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Manuel Diégues Júnior

ETNIAS E CULTURAS NO
BRASIL

BIBLIOTECA DO EXÉRCITO EDITORA

Rio de Janeiro — RJ
COLEÇÃO GENERAL BENÍCIO Volume 176

Capa

DOUNÊ

Diagramação

Léa Caulliraux

D559e DIÉGUES JUNIOR, Manuel

Etnias e culturas no Brasil. Rio de Janeiro, Biblioteca do Exército, 1980.

p. 21 cm. (Col. General Benício, v. 176, publ. 497)

1. Cultura — Brasil. 2. Etnologia — Brasil. I. Título. II. Série.

Direitos para esta edição, restrita ao Quadro de Assinantes da Biblioteca do


Exército Editora, cedidos pela Editora Civilização Brasileira S.A.
CDD 572.981 301.2981
FUNDADOR,

em 17 de dezembro de 1881,

Franklin Américo de Menezes Dória, Barão de Loreto

REORGANIZADOR, em 26 de junho de 1937, e fundador da Seção


Editorial

Gen Valentim Benício da Silva

DIRETOR

Cel Inf Aldilio Sarmento Xavier

SUBDIRETOR

Cel Art Neomil Portella Ferreira Alves

CONSELHO EDITORIAL Militares:

Gen Div R-l Francisco de Paula e Azevedo Pondé nomeado em 10 de outubro


de 1973

Gen Div R-l Jonas de Morais Correia Filho nomeado em 10 de outubro de


1973

Gen Div R-l Adailton Sampaio Pirassinunga nomeado em 8 de maio de 1958

Ten Cel Inf Pedro Schirmer nomeado em 11 de outubro de 1977


Ten Cel R-l Carlos de Souza Scheliga nomeado em 25 de abril de 1975

Civis:

Prof Pedro Calmon Moniz de Bittencourt nomeado em 28 de maio de 1975

Prof Francisco de Souza Brasil (Relator deste livro) nomeado em 10 de


outubro de 1973

Prof Ruy Vieira da Cunha nomeado em 10 de outubro de 1973

Biblioteca do Exército — Palácio Duque de Caxias — Praça Duque de


Caxias — Ala Marcílio Dias — 3.° andar — Centro — RJ - CEP 20.221 -
Endereço Telegráfico “BIBLIEX”
Apresentação

A Biblioteca do Exército Editora selecionou, para os assinantes da Coleção


General Benício, na sua Programação Editorial de 1980, a consagrada obra
Etnias e Culturas no Brasil, do eminente sociólogo Manuel Diégues Júnior,
que nos oferece “uma síntese da formação humana, social e cultural de nossa
gente”.

Trata-se de ensaio erudito, destinado ao sucesso desde o seu lançamento pelo


Ministério da Educação e Cultura, em 1952, agora em edição especial, numa
tiragem de 40.000 exemplares, que se reveste de interesse crescente, à medida
que se sucedem as suas reedições, sempre ampliadas e atualizadas, mercê do
trabalho minucioso e devotado do Autor.

Este estudo fundamental, valiosa fonte de informações do processo evolutivo


da sociedade brasileira, abrange, essencialmente, as nossas relações de raça e
de cultura, desde o descobrimento da Ilha de Vera Cruz até a atual realidade
humana e cultural do Brasil.

O livro, cujo caráter didático é realçado pelo próprio Autor, apresenta, entre
outros subsídios, uma base antropológica sólida e, portanto, merece ser lido e
meditado pelos que procuram conhecer sempre e melhor os valores
primordiais da organização social e cultural do nosso país.
Esta Editora oferece aos seus assinantes Etnias e Culturas no Brasil, jubilosa
por contribuir, uma vez mais, para a divulgação de importantes estudos sobre
a formação sócio-cultural brasileira, tema de excepcional relevância nos dias
de hoje.

BIBLIOTECA DO EXÉRCITO EDITORA


Prefácio

TRÊS anos após a última edição — publicada em 1977 — volta este Etnias e
Culturas no Brasil com a mesma idéia e a mesma pretensão: idéia de ser uma
síntese, tão documentada e informativa quanto possível, da formação
brasileira, tanto em seus aspectos propriamente étnicos como em seus
aspectos validamente culturais; pretensão de ser útil, sobretudo como
instrumento de trabalho, ao menos de iniciação, para estudantes ou até
mesmo estudiosos, abrindo caminhos ou indicando rumos, para
desenvolvimento de seus estudos ou de suas pesquisas.

Contudo, nenhuma pretensão de ser pretensioso. Ao contrário: é o que ele


não é, nem quer ser. Se ser útil, de modo particular a estudantes e estudiosos,
é pretensioso, então este livro o é. De outra maneira, não; tanto assim que ele
procura ser tão-só uma síntese de nosso panorama cultural, de nossa
formação humana, de nossa evolução como povo e como cultura.

Toda essa evolução é um processo de sincretismo ou mais especificamente de


relacionamento entre grupos étnicos diferentes; e, por uma feliz coincidência,
grupos representativos dos três grandes estoques em que se divide a
humanidade: o mongolóide, o caucasóide e o negróide. Indígenas,
portugueses e africanos representaram essa presença, que podemos dizer
universal, do homem no Brasil; homens de várias origens que aqui se
encontraram, aqui se juntaram e aqui se mesclaram, criando o brasileiro como
povo fisicamente marcado por sua diversidade.

É a partir destes mesmos grupos que se vai formar o que hoje podemos
chamar de cultura brasileira: o resultado da criatividade dessas populações
que, aqui se encontrando, originaram os alicerces desse panorama cultural
que desfrutamos.
E a que não faltou — a essa originalidade de sua cultura — a contribuição de
outros grupos europeus e mais modernamente asiáticos. O que testemunha o
espírito de nossa formação, aberto a todos os contatos, sensível a acolher
conhecimentos e influências, moldando uns e outros ao seu espírito criativo.

Graças ao processo de sincretismo, ou seja a capacidade de absorver e


reformular o que se recebe, surgiu o abrasileiramento das diferentes
manifestações culturais que assinalam ou caracterizam o que é nosso. Daí
porque, em muitos momentos, manifestações não tipicamente brasileiras se
apresentam junto ou paralelamente àquelas que são caracteristicamente
brasileiras. Ou tradicionalmente brasileiras.

É o sentido de pluralismo que podemos vislumbrar em algumas regiões.


Pluralismo que se dilui no sincretismo, que abrasileira, adaptando o estranho
ao que é nosso. É esta capacidade de aceitar, de refundir, de recriar que dá
significado particular à cultura brasileira, expressando a personalidade da
gente que a criou.

A exemplo do que foi feito em edições anteriores, fizemos alguns acréscimos


em diferentes capítulos; igualmente ampliamos a bibliografia, acrescentando
a indicação de estudos mais recentes em torno dos assuntos aqui focalizados.
Bibliografia, aliás, que se vem enriquecendo continuamente, tantos são os
estudos — alguns, aliás, do mais alto valor — que se têm publicado; e através
dos quais facetas novas per vezes se revelam e contribuições valiosas se
acrescentam aos estudos brasileiros.

Não há negar a importância hoje em dia desses estudos; através deles se


encontram valiosas contribuições que permitem não apenas interpretar, mas
não raro também esclarecer, muitos aspectos de nossa formação. São estudos,
sob diferentes perspectivas, que têm permitido aprofundar-se o conhecimento
de nossas características físicas e culturais.

É com a indicação dessas fontes que podemos oferecer aos leitores


oportunidade de obterem melhor aprofundamento, dado o valor das obras que
se têm publicado sobre nossa formação, superando assim o pouco que este
livro possa oferecer — como, aliás, oferece — a quem queira aprofundar-se
no tema, neste sedutor campo que é o estudo do Brasil no que ele tem de mais
expressivo: sua gente, sua cultura.
Tema este — o de nossa gente, o de nossa cultura — que oferece um campo
vasto e variado, variado em que pese sua unidade, para estudo e também para
pesquisas; com o que se pode, aliás, salientar a necessidade de maior número
de pesquisas em torno desse tema na variedade e na riqueza de suas facetas.
Não são poucas as pesquisas já existentes, não apenas as de caráter geral se
não ainda as sobre a fixação dos diferentes grupos que contribuíram — e vêm
contribuindo — para nossa formação.

Na realidade, são muitos os estudos já realizados sobre a contribuição do


africano ou do indígena, e não apenas sobre esses grupos em suas formas
originais; menores talvez, ou quase raros, estudos sobre o elemento
português. O que não é de estranhar; sendo basicamente lusitana nossa
formação — língua, vestuário, tipo de habitação, por exemplo, originalmente
portugueses — houve como que identificação materna ou, pelo menos,
fraterna. Daí o pouco que se tem estudado sobre a contribuição portuguesa
em nossa formação; contribuição que, embora não única, pelo que se
misturou com os demais grupos, tem suas marcas próprias, suas facetas
definidas, sua influência decisiva.

Em relação aos grupos aqui chegados com a imigração, vêm se acumulando


os estudos, o que revela o interesse pelo conhecimento da contribuição que
nos trouxeram, cada um deles, em particular — italiano, alemão, japonês,
polonês, por exemplo — já se integrando em nossa formação, sobretudo a
partir do século XIX, quando começa a intensificar-se a imigração.

Entregando mais uma vez ao público este livro, com acréscimos que
acreditamos possam enriquecê-lo, esperamos suas páginas venham a
despertar novas sugestões e indicar novas idéias capazes, umas e outras, de
contribuir para o maior desenvolvimento dos estudos brasileiros. Isto, e só
isto, é o que desejamos.
Os primeiros contatos humanos

RELAÇÕES de raça e de cultura no Brasil se verificaram desde o instante da


descoberta, quando a armada portuguesa de Pedro Álvares Cabral entrou em
contato com a terra brasileira e os grupos aborígenes aí encontrados.
Degredados que vinham na expedição, ou mesmo tripulantes das
embarcações, foram mandados à terra em várias ocasiões, procurando
estabelecer contatos com os indígenas.

Da carta de Pero Vaz Caminha, cronista que participava da expedição de


Pedro Álvares Cabral, se recolhem informações sobre esses encontros, e
também dados, alguns deles pormenorizados, sobre os hábitos, costumes e
vida dos aborígenes. Pode dizer-se que Caminha fez quase obra de sociólogo
ou de antropologista social moderno, tais os elementos reunidos, uns sobre
aspectos antropológicos ou particularmente somáticos, outros sobre aspectos
culturais dos indígenas. Com base nestas informações de Caminha é que se
poderão levantar os primeiros elementos para a reconstituição do estudo
cultural dos primeiros habitantes do Brasil no momento da descoberta. A
carta do escrivão de Calecut é minuciosa ao informar acerca das condições de
vida dos aborígenes; sua agricultura, seu tipo de habitação, sua curiosidade
pelos animais mostrados na caravela estão retratados naquele documento, e
através dele terá o etnógrafo, ou o sociólogo, ou o antropologista, o material
indispensável a fixar a situação do indígena à época do descobrimento.

Quer traçando as características físicas dos indígenas — "a feição deles é


serem pardos, a maneira de avermelhados, de bons rostos e bons narizes”, “os
cabelos... são corredios... andavam tosquiados, de tosquia alta”, sendo que as
mulheres “com cabelos muito pretos e compridos pelas espáduas” —, quer
registrando-lhes os objetos, instrumentos ou utensílios, tal como o fez com
referência ao machado de pedra: “cortam sua madeira e paus com pedras
feitas como cunhas, metidos em um pau entre duas talas, mui bem atadas e
por tal maneira que andam fortes”, ou ao tipo primitivo da jangada: “são três
traves, atadas entre si”... “se metiam quatro ou cinco, ou esses que queriam”;
o fato é que Caminha se tornou o primeiro etnógrafo do Brasil.

Sua acuidade, seu olhar seguro viram, naqueles contatos de poucos dias, o
que mais tarde outros cronistas ou viajantes confirmaram, confirmando-o
também até hoje as próprias pesquisas diretamente etnográficas. Embora a
princípio lhe tenham parecido sem pousada, o que denotava a mobilidade
indígena, possuíam os aborígenes choupanas, tal como as descreve Caminha,
segundo lhe narrou o degredado Afonso Ribeiro, dentro do quadro que se lhe
afigurava uma povoação. É de ver como se registram aí o tipo de construção,
o material utilizado, as instalações internas, a existência da rede: “a uma
povoação em que haveria nove ou dez casas, as quais eram tão compridas,
cada uma, como esta sua nau capitânea. Eram de madeira, e das ilhargas de
tábuas, e cobertas de palha, de razoada altura; todas duma só peça, sem
nenhum repartimento, tinham dentro muitos esteios; e, de esteio a esteio, uma
rede atada pelos cabos, alta, em que dormiam. Debaixo, para se esquentarem,
faziam seus fogos. E tinha cada casa duas portas pequenas, uma num cabo e
outra no outro".

A organização econômica do grupo indígena com que teve contato — o que,


aliás, lhe pareceu antes desorganização — não escapou a Caminha, como não
escapou, igualmente, o registro do arco e flecha e da alimentação baseada no
cará ou na mandioca. A respeito da vida econômica, se bem tenha sido
exagerado ao negar a total existência de agricultura, observa, contudo, a
ausência de criação: boi, vaca, cabra, ovelha, galinha. O que a natureza
proporcionava — o inhame, frutos ou frutas silvestres — servia-lhes de
alimento. Era, pela descrição do cronista, um estado de quase pura economia
coletora. O que não é de estranhar, pois estavam os indígenas em fase de
movimento migratório.

De modo geral, temos, na carta de Caminha, uma sucinta, porém precisa,


documentação etnográfica do Brasil na hora da descoberta. O que ele disse a
respeito dos indígenas não foi jamais desmentido. Ao contrário: os que se
seguiram, através do tempo, observando e registrando a vida dos indígenas,
confirmaram suas informações. São preciosas, úteis, importantes as
observações de Caminha. Constituem a primeira de uma série, que se
desenrolaria pelos anos afora, neste mesmo século XVI, nos cronistas ou nas
narrativas de viajantes que pousaram no Brasil e, mais acentuadamente, nas
cartas ou informações dos padres da Companhia de Jesus. E que se
prolongaram pelos séculos seguintes.

Aquelas primeiras relações entre lusitanos e indígenas que Caminha


descreveu, posteriormente, se amiudaram com a vinda mais intensa de
correntes humanas portuguesas para o território descoberto, em particular a
partir de 1534, quando se iniciou, em condições mais sistemáticas, a
ocupação do Brasil. Nesse processo o português revelou, mais uma vez,
aquela aptidão que se lhe tornou nata, como povo colonizador, de ambientar-
se ou adaptar-se ao novo meio; integrou-se facilmente à tarefa de ocupação
da terra, promovendo-lhe o povoamento.

E mais: concorreu com esse espírito de acomodação para que as relações com
o elemento nativo se fizessem de maneira cordial, ou ao menos não tanto
destruidora, como se verificou em outras áreas de colonização não
portuguesa. Isto não exclui a existência de reações indígenas contra, os novos
donos da terra; mas essas reações foram quase sempre estimuladas, se não
atiçadas, pelos franceses estabelecidos em vários pontos com tráfico de pau-
brasil com tribos indígenas, e muito menos provocadas por inaptidão do
português.

Com o empreendimento da colonização, que se caracterizou por um sistema


de exploração latifundiária- -monocultora-escravocrata, com base na
plantação da cana-de-açúcar, o português introduziu no Brasil, como escravo,
o negro da África. Este, vindo de várias regiões africanas, e portador de
culturas diversificadas em vários graus, contribuiu para as relações de raça e
de cultura como um dos três grupos fundamentais: os indígenas e o
português, os outros dois.

Estes três grupos, portadores de níveis ou de graus de cultura diversos, ou


diversificados, representaram os elementos básicos da formação étnica do
Brasil; do intercruzamento verificado resultaram os tipos antropológicos hoje
espalhados pelo Brasil, através de vários graus de coloração ou de vários
níveis de cruzamento étnico. Esta variedade de tipos, que corresponde à
variedade de relações étnicas, traduz o grau de mestiçagem, em larga escala,
verificado no Brasil; mestiçagem que oferece justamente um panorama de
democracia étnica e social encontrado no Brasil.

Como registrou o professor Arthur Ramos, no Brasil todos os possíveis


contatos de raça se fizeram; e esses contatos tiveram variado grau de nuanças,
porque, na realidade, nenhum dos três grupos fundamentais — o indígena, o
português ou o negro — possuía unidade ou homogeneidade de raça. Antes
poderíamos considerá-los mosaicos étnicos, tal a variedade antropológica
entre eles encontrada, o que exclui, de saída, qualquer possível unidade ou
tendência de pureza racial em qualquer um deles; mesmo, e sobretudo, no
português.
Os estudos etnográficos no Brasil

SE FOI Caminha, aliás num momento histórico, o primeiro cronista a


assinalar não só as características tanto étnicas como culturais dos indígenas
mas também os primeiros contatos entre o elemento aborígene e o
colonizador, muitos outros se lhe seguiram na descrição da terra, dos seus
habitantes, dos seus costumes, das relações que se estabeleceram, da
sociedade que se formou. Cronistas, viajantes, cientistas, missionários
tornaram-se deste modo as fontes a que se tem de recorrer para o estudo
etnográfico do Brasil.

A princípio, o indígena que se apresentava aos olhos dos europeus como um


elemento exótico, curioso, quase pitoresco, mesmo, foi o motivo ou tema a
prender esses cronistas, fossem eles viajantes ou cientistas, missionários ou
simples colonos, às vezes tripulantes ou passageiros de naus que tocavam em
portos brasileiros. A estas fontes é que se tem de recorrer para o
conhecimento histórico da etnografia brasileira, e, em particular para seu
estudo, de modo a fixar as características culturais do nossas populações.

O estudo etnográfico no Brasil andou sempre ligado ao indígena. Até quase


nossos dias o que se entendia como matéria de etnografia era o indígena. Isto
sucedeu como decorrência das próprias condições em que surgiu a etnografia,
dedicando-se ao estudo dos povos ou grupos chamados primitivos ou
naturais. Este sentido, que ainda perdura em algumas correntes teóricas, foi o
que caracterizou os nossos estudos etnográficos. É certo que, já em 1913,
Roquette Pinto mostrava, em memorável discurso no Instituto Histórico, que
“a etnografia no Brasil, hoje, não se pode mais prender somente ao
aborígene". Certo: etnografia não é só o indígena; é também o estudo do
negro, dos mestiços, dos grupos imigrados; etnografia, enfim, é, e deve ser, o
estudo da formação das populações brasileiras, através dos elementos
culturais que as caracterizam. Ou seja, o estudo da cultura e dos homens que
a criam e a transmitem.

Durante muito tempo, porém, o que se estudou, ou melhor, o que apenas se


observou ou registrou — ainda não com o nome de Etnografia, é claro — foi
o indígena. Depois de Caminha os que o seguiram nas narrativas sobre o
Brasil se prendem ao aborígene: Vespucci, Luiz Ramirez, Hans Staden, o
Diário da Navegação de Pero Lopes de Sousa, por exemplo, para citar alguns
autores da primeira metade do século XVI. Todos eles fixam-se no indígena,
e era natural que assim sucedesse, pois se apresentava este como objeto de
curiosidade por se tratar de um tipo novo, que surgia aos olhos dos viajantes
europeus.

Na segunda parte do século XVI, mesmo nos séculos XVII e XVIII,


continuam os indígenas a atrair as atenções. Naquela fase final do século XVI
avultam como importantes para o estudo da etnografia brasileira as cartas e
informações jesuítas. Esta importância ressalta, em primeiro lugar, pela
variedade, e, em segundo lugar, pela circunstância de se referirem os S. J. em
sua correspondência e suas informações não só aos indígenas mas também
acerca da sociedade que então se formava.

Aos jesuítas se deve a classificação dos indígenas em tupi e tapuia,


classificação que se originou de chamarem os primeiros aos segundos de
bárbaros. Essa diferença foi observada em relação à língua. Os tupis usavam
uma espécie de língua geral, chamada “língua geral da costa”, e os tapuias,
uma língua absolutamente diferente.

Nas cartas de Nóbrega vamos encontrar rico material sobre as crenças


indígenas, as tradições sobre o dilúvio, a existência de um ser superior, que
era identificado com o trovão, a existência de feiticeiro, as idéias sobre
agouros. Nóbrega observou ainda o uso do fumo como uma espécie de bebida
de efeito narcótico. Numa carta do Pe. Antônio Pires se encontra a primeira
descrição do tipo físico do mameluco.

As cartas de Anchieta são ricas de informações a respeito de costumes dos


indígenas. Registrou igualmente certos hábitos da sociedade. Além das
cartas, as informações a respeito da vida dos habitantes do Brasil.

Outro S. J. cuja obra contém muitos informes etnográficos é o padre Fernão


Cardim. Além de ter escrito um tratado sobre os índios do Brasil, deve-se a
Cardim uma narrativa de viagem, onde se encontram preciosas informações
sobre os hábitos sociais então conhecidos. Principalmente a respeito dos
hábitos praticados nos engenhos de açúcar, da riqueza que apresentavam,
Cardim dá preciosos informes. Descreveu também festas e a realização de um
presépio armado durante o Natal e diante do qual houve danças de autos
pastoris.

No meado do século podem registrar-se duas fontes não portuguesas, isto é,


francesas; são as obras de André de Thevet e de Jean de Léry, vindos ao
Brasil com a expedição francesa de 1555. O livro do primeiro é tido, por
alguns autores, como algo de ficção, menos sensível à realidade das coisas
brasílicas, abundante de espírito criador; um quase-romancista, o primeiro a
fixar a natureza brasileira. O contrário sucede com Léry: é considerado como
fidedigno nos informes recolhidos. Vale também, na obra de Léry, a farta
ilustração que a enriquece de desenhos sobre a vida do Brasil, sobretudo de
seus índios.

Duas fontes valiosas aparecem nos fins do século. O "Tratado Descritivo do


Brasil”, da autoria de Gabriel Soares de Sousa, é um precioso arrolamento,
talvez o primeiro e mais completo, das tribos indígenas então conhecidas,
distribuídas no espaço litorâneo brasileiro, tal como a geografia da época
poderia permitir. Des Tupinambá faz uma descrição completa; e divulga
igualmente informações etnográficas a respeito de várias outras tribos.

Em 1591 instalou-se no Brasil o Tribunal da Inquisição, que funcionou na


Bahia e em Pernambuco. As confissões e denunciações do Santo Ofício — e
eis a segunda fonte referida acima — constituem um documentário
interessantíssimo da vida brasileira naquele fim de século.

O conhecimento de práticas judaicas, ritos judaicos, maometanos ou


luteranos, feitiçarias e sortilégios, tipos de feiticeiros e de impostores, tudo
enfim é registrado, revelado, informado. Os depoimentos indicam hábitos
então em uso, e não apenas praticados por judeus, mas igualmente por
portugueses ou já brasileiros.

O que se fez no decorrer destes séculos — do XVI ao XVIII — foi observar,


registrar, anotar; não há, na realidade, estudo etnográfico no sentido moderno
em que hoje o compreendemos. Saindo dos registros acerca dos indígenas e,
em parte, das observações, sobretudo jesuítas, sobre a sociedade que então se
organizava, surgem informações sobre o negro no século XVII. Por estranho
que pareça, foram holandeses os primeiros que chamaram a atenção para o
elemento negro. Para os portugueses não se tratava propriamente de um tipo
estranho, desde que com elas já estavam de há muito em contato. Mas para os
holandeses eram novidade, e daí o interesse com que os observaram, sem
deixarem, também, de observar os indígenas.

São cronistas ou cientistas holandeses — Laet, Barleus, Marcgrave, Nieuhof


— porém, e isto é importante, os primeiros a assinalar o papel social e
econômico do negro como escravo na sociedade brasileira. Barleus, que
nunca veio ao Brasil mas escreveu à vista de documentos e informações
recebidas, foi quem pela primeira vez deu uma classificação dos negros
entrados no Brasil, tomando como referência o ponto de procedência. É claro
que tal classificação carece de maior valor científico, mas constitui um ponto
de partida para conhecimento dos grupos negros importados.

O XVII é o século das lutas pelo domínio e da expansão litorânea; pelo


Norte, alcança-se a Amazônia, e ao mesmo tempo começa a penetração do
Centro-Oeste, conquistada a serra do Mar e atingido o planalto; no Nordeste,
as lutas contra os holandeses concentram os cuidados da população já
abrasileirada, e. como que absorvem toda a História do Brasil naquele século,
muito embora tais lutas cheguem somente até os seus meados.

Ao alvorecer do século, em 1618, podemos anotar a fonte portuguesa mais


importante: os Diálogos das Grandesas do Brasil, de autoria anônima, mas
atribuída a Ambrósio Fernandes Brandão, por Capistrano de Abreu, mais
tarde confirmada por Jaime Cortesão. Os Diálogos, precioso documentário
daquele momento brasileiro, contém informações sobre os grupos étnicos da
população, sobre trajes, sobre agricultura, sobre técnicas de produção de cana
e fabrico de açúcar. Descrevem o uso da bolandeira utilizada no
beneficiamento do algodão, o preparo da mandioca e seus diversos quitutes,
os modos de amarrar os madeiramentos nas construções de casa, os remédios
caseiros etc.

Merece citar-se, igualmente, pela importância de que se reveste para o


conhecimento dos costumes da época, a legislação consolidada nas
"Ordenações Filipinas”; encontram-se aí subsídios de valor etnográfico,
constituindo elas, também, uma fonte a ser utilizada. Sobretudo porque as leis
refletem sempre o comportamento de cada povo: de um lado, aquilo que é
permitido, e, de outro lado, aquilo que é proibido. E o proibido é sempre
cuidadosamente transgredido. Daí as punições. O que se pune está na
legislação; consequentemente, pode incluir-se como hábitos, costumes, usos
da população.

No desenrolar desses séculos, do XVII ao XIX, numerosos são os registros,


observações, informações a utilizar para o estudo da etnografia brasileira.
Cronistas, missionários, cientistas, uns mais aprofundadamente, outros mais
superficialmente, escreveram sobre o Brasil, seu povo, costumes, hábitos,
festas, vida em sociedade. No século XVII, por exemplo, a penetração da
Amazônia deu ensejo a duas descrições, que, não tendo maior importância ou
significação etnográfica, servem como notícia acerca dos indígenas daquela
região. São livros do Pe. Cristobal de Acuna e do Pe. Gaspar Carvajal. A este
último se deve a primeira notícia sobre as amazonas, que diz ter visto
combater, e as descreve como altas, alvas e de cabelos compridos e
trançados. Mais interessante é a descrição de Acuna, com observações sobre
o preparo de bebidas, o preparo do timbó como veneno das flechas nas
pescarias, o fabrico de embarcações, as madeiras usadas, os apetrechos e
utensílios.

No século XVIII há três fontes mais importantes: o livro Cultura e Opulência


do Brasil, publicado sob o pseudônimo Antonil, revelado posteriormente
tratar-se do Jesuíta João Andreoni, o livro Compêndio Narrativo do Peregrino
da América, de Nuno Marques Pereira, e a obra de Alexandre Rodrigues
Ferreira.

O livro de Antonil é uma minuciosa descrição das atividades econômicas,


com informações sobre a vida social, os tipos humanos, as profissões, as
técnicas de trabalho, sendo fundamental para o estudo etnográfico da
economia do açúcar, da mineração e do fumo. O Peregrino da América,
publicado em 1728, é muito rico de notícias sobre hábitos e costumes sociais,
sobre festas religiosas, práticas de feitiçaria etc. O autor anota a maneira
como os senhores chamavam os escravos, e nele encontram-se ainda as
primeiras notícias sobre mouros e ciganos no Brasil.
Em fins do século XVIII surge a obra de Alexandre Rodrigues Ferreira, que,
estudando os indígenas, o faz com certo caráter científico, não se prendendo
apenas ao descritivo ou ao enumerativo, mas já analisando e dando-lhe
significação. Grande parte de sua obra, publicada alguma coisa na Revista do
Instituto Histórico e Geográfico Brasileiro, continua porém inédita. Somente
no século XIX é que o estudo do indígena toma inteira feição científica:
primeiro, com Martius, que lança os alicerces desse estudo, depois, com Von
Den Steinen.

Nos começos do século XIX a melhor fonte está nas cartas de Luís dos
Santos Vilhena. Mas é neste século que avultam as contribuições de cientistas
estrangeiros, abordando o Brasil em vários de seus aspectos peculiares. A
etnografia, como aliás vinha sucedendo antes, anda de par com as ciências
naturais: é na obra de botânicos, zoólogos, naturalistas que, de modo geral,
vamos encontrar informes de natureza etnográfica. É o caso de Martius, por
exemplo, a quem se deve a primeira classificação dos indígenas em base
científica; é o caso ainda de Gardner, de Saint Hilaire, de Pohl, de tantos
mais.

Vale registrar que neste século não só o indígena é que atrai mais
acentuadamente os observadores; estes se alongam também aos negros e, de
modo geral, abordam a própria sociedade, os aspectos de vida das populações
brasileiras. Era natural que isto acontecesse porque, nos começos do século, a
abertura dos portos permitiu a vinda ao Brasil de cientistas estrangeiros, e as
atenções destes se voltaram para a sociedade que então se formava,
emancipada de Portugal, surgindo de uma miscigenação ainda mal definida
para os estranhos. Era, de certa maneira, a curiosidade por um ambiente
novo, em que choques étnicos se processavam desde séculos, e onde
diversidade de condições físicas indicava aspectos peculiares.

O indígena continua atraindo a observação desses estrangeiros, pela


oportunidade que havia de estudá-los diretamente. Surge a primeira
classificação antropológica: a que se deve a Alcides d’Orbigny. Contudo, a
obra que ia constituir-se a base dos estudos indígenas, entre nós, foi a de
Martius. Devem-se a este três estudos, na época, da maior importância: a
origem dos índios, a organização social das tribos e a classificação dos
indígenas pela linguística.
Se os dois primeiros se tornaram, com o correr dos tempos, superados em
face de novas pesquisas — sobretudo de estudos parciais ou específicos sobre
tribos em particular —, o último constituiu o ponto de referência para o
desenvolvimento do estudo científico dos nossos aborígenes. Estudando as
línguas indígenas Martius as classificou pelas palavras-fio, de modo a
caracterizar os grupos indígenas. O que, porém, veio revolucionar os estudos
indígenas foram as expedições de Von Den Steinen, em 1884 e 1887. Estas
expedições constituem um marco fundamental no estudo sobre os indígenas,
e o ponto de partida do desenvolvimento que estes estudos tomaram
cientificamente.

O trabalho de Von Den Steinen foi praticamente a primeira pesquisa de


campo sobre os nossos aborígenes. Ele conviveu com grupos do Xingu, que
encontrou no mesmo estado da época da descoberta. Os estudos de Steinen
exerceram considerável influência nas classificações posteriores, e além disso
tiveram repercussão nos meios científicos europeus. Ele reviu a classificação
de Martius, e a proposta por ele tornou-se a base de todas as posteriores, que
lhe introduziram apenas pequenas modificações ou adaptações, decorrentes
mesmo dos trabalhos que se desenvolveram.

Foi ainda no século XIX que surgiram os estudos, já menos simples registro
ou mera observação, sobre o negro africano no Brasil. Martius fez a
classificação étnica dos grupos entrados. Estudou-se depois a língua desses
grupos, destacando-se as contribuições de Macedo Soares, João Ribeiro e
Sílvio Romero. Em várias obras do viajantes do século XIX vamos encontrar
notícias e informações sobre o negro, oferecendo assim subsídios para os
estudos posteriores, já cientificamente orientados.

Com Nina Rodrigues inicia-se uma fase que já se pode chamar científica nas
observações a respeito do negro no Brasil. Utilizando o método comparativo,
ele estudou os grupos negros existentes na Bahia, embora prejudicado em
parte por certos preconceitos, que eram justamente os da época, e dos quais
não soube desvencilhar-se a fim de dar maior base científica aos seus
trabalhos. A obra de Nina Rodrigues constitui o levantamento de um rico
material para conhecimento e interpretação das culturas negras no Brasil.

Depois da morte de Nina Rodrigues houve verdadeiro silêncio sobre sua


obra, só interrompido com os trabalhos de Manuel Querino. Em 1926 foram
reeditados os livros de Nina Rodrigues, o que permitiu reiniciarem-se os
estudos sobre o negro, desenvolvidos principalmente por Arthur Ramos, na
Bahia e, depois, no Rio de Janeiro, e Ulisses Pernambucano, no Recife. Em
outras áreas do País igualmente começaram a surgir estudos a respeito do
negro, em particular estimulados pela realização de Congresso Afro-
Brasileiro (Recife, 1934, e Bahia, 1937). Ulisses Pernambucano, no Recife,
formou verdadeira escola de estudiosos do negro, que ainda hoje perdura.
Arthur Ramos desenvolveu as pesquisas sobre as populações negras,
analisando seus diversos aspectos culturais, sendo sua obra, à época em que
morreu, a mais relevante acerca do negro: “nossa maior autoridade em
estudos afro-brasileiros”, dele disse Gilberto Freyre.

É uma obra de sociologia ou de história social, porém, que renova os estudos


sociais no Brasil, afetando inclusive os estudos etnográficos: Casa Grande &
Senzala, de Gilberto Freyre. Aparecida em 1933, esta obra renovou os
métodos de estudo das relações culturais do negro e dos outros grupos
fundamentais — o português e o indígena —, além de ter fixado os valores
fundamentais da cultura brasileira através da formação da sociedade agrária e
patriarcal.

Desta forma no século XX desenvolvem-se os estudos a respeito do indígena


e do negro, principalmente com as contribuições oriundas de pesquisas de
campo. A esse respeito, em particular quanto ao indígena, vale salientar a
obra de Roquette Pinto, que revelou alguns grupos do sertão mato-grossense
até então desconhecidos; e ao lado deste e de outros brasileiros trazem-nos
ainda sua contribuição estudiosos, e não simples observadores ou anotadores,
de origem estrangeira: os alemães Koch Grunberg, Krause, Max Schmidt,
Nimuendaju, e os italianos Colbacchini, Boggiani, Trombetti.

Também neste século se voltam os estudiosos para o elemento branco,


principalmente os grupos entrados com a imigração. Oliveira Viana estudou a
evolução do povo brasileiro, enquanto aprecia a evolução da sociedade, da
raça e das instituições. Bastante impregnado das idéias arianistas de Lapouge
e Gobineau, deixou-se dominar por preconceitos de superioridade dos grupos
brancos. Admitiu a arianização progressiva do povo brasileiro. Apesar de tais
preconceitos, não se pode esquecer a obra de Oliveira Viana. Já antes dele
Sílvio Romero baseara o estudo do povo brasileiro através da influência
étnica. Admitiu o domínio do fator racial e estudou como originário em cada
uma das raças formadoras os aspectos, costumes, usos, tradições do povo
brasileiro.

Com sua obra de 1933, Gilberto Freyre renovou a análise da formação


brasileira, quer por haver distinguido entre influências de raça e de cultura,
quer pela metodologia usada, ainda hoje influente na orientação de estudiosos
novos. Baseou-se na análise das relações culturais entre portugueses, índios e
negros para mostrar principalmente ter havido um processo de troca de
valores culturais.

Justamente na década de 1930-40 é que começaram a realizar-se, no Brasil,


estudos de relações de cultura já cientificamente fundamentados. Embora se
assinalassem influências desse ou daquele grupo, a existência ou não de
assimilação dos grupos imigrados, até então o assunto não havia preocupado
os estudiosos atraindo-os para uma análise mais científica. Mesmo depois de
30 ainda ligou-se tal problema — o de relações de cultura — dentro de um
processo de nacionalização.

Aliás, foi este sentido ou esta preocupação de nacionalização que despertou


interesse pelo tema; mas o que se desejava era tomar os grupos imigrados
integralmente brasileiros, com o desaparecimento impossível de seus valores
de cultura. Somente mesmo nos últimos anos da década é que esses estudos
desabrocham. Assinale-se, para melhor esclarecimento da posição científica
desse estudo no Brasil, que foi também na década de 30-40 que se
desenvolveu o conceito de aculturação nos centros mais adiantados em
trabalhos de etnologia, antropologia ou sociologia.

Desta forma, a partir dos últimos anos daquela década (30-40) — e deve
situar-se o livro Assimilação e Populações Marginais no Brasil, de Emílio
Willems como ponto de referência — é que se voltam os estudiosos para os
temas de relações de cultura no Brasil. E na década seguinte tais estudos vão
tornar-se mais fundamentados, ampliando-se, sobretudo, pelo campo vasto,
enorme, que apresentava à pesquisa e ao estudo.

É justamente então (1940-1950) que vamos ter, em dois grossos volumes, o


primeiro estudo, fartamente alicerçado na talvez mais vasta bibliografia já
reunida sobre os grupos étnicos que contribuíram para a formação brasileira e
os contatos físicos e culturais; e os estudos de mestiçagem e de
transculturação em conjunto, mais completos, se bem que de modo geral, até
então publicados entre nós. Trata-se de Introdução à Antropologia Brasileira,
de Arthur Ramos; o primeiro volume, de 1943, estuda os grupos não
europeus (indígenas e negro-africanos), e o segundo, de 1947, os grupos
europeus ou europeizados (portugueses e os entrados com a imigração) e a
mestiçagem e a transculturação. É obra que reclama uma atualização, tendo
em vista, em particular, o posterior desenvolvimento dos estudos de
transculturação, e, de outra parte, a rica bibliografia surgida depois daquelas
datas, sobretudo com o incremento das pesquisas de campo.

No campo da transculturação, têm preponderado, de certo modo, os estudos


gerais, existindo carência de estudos sobre temas delimitados, mais
aprofundados, que permitissem maior penetração da pesquisa para
levantamento de material mais minucioso e sobretudo mais rico em
documentação. Poucas são etnologicamente as contribuições que se podem
assinalar sob este aspecto, isto é, de estudos dos problemas surgidos com as
relações culturais entre os diversos grupos, as atitudes, as reações, as
adaptações, as resistências, se não ainda aos aspectos peculiares de cada
cultura entrada em contato. O que só mesmo nos últimos anos se vem
verificando.

Com o desenvolvimento da sociologia, da antropologia, da etnologia, da


psicologia, mesmo da economia, entre nós, os estudos etnográficos se vão
aperfeiçoando, abrindo novas perspectivas, seja em relação a problemas dos
grupos indígenas ou negros, seja em relação a problemas dos grupos
imigrados, seja ainda quanto à fixação dessas diversas correntes de
imigração, analisando e pesquisando sobre sua participação na vida regional.
Os estudos etnográficos, sobretudo com os cursos das Faculdades de
Filosofia, podem ter, e já vão tendo, rumos mais adiantados, ou menos
empíricos.

Um outro aspecto a assinalar, como importante na situação atual dos estudos


etnográficos no Brasil, é a realização de pesquisas de comunidade, fixando
aspectos da vida material ou não material de agrupamentos humanos. Através
desses estudos, bem expressivos em sua maioria, a Etnografia muito tem sido
enriquecida. Várias comunidades, em diversos pontos do País, têm sido
pesquisadas e estudadas; o material aí recolhido, muito útil para o
conhecimento cultural das populações brasileiras, representa uma das
contribuições mais valiosas para a nova orientação, tanto metodológica como
de pesquisa de campo, nos estudos etnográficos no Brasil.
O quadro natural: o ambiente das
relações étnicas e de cultura

No ESTUDO da cultura de uma população não se pode prescindir do


conhecimento das condições naturais oferecidas pelo meio físico. Sabemos
da influência que o ambiente oferece, condicionando o desenvolvimento da
cultura. As relações entre esta e o meio físico vão refletir no grau cultural do
respectivo grupo. O ambiente condiciona a vida humana, em primeiro lugar
através do clima e do solo e, depois, pela vegetação, pelo relevo e pelos
demais elementos que o constituem.

Na influência do meio físico verificamos que cada grupo humano procura


adaptar-se às condições que o ambiente oferece. Entende-se como meio físico
a existência de uma série de energias e condições externas, vindas do cenário
natural de uma região. Estas energias e condições atuam sobre o homem e
influem na adaptação cultural; criam um sistema de relações entre o homem e
seu habitat, formando o ambiente adequado ao desenvolvimento da vida
humana.

No caso da ocupação do Brasil, as condições do meio tiveram considerável


importância: o português trouxe a experiência de seus contatos com outras
populações tropicais e essa experiência facilitou sua adaptação ao meio
brasileiro. Desta forma, a experiência lusitana revelou seu êxito na maneira
como, expandindo-se pelo território, enfrentou as diversidades fisiográficas e
pôde manter o lastro de unidade cultural, apesar das peculiaridades regionais.

Os primeiros estabelecimentos fundados na faixa marítima somente


começaram a expandir-se quando, de um lado, foram encontrados caminhos
naturais, e, de outro, foi possível vencer a serra do Mar. Estes primeiros
estabelecimentos fixaram-se em partes próximas da água, fosse a do mar ou a
dos rios. O mar facilitou o comércio, pois o objetivo econômico da
colonização era produzir para a metrópole. O transporte mais fácil e menos
demorado entre Pernambuco e a Europa deslocou a produção econômica do
açúcar de São Vicente para o Nordeste.

O papel dos rios foi duplo: os rios pequenos constituíram fatores de fixação e
justamente nas suas margens desenvolveram-se as atividades agrárias,
enquanto os rios grandes representaram elementos de penetração. Foram os
caminhos que os colonizadores encontraram para a penetração. Ressalta,
neste caso, o papel do São Francisco, até onde chegaram as populações
nordestinas, com a pecuária irradiando-se do vale em várias direções.
Verdadeiro leque que se abria através de caminhos — caminhos de boiada,
sobretudo — para as mais variadas distâncias: para o Norte, para o Noroeste,
para o Oeste, para o Sudoeste, para o Sul.

À diversidade de condições físicas que o território do Brasil apresenta se


devem influências bem características no processo de fixação das populações.
Ao lado das planícies litorâneas, onde foi possível sedentarizarem-se os
grupos humanos dedicados à lavoura canavieira, ou dos campos interiores,
que possibilitaram a adaptação da pecuária, num típico processo de criatório,
outros aspectos fisiográficos influíram na ocupação humana. No Extremo
Norte a floresta tropical representou outro fator de condicionamento da
fixação colonizadora. Os núcleos se dispersaram, através dos caminhos
naturais que os rios ofereciam dentro da vastidão florestal, e o próprio rio
Amazonas facilitou a penetração.

Já em outras condições processou-se a formação do Extremo Sul: a serra do


Mar representou, a princípio, uma barreira a dificultar a expansão portuguesa;
desta forma a direção para o Sul caminhou pela beira-mar, e somente mais
tarde é que se transpôs o planalto. Em: consequência disso, quando os
lusitanos alcançaram o Extremo Sul, já os espanhóis vinham vindo em
direção Este. Daí as lutas territoriais verificadas no Sul, e só no século XVIII
a região integrou-se completamente no território brasileiro.

Vencida a serra do Mar para o centro, atingido o planalto e encontrados


caminhos naturais, foi possível surgirem novos núcleos nas elevações
montanhosas, e daí começar a caminhada para o interior, acompanhando os
veios auríferos que se iam descobrindo. Por condições naturais de origens
diversas, essa marcha pelo interior foi lenta, e se fez enquanto a exploração
de ouro e diamantes possibilitou gênero de vida às populações; à proporção
que se esgotavam os veios, começava a decadência.

A expansão humana se fez em ritmo lento, face às contingências do meio


físico; as dificuldades do ambiente entravavam, muitas vezes, a marcha da
penetração. O que caracterizou mais nitidamente a fixação do homem foi a
formação de núcleos estáveis, com base na exploração de determinado
produto: a economia e o homem se uniram para, na exploração da terra,
assentar a sedentariedade da colonização. Surgiram assim estabelecimentos
de exploração econômica que se constituíram o ambiente ou a base física em
que se processaram as relações étnicas e de cultura na formação brasileira.

O povoamento se expandiu, lenta e mesmo diversamente, graças a esses


estabelecimentos; cada um deles representou uma etapa no processo de
ocupação da terra pelo homem. A criação sucessiva desses núcleos de
exploração econômica, que poderemos chamar genericamente fazenda, e que
representam verdadeiros centros de comunidade, tornou possível a ocupação
do território; neles se fixaram os grupos humanos e se plasmaram os tipos
sociais.

Ao estudar-se o processo de colonização do Brasil pode verificar-se que esses


estabelecimentos apresentaram maior importância que aqueles tipos de
organização político-administrativa criados pelo governo metropolitano no
Brasil. Primeiro, tateando na experiência de ocupar o novo território, as
feitorias, espécies de armazéns ou depósitos onde se comerciava; depois, a
capitania, de regime feudal ou semifeudal com a figura dominante do
donatário, em cuja autoridade se concentravam todos os poderes, alguns
deles, mais tarde, transferidos ao governador-geral; finalmente, a vila, que
corresponde ao município de hoje, centralizando a sede das autoridades
régias, primeiras experiências de formação urbana.

Os verdadeiros focos de povoamento, onde se tornaram possíveis, em bases


estáveis, as relações demográficas e as de cultura, bem como a estruturação
da sociedade brasileira, foram aqueles que resultaram do agrupamento
humano para uma exploração econômica. A atividade desenvolvida nestes
centros fixava as populações, dava-lhes uma organização social, criava os
tipos sociais a ela ligados.
Os engenhos de açúcar foram os primeiros desses focos criados e
desenvolvidos no Brasil. Neles se reuniam, ao lado do proprietário ou
“senhor de engenho", os lavradores, os moradores, os parentes, os agregados,
os escravos. Criou-se, desde logo, uma escala social dentro da qual se
distribuíam as atividades e funções de natureza econômica, de variada
nomenclatura, projetando-se na organização.

Logo depois, com a penetração para o mediterrâneo, aparecem as fazendas de


criação; elas se originaram, de um lado, das necessidades do engenho em
gado para determinados trabalhos e para alimentação e, de outro lado, do
desenvolvimento natural da pecuária. Se o primitivo povoamento do Brasil se
deveu, na área litorânea, ao açúcar, poderemos dizer que se deveu a criação
ou à pecuária o povoamento do interior, do mediterrâneo nordestino, tendo
como centro de referência o vale do São Francisco. E, em parte, o do Sul
também.

À proporção que a ocupação do território se expandia, outros focos de


povoamento se criaram, diversificando-se, em decorrência das próprias
condições de diversidade regional da colônia, as características fundamentais
dessa expansão, sempre visando à exploração dos recursos naturais da terra.
Surgem assim os sítios agro-extrativos da Amazônia, os veios de mineração
no centro, as fazendas de criação, chamadas estâncias, no Extremo Sul. Deste
modo constituiu-se, nesses estabelecimentos de exploração econômica, o
ambiente das relações entre os grupos étnicos que participaram da formação
brasileira; e, igualmente, das relações culturais surgidas.

Poderemos encontrar, em resumo, os seguintes tipos de exploração


econômica, onde assentaram as bases do povoamento: os engenhos de açúcar,
no litoral; os currais ou fazendas de gado, no interior nordestino; os sítios
agro-extrativos, na Amazônia: os veios de mineração, explorando ouro e
diamantes, na área do centro interior; as estâncias gaúchas, no Extremo Sul.
A estes núcleos, de exploração econômica, juntam-se outros, não de
exclusiva atividade econômica, mas igualmente núcleos importantes como
focos de relações étnicas e culturais: as aldeias ou missões jesuítas,
principalmente no Sul da Amazônia, e os postos militares de fronteira.

Não se restringe, porém, a enumeração a estes citados. Cumpre lembrar os


núcleos posteriormente criados, surgidos com o decorrer da obra de expansão
povoadora, tendo sempre na exploração de um produto ou de produtos a base
de sua constituição. Surgem assim: as fazendas de café, no vale do Paraíba e
em São Paulo; os seringais, no Extremo Norte; as fazendas de cacau, no Sul
baiano; as charqueadas, no Rio Grande do Sul; grupos extrativos,
principalmente os ervais, na área mato-grossense com incursões na área
paranaense e catarinense e na fronteira paraguaia; as salinas, no Nordeste e
no Rio de Janeiro; as fazendas de tabaco e de algodão, muitas delas vizinhas;
das áreas já dominadas pela influência de outro produto e daí sua pouca
expressão — pouca em relação à que outros núcleos apresentam.

Destes núcleos econômico-sociais três deles, pelo menos — o engenho de


açúcar, a fazenda de café e a fazenda de cacau —, corresponderam, no Brasil,
aa sentido da "plantation” americana, aí usado originariamente como uma
área de terra plantada e, no período de colonização da América do Norte,
significando um grupo de colonos. Posteriormente, o termo se aplicou mais
restritamente a uma agricultura em larga escala nos climas quentes, conforme
observa Mac Cutchen (1) Aplica-se, assim, de modo geral a uma propriedade
produtora, portanto, de base econômica.

Num sentido amplo, de centro de exploração econômica, não restritamente


agrícola, mas também extrativista, vimos utilizando o termo “fazenda” como
o estabelecimento em que se verificaram relações étnicas ou de cultura no
Brasil.

Pois a fazenda, esta fazenda assim considerada, se constituiu no Brasil o foco


fundamental do povoamento. Todos os estabelecimentos referidos são de
base rural, porque os de origem urbana — os povoados, as vilas, as cidades
— quase sempre nasceram do alongamento da influência daqueles núcleos
econômicos que o eram igualmente de natureza social.

Através desses núcleos se fez o povoamento, geralmente de caráter disperso,


pois eles se espalhavam aqui e ali pela extensão do território; mais tarde, com
algumas formas de exploração econômica implantadas, este povoamento se
tomou de caráter concentrado, embora internamente alguns desses núcleos,
como as fazendas de criação, por exemplo, apresentassem dispersão na
maneira de ocupação territorial.
(1) “Plantation”, in Encyclopedia of Social Science, vol. XIL.
A ocupação humana e a formação
de regiões culturais

A ESTE quadro natural se ligou, como vimos, o processo de ocupação


humana do Brasil; e, com ele, o da formação de regiões caracteristicamente
culturais. As populações se estenderam por toda a faixa litorânea, ocupando
os mais diversos pontos do território, em condições de adaptação ao meio
natural. Entre 1535, quando começa a ocupação permanente do Brasil, a
partir do Nordeste agrário, até a ocupação da Amazônia e do Extremo Sul,
decorreu um pouco mais de 100 anos. Num século, consequentemente, a
extensão territorial — beirando o litoral, é certo — havia sido ocupada; e ao
mesmo tempo já se havia iniciado a ocupação interior, sobretudo nas zonas
fronteiriças de Espanha; o forte de Coimbra e o de Macapá são exemplos
desta ocupação.

Talvez tal circunstância tenha impedido de se reconhecer a diversidade dessa


ocupação, tanto mais que, nos começos do século XIX, fracionada a unidade
espanhola com a formação das repúblicas hispano-americanas, o Brasil se
conservou uno, dentro de suas origens portuguesas. O milagre da unidade
nacional tão apregoado, tão discutido, tão exaltado. Resultou de tais
condições, e de outros fatores, que seria supérfluo examinar aqui este sentido
de unidade que, além de territorial, se estendia à cultural; que não satisfeita
de ser política alongava-se a ser social e, por vezes, étnica.

Contudo, o Brasil era considerado um todo orgânico territorialmente unido e


culturalmente uno. Um bloco monoliticamente único. Pura ilusão; ilusão que
se vinha mantendo, mas que a abertura de novas perspectivas nos estudos
sociais no Brasil começou a modificar. É a partir do movimento modernista,
de um lado, e, de outro lado, com a revolução de 1930, que estas novas
perspectivas passam a configurar-se. Caracterizam-se as formas regionais do
Brasil: regiões diferenciadas culturalmente, embora a língua, o cristianismo, a
organização da família, a estrutura política mantivessem a unidade exterior,
começam a caracterizar-se nos estudos sociais do Brasil.

É certo que já no século XIX e nos começos do atual se sugerem possíveis


classificações para dividir o Brasil, considerando o aspecto do estudo
desejado. É do século XIX, por exemplo, a classificação de André Rebouças
a respeito de zonas agrícolas; no começo do século XX, Sílvio Romero, com
admirável antevisão, sugere a classificação de zonas sociais que se podem
identificar como regiões culturais. E numa antecipação, que diz respeito,
sobretudo, ao campo dos estudos de História do Brasil, lembra Martius, nos
princípios do século XIX, que o Brasil deve ser estudado — ou devem ser
estudadas suas formação e evolução históricas — através de focos de onde
partiram as linhas-mestras de ocupação do território. Aliás, já então Martius
chamava atenção para o fato de “não ser suficientemente reconhecida no
Brasil” essa diversidade. Isto é, a diversidade regional.

Outras classificações têm sido igualmente sugeridas. A de Arthur Orlando,


em 1913, por exemplo; o escritor pernambucano indicava alguns tipos que se
lhe afiguravam característicos das populações brasileiras, e, como
consequência, representativos delas. Lembraremos ainda a classificação de
Roquette Pinto, com base nas características do tipo físico — área de
influência cabocla, área de influência africana e área de influência européia;
ou a de Tristão de Athayde, vendo o Brasil através das condições
psicológicas das populações, e considerando as sociedades integrantes — o
Litoral e o Sertão, a Cidade e o Campo, o Norte e o Sul; ou a de Joaquim
Ribeiro, baseada no que chama de “áreas de homogeneidade cultural”.

A partir de 1930 é que rigorosamente começamos a sentir o problema de uma


classificação regional do Brasil. Surgem algumas classificações. Ora com
base em um aspecto cultural — a culinária, a linguagem, por exemplo —, ora
com aspectos mais gerais, procurando encarar a cultura em seu conjunto. É
dessa natureza a classificação de Donald Pierson e Mário Wagner Vieira da
Cunha, que encontrou no Brasil cinco áreas culturais; é também a de Charles
Wagley, que se referiu a regiões naturais; é ainda a de Preston James, que
dividiu o nosso território em sete regiões culturais.

Do estudo de problemas culturais brasileiros pelos prismas regionais,


concluímos que seria necessário reformular o conceito de regiões culturais; e
ao dividir o Brasil, num quadro dessa natureza, não considerar isoladamente
este ou aquele fator, pois que todos eles — psicológicos, geográficos, sociais,
políticos, históricos — se interpenetram; e só de sua integração é que
resultaria adequado conhecimento daquelas características essenciais de uma
região: no caso, de uma região cultural brasileira.

De acordo com estudos que então formulamos, levantando a mais vasta


bibliografia possível — sobretudo fontes puramente regionais, obras sobre
Estados ou Municípios, às vezes romances, contos, novelas, não raro também
poesia —, sem esquecer a documentação puramente histórica — papéis, falas
presidenciais, MSS existentes em arquivos —, podemos então partir para
uma caracterização de regiões culturais do Brasil. Tal caracterização funda-se
no conhecimento do processo de ocupação humana, oportunidade em que se
entrelaçam fatores do meio físico, fatores econômicos e fatores históricos. A
geografia, a história e a economia se unem para dar feição à sociedade em
formação. A característica regional surge desse entrelaçamento em que se
fixam, de uma parte, o meio físico — a geografia — e, de outra parte, a
atividade preponderante — a economia — de modo a caracterizar social e
culturalmente os grupos humanos em contato. É assim que surgem os
diferentes tipos de ocupação econômica da terra, com a agricultura, com a
pecuária, com a mineração, com a extração vegetal, sobretudo a borracha,
com a pesca e assim por diante.

Este processo — o de ocupação humana — foi uma adaptação do homem ao


meio; o estabelecimento não apenas de relações, mas de simbiose,
principalmente social. O que surgiu economicamente resultou das condições
que o meio propiciava: aqui apto à cana-de-açúcar, ali, para o algodão, acolá,
para a criação de gado, mais além, para a mineração, adiante, para o
extrativismo, e assim por diante. O que resultou socialmente foi o surgimento
de uma sociedade em cada região, condicionada pelo sistema de ocupação.
Cada sociedade marcada por tipos humanos característicos, por condições
sociais específicas, por situação representativa da atividade implantada.

Assim podemos identificar, com base nos elementos anteriormente expostos,


as seguintes regiões culturais:

1 — o Nordeste agrário do litoral;


2 — o mediterrâneo pastoril;

3 — a Amazônia;

4 — a mineração no Planalto;

5 — o Centro-Oeste;

6 — o Extremo Sul pastoril;

7 — a de colonização estrangeira;

8 — a do café;

9 — a faixa urbano-industrial.

A estas nove regiões tipicamente culturais, pela sua formação e pelas


características que hoje apresentam, deveríamos acrescentar três outras que,
apesar de sua ocupação humana e sua evolução histórica, embora ligadas a
uma atividade econômica, estão unidas mais particularmente a outras regiões,
não raro as completando ou identificando-se com elas. São: a região do
Cacau, no Sul baiano; a do Sal, no Rio Grande do Norte e no Rio de Janeiro;
e a da Pesca, por todo o litoral, estendendo-se pela faixa de beira-mar do
Brasil.

Nordeste Agrário do Litoral — Foi por esta parte do território brasileiro que
começou a ocupação humana do Brasil; a economia açucareira, a princípio
com o engenho de açúcar e hoje com a usina, tornou-se o principal
responsável pela formação da sociedade agrária, de linhas aristocráticas, de
características patriarcais na organização da família. Caracteriza-se, do ponto
de vista étnico, pela maior mestiçagem entre brancos e negros, de que
resultaram o mulato e os tipos secundários, como o cabra, o pardo etc. Do
ponto de vista social, caracteriza-se pela função social, econômica,
demográfica e política da Casa-Grande, como símbolo do engenho de açúcar,
núcleo de exploração econômica que se tornou o principal centro regional.

Teve grande importância no Brasil colonial pela influência econômica e


social do açúcar. Com a exploração das minas, no século XVIII, e mais tarde
com o café, já no século XIX, entrou em declínio; contudo, a sociedade
procurou manter suas formas aristocráticas e escravagistas. Nos fins do
século XIX começou a transformar-se, do ponto de vista econômico, com a
usina, isto é, a grande industrialização do açúcar, que se acentuou a partir dos
fins da Primeira Grande Guerra. Surge então a figura do usineiro. Com a
usina acentuou-se a concentração fundiária. E a sociedade canavieira,
limitando-se a um grupo cada vez mais restrito, perdeu suas formas
características.

Mediterrâneo Pastoril — Aberto à ocupação humana com a expansão das


correntes litorâneas e onde a sociedade que se formou teve no vaqueiro o seu
tipo humano característico, inclusive por seu traje, como um dos três típicos
do Brasil. A mestiçagem desenvolveu-se entre brancos e índios, daí
resultando o mameluco, e em parte entre os brancos e negros e entre negros e
índios. Nessa região surgiram as mais fortes manifestações de misticismo
religioso, traduzido de diferentes formas; também é a região onde apareceu o
fenômeno do cangaceirismo, fruto do isolamento em que viviam as
populações, e que atualmente está inteiramente desaparecido. Entre o
cangaceirismo e o misticismo surgiram certos laços ou aproximações bastante
expressivas, sobretudo pelo que a poesia popular traduz em seus romances de
literatura de cordel.

Os currais e depois as fazendas de criação constituem o principal centro


social desta região, em cujo território outras características se foram
desenvolvendo de modo a criar novos aspectos culturais na região. Daí a
divisão que sugerimos desta região em quatro sub-regiões, mais ou menos
originadas de uma mesma expansão humana: a dos sertões, em que
predominou o exclusivismo da pecuária na parte realmente mais árida do
mediterrâneo; a dos babaçuais e carnaubais, ocupada pela extração do babaçu
e carnaúba, que desempenhou importante papel na respectiva ocupação
humana; a das terras úmidas, assim caracterizada pela existência de uma
pequena agricultura principalmente de subsistência dentro dos quadros áridos
de todo o conjunto regional, tornando essa sub-região verdadeiro oásis; e a do
agreste, em que se verifica a associação da criação de gado à agricultura em
condições propícias e sobretudo peculiares ao respectivo meio.

Amazônia — O domínio da floresta e da água marca-lhe a característica


física, pois foram elas — a floresta e a água — que condicionaram o processo
de ocupação humana e o modo de vida regional. Ainda hoje, neste ambiente,
mais do que em qualquer outro, a presença do indígena é fundamental,
básica, característica; é ele ou seu descendente, em alguns casos, produto
mestiço com o branco, que representa o tipo físico, de par com sua
participação em todas as atividades econômicas da região. O extrativismo, a
princípio das drogas, hoje da borracha, da madeira ou do castanheiro, marca o
estágio econômico da região. O seringal é o seu focal point, o centro social
mais expressivo, principalmente pelo modo de vida que se desenvolveu com
a extração da borracha, e cujo apogeu econômico marcou, de igual modo, o
apogeu social da região. A floresta e a água influíram na formação de mitos e
crendices, ao mesmo tempo que contribuem ainda hoje para a rarefação
demográfica.

O isolamento muito contribuiu para o atraso dessa sociedade, muito embora


nos primeiros anos deste século os centros urbanos — Belém e Manaus —
tivessem tido grande esplendor, com a riqueza proporcionada pela borracha.
Todavia, contrastando com o meio urbano — o das capitais —, a situação do
homem rural é a mais precária possível. Casa, de padrão o mais primitivo;
alimentação, a mais precária. As condições próprias do meio originaram uma
terminologia peculiar à região, enriquecida de termos adotados de outras
atividades para a vida na água e na floresta. “Montaria” é canoa, por
exemplo. O que, mais que qualquer outro traço, assinala esta região é a
presença do indígena; não é apenas participação no povoamento nem fato
histórico; é fato atual pela existência de grupos índios em contatos com as
populações locais já integradas na sociedade nacional. A herança indígena
está viva na alimentação, nas bebidas, nas crenças, no uso da rede, na
pajelança, na carne de jacaré, de tartaruga, de pirarucu, em técnicas de caça e
de pesca.

Mineração no Planalto — A ocupação se fez com a exploração dos minérios,


a princípio o ouro, depois os diamantes. Transposta a serra do Mar pelos
bandeirantes saídos de São Paulo, surgiu essa região que se caracteriza pela
formação dos arraiais de mineração, ambiente de riqueza, de fausto, de vida
social. Mamelucos, mulatos, reinóis, judeus, e não só paulistas e nordestinos,
participam do processo de formação humana. O mameluco foi o veículo
humano que, ao lado do elemento indígena, mais contribuiu — contribuição
essencial — para a vitória sobre a serra, alcançando o planalto. Criaram-se
nesta região condições culturais próprias, que caracterizaram a vida em fausto
e riqueza. Também aí brotou uma atividade intelectual intensa, a ponto de
Sílvio Romero chamar Ouro Preto “a Weimar brasileira”. Surgem também as
primeiras manifestações mais sólidas de vida urbana, irradiando-se dos
arraiais a formação de núcleos mais estáveis, com vida social e econômica de
cidade. A montanha contribuiu para marcar psicologicamente esta sociedade,
em cuja formação entraram elementos os mais variados; não só brasileiros de
São Paulo, do Nordeste, do Rio de Janeiro, também reinóis, ilhéus, judeus.
Em nossos dias, a região vem sofrendo grandes transformações. Mudança
significativa se assinala com a introdução de novos valores técnicos e
culturais, e sobretudo com o desenvolvimento da metalurgia, sob cuja
influência se verifica o processo de vida regional. Apesar dessas
transformações, e de novas formas de vida surgidas, conservam-se numerosos
hábitos tradicionais e os costumes do passado ainda persistem, ao lado de
outros mais modernos.

Centro-Oeste — A mineração abriu o processo de ocupação humana desta


região. Foi, porém, período de rápido esplendor, logo chegando à decadência
que levou as populações regionais a outras atividades: extração da erva-mate,
gado, pequena agricultura, sem prejuízo da continuidade de exploração
mineira. O elemento humano predominante foi o português, mestiçado com o
indígena. Sente-se hoje em dia a influência cultural das correntes de origem
espanhola, sobretudo paraguaios e bolivianos, na zona fronteiriça. Apesar de
conservar hábitos tradicionais, está passando por grandes transformações
sobretudo nos últimos anos com o surgimento de Brasília.

A construção da nova capital tem provocado o aparecimento de uma série de


novos agrupamentos humanos. Além disso, o japonês tem contribuído,
principalmente em área do Estado de Mato Grosso, para modificar hábitos
alimentares na população regional, sobretudo com o uso de verduras e
legumes. Há acentuado desnível entre as classes sociais. O caminhão tem
constituído um fator de introdução de novos valores culturais, de novas
idéias, e mais recentemente o avião.

Extremo Sul Pastoril — Teve sua formação originada da expansão de


correntes paulistas, nordestinas e fluminenses e de ilhéus, estes vindos no
século XVIII; a pecuária se tornou a sua principal atividade econômica, ainda
hoje persistente apesar de se diversificar a vida regional. A influência cultural
vizinha da Argentina e do Uruguai dá a essa região aspectos peculiares,
inclusive na linguagem bastante enriquecida de espanholismos. Grande foi a
influência dos colonos portugueses vindos das ilhas — açorianos,
principalmente. Acrescente-se que nesta região existiram as missões
religiosas, constituídas pelos padres da Companhia de Jesus; são conhecidas
como os Sete Povos das Missões, enquanto outras missões ou reduciones se
estendiam por território hoje argentino e paraguaio. Seu núcleo social mais
expressivo é a estância. Foi aí que surgiu o gaúcho, tipo humano e social
definido, portador de um dos trajes típicos do Brasil, de hábitos e costumes
que marcam culturalmente a região. À criação de gados dos primeiros
povoadores juntou-se a agricultura dos ilhéus. O cavalo é o elemento mais
representativo da vida regional, ligado estreitamente à vida do homem.
Também se assinala o aparecimento das charqueadas, onde melhor se
desenvolveu a presença do elemento negro escravo. Em que pese a pequena
contribuição populacional do africano nesta região, a mais tradicional e
característica lenda do Rio Grande do Sul é relacionada com a escravidão:
Negrinho do Pastoreio.

Colonização Estrangeira — Esta começa a surgir no século XIX, espraiando-


se por um território até então não ocupado pelas correntes brasileiras ou luso-
brasileiras. Sua ocupação humana deveu-se a correntes alienígenas,
inicialmente alemães e italianos, e depois poloneses, russos, árabes: mais
modernamente registram-se suábios, holandeses e japoneses, que se
espalharam por faixas vazias do Extremo Sul, já hoje com seus descendentes
emigrando para outras áreas. Marca-se pelas características culturais não
portuguesas, ou não luso-brasileiras, mas européias, ou seja, mais
particularmente alemãs e italianas. Embora se pudessem distinguir aí as zonas
do primitivo povoamento alemão e do povoamento inicial italiano, a região é
estudada em seu conjunto, sem distinguir a respectiva origem, e isso porque
apresenta, dado seu contraste com as demais regiões de origem luso-brasileira
ou já brasileira, esta característica comum. O processo de assimilação cultural
vem desenvolvendo-se com a troca de valores, a permuta de elementos, a
integração dos primitivos imigrantes e seus descendentes, criando, nessa
região, um modo de vida próprio.
Além de uma atividade agrária, que se baseou na pequena propriedade — os
lotes que eram concedidos a cada imigrante como lavrador —, desenvolveu-
se, nesta região, uma atividade industrial, cuja característica principal é seu
surgimento originado no artesanato rural. Imigrantes alemães e italianos
praticavam seu artesanato, que foi pouco a pouco crescendo, desenvolvendo-
se para atender às necessidades da comunidade em crescimento. Dele
progressivamente vai surgindo a industrialização. Fábricas de tecidos, de
objetos metalúrgicos, indústria química, indústria de couro e numerosas
outras assim se originaram. Artesãos europeus que tiveram oportunidade de
converter as suas oficinas em estabelecimentos industriais. Daí a grande
percentagem da participação do imigrante em atividades industriais da zona
de colonização: no Rio Grande do Sul ou em Santa Catarina, por exemplo. Os
estabelecimentos que formam o atual parque industrial dessa região nasceram
dessa transformação artesanal; a princípio, a família, os filhos como
aprendizes; depois, alguns aprendizes de fora, os primeiros operários, alguns
desses já com especialização de tarefas; mais tarde, aumenta o número de
operários, assinalando-se a diversificação de funções. E assim cresceu o
artesanato; cada estabelecimento se transformou em indústria, constituindo o
parque da região em nossos dias.

Café — Constituída pela expansão dos cafezais, que incrementaram, no


século XIX, a ocupação humana que se irradiou do Rio de Janeiro pelo vale
do Paraíba, alcançando Minas Gerais e São Paulo, daí se alastrando, já em
nossos dias, por terras do Paraná. Sua fase de esplendor foi marcada no
meado e nos começos da segunda metade do século XIX, distinguindo-se
dois momentos históricos que se assinalam de peculiaridades culturais: o da
exploração cafeeira pelo trabalho escravo (Rio de Janeiro, Minas Gerais e
parte de São Paulo) e o da exploração cafeeira pelo trabalho livre do
imigrante (Sul de Minas, parte de São Paulo). A fazenda de café, com sua
organização econômica e social, é o seu núcleo característico; dela irradia-se
a influência política, e não apenas social, das grandes figuras do Império,
chamados os Barões do Café: titulares, chefes de gabinete, ministros de
Estado, senadores do Império. Encontra-se em fase de grandes
transformações, sobretudo por dois fatores: a criação de gado introduzida nas
zonas decadentes de cafezais e a industrialização, que é o traço hoje mais
significativo do desenvolvimento econômico e social de São Paulo, do antigo
Distrito Federal e Rio de Janeiro, sobretudo no vale do Paraíba, já conhecido
como o “vale das Chaminés”.

Faixa Urbano-Industrial — Surgiu modernamente sobre zonas de antiga


ocupação cafeeira. É a região onde se apresentam as transformações sociais, e
não apenas econômicas, mais importantes do Brasil moderno. Formou-se em
virtude da expansão industrial no Estado do Rio, no de São Paulo e em parte
no de Minas Gerais. Dela têm decorrido influências na estrutura social da
faixa ocupada pela industrialização, em decorrência da introdução de novas
técnicas, novos costumes, novos modos de viver, relacionados principalmente
com as atividades industriais e com a urbanização. Não se caracteriza apenas
pela existência de indústrias de transformação de pequeno vulto, mas ainda
pela implantação de indústrias de base, de que se pode apresentar, como
exemplo. o complexo industrial de Volta Redonda com a atividade
siderúrgica.

Esta expansão industrial aliou-se ao surto urbano que se verificou justamente


neste espaço regional: foi o crescimento urbano do Rio de Janeiro, então
capital da República, que, a partir do começo do século, sentiu um processo
de transformação urbana que não parou mais. E que iria influir em sua
vizinhança, aliando-se ao não menor surto urbano de São Paulo — cidade
que, já nos fins do século XIX, iniciava seu ritmo de progresso com a
transformação que sofreu em sua característica física e na formação cultural.

Ao contrário do verificado na região de colonização estrangeira, a


industrialização nessa região teve base no capitalismo, isto é, surgiu com a
aplicação de capitais; criou-se a indústria, abrindo-se um estabelecimento
com número já relativamente grande de operários, empregando-se capitais
específicos em seu desenvolvimento. Houve, aliás, alguns aspectos
particulares, que merecem mencionar-se: a) — a transformação de
agriculturas em indústrias; b) — sendo inicialmente de simples transformação
de matéria-prima, a atividade alargou-se depois à grande indústria, e chegou
em nossos dias à indústria de base; c) — a participação do imigrante, seja
como trabalhador operário, pois representou mão-de-obra disponível para
essa atividade nova, seja como industrial aplicando capitais reunidos, que
permitiriam ampliar essa primeira experiência em experiências mais largas;
d) — a aplicação de capitais públicos no desenvolvimento dessa
industrialização, sobretudo na fase da grande indústria, com a criação do que,
aplicando a terminologia de Chardonnet, podemos chamar de “complexos
industriais autárquicos”. Esse processo de industrialização se inicia nos fins
do Império e começos da República, incentivando-se, porém, a partir da
Primeira Grande Guerra. São Paulo e Rio de Janeiro constituem os principais
centros desse desenvolvimento industrial, ligando-se as duas cidades pelo
crescimento industrial através do vale do Paraíba; nele justamente é que
surgiu a grande indústria siderúrgica simbolizada em Volta Redonda.

A estas regiões, três outras se poderiam acrescentar, pelas características


próprias que as assinalam, embora não se possa considerá-las independentes
como as anteriormente citadas. São elas: a do Sal, a do Cacau e a da Pesca.

A do sal se situa na área do Nordeste e no Estado do Rio de Janeiro, em


faixas litorâneas, onde o sal marítimo é explorado economicamente. Contudo
não são estas duas faixas — embora com as características próprias que
culturalmente marcam sua atividade — propriamente regiões culturais, tal
como as anteriormente consideradas.

É que ainda estão presas às regiões mais amplamente fixadas em que se


inserem, delas recebendo influência; e a elas ligadas por vários traços
justamente culturais.

O que ocorre também com a do cacau. Apesar da exploração cacaueira ter


características próprias, tanto na vida social — e romances de Jorge Amado
lhe traçam o perfil muito claramente — como na técnica da atividade
econômica, na verdade esta possível região é muito ligada à do Nordeste
agrário, da qual se poderá dizer, quando menos, que é um prolongamento. De
modo que, possuindo embora certas características próprias, dela
exclusivamente, não foge de ter manchas bem nítidas da região do Nordeste
agrário, da qual recebe forte influência.

Da mesma forma sucede com a pesca. Espalhada por todo o litoral, do Norte
ao Sul, vivendo de uma atividade que se define por traços próprios, por
técnica exclusiva, na realidade é influenciada pela região maior — a da
Amazônia, a do Nordeste agrário, a do Café, a do Sul Pastoril, a Urbano-
Industrial — em cujo litoral se desenvolvem suas atividades próprias. Suas
técnicas, especificamente a pesca no mar, têm, entretanto, variedades quanto
ao uso de embarcações, ou quanto aos instrumentos de pesca, por exemplo.
O quadro delimitatório de regiões culturais do Brasil que acabamos de
apresentar não tem, nem poderia ter, caráter estático; ao contrário: é
profundamente dinâmico. Cada uma das regiões indicadas vive o seu
processo de transformações. Nenhuma delas se pode dizer seja integralmente
uma parcela do Brasil arcaico; e mesmo a que se possa considerar mais
adiantada seria a rigor enquadrada exclusivamente num Brasil moderno. O
que se verifica é que as transformações atingem as regiões, ou cada uma
delas, em particular, às vezes de forma desigual, e sempre sem cobrir toda a
sua área.

De modo que, dentro desse quadro aqui exposto, poderemos considerar as


regiões culturais do Brasil como um sistema de vida em que a diversidade
proporciona a unidade; seria, enfim, “o equilíbrio de contrastes” que nas
diferentes regiões consideradas oferecem o panorama da vida brasileira. O
Brasil constitui, acima de tudo, esse- complexo de regiões, que através de
uma paisagem variada, do ponto de vista físico, suscita também uma
diversidade de aspectos, do ponto de vista cultural.
Alguns alienígenas no período
colonial

NÃO há negar hoje em dia que traços ou complexos de cultura integrantes da


formação brasileira ou característicos, como valores de cultura, do Brasil
moderno nos vieram, em grande parte, dos indígenas, da participação não
menos expressiva do negro africano como escravo, e fundamentalmente do
português; do português, aliás — deve dizer-se —, foi a base essencial,
constituindo-se, sobretudo, o esteio ou suporte a que os outros grupos se
adaptaram ou se incorporaram.

Se aqui destacamos estes três grupos que foram os fundamentais, não quer
dizer que tenham sido exclusivos. Ao contrário: outros grupos alienígenas,
desde cedo, participaram, em menor escala, é certo, dos processos de relações
de raça e de cultura no Brasil. O francês, o espanhol, o holandês, o judeu, por
exemplo, quase sempre, sobretudo os três primeiros, em áreas mais ou menos
determinadas: no Sul, um pouco em São Paulo, e muito no que é hoje o Rio
Grande do Sul, o espanhol; no Nordeste, o holandês; em pontos esporádicos
do Nordeste e do Leste, o francês. Por toda parte, o judeu.

São grupos étnicos estes que já nos começos do período colonial, e, pois, na
fase que poderíamos chamar plástica da formação brasileira, tiveram contato
com as populações luso-brasileiras. A esses elementos devemos pinceladas
não raro bem nítidas na formação étnica do brasileiro; do espanhol, em
particular, grande foi a contribuição na área Sul do país. Mesmo em São
Paulo, nos começos da colonização, sua presença foi marcante, aparecendo
de sobrenome espanhol numerosas famílias paulistas ainda hoje ostentando
nas genealogias sua origem hispânica: Bueno, da Ribeira, Camargo, Quadros,
Aguirre, Rondón, Lara, Ponce de León, Godoi, Aguilar. E muito Martínez se
abrasileirou em Martins, Pérez em Peres, Fernández em Fernandes. No
Extremo Sul, pela vizinhança com as colônias de Castela, a influência
espanhola foi grande, e notável se tornou sua contribuição não só étnica como
também cultural ao brasileiro daquela região.

Como espanhol entendam-se os elementos do então reino de Castela, falando


uma língua comum — o castelhano —, enriquecida embora por formas
dialetais várias, e que para aqui se transferiram. Nestes primeiros tempos o
castelhano ou espanhol que veio para o Brasil era geralmente da Extremadura
e da Andaluzia, especialmente de Sevilha; vieram também de Galiza e de
outras províncias da moderna Espanha.

A vizinhança com as colônias espanholas fez com que a participação desses


elementos se desse principalmente nas regiões de fronteira; foi sobretudo no
Rio Grande do Sul que mais sensível se verificou esta participação. E como
sua vinda para a América, na tarefa de colonização dos domínios de Castela,
se deu na mesma época da colonização portuguesa no Brasil, não é de
estranhar que espanhóis tivessem penetrado e se fixado em território luso-
brasileiro. É certo que se apresentava bastante rigorosa a fiscalização lusitana
contra estas entradas; na região do Sul do Brasil a situação se tornava
delicada pela convergência de interesses lusitanos e castelhanos em torno da
bacia do Prata. Aí espanhóis defendiam a posição estratégica que o rio da
Prata representava. Contudo, contrabandos entre a possessão castelhana e o
Brasil se verificavam, sendo de notar-se que, em fins do século XVI e
princípios do XVII, Buenos Aires se apresentava mais como burgo português
que espanhol.

Os holandeses tiveram contato com os elementos luso-brasileiros ainda nos


primeiros tempos da colonização. Inicialmente, na área amazônica, até onde
tentaram penetrar, dando começo, com os ingleses, à lavoura canavieira e à
indústria de açúcar, sendo de lá expulsos pelos portugueses; depois com a
ocupação do Nordeste, a partir de 1630 e até 1654, quando, em definitivo,
foram expulsos. Já em 1624 os flamengos ameaçaram a Bahia; em 1630
invadiram Pernambuco e aí se instalaram. O açúcar foi o motivo principal da
preferência holandesa pela região nordestina.

O holandês, como grupo étnico, origina-se de antigos povos germânicos,


surgindo do país em formação, a Holanda ou Netherlands, os Frísios, os
Beucteres e os Batavos, estes últimos os mais importantes. Mais tarde novos
grupos se mesclam aos primitivos, constituindo-se as variedades étnicas
conhecidas como flamengo, ou neerlandês, ou holandês, ou batavo. De modo
que qualquer uma destas palavras passou a ser usada como sinônimo dos
povos que habitavam a Holanda ou Países Baixos.

Foram estes povos que ocuparam o Nordeste, e o fizeram com caráter


inteiramente comercial. Em consequência, os principais elementos para aqui
vindos eram comerciantes, mercadores, funcionários da Companhia das
Índias Ocidentais, colonos entrados como “homens livres”; ao lado deles
aparecem aventureiros, soldados, mercenários etc. Em conjunto, porém, o
que ressalta é o elemento urbano, o citadino. Entre os cidadãos livres vêm
franceses, escoceses, irlandeses; entre aventureiros ou mercenários aparecem
alemães, judeus etc. Assim na totalidade do grupo holandês figuram
elementos de várias nacionalidades; e figura, sobretudo, o judeu.

Do holandês, embora se possa afirmar que a influência étnica ou


antropológica foi pequena, deve lembrar-se, entretanto, que houve numerosos
casamentos de flamengos com brasileiras ou portuguesas. Como, entretanto,
os holandeses se fixaram preferentemente na área urbana, que foi sobretudo a
dominada pelos invasores, com a expulsão inclusive de numerosos elementos
casados com gente da terra, verificou-se a extinção dos intercruzamentos e,
em consequência, o desaparecimento de traços somáticos da etnia holandesa.
Alguns traços de cultura, porém, ficaram; entre eles, o tipo de sobrado
recifense, esguio e comprido de frente a fundo, o telhado em duas águas, o
sótão, o emprego do tijolo em maior escala do que até então.

A alimentação caracterizou-se pela entrada de artigos importados, não só


holandeses como de outros países: vinhos franceses, bacalhau da Terra Nova,
toucinho moscovita, diversos gêneros da Holanda. Daí vinha quase toda a
dieta do invasor — aveia, carne salgada, ervilhas, manteiga; o holandês não
foi um elemento como o português que se adaptasse ao consumo dos gêneros
regionais. Não revelou tal capacidade de adaptação. Daí, por vezes a crise de
gêneros verificada, pela escassez dos produtos locais, ou pela ausência dos
elementos importados.

A língua holandesa, de uso familiar ou comum no Recife ocupado, não


deixou influência marcante na linguagem da região; poucas palavras se
tornaram comuns. E assim mesmo esmaeceram-se, sob a influência da
linguagem falada, abrasileirando-se inteiramente, até perder mesmo seu
sentido primitivo. O que ficou foi a lembrança de sua passagem pela região,
para justificar tudo aquilo — construção, templo, coisas para que não se tem
explicação — como reminiscência holandesa: é obra do tempo dos
flamengos.

Os franceses constituem outro grupo europeu que desde cedo manteve


contato com os aborígenes brasileiros. Admite Anchieta que já em 1504 os
franceses estavam de relações estabelecidas com grupos indígenas,
comerciando pau-brasil. Principalmente na área entre Paraíba e sul da Bahia,
foi nos primeiros tempos onde mais se amiudou a presença do francês; mais
tarde essa presença teve caráter de uma tentativa mais permanente no
Maranhão, cuja capital ainda conserva hoje o nome do Rei de França, que os
invasores lhe deram, e no Rio de Janeiro, onde tentaram estabelecer a França
Antártica.

O francês, como se sabe, é um grupo étnico bastante mesclado, figurando em


sua constituição antropológica marcas de vários outros grupos mais antigos;
constitui o francês, na realidade, um “complexo étnico”. Sua participação
étnica no Brasil, apesar dos contatos com indígenas em vários pontos —
contatos quase sempre rápidos ou transitórios —, é absolutamente nula, pois
se houve produtos mestiços de francês com indígena diluiu-se na evolução
étnica, através dos tempos, pela falta de continuidade.

Influência cultural francesa no Brasil, entretanto, somente vamos encontrar


no século XIX, e sobretudo na esfera intelectual e social. Aqui vale destacar
particularmente a importância que teve o francês nos primeiros tempos da
colonização, quando houve momento — registrou Capistrano de Abreu —
em que seria duvidoso dizer se o Brasil continuaria luso ou se se
transformaria em francês. Esta luta pelo domínio da terra ficou nas narrativas
históricas e gravou-se também na toponímia: portos dos franceses eram
vários no litoral, e deles alguns ainda conservam o nome.

O judeu foi elemento que se espalhou pelo território brasileiro com aquele
seu admirável senso de mobilidade e quase de ubiquidade; o comércio entre
os núcleos rurais e urbanos, nos primeiros séculos, esteve quase
exclusivamente em suas mãos; comerciavam como “mascates”, e muitos
deles enriqueceram tomando-se proprietários de engenhos de açúcar.
Um documento de 1536, e que serviu ao visitador do Santo Ofício ao Brasil,
permite conhecerem-se os traços ou sinais de suspeição dos judeus. Resumiu-
o o Prof. Roquette Pinto, em seu estudo sobre “Os Sinais da Suspeição”, nos
seguintes termos: “Deviam ser denunciados os que guardavam o sábado, não
trabalhando e vestindo-se com roupas e ‘joyas’ de festa, alimpando-se às
sextas-feiras ante suas casas, acendendo, à tarde de tais dias, candeeiros
limpos, com mechas novas, deixando os que por si mesmo se apagassem; os
que matassem carne’ e aves degolando-os ‘ao modo judaico’,
experimentando, primeiro, na unha do dedo da mão o fio do cutelo; os que
não comessem toucinho, nem lebre, nem coelho, nem peixe de couro; os que
fizessem ‘oração contra a parede, sabadeando, abaixando a cabeça e
alevantando-a’; os que banhassem os defuntos, cortando-lhes as unhas e
guardando-as, derramando a água de todos os cântaros da casa; os pais que
deitassem a bênção aos filhos pondo-lhes as mãos sobre a cabeça; os que
depois do batismo limpassem os filhos dos santos óleos por eles recebidos.
Os jejuns, as cerimônias da Páscoa, a circuncisão e outras práticas usuais dos
israelitas, evidentemente, deviam também ser denunciadas. Mas não eram,
esses, simples sinais de suspeição; eram provas”.

No século XVII os judeus começaram a entrar em maiores proporções no


Brasil, já em grupos. O domínio holandês, onde estava ausente o Santo
Ofício, facilitou essa entrada em grupos. Com a expulsão dos holandeses
dispersaram-se os judeus; uns saíram para Amsterdam, outros para as
Antilhas, a América do Norte (Nova Iorque, Filadélfia...) e outros pontos.
Muitos, entretanto, permaneceram no Brasil, embora perseguidos,
suspeitados, escondendo-se, até que o Marquês de Pombal acabou com a
separação e proibiu as perseguições. Esses judeus Sephardim, a partir de
então, tiveram facilitado o processo assimilativo.

O judeu, como se sabe, não oferece nenhuma homogeneidade étnica; não há


raça judia, mas tipos ou grupos judeus. Diversificados embora nos traços
étnicos, guardam unidade social e religiosa. A unidade do grupo é, pois, de
fundo espiritual e cultural. Etnicamente, os judeus correspondem aos tipos
étnicos dos países onde se encontram, com os traços específicos de sua
situação particular: o afastamento social, a adaptação alimentar, os hábitos de
vida. Daí as variações do tipo físico do judeu.
Um outro grupo étnico também deve ser assinalado como presente nos
processos de mestiçagem e de transculturação no Brasil: o cigano. Temo-lo
aparecendo aqui desde cedo, quer reproduzindo-se entre si, quer cruzando-se
com outros grupos. Admite Melo Morais Filho que ele foi “a solda que uniu
as três peças de fundição da mestiçagem atual do Brasil”. Se bem se nos
afigure algo exagerado esse papel atribuído ao cigano, é fora de dúvida,
entretanto, que se lhe deve alguma participação na formação étnica e cultural
do brasileiro.

No período colonial aparecem ainda outros elementos alienígenas: italianos,


alemães, ingleses. São, entretanto, contribuições de natureza puramente
individual, participação de um homem ou de uma figura, como é o caso de
vários missionários religiosos e de viajantes ou cientistas que andaram pelo
Brasil. Como corrente migratória ou de influência cultural ponderável, antes
do século XIX, porém, não se podem considerar.
Os grupos indígenas, suas origens e
classificação

O ESTUDO dos indígenas brasileiros, quanto à sua origem, não se pode


isolar do quadro do indígena americano, em geral. Teorias diversas, umas
pela unicidade da corrente povoadora, outras pela pluralidade destas
correntes, procuram explicar as origens étnicas do homem americano. Dois
grandes nomes se apresentam à frente dos grupos de estudiosos que
defendem estas teorias: Hrdlicka, batendo-se pela existência de uma corrente
povoadora única, e Paul Rivet, pela pluralidade dessas correntes.

Hrdlicka, partindo da existência de uma raça única dos indígenas americanos,


acredita em sua origem mongolóide, tendo vindo à América de regiões
setentrionais da Ásia oriental. O caminho desta penetração foi o estreito de
Behring, então um istmo unindo o Extremo Noroeste da América ao Extremo
Nordeste da Ásia. Os postulados fundamentais da teoria de Hrdlicka podem
resumir-se nos quatro seguintes:

l. o homem americano, apesar de pequenas diferenças que possam existir


entre os diversos grupos, é racialmente uniforme;

2. os primitivos povoadores da América procederam totalmente da Ásia;

3. a entrada desses primitivos povoadores se efetuou por uma rota única, a


do estreito de Behring;

4. estes asiáticos, ao chegarem à América, eram portadores de uma única


cultura, de tipo inferior, produzindo-se seu ulterior desenvolvimento e
subsequente diversificação cultural já no continente americano.

Outros autores, indo além, acreditam haver no indígena americano outras


procedências e não a exclusivamente asiática. Entre eles é de destacar Paul
Rivet, que baseando-se em provas antropológicas, culturais e linguísticas,
encontra quatro grandes correntes migratórias: um elemento asiático — aliás
universalmente reconhecido —, mais importante entre todos os grupos, do
qual se derivam certa uniformidade no aspecto étnico e determinadas
características culturais do indígena americano; um elemento australiano, de
que são principais remanescentes os índios Patagões e Onas; um elemento
malaio-polinésio aproximado, por seus caracteres físicos, dos melanésios, e
verificado por semelhanças etnológicas e pela reconhecida capacidade de
navegação desses povos; e um elemento esquimó, de origem uraliana, vindo
pelo Ártico.

A posição do problema, ainda em debate, pode resumir-se nas seguintes


palavras de Arthur Ramos: “De um modo geral, o índio do Novo Mundo é
considerado uma variante da raça ‘mongólica’, embora mais recentemente,
como vimos, se admitam influências de outros grupos raciais”. A estas
palavras se pode acrescentar a observação de que, embora de difícil solução
definitiva e imediata, os estudos empreendidos, as pesquisas realizadas, as
comparações culturais, físicas ou linguísticas já efetuadas evidenciam, em
primeiro lugar, a origem asiática e, em segundo lugar, a existência de mais de
um grupo asiático nesse povoamento pré-hispânico da América. É o que
demonstrou, em livro recente, o professor Salvador Canais Frau.

Para o professor Canais Frau, baseado no que chama realidades


paleogeográfica, antropológica, etnográfica e linguística, fixam-se em quatro
as correntes pré-históricas de povoamento da América, quer dizer, os grupos
de onde se originou o indígena americano. Estes grupos são:

1. dolicóides primitivos de cultura inferior;

2. canoeiros mesolíticos;

3. braquióides de cultura média;

4. polinésios de alta cultura.

Estes quatro grupos chegaram ao continente americano por caminhos


diferentes, embora os dois primeiros, de uma parte, e os dois últimos, de
outra parte, tenham percorrido, se bem que em períodos diversos, quase as
mesmas rotas: aqueles no Extremo Norte do continente, estes chegando, com
pequenas modificações de caminho, no meio e quase ao Extremo Sul. A estes
quatro grupos, já na época histórica, agregaram-se pequenas contribuições
antropológicas e culturais, que se situaram no Nordeste do continente.

De particular importância para o estudo do indígena brasileiro é a terceira


corrente; dela saiu o conjunto de populações mais ou menos braquióides de
cultura média, que se estendem pelas regiões tropicais do Norte e do Sul. O
principal centro deste grupo, ao ver do professor Frau, não está longe do atual
Panamá, em cujas regiões próximas ao istmo se têm encontrado grupo mais
compacto de indígenas com caracteres físicos semelhantes e maior número de
elementos culturais de remota origem neolítica. As famílias linguísticas
Aruaque, Caribe e Tupi-Guarani, além de outros grupos, como os Pano,
Tucano, Jivaro e outros menores, igualmente procedem desta terceira
corrente de povoamento pré-hispânico. Tanto daquelas três famílias como de
outros grupos encontraram os descobridores tribos espalhadas pelo Brasil.

Se dele procedem as tribos brasilianas, claro que interessa conhecer mais


pormenorizadamente as características somáticas e culturais que apresenta
esse grupo de cultura média. Sua área de domínio abrange uma larga
extensão territorial: ocupa a área central e setentrional da América do Sul.

No grupo das Antilhas, que já se extinguiu, os Aruaques eram o elemento


mais representativo; estes indígenas ocupavam uma área territorial que vinha
das Antilhas a embocadura do Plata e do Equador oriental até a costa
atlântica. Seu centro de formação e dispersão foi a bacia amazônica. De
cultura superior aos Tupis-Guaranis e aos Caribes, foram, entretanto,
subjugados por estes últimos.

A expansão desse grupo deu em consequência um grande mestiçamento, pela


exogamia existente. Igualmente usavam extinguir os grupos inimigos,
matando os homens e incorporando as mulheres dos vencidos ao seu grupo.
Em decorrência disso tudo, houve grande mestiçagem, surgindo daí tipos
dolicóides entre os braquióides.

O Aruaque dominou os vales do Amazonas e do Orenoco, por aí se


dispersando os povos desta língua. As tribos mais representativas desta
família existentes no Brasil são, entre outras, os Tariana, Manaus e Baniva,
no Norte do Amazonas; os Arauás, Parecis, Mojos, Iamamandis, Ipurinás, no
Sul do Amazonas; os Guanás, Terenos, Laianás, em zona mais meridional.
Os Caribes foram família também muito estendida; seus povos se agrupavam
principalmente na Venezuela, nas Guianas e ao Sul e ao Este do Amazonas.
As principais tribos dos Caribes situadas no Brasil são os Motilones, Umanas,
Pebes, Pimenteiras, Apiacás, Palmelas, Bocairis.

Os Tupis-Guaranis, por sua vez, ocupando igualmente larga área territorial,


dividem-se em quatro grupos principais:

1. o setentrional, com as tribos Oliampis (únicos povos tupis ao Norte do


Amazonas), Omáguas, Cocanas, Iurimaguas, no alto Amazonas;

2. o do Sul do Amazonas, que é o grupo compacto e numeroso, com os


Parintintins, Tapanhunas, Mundu- rucus, Maués, Auetos, Canoeiros,
Tapirapés, Guajiros etc.;

3. o da costa atlântica, onde foi encontrada, pelos descobridores, uma série


numerosa de tribos hoje já quase inteiramente desaparecidas, tais como os
Tupinambas, Tupis, Carijós, Tapes etc.;

4. o do Paraguai e Chaco, cujo povo mais importante é o Guarani,


contando-se ainda os Guaiaquis, Chiriguanos etc.

Conhecidas assim, de modo geral e sumário, as origens dos indígenas


brasileiros, passaremos a examinar o desenvolvimento dos estudos referentes
à sua classificação. Pois um aspecto desde logo a ressaltar é a diversidade de
condições culturais que apresentam esses grupos indígenas, com
características alguns deles que os definem perfeitamente no quadro
brasileiro.

A classificação dos indígenas brasileiros tem sido feita com base na


linguística. Primitivamente estabelecem-se dois grandes grupos: os Tupis e os
Tapuias, este último termo tupi que significa os grupos não-tupis, o que
modernamente se verifica ser uma impropriedade. Esta classificação feita nos
meados do século XVI, pelos padres jesuítas, perdurou pelos séculos afora.
Só no século XIX, em sua primeira metade, reagindo contra essa
classificação dual, Martius estabeleceu nove grupos indígenas brasileiros:
Tupi e Guarani; Jê ou Tapuia; Guck ou Coco; Grens ou Guerens; Pareci ou
Porugi; Goitacás; Aruaque; Lenguas ou Guaiano; índios em transição para a
cultura e a língua portuguesa. Martius tomara por base a língua, embora não
desprezasse outros elementos culturais; mas, em relação à língua, ele se
deixou levar, em grande parte, por uma falsa idéia a respeito da extensão do
tupi.

Criticando esta classificação, pelo estudo mais particularizado de certas


línguas ou dialetos, Von Den Steinen sugeriu, nos fins do século XIX, nova
classificação, distribuindo os indígenas em oito grupos, a saber: Tupi; Jê;
Caribe; Nu-Aruaque ou Maipure; Goitacá (Waitaka); Pano; Miranda;
Guaicuru (Waikuru). Posteriormente, em face de novos estudos, o próprio
Von Den Steinen considerou os quatro primeiros grupos como
definitivamente estabelecidos, ao passo que os restantes os incluía em quadro
sujeito a revisões futuras.

A esta classificação seguiu-se a de Ehrenreich, companheiro de Von Den


Steinen, em sua segunda viagem no Brasil. Tentou uma divisão dos indígenas
sul-americanos em três províncias etnográficas, na primeira das quais se
compreendia o Brasil, com as três grandes famílias linguísticas: Tupi-
Guarani, Aruaque e Caribe. Nesta e na classificação anteriormente referida de
Von Den Steinen, é que se têm baseado as sugestões posteriores.

Destas merece destacar-se a de Rodolfo Garcia, que estudou, com base na


linguística, além dos quatro grupos definitivamente classificados, mais os
seguintes: Cariri, Pano, Goitacá e Guaicuru, Borôro, Carajá e Trumaí, índios
da serra do Norte (Nhambiquara); Betóias ou Tucano, Tacanas, Pebas,
Cahuapanas, Catuquinas e Macus. Mais modernamente, em sua obra já
clássica sobre a Antropologia brasileira, o professor Arthur Ramos fixou-se
nos quatro grupos definitivamente aceitos e mais os seguintes, de
identificação ainda não perfeita ou estabelecida: Borôro; Nhambiquara;
Carajá e outros grupos menores. Observava Arthur Ramos que estas
classificações ainda se apresentam incompletas, devendo processarem-se
mais aprofundados estudos, que permitam esclarecer as características
culturais de modo a identificá-las de maneira mais ampla, e não apenas com
base na linguística.

Modernamente deve-se ao professor Aryon Dall’Igna Rodrigues a


classificação mais completa, se não mais cientificamente elaborada, acerca
dos troncos, famílias e línguas indígenas no Brasil. Esta contribuição se pode
considerar basicamente como ponto de partida para qualquer estudo da
contribuição do indígena. É a seguinte:

a) TRONCO TUPI —

Família Tupi-Guarani;

Família Juruna: língua dos Juruna;

Família Arikém: língua dos Karitiana;

Família Tupari: língua dos Tupari;

Família Ramarama: língua dos Uruku e Arara; Família Mondé: línguas dos
Digut e Cinta-Larga; Família Puruborá: língua dos Puruborá.

b) TRONCO MACRO-JÊ —

Família Jê;

Família Maxacali; língua dos Maxacali;

Família Fulniô: língua dos Fulniô;

Família Borôro: língua dos Borôro;

Língua ainda não classificada em família: língua dos Karajá.


c) TRONCO ARUAK —

Família Arauá: língua dos Kulina, Dani, Yamamadi, Paumari e Jarauára;

Família Aruak: línguas dos Maniteneri, Kampa, Apurinã, Baniwa,


Mandawaka, Wapitxana, Arikyana, Urukuyana, Palikur, Terêrta, Waurá,
Yavralapiti, Mahinaku e Paresi.

d) FAMÍLIAS AINDA NÃO CLASSIFICADAS EM TRONCOS: —

Família Karib: línguas dos Mayongong, Taulipang, Makuxi, Parukotó-


Xaruma, Pianokotó-Tiriyó, Aparai, Arara, Galibi, Matipuhy, Txikão e
Bakairi;

Família Tukano: línguas dos Tukano, Wanana, Tariana e Kobewa;

Família Pano: línguas dos Karipuna, Yamináwa, Kaxináwa, Poyanáwa,


Marubo, Máya e Tamanáwa;

Família Xirianá: língua dos Guaharibo, Pakidai, Waiká e Xirianá;

Família Txapakura: línguas dos Urupá e Pakaá-nova;

Família Mura: língua dos Mura-Pirahã;

Família Makú: língua dos Makú;

Família Nambikwara: língua dos Sabanê, Nambikwara, Mamaindê,


Manairisú, Sararé;

Família Guaikuru: língua dos Kadiwéu.

e) LÍNGUAS AINDA NÃO CLASSIFICADAS EM FAMÍLIAS —

Línguas dos Arikapú, Katukina, Guató, Trumai, Erigpactsá e Irantxe.


f) GRUPOS SOBRE CUJAS LÍNGUAS AINDA NÃO HÁ
INFORMAÇÃO —

Morerebi, Orelha-de-Pau, Guajá, Agavotukeng e Ipewi.

A esta classificação o etnólogo Júlio Cezar Melatti apresentou, mais


recentemente, algumas adaptações; mantendo, de modo geral, os grupos
sugeridos, acrescentou mais um: o de grupos que deixaram de falar língua
indígena: Karipuna, Galibi-Mawôrno, Potiguara, Kambiwá, Huamué ou
Aticum, Pankarará, Pankararú, Xukuru-Kariri, Tuxá, Kaimbé, Kiriri, Pataxó e
Guerem.

De fato é de verificar-se que todas as classificações até hoje apresentadas têm


tomado como ponto de partida a linguística; nota-se a ausência de
classificação de base cultural. Todavia os estudos já desenvolvidos,
principalmente através de pesquisas monográficas, que se devem a etnólogos,
antropólogos e sociólogos alemães, italianos, franceses, americanos e
brasileiros permitem um conhecimento, em melhores condições, de aspectos
culturais dos mais importantes grupos indígenas; em particular dos quatro
grupos classicamente reconhecidos, e ainda de outros, como os Borôros,
Nhambiquaras, Carajás, Cariris, Guaicurus, Goitacás etc.

Daí a valiosa contribuição que se deve ao etnólogo Eduardo Galvão, ao


apresentar à Reunião Brasileira de Antropologia (Curitiba, 1959) uma
distribuição do indígena brasileiro segundo áreas culturais. É estudo que
constitui hoje parte indispensável de referência para se conhecer, em seus
aspectos culturais mais amplos, o elemento indígena, identificado segundo
áreas culturais por ele ocupadas. É o seguinte o quadro de Galvão:

I — NORTE-AMAZÔNICA (com três subáreas) :

a) — Guiana Brasileira — Grupos Karib;


b) — Savana (Rio Branco e Cauaboris) — Grupos Xirianá;

c) — Rio Negro — Grupos Aruak-betoya.

II — JURUÁ-PURUS: Grupos Aruak, Pano e Katukina;

III — GUAPORÉ: Grupos Txapakura, Tupi, Nambikwara;

IV— TAPAJÓS-MADEIRA : Grupos Tupi;

V — ALTO XINGU: Grupos Tupi, Aruak, Karib Jê (intrusivo antigo), Tupi


impuro (intrusivo recente);

VI — TOCANTINS-XINGU : Grupos Jê, Tupi, Isolado, Otüke;

VII — PINDARÉ-GURUPI : Grupos Tenetehára, Urúbu-Kaapor e Tupi;

VIII — PARAGUAI: Grupos Mbaya e Aruak;

IX — PARANÁ: Grupos Guarani;

X — TIETÊ-URUGUAI : Grupos Jê;

XI — NORDESTE: Grupos Camijó, Tupi, Pankararu, Kariri e Maxacali.

As principais tribos encontradas pelos portugueses foram: as dos Tupinambás


e Tupiniquins na faixa baiana, sendo que aqueles também se estendiam pela
região maranhense; dos Caetés e Tabajaras, na região pernambucana; dos
Potiguaras na área litorânea nordestina (Ceará e Rio Grande do Norte); dos
Taramambé, mais no litoral paraense: dos Tamoios, no litoral de São Vicente
e Rio de Janeiro; dos Tupis e dos Guaranis, mais ao sul; dos Tupinas e
Amoipiras, no interior nordestino. Além das citadas, primeiras com as quais
se deram os contatos lusitanos, muitas outras tribos, seguidamente, entraram
em relações com os colonizadores.

Este processo de relacionamento foi se desenvolvendo no correr dos tempos à


proporção que a expansão do povoamento ia estabelecendo contatos com
novas tribos. A partir dos começos do século atual, as populações indígenas
encontraram na figura do General Rondon — Cândido Mariano da Silva
Rondon —, descendente de indígenas, um trabalhador incansável pela
incorporação das populações aborígenes à vida nacional. Por iniciativa sua
criou-se o Serviço de Proteção aos índios, hoje transformado na Fundação
Nacional do índio (FUNAI), e estabeleceram-se princípios e normas para o
contato e o relacionamento do elemento indígena com a população nacional.

O tipo de contato, evidentemente, tem variado, de um lado pela integração de


grupos indígenas, de outro lado pela maneira como outros grupos se isolam
de qualquer contato com as populações rurais. O etnólogo Darcy Ribeiro,
considerando os tipos de contatos das populações indígenas com a sociedade
nacional, reconheceu existirem quatro categorias quanto ao grau de
integração do indígena à sociedade nacional. São eles os seguintes: 1)
intearados (índios incorporados como mão-de-obra ou produtores
especializados): 2) contatos permanentes (contatos diretos e permanentes com
a comunidade nacional); 3) contatos intermitentes (relações ocasionais com a
comunidade nacional): 4) isolados (contatos acidentais com a população neo-
brasileira).

Em 1973 através da lei n.° 6.001 de 19 de dezembro, foi aprovado o Estatuto


do índio, com o qual se estabeleceu uma legislação própria em relação ao
indígena; neste Estatuto as categorias de Contatos Permanentes e Contatos
Intermitentes foram englobadas em uma única, denominada de índios em
Vias de Integração.
O que os indígenas nos legaram

QUANDO falamos em influências culturais indígenas estamos incorrendo


numa generalização perigosa; não foi somente com uma tribo que os
colonizadores e, depois, os colonos tiveram contatos ou relações, mas com
tribos de várias famílias ou grupos, portadores de culturas entre si mais
diferentes que semelhantes. Daí falarmos sempre em indígenas, nos vários
grupos com os quais houve contato de portugueses, e não em indígena ou em
uma única tribo ou grupo brasileiro.

O estudo mais particularizado das características culturais dos nossos grupos


indígenas, situando-as ao tempo da descoberta, evidencia que cada um deles,
ou pelo menos os que já estão suficientemente ou claramente mais definidos,
apresenta elementos que os individualizam. É certo que, entre as tribos do
grupo tupi, as semelhanças de língua e de outros valores culturais permitem
encontrar-se um certo grau de aproximação, embora não de unidade; mais
particularmente foi com estes grupos — os tupis — que se tomaram mais
íntimas as relações luso-indígenas.

De modo que os traços ou complexos culturais de origem indígena que


penetraram na formação da cultura luso-brasileira, interpenetrando-se com os
trazidos pelos colonizadores, são quase sempre de tribos tupis. Isto não
exclui, evidentemente, a presença de elementos ou traços culturais de outros
grupos indígenas, igualmente participando do processo transculturativo
verificado desde a colonização. Daí poderem-se fazer, embora não com muito
rigor científico, algumas generalizações na referência dos valores culturais
incorporados pelos indígenas à nossa cultura.

Contudo, poderemos ter uma idéia das condições culturais dos quatro grupos
principais, fixando os aspectos peculiares de cada um. Isto permitirá termos
um quadro mais amplo antes de atingirmos a generalização que se impõe para
melhor conhecimento do que resultou, no processo de relações culturais entre
indígenas e lusitanos; e depois entre indígenas, luso-brasileiros ou mestiços.

Do Tupi sabe-se que foi o grupo de mais larga irradiação e, sobretudo, de


maior contato com os colonizadores. Espalhava-se este grupo pelo litoral da
ilha de Marajó às margens da lagoa Mirim, no Sul; pelo interior encontrava-
se ainda ao sul do rio Amazonas, estendendo-se em direção Oeste até o
Madeira e ocupando as partes interiores dos grandes tributários do Tocantins
e do Xingu e toda a bacia do Tapajós em direção Sul até as cabeceiras do
Arinos, no centro de Mato Grosso; em outros pontos ainda pequenas tribos
espalhavam-se.

Caça, pesca e coleta eram as principais atividades econômicas do tupi; a


agricultura, praticavam-na apenas algumas tribos, e a cultura mais importante
era a da mandioca. Praticavam esses indígenas a pesca nos grandes rios e no
interior, utilizando o seguinte instrumental: anzol e linha, arco e flecha, puçá,
que era uma espécie de rede, barragem, veneno e à mão. Conheciam e
usavam excitantes: o tabaco, o guaraná, no vale amazônico, e o mate, no Sul.
Praticavam a cestaria e a tecelagem, aquela com fibras vegetais, e esta com
algodão silvestre.

Habitavam em ocas formando a maloca ou taba, que era um agrupamento de


4 a 7 casas, dispostas em tomo de um terreiro quadrangular, a ocara.
Construíam a casa com troncos de árvores e as traves transversais eram
ligadas com cipó. Cobriam-na com folhas de palmeira, geralmente pindoba.
Havia duas ou três portas e o interior não tinha divisões. Utensílios
domésticos eram poucos: recipientes de barro, bancos rústicos, redes tecidas
de algodão.

Cortavam o cabelo em coroa-de-frade, fazendo-o com cristal de rocha ou


conchas. Depilavam-se. Enfeitavam o corpo com tatuagem e pintavam-se
com urucu e jenipapo. Eram comuns em vários grupos as deformações da
cabeça e o uso de botoques ou tambetás. O arco e a flecha eram suas
principais armas, feitos de madeira, não usando, porém, veneno nas flechas.
Conheciam ainda tacapes, lanças, punhais e, entre as tribos amazônicas
principalmente, a zarabatana.

Do ponto de vista espiritual sabe-se que possuíam os eles idéias do ciclo dos
heróis civilizadores: Sumé, Monã, Todavia, a interpretação ligou à idéia do
ser supremo o nome de Tupã, divindade secundária. Dominam entre eles
idéias do ciclo dos heróis civilizadores: Sumé, Monã, Maira, Tamendonaré.
Possuíam vários mitos e através deles a tradição do dilúvio. Havia começos
de culto astrolatico com mitos solares e lunares: Guaraci e Jaci; a estes se
juntavam outros gênios locais: Jurupari, Caapora, Curupira, Iara, Anhangá.

A autoridade religiosa superior era o pajé, que juntava funções de sacerdote,


curandeiro e adivinho. Predominava o xamanismo.

Quanto à organização social ainda não se têm conhecimentos bastante


satisfatórios; sabe-se que entre alguns grupos havia sibs patrilineares e
aldeias divididas em metades classificadas segundo as idades. Entre os
Tapirapés encontrou Baldus grupos de comer e de dançar como
reminiscências de organização social. Havia patrilocalidade no casamento,
havendo predominância absoluta do chefe da família: daí a existência da
“couvade”. O morubixaba, assistido pelo conselho de anciãos da tribo,
presidia à organização política.

O grupo Jê situava-se em todo o Brasil central, com pequenas exceções,


ocupando o rio São Francisco, a Este, até a bacia do Xingu, ao Oeste, e do
médio Tocantins ao Norte até ao Sul e rio Verde, na parte meridional de
Mato. Grosso. Em outros pontos situavam-se também algumas tribos. Estes
chamavam-se a si próprios de "nac-manuc”" ou “nac-horuc”, isto é, filhos da
terra. Admite-se que habitavam eles na costa de onde foram expulsos pelos
tupis, muito antes do descobrimento, indo localizar-se na região interior.

Sua cultura material era muito rudimentar, desconhecendo totalmente a


agricultura; praticavam a caça, a pesca e a coleta. Eram belicosos, assaltando
outras tribos, à busca de recursos alimentares. A alimentação baseava-se na
caça, na pesca e na coleta de mel, raízes, frutos silvestres e larvas.

Se algumas tribos jês possuíam choça em colmeia, em sua maioria porém


usavam apenas um simples anteparo. Eram raros os objetos domésticos.
Desconheciam a cerâmica. Guardavam reservas alimentares em cabaças ou
troncos de árvores. Seu leito eram folhas ou cascas de árvores, não possuindo
redes.
Pobres em ornamentação plumária, limitavam-se a colar as penas no corpo
com mel. Não praticavam a tatuagem, mas pintavam o corpo com urucu e
jenipapo. Perfuravam as orelhas, os lábios e o septo nasal. Introduziam
botoques nas orelhas e nos lábios. Cortavam o cabelo em forma de coroa-de-
frade; daí ter uma das suas tribos o nome de Coroados.

Os processos de caça eram rudimentares, ou melhor, conheciam apenas o


anzol, e isto mesmo as tribos que haviam tido contato com os tupis.
Utilizavam o arco e flecha na caça. Cultivavam incipientemente o milho.
Coziam os alimentos em pedras aquecidas ou em fornos subterrâneos.
Consumiam crua a mandioca.

Conheciam, como os tupis, os heróis civilizadores: Maré se lhes apresentava


como o criador da coleta e o sistematizador da vida comunitária. Tinham
idéias astroláticas. Entre as tribos dos botocudos e dos camacãs exerciam
grande influência os mitos solares e lunares, inclusive na disposição das
aldeias. Entre alguns grupos, como os Apinajés, o Sol era tido como o criador
da vida. Seus rituais, cantos e danças particularizavam referências ao Sol e à
Lua como protetores das colheitas, da puberdade, da procriação.

A organização familiar era monogâmica; em algumas tribos do Chaco a


poligamia era praticada pelos chefes. Entre os apinajés haviam
matrilocalidade e matrilinearidade. Praticavam ritos de puberdade, que se
iniciavam com a perfuração do septo nasal, do lábio e do lóbulo da orelha. Na
disposição da aldeia, tal como se observa entre os xerentes, além das casas
das famílias, havia as casas para os solteiros, para as associações de homens e
para as associações de mulheres.

Os Aruaques ocupavam todas as ilhas do estuário do Amazonas e a faixa


costeira do Norte, alongando-se por extensas áreas do Purus, na parte oeste
do Amazonas, do Juruá, do Solimões e do rio Negro e, em pequenas áreas,
por outras zonas. Deles recebemos numerosos termos que se incorporaram
logo ao vocabulário espanhol, em face de terem sido com os aruaques os
primeiros contatos dos descobridores castelhanos. Sua principal área de
domínio eram as Antilhas. Em território brasileiro a tribo mais importante, do
ponto de vista cultural, foi a dos Aruãs, que alguns especialistas consideram
autores da célebre cerâmica marajoara.
A habitação aruaque tinha forma cônica, e era coberta de folhas de palmeiras.
A aldeia dispunha-se em forma circular. Havia, entre os grupos mais
ribeirinhos do rios, habitações palafitas. Em relação ao vestuário possuíam os
aruaques ornamentação rica e apurada técnica nos adornos. A principal peça
era o “initi”, saiote de algodão tingido. Indicando cumprimento de rito de
passagem possuíam a “hunokua”, que era uma espécie de faixa de algodão,
usada na cabeça ou na cintura.

Praticavam a tatuagem e pintavam o corpo. Usavam tangas de barro cozido.


Os homens furavam o septo nasal, onde colocavam penas.

A agricultura aruaque era bastante desenvolvida; cultivavam os indígenas a


mandioca, o tabaco, o milho o a batata. Cerâmica, tecelagem e cestaria foram,
indiscutivelmente, os mais desenvolvidos artesanatos conhecidos entre as
tribos brasilianas.

Tinham heróis civilizadores. Sua mitologia dava ao Sol e à Lua o papel de


seus antigos chefes e civilizadores, deles recebendo ensinamentos ora sob a
forma humana, ora com o aspecto de aranha. Havia sobrevivências totêmicas.
Na família conhecia-se a matrilinearidade e praticavam a poligamia.

Os Caribes, Caribas ou Caraíbas, dos quais se originou a palavra canibal, por


terem sido o primeiro grupo onde se encontrou a prática de antropofagia,
habitavam, em território brasileiro, a maior parte da área ao Norte do
Amazonas, do Jaí até além do rio Branco, com pequenos grupos em outras
áreas e em vários pontos. Destruíram numerosos grupos aruaques, e à época
da descoberta estes já se encontravam em decadência devido às lutas e às
pressões guerreiras dos caribes.

As aldeias deste grupo se dispunham em forma circular, cobertas as casas


com folhas de palmeiras. Existia a casa de dança para os rituais mágicos e
religiosos. Conheciam também as habitações palafitas, sobretudo os grupos
situados na Venezuela, cujo nome (Veneza pequena) se originou justamente
dessa forma de construção.

Não usavam tatuagem, mas depilavam-se completamente; não abusavam da


pintura corporal e não conheciam nenhuma espécie de vestuário. A família
era matrilinear, tendo o tio materno autoridade de pai. Conheciam algumas
tribos a “couvade”. Praticavam festas de plantação, de colheita e ritos de
puberdade. Fabricavam máscaras de madeira ou de palha, representando
animais, e as usavam em danças ou pantomimas nas festas.

A agricultura baseava-se na mandioca, milho e feijão. Conheciam a enxada


de pau, seu principal instrumento agrícola. Praticavam a caça e a pesca com
arco e flecha, que eram, entretanto, bastante rudimentares. Tinham adiantada,
porém, a navegação: possuíam canoas aperfeiçoadas e fabricavam remos. A
tecelagem era rudimentar, limitando-se ao fabrico de redes tecidas de
algodão.

Conhecidas assim, em suas linhas gerais, as condições culturais dos quatro


principais grupos indígenas que entraram em contato com o colonizador, é
possível agora passarmos a uma consideração mais ampla, em relação aos
aspectos da influência dos aborígenes na formação brasileira. De modo geral
vale salientar que os indígenas estavam, ao tempo da descoberta, em fase de
grande migração interna, o que se dava não só com os tupis como ainda com
outros grupos. Quanto aos indígenas da orla litorânea, estavam eles num
momento de expansão, que se traduzia particularmente pelo vigor de sua
linguagem.

A língua de maior expansão era o tupi-guarani, dividido em três grupos


fundamentais: o amazônico ou “nheengatu”, o “tupi", usado na costa e
conhecido como “língua geral” e o guarani ou “abaneenga”, falado na área
meridional. Cada um desses grupos linguísticos era subdividido em dialetos.
Pelas pesquisas e estudos realizados sabe-se hoje que muito maior é o
número de línguas indígenas conhecidas no Brasil; os troncos linguísticos
sobem a cerca de 37.

A vitória da língua alienígena, a portuguesa, sobre a indígena, falada por


maior número de pessoas, foi uma decorrência do choque cultural, em face de
não satisfazerem inteiramente as expressões linguísticas do tupi às
necessidades sociais do novo estado cultural criado. Daí ter sido o tupi
suplantado pelo português. Entretanto, enriqueceu-se o português falado no
Brasil de numeroso vocabulário de origem indígena.

A cultura material era, de modo geral, desenvolvida, em especial pelo


conhecimento e prática da agricultura, embora num sistema de exaustão de
terras, que os fazia mudarem-se continuamente. Não conheciam roupas,
senão algumas peças, como a tipóia, por eles mesmos tecida de algodão que
cultivavam, ou tangas. A forma de habitação variava, existindo em algumas
tribos casas retangulares e, em outras, quadrangulares. Utilizavam folhas de
palmeira para a construção das casas. Para dormir usavam a rede.

Com a agricultura obtinham os elementos indispensáveis, sobretudo a


mandioca, para a sua alimentação. Cultivavam ainda o milho, a batata, o
amendoim etc. Quanto a animais desconheciam os chamados domésticos —
boi, vaca, porco, galinha — mas criavam papagaios, araras, macacos, saguis.
O tabaco usavam como fumo, espécie de narcótico, e, no Sul, cultivavam o
mate como estimulante, o mesmo sucedendo, no Norte, com o guaraná.
Fermentavam também o milho ou a mandioca ou frutas silvestres, fazendo
bebidas, de que era mais usado o cauim.

Construíam canoas para seu uso em viagens nos rios. E quanto à cerâmica,
variou sua importância entre as diversas tribos. De modo geral a praticavam,
principalmente como urnas funerárias, ou recipientes para preparar bebidas,
ou ainda como cachimbo. A decoração dessa cerâmica era mais comum com
os relevos produzidos pela pressão do dedo polegar; em algumas áreas os
trabalhos se apresentam com maior valor artístico, usando-se mesmo
desenhos em cores. Na organização social eram polígamos, sendo o adultério
feminino castigado. Havia ritos de passagem. A propriedade era coletiva. A
hierarquia tinha como figura mais importante o cacique ou morubixaba, a que
se submetiam os demais membros da tribo. Conheciam música, bailavam e
cantavam. A antropofagia era ritual. Numerosos eram os mitos, as lendas, as
superstições indígenas, muitas das quais se incorporaram ao folclore
nacional.

Resumindo o que foi a participação dos indígenas na vida brasileira,


escreveram, em seu Compêndio de História da Literatura Brasileira, Sílvio
Romero e João Ribeiro: “Aos índios deve a nossa gente atual, especialmente
nas paragens em que mais cruzaram, como é o caso no Centro, Norte, Oeste e
Leste e mesmo Sul do país, muitos dos conhecimentos e instrumentos de
pesca, várias plantas alimentares e medicinais, muitas palavras da linguagem
corrente, muitos costumes locais, alguns fenômenos de mítica popular, várias
danças plebeias e certo influxo na poesia anônima, especialmente no ciclo de
romances de vaqueiros, muito corrente na região sertaneja do Norte, na
famosa zona das secas, entre o Paraguaçu e o Parnaíba, a velha pátria dos
Cariris”.

Dessa generalização seria possível partirmos para o registro de uma enorme


série de traços e complexos de cultura deixados pelos indígenas: tipos de
construção, gêneros de alimentação, processos de caça e pesca, de
agricultura, de tecelagem, de fabrico de cestas, de instrumentos de música,
mitos, lendas, práticas religiosas e mágicas, receitas, atividades recreativas,
música, palavras de linguagem corrente.

Assim o mundéu ou alçapão; ou também a arapuca, na caça de passarinhos,


esta, e de quadrúpedes, aquele, o bodoque, a rede ou redinha, o puçá, a pesca
a linha e o anzol, este primitivamente feito de osso, de pau ou de espinha de
peixe, o arpão, o arco e a flecha, o uso de envenenar os peixes com certas
folhas, frutos ou raízes são de origem indígena. De origem indígena também
o complexo da mandioca, introduzido na alimentação do colonizador; a
utilização do milho no preparo de vários quitutes; a moqueca; o moquém. O
fabrico de cestas, utilizando-se a palha de bananeira ou de palmeiras, de
figuras ou utensílios de barro, de canoas, de instrumentos de música são
ainda traços culturais do indígena.

Outros elementos do quadro cultural indígena foram igualmente aceitos pelo


colonizador e se estenderam às populações brasileiras. Um deles, o uso do
tabaco; outro, certos hábitos ainda muito arraigados principalmente nos
grupos rurais, como o banho de rio, o pé descalço, o defecar ou o descansar
de cócoras.

O uso da rede é também de procedência indígena, como o são ainda certos


utensílios domésticos: a gamela, o coco de beber água, a cabaça para cuia de
farinha, por exemplo.
Antecedentes étnicos e culturais do
português

O ELEMENTO português que veio para o Brasil não constituía uma raça,
mas um grupo étnico, que se vinha formando desde longos séculos. Nele
figurava a maior variedade étnica, havendo assim verdadeira diversidade de
tipos antropológicos. E, em consequência mesmo de suas origens regionais,
portadores de variados tipos culturais.

Para a formação desse grupo étnico concorreram elementos diversos, desde


tempos pré-históricos, e ao processo de miscigenação com suas diversidades
específicas não foram estranhas as próprias condições geográficas da
Península Ibérica através da influência por ela exercida. De fato, há a
ressaltar, inicialmente, a posição de península, que lhe deu certa
individualização, indo refletir-se no processo de formação étnica e cultural
dos povos que nela habitavam.

O sistema orográfico, de um lado, fez com que a península ficasse, de certo


modo, isolada do resto da Europa, nascendo daí o seu maior contato com a
África. Pois não se pode separar a formação ibérica dessas relações com
grupos africanos. Por outro lado, dentro da própria península, não se podem
esquecer as condições orográficas e o sistema fluvial que influíram para o
maior ou menor contato entre os grupos.

De modo que esta situação de natureza geográfica justamente condiciona a


formação dos grupos humanos que, desde tempos imemoriais, aí se
localizaram. E ainda hoje a existência de características culturais de alguns
grupos evidencia essa influência. O condicionamento geográfico, embora
importante, não foi, porém, absoluto, nem único; influiu, é certo, para a
formação de áreas peculiares não só dentro da península como um todo
regional, de forma complexa, mas ainda, especialmente, dentro de Portugal.

A formação do território que é hoje Portugal se fez pela existência de áreas


regionais perfeitamente definidas. Em seu conjunto, Portugal pode definir-se
como uma região complexa, isto é, caracterizada por vários elementos em
que se sobrepõem várias regiões ou áreas elementares.

Na formação humana do português encontramos duas fases perfeitamente


caracterizadas: a fase pré-histórica e a fase histórica. Na primeira, ibéricos,
celtas e ligúrios são os elementos fundamentais, sem exclusão, é claro, de
outros grupos menores, cuja influência todavia não teve importância maior.
Pouco se sabe da origem dos primeiros povoadores portugueses. Tudo indica
que os iberos vieram do Oriente, e que sejam ligados à grande família indo-
européia.

Os celtas aparecem pelos séculos IX e VIII a.C.: são, como os iberos,


também indo-europeus, já conhecendo os metais. Terminaram fundindo-se
com os iberos, dando origem ao surgimento de numerosas tribos celtibéricas.
Sem dúvida o ibérico foi, entre todos esses grupos, o mais importante. E ao
que tudo indica, em sua formação entraram elementos de antiga presença na
área peninsular, geralmente conhecidas como pré-ibéricos. Não faltaram
ainda a esse processo de mestiçagem povos mediterrâneo camitas, originários
da África.

Sobre esses primitivos grupos, nenhum dos quais verdadeiramente puro, e


que se podem considerar as populações indígenas de Portugal, vieram
sobrepor-se, como vimos, os celtas; tornaram-se estes de significativa
importância na formação populacional de várias zonas da península,
principalmente pela miscigenação com os iberos. Os celtiberos, produto dessa
mestiçagem, disseminaram-se pela península, resultando dessa
movimentação, de um lado, novos contatos e, de outro, um insulamento
geográfico de determinados núcleos em face das condições do meio físico.

Esse insulamento contribuiu para que os novos grupos surgidos, em


decorrência das misturas anteriores entre celtas, iberos e capsienses (estes,
africanos), se apresentassem com características próprias e personalidade
bem definida, ao se espalharem pelo território português. Surgiram desta
forma três elementos principais: os célticos, particularmente ao Norte, os
lusitanos, ao Centro, e os cônicos, ao Sul; entre estes dois últimos aparece
ainda uma mancha céltica.

O lusitano foi o mais importante desses grupos; irrompendo da serra da


Estrela, desde o século III os lusitanos se concentraram na área entre o Douro
e o Tejo. Tornaram-se os principais elementos populacionais de Portugal,
representando, sobretudo, o papel, que se tornou fundamental na
caracterização demográfica, de elemento aglutinante da população. E sua
importância foi de tal forma que seu nome — o de Lusitano — se identificou
com a da própria população e estendeu-se mesmo à área geográfica:
Lusitânia.

Encontravam-se estes grupos espalhados por Portugal, quando se verificou a


segunda fase referida, isto é, a histórica: as invasões romanas abrem este
novo período. Com essas invasões entram em território português povos
diversos, numa variedade bem expressiva, e em que avultam sírios,
armenóides, itálicos, judeus. Desses, foi o judeu, sem dúvida, o que teve mais
ampla difusão em Portugal, espalhando-se pelo território e influindo na
constituição demográfica. Em 1147 já havia sinagoga em Santarém. A
influência judaica foi não somente étnica, mas se traduziu também em
aspectos políticos e sociais.

Dos romanos recebeu a formação portuguesa variada influência, que, de


modo geral, se tornou básica: o levantamento do nível intelectual da
população, a facilidade de comunicações com a construção de estradas, a
edificação de cidades, o sentido municipalista na organização política.
Municipalismo de espírito democrático, sem dúvida, foi o que o romano
implantou em Portugal; o que deu solidez à formação das estruturas
municipais que mesmo as invasões subsequentes não conseguiram destruir,
embora pudessem modificá-las. E não se esqueça que foi de origem romana o
elemento que, introduzido em Portugal, se tornou um dos fundamentos de sua
formação cultural: o cristianismo.

Estavam os romanos estabelecidos na península quando se verificaram as


invasões germânicas, de que resultou a integração, na população portuguesa,
de novos grupos humanos, entre eles alanos, vândalos, godos, suevos,
visigodos. Predomina entre estes grupos o elemento de procedência nórdica,
que foi exercer maior influência na, constituição populacional do Norte de
Portugal. Suevos e Visigodos foram talvez os mais importantes dentre estes
povos. Se o suevo se concentrou mais ao Norte, o visigodo espalhando seu
domínio foi exercer influência na população, na instituição de costumes, usos
e formas jurídicas, que modificaram em grande parte a influência romana até
então predominante.

Com os germanos introduziu-se em Portugal a aristocracia, que veio chocar-


se com a democracia romana. É certo que essa influência germânica não
destruiu a tradição municipal; o meio deu novas características, adaptando o
tipo tradicional, e contribuindo para sua conservação com as modificações
necessárias. Nos fins do século VI a monarquia visigótica modifica-se com a
conversão do rei ao catolicismo, a que se seguiu a conversão dos nobres e do
resto da população germânica. O abandono do arianismo abriu caminho para
a unidade social, de que o cristianismo se tornou o fundamento.

Todavia o domínio germânico foi, a seguir, também afastado, quando as


invasões árabes levaram a Portugal novos elementos étnicos e, através deles,
valores culturais que contribuíram para modificar o panorama até ali
existente. Com essas invasões árabes podemos situar a presença, em Portugal,
de berberes e árabes propriamente ditos, e, mais do que isso, a entrada, em
grande escala, do elemento mouro. Deste, a influência tanto étnica como
cultural se tomou grande, salientando-se em modificações muito sensíveis
nas características portuguesas.

Mouros eram os escravos trazidos ao tempo da reconquista e seus


descendentes; ainda os forros, chamados mouriscos, que eram principalmente
os mouros convertidos ao cristianismo; os cativos da África e seus
descendentes, que haviam sido capturados; e, por fim, os que, a partir do
século XVI, vieram de várias partes. Através desses grupos, de contatos tão
diversos com as populações assentadas em Portugal, surgiu a influência
moura dentro do quadro geral da influência árabe, na caracterização tanto
étnica como cultural do português. Novos aspectos culturais surgem; e se
fixam também novas faces antropológicas.

Numerosas as influências árabes na formação portuguesa, algumas delas


ainda hoje persistentes. Na língua, nos trajes, na cultura intelectual, nas artes,
nas indústrias, em vários campos, em suma, essa influência se fez sentir. Na
arquitetura, com os arabescos que abrem margem ao chamado estilo
mourisco; na agricultura, a introdução de técnicas de irrigação, da sericultura,
dos moinhos-de-água ou azenha; nas indústrias, os trabalhos em pele, o
aperfeiçoamento de tecidos de lã e linho. Também o uso do papel a partir do
século XI. Influência realmente notável a árabe, cujos traços ainda se fazem
sentir, encontrando-se por toda parte da vida portuguesa contemporânea.

Dos mouros sabe-se que os libertos muito se isolaram, sempre que possível,
do contato com outros grupos, por meio das mourarias. As relações entre os
cristãos e os muçulmanos em território português criaram dois tipos
característicos da população portuguesa como resultado da atitude religiosa
tomada: os moçárabes, que eram os cristãos dominados pelos muçulmanos, e
os mudéjares, também chamados mouros forros, submetidos ao cristianismo.

Com a participação de tantos e tão diversos elementos provindos de origens


várias, formou-se a população portuguesa. Não é possível fixar um tipo
português único, mas pode indicar-se dentro da relativa homogeneidade
populacional de Portugal a presença mais abundante de elementos celtas e
germanos, no Norte, e de mediterrâneos e berberes, no Sul; ali, elementos
vindos da Europa central e setentrional, aqui os que procederam do Sul da
Europa.

Foi esse elemento étnico, variado, heterogêneo, de origens diversas, que


formou o que chamamos a cultura portuguesa, cultura por sua vez
enriquecida pela diversidade dos valores que a constituíram, embora
assentada numa base de unidade que lhe advém principalmente do sentimento
cristão. Foi essa cultura, a que modernamente se chamou com acerto de luso-
cristã, que através do mar se irradiou, se expandiu e se tornou o mais
importante veículo a levar a povos orientais, africanos e americanos — como
foi o caso do Brasil — valores culturais europeus; e trouxe daqueles povos
outros valores que incorporou à cultura européia.
Fundamentos da cultura portuguesa

O CRISTIANISMO deu conteúdo espiritual à cultura portuguesa, formada


como decorrência da influência exercida pelas diferentes correntes que
contribuíram para a formação do povo português. É com o cristianismo que
se verifica a unidade social das populações portuguesas; deu um sentido
comum aos diversos elementos que integram essa cultura. Dentro da
diversidade de origens e de regiões, com que pôde surgir a cultura
portuguesa, contribuiu o cristianismo para sua unidade.

Justamente no século VI, quando se verificou a conversão do rei visigodo


Recaredo, deu-se a unidade espiritual na formação das populações de
Portugal. Antes, ou seja, desde o século IV, havia mosteiros em Portugal;
intensificam-se justamente com a perseguição que os Visigodos moveram aos
cristãos. Nos séculos V e VI constroem-se vários mosteiros; e multiplicam-se
no período visigodo. E continuaram a exercer papel importante na
constituição espiritual dos portugueses. Quase sempre era em torno de um
mosteiro que se formava um povoado e se desenvolvia a população.

Nos mosteiros aliavam-se atividades espirituais e atividades temporais. Eram


sobretudo escolas; constituíam aulas para as quais acorria a população local.
Os primeiros estudos públicos inaugurados em 1269 funcionaram justamente
num mosteiro: o de Alcobaça. Anteriormente aos estudos públicos, havia os
estudos proporcionados pelas ordens religiosas. Mosteiros e conventos
abrigavam as crianças para o ensino. De maneira que, através deles, se
difundiam as idéias religiosas dando assim o cristianismo o lastro espiritual
que sedimentou a formação cultural portuguesa.

E de tal modo essa cultura se identificou com o cristianismo, que, no século


das navegações, foram os missionários um dos principais veículos de sua
expansão. As ordens religiosas exerceram importante papel nessa formação e
difusão; sobretudo no século XVI a criação da Companhia de Jesus veio dar
um sentido mais ativo à difusão da cultura portuguesa. Surgida como uma
reação às idéias da Reforma, a Companhia de Jesus se constituiu um dos
meios mais importantes na irradiação da cultura portuguesa nas várias partes
do mundo. Quaisquer que fossem as nacionalidades dos S. J., tornaram-se
eles valiosos focos de divulgação da cultura portuguesa.

O cristianismo se tornou o verdadeiro sentido, ou a força fundamental, que


caracterizou a cultura portuguesa, através de processos de acomodação
baseados na simpatia e na compreensão, em várias partes do mundo. O
cristianismo se constituiu o valor mais característico na formação dessa
cultura. A expansão portuguesa se marcou justamente por esse traço cristão
levado através dos mares a outros continentes na colonização ou ocupação de
novas áreas na Ásia, África e América.

Daí constituir-se o que foi adequadamente chamado de cultura luso-cristã: o


sentido espiritual que constitui a base de toda cultura como marca a distingui-
la no meio de outras. É através desse conteúdo espiritual que se compreende
a evolução de um povo. No caso de Portugal o cristianismo fundamentou este
conteúdo, e traçou a unidade da cultura portuguesa. Todavia, dentro dessa
unidade é possível encontrarem-se diversidades que traduzem, em especial,
condições peculiares de regiões lusitanas.

De fato, a própria constituição de Portugal foi marcada, e já o vimos, pela


existência de regiões caracterizadas por essas diversidades oriundas do meio
e do elemento étnico que nelas se fixou. Regiões diversas, fosse pela natureza
física, fosse pelas condições de formação, criaram no território português
culturas regionais ainda mais influenciadas pelas diferenças culturais dos
estratos étnicos participantes dessa formação. Essa diversidade de culturas,
ou a existência dessas subculturas, se manteve em equilíbrio graças à unidade
espiritual que lhe deu a base cristã.

Foi, justamente, quando começou a expansão portuguesa que se verificou


existir essa unidade espiritual, para a qual concorreu, em particular, a
presença do mar, interligando as diversas áreas do litoral português. O mar,
outro fundamento da cultura portuguesa, foi o elemento de unificação e de
permanência de Portugal — disse Jorge Dias. Em primeiro lugar, porque
estreitou as comunicações internas e, em segundo lugar, porque levou o
português a outros continentes, tornando possível a expansão dessa cultura. E
ainda, em decorrência dessa expansão, verificou-se em Portugal a
transformação do povo agrário em marítimo. A atividade econômica baseada
na agricultura transformou-se para traduzir-se numa atividade marítima de
expansão e de colonização além-mar. Colonizando, porém, e principalmente
criando uma agricultura tropical, o português voltou às suas origens agrárias.
O que sucedeu no Brasil; o que deve ter sucedido, igualmente, em outras
partes.

Foi possível assim a permanência de Portugal através da irradiação de sua


cultura que se foi alargando para constituir-se elemento vigoroso na
caracterização de culturas asiáticas, africanas ou americanas. Daí
encontrarmos na cultura portuguesa essas influências marítimas, tornando-se
o elemento característico na vida portuguesa. Refletiam-se, aliás, na
literatura, tanto na erudita, como na popular. Criou um novo gênero literário,
que surge em Portugal, e ainda hoje marca a literatura portuguesa como uma
de suas peculiaridades. Porque foi em Portugal onde primeiro apareceu esse
novo gênero literário: o das navegações, o dos descobrimentos, o da aventura
marítima.

A Peregrinação, de Fernão Mendes Pinto, abre este período da literatura


portuguesa; inicia o gênero literário das viagens. Com as navegações e os
descobrimentos alarga-se essa forma literária. As descrições, os roteiros, as
referências da vida colonial e marítima, as viagens, os milagres marítimos
enriquecem essa nova forma literária. Essa influência do mar na formação da
cultura portuguesa vamos encontrar ainda em Gil Vicente, cuja obra reflete o
drama da sociedade da época dos descobrimentos. A literatura de Gil Vicente
está ligada ao ambiente português do tempo das navegações; e esses
descobrimentos passam então a constituir um verdadeiro ciclo literário e,
consequentemente, parte hoje integrante da literatura portuguesa.

Essa influência na cultura literária alcança seu ponto mais alto com Os
Lusíadas, em que Camões escreve a própria epopeia das navegações. Uma
das maiores obras poéticas, o maior poema épico português, figura assim no
gênero das navegações e descobrimentos, como a culminância de um ciclo
literário de tão expressiva significação histórica e social, e não apenas
literária.
A influência do mar refletiu-se também na literatura popular; e O folclore
português está enriquecido de narrativas, de romances, de xácaras, evocando
episódios das navegações, aventuras dos descobrimentos, milagres com
navegantes, audácia de marinheiros. Dessas xácaras, a mais célebre, mais
característica desse ciclo popular, é sem dúvida a denominada “Nau
Catarineta”. Descreve uma viagem cheia de dificuldades, os marinheiros
passando fome e resistindo a todas as tentações do demônio. Relembrem-se,
como bem expressivo de como se juntam, nessa literatura, o cristianismo e o
mar, dois versos da “Nau Catarineta”, quando o marujo português recusa
todas as propostas do demônio travestido de gajeiro, para manter sua fé e seu
ideal:

“A minh’alma é só de Deus O corpo dou eu ao mar”.

O cristianismo e o mar fundamentam os valores essenciais da cultura


portuguesa, e dão a base sobre que essa cultura se formou e se expandiu,
representando o espírito e o sentimento com que se transladou, com o
português, para várias partes do mundo.
Expansão da cultura portuguesa

CONSTITUIU-SE o português elemento de intercomunicação cultural,


expandindo-se através de novas áreas da Ásia, África e América. Foi a
atração marítima o principal fator a influir para esta irradiação. O mar tornou-
se o campo de expansão da cultura portuguesa, dando-lhe permanência no
mundo. Foi não apenas o veículo, o caminho, mas ainda como que a própria
inspiração dessa cultura; ele e o cristianismo, como vimos antes. O mar deu
ao português a oportunidade de levar à Ásia e à África elementos culturais
que contribuíram para o levantamento das culturas desses povos, sobretudo
os fundamentais de um sistema de colonização que se baseou principalmente
na acomodação e no entendimento, tornando possível aproximarem-se
harmoniosamente culturas até então exóticas ou diferentes.

Ao mesmo tempo o português trouxe desses povos elementos culturais que


enriqueceram a cultura européia, como foi o caso do fumo e do açúcar, e
também o caso de várias especiarias, do uso de certos tecidos, de utilização
de determinadas técnicas. Estes elementos — a que se juntaram outros
incorporados à cultura portuguesa pelos povos que entraram em seu território
em épocas diversas — o português trouxe dos grupos humanos com os quais
teve contato e os introduziu na Europa. Na toponímia africana e asiática
persistem denominações de origem portuguesa, como portuguesas são
também numerosas palavras incorporadas a outras línguas, inclusive
européias, por terem sido trazidos pelo português os valores que essas
palavras traduziam.

Talvez nenhum povo no mundo tenha tido como o português a oportunidade


de realizar, sem sentir, a idéia de que as culturas podem desenvolver-se pela
troca de seus valores. Se na época não fosse essa sua idéia, pode-se dizer,
entretanto, que foi isso justamente o que se verificou; e o veículo através do
qual se tornou possível a difusão da cultura portuguesa foi certamente a obra
de colonização realizada. Esse sistema de colonização representou a tarefa de
promover uma interpretação de culturas que teve como elementos principais
os próprios colonos, os missionários e até mesmo os aventureiros. Foram
vários os aventureiros que, à procura de novos ambientes, levaram a várias
partes do mundo os valores culturais portugueses.

Entretanto, os principais veículos dessa expansão, sobretudo por assegurar a


estabilidade dessa cultura nas novas áreas, foram os colonos e os
missionários. Como colonos entendam-se todos aqueles que participaram do
processo de colonização, sobretudo pequenos agricultores, artífices, artesãos,
geralmente formando o grosso desta massa colonizadora. São justamente os
que ocuparam o território brasileiro; que desenvolveram o povoamento.

Constituíram eles como que a força de equilíbrio entre os dois extremos que
também emigraram e participaram do processo colonizador: os fidalgos e os
criminosos e degredados. Mesmo entre estes havia os que foram punidos por
crimes na época da maior gravidade, e que no correr dos tempos se foram
transformando, atenuando-se, e diminuindo sua significação, do ponto de
vista legal. Muitos desses criminosos o foram por crimes de amor; outros, por
crime de lesa-majestade. De qualquer forma participaram da expansão da
cultura portuguesa nas diversas áreas do mundo.

Técnicas de trabalho, organização da família, vida doméstica, certos estilos


de vida da população portuguesa foram disseminados pelos colonos: os
pequenos lavradores, os artífices, os artesãos, por exemplo. Constituíram
esses colonos a base sobre que assentou a implantação da cultura portuguesa
nas várias áreas de colonização ou de ocupação lusitana.

Outro veículo importante foram os missionários, alguns mesmo não


portugueses, mas que se identificam de tal forma com essa cultura que se
constituíram irradiadores de seus valores. Dentre estas ordens religiosas
destaca-se a Companhia de Jesus, que encontrou em Portugal um dos mais
sólidos focos de catolicismo; daí a importância que teve na irradiação da
cultura portuguesa, numa como que identificação de valores. Completando a
obra de colonização, os missionários se transformaram cm consolidadores
desta difusão cultural baseada no cristianismo.

De modo geral, o português se constituiu um difusor e divulgador da cultura


européia na Ásia, no Oriente, na África, na América; levou a essas áreas
elementos culturais que poderiam contribuir para o enriquecimento dessa
culturas. Mas ao mesmo tempo tornou-se o português um divulgador na
Europa de elementos culturais da Ásia, da África, da América.

Da América, por exemplo, levou para a Europa o fumo e, mais tarde, as


especiarias chamadas “drogas do sertão”, colhidas na Amazônia; levou da
Ásia para a Europa o açúcar, a pimenta e várias outras especiarias. Da Ásia
levou também tecidos, que permitiram novas formas de vestuário, e passaram
a constituir elementos modificadores dos trajes então conhecidos. Outros
valores, igualmente de origem asiática, se incorporaram à cultura européia,
como o guarda-sol, várias plantas e tecidos. Também da arquitetura asiática,
sobretudo certas peculiaridades do telhado chinês foram introduzidos na
Europa, e pelos portugueses levados a outras áreas, como o Brasil.

A presença portuguesa nessas áreas se traduz pela permanência de palavras


portuguesas, tanto na toponímia da África e da Ásia, como em valores
introduzidos nas culturas dessas populações. A língua dos grupos indígenas,
asiáticos ou africanos se enriqueceu de palavras portuguesas, que traduziam
basicamente aqueles elementos difundidos pelos lusitanos. Ainda hoje
conservam-se em localidades, portos, baías, rios, serras, e isso tanto na África
como na Ásia, palavras de origem portuguesa, evidenciando a influência
cultural realizada pelos lusitanos.

Os portugueses, porém, não se restringiram em levar para a Ásia, a África, ou


a América os valores culturais europeus, nem levar estes para aquelas áreas;
fizeram, sobretudo, um trabalho de inter-relação dessas diferentes áreas:
valores de umas foram levados às outras, num intercâmbio de elementos
bastante expansivo. Ao mesmo tempo que se introduziam no Brasil, por
exemplo, plantas européias, traziam eles espécies vegetais asiáticas para o
Brasil; e do Brasil levaram plantas aqui originárias para áreas asiáticas.

Para o Brasil veio o coqueiro da Índia, que se aclimatou de tal maneira a


ponto de abrasileirar-se em Coqueiro-da-Bahia, difundindo-se como
elemento que se tornou característico da paisagem litorânea, em especial do
Nordeste brasileiro. Da Índia foram introduzidas, no Brasil, a manga e a jaca;
e da Ásia, de modo geral, a fruta-pão, a caramboleira, certas espécies de
nozes. Da Índia veio também a pimenteira, que se juntou à chamada
“pimenta-da-terra”, que era conhecida dos nossos indígenas.

Do Brasil levaram para outras áreas alguns de nossos vegetais: o caju, por
exemplo, que se expandiu pela Ásia e pela África. E a mandioca foi levada
pelos portugueses para a África, onde realizou verdadeira revolução.
A herança fundamental: a
portuguesa

DE VÁRIAS províncias portuguesas vieram elementos humanos para a


formação da população brasileira. Na verdade, porém, o que se verificava na
população portuguesa da época da descoberta era a variedade étnica; morenos
e louros, trigueiros e ruivos encontram-se sem uniformidade entre os homens
lusitanos, uns braquicéfalos, outros dolicocéfalos, de origens regionais as
mais variadas, e consequentemente trazendo nessas origens as marcas de sua
procedência, da maior ou menor influência deste ou daquele grupo.

Nesta variedade de tipos étnicos pode-se admitir que dois principalmente


preponderaram, muito embora não se possa fazer restrição à exclusividade de
um ou de outro; foram eles: um, de tipo mediterrâneo, de estatura variável, e
outro de estatura mais alta, tostado, do norte de Portugal. “Nos primeiros
tempos da colonização — observou Arthur Ramos — parece ter predominado
o povoador vindo das províncias do centro e do sul, como a Extremadura, o
Alentejo e o Algarve”. Esta afirmativa não se pode considerar absoluta, nem
exclui a presença de elementos do norte, de Viana especialmente. Pois os
desta origem foram em grande número, numerosíssimos, em Pernambuco, do
qual dizia o padre Fernão Cardim que os vianenses são senhores; e recorda
que, quando se faz arruaça contra algum vianense, logo grita este: “Aqui de
Viana", e não “Aqui-del-rei”.

Quando se considera o elemento português vindo para o Brasil não se deve


restringir ao metropolitano, mas considerar também o ilhéu, ou os ilhéus.
Açores e Madeira, principalmente, mandaram-nos elementos humanos para a
colonização. A princípio esses ilhéus vieram individualmente, sobretudo na
implantação da economia açucareira, pois foram os madeirenses que
trouxeram técnicas de produção de açúcar para o Brasil ou ainda como
soldados.

No século XVIII, porém, verificou-se uma forma de imigração dirigida com o


que se chamou os “casais”, isto é, famílias vindas dos Açores ou da Madeira
que se localizaram principalmente na Amazônia e no Extremo Sul. A estes
casais não se pode negar importância, e grande importância, no povoamento
do Brasil, não só do ponto de vista étnico como também no social e político.
Sua localização no Extremo Norte e no Extremo Sul teve por objetivo
assegurar o domínio português através do “uti possidetis” na definição das
fronteiras territoriais em 1750 e, posteriormente, em 1777.

Na formação populacional de Santa Catarina e do Rio Grande do Sul,


especialmente, foi considerável a influência dos ilhéus. Os casais açorianos
enriqueceram a ocupação da faixa litorânea do sul do Brasil, quer com o
desenvolvimento demográfico, quer com a fixação de sua cultura. Foram os
casais ilhéus, aí como na Amazônia, povoadores, influindo demográfica e
culturalmente para a ocupação portuguesa dessas regiões.

A esse elemento português, variado, etnicamente diverso, foi que se deveu o


trabalho de colonização do Brasil. Faltava-lhe, de fato, unidade étnica,
homogeneidade racialmente definida. Era um grupo bastante mesclado, no
qual figuravam fontes de várias origens, inclusive de mouros e de judeus.

Verificou-se a descoberta do Brasil, e igualmente, a fase de colonização,


quando estava Portugal no auge de sua expansão marítima e comercial. O
país se constituía o centro das grandes atividades econômicas da época, em
virtude de ser ele o verdadeiro empório de produtos e especiarias de intensa
procura pelos meios consumidores da Europa. Trazendo da Índia estas
especiarias, o português atraía para o seu mercado os interesses dos povos
europeus. Tal fato contribuiu também para o alargamento da expansão
portuguesa no mundo.

Este espírito comercial ou mercantil marcou a exploração econômica do


Brasil, a princípio com a extração do pau-brasil, depois com a produção do
açúcar, ambos os produtos objetos de procura nos mercados consumidores.
De modo que esta circunstância fez trazer para a colonização do Brasil
elementos de vários graus sociais e, consequentemente, portadores de variado
elemento cultural.
Esses diversos elementos sociais permitem evidenciar-se que não houve
exclusivismo de criminosos, como querem alguns, nem exclusivismo de
aristocratas, como querem outros. Ao contrário: ao invés de exclusivismos
encontramos elementos muito variados, que poderemos sintetizar em cinco
grupos principais:

1. Fidalgos e militares, os que tiveram preferência nas concessões de


terras, e que constituíram os elementos de classe mais elevada na época, não
só por sua origem, senão ainda por sua participação nas conquistas e
navegações portuguesas;

2. Sacerdotes, que representavam a parte espiritual da colonização,


influindo a organização moral da sociedade que se erigia, sobretudo os
pertencentes a ordens religiosas, destacadamente os jesuítas;

3. Degredados, aqueles que vieram para o Brasil em virtude de degredo a


que eram condenados, às vezes por crimes ou pecados assim considerados na
época: em sua maioria, pecados de amor;

4. Criminosos, os que fugiram para o Brasil por verdadeiros crimes


cometidos, aqui procurando couto e homizio, ou, incorporando-se à vida
desregrada verificada em algumas capitanias, contra o que, aliás, já falava
Duarte Coelho;

5. Homens bons, lavradores, artífices, artesãos, que foram os verdadeiros


colonizadores, capazes de uma atividade sedentária, permanente, de rotina.

Não sabemos exatamente quantos degredados teriam vindo para o Brasil,


século a século. Mesmo com Tomé de Souza não veio o alto volume que
geralmente se diz. Não teriam sido cem. E ainda assim este total foi
dominado ou absorvido pela presença dos homens d’armas que não seriam
também 600, como se acreditava, mas muito menos disso. Uns e outros se
tornaram colonos, artífices, operários. Não foi preponderante assim a
presença do degredado; muito ao contrário, foi gente boa, embora não
exclusivamente fidalga, e nem precisaria ser, o elemento lusitano vindo para
a colonização.

Por outro lado convém registrar que mesmo esses degredados estavam longe
de ser do tipo do “engagé” levado para as Antilhas e para as colônias
britânicas. Foi tipo social esse — o do “engagé” — que não tivemos na
colonização do Brasil. O caso de degredados como elemento colonizador, tal
como se verificou no Brasil, embora em pequena escala, foi comum na época
em várias áreas, e não só nas portuguesas.

Se houve elementos de vários graus sociais, entre os portugueses vindos para


o Brasil, é justo destacar-se, entretanto, que o grosso desses contingentes era
constituído de homens do povo; constituído, sobretudo, de homens dedicados
às atividades agrícolas: lavradores, camponeses, colonos enfim. Foi de gente
miúda — os “miúdos” assim chamados no próprio Portugal — o elemento
mais forte na tarefa de colonização do Brasil: e não exclusivamente só ou
preponderante o fidalgo, nem o criminoso.

Destes homens do povo, principalmente, é que se constituiu a influência


maior da transculturação no Brasil, de origem lusitana, e a que se mesclaram
as contribuições indígena e africana; constituíram os três, em conjunto, o
tronco básico sobre que se formou a nossa sociedade e, com ela, se criaram
os valores de cultura hoje próprios ou peculiares ao brasileiro. Do português
nos ficou a língua, com as particularidades de adaptação do negro ou do
indígena através dos termos, palavras, frases, que se integraram no português
do Brasil; ainda do lusitano, as instituições administrativas, as sociais, as
morais; O tipo principal de habitação, a forma de construção dos povoados e
vilas, o traje, os meios de transporte, a culinária, o mobiliário.

Fundamental, pois, se constituiu para a formação brasileira a contribuição do


lusitano. Além da língua e da organização social, a religião, a arte, a vida de
família, o espírito tradicionalista, enfim o “ethos” do brasileiro. A família foi
a base da organização social; muito mais que o Estado centralizou a obra
colonizadora, seja no aspecto da vida social, seja como unidade econômica
— de produção ou de capital. Tornou-se, na frase de Gilberto Freyre, o
grande fator colonizador do Brasil.

Desta transplantação de cultura que o português realizou no Brasil, trouxe-


nos ele o tipo de construção de povoados, vilas ou cidades, implantando entre
nós a mesma disposição na colocação dos edifícios, das ruas, das praças, das
casas residenciais. Do mesmo tipo de aldeia ou cidade portuguesa é que se
fez o povoado ou vida brasileira: "... os habitantes amontoados em ruas
sinuosas e estreitas, grimpando os dorsos dos montes à procura da alcáçova
com a sua torre. Pouco afastada a igreja matriz, geralmente no mesmo largo
dominado pelos paços do conselho, e entre os dois edifícios o pelourinho,
onde a justiça por vezes tão cruel fazia pública a sua autoridade”. O desenho
é de Afonso Arinos de Melo Franco que acrescenta: retirado o elemento
decorativo da torre feudal, o quadro se aplica a uma típica cidade colonial
brasileira.

Quanto à casa, em face da escassez de pedra e cal, rara aquela nos primeiros
tempos do Brasil, caracterizou-se a habitação por ser de pedra e barro ou de
taipa; as de trabalhadores ou de pescadores ou de profissões mais humildes
— principalmente nas zonas mais ricas de palmáceas, que foram justamente
as da faixa litorânea, primeiro ocupadas pelos colonizadores —, quase
sempre de palha, de que é expressão ainda em nossos dias o mocambo, em
cuja construção também influíram o indígena e o negro. O que se salienta na
construção da casa no Brasil é a utilização dos elementos naturais
encontrados na terra: o barro, a taipa, a palha. Na cobertura, usou-se a telha;
isto, porém, quando foi possível termos as primeiras olarias.

Tanto quanto possível a arquitetura trazida pelo português procurou adaptar-


se às condições regionais, sem prejuízo do caráter de defesa militar que por
vezes apresentava a construção. De modo geral, a casa-grande de engenho
não representa nenhuma cópia fiel de arquitetura lusa, mas essencialmente
uma correspondência ao ambiente brasileiro, uma tradução do espírito
adaptável do colonizador ao regime de vida no Brasil.

Nos meios urbanos já o tipo arquitetônico diferiu um pouco, para


corresponder mais ao próprio tipo português; os sobrados, em primeiro lugar,
depois as casas de porta e janela e as de bica ou bica-e-beira, ou de bica, beira
e sub-beira, refletindo uma e outras influências portuguesas, que quase
sempre traduzem a província nativa do proprietário. Em todas elas, tanto no
tipo rural como no urbano, um traço se verifica marcante: o fundo de
influência popular, e não erudita, o que marca a importância dos elementos
humanos de origem popular vindos para a colonização.

Não raro, através do elemento português, a arquitetura implantada no Brasil


apresentou traços árabes, traços esses, porém, já integrados na cultura
lusitana: as rótulas, os muxarabis, os balcões. Só no século XIX começou-se
a usar mais comumente o vidro nas janelas.

Cadeiras de arruar, coches, liteiras, carros de duas rodas foram meios de


transporte introduzidos pelo português no Brasil; como ainda de introdução
lusitana o mobiliário, nos seus vários aspectos característicos, usado pelo
brasileiro. Muitas vezes no Brasil esse mobiliário se adaptou às condições do
ambiente; o uso de couro, por exemplo, em banquetas, em tamboretes, ou em
cadeiras, generalizado nas áreas de criação de gado.

Também nitidamente portuguesa a alimentação adotada pelo brasileiro, muito


embora a ela se tenham integrado elementos de origem indígena ou africana:
a substituição do trigo pela mandioca, de influência indígena; o uso do dendê
ou de certos quitutes africanos, de introdução pelo elemento negro. Mas o
preponderante na alimentação foi de proveniência portuguesa, sobretudo o
uso de gêneros importados nos primeiros tempos da colonização. Daí muitos
produtos conservarem ainda hoje, no restritivo, a sua característica de origem:
o queijo-do-reino, a farinha-do-reino, a pimenta-do-reino, o azeite português.

De base essencialmente lusitana é igualmente o folclore brasileiro: contos,


adivinhas, estórias, romanceiros, danças dramáticas, mamulengos, festejos de
Natal, de Ano-Bom ou de Reis, e de São João, lendas, crenças, tradições,
cantigas. O indígena e o negro evidentemente dosaram essa formação, e às
vezes contribuíram com seus ritmos, seus contos, suas músicas, suas danças;
mas a parte fundamental de nosso folclore é, sem dúvida, lusitana, embora
possamos hoje apresentá-lo intensamente mestiçado. Um produto não só de
mestiçagem, mas igualmente de transculturação.

O domínio religioso do catolicismo se transplantou inteiro para o Brasil, e


não se deixou mesclar pela participação indígena ou negra. Ao contrário: o
negro africano é que recolheu muita coisa do catolicismo para suas práticas
religiosas, realizando aquele sincretismo tão bem estudado por especialistas
dos assuntos afro-brasileiros; por Nina Rodrigues e Arthur Ramos, por
exemplo.

Ainda de origem portuguesa incluíram-se em nossa cultura, os trajes — a


roupa, o chapéu, o calçado — trazidos de acordo com os usos da metrópole, e
que procurou o lusitano estender aos outros grupos étnicos, muito embora
adaptando-se, por sua vez, e principalmente nu intimidade doméstica, às
circunstâncias do clima. Igualmente, implantada pelo português, a
organização do trabalho no campo ou na fábrica ou nas oficinas, nestas
predominando o sistema não somente lusitano, porque também ibérico, dos
aprendizes ou dos filhos herdando dos pais as atividades profissionais; ainda
as relações de comércio, as técnicas em geral, inclusive as de confecção de
móveis ou de objetos de uso quotidiano, o crédito nas atividades mercantis.
O negro na África

Foi sob o regime escravagista que o negro africano entrou no Brasil, o que
desde logo caracterizou sua situação; o que passou a participar da formação
brasileira não foi puramente o negro da África, mas o negro escravo. Este é o
aspecto que não se pode isolar do estudo das culturas negras: a condição de
escravo do elemento negro importado. O que contribuiu, essa condição, para
que não nos transmitisse o africano sua cultura inteiramente pura, mas
perturbada ou desvirtuada pela escravidão. Do negro africano, portanto, não
se pode isolar sua condição de escravo; não se pode abstrair esta
circunstância, ao estudá-lo e ao estudar sua influência na formação
econômica e social do Brasil.

Isto faz com que se possa distinguir perfeitamente duas situações do negro;
uma na África, outra no Brasil. Na África ele pôde revelar toda sua
capacidade cultural e psíquica; era agricultor, era artífice, era criador de gado,
era técnico de mineração. No Brasil a situação modificou-se: ele não pôde
revelar integralmente toda essa sua capacidade de ação e de técnica apesar de
sua predisposição para o ambiente dos trópicos; e sobretudo para sua
integração no novo meio, mesmo com sacrifício de seu padrão cultural.

Como agricultor sabe-se, por exemplo, que o negro se tornou criador, em seu
habitat, de uma agricultura eclética, sobretudo de cereais, diversificando sua
base alimentar, sem o exclusivismo do arroz na Ásia, ou do milho nas
Américas indígenas, ou do trigo na Europa. Admite-se mesmo que se deve ao
negro africano a cultura dos tubérculos; e acrescenta Lipschutz, confirmando
a atividade agrícola do negro africano, não só em seu ambiente como em
outras áreas, que onde ele penetrou a agricultura ocupa lugar predominante.

Igualmente em relação a outras atividades, soube dominá-las o negro na


África através de várias técnicas: técnicas de criação de gado, de trabalhos de
mineração, de artesanato, de trabalhos de ferro. Tudo isso bem revela as
condições culturais bastante variadas, e não raro com certos níveis elevados,
demonstradas pelos negros africanos.

De modo que, antes de estudar a participação do negro na formação cultural


do Brasil, devemos vê-lo em seu quadro natural, no próprio ambiente em que
nasceu e viveu; e isto para que possamos compreender o mecanismo de sua
incorporação à vida brasileira, tanto à vida de família como à. social, à
econômica, à cultural. Esta participação, importante, mas grandemente
perturbada, que o negro escravo teve no Brasil encontra seus antecedentes na
África.

Sabe-se que não há apenas uma África, ou melhor, uma única África negra;
encontram-se naquele continente condições culturais diversas, fazendo com
que surjam vários graus de cultura dos diversos grupos: pigmeus ou
hotentotes, bantos ou daomeanos, sudaneses ou bosquimanos. Uns de cultura
primitiva, outros de cultura mais adiantada, alguns formados culturalmente
sob a influência do islamismo. Não há africano, mas africanos; tanto étnica
como culturalmente não existe, como unidade, o “Homo Afer”. Há, na
realidade, homens de diversos padrões culturais, de variadas condições de
cultura, muitas vezes com características peculiares diversas entre os vários
graus.

Os numerosos estudos, antigos e modernos, acerca das populações africanas


mostram sua diversidade, cultural e linguística, e também física. Sintetizando
as diferentes observações a respeito dos negros africanos, pode indicar-se a
delimitação da África em áreas culturais de

Herskovits, bem assim a classificação de grupos étnicos e de línguas,


estabelecida por Denise Paulme. Para a África, Herskovits encontrou as
seguintes áreas culturais:

i) Joisán (Hotentotes e Bosquimanos); 2) Oriental do Gado; 3) Ponta


Oriental; 4) Congo; 5) Costa da Guiné; 6) Sudão Ocidental; 7) Sudão
Oriental; 8) Deserto; 9) Egito.

Em seu estudo sobre as civilizações africanas, Paulme identificou os


seguintes grupos étnicos: melanoafricanos, compreendendo os sudaneses,
guinéus, congoleses, nilóticos, sul-africanos; abissínios, compreendendo os
oromi, ou "galla", ambara e tigray; os etíopes, compreendendo os
semicamíticos e os fulge; e os negritos ou pigmeus (joinon), compreendendo
os bosquimanos e hotentotes. São populações não apenas diversificadas
fisicamente, seja por suas origens, seja pela mestiçagem verificada no correr
dos tempos; mas igualmente diversificadas pelos seus níveis culturais, os
mais variados quanto a diferentes aspectos.

Em relação às línguas atualmente conhecidas na África, e aí compreendida


também a parte branca do continente, Denise Paulme encontrou três grandes
troncos linguísticos, distribuídos em vários ramos. São os seguintes: 1)
línguas camito-semíticas, constituídas das línguas semíticas (África do Norte,
do Egito a Marrocos, Etiópia e Eritréia); das línguas berberes (camíticas), da
África do Norte e Saara; e das línguas kusníticas, espalhadas no Alto Egito
(bedja), Eritréia, Etiópia, Somália, Quênia; 8) as línguas negro-africanas,
distribuídas nas sudanesas, nilóticas, semibanto (selva da Guiné) e banto (do
Equador ao Cabo); e 3) línguas joisan (Hotentotes e Bosquimanos).

De modo que, seja por sua distribuição física, ou ainda em relação às línguas
faladas, essas populações africanas distribuem-se em vários graus culturais;
desde populações consideradas arcaicas ou primitivas até populações do alto
adiantamento; desde populações que vivem da coleta dos frutos naturais,
desconhecendo a habitação e o togo, até populações que possuem agricultura,
habitação e conhecimento de cerâmica.

Vale assinalar ainda que, nestes diversos graus culturais, havia alguns povos
bastante adiantados; muitos desses grupos negros da África, ao contato com
egípcios, berberes e, mais recentemente, árabes, puderam desenvolver suas
condições de cultura, atingindo a alto nível de progresso. Isto revela, de um
lado, a capacidade do negro e, de outro lado, as possibilidades de que ele
seria capaz; ou, de que, na realidade, ele foi capaz em seu próprio habitat.

Outro aspecto a considerar — principalmente para mostrar por que se fala em


negro africano — é que na África não há somente negros, nem só a África
tem negros. Nas populações africanas encontram-se grupos caucasóides,
como os semitas e os camitas, além dos diversos grupos negros, que muitas
vezes se diversificam em condições étnicas e de cultura. Por outro lado
encontramos negros na Ásia, como os andamaneses, ou na Austrália, como os
papuas das Novas Hébridas, ou os da Nova Guiné.

Desta forma, ao situarmos o estudo do negro, antes de sua incorporação às


populações brasileiras, convém considerar esta situação anterior: a que ele
desfrutava na África. Situação de liberdade, de cultura em pleno
desenvolvimento; situação também que representava um momento de cultura
traduzido pelos graus diversos manifestados pelos vários grupos de negros.
Esta situação é que sofreu o impacto da escravidão, e consequentemente foi
perturbada ou modificada. Quando eles, os negros africanos, manifestavam
seus valores culturais autênticos e puros, foram surpreendidos pela caça
escravagista.

O século XV foi o do primeiro contato do africano com o europeu, contato de


consequências irremediáveis, pois abriu caminho para o comércio negreiro. A
princípio, foi pequeno esse comércio. Mas no século XVI um fato novo
transformaria toda a situação da África: a descoberta da América. As
populações africanas, a partir de então, foram atingidas por contínuas guerras,
expedições de caça ao homem, extermínio dos que escapavam ao cativeiro. A
exigência de mão-de-obra no trabalho que se implantara na América
acarretou a escravidão do africano.

Aos milhares foram trazidos, século a século, para as Américas: a do Norte, a


Central, as Antilhas, a Tropical, o Brasil. Sua predisposição de vida nos
trópicos facilitava a imigração em massa, pois facilmente se adaptavam os
africanos às novas condições de vida. As sociedades africanas, com o
comércio negreiro, se abastardaram; mais que a decadência social ou
econômica, mais violento foi o abastardamento da organização social em que
assentava a vida das populações africanas. As sociedades se transformaram.

Depois, veio o século XIX; da escravidão passaram os africanos ao


colonialismo. Nova transformação, desta voz para o domínio colonial dos
povos europeus, que dividiram a África em porções subordinadas à metrópole
européia. Perpetuaram-se, com o colonialismo, os modos de vida africanos,
arcaicos ou primitivos, sem que se modernizassem suas técnicas, seu
comércio, suas atividades em suma. Ainda hoje a exploração coletora
prevalece em numerosas sociedades africanas. O colonialismo explorou o
território africano, impondo-lhe condições não apenas de subserviência, do
ponto de vista político, mas de estagnação, se não de decadência, do ponto de
vista econômico.

As transformações que o domínio colonial impôs acarretaram desagregações,


desequilíbrios, desajustamentos, de toda ordem.

De modo que ao alvorecer daquele século — o XVI — sofreu o africano as


primeiras modificações em suas estruturas. Pois a escravidão não trazia para
o Brasil os africanos por grupos ou tribos, nem mesmo por famílias, isto é,
respeitando seu agrupamento étnico ou familiar, ou sua condição cultural;
essa vinda se fazia através dos grupos diversos que se misturavam nos portos
de embarque, nos navios negreiros, e igualmente no território brasileiro, ao se
distribuírem para as fazendas, os engenhos, as casas urbanas. Esta mistura de
grupos, por vezes de culturas diversas, fez com que não se pudesse isolar
nitidamente cada um deles; nem sempre foi possível reconhecer os valores
característicos de cada um. Além disso, entre eles próprios permutaram
elementos culturais.
O negro no Brasil

PARA O Brasil o homem da África foi trazido principalmente como mão-de-


obra: a mão-de-obra capaz de substituir o indígena, pois este não estava afeito
ao trabalho sedentário e de rotina da lavoura. O negro foi o elemento humano
que completou a atividade do português como criador de um sistema de
agricultura tropical, que serviu de base no processo de colonização com que
foi ocupado o território brasileiro.

Foi particularmente o escravo que influiu na organização econômica e social


do Brasil, constituindo a escravidão uma daquelas três forças — as outras
duas, a monocultura e o latifúndio — que caracterizam o processo de
exploração da nova terra portuguesa; e que fixaram igualmente a paisagem
social da vida de família ou coletiva no Brasil. Esta distinção já a fazia
Joaquim Nabuco, em 1881, antecipando-se assim aos modernos estudos de
interpretação antropológica ou sociológica sobre o negro: “o mau elemento
da população não foi a raça negra, mas essa raça reduzida ao cativeiro”,
escreveu ele em O Abolicionismo.

Essa situação de escravo, portanto, marca como traço fundamental e


indispensável de ser assinalado a presença do negro africano no Brasil; a
influência não foi do negro em si, mas do escravo e da escravidão, já
observou Gilberto Freyre. Como escravo, e por causa da escravidão, o negro
africano teve sua cultura perturbada; dela afastado bruscamente, misturou-se
com outros grupos culturais. Esta circunstância contribuiu para que os valores
culturais de que era portador fossem prejudicados em sua completa
autenticidade ao se integrar no Brasil.

Não puderam os escravos negros manter íntegra sua cultura, nem utilizar
preferentemente suas técnicas em relação ao novo meio. Não foi possível aos
negros revelarem e aplicarem todo o seu conjunto cultural: ou porque, ao
contato com outros grupos negros, receberam ou perderam certos elementos
culturais, ou porque, como escravos, tiveram sua cultura deturpada. Daí os
sincretismos e os processos transculturativos.

Talvez este fato tenha concorrido para fazer com que no novo meio nem
sempre fosse o negro um conformado; um joão-bobo que aceitasse
pacificamente o que lhe era imposto. Foi, ao contrário, e por vezes através de
processos bastante expressivos — e o caso dos Palmares é típico —, um
rebelado. Fugas, rebeliões, insurreições, formação de quilombos denunciam a
reação do negro à situação que lhe era imposta. Todavia, um ponto deve ser
desde logo salientado: apesar dessa inconformação, dessa rebeldia, o negro
no Brasil sempre foi melhor tratado que em outras áreas. Desfrutou condições
diferentes, para melhor em muita coisa, de seus irmãos em outras regiões de
escravidão.

Desde os primórdios da colonização, nesta situação de escravo, começou o


negro africano a ser introduzido no Brasil, dentro da política colonizadora de
Portugal de utilizar escravos como mão-de-obra. Desde o século XV que
Portugal comerciava com escravos da África para a metrópole. Com o
descobrimento do Novo Mundo este comércio desenvolveu-se. Além de
introduzirem escravos no Brasil os portugueses também fizeram comércio
para as colônias espanholas.

É difícil fixar hoje em dia o número de negros entrados no Brasil como


escravos. Variam os autores quanto à estimativa. Uns elevam a 18 milhões,
outros baixam a 3 milhões. Entre um e outro desses números divergem e
variam as estatísticas. A ausência de documentos coevos impede que se
estabeleça o número exato ou, ao menos, aproximado. De qualquer forma é
justo dizer que o grande número de escravos entrados no Brasil nos séculos
XVI, XVII, XVIII e primeira metade do XIX contribuiu para o
desenvolvimento da população, para o fomento econômico e para as relações
culturais.

Se não se conhece o volume exato de negros africanos entrados no Brasil,


pelo mais nefasto processo de imigração dirigida que o mundo já presenciou,
sabe-se, entretanto, quais foram os principais focos de entrada desses grupos
em território brasileiro. Naturalmente, os primeiros foram Bahia e
Pernambuco, onde a economia açucareira, a lavoura de algodão, as atividades
domésticas, sobretudo nos engenhos de açúcar, exigiam mão-de-obra
numerosa. Da Bahia os africanos se irradiaram para Sergipe; e de
Pernambuco, para Paraíba e as Alagoas.

Outro foco de entrada foi o Maranhão, onde a lavoura de algodão atraiu


numerosa escravaria, a ponto de o padre Antônio Vieira, em um de seus
notáveis sermões, haver dito que paradoxalmente o algodão enegrecera o
Maranhão. Daí a escravidão se espalhou para o Pará, onde ainda no século
XVIII era grande a população negra.

Um quarto foco encontramos nas Minas Gerais; para ai foi a mineração o


principal fator de atração do escravo. A princípio, eram os escravos levados
de outras áreas — do Nordeste, principalmente — para os trabalhos de
exploração do ouro e depois de diamante; mais tarde, eram escravos trazidos
diretamente da África para o extrativismo mineiro. Assim rapidamente se
engrossou a população negra escrava nas Minas Gerais.

Finalmente, outro foco de entrada foi o Rio de Janeiro, a antiga província


fluminense; a princípio, a cana-de-açúcar e mais tarde o café foram os
motivos de atração do escravo. E à proporção que o café marchava para o
interior, pelo vale do Paraíba, pelas Minas Gerais, pelo território paulista, e
isso já na segunda metade do século XIX, foi levando também o escravo, até
mais ou menos às imediações da cidade de São Paulo, quando já encontra os
cafezais trabalhados pelo imigrante italiano.

Isto não quer dizer que somente para estas áreas entrassem negros escravos;
por todo o Brasil eles se espalharam. Cada um desses focos referidos
constituiu o porto principal de entrada; daí iam os negros africanos
distribuindo-se por fazendas, por serviços domésticos, por cidades. Chegaram
ao Extremo Sul, no Rio Grande, como chegaram ao Extremo Norte, no
Amazonas; atingiram igualmente o Centro-Oeste, à proporção que se
expandiu a exploração das minas de ouro. De modo que todo o Brasil recebeu
sua contribuição: aqui mais, ali menos, mas sempre presente o negro africano
na paisagem social, econômica e cultural brasileira.

Apesar de registros e observações sobre os negros em obras de vários


viajantes, missionários ou cronistas, nos séculos XVII a XIX — saliente-se
que foram os holandeses os primeiros a se voltarem para a observação do
negro —, somente nos fins da última centúria os estudos africanistas
tomaram uma certa feição científica. Deve-se isto à orientação dada por Nina
Rodrigues aos seus trabalhos sobre o negro na Bahia.

A princípio admitiu-se a presença exclusiva de negros bantos nas populações


brasileiras. Originou-se esta concepção da primeira tentativa de classificação
dos grupos negros por Martius; considerou o sábio alemão que os negros
entrados no Brasil eram bantos, procedendo principalmente dos povos
congos, cabindas, angolas e angicos. Esta concepção de um exclusivismo
banto perdurou durante muitos anos, até que Nina Rodrigues levantasse a
idéia do exclusivismo sudanês entre os negros na Bahia.

Baseou-se este cientista nas populações negras entradas na Bahia, onde


predominaram grupos sudaneses, e daí ter ele admitido existirem somente
elementos dessa procedência. Posteriormente João Ribeiro e Sílvio Romero
voltaram a defender o predomínio banto, tomando como referência os negros
entrados no Rio de Janeiro. Contudo, Sílvio Romero aconselhava sempre
fazerem-se pesquisas regionais como necessidade indeclinável para perfeito
conhecimento dos grupos negros entrados no Brasil.

Durante muito tempo falava-se dos grupos negros como “peças da Guiné”, ou
“peças da África”, ou “negro da Costa”; não se identificavam as tribos ou
nações a que pertenciam. Calógeras fixara as origens geográficas dos grupos,
mas tomando por base os portos de embarque, o que não apresentava bastante
consistência; é que, em cada porto, embarcavam geralmente negros de
diversas nações, procedentes de vários pontos da África, e não
exclusivamente de um só ponto.

Pouco a pouco é que se foi esclarecendo a verdadeira orientação que se


deveria estabelecer na caracterização da procedência dos grupos negros. De
acordo com os estudos realizados por Arthur Ramos, pode afirmar-se a
existência de grupos negros entrados no Brasil, de conformidade com as
culturas que representavam. Estes três grandes grupos proporcionam a
seguinte distribuição:

a) Culturas Sudanesas, representadas principalmente pelos povos


iorubanos, da Nigéria (Nagô, Ijechá, Eubá ou Egbá, Ketu, Ibadan, Yebu ou
Ijebu e grupos menores); Daomeanos (Gege, Ewe, Fon ou Efan e grupos
menores); Fanti-Ashanti, da Costa do Ouro (Mina propriamente dito, Fanti e
Ashanti, grupos menores da Gâmbia, da Serra Leoa, da Libéria, da Costa da
Malagueta, da Costa do Marfim etc.);

b) Culturas Guineano-Sudanesas Islamizadas, ou Negro-Maometanas,


representadas pelos seguintes grupos principais: Peuhl (Fulah, Fula etc.);
Mandinga (Solinke, Bambara etc.); Haussá; Tapa, Borem, Gurunsi e outros
grupos menores;

c) Culturas Bantas, constituídas por inúmeras tribos dos seguintes grupos:


Angola-Congolês e Contra-Costa.

Em que pesem as possíveis deficiências dessa classificação, a verdade é que


tem servido de base a todos os estudos sobre a contribuição cultural do negro
africano na formação brasileira. Numerosas tribos ou nações estão aí
incluídas; mas é possível que várias outras tenham escapado a essa
classificação. Contudo, as características dos três grandes grupos
classificados por Arthur Ramos são ainda hoje as mais marcantes, ou pelo
menos as de maior significação quando se estuda a participação do elemento
negro africano na vida brasileira; em todos os aspectos da vida brasileira.
A contribuição do negro africano

A PARTICIPAÇÃO da cultura africana no Brasil está hoje perfeitamente


caracterizada através dos modernos estudos do Professor Arthur Ramos, de
modo geral, e, em particular, dos capítulos sobre o negro escravo no livro
Casa Grande & Senzala, de Gilberto Freyre. Entretanto deve situar-se na obra
de Nina Rodrigues a fase precursora dos estudos sobre os africanos no Brasil,
com as pesquisas por ele realizadas na Bahia. Só modernamente é que seu
trabalho teve mais larga divulgação, graças a Arthur Ramos que o difundiu e
continuou.

Também a Manuel Querino, Edison Carneiro, Nelson de Sena, Dante de


Laytano, Luiz Viana Filho, Renato Mendonça, Donald Pierson, René Ribeiro,
Roger Bastide, Waldemar Valente, Costa Pinto e outros devem-se numerosos
trabalhos sobre o africano no Brasil, nos vários aspectos de sua cultura e de
sua contribuição à formação da cultura hoje brasileira.

Dele recebemos copiosa colaboração étnica, isto é, na constituição


antropológica da população, como igualmente a recebemos no processo
transculturativo; com o indígena e o português, o escravo negro nos deu
muito de sua cultura, em vários aspectos específicos, que hoje se fixam na
vida brasileira.

Em virtude desta situação de escravo, com sua cultura deturpada, é que se


considerou o negro um elemento inferior; não somente uma etnia como
também uma cultura inferior. Como raça inferior sempre foi olhada e
encarada, negando-se-lhe, entretanto, a existência de condições sociais e
culturais bem significativas. Condições essas, em grande parte, já reveladas
no seu habitat nativo, em várias atividades, mas estranguladas ou asfixiadas
em sua vida de escravo e como escravo não raro afastado de sua família, de
seu ambiente, de seus companheiros de grupo étnico e cultural.
Todavia é possível verificar-se que muitas destas culturas ou simplesmente
destes traços culturais subsistiram no Brasil, principalmente em
manifestações religiosas, o que revela a capacidade de resistência desses
povos. É certo que alguns não sobreviveram; diluíram-se, ora desaparecendo,
ora mesclando-se com outros que se revelaram mais fortes. O caso, por
exemplo, de manifestações culturais geges ou fanti-ashanti absorvidas pelos
nagôs, segundo registra Arthur Ramos.

Das diversas culturas, ou apenas das sobrevivências culturais de origem


africana, pode-se dizer que estão hoje sobremodo mescladas, não se as
encontrando mais puras; é preciso lembrar que já chegavam mesmo ao Brasil
perturbadas pelo regime de escravidão, como vimos. Os três grupos da
classificação de Ramos polarizaram mais à evidência seus traços culturais
através dos iorubas, os sudaneses, dos malês, os islamizados ou negro-
maometanos, dos angola-conguenses, os bantos. Se bem que os negros
islamizados se tenham procurado isolar, sabe-se, entretanto, que os haussás
exerceram forte influência sobre outros grupos, bem como sobre grupos
sudaneses, sobretudo os nagôs, com os quais participaram de sublevações na
Bahia, no século XIX.

Através desses elementos ou destes grupos ou tribos grande foi a contribuição


cultural do escravo africano no Brasil. Os traços ou complexos culturais
introduzidos pelo negro da África, através da escravidão, se manifestaram, e
se manifestam, em várias atividades. Sistematizando-se o que foi a
participação negra no processo transculturativo no Brasil poderemos lembrar,
a seguir, alguns de seus aspectos ou elementos mais característicos, aqueles
em que mais visível se tornou a influência da cultura negra.

A ioruba, relembra Arthur Ramos, foi a mais adiantada das culturas negras
puras, introduzidas no Brasil. O nagô se converteu, por algum tempo, pela
influência da cultura ioruba, em “língua geral” dos negros; em nagô se
realizavam, e se realizam, as cerimônias do culto, os cânticos dos terreiros, os
atos litúrgicos. Esta língua entrou em contato com a portuguesa, passando a
esta muitas de suas palavras, o que igualmente sucedeu com o quimbundo.
Aliás, do ponto de vista linguístico, o grupo banto deixou talvez mais forte
influência, através do quimbundo; as maiores pesquisas e estudos sobre as
sobrevivências africanas no português do Brasil têm demonstrado a
preponderância linguística do elemento banto, embora sua cultura, de modo
geral, fosse inferior à ioruba.

A celebração do culto nagô se faz em templos próprios, os terreiros,


constituindo seus altares os pejis. Os sacerdotes são chamados babalorixás ou
babalaôs. Na religião ioruba se tem feito sentir forte sincretismo com o
catolicismo e o espiritismo; sobretudo, o catolicismo, adaptando os santos
deste aos seus. Os outros grupos culturais mantiveram também suas práticas
religiosas sincretizadas com o catolicismo; talvez somente os maometanos se
tenham isolado mais, sob este aspecto, praticando na sua pureza a religião
trazida.

Do candomblé, na Bahia, ou macumba, no Rio, xangô, no Nordeste, deve-se


dizer que é um produto já brasileiro, resultado do processo transculturativo, e
não uma prática pura ou exclusivamente de negro africano. Surgiu no Brasil
sob a influência, é certo, de grupos negros, mas como fenômeno já nosso,
aqui transculturado.

Instrumentos de música como tambores, atabaques, ou campânulas, agogô,


ou flauta, afofié, usados nas práticas religiosas, são igualmente de origem
ioruba; entre os bantos, da mesma forma, encontramos instrumentos de
música tais como os tambores de jongo, o ingono, usado no Nordeste, o
zambê, a cuíca, o urucungo, o berimbau.

Da cultura material, podemos lembrar de origem ioruba numerosos pratos da


culinária afro-brasileira; aí predominou, em particular na área baiana, a
influência enorme da cozinha nagô. O complexo do inhame como o uso do
azeite-de-dendê são de origem ioruba, e mais alguns pratos de procedência
africana: o vatapá, o acaçá, o bobó, o acarajé, o abará, o efó, o axoxó etc.

A influência ioruba se fez sentir ainda na indumentária: panos vistosos, saias


rodadas, xales da Costa, braceletes, argolões etc. No traje, aliás, se mesclou
profundamente a cultura ioruba com a maometana, sobretudo a do grupo
haussá, dos quais veio o tipo característico da “baiana”; turbante ou rodilhas
na cabeça, chinelinhos, saias rendadas, braceletes, colares etc.; neste modo de
vestir se misturaram influências ioruba e maometana, de maneira a
caracterizar o traço africano na indumentária, de que é padrão o vestir à
“baiana”.
Também de origem ioruba objetos de bronze, de ferro ou de madeira,
fabricados para seus cultos, instrumentos de música, objetos de culto, ou de
uso doméstico; ainda certos traços de arquitetura na construção dos pejis,
embora o africano não tenha tido oportunidade, no Brasil, de revelar sua
cultura, sob este aspecto, pela ausência de construções de sua exclusiva
iniciativa. Todavia, nos mocambos encontra-se grande influência negra,
porém, mais do elemento banto.

A cultura gege pouco se revelou no Brasil; encontram-se traços de sua


presença principalmente no Maranhão, com a Casa das Minas. Encontram-se
ainda sinais de sua influência em manifestações folclóricas, tais como nos
ranchos e ternos, em particular nas suas sobrevivências totêmicas, e em
contos populares, registrados entre negros baianos. Algumas vezes estes
contos sincretizar com os de origem banto, mas é evidente a predominância
do elemento gege em especial naqueles que referem histórias de animais: de
tartaruga, a “logozé” dos geges, sobretudo.

Da cultura maometana, trazida pelos negros sudaneses e hamito-semitas, a


influência se manifestou através, principalmente, dos haussás. No Brasil os
negros maometanos tomaram a denominação genérica de malês, e sua
principal sobrevivência cultural foi a do traje de “baiana”. Este grupo
maometano ou malê conservou várias instituições, vivendo em relativo
isolamento, em consequência de que foram seus traços culturais
desaparecendo. Mantinham seus hábitos severos e isolavam-se em casa, para
a prática dos cultos religiosos.

Entre os maometanos não se verificou sincretismo religioso, como quase não


se verificou nenhum traço transculturativo mais relevante. A presença do
haussá na Bahia ou no Brasil, de modo geral, se revela pelas manifestações
revolucionárias que promoveram em várias ocasiões: sobretudo na rebelião
de 1835, na Bahia, que foi de origem haussá. Falavam os malês as línguas de
seus países de origem, mescladas de expressões ou termos árabes, por vezes
deturpados. Eram, entretanto, elementos de nível cultural alto, e talvez por
isso se inclinassem às manifestações de rebeldias, em processos contra-
aculturativos.

Já os bantos, embora de expressão cultural inferior, deixaram vários traços


característicos de sua influência. Além de seus cultos religiosos, com seus
sacerdotes e suas práticas próprias, fixaram sua influência em instrumentos
de música, em danças como os quilombos, os maracatus e em aspectos do
bumba-meu-boi, principalmente nas sobrevivências totêmicas. Igualmente de
proveniência banto os congos, que traduzem reminiscências de instituições
sociais mantidas por esse grupo africano em suas terras nativas, quer quanto à
organização monárquica (escolha do rei do Congo), quer quanto a tradições
do patriarcado (rei do Congo) e do matriarcado (rainha Ginga). Também o
samba se admite que seja de procedência banto, originado do batuque angola-
conguense; banto, igualmente o coco; outras danças — caxambu, sorongo,
jongo, sarambu — parecem, da mesma forma, de origem banto pelo que os
respectivos nomes podem sugerir.

Da cultura dos grupos bantos um dos traços mais visíveis ainda hoje,
conservados e mantidos pelas populações brasileiras, é a figa; era por eles
fabricada e usada, como o eram também outros objetos em ferro e em
madeira. Nos trabalhos de ferro se destacaram os negros moçambiques,
excelentes ferreiros. Aliás trabalhos de metais e instrumentos de ferreiro, de
procedência africana, se encontraram em certas áreas de mineração, onde
também o africano introduziu a batéia. De modo geral a mineração do ferro,
entre nós, foi aprendida do negro africano. Ainda a principal sobrevivência
negra na construção de mocambos é de origem banto.

Foi, porém, na língua que mais acentuadamente predominou a influência


banto. O quimbundo, a principal língua deste grupo, espalhou-se em grande
área do Brasil e introduziu termos seus no português falado entre nós.
Sobreviveu mais do que influências outras não materiais ou mesmo materiais
o elemento negro na língua, refletindo-se enormemente na linguagem nascida
no Brasil, desse choque transculturativo, entre o português e o negro escravo.

Examinado, assim, de modo particular quanto a cada uma das culturas


negras, o que o escravo africano nos trouxe e nos legou, podemos sintetizar
sua participação no processo transculturativo no Brasil. Sua contribuição
abrangeu a vastidão de pratos que enriqueceram a alimentação brasileira,
mormente na área baiana, compreendendo também condimentos, modo de
preparar e utensílios usados na cozinha, trajes típicos ou o gosto por certos
usos e cores, técnicas de trabalho nas atividades da lavoura, da mineração, de
indústrias rudimentares e da pecuária, inclusive o fabrico de instrumentos de
ferro, instrumentos de música para suas orquestras ou práticas religiosas,
influências na arquitetura do mocambo, introdução de plantas que se
aclimataram no Brasil e ainda de vários costumes hoje brasileiros.

Estendeu-se ainda a contribuição do escravo negro ao sincretismo das


práticas religiosas de procedência africana, danças como os congos,
quilombos, coco, jongo etc., vocábulos incluídos na linguagem comum do
português no Brasil e igualmente modos e formas de expressão e de dizer.
São elementos que põem em relevo a influência do negro. E, sobretudo, sua
participação inapagável e decisiva na vida de família do brasileiro,
principalmente através da mulher negra, como mucama ou ama-de-leite,
tratando e alimentando os filhos dos seus senhores.
A mestiçagem e seus resultados

DENTRE OS estabelecimentos que antes referimos como principais centros


em que se processaram as relações étnicas e de cultura no Brasil, o engenho
de açúcar e a fazenda de criação aparecem como os dois mais importantes.
Deles é que vieram a surgir os tipos mais característicos de mestiços do
Brasil: o mulato, oriundo do intercurso sexual entre o branco e o escravo
negro, nos engenhos de açúcar; e o mameluco, originado das relações entre o
branco e o indígena, nas fazendas de criação. O mulato foi o tipo étnico ou
antropológico surgido na sociedade agrária, e o mameluco o da sociedade
pastoril — sugeriu Arthur Ramos.

Do ponto de vista de distribuição geográfica, poderemos localizar a região


litorânea do Nordeste como aquela em que se verificou mais intensa a
mestiçagem branco-negra, gerando o mulato; também o Rio de Janeiro e
parte da área mineira devem incluir-se nesta região de miscigenação afro-
branca. Já a região interior do Nordeste e o Extremo Norte (Amazonas, Pará,
parte do Maranhão) serviram de palco para o processo de mestiçagem
branco-indígena, o que também se pode observar no Extremo Sul, na
chamada área missioneira. Igualmente, dentro dessa região de miscigenação
índio-branca, devemos incluir a área do Oeste brasileiro (Mato Grosso e
Goiás).

A maior mistura com o elemento negro se constatou naquelas regiões para


onde o escravo africano foi importado como trabalhador agrícola: o
Recôncavo Baiano, o Nordeste açucareiro, que foi o da faixa litorânea, parte
do Maranhão, grande parte da velha província fluminense, onde o africano
trabalhou na economia açucareira e mais tarde na economia cafeeira; aliás,
esse traço, ou seja, a presença do elemento negro escravo, diferençou a
cultura cafeeira no Rio de Janeiro, mais baseada no trabalho escravo, da de
São Paulo, menos baseada nesse trabalho. Pois foi para aí justamente que se
encaminhou a mão-de-obra do imigrante estrangeiro, sobretudo do italiano.

Dos contatos luso-indígenas é que surgiram os primeiros mestiços brasileiros:


os mamelucos. Não os acobertava comumente casamento legal, que somente
os padres da Companhia de Jesus trabalharam por implantar no Brasil, nem
sempre saindo vitoriosos; o que se verificou, grosso modo, foi o
amancebamento. Mancebia de lusitano com indígena; e também com negra.
A com indígena foi das que logo escandalizaram os padres, ao chegarem ao
Brasil, no meado do século XVI.

De Pernambuco, aos 2 de agosto de 1551, escrevia o padre Antônio Pires que


os moradores só agora estavam casando, o que antes não faziam, “porque
queriam antes estar amancebados com suas escravas e com outras negras
forras”. Pela mesma época, o padre Nóbrega, também de Pernambuco,
registrava o ambiente ali encontrado: homens casados em Portugal vivendo,
por toda a costa, em grandes pecados; pelo sertão se espalhavam filhos de
cristãos vivendo e criando-se nos costumes do gentio. Os grandes pecados
eram as mancebias; e esses filhos de cristãos, os mamelucos.

De um desses mestiços, filho de cristão e índia, escreve o padre Leonardo


Nunes ser “mui alto de corpo e mui alegre”. Talvez seja esta a única, e é
realmente a primeira, referência a um aspecto do tipo físico dos mamelucos
nos primeiros tempos. Destes — acrescenta o mesmo padre — são muitos os
que andam pela terra adentro. Aliás, escasseiam descrições do tipo físico
desses mestiços. Os cronistas não o guardaram, o que não seria de estranhar,
desde que o curioso, o exótico, como tipo humano, aos olhos dos cronistas e
viajantes, eram os indígenas puros, e não seus descendentes já mestiçados.

O fato de registrarmos aqui a importância das relações ilícitas no fomento da


mestiçagem não exclui a existência de casamentos. Ao contrário: estes
sempre houve, e muitos. A política colonizadora do português incentivara o
casamento entre lusos e nativos; uniões entre conquistadores e conquistados,
é certo, mas que constituíam um dos melhores fatores para a obra de
formação social em bases estáveis: a família. Foi justamente nesse estímulo à
mestiçagem que mais se fortaleceu o sentimento da formação da família na
organização da sociedade brasileira. Nessa base — a da família monogâmica
— foi que se esteou a obra da colonização portuguesa no Brasil. Aqui e em
outras áreas da colonização lusitana. A falta de mulheres brancas ou
portuguesas, supria-a o colonizador com o elemento nativo; daí os
casamentos entre europeus e indígenas a constituírem núcleos legais da
miscigenação brasileira. O que sucedeu também na Índia ou na África.

De modo que embora estimulando os casamentos teve o português também


de tolerar as relações ilícitas; todavia, perseveraram sempre, e contribuíram
beneficamente para o surgimento dos diversos tipos de mestiços no Brasil. O
fato é que o casamento por si não foi solução integral; as mancebias ou os
encontros fortuitos — tanto os do mato como os da cozinha, e depois os da
fonte — continuaram a gerar mestiços. As senzalas se tornaram depois, com
o desaparecimento do indígena ou seu afastamento para áreas mais recuadas,
o ponto central de onde sairia o tipo mestiço que encheu a paisagem da região
agrária: o mulato.

O mulato constituiu o tipo humano característico da agricultura litorânea, da


mesma forma que o mameluco correspondeu ao tipo da sociedade móvel, que
teve na pecuária seu elemento principal. São os tipos representativos da
formação social brasileira, nos seus graus mais expressivos, o que não exclui
o aparecimento ou a existência de outros resultados de mestiçagem, nuanças
diversas, oriundos dos entrecruzamentos variados.

E não se deve esquecer também a mulata; vale lembrar que nenhum dos
mestiços brasileiros teve, como ainda tem, o prestígio, não apenas
sentimental, da mulata. Foi ela — a mulata — que se transformou no veículo
de costumes, alguns chamados ou considerados nocivos. Da mulata cheia de
vivacidade, o que contribuiu tão fortemente para o abrandamento do contato
entre o senhor e o escravo, o branco e o negro, contato às vezes tão íntimo
que fazia surgirem mulatinhos de olhos azuis e nariz afilado.

A mulata deve nossa vida social algo de vivo e agitado: do vivo com que
coloriu a miscigenação, embranquecendo a população; do agitado pelo que
difundiu entre os engenhos, as fazendas, as minas, as casas-grandes, os
povoados, as cidades, naquilo que já no século XVIII o nosso Antonil e no
XIX a inglesa Maria Graham chamavam de corrupção. A mulata se tornou o
encanto de muitos brancos. E nela como que se gravou a beleza da raça que
se formava, cantando-se sua sedução na poesia popular:
“Um laço de fita verde com três dedos de largura nas ancas de uma mulata
mata qualquer criatura.”

Ao lado do mameluco e do mulato, e igualmente dos tipos étnicos


fundamentais — o indígena, o branco e o negro —, vamos encontrar vários
graus de mestiçagem dependendo quase sempre da maior ou menor
preponderância de um dos grupos principais, por vezes diversificando de
acordo com as peculiaridades regionais. O quadro da mestiçagem brasileira
apresenta, de fato, um aspecto que merece não ser esquecido: a de certa
influência, no tipo étnico, de elementos de atividade social, isto é, a
caracterização do elemento, humano em função da ocupação ou da profissão,
principalmente no que se relaciona àqueles encargos de desbravamento e
ocupação da terra. Não falta a essa caracterização antropológica influência do
ambiente tanto físico como social.

Esta variedade de tipos mestiços permite ver, por outro lado, que nunca se
levantou qualquer obstáculo às relações entre os lusitanos e a gente de cor.
Parece fora de dúvida que o tipo físico jamais serviu de obstáculo para as
relações entre lusitanos e indígenas, entre lusitanos e negros, ainda entre
lusitanos e mestiços. A mestiçagem não constituiu aos olhos da gente branca
nenhum crime, nenhuma vergonha. Além disso o tratamento dispensado a
esses grupos mestiços não teve caráter de repulsão ou violência.
Evidentemente, tal conceito não se aplica ao escravo; ao escravo, esclareça-
se, mas não ao negro.

A importância do mestiço superou, em grande parte, a do próprio colonizador


branco, para cujas atividades contribuiu aquele com seu esforço braçal, com
sua colaboração, com sua integração na terra. Mestiço foi, e ainda é, o
trabalhador rural, o agregado, o comboieiro, o carregador de açúcar, nas
labutas do engenho; o jangadeiro, o barqueiro, o canoeiro, o remeiro, o
embarcadiço, nos serviços de transporte marítimo e fluvial; o vaqueiro, o
boiadeiro, o tangerino, o tropeiro, o peão, o sertanista na penetração realizada
pelo gado; o garimpeiro, o bateeiro, o faiscador, na mineração; o pescador, o
trepador de coqueiro, o seringueiro, o aguadeiro, o curtidor, o ervateiro, em
várias atividades outras e ocupações indispensáveis à vida econômica do
Brasil.
A caracterização do mulato e do mameluco como tipos mestiços principais,
repitamos, não exclui a existência de outros, de acordo com a gradação
verificada em contatos entre os tipos originários e os resultantes dos
primitivos cruzamentos, e entre esses cruzamentos secundários. Podemos,
como ponto preliminar para estudo, estabelecer os seguintes tipos étnicos, no
quadro antropológico brasileiro:

Denominação Procedência étnica

1. Branco Branco x Branco

2. Mulato Branco x Negro

3. Mameluco Branco x Índio

4. Crioulo Negro x Negro

5. Cafuzo, também chamado curiboca Negro x Índio

6. Cabra Negro x Mulato

7. Caboclo Índio x Índio

8. Pardo Descendente dos cruzamentos secundários entre mulato x


mulato, crioulo x crioulo, mulato x mameluco etc., onde vigora mais nítida a
pigmentação morena ou tendendo a escura.

Dadas as peculiaridades não só culturais como ainda de ambiente físico com


que se formaram e evoluíram as diversas regiões brasileiras, surgiu uma
riqueza de denominação a caracterizar os diversos tipos mestiços. Tapuia, que
é considerado, no Nordeste, o indígena do interior, é denominação dada
também ao descendente de branco e índio e, portanto, sinônimo de
mameluco. Na Amazônia, José Veríssimo caracterizou o mestiço de branco e
índio como curiboca, e o mameluco como originário do cruzamento entre o
curiboca e o branco.
O pardo, que consideramos o mestiço de diversos tipos ou sub tipos, na Bahia
é termo mais restritamente empregado para o filho de branco com mulato, ou
vice-versa. Os mestiços de índio e negro, chamados de modo geral cafuzos
ou cafuz, são chamados também caboré, palavra, aliás, que em Minas Gerais
significa índio, ou ainda cabo-verde, expressão usada na Bahia.

No pardo fundiram-se origens diversas, características físicas e morais de


várias procedências; não apresenta uma característica fixa, invariável, rígida;
antes varia, flutua, modifica-se, à mercê da maior ou menor influência do
gene que preponderou em sua formação. De maneira significativa começou a
surgir depois da Abolição, muito embora a expressão já apareça comum no
século XVIII, mas aí quase sempre como sinônimo de mestiço, sem
identificação de origem ou de cor.

Os resultados da mestiçagem entre negros e mulatos apresentam uma


sinonímia muito variada: são lulas, em Minas, Bahia, Alagoas; são
pardavascos, na Bahia, em Goiás, Estados do Sul; são cabras, no Nordeste;
são cabrochas, em outras regiões. Aliás, pardavasco tem tomado
modernamente um sentido mais pejorativo, para o mestiço, qualquer que seja
sua cor, pretensioso, posudo, metido a superior. Cabra é ainda expressão que
se tem espalhado, no Nordeste, para caracterizar qualquer mestiço tendendo a
ter a pele clara.

Do cabra assinale-se, aliás, que na região açucareira não constituiu apenas um


tipo étnico; alongou-se a um tipo social. O que a linguagem popular chama
cabra é menos um característico étnico que uma condição social; tanto pode
ser o pardo como o moreno, às vezes o mulato, escuro e claro, tendendo a ter
ou não a pele clara. O que é definido como cabra é uma significação social,
como classe de população de trabalhadores, qualquer que seja a cor: cabra de
engenho, cabra de bagaceira, cabra de eito, cabra de usina.

Tornou-se assim o cabra um tipo social mais que um tipo étnico. E por
extensão passou a significar o valentão, o desordeiro, o capanga; é o cabra de
peito. Daí a palavra cabroeira, grupo de cabras, dados a desordens,
perturbadores do sossego público. Não é, portanto, uma definição étnica; e
por este seu sentido social, talvez, menos que pelo antropológico, é que a
poesia popular pode dizer que “o cabra não tem parente”.
Afora essas denominações aparecem ainda muitas outras, algumas já caídas
em desuso, abrangendo diversas nuanças dos tipos mestiços, quase sempre
segundo a coloração da pele. É o caso do guajiru, mulato, de cor
avermelhada-escura, semelhante à fruta desse nome; o caso do sarará, mulato
arruivado, de cor clara e cabelos ruivos, mais ou menos encarapinhado,
também chamado saruê ou ainda grauçá; o caso do olho-de-fogo, que é o
indivíduo albino no Rio Grande do Sul, também conhecido como preto-aça.

Existem igualmente outras denominações típicas, de uso já desaparecido, mas


cujos nomes aparecem em documentos coloniais. O banda-forra, por
exemplo, é o descendente de branco com negra escrava, já hoje inexistente; o
salta-atrás, filho de mameluco e negro; o mazombo, filho de brancos nascido
no Brasil; o terceirão, originado do cruzamento entre branco e mulato.
Documento do século XVIII referente a Pernambuco alude também ao carió,
filho de índia com negro; são os mesmos conhecidos ainda como carijó,
curiboca ou cariboca. Para o mesmo documento, entretanto, o curiboca ou
cariboca é o filho de mulato com negra, ou então o filho de mameluco e
negra. A expressão era usada, porém, no litoral; no sertão, este tipo de
mestiço era o chamado salta-atrás.
As correntes imigratórias no século
XIX

O SÉCULO XVIII marcou-se como uma das fases mais intensas de


intercruzamento étnico e cultural no Brasil, com o deslocamento da
exploração econômica para a região das Minas Gerais, onde se descobriram
minas de ouro e, mais tarde, de diamantes. A mutação econômica, da base
agrária para a base da mineração, trouxe influências não somente nas relações
étnicas entre os diversos grupos, mas igualmente na formação do quadro
cultural.

Naquela região processaram-se novos contatos étnicos e de cultura: relações


novas estabeleceram-se, pelo grande surto de aventureiros, nacionais e
estrangeiros, que para ali acorreram. Com a exploração aurífera e
diamantífera surgiram novos cruzamentos étnicos e novos processos
transculturativos naquela região.

Evidentemente, os grupos étnicos eram os mesmos já conhecidos; foram


engrossados, porém, de correntes judaicas e espanholas e, sobretudo, de
novas correntes imigrantistas de Portugal. Além disso, movimentaram-se
para as minas escravos não só africanos de procedência como também
crioulos, isto é, filhos de africanos já nascidos no Brasil. O que caracterizou
esse novo contato étnico não foi o aparecimento de novos grupos, mas sim a
intensidade com que foi feito, a mobilidade quase permanente dos grupos
humanos em decorrência do vaivém da procura dos veios e das pesquisas
estabelecidas, a instabilidade das primitivas instalações.

De modo que um panorama novo de relações étnicas se estabeleceu na região


das Minas Gerais, ao mesmo tempo que novos valores de cultura surgiram e
se fixaram. Temos então uma fase de ostentação e de luxo, decorrente ou
estimulada pelo ouro abundante que se espalhou na região. Verificou-se
desde logo uma elevação de classes sociais, como tradução dessa valorização
de riqueza. Representativos dessa abundância de ouro são ainda hoje os
templos religiosos e os edifícios públicos ou particulares existentes na região
de antiga exploração aurífera.

Foi ainda neste mesmo século XVIII que se verificou a completa integração
territorial do Brasil, com a definição de suas fronteiras através do tratado
luso-espanhol de 13 de janeiro de 1750. Baseou-se este documento,
conhecido geralmente como “Tratado de Madri” ou “Tratado de 1750”, no
princípio do “uti possidetis” e, para justificá-lo, a diplomacia portuguesa,
orientada então pelo brasileiro Alexandre de Gusmão, seguiu a política de
povoar áreas do território com casais açorianos. Foi o que sucedeu na Região
Norte (Amazônica) e na Região Sul (Santa Catarina e Rio Grande do Sul),
onde açorianos se instalaram, participando das relações étnicas e culturais nas
áreas por eles desenvolvidas.

A mais vasta experiência de relações de raça e de cultura que o país


presenciaria, entretanto, somente se deu no século XIX, com a abertura dos
portos do Brasil ao comércio internacional, de um lado, e, de outro lado, com
a introdução de novos grupos étnicos como imigrantes. Alemães, italianos,
poloneses, austríacos, belgas, suíços começaram a entrar no Brasil,
principalmente os dois primeiros grupos, que se tornaram não somente os de
maior expressão numérica como também de maior significação cultural. Sem
esquecer ainda ingleses e franceses.

Pode-se dizer que a imigração no Brasil começa com a regência do Príncipe


D. João, mais tarde D. João VI. Esse processo, que é tanto de imigração como
de colonização, torna-se possível principalmente com a repercussão de duas
medidas adotadas pela Corte Portuguesa, mal desembarcados o Rei e sua
comitiva; estimula-se com elas um novo processo de colonização.

Com a abertura dos portos — a primeira dessas medidas — é permitida a


vinda ao Brasil de navios estrangeiros. Tal medida possibilita abrir-se o
Brasil ao comércio internacional, estimulando novos contatos e, sobretudo, a
vinda de outros valores, de outros grupos, enfim de outras culturas.

Outra providência posterior completou esta: a Lei de 25 de novembro de


1808, segundo a qual era permitida a concessão de terras aos estrangeiros.
Com esse ato se inicia a imigração espontânea, uma vez que é possível ao
estrangeiro tornar-se proprietário de terras. E isso correspondia à aspiração de
quem abandonava sua terra à procura de novos ambientes. Começa então a
iniciativa da formação de colônias, favorecendo inclusive a própria ocupação
da terra naqueles espaços ainda vazios.

A partir de então começa o movimento imigratório para o Brasil. Esse


movimento apresenta oscilações ora favoráveis, ora desfavoráveis, de modo
que podemos fixar sua distribuição em três grandes fases: a primeira, de 1808
a 1850; a segunda, de 1850 a 1888; a terceira, de 1888 em diante. A fixação
destas datas está relacionada ao regime de trabalho. O crescimento da
imigração corresponde ao decréscimo do trabalho escravo. Imigração e
escravidão são termos que se repelem, e não seria possível desenvolver-se o
movimento imigratório paralelamente ao trabalho escravo.

A primeira tentativa oficial de colonização no período joanino é a fundação


da colônia de Nova Friburgo, em 1818. O governo régio adquiriu a fazenda
do Queimado, no município de Cantagalo, e aí instalou colonos suíços. Esses
colonos não encontraram nada preparado, tiveram de derrubar árvores,
preparar terrenos, cultivar a terra.

O colono deveria ser católico e tinha direito a um lote de terra, animais,


sementes e víveres. O governo concedeu ainda um auxílio financeiro de 160
réis por dia no primeiro ano e metade dessa importância no segundo ano.
Além dos primeiros dois mil suíços entraram posteriormente mil alemães.

Nesta primeira fase, de 1808 a 1850, encontra-se um índice de crescimento


no volume da imigração até 1830. Nesta data o governo suspendeu o
financiamento para a imigração, providência que determinou a queda do
volume imigratório. Agravando esta circunstância as condições internas do
país dificultaram ainda mais a entrada do europeu livre. As lutas que se
seguiram à Abdicação, a instabilidade dos governos regenciais e, sobretudo, a
prolongada Guerra dos Farrapos, principalmente na área para onde mais se
estavam encaminhando os imigrantes, refletiram no movimento imigratório.

Entre 1830 e mais ou menos 1843, há um declínio nas entradas de imigrantes.


O volume numérico da imigração vai recomeçar a desenvolver-se
principalmente a partir de 1846.

Em 1850 abre-se a segunda fase, marcada principalmente pela lei que


extinguiu o tráfico de escravos. O ano de 1850 tem uma importância
significativa para a história do Brasil. Sob o aspecto político é quando se
inicia a grande obra do Imperador Pedro II, conseguindo, com a harmonia
dos partidos políticos, abrir para o país uma fase de paz e de prosperidade.

Do ponto de vista econômico, vemos que, extinto o tráfico de escravos, os


capitais nele investidos são aplicados no desenvolvimento da economia
interna, principalmente através da criação de indústrias e do fomento à
construção de estradas de ferro. Começa a obra de Mauá; constroem-se a
primeira estrada rodoviária e a primeira ferroviária.

Quanto ao aspecto social, há a assinalar o desenvolvimento da vida em


sociedade. Declina o patriarcado rural, para surgir o patriarcado urbano, este,
porém, já adaptado às novas condições de vida criadas com a industrialização
e em franca transição para as novas formas sociais advindas com a República.
Influi a imigração neste desenvolvimento da vida social.

A terceira fase da imigração começa em 1888 e vem até nossos dias. Com a
abolição da escravatura novas perspectivas se abriram à imigração.
Justamente no decênio de 1891 a 1900 se verifica o maior volume de entradas
de imigrantes estrangeiros. Neste período não somente o governo federal
como também os governos estaduais contribuíram para o desenvolvimento
das correntes de imigração, concedendo auxílios que facilitaram a entrada dos
imigrantes e sua localização no território nacional.

De modo geral o desenvolvimento imigratório nesta fase está ligado ao


progresso da economia cafeeira, em consequência da necessidade de braços,
o que reclamava a presença de imigrantes. Também contribuíram para o
aumento da imigração as facilidades concedidas pelos governos estaduais,
principalmente a concessão de terras para o estabelecimento de colônias.

Este surto da imigração no século XX encontrou, porém, uma fase de


arrefecimento com a Guerra de 1914. Com o mundo em luta, a entrada de
imigrantes no Brasil foi prejudicada, reduzindo-se o volume das correntes
imigratórias. Terminada a guerra procurou-se reatar a corrente no nível
anteriormente verificado, mas novos fatores vieram contribuir para o
decréscimo da imigração.

Com a Revolução de 1930, estabeleceram-se medidas restritivas à imigração,


chegando-se em 1932 à proibição da entrada de imigrantes. Em 1934, a
Constituição estabeleceu uma quota de entrada de imigrantes, o que foi
reiterado pela Constituição de 1937; foi fixada em 2% do total de imigrantes
já localizados no Brasil a quota de imigração anual de cada grupo.

Em 1938 começou a desenvolver-se a imigração, logo interrompido seu


crescimento com a guerra mundial. Entre 1939 e 1945 verificou-se uma
queda no volume da imigração no Brasil. Depois da guerra, entretanto,
procurou-se desenvolver a imigração, o que realmente vem sucedendo.

Com relação aos grupos étnicos, as correntes imigratórias formam-se de


alemães, com entrada inicial em 1824 interrompendo-se entre 1830 e 1836,
para reaparecer mais tarde, e intensamente, em 1847, crescendo
numericamente a partir de 1850. Temos depois suíços, que, embora com sua
primeira entrada em 1820, somente a partir de 1846 reaparecem, aumentando
o volume de sua contribuição.

Os italianos, com pequenas quotas em 1836, 1847, 1852 e 1853, crescem


mais expressivamente a partir de 1877, quando tomam a frente aos alemães
no volume das entradas. Espanhóis, belgas, ingleses, suecos, franceses,
austríacos aparecem em vários anos, registrando-se nuns pequenas entradas,
noutros volume maior. A partir de 1871 surgem os imigrantes russos, que
juntamente com poloneses, depois de 1876, apresentam maior crescimento
numérico. Turco-árabes e japoneses começam a aparecer já no período
republicano, o primeiro grupo ainda nos fins do século passado, o segundo
nos começos do atual (1908).

Ao processar-se o recenseamento geral de 1920, o maior contingente de


estrangeiros no Brasil era formado pelo grupo italiano, com 558.405 pessoas;
a seguir vinham os espanhóis com 219.142, franceses com 122.329, alemães
com 52.870, turco-árabes com 50.251, japoneses com 27.976, austríacos com
26.354. Com contingentes menos expressivos aparecem outros grupos
étnicos.
Já em 1940, quando do recenseamento geral então realizado, o número de
estrangeiros era inferior ao verificado no censo anterior. Os italianos com
285.124 pessoas e os espanhóis com 147.897 continuavam em primeiro e
segundo lugares; daí em diante apresentava-se a seguinte ordem: japoneses
com 140.693, alemães com 70.271; turco-árabes (sírios, libaneses, árabes,
turcos etc.) com 48.894 e poloneses com 42.039. Como se vê, os japoneses
passaram a ocupar o terceiro lugar entre as populações não brasileiras
recenseadas em 1940. Com os alemães e os italianos formam eles, hoje em
dia, os principais grupos étnicos alienígenas que têm contribuído para a
formação cultural do país.

Em 1950 o censo demográfico acusou a presença, no Brasil, de 1.214.184


estrangeiros e estrangeiros naturalizados; representavam 2,34% do total da
população recenseada em todo o País. A região Sul absorvia a maior parte
dos grupos alienígenas; a população estrangeira aí era de 867.118, ou 71,4%
do total estrangeiro recenseado. Outra grande parte se situava na região Leste,
com 296.879 pessoas, que representavam 24,5%. Com pequenos contingentes
encontravam-se as demais regiões: o Centro-Oeste com 23.420 pessoas
(1,9%), o Norte com 17.361 (1,4%) e o Nordeste com 9.415 (0,8%).

No censo de 1960 o total de estrangeiros recenseados subia a 1.390.000 (em


números redondos), representando 2,0% em relação à população total. No
último recenseamento, realizado em 1970, o número se apresentava
diminuído; foram recenseados 1.082.000 (em números redondos), o que se
traduzia em 1,3% em relação à população total.

De acordo com os dados censitários de 1950 o principal contingente


estrangeiro era constituído pelos portugueses; depois os italianos. Para 1960,
não foi concluída, pelo Serviço Nacional de Recenseamento, a apuração do
Censo Demográfico, motivo por que não existe dado nacional para o número
de estrangeiros, segundo nacionalidades, para aquele ano.

Nos censos de 1950 e de 1970, encontramos a seguinte distribuição para as


principais nacionalidades:

Nacionalidades 1950 1970


Nº absoluto % Nº absoluto %
Portugueses 336.856 28 410.216 38
Italianos 242.337 20 128.726 12
Espanhóis 131.608 11 115.893 11
Japoneses 129.192 10 142.685 13
Alemães e austriacos 83.227 7 48.818 4
Poloneses 48.806 4 18.822 2
Sirios e Libaneses 44.778 4 32.240 3
Outras 197.371 16 185.345 17
Total Brasil 1.214.175 100 1.082.745 100

De 1820 a 1970 — resumindo-se — o número de imigrantes entrados no


Brasil superou o total de 5.600.000, sendo o decênio de 1890-99 aquele que
registrou maior volume de entradas, com 1.183.018 pessoas. No decênio
1950-59 o total chegou a 558.007 pessoas entradas no país, ao passo que no
último decênio — 1960-69 — o número caiu bastante, registrando-se apenas
187.481 pessoas.

Espalhando-se, principalmente, pela região meridional, os elementos


estrangeiros aí constituíram colônias, muitas das quais se transformaram em
vilas e cidades importantes. Formaram verdadeiros centros de comunidade,
em suas colônias, não lhes faltando não raro as mesmas características já
acentuadas, anteriormente, com relação à formação de núcleos de exploração
econômica, constituindo o ambiente das relações étnicas e de cultura no
Brasil.

Ao mesmo tempo, influíram nas comunidades brasileiras que lhes eram


vizinhas; e receberam destas, da mesma forma, influência em vários
elementos culturais.

Implantaram os traços ou complexos culturais por eles trazidos, cuja


generalização é impossível fazer, por isso que cada grupo estrangeiro
apresenta aspectos específicos. Um traço, porém, encontramos comum: o
trabalho familiar, isto é, a exploração agrícola resultante da unidade
doméstica de trabalho. Outro: a capacidade de elevar-se econômica e
socialmente, o que verificaremos quase generalizado nas colônias
meridionais.
Áreas de imigração e condições de
assimilação

A s CORRENTES imigratórias dirigiam-se, principalmente, para o Sul do


país. O Norte, o Nordeste e o Leste recebem colonos ou imigrantes
esporadicamente, e ainda assim sem o êxito que coroa a imigração para a
região Sul. Observa-se desta forma uma preferência por essa área, em
particular de São Paulo ao Rio Grande do Sul. Alguns autores têm atribuído
essa preferência às condições climáticas, isto é, à semelhança do clima nessa
região ao clima existente nas áreas de procedência do imigrante.

Já hoje, porém, se sabe que o clima não é o fator todo-poderoso determinante


da fixação dos imigrantes nessa região. Não é possível, por outro lado, negar
sua influência, mas não exclusiva como elemento que facilitou a permanência
do imigrante. Devemos, porém, considerar como causa mais direta dessa
preferência pela região meridional as condições econômicas e sociais e,
especialmente, maior área de terras inexploradas e menor presença do
trabalho escravo. O problema da propriedade da terra foi fundamental na
fixação dos imigrantes na região Sul. Aí a existência de áreas ainda não
ocupadas permitia a distribuição de lotes aos imigrantes, que desta forma se
tornavam proprietários.

Enquanto isto, nas outras regiões, e principalmente no Nordeste, o trabalho


escravo e a grande propriedade impediam a colonização estrangeira. O desejo
do imigrante era possuir terras que pudesse cultivar em seu proveito e
benefício. No Nordeste, o regime da grande propriedade pouco propiciava a
fixação do imigrante. Daí a preferência pelo Sul, com a circunstância de ser
ainda diminuto o povoamento nas então províncias meridionais.

O primeiro núcleo de colonos estrangeiros, que se fixou no Sul, formou-se de


alemães; constituíram eles a colônia de São Leopoldo em 1824, localizada
nas terras da antiga Feitoria Imperial do Linho Cânhamo. A colônia de São
Leopoldo iniciou-se com um grupo de 26 alemães, que logo deram começo
aos trabalhos de agricultura, recebendo posteriormente novos imigrantes. De
modo que em 1830 já a colônia tinha mais de 4 mil pessoas. Para a fixação
desse grupo de alemães o governo imperial deu todas as facilidades não
somente pela concessão de terras como ainda através de auxílios financeiros.
Os alemães introduziram logo na colônia o uso do arado, com que melhor
aperfeiçoaram a lavra da terra.

O desenvolvimento de São Leopoldo permitiu a expansão do grupo alemão


não somente para o próprio território do Rio Grande como ainda para as
províncias vizinhas. A primeira dessas expansões se fez com a criação da
colônia de Torres, constituída de alemães católicos, e a de Três Forquilhas,
formada de alemães protestantes.

Em Santa Catarina a primeira colônia teve o nome de São Pedro de


Alcântara, e formou-se de um pequeno grupo de alemães vindos de São
Leopoldo. A esse primeiro grupo vieram juntar-se alemães católicos, vindos
de Bremen, em 1828. Em Santa Catarina as condições foram menos fáceis
que as do Rio Grande do Sul. O terreno era áspero e difícil, o que exigiu um
trabalho árduo dos imigrantes. Nessa província o desenvolvimento
colonizador só teve importância a partir de 1850, quando se fundou
Blumenau. O nome veio de seu fundador, o médico alemão, Dr. Blumenau,
que, tendo-se localizado em Santa Catarina, compreendeu a importância
daquela região para a colonização. Tomou a iniciativa de ir à Europa e de lá
trouxe imigrantes para a organização da colônia.

A colonização estrangeira se fez, inicialmente, com a ocupação do vale do


Itajaí, cuja riqueza possibilitou o desenvolvimento e a irradiação dos grupos
humanos. Em Santa Catarina predominou o sistema de colônias, o que
permitiu incrementar-se a imigração estrangeira naquela região. Este sistema
contribuiu também para o crescimento demográfico da então província.

No Paraná, a primeira colônia foi iniciada em 1828. Logo, porém, malogrou,


em consequência dos ataques de grupos indígenas ainda muito espalhados na
região e que afastaram os colonos. Só nos primeiros anos da segunda metade
do século é que se verificou novo surto colonizador, fundando-se a colônia de
Superaguy, com franceses e suíços, e a colônia Dona Teresa, com franceses.
Todavia, essas duas colônias não foram exclusivamente estrangeiras, pois
nelas se encontravam elementos nacionais.

Igualmente em outras áreas do Brasil, verificou-se, na mesma época, tentativa


de colonização estrangeira. Na Bahia, em 1828, irlandeses formaram a
colônia Santa Januária. Esses homens, entretanto, não estavam afeitos ao
trabalho agrário, pois tinham sido soldados. Apesar da assistência recebida
com ferramentas, rações diárias, auxílios financeiros, a colônia fracassou
inteiramente. Os irlandeses se entregaram ao uso e abuso da cachaça e, em
consequência, começaram a dispersar-se e a adoecer, de modo que se diluiu
completamente a presença deles na região. Também em Ilhéus se tentou uma
colonização alemã, mas sem maiores consequências, pois os alemães se
dispersaram pelas fazendas de cacau.

Pela mesma época formou-se uma colônia alemã em Pernambuco, no lugar


Catucá, nas imediações de um quilombo de negros fugidos. Os alemães se
dedicaram ao fabrico de carvão, transformando-se em carvoeiros. A colônia,
porém, malogrou inteiramente, pois foi destruída pelos quilombos.

No Espírito Santo introduziram-se alemães em 1847, formando a colônia de


Santa Isabel. Nos meados do século, nova colônia se formou no vale de rio
Santa Maria — é a célebre colônia de Santa Leopoldina, cuja descrição de
seus costumes, dos hábitos alemães e mesmo da paisagem geográfica se
encontra no romance Canaã, de Graça Aranha. Ainda nessa época, é de
importância a fundação da colônia de Petrópolis, em 1846, hoje cidade
próspera e desenvolvida, em cujos traços culturais, sobretudo de arquitetura,
ainda se encontra a presença alemã.

Em São Paulo, o processo de imigração apresentou aspectos diferentes dos


verificados em outras áreas do Sul. Embora a princípio se tivesse verificado a
formação de colônias, logo, porém, tornou-se mais comum a introdução de
imigrantes como braço para a lavoura cafeeira. Imigrantes eram distribuídos
pelas fazendas de café, principalmente por iniciativa particular, e aí nessas
fazendas se dedicavam ao trabalho agrícola. Em sua fazenda Ibicaba, o
Senador Vergueiro instituiu o regime de parceria. Este regime era o
pagamento do trabalho do imigrante com uma percentagem sobre a colheita.
A princípio, o Senador Vergueiro trouxe para sua fazenda lavradores
minhotos. Em 1847 introduziu imigrantes alemães, que constituíam um total
de 80 famílias.

O regime de parceria foi principalmente uma experiência de trabalho livre,


reclamado pelas necessidades da lavoura cafeeira, cujo desenvolvimento se
acentuou a partir de 1850. Logo se desenvolveu um número de colônias desse
tipo. Todavia, a ausência de uma base estável nas relações entre fazendeiros e
colonos criou um desajustamento e um ambiente de mal-estar, traduzido
principalmente na chamada revolta de Ibicaba, que foi um levante dos
colonos contra o fazendeiro.

O sistema de parceria serviu, porém, de transição para o regime de


assalariado ou seja do pagamento do salário fixado antecipadamente ao
trabalhador imigrante. O regime de assalariado caracterizou principalmente, a
partir de 1870, a organização de trabalho nas fazendas cafeeiras. A fazenda
de café constituiu assim o principal núcleo de experiência e de aplicação do
trabalho livre, procurando-se com o imigrante a substituição do trabalho
escravo. Muitos colonos que trabalharam conseguiram, pelos lucros
auferidos, amealhar recursos, com os quais se tornaram posteriormente
proprietários rurais. Esses lucros permitiram igualmente que colonos viessem
instalar-se na capital, onde passaram a desenvolver suas atividades.

As condições em que se distribuíram os imigrantes nessas diversas áreas da


região meridional influíram para o respectivo processo de assimilação, cuja
maior ou menor facilidade se relacionou com a fixação adotada. Realmente,
poderemos verificar dois tipos característicos da distribuição do imigrante:
um, reunindo-os em colônias, isolados inicialmente, e por muitos anos, de
qualquer contato com os grupos brasileiros; e outro, distribuindo-os nas
fazendas de café ou em centros urbanos, num contato mais imediato com os
elementos nativos.

O primeiro, a que podemos chamar de concentração, predominou no Rio


Grande do Sul, em Santa Catarina, no Espírito Santo; o segundo, que
chamamos de dispersão, foi o que se verificou em São Paulo, tanto nas
fazendas de café como na capital, no Distrito Federal (hoje Município do Rio
de Janeiro) e em outras capitais. Cada um desses tipos influiu a seu modo
para a maior ou menor assimilação do imigrante; sobretudo quanto ao espaço
de tempo em que decorreu o processo de assimilação e consequentemente de
integração desses grupos alienígenas ao ambiente brasileiro.

Não houve, decerto, uma assimilação absoluta, isto é, uma perda total pelo
imigrante de seus valores culturais para aceitação integral dos valores
nativos: observou-se, ao contrário, um processo em que foi constante a
permuta de elementos culturais, a troca recíproca de valores, o que
beneficiou, de certo modo, os quadros sociais respectivos, de maneira a não
perderem as populações brasileiras, em contato com os imigrados, as bases
fundamentais de sua formação.

A localização do imigrante exerceu e exerce ponderável influência nos


resultados do processo de relações de cultura: primeiro, de um ponto de vista
estritamente geográfico, quanto às áreas por ele ocupadas; e segundo, de um
ponto de vista mais largo, quanto à maneira de distribuição do imigrante.

A forma como foi localizado o imigrante, o que poderíamos chamar type of


settlement, influenciou para a maior ou menor rapidez com que se
desenvolveram as relações de cultura. Quando os imigrados foram isolados
em colônias, tal como sucedeu no Rio Grande do Sul, no vale do Itajaí, em
parte da região serrana do Espírito Santo, o processo foi lento, retardado,
decorreu moroso. O imigrado resistiu mais demoradamente à assimilação, o
que somente se atenuou de uns trinta a quarenta anos para cá.

Quando, porém, os imigrados foram distribuídos em fazendas de café em S.


Paulo, ou em áreas urbanas, como na capital de São Paulo e no antigo
Distrito Federal, o processo de assimilação se verificou mais rápido,
acelerou-se e ativou-se. O contato imediato, constante, quotidiano, com o
elemento brasileiro ou entre elementos de etnias diversas, facilitou a
assimilação de traços culturais, permutando-se mais rapidamente os valores
de que cada grupo era portador.

Maior ou menor rapidez se observa ainda na inter-relação cultural em face da


origem do grupo imigrado. De fato, o alemão, ou o italiano, por exemplo,
embora a unidade cultural exterior com que se apresenta, tem peculiaridades
próprias, de hábitos ou de sentimentos, conforme seja do Norte ou do Sul, do
Centro ou do Oeste. Este fato tive oportunidade de verificar em meus estudos
em relação ao italiano. Mesmo entre imigrantes do Norte da Itália, do Vêneto
ou da Lombárdia, o processo de assimilação tem marcha diferente. E esta
diferença se acentua conforme o imigrante, seja do Norte ou do Sul. Deve
dar-se o mesmo em relação ao alemão, e possivelmente em relação a outros
grupos.
Italianos, alemães e japoneses

Dos GRUPOS étnicos alienígenas que têm participado do processo de


transculturação no Brasil, podemos destacar o italiano, o alemão e o japonês
como os três mais importantes. Isto não exclui, evidentemente, a participação
de outros. Todavia com aqueles três grupos se tornaram mais relevantes as
relações culturais.

Entraram no Brasil imigrantes italianos de várias regiões. Lombardos,


genoveses, piemonteses, venezianos, foram dos mais destacados entre os que
vieram para os trabalhos agrícolas, ao passo que apulvos, calabreses e
campânios se fixaram, preferencialmente, nas zonas urbanas. Assim, tanto da
Baixa Itália como da Alta Itália recebeu o Brasil imigrantes. Esta diversidade
de região corresponde, igualmente, à própria diversidade étnica do italiano,
em geral.

Ao lado dessa diversidade étnica, temos também larga diversidade cultural, se


bem não lhe falte um certo denominador comum, oriundo da fonte de onde
promanou a formação italiana: a romana. Muito contribuiu s para o encontro
desse denominador comum a cultura romana baseada no catolicismo. São
aspectos dessa diversidade cultural, verificados dentro do quadro dessa
relativa unidade, que trouxeram os italianos para o Brasil.

No Rio Grande do Sul, os primeiros colonos italianos instalam-se para um


processo de permanência construtiva em 1875. Em São Paulo, a imigração
italiana se incrementa por volta de 1880, a partir de quando segue em
crescendo constante. O que não exclui a presença, antes dessa data, de
italianos em São Paulo.

Poucos anos antes iniciava-se e crescia a colonização italiana no Espírito


Santo. Data de 1874 a chegada dos primeiro imigrantes italianos em Santa
Teresa, formando a colônia que se tornaria a bela cidade de hoje. Três anos
depois, em 1877, chegam a Ibiraçu. E vão neste crescendo, espalhando-se
pela então Província, hoje Estado do Espírito Santo. O que sucedeu também
em Santa Catarina: a começar do vale do Tubarão, o imigrante italiano vai
formando colônias, e estas colônias, no correr dos anos, se transformaram em
prósperas cidades catarinenses.

No Rio Grande do Sul deve-se ao italiano a vinicultura. É de origem italiana


o desenvolvimento da indústria do vinho naquele Estado, sendo hoje Caxias,
núcleo fundado por milaneses, um dos maiores centros de produção vinícola.
Esta é a mais importante atividade do italiano, no campo da indústria no Rio
Grande do Sul, não excluindo, contudo, outras por ele iniciadas —
metalurgia, selaria, dos produtos animais, madeira, curtumes, tecelagem —
apresentando o característico de terem surgido sempre de uma base artesanal.
Na agricultura cultivam milho, fumo, legumes.

Em Santa Catarina, concentrado principalmente no vale do Tubarão,


igualmente se destacou o italiano na agricultura, baseada na pequena
propriedade e formando pequenas colônias. Deve-se-lhe a introdução da
vinicultura e da sericultura. Também o estímulo às culturas agrícolas já
conhecidas e o incentivo à produção de banha e de salsicha.

Em São Paulo, o italiano iniciou suas atividades na lavoura de café; a


princípio como assalariados, meeiros, colonos, muitos imigrantes italianos —
e sobretudo seus descendentes — chegaram a proprietários. A atividade
industrial neste Estado diferiu da verificada no Rio Grande do Sul,
apresentando caráter capitalista, pela fundação de estabelecimentos com a
aplicação de capitais, obtidos estes ou pela poupança nas atividades rurais ou
urbanas, ou por crédito junto a outros patrícios já ricos, ou ainda trazidos
diretamente da Itália. Teve uma localização urbana, enquanto no Rio Grande
do Sul teve uma localização rural.

Em outros Estados aparecem ainda os italianos como agricultores, o que não


exclui sua presença em profissões urbanas, participando da vida citadina
como comerciantes, sócios de indústria ou donos de restaurantes, ou no
exercício de pequenas profissões, como engraxates, garçons, choferes,
sapateiros, carpinteiros etc.
A mais importante contribuição do italiano à economia do Brasil, dele como
também do alemão, deve apresentar-se a reação contra a monocultura,
difundindo largamente a policultura. Soube o italiano aproveitar bem a terra,
o que sucedeu igualmente com o alemão; contribuiu também para a transição
do trabalho escravo para o livre, através do sistema de parceria, do de
salariado, do de empreitada e do misto.

Nos quadros da cultura das comunidades, onde o italiano aparece com


influência, podemos destacar os seguintes aspectos particulares: a
organização social com base na vida de família e a conservação da religião
católica; a aceitação dos princípios de organização política do país,
respeitando-os e procurando dela participar pela ascensão social dos
descendentes; também a aceitação dos tipos de casa brasileira, de tijolo e
madeira, nas áreas onde os italianos se dispersaram, conservando, entretanto,
nas áreas onde se concentraram (núcleos e colônias), elementos
característicos de sua arquitetura, principalmente o uso do porão e a imitação
do tipo de casa, mormente do Norte da Itália; a aceitação da alimentação
regional, principalmente a feijoada, sem prejuízo da manutenção e
introdução, entre as populações brasileiras, do macarrão, da polenta, do
risoto, da “pizza” e de outros pratos típicos e igualmente da extensão destes
ao gosto brasileiro; a adoção do vestuário regional, embora mantendo alguns
traços do traje de origem, manutenção de suas festas religiosas e culto a
santos festejados na Itália, o uso da sanfona, jogos, como a marra, a bocha
etc., festas domingueiras etc.

De modo geral, pelas condições de sua cultura aproximada ou semelhante ao


“ethos” lusitano, e por consequência brasileiro, o italiano não apresentou
maior dificuldade em sua integração na vida brasileira. O que não exclui a
conservação de vários traços de sua cultura, que penetraram nas comunidades
ítalo-brasileiras de maneira expressiva.

Já o grupo alemão, de formação cultural diferente, não encontrou esta


facilidade, agravando-se a situação, principalmente pela circunstância de se
terem isolado, constituindo colônias inteiramente germânicas; os cruzamentos
étnicos com brasileiros ou com brasileiras se verificaram, é certo, mas o
isolamento espacial, de um lado, e, de outro, os trabalhos de formação de
colônias em áreas até então virgens contribuíram para uma caracterização
diversa no tipo de influência dos alemães nas comunidades por eles fundadas
ou de que se aproximaram.

Escasseiam elementos estatísticos para afirmar-se com segurança a


naturalidade do alemão imigrado ao Brasil: não distinguiam os registros
senão o país de procedência. Por informações colhidas em outras fontes,
pode-se, entretanto, afirmar que os alemães chegados eram tanto da
Alemanha do Norte como do Sul. Da Pomerânia, do Holstein, da Saxônia, de
Westfália, de Oldenburg; também da Renânia, da Baviera, do Palatinado
entraram alemães. Dos primeiros imigrantes do Rio Grande do Sul sabe-se
que eram, em grande maioria, do Hesse, da Prússia, do Wurtemberg, do Saxe.
Predominavam, pois, elementos da Alemanha do Sul, ao passo que, nas
entradas posteriores, o maior número provinha da Alemanha do Norte.

Os primeiros alemães chegados tiveram de enfrentar os árduos trabalhos de


pioneiros, derrubando matas, abrindo caminhos e estradas, construindo suas
casas. Constituíram eles os elementos fundadores de colônias que se criaram
no Sul e no Espírito Santo, muitas delas hoje cidades e municípios prósperos.
Novas correntes vieram depois engrossar esses grupos primitivos,
contribuindo para reforçar o isolamento no contato com as populações
brasileiras.

Dentro desse ambiente, para cuja caracterização tanto concorreu, o imigrante


alemão implantou os principais aspectos de sua cultura. No que se refere à
casa, sua construção passa por três etapas: primeiro, o rancho ou barracão,
coberto de palha; depois, a casa de madeira, feita já de tábuas preparadas na
serraria, cobrindo-a também de tábuas fazendo as vezes de telhas; e, por fim,
a casa de tijolos, coberta de telha, mas utilizando ainda o madeiramento.
Estas três fases vão correspondendo à elevação social ou de nível econômico
do colono, sempre, porém, com utilização de material da região, se bem que a
técnica seja a trazida.

Não havia unidade cultural no elemento alemão vindo para o Brasil;


recebemos alemães de cultura variada, o que correspondia também à
variedade étnica dos grupos emigrados. Daí certa diversificação verificada
em núcleos alemães originada da formação étnica e cultural dos elementos
emigrados. Pode-se encontrar, todavia, um certo denominador comum,
baseado no trabalho agrícola, o que facilitou, juntamente com a própria
variedade cultural, os processos transculturativos.

Formando núcleos ou comunidades, mas raramente participando das


comunidades brasileiras, o alemão aceitou vários traços culturais nossos, ao
mesmo tempo que influiu na manutenção dos trazidos, alguns desses
adaptando-se às condições locais, aos elementos aqui encontrados.

Assim é que os alienígenas procuravam aceitar hábitos ou costumes do país.


Entre outros valores nativos, por eles incluídos no seu quotidiano, poderemos
lembrar: o uso do cavalo para montaria ou serviços da colônia; corridas de
cavalos como divertimento; utilização do carro de bois, mercê do qual se
tomava possível o trânsito nas primitivas veredas até que a melhoria da
estrada permitiu o uso das carroças — as chamadas carroças coloniais; o uso
de armas de fogo; o fabrico de açúcar ou farinha de mandioca pelos processos
regionais do engenho primitivo ou tosco e do tipiti; o chimarrão, bebido
dentro dos mesmos processos locais, com a mesma paciência e a mesma
utilização da cuia em comum, em reuniões.

O que logo se destaca, de influência alemã, é a arquitetura, ou seja, a casa; ela


caracteriza, grosso modo, o ambiente onde impera a influência alemã.
Embora não apresente uma unidade característica, pois são várias as técnicas
de construção, a arquitetura apresenta sempre um traço comum, que logo a
faz ressaltar dando fisionomia própria à comunidade. É certo que não raro
foram adotados, no tipo de casa, elementos oriundos do meio, tal a varanda,
aspecto esse verificado em Santa Catarina.

Quanto à alimentação teve o alemão de aceitá-la, em grande parte em face do


que o meio o permitia. As condições do ambiente influíram na aceitação de
novos padrões alimentares, ou na adaptação dos trazidos. Ao lado da cultura
de produtos nativos, foi introduzida a de gêneros alienígenas, como a
batatinha, o centeio, a alfafa. O colono procurou equilibrar o regime de
alimentação importado com aquele que o nosso meio condicionava.

O que sucedeu ainda, em grande parte, com o vestuário. O trazido não se


adaptava ao meio físico do país, pelo que teve de substituí-lo. Mas esta
substituição se fez, em parte, pela adoção de um traje correspondente ao
comum do Brasil, em prejuízo de certas peculiaridades do uso alemão.
O alemão contribuiu enormemente para o desenvolvimento econômico das
áreas em que influiu. Predominou, e predomina, nas comunidades teuto-
brasileiras, a pequena propriedade; seu fracionamento se acentua com a
distribuição de lotes ou a criação de novas propriedades para filhos ou recém-
emigrados. Ainda no campo econômico outra influência nitidamente alemã
foi o desenvolvimento industrial, nas áreas rurais, e originado das primitivas
atividades artesanais.

O aspecto religioso na organização das comunidades teuto-brasileiras


apresenta peculiaridades, entre elas a manutenção de sacerdotes católicos ou
protestantes, de acordo com o sentimento religioso do respectivo grupo, por
intermédio de associações religiosas. É de notável relevo o papel do
sacerdote, pela influência que exerce, sobretudo na família.

Conservaram os germânicos, na organização da família, os mesmos padrões


de suas terras de origem; os mesmos hábitos de família, nas atividades de
trabalho, nos serões, nos casamentos, foram mantidos. O que era facilitado,
principalmente, pelo caráter quase fechado das colônias, em grande parte
espalhadas na área rural, distanciadas e isoladas dos núcleos demográficos
nativos. A família teuto-brasileira manteve, tanto quanto possível, a mesma
organização do tipo de família do país de origem.

É em torno da organização dessa família, a chamada família-tronco, que


giram os aspectos da vida familiar dos imigrantes germânicos chegados ao
Brasil e formando as respectivas comunidades: o casamento cedo,
constituindo-se novas famílias que são novos grupos de trabalho; a
permanência de um dos filhos, quando casa, com os pais; a prole numerosa,
embora tendendo modernamente a diminuir, como elemento de riqueza; a
ausência de prostituição; a coesão dos laços de parentesco entre descendentes
e ascendentes; a distribuição das tarefas agrícolas entre as pessoas dos dois
sexos pertencentes à família.

Nas populações teuto-brasileiras conservam-se e ainda se mantêm, sobretudo


nas áreas rurais, afastados dos centros industriais — que se transformaram
em grandes fatores transculturativos, modificando muitos dos traços
primitivamente introduzidos e conservados —, costumes e hábitos, usos e
processos de pura tradição germânica: o “kerb” é, no Sul do País, uma festa
popular dos teutos ou teuto-brasileiros, que começa num domingo à tarde e
termina na madrugada de quarta-feira. Embora de origem primordialmente
religiosa, pois se liga à comemoração da fundação da igreja, tem hoje caráter
quase integralmente profano, e corresponde, para as populações germânicas,
ao carnaval brasileiro. Também em casamentos, em aniversários, em
enterros, conservam-se os primitivos modos de realizações das respectivas
cerimônias. A este respeito são muito interessantes as informações de
Wagemann quanto aos alemães do Espírito Santo.

O grupo japonês é de presença mais recente no Brasil. Os resultados da


transculturação verificada ainda não se podem examinar de todo, em face de
contarem-se pouco mais de cinquenta anos da imigração japonesa no Brasil.
Aqui se dedicaram os nipões à cultura agrária, e desenvolveram o plantio de
verduras e legumes, começando muitas vezes por serem eles próprios os
vendedores na rua.

Os japoneses, sobretudo pelo distanciamento étnico do elemento luso-


brasileiro, de modo geral, têm-se mantido em maior isolamento. Todavia,
como assinalamos, o espaço de tempo de sua presença ainda é curto para se
medir a intensidade da assimilação étnica e da transculturação. Sua presença
principal se verifica em São Paulo, norte do Paraná, Mato Grosso, Pará e
Amazonas; aí se concentram 96°/o da população japonesa no Brasil.

O elemento nipônico, entrado no Brasil como imigrante, é geralmente do tipo


denominado “pareano”, representativo das classes inferiores do Japão. É de
pequena estatura, braquicéfalo, cabelos lissótricos negros, olhos negros
oblíquos, nariz um pouco achatado, pele amarelada, maxilar forte. Isto não
exclui a existência de grande heterogeneidade do japonês como grupo étnico:
nele se acumularam vários elementos formadores de etnias diversas.

Sua cultura é nitidamente agrária, quanto à economia, e, quanto à religião,


budista ou xintoísta. Em torno da agricultura se fixaram seus costumes e ritos
religiosos, modificando profundamente a vida social e espiritual do japonês.
A exploração agrícola baseia-se na família, dividida a propriedade em
pequenas parcelas. Também se dedicam à pesca. Entre nós aceitaram os
japoneses, em vários aspectos, traços culturais brasileiros; mas o contrário
também se verificou com a manutenção de padrões culturais importados.

No Brasil se tem registrado a modificação do tipo japonês com a mestiçagem


e a ação do meio; entretanto, parece-nos ainda curto o prazo de permanência
do japonês no Brasil para se obter uma verificação completa, quer quanto à
assimilação social, quer quanto à própria transculturação. Contudo, não é
possível esconder a existência, sobretudo na área rural, de tipos japoneses já
bastante atenuados os traços primitivos, em decorrência de cruzamento com
brasileiros.

Mantêm os grupos japoneses muitos dos traços ou complexos de cultura


originários, principalmente na religião, na organização da família, esta de tipo
patriarcal, com monogamia, na escolha de noivas. Nas atividades agrárias
muitos chegam a proprietários, desenvolvendo a cultura de legumes e
verduras, e também dedicando-se ao plantio do café.

Trazidos pelos japoneses aparecem no Brasil a indústria do charão (laca ou


verniz oriental), a cultura do lótus, o saquê, o feijão-soja, o broto de bambu
como alimento, o cultivo do chá, a cultura da juta, esta principalmente na
Amazônia. Conservaram seu tipo de família patriarcal, com monogamia.
Mantiveram, com pequenas alterações oriundas do novo meio, inclusive a
dispersão, o tipo de casa, coberta esta de palha de arroz com telhados duplos,
lembrando o estilo japonês. Outros traços conservados na arquitetura:
varandas, postigos e vestíbulo especial (“togutshi”).

Ainda quanto aos tipos de casa conservaram muitos traços japoneses,


aceitando, embora, outros peculiares ao novo meio, inclusive a dispersão das
habitações. Nas casas mantêm a sobrevivência dos nichos religiosos para
colocação dos deuses dos cultos xintoísta ou budista; diante desses altares é
que fazem suas orações.

Cumpre registrar ainda a importância das atividades recreativas entre os


japoneses, principalmente o beisebol, que entre eles constitui fator
associativo. Já o futebol tem tido menor, ou quase nenhuma, atração para os
nipônicos.

Nas cerimônias de casamento, como igualmente nos funerais, conservam


ainda os japoneses no Brasil os mesmos hábitos e usos conhecidos em sua
cultura originária.
Turco-árabes, poloneses e judeus

NÃO SÓ dos três grupos antes citados — italianos, alemães, japoneses — se


deve falar; outros grupos imigrantes também têm participado do processo de
relações de cultura no Brasil. Vamos destacar ainda, a este respeito, outros
três, cuja importância no Brasil contemporâneo é bastante expressiva. São
grupos que igualmente vêm participando do processo transculturativo; e
deixando suas marcas no que hoje podemos chamar de cultura brasileira.
Turco-árabes, poloneses e judeus, por exemplo.

Datam de 1878 as primeiras entradas de poloneses, figurando, entretanto, nas


estatísticas imigratórias com os russos. Só a partir de 1892 é que se destacam
como grupo específico, O contingente polonês cresceu muito nos quadros da
imigração, espalhando-se principalmente na região Sul e, em particular, no
Paraná. Em São Paulo e Rio Grande do Sul igualmente se encontra grande
número de poloneses.

Embora filiados ao grupo étnico dos eslavos, aproximados assim da Rússia


por sua história étnica, os poloneses culturalmente são latinos; entre eles
predomina o catolicismo apostólico romano; filiam-se, ainda sob outros
aspectos, a padrões latinos de civilização ocidental. Na cultura material, em
construção, em atividade agrícola, em indumentária, porém, aproximam-se
mais dos eslavos.

A imigração polonesa para o Brasil nos tem trazido, principalmente,


agricultores; localizando-se na região madeireira do Sul, os poloneses
dedicaram-se à exploração agrária e à construção de casas de madeira,
havendo entre eles excelentes carpinteiros. Geralmente a colonização
polonesa está misturada com alemães, russos e outros eslavos, de menor
expressão numérica. O principal núcleo polonês é o de Ivaí, no Paraná. Em
outras áreas se têm distribuído igualmente imigrantes poloneses,
encontrando-se núcleos em vários municípios paranaenses, catarinenses e em
alguns do Rio Grande do Sul. Também no Espírito Santo se localizaram
poloneses.

Dedicam-se principalmente ao trabalho agro-extrativo: extração de madeira,


colheita de erva-mate, vinicultura, pecuária etc. Quando nas cidades, são
comerciantes, em especial de comestíveis, e muitas vezes se confundem com
os judeus. Aliás, judeus poloneses são numerosos. Um traço a destacar entre
os poloneses é a sua agremiação em associações de fins culturais ou
comerciais. Além de uma União Central dos Poloneses no Brasil, há
associações de professores, de agricultores etc.

O elemento polonês se tem cruzado com o elemento brasileiro, o que no


começo do século já assinalava Pierre Denis, havendo, de igual maneira,
cruzamento cultural; os poloneses, apesar de um bocado isolados, se adaptam
à vida regional, aceitando a alimentação comum da população nativa, e na
agricultura — registra ainda Denis — adotaram os hábitos do trabalhador
brasileiro. Cultivam o centeio, talvez o único produto por eles importado, ao
lado de produtos nacionais, como o milho, mate etc. Constroem casas de
madeira, que são típicas em áreas paranaenses; utilizam também a madeira na
construção de igrejas, procurando agrupar as residências em torno do motivo
religioso.

Popularmente conhecidos como turcos, temos os sírios, libaneses, árabes,


palestinos e os próprios turcos. De modo geral, incluem-se nessa
denominação todos os emigrantes de língua árabe e religião maometana, sem
prejuízo de respeitável número de sírios e libaneses católicos. Há que
distinguir, entretanto, esses diversos povos se bem que não se verifiquem
entre eles profundas divergências culturais. Ao contrário é possível
encontrarem-se traços culturais semelhantes. '

Sírios, libaneses e turcos já aparecem no Brasil na época colonial, pois


Portugal mantinha relações com a Síria. A grande emigração para o Brasil,
porém, se verificou na segunda metade do século XIX, ou mais
especificamente entre 1860 e 1870, continuando até 1890. Daí em diante
prosseguiu a entrada de libaneses e sírios, mas em números menores; neste
século a imigração síria, libanesa e turca, de modo geral, tem crescido.
Os sírios constituem um grupo de língua árabe, o que sucede também com os
libaneses, que, em virtude de sua organização em república independente,
fazem questão de ser tratados separadamente daqueles. O árabe, como língua,
é o idioma clássico do livro sagrado do Islam; representa uma vasta cultura,
onde figuram alguns dialetos que diferenciam a língua árabe em histórica e
moderna. O termo árabe foi identificado com muçulmano, em virtude do
surgimento do Islam como unidade de religião e de império.

Entre sírios e libaneses dominam as religiões cristã e muçulmana,


subdivididas em vários grupos. Entre nós os sírios e libaneses agrupam-se,
principalmente, na igreja católica malequita e na igreja maronita. No Brasil, a
presença de sírios e libaneses, ou seja dos chamados “turcos”, se caracteriza
pelas atividades no comércio de fazendas e artigos de armarinho e,
inicialmente, pela realização do comércio ambulante, o “mascate” ou
“matraca”.

Quando um “turco” chega a uma rua para atividade comercial, a rua logo se
transforma; toma outro colorido, um colorido quase étnico. Foi o que se
verificou na antiga rua do Açougue, em Maceió, hoje avenida Moreira Lima,
onde mais ou menos em 1937 ou 1938 começaram os sírios — assim
chamados genericamente na região os elementos de língua árabe — a abrir
suas casas comerciais. O mesmo que anteriormente se tinha verificado na rua
do Rangel, no Recife; ou em ruas de São Paulo.

O que parece comprovar a observação de Deffontaines sobre os sírios de São


Paulo: quando um chega, instala-se modestamente, vai prosperando,
mandando buscar outros patrícios para vizinhos. E assim as ruas
primitivamente típicas ou originais de traços brasileiros, com pretas
vendendo em tabuleiros, por exemplo, vão-se transformando, tomando novo
colorido, que é predominantemente racial ou étnico: sírio ou turco.

Os mostruários de bugigangas nas vitrinas, as camisas dependuradas, os


sabonetes suspensos por cordões, bolsas escolares, brinquedos de criança, a
variação, enfim, do colorido e dos objetos expostos dão logo à fisionomia da
rua o seu caráter sírio ou libanês.

Nas áreas urbanas das grandes cidades ou das capitais têm seus bairros
preferidos, ruas caracterizadas pelas lojas típicas com os mostruários, de
vários artigos, expostos ao público no exterior da casa etc. Através desses
grupos — sírios, libaneses, turcos — chegam até nós muitos traços culturais
de arabização. Entre esses grupos se encontra facilidade de aceitação dos
traços culturais nativos ou brasileiros, sem prejuízo da conservação de alguns
que lhes são peculiares, ou de transculturação já verificada sob vários
aspectos.

De fato, podemos repetir com Arthur Ramos, sintetizando a participação


desses grupos no processo transculturativo do Brasil: “Seus traços culturais já
penetraram na vida brasileira, especialmente seus sistemas de negócios, as
feiras, os mercados externos, o comércio ambulante, os pagamentos a
prestação, hábitos tradicionais, oriundos das caravanas da antiguidade fenícia.
Suas iguarias e hábitos alimentares também já influenciam as grandes
cidades: a carne de espeto (“láhme mixue”), o quibe, seu prato principal; o
“minjádra”, o popular prato de lentilhas: o “fatuxi”, o “tabúlí” etc. Seus doces
“knape”, “barázak”, “manul”, “groibe”..., à base de manteiga, nozes picadas,
tâmaras, gergelim, leite, farinha de trigo, açúcar, são apreciadíssimos. A
aculturação alimentar já se delineia: de um lado, eles substituem as nozes e
amêndoas pelas castanhas de caju nos seus doces, de outro lado, adaptam ao
seu paladar os pratos brasileiros, como a feijoada. Resultam às vezes curiosos
sincretismos, como, por exemplo, o uso do churrasco, de fontes indígenas e
ao mesmo tempo sírias (o “láhme mixue”...).

Aos libaneses, em particular, se deve a sua presença em atividades


industriais: em Minas Gerais o início da indústria de roupas feitas em Juiz de
Fora e em São Paulo a participação na indústria têxtil se podem apresentar
como exemplos. No interior ainda se encontra a tradição dos mascates,
espalhados pelos sertões, ou percorrendo as margens dos rios da região
amazônica como “regatão”. Muitos se dedicam à lavoura e à criação, o que se
verifica, particularmente, em Minas Gerais, sertão baiano, Goiás, Mato
Grosso.

Os sírios e libaneses no Brasil caracterizam-se pela reunião em associações


culturais, recreativas, religiosas, artísticas e comerciais. Jornais árabes, sírios
ou libaneses particularmente encontram-se também em várias cidades
brasileiras, sendo de notar-se que, em 1937, se fundou no Rio de Janeiro a
Associação de Imprensa Libanesa.
Um aspecto a salientar no grupo sírio-libanês é a sua capacidade de
adaptação, de aceitação dos elementos culturais nativos. Da capacidade de
adaptação do libanês, em particular, Tanus Jorge Bastiani, em seu
interessante livro Memórias de um Mascate, nos conta um episódio que
merece ser referido. É o caso de um libanês, Kalil, que, julgado morto por seu
companheiro Miguel, foi por este encontrado doze anos depois feito cacique
de uma tribo amazônica. Integralmente indígena, ou seja, transculturado com
o grupo indígena que o acolheu quando de um naufrágio, o libanês Kalil não
esquecia, porém, os pratos nacionais; e entre eles o “láhme mixue”.

No mais se havia integrado na vida tribal, e aos indígenas ensinara o manejo


de armas de fogo, a fabricação de artigos de couro, o preparo de produtos de
borracha. Casado com a filha do cacique, com a morte deste passou a exercer
o comando da tribo. Chefiando um grupo indígena foi que Miguel encontrou
seu patrício Kalil nas selvas amazônicas.

O judeu está em contato com o Brasil não apenas desde o começo na


colonização, mas desde a própria descoberta; na armada de Cabral já
aparecem alguns judeus, e a partir de então não cessaram de chegar ao Brasil.
Com judeus, ou seja, o judeu Fernando de Noronha, primeiro arrendatário da
terra do Brasil, fizeram-se os contratos iniciais de exploração do pau-brasil;
Judeus igualmente vamos encontrar ligados às atividades da economia
açucareira.

Sua grande atividade, porém, era, e é, o comércio. Pode-se dizer que está em
suas mãos o comércio internacional, talvez mesmo como uma consequência
de sua dispersão, o que os teria levado a uma profissão menos sedentária. No
entanto, não é rara a participação israelita em numerosas outras atividades: de
administração, de profissões liberais, de magistério.

Os judeus vindos para o Brasil eram os chamados Sefardins, isto é, da própria


península Ibérica: de Espanha e Portugal. Com eles se desenvolve a migração
judaica para o Brasil, nos séculos que precedem à Independência. Tomaram-
se de extraordinária importância para a história do Brasil colonial, com a
atuação do Tribunal do Santo Ofício, na Bahia em 1591-93, e em
Pernambuco em 1593-95, e novamente na Bahia em 1618, os judeus que, a
princípio, se concentravam nessas duas capitanias, dispersaram-se por todo o
Brasil. Principalmente para o Sul.
Os judeus convertidos eram chamados cristãos-novos. Cristão-velho era
denominação dada aos não-judeus. Somente no século XVIII, com Pombal,
esta distinção foi abolida. Todavia, persistiu o nome de cristão-novo para os
convertidos, se bem que não oficialmente.

Modernamente o grande contingente de judeus entrados no Brasil é do grupo


Ashkenazim, vindos principalmente da Alemanha, Polônia, Rússia. Sua
chegada ao Brasil geralmente se faz em grupos, e se vão disseminando,
sobretudo em áreas onde já se encontram outros patrícios. Dedicam-se às
atividades de comércio; mantêm sua unidade cultural traduzida, em
particular, pela religião.

No Brasil, de par com sua religião e sua língua, o “yiddish”, uma espécie de
jargão hebreu-alemão, os judeus mantêm suas festas cíclicas, entre elas a
Páscoa e o Yon Kipur, esta última sua grande solenidade anual. Várias
sinagogas funcionam no Brasil. Mantêm também associações beneficentes e
religiosas. No comércio dedicam-se em particular aos ramos de joias, móveis,
fazendas etc. São igualmente proprietários de imóveis.

Da contribuição judaica no Brasil vale destacar aquela já citada por Solidônio


Leite: o preparo do ferro laminado, a chamada “folha-de-flandres”.
Descoberta de um judeu brasileiro das Minas Gerais, preso pela Inquisição, a
técnica do preparo foi transmitida por aquele a um companheiro de cela, em
Lisboa; este, quando libertado, a levou para Bruges, de onde se expandiu.
Outros grupos alienígenas

Ao LADO de alemães, italianos e japoneses, como também de turco-árabes,


poloneses e judeus, ainda se podem registrar outros grupos como
participando do processo de formação brasileira. Se entre aqueles se
encontram os mais destacados, outros igualmente têm trazido sua marca;
alguns, inclusive, de maneira expressiva: o francês, por exemplo. Outros, de
influência ainda recente, mas igualmente expressiva: o norte-americano, por
exemplo.

Mesmo aqueles que tiveram alguma atuação no período colonial — e a eles já


nos referimos — igualmente no processo de imigração aparecem com
contribuições por vezes expressivas na vida brasileira. Do espanhol, por
exemplo, pode-se dizer que continuamos a receber influências no século XIX
e, ainda hoje, através de sua presença contínua e constante nas correntes
imigratórias.

Desde a abertura dos portos a entrada de elementos espanhóis no Brasil tem


sido grande, principalmente na segunda metade do século passado.
Encaminhavam-se geralmente para São Paulo, em cujas fazendas de café
entravam como lavradores, ao lado de italianos. Além dos trabalhos na
lavoura de café, dedicaram-se também a criação de gado e à plantação de
bananas. Uma característica a assinalar no espanhol é que, reunidos os
primeiros recursos financeiros possíveis, procura dedicar-se ao comércio. Daí
a sua grande presença no comércio de São Paulo ou do Rio de Janeiro, como
ainda na Bahia e em outras cidades. Para as atividades comerciais, muitos
espanhóis imigrantes vinham diretamente. Assim nas cidades aparecem como
comerciantes, atividades de pequeno comércio, motoristas, garçons etc. Na
Bahia os espanhóis têm papel importante na vida comercial e social,
mantendo inclusive hospital de beneficência no Salvador.
No Rio Grande do Sul a influência espanhola se tem estendido à língua
falada; o castelhano infiltrou-se no falar português da região, enriquecendo-o
de termos novos, de origem hispânica, sobretudo aqueles ligados às
atividades e à vida na campanha. O gaúcho, como tipo social, igualmente é
um produto onde a participação espanhola é grande. Aliás, a formação deste
elemento cultural — o gaúcho — foi uma resultante das condições propícias
do meio, onde se misturavam, nas vastas campanhas platinas, vários grupos
étnicos; e entre estes predominou o de origem espanhola, solto na liberdade
das campinas e através destas espalhando seu viver.

Através do tipo de gaúcho se incorporaram à paisagem brasileira novos


valores culturais, traduzidos principalmente nas atitudes cavalheirescas e no
espírito bravio, nos usos ligados à atividade da campanha, nos costumes
peculiares à região, entre eles o papel essencial que cabe ao cavalo, no
vestuário — o “sombrero” de feltro, com abas largas e barbicacho passando
pelo queixo, o lenço no pescoço, a bombacha de pano riscado ou de
quadrados, ampla, abotoada à altura dos tornozelos, o chiripá, as botas
russilhanas de couro, o “poncho”, na alimentação baseada no churrasco e no
chimarrão, na incorporação ao português de termos castelhanos, em especial
os referentes à campanha e à atividade pastoril, intimamente ligados à cultura
do gaúcho.

Fora do Extremo Sul é pequena a participação do espanhol na vida brasileira;


um ou outro traço cultural se lhe pode atribuir. E alguns que se poderiam dar
como de origem espanhola foram, sem dúvida, introduzidos pelo português.
São alguns desses traços os que encontramos em manifestações folclóricas
como o fandango, dança dramática no Nordeste, ou as cavalhadas,
conhecidas em diferentes partes do Brasil desde o período colonial; também o
uso do pandeiro e de castanholas.

Igualmente o francês, por todo o Império, continuou a estar presente no


Brasil, já agora através de forte influência intelectual. Se do ponto de vista
imigratório, formando núcleos, sua importância é pequena, ou quase nula, no
campo das idéias sua participação foi bem significativa. Da França nos
chegou a orientação da leitura de obras literárias e científicas; também nos
mandou idéias de liberdade e igualdade entre os homens.

No capítulo da vida social a moda feminina aparece fortemente influenciada


pelo gosto francês: modistas, cabeleireiros franceses, instalados em várias
cidades do Brasil; hábitos e costumes de vida em sociedade, entre eles a
conversação em francês nos salões oficiais da alta- -roda; os banquetes com
culinária de origem e de nomes franceses; as danças francesas — a quadrilha,
marcada com palavras em francês (“balancez”, “changez de danjes” etc.), ou
o “pas-de-quatre”.

Ainda de proveniência francesa, trazida através de irmãs religiosas para seus


colégios e internatos de meninas, jogos ou brinquedos de crianças, como o
“marré- -marré-de-ci”, e o “na porta da viola”, originada da ronda francesa
“Sur le pont d‘Avignon”; também as artes manuais. No campo da cultura
intelectual, a influência maior foi, sem dúvida, a do romantismo, através de
autores franceses e livros franceses que tanto encheram o mercado de idéias.
Note-se também a penetração cultural francesa através de estudantes
brasileiros em Universidades da França, como a de Montpellier, onde iam
estudar, já desde os tempos coloniais, numerosos filhos de brasileiros.

Quanto ao holandês, durante o Império sua entrada foi pequeníssima. Nos


censos de 1920 e de 1940 o grupo holandês não teve destaque especial por
tão ínfimo o respectivo contingente, incluindo-se no total de outros grupos.
Os elementos imigrados encontram-se em núcleos agrícolas do Paraná e de
Santa Catarina, em mistura com colonos alemães, poloneses e de outras
nacionalidades, e ainda em São Paulo e no Rio Grande do Sul.

Ultimamente, porém, a imigração holandesa tem trazido melhores


contingentes humanos, para uma obra de colonização que se vem revelando
magnificamente vitoriosa. É o caso das colônias em S. Paulo, das do Paraná,
sobretudo a de Castrolândia e mais recentemente a experiência colonizadora
de Não-me-Toque, no Rio Grande do Sul. Destaca-se, sobretudo, a
experiência de Holambra em São Paulo, iniciada na antiga fazenda Ribeirão
(município de Moji-Mirim).

Os colonos, a partir de 1948, estabeleceram-se em 5.025 hectares,


desenvolvendo atividades de agricultura — trigo, arroz, café, batata-doce,
cana-de-açúcar, frutas — e de criação — gado holandês, porcos, aves. Cada
colono teve um lote de 15 hectares. A área total hoje cultivada é superior a
1.700 hectares, e oferece um rendimento excelente em face da introdução de
técnicas modernas, principalmente com o uso de adubos e fertilizantes.
Imigrantes holandeses, alguns transferidos de Holambra, outros chegados
diretamente, são responsáveis por outra experiência: a de Não-me-Toque, no
Rio Grande do Sul. Esta tem tido constante aumento no número de colonos,
expandindo suas atividades tanto de agricultura como de criação. Os lotes
variam em tamanho, havendo de 10 hectares os mínimos e de pouco mais de
60 os máximos. Tem sido usada maquinaria moderna, que incrementou os
níveis de rendimento da produção.

Os holandeses têm sido uns difundidores de métodos racionais de cultura


agrária, através de adubação, fertilização e aplicação de rotação de culturas; e
isto tanto em São Paulo como no Rio Grande do Sul. Suas colônias são
modelos neste sentido: o de aplicação de técnicas modernas para recuperação
de terras, não raro de terras esgotadas. Daí a influência cultural que têm
exercido, contribuindo para que sua experiência possa servir de exemplo para
os lavradores brasileiros.

Do inglês há pouco que dizer. Este foi elemento que não se misturou. Ao
contrário: isolou-se. No Brasil constituiu um grupo étnico que fugiu do
contato com os demais grupos. Os contatos registrados são de natureza
histórica; os dos primeiros tempos de disputa da terra na área amazônica.

Como imigrante é escassa sua presença. Aqui entraram os ingleses


principalmente como industriais, ou como chefes ou gerentes de empresas, e
consequentemente trazendo o capital financeiro da Inglaterra na fase da
expansão econômica do Brasil imperial: estradas de ferro, bancos, casas
comerciais, empresas técnicas etc. Durante o Império a influência correu ao
lado da francesa, porém mais restrita ao campo político: na prática do
parlamentarismo, por exemplo, moldado às linhas britânicas. Também à
moda masculina, sobretudo na fase de transição para a época da
industrialização — quando maior foi a frequência de ingleses no Brasil —
com o uso da roupa branca de brim, que pouco a pouco foi substituindo o
pesado “croisé”, de origem francesa.

Destes elementos, embora de alto nível, há alguns traços de influência a


registrar; ainda não faz muito tempo Gilberto Freyre os relembrou em livro
que mostra às claras os diversos aspectos da participação inglesa no Brasil.
Essa influência se fez sentir em particular no desenvolvimento industrial, da
técnica de produção, de transportes, da mecanização, em suma: moendas de
engenho, estradas de ferro, bondes, cabo submarino, barcos a vapor, quase
tudo obra de ingleses. Outros traços ingleses: o uso do boné, do guarda-pó em
viagem de trem, do vidro em substituição às gelosias coloniais, das varandas
de ferro em lugar das de madeira, etc. Ainda na inclusão no vocabulário
brasileiro de numerosas palavras inglesas que passaram ao falar comum: iate,
breque, macadame, grumete, warrantagem, lóide, bonde, destroier, etc.

Mas a grande influência inglesa, aqui chegada através de técnicos que


trabalharam em fábricas ou casas inglesas, foi no desporto; na introdução do
futebol, que se tomou mania brasileira, e ainda na introdução de outros
desportos. Influência não somente na técnica de realização do jogo, mas
igualmente na participação de numerosas expressões inglesas no português
falado no Brasil: team, back, half, goal, center, penalty, water polo, baseball,
tennis, muitas delas hoje inteiramente abrasileiradas

Do belga, ou do suíço, ou do sueco, ou de irlandeses, cujos grupos figuram


entre nossos imigrantes, a influência cultural tem sido nula. Não há a destacar
um traço característico de modo que a presença desses grupos se dilui na
massa geral de outros estrangeiros. Nem mesmo do suíço que constituiu o
núcleo fundador da Colônia de Nova Friburgo pode-se dizer que deixou um
traço mais expressivo ou marcante, a não ser, em parte, no tipo de
construção: o chalé geralmente chamado chalé suíço.

Encontramos sinais de presença dos belgas no Sul, mas, como assinalamos,


diluídos ou participantes entre outros grupos mais numerosos ou mais
influentes. Os austríacos também não deixaram nenhum traço cultural de
maior relevo; suas primeiras entradas no Brasil datam de 1868, sendo
esporádica, se não nula, a imigração antes desse período. A partir de então o
ingresso de austríacos continuou ininterrupto, embora com visíveis
oscilações.

Dos russos sabemos que entraram a partir de 1871, apresentando-se alguma


concentração em Santa Catarina, onde se dedicam à agricultura, embora em
expressão numérica insignificante. Outros grupos que se podem lembrar
ainda são os húngaros, os romenos e os búlgaros, cujas entradas iniciais
datam de 1908. Finlandeses também aparecem a partir de 1919.

Do norte-americano a influência é recente; está presente neste momento


histórico da evolução brasileira. E esta influência, se bem que esporádica
anteriormente, se tornou expressiva com a Segunda Grande Guerra. Ou mais
exatamente: depois de 1930, para acentuar-se com o período de guerra depois
de 1940. É interessante assinalar o que caracteriza esta contribuição norte-
americana, se considerarmos a experiência da década de 1880, com a vinda
de confederados norte-americanos para o Brasil.

Naquele instante se verificou um contato direto da cultura norte-americana,


de que eram portadores os confederados fugidos para o Brasil, com a
população brasileira; a rigor, entretanto, nada ficou entre nós deste contato.
Se excluirmos a fundação da hoje cidade de Americana, município de São
Paulo, e o estabelecimento de colégios, de que é expressão o ainda hoje
existente Mackenzie, nada mais restou da presença norte-americana no Brasil
dos fins do século XIX.

Pouco depois iria verificar-se, entretanto, uma influência mais forte, esta de
natureza política. A Constituição Republicana do Brasil de 1891 se baseou
fundamentalmente na experiência norte-americana; nossa República se
organizou nos moldes da República da América do Norte; inclusive
transportando para o Brasil a denominação de “Estados Unidos”, que nada
justificava se fizesse, dada a diferença do que se verificara na organização
republicana das unidades políticas do Brasil em relação ao que se verificara
na América do Norte. A partir desta experiência, a rigor nenhuma outra se
poderia encontrar como reflexo da influência cultural norte-americana.

O que, porém, iria encontrar-se justamente em nossos dias, com o período pré
e pós-guerra de 1939. De fato, nas vésperas da guerra — ou mais exatamente
nas imediações de 1930, com pequenos ou isolados exemplos anteriores —
começamos a receber influência norte-americana em vários aspectos de vida
brasileira. Primeiro, ao que parece, na arquitetura; o arranha-céu brasileiro é,
sem dúvida, influência norte-americana. É um dos traços que marcam, entre
vários outros, a mudança de polos de influência no Brasil: da Europa, a
França sobretudo, transferindo-se para a América do Norte, ou seja, os
Estados Unidos.

O tipo de construção vertical, que representou para o norte-americano o


aproveitamento de espaço, desenvolveu-se no Brasil justamente tendo aquele
modelo; inicia-se no Rio e em São Paulo, e logo depois passa a figurar em
outras cidades, numa evidente transformação da paisagem cultural. Mesmo as
primeiras transformações urbanas que vamos encontrar em São Paulo e no
Rio nos começos do século atual — e na então Capital da República, entre
1925 e 30 — não haviam ainda incorporado este traço cultural norte-
americano, que só depois passou a ser imitado. Imitação, na realidade, foi o
que se verificou, pois não se dera o contato direto, tal como sucedia com as
influências alemãs, ou italianas, ou japonesas; nem mesmo se observara com
a presença dos confederados norte-americanos no século XIX.

Com a guerra intensificam-se estas relações culturais, acentuando-se a


aceitação, na paisagem brasileira, de outros traços de origem norte-
americana. Não apenas hábitos sociais, certas maneiras de trajar, a divulgação
de palavras inglesas dos Estados Unidos para indicar certos costumes, mas
igualmente dois aspectos que merecem especial referência: um, a expansão
das histórias de quadrinhos, com personagens ou narrativas tipicamente
americanos, ou de criação americana; outro, a difusão da Coca-Cola, em
substituição ao guaraná ou aos refrescos de frutas brasileiras.

Não se esqueça, igualmente, que um dos principais instrumentos desta


difusão cultural se tornou o cinema: o cinema americano. Sua larga expansão
no Brasil, penetrando hoje em cidades as mais distantes, se tornou um
elemento de divulgação de aspectos culturais norte-americanos, que quase
insensivelmente se incorporaram ao quadro brasileiro. Que se tornaram
aceitos pelas populações brasileiras; e passaram, por isso mesmo, a ser
usados e adotados, já não mais tendo em conta sua origem, mas simplesmente
como coisas brasileiras.

E influência mais recente, talvez mais forte que qualquer outra, a de nossos
dias, alongando-se ao que veio do pós-guerra. Sobretudo com a televisão.
Através de programas marcados essencialmente pela presença ou pela
imitação de programação norte-americana, numa difusão dos chamados
“enlatados”, a presença norte-americana vem se fazendo constante. Diária.

No português comum, do dia-a-dia, o uso de palavras da língua inglesa — e


não só aquelas que nos foram trazidas pelo futebol, em grande parte já
abrasileiradas — se torna comum, abrangendo a linguagem econômica,
política e não raro também a literária.
Um amplo quadro de relações
culturais

A AMPLA informação que até aqui se deu a respeito dos grupos humanos,
não raro os mais diferenciados, que contribuíram para a formação do homem
brasileiro de hoje, pode ser completada pela apreciação do que representou
esta presença, ou seja: a contribuição que resultou de cada grupo em face dos
contatos havidos. Na realidade, só há contribuição quando há contatos; a
simples presença do grupo não basta para que se verifique a criatividade
cultural, justamente o que se encontra no processo de formação do Brasil e
dos brasileiros de hoje.

De modo que como consequência desses contatos havidos, desde o momento


em que os portugueses como descobridores e colonizadores ocuparam a terra,
resultaram diferentes aspectos, surgindo consequentemente os vários
elementos que caracterizam a nossa cultura contemporânea, isto é, o que
podemos chamar de “cultura brasileira”. São elementos culturais que
introduzidos por um dos grupos ainda conservam a marca de sua origem;
outros, que se sincretizaram, criando novos valores, que caracterizam
justamente o amálgama de etnias e culturas no Brasil.

O processo de ocupação humana representou, como vimos, um sistema de


adaptação do homem ao meio, integrando-se e criando o que passamos a
chamar de ambiente; a variedade desses ambientes — aqui a agricultura, ali a
pecuária, depois o extrativismo mineral, mais além o extrativismo vegetal,
como predominâncias econômicas em cada um — criou experiências que
serviam como fatores de adequação do homem ao seu meio: o ambiente
surgido já é por si mesmo um processo de criatividade. De fato, o homem
procura transformar a natureza, implantando atividades que lhe servem de
subsistência, em primeiro lugar, e, depois, de abrigo, de vestuário, de
comércio etc. Mas nesta transformação não se viola a vocação da terra; esta é
igualmente adequada, respeitando-se as condições ecológicas que oferece.

Destas relações entre o homem e a natureza surgem as atividades e as


técnicas de alimentação. Nos primeiros tempos o colonizador português teve
dificuldades com a alimentação; as soluções apresentadas eram de duas
espécies: adaptar-se à alimentação do indígena, baseada sobretudo na
mandioca, ou importar os gêneros europeus, como, por exemplo, o trigo.
Ambas as soluções foram adotadas. A mandioca se tomou alimento
comumente aceito, entrando em fácil e rápida circulação; através de diversas
formas e sobretudo da farinha, tornou-se alimento básico na mesa do
brasileiro. Utilizava-se como o pão da terra, na linguagem dos primeiros
cronistas; faziam-se bolos, grudes, tapioca, cuscuz, por exemplo, onde se
mesclaram gostos e técnicas indígenas e europeus; e a estes se agregaram
também os gostos e técnicas africanos. O mesmo se verificou com o milho, o
zsa maíz americano, a cujo sabor logo se adaptou o colonizador; e o milho
incorporou-se, revelado numa variedade de quitutes, como produto
generalizado e típico; caracteristicamente brasileiro também.

Quando se introduziu o gado, a carne entrou na alimentação. Mas no seu


preparo conservaram-se as técnicas conhecidas pelos indígenas. Uma delas,
ainda, hoje importante, ou seja a carne cozida diretamente na brasa; é o
churrasco. No Nordeste ela é secada ao sol; surgiu assim a carne-de-sol, nas
humildes oficinas do Ceará. Farinha e carne eram completados com os
feijões, as batatas, os inhames, as macaxeiras. Não foi difícil, no desenrolar
deste processo, o surgimento da feijoada. E à proporção que outros produtos
se tornavam comuns, apareceu o cozido, originalmente português, mas
enriquecido de temperos e complementos indígenas e africanos. E vão
surgindo, assim, na continuidade do tempo, outras variedades da culinária
brasileira.

A alimentação enriqueceu-se com a introdução da riqueza agrícola do


africano. Transculturando-se com os produtos indígenas e europeus, surge
uma variada culinária, geralmente conhecida como africana ou como cozinha
afro-baiana. Baiana, por causa da Bahia, pois foi onde realmente nasceu o
processo transculturativo da alimentação afro-luso-indígena; e daí se foi
irradiando. Ovatapá, o caruru, o abará, são produtos desse processo
transculturativo.

Outra fonte de alimentação era a pesca. Para apanhar os peixes no mar ou no


rio, os precários conhecimentos técnicos do indígena foram enriquecidos com
a colaboração africana e européia; em alguns casos já não se pode distinguir,
com absoluta independência, o que foi originariamente índio, ou afro, ou
luso. O amálgama foi completo. A técnica de cestaria, por exemplo;
numerosos os instrumentos fabricados de palha usados na pesca, que
receberam aperfeiçoamentos europeus, embora originariamente fossem
trabalhos rudimentares do aborígene ou do africano.

A jangada originariamente indígena, cuja presença já está denunciada na


carta de Caminha, embora rudimentar, tosca, ajuntamento de paus apenas, foi
enriquecida com o necessário instrumental de pesca. A vela, ao que parece,
foi acréscimo aruaque ao tosco ajuntamento de paus do tupi. Pode ter sido
européia também. Na canoa que o indígena fazia aproveitando o tronco da
árvore, cavando-o e preparando-o, a introdução de elementos europeus e
africanos foi maior. Daí o surgimento de diferentes tipos de canoa, que
vamos encontrar variando segundo as regiões, e não raro tomando nomes
peculiares. Há até mesmo certas características próprias, que as
individualizam: as cabeças de animais, por exemplo, nas canoas
sanfranciscanas.

A segunda solução foi a introdução de produtos europeus. Importou-se a


farinha de trigo, e o próprio trigo; também a pimenta; o queijo igualmente era
trazido da Europa. O sistema de importação dos gêneros europeus, vindos
geralmente de Portugal, logo se caracterizou com o restritivo “do-reino”, o
que explicava sua origem em contraste com o que se costumava produzir na
terra. O “queijo-do-reino”, a “farinha-do-reino”, a “pimenta-do-reino”.
Enquanto isso produzia-se a “farinha-da-terra”; e mais tarde começam a
surgir produtos dos laticínios e outros que, conforme as zonas de produção,
vão-se distinguindo também, com restritivos; é o caso do queijo de Minas, do
queijo do sertão; o da banana-da-terra, o da pimenta-da-terra, a carne do
sertão.

Acontece, porém, que as dificuldades de navegação, a longa duração das


viagens, se tornavam fatores prejudiciais à introdução desses produtos, os
quais, em sua maioria, chegavam deteriorados. De modo que o produto da
terra se tornava básico e indispensável. Adaptação ao queijo do sertão ou de
minas, à farinha de mandioca, ao beiju, se tomou completa. Criou-se a
alimentação já brasileira, produto desse processo transculturativo, em que
sobretudo o africano enriqueceu largamente, graças ao seu notável
conhecimento de variedades agrícolas, no campo de tubérculos, de raízes, de
verduras, de legumes etc.

Esta adaptação se foi estendendo aos novos grupos que chegavam. Exemplo
bem típico se pode encontrar com os holandeses. Dominando o Recife, aí se
integraram na alimentação nativa. Durante as guerras de restauração,
cercados na cidade pelas tropas brasileiras, os holandeses furavam o cerco, ou
o procuravam furar, a fim de buscar farinha de mandioca em Nazaré da Mata,
terra onde esse produto se constituiu uma riqueza pela sua abundância e boa
qualidade. É o que conta Nieuhof, quanto a esses rompimentos de cerco, por
parte dos holandeses, em busca da farinha de mandioca.

As técnicas, no quadro da produção alimentar, foram as indígenas, pouco a


pouco adaptadas pelo português; ou, o que se verificou também, modificadas
pelas que ele conhecia, transculturando-se os elementos. No preparo da
mandioca o processo cultural substituiu o “tipiti” aborígene pela prensa
portuguesa; esta já era conhecida como técnica de esmagamento em Portugal
e por isso não demorou a substituir a forma primitiva do índio. Lavrava-se a
terra com o pau-de-cavar que algumas populações indígenas conheciam,
embora numerosas outras o ignorassem. O luso introduziu a enxada e o
arado; este de pau, puxado pelo homem ou pelo boi. O arado de pau, primeiro
a ser usado em terra brasileira, ficou conhecido, dada a sua antiguidade, como
“pai Adão".

Durante muito tempo ainda perdurou ao lado do arado de ferro. E ambos, ao


lado do trator, ainda bisonho na sua dispersão nacional, continuam a
enriquecer a paisagem agrícola do País, no campo das técnicas.

No trabalho agrícola, no cuidado da terra, predominou a técnica da coivara,


de origem indígena, mas que não era estranha também ao conhecimento de
lusitanos e africanos; a queima da terra, como preparo do solo para plantio, é
prática quase universalmente conhecida. Dada a precariedade de
conhecimento da rotação de culturas, o que predominou, de começo e se vem
prolongando até nossos dias, é preferencialmente a rotação de terras. Esta
mudança de áreas representa, no fundo, uma tradição da coleta indígena que
levava a tribo ao nomadismo.

Para fazer sua habitação o colono também procurou adaptar-se à natureza;


ora utilizando material por esta fornecido, ora construindo seu abrigo de
acordo com as condições do meio. A casa popular, de simples colonos,
artífices, lavradores, reflete a primeira hipótese; a casa- grande de engenho,
as casas dos primeiros agrupamentos urbanos, constituem a segunda. A casa é
baixa, larga, ampla, gorda; acolhe, na sua extensão horizontal, a família
patriarcal, abrigando-a do clima tropical ou subtropical, com suas portas,
numerosas janelas, a telha-vã, o piso de tijolo, a varanda. As varandas são
propícias para armar redes. Mais tarde, já nos fins do século XIX, a difusão
do mocambo constitui também uma adaptação ao meio; os elementos da
natureza são aproveitados, e o tipo de construção, com suas águas amplas,
representa uma adaptação admirável como solução climática.

Menos condicionada ao meio é a senzala, onde moravam os escravos. Esta


foge inteiramente à adaptação ecológica, embora se utilize na casa a técnica
nativa. É uma construção, sob certo aspecto, popular, pois usa técnicas
conhecidas, inclusive a parede de adobe e o teto de telha-vã. Os problemas de
aeração ou de iluminação é que não são devidamente resolvidos. Foi o que,
em pleno meado do século passado — 1856 — denunciou o médico
pernambucano Joaquim de Aquino Fonseca.

O indígena, pelo menos aquele com o qual logo entrou em contato o


colonizador, não conhecia roupa; o vestuário, pois, foi introdução européia, e
por isso mesmo logo o brasileiro passou a acompanhar a moda de Portugal, a
princípio, e depois a inglesa, a francesa, a americana. A coisa foi variando,
segundo os tempos. Precário de roupa era também o negro africano, que,
todavia, encontrou admirável adaptação ecológica, no sistema de trabalho
escravo, ao usar calça, despindo-se da cintura para cima, no eito. É certo que,
em relação ao indígena, o africano era muito mais rico, no que toca ao
vestuário. Inclusive, aqueles grupos que estavam influenciados pelo
islamismo, usavam trajes árabes: o camisolão (camisu), o gorro (ifá), as
sandálias.

Deste modo o vestuário, no Brasil, procurou manter as linhas lusitanas, sem


prejuízo de certas adaptações regionais. O sistema africano do trabalho, nu da
cintura para cima, estendeu-se ao caboclo trabalhador rural, que às vezes usa
camisa de pano muito leve, semi-aberta, de mangas arregaçadas. Os próprios
senhores, segundo tradições chegadas aos nossos dias, usavam em casa trajes
mais leves: o timão ou camisola e ceroula, por exemplo; aliviavam assim o
pesado vestuário das visitas, dos almoços, das missas, dos passeios.

Mesmo os grupos estrangeiros, aqui chegados com a imigração, muitos deles


trazendo seus vestuários de uso nas respectivas regiões de origem, também se
adaptaram ao uso local. Sobretudo aliviaram certas peças do vestuário,
adotando o traje comum do brasileiro, com o que atenderam às exigências
ecológicas do ambiente.

A rigor, não se encontram no Brasil trajes típicos, específicos, que


caracterizam um grupo ou uma região; neste ponto, portanto, não herdamos a
variada riqueza do vestuário português, de sensível diferenciação segundo as
regiões de Portugal. Entretanto, podemos encontrar no Brasil três vestuários
característicos: o dos vaqueiros do Nordeste, o das baianas e o do gaúcho. O
traje das baianas, surgido na Bahia, e daí seu nome, originou-se dos grupos
africanos, cada um dando sua contribuição cultural: os sudaneses, através dos
iorubas, com os panos vistosos, as saias rodadas, a cor correspondendo a uma
filiação a Orixá; os negro-maometanos, através especialmente dos haussás,
com os turbantes, as chinelas; e os bantos, com o xale da costa, os braceletes,
os argolões.

O do vaqueiro e o do gaúcho, embora se liguem ao exercício de uma mesma


atividade econômica, oferecem particularidades, da mesma forma que se
distinguem os dois elementos tanto étnica como culturalmente. O do vaqueiro
do Nordeste teve como base a utilização do couro de veado ou de bezerro, da
cabeça aos pés; chapéu de aba, fundo chato ou cônico, quebrado de várias
maneiras; gibão ou casaco de mangas, não raro usado sobre o ombro; o
guarda-peito, que é uma espécie de avental, preso ao pescoço e cobrindo a
frente do corpo até a cintura; perneiras apertadas; sapatos grossos, alpargatas
ou sandálias. De seu lado, o traje do gaúcho sofreu forte influência hispânica,
através do contato com grupos espanhóis da área gaúcha platina (Argentina e
Uruguai). Caracteriza-se, geralmente, pelo uso das bombachas, calças largas
caindo sobre as botas curtas, ou chiripá, pano que enrola as pernas
amarrando-se na guaiaca (cinturão), o sombrero, chapéu desabado; chilenas
ou grandes esporas; e o poncho, manto com abertura no pescoço.

Tanto num como noutro desses dois vestuários, vemos que se ligam às
condições de clima, de um lado, e de outro lado, à defesa contra o meio. O do
vaqueiro do Nordeste representa, principalmente, o contato com o meio físico
da caatinga, em que o couro é defesa natural, preservação contra a
agressividade da flora. Por sua vez o gaúcho traduz o clima frio em que vive;
a lã e a seda são meios de proteção contra o frio, melhor aclimatando o
homem ao ambiente respectivo.

Afora algumas das técnicas já referidas, não foram poucas outras que se
introduziram na vida brasileira, contribuindo para a formação de seu quadro
cultural contemporâneo. Do indígena colheram-se o moquém; o
aproveitamento da cabaça para cuia da farinha ou para banho — o celebrado
banho de cuia; a muqueca; o preparo do guaraná e do mate; o modo de andar
a pé em fila por um, observado principalmente no interior, constituindo a fila
indiana; o preparo de cestas de palha de coqueiro ou de folha de bananeira; a
utilização de alimentos com base na mandioca; o preparo de vinhos copio o
assai, ou de alimentos, como os da Amazônia, com base no pescado.

Do africano, por sua vez, pode-se arrolar uma contribuição não menos
expressiva, que se diversificou bastante conforme a região por ele mais ou
menos influenciada; dele recebemos o preparo de numerosos alimentos, com
base na pimenta e no dendê, que constituem a chamada cozinha baiana; o uso
da pedra de ralar, da colher de pau e da folha de bananeira nos trabalhos de
cozinha; a construção de mocambos, onde também figura a técnica indígena;
certos instrumentos de música hoje popularíssimos entre nós: o berimbau, o
atabaque, o jongo, a cuíca, tantos mais.

De outros grupos étnicos, posteriormente chegados ao Brasil, introduziram-se


numerosos elementos culturais, que se adaptaram ou que integralmente se
fixaram na paisagem brasileira: a alimentação baseada nas massas de origem
italiana, é um exemplo; técnicas de construção italiana ou alemã; o chucrute,
de origem alemã; bandas de música, clubes recreativos, jogos como o bolão,
introduzidos pelos alemães; a carroça ou carroção, de origem polonesa,
comum no Sul; modas de vestuário, predominantes no século XIX e começos
deste, em que se traduzia a influência francesa, no elemento feminino, e a
inglesa, no masculino; danças, jogos e brinquedos infantis, de origem
francesa; o futebol, de origem inglesa, logo irradiando-se e inteiramente
nacionalizado hoje em dia como o mais característico dos desportos
brasileiros; as influências japonesas, principalmente na diversificação
alimentar com o uso de verduras e legumes, até então pouco disseminado.
Ainda o quadro de relações
culturais

A ESTES aspectos de relações culturais verificadas no sistema adaptativo,


podemos igualmente acrescentar aqueles que se realizam no sistema
associativo, onde não foi menor nem menos importante o desenvolvimento
do processo. Se é certo que o padrão da sociedade brasileira foi
fundamentalmente aquele predominante em Portugal, trazido pelos
portugueses para além-mar, não há esconder, todavia, que esse processo se
enriqueceu sobremaneira no Brasil.

Transladou-se para o Brasil a organização da sociedade acentuando-se aqui,


com o espírito social da época, o sistema escravista. A repugnância pelo
trabalho manual já marcante na sociedade portuguesa, segundo o expressivo
depoimento de Clenardo, desenvolveu-se no Brasil; a mania de fidalguia
trouxe-a baila o surgimento de uma aristocracia rural, que, em seus inícios,
era formada principalmente dos senhores de engenho, aristocracia que a
poesia de Gregório de Matos ironizou em seus versos satíricos:

“Só sei que deste Adão de massapê,

Uns Fidalgos procedem desta terra.”

A família patriarcal encontrou no pater famílias, o seu ponto alto; o domínio


do homem — do pai, do marido, do patriarca — se tornou destacado, e em
torno dele se desenrolaram as atividades sociais. A mulher, salvo raras e
históricas exceções, não tinha vez; não escolhia marido, cuidava dos filhos,
não recebia visitas, pois vivia em quase completa reclusão inacessível aos
olhos dos visitantes. Só aos poucos a situação foi mudando; lentamente
embora, no decorrer dos séculos, as mudanças se foram verificando, sem uma
alteração mais profunda das bases estruturais existentes. E só quando se
desenvolve a vida urbana, e isto já nos fins do século XIX, é que a
transformação se acelera.

Até então as modificações são lentas, demoradas, quase imperceptíveis. O


patriarcalismo domina a vida social. Esta, de modo geral, se faz nos meios
rurais: festas em engenho, visitas de família de um engenho a outro, para
passar o domingo ou para festas ou enterros, festas de botada, enfim, tudo
aquilo que se ligava à vida no campo, pois predominava a sociedade rural,
que, a rigor, era quase única. O casamento endogâmico predominou, e
somente com o crescimento da vida urbana é que começou a desaparecer. É
que as escolhas se faziam em família, com os casamentos realizados ainda as
moças quase meninas, com quinze anos, não raro com treze anos mesmo.
Feita a escolha pelos pais o casamento se celebrava. Era uma das festas
sociais da vida rural.

A organização da família, no regime patriarcal, e o casamento, não raro, eram


marcados por suas raízes econômicas; relacionavam-se à própria estrutura, da
economia regional ou às condições de manutenção de um novo lar. Daí os
desdobramentos de propriedades por casamento, através dos dotes paternos.
De outro lado, para evitar tais desdobramentos provocavam-se os casamentos
endogâmicos, muito comuns nos primeiros tempos; a escolha se fazia dentro
da própria família, sobretudo entre primos em primeiro grau.

Com o alargamento da sociedade brasileira, a quebra dos padrões patriarcais,


a introdução dos grupos imigrados, no século XIX, o panorama começou a
transformar-se; e já em nossos dias o casamento interétnico apresenta-se em
níveis bem expressivos, mostrando agora, através de outros elementos
humanos, o desenvolvimento do processo de mestiçagem. Alguns dados por
nós divulgados em estudo anterior possibilitam conhecer melhor este aspecto
da paisagem social contemporânea do Brasil: a do casamento interétnico.

De fato, tem-se incrementado o casamento entre pessoas de origens étnicas


diferentes. Mesmo entre os japoneses, grupo que tem sido apresentado, por
numerosos autores, como infenso à miscibilidade, preferentemente
endoétnico, encontram-se dados estatísticos que permitem mostrar o grau de
miscigenação que está havendo nas relações étnicas. E o mesmo sucede com
outros grupos. Intensificam-se os contatos sociais, que se aprofundam no
processo de mestiçagem, e não apenas no de transculturação.

E este ambiente rural projetou-se no urbano, quando este começa a surgir. De


fato, os começos da vida urbana são grandemente marcados de hábitos e
costumes, de usos e tradições, trazidos do meio rural; uma como que
ruralização do meio urbano, da cidade. Estende-se até esta a influência do
campo; e as famílias vindas dos engenhos, das fazendas de criação de gado,
das fazendas de algodão ou de café, alongam-se à vida citadina através de
seus hábitos e seus costumes.

Esta influência era, em geral, aquela mesma que se fazia sentir na


organização política. A tal ponto chegou essa influência — a da família,
através do chefe que é geralmente o líder político — que Gilberto Freyre
lembra que “o rei de Portugal quase que reina sem governar”; a família, em
geral, é que representa a organização do Estado. Transladado de Portugal o
sistema político, nele logo se fez sentir a influência dos grandes proprietários,
dos homens do campo. Na administração, nas câmaras municipais, o domínio
da grande propriedade se traduz de diversas maneiras; e através dos
chamados “homens bons” constituem-se os órgãos administrativos, as
câmaras municipais, as funções públicas, com elementos vindos do meio
rural ou indicados pelos grandes proprietários. Verificava-se assim um
alongamento das relações sociais às relações políticas; o espírito associativo
da família alongava-se à vida política.

Uma série de experiências marca a organização da administração pública no


Brasil. Primeiro, foram as capitanias chamadas hereditárias, em que se
dividiu o território brasileiro, em 1534. A cada donatário foram dados
poderes de governante, no território de sua capitania.

Mais tarde, em 1548, veio a experiência do Governo-Geral, contra que se


levantam os capitães donatários, na defesa de suas prerrogativas, o que
contribui para que não tivesse o efeito desejado, sobretudo o de unificação
administrativa completa, a experiência do Governo-Geral. De fato, os
donatários continuaram a ser, no âmbito de suas capitanias, senhores de
baraço e cutelo.
Com o Governo-Geral começam a funcionar os órgãos que se criaram nas
vilas então fundadas — as Câmaras, as Provedorias, as Procuradorias, os
Juizados. Sobre as novas autoridades estende-se a influência da família. De
certo modo, a Vila é um prolongamento da propriedade rural; dela depende,
quer quanto à vida de seus habitantes, quer ainda quanto às suas autoridades
constituídas.

De modo geral, as instituições transladadas tiveram aqui, no Brasil, de


adaptar-se às peculiaridades locais. O que se sente, desde os começos, e ainda
hoje se reflete na organização nacional, é a predominância dos costumes, ou
do Direito costumeiro, sobre as leis, o Direito legislado em Portugal como
metrópole, ou mais tarde pelo próprio Brasil, como país independente. A
unidade da organização política é a Vila; mas tanto quanto a Vila, a unidade
religiosa— a Freguesia — apresenta importância nos quadros desta
estruturação. A Freguesia constituía a unidade eleitoral, a unidade
demográfica, a unidade associativa. E tanto na Freguesia como na Vila se faz
sentir a influência da família patriarcal.

Na Câmara se congregam as autoridades da Vila; compõem-na o Juiz (de


Fora ou Ordinário, conforme o caso), como presidente, três ou quatro
vereadores, um procurador, dois almotaces e um escrivão. A função
deliberativa era exercida exclusivamente pelos Vereadores, sob a presidência
do Juiz; daí chamar-se inicialmente “Vereança”, pois só mais tarde tomou o
nome de Câmara. De acordo com as Ordenações Manuelinas e,
posteriormente, as Filipinas, os Juízes Ordinários, os Vereadores, o
Procurador, o Tesoureiro e o Escrivão eram eleitos, por eleição indireta, entre
os “homens bons” da terra. O Regime das Ordenações Filipinas, quanto à
organização municipal, prevaleceu até após a Independência do Brasil, ou
seja a promulgação da lei de l.° de outubro de 1828.

No decorrer deste período, entretanto, outros aspectos foram moldando a


organização política do Brasil; modificações foram sendo introduzidas de
conformidade com as exigências do próprio ambiente. É que a livre iniciativa
do brasileiro foi, aos poucos, influenciando no processo da organização
política; o espírito de liberdade foi-se fazendo sentir na formulação dos
problemas políticos de um território cuja importância era muito maior do que
uma simples colônia de metrópole distanciada. Daí as alterações que aos
poucos sofreu a legislação portuguesa no Brasil, quanto à organização da
estrutura política.

Além do Governador-Geral, que pouco a pouco perdeu sua autoridade em


face da influência das donatarias, havia os Governadores, Capitães-Generais
e Capitães-Mores de Capitanias, e os Capitães-Mores de Cidades e Vilas.
Posteriormente, em 1602, foi dado ao Governador e Capitão-General da
Bahia o título de Vice-Rei; entretanto, não houve continuidade nesta
concessão, pois só a partir de 1768 é que o título se tornou permanente,
conferido agora ao Governador e Capitão-General do Rio de Janeiro, para
onde se transferira, naquele ano, a capital do Brasil. O historiador Arthur
César Ferreira Reis explica muito bem a função e autoridade do Vice-Rei: “O
que houve, no Brasil, foi assim apenas um funcionário graduado, o Capitão-
General e Governador do Rio de Janeiro e territórios a ele subordinados ou
sujeitos, distinguido com a concessão desse título. Porque a esses vice-reis
não se concederam poderes mais amplos, não se lhes atribuiu uma atuação
que cobrisse, por exemplo, toda a área brasileira de Norte a Sul e mais
governantes de Capitanias maiores ou menores. Face, por exemplo, aos
Capitães-Generais de São Paulo, Mato Grosso, Minas Gerais, Pernambuco,
Bahia, Maranhão e Pará, o Vice-Rei do Rio de Janeiro era funcionário como
eles, sem qualquer poder maior que o deles”.

Mais tarde o Brasil torna-se Reino Unido; é título que passa a incorporar-se
ao do Rei de Portugal: Rei de Portugal, Brasil e Algarves. A presença do
príncipe regente, depois D. João VI, no Brasil, a partir de 1808, torna-se de
grande importância para o prestígio brasileiro. O Brasil passava à sede da
administração régia, o que lhe assegura mais amplo prestígio; de cá se
governa para o que havia sido e era considerado Metrópole. E este fato, sem
dúvida, iria refletir na condução dos negócios de que resultaria a proclamação
da Independência em 1822. Tornava-se o Brasil país independente, nação
soberana, constituído o Império que a Constituição de 1824 regeu até 1889
com a alteração, aliás, fundamental, de 1834, o chamado Ato Adicional.

Vale a pena, a esta altura, salientar a importância deste Ato Adicional, de


agosto de 1834. A Constituição outorgada em 1824 havia cerceado as
liberdades provinciais, estabelecendo com o sentido unitarista do Império
uma quebra da tradição autonomista, ou quase diria federalista, que vinha dos
começos da colonização: de 1534, pelo menos. Desta forma, começou a
reação das Províncias, que viam esfacelar-se a tradição de autonomia
regional. E esta reação culminou com a assinatura do Ato Adicional que,
modificando a Constituição, abria certas franquias às Províncias, muito
embora a Presidência delas coubesse a pessoa nomeada diretamente pelo
Imperador.

Contudo, se não completa, a liberdade começou a ser restaurada


democraticamente; as facções políticas, pouco a pouco, foram
compreendendo a importância da situação, e outras regalias foram sendo
concedidas às Províncias. Estas passaram a ter Assembleias Provinciais,
cujos componentes eram escolhidos em eleições. Abria-se assim caminho
para preservação da liberdade política que, de fato, em 1889 a República
restaurou completando-a com o sistema federalista, que atendia à mais antiga
tradição democrática brasileira.

O Império, organizado sob o regime unitário, manteve, em suas linhas gerais,


a estrutura vinda da colônia; as modificações introduzidas originaram-se do
novo caráter de país independente que passava a apresentar o Brasil. O
Imperador, auxiliado por ministros, que constituíam o Gabinete, era a
autoridade suprema, inclusive com o Poder Moderador, que era pessoal,
acima do Executivo que, com o Ministério, lhe cabia representar. As antigas
Capitanias se transformaram em Províncias, governadas por Presidentes
nomeados pelo Imperador. O poder legislativo compunha-se do Senado,
ocupado por senadores vitalícios escolhidos pelo Imperador, em lista tríplice
de nomes eleitos pela respectiva Província, e de Câmara dos Deputados ou
Assembléia Geral; nas Províncias, funcionava a Assembléia Provincial. Nos
Municípios continuavam a existir as Câmaras Municipais ou de vereadores.

É evidente que muitos desses padrões sofreram transformações — e não raro


transformações profundas — no correr dos tempos; o espírito de liberdade, e
sobretudo de livre iniciativa, assegurou estas transformações em condições
que ofereceram oportunidade para bem se conhecer o sentido da evolução
brasileira. Não apenas este espírito de liberdade, de um lado, se não também a
aceitação de novas idéias, de outro lado, foram contribuindo para estas
transformações. E no quadro político mesmo devemos registrar a ascensão
dos descendentes de imigrantes, não raro ainda em primeira ou segunda
geração, que se incorporaram ao processo político, participam de partidos,
disputam cargos eletivos, ocupam postos executivos, lideram movimentos ou
campanhas.

Essa ascensão política do descendente do imigrante, que se verifica


destacadamente nos Estados do Sul, onde mais sensível foi a contribuição da
imigração, constitui uma das características do espírito democrático da
formação brasileira; não existe privilégios, nem tradicionalismo de família a
impedir a participação de qualquer brasileiro, seja qual for sua origem, no
processo político, e, de modo geral, no processo social. Muitos desses
descendentes de imigrantes têm ascendido a altos cargos políticos —
ministros de Estado, governadores, deputados, senadores da República; e não
apenas a modestos cargos locais — de vereadores ou de prefeitos. Hoje em
dia grande parte das posições políticas, administrativas ou legislativas, em
qualquer dos âmbitos — o federal, o estadual ou o municipal — está ocupada
por esses descendentes; podemos destacar, de modo particular, descendentes
de imigrantes, de sírios e libaneses, de japoneses, em São Paulo, de italianos,
de alemães, de poloneses, nos Estados do Sul, de alemães e italianos também
no Espírito Santo e Minas Gerais.

Um estudo a ser feito seria o que mostrasse as origens étnicas dos


componentes do Congresso Nacional e das Assembleias Estaduais; este
estudo evidenciaria como se intensifica, nos últimos anos, a participação dos
descendentes de imigrantes em postos eletivos, e sua sensível influência no
desenvolvimento do processo político nacional. Evidenciar-se-ia também
que, apesar de predominar no Nordeste os nomes de famílias de origem luso-
brasileira — os nomes que, de modo geral, se consideram tradicionais:
Albuquerque, Lopes, Amaral, Ribeiro, Costa, Silveira, Silva, tantos mais —
também aí vão aparecer os descendentes de imigrantes, enriquecendo assim o
quadro da política regional com sua participação.

Mas é sobretudo de São Paulo, do Paraná, de Santa Catarina, do Rio Grande


do Sul, que chegam sobrenomes testemunhando a origem imigrantista de seus
antepassados. São descendentes de italianos, de alemães, de japoneses, de
poloneses, que se incorporam ativamente à vida nacional, uns no Congresso,
outros na administração — ministros ou secretários de Estado, chefes de
entidades autônomas, e alguns ocupando a Presidência da República: Mazzili,
Médici, Geisel.

O fato de falar-se, quanto a estes descendentes, em ítalo-brasileiro, ou nipo-


brasileiro, ou teuto-brasileiro, não indica, nem de longe, que se esteja fazendo
uma distinção de natureza ideológica ou de sentido político ou até mesmo de
discriminação. É antes, e unicamente, uma identificação quando à origem
com que ingressou e participa da cultura brasileira ou de nossa gente. Da
mesma forma que falamos que fulano é papa-gerimun, beltrano é cabeça-
chata, sicrano é barriga-verde.

O que traduz, acima de tudo, o espírito de nossa formação: um povo aberto


aos mais amplos contatos humanos e culturais; um espírito de aproximação,
de colaboração, de integração. Contatos indiferentes à cor da pele ou à
diversidade cultural; independentes de costumes ou de línguas; alheios às
diferenciações de comportamento. Da mesma forma que portugueses e
indígenas se entenderam desde o momento da descoberta, também
portugueses e indígenas se entenderam com os negros trazidos pela
escravidão. E todos juntos, no amálgama da população hoje brasileira, se
entenderam com os imigrantes chegados a partir do século XIX.

E, ainda dentro dessas considerações, deve verificar-se que essa ascensão


social e política se tem tornado possível também a elementos vindos de
origens modestas, não raro marcados por uma cor de pele mais escura, mas
cujas condições de inteligência e de cultura possibilitaram o acesso a cargos
públicos. O que se evidencia não apenas na representação legislativa, mas
igualmente nas posições executivas; e não se esqueça que à Presidência da
República chegou um desses elementos, não claro nem de olhos azuis, mas
moreno, bem puxado a mulato

As relações associativas que se verificaram na organização econômica


sentiram, mais do que em outros setores, a influência de fatores da terra, ou
dos contatos aqui havidos. O processo de adaptação e integração ao meio
traduziu-se na organização econômica, de forma mais completa. O sistema de
propriedade da terra transladado pelo português aqui tomou feição nova,
sobretudo com o surgimento da plantation. Este tipo de propriedade
representou uma criação em terra tropical ou subtropical; e a América foi o
seu campo de experiência. No Brasil, a plantation foi a de cana-de-açúcar;
mais tarde a de café e a de cacau vieram incorporar-se a este quadro. Ao lado
da plantation desenvolveu-se a fazenda, como a grande propriedade, agrícola
ou pastoril, e ainda extrativista. Multiplicaram-se as formas de relações de
trabalho, sobretudo com a extinção do regime escravo.

A grande propriedade territorial foi a base da agricultura no Brasil. Era


símbolo de riqueza, ao lado da escravatura. O cultivo da terra volta-se para os
produtos de exportação, sobretudo de matérias-primas, gêneros de
alimentação e especiarias, que os mercados europeus consumiam em grande
escala. Planta-se cana-de-açúcar, e produz-se açúcar que é comerciado para a
Europa; planta-se algodão, que igualmente é vendido para o exterior; as
especiarias da Amazônia, chamadas “drogas do sertão”, são coletadas e
enviadas também para a Europa, dada a escassez dos produtos asiáticos, cujo
recebimento se torna retardado ou demorado. E assim voltada para o
comércio exterior é que se desenvolve a agricultura brasileira.

Isto não exclui, porém, a cultura dos gêneros de subsistência, o que ainda
mais acentua o processo transculturativo, sobretudo com a mandioca, o
milho, o feijão, o arroz, produtos uns da terra, outros trazidos pelo português.
Tornou-se este — o português — um elemento estimulador do intercâmbio
de produtos da América para Europa e Ásia, da Ásia para a América e
Europa, ou de África para a América, ou desta para aquela.

De 1530, data do primeiro documento sobre o regime de propriedade da terra


no Brasil, até o presente, poucas modificações sofreu esse regime; a situação
da estrutura agrária não tem recebido transformação. O sistema da exploração
latifundiária, através das grandes concessões que se fizeram desde a
colonização, continua vigorando. A estrutura que nos foi legada pela colônia
ainda hoje predomina, se bem que agora já se acentuando com a
intensificação do minifúndio, em decorrência principalmente da parcelação
de propriedade pelo regime de herança.

Somente duas experiências podem anotar-se como tentativa de quebra dessa


velha estrutura. A primeira, ainda no século XVIII, é conhecida como
colonização açoriana. Vieram imigrantes dos Açores, em especial para o Sul
do Brasil — Santa Catarina e Rio Grande do Sul — e aí se estabeleceram
pelo regime de pequena propriedade. A experiência, todavia, não teve
continuidade, e por isso mesmo não exerceu a influência que seria de esperar.
Ao contrário: continuou a florescer a grande propriedade.
A segunda experiência se verificou no século XIX, e para ela se utilizou a
imigração européia, principalmente alemães e italianos, que fundaram
colônias no Rio Grande do Sul, Santa Catarina e Paraná, recebendo cada
família um pequeno lote que, entretanto, não pôde prevalecer em outras áreas,
como a Bahia ou Pernambuco, por exemplo; aí o domínio quase imperial e
exclusivista da grande propriedade impediu o florescimento da pequena
propriedade de colonos estrangeiros. Entretanto, no Sul, desenvolveu-se. É
certo que, hoje, a pequena propriedade em algumas áreas se tornou
verdadeiro minifúndio, em virtude da fragmentação pela herança, de um lado,
e, de outro lado, pela pressão demográfica.

Nem o Império, nem a República ofereceram ao regime de propriedade da


terra no Brasil qualquer modificação substancial; o Império criado com a
colaboração dos grandes proprietários rurais sofreu a influência destes em sua
organização política, econômica e social. Consequentemente, nada se
modificou que pudesse afetar os interesses dos grandes proprietários. Quanto
à República, em parte, se deu o mesmo; os grandes senhores da terra e de
escravos ajudaram a fundar a República, e orientaram, como era natural, sua
organização. Nem mesmo o Código Civil, promulgado em 1917, alterou a
estrutura da propriedade rural ou, pelo menos, as relações de trabalho no
campo.

Apenas a Constituição de 1946 procurou modificar a situação ao condicionar


o uso da terra ao bem-estar social, podendo a lei ordinária promover a justa
distribuição da propriedade com igual oportunidade para todos (art. 147).
Todavia a execução deste dispositivo foi freada pelo que dispõe o artigo 141,
§ 16, ao estabelecer que a desapropriação por interesse social, que seria o
caso do artigo 147, somente pode verificar-se mediante prévio e justo
pagamento em dinheiro. Assim se tem tornado inexequível a possibilidade de
uma reestruturação do sistema agrário nacional.

A partir da Revolução de 1964 criaram-se novas condições para a


reformulação do problema agrário não só através do texto constitucional de
17 de outubro de 1969 (art. 161 e seus parágrafos) como ainda da legislação
ordinária; a estes instrumentos político-jurídicos juntou-se como principal o
Ato Institucional n.° 9, de 25 de abril de 1969. Com este documento legal
criaram-se condições para a realização da Reforma Agrária compatível com
as aspirações de desenvolvimento econômico, mas executada sem violência
ao direito de propriedade. O Ato Institucional modifica a redação do
parágrafo l.°, substitui o parágrafo 5.° e revoga o parágrafo 11, tudo do artigo
157 da Constituição Federal de 24 de janeiro de 1967, substituída pelo acima
referido novo texto constitucional de 1969.

Complementando o Ato Institucional n.° 9, foi assinado decreto-lei dispondo


sobre desapropriações por interesse social, dentro dos novos critérios
estabelecidos pelo AI-9. Com esse instrumental jurídico, de fundo político
autenticamente revolucionário, abriram-se perspectivas para uma Reforma
Agrária condizente com as exigências do progresso nacional e as aspirações
do bem comum.

Passaremos agora a examinar alguns aspectos das relações culturais no


sistema ideológico, onde igualmente se verificam as características que
tomou, no Brasil, esse processo. Começaremos pela idéia religiosa.

O catolicismo transplantado pelo português para o Brasil aqui sofreu, como


seria de esperar, certas adaptações oriundas da necessidade de atender às
peculiaridades da nova terra. As condições em que se processou a
colonização do Brasil contribuíram para que se atenuassem os escrúpulos ou
os princípios morais, exigidos pela Igreja Católica, para se aceitarem, por
acomodação talvez, certos desregramentos ou irregularidades. Além do
Equador, não havia pecado, era a concepção européia: ultra equinoxiálem non
peccavi. Tudo se permitia, pois.

Coube ao catolicismo, neste processo de ocupação humana, a tarefa, não raro


dificílima, de disciplinar as relações sociais e a própria formação moral da
sociedade que então se constituía. De modo que teriam os sacerdotes de usar
de suficiente força no sentido de evitar os excessos, mas, de outro lado, de
contemporizar tolerantemente com certas atitudes. Muitas destas atitudes,
aliás, oriundas das classes dominantes, o que dificultava ainda mais o
trabalho a ser realizado.

Ao lado do sentido puramente religioso trouxe o catolicismo que se adaptou


ao Brasil o sentido de comemoração profana das festas de Igreja: festas
populares tão comuns em todas as áreas do país, mesmo as mais intensamente
apegadas ao catolicismo, como as rurais. Estas festas — novenas, tríduos,
mês de maio, Natal — se caracterizam por seu prolongamento ao lado
profano, a que talvez não seja estranha certa influência de festividades
africanas. Ou, pelo menos, influência democratizante da participação dos
escravos nessas festividades religiosas.

A religião católica no Brasil, praticada em suas missas, suas procissões, suas


novenas, em seu mês de maio, Semana Santa etc., apresenta este caráter de
influência profana, ou, seria melhor dizer, de extravasamento profano, sem
que lhe falte, todavia, sentimento religioso e espírito cristão. O uso
tradicional de roupas pretas, por exemplo, nos atos da Semana Santa, em
particular os de quinta-feira e de sexta-feira, é um exemplo; exemplo, é certo,
que se vem transformando nos últimos tempos, sobretudo nos meios urbanos,
de modo a modificar esse hábito, que se tornou uma das constantes de nosso
sentimento religioso.

Não se deve esconder, porém, que a esse espírito religioso, mesmo o


intensamente católico, não faltam certas sobrevivências acumuladas pela
influência indígena ou pelas práticas africanas. O uso de amuletos, por
exemplo. A figa é coisa que quase todo brasileiro usa, com a finalidade de
afastar os maus espíritos ou o mau-olhado; e a figa, como se sabe, foi
introduzida pelo negro africano. As benzeduras ou as curas de mau-olhado ou
de doenças são outros traços recebidos não apenas dos africanos como
também dos indígenas. Os sonhos e sua interpretação, as adivinhações, os
tabus são manifestações igualmente encontradas entre as populações católicas
do Brasil.

Não foi difícil, por isso mesmo, o sincretismo religioso verificado com os
cultos africanos trazidos pelos escravos. Com as práticas dos nagôs,
principalmente, surgiram formas sincréticas, de que resultou o candomblé.
Este se tornou um produto já brasileiro, um resultado do processo
transculturativo. Às práticas da religião dos orixás dos iorubas juntaram-se
crenças católicas: e não é raro o terreiro de candomblé que não seja batizado
com nome de santo católico: Santa Bárbara e São Jerônimo, sobretudo.

O culto dos orixás, trazido pelos africanos, transformou-se no candomblé da


Bahia, xangô do Nordeste, macumba do Rio, tambor de crioula do Maranhão.
A celebração é feita em templos próprios, os terreiros, constituindo seus
altares, cuja visita é reservada aos iniciados, os pejis. Os sacerdotes são
chamados Babaloríxás ou Babalaôs, e, quando se trata de sacerdotizas,
Ialorixás. As filhas-de-santo são as crentes, filiadas sempre a um dos orixás.
Cada um dos orixás foi identificado com um santo católico.

O sincretismo, entretanto, alongou-se e abrangeu também o espiritismo,


sobretudo na formação do culto, no Rio de Janeiro, onde a forte influência
banto deu em resultado os cultos chamados de Umbanda ou Embanda. Desta
forma verifica-se que os grupos culturais africanos mantiveram suas práticas
religiosas sincretizadas com o catolicismo ou com o espiritismo. Só os
africanos de cultura maometana se conservaram isolados, sob este aspecto,
praticando sua religião em sua pureza, com os ritos islamitas.

A prática religiosa se foi diversificando em diferentes manifestações, sejam


as de origem negro-africana, sejam as de outras origens. A introdução do
protestantismo, a princípio com alguns grupos imigrados, depois de modo
mais franco, com o proselitismo, é um desses aspectos. Rápido o
protestantismo se tem disseminado no Brasil. A princípio a população
chamava os protestantes de bode; depois, foi aceitando, e o próprio espírito
de tolerância e de liberdade do brasileiro foi contemporizando. Através das
diferentes seitas introduzidas, foi se divulgando no Brasil o anglicanismo, o
adventismo, o batista, o sétimo dia, o pentecostal, e vários outros.

Deve assinalar-se que a essa introdução de outros cultos — no caso, em


especial, os cultos protestantes — não foi estranha a presença de correntes
imigratórias européias, a partir do século XIX. Com os alemães introduziu-se
o luteranismo no Brasil; e ainda hoje em várias áreas do País, que foram
inicialmente de colonização alemã, encontram-se os templos luteranos;
também os holandeses, mais recentemente, têm introduzido o protestantismo.
Nos começos da imigração, em 1828, colonos saídos de São Leopoldo
fundaram duas colônias, que se marcaram pela influência religiosa: os
católicos deram início à colônia de Torres, e os protestantes, à de Três
Forquilhas.

De seu lado o imigrante italiano tem sido um disseminador de cultos a santos


católicos até então não conhecidos no Brasil; santos, que eram os padroeiros
de suas aldeias na Itália, se tornaram igualmente padroeiros de novas vilas
brasileiras. Saliente-se, igualmente, que o culto desses padroeiros se tem feito
de maneira tradicionalmente brasileira: com novenas, festas de rua, barracas,
banda de música, enfim o culto religioso aliado ao profano.

O catolicismo no Brasil, sem prejuízo dos sentimentos de fé e da confiança


em Deus da maioria da população, apresenta algumas peculiaridades bem
expressivas, sobretudo se considerarmos o desenvolvimento do processo
transculturativo. Em primeiro lugar, destaquemos esse espírito de confiança
na proteção de Deus. No linguajar comum manifesta-se através de expressões
que se ouvem até de elementos não-católicos: “se Deus quiser”. Se Deus
quiser o filho ficará bom, o homem conseguirá melhorar de emprego, o
advogado ganhará a causa, o médico curará o enfermo, o estudante passará
nas provas, o motorista chegará a seu destino, e assim por diante.

No campo da realização dos atos religiosos, essa confiança em Deus se


desdobra em duplo sentido: há católicos que praticam esses atos, e há
católicos que o são por tradição, conservando a fé, mas não praticando os atos
da sua crença. Os primeiros são os “praticantes”; os segundos os “históricos”.
Pois entre os católicos brasileiros encontramos essa original divisão: os
católicos praticantes e os católicos históricos. Aqueles são os que praticam a
religião: missa aos domingos e dias santos, e não raro até diariamente,
confessam-se e comungam continuamente, praticam todos os demais
preceitos previstos. Os outros são os que se consideram católicos por
tradição, pela formação brasileira, porque a família, desde os mais longínquos
antepassados, é católica, respeitam a Igreja e os atos religiosos, vão às-
missas comemorativas ou por alma de parentes ou amigos mortos. Todavia,
não se julgam obrigados ao comparecimento às missas dominicais, ao
confessionário e à comunhão. Sem qualquer menoscabo ou pilhéria, mas
sinceramente, dizem-se, declaram-se, proclamam-se católicos.

Um outro aspecto do catolicismo brasileiro encontramos, dentro do processo


transculturativo, na incorporação de traços culturais não originariamente
católicos. O caso dá Árvore de Natal, que começou a disseminar-se no Brasil
com influência de fontes não-católicas. É comum encontrar-se em toda casa
de família católica, durante o Natal, a Árvore de Natal ao lado do Presépio
armado como símbolo de festejo do nascimento de Cristo. O elemento
fundamental cristão que é o Presépio, trazido pelo português, e aqui
integrando-se na sociedade constituída, completado pela Árvore de Natal, de
origem nórdica, com fios de neve, no meio do calor de dezembro do Brasil
tropical. Temos aí, bem evidenciado, o processo transculturativo, a
receptividade do brasileiro a novas idéias e a novas concepções.

O que se deve destacar, todavia, é a importância que exerceu o catolicismo no


Brasil, no que se refere à preservação da liberdade do homem. Somente ele
pôde — e, de modo geral, pode preservar a coexistência plural dos povos e
nações — defender, no Brasil, o sentimento de liberdade do homem. Porque
justamente o catolicismo, através da defesa da pessoa humana, a que atribuiu
o livre arbítrio, tem capacidade de admitir e sentir a convivência de idéias ou
de pontos de vista ou, em geral, de homens diferentes.

Isto, porém, não se verifica nas ditaduras materialistas, sejam as do


comunismo, do fascismo ou do capitalismo, incapazes de acolher o diálogo e,
consequentemente, incapacitadas também de suportar a coexistência, e,
sobretudo, a convivência. Daí o papel exercido pelo catolicismo no Brasil:
este de ter preservado no homem brasileiro a idéia do diálogo, o pensamento
da vida plural, o espírito da convivência. Daí também a possibilidade do
processo transculturativo verificado no Brasil.

Ao lado das crenças praticadas em cultos formalmente organizados,


enriqueceu-se o brasileiro de considerável soma de crenças populares, umas
de origem indígena, outras de origem africana, não raro também outras
trazidas pelo português. Formas tradicionais ainda hoje persistem, no campo
das crenças populares: o saci, o boitatá, a mãe-d’água, o curupira, a mula-
sem-cabeça. Muitas dessas crenças foram tomando formas regionais,
caracterizando-se pelas peculiaridades de cada região brasileira, sob a
influência maior de um dos grupos étnicos.

Ao mesmo passo muitas lendas e superstições de origem portuguesa, algumas


de fundo religioso, foram disseminando-se na população brasileira, às vezes
descaracterizando-se de suas origens primitivas para abrasileirar-se no
processo transculturativo verificado. Tornou-se assim importante, na vida
humana brasileira, o sobrenatural; a crença nas lendas, nas superstições, nas
crendices. Enorme é o uso das orações chamadas fortes, através das quais se
implora a proteção de santos contra doenças, contra mordidas de cobra,
contra bichos-papões. O folclore brasileiro é uma riqueza muito grande e
muito viva nesse campo. Umas de origem européia, e por isso mesmo
conservando ainda sua marca religiosa, outras de origem africana ou
indígena, todas, entretanto, se adaptaram ao meio brasileiro, reinterpretaram-
se, transculturando-se no processo de relações que o elemento humano, aqui
vivendo, levou a efeito, sob a influência não menos expressiva do ambiente
criado.

Se passarmos agora a considerar um outro aspecto do processo de relações


culturais — no caso, o da língua — verificaremos que o idioma que nos legou
o colonizador tem sido fartamente enriquecido pela contribuição indígena e
negro-africana, e mais modernamente pela contribuição dos grupos
imigrados, em especial dos alemães e italianos; em virtude de sua mais longa
permanência no Brasil os imigrantes italianos e alemães têm participado do
processo transculturativo no campo da língua falada.

A língua portuguesa escrita e falada no quinhentos, ao contato com o novo


meio e o choque dessas influências, tem sofrido alterações sensíveis, a ponto
de haver quem queira dar à língua, que nós hoje falamos, o nome de
brasileira. Ou queira então, e este é o pensamento de outros, dar-lhe o caráter
de dialeto. Parece, entretanto, que não devemos chegar a tais extremos.

É claro que o português do Brasil apresenta peculiaridades não só de ordem


regional, se não também de ordem cultural, pela influência que exerceram em
sua formação e evolução os elementos indígenas e africanos. Tanto um como
outro contribuíram para o enriquecimento do português escrito e falado no
Brasil; incorporaram-lhe novas palavras e novas expressões, em particular
aquelas que eram próprias do meio americano — nomes de vegetais, de
animais, por exemplo — ou introduzidas pelo africano; enriqueceram-no de
outra maleabilidade, atuando sobre o próprio sistema gramatical, e não
apenas sobre o vocabular.

De outra parte, neste seu processo de evolução, já distanciado do português


do século XVI, o português do Brasil foi penetrado, em seu vocabulário, de
expressões ou palavras francesas, inglesas, espanholas e modernamente
norte-americanas; e também de formas alemãs ou italianas. Todas estas novas
expressões se integraram no português do Brasil, em sua forma falada
sobretudo, na linguagem popular principalmente, de modo a não se
distinguirem mais como galicismo, ou nas áreas onde predominaram os
respectivos elementos étnicos, mais forte se fez sentir essa influência: a do
italianismo em São Paulo, a do germanismo em Santa Catarina, a do
espanholismo no Rio Grande do Sul, a do anglicismo por toda parte, graças
ao papel notável que tem desempenhado o futebol na sociedade brasileira, a
ponto de tornar-se esporte nacional.

É de observar-se, porém, que nas áreas menos abertas aos contatos culturais,
como as sertanejas, conservam-se e permanecem na língua certas formas
arcaicas, de uso do português dos primeiros tempos de colonização. Contudo,
com o desenvolvimento das comunicações, o intercâmbio mais fácil, a maior
difusão literária, esta situação está-se modificando. Também em áreas onde
predominou o elemento açoriano, têm sido encontradas palavras e expressões
de uso nas ilhas portuguesas.

Uma observação sobre o português do Brasil é que, enquanto, nas classes


cultas, se procura conservar o português ensinado nas gramáticas, o escrito,
pois, o falado evoluiu rapidamente, modificando-se ao sabor de novas ou
velhas influências. Daí as divergências, o quase bilinguismo, poderíamos
dizer, existente no português do Brasil: um, o das gramáticas, o escrito; outro,
o falado pelo povo, ora conservando certos arcaísmos já desaparecidos em
Portugal, ora enriquecendo-se de traços de outras origens. Entre estas,
principalmente as indígenas.

O tupi foi durante muito tempo língua comumente falada no Brasil,


principalmente na área paulistana, onde persistiu mais demoradamente a
participação direta do indígena. O que sucede também na área amazônica,
onde são comuns as línguas indígenas. A seu tempo, no século XVII, dizia o
padre Vieira que “a língua que nas ditas famílias (referia-se às famílias dos
portugueses e índios) se fala é a dos índios”. Principalmente, o que parece
deduzir-se de documentação coeva — observa Sérgio Buarque de Holanda
—, entre mulheres o uso da língua geral teve caráter quase exclusivista. E
acrescenta que somente na primeira metade do século XVIII foi que se
verificou a integração do paulista no mundo da língua portuguesa. Mas nos
fins desta centúria e começos da seguinte (XIX) ainda se falava o tupi em São
Paulo. E, de modo geral, por todo o Brasil. Tanto assim que, em 1757, uma
lei do Governo Pombal tornava obrigatório o uso do português. É quando o
tupi começa a ser substituído, ainda assim gradualmente. Em áreas como no
Maranhão ou na Amazônia, em especial, o tupi continuou comumente falado;
e, como ele, outras línguas indígenas.

É de considerar também que, na regionalização da linguagem portuguesa no


Brasil, muito contribuiu a diversidade de motivo econômico na exploração
das várias áreas brasileiras; cada tipo de exploração, com a organização que
daí resultou, contribuiu para o aparecimento de novas palavras ou expressões,
correspondendo geralmente às peculiaridades locais. A preponderância de
determinado elemento étnico levando sua língua falada contribuiu ainda para
que com maior expressão esta língua participasse do novo processo
transculturativo. Daí observarmos, no português do Brasil, certas
peculiaridades regionais, com as quais se podem encontrar diferenças entre o
falar de um cearense e de um gaúcho, de um pernambucano e de um paulista,
de um goiano e de um baiano. A esse propósito têm sido sugeridas várias
classificações de áreas linguísticas no Brasil.

Algumas formas dessas linguagens regionais apresentam certos traços


característicos, que servem como que de identificação: o nheengatu na
Amazônia, o linguajar dos violeiros do Ceará, o falar cantado dos
nordestinos, a língua truncada do caipira paulista, as expressões platinas dos
sul-rio-grandenses — são observações feitas, a propósito, pelo historiador
Renato Mendonça.

O quadro da formação brasileira que nos proporciona a evolução histórica do


Brasil oferece esse resultado verdadeiramente admirável: o de um quase-
continente, diferenciado por condições físicas, apresentando essa unidade que
é, em princípio, um resultado da diversidade cultural. O contraste de regiões
diversificadas física e culturalmente. O equilíbrio de fatores os mais variados.
A unidade sem uniformidade. Em suma: o pluralismo étnico e cultural.

Na realidade, esse é o quadro de nossos dias — o do pluralismo étnico e


cultural — que encontra suas raízes em fatores, os mais diversos, vindos do
passado; e associando-se, intercomunicando-se, para oferecer este resultado
do Brasil moderno. Nesse passado encontram-se as fontes de onde brotaram
as águas que fizeram esse admirável mar de unidade, oferecendo condições
para o pluralismo de nossos dias.
Estudos sobre os grupos imigrados

Só de certo tempo a esta data se têm desenvolvido os estudos sobre os grupos


estrangeiros no Brasil e, em particular, sobre as relações de cultura
verificadas entre eles e as populações brasileiras de base portuguesa. Pode
assinalar-se a década 1931-40 como o período em que começaram tais
estudos a preocupar nossos sociólogos, nossos etnólogos, nossos
antropólogos; isto não exclui o fato de, anteriormente, se assinalarem
influências desse ou daquele grupo, a existência ou não de assimilação dos
grupos para aqui imigrados.

De certo modo havia razão de ser nessa ausência, anterior à década referida,
de estudos sobre assimilação ou de aculturação — que, seguindo a lição de
Fernando Ortiz, preferimos chamar transculturação — de imigrantes.
Justamente naquela época é que se desenvolvem, nos centros científicos mais
adiantados, os estudos sobre os processos, de aculturação e de assimilação.
Data de 1935 o Memorandum for the Study of Acculturation, de Robert
Redfield, Ralph Linton e Herskovits, publicado inicialmente em “American
Journal of Sociology”, vol. 3, novembro, e posteriormente em “American
Anthropologist”, vol. XXXVIII, 1936. Em 1938, publica Herskovits seu livro
hoje clássico sobre o assunto: Acculturation.

Entre nós, a par de pequenos estudos, quase artigos, em jornais e revistas da


época, o primeiro ensaio sério, científico, sobre o problema da assimilação
deve-se a Emilio Willems: Assimilação e Populações Marginais no Brasil.
Estudo sociológico dos imigrantes germânicos e seus descendentes. Com este
ensaio, verdadeiramente pioneiro na colocação do problema e no
levantamento da questão das relações de cultura dos grupos alienígenas entre
nós, abria-se a série de estudos de natureza científica que se iria seguir.
Outro aspecto merece salientar quanto ao aparecimento deste livro:
proporcionou ensejo para o estudo e fixação de conceitos, em relação à idéia
das expressões assimilação, aculturação, mudança cultural etc. Procurou o
professor Willems não apenas descrever os fatos e deles tirar os elementos
conceituais necessários; foi mais além procurando justamente dar conteúdo
àquelas expressões, ainda novas entre nós, como, de certo modo, ainda novas
nos próprios meios científicos norte-americanos.

Neste seu ensaio Willems escrevia, por exemplo: “Assimilação e aculturação


são aspectos diversos de um processo único. Com relação à esfera social
falamos em assimilação, enquanto que as mudanças verificadas na esfera
cultural levam o nome aculturação. É inútil acrescentarmos que não pode
haver assimilação sem haver ao mesmo tempo aculturação ou vice-versa”.
Dentro deste esquema conceitual desenvolveu o professor Willems sua ordem
de idéias para situar particularmente os problemas de assimilação.

Só mais tarde, em 1946, iria encarar os problemas de transculturação. É


quando publica outro monumental estudo, ainda não igualado quer em
relação aos próprios grupos germânicos, quer em relação a outros grupos: A
Aculturação dos Alemães no Brasil. Estudo antropológico dos imigrantes
alemães e seus descendentes no Brasil. Como o próprio título deixa entrever
agora os imigrantes de origem alemã são estudados sob o aspecto das
questões transculturativas.

Aquela procura de conceituação, a que pouco antes nos referimos, deu ensejo
a uma troca de artigos, verdadeiramente útil para os que queiram
compreender bem os problemas científicos ligados à terminologia das
relações de cultura. O professor Donald Pierson comentou o livro do
professor Willems em artigo, no qual fazia algumas restrições à conceituação
defendida pelo autor (“Revista do Arquivo Municipal”, São Paulo, vol.
LXXXVII, junho-julho de 1941); em artigo, nesta mesma revista, vol.
LXXIX, outubro de 1941, o professor Willems respondeu, defendendo os
conceitos por ele emitidos e mostrando o conteúdo das idéias nele expostas.

Este ligeiro esboço dos primeiros aspectos ligados aos estudos das relações
de cultura entre nós mostra bem a importância de que se revestiram, e de que
se vêm revestindo. Na realidade, desenvolveram-se em condições
perfeitamente satisfatórias. E, muito embora, dentro de um rigorismo
exigente, não se possa apresentar uma longa bibliografia, vale, todavia,
considerar que esta é expressiva e valiosa; expressiva e valiosa
principalmente se consideramos que são apenas decorridos trinta anos ou um
pouco mais do início de tais estudos, sob caráter verdadeiramente científico,
entre nós.

Por outro lado, deve levar-se em conta ainda que as características com que
se vêm processando, no Brasil, as relações de cultura entre os diversos grupos
populacionais dão feição peculiar aos estudos de assimilação e
transculturação.

O processo dessas relações apresenta entre nós condições novas. Não é, nem
poderia ser, unilateral. Ao contrário: tem sido bilateral, e, às vezes, chega
mesmo a ser polilateral. Não se verifica o domínio absoluto de um grupo ou
de uma população sobre outro grupo ou sobre outra população, de uma
cultura sobre outra: antes constata-se a participação de dois grupos, a permuta
de elementos culturais entre duas populações e às vezes entre mais de duas
populações. No vale do Itajaí, por exemplo, sentimos que o encontro cultural
ali se fez entre valores culturais nativos, isto é, caracteristicamente
brasileiros, e valores culturais alemães e italianos. O colorido mais forte dos
traços germânicos não quer dizer tenha havido um domínio absoluto dessa
cultura sobre as demais; dentro daqueles traços exteriormente germânicos
puros e exclusivos, vivem e se movimentam e se desenvolvem traços
peculiarmente brasileiros, e ao lado deles traços nitidamente italianos.

A década 1941-50 assinala o aparecimento do livro que se tornou


fundamental e hoje básico, uma espécie de text-book para os estudos das
populações estrangeiras no Brasil; é a Introdução à Antropologia Brasileira,
de Arthur Ramos. O primeiro volume, divulgado em 1943, tratou dos grupos
indígenas e negros; o segundo, publicado em 1947, focalizou, na primeira
parte, os grupos europeus ou europeizados e, na segunda parte, os contatos
raciais e culturais. É este segundo volume que interessa particularmente aos
estudiosos de relações de cultura.

Arthur Ramos, o jovem sábio tão prematuramente roubado às ciências


sociais, estudou os grupos português, espanhol, francês, anglo-saxão, italiano,
alemão, holandês, eslavo, judeu, japonês e outros (ciganos, sírios, libaneses,
norte-americanos), e, na segunda parte, os seguintes temas relacionados aos
contatos culturais: os contatos e o problema geral da transculturação,
assimilação e transculturação dos grupos europeus e esboço de uma
antropologia histórica e regional do Brasil. É de ver, por esta síntese, à
considerável importância desta obra.

Introdução à Antropologia Brasileira representa hoje um livro de que o


estudioso não prescinde. Com este segundo volume pode penetrar no
conhecimento das culturas européias e europeizadas, introduzidas no Brasil; e
com esta chave admirável que é o livro de Ramos conhecer, compreender e
interpretar os problemas das relações de cultura entre nós. O livro de Arthur
Ramos não é a revelação — assinale-se — mas a chave para este mister.

Vale registrar, como valiosos, diversos trabalhos publicados em revistas,


algumas de natureza especializada. Na “Revista do Arquivo Municipal”, de
São Paulo, tem sido divulgada uma série bem interessante de pesquisas e
estudos sobre aspectos culturais de grupos estrangeiros, além de numerosos
outros estudos, que, embora não ferindo diretamente o problema, oferecem
valiosa contribuição para sua análise. Em outras revistas especializadas — de
folclore, de economia, de sociologia — igualmente se vêm publicando
interessantes artigos sobre aspectos culturais de grupos alienígenas.

Se é verdade que o fato só tem valor científico quando reduzido a número, tal
como pensava Lorde Kelvin em referência de Roquette Pinto, pode assinalar-
se a década de 41 a 50 como a do surgimento de estudos que, através dos
números, vieram revelar aspectos das relações culturais de diversos grupos
estrangeiros entre nós.

Queremos referir os estudos oriundos do censo nacional de 1940, publicados


sob a orientação do professor Giorgio Mortara, chefe do Laboratório de
Estatística do Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística. Na série
“Análises de Resultados do Censo Demográfico”, numerosos estudos sócio-
estatísticos dizem respeito aos grupos alemão, italiano, polonês e japonês.
Através dos números recolhidos pelo censo demográfico analisaram-se o
número de nacionais alienígenas, a distribuição territorial, a permanência da
língua nativa mantida no lar, a composição dessas populações segundo sexo e
idade, a época de imigração e grau de assimilação linguística, enfim vários
aspectos de interesse para os estudos transculturativos evidenciados pelos
resultados censitários. Iguais estudos foram feitos também em relação ao
censo de 1950.

Particularmente em relação à permanência do uso da língua materna, trazida


pelos imigrantes, os estudos oriundos do censo de 1940 foram reunidos em
volume (“Estudos Sobre as Línguas Estrangeiras e Aborígenes Faladas no
Brasil” — Estatística Cultural n.° 2, Instituto Brasileiro de Geografia e
Estatística. Conselho Nacional de Estatística, Rio de Janeiro, 1950), em que
se reúnem observações sobre o processo do que se denominou “assimilação
linguística”, bem assim sobre este processo em relação à manutenção da
língua alemã, da italiana, da espanhola, da japonesa etc., em relação aos
respectivos grupos imigrados e seus descendentes.

Foi sem dúvida contribuição das mais expressivas essa que o Instituto
Brasileiro de Geografia e Estatística proporcionou, com os resultados do
censo demográfico de 1940 e através dos estudos orientados pelo professor
Giorgio Mortara, aos estudiosos dos problemas de relações de cultura entre
nós. Ainda ao professor Mortara deve-se valioso estudo, igualmente baseado
em dados censitários e estatísticos, sobre o que chamou “assimilação
matrimonial”, isto é, aspectos da fusão entre grupos de origens étnicas e
nacionais diversas, através dos casamentos realizados. Examinou
particularmente o comportamento dos grupos português, italiano, espanhol,
alemão, austríaco, húngaro, russo, sírio, japonês, anglo-americano, hispano-
americano etc., focalizando as tendências endogâmicas e exogâmicas e
apresentando os diferentes índices oferecidos pelos vários grupos para a
assimilação na população brasileira.

Se à estatística se deve tão valiosa contribuição para o desenvolvimento e


aperfeiçoamento dos estudos etnológicos entre nós, no que diz respeito aos
grupos alienígenas, também à geografia devem estes estudos apreciável
colaboração. Os nossos geógrafos se têm voltado, com expressiva acuidade,
aliás, para os problemas de uso e de ocupação da terra, em suas
peculiaridades culturais, e não no campo estritamente do domínio físico; daí
uma série de interessantes artigos que se têm divulgado principalmente na
“Revista Brasileira de Geografia”, no “Boletim Geográfico” e no “Boletim
Paulista de Geografia”.
Assinale-se, em primeiro lugar, que se deve ao Conselho Nacional de
Geografia, sob cuja égide se publicam as duas primeiras revistas citadas, a
publicação, em português, do estudo de Ernst Wagemann sobre os alemães
do Espírito Santo: A Colonização Alemã no Espírito Santo, em tradução de
Reginaldo SantAna. Também se deve a este outra tradução, não menos
valiosa, porque prosseguimento das pesquisas e estudos de Wagemann: Uma
Viagem de Estudos ao Espírito Santo, que é uma pesquisa demobiológica
com o fim de contribuir para o estudo do problema de aclimação em
populações de origem alemã, devida a Gustav Giemsa e Ernst G. Nauck,
igualmente publicada no “Boletim Geográfico”.

Em segundo lugar, registre-se a atividade de campo de vários geógrafos do


Conselho, quase todos através de estudos e pesquisas sob a orientação do
extinto professor Leo Waibel. Do ponto de vista da contribuição da Geografia
aos estudos etnológicos de relações de cultura cumpre assinalar o ensaio
Princípios da Colonização Européia no Sul do Brasil, de Leo Waibel, e ainda
os de Orlando Valverde sobre a região colonial antiga do Rio Grande do Sul,
de Nilo Bernardes sobre a colonização européia no sul, de Faissol sobre a
colônia alemã de Uvá, de Lisia Cavalcanti Bernardes sobre aspectos da
imigração no Paraná, de Arthur Hehl Neiva sobre aspectos geográficos da
imigração.

Estudos em particular sobre alguns grupos imigrantes destacam-se os dois


livros já citados do professor Willems, em relação aos alemães. Ainda do
professor Willems é o ensaio sobre os japoneses, o primeiro de base
essencialmente científica — sem esquecer, é claro, alguns pequenos artigos
de revista como o de Willems e Baldus sobre casas e túmulos de japoneses,
por exemplo — já publicado entre nós: Aspectos da Aculturação dos
Japoneses no Estado de São Paulo.

À bibliografia sobre os japoneses se pode acrescentar a contribuição de


Hiroshi Saito: O Japonês no Brasil. É o estudo mais amplo, até agora
conhecido, sobre a presença do japonês no Brasil e o respectivo processo de
assimilação cultural. Como sobre os sírios e libaneses se pode registrar o
livro de Clark S. Knowlton em que estuda a mobilidade social e espacial
desses grupos. Sírios e Libaneses é o primeiro estudo em conjunto da
participação dessas duas etnias no processo brasileiro. Outros estudos podem
ser arrolados, mas não publicados em livros, e sim em revistas ou outros
periódicos.

Sem esquecer Um Brasil Diferente, de Wilson Martins, que é possivelmente


o mais completo levantamento da presença do elemento estrangeiro no Brasil,
com as características culturais que a imigração nos trouxe; estudo que se
amplia ao que cada grupo nos aportou como expressão de sua cultura a
marcar um Brasil não puramente luso-indígena-negro, mas agora com traços
que, sendo originalmente alienígenas, fazendo um Brasil diferente do Brasil
originalmente tradicional, se vão incorporando na nossa vivência de todo o
dia.

Outras publicações, mais recentes, poderiam ainda lembrar-se como


enriquecimento desses estudos sobre a contribuição do elemento imigrado à
nossa formação; na bibliografia final arrolam-se estas obras como indicação
para maior pesquisa ou estudo de cada grupo ou de todos os grupos.

De certo, talvez, se afigure estranho não citar a necessidade de estudos sobre


o português e o espanhol, grupos igualmente ponderáveis na população
brasileira. Só em São Paulo os portugueses se representavam por mais de 139
mil pessoas, enquanto os espanhóis se elevavam a mais de 90 mil, dados
ambos do censo de 1950. Em 1954 entraram no País 30.062 portugueses e
11.338 espanhóis.

Não há, todavia, o que estranhar; portuguesa é a nossa formação, portugueses


os valores culturais básicos que se impregnaram no brasileiro; portugueses
ainda o lastro, o espírito, o sentido de nossa cultura. Seria estudar-nos a nós
mesmos; o que não implica em esconder a necessidade desse estudo, ou seja,
das características portuguesas de nossa formação. Quanto ao espanhol, é
evidente que a semelhança com nossa cultura básica — a portuguesa —
dispensa igualmente estudos mais aprofundados, muito embora não deixe de
ser interessante conhecerem-se também os aspectos de sua influência, de sua
presença, do comportamento de sua cultura entre nós, das atitudes recíprocas
nas relações.

Dos outros grupos pela diferença de condições culturais, pelos elementos que
trouxeram, tornam-se indispensáveis estes estudos, muito embora a velha
base cultural dos povos europeus muito contribua para atenuar as diferenças
ou os possíveis choques entre os grupos imigrados e as populações
brasileiras. Mesmo quanto aos japoneses não seria difícil encontrarem-se
pontos de contato com os portugueses que desde o século XVI estão em
relações com o Japão. Desde Fernão Mendes Pinto aos jesuítas e
missionários, aos portugueses que andaram por terras do Japão, naquela
centúria e na seguinte, há referências às boas inclinações da gente japonesa,
e, muito embora os hábitos diferentes, atritos e confusões se evitaram graças
à habilidade com que os jesuítas se conduziram, interpretando valores
culturais que facilmente se assimilaram reciprocamente. Inclusive a mesma
técnica usada em relação aos indígenas no Brasil: a aceitação dos mesmos
costumes, das mesmas maneiras, usadas pelos japoneses, e a adaptação a eles
dos costumes, das maneiras dos portugueses.
Paisagem humana e cultural
contemporânea

DIANTE de um mapa do Brasil as diversidades regionais, oriundas dos


contrastes geográficos, são ainda enriquecidas pela variação da paisagem
cultural. Torna-se possível, assim, em face das variedades geográficas e
culturais, fixar duas regiões bem definidas, uma em que ainda se mantém
viva a predominância da base cultural lusitana, outra em que os traços
culturais não-lusitanos — os alemães, os italianos, os poloneses, os japoneses
— vêm dando nova coloração à paisagem tanto física ou geográfica como
social e cultural.

A imigração no Sul contribuiu para caracterizar essa segunda área. Os


imigrantes participaram do desenvolvimento econômico da região. O
processo da produção cafeeira ainda no século passado ligou-se à
contribuição do elemento alienígena, sobretudo do italiano e do espanhol, nas
fazendas de café de São Paulo. Ao imigrante estrangeiro se deve ainda o
desenvolvimento industrial no Rio Grande do Sul, com o regime de
artesanato que foi a origem dos estabelecimentos industriais de hoje.

Participaram ainda as correntes imigratórias no desenvolvimento


demográfico, contribuindo para o povoamento da região Sul. De modo geral
no Brasil, no período de 1850 a 1950, a imigração participou com 3,4
milhões de imigrantes para o aumento da população brasileira. Este total
representa o excedente das imigrações sobre as emigrações. Também
contribuiu o sistema de colonização para o fracionamento da propriedade
territorial nas áreas onde apareceu. Com relação a essa diferença de
imigração sobre a emigração, pode-se estabelecer o que se chamou a “quota
de permanência” do imigrante, isto é, quantos, daqueles que entraram,
permaneceram no Brasil. O professor Emilio Willems calcula em 50%; o
professor Artur Hehl Neiva em 60%; e O professor Giorgio Mortara, em
particular para o grupo italiano, em 63%.

O processo transculturativo, quanto à sua maior ou menor reação, não se


pode estudar, entretanto, sem considerar certos aspectos gerais, fundamentais
para que se possa conhecer e compreender os efeitos produzidos. O primeiro
deles evidencia que qualquer grupo alienígena não pode nem deve ser
estudado como um bloco uno; cumpre considerar a sua distribuição regional,
que é relevante para conhecimento do modo de reação cultural. Outro
aspecto, aliás, já tratado em capítulo anterior, é a forma de localização dos
imigrantes.

Deste modo o processo transculturativo está ligado muito intimamente ao


maior ou menor contato entre os grupos imigrados e o brasileiro. A situação
criada pela forma de localização influiu de maneira diversa para a efetivação
das relações culturais, seus fatores e seus resultados. Assim, em decorrência
de tais aspectos a que se deve aduzir ainda a própria origem regional do
imigrante, é que se pode verificar o que resultou do contato dos imigrantes
com o meio e as populações brasileiras.

Há sempre no imigrante um sentimento psicológico que não pode ser


esquecido. O que ele individualmente procura — e, com ele, sua família — é
uma melhoria de sua condição social, um novo ambiente de bem-estar, que
lhe proporcione melhor situação que a desfrutada no país de origem. Daí vir o
imigrante animado do desejo de ser proprietário, de lavrar uma terra própria,
ou de tornar-se dono de pequena empresa industrial ou comercial.

Quando o contato com a nova terra não lhe proporciona logo esse ideal, ou
não lhe dá perspectivas para tanto, o imigrante sente-se como que frustrado.
Tal fato, aliás, se vem verificando em correntes imigratórias mais recentes.
Surge então o problema da inadaptação, que é o aspecto exterior de sua
frustração, e em consequência o de retorno à terra de origem.

A possibilidade de o imigrante tornar-se proprietário, com aquela mesma


facilidade verificada nos primeiros tempos da imigração no Brasil, tem
decrescido, em primeiro lugar, pela existência em menor quantidade de terras
a ocupar na região meridional, e, em segundo lugar, porque o imigrante não
traz mais aquele espírito pioneiro, do século XIX, capaz de enfrentar terras
virgens, ainda a desbravar e povoar, em outras áreas do Brasil.

Por outro lado o desenvolvimento industrial do Rio de Janeiro e de São Paulo


e, em parte, o do Rio Grande do Sul vem necessitando de mão-de-obra
assalariada, também reclamada pelas lavouras. Mas esta mão-de-obra não
tem um salário compensador, em face da própria situação econômica das
indústrias e ainda da concorrência do trabalhador nacional emigrado de
outros pontos do País, para o Rio de Janeiro, São Paulo, Paraná. A influência
da migração interna tem sido bastante grande para atender às necessidades de
mão-de-obra e igualmente para a existência de baixos salários.

O imigrante, pois, vai ser operário industrial ou então trabalhador rural; surge
o desgosto, a inadaptação e, em consequência, o desejo de retornar. É certo
que a quota de retorno é ainda pequena diante do número dos que se fixam.
Mas há outro aspecto do problema que é o de ficar no país, mas não se fixar
numa atividade; tomar-se o imigrado, de certo modo, instável no trabalho.
Estes que ficam são geralmente trabalhadores qualificados, possuidores de
certos conhecimentos técnicos. Infelizmente não dispomos de estatísticas
atualizadas sobre as profissões dos que ficam e dos que retornam para um
estudo comparativo mais aprofundado.

O intercruzamento étnico dos grupos alienígenas com o elemento brasileiro


tem sido muitas vezes limitado ou impedido por certos preconceitos,
inclusive os de religião e até os de trabalho; de modo que o desenvolvimento
dessas populações se tem feito quase sempre dentro dos próprios grupos
étnicos. Esta afirmativa não exclui a existência de cruzamentos inter-raciais
modernamente bem significativos entre estrangeiros e brasileiros, formando
assim um já amplo quadro de descendência ítalo-brasileira, ou teuto-
brasileira, ou mesmo nipo-brasileira ou polono-brasileira.

Mostrou o professor Giorgio Mortara que os índices de uniões ítalo-


brasileiras e de uniões hispano-brasileiras se evidenciam bastante elevados, o
que não sucede, por exemplo, em relação às uniões teuto-brasileiras, ou
austríaco-brasileiras, ou nipo-brasileiras, que são relativamente baixas. No
período de 1934-39, 71,26% de noivos italianos casaram-se com brasileiras, e
50,83% de noivas italianas casaram-se com brasileiros; no mesmo período,
entre os noivos alemães, 36,51% casaram-se com noivas brasileiras, e
20,83% de noivas alemãs foram escolhidas por noivos brasileiros.
Tomando-se particularmente um Estado em que é grande o contingente
imigrantista — o Rio Grande do Sul — observa-se, através de dados
estatísticos, que é em maior número o casamento de estrangeiro com
brasileira, que entre estrangeiros, ou entre brasileiro e estrangeira. Em 1938
houve 509 casamentos de estrangeiro com brasileira, 153 de brasileiro com
estrangeira e 102 de estrangeiro com estrangeira. Em comparação com um
ano mais recuado — o de 1910, por exemplo — encontramos, nesse ano, 167
casamentos de brasileiro com estrangeira, 403 de estrangeiro com brasileira, e
902 de estrangeiros entre si.

Outra particularidade a observar diz respeito aos casamentos segundo as


nacionalidades. Em 1937 houve 23 casamentos de brasileiro com alemã, 18
de brasileiro com italiana, 26 de brasileiro com polonesa, 6 de brasileiro com
russa, afora os realizados entre brasileiros e nacionais de outros países. De
alemão com brasileira houve 96 casamentos e de alemão com alemã 29; de
italiano com brasileira houve 57, e entre italianos 10; de russo com brasileira
26; de polonês com brasileira 65. Outros dados a analisar seriam também os
de nascimentos registrados conforme a nacionalidade dos pais. No período de
1938-41 o maior número, sempre superior a mil, é de filhos de pai estrangeiro
com mãe brasileira, variando entre 350 e 550 os registros de filhos de pai
brasileiro e mãe estrangeira.

É de observar-se, aliás, que muitos desses descendentes têm ascendido a altos


cargos políticos — ministros de Estado, governadores, deputados, senadores
da República. A ascensão social e política de filhos ou descendentes de
imigrantes ou colonos se tem verificado, de modo sensível, principalmente
nos Estados meridionais — de São Paulo ao Rio Grande do Sul. Hoje em dia
grande parte das posições políticas, administrativas ou legislativas está
ocupada por estes descendentes, particularmente de italianos ou sírios e
libaneses em São Paulo e de alemães e italianos nos Estados do Sul; em parte
acontece o mesmo no Espírito Santo e Minas Gerais.

No Congresso dos Municípios, realizado em abril de 1950, a presença de


prefeitos e vereadores municipais das várias regiões brasileiras permitiu
observar-se o contraste social e étnico entre os elementos de procedência
sulista e os de procedência nordestina ou nortista; aqueles quase sempre
claros, de olhos azuis, com sotaque nitidamente estrangeiro, trazendo no
sobrenome a ascendência de antigos imigrantes ou colonos — Zanchi,
Vizioli, Melzer, Ravazzi, Pezzolo, Picarelli, Grubba, Brunetti, Zimmermann,
Gehlen, Froeglich, Krause —, enquanto os outros, conservando a procedência
lusitana, ou melhor, luso-brasileira, na coloração menos clara, ostentavam os
sobrenomes legitimamente portugueses ou já hoje tradicionalmente
brasileiros — Silva, Ribeiro, Amaral, Silveira, Costa, Cabral, Albuquerque,
Castro, Lopes.

A predominância de sobrenomes de origem germânica, italiana ou turco-


árabe, nas atividades políticas ou sociais dos Estados meridionais,
corresponde a manutenção dos nomes de famílias de procedência luso-
brasileira nos Estados do Nordeste ou do Norte. Nessas áreas a colonização
estrangeira não fincou pé, e em consequência conservam-se os tradicionais
sobrenomes lusitanos ou já brasileiros; alguns desses últimos, os brasileiros,
originados de movimentos nativistas da primeira metade do século XIX
contra os lusitanos. Tanto quanto a este aspecto social corresponde o outro, o
étnico; isto é, o elemento claro ou alourado, de olhos azuis, dos sulinos, em
contraste com os morenos e pardos, alguns negróides, dos da região Nordeste
e, em parte, mongolóides, da região Norte.

No caso do Brasil, país novo, de origem portuguesa, embora com


características próprias decorrentes de condições ecológicas e igualmente
culturais, oriundas de outros grupos com os quais sua população tem tido
contato, o processo das relações de cultura entre as populações brasileiras e
as imigradas terá de colocar-se sob outros aspectos. Em primeiro lugar, nunca
se apresenta unilateral. Ao contrário: tem sido bilateral e, às vezes,
polilateral. Dele participam grupos diversos, isto é, não apresenta a influência
única de um grupo sobre outro, mas a permuta de elementos culturais entre
grupos. O que, aliás, tem sucedido desde o período colonial.

Acresce considerar que o período de tempo de imigração no Brasil, ao


contrário do que sucede na Europa, é relativamente curto para um balanço
mais aprofundado das respectivas condições de contato entre os diversos
grupos. Num sentido amplo, vai a pouco mais de cento e cinquenta anos, se o
iniciarmos com a abertura dos portos; praticamente, porém, de 1808 até cerca
de 1870 o movimento imigratório foi pequeno. Somente abolida a escravidão
foi que se intensificou a imigração, aumentada um pouco, é certo, nos anos
que precedem o 13 de Maio. Desta maneira não temos ainda uma vasta
tradição imigratória a considerar. E alguns grupos mesmo, como os
japoneses, têm pouco mais de sessenta anos de imigração contínua, e outros,
como os sírios e libaneses, vão a pouco mais disto.

Problemas políticos têm surgido em relação aos grupos teuto-brasileiros e


nipo-brasileiros; em relação aos outros não os tem havido de maior
importância, e isto, ao que parece, em decorrência da origem comum de uma
mesma cultura ou de um mesmo “ethos” de portugueses e italianos e, em
parte, de poloneses.

Sendo recente a participação do japonês na vida brasileira, pois data de 1908


sua primeira entrada, parece cedo ainda para se aferirem inteiramente seus
resultados. Não se pode afirmar existir inassimilabilidade do nipônico, como
também não se deve chegar ao extremo oposto de admitir facilidade nessa
assimilação.

Tais estudos já se podem fazer, entretanto, em relação ao alemão ou ao


italiano.

Com essas correntes imigratórias, diferentes etnias participando da formação


brasileira, quebrou-se aquela unidade originariamente lusitana, sem prejuízo
da base comum e fundamental que ainda hoje caracteriza a formação
brasileira. Tornou-se o quadro dessa formação influenciado por valores de
outras origens, alguns também europeus, mas não ibéricos. Daí a
incorporação à nossa cultura de elementos oriundos dessas fontes: de fontes
italianas ou alemãs, polonesas ou sírias ou libanesas, mais recentemente de
fontes japonesas, e não apenas européias de várias nacionalidades. O que tem
contribuído em face dessas influências variadas, para o processo de
pluralismo étnico e cultural que o Brasil apresenta.

De modo que o Brasil constitui cenário em que se processam


democraticamente as mais diversas relações de raça e de cultura; desses
contatos é que resultam, em grande parte, as diversidades culturais de áreas
ou regiões do país, de um lado, e, de outro lado, os aspectos mais
característicos do Brasil moderno. O brasileiro herdou, e vem mantendo, do
seu antepassado português, aquele mesmo espírito de tolerância e de
adaptação que tanto caracterizou o lusitano como colonizador na aceitação
das correntes imigratórias européias ou não-européias fixadas em colônias no
Brasil.

Formou-se, neste quadro cultural do Brasil contemporâneo, um sistema de


coexistência de diferentes valores culturais. Para assegurar essa coexistência,
não lhe faltou, a esse quadro, um certo equilíbrio no sistema de experiência
que representou esse contato de grupos portadores de diferentes culturas, e
não apenas de diferentes níveis culturais. Tal como já assinalou Gilberto
Freyre, o pluralismo implica uma certa forma de equilíbrio entre os elementos
de segurança e os elementos de insegurança em cada cultura coexistindo com
uma, duas ou mais outras culturas.

Deste modo podemos encontrar, no panorama da cultura brasileira, esse


quadro: o das relações de equilíbrio em que se desenvolveram as culturas
européias ou não-européias vindas com a imigração, ao contato com os
grupos representativos da tradição cultural brasileira; ou mais seguramente da
cultura chamada luso-brasileira. Os diferentes fatores que têm contribuído
para o desenvolvimento desse processo permitem considerar-se o Brasil
como uma vasta experiência de pluralismo étnico e cultural; e dessa
experiência resulta o que já poderemos chamar de cultura brasileira.

A interpenetração cultural se vem fazendo, ao lado do cruzamento étnico,


sem nenhuma resistência ao seu desenvolvimento. Ao contrário: com a
aceitação ou a permuta de padrões ou valores culturais, dentro do espírito
cristão de tolerância e de fraternidade que o brasileiro se arraigou como a
mais legítima herança espiritual do português colonizador.

Um sistema quase natural e espontâneo de aceitação ou de aproximação é o


que se vem verificando entre os elementos tradicionais e os elementos novos.
O imigrante, de um lado, aceitou certos elementos que naquele momento se
mostravam indispensáveis à sua sobrevivência; e, de outro lado, começou a
transmitir traços culturais que se constatavam possíveis de aceitação pelo
brasileiro, embora nem sempre de modo rápido ou fácil. Daí o processo que
se desenvolveu, fundindo-se ou absorvendo-se elementos, reinterpretando-se
outros, criando-se a maioria deles, como valores que hoje caracterizam esse
novo quadro: o da cultura que podemos chamar brasileira.
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