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Daniela Valentim
A temática que envolve a branquitude tem sido ampliada a partir dos protagonismos dos
movimentos negros e seus aliados, especialmente após os governos do presidente Fernando
Henrique Cardoso, visando a luta por direitos e pela criação e cumprimento de políticas públicas
de ações afirmativas. Tais políticas têm potencialidades no enfrentamento do racismo cultural
brasileiro, mas também respondem à dimensão redistributiva de aumento de renda e mobilidade social
ascendente dos sujeitos não brancos (Valentim, 2016).
De acordo com Lia Schucman (2001), o letramento racial envolve reconhecer, refletir e
desconstruir formas de pensar e agir que foram naturalizadas, e que fazem parte de uma questão
estrutural e institucional. Envolve entender como o racismo foi construído, assumir e
reconhecer como ele ganha novas formas hoje.
Todavia, penso que ainda há pouca produção voltada para os professores que discutam seus
pertencimentos raciais e de seus alunos pensados a partir do lugar do branco, do privilégio branco que
vamos trabalhar adiante2.
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A pesquisadora afro-americana France Winddance Twine (TWINE, 2004 apud TWINE;
STEINBUGLER, 2006) cunhou o nome Racial Literacy para se referir a um conjunto de práticas que
permite que pessoas racializadas, tanto como brancas, quanto como não brancas passem a perceber a
racialização e suas consequências na sociedade. No Brasil, o tema chega com a psicóloga Maria
Aparecida Bento.
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Em contraste, há uma grande produção acerca da aplicação da Lei 10.639/2003 e literatura infanto-
juvenil focadas no empoderamento pessoal dos sujeitos negros e representatividade da cultura africana
e afro-brasileira.
Entendo que nós, professores brancos, somos especialmente chamados a entender o racismo que
estrutura a sociedade de classes brasileira e a desempenhar estratégias de combate a ele como
defendido pelos Estudos Críticos da Branquitude, cuja lógica é fazer um deslocamento de estudo
dos “outros” racializados para o ponto central da construção da ideia de raça, ou seja, para os
brancos.
Os Estudos Críticos fazem crítica à produção e construção da branquitude tendo em vista a luta
antirracista, colocando em destaque o branco nas relações raciais, racializando também esse
branco, tirando dele a referência daquele que representa a humanidade. O humano.
As nomenclaturas e categorias que empregamos na discussão racial, tais como raça, branco,
negro, não negro, são todas relacionais e provisórias produzidas politicamente e as utilizo como
forma de reconfigurar o espaço público, como defende Silvio Almeida, visando a possibilidade
de construção de um outro mundo. Por outro lado, são polissêmicas e seus sentidos variam de
acordo com a teoria, isto é, o lugar epistemológico/político do qual se fala.
Raça aqui não é um construto genético, mas sociológico gerador de efeitos concretos, reais.
Eu me alinho aqui ao lado daqueles que têm a esperança de construir subjetividades guerreiras
contra todas as formas de violência que o racismo produz. Discutir sobre raça e racismo sendo
branca é se colocar, por vontade própria, numa disputa discursiva de proporções globais em
terreno movediço. Eu falo especialmente para os professores brancos como eu, me nomeio e
situo como uma experimentação pessoal e política no diálogo sincero e fraterno com meus
colegas professores.
Situando a discussão
Raça não é um marcador biológico, mas uma forma, um modo de dar significado às relações
de poder geradoras de privilégios e subalternidades. Raça é construção histórica, é fenômeno
social, e não há nada fixo, essencial, evidente ou real nela, o que não significa questionar a
potência da raça como organizador nas relações de opressão e exploração (Frankenberg, 2004).
Raça não é apenas um marcador identitário, mas um marcador produtor de desigualdade.
O projeto colonial da Europa ocidental conferiu ao branco o poder de nomear o não branco e
de se apropriar de suas riquezas. Ele não se nomeou, posto que se definiu como um ser humano
universal, como humanidade. O homem, o humano não se nomeia - ele é hierarquicamente
superior. Os demais, são grupos racializados e inferiorizados. Sendo assim, o branco é o
detentor de um privilégio discursivo gerador de muitas consequências.
Assim, tudo que o branco produz é a norma. Desde os conhecimentos, a religião, a forma de
sentir, até as vestimentas. Trago um exemplo da professora Lia Schucmam. Ela diz: imagine
uma roupa formal de trabalho masculina? Terno e gravata; Pensando a contrapelo, terno e
gravata também não seriam “roupas étnicas”, roupas de um grupo particular que se
universalizou? Sim, mas devido as relações de poder, o branco não tem “roupas étnicas” e eu
acrescento, só os não brancos como indianos, indígenas, judeus ortodoxos, ciganos têm e são
particularidades exóticas e folclóricas.
Nesse sentido, todas esferas sociais se estruturam e se moldam para atender ao branco como o
“modelo”. Pense na meia calça cor de pele ou batom cor de boca. Pele e boca de quem? Das
mulheres brancas, por certo!
A branquitude é o estudo dos brancos nas relações raciais. Para Frankenberg (1999) “é uma
posição de poder, um lugar confortável do qual se pode atribuir ao outro aquilo que não se
atribui a si mesmo: a raça”. Para Lia Schucman (2004, p. 4),
A branquitude é entendida como uma posição em que sujeitos que ocupam esta
posição foram sistematicamente privilegiados no que diz respeito ao acesso a
recursos materiais e simbólicos, gerados inicialmente pelo colonialismo e pelo
imperialismo, e que se mantêm e são preservados na contemporaneidade. Portanto,
para se entender a branquitude é importante entender de que forma se constroem as
estruturas de poder fundamentais, concretas e subjetivas em que as desigualdades
raciais se ancoram.
Note-se que os estudos críticos da branquidade não são sinônimos de estudos que reforcem a
branquidade como local de privilégio. Os estudos críticos da branquitude nomeiam o grupo
racial branco, o tirando da invisibilidade, da normatividade, apontando para o seu legado
histórico opressor e é isso que estamos fazendo aqui.
Se o branco é o padrão e, portanto, o exemplo a ser seguido esse fato é gerador de violência
simbólica até genocida.
Antes e hoje, temos vivenciado inúmeras situações em que fica óbvio o entendimento dos não
brancos como não plenamente humanos: vide a política antidrogas, o encarceramento
desproporcional da população negra, o extermínio das comunidades indígenas e quilombolas,
a violência contra a mulher negra, o assassinato dos jovens negros e periféricos pelas polícias,
o impacto mortal do Covid, dentre outras.
Faça o teste do pescoço proposto por Luh Souza (2015), espiche o seu pescoço e verifique onde
estão ou não estão os negros e brancos. Não conheço quem não tenha aprendido com esse teste.
A Luh propõe: “aplique o Teste do Pescoço no seu dia a dia, em todos os lugares e tire suas
próprias conclusões. Questione-se: somos de fato um país pluricultural, uma ‘Democracia
Racial’ tratados iguais e com as mesmas chances?” 3
A pessoa branca não ocupa um lugar de neutralidade racial, ao contrário, ela foi e é beneficiada
por um complexo de relações de poder que a colocam no lugar de privilégio para o qual se olha
e se lê a sociedade e, é pertinente dizer: tal pessoa usufrui dessa condição racial por toda sua
vida.
Mais do que isso, pessoas brancas atuam na manutenção do racismo quando se isentam de olhar
para seus lugares sociais sem questionar suas responsabilidades pelas desigualdades existentes
entre os grupos raciais.
Vivemos o privilégio branco e essa condição está em antagonismo com a ideia de meritocracia
na ocupação dos espaços sociais. Eu, por exemplo, professora da UERJ, por certo que estou
nesse local porque fui beneficiada, inúmeras vezes, pela branquitude que interditou aos negros
a concorrência equânime a essa vaga e as demais que eu concorri (ao longo da minha trajetória
acadêmica e profissional), através da discriminação sistêmica por eles sofrida.
Desse modo, a branquitude funciona com base nas estruturas que operam independentemente
de cada um de nós, mas também se apoiam nas alianças que nós brancos fazemos entre nós,
alianças inconscientes que acabam de um modo ou de outro interditando os não brancos como
nos ensina Aparecida Bento (2002) que chama esses mecanismos de interdição de “pactos
narcísicos”.
Bento já nos chamava a atenção quando denuncia: “a falta de reflexão sobre o papel do branco
nas desigualdades raciais é uma forma de reiterar persistentemente que as desigualdades raciais
no Brasil constituem um problema exclusivamente do negro, pois só ele é estudado, dissecado,
problematizado”.
A questão como eu cheguei aqui nesse espaço social (no trabalho, no condomínio, na família,
dentre outros) é um questionamento que os brancos devem realizar a fim de se dar conta do
privilégio racial do qual sempre usufruirmos. A partir daí, fazemos um movimento de tomada
de posição antirracista na condição de sujeitos brancos.
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Ressalto que há outras condições sociais que respondem por desigualdades para além da racial, dentre
elas a classe, a origem, a região, o gênero etc.
Nessa lógica social, é impossível aos brancos não vivenciarem o privilégio branco. Ainda que
eu ou você não pretendamos ter esse privilégio de sermos norma, nós o temos, e nós o
introjetamos. A branquitude é um automático porque a branquitude é hegemônica, ela se mostra
e atua como uma superioridade em relação aos não brancos.
E nós professores?
Toda essa discussão gera tensão, desconforto e muitos de nós professores vivemos a questão
“enfrentar ou silenciar?”
Parece que os professores negros estariam mais à vontade? Penso que não. Afinal, temos em
conta que são os negros os impactados por estereótipos e estruturas racistas que são
reproduzidas por séculos e que matam.
Tendo como horizonte uma práxis docente emancipadora e não colonial, só resta a luta diária
de enfrentamento ao racismo e eu (muito pessoalmente) penso que nenhuma saída do racismo
que passe por dentro do capitalismo, do colonialismo e do patriarcado seja efetiva. Entretanto,
é óbvio que nos dispomos a trabalhar nas brechas como nos ensinou Catherine Walsh (2014a e
b, 2017) para quem a pedagogia vai além dos processos de ensino-aprendizagem, assumindo-a
como um modo de luta coletiva, crítica e dialógica.
A luta antirracista se empreende a partir dos lugares sociais onde se dá a experiência de vida de
cada pessoa. Na condição de formadora de formadores eu lembro Boaventura Santos que nos
convoca a sermos intelectuais de retaguarda, intelectuais capazes de contribuir com seu saber
para o reforço das lutas sociais contra a dominação e a opressão.
A sociologia, a história, os campos científicos brasileiros, que tiveram a questão racial em mira
como tema de seus estudos, sempre pautaram os não brancos, deixando os brancos de fora.
Brancos até hoje são os ocupantes majoritários dos lugares acadêmicos que estudam as relações
raciais, nesse caso “a questão do negro” ou o “problema do negro”. Por que? Uma hipótese:
quem tem raça é o negro ou o não branco na sociedade estruturada no racismo, colonial. O
branco é o humano.
Cada grupo social tem limites de ver a vida. Nós brancos temos limites epistemológicos, embora
tenhamos um ímpeto ou um privilégio universalista.
Por outro lado, o acesso à produção científica ainda é muito desigual, daí “o negro” como objeto
de estudo de brancos, vide minha tese de doutorado, entretanto, esse quadro vem se alterando,
na medida em que pessoas negras ou não brancas vão alcançando o espaço de produtores de
conhecimentos científicos e vão acessando espaços antes interditados com suas perguntas,
teorias e análises.
Guerreiro Ramos, um pioneiro do pensamento acerca do lugar do branco nas relações raciais
brasileiras atesta:
Vozes negras têm sido mais ouvidas, têm tensionado o campo das relações raciais exigindo um
rearranjo. Há, no momento, uma disputa por um “mercado epistêmico”, prestígio, convites para
palestras, empregos, referências bibliográficas, mídia e dinheiro e isso é muito bom.
E nesse contexto, lembrando que educar para as relações raciais é uma obrigação legal, mas
antes disso, um compromisso ético de todos os professores, faço a seguinte sugestão para a
docência independente da disciplina lecionada, posto que não há disciplina apartada pela sua
natureza intrínseca da questão racial ou de um momento específico do curso: traga a discussão
racial para o centro das suas intervenções pedagógicas.
Racialize a si mesmo e aos seus alunos. Caso seja branco, abra mão conscientemente de
um lugar social pretensamente neutro. Entenda que há uma estrutura racial que quando
não confrontada funciona a favor dos brancos.
Estimule os alunos a falar sobre seus lugares raciais, suas vivências e experiências.
Confronte, compare as falas de seus alunos brancos e negros.
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As ideias apresentadas não são necessariamente minhas ou originais, são as que tenho defendido, posto
que experimentadas no percurso da minha docência com efetividade.
Eleja, contribua para a ascensão institucional dos colegas negros para os diferentes
espaços de decisão e de poder, sindicatos, departamentos, direções e conselhos.
Por fim, para aprofundamento, leia os seguintes autores sobre o tema 5: Denise Carreira,
Edith Piza, Cesár Rossato e Verônica Gesser, Maria Aparecida da Silva Bento, Liv
Sovik, Lúcio Otávio Alves Oliveira, Lourenço Cardoso, Lia Vainer Schucman e Ana
Helena Passos, dentre outros.
Referências Bibliográficas
FRANKENBERG, Ruth. White women, race masters: the social construction of whiteness.
USA: University of Minnesota, 2009.
PIZA, Edith. Porta de vidro: entrada para a branquitude. In: CARONE, I.; BENTO, M. A. S.
(Org.). Psicologia Social do Racismo: estudos sobre branquitude e branqueamento no
Brasil. 6. ed. Petrópolis, RJ: Vozes, 2014. pp. 59-90.
SANTOS, Boaventura: Para uma pedagogia do conflito. In: SILVA, L. H. et. al.: Novos mapas
culturais, novas perspectivas educacionais. Porto Alegre: Sulina, 1996.
___________. Sim, nós somos racistas: estudo psicossocial da branquitude paulistana. Psicologia &
Sociedade. 26, abr. 2014. Disponível em:
< https://www.scielo.br/j/psoc/a/ZFbbkSv735mbMC5HHCsG3sF/?lang=pt> Acesso em 2021.
___________. Professora Lia Vainer Schucman explica a relação entre racismo e o conceito de
branquitude. 2021. Programa SC no ar. Disponível em:
< https://www.youtube.com/watch?v=XBuls2RyFxM&ab_channel=ProgramaSCnoAr>
Acesso em 2022.
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Foi Denise Carreira (2018) que elencou os autores sobre branquitude no Brasil que aqui apresento.
SOUZA, Luh. Quer saber se ainda o Racismo existe no Brasil? Faça o Teste do Pescoço –
parte II. Disponível em: https://www.geledes.org.br/quer-saber-se-ainda-o-racismo-existe-no-
brasil-faca-o-teste-pescoco-parte-ii/ Acesso em: 2020.
TWINE, F. W.; STEINBUGLER, A. The gap between whites and whiteness: interracial
intimacy and racial literacy. Du Bois Review: Social Science Research on Race, New York, v.
2, n. 3, p. 341-363, ago. 2006. Disponível em:
<https://www.researchgate.net/publication/231775543_The_gap_between_whites_and_white
ness_Inte> Acesso em 2020.
VALENTIM, Daniela. Educação intercultural crítica e ação afirmativa: avanços e desafios. In:
Interculturalizar, descolonizar, democratizar: uma educação “outras”? (Org.) CANDAU, V.
Rio de Janeiro: 7 Letras, 2016.
WALSH, Catherine. Notas Pedagógicas desde las Grietas Decoloniales. Universidad Andina
Simón Bolívar: Ecuador, 2014a.