“Trabalha sobre um material para transformá-lo em história. Empreende uma


manipulação que, como as outras, obedece as regras. Manipulação
semelhante é aquela feita com o mineral já refinado. Transformando
inicialmente matérias-primas [uma informação primária] em produtos standard
[informações secundárias], ele os transporta de uma região da cultura as
[‘curiosidades’, os arquivos, as coleções, etc.] para outra [a história]”.

Assim como, Takeuchi transformou, separou e reuniu as suas fontes. Em sua


primeira pesquisa, a autora mapeou, catalogou, inventariou e analisou 154
prontuários, entre eles: 49 requerimentos de transferências de residência, 41
pedidos de salvo conduto e 16 arquivos sobre cidadãos presos por se
expressarem em público em língua japonesa [Takeuchi, 2002]. Enquanto no
mestrado, Takeuchi analisou esses prontuários do DEOPS/SP, mas adicionou
outros: a literatura, as charges políticas e os artigos publicados em periódicos,
delimitando o período de 1920-1945. Já no doutorado, como exposto, a autora
ampliou também para as iconografias produzidas a partir dos anos de 1897.
Desse modo, é notável em como Takeuchi construiu a sua própria coleção.
Como dito por de Certeau [1982], a história transforma os objetos em fontes e
com o objetivo diferente de sua criação, o que é denominado de distribuição
cultural. Sendo assim, os historiadores produzem os documentos, uma vez que
ele é recopiado, transcrito ou fotografado; mudando o seu lugar e estatuto.

52
Além disso, para que realmente o objeto se transforme em uma fonte é preciso
que se realize uma redistribuição do espaço, ou seja, o “estabelecimento das
fontes solicita, também, hoje, um gesto fundador, representado, como ontem,
pela combinação de um lugar, de um aparelho e de técnicas [...]” [Certeau,
1982, p. 82]. Assim, não é suficiente apenas “dar voz” as fontes, é preciso que
ela seja transformada por uma ação instauradora e por técnicas. Dessa forma,
as fontes utilizadas por Takeuchi perpassam por técnicas, que entendemos
aqui como o aparato teórico e metodológico. Em suas pesquisas, a historiadora
se valeu de trabalhos sobre a imigração japonesa, que são os estudos
produzidos a partir da década de 1940, autores como Hiroshi Saito, Célia
Sakurai, Giralda Seyferth, Francisca Vieira e Jeffrey Lesser, sobre o governo
de Getúlio Vargas, baseou-se nos trabalhos de Alcir Lenhado e de sua
orientadora Tucci Carneiro, e para compreender os discursos e a lógica de
desconfiança, embasou-se em Michel Foucault e Hannah Arendt. Depois com
acréscimo de outros tipos de fontes, Takeuchi inseriu autores que discutem a
charge e iconografia, como Boris Kossoy e Pierre Francastel. Além de
referenciar os colegas do PROIN, como Rogério Dezem e Priscila Perazzo.

Outrossim, a escrita é composta por um discurso histórico que por meio da


narração pretender “dar um conteúdo verdadeiro”, ou seja, um lugar de
autoridade, que produz credibilidade por intermédio da citação [Certeau, 1982].
Portanto, notamos que Takeuchi cita as autoridades que pesquisaram a
imigração e o discurso antinipônico, além de analisar e referenciar as fontes;
demonstrando o objetivo de dar credibilidade ao seu texto. Para além disso, a
autora transforma a sua escrita em um discurso historiográfico, à medida que
compreende o seu outro, apoiando-se em estudos referenciais [Certeau, 1982]:

Quando falamos de escrita, é necessário pensar para quem é direcionado o


discurso histórico. Segundo de Certeau [1982], os historiadores produzem para
um nicho específico: os seus pares; que desempenham um papel de
autoridade, legitimando e definindo o estatuto das obras. Isso é perceptível nas
produções de Takeuchi, uma vez que a maioria de seus trabalhos são
habilitados e acreditados por uma banca, ou por um conselho editorial científico
– caso das pesquisas publicas em livro. Apesar disso, é preciso se questionar
se essa formulação do público específico ainda consegue ser convincente e
dar conta do contexto atual, em que há uma difusão do saber histórico e das
relações entre público-leitor. Conforme Fernando Nicolazzi [2019], o público
não dever ser visto como passível, assim como, é imprescindível compreender
que a recepção da história é uma prática crítica e a sua eficácia depende do
grau de conhecimento dos protocolos definidores da operação historiográfica
que os leitores possuem.

Assim como, quando pensamos em uma produção historiográfica, deve-se


considerar o regime de historicidade em que os indivíduos estão inseridos, uma
vez que essa categoria possibilita compreender em como a sociedade trata seu
passado e trata do seu passado. Bem como, o tempo marca a escrita da
história, definindo como certas histórias foram mais possíveis do que outras
[Hartog, 2013]. Defendemos que Takeuchi estava inserida em um regime de

53
presentismo, no qual o presente tornou-se estagnante e o futuro não é mais
visto como uma promessa, mas passa a ser uma ameaça catastrófica [Hartog,
2013]. Ademais, nos regimes de historicidade se estabelecem os regimes
historiográficos, que é considerado as maneiras de escrita e elaboração do
saber histórico. Nicolazzi [2019] argumenta que há mais de um tipo de regime
historiográfico, definindo que há pelo menos três, e que podem dialogar entre
si: acadêmico, escolar e o de circulação ampla. Em cada um deles, a história é
escrita seguindo regras e protocolos distintos. Portanto, percebemos que não
tem como considerar que os historiadores produzem apenas para academia,
mas é possível também que, por meio de outros regimes historiográficos,
direcionem o seu discurso histórico para outros públicos. O que é possível
notar nas produções de Takeuchi, pois há obras que não foram publicadas com
a intenção de alcançar os pares, mas a sociedade em geral.

Caso da obra Japoneses: a saga do povo do sol nascente. Como apontado,


era uma publicação paradidática idealizada pelo PROIN em colaboração com o
LEER, como uma espécie de homenagem aos imigrantes japoneses, já que
fazia parte dos eventos programados pela USP para o centenário da imigração
japonesa. Sendo destinada ao público jovem e as futuras gerações [Takeuchi,
2007].

Um Regime historiográfico de circulação ampla?


O livro foi publicado em 2007, um ano antes da comemoração do Imin 100,
como parte da série Lazuli imigrantes no Brasil, organizada por Tucci Carneiro.
Para a publicação, Takeuchi se uniu com as instituições vinculadas ao governo
japonês e com a comunidade japonesa. A pretensão do livro era reconstituir a
trajetória dos imigrantes desde 1908 focando nas dificuldades enfrentadas
pelos japoneses na metade do século XX [Takeuchi, 2007].

Neste trabalho estamos nos questionando, como uma inicial tentativa de


responder, se essa obra pode ser inserida no regime historiográfico de
circulação ampla, o qual possui regras, protocolos, demandas, modos de
difusão e recepção distintos do regime historiográfico acadêmico que era
comum nas produções anteriores da historiadora [Nicolazzi, 2019].
Compreendemos que as publicações de circulação ampla não é simplesmente
uma adaptação de pesquisas acadêmicas, mas uma mudança completa
levando-se em conta todas as características citadas acima.

A obra é dividida em três principais capítulos que abordam a história, cultura e


memória da imigração japonesa. Além de outros capítulos como a
apresentação, introdução, cronologia e glossários e siglas. De forma geral, o
livro foi produzido para que o público em geral, aqueles não possuem o
conhecimento das regras da operação historiográfica, compreendesse e
conhecesse o processo imigratório. Apesar disso, Takeuchi se utiliza de alguns
elementos que são pertencentes à uma pesquisa acadêmica, como as
referências no corpo do texto. O que demonstra que a historiadora, em sua
escrita, se utilizava de recursos pertencentes a outro tipo de regime
historiográfico. Portanto, defendemos a hipótese de que Takeuchi estava

54
tentando se inserir em outro regime, contudo, ela ainda estava no processo de
adaptar os seus textos, ao invés de escrever uma outra obra seguindo os
procedimentos específicos do regime historiográfico de circulação ampla.

Logo na introdução, a autora analisa o processo imigratório e o dividi em três


principais momentos: uma primeira fase, delimitada de 1908 a 1930, marcada
pelos discursos antinipônicos e pelo aumento progressivo do número de
imigrantes japoneses; a segunda fase é durante os anos de 1930 a 1940, um
período em que ocorreu o crescimento nacionalista brasileiro e o imperialismo
japonês. Bem como, é quando eclodiu a Segunda Guerra Mundial e aconteceu
o alinhamento do Brasil ao lado dos aliados, tornando os imigrantes japoneses,
italianos e alemães como inimigos e “súditos do eixo”; enquanto a terceira fase
é delimitada de 1952 a 2007, em que se destaca a retomada da imigração
japonesa no pós-guerra, a diminuição dos conflitos internos da comunidade
japonesa, o movimento dekasegui e o início da integração [Takeuchi, 2007].
Essa divisão foi uma tática de Takeuchi para tornar mais explicativo a história
da imigração japonesa para aqueles que não haviam tido algum contato ou lido
sobre.

Apesar da tentativa da autora em buscar uma outra modalidade discursiva, ela


ainda se mantinha muito próxima de uma produção historiográfica acadêmica,
como podemos observar no primeiro capítulo denominado Histórico. Embora
Takeuchi explore de forma geral a história da imigração japonesa, perpassando
por diversos eventos, ela ainda se dedica com mais afinco aos debates
relacionados à imigração japonesa, isto é, os discursos antinipônicos e “filo-
nipônicos”; focando nos argumentos dos deputados e intelectuais das décadas
de 1930-1940, como Miguel Couto e Bruno Lobo. Além de analisar a repressão
que a comunidade japonesa sofreu durante o período varguista, destacando as
fontes presentes no arquivo do DEOPS/SP [Takeuchi, 2007]. Sendo assim,
notamos que Takeuchi adaptou as suas pesquisas anteriores, realizadas
durante a graduação e o mestrado.

Por outro lado, o segundo e o terceiro capítulo possuem uma dimensão


diferenciada, uma vez que Takeuchi dedica-se mais em comprovar, de certa
forma, a integração e a contribuição desses imigrantes à sociedade brasileira.
É um discurso muito parecido àqueles que surgiram no período dos Imin, que
são articulados para reproduzir um conjunto de recordações sociais, buscando
uma construção de memória dos imigrantes japoneses e de seus
descendentes, bem como, fornecem elementos culturais para identificação de
indivíduos ou grupos [André, 2009]. Portanto, identificamos duas espécies de
modalidades discursivas, uma mais próxima da historiografia acadêmica e uma
outra que seria relacionada ao público, em específico aos que se interessam
pela imigração.

No segundo capítulo denominado Cultura e Identidade, Takeuchi destaca a


influência dos nipo-brasileiros em diversos setores: nos espaços [Bairro da
Liberdade e os festivais], nas práticas culturais [origami, taikô, ikebana,
cerimônia do chá], nos esportes [judô, karatê, beisebol] e na religião [templos

55
budistas] [Takeuchi, 2007]. Dessa maneira, a historiadora procurou explicitar
como os nikkeis contribuíram e se inseriram na cultura e na sociedade
brasileira. O que aproxima a sua escrita dos discursos memorialistas, caso da
literatura nikkei da década de 1980.

No terceiro capítulo História, Memória e Cultura, a historiadora salienta a


herança culinária, trazendo receitas do Misoshiro, Tempurá e Sukiyaki. Além de
elaborar um roteiro de lugares que buscaram preservar a memória sobre o
processo imigratório japonês, como a Casa de Cultura Japonesa, o Casarão
Japonês de Santos, o Museu da Imigração da Associação Cultural Tomé-Açu,
o Museu da Imigração Japonesa no Brasil, o Museu Histórico da Imigração do
Paraná, entre outros. Por fim, Takeuchi realiza um levantamento de periódicos
nikkeis, filmografia, sites e exposições [Takeuchi, 2007]. Desse modo, nos
últimos dois capítulos, a historiadora narra e escreve focando em outro público,
que possuem demandas especificas.

Considerações finais
Com este trabalho podemos compreender que Takeuchi era uma historiadora
inserida em dois regimes historiográficos: um acadêmico e outro de circulação
ampla. Entretanto, ela ainda estava muito mais próxima dos protocolos
definidores da operação historiográfica, o que dificultava que sua escrita fosse
para além da adaptação. Por fim, levantamos a hipótese de que a obra
analisada foi a primeira que Takeuchi escreveu sem ser direcionada para os
seus pares e que buscava a legitimação de um público relacionado à
comunidade nikkei. Sendo, portanto, uma historiadora que estava pensando
em expandir o seu espaço de atuação, não se restringindo mais só à
academia.

Referências
Luana Martina Magalhães Ueno é doutoranda em História e Cultura pela
Universidade Estadual Paulista “Júlio de Mesquita Filho” [UNESP]. Membro do
Laboratório sobre Culturas Orientais [LAPECO/UEL] e do MEMENTO - Grupo
de Pesquisa de Memórias, Trajetórias e Biografias.

ANDRÉ, Richard Gonçalves. A imigração japonesa no Brasil: história e


memória, fronteiras e interpretações. História e-história, v. 1, p. 1-21, 2009. O
periódico encontra-se fora do ar.

CERTEAU, Michel de. A escrita da história. Rio de Janeiro: Forense


Universitária, 1982.

DEZEM, Rogério Akiti. Entrevista com Rogério Akiti Dezem. [Entrevista


concedida a] Richard Gonçalves André. Prajna: Revista de Culturas Orientais,
v. 3, n. 5, p. 5-43, 2023.

HARTOG, François. Regimes de historicidades: presentismo e experiências no


tempo. Belo Horizonte: Autêntica Editora, 2013.

56
LESSER, Jeffrey. A negociação da identidade nacional: imigrantes, minorias e
luta pela Etnicidade no Brasil. Tradução de Patrícia de Queiroz Carvalho
Zimbres. São Paulo: Editora UNESP, 2001.

NICOLAZZI, Fernando. Os historiadores e seus públicos: regimes


historiográficos, recepção da história e história pública. Revista História Hoje, v.
8, nº 15, p. 203-222, 2019.

TAKEUCHI, Marcia Yumi. O Perigo Amarelo em Tempo de Guerra (1939-


1945). São Paulo: Arquivo do Estado: Imprensa oficial do Estado, 2002.

TAKEUCHI, Marcia. Japoneses: A saga do povo do sol nascente. São Paulo:


Companhia Editora Nacional: Lazuli Editora, 2007.

TAKEUCHI, Marcia. O perigo amarelo: imagens do mito, realidade do


preconceito. São Paulo: Humanitas, 2008.

TAKEUCHI, Marcia. Imigração nas Revistas Ilustradas: Preconceito e


Imaginário Social (1897-1945). São Paulo: Fapesp, 2016

57
A INSTITUIÇÃO BRASIL SÔKA GAKKAI INTERNACIONAL E AS
ESTRATÉGIAS DE SOBREVIVÊNCIA DO BUDISMO NO BRASIL
(2016-2021), por Rafael Meira de Oliveira

Num estudo acerca da situação da pesquisa sobre o Budismo no Brasil,


Usarski aponta que o número de adeptos da religião em solo brasileiro está
declinando. O autor ainda aponta que o terreno para o qual o Budismo poderia
se expandir é pequeno, uma vez que considerável parte dos participantes da
pesquisa citada por ele desconhecem as práticas e: “[...] que as pessoas se
convertem a aquilo que conhecem [...]” (USARSKI, 2006, p.132). Em outro
texto sobre o mesmo tema, Usarski apresenta as razões desse declínio de
adeptos à religião, sendo motivos de origens demográfica e mercadológica, por
exemplo. A questão demográfica está relacionada ao manter as práticas
budistas nas famílias descendentes de japoneses. Nas primeiras décadas de
imigração, manter as práticas religiosas era também manter a coesão familiar e
o capital cultural trazido consigo do Japão. Porém, o processo de aculturação
das gerações teria fragilizado estes hábitos. (USARSKI, 2016, p.731) A
questão mercadológica está relacionada aos desafios no sentido de abrir os
templos ao público em geral e não descendentes de japoneses. Atitudes como
não repensar as comunicações, realizadas em japonês, contribuíram para o
afastamento de um público mais abrangente. (USARSKI, 2016, p.734)

Vale salientar aqui que estes aspectos valem principalmente para a crise
dentro de um budismo mais tradicional, fechado à mudanças, chamado de
étnico pelo autor acima. Em contraposição, temos um budismo chamado de
conversão, como os neobudismos que aumentam sua influência no ocidente.
Essas escolas: “começaram a buscar formas de expandir-se entre não
descendentes de japoneses como mecanismo de sobrevivência.” (ANDRÉ,
2018, p.1265)

A instituição Brasil Sôka Gakkai Internacional (BSGI) é um exemplo dessas


novas instituições budistas. Encarado como um budismo leigo, pragmático e
institucionalmente bem articulado, a Gakkai possui 90% de seus membros não
descendentes de japoneses. Alguns aspectos desse sucesso de difusão à um
público mais geral como:

“[...] habilidade no uso de meios de comunicação de massa e de técnicas de


marketing e propaganda; ênfase na autoconfiança e pensamento positivo;
prática da fé como possibilitadora de toda sorte de benefícios materiais e
espirituais; estímulo às reuniões de pequenos grupos, que combinam
aconselhamento, troca de experiências, testemunhos de fé, estudo da doutrina,
convívio social, estreitamento dos laços de amizade e reforço da sensação de

58
pertencimento; ética ou orientações para o cotidiano, e diversos outros
elementos.” (PEREIRA, 2002, p. 272)

Pereira ainda aponta uma particularidade da instituição Sôka Gakkai: não


praticaram o abrasileiramento e sincretismos, ou seja, não buscaram dialogar
com as religiões locais do Brasil. Sendo assim, temos uma instituição que
consolidou um grupo predominantemente não japonês mediante suas
habilidades de comunicação, não necessariamente usando artifício da
incorporação de aspectos das religiões brasileiras para isso. Mas, os adeptos
seguem suas práticas de acordo com os preceitos esperados pela Sôka ou se
apropriaram dos elementos budistas para suas religiosidades? Existe um
posicionamento da instituição para com seus adeptos e suas práticas?

Para responder a estes questionamentos, o presente trabalho usará a fonte


primária digital, com conteúdo áudio visual, elaborada por um indivíduo que se
declara adepto e filiado à Brasil Sôka Gakkai Internacional. O recorte temporal
do trabalho está associado à data de publicação do vídeo no site e as
interações na comunidade do canal, período de 2016 a 2021. Este documento
é um vídeo publicado na plataforma digital Youtube (site que permite que
usuários criem e acompanhem vídeos de diversas origens: publicitários;
pessoais; institucionais; investigativos; como forma de lazer, etc). No conteúdo
audiovisual em si e também no espaço virtual por ele criado, como a parte de
interação que fica disponível no site, podemos investigar se há comentários por
parte da instituição budista sobre a prática religiosa de seus adeptos.

O diálogo teórico proposto no presente artigo seria a partir de Michel de


Certeau. O autor indica conceitos pertinentes para esta relação entre instituição
e adeptos, apontando a ideia de estratégia e tática. Estratégia sendo: “[...]o
cálculo (ou a manipulação) das relações de forças que se torna possível a
partir do momento em que um sujeito de querer e poder (uma empresa, um
exército, uma cidade, uma instituição científica) pode ser isolado.” (CERTEAU,
2014, p.99) As estratégias são produtos, que indicam a ordem, impostos por
uma instituição. Tática é definida como:

“Ação calculada que é determinada pela ausência de um próprio. Então


nenhuma delimitação de fora lhe fornece a condição de autonomia. A tática não
tem por lugar senão o do outro. E por isso deve jogar com o terreno que lhe é
imposto tal como o organiza a lei de uma força estranha.” (CERTEAU, 2014,
p.100)

As táticas são respostas que surgem a partir dessas imposições, ou seja, os


usos que os consumidores fazem a partir do contato com o produto. Michel de
Certeau afirma que entre o consumidor e esses produtos: “[...]existe o
distanciamento mais ou menos grande do uso que faz deles” (CERTEAU,
2014, p.95), indicando aqui as diversas ressignificações que podem ser
empreendidas em qualquer campo que haja relações de forças. Cabe a este
trabalho analisar em que medida é visível na fonte primária digital que será
analisada captar as estratégias empregadas pela BSGI.

59
O conteúdo audiovisual aqui analisado é um produto, onde a gravação foi
posteriormente editada. Elementos como música de fundo, o enquadramento,
cortes de gravação, e até mesmo em muitos casos um roteiro, são planejados,
visando um maior engajamento na plataforma, ou seja, toda uma estratégia
para alcançar visualizações. Neste caso, toda esta produção não está
necessariamente interligada a promoção do budismo e da Brasil Sôka Gakkai
Internacional e sim do próprio canal, sendo um dos seus conteúdos, a prática
budista. O que será enfatizado também neste trabalho é o espaço virtual de
interação criado pelo vídeo, neste campo, o público do vídeo pode interagir
deixando comentários a respeito do tema ou não. Desta forma, será observado
se a instituição se posicionou, seja através do perfil oficial ou um perfil privado
de algum funcionário da associação, para com seus adeptos.

O vídeo, e espaço virtual por ele criado, analisado chama-se “Oratório e


concessão de gohonzon” e foi produzido por Fabíola Souza, publicado em
2016, no canal “Fabi por aí...”. No vídeo, com mais de 24.000 mil visualizações,
a praticante, membro da organização Brasil Sôka Gakkai Internacional,
responde algumas dúvidas de seus espectadores sobre como iniciar no
Budismo. Também, na produção audiovisual, ocorre uma reunião onde os
membros, predominantemente não descendentes de japoneses, recebem uma
nova adepta a instituição. Por fim, Fabíola Souza aponta o seu butsudan e
apresenta os elementos que formam este oratório. O público almejado pelo
vídeo seriam as pessoas interessadas em iniciar a prática budista, desta forma,
a autora indica a Brasil Sôka Gakkai como o caminho a ser seguido.

É importante para o entendimento da fonte saber quem é Fabíola Souza, dona


do canal “Fabí por aí...”. Fabíola possui um canal pessoal multitemático, com
vídeos separados em tópicos, criados pela própria autora. Portanto, percebe-se
que a autora explora um número incerto de temas, que embora distintos,
acabam se cruzando pois são parte do cotidiano da autora. Seu canal é uma
espécie de diário que relata sua vida. Relatos registrados mediante conteúdo
audiovisual, comumente chamado “vídeo”. Vale lembrar que, mesmo sendo o
conjunto de registros que contam um pouco da história e rotina da Fabíola, o
que se tem acesso no Youtube é resultado de diversas implicações, dentre elas
as diretrizes do site, que limitam o tipo de conteúdo que pode ser postado em
sua comunidade. Como também a própria seleção de Fabíola Souza, que dita
o que seu público vai conhecer e compartilhar sobre sua vida. Desta forma, a
autora molda sua imagem para a plataforma digital, sendo uma personagem no
mundo virtual. Um objeto que é central no vídeo analisado é o oratório budista
butsudan, que pode ser definido como:

“[...]um armário de madeira com aberturas que encerram e resguardam um


gohonzon (ícone religioso), uma escultura ou pintura de um Buda (ou
Bodhisattva), ou um ‘script’ (mandala em rolo). As portas estão abertas para
exibir o ícone durante as solenidades religiosas e são fechadas antes do
anoitecer.” (SILVA; SOARES, 2017, p.180)

60
A autora do conteúdo audiovisual apresenta seu butsudan e os objetos que o
acompanha, assim como apresenta uma cerimônia onde um novo adepto
recebe seu gohonzon, no caso, o pergaminho com as orações, disponibilizado
pela BSGI. Silva e Soares (2017) afirmam que estes oratórios: “são altares de
culto doméstico, familiar e íntimo, vastamente difundidos aos imigrantes
japoneses” (SILVA; SOARES, 2017, p.180) Desta forma, tinham um papel
identitário dentro do budismo étnico praticado no Brasil. Elemento presente
nesta prática budista é o culto aos antepassados, que fortalecia: “[...]uma forte
ligação com a terra natal, seus ancestrais, os costumes de seus pais, o
sagrado. Esse lugar de memória, para eles, pertence a uma esfera íntima,
particular, pouco mencionada pelos imigrantes em convívio com os brasileiros”
(SILVA; SOARES, 2017, p.182)

Porém, o butsudan que é apresentado no vídeo se distancia desses aspectos


levantados pelos pesquisadores mencionados. A BSGI se enquadra nos novos
budismos, onde a maioria de seus membros são não descendentes de
japoneses, portanto, questões relacionadas a imigração e manutenção de uma
identidade japonesa fora do Japão e no Brasil não aparecem como destaque
nas práticas aqui analisadas. Os membros da BSGI não estão
necessariamente associados a uma prática familiar de gerações, assim, o
sentido de suas práticas budistas em torno do butsudan se distanciam de um
costume familiar, como visto nos sujeitos descendentes de japoneses,
analisados por Silva e Soares.

Outra questão levantada pelos autores e que é divergente do apresentado no


vídeo é o bustudan enquanto: “[...]esfera íntima, particular, pouco mencionada
pelos imigrantes em convívio com os brasileiros”. (SILVA; SOARES, 2017,
p.182) O oratório faz parte da vida privada de seus praticantes e nos imigrantes
há uma cautela em expô-lo publicamente. O íntimo também se encontra nos
praticantes ocidentais convertidos ao budismo, no caso a autora do vídeo.
Porém, a intimidade se dá por outras razões. A praticante associada a BSGI
não aparenta receio ao apresentar seu bustudan de forma pública, postado no
Youtube, contanto que não viole as normas da própria instituição, no caso não
circular abertamente as informações contidas no gohonzon, material próprio da
BSGI. A intimidade da praticante pode estar vinculada não somente aos
princípios institucionais mas também a própria dinâmica da plataforma
Youtube, onde muitos sujeitos expõem suas vidas privadas à comunidade.

No espaço de comentários do vídeo, há mais de 200 postagens, sobretudo de


adeptos e iniciantes na prática budista. São questionamentos recorrentes onde
os novos praticantes podem encontrar a instituição mais próxima de sua
residência; como dispor os itens no oratório butsudan; quando e como podem
receber o gohonzon, também elogios ao conteúdo elaborado e apresentado por
Fabíola Souza em seu vídeo. Porém, neste espaço de interação que é a aba
de comentários do vídeo, não há até o momento um comentário institucional a
respeito das práticas e sim apenas comentários de alguns que se apresentam
como praticantes já filiados ou simpatizantes ao budismo. (SOUZA, 2016)

61
A análise da produção audiovisual, como também do espaço virtual de
comunicação proporcionado pela publicação do vídeo, dá pistas sobre o
sucesso da instituição mediante uma carência de adeptos não étnicos ao
Budismo de modo geral. Vale ressaltar os limites desta pesquisa, que analisou
somente uma fonte primária, e o cuidado para afirmações tão globalizantes a
respeito do budismo no Brasil, por isso afirma-se que o presente trabalho dá
pistas sobre o atual cenário da BSGI. A partir da fonte primária digital, sendo o
conteúdo audiovisual e o espaço interativo, é estabelecido aqui o diálogo com
Michel de Certeau. Na arte da guerra cotidiana:

“As estratégias são portanto ações que, graças ao postulado de um lugar de


poder (a propriedade de um próprio), elaboram lugares teóricos (sistemas e
discursos totalizantes), capazes de articular um conjunto de lugares físicos
onde as forças se distribuem.” (CERTEAU, 2014. p.102)

Portanto, a BSGI enquanto lugar de poder (instituição) elabora seu sistema e


discurso totalizante (as diretrizes e protocolos da instituição), articulando um
conjunto de lugares físicos (locais de encontro) onde distribui suas forças. Foi
percebido as estratégias da BSGI em dois momentos do vídeo, no conteúdo
didático que a instituição disponibiliza aos adeptos, por exemplo os
ensinamentos e cursos no seu site próprio. Num segundo momento a
estratégia se firmou nos protocolos seguidos durante a cerimônia de
consagração do gohonzon a um novo membro. Mesmo com a carência de
sincretismos e abrasileiramentos dentro da BSGI, a mesma possui um sucesso
de proselitismo aos não descendentes de japoneses.

Michel de Certeau afirma que: [...]quanto maior um poder, tanto menos pode
permitir-se mobilizar uma parte de seus meios para produzir efeitos de
astúcia[...]” (CERTEAU, 2014, p.101) compreende-se aqui astúcia como a
capacidade do consumidor, no caso desta pesquisa o adepto a BSGI, a partir
do produtos, selecionar fragmentos e compor algo original. Se quanto maior um
poder menor a mobilização dessas originalidades, este cenário não aparenta
atrair novos adeptos que podem ter origens tão diversas. Porém, mesmo que
não realize os sincretismos com outras religiões, como afirma Pereira (2002) há
algo presente na BSGI que a torna atrativa ao público plural, considerando sua
composição de membros. O autor indica diversos aspectos deste sucesso de
aceitação de uma comunidade diversificada, mas alguns são destacados a
partir do documento analisado, como: habilidade no uso de meios de
comunicação de massa e de técnicas de marketing e propaganda, sendo este
aspecto essencial no espaço virtual; ênfase na autoconfiança e pensamento
positivo; prática da fé como possibilitadora de toda sorte de benefícios
materiais e espirituais, aspectos bem abertos e globalizantes; ética ou
orientações para o cotidiano.

Porém, mesmo com estes protocolos esperados, os princípios norteadores


possibilitam o público geral nesse espaço próprio do Budismo da BSGI:
“[...]utilizar, vigilante, as falhas que as conjunturas particulares vão abrindo na
vigilância do poder proprietário. Aí vai caçar. Cria ali surpresas.” (CERTEAU,

62
2014, p.101). Se nas primeiras décadas da imigração japonesa, a presença da
religião budista no Brasil estava ligada ao sentimento de identidade étnica entre
os imigrantes, as transformações históricas provocaram metamorfoses nas
instituições e nos sujeitos históricos, conduzindo as instituições a se
reinventarem.

Assim, em conjunto as estratégias de propaganda e habilidades de


comunicação nos meios virtuais, essa abertura para a ação tática do
consumidor sugere como a BSGI sobrevive com um público tão amplo, não
descendente de japoneses. Outro aspecto de engajamento é a própria mídia
veiculada, a plataforma Youtube. Enquanto espaço virtual de
compartilhamento, o website permite que vários interessados consumam o
conteúdo elaborado e postado. Sejam adeptos ou não ao Budismo, que
buscam para fins múltiplos, como conhecer uma nova visão religiosa ou até
mesmo respostas para problemas de diversas naturezas. (ANDRÉ, 2018,
p.1264)

Foi percebido as estratégias da BSGI em dois momentos do vídeo, no


conteúdo didático que a instituição disponibiliza aos adeptos, por exemplo os
ensinamentos e cursos no seu site próprio. Num segundo momento a
estratégia se firmou nos protocolos seguidos durante a cerimônia de
consagração do gohonzon a um novo membro. Mesmo com a carência de
sincretismos e abrasileiramentos dentro da BSGI, a mesma possui um sucesso
de proselitismo aos não descendentes de japoneses.

Além das habilidades do uso dos meios de comunicação em massa, mediante


a análise da fonte primária audiovisual, este trabalho reforçou a ideia que os
princípios globalizantes, que não delimitam a busca da reafirmação de uma
identidade étnica de imigração, acabam favorecendo a instituição a possuir
membros de origem tão diversas, sejam adeptos ou não ao Budismo enquanto
religião, ou até mesmo pessoas que procuram respostas para problemas de
diversas naturezas, como espiritual ou material. Dentro deste cenário, as
táticas dos consumidores, no caso os adeptos da BSGI, são bem mais
evidentes. Segundo Cezarinho : “se a internet é o lugar da estratégia, lugar que
condiciona ações, os seus consumidores são aqueles que praticam o espaço e
empreendem táticas para burlar tais condicionamentos.” (CEZARINHO, 2018,
p.330) Portanto, mesmo não sendo objetivo da BSGI buscar o sincretismo
religioso, ou seja, a fusão de diferentes praticas religiosas de origens diversas,
esse fenômeno ocorre no vídeo publicado pela adepta, devido a pouca
vigilância da instituição e por preceitos que permitem uma ampla participação
de um público tão diferente.

Referências
Rafael Meira de Oliveira é mestrando no Programa de Pós-graduação em
História Social pela Universidade Estadual de Londrina - UEL

Oratório e Concessão de Gohonzon. SOUZA, F. M [Fabí por aí...], 28 nov.


2016. Disponível em: https://www.youtube.com/watch?v=53DjwqOv08c.

63
ANDRÉ, R. G. O dharma na impermanência da web: difusão e transformações
do zen-budismo na internet (2015-2017). Horizonte, Belo Horizonte, v.16, n.51,
set/dez, 2018, p.1240-1269.

BSGI, ASSOCIAÇÃO BRASIL SGI. BSGI – Brasil Soka Gakkai Internacional.


Disponível em: http://www.bsgi.org.br.

CERTEAU, M. A invenção do cotidiano: artes de fazer. 22 ed. Petrópolis:


Vozes, 2014.

CEZARINHO, F. A. História e fontes da internet: uma reflexão metodológica.


Temporalidades – Revista de História, Edição 26, V. 10, N.1, jan./abri. 2018

PEREIRA, R. A. O budismo japonês: sua história, modernização e


transnacionalização. Ponto de Encontro de Ex Fellows, São Paulo: Fundação
Japão, v.1, 2006, p.1-28

PEREIRA, R. A. A associação Brasil Sôka Gakkai Internacional: do Japão para


o mundo, dos imigrantes para os brasileiros. In: USARSKI, F. O Budismo no
Brasil. São Paulo: Editora Lorosae, 2002, p.253-286.

SILVA, A.B. ; SOARES, A. L. R. . Os Oratórios domésticos: lugares de memória


para os imigrantes japoneses em Santa Maria/RS. PATRIMÔNIO E MEMÓRIA
(UNESP), v. 13, 2017, p. 179-200

USARSKI, F. O momento da pesquisa sobre o budismo no Brasil: tendências e


questões abertas. Debates do NER, Porto Alegre, v.7, n.9, jan/jun, 2006, p.129-
141

USARSKI, F. O Budismo de imigrantes japoneses no âmbito do Budismo


brasileiro. Horizonte, Belo Horizonte, v.14, n.43, jul/set, 2016, p.717-739

64
MAOÍSMO: UMA FORMA NÃO TÃO BRANDA DE PODER,
por Robson Lins Souza Damásio de Oliveira

Introdução
No começo dos anos 2000, o importante teórico de Relações Internacionais
Joseph Nye publicou um livro, cujo título rapidamente se tornaria um importante
conceito não só no campo das RI’s mas também na imprensa de modo geral.
De fato, o conceito de soft power já havia sido utilizado pelo autor nos anos
1980, mas foi desenvolvido de maneira mais detida com seu livro “Soft Power:
the Means to Success in World Politics” (2021 [2004]).

Nascia assim o conceito de Soft Power traduzido geralmente por poder brando
ou poder de cooptação (JACKSON; SORENSEN, 2013, p.427). Tal forma de
poder estaria ligado à capacidade de um estado influenciar a ação de outros
estados através de meios não violentos. Destarte, a guerra e as sanções
econômicas (entendidas como hard power) ganhariam menos relevância em
benefício de aspectos culturais e ideológicos.

Nye (2021) argumenta que um estado pode perfeitamente conseguir influir na


ação de outros sem que lance mão de meios como a ameaça militar e as
sanções econômicas. A admiração de um determinado estado por conta de
seus valores, o desejo de seguir seus exemplos ou de alcançar seus níveis de
prosperidade podem fazer com que outros estados conformem suas
preferências de acordo com suas expectativas.

As fontes para tal forma de poder, segundo Nye (2021), adviriam de três fontes:
a cultura, os valores políticos e a política externa. Por cultura o autor entende
“um conjunto de valores e práticas que criam sentido para uma sociedade”
(NYE, 2021, p.11). O autor salienta que países que possuem uma cultura que
inclua valores mais amplos tendem a conformar um soft power mais facilmente
que países que possuam uma cultura muito estrita. Por óbvio, o autor apontaria
como exemplo de cultura ampla os Estados Unidos e de cultura estrita a União
Soviética.

Quanto às políticas de governo, a questão do comércio ganha importância,


dada a crença do autor de que por meio das trocas de bens é possível também
a transmissão da cultura. Outras políticas governamentais podem afetar
positiva ou negativamente o exercício do soft power. O autor apresente como
exemplo a segregação racial nos Estados Unidos durante a década de 1950
que teria obstado que o país exercesse maior influência na África.

Por fim, a política externa também deve ser considerada. Nye (2021) apresenta
como exemplo as guerras travadas pelos Estados Unidos no Vietnã durante as

65
décadas de 1960/70 e no Iraque em 2003. O autor argumenta que em tais
contextos, o poder dos Estados Unidos em influenciarem os demais países por
meio do poder brando foi duramente afetado.

Nye assevera que diferentemente do chamado hard power, o soft power não
emana totalmente do poder estatal. Isso porque, diferentemente de armas e
recursos econômicos, a capacidade de influenciar os demais estados por meio
da cultura e de valores também está nas mãos da sociedade civil.

É bem provável que Nye buscasse tratar prioritariamente da política


estadunidense em sua análise, notadamente em um contexto de fim da Guerra
Fria. Entretanto, seu conceito pode ser útil para entender como se deu a
expansão a nível global do Pensamento de Mao Zedong, bem como seus
efeitos, esperados ou não. De fato, a presença global do maoísmo pode ser
notada facilmente através das inúmeras traduções do Pequeno Livro Vermelho
ou do grande número de partidos e movimentos políticos que se reivindicavam
maoístas. Mas seria possível considerar tal fenômeno uma espécie de soft
power avant la letre?

Maoísmo: origens e principais características


O pensamento maoísta pode ser entendido até certo ponto como uma
contribuição inovadora à lista de pensadores marxistas. Nesse sentido, como
era recorrente em cartazes durante a Revolução Cultural, o pensamento de
Mao se colocaria na tradição de pensadores que, partindo de Marx e Engels e
passando por Lênin, Trotski e Stalin, desenvolveram uma forma materialista e
dialética de compreensão da história.

De fato, em sua fase inicial, Mao mesclava seus conhecimentos de marxismo


com as compreensões que tinha da realidade que vivia, principalmente a
história da China e a realidade camponesa de Hunan, sua região natal. Ele
começou a destacar-se no movimento comunista ao propor a ideia de uma
revolução camponesa, contrariando os enviados soviéticos que assessoravam
o Partido Comunista Chinês desde sua fundação em 1921. Como aponta
Rebecca E. Karl (2010), é na Conferência de Zunyi de 1935, em meio a Grande
Marcha, que Mao logra impor sua visão aos membros do Comintern que
pleiteavam a revolução proletária e sua consequente centralidade nas grandes
cidades.

A relevância do campesinato no processo revolucionário era um dos elementos


inovadores do pensamento de Mao, mas certamente não era o único. Maurice
Meisner (1999) aponta como um dos elementos centrais da compreensão
maoísta acerca do marxismo era a preponderância dada a elementos
voluntaristas. Distanciando-se de interpretações determinísticas sobre a
realidade social, Mao pleiteava a possibilidade de um movimento revolucionário
transformar a realidade consoante seus anseios.

Julia Lovell (2019) ressalta a importância da denúncia ao imperialismo no


pensamento de Mao. Não obstante Lênin já tenha sido um duro crítico ao
imperialismo, é somente com o líder chinês que tal pensamento passa a ser

66
uma das bases do pensamento revolucionário internacional. Dentre os motivos
possíveis para tal fenômeno, como aponta Lovell (2019), deve-se notar o
próprio fato de a revolução chinesa de 1949 e sua consolidação nas décadas
seguintes se darem de maneira coeva aos levantes anticoloniais na África, na
Ásia e no Oriente Médio.

Nick Knight (2007) acentua que em Mao havia uma constante preocupação
sobre a necessidade de uma revolução permanente. Assim, não obstante a
chegada ao poder em 1949, a revolução ainda não estaria atingindo seu fim,
pois novas contradições surgiriam, demandando uma constante luta
revolucionária. Nesse sentido, Mao advogava a teoria da linha das massas
(mass line). Contrariando as teorias propostas por Lenin de que o Partido
Comunista deveria ser a vanguarda revolucionária, Mao defendia que somente
por meio da ação constante das massas seria possível se evitar o surgimento
do revisionismo e da burocratização do governo.

As características apontadas acima representam alguns dos desdobramentos


das ideias propostas por Mao no decorrer de sua vida intelectual e política.
Deve-se observar, entretanto, que conforme aponta Daniel Leese (2011) o
termo “Pensamento de Mao Zedong” fora criado por Liu Shaoqi em 1943. Este,
trabalhando como agente infiltrado no território dominado pelos nacionalistas
de Chiang Kai-shek, passou a utilizar a figura idealizada de Mao como uma
arma de combate no campo político-ideológico.

O termo “maoísmo”, segundo Julia Lovell (2019), teria surgido na década de


1950, entre pesquisadores estadunidenses e ingleses que o utilizavam para
definir o pensamento e as práticas políticas desenvolvidas na China após a
revolução de 1949, sendo usado amiúde em tom negativo.

Na década de 1960 o pensamento de Mao alcançaria um novo patamar. Com


efeito, foi nesse período que Lin Biao, um importante líder militar, começa a
fazer as ideias de Mao avançarem para o interior do Exército de Libertação
Popular (ELP). Como argumenta Jonathan Spence (1995), Lin Biao é o
responsável pela organização de citações de Mao na forma de um livro,
posteriormente conhecido como Pequeno Livro Vermelho. Spence atribui a Lin
Biao também o fato de o estudo do livro ter se disseminado entre os quadros
militares, fazendo com que milhões de soldados decorassem e recitassem as
frases de Mao.

É nesse período que muitos autores vislumbram o surgimento de um


verdadeiro culto a figura de Mao. Segundo Frank Dikötter (2016) tal culto se
desdobrava em inúmeras formas como a presença ubíqua de fotos de Mao em
espaços públicos e privados, o uso de medalhas com sua imagem por amplos
setores da sociedade e a leitura constante do Pequeno Livro Vermelho.

O Maoísmo como fenômeno global


Em 1967 era lançado A Chinesa, filme dirigido por Jean-Luc Godard que retrata
um grupo de jovens franceses que discutem sobre as possibilidades de uma
vitória revolucionária em um contexto marcado, por um lado, pela Revolução

67
Cultural Chinesa e por outro, pelo avanço dos Estados Unidos sobre o Vietnã.
Dentre os muitos méritos e deméritos do filme, deve-se notar que ele revela
como o pensamento maoísta havia adentrado ao pensamento de esquerda
francês, mesmo antes dos movimentos de maio de 1968.

Nesse sentido, a relevância cultural que as ideias de Mao começaram a


adquirir no cenário internacional parece indicar para algum tipo de soft power.
Mas para se chegar a essa afirmação seria necessário antes averiguar se a
expansão do pensamento de Mao para outros países e continentes se deu
como obra do acaso ou se havia algum projeto que sustentasse tal fenômeno.

Para tanto, é necessário em um primeiro momento tratar brevemente os


dispositivos culturais e institucionais criados pelo regime instaurado na China
em 1949 voltados para a divulgação cultural e ideológica e, em seguida,
apresentar alguns casos nos quais tais dispositivos foram utilizados e lograram
influenciar a política interna de outros países – sem que houvesse o uso
propriamente militar.

Conforme argumenta Lanjun Xu (2016), houve desde 1949 uma tentativa


deliberada por parte do Partido Comunista Chinês em lançar mão da tradução
de textos como forma de fomentar uma revolução de escopo mundial. Sob o
Escritório Internacional de Notícias (International News Bureau) fundado em
1949, o governo chinês buscou propagandear a nova China surgida da vitória
revolucionária.

Lanjun Xu (2016) aponta que tal escritório tinha dentre suas atribuições a
edição de notícias sobre a China em línguas estrangeiras visando alcançar o
público fora do país, da mesma forma foram criados jornais voltados
diretamente ao público estrangeiro. Foi criado também a chamada Livraria
Internacional (International Bookstore), publicando livros para serem vendidos
pelo mundo.

Em 1952, o Escritório Internacional seria reorganizado sob a Editora de Língua


Estrangeira (China’s Foreing Language Press), responsável ainda na
atualidade pela tradução de vários textos chineses para diversas línguas,
dentre elas o português. Como aponta Lanjun Xu (2016), em 1962 ocorre uma
discussão em tal editora na qual é estabelecido que as traduções deveriam se
voltar para algumas categorias de países, dentre elas países socialistas e
países em desenvolvimento e em processo de luta por independência.

Os efeitos foram notórios, mesmo em países considerados desenvolvidos. Na


França é criado em 1952 a Associação de Amizade Franco-Chinesa
(Association des amitiés franco-chinoise – AAFC), tendo por objetivo, segundo
Kaixuan Liu (2017) fomentar uma visão positiva da China na França, bem como
promover seu reconhecimento pelo governo francês, pois na época a ilha de
Taiwan era considerada a legitima representante da China, em detrimento da
República Popular.

68
Mas o auge da influência do maoísmo em solo francês se daria entre 1966 e
1976, vale dizer, durante o período da Revolução Cultural. Julian Bourg (2016)
nota como em tal contexto o pensamento de Mao começa a atingir setores fora
do Partido Comunista Francês, notadamente setores da juventude radicalizada
que passaram a se identificar com as lutas do chamado “Terceiro Mundo”,
elemento presente nas manifestações de maio de 1968.

O maoísmo também esteve presente na África. Na Tanzânia, como aponta


Priya Lal (2014), a doutrina (Ujama) criada pelo primeiro presidente do país e
grande herói da independência, Julius Nyerere, cuja influência ultrapassaria as
fronteiras do país, fora embasada em grande parte no pensamento maoísta.
Feitos como a Longa Marcha (1934-1935) e a Revolução Cultural (1966-1976)
ou teorias como a prevalência do campesinato na luta revolucionária inspiraram
o pensamento de Nyerere.

O intercâmbio entre China e Tanzânia não se daria só no campo das ideias.


Segundo Priya Lal (2014) a assistência chinesa ao país se deu por meio de
empréstimos em dinheiro, bem como auxílio em equipamentos de saúde e
cultura, com destaques para livros e rádios. Consolidavam-se assim os laços
econômicos e culturais entre os países baseados em uma imagem
destacadamente positiva da China e de seu regime.

Outros dois casos que podem ser destacados são Índia e Peru, cujas
influências do pensamento maoísta foram importantes até os anos 1980, no
caso peruano, ou até a atualidade, no caso indiano. Na Índia, o movimento
Naxalita, fundado em Calcutá em finais dos anos 1960, foi grandemente
inspirado pelo pensamento maoísta. Sreemani Chakrabarti (2014) argumenta
que até a morte de Charu Majumdar, primeiro líder do movimento, em 1972, o
Pequeno Livro Vermelho fora utilizado como único guia da ação revolucionária,
em detrimento de demais obras de autores marxistas.

Majumdar defendia que a luta revolucionária não se sagraria vitoriosa somente


pelas armas, mas também pelo eficiente trabalho de doutrinação ideológica. É
muito provável que o fato de o movimento indiano se dar entre os camponeses
tenha facilitado a aproximação com o pensamento de Mao, mas não se deve
desconsiderar o papel ativo do governo chinês em tal processo.

Julia Lovell (2019) acentua a ação do governo chinês na divulgação das ideias
de Mao na Índia, cuja aproximação ao movimento revolucionário local se deu
pelo uso extensivo da propaganda política, utilizando até helicópteros para
lançarem panfletos traduzidos para o hindi e o bengali nas regiões de fronteira
entre os dois países.

No caso peruano a influência do maoísmo se deu de forma mais direta no caso


do Sendero Luminoso, surgido em finais dos anos 1960. David Scott Palmer
(2014) nota como na década de 1960 começa a ganhar relevo dentre setores
da esquerda peruana a ideia de que o país era conformado por uma sociedade
semi-feudal e que a revolução somente frutificaria com a participação ativa do
campesinato.

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Conforme argumenta Julia Lovell (2019) no caso peruano havia também uma
participação ativa do governo chinês, para além das convergências possíveis,
notadamente a importância do campesinato nos dois países. Um dos
elementos apontados pela autora foram as visitas que Abimael Guzmán, líder
do movimento peruano, fez à China. Após conhecer o país, Guzmán passou a
utilizar abertamente uma espécie de fusão entre o pensamento de Mao e de
Carlos Mariátegui, importante pensador marxista e ativista político peruano do
começo do século XX.

Os casos apresentados acima devem ser entendidos como exemplos, não se


tratando de uma exploração exaustiva do tema. De fato, as influências do
pensamento de Mao podem ser notadas em outros países como Alemanha
Oriental, Itália, além de casos mais famosos como Camboja, entre outros. De
toda forma, tal processo se deu sobre duas bases: uma convergência das
ideias de Mao com as expectativas de setores da esquerda ao redor do mundo
e um papel ativo do Partido Comunista Chinês em veicular suas ideias para
além de suas fronteiras, influenciando direta ou indiretamente na política
externa e interna de outros países.

Conclusão
A teoria de Joseph Nye ganhou corpo desde os anos 1990, passando a ser
bastante presente nos debates acerca da política internacional, tanto em nível
acadêmico quanto na imprensa de modo geral. A crença nos valores de
democracia e liberdade, por exemplo, passaram a ser um importante capital na
política externa estadunidense. Por óbvio, tal processo não se deu somente
pela identificação que pessoas e governos ao redor do mundo poderiam ter
com a história e os valores dos Estados Unidos, mas se deveu também a um
processo de construção de imagem, sendo a indústria cinematográfica um
exemplo notório nesse sentido.

Entretanto, como se buscou demonstrar, houve também uma tentativa no


sentido de expandir uma visão revolucionária em nível global, atingindo países
em diversos continentes. Os exemplos tratados acima buscaram justamente
salientar tal fenômeno, notadamente na França (Europa), Índia (Ásia), Peru
(América Latina) e Tanzânia (África). Buscou, ademais, salientar como os
influxos do maoísmo se dilatou também no tempo, dado que mesmo na
atualidade ainda há grupos, como no caso da Índia, que se reivindicam
maoístas.

Uma explicação possível para tal fenômeno talvez seja a conjugação entre um
trabalho eficiente de tradução de textos e divulgação de ideias por parte do
Partido Comunista Chinês com o próprio conteúdo deles. Assim, temas como a
luta anticolonial e a crítica ao burocratismo soviético iam ao encontro das
expectativas de parte significativa dos países, não só entre os que travavam
uma luta anticolonial e de formação de um novo governo nacional (Tanzânia,
e.g.), mas também entre países que buscavam fugir da esfera soviética
(Albânia, e.g.), ou mesmo países capitalistas cujos setores de esquerda
buscavam-se distanciar-se ideologicamente da União Soviética (França, e.g.)

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Referências
Robson Lins Souza Damasio de Oliveira - mestrando no Programa de Pós-
Graduação em Antropologia Social (PPGAS-USP).

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