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ETNIAS E CULTURAS NO
BRASIL
Rio de Janeiro — RJ
COLEÇÃO GENERAL BENÍCIO Volume 176
Capa
DOUNÊ
Diagramação
Léa Caulliraux
em 17 de dezembro de 1881,
DIRETOR
SUBDIRETOR
Civis:
O livro, cujo caráter didático é realçado pelo próprio Autor, apresenta, entre
outros subsídios, uma base antropológica sólida e, portanto, merece ser lido e
meditado pelos que procuram conhecer sempre e melhor os valores
primordiais da organização social e cultural do nosso país.
Esta Editora oferece aos seus assinantes Etnias e Culturas no Brasil, jubilosa
por contribuir, uma vez mais, para a divulgação de importantes estudos sobre
a formação sócio-cultural brasileira, tema de excepcional relevância nos dias
de hoje.
TRÊS anos após a última edição — publicada em 1977 — volta este Etnias e
Culturas no Brasil com a mesma idéia e a mesma pretensão: idéia de ser uma
síntese, tão documentada e informativa quanto possível, da formação
brasileira, tanto em seus aspectos propriamente étnicos como em seus
aspectos validamente culturais; pretensão de ser útil, sobretudo como
instrumento de trabalho, ao menos de iniciação, para estudantes ou até
mesmo estudiosos, abrindo caminhos ou indicando rumos, para
desenvolvimento de seus estudos ou de suas pesquisas.
É a partir destes mesmos grupos que se vai formar o que hoje podemos
chamar de cultura brasileira: o resultado da criatividade dessas populações
que, aqui se encontrando, originaram os alicerces desse panorama cultural
que desfrutamos.
E a que não faltou — a essa originalidade de sua cultura — a contribuição de
outros grupos europeus e mais modernamente asiáticos. O que testemunha o
espírito de nossa formação, aberto a todos os contatos, sensível a acolher
conhecimentos e influências, moldando uns e outros ao seu espírito criativo.
Entregando mais uma vez ao público este livro, com acréscimos que
acreditamos possam enriquecê-lo, esperamos suas páginas venham a
despertar novas sugestões e indicar novas idéias capazes, umas e outras, de
contribuir para o maior desenvolvimento dos estudos brasileiros. Isto, e só
isto, é o que desejamos.
Os primeiros contatos humanos
Sua acuidade, seu olhar seguro viram, naqueles contatos de poucos dias, o
que mais tarde outros cronistas ou viajantes confirmaram, confirmando-o
também até hoje as próprias pesquisas diretamente etnográficas. Embora a
princípio lhe tenham parecido sem pousada, o que denotava a mobilidade
indígena, possuíam os aborígenes choupanas, tal como as descreve Caminha,
segundo lhe narrou o degredado Afonso Ribeiro, dentro do quadro que se lhe
afigurava uma povoação. É de ver como se registram aí o tipo de construção,
o material utilizado, as instalações internas, a existência da rede: “a uma
povoação em que haveria nove ou dez casas, as quais eram tão compridas,
cada uma, como esta sua nau capitânea. Eram de madeira, e das ilhargas de
tábuas, e cobertas de palha, de razoada altura; todas duma só peça, sem
nenhum repartimento, tinham dentro muitos esteios; e, de esteio a esteio, uma
rede atada pelos cabos, alta, em que dormiam. Debaixo, para se esquentarem,
faziam seus fogos. E tinha cada casa duas portas pequenas, uma num cabo e
outra no outro".
E mais: concorreu com esse espírito de acomodação para que as relações com
o elemento nativo se fizessem de maneira cordial, ou ao menos não tanto
destruidora, como se verificou em outras áreas de colonização não
portuguesa. Isto não exclui a existência de reações indígenas contra, os novos
donos da terra; mas essas reações foram quase sempre estimuladas, se não
atiçadas, pelos franceses estabelecidos em vários pontos com tráfico de pau-
brasil com tribos indígenas, e muito menos provocadas por inaptidão do
português.
Nos começos do século XIX a melhor fonte está nas cartas de Luís dos
Santos Vilhena. Mas é neste século que avultam as contribuições de cientistas
estrangeiros, abordando o Brasil em vários de seus aspectos peculiares. A
etnografia, como aliás vinha sucedendo antes, anda de par com as ciências
naturais: é na obra de botânicos, zoólogos, naturalistas que, de modo geral,
vamos encontrar informes de natureza etnográfica. É o caso de Martius, por
exemplo, a quem se deve a primeira classificação dos indígenas em base
científica; é o caso ainda de Gardner, de Saint Hilaire, de Pohl, de tantos
mais.
Vale registrar que neste século não só o indígena é que atrai mais
acentuadamente os observadores; estes se alongam também aos negros e, de
modo geral, abordam a própria sociedade, os aspectos de vida das populações
brasileiras. Era natural que isto acontecesse porque, nos começos do século, a
abertura dos portos permitiu a vinda ao Brasil de cientistas estrangeiros, e as
atenções destes se voltaram para a sociedade que então se formava,
emancipada de Portugal, surgindo de uma miscigenação ainda mal definida
para os estranhos. Era, de certa maneira, a curiosidade por um ambiente
novo, em que choques étnicos se processavam desde séculos, e onde
diversidade de condições físicas indicava aspectos peculiares.
Foi ainda no século XIX que surgiram os estudos, já menos simples registro
ou mera observação, sobre o negro africano no Brasil. Martius fez a
classificação étnica dos grupos entrados. Estudou-se depois a língua desses
grupos, destacando-se as contribuições de Macedo Soares, João Ribeiro e
Sílvio Romero. Em várias obras do viajantes do século XIX vamos encontrar
notícias e informações sobre o negro, oferecendo assim subsídios para os
estudos posteriores, já cientificamente orientados.
Com Nina Rodrigues inicia-se uma fase que já se pode chamar científica nas
observações a respeito do negro no Brasil. Utilizando o método comparativo,
ele estudou os grupos negros existentes na Bahia, embora prejudicado em
parte por certos preconceitos, que eram justamente os da época, e dos quais
não soube desvencilhar-se a fim de dar maior base científica aos seus
trabalhos. A obra de Nina Rodrigues constitui o levantamento de um rico
material para conhecimento e interpretação das culturas negras no Brasil.
Desta forma, a partir dos últimos anos daquela década (30-40) — e deve
situar-se o livro Assimilação e Populações Marginais no Brasil, de Emílio
Willems como ponto de referência — é que se voltam os estudiosos para os
temas de relações de cultura no Brasil. E na década seguinte tais estudos vão
tornar-se mais fundamentados, ampliando-se, sobretudo, pelo campo vasto,
enorme, que apresentava à pesquisa e ao estudo.
O papel dos rios foi duplo: os rios pequenos constituíram fatores de fixação e
justamente nas suas margens desenvolveram-se as atividades agrárias,
enquanto os rios grandes representaram elementos de penetração. Foram os
caminhos que os colonizadores encontraram para a penetração. Ressalta,
neste caso, o papel do São Francisco, até onde chegaram as populações
nordestinas, com a pecuária irradiando-se do vale em várias direções.
Verdadeiro leque que se abria através de caminhos — caminhos de boiada,
sobretudo — para as mais variadas distâncias: para o Norte, para o Noroeste,
para o Oeste, para o Sudoeste, para o Sul.
3 — a Amazônia;
4 — a mineração no Planalto;
5 — o Centro-Oeste;
7 — a de colonização estrangeira;
8 — a do café;
9 — a faixa urbano-industrial.
Nordeste Agrário do Litoral — Foi por esta parte do território brasileiro que
começou a ocupação humana do Brasil; a economia açucareira, a princípio
com o engenho de açúcar e hoje com a usina, tornou-se o principal
responsável pela formação da sociedade agrária, de linhas aristocráticas, de
características patriarcais na organização da família. Caracteriza-se, do ponto
de vista étnico, pela maior mestiçagem entre brancos e negros, de que
resultaram o mulato e os tipos secundários, como o cabra, o pardo etc. Do
ponto de vista social, caracteriza-se pela função social, econômica,
demográfica e política da Casa-Grande, como símbolo do engenho de açúcar,
núcleo de exploração econômica que se tornou o principal centro regional.
Da mesma forma sucede com a pesca. Espalhada por todo o litoral, do Norte
ao Sul, vivendo de uma atividade que se define por traços próprios, por
técnica exclusiva, na realidade é influenciada pela região maior — a da
Amazônia, a do Nordeste agrário, a do Café, a do Sul Pastoril, a Urbano-
Industrial — em cujo litoral se desenvolvem suas atividades próprias. Suas
técnicas, especificamente a pesca no mar, têm, entretanto, variedades quanto
ao uso de embarcações, ou quanto aos instrumentos de pesca, por exemplo.
O quadro delimitatório de regiões culturais do Brasil que acabamos de
apresentar não tem, nem poderia ter, caráter estático; ao contrário: é
profundamente dinâmico. Cada uma das regiões indicadas vive o seu
processo de transformações. Nenhuma delas se pode dizer seja integralmente
uma parcela do Brasil arcaico; e mesmo a que se possa considerar mais
adiantada seria a rigor enquadrada exclusivamente num Brasil moderno. O
que se verifica é que as transformações atingem as regiões, ou cada uma
delas, em particular, às vezes de forma desigual, e sempre sem cobrir toda a
sua área.
Se aqui destacamos estes três grupos que foram os fundamentais, não quer
dizer que tenham sido exclusivos. Ao contrário: outros grupos alienígenas,
desde cedo, participaram, em menor escala, é certo, dos processos de relações
de raça e de cultura no Brasil. O francês, o espanhol, o holandês, o judeu, por
exemplo, quase sempre, sobretudo os três primeiros, em áreas mais ou menos
determinadas: no Sul, um pouco em São Paulo, e muito no que é hoje o Rio
Grande do Sul, o espanhol; no Nordeste, o holandês; em pontos esporádicos
do Nordeste e do Leste, o francês. Por toda parte, o judeu.
São grupos étnicos estes que já nos começos do período colonial, e, pois, na
fase que poderíamos chamar plástica da formação brasileira, tiveram contato
com as populações luso-brasileiras. A esses elementos devemos pinceladas
não raro bem nítidas na formação étnica do brasileiro; do espanhol, em
particular, grande foi a contribuição na área Sul do país. Mesmo em São
Paulo, nos começos da colonização, sua presença foi marcante, aparecendo
de sobrenome espanhol numerosas famílias paulistas ainda hoje ostentando
nas genealogias sua origem hispânica: Bueno, da Ribeira, Camargo, Quadros,
Aguirre, Rondón, Lara, Ponce de León, Godoi, Aguilar. E muito Martínez se
abrasileirou em Martins, Pérez em Peres, Fernández em Fernandes. No
Extremo Sul, pela vizinhança com as colônias de Castela, a influência
espanhola foi grande, e notável se tornou sua contribuição não só étnica como
também cultural ao brasileiro daquela região.
O judeu foi elemento que se espalhou pelo território brasileiro com aquele
seu admirável senso de mobilidade e quase de ubiquidade; o comércio entre
os núcleos rurais e urbanos, nos primeiros séculos, esteve quase
exclusivamente em suas mãos; comerciavam como “mascates”, e muitos
deles enriqueceram tomando-se proprietários de engenhos de açúcar.
Um documento de 1536, e que serviu ao visitador do Santo Ofício ao Brasil,
permite conhecerem-se os traços ou sinais de suspeição dos judeus. Resumiu-
o o Prof. Roquette Pinto, em seu estudo sobre “Os Sinais da Suspeição”, nos
seguintes termos: “Deviam ser denunciados os que guardavam o sábado, não
trabalhando e vestindo-se com roupas e ‘joyas’ de festa, alimpando-se às
sextas-feiras ante suas casas, acendendo, à tarde de tais dias, candeeiros
limpos, com mechas novas, deixando os que por si mesmo se apagassem; os
que matassem carne’ e aves degolando-os ‘ao modo judaico’,
experimentando, primeiro, na unha do dedo da mão o fio do cutelo; os que
não comessem toucinho, nem lebre, nem coelho, nem peixe de couro; os que
fizessem ‘oração contra a parede, sabadeando, abaixando a cabeça e
alevantando-a’; os que banhassem os defuntos, cortando-lhes as unhas e
guardando-as, derramando a água de todos os cântaros da casa; os pais que
deitassem a bênção aos filhos pondo-lhes as mãos sobre a cabeça; os que
depois do batismo limpassem os filhos dos santos óleos por eles recebidos.
Os jejuns, as cerimônias da Páscoa, a circuncisão e outras práticas usuais dos
israelitas, evidentemente, deviam também ser denunciadas. Mas não eram,
esses, simples sinais de suspeição; eram provas”.
2. canoeiros mesolíticos;
a) TRONCO TUPI —
Família Tupi-Guarani;
Família Ramarama: língua dos Uruku e Arara; Família Mondé: línguas dos
Digut e Cinta-Larga; Família Puruborá: língua dos Puruborá.
b) TRONCO MACRO-JÊ —
Família Jê;
Contudo, poderemos ter uma idéia das condições culturais dos quatro grupos
principais, fixando os aspectos peculiares de cada um. Isto permitirá termos
um quadro mais amplo antes de atingirmos a generalização que se impõe para
melhor conhecimento do que resultou, no processo de relações culturais entre
indígenas e lusitanos; e depois entre indígenas, luso-brasileiros ou mestiços.
Do ponto de vista espiritual sabe-se que possuíam os eles idéias do ciclo dos
heróis civilizadores: Sumé, Monã, Todavia, a interpretação ligou à idéia do
ser supremo o nome de Tupã, divindade secundária. Dominam entre eles
idéias do ciclo dos heróis civilizadores: Sumé, Monã, Maira, Tamendonaré.
Possuíam vários mitos e através deles a tradição do dilúvio. Havia começos
de culto astrolatico com mitos solares e lunares: Guaraci e Jaci; a estes se
juntavam outros gênios locais: Jurupari, Caapora, Curupira, Iara, Anhangá.
Construíam canoas para seu uso em viagens nos rios. E quanto à cerâmica,
variou sua importância entre as diversas tribos. De modo geral a praticavam,
principalmente como urnas funerárias, ou recipientes para preparar bebidas,
ou ainda como cachimbo. A decoração dessa cerâmica era mais comum com
os relevos produzidos pela pressão do dedo polegar; em algumas áreas os
trabalhos se apresentam com maior valor artístico, usando-se mesmo
desenhos em cores. Na organização social eram polígamos, sendo o adultério
feminino castigado. Havia ritos de passagem. A propriedade era coletiva. A
hierarquia tinha como figura mais importante o cacique ou morubixaba, a que
se submetiam os demais membros da tribo. Conheciam música, bailavam e
cantavam. A antropofagia era ritual. Numerosos eram os mitos, as lendas, as
superstições indígenas, muitas das quais se incorporaram ao folclore
nacional.
O ELEMENTO português que veio para o Brasil não constituía uma raça,
mas um grupo étnico, que se vinha formando desde longos séculos. Nele
figurava a maior variedade étnica, havendo assim verdadeira diversidade de
tipos antropológicos. E, em consequência mesmo de suas origens regionais,
portadores de variados tipos culturais.
Dos mouros sabe-se que os libertos muito se isolaram, sempre que possível,
do contato com outros grupos, por meio das mourarias. As relações entre os
cristãos e os muçulmanos em território português criaram dois tipos
característicos da população portuguesa como resultado da atitude religiosa
tomada: os moçárabes, que eram os cristãos dominados pelos muçulmanos, e
os mudéjares, também chamados mouros forros, submetidos ao cristianismo.
Essa influência na cultura literária alcança seu ponto mais alto com Os
Lusíadas, em que Camões escreve a própria epopeia das navegações. Uma
das maiores obras poéticas, o maior poema épico português, figura assim no
gênero das navegações e descobrimentos, como a culminância de um ciclo
literário de tão expressiva significação histórica e social, e não apenas
literária.
A influência do mar refletiu-se também na literatura popular; e O folclore
português está enriquecido de narrativas, de romances, de xácaras, evocando
episódios das navegações, aventuras dos descobrimentos, milagres com
navegantes, audácia de marinheiros. Dessas xácaras, a mais célebre, mais
característica desse ciclo popular, é sem dúvida a denominada “Nau
Catarineta”. Descreve uma viagem cheia de dificuldades, os marinheiros
passando fome e resistindo a todas as tentações do demônio. Relembrem-se,
como bem expressivo de como se juntam, nessa literatura, o cristianismo e o
mar, dois versos da “Nau Catarineta”, quando o marujo português recusa
todas as propostas do demônio travestido de gajeiro, para manter sua fé e seu
ideal:
Constituíram eles como que a força de equilíbrio entre os dois extremos que
também emigraram e participaram do processo colonizador: os fidalgos e os
criminosos e degredados. Mesmo entre estes havia os que foram punidos por
crimes na época da maior gravidade, e que no correr dos tempos se foram
transformando, atenuando-se, e diminuindo sua significação, do ponto de
vista legal. Muitos desses criminosos o foram por crimes de amor; outros, por
crime de lesa-majestade. De qualquer forma participaram da expansão da
cultura portuguesa nas diversas áreas do mundo.
Do Brasil levaram para outras áreas alguns de nossos vegetais: o caju, por
exemplo, que se expandiu pela Ásia e pela África. E a mandioca foi levada
pelos portugueses para a África, onde realizou verdadeira revolução.
A herança fundamental: a
portuguesa
Por outro lado convém registrar que mesmo esses degredados estavam longe
de ser do tipo do “engagé” levado para as Antilhas e para as colônias
britânicas. Foi tipo social esse — o do “engagé” — que não tivemos na
colonização do Brasil. O caso de degredados como elemento colonizador, tal
como se verificou no Brasil, embora em pequena escala, foi comum na época
em várias áreas, e não só nas portuguesas.
Quanto à casa, em face da escassez de pedra e cal, rara aquela nos primeiros
tempos do Brasil, caracterizou-se a habitação por ser de pedra e barro ou de
taipa; as de trabalhadores ou de pescadores ou de profissões mais humildes
— principalmente nas zonas mais ricas de palmáceas, que foram justamente
as da faixa litorânea, primeiro ocupadas pelos colonizadores —, quase
sempre de palha, de que é expressão ainda em nossos dias o mocambo, em
cuja construção também influíram o indígena e o negro. O que se salienta na
construção da casa no Brasil é a utilização dos elementos naturais
encontrados na terra: o barro, a taipa, a palha. Na cobertura, usou-se a telha;
isto, porém, quando foi possível termos as primeiras olarias.
Foi sob o regime escravagista que o negro africano entrou no Brasil, o que
desde logo caracterizou sua situação; o que passou a participar da formação
brasileira não foi puramente o negro da África, mas o negro escravo. Este é o
aspecto que não se pode isolar do estudo das culturas negras: a condição de
escravo do elemento negro importado. O que contribuiu, essa condição, para
que não nos transmitisse o africano sua cultura inteiramente pura, mas
perturbada ou desvirtuada pela escravidão. Do negro africano, portanto, não
se pode isolar sua condição de escravo; não se pode abstrair esta
circunstância, ao estudá-lo e ao estudar sua influência na formação
econômica e social do Brasil.
Isto faz com que se possa distinguir perfeitamente duas situações do negro;
uma na África, outra no Brasil. Na África ele pôde revelar toda sua
capacidade cultural e psíquica; era agricultor, era artífice, era criador de gado,
era técnico de mineração. No Brasil a situação modificou-se: ele não pôde
revelar integralmente toda essa sua capacidade de ação e de técnica apesar de
sua predisposição para o ambiente dos trópicos; e sobretudo para sua
integração no novo meio, mesmo com sacrifício de seu padrão cultural.
Como agricultor sabe-se, por exemplo, que o negro se tornou criador, em seu
habitat, de uma agricultura eclética, sobretudo de cereais, diversificando sua
base alimentar, sem o exclusivismo do arroz na Ásia, ou do milho nas
Américas indígenas, ou do trigo na Europa. Admite-se mesmo que se deve ao
negro africano a cultura dos tubérculos; e acrescenta Lipschutz, confirmando
a atividade agrícola do negro africano, não só em seu ambiente como em
outras áreas, que onde ele penetrou a agricultura ocupa lugar predominante.
Sabe-se que não há apenas uma África, ou melhor, uma única África negra;
encontram-se naquele continente condições culturais diversas, fazendo com
que surjam vários graus de cultura dos diversos grupos: pigmeus ou
hotentotes, bantos ou daomeanos, sudaneses ou bosquimanos. Uns de cultura
primitiva, outros de cultura mais adiantada, alguns formados culturalmente
sob a influência do islamismo. Não há africano, mas africanos; tanto étnica
como culturalmente não existe, como unidade, o “Homo Afer”. Há, na
realidade, homens de diversos padrões culturais, de variadas condições de
cultura, muitas vezes com características peculiares diversas entre os vários
graus.
De modo que, seja por sua distribuição física, ou ainda em relação às línguas
faladas, essas populações africanas distribuem-se em vários graus culturais;
desde populações consideradas arcaicas ou primitivas até populações do alto
adiantamento; desde populações que vivem da coleta dos frutos naturais,
desconhecendo a habitação e o togo, até populações que possuem agricultura,
habitação e conhecimento de cerâmica.
Vale assinalar ainda que, nestes diversos graus culturais, havia alguns povos
bastante adiantados; muitos desses grupos negros da África, ao contato com
egípcios, berberes e, mais recentemente, árabes, puderam desenvolver suas
condições de cultura, atingindo a alto nível de progresso. Isto revela, de um
lado, a capacidade do negro e, de outro lado, as possibilidades de que ele
seria capaz; ou, de que, na realidade, ele foi capaz em seu próprio habitat.
Não puderam os escravos negros manter íntegra sua cultura, nem utilizar
preferentemente suas técnicas em relação ao novo meio. Não foi possível aos
negros revelarem e aplicarem todo o seu conjunto cultural: ou porque, ao
contato com outros grupos negros, receberam ou perderam certos elementos
culturais, ou porque, como escravos, tiveram sua cultura deturpada. Daí os
sincretismos e os processos transculturativos.
Talvez este fato tenha concorrido para fazer com que no novo meio nem
sempre fosse o negro um conformado; um joão-bobo que aceitasse
pacificamente o que lhe era imposto. Foi, ao contrário, e por vezes através de
processos bastante expressivos — e o caso dos Palmares é típico —, um
rebelado. Fugas, rebeliões, insurreições, formação de quilombos denunciam a
reação do negro à situação que lhe era imposta. Todavia, um ponto deve ser
desde logo salientado: apesar dessa inconformação, dessa rebeldia, o negro
no Brasil sempre foi melhor tratado que em outras áreas. Desfrutou condições
diferentes, para melhor em muita coisa, de seus irmãos em outras regiões de
escravidão.
Isto não quer dizer que somente para estas áreas entrassem negros escravos;
por todo o Brasil eles se espalharam. Cada um desses focos referidos
constituiu o porto principal de entrada; daí iam os negros africanos
distribuindo-se por fazendas, por serviços domésticos, por cidades. Chegaram
ao Extremo Sul, no Rio Grande, como chegaram ao Extremo Norte, no
Amazonas; atingiram igualmente o Centro-Oeste, à proporção que se
expandiu a exploração das minas de ouro. De modo que todo o Brasil recebeu
sua contribuição: aqui mais, ali menos, mas sempre presente o negro africano
na paisagem social, econômica e cultural brasileira.
Durante muito tempo falava-se dos grupos negros como “peças da Guiné”, ou
“peças da África”, ou “negro da Costa”; não se identificavam as tribos ou
nações a que pertenciam. Calógeras fixara as origens geográficas dos grupos,
mas tomando por base os portos de embarque, o que não apresentava bastante
consistência; é que, em cada porto, embarcavam geralmente negros de
diversas nações, procedentes de vários pontos da África, e não
exclusivamente de um só ponto.
A ioruba, relembra Arthur Ramos, foi a mais adiantada das culturas negras
puras, introduzidas no Brasil. O nagô se converteu, por algum tempo, pela
influência da cultura ioruba, em “língua geral” dos negros; em nagô se
realizavam, e se realizam, as cerimônias do culto, os cânticos dos terreiros, os
atos litúrgicos. Esta língua entrou em contato com a portuguesa, passando a
esta muitas de suas palavras, o que igualmente sucedeu com o quimbundo.
Aliás, do ponto de vista linguístico, o grupo banto deixou talvez mais forte
influência, através do quimbundo; as maiores pesquisas e estudos sobre as
sobrevivências africanas no português do Brasil têm demonstrado a
preponderância linguística do elemento banto, embora sua cultura, de modo
geral, fosse inferior à ioruba.
Da cultura dos grupos bantos um dos traços mais visíveis ainda hoje,
conservados e mantidos pelas populações brasileiras, é a figa; era por eles
fabricada e usada, como o eram também outros objetos em ferro e em
madeira. Nos trabalhos de ferro se destacaram os negros moçambiques,
excelentes ferreiros. Aliás trabalhos de metais e instrumentos de ferreiro, de
procedência africana, se encontraram em certas áreas de mineração, onde
também o africano introduziu a batéia. De modo geral a mineração do ferro,
entre nós, foi aprendida do negro africano. Ainda a principal sobrevivência
negra na construção de mocambos é de origem banto.
E não se deve esquecer também a mulata; vale lembrar que nenhum dos
mestiços brasileiros teve, como ainda tem, o prestígio, não apenas
sentimental, da mulata. Foi ela — a mulata — que se transformou no veículo
de costumes, alguns chamados ou considerados nocivos. Da mulata cheia de
vivacidade, o que contribuiu tão fortemente para o abrandamento do contato
entre o senhor e o escravo, o branco e o negro, contato às vezes tão íntimo
que fazia surgirem mulatinhos de olhos azuis e nariz afilado.
A mulata deve nossa vida social algo de vivo e agitado: do vivo com que
coloriu a miscigenação, embranquecendo a população; do agitado pelo que
difundiu entre os engenhos, as fazendas, as minas, as casas-grandes, os
povoados, as cidades, naquilo que já no século XVIII o nosso Antonil e no
XIX a inglesa Maria Graham chamavam de corrupção. A mulata se tornou o
encanto de muitos brancos. E nela como que se gravou a beleza da raça que
se formava, cantando-se sua sedução na poesia popular:
“Um laço de fita verde com três dedos de largura nas ancas de uma mulata
mata qualquer criatura.”
Esta variedade de tipos mestiços permite ver, por outro lado, que nunca se
levantou qualquer obstáculo às relações entre os lusitanos e a gente de cor.
Parece fora de dúvida que o tipo físico jamais serviu de obstáculo para as
relações entre lusitanos e indígenas, entre lusitanos e negros, ainda entre
lusitanos e mestiços. A mestiçagem não constituiu aos olhos da gente branca
nenhum crime, nenhuma vergonha. Além disso o tratamento dispensado a
esses grupos mestiços não teve caráter de repulsão ou violência.
Evidentemente, tal conceito não se aplica ao escravo; ao escravo, esclareça-
se, mas não ao negro.
Tornou-se assim o cabra um tipo social mais que um tipo étnico. E por
extensão passou a significar o valentão, o desordeiro, o capanga; é o cabra de
peito. Daí a palavra cabroeira, grupo de cabras, dados a desordens,
perturbadores do sossego público. Não é, portanto, uma definição étnica; e
por este seu sentido social, talvez, menos que pelo antropológico, é que a
poesia popular pode dizer que “o cabra não tem parente”.
Afora essas denominações aparecem ainda muitas outras, algumas já caídas
em desuso, abrangendo diversas nuanças dos tipos mestiços, quase sempre
segundo a coloração da pele. É o caso do guajiru, mulato, de cor
avermelhada-escura, semelhante à fruta desse nome; o caso do sarará, mulato
arruivado, de cor clara e cabelos ruivos, mais ou menos encarapinhado,
também chamado saruê ou ainda grauçá; o caso do olho-de-fogo, que é o
indivíduo albino no Rio Grande do Sul, também conhecido como preto-aça.
Foi ainda neste mesmo século XVIII que se verificou a completa integração
territorial do Brasil, com a definição de suas fronteiras através do tratado
luso-espanhol de 13 de janeiro de 1750. Baseou-se este documento,
conhecido geralmente como “Tratado de Madri” ou “Tratado de 1750”, no
princípio do “uti possidetis” e, para justificá-lo, a diplomacia portuguesa,
orientada então pelo brasileiro Alexandre de Gusmão, seguiu a política de
povoar áreas do território com casais açorianos. Foi o que sucedeu na Região
Norte (Amazônica) e na Região Sul (Santa Catarina e Rio Grande do Sul),
onde açorianos se instalaram, participando das relações étnicas e culturais nas
áreas por eles desenvolvidas.
A terceira fase da imigração começa em 1888 e vem até nossos dias. Com a
abolição da escravatura novas perspectivas se abriram à imigração.
Justamente no decênio de 1891 a 1900 se verifica o maior volume de entradas
de imigrantes estrangeiros. Neste período não somente o governo federal
como também os governos estaduais contribuíram para o desenvolvimento
das correntes de imigração, concedendo auxílios que facilitaram a entrada dos
imigrantes e sua localização no território nacional.
Não houve, decerto, uma assimilação absoluta, isto é, uma perda total pelo
imigrante de seus valores culturais para aceitação integral dos valores
nativos: observou-se, ao contrário, um processo em que foi constante a
permuta de elementos culturais, a troca recíproca de valores, o que
beneficiou, de certo modo, os quadros sociais respectivos, de maneira a não
perderem as populações brasileiras, em contato com os imigrados, as bases
fundamentais de sua formação.
Quando um “turco” chega a uma rua para atividade comercial, a rua logo se
transforma; toma outro colorido, um colorido quase étnico. Foi o que se
verificou na antiga rua do Açougue, em Maceió, hoje avenida Moreira Lima,
onde mais ou menos em 1937 ou 1938 começaram os sírios — assim
chamados genericamente na região os elementos de língua árabe — a abrir
suas casas comerciais. O mesmo que anteriormente se tinha verificado na rua
do Rangel, no Recife; ou em ruas de São Paulo.
Nas áreas urbanas das grandes cidades ou das capitais têm seus bairros
preferidos, ruas caracterizadas pelas lojas típicas com os mostruários, de
vários artigos, expostos ao público no exterior da casa etc. Através desses
grupos — sírios, libaneses, turcos — chegam até nós muitos traços culturais
de arabização. Entre esses grupos se encontra facilidade de aceitação dos
traços culturais nativos ou brasileiros, sem prejuízo da conservação de alguns
que lhes são peculiares, ou de transculturação já verificada sob vários
aspectos.
Sua grande atividade, porém, era, e é, o comércio. Pode-se dizer que está em
suas mãos o comércio internacional, talvez mesmo como uma consequência
de sua dispersão, o que os teria levado a uma profissão menos sedentária. No
entanto, não é rara a participação israelita em numerosas outras atividades: de
administração, de profissões liberais, de magistério.
No Brasil, de par com sua religião e sua língua, o “yiddish”, uma espécie de
jargão hebreu-alemão, os judeus mantêm suas festas cíclicas, entre elas a
Páscoa e o Yon Kipur, esta última sua grande solenidade anual. Várias
sinagogas funcionam no Brasil. Mantêm também associações beneficentes e
religiosas. No comércio dedicam-se em particular aos ramos de joias, móveis,
fazendas etc. São igualmente proprietários de imóveis.
Do inglês há pouco que dizer. Este foi elemento que não se misturou. Ao
contrário: isolou-se. No Brasil constituiu um grupo étnico que fugiu do
contato com os demais grupos. Os contatos registrados são de natureza
histórica; os dos primeiros tempos de disputa da terra na área amazônica.
Pouco depois iria verificar-se, entretanto, uma influência mais forte, esta de
natureza política. A Constituição Republicana do Brasil de 1891 se baseou
fundamentalmente na experiência norte-americana; nossa República se
organizou nos moldes da República da América do Norte; inclusive
transportando para o Brasil a denominação de “Estados Unidos”, que nada
justificava se fizesse, dada a diferença do que se verificara na organização
republicana das unidades políticas do Brasil em relação ao que se verificara
na América do Norte. A partir desta experiência, a rigor nenhuma outra se
poderia encontrar como reflexo da influência cultural norte-americana.
O que, porém, iria encontrar-se justamente em nossos dias, com o período pré
e pós-guerra de 1939. De fato, nas vésperas da guerra — ou mais exatamente
nas imediações de 1930, com pequenos ou isolados exemplos anteriores —
começamos a receber influência norte-americana em vários aspectos de vida
brasileira. Primeiro, ao que parece, na arquitetura; o arranha-céu brasileiro é,
sem dúvida, influência norte-americana. É um dos traços que marcam, entre
vários outros, a mudança de polos de influência no Brasil: da Europa, a
França sobretudo, transferindo-se para a América do Norte, ou seja, os
Estados Unidos.
E influência mais recente, talvez mais forte que qualquer outra, a de nossos
dias, alongando-se ao que veio do pós-guerra. Sobretudo com a televisão.
Através de programas marcados essencialmente pela presença ou pela
imitação de programação norte-americana, numa difusão dos chamados
“enlatados”, a presença norte-americana vem se fazendo constante. Diária.
A AMPLA informação que até aqui se deu a respeito dos grupos humanos,
não raro os mais diferenciados, que contribuíram para a formação do homem
brasileiro de hoje, pode ser completada pela apreciação do que representou
esta presença, ou seja: a contribuição que resultou de cada grupo em face dos
contatos havidos. Na realidade, só há contribuição quando há contatos; a
simples presença do grupo não basta para que se verifique a criatividade
cultural, justamente o que se encontra no processo de formação do Brasil e
dos brasileiros de hoje.
Esta adaptação se foi estendendo aos novos grupos que chegavam. Exemplo
bem típico se pode encontrar com os holandeses. Dominando o Recife, aí se
integraram na alimentação nativa. Durante as guerras de restauração,
cercados na cidade pelas tropas brasileiras, os holandeses furavam o cerco, ou
o procuravam furar, a fim de buscar farinha de mandioca em Nazaré da Mata,
terra onde esse produto se constituiu uma riqueza pela sua abundância e boa
qualidade. É o que conta Nieuhof, quanto a esses rompimentos de cerco, por
parte dos holandeses, em busca da farinha de mandioca.
Tanto num como noutro desses dois vestuários, vemos que se ligam às
condições de clima, de um lado, e de outro lado, à defesa contra o meio. O do
vaqueiro do Nordeste representa, principalmente, o contato com o meio físico
da caatinga, em que o couro é defesa natural, preservação contra a
agressividade da flora. Por sua vez o gaúcho traduz o clima frio em que vive;
a lã e a seda são meios de proteção contra o frio, melhor aclimatando o
homem ao ambiente respectivo.
Afora algumas das técnicas já referidas, não foram poucas outras que se
introduziram na vida brasileira, contribuindo para a formação de seu quadro
cultural contemporâneo. Do indígena colheram-se o moquém; o
aproveitamento da cabaça para cuia da farinha ou para banho — o celebrado
banho de cuia; a muqueca; o preparo do guaraná e do mate; o modo de andar
a pé em fila por um, observado principalmente no interior, constituindo a fila
indiana; o preparo de cestas de palha de coqueiro ou de folha de bananeira; a
utilização de alimentos com base na mandioca; o preparo de vinhos copio o
assai, ou de alimentos, como os da Amazônia, com base no pescado.
Do africano, por sua vez, pode-se arrolar uma contribuição não menos
expressiva, que se diversificou bastante conforme a região por ele mais ou
menos influenciada; dele recebemos o preparo de numerosos alimentos, com
base na pimenta e no dendê, que constituem a chamada cozinha baiana; o uso
da pedra de ralar, da colher de pau e da folha de bananeira nos trabalhos de
cozinha; a construção de mocambos, onde também figura a técnica indígena;
certos instrumentos de música hoje popularíssimos entre nós: o berimbau, o
atabaque, o jongo, a cuíca, tantos mais.
Mais tarde o Brasil torna-se Reino Unido; é título que passa a incorporar-se
ao do Rei de Portugal: Rei de Portugal, Brasil e Algarves. A presença do
príncipe regente, depois D. João VI, no Brasil, a partir de 1808, torna-se de
grande importância para o prestígio brasileiro. O Brasil passava à sede da
administração régia, o que lhe assegura mais amplo prestígio; de cá se
governa para o que havia sido e era considerado Metrópole. E este fato, sem
dúvida, iria refletir na condução dos negócios de que resultaria a proclamação
da Independência em 1822. Tornava-se o Brasil país independente, nação
soberana, constituído o Império que a Constituição de 1824 regeu até 1889
com a alteração, aliás, fundamental, de 1834, o chamado Ato Adicional.
Isto não exclui, porém, a cultura dos gêneros de subsistência, o que ainda
mais acentua o processo transculturativo, sobretudo com a mandioca, o
milho, o feijão, o arroz, produtos uns da terra, outros trazidos pelo português.
Tornou-se este — o português — um elemento estimulador do intercâmbio
de produtos da América para Europa e Ásia, da Ásia para a América e
Europa, ou de África para a América, ou desta para aquela.
Não foi difícil, por isso mesmo, o sincretismo religioso verificado com os
cultos africanos trazidos pelos escravos. Com as práticas dos nagôs,
principalmente, surgiram formas sincréticas, de que resultou o candomblé.
Este se tornou um produto já brasileiro, um resultado do processo
transculturativo. Às práticas da religião dos orixás dos iorubas juntaram-se
crenças católicas: e não é raro o terreiro de candomblé que não seja batizado
com nome de santo católico: Santa Bárbara e São Jerônimo, sobretudo.
É de observar-se, porém, que nas áreas menos abertas aos contatos culturais,
como as sertanejas, conservam-se e permanecem na língua certas formas
arcaicas, de uso do português dos primeiros tempos de colonização. Contudo,
com o desenvolvimento das comunicações, o intercâmbio mais fácil, a maior
difusão literária, esta situação está-se modificando. Também em áreas onde
predominou o elemento açoriano, têm sido encontradas palavras e expressões
de uso nas ilhas portuguesas.
De certo modo havia razão de ser nessa ausência, anterior à década referida,
de estudos sobre assimilação ou de aculturação — que, seguindo a lição de
Fernando Ortiz, preferimos chamar transculturação — de imigrantes.
Justamente naquela época é que se desenvolvem, nos centros científicos mais
adiantados, os estudos sobre os processos, de aculturação e de assimilação.
Data de 1935 o Memorandum for the Study of Acculturation, de Robert
Redfield, Ralph Linton e Herskovits, publicado inicialmente em “American
Journal of Sociology”, vol. 3, novembro, e posteriormente em “American
Anthropologist”, vol. XXXVIII, 1936. Em 1938, publica Herskovits seu livro
hoje clássico sobre o assunto: Acculturation.
Aquela procura de conceituação, a que pouco antes nos referimos, deu ensejo
a uma troca de artigos, verdadeiramente útil para os que queiram
compreender bem os problemas científicos ligados à terminologia das
relações de cultura. O professor Donald Pierson comentou o livro do
professor Willems em artigo, no qual fazia algumas restrições à conceituação
defendida pelo autor (“Revista do Arquivo Municipal”, São Paulo, vol.
LXXXVII, junho-julho de 1941); em artigo, nesta mesma revista, vol.
LXXIX, outubro de 1941, o professor Willems respondeu, defendendo os
conceitos por ele emitidos e mostrando o conteúdo das idéias nele expostas.
Este ligeiro esboço dos primeiros aspectos ligados aos estudos das relações
de cultura entre nós mostra bem a importância de que se revestiram, e de que
se vêm revestindo. Na realidade, desenvolveram-se em condições
perfeitamente satisfatórias. E, muito embora, dentro de um rigorismo
exigente, não se possa apresentar uma longa bibliografia, vale, todavia,
considerar que esta é expressiva e valiosa; expressiva e valiosa
principalmente se consideramos que são apenas decorridos trinta anos ou um
pouco mais do início de tais estudos, sob caráter verdadeiramente científico,
entre nós.
Por outro lado, deve levar-se em conta ainda que as características com que
se vêm processando, no Brasil, as relações de cultura entre os diversos grupos
populacionais dão feição peculiar aos estudos de assimilação e
transculturação.
O processo dessas relações apresenta entre nós condições novas. Não é, nem
poderia ser, unilateral. Ao contrário: tem sido bilateral, e, às vezes, chega
mesmo a ser polilateral. Não se verifica o domínio absoluto de um grupo ou
de uma população sobre outro grupo ou sobre outra população, de uma
cultura sobre outra: antes constata-se a participação de dois grupos, a permuta
de elementos culturais entre duas populações e às vezes entre mais de duas
populações. No vale do Itajaí, por exemplo, sentimos que o encontro cultural
ali se fez entre valores culturais nativos, isto é, caracteristicamente
brasileiros, e valores culturais alemães e italianos. O colorido mais forte dos
traços germânicos não quer dizer tenha havido um domínio absoluto dessa
cultura sobre as demais; dentro daqueles traços exteriormente germânicos
puros e exclusivos, vivem e se movimentam e se desenvolvem traços
peculiarmente brasileiros, e ao lado deles traços nitidamente italianos.
Se é verdade que o fato só tem valor científico quando reduzido a número, tal
como pensava Lorde Kelvin em referência de Roquette Pinto, pode assinalar-
se a década de 41 a 50 como a do surgimento de estudos que, através dos
números, vieram revelar aspectos das relações culturais de diversos grupos
estrangeiros entre nós.
Foi sem dúvida contribuição das mais expressivas essa que o Instituto
Brasileiro de Geografia e Estatística proporcionou, com os resultados do
censo demográfico de 1940 e através dos estudos orientados pelo professor
Giorgio Mortara, aos estudiosos dos problemas de relações de cultura entre
nós. Ainda ao professor Mortara deve-se valioso estudo, igualmente baseado
em dados censitários e estatísticos, sobre o que chamou “assimilação
matrimonial”, isto é, aspectos da fusão entre grupos de origens étnicas e
nacionais diversas, através dos casamentos realizados. Examinou
particularmente o comportamento dos grupos português, italiano, espanhol,
alemão, austríaco, húngaro, russo, sírio, japonês, anglo-americano, hispano-
americano etc., focalizando as tendências endogâmicas e exogâmicas e
apresentando os diferentes índices oferecidos pelos vários grupos para a
assimilação na população brasileira.
Dos outros grupos pela diferença de condições culturais, pelos elementos que
trouxeram, tornam-se indispensáveis estes estudos, muito embora a velha
base cultural dos povos europeus muito contribua para atenuar as diferenças
ou os possíveis choques entre os grupos imigrados e as populações
brasileiras. Mesmo quanto aos japoneses não seria difícil encontrarem-se
pontos de contato com os portugueses que desde o século XVI estão em
relações com o Japão. Desde Fernão Mendes Pinto aos jesuítas e
missionários, aos portugueses que andaram por terras do Japão, naquela
centúria e na seguinte, há referências às boas inclinações da gente japonesa,
e, muito embora os hábitos diferentes, atritos e confusões se evitaram graças
à habilidade com que os jesuítas se conduziram, interpretando valores
culturais que facilmente se assimilaram reciprocamente. Inclusive a mesma
técnica usada em relação aos indígenas no Brasil: a aceitação dos mesmos
costumes, das mesmas maneiras, usadas pelos japoneses, e a adaptação a eles
dos costumes, das maneiras dos portugueses.
Paisagem humana e cultural
contemporânea
Quando o contato com a nova terra não lhe proporciona logo esse ideal, ou
não lhe dá perspectivas para tanto, o imigrante sente-se como que frustrado.
Tal fato, aliás, se vem verificando em correntes imigratórias mais recentes.
Surge então o problema da inadaptação, que é o aspecto exterior de sua
frustração, e em consequência o de retorno à terra de origem.
O imigrante, pois, vai ser operário industrial ou então trabalhador rural; surge
o desgosto, a inadaptação e, em consequência, o desejo de retornar. É certo
que a quota de retorno é ainda pequena diante do número dos que se fixam.
Mas há outro aspecto do problema que é o de ficar no país, mas não se fixar
numa atividade; tomar-se o imigrado, de certo modo, instável no trabalho.
Estes que ficam são geralmente trabalhadores qualificados, possuidores de
certos conhecimentos técnicos. Infelizmente não dispomos de estatísticas
atualizadas sobre as profissões dos que ficam e dos que retornam para um
estudo comparativo mais aprofundado.
VIANA, Francisco José Oliveira — Evolução do Povo Brasileiro, 2.a ed. São
Paulo, Ed. Nacional 1933 (BPB, ser. 5. Brasiliana 10).
PALHA, Luiz (Frei) — Doze anos entre os índios Carajás. In: Contribuições
Missionárias. Rio de Janeiro, 1948 (Publ. da Sociedade Brasileira de
Antropologia e Etnologia, n.° 3).
RAMOS, Arthur — As culturas Negras no Novo Mundo. 2.a ed. ampl. São
Paulo, Ed. Nacional, 1946 (BPB, serv. 5, Brasiliana 249).
RAMOS, Arthur — O negro brasileiro; etnografia religiosa. 2.a ed. aum. São
Paulo, Ed. Nacional, 1940 (BPB, serv. 5, Brasiliana 188).
RAMOS, Arthur — A aculturação negra no Brasil. São Paulo, Ed. Nacional,
1942 (Brasiliana 224).