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23/01/2022 16:02 “O modelo da boa sociedade não é a meritocracia” - Carta Maior

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Pelo Mundo

“O modelo da boa
sociedade não é a
meritocracia”

Por Eduardo Febbro, de Paris

27/11/2012 00:00

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Paris - De todas as reflexões e livros que


apareceram nos últimos anos sobre a
democracia e a crise, o ensaio do professor
Pierre Rosanvallon é o mais vasto e profundo.
Com seu livro “La société des égaux” (Seuil), ("A
Sociedade dos Iguais"), Rosanvallon traça a
história fascinante das políticas em favor da
igualdade que marcaram o século XIX e o
século XX, ao mesmo em que moderniza o
termo com reflexões substanciais.

Pierre Rosanvallon ocupa desde 2001 a cátedra


de História de Política Moderna e
Contemporânea no Collége de France e é
também diretor da Escola de Altos Estudos em
Ciências Sociais. Próximo do Partido Socialista
francês, Rosanvallon tem como horizonte
intelectual a reflexão sobre a democracia, sua
história, o papel do Estado e da justiça social
nas sociedades contemporâneas.

Seus livros traçam um corpo de reflexões que


vão muito mais além do já trilhado diagnóstico
do mal. “A contrademocracia, a política na era
da desconfiança”, “Por uma história conceitual
do político”, “A legitimidade democrática” ou “O
capitalismo utópico, história da ideia de
mercado” aportam um caudal impressionante
de reflexões sobre um sistema político do qual,
apesar de tudo, desconhecemos seus impulsos.
“A sociedade dos iguais” responde

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perfeitamente à crise contemporânea marcada


por uma perigosa dualidade: o avanço da
democracia política, dos direitos, e a paulatina
desaparição do laço social que cria e alimenta
as sociedades democráticas.

Com grande rigor, Rosanvallon esmiúça as


teorias da justiça promovidas por autores como
John Rawls e seu conseguinte ideal: a
igualdade de possibilidades e sua aliada
principal, a meritocracia. Rosanvallon destaca
como entre a revolução conservadora
encarnada pela ex-primeira ministra britânica
Margaret Thatcher e pelo ex-presidente norte-
americano Ronald Reagan e a posterior queda
do comunismo surgiu um novo capitalismo que
mudou a fase da história. Mas esse novo
capitalismo destroçou a capacidade de os
seres humanos viverem e construírem juntos
como iguais e não apenas como consumidores
ou forças majoritárias. Rosanvallon moderniza
então o termo da igualdade entendida não já
como uma questão de distribuição das riquezas
mas sim como uma filosofia da relação social.

Em entrevista à Carta Maior, realizada em Paris,


Pierre Rosanvallon aborda os conteúdos
essenciais de seu livro.

Praticamente para qualquer lugar que se olhe, a


democracia vive um processo de degradação
potente. No caso concreto do Ocidente, a
impressão é de que os valores democráticos
mudaram de planeta.

Isso se deve a que, há 30 anos, nos países da


Europa, nos Estados Unidos e em praticamente
todo o mundo, houve um crescimento
extraordinário das desigualdades. Podemos
inclusive falar de uma mundialização das
desigualdades. Trata-se de um fenômeno
espetacular. Há cerca de 20 anos, as diferenças
entre os países diminuíram. As rendas medidas
na China, Brasil ou Argentina se aproximaram
das da Europa. No entanto, em cada um desses
países, as desigualdades aumentaram. Ao
mesmo tempo em que a China se desenvolvia,
as desigualdades se multiplicaram de forma
vertiginosa. Esse problema concerne ao
conjunto dos países. A Europa é o caso mais
emblemático porque o aumento da
desigualdade surge logo depois de um século
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de redução das desigualdades. Entre a Primeira


Guerra Mundial e a primeira crise do petróleo,
nos anos 70, na Europa e nos EUA houve uma
redução espetacular das desigualdades.
Podemos dizer que, para a Europa, o século 20
foi o século da redução da desigualdade. Agora
estamos no século da multiplicação das
desigualdades.

Neste sentido, você sustenta que ao mesmo


tempo em que a democracia se afirma como
regime ela morre como forma de sociedade sob
o peso da desigualdade. O laço entre os
cidadãos desaparece.

Como regime, a democracia tende a progredir


em todo o mundo. Mas sabemos que ela se
define também como uma forma de sociedade,
uma sociedade na qual podemos viver juntos,
uma sociedade da vida comum, uma sociedade
com relações de igualdade. A democracia
política do sufrágio universal e da liberdade
progrediu ao mesmo tempo em que a
democracia da sociedade dos iguais perdia
vigência. Hoje vemos um divórcio completo
entre o cidadão eleitor e o cidadão companheiro
de trabalho. Na maioria dos países estão se
multiplicando os guetos, as formas de
secessão e de separatismo social.

A história da democracia nos mostra que ela


tinha como objetivo a construção de um mundo
comum entre os habitantes de um país. Hoje
vemos a multiplicação dos mecanismos de
encerramento em si mesmo, de isolamento.
Isso é muito perigoso porque se a distância
entre a democracia política e a democracia
social segue aumentando é a própria
democracia política que corre um grande
perigo.

Você chama esse processo de “desgarramento


democrático”. Em suma, o desgarramento da
democracia é a desaparição do laço entre os
componentes da sociedade.

O grande problema da sociedade moderna


radica no fato de que é uma sociedade de
indivíduos. Mas esses indivíduos devem formar
uma sociedade todos juntos. os indivíduos
querem ter êxito em sua vida individual, querem
ser reconhecidos pelo que são, pelo que tem de
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específico. Mas isso implica saber compor com


essas singularidades e oferecer um marco
comum. E é precisamente esse marco comum
que está faltando. Por conseguinte, essa
demanda de singularidade só se expressa
mediante um individualismo galopante. Esse
problema do indivíduo está no coração da
modernidade. Desde a revolução
norteamericana e a revolução francesa, no final
do século XIX, já estamos em uma sociedade
de indivíduos.

O desenvolvimento do capitalismo criou o


fenômeno da classe operária, do partido de
classe. Era então uma sociedade de indivíduos
que recompôs as formas de solidez coletiva.
Hoje essas formas já não existem. Por quê?

Porque o que aproxima as pessoas não é o


mero fato de compartilharem uma condição,
mas sim, também, pelo fato de que
compartilham trajetórias, situações. Hoje se
requer outra forma para pensar o laço social.

Você redefine a noção de igualdade. Em sua


análise, é preciso abordar a igualdade não como
uma redistribuição das riquezas, mas sim como
uma relação social em si.

Precisamos que na sociedade haja


redistribuição e também solidariedade, mas
para que haja solidariedade é preciso que antes
se tenha o sentimento de que pertencemos a
um mundo comum. Isso é o que ocorreu na
Europa: se o Estado providência se tornou tão
importante é porque houve a experiência das
duas guerras mundiais, é porque houve o medo
das revoluções. Se o Estado providência foi tão
importante foi porque houve o sentimento de
uma desgraça vivida em comum, de uma vida
em comum que resultou decisiva.

Hoje o que falta a nossas sociedades é


precisamente a possibilidade de refazer o laço
social. A igualdade é uma forma de fazer isso.
Um filósofo britânico, John Stuart Mill, tomava o
exemplo da relação entre homens e mulheres.
Mill dizia: a igualdade entre o homem e a
mulher não consistem em que sejam os
mesmo, em que se pareçam, mas sim em que
vivam como iguais. O problema de nossas
sociedades é esse: não vivemos como iguais.

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E não vivemos como iguais porque há pessoas


que vivem em seus bairros fechados, em suas
mansões rodeadas de muros e alarmes
enquanto outros vivem na pobreza. Não
vivemos como iguais porque há cada vez
menos espaços públicos, porque se multiplicam
os subúrbios onde pessoas que têm as
mesmas opiniões, a mesma religião, o mesmo
nível de vida vivem entre si (e, neste sentido, os
Estados Unidos são um exemplo extraordinário
desse modo de vida).

Temos então sociedades fechadas em si


mesmas e não sociedades onde haja um
mundo comum. A igualdade é, antes de tudo,
isso: consiste em fazer um mundo comum. Mas
esse mundo comum não pode ser construído se
as diferenças econômicas entre os indivíduos
são muito importantes, não se pode fazer um
mundo comum se não há respeito pelas
diferenças, se todo mundo não joga as mesmas
regras do jogo. Por isso tentei construir essa
ideia da igualdade redefinida como uma relação
social em torno de três princípios: singularidade
(reconhecimento das diferenças), reciprocidade
(que cada um jogue as mesmas regras do jogo)
e comunalidade (a construção de espaços
comuns).

Na história do mundo, se as cidades foram


centros de liberdade foi porque criaram algo em
comum entre os indivíduos. As cidades não
foram somente lugares de produção econômica
ou lugares de circulação. Não, elas estavam
organizadas em torno do fórum, da praça
pública, de espaços que permitiam a discussão
entre as pessoas. É isso que está
desaparecendo hoje.

Um dos capítulos mais profundos de seu livro é


o que desenvolve uma crítica contra as teorias
da justiça promovidas por autores como John
Rawls. Essa teoria da justiça, que dá
legitimidade à ideologia da igualdade de
possibilidades, é para você uma pirâmide
invertida: promove a igualdade, mas acrescenta
a desigualdade.

A igualdade ocupou o centro de minha reflexão


intelectual para pôr fim a uma visão de
progresso social percebida unicamente a partir
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do tema da igualdade de possibilidades. Está


claro que a igualdade de possibilidades não
existe mais. A ideologia do mérito, da virtude,
da igualdade de possibilidades, não pode servir
para reconstruir sociedades. Por isso critiquei
as chamadas teorias da justiça, Essas teorias,
inclusive entre aqueles que apresentam sua
versão mais progressista, como o prêmio Nobel
de Economia Amartya Sem ou John Rawls,
seguem inscritas em uma filosofia das
desigualdades aceitáveis enquanto essas
desigualdades estejam articuladas em torno do
mérito, da ação do indivíduo.

Esse não é o modelo da boa sociedade. O


modelo da boa sociedade não é a meritocracia.
O bom modelo é o da sociedade dos iguais
entendida no sentido de uma sociedade de
relação entre os indivíduos, uma relação
fundada sobre a igualdade. Temos a impressão
de que a noção de igualdade de possibilidades,
sobretudo se a definimos de forma radical, pode
ser uma visão de esquerda. Todo o combate
político se joga entre a definição mínima e a
definição radical da ideia de igualdade de
possibilidades. Eu digo que é preciso desconfiar
dessa ideia de igualdade de possibilidades
porque se vamos até suas últimas
consequências terminamos por justificar as
desigualdades e também justificar a falta de
reação contra as desigualdades na medida em
que estas foram legitimadas.

O grande sociólogo britânico Michael Young foi


o primeiro a falar nos anos 60 da meritocracia,
que é um velho ideal dos séculos XVIII e XIX.
Young definia como um pesadelo todo país que
fosse governador pela meritocracia. E é um
pesadelo porque, neste caso, ninguém teria
direito a protestar contra as diferenças. Se
todas as diferenças estão fundadas sobre o
mérito, aquele tem uma condição inferior a tem
por culpa própria. Trata-se então de uma
sociedade onde a crítica social não teria mais
lugar.

É preciso ter consciência do limite do ideal


meritocrático, do limite das teorias da justiça,
do limite das políticas sobre a igualdade das
possibilidades. Mesmo que essas políticas
tenham seu espaço de validade, elas não
representam a bússola que deve orientar uma
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sociedade para sua transformação.

Os socialistas utópicos dos séculos XVIII, XIX e


XX também faziam da igualdade sua aspiração
maior. No entanto, você moderniza a ideia de
igualdade quando assinala que não se trata de
que todo mundo seja igual, mas sim de viver
como iguais partindo de nossa própria
singularidade.

Se observamos as utopias escritas nos séculos


XVIII e XIX, toda a visão da igualdade está
fundada sobre a ideia de uma homogeneidade,
ou seja, todo o mundo tem que se parecer. Para
esses utópicos, a ideia comunista, no sentido
comunitário que plasma a igualdade, era uma
ideia fundada sobre o fato de que todo o mundo
se parecia, de que todos trabalhavam em um
mesmo marco. Foi o que se chamou, em uma
determinada época, de uma espécie de
igualdade de posição ou igualdade da
uniformidade. Essa visão correspondeu a uma
idade da humanidade, mas hoje quem gostaria
de uma igualdade desse tipo, de uma igualdade
que negasse a diferença entre os indivíduos?
Esses utópicos não queriam as diferenças entre
os indivíduos. Queriam que todo mundo vivesse
no mesmo ritmo, que todos fossem, de alguma
maneira, o duplo dos demais.

Mas não é assim. Creio que a emancipação


humana passa hoje pela condição de que cada
pessoa seja reconhecida pelo que tem de
específico. Por conseguinte, a igualdade não
pode ser mais a uniformidade, nem a
uniformidade de posição, mas sim uma
igualdade da singularidade. É preciso voltar aos
fundamentos do que foi a revolução
democrática moderna e reviver em um sentido
autêntico a noção de igualdade, que não é a
noção de igualitarismo. O igualitarismo é a
visão aritmética da igualdade. Mas o que eu
tento definir é uma relação da sociedade, uma
ideia da igualdade como relação.

Para você, a ruptura com a filosofia política da


igualdade é uma crise moral e antropológica,
algo que vai muito mais além dos aspectos
econômicos ou sociais. Você chama essa
situação de “desnacionalização” da democracia.

Há duas definições de nação: por um lado,


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pode–se conceber a nação como um bloco


definido por uma identidade, pela
homogeneidade. É a definição nacionalista de
nação, para a qual só é bom o mundo
homogêneo e a solidariedade só existe se se
forma um bloco homogêneo. Para mim, essa é
uma definição arcaica da democracia. A
definição democrática de nação consiste em
compreendê-la como um espaço de
redistribuição aceito, um espaço no qual as
diferenças se compõem, um espaço de
aprendizagem do universalismo. Quando os
Estados nacionais nasceram foi porque houve
uma impossibilidade de realizar o universalismo
em sua acepção máxima. Tratou-se então de
fazê-lo a partir do pequeno. A grande ideia
democrática da nação consiste em ser um
espaço de experimentação do universalismo a
partir do pequeno. E quem diz experimentação
do universalismo está falando de
experimentação da solidariedade, da
redistribuição, da organização das diferenças
para viver em comum.

A modernidade parece encerrada em outro


paradoxo: por exemplo, o mercado é bom e
mau, aceito e criticado, desejado e temido. Isso
conduz à inação.

Se a ideia de mercado se impôs foi porque se


aliou com a ideia das preferências individuais. E
os indivíduos têm relações ambíguas com o
mercado. Se o mercado é definido como a
ditadura do dinheiro contra a vida pessoal e
social, a crítica do mercado, das bolhas
especulativas, é aceita por todos. No entanto,
se o mercado se apresenta como o campo dos
consumidores, como o que vai permitir que se
pague menos por determinados produtos, neste
caso a atitude frente aos mercados será menos
negativa. Se o mercado aparece como o
portador de valores como a individualidade será
aceito mais facilmente.

Daí provém a grande contradição do mundo


moderno. Podemos dizer que o mercado é
aceito e rechaçado secretamente. Há duas
dimensões: é aceito porque veicula valores
ligados ao indivíduo e à valorização do
consumidor, mas, ao mesmo tempo, é
rechaçado como sistema global de dominação
que instala uma potência da abstração sobre a
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vida concreta dos indivíduos. Ninguém põe em


questão o fato de que devemos viver em
economias der mercado porque essa é uma
forma de adequar a riqueza, de organizar as
trocas: não há como objetar isso. Mas, de certo
modo, o mercado se torna uma tirania quando
deixa de ser um instrumento e se torna um
senhor dominador.

Estar alienado ou dominado significa ter as


ideias do inimigo na cabeça. Eu diria que se o
poder das oligarquias é tão forte, isso se deve a
que uma parte de suas ideias está na cabeça
das pessoas. O terreno da batalha das ideias é
absolutamente essencial. As oligarquias jamais
teriam o poder que têm no mundo
contemporâneo se a ideia do mercado não
tivesse penetrado a sociedade por meio de
alguns de seus aspectos positivos. A ideia
penetrou a sociedade com postulados como a
defesa do consumidor ou o sentido do indivíduo
e, de alguma maneira, o mercado ganhou
também uma forma de adesão das pessoas por
seus aspectos maus: fez crer que seu lado mau
era inseparável do lado que parece positivo para
a população.

O capitalismo teve várias etapas. Você traça


uma fronteira entre o modo do sistema
funcionar até os anos 70, que você chama de
capitalismo de organização, e a mudança que se
produz com o capitalismo de inovação. Quais
são as particularidades de ambos?

O capitalismo de organização é o que triunfou


desde a Segunda Guerra Mundial e perdurou
durante 30 anos. A força desse capitalismo de
organização reside em sua capacidade de
dominação do mercado por parte das empresas
e em sua capacidade para organizar as
empresas. A partir dos anos 70, vamos passar
do capitalismo de organização para o
capitalismo de inovação. No primeiro, o valor
agregado não era o indivíduo, nem sequer o
diretor geral. Mas, no capitalismo de inovação, o
que vai contar é o trabalho dos indivíduos. Não
se pode imaginar a Microsoft sem seu chefe ou
a Apple sem Steve Jobs, ou a Oracle sem
Alison.

Neste novo capitalismo há então uma nova


relação entre a contribuição dos indivíduos e o
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êxito das empresas. Isso acarreta um paradoxo:


há uma tendência a considerar legítimas as
desigualdades de renda se se aceita que elas
estão ligadas à capacidade diferencial de
inovação e à contribuição que isso representa
para as empresas.

No capitalismo de inovação, o trabalhador não é


só um degrau, como ocorria com os
trabalhadores das fábricas. Não. Esse
trabalhador deve mobilizar-se pessoalmente e
permanentemente para avaliar os problemas ou
solucionar as dificuldades. Entramos em uma
economia que fez da criatividade e da
mobilização sua principal força produtiva. E se
isso é assim então se produz um excesso que
consiste em classificar os indivíduos segundo
sua criatividade e sua suposta mobilização. E
digo suposta porque é muito difícil explicar por
que um diretor ganha 500 vezes mais que um
trabalhador. O diretor não contribui 500 vezes
mais. Em uma equipe de futebol é fácil
identificar quem faz os gols. Em uma empresa,
mesmo se entramos em uma economia de
inovação, o fenômeno segue sendo coletivo.

Sua obra e sua vida foram dedicadas à


democracia. Você não tem a impressão de que
já ultrapassamos o estado de perigo e que
estamos chegando a uma fase de eliminação da
democracia?

Creio que ainda não chegamos ao estado da


eliminação democrática porque a sociedade
espera algo. Vemos muito bem como as
sociedades que conheceram uma multiplicação
considerável das desigualdades são sociedades
instáveis, que se tornam mais perigosas. A
desigualdade tem um custo para todo mundo.
Isso é muito importante: uma sociedade
desigual não tem somente um custo para os
pobres. Estes, é claro, são os primeiros
concernidos, mas o custo não recai unicamente
nos excluídos, mas no conjunto da sociedade. É
a segurança de todos que é afetada, é a
possibilidade de uma convivência que está em
questão.

Para você, a democracia ainda é um regime


insuperável.

A democracia é o regime natural do moderno.


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Vivemos em sociedades que não podem mais


ser reguladas pela tradição. Não se pode dizer
que estamos regulados mediante o poder dos
nossos ancestrais. Estamos em sociedades que
não podem ser reguladas também recorrendo a
uma lei divina. Por conseguinte, estamos em
sociedades onde devemos organizar o mundo
comum a partir da discussão pública. E se isso
é tão decisivo é porque se trata de uma
experiência que sempre é difícil. Aqueles que
olham a história da democracia como a história
de um progresso que vai da tirania à
democracia realizada se equivocam. A história
da democracia é uma história de êxitos e
traições.

No século XX, a Europa foi, por um lado, o


continente da invenção da democracia e, por
outro, o continente que viu as piores patologias
da democracia. Os totalitarismos foram, em
primeiro lugar, uma história europeia. O que me
fascina na história da democracia é que ela é a
história de uma experiência frágil e não uma
espécie de progresso acumulativo. É a história
de uma experiência, de uma indeterminação, de
um combate que nunca acaba, de uma luta
contra seus fantasmas que não termina de
tornar mais clara a deliberação entre os
cidadãos para que encontrem o caminho de
uma vida comum. No fundo, a democracia é
isso: organizar a vida comum sobre a
deliberação de regras que se fixam e não sobre
algo que teria nos sido dado como uma
herança.

Esse é, para você, o ponto essencial.

Sim, é o ponto essencial: a democracia é uma


experiência sempre frágil. Não podemos nos
tornar democratas crédulos: temos que ser
democratas atentos, vigilantes. Não há
democracia sem vigilância de suas debilidades
e dos riscos de manipulação. O cidadão não é
simplesmente um eleitor. Ele deve exercer esta
função de vigilância individual e coletiva.

Tradução: Katarina Peixoto

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